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Centro de Estudos Superiores da Companhia de Jesus

Faculdade de Teologia

Edson de Oliveira Silva

Purgatório, inferno e céu segundo Renold Blank


Os três “novíssimos” compreendidos à luz da esperança escatológica,
em vista da superação do medo religioso
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2

Dissertação de Mestrado
Orientador: Prof. Dr. Geraldo Luiz De Mori, SJ

Belo Horizonte
2006

Centro de Estudos Superiores da Companhia de Jesus


Faculdade de Teologia

Edson de Oliveira Silva

Purgatório, inferno e céu segundo Renold Blank


Os três “novíssimos” compreendidos à luz da esperança escatológica,
em vista da superação do medo religioso
3

Dissertação de Mestrado
Orientador: Prof. Dr. Geraldo Luiz De Mori, SJ

Belo Horizonte
2006
4

RESUMO

As categorias teológicas purgatório, inferno e céu continuam despertando interesse


entre os teólogos. Também no âmbito da linguagem elas estão presentes, além de marcarem
a religiosidade do povo cristão. Há que ressaltar, no entanto, o fato de estes três
“novíssimos”1, como são chamados pela escatologia tradicional, não terem recebido um
tratamento adequado. Percorrendo a história do cristianismo, encontramos interpretações
numa perspectiva individualista e desligada da história. No que diz respeito ao purgatório e
ao inferno, sobretudo, prevaleceu uma visão pessimista e marcada pelo medo.

Contudo, o clima de renovação teológica, que se verificou no século XX, ajudou a


recolocar os “novíssimos” no caminho de uma adequada hermenêutica. Vários teólogos se
destacaram nesta tarefa. Citamos Renold Blank, cujo pensamento teológico apresentamos
nesta dissertação. Partindo de uma avaliação crítica dos fatores que empobreceram a
compreensão dos “novíssimos”, ele procura recuperar o sentido original dos mesmos. Para
isso, amplia o horizonte de compreensão a partir do qual pensá-los fundamentando sua
explicação em três conceitos: Jesus Cristo, esperança e Reino de Deus.

Especificamente, Renold Blank tem a preocupação de reler as três categorias à luz


da esperança escatológica, em vista da superação do medo religioso. O centro de sua
reflexão é o amor de Deus que procura sempre a salvação do ser humano. O plano salvífico
de Deus também envolve a história e o universo. Desta forma, purgatório e céu são
momentos de um amplo processo de consumação, que pode ser frustrado pela rejeição
humana ao amor divino (inferno). Renold Blank procura destacar a dimensão sócio-
histórico-cósmica dos “novíssimos”. Isso está em sintonia com a sensibilidade
contemporânea, muita ligada à historicidade do sujeito e à visão holística do mundo.

1
Chamaremos “novíssimos” purgatório, inferno e céu conforme explicação da nota 3, da introdução a seguir.
5

Palavras-chave: Escatologia, Reino de Deus, Jesus Cristo, esperança, Deus, amor,


salvação, morte, ressurreição, purgatório, inferno, céu, novíssimos, processo, história,
liberdade, conversão, perdão, ser humano (mulher, homem, pessoa), dinâmico/dinamismo,
consumação/plenificação.
6

Agradecimentos:

A Deus;
Ao CES, pela qualidade de ensino;
Ao professor Pe. Carlos Palacio, pela
aprovação do projeto desta dissertação;
Ao professor Pe. Geraldo Luiz De Mori, pela
orientação e correção deste trabalho;
Ao Pe. Renato José Lima, que me acolheu na
Paróquia Santo de Afonso, proporcionando-
me condições para o término da dissertação;
Às funcionárias: Dulcinéia, Zita e Leidiane;
À Província Brasileira da Congregação da
Missão.
7

ÍNDICE

Resumo...................................................................................................................................1
Palavras-chave.......................................................................................................................2
Agradecimento.......................................................................................................................3
Introdução..............................................................................................................................9

Capítulo I - Enfoques teológicos que conduziram a uma nova reflexão na


escatologia............................................................................................................................13

1.1. A viragem antropológica.............................................................................................14


Introdução.............................................................................................................................14
1.1.1. Valorização da antropologia na reflexão teológica.....................................................14
1.1.2. A reflexão antropológica no Vaticano II.....................................................................16
1.1.3. A reflexão antropológica na escatologia.....................................................................18
Conclusão..............................................................................................................................21

1.2. Valorização da história................................................................................................21


Introdução.............................................................................................................................21
1.2.1. Perspectiva histórica na reflexão teológica.................................................................22
1.2.2. O horizonte histórico na reflexão do Concílio Vaticano II.........................................24
1.2.3. O horizonte histórico no discurso escatológico..........................................................25
Conclusão..............................................................................................................................28

1.3. Nova hermenêutica bíblica..........................................................................................29


Introdução.............................................................................................................................29
1.3.1. O surgimento de uma nova consciência hermenêutica na teologia.............................30
1.3.2. Nova hermenêutica bíblica: do movimento bíblico ao
Concílio Vaticano II....................................................................................................33
1.3.3. A nova hermenêutica bíblica na escatologia...............................................................36
Conclusão..............................................................................................................................39
8

1.4. Redescoberta do caráter escatológico do cristianismo.............................................40


Introdução.............................................................................................................................40
1.4.1. Pouca ênfase na dimensão escatológica do cristianismo............................................40
1.4.2. A redescoberta da dimensão escatológica do cristianismo.........................................43
1.4.3. A escatologia no Concílio Vaticano II........................................................................45
1.4.4. Noção de escatologia adotada.....................................................................................48
Conclusão..............................................................................................................................51

Capítulo II - Categorias teológicas fundamentais da escatologia


cristã: Jesus Cristo, esperança e Reino de Deus..........................................53

2.1. Jesus Cristo, o Eschaton Logos...................................................................................54


Introdução.............................................................................................................................54
2.1.1. Cristo, acontecimento escatológico operado por Deus...............................................54
2.1.2. Cristo, acontecimento escatológico para a humanidade,
a para história e para o mundo....................................................................................56
a)Cristo, plenitude do ser humano.............................................................................57
b) Cristo, sentido último para a história....................................................................58
c) Cristo e a plenificação do mundo..........................................................................60
2.1.3. Ressurreição de Jesus Cristo: base da esperança escatológica....................................62
Introdução.............................................................................................................................62
a) O caráter escatológico da ressuscitação de Jesus..................................................63
b) Relação mútua entre o Cristo glorioso, os ressuscitados e
as pessoas deste mundo........................................................................................65
c) Ressurreição corporal: valorização da história e do mundo..................................68
d) Ressurreição corporal e plenificação do universo.................................................71
Conclusão..............................................................................................................................73

2.2. A esperança cristã........................................................................................................74


Introdução.............................................................................................................................74
2.2.1. Esperança histórica de Israel: contexto compreensivo
da esperança cristã.......................................................................................................75
9

a) Período pré-monárquico: as promessas de Deus.................................................76


b) Monarquia: perigo de estagnação da esperança..................................................77
c) Teologia escatológica dos profetas do pré-exílio:
Deus age na história.............................................................................................78
d) Exílio: esperança “apesar de tudo”......................................................................79
e) Pós-exílio: apocalíptica.......................................................................................81
f) A esperança no Novo Testamento.......................................................................82
2.2.2. A esperança escatológica é processual, libertadora
e transforma o mundo..................................................................................................84
Conclusão..............................................................................................................................87

2.3. O Reino de Deus...........................................................................................................88


Introdução.............................................................................................................................88
2.3.1. Características do Reino de Deus segundo Jesus Cristo.............................................89
a) O Reino de Deus é preferencialmente para os pobres.........................................92
b) O Reino de Deus é uma realidade escatológica que
modifica o mundo presente.......................................................................................92
c) As antigas profecias sobre o Reino de Deus se concretizam
em Jesus Cristo..........................................................................................................93
2.3.2. Características do Reino de Deus especialmente destacadas
por Renold Blank........................................................................................................93
a) O Reino de Deus é um processo histórico...........................................................94
b) O Reino de Deus tem caráter dialético................................................................95
c) O Reino de Deus tem um caráter escatológico....................................................96
Conclusão..............................................................................................................................97

Capítulo III - Purgatório, inferno e céu segundo Renold Blank...................................100

3.1. Importância da morte no processo escatológico......................................................101


Introdução...........................................................................................................................101
3.1.1. Encontro com Deus na morte....................................................................................102
10

3.1.2. Decisão de fé na morte..............................................................................................107


Conclusão............................................................................................................................110

3.2. O purgatório: oferta de Deus para a conversão, purificação


dolorosa e evolução humana na morte............................................................................111

Introdução...........................................................................................................................111
3.2.1. Perspectivas gerais do tema do purgatório nos livros de Renold Blank...................112
a) Nos livros Viver sem o temor da morte e Nossa vida tem futuro........................113
b) No livro Escatologia da pessoa..........................................................................114
3.2.2. Bases bíblicas e históricas do dogma do purgatório.................................................115
a) Bases bíblicas para a doutrina do purgatório......................................................115
b) Elementos da tradição eclesiástica que determinaram a
doutrina do purgatório.........................................................................................117
3.2.3. Purgatório: oferta de Deus para a conversão, purificação
dolorosa e evolução humana na morte................................................................................119
a) Purgatório como oferta de Deus..........................................................................119
b) Purgatório como conversão.................................................................................120
c) Purgatório como purificação dolorosa................................................................121
d) Purgatório como evolução..................................................................................123
3.2.4. Dimensão social do purgatório: o juízo final............................................................124
Conclusão............................................................................................................................126

3.3. Inferno: o terrível risco da liberdade humana........................................................128


Introdução...........................................................................................................................128
3.3.1. O tema do inferno nos livros de Renold Blank.........................................................129
3.3.2. O inferno na pregação de Jesus e na tradição...........................................................131
a) O inferno na pregação de Jesus...........................................................................131
b) Elementos da tradição da Igreja que determinaram a doutrina sobre o inferno..133
3.3.3. Inferno: risco da liberdade humana...........................................................................135
3.3.4. O amor de Deus diante da possibilidade do inferno.................................................139
11

a) O amor de Deus nos leva a esperar por todos.....................................................141


b) Esperança que leva a superar os infernos deste mundo......................................144
Conclusão............................................................................................................................146

3.4. Céu: destino final do ser humano.............................................................................148


Introdução...........................................................................................................................148
3.4.1. O céu nas obras de Renold Blank.............................................................................149
3.4.2. Céu na Bíblia e na tradição.......................................................................................150
a) Céu na Bíblia.......................................................................................................150
b) Alguns elementos da tradição da Igreja que determinaram a
doutrina sobre o céu............................................................................................152

3.4.3. Características do céu segundo Renold Blank..........................................................155


a) Vida plena...........................................................................................................155
b) Comunhão...........................................................................................................157
c) Realidade dinâmica.............................................................................................158
d) Novo relacionamento com o cosmo....................................................................160
e) Íntima união com Deus.......................................................................................161
Conclusão............................................................................................................................162

Conclusão geral.................................................................................................................164

Bibliografia........................................................................................................................168
12

INTRODUÇÃO

“Fato inegável: a problemática escatológica avança para o proscênio teológico”1. É


importante destacar este caminhar já que, no passado, “em termos de ensino teológico, a
escatologia tinha sido reduzida a mero apêndice da Teologia”2. É em consonância com esta
importância crescente da escatologia que o presente trabalho tratará da tríade constitutiva
da escatologia cristã: purgatório, inferno e céu.

Decidimos estudar este tema porque muitas vezes temos sido interrogados sobre ele
na pastoral. De fato, é um tema que ainda desperta interesse, apesar de não ser bem
compreendido por muitos. Por outro lado, percebemos no meio acadêmico que estes
“novíssimos”3 deveriam receber mais atenção. Falar em purgatório, inferno e céu dá a
impressão, segundo alguns, de tocar em questões secundárias, desinteressantes ou mesmo
polêmicas.

Há algo que nos diz que esses três “novíssimos” andam desacreditados, talvez por
seu conteúdo ter sido apresentado de maneira inadequada. Pretendemos, ao longo destas
páginas, explicar o que ocorreu para que assumissem interpretações contrárias ao sentido
correto. Mostraremos que a visão individualista e a-histórica da escatologia tradicional
sobre purgatório, inferno e céu já não encontra ressonância na mentalidade atual. Sua
compreensão também foi marcada pelo medo, quando fazia referência ao purgatório e ao
inferno, e pela a-historicidade, quando dizia respeito ao céu.

1
J. B. LIBÂNIO; Ma. C. L. BINGEMER, Escatologia cristã. O Novo Céu e a Nova Terra, Petrópolis: Vozes,
1985, p. 19.
2
Ibidem, p. 19.
3
O eixo principal do discurso escatológico na teologia católica, antes do Vaticano II, era a reflexão sobre “as
últimas coisas” que aconteceriam ao homem e ao mundo. Os tratados escatológicos elaborados na escolástica,
a este respeito, revelam uma nítida distinção entre o mundo futuro e a história atual, de um lado; e, de outro, o
mundo novo do futuro. Assim, de novissimis é uma expressão indicativa dessa nova realidade totalmente
diferente que há de vir. As “novas coisas” eram tratadas com um enfoque coletivo (fim do mundo, juízo final
e ressurreição dos mortos) e num prisma individual (de novissimis hominis: morte, juízo particular,
purgatório, inferno e céu). Aqui, quando nos referirmos aos “novíssimos” estaremos falando dos três últimos:
purgatório, inferno e céu. Rigorosamente falando, purgatório não é um novíssimo, mas um estado
intermediário. No entanto, convencionaremos chamar as três realidades escatológicas mencionadas de
“novíssimos”. Este termo aparecerá geralmente entre aspas.
13

Nesta dissertação, procuraremos portanto superar esta compreensão que vigorou


durante muito tempo na escatologia, mas que também está presente de modo marcante
ainda hoje. Tentaremos apresentar uma visão dos “novíssimos” diferente da tradicional. E,
para realizarmos esta tarefa, nos inspiraremos no teólogo Renold Blank. Este teólogo
nasceu na Suíça em 1941. Cursou Literatura, Filosofia e Psicologia na Universidade de
Friburgo. Fez cursos especiais nas Universidades de Montpellier, Dijon e Paris-Sorbona. É
também licenciado em Letras e doutor em Filosofia e Teologia.

Reside no Brasil há vários anos onde leciona no Instituto Teológico São Paulo e
Instituto Pio XI, ambos em São Paulo. Tem livros publicados na Europa e na América
Latina. É um teólogo de referência no Brasil no que diz respeito à escatologia.
Recentemente, contribuiu com a nova coleção Livros Básicos de Teologia (LBT),
escrevendo o livro Esperança além da esperança juntamente com Angela Vilhena. A
coleção foi publicada pelas Paulinas e Ediciones Catequéticas y Litúrgicas (Siquem).

Nosso trabalho divide-se em três capítulos. No primeiro, mostraremos o horizonte


no qual se insere o pensamento do autor que estudaremos. Ou seja, veremos alguns
enfoques teológicos que conduziram a uma nova reflexão escatológica e que marcaram o
pensamento de Renold Blank: a viragem antropológica, a valorização da história, uma nova
hermenêutica bíblica e a redescoberta do caráter escatológico do cristianismo. Este amplo
contexto de renovação teológica influenciou o teólogo suíço, fazendo com que ele
acompanhasse o progresso que se verificou em vários campos da teologia e, de modo
específico, ajudando-o a se aprofundar na área da escatologia. Seus estudos neste campo
produziram resultados críticos e atualizados, como veremos ao apresentarmos sua visão
sobre os “novíssimos”.

No segundo capítulo, exporemos três categorias fundamentais da escatologia cristã,


elencados pelo próprio Renold Blank: Jesus Cristo, a esperança e o Reino de Deus.
Purgatório, inferno e céu não são realidades escatológicas isoladas, mas se relacionam com
tais categorias que conferem aos “novíssimos” seu verdadeiro sentido. De fato, o núcleo da
mensagem de Jesus é uma escatologia ligada à esperança histórica e ao Reino de Deus. A
14

vontade salvadora do Pai, manifestada na ressurreição de seu Filho, é que o homem, sua
história e o cosmo cheguem à plena consumação. Neste sentido, purgatório e céu são
momentos de consumação orientados por Deus. O inferno, ao contrário, significa a
frustração do processo salvífico acarretada pela liberdade humana deturpada.

Finalmente, o terceiro capítulo, o maior e o mais importante deste trabalho, tratará


de modo específico do significado e do alcance teológicos da trilogia purgatório-inferno-
céu na perspectiva de Renold Blank. Perceberemos que o teólogo suíço não propõe uma
reflexão totalmente original sobre esta trilogia. Sua intenção primeira é interpretá-la na
ótica da esperança, que possibilita superar o medo religioso. Para isso, ele se fundamenta
em alguns autores que também percorreram este caminho. Nosso autor elabora, no entanto,
um pensamento próprio. Iniciaremos o capítulo três mostrando a importância da morte no
processo escatológico. Como veremos, a morte tem caráter de definitividade. Este fato se
associa ao que o céu e o inferno produzem no ser humano: um estado irrevogável.

O céu, como consumação positiva e plena, é a resposta de amor ao convite amoroso


de Deus. O inferno, sendo definitividade negativa, é a possibilidade real da não-salvação,
quando o ser humano recusa o amor divino. E o purgatório é o momento intermediário
purificador, que faz com que a pessoa receba a salvação eterna, podendo também ser visto
como aperfeiçoamento na morte guiado pelo amor de Deus. Haveremos de ressaltar ainda,
nesse capítulo, a vontade salvífica universal de Deus em relação ao ser humano, o
dinamismo sócio-histórico e cósmico no qual ela se manifesta e a tensão do “já”-“ainda-
não” em que a salvação situa o homem.

Nas conclusões parciais, após a exposição de cada “novíssimo”, ou a apresentação


de outros assuntos tratados nos capítulos um e dois, teremos uma avaliação crítica do
pensamento do autor. Encerraremos a dissertação com uma breve conclusão apontando
algumas perspectivas que este trabalho nos sugere. Desde já destacamos que um dos frutos
que pretendemos com ele é o aprendizado de uma nova compreensão sobre os
“novíssimos”, baseado em Renold Blank e completado por outros teólogos. Pensamos que
tudo isto nos proporcionará um discurso pastoral mais fiel às intenções bíblicas.
15

A respeito da bibliografia complementar utilizada, reconhecemos que ela é


composta de poucas obras. Tivemos que pesquisar alguns bons teólogos na área da
escatologia. Este estudo foi útil para fazermos comparações com o pensamento de Renold
Blank, ajudando-nos a complementar o que ele pensa e a avaliar criticamente sua reflexão.
Deixamos transparecer bem o ponto de vista de Renold Blank, como pode ser percebido
principalmente nos capítulos dois e três, por isso decidimos recorrer a poucas obras.

A motivação orientadora desta pesquisa é uma melhor compreensão do que vem


sendo discutido nas últimas décadas sobre a escatologia da pessoa. E, mais particularmente,
sobre os “novíssimos”: purgatório, inferno e céu. De modo específico veremos a
contribuição de Renold Blank a esse debate, como já mencionamos acima.

Neste trabalho utilizaremos o método analítico. Ele supõe a leitura e apresentação


das principais questões estudadas ultimamente na área da escatologia da pessoa. Também,
inclui a leitura crítica e a exposição das principais obras de Renold Blank, que tratam
igualmente da escatologia pessoal.

A área em que esta pesquisa se situa é a da teologia sistemática, na linha da


interpretação da tradição cristã no horizonte atual. Além disso, ela está dentro de um
projeto, para 2005, do professor e orientador Dr. Geraldo Luiz De Mori que tem como
objetivo estudar as crenças e representações da morte e do além, no imaginário brasileiro e
na história da escatologioa da pessoa.
16

CAPÍTULO I

1. ENFOQUES TEOLÓGICOS QUE CONDUZIRAM A UMA NOVA REFLEXÃO


NA ESCATOLOGIA

No século XX, a teologia cristã experimentou uma grande renovação1. Com isto, a
escatologia também recebeu impulsos rumo a novas perspectivas. Assim, a pesquisa na área
escatológica produziu bons resultados justamente devido aos novos enfoques teológicos
que estão em sua base. Renold Blank, em sintonia com este clima de renovação, elabora sua
reflexão teológica levando em conta os avanços que a teologia vem adquirindo nos últimos
tempos. Isto pode ser constatado em sua obra de específico cunho escatológico2.

A seguir, explanaremos quatro enfoques teológicos que conduziram a uma nova


reflexão na escatologia: a viragem antropológica, a valorização da história, a nova
hermenêutica bíblica e a redescoberta do caráter escatológico do cristianismo. Certamente,
poderíamos apontar outros elementos significativos que contribuíram para a renovação do
discurso escatológico. Centraremos, porém, nossa atenção nos quatro enfoques acima, pois
são citados explicitamente por Renold Blank em seus escritos, que são o objeto desta
pesquisa, ou estão subjacentes ao seu pensamento escatológico.

Neste capítulo, apresentaremos em linhas gerais o horizonte que nos ajuda a


compreender o pensamento escatológico de Renold Blank. Não elaboramos a primeira parte
desta dissertação baseando-nos prioritariamente nas obras do teólogo suíço. Recorremos a
autores que tratam dos quatro enfoques teológicos assinalados, começando por mostrar
como eles emergiram na reflexão da teologia. A seguir, veremos como o Concílio Vaticano
II, baliza teológico-pastoral da Igreja Católica nas últimas décadas, acolheu as

1
Veja por exemplo o livro de Rosino Gibellini que descreve as principais correntes teológicas do século XX:
GIBELLINI, R., A teologia do século XX, São Paulo: Loyola, 1998.
2
Citamos os seguintes livros de Renold Blank que constituem a bibliografia principal deste trabalho: Viver
sem o temor da morte, São Paulo: Paulinas, 1984; Nossa vida tem futuro. Escatologia cristã 1, São Paulo:
Paulinas, 1991; Nosso mundo tem futuro. Escatologia cristã 2, São Paulo: Paulinas, 1993; Esperança que
vence o temor. O medo religioso dos cristãos e sua superação, São Paulo: Paulinas, 1995; Escatologia da
pessoa. Vida, morte e ressurreição (Escatologia I), São Paulo: Paulus, 2000 e Escatologia do mundo. O
projeto cósmico de Deus (Escatologia II), São Paulo: Paulus, 2002.
17

contribuições teológicas em seus ensinamentos. Finalmente, perceberemos como os novos


enfoques teológicos ajudaram a redimensionar o discurso escatológico e, neste último item,
procuremos enfatizar a reflexão de Renold Blank sobre o assunto tratado.

1.1. A viragem antropológica

Introdução

Uma das características do mundo moderno é o advento da subjetividade. De fato,


vivemos numa cultura marcadamente antropocêntrica e afirmadora da autonomia humana.
Este contexto influenciou a reflexão teológica, que passou a valorizar a responsabilidade do
ser humano no acolhimento da revelação.

O Concílio Vaticano II demonstrou uma maior sensibilidade diante dos problemas e


interrogações do homem hodierno. E, neste sentido, elaborou uma positiva doutrina
antropológica. Ela está presente também na renovação da escatologia que destaca, entre
outros aspectos, o caráter unitário do ser humano.

1.1.1. Valorização da antropologia na reflexão teológica

Na teologia católica, a assunção de uma perspectiva antropológica teve seu começo


no princípio do século XX. O processo iniciou-se, precisamente, com a controvérsia
modernista. O modernismo significou a entrada da razão moderna na pesquisa teológica da
Igreja Católica, de modo que esta passou a utilizar o método histórico-crítico.

Em 1902, Alfred Loisy, representante polêmico do modernismo no seio do


catolicismo, publicou Evangelho e a Igreja criticando o teólogo evangélico Adolf Harnack
por ter reduzido o cristianismo a uma essência abstrata. Loisy, ao invés, procurou mostrar a
historicidade do cristianismo. A esta polêmica antiprotestante, segue-se uma querela restrita
18

ao âmbito católico por ocasião da segunda edição do livro de Loisy. E isto desencadeou a
crise modernista3.

O modernismo levantou um problema real ao perceber a ruptura entre teologia e


vida. Graças ao trabalho dos jesuítas da escola teológica de Lyon-Fourvière, iniciou-se,
porém, a partir da década de 1930, um trabalho para a necessária renovação do pensamento
cristão. As diretrizes para atingir este objetivo eram as seguintes: volta às fontes (Bíblia,
Padres da Igreja e liturgia), contato com as correntes do pensamento contemporâneo e com
a vida. Também a escola de teologia Le Saulchoir, dirigida pelos dominicanos, foi decisiva
no processo de reforma do pensamento católico levando ao surgimento da chamada
nouvelle théologie4. Esses teólogos queriam superar a teologia escolástica que não
conseguia mais dar respostas satisfatórias aos novos tempos.

A encíclica Humani generis (1950), de Pio XII, dispersou o grupo de teólogos que
estavam envolvidos na renovação teológica que se seguiu à crise modernista. No entanto, o
pontificado de João XXIII (1958-1963) vai mudar a situação. Apesar das adversidades e

3
Cf. R. GIBELLINI, A teologia do século XX, op. cit., pp. 154-157. Segundo o teólogo Paulo Sérgio Lopes
Gonçalves, “a crise modernista foi um período em que o magistério eclesiástico assumiu uma posição
contrária ao movimento de renovação na Igreja como forma de adaptação às exigências modernas. Três
grupos entram em cena nesse contexto de crise: um de direita conservadora intransigente, que rechaçou
qualquer adaptação; um de centro-esquerda, que admitiu a legitimidade e a necessidade de reformas –
profundas ou não – das maneiras tradicionais de viver e pensar; um de extrema esquerda, cuja crítica
demonstra disposição em contestar as imposições do magistério, incluindo as questões relativas à revelação
sobrenatural e à tradição. O magistério eclesiástico pronunciou-se agudamente contrário ao terceiro grupo e,
às vezes, ao segundo” (P. S. L. GONÇALVES; V. I. BOMBONATT0 (Org.), Concílio Vaticano II. Análise e
prospectivas, São Paulo: Paulinas, 2004, p. 71, nota 5).
4
Cf. R. GIBELLINI, A teologia do século, op. cit., pp. 164-170. De acordo com o teólogo Paulo Sérgio, supra
citado: “A nouvelle théologie é um movimento teológico desenvolvido em duas escolas teológicas, a de Lião-
Fourvière, dos jesuítas – Henri De Lubac e Jean Daniélou – e a de Saulchoir, dos dominicanos – Marie
Dominique Chenu e Yves Congar. Esse movimento articulou a fé com a história e desenvolveu uma
verdadeira teologia da história, redescobrindo a tradição cristã, relendo a revelação em seu dinamismo
histórico renovando integralmente a metodologia teológica ao sair da via dedutiva e ao enveredar pela via
indutiva de produção teológica” (P. S. L. GONÇALVES; V. I. BOMBONATT0 (Org.), Concílio Vaticano II,
op. cit., p. 72, nota 10).
No período da escolástica (século IX ao XV), a teologia era ensinada nas universidades (escolas) por
mestres chamados “escolásticos”. Nas universidades havia influência de outras ciências sobre a doutrina
cristã. A teologia escolástica se destacava pelo interesse especulativo, notadamente pelo seu método de
análise crítica e raciocínio dialético. As verdades dogmáticas eram formuladas em teses, provadas com
passagens bíblicas, dos Padres, de concílios e teólogos de renome. Real perigo da escolástica era o
enclausuramento da verdade em “fórmulas fechadas”, podendo bloquear o desenvolvimento da reflexão
teológica e tornar-se arma de combate a adversários da ortodoxia dentro e fora da Igreja. Este perigo
concretizou-se com a neo-escolática, que recebeu fortes críticas do modernismo.
19

das resistências, as forças da mudança estavam ativas: renovação da eclesiologia (Yves


Congar); teologia das realidades terrestres (Jean Daniélou e Marie-Dominique Chenu);
nova atitude diante do mundo (Pierre Teilhard de Chardin); nova fronteira do ecumenismo
(Hans Küng); reviravolta antropológica (Karl Rahner)5.

Karl Rahner, tendo consciência de que a teologia é “fé solidária com o tempo”
(Marie-Dominique Chenu), foi o protagonista da reviravolta antropológica na teologia
católica. Inicia seu projeto analisando a situação cultural e teológica de sua época que,
segundo ele, é caracterizada pelos elementos: secularismo, mundo pluralista, dificuldade de
se fazer sínteses nos vários campos do saber e endurecimento dos conceitos teológicos.

Estas características dos novos tempos geram a moderna crise de fé. Para enfrentá-
la, Karl Rahner introduz um novo método em teologia. Trata-se do método antropológico,
também chamado de método antropológico-transcendental. Segundo este método, é preciso
uma abordagem que parta da experiência pessoal do ser humano e se interrogue sobre a
maneira como a verdade cristã pode corresponder a ela6. Ou seja, Karl Rahner quer mostrar
que para cada ponto doutrinal existe um correspondente motivo antropológico7. A teologia
de Karl Rahner representa vigorosa contribuição no âmbito da reflexão católica. O
Vaticano II assumiu oficialmente a perspectiva antropológica em muito de seus
ensinamentos.

1.1.2. A reflexão antropológica no Vaticano II

O Concílio Vaticano II representou uma verdadeira riqueza para a Igreja, mas que
ainda não foi completamente assimilada pelos católicos. Dentre as diversas questões
cruciais que abordou está o problema antropológico. Diante dele, o Concílio oficializa um
novo paradigma para pensar Deus: o antropológico. O discurso teológico implica falar

5
Cf. R. GIBELLINI, A teologia do século XX, op. cit., pp. 173s.
6
Cf. Ibidem, pp. 223-237.
7
No transcendentalismo de Karl Rahner, Hans Urs von Balthasar denuncia uma “antropologização” do
cristianismo (cf. R. GIBELLINI, A teologia do século XX, op. cit., p. 237). Há diferença de enfoque entre a
obra teológica de Rahner e a Balthasar: se o pensamento rahneriano é uma antropologia teológica, o de
Balthasar é trinitário.
20

sobre o ser humano, uma vez que Deus se revelou como Deus a seres humanos e só
podemos compreendê-lo a partir da experiência humana e na linguagem humana8.

Entendemos melhor a valorização da antropologia, por parte do Concílio, situando-o


no conjunto do movimento de renovação teológica ocorrido na primeira metade do século
XX. Dentre vários movimentos, citamos os principais: o patrístico e o teológico (já
evocados acima), e o bíblico (do qual falaremos mais à frente). É importante lembrar
também o contexto da época em que o Concílio ocorreu.

Na década de 1960, a Europa vivia uma euforia de crescimento econômico. E o


clima era de otimismo por causa do desenvolvimento observado em vários setores da vida
humana. No entanto, no seu conjunto, o século XX foi marcado por pessimismo e
desencanto. O Concílio, atento a todo este cenário, propiciou à Igreja uma maior
sensibilidade diante das angústias do homem contemporâneo, colocando-a diante do
desafio de ser um sinal eficaz de salvação no mundo.

O Concílio apresenta o problema soteriológico como realidade humana. O ser


humano necessita ser salvo por causa da própria condição antropológica na qual se
encontra, que é marcada pela fragilidade e pelo limite. A questão salvífica está ligada ao
sentido da vida: “Aquilo que não tem sentido é vivido como tragédia, como mal; é
rejeitado, evitado ou, simplesmente, ignorado”9. O problema da salvação é, portanto,
antropológico. Trata-se de pensar como a salvação do ser humano ocorre concretamente,
com o auxílio da Igreja, em uma história marcada por injustiças e sofrimentos.

A antropologia conciliar não se encontra de forma isolada em alguns de seus


documentos. Segundo o teólogo Luiz Carlos Susin10, a antropologia do Concílio Vaticano II
poderia ser chamada de antropologia pastoral e ecumênica11. Desde o primeiro documento,
a Sacrosanctum concilium, até o último, a Gaudium et spes, o Vaticano II apresenta acentos
8
Cf. P. S. L. GONÇALVES; V. I. BOMBONATTO (Org.), Concílio Vaticano II, op. cit., p. 196.
9
Ibidem, p. 210.
10
Luiz Carlos Susin contribuiu na elaboração do livro Concílio Vaticano II. Análise e prospectivas, citado
acima, com o artigo “Para conhecer Deus é necessário conhecer o homem”. Antropologia teológica conciliar
e seus desdobramentos na realidade brasileira, pp. 369-388.
11
Cf. P. S. L. GONÇALVES; V. I. BOMBONATTO (Org.), Concílio Vaticano II, op. cit., p. 376.
21

claramente antropológicos que são melhores percebidos no conjunto dos seus dezesseis
documentos.

De modo especial, a Gaudim et spes, possivelmente o mais ilustrativo nesse sentido,


apresenta uma verdadeira reviravolta de ordem antropológica: a mudança do
eclesiocentrismo em favor de um antropocentrismo:

“É a pessoa humana que deve ser salva. É a sociedade humana que deve ser renovada. É,
portanto, o homem considerado em sua unidade e totalidade, corpo e alma, coração e consciência,
inteligência e vontade, que será o eixo de toda a nossa explanação (...), proclamando a vocação
altíssima do homem e afirmando existir nele uma semente divina” (GS, no 3).

A partir deste último documento se entende melhor os anteriores; pois, o caminho


percorrido pelo Concílio se esclarece no final do percurso empreendido. A antropologia da
Gaudium et spes revela de modo mais explícito a orientação antropológica de todo o
Concílio. Trata-se de uma antropologia otimista, quase maximalista12.

A influência desta antropologia teológica também se fez sentir no âmbito da


escatologia. A partir do aparecimento do novo enfoque antropológico, o edifício da
escatologia se estruturou sobre nova base e se desenvolveu em outras direções.

1.1.3. A reflexão antropológica na escatologia

O Concílio Vaticano II destaca, em sua doutrina antropológica, o caráter unitário do


ser humano13. Baseado nisto, o novo discurso escatológico, que vem sendo elaborado nos
últimos tempos, procura superar o modelo dualista. Este, também chamado de modelo
antropológico binário, tem raízes numa cultura alheia à da Bíblia. Sua origem remonta à
“Religião Órfica da Trácia”, na Grécia antiga (século VII a.C)14.

12
Cf. Ibidem, p. 381.
13
Exemplos de textos significativos a este respeito: “É a pessoa humana que deve ser salva (...). É, portanto, o
homem considerado em sua unidade e totalidade” (GS, n o 3). “O homem, ser uno, composto de corpo e alma,
sintetiza em si mesmo (...) os elementos do mundo material” (GS, n o 14). Neste trabalho, as citações do
Concílio são extraídas de: Documentos do Concílio Ecumênico Vaticano II, São Paulo: Paulus, 2001.
14
Cf. R. J. BLANK, Escatologia da pessoa, op. cit., pp. 91-95. Nestas páginas, Renold Blank explica o
desenvolvimento histórico do modelo dualista-binário.
22

O modelo dualista-binário foi assimilado pelo pitagorismo (século VI a.C.), escola


filosófica que se baseia nos ensinamentos do pensador grego Pitágoras (570 a. C. a 496 a.
C.). Devido à sua concepção espiritualista do homem, que é essencialmente alma, este
filósofo propõe um código moral bastante rigoroso. A virtude é o meio mais eficaz de
purificação da alma. No entanto, segundo Pitágoras, esta purificação continua através de
uma série de reencarnações.

Esta concepção também foi ensinada por Platão (século IV a.C.), que chegou a
sistematizar filosoficamente tal doutrina. A filosofia platônica se caracteriza pela afirmação
de um mundo das idéias transcendentes contraposto ao mundo sensível. Segundo o
platonismo, a alma é espiritual, preexistente ao corpo, de origem divina e eterna. O corpo,
por sua vez, é material, sem valor e transitório.

Nesta mesma linha de pensamento está o sistema do neoplatonismo (século II ), que


é uma doutrina filosófica surgida em Alexandria do Egito com Amônio Saca e cujo filósofo
de destaque é Plotino. O sistema neoplatônico procura realizar uma síntese entre o
pensamento religioso pagão-oriental e o de Platão. Acentua o dualismo platônico entre
sensível e inteligível, entre matéria e espírito, entre mundo e Deus.

O gnosticismo, ou gnose (séculos II a IV), foi um movimento filosófico-religioso


que, no princípio do cristianismo, espalhou-se no mundo helênico (mundo cultural
sincretista dominante no Oriente médio e na bacia do Mediterrâneo; o helenismo possui
elementos gregos e orientais). Sua doutrina era muito dualista, vendo a matéria como uma
degradação. Situava o ideal de vida na existência como espírito puro. Pregava, por isso,
uma espiritualidade de “fuga do mundo”.

O gnosticismo entrou em debate com o cristianismo. A polêmica ocorreu devido às


seguintes posições gnósticas, que o cristianismo não aceitava: o corpo não possui nenhum
significado religioso-ético; a existência humana concreta não tem valor; não existe
ressurreição corporal; somente a alma é importante. Na disputa com a gnose, o cristianismo
primitivo acabou sofrendo influências das concepções dualistas helênicas, veiculadas pelo
23

gnosticismo. Mesmo acentuando, contra a gnose, a ressurreição do corpo, o cristianismo


aceitou a primazia da alma. Isto é destacado, por exemplo, por Agostinho (séculos IV e V),
cujas idéias influenciaram várias gerações de cristãos.

Na escolástica (séculos IX a XV), a influência do modelo dualista-binário helênico


continua. Porém, a primazia da unidade do ser humano permanece. A alma é considerada
uma parte da pessoa; a sobrevivência da alma após a morte ainda não significa a felicidade
completa. Tomás de Aquino (século XIII), um dos maiores representantes da escolástica,
utiliza a antropologia de Aristóteles para defender a unidade do homem: corpo e alma são
dois aspectos de um só indivíduo.

Esta intuição de Tomás está presente na antropologia teológica atual. Os estudos


contemporâneos afirmam que não é possível sustentar o modelo dualista que considera o
corpo e a alma como realidades independentes. Ou seja, a pessoa não tem uma alma, como
entidade separada, em oposição ao seu corpo. Tampouco possui um corpo que se
movimenta de maneira mecânica. Ambas as idéias são abstrações; pois, o que existe é a
unidade humana15. Ao defender esta unidade, a antropologia contemporânea se aproxima da
concepção da Sagrada Escritura. O pensamento bíblico manteve sempre a convicção de que
o ser humano é unitário e jamais pode ser dividido em dois princípios separados, o corpo e
a alma16.

A adoção do modelo antropológico unitário, na escatologia contemporânea,


significou redescobrir caminhos já trilhados pela reflexão da escatologia tradicional. Na
verdade, o modelo dualista deveria ser visto apenas como uma chave hermenêutica para
explicar os conteúdos da fé cristã. Um erro da teologia tradicional, segundo Renold Blank,
foi identificar a chave com o conteúdo por ela expresso. De acordo com o teólogo suíço, a
escatologia clássica, ao privilegiar o modelo dual, não valorizou devidamente o homem e
suas condições históricas de vida. Ela se deparou com vários problemas de ordem

15
Cf. R. J. BLANK, Nossa vida tem futuro, op. cit., p. 65.
16
Cf. R. J. BLANK, Escatologia da pessoa, op. cit., pp. 83-87 onde o autor faz uma boa síntese, em forma de
esquema, sobre “o homem dentro da antropologia bíblica” e “o corpo na tradição bíblica”.
24

teológica, posteriormente superados pela reflexão fundamentada numa antropologia


unitária17.

Conclusão

No século XX, a teologia católica experimentou um grande desenvolvimento


teológico, sobretudo no âmbito da antropologia. Isto, por sua vez, determinou os rumos de
um novo pensar no campo da escatologia, que enfatiza a liberdade responsável do humano,
sua unidade indissolúvel, bem como as condições concretas de sua existência. O homem e a
mulher se realizam e encontram sua salvação numa história a ser plenificada por Deus. Esta
visão, como veremos no capítulo três, restitui o caráter histórico e dinâmico aos
“novíssimos”.

Esta reviravolta antropológica foi impulsionada principalmente por Karl Rahner.


Este teólogo mostrou que o homem, como espírito no mundo, é o ouvinte de uma possível
revelação de Deus, sendo concebido como o ente que só se realiza na história18.
Antropologia e história estão relacionadas. A perspectiva antropológica na teologia se
desenvolveu na medida em que também se valorizou a história, tema que será tratado a
seguir.

1.2. Valorização da história

Introdução

A salvação trazida por Jesus Cristo continua na história, como demonstração da


soberania de Deus. Apesar de, durante muito tempo, o caráter histórico do cristianismo ter
enfraquecido, vê-se hoje a necessidade de a teologia incidir eficazmente na história. Esta, à
semelhança do testemunho bíblico, é atualmente valorizada como lugar salvífico.
17
A título de exemplo, citamos alguns questionamentos colocados à escatologia tradicional: uma alma sem
corpo pode ser feliz? É possível uma alma, sozinha, aguardar na eternidade a ressurreição do corpo? Outros
problemas serão apresentados no decorrer deste trabalho, no devido momento em que for necessário tratar
deles.
18
Karl Rahner mostra isto em O Ouvinte da Palavra (1941). A obra desenvolve as linhas de uma filosofia da
religião numa perspectiva teológica, como antropologia teológica fundamental.
25

Entendemos história como “palco” onde acontecem as ações humanas e o sentido geral
dado a tais ações, que leva a pensar num telos, numa direção e num significado.

A escatologia se relaciona com a história porque quer ser o significado radical da


mesma. Foi nesse sentido que ela foi redescoberta em conexão última com a valorização da
história. História e escatologia são duas noções fundamentais para se compreender o
pensamento nos últimos dois séculos. De modo especial, percebe-se a importância destes
conceitos na reflexão teológica.

Como dissemos, história e escatologia se preocupam com o sentido: este elemento


relaciona intimamente estas duas noções. De fato, a história tem sentido e possui uma
direção, não sendo fruto do acaso. Para o cristianismo, o sentido da história é a salvação em
Cristo. A escatologia mostra isso e, além do mais, ela ajuda a compreender a história e
serve de crítica a esta última.

O Vaticano II, indo nesta direção, valoriza as realidades terrestres e procura articular
corretamente as categorias “salvação” e “história”. Esta perspectiva histórica também está
presente na escatologia que, deixando de refletir apenas sobre os “últimos acontecimentos”,
chama a atenção para a história, palco da atuação humana e realidade a ser plenificada por
Deus.

1.2.1. Perspectiva histórica na reflexão teológica

A recuperação da história era a nova tarefa confiada à teologia depois da segunda


guerra mundial. Após a tragédia bélica, o grande questionamento era o sentido da história
da humanidade. Várias reflexões surgiram a este respeito. Destaca-se, no campo
protestante, a do teólogo Oscar Cullmann no livro Cristo e o tempo (1946). A finalidade de
sua obra era a de encontrar o elemento central da mensagem cristã que, segundo ele, é o
seguinte: Deus se revela numa história da salvação. Os acontecimentos salvíficos se
desenrolam na história dando-lhe significado. Desenvolvendo sua teologia da história da
26

salvação, Cullmann afirma que a história salvífica não é uma história ao lado da história da
humanidade, mas transcorre na história e faz parte dela19.

O catolicismo sentiu a repercussão da teologia de Cullmann. Tal influência foi


benéfica para a teologia católica, já que esta perdera a dimensão histórica da fé cristã por
causa da neo-escolástica. Esta constatação é feita, sobretudo, por Jean Daniélou. Ele critica
a neo-escolástica por negligenciar o sentido histórico, aspecto presente na patrística e no
pensamento moderno.

A teologia católica, no que diz respeito ao tema “história e teologia”, perguntava se


havia continuidade ou descontinuidade entre progresso humano e Reino de Deus. O teólogo
Léopold Malevez, em 1949, percebeu duas posições distintas com relação a isso. A da
“teologia escatológica”, que afirmava a descontinuidade entre progresso humano e Reino
de Deus, a da “teologia encarnacionista”, que defendia uma continuidade entre os esforços
humanos e o Reino de Deus20.

A maioria dos teólogos católicos tendia para o encarnacionismo. Entre eles, notável
foi a contribuição de Gustave Thils que elaborou a obra Teologia das realidades terrenas.
Segundo ele, as realidades históricas são as sociedades humanas, a cultura e a civilização.
A valorização destas realidades leva a concluir que o cristianismo é escatológico, mas não
escatologista e, portanto, não comporta uma visão negativa e pessimista dos valores
terrenos21.

O maior representante católico do encarnacionismo foi o jesuíta Pierre Teilhard de


Chardin. Em suas obras, ele mostra a convergência entre Reino de Deus e esforço humano.
O Vaticano II, ao tratar das relações entre Igreja e mundo, deu orientações que poderiam
ser definidas como moderado encarnacionismo. Veremos, agora, como a perspectiva
histórica foi assimilada em seus ensinamentos.

19
Cf. R. GIBELLINI, A teologia do século XX, op. cit. pp. 255- 261.
20
Cf. Ibidem, p. 263.
21
Cf. Ibidem, pp. 265-267.
27

1.2.2. O horizonte histórico na reflexão do Concílio Vaticano II

O Vaticano II tem uma postura otimista e positiva com relação ao mundo. Ele se
mostra receptivo à história e às realidades terrenas, declarando que é vontade de Deus
respeitar a autonomia destas realidades:

“É preciso defender a todo o custo a autonomia das realidades terrenas, quando por
autonomia se entende que as coisas criadas e as sociedades têm o direito de ser encaradas em si
mesmas e de se organizar com seus valores e suas próprias leis, que se vão aos poucos descobrindo,
explicitando e aplicando. É uma exigência atual e legítima, que está de acordo com a vontade do
Criador” (GS, no 36).

Deus se revela na história e isto é testemunhado pelas Escrituras. Elas mostram que
é em meio à trama da história, conflitiva, marcada pela provisoriedade e pela contingência,
que o ser humano é solicitado a fazer a experiência de Deus. O homem percebe-se
necessitado de salvação. Por isso, é aberto ao futuro, ao progresso e à possibilidade de
experienciar o Divino, que propõe salvá-lo. Com esta linha de pensamento, o Concílio
afirma que a salvação acontece na história, mas não apenas pela história, mas sim devido à
ação amorosa de Deus22.

A teologia da história desenvolvida pelo Vaticano II é de orientação encarnacionista


porque valoriza a encarnação de Jesus. Baseando-se nesta verdade, dogma fundamental do
cristianismo, esclarece-se que a salvação não é algo ilusório ou mítico. Ela acontece na
história humana, onde se desenvolve o projeto salvífico de Deus. Jesus, ao fazer-se homem
inserido na história, assume plenamente a condição humana.

A salvação atinge a pessoa concreta, em sua totalidade, abrangendo as dimensões


política, econômica e social. Supera-se, assim, uma compreensão soteriológica meramente
individual e metafísica23. A encarnação pede que se valorize o contexto histórico em que o
homem e a mulher vivem. Já que o mundo é lugar de salvação, as preocupações e os

22
Cf. P. S. L. GONÇALVES; V. I. BOMBONATTO (Org.), Concílio Vaticano II, op. cit. p. 210.
23
Cf. Ibidem, pp. 212s.
28

problemas da humanidade são também preocupações e problemas da Igreja24, que está no


mundo para servi-lo e ser um sacramento salvífico no meio dele.

A teologia da encarnação desenvolvida pelo Concílio é uma crítica à cristandade


que subordina as realidades terrenas à dimensão religiosa. O Vaticano II articula
adequadamente o relacionamento entre fé e história, de modo que o aspecto religioso não
domine sobre as realidades terrenas. Estas são dotadas de consistência, bondade e verdade,
e possuem suas leis numa ordem que lhes é intrínseca (cf. GS, n o 36). Partindo do humano e
do histórico para se compreender e alcançar o divino, a teologia é vista pelo Concílio como
uma interpretação da história25.

A entrada da perspectiva histórica na teologia fez com que a área escatológica


sofresse uma guinada; pois, a partir deste enfoque, a escatologia recuperou seu caráter
dinâmico e transformar.

1.2.3. O horizonte histórico no discurso escatológico

Na visão escatológica de Israel, este mundo e esta história são o campo da ação
salvífica de Deus. É neste mundo e no processo histórico que o ser humano encontra a
graça divina que salva. Também foi dentro de uma perspectiva histórica que Jesus atuou
pregando o Reino de Deus. No entanto, o sentido da história foi enfraquecendo-se no
decorrer do tempo devido, em parte, à helenização da linguagem teológica. Isso causou a
perda da dimensão histórico-salvífica, própria dos textos bíblicos. A teologia, abandonando
esta dimensão, adotou categorias abstratas e distanciadas da realidade.

Ainda na patrística, a reflexão escatológica acentuava a dimensão coletiva e


histórica. Mas, durante anos, na teologia católica e protestante, o eixo principal do discurso
escatológico esteve centrado na reflexão sobre as “últimas coisas”, deslocando a atenção
para aspectos individuais da escatologia. Da escolástica até o princípio do século XX, o
24
Diz o Concílio: “As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos
pobres e de todos os que sofrem, são também as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo; e não há
realidade alguma verdadeiramente humana que não encontre eco no seu coração” (GS, no 1).
25
Cf. P. S. L. GONÇALVES; V. I. BOMBONATTO (Org.), Concílio Vaticano II, op. cit. p. 216.
29

enfoque básico permanece marcado pelo pessimismo diante da história e do mundo 26, e isto
influenciou a compreensão dos “novíssimos”, como veremos no capítulo três.

A recuperação da dimensão histórica da escatologia ocorreu, primeiramente, na


teologia protestante, embora com um enfoque pessimista, mas que aos poucos foi sendo
superado. Os teólogos Johannes Weiss, acentuando a dimensão histórica do Reino de Deus,
e Rudolf Bultmann, destacando a decisão humana, muito contribuíram neste processo de
“recuperação” da dimensão histórica da escatologia27.

Fora do campo especificamente teológico, outros fatores serviram de


questionamento para que a escatologia repensasse suas posições. De acordo com Renold
Blank, citamos os seguintes:

a) O fracasso de projetos históricos e sociais: a perda de grandes utopias28. Vários


projetos utópicos, que impulsionaram gerações até a segunda metade do século XX
entraram em colapso; por exemplo, o Socialismo, que entrou em crise de identidade, e os
ideais do Iluminismo, que se evaporaram na propaganda de sistemas totalitários. As utopias
são fonte de esperança. A ruína delas faz o mundo afundar em crises de sentido cada vez
mais profundas;

b) As novas descobertas científicas, principalmente ao longo do século XX,


conduziram a um interesse renovado pelo futuro29. Este se tornou campo de previsões e de
pesquisas científicas. Trata-se de um futuro marcado por angústias e indagações: será que a
26
Cf. R. J. BLANK, Escatologia do mundo, op. cit., pp. 79-81.
27
Cf. Ibidem, pp. 88s.
28
Cf. Ibidem, p. 89. De acordo com a definição de Fierro, citada por Renold Blank, utopia é “uma imagem
estimulante e propulsora da ação, que sugere alternativas históricas muito diferentes das atualmente dadas e
que se baseia na valorização do homem e de sua felicidade coletiva” (A. Fierro, O evangelho beligerante,
apud R. J. BLANK, ibidem, p. 262). Sobre o mesmo tema, Medard Kehl diz que, quanto à utopia cristã, ela se
move entre dois pólos. Por um lado, o passado e o presente são realidades já salvas em virtude da criação e da
autocomunicação de Deus, e não uma realidade perdida que deve ser rechaçada. Por outro lado, a utopia cristã
aponta para um futuro transcendente, supra-histórico, superador de morte: a ressurreição dos mortos no Reino
de Deus definitivo, que é um acontecimento além da manipulabilidade e da mutabilidade. Além disso, “outra
característica da utopia cristã consiste em mover-se, como toda utopia, entre os pólos da esperança e da
atividade. Mas, ela vive desta esperança (escatológica) que transfere o já alcançado a novos objetivos e nunca
pode satisfazer-se em nível intra-histórico, porque transcende radicalmente as possibilidades humanas” (M.
KEHL. Escatologia, Salamanca: Sigueme, 1992, p. 172s).
29
Cf. R. J. BLANK, Escatologia do mundo, op. cit., pp. 90-92.
30

terra tem futuro apesar dos desastres ecológicos? Será que poderemos superar as injustiças,
a fome, a guerra, a exclusão social e econômica? Será que a vida tem sentido, apesar das
experiências de fracasso, de doença e de morte? Diante de um quadro tão complexo, a
escatologia tenta dar respostas aos questionamentos dos homens a partir de uma base
bíblica de esperança;

c) As novas reflexões filosóficas que procuraram valorizar a história e o ser


humano30. Sólidas bases filosóficas ajudaram a superar uma escatologia alienante. Citamos,
por exemplo, a contribuição de Maurice Blondel, o qual mostra como na natureza humana
há uma “vontade querente” que impulsiona para a busca do infinito, e Ernst Bloch, filósofo
marxista, autor do famoso livro Princípio esperança. Segundo Ernst Bloch, a realização do
mundo e do homem contém caráter de promessa e horizontes de possibilidades. A
esperança é intrínseca a este mundo e impulsiona o homem a criar o reino. Um reino sem
Deus, mas que nem por isso deixa de ser uma utopia na história. Reflexões filosóficas como
estas formaram o pano de fundo para novas formulações do discurso escatológico.

Este contexto influenciou a teologia católica que passou a adotar uma visão mais
otimista e dinâmica com relação à escatologia. Isto aconteceu quando ela começou a
dialogar com o mundo moderno, deixando-se questionar por seus desafios e buscando dar-
lhes soluções. Vários teólogos se empenharam nessa direção; por exemplo, Karl Rahner e
Pierre Teilhard de Chardin. A nova postura foi assumida pelo Vaticano II, como já vimos.
Mas cabe citar aqui uma passagem em que o Concílio mostra a relação entre escatologia e
história:

“A esperança de uma nova terra, longe de atenuar, antes deve impulsionar a


solicitude pelo aperfeiçoamento desta terra (...). Por isso, ainda que o progresso terreno deva
ser cuidadosamente distinguido do aumento do Reino de Deus, contudo é de grande
interesse para o Reino de Deus, à medida que pode contribuir para organizar a sociedade
humana” (GS, no 39).

30
Cf. Ibidem, pp. 108s.
31

Percebe-se, cada vez mais, que o discurso escatológico é impossível sem a dimensão
histórica. Deus dirige sua palavra a pessoas concretas e em situações reais. Jesus, por
exemplo, ao pregar o Reino de Deus mostrou-o em íntima conexão com a história. É a
partir deste pressuposto que podemos formular uma interligação entre história e
escatologia31. A história caminha rumo a uma plenificação. Por causa disso, podemos ter
esperança. Baseada nesta convicção, a nova escatologia acentua a dinâmica da esperança
que incentiva o agir dentro da história32.

Este horizonte rompe com a perspectiva do discurso tradicional que, geralmente,


falava do além e do fim do mundo, desviando a atenção dos problemas históricos e atuais.
Um certo desprezo pelo mundo conduzia à alienação, pois esvaziava toda crítica e toda
tendência revolucionária: como este mundo não tem valor, o que interessava era apenas o
céu, que era compreendido a-historicamente. Em alguns casos, esse tipo de visão, ao invés
de provocar esperança, enchia as pessoas de medo e pessimismo33, sobretudo com seu
modo de apresentar o purgatório e o inferno.

Conclusão

A valorização da história e das realidades terrenas contrasta com a atitude de


desprezo pelo mundo, presente durante séculos no cristianismo. O mundo, que fora
considerado lugar de perdição, é visto pela teologia atual como lugar da manifestação de
Deus. Esta idéia está presente na Bíblia, sobretudo na pregação e na atuação de Jesus que
ensina a historicidade do Reino, já presente no meio de nós.

Deixando-se iluminar pela Escritura, em especial pela encarnação de Jesus, a


teologia redescobre a importância da dimensão histórica da fé. E, reconhecendo a existência
do pecado na trama histórica, prega uma espiritualidade encarnacionista. Só assim, o
mundo pode ser transformado conforme o projeto salvífico do Criador, revelado

31
Cf. Ibidem, pp. 128-130.
32
Cf. Ibidem, pp. 131s.
33
Cf. Ibidem, p. 91.
32

plenamente em Cristo. Ao encarnar-se, Deus assume a contingência humana e o mundo,


dando-lhes sentido.

A escatologia, que outrora ajudou a consolidar uma imagem negativa do mundo,


atualmente está empenhada em elaborar uma mensagem de esperança. Segundo a nova
concepção escatológica, o mundo tem futuro em Deus, pois foi livremente criado por seu
amor. Deus, com o ato da criação, estabelece uma relação constitutiva com a criatura. E, em
contrapartida, quer a abertura livre do homem ao seu amor; abertura esta que caracteriza a
responsabilidade humana diante da história.

Todo este pensamento mostra uma ruptura com a doutrina clássica da escatologia. O
surgimento de uma nova hermenêutica bíblica, baseada no método histórico-crítico, ajudou
neste processo e fez com que a escatologia se aproximasse da experiência histórico-
salvífica presente na Bíblia.

1.3. Nova hermenêutica bíblica

Introdução

A interpretação religiosa tradicional do mundo sofreu profundas alterações nos


últimos decênios. Uma nova hermenêutica teológica surgiu, primeiramente, como exigência
da razão moderna e, depois, devido à própria crise da racionalidade. O desafio de
interpretar a fé cristã, num mundo que anseia por respostas novas, interpelou várias áreas
do saber teológico e, neste tópico, destacaremos o setor bíblico.

Os estudos da Bíblia foram grandemente beneficiados por uma hermenêutica


científica e crítica, que ajudou a superar uma leitura desligada da realidade. A escatologia,
influenciada por esta hermenêutica, mudou o tom de suas interpretações a respeito do
sentido último da vida e do mundo. Empreendendo um novo trajeto, procura ressaltar a
esperança ao invés de fixar-se, como antigamente, em descrições de catástrofes cósmicas.
33

1.3.1. O surgimento de uma nova consciência hermenêutica na teologia

A Igreja, como instituição divina historicizada, está sujeita às vicissitudes do tempo.


Tais vicissitudes são imensas no mundo contemporâneo34. Há profundas transformações em
todos os aspectos da vida, em grande quantidade e intensidade, pondo em processo de crise
a civilização ocidental e, obviamente, a Igreja que está no mundo e existe para o mundo.

Em meio a este contexto perplexo e de crise, a Igreja não pode continuar dando
respostas a perguntas que ninguém (ou uma minoria) mais faz. O cristianismo sempre se
deparou com o problema de inculturar a mensagem da fé numa linguagem adequada a cada
circunstância histórica. O grande desafio, ainda hoje, é o de pertencer ao seu tempo e agir
dentro do paradigma da própria época, dando respostas novas às novas perguntas.

Em nossa época, a Igreja adquire uma consciência mais aguda do significado da


razão moderna. Esta, marcada por uma dinâmica técnico-instrumental e positivista, está em
crise. Também os paradigmas teológicos que se articulam a partir da modernidade estão
abalados. A crise da civilização do Ocidente, que repercute também no cristianismo, afeta o
conjunto da teologia, a saber: sua articulação teórica, sua relação interdisciplinar e a
pertinência e o significado de sua produção35.

O diálogo da teologia cristã com a modernidade não é de hoje. O pensamento


cristão descobriu a filosofia hermenêutica, deixando-se inspirar por ela. A filosofia
hermenêutica começou a despontar no século XIX, influenciando diversas áreas do saber.
Friedrich Schleiermacher, filósofo e teólogo protestante, é considerado o fundador da
hermenêutica36 moderna. Para ele, a hermenêutica não é apenas uma disciplina auxiliar de
determinadas ciências, mas deve constituir-se como arte da compreensão em geral. No caso

34
O teólogo brasileiro Agenor Brighenti chega a falar que, mais do que uma época de mudanças, observamos
uma mudança de época. E ilustra as características das transformações atuais em seu livro A Igreja perplexa.
A novas perguntas, novas respostas, São Paulo: Paulinas, 2004, pp. 21-23.
35
Cf. A. BRIGHENTI, A Igreja perplexa, op. cit., p. 95.
36
Hermenêutica (do grego hermenéia = interpretação) é a técnica da interpretação e suas respectivas regras
interpretativas. No campo bíblico, existe a distinção entre exegese e hermenêutica. Por exegese se entende a
práxis da interpretação. E hermenêutica é o conjunto das regras que presidem a interpretação do texto bíblico:
hermenêutica como teoria da exegese (cf. R. GIBELLINI, A teologia do século XX, op. cit, pp. 57s).
34

da teologia, ela não pode ser considerada um ramo desta ciência, mas é uma dimensão de
todo o trabalho teológico37.

A ciência hermenêutica ganhou novo impulso com Martin Heidegger. Segundo este
filósofo, a compreensão é o modo de ser do homem. A pessoa, em seu ser-no-mundo, é
constitutivamente compreensão. Da compreensão deriva a interpretação e o discurso38.
Numa linha semelhante, vai o pensamento de Hans Georg Gadamer, que elaborou uma
ontologia hermenêutica afirmando a universalidade ontológica do compreender, que é o
caráter ontológico originário da vida humana39. A grande contribuição de Gadamer, depois
assimilada pela teologia católica, é o princípio da “história dos efeitos”. Segundo ele:

“O homem pertence à história e é determinado pela história. A história caracteriza o sujeito


que compreende, o objeto compreendido e o próprio processo do compreender (...). Um texto (ou um
autor ou uma época) que deve ser interpretado chega sempre até o intérprete mediado por uma série
de interpretações passadas que constitui a história dos efeitos (...) a qual determina a pré-
compreensão do novo intérprete, mas na qual, por sua vez, vai desembocar a nova interpretação”40.

Situando o conhecimento no contexto da condição humana, o mesmo deixa de ser


um poder absoluto. Como o sujeito pensante está dentro de uma situação histórico-temporal
socialmente estruturada, perde-se a possibilidade de haver um ponto de vista neutro e
objetivo da realidade. Assim, o saber descobre-se limitado e a ciência, principalmente de
matriz técnico-positivista, fica despojada do status de ser a única via de acesso à verdade.
Com isso, o contraste entre fé e razão é questionado, obrigando o logos a interrogar-se
sobre si mesmo41.

O reconhecimento, por parte da teologia, da complexidade do saber e de sua


interpretação fez com que a ciência teológica tivesse uma nova postura na tarefa de
transmitir a fé cristã. Agora, mais do que nunca, dá-se atenção ao sujeito que conhece,
interpreta e é destinatário da mensagem. Rudolf Bultmann, sensível a esta questão, foi o
primeiro a servir-se da nova hermenêutica, desenvolvida pelos filósofos, e a aplicá-la no
campo da teologia. Isto pode ser verificado no seu programa de demitização.
37
Cf. Ibidem, p. 58.
38
Cf. Ibidem, p. 59.
39
Cf. Ibidem, p. 63.
40
Ibidem, p. 64.
41
Cf. A. BRIGHENTI, A Igreja perplexa, op. cit., p. 98.
35

A nova hermenêutica ganhou vigor na teologia com Ernst Fuchs e Gerhard Ebeling.
Fuchs, discípulo de Bultmann, desenvolveu a questão do “princípio hermenêutico” que é o
ponto de partida que desencadeia o processo de compreensão. Em se tratando do Novo
Testamento, o princípio hermenêutico não pode pressupor a fé, caso contrário não haveria
uma compreensão científica dele. Ele é a pergunta a respeito de nós mesmos. Entra aqui o
elemento bultmanniano da interpretação existencial. No entanto, um novo aspecto apontado
por Fuchs é a importância que a linguagem assume no processo hermenêutico. Na teologia,
a hermenêutica é a teoria da linguagem da fé42.

Gerhard Ebeling, também discípulo de Bultmann, diz que a hermenêutica não pode
reduzir-se a metodologia da exegese, mas deve expressar uma tarefa de toda a ciência
teológica. A própria teologia é hermenêutica. A teologia hermenêutica não é uma disciplina
particular ao lado de outras. Ela manifesta um traço essencial de todo trabalho teológico43.

A teologia hermenêutica protestante influenciou a católica, sendo recebida


inicialmente na teologia bíblica de língua alemã nos anos de 1960. Relevante para o
catolicismo foi o conceito gadameriano de “história dos efeitos”. Ele ressalta que a
interpretação bíblica não é uma tarefa solitária, mas se faz no interior da tradição eclesial. A
teoria hermenêutica de Gadamer enfatiza que a história é um elemento essencial e não pode
ser negligenciada no processo interpretativo.

42
Cf. R. GIBELLINI, A teologia do século XX, op. cit. pp. 65-69. Este pensamento de Ernst Fuchs, como o
apresenta Gibellini, está de acordo com uma afirmação da Mysterium Salutis: na teologia em geral, bem como
na escatologia, sente-se a exigência de uma hermenêutica adequada. Pois, “seria errado partir do pressuposto
de que só as afirmações bíblicas e dogmáticas sobre o fim dos tempos exigiriam particular tipo de exegese,
como também seria unilateral postular para a escatologia uma especial hermenêutica, sem levar em conta que
toda a teologia deve submeter-se a um novo aprofundamento de tipo hermenêutico. É o que sempre se
percebe quando se tenta elaborar uma gnoseologia teológica dos enunciados escatológicos, uma gnoseologia
que não pode prescindir de uma conveniente hermenêutica da Bíblia, dos dogmas, dos modos como a história
dos dogmas e da tradição fixou os conteúdos, dos pressupostos filosóficos e culturais. Poder-se-á de certo
modo justificar uma hermenêutica teológica, mas somente sob a condição de levar em conta esses nexos”.
(Mysterium Salutis. Compêndio de Dogmática Histórico-Salvífica, V/3 Escatologia, Petrópolis: Vozes, 1985,
p. 71)
43
Cf. R. GIBELLINI, A teologia do século XX, op. cit., pp. 71- 74.
36

Isto está de acordo com a assunção do método histórico-crítico44. O aparecimento


deste método revolucionou a exegese bíblica, possibilitando uma correta compreensão da
mensagem das Escrituras. A linguagem bíblica nos traz dificuldades, porque não
corresponde à da cultura ocidental do século XXI. O método histórico-crítico permite uma
exegese em sintonia com a cultura do homem e da mulher contemporâneos, marcados pela
exigência científica e pela história. Surgido na teologia protestante, ele foi também
utilizado pela teologia católica, dando nascimento ao movimento de renovação bíblica.
Posteriormente, ele foi assumido pelo Vaticano II.

1.3.2. Nova hermenêutica bíblica: do movimento bíblico ao Concílio Vaticano II

Diversos movimentos de renovação, no interior da Igreja Católica, precederam o


Concílio Vaticano II, preparando-o para um melhor entendimento das aspirações da
racionalidade moderna, das ciências, sobretudo das ciências humanas, da história, das
ciências lingüísticas e hermenêuticas, das novas situações políticas e econômicas. Enfim,
tais movimentos ajudaram a Igreja a fazer uma reconciliação com o mundo moderno45.

Como vimos, dentre os movimentos46 que influenciaram o Concílio, destaca-se a


Nouvelle Théologie, dos teólogos franceses das escolas de Lyon-Fouvière e do Saulchoir.
Estes teólogos recorrem aos novos métodos histórico-críticos para a interpretação das
Escrituras. Centraremos nossa atenção no movimento bíblico que, por sua vez, foi
influenciado pela renovação bíblica iniciada no protestantismo. Sem controle de nenhum
magistério, os exegetas protestantes empreenderam várias descobertas bíblicas,
posteriormente assumidas pela exegese católica.

44
O método histórico-crítico é um conjunto de métodos elaborados para a interpretação científica da Bíblia,
entre os quais se sobressaem: o método de crítica literária das fontes (procura documentos escritos anteriores
à redação dos textos bíblicos), o método de história das formas (estuda a fase pré-literária, que é a fase de
transmissão oral, no interior da comunidade, do material que deriva de primitivas formas nascidas no
ambiente vital da comunidade) e o método da história da redação (estuda o texto em sua forma atual, na
moldura que recebeu do trabalho de redação de cada autor). Cf. R. GIBELLINI, A teologia do século XX, op.
cit. p. 46, nota 3.
45
Cf. P. S. L. GONÇALVES; V. I. BOMBONATTO (Org.), Concílio Vaticano II, op. cit., p. 371.
46
João Batista Libânio expõe, numa boa síntese, os movimentos que prepararam o Concílio no seu livro La
Iglesia desde el Vaticano II hasta el nuevo milenio, Bilbao: Mensajero, 2004, pp. 27-45.
37

Dentre as contribuições protestantes, duas impulsionaram o processo de renovação


da exegese escriturística: a Histoire critique du Vieux Testament (1678) de Richard Simom,
que procurou estudar os problemas literários do Pentateuco, e a hipótese do médico João
Astruc que, em 1753, propôs a teoria das duas fontes, eloísta e javista, na composição do
Gênesis.

No século XIX, aproveitando os progressos anteriores, Julius Welhausen, com um


consistente trabalho de crítica literária, datou os documentos que formam o Pentateuco.
Além disso, procurou reconstruir a história política e religiosa de Israel. Convém lembrar
ainda o estudo dos gêneros literários feitos por Gunkel e a renovação da pesquisa do Antigo
Testamento realizada por Alt, Noth e Gerhard von Rad. Não podemos esquecer, enfim, o
influxo das descobertas arqueológicas no desenvolvimento dos estudos bíblicos47. Estas
pesquisas tiveram larga repercussão na teologia católica.

Mesmo reconhecendo que, em alguns momentos, o magistério censurou o novo


estudo bíblico, sobretudo por receio do modernismo, houve encorajamentos para as novas
perspectivas que se abriam. A carta encíclica Providentissimus Deus é um exemplo
eloqüente deste fato. Publicada em 1893 por Leão XIII, este documento orienta que a Bíblia
deve ser defendida contra os princípios racionalistas e isso se fará por meio de uma
competente ciência bíblica48.

Aproveitando a sensibilidade que a Igreja adquirira, graças aos novos estudos


bíblicos, o padre Marie-Joseph Lagrange, dominicano, foi fazer estudos bíblicos na
Palestina, onde em 1890 fundou a Escola Bíblica de Jerusalém, foco de renovação
exegética da Igreja Católica. Dois anos depois, criou a Revue Biblique que até hoje mantém
alto nível científico nas pesquisas bíblicas. No princípio do século XX, Lagrange publicou
um famoso livro sobre o método histórico: La Méthode Historique, surtout à propos de
l’Ancien Testament.

47
Cf. L. B. GORGULHO, Movimento Bíblico. Fato antigo e moderno, Igreja hoje 8, Petrópolis: Vozes, 1965,
pp. 17-23.
48
Cf. Ibidem, p. 39.
38

O estudo científico da Bíblia também causou polêmica entre os católicos. Vários


teólogos e exegetas, adeptos da renovação, foram acusados de modernistas. Para contornar
as tensões, Leão XIII fundou, em 1902, a Pontifícia Comissão Bíblica a fim de orientar a
pesquisa da Bíblia e apoiar os exegetas. Pio X criou a seguir, em 1910, o Pontifício
Instituto Bíblico, centro de formação dos futuros professores de Escritura. A encíclica de
Bento XV Spirutus Paraclitus, de 1920, foi um novo impulso para os exegetas católicos
continuarem com ardor seus estudos49.

O movimento bíblico católico teve como impulso catalizador a encíclica Divino


afflante Spiritu (1943), de Pio XII, publicada por ocasião do quinqüentenário da
Providentissimus Deus. Este documento, reconhecendo o valor das descobertas
arqueológicas e sensível às novas exigências pastorais, ajudou a exegese católica a dar
passos gigantescos. Ele orienta como deve ser a metodologia da exegese: referência aos
textos originais da Bíblia; emprego da crítica textual; busca do sentido literal do escrito,
considerando sua dimensão filológica, histórica e arqueológica, para chegar ao seu “sentido
espiritual”; releitura do conceito de inspiração; uso da liberdade, caridade fraterna e
fidelidade à Igreja no exercício do estudo bíblico. Finalmente, o Papa relembra que a
Escritura se orienta à vida eclesial50.

No Concílio Vaticano II, um grupo conservador, ligado à Universidade Lateranense


e contrário à leitura histórico-crítica das Escrituras, pressionou os padres conciliares a
tomarem uma posição conservadora por ocasião da discussão do documento sobre a
Sagrada Escritura, a Dei Verbum. Mas, felizmente, prevaleceu uma atitude de abertura e
acolhimento do caminho exegético trilhado pelos biblistas anteriores51.

A Dei Verbum é considerada a chave hermenêtica52 de todos os demais textos do


Concílio e um dos seus documentos mais importantes, seja pela relevância dos problemas
abordados, seja pelas conseqüências que ela terá no diálogo ecumênico. De fato, o

49
Cf. Ibidem, pp. 27-29.
50
Cf. Ibidem, pp. 42-44.
51
Cf. J. B. LIBÂNIO, La Iglesia desde el Vaticano II hasta el nuevo milenio, op. cit., p. 36.
52
Cf. R. Latourelle, Dei Verbum. In: Dicionário de teologia fundamental, Aparecida: Santuário; Petrópolis:
Vozes, 1984, p. 194.
39

documento tratou de modo aprofundado e consciente categorias fundamentais do


cristianismo: revelação53, tradição e inspiração. Essas noções são onipresentes no
cristianismo e estão implicadas em qualquer processo teológico54. A exegese histórico-
crítica é uma forma de levar a sério a relevância destas categorias, na tentativa de captar o
alcance delas na vida e na reflexão eclesial.

O teólogo Hans Küng, ao comentar a importância da exegese histórico-crítica,


pergunta-se sobre a possibilidade de se fazer teologia sistemática com seriedade
dispensando este tipo de exegese:

“Se hoje uma exegese a-histórica já está totalmente superada, também o está uma teologia
dogmática a-histórica. E se a Bíblia precisa ser interpretada de forma mais histórico-crítica, então
com muito mais razão também o dogma pós-bíblico. Uma teologia que, em vez de questionar
criticamente os ‘dados’, permanece aberta ou veladamente autoritária, não poderá responder às
exigências científicas do futuro"55.

A reflexão sistemática sobre a escatologia deve ficar atenta a esta advertência, se


quiser produzir um discurso consistente e em consonância com os apelos e os desafios
atuais.

1.3.3. A nova hermenêutica bíblica na escatologia

A virada antropológica, a abertura à história e a descoberta da hermenêutica


provocaram uma profunda renovação na reflexão teológica em geral e no pensamento
escatológico em particular. Nas últimas décadas, a escatologia cristã abriu-se a novos
horizontes, tentando dar respostas às angústias do homem moderno, a partir de uma base
bíblica de esperança. Mas nem sempre foi assim.

De fato, até a década de 1960, uma das características básicas da reflexão


escatológica católica é a não valorização do mundo e da história. Devido a uma má
compreensão dos textos apocalípticos, acentuou-se a idéia de holocausto cósmico para o
53
Cf. R. Latourelle, Teologia da revelação, São Paulo: Paulinas, 1972, pp. 366-413 (estas páginas examinam
detalhadamente os capítulos I e II da Dei Verbum, que tratam da revelação).
54
Cf. Ibidem, p. 399.
55
H. Küng, Teologia a caminho. Fundamentação para o diálogo ecumênico, São Paulo: Paulinas, 1999, p.
139.
40

mundo e o perigo da perdição eterna para a pessoa. Esta visão apocalíptica, pessimista e
distorcida, gerou um desinteresse dos cristãos pelo processo histórico56.

Renold Blank, citando o exegeta Alfred Läpple, observa corretamente que as


imagens bíblicas, inspiradas na literatura apocalíptica, propõem explicar a realidade que
elas representam57. A partir do momento em que as representações simbólicas deixaram de
ser familiares, acabaram coisificadas e tomadas por realidades. Esta leitura objetivante dos
textos restringiu consideravelmente a compreensão da mensagem de esperança da Bíblia58.
Em conseqüência disto, muitas imagens apocalípticas foram menosprezadas por serem
consideradas ilusões fantásticas, ou geraram medo ao serem associadas a castigos e a
holocaustos cósmicos.

Não obstante, o quadro descrito acima mudou profundamente a partir do momento


em que os textos apocalípticos foram interpretados com base em uma nova hermenêutica,
fundada no método histórico-crítico. Esta hermenêutica procurou, por um lado, superar a
leitura literal dos textos e, por outro, resgatar a esperança que lhes é subjacente. Para
Bultmann, um dos grandes exegetas do Novo Testamento, os escritos da Bíblia são
testemunhos de fé redigidos a partir da perspectiva pascal. Por isso, não tem sentido a
interpretação historiográfica ou cronológica de tais aspectos, já que sua mensagem
encontra-se revestida de roupagem mítico-literária. Assim, a Bíblia não busca prever
historicamente como serão os “últimos acontecimentos”59.

A exegese contemporânea concorda em dizer que o objetivo fundamental dos textos


apocalípticos é o de manter a esperança na fidelidade de Deus, apesar de todos os fracassos
históricos. As imagens de holocaustos apocalípticos são meramente imagens60. A recepção

56
Cf. R. J. BLANK, Escatologia do mundo, op. cit., pp. 82s.
57
Preocupado em elaborar uma escatologia fundamentada numa exegese crítica, o biblista francês Pierre
Grelot escreveu o livro O mundo futuro. Nesta obra, ele aborda alguns registros da linguagem bíblica. O
reconhecimento de tais registros é importante para a interpretação correta da mensagem das Escrituras (cf. P.
GRELOT, O mundo futuro, São Paulo: Paulinas, 1977, pp. 95-99).
58
Cf. R. J. BLANK, Nossa vida tem futuro, op. cit., p. 163.
59
Cf. R. J. BLANK, Nosso mundo tem futuro, op. cit., p. 41.
60
Cf. Ibidem, pp. 126-129.
41

dos textos apocalípticos61, ao ser influenciada por tendências gnósticas, acentuou de


maneira excessiva e literal a dimensão de holocausto cósmico. No entanto, dentro da
própria tradição bíblica encontramos, além da concepção apocalíptica, a profética do pré-
exílio. Ela apresenta a história do mundo como processo dialético que não conta
necessariamente com o fim do mundo62.

De acordo com as pesquisas de Ambroos van de Walle e de Anton Vögtle,


estudadas por Renold Blank, em nenhuma parte da Bíblia encontramos uma doutrina
explícita sobre o fim do mundo. Segundo Ambroos van de Walle, as narrativas que
parecem sugerir um fim do mundo querem transmitir a seguinte mensagem:

“As vastas descrições de catástrofes cósmicas no dia de Javé contém a advertência de contar
com Deus que dispõe de tal poder (...). Catástrofes cósmicas servem apenas como imagem (grifo
nosso) para exprimir a onipotência assustadora de Deus que julga e tudo isto com o objetivo de
conseguir a conversão do povo e de todas as nações”63.

As imagens bíblicas de um holocausto cósmico são apenas símbolos que intentam


exprimir verdades teológicas: este mundo não se perderá no nada; o processo cósmico não é
marcado pelo acaso; a finalidade última do mundo é Deus: as verdadeiras dimensões
escatológicas do mundo fundam-se na esperança de que o cosmo será plenificado por Ele 64.
Com esta nova visão, a escatologia perde seu caráter aterrador e torna-se fonte de
esperança. Pois, descobre-se, atrás dos processos históricos e cósmicos, a presença de um
Deus vivo que não quer a destruição deste mundo, mas a sua salvação.

61
Textos bíblicos com referência a um “fim dos tempos” (cf. R. J. BLANK, Escatologia do mundo, op. cit. p.
291): Is 2, 5; 9-11; 13-14; 17-19; 24; 25; 27-30; 32-35; 41; 43; 47; 49; 51; 56; 60-63; 65-66. Jr 4; 23; 25; 30-
31; 33. Ez 1; 7; 10-11; 18; 27-30; 32-34; 36-39; 45-48. Dn 2; 7-12; Os 3; Am 5; 8-9; Mq 4-5; 7; Jl; Sf; Zc; Ml
3-4; Mt 10; 24; Mc 13; Lc 12; 17; 21; Jo 14; Rm 9-11; 13; 1 Cor 15; 1 Ts 4-5; 2 Ts 3-4; Hb 4; 2 Pd 2-3. Nas
páginas 292 a 296 deste livro, o autor expõe um resumo exegético de textos apocalípticos do Novo
Testamento, mostrando que eles não contém previsões de um holocausto cósmico. Esta mesma linha de
pensamento se encontra no livro O que vem depois do fim? de Medard Kehl, no capítulo “A interpretação
cristã das visões apocalípticas do fim do mundo”, páginas 97 a 107 (cf. M. KEHL, O que vem depois do fim?
Sobre o ocaso do mundo, consumação, renascimento e ressurreição, São Paulo: Loyola, 2001).
62
Cf. R. J. BLANK, Escatologia do mundo, op. cit., p. 289.
63
R. VAN DE WALLE, Bis zum Anbruch der Morgenroete, apud R. J. BLANK, Nosso mundo tem futuro,
op. cit., p. 133. Sobre o mesmo assunto, Jürgen Moltmann, citando Paul ALTHAUS, lembra que
“transformação, e não destruição”, é a doutrina que predomina na teologia “desde Irineu, passando por
Agostinho e Gregório o Grande, por Tomás e toda a teologia medieval, até a dogmática católica atual” (P.
Althaus, Die letzten Dinge, apud J. MOLTMANN, A vinda de Deus. Escatologia cristã, São Lepoldo:
Unisinos, 2003, p. 288).
64
Cf. R. J. BLANK, Escatologia do mundo, op. cit., pp. 272s.
42

Conclusão

A teologia é a hermenêutica da fé: uma linguagem sobre o mistério de Deus e seu


relacionamento com o homem. Trata-se de uma linguagem limitada, dinâmica e
condicionada pela história. A teologia não pode pretender substituir-se ao evangelho,
dogmatizando suas afirmações, mas sim interpretá-lo nas várias circunstâncias da vida e da
história da humanidade.

Durante séculos, a teologia tradicional utilizou uma linguagem abstrata e metafísica


para transmitir os conteúdos da fé cristã. Fez isto mesmo quando o contexto pedia um outro
de tipo de interpretação. Tal postura foi questionada pela cultura moderna, cuja cosmovisão
é centrada não em Deus ou na transcendência, mas no ser humano.

A razão moderna, que é científica e histórica, interpelou a teologia a dar respostas


condizentes com os novos tempos. Houve vários esforços neste sentido, de modo que a
teologia procurou reler as antigas fórmulas dogmáticas, a fim de mostrar a atualidade do
seu conteúdo.

O esforço de renovação hermenêutica compreende, de modo necessário, o estudo da


Bíblia, a “alma da teologia”. No estudo das Escrituras, o método histórico-crítico
possibilitou o resgate da dimensão histórico-salvífica, negligenciada pela teologia
tradicional e, em seu interior, também pela escatologia. A perspectiva aberta por uma nova
hermenêutica resultou numa escatologia otimista e ligada à realidade do mundo.

Assim, confirmamos que a escatologia não tem como missão responder a perguntas
sobre o além, ou elaborar narrações sobre o futuro. Ela não deve relatar o que vai acontecer,
mas provocar o ser humano à responsabilidade diante do mundo. A escatologia centra seu
discurso sobre o Absoluto como fonte de esperança e inspiração para a prática da justiça.
Este núcleo essencial da escatologia é revestido de imagens que devem ser corretamente
traduzidas pela hermenêutica bíblico-teológica.
43

As exigências de um confronto entre o modo bíblico atual de proceder (científico e


ligado à realidade) e o modo sistemático ficaram mais claras ao longo de todo o processo de
renovação teológica. Este longo caminho fez com que vários teólogos redescobrissem a
íntima conexão que existe entre cristianismo, teologia e escatologia. De fato, o cristianismo
tem um caráter escatológico que vem sendo estudado pela teologia sistemática atual.

1.4. A redescoberta do caráter escatológico do cristianismo

Introdução

Ao longo da história do cristianismo, seu caráter escatológico sempre esteve


presente, embora atenuado por outras tendências do pensamento teológico. Uma breve
travessia histórica nos ajudará a perceber a magnitude da redescoberta da dimensão
escatológica do cristianismo no último século. O interesse pela escatologia acabou
colocando em crise o próprio ensino escatológico tradicional. Este, como um sistema bem
arquitetado, assistiu ao seu desmoronamento para ceder lugar a uma nova compreensão,
mais bíblica, mais esperançosa e mais histórica.

1.4.1. A pouca ênfase na dimensão escatológica do cristianismo

O núcleo da mensagem de Jesus é uma escatologia ligada à esperança e ao Reino de


Deus. Foi também numa atmosfera assim que viveram as primeiras comunidades cristãs. O
teólogo João Batista Libânio expressa isto com as seguintes palavras:

“Na origem de todo este clima escatológico está a própria experiência de Deus feita por
Israel não tanto nos fenômenos cósmicos, nem numa natureza hierofânica, mas fundamentalmente no
acontecer de sua existência como povo. Israel vive uma religião de promessa, de futuro,
escatológica”65.

A Igreja primitiva herdou esta riqueza escatológica e interpretou-a à luz de Jesus,


como veremos no segundo capítulo. Esta tendência escatológica foi conservada durante
muito tempo pelos Santos Padres. Também nas camadas populares prevaleceu este tipo de

65
J. B. LIBÂNIO; Ma. C. L. BINGEMER, Escatologia cristã, op. cit., p. 59.
44

vivência. De fato, no meio popular, à margem dos ensinamentos oficiais da Igreja, constata-
se a permanência, ao longo da história, do clima escatológico de expectativa iminente, de
um reino milenarista ou do final dos tempos66.

Uma mudança de enfoque se dá no ensino teológico sistematizado e erudito. Ainda


na Patrística, houve uma reviravolta na perspectiva escatológica: uma lenta “bifurcação”.
Inicia-se a formação de um esquema bipartido: escatologia individual e escatologia
coletiva. A escatologia de alguns Padres começou a tomar este rumo devido principalmente
ao processo de helenização, em especial sob a influência da filosofia neoplatônica.
Acrescenta-se a isso o desenvolvimento de uma literatura apocalíptica, por parte de vários
Padres, na qual mencionavam castigos de Deus (por exemplo, Tertuliano e Lactâncio).

O novo contexto sócio-político, em que o cristianismo se encontrava, também teve


influência na mudança de visão: a passagem da “Igreja dos mártires” à religião oficial do
Império Romano. Do ponto de vista missionário e da espiritualidade, isto acarretou um
processo de desescatologização da mensagem cristã. O cristianismo, deixando a escatologia
à margem da vida, foi perdendo sua eficácia mobilizadora e revolucionária dentro da
história. No que diz respeito à reflexão teológica, surge uma escatologia em que o aspecto
coletivo, outrora presente na tradição de Israel, desloca-se para a problemática da
imortalidade da alma, provocando uma virada interiorizante, individualizante, e de certo
modo, espiritualizante67.

No início da época moderna, a civilização ocidental vive num clima de ameaças


apocalípticas transmitidas pela pregação, pelo teatro religioso, por livros litúrgicos, por
textos, por impressões gráficas e outras representações iconográficas. A todas essas
ameaças era comum a idéia de um Deus vingativo. Ela está presente também nos textos

66
Cf. Ibidem, p. 61. (No capítulo segundo, explicaremos o que é milenarismo).
67
Cf. Ibidem, p. 63. Esta leitura, que emprestamos à obra de Libânio, é esquemática e sintética, correndo por
isso o risco de ser superficial. Ela mostra, porém, que a escatologia cristã realmente deixou em segundo plano
a lucidez crítica frente à história. Mas, isso ocorreu apenas em alguns momentos. Pois, não podemos afirmar
que a dimensão escatológica do cristianismo desapareceu da reflexão teológica ou da vida eclesial.
Encontramos na Idade Média, por exemplo, fortes movimentos milenaristas, como os promovidos pelo
pensamento de Joaquim de Fiori.
45

litúrgicos em uso até a reforma do Vaticano II. Atravessando séculos, tal idéia influenciou
gerações cristãs, impregnando-as do medo escatológico.

Dentro deste clima de temor, destaca-se a figura do diabo. Os séculos XV ao XVIII


foram, na Europa, particularmente dominados por uma verdadeira histeria no que diz
respeito a esta figura que encarna o mal. Paralelamente a este tema do diabo, ganha
importância a questão do inferno. Chama a atenção o fato de que esta possibilidade real foi
apresentada de maneira aterradora, revelando nisto uma pedagogia de ameaça com todo o
seu conteúdo de vingança68.

Do ponto de vista dogmático, o acento na escatologia da pessoa encontra seu ponto


alto em 1336 com a Constituição Benedictus Deus de Bento XII. Este texto afirma que,
imediatamente após a morte, as almas ou vão para o céu ou para o inferno. Esta doutrina
praticamente constituiu a espinha dorsal de toda a sistematização posterior da escatologia
católica até meados do século XX.

Na lenta e progressiva bifurcação, entre escatologia da pessoa e escatologia coletiva,


prevaleceu um interesse maior pela primeira. Foram decisivos neste processo a influência
da filosofia helênica dualista e do gnosticismo, além dos tratados clássicos De novissimis,
elaborados na escolástica (séculos XII e XIII) e da teologia iluminista (século XVIII), com
seu acento na dimensão da moral pessoal, que levou a uma compreensão individualista do
Reino de Deus.

No fundo, o enfoque básico de toda esta escatologia era o pessimismo diante do


mundo e a preocupação com a salvação individual. Trata-se de uma concepção escatológica

68
Logo no princípio do cristianismo, temos obras em que se descrevem os sofrimentos no inferno. A
influência delas foi duradoura, ao longo dos séculos. Por exemplo, o Apocalipse de Pedro, escrito entre 100 e
150 d. C., apesar de não fazer parte dos escritos canônicos, exerceu muita influência na catequese cristã. Uma
literatura semelhante abundou na Idade Média. Contudo, as raízes da noção de inferno encontram-se na idéia
judaica de morada dos mortos, o xeol. Veremos de modo aprofundado a questão do inferno no capítulo três.
46

de tendência estática que vigorou até a neo-escolástica do século XX69, embora, já no


século XIX, tenha começado a ser questionada, como mostraremos a seguir.

1.4.2. A redescoberta da dimensão escatológica do cristianismo

Um dos traços característicos da teologia do século XX é a redescoberta da


dimensão escatológica do cristianismo70. Esta redescoberta teve início no meio protestante.
O que motivou estes novos estudos foi o debate sobre a expectativa neotestamentária do
Reino de Deus e a protelação da parusia. A discussão foi suscitada depois que Albrecht
Ritschl publicou sua obra sobre o Reino de Deus, que o reduzia a uma entidade moral.

No movimento de protesto contra esta compreensão, destacam-se Johannes Weiss e


Albert Schweitzer. Eles sustentam a tese de que a história do cristianismo está marcada pela
crise provocada pela não realização da parusia, que Jesus anunciara iminente. Estes dois
teólogos afirmam a historicidade do Reino e o fato de as comunidades cristãs primitivas
viverem sob um contexto declaradamente apocalíptico.

No entanto, a ênfase na dimensão histórica do Reino levou a uma posição unilateral;


como por exemplo, a “escatologia conseqüente” que procura tirar as conseqüências
históricas que derivam de uma teologia interpretada de modo conseqüencialmente histórico.
Esta radical historicização escatológica chega, na verdade, a eliminar a própria
escatologia71.

Karl Barth, com sua teologia dialética, vem reafirmar o caráter escatológico do
cristianismo. Mas, sua compreensão da escatologia não valoriza devidamente a história. De
fato, a experiência da primeira guerra mundial deixou no teólogo um sentimento de
pessimismo com relação ao mundo e aos projetos da razão moderna. Ele diz então que o
eschaton não é um evento temporal, mas sim qualitativo. A escatologia é a própria
69
Cf. R. J. BLANK, Escatologia do mundo, op. cit., pp. 79-84. Esta leitura, que emprestamos a Renold Blank,
também peca por certa superficialidade. A essência do seu pensamento, porém, quer indicar que a escatologia
tradicional não deixava muito lugar à esperança (principalmente em se tratando do purgatório e do inferno), e
não acentuava devidamente o aspecto coletivo dos novíssimos, o que certamente é verdadeiro.
70
Cf. R. GIBELLINI, A teologia do século XX, op. cit. p. 279.
71
Cf. Mysterium Salutis, op. cit., pp. 63s.
47

transcendência de Deus que põe em crise o temporal: Deus irrompe na história para julgá-
la. Para Barth, a escatologia deve ser o tema central da reflexão teológica. Ele chega a
sugerir a escatologização de toda a teologia: “Um cristianismo que não é todo e por tudo e
sem ressalvas escatologia, nada tem a ver com Cristo”72.

Dentro deste intenso clima de debate escatológico, temos o pensamento de


Bultmann. Ele propõe trazer para dentro da condição humana, através da decisão pessoal, a
força do escatológico. Contrapondo-se a Barth, ele procura passar de uma teologia
essencialista e estática a uma teologia que acentua a responsabilidade do indivíduo. Para
Bultmann, o momento presente se torna a situação escatológica decisiva.

Em meados do século XX, o teólogo evangélico Jürgen Moltmann apresentou um


articulado projeto de teologia escatológica entendida como escatologia histórica. Para ele, o
conceito de esperança é central para se interpretar a escatologia: “Escatologia é idêntica a
(sic) doutrina cristã”73. Cristo, diz ele, é o fundamento da esperança cristã. Noção-chave da
pregação de Jesus, o Reino de Deus, é também centrada na esperança. Para Moltmann,
portanto:

“O cristianismo é total e visceralmente escatológico, e não só a modo de apêndice (...). O


escatológico não é algo que adere ao cristianismo, mas simplesmente o meio em que se move a fé
cristã, aquilo que dá o tom a tudo que há nele. Como a fé cristã vive da ressurreição do Cristo
crucificado, ela não pode ser simplesmente parte da doutrina cristã. Ao contrário, toda a pregação
cristã tem uma orientação escatológica”74.

Estas palavras de Moltmann revelam a íntima conexão entre a escatologia e o


evento Cristo. Para elaborar sua cristologia escatológica, ele recorre às noções
veterotestamentárias de promessa e esperança que, segundo ele, estão presentes no Novo
Testamento. De fato, o evangelho tem caráter promissório: a ressurreição de Cristo ratifica
as promessas precedentes, mas ela mesma é promessa universalizada a respeito do futuro da
humanidade75.

72
K. BARTH, Der Römerbrief, apud Mysterium Salutis, op. cit., p. 65.
73
J. MOLTMANN, Teologia da Esperança. Estudos sôbre os fundamentos e as conseqüências de uma
escatologia cristã, São Paulo: Herder, 1971, p. 2.
74
Ibidem, p. 2. (No capítulo segundo, desenvolveremos as três noções essenciais para a escatologia,
mencionadas por Moltmann: Cristo, esperança e Reino de Deus).
75
Cf. R. GIBELLINI, A teologia do século XX, op. cit. pp. 283s.
48

Mais tarde, Moltmann desenvolve as linhas de uma escatologia cristológica. Pois,


uma cristologia puramente escatológica poderia levar ao entusiasmo e a saltar o movimento
da encarnação. Uma escatologia cristológica, ao invés, confere profundidade à esperança.
Com este passo, Moltmann adere à teologia política. Esta tem suas raízes na teologia da
esperança, mas esta última ganha concretude histórica com um projeto político.

Coube a Johann Baptist Metz, teólogo católico, desenvolver um programa de


teologia política no qual se acentua a responsabilidade humana dentro do processo
histórico. Para ele, a realização das grandes promessas escatológicas (reino de paz, de
justiça, de verdade e de amor) não depende só do agir de Deus, mas também da prática
social e política dos homens76.

Todo este desenvolvimento escatológico, que começou com a teologia protestante,


foi assimilado criticamente pelo catolicismo. Como mostraremos a seguir, no Concílio
Vaticano II temos condensadas as grandes linhas da doutrina escatológica da Igreja
Católica.

1.4.3. A escatologia no Concílio Vaticano II

Entre os documentos do Concílio, a Lumen gentium consagrou um capítulo especial


à escatologia. E a Gaudium et spes fez significativas referências a ela. A escatologia da
Lumen gentium está sistematizada no capítulo VII, cujo título é “Índole escatológica da
Igreja peregrina e sua união com a Igreja celeste”. Este capítulo se caracteriza pelo uso da
linguagem bíblica com alusões ou citações do Novo Testamento. Isto mostra, mais uma
vez, a valorização da Bíblia no tratamento do problema escatológico.

O número 48 (“Índole escatológica da nossa vocação”), apresenta a vocação cristã


numa perspectiva eclesiológica, articulando a obra salvífica de Cristo e o caminho histórico
da Igreja até a consumação final. Esta impostação eclesial aponta o caráter coletivo e

76
Cf. R. J. BLANK, Nosso mundo tem futuro. op. cit., p. 54.
49

universal da escatologia. Com isto, modifica-se sensivelmente a tendência presente nos


documentos do magistério da Idade Média que, devido a circunstâncias particulares,
enfatizaram a escatologia individual77.

A Igreja, segundo a Lumem gentium, alcançará sua plenitude com a última vinda de
Jesus. Neste contexto, o Concílio fala também do destino definitivo de cada ser humano,
cuja morte é um momento escatológico decisivo. Abrem-se, neste instante, as
possibilidades de salvação ou de condenação. Também a ressurreição final e a parusia do
Senhor são recordadas no número 48 do documento78. O número 49 se refere à comunhão
da Igreja celeste com a Igreja peregrina e afirma, a este respeito, que “todos os que são de
Cristo, tendo seu Espírito, formam uma só Igreja e nele estão unidos entre si (cf. Ef 4, 16).
Por isso, a união dos que estão na terra com os irmãos que adormeceram na paz de Cristo,
de maneira nenhuma se interrompe” (LG, no 49).

Vale a pena ressaltar, novamente, a concepção unitária que o Concílio tem do ser
humano: “os irmãos que adormeceram na paz de Cristo”; ou seja, aqueles que participam
da visão beatífica são os “discípulos” de Jesus e não só suas “almas”79. Temos aqui um
distanciamento com respeito ao tema clássico da imortalidade da alma.

O segundo documento conciliar que trata da escatologia é a constituição pastoral


Gaudium et spes. Nele, a questão escatológica não vem de modo sistematizado como no
anterior. No capítulo I da Gaudium et spes, que fala de “A dignidade da pessoa humana”,

77
Cf. B. SESBOÜÉ, (Org.), Historia de los Dogmas. El hombre y su salvación, tomo II, Salamanca:
Secretariado Trinitario, 1996, p. 352. Não apenas a Lumen Gentium realiza esta mudança. Segundo Medard
Kehl, também a Gaudim et spes marcou uma notável mudança para a história e para o mundo, voltando a
atenção mais para a dimensão histórica e cosmológica do esperado futuro de nossa consumação última,
embora sem esquecer a vertente individual (cf. M. KEHL, Escatologia, op. cit., p. 11).
78
Neste parágrafo, faz-se referência também a questões essenciais da escatologia: morte, céu, inferno,
ressurreição e parusia. Elas serão aprofundadas nos capítulos dois e três desta dissertação.
79
Sobre isto, o documento diz: “Até que o Senhor venha na sua majestade, e todos os anjos com ele (cf. Mt
25, 31) (...), alguns dos seus discípulos peregrinam na terra, outros, já passados desta vida, estão se
purificando, e outros vivem já glorificados” (LG, no 49).
50

aparecem como questões escatológicas a referência à imortalidade da alma80 e a


ressurreição corporal81.

Outras afirmações se encontram no capítulo III intitulado “A atividade humana no


mundo”. O número 38, deste capítulo, realça que a esperança escatológica em Cristo
ressuscitado desperta no homem o desejo de testemunhá-lo no mundo:

“Constituído Senhor pela sua ressurreição, Cristo (...) atua ainda agora, pela força do
Espírito Santo, nos corações dos homens; não suscita neles apenas o desejo da vida futura, mas (...)
fortalece também aquelas generosas aspirações que levam a humanidade a tentar tornar a vida mais
humana e a submeter para esse fim toda a terra” (GS, no 38).

Em íntima conexão com o tema deste item 1.4.3., que trata da dimensão
escatológica do cristianismo, o Concílio afirma o valor escatológico da atividade humana
no mundo, com as seguintes palavras:

“A expectativa da nova terra não deve (...) enfraquecer, mas antes ativar a solicitude em
ordem a desenvolver esta terra, onde cresce o Corpo da nova família humana, que já consegue
apresentar certa prefiguração do mundo futuro (...). Todos estes bens da dignidade humana, da
comunhão fraterna e da liberdade, fruto da natureza e do nosso trabalho, depois de os termos
difundido na terra, no Espírito do Senhor e segundo o seu mandamento, voltaremos de novo a
encontrá-los, mas então purificados, quando Cristo entregar ao Pai o reino eterno e universal” (GS, n o
39).

A esperança cristã é histórica, como veremos de modo aprofundado no capítulo


segundo. Ela supõe uma missão neste mundo, a fim de torná-lo mais conforme aos
desígnios de Deus. Embora aquilo que os homens e as mulheres fazem deva ser purificado
e transfigurado, segundo Deus e cumprindo seu mandamento, tudo isso tem um valor
permanente82. Esta afirmação vem, de novo, lembrar a liberdade responsável do ser
80
“Não se engana o homem, quando se reconhece superior às coisas materiais e se considera como algo mais
do que simples parcela da natureza (...). Ao reconhecer, pois, em si uma alma espiritual e imortal, não se ilude
com uma enganosa criação imaginativa, mero resultado de condições físicas e sociais” (GS, no 14). O número
18 retoma esta questão da imortalidade em relação com o mistério da morte, assinalando que existe no
homem um “germe de eternidade (...) irredutível à pura matéria”.
81
O homem não pode “desprezar a vida corporal; deve, pelo contrário, considerar o seu corpo como bom e
digno de respeito, pois foi criado por Deus e há de ressuscitar no último dia” (GS, n o 14). As afirmações sobre
a imortalidade da alma (nota 80) e sobre a ressurreição se acham mais justapostas que internamente
relacionadas, não comprometendo a unidade do ser humano, assim explica Luiz Ladaria (cf. B. SESBOÚÉ,
(Org.), Historia de los Dogmas, op. cit. p. 352). A ressurreição corporal será estudada no segundo capítulo
deste trabalho.
82
Uma idéia-chave na reflexão de Renold Blank é que, no processo escatológico da história e do mundo, nada
se faz sem a colaboração do homem. Pois, Deus leva a sério a liberdade humana. A plenificação do Reino,
51

humano. Vencendo uma espiritualidade de “fuga do mundo”, a nova concepção


escatológica, adotada pelo Concílio, incentiva um agir esperançoso e transformador na
história. Esta visão renovada, que adotaremos neste trabalho, será aprofundada no item
seguinte.

1.4.4. Noção de escatologia adotada

Apesar de ser uma realidade vivida ao longo dos séculos, o termo escatologia foi
proposto pelo teólogo luterano Abrahan Calov em 1686, na obra Sistema Locorum
Theologicorum. No contexto católico, o termo aparece na publicação Biblische
antropologie (1807-1810), de Oberthur. A palavra é composta de dois termos gregos:
escathon (último) e logos (discurso). Literalmente, significa a reflexão teológica sobre as
últimas realidades do ser humano e da história.

A intenção de Renold Blank, aderindo à reflexão de vários teólogos católicos e


protestantes, é mostrar o relacionamento que existe entre escatologia e história, como vimos
anteriormente no item 1.2. Só assim, a escatologia retomará seu potencial transformador.
Percebemos, no entanto que, por muitos séculos, a escatologia tradicional destacou muito
as “últimas coisas” vindouras: os eventos que irromperiam no fim dos tempos, sobre o
mundo, a história e os seres humanos. Pelo fato de tais acontecimentos terem sido
compreendidos somente como futuro longínguo, eles perderam sua significação
orientadora, crítica e animadora83.

que é obra exclusiva de Deus, não se realiza sem o esforço humano no decorrer do processo histórico. Renold
Blank toma a missa como exemplo deste processo escatológico. Na missa, o homem apresenta primeiro
aquilo que ele fez: pão e vinho, fruto da terra e do trabalho humano. Nunca haverá missa sem estes elementos.
No ofertório, Deus aceita o que o homem trouxe. Na consagração, é o próprio Deus que age a partir daquilo
que o homem realizou, plenificando a obra humana, elevando-a a nível superior. Assim também, não haverá
plenificação do Reino se o homem, previamente, não preparar esta plenificação. Mas, Deus não transforma
pão e vinho ou plenifica o Reino para si mesmo. Ele o faz para o homem, devolvendo-lhe o resultado da
plenificação. O mesmo ocorre na comunhão da missa: o homem comunga do corpo e sangue de Cristo, que
antes eram pão e vinho oferecidos pelo próprio homem. Assim, todo o agir de Deus visa à felicidade humana.
Deus dá ao homem infinitamente mais do que ele realiza (cf. R. J. BLANK, Nosso mundo tem futuro, op. cit.,
p. 73s).
83
Cf. J. MOLTMANN, Teologia da Esperança, op. cit., p. 1. A teologia tradicional, ao falar das “últimas
coisas”, consolidou a distinção entre escatologia pessoal, ou “intermediária” (o que espera o homem no fim de
sua vida) e escatologia coletiva (o que acontecerá no fim da história). Deve-se, contudo, dar atenção à relação
dialética entre estes dois aspectos, como nos alerta Luiz Ladaria. Não podemos deixar de lado a escatologia
individual em favor da coletiva, nem prescindir desta favorecendo a primeira. A mencionada distinção, se
52

Mas, os vários enfoques, apresentados neste capítulo, conduziram a uma nova


reflexão na escatologia. Neste trabalho adotaremos a noção de escatologia que reflete antes
sobre o “Último de todas as coisas” que sobre as “últimas coisas”; sobre o Eschaton (ou
melhor ainda o Eschatos) que sobre as Eschata84. Pois, é somente a partir da “escatologia
já” que a “escatologia ainda não” se esclarece e ganha um maior alcance. Além disso, esta
noção é histórica, salvífica, esperançosa, cristológica, dialética, processual e mais próxima
das raízes bíblicas.

Esta compreensão da escatologia, que está de acordo com o pensamento de Renold


Blank, é que norteará nossa compreensão dos “novíssimos”. Em termos específicos, trata-se
de evitar percorrer o caminho da escatologia tradicional que, muitas vezes, elaborou uma
“geografia do além”, uma “futurologia”, ou ainda uma “física da eternidade”, já que fora
construída com base nos conceitos cosmológicos de espaço e de tempo, utilizando uma
linguagem dualista. A teologia atual, porém, busca recuperar o elemento de esperança e de
historicidade, num esforço de retornar à intuição escatológica de Jesus e à sua pregação do
Reino de Deus.

Ainda hoje, no meio popular, encontramos uma visão negativa a respeito do destino
último do ser humano (mas, é claro, não é justo generalizar). Por exemplo, existe a imagem
de um Deus vingativo e o terror do que vai acontecer depois da morte. É um medo
provocado de maneira indireta por orações, nas quais se suplica a misericórdia divina.
Também é um medo incitado de maneira direta por toda uma doutrina de ameaça que foi
interiorizada pelo povo no decorrer de uma história de séculos85.

A superação desta mentalidade pessimista é um desafio ao discurso escatológico-


pastoral. Este deve ser baseado na maneira de compreender a reflexão escatológica
redescoberta no último século pela teologia. É preciso, assim, perceber que as ameaças
refere às “últimas coisas”, às quais, por sua vez, devem ser integradas ao “Último”, a Cristo, o evento
escatológico decisivo. Cristo ilumina o sentido das realidades últimas do mundo e do ser humano. O que
Nele, que é a cabeça, aconteceu, espera pela plena manifestação em todo o seu corpo (cf. L. F. LADARIA,
Escatologia. In: Dicionário de teologia fundamental, Aparecida: Santuário; Petrópolis: Vozes, 1994, p. 260).
84
Cf. J. B. LIBÂNIO; Ma. C. L. BINGEMER, Escatologia cristã, op. cit., p. 74.
85
Cf. R. J. BLANK, Esperança que vence o temor, op. cit., p. 147.
53

escatológicas são projeções do próprio ser humano. Pois, o Reino de Deus se realizará sob
o prisma do amor divino e não do castigo.

Renold Blank assume este projeto escatológico, em consonância com algumas


tendências básicas da escatologia da atualidade. Segundo ele, existem duas tendências de
fundamental importância na escatologia contemporânea: a que procura evitar uma descrição
fantasiosa em termos de destruição cósmica e a que busca superar o enfoque pessimista que
predominou no passado86. Impulsionados pelas verdades escatológicas, cheias de força
crítica e mobilizadora, os cristãos são capazes de se converterem de novo em fermento
renovador do mundo, pois:

“A esperança é ativa e se torna o motor para o agir dentro deste mundo. Motor para um agir
capaz de mudar tal mundo. Para um agir por meio do qual as promessas de um futuro Reino de Deus
começam a se realizar nesta sociedade e nesta história (...). Não se trata mais de ‘aguardar’ de
maneira passiva o fim dos tempos (...). A esperança, baseada na fé de que o Reino já começou, se
torna ativa. Ela supera uma atitude estática, tornando-se processo de transformação”87.

A escatologia, assentada nestes novos fundamentos, deve ser transformadora.


Renold Blank expõe os princípios básicos de uma escatologia capaz de um agir
transformador88. Eles se inspiram no próprio Jesus que não ensinou ou viveu uma religião
desencarnada. Pelo contrário, ele se comprometeu com o mundo anunciando o Reino de
Deus: centro de sua mensagem, noção chave de nossa esperança e de toda a escatologia,
como veremos no próximo capítulo.

Além de transformadora, uma escatologia que recupera as bases bíblicas da fé,


também é libertadora. A teologia da libertação latino-americana deu importante contributo
para a formulação de um discurso escatológico libertador. Basicamente, ele se fundamenta
no conceito escatológico de salvação, que implica a totalidade do mundo, é processo
dinâmico, conflitivo e dialético da história que será plenificada por Deus e inclui,
necessariamente, uma libertação de todas as situações de injustiça e de morte89.

86
Cf. R. J. BLANK, Escatologia do mundo, op. cit., p. 97.
87
Ibidem, pp. 118s.
88
Cf. Ibidem, pp. 113-127. No capítulo segundo, desenvolveremos esta questão ao falarmos da esperança
escatológica e sua capacidade de transformar o mundo.
89
Cf. Ibidem, pp. 141-153. No próximo capítulo, aprofundaremos mais o tema de uma escatologia libertadora.
54

Conclusão

João Batista Libânio, ao falar sobre a centralidade da escatologia, faz uma


interessante comparação: a fé é semelhante a círculos concêntricos, formados por uma
pedra lançada num lago calmo. As ondas geradas pela pedra se desmancham na margem.
Quanto mais próximas do centro, mais nítidas são as ondas. Distanciando-se do local, onde
a pedra foi lançada, elas possuem traços diluídos.

Aplicando esta imagem à fé cristã, percebemos que esta é firme, nítida e clara em
seus traços centrais. A teologia, por sua vez, pertence às ondas distantes, de contornos mais
fracos. A teologia está a serviço da escatologia, que pertence ao núcleo central da fé. Tal
centralidade deve-se ao fato de a escatologia se fundamentar em Deus, cujo projeto de
salvação foi revelado em Jesus Cristo90. Após um longo período, a teologia redescobre esta
verdade, outrora negligenciada pela dogmática clássica: Jesus, através de sua encarnação,
vida, morte e ressurreição, é o evento escatológico central. A fé cristã é essencialmente
escatológica porque se funda em Jesus, nosso Eschaton.

A escatologia pode ser entendida como “discurso sobre uma salvação encarnada”91.
De fato, com a encarnação de Jesus, que atinge sua plenitude com a ressurreição, o mundo
começa a ser uma nova criação. E esta realidade não acontece por aniquilação, mas por
transformação do velho mundo. A história, portanto, continua: ela é processo. Também o
Eschaton reveste-se de um caráter processual e não de um caráter pontual. Não esperamos
algo, mas alguém: o Absoluto. Esperamos o eterno temporalizado; espiritual, mas
encarnado92; o Verbo, Jesus Cristo, o Eschaton Logos.

90
Cf. J. B. LIBÂNIO; Ma. C. L. BINGEMER, Escatologia cristã, op. cit., p. 15.
91
J. L. RUIZ DE LA PEÑA, La pascua de la creacion. Escatologia, Madrid: BAC, 1996, p. 117.
92
Cf. Ibidem, p. 119.
55

CAPÍTULO II

2. CATEGORIAS TEOLÓGICAS FUNDAMENTAIS DA ESCATOLOGIA


CRISTÃ: CRISTO, ESPERANÇA E REINO DE DEUS

A escatologia cristã se funda em Jesus Cristo. Ele é o Eschaton Logos; isto é, a


palavra definitiva do Pai. A existência total de Cristo é escatológica, sobretudo a sua
ressurreição, auge de sua encarnação e vida. Ressuscitando Jesus dentre os mortos, Deus
opera um ato escatológico exemplar e confirma a veracidade da missão de seu filho, missão
centrada no anúncio do Reino. A ressurreição também garante a esperança do ser humano
na salvação prometida por Deus e que foi realizada em Cristo como promessa aberta a
todos.
56

“Jesus Cristo”1, “esperança” e “Reino de Deus” são categorias centrais na reflexão


escatológica contemporânea. A escolha destas categorias nos coloca em sintonia com a
maior parte dos teólogos e, é claro, com Renold Blank que desenvolveu bastante os
conceitos de esperança e Reino de Deus em sua obra Escatologia do mundo, e em outras
obras escatológicas que escreveu2. De fato, para o teólogo suíço, o Reino de Deus se
concretizará através do amor: esta é a esperança que deve guiar a ação humana.

É também à luz da esperança3 escatológica e do Reino de Deus que os novíssimos


em geral ganham novo sentido: devem ser interpretados na perspectiva da salvação
oferecida por Deus. Esta salvação se explicita no Reino pregado por Jesus que, por sua vez,
renova a esperança dos homens e das mulheres num futuro sustentado por Deus, que
também glorificará o mundo inteiro. Neste amplo contexto soteriológico, os novíssimos
constituem uma fase dinâmica e decisiva da escatologia cristã.

2.1. Jesus Cristo, o Eschaton Logos

Introdução

Jesus Cristo, com sua encarnação, vida, morte e ressurreição, constitui um evento
escatológico decisivo porque sua existência estava sustentada por Deus. De fato, Deus se
revelou plena e definitivamente na pessoa de seu Filho. No entanto, Jesus não é
acontecimento escatológico apenas para si mesmo. Ele ilumina a vida humana, a história e
1
Para redigir a primeira parte do item “Jesus, o Eschaton Logos” (2.1.) baseamo-nos em outros autores, além
de Renold Blank, que trataram de modo mais sistemático a questão. Para os outros dois temas (esperança e
Reino de Deus), privilegiamos sobretudo Renold Blank.
2
Renold Blank desenvolve quatro noções fundamentais do discurso escatológico contemporâneo: O Reino de
Deus, a esperança, a parusia e o juízo final. Sobre isto, veja os livros do autor: Nosso mundo tem futuro e
Escatologia do mundo. Este último é uma edição revisada e ampliada do primeiro. É ele que será citado ao
longo deste capítulo. Neste livro, os termos “Reino de Deus” e “esperança” ocupam 72% de todo o conteúdo
da obra mostrando, assim, a importância concedida a eles pelo teólogo suíço. Além do mais, “parusia” e
“juízo final” são vistos como elementos escatológicos ligados à plenificação do “Reino de Deus”, de modo
que não os trataremos separadamente, mas faremos referência a eles ao abordarmos o “Reino de Deus”, ou em
outro momento oportuno.
3
A tônica do pensamento de Renold Blank é destacar a esperança, o amor e a ação salvadora de Deus. Os
títulos de seus livros indicam esta sua preocupação teológica; por exemplo, citamos: Nossa vida tem futuro,
Nosso mundo tem futuro, Esperança que vence o temor. O medo religioso dos cristãos e sua superação e
Viver sem temor da morte.
57

o mundo, fazendo-os participar da sua glorificação: esta é a esperança trazida por Jesus;
esperança que se baseia sobretudo em sua ressurreição, já que ela mostra o senhorio de
Deus sobre as potências do mal. Ressuscitando Jesus, Deus confirma a missão salvífica
universal de seu Filho.

2.1.1. Cristo, acontecimento escatológico operado por Deus

A plena revelação de Deus em Jesus Cristo constitui um evento escatológico


irrevogável. O que aconteceu nele aponta para o sentido último do ser humano e do mundo.
A escatologia cristã tem base em Deus mesmo, que se manifesta a nós em Cristo. Sendo
mensagem soteriológica, a escatologia anuncia-nos a realidade plena da salvação oferecida
em Jesus4. A escatologia cristã é realmente um aspecto do anúncio da salvação: é boa nova
no sentido mais puro do termo. E as primeiras comunidades a compreenderam desta forma.
Jesus Cristo, presença definitiva da salvação e, neste sentido, evento escatológico
decisivo, abre-nos a esperança dos acontecimentos últimos, que concentram-se nele. Desta
forma, a escatologia cristã afirma a interrelação entre o “Último” (Cristo) e as “últimas
coisas” que esperam o homem e a história: o futuro absoluto é antecipado em Jesus5.

A escatologia cristã fala de Cristo e de seu futuro. Está objetivamente relacionada


com a pessoa de Jesus Cristo e com o evento da sua ressurreição6. Ela fala também do
futuro que principia com sua pessoa e com sua ressurreição. Ao tratar de “Cristo e de seu
futuro”, a escatologia cristã utiliza a linguagem da promessa. Ela compreende a história

4
É verdade também que a fé cristã afirma com toda seriedade a possibilidade da condenação do homem, de
sua rejeição à graça divina ofertada a todos (pois, assim, se afirma a liberdade humana). Mas, a condenação
não constitui o centro da mensagem escatológica do cristianismo. Isto será tratado especialmente no terceiro
capítulo, quando estudarmos o tema do inferno.
5
Konrad, estudioso de Pannenberg, e inspirando por ele, diz que em Jesus ocorre esta antecipação definitiva:
“No destino de Jesus ficou manifesta a totalidade do mundo e com ela a última determinação do homem, de
modo que todo acontecimento posterior pode ser ordenado desde este fim antecipado na unidade fundada por
Deus. Mas tudo isso, que pertence à unidade e à totalidade do mundo acontecida antecipadamente em Jesus,
só se faz manifesto no decurso da história e, correlativamente, só pode se conhecer na progressiva experiência
da realidade. Só no decurso da história, portanto, desdobram-se tanto o conteúdo da unidade e totalidade do
mundo que se revelou em Jesus quanto a determinação do homem” (F. KONRAD, Das
Offenbarungsverständnis in der evangelischen Theologie apud R. J. BLANK, Escatologia do mundo, op. cit.,
p. 237).
6
O tema da ressurreição, devido à sua importância para a escatologia cristã, será analisado logo a seguir e de
modo mais completo. Por hora, faremos apenas algumas referências a ele.
58

como realidade aberta pela promessa iluminada pelo futuro de Cristo 7. Este futuro está
fundado em sua ressurreição. Desde o começo, a fé cristã compreendeu a ressurreição de
Cristo não apenas em relação ao passado, como cumprimento das promessas divinas, mas
principalmente em relação ao futuro, como antecipação da salvação vindoura.

Os conteúdos da escatologia cristã trazem a marca de Jesus, pois mostram que são o
desenvolvimento do evento escatológico que ocorreu no mundo através de sua presença8.
Por isso, é justo sublinhar que a escatologia cristã é “cristologia em perspectiva
escatológica”9. De fato, a escatologia cristã tem sua originalidade no acontecimento Cristo,
como presença pessoal de Deus na história. A própria existência de Cristo, desde sua
encarnação até sua morte e ressurreição, tem um sentido definitivo, irrevogável e
irrepetível. A vida de Cristo em si mesma tem caráter escatológico porque é sustentada por
Deus10. Cristo é a plenitude da revelação de Deus, a “ultimidade última” 11 enquanto se
pretende afirmar que nele a autocomunicação divina alcança sua plenitude insuperável e
definitiva12. Também o Vaticano II afirma com vigor a plenitude de Cristo:

“Ele (Cristo), (...) com toda a presença e manifestação da sua pessoa, com palavras e obras,
sinais e milagres, e sobretudo com sua morte e gloriosa ressurreição dentre os mortos, enfim com o
envio do Espírito da verdade, leva à plenitude toda a revelação e a confirma com um testemunho
divino” (DV, no 4).

E porque Cristo é acontecimento escatológico pleno em si próprio, o é também para


nós, para o mundo e para a história. No plano de Deus, e no sentido interno da encarnação,
morte e ressurreição de Jesus, o destino definitivo da humanidade e de toda a criação fica
vinculado ao destino do Filho de Deus.

7
Cf. J. MOLTMANN, Teologia da esperança, op. cit., pp. 223-225.
8
Cf. L. F. LADARIA, Escatologia. In: Dicionário de teologia fundamental, op. cit., p. 261. De modo
específico, este trabalho mostrará, no capítulo três, que o conteúdo dos “novíssimos” têm estreita ligação com
o evento Cristo, de modo que só podem ser interpretados corretamente à luz da salvação trazida por ele.
9
J. MOLTMANN, Teologia da esperança, op. cit, p. 223.
10
Cf. J. ALFARO, Esperanza cristiana y liberación del hombre, Barcelona: Herder, 1972, pp. 131s.
11
A. TORRES QUEIRUGA, A revelação de Deus na realização humana, São Paulo: Paulinas, 1995, p. 228.
12
A consciência de que com Cristo culmina de modo definitivo e irrevogável a história da salvação é patente
ao longo de todo o Novo Testamento. Por exemplo, nos sinóticos o próprio Jesus diz que não veio revogar,
mas dar pleno cumprimento à lei(cf. Mt 5, 17). De modo teologicamente mais elaborado, João afirma que
Jesus, o Logos de Deus, é pleno de graça e de verdade (cf. Jo 1, 14. 16-17). Esta mesma consciência persistiu
na tradição patrística e medieval. Foi também objeto de consideração expressa depois de Trento (cf. ibidem, p.
229).
59

2.1.2. Cristo, acontecimento escatológico para a humanidade, para a história e para o


mundo

A experiência cristã passa necessariamente por Cristo, mas não deve se converter
num “cristomonismo”. Ou seja, não pode se fechar no evento Cristo. Ao redor de Jesus
Cristo, a pedra angular, é que se estrutura a fé cristã, de modo que só compreenderemos
vários elementos do cristianismo à luz de Jesus de Nazaré. Porém, a experiência cristã é
maior que Cristo, pois ela faz referência ao Pai. Jesus não pregou a si mesmo, mas o Reino
de Deus. Jesus, no Novo Testamento, aparece descentrado de si em relação ao Pai e ao
Espírito Santo. Mas, como referência obrigatória para a teologia cristã, veremos como ele é
a plenitude do ser humano, o sentido último para a história e que, no fim dos tempos, o
universo inteiro formará um só corpo nele, cabeça de tudo, conforme a “grande bênção”
que abre o texto de Efésios (cf. 1, 3-14).

a) Cristo, plenitude do ser humano

Como é possível a culminação insuperável em Cristo? As passagens do Novo


Testamento apresentam toda a existência de Jesus Cristo como acontecimento escatológico
por excelência. Na realidade, o mistério dessa plenitude coincide com o mistério do próprio
Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem.

Se em Cristo falamos de plenitude, significa que a possibilidade humana é exercida


nele até o extremo. Na pessoa de Jesus acontece de modo total o encontro de Deus com o
ser humano. Ou seja, a livre decisão divina de comunicar-se sem reservas ao homem
encontra em Cristo uma abertura plena. Jesus é o homem capaz de experienciar em toda a
sua radicalidade a presença de Deus que quer se dar a nós. Ele também é capaz de acolher
esta presença com a entrega absoluta de sua liberdade13.

13
Cf. Ibidem, p. 241.
60

Pode-se dizer que em Cristo nos encontramos diante de uma existência humana na
qual estão explicitadas as chaves pelas quais o homem e a mulher em comunhão com Deus
alcançam sua realização definitiva. O projeto de Deus, a respeito do ser humano, alcança
sua consumação máxima no seu Filho Jesus.

O Novo Testamento mostra a existência de Cristo como acontecimento escatológico


para o ser humano. As teologias paulina, joanina e a da carta aos Hebreus, por exemplo,
consideram a encarnação14 um ato de solidariedade de Cristo. Encarnando-se, toda a
humanidade fica incorporada ao destino de Cristo e está na esperança da salvação, pois,
como afirma São Paulo: “Fomos salvos em esperança” (Rm 8,24). Mas é a ressurreição,
plenitude da encarnação, que dá sentido escatológico à existência terrena de Jesus Cristo e,
em Jesus, à nossa.

Paulo afirma que Cristo ressuscitou como primícias dos mortos (cf. 1 Cor 15, 20.
23). O Apóstolo expressa com o termo “primícias” o fato de que, em Cristo ressuscitado,
está incluída a nossa salvação futura, de modo que a humanidade participa do destino
glorioso de Cristo. Em sua ressurreição, o poder divino realizou um ato irrevogável, dando-
lhe vitória sobre a morte e transformando-o em princípio vivificante da humanidade15.

14
A encarnação é um dos temas mais problematizados na atualidade teológica. Os questionamentos sobre ela
vêm de dentro do próprio cristianismo, que critica a linguagem metafísica utilizada para explica-la, e da
cultura moderna. Uma das características desta cultura é a absolutização da razão, que gera um radical
antropocentrismo. Esta perspectiva concebe Deus como alteridade que não se relaciona com a contingência
humana. E o homem, por sua vez, não está aberto a Deus para não perder sua autonomia. À luz dessa
cosmovisão, dizer que Jesus é Deus e homem parece uma contradição lógica. Mas, a fé cristã não se situa no
nível da lógica, e sim do paradoxo: está além da doxa, da opinião comum. A problemática da encarnação não
se situa apenas no nível da linguagem. A encarnação em si mesma é um escândalo para a razão, pois “Deus
vindo na carne” é um querigma inesperado. Deus se encontra, segundo o evento da encarnação, onde a razão
menos esperava: no esvaziamento. Este fato estabelece uma nova relação entre Deus e o ser humano que
desconserta a razão. Apenas o amor e a liberdade divina dão conta de explicar a relação entre Deus e a
criatura. Na encarnação transparece a condescendência de Deus: o que acontece em Jesus só pode ser
explicado a partir de Deus. Em sua expressão humana frágil, Jesus é a manifestação do Absoluto. No Filho, a
experiência de Deus é levada ao máximo possível para um homem. A ousadia da fé cristã apresenta o
escândalo da encarnação como sabedoria divina. Com isto, abre-se um sentido para a contingência humana.
Ela tem valor porque foi assumida livremente por Deus, o qual não estava obrigado a isto.
15
Cf. J. ALFARO, Esperanza cristiana y liberación del hombre, op. cit., pp. 142-144.
61

O evento da ressurreição de Cristo é cumprimento e promessa definitiva de Deus


que inaugura o futuro da humanidade, mas não somente para ela. Também a história recebe
de Cristo sentido definitivo.

b) Cristo, sentido último para a história

Se em Cristo o homem tem uma definitividade insuperável, isso aparece também na


dimensão histórica. O acontecimento escatológico da ressurreição é que oferece esta
possibilidade. A ressurreição é prolepse ou antecipação: um fim da história não absoluto ou
fechado, mas provisório e antecipado. A antecipação do fim universal da história na
ressurreição individual de Cristo permite descobrir o sentido da história universal16. Mas, a
pessoa necessita apropriar-se da revelação que acontece no seio da história. Aquilo que
chegou ao cume tem a possibilidade de “se repetir”, ao ser apropriado pelo homem.

Cristo abriu para todos os homens e mulheres o acesso a essa plenitude. A partir
dele toda a humanidade é colocada em nova situação: a de participar de uma realização
definitiva. Esta possibilidade é atual, já que pode ser experimentada em cada geração.
Assim, a plenitude acontecida em Cristo é entregue à história. Devido à presença do
Ressuscitado, a humanidade tem diante de si um futuro sempre aberto como realidade a ser
construída, como projeto que, em sua perfeição, permanece promessa escatológica17.

Todas estas afirmações acima pretendem mostrar, com efeito, a universalidade da


revelação18 em Jesus Cristo. Não estamos, assim, querendo defender uma universal
pretensão do cristianismo? Certamente, mas não numa perspectiva dominadora, como a
Igreja muitas vezes entendeu no passado. Não se trata, à exemplo de certas correntes da
teologia tradicional, de privilegiar o particular numa espécie de “universalidade de
conquista”.

16
Cf. A. TORRES QUEIRUGA, A revelação de Deus na realização humana, op. cit., p. 235.
17
Cf. Ibidem, p. 270.
18
Andrés Torres Queiruga trata com profundidade esta questão que, no diálogo inter-religioso, se apresenta
um tanto polêmica e complexa (cf. Ibidem, pp. 273-353).
62

A antiga perspectiva exclusivista ensinava que enquanto a revelação não chegasse


aos não cristãos, estes estariam privados da salvação. E nos casos em que a revelação lhes
chegasse, deveria ser assimilada como algo alheio à sua busca, aos seus problemas e
respostas. Esta postura é, na verdade, um “imperialismo cristão” que torna impossível um
diálogo autêntico, e também elimina a possibilidade de uma compreensão universal da
revelação plena em Cristo19.

Compreendemos corretamente a universalidade da revelação com a ajuda do Novo


Testamento. Ele apresenta a universalidade “a partir de baixo”20, destacando a kenosis de
Jesus como uma novidade escandalosa da fé cristã. Este evento ousado revela a humildade
de Deus21 e sua vontade de universalizar a salvação em Jesus. A própria vida de Cristo
mostrou que ele evitou particularizar a salvação, não excluindo dela nenhum indivíduo ou
grupo, quando escolheu uma real universalidade dentro da história: a do sofrimento.

Por isso, Jesus assumiu a missão do servo despojado de tudo (cf. Is 52-53), viveu
como alguém que não tinha nem onde reclinar a cabeça (cf. Mt 8, 20; Lc 9, 58) e assumiu a
“condição de escravo” (cf. Fl 2, 5-11). Deus entrega-se totalmente em seu Filho à
“internacional” condição humana: a dos humilhados e ofendidos. É esta auto-doação divina
que revela a universalidade do amor cristão. Trata-se de uma fé que se proclama universal e
que o faz a partir da vida de Jesus, sobretudo da experiência da cruz, na qual ele busca o
“universal humano” através do esforço em realizar a justiça e proporcionar melhor vida
para os homens22. Não somente a humanidade e a história, mas também o mundo inteiro
recebe de Cristo seu sentido definitivo.

c) Cristo e a plenificação do mundo

19
Cf. Ibidem, pp. 297s.
20
Ibidem, p. 295.
21
Ao longo de sua história, o cristianismo chegou a apresentar-se como a única religião verdadeira e superior
às demais. Contraditoriamente, a encarnação foi compreendida como acontecimento que colocaria a religião
cristã num patamar superior. Na verdade, a encarnação de Jesus é prova de sua humilhação e doação total aos
seres humanos. Deste modo, o cristianismo, continuando a missão de Cristo na história, se torna coerente e
fiel a Jesus se mantiver uma postura de serviço e humildade, sem pretensões de dominação ou exclusividade.
22
Cf. A. TORRES QUEIRUGA, A revelação de Deus na realização humana, op. cit., p. 296.
63

O fato de o mundo receber seu sentido pleno em Cristo é atestado em alguns


escritos neotestamentários. Por exemplo, o hino de Cl 1, 15-20 vê todo o universo em
relação a Cristo23: toda a criação, tudo o que há no céu e na terra, o visível e o invisível,
todas as coisas (vv. 16.17.20). Ao se referir a Cristo, ele é citado como o “primogênito de
toda a criação” (v.15). Trata-se de um primado de preeminência de Cristo sobre o universo:
“tudo foi criado nele”(v. 17)24.

A glorificação de Cristo na ressurreição mostra que a criação também está


previamente ordenada para ele. Isto porque, sendo o primeiro no amor de Deus, seu Filho
amado, Cristo é o primeiro na intenção divina: Deus elegeu-o antes de tudo e em
dependência de Jesus Cristo quis criar o universo25. Neste processo de plenificação do
mundo, não apenas a ressurreição de Jesus desempenha papel fundamental. Também a
encarnação ajuda a explicar este processo.

A encarnação implica a aceitação do mundo da parte de Deus. Mediante a relação


da humanidade de Cristo com o mundo, este passa a ser um mundo amado por Deus, que
entra no seu plano de salvação. Assim, o sentido último do mundo fica indelevelmente
marcado pelo sinal da salvação devido à presença de Cristo nele. Tal presença na atualidade
e no futuro se dá de um modo novo por causa da ressurreição. Por ela, o corpo glorificado
de Cristo permanece vinculado à humanidade e ao mundo. A ressurreição dá ao evento
Cristo o sentido de último também ao universo. Assim, sua ressurreição é antecipação e
promessa de futuro, promessa já cumprida e todavia a realizar-se26.

23
A perspectiva de Cl 1, 15-20 coincide com a de Fl 1, 3-11. 20-23; 3, 10: a intenção divina de constituir a
Cristo, em sua ressurreição, Senhor da humanidade, da história e do mundo. O plano de Deus, de dar
plenitude à história e ao mundo em Cristo, está se cumprindo desde agora em virtude de sua ressurreição (cf.
J. ALFARO, Esperanza cristiana y liberación del hombre, op. cit., pp. 147s.
24
Cf. Ibidem, p. 145.
25
Cf. Ibidem, p. 147. Joseph Moingt, em sua obra El hombre que venía de Dios, vol. 2, Bilbao: Descleé de
Brouwer, 1995, pp. 253-294 (“Y el Verbo se hizo carne”) tem um pensamento semelhante ao de Juan Alfaro.
O texto de Moingt é de grande riqueza cristológica e esclarece vários pontos difíceis da fé cristã, relacionados
com a problemática da encarnação. O teólogo reelabora alguns artigos do credo a partir de uma sólida exegese
moderna. Faz isto tendo consciência de que a Igreja fundamenta suas asserções nos relatos evangélicos, de
modo que não pode abandoná-los para ir em busca de análises metafísicas. Refletindo sistematicamente sobre
os dados exegéticos, afirma que desde sempre, ao criar o mundo, Deus quis o que aconteceu em Jesus,
chamando-o a um plenitude definitiva.
26
Cf. J. ALFARO, Esperanza cristiana y liberación del hombre, op. cit., pp. 149-151.
64

Toda esta exposição que fizemos mostra que é possível fundamentar em perspectiva
cristológica o fim da história e do mundo27. E, neste sentido, a chave de interpretação está
no evento escatológico da ressurreição de Cristo.

2.1.3. Ressurreição28 de Jesus: base da esperança escatológica

Introdução

A ressurreição de Jesus é central para a fé cristã e para a escatologia. Não se trata


apenas da realização de uma promessa. Ela tem também a ver com o futuro da humanidade,
da história e do mundo. É no caráter escatológico da “ressuscitação” de Jesus, para usar o
termo empregado por Renold Blank, que se encontra a dimensão comunitária da esperança
cristã. Pois todo o universo participará da plenificação ocorrida em Jesus, pré-anunciada em
sua ressurreição.

27
A Mysterium Salutis, obra de referência teológica, tem um estudo a este respeito. Nas partes intituladas “É
possível fundamentar em chave cristológica o fim do universo?” e “Orientação cristocêntrica no mundo como
promessa e cumprimento” procura abordar com solidez o problema que brevemente expomos aqui. Dentre
vários teólogos que estudaram esta questão, a Mysterium Salutis lembra as tentativas rahnerina e teilhardiana
de refletir sobre o universo em perspectiva antropológica e cristológica (cf. Mysterium Salutis, op. cit., pp.
265-273). Renold Blank também diz que “o cosmo inteiro é um imenso sistema entrelaçado, cujo fim último é
a plenificação no Reino de Deus. Nesta plenificação se revela que Deus também faz parte deste sistema (...).
Tal reciprocidade entre Reino de Deus, mundo e processo histórico torna-se cada vez mais um dos grandes
novos enfoques da escatologia” atual (cf. R. J. BLANK, Escatologia do mundo, op. cit., p. 155).
28
Este item sobre a ressurreição dará elementos imprescindíveis para a compreensão dos “novíssimos”, já que
a cristologia (e dentro dela, a centralidade da ressurreição) é chave hermenêutica para a compreensão de céu,
purgatório e inferno (bem como de outros aspectos da escatologia cristã). Por isso, é nossa intenção
desenvolvermos bem esta parte. Ao fazermos isto, ficará clara também a conexão que existe entre escatologia
pessoal e escatologia coletiva, acenada na nota 83 do capítulo anterior.
65

Neste item, apresentaremos a importância da ressurreição de Jesus para a


escatologia cristã. Faremos isto em quatro momentos. No primeiro, veremos o caráter
escatológico da “ressuscitação” de Jesus, mediante a qual Deus revela seu poder soberano e
sua fidelidade. No segundo, exporemos a relação mútua que existe entre o Cristo glorioso,
os ressuscitados e as pessoas deste mundo: a ressurreição de Cristo une a Igreja celeste e a
terrestre. No terceiro momento, veremos que a ressurreição de Cristo envolve a história da
humanidade. Explicaremos isto aprofundando o sentido da ressurreição corporal.
Finalmente, mostraremos que a ressurreição corporal também implica a plenificação do
cosmo.

a) O caráter escatológico da ressuscitação29 de Jesus

Os textos neotestamentários, assim como o credo da Igreja primitiva, ensinam que a


ressuscitação não é um agir ativo de Jesus, mas uma ação de Deus no Jesus passivo e
morto30. De fato, a ressuscitação de Jesus é uma ação exclusiva de Deus. Ela não é um ato
ou opção humana, mas uma ação e uma escolha exclusivamente divinas.

29
Renold Blank afirma que o termo “ressuscitação” mostra melhor a iniciativa de Deus no ressuscitar Jesus
dentre os mortos (cf. R. BLANK, Escatologia do mundo, op. cit., p. 330). É importante lembrar esta
particularidade tão cara ao teólogo suíço, se bem que outros utilizem igualmente o termo, como por exemplo
Jürgen Moltmann. Neste item privilegiaremos o uso deste termo, usando-o na maioria das vezes, procurando
assim destacar a ação salvífica do Pai sobre seu Filho morto. Mas, no conjunto do trabalho, usaremos o termo
“ressurreição” por estar incorporado ao uso corrente na teologia. Também porque, como diz Hans Kessler,
“para a linguagem do antigo e do novo testamento, ressuscitar e ser ressuscitado são sinônimos” (H.
KESSLER, La resurrección de Jesús. Aspecto bíblico, teológico y sistemático, Salamanca: Sigueme, 1989, p.
246).
30
Alguns textos sobre a ressuscitação de Jesus: At 2, 24; 2, 32; 3, 15; 4, 10; 5, 30; 10, 40; 13, 30; 13, 37; Rm
4, 24; 7, 4; 8, 11; 10, 9; Cl 2, 12; Ef 1, 20; Gl 1, 1; 1 Cor 6, 14; 15, 12.15.20; 2 Cor 4, 14; Tm 2, 8; 1 Pd 2, 21.
66

O Novo Testamento, ao falar da ressuscitação de Cristo, põe em destaque a ação de


Deus e nada diz a respeito de uma “autoressurreição” de Jesus. Pelo contrário, a
ressuscitação é pura ação gratuita e livre do Pai, por meio de seu Espírito, no Filho
crucificado e morto31. Não foi o homem Jesus que superou a morte, mas a
autotranscedência amorosa de Deus que “faz viver os mortos e chama à existência as coisas
que não existem” (Rm 4, 17).

É necessário esclarecer que, sendo a ressuscitação obra única de Deus, isto não
implica em nenhuma arbitrariedade divina anulando a liberdade humana de Jesus. Ao longo
de sua existência terrena, Jesus viveu uma relação singular de confiança em Deus. Ele
entregou-se totalmente à causa do Pai, pregando o Reino. Esta orientação fundamental de
sua vida foi assumida por Deus, produzindo o encontro definitivo entre a liberdade de Deus
e a liberdade de Jesus.

A morte de Jesus pôs à prova o amor e a fidelidade de Deus. Ressuscitando seu


Filho, Deus se mostrou fiel. Como era conhecido em Israel, seu amor se mostrou autêntico
e carregado de perenidade. A ressuscitação cumpre a promessa de vida da parte de Deus:
“ressurreição é amor que é-mais-forte-que-a-morte”32. Assim, podemos compreender
adequadamente a ressuscitação de Jesus Cristo partindo deste pressuposto teológico33. A
31
Cf. H. KESSLER, La resurrección de Jesús, op. cit, pp. 246s. É mérito de Bultmann ter frisado a correlação
“ressurreição – Deus que nos sai ao encontro”, de modo que, à semelhança de Barth, pode-se afirmar que a
frase “ressurreição dos mortos” é paráfrase da palavra Deus. Com efeito, um dos nomes com que o Novo
Testamento chama Deus é “o que ressuscitou a Cristo dentre os mortos” (cf. J. L. RUIZ DE LA PEÑA, La
outra dimension. Escatologia cristiana, Madrid: EPASA; Mensajero; Razón y fe; “Sal Terrae”, 1975, p. 218).
32
J. RATZINGER, Introducción al cristianismo apud J. L. RUIZ DE LA PEÑA, La outra dimension, op. cit.,
p. 218. Esta exaltação do amor de Deus, na ressuscitação de Jesus, feita por Ratzinger lembra a observação de
Kessler, segundo a qual é insustentável a tese que diz ser o amor de Jesus até o extremo a força criadora que
operou, no plano da causalidade intramundana, a sua ressurreição. Ao contrário, Kessler afirma que somente o
amor de Deus, e não o amor humano, é mais forte que a morte (cf. H. KESSLER, La resurrección de Jesús,
op. cit., pp. 247s).
33
Não apenas a dimensão teológica, mas também a cristológica e a pneumatológica, segundo Kessler e outros
autores, são fundamentais para se compreender a ressuscitação de Jesus. Ou seja, para uma correta abordagem
dela é preciso dilatar seu horizonte compreensivo, ligando-a à dimensão trinitária. Isto nos ajuda a superar
uma compreensão historicista e milagrosa. Também, a não ficarmos centrados só no “acontecido em Jesus”,
na ressurreição em si mesma. Dentro do contexto trinitário, vários aspectos da ressurreição se esclarecem. E
este processo faz-nos compreender a páscoa como uma unidade. Vejamos, agora, o que os aspectos
cristológico e pnematológico revelam a respeito da ressurreição. Aspecto cristológico. A ressurreição diz
respeito a algo acontecido na vida de Jesus Cristo. A missão dele pareceu um fracasso. Mas, ressuscitando
Jesus dentre os mortos, Deus valoriza a vida e a morte de seu Filho. Ao ressuscitá-lo, Deus arranca-o do
absurdo e leva à plenitude o que ele pretendeu com sua vida e morte, conferindo-lhes um valor definitivo.
Assumindo a vida e a morte de Jesus, Deus fez com que seu destino iluminasse a vida da humanidade. Por
67

lógica da ressuscitação é uma teo-lógica radical. A ação de Deus, ressuscitando Jesus, em


comparação com outros grandes atos divinos (criação, êxodo, atividade dos profetas etc) é
um ato último por excelência, de radical sentido escatológico.

O específico da ressuscitação de Jesus está no fato de ser obra escatológica de Deus,


e o modo que Ele ratifica a vida e a mensagem de seu Filho. Confirma também as opções
de Jesus através das quais realiza-se o plano escatológico divino. A ressuscitação de Cristo
representa a afirmação de Deus e sua autodedicação definitiva ao mundo. Deste modo,
Deus se encontra presente nele de maneira qualitativamente nova. Esta presença anuncia
que Deus não irrompe de maneira repentina na história, mas inicia um processo
escatológico cuja garantia de êxito é a ação do próprio Deus. Renold Blank assim expressa
este pensamento:

“A ressuscitação de Jesus se torna sinal escatológico exemplar de Deus. Nele, o próprio


Deus da vida prova o fim do mundo antigo da morte e o começo do novo mundo da vida (...). Com a
ressuscitação de Jesus algo qualitativamente novo aconteceu dentro da história. Este novo é obra de
Deus. Irrompendo no esquema do mundo antigo da morte, provou o fim deste mundo”34.

A ressuscitação é a maior prova da divindade de Deus. Ela mostra como Ele se


identificou com a imagem escandalosa que Jesus assumiu em toda a sua existência. Tal
imagem é a de um Deus que acolhe aqueles que estão perdidos e mortos. Deus é o Deus dos
vivos, liberta da escravidão e da injustiça e não renuncia ao seu senhorio exclusivo sobre a
humanidade, a história e o mundo.

A ressuscitação de Jesus nos ensina poder contar com Deus que se aproxima de nós
com sua ação salvífica, abrindo-nos novas possibilidades de vida. O Crucificado
Ressuscitado passa a ser paradigma da fé cristã, pois sua ressuscitação afeta a todos nós, de

isso, sua ressurreição tem uma dimensão soteriológica. Ele alcançou a salvação na totalidade de suas relações,
está em íntima união com Deus e também intercede em favor dos seres humanos. Aspecto pneumatológico. O
Novo Testamento não está preocupado em explicar a ressurreição em si mesma. O mais importante são os
frutos dela. Neste sentido, uma das conseqüências da ressurreição é a vida nova da comunidade que procura
viver como ressuscitada e, assim, tornar-se testemunha no mundo. Há uma nova presença e ação do Senhor
ressuscitado através do seu Espírito (expansão pneumatológica). É o Espírito que levará a termo, em nós e no
mundo, o realizado na ressurreição de Jesus. Sendo assim, a ressurreição de Cristo é incompleta. Há ainda
muito a ser feito para que a ressurreição se realize plenamente em nós e no cosmo por obra do Espírito Santo
(cf. H. KESSLER, La resurrección de Jesús, op. cit., pp. 219-341).
34
R. J. BLANK, Escatologia do mundo, op. cit., p. 332.
68

modo que temos uma relação real com ele e com os demais ressuscitados35. Ou seja, a
ressuscitação de Jesus Cristo possui força expansiva que abrange a Igreja celeste e a
terrestre. Todos os seres humanos (as pessoas deste mundo e os bem-aventurados) estão em
mútua relação entre si e com o Cristo vitorioso.

b) Relação mútua entre o Cristo glorioso, os ressuscitados e as pessoas deste mundo

No centro da escatologia cristã se encontra Deus que em Cristo abriu as portas do


seu futuro para nós. Cristo, entretanto, está a caminho da plenificação do Reino; ele mesmo
é o caminho, a verdade e a vida (cf. Jo 14, 6). Nele estamos reconciliados com Deus, mas
ainda pertencemos a um mundo não redimido e ansiamos, juntamente com as pessoas desta
terra, por uma nova humanidade. Na história, Cristo está ainda a caminho de seu senhorio
sobre todas as coisas. Quem morre em comunhão com ele, morre em união com Aquele que
abre caminho para o Reino vindouro36. E, juntamente com Cristo, esperamos pela
plenificação do universo.

A vida eterna, que é ressurreição e comunhão com Cristo, é força de união visando à
inteireza de vida. Ela se traduz socialmente como integração na comunhão do amor eterno.
De fato, por levarmos aqui uma vida social, não existe ressurreição apenas individual, mas
ela tem sempre um aspecto social. Se não fosse assim, a vida eterna não poderia ser amor37.
Cristo deseja esta reconciliação universal, pois na glória ele continua sofrendo em sua
Igreja terrena, que é seu corpo. Desta forma, Cristo entrará na bem-aventurança definitiva
junto com seus membros ressuscitados.

A Cristo também se aplica a tensão escatológica “já-ainda não”: pessoalmente ele já


está ressuscitado, mas fica ainda pendente uma parte dele que somos nós. Parte importante

35
Leonardo Boff ensina que a ressurreição de Jesus é uma utopia humana realizada. Afirma que “em Jesus
Cristo recebemos a resposta definitiva de Deus: não a morte, mas a vida é a última palavra que Ele, Deus,
pronunciou sobre o destino humano. Para o cristão não há mais uma utopia mas topia: a vida eterna possui um
lugar dentro do nosso mundo (...), Jesus ressuscitado” (L. BOFF, A nossa ressurreição na morte, Petrópolis:
Vozes, 1999, p. 61).
36
Cf. J. MOLTMANN, A vinda de Deus, op. cit., p. 124.
37
Cf. Ibidem, p. 87.
69

que o converterá no “Cristo Total”. Por isso, para o corpo de Cristo se tornar o “grande
corpo reconciliado” é preciso que nele se incorpore até o último ser humano ressuscitado38.

Além desta comunhão de Cristo com os ressuscitados, existe sua relação com os
vivos a caminho da eternidade. Estamos privados da presença física de Jesus, morto na
história. Mas, estamos perante sua presença transcendente e real. Profundamente mudado,
porque já alcançou a plenitude definitiva, ele é o mesmo Jesus que os discípulos
conheceram. O Cristo glorioso tem agora um novo modo. Contudo, continua sendo o
mesmo: com idêntico amor e com a mesma entrega39. Assim, o homem ressuscitado Jesus
está permanentemente com Deus e exerce uma função salvífica em favor de nós. Ele
pertence, portanto, ao mundo ao mesmo tempo que, de maneira definitiva, pertence também
ao mistério de Deus. Cristo está, por isso, no centro constitutivo de toda a realidade.

Com base na comunhão de Cristo com os ressuscitados e os vivos desta terra, há


também uma comunhão permanente entre os bem-aventurados e os irmãos deste mundo.
Referimo-nos a uma comunhão de amor e de uma esperança comum. A separação física,
provocada pela morte, não é superada em nós, e sim no Cristo ressuscitado. Por esta razão é
nele que ficamos ligados aos demais ressuscitados por meio do amor mútuo e da esperança
comum40. Professar a esperança na ressurreição dos mortos significa manter a comunhão
com os ressuscitados e aprofundá-la na solidariedade: a comunhão com Cristo sempre foi
entendida como uma comunhão com os bem-aventurados e os vivos a caminho da vida
eterna.

A formulação desta esperança da ressurreição de modo tão exclusivamente


cristológico, levanta a pergunta de sua validade para todas as pessoas. De fato, a superação

38
Cf. F. MIER, Apuesta por lo eterno. Escatología cristiana, San Pablo: Madrid, 1996, p. 285.
39
Cf. A. TORRES QUEIRUGA, Repensar a ressurreição. A diferença cristã na continuidade das religiões e
da cultura, São Paulo: Paulinas, 2004, p. 244. Também Kessler expressa esta idéia com as seguintes palavras:
“Essa relação é real e possível graças à presença do Senhor elevado, que é idêntico com o Jesus terreno e
crucificado (...). Por isso, Jesus, enquanto elevado, é também o Senhor de sua história terrena e nos é acessível
nela. Apesar da distância histórica com respeito ao Jesus terreno há, portanto, uma imediatez pessoal com
Jesus Cristo que não se nutre só de informação histórica (...), mas que se realiza no processo horizontal, por
assim dizê-lo, do testemunho histórico (...) mediante a ação vertical do Senhor elevado” (H. KESSLER, La
resurrección de Jesús, op. cit., p. 300).
40
Cf. J. MOLTMANN, A vinda de Deus, op. cit., p. 126.
70

da morte se mostrou de modo explícito com Cristo. O Novo Testamento é testemunho do


emergir desta consciência religiosa dentro da história da humanidade. Paulo o indica em 1
Cor 15, 23-26 como uma seqüência do processo da ressurreição: a primícia, Cristo, em
seguida os que pertencem a ele; depois, todos. Se for vista desta maneira processual, a
esperança não é exclusiva, mas uma esperança inclusiva e universal41.

A ressurreição significa que, para Deus, nada do ser humano se perde. A identidade
pessoal é transfigurada por Ele de modo que a pessoa reencontra sua história reconciliada,
curada e plenificada. Esta transformação do homem integral, incluindo seu relacionamento
social e com o mundo, é chamada na teologia cristã de ressurreição corporal ou ressurreição
da carne.
c) Ressurreição corporal: valorização da história humana

Na morte, Deus ressuscita o ser humano global, com toda a sua história,
envolvimento social, estrutural e cósmico, de modo que, aquele que morre, passa por uma
transformação total42. Sua identidade pessoal se mantém, porém, para além da morte física.
Esta idéia é bem expressa por Renold Blank que afirma:

“(Deus) ressuscitará as pessoas inteiras. Estas pessoas que, como seres corporais,
interiorizaram o mundo na sua dimensão corporal. Estas pessoas que, como seres corporais, criaram
uma história, vivida como pessoas inteiras, numa indivisível união de um ser material-espiritual”43.

Esta nova compreensão escatológica foi possível de ser desenvolvida graças à


antropologia unitária atual44. Esta demonstra que a noção de corpo não pode ser
41
Cf. Ibidem, p. 129. Andrés Torres Queiruga também afirma a universalidade da ressurreição. Existe uma
diferença cristã na continuidade das religiões e da cultura. A vida para além da morte é a matriz comum a
partir da qual as religiões traduzem esta esperança. As diferenças encontráveis nos pormenores respondem à
configuração específica segundo as características de cada tradição (cf. A. TORRES QUEIRUGA, Repensar
a ressurreição na morte, op. cit., p. 118). Nesta linha, Leonardo Boff afirma que a experiência da ressurreição
de Cristo é novo campo para a antropologia: “Sua ressurreição não emerge como fato isolado, mas
dimensiona universalmente a toda a humanidade” (L. BOFF, A nossa ressurreição na morte, op. cit., p. 72).
42
A respeito de uma ressurreição na morte chegou-se, segundo Medard Kehl, a um certo consenso na teologia
católica dos últimos 40 anos (cf. M. KEHL, Eschathologie, apud R. J. BLANK, Escatologia da pessoa, op.
cit., p. 112). Renold Blank desenvolve o tema da ressurreição na morte nas páginas 105 a 147 do seu livro
Escatologia da pessoa.
43
R. J. BLANK, Escatologia da pessoa, op. cit., p. 123.
44
Como vimos no capítulo primeiro, trata-se do resgate da antropologia bíblica, que afirma a unidade do ser
humano. O dogma da ressurreição do corpo tem, portanto, bases bíblicas. Com ele, queremos dizer que: o ser
humano todo chega à sua plenitude; há identidade entre o ser humano que viveu a história terrestre e o que
ressuscita; o mundo material participará da glorificação plena do homem. Estes dados mostram a relação
71

compreendida somente no nível material-físico45. O modelo “personalista” do corpo,


postulado pela antropologia contemporânea, afirma que o ser humano é essencialmente
comunicação com os outros e com o mundo46. Toda e qualquer forma de comunicação se
realiza pelo corpo. A história vivida marca o corpo do homem.

É preciso, no entanto, assinalar que a antropologia unitária e relacional, como a


noção de pessoa aqui apresentada, não foram desenvolvidas somente pela teologia
contemporânea. Na verdade, elas foram elaboradas ao longo da tradição teológica cristã. O
novo acento que lhe é dado hoje pela teologia deve-se ao fato de que esta nem sempre
manteve o equilíbrio ao traduzir o pensamento bíblico e cristão nos diversos contextos e
épocas

Como conseqüência, a ressurreição do corpo significa que o homem tem futuro para
além da morte, com toda a sua história concreta e individualmente vivida47. Deste modo,
será salva toda a sua história, com todos os seus atos e comunicações. O homem se
humaniza através do relacionamento do seu corpo com outras pessoas e com as coisas do
mundo. Através deste relacionamento, a história da humanidade está em relação com a vida
de cada ser humano. Por isso que, na ressurreição, o homem nunca chega só perante Deus,
mas juntamente com todos e com tudo que o ajudou a construir sua vida48.

Mas, com que corpo o homem ressuscita na morte? A respeito disto, é oportuno
retornar à Bíblia, precisamente ao texto de Paulo 1 Cor 15, 35.38, que procura responder a

intrínseca entre matéria e espírito, de modo que um espírito desencarnado já não é ser humano. Também: o
destino do homem está ligado ao destino dos outros homens e do mundo, pois o homem é um ser pessoal
individual e social. (cf. J. B. LIBÂNIO; Ma. C. L. BINGEMER, Escatologia cristã, op. cit., pp. 199s).
45
Medard Kehl explica bem a distinção entre “organismo” e “corpo”, afirmando que este último é mais do
que um organismo biológico. “A promessa bíblica da ressurreição dos mortos conta abertamente com a
possibilidade de nem toda forma de corporeidade significar ao mesmo tempo ‘organicidade’”, diz o teológo.
(cf. M. KEHL, O que vem depois do fim? Sobre o ocaso do mundo, consumação, renascimento e
ressurreição, São Paulo: Loyola, 2001, pp. 131s).
46
Um teólogo que defende esta teoria é Peter Hünermann. Sua sólida formação filosófica lhe possibilita
realizar um frutuoso diálogo entre filosofia e teologia. Em seu livro Cristología, Barcelona: Herder, 1997, ele
mostra que o conceito contemporâneo de pessoa, baseado na filosofia de Heiddeger, privilegia a
relacionalidade: a posição do homem no mundo e sua relação com os demais seres humanos define sua
identidade (cf. Ibidem, p. 470).
47
Neste sentido, são significativos os títulos de dois livros de Renold Blank nos quais procura mostrar que o
homem e o mundo serão salvos por Deus: Nossa vida tem futuro e Nosso mundo tem futuro (obras já citadas).
48
Cf. R. J. BLANK, Escatologia da pessoa, op. cit., pp. 146s.
72

esta interrogação. E sua resposta se baseia no pressuposto bíblico fundamental da unidade


indivisível do ser humano. Para explicar a maneira como ocorre a ressurreição, Paulo
recorre à imagem da semente49. O Apóstolo diz: “O que semeias, não readquire vida a não
ser que morra. E o que semeias, não é o corpo da futura planta que deve nascer, mas um
simples grão de trigo ou de qualquer outra espécie. A seguir, Deus lhe dá o corpo que lhe é
próprio” (1 Cor 15, 36-38).

Pelas palavras de Paulo, percebe-se que não se trata de uma revivificação de


cadáver, mas, pelo contrário, de uma transformação completa e profunda do ser humano.
Aquilo que chamamos de “corpo ressuscitado” significa uma corporeidade diferente
daquela que conhecemos. O ser humano ressuscitado muda de forma permanecendo,
porém, a mesma pessoa com todas as suas dimensões, sendo mantida a sua identidade.
Paulo, em 1 Cor 15, 44, denomina “corpo espiritual” a pessoa ressuscitada50.

A antropologia unitária permite esta afirmação já que, para ela, não existe separação
entre corpo e alma como realidades autônomas51. Ocorre, já dissemos, a glorificação da
49
As imagens são recursos importantes que apontam para uma compreensão da ressurreição, sem contudo
esgotar a inteligibilidade deste mistério da fé, que transcende a verificação empírica. Renold Blank cita duas
metáforas que ajudam a explicar a ressurreição: a metamorfose de uma lagarta em borboleta e o ato de nascer.
Neste último caso, o bebê de certa maneira “morre” junto com tudo aquilo que até então formava o seu
mundo. A dissolução de seu primeiro contexto lhe propicia a condição de entrar em outras dimensões de vida.
Da mesma maneira que a lagarta deixa atrás de si um casulo, que permanece certo tempo (mesmo quando a
borboleta já vive dentro de outros horizontes), também o ser humano deixa, na morte, um cadáver enquanto a
pessoa já vive numa nova situação como ressuscitada (cf. R. J. BLANK, Escatologia da pessoa, op. cit., pp.
137-139). Encontramos outras imagens descritas por Francisco de Mier: um corpo físico (petróleo, por
exemplo) transformado em algo físico-espiritual: energia; uma imagem televisiva de alguém que está atuando
e falando, mas tal pessoa já é falecida; a eucaristia. A respeito destas comparações, o teólogo comenta:
“Pequenas imagens, pequenas e torpes, como tudo o que se refere à vida gloriosa. Mas me ensinam que Deus
pôs em minha pessoa possibilidades imensas, sobretudo quando é Ele quem as desenvolve. Ele converterá
minha velha corporeidade em outra, inimaginável, mas necessária e suficiente para continuar sendo homem
na glória celestial” (F. MIER, Apuesta por lo eterno, op. cit., p. 276; as referidas imagens são descritas nas
páginas 272-276 do mesmo livro).
50
“Corpo espiritual” não é algo contraditório, pois a Bíblia não compreende corpo como algo oposto ao
espírito. Homem-corpo se refere à abertura da pessoa ao mundo; homem-espírito/alma, à abertura para Deus.
Leonardo Boff explica que “com a expressão corpo espiritual, Paulo quer dizer o seguinte: pela ressurreição,
o homem inteiro foi repleto da realidade divina e libertado de suas alienações como fraqueza, dor,
impossibilidade de amor e de comunicação, pecado e morte. O homem não abandonou nada de seu estatuto
antropológico, apenas foi totalmente libertado e penetrado da realidade divina” (L. BOFF, A nossa
ressurreição na morte, op. cit., p. 74).
51
Querer ver na imortalidade da alma a última palavra sobre o destino humano é desconsiderar a antropologia
unitária bíblica. A imortalidade da alma é uma noção filosófica; a ressurreição dos mortos, uma esperança. A
primeira é confiança em algo imortal no ser humano (e postula sua autotranscedência); a segunda é uma
confiança no Deus criador da vida (e confirma a transcendência divina) (cf. J. MOLTMANN, A vinda de
73

pessoa na sua inteireza, como em Jesus, que foi glorificado não apenas em sua alma
desencarnada. Na verdade, a encarnação ajuda a compreender a ressurreição corporal52. No
mistério da encarnação, Deus revela-se como alguém que ama o corpo, ponto de união
entre o homem e o mundo. Com a decisão de Deus de ressuscitar o ser humano, está unida
também a sua orientação em favor do universo, que está ordenado àquela corporeidade53.

d) Ressurreição corporal e plenificação do universo

A vontade salvífica de Deus inclui também o cosmo inteiro. Isto é uma


conseqüência da ressurreição da pessoa. A ressurreição do corpo não é um acontecimento
individual, mas um evento dentro de uma dinâmica cósmica de plenificação do universo, do
qual o ser humano participa. De fato, uma consumação do indivíduo é possível unicamente
no horizonte da consumação da sociedade e do mundo. Pois o indivíduo é, por definição
ontológica, um ser social e mundano. Portanto, uma doutrina individualista da ressurreição
é essencialmente acósmica54.

Para que, como diz a Bíblia, haja um novo céu e uma nova terra (cf. Is 65, 17.22 e 2
Pd 3, 13), o projeto de Deus implica a salvação do universo inteiro. Ao invés de
pessimismo escatológico, devemos pensar que quando Deus irrompe no mundo, Ele o faz
sempre com a intenção de salvar, como explica Renold Blank:

Deus, op. cit., p. 82). O conceito de imortalidade é uma afirmação negativa: nega a morte, ou a restringe ao
nível corporal. Ressurreição é uma afirmação positiva: sem negar a morte, diz que a pessoa recebe de Deus o
dom da vida (cf. J. L. RUIZ DE LA PENÃ, La outra dimension, op. cit., p. 215, nota 64).
52
O mistério da encarnação e da ressurreição estão intimamente relacionados: “A ressurreição é como a
encarnação ao inverso” (F. MIER, Apuesta por lo eterno, op. cit., p. 267).
53
Ibidem, pp. 267-269.
54
Cf. J. L. RUIZ DE LA PEÑA, La outra dimension, op. cit., p. 219. A doutrina da ressurreição corporal pede
uma explicação da problemática de uma estrutura cósmica ajustada à corporeidade dos ressuscitados. O
homem não pode ser concebido fora da referência do mundo. A solidariedade homem-cosmo é também
afirmada nas ciências não teológicas. A emergência do fenômeno humano tem raízes no processo de evolução
da matéria (mas, o aspecto empírico não explica a totalidade complexa do humano). O homem não pode ter
nascido à margem do mundo, senão no mundo. Se o homem não pode ser pensado sem o mundo, e se este
último se polariza dinamicamente para o ser humano, a consumação de um há de repercutir no outro. Não
existe consumação autônoma do mundo ou plenificação acósmica da pessoa (cf. ibidem, p. 226).
74

“Este projeto cósmico de Deus não se restringe aos indivíduos. Abrange a realidade inteira.
Aquela realidade cósmica que desde o seu começo (...) já era marcada pela presença ativa de Cristo.
O espírito dele impregnava toda a dinâmica do mundo. Ele era o princípio totalizante de um processo
de convergência cósmica (...). O que se podia ver no decorrer do processo era o lado exterior. O que
não era possível ser observado pelos nossos instrumentos científicos era o lado interior do processo.
Da mesma maneira, como a presença de Cristo não pode ser detectada na hóstia consagrada, ela não
se tornou visível no cosmo. Mas, assim como a hóstia é verdadeira presença de Deus, também o
cosmo esconde a verdadeira presença de Cristo”55.

A plenificação do universo foi chamada na escatologia tradicional de juízo final. E


foi descrita como um momento aterrador em que, diante de Cristo, o juiz supremo, os
homens prestariam contas. Alguns seriam castigados por suas obras más, enquanto outros
ganhariam a recompensa eterna. Este evento, que acabamos de descrever de modo simplista
e caricaturizado, é compreendido na escatologia atual como um processo dinâmico, e não
como acontecimento somente para o futuro. O juízo final revela uma identidade entre a
causa de Deus e a causa da humanidade. E ele deve ser compreendido em dois níveis
distintos, mas complementares.

Um nível de compreensão deve levar em conta a morte da pessoa. Para o homem


que morre, o juízo final coincide com sua morte. Ao falecer, o indivíduo se desliga das
dimensões do tempo e entra na eternidade, “onde” não existe sucessão temporal56. Daí que
não pode haver passagem de tempo entre o juízo particular e o final, de modo que eles
logicamente coincidem. Na sua morte, o indivíduo experimenta o “final dos tempos”. No
momento da entrada de uma pessoa na eternidade, mediante sua morte e ressurreição,
outros seres humanos também estarão se inserindo nesta dimensão atemporal, não obstante
o tempo histórico em que tenham vivido57. Na eternidade existe simultaneidade total, e não
a experiência da sucessão, própria do mundo temporal.

O outro nível de compreensão do juízo final se concentra na plenificação do cosmo.


A escatologia tradicional chamou este momento, quando o universo inteiro chega ao seu
55
R. J. BLANK, Escatologia do mundo, op. cit., p. 368.
56
Renold Blank aborda o tema da eternidade nos seus livros: A morte em questão, São Paulo: Loyola, 1998,
pp. 34 a 37 e Escatologia da pessoa, op. cit, pp. 73 a 325 (nestas páginas, o tema aparece disperso não
recebendo um tratamento específico como no livro anterior).
57
Cf. R. J. BLANK, Escatologia da pessoa, op. cit. pp. 300-303. Esta explicação vem completar o que
dizíamos anteriormente sobre o aspecto coletivo da ressurreição. Retornaremos a esta questão quando formos
estudar o céu e o purgatório, no próximo capítulo, que também possuem uma dimensão social e cósmica.
75

fim, de parusia do Senhor. A escatologia atual afirma que, com a parusia, as histórias
individuais de todos os seres humanos coincidirão com a história das estruturas do mundo.
Neste momento, o cosmo será avaliado conforme os critérios de Deus, formulados por Ele
na pessoa de Jesus ressuscitado58. O juízo implica a avaliação de algo, baseado em critérios.
Neste sentido, o juízo final se refere à apresentação dos critérios de Deus, fundamentados
na justiça, na misericórdia e no amor, que servirão de parâmetro de discernimento, como
diz Renold Blank:

“A parusia, última e definitiva revelação de Jesus Cristo, a última e definitiva reabilitação de


sua vida e sua obra, se torna assim por sua vez juízo de todos aqueles que não seguiram os valores do
ressuscitado. Torna-se juízo para o mundo inteiro, suas estruturas sociais, políticas, históricas e
religiosas. Elas têm valor, à medida que correspondem aos parâmetros de Deus. São palha, à medida
que não correspondem aos critérios dele. O Juízo Final se define assim com (sic) a conseqüência
lógica da revelação de Deus para o cosmo inteiro ”59.

É assim que se consuma, no pensamento de Renold Blank, o processo do


envolvimento de Deus com o cosmo. Envolvimento que tinha seu início na tempestade
cósmica do big-bang, e que terá seu fim na transformação grandiosa à qual damos o nome
de juízo final ou parusia do Senhor.

Conclusão

Jesus Cristo é a palavra definitiva de Deus aos seres humanos e ao universo. Por
causa dele podemos ter esperança no futuro: esperança que vence o medo e incentiva a agir
para transformar este mundo. A vida de Jesus mostra que Deus estava envolvido com ele,
sustentando sua missão. Também Deus se envolve conosco, com nossa história, com esta
terra. A ressurreição de Cristo, que mostra este envolvimento salvífico, é luz a mostrar o
sentido da vida humana e aponta a meta para a qual caminhamos juntamente com o mundo.

58
Cf. R. J. BLANK, Escatologia do mundo, op. cit., pp. 360s. Renold Blank não explica de que forma
ocorrerá esta avaliação em termos práticos para todo o universo. O teólogo aponta quais são os critérios:
justiça, misericórdia e amor. Eles servem de discernimento para o ser humano. E os demais seres? Como
serão avaliados?
59
Ibidem, p. 362. Nesta citação, o teólogo interliga a idéia de juízo final com parusia (cf. também ibidem, p.
345). Baseando-se em Mt 25, afirma que “a segunda vinda de Jesus já começou a se realizar nos seus irmãos.
Realiza-se no decorrer do processo histórico (...), e em nada espetacular em todos aqueles lugares onde
homens e mulheres realizam a profunda verdade contida no texto de Mt 25. E quando este processo chegar à
sua plenitude (...), aí o processo da parusia chega à plenitude” (ibidem, p. 351). Assim, “a parusia já começou.
Ela está em andamento como o processo de cristificação dos relacionamentos humanos” (ibidem, p. 352).
76

A crença na vida eterna fundamenta a aceitação desta vida e faz com que as pessoas
se envolvam irrestritamente com a vida como um todo. Aquilo que é esperado como
ressurreição dos mortos chama-se aqui vida vivida no amor. A esperança da ressurreição
torna as pessoas dispostas a viverem integralmente suas vidas no amor e a valorizarem este
mundo, assim como Jesus o fez, ensinando a transformá-lo. É a partir desta perspectiva que
nossa esperança tem fundamento sólido. De fato, o Deus revelado em Cristo é o penhor da
nossa esperança escatológica.

2.2. A esperança

Introdução

Antes de ser algo especificamente cristão, a esperança é um princípio humano,


presente na estrutura antropológica da pessoa. No caso particular da esperança cristã, ela
tem seu fundamento em Jesus. Mas, o Nazareno esteve inserido na vida de seu povo. Ele
herdou a tradição de Israel que tem a esperança na realização das promessas divinas um de
seus elementos essenciais.

Para compreender a esperança cristã, é preciso situá-la no contexto da esperança do


povo eleito, que se caracteriza por ser uma esperança concreta, histórica. Podemos dizer
que a esperança israelita pertence à pré-história da esperança cristã. Mas, esta última
77

“supera”60 a de Israel realizando um salto qualitativo, justamente porque se baseia no


evento escatológico Jesus Cristo.

Por ser histórica, a escatologia cristã também é processual, pois a história é


dinâmica e tem a capacidade de transformar o mundo. Ao destacar estas duas características
da esperança (processual e histórica), queremos mostrar novamente que é preciso superar o
enfoque estático e a-histórico da escatologia tradicional, e afirmar com vigor que a
esperança na salvação deve mover o agir humano.

2.2.1. Esperança histórica de Israel: contexto compreensivo da esperança cristã

A esperança faz parte da estrutura antropológica do ser humano. A aspiração


escatológica não é um dado circunstancial, mas ontológico da humanidade. É o “princípio-
esperança”, segundo a terminologia de Ernst Bloch, que faz o ser humano caminhar na
história. Apesar das carências biológicas, psicológicas, intelectuais e espirituais, o homem é
destinado à plenitude, pois tais carências são percebidas como provocação a uma superação
pessoal, comunitária, social e histórica61.

A mensagem salvífica, contida na Bíblia, mostra que ela vem responder a este apelo
profundo do ser humano que se chama esperança. Não iremos apresentar aqui todas as
passagens do Antigo Testamento que falam da esperança. Citaremos apenas situações,
ligadas a ela, e que possuem um caráter escatológico tendo uma relação com a idéia de
60
Aqui citamos o termo de Medard Kehl que utiliza a concepção hegeliana de superação. Esta, para Hegel,
possui três momentos que se inter-relacionam: conservar (1), eliminar (2) e elevar a um plano superior (3).
Expliquemos brevemente cada um deles, relacionando-os com o tema da esperança. (1) Os conteúdos da
esperança de Israel compatíveis com o acontecimento Jesus devem ser conservados, como no caso do Reino
de Deus e da ressurreição final. (2) Tudo o que não é compatível com a promessa contida no evento Cristo
perde validade para nós, como por exemplo, a esperança de que a vinda do Reino pode ser apressada
mediante o cumprimento da lei. (3) Se para Israel as esperanças se cumpriram de modo parcial, em Jesus
acontece algo qualitativamente novo: nele se dá o cumprimento definitivo das promessas salvíficas de Deus,
de modo que Jesus não remete para algo distinto e maior que ele (cf. M. KEHL, Escatologia, op. cit., pp. 82-
85). A explicação de Medard Kehl é boa mas, se pensarmos no diálogo judeu-cristão, ela tem seus limites. De
fato, o conceito de “superação” é ambíguo e problemático. O Novo Testamento fala de “cumprimento”. É a
partir desta categoria que temos que pensar a esperança cristã.
61
Cf. J. B. LIBÂNIO; Ma. C. L. BINGEMER, Escatologia cristã, op.cit., p. 101.
78

Reino de Deus, fundamental para Jesus62. O Reino é a verificação histórica da esperança,


que em Jesus adquire plenitude e abre outras perspectivas, como veremos mais à frente.

A razão última de nossa esperança é Deus. Mas, não o Deus da filosofia helênica,
que é alheio ao mundo. Uma espiritualidade inspirada neste Deus gera uma esperança
ligada apenas ao além. O Deus bíblico, ao contrário, conduz a uma esperança concreta. A
esperança bíblica é esperança concreta de vida neste mundo. A esperança nas promessas de
Deus impulsionava o povo de Israel a buscar mais vida e a superar tudo aquilo que, na
história, impedia a felicidade das pessoas. De fato:

“O conteúdo básico de toda a escatologia é a esperança. Esperança que a situação irá


melhorar. Esperança que o rumo tantas vezes incompreensível da história tenha algum sentido.
Esperança que o fim último deste mundo ultrapasse os planos e projetos de todos aqueles que se
autodeclaravam os senhores do mundo, e que por causa disso exigiam o poder, oprimindo os fracos
(...). Contra todos eles (...), a escatologia mantém a esperança de que o fim último de tudo não será o
triunfo destes, mas a vitória do projeto histórico de Deus (...). Eis a grande esperança de todos
aqueles que sofrem. A esperança dos fracos”63.
Estas palavras de Renold Blank caracterizam, de modo genérico, o essencial da
esperança no Antigo Testamento. É uma esperança que se baseia num Deus que optou
pelos fracos, pelos pobres e pelos oprimidos, ajudando-os a lutar por situações melhores.
Ela fundamenta-se no agir de Deus cujo campo de ação é o mundo. Esta convicção marca a
fé de Israel. Baseando-se nela, o povo eleito mantinha sua esperança apesar de todas as
catástrofes históricas, e vivia uma esperança enraizada nas experiências e necessidades da
história.

Mostraremos a seguir como, ao longo de sua história tribulada, Israel desenvolveu e


manteve sua esperança em Deus64.

62
“Cabe falar de ‘escatologia’ no Antigo Testamento quando se espera de Deus uma salvação última e
definitiva, tanto no seio da história como no plano de um possível aperfeiçoamento dela”. (M. KEHL,
Escatologia, op. cit. p. 98, nota 15). Medard Kehl faz esta afirmação com base em Nobert Lohfink (cf. N.
LOHFINK, Escatologia en el antiguo testamento, Salamanca, 1969, pp. 163-187).
63
R. J. BLANK, Escatologia do mundo, op. cit., p. 7.
64
Renold Blank apresenta o tema da esperança de Israel procurando enfatizar sobretudo o seu caráter histórico
e a fidelidade de Deus na implantação do seu projeto escatológico, que conta também com a colaboração
humana. O teólogo tem a intenção de mostrar que, apesar dos fracassos históricos e da infidelidade humana,
Deus quer a felicidade das pessoas e a plenificação do mundo. Com esta visão positiva, dinâmica e processual
do plano escatológico divino vamos preparando, assim, uma compreensão dos “novíssimos” numa
perspectiva diferente da teologia tradicional, em que predominava o medo e o desligamento da realidade.
79

a) Período pré-monárquico: as promessas de Deus65

Na dinâmica da esperança na época anterior à monarquia (séculos XIX a XII a. C.),


Deus se revela como alguém que promete terra. Esta promessa divina responde ao anseio
de um povo sem terra. É neste anseio que se funda a história de Abraão. À promessa de
terra se liga a da prole. Quem tem prole continua a viver nos filhos e netos e, por isso, sua
vida tem futuro. Antes da monarquia, Deus também se revela como aquele que liberta da
opressão (cf. Ex 3, 6-10). Neste agir, Israel reconhece Deus presente de maneira concreta e
eficaz na história. Esta iniciativa divina incentiva o povo à ação e à transformação
sóciopolítica que se concretiza na formação de um sistema igualitário das doze tribos.

Os primeiros séculos da história de Israel mostram a mesma característica: sua


esperança em Deus não é apenas “espiritual” e fora da realidade, mas está fundamentada
nas experiências e nos anseios concretos do povo. É a partir de suas aflições, fracassos e
dores que o povo reconhece Deus como o grande incentivador de sua caminhada. A história
de Israel se constrói em cima de promessas. Aquilo que Deus promete irá realizar-se porque
foi o próprio Deus quem prometeu. Trata-se de promessas ligadas à realidade
socioeconômica e política, são projetos divinos que propõem situações de mais vida. Mas é
o povo quem realiza o conteúdo das promessas. O povo consegue realizá-lo porque pode
confiar na fidelidade de Deus, age movido pela esperança de que Deus está com ele. Com a
monarquia, parece que tudo o que Deus prometeu se concretizou. Como fica a esperança
diante disto?

b) Monarquia: perigo de estagnação da esperança66

A partir do reinado de Davi (século XI a. C.), o povo de Israel consolida várias


conquistas importantes, prometidas por Deus. A terra foi conquistada, o povo se tornou

65
Cf. R. J. BLANK, Escatologia do mundo, op. cit., pp. 13-20. Para cada um dos períodos que
apresentaremos, não vamos entrar em detalhes históricos. Suporemos que eles já são razoavelmente
conhecidos dos leitores. Nossa preocupação é indicar como a esperança se mostra nos referidos momentos da
história de Israel. Renold Blank apresenta as várias etapas históricas de modo simples e genérico, pois está
interessado em detectar as tendências pelas quais passou a esperança em cada fase da história.
66
Cf. Ibidem, pp. 21s. A análise de Renold Blank é geralmente linear e unilateral, o que não significa que não
seja verdadeira.
80

grande e poderoso, vivendo em liberdade e, no campo político, alcançou a paz. Assim, a


fidelidade de Javé fica confirmada e fortalece-se a confiança Naquele que prometeu e
realizou as promessas. Contudo, parece não ser mais necessária a esperança, porque tudo se
concretizou. De fato, as promessas realizadas trazem consigo o perigo de estagnação se as
pessoas se contentam com aquilo que foi realizado e se acomodam. Mas os planos
escatológicos de Deus não se esgotam nas realizações históricas.

Numa situação de estagnação da esperança, ocorreram várias catástrofes na vida do


povo israelita; como por exemplo, as invasões estrangeiras. Elas colocaram em dúvida a
convicção de que Deus é fiel. A dinâmica da esperança ficou também comprometida pela
consolidação da instituição monárquica que se julgava cada vez mais auto-suficiente. Os
profetas criticaram porém a realeza, por causa da exploração do povo e por causa da
infidelidade à aliança com Javé. Tais críticas foram dirigidas principalmente aos reis
injustos e, neste sentido, destacaram que Deus era o verdadeiro e único rei. Isto relativizava
a monarquia e colocava Javé como inspiração para o governo terrestre.
A ação dos profetas foi um dos motivos, embora não o único, do aparecimento do
ideal de um rei que, no final dos tempos, daria cumprimento às promessas de salvação
messiânica. Um rei que estivesse em consonância com a realeza de Javé. Este rei-messias,
descendente da linhagem davídica, seria o fiel representante de Deus. Ele possuiria
plenamente o espírito de Javé (cf. Is 11, 2); exerceria primeiramente a soberania sobre
Israel por meio de seu pacifismo. A figura do rei-messias foi adquirindo progressivamente
no Antigo Testamento traços mais humildes, como os do pastor e os do servo (cf. Mq 5, 1-
5; Ez 34, 23s; Is 42, 1-9; Is 49, 1-9a; Is 50, 4-9; Is 52, 13-53, 12), até aparecer representado
como um pobre que cavalga um jumento (cf. Zc 9, 9s).

Os profetas se insurgiram contra o rompimento da aliança com Javé. Usando uma


linguagem forte, eles chamaram a infidelidade de “prostituição”. Ela inclui, por exemplo,
pactos com potências estrangeiras, que provocavam dependência, exploração econômica e
opressão sobre a classe popular. Os sucessivos desastres históricos tiveram os reis como
responsáveis principais. Os profetas realizaram esforços na tentativa de explicar onde
81

estaria o Deus fiel, em meio às crises do povo, e como manter viva a fé. Como veremos no
aprofundamento que se segue, destes esforços emerge uma nova figura da esperança.

c) Teologia escatológica dos profetas do pré-exílio: Deus age na história67

Segundo a concepção escatológica profética, o projeto de Deus se realiza dentro da


história, e esta caminha rumo a uma plenificação final. Contudo, a realização do projeto de
Deus não é um caminho pré-determinado. Pelo contrário, ela acontece em meio a
progressos e retrocessos. Os planos de Deus são suscetíveis de modificações porque eles se
realizam dentro de uma história que necessita da colaboração humana. No processo
histórico, o povo é agente ativo, que ajuda ou atrapalha, no projeto de Deus. Os profetas
procuraram constantemente lembrar esta característica do agir divino e seu relacionamento
com o ser humano.

Como dissemos, um ponto importante da atuação profética é a denúncia da


infidelidade do povo à aliança. Tal denúncia apresenta-se porém ligada com o anúncio da
fidelidade de Deus. As elites podem querer implementar interesses hostis e contrários aos
projetos de Deus, e o poder religioso pode querer a defesa, em nome de Deus, de interesses
contrários à sua vontade, mas Deus é fiel e mantém seu plano. As contínuas denúncias dos
profetas visavam mais à conversão do povo e não à sua destruição. Sem conversão, o
projeto de Deus não se realiza na história.

Apesar dos retrocessos, decepções e frustrações advindos de um sistema


monárquico, que freqüentemente não correspondia ao ideal do reinado messiânico, a
história de Israel manteve sua característica de ser caminhada rumo à realização de um
projeto escatológico de Deus. A partir do século VI a.C., os grandes impérios da
Mesopotâmia invadiram a Palestina. Com isto, a certeza teológica de um Deus que controla
o processo histórico é fortemente questionada.

d) Exílio: esperança apesar de tudo68


67
Cf. Ibidem, pp. 25-28.
68
Cf. Ibidem, pp. 30-32.
82

O exílio causou profunda crise na fé israelita, dando a impressão de que as


promessas realizadas se perderam. Parecia que Deus abandonara seu povo. Diante de
muitas dúvidas e interrogações a respeito da fidelidade de Javé, os profetas do exílio
acentuavam a fidelidade de Deus apesar de tudo. Exemplo desta teologia encontramos em
Is 40-55: Deus resgata o seu povo porque Ele é fiel. Respondendo a esta fidelidade “apesar
de tudo”, surge também da parte do povo uma esperança “apesar de tudo”. A fé em Deus
não é destruída mesmo com a grave crise pela qual o povo passa. Mas a fé amadurece e a
esperança na realização das promessas de Deus mantém-se, apesar das aparências
contrárias da história.

Deste modo, a fé surgida na situação de exílio constitui uma radicalização da


esperança. Deus permanece sendo o Deus fiel que realiza suas promessas. No entanto,
surgem indagações: como Deus realizará as promessas? Esta esperança em Deus não fica
mutilada na história de Israel (e mais tarde em Jesus mesmo e em sua Igreja)? Voltamos
aqui, mais uma vez, à questão da responsabilidade humana, expressa na conversão. Se não
se aceita a oferta de Deus, e se os homens não se põem à sua disposição como
colaboradores, a esperança da salvação tampouco poderá adquirir forma concreta.

Deve-se assinalar, por outro lado, que a salvação, sem excluir a aceitação humana,
fica reservada à iniciativa de Deus. A salvação divina, e os modos com que Deus a realiza,
está acima das representações humanas. Por isso, em todos os esquemas explicativos da
esperança escatológica, e nas situações históricas em que ela se realiza, existe a presença do
“ainda não”. Deste modo, quando se confia em Deus, “apesar de tudo”, a esperança não
pode falhar no substancial.

Ela conserva sua identidade, em meio às turbulências históricas, porque se funda na


vontade de justiça e de paz de Javé. Assim, a esperança não se fecha às novas experiências
históricas, mas busca integrá-las num horizonte mais amplo. Só uma esperança que
83

pretende permanecer fiel, numa história sempre mutante, se abre precisamente a este mudar
contínuo e busca aí a presença do amor de Deus69.

A catástrofe do exílio serviu para reformular as idéias que se tinham formado do


projeto de Deus. Este ultrapassa os limites estabelecidos por qualquer instituição. Os
teólogos tiveram de rever suas interpretações. Depois do exílio, a teologia profética revela
nitidamente uma mudança de perspectiva.

e) Pós-exílio: apocalíptica70

Todo esforço da teologia profética depois do exílio gira em torno da mensagem:


Deus é fiel e não abandona o seu povo. Mas a esperança de um agir de Deus é repensada
diante da nova situação histórica: a peregrinação de todos os povos a Jerusalém não
aconteceu (cf. Is 60), o êxodo profetizado por Isaías não se realizou de modo satisfatório
(cf. Is 66, 5-24), experiências sangrentas sob o império dos selêucidas, a partir do século III
a. C., foram uma dura provação para o povo, colocando em risco sua identidade. Este
contexto criou a mentalidade que prega uma nova ação salvadora de Deus, orientada para o
futuro. Ou seja, a realização dos planos escatológicos não seria possível dentro desta
história.

Os profetas prometem a nova ação divina como uma nova criação de Javé. Esta
visão introduz uma descontinuidade entre a história passada e a história presente ou futura.
Trata-se de uma “esperança desesperada”71, que imagina o futuro agir de Deus como

69
Cf. M. KEHL, Escatologia, op. cit., p. 107.
70
Cf. R. J. BLANK, Escatologia do mundo, op. cit., pp. 33-56
71
Ibidem, p. 35.
84

destruição catastrófica desta história e irrupção contínua de algo totalmente novo. Assim, a
perspectiva escatológico-histórica, apesar de nunca desaparecer totalmente, foi
progressivamente substituída pela apocalíptica72.

Os pontos chaves da nova interpretação do agir de Deus podem ser resumidos da


seguinte forma: a realização do projeto de Deus é projetada para um futuro distante; o plano
divino é obra exclusiva de Deus, sem participação direta dos homens; a realização do
projeto pressupõe necessariamente a destruição do mundo presente.

A exegese moderna, segundo Renold Blank, assegura que existe continuidade, e não
ruptura total, entre a escatologia histórica profética e a escatologia apocalíptica, que nada
mais é que um desenvolvimento particular da primeira. Dentro da nova visão da história, o
elemento significativo, nesta continuidade, é a convicção, formulada pelos profetas depois
do exílio, de que Deus fará algo totalmente novo73.

O pensamento apocalíptico não compreende a história em termos de processo linear,


mas a partir do modelo de “eons” ou “milênios”, que são épocas fechadas, autônomas e
sem interdependência. Estas épocas se sucedem, cada uma independentemente da outra.
Elas podem servir como paradigma histórico para o agir de Deus: se no passado Deus
salvou o seu povo, tal fato garante a esperança de que Ele agirá noutro momento de crise,

72
O pensamento apocalíptico tem sua origem na religião persa de Zoroastro, no século VI a. C. Sua teologia
da história ensina que existe uma luta entre um princípio do bem e um do mal. Haverá um juízo sobre a
história; um julgamento individual, após a morte, e um julgamento universal do cosmo (cf. Ibidem, pp. 39s).
73
Cf. Ibidem, p. 48.
85

criando um mundo novo74. O pensamento apocalíptico, com seu potencial de esperança,


também está presente no Novo Testamento.

f) A esperança no Novo Testamento75

A presença do pensamento apocalíptico nos escritos neotestamentários é uma


indicação do caráter escatológico do Novo Testamento. Como vimos no capítulo primeiro,
a escatologia não é um tema a mais no Novo Testamento, mas perpassa todo ele. Também,
a reflexão sobre a esperança no Novo Testamento tem certa continuidade com o Antigo. De
fato, o Novo Testamento tem base no judaísmo e, por isso, se expressa inicialmente
utilizando a linguagem judaica; como por exemplo, recorrendo às categorias apocalípticas.

Encontramos várias perspectivas a respeito da esperança no Novo Testamento. O


fato central da revelação cristã, a ressurreição de Cristo e a esperança da consumação final
(dependente dela), foi refletido pelas comunidades de maneira diversa, como podemos
perceber em diferentes escritos bíblicos. Ponto convergente das reflexões é o
relacionamento entre a esperança em Cristo ressuscitado e a incorporação a ele alcançada
pelo batismo como “salvação-já”. Neste sentido, Paulo diz que “na esperança, já somos
salvos” (Rm, 8, 24). Brevemente, citaremos a seguir algumas características da esperança
neotestamentária presentes em escritos que se preocuparam em refletir sobre essa temática.

O primeiro escrito do Novo Testamento, a primeira carta aos Tessalonicenses, tem


clara preocupação com a esperança cristã. A parte central da carta (1 Ts 4, 13-5, 11)

74
No decorrer dos séculos, a esperança no agir vitorioso de Deus foi compreendida por alguns como
expectativa temporal: quando acontecerá o fim deste mundo e o início de uma nova época? A indagação sobre
o “quando” incentivou o surgimento do pensamento milenarista, que prega uma data determinada para o fim
do mundo. Este fenômeno enfraquece o potencial transformador da esperança apocalíptica, gerando uma
atitude de passiva expectativa. De fato, a função original da teologia apocalíptica é manter viva a esperança de
que as situações de opressão terão um fim. Os apocalipses procuravam restaurar a utopia de que acontecerá
uma transformação radical da situação histórica atual (cf. Ibidem, pp. 65s). O milenarismo retoma a idéia
apocalíptica do “eon” ou “milênio”. Estes são períodos completos expressos pela simbologia numérica dos
“1000 anos”. Não se trata, portanto, de contagem no sentido cronológico. Renold Blank faz uma explicação
detalhada do milenarismo nas páginas 59 a 69 do livro Escatologia do mundo. O teólogo suíço aborda
também a problemática da recepção das imagens apocalípticas no discurso cristão. Houve freqüentemente na
história uma recepção incorreta de tais imagens, o que acarretou medo ante a possibilidade de um holocausto
terrificante (cf. pp. 53-56 e 70-73 do livro citado).
75
Cf. A. TORNOS, Escatologia I, Madrid: Universidad Pontifícia Comillas de Madrid, 1989, pp. 54-71.
86

examina a questão da parusia. Precisamente, procura explicar como será o cumprimento da


esperança para os que não poderão viver a parusia, porque morreram ou morrerão antes
dela. Paulo, autor da carta, explica para os seus destinatários que o verdadeiro cumprimento
da parusia, ou realização da salvação, se opera no “estar com o Senhor” em vida ou na
morte (cf. 4, 17 e 5, 9). Assim, o Apóstolo relativiza o aspecto cronológico da parusia e
realça a qualificação escatológica do presente.

Nas cartas aos Coríntios, a esperança é concebida também como “estar com Cristo”
que vence a morte, realiza a justiça e o ser de Deus em nós (cf. por exemplo: 2 Cor 4, 16-18
e 2 Cor 5, 2-4). Neste sentido, a esperança não exclui os sofrimentos e as contrariedades da
vida, mas triunfa sobre eles concedendo à pessoa força, consolo, audácia e confiança. A
carta aos Romanos ocupa-se de dois temas específicos: a relação entre esperança e
promessa de Deus para a história, e o relacionamento entre esperança e justiça. O restante
das cartas paulinas traz poucos elementos novos, que não mencionaremos aqui. Apenas
lembramos que a carta aos Hebreus recolhe os grandes temas do ensinamento de Paulo
sobre a esperança.

Nos evangelhos sinóticos, o enfoque central é a proximidade do Reino de Deus.


Mas, não se trata de uma proximidade temporal, e sim teológica: o Reino está
permanentemente próximo. O tempo está repleto da ação definitiva de Deus. Assim, o
Reino não se resume apenas num futuro distante para o qual caminhamos movidos pela
esperança. Esperar pela vinda do Reino implica em decisão escatológica por Cristo no
presente da história: agora é tempo de descobrir os sinais do Reino (o amor, a justiça, a
libertação, a solidariedade). Na pregação de Jesus sobre o Reino vemos cumprida a
esperança das nações (cf. Mt 12, 21). Os escritos joaninos, por sua vez, falam pouco da
esperança. Neles, o tema está ligado à fé que vence o mundo (cf. 1 Jo 5, 4). A fé, vivida na
caridade, inclui o ter esperança (cf. 1 Jo 3, 13).

Em suma, o Novo Testamento dá nome à esperança do ser humano: Cristo


ressuscitado, o Senhor da história que inaugura um novo tempo de salvação. Não há ruptura
entre história e Eschaton. A esperança na plenificação da história levou as comunidades
87

cristãs a viverem o amor concreto. Este amor é base de uma esperança processual,
libertadora e que transforma o mundo. A análise que faremos a seguir, deste assunto,
mostra a ligação que existe entre esperança, Cristo e Reino de Deus (tema que será
aprofundado no item 2.3.).

2.2.2. A esperança escatológica é processual, libertadora e transforma o mundo

A teologia não pode basear suas reflexões em modelos abstratos e estáticos, pois
toda teologia está ligada à vida e à história. É preciso adotar a forma processual de pensar,
pois a própria história da salvação se apresenta como um imenso processo, onde o agir de
Deus se verifica no acontecer da história e conta com a colaboração humana.

As grandes verdades escatológicas, como salvação, Reino de Deus, fim do mundo,


devem ser compreendidas, segundo Renold Blank, na ótica dos processos. A vida é também
um processo dinâmico. O projeto escatológico de Deus é vida e, por conseguinte, é um
processo. As ciências da natureza igualmente ensinam que a maioria dos acontecimentos
ocorrem dentro de uma dinâmica processual.

O Eschaton, isto é, a plenitude de vida a ser alcançada no fim dos tempos, incentiva
no presente a transformar o mundo em direção ao ideal esperado. A escatologia, portanto,
tem uma capacidade transformadora76. Renold Blank, no livro Escatologia do mundo,
propõe dez princípios de uma escatologia que pretende realizar a tarefa de transformação77:
1o) Compromisso entre escatologia e realidade histórica; 2o) Escatologia, centro e espinha
dorsal da mensagem cristã; 3o) Esperança para um mundo que perdeu as esperanças; 4 o)
Reino de Deus, noção chave de nossa esperança, noção chave de toda a escatologia; 5 o) A
esperança na realização futura do Reino de Deus transforma o presente; 6o) O cristão tem a
vocação de transformar de maneira ativa este mundo, conforme os critérios do Reino de

76
A esperança escatológica é “esperança que ama a terra” (título de um livro de Karl Rahner: Glaube, der
Erde liebt, Freiburd, 1966). A esperança cristã não pode ser reduzida a um além da morte individual e
coletiva. Como cristãos, não esperamos apenas a última plenitude da história individual, social e universal;
mas também a eficácia da salvação que ocorre nesta história. O Espírito do Ressuscitado atua em nós para
transformar este mundo de modo que a vida individual e social seja cada vez mais digna e humana (cf. M.
KEHL, Escatologia, op. cit., 1992, p. 27).
77
Os dez princípios são explicados em R. J. BLANK, Escatologia do mundo, op. cit. pp. 113-127.
88

Deus; 7o) O cristão é chamado a converter o mundo; 8o) A construção do Reino de Deus
implica necessariamente o compromisso social e político; 9o) A esperança escatológica
cristã é força crítica transformadora. Com isso, ela alcança uma dimensão eminentemente
política; 10o) O fato de Deus nos amar deve ser transmitido por mediações.

Pensamos que o primeiro princípio (“compromisso entre escatologia e realidade


histórica”) simboliza o pensamento de Renold Blank a respeito da escatologia
transformadora. Os demais decorrem desta idéia. Inspirando-se no engajamento de Jesus, a
escatologia cristã deve procurar a superação do dualismo e situar-se na história. Tal
escatologia ensina a não se conformar com este mundo assim como ele se apresenta (cheio
de pecados), mas a transformá-lo segundo os critérios do amor divino. De fato, para se
tornar verossímil, o anúncio do amor de Deus comporta mediações. Ele inscreve-se nas
práticas históricas que modificam a realidade.

Se, conforme Jesus, o Reino de Deus já começou, então nossa esperança tem base
sólida e as promessas do Reino tornam-se esperança e desafio para os cristãos. Tais
promessas são esperanças para um mundo desesperado, que carece de utopias. Elas são
esperanças que prometem a plenificação da pessoa e do mundo. A consumação futura
mobiliza porém a ação humana no presente, a fim de que ocorra aqui a realização das
promessas escatológicas. A ação humana não requer apenas uma conversão pessoal, mas
também uma prática sóciopolítica crítica diante dos sistemas que querem absolutizar-se78.

Nos princípios enunciados, vemos a presença do aspecto processual que dá


dinamicidade à escatologia. E ele tem em vista a transformação do mundo. O processo
escatológico revela que a salvação trazida por Deus é uma realidade ligada a situações
históricas concretas. A esperança escatológica não é estéril, mas é ativa e profética. É motor
para um agir que tem como base a práxis de Jesus. Nela se concretizaram as esperanças
escatológicas que, como vimos anteriormente, em nada se restringem à expectativas
passivas e espiritualizantes. As promessas formuladas por Jesus se referem, ao contrário, a
dimensões concretas de vida.
78
Ao enfatizar a dimensão transformadora da escatologia, Renold Blank está sintonizado com uma das
intenções da teologia da libertação, que é a ênfase na práxis.
89

Renold Blank distingue cinco grandes opções em Jesus: 1a) opção preferencial pelos
pobres; 2a) pelo serviço e contra o poder; 3a) pela misericórdia e contra o legalismo
religioso; 4a) pela justiça e contra a opressão; 5a) pela vida integral do ser humano79.
Segundo ele, tais opções modelam as cinco dimensões próprias à esperança escatológica:
1a) a esperança na superação de estruturas econômicas que geram pobreza, 2a) bem como a
esperança na superação das estruturas políticas, 3a) religiosas e 4a) sociais que geram
opressão e, finalmente, 5a) a esperança na superação de todas as estruturas opostas à vida80.

Por estar ligada a situações históricas, “a salvação escatológica é processo que


pressupõe necessariamente uma fase de libertação”81, pois esta acontece na história. Esta
visão escatológica está em sintonia com as propostas da teologia latino-americana da
libertação. Na América Latina, e também em outros países do Terceiro Mundo, as
condições sociais são marcadas por injustiças gritantes que clamam por libertação. Uma
escatologia libertadora exerce, neste contexto, uma função importante na práxis da Igreja.
Renold Blank formula cinco princípios de uma escatologia que liberta: 1o) a salvação é
conceito escatológico, implica a totalidade do mundo em Deus; 2o) o processo de salvação
implica necessariamente uma libertação de todas as situações de morte; 3 o) a libertação de
todas as situações de morte deve começar já. Ela só terminará no entanto por ocasião da
plenificação do Reino; 4o) o processo de salvação-libertação é processo dialético-conflitivo;
5o) o crescimento autêntico do mundo é também um crescimento do Reino de Deus82.

Os princípios de uma esperança escatológica transformadora e libertadora se apóiam


em Jesus. Sua práxis em favor do Reino testemunham isto. O Reino de Deus também é um
processo que acontece na história, procurando transformar a realidade e libertar os homens
das estruturas de pecado que se opõem à salvação oferecida por Deus. De fato, Jesus é o
fundamento e a garantia da salvação e da esperança cristãs. Nele, a esperança ganha
concretude e mostra seu sentido pleno na prática transformadora e libertadora do Reino de
Deus.
79
Cf. R. J. BLANK, Escatologia do mundo, op. cit., p. 238.
80
Cf. Ibidem, pp. 237-246.
81
Ibidem, p. 138.
82
Cf. Ibidem, pp. 141-153.
90

Conclusão

A esperança de Israel se caracteriza pela sua ligação com a história. Apesar disso,
não é uma esperança mundana na qual não há lugar para nada além das necessidades
empíricas. Na verdade, a esperança de Israel apóia-se ao mesmo tempo na história concreta
e em Deus, que conduz a história segundo a sua vontade de conceder felicidade ao povo.

Não encontramos no pensamento israelita uma dicotomia entre mundo e Deus. Se a


escatologia cristã perder a dimensão da historicidade, ela pode gerar uma reflexão e uma
prática desencarnadas da vida, chegando, algumas vezes, a ser alienante. Neste contexto, os
“novíssimos” correm o risco de ser projetados para um futuro distante, de modo que
enfraquece-se a relação deles com a realidade vivida neste mundo.

A esperança cristã, que herda o caráter de historicidade da esperança de Israel,


ganha concretude com Jesus e se abre a novas dimensões. Atualmente, a escatologia está
atenta ao modo como a Bíblia apresenta a esperança. O retorno crítico às fontes bíblicas
proporciona um discurso escatológico novamente ligado à história. Além disso, a retomada
da compreensão da esperança à luz da Escritura, em especial com referência a Jesus, ajudou
a elaborar uma esperança escatológica caracterizada pela processualidade, pela libertação e
pela capacidade de transformar o mundo. Estas são características indispensáveis numa
escatologia que pretende dizer uma palavra a um povo pobre, sofredor e explorado, como é
a maioria do povo da América Latina.

Esta forma de compreender a esperança escatológica é bem destacada por Renold


Blank no livro Escatologia do mundo. Isto permite-nos renovar nossa compreensão dos
“novíssimos”. No capítulo três, veremos que eles devem ser entendidos em termos
dinâmicos e, sobretudo, situam-se dentro do plano salvífico de Deus que pede a
colaboração humana. Na mensagem do Reino de Deus, pregado por Jesus, cristalizam-se
todas as nossas esperanças. O Reino amplia o conteúdo da esperança escatológica,
incorporando novas dimensões e estendendo-a a toda humanidade.
91

2.3. O Reino de Deus

Introdução

A esperança cristã se apóia no Reino de Deus, que se manifestou em plenitude na


pessoa de Jesus. No Reino tal esperança torna-se realidade histórica. Em Jesus se realiza de
modo total o sentido pleno da criação, da vida humana e do mundo. Mas, Jesus também
tem um futuro, pois o Reino pregado por ele espera pela consumação definitiva. Assim,
Jesus abre um horizonte novo de possibilidades: o da participação universal de todas as
coisas em sua vida reconciliada no Reino de Deus.

Este Reino não acontece automaticamente na história, mas constitui um processo


aberto que envolve a liberdade humana e sua opção a favor ou contra Cristo. É uma
realidade em contínuo devir, com avanços e retrocessos. Renold Blank, ao desenvolver o
tema do Reino, procura mostrar que sua reflexão teológica está em sintonia com a
concepção histórica da teologia profética. Segundo esta concepção, o Reino de Deus é um
processo histórico contínuo, dialético e dinâmico, rumo a uma plenificação. Jesus insere-se
nesta linha teológica dos profetas e não na concepção apocalíptica83 da história, apesar de
possuir elementos dela. Esta é uma das teses de Renold Blank, que será explicitada mais à
frente.

2.3.1. Características do Reino de Deus segundo Jesus Cristo

A esperança de que Deus transforme a história tem longa tradição bíblica. Na


análise que fizemos sobre a esperança no Antigo Testamento, vimos que Israel esperava

83
Entre os teólogos, existem posições diferentes a este respeito. Renold Blank afirma que Johann Baptist
Metz adota a concepção que “acentua a descontinuidade da história a partir de pressupostos apocalípticos” (R.
J. BLANK, Escatologia do mundo, op. cit., p. 127). Por outro lado, Medard Kehl diz que Jesus ultrapassa a
visão apocalíptica de Reino. Este “aparece como um processo de amor de Deus que integra mais e mais nossa
história atual na vida salvadora e libertadora de Deus” (M. KEHL, Escatologia, op. cit., 1992, pp. 139s). Esta
é a posição adotada por Renold Blank, e também por nós neste trabalho. Pois, ela nos ajudará a compreender
os “novíssimos” numa perspectiva dinâmica, processual, ligada à história e à liberdade humana e, finalmente,
está dentro de um horizonte que destaca o agir de Deus em vista de salvar e não de castigar o homem.
92

uma situação em que Deus revelasse sua soberania. Tal situação foi chamada de “Reino de
Deus”. Não se tratava de uma situação meramente “espiritual”, pois implicava o exercício
do poder e supunha dimensões sociais e históricas. Esta forma de entender o Reino de Deus
se acentuou principalmente no período do em que foi redigido o livro de Daniel (cf. 2, 44;
7, 13; 7, 18; 7, 27). Esperava-se então uma alternativa histórica, propiciada por Deus,
contra a opressão do império helênico-selêucida. É a partir desta perspectiva que Jesus
compreendeu o Reino, modificando no entanto alguns aspectos interpretativos que
encontrou em sua época84. Segundo Schillebeeckx:

O “Reino de Deus está essencialmente ligado à pessoa de Jesus de Nazaré. O Novo


Testamento mantém este fato numa de suas mais antigas lembranças, dizendo que, com Jesus, O
Reino de Deus, Deus mesmo, vem para bem perto de nós. O Reino de Deus deve conseqüentemente
ser compreendido e qualificado a partir da vida de Jesus”85.

De fato, o núcleo de toda atuação de Jesus é o Reino de Deus, que é o conceito


dominante de sua pregação. Jesus não anunciava a si mesmo, mas o Reino de seu Pai que é
“a realidade que dava sentido a toda a sua atividade”86. Mas, a compreensão daquilo que
Jesus entendia como Reino de Deus não correspondia à concepção dominante em sua
época. Devemos saber em quais pontos Jesus concordava com as várias concepções de seus
contemporâneos e em quais ele discordava mostrando, finalmente, como ele formulou uma
nova interpretação.

No contexto em que viveu, a vinda do Reino fazia parte da religiosidade comum. Os


“teólogos” e o povo se preocupavam com esta questão. Havia quatro “correntes teológicas”
que elaboraram uma reflexão sobre a vinda deste Reino. Renold Blank se refere a elas pelos
seguintes nomes: apocalíptica, legalista, política e escatológico-profética.

- Expectativa apocalíptica. Mesmo diante dos fracassos históricos de Israel, Javé


não deixará seu povo perecer, mas o salvará. O caminho, porém, para salvar o povo é uma
intervenção divina que destrói o mundo atual, abrindo espaço para o surgimento de um
84
R. J. BLANK, Escatologia do mundo, op. cit., pp. 161-163.
85
E. SCHILLEBEECKX, Menschen, die Geschichte von Gott apud R. J. BLANK, Escatologia do mundo, op.
cit., p. 168.
86
J. SOBRINO, Cristologia a partir da América Latina, apud R. J. BLANK, ibidem, p. 169. A expressão
“Reino de Deus” aparece 121 vezes nos sinóticos e destas 106 é posta na boca de Jesus (cf. ibidem, 169).
93

mundo novo (assim pensavam, por exemplo, os Macabeus no final do Antigo Testamento).
A época de Jesus era vista como “os últimos tempos”. É neste contexto de fim iminente do
mundo que se situa a pregação de João Batista e seu convite à conversão87.

- Expectativa legalista. Esta corrente acreditava que a prática escrupulosa da lei era
condição indispensável para a vinda do Reino de Deus. A lei culmina em dois pontos
considerados de máxima importância: a observância do sábado e a pureza ritual. Os
representantes clássicos desta tendência eram os fariseus. Eles acreditavam que o messias,
em sua vinda, iria exigir o seguimento rigoroso da lei, pois quem a transgredisse tornar-se-
ia obstáculo à implantação do Reino88.

- Expectativa política. Os representantes desta corrente eram os zelotas. Esperavam


um messias que iria libertar a Palestina do jugo da ocupação romana. Para eles, o grande
obstáculo para a realização do Reino de Deus era a ocupação do país pelos poderes
estrangeiros. Assim, a instauração do Reino tinha um caráter político-revolucionário,
incluindo atos terroristas e revolta armada89.

- Expectativa escatológico-profética. Inspirando-se no movimento profético, esta


corrente pregava a esperança numa ação escatológica de Deus na qual seria abolida toda
guerra, a paz seria estabelecida e os ímpios julgados. A nova história de justiça e paz
ocorreria com um enviado de Javé, o messias. A descrição deste messias mudou no
decorrer dos séculos, aproximando-se mais da imagem do servo. O auge desta mudança se
encontra em Zc 9, 9, onde o messias é apresentado como um pobre que vem montado num
jumentinho90.

Toda a atuação de Jesus ocorreu numa sociedade impregnada pela espera do Reino
de Deus. Neste contexto, predominavam as concepções formuladas pela corrente
apocalíptica. Mas, a mensagem do Reino veiculada por Jesus não se identifica com

87
Cf. R. J. BLANK, Escatologia do mundo, op. cit., pp. 174-176. Apresentaremos cada uma das quatro
correntes, mostrando breve e simplificadamente a idéia teológica central de cada uma delas.
88
Cf. Ibidem, pp. 176-179.
89
Cf. Ibidem, pp. 180.
90
Cf. Ibidem, pp. 181-183.
94

nenhuma das expectativas de seu tempo. Contra a corrente apocalíptica, ele afirma que o
Reino de Deus já está presente e não haverá um fim catastrófico deste mundo, embora
tenha mantido alguns aspectos das imagens apocalípticas.

Contra a expectativa legalista, Jesus mostrou que o Reino não se conquista pela
observância da lei, mas irrompe como dom de Deus. Ele diz, no entanto, que veio cumprir a
lei e não aboli-la. Contra a tendência política, ele ensinou que o Reino não combina com a
violência e nem é implantado apenas com projetos políticos, embora tenha deixado que o
aclamasse rei, por ocasião de sua entrada triunfal em Jerusalém. Contra a expectativa
profética, Jesus elimina a ameaça do “Dia de Jávé”, visto como dia de juízo terrível.

Jesus aproveitou algo das concepções do Reino existentes, mas elaborou uma nova
concepção ultrapassando as expectativas de seu tempo e corrigindo-as com outros aspectos,
segundo Renold Blank. A originalidade de sua concepção do Reino aparecem nas seguintes
características91: 1a) No agir de Jesus se revela aquilo que é Reino de Deus; 2 a) A
característica estrutural de todo agir de Jesus é transformar situações de morte em situações
de vida; 3a) Jesus convida a imitar seu próprio agir; 4a) No agir de Jesus se tornam
realidades as antigas profecias sobre o Reino de Deus; 5a) No seu agir, Jesus vai além
daquilo que foi anunciado nas profecias; 6a) Na sua ação, Jesus elimina as ameaças das
antigas profecias; 7a) O agir de Jesus dá ênfase especial à opção preferencial pelos pobres.
O teólogo suíço resume estas características em três princípios básicos: 1o) O Reino é de
preferência para os pobres; 2o) Ele é uma realidade escatológica que transforma o mundo
presente; 3o) Em Jesus se concretizam as profecias sobre o Reino de Deus.

a) O Reino de Deus é preferencialmente para os pobres

“Bem-aventurados vós, os pobres, porque vosso é o Reino de Deus” (Lc 6, 20).


Com estas palavras, Jesus declara que os primeiros destinatários do Reino são justamente
aqueles que eram rejeitados pelo sistema religioso que os acusava de impuros, de malditos
e de serem um obstáculo à sua vinda. Ser pobre no tempo de Jesus era também um estigma,

91
Cf. Ibidem, pp. 187-203.
95

que manifestava a rejeição por parte de Deus. A doença, como a cegueira ou a lepra,
significava exclusão da vida social e religiosa.

Optando pelos pobres e excluídos, Jesus mostra que Deus não os abandonou. Ao
contrário, são objeto de sua especial atenção. No agir de Jesus está o agir do próprio Deus
acolhendo os pobres. Esta opção de Jesus não é uma novidade na tradição bíblica, pois ela
se encontra nos profetas, que prometeram o amor e a justiça preferencialmente aos pobres.
Javé mesmo, nos textos do Antigo Testamento, aparece sempre como o go’el, o defensor
dos fracos. A novidade de Jesus consiste em enfatizar muito a opção preferencial pelos
pobres.

b) O Reino de Deus é uma realidade escatológica que modifica o mundo presente

A antiga tradição de Israel esperava o Reino de Deus como algo futuro. Mas este
futuro apresenta em Jesus uma nota particular: trata-se de um futuro próximo que já implica
o presente e o modifica. Deste modo, o Reino de Deus significa a transformação deste
mundo, sobretudo a superação das situações de morte, transformando-as em situações de
vida. Esta mudança ocorre não só por meio do agir de Jesus, mas também por meio do agir
daqueles que o seguem.

Com o chamado “segui-me” (Mc 1, 17; 2, 14; 10, 21), Jesus convoca discípulos e
discípulas para fazer o mesmo que ele fez: agir de tal maneira que o Reino se torne
realidade concreta e visível. O Reino de Deus não pode ser interpretado de maneira
espiritualista e individualista. Pois, a práxis de Jesus mostrou ações entrelaçadas com as
situações pessoal, sociocultural, religiosa e política.

c) As antigas profecias sobre o Reino de Deus se concretizam em Jesus Cristo

Na atuação de Jesus se realizam as antigas imagens da esperança formuladas pelos


profetas. Jesus realiza, por exemplo, as profecias de Isaías: os mortos revivem (cf. 26, 19),
os surdos ouvem (cf. 29, 18), anuncia-se a boa nova aos pobres (cf. 61, 1-5) etc. Ele
96

confirma sua messianidade com referência aos atos que realiza. Além disto, Jesus vai além
daquilo que foi anunciado pelos profetas: declara um ano jubilar (cf. Lc 4, 19) e expulsa
demônios (um exemplo: Mc 5, 1-20). No seu agir, por outro lado, Jesus elimina as ameaças
das antigas profecias. Fazia parte da proclamação profética a expectativa do julgamento por
ocasião do reinado de Deus, quando os ímpios seriam aniquilados. Jesus não faz menção ao
“Dia de Javé”, pois o Reino de Deus não se implanta com terror, mas com amor.

Estas características do Reino de Deus devem inspirar a ação da Igreja, assim como
marcaram o agir de Jesus. Do mesmo modo, a reflexão teológica deve basear-se nela. Neste
sentido, Renold Blank desenvolve sistematicamente as características que ele considera
próprias à práxis do Reino vivida por Jesus: processual, escatológica e dialética.

2.3.2. Características do Reino de Deus especialmente destacadas por Renold Blank

O Reino de Deus, pregado por Jesus Cristo, pode ser descrito por meio de várias
características. Na reflexão de Renold Blank, destaca-se o caráter escatológico, processual e
dialético do Reino de Deus. Ele desenvolve sobretudo estes dois últimos aspectos. Estas
características não são completamente novas na teologia. Vários teólogos já estudaram as
dimensões escatológica, processual e dialética do Reino de Deus. A originalidade de
Renold Blank é a de sistematizá-las e aprofundá-las à luz da teologia latino-americana da
libertação92.

Sua reflexão baseia-se também nos mais modernos modelos filosóficos e científicos,
buscando porém superar todo academicismo. Sabendo que a teologia está a serviço da
pastoral, ele procura construir e divulgar uma escatologia que seja consolação, libertação e
esperança para o povo deste continente. Neste sentido, o caráter processual, dialético e
escatológico do Reino de Deus são destacados como elementos importantes de uma
escatologia em sintonia com a teologia da libertação.

92
A bibliografia que ele utiliza para isto revela sua preocupação em inserir a escatologia no horizonte da
teologia da libertação. Entre as obras nas quais Renold Blank se baseia, encontramos documentos do
CELAM, da CNBB e de teólogos da libertação importantes como Leonardo Boff, Juan Luis Segundo, Jon
Sobrino, João Batista Libânio, etc (cf. lista bibliográfica pp. 371-380 do livro Escatologia do mundo).
97

a) O Reino de Deus é um processo histórico93

Os textos do Novo Testamento apresentam, por um lado, o Reino de Deus como


uma realidade futura e, por outro, o declara já presente. Se entendermos o Reino a partir de
um modelo estático, não poderemos resolver esta aparente contradição. Mas o Reino de
Deus é um processo, uma realidade dinâmica dentro das estruturas históricas, e é assim que
Jesus o apresenta.

O Reino de Deus não irrompe já pronto nesta história. Ele possui uma dinâmica
processual de crescimento. Esta dinâmica é apresentada, por exemplo, como grãos que
germinam (cf. Mc 4, 26; 4, 30; Lc 13, 18; Mt 13, 1-23), fermento que leveda a massa (cf.
Lc 13, 21; Mt 13, 33), propriedade onde os servos devem fazer o dinheiro render (cf. Lc 19,
11-23) etc. Estas imagens sugerem progressividade: o Reino de Deus está em andamento, já
começou, mas sua plenificação ocorrerá num futuro escatológico.

O Reino de Deus é processual porque acontece dentro do contexto histórico, que em


nosso continente é marcado pela pobreza, pela injustiça e pela exploração. É nesta situação
que deve ocorrer o processo de construção do Reino, que se realiza a partir dos fracos e dos
pobres. As experiências bíblicas, em especial as de Jesus, revelam que Deus age de
preferência através do desprezível e do pequeno, e não por meio dos poderosos.

No processo de edificação do Reino, a Igreja tem um papel fundamental, pois


recebeu de Jesus a missão de anunciá-lo (cf. Mt 28, 16-20). Ela permanece, porém, em vista
de sua limitação humana, radicalmente diversa deste Reino. Este também acontece fora do
ambiente cristão e religioso. Pois Deus se serve de outras forças para fazer surgir, através
delas, núcleos do Reino.

Renold Blank lembra-nos ainda que o processo de construção do Reino pode até
mesmo ser prejudicado por pessoas dentro do âmbito cristão e ser combatido com
argumentos teológicos. A própria experiência de Jesus contém este fato, ao ser rejeitado

93
Cf. R. J. BLANK, Escatologia do mundo, op. cit., pp. 211-216.
98

pelos líderes religiosos. Todas estas vicissitudes, obstáculos, limitações humanas e


circunstâncias históricas são variáveis importantes que influenciam no desenvolvimento do
Reino de Deus. Tudo isto vem confirmar, de novo, sua inevitável processualidade. Mas,
apesar das fraquezas e dos pecados humanos afetarem, de certa forma, o desenvolvimento
histórico do Reino, ele caminha rumo à plenificação impulsionado pela graça de Deus.

b) O Reino de Deus tem um caráter dialético94

Renold Blank não utiliza aqui o termo dialética em sentido hegeliano que
caracteriza um movimento em três etapas interligadas: afirmação, negação e superação. O
teólogo suíço associa ao termo dialética duas idéias: a do conflito (dialética extrínseca) e a
da dinâmica própria do Reino (dialética intrínseca).

Quanto à dialética extrínseca, ela se refere às oposições que pessoas ou grupos


enfrentam ao tentar realizar na história os valores do Reino. Como o processo de sua
construção ocorre na história, inevitavelmente ele se depara com vários projetos históricos
contrários à vontade de Deus. Por conseguinte, forças interessadas em basear a convivência
em moldes igualitários se chocam com outras interessadas em manter privilégios. Interesses
em superar injustiças entram em conflito com outros que procuram manter estas situações.
A exigência da paz se defronta com os planos daqueles que lucram com a guerra. A
fraternidade encontra a oposição do desejo de poder e de dominação.

As forças do anti-Reino reagem contra as forças do Reino de Deus de modo que o


processo de sua implantação muitas vezes não é harmonioso, ocorrendo progressos e
retrocessos porque dele participam agentes humanos. Apesar de ser um processo dialético e
conflitivo, tal processo caminha rumo à plenificação porque é projeto de Deus e transcende
as forças negativas. Aqui temos o segundo aspecto do caráter dialético do Reino: sua
dinâmica interna tende à consumação final.

94
Cf. Ibidem, pp. 217-224.
99

A dialética intrínseca se refere à “tensão entre aquilo que se pode conseguir pelo
esforço humano, e aquilo que significa o Reino de Deus em plenitude”95. A dialética
intrínseca procura corrigir a tendência da escatologia tradicional em colocar o Reino numa
dimensão totalmente transcendente. E também, por outro lado, reage contra a tentativa de
identificar o Reino com as realizações benéficas que ocorrem no mundo. O Reino de Deus
apresenta dimensões que ultrapassam todos os níveis históricos, alcançando um futuro
absoluto não realizável pelo esforço humano, porque possui um caráter escatológico.

c) O Reino de Deus tem um caráter escatológico96

O Reino de Deus se realiza em núcleos onde, pelo esforço humano, já foram


implantados seus valores. Mas, o Reino é sempre mais; sua realização escapa às mãos
humanas e permanece dom de Deus: “Os homens e as mulheres nunca serão capazes de
realizar o Reino de Deus em plenitude. Mas, eles são capazes de começar. Essa
plenificação, por sua vez, ultrapassará todas as expectativas humanas. O próprio Deus se
torna o último destino do homem e o futuro escatológico do mundo”97.

Se o caráter escatológico transcende a dimensão histórica, ele também tem íntima


relação com a história. Pois, “o presente atual, as decisões a serem tomadas aqui e agora,
abrangem mais do que a finitude atual. No aqui e agora está em jogo o futuro absoluto” 98.
Tomando consciência do caráter escatológico das decisões atuais, o ser humano se esforça
para começar desde já um futuro que terá sua meta definitiva em Deus.

O agir humano em favor do Reino é possível mediante a conversão, que também é


um processo dinâmico. Para que Deus reine, não pode haver nenhuma situação oposta aos
critérios dele: nem no coração humano, nem nas estruturas históricas dentro das quais o
homem vive. A interligação entre expectativa do Reino e exigência de conversão foi
mostrada por Jesus em sua pregação: “O tempo está realizado e o Reino de Deus está

95
Ibidem, p. 222.
96
Cf. Ibidem, pp. 225-229.
97
Ibidem, p. 225.
98
P. HÜNERMANN, “Reich Gottes, sinn und Ziel der Geschichte”, em: Heinz Althaus (Org.), Apokalyptik
und Eschatologie apud ibidem, p. 226.
100

próximo. Convertei-vos e crede no Evangelho” (Mc 1, 15). Estas palavras também são um
desafio constante para todos os seguidores de Jesus Cristo.

Trata-se de conversão integral que abrange a totalidade da convivência humana,


com todos os aspectos que lhe são inerentes. Por exemplo, em nível de estrutura individual,
deve conduzir à superação do egoísmo e a reconquistar atitudes de solidariedade e amor;
em nível das estruturas sócio-econômicas e políticas deve atingir uma superação das
estruturas injustas e de dominação, e promover situações de vida e justiça.

Conclusão

“Cristo Jesus, nossa esperança” (1 Tm 1,1), anunciou o Reino de Deus. Um Reino


interligado com as decisões humanas. Um Reino que, como processo, está inserido nas
estruturas sociais, políticas, econômicas e religiosas deste mundo, mas também transcende
a todas elas. Por detrás da concepção do Reino em processo de devir, transparece a imagem
de um Deus que não impõe, mas faz propostas ao ser humano, respeitando sua liberdade.
Trata-se de um Reino dirigido de modo preferencial aos pobres. Estes são o “lugar
teológico”, não no sentido clássico, de fonte onde buscar verdades da fé, mas no sentido
dinâmico, no qual se manifesta de maneira especial a presença do Deus de Jesus. Como os
destinatários do Reino são os sem poder, os explorados e os marginalizados, a implantação
deste reinado na história gera conflitos com as estruturas de poder e dominação.

O Reino de Deus é um dos fundamentos da escatologia cristã. Portanto, esta se vê


referida inevitavelmente com a concepção jesuânica do Reino. Uma escatologia fundada no
Reino de Deus herda dele as suas características, possuindo prática e reflexão orientadas
para a transformação deste mundo, a fim de que seja sinal do Reino. Tal escatologia, agindo
e refletindo assim, está em sintonia com as propostas da teologia da libertação99, sendo
igualmente uma escatologia libertadora. A partir desta interligação, temos uma escatologia

99
A teologia da libertação é um complexo fenômeno teológico e eclesial. Por isso, devido ao objetivo deste
trabalho, não entraremos em detalhes sobre ela, mas remetemos ao comentário feito por João Batista Libânio
no seu livro Teologia da libertação: roteiro didático para um estudo, São Paulo: Loyola, 1987.
101

em que há o primado do elemento utópico sobre o factual, do crítico sobre o dogmático, do


social sobre o pessoal e, finalmente, da ortopráxis sobre a ortodoxia.

De fato, este último aspecto lembra algo central na teologia da libertação latino-
americana: a experiência de fé é ato primeiro; a teologia vem depois, como ato segundo. A
escatologia, situando-se no contexto de uma experiência de fé, não corre o risco de
converter-se numa espécie de metafísica religiosa. O discurso que ela elabora, baseado na
esperança do Reino de Deus, está orientado pelo compromisso histórico e pela militância
nas lutas de libertação. Por isso, no interior deste discurso, os vários elementos que
compõem esta escatologia adquirem nova luz interpretativa em relação à teologia
tradicional.

No caso específico dos “novíssimos”, estes deixam de ser compreendidos como


realidades estáticas “situadas” no além. E, o que é igualmente ruim, marcados pelo medo e
pelo castigo, no tocante ao inferno e ao purgatório. Ao invés disso, devemos integrá-los na
dinâmica do Reino de Deus100 e da esperança gerada por ele. Após fazermos referência a
esta idéia, iremos aprofundá-la no próximo capítulo no qual estudaremos o purgatório, o
inferno e o céu.

100
Renold Blank acrescenta, no livro Escatologia do mundo, três outras “noções fundamentais do discurso
escatológico contemporâneo” (Ibidem, p. 385): o fim do mundo (pp. 269-339), a parusia (pp. 340-354) e o
juízo final (pp. 355-364). A partir do novo paradigma apresentado, com as características do Reino, estas três
noções da escatologia devem ser vistas também em termos de processo dinâmico-dialético que já começaram
em Jesus e, no fundo, se referem à futura plenificação do Reino de Deus, incluindo a humanidade e o cosmo.
102

CAPÍTULO III

3. PURGATÓRIO, INFERNO E CÉU SEGUNDO RENOLD BLANK

A tendência básica do pensamento escatológico de Renold Blank, como ele mesmo


afirma, é crer na “esperança de que, por analogia com o amor humano, o Deus que ama
também encontrará meios de persuadir o ser humano a se salvar; conservando, porém, a sua
liberdade”1.

A salvação de Deus envolve toda a vida e a história humanas, ultrapassando a


existência terrena que finda com a morte. No entanto, no amplo processo escatológico pelo
qual o homem passa, a morte surge como momento decisivo da escatologia individual. Ao
morrer, a pessoa realiza um encontro com Deus na pessoa de Jesus Cristo que lhe oferece a

1
Nos livros em que Renold Blank fala do purgatório, inferno e céu, e que utilizaremos neste terceiro capítulo,
este pensamento se repete explicitamente. De fato, ele ajuda a explicar o sentido dos três “novíssimos”
colocando em relevo a salvação de Deus e a liberdade humana. A citação acima se encontra nas obras do
autor: Viver sem o temor da morte, op. cit., p. 169; Nossa vida tem futuro, op. cit., p. 226 e Escatologia da
pessoa, op. cit., p. 318. Os dois primeiros livros não tratam explicitamente do céu, como veremos a seguir.
103

vida, o amor e a salvação. Diante dessa realidade, Renold Blank procura esclarecer o
alcance do amor salvífico de Deus, até mesmo numa situação de inferno.

Segundo Renold Blank, na morte, o ser humano dá a Deus uma resposta decisiva 2
que pode ser de conversão (purgatório), de rejeição (inferno) ou de amor (céu). A resposta
dada no encontro com Deus, qualquer que seja, é, entretanto, um auto-julgamento que a
pessoa faz de si mesma diante de Deus, tendo sua liberdade respeitada por Ele. As três
respostas (purgatório, inferno e céu) serão avaliadas, a seguir, depois de explicarmos a
importância da morte no processo escatológico. O desenvolvimento deste aspecto nos
ajudará a compreender os três “novíssimos” à luz da tese de Renold Blank evocada acima.

3.1. Importância da morte no processo escatológico

Introdução

Vivemos em tempos marcados pela morte. Por um lado, aumentaram com sinistra
periodicidade as situações de morte, que se tornaram a experiência cotidiana de grande
parte dos povos do Terceiro Mundo. Por outro lado, muito se tem refletido sobre o morrer.
Renold Blank reflete sobre essa questão principalmente nos livros Viver sem o temor da
morte, Nossa vida tem futuro e Escatologia da pessoa. Nas páginas iniciais destas obras, o
teólogo suíço expõe uma fenomenologia da morte3. Centrando a atenção em sua dimensão
teológica, ele lembra que o discurso pastoral deve ser capaz de despertar a esperança frente
à realidade do fim da vida4.

2
O encontro com Deus na morte é decisivo de acordo com vários teólogos. Francisco de Mier é um deles, ao
escrever que “Deus alcançado é o céu. Deus rechaçado, é o inferno. Deus discernindo, é o juízo. Deus
purificando, é o purgatório” (F. MIER, Apuesta por lo eterno, op. cit., p. 132). Renold Blank se fundamenta
em Ladislau Boros, para falar da importância do encontro com Deus na morte: “Quando o homem se decide,
no momento da morte, contra Cristo (...) isso é o inferno. Mas, se o homem se decide por Cristo (é o ) céu”
(L. BOROS, Existência redimida, São Paulo: Loyola, 1974, p. 93). Aliás, Renold Blank se inspira em alguns
pontos em Boros mantendo, porém, uma distância crítica em relação a ele em outras questões.
3
Cf. R. J. BLANK, Viver sem o temor da morte, op.cit., pp. 9-26; Nossa vida tem futuro, op. cit., pp. 9-18 e
Escatologia da pessoa, op. cit., pp. 7-24.
4
Veja por exemplo o livro Escatologia da pessoa, páginas 46 a 64, onde a questão é mais elaborada em
relação aos dois livros citados anteriormente.
104

Efetivamente, segundo Renold Blank, grande parte das pessoas que crêem na vida
eterna temem pela salvação. Por isso, a morte lhes causa angústia. Um desafio para a
escatologia é justamente superar o medo, veiculado entre muitos cristãos durante o
processo de evangelização, por uma mensagem religiosa opressiva. Especificamente, trata-
se de recuperar, no discurso teológico-pastoral, a imagem de um Deus amoroso e
misericordioso. Com isto, procurar-se-á a libertação das imagens distorcidas associadas a
um Deus tirânico, legalista e juiz severo que se encontra com a pessoa na hora da morte5.

O medo escatológico, fruto de uma concepção distorcida de Deus, gera um


individualismo religioso que esvazia o aspecto comunitário da salvação e induz a uma
compreensão privatizante dos “novíssimos”. Diante disso, Renold Blank vê a necessidade
de resgatar a imagem do Deus Bíblico que é todo amor e se alia aos homens e às mulheres
para conceder-lhes vida em abundância. Na morte, é com este Deus que a pessoa se
encontra, e não com um Deus despótico que exige resultados do homem para lhe salvar.
Diante, portanto, de uma compreensão muito individualista dos “novíssimos”, o teólogo
suíço procura realizar uma leitura social e histórica dos mesmos.

Segundo Renold Blank, todo processo escatológico se concentra na morte da


pessoa. Neste processo, um dos elementos que destacamos é a ressurreição na morte que,
como vimos no capítulo anterior, é adotada pelo autor. Há que assinalar, porém, a
existência de críticas a essa interpretação, embora, como já falamos, ela pareça mais
conforme à antropologia bíblica. Especificamente, a perspectiva neotestamentária,
prolongada pela tradição da teologia cristã, é que haverá uma ressurreição no último dia,
por ocasião da parusia do Senhor.

5
No livro Viver sem o temor da morte, Renold Blank sinaliza para uma futura pesquisa religioso-psicológica
que estude até que ponto determinadas situações de opressão social e espiritual encontram sua causa última
num discurso escatológico que enfatiza mais as ameaças pedagógicas de punição do que a mensagem de
esperança (cf. op. cit., pp. 59s). Este projeto concretizou-se posteriormente e foi publicado no livro Esperança
que vence o temor. O medo religioso dos cristãos e sua superação. Este livro é fruto de uma pesquisa de
campo, realizada nos anos 1989-1992, no decorrer da qual foram entrevistadas 823 pessoas de todos os
estratos sociais da cidade de São Paulo. Trata-se, portanto, de uma amostra limitada e já não muito atual, pois
o quadro religioso mudou até o presente. Porém, o livro contém boas reflexões sobre a realidade estudada,
procurando apontar caminhos para a superação do medo escatológico. São pistas seguras que servem de luz
ainda hoje, quando nos deparamos com os mesmos problemas escatológicos.
105

A este respeito, a teologia católica clássica procurou conciliar a antropologia bíblica


com a grega. Ela buscava, assim, manter-se fiel aos dados bíblicos. Um resultado disso foi
a elaboração da Benedictus Deus no século XIV. No desenvolvimento da tradição teológica
oficial, sintetizou-se, principalmente na escolástica, a escatologia de dupla fase.
Atualmente, a ressurreição na morte não é aceita pelo magistério eclesiástico. A Sagrada
Congregação para a doutrina da Fé, por exemplo, não compartilha dessa idéia. Nem mesmo
a Comissão teológica internacional. Também alguns teólogos a rejeitam, entre eles Joseph
Ratzinger. Na verdade, alguns estudiosos, como por exemplo Ruiz de la Peña, afirmam que
esse tema, polêmico e complexo, permanece uma questão aberta.

3.1.1. Encontro com Deus na morte

Segundo Renold Blank, “é convicção geral da teologia atual que, na morte, o


homem se encontra com Deus na pessoa do próprio Jesus Cristo”6. Antes de explicarmos
como se dá esse encontro, centro de nossa reflexão neste item, é conveniente esclarecer o
que significa “estar na morte” e a definitividade que ela produz. A expressão se refere à
consumação do processo do morrer, quando a vida terrena do ser humano termina por
completo. É um novo estado em que

“o sofrimento do morrer passou, a possibilidade de ser reanimado depois da morte clínica


passou; agora, o homem se encontra ‘na morte’. Naquela situação consciente de incapacidade total
(...). A noção de tempo não existe mais, a noção de espaço não existe mais, uma nova dimensão se
abre, à qual damos o nome de ‘eternidade’ (...). É neste limite, ‘na morte’, que o homem se encontra
pela primeira vez com Deus”7.

A morte é um acontecimento que engaja a pessoa em sua totalidade. O ser humano é


uma unidade multidimensional, e tudo o que acontece a ele, afeta-o em todas as suas
dimensões. No entanto, a morte não é a aniquilação8, mas uma profunda transformação da
6
R. J. BLANK, Escatologia da pessoa, op. cit., p. 169.
7
Ibidem, p. 73.
8
Na primeira metade do século XX, alguns teólogos protestantes defenderam a idéia de morte total do ser
humano na morte, de modo que a ressurreição era entendida como uma nova criação. Esta posição teve
poucos seguidores (cf. C. POZO, La venida del Señor en la gloria. Escatología, Valencia: Edicep, 2002, p.
87). Medard Kehl também critica a aniquilação total do homem na morte. Para ele, “a ‘nova criação’
acontecida na ressurreição dos mortos não segue a via do pleno desaparecimento da ‘antiga’ criação, senão
que passa pela conversão radical desde a relação pervertida entre criatura e Criador ao modo de vida de Cristo
definitivamente logrado em sua obediência ao Pai (...). Na realidade em que o ser humano acolhe esta relação
criatural salva e renovada por Cristo, participa na nova criação de Cristo ressuscitado da morte” (M. KEHL,
106

pessoa. O agente desta mudança é Deus, que não transforma uma parte do homem, mas ele
inteiro, preservando sua identidade. Isso é o que chamamos ressurreição dos mortos9.

Além da fé na ressurreição, que o cristianismo apresenta diante do problema da


morte, há que destacar também a definitividade operada pelo morrer. Ou seja, o homem se
torna definitivo com a morte. Durante sua vida, sempre era possível recomeçar porque a
vida oferecia novas possibilidades de mudança. Com a morte, porém, nenhum ato ou as
conseqüências dele podem ser alterados. A personalidade humana encontra-se
definitivamente estruturada na morte: “ela (a personalidade) é agora assim, formada,
inalterável, definitiva. Nada mais, nunca mais pode ser anulado (...). Neste sentido,
podemos dizer que a morte põe o ser humano face a face com o que fez de si durante a
vida”10.
Este pensamento de Renold Blank é compartilhado por outros teólogos. Entre eles
Ruiz de la Peña (Renold Blank o cita várias vezes em seus livros):

“Na estrutura imanente da existência humana se acha inscrita a possibilidade de chegar


algum dia à consumação. A antropologia cristã pede definitividade porque crê na salvação (grifo do
autor) porque do contrário a mensagem da salvação não poderia ser o que é: a oferta de uma salvação
definitiva. Quem diz salvação diz irrevocabilidade”11.

Se na morte a pessoa tornou-se definitiva, isto significa obviamente que tudo o que
ela fez, assim como suas culpas, obras boas e más, não pode mais ser mudado. O ser
humano se torna definitivo na sua dimensão pessoal, socioestrutural e histórica. Na morte,
ele percebe pela primeira vez todas as dimensões de sua vida no seu verdadeiro alcance.
Durante sua vida terrena, o homem podia “fechar os olhos” perante si mesmo, ignorando as
conseqüências de seus atos e omissões. Na morte, isso não é mais possível. Assim, “a morte
se torna o primeiro momento de cognição total, no qual o ser humano será confrontado,
queira ou não, com todas as dimensões de si mesmo”12.

Escatologia, op. cit., pp. 274s).


9
R. J. BLANK, Escatologia da pessoa, op. cit., p. 110.
10
Ibidem, p. 151. Se o purgatório é a possibilidade de evolução na morte, como veremos, como conciliar tal
definitividade, defendida por Renold Blank, com uma mudança humana na morte? Teremos a resposta no
momento em que tratarmos o purgatório.
11
J. L. RUIZ DE LA PEÑA, La pascoa de la creacion, op. cit., p. 269.
12
R. J. BLANK, Escatologia da pessoa, op. cit., p., 158. Renold Blank explica as dimensões pessoal,
socioestrutural e histórica nas páginas 158 a 162. Percebemos que ele se inspira claramente em Ladislau
Boros para falar da cognição total na morte.
107

O ser humano nunca pode ser visto unicamente como ser individual, isolado. Toda
sua vida está ligada à vida de outras pessoas, através de muitos relacionamentos. O ser
humano possui muitas dimensões que se tornarão conscientes na morte. Durante a vida, não
é possível compreender de modo global as influências dos atos humanos em nível
socioestrutural e histórico. Segundo Renold Blank, na morte, o indivíduo perceberá com
clareza todas as conseqüências de suas opções, erros, pecados, virtudes etc, dentro de uma
rede complexa de inter-relações.

Do ponto de vista escatológico, sublinha Renold Blank, é importante frisar que “esta
cognição se realiza na presença de Deus”13: com tudo o que fez de si no decorrer de sua
vida, o homem se encontra com Deus na morte. Porém, não se trata de um Deus “soberano
aterrador” e “juiz tirano”, mas sim de um “Deus de amor”.

Para o nosso teólogo, este encontro com Deus na morte14 se refere ao que a teologia
tradicional dos “novíssimos” chama de juízo particular. Na perspectiva desta teologia,
porém, tal juízo era percebido como um tribunal, onde Deus avaliava com rigor a vida do
ser humano. De fato, no decorrer da história do cristianismo, o encontro com Deus na morte
se transformou em “lastimável tribunal de justiça”15. Renold Blank procura esclarecer o
juízo na morte. E, citando Leonardo Boff, afirma:

“O juízo na morte não é um balanço matemático sobre a vida passada, onde aparecem diante
de Deus o saldo e o débito, o passivo e o ativo. Mas possui dimensão própria de derradeira e plena
determinação do homem diante de Deus, com a possibilidade de conversão para o pecador”16.

13
Ibidem, p. 164.
14
Renold Blank fala várias vezes em “primeiro encontro com Deus”. Optamos por usar a expressão “encontro
com Deus”, pois não se trata do primeiro, mas do encontro definitivo. Na verdade, ele é o último já que houve
outros encontros do homem com Deus durante a existência terrena. E, na morte, não haverá portanto um
primeiro encontro seguido de outros, mas apenas o encontro decisivo do ser humano com Deus.
15
Ibidem, p. 173. Renold Blank analisa este desvio compreensivo da noção de julgamento e justiça divina nas
páginas 173 a 176 e 185 a 191 de Escatologia da pessoa, e 162 a 164 de Nossa vida tem futuro.
16
L BOFF, Vida para além da morte apud R. J. BLANK, Escatologia da pessoa, op. cit., p. 168. Como
veremos mais à frente, o juízo na morte é uma oportunidade de conversão (purgatório) e não de castigo. O
purgatório é uma dimensão do juízo (cf. J. L. RUIZ DE LAPEÑA, La pascoa de la creacion, op. cit., p. 291).
108

Estas idéias também são compartilhadas por Ladislau Boros e por Joseph Ratzinger,
de quem Renold Blank recorda um pensamento que resume o sentido do juízo na morte: o
julgamento é a manifestação da verdade do ser humano perante Deus17.

O conhecimento amplo e profundo do ser humano na morte não ocorre numa


situação de abandono, mas com a ajuda de Deus e guiado por Ele. Especificamente, na
morte, o homem se encontra com Deus na pessoa de Cristo, como já acenamos. Ele se
depara com o amor salvífico de Jesus Cristo18, que o chama a si. Renold Blank, a fim de
despertar a esperança na salvação, destaca que Jesus chama sobretudo aqueles que não têm
mais esperança: os resignados, “os fracos, os pecadores com suas opções fundamentais
malogradas, seus atos falhos, omissões, amor e ódio, verdade e falsidade”19.

Deus estabeleceu Jesus como juiz. Um juiz que intervém em nome de todos os que
fracassaram e que veio para salvar, não para condenar. Jesus pede que seus discípulos
perdoem não somente sete vezes, mas setenta vezes sete (cf. Mt 18, 21). Se é assim,
pergunta-se Renold Blank, como se poderia explicar que o próprio Jesus não perdoasse?
Enfim, Jesus não realizará um juízo de castigo na morte, mas sim de misericórdia e
esperança. Esta era a convicção dos primeiros cristãos, para quem o encontro com Deus na
morte significava celebração de reencontro festivo:

“Nisto consiste a perfeição do amor em nós, que tenhamos plena confiança no dia do
julgamento porque tal como ele é, também somos nós neste mundo. Não há temor no amor, porque o
temor implica em castigo, e o que teme não é perfeito no amor” (1Jo 4, 17-18).

17
Cf. R. J. BLANK, Escatologia da pessoa, op. cit., p, 168.
18
Aqui, mais uma vez, Renold Blank se inspira em Ladislau Boros, que diz: “O homem tem que passar pela
morte. E na morte encontrará inevitavelmente o Cristo (...) (que) apresenta-se lá, na morte, diante do homem,
de um modo claro, brilhante, e o chama a si com o gesto do amor redentor” (L. BOROS, Existência redimida,
op. cit., p. 92). Esta morte, do modo como Ladislau Boros a apresenta, pode parecer por demais cristã. Ela, no
entanto, não se dá apenas no cristianismo explícito, explica R.uiz de la Peña. A ação de morrer consuma a
vida de todos os seres humanos, mas não pode ser algo religiosamente neutro. Será sempre uma realidade
teologal, visto que decide o destino do homem. Quando a morte é experimentada como confiança, aí está
presente a graça de Cristo (cf. J. L. RUIZ DE LA PEÑA, La pascoa de la creacion op. cit, p. 267). Sobre isso,
o próprio Ladislau Boros concorda também, ao dizer que até mesmo os pagãos, aqueles bilhões de homens
que nunca ouviram falar de Cristo, se encontram com ele na morte (cf. L. BOROS, Existência redimida, op.
cit., p. 94).
19
Cf. R. J. BLANK, Escatologia da pessoa, op. cit., p. 169.
109

Deus ama sempre e de modo incondicional. Isso será percebido pelo homem na
morte, quando ele toma consciência plena de sua vida, malograda em tantos pontos
cruciais, marcada por ruínas e possibilidades de crescimento perdidas. Ele percebe o que
Deus pretendia para ele e verá o quão pouco realizou. Contudo, como não há mais
possibilidades de alterar coisa alguma, o homem reconhece-se pobre diante de Deus e
necessitado de sua ajuda. Numa situação dessas, resta-lhe somente entregar-se sem reservas
ao amor de Deus.

O encontro com Deus na morte revela a dependência inevitável do homem para com
Deus. Assim, o ser humano deve estar disponível e aberto para Deus. Este “depender de
alguém (...) é, pois, o elemento característico do encontro com Deus na morte. Esta será a
confissão de que nada mais pode fazer e de que Deus tem de fazer tudo" 20. A situação de
morte pede uma entrega sem reservas ao Deus de amor. Na tentativa de explicar o imenso
amor de Deus, Renold Blank faz uma analogia com o amor humano. No amor, uma pessoa
se entrega à outra integralmente, confiando que o amado a aceite apesar de suas falhas.
Se até o amante humano aceita os defeitos da pessoa amada, porque Deus não
estaria em condições de fazer o mesmo, Ele que ama infinitamente? A esta pergunta,
Renold Blank responde: “Na sua forma suprema, o amor não pergunta se o outro também
ama. O verdadeiro amor envolve o outro, mesmo se este não corresponde. O verdadeiro
amor busca caminhos para despertar o amor no amado, e nisto é criativo” 21. Contudo,
entregar-se a Deus, confiando em seu amor que não abandona, requer uma decisão a ser
tomada pelo ser humano por ocasião de seu encontro com Deus na morte.

3.1.2. Decisão22 de fé na morte


20
Cf. R. J. BLANK, Viver sem o temor da morte, op. cit., p. 96.
21
R. J. BLANK, Escatologia da pessoa, op. cit., pp. 182s. Esta idéia é forte em nosso teólogo. Ele a cita em
Viver sem o temor da morte, p. 92 e Nossa vida tem futuro, p. 132. Também, citamos um pensamento seu que
completa o anterior: “Quando Deus ama, ama de maneira absoluta e total” (R. J. BLANK, Escatologia da
pessoa, op. cit., p., 184). Desde já, chamamos a atenção para este ponto: o amor de Deus, que busca salvar
sempre, nos ajudará a compreender a atitude divina também diante de uma possível situação de inferno. Neste
sentido, veremos adiante como Deus se relaciona com a liberdade humana que recusa a salvação.
22
Nos livros Viver sem o temor da morte, p. 105, Escatologia da pessoa, p. 234 e Nossa vida tem futuro o
teólogo suíço se expressa da seguinte forma: “A situação que o ser humano deve contornar na morte seria
muito menos do que uma decisão ativa a favor de/ou contra Deus e consistiria antes em um ato de confiança
(grifo nosso), em confiança cega de que este Deus (...) tampouco me esquecerá no nada da morte” (R. J.
BLANK, Nossa vida tem futuro, op. cit., p. 145). Decisão ativa ou ato de confiança? As duas atitudes se
equivalem ou não? Elas pedem o engajamento humano? Renold Blank responde que, na morte, o ser humano
110

Segundo Renold Blank, a decisão/ato de fé na morte ocorre devido ao


reconhecimento, por parte do homem, de sua nulidade, pobreza e inevitável dependência de
Deus. Diante de Deus, as obras do ser humano são completamente relativas e não
constituem segurança para salvá-lo. “A base para uma existência escatológica do ser
humano é antes apenas o amor totalmente gratuito, completamente livre e imensurável de
Deus”23.

É possível um ato de confiança na morte? Um tal ato não implica ação e empenho
por parte da pessoa? Isto seria ainda possível na morte, quando a pessoa se torna definitiva?
O próprio Renold Blank reconhece estas dificuldades ao citar dois teólogos com
perspectivas diferentes. Um deles é Ladislau Boros que defende a hipótese da decisão final.
Ou seja, o ser humano decide sua vida na morte. Ele vê na morte a primeira oportunidade
em que o homem ou a mulher podem decidir-se, definitivamente e livremente, em favor de
Deus ou contra Ele24:

“A morte é o lugar ontológico privilegiado da consciência, da liberdade, do encontro com


Deus e da decisão da sorte eterna (...). De acordo com esta hipótese, no momento da morte teríamos,
por conseguinte, ainda uma possibilidade de decisão; ou, mais exatamente, precisamente na morte
teríamos a primeira possibilidade de uma tomada de posição total e plenamente pessoal”25.

Contra esta posição, temos Karl Rahner, que afirma ser o homem capaz de
autodeterminar-se eternamente durante a sua vida26. Uma decisão fundamental só na morte

deve deixar-se envolver por Deus, permitindo ser salvo por Ele. “Esta é a única liberdade de escolha que
ainda resta para o homem: permitir que Deus o salve ou, então, discordar disto (...). A este aceitar Deus com
tanta confiança chamamos FÉ” (grifo do autor) (R. J. BLANK, Viver sem o temor da morte, op. cit., p. 105).
Sobre a capacidade de decidir na morte, perguntamos se isto é ainda possível. Pois, como o homem se torna
definitivo na morte, não seria uma contradição ele agir/decidir tendo perdido a capacidade de agir/decidir?
Em todo o caso, pensamos com Renold Blank que “as manifestações a este respeito permanecerão sempre no
domínio da especulação teológico-filosófica” (ibidem, op. cit., p. 104). Este item 3.1.2. apresenta um
problema que tentaremos esclarecer, baseando-nos em Renold Blank e em outros teólogos.
23
R. J. BLANK, Viver sem o temor da morte, op. cit., p. 104.
24
Cf. Ibidem, p. 103. Leonardo Boff também concorda com esta idéia. Segundo Renold Blank, Leonardo Boff
foi um dos divulgadores do pensamento de Ladislau Boros no Brasil através do livro Vida para além da
morte (cf. R. J. BLANK, Nossa Vida tem futuro,. op. cit., p. 142, nota 15).
25
L. BOROS, Existência redimida, op. cit., p. 88. As palavras de Ladislau Boros se referem a uma hipótese.
E, como tal, Renold Blank lembra este fato dizendo que Boros se referiu, em 1977, “com extremo cuidado a
esta idéia” (R. J. BLANK, Viver sem o temor da morte, op. cit., p. 138).
26
Na opinião de Moltmann, também a “decisão para a eternidade foi tomada durante a (...) vida e torna-se
irrevogável por intermédio da (...) morte” (J. MOLTMANN, A vinda de Deus, op. cit., p. 115).
111

desvaloriza demais, segundo ele, a história humana27. Renold Blank, seguindo Rahner,
rejeita a hipótese de uma decisão na morte28 e pergunta se “a interpretação de Boros, talvez,
não dê demasiada importância à possibilidade de decisão”29. Sua reflexão, no entanto,
mostra muito sintonia com tal hipótese: a decisão de entregar-se a Deus é ato último e
definitivo com o qual o homem ou a mulher re-orientam toda a existência conforme os
parâmetros de Deus30. Temos aqui a impressão de que é por força da decisão final que a
vida terrena ganha densidade e fundamento.

Apresentamos até o momento o pensamento de Renold Blank sobre a “decisão na


morte” baseando-nos livros Viver sem o temor da morte e Nossa vida tem futuro. Pareceu-
nos que esse problema apresenta-se um pouco contraditório em seu pensamento. Contudo,
no livro Escatologia da pessoa31, posterior aos outros dois, nosso teólogo dá um outro
direcionamento para respondermos, com acerto e convencimento, aos questionamentos: é
possível um ato de confiança na morte, quando o homem se torna definitivo? Pode-se
mudar algo na morte?

A estas perguntas ele responde sim, recorrendo à idéia do amor radical de Deus. Na
morte, o homem entra na eternidade e em comunhão definitiva com Deus, que quer a

27
R. J. BLANK, Viver sem o temor da morte, op. cit., p. 103s. Como esta dissertação valoriza a história e a
antropologia, acolhemos a posição de Karl Rahner. Outro teólogo de peso a criticar a hipótese de uma decisão
final é Ruiz de la Peña. Este, para confirmar sua posição, cita Andrés Tornos: “Atualmente (a hipótese da
decisão na morte) não é uma linha de explicação que encontre muitos seguidores” (A. TORNOS, Escatologia
II, apud J. L. RUIZ DE LA PEÑA, La pascoa de la creacion, op. cit., p. 269, nota 98). Bruno Forte ensina
que na morte, como fato verdadeiramente humano (por conseguinte, inserido na história), fica indeterminado
o modo da decisão final (cf. B. FORTE, Teologia de la historia. Ensayo sobre revelación, protología y
escatología, Salamnca: Sigueme, 1995, p. 364).
28
No livro Nossa vida tem futuro, Renold Blank desenvolve um item específico a este respeito: “Rejeição da
hipótese de uma última decisão final do ser humano na morte” (p. 143).
29
R. J. BLANK, Nossa vida tem futuro, op. cit., p. 144. Contudo, Karl Rahner e Ladislau Boros reconhecem a
possibilidade de decisão do ser humano, seja ela realizada na morte ou durante a vida precedente. O
pensamento de Boros, por sua vez, parece contraditório. Se por um lado, dá tanto peso à decisão final, por
outro, reconhece o valor das decisões históricas: “O que desejaríamos no futuro temos de começá-lo no
presente. Temos que preparar-nos, por meio de numerosas e pequenas decisões de cada instante de nossa vida,
para a grande e definitiva decisão da nossa morte. A vida é um ‘ensaio do juízo’. Não podemos ‘deixar as
coisas como estão’ e adiar tudo para a última decisão (grifo nosso). Quem nos pode garantir que no fim
vamos mudar toda a orientação da nossa vida?” (L. BOROS, Existência redimida, op. cit., p. 95). É com
prudência que fazemos esta crítica a Ladislau Boros por não conhecermos mais a fundo a sua produção
teológica.
30
Cf. R. J. BLANK, Nossa vida tem futuro, op. cit., p. 145.
31
Neste livro, Renold Blank não menciona a hipótese da decisão na morte, talvez com a intenção de realizar
um outro raciocínio teológico.
112

plenitude da pessoa amada. Porém, definitividade não significa, para nosso teólogo,
situação estática. A comunhão dos santos, na vida eterna, possui dinamicidade, expansão e
crescimento no amor mútuo32. Na morte, entramos na dinâmica do amor de Deus, somos
envolvidos na relação amorosa entre Deus e suas criaturas. Por causa da graça divina e de
seu amor criativo, na morte se abrem novos caminhos e horizontes para o ser humano
decidir-se a favor de Deus33.

Pensamos que a liberdade humana continua na morte. Ela é conseqüência da


liberdade construída ao longo da vida anterior. Também, pelo fato de continuar sendo
humana, a liberdade continua sendo inerente à pessoa. Não se trata, porém, na morte, de
expressar a liberdade de modo semelhante à sua expressão terrena. Na morte, o homem
livre e conscientemente tem a capacidade de acolher a salvação que Deus lhe oferece.
O “deixar-se ser salvo por Deus”, conforme explica Renold Blank, está de acordo
com a atitude de Jesus mostrada no Novo Testamento. A cruz de Jesus é como o espelho da
situação do homem na morte. O Crucificado, já totalmente impotente, dependia da ação de
Deus. Do mesmo modo, o ser humano na morte necessita da ação divina. Deus sofreu em
Jesus aquilo que cada pecador deveria padecer: ser abandonado por Deus. Jesus foi
“abandonado por Deus para que nunca mais um homem seja abandonado por ele”34.

Deste modo, desde a morte de Jesus, o ser humano não precisa temer a morte. Pois,
“aquele mesmo Deus que sofreu a morte, não o abandonará jamais no seu próprio morrer”3
5
. Pelo contrário, Deus não deixa o homem na situação de abandono, mas intervém a
exemplo da intervenção operada em Jesus, ressuscitando-o dentre os mortos. E seu Filho
foi salvo porque decidiu confiar, contra todas as aparências, entregando-se nas mãos de
Deus.

32
Já vimos essa questão quando tratamos da comunhão dos santos no capítulo dois. Este aspecto será
retomado no estudo do céu e seu aspecto dinâmico
33
Cf. R. J. BLANK, Escatologia da pessoa, op. cit., pp. 193s. É este amor criativo, mais forte do que a morte,
e incompreensível para a razão humana, que permite a evolução da pessoa na morte e espera sempre a
salvação de todos. Aprofundaremos estes pontos quando tratarmos do purgatório e do inferno.
34
R. J. BLANK, Nossa vida tem sentido, op. cit., p. 150.
35
Ibidem, p. 151.
113

Do mesmo modo, a pessoa na morte poderá esperar por Deus: numa situação de
fraqueza, consciente dos pecados e de suas imperfeições. Aí o ser humano será posto
perante a necessidade de uma última e definitiva conversão para Deus, por meio de um
processo chamado purgatório.

Conclusão

A morte é um evento marcante para todo ser humano. Do ponto de vista da fé cristã,
ela significa a entrada da pessoa na vida eterna, a comunhão definitiva com Deus mediante
a ressurreição. Os teólogos reconhecem, portanto, o valor escatológico da morte. Ou seja,
ela tem caráter de consumação definitiva de um processo em que há colaboração humana
no projeto salvífico de Deus.

Renold Blank concentra, na morte, os elementos essenciais da escatologia pessoal e


coletiva: auto-cognição total, purgatório, juízo particular, inferno, céu, ressurreição, juízo
final e parusia. De fato, a tradição eclesial crê que na morte ocorre uma consumação do ser
humano e sua história. Mas, tal consumação não pode ser entendida como extensão
temporal como se “no instante” do morrer todo o processo de plenitude em Deus se
concentrasse num par de segundos.

O encontro com Deus na morte deve ser compreendido como um acontecimento


inextenso e infinitamente rico. Neste encontro consumador, o homem e a mulher alcançam
sua identidade definitiva, clara e inequívoca. O encontro põe em relevo as várias dimensões
da vida humana (pessoal, social, histórica e cósmica). Daí que, necessariamente, ao
tratarmos dos “novíssimos”, neste capítulo, iniciamos nossa reflexão teológica a partir da
morte.

3.2. O purgatório: oferta de Deus para a conversão, purificação dolorosa e evolução


humana na morte

Introdução
114

O purgatório é um assunto controvertido no diálogo entre católicos e protestantes.


Também na teologia católica, o tema admite leituras diferentes36. Na verdade, a questão do
purgatório não é, estritamente, da área da escatologia. Sua exposição adequada estaria no
campo da doutrina da graça. Um tratamento escatologista resultou numa deplorável
hipertrofia que esta doutrina experimentou na teologia, na pregação e na mentalidade dos
fiéis37. Mas, só pelo fato de ocupar um lugar relevante no imaginário popular, o purgatório
já é teologicamente importante38. Neste sentido, o pensamento de Renold Blank, que
interpreta esta doutrina em perspectiva escatológica, pode purgá-la de suas conotações
supersticiosas.

Apresentaremos o pensamento do nosso autor seguindo quatro passos. Primeiro,


faremos uma breve explanação das perspectivas gerais do tema do purgatório nos livros:
Viver sem o temor da morte, Nossa vida tem futuro e Escatologia da pessoa. Esta
explanação nos permitirá perceber a forma diversificada com a qual ele tratou um tema tão
complexo.

Num segundo momento, veremos brevemente as bases bíblicas e a história da


doutrina do purgatório. Este aspecto foi menos desenvolvido por nosso teólogo, mas
merece ser mais aprofundado e, para isso, recorremos a outros autores. Além do mais,
pensamos que o aprofundamento deste aspecto nos ajudará a compreender melhor o
pensamento de Renold Blank sobre o purgatório.

Nos dois outros momentos, veremos especificamente a interpretação que Renold


Blank dá do purgatório. Aqui, perceberemos que para ele o sentido do purgatório é o da
conversão-evolução na morte e o do dom de Deus para que o homem se aperfeiçoe a fim de
entrar na bem-aventurança eterna. Após percorrer esses quatro passos, finalizaremnos com

36
Cf. J-J TAMOYO-ACOSTA, Para compreender la escatologia cristiana, Navarra: Editorial Verbo Divino,
1993, p. 237.
37
Cf. J. L. R.UIZ DE LA PEÑA, La pascoa de la creacion, op. cit., pp. 279s.
38
J. B. LIBÂNIO; Ma. C. L. BINGEMER, Escatologia cristã, op. cit., p. 232.
115

uma conclusão avaliando criticamente o pensamento teológico de Renold Blank sobre o


purgatório39.

3.2.1. Perspectivas gerais do tema do purgatório nos livros de Renold Blank

Como dissemos, a questão do purgatório é estudada por Renold Blank


principalmente nos livros: Viver sem o temor da morte (1984), Nossa vida tem futuro
(1991) e Escatologia da pessoa (2000). Em dezesseis anos, seu pensamento sofreu
evoluções e se aprofundou, embora tenha conservado as características básicas.
Perceberemos isso, a seguir, comparando como ele trata esse assunto em cada livro.

Viver sem o temor da morte e Nossa vida têm futuro têm semelhança no modo de
apresentar a doutrina do purgatório. Por isso, os apresentaremos em primeiro lugar para, em
seguida, compararmos seu conteúdo com o da Escatologia da pessoa.

a) Nos livros Viver sem o temor da morte e Nossa vida têm futuro

Duas idéias servem de ponto de partida para a reflexão teológica nestes dois livro: a
do perdão misericordioso de Deus e a da exigência de conversão por parte do ser humano
(palavras-chave: perdão e conversão). Neles, nosso teólogo se preocupa em explicar o
significado do purgatório a partir destas idéias básicas. O aspecto bíblico aparece com
poucas referências. E em nenhum dos dois livros o autor se dedica à análise do
desenvolvimento histórico da doutrina do purgatório.

39
Seguiremos o mesmo esquema na apresentação do purgatório, inferno e céu: 1) Informações gerais sobre
cada “novíssimo” nos três livros citados, 2) breve explanação do aspecto bíblico-histórico, 3) interpretação
que Renold Blank dá de cada “novíssimo” e 4) conclusão avaliativa do pensamento do autor. A respeito do
primeiro passo, o realizaremos por entender que houve mudanças na forma de o autor tratar o assunto nos
seus livros, o que significa progresso em sua compreensão dos “novíssimos”. Sobre o segundo, queremos
desenvolver um aspecto que Renold Blank apresenta de forma resumida. Para nós, é importante conhecer
mais o aspecto bíblico-histórico a fim de compreender melhor o pensamento do autor sobre purgatório,
inferno e céu. O terceiro passo constitui o centro de cada item sobre os três “novíssimos”, pois este trabalho
tem por objetivo mostrar a visão de Renold Blank sobre eles. Contudo, faremos também uma avaliação crítica
de seu pensamento, visto que este ajuda a avançar em certos aspectos, mas também possui alguns limites
(objetivo do quarto passo).
116

Com relação ao volume de informações notamos que Viver sem o temor da morte
desenvolve mais o tema (pp. 146 a 166) do que Nossa vida têm futuro, onde a explicação é
um pouco menor (pp. 165 a 184), retomando basicamente o conteúdo do livro anterior, e
incluindo um resumo esquemático (pp. 171 a 174). A distribuição da matéria neste segundo
livro é porém mais didática. O autor faz aí uma breve referência à dimensão social do
purgatório, embora em capítulos posteriores aos que trata deste tema (capítulo sobre o juízo
final, pp. 203 a 218). No livro Viver sem o temor da morte, a dimensão social está integrada
ao texto explicativo do significado do purgatório, e não à parte.

Citamos ainda as seguintes informações a respeito da ordem em que aparecem os


“novíssimos” nos dois livros: Viver sem o temor da morte expõe em primeiro lugar a
doutrina do inferno, depois a do purgatório; enquanto Nossa vida tem futuro apresenta,
primeiramente, a doutrina do purgatório, depois a do inferno (os dois livros não tratam de
modo específico sobre o céu).

b) No livro Escatologia da pessoa

O ponto de partida para a reflexão sobre o tema é o amor de Deus que quer o
crescimento da pessoa amada. Tal amor possibilita a conversão-evolução na morte
(palavra-chave: amor).

Elementos em comum com Viver sem o temor da morte e Nossa vida tem futuro:
- O autor utiliza a analogia do amor humano para explicar a eficácia do amor de
Deus;
- Centra sua atenção no significado do purgatório, desenvolvendo e aprofundando
aspectos que já apareceram nos livros anteriores.

Elementos acrescentados:
- Um capítulo sobre a doutrina da reencarnação (pp. 195 a 198), que tem como
finalidade mostrar que a proposta cristã do purgatório é melhor;
117

- Um capítulo esquemático sobre as bases bíblicas e doutrinárias do purgatório (pp.


199 a 200);
- Um capítulo especial sobre o “tipo de evolução” que ocorre na morte (pp. 211 a
213);
- O capítulo no qual trata do “purgatório como processo evolutivo” em Santo Tomás
(pp. 220 a 222);
- Um capítulo com as características gerais do processo-conversão-evolução
chamado purgatório. Aqui, ele recolhe os elementos apresentados nos dois livros anteriores
e também retoma resumidamente alguns pontos presentes no próprio livro Escatologia da
pessoa.

Renold Blank trata dos “novíssimos” nesta ordem: purgatório, inferno e céu (é a
mesma que utilizamos nesta dissertação).

Estas informações gerais, tiradas dos três livros, mostram que houve uma evolução
no pensamento de Renold Blank no que diz respeito à doutrina do purgatório. Trata-se,
basicamente, de um aprofundamento do significado deste estado intermediário purificador.
Veremos isso com mais detalhe no momento em que apresentarmos o significado que ele
dá ao purgatório no conjunto destas três obras. Antes, porém, queremos mostrar como a
doutrina do purgatório foi se formando na história da teologia cristã, partindo da
interpretação de alguns textos bíblicos.

3.2.2. Bases bíblicas e históricas do dogma do purgatório

A apresentação dos aspectos bíblico e histórico ajuda-nos a compreender como e


porque foi elaborada a doutrina do purgatório. Renold Blank não chegou a expor de modo
completo estes dois aspectos, apesar de tê-los estudado, como mostram as notas de rodapé
do livro Escatologia da pessoa (pp. 199 a 200: o autor apresenta apenas um esquema).
118

Basearemos esta análise bíblico-histórica nos seguintes autores: Ruiz de la Peña 40 e


Tamoyo-Acosta41, para a parte bíblica42, e Luiz Ladaria43, para a parte histórica.

a) Bases bíblicas para a doutrina do purgatório

A busca de textos da Escritura para fundamentar a doutrina do purgatório surgiu no


contexto apologético da Reforma Protestante. Lutero, em sua obra Retratação do
purgatório (1530), negou explicitamente esta doutrina por falta de uma sólida base bíblico-
patrística. De certo modo, ele tinha razão, pois não encontramos na Bíblia uma passagem
formal que fale diretamente do purgatório.

De fato, como diz Luiz Ladaria, “a idéia de purgatório não está presente na
Escritura”44. Disso não se segue que não tenha qualquer fundamento bíblico. De fato, a
Escritura diz que é útil rezar pelos mortos. Na Igreja primitiva tal prática se estabeleceu
pelo menos a partir do século II. E ela era respaldada em certas passagens, e duas delas se
tornaram clássicas: 2 Mc 12, 38-45 e 1 Cor 3, 10-17.

O texto de Macabeus conta que, quando os seguidores de Judas foram recolher os


cadáveres dos soldados, mortos na batalha contra Górgias, encontraram objetos de culto
idolátrico. Judas fez então um “sacrifício de expiação” (12, 42) para que os soldados
“fossem libertados do pecado” (12, 45). Os soldados cometeram pecado grave: idolatria.
Contudo, em consideração aos mártires, Judas ordenou o sacrifício expiatório.

Seu procedimento mostra um progresso notável com relação ao ritual do perdão dos
pecados: o rito do kippur presente em Israel e que servia para redimir os pecados dos vivos
40
Cf. J. L. RUIZ DE LA PEÑA, La pascoa de la creacion, op. cit., pp. 280-288.
41
Cf. J-J TAMOYO-ACOSTA, Para compreender la escatologia cristiana, op. cit., pp. 238-239.
42
Apesar de não serem exegetas, Ruiz de la Peña e Tamoyo-Acosta se basearam em bons biblistas para
fazerem suas reflexões.
43
Cf. L. F. LADARIA, in B. SESBOÜÉ, (Org.), Historia de los Dogmas, op. cit., pp. 309-356. Renold Blank
se fundamenta em Jean Le Goff, que é um bom historiador mas apresenta um ponto de vista da história das
mentalidades e fala do nascimento do purgatório a partir do que ele, não a fé cristã, entende por purgatório
(cf. J. L. R.UIZ DE LA PEÑA, La pascoa de la creacion, op. cit., p. 285, nota 20). Já Ladaria tem uma
preocupação claramente escatológica e analisa com profundidade a história do purgatório e de outros
novíssimos.
44
L. F. LADARIA, in B. SESBOÜÉ, (Org.), Historia de los Dogmas, op. cit. p. 337.
119

(cf. Lv 4-5). Agora, surge uma ação cultual para ajudar os mortos em situação de pecado45.
No entanto, a maioria dos exegetas e teólogos acreditam que este texto de 2 Mc 12, 38-45
“não parece referir-se a um estado de purificação após a morte”46. Na verdade, ele se refere
à ressurreição dos mortos, embora testemunhe a solidariedade entre vivos e mortos e a
responsabilidade daqueles com relação a estes.

O segundo texto mais citado em favor do purgatório é 1 Cor 3, 10-17. Ele também
não fala diretamente deste estado intermediário. Ele diz que a obra de cada um ficará
conhecida, pois “o Dia (do julgamento) (...), se manifestará pelo fogo e o fogo provará o
que vale a obra de cada um” (v.13). A idéia central de Paulo não é a purificação, mas a
dificuldade que alguns encontrarão para salvar-se. O texto, de estilo alegórico, se refere aos
pregadores do evangelho: uma categoria deles, os menos zelosos, corre o risco da
condenação e terão recompensa em grau diferenciado, comparada com a dos bons
apóstolos47.
Os dois textos comentados constituem o núcleo germinal do dogma: a partir deles os
teólogos foram amadurecendo a idéia da purificação após a morte, a fim de o homem e a
mulher serem admitidos à visão de Deus, conforme ensina a tradição eclesiástica.

b) Elementos da tradição eclesiástica que determinaram a doutrina do purgatório

Na Igreja primitiva, logo cedo se difunde a prática dos sufrágios pelos falecidos,
com a pretensão de acentuar a comunhão entre os vivos e os mortos. A tradição antiga
contém abundantes testemunhos de orações pelos defuntos nas igrejas orientais e
ocidentais. Esse contexto religioso expressa uma fé implícita no purgatório. A mudança
para uma formulação explícita conheceu um passo significativo com Cipriano. A ele se
deve a primeira menção do fogo purificador após a morte (ignis purgatorius), para aqueles
que não puderam ser purificados antes do instante final ou pelo martírio.

45
Cf. J. L. RUIZ DE LA PEÑA, La pascoa de la creacion, op. cit., p. 281.
46
Cf. J-J TAMOYO-ACOSTA, Para compreender la escatologia cristiana, op. cit., p. 239. “O texto não diz
absolutamente nada (grifo do autor) sobre o efeito purificador das preces” (J. RATZINGER, Escatologia
apud J-J TAMOYO-ACOSTA, ibidem, p. 239, nota 2).
47
Cf. J. L. RUIZ DE LA PEÑA, La pascoa de la creacion, op. cit., p. 282.
120

A partir deste momento (século III), as referências ao purgatório se fazem cada vez
mais freqüentes, tanto nos escritos gregos como nos latinos. Agostinho, um dos que mais
escreveram sobre este tema, desenvolve a idéia de purificação após a morte para alguns
pecadores, já que existe a possibilidade de perdão dos pecados depois da morte. Ele recolhe
da tradição precedente a idéia das penas ou do fogo purificador. Afirma também que a
oração dos vivos ajuda os falecidos em sua purificação.

Marco importante no desenvolvimento da escatologia cristã foi a obra de Juliano de


Toledo (século VIII), Prognosticum futuri saeculi, primeiro tratado sistemático de
escatologia, muito inspirado em Agostinho, e de influência na teologia medieval 48. Na
patrística, as intervenções conciliares sobre a escatologia também evocam “a possibilidade
de uma purificação última depois da morte”49.

No período medieval a escatologia da pessoa será sistematizada ainda sob a


influência de Agostinho. No século XII, o purgatório começa a ser evocado na cristandade
latina como lugar onde existe fogo50. Esta compreensão é oposta à grega, que entendia o
purgatório como estado51. Tal questão foi debatida nos concílios de Lyon (1274) e de
Florença (1439). Por meio de declarações sóbrias, estes concílios concluíram que, na
compreensão do purgatório, não se deve mencioná-lo como lugar onde entre as penas se
conta a do fogo. Pelo contrário, o purgatório se refere a um estado de caráter expiatório
(penal) em que os sufrágios dos vivos (missa, oração e esmola) servem de ajuda ao estado
de purificação do defunto52.

O concílio de Trento reiterou a doutrina do purgatório proposta pelos concílios


anteriores. Orientou os bispos para que ela fosse ensinada ao povo simples, mas sem as
questões difíceis e que se evitasse a curiosidade e a superstição. O Vaticano II, no capítulo

48
Cf. B. SESBOÜÉ, (Org.), Historia de los Dogmas, op. cit. pp. 328-332.
49
Ibidem, p. 333.
50
O primeiro a falar sobre isto foi Hildeberto de Lavardin, bispo de Le Mans, em 1170 (cf. ibidem, p. 337).
51
A respeito do purgatório, houve controvérsias entre a Igreja latina e a grega. Os gregos se opunham à idéia
de fogo no processo de purificação e se mostravam, igualmente, contrários às idéias de castigo e expiação. Os
latinos ressaltavam a dimensão expiatória. Ambos coincidem, porém, em valorizar as orações pelos defuntos
(cf. J-J TAMOYO-ACOSTA, Para compreender la escatologia cristiana, op. cit., p. 241).
52
Cf. B. SESBOÜÉ, (Org.), Historia de los Dogmas, op. cit. pp. 345-348.
121

VII da Lumen gentium, contém várias referências ao estado de purificação após a morte,
como por exemplo o número 49 que fala em fiéis defuntos que “se purificam”, e confirma
as orientações básicas dos concílios que o precederam53.

Dois documentos pós-conciliares confirmam a crença no purgatório: uma carta da


Congregação para a doutrina da fé e uma reflexão da Comissão teológica internacional
(CTI). A carta, intitulada Sobre algumas questões relativas à escatologia (1979) confirma a
idéia de uma eventual purificação prévia à visão de Deus. O documento Algumas questões
atuais sobre a escatologia, da CTI (1998), fala de uma purificação da alma numa etapa
escatológica intermediária, após a morte54. Reconhecendo as grandes intuições do Vaticano
II e a de outros teólogos, temos a seguir a interpretação de Renold Blank a respeito do
purgatório.

3.2.3. Purgatório: oferta de Deus para a conversão, purificação dolorosa e evolução


humana na morte55

No título acima, destacam-se quatro palavras-chave que caracterizam a


compreensão de Renold Blank sobre o significado de purgatório. As idéias expressas por
elas se interligam e, no conjunto, dão-nos uma noção do processo purificador pelo qual o
homem passa na morte. Elas, na verdade, constituem aspectos da única realidade
escatológica chamada purgatório. Este é um momento do processo de consumação que se
caracteriza pelas quatro realidades dinâmicas em vista da salvação humana. A seguir,
vamos aprofundar cada um dos referidos aspectos.

a) Purgatório como oferta de Deus

53
Cf. Ibidem, pp. 349-354.
54
Cf. Ibidem, pp. 354-355. Como dissemos na página 102, nem todos estão de acordo com a perspectiva de
Renold Blank, que crê na ressurreição na morte. O esquema católico explicativo da ressurreição na morte se
inspira em Cándido Pozo e em Karl Rahner, embora o primeiro reconheça que o Novo Testamento não
conhece esta idéia, pois associa a ressurreição do indivíduo à parusia do Senhor (cf. C. POZO, La venida del
Señor en la gloria, op. cit., pp. 98-101)
55
Neste item 3.2.3. usaremos basicamente o livro Escatologia da pessoa, completando com outros teólogos.
122

No fim da vida, a maioria dos seres humanos não chegou ao nível pleno de sua
possível evolução. É assim, inacabada, que a pessoa se encontra com Deus na morte. Ela,
então, percebe que sua vida não correspondeu plenamente aos parâmetros de Deus.
Pecados, omissões, possibilidades não realizadas, culpas56: este é o estado no qual a pessoa
se encontra perante Deus na morte. Com esta vida incompleta, ela percebe-se necessitada
de uma última chance de purificação. E Deus concede-lhe gratuitamente esta chance57.

O homem, de fato, em virtude de um ato de cognição total, percebe que existe esta
oferta de conversão e, assim, pode recuperar “o que ficou devendo a Deus”. Por causa do
amor divino, abrem-se-lhe possibilidades de transformação. A teologia cristã chama esta
oferta58 de Deus ao homem de purgatório, diz Renold Blank59. A vida humana é um
processo de amadurecimento que, na morte, se abre a um desabrochar pleno. Segundo
Leonardo Boff, com quem concorda Renold Blank, o purgatório é a chance oferecida por
Deus ao homem de poder maturar e atualizar todas as suas potencialidades60. Esta oferta
divina é mais uma confirmação de que Deus não quer a morte do pecador, mas que este se
converta e vida.

b) Purgatório como conversão

A idéia do purgatório supõe uma visão otimista sobre o fim da vida humana
Realmente, o Deus misericordioso está disposto a dar de graça o que o homem não
alcançou. Mas, Renold Blank alerta: “Seria (...) errado interpretar as afirmações do

56
Renold Blank cita elementos negativos para enfatizar a eficácia do amor de Deus na transformação do ser
humano. O amor divino supera as negatividades.
57
Renold Blank faz uma comparação para entendermos o estado, pouco favorável, em que o homem se
encontra na morte e a bondade de Deus. Segundo o teólogo, é como se os erros/pecados constituíssem o
débito de uma nota promissória não paga. Porém, Deus está disposto a conceder de graça o que o homem lhe
deve (cf. R. J. BLANK, Escatologia da pessoa, op. cit., p. 197).
58
No dizer de Moltmann, “o purgatório é uma graça de Deus, por intermédio da qual ele atrai as almas para si
após a morte” (J. MOLTMANN, A vinda de Deus, op. cit., pp. 196-198).
59
R. J. BLANK, Escatologia da pessoa, op. cit., pp. 196 a 198.
60
Cf. L. BOFF, Vida para além da morte. O presente: seu futuro, sua festa, sua contestação, Petrópolis:
Vozes, 1974, pp. 55s. A maturação é um processo que ocorre ao longo da vida humana. Um processo nunca
acabado na existência histórica, mas que tem seu acabamento qualitativo com o purgatório. Neste sentido,
afirma Francisco de Mier: “O purgatório é o momento definitivo deste processo, um momento muitíssimo
eficaz de todos os (processos) anteriores, porque aí minha maturação passa às mãos de Deus” (grifo do
autor) (F. MIER, Escatologia cristiana, Madrid: San Pablo, 1996, p. 125).
123

purgatório no sentido de dizer: (...) ‘não precisamos nos esforçar na vida, pois Deus nos
dará, na morte, tudo de graça”61.

É preciso evitar uma atitude leviana, omissa, de otimismo ingênuo e sem


compromisso com a tarefa de transformar, na medida do possível, a si mesmo e ao mundo.
Deus não impõe a sua graça, Ele a oferece. E o homem pode aceitar a proposta divina a
partir daquela personalidade que ele construiu no decorrer de sua vida 62. Aceitar aquilo que
Deus propõe na morte talvez não seja fácil se durante a vida terrena o homem construiu sua
personalidade baseada na injustiça e no egoísmo. Por isso, tal personalidade deve ser
transformada por Deus com o consentimento do homem ou da mulher. A transformação é
necessária para que a pessoa se una definitivamente com Aquele que é a suma pureza:
Deus. A esta última mudança humana na morte chamamos de conversão63. Segundo Renold
Blank, concordando com outros teólogos, há íntima ligação entre o perdão e a conversão 64.
E o amor divino é a base para a conversão:

“A possibilidade de conversão na morte (...) decorre, em sua essência, da atração e da


experiência de que Deus me ama; conversão em que o ser humano abandona tudo o que o impossibilita
de amar a Deus e se entregar completamente a ele”65.

A conversão é a transformação profunda que o homem experimenta: transformação


que o purifica para estar definitivamente com Aquele que é a pureza eterna que quer
purificar todos os que chama para a vida em plenitude.

61
R. J. BLANK, Escatologia da pessoa, op. cit., p. 203.
62
Ao longo do livro Escatologia da pessoa, Renold Blank fala diversas vezes da relação entre vida vivida e
vida eterna. E isto para confirmar a vinculação necessária que existe entre a escatologia e a realidade humana.
63
Cf. R. J. BLANK, Escatologia da pessoa, op. cit., pp. 203s. Teologicamente falando, a purificação têm
lugar através da metanoia, que é a condição necessária ante a proximidade do Reino de Deus (cf. Mc 1, 15). A
conversão é o ponto de partida e a perspectiva donde situar a reflexão sobre a purificação ultraterrena (cf. J-J.
TAMOYO-ACOSTA, Para compreender la escatologia cristiana, op. cit., p. 241). “A purificação
ultraterrena se situa no âmbito penitencial da Igreja, no ministério eclesial da reconciliação. Daí a relação
entre purificação ultraterrena e a conversão, a que antes nos referíamos” (ibidem, p. 242).
64
Aqui lembramo-nos dos livros Viver sem o temor da morte e Nossa vida em futuro que iniciam suas
reflexões sobre o purgatório a partir do perdão e da conversão. Renold Blank também se refere a este aspecto,
num segundo momento, no livro Escatologia da pessoa. Neste último, fala antes do amor de Deus que perdoa
e chama à conversão. Na verdade, a purificação após a morte é uma realidade única com aspectos diferentes,
como já dissemos, fundamentada no amor divino. De fato, a base do purgatório é este amor: “É o amor que
purifica” (J. B. LIBÂNIO; Ma. C. L. BINGEMER, Escatologia cristã, op. cit., p. 242). Medard Kehl trata do
tema do purgatório com o seguinte título: “ ‘Purgatório’: inferno ‘temporário’ ou transformação pelo amor
purificador de Deus?” (M. KEHL, O que vem depois do fim?op. cit., pp. 143-148).
65
R. J. BLANK, Escatologia da pessoa, op. cit., p. 206.
124

c) Purgatório como purificação dolorosa

O processo de conversão experimentado na morte implica a superação do orgulho,


do mal e da injustiça ainda presentes na personalidade. Por isso, este processo se realiza
com menor ou maior dificuldade66. Segundo Renold Blank, ele se caracteriza pela “dor”:

“Por ocasião do encontro com Deus, (...) cada pessoa experimentará, com intensidade nunca
antes conhecida, o significado de sua vida vivida. E dependendo do que tiver feito (...) a outras
pessoas e com as situações históricas e estruturais (...), sua união com Deus também será ligada de
maneira mais ou menos dolorosa”67.

O elemento dor/sofrimento é uma característica comum citada por vários teólogos


no processo de purificação. Um deles, Tamoyo-Acosta, nos diz que “hoje os teólogos
deixaram de ocupar-se da física e da topografia do purgatório e se centram no significado
profundo da purificação”68. A própria definição de purgatório dada por Medard Kehl, por
exemplo, inclui o aspecto da dor: “Processo doloroso de deixar-se perdoar por Deus na
morte, quando do encontro definitivo com o amor julgador divino”69. De fato, é o fogo do
amor de Deus que “nos purifica mediante o conhecimento doloroso da discrepância entre
seu amor ilimitado e nossa capacidade amorosa deficiente”70.

A analogia com o amor de Deus, citada com freqüência por Renold Blank, nos
ajuda a compreender a dor71 exigida pela purificação a fim de que todos sejam conformes à
imagem de Jesus (cf. Rm 8, 29). A pessoa que se sabe amada, e que deverá comparecer
diante do amado para confessar suas falhas, sentirá de maneira bem mais dolorosa a própria

66
O processo de purificação é difícil, “pois os ‘resíduos’ de nossa falta, ou seja, seus efeitos e repercussões
sobre nosso caráter, nossa conduta e nossas relações também estão profundamente presentes em nós, na morte
e além dela” (M. KEHL, O que vem depois do fim?, op. cit., pp. 145s).
67
R. J. BLANK, Escatologia da pessoa, op. cit., p. 208. Assim também pensa João Batista Libânio: o
purgatório é um processo doloroso que pode variar de intensidade de pessoa para pessoa, dependendo de
como ela orientou sua vida (cf. J. B. LIBÂNIO; Ma. C. L. BINGEMER, Escatologia cristã, op. cit., p. 241).
68
J-J. TAMOYO-ACOSTA, Para compreender la escatologia cristiana, op. cit., p. 240. Este teólogo
desenvolve sua “teologia da purificação” nas páginas 240-242 do livro citado. Também Bernard Sesboüé
enfatiza a “purificação necessária” para estar com Deus (cf. B. SESBOÜÉ, Croire. Invitation à la foi
catholique pour les femmes et les hommes du XXIe siècle, Paris: Droguet e Arant, 1999, pp. 535s).
69
M. KEHL, O que vem depois do fim?, op. cit., pp. 144s. Medard Kehl, em seguida, acrescenta que o
purgatório é “uma confrontação dolorosa e purificatória com a história de sua vida - em face da bondade (...)
misericordiosa” de Deus (ibidem, p. 145).
70
F. MIER, Escatologia cristiana, op. cit. p. 131
71
Renold Blank também usa uma expressão bíblica paulina que lembra este processo doloroso: a “destruição
do velho homem” (cf. Ef 4, 23-24).
125

fraqueza perante aquele que a ama. Mas também, é o amor do outro que lhe inspira
confiança e possibilita a conversão. No plano escatológico, perante o imenso amor de Deus,
reconhecemos dolorosamente nossa indignidade mas, ao mesmo tempo, o amor divino
procura despertar a conversão no ser humano72.

Dentre os teólogos que abordaram o sofrimento no purgatório, citamos a rica


contribuição de Luiz Carlos Susin. Segundo ele, “falar do ‘purgatório’ é falar da dor do
processo de salvação”73. E, complementando o pensamento de Renold Blank, Luiz Carlos
Susin nos ajuda a compreender a função da dor no processo purificatório. Diz ele:

“Todo sofrimento deixado a si mesmo é absurdo. Somente se estiver integrado em algo que
o supere toma sentido (...). Só integrado no amor, no dom de si e na confiança no Pai é que se integra
à redenção (...). Ora, é o amor que humaniza o sofrimento, mas não o amor ao sofrimento e sim o
amor de quem ou daquilo pelo qual se sofre, amor que é sempre amor à vida”74.

Caso a pessoa aceite a oferta que Deus lhe faz, na morte, em vista de sua
purificação, abrem-se para ela novas perspectivas de evolução.

d) Purgatório como evolução

Deus concede ao ser humano na morte a chance de se tornar pessoa plena, com a
personalidade evoluída até as últimas potencialidades, sem falhas ou imperfeições. Este é o
projeto de Deus para todos de modo que:

“junto de Deus não haverá nem coxos, nem cegos, nem doentes mentais. Não haverá
pessoas infantis, ou doentes, ou frustradas, ou inacabadas. Junto de Deus só haverá seres humanos
plenamente evoluídos até as últimas possibilidades de seu ser. O PROJETO DE DEUS É UM
PROJETO DE VIDA PLENA E, NA MORTE, A TODA PESSOA É OFERECIDA A
POSSIBILIDADE DE EVOLUIR A ESSE NÍVEL” (grifo do autor)75.

72
Cf. R. J. BLANK, Escatologia da pessoa, op. cit., pp. 209s. Comparação muito querida por Renold Blank,
que procura apresentá-la nos livros Viver sem o temor da morte, op. cit., pp. 150s e Nossa vida tem futuro, op.
cit, p. 169. Uma outra comparação, que explica a dor “sentida” no purgatório, pode ser tirada da experiência
terapêutica. Renold Blank não a utiliza, mas é esclarecedor citá-la. As terapias visam a ajudar a pessoa a
integrar-se melhor, mas como são dolorosas! No entanto, causam libertação e felicidade quando o indivíduo
consegue assumir-se integrado (cf. J. B. LIBÂNIO; Ma. C. L. BINGEMER, Escatologia cristã, op. cit., p.
240).
73
L. C. SUSIN, Assim na terra como no céu. Brevilóquio sobre escatologia e criação, Petrópolis: Vozes,
1995, p. 100.
74
Ibidem, pp. 106s.
75
R. J. BLANK, Escatologia da pessoa, op. cit., p. 212.
126

Falando deste modo, Renold Blank pensa ter uma resposta de esperança para as
mães cujos filhos morreram prematuros, abortados ou com deficiências mortais. Para estes,
afirma nosso teólogo, o processo de evolução não terá nada de doloroso76.

O que viemos apresentando até agora, tanto a respeito da evolução no purgatório,


quanto em relação às outras três características dele, pode dar uma impressão de que o
processo-purgatório é por demais pessoal. De fato, destacamos bem sua dimensão
individual. Mas, diante da tendência à “privatização espiritualista do purgatório”77, muito
comum na teologia tradicional, hoje se afirma sua dimensão social, como veremos a seguir.

3.2.4. Dimensão social do purgatório: o juízo final

Como vimos, a doutrina do purgatório surge a partir da prática da oração pelos


mortos realizada pela Igreja, prática fundamentada no dogma da comunhão dos santos e
inspirada em alguns textos bíblicos. Nosso teólogo toca nesse assunto mas não o aprofunda.
Por isso recorreremos a outros teólogos para esclarecê-lo melhor. A oração feita em favor
dos falecidos nos remete à dimensão comunitária do purgatório. Como nos recorda Ruiz de
la Peña, baseando-se em Yves Congar, se o dogma do purgatório tem algum sentido, é
sobretudo um sentido social: as pessoas falecidas não cumprem seu destino de maneira
isolada, mas ligadas a todo o corpo de Cristo e ajudadas pelos sufrágios dos fiéis e dos
santos78.

Já que o ser humano é essencialmente um ser de relações, ele continua sendo


relacional no purgatório. Visto que permanece humano após a morte, a dimensão social

76
Cf. Ibidem, p. 212.
77
Expressão utilizada por TAMOYO-ACOSTA no livro Para compreender la escatologia cristiana, op. cit.,
p. 242. Renold Blank tem a preocupação de mostrar a dimensão comunitária/social do purgatório, do inferno e
do céu. O teólogo procura recuperar o relacionamento entres as dimensões pessoal, social, histórica e cósmica
da escatologia.
78
Cf. J. L. RUIZ DE LA PEÑA, La pascoa de la creacion, op. cit., p. 291, nota 38. O Vaticano II insiste nisto
como podemos verificar na LG números 49, 50 e 51. O número 49, por exemplo, diz que “todos os que são de
Cristo, tendo seu Espírito, formam uma só Igreja e nele estão unidos entre si (cf. Ef 4, 16). Por isso, a união
dos que estão na terra com os irmãos que adormeceram na paz de Cristo, de maneira nenhuma se interrompe;
pelo contrário, segundo a fé constante da Igreja, reforça-se pela comunicação dos bens espirituais”.
127

deve continuar também no seu processo purificatório. Assim, a solidariedade entre mortos e
vivos não é rompida com a morte: “Ninguém comparece sozinho diante do amor julgador e
perdoador de Deus, mas sempre na comunhão de todos os membros de seu corpo (que
naturalmente é bem mais vasto do que a forma institucional da Igreja terrena)”79.

Procurando superar um “egoísmo de salvação”80, Renold Blank tem uma clara


preocupação em ressaltar a dimensão social do purgatório que, segundo ele, se refere à
imagem tradicional do juízo final81. De acordo com o teólogo suíço, o autoconhecimento do
homem na morte abrange também o amplo campo de seus relacionamentos históricos.
Nossos pecados acontecem dentro de uma história marcada por situações de pecado social
(cf. Puebla, 28).

Por trás das estruturas injustas existem pessoas cujos atos ou omissões
possibilitaram o surgimento e o fortalecimento de tais estruturas. Na morte, será revelada a
parcela de responsabilidade de cada um no conjunto da história. No juízo final, todas as
interligações humanas serão percebidas com mais clareza em suas conseqüências reais.
Acontecendo num momento atemporal, o juízo final coloca cada pessoa junto com todas as
outras. E ela se tornará consciente de suas responsabilidades sociais e estruturais.

O juízo final revela o alcance das palavras de Jesus em Mt 25 82. A dimensão social
do purgatório é essencial para o êxito ou o fracasso do ser humano perante Deus, pois a
salvação implica em responsabilidade histórica. O purgatório, com sua indissociável
componente pessoal e comunitária, se inicia aqui na terra. À medida que o ser humano se
79
M. KEHL, O que vem depois do fim?, op. cit., p. 146. Sobre a relacionalidade humana, João Batista Libânio
diz que o homem não se constrói sozinho, mas dentro de um tecido social. Com as estruturas sociais, ele
mantém uma relação dialética que pode ser de integração ou desintegração, de desenvolvimento ou de
corrupção. “Por isso, o purgatório tem necessariamente uma dimensão social” (J. B. LIBÂNIO; Ma. C. L.
BINGEMER, Escatologia cristã, op. cit., p. 242).
80
R. J. BLANK, Escatologia da pessoa, op. cit., p. 297.
81
Enquanto o juízo final expressa a dimensão social do purgatório, a parusia é a imagem de sua dimensão
cósmica. No capítulo dois já falamos sobre isto, ligando estes aspectos à ressurreição de Jesus. Agora,
queremos ressaltar a relação entre a dimensão social do purgatório com a responsabilidade histórica e a
oração pelos defuntos.
82
Citamos aqui um pouco da parábola, em que Jesus mostra que “o julgamento será sobre a realização de uma
prática de justiça em favor da libertação dos pobres e oprimidos” (Bíblia Sagrada. Edição Pastoral, São
Paulo: Paulus, 2004): “Eu garanto a vocês: todas as vezes que vocês fizeram isso (alimentar os famintos,
visitar os doentes, acolher os estrangeiros etc) a um dos menores de meus irmãos, foi a mim que o fizeram”
(v. 40).
128

empenha na construção de uma sociedade justa, criam-se estruturas que favorecem à


integração das pessoas no amor.

Ninguém enfrenta o purgatório sozinho nem na terra nem na morte, como dissemos
acima citando João Batista Libânio. Este teólogo nos lembra que somos amparados pela
oração da Igreja. O sufrágio pelos falecidos deve se expressar em atos de justiça que criem
situações históricas libertadoras. Este sufrágio, já iniciado na existência terrestre, diminui o
purgatório dos irmãos vivos e falecidos83.

A comunhão dos santos é a garantia de que podemos ajudar os mortos com nossas
preces. E a expressão desta unidade é justamente a oração que permite aos vivos e aos
mortos ajudar-se mutuamente no amor84. A oração é significativa para os mortos, pois os
auxilia no fortalecimento da disposição de se deixar purificar pelo amor de Deus. Medard
Kehl explica de forma clara de que modo nossa oração ajuda o falecido em seu purgatório:

“(Deus) inclui nossa (grifo do autor) solidária ação mútua em sua (grifo do autor) ação
salvífica sobre os homens individuais. Pois seu atendimento não consiste em ele ‘re-agir’
temporalmente à nossa oração apenas após a fazermos, mas em ele já sempre ‘agir’ para a salvação
de cada homem e tornar nossa oração (não importa em que momento é feita) útil para esse homem,
quando e como ele precisar para sua salvação (...). Nossa oração por um morto lhe será útil tanto em
sua vida como em sua morte, ou seja, em seu último encontro com o amor julgador-purificador de
Deus, sem que possamos reconhecer como (grifo do autor) isso acontece. Basta confiar no
‘que’(fato) e deixar consoladamente com Deus a ‘oferta’ concreta de nossa oração para a salvação de
uma pessoa”85.

Conclusão

Avaliando a exposição de Renold Blank sobre o purgatório, à luz dos capítulos um e


dois, percebemos que ele realmente elabora uma compreensão que corrige algumas
distorções presentes na visão escatológica tradicional deste estado intermediário. Sua
83
Cf. J. B. LIBÂNIO; Ma. C. L. BINGEMER, Escatologia cristã, op. cit., p. 242. Para Leonardo Boff também
o pecado pessoal possibilita a criação de laços pecaminosos que afetam outros homens, criando-se uma rede
de pecados. Mas, por outro lado, a redenção de cada homem beneficia a todos os justos. E nesta solidariedade
estão unidos o céu e a terra com suas preces, ajudando a pessoa a passar pelo purgatório, a fim de ser salva
por Deus (cf. L. BOFF, Vida para além da morte, op. cit., p. 64).
84
Cf. B. FORTE, Teologia de la historia, op. cit., p. 371.
85
M. KEHL, O que vem depois do fim?, op. cit., p. 147.
129

preocupação é sobretudo a de apresentar o dogma do purgatório como realidade dinâmica,


histórica e consoladora.

De fato, em linhas gerais, os capítulos um e dois desta dissertação ajudam-nos a


compreender o purgatório como processo histórico em que a pessoa vai superando suas
contradições. Na morte, ápice deste processo-purificatório, Deus ajuda o ser humano a
evoluir plenamente para entrar na vida eterna profundamente transformado pela graça.

Não sendo um local de tortura, conforme pinta certa imagem tradicional, ou um


evento cronológico, percebemos a dinamicidade do purgatório. Pois, segundo as
explicações de Renold Blank, esta realidade escatológica requer empenho humano,
responsabilidade histórica e implica em evolução. E este esforço de purificação não ocorre
apenas em nível pessoal, mas também no âmbito comunitário.

Esperar pelo dom do purgatório é viver aqui e agora movido pela esperança de
contínua conversão pessoal e das estruturas deste mundo. Na América Latina, região
marcada pela pobreza, injustiças e desigualdades sociais, falar de purgatório pode parecer
estranho. No entanto, da forma abordada por Renold Blank, o purgatório aparece como uma
luz esperançosa em ligação com a vida, seus problemas e suas vitórias.

Nosso teólogo leva em conta as reflexões da teologia da libertação, articulando-as


com o que está em jogo em sua doutrina do purgatório. Sua preocupação básica é resgatar o
sentido autêntico do purgatório numa perspectiva de libertação. Ele não se atém muito,
porém, aos aspectos bíblicos e à história do desenvolvimento do dogma. A atual
hermenêutica bíblica, mais histórica e crítica, poderia contudo enriquecer seu pensamento,
tornando-o ainda mais profundo e inspirador.

De todos os “novíssimos”, o purgatório conheceu um desenvolvimento histórico


interessante, complexo e, em alguns momentos, marcados pela polêmica. Se os teólogos e o
magistério ofereceram reflexões sóbrias sobre ele, a religiosidade popular deixou-se levar
130

pela imaginação e pela fantasia. Seria útil, portanto, se nosso teólogo desenvolvesse mais os
principais momentos históricos que marcaram a história da doutrina do purgatório.

Estes limites não obscurecem, no entanto, o pensamento escatológico de Renold


Blank. Isso porque ele centra sua reflexão em algo essencial: o amor de Deus manifestado
em Jesus. Isto aparece com relevo no modo como nosso teólogo trata da questão do
purgatório. Jesus é o Eschaton Logos que veio da parte do Pai instaurar o Reino, que requer
também colaboração humana, como vimos no capítulo segundo.

Este acento cristológico da reflexão de Renold Blank sobre o purgatório é influência


de Ladislau Boros. Sem dúvida alguma não se pode prescindir do Cristo quando se quer
pensar teologicamente a doutrina do purgatório. Falta porém a nosso autor uma maior
referência ao Espírito Santo. O aspecto pneumatológico se relaciona à missão dos cristãos
de anunciar o Reino de Deus através de uma práxis de amor. Anúncio que visa à conversão
(purificação) da história e do mundo. O Espírito de amor ajuda o homem e mulher a
vivenciar o amor. A recusa deste amor é recusa de Deus, é o inferno na vida da pessoa.

3.3. Inferno: o terrível risco da liberdade humana

Introdução

Renold Blank mostra que o homem tem a possibilidade de recusar o amor divino.
Assim, não sendo criação de Deus, o inferno surge devido ao “risco da liberdade humana” 8
6
. De fato, o problema teológico do inferno não está situado entre a misericórdia e a justiça
de Deus, mas entre a misericórdia divina e a liberdade do homem87. Dentre os teólogos que
pesquisamos, encontramos este ponto de vista em Ruiz de la Peña para quem o “problema
teológico da morte eterna (o inferno) é, em suma, o problema das reais dimensões da
liberdade humana”88.

86
R. J. BLANK, Nossa vida tem sentido, op. cit., p. 175. A frase citada acima é uma tese que aparece também
nos dois livros deste autor: Viver sem o temor da morte, op. cit., p. 113 e Escatologia da pessoa, op. cit., p.
243.
87
Cf. B. SESBOÜÉ, Croire, op. cit., 538.
88
J. L. RUIZ DE LA PEÑA, La pascoa de la creacion, op. cit., p. 236.
131

No desenvolvimento deste tema, Renold Blank tem diante de si uma tese


fundamental citada antes: deve prevalecer a esperança de que Deus encontrará meios de
“persuadir” o ser humano a se salvar, conservando a sua liberdade. A exemplo de Hans Urs
von Balthasar ele procura conciliar a confiança na salvação universal com a liberdade
humana. Para isso ele destaca o poder redentor de Cristo, que permanece solidário com os
que se condenam. Esta idéia é central neste capítulo, que também será exposto seguindo
quatro passos.

No primeiro, apresentaremos as diversas ocorrências do tema nos três livros de


Renold Blank já mencionados. No segundo, veremos como o assunto se apresenta na
pregação de Jesus e na tradição da Igreja. Em terceiro lugar, veremos como a liberdade
humana poder criar o inferno e, por fim, como o Deus de amor se posiciona diante dos
possíveis condenados. Aqui, esclareceremos que a vontade salvífica de Deus não significa
apocatástase (restauração de todas as coisas).

3.3.1. O tema do inferno nos livros de Renold Blank

O problema do inferno aparece de forma semelhante nos livros Viver sem o temor
da morte, Nossa vida tem futuro e Escatologia da pessoa. No primeiro encontramos as
reflexões e os argumentos básicos sobre este problema, que é “o tema principal deste
livro”89. Nos livros posteriores, nosso teólogo apenas organiza e desenvolve um pouco mais
sua reflexão.

Os autores nos quais ele se fundamenta também permanecem praticamente os


mesmo nos três livros, a saber: Hans Küng, Ambroos van de Walle, Ladislau Boros,
Herbert Vorgrimler, Alfred Läple, Jürgen Moltmann e Hans Urs von Balthasar.

Como tendências predominantes constatamos: a preocupação em explicar o


significado de inferno, o que leva Renold Blank a não se ocupar muito dos aspectos

89
R. J. BLANK, Viver sem o temor da morte, op. cit., p. 6.
132

bíblicos e históricos. E uma preocupação ainda maior em despertar atitudes de esperança


diante da possibilidade da condenação eterna. Neste sentido, nosso autor reflete também
sobre a superação do inferno com base no amor de Deus pois, segundo ele, a salvação terá a
última palavra sobre a existência humana.

Nos três livros, a exposição do tema é interrompida pela inserção de outros assuntos
escatológicos. Assim: em Viver sem o temor da morte, após o tema do inferno, surgem os
do purgatório, do juízo final e da parusia. Retoma-se depois outra vez o tema do inferno,
com um capítulo intitulado “Superar os infernos para viver” (pp. 167 a 177). Em Nossa
vida tem futuro, após o tema do inferno, aparecem os capítulos sobre o juízo final (pp. 203
a 218) e a ressurreição do corpo (219 a 225). Retoma-se depois, também mais uma vez, o
tema do inferno com o capítulo “Superar os infernos para viver” (pp. 226 a 232). Em
Escatologia da pessoa, após refletir sobre o inferno, aparecem os capítulos sobre o céu (pp.
282 a 293) e o juízo final (pp. 297 a 317). De novo aparece o tema do inferno com o
capítulo “Conseqüências da verdade sobre o juízo final: superar os infernos humanos para
viver” (pp. 318 a 325).

Neste último livro, aparece o porquê Renold Blank insere outros temas após o do
inferno, como também o porquê ele retoma de novo o tema do inferno. Ele procura, com
isto, interpretar o inferno num contexto mais amplo (social, histórico e cósmico). O juízo
final e a parusia revelam a verdade do homem diante de Deus: conversão (purgatório),
adesão a Deus (céu) e rejeição do amor divino (inferno). Com a modificação do título, em
Escatologia da pessoa, o teólogo suíço busca relacionar diretamente um assunto da
escatologia pessoal com outros temas da escatologia do mundo.

Centremos agora nossa atenção sobre os livros Nossa vida tem futuro e Escatologia
da pessoa. O conteúdo de ambos, no tocante ao tema do inferno, se repete literalmente. A
mudança que ocorre é apenas na forma de exposição. Assim: em Nossa vida tem futuro este
tema é apresentado em três capítulos, subdividindo cada um deles em vários itens
(preferimos esta forma, pois a julgamos mais simples e didática). Em Escatologia da
133

pessoa os itens do livro anterior são transformados em pequenos capítulos gerando, assim,
19 capítulos.

3.3.2. O inferno na pregação de Jesus e na tradição

Os comentários de Renold Blank sobre o que Jesus diz acerca do inferno e sobre a
reflexão da tradição cristã a respeito do mesmo tema são significativos, mas breves e
possuem alguns limites. A respeito do que Jesus disse, o teólogo suíço poderia ter citado
mais textos bíblicos e aprofundado seu sentido geral. Ao escrever sobre “o que se declarou
sobre o inferno”90 na tradição, nosso autor se detém apenas na questão do fogo do inferno,
da eternidade ou não do inferno (apocatástase), da tortura e dos sofrimentos dos
condenados. Sobre estas questões, ele cita alguns Padres da Igreja e alguns concílios91.

Diante destas lacunas, e baseando-nos em outros autores, vamos tentar apresentar a


pregação de Jesus e a doutrina da Igreja sobre este assunto sem, contudo, estender-nos
demasiadamente.

a) O inferno na pregação de Jesus

“As raízes da noção de inferno encontram-se, sem dúvida, na idéia judaica de


92
morada dos mortos, o xeol” . O Novo Testamento utiliza a palavra grega hades para
indicar o que o Antigo Testamento chama de xeol. De acordo com a concepção
veterotestamentária mais antiga, todos os que morriam tinham como destino comum o xeol,
a mansão dos mortos, que era uma cova sob as bases das montanhas, onde reinavam as
trevas, o silêncio, o pó e o esquecimento. A noção de xeol evoluiu e o mesmo chegou a ser
considerado uma “mansão infernal destinada aos ímpios para o castigo eterno”93.
90
R. J. BLANK, Nossa vida tem futuro, op. cit., p. 185.
91
Ibidem, pp. 185-187.
92
Ibidem, p. 185.
93
J. B. LIBÂNIO; Ma. C. L. BINGEMER, Escatologia cristã, op. cit., p. 254.
134

Esta foi a idéia de inferno herdada por Jesus e que fazia parte do imaginário
religioso de sua época. Jesus não foi um pregador do inferno mas acentuou, pelo contrário,
o evangelho do Reino de Deus e a salvação como promessa dirigida a todos. Por isso, o
inferno não ocupa, dentro da mensagem cristã, a categoria de anúncio ou promessa. Não
sendo objeto de esperança, ele entra dentro da categoria da possibilidade94.

Jesus fez referências diretas ao inferno não “para dar ‘informações’, e sim para
acentuar a iminência e a urgência da sua mensagem do reino de Deus”95. Sua intenção é,
portanto, chamar à conversão e alertar o homem sobre a possibilidade de falhar em seu
destino querido por Deus: a realização plena96. A possibilidade de não-participação na boa-
nova da salvação é descrita por Jesus com várias imagens. As mais conhecidas são:
- A do fogo inextinguível: “Se a tua mão te escandalizar, cortea-a: melhor é entrares
mutilado para a Vida do que, tendo as duas mãos, ires para a geena, para o fogo
inextinguível” (Mc 9, 43. Cf. também: Mt 18, 8; 25, 41; Lc 3, 17);
- A do choro e ranger de dentes: “Os filhos (infiéis) do Reino serão postos para
fora, nas trevas, onde haverá choro e ranger de dentes” (Mt 8, 12. Cf. também: Mt 22, 13 e
Lc 13, 28);
- A da fornalha ardente: “... Os lançarão na fornalha ardente. Ali haverá choro e
ranger os dentes” (Mt 13, 42.50);
- A das trevas exteriores: “Amarrai-lhe os pés e as mãos e lançai-o fora, nas trevas
exteriores” (Mt 22, 13);
- A do verme que não morre: “Melhor é entrares com um só olho no Reino de Deus
do que, tendo os dois olhos, seres atirado na geena, onde o verme deles não tem fim” (Mc
9, 47-48).

94
Cf. Ibidem, pp. 259s.
95
R. J. BLANK, Nossa vida tem futuro, op. cit., p. 192.
96
Jesus não ensina um dualismo escatológico na linha da religião persa, que faz um anúncio de salvação e
outro de condenação. Jesus só prega a salvação, mas deixa aberta a possibilidade da frustração definitiva. E
exprime isto através de categorias e imagens tiradas especialmente da apocalíptica judaica. As imagens são
usadas por ele com sobriedade e discrição (cf. J-J TAMOYO-ACOSTA, Para compreender la escatologia
cristiana, op. cit., pp. 232s).
135

São imagens que sugerem dor, desespero, frustração. Mostram a máxima


infelicidade que o homem ou a mulher podem construir para si mesmos. Revelam a
inutilidade da vida humana quando separada de Deus, fonte de toda a vida.

Enfim, o discurso de Jesus sobre o inferno tem uma finalidade pedagógica e


existencial: induzir o homem a viver tendo presente a possibilidade da ruína eterna. Falar
do inferno, neste sentido, é uma forma negativa, indireta e secundária de afirmar a salvação.
Tal discurso é necessário para que o anúncio da salvação seja integral e inclua a liberdade
humana. Por isso, o alerta sobre a possibilidade do inferno faz, de certa forma, parte do
evangelho97.

As palavras de Jesus sobre o inferno devem ser apreciadas tendo em conta suas
numerosas pregações sobre o amor, a misericórdia e o perdão, pois há de prevalecer o
amor. O discurso sobre o inferno é fato complexo. Ao longo da história do cristianismo, tal
discurso conheceu interpretações e impostações diferentes, como veremos a seguir.

b) Elementos da tradição da Igreja que determinaram a doutrina sobre o inferno

O magistério elaborou muito cedo as fórmulas de fé que afirmam a vida eterna.


Quanto ao inferno, ateve-se à Bíblia e fez seus primeiros pronunciamentos quando surgiram
problemas de interpretação da Escritura. E o primeiro problema foi sobre a eternidade ou
não do inferno98. Orígenes, por exemplo, não aceitava sua eternidade baseando-se em 1 Cor
15, 25-26: “É preciso que ele (Cristo) reine, até que tenha posto todos os seus inimigos
debaixo dos seus pés. O último inimigo a ser destruído será a morte”. Este texto deu
margem para ele postular de maneira hipotética a salvação final de todos: a apocatástase99.
97
L. C. SUSIN, Assim na terra como no céu, op. cit., p. 186. Referências ao inferno, diz Luiz Carlos Susin,
aparecem num contexto exortativo: “Trata-se de uma forma extrema de anúncio do Evangelho pelo seu
avesso” (ibidem, p. 186).
98
Cf. Ibidem, p. 180.
99
R. J. BLANK, Nossa vida tem futuro, op. cit. p. 186. Luiz Carlos Susin afirma que a apocatástase, segundo
Orígenes, se fundamenta em At 3, 21: “É necessário que o céu o (Cristo) receba, até que se cumpra a
restauração de todas as coisas, conforme Deus disse” (L. C. SUSIN, Assim na terra como no céu, op. cit., p.
180). Se a apocatástase significa que Deus restaurará todas as coisas no final dos tempos, esta passagem de
Atos justificaria melhor que 1 Cor 15, 25-26 a tese de Orígenes, que renunciou posteriormente a essa teoria,
incompatível com o conjunto das afirmações bíblicas. TAMOYO-ACOSTA cita outros textos interpretados
como apocatástase pelos Padres que seguiram Orígenes: Mc 9, 12; Hb 3, 21; Rm 5, 18 e 11, 32. Cl 1, 19-20 é
136

A teoria da apocatástase possui uma grande força de sedução100 e ressurgiu em


alguns momentos da história do cristianismo. Porém, foi condenada com rigor pelo
magistério, primeiramente pelo sínodo regional de Constantinopla em 543. Em suma, sem
entrar em detalhes históricos, vários Padres, sínodos, concílios e diferentes profissões de fé
das igrejas do Ocidente e do Oriente excluem, com maior ou menor firmeza, a perspectiva
da apocatástase. Esta foi a postura oficial do magistério durante toda a Idade Média. Dentre
as declarações mais importantes deste período, destacam-se as do IV Concílio de Latrão
(1215), a do II Concílio de Lião (1274) e a da bula Benedictus Deus (1336) de Bento XII101.

Mas, se entre o magistério e os teólogos predominou uma certa sobriedade ao


tratarem do tema do inferno, o mesmo não se pode dizer da catequese, da pregação, da
literatura e da religiosidade popular. A verdade é que interpretações macabras “geraram
entre os cristãos demasiado crédulos (...) atitudes generalizadas de medo, terror,
impotência, que entre os não crentes se convertiam em objeto de zombaria ou motivo para a
negação da fé em um Deus bom”102.

A rejeição da apocatástase é hoje um consenso no magistério católico e entre a


maioria dos teólogos. Renold Blank também se situa nesta postura ao afirmar que “o mal,
de fato, não pode ser integrado em Deus mediante o restabelecimento (apokatástasis). O
mal só pode ser superado pelo perdão. Assim também nunca poderíamos atrever-nos a
negar a possibilidade real do inferno”103.

citado como texto em que Karl Barth, no século XX, sugere a idéia de apocatástase (cf. J-J TAMOYO-
ACOSTA, Para compreender la escatologia cristiana, op. cit., pp. 231-232).
100
Orígenes apontou os seguintes argumentos a favor da apocatástase. Em primeiro lugar, o único princípio é
Deus. Todas as coisas levam a marca de sua divindade. Por isso, no final, nada ficará fora d’Ele. Em segundo
lugar, diz ele, Cristo não pode sentir-se feliz enquanto houver alguém condenado. Sua ressurreição, que é uma
obra superior à da criação, só ficará completa quando alcançar todas as coisas (cf. F. MIER, Escatologia
cristiana, op. cit. p. 195).
101
Cf. B. SESBOÜÉ, (Org.), Historia de los Dogmas, op. cit. pp. 333-348.
102
J-J TAMOYO-ACOSTA, Para compreender la escatologia cristiana, op. cit., pp. 231.
103
R. J. BLANK, Nossa vida tem futuro, op. cit., p. 201. (Renold Blank usa a grafia “apokatátasis” nos seus
livros, ao invés de “apocatástase”, forma adotada por nós). Esta breve crítica que Renold Blank faz da
apocatástase se baseia em Medard Kehl (cf. M. KEHL, Escatologia, op. cit., pp. 296s). Contra a apocatástase,
citamos também os argumentos de Ruiz de la Peña, que diz tratar-se de uma teoria ambígua, pois extrapola o
dado revelado a respeito da salvação universal. Segundo este teólogo, o que é pregado para o conjunto da
humanidade, não tem que sê-lo necessariamente para todos e cada um dos indivíduos. A objeção decisiva é
que a apocatástase desvaloriza a liberdade humana (cf. J. L. RUIZ DE LA PEÑA, La pascoa de la creacion,
137

Enfim, segundo Renold Blank, as declarações atuais a respeito do inferno procuram


acentuar a seriedade da decisão de vida pela qual o homem é julgado104. De fato, o
dogmático não é crer no inferno, mas em sua possibilidade real105, que pode se tornar
efetiva unicamente pela liberdade humana.

3.3.3. Inferno: risco da liberdade humana

No encontro definitivo com Deus, na morte, o homem tem a possibilidade de mudar


as características de sua personalidade ajudado pela graça, empreendendo uma profunda
conversão (purgatório). Mas, ele pode também recusar o amor. Se isso ocorresse ele
“permaneceria fixado na sua situação de morte por causa da sua própria recusa de crer em
Deus, ou então por ser incapaz de crer nele”106.

Esta situação existencial de frustração eterna, chamada pela teologia tradicional de


inferno, é construída pela liberdade do homem. O inferno ocorre, segundo Renold Blank,
quando o ser humano vai contra a orientação fundamental de sua vida que é buscar a Deus.
Esta orientação é sempre procurada, mesmo que inconscientemente, por meio de todas as
boas aspirações da pessoa. A meta da realização plena do ser humano se baseia tanto na
vontade salvífica de Deus, quanto na natureza do homem e da mulher que são vocacionados
a uma vida totalmente reconciliada. O não alcance dessa boa meta, também de acordo com
Medard Kehl, é o inferno:

“O fechar-se definitivo a (grifo do autor) todo chamamento do amor de Deus e à (grifo do


autor) orientação mais íntima da nova existência; uma pura indiferença, e por isso, no fundo, muito
mais difícil de suportar: justamente apenas em total contradição com nós mesmos e com o amor
reconciliador de Deus”107.
op. cit., pp. 236s). Sobre este último ponto, cabe aqui uma observação de Bruno Forte, segundo a qual a
apocatástase nega a seriedade da liberdade do homem, e priva de consistência a história que essa liberdade
produz (cf. B. FORTE, Teologia de la historia, op. cit., p. 372).
104
R. J. BLANK, Nossa vida tem futuro, op. cit., p. 187.
105
Cf. F. MIER, Escatologia cristiana, op. cit. p. 178.
106
R. J. BLANK, Nossa vida tem futuro, op. cit., p. 176. Ladislau Boros explica “o inferno como o não da
decisão no momento da morte, elevada à categoria de estado eterno” (L. BOROS, Existência redimida, op.
cit. p. 101). Temos aqui a compreensão de inferno como “auto-sentença condenatória” e que encontra
consenso entre os teólogos e responde à nova consciência da modernidade a respeito da liberdade e autonomia
humanas.
107
M. KEHL, O que vem depois do fim?, op. cit., p. 158. Estas palavras de Medard Kehl se inspiram em
Greshake. O texto citado completa o pensamento de Renold Blank sobre a possibilidade da perda eterna
138

Já dissemos que qualquer discurso sobre o inferno só tem sentido se, no fundo,
apontar para a salvação, alertando assim sobre a possibilidade da não-salvação. Deus quer
salvar-nos da possibilidade real do inferno, pois o cristianismo é a religião do amor e da
salvação. E justamente por isso leva o ser humano absolutamente a sério. Se o cristianismo
é uma religião do amor, então é religião da liberdade. Portanto, à proposta salvífica de
Deus, o homem também pode responder com um não criando o inferno para si108.

Para Renold Blank, a questão central no estudo do tema do inferno é a relação entre
a vontade salvífica de Deus e a liberdade humana. Ele não desenvolve, porém, com mais
profundidade esta questão. Por isso, achamos oportuno expor aqui o pensamento de Andrés
Torres Queiruga. Este teólogo afirma, à semelhança de Renold Blank, que o inferno não é
uma ação positiva de Deus, mas situa-se do lado humano como culminância do mal. Sua
origem, portanto, consiste na impotência e/ou na maldade da criatura, que usa sua liberdade
para o mal.

Deus apóia a liberdade humana como bem precioso. Tal liberdade, por ser finita,
está sempre exposta ao fracasso. De fato, não existe liberdade finita impecável. Ninguém
pode eliminar a liberdade humana, nem Deus. E somente ela pode causar a perdição eterna.
Podemos, com efeito, distorcer o uso da liberdade com a liberdade. Enfim, segundo Andrés
Torres Queiruga, o inferno surge da limitação ou da maldade da própria liberdade que
frustra os planos da salvação divina109.

Inspirando-se em Karl Rahner, Andrés Torres Queiruga afirma que a liberdade é a


faculdade do definitivo. Medard Kehl, seguindo o mesmo raciocínio, dá uma explicação
para esta definitividade. A partir da teologia da criação, diz ele, pode-se compreender a
possibilidade da liberdade humana definir-se definitivamente além da morte. A criação de

fazendo referência à recusa do amor de Deus.


108
Cf. L BOFF, Vida para além da morte, op. cit., pp. 84-87. João Batista Libânio diz que cada ato humano
tem dimensão de seriedade absoluta e é assumido por Deus em sua eternidade. Por isso, a obra da destruição
humana pode se cristalizar definitivamente (Cf. J. B. LIBÂNIO; Ma. C. L. BINGEMER, Escatologia cristã,
op. cit., p. 264).
109
Cf. A. TORRES QUEIRUGA, O que queremos dizer quando dizemos inferno? São Paulo: Paulus, 1995,
pp. 43-56.
139

Deus implica um “sim” irrevogável do Criador ao homem e à mulher. Esta afirmação


divina confere fundamento ontológico à existência humana. E confere à sua liberdade uma
“positividade” inextirpável que não pode ser aniquilada e nem se dissolver no nada110.

No absurdo e no escândalo do inferno afirma-se, indiretamente, a grandeza da


liberdade e da responsabilidade humana111. Mas, como compreender esta experiência do
inferno? Como seria a estrutura da morte eterna, ou seus traços característicos? Aqui
voltamos novamente a Renold Blank. Depois de afirmar que o inferno faz parte do “terrível
risco da liberdade humana”112, e nisto o nosso teólogo é claro e breve, apesar de não
desenvolver o assunto, ele tenta explicar em que consiste a experiência do inferno. E nesta
explicação ele não é muito claro em alguns pontos, como veremos.

A experiência do inferno, segundo Renold Blank, é uma situação contraditória de


“morte viva”, vivida com plena consciência e sem chance de sair dela com os próprios
recursos. Deus quer dar ao ser humano uma vida nova, mas se o homem não consegue mais
recebê-la, ele se fixa numa situação de morte sem ressurreição:

“Poderia ser que nesse caso o âmago da pessoa humana permanecesse naquela situação de
estar morto, condenado para sempre a uma situação limiar e estática em que sua vida temporal terá
cessado sem que a vida nova tivesse podido iniciar-se. Situação impossível e contraditória em sua
essência. Uma morte viva, consciente, sem a mínima possibilidade de poder providenciar uma saída
pelos próprios recursos, entorpecido e fixado em si mesmo”113.

Este texto, embora confuso e prolixo, é uma tentativa de explicar o estado infernal.
Renold Blank diz, porém, que suas palavras explicativas “são imagens paradoxais que
contém exatamente os elementos daquilo que as transcrições tradicionais chamaram de
‘INFERNO’ ”114 (grifo do autor). De fato, entre os elementos que fariam parte de uma
situação de inferno, encontramos a identificação eterna do homem com seu egoísmo.

110
Cf. M. KEHL, Escatologia, op. cit., pp. 295s. A vontade de Deus é que o homem se oriente em vista de
uma consumação positiva. Uma definitividade negativa é obra exclusiva humana. Nas palavras de Luiz Carlos
Susin, “a possibilidade de decisão pela condenação é exigência e subproduto de nossa liberdade” (cf. L. C.
SUSIN, Assim na terra como no céu, op. cit., p. 183).
111
Cf. L. C. Susin, Assim na terra como no céu, op. cit., p. 182.
112
R. J. BLANK, Nossa vida tem futuro, op. cit., 175.
113
Ibidem, p. 177.
114
Ibidem, p. 177.
140

Em nossa pesquisa, encontramos algumas definições de inferno; isto é, explicações


de como é a situação da frustração definitiva. Citamos duas:

- O inferno é não poder e nem saber amar, estando aprisionado num irrevogável
rechaço do amor divino. “É viver até o fundo a própria existência como contradição
irremediável. É como experimentar a ruptura interior de si mesmo e a inutilidade total do
viver” 115;

- É a constatação do fracasso total de uma vida, devido a uma existência inteira de


desprezo pelo outro. Assim, encerrado em si mesmo, seria impossível ser salvo pelo grande
Outro. É o negativo da promessa divina: a não-consumação como possibilidade que
constitui o homem. Não se trata, contudo, de uma frustração humanística. Mas, do homem
frustrado enquanto se fecha ao amor de Deus e dos irmãos. “Esta frustração vem do não
deixar-se amar, de autocompreender-se como solitário e isolado”116.

Em suma, o que é central na compreensão do inferno está no relacionamento entre o


amor de Deus e a liberdade humana. Deus é amor e busca por todos os meios a salvação do
homem, e o faz no respeito à sua liberdade, que pode, porém, resistir à salvação 117. Desta
resistência procede a não-salvação, o inferno.

Mas, como será que o amor de Deus se comporta diante de uma situação de inferno?
Como harmonizar a vontade salvífica divina com a frágil, porém irrenunciável, dignidade
da liberdade humana? Estas questões são centrais na reflexão de Renold Blank. E, ao tentar
respondê-las, com a ajuda de outros teólogos, ele se esmera mais uma vez em elaborar uma
esperança escatológica que vence o temor, e que aponta caminhos para superar os infernos
deste mundo.

3.3.4. O amor de Deus diante da possibilidade do inferno


115
M. BORDONI-N. CIOLA, Gesù nostra speranza, apud B. FORTE, Teologia de la historia, op. cit., p. 373.
116
F. MIER, Escatologia cristiana, op. cit. pp. 180s. No princípio desta citação, o autor mostra que o inferno
tem ligação com a vida terrestre, quando se constrói a existência numa opção fundamental contrária ao amor.
Uma das preocupações de Renold Blank é mostrar que os “novíssimos” têm ligação com a história concreta.
117
A este propósito, diz Santo Agostinho: Deus que te criou sem ti, não pode salvar-te sem ti.
141

Em seu livro Esperança que vence o temor, Renold Blank apresenta uma amostra de
textos de épocas diferentes, tirados de níveis religiosos e sociais variados, que manifestam
um potencial de ameaça e de medo escatológico. Segundo ele, o uso de “ameaças
educativas”, ligadas a uma teologia de um Deus vingativo, marca, ainda hoje, o imaginário
popular118.

Sobre o inferno, a maneira como ele foi apresentado mostra que a pedagogia da
ameaça tem um conteúdo de vingança. Alguns textos ilustrativos a este respeito também
são citados pelo teólogo119. Constatando esta realidade de distorção compreensiva, que por
sua vez gera atitudes pouco saudáveis, nosso teólogo passa a analisar as possíveis causas da
referida situação. Dentre os fatores, sobressaem, segundo ele, a relação entre o desejo de
manter o poder (eclesiástico), o uso de ameaças como pretexto pedagógico120 e o
desvelamento de que tais ameaças são projeções dos próprios homens121.

Renold Blank ressalta em suas reflexões que o cristianismo é a religião do amor.


Nesta observação o teólogo não está sozinho. Se a religião muitas vezes aparece como
imposição, mais ou menos repressiva122, tal peso, na verdade, é o peso da existência
humana: realizar-se como pessoa acaba sendo difícil. A religião vem justamente tornar
mais suportável esta tarefa.

Por isso, tudo o que impede de ver a religião como libertação, alegria, paz, etc
constitui deformação. Deus é mão estendida ao homem a oferecer-lhe salvação, e a religião
é ajuda e alívio; enfim, boa nova de libertação. Sobretudo o cristianismo se destaca como
118
Cf. R. J. BLANK, Esperança que vence o temor, op. cit., pp. 145-161.
119
Cf. Ibidem, pp. 162-166.
120
Cf. Ibidem, pp. 194-196.
121
Cf, Ibidem, pp. 197-203. Neste último item, Renold Blank se serve de vários obras psicológicas, entre elas
algumas de René Girard, para fazer sua análise. Lembremo-nos de que Renold Blank cursou psicologia na
Universidade de Friburgo (Suíça), conforme informação da contracapa do livro Viver sem o temor da morte.
Este fato ajuda-o a estudar com competência o medo escatológico num enfoque psicológico.
122
O tema do inferno é um dos que foram apresentados de modo inadequado, dando uma visão pesada da
religião cristã. Hoje há muito o que fazer para consertar os estragos realizados. Francisco de Mier, baseado
em Andrés Tornos, diz que falar do inferno atualmente é um assunto molesto e complexo que suscita rechaço
cultural e põe o cristianismo em questão ao pintar uma imagem odiosa de Deus, que insulta sua dignidade. A
esta crítica, Francisco de Mier lembra uma série de interrogações a respeito do inferno, sendo algumas delas
claras acusações ao cristianismo (cf. F. MIER, Escatologia cristiana, op. cit. pp. 171-173).
142

religião do amor. Jesus Cristo, centro da religião cristã, é dom personificado, amor
salvador, perdão sem limites, defesa do pobre, consolo na dor, libertação da opressão123.

Sendo o cristianismo religião de salvação, o inferno se apresenta como tragédia não


só para o homem, mas também para Deus. De fato, o Deus que cria por amor não pode
evitar o inferno, ao respeitar a liberdade humana. Ao contrário, Ele sofre em silêncio pela
condenação do amado124. Deus não quer o inferno. Este é exceção absolutamente
indesejável da regra. Pois, para todas as pessoas Deus promete a vida em plenitude125.

Renold Blank também se pergunta se a “situação do inferno, que é terrivelmente


absurda, (...) e indigna da pessoa humana, não poderia ter outra formulação” 126. Ele
responde a este problema fundamentando sua reflexão no amor de Deus. Apresentaremos, a
seguir, o desdobramento desta idéia em dois momentos. No primeiro, veremos que o amor
divino mantém-nos na condição de esperar pela salvação de todos. Depois, em
conformidade com esta esperança, ela nos leva a superar os infernos deste mundo.

a) O amor de Deus nos leva a esperar por todos

Na história, constatamos com evidência objetiva as aberrações causadas pela


liberdade humana: injustiças, explorações, desprezo pelo próximo, destruição da natureza
123
Cf. A. TORRES QUEIRUGA, Recuperar a salvação. Por uma interpretação libertadora da experiência
cristã, São Paulo: Paulinas, 1999, pp. 20-22. Nesta obra, Queiruga destaca o fato desta religião de amor ter-se
apresentado várias vezes de forma opressiva ao longo da história. Reflete sobre a urgência de superar esta
contradição: o desajuste entre a promessa magnífica do “Deus é amor” (Jo 4, 8.16) e a vivência concreta não
traduziu com fidelidade a vontade amorosa de Deus. Também Renold Blank tem esta preocupação
fundamental ao procurar elaborar uma escatologia da esperança baseada no amor divino.
124
Cf. A. TORRES QUEIRUGA, O que queremos dizer quando dizemos inferno?, op. cit., 26-31. Deus cria
para a salvação. O inferno é a frustração deste propósito. É, portanto, algo que “dói” para Deus como o mal
último do homem (cf. ibidem, p. 48).
125
Cf. M. KEHL, O que vem depois do fim?, op. cit., p. 159. Na conclusão do item 3.3.4. citaremos este
mesmo teólogo, confirmando que Deus quer a vida do condenado ao inferno. Ou seja, Deus não permite que
ele se extinga.
126
R. J. BLANK, Nossa vida tem futuro, op. cit., p. 189. Ele ainda questiona: “Não nos resta mais nada, a não
ser, alegando a justiça de Deus, partir do pressuposto de que este ser humano está apenas recebendo a
retribuição que lhe cabe?” (ibidem, p. 180).
143

movida pela ganância do lucro, guerras, genocídios etc. Não haverá para os responsáveis
por estas maldades uma inversão de ordem? O inferno não seria uma necessidade, um
estado em que a justiça tenha lugar?

Segundo Renold Blank, muitos argumentam a partir de uma justiça retribuitiva,


racional e, freqüentemente, vingativa127. No entanto, nestas reflexões não ponderaram a
participação do Deus que ama, cuja justiça está bem distante da justiça retributiva humana.
Na Bíblia, aparece o Deus da graça e da misericórdia, totalmente diferente das
argumentações legalistas e racionais. Renold Blank para ilustrar este ponto cita uma das
passagens do servo de Javé: “Foi maltratado, mas livremente humilhou-se e não abriu boca,
como um cordeiro conduzido ao matadouro” (Is 53, 7).

Jesus é este servo de Javé por excelência. Além disto, o servo de Javé é a imagem
do próprio Deus e o que se diz do servo, diz-se de Deus, daquele Deus que na pessoa de
Jesus assumiu plenamente a condição humana128. A figura do servo de Javé rompe de
maneira radical com o círculo fechado do raciocínio humano sobre a justiça em que o
direito violado deve ser restabelecido pela punição ou pela penitência. O servo de Javé é
alguém que não paga com a mesma moeda, mas perdoa sem restrições e não exige
satisfação pelo prejuízo sofrido. A justiça bíblica mostra a incalculabilidade de um Deus
misericordioso como dom incondicional, longe de todo controle humano129.

Nesta imprevisibilidade Deus demonstra seu amor. Um amor que não se deixa deter
por nenhum motivo, e que não se prende à lógica humana. “E justamente diante do amor de
Deus parece-nos legítima a indagação se realmente não existe mais nenhum caminho que
nos conduza para fora do inferno, ou melhor ainda, que, de antemão, já não passe por aí” 130.
Assim, segundo o mesmo Renold Blank, o “louco amor de Deus” pelos homens nos leva a

127
Sobretudo na Idade Média cresceu a compreensão de inferno como justiça de Deus para limpar sua honra.
De fato, no período medieval a honra era muito valorizada (cf. A. TORRES QUEIRUGA, O que queremos
dizer quando dizemos inferno?, op. cit., p. 39).
128
Cf. R. J. BLANK, Nossa vida tem futuro, op. cit., p. 181.
129
Cf. Ibidem, pp. 181s.
130
Ibidem, p. 183.
144

confiar que tal amor é capaz de tudo, até mesmo de amar aqueles que estão no inferno a
ponto de deixá-lo vazio131.

O caminho que passa por fora do inferno é Jesus. Ele é o caminho (cf Jo 14, 6) da
salvação e revelou que Deus quer salvar todos os seres humanos (cf. 1 Tm 2, 4). Como
vimos no capítulo dois, Jesus é nossa esperança definitiva. Ele anunciou Deus como o Pai
dos homens e mulheres perdidos. O Pai que ama sempre e apesar de tudo. Seu imenso amor
não permitirá que a rejeição por parte do ser humano, durante a vida e na morte, o impeça
de procurar o amado. Este amor se manifestou em Jesus que não veio para julgar, mas para
salvar o mundo (cf Jo 12, 47). Diante disto, “será que Jesus pode permanecer na sua glória
enquanto há homens no inferno? É por eles que ele veio e que ele foi morto. Poderá então
ser salvo sem eles?”132.

Na verdade, de acordo com Renold Blank, Jesus também experienciou na cruz a


situação de inferno e foi salvo dele por seu Pai 133. Por isso, “desde Jesus, existe uma pessoa
que, até no inferno, ainda continuou crendo que Deus a salvaria. No ato de fé de Jesus (...)
estão incluídos os atos de fé de todos os seres humanos, por mais incompletos e imperfeitos
que sejam”134.

Renold Blank postula que até mesmo as negações dos que se condenam poderiam
ser incluídas no ato de fé de Jesus. E, aqui, se baseia em Gérard Rossé para fundamentar
sua opinião:

“Visto que a salvação é oferecida a todos, Jesus (...) alcança não somente os justos, (...) mas
suporta também a pena dos ímpios (...). Isso para que ele possa atingir também aqueles mesmos que

131
A respeito do “inferno estar vazio”, Andrés Torres Queiruga alerta que esta idéia é bem-intencionada e
cordial, mas incômoda e ineficaz. Ele a chama de “lógica dos atenuantes” (A. TORRES QUEIRUGA, O que
queremos dizer quando dizemos inferno? op. cit., p. 61).
132
A. GEORGE, Pour lire l’Evangile selon Saint Luc apud R. J. BLANK, Nossa vida tem futuro, op. cit., p.
198.
133
Jesus experimentou o “inferno” da morte em todo o seu realismo, como ameaça de destruição, de queda no
nada. Experimentou o “inferno” do abandono de Deus e o “inferno” das situações mortais de tantos homens.
Mas, com tudo isto, o inferno ficou tocado por Jesus que não quis deixar nada fora do alcance de sua
redenção. Jesus desceu às realidades infernais para abrir nelas uma esperança. Experimentou a salvação onde
havia condenação (cf. F. MIER, Escatologia cristiana, op. cit. pp. 188s).
134
R. J. BLANK, Nossa vida tem futuro, op. cit., 199.
145

o rejeitarão. Ele percorre, portanto, todas as dimensões do inferno para que todo homem, no seu
distanciamento de Deus, tenha a possibilidade de se encontrar com Cristo”135.

Assim, é pensando radicalmente a redenção de Deus em Jesus Cristo que Renold


Blank, junto com outros teólogos, defende o dever de esperar a salvação para todos136. Esta
espera não deve ser atitude ingênua, mas mantém a consciência da possibilidade da ruína
eterna. Na verdade, devemos ter esperança mas não certeza de que todos se salvarão e de
que o inferno não se tornará uma realidade para ninguém137.

Renold Blank nos diz que a solidariedade de Jesus abrange a todos os homens e
mulheres. Mas se realiza de modo diferente para os que aceitam o amor de Deus e para os
que se negam a aceitá-lo. Também com os que se condenam, Cristo permanece solidário
sem os forçar. Não podemos saber como a pessoa em situação de inferno responderá a tal
solidariedade silenciosa. Pois, tal solidariedade divina quebra todas as regras da
argumentação humana. O amor de Deus nunca se impõe, ele acompanha os que se
autocondenam. Daqui brota o dever de esperar por todos138.

Continuando este pensamento, Renold Blank, baseado em Hans Urs von Balthasar e
em Medard Kehl, diz que o amor de Deus é um “poder” que não obriga o pecador a se
salvar à força, mas o acompanha com o gesto mudo da presença na última solidão 139. Esta é
uma mensagem de otimismo realista140, pois uma fé que reconhece a majestade de Deus

135
G. ROSSÉ, Jesus in seiner Verlassenheit apud R. J. BLANK, ibidem, pp. 178s. Também Hans Küng diz
algo semelhante: “À misericórdia de Deus não são postas quaisquer barreiras, nem mesmo no inferno” (H.
Küng, Ewiges apud R. J. BLANK, Viver sem o temor da morte, op. cit., p. 166).
136
Grande defensor desta posição é Hans Urs von Balthasar. Em seu livro Breve discurso sobre o inferno, a
referida idéia se repete quase como um refrão. Não se trata de apocatástase, apesar de Von Balthasar ter sido
acusado disto. O teólogo procura conciliar a confiança na salvação universal com a liberdade humana. Ele
destaca o poder de redenção e o fato de Cristo permanecer solidário com os que se condenam, e nisto Renold
Blank o segue.
137
A salvação universal não pode ser uma certeza, pois poderia esvaziar a vida espiritual de sua seriedade e a
liberdade humana de sua grandeza trágica. Mas deve ser objeto de nossa oração, de nosso amor ativo e de
nossa esperança (cf. F. MIER, Escatologia cristiana, op. cit., p. 198).
138
Há questionamentos sobre se existe alguém no inferno. É algo difícil de saber. A questão do inferno toca
no limite do conhecimento teológico (cf. M. KEHL, O que vem depois do fim? op. cit., p. 156). Também
Renold Blank afirma que “homem algum poderá dizer se alguém ficará naquela situação absurda a que
chamamos inferno” (R. J. BLANK, Nossa vida tem futuro, op. cit., 193).
139
Cf. M. KEHL, Escatologia, op. cit., p. 298.
140
Na compreensão do inferno, existe o risco de se passar do exagerado pessimismo ao otimismo ingênuo que
serve para desvalorizar a responsabilidade moral. É preciso haver um ponto de equilíbrio entre o discurso
sobre o inferno e o evangelho da salvação (cf. F. MIER, Escatologia cristiana, op. cit., pp. 175s).
146

evitará a afirmação de uma condenação eterna, assim como a propaganda em favor de uma
apocatástase141.

A possibilidade do inferno não deve ser compreendida apenas numa perspectiva


individual, embora o inferno seja um isolamento eterno para a pessoa que se condena. Mas,
até chegar a este ponto, o homem usou sua liberdade para oprimir e praticar a injustiça
contra seu semelhante. Assim, o inferno também não se refere apenas a uma situação que
acontece após a morte, mas já começa aqui. A solidariedade na esperança de que o inferno
não se torne realidade concreta, requer um compromisso ativo para a libertação de todas as
opressões que constróem infernos na terra.

b) Esperança que leva a superar os infernos deste mundo

Até o momento, destacamos o caráter individual da autocondenação eterna, agora


vamos mostrar como Renold Blank desprivatiza a reflexão sobre o inferno142. Com isto,
deixamos claro mais uma vez uma das propostas de Renold Blank que é a de apresentar a
dimensão social de cada um dos três “novíssimos” estudados nesta dissertação, e a
incidência de suas reflexões na vida e na história humana; sobretudo, sua ligação com a
realidade latino-americana.

Ao iniciar seu estudo sobre a dimensão social do inferno, e a tentativa de superar os


infernos terrestres, nosso teólogo propõe como caminho a ser percorrido o “amor posto em
prática, em vez de ideologia de ameaça”143. E o teólogo também insiste em que “o Reino de
Deus se realizará sob o prisma do amor e não da ameaça”144. Um lance de olhos nos 2000
anos de história do cristianismo bastará para mostrar que as “ameaças com o inferno não

141
Ibidem, p. 197.
142
TAMOYO-ACOSTA diz que “a desprivatização (grifo do autor) do inferno, do inferno aqui e do inferno
depois da morte”, foi descuidada pela escatologia cristã. De fato, “o inferno na terra não é algo individual e
privado; trata-se de uma realidade coletiva, pública, que deve ser erradicada com a colaboração de todos” (J-J
TAMOYO-ACOSTA, Para compreender la escatologia cristiana, op. cit., p. 235).
143
R. J. BLANK, Nossa vida tem futuro, op. cit., p. 226. As palavras acima formam o título de um dos dois
itens em que Renold Blank desenvolve suas reflexões sobre a superação dos infernos terrestres. Estes só
podem ser vencidos através da práxis do amor, já que é a negação do amor a Deus e ao próximo que gera o
inferno.
144
Ibidem, p. 227.
147

levaram à erradicação dos infernos na terra”145. Ao contrário, a resistência aos infernos


humanos não deve ser construída com ameaças no inferno no além, mas sim através do
amor e da esperança de que Deus, que é aliado dos homens, os ajudará a vencer as
situações de morte neste mundo.

Concretamente, percebe-se na história que há pessoas animadas por uma vontade de


negação do próximo, que constróem suas vidas egoístas sobre a injustiça em suas diversas
manifestações. A tudo isto são especialmente sensíveis os teólogos da libertação e, com
eles, Renold Blank. Na América Latina, o cúmulo de violências e indignidades representa
uma situação infernal para milhões de seres humanos.

Um teólogo afirmou que os infernos intra-históricos são um ensaio para o inferno


meta-histórico. Naqueles, já estão dados os “ingredientes” básicos de concretização do
inferno no além146 para os responsáveis pela construção das estruturas opressoras147. O
inferno eterno, certamente, surge da cristalização de uma dinâmica processual histórica.
Começa quando pessoas criam condições de vida infernais, torturantes, esmagadoras,
destruindo as relações fraternas e deixando um rastro de degradação e morte no mundo, diz
João Batista Libanio, que continua:

“É aqui e agora, portanto, no tempo e na história, na trama da vida real e das estruturas
sociais injustas, que o inferno se gesta e aparece como possibilidade concreta. Possibilidade que, na
história da América Latina em que vivemos, pode ser entrevista através do sofrimento infligido a
tantos pela privação dos mais elementares direitos humanos”148.

A esperança cristã que, como vimos no segundo capítulo, é histórica, nos leva a
protestar contra a morte a partir da ressurreição de Jesus, base da esperança escatológica. A
fé na ressurreição é transformada aqui na terra em crítica a uma sociedade marcada pela

145
Ibidem, p. 227. De fato, esta prática é ineficaz. Também Andrés Torres Queiruga concorda que “a história
demonstrou inevitavelmente que a ‘pastoral do medo’ conduz necessariamente ao fracasso” (A. TORRES
QUEIRUGA, O que queremos dizer quando dizemos inferno?, op. cit., p. 5).
146
J. L. RUIZ DE LA PEÑA, La pascoa de la creacion, op. cit., p. 238.
147
Observemos esta interessante e irônica crítica de um teólogo da libertação: os burgueses (opressores) não
gostam do inferno. Sabem que se ele existisse, seriam os primeiros inscritos na lista de condenação.
Colocando-nos na perspectiva dos pobres (oprimidos), devemos admitir que se o inferno não existisse
deveríamos inventá-lo para que houvesse justiça (cf. P. TRIGO, Creación e historia en el processo de
liberación apud J. L. RUIZ DE LA PEÑA, La pascoa de la creacion, op. cit., p. 238, nota 44).
148
J. B. LIBÂNIO; Ma. C. L. BINGEMER, Escatologia cristã, op. cit., p. 264.
148

morte. Esta esperança desestabiliza as relações de dominação que se julgam perenes aqui e
agora149. Professar a fé no Ressuscitado requer conversão profunda para poder enfrentar as
situações concretas de morte. Conversão que deve ser realizada de forma contínua ao longo
da vida, expressando-se na prática do amor.

Conclusão

Numa boa introdução à problemática do inferno, Andrés Torres Queiruga diz que
muitos estragos já se fizeram ao falar sobre este tema. Desde cedo apelou-se à ameaça
conduzida por uma “pastoral do medo”. Mas, sobre um assunto tão molesto e complicado
não é sadio calar150. E Renold Blank está entre os teólogos que resolveram falar sobre o
tema, ou seja, expressar uma opinião de qualidade na tentativa de explicá-lo corretamente
numa linguagem compreensível para o homem atual. Diante dos questionamentos que o
tema do inferno continua apresentando, suas explicações são, em geral, esclarecedoras e
respondem às exigências atuais da evangelização e da educação na fé.

Nosso teólogo deixa claro que Deus só quer a vida e a realização do ser humano. O
inferno, portanto, é obra de perversão da liberdade e traz conseqüências negativas, tanto
pessoais como coletivas. Por isso, ele não pode ser tratado de modo privatizado. Os
infernos deste mundo, em especial os latino-americanos, clamam por reflexões lúcidas e
por ações eficazes em vista de serem superados. Este aspecto é bem desenvolvido e
explicitado por Renold Blank. Este se preocupa, bem mais do que explicar o sentido do
inferno, em demonstrar que o Deus de amor não quer o inferno e ajuda os homens a superá-
lo.

Por outro lado, segundo Renold Blank, um aspecto mais individual do inferno,
consiste em vê-lo como a eterna frustração: a petrificação do ser humano em seu egoísmo,
quando recusa o amor a Deus e ao próximo. As condições históricas infernais, causadas por
esta recusa, são um indicativo de que o inferno eterno é uma possibilidade real. Ao
149
Cf. H. KÜNG, Ewiges Leben? apud R. J. BLANK, Nossa vida tem futuro, op. cit., pp. 228s. Estas palavras
ensinam que a escatologia, longe de ser alienante, possui capacidade crítica frente à história, como vimos no
primeiro capítulo.
150
Cf. A. TORRES QUEIRUGA, O que queremos dizer quando dizemos inferno?, op. cit., p. 5.
149

comentar como seria este estado de condenação eterna, o teólogo suíço não consegue ser
mais claro e objetivo. Com a ajuda de outros autores buscamos aprofundar melhor esta
problemática.

Central no pensamento de Renold Blank, no entanto, é a ênfase no amor de Deus,


que tem a última palavra sobre o destino final do homem e da história. Este ponto ganha
destaque em sua reflexão, que suscita uma esperança capaz de vencer o medo. Baseando-se
sobretudo em Hans Urs von Balthasar, Renold Blank confirma o dever de esperar pela
salvação de todos. Esta reflexão, em que tenta harmonizar a liberdade humana e a graça de
Deus, reforça a preocupação constante de nosso teólogo: mostrar que o Deus de Jesus
Cristo é o Senhor da vida e que seu sim ao homem é irreversível.

Mesmo se autocondenando, o homem conta com a solidariedade de Deus em Jesus.


Seu amor que gera vida não abandona nem mesmo os que estão no inferno. Esta
perspectiva nos leva a concluir que ele rejeita a tese da aniquilação, proposta pelo filósofo
americano da religião Kvanvig. Segundo este autor, no caso de uma condenação eterna, o
inferno poderia ser entendido de dois modos: 1) como uma ação positiva de Deus para
aniquilar o pecador, a fim de que não sofresse eternamente; 2) como pura e simples auto-
aniquilação.

A tese da aniquilação é mencionada por vários teólogos e criticada por alguns.


Entre os que a criticam encontram-se: Karl Rahner, Ruiz de la Peña, Andrés Torres
Queiruga e Medard Kehl. Este último nos dá uma explicação convincente sobre
impossibilidade da aniquilação humana151. Se Deus extinguisse ou aceitasse a extinção da
pessoa, Ele cairia em contradição consigo mesmo, pois toda pessoa existe pelo fato de Deus
dizer-lhe um sim incondicional e irrevogável. Deus não pode retirar este sim, pois
significaria contradizer sua fidelidade. Neste sentido, de acordo com a Escritura,
percebemos que Deus não quer a morte do pecador, mas sua conversão e vida.

151
Cf. M. KEHL, O que vem depois do fim? op. cit., pp. 164s.
150

Da parte do ser humano, uma extinção total é impensável já que sua história, com
seu entrelaçamento com outras histórias, não pode ser desfeita. Concordamos com esta
argumentação e vale ressaltar que ela segue a lógica do pensamento de Renold Blank em
dois pontos: valoriza a história e a liberdade humana e, principalmente, realça o amor
absoluto de Deus que, ao agir, sempre produz vida (salvação) e impede a morte.

3.4. Céu: salvação, destino final do ser humano

Introdução

Renold Blank apresenta o tema do céu152 explicitando-o, a exemplo da teóloga


Maria Clara Bingemer, como obra da salvação153 querida por Deus para todos os seres
humanos. Se, como vimos, o inferno é a não-salvação, o que Deus não quer; o céu, ao
contrário, é “o último destino”154 para “onde” caminhamos impulsionados pelo amor
reconciliador155 de Deus. Ao expor o pensamento de Renold Blank sobre o céu,
explicaremos consequentemente o que ele entende por salvação.

152
Sendo céu a designação da plenitude absoluta alcançada pelo homem ajudado por Deus, a palavra que
remete a essa realidade é uma parábola significativa. Céu, literalmente, significa firmamento ou abóbada. As
religiões urânicas (dos caçadores e dos nômades) ofereciam uma profunda experiência da grandiosidade do
céu. E, assim, viram nele o símbolo da realidade divina. Compreendemos, portanto, céu como transcendência:
Deus é Aquele que se encontra “acima de tudo”. Então, céu é sinônimo de Deus e, para o Novo Testamento,
de Jesus ressuscitado (cf. L. BOFF, Vida para além da morte, op. cit., 68). No entanto, Bernard Sesboüé
adverte para o fato que a palavra céu tornou-se ambígua desde que o céu estelar fez-se objeto de descobertas e
viagens cósmicas. O teólogo francês sugere o uso da expressão “vida eterna” (cf. B. SESBOÜÉ, Croire, op.
cit., p. 530). Renold Blank, por sua vez, não se prende a esta distinção e utiliza as duas formas, pois está mais
preocupado com o sentido teológico que elas veiculam.
153
“Deus quer a salvação de todos!”, afirma Renold Blank (cf. Escatologia da pessoa, op. cit., p. 282). Sobre
esta vontade salvífica, Maria Clara Bingemer disse que “para designar o destino final dos homens e mulheres
escolhidos por Deus para serem salvos (...) a fé cristã cunhou a palavra ‘céu’ ” (J. B. LIBÂNIO; M a. C. L.
BINGEMER, Escatologia cristã, op. cit., p. 285).
154
Cf. R. J. BLANK, Escatologia da pessoa, op. cit., p. 283. Este derradeiro destino é a meta para “onde” o
homem caminha. Segundo Medard Kehl: “Quando falamos de céu no sentido bíblico-cristão, referimo-nos à
meta da história pessoal e universal pensada por Deus para nós (...). ‘Céu’ é, no fundo, outra palavra para
‘consumação’ ” (M. KEHL, O que vem depois do fim? op. cit., p. 150). “Enquanto o inferno situa-se apenas
ao nível de possibilidade (grifo do autor), o céu, a vida eterna, é promessa real (grifo do autor) entregue ao
ser humano por Deus, ratificada em Jesus Cristo, proposta (grifo do autor) de vida” (J. B. LIBÂNIO; Ma. C.
L. BINGEMER, Escatologia cristã, op. cit., p. 265).
155
Mais uma vez, aparece o tema do amor. Através dele, “Deus quer que o ser humano participe de sua
própria vida divina” (R. J. BLANK, Escatologia da pessoa, op. cit., p. 286). Medard Kehl, em consonância
com Renold Blank, afirma que amor e céu são realidades que se relacionam: “A fonte e o meio dessa bem-
aventurança da consumação é o amor reconciliador (grifo do autor) de Deus” (M. KEHL, O que vem depois
do fim? op. cit., p. 150).
151

Neste item seguiremos o mesmo esquema utilizado antes na análise do purgatório e


do inferno: em primeiro lugar, daremos algumas informações sobre o tema do céu no livro
Escatologia da pessoa. Depois, será mostrado como este tema aparece na Bíblia e na
tradição. Finalmente, apresentaremos as características do céu segundo Renold Blank: vida
plena, realidade dinâmica, novo relacionamento com o cosmo e união íntima com Deus.

3.4.1. O céu nas obras de Renold Blank

Os livros Viver sem o temor da morte e Nossa vida tem futuro não tratam do tema
do céu. Somente o livro Escatologia da pessoa, nas páginas 282 a 293, aborda este tema.
Inicialmente, a idéia de céu está presente nos outros dois livros, quando Renold Blank
estuda a ressurreição de Jesus. Para o teólogo suíço, céu e ressurreição se equivalem: “Deus
ressuscita o ser humano na morte (...) (e) abre para a pessoa novas dimensões de vida (...)
que chamamos CÉU” (grifo do autor)”156.

Embora o tema do inferno seja central em Viver sem o temor da morte, Renold
Blank implicitamente também fala da salvação: Deus quer salvar o homem do inferno e,
portanto, o ser humano pode viver sem o medo da morte. Em Nossa vida tem futuro, o tema
da ressurreição merece um capítulo à parte (pp. 119 a 225) e dois capítulos em Escatologia
da pessoa. Além destes temas, este último livro desenvolve o do céu em capítulo separado.
Seu conteúdo lembra de perto a realidade da ressurreição.

A ressurreição de Jesus é, de fato, a base da nossa salvação. Por causa dela podemos
ter esperança. Isto aparece na Bíblia e na tradição: ao falar do céu, ligam-no muitas vezes à
ressurreição de Cristo.

3.4.2. Céu na Bíblia e na tradição

156
Cf. R. J. BLANK, Escatologia da pessoa, op. cit., p. 288. Sobre a relação céu-ressurreição, Francisco de
Mier diz: “A ressurreição é a forma mediante a qual alcançamos a salvação eterna ou céu” (F. MIER,
Escatologia cristiana, op. cit., 225).
152

No livro Escatologia da pessoa, Renold Blank, ao tratar do tema do céu, cita a


Bíblia apenas cinco vezes157, mas não menciona nenhuma passagem da tradição (Padres,
concílios, teólogos) a este respeito. Aqui, faremos brevemente uma exposição destes dois
aspectos, conforme fizemos nas explanações do purgatório e do inferno.

a) Céu na Bíblia

A Bíblia é sóbria ao falar do céu. Ao tocar neste assunto, parte de imagens tiradas da
vida cotidiana. “No AT, o céu é intramundano”158. Mas, o homem do Antigo Testamento
começa a entrever que a plenitude pela qual aspira não é possível na existência terrena. Em
alguns textos, como por exemplo nos salmos 16 e 73 e em 2 Mc, já aparece uma reflexão
sobre a vida eterna após a morte. A pregação de Jesus delineia de modo nítido o conteúdo
da promessa de Deus e da esperança humana na vida eterna, cujo ápice é a ressurreição159.

Como vimos no segundo capítulo, a ressurreição de Jesus por Deus é penhor de


nossa salvação: “Deus quer a salvação de todos (...) devemos lembrá-lo insistentemente em
todas as suas conseqüências”160. Renold Blank, ao falar sobre isto, cita quatro passagens161
dos textos de Paulo:

- “Assim como pela falta de um só resultou a condenação de todos os homens, do


mesmo modo, da obra de justiça de um só, resultou para todos os homens a justificação que
traz a vida” (Rm 5, 18);
- “Deus encerrou todos na desobediência para a todos fazer misericórdia” (Rm 11,
32);
- “Deus, nosso Salvador, quer que todos os homens sejam salvos” (1 Tm 2, 3-4);
- “Colocamos nossa salvação no Deus vivo, que é Salvador de todos os homens,
sobretudo dos fiéis” (1 Tm 4, 10).

157
Renold Blank cita textos do Novo Testamento: Rm 5, 18 e 11, 32; 1 Tm 2, 3-4 e 4, 10; Ap 21 3-5 (cf. R. J.
BLANK, Escatologia da pessoa, op. cit., pp. 282-292).
158
J. B. LIBÂNIO; Ma. C. L. BINGEMER, Escatologia cristã, op. cit., p. 271.
159
Ibidem, p. 272. Sobre a relação entre ressurreição e céu Ladislau Boros diz que o céu está perto de nós a
partir da ressurreição de Jesus (cf.. L. BOROS, Existência redimida, op. cit., 26).
160
R. J. BLANK, Escatologia da pessoa, op. cit., p. 282.
161
Ibidem, p. 282.
153

Vida eterna, salvação ou céu é ser assumido por Cristo em sua glória em
indissolúvel comunhão existencial com ele, sobretudo permanecendo em seu amor para
sempre. De fato, “a vida eterna proposta no NT é a plenitude do amor” 162. A riqueza do
amor divino ultrapassa a lógica racional humana. Por isso, ao falar deste amor, que
plenifica o homem salvando-o, a Bíblia utiliza imagens163 que nos ajudam a penetrar um
pouco no mistério dessa inesgotável realidade divina. Eis algumas dessas imagens164:

- O banquete e as núpcias (cf. Mt 22, 1-10; 25, 1-3; Lc 12, 35-38 e 13, 28-29). Estas
imagens sugerem abundância de dons, desejos saciados, encontro, amizade, reconciliação
entre indivíduos. No céu teremos tudo isto em plenitude;
- Descanso sabático: o Dia de Javé (cf. Ex 20, 8-10). Lembra uma situação de bem-
aventurança em que predomina a soberania amorosa de Deus;
- Casa do Pai (cf. Jo 14, 1-3). O céu representado como morada paterna indica um
“lugar” acolhedor de paz e harmonia perfeitas querido e preparado por Deus;
- Vinho do Reino (cf. Mt 26, 29). O vinho simboliza a comunidade máxima, onde os
grãos de uva se transformam em vaso comum. O vinho também é símbolo da alegria. No
céu haverá comunhão e alegria eternas;
- Éden ou paraíso (cf. Gn 3). A palavra significa “lugar dos deuses”. O ser humano
sempre aspirou aos dons e felicidades divinas, sempre quis morar num mundo de Deus
isento dos males e do sofrimento. Só o céu é assim;
- Vitória (cf. 1 Cor 9, 25; Tg 1, 12; Ap 2, 11; 2, 17; 3, 5). Vencer é uma realização
importante para o ser humano. O céu é a máxima vitória sobre o mal e a morte, é a
realização absoluta;

162
J. B. LIBÂNIO; Ma. C. L. BINGEMER, Escatologia cristã, op. cit., p. 273.
163
A estrutura do conhecimento humano necessita de imagens. “Assim o Futuro Absoluto, o Último de todas
as coisas não pode ser pensado sem um mínimo de representação (...). Podemos e devemos ir corrigindo as
imagens, mas nunca prescindiremos totalmente delas. As imagens, porém, permanecem imagens e não valem,
nem substituem a realidade pensada” (Ibidem, p. 26).
164
Cf. F. MIER, Escatologia cristiana, op. cit. pp. 217 a 219. As primeiras cinco imagens são desta obra
citada. A sexta é de Leonardo BOFF (cf. Vida para além da morte, op. cit., p. 75).
154

- Cidade de Deus165 (cf. Ap 21, 9-22, 5). Refere-se à Jerusalém celeste descrita pelos
autores bíblicos como lugar de paz e de justiça; um lugar aberto a todos onde os povos se
encontrarão.

Estas imagens não são abstratas, mas têm relação com as realidades da vida
humana. Das imagens, as que se destacam pelo profundo significado são a do banquete e a
das núpcias. Nestas, percebe-se melhor o caráter comunitário do céu. Seu aspecto coletivo
também tem uma “índole marcadamente cristológica”166. É assim que a tradição, em seus
primórdios, compreendia o céu: ligado à ressurreição de Jesus, comunitário e dinâmico.

b) Alguns elementos da tradição da Igreja que determinaram a doutrina sobre o céu

No credo cristão, apenas a vida eterna é mencionada, pois ela é o objeto primordial
de nossa fé e nossa esperança. Nele não se menciona o purgatório nem o inferno. Dos três
elementos escatológicos, o mais importante é a vida eterna167. De fato, a ressurreição de
Jesus Cristo abriu aos que crêem a esperança na salvação eterna. Desde os primeiros
tempos do cristianismo, houve preocupação em compreender o destino final do homem e da
história, e também a sorte de cada pessoa depois da morte: estes foram os dois pólos em
torno dos quais girou a escatologia cristã. Segundo as épocas, deu-se prioridade a um
aspecto ou a outro, predominando na Idade Patrística uma compreensão cristológica da
escatologia168.

Na Patrística, a ressurreição do corpo total de Cristo era uma constante na reflexão


dos padres. Uma amostra disso é a carta de Pseudo-Barnabé que fala da ressurreição de
todos os homens em relação com Jesus. Para Inácio de Antioquia, a vida eterna se centra na
comunhão com Deus em Jesus. Em suma, para os padres apostólicos fica claro que a

165
Cf. J-J TAMOYO-ACOSTA, Para compreender la escatologia cristiana, op. cit., p. 227. Esta imagem
mostra a consciência na patrística da dimensão social do céu.
166
J. B. LIBÂNIO; Ma. C. L. BINGEMER, Escatologia cristã, op. cit., p. 276.
167
Cf. B. SESBOÜÉ, Croire, op. cit., 530.
168
Cf. B. SESBOÜÉ, (Org.), Historia de los Dogmas, op. cit. pp. 309s. A concepção de céu em Renold Blank,
como veremos, também é muito cristológica. Mas, ele não acentua outros aspectos ligados à cristologia, como
a dimensão pascal.
155

salvação significa alcançar a Deus, estar com Cristo. Só por meio deste, e em particular por
sua ressurreição, tem sentido a esperança na ressurreição dos mortos169.

Mantendo central a preocupação em relacionar a ressurreição de Jesus com a nossa,


alguns padres apologetas defendem esta doutrina cristã de ataques gnósticos, afirmando que
tal ressurreição é também corporal: inclui a totalidade da pessoa. Entre estes defensores,
contamos: Justino, Atenágoras, Irineu, Tertuliano e Cipriano, para citar os principais. Mas,
no desenvolvimento de suas idéias, encontramos diferentes maneiras de se entender a
ressurreição, chegando até mesmo ao ponto de alguns compreendê-la de modo material170.

Como dissemos, a escatologia de Agostinho muito influenciou na teologia do


Ocidente. Ele defendia que o céu é para um pequeno número de eleitos, pois a maioria dos
homens seriam condenados. A preocupação com a sorte final das pessoas também esteve
presente nas intervenções conciliares dos primeiros sete séculos. Percebe-se a idéia de uma
diferenciação imediata entre o destino dos justos (céu) e dos ímpios (inferno)171.

Na Idade Média, os teólogos usaram muito a terminologia “visão de Deus” ou


“visão beatífica” para falar do céu. Hugo de São Vítor, São Boaventura, Pedro Lombardo e,
sobretudo, Santo Tomás de Aquino foram os teólogos medievais que se dedicaram aos
problemas escatológicos relevantes da época172: morte, juízo final, ressurreição, inferno e
céu. Sobre este último novíssimo, Tomás afirma que a meta humana suprema é a visão de
Deus: a única plenitude da criatura racional173.

As declarações conciliares e pontifícias, na Idade Média tardia, esclareceram e


confirmaram vários aspectos da escatologia pessoal. Como mencionamos, o ponto alto de
definição escatológica foi a constituição Benedictus Deus de Bento XII, em 1336. O
fundamental deste documento é a solene declaração da imediatez da retribuição para bons e
maus. Esta bula papal contém valiosas afirmações sobre a visão beatífica. Explica o
169
Cf. Ibidem, pp. 310-313.
170
Cf. Ibidem, pp. 313-322.
171
Cf. Ibidem, pp. 328-333.
172
Apesar de a escatologia pessoal ganhar mais destaque na Idade Média, alguns teólogos procuravam ainda
relacionar o destino final de cada homem sem separá-lo do conjunto da humanidade e da história.
173
Cf. B. SESBOÜÉ, (Org.), Historia de los Dogmas, op. cit. pp. 334-343.
156

conteúdo da felicidade eterna, a visão imediata de Deus e o gozo que esta produz. Fala
também do “estar com Cristo” no céu. Os concílios de Florença (1439) e de Trento (1545 a
1563) centraram mais a atenção, dentre as questões escatológicas, no purgatório174.

Entre o concílio de Trento e o Vaticano II não encontramos nenhuma intervenção


pontifícia que se refere formalmente à escatologia. No que tange ao céu, o Vaticano II
confirma as intuições dos concílios anteriores, mas o faz num contexto de renovação bíblica
e de recuperação da teologia da história. A escatologia do concílio, como vimos no capítulo
primeiro, recupera a totalidade da mensagem cristã e se desenvolve numa perspectiva
eclesiológica. Exemplo desta nova orientação pode ser percebida no capítulo VII da Lumen
gentium e em alguns números (14, 18, 38 e 39, por exemplo) da Gaudim et spes175.

Fiel ao caminho proposto pelo Vaticano II, e dentro do clima de renovação


teológica do século XX, Renold Blank desenvolve algumas intuições sobre a doutrina do
céu, centrando sua atenção em seu caráter salvífico.

3.4.3. Características do céu segundo Renold Blank

Renold Blank explica a realidade escatológica chamada céu por meio de várias
características. Inicia sua exposição afirmando que “Deus quer a salvação de todos!”176. E, a
seguir, cita alguns textos bíblicos, já vistos antes, e algumas passagens do Concílio
Vaticano II para fundamentar seu pensamento177, pois nosso teólogo tem a preocupação de
seguir o caminho de renovação proposto pelo Vaticano II. Continua, depois, afirmando que
“o nosso último destino, conforme a vontade de Deus, é a salvação para uma vida

174
Cf. Ibidem, pp. 344-350.
175
Cf. Ibidem, pp. 350-354.
176
R. J. BLANK, Escatologia da pessoa, op. cit., p. 282.
177
A título de exemplo, citamos a passagem do Concílio Vaticano II: “A Igreja sempre teve e tem por bem
ensinar que Cristo (...) se sujeitou à morte, para que todos conseguissem a salvação” (Nostra aetate, no 4).
157

plenamente evoluída em todos os sentidos. Uma vida em plenitude! A esta vida,


tradicionalmente, dá-se o nome de ‘CÉU’ ”(grifo do autor)178.

Já que para Renold Blank “céu significa ‘ser salvo’ ”179, ele procura explicar este
estado final de salvação especificando cinco características do mesmo, conforme veremos
abaixo.

a) Vida plena

O céu-salvação é vida em plenitude. O próprio Deus que salva é vida e doador da


vida. E esta se manifesta plenamente em seu filho Jesus que disse: “Eu vim para que
tenham vida e a tenham em abundância” (Jo 10, 10). De acordo com Renold Blank, se
salvação tem ligação com vida, percebemos outra vez que a vida vivida do ser humano não
é algo alheio ao seu destino de ser salvo. Mas, é um processo dinâmico e sistemático que
marca a existência histórica do homem e da mulher.
Se, como vimos no capítulo primeiro, a salvação tem relação com a história, ela faz
parte de um processo conflitivo que implica a superação das estruturas de morte. Conforme
um dos pontos acentuados por Renold Blank, Deus não realiza seus planos sozinhos. Ele
chama o ser humano a colaborar ativamente, ampliando a vida nas dimensões pessoal, no
contexto social e no mundo180.

Estas reflexões de Renold Blank nos remetem ao que vimos no capítulo primeiro.
Visam mostrar a relação que existe entre a esperança do céu e a responsabilidade humana
na história181. A esperança no céu é um estímulo para os compromissos humanos neste
178
R. J. BLANK, Escatologia da pessoa, op. cit., pp. 283s. Estas palavras de Renold Blank são semelhantes
às de alguns teólogos: o céu é a realidade sumamente realizadora de tudo o que o homem pode aspirar de
grande e de plenificador (cf. L. BOFF, Vida para além da morte, op. cit., p. 68). Céu é a resposta divina à
pergunta pelo sentido último da vida, da realidade, da história (cf. J-J TAMOYO-ACOSTA, Para
compreender la escatologia cristiana, op. cit., p. 224). Céu é, ainda, o ponto máximo da aspiração humana, a
meta suprema da vida (cf. J. B. LIBÂNIO; M a. C. L. BINGEMER, Escatologia cristã, op. cit., p. 265) e a
total realização da própria personalidade (cf. L. BOROS, Existência redimida, op. cit., pp. 122s e F. MIER,
Escatologia cristiana, op. cit. pp. 201-204) e a realização total da personnalidade (cf. L. BOROS, Existência
redimida, op. cit., pp. 122s e F. MIER, Escatologia cristiana, op. cit., pp. 201-204).
179
R. J. BLANK, Escatologia da pessoa, op. cit., p. 285.
180
Cf. Ibidem, pp. 285-287.
181
Na patrística já encontramos esta preocupação, que é expressa por exemplo na imagem da “cidade de
Deus”, onde se cruzam a orientação transcendente com a vertente imanente. O que se quer explicar com este
158

mundo. Pois, quando o indivíduo se abre ao céu, colabora para a recriação desta terra. Não
podemos compreender o céu como o oposto182 deste mundo, mas como sua plenitude, livre
de tudo o que limita e fere, divide e amarra183.

Na escatologia tradicional, o céu foi várias vezes apresentado como recompensa


individual distante da realidade mundana, como “uma visão de Deus a-cósmica”184. O céu
se fundamenta no amor de Deus, o qual também é vivido pelos homens e mulheres numa
práxis histórica. O céu do além não nos retira a dor de um amor vinculado à dor da história.
Jesus crucificado e ressuscitado é nosso céu: ele é o amor de Deus encarnado, solidário a
todos os sofredores deste mundo.

Assim, o amor não é alheio ao sofrimento, à dor e à injustiça presentes na história.


Esperar pelo céu implica participar no sofrimento dos outros. Participar do céu de Jesus
Cristo é ser solidário também à sua solidariedade com os sofredores desta terra. Mas, este
processo, nas palavras de Medard Kehl, é “um acontecimento integrado no amor de Deus e
redimido”185.

No caso específico da nossa realidade latino-americana, o caminho de acesso ao céu


está no dom da vida em favor da libertação dos pobres, na luta pelos direitos humanos das
minorias marginalizadas, nos esforços para a preservação do meio ambiente, na
humanização das estruturas sociais, de modo que estejam a serviço da vida e da dignidade,
permitindo surgir sinais do céu que antecipem o Reino definitivo.

símbolo é a dialética da vida no mundo a caminho da pátria definitiva (cf. F. MIER, Escatologia cristiana,
op. cit. pp. 219s).
182
A moderna crítica da religião acusou o céu cristão de ser uma projeção de desejos humanos; e projeção
alheia à realidade (cf. J-J TAMOYO-ACOSTA, Para compreender la escatologia cristiana, op. cit., p. 222).
183
Cf. L. BOFF, Vida para além da morte, op. cit., p. 72. A realidade do céu começa na terra sempre que
fazemos a experiência da amizade, da paz e do amor (cf. ibidem, p. 82). Afirma Bernard Sesboüé: gestos de
amor, de generosidade e de realizações humanas são sinais da vida eterna que construímos aqui e que nos
servem de estímulo (cf. B. SESBOÜÉ, Croire, op. cit., p. 533).
184
M. KEHL, Escatologia, op. cit., p. 291. Na concepção privatizante do céu, segundo Maria Clara Bingemer,
encontramos resquícios da mentalidade capitalista. Nela, o céu é encarado como “prêmio póstumo”
conquistado através do próprio esforço (cf. J. B. LIBÂNIO; M a. C. L. BINGEMER, Escatologia cristã, op.
cit., p. 269).
185
Ibidem, p. 291.
159

Mas, segundo Renold Blank, em certo momento deste processo salvífico, o homem
encontra uma situação de morte que é mais forte que qualquer esforço humano: a morte
biológica. Nesta situação, em que ele não pode mais agir, Deus realiza uma ação especial
ressuscitando-o da morte, levando à plenitude toda a sua história. Assim, “Deus abre para a
pessoa novas dimensões de vida, dimensões que chamamos ‘CÉU’ ”(grifo do autor) 186. E
esta vida no céu só é realmente plena quando vivida em comunhão com outras pessoas.

b) Comunhão

A palavra que intitula este item se refere à relacionalidade humana. O céu é a


realização plena do ser humano187. Na vida eterna, a pessoa continua mantendo a condição
humana e, por isso, o céu inclui o aspecto relacional, então vivido de modo perfeito. O que
é essencial na terra não deixará de sê-lo no céu: as relações persistem de um modo
diferente, mas real. Podemos compreender o aspecto comunitário do céu não apenas do
ponto de vista antropológico. O lado teológico também pode ser percebido.

Sobre este último, no dizer de Maria Clara Bingemer, o céu é uma realidade
primordialmente cristológica e pneumatológica. E estes dois aspectos implicam o aspecto
eclesiológico. Portanto, o céu é comunhão do povo de Deus com Cristo no Espírito
Santo188. Este aspecto social, por sua vez, possui um embasamento bíblico nas imagens que
expressam esta realidade escatológica.

As imagens da cidade celeste, do banquete e das núpcias, por exemplo, refletem


bem esta concepção coletiva. Cidade sugere relações sociais. Num banquete não é possível,

186
Ibidem, pp. 287s
187
No céu, o homem será pessoa plenamente evoluída. Inácio de Antioquia diz, a este propósito, que “quando
chegar lá (no céu), então é que serei homem” (Inácio de Antioquia, Ad Romanos apud J. B. LIBÂNIO; Ma.
C. L. BINGEMER, Escatologia cristã, op. cit., p. 285). Relacionar céu e evolução nos lembra a linguagem
utilizada para explicar o purgatório. No entanto, céu é o estado final, e não intermediário, da evolução plena
operada por Deus.
188
Cf. J. B. LIBÂNIO; Ma. C. L. BINGEMER, Escatologia cristã, op. cit., p. 278. Alguns autores fazem uma
interpretação trinitária dessa comunhão, como é o caso de Luiz Carlos Susin que diz que “essa relação
essencial não se perde porque tem sua origem primeira e se transfigura na comunhão trinitária” (L. C. SUSIN,
Assim na terra como no céu, op. cit., p. 172). Bruno Forte afirma que a variedade das relações humanas
participa do acontecimento eterno do amor da Trindade (cf. B. FORTE, Teologia de la historia, op. cit., p.
374).
160

de acordo com a Bíblia, alguém comendo sozinho. Também, a fecundidade na vida


matrimonial não acontece através de uma só pessoa. Em suma, estas imagens revelam que a
“visão de Deus, Vida eterna, o céu é, marcadamente, sociedade”189. Na tradição,
encontramos esta compreensão social de céu expressa por meio do dogma da comunhão
dos santos ou da expressão “Igreja celeste”, como assembléia, reunião, koinonia.

No céu, haverá uma fraternidade universal, e não uma paz isolada para cada pessoa.
Numa dinâmica de solidariedade, segundo Renold Blank, reencontraremos com todas as
pessoas conhecidas, com aquelas que amamos e também com aquelas que não amamos,
mas no céu vamos aprender a amá-las. Até aqueles que, na vida terrena, eram inimigos
amar-se-ão190. Estas palavras mostram que a solidariedade na vida eterna é uma dinâmica
que envolve pessoas que se comunicam sustentadas pelo amor de Deus.

c) Realidade dinâmica

Segundo Renold Blank, para muitos cristãos, o céu está associado a uma imagem
que aborrece, a uma situação estática, onde as pessoas gozam de uma paz eterna, tranqüila e
abstrata. Se o céu é vida em plenitude, onde há vida existe dinamicidade191. As imagens
descritivas do céu, vistas anteriormente, sugerem movimento e vitalidade. Renold Blank, ao
comentar isto, destaca com especial atenção a imagem do banquete. Lembra que, quando
Jesus fala em banquete, ele tem em mente a experiência oriental de um banquete
esplendoroso com danças, alegria, barulho, brincadeiras. Eram banquetes que duravam pelo
menos uma semana e movimentavam muitas pessoas192.

189
Cf. J. B. LIBÂNIO; Ma. C. L. BINGEMER, Escatologia cristã, op. cit., p. 275. Segundo Tamoyo-Acosta,
“da vida em plenitude não desfrutam pessoas isoladamente senão coletivamente, como comunidade” (J-J
TAMOYO-ACOSTA, Para compreender la escatologia cristiana, op. cit., p. 224).
190
Cf. R. J. BLANK, Escatologia da pessoa, op. cit., p. 289.
191
Cf. Ibidem, pp. 289s. Este comentário de Renold Blank, sobre uma compreensão que alguns têm do céu,
vendo-o de modo estático, é um pouco simplista e caricaturizado. Mesmo assim, serve para despertar a
atenção para a dinamicidade do céu outrora esquecida pela escatologia tradicional. Ladislau Boros ajuda-nos a
compreender essa “dinâmica celeste”: como o céu se refere à plenitude humana em Deus, cada plenificação é
simultaneamente novo começo, início de uma plenificação ainda maior. Por isso, o céu dever ser entendido
como dinâmica ilimitada (cf. L. BOROS, Existência redimida, op. cit., p. 27).
192
Cf. R. J. BLANK, Escatologia da pessoa, op. cit., p. 290.
161

Afirmar a dinamicidade do céu, e dos outros dois “novíssimos” já estudados, faz


parte da intenção de Renold Blank, que busca pensar a escatologia em termos dinâmicos.
Mas, no caso específico do céu, Renold Blank apenas diz que ele é dinâmico sem, no
entanto, explicar como isto ocorre. Por isso, citamos uma explicação de Medard Kehl a este
respeito. Este teólogo também rejeita uma concepção de céu como um sossego eterno 193 ou
como continuação infinita das comodidades da vida terrena. Ao invés disto, ele diz que

“Céu (...) significa consumação (grifo do autor) da vida terrena; mas absolutamente não
rumo a um estado de repouso eternamente fixo, e sim à desobstruída participação na vida (...). Essa
participação na plenitude da vida infinita e criativa de Deus abre para nós um processo (grifo do
autor) de amadurecimento cada vez mais profundo na vida de Deus adentro”194.

Estas palavras de Medard Kehl revelam que a dinamicidade da vida eterna está
ligada à comunhão dos santos e pode também ser explicada, segundo Leonardo Boff, pela
categoria de “encontro”:

“O encontro nunca é acabado. Sempre está aberto a um mais e pode crescer


indefinidamente. Quando porém Deus é o encontro do homem então não conhecerá mais fim. Aí se
instaura um vigor que não se esgota nem se limita mas vai abrindo dimensões sempre novas e
diferentes do multiforme mistério do Amor”195.

A dinamicidade existente no céu inclui não apenas a comunhão com Deus e os


irmãos, mas também uma nova convivência com o cosmo.

193
A plenitude do céu ocorre na eternidade. Esta não pode ser compreendida como um repouso eterno ou algo
de duração indefinida. Neste sentido, segundo Bernard Sesboüé, a eternidade não pode ser representada como
uma linha horizontal contínua. A verdadeira imagem da eternidade é aquela de um momento particularmente
excepcional de nossa existência, mas cuja intensidade elevada ao máximo não passa (cf. B. SESBOÜÉ,
Croire, op. cit., pp. 532s). Temos aqui uma interpretação existencial da eternidade. E ela é diferente da
compreensão de Renold Blank. Para este, a eternidade “significa por definição que não há mais tempo (...).
NA ETERNIDADE SÓ HÁ ETERNO AGORA” (grifo do autor) (R. J. BLANK, Nossa vida tem futuro, op.
cit., 205). Renold Blank interpreta a eternidade “interligando concepções teológicas com modelos científicos
da cosmologia” (R. J. BLANK, Escatologia do mundo, op. cit., p. 356). Aqui temos uma simultaneidade que
se opõe à sucessão temporal. Julgamos que as explicações de Bernard Sesboüé e de Renold Blank são boas,
mas o primeiro está mais em sintonia com a promessa de plenificação do céu. Na terra mesmo já
experimentamos realizações parciais que antecipam a vida eterna.
194
M. KEHL, O que vem depois do fim? op. cit., p. 152. O final desta citação nos lembra um pensamento de
Francisco de Mier. Segundo este teólogo, podemos falar que também em Deus existe um crescimento, uma
plenificação. Pois, progressivamente constitui-se uma totalidade entre Deus, as pessoas e o mundo que só no
final dos tempos será completa, quando nada ficar fora do amor divino (cf. F. MIER, Escatologia cristiana,
op. cit. pp. 208s)
195
L. BOFF, Vida para além da morte, op. cit., p. 71. Medard Kehl diz que, realmente, o processo do amor de
Deus nunca está quieto em sua plenitude, pois trata-se de um amor inesgotável que aponta para um futuro
sempre novo (cf. M. KEHL, Escatologia, op. cit., p. 289).
162

d) Novo relacionamento com o cosmo

Já vimos, no capítulo segundo, que a salvação inclui, ao mesmo tempo, o indivíduo


e o cosmo inteiro. Para Renold Blank, a vida plena da pessoa, num estado que chamamos
céu, não acontece fora da relação com o cosmo, pois a pessoa se humaniza relacionando-se
com ele. Assim, “o céu não separa a pessoa humana do mundo, mas a aproxima daquilo
que é o mundo em plenitude conforme o projeto de Deus”196.

O relacionamento do homem com o mundo continua de forma nova, reconciliada. A


reconciliação propiciada pelo amor de Deus é ampla: com nós mesmos e com os outros,
como já vimos; reconciliação também entre povos, raças, culturas e religiões. Por fim,
reconciliação com toda a criação. O que foi dito aqui por Renold Blank nos leva a concluir,
utilizando palavras de Medard Kehl, que a dimensão cósmica do céu é “a festa da criação
reconciliada”197. Esta reconciliação total só é possível devido à fidelidade amorosa de Deus.
As criaturas e o mundo existem pela sua palavra criadora, que é fiel e não volta atrás
naquilo que faz. Toda criação resgatada será, assim, o “lugar” jubiloso penetrado por Deus.
E, com isso, “Deus será tudo em todas as coisas” (1 Cor 15, 28).

Com esta expressão de Paulo, não queremos afirmar um panteísmo que destrói as
individualidades, como se tudo fosse a mesma coisa. As palavras do Apóstolo indicam
Deus como princípio, o coração e o fim das criaturas. Cada indivíduo continuará sendo ele
próprio, mas o sentido profundo de sua existência é Deus mesmo que o sustenta com seu
amor. Numa situação de céu, isso ficará transparente: tudo fala e lembra Deus, cada ser
vibra pela realidade amorosa de Deus198. No “novo céu e nova terra” (Ap 21, 1), “a história
do mundo, apesar de seus absurdos e de suas contradições, tem um último sentido que está
baseado no amor de Deus”199, que deseja nossa eterna e íntima união com Ele.

e) Íntima união com Deus

196
R. J. BLANK, Escatologia da pessoa, op. cit., p. 291.
197
M. KEHL, O que vem depois do fim? op. cit., pp. 150s
198
Cf. L. BOFF, Vida para além da morte, op. cit., p. 78.
199
R. J. BLANK, Escatologia da pessoa, op. cit., p. 291.
163

No item anterior, vimos que a união realizada por Deus foi explicada num sentido
amplo. Esta comunhão definitiva com Deus pode ser chamada de “dimensão teológica do
céu”. Esta vem confirmar que a união universal dos seres humanos entre si, com as
criaturas e o mundo é obra exclusiva de Deus. Agora, no presente item, queremos mostrar
como Renold Blank entende um outro aspecto dessa ampla união: a íntima e definitiva
comunhão entre Deus e o ser humano.

O Deus de amor, que tocou o nosso coração desde o início de nossa existência, e por
quem nosso coração anseia durante a vida, é o fim derradeiro e a plenificação dessa vida.
“Céu é isso: união íntima, infinita e eterna com aquele que nosso coração já buscava,
muitas vezes sem o saber (...). Encontro de dois apaixonados, dos quais um fora tantas
vezes infiel, mas que, apesar disso, continuou sendo amado”200.

Esta comunhão com Deus, sublinha nosso teólogo, “não é uma paz isolada e
tranqüila, fora de todos os contatos com outros seres”. Ela envolve “outras pessoas e, junto
com elas, vive (-se) uma comunhão íntima de amor com Deus” 201. A teologia tradicional
chamou a esta união íntima de “ver a Deus face a face” ou “visão beatífica” 202. Segundo
Maria Clara Bingemer, em sentido bíblico, “ver” significa participar da vida de alguém. Por
exemplo, “ver o rei” para um semita é gozar de sua intimidade, ter com ele boas relações
familiares e afetivas. Trata-se, portanto, de uma comunhão existencial203.

Ao referirmo-nos à visão beatífica, podemos acentuar um ou outro de seus aspectos:


amor ou conhecimento. São elementos complementares. Um aspecto remete ao outro. Se se
entende a visão de Deus como conhecimento, este não deve ser tomado como
conhecimento discursivo, por reflexão; mas é um conhecimento intuitivo, como sucede no
amor. A visão de Deus como amor se explica quando amamos aquilo que conhecemos. E o

200
Ibidem, p. 292.
201
Ibidem, pp. 292s
202
Ver Deus e vida eterna são freqüentemente associados no Novo Testamento. Por exemplo, os puros de
coração verão a Deus (cf. Mt 5, 8); na cidade celeste, os servidores de Deus verão seu rosto (cf. Ap 22, 4). Na
tradição, temos esta correspondência entre ver e viver. Irineu é um exemplo neste sentido quando afirma que a
glória de Deus é o homem vivente, e a vida do homem é a visão de Deus (cf. B. SESBOÜÉ, Croire, op. cit., p
531).
203
Cf. J. B. LIBÂNIO; Ma. C. L. BINGEMER, Escatologia cristã, op. cit., p. 272.
164

próprio amor também abre via ao conhecimento, ao verdadeiro conhecimento interior que
produz felicidade204.

Este “ver a Deus” equivale, segundo Renold Blank, à “íntima união com Deus”.
Pensamos que o acento no amor caracteriza melhor a “visão de Deus” na perspectiva do
nosso teólogo. “Ver a Deus” é amá-lo em profundidade, sem mediações. Não se trata de ver
com os olhos, ou seja, de ver enxergando, mas de ver amando. A visão dos bem-
aventurados é a comunhão íntima em que o amor de Deus potencializa o amor humano.
Assim, no céu o homem “participa todo de tudo”205. Ou, segundo Renold Blank, no céu o
homem e a mulher estão plenamente realizados, definitivamente em união com Aquele que
é fonte da vida eterna.

Conclusão

Alguns conceitos importantes, tanto na teologia como em outras áreas do


conhecimento, podem cair no vazio se são repetidos sem a devida explicação atualizadora.
O constante anúncio de forma genérica de um conceito faz com que ele perca o vigor. Um
importante conceito no cristianismo é o de salvação. Mais do que conceito, salvação é uma
realidade fundamentada no amor de Deus e na livre doação de Jesus Cristo em favor da
humanidade.

Renold Blank, ao explicar o que é o céu, confirma que ele é a salvação que Deus
nos oferece. O teólogo não repete genericamente o termo salvação em seu discurso
escatológico. Mas o explicita em seus vários aspectos, mostrando como a salvação acontece
em nossa vida. Ou seja, como o céu, que é uma realidade profundamente humana206, está
presente em nossa vida pessoal, inserido num contexto histórico. Neste sentido, a
preocupação fundamental de nosso autor é mostrar que a esperança no céu leva a construir
uma nova terra. O céu também é processo, realidade coletiva, salvação histórica que
anuncia a salvação definitiva, fruto da gratuidade do amor de Deus.
204
Cf. F. MIER, Escatologia cristiana, op. cit. pp. 209s.
205
L. BOFF, Vida para além da morte, op. cit., p. 74
206
Cf. Ibidem, p. 69. Esta expressão é de Leonardo Boff e quer indicar que existe relação entre a proposta de
Deus e as boas aspirações humanas.
165

Nos comentários de Renold Blank sobre o céu, percebe-se a tônica no elemento


comunhão: céu é comunhão reconciliada do homem consigo mesmo, com o mundo e com
Deus. A suprema fonte de comunhão, fundamento das demais, é a Trindade. Isso não é
muito trabalhado pelo teólogo suíço. Sua reflexão seria mais completa, porém, se ele
também tivesse pensado a promessa do céu desde a perspectiva trinitária. A Trindade é
amor e somente a Trindade-amor realiza o sentido da pessoa e da história207, e a vida eterna
é participar do amor das três pessoas divinas208.

CONCLUSÃO GERAL

Para Renold Blank, purgatório, inferno e céu constituem realidades escatológicas


dinâmicas que envolvem a totalidade da existência humana. Como vimos nesta dissertação,
esses “novíssimos” são momentos de um amplo processo de consumação1 conduzido por
Deus. Tal processo se manifestou plenamente em Jesus Cristo, o Eschaton Logos do Pai. À
luz da ressurreição de Jesus, a escatologia cristã ganha alcance e fundamento.

De fato, sua ressurreição é chave de leitura indispensável para compreendermos o


processo escatológico no qual o homem está envolvido junto com sua realidade pessoal,
social, histórica e cósmica. Além disso, é a ressurreição de Jesus que permite-nos manter a
esperança de que o amor e a vida prevalecerão sobre o sofrimento e a morte, neste e no

207
Cf. B. FORTE, Teologia de la historia, op. cit., p. 374.
208
Cf. B. SESBOÜÉ, Croire, op. cit., p. 53 0.
1
Exceto o inferno, que não é um momento de consumação (plenificação), mas uma definitividade negativa.
166

outro mundo; pois, Deus quer ser tudo em todas as coisas. Esta mensagem de esperança é a
intenção básica de Renold Blank, cujo pensamento escatológico expusemos neste trabalho.

Com o referido teólogo, mostramos que o caminho rumo à salvação definitiva


começa neste mundo onde, em contínuo processo de conversão, maturação e purificação, o
ser humano se esforça para ser sinal do Reino de Deus através da práxis do amor. Findando
seu tempo de peregrinação terrestre, ele encontra-se diante de Deus, na morte, com
pecados, imperfeições e culpas, também com virtudes, acertos e êxitos. O amor divino
purificador ajuda então tal pessoa a entrar na vida eterna de forma plenamente evoluída
(purgatório). O risco de a liberdade humana dizer “não” ao amor de Deus é, porém,
permanente, levando-a à frustração definitiva de sua realização (inferno).

Deus não quer, contudo, a condenação do ser humano, e sim a sua salvação (céu).
Ser salvo é a promessa à qual todos são chamados. Esta esperança escatológica está
presente na interpretação que Renold Blank dá dos três “novíssimos”, até mesmo na
compreensão do inferno. Pois, o amor criativo de Deus fará tudo para que esta possibilidade
real não se concretize na vida de ninguém.

Mais do que se preocupar prioritariamente em formular uma reflexão original sobre


os “novíssimos”, Renold Blank acompanha o desenvolvimento da reflexão escatológica
inserida no vasto campo da teologia cristã. Nas questões que estudamos, nosso teólogo se
atém ao universo escatológico consensual dos teólogos atuais. Neste sentido, trilha o
caminho seguro da ortodoxia, procurando ser fiel aos dados bíblicos, à tradição e ao
magistério eclesiástico. Ele percorre este caminho atualizando suas reflexões numa
linguagem compreensível para o homem e a mulher contemporâneos e em sintonia com
suas inquietações.

Sendo um bom conhecedor da literatura teológica referente à escatologia produzida


na Europa, sobretudo a de língua alemã, Renold Blank se preocupa em traduzir seus
estudos em vista de serem compreendidos dentro da realidade latino-americana. Notamos
seu esforço em articular sua reflexão com as perspectivas da teologia da libertação. Para
167

efetivar isso, ele se serve de obras de teólogos da libertação empenhados na mesma tarefa
de construir uma nova escatologia. Ao fazer sua reflexão, nas direções apontadas pela
referida teologia, ele leva em conta os temas e as preocupações típicos dela: a centralidade
de Jesus Cristo libertador, a missão da Igreja no mundo, a emergência dos pobres, as
estruturas sociais injustas, o pecado social, a transformação da realidade através da práxis
do amor solidário.

Tendo como pano de fundo esta complexa realidade humano-divina, nosso teólogo
procura mostrar como o purgatório, o inferno e o céu se relacionam com ela.
Especificamente, ele elabora uma escatologia que seja consolação, a fim de superar o medo
religioso, fruto de uma evangelização baseada, muitas vezes, numa pedagogia do medo e da
ameaça. Ao invés disto, o teólogo suíço ensina que um pensamento correto sobre os três
“novíssimos” deve despertar esperança e ter relação com a história humana.

Renold Blank realiza com competência seu projeto, apesar de alguns limites na
apresentação de certos pontos da matéria estudada. Baseamos nosso estudo principalmente
nos livro: Viver sem o temor da morte, Nossa vida tem futuro, Nosso mundo tem futuro,
Esperança que vence o temor, Escatologia da pessoa e Escatologia do mundo. São obras
que se completam, pois tratam da escatologia da pessoa e da escatologia coletiva. Pensamos
que tais livros constituem a base do projeto escatológico de Renold Blank. Suas obras
posteriores provavelmente conservarão as intuições e as perspectivas presentes nesses
livros. Neles o autor baseia suas reflexões em modernos modelos científicos e filosóficos, a
fim de construir uma escatologia libertadora, processual e dinâmica.

É pertinente seu esforço de levar em conta o nível científico de suas reflexões, sem
se descuidar do alcance pastoral das mesmas. Mas, lembremo-nos de que na América
Latina coexistem a mentalidade moderna e a pré-moderna. Por isso, fica ainda o desafio
para nós de divulgar uma escatologia em linguagem realmente acessível às comunidades
cristãs. E que não haja apenas uma apresentação meramente intelectual, mas que tenha
incidência na vida das pessoas. Contudo, reconhecemos que um conhecimento esclarecido
168

e bem fundamentado dos “novíssimos” impele a uma atitude baseada na esperança e na


prática do amor.

Pensamos, ainda, que uma reflexão relacionada à realização humana não pode ficar
restrita ao âmbito do cristianismo. Os caminhos apontados por Renold Blank devem
avançar rumo a novos horizontes. Três são essenciais na reflexão teológica atual: o
ecumenismo, o diálogo inter-religioso e a ecologia. As questões sobre os “novíssimos”
podem ter interpretações diferentes no seio do próprio cristianismo. Aqui, uma leitura
destacadamente bíblica e trinitária seria um caminho indicado para o diálogo entre as várias
igrejas cristãs sobre o tema. Pois, a Escritura e a Santíssima Trindade são uma referência
comum às várias igrejas

Como vimos, o tratamento dado por Renold Blank aos “novíssimos” tem uma
referência marcadamente cristológica. Principalmente porque ele coloca Jesus Cristo como
uma categoria fundamental da escatologia. Isto apresenta dificuldades de aceitação e
compreensão em outras religiões. De fato, vemos emergir um pluralismo de crenças em
nosso continente, que tem se aberto às novas formas de religiosidades (orientais, nova era,
religiões pós-modernas etc) e isso exige um diálogo inter-religioso2.

Quanto à sensibilidade ecológica, trata-se de uma realidade que tem emergido com
força nos últimos anos. Ela vem recebendo atenção de toda a humanidade: pessoas e
organizações de diversas áreas do saber estão procurando refletir sobre a atual crise
ecológica. A teologia também acolheu esta problemática em suas reflexões. Um novo
paradigma ecológico propõe uma convivência mais respeitosa, pacífica e harmoniosa do ser
humano com a natureza.

2
A teologia de Renold Blank é contextual, latino-americana. Mas, caso houvesse um confronto de sua
teologia com o ambiente religioso asiático, por exemplo, como falar dos “novíssimos” neste contexto? A Ásia
é o continente menos cristão, onde o cristianismo representa 2% da população. A base da religiosidade
asiática é a libertação, não a fé num Deus pessoal. Para esta religiosidade, a soteriologia é o fundamento da
teologia. É este o ponto de contato entre o cristianismo e as religiões não-cristãs na Ásia. O contato com tais
religiões asiáticas, não pode portanto ser eclesiológico, nem cristológico, nem mesmo teológico (no sentido de
uma doutrina a respeito de Deus), e sim soteriológico. E esse caminho da salvação passa por uma via de
humanização individual e estrutural (dimensão político-social) (Cf. R. GIBELLINI, A teologia do século XX,
op. cit., pp. 482s.
169

Neste sentido, a teologia e, de modo específico, a escatologia, tem muito a


contribuir. Se a escatologia se refere à plenificação do homem e do mundo, então ela tem
algo a dizer sobre a natureza, que é obra de Deus e precisa ser restaurada com a ajuda do
ser humano. Há que mostrar, portanto, a dimensão ecológica dos “novíssimos”: purgatório
e céu poderiam se referir também à atenção e ao respeito do homem e da mulher para com a
natureza; o inferno, ao contrário, à destruição operada por eles, indo contra a vontade de
Deus.

Reconhecemos que esses três horizontes exigem reflexões complexas. Os livros de


Renold Blank, em que nos baseamos, não apresentam um estudo especificamente
relacionando “novíssimos” ao ecumenismo, ao diálogo inter-religioso e, por fim, à
ecologia. Mas, em termos gerais estão abertos a isso. Se a escatologia conheceu novas
perspectivas por causa do desenvolvimento de outras áreas teológicas, ela deve ficar atenta
ao aspecto ecumênico, ao diálogo entre as religiões e à sensibilidade emergente na
ecologia. Cabe a nós desenvolver estes três problemas numa futura pesquisa.

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