Sílvia Marisa Dos Santos Almeida Cunha: Un Chant Novel: A Inspiração (Neo) Trovadoresca Na
Sílvia Marisa Dos Santos Almeida Cunha: Un Chant Novel: A Inspiração (Neo) Trovadoresca Na
Sílvia Marisa Dos Santos Almeida Cunha: Un Chant Novel: A Inspiração (Neo) Trovadoresca Na
2008
ÍNDICE
Índice ……………………………………………………………………………… 1
1. Preâmbulo….…………………………………………………………………… 2
1
Preâmbulo
1.Preâmbulo
Apesar das objecções que esta teoria possa levantar, o que queremos realçar é a
evidência de que, na história literária, é frequente a recuperação de tradições anteriores
e de que esta recuperação visa, não a sua reprodução ou simples imitação, mas a sua
2
Preâmbulo
3
A matriz neotrovadoresca na poesia portuguesa contemporânea
4
A matriz neotrovadoresca na poesia portuguesa contemporânea
5
A matriz neotrovadoresca na poesia portuguesa contemporânea
[…]
[…]
[…]
6
A matriz neotrovadoresca na poesia portuguesa contemporânea
[…]
- Ai de ti! ai de ti! ó figueiral gemente!
O goivo é mais feliz, todo amarelo, lá.
Ninguém te quer: tua madeira é unicamente
Utilizada para as forcas, onde as há…
[…]
[…]
[…]
[…]
[…]
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A matriz neotrovadoresca na poesia portuguesa contemporânea
[…]
[…]
[…]
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A matriz neotrovadoresca na poesia portuguesa contemporânea
1
No caso galego, podemos distinguir duas fases na manifestação neotrovadoresca: numa primeira etapa,
anterior a 1936, surgem os primeiros poemas, onde visivelmente se recupera a tradição dos cancioneiros,
como o «Poemeto da Vida» de Johán Vicente Viqueira, considerado o poema inaugural do
neotrovadorismo, enquanto não se conheciam os «Cantares d’Amigo» de Carles Riba (que vieram a
público 76 anos depois da sua composição, em 1911); uma segunda etapa inicia-se no período do pós-
guerra e prolonga-se até aos anos 50. O neotrovadorismo nasce intimamente relacionado com o espírito
nacionalista dos anos 20, cujo órgão difusor era constituído pela revista Nós, dirigida por Vicente Risco.
Esta revista foi um meio de divulgação do neotrovadorismo no caso galego. Cf. López, 1997: 22-23.
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A matriz neotrovadoresca na poesia portuguesa contemporânea
2.2 Contributo para uma tipologia dos usos e funções do intertexto trovadoresco no
discurso poético contemporâneo
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A matriz neotrovadoresca na poesia portuguesa contemporânea
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A matriz neotrovadoresca na poesia portuguesa contemporânea
2
Como refere Tavani, a amiga enamorada que detém a enunciação na cantiga de amigo medieval é
“quase sempre uma rapariga, uma «dona virgo» aparentemente simples e ingénua, mas com efeito
maliciosamente consciente da sua feminilidade”, sendo que as excepções da enunciação cabem à mãe, à
natureza ou às amigas. (Tavani, 2002:191)
3
Nas cantigas de amigo, é frequente o recurso a uma estrutura dialógica, onde podemos encontrar
diversos interlocutores:
Enquanto o «poeta» da cantiga d’amor instaura um confronto verbal quase exclusivo com a
senhor, a mulher da cantiga d’amigo entra, directa ou indirectamente, em contacto não só com
o amigo mas com outras personagens – elementos da natureza […] ou seres humanos, às
vezes simples comparsas ou figuras simbólicas sem autonomia operativa, mas frequentemente
autênticos deuteragonistas qua condicionam positiva ou negativamente, a atitude da
protagonista […]. (ibidem:191)
4
Tavani aponta para a cantiga de amigo cinco campos sémicos, dos quais um é secundário. Assim os
campos sémicos principais são o «panegírico», a «concórdia de amor», o «amor não correspondido» e o
campo da «proibição»; o campo sémico secundário é o da «paisagem» (ibidem:204,205).
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A matriz neotrovadoresca na poesia portuguesa contemporânea
campo sémico primário desta composição é o «amor não correspondido», explícito nas
expressões “triste namorado”, “teu bem […] de ti separado” e ao longo de toda a última
cobla que revela o egocentrismo e a indiferença da amiga relativamente aos devaneios
românticos do amado. Assim, como vemos, este poema é um exemplo quase perfeito de
uma cantiga de amigo, onde apenas a enunciação masculina e a desilusão amorosa com
a amiga denunciam a sua contemporaneidade.
O «Poema ao Cuidado» de Maria Teresa Horta, por seu turno, revela múltiplas
afinidades com a cantiga de amor:
Cuidado de mal amado
meu mal
de mal cuidado
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Para a cantiga de amor, Tavani aponta quatro campos sémicos: dois secundários – o «elogio da dama» e
o «amor do poeta por ela» e dois campos sémicos principais – a «reserva da dama» e «pena por um amor
não correspondido» (Tavani, 2002:162).
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A matriz neotrovadoresca na poesia portuguesa contemporânea
Assim sendo, este cancioneiro é composto por oito poemas, que oscilam entre a
cantiga de escárnio e maldizer e o sirventês político, em torno de uma figura central –
Marcelo Rebelo de Sousa –, à semelhança dos ciclos temáticos da sátira galego-
portuguesa. No poema “O fado do coveiro”, comenta-se a apresentação e campanha de
Marcelo:
Das artes mágicas campeão audaz
tira Marcelo da manga a outra faceta:
por su dama Lisboa, o Galaaz
faz à viela e ginga à lisboeta.
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A matriz neotrovadoresca na poesia portuguesa contemporânea
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Nas cantigas de escárnio e maldizer, podem encontrar-se quatro campos sémicos principais (o «ultraje»,
o campo «alimentar», a «polémica social» e o «obsceno») e um secundário (o «ethos trovadoresco») e
ainda outros campos importados de outros géneros (a «coita d’amor», a «descriptio», a «paisagem»).
(Tavani, 2002:251)
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A matriz neotrovadoresca na poesia portuguesa contemporânea
verde pino” ou “flores do verde ramo”-, ora como sinédoque da nacionalidade e da alma
lusa, ora como símbolo erótico por excelência, até em razão dos muitos amores
imputados a este rei.
Uma das muitas composições que recorrem a esta expressão pertence a Maria
Manuela Couto Viana e é denominada “Princípio”:
Ensina-me a dizer palavras claras,
sem nomes falsos, repetidos, lentos…
Ensina-me a chamar às coisas o seu nome,
seu nome verdadeiro.
Ensina-me a compor o poema derradeiro
De minha sede e minha fome.
Nesta composição, onde o sujeito poético pede auxílio para encontrar o seu
verdadeiro ser, a verdadeira essência da vida, a sua paz interior e a serenidade, usa as
“flores do verde ramo” como metaforização destes seus anseios. Estas “flores do verde
ramo”, inteligíveis apenas pelos que conhecem o intertexto dionisíaco, são a
recompensa pelo aprendizado ontológico a que o sujeito poético se submete, num
perseverante itinerário de aperfeiçoamento.
Muitas vezes, as referências intratextuais vão além de uma expressão, podendo
constituir um ou dois versos no corpo de texto, ou mesmo o refrão do poema. É o que
acontece no poema de Ary dos Santos, “Cantiga de Amigo”, que, como o próprio nome
indicia, se inspira no cancioneiro de amigo:
Nem um poema nem um verso nem um canto
tudo raso de ausência tudo liso de espanto
e nem Camões Virgílio Shelley Dante
- o meu amigo está longe
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A matriz neotrovadoresca na poesia portuguesa contemporânea
e a distância é bastante.
Ferocidade ou fuzil.
Não nos farão mais querelas
Que os soldadinhos de Abril
Com cravos domando as feras
Trazem flores em vez de balas
Para libertar as belas.
[…]
(Correia, 2000:629)
Como podemos verificar, comparecem no texto várias referências ao universo da
cantiga de amigo: a paisagem bucólica (“Pelos campos primaveris/Radiosos de aves e
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A matriz neotrovadoresca na poesia portuguesa contemporânea
ervas”) e a espera das amigas – “as belas” – que acendem velas pelo retorno dos seus
enamorados. Porém, são inseridos elementos que modernizam anacronicamente este
universo – “soldadinhos gentis”, “as balas”, “soldadinhos de Abril” e “cravos domando
as feras” – lexemas-chave que reconduzem a um momento específico da história
contemporânea de Portugal, o 25 de Abril de 1974. Esta fusão paratáctica de dois
momentos distintos e distantes da história compõe um cenário surrealizante, baseado na
revisitação subversora e disruptiva da História.
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A matriz neotrovadoresca na poesia portuguesa contemporânea
Ninguém o quer
Cheira a esqueleto e suor.
Pobre mulher
de todas as ruas,
que andas a vender?
Carne de calafrio?
Ninguém a quer
Cheira a poço frio.
Pobre mulher
de todas as garras,
que andas a vender?
A tua solidão?
Ninguém a quer
Trazemo-la no coração.
Pobre mulher
de todas as esquinas,
já sem carne nova
como as outras meninas…
Ninguém te quer!
Ninguém te quer!
Cheiras a terra.
Cheiras a silêncio.
Cheiras a cova.
(Ferreira, 1975:214,215)
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A matriz neotrovadoresca na poesia portuguesa contemporânea
José Gomes Ferreira retrata, com a sua peculiar sensibilidade realista e com a
sua indagação poética de cariz socializante, o drama humano de uma pobre prostituta
que nada tem que ver com a donzela das cantigas de amigo, cujos lamentos se prendem
apenas pela ausência do amigo ou a falta de novas da sua parte. No entanto, é curioso
como Gomes Ferreira verte um quadro hiper-realista e mesmo sórdido numa estrutura
simples de quadras, intercaladas com dísticos acompanhados de refrão. O paralelismo é
evidente de estrofe para estrofe, uma vez que as quadras repetem o mesmo conteúdo
lexical com pequenas modificações. Assim, a estrutura paralelística, o dobre e a
apóstrofe de dois versos no início de cada quadra, conferem um andamento quase
folclórico à composição, rematada por um terceto, em jeito de finda trovadoresca. Toda
esta estrutura evoca, na nossa memória literária, a cadência e sonoridade das cantigas de
amigo e, não fosse a diferença abismal que separa a “pobre mulher de todas as
esquinas” da amiga eufórica e voluntariosamente apaixonada, suporíamos que era desta
última que o poema tratava. Assim, José Gomes Ferreira aliou a estrutura formal de
ressonâncias popularizantes do cancioneiro medieval a um conteúdo muito distinto,
dramaticamente lúcido e realista, explorando um premeditado efeito de clivagem entre
tema e forma.
Como podemos verificar, esta tipologia aqui avançada permite-nos alargar os
horizontes do exercício poético neotrovadoresco, uma vez que contempla a forma e o
conteúdo separadamente e, por sua vez, aglomera o uso de símbolos e referências dos
cancioneiros de uma forma global, não estabelecendo qualquer distinção no que respeita
ao seu uso, o que constituiria uma fecunda senda de investigação futura, assente na
definição de uma tipologia distinta, mais centrada na intenção da recuperação lírica
trovadoresca.
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A matriz neotrovadoresca na poesia portuguesa contemporânea
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Como é evidente, não pretendemos aqui fazer uma análise exaustiva das correntes literárias do século
XX, que claramente exorbita o âmbito deste estudo sobre o neotrovadorismo; pretendemos apenas
evidenciar como alguns poetas e algumas correntes estético-literárias reactivaram o repertório de temas e
motivos trovadorescos medievais. Mesmo em relação a estes “neotrovadores”, convém realçar que não
são os únicos, mas apenas alguns dos mais representativos cultores do legado cancioneiril, uma vez que
este estudo centrar-se-á, num segundo momento, na obra de Jorge de Sena.
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A matriz neotrovadoresca na poesia portuguesa contemporânea
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Num manisfesto elaborado por Teixeira de Pascoes, publicado em A Vida Portuguesa, nº22, de 10 de
Fevereiro de 1914, o autor explicita os objectivos da Renascença Portuguesa, evidenciando o valor da
Idade Média neste renascimento:
A Renascença Lusitana é uma associação de indivíduos cheios de esperança e fé na nossa
Raça, na sua originalidade profunda, no seu poder criador de uma nova civilização. […] O
fim da Renascença Lusitana é combater as forças contrárias ao nosso carácter étnico, inimigas
da nossa autonomia espiritual e provocar, por todos os meios de que se serve a inteligência
humana, o aparecimento de novas forças morais orientadoras e educadoras do povo, que
sejam essencialmente lusitanas, para que a alma deste bela Raça ressurja com as qualidades
que lhe pertencem por nascimento, as quais, nas Idade Média, lhe revelaram os segredos dos
mares, de novas constelações e novas terras […] (apud Guimarães, 1988:61, 62)
9
Como refere Paulo Alexandre Pereira, a propósito da insistência de Pascoaes na figura de D. Dinis como
pater da expressão lírica portuguesa:
O anacronismo grosseiro, que consiste em considerar D.Dinis o iniciador de uma tradição
lírica, quando, por exemplo, já na periodização metafórica gizada por Carolina Michaëlis em
1904, constante do apêndice crítico à sua edição do Cancioneiro da Ajuda, a romanista faz
corresponder o período dionisíaco à tarde da época trovadoresca, é o preço a pagar pela
necessidade de exemplaridade. (Pereira, 2005:264)
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A matriz neotrovadoresca na poesia portuguesa contemporânea
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Como refere Cristina Nobre, “para além de legitimar estas ideias teóricas do escritor, o saudosismo
vem, simultaneamente, instituir-se como corrente literária autónoma que se servirá da produção poética
do escritor [Lopes Vieira] como exemplo acabado de poesia saudosista” (Nobre, 2005:251)
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A matriz neotrovadoresca na poesia portuguesa contemporânea
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Afonso Lopes Vieira compôs inúmeros poemas, onde a inspiração trovadoresca predomina; outros
exemplos são (e os títulos são já sintomáticos): “Flores do Verde Pinho”, “Pinhal do Rei”, “As barcas”,
“Cantar”, etc.
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A matriz neotrovadoresca na poesia portuguesa contemporânea
A terra é graciosa
Cá mesmo na prisão, descalço e nu,
Na derrota dos anos.
- Cantar velho, Maria,
Com tanta flor de hastes erectas
Toucando o verde prado?
(Duarte, 1974:139)
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A matriz neotrovadoresca na poesia portuguesa contemporânea
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O Integralismo Lusitano foi um movimento muito próximo do ideário da Renascença Portuguesa, mas
que se empenhou mais na acção política de feição radical. Como refere Leão Ramos Ascensão, “Para o
Integralismo, a Nação é uma grande família perpetuada no tempo pela comunhão de afectos, de
sofrimentos e alegrias, de dores e de esperanças, na comovida lembrança dos Mortos e na ânsia de
transmitir aos vindouros, engrandecida, a herança dos Antepassados”. (Ascensão, 1943:67)
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A matriz neotrovadoresca na poesia portuguesa contemporânea
Deste modo, não é de admirar que o próprio Fernando Pessoa não fique
indiferente à tradição lírica trovadoresca. No poema “D. Dinis” de Mensagem, Pessoa
realça o papel de Poeta visionário do monarca português, o que Camões na sua epopeia
parece esquecer nas três estrofes que dedica à sua memória, no Canto III. Assim, Pessoa
destaca que o “plantador de naus a haver” ocupa as suas noites a escrever “um seu
Cantar de Amigo”, enquanto escuta “o rumor dos pinhais”, lembrando-nos das suas
caras “flores de verde pino” e conferindo a este seu “cantar, jovem e puro” um tom
premonitório e até profético do áureo futuro que se avizinhava, assim o projectado numa
dimensão tópica (Pessoa, 2000: 24). Pessoa evoca então a figura de D. Dinis “como
trovador […] e como rei […], sob ambas as facetas de semeador afortunadíssimo de
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A matriz neotrovadoresca na poesia portuguesa contemporânea
Quem mo deu,
- Partiu!...
Deixou-me na agrura
Interminável e fria
De ter de o guardar
Como único recurso
De poder viver ainda…
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A matriz neotrovadoresca na poesia portuguesa contemporânea
Em 1927, surge em Coimbra uma folha de arte e crítica que marcou o panorama
cultural português – presença – que servirá para denominar um cenáculo mais ou menos
definido de escritores, uma segunda geração modernista, na qual se incluem nomes
como José Régio, Gaspar Simões, Branquinho de Fonseca, Edmundo de Bettencourt,
etc. Os presencistas advogam, sobretudo, uma literatura viva e livre das convenções
académicas ou livrescas, o valor do indivíduo e a singularidade da criação artística
como tradução do caso vital do artista. (Lopes e Saraiva, 1996:1012) José Régio, a
personalidade da presença que encontrou mais pronto acolhimento entre o público,
salienta, na sua obra, que
não vê qualquer possibilidade de síntese real, ou sequer de satisfatória comunicação
humana, para as contradições psicológicas, e que se conjuga com profunda crítica da
conveniência humana aparentemente mais intima (o amor, a amizade, a
camaradagem intelectual) e com uma ânsia de graça divina. (ibidem: 1013)
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A matriz neotrovadoresca na poesia portuguesa contemporânea
13
A aproximação é apenas temática, uma vez que dela se distancia no plano formal, pois a bailia é um
“xénero determinado pola forma, pudendo ser pólo contido, de amor, de amigo ou de
escárnio. Os requisitos formais que configuram o xénero son: a) a existencia dun refrán,
constutuido por un dístico que ocupa os dous últimos versos de cada estrofe; b) esse refrán `,
ademais, intercalar, existindo unha reduplicación no refrán que afecta ó primeiro verso do
refrán, que reaparecerá no segundo verso do corpo da cobra (esquema a A’ ab A’b), ou bem
ós dous versos do refrán, que reaparecerán no primeiro e terceiro verso do corpo de estrofe;
c) pode existir um distro inicial ó refrán, do que só temos un exemplo (18,27) que posúe
idêntico esquema ó ultimo dos casos anteriores”. (Brea, 1996:31)
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A matriz neotrovadoresca na poesia portuguesa contemporânea
“Deus me perdoe” da donzela por assim se expor aos olhos masculinos, sendo o
feminino conotado com o caminho para o pecado, o que não acontece na atmosfera
vitalista e essencialmente amoral da lírica medieval. A contradição sugerida nos últimos
três versos também é corroborada pelo papel da natureza: os elementos naturais nas
bailias já referidas eram adjuvantes e aqui, em Régio, o rio é o oponente, “cruel com nós
ambos”.
Deste modo, verificamos como Régio, articulando a sensualidade sugerida pelo
intertexto trovadoresco com os mitos obsessivos do autor, insinua as tópicas antinomias
presencistas e os dramas intemporais do homem: o Amor e as sempiternas dualidades
bem /mal e pecado/virtude.
Pedro Homem de Mello, que manteve relações de afinidade estética com o grupo
de presença, é um poeta singular:
autor de uma obra poética extensa, onde uma expressão metafórica elaborada se
concilia com a tradição popular, o dramatismo com uma desperta sensualidade, o
paganismo com uma formação assumidamente católica, a consciência sensível do
corpo, por vezes entrevisto eroticamente, com os valores éticos e religiosos
(Guimarães,1996:308)
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A matriz neotrovadoresca na poesia portuguesa contemporânea
O rosto de Portugal!
(Mello, 1983:122)
Na segunda metade dos anos 30, começa a esboçar-se uma nova tendência
literária – o Neo-Realismo14 - que vai materializar-se na publicação de colectâneas de
14
Carlos Reis faz o seguinte comentário, relativamente à adopção do termo “neo-realismo”:
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A matriz neotrovadoresca na poesia portuguesa contemporânea
poesia denominadas Novos Prosadores e Novo Cancioneiro. Alguns dos seus principais
colaboradores foram João José Cochofel, Manuel da Fonseca, Fernando Namora, José
Gomes Ferreira, entre outros.
No plano doutrinário, o Neo-Realismo acentuava, sobretudo, a defesa do real
como parte integrante do fenómeno literário e a responsabilidade que o poeta/autor tem
nesta relação, na negação do ludismo poético autotélico e no acérrimo empenhamento
em problemas sociais. No entanto, como sublinha Eduardo Lourenço, “a verdadeira
novidade formal da primeira vaga neo-realista deve ver-se antes no reaproveitamento de
formas clássicas, particularmente dos Cancioneiros, de Gil Vicente e Camões.”
(Lourenço, 2007:28) Assim, o poeta, partindo do património literário canonizado pela
tradição, apreende e apresenta o real, tornando-o socialmente útil e pragmático.15
Manuel da Fonseca foi dos poetas que militaram nas fileiras deste movimento.
Entre outros temas, privilegia o isolamento social do Alentejo, a denúncia e reparação
das injustiças. No entanto, não ficou também indiferente às potencialidades expressivas
e ideológicas da lírica medieval. No seu poema “Saibam todos em Montemaior”, que
inscreve palimpsesticamente a cantiga de amor de D. Gil Sanches, “Tu, que ora vees de
Monte-mayor” (Brea, 1996:357), podemos verificar isso mesmo. Ora, na cantiga
trovadoresca, Monte Maior referir-se-á a Montemor, nos arredores de Coimbra, pelo
que a composição datará do início do século XIII, uma vez que terá sido produzida no
ano do cerco de Montemor (1213). Porém, nesta cantiga de amor, o sujeito poético
começa por pedir notícias de ‘sua senhor’ («Tu, que vens de Monte-Maior / digas-me
mandado mia senhor»), uma vez que esta se encontra provavelmente em Montemor e a
cidade estava cercada. No entanto, o seu lamento justifica-se, sobretudo, por não ver o
seu amor correspondido. No poema “Saibam todos em Montemaior”, de Manuel da
Fonseca, a situação é bem diferente:
Tu que vens agora de Montemaior
A designação neo-realismo não é, contudo, pacífica: à primeira vista, ela representa uma
revivescência do realismo oitocentista, equívoco contra o qual sempre se bateram os
principais autores do movimento […], uma vez que a suposta vinculação oitocentista do neo-
realismo obliterava tanto os fundamentos ideológicos como as motivações político-culturais
da literatura neo-realista. Por isso mesmo, outras designações chegaram a ser tentadas: por
exemplo, realismo sociológico, realismo humanista ou novo humanismo. (Reis, 1996:530)
Como refere João José Cochofel, no seu artigo «Poesia», in Vértice 108 (pp 449-450):
15
o poeta que for tentado a exprimir inspirando-se na espontaneidade do sentir poético do povo
não poderá ficar-se por um decalque, por um simples glosar dos temas e formas que aquele
cultivou e lhe propõe. Limitar-se-ia assim a refazer o que pelo povo já está feito (e bem feito)
[…]. Tal poeta terá que encarar o folclore como mero material, havendo portanto que elaborá-
lo, que tratá-lo, que dominá-lo, em suma, a fim de torná-lo amplamente expressivo. (apud
Reis, 1981: 227,228)
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A matriz neotrovadoresca na poesia portuguesa contemporânea
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A matriz neotrovadoresca na poesia portuguesa contemporânea
de espalhar o terror
cá e lá em Montemaior.
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A matriz neotrovadoresca na poesia portuguesa contemporânea
Como refere William Myron Davis, aqui, as flores dionisíacas “may represent
the full potentialities of Nature in contrast to the sordid realities of existence […] the
simplicity and wonder of the past.” (Davis, 1969:83) Deste modo, apesar da manhã de
pesadelos, o incipit do poema é constituído pelo verso “ainda há flores”, o que indicia
uma esperança precária para o futuro. Assim, além das “flores do verde pino”, temos
também a esperança de que a “papoila”, à semelhança da amiga donzela, volte a
“enfeitar cabelos”. Como vemos, apesar da distância formal e temática da lírica, a
aproximação é feita de forma subtil e discreta pela introdução de elementos espúrios
procedentes do universo de referência trovadoresca.
Também Fernando Namora pertenceu ao movimento neo-realista, tendo-se mais
tarde distanciado e feito incursões mais livres pela prática literária com preocupações
existencialistas. Embora a sua produção literária maioritária se situe no âmbito da
narrativa, Namora tem, no entanto, uma interessante obra poética reunida em As Frias
Madrugadas. A obra de Namora é muito diversificada e “produto de simultâneos
olhares que (…) de certo modo reflectem uma personalidade simultaneamente atenta,
porque desperta e sensível, e preocupada com os grandes problemas individuais e
colectivos do seu tempo”. (Trigueiros, 1996:331) Em “Poema”, encontramos um
exemplo de reconversão do universo trovadoresco em clave existencialista:
Navio parado no Porto. Navio de longas de eras.
Vento que sopraste suas cordas de caruncho
- ai moiro, ai moiro
que mo trouxeste!
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A matriz neotrovadoresca na poesia portuguesa contemporânea
Tudo burlado:
Vou-me tenebroso como fui nascido.
(Namora, 1959: 66, 67)
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A matriz neotrovadoresca na poesia portuguesa contemporânea
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A matriz neotrovadoresca na poesia portuguesa contemporânea
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Esta carta encontra-se nas Cartas a Eugénio de Andrade, de Luís Cernuda, edição, prólogo e notas de
Angel Crespo, Zaragoza: Olifante 1979; e em Luís Cernuda. Epistolaria 1924-1963, edição de James
Valdender, Madrid: Publicaciones de la Residencia de Estudiantes, 2003
(http://dossiers.publico.pt/noticia.aspx?idCanal=1448&id=1227149)
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A matriz neotrovadoresca na poesia portuguesa contemporânea
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A matriz neotrovadoresca na poesia portuguesa contemporânea
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Natália Correia parece desconsiderar o facto de que a lírica trovadoresca é homossocial, como refere
Paulo Alexandre Pereira:
Natália Correia submete os textos galego-portugueses a um crivo hermenêutico que remete
para a penumbra o facto, sublinhado à saciedade pela crítica mais recente, de que a lírica
trovadoresca é, por definição, essencialmente homossocial, isto é, um assunto de homens,
mesmo quando (e sobretudo se) se fala de mulheres. (Pereira, 2002: 115)
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A matriz neotrovadoresca na poesia portuguesa contemporânea
O poema é constituído por quatro coblas de seis versos, sendo o dístico final
uma espécie de refrão com variação. Verifica-se, ao longo da composição poética, uma
estrutura paralelística, fazendo coincidir a primeira cobla com a terceira e a segunda
com a quarta cobla. Ao nível temático, é perceptível uma espécie de metamorfose do
tema da ausência do amigo que partiu para o fossado18 e a situação comunicativa da
dona virgo que se dirige às amigas. Logo no início da primeira cobla, encontramos um
preâmbulo, característico das cantigas de amigo, que deixa claro o fio argumental da
composição poética: em primeiro lugar, apresenta a localização topográfica – “Nesta
praia” – (aliada a outros lexemas de conotação marinha, como “barcas”, “ondas”,
“águas”, “cais”…), onde a amiga espera o regresso do seu amor, compondo uma
cenografia característica das barcarolas ou marinhas; em segundo lugar, explicita o
modelo enunciativo do poema: a amiga dirige o seu lamento às amigas, que, ao que
parece, padecem do mesmo infortúnio; por fim, ficamos a conhecer ab initio o motivo
da sua “queixa” que é a ausência do amigo, devido à imposição das guerras de cruzada.
É interessante sublinhar que, de estrofe para estrofe, há uma gradatio
actualizadora do motivo da separação dos namorados: na primeira estrofe, os amigos
foram para as cruzadas (… “p’rás cruzadas / Foram matar mouros nossos lidadores”); na
segunda, deixam a terra e as amigas para ir em busca da Índia; na terceira, partem para a
guerra, na tentativa vã de preservar as colónias africanas (“Foram matar pretos pelos
seus senhores”) e, por último, para os conflitos bélicos e para a tecnologia apocalíptica
que colocam ao seu serviço. A amiga, com um tom inequivocamente disfórico,
denuncia assim os sucessivos abandonos, todos eles por motivos destrutivos, mostrando
a submissão do homem a Thánatos (“matar mouros”, “matar pretos”, “ímpias
fornalhas”), génio alado maligno (e masculino) que representa a Morte e a Destruição,
ao passo que se sobreleva o papel feminino que, com os seus cantares, exorta os amigos
a renderem-se aos encantos vitalistas de Eros.
Desta forma, o lamento da donzela enamorada não é mais que o eco de uma dor
intemporal, que se converte no fatum feminino, uma vez que é sempre a mulher
18
É de realçar a originalidade com que Natália Correia actualiza o campo sémico bélico, criando
verdadeiras telas vanguardistas, onde pontifica o contraste violento entre os cenários presentes (o “matar
mouros” nas lides, o “matar pretos” nas Áfricas, o inferno, causado pelas armas que transformam as
cidades em “ímpias fornalhas”) com os cenários idílicos convencionais, característicos das cantigas
trovadorescas.
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A matriz neotrovadoresca na poesia portuguesa contemporânea
abandonada, é sempre a mulher que espera pelo amigo, é sempre a mulher a ser deixada
na mais infecunda expectativa. A flutuação fraseológica do refrão reflecte exactamente
o facto de o tempo passar de forma incoercível, mas de que algo permanece inalterável:
as dores não mudam, mas magnificam-se e perenizam-se.
Assim, esta cantiga de amigo é um exemplo eloquente da mestria com que
Natália Correia recuperou a herança trovadoresca, usando velhos temas e formas para
exprimir novas condições do homem face ao devir da História.
43
A matriz neotrovadoresca na poesia portuguesa contemporânea
Vamos destacar a última estrofe, onde as “flores do pinho” são retomadas, numa
estrutura paralelística, e rematadas por uma interrogação retórica que conclui o poema:
44
A matriz neotrovadoresca na poesia portuguesa contemporânea
De amor cantavam…
(Gama, 1962:21)
45
A matriz neotrovadoresca na poesia portuguesa contemporânea
Ao entrar na roda,
soltou-se-me a liga
E agora há quem diga
que não foi na roda.
Bailada, bailia
que eu já sei bailar.
E agora só queria,
mas não posso amar.
(Botelho, 1989:s.p.)
46
A matriz neotrovadoresca na poesia portuguesa contemporânea
meios académicos que fervilha esta vontade de denunciar uma política tirânica e
opressiva em defesa intransigente da liberdade.19
A cantiga de intervenção constitui-se, portanto, como táctica de luta e acção
políticas por excelência. Num ensaio intitulado “O «canto de intervenção» no combate
ao Estado Novo”, Miguel Cardina refere que o “comprometimento político do cantor – a
fusão entre o horizonte musical e a palavra contestatária – constitui, pois, a sua mais
profunda marca identitária” (Cardina, 2007:2). O ensaísta acrescenta ainda que o “canto
de intervenção resulta de heranças enraizadas na tradição popular portuguesa”, desde os
primórdios das cantigas escarninhas medievais até ao fado (ibidem: 2).
Apesar de esta tendência, que aqui designamos como poesia de intervenção, não
existir enquanto movimento literário autónomo (e, em rigor, com ela possamos
relacionar autores das mais distintas profissões de fé estético-literárias), adoptamos a
proposta terminológica sugerida por Óscar Lopes:
Em termos de poesia de qualidade, não é possível isolar uma tendência de
intervenção política ou de intenção realista, pois ela manifesta-se, e por vezes de
modo bem vivo, em obras de sensibilidade tão diferente como as de Jorge de Sena,
Sophia de Mello Breyner, Alexandre O’Neill […] Vamos no entanto agrupar um
conjunto de poetas cuja fase de consagração se liga a uma clara atitude de polémica
ou de crítica social […] (Lopes e Saraiva, 1996:1069)
19
Miguel Cardina refere que foi, sobretudo, no círculo académico coimbrão que se iniciou, na década de
50, esta produção poética de orientação pragmática cujo alcance se foi ampliando significativamente:
Deste modo, uma geração emergente de jovens, essencialmente oriundos das elites sociais que
podiam aceder ao ensino superior, começava a servir-se da música para expressar pontos de
vista críticos relativamente ao regime. Limitadas, num primeiro momento, a alguns círculos
mais restritos – intelectuais, estudantes, activistas políticos e sindicais – estas canções foram
gradualmente tornando-se num veículo de ideias, recados e manifestos. (Cardina, 2007:4)
47
A matriz neotrovadoresca na poesia portuguesa contemporânea
48
A matriz neotrovadoresca na poesia portuguesa contemporânea
Afecto ao Partido Comunista Português, José Carlos Ary dos Santos foi autor de
várias composições poéticas de explícito teor político e social, de várias letras para
canções militantes e de poesia com um fim interventivo. Ary dos Santos, inclinado para
o verso popular e imbuído de musicalidade, deixa-se também seduzir pelas cantigas
trovadorescas. De entre várias composições que atestam esta inspiração, escolhemos o
singular poema “Catinga de Inimigo”:
Minha senhora da cruz vermelha
crucificada na cruz gamada
trazeis-me novas da minha orelha?
Ai é cortada!
Ai é cavada!
Ui é suada!
(Ary dos Santos, 1984:98)
20
Aliás, o próprio vocábulo “catinga” remete directamente para o contexto colonial, na medida em que é
um lexema usado, em Moçambique, para designar um odor desagradável e nauseante, associado,
sobretudo, ao suor.
49
A matriz neotrovadoresca na poesia portuguesa contemporânea
Assim sendo, e a título ilustrativo, optámos por dois destes cinco autores: Fiama
Hasse Pais Brandão e Maria Teresa Horta.
Fiama Hasse Pais Brandão cria “em cada poema, um tecido muito fino
atravessado por metáforas, analogias, correspondências”, com muita elegância e mestria
(Guimarães, 1996: 77). O poema “Barcas Novas” representa uma composição singular
na obra de Fiama, pois é a única que entra em diálogo intertextual com a lírica
trovadoresca, especificamente com a barcarola de Joan Zorro, “En Lixboa, sobre lo
mar”:
Lisboa tem barcas
agora lavradas de armas.
50
A matriz neotrovadoresca na poesia portuguesa contemporânea
Comigo me desavim
minha senhora
de mim
Comigo me desavim
51
A matriz neotrovadoresca na poesia portuguesa contemporânea
minha senhora
de mim
21
No modelo provençal, os sentimentos expressos são “a transposição amorosa dos sentimentos do
vassalo pelo senhor feudal (admiração, devoção, fidelidade, desejo de ser admitido na sua intimidade).”
(Lanciani e Tavani, 2000:137)
52
A matriz neotrovadoresca na poesia portuguesa contemporânea
53
Jorge de Sena – um Trovador da Modernidade
Os trabalhos e os dias
Jorge de Sena foi uma das personalidades literárias mais relevantes do século
XX. A sua vasta obra abrange um amplo espectro genológico: poesia, ficção narrativa,
crítica literária, diário, correspondência, ensaio, teatro, etc. Aliás, como refere o poema
em epígrafe22, para Sena, escrever consubstancia um acto tão necessário e vital como
“respirar”; daí que a sua produção literária seja tão vasta, multifacetada e diversa. Como
refere José-Augusto França:
Jorge de Sena foi o que fez e pelo que fez: uma obra pantagruélica e
furiosa, de erudição e especulação, de afirmação duma ciência vertiginosamente
22
Sem querer abordar questões como a fronteira entre autor textual e autor empírico, optámos por este
poema, uma vez que ele transmite a concepção seniana da escrita por necessidade ou compulsão, como
um rito catártico e libertador, tantas vezes veiculado em ensaios, missivas e até no seu diário. Este aspecto
prende-se com o próprio título do poema, «Trabalhos e Dias», nome da obra de Hesíodo, poeta grego da
época arcaica, que “enquanto apascentava as suas ovelhas no Hélicon, aproximaram-se dele as Musas
[…] a voz das Musas despertou nele o poeta e […] sentiu-se chamado a cantar as coisas futuras e
passadas. Aqui, um poeta fala-nos da hora em que reconheceu a sua missão.” (Lesky, 1995:116) Também
Sena sente a necessidade de cumprir esta missão e começou “a escrever no começo do mundo”, ou seja,
desde sempre. Um segundo aspecto importante que será destacado adiante é o carácter dialógico da obra
de Sena que reconhece que, por vezes, usa palavras “que vêm lembradas, doutros poemas velhos”,
usando-os como inspiração para a criação de um canto novo e original como é o seu.
54
Jorge de Sena – um Trovador da Modernidade
23
O uso de um pseudónimo prende-se com um problema familiar: Jorge de Sena deveria seguir uma
carreira na Marinha, como o pai, e não enveredar pela carreira literária. Quando o autor assume
definitivamente a sua vontade e vocação, a sua relação familiar degrada-se irremediavelmente.
24
Existem várias obras que abordam este aspecto, mas uma exposição cronológica detalhada sobre a vida
e obra de Jorge de Sena poderá ser encontrada em Carlos, Luís Adriano (1999). Fenomenologia do
Discurso Poético – ensaio sobre Jorge de Sena, Porto: Campo das Letras.
55
Jorge de Sena – um Trovador da Modernidade
25
Este tema é recorrente não só na sua produção poética, mas ecoa em toda a sua obra, como
consequência da sua própria condição de exilado. Este exílio refere-se não só à sua decisão de partir
voluntariamente para o Brasil, em 1959, de onde sairá para viver nos Estados Unidos da América, mas
também ao sentimento de exílio congénito que o persegue, por não se sentir apreciado, acolhido e
reconhecido no seu próprio país. Esta foi, aliás, uma ferida nunca cicatrizada.
56
Jorge de Sena – um Trovador da Modernidade
daquela fúria divina, ou diabólica, que é a mesma, que nele é «um equilíbrio entre o
amor da arte e da investigação e um amor desinteressado, ardente e exigente da
humanidade». (Lourenço, 2002:27)
Como refere Jorge Fazenda Lourenço, para além desta amálgama temática,
encontramos também uma multiplicidade de modos de expressão e influências – “desde
a tradição medieval ao soneto e ao experimentalismo vanguardista”. De facto, uma
característica singularizadora da obra seniana reside na facilidade com que o poeta
recupera nos seus poemas motivos, estilemas, recursos retóricos e formas medievais,
quinhentistas ou vanguardistas, imprimindo-lhes um novo significado, quer pela sua
expansão semântica, quer pela sua subversão, o que sinaliza um saber enciclopédico e
uma portentosa cultura geral. Vamos debruçar-nos um pouco mais sobre o carácter
dialógico da obra seniana, no domínio da sua expressão transhistórica, pois esta
constitui, no fundo, uma das questões centrais deste trabalho.
Em Jorge de Sena, a poesia não é inteiramente livre: firma um compromisso
social, mas também uma responsabilidade histórica e ética do poeta enquanto homem.
Jorge Fazenda Lourenço refere que em Sena:
a poesia não é propriamente uma (idealizada) «liberdade livre» e sim uma
liberdade condicional e condicionada, que livremente se aceita, sabendo-se
perseguição de um destino, sempre adiado, de liberdade. O que significa que, quer
se queira, quer não, todo o poema é a actualização de um poema anterior, com os
seus códigos, literários e sociais, mais ou menos ancestrais, que impõem as suas
condições à transformação ou renovação a que o novo poema se pretende.
(Lourenço, 1998:21)
Como podemos verificar, Sena não se limita a respigar tradições literárias na sua
produção poética de forma linear, estática ou modelar, mas ‘transforma-as’ ou ‘renova-
as’, estatuindo novas formas de expressão e de sentido. É tão frequente o dialogismo
poético seniano que Jorge Fazenda Lourenço chega mesmo a estabelecer uma tipologia
de relações intertextuais de citação explícita (em título, em epígrafe, no corpo de texto)
e de citação não explícita (alusão, glosa livre, paráfrase e variação). (ibidem:280-289) O
dialogismo efectiva-se colocando em paralelo diferentes tradições, desde a nossa lírica
matricial até às tradições universais, como o hai-kai oriental:
na sua obra é patente uma autêntica recriação de toda a poesia, e não apenas
da poesia portuguesa, desde as cantigas de amigo medievais ao «concretismo» deste
século, desde os poemas de escárnio e de mal-dizer até ao monólogo dramático,
desde o soneto ao poema em prosa, desde o romance (ou rimance) ao hai-kai,
conferindo à sua obra poética uma centralidade dialógica ímpar, na medida em que,
na sua variabilidade e versatilidade de formas de expressão e de conteúdo, ela se fez
repositório, registo presentificado e reactualização, de toda uma tradição de
linguagem. (ibidem:273)
57
Jorge de Sena – um Trovador da Modernidade
26
É extensa e diversa a ensaística de Sena de temática camoniana. De entre os vários títulos que a
integram, destacamos: Uma Canção de Camões (1966), que inclui uma análise estrutural de uma tripla
canção de Camões, além de um estudo sobre as canções e odes camonianas em geral; Os Sonetos de
Camões e o Soneto Quinhentista Peninsular (1969); A Estrutura de «Os Lusíadas» e Outros Estudos
Camoneanos e de Poesia Peninsular do Século XVI (1970); «Os Lusíadas» e «Rimas Várias» (introdução
crítica, 1972); Trinta Anos de Camões (1980); Estudos sobre o Vocabulário de «Os Lusíadas» (1982),
além de vários ensaios e textos críticos reunidos em Estudos de Literatura Portuguesa, entre outros.
58
Jorge de Sena – um Trovador da Modernidade
admirava pela prodigiosa patada do seu cavalo no «Sítio» da Nazaré […] (apud
Lourenço, 2002:231, 232)
O Orto do Esposo é uma obra de finais do século XIV ou início do século XV, de autoria desconhecida.
27
Como refere o respectivo verbete incluído no Dicionário da Literatura Medieval Galega e Portuguesa:
O Horto do Esposo é uma compilação, bem estruturada, de histórias e contos tradicionais, à
maneira de exemplos com um certo carácter moral, ascético, e edificante, abarcando os mais
variados assuntos. Para tal, o autor lança mão dos repertórios mais difundidos na Idade Média
como Boécio, Santo Isidoro, Hugo de S. Vítor, Valério Máximo, Cassiodoro, Santo
Agostinho, etc., para lá de abundante utilização da Bíblia. […] O Horto do Esposo é um texto
de feição marcadamente alegorizante. (Ferrero e Peixeiro, 1993:315, 316)
Na obra O Físico Prodigioso, recuperam-se dois exempla desta colectânea: o primeiro refere-se a uma
“senhora de um castelo que receberá cura de uma doença através de sete banhos de sangue, sangue de um
filho de rei que há-de ser muito fermoso, físico (ou seja, médico) e virgem”; o segundo exemplo recupera
o tema medieval do pacto com o Demo: “um homem rico que gosta de beber desperdiça todos os seus
bens numa taberna e vende-se ao diabo quando os seus companheiros se cansam dele e lançam-no do
lugar.” (Sharrer, 1999: 86, 87)
28
Para verificar um elenco exaustivo dos elementos medievais em O Físico Prodigioso, poder-se-á
consultar o artigo «Temas e motivos medievais em O Físico Prodigioso» de Harvey L. Sharrer. (Sharrer,
1999: 87-98)
59
Jorge de Sena – um Trovador da Modernidade
ossos), são também, pela alusão ao macrotexto sagrado, um factor que aproxima a
novela do universo de referência medievalizante. No fundo, esta história que parece
simples e linear, converte-se “numa maravilhosa sagração pagã do amor e da liberdade,
contra toda a espécie de intolerância […].” (ibidem: 51)
Para além da produção ficcional, encontramos, por exemplo, um ensaio
intitulado «Cantigas d’Escarnho e de Mal Dizer», coligido em Estudos da Literatura
Portuguesa I, onde Sena elogia a iniciativa de Manuel Rodrigues Lapa em publicar uma
edição crítica das Cantigas d’ Escarnho e de Mal Dizer dos Cancioneiros Medievais
Galego-Portugueses, há muito votados ao esquecimento e ao preconceito, imputando a
Carolina Michaëlis a responsabilidade de ter expurgado os textos de teor mais
declaradamente obsceno.
Sena recupera assiduamente também formas tardo-medievais como o rimance, a
balada, o rondel e a glosa, de que daremos apenas alguns exemplos. N’O Físico
Prodigioso, encontramos, a par de cantigas de amigo e de escárnio e maldizer (que
adiante analisaremos), dois rimances29: um, no primeiro capítulo, e o outro, no último
(XII). O primeiro, entoado por três donzelas, compositivamente afim de um rimance
tradicional, tem um valor proléptico, na medida em que encerra em si, em termos
simbólicos, todo o enredo e anuncia o desfecho da novela (a morte da donzela, a morte
voluntária do cavaleiro e o nascimento de uma roseira que mirrava a mão que tentasse
profanar o sepulcro):
Ao castelo o cavaleiro
vinha vindo sua via,[…]
Só na torre uma princesa
esperava e gemia.
Prisioneira ali ficara
à espera de quem viria, [,,,]
Mas este de lança erguida
já está na sala sombria.
E pela escada da torre
logo logo ali subia,[…]
Ao cimo, ouvindo seus passos,
a princesa tremia,
e sua lança rebrilhante,
antes de o ver, ela via.
E cega de seu esplendor
aos braços dele corria,
sem cuidar que a lança em riste
já nela se cravaria.
Mortalmente trespassada […]
29
O rimance (romance) é uma composição narrativa em língua vulgar ou «romance», cujos
protagonistas são cavaleiros e, apesar da narrativa de aventuras, aparece frequentemente uma dama que
faz evidenciar o amor e o espírito cortês do cavaleiro. (Mattoso, 1993: 589)
60
Jorge de Sena – um Trovador da Modernidade
61
Jorge de Sena – um Trovador da Modernidade
30
A balada é um “género poético provençal próximo do rondeau francês, ou rondel, que foi cultivado
pelos trovadores da decadência […]” (Beltran, 1993: 78).
O rondel, segundo o Dicionário da Literatura Medieval Galega e Portuguesa:
31
62
Jorge de Sena – um Trovador da Modernidade
Porém, Jorge de Sena compõe também inúmeros textos poéticos que acusam a
sua sedução pelos cancioneiros medievais, mobilizando temas e recursos formais
32
A glosa “parece anunciar-se, todavia, em algumas cantigas paralelísticas galego-portuguesas que se
apresentam como resultado do desenvolvimento de um refrão popular […] e parece ter raízes num
processo de matriz popular” (Simões, 1993:298)
63
Jorge de Sena – um Trovador da Modernidade
característicos da lírica trovadoresca, o que não nos espanta, uma vez que, para além da
forte influência do imaginário medieval na sua obra, o autor, que explorou as diversas
sendas literárias do seu tempo, ainda que sem se vincular a elas, ter-se-á apercebido da
importância da lírica trovadoresca em vários poetas, seus contemporâneos ou
antecessores. Além disso, Jorge de Sena, receptivo a todas as instigações criativas, terá
tomado contacto com as experiências poéticas neotrovadorescas na vizinha Espanha e
no Brasil, onde conviveu com Cecília Meireles33 e Manuel Bandeira34 (a quem chama
de “meu Amigo e Mestre” (Sena, 1989:67)), figuras importantes do neotrovadorismo
brasileiro.
Interessa, pois, indagar a presença e alcance do legado trovadoresco – cantigas
de amor, cantigas de amigo e cantigas de escárnio e maldizer – na poiesis seniana,
determinando o seu influxo na criação lírica e satírica do autor de Sinais de Fogo.
64
Jorge de Sena – um Trovador da Modernidade
As cantigas de amigo são, como vimos, o género poético mais revisitado pelos
neotrovadores no decurso da esquemática diacronia histórico-literária que traçámos na
primeira parte deste trabalho. Porém, como seria de esperar de Jorge de Sena, o poeta,
mesmo no que diz respeito ao neotrovadorismo, enveredou por um percurso original e
os géneros amorosos – as cantigas de amigo e de amor – são os géneros canónicos
menos representados nas suas incursões na lírica medieval. No entanto, estas
composições revelam um profundo conhecimento e domínio das técnicas formalizantes
65
Jorge de Sena – um Trovador da Modernidade
dos trovadores. Assim, iremos começar esta sondagem pelos poemas senianos de feição
neotrovadoresca, convocando uma cantiga que acusa nítida influência das cantigas de
amor. Este poema foi dedicado a Lélia Coelho Frota35 em agradecimento do envio do
seu livro de poemas, intitulado Alados Idílios, título esse que Sena glosa nesta
composição em sua homenagem:
Alados idílios:
idílios alados
na sombra dos fados,
não temeis, Senhora?
Um riso de exílios
tão ironizados
será desta hora?
Perigos tamanhos
de mui sábios versos
que fingem dispersos
motivos de agora;
as perdas e os ganhos
iguais e diversos,
não temeis, Senhora?
O riso é de fora
e dentro só chora.
Ah, quão fugidia
Vós temeis, Senhora!
(Sena, 1989:37)
35
Lélia Coelho Frota é uma escritora e museóloga brasileira que se dedicou, sobretudo, aos estudos
etnográficos, à crítica e à poesia. A sua obra foi distinguida com vários prémios, atribuídos pela
Academia Brasileira de Letras. (Cunha, 1997:715)
66
Jorge de Sena – um Trovador da Modernidade
67
Jorge de Sena – um Trovador da Modernidade
*
Partiste e foi contigo a juventude.
Ficou o silêncio adulto, pensativo e pródigo,
e o terror de não ser minha estatua jacente
sobre o túmulo frio onde as cinzas da infância
desmentem – palpitar de traiçoeira fénix! –
que só do amor ou só da terra haja saudade.
Em longes praias, outras nuvens, outras vozes,
tu sabes que a levaste, ó meu amigo?
(Sena, 1961:151,152)
68
Jorge de Sena – um Trovador da Modernidade
Este poema é muito interessante, porque, à primeira vista, parece que apenas o
refrão, que contém o distintivo de género e o campo sémico da paisagem marítima, nos
remeteriam para o universo trovadoresco; no entanto, uma leitura atenta e uma tentativa
de interpretar a motivação hermenêutica de Sena ao denominar a cantiga como um
cantar de amigo abre uma perspectiva única e original – uma cantiga de amigo cantada
por um sujeito que revisita sonhos e fantasias pueris com um canto eufórico e
expectante, um eu poético adulto, consciente da dura realidade, que rememora esses
cantos da juventude. Lamentando-se também a ausência do amigo (e a morte da
inocência metaforizada nas referências ao “túmulo”, às “cinzas”, à “fénix”), lamenta-se
sobretudo o fim da sua juventude, a que a evocação textualizada no poema dá um tom
pungente, ao relembrar a sua vida “soterrada pela areia nova”. Assim, este cantar
confere uma densidade emotiva maior à relação dialógica que presidia ao canto
trovadoresco, retonalizando o canto feminino como canto de maturidade e de
retrospecção vital.
Um outro exemplo de (re)escrita neotrovadoresca é o poema “Existência” que,
apesar de textualizar uma reflexão de índole existencialista sobre a vida e a morte (aliás,
como o próprio título indica), temas recorrentes em Jorge de Sena, verte essa
problemática abstracta e filosofante na graciosa musicalidade de uma cantiga de amigo:
Nasceram ondas,
passaram dias:
Ai não te escondas
nas alegrias!
Cresceram praias,
brilharam estrelas:
Ai nunca saias
só para vê-las!
Ansiosa a vida,
como perdida
por onde vais…
Alegre ou triste.
Ai não existe
quem vê demais!
(Sena, 1989:60)
69
Jorge de Sena – um Trovador da Modernidade
70
Jorge de Sena – um Trovador da Modernidade
36
Maria do Amparo Maleval refere que, na cantiga de romaria, muitas vezes a amiga vê-se confrontada
com a decisão de aceder ou não aos pedidos do amigo: “encontrar-se com o namorado também pode
provocar na fremosinha sofrimento decorrente do conflito entre atendê-lo ou não em seus anseios,
certamente que de ordem sexual.” (Maleval, 1999:40)
71
Jorge de Sena – um Trovador da Modernidade
37
A este propósito, refere Luciana Stegagno Picchio o seguinte:
Não é, apesar do rigoroso paralelismo entre os pares da tradição, amigo/partido,
amado/banhado, uma cantiga de amigo tradicional: no sentido de quem tem corpo velido na
lírica galego-portuguesa não é o donzel, mas a donzela, ou a dona, a fremosa ou a fremosinha.
Assim como quem se lava na fonte fria, no rio, nas ondas amorosas do mar não são eles,
ocupados na hoste ou em cãs d’el rei, eles ausentes e alongados, mas elas, as irmanas do jogo
de amor […] (Picchio, 1984: 234)
72
Jorge de Sena – um Trovador da Modernidade
ela é, no fundo, o lamento do próprio Diabo, uma vez que o acto sexual consumado foi
entre o Físico e ele próprio, que o ama sem ser correspondido. Além disso, esta mesma
cantiga vai ser retomada no último capítulo da novela por uma jovem que havia sido
violada por uma turba e termina aconchegada por um novo “físico”, aquele que detém
os poderes do gorro, conferindo-lhe um tom satírico e mordaz e, portanto, um potencial
semântico diferente38.
A outra cantiga de amigo, «O meu doce amigo,», reunida em Visão Perpétua,
mas também constante da mesma novela, apresenta igualmente óbvias afinidades com
os cantares trovadorescos:
O meu doce amigo,
Que eu tanto queria,
Foi-se o outro dia
Sem falar comigo.
Lá leva consigo
A minha vontade:
Fica-me a saudade
Do meu doce amigo.
O meu doce amigo,
Que eu tanto amava,
Nunca me falava
Quando era comigo.
E levou consigo
Tudo quanto eu tinha:
Só saudade é minha
por meu doce amigo.
(Sena, 1989:83)
38
O uso da mesma cantiga ou, pelo menos, de um fragmento dela, faz parte de uma característica desta
obra: a duplicidade, a junção do “outro” e do “mesmo”. Segundo Maria de Fátima Marinho:
“o exemplo mais flagrante desta duplicidade estrutural não é talvez o das cantigas medievalizantes que
antecipam […] a intriga da novela, mas sim o dos fragmentos que se repetem sem se repetirem, provando
de uma forma inequívoca o princípio da não-disjunção, inerente ao universo romanesco”(Marinho,
1981:143)
73
Jorge de Sena – um Trovador da Modernidade
personagem, que não se identifica para não criar laços e assim manter a natureza
radicalmente livre do seu ser, sente que começou a perder esta liberdade, quando, por
exemplo, D.Urraca, não porque desejasse prendê-lo, mas porque sentia que essa era a
sua vontade, lhe diz:
Porque entendo que me falas como habituado estás a partir, deixando atrás de ti um
nome que não te pertence mais do que tu pertences àqueles a quem deixas uma
memória benéfica e formosa. Mas daqui tu não vais partir. (Sena, 1966:53)
39
D. Urraca confessa ao Físico, após verificar a indecisão, a tristeza que o rosto não desmentia:
“E como poderás tu partir?... Não tremas. Eu não te vou prender, não te vou perseguir, não te
vou enfeitiçar. És inteiramente livre. Poderia eu querer-te preso, mesmo a mim, depois do que
para mim foste? Se eu te prendesse, ainda que com laços de imenso amor, a que tu próprio
não quisesses fugir, que alegria seria a tua nos meus braços, ou a minha nos teus?” (Sena,
1966: 53)
74
Jorge de Sena – um Trovador da Modernidade
D.Urraca. Ou era. Mas os longos cabelos estavam louros, e as feições defuntas eram
as dele. (ibidem:97,98)
A obra de Jorge de Sena evidencia uma clara predilecção pela tradição satírica
medieval galego-portuguesa. Apesar de se ter também inspirado nos cantares de
temática amorosa, ter revisitado as suas formas e possibilidades expressivas, Sena não
esconde a sua admiração pelo facto de os mesmos poetas terem conseguido, com um
espírito livre, criticar a sociedade coeva e a si mesmos com uma inventiva verbal e uma
coragem auto-satírica que, ainda hoje, poucos conseguem superar. Isso mesmo destaca o
autor, no ensaio intitulado «Cantigas d’Escarnho e de Mal Dizer»:
Aqueles homens tidos por rudes […] souberam produzir e apreciar poemas que, de
amigo ou de amor, são por vezes de um refinamento estético, intelectual e
sentimental, e mesmo linguístico, que nada fica a dever às melhores subtilezas e
audácias da grande poesia dos séculos seguintes. E souberam usar do mesmo
refinamento para compor poemas em que a violência dos ditos ou das insinuações, a
grosseria dos palavrões (que vemos, vetustos e venerandos, serem os mesmos de
hoje), a liberdade dos costumes que se enquadram numa idêntica elegância de
expressão poética. Homens capazes de tamanha desinibição ao criticarem-se, nos
mais íntimos e mesmo terríveis dos pormenores, a si mesmos e aos outros; capazes
de, paralelamente, um tal poder de despersonalização poética, como a exigida por
uma perfeita cantiga de amigo; e capazes de sentir, em verso, as compilações do
Amor Cortês – e capazes disto com tão grande perfeição expressiva, em que os
recursos da ironia, do duplo sentido, da reticência, da analogia semântica, etc. são
empregados com o melhor dos desembaraços, esses homens terão sido tudo o que se
quiser, mas, como artistas da linguagem e do verso, e como consciências poéticas,
nada tinham de primitivos, mas sim de requintadamente civilizados. (Sena, 1981:23)
Neste mesmo estudo, Sena recrimina ironicamente Carolina Michaëlis por esta
ter escamoteado do grande público uma parte tão significativa do nosso legado cultural
em função de critérios de moralidade deslocada. Apodando-a de “valquíria da
75
Jorge de Sena – um Trovador da Modernidade
romanidade”, sublinha que “não investira com os «piores» dos poemas, nem os fazia
imprimir em lugares públicos, mas em revistas doutas e, portanto, discretas”.
(ibidem:23) Acrescenta ainda um elogio aos corajosos que preservaram até nós o legado
satírico galego-português, a par da tradição amorosa, a despeito da sua “tão sã e viril
violência”:
Gloriamo-nos, sim, em que os homens daquelas eras revolutas tivessem uma tão sã e
viril violência, a ponto de a arquivarem ciosamente, em manuscritos, lado a lado
com as finezas imaginosas do amor, o que indubitavelmente quer dizer que, para
eles, a obscenidade não era nada de oculto e de escondido, ou de proibido pela
polícia, ou pelas solteironas castradas que, séculos depois, passaram a pretender
fazer à literatura o que a triste vida fizera nelas. (ibidem: 23)
Sena lamenta que os críticos partilhem uma visão tão redutora do cancioneiro
satírico, não divisando a fronteira entre a realidade e o mundo do artifício ficcional, não
compreendendo que os poetas que tanto admiram das cantigas de amigo são
exactamente os mesmos que escrevem as composições satíricas que um falso decoro os
leva a sonegar:
Não é lícito, em contraposição à atitude dos críticos que se deliciam com as
delicadezas das cantigas de amigo (que sempre foram, mais que as de amor,
preferidas por essas almas dedicadas), e torcem um nariz pudibundo às grosserias
das cantigas de escárnio e de mal-dizer, passarmos agora a imaginar que, afinal,
aquela gente era um mundo de prostitutas, mulherengos porcos e pederastas,
mutuamente denunciados nessas cantigas. (ibidem: 24)
76
Jorge de Sena – um Trovador da Modernidade
Rimam e desrimam
- que sabem da vida?
Que aprendem dela
- no que escrevem?
Ah filhos da puta!
Ah filhos da puta!
(Sena, 1979: 106)
roubam-me a Pátria;
e a Humanidade
outros ma roubam
- quem cantarei?
roubam-me a voz
quando me calo,
ou o silêncio
mesmo se falo
- aqui d’el rei
(Sena, 1958:11,12)
77
Jorge de Sena – um Trovador da Modernidade
lírico, despojado de tudo, até de si e da sua voz, questiona o que há-de “cantar” nos
poemas; outro aspecto diz respeito à evocação da figura extemporânea do rei, no último
verso, onde esperaríamos encontrar o estribilho já reiterado nas três coblas anteriores.
Por um lado, associamos a expressão “aqui d’el rei” a um pedido de auxílio ao rei –
figura anacrónica de árbitro – para que reestabeleça a ordem; por outro lado, Jorge de
Sena parece convocar esta expressão para responsabilizar o rei, figura emblemática do
poder máximo, na qual se poderá, porventura, reconhecer uma sinédoque de qualquer
ditador.
É interessante que, num ensaio intitulado «Situação da Literatura Portuguesa
Contemporânea», incluído em Estudos de Literatura Portuguesa III, Jorge de Sena
encerre o texto com este poema, que considera uma síntese do panorama literário
português e do seu posicionamento excêntrico relativamente a ele:
Permitam-me que termine este cauteloso esboço da situação da literatura portuguesa
contemporânea, com um poema meu, que, segundo julgo, poderá acrescentar à
minha prosa o esclarecimento que, leitores, vos devo, da minha posição pessoal:
(Sena, 1988:29)
78
Jorge de Sena – um Trovador da Modernidade
[…]
[…]
Físico prodigioso,
que cura tudo por bem.
Mas as doenças de donzela
el’ cura como ninguém.
[…]
40
Esta cantiga de escárnio e maldizer, à semelhança das outras composições poéticas da novela O Físico
Prodigioso, também foi publicada sob forma autónoma em Visão Perpétua.
79
Jorge de Sena – um Trovador da Modernidade
uma comparação obscena do físico a “tutano cru”; a polémica social, por meio da
equivocatio fundada nos vocábulos que remetem para a prática da medicina (“físico”,
“curar”, “maleita”, “gemer”etc.), e, por fim, o filão imagístico dos comportamentos
sexuais.
Este último campo sémico, aliado à ampla série lexical de teor médico, é crucial
nesta novela, cujo objectivo é a erosão dos preconceitos e dos grilhões da tradição que
coagem e aprisionam o Homem, por exemplo, na assunção plena do Amor em todas as
suas manifestações. O facto de a cantiga, de forma irónica, referir que D.Urraca, curada
da sua “maleita”, “é boa dama para as donzelas que tem, quando elas adoecem, logo o
físico ali vem”, revela que este amor, identificado na novela como sendo verdadeiro, é
livre e compatível com a defesa de um pan-erotismo vitalista. D. Urraca não se importa,
por isso, de partilhá-lo com as suas “donzelas”:
Agora, para meu orgulho, todas conhecem por experiência a minha felicidade. E,
porque teve a ousadia e a coragem de vo-la dar a conhecer, com um gesto de
verdadeiro homem livre, ainda o amo mais, se é possível. Eu não quereria para mim,
só para mim, antes de todas saberem a minha fortuna, o homem que me salvou.
(Sena, 1966: 75)
80
Jorge de Sena – um Trovador da Modernidade
[…]
As mouras não se lavavam,
para tentar Beltrão.
E os cavalos passavam,
ao cheirá-las, hesitavam,
se era por eles, se não.
41
Como já referimos, D.Urraca e D. Fuas são duas figuras que, de certo modo, conformaram o imaginário
medievalizante de Jorge de Sena: D. Urraca foi uma personagem de uma história que terá escrito em
criança (de que só conhecemos o que o poeta disse sobre ela), à qual se vieram juntar a D. Urraca d’O
Físico Prodigioso e a D.Urraca de alguns poemas dispersos; D. Fuas aparecerá nos seus poemas até como
81
Jorge de Sena – um Trovador da Modernidade
nome próprio de gato. Neste poema, D. Urraca não se refere à mesma personagem da novela que temos
estado a referir.
82
Jorge de Sena – um Trovador da Modernidade
83
Jorge de Sena – um Trovador da Modernidade
Mécia de Sena esclarece que estas invectivas não são, como a reputação
belicosa de Sena poderia fazer pensar, fruto de um génio difícil e conflituoso e
desmistifica a verdadeira motivação destas composições:
Eu sei que a leitura destes poemas (que não são ainda a totalidade) fará a
alegria de muita gente que não conheceu ou conheceu mal o Jorge de Sena, mas
muito enfaticamente lhe declara o mau génio e os rompantes, porque, ao que parece,
tal lhes alivia as suas próprias frustrações. E, no entanto… estes poemas são produto
de profundo desgosto, porque alguém não esteve à medida da altura que devia; ou de
ressentimento, por alguma maldade ou injustiça recebidas – e foram muitíssimas e
de toda a ordem. (ibidem:10)
42
O bestiário está presente em, pelo menos, vinte e cinco das quarenta e oito composições que integram a
colectânea.
84
Jorge de Sena – um Trovador da Modernidade
do seu desgosto do mundo. Numa das dedicácias, encontramos um elemento que reitera
este programa de escrita por catarse, quando o próprio Sena demonstra o seu
agudíssimo espírito crítico relativamente à sua própria mestria poética:
Nem vale a pena pensar duas vezes
e acabar este poema que sei – sem dúvida –
ai muito mau, não é verdade, amigo?
(ibidem:62)
Assim sendo, vamos encontrar composições que se, por um lado, concretizam
um projecto satírico de derisão, por outro lado, por via da imitação intertextual do
discurso do visado, reconhecendo a sua marca pessoal e apropriando-se das suas
técnicas, não deixa de constituir também uma homenagem à palavra e ao sujeito
satirizado.
Acima de tudo, temos que perceber que o fascínio que a sátira medieval exerce
sobre Sena prende-se com a sua própria concepção de poesia, enquanto expressão do
real, enquanto intervenção transformadora no mundo, enquanto ritual exorcizante e
catártico, tal como o escárnio e o maldizer reenviavam para “un mundo «real»,
concreto, palpable, non velado de todo polas convéncións temáticas e estilísticas dos
outros xéneros” (Lanciani e Tavani, 1995: 39).
As Dedicácias integram quarenta e oito composições poéticas e alguns desenhos
do próprio autor. Nestes poemas, rastreia-se a influência da tradição satírica
85
Jorge de Sena – um Trovador da Modernidade
Deste modo, começaremos esta nossa incursão nas Dedicácias por analisar
algumas composições que se identificam com os géneros menores do trovadorismo
galego-português: o sirventês moral, o sirventês literário, o devinalh, a cantiga de seguir
e o descordo.
No cancioneiro satírico seniano, encontramos dois sirventeses morais44, ambos
com o título “Epístola a Álvaro Salema”, sendo que um constitui uma versão abreviada
do outro, como podemos verificar pela repetição integral de vários versos. Assim sendo,
estas cantigas gravitam em torno de uma reflexão sobre a impossibilidade de ser-se
conivente com um sistema ético desumanizante, que propõe uma verdade absoluta e
inquestionável. O segundo poema começa com as questões que desencadearão este
discurso de tonalidade metafísica e moral, reminiscente do registo abstracto que
predomina no sirventês:
Dizes que não me entendes, sobretudo na vida.
Que sabes tu da vida? E dos que falam dela?
Ou será que te espantas de que eu não obedeça
às ordens de partidos a que não pertenço?
Deixemo-nos de histórias, meu amigo.
[…]
(Sena, 1999:31)
No fundo, estes dois poemas reiteram a independência do sujeito poético e a sua
determinação em resistir às pressões censórias e ao servilismo literário e académico
hegemónico na cultura portuguesa. O eu lírico, em ambas as composições, reafirma que
43
Porém, não podemos descurar o facto de que outras tradições satíricas coexistam nas Dedicácias, como
é o caso de alguns ecos dos epigramas de Marcial. É interessante salientar que já o poeta Marcial, nos
seus epigramas satíricos, revelava alguma amargura, que encontraremos em Sena também, relativamente
à divulgação e crítica dos seus versos, como por exemplo, acontece no seguinte passo: “Censura os meus
poemas, diz-se, um certo advogado: quem é/Não sei. Se chegar a saber, ai de ti, advogado!” (Marcial,
2000: 77) ou “ […] a corrigir os meus epigramas, que fama já conhece, /Te atreves, e a censurar
afortunados poemetos […]” (Marcial, idem: 123). Revela também uma ironia amarga relativamente ao
círculo literário de então, tal como Jorge de Sena: […] “Quantos bons autores nutrem traças e baratas/E
só os cozinheiros compram versos eruditos!” (Marcial, 2000:122)
44
Segundo Tavani, a sátira ou o sirventês moral
têm essencialmente a função de expor e comentar, numa perspectiva satírica, acontecimentos
da vida quotidiana, de censurar, numa perspectiva pessimista e deplorativa, episódios de maus
costumes […] e reduz-se na maioria dos casos, a um genérico lamento sobre a corrupção dos
costumes[…]. (Tavani, 1993:605, 606)
86
Jorge de Sena – um Trovador da Modernidade
45
Apesar de não serem muitos os sirventeses literários que chegaram até nós, é interessante que o seu
tema podia incidir em acusações de falta de perícia, violação dos códigos poéticos ou, então, de
“impudência e temeridade ao encararem e tratarem temas e motivos” (Tavani, 1993:607). Este aspecto é
muito importante, porque é uma das linhas satíricas fundamentais das composições de Sena: o temor da
exclusão que conduz ao servilismo académico e literário.
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Jorge de Sena – um Trovador da Modernidade
89
Jorge de Sena – um Trovador da Modernidade
este respeito, num ensaio intitulado «Do conceito do modernismo na poesia portuguesa
contemporânea»:
De resto, Portugal não é nisto senão um caso particular, e curiosamente agudo, da
situação geral das artes e das letras do Ocidente (desde a América à Rússia), em que
só há três posições possíveis: o conformismo tradicionalista, o conformismo
vanguardista que é uma espécie de leal oposição de sua majestade, e a superação de
tudo isso que instantemente se impõe. Há, por certo, em Portugal, como em toda a
parte, personalidades agudamente conscientes deste problema. Mas quase todas
sucumbiram ou sucumbem à chantagem que domina a vida literária contemporânea,
e /ou lhes agrada serem elogiados pelas razões erradas ou temem ser atacados ou
silenciados pelo exercício do mais vergonhoso e descarado compadrio de
conformismos que jamais controlou a vida intelectual portuguesa, e em que títulos
universitários, redacções de jornais, revistas, casas editoras, fundações, a rádio e a
televisão, etc., tudo foi tomando de assalto por uma vasta conspiração (em que já
não há «esquerda» ou «direita») de elogio mutuo, de promoção pessoal, e de
vantagens financeiras, que algumas polémicas pela côdea não conseguem disfarçar.
(Sena, 1989:235)
46
A cantiga de seguir é uma composição que se apropria de uma cantiga de outrem, de forma que o
leitor/ouvinte identifique o intertexto. (Ferreira, 1993:142)
90
Jorge de Sena – um Trovador da Modernidade
possa acumular as funções de poeta e crítico. No fundo, Sena joga também com a
equivocatio, através do adjectivo “pequeno”, pois a pequenez física reflecte-se na
mediocridade moral e intelectual do crítico literário visado.
O devinalh (Bec, 1984:19) é o antecedente genológico occitânico do que
actualmente designaríamos como charada ou adivinha. Através do recurso à
equivocatio, vão sendo facultadas pistas de leitura que nos conduzem à identificação do
alvo em questão. Jorge de Sena inclui, nas Dedicácias, duas composições que podemos
aparentar com esse género: uma dedicada a Roger Bismut e a outra a Segismundo
Spina. A primeira, «Mr Bismut», é uma quadra composta por duas perguntas de retórica
e alicerçada num jogo polissémico das palavras:
Será por a literatura portuguesa ainda sofrer tanto
do morbo gálico, que Snr. Bismuto
se ocupa dela? Que culpa temos nós
de os antibióticos terem desempregado o bismuto?
(Sena,1999:33)
91
Jorge de Sena – um Trovador da Modernidade
identidade de Segismundo Spina, um crítico que Sena diz que “não sonha, apenas pica”.
Este poema, à semelhança de muitos outros da poética seniana, documenta o labor
originalíssimo do poeta, cujo anseio de liberdade se materializa no próprio ineditismo
linguístico, através da criação de neologismos por afixação (como no caso da palavra
“deslírica”, através da aposição de um prefixo), derivação parassintética (por exemplo,
em “embarrocou”, com a agregação simultânea de um prefixo e de um sufixo) e de
derivação imprópria (na palavra fidelino, convertendo o substantivo próprio num
substantivo comum).
Um outro exemplo de contaminação com os géneros menores da sátira medieval
é o poema “Este”, cujo aspecto formal evoca o descortz medieval:
Este
herdou
a cátedra
a biblioteca
de relações internacionais
desde Lisboa a Berlim
e uma província
que é de Portugal no Brasil
e do Brasil em Portugal.
É capaz de analisar As Pupilas do Senhor Reitor
como se fossem a Divina Comédia um semestre inteiro
de literatura
portuguesa
não escreve.
Poderia, tão doce, ter ascendido a bispo.
Morde
pelas costas.
(ibidem:34)
92
Jorge de Sena – um Trovador da Modernidade
[…]
93
Jorge de Sena – um Trovador da Modernidade
94
Jorge de Sena – um Trovador da Modernidade
47
Jorge de Sena, no seu artigo «Tentativa de um panorama coordenado de Literatura Portuguesa de 1901
a 1950», responsabiliza “o artificialismo das traduções de Rilke e Holdërlin por Paulo Quintela”, a par de
outros factores, pelo “ecletismo literário, de índole aparentemente modernista” (Sena, 1988: 81). Este
comentário pouco agrada a Paulo Quintela que, no prefácio da sua tradução de Os Cadernos de Malte
Laurids Brigge, defendendo o seu orgulho ferido, lhe devolve os impropérios:
Mas eis que um tabelião das nossas letras – ou seu caixeiro, conforme se encare como
inventário ou como balanço aquilo a que chama Tentativa de um panorama coordenado de
Literatura Portuguesa de 1901 a 1950 – me quer distinguir, mimoseando-me com a duvidosa
honra da inclusão do meu nome no seu catálogo de arrumação literária. Trata-se, como
certamente já adivinhou […] do senhor Jorge de Sena que […], na esfalfada e retorcida
sequência – ou inconsequência – de uma prosa […] abusou do seu múnus de crítico (?),
porque nem eu o mandei lavrar aquelas linhas, nem eu era merecedor da sua charrua que,
assim como assim, não tem relha para a minha leiva. Fala ele de «artificialismo (sic!)» […]
Quererá ele chamar artificiosas às minhas traduções? […] Deu-se acaso ao trabalho de
cotejo com os originais […]? Se o não fez, por preguiça ou ignorância, procedeu
levianamente e com menos honestidade ao emitir um juízo negativo que vai além da sua
capacidade ou da sua diligência. (Quintela, 1955:13,14)
95
Jorge de Sena – um Trovador da Modernidade
Note-se o jogo onomástico com que Sena inicia esta cantiga de escárnio e
maldizer e o aparato verbal depreciativo de que se serve para retratar o temperamento de
Paulo Quintela com vocábulos e expressões como “desunham”, “fúrias” e “treme aquele
que não se desfaça ante os humores do génio eczemático”. O poeta acusa as “fúrias
teatrais e tradutórias48” de passadistas de se apoiarem em obsoletas “décadas de teses
sepultadas”.
Encontramos ainda uma sátira dirigida a uma personalidade bem conhecida do
meio crítico e literário, Hernâni Cidade:
Cidade sim, se Amareleja o fora.
Hernâni – que tristezas onomásticas
o Victor Hugo deu de Romantismos.
O Lopes (o Fernão), Camões, Bocage,
o Vieira padre, e as épocas, estilos,
e antologias, edições, artigos,
alunos muitos, fundações não poucas,
e de colóquios de Brasil a flor –
tão paternal que o mundo se comove tanto
de um professor tão pai ser tão medíocre
que o seu poder de intriga é como se apontasse
quão de paternas manhas asnos sobrevivem.
(ibidem:50)
48
Além de tradutor, Paulo Quintela foi também o fundador do Teatro dos Estudantes da Universidade de
Coimbra (TEUC), em 1938. (Lopes e Saraiva, 1996:1116)
96
Jorge de Sena – um Trovador da Modernidade
[…] IV
E Vitorino subia
em ambições naturais,
De doutor a professor,
não era nada de mais…
Tinha de ser director!
Jorge de Sena comenta este mesmo desejo de ascensão num ensaio, inserido na sua obra Estudos de
49
Literatura Portuguesa III, intitulado «Notas acerca do Surrealismo em Portugal, escritas por quem nunca
se desejou nem pretendeu precursor de coisa alguma, ainda que, cronologicamente, o tenha sido, por
muito que isto tenha pesado a muitos surrealistas, ex-surrealistas, etc., do que se não excluem mesmo
eminentes pessoas que contam entre os melhores e mais dedicados amigos deste autor»:
“Aqueles funambulismos de Nemésio não eram «sérios» – e o pobre Nemésio por outro lado
viu-se doido para ser catedrático de universidade, já que esta considerava inimaginável que
aquele «modernista» fizesse parte dos «claustros» insignes de ilustres quadrúpedes que hoje,
e, grande parte, estão substituídos pelos filhos espirituais, mais sólidos do que eles porque tem
seis pernas em vez de quatro. A contradição é saborosa. Mas o que nos importa é acentuar
como não é fácil estabelecer a que ponto Nemésio (que conhecia tudo, mas se dava ares de
não conhecer nada) foi sabedor e consciente de «ismos» em geral de surrealismos em
particular.” (Sena, 1988:248)
97
Jorge de Sena – um Trovador da Modernidade
VIII
E depois ficou à coca
muito encolhido na toca,
esperando pela justiça.
E a justiça foi feita,
tal como a luz se fizera.
(Sena, 1999: 15-22)
50
A descriptio encontra-se logo nos primeiros versos: “nariz de judeu”, “cara de sandeu” e “graças de
menino”.
51
Um exemplo do recurso ao bestiário é “pois que um tamanho talento/seria apenas jumento/se na
terrinha o deixavam.”
52
O efeito retórico da aparente defesa do visado (Lopes, 1994:163) é usado por Sena nesta composição,
afectando uma irónica simpatia compassiva em relação a Nemésio: “Vitorino sofreu muito./Entregou-se
mais às letras.//[…] E gemia pelos cantos[…]//E seu desgosto subia//[…] Enfim, enfim, director!/[…]
Viva a Santa Academia!/ Viva o Governo que as cria! /Viva a Terra que os nutria!/Vivam todos muito
iguais!”
53
O contrafactum é, no fundo, “the derivation of the melody, rhyme scheme and metre from external
sources, leaving out any identity of the theme or thought”.(Gaunt e Kay, 1999:186)
98
Jorge de Sena – um Trovador da Modernidade
[…]
54
Jorge de Sena teve uma relação algo conflituosa com os surrealistas, apesar de ter sido talvez o
primeiro poeta português a ensaiar as soluções poéticas vanguardistas inspiradas no movimento francês.
Um dos motivos que estariam na origem da sua diferença com Mário Cesariny seria talvez a recusa deste
em disponibilizar a sua ficha biobibliográfica para que Sena a incluísse no terceiro volume das Líricas
Portuguesas. Tendo-a incluído contra a sua vontade, Cesariny dirige as seguintes palavras ao nosso autor:
“Jorge de Sena não só inclui os poetas em questão como lhes estabelece fichas biobibliográficas tão
retorcidas como a cabeça dele” (apud Pereira, 2008:s.p)
55
O poema que Cesariny dedica a Alexandre O’Neill, por ocasião da sua morte, é realmente interessante,
pela intersecção da tópica convencional da cantiga de amigo com o tom elegíaco do planh trovadoresco:
99
Jorge de Sena – um Trovador da Modernidade
(ibidem:51)
56
A paródia trovadoresca é um recurso satírico que co-implica dois elementos fundamentais:
(1) a conscious, recognisable imitation of the style and/or thematic content of another author,
work or literary movement; (2) a critical outlook, described variously in terms of a humorous
perspective, a mocking attitude, an incongruous treatment or an ironic distance, with respect
to the material imitated. (Gaunt e Kay, 1999: 204)
100
Jorge de Sena – um Trovador da Modernidade
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Jorge de Sena – um Trovador da Modernidade
Ai cardeal, cardeal!
Este poema apresenta uma estrutura claramente bipartida: numa primeira parte,
correspondente à primeira cobla, Sena lembra ao Cardeal o seu dever enquanto
representante da Igreja; na segunda cobla, iniciada pela conjunção adversativa,
encontramos um ataque violento à traição ideológica do Cardeal, recorrendo à afronta
(“a mitra que te cobre / não te dói como os espinhos na cabeça do teu Mestre”) e ao
metaforismo animal com sentido disfémico (“Doem-te os cornos dos ricos das terras de
Portugal”). O uso da interjeição “ai” – tão frequente na voz da amiga que suspira pelo
regresso do amigo – veicula aqui intensidade condenatória. Deste modo, a invectiva
dirigida a Cerejeira assume uma significação mais lata e abrangente, implantando-se no
campo da polémica social.
Um outro domínio frequente da sátira trovadoresca versava o comportamento
feminino, que, na versão textualizada nas cantigas de escárnio e maldizer, era
radicalmente distinto do idealizado nas cantigas de amor:
O antifeminismo ten un papel relevante na sátira medieval galega e portuguesa, en
consonancia (é obvio) coa actitude oficial da igrexa e coa mentalidade imperante
nunha sociedade decididamente machista, na que a muller – a pesar de ser cantada e
exaltada en positivo na poesia amorosa – non pasa de ser un obxecto carente de
dereitos e de dignidade que, ben ó contrario, é pólo regular escarnecido, denigrado e
vilipendiado. Cando a cantiga de escarnio e maldicir nos ofrece a faceta negativa e
realista doutra visión, esta positiva e ideal, que exhibe a cantiga de amor, asume,
como proba contrastada, que […] a muller, calquera que sexa a súa posición social,
non pode ser mais que de costumes fáciles, presa sempre dispoñible do home,
accesible a tódalas abceccións que se lle propoñan […] (Lanciani e Tavani,
1995:167)
102
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103
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Por fim, é contra a classe dos críticos e directores literários que Sena se insurge
com mais veemência e vigor. Curiosamente, para designar a condição dos críticos, Sena
recorre, uma vez mais, à composição de neologismos, apresentando-nos uma nova
criação verbal – “crimertídaco”. Este vocábulo configura um verdadeiro criptónimo,
pois não parece resultar dos processos habituais de formação lexical. De facto, o
neologismo é cunhado através da intercalação das sílabas de dois vocábulos
(crítico/merda), redundando na forma “Cri-mer-tí-da-co”. Encontramos duas
composições dirigidas aos “Crimertídacos”: a primeira ironicamente intitulada “Sua
Putidade o Crimertídaco” e a segunda “Os Crimertídacos”.
Na primeira, onde confluem o campo sémico do obsceno, da descripio e do
bestiário, o sujeito vitupera um “crítico de merda” que perseguia, à semelhança de
muitos outros, o autor. Assim, numa sucessão enumerativa de imagens chocantes de
inspiração grotesca e surrealista, Sena dirige-lhe uma invectiva verrinosa:
Esse filho de quem nem pode chamar-se bem uma puta,
persegue-me, arranha-me, arrepela-me, cospe
sempre ao meu lado, e nos lugares aonde
julga que eu passei. Filho, como é,
do que nem pode chamar-se bem
uma puta, vive de cuspir, de arrepelar
de arranhar, de perseguir as sombras
que ele julga serem de quem não passa
nos becos onde a mãe o deu à luz,
depois de untada a vida com lubrificante
que lhe ficou, brilhantina, agarrado ao cabelo,
e a mãe, logo que o viu, lhe calçou
meias verdes e lhe comeu o imbigo.
Filho do que, de puta, nem por prenha basta
para gerar em esterco assim tão penteado,
tão crítico, tão de meias verdes,
tão arrotantemente porco nas regueifas que
do cachaço ascendem ao tutano encefálico,
julga suinamente que não há lugares,
nem seres humanos, livres da presença
de Sua Putidade. Há.
Exactamente as pessoas e os lugares aonde
ser filho da puta é ser filho da puta,
com ou sem regueifas nas ideias
ou verdura nas meias,
ou brilhantina uterina
de quem lambido foi em sua mãe
entes de nascer para cri-mer-tí-da-co.
(ibidem:26)
106
Jorge de Sena – um Trovador da Modernidade
Por último, refira-se a invectiva dirigida aos directores literários, onde Sena
critica, uma vez mais, a “prostituição” dos poetas, contrapondo-a com a sua posição de
inabdicável independência:
Dizem alguns directores literários
(e accionistas da própria propaganda)
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Considerações Finais
4. Considerações Finais
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Considerações Finais
110
Considerações Finais
111
Bibliografia
Bibliografia
I - Bibliografia Activa
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• ARY DOS SANTOS, José Carlos (1984). Vinte anos de Poesia, Lisboa: Círculo de
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• FERREIRA, José Gomes (1975). Poesia III, 6ª edição, Lisboa: Diabril Editora.
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• VIEIRA, Afonso Lopes (1998). Onde a terra se acaba e o mar começa, Lisboa:
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Bibliografia
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Bibliografia
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