Apostila de Improvisação
Apostila de Improvisação
Apostila de Improvisação
de Improvisação
Ana Fridman
1. Pequena introdução sobre a prática da improvisação
Segundo o etnomusicólogo Bruno Nettl (2009), na história da
musicologia, a improvisação sempre teve um papel menor. Citando as crescentes
pesquisas na área da Etnomusicologia, o autor observa que os estudos relativos à
improvisação ainda representam uma parte menos significativa das abordagens
sobre processos musicais em geral (NETTL In: RUSSEL; NETTL, 2009, p.1‐4).
Com relação à própria definição do conceito de improvisação, o guitarrista inglês
Derek Bailey menciona justamente sobre a dificuldade de se estabelecer uma
única definição para tal prática, considerando que esta ocorre em diversos
contextos, como no jazz tradicional, no free jazz, na improvisação livre e em
alguns contextos das músicas não ocidentais, sugerindo diferentes definições:
A improvisação possui o aspecto curioso de ser ao mesmo tempo a
mais praticada de todas as atividades musicais e a menos reconhecida
e compreendida [...] A improvisação está em constante mudança e
reajuste, nunca é fixa, muito evasiva para qualquer análise ou
descrição precisa [...] Qualquer tentativa de descrever a improvisação
deve ser, sob um certo aspecto, uma representação deturpada.
(BAILEY, 1993, p. ix)
Embora nosso objetivo aqui não seja encontrar uma definição exata para
a prática da improvisação, mas sim pensar sobre ela, trazemos alguns pontos que
reforçam sua importância. Pensando nesse aspecto, podemos observar que, em
grande parte da performance na música não ocidental, como na Índia e na África,
e nos gêneros musicais como o jazz, o blues e o choro, a habilidade de improvisar
é tida como o estágio máximo que um músico pode atingir. Em estudo sobre a
performance musical a partir de tratados musicais elaborados por antigos
teóricos persas e árabes, Stephen Blum cita a passagem do teórico árabe Al‐
Farãbi em seu tratado Kitãb al‐musiqi al‐kabir sobre os três estágios pelos quais
o músico passa até atingir sua maturidade (adaptação nossa)
• Estágio 1: Em seu primeiro estágio, os músicos são dependentes dos
hábitos que adquiriram tanto em relação a um instrumento quanto às
circunstâncias que envolveram esse aprendizado. Nesse estágio o músico
tenta imitar artistas reconhecidos e ainda não pode criar nem interpretar
nada novo.
• Estágio 2: Nesse estágio o músico ainda é dependente de seu ambiente de
formação, mas já é capaz de elaborar pequenas melodias. Como exemplo,
o autor cita uma prática da Pérsia conhecida como javãb‐e avãz, na qual o
instrumentista improvisa uma resposta a cada frase do cantor.
• Estágio 3: Nesse último estágio o músico tem total autonomia criativa,
sendo que neste terceiro nível o músico é capaz de desenvolver
coerentemente tudo que sua imaginação possa conceber.
(FARÃBI apud BLUM In: RUSSEL, NETTL, 1998, p.33)
Corroborando o trecho acima, concordamos que a improvisação é uma
atividade que exige uma grande habilidade do músico e, ao mesmo tempo, essa
habilidade pode reconectar este músico a um processo que requer um grande
estado de imersão e desejo. Rogério Luiz Moraes Costa, músico especializado em
improvisação livre, em sua tese O Músico enquanto meio e os territórios da livre
improvisação, cita este desejo como grande propulsor da improvisação. Para
Costa o “engajamento efetivo e afetivo” possibilita a ação do instrumentista, que
deve estar imerso no desejo (COSTA, 2003, p.83). Estendemos esta ideia de Costa
para a prática da improvisação como um todo, acreditando que a improvisação
plena deve incluir o saber, o pensar e o deixar‐se levar pelo desejo, guiado por
uma grande potência criativa. Defendemos ainda que a improvisação reflete um
grande estado de atenção, de escuta e de interação do instrumentista, esteja ele
improvisando individualmente ou em grupo.
Finalizando nossa introdução, vejamos os dois tipos mais frequentes de
improvisação encontrados:
• Improvisação interpretativa 1 : nesse tipo de improvisação, o
instrumentista cria pequenas variações a partir de um tema pré‐existente.
Como exemplo deste tipo de improvisação podemos citar os formatos de
improvisação onde os intérpretes não criam temas novos, mas utilizam a
improvisação para “personalizar” sua interpretação de um tema.
• Improvisação criativa: nesse caso, o performer cria algo novo, mas há
algumas gradações desse formato, considerando que estas criações são
realizadas a partir de um vocabulário musical pré‐existente (incluindo a
improvisação a partir de escalas e materiais rítmicos). Nesse sentido, na
música não ocidental, a improvisação mais próxima de criar algo
totalmente desvinculado de um material prévio, mais ligado à essência
sonora, é o estágio inicial do raga, chamado alapa. Ainda assim, o objetivo
da alapa é estabelecer uma configuração escalar para seguir a
improvisação dentro de uma configuração melódica e de um padrão
rítmico. Podemos também citar a improvisação criativa a partir de
ostinatos rítmicos, ou rítmico‐melódicos. Nesse tipo de improvisação
temos uma estrutura fixa, em geral sustentada por um ou mais
instrumentistas, enquanto outro instrumentista ou cantor improvisa
criativamente. Como último exemplo de improvisação criativa citamos o
formato conhecido por canto responsorial, encontrado em regiões da
África e em outras práticas, como a capoeira encontrada no Brasil2. No
canto responsorial, um único cantor cria temas melódicos e um grande
grupo repete suas criações, em geral acompanhado por instrumentos de
percussão.
1
Os termos utilizados aqui são adaptações dos termos utilizados no estudo feito por Ali Jihad Racy, em
seu texto sobre a improvisação na música árabe. (RACY In: RUSSEL, NETTL, 1998)
2
Ressaltando que o canto responsorial pode ser encontrado desde a Idade Média nos cantos
gregorianos, sendo tal formato (no qual um cantor canta e o coro responde) chamado de responsório.
2. Materiais de improvisação
Como vimos na introdução, há várias maneiras de se pensar na
improvisação, sendo que tal prática pode representar um momento máximo de
expressão na vida de um músico em diversos gêneros musicais. Em nossa
apostila, vamos tratar de materiais básicos de improvisação, mostrando escalas e
caminhos que podemos percorrer para iniciar essa prática dentro de contextos
harmônicos encontrados em temas de jazz, música brasileira e outros. Mas não
vamos esquecer que a improvisação é muito mais do que isso. Nossa apostila é
apenas um convite para alguns caminhos possíveis de improvisação, para que
cada um depois busque seu próprio caminho e encontre sua voz, na sua mais
pura expressão.
2.1. Improvisação a partir da cadência II‐V‐I, transposição melódica
Um dos movimentos harmônicos mais comuns encontrados tanto na
música erudita quanto na popular é a cadência do tipo IV‐V‐I (chamada de
cadência perfeita) ou II‐V‐I (a versão da mesma cadência com tétrades, mais
comum na música popular e jazzística). Para improvisar sobre esta cadência,
podemos utilizar uma única escala, a escala do I, ou do primeiro grau.
Vejamos na música Tune Up, de Miles Davis, formada apenas por
cadências II‐V‐I, as escalas que podemos utilizar:
Fig.1‐ Escalas de improvisação em Tune Up
Vejamos a seguir um exemplo de como utilizar essas escalas, criando uma
única frase ou motivo e transpondo esse motivo para os tons principais das
cadências II‐V‐I de Tune Up (o que chamamos de transposição melódica):
Fig.2‐ Exemplo de improvisação a partir da transposição melódica
de pequenos motivos em Tune Up
2.2. Improvisação a partir da modalização do pentacorde
Uma outra forma de utilizar escalas para a improvisação é tendo por base
apenas um tom em toda a música como notas diferencias de cada acorde. Isso é
possível quando a música apresenta dominantes secundárias (acordes
dominantes de algum grau do campo harmônico principal). Vejamos um exemplo
da utilização dessas notas diferenciais dentro do pentacorde (apenas as
primeiras cinco notas da escala) na música All of Me:
Fig.3‐ Notas diferencias dentro do pentacorde em Dó no tema All of Me
Uma maneira de utilizar esses pentacordes na improvisação é pela
modalização de pequenos motivos, ou seja, utilizo as mesmas notas, mas mudo
as notas diferencias, muitas vezes citando algum modo (como o modo Lídio, se
utilizo o pentacorde de Dó com o fá#):
Fig.4‐ Modalização por notas diferencias de pequenos motivos na música All of Me
2.3. Improvisação a partir das terças dos acordes com notas de passagem
Outra forma de se pensar na improvisação é criando movimentos
melódicos a partir das terças de cada acorde da música. Essa é uma maneira
simples e pode ser utilizada com qualquer música. Vejamos um trecho da
harmonia de Samba de uma nota só, mostrando primeiro as terças de cada
acorde:
Fig.5‐ Terças dos acordes de Samba de uma nota só
Vejamos agora, nesse mesmo tema, a construção de pequenos motivos ou
melodias utilizando notas de passagem entre essas terças:
Fig.6‐Motivos construídos a partir das terças dos acordes, Samba de Uma nota só
2.4.Improvisação na forma blues
Seguindo nossos estudos, vejamos como improvisar dentro da Forma
Blues. Uma das primeiras maneiras de se pensar no material de improvisação
nesse gênero, é improvisar em toda a música utilizando apenas a escala blues do
primeiro grau da música. Como exemplo, citamos o tema All Blues, de Miles
Davis, trabalhada em aula. O tema é um blues em Sol, sendo que a escala blues de
sol é: sol, sib, do, do#, re, fa, sol (1, 3m, 4, 4#, 5, 7m). A partir dessa escala
podemos criar vários motivos melódicos e improvisar em toda a música. Com tal
raciocínio podemos improvisar em várias músicas deste gênero.
2.5.Improvisação a partir da cadência II‐V‐I menor (escala menor
harmônica)
Assim como podemos improvisar a partir da escala do primeiro grau na
progressão II‐V‐I, podemos também improvisar a partir da escala do primeiro
grau na progressão II‐V‐I menor. Neste caso, utilizaremos a escala menor
harmônica do primeiro grau, como vemos no exemplo:
Fig.7‐ Escala para improvisação na progressão II‐V‐I menor
2.6.Variações modais a partir da cadência II‐V‐I (modo jônio, mix 4#, lídio)
Quando estamos dominando bem os primeiros materiais de improvisação
(todos os anteriores), podemos começar a pensar nas tensões possíveis para
cada acorde, que são notas que dão um colorido a mais para a improvisação.
Um começo para esse pensamento é dentro da progressão II‐V‐I,
utilizando algumas extensões modais (modo lídio e mixolídio, por exemplo):
Fig.8‐ Escalas modais dentro da progressão II‐V‐I (tensões possíveis)
Vejamos agora alguns motivos que podemos criar a partir destas mesmas
escalas, que podemos utilizar na improvisação sob a cadência II‐V‐I, note que,
neste caso, estamos trabalhando com transposições melódicas (mudando as notas
de partida, o centro tonal, mas mantendo os mesmos intervalos):
Fig.9‐ Motivos criados a partir das escalas que contém tensões dos acorde (modos)
2.7. Exemplos de improvisação em cadências modais
(Trilhos Urbanos, Take Five)
Uma outra forma de improvisar sob cadências, é observar as cadências
modais (em geral uma cadência de dois acordes que fica se repetindo durante
uma parte da música, observando que resumiremos estas cadências no final da
apostila). Reconhecido o modo ao qual esta cadência pertence, podemos criar
motivos a partir deste modo. Vejamos um exemplo na música Trilhos Urbanos, de
Caetano Veloso, que possui uma cadência no modo lídio e uma pequena cadência
no modo frígio:
Fig.10‐ Escalas modais (pentacorde) sob a harmonia de Trilhos Urbanos
Vejamos também como criar alguns motivos em cima dessas escalas, a
partir da modalização (mantendo a mesma nota de partida) dessas
escalas/pentacordes:
Fig.11‐ Modalizações feitas a partir das escalas formadas sob a harmonia de Trilhos Urbanos
2.8. Escalas de improvisação para acordes dominantes
Os acordes dominantes (M7) são os que mais dão espaço para tensões ou
coloridos na improvisação, isso a partir de notas como b9, 9#, 11#, 13 e b13. A
partir destas tensões podemos construir mais escalas. Essa escalas podem ser
usadas apenas em acordes dominantes, como vemos no exemplo:
Fig.12‐ Escalas que podem ser utilizadas com acordes dominantes
2.9. Improvisação a partir das tríades de extensão dos acordes
Como desdobramento dessa ideia de coloridos a partir das tensões dos
acordes, temos também as tríades formadas na camada superior dos acordes,
também conhecidas por tríades de extensão. É interessante usar essas tríades
como complemento dos acordes, mas também podemos utilizá‐las como material
de improvisação. Vejamos as tríades de extensão dentro de uma progressão
conhecida por Turn Around (um tipo de progressão que pode ser repetida várias
vezes, sendo que existem vários tipos de cadências deste tipo com diferentes
acordes). Note ainda que, no acorde menor a tríade de extensão é um tom abaixo
dele, e, nos acordes maiores, um tom acima:
Fig.13‐ Tríades de extensão da cadência II‐V‐I‐V/II (turn around)
Veja a seguir, motivos feitos a partir desses acordes e que podem ser
utilizados como material de improvisação:
Fig.14‐ Motivos formados a partir das tríades de extensão da cadência II‐V‐I‐V/II (turn around)
2.9. Cadências Modais/resumo
Para terminar nossa apostila, resumiremos a seguir as cadências modais
mais comuns, partindo do princípio que, para caracterizar um modo, preciso do
acorde do I grau, seguido de um acorde que mostre a nota diferencial do modo.
Por exemplo: no modo lídio, que é um modo maior com 4#, preciso de seu
primeiro grau, mais um acorde que contenha a 4#. Em Dó lídio, posso utilizar o C
e o D (que tem o fá#), ou seja, I e II.
Segue então um resumo dessas cadências, na sequência lídio‐cromática
(de maiores para menores, ou mais abertos para mais fechados, sempre com
uma nota que muda entre um modo e outro, descendo ½ tom):
Cadência Modais
Modo Lídio (M com 4#): I‐II
Modo Jônio (Maior): I‐IV
Modo Mixolídio (Maior com 7m): I‐VII
Modo Dórico (Menor com 6M, ou mixo menor): Im‐IV
Modo Eólio (Menor Natural, 3m, 6m, 7m): Im‐IVm
Modo Frígio (Menor com 2m): Im‐IIb
(obs: o modo lócrio não costuma ser utilizado em cadências modais, mas a escala
com sua alteração, o super lócrio, ou escala alterada, é bastante utilizada como
material de improvisação, especialmente no jazz)
BIBLIOGRAFIA:
BAILEY, Derek. Improvisation, its nature and practice in music. England: Da Capo
Press, 1993.
COSTA, Rogério Luiz Moraes. O músico enquanto meio e os territórios da livre
improvisação, tese de doutorado apresentada à Pontíficia Universidade Católica
de São Paulo, São Paulo, orientador Prof. Dr. Sílvio Ferraz, 2003.
FRIDMAN, Ana Luisa. Diálogos com a música de culturas não ocidentais, tese de
doutorado apresentada ao Departamento de Música da Universidade de São
Paulo, USP‐São Paulo, orientador Prof. Dr. Rogério Luiz Moraes Costa, 2013
NETTL, Bruno e RUSSEL, Melinda (org.). In the course of performance: studies in
the world of musical improvisation, London: The university of Chicago.