CP 074636
CP 074636
CP 074636
Faculdade de Teologia
Dissertação de Mestrado
Orientador: Prof. Dr. Geraldo Luiz De Mori, SJ
Belo Horizonte
2006
Dissertação de Mestrado
Orientador: Prof. Dr. Geraldo Luiz De Mori, SJ
Belo Horizonte
2006
4
RESUMO
1
Chamaremos “novíssimos” purgatório, inferno e céu conforme explicação da nota 3, da introdução a seguir.
5
Agradecimentos:
A Deus;
Ao CES, pela qualidade de ensino;
Ao professor Pe. Carlos Palacio, pela
aprovação do projeto desta dissertação;
Ao professor Pe. Geraldo Luiz De Mori, pela
orientação e correção deste trabalho;
Ao Pe. Renato José Lima, que me acolheu na
Paróquia Santo de Afonso, proporcionando-
me condições para o término da dissertação;
Às funcionárias: Dulcinéia, Zita e Leidiane;
À Província Brasileira da Congregação da
Missão.
7
ÍNDICE
Resumo...................................................................................................................................1
Palavras-chave.......................................................................................................................2
Agradecimento.......................................................................................................................3
Introdução..............................................................................................................................9
Introdução...........................................................................................................................111
3.2.1. Perspectivas gerais do tema do purgatório nos livros de Renold Blank...................112
a) Nos livros Viver sem o temor da morte e Nossa vida tem futuro........................113
b) No livro Escatologia da pessoa..........................................................................114
3.2.2. Bases bíblicas e históricas do dogma do purgatório.................................................115
a) Bases bíblicas para a doutrina do purgatório......................................................115
b) Elementos da tradição eclesiástica que determinaram a
doutrina do purgatório.........................................................................................117
3.2.3. Purgatório: oferta de Deus para a conversão, purificação
dolorosa e evolução humana na morte................................................................................119
a) Purgatório como oferta de Deus..........................................................................119
b) Purgatório como conversão.................................................................................120
c) Purgatório como purificação dolorosa................................................................121
d) Purgatório como evolução..................................................................................123
3.2.4. Dimensão social do purgatório: o juízo final............................................................124
Conclusão............................................................................................................................126
Conclusão geral.................................................................................................................164
Bibliografia........................................................................................................................168
12
INTRODUÇÃO
Decidimos estudar este tema porque muitas vezes temos sido interrogados sobre ele
na pastoral. De fato, é um tema que ainda desperta interesse, apesar de não ser bem
compreendido por muitos. Por outro lado, percebemos no meio acadêmico que estes
“novíssimos”3 deveriam receber mais atenção. Falar em purgatório, inferno e céu dá a
impressão, segundo alguns, de tocar em questões secundárias, desinteressantes ou mesmo
polêmicas.
Há algo que nos diz que esses três “novíssimos” andam desacreditados, talvez por
seu conteúdo ter sido apresentado de maneira inadequada. Pretendemos, ao longo destas
páginas, explicar o que ocorreu para que assumissem interpretações contrárias ao sentido
correto. Mostraremos que a visão individualista e a-histórica da escatologia tradicional
sobre purgatório, inferno e céu já não encontra ressonância na mentalidade atual. Sua
compreensão também foi marcada pelo medo, quando fazia referência ao purgatório e ao
inferno, e pela a-historicidade, quando dizia respeito ao céu.
1
J. B. LIBÂNIO; Ma. C. L. BINGEMER, Escatologia cristã. O Novo Céu e a Nova Terra, Petrópolis: Vozes,
1985, p. 19.
2
Ibidem, p. 19.
3
O eixo principal do discurso escatológico na teologia católica, antes do Vaticano II, era a reflexão sobre “as
últimas coisas” que aconteceriam ao homem e ao mundo. Os tratados escatológicos elaborados na escolástica,
a este respeito, revelam uma nítida distinção entre o mundo futuro e a história atual, de um lado; e, de outro, o
mundo novo do futuro. Assim, de novissimis é uma expressão indicativa dessa nova realidade totalmente
diferente que há de vir. As “novas coisas” eram tratadas com um enfoque coletivo (fim do mundo, juízo final
e ressurreição dos mortos) e num prisma individual (de novissimis hominis: morte, juízo particular,
purgatório, inferno e céu). Aqui, quando nos referirmos aos “novíssimos” estaremos falando dos três últimos:
purgatório, inferno e céu. Rigorosamente falando, purgatório não é um novíssimo, mas um estado
intermediário. No entanto, convencionaremos chamar as três realidades escatológicas mencionadas de
“novíssimos”. Este termo aparecerá geralmente entre aspas.
13
Reside no Brasil há vários anos onde leciona no Instituto Teológico São Paulo e
Instituto Pio XI, ambos em São Paulo. Tem livros publicados na Europa e na América
Latina. É um teólogo de referência no Brasil no que diz respeito à escatologia.
Recentemente, contribuiu com a nova coleção Livros Básicos de Teologia (LBT),
escrevendo o livro Esperança além da esperança juntamente com Angela Vilhena. A
coleção foi publicada pelas Paulinas e Ediciones Catequéticas y Litúrgicas (Siquem).
vontade salvadora do Pai, manifestada na ressurreição de seu Filho, é que o homem, sua
história e o cosmo cheguem à plena consumação. Neste sentido, purgatório e céu são
momentos de consumação orientados por Deus. O inferno, ao contrário, significa a
frustração do processo salvífico acarretada pela liberdade humana deturpada.
CAPÍTULO I
No século XX, a teologia cristã experimentou uma grande renovação1. Com isto, a
escatologia também recebeu impulsos rumo a novas perspectivas. Assim, a pesquisa na área
escatológica produziu bons resultados justamente devido aos novos enfoques teológicos
que estão em sua base. Renold Blank, em sintonia com este clima de renovação, elabora sua
reflexão teológica levando em conta os avanços que a teologia vem adquirindo nos últimos
tempos. Isto pode ser constatado em sua obra de específico cunho escatológico2.
1
Veja por exemplo o livro de Rosino Gibellini que descreve as principais correntes teológicas do século XX:
GIBELLINI, R., A teologia do século XX, São Paulo: Loyola, 1998.
2
Citamos os seguintes livros de Renold Blank que constituem a bibliografia principal deste trabalho: Viver
sem o temor da morte, São Paulo: Paulinas, 1984; Nossa vida tem futuro. Escatologia cristã 1, São Paulo:
Paulinas, 1991; Nosso mundo tem futuro. Escatologia cristã 2, São Paulo: Paulinas, 1993; Esperança que
vence o temor. O medo religioso dos cristãos e sua superação, São Paulo: Paulinas, 1995; Escatologia da
pessoa. Vida, morte e ressurreição (Escatologia I), São Paulo: Paulus, 2000 e Escatologia do mundo. O
projeto cósmico de Deus (Escatologia II), São Paulo: Paulus, 2002.
17
Introdução
ao âmbito católico por ocasião da segunda edição do livro de Loisy. E isto desencadeou a
crise modernista3.
A encíclica Humani generis (1950), de Pio XII, dispersou o grupo de teólogos que
estavam envolvidos na renovação teológica que se seguiu à crise modernista. No entanto, o
pontificado de João XXIII (1958-1963) vai mudar a situação. Apesar das adversidades e
3
Cf. R. GIBELLINI, A teologia do século XX, op. cit., pp. 154-157. Segundo o teólogo Paulo Sérgio Lopes
Gonçalves, “a crise modernista foi um período em que o magistério eclesiástico assumiu uma posição
contrária ao movimento de renovação na Igreja como forma de adaptação às exigências modernas. Três
grupos entram em cena nesse contexto de crise: um de direita conservadora intransigente, que rechaçou
qualquer adaptação; um de centro-esquerda, que admitiu a legitimidade e a necessidade de reformas –
profundas ou não – das maneiras tradicionais de viver e pensar; um de extrema esquerda, cuja crítica
demonstra disposição em contestar as imposições do magistério, incluindo as questões relativas à revelação
sobrenatural e à tradição. O magistério eclesiástico pronunciou-se agudamente contrário ao terceiro grupo e,
às vezes, ao segundo” (P. S. L. GONÇALVES; V. I. BOMBONATT0 (Org.), Concílio Vaticano II. Análise e
prospectivas, São Paulo: Paulinas, 2004, p. 71, nota 5).
4
Cf. R. GIBELLINI, A teologia do século, op. cit., pp. 164-170. De acordo com o teólogo Paulo Sérgio, supra
citado: “A nouvelle théologie é um movimento teológico desenvolvido em duas escolas teológicas, a de Lião-
Fourvière, dos jesuítas – Henri De Lubac e Jean Daniélou – e a de Saulchoir, dos dominicanos – Marie
Dominique Chenu e Yves Congar. Esse movimento articulou a fé com a história e desenvolveu uma
verdadeira teologia da história, redescobrindo a tradição cristã, relendo a revelação em seu dinamismo
histórico renovando integralmente a metodologia teológica ao sair da via dedutiva e ao enveredar pela via
indutiva de produção teológica” (P. S. L. GONÇALVES; V. I. BOMBONATT0 (Org.), Concílio Vaticano II,
op. cit., p. 72, nota 10).
No período da escolástica (século IX ao XV), a teologia era ensinada nas universidades (escolas) por
mestres chamados “escolásticos”. Nas universidades havia influência de outras ciências sobre a doutrina
cristã. A teologia escolástica se destacava pelo interesse especulativo, notadamente pelo seu método de
análise crítica e raciocínio dialético. As verdades dogmáticas eram formuladas em teses, provadas com
passagens bíblicas, dos Padres, de concílios e teólogos de renome. Real perigo da escolástica era o
enclausuramento da verdade em “fórmulas fechadas”, podendo bloquear o desenvolvimento da reflexão
teológica e tornar-se arma de combate a adversários da ortodoxia dentro e fora da Igreja. Este perigo
concretizou-se com a neo-escolática, que recebeu fortes críticas do modernismo.
19
Karl Rahner, tendo consciência de que a teologia é “fé solidária com o tempo”
(Marie-Dominique Chenu), foi o protagonista da reviravolta antropológica na teologia
católica. Inicia seu projeto analisando a situação cultural e teológica de sua época que,
segundo ele, é caracterizada pelos elementos: secularismo, mundo pluralista, dificuldade de
se fazer sínteses nos vários campos do saber e endurecimento dos conceitos teológicos.
Estas características dos novos tempos geram a moderna crise de fé. Para enfrentá-
la, Karl Rahner introduz um novo método em teologia. Trata-se do método antropológico,
também chamado de método antropológico-transcendental. Segundo este método, é preciso
uma abordagem que parta da experiência pessoal do ser humano e se interrogue sobre a
maneira como a verdade cristã pode corresponder a ela6. Ou seja, Karl Rahner quer mostrar
que para cada ponto doutrinal existe um correspondente motivo antropológico7. A teologia
de Karl Rahner representa vigorosa contribuição no âmbito da reflexão católica. O
Vaticano II assumiu oficialmente a perspectiva antropológica em muito de seus
ensinamentos.
O Concílio Vaticano II representou uma verdadeira riqueza para a Igreja, mas que
ainda não foi completamente assimilada pelos católicos. Dentre as diversas questões
cruciais que abordou está o problema antropológico. Diante dele, o Concílio oficializa um
novo paradigma para pensar Deus: o antropológico. O discurso teológico implica falar
5
Cf. R. GIBELLINI, A teologia do século XX, op. cit., pp. 173s.
6
Cf. Ibidem, pp. 223-237.
7
No transcendentalismo de Karl Rahner, Hans Urs von Balthasar denuncia uma “antropologização” do
cristianismo (cf. R. GIBELLINI, A teologia do século XX, op. cit., p. 237). Há diferença de enfoque entre a
obra teológica de Rahner e a Balthasar: se o pensamento rahneriano é uma antropologia teológica, o de
Balthasar é trinitário.
20
sobre o ser humano, uma vez que Deus se revelou como Deus a seres humanos e só
podemos compreendê-lo a partir da experiência humana e na linguagem humana8.
claramente antropológicos que são melhores percebidos no conjunto dos seus dezesseis
documentos.
“É a pessoa humana que deve ser salva. É a sociedade humana que deve ser renovada. É,
portanto, o homem considerado em sua unidade e totalidade, corpo e alma, coração e consciência,
inteligência e vontade, que será o eixo de toda a nossa explanação (...), proclamando a vocação
altíssima do homem e afirmando existir nele uma semente divina” (GS, no 3).
12
Cf. Ibidem, p. 381.
13
Exemplos de textos significativos a este respeito: “É a pessoa humana que deve ser salva (...). É, portanto, o
homem considerado em sua unidade e totalidade” (GS, n o 3). “O homem, ser uno, composto de corpo e alma,
sintetiza em si mesmo (...) os elementos do mundo material” (GS, n o 14). Neste trabalho, as citações do
Concílio são extraídas de: Documentos do Concílio Ecumênico Vaticano II, São Paulo: Paulus, 2001.
14
Cf. R. J. BLANK, Escatologia da pessoa, op. cit., pp. 91-95. Nestas páginas, Renold Blank explica o
desenvolvimento histórico do modelo dualista-binário.
22
Esta concepção também foi ensinada por Platão (século IV a.C.), que chegou a
sistematizar filosoficamente tal doutrina. A filosofia platônica se caracteriza pela afirmação
de um mundo das idéias transcendentes contraposto ao mundo sensível. Segundo o
platonismo, a alma é espiritual, preexistente ao corpo, de origem divina e eterna. O corpo,
por sua vez, é material, sem valor e transitório.
15
Cf. R. J. BLANK, Nossa vida tem futuro, op. cit., p. 65.
16
Cf. R. J. BLANK, Escatologia da pessoa, op. cit., pp. 83-87 onde o autor faz uma boa síntese, em forma de
esquema, sobre “o homem dentro da antropologia bíblica” e “o corpo na tradição bíblica”.
24
Conclusão
Introdução
Entendemos história como “palco” onde acontecem as ações humanas e o sentido geral
dado a tais ações, que leva a pensar num telos, numa direção e num significado.
O Vaticano II, indo nesta direção, valoriza as realidades terrestres e procura articular
corretamente as categorias “salvação” e “história”. Esta perspectiva histórica também está
presente na escatologia que, deixando de refletir apenas sobre os “últimos acontecimentos”,
chama a atenção para a história, palco da atuação humana e realidade a ser plenificada por
Deus.
salvação, Cullmann afirma que a história salvífica não é uma história ao lado da história da
humanidade, mas transcorre na história e faz parte dela19.
A maioria dos teólogos católicos tendia para o encarnacionismo. Entre eles, notável
foi a contribuição de Gustave Thils que elaborou a obra Teologia das realidades terrenas.
Segundo ele, as realidades históricas são as sociedades humanas, a cultura e a civilização.
A valorização destas realidades leva a concluir que o cristianismo é escatológico, mas não
escatologista e, portanto, não comporta uma visão negativa e pessimista dos valores
terrenos21.
19
Cf. R. GIBELLINI, A teologia do século XX, op. cit. pp. 255- 261.
20
Cf. Ibidem, p. 263.
21
Cf. Ibidem, pp. 265-267.
27
O Vaticano II tem uma postura otimista e positiva com relação ao mundo. Ele se
mostra receptivo à história e às realidades terrenas, declarando que é vontade de Deus
respeitar a autonomia destas realidades:
“É preciso defender a todo o custo a autonomia das realidades terrenas, quando por
autonomia se entende que as coisas criadas e as sociedades têm o direito de ser encaradas em si
mesmas e de se organizar com seus valores e suas próprias leis, que se vão aos poucos descobrindo,
explicitando e aplicando. É uma exigência atual e legítima, que está de acordo com a vontade do
Criador” (GS, no 36).
Deus se revela na história e isto é testemunhado pelas Escrituras. Elas mostram que
é em meio à trama da história, conflitiva, marcada pela provisoriedade e pela contingência,
que o ser humano é solicitado a fazer a experiência de Deus. O homem percebe-se
necessitado de salvação. Por isso, é aberto ao futuro, ao progresso e à possibilidade de
experienciar o Divino, que propõe salvá-lo. Com esta linha de pensamento, o Concílio
afirma que a salvação acontece na história, mas não apenas pela história, mas sim devido à
ação amorosa de Deus22.
22
Cf. P. S. L. GONÇALVES; V. I. BOMBONATTO (Org.), Concílio Vaticano II, op. cit. p. 210.
23
Cf. Ibidem, pp. 212s.
28
Na visão escatológica de Israel, este mundo e esta história são o campo da ação
salvífica de Deus. É neste mundo e no processo histórico que o ser humano encontra a
graça divina que salva. Também foi dentro de uma perspectiva histórica que Jesus atuou
pregando o Reino de Deus. No entanto, o sentido da história foi enfraquecendo-se no
decorrer do tempo devido, em parte, à helenização da linguagem teológica. Isso causou a
perda da dimensão histórico-salvífica, própria dos textos bíblicos. A teologia, abandonando
esta dimensão, adotou categorias abstratas e distanciadas da realidade.
enfoque básico permanece marcado pelo pessimismo diante da história e do mundo 26, e isto
influenciou a compreensão dos “novíssimos”, como veremos no capítulo três.
terra tem futuro apesar dos desastres ecológicos? Será que poderemos superar as injustiças,
a fome, a guerra, a exclusão social e econômica? Será que a vida tem sentido, apesar das
experiências de fracasso, de doença e de morte? Diante de um quadro tão complexo, a
escatologia tenta dar respostas aos questionamentos dos homens a partir de uma base
bíblica de esperança;
Este contexto influenciou a teologia católica que passou a adotar uma visão mais
otimista e dinâmica com relação à escatologia. Isto aconteceu quando ela começou a
dialogar com o mundo moderno, deixando-se questionar por seus desafios e buscando dar-
lhes soluções. Vários teólogos se empenharam nessa direção; por exemplo, Karl Rahner e
Pierre Teilhard de Chardin. A nova postura foi assumida pelo Vaticano II, como já vimos.
Mas cabe citar aqui uma passagem em que o Concílio mostra a relação entre escatologia e
história:
30
Cf. Ibidem, pp. 108s.
31
Percebe-se, cada vez mais, que o discurso escatológico é impossível sem a dimensão
histórica. Deus dirige sua palavra a pessoas concretas e em situações reais. Jesus, por
exemplo, ao pregar o Reino de Deus mostrou-o em íntima conexão com a história. É a
partir deste pressuposto que podemos formular uma interligação entre história e
escatologia31. A história caminha rumo a uma plenificação. Por causa disso, podemos ter
esperança. Baseada nesta convicção, a nova escatologia acentua a dinâmica da esperança
que incentiva o agir dentro da história32.
Conclusão
31
Cf. Ibidem, pp. 128-130.
32
Cf. Ibidem, pp. 131s.
33
Cf. Ibidem, p. 91.
32
Todo este pensamento mostra uma ruptura com a doutrina clássica da escatologia. O
surgimento de uma nova hermenêutica bíblica, baseada no método histórico-crítico, ajudou
neste processo e fez com que a escatologia se aproximasse da experiência histórico-
salvífica presente na Bíblia.
Introdução
Em meio a este contexto perplexo e de crise, a Igreja não pode continuar dando
respostas a perguntas que ninguém (ou uma minoria) mais faz. O cristianismo sempre se
deparou com o problema de inculturar a mensagem da fé numa linguagem adequada a cada
circunstância histórica. O grande desafio, ainda hoje, é o de pertencer ao seu tempo e agir
dentro do paradigma da própria época, dando respostas novas às novas perguntas.
34
O teólogo brasileiro Agenor Brighenti chega a falar que, mais do que uma época de mudanças, observamos
uma mudança de época. E ilustra as características das transformações atuais em seu livro A Igreja perplexa.
A novas perguntas, novas respostas, São Paulo: Paulinas, 2004, pp. 21-23.
35
Cf. A. BRIGHENTI, A Igreja perplexa, op. cit., p. 95.
36
Hermenêutica (do grego hermenéia = interpretação) é a técnica da interpretação e suas respectivas regras
interpretativas. No campo bíblico, existe a distinção entre exegese e hermenêutica. Por exegese se entende a
práxis da interpretação. E hermenêutica é o conjunto das regras que presidem a interpretação do texto bíblico:
hermenêutica como teoria da exegese (cf. R. GIBELLINI, A teologia do século XX, op. cit, pp. 57s).
34
da teologia, ela não pode ser considerada um ramo desta ciência, mas é uma dimensão de
todo o trabalho teológico37.
A ciência hermenêutica ganhou novo impulso com Martin Heidegger. Segundo este
filósofo, a compreensão é o modo de ser do homem. A pessoa, em seu ser-no-mundo, é
constitutivamente compreensão. Da compreensão deriva a interpretação e o discurso38.
Numa linha semelhante, vai o pensamento de Hans Georg Gadamer, que elaborou uma
ontologia hermenêutica afirmando a universalidade ontológica do compreender, que é o
caráter ontológico originário da vida humana39. A grande contribuição de Gadamer, depois
assimilada pela teologia católica, é o princípio da “história dos efeitos”. Segundo ele:
A nova hermenêutica ganhou vigor na teologia com Ernst Fuchs e Gerhard Ebeling.
Fuchs, discípulo de Bultmann, desenvolveu a questão do “princípio hermenêutico” que é o
ponto de partida que desencadeia o processo de compreensão. Em se tratando do Novo
Testamento, o princípio hermenêutico não pode pressupor a fé, caso contrário não haveria
uma compreensão científica dele. Ele é a pergunta a respeito de nós mesmos. Entra aqui o
elemento bultmanniano da interpretação existencial. No entanto, um novo aspecto apontado
por Fuchs é a importância que a linguagem assume no processo hermenêutico. Na teologia,
a hermenêutica é a teoria da linguagem da fé42.
Gerhard Ebeling, também discípulo de Bultmann, diz que a hermenêutica não pode
reduzir-se a metodologia da exegese, mas deve expressar uma tarefa de toda a ciência
teológica. A própria teologia é hermenêutica. A teologia hermenêutica não é uma disciplina
particular ao lado de outras. Ela manifesta um traço essencial de todo trabalho teológico43.
42
Cf. R. GIBELLINI, A teologia do século XX, op. cit. pp. 65-69. Este pensamento de Ernst Fuchs, como o
apresenta Gibellini, está de acordo com uma afirmação da Mysterium Salutis: na teologia em geral, bem como
na escatologia, sente-se a exigência de uma hermenêutica adequada. Pois, “seria errado partir do pressuposto
de que só as afirmações bíblicas e dogmáticas sobre o fim dos tempos exigiriam particular tipo de exegese,
como também seria unilateral postular para a escatologia uma especial hermenêutica, sem levar em conta que
toda a teologia deve submeter-se a um novo aprofundamento de tipo hermenêutico. É o que sempre se
percebe quando se tenta elaborar uma gnoseologia teológica dos enunciados escatológicos, uma gnoseologia
que não pode prescindir de uma conveniente hermenêutica da Bíblia, dos dogmas, dos modos como a história
dos dogmas e da tradição fixou os conteúdos, dos pressupostos filosóficos e culturais. Poder-se-á de certo
modo justificar uma hermenêutica teológica, mas somente sob a condição de levar em conta esses nexos”.
(Mysterium Salutis. Compêndio de Dogmática Histórico-Salvífica, V/3 Escatologia, Petrópolis: Vozes, 1985,
p. 71)
43
Cf. R. GIBELLINI, A teologia do século XX, op. cit., pp. 71- 74.
36
44
O método histórico-crítico é um conjunto de métodos elaborados para a interpretação científica da Bíblia,
entre os quais se sobressaem: o método de crítica literária das fontes (procura documentos escritos anteriores
à redação dos textos bíblicos), o método de história das formas (estuda a fase pré-literária, que é a fase de
transmissão oral, no interior da comunidade, do material que deriva de primitivas formas nascidas no
ambiente vital da comunidade) e o método da história da redação (estuda o texto em sua forma atual, na
moldura que recebeu do trabalho de redação de cada autor). Cf. R. GIBELLINI, A teologia do século XX, op.
cit. p. 46, nota 3.
45
Cf. P. S. L. GONÇALVES; V. I. BOMBONATTO (Org.), Concílio Vaticano II, op. cit., p. 371.
46
João Batista Libânio expõe, numa boa síntese, os movimentos que prepararam o Concílio no seu livro La
Iglesia desde el Vaticano II hasta el nuevo milenio, Bilbao: Mensajero, 2004, pp. 27-45.
37
47
Cf. L. B. GORGULHO, Movimento Bíblico. Fato antigo e moderno, Igreja hoje 8, Petrópolis: Vozes, 1965,
pp. 17-23.
48
Cf. Ibidem, p. 39.
38
49
Cf. Ibidem, pp. 27-29.
50
Cf. Ibidem, pp. 42-44.
51
Cf. J. B. LIBÂNIO, La Iglesia desde el Vaticano II hasta el nuevo milenio, op. cit., p. 36.
52
Cf. R. Latourelle, Dei Verbum. In: Dicionário de teologia fundamental, Aparecida: Santuário; Petrópolis:
Vozes, 1984, p. 194.
39
“Se hoje uma exegese a-histórica já está totalmente superada, também o está uma teologia
dogmática a-histórica. E se a Bíblia precisa ser interpretada de forma mais histórico-crítica, então
com muito mais razão também o dogma pós-bíblico. Uma teologia que, em vez de questionar
criticamente os ‘dados’, permanece aberta ou veladamente autoritária, não poderá responder às
exigências científicas do futuro"55.
mundo e o perigo da perdição eterna para a pessoa. Esta visão apocalíptica, pessimista e
distorcida, gerou um desinteresse dos cristãos pelo processo histórico56.
56
Cf. R. J. BLANK, Escatologia do mundo, op. cit., pp. 82s.
57
Preocupado em elaborar uma escatologia fundamentada numa exegese crítica, o biblista francês Pierre
Grelot escreveu o livro O mundo futuro. Nesta obra, ele aborda alguns registros da linguagem bíblica. O
reconhecimento de tais registros é importante para a interpretação correta da mensagem das Escrituras (cf. P.
GRELOT, O mundo futuro, São Paulo: Paulinas, 1977, pp. 95-99).
58
Cf. R. J. BLANK, Nossa vida tem futuro, op. cit., p. 163.
59
Cf. R. J. BLANK, Nosso mundo tem futuro, op. cit., p. 41.
60
Cf. Ibidem, pp. 126-129.
41
“As vastas descrições de catástrofes cósmicas no dia de Javé contém a advertência de contar
com Deus que dispõe de tal poder (...). Catástrofes cósmicas servem apenas como imagem (grifo
nosso) para exprimir a onipotência assustadora de Deus que julga e tudo isto com o objetivo de
conseguir a conversão do povo e de todas as nações”63.
61
Textos bíblicos com referência a um “fim dos tempos” (cf. R. J. BLANK, Escatologia do mundo, op. cit. p.
291): Is 2, 5; 9-11; 13-14; 17-19; 24; 25; 27-30; 32-35; 41; 43; 47; 49; 51; 56; 60-63; 65-66. Jr 4; 23; 25; 30-
31; 33. Ez 1; 7; 10-11; 18; 27-30; 32-34; 36-39; 45-48. Dn 2; 7-12; Os 3; Am 5; 8-9; Mq 4-5; 7; Jl; Sf; Zc; Ml
3-4; Mt 10; 24; Mc 13; Lc 12; 17; 21; Jo 14; Rm 9-11; 13; 1 Cor 15; 1 Ts 4-5; 2 Ts 3-4; Hb 4; 2 Pd 2-3. Nas
páginas 292 a 296 deste livro, o autor expõe um resumo exegético de textos apocalípticos do Novo
Testamento, mostrando que eles não contém previsões de um holocausto cósmico. Esta mesma linha de
pensamento se encontra no livro O que vem depois do fim? de Medard Kehl, no capítulo “A interpretação
cristã das visões apocalípticas do fim do mundo”, páginas 97 a 107 (cf. M. KEHL, O que vem depois do fim?
Sobre o ocaso do mundo, consumação, renascimento e ressurreição, São Paulo: Loyola, 2001).
62
Cf. R. J. BLANK, Escatologia do mundo, op. cit., p. 289.
63
R. VAN DE WALLE, Bis zum Anbruch der Morgenroete, apud R. J. BLANK, Nosso mundo tem futuro,
op. cit., p. 133. Sobre o mesmo assunto, Jürgen Moltmann, citando Paul ALTHAUS, lembra que
“transformação, e não destruição”, é a doutrina que predomina na teologia “desde Irineu, passando por
Agostinho e Gregório o Grande, por Tomás e toda a teologia medieval, até a dogmática católica atual” (P.
Althaus, Die letzten Dinge, apud J. MOLTMANN, A vinda de Deus. Escatologia cristã, São Lepoldo:
Unisinos, 2003, p. 288).
64
Cf. R. J. BLANK, Escatologia do mundo, op. cit., pp. 272s.
42
Conclusão
Assim, confirmamos que a escatologia não tem como missão responder a perguntas
sobre o além, ou elaborar narrações sobre o futuro. Ela não deve relatar o que vai acontecer,
mas provocar o ser humano à responsabilidade diante do mundo. A escatologia centra seu
discurso sobre o Absoluto como fonte de esperança e inspiração para a prática da justiça.
Este núcleo essencial da escatologia é revestido de imagens que devem ser corretamente
traduzidas pela hermenêutica bíblico-teológica.
43
Introdução
“Na origem de todo este clima escatológico está a própria experiência de Deus feita por
Israel não tanto nos fenômenos cósmicos, nem numa natureza hierofânica, mas fundamentalmente no
acontecer de sua existência como povo. Israel vive uma religião de promessa, de futuro,
escatológica”65.
65
J. B. LIBÂNIO; Ma. C. L. BINGEMER, Escatologia cristã, op. cit., p. 59.
44
vivência. De fato, no meio popular, à margem dos ensinamentos oficiais da Igreja, constata-
se a permanência, ao longo da história, do clima escatológico de expectativa iminente, de
um reino milenarista ou do final dos tempos66.
66
Cf. Ibidem, p. 61. (No capítulo segundo, explicaremos o que é milenarismo).
67
Cf. Ibidem, p. 63. Esta leitura, que emprestamos à obra de Libânio, é esquemática e sintética, correndo por
isso o risco de ser superficial. Ela mostra, porém, que a escatologia cristã realmente deixou em segundo plano
a lucidez crítica frente à história. Mas, isso ocorreu apenas em alguns momentos. Pois, não podemos afirmar
que a dimensão escatológica do cristianismo desapareceu da reflexão teológica ou da vida eclesial.
Encontramos na Idade Média, por exemplo, fortes movimentos milenaristas, como os promovidos pelo
pensamento de Joaquim de Fiori.
45
litúrgicos em uso até a reforma do Vaticano II. Atravessando séculos, tal idéia influenciou
gerações cristãs, impregnando-as do medo escatológico.
68
Logo no princípio do cristianismo, temos obras em que se descrevem os sofrimentos no inferno. A
influência delas foi duradoura, ao longo dos séculos. Por exemplo, o Apocalipse de Pedro, escrito entre 100 e
150 d. C., apesar de não fazer parte dos escritos canônicos, exerceu muita influência na catequese cristã. Uma
literatura semelhante abundou na Idade Média. Contudo, as raízes da noção de inferno encontram-se na idéia
judaica de morada dos mortos, o xeol. Veremos de modo aprofundado a questão do inferno no capítulo três.
46
Karl Barth, com sua teologia dialética, vem reafirmar o caráter escatológico do
cristianismo. Mas, sua compreensão da escatologia não valoriza devidamente a história. De
fato, a experiência da primeira guerra mundial deixou no teólogo um sentimento de
pessimismo com relação ao mundo e aos projetos da razão moderna. Ele diz então que o
eschaton não é um evento temporal, mas sim qualitativo. A escatologia é a própria
69
Cf. R. J. BLANK, Escatologia do mundo, op. cit., pp. 79-84. Esta leitura, que emprestamos a Renold Blank,
também peca por certa superficialidade. A essência do seu pensamento, porém, quer indicar que a escatologia
tradicional não deixava muito lugar à esperança (principalmente em se tratando do purgatório e do inferno), e
não acentuava devidamente o aspecto coletivo dos novíssimos, o que certamente é verdadeiro.
70
Cf. R. GIBELLINI, A teologia do século XX, op. cit. p. 279.
71
Cf. Mysterium Salutis, op. cit., pp. 63s.
47
transcendência de Deus que põe em crise o temporal: Deus irrompe na história para julgá-
la. Para Barth, a escatologia deve ser o tema central da reflexão teológica. Ele chega a
sugerir a escatologização de toda a teologia: “Um cristianismo que não é todo e por tudo e
sem ressalvas escatologia, nada tem a ver com Cristo”72.
72
K. BARTH, Der Römerbrief, apud Mysterium Salutis, op. cit., p. 65.
73
J. MOLTMANN, Teologia da Esperança. Estudos sôbre os fundamentos e as conseqüências de uma
escatologia cristã, São Paulo: Herder, 1971, p. 2.
74
Ibidem, p. 2. (No capítulo segundo, desenvolveremos as três noções essenciais para a escatologia,
mencionadas por Moltmann: Cristo, esperança e Reino de Deus).
75
Cf. R. GIBELLINI, A teologia do século XX, op. cit. pp. 283s.
48
76
Cf. R. J. BLANK, Nosso mundo tem futuro. op. cit., p. 54.
49
A Igreja, segundo a Lumem gentium, alcançará sua plenitude com a última vinda de
Jesus. Neste contexto, o Concílio fala também do destino definitivo de cada ser humano,
cuja morte é um momento escatológico decisivo. Abrem-se, neste instante, as
possibilidades de salvação ou de condenação. Também a ressurreição final e a parusia do
Senhor são recordadas no número 48 do documento78. O número 49 se refere à comunhão
da Igreja celeste com a Igreja peregrina e afirma, a este respeito, que “todos os que são de
Cristo, tendo seu Espírito, formam uma só Igreja e nele estão unidos entre si (cf. Ef 4, 16).
Por isso, a união dos que estão na terra com os irmãos que adormeceram na paz de Cristo,
de maneira nenhuma se interrompe” (LG, no 49).
Vale a pena ressaltar, novamente, a concepção unitária que o Concílio tem do ser
humano: “os irmãos que adormeceram na paz de Cristo”; ou seja, aqueles que participam
da visão beatífica são os “discípulos” de Jesus e não só suas “almas”79. Temos aqui um
distanciamento com respeito ao tema clássico da imortalidade da alma.
77
Cf. B. SESBOÜÉ, (Org.), Historia de los Dogmas. El hombre y su salvación, tomo II, Salamanca:
Secretariado Trinitario, 1996, p. 352. Não apenas a Lumen Gentium realiza esta mudança. Segundo Medard
Kehl, também a Gaudim et spes marcou uma notável mudança para a história e para o mundo, voltando a
atenção mais para a dimensão histórica e cosmológica do esperado futuro de nossa consumação última,
embora sem esquecer a vertente individual (cf. M. KEHL, Escatologia, op. cit., p. 11).
78
Neste parágrafo, faz-se referência também a questões essenciais da escatologia: morte, céu, inferno,
ressurreição e parusia. Elas serão aprofundadas nos capítulos dois e três desta dissertação.
79
Sobre isto, o documento diz: “Até que o Senhor venha na sua majestade, e todos os anjos com ele (cf. Mt
25, 31) (...), alguns dos seus discípulos peregrinam na terra, outros, já passados desta vida, estão se
purificando, e outros vivem já glorificados” (LG, no 49).
50
“Constituído Senhor pela sua ressurreição, Cristo (...) atua ainda agora, pela força do
Espírito Santo, nos corações dos homens; não suscita neles apenas o desejo da vida futura, mas (...)
fortalece também aquelas generosas aspirações que levam a humanidade a tentar tornar a vida mais
humana e a submeter para esse fim toda a terra” (GS, no 38).
Em íntima conexão com o tema deste item 1.4.3., que trata da dimensão
escatológica do cristianismo, o Concílio afirma o valor escatológico da atividade humana
no mundo, com as seguintes palavras:
“A expectativa da nova terra não deve (...) enfraquecer, mas antes ativar a solicitude em
ordem a desenvolver esta terra, onde cresce o Corpo da nova família humana, que já consegue
apresentar certa prefiguração do mundo futuro (...). Todos estes bens da dignidade humana, da
comunhão fraterna e da liberdade, fruto da natureza e do nosso trabalho, depois de os termos
difundido na terra, no Espírito do Senhor e segundo o seu mandamento, voltaremos de novo a
encontrá-los, mas então purificados, quando Cristo entregar ao Pai o reino eterno e universal” (GS, n o
39).
Apesar de ser uma realidade vivida ao longo dos séculos, o termo escatologia foi
proposto pelo teólogo luterano Abrahan Calov em 1686, na obra Sistema Locorum
Theologicorum. No contexto católico, o termo aparece na publicação Biblische
antropologie (1807-1810), de Oberthur. A palavra é composta de dois termos gregos:
escathon (último) e logos (discurso). Literalmente, significa a reflexão teológica sobre as
últimas realidades do ser humano e da história.
que é obra exclusiva de Deus, não se realiza sem o esforço humano no decorrer do processo histórico. Renold
Blank toma a missa como exemplo deste processo escatológico. Na missa, o homem apresenta primeiro
aquilo que ele fez: pão e vinho, fruto da terra e do trabalho humano. Nunca haverá missa sem estes elementos.
No ofertório, Deus aceita o que o homem trouxe. Na consagração, é o próprio Deus que age a partir daquilo
que o homem realizou, plenificando a obra humana, elevando-a a nível superior. Assim também, não haverá
plenificação do Reino se o homem, previamente, não preparar esta plenificação. Mas, Deus não transforma
pão e vinho ou plenifica o Reino para si mesmo. Ele o faz para o homem, devolvendo-lhe o resultado da
plenificação. O mesmo ocorre na comunhão da missa: o homem comunga do corpo e sangue de Cristo, que
antes eram pão e vinho oferecidos pelo próprio homem. Assim, todo o agir de Deus visa à felicidade humana.
Deus dá ao homem infinitamente mais do que ele realiza (cf. R. J. BLANK, Nosso mundo tem futuro, op. cit.,
p. 73s).
83
Cf. J. MOLTMANN, Teologia da Esperança, op. cit., p. 1. A teologia tradicional, ao falar das “últimas
coisas”, consolidou a distinção entre escatologia pessoal, ou “intermediária” (o que espera o homem no fim de
sua vida) e escatologia coletiva (o que acontecerá no fim da história). Deve-se, contudo, dar atenção à relação
dialética entre estes dois aspectos, como nos alerta Luiz Ladaria. Não podemos deixar de lado a escatologia
individual em favor da coletiva, nem prescindir desta favorecendo a primeira. A mencionada distinção, se
52
Ainda hoje, no meio popular, encontramos uma visão negativa a respeito do destino
último do ser humano (mas, é claro, não é justo generalizar). Por exemplo, existe a imagem
de um Deus vingativo e o terror do que vai acontecer depois da morte. É um medo
provocado de maneira indireta por orações, nas quais se suplica a misericórdia divina.
Também é um medo incitado de maneira direta por toda uma doutrina de ameaça que foi
interiorizada pelo povo no decorrer de uma história de séculos85.
escatológicas são projeções do próprio ser humano. Pois, o Reino de Deus se realizará sob
o prisma do amor divino e não do castigo.
“A esperança é ativa e se torna o motor para o agir dentro deste mundo. Motor para um agir
capaz de mudar tal mundo. Para um agir por meio do qual as promessas de um futuro Reino de Deus
começam a se realizar nesta sociedade e nesta história (...). Não se trata mais de ‘aguardar’ de
maneira passiva o fim dos tempos (...). A esperança, baseada na fé de que o Reino já começou, se
torna ativa. Ela supera uma atitude estática, tornando-se processo de transformação”87.
86
Cf. R. J. BLANK, Escatologia do mundo, op. cit., p. 97.
87
Ibidem, pp. 118s.
88
Cf. Ibidem, pp. 113-127. No capítulo segundo, desenvolveremos esta questão ao falarmos da esperança
escatológica e sua capacidade de transformar o mundo.
89
Cf. Ibidem, pp. 141-153. No próximo capítulo, aprofundaremos mais o tema de uma escatologia libertadora.
54
Conclusão
Aplicando esta imagem à fé cristã, percebemos que esta é firme, nítida e clara em
seus traços centrais. A teologia, por sua vez, pertence às ondas distantes, de contornos mais
fracos. A teologia está a serviço da escatologia, que pertence ao núcleo central da fé. Tal
centralidade deve-se ao fato de a escatologia se fundamentar em Deus, cujo projeto de
salvação foi revelado em Jesus Cristo90. Após um longo período, a teologia redescobre esta
verdade, outrora negligenciada pela dogmática clássica: Jesus, através de sua encarnação,
vida, morte e ressurreição, é o evento escatológico central. A fé cristã é essencialmente
escatológica porque se funda em Jesus, nosso Eschaton.
A escatologia pode ser entendida como “discurso sobre uma salvação encarnada”91.
De fato, com a encarnação de Jesus, que atinge sua plenitude com a ressurreição, o mundo
começa a ser uma nova criação. E esta realidade não acontece por aniquilação, mas por
transformação do velho mundo. A história, portanto, continua: ela é processo. Também o
Eschaton reveste-se de um caráter processual e não de um caráter pontual. Não esperamos
algo, mas alguém: o Absoluto. Esperamos o eterno temporalizado; espiritual, mas
encarnado92; o Verbo, Jesus Cristo, o Eschaton Logos.
90
Cf. J. B. LIBÂNIO; Ma. C. L. BINGEMER, Escatologia cristã, op. cit., p. 15.
91
J. L. RUIZ DE LA PEÑA, La pascua de la creacion. Escatologia, Madrid: BAC, 1996, p. 117.
92
Cf. Ibidem, p. 119.
55
CAPÍTULO II
Introdução
Jesus Cristo, com sua encarnação, vida, morte e ressurreição, constitui um evento
escatológico decisivo porque sua existência estava sustentada por Deus. De fato, Deus se
revelou plena e definitivamente na pessoa de seu Filho. No entanto, Jesus não é
acontecimento escatológico apenas para si mesmo. Ele ilumina a vida humana, a história e
1
Para redigir a primeira parte do item “Jesus, o Eschaton Logos” (2.1.) baseamo-nos em outros autores, além
de Renold Blank, que trataram de modo mais sistemático a questão. Para os outros dois temas (esperança e
Reino de Deus), privilegiamos sobretudo Renold Blank.
2
Renold Blank desenvolve quatro noções fundamentais do discurso escatológico contemporâneo: O Reino de
Deus, a esperança, a parusia e o juízo final. Sobre isto, veja os livros do autor: Nosso mundo tem futuro e
Escatologia do mundo. Este último é uma edição revisada e ampliada do primeiro. É ele que será citado ao
longo deste capítulo. Neste livro, os termos “Reino de Deus” e “esperança” ocupam 72% de todo o conteúdo
da obra mostrando, assim, a importância concedida a eles pelo teólogo suíço. Além do mais, “parusia” e
“juízo final” são vistos como elementos escatológicos ligados à plenificação do “Reino de Deus”, de modo
que não os trataremos separadamente, mas faremos referência a eles ao abordarmos o “Reino de Deus”, ou em
outro momento oportuno.
3
A tônica do pensamento de Renold Blank é destacar a esperança, o amor e a ação salvadora de Deus. Os
títulos de seus livros indicam esta sua preocupação teológica; por exemplo, citamos: Nossa vida tem futuro,
Nosso mundo tem futuro, Esperança que vence o temor. O medo religioso dos cristãos e sua superação e
Viver sem temor da morte.
57
o mundo, fazendo-os participar da sua glorificação: esta é a esperança trazida por Jesus;
esperança que se baseia sobretudo em sua ressurreição, já que ela mostra o senhorio de
Deus sobre as potências do mal. Ressuscitando Jesus, Deus confirma a missão salvífica
universal de seu Filho.
4
É verdade também que a fé cristã afirma com toda seriedade a possibilidade da condenação do homem, de
sua rejeição à graça divina ofertada a todos (pois, assim, se afirma a liberdade humana). Mas, a condenação
não constitui o centro da mensagem escatológica do cristianismo. Isto será tratado especialmente no terceiro
capítulo, quando estudarmos o tema do inferno.
5
Konrad, estudioso de Pannenberg, e inspirando por ele, diz que em Jesus ocorre esta antecipação definitiva:
“No destino de Jesus ficou manifesta a totalidade do mundo e com ela a última determinação do homem, de
modo que todo acontecimento posterior pode ser ordenado desde este fim antecipado na unidade fundada por
Deus. Mas tudo isso, que pertence à unidade e à totalidade do mundo acontecida antecipadamente em Jesus,
só se faz manifesto no decurso da história e, correlativamente, só pode se conhecer na progressiva experiência
da realidade. Só no decurso da história, portanto, desdobram-se tanto o conteúdo da unidade e totalidade do
mundo que se revelou em Jesus quanto a determinação do homem” (F. KONRAD, Das
Offenbarungsverständnis in der evangelischen Theologie apud R. J. BLANK, Escatologia do mundo, op. cit.,
p. 237).
6
O tema da ressurreição, devido à sua importância para a escatologia cristã, será analisado logo a seguir e de
modo mais completo. Por hora, faremos apenas algumas referências a ele.
58
como realidade aberta pela promessa iluminada pelo futuro de Cristo 7. Este futuro está
fundado em sua ressurreição. Desde o começo, a fé cristã compreendeu a ressurreição de
Cristo não apenas em relação ao passado, como cumprimento das promessas divinas, mas
principalmente em relação ao futuro, como antecipação da salvação vindoura.
Os conteúdos da escatologia cristã trazem a marca de Jesus, pois mostram que são o
desenvolvimento do evento escatológico que ocorreu no mundo através de sua presença8.
Por isso, é justo sublinhar que a escatologia cristã é “cristologia em perspectiva
escatológica”9. De fato, a escatologia cristã tem sua originalidade no acontecimento Cristo,
como presença pessoal de Deus na história. A própria existência de Cristo, desde sua
encarnação até sua morte e ressurreição, tem um sentido definitivo, irrevogável e
irrepetível. A vida de Cristo em si mesma tem caráter escatológico porque é sustentada por
Deus10. Cristo é a plenitude da revelação de Deus, a “ultimidade última” 11 enquanto se
pretende afirmar que nele a autocomunicação divina alcança sua plenitude insuperável e
definitiva12. Também o Vaticano II afirma com vigor a plenitude de Cristo:
“Ele (Cristo), (...) com toda a presença e manifestação da sua pessoa, com palavras e obras,
sinais e milagres, e sobretudo com sua morte e gloriosa ressurreição dentre os mortos, enfim com o
envio do Espírito da verdade, leva à plenitude toda a revelação e a confirma com um testemunho
divino” (DV, no 4).
7
Cf. J. MOLTMANN, Teologia da esperança, op. cit., pp. 223-225.
8
Cf. L. F. LADARIA, Escatologia. In: Dicionário de teologia fundamental, op. cit., p. 261. De modo
específico, este trabalho mostrará, no capítulo três, que o conteúdo dos “novíssimos” têm estreita ligação com
o evento Cristo, de modo que só podem ser interpretados corretamente à luz da salvação trazida por ele.
9
J. MOLTMANN, Teologia da esperança, op. cit, p. 223.
10
Cf. J. ALFARO, Esperanza cristiana y liberación del hombre, Barcelona: Herder, 1972, pp. 131s.
11
A. TORRES QUEIRUGA, A revelação de Deus na realização humana, São Paulo: Paulinas, 1995, p. 228.
12
A consciência de que com Cristo culmina de modo definitivo e irrevogável a história da salvação é patente
ao longo de todo o Novo Testamento. Por exemplo, nos sinóticos o próprio Jesus diz que não veio revogar,
mas dar pleno cumprimento à lei(cf. Mt 5, 17). De modo teologicamente mais elaborado, João afirma que
Jesus, o Logos de Deus, é pleno de graça e de verdade (cf. Jo 1, 14. 16-17). Esta mesma consciência persistiu
na tradição patrística e medieval. Foi também objeto de consideração expressa depois de Trento (cf. ibidem, p.
229).
59
A experiência cristã passa necessariamente por Cristo, mas não deve se converter
num “cristomonismo”. Ou seja, não pode se fechar no evento Cristo. Ao redor de Jesus
Cristo, a pedra angular, é que se estrutura a fé cristã, de modo que só compreenderemos
vários elementos do cristianismo à luz de Jesus de Nazaré. Porém, a experiência cristã é
maior que Cristo, pois ela faz referência ao Pai. Jesus não pregou a si mesmo, mas o Reino
de Deus. Jesus, no Novo Testamento, aparece descentrado de si em relação ao Pai e ao
Espírito Santo. Mas, como referência obrigatória para a teologia cristã, veremos como ele é
a plenitude do ser humano, o sentido último para a história e que, no fim dos tempos, o
universo inteiro formará um só corpo nele, cabeça de tudo, conforme a “grande bênção”
que abre o texto de Efésios (cf. 1, 3-14).
13
Cf. Ibidem, p. 241.
60
Pode-se dizer que em Cristo nos encontramos diante de uma existência humana na
qual estão explicitadas as chaves pelas quais o homem e a mulher em comunhão com Deus
alcançam sua realização definitiva. O projeto de Deus, a respeito do ser humano, alcança
sua consumação máxima no seu Filho Jesus.
Paulo afirma que Cristo ressuscitou como primícias dos mortos (cf. 1 Cor 15, 20.
23). O Apóstolo expressa com o termo “primícias” o fato de que, em Cristo ressuscitado,
está incluída a nossa salvação futura, de modo que a humanidade participa do destino
glorioso de Cristo. Em sua ressurreição, o poder divino realizou um ato irrevogável, dando-
lhe vitória sobre a morte e transformando-o em princípio vivificante da humanidade15.
14
A encarnação é um dos temas mais problematizados na atualidade teológica. Os questionamentos sobre ela
vêm de dentro do próprio cristianismo, que critica a linguagem metafísica utilizada para explica-la, e da
cultura moderna. Uma das características desta cultura é a absolutização da razão, que gera um radical
antropocentrismo. Esta perspectiva concebe Deus como alteridade que não se relaciona com a contingência
humana. E o homem, por sua vez, não está aberto a Deus para não perder sua autonomia. À luz dessa
cosmovisão, dizer que Jesus é Deus e homem parece uma contradição lógica. Mas, a fé cristã não se situa no
nível da lógica, e sim do paradoxo: está além da doxa, da opinião comum. A problemática da encarnação não
se situa apenas no nível da linguagem. A encarnação em si mesma é um escândalo para a razão, pois “Deus
vindo na carne” é um querigma inesperado. Deus se encontra, segundo o evento da encarnação, onde a razão
menos esperava: no esvaziamento. Este fato estabelece uma nova relação entre Deus e o ser humano que
desconserta a razão. Apenas o amor e a liberdade divina dão conta de explicar a relação entre Deus e a
criatura. Na encarnação transparece a condescendência de Deus: o que acontece em Jesus só pode ser
explicado a partir de Deus. Em sua expressão humana frágil, Jesus é a manifestação do Absoluto. No Filho, a
experiência de Deus é levada ao máximo possível para um homem. A ousadia da fé cristã apresenta o
escândalo da encarnação como sabedoria divina. Com isto, abre-se um sentido para a contingência humana.
Ela tem valor porque foi assumida livremente por Deus, o qual não estava obrigado a isto.
15
Cf. J. ALFARO, Esperanza cristiana y liberación del hombre, op. cit., pp. 142-144.
61
Cristo abriu para todos os homens e mulheres o acesso a essa plenitude. A partir
dele toda a humanidade é colocada em nova situação: a de participar de uma realização
definitiva. Esta possibilidade é atual, já que pode ser experimentada em cada geração.
Assim, a plenitude acontecida em Cristo é entregue à história. Devido à presença do
Ressuscitado, a humanidade tem diante de si um futuro sempre aberto como realidade a ser
construída, como projeto que, em sua perfeição, permanece promessa escatológica17.
16
Cf. A. TORRES QUEIRUGA, A revelação de Deus na realização humana, op. cit., p. 235.
17
Cf. Ibidem, p. 270.
18
Andrés Torres Queiruga trata com profundidade esta questão que, no diálogo inter-religioso, se apresenta
um tanto polêmica e complexa (cf. Ibidem, pp. 273-353).
62
Por isso, Jesus assumiu a missão do servo despojado de tudo (cf. Is 52-53), viveu
como alguém que não tinha nem onde reclinar a cabeça (cf. Mt 8, 20; Lc 9, 58) e assumiu a
“condição de escravo” (cf. Fl 2, 5-11). Deus entrega-se totalmente em seu Filho à
“internacional” condição humana: a dos humilhados e ofendidos. É esta auto-doação divina
que revela a universalidade do amor cristão. Trata-se de uma fé que se proclama universal e
que o faz a partir da vida de Jesus, sobretudo da experiência da cruz, na qual ele busca o
“universal humano” através do esforço em realizar a justiça e proporcionar melhor vida
para os homens22. Não somente a humanidade e a história, mas também o mundo inteiro
recebe de Cristo seu sentido definitivo.
19
Cf. Ibidem, pp. 297s.
20
Ibidem, p. 295.
21
Ao longo de sua história, o cristianismo chegou a apresentar-se como a única religião verdadeira e superior
às demais. Contraditoriamente, a encarnação foi compreendida como acontecimento que colocaria a religião
cristã num patamar superior. Na verdade, a encarnação de Jesus é prova de sua humilhação e doação total aos
seres humanos. Deste modo, o cristianismo, continuando a missão de Cristo na história, se torna coerente e
fiel a Jesus se mantiver uma postura de serviço e humildade, sem pretensões de dominação ou exclusividade.
22
Cf. A. TORRES QUEIRUGA, A revelação de Deus na realização humana, op. cit., p. 296.
63
23
A perspectiva de Cl 1, 15-20 coincide com a de Fl 1, 3-11. 20-23; 3, 10: a intenção divina de constituir a
Cristo, em sua ressurreição, Senhor da humanidade, da história e do mundo. O plano de Deus, de dar
plenitude à história e ao mundo em Cristo, está se cumprindo desde agora em virtude de sua ressurreição (cf.
J. ALFARO, Esperanza cristiana y liberación del hombre, op. cit., pp. 147s.
24
Cf. Ibidem, p. 145.
25
Cf. Ibidem, p. 147. Joseph Moingt, em sua obra El hombre que venía de Dios, vol. 2, Bilbao: Descleé de
Brouwer, 1995, pp. 253-294 (“Y el Verbo se hizo carne”) tem um pensamento semelhante ao de Juan Alfaro.
O texto de Moingt é de grande riqueza cristológica e esclarece vários pontos difíceis da fé cristã, relacionados
com a problemática da encarnação. O teólogo reelabora alguns artigos do credo a partir de uma sólida exegese
moderna. Faz isto tendo consciência de que a Igreja fundamenta suas asserções nos relatos evangélicos, de
modo que não pode abandoná-los para ir em busca de análises metafísicas. Refletindo sistematicamente sobre
os dados exegéticos, afirma que desde sempre, ao criar o mundo, Deus quis o que aconteceu em Jesus,
chamando-o a um plenitude definitiva.
26
Cf. J. ALFARO, Esperanza cristiana y liberación del hombre, op. cit., pp. 149-151.
64
Toda esta exposição que fizemos mostra que é possível fundamentar em perspectiva
cristológica o fim da história e do mundo27. E, neste sentido, a chave de interpretação está
no evento escatológico da ressurreição de Cristo.
Introdução
27
A Mysterium Salutis, obra de referência teológica, tem um estudo a este respeito. Nas partes intituladas “É
possível fundamentar em chave cristológica o fim do universo?” e “Orientação cristocêntrica no mundo como
promessa e cumprimento” procura abordar com solidez o problema que brevemente expomos aqui. Dentre
vários teólogos que estudaram esta questão, a Mysterium Salutis lembra as tentativas rahnerina e teilhardiana
de refletir sobre o universo em perspectiva antropológica e cristológica (cf. Mysterium Salutis, op. cit., pp.
265-273). Renold Blank também diz que “o cosmo inteiro é um imenso sistema entrelaçado, cujo fim último é
a plenificação no Reino de Deus. Nesta plenificação se revela que Deus também faz parte deste sistema (...).
Tal reciprocidade entre Reino de Deus, mundo e processo histórico torna-se cada vez mais um dos grandes
novos enfoques da escatologia” atual (cf. R. J. BLANK, Escatologia do mundo, op. cit., p. 155).
28
Este item sobre a ressurreição dará elementos imprescindíveis para a compreensão dos “novíssimos”, já que
a cristologia (e dentro dela, a centralidade da ressurreição) é chave hermenêutica para a compreensão de céu,
purgatório e inferno (bem como de outros aspectos da escatologia cristã). Por isso, é nossa intenção
desenvolvermos bem esta parte. Ao fazermos isto, ficará clara também a conexão que existe entre escatologia
pessoal e escatologia coletiva, acenada na nota 83 do capítulo anterior.
65
29
Renold Blank afirma que o termo “ressuscitação” mostra melhor a iniciativa de Deus no ressuscitar Jesus
dentre os mortos (cf. R. BLANK, Escatologia do mundo, op. cit., p. 330). É importante lembrar esta
particularidade tão cara ao teólogo suíço, se bem que outros utilizem igualmente o termo, como por exemplo
Jürgen Moltmann. Neste item privilegiaremos o uso deste termo, usando-o na maioria das vezes, procurando
assim destacar a ação salvífica do Pai sobre seu Filho morto. Mas, no conjunto do trabalho, usaremos o termo
“ressurreição” por estar incorporado ao uso corrente na teologia. Também porque, como diz Hans Kessler,
“para a linguagem do antigo e do novo testamento, ressuscitar e ser ressuscitado são sinônimos” (H.
KESSLER, La resurrección de Jesús. Aspecto bíblico, teológico y sistemático, Salamanca: Sigueme, 1989, p.
246).
30
Alguns textos sobre a ressuscitação de Jesus: At 2, 24; 2, 32; 3, 15; 4, 10; 5, 30; 10, 40; 13, 30; 13, 37; Rm
4, 24; 7, 4; 8, 11; 10, 9; Cl 2, 12; Ef 1, 20; Gl 1, 1; 1 Cor 6, 14; 15, 12.15.20; 2 Cor 4, 14; Tm 2, 8; 1 Pd 2, 21.
66
É necessário esclarecer que, sendo a ressuscitação obra única de Deus, isto não
implica em nenhuma arbitrariedade divina anulando a liberdade humana de Jesus. Ao longo
de sua existência terrena, Jesus viveu uma relação singular de confiança em Deus. Ele
entregou-se totalmente à causa do Pai, pregando o Reino. Esta orientação fundamental de
sua vida foi assumida por Deus, produzindo o encontro definitivo entre a liberdade de Deus
e a liberdade de Jesus.
A ressuscitação de Jesus nos ensina poder contar com Deus que se aproxima de nós
com sua ação salvífica, abrindo-nos novas possibilidades de vida. O Crucificado
Ressuscitado passa a ser paradigma da fé cristã, pois sua ressuscitação afeta a todos nós, de
isso, sua ressurreição tem uma dimensão soteriológica. Ele alcançou a salvação na totalidade de suas relações,
está em íntima união com Deus e também intercede em favor dos seres humanos. Aspecto pneumatológico. O
Novo Testamento não está preocupado em explicar a ressurreição em si mesma. O mais importante são os
frutos dela. Neste sentido, uma das conseqüências da ressurreição é a vida nova da comunidade que procura
viver como ressuscitada e, assim, tornar-se testemunha no mundo. Há uma nova presença e ação do Senhor
ressuscitado através do seu Espírito (expansão pneumatológica). É o Espírito que levará a termo, em nós e no
mundo, o realizado na ressurreição de Jesus. Sendo assim, a ressurreição de Cristo é incompleta. Há ainda
muito a ser feito para que a ressurreição se realize plenamente em nós e no cosmo por obra do Espírito Santo
(cf. H. KESSLER, La resurrección de Jesús, op. cit., pp. 219-341).
34
R. J. BLANK, Escatologia do mundo, op. cit., p. 332.
68
modo que temos uma relação real com ele e com os demais ressuscitados35. Ou seja, a
ressuscitação de Jesus Cristo possui força expansiva que abrange a Igreja celeste e a
terrestre. Todos os seres humanos (as pessoas deste mundo e os bem-aventurados) estão em
mútua relação entre si e com o Cristo vitorioso.
A vida eterna, que é ressurreição e comunhão com Cristo, é força de união visando à
inteireza de vida. Ela se traduz socialmente como integração na comunhão do amor eterno.
De fato, por levarmos aqui uma vida social, não existe ressurreição apenas individual, mas
ela tem sempre um aspecto social. Se não fosse assim, a vida eterna não poderia ser amor37.
Cristo deseja esta reconciliação universal, pois na glória ele continua sofrendo em sua
Igreja terrena, que é seu corpo. Desta forma, Cristo entrará na bem-aventurança definitiva
junto com seus membros ressuscitados.
35
Leonardo Boff ensina que a ressurreição de Jesus é uma utopia humana realizada. Afirma que “em Jesus
Cristo recebemos a resposta definitiva de Deus: não a morte, mas a vida é a última palavra que Ele, Deus,
pronunciou sobre o destino humano. Para o cristão não há mais uma utopia mas topia: a vida eterna possui um
lugar dentro do nosso mundo (...), Jesus ressuscitado” (L. BOFF, A nossa ressurreição na morte, Petrópolis:
Vozes, 1999, p. 61).
36
Cf. J. MOLTMANN, A vinda de Deus, op. cit., p. 124.
37
Cf. Ibidem, p. 87.
69
que o converterá no “Cristo Total”. Por isso, para o corpo de Cristo se tornar o “grande
corpo reconciliado” é preciso que nele se incorpore até o último ser humano ressuscitado38.
Além desta comunhão de Cristo com os ressuscitados, existe sua relação com os
vivos a caminho da eternidade. Estamos privados da presença física de Jesus, morto na
história. Mas, estamos perante sua presença transcendente e real. Profundamente mudado,
porque já alcançou a plenitude definitiva, ele é o mesmo Jesus que os discípulos
conheceram. O Cristo glorioso tem agora um novo modo. Contudo, continua sendo o
mesmo: com idêntico amor e com a mesma entrega39. Assim, o homem ressuscitado Jesus
está permanentemente com Deus e exerce uma função salvífica em favor de nós. Ele
pertence, portanto, ao mundo ao mesmo tempo que, de maneira definitiva, pertence também
ao mistério de Deus. Cristo está, por isso, no centro constitutivo de toda a realidade.
38
Cf. F. MIER, Apuesta por lo eterno. Escatología cristiana, San Pablo: Madrid, 1996, p. 285.
39
Cf. A. TORRES QUEIRUGA, Repensar a ressurreição. A diferença cristã na continuidade das religiões e
da cultura, São Paulo: Paulinas, 2004, p. 244. Também Kessler expressa esta idéia com as seguintes palavras:
“Essa relação é real e possível graças à presença do Senhor elevado, que é idêntico com o Jesus terreno e
crucificado (...). Por isso, Jesus, enquanto elevado, é também o Senhor de sua história terrena e nos é acessível
nela. Apesar da distância histórica com respeito ao Jesus terreno há, portanto, uma imediatez pessoal com
Jesus Cristo que não se nutre só de informação histórica (...), mas que se realiza no processo horizontal, por
assim dizê-lo, do testemunho histórico (...) mediante a ação vertical do Senhor elevado” (H. KESSLER, La
resurrección de Jesús, op. cit., p. 300).
40
Cf. J. MOLTMANN, A vinda de Deus, op. cit., p. 126.
70
A ressurreição significa que, para Deus, nada do ser humano se perde. A identidade
pessoal é transfigurada por Ele de modo que a pessoa reencontra sua história reconciliada,
curada e plenificada. Esta transformação do homem integral, incluindo seu relacionamento
social e com o mundo, é chamada na teologia cristã de ressurreição corporal ou ressurreição
da carne.
c) Ressurreição corporal: valorização da história humana
Na morte, Deus ressuscita o ser humano global, com toda a sua história,
envolvimento social, estrutural e cósmico, de modo que, aquele que morre, passa por uma
transformação total42. Sua identidade pessoal se mantém, porém, para além da morte física.
Esta idéia é bem expressa por Renold Blank que afirma:
“(Deus) ressuscitará as pessoas inteiras. Estas pessoas que, como seres corporais,
interiorizaram o mundo na sua dimensão corporal. Estas pessoas que, como seres corporais, criaram
uma história, vivida como pessoas inteiras, numa indivisível união de um ser material-espiritual”43.
Como conseqüência, a ressurreição do corpo significa que o homem tem futuro para
além da morte, com toda a sua história concreta e individualmente vivida47. Deste modo,
será salva toda a sua história, com todos os seus atos e comunicações. O homem se
humaniza através do relacionamento do seu corpo com outras pessoas e com as coisas do
mundo. Através deste relacionamento, a história da humanidade está em relação com a vida
de cada ser humano. Por isso que, na ressurreição, o homem nunca chega só perante Deus,
mas juntamente com todos e com tudo que o ajudou a construir sua vida48.
Mas, com que corpo o homem ressuscita na morte? A respeito disto, é oportuno
retornar à Bíblia, precisamente ao texto de Paulo 1 Cor 15, 35.38, que procura responder a
intrínseca entre matéria e espírito, de modo que um espírito desencarnado já não é ser humano. Também: o
destino do homem está ligado ao destino dos outros homens e do mundo, pois o homem é um ser pessoal
individual e social. (cf. J. B. LIBÂNIO; Ma. C. L. BINGEMER, Escatologia cristã, op. cit., pp. 199s).
45
Medard Kehl explica bem a distinção entre “organismo” e “corpo”, afirmando que este último é mais do
que um organismo biológico. “A promessa bíblica da ressurreição dos mortos conta abertamente com a
possibilidade de nem toda forma de corporeidade significar ao mesmo tempo ‘organicidade’”, diz o teológo.
(cf. M. KEHL, O que vem depois do fim? Sobre o ocaso do mundo, consumação, renascimento e
ressurreição, São Paulo: Loyola, 2001, pp. 131s).
46
Um teólogo que defende esta teoria é Peter Hünermann. Sua sólida formação filosófica lhe possibilita
realizar um frutuoso diálogo entre filosofia e teologia. Em seu livro Cristología, Barcelona: Herder, 1997, ele
mostra que o conceito contemporâneo de pessoa, baseado na filosofia de Heiddeger, privilegia a
relacionalidade: a posição do homem no mundo e sua relação com os demais seres humanos define sua
identidade (cf. Ibidem, p. 470).
47
Neste sentido, são significativos os títulos de dois livros de Renold Blank nos quais procura mostrar que o
homem e o mundo serão salvos por Deus: Nossa vida tem futuro e Nosso mundo tem futuro (obras já citadas).
48
Cf. R. J. BLANK, Escatologia da pessoa, op. cit., pp. 146s.
72
A antropologia unitária permite esta afirmação já que, para ela, não existe separação
entre corpo e alma como realidades autônomas51. Ocorre, já dissemos, a glorificação da
49
As imagens são recursos importantes que apontam para uma compreensão da ressurreição, sem contudo
esgotar a inteligibilidade deste mistério da fé, que transcende a verificação empírica. Renold Blank cita duas
metáforas que ajudam a explicar a ressurreição: a metamorfose de uma lagarta em borboleta e o ato de nascer.
Neste último caso, o bebê de certa maneira “morre” junto com tudo aquilo que até então formava o seu
mundo. A dissolução de seu primeiro contexto lhe propicia a condição de entrar em outras dimensões de vida.
Da mesma maneira que a lagarta deixa atrás de si um casulo, que permanece certo tempo (mesmo quando a
borboleta já vive dentro de outros horizontes), também o ser humano deixa, na morte, um cadáver enquanto a
pessoa já vive numa nova situação como ressuscitada (cf. R. J. BLANK, Escatologia da pessoa, op. cit., pp.
137-139). Encontramos outras imagens descritas por Francisco de Mier: um corpo físico (petróleo, por
exemplo) transformado em algo físico-espiritual: energia; uma imagem televisiva de alguém que está atuando
e falando, mas tal pessoa já é falecida; a eucaristia. A respeito destas comparações, o teólogo comenta:
“Pequenas imagens, pequenas e torpes, como tudo o que se refere à vida gloriosa. Mas me ensinam que Deus
pôs em minha pessoa possibilidades imensas, sobretudo quando é Ele quem as desenvolve. Ele converterá
minha velha corporeidade em outra, inimaginável, mas necessária e suficiente para continuar sendo homem
na glória celestial” (F. MIER, Apuesta por lo eterno, op. cit., p. 276; as referidas imagens são descritas nas
páginas 272-276 do mesmo livro).
50
“Corpo espiritual” não é algo contraditório, pois a Bíblia não compreende corpo como algo oposto ao
espírito. Homem-corpo se refere à abertura da pessoa ao mundo; homem-espírito/alma, à abertura para Deus.
Leonardo Boff explica que “com a expressão corpo espiritual, Paulo quer dizer o seguinte: pela ressurreição,
o homem inteiro foi repleto da realidade divina e libertado de suas alienações como fraqueza, dor,
impossibilidade de amor e de comunicação, pecado e morte. O homem não abandonou nada de seu estatuto
antropológico, apenas foi totalmente libertado e penetrado da realidade divina” (L. BOFF, A nossa
ressurreição na morte, op. cit., p. 74).
51
Querer ver na imortalidade da alma a última palavra sobre o destino humano é desconsiderar a antropologia
unitária bíblica. A imortalidade da alma é uma noção filosófica; a ressurreição dos mortos, uma esperança. A
primeira é confiança em algo imortal no ser humano (e postula sua autotranscedência); a segunda é uma
confiança no Deus criador da vida (e confirma a transcendência divina) (cf. J. MOLTMANN, A vinda de
73
pessoa na sua inteireza, como em Jesus, que foi glorificado não apenas em sua alma
desencarnada. Na verdade, a encarnação ajuda a compreender a ressurreição corporal52. No
mistério da encarnação, Deus revela-se como alguém que ama o corpo, ponto de união
entre o homem e o mundo. Com a decisão de Deus de ressuscitar o ser humano, está unida
também a sua orientação em favor do universo, que está ordenado àquela corporeidade53.
Para que, como diz a Bíblia, haja um novo céu e uma nova terra (cf. Is 65, 17.22 e 2
Pd 3, 13), o projeto de Deus implica a salvação do universo inteiro. Ao invés de
pessimismo escatológico, devemos pensar que quando Deus irrompe no mundo, Ele o faz
sempre com a intenção de salvar, como explica Renold Blank:
Deus, op. cit., p. 82). O conceito de imortalidade é uma afirmação negativa: nega a morte, ou a restringe ao
nível corporal. Ressurreição é uma afirmação positiva: sem negar a morte, diz que a pessoa recebe de Deus o
dom da vida (cf. J. L. RUIZ DE LA PENÃ, La outra dimension, op. cit., p. 215, nota 64).
52
O mistério da encarnação e da ressurreição estão intimamente relacionados: “A ressurreição é como a
encarnação ao inverso” (F. MIER, Apuesta por lo eterno, op. cit., p. 267).
53
Ibidem, pp. 267-269.
54
Cf. J. L. RUIZ DE LA PEÑA, La outra dimension, op. cit., p. 219. A doutrina da ressurreição corporal pede
uma explicação da problemática de uma estrutura cósmica ajustada à corporeidade dos ressuscitados. O
homem não pode ser concebido fora da referência do mundo. A solidariedade homem-cosmo é também
afirmada nas ciências não teológicas. A emergência do fenômeno humano tem raízes no processo de evolução
da matéria (mas, o aspecto empírico não explica a totalidade complexa do humano). O homem não pode ter
nascido à margem do mundo, senão no mundo. Se o homem não pode ser pensado sem o mundo, e se este
último se polariza dinamicamente para o ser humano, a consumação de um há de repercutir no outro. Não
existe consumação autônoma do mundo ou plenificação acósmica da pessoa (cf. ibidem, p. 226).
74
“Este projeto cósmico de Deus não se restringe aos indivíduos. Abrange a realidade inteira.
Aquela realidade cósmica que desde o seu começo (...) já era marcada pela presença ativa de Cristo.
O espírito dele impregnava toda a dinâmica do mundo. Ele era o princípio totalizante de um processo
de convergência cósmica (...). O que se podia ver no decorrer do processo era o lado exterior. O que
não era possível ser observado pelos nossos instrumentos científicos era o lado interior do processo.
Da mesma maneira, como a presença de Cristo não pode ser detectada na hóstia consagrada, ela não
se tornou visível no cosmo. Mas, assim como a hóstia é verdadeira presença de Deus, também o
cosmo esconde a verdadeira presença de Cristo”55.
fim, de parusia do Senhor. A escatologia atual afirma que, com a parusia, as histórias
individuais de todos os seres humanos coincidirão com a história das estruturas do mundo.
Neste momento, o cosmo será avaliado conforme os critérios de Deus, formulados por Ele
na pessoa de Jesus ressuscitado58. O juízo implica a avaliação de algo, baseado em critérios.
Neste sentido, o juízo final se refere à apresentação dos critérios de Deus, fundamentados
na justiça, na misericórdia e no amor, que servirão de parâmetro de discernimento, como
diz Renold Blank:
Conclusão
Jesus Cristo é a palavra definitiva de Deus aos seres humanos e ao universo. Por
causa dele podemos ter esperança no futuro: esperança que vence o medo e incentiva a agir
para transformar este mundo. A vida de Jesus mostra que Deus estava envolvido com ele,
sustentando sua missão. Também Deus se envolve conosco, com nossa história, com esta
terra. A ressurreição de Cristo, que mostra este envolvimento salvífico, é luz a mostrar o
sentido da vida humana e aponta a meta para a qual caminhamos juntamente com o mundo.
58
Cf. R. J. BLANK, Escatologia do mundo, op. cit., pp. 360s. Renold Blank não explica de que forma
ocorrerá esta avaliação em termos práticos para todo o universo. O teólogo aponta quais são os critérios:
justiça, misericórdia e amor. Eles servem de discernimento para o ser humano. E os demais seres? Como
serão avaliados?
59
Ibidem, p. 362. Nesta citação, o teólogo interliga a idéia de juízo final com parusia (cf. também ibidem, p.
345). Baseando-se em Mt 25, afirma que “a segunda vinda de Jesus já começou a se realizar nos seus irmãos.
Realiza-se no decorrer do processo histórico (...), e em nada espetacular em todos aqueles lugares onde
homens e mulheres realizam a profunda verdade contida no texto de Mt 25. E quando este processo chegar à
sua plenitude (...), aí o processo da parusia chega à plenitude” (ibidem, p. 351). Assim, “a parusia já começou.
Ela está em andamento como o processo de cristificação dos relacionamentos humanos” (ibidem, p. 352).
76
A crença na vida eterna fundamenta a aceitação desta vida e faz com que as pessoas
se envolvam irrestritamente com a vida como um todo. Aquilo que é esperado como
ressurreição dos mortos chama-se aqui vida vivida no amor. A esperança da ressurreição
torna as pessoas dispostas a viverem integralmente suas vidas no amor e a valorizarem este
mundo, assim como Jesus o fez, ensinando a transformá-lo. É a partir desta perspectiva que
nossa esperança tem fundamento sólido. De fato, o Deus revelado em Cristo é o penhor da
nossa esperança escatológica.
2.2. A esperança
Introdução
A mensagem salvífica, contida na Bíblia, mostra que ela vem responder a este apelo
profundo do ser humano que se chama esperança. Não iremos apresentar aqui todas as
passagens do Antigo Testamento que falam da esperança. Citaremos apenas situações,
ligadas a ela, e que possuem um caráter escatológico tendo uma relação com a idéia de
60
Aqui citamos o termo de Medard Kehl que utiliza a concepção hegeliana de superação. Esta, para Hegel,
possui três momentos que se inter-relacionam: conservar (1), eliminar (2) e elevar a um plano superior (3).
Expliquemos brevemente cada um deles, relacionando-os com o tema da esperança. (1) Os conteúdos da
esperança de Israel compatíveis com o acontecimento Jesus devem ser conservados, como no caso do Reino
de Deus e da ressurreição final. (2) Tudo o que não é compatível com a promessa contida no evento Cristo
perde validade para nós, como por exemplo, a esperança de que a vinda do Reino pode ser apressada
mediante o cumprimento da lei. (3) Se para Israel as esperanças se cumpriram de modo parcial, em Jesus
acontece algo qualitativamente novo: nele se dá o cumprimento definitivo das promessas salvíficas de Deus,
de modo que Jesus não remete para algo distinto e maior que ele (cf. M. KEHL, Escatologia, op. cit., pp. 82-
85). A explicação de Medard Kehl é boa mas, se pensarmos no diálogo judeu-cristão, ela tem seus limites. De
fato, o conceito de “superação” é ambíguo e problemático. O Novo Testamento fala de “cumprimento”. É a
partir desta categoria que temos que pensar a esperança cristã.
61
Cf. J. B. LIBÂNIO; Ma. C. L. BINGEMER, Escatologia cristã, op.cit., p. 101.
78
A razão última de nossa esperança é Deus. Mas, não o Deus da filosofia helênica,
que é alheio ao mundo. Uma espiritualidade inspirada neste Deus gera uma esperança
ligada apenas ao além. O Deus bíblico, ao contrário, conduz a uma esperança concreta. A
esperança bíblica é esperança concreta de vida neste mundo. A esperança nas promessas de
Deus impulsionava o povo de Israel a buscar mais vida e a superar tudo aquilo que, na
história, impedia a felicidade das pessoas. De fato:
62
“Cabe falar de ‘escatologia’ no Antigo Testamento quando se espera de Deus uma salvação última e
definitiva, tanto no seio da história como no plano de um possível aperfeiçoamento dela”. (M. KEHL,
Escatologia, op. cit. p. 98, nota 15). Medard Kehl faz esta afirmação com base em Nobert Lohfink (cf. N.
LOHFINK, Escatologia en el antiguo testamento, Salamanca, 1969, pp. 163-187).
63
R. J. BLANK, Escatologia do mundo, op. cit., p. 7.
64
Renold Blank apresenta o tema da esperança de Israel procurando enfatizar sobretudo o seu caráter histórico
e a fidelidade de Deus na implantação do seu projeto escatológico, que conta também com a colaboração
humana. O teólogo tem a intenção de mostrar que, apesar dos fracassos históricos e da infidelidade humana,
Deus quer a felicidade das pessoas e a plenificação do mundo. Com esta visão positiva, dinâmica e processual
do plano escatológico divino vamos preparando, assim, uma compreensão dos “novíssimos” numa
perspectiva diferente da teologia tradicional, em que predominava o medo e o desligamento da realidade.
79
65
Cf. R. J. BLANK, Escatologia do mundo, op. cit., pp. 13-20. Para cada um dos períodos que
apresentaremos, não vamos entrar em detalhes históricos. Suporemos que eles já são razoavelmente
conhecidos dos leitores. Nossa preocupação é indicar como a esperança se mostra nos referidos momentos da
história de Israel. Renold Blank apresenta as várias etapas históricas de modo simples e genérico, pois está
interessado em detectar as tendências pelas quais passou a esperança em cada fase da história.
66
Cf. Ibidem, pp. 21s. A análise de Renold Blank é geralmente linear e unilateral, o que não significa que não
seja verdadeira.
80
estaria o Deus fiel, em meio às crises do povo, e como manter viva a fé. Como veremos no
aprofundamento que se segue, destes esforços emerge uma nova figura da esperança.
Deve-se assinalar, por outro lado, que a salvação, sem excluir a aceitação humana,
fica reservada à iniciativa de Deus. A salvação divina, e os modos com que Deus a realiza,
está acima das representações humanas. Por isso, em todos os esquemas explicativos da
esperança escatológica, e nas situações históricas em que ela se realiza, existe a presença do
“ainda não”. Deste modo, quando se confia em Deus, “apesar de tudo”, a esperança não
pode falhar no substancial.
pretende permanecer fiel, numa história sempre mutante, se abre precisamente a este mudar
contínuo e busca aí a presença do amor de Deus69.
e) Pós-exílio: apocalíptica70
Os profetas prometem a nova ação divina como uma nova criação de Javé. Esta
visão introduz uma descontinuidade entre a história passada e a história presente ou futura.
Trata-se de uma “esperança desesperada”71, que imagina o futuro agir de Deus como
69
Cf. M. KEHL, Escatologia, op. cit., p. 107.
70
Cf. R. J. BLANK, Escatologia do mundo, op. cit., pp. 33-56
71
Ibidem, p. 35.
84
destruição catastrófica desta história e irrupção contínua de algo totalmente novo. Assim, a
perspectiva escatológico-histórica, apesar de nunca desaparecer totalmente, foi
progressivamente substituída pela apocalíptica72.
A exegese moderna, segundo Renold Blank, assegura que existe continuidade, e não
ruptura total, entre a escatologia histórica profética e a escatologia apocalíptica, que nada
mais é que um desenvolvimento particular da primeira. Dentro da nova visão da história, o
elemento significativo, nesta continuidade, é a convicção, formulada pelos profetas depois
do exílio, de que Deus fará algo totalmente novo73.
72
O pensamento apocalíptico tem sua origem na religião persa de Zoroastro, no século VI a. C. Sua teologia
da história ensina que existe uma luta entre um princípio do bem e um do mal. Haverá um juízo sobre a
história; um julgamento individual, após a morte, e um julgamento universal do cosmo (cf. Ibidem, pp. 39s).
73
Cf. Ibidem, p. 48.
85
74
No decorrer dos séculos, a esperança no agir vitorioso de Deus foi compreendida por alguns como
expectativa temporal: quando acontecerá o fim deste mundo e o início de uma nova época? A indagação sobre
o “quando” incentivou o surgimento do pensamento milenarista, que prega uma data determinada para o fim
do mundo. Este fenômeno enfraquece o potencial transformador da esperança apocalíptica, gerando uma
atitude de passiva expectativa. De fato, a função original da teologia apocalíptica é manter viva a esperança de
que as situações de opressão terão um fim. Os apocalipses procuravam restaurar a utopia de que acontecerá
uma transformação radical da situação histórica atual (cf. Ibidem, pp. 65s). O milenarismo retoma a idéia
apocalíptica do “eon” ou “milênio”. Estes são períodos completos expressos pela simbologia numérica dos
“1000 anos”. Não se trata, portanto, de contagem no sentido cronológico. Renold Blank faz uma explicação
detalhada do milenarismo nas páginas 59 a 69 do livro Escatologia do mundo. O teólogo suíço aborda
também a problemática da recepção das imagens apocalípticas no discurso cristão. Houve freqüentemente na
história uma recepção incorreta de tais imagens, o que acarretou medo ante a possibilidade de um holocausto
terrificante (cf. pp. 53-56 e 70-73 do livro citado).
75
Cf. A. TORNOS, Escatologia I, Madrid: Universidad Pontifícia Comillas de Madrid, 1989, pp. 54-71.
86
Nas cartas aos Coríntios, a esperança é concebida também como “estar com Cristo”
que vence a morte, realiza a justiça e o ser de Deus em nós (cf. por exemplo: 2 Cor 4, 16-18
e 2 Cor 5, 2-4). Neste sentido, a esperança não exclui os sofrimentos e as contrariedades da
vida, mas triunfa sobre eles concedendo à pessoa força, consolo, audácia e confiança. A
carta aos Romanos ocupa-se de dois temas específicos: a relação entre esperança e
promessa de Deus para a história, e o relacionamento entre esperança e justiça. O restante
das cartas paulinas traz poucos elementos novos, que não mencionaremos aqui. Apenas
lembramos que a carta aos Hebreus recolhe os grandes temas do ensinamento de Paulo
sobre a esperança.
cristãs a viverem o amor concreto. Este amor é base de uma esperança processual,
libertadora e que transforma o mundo. A análise que faremos a seguir, deste assunto,
mostra a ligação que existe entre esperança, Cristo e Reino de Deus (tema que será
aprofundado no item 2.3.).
A teologia não pode basear suas reflexões em modelos abstratos e estáticos, pois
toda teologia está ligada à vida e à história. É preciso adotar a forma processual de pensar,
pois a própria história da salvação se apresenta como um imenso processo, onde o agir de
Deus se verifica no acontecer da história e conta com a colaboração humana.
O Eschaton, isto é, a plenitude de vida a ser alcançada no fim dos tempos, incentiva
no presente a transformar o mundo em direção ao ideal esperado. A escatologia, portanto,
tem uma capacidade transformadora76. Renold Blank, no livro Escatologia do mundo,
propõe dez princípios de uma escatologia que pretende realizar a tarefa de transformação77:
1o) Compromisso entre escatologia e realidade histórica; 2o) Escatologia, centro e espinha
dorsal da mensagem cristã; 3o) Esperança para um mundo que perdeu as esperanças; 4 o)
Reino de Deus, noção chave de nossa esperança, noção chave de toda a escatologia; 5 o) A
esperança na realização futura do Reino de Deus transforma o presente; 6o) O cristão tem a
vocação de transformar de maneira ativa este mundo, conforme os critérios do Reino de
76
A esperança escatológica é “esperança que ama a terra” (título de um livro de Karl Rahner: Glaube, der
Erde liebt, Freiburd, 1966). A esperança cristã não pode ser reduzida a um além da morte individual e
coletiva. Como cristãos, não esperamos apenas a última plenitude da história individual, social e universal;
mas também a eficácia da salvação que ocorre nesta história. O Espírito do Ressuscitado atua em nós para
transformar este mundo de modo que a vida individual e social seja cada vez mais digna e humana (cf. M.
KEHL, Escatologia, op. cit., 1992, p. 27).
77
Os dez princípios são explicados em R. J. BLANK, Escatologia do mundo, op. cit. pp. 113-127.
88
Deus; 7o) O cristão é chamado a converter o mundo; 8o) A construção do Reino de Deus
implica necessariamente o compromisso social e político; 9o) A esperança escatológica
cristã é força crítica transformadora. Com isso, ela alcança uma dimensão eminentemente
política; 10o) O fato de Deus nos amar deve ser transmitido por mediações.
Se, conforme Jesus, o Reino de Deus já começou, então nossa esperança tem base
sólida e as promessas do Reino tornam-se esperança e desafio para os cristãos. Tais
promessas são esperanças para um mundo desesperado, que carece de utopias. Elas são
esperanças que prometem a plenificação da pessoa e do mundo. A consumação futura
mobiliza porém a ação humana no presente, a fim de que ocorra aqui a realização das
promessas escatológicas. A ação humana não requer apenas uma conversão pessoal, mas
também uma prática sóciopolítica crítica diante dos sistemas que querem absolutizar-se78.
Renold Blank distingue cinco grandes opções em Jesus: 1a) opção preferencial pelos
pobres; 2a) pelo serviço e contra o poder; 3a) pela misericórdia e contra o legalismo
religioso; 4a) pela justiça e contra a opressão; 5a) pela vida integral do ser humano79.
Segundo ele, tais opções modelam as cinco dimensões próprias à esperança escatológica:
1a) a esperança na superação de estruturas econômicas que geram pobreza, 2a) bem como a
esperança na superação das estruturas políticas, 3a) religiosas e 4a) sociais que geram
opressão e, finalmente, 5a) a esperança na superação de todas as estruturas opostas à vida80.
Conclusão
A esperança de Israel se caracteriza pela sua ligação com a história. Apesar disso,
não é uma esperança mundana na qual não há lugar para nada além das necessidades
empíricas. Na verdade, a esperança de Israel apóia-se ao mesmo tempo na história concreta
e em Deus, que conduz a história segundo a sua vontade de conceder felicidade ao povo.
Introdução
83
Entre os teólogos, existem posições diferentes a este respeito. Renold Blank afirma que Johann Baptist
Metz adota a concepção que “acentua a descontinuidade da história a partir de pressupostos apocalípticos” (R.
J. BLANK, Escatologia do mundo, op. cit., p. 127). Por outro lado, Medard Kehl diz que Jesus ultrapassa a
visão apocalíptica de Reino. Este “aparece como um processo de amor de Deus que integra mais e mais nossa
história atual na vida salvadora e libertadora de Deus” (M. KEHL, Escatologia, op. cit., 1992, pp. 139s). Esta
é a posição adotada por Renold Blank, e também por nós neste trabalho. Pois, ela nos ajudará a compreender
os “novíssimos” numa perspectiva dinâmica, processual, ligada à história e à liberdade humana e, finalmente,
está dentro de um horizonte que destaca o agir de Deus em vista de salvar e não de castigar o homem.
92
uma situação em que Deus revelasse sua soberania. Tal situação foi chamada de “Reino de
Deus”. Não se tratava de uma situação meramente “espiritual”, pois implicava o exercício
do poder e supunha dimensões sociais e históricas. Esta forma de entender o Reino de Deus
se acentuou principalmente no período do em que foi redigido o livro de Daniel (cf. 2, 44;
7, 13; 7, 18; 7, 27). Esperava-se então uma alternativa histórica, propiciada por Deus,
contra a opressão do império helênico-selêucida. É a partir desta perspectiva que Jesus
compreendeu o Reino, modificando no entanto alguns aspectos interpretativos que
encontrou em sua época84. Segundo Schillebeeckx:
mundo novo (assim pensavam, por exemplo, os Macabeus no final do Antigo Testamento).
A época de Jesus era vista como “os últimos tempos”. É neste contexto de fim iminente do
mundo que se situa a pregação de João Batista e seu convite à conversão87.
- Expectativa legalista. Esta corrente acreditava que a prática escrupulosa da lei era
condição indispensável para a vinda do Reino de Deus. A lei culmina em dois pontos
considerados de máxima importância: a observância do sábado e a pureza ritual. Os
representantes clássicos desta tendência eram os fariseus. Eles acreditavam que o messias,
em sua vinda, iria exigir o seguimento rigoroso da lei, pois quem a transgredisse tornar-se-
ia obstáculo à implantação do Reino88.
Toda a atuação de Jesus ocorreu numa sociedade impregnada pela espera do Reino
de Deus. Neste contexto, predominavam as concepções formuladas pela corrente
apocalíptica. Mas, a mensagem do Reino veiculada por Jesus não se identifica com
87
Cf. R. J. BLANK, Escatologia do mundo, op. cit., pp. 174-176. Apresentaremos cada uma das quatro
correntes, mostrando breve e simplificadamente a idéia teológica central de cada uma delas.
88
Cf. Ibidem, pp. 176-179.
89
Cf. Ibidem, pp. 180.
90
Cf. Ibidem, pp. 181-183.
94
nenhuma das expectativas de seu tempo. Contra a corrente apocalíptica, ele afirma que o
Reino de Deus já está presente e não haverá um fim catastrófico deste mundo, embora
tenha mantido alguns aspectos das imagens apocalípticas.
Contra a expectativa legalista, Jesus mostrou que o Reino não se conquista pela
observância da lei, mas irrompe como dom de Deus. Ele diz, no entanto, que veio cumprir a
lei e não aboli-la. Contra a tendência política, ele ensinou que o Reino não combina com a
violência e nem é implantado apenas com projetos políticos, embora tenha deixado que o
aclamasse rei, por ocasião de sua entrada triunfal em Jerusalém. Contra a expectativa
profética, Jesus elimina a ameaça do “Dia de Jávé”, visto como dia de juízo terrível.
Jesus aproveitou algo das concepções do Reino existentes, mas elaborou uma nova
concepção ultrapassando as expectativas de seu tempo e corrigindo-as com outros aspectos,
segundo Renold Blank. A originalidade de sua concepção do Reino aparecem nas seguintes
características91: 1a) No agir de Jesus se revela aquilo que é Reino de Deus; 2 a) A
característica estrutural de todo agir de Jesus é transformar situações de morte em situações
de vida; 3a) Jesus convida a imitar seu próprio agir; 4a) No agir de Jesus se tornam
realidades as antigas profecias sobre o Reino de Deus; 5a) No seu agir, Jesus vai além
daquilo que foi anunciado nas profecias; 6a) Na sua ação, Jesus elimina as ameaças das
antigas profecias; 7a) O agir de Jesus dá ênfase especial à opção preferencial pelos pobres.
O teólogo suíço resume estas características em três princípios básicos: 1o) O Reino é de
preferência para os pobres; 2o) Ele é uma realidade escatológica que transforma o mundo
presente; 3o) Em Jesus se concretizam as profecias sobre o Reino de Deus.
91
Cf. Ibidem, pp. 187-203.
95
que manifestava a rejeição por parte de Deus. A doença, como a cegueira ou a lepra,
significava exclusão da vida social e religiosa.
Optando pelos pobres e excluídos, Jesus mostra que Deus não os abandonou. Ao
contrário, são objeto de sua especial atenção. No agir de Jesus está o agir do próprio Deus
acolhendo os pobres. Esta opção de Jesus não é uma novidade na tradição bíblica, pois ela
se encontra nos profetas, que prometeram o amor e a justiça preferencialmente aos pobres.
Javé mesmo, nos textos do Antigo Testamento, aparece sempre como o go’el, o defensor
dos fracos. A novidade de Jesus consiste em enfatizar muito a opção preferencial pelos
pobres.
A antiga tradição de Israel esperava o Reino de Deus como algo futuro. Mas este
futuro apresenta em Jesus uma nota particular: trata-se de um futuro próximo que já implica
o presente e o modifica. Deste modo, o Reino de Deus significa a transformação deste
mundo, sobretudo a superação das situações de morte, transformando-as em situações de
vida. Esta mudança ocorre não só por meio do agir de Jesus, mas também por meio do agir
daqueles que o seguem.
Com o chamado “segui-me” (Mc 1, 17; 2, 14; 10, 21), Jesus convoca discípulos e
discípulas para fazer o mesmo que ele fez: agir de tal maneira que o Reino se torne
realidade concreta e visível. O Reino de Deus não pode ser interpretado de maneira
espiritualista e individualista. Pois, a práxis de Jesus mostrou ações entrelaçadas com as
situações pessoal, sociocultural, religiosa e política.
confirma sua messianidade com referência aos atos que realiza. Além disto, Jesus vai além
daquilo que foi anunciado pelos profetas: declara um ano jubilar (cf. Lc 4, 19) e expulsa
demônios (um exemplo: Mc 5, 1-20). No seu agir, por outro lado, Jesus elimina as ameaças
das antigas profecias. Fazia parte da proclamação profética a expectativa do julgamento por
ocasião do reinado de Deus, quando os ímpios seriam aniquilados. Jesus não faz menção ao
“Dia de Javé”, pois o Reino de Deus não se implanta com terror, mas com amor.
Estas características do Reino de Deus devem inspirar a ação da Igreja, assim como
marcaram o agir de Jesus. Do mesmo modo, a reflexão teológica deve basear-se nela. Neste
sentido, Renold Blank desenvolve sistematicamente as características que ele considera
próprias à práxis do Reino vivida por Jesus: processual, escatológica e dialética.
O Reino de Deus, pregado por Jesus Cristo, pode ser descrito por meio de várias
características. Na reflexão de Renold Blank, destaca-se o caráter escatológico, processual e
dialético do Reino de Deus. Ele desenvolve sobretudo estes dois últimos aspectos. Estas
características não são completamente novas na teologia. Vários teólogos já estudaram as
dimensões escatológica, processual e dialética do Reino de Deus. A originalidade de
Renold Blank é a de sistematizá-las e aprofundá-las à luz da teologia latino-americana da
libertação92.
Sua reflexão baseia-se também nos mais modernos modelos filosóficos e científicos,
buscando porém superar todo academicismo. Sabendo que a teologia está a serviço da
pastoral, ele procura construir e divulgar uma escatologia que seja consolação, libertação e
esperança para o povo deste continente. Neste sentido, o caráter processual, dialético e
escatológico do Reino de Deus são destacados como elementos importantes de uma
escatologia em sintonia com a teologia da libertação.
92
A bibliografia que ele utiliza para isto revela sua preocupação em inserir a escatologia no horizonte da
teologia da libertação. Entre as obras nas quais Renold Blank se baseia, encontramos documentos do
CELAM, da CNBB e de teólogos da libertação importantes como Leonardo Boff, Juan Luis Segundo, Jon
Sobrino, João Batista Libânio, etc (cf. lista bibliográfica pp. 371-380 do livro Escatologia do mundo).
97
O Reino de Deus não irrompe já pronto nesta história. Ele possui uma dinâmica
processual de crescimento. Esta dinâmica é apresentada, por exemplo, como grãos que
germinam (cf. Mc 4, 26; 4, 30; Lc 13, 18; Mt 13, 1-23), fermento que leveda a massa (cf.
Lc 13, 21; Mt 13, 33), propriedade onde os servos devem fazer o dinheiro render (cf. Lc 19,
11-23) etc. Estas imagens sugerem progressividade: o Reino de Deus está em andamento, já
começou, mas sua plenificação ocorrerá num futuro escatológico.
Renold Blank lembra-nos ainda que o processo de construção do Reino pode até
mesmo ser prejudicado por pessoas dentro do âmbito cristão e ser combatido com
argumentos teológicos. A própria experiência de Jesus contém este fato, ao ser rejeitado
93
Cf. R. J. BLANK, Escatologia do mundo, op. cit., pp. 211-216.
98
Renold Blank não utiliza aqui o termo dialética em sentido hegeliano que
caracteriza um movimento em três etapas interligadas: afirmação, negação e superação. O
teólogo suíço associa ao termo dialética duas idéias: a do conflito (dialética extrínseca) e a
da dinâmica própria do Reino (dialética intrínseca).
94
Cf. Ibidem, pp. 217-224.
99
A dialética intrínseca se refere à “tensão entre aquilo que se pode conseguir pelo
esforço humano, e aquilo que significa o Reino de Deus em plenitude”95. A dialética
intrínseca procura corrigir a tendência da escatologia tradicional em colocar o Reino numa
dimensão totalmente transcendente. E também, por outro lado, reage contra a tentativa de
identificar o Reino com as realizações benéficas que ocorrem no mundo. O Reino de Deus
apresenta dimensões que ultrapassam todos os níveis históricos, alcançando um futuro
absoluto não realizável pelo esforço humano, porque possui um caráter escatológico.
95
Ibidem, p. 222.
96
Cf. Ibidem, pp. 225-229.
97
Ibidem, p. 225.
98
P. HÜNERMANN, “Reich Gottes, sinn und Ziel der Geschichte”, em: Heinz Althaus (Org.), Apokalyptik
und Eschatologie apud ibidem, p. 226.
100
próximo. Convertei-vos e crede no Evangelho” (Mc 1, 15). Estas palavras também são um
desafio constante para todos os seguidores de Jesus Cristo.
Conclusão
99
A teologia da libertação é um complexo fenômeno teológico e eclesial. Por isso, devido ao objetivo deste
trabalho, não entraremos em detalhes sobre ela, mas remetemos ao comentário feito por João Batista Libânio
no seu livro Teologia da libertação: roteiro didático para um estudo, São Paulo: Loyola, 1987.
101
De fato, este último aspecto lembra algo central na teologia da libertação latino-
americana: a experiência de fé é ato primeiro; a teologia vem depois, como ato segundo. A
escatologia, situando-se no contexto de uma experiência de fé, não corre o risco de
converter-se numa espécie de metafísica religiosa. O discurso que ela elabora, baseado na
esperança do Reino de Deus, está orientado pelo compromisso histórico e pela militância
nas lutas de libertação. Por isso, no interior deste discurso, os vários elementos que
compõem esta escatologia adquirem nova luz interpretativa em relação à teologia
tradicional.
100
Renold Blank acrescenta, no livro Escatologia do mundo, três outras “noções fundamentais do discurso
escatológico contemporâneo” (Ibidem, p. 385): o fim do mundo (pp. 269-339), a parusia (pp. 340-354) e o
juízo final (pp. 355-364). A partir do novo paradigma apresentado, com as características do Reino, estas três
noções da escatologia devem ser vistas também em termos de processo dinâmico-dialético que já começaram
em Jesus e, no fundo, se referem à futura plenificação do Reino de Deus, incluindo a humanidade e o cosmo.
102
CAPÍTULO III
1
Nos livros em que Renold Blank fala do purgatório, inferno e céu, e que utilizaremos neste terceiro capítulo,
este pensamento se repete explicitamente. De fato, ele ajuda a explicar o sentido dos três “novíssimos”
colocando em relevo a salvação de Deus e a liberdade humana. A citação acima se encontra nas obras do
autor: Viver sem o temor da morte, op. cit., p. 169; Nossa vida tem futuro, op. cit., p. 226 e Escatologia da
pessoa, op. cit., p. 318. Os dois primeiros livros não tratam explicitamente do céu, como veremos a seguir.
103
vida, o amor e a salvação. Diante dessa realidade, Renold Blank procura esclarecer o
alcance do amor salvífico de Deus, até mesmo numa situação de inferno.
Segundo Renold Blank, na morte, o ser humano dá a Deus uma resposta decisiva 2
que pode ser de conversão (purgatório), de rejeição (inferno) ou de amor (céu). A resposta
dada no encontro com Deus, qualquer que seja, é, entretanto, um auto-julgamento que a
pessoa faz de si mesma diante de Deus, tendo sua liberdade respeitada por Ele. As três
respostas (purgatório, inferno e céu) serão avaliadas, a seguir, depois de explicarmos a
importância da morte no processo escatológico. O desenvolvimento deste aspecto nos
ajudará a compreender os três “novíssimos” à luz da tese de Renold Blank evocada acima.
Introdução
Vivemos em tempos marcados pela morte. Por um lado, aumentaram com sinistra
periodicidade as situações de morte, que se tornaram a experiência cotidiana de grande
parte dos povos do Terceiro Mundo. Por outro lado, muito se tem refletido sobre o morrer.
Renold Blank reflete sobre essa questão principalmente nos livros Viver sem o temor da
morte, Nossa vida tem futuro e Escatologia da pessoa. Nas páginas iniciais destas obras, o
teólogo suíço expõe uma fenomenologia da morte3. Centrando a atenção em sua dimensão
teológica, ele lembra que o discurso pastoral deve ser capaz de despertar a esperança frente
à realidade do fim da vida4.
2
O encontro com Deus na morte é decisivo de acordo com vários teólogos. Francisco de Mier é um deles, ao
escrever que “Deus alcançado é o céu. Deus rechaçado, é o inferno. Deus discernindo, é o juízo. Deus
purificando, é o purgatório” (F. MIER, Apuesta por lo eterno, op. cit., p. 132). Renold Blank se fundamenta
em Ladislau Boros, para falar da importância do encontro com Deus na morte: “Quando o homem se decide,
no momento da morte, contra Cristo (...) isso é o inferno. Mas, se o homem se decide por Cristo (é o ) céu”
(L. BOROS, Existência redimida, São Paulo: Loyola, 1974, p. 93). Aliás, Renold Blank se inspira em alguns
pontos em Boros mantendo, porém, uma distância crítica em relação a ele em outras questões.
3
Cf. R. J. BLANK, Viver sem o temor da morte, op.cit., pp. 9-26; Nossa vida tem futuro, op. cit., pp. 9-18 e
Escatologia da pessoa, op. cit., pp. 7-24.
4
Veja por exemplo o livro Escatologia da pessoa, páginas 46 a 64, onde a questão é mais elaborada em
relação aos dois livros citados anteriormente.
104
Efetivamente, segundo Renold Blank, grande parte das pessoas que crêem na vida
eterna temem pela salvação. Por isso, a morte lhes causa angústia. Um desafio para a
escatologia é justamente superar o medo, veiculado entre muitos cristãos durante o
processo de evangelização, por uma mensagem religiosa opressiva. Especificamente, trata-
se de recuperar, no discurso teológico-pastoral, a imagem de um Deus amoroso e
misericordioso. Com isto, procurar-se-á a libertação das imagens distorcidas associadas a
um Deus tirânico, legalista e juiz severo que se encontra com a pessoa na hora da morte5.
5
No livro Viver sem o temor da morte, Renold Blank sinaliza para uma futura pesquisa religioso-psicológica
que estude até que ponto determinadas situações de opressão social e espiritual encontram sua causa última
num discurso escatológico que enfatiza mais as ameaças pedagógicas de punição do que a mensagem de
esperança (cf. op. cit., pp. 59s). Este projeto concretizou-se posteriormente e foi publicado no livro Esperança
que vence o temor. O medo religioso dos cristãos e sua superação. Este livro é fruto de uma pesquisa de
campo, realizada nos anos 1989-1992, no decorrer da qual foram entrevistadas 823 pessoas de todos os
estratos sociais da cidade de São Paulo. Trata-se, portanto, de uma amostra limitada e já não muito atual, pois
o quadro religioso mudou até o presente. Porém, o livro contém boas reflexões sobre a realidade estudada,
procurando apontar caminhos para a superação do medo escatológico. São pistas seguras que servem de luz
ainda hoje, quando nos deparamos com os mesmos problemas escatológicos.
105
pessoa. O agente desta mudança é Deus, que não transforma uma parte do homem, mas ele
inteiro, preservando sua identidade. Isso é o que chamamos ressurreição dos mortos9.
Se na morte a pessoa tornou-se definitiva, isto significa obviamente que tudo o que
ela fez, assim como suas culpas, obras boas e más, não pode mais ser mudado. O ser
humano se torna definitivo na sua dimensão pessoal, socioestrutural e histórica. Na morte,
ele percebe pela primeira vez todas as dimensões de sua vida no seu verdadeiro alcance.
Durante sua vida terrena, o homem podia “fechar os olhos” perante si mesmo, ignorando as
conseqüências de seus atos e omissões. Na morte, isso não é mais possível. Assim, “a morte
se torna o primeiro momento de cognição total, no qual o ser humano será confrontado,
queira ou não, com todas as dimensões de si mesmo”12.
O ser humano nunca pode ser visto unicamente como ser individual, isolado. Toda
sua vida está ligada à vida de outras pessoas, através de muitos relacionamentos. O ser
humano possui muitas dimensões que se tornarão conscientes na morte. Durante a vida, não
é possível compreender de modo global as influências dos atos humanos em nível
socioestrutural e histórico. Segundo Renold Blank, na morte, o indivíduo perceberá com
clareza todas as conseqüências de suas opções, erros, pecados, virtudes etc, dentro de uma
rede complexa de inter-relações.
Do ponto de vista escatológico, sublinha Renold Blank, é importante frisar que “esta
cognição se realiza na presença de Deus”13: com tudo o que fez de si no decorrer de sua
vida, o homem se encontra com Deus na morte. Porém, não se trata de um Deus “soberano
aterrador” e “juiz tirano”, mas sim de um “Deus de amor”.
Para o nosso teólogo, este encontro com Deus na morte14 se refere ao que a teologia
tradicional dos “novíssimos” chama de juízo particular. Na perspectiva desta teologia,
porém, tal juízo era percebido como um tribunal, onde Deus avaliava com rigor a vida do
ser humano. De fato, no decorrer da história do cristianismo, o encontro com Deus na morte
se transformou em “lastimável tribunal de justiça”15. Renold Blank procura esclarecer o
juízo na morte. E, citando Leonardo Boff, afirma:
“O juízo na morte não é um balanço matemático sobre a vida passada, onde aparecem diante
de Deus o saldo e o débito, o passivo e o ativo. Mas possui dimensão própria de derradeira e plena
determinação do homem diante de Deus, com a possibilidade de conversão para o pecador”16.
13
Ibidem, p. 164.
14
Renold Blank fala várias vezes em “primeiro encontro com Deus”. Optamos por usar a expressão “encontro
com Deus”, pois não se trata do primeiro, mas do encontro definitivo. Na verdade, ele é o último já que houve
outros encontros do homem com Deus durante a existência terrena. E, na morte, não haverá portanto um
primeiro encontro seguido de outros, mas apenas o encontro decisivo do ser humano com Deus.
15
Ibidem, p. 173. Renold Blank analisa este desvio compreensivo da noção de julgamento e justiça divina nas
páginas 173 a 176 e 185 a 191 de Escatologia da pessoa, e 162 a 164 de Nossa vida tem futuro.
16
L BOFF, Vida para além da morte apud R. J. BLANK, Escatologia da pessoa, op. cit., p. 168. Como
veremos mais à frente, o juízo na morte é uma oportunidade de conversão (purgatório) e não de castigo. O
purgatório é uma dimensão do juízo (cf. J. L. RUIZ DE LAPEÑA, La pascoa de la creacion, op. cit., p. 291).
108
Estas idéias também são compartilhadas por Ladislau Boros e por Joseph Ratzinger,
de quem Renold Blank recorda um pensamento que resume o sentido do juízo na morte: o
julgamento é a manifestação da verdade do ser humano perante Deus17.
Deus estabeleceu Jesus como juiz. Um juiz que intervém em nome de todos os que
fracassaram e que veio para salvar, não para condenar. Jesus pede que seus discípulos
perdoem não somente sete vezes, mas setenta vezes sete (cf. Mt 18, 21). Se é assim,
pergunta-se Renold Blank, como se poderia explicar que o próprio Jesus não perdoasse?
Enfim, Jesus não realizará um juízo de castigo na morte, mas sim de misericórdia e
esperança. Esta era a convicção dos primeiros cristãos, para quem o encontro com Deus na
morte significava celebração de reencontro festivo:
“Nisto consiste a perfeição do amor em nós, que tenhamos plena confiança no dia do
julgamento porque tal como ele é, também somos nós neste mundo. Não há temor no amor, porque o
temor implica em castigo, e o que teme não é perfeito no amor” (1Jo 4, 17-18).
17
Cf. R. J. BLANK, Escatologia da pessoa, op. cit., p, 168.
18
Aqui, mais uma vez, Renold Blank se inspira em Ladislau Boros, que diz: “O homem tem que passar pela
morte. E na morte encontrará inevitavelmente o Cristo (...) (que) apresenta-se lá, na morte, diante do homem,
de um modo claro, brilhante, e o chama a si com o gesto do amor redentor” (L. BOROS, Existência redimida,
op. cit., p. 92). Esta morte, do modo como Ladislau Boros a apresenta, pode parecer por demais cristã. Ela, no
entanto, não se dá apenas no cristianismo explícito, explica R.uiz de la Peña. A ação de morrer consuma a
vida de todos os seres humanos, mas não pode ser algo religiosamente neutro. Será sempre uma realidade
teologal, visto que decide o destino do homem. Quando a morte é experimentada como confiança, aí está
presente a graça de Cristo (cf. J. L. RUIZ DE LA PEÑA, La pascoa de la creacion op. cit, p. 267). Sobre isso,
o próprio Ladislau Boros concorda também, ao dizer que até mesmo os pagãos, aqueles bilhões de homens
que nunca ouviram falar de Cristo, se encontram com ele na morte (cf. L. BOROS, Existência redimida, op.
cit., p. 94).
19
Cf. R. J. BLANK, Escatologia da pessoa, op. cit., p. 169.
109
Deus ama sempre e de modo incondicional. Isso será percebido pelo homem na
morte, quando ele toma consciência plena de sua vida, malograda em tantos pontos
cruciais, marcada por ruínas e possibilidades de crescimento perdidas. Ele percebe o que
Deus pretendia para ele e verá o quão pouco realizou. Contudo, como não há mais
possibilidades de alterar coisa alguma, o homem reconhece-se pobre diante de Deus e
necessitado de sua ajuda. Numa situação dessas, resta-lhe somente entregar-se sem reservas
ao amor de Deus.
O encontro com Deus na morte revela a dependência inevitável do homem para com
Deus. Assim, o ser humano deve estar disponível e aberto para Deus. Este “depender de
alguém (...) é, pois, o elemento característico do encontro com Deus na morte. Esta será a
confissão de que nada mais pode fazer e de que Deus tem de fazer tudo" 20. A situação de
morte pede uma entrega sem reservas ao Deus de amor. Na tentativa de explicar o imenso
amor de Deus, Renold Blank faz uma analogia com o amor humano. No amor, uma pessoa
se entrega à outra integralmente, confiando que o amado a aceite apesar de suas falhas.
Se até o amante humano aceita os defeitos da pessoa amada, porque Deus não
estaria em condições de fazer o mesmo, Ele que ama infinitamente? A esta pergunta,
Renold Blank responde: “Na sua forma suprema, o amor não pergunta se o outro também
ama. O verdadeiro amor envolve o outro, mesmo se este não corresponde. O verdadeiro
amor busca caminhos para despertar o amor no amado, e nisto é criativo” 21. Contudo,
entregar-se a Deus, confiando em seu amor que não abandona, requer uma decisão a ser
tomada pelo ser humano por ocasião de seu encontro com Deus na morte.
É possível um ato de confiança na morte? Um tal ato não implica ação e empenho
por parte da pessoa? Isto seria ainda possível na morte, quando a pessoa se torna definitiva?
O próprio Renold Blank reconhece estas dificuldades ao citar dois teólogos com
perspectivas diferentes. Um deles é Ladislau Boros que defende a hipótese da decisão final.
Ou seja, o ser humano decide sua vida na morte. Ele vê na morte a primeira oportunidade
em que o homem ou a mulher podem decidir-se, definitivamente e livremente, em favor de
Deus ou contra Ele24:
Contra esta posição, temos Karl Rahner, que afirma ser o homem capaz de
autodeterminar-se eternamente durante a sua vida26. Uma decisão fundamental só na morte
deve deixar-se envolver por Deus, permitindo ser salvo por Ele. “Esta é a única liberdade de escolha que
ainda resta para o homem: permitir que Deus o salve ou, então, discordar disto (...). A este aceitar Deus com
tanta confiança chamamos FÉ” (grifo do autor) (R. J. BLANK, Viver sem o temor da morte, op. cit., p. 105).
Sobre a capacidade de decidir na morte, perguntamos se isto é ainda possível. Pois, como o homem se torna
definitivo na morte, não seria uma contradição ele agir/decidir tendo perdido a capacidade de agir/decidir?
Em todo o caso, pensamos com Renold Blank que “as manifestações a este respeito permanecerão sempre no
domínio da especulação teológico-filosófica” (ibidem, op. cit., p. 104). Este item 3.1.2. apresenta um
problema que tentaremos esclarecer, baseando-nos em Renold Blank e em outros teólogos.
23
R. J. BLANK, Viver sem o temor da morte, op. cit., p. 104.
24
Cf. Ibidem, p. 103. Leonardo Boff também concorda com esta idéia. Segundo Renold Blank, Leonardo Boff
foi um dos divulgadores do pensamento de Ladislau Boros no Brasil através do livro Vida para além da
morte (cf. R. J. BLANK, Nossa Vida tem futuro,. op. cit., p. 142, nota 15).
25
L. BOROS, Existência redimida, op. cit., p. 88. As palavras de Ladislau Boros se referem a uma hipótese.
E, como tal, Renold Blank lembra este fato dizendo que Boros se referiu, em 1977, “com extremo cuidado a
esta idéia” (R. J. BLANK, Viver sem o temor da morte, op. cit., p. 138).
26
Na opinião de Moltmann, também a “decisão para a eternidade foi tomada durante a (...) vida e torna-se
irrevogável por intermédio da (...) morte” (J. MOLTMANN, A vinda de Deus, op. cit., p. 115).
111
desvaloriza demais, segundo ele, a história humana27. Renold Blank, seguindo Rahner,
rejeita a hipótese de uma decisão na morte28 e pergunta se “a interpretação de Boros, talvez,
não dê demasiada importância à possibilidade de decisão”29. Sua reflexão, no entanto,
mostra muito sintonia com tal hipótese: a decisão de entregar-se a Deus é ato último e
definitivo com o qual o homem ou a mulher re-orientam toda a existência conforme os
parâmetros de Deus30. Temos aqui a impressão de que é por força da decisão final que a
vida terrena ganha densidade e fundamento.
A estas perguntas ele responde sim, recorrendo à idéia do amor radical de Deus. Na
morte, o homem entra na eternidade e em comunhão definitiva com Deus, que quer a
27
R. J. BLANK, Viver sem o temor da morte, op. cit., p. 103s. Como esta dissertação valoriza a história e a
antropologia, acolhemos a posição de Karl Rahner. Outro teólogo de peso a criticar a hipótese de uma decisão
final é Ruiz de la Peña. Este, para confirmar sua posição, cita Andrés Tornos: “Atualmente (a hipótese da
decisão na morte) não é uma linha de explicação que encontre muitos seguidores” (A. TORNOS, Escatologia
II, apud J. L. RUIZ DE LA PEÑA, La pascoa de la creacion, op. cit., p. 269, nota 98). Bruno Forte ensina
que na morte, como fato verdadeiramente humano (por conseguinte, inserido na história), fica indeterminado
o modo da decisão final (cf. B. FORTE, Teologia de la historia. Ensayo sobre revelación, protología y
escatología, Salamnca: Sigueme, 1995, p. 364).
28
No livro Nossa vida tem futuro, Renold Blank desenvolve um item específico a este respeito: “Rejeição da
hipótese de uma última decisão final do ser humano na morte” (p. 143).
29
R. J. BLANK, Nossa vida tem futuro, op. cit., p. 144. Contudo, Karl Rahner e Ladislau Boros reconhecem a
possibilidade de decisão do ser humano, seja ela realizada na morte ou durante a vida precedente. O
pensamento de Boros, por sua vez, parece contraditório. Se por um lado, dá tanto peso à decisão final, por
outro, reconhece o valor das decisões históricas: “O que desejaríamos no futuro temos de começá-lo no
presente. Temos que preparar-nos, por meio de numerosas e pequenas decisões de cada instante de nossa vida,
para a grande e definitiva decisão da nossa morte. A vida é um ‘ensaio do juízo’. Não podemos ‘deixar as
coisas como estão’ e adiar tudo para a última decisão (grifo nosso). Quem nos pode garantir que no fim
vamos mudar toda a orientação da nossa vida?” (L. BOROS, Existência redimida, op. cit., p. 95). É com
prudência que fazemos esta crítica a Ladislau Boros por não conhecermos mais a fundo a sua produção
teológica.
30
Cf. R. J. BLANK, Nossa vida tem futuro, op. cit., p. 145.
31
Neste livro, Renold Blank não menciona a hipótese da decisão na morte, talvez com a intenção de realizar
um outro raciocínio teológico.
112
plenitude da pessoa amada. Porém, definitividade não significa, para nosso teólogo,
situação estática. A comunhão dos santos, na vida eterna, possui dinamicidade, expansão e
crescimento no amor mútuo32. Na morte, entramos na dinâmica do amor de Deus, somos
envolvidos na relação amorosa entre Deus e suas criaturas. Por causa da graça divina e de
seu amor criativo, na morte se abrem novos caminhos e horizontes para o ser humano
decidir-se a favor de Deus33.
Deste modo, desde a morte de Jesus, o ser humano não precisa temer a morte. Pois,
“aquele mesmo Deus que sofreu a morte, não o abandonará jamais no seu próprio morrer”3
5
. Pelo contrário, Deus não deixa o homem na situação de abandono, mas intervém a
exemplo da intervenção operada em Jesus, ressuscitando-o dentre os mortos. E seu Filho
foi salvo porque decidiu confiar, contra todas as aparências, entregando-se nas mãos de
Deus.
32
Já vimos essa questão quando tratamos da comunhão dos santos no capítulo dois. Este aspecto será
retomado no estudo do céu e seu aspecto dinâmico
33
Cf. R. J. BLANK, Escatologia da pessoa, op. cit., pp. 193s. É este amor criativo, mais forte do que a morte,
e incompreensível para a razão humana, que permite a evolução da pessoa na morte e espera sempre a
salvação de todos. Aprofundaremos estes pontos quando tratarmos do purgatório e do inferno.
34
R. J. BLANK, Nossa vida tem sentido, op. cit., p. 150.
35
Ibidem, p. 151.
113
Do mesmo modo, a pessoa na morte poderá esperar por Deus: numa situação de
fraqueza, consciente dos pecados e de suas imperfeições. Aí o ser humano será posto
perante a necessidade de uma última e definitiva conversão para Deus, por meio de um
processo chamado purgatório.
Conclusão
A morte é um evento marcante para todo ser humano. Do ponto de vista da fé cristã,
ela significa a entrada da pessoa na vida eterna, a comunhão definitiva com Deus mediante
a ressurreição. Os teólogos reconhecem, portanto, o valor escatológico da morte. Ou seja,
ela tem caráter de consumação definitiva de um processo em que há colaboração humana
no projeto salvífico de Deus.
Introdução
114
36
Cf. J-J TAMOYO-ACOSTA, Para compreender la escatologia cristiana, Navarra: Editorial Verbo Divino,
1993, p. 237.
37
Cf. J. L. R.UIZ DE LA PEÑA, La pascoa de la creacion, op. cit., pp. 279s.
38
J. B. LIBÂNIO; Ma. C. L. BINGEMER, Escatologia cristã, op. cit., p. 232.
115
Viver sem o temor da morte e Nossa vida têm futuro têm semelhança no modo de
apresentar a doutrina do purgatório. Por isso, os apresentaremos em primeiro lugar para, em
seguida, compararmos seu conteúdo com o da Escatologia da pessoa.
a) Nos livros Viver sem o temor da morte e Nossa vida têm futuro
Duas idéias servem de ponto de partida para a reflexão teológica nestes dois livro: a
do perdão misericordioso de Deus e a da exigência de conversão por parte do ser humano
(palavras-chave: perdão e conversão). Neles, nosso teólogo se preocupa em explicar o
significado do purgatório a partir destas idéias básicas. O aspecto bíblico aparece com
poucas referências. E em nenhum dos dois livros o autor se dedica à análise do
desenvolvimento histórico da doutrina do purgatório.
39
Seguiremos o mesmo esquema na apresentação do purgatório, inferno e céu: 1) Informações gerais sobre
cada “novíssimo” nos três livros citados, 2) breve explanação do aspecto bíblico-histórico, 3) interpretação
que Renold Blank dá de cada “novíssimo” e 4) conclusão avaliativa do pensamento do autor. A respeito do
primeiro passo, o realizaremos por entender que houve mudanças na forma de o autor tratar o assunto nos
seus livros, o que significa progresso em sua compreensão dos “novíssimos”. Sobre o segundo, queremos
desenvolver um aspecto que Renold Blank apresenta de forma resumida. Para nós, é importante conhecer
mais o aspecto bíblico-histórico a fim de compreender melhor o pensamento do autor sobre purgatório,
inferno e céu. O terceiro passo constitui o centro de cada item sobre os três “novíssimos”, pois este trabalho
tem por objetivo mostrar a visão de Renold Blank sobre eles. Contudo, faremos também uma avaliação crítica
de seu pensamento, visto que este ajuda a avançar em certos aspectos, mas também possui alguns limites
(objetivo do quarto passo).
116
Com relação ao volume de informações notamos que Viver sem o temor da morte
desenvolve mais o tema (pp. 146 a 166) do que Nossa vida têm futuro, onde a explicação é
um pouco menor (pp. 165 a 184), retomando basicamente o conteúdo do livro anterior, e
incluindo um resumo esquemático (pp. 171 a 174). A distribuição da matéria neste segundo
livro é porém mais didática. O autor faz aí uma breve referência à dimensão social do
purgatório, embora em capítulos posteriores aos que trata deste tema (capítulo sobre o juízo
final, pp. 203 a 218). No livro Viver sem o temor da morte, a dimensão social está integrada
ao texto explicativo do significado do purgatório, e não à parte.
O ponto de partida para a reflexão sobre o tema é o amor de Deus que quer o
crescimento da pessoa amada. Tal amor possibilita a conversão-evolução na morte
(palavra-chave: amor).
Elementos em comum com Viver sem o temor da morte e Nossa vida tem futuro:
- O autor utiliza a analogia do amor humano para explicar a eficácia do amor de
Deus;
- Centra sua atenção no significado do purgatório, desenvolvendo e aprofundando
aspectos que já apareceram nos livros anteriores.
Elementos acrescentados:
- Um capítulo sobre a doutrina da reencarnação (pp. 195 a 198), que tem como
finalidade mostrar que a proposta cristã do purgatório é melhor;
117
Renold Blank trata dos “novíssimos” nesta ordem: purgatório, inferno e céu (é a
mesma que utilizamos nesta dissertação).
Estas informações gerais, tiradas dos três livros, mostram que houve uma evolução
no pensamento de Renold Blank no que diz respeito à doutrina do purgatório. Trata-se,
basicamente, de um aprofundamento do significado deste estado intermediário purificador.
Veremos isso com mais detalhe no momento em que apresentarmos o significado que ele
dá ao purgatório no conjunto destas três obras. Antes, porém, queremos mostrar como a
doutrina do purgatório foi se formando na história da teologia cristã, partindo da
interpretação de alguns textos bíblicos.
De fato, como diz Luiz Ladaria, “a idéia de purgatório não está presente na
Escritura”44. Disso não se segue que não tenha qualquer fundamento bíblico. De fato, a
Escritura diz que é útil rezar pelos mortos. Na Igreja primitiva tal prática se estabeleceu
pelo menos a partir do século II. E ela era respaldada em certas passagens, e duas delas se
tornaram clássicas: 2 Mc 12, 38-45 e 1 Cor 3, 10-17.
Seu procedimento mostra um progresso notável com relação ao ritual do perdão dos
pecados: o rito do kippur presente em Israel e que servia para redimir os pecados dos vivos
40
Cf. J. L. RUIZ DE LA PEÑA, La pascoa de la creacion, op. cit., pp. 280-288.
41
Cf. J-J TAMOYO-ACOSTA, Para compreender la escatologia cristiana, op. cit., pp. 238-239.
42
Apesar de não serem exegetas, Ruiz de la Peña e Tamoyo-Acosta se basearam em bons biblistas para
fazerem suas reflexões.
43
Cf. L. F. LADARIA, in B. SESBOÜÉ, (Org.), Historia de los Dogmas, op. cit., pp. 309-356. Renold Blank
se fundamenta em Jean Le Goff, que é um bom historiador mas apresenta um ponto de vista da história das
mentalidades e fala do nascimento do purgatório a partir do que ele, não a fé cristã, entende por purgatório
(cf. J. L. R.UIZ DE LA PEÑA, La pascoa de la creacion, op. cit., p. 285, nota 20). Já Ladaria tem uma
preocupação claramente escatológica e analisa com profundidade a história do purgatório e de outros
novíssimos.
44
L. F. LADARIA, in B. SESBOÜÉ, (Org.), Historia de los Dogmas, op. cit. p. 337.
119
(cf. Lv 4-5). Agora, surge uma ação cultual para ajudar os mortos em situação de pecado45.
No entanto, a maioria dos exegetas e teólogos acreditam que este texto de 2 Mc 12, 38-45
“não parece referir-se a um estado de purificação após a morte”46. Na verdade, ele se refere
à ressurreição dos mortos, embora testemunhe a solidariedade entre vivos e mortos e a
responsabilidade daqueles com relação a estes.
O segundo texto mais citado em favor do purgatório é 1 Cor 3, 10-17. Ele também
não fala diretamente deste estado intermediário. Ele diz que a obra de cada um ficará
conhecida, pois “o Dia (do julgamento) (...), se manifestará pelo fogo e o fogo provará o
que vale a obra de cada um” (v.13). A idéia central de Paulo não é a purificação, mas a
dificuldade que alguns encontrarão para salvar-se. O texto, de estilo alegórico, se refere aos
pregadores do evangelho: uma categoria deles, os menos zelosos, corre o risco da
condenação e terão recompensa em grau diferenciado, comparada com a dos bons
apóstolos47.
Os dois textos comentados constituem o núcleo germinal do dogma: a partir deles os
teólogos foram amadurecendo a idéia da purificação após a morte, a fim de o homem e a
mulher serem admitidos à visão de Deus, conforme ensina a tradição eclesiástica.
Na Igreja primitiva, logo cedo se difunde a prática dos sufrágios pelos falecidos,
com a pretensão de acentuar a comunhão entre os vivos e os mortos. A tradição antiga
contém abundantes testemunhos de orações pelos defuntos nas igrejas orientais e
ocidentais. Esse contexto religioso expressa uma fé implícita no purgatório. A mudança
para uma formulação explícita conheceu um passo significativo com Cipriano. A ele se
deve a primeira menção do fogo purificador após a morte (ignis purgatorius), para aqueles
que não puderam ser purificados antes do instante final ou pelo martírio.
45
Cf. J. L. RUIZ DE LA PEÑA, La pascoa de la creacion, op. cit., p. 281.
46
Cf. J-J TAMOYO-ACOSTA, Para compreender la escatologia cristiana, op. cit., p. 239. “O texto não diz
absolutamente nada (grifo do autor) sobre o efeito purificador das preces” (J. RATZINGER, Escatologia
apud J-J TAMOYO-ACOSTA, ibidem, p. 239, nota 2).
47
Cf. J. L. RUIZ DE LA PEÑA, La pascoa de la creacion, op. cit., p. 282.
120
A partir deste momento (século III), as referências ao purgatório se fazem cada vez
mais freqüentes, tanto nos escritos gregos como nos latinos. Agostinho, um dos que mais
escreveram sobre este tema, desenvolve a idéia de purificação após a morte para alguns
pecadores, já que existe a possibilidade de perdão dos pecados depois da morte. Ele recolhe
da tradição precedente a idéia das penas ou do fogo purificador. Afirma também que a
oração dos vivos ajuda os falecidos em sua purificação.
48
Cf. B. SESBOÜÉ, (Org.), Historia de los Dogmas, op. cit. pp. 328-332.
49
Ibidem, p. 333.
50
O primeiro a falar sobre isto foi Hildeberto de Lavardin, bispo de Le Mans, em 1170 (cf. ibidem, p. 337).
51
A respeito do purgatório, houve controvérsias entre a Igreja latina e a grega. Os gregos se opunham à idéia
de fogo no processo de purificação e se mostravam, igualmente, contrários às idéias de castigo e expiação. Os
latinos ressaltavam a dimensão expiatória. Ambos coincidem, porém, em valorizar as orações pelos defuntos
(cf. J-J TAMOYO-ACOSTA, Para compreender la escatologia cristiana, op. cit., p. 241).
52
Cf. B. SESBOÜÉ, (Org.), Historia de los Dogmas, op. cit. pp. 345-348.
121
VII da Lumen gentium, contém várias referências ao estado de purificação após a morte,
como por exemplo o número 49 que fala em fiéis defuntos que “se purificam”, e confirma
as orientações básicas dos concílios que o precederam53.
53
Cf. Ibidem, pp. 349-354.
54
Cf. Ibidem, pp. 354-355. Como dissemos na página 102, nem todos estão de acordo com a perspectiva de
Renold Blank, que crê na ressurreição na morte. O esquema católico explicativo da ressurreição na morte se
inspira em Cándido Pozo e em Karl Rahner, embora o primeiro reconheça que o Novo Testamento não
conhece esta idéia, pois associa a ressurreição do indivíduo à parusia do Senhor (cf. C. POZO, La venida del
Señor en la gloria, op. cit., pp. 98-101)
55
Neste item 3.2.3. usaremos basicamente o livro Escatologia da pessoa, completando com outros teólogos.
122
No fim da vida, a maioria dos seres humanos não chegou ao nível pleno de sua
possível evolução. É assim, inacabada, que a pessoa se encontra com Deus na morte. Ela,
então, percebe que sua vida não correspondeu plenamente aos parâmetros de Deus.
Pecados, omissões, possibilidades não realizadas, culpas56: este é o estado no qual a pessoa
se encontra perante Deus na morte. Com esta vida incompleta, ela percebe-se necessitada
de uma última chance de purificação. E Deus concede-lhe gratuitamente esta chance57.
O homem, de fato, em virtude de um ato de cognição total, percebe que existe esta
oferta de conversão e, assim, pode recuperar “o que ficou devendo a Deus”. Por causa do
amor divino, abrem-se-lhe possibilidades de transformação. A teologia cristã chama esta
oferta58 de Deus ao homem de purgatório, diz Renold Blank59. A vida humana é um
processo de amadurecimento que, na morte, se abre a um desabrochar pleno. Segundo
Leonardo Boff, com quem concorda Renold Blank, o purgatório é a chance oferecida por
Deus ao homem de poder maturar e atualizar todas as suas potencialidades60. Esta oferta
divina é mais uma confirmação de que Deus não quer a morte do pecador, mas que este se
converta e vida.
A idéia do purgatório supõe uma visão otimista sobre o fim da vida humana
Realmente, o Deus misericordioso está disposto a dar de graça o que o homem não
alcançou. Mas, Renold Blank alerta: “Seria (...) errado interpretar as afirmações do
56
Renold Blank cita elementos negativos para enfatizar a eficácia do amor de Deus na transformação do ser
humano. O amor divino supera as negatividades.
57
Renold Blank faz uma comparação para entendermos o estado, pouco favorável, em que o homem se
encontra na morte e a bondade de Deus. Segundo o teólogo, é como se os erros/pecados constituíssem o
débito de uma nota promissória não paga. Porém, Deus está disposto a conceder de graça o que o homem lhe
deve (cf. R. J. BLANK, Escatologia da pessoa, op. cit., p. 197).
58
No dizer de Moltmann, “o purgatório é uma graça de Deus, por intermédio da qual ele atrai as almas para si
após a morte” (J. MOLTMANN, A vinda de Deus, op. cit., pp. 196-198).
59
R. J. BLANK, Escatologia da pessoa, op. cit., pp. 196 a 198.
60
Cf. L. BOFF, Vida para além da morte. O presente: seu futuro, sua festa, sua contestação, Petrópolis:
Vozes, 1974, pp. 55s. A maturação é um processo que ocorre ao longo da vida humana. Um processo nunca
acabado na existência histórica, mas que tem seu acabamento qualitativo com o purgatório. Neste sentido,
afirma Francisco de Mier: “O purgatório é o momento definitivo deste processo, um momento muitíssimo
eficaz de todos os (processos) anteriores, porque aí minha maturação passa às mãos de Deus” (grifo do
autor) (F. MIER, Escatologia cristiana, Madrid: San Pablo, 1996, p. 125).
123
purgatório no sentido de dizer: (...) ‘não precisamos nos esforçar na vida, pois Deus nos
dará, na morte, tudo de graça”61.
61
R. J. BLANK, Escatologia da pessoa, op. cit., p. 203.
62
Ao longo do livro Escatologia da pessoa, Renold Blank fala diversas vezes da relação entre vida vivida e
vida eterna. E isto para confirmar a vinculação necessária que existe entre a escatologia e a realidade humana.
63
Cf. R. J. BLANK, Escatologia da pessoa, op. cit., pp. 203s. Teologicamente falando, a purificação têm
lugar através da metanoia, que é a condição necessária ante a proximidade do Reino de Deus (cf. Mc 1, 15). A
conversão é o ponto de partida e a perspectiva donde situar a reflexão sobre a purificação ultraterrena (cf. J-J.
TAMOYO-ACOSTA, Para compreender la escatologia cristiana, op. cit., p. 241). “A purificação
ultraterrena se situa no âmbito penitencial da Igreja, no ministério eclesial da reconciliação. Daí a relação
entre purificação ultraterrena e a conversão, a que antes nos referíamos” (ibidem, p. 242).
64
Aqui lembramo-nos dos livros Viver sem o temor da morte e Nossa vida em futuro que iniciam suas
reflexões sobre o purgatório a partir do perdão e da conversão. Renold Blank também se refere a este aspecto,
num segundo momento, no livro Escatologia da pessoa. Neste último, fala antes do amor de Deus que perdoa
e chama à conversão. Na verdade, a purificação após a morte é uma realidade única com aspectos diferentes,
como já dissemos, fundamentada no amor divino. De fato, a base do purgatório é este amor: “É o amor que
purifica” (J. B. LIBÂNIO; Ma. C. L. BINGEMER, Escatologia cristã, op. cit., p. 242). Medard Kehl trata do
tema do purgatório com o seguinte título: “ ‘Purgatório’: inferno ‘temporário’ ou transformação pelo amor
purificador de Deus?” (M. KEHL, O que vem depois do fim?op. cit., pp. 143-148).
65
R. J. BLANK, Escatologia da pessoa, op. cit., p. 206.
124
“Por ocasião do encontro com Deus, (...) cada pessoa experimentará, com intensidade nunca
antes conhecida, o significado de sua vida vivida. E dependendo do que tiver feito (...) a outras
pessoas e com as situações históricas e estruturais (...), sua união com Deus também será ligada de
maneira mais ou menos dolorosa”67.
A analogia com o amor de Deus, citada com freqüência por Renold Blank, nos
ajuda a compreender a dor71 exigida pela purificação a fim de que todos sejam conformes à
imagem de Jesus (cf. Rm 8, 29). A pessoa que se sabe amada, e que deverá comparecer
diante do amado para confessar suas falhas, sentirá de maneira bem mais dolorosa a própria
66
O processo de purificação é difícil, “pois os ‘resíduos’ de nossa falta, ou seja, seus efeitos e repercussões
sobre nosso caráter, nossa conduta e nossas relações também estão profundamente presentes em nós, na morte
e além dela” (M. KEHL, O que vem depois do fim?, op. cit., pp. 145s).
67
R. J. BLANK, Escatologia da pessoa, op. cit., p. 208. Assim também pensa João Batista Libânio: o
purgatório é um processo doloroso que pode variar de intensidade de pessoa para pessoa, dependendo de
como ela orientou sua vida (cf. J. B. LIBÂNIO; Ma. C. L. BINGEMER, Escatologia cristã, op. cit., p. 241).
68
J-J. TAMOYO-ACOSTA, Para compreender la escatologia cristiana, op. cit., p. 240. Este teólogo
desenvolve sua “teologia da purificação” nas páginas 240-242 do livro citado. Também Bernard Sesboüé
enfatiza a “purificação necessária” para estar com Deus (cf. B. SESBOÜÉ, Croire. Invitation à la foi
catholique pour les femmes et les hommes du XXIe siècle, Paris: Droguet e Arant, 1999, pp. 535s).
69
M. KEHL, O que vem depois do fim?, op. cit., pp. 144s. Medard Kehl, em seguida, acrescenta que o
purgatório é “uma confrontação dolorosa e purificatória com a história de sua vida - em face da bondade (...)
misericordiosa” de Deus (ibidem, p. 145).
70
F. MIER, Escatologia cristiana, op. cit. p. 131
71
Renold Blank também usa uma expressão bíblica paulina que lembra este processo doloroso: a “destruição
do velho homem” (cf. Ef 4, 23-24).
125
fraqueza perante aquele que a ama. Mas também, é o amor do outro que lhe inspira
confiança e possibilita a conversão. No plano escatológico, perante o imenso amor de Deus,
reconhecemos dolorosamente nossa indignidade mas, ao mesmo tempo, o amor divino
procura despertar a conversão no ser humano72.
“Todo sofrimento deixado a si mesmo é absurdo. Somente se estiver integrado em algo que
o supere toma sentido (...). Só integrado no amor, no dom de si e na confiança no Pai é que se integra
à redenção (...). Ora, é o amor que humaniza o sofrimento, mas não o amor ao sofrimento e sim o
amor de quem ou daquilo pelo qual se sofre, amor que é sempre amor à vida”74.
Caso a pessoa aceite a oferta que Deus lhe faz, na morte, em vista de sua
purificação, abrem-se para ela novas perspectivas de evolução.
Deus concede ao ser humano na morte a chance de se tornar pessoa plena, com a
personalidade evoluída até as últimas potencialidades, sem falhas ou imperfeições. Este é o
projeto de Deus para todos de modo que:
“junto de Deus não haverá nem coxos, nem cegos, nem doentes mentais. Não haverá
pessoas infantis, ou doentes, ou frustradas, ou inacabadas. Junto de Deus só haverá seres humanos
plenamente evoluídos até as últimas possibilidades de seu ser. O PROJETO DE DEUS É UM
PROJETO DE VIDA PLENA E, NA MORTE, A TODA PESSOA É OFERECIDA A
POSSIBILIDADE DE EVOLUIR A ESSE NÍVEL” (grifo do autor)75.
72
Cf. R. J. BLANK, Escatologia da pessoa, op. cit., pp. 209s. Comparação muito querida por Renold Blank,
que procura apresentá-la nos livros Viver sem o temor da morte, op. cit., pp. 150s e Nossa vida tem futuro, op.
cit, p. 169. Uma outra comparação, que explica a dor “sentida” no purgatório, pode ser tirada da experiência
terapêutica. Renold Blank não a utiliza, mas é esclarecedor citá-la. As terapias visam a ajudar a pessoa a
integrar-se melhor, mas como são dolorosas! No entanto, causam libertação e felicidade quando o indivíduo
consegue assumir-se integrado (cf. J. B. LIBÂNIO; Ma. C. L. BINGEMER, Escatologia cristã, op. cit., p.
240).
73
L. C. SUSIN, Assim na terra como no céu. Brevilóquio sobre escatologia e criação, Petrópolis: Vozes,
1995, p. 100.
74
Ibidem, pp. 106s.
75
R. J. BLANK, Escatologia da pessoa, op. cit., p. 212.
126
Falando deste modo, Renold Blank pensa ter uma resposta de esperança para as
mães cujos filhos morreram prematuros, abortados ou com deficiências mortais. Para estes,
afirma nosso teólogo, o processo de evolução não terá nada de doloroso76.
76
Cf. Ibidem, p. 212.
77
Expressão utilizada por TAMOYO-ACOSTA no livro Para compreender la escatologia cristiana, op. cit.,
p. 242. Renold Blank tem a preocupação de mostrar a dimensão comunitária/social do purgatório, do inferno e
do céu. O teólogo procura recuperar o relacionamento entres as dimensões pessoal, social, histórica e cósmica
da escatologia.
78
Cf. J. L. RUIZ DE LA PEÑA, La pascoa de la creacion, op. cit., p. 291, nota 38. O Vaticano II insiste nisto
como podemos verificar na LG números 49, 50 e 51. O número 49, por exemplo, diz que “todos os que são de
Cristo, tendo seu Espírito, formam uma só Igreja e nele estão unidos entre si (cf. Ef 4, 16). Por isso, a união
dos que estão na terra com os irmãos que adormeceram na paz de Cristo, de maneira nenhuma se interrompe;
pelo contrário, segundo a fé constante da Igreja, reforça-se pela comunicação dos bens espirituais”.
127
deve continuar também no seu processo purificatório. Assim, a solidariedade entre mortos e
vivos não é rompida com a morte: “Ninguém comparece sozinho diante do amor julgador e
perdoador de Deus, mas sempre na comunhão de todos os membros de seu corpo (que
naturalmente é bem mais vasto do que a forma institucional da Igreja terrena)”79.
Por trás das estruturas injustas existem pessoas cujos atos ou omissões
possibilitaram o surgimento e o fortalecimento de tais estruturas. Na morte, será revelada a
parcela de responsabilidade de cada um no conjunto da história. No juízo final, todas as
interligações humanas serão percebidas com mais clareza em suas conseqüências reais.
Acontecendo num momento atemporal, o juízo final coloca cada pessoa junto com todas as
outras. E ela se tornará consciente de suas responsabilidades sociais e estruturais.
O juízo final revela o alcance das palavras de Jesus em Mt 25 82. A dimensão social
do purgatório é essencial para o êxito ou o fracasso do ser humano perante Deus, pois a
salvação implica em responsabilidade histórica. O purgatório, com sua indissociável
componente pessoal e comunitária, se inicia aqui na terra. À medida que o ser humano se
79
M. KEHL, O que vem depois do fim?, op. cit., p. 146. Sobre a relacionalidade humana, João Batista Libânio
diz que o homem não se constrói sozinho, mas dentro de um tecido social. Com as estruturas sociais, ele
mantém uma relação dialética que pode ser de integração ou desintegração, de desenvolvimento ou de
corrupção. “Por isso, o purgatório tem necessariamente uma dimensão social” (J. B. LIBÂNIO; Ma. C. L.
BINGEMER, Escatologia cristã, op. cit., p. 242).
80
R. J. BLANK, Escatologia da pessoa, op. cit., p. 297.
81
Enquanto o juízo final expressa a dimensão social do purgatório, a parusia é a imagem de sua dimensão
cósmica. No capítulo dois já falamos sobre isto, ligando estes aspectos à ressurreição de Jesus. Agora,
queremos ressaltar a relação entre a dimensão social do purgatório com a responsabilidade histórica e a
oração pelos defuntos.
82
Citamos aqui um pouco da parábola, em que Jesus mostra que “o julgamento será sobre a realização de uma
prática de justiça em favor da libertação dos pobres e oprimidos” (Bíblia Sagrada. Edição Pastoral, São
Paulo: Paulus, 2004): “Eu garanto a vocês: todas as vezes que vocês fizeram isso (alimentar os famintos,
visitar os doentes, acolher os estrangeiros etc) a um dos menores de meus irmãos, foi a mim que o fizeram”
(v. 40).
128
Ninguém enfrenta o purgatório sozinho nem na terra nem na morte, como dissemos
acima citando João Batista Libânio. Este teólogo nos lembra que somos amparados pela
oração da Igreja. O sufrágio pelos falecidos deve se expressar em atos de justiça que criem
situações históricas libertadoras. Este sufrágio, já iniciado na existência terrestre, diminui o
purgatório dos irmãos vivos e falecidos83.
A comunhão dos santos é a garantia de que podemos ajudar os mortos com nossas
preces. E a expressão desta unidade é justamente a oração que permite aos vivos e aos
mortos ajudar-se mutuamente no amor84. A oração é significativa para os mortos, pois os
auxilia no fortalecimento da disposição de se deixar purificar pelo amor de Deus. Medard
Kehl explica de forma clara de que modo nossa oração ajuda o falecido em seu purgatório:
“(Deus) inclui nossa (grifo do autor) solidária ação mútua em sua (grifo do autor) ação
salvífica sobre os homens individuais. Pois seu atendimento não consiste em ele ‘re-agir’
temporalmente à nossa oração apenas após a fazermos, mas em ele já sempre ‘agir’ para a salvação
de cada homem e tornar nossa oração (não importa em que momento é feita) útil para esse homem,
quando e como ele precisar para sua salvação (...). Nossa oração por um morto lhe será útil tanto em
sua vida como em sua morte, ou seja, em seu último encontro com o amor julgador-purificador de
Deus, sem que possamos reconhecer como (grifo do autor) isso acontece. Basta confiar no
‘que’(fato) e deixar consoladamente com Deus a ‘oferta’ concreta de nossa oração para a salvação de
uma pessoa”85.
Conclusão
Esperar pelo dom do purgatório é viver aqui e agora movido pela esperança de
contínua conversão pessoal e das estruturas deste mundo. Na América Latina, região
marcada pela pobreza, injustiças e desigualdades sociais, falar de purgatório pode parecer
estranho. No entanto, da forma abordada por Renold Blank, o purgatório aparece como uma
luz esperançosa em ligação com a vida, seus problemas e suas vitórias.
pela imaginação e pela fantasia. Seria útil, portanto, se nosso teólogo desenvolvesse mais os
principais momentos históricos que marcaram a história da doutrina do purgatório.
Introdução
Renold Blank mostra que o homem tem a possibilidade de recusar o amor divino.
Assim, não sendo criação de Deus, o inferno surge devido ao “risco da liberdade humana” 8
6
. De fato, o problema teológico do inferno não está situado entre a misericórdia e a justiça
de Deus, mas entre a misericórdia divina e a liberdade do homem87. Dentre os teólogos que
pesquisamos, encontramos este ponto de vista em Ruiz de la Peña para quem o “problema
teológico da morte eterna (o inferno) é, em suma, o problema das reais dimensões da
liberdade humana”88.
86
R. J. BLANK, Nossa vida tem sentido, op. cit., p. 175. A frase citada acima é uma tese que aparece também
nos dois livros deste autor: Viver sem o temor da morte, op. cit., p. 113 e Escatologia da pessoa, op. cit., p.
243.
87
Cf. B. SESBOÜÉ, Croire, op. cit., 538.
88
J. L. RUIZ DE LA PEÑA, La pascoa de la creacion, op. cit., p. 236.
131
O problema do inferno aparece de forma semelhante nos livros Viver sem o temor
da morte, Nossa vida tem futuro e Escatologia da pessoa. No primeiro encontramos as
reflexões e os argumentos básicos sobre este problema, que é “o tema principal deste
livro”89. Nos livros posteriores, nosso teólogo apenas organiza e desenvolve um pouco mais
sua reflexão.
89
R. J. BLANK, Viver sem o temor da morte, op. cit., p. 6.
132
Nos três livros, a exposição do tema é interrompida pela inserção de outros assuntos
escatológicos. Assim: em Viver sem o temor da morte, após o tema do inferno, surgem os
do purgatório, do juízo final e da parusia. Retoma-se depois outra vez o tema do inferno,
com um capítulo intitulado “Superar os infernos para viver” (pp. 167 a 177). Em Nossa
vida tem futuro, após o tema do inferno, aparecem os capítulos sobre o juízo final (pp. 203
a 218) e a ressurreição do corpo (219 a 225). Retoma-se depois, também mais uma vez, o
tema do inferno com o capítulo “Superar os infernos para viver” (pp. 226 a 232). Em
Escatologia da pessoa, após refletir sobre o inferno, aparecem os capítulos sobre o céu (pp.
282 a 293) e o juízo final (pp. 297 a 317). De novo aparece o tema do inferno com o
capítulo “Conseqüências da verdade sobre o juízo final: superar os infernos humanos para
viver” (pp. 318 a 325).
Neste último livro, aparece o porquê Renold Blank insere outros temas após o do
inferno, como também o porquê ele retoma de novo o tema do inferno. Ele procura, com
isto, interpretar o inferno num contexto mais amplo (social, histórico e cósmico). O juízo
final e a parusia revelam a verdade do homem diante de Deus: conversão (purgatório),
adesão a Deus (céu) e rejeição do amor divino (inferno). Com a modificação do título, em
Escatologia da pessoa, o teólogo suíço busca relacionar diretamente um assunto da
escatologia pessoal com outros temas da escatologia do mundo.
Centremos agora nossa atenção sobre os livros Nossa vida tem futuro e Escatologia
da pessoa. O conteúdo de ambos, no tocante ao tema do inferno, se repete literalmente. A
mudança que ocorre é apenas na forma de exposição. Assim: em Nossa vida tem futuro este
tema é apresentado em três capítulos, subdividindo cada um deles em vários itens
(preferimos esta forma, pois a julgamos mais simples e didática). Em Escatologia da
133
pessoa os itens do livro anterior são transformados em pequenos capítulos gerando, assim,
19 capítulos.
Os comentários de Renold Blank sobre o que Jesus diz acerca do inferno e sobre a
reflexão da tradição cristã a respeito do mesmo tema são significativos, mas breves e
possuem alguns limites. A respeito do que Jesus disse, o teólogo suíço poderia ter citado
mais textos bíblicos e aprofundado seu sentido geral. Ao escrever sobre “o que se declarou
sobre o inferno”90 na tradição, nosso autor se detém apenas na questão do fogo do inferno,
da eternidade ou não do inferno (apocatástase), da tortura e dos sofrimentos dos
condenados. Sobre estas questões, ele cita alguns Padres da Igreja e alguns concílios91.
Esta foi a idéia de inferno herdada por Jesus e que fazia parte do imaginário
religioso de sua época. Jesus não foi um pregador do inferno mas acentuou, pelo contrário,
o evangelho do Reino de Deus e a salvação como promessa dirigida a todos. Por isso, o
inferno não ocupa, dentro da mensagem cristã, a categoria de anúncio ou promessa. Não
sendo objeto de esperança, ele entra dentro da categoria da possibilidade94.
Jesus fez referências diretas ao inferno não “para dar ‘informações’, e sim para
acentuar a iminência e a urgência da sua mensagem do reino de Deus”95. Sua intenção é,
portanto, chamar à conversão e alertar o homem sobre a possibilidade de falhar em seu
destino querido por Deus: a realização plena96. A possibilidade de não-participação na boa-
nova da salvação é descrita por Jesus com várias imagens. As mais conhecidas são:
- A do fogo inextinguível: “Se a tua mão te escandalizar, cortea-a: melhor é entrares
mutilado para a Vida do que, tendo as duas mãos, ires para a geena, para o fogo
inextinguível” (Mc 9, 43. Cf. também: Mt 18, 8; 25, 41; Lc 3, 17);
- A do choro e ranger de dentes: “Os filhos (infiéis) do Reino serão postos para
fora, nas trevas, onde haverá choro e ranger de dentes” (Mt 8, 12. Cf. também: Mt 22, 13 e
Lc 13, 28);
- A da fornalha ardente: “... Os lançarão na fornalha ardente. Ali haverá choro e
ranger os dentes” (Mt 13, 42.50);
- A das trevas exteriores: “Amarrai-lhe os pés e as mãos e lançai-o fora, nas trevas
exteriores” (Mt 22, 13);
- A do verme que não morre: “Melhor é entrares com um só olho no Reino de Deus
do que, tendo os dois olhos, seres atirado na geena, onde o verme deles não tem fim” (Mc
9, 47-48).
94
Cf. Ibidem, pp. 259s.
95
R. J. BLANK, Nossa vida tem futuro, op. cit., p. 192.
96
Jesus não ensina um dualismo escatológico na linha da religião persa, que faz um anúncio de salvação e
outro de condenação. Jesus só prega a salvação, mas deixa aberta a possibilidade da frustração definitiva. E
exprime isto através de categorias e imagens tiradas especialmente da apocalíptica judaica. As imagens são
usadas por ele com sobriedade e discrição (cf. J-J TAMOYO-ACOSTA, Para compreender la escatologia
cristiana, op. cit., pp. 232s).
135
As palavras de Jesus sobre o inferno devem ser apreciadas tendo em conta suas
numerosas pregações sobre o amor, a misericórdia e o perdão, pois há de prevalecer o
amor. O discurso sobre o inferno é fato complexo. Ao longo da história do cristianismo, tal
discurso conheceu interpretações e impostações diferentes, como veremos a seguir.
citado como texto em que Karl Barth, no século XX, sugere a idéia de apocatástase (cf. J-J TAMOYO-
ACOSTA, Para compreender la escatologia cristiana, op. cit., pp. 231-232).
100
Orígenes apontou os seguintes argumentos a favor da apocatástase. Em primeiro lugar, o único princípio é
Deus. Todas as coisas levam a marca de sua divindade. Por isso, no final, nada ficará fora d’Ele. Em segundo
lugar, diz ele, Cristo não pode sentir-se feliz enquanto houver alguém condenado. Sua ressurreição, que é uma
obra superior à da criação, só ficará completa quando alcançar todas as coisas (cf. F. MIER, Escatologia
cristiana, op. cit. p. 195).
101
Cf. B. SESBOÜÉ, (Org.), Historia de los Dogmas, op. cit. pp. 333-348.
102
J-J TAMOYO-ACOSTA, Para compreender la escatologia cristiana, op. cit., pp. 231.
103
R. J. BLANK, Nossa vida tem futuro, op. cit., p. 201. (Renold Blank usa a grafia “apokatátasis” nos seus
livros, ao invés de “apocatástase”, forma adotada por nós). Esta breve crítica que Renold Blank faz da
apocatástase se baseia em Medard Kehl (cf. M. KEHL, Escatologia, op. cit., pp. 296s). Contra a apocatástase,
citamos também os argumentos de Ruiz de la Peña, que diz tratar-se de uma teoria ambígua, pois extrapola o
dado revelado a respeito da salvação universal. Segundo este teólogo, o que é pregado para o conjunto da
humanidade, não tem que sê-lo necessariamente para todos e cada um dos indivíduos. A objeção decisiva é
que a apocatástase desvaloriza a liberdade humana (cf. J. L. RUIZ DE LA PEÑA, La pascoa de la creacion,
137
Já dissemos que qualquer discurso sobre o inferno só tem sentido se, no fundo,
apontar para a salvação, alertando assim sobre a possibilidade da não-salvação. Deus quer
salvar-nos da possibilidade real do inferno, pois o cristianismo é a religião do amor e da
salvação. E justamente por isso leva o ser humano absolutamente a sério. Se o cristianismo
é uma religião do amor, então é religião da liberdade. Portanto, à proposta salvífica de
Deus, o homem também pode responder com um não criando o inferno para si108.
Para Renold Blank, a questão central no estudo do tema do inferno é a relação entre
a vontade salvífica de Deus e a liberdade humana. Ele não desenvolve, porém, com mais
profundidade esta questão. Por isso, achamos oportuno expor aqui o pensamento de Andrés
Torres Queiruga. Este teólogo afirma, à semelhança de Renold Blank, que o inferno não é
uma ação positiva de Deus, mas situa-se do lado humano como culminância do mal. Sua
origem, portanto, consiste na impotência e/ou na maldade da criatura, que usa sua liberdade
para o mal.
Deus apóia a liberdade humana como bem precioso. Tal liberdade, por ser finita,
está sempre exposta ao fracasso. De fato, não existe liberdade finita impecável. Ninguém
pode eliminar a liberdade humana, nem Deus. E somente ela pode causar a perdição eterna.
Podemos, com efeito, distorcer o uso da liberdade com a liberdade. Enfim, segundo Andrés
Torres Queiruga, o inferno surge da limitação ou da maldade da própria liberdade que
frustra os planos da salvação divina109.
“Poderia ser que nesse caso o âmago da pessoa humana permanecesse naquela situação de
estar morto, condenado para sempre a uma situação limiar e estática em que sua vida temporal terá
cessado sem que a vida nova tivesse podido iniciar-se. Situação impossível e contraditória em sua
essência. Uma morte viva, consciente, sem a mínima possibilidade de poder providenciar uma saída
pelos próprios recursos, entorpecido e fixado em si mesmo”113.
Este texto, embora confuso e prolixo, é uma tentativa de explicar o estado infernal.
Renold Blank diz, porém, que suas palavras explicativas “são imagens paradoxais que
contém exatamente os elementos daquilo que as transcrições tradicionais chamaram de
‘INFERNO’ ”114 (grifo do autor). De fato, entre os elementos que fariam parte de uma
situação de inferno, encontramos a identificação eterna do homem com seu egoísmo.
110
Cf. M. KEHL, Escatologia, op. cit., pp. 295s. A vontade de Deus é que o homem se oriente em vista de
uma consumação positiva. Uma definitividade negativa é obra exclusiva humana. Nas palavras de Luiz Carlos
Susin, “a possibilidade de decisão pela condenação é exigência e subproduto de nossa liberdade” (cf. L. C.
SUSIN, Assim na terra como no céu, op. cit., p. 183).
111
Cf. L. C. Susin, Assim na terra como no céu, op. cit., p. 182.
112
R. J. BLANK, Nossa vida tem futuro, op. cit., 175.
113
Ibidem, p. 177.
114
Ibidem, p. 177.
140
- O inferno é não poder e nem saber amar, estando aprisionado num irrevogável
rechaço do amor divino. “É viver até o fundo a própria existência como contradição
irremediável. É como experimentar a ruptura interior de si mesmo e a inutilidade total do
viver” 115;
Mas, como será que o amor de Deus se comporta diante de uma situação de inferno?
Como harmonizar a vontade salvífica divina com a frágil, porém irrenunciável, dignidade
da liberdade humana? Estas questões são centrais na reflexão de Renold Blank. E, ao tentar
respondê-las, com a ajuda de outros teólogos, ele se esmera mais uma vez em elaborar uma
esperança escatológica que vence o temor, e que aponta caminhos para superar os infernos
deste mundo.
Em seu livro Esperança que vence o temor, Renold Blank apresenta uma amostra de
textos de épocas diferentes, tirados de níveis religiosos e sociais variados, que manifestam
um potencial de ameaça e de medo escatológico. Segundo ele, o uso de “ameaças
educativas”, ligadas a uma teologia de um Deus vingativo, marca, ainda hoje, o imaginário
popular118.
Sobre o inferno, a maneira como ele foi apresentado mostra que a pedagogia da
ameaça tem um conteúdo de vingança. Alguns textos ilustrativos a este respeito também
são citados pelo teólogo119. Constatando esta realidade de distorção compreensiva, que por
sua vez gera atitudes pouco saudáveis, nosso teólogo passa a analisar as possíveis causas da
referida situação. Dentre os fatores, sobressaem, segundo ele, a relação entre o desejo de
manter o poder (eclesiástico), o uso de ameaças como pretexto pedagógico120 e o
desvelamento de que tais ameaças são projeções dos próprios homens121.
Por isso, tudo o que impede de ver a religião como libertação, alegria, paz, etc
constitui deformação. Deus é mão estendida ao homem a oferecer-lhe salvação, e a religião
é ajuda e alívio; enfim, boa nova de libertação. Sobretudo o cristianismo se destaca como
118
Cf. R. J. BLANK, Esperança que vence o temor, op. cit., pp. 145-161.
119
Cf. Ibidem, pp. 162-166.
120
Cf. Ibidem, pp. 194-196.
121
Cf, Ibidem, pp. 197-203. Neste último item, Renold Blank se serve de vários obras psicológicas, entre elas
algumas de René Girard, para fazer sua análise. Lembremo-nos de que Renold Blank cursou psicologia na
Universidade de Friburgo (Suíça), conforme informação da contracapa do livro Viver sem o temor da morte.
Este fato ajuda-o a estudar com competência o medo escatológico num enfoque psicológico.
122
O tema do inferno é um dos que foram apresentados de modo inadequado, dando uma visão pesada da
religião cristã. Hoje há muito o que fazer para consertar os estragos realizados. Francisco de Mier, baseado
em Andrés Tornos, diz que falar do inferno atualmente é um assunto molesto e complexo que suscita rechaço
cultural e põe o cristianismo em questão ao pintar uma imagem odiosa de Deus, que insulta sua dignidade. A
esta crítica, Francisco de Mier lembra uma série de interrogações a respeito do inferno, sendo algumas delas
claras acusações ao cristianismo (cf. F. MIER, Escatologia cristiana, op. cit. pp. 171-173).
142
religião do amor. Jesus Cristo, centro da religião cristã, é dom personificado, amor
salvador, perdão sem limites, defesa do pobre, consolo na dor, libertação da opressão123.
movida pela ganância do lucro, guerras, genocídios etc. Não haverá para os responsáveis
por estas maldades uma inversão de ordem? O inferno não seria uma necessidade, um
estado em que a justiça tenha lugar?
Jesus é este servo de Javé por excelência. Além disto, o servo de Javé é a imagem
do próprio Deus e o que se diz do servo, diz-se de Deus, daquele Deus que na pessoa de
Jesus assumiu plenamente a condição humana128. A figura do servo de Javé rompe de
maneira radical com o círculo fechado do raciocínio humano sobre a justiça em que o
direito violado deve ser restabelecido pela punição ou pela penitência. O servo de Javé é
alguém que não paga com a mesma moeda, mas perdoa sem restrições e não exige
satisfação pelo prejuízo sofrido. A justiça bíblica mostra a incalculabilidade de um Deus
misericordioso como dom incondicional, longe de todo controle humano129.
Nesta imprevisibilidade Deus demonstra seu amor. Um amor que não se deixa deter
por nenhum motivo, e que não se prende à lógica humana. “E justamente diante do amor de
Deus parece-nos legítima a indagação se realmente não existe mais nenhum caminho que
nos conduza para fora do inferno, ou melhor ainda, que, de antemão, já não passe por aí” 130.
Assim, segundo o mesmo Renold Blank, o “louco amor de Deus” pelos homens nos leva a
127
Sobretudo na Idade Média cresceu a compreensão de inferno como justiça de Deus para limpar sua honra.
De fato, no período medieval a honra era muito valorizada (cf. A. TORRES QUEIRUGA, O que queremos
dizer quando dizemos inferno?, op. cit., p. 39).
128
Cf. R. J. BLANK, Nossa vida tem futuro, op. cit., p. 181.
129
Cf. Ibidem, pp. 181s.
130
Ibidem, p. 183.
144
confiar que tal amor é capaz de tudo, até mesmo de amar aqueles que estão no inferno a
ponto de deixá-lo vazio131.
O caminho que passa por fora do inferno é Jesus. Ele é o caminho (cf Jo 14, 6) da
salvação e revelou que Deus quer salvar todos os seres humanos (cf. 1 Tm 2, 4). Como
vimos no capítulo dois, Jesus é nossa esperança definitiva. Ele anunciou Deus como o Pai
dos homens e mulheres perdidos. O Pai que ama sempre e apesar de tudo. Seu imenso amor
não permitirá que a rejeição por parte do ser humano, durante a vida e na morte, o impeça
de procurar o amado. Este amor se manifestou em Jesus que não veio para julgar, mas para
salvar o mundo (cf Jo 12, 47). Diante disto, “será que Jesus pode permanecer na sua glória
enquanto há homens no inferno? É por eles que ele veio e que ele foi morto. Poderá então
ser salvo sem eles?”132.
Renold Blank postula que até mesmo as negações dos que se condenam poderiam
ser incluídas no ato de fé de Jesus. E, aqui, se baseia em Gérard Rossé para fundamentar
sua opinião:
“Visto que a salvação é oferecida a todos, Jesus (...) alcança não somente os justos, (...) mas
suporta também a pena dos ímpios (...). Isso para que ele possa atingir também aqueles mesmos que
131
A respeito do “inferno estar vazio”, Andrés Torres Queiruga alerta que esta idéia é bem-intencionada e
cordial, mas incômoda e ineficaz. Ele a chama de “lógica dos atenuantes” (A. TORRES QUEIRUGA, O que
queremos dizer quando dizemos inferno? op. cit., p. 61).
132
A. GEORGE, Pour lire l’Evangile selon Saint Luc apud R. J. BLANK, Nossa vida tem futuro, op. cit., p.
198.
133
Jesus experimentou o “inferno” da morte em todo o seu realismo, como ameaça de destruição, de queda no
nada. Experimentou o “inferno” do abandono de Deus e o “inferno” das situações mortais de tantos homens.
Mas, com tudo isto, o inferno ficou tocado por Jesus que não quis deixar nada fora do alcance de sua
redenção. Jesus desceu às realidades infernais para abrir nelas uma esperança. Experimentou a salvação onde
havia condenação (cf. F. MIER, Escatologia cristiana, op. cit. pp. 188s).
134
R. J. BLANK, Nossa vida tem futuro, op. cit., 199.
145
o rejeitarão. Ele percorre, portanto, todas as dimensões do inferno para que todo homem, no seu
distanciamento de Deus, tenha a possibilidade de se encontrar com Cristo”135.
Renold Blank nos diz que a solidariedade de Jesus abrange a todos os homens e
mulheres. Mas se realiza de modo diferente para os que aceitam o amor de Deus e para os
que se negam a aceitá-lo. Também com os que se condenam, Cristo permanece solidário
sem os forçar. Não podemos saber como a pessoa em situação de inferno responderá a tal
solidariedade silenciosa. Pois, tal solidariedade divina quebra todas as regras da
argumentação humana. O amor de Deus nunca se impõe, ele acompanha os que se
autocondenam. Daqui brota o dever de esperar por todos138.
Continuando este pensamento, Renold Blank, baseado em Hans Urs von Balthasar e
em Medard Kehl, diz que o amor de Deus é um “poder” que não obriga o pecador a se
salvar à força, mas o acompanha com o gesto mudo da presença na última solidão 139. Esta é
uma mensagem de otimismo realista140, pois uma fé que reconhece a majestade de Deus
135
G. ROSSÉ, Jesus in seiner Verlassenheit apud R. J. BLANK, ibidem, pp. 178s. Também Hans Küng diz
algo semelhante: “À misericórdia de Deus não são postas quaisquer barreiras, nem mesmo no inferno” (H.
Küng, Ewiges apud R. J. BLANK, Viver sem o temor da morte, op. cit., p. 166).
136
Grande defensor desta posição é Hans Urs von Balthasar. Em seu livro Breve discurso sobre o inferno, a
referida idéia se repete quase como um refrão. Não se trata de apocatástase, apesar de Von Balthasar ter sido
acusado disto. O teólogo procura conciliar a confiança na salvação universal com a liberdade humana. Ele
destaca o poder de redenção e o fato de Cristo permanecer solidário com os que se condenam, e nisto Renold
Blank o segue.
137
A salvação universal não pode ser uma certeza, pois poderia esvaziar a vida espiritual de sua seriedade e a
liberdade humana de sua grandeza trágica. Mas deve ser objeto de nossa oração, de nosso amor ativo e de
nossa esperança (cf. F. MIER, Escatologia cristiana, op. cit., p. 198).
138
Há questionamentos sobre se existe alguém no inferno. É algo difícil de saber. A questão do inferno toca
no limite do conhecimento teológico (cf. M. KEHL, O que vem depois do fim? op. cit., p. 156). Também
Renold Blank afirma que “homem algum poderá dizer se alguém ficará naquela situação absurda a que
chamamos inferno” (R. J. BLANK, Nossa vida tem futuro, op. cit., 193).
139
Cf. M. KEHL, Escatologia, op. cit., p. 298.
140
Na compreensão do inferno, existe o risco de se passar do exagerado pessimismo ao otimismo ingênuo que
serve para desvalorizar a responsabilidade moral. É preciso haver um ponto de equilíbrio entre o discurso
sobre o inferno e o evangelho da salvação (cf. F. MIER, Escatologia cristiana, op. cit., pp. 175s).
146
evitará a afirmação de uma condenação eterna, assim como a propaganda em favor de uma
apocatástase141.
141
Ibidem, p. 197.
142
TAMOYO-ACOSTA diz que “a desprivatização (grifo do autor) do inferno, do inferno aqui e do inferno
depois da morte”, foi descuidada pela escatologia cristã. De fato, “o inferno na terra não é algo individual e
privado; trata-se de uma realidade coletiva, pública, que deve ser erradicada com a colaboração de todos” (J-J
TAMOYO-ACOSTA, Para compreender la escatologia cristiana, op. cit., p. 235).
143
R. J. BLANK, Nossa vida tem futuro, op. cit., p. 226. As palavras acima formam o título de um dos dois
itens em que Renold Blank desenvolve suas reflexões sobre a superação dos infernos terrestres. Estes só
podem ser vencidos através da práxis do amor, já que é a negação do amor a Deus e ao próximo que gera o
inferno.
144
Ibidem, p. 227.
147
“É aqui e agora, portanto, no tempo e na história, na trama da vida real e das estruturas
sociais injustas, que o inferno se gesta e aparece como possibilidade concreta. Possibilidade que, na
história da América Latina em que vivemos, pode ser entrevista através do sofrimento infligido a
tantos pela privação dos mais elementares direitos humanos”148.
A esperança cristã que, como vimos no segundo capítulo, é histórica, nos leva a
protestar contra a morte a partir da ressurreição de Jesus, base da esperança escatológica. A
fé na ressurreição é transformada aqui na terra em crítica a uma sociedade marcada pela
145
Ibidem, p. 227. De fato, esta prática é ineficaz. Também Andrés Torres Queiruga concorda que “a história
demonstrou inevitavelmente que a ‘pastoral do medo’ conduz necessariamente ao fracasso” (A. TORRES
QUEIRUGA, O que queremos dizer quando dizemos inferno?, op. cit., p. 5).
146
J. L. RUIZ DE LA PEÑA, La pascoa de la creacion, op. cit., p. 238.
147
Observemos esta interessante e irônica crítica de um teólogo da libertação: os burgueses (opressores) não
gostam do inferno. Sabem que se ele existisse, seriam os primeiros inscritos na lista de condenação.
Colocando-nos na perspectiva dos pobres (oprimidos), devemos admitir que se o inferno não existisse
deveríamos inventá-lo para que houvesse justiça (cf. P. TRIGO, Creación e historia en el processo de
liberación apud J. L. RUIZ DE LA PEÑA, La pascoa de la creacion, op. cit., p. 238, nota 44).
148
J. B. LIBÂNIO; Ma. C. L. BINGEMER, Escatologia cristã, op. cit., p. 264.
148
morte. Esta esperança desestabiliza as relações de dominação que se julgam perenes aqui e
agora149. Professar a fé no Ressuscitado requer conversão profunda para poder enfrentar as
situações concretas de morte. Conversão que deve ser realizada de forma contínua ao longo
da vida, expressando-se na prática do amor.
Conclusão
Numa boa introdução à problemática do inferno, Andrés Torres Queiruga diz que
muitos estragos já se fizeram ao falar sobre este tema. Desde cedo apelou-se à ameaça
conduzida por uma “pastoral do medo”. Mas, sobre um assunto tão molesto e complicado
não é sadio calar150. E Renold Blank está entre os teólogos que resolveram falar sobre o
tema, ou seja, expressar uma opinião de qualidade na tentativa de explicá-lo corretamente
numa linguagem compreensível para o homem atual. Diante dos questionamentos que o
tema do inferno continua apresentando, suas explicações são, em geral, esclarecedoras e
respondem às exigências atuais da evangelização e da educação na fé.
Nosso teólogo deixa claro que Deus só quer a vida e a realização do ser humano. O
inferno, portanto, é obra de perversão da liberdade e traz conseqüências negativas, tanto
pessoais como coletivas. Por isso, ele não pode ser tratado de modo privatizado. Os
infernos deste mundo, em especial os latino-americanos, clamam por reflexões lúcidas e
por ações eficazes em vista de serem superados. Este aspecto é bem desenvolvido e
explicitado por Renold Blank. Este se preocupa, bem mais do que explicar o sentido do
inferno, em demonstrar que o Deus de amor não quer o inferno e ajuda os homens a superá-
lo.
Por outro lado, segundo Renold Blank, um aspecto mais individual do inferno,
consiste em vê-lo como a eterna frustração: a petrificação do ser humano em seu egoísmo,
quando recusa o amor a Deus e ao próximo. As condições históricas infernais, causadas por
esta recusa, são um indicativo de que o inferno eterno é uma possibilidade real. Ao
149
Cf. H. KÜNG, Ewiges Leben? apud R. J. BLANK, Nossa vida tem futuro, op. cit., pp. 228s. Estas palavras
ensinam que a escatologia, longe de ser alienante, possui capacidade crítica frente à história, como vimos no
primeiro capítulo.
150
Cf. A. TORRES QUEIRUGA, O que queremos dizer quando dizemos inferno?, op. cit., p. 5.
149
comentar como seria este estado de condenação eterna, o teólogo suíço não consegue ser
mais claro e objetivo. Com a ajuda de outros autores buscamos aprofundar melhor esta
problemática.
151
Cf. M. KEHL, O que vem depois do fim? op. cit., pp. 164s.
150
Da parte do ser humano, uma extinção total é impensável já que sua história, com
seu entrelaçamento com outras histórias, não pode ser desfeita. Concordamos com esta
argumentação e vale ressaltar que ela segue a lógica do pensamento de Renold Blank em
dois pontos: valoriza a história e a liberdade humana e, principalmente, realça o amor
absoluto de Deus que, ao agir, sempre produz vida (salvação) e impede a morte.
Introdução
152
Sendo céu a designação da plenitude absoluta alcançada pelo homem ajudado por Deus, a palavra que
remete a essa realidade é uma parábola significativa. Céu, literalmente, significa firmamento ou abóbada. As
religiões urânicas (dos caçadores e dos nômades) ofereciam uma profunda experiência da grandiosidade do
céu. E, assim, viram nele o símbolo da realidade divina. Compreendemos, portanto, céu como transcendência:
Deus é Aquele que se encontra “acima de tudo”. Então, céu é sinônimo de Deus e, para o Novo Testamento,
de Jesus ressuscitado (cf. L. BOFF, Vida para além da morte, op. cit., 68). No entanto, Bernard Sesboüé
adverte para o fato que a palavra céu tornou-se ambígua desde que o céu estelar fez-se objeto de descobertas e
viagens cósmicas. O teólogo francês sugere o uso da expressão “vida eterna” (cf. B. SESBOÜÉ, Croire, op.
cit., p. 530). Renold Blank, por sua vez, não se prende a esta distinção e utiliza as duas formas, pois está mais
preocupado com o sentido teológico que elas veiculam.
153
“Deus quer a salvação de todos!”, afirma Renold Blank (cf. Escatologia da pessoa, op. cit., p. 282). Sobre
esta vontade salvífica, Maria Clara Bingemer disse que “para designar o destino final dos homens e mulheres
escolhidos por Deus para serem salvos (...) a fé cristã cunhou a palavra ‘céu’ ” (J. B. LIBÂNIO; M a. C. L.
BINGEMER, Escatologia cristã, op. cit., p. 285).
154
Cf. R. J. BLANK, Escatologia da pessoa, op. cit., p. 283. Este derradeiro destino é a meta para “onde” o
homem caminha. Segundo Medard Kehl: “Quando falamos de céu no sentido bíblico-cristão, referimo-nos à
meta da história pessoal e universal pensada por Deus para nós (...). ‘Céu’ é, no fundo, outra palavra para
‘consumação’ ” (M. KEHL, O que vem depois do fim? op. cit., p. 150). “Enquanto o inferno situa-se apenas
ao nível de possibilidade (grifo do autor), o céu, a vida eterna, é promessa real (grifo do autor) entregue ao
ser humano por Deus, ratificada em Jesus Cristo, proposta (grifo do autor) de vida” (J. B. LIBÂNIO; Ma. C.
L. BINGEMER, Escatologia cristã, op. cit., p. 265).
155
Mais uma vez, aparece o tema do amor. Através dele, “Deus quer que o ser humano participe de sua
própria vida divina” (R. J. BLANK, Escatologia da pessoa, op. cit., p. 286). Medard Kehl, em consonância
com Renold Blank, afirma que amor e céu são realidades que se relacionam: “A fonte e o meio dessa bem-
aventurança da consumação é o amor reconciliador (grifo do autor) de Deus” (M. KEHL, O que vem depois
do fim? op. cit., p. 150).
151
Os livros Viver sem o temor da morte e Nossa vida tem futuro não tratam do tema
do céu. Somente o livro Escatologia da pessoa, nas páginas 282 a 293, aborda este tema.
Inicialmente, a idéia de céu está presente nos outros dois livros, quando Renold Blank
estuda a ressurreição de Jesus. Para o teólogo suíço, céu e ressurreição se equivalem: “Deus
ressuscita o ser humano na morte (...) (e) abre para a pessoa novas dimensões de vida (...)
que chamamos CÉU” (grifo do autor)”156.
Embora o tema do inferno seja central em Viver sem o temor da morte, Renold
Blank implicitamente também fala da salvação: Deus quer salvar o homem do inferno e,
portanto, o ser humano pode viver sem o medo da morte. Em Nossa vida tem futuro, o tema
da ressurreição merece um capítulo à parte (pp. 119 a 225) e dois capítulos em Escatologia
da pessoa. Além destes temas, este último livro desenvolve o do céu em capítulo separado.
Seu conteúdo lembra de perto a realidade da ressurreição.
A ressurreição de Jesus é, de fato, a base da nossa salvação. Por causa dela podemos
ter esperança. Isto aparece na Bíblia e na tradição: ao falar do céu, ligam-no muitas vezes à
ressurreição de Cristo.
156
Cf. R. J. BLANK, Escatologia da pessoa, op. cit., p. 288. Sobre a relação céu-ressurreição, Francisco de
Mier diz: “A ressurreição é a forma mediante a qual alcançamos a salvação eterna ou céu” (F. MIER,
Escatologia cristiana, op. cit., 225).
152
a) Céu na Bíblia
A Bíblia é sóbria ao falar do céu. Ao tocar neste assunto, parte de imagens tiradas da
vida cotidiana. “No AT, o céu é intramundano”158. Mas, o homem do Antigo Testamento
começa a entrever que a plenitude pela qual aspira não é possível na existência terrena. Em
alguns textos, como por exemplo nos salmos 16 e 73 e em 2 Mc, já aparece uma reflexão
sobre a vida eterna após a morte. A pregação de Jesus delineia de modo nítido o conteúdo
da promessa de Deus e da esperança humana na vida eterna, cujo ápice é a ressurreição159.
157
Renold Blank cita textos do Novo Testamento: Rm 5, 18 e 11, 32; 1 Tm 2, 3-4 e 4, 10; Ap 21 3-5 (cf. R. J.
BLANK, Escatologia da pessoa, op. cit., pp. 282-292).
158
J. B. LIBÂNIO; Ma. C. L. BINGEMER, Escatologia cristã, op. cit., p. 271.
159
Ibidem, p. 272. Sobre a relação entre ressurreição e céu Ladislau Boros diz que o céu está perto de nós a
partir da ressurreição de Jesus (cf.. L. BOROS, Existência redimida, op. cit., 26).
160
R. J. BLANK, Escatologia da pessoa, op. cit., p. 282.
161
Ibidem, p. 282.
153
Vida eterna, salvação ou céu é ser assumido por Cristo em sua glória em
indissolúvel comunhão existencial com ele, sobretudo permanecendo em seu amor para
sempre. De fato, “a vida eterna proposta no NT é a plenitude do amor” 162. A riqueza do
amor divino ultrapassa a lógica racional humana. Por isso, ao falar deste amor, que
plenifica o homem salvando-o, a Bíblia utiliza imagens163 que nos ajudam a penetrar um
pouco no mistério dessa inesgotável realidade divina. Eis algumas dessas imagens164:
- O banquete e as núpcias (cf. Mt 22, 1-10; 25, 1-3; Lc 12, 35-38 e 13, 28-29). Estas
imagens sugerem abundância de dons, desejos saciados, encontro, amizade, reconciliação
entre indivíduos. No céu teremos tudo isto em plenitude;
- Descanso sabático: o Dia de Javé (cf. Ex 20, 8-10). Lembra uma situação de bem-
aventurança em que predomina a soberania amorosa de Deus;
- Casa do Pai (cf. Jo 14, 1-3). O céu representado como morada paterna indica um
“lugar” acolhedor de paz e harmonia perfeitas querido e preparado por Deus;
- Vinho do Reino (cf. Mt 26, 29). O vinho simboliza a comunidade máxima, onde os
grãos de uva se transformam em vaso comum. O vinho também é símbolo da alegria. No
céu haverá comunhão e alegria eternas;
- Éden ou paraíso (cf. Gn 3). A palavra significa “lugar dos deuses”. O ser humano
sempre aspirou aos dons e felicidades divinas, sempre quis morar num mundo de Deus
isento dos males e do sofrimento. Só o céu é assim;
- Vitória (cf. 1 Cor 9, 25; Tg 1, 12; Ap 2, 11; 2, 17; 3, 5). Vencer é uma realização
importante para o ser humano. O céu é a máxima vitória sobre o mal e a morte, é a
realização absoluta;
162
J. B. LIBÂNIO; Ma. C. L. BINGEMER, Escatologia cristã, op. cit., p. 273.
163
A estrutura do conhecimento humano necessita de imagens. “Assim o Futuro Absoluto, o Último de todas
as coisas não pode ser pensado sem um mínimo de representação (...). Podemos e devemos ir corrigindo as
imagens, mas nunca prescindiremos totalmente delas. As imagens, porém, permanecem imagens e não valem,
nem substituem a realidade pensada” (Ibidem, p. 26).
164
Cf. F. MIER, Escatologia cristiana, op. cit. pp. 217 a 219. As primeiras cinco imagens são desta obra
citada. A sexta é de Leonardo BOFF (cf. Vida para além da morte, op. cit., p. 75).
154
- Cidade de Deus165 (cf. Ap 21, 9-22, 5). Refere-se à Jerusalém celeste descrita pelos
autores bíblicos como lugar de paz e de justiça; um lugar aberto a todos onde os povos se
encontrarão.
Estas imagens não são abstratas, mas têm relação com as realidades da vida
humana. Das imagens, as que se destacam pelo profundo significado são a do banquete e a
das núpcias. Nestas, percebe-se melhor o caráter comunitário do céu. Seu aspecto coletivo
também tem uma “índole marcadamente cristológica”166. É assim que a tradição, em seus
primórdios, compreendia o céu: ligado à ressurreição de Jesus, comunitário e dinâmico.
No credo cristão, apenas a vida eterna é mencionada, pois ela é o objeto primordial
de nossa fé e nossa esperança. Nele não se menciona o purgatório nem o inferno. Dos três
elementos escatológicos, o mais importante é a vida eterna167. De fato, a ressurreição de
Jesus Cristo abriu aos que crêem a esperança na salvação eterna. Desde os primeiros
tempos do cristianismo, houve preocupação em compreender o destino final do homem e da
história, e também a sorte de cada pessoa depois da morte: estes foram os dois pólos em
torno dos quais girou a escatologia cristã. Segundo as épocas, deu-se prioridade a um
aspecto ou a outro, predominando na Idade Patrística uma compreensão cristológica da
escatologia168.
165
Cf. J-J TAMOYO-ACOSTA, Para compreender la escatologia cristiana, op. cit., p. 227. Esta imagem
mostra a consciência na patrística da dimensão social do céu.
166
J. B. LIBÂNIO; Ma. C. L. BINGEMER, Escatologia cristã, op. cit., p. 276.
167
Cf. B. SESBOÜÉ, Croire, op. cit., 530.
168
Cf. B. SESBOÜÉ, (Org.), Historia de los Dogmas, op. cit. pp. 309s. A concepção de céu em Renold Blank,
como veremos, também é muito cristológica. Mas, ele não acentua outros aspectos ligados à cristologia, como
a dimensão pascal.
155
salvação significa alcançar a Deus, estar com Cristo. Só por meio deste, e em particular por
sua ressurreição, tem sentido a esperança na ressurreição dos mortos169.
conteúdo da felicidade eterna, a visão imediata de Deus e o gozo que esta produz. Fala
também do “estar com Cristo” no céu. Os concílios de Florença (1439) e de Trento (1545 a
1563) centraram mais a atenção, dentre as questões escatológicas, no purgatório174.
Renold Blank explica a realidade escatológica chamada céu por meio de várias
características. Inicia sua exposição afirmando que “Deus quer a salvação de todos!”176. E, a
seguir, cita alguns textos bíblicos, já vistos antes, e algumas passagens do Concílio
Vaticano II para fundamentar seu pensamento177, pois nosso teólogo tem a preocupação de
seguir o caminho de renovação proposto pelo Vaticano II. Continua, depois, afirmando que
“o nosso último destino, conforme a vontade de Deus, é a salvação para uma vida
174
Cf. Ibidem, pp. 344-350.
175
Cf. Ibidem, pp. 350-354.
176
R. J. BLANK, Escatologia da pessoa, op. cit., p. 282.
177
A título de exemplo, citamos a passagem do Concílio Vaticano II: “A Igreja sempre teve e tem por bem
ensinar que Cristo (...) se sujeitou à morte, para que todos conseguissem a salvação” (Nostra aetate, no 4).
157
Já que para Renold Blank “céu significa ‘ser salvo’ ”179, ele procura explicar este
estado final de salvação especificando cinco características do mesmo, conforme veremos
abaixo.
a) Vida plena
Estas reflexões de Renold Blank nos remetem ao que vimos no capítulo primeiro.
Visam mostrar a relação que existe entre a esperança do céu e a responsabilidade humana
na história181. A esperança no céu é um estímulo para os compromissos humanos neste
178
R. J. BLANK, Escatologia da pessoa, op. cit., pp. 283s. Estas palavras de Renold Blank são semelhantes
às de alguns teólogos: o céu é a realidade sumamente realizadora de tudo o que o homem pode aspirar de
grande e de plenificador (cf. L. BOFF, Vida para além da morte, op. cit., p. 68). Céu é a resposta divina à
pergunta pelo sentido último da vida, da realidade, da história (cf. J-J TAMOYO-ACOSTA, Para
compreender la escatologia cristiana, op. cit., p. 224). Céu é, ainda, o ponto máximo da aspiração humana, a
meta suprema da vida (cf. J. B. LIBÂNIO; M a. C. L. BINGEMER, Escatologia cristã, op. cit., p. 265) e a
total realização da própria personalidade (cf. L. BOROS, Existência redimida, op. cit., pp. 122s e F. MIER,
Escatologia cristiana, op. cit. pp. 201-204) e a realização total da personnalidade (cf. L. BOROS, Existência
redimida, op. cit., pp. 122s e F. MIER, Escatologia cristiana, op. cit., pp. 201-204).
179
R. J. BLANK, Escatologia da pessoa, op. cit., p. 285.
180
Cf. Ibidem, pp. 285-287.
181
Na patrística já encontramos esta preocupação, que é expressa por exemplo na imagem da “cidade de
Deus”, onde se cruzam a orientação transcendente com a vertente imanente. O que se quer explicar com este
158
mundo. Pois, quando o indivíduo se abre ao céu, colabora para a recriação desta terra. Não
podemos compreender o céu como o oposto182 deste mundo, mas como sua plenitude, livre
de tudo o que limita e fere, divide e amarra183.
símbolo é a dialética da vida no mundo a caminho da pátria definitiva (cf. F. MIER, Escatologia cristiana,
op. cit. pp. 219s).
182
A moderna crítica da religião acusou o céu cristão de ser uma projeção de desejos humanos; e projeção
alheia à realidade (cf. J-J TAMOYO-ACOSTA, Para compreender la escatologia cristiana, op. cit., p. 222).
183
Cf. L. BOFF, Vida para além da morte, op. cit., p. 72. A realidade do céu começa na terra sempre que
fazemos a experiência da amizade, da paz e do amor (cf. ibidem, p. 82). Afirma Bernard Sesboüé: gestos de
amor, de generosidade e de realizações humanas são sinais da vida eterna que construímos aqui e que nos
servem de estímulo (cf. B. SESBOÜÉ, Croire, op. cit., p. 533).
184
M. KEHL, Escatologia, op. cit., p. 291. Na concepção privatizante do céu, segundo Maria Clara Bingemer,
encontramos resquícios da mentalidade capitalista. Nela, o céu é encarado como “prêmio póstumo”
conquistado através do próprio esforço (cf. J. B. LIBÂNIO; M a. C. L. BINGEMER, Escatologia cristã, op.
cit., p. 269).
185
Ibidem, p. 291.
159
Mas, segundo Renold Blank, em certo momento deste processo salvífico, o homem
encontra uma situação de morte que é mais forte que qualquer esforço humano: a morte
biológica. Nesta situação, em que ele não pode mais agir, Deus realiza uma ação especial
ressuscitando-o da morte, levando à plenitude toda a sua história. Assim, “Deus abre para a
pessoa novas dimensões de vida, dimensões que chamamos ‘CÉU’ ”(grifo do autor) 186. E
esta vida no céu só é realmente plena quando vivida em comunhão com outras pessoas.
b) Comunhão
Sobre este último, no dizer de Maria Clara Bingemer, o céu é uma realidade
primordialmente cristológica e pneumatológica. E estes dois aspectos implicam o aspecto
eclesiológico. Portanto, o céu é comunhão do povo de Deus com Cristo no Espírito
Santo188. Este aspecto social, por sua vez, possui um embasamento bíblico nas imagens que
expressam esta realidade escatológica.
186
Ibidem, pp. 287s
187
No céu, o homem será pessoa plenamente evoluída. Inácio de Antioquia diz, a este propósito, que “quando
chegar lá (no céu), então é que serei homem” (Inácio de Antioquia, Ad Romanos apud J. B. LIBÂNIO; Ma.
C. L. BINGEMER, Escatologia cristã, op. cit., p. 285). Relacionar céu e evolução nos lembra a linguagem
utilizada para explicar o purgatório. No entanto, céu é o estado final, e não intermediário, da evolução plena
operada por Deus.
188
Cf. J. B. LIBÂNIO; Ma. C. L. BINGEMER, Escatologia cristã, op. cit., p. 278. Alguns autores fazem uma
interpretação trinitária dessa comunhão, como é o caso de Luiz Carlos Susin que diz que “essa relação
essencial não se perde porque tem sua origem primeira e se transfigura na comunhão trinitária” (L. C. SUSIN,
Assim na terra como no céu, op. cit., p. 172). Bruno Forte afirma que a variedade das relações humanas
participa do acontecimento eterno do amor da Trindade (cf. B. FORTE, Teologia de la historia, op. cit., p.
374).
160
No céu, haverá uma fraternidade universal, e não uma paz isolada para cada pessoa.
Numa dinâmica de solidariedade, segundo Renold Blank, reencontraremos com todas as
pessoas conhecidas, com aquelas que amamos e também com aquelas que não amamos,
mas no céu vamos aprender a amá-las. Até aqueles que, na vida terrena, eram inimigos
amar-se-ão190. Estas palavras mostram que a solidariedade na vida eterna é uma dinâmica
que envolve pessoas que se comunicam sustentadas pelo amor de Deus.
c) Realidade dinâmica
Segundo Renold Blank, para muitos cristãos, o céu está associado a uma imagem
que aborrece, a uma situação estática, onde as pessoas gozam de uma paz eterna, tranqüila e
abstrata. Se o céu é vida em plenitude, onde há vida existe dinamicidade191. As imagens
descritivas do céu, vistas anteriormente, sugerem movimento e vitalidade. Renold Blank, ao
comentar isto, destaca com especial atenção a imagem do banquete. Lembra que, quando
Jesus fala em banquete, ele tem em mente a experiência oriental de um banquete
esplendoroso com danças, alegria, barulho, brincadeiras. Eram banquetes que duravam pelo
menos uma semana e movimentavam muitas pessoas192.
189
Cf. J. B. LIBÂNIO; Ma. C. L. BINGEMER, Escatologia cristã, op. cit., p. 275. Segundo Tamoyo-Acosta,
“da vida em plenitude não desfrutam pessoas isoladamente senão coletivamente, como comunidade” (J-J
TAMOYO-ACOSTA, Para compreender la escatologia cristiana, op. cit., p. 224).
190
Cf. R. J. BLANK, Escatologia da pessoa, op. cit., p. 289.
191
Cf. Ibidem, pp. 289s. Este comentário de Renold Blank, sobre uma compreensão que alguns têm do céu,
vendo-o de modo estático, é um pouco simplista e caricaturizado. Mesmo assim, serve para despertar a
atenção para a dinamicidade do céu outrora esquecida pela escatologia tradicional. Ladislau Boros ajuda-nos a
compreender essa “dinâmica celeste”: como o céu se refere à plenitude humana em Deus, cada plenificação é
simultaneamente novo começo, início de uma plenificação ainda maior. Por isso, o céu dever ser entendido
como dinâmica ilimitada (cf. L. BOROS, Existência redimida, op. cit., p. 27).
192
Cf. R. J. BLANK, Escatologia da pessoa, op. cit., p. 290.
161
“Céu (...) significa consumação (grifo do autor) da vida terrena; mas absolutamente não
rumo a um estado de repouso eternamente fixo, e sim à desobstruída participação na vida (...). Essa
participação na plenitude da vida infinita e criativa de Deus abre para nós um processo (grifo do
autor) de amadurecimento cada vez mais profundo na vida de Deus adentro”194.
Estas palavras de Medard Kehl revelam que a dinamicidade da vida eterna está
ligada à comunhão dos santos e pode também ser explicada, segundo Leonardo Boff, pela
categoria de “encontro”:
193
A plenitude do céu ocorre na eternidade. Esta não pode ser compreendida como um repouso eterno ou algo
de duração indefinida. Neste sentido, segundo Bernard Sesboüé, a eternidade não pode ser representada como
uma linha horizontal contínua. A verdadeira imagem da eternidade é aquela de um momento particularmente
excepcional de nossa existência, mas cuja intensidade elevada ao máximo não passa (cf. B. SESBOÜÉ,
Croire, op. cit., pp. 532s). Temos aqui uma interpretação existencial da eternidade. E ela é diferente da
compreensão de Renold Blank. Para este, a eternidade “significa por definição que não há mais tempo (...).
NA ETERNIDADE SÓ HÁ ETERNO AGORA” (grifo do autor) (R. J. BLANK, Nossa vida tem futuro, op.
cit., 205). Renold Blank interpreta a eternidade “interligando concepções teológicas com modelos científicos
da cosmologia” (R. J. BLANK, Escatologia do mundo, op. cit., p. 356). Aqui temos uma simultaneidade que
se opõe à sucessão temporal. Julgamos que as explicações de Bernard Sesboüé e de Renold Blank são boas,
mas o primeiro está mais em sintonia com a promessa de plenificação do céu. Na terra mesmo já
experimentamos realizações parciais que antecipam a vida eterna.
194
M. KEHL, O que vem depois do fim? op. cit., p. 152. O final desta citação nos lembra um pensamento de
Francisco de Mier. Segundo este teólogo, podemos falar que também em Deus existe um crescimento, uma
plenificação. Pois, progressivamente constitui-se uma totalidade entre Deus, as pessoas e o mundo que só no
final dos tempos será completa, quando nada ficar fora do amor divino (cf. F. MIER, Escatologia cristiana,
op. cit. pp. 208s)
195
L. BOFF, Vida para além da morte, op. cit., p. 71. Medard Kehl diz que, realmente, o processo do amor de
Deus nunca está quieto em sua plenitude, pois trata-se de um amor inesgotável que aponta para um futuro
sempre novo (cf. M. KEHL, Escatologia, op. cit., p. 289).
162
Com esta expressão de Paulo, não queremos afirmar um panteísmo que destrói as
individualidades, como se tudo fosse a mesma coisa. As palavras do Apóstolo indicam
Deus como princípio, o coração e o fim das criaturas. Cada indivíduo continuará sendo ele
próprio, mas o sentido profundo de sua existência é Deus mesmo que o sustenta com seu
amor. Numa situação de céu, isso ficará transparente: tudo fala e lembra Deus, cada ser
vibra pela realidade amorosa de Deus198. No “novo céu e nova terra” (Ap 21, 1), “a história
do mundo, apesar de seus absurdos e de suas contradições, tem um último sentido que está
baseado no amor de Deus”199, que deseja nossa eterna e íntima união com Ele.
196
R. J. BLANK, Escatologia da pessoa, op. cit., p. 291.
197
M. KEHL, O que vem depois do fim? op. cit., pp. 150s
198
Cf. L. BOFF, Vida para além da morte, op. cit., p. 78.
199
R. J. BLANK, Escatologia da pessoa, op. cit., p. 291.
163
No item anterior, vimos que a união realizada por Deus foi explicada num sentido
amplo. Esta comunhão definitiva com Deus pode ser chamada de “dimensão teológica do
céu”. Esta vem confirmar que a união universal dos seres humanos entre si, com as
criaturas e o mundo é obra exclusiva de Deus. Agora, no presente item, queremos mostrar
como Renold Blank entende um outro aspecto dessa ampla união: a íntima e definitiva
comunhão entre Deus e o ser humano.
O Deus de amor, que tocou o nosso coração desde o início de nossa existência, e por
quem nosso coração anseia durante a vida, é o fim derradeiro e a plenificação dessa vida.
“Céu é isso: união íntima, infinita e eterna com aquele que nosso coração já buscava,
muitas vezes sem o saber (...). Encontro de dois apaixonados, dos quais um fora tantas
vezes infiel, mas que, apesar disso, continuou sendo amado”200.
Esta comunhão com Deus, sublinha nosso teólogo, “não é uma paz isolada e
tranqüila, fora de todos os contatos com outros seres”. Ela envolve “outras pessoas e, junto
com elas, vive (-se) uma comunhão íntima de amor com Deus” 201. A teologia tradicional
chamou a esta união íntima de “ver a Deus face a face” ou “visão beatífica” 202. Segundo
Maria Clara Bingemer, em sentido bíblico, “ver” significa participar da vida de alguém. Por
exemplo, “ver o rei” para um semita é gozar de sua intimidade, ter com ele boas relações
familiares e afetivas. Trata-se, portanto, de uma comunhão existencial203.
200
Ibidem, p. 292.
201
Ibidem, pp. 292s
202
Ver Deus e vida eterna são freqüentemente associados no Novo Testamento. Por exemplo, os puros de
coração verão a Deus (cf. Mt 5, 8); na cidade celeste, os servidores de Deus verão seu rosto (cf. Ap 22, 4). Na
tradição, temos esta correspondência entre ver e viver. Irineu é um exemplo neste sentido quando afirma que a
glória de Deus é o homem vivente, e a vida do homem é a visão de Deus (cf. B. SESBOÜÉ, Croire, op. cit., p
531).
203
Cf. J. B. LIBÂNIO; Ma. C. L. BINGEMER, Escatologia cristã, op. cit., p. 272.
164
próprio amor também abre via ao conhecimento, ao verdadeiro conhecimento interior que
produz felicidade204.
Este “ver a Deus” equivale, segundo Renold Blank, à “íntima união com Deus”.
Pensamos que o acento no amor caracteriza melhor a “visão de Deus” na perspectiva do
nosso teólogo. “Ver a Deus” é amá-lo em profundidade, sem mediações. Não se trata de ver
com os olhos, ou seja, de ver enxergando, mas de ver amando. A visão dos bem-
aventurados é a comunhão íntima em que o amor de Deus potencializa o amor humano.
Assim, no céu o homem “participa todo de tudo”205. Ou, segundo Renold Blank, no céu o
homem e a mulher estão plenamente realizados, definitivamente em união com Aquele que
é fonte da vida eterna.
Conclusão
Renold Blank, ao explicar o que é o céu, confirma que ele é a salvação que Deus
nos oferece. O teólogo não repete genericamente o termo salvação em seu discurso
escatológico. Mas o explicita em seus vários aspectos, mostrando como a salvação acontece
em nossa vida. Ou seja, como o céu, que é uma realidade profundamente humana206, está
presente em nossa vida pessoal, inserido num contexto histórico. Neste sentido, a
preocupação fundamental de nosso autor é mostrar que a esperança no céu leva a construir
uma nova terra. O céu também é processo, realidade coletiva, salvação histórica que
anuncia a salvação definitiva, fruto da gratuidade do amor de Deus.
204
Cf. F. MIER, Escatologia cristiana, op. cit. pp. 209s.
205
L. BOFF, Vida para além da morte, op. cit., p. 74
206
Cf. Ibidem, p. 69. Esta expressão é de Leonardo Boff e quer indicar que existe relação entre a proposta de
Deus e as boas aspirações humanas.
165
CONCLUSÃO GERAL
207
Cf. B. FORTE, Teologia de la historia, op. cit., p. 374.
208
Cf. B. SESBOÜÉ, Croire, op. cit., p. 53 0.
1
Exceto o inferno, que não é um momento de consumação (plenificação), mas uma definitividade negativa.
166
outro mundo; pois, Deus quer ser tudo em todas as coisas. Esta mensagem de esperança é a
intenção básica de Renold Blank, cujo pensamento escatológico expusemos neste trabalho.
Deus não quer, contudo, a condenação do ser humano, e sim a sua salvação (céu).
Ser salvo é a promessa à qual todos são chamados. Esta esperança escatológica está
presente na interpretação que Renold Blank dá dos três “novíssimos”, até mesmo na
compreensão do inferno. Pois, o amor criativo de Deus fará tudo para que esta possibilidade
real não se concretize na vida de ninguém.
efetivar isso, ele se serve de obras de teólogos da libertação empenhados na mesma tarefa
de construir uma nova escatologia. Ao fazer sua reflexão, nas direções apontadas pela
referida teologia, ele leva em conta os temas e as preocupações típicos dela: a centralidade
de Jesus Cristo libertador, a missão da Igreja no mundo, a emergência dos pobres, as
estruturas sociais injustas, o pecado social, a transformação da realidade através da práxis
do amor solidário.
Tendo como pano de fundo esta complexa realidade humano-divina, nosso teólogo
procura mostrar como o purgatório, o inferno e o céu se relacionam com ela.
Especificamente, ele elabora uma escatologia que seja consolação, a fim de superar o medo
religioso, fruto de uma evangelização baseada, muitas vezes, numa pedagogia do medo e da
ameaça. Ao invés disto, o teólogo suíço ensina que um pensamento correto sobre os três
“novíssimos” deve despertar esperança e ter relação com a história humana.
Renold Blank realiza com competência seu projeto, apesar de alguns limites na
apresentação de certos pontos da matéria estudada. Baseamos nosso estudo principalmente
nos livro: Viver sem o temor da morte, Nossa vida tem futuro, Nosso mundo tem futuro,
Esperança que vence o temor, Escatologia da pessoa e Escatologia do mundo. São obras
que se completam, pois tratam da escatologia da pessoa e da escatologia coletiva. Pensamos
que tais livros constituem a base do projeto escatológico de Renold Blank. Suas obras
posteriores provavelmente conservarão as intuições e as perspectivas presentes nesses
livros. Neles o autor baseia suas reflexões em modernos modelos científicos e filosóficos, a
fim de construir uma escatologia libertadora, processual e dinâmica.
É pertinente seu esforço de levar em conta o nível científico de suas reflexões, sem
se descuidar do alcance pastoral das mesmas. Mas, lembremo-nos de que na América
Latina coexistem a mentalidade moderna e a pré-moderna. Por isso, fica ainda o desafio
para nós de divulgar uma escatologia em linguagem realmente acessível às comunidades
cristãs. E que não haja apenas uma apresentação meramente intelectual, mas que tenha
incidência na vida das pessoas. Contudo, reconhecemos que um conhecimento esclarecido
168
Pensamos, ainda, que uma reflexão relacionada à realização humana não pode ficar
restrita ao âmbito do cristianismo. Os caminhos apontados por Renold Blank devem
avançar rumo a novos horizontes. Três são essenciais na reflexão teológica atual: o
ecumenismo, o diálogo inter-religioso e a ecologia. As questões sobre os “novíssimos”
podem ter interpretações diferentes no seio do próprio cristianismo. Aqui, uma leitura
destacadamente bíblica e trinitária seria um caminho indicado para o diálogo entre as várias
igrejas cristãs sobre o tema. Pois, a Escritura e a Santíssima Trindade são uma referência
comum às várias igrejas
Como vimos, o tratamento dado por Renold Blank aos “novíssimos” tem uma
referência marcadamente cristológica. Principalmente porque ele coloca Jesus Cristo como
uma categoria fundamental da escatologia. Isto apresenta dificuldades de aceitação e
compreensão em outras religiões. De fato, vemos emergir um pluralismo de crenças em
nosso continente, que tem se aberto às novas formas de religiosidades (orientais, nova era,
religiões pós-modernas etc) e isso exige um diálogo inter-religioso2.
Quanto à sensibilidade ecológica, trata-se de uma realidade que tem emergido com
força nos últimos anos. Ela vem recebendo atenção de toda a humanidade: pessoas e
organizações de diversas áreas do saber estão procurando refletir sobre a atual crise
ecológica. A teologia também acolheu esta problemática em suas reflexões. Um novo
paradigma ecológico propõe uma convivência mais respeitosa, pacífica e harmoniosa do ser
humano com a natureza.
2
A teologia de Renold Blank é contextual, latino-americana. Mas, caso houvesse um confronto de sua
teologia com o ambiente religioso asiático, por exemplo, como falar dos “novíssimos” neste contexto? A Ásia
é o continente menos cristão, onde o cristianismo representa 2% da população. A base da religiosidade
asiática é a libertação, não a fé num Deus pessoal. Para esta religiosidade, a soteriologia é o fundamento da
teologia. É este o ponto de contato entre o cristianismo e as religiões não-cristãs na Ásia. O contato com tais
religiões asiáticas, não pode portanto ser eclesiológico, nem cristológico, nem mesmo teológico (no sentido de
uma doutrina a respeito de Deus), e sim soteriológico. E esse caminho da salvação passa por uma via de
humanização individual e estrutural (dimensão político-social) (Cf. R. GIBELLINI, A teologia do século XX,
op. cit., pp. 482s.
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