Vasco Graça Moura e Camões
Vasco Graça Moura e Camões
Vasco Graça Moura e Camões
Tese de Doutoramento em Literatura de Língua Portuguesa, orientada pelo Professor Doutor José Carlos Seabra
Pereira e pelo Professor Doutor Manuel Simplício Geraldo Ferro e apresentada ao Departamento de Línguas,
Literaturas e Culturas da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra
Setembro 2017
José Manuel Rodrigues Ventura
TRADIÇÃO E METAMORFOSE
Setembro 2017
Universidade de Coimbra
À Zézinha e ao João Pedro
Resumo
3
Abstract
4
Preâmbulo
5
No entanto, nesse percurso, força é que destaque, em particular, o acolhimento
prestado pelo senhor Doutor José Carlos Seabra Pereira e pelo senhor Doutor
Manuel Simplício Ferro, desde o primeiro momento deste projecto. Fica, pois, aqui
a minha sentida e sincera gratidão pelo modo como receberam a proposta desta
tese, bem como pela sua pronta orientação e sugestões enriquecedoras, de apurada
sensibilidade e invulgar rigor científico. Sem o seu apoio generoso e persistente –
atributo próprio de humanistas cada vez mais raros, infelizmente, na
contemporaneidade –, não teria sido possível a concretização do presente trabalho.
6
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
Introdução
1
Aníbal Pinto de Castro, nesta linha, destaca “A obra camoniana, oferecendo uma das constantes principais,
se não a principal, da cultura literária portuguesa, constitui uma segura pedra de toque para a determinação
da dinâmica dos códigos estéticos em Portugal” (Aníbal Pinto de Castro, “A recepção de Camões no
Neoclassicismo Português”, in Páginas de um honesto estudo camoniano, Coimbra, Centro Interuniver-
sitário de Estudos Camonianos, 2007, p. 33).
2
Cf. Vítor Manuel Aguiar e Silva, Significado e estrutura de Os Lusíadas, Lisboa, Comissão Executiva do
IV Centenário da publicação de Os Lusíadas, 1972, p. 7.
3
Na senda desta asserção, Hans Robert Jauss, (“El lector como instancia de una nueva historia de la
literatura, in P. Bürger et alii, Estética de la recepción, Madrid, Ed. Arco/Libros, 1987, p. 59) sublinha: “La
historia de la literatura, como la del arte, en general, ha sido durante demasiado tiempo la historia de los
autores y de las obras. Reprimía o silenciaba a su “tercer componente”, el lector, oyente u observador. De su
función histórica, raras veces se habló, aun siendo, como era, imprescindible. En efecto, la literatura y el arte
sólo se convierten en proceso histórico concreto cuando interviene la experiencia de los que reciben,
disfrutan y juzgan las obras”.
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9
Cf. Regina Zilberman, Estética da recepção e história da literatura, S. Paulo, Ed. Ática, 1989, p. 100: “A
capacidade da obra de desprender-se de seu tempo original e responder às demandas dos novos leitores é
reveladora de sua historicidade. Porém, para ocorrer esse desdobramento futuro, é preciso que, desde o
começo, ela estabeleça algum tipo de comunicação com os próprios destinatários”.
10
Cf. Wolfgang Iser, O ato de leitura, vol. 2, S. Paulo, Ed. 34, 1999, p. 9.
11
Sobre este aspectos, Iser coloca três questões basilares: “1. Como os textos são apreendidos? 2. Como são
as estruturas que dirigem a elaboração do texto naquele que o recebe? 3. Qual é a função de textos literários
em seu contexto?” (Cf. Wolfgang Iser, O ato de leitura, vol.1, S. Paulo, Ed. 34, 1996, p. 10).
12
Cf. Hans Robert Jauss, “O texto poético na mudança de horizonte de leitura”, in Luiz Costa Lima, Teoria
da literatura em suas fontes, vol. II, Rio de Janeiro, Livraria Francisco Alves Editora, 21983, p. 309: “Um
texto do passado não interessa apenas com relação ao seu contexto primário, mas também é interpretado
para elucidar seu possível significado para a situação contemporânea”.
13
Neste sentido, Robert Scholes advoga que o leitor estabelece com o texto um pacto, que é a leitura, o que
implica a necessidade de submeter a regras determinadas esse acto. Deste modo surge a acepção de
protocolo, signo proveniente da área diplomática, de leitura, estabelecendo um pacto, no dizer do crítico, na
aproximação do leitor ao texto, cabal reconhecimento do status privilegiado do receptor no fenómeno
literário. A tensão gerada deve-se a um leitor activo que persegue o desejo – impossível – da certeza na
interpretação dos textos (Cf. Robert Scholes, Protocolos de leitura, Lisboa, Ed.70, 1991, pp. 65-101).
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Apud Maria Teresa Cruz, “A estética da recepção e a crítica da razão”, in Revista Comunicação e
Linguagem, nº 3, 1986, pp. 57-67.
15
Esta teoria, se por um lado prima pela originalidade, por outro vem na senda dos trabalhos de autores
anteriores, como Hans Georg Gadamer, Jürgen Habermas ou Roman Ingarden, bem como do contributo de
estudos posteriores (Cf. Manuel Simplício Geraldo Ferro, A recepção de Torquato Tasso na épica
portuguesa do Barroco e Neoclassicismo, Coimbra, Faculdade de Letras, Universidade de Coimbra, 2004,
pp. 51-54).
16
Na realidade, Jauss reconhece a importância de que revestiu o pensamento do autor alemão na linha
orientadora da sua obra: “A teoria de Gadamer da experiência hermenêutica, a explicação histórica desta
experiência na história dos conceitos humanísticos fundamentais, seu princípio de reconhecer na história do
efeito (Wirkungsgeschichte) o acesso a toda a compreensão histórica e a solução do problema da realização
controlável da fusão do horizonte, são os pressupostos metodológicos inquestionáveis, sem os quais o meu
projeto seria impensável” (Cf. Hans Robert Jauss, “A estética da recepção: colocações gerais”, in Luiz Costa
Lima, A literatura e o leitor. Textos de estética da recepção, Rio de Janeiro, Ed. Paz e Terra, 1979, p. 55).
17
Cf. Wolfgang Iser, O ato de leitura, vol. 2, loc. cit., p. 97.
18
Cf. Roman Ingarden, A obra de arte literária, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1973, p. 380.
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Cf. Hans Robert Jauss, A literatura como provocação, loc. cit., p.71: “O modo como uma obra literária, no
momento histórico do seu aparecimento, responde à expectativa do seu primeiro público, a ultrapassa, a
desaponta, ou contradiz, fornece evidentemente um critério para o juízo sobre o seu valor estético”.
20
A este propósito, Hans Robert Jauss (Pour une esthétique de la réception, loc. cit., p. 47) afirma:
“L’œuvre littéraire n’est pas un objet existant en soi et qui présenterait en tout temps à tout observateur la
même apparence ; un monument qui révélerait à l’observateur passif son essence intemporelle”.
21
É esclarecedora a importância de que se revestiu o episódio do sonho de D. Manuel (Os Lusíadas, IV, 67-
-75) conduziu a uma larga polémica seiscentista, sendo actualmente um episódio sem o relevo hermenêutico
verificado outrora. Vide João Franco Barreto, Micrologia camoniana, (Prefácio de Aníbal Pinto de Castro;
leitura e integração do texto de Luís Fernando de Carvalho Dias e Fernando F. Portugal, Lisboa, Imprensa
Nacional-Casa da Moeda, 1982; Maria Lucília Gonçalves Pires, A crítica camoniana no século XVII,
Lisboa, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1982; Manuel Ferro, “Estas fábulas vãs, tão bem sonhadas.
Função e Fortuna do Sonho n’Os Lusíadas”, in Colóquio Camões e a Ciência, 11 Junho 2008, disponível em
http://www.museudaciencia.org/gfx/bd/100729130200_manuel_ferro.pdf (consultado em 19 Setembro
2012); José Manuel Ventura, João Soares de Brito, um crítico barroco de Camões, Coimbra, Centro
Interuniversitário de Estudos Camonianos-Imprensa da Universidade, 2010.
22
K. Stierle chama a atenção para a complexa diversidade de reacções do leitor face ao momento da
recepção (Cf. Karlheinz Stierle “Que significa a recepção dos textos ficcionais?”, in Luiz Costa Lima, A
literatura e o leitor. Textos de estética da recepção, Rio de Janeiro, Ed. Paz e Terra, 1979, p. 133).
23
Cf. Hans Robert Jauss, “O texto poético na mudança de horizonte de leitura”, in Luiz Costa Lima, Teoria
da literatura em suas fontes, vol. II, loc. cit., p. 315.
24
“A obra de arte é um signo, porque a significação é um aspecto fundamental de sua natureza, mas ela só se
concretiza quando percebida por uma consciência, a do sujeito estético” (Cf. Regina Zilberman, Estética da
recepção e história da literatura, S. Paulo, Editora Ática, 1989, p. 21).
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Sobre esta problemática, vejam-se as esclarecedoras sínteses: Vítor Manuel Aguiar e Silva, Teoria da
Literatura, Coimbra, Livraria Almedina, 41982, pp. 296 sqq e Pierre Brunel e Yves Chevrel (org.),
Compêndio de literatura comparada, loc. cit., pp. 215-216.
26
Cf. Wolfgang Iser, O ato da leitura, vol. 1, loc. cit., pp. 63-79.
27
Cf. idem, ibidem, p. 73.
28
Wolfgang Iser fundamenta esta asserção do seguinte modo: “A análise isolada dos componentes
constitutivos da obra não só é problemática se a relação entre texto e leitor corresponder exatamente ao
modelo informacional do emissor e receptor. Esse procedimento teria como pressuposto um código comum
que assegura a recepção da mensagem, pois nesse tipo de processo a comunicação se dirige unilateralmente
do transmissor para o receptor. Em obras literárias, porém, sucede uma interação na qual o leitor recebe o
sentido do texto ao constituí-lo. Em lugar de um código previamente constituído, o código surgiria no
processo de constituição, em que a recepção da mensagem coincide com o sentido da obra. Se isso é
verdade, temos que partir do pressuposto de que as condições elementares de tal interação se fundam nas
estruturas do texto. Estas são de natureza complexa: embora estruturas do texto, elas preenchem sua função
não só no texto, mas sim à medida que afectam o leitor” (Cf. idem, ibidem, p. 51).
29
Para Karl Maurer, a riqueza de um texto está na capacidade de formular o que não está formulado,
cabendo essa descoberta ao leitor implícito (Cf. Karl Maurer, “Formas de lectura”, in P. Bürger et alii,
Estética de la recepción, loc. cit., p. 242).
30
Cf. Wolfgang Iser, O ato da leitura, vol. 1, loc. cit., p. 78.
31
Cf. Regina Zilberman, Estética da recepção e história da literatura, loc. cit., p. 33).
12
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
W. Iser, a partir das reflexões formuladas por Roman Ingarden, defende que a
obra literária tem dois pólos: o artístico e o estético32; o primeiro refere-se ao texto
criado pelo autor, enquanto o segundo incide na decodificação empreendida pelo
leitor, que é decisiva na medida em que lhe compete a iniciativa de actualizar a
obra adquirindo, então, valor estético33. Esta nova visão da história literária filia-se,
deste modo, no encontro com o leitor – “a virtualidade da obra”34 –, realidade que
radica na experiência de leitura. Cada hipótese interpretativa torna-se singular na
busca de conhecer a dimensão inédita de uma obra, pelo que a constituição de
sentido de um texto é “um acto criativo”, testemunho cabal da inesgotabilidade da
literatura35.
Embora exista uma tipologia diversa nesta área em torno do destinatário36, o
“leitor implícito”, deste modo, corresponde a determinados contornos conceptuais e
a implicações epistemológicos, de que resulta uma consequência criativa englobada
no fenómeno da estética da recepção, onde cada texto suscita um determinado
papel aos seus leitores possíveis. Como concretização pessoal, o acto de leitura
comporta experiência e interacção, pelo que a obra literária deve ser pensada pelos
efeitos sugeridos ao destinatário37. Assim, face à natureza incompleta do texto,
susceptível de permanentes análises, o texto é constituído por vazios que devem ser
preenchidos pelo leitor, criando uma determinada mundividência onde, numa
32
Vide Wolfgang Iser (“El proceso de lectura: enfoque fenomenológico”, in P. Bürger et alii, Estética de la
recepción, loc. cit., p. 215): “La obra literaria tiene dos polos, que podríamos llamar el artístico y el estético:
el artístico se refiere al texto creado por el autor, y el estético a la concretización llevado a cabo por el
lector”.
33
Esta concepção do carácter estético da obra literária é similar à que Jauss propõe: “O carácter estético
deve ser introduzido como premissa hermenêutica na realização da interpretação. No entanto,
reciprocamente também a compreensão e interpretação estética necessitam da função controladora da leitura
e de reconstituição histórica. Esta evita que o texto do passado seja adaptado ingenuamente aos preconceitos
e há expectativas de significado de nossa época” (Cf. Hans Robert Jauss, “O texto poético na mudança de
horizonte de leitura”, in Luiz Costa Lima, Teoria da literatura em suas fontes, vol. II, loc. cit., p. 312).
34
Cf. Wolfgang Iser, O ato de leitura, vol.1, loc. cit., p. 50.
35
Cf. idem, O ato de leitura, vol. 2, loc. cit., p. 67.
36
Wolfgang Iser apresenta, de um modo esquemático, diversas concepções formuladas pelos estudiosos
acerca do leitor, com o intuito de fundamentar a sua teoria (Cf. idem, ibidem, pp. 67 sqq). Registe-se que
esta argumentação permite concluir que todo o sistema literário implica obrigatoriamente a presença do
leitor.
37
Umberto Eco, quando preconiza o conceito de leitor modelo, sublinha que um texto representa uma cadeia
de artifícios expressivos que o destinatário deve actualizar, o que implicitamente realça o papel crucial do
autor, texto e receptor no acto de ler. Partindo de desta perspectiva, o professor italiano conclui: “Gerar um
texto significa actuar segundo uma estratégia que inclui as previsões dos movimentos do outro” (Cf.
Umberto Eco, Leitura do texto literário. Lector in fabula, Lisboa, Ed. Presença, 1983, p. 57).
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38
Cf. idem, ibidem, pp. 57-58. Em consonância com este postulado, Jauss regista a sua importância na
dilucidação da sua estética de recepção (Cf. Hans Robert Jauss, “O texto poético na mudança de horizonte
de leitura”, in Luiz Costa Lima, Teoria da literatura em suas fontes, vol. II, loc. cit., p. 311).
39
Neste prisma, o autor sustenta: “Nem o objecto apresentado é total e univocamente determinado no seu
conteúdo nem é infinita a quantidade das determinações univocamente definidas e positivamente atribuídas
nem ainda a das simplesmente co-apresentadas: só é projectado um esquema formal de uma quantidade
infinita de pontos de determinação que ficam quase todos por preencher” (Cf. Roman Ingarden, op. cit., p.
273).
40
Cf. Karlheinz Stierle, “Que significa a recepção dos textos ficcionais?”, in Luiz Costa Lima (org.), op. cit.,
p. 164.
41
Cf. Wolfgang Iser, O ato da leitura, vol. 2, loc. cit., pp. 108 sqq e também do mesmo autor “A interação
do texto com o leitor”, in Luiz Costa Lima, A literatura e o leitor. Textos de estética da recepção, Rio de
Janeiro, Ed. Paz e Terra, 1979, p. 88.
42
Há, com efeito, aspectos distintos entre o conceito ingardeniano de indeterminação e o conceito de vazio
textual proposto por Iser (Cf. Wolfang Iser, O ato de leitura, vol. 2, loc. cit., pp. 108-121 e pp. 144-158).
43
Cf. Wolfgang Iser, O ato de leitura, vol. 2, loc. cit., p. 157: “O lugar vazio permite que o leitor participe
da realização dos acontecimentos do texto. Participar não significa, em vista dessa estrutura, que o leitor
incorpore as posições manifestadas do texto, mas sim que aja sobre elas”.
14
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44
Na complexidade que emana do fenómeno de leitura, esta questão é retirada num interessante artigo de
Wolfang Iser; reconhece no leitor um agente activo que perscruta os sentidos do texto através da sua
interpretação. Vide Wolfang Iser, “The Reading process: a phenomenological approach”, in Jane P.
Tompkins (ed.), Reader-response criticism. From formalism to post-structuralism, Baltimore, Ed.
University Press, 1980, pp. 50-69.
45
Segundo Regina Zilberman (Estética da recepção e história da literatura, loc. cit., p. 54): “Caracterizando
a experiência estética, Jauss explica por que é lícito pensá-la como propiciadora da emancipação do sujeito:
em primeiro lugar, liberta o ser humano dos constrangimentos e da rotina quotidiana; estabelece uma
distância entre ele e a realidade convertida em espetáculo; pode proceder a experiencia, implicando então a
incorporação de novas formas, fundamentais para a atuação na compreensão da vida prática, e enfim, é
concomitantemente antecipação utópica, quando projetas vivencias futuras, e reconhecimento retrospectivo,
a preservar o passado e permitir a redescoberta de acontecimentos enterrados”.
46
Cf. Hans Robert Jauss, Pour une esthétique de la réception, loc. cit., pp. 130-131. Veja-se o sucinto
comentário de Regina Zilberman (Estética da recepção e história da literatura, loc. cit., pp. 52-57) sobre as
três actividades relacionadas com a experiência estética.
47
Wolfgang Iser, O ato da leitura, vol. 1, loc. cit., pp. 52-53.
48
Cf. idem, ibidem, p. 10: “Se os textos literários produzem algum efeito, então eles libertam um
acontecimento, que precisa de ser assimilado. Em consequência, os processos de tal elaboração estão no
centro do interesse do efeito estético”.
15
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
dialéctica dos signos do texto com o leitor49. Assim, a teoria do efeito está ancorada
no texto, enquanto a recepção se integra nos juízos históricos dos leitores; é
precisamente na conjugação destes dois princípios – efeito e recepção – que tem
lugar a realização da estética da recepção50.
A natureza interactiva51 da reciprocidade entre texto e receptor, permite explorar
aspectos específicos do discurso literário, onde se recuperam os fundamentos que
explicam uma pluralidade de leituras complementares e se define a ideia de “obra
aberta”, expressão cunhada por Umberto Eco52, justificando, deste modo, as
possibilidades de interpretações, a um tempo, distintas e complementares de uma
obra literária. Com efeito, a produção camoniana permite uma análise de recepção
que convoca todo o potencial de sentidos imanentes, que, apesar de tudo, nunca se
torna arbitrária ou descontextualizada, devido ao horizonte de expectativa
estabelecida pela obra53. Neste quadro referencial, é possível rever o conceito de
história da literatura como uma manifestação de produção e recepção estéticas
49
Neste contexto, W. Iser usa ainda o conceito de “jogo” para pensar a interacção entre autor-texto-leitor e
identificar as operações levadas a cabo no processo textual. O leitor assume, com efeito, uma participação
ativa no processo de descodificação: ele não apenas lê de forma passiva, mas também cria um significado
graças ao envolvimento dinâmico no processo interpretativo; a essa criação está intimamente ligado o
conceito de “suplemento”, implícito a cada texto e considerado na sua individualidade, pois resulta de cada
leitor, e está implícito a cada texto (Idem, “O jogo”, in João Cezar de Castro Rocha (org.), Teoria da ficção.
Indagações à obra de Wolfgang Iser, Rio de Janeiro, Ed. Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 1999,
pp.105-115).
50
Cf. idem, O ato da leitura, vol. 1, loc. cit., pp. 52-53, p. 7: “Deste modo, o efeito e a recepção formam os
princípios centrais da estética da recepção, que, em face de suas diversas metas orientadoras, operam com
método histórico-sociológicos (recepção) ou teorético-textuais (efeito). A estética da recepção alcança,
portanto, a sua mais plena dimensão quando essas duas metas diversas se interligam”.
51
Cf. idem, “Problemas da teoria da literatura actual: o imaginário e os conceitos-chave da época”, in Luiz
Costa Lima, Teoria da literatura em suas fontes, vol. II, Rio de Janeiro, Livraria Francisco Alves, 21975,
p. 375: “[É] o conceito de interação que determina a relação entre texto e leitor. As inovações de um texto
derivam principalmente da recodificação de fragmentos de textos selecionados, ou seja, de valores e normas
selecionadas. […] Tem o caráter de reciprocidade e sujeita ambos os pólos a um processo auto-regulador”.
52
Cf. Teresa Cruz, “Prefácio”, in Hans Robert Jauss, A literatura como provocação, loc. cit., p. 15.
Note-se que Umberto Eco se aproxima da teoria da escola de Constança ao tratar do fruidor do texto para o
contributo da construção de uma obra previamente produzida, devido ao modo como é abordada,
denominada de “obra em movimento”, e cujo paradigma se observa sobretudo na área da composição
musical. A abertura e dinâmica do texto literário permitem uma integração num desafio contínuo,
proveniente do diálogo entre o texto e o leitor, baseado numa perspectiva pessoal de um indivíduo inserido
numa época. Para o autor de O nome da rosa, cada leitura é simultaneamente definitiva e provisória, não
esgotando a infinidade de leituras possíveis; os signos interpelam a sensibilidade do receptor, possuidor de
um determinado gosto, pelo que a recepção se destina a alguém diferente que apreciou uma determinada
obra e dela se apropriou (Cf. Umberto Eco, Obra aberta, Lisboa, Ed. Difel, 1989, pp. 61-62).
53
Cf. Klaus Dirscherl, “A estética da recepção e suas consequências”, in Cadernos de Literatura, nº 14,
Coimbra, Universidade de Coimbra-Instituto Nacional de Investigação Científica, 1983, p. 86.
16
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
através do leitor, do escritor e do crítico que reflecte e emite juízos valorativos 54.
Segundo este critério, a literatura realça primordialmente a continuada experiência
de receptores contemporâneos ou posteriores ao aparecimento da obra55. Este jogo
textual cria, assim, o horizonte de expectativa56, sistema prévio de conhecimentos
de géneros, formas, temas e linguagens, conceito haurido por Jauss na
hermenêutica filosófica de Hans-Georg Gadamer57. Torna-se, deste modo, um
elemento fundamental do sistema de comunicação literária e define-se como um
procedimento que permite ao público receber as obras, enquadrando-as dentro de
uma tradição, com normas estabelecidas, e, mesmo aquelas mais inovadoras,
pressupõem sempre um determinado conjunto de traços identificadores58. O
horizonte de expectativa constitui, pois, uma “isotopia paradigmática”, que se
transforma com a passagem do tempo, e a recepção da obra funciona de acordo
com o sistema semiológico que oscila entre o pólo do desenvolvimento e da
correcção do próprio sistema59, predispondo o receptor para identificar determinada
forma de expressão em busca de uma coerência textual60. Cada acto de leitura não
54
Cf. Hans Robert Jauss, A literatura como provocação, loc. cit., p. 62: “A história da literatura é um
processo de recepção e produção estética que se cumprem na actualização de textos literários, através do
leitor que lê, do escritor que produz e do crítico que reflecte”.
55
Cf. Idem, ibidem, p. 71: “O modo como uma obra literária, no momento histórico do seu aparecimento,
responde à expectativa do seu primeiro público, a ultrapassa, a desaponta ou contradiz, fornece
evidentemente um critério para o juízo sobre o seu valor estético.
Jauss só em estudos posteriores acrescentou à sua definição de horizonte de expectativa outros elementos
além dos estéticos. Considerou, pois, indispensável a diferenciação de horizontes literários e extraliterários
no jogo dialógico entre o texto e o leitor, visto que permite a inscrição do passado nos horizontes sincrónicos
de compreensão e ensaia processos interpretativos de reconstrução de horizonte de expectativas ulteriores.
(Cf. Hans Robert Jauss, “El lector como instancia de una nueva historia de la literatura”, in P. Bürger et alii,
op. cit., pp. 59-85).
56
Hans Robert Jauss (Cf. “El lector como instancia e una nueva historia de la literatura”, loc. cit., p. 76)
considera a obra literária determinante para a formação de uma sociedade, sendo o horizonte de expectativa
fundamental para definir uma nova história literária.
57
Sobre o conceito de horizonte de expectativa, veja-se a excelente síntese e respectiva bibliografia de Vítor
Manuel Aguiar e Silva, Teoria de literatura, loc. cit., pp.108-109, nota 154.
58
À luz do enfoque estético e hermenêutico, aspectos decisivos na estética da recepção, Gadamer sustenta
que na complexa relação entre poetizar e interpretar, ou seja, entre criação artística e crítica, é na poesia que
esse vínculo é mais estreito, comparativamente a outros domínios. Deste modo, a palavra poética é
especulativa e implica uma experiência hermenêutica, como sublinha: “La palabra del habla cotidiana, así
como la del discurso científico y filosófico, apunta a algo, desapareciendo ella misma, como algo pasajero,
por detrás de lo que muestra. La palabra poética, por el contrario, se manifiesta ella misma en su mostrar,
quedándose, por así decirlo, plantada. La una es como una moneda de calderilla, que se toma y se da lugar a
otra cosa; la otra, la palabra poética, es como el oro mismo” (Hans-Georg Gadamer, “Poetizar e interpretar”,
in José Manuel Cuesta Abad e Julián Jiménez Heffernan (ed.), Teorías literárias del siglo XX, Madrid, Ed.
Akal, 2005, p. 859).
59
Cf. Hans Robert Jauss, A literatura como provocação, loc. cit., p. 67.
60
Cf. Vítor Manuel Aguiar e Silva, op. cit., pp. 529 sqq e Umberto Eco, Leitura do texto literário. Lector in
fabula, loc. cit., 1983, pp. 97-107).
17
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61
Cf. Wolfgang Iser, “Problemas da teoria da literatura atual: o imaginário e os conceitos-chave da época”,
in Luiz Costa Lima (org.), Teoria da literatura em suas fontes, vol. II, loc. cit., p. 380: “Por conseguinte,
todos os conceitos de sentido que a interpretação postula como sendo o horizonte final do texto, são, em
última instância, conceito de mediação e apropriação, que permitem, pelo ato de compreensão, ligar a
dimensão imaginária do texto aos quadros de referência existentes”.
62
R. Zilberman sustenta que, no trabalho de Hans Robert Jauss, o conceito de leitor se baseia, em grande
parte, no horizonte de expectativa, princípio que conjuga os códigos vigentes e as experiências acumuladas
por ele (Cf. Regina Zilberman, op. cit., p. 49).
63
Cf. A. Kibédi Varga, “Recepção e classificação: Letras-Artes-Géneros”, in Teoria da literatura, Lisboa,
Ed. Presença, 1981, p. 173: “Para o receptor, as formas convencionais de que os textos se podem revestir
têm uma dupla função: criam uma ‘espectativa’ precisa e proporcionam simultaneamente um sentimento de
familiaridade, garantem o ‘reconhecimento’. A surpresa é canalizada, juntam-se o conhecido e
desconhecido”.
64
Cf. Álvaro Manuel Machado e Daniel-Henri Pageaux, op. cit., p. 61.
18
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
65
Cf. Vergílio, Eneida, II, 204 (Virgile, Eneide, livres IV-V, texte établi et traduit par Jacques Perret, Paris,
Ed. Les Belles Lettres, 21981).
66
Umberto Eco, nesta linha, salienta: “Um texto é um produto cujo destino interpretativo deve fazer parte do
seu próprio mecanismo gerativo: gerar um texto significa actuar segundo uma estratégia que inclui as
pressões dos movimentos da obra” (Cf. Umberto Eco, Leitura do texto literário. Lector in fabula, loc. cit.,
p. 57).
67
Sobre esta matéria, Horst Steinmetz (“Recepção e interpretação”, in A. Kibédi Varga, Teoria da
literatura, loc. cit., p. 160) assevera: “Reconstruindo o horizonte de expectativas dos receptores, Jauss
pretende determinar a situação histórica de cada obra literária. O horizonte é função do sistema de referência
(género, forma, tema), e este é por sua vez determinado pelo conjunto de obras, anteriormente lido e
recebido’. Deste modo, o horizonte de expectativas representa primariamente uma espécie de código
artístico, que permite ao leitor abordar uma obra recentemente surgida, e, portanto, ainda desconhecida”.
68
As perguntas ainda não levantadas constituem uma oportunidade para os intérpretes futuros. Elas não
precisam levar necessariamente à rejeição das respostas encontradas pelo predecessor” (Cf. Hans Robert
Jauss, “O texto poético na mudança de horizonte de leitura”, in Luiz Costa Lima, Teoria da literatura em
suas fontes, vol. II, loc. cit., p. 350).
69
Sobre este postulado difundido por Jauss, Regina Zilberman (op. cit., p. 63) sublinha: “O princípio da
pergunta e resposta, definido metodologicamente como dialético e filosoficamente como horizonte, é talvez
a sua principal arma teórica, acompanhando-o em quase todos os ensaios, por possibilitar a explicitação
tanto do processo de interpretação dos textos, como a natureza dialógica da literatura”.
70
Cf. Hans Robert Jauss, “O texto poético na mudança de horizonte de leitura”, in Luiz Costa Lima, Teoria
da literatura em suas fontes, vol. II, loc. cit., p. 350.
19
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
71
Cf. Hans Robert Jauss, A literatura como provocação, loc. cit., pp. 45 sqq.
72
Cf. idem, ibidem, p. 64: “A literatura, como conexão de acontecimentos, constitui-se primacialmente no
horizonte de expectativa (Erwartungshorizont) da experiência literária de leitores, críticos e autores, que lhe
são contemporâneos ou posteriores. Compreender e descrever a História da literatura na sua historicidade
própria depende da possibilidade de objectivar este horizonte de expectativa”.
73
D. Francisco Manuel de Melo, Le dialogue Hospital das Letras, texte établi d’après l'édition princeps et
les manuscrits, variantes et notes de Jean Colomès, Paris, Fundação Calouste Gulbenkian, 1970, p. 37.
20
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
74
Cf. Claudio Guillén, Entre lo uno y lo diverso. Introducción a la literatura comparada, Barcelona, Ed.
Crítica, 1985, p. 42.
75
Segundo Graça Moura, Camões cumpre magistralmente esta faceta da imitação, concebida como ponto de
partida ou de passagem, mas nunca como ponto de chegada: “Em Camões, essa imitação e os demais
processos estão ao serviço de uma ansiedade e de um poder expressivo inimitáveis, cerzindo-se numa
pessoalíssima maneira de estar no mundo e de pensá-lo” (Cf. Vasco da Graça Moura, Luís de Camões:
alguns desafios, Lisboa, Ed. Vega, s/d. [1980], p. 11).
76
Nesta óptica, Aníbal Pinto de Castro salienta a importância da imitação, que constituía um caminho seguro
para o estudo do fenómeno literário, cuja presença é marcante nos teorizadores greco-latinos, sobretudo em
Aristóteles, Cícero e Quintiliano (Cf. Aníbal Pinto de Castro, Retórica e teorização literária em Portugal.
Do Humanismo ao Neoclassicismo, Coimbra, Centro de Estudos Românicos, 1973, p. 9).
77
Cf. Rui Manuel Afonso Mateus, A recepção de Camões no Barroco português, Lisboa, Imprensa
Nacional-Casa da Moeda, 2011.
78
Cf. Horácio, Epistulae, I, 19 (Épitres, Paris, Ed. Les Belles Lettres, 41961).
21
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
superação dos autores consagrados. Deste modo, a imitação “que redunda em glória
do próprio modelo imitado”, como sublinha Lucília Pires79, é uma via orientadora e
disciplinadora da criação poética.
Nestas circunstâncias, ganha particular relevo o fenómeno de contaminatio,
celebrizada pela metáfora barroca do ramalhete de flores, um sinal da originalidade
poética proveniente do aproveitamento de uma multiplicidade de elementos e
formas colhidas em vários modelos para a criação de novas obras80. A capacidade
electiva e selectiva de fazer próprios os modelos seguidos, de os reorganizar e
integrar numa nova síntese, segundo Claude Gilbert Dubois, revela uma marca
fulcral na literatura do século XVII81. Com efeito, a principal característica da
poesia reside, pois, na arte de entretecer pacientemente as flores, de que resulta a
transfiguração da matéria. A originalidade, neste contexto, não pressupõe a
espontaneidade criativa, mas liga-se à capacidade poética de seguir – e fazer seus –
os modelos consagrados, reelaborando-os, através de uma ordem harmoniosa e
equilibrada.
Sob o signo desta herança cultural reguladora do sistema literário, ganha
particular acuidade considerar os mecanismos da intertextualidade, categoria que
funciona como relação dialógica entre diversos textos, renunciando às antigas
noções de fontes e das influências82, e que provoca uma evidente mudança de
paradigma: enquanto a noção de influência tende a reduzir-se à perspectiva do
autor, este processo apresenta um alargamento conceptual pelos múltiplos nexos
significativos sugeridos83. Praticamente infindável, a convocação de modelos,
génese de complexos mecanismos textuais, congrega simultaneamente referentes
79
Cf. Maria Lucília Gonçalves Pires, A crítica camoniana no século XVII, Lisboa, Instituto de Cultura e
Língua Portuguesa, 1982, p. 20.
80
Aníbal Pinto de Castro definiu a contaminatio como o aproveitamento de “elementos conteudísticos e
formais colhidos em vários modelos, para a criação de obra tão novas quanto possível” (Cf. Aníbal Pinto de
Castro, “Os códigos poéticos em Portugal do Renascimento ao Barroco. Seus fundamentos. Seus conteúdos.
Sua evolução”, in Revista da Universidade de Coimbra, vol. XXXI, 1985, p. 519).
81
Cf. Claude-Gilbert Dubois, Le Maniérisme, Paris, P. U. F., 1979, p. 46.
82
Sobre este assunto, Leyla Perrone-Moisés (“A intertextualidade crítica”, in Laurent Jenny et alii,
Intertextualidades. Poëtique, nº 27, Coimbra, Livraria Almedina, 1979, p. 210) conclui: “Não podemos
reduzir a intertextualidade ao uso da citação ou ao aparato referencial da crítica das fontes. Tratar-se, nestes
casos, de uma intertextualidade rudimentar. A que nos interessa aqui não é uma simples soma de textos, mas
um trabalho de absorção e de transformação de outros textos por um texto”.
83
Sobre a mudança de paradigma que a problemática da intertextualidade provocou em relação à crítica das
fontes, vide Geniève Idt, “Intertextualité, transposition, critique des sources”, in Nova Renascença, vol. IV,
nº 13, 1984, pp. 5-20.
22
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
84
Na determinação das práticas operatórias de intertextualidade, Carlos Reis enumera os seguintes aspectos
fundamentais a ter em conta: “a questão da inovação criativa relação à que a procedeu, a conexão entre a
criação literária e o lastro de referências culturais que envolvem o escritor, a produção textual perspectivada
como contínua transformação de textos precedentes, etc.” (Carlos Reis, “Intertextualidade e leitura”, in
Construção de leitura, Coimbra, Instituto Nacional de Investigação Científica, 1982, p. 31).
85
Aguiar Silva aborda de forma muito pertinente esta questão: “Se a intertextualidade decorre do princípio
fundamental de não existe semiose ex nihilo e se a sua análise deve ter em conta a existência de universais
pragmáticos, semânticos e sintáticos, também é certo que a intertextualidade constitui um fenómeno de
semiose cultural, actuante na história e no confronto das forças ideológicas e sociais, carecendo de
convalidação científica a ideia que os textos da cultura representam tão-só a modulação metamórfica de
matrizes a temporais” (Cf. Vítor Manuel Aguiar e Silva, Teoria da literatura, loc. cit., p. 594).
86
Na senda desta concepção, Genette afirma sobre a obra de Proust: “Est un palimpseste où se confondent et
s’enchevêtrent plusieurs figures et plusieurs sens, toujours présents tous à la fois, et qui ne se laissent
déchifrer que tous ensemble, dans leur inextricable totalité” (Cf. Gérard Genette, “Proust palimpseste”, in
Figures I, Paris, Ed. Seuil, 1966, p. 67). Presente num título de um livro de Gérard Genette (Palimpsestes,
La littérature au second degré, Paris, Ed. Seuil, 1982), o palimpsesto – lexema colhido na paleografia –
designa o pergaminho de onde são raspados textos para que outros possam ser escritos, o que sugere a
possibilidade de sob um texto existirem outros, que de algum modo estão ocultos.
87
No que a este assunto diz respeito, Aguiar e Silva assevera: “O texto é sempre, sob modalidades várias,
um intercâmbio discursivo, uma tessitura polifónica na qual confluem, se entre cruzam, se metamorfoseiam,
se corroboram ou se contestam outros textos, outras vozes e outras consciências” (Vítor Manuel Aguiar e
Silva, Teoria da literatura, loc. cit., p. 593).
88
Neste contexto, Julia Kristeva afirma : “Tout texte se construit comme mosaïque de citations, pour texte
est absorption et transformation d’un autre texte” (Cf. Julia Kristeva, Semeiotike. Recherches pour une
sémanalyse, Paris, Ed. Seuil, 1969, p. 146).
89
Laurent Jenny afirma que não há literatura sem aceitação, realização, transformação ou transgressão dos
modelos arquétipos (Cf. Laurent Jenny, “A estratégia da forma”, in Laurent Jenny et alii, Intertextualidades,
loc. cit., pp. 5 sqq).
23
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
90
Cf. Álvaro Manuel Machado e Daniel-Henri Pageaux, op. cit., pp. 89-97.
91
Cf. Yves Chevrel, “Estudos de recepção”, in Pierre Brunel e Yves Chevrel (org.), Compêndio de
Literatura Comparada, loc. cit., pp. 185-228.
92
Idt destaca o interesse do conceito de intertextualidade nos estudos literários do seguinte modo: “elle
permet d’insérer le système du texte, provisoirement clos par les méthodes formalistes, dans le système des
textes, dans un contexte culturel, dans une perspective historique (Cf. Geniève Idt, “Intertextualité,
transposition, critique des sources”, in op. cit., p.19).
93
Hans Robert Jauss reforça esta ideia em História literária como desafio à ciência literária; Literatura
medieval e teoria dos géneros, loc. cit., p. 98: “O texto novo evoca para o leitor (o auditor) o horizonte de
uma expectativa e de regras que ele conhece graças aos textos anteriores, e que sofrem imediatamente
variações, rectificações, modificações ou então que, muito simplesmente, são reproduzidos”.
94
Cf. idem, ibidem, p. 46.
24
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
95
“O texto ficcional relaciona-se com os paradigmas literários por meio de imitação, da superação, da
continuação, da paródia, etc. Por outro lado, relaciona-se com o horizonte de expectativa de um leitor
pressuposto e é por este inserido, com maior ou menor direito, em seu próprio horizonte de expectativa. A
intertextualidade contida no próprio texto, pode coincidir ou se opor ao horizonte de expectativa do leitor”
(Cf. Karhleinz Stierle, “Que significa a recepção dos textos ficcionais?”, in Luiz Costa Lima, A literatura e o
leitor. Textos de estética da recepção, loc. cit., 175-176).
96
Cf. Geniève Idt, “Intertextualité, transposition, critique des sources”, in op. cit., p. 12 : “Si toute écriture
est lecture des textes antérieurs, toute lecture est toujours double, toute lecture remonte l’ordre
chronologique, déchiffre dans un texte les traces des textes antérieurs. Dans cette perspective, c’est la lecture
du texte le plus ancien qui est seconde : il est toujours lu à travers les textes postérieurs, on ne peut en faire
une lecture fidèle, on ne remonte jamais à un sens premier comme à une source pure ”.
97
Esta controversa questão da teoria dos géneros literários é analisada com particular acuidade por Manuel
Ferro a propósito da recepção de Tasso em Portugal (Cf. Manuel Simplício Geraldo Ferro, A recepção de
Torquato Tasso na épica portuguesa do Barroco e Neoclassicismo, loc. cit., pp.70-78).
98
Neste sentido, Aguiar e Silva sublinha: “As regras eram extraídas, quer dos teorizadores e perceptistas
literários mais autorizados – sobretudo Aristóteles e Horácio –, quer das grandes obras da antiguidade greco-
-latina elevadas pelo humanismo renascentista a modelos ideias das modernas literaturas europeias” (Vítor
Manuel Aguiar e Silva, Teoria da literatura, loc. cit., p. 345).
99
Veja-se, por exemplo, Bernard Weinberg, A history of literary criticism in the Italian Renaissance, 2 vols.,
Chicago, Midway Reprint, 21974.
25
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
100
“O género foi concebido como uma essência inalterável ou, pelo menos, como uma entidade invariante
governada por regras bem definidas, vigorosamente articuladas entre si e imutáveis” (Cf. Vítor Manuel
Aguiar e Silva, Teoria da literatura, loc. cit., p. 345).
101
Cf. Margarida Vieira Mendes, “Gil Vicente: o génio e os géneros”, in Estudos portugueses. Homenagem
a António José Saraiva, Lisboa, ICALP, Universidade de Lisboa, 1990, p. 328: “Os géneros existem dentro
e fora das obras: são princípios virtuais, reportórios de conteúdos, catálogos de soluções formais e de
funções típicas, possibilidade de actuação códigos de comportamentos – depositados, disponíveis e
combináveis numa série de tradições móveis, que só se conhecem e realizam em cada uma das obras.”
102
Cf. Hans Robert Jauss (História literária como desafio à ciência literária; Literatura medieval e teoria
dos géneros, loc. cit., p. 119): “Os géneros literários não existem isoladamente, mas constituem as diferentes
funções do sistema literário da época e colocam a obra individual em relação com o sistema”.
103
Cf. Gerhard R. Kayser, Introdução à Literatura comparada, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian,
1989, p. 410: “Só a partir da mais avançada reflexão estética – sobre a teoria da literatura, sobre o conceito
de forma e sobre a poética dos géneros, sobre a norma, o valor e a função estética – se poderão entender
adequadamente os respectivos fenómenos de culturas distantes no tempo ou no espaço”.
104
Cf. René Wellek e Austin Warren, Teoria da Literatura, Mem Martins, Publ. Europa-América, 31976,
pp. 281-297 e Vítor Manuel Aguiar e Silva, Teoria da literatura, loc. cit., pp. 331-393.
105
Nesta linha, Karlheinz Stierle (Existe uma linguagem poética? Seguido de obra e intertextualidade, Vila
Nova de Famalicão, Ed. Quasi, 2008, p. 42) sustenta: “Os textos que estão na origem de um género, antes
que entrem numa configuração que revela a sua potencialidade genológica, remetem em primeiro lugar para
um género já existente”.
26
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
106
Vítor Manuel Aguiar e Silva (Teoria da literatura, op. cit., p. 108) afirma a propósito: “Em relação ao
autor/emissor, os códigos dos géneros literários funcionam como um filtro, como um modelo interpretativo
da realidade do mundo, da sociedade e do homem, quer no plano temático, quer no plano formal”.
107
Hans Robert Jauss (Cf. História literária como desafio à ciência literária; Literatura medieval e teoria
dos géneros, Vila Nova de Gaia, Ed. José Soares Martins, 1974, p. 90) preconiza que o género, um factor
crucial na recepção de uma obra, não se observa num único horizonte de uma expectativa: “Toda a obra
literária pertence a um género, o que equivale a afirmar pura e simplesmente que toda a obra supõe o
horizonte de uma expectativa, quer dizer, de um conjunto de regras preexistentes para orientar a
compreensão do leitor (do público) e permitir-lhe uma recepção apreciativa”.
108
Veja-se o estudo fundamental neste domínio de Manuel Ferro; as epopeias, segundo o autor, talvez
constituam o caso paradigmático pelas constantes codificações realizadas ao longo dos tempos, sempre
determinadas pelo gosto literário e pelo contexto sociocultural em que ocorreram. (Cf. Manuel Simplício
Geraldo Ferro, A recepção de Torquato Tasso na épica portuguesa do Barroco e Neoclassicismo, loc. cit.).
109
Já Aristóteles, na sua definição de tragédia e de epopeia, considera a noção de género susceptível de
evolução (Cf. Aristóteles, Poética, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2004, p. 38).
110
Jauss sobre este assunto conclui: “É preciso que nos libertemos da ideia de uma justaposição de géneros
fechados entre mesmos e procurar as respectivas interrelações, que formam o sistema literário em dado
momento histórico” (Cf. Hans Robert Jauss, História literária como desafio à ciência literária; Literatura
medieval e teoria dos géneros, loc. cit., p. 116).
111
Cf. Luiz Costa Lima, Teoria da literatura em suas fontes, vol. 1, loc. cit., p. 269.
112
Manuel Ferro sintetiza com pertinência este assunto respeitante à evolução genológica: “Assim, as
alterações que um género sofre numa perspectiva diacrónica podem ter a ver com o sistema de formas
literárias privilegiadas numa dada época, denunciando a evolução social, a reformulação do gosto, a
interferência ou contaminação de elementos de outros géneros mais em voga, a adopção de temas e motivos,
enfim, um rol de factores que mostram como esse complexo de géneros se encontra exposto a
condicionalismos, não só de ordem estética e literária, mas também de teor sociológico” (Cf. Manuel
Simplício Geraldo Ferro, A recepção de Torquato Tasso na épica portuguesa do Barroco e Neoclassicismo
loc. cit., pp. 72-73).
27
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
113
Hans Robert Jauss (História literária como desafio à ciência literária; Literatura medieval e teoria dos
géneros, loc. cit., p. 97) sublinha: “Só o estudo diacrónico permite verificar a relação entre elementos
constantes e elementos variáveis, uma vez que os seguros só aparecem numa caminhada histórica”.
114
Luiz Costa Lima, Teoria da Literatura em suas fontes, Vol. 1, loc. cit., p. 252. Sobre a questão do
impacto da noção de género Kibédi Varga adianta: “O escritor, por seu lado, pretende sem dúvida comunicar
uma nova visão do mundo contemporâneo, mas não pode certamente impedir-se de integrar o seu texto
numa tradição formal. Pode ser – como de resto qualquer utente do discurso – conservador e moderno de
duas maneiras diferentes: pode aceitar as convenções formais mais estritas e oferecer, nesse âmbito uma
mensagem audaciosa (Racine), ou procurar modificar a forma, embora dando à mensagem um carácter mais
conforme ao gosto do público (Corneille)” (Cf. A. Kibédi Varga, Teoria da Literatura, loc. cit., p. 173).
115
Kaiser considera a historicidade dos géneros uma das áreas críticas fundamentais no âmbito da literatura
comparada (Cf. Gerhard R. Kaiser, Introdução à literatura comparada, Lisboa, Fundação Calouste
Gulbenkian, 1989, pp. 173-202).
116
Cf. Maria Lucília Gonçalves Pires, A crítica camoniana no século XVII, loc. cit., pp. 35 sqq.
117
Manuel Ferro, evoca, por exemplo, a controvérsia em torno do respeito escrupuloso das regras da épica,
segundo as rígidas normas prescritivas da teoria clássica dos géneros (Cf. Manuel Simplício Geraldo Ferro,
A recepção de Torquato Tasso na épica portuguesa do Barroco e Neoclassicismo, loc. cit., p. 77).
118
No dizer de Eco, “Traduzir, portanto, quer dizer compreender o sistema interno de uma língua e a
estrutura de um texto dado nessa língua, e construir um duplo do sistema textual que, sobre uma certa
descrição, possa produzir efeitos análogos no leitor, tanto no plano semântico e sintáctico, como no plano
estilístico, métrico, fonossimbólico, e quanto aos efeitos passionais, para que tende o texto-fonte” (Umberto
Eco, Dizer quase a mesma coisa. Sobre a tradução, Algés, Ed. Difel, 2005, p. 15).
119
Jürgen von Stackelberg, apud Pierre Brunel e Yves Chevrel (org.), Compêndio de literatura comparada,
loc. cit., p. 224.
120
Yves Chevrel fundamenta os estudos recentes de recepção apoiado na análise de traduções literárias,
sublinhando a sua pertinência no domínio dos estudos literários: “Os estudos de recepção […] encaram os
28
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
textos traduzidos como elementos de um conjunto e o estudo das estratégias dos tradutores […] pode
facilitar o acesso à compreensão das normas do sistema literário que acolhe essas traduções, dobrando-as
parcialmente às suas leis e que, em contra partida, sofre alterações” (Pierre Brunel e Yves Chevrel (org.)
Compêndio de literatura comparada, loc. cit., p. 224).
121
“O tradutor não compara, cria, ou se preferirem recria” (Cf. Jean-Marie Zemb, “O próprio e o outro”, in
Jean-René Ladmiral, A tradução e os seus problemas, Lisboa, Ed. 70, 1980, p. 132).
122
“A existência ou não de traduções assinadas por escritores conhecidos permite igualmente ver em que
hierarquia cultural se situa, num determinado momento, o acto de traduzir” (Cf. Álvaro Manuel Machado e
Daniel-Henri Pageaux, op. cit., p. 24).
123
“Da mesma maneira, deveremos estar atentos ao papel desempenhado pelas traduções na evolução dos
géneros literários e da própria linguagem literária: contributos lexicais, mudanças de estilo de uma cultura
para outra. Estes fenómenos permitem não só compreender o estilo de uma época, a sua mentalidade, a sua
sensibilidade, mas também obter elementos para uma reflexão mais genérica sobre literatura (Cf. Álvaro
Manuel Machado e Daniel-Henri Pageaux, op. cit., p. 25).
124
“Les traducteurs eux-mêmes sont des objets d’étude importants. Plusieurs sont, à la fois, critiques et
créateurs” (Cf. Yves Chevrel, La littérature comparée, Paris, PUF, 1989, p. 57).
125
Umberto Eco fala em “horizontes do tradutor”, visto que o envelhecimento a que estão sujeitas as
traduções derivam das tradições e convenções literárias que influenciam os gostos (Cf. Umberto Eco, Dizer
quase a mesma coisa. Sobre a tradução, loc. cit., pp. 282-283).
126
Cf. Marta Teixeira Anacleto, “Aspectos da recepção do romance pastoril ibérico em França”, in
Margarida L. Losa et alii (org.), Literatura comparada: os novos paradigmas, Porto, Associação Portuguesa
de Literatura Comparada, 1996, p. 213.
29
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
127
Já Schleiermacher chama a atenção para a dualidade de atitude do tradutor perante o texto de partida e a
sua própria actividade, podendo aproximar o leitor do texto ou, em sentido contrário, aproximar o texto do
leitor. Na primeira das alternativas, traduz o texto de partida, permanecendo fiel ao original o mais possível
e explicando em notas ou textos suplementares os aspectos de mais difícil compreensão (Cf. Friedrich
Schleiermacher, Sobre os diferentes métodos de traduzir, Porto, Porto Editora, 2003).
128
Cf. Álvaro Manuel Machado e Daniel-Henri Pageaux, op. cit., p. 25.
129
Susan Bassnett, em nota prefacial, sintetiza de forma sucinta o papel multifacetado do tradutor: “Um
artista criativo que garante a sobrevivência da escrita no tempo e no espaço, um mediador intercultural e um
intérprete, uma figura de incomensurável importância para continuidade de difusão cultural (Cf. Susan
Bassnett, Estudos de Tradução, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2003, p. 7.
130
Cf., v.g., Maria Lucília Gonçalves Pires, A crítica camoniana no século XVII, loc. cit., pp. 39-46.
131
Cf. George Steiner, Depois e Babel. Aspectos de linguagem e tradução, Lisboa, 2002, Ed. Relógio
d’Água, p. 16.
132
Cf. Marta Teixeira Anacleto, “Aspectos da recepção do romance pastoril ibérico em França”, in
Margarida L. Losa et alii (Org.), Literatura comparada: os novos paradigmas, loc. cit., p. 215: “À prática
tradutora e à apropriação da escrita por um ‘eu’ que reflecte na reescrita, que pratica as expectativas do
público e os seus modelos de leitura ou ‘julgamentos de valor literário’, está subjacente a percepção de um
regime intertextual que permite valorizar o papel da literatura traduzida na história literária e na genologia”.
30
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
133
Steiner fala em “interanimação”, identidade mútua entre o texto original e o traduzido que lhes confere
uma determinada energia de sentido (Cf. George Steiner, op. cit., 511-512).
134
Cf. Jean-Marie Zemb (“O próprio e o outro”, in Jean-René Ladmiral (org.), As traduções e os seus
problemas, Lisboa, loc.cit., p. 132): “O tradutor não compara, cria, ou se quiserem, recria”.
135
Aguiar e Silva define metatextos da literatura, como “aqueles textos nos quais, com objectivos analítico-
-explicativos e/ou normativos, se mencionam, formulam, caracterizam ou justificam as convenções, as
regras, os mecanismos semióticos que subjazem aos processos de produção, estruturação e recepção dos
textos literários” (Cf. Vítor Manuel Aguiar e Silva, Teoria da literatura, loc. cit., p.110).
136
Neste contexto, Stierle defende o carácter intertextual da prática da tradução, uma vez que existe uma
dinâmica especular decorrente de uma relação de dependência mútua entre o texto de partida e o de chegada
(Cf. Karlheinz Stierle, Existe uma linguagem poética? Seguido de Obra e Intertextualidade, loc. cit., p. 60).
137
Segundo Gunter Grimm,“ O domínio da recepção produtiva abrange todo o processo de produção de uma
obra provocado pela recepção ou por ela fortemente influenciada […] O estudo da recepção produtiva ou da
produção receptiva distingue-se do velho estudo das influências pela inversão da perspectiva: já não é a obra
mais antiga que actua de forma casualístico-mecanicista sobre a mais tardia, mas é o produtor desta última
que se apropria da primeira através de um trabalho imenso” (Apud Maria Manuela Gouveia Delille e Maria
Teresa Delgado Mingocho, A recepção do teatro de Schiller em Portugal no século XIX, I - O drama “Die
Räuber”, Coimbra, Instituto Nacional de Investigação Científica, 1980, p. 9).
138
Cf. Vasco Graça Moura, Alguns amores de Ronsard, Chiado, Ed. Bertrand, 2003, p. 18.
139
Cf. Álvaro Manuel Machado e Daniel-Henri Pageaux, op. cit., p. 116: “O fenómeno literário é também
um processo de socialização, pela própria existência de público leitor, das relações entre produção literária e
realidades sociais”.
31
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
140
Cf. Hans Robert Jauss, A literatura como provocação, loc. cit., p. 105: “A função social da literatura só
manifesta genuinamente as suas possibilidades quando a experiência literária do leitor intervém no horizonte
de expectativa da sua vida quotidiana, orienta ou modifica a sua visão no mundo, e age consequentemente
sobre o seu comportamento social”.
141
Aguiar e Silva refere que os códigos actuantes na estrutura de um texto dependem, em grande medida, de
múltiplos factores socioculturais (Cf. Vítor Manuel Aguiar e Silva, “O texto literário e os seus códigos”, in
Revista Colóquio/Letras, nº 21, Setembro, 1974, pp. 29-30).
142
Para Álvaro Manuel Machado e Daniel-Henri Pageaux (op. cit., p. 79), pelos múltiplos sentidos que o
texto literário veicula, cabe aos investigadores reflectir sobre a natureza do texto (perspectiva de crítica
textual) e a sua função (perspectiva histórica e sociológica).
143
Regina Zilberman (op. cit., p. 100) consagra as seguintes palavras sobre esta matéria: “A capacidade da
obra de desprender-se de seu tempo original e responder às demandas dos novos leitores é reveladora de sua
historicidade. Porém, para ocorrer esse desdobramento futuro, é preciso que, desde o começo, ela estabeleça
algum tipo de comunicação com os próprios destinatários. O vínculo com a época de aparecimento antecipa
aquela historicidade, que se propaga para o futuro desde as modalidades iniciais de recepção”.
144
Pierre V. Zima destaca esta possibilidade de abordagem crítica, quando afirma que se pode “encarar a
estrutura textual como sendo mediatizada por estruturas sociais e/ou económicas heterónimas, isto é, analisar
a sociedade e as suas transformações históricas no texto” (Cf. Pierre V. Zima, “Literatura e sociedade: para
uma abordagem sociológica da escrita”, in A. Kibédi Varga, Teoria da Literatura, loc. cit., p. 237).
145
Segundo Regina Zilberman (op. cit., p. 6), “Ler assume hoje um significado tanto literal, sendo, neste
caso, um problema da escola, quanto metafórico, envolvendo a sociedade (ou, ao menos, seus setores mais
esclarecidos) que busca encontrar sua identidade pesquisando as manifestações da cultura”.
146
Cf. Carlos Reis, O conhecimento da literatura. Introdução aos estudos literários, Coimbra, Livraria
Almedina, 1995, p. 83: “O termo cosmovisão, bem como os seus sinónimos ‘mundividência’ e naturalmente
‘visão do mundo’, tem que ver, pois, do ponto de vista do escritor, com uma certa forma de reagir perante o
mundo, os seus problemas e contradições, desencadeando-se então uma resposta esteticamente elaborada a
estímulos e solicitações ético-artísticas formuladas pela sociedade, pela história e pela cultura
contemporânea e anterior ao escritor”.
32
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
147
Cf. Maria Vitalina Leal de Matos, “Os valores n’Os Lusíadas”, in Camões: sentido e desconcerto,
Coimbra, Centro Interuniversitário de Estudos Camonianos-Imprensa da Universidade, 2011, pp. 229-246.
148
Cf. Hernâni Cidade, A literatura autonomista sob os Filipes, Lisboa, Livraria Sá da Costa, 1943.
149
Cf. Carlos Manuel Ferreira da Cunha, A construção do discurso da história literária na literatura
portuguesa do século XIX, Braga, Universidade do Minho-Centro de Est. Humanísticos, 2002, pp. 393-456.
150
Cf. Wolfang Iser, “Problemas da teoria da literatura atual”, in Luiz Costa Lima, Teoria da literatura em
suas fontes, vol. II, Rio de Janeiro, Livraria Francisco Alves Editora, 21983, p. 371: “O texto literário reúne e
acumula muitos outros textos, os quais, em sentido estrito, podem ser literários e relacionar-se à literatura
precedente, ma que também podem ser contextuais, na medida em que retratam convenções sociais, normas
e valores”.
151
Segundo Pina Martins, o poeta quinhentista é o caso paradigmático, porque “Camões es el cantor del
pasado, pero no un ‘laudator temporis acti’, porque tan solo celebra los heroísmos del pasado en la medida
en que transcienden el pasado para proyectarse en el futuro” (Cf. Eugenio Asensio e José V. de Pina
Martins, in Luís de Camões. El humanismo en su Obra Poética Los Lusiadas y las Rimas en la Poesía
Española (1580-1640), Paris, Fundação Calouste Gulbenkian, 1982, p. 10).
152
A obra de Camões não se confina à sua dimensão exclusivamente literária, uma vez que foi lida sob
vincados princípios ideológicos, percurso hermenêutico que Aníbal Pinto de Castro sintetiza do seguinte
modo: “É por estes caminhos que, dando lugar a um permanente fenómeno de recepção crítica e recreativa,
mas também a um ininterrupto movimento de hermenêutica cívica, ideológica e até política, ainda quando
degenerada em fontes de desvios e interpretações manifestamente erradas, Camões (e com ele a sua obra!)
assume o seu pleno significado na cultura e na sociedade portuguesas atingindo ao mesmo tempo uma
dimensão intemporal que intrínseca e definitivamente o identifica com a colectividade de que, num
momento limitado da história, foi parte” (Cf. Aníbal Pinto de Castro, “Camões, poeta pelo mundo em
pedaços repartido”, in Páginas de um honesto estudo camoniano, loc. cit., p. 29).
33
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
153
Cf. Eduardo Lourenço, Portugal como destino seguido de mitologia da saudade, Lisboa, Ed. Gradiva,
1999, p. 147.
154
Cf. Maria Lucília Gonçalves Pires, “Camonologia”, in Biblos. Enciclopédia Verbo das Literaturas de
Língua Portuguesa, vol. 1, Lisboa-S. Paulo, Ed. Verbo, 1995, cols. 911-912: “Superou-se assim a
instrumentalização do poema transformado em bandeira de uma qualquer ideologia política para se encarar a
sua leitura como diálogo de uma obra que é expressão da cultura do seu tempo com valores éticos e estéticos
do nosso tempo”.
155
Nesta linha, Graça Moura afirma: “A obra é também o que o seu leitor, com a sua sensibilidade, a sua
inteligência, a sua informação, a sua capacidade, puder ler nela” (Cf. Vasco Graça Moura, Luís de Camões:
alguns desafios, loc. cit., p. 11).
156
Para Jauss, uma obra permanece viva quando “faz apelo a uma interpretação e age através de uma
multiplicidade de significações” (Hans Robert Jauss, A literatura como provocação, loc. cit., p. 47).
157
Cf. Vítor Manuel Aguiar e Silva, Teoria da literatura, loc. cit., pp. 312-313: “A diversidade sincrónica e
diacrónica das concretizações de um texto literário constitui o fundamento da vida desse mesmo texto, isto é,
a sua capacidade de durar, de preservar a sua identidade e de se modificar parcialmente, através de múltiplos
e sucessivos actos de leitura, em correlação com transformações horizontais e verticais do código literário e
de outros códigos semióticos com ele conexionados, bem como da sua capacidade de influir nos processos
de produção e recepção de outros textos e, em última estância, da sua capacidade de contribuir para a
estática ou para a dinâmica do próprio sistema semiótico literário”.
158
Cf. José Carlos Seabra Pereira, “Em torno das relações paragramáticas da poesia de Afonso Duarte com a
obra de Camões”, in Do fim-de-século ao tempo de Orfeu, 1979, Coimbra, Livraria Almedina, 1979, pp.119-
-148 e “Notas sobre Camões e o(s) Modernismo(s) em Portugal”, in Isabel Almeida et alii (org.) Estudos
para Maria Idalina Resina Rodrigues, Maria Lucília Pires e Maria Vitalina Leal de Matos, Lisboa,
Departamento de Lit. Românicas da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2007, pp. 519-536.
34
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
159
Cf. José Viale Moutinho, “Apenas a transcrição de uma conversa José Viale Moutinho/Vasco Graça
Moura (que poderá ser apensa às actas)”, in José da Cruz Santos (org.), Modo Mudando. Sete ensaios sobre
Vasco Graça Moura, Porto, Campo das Letras, 2000, p. 147.
160
Vasco Graça Moura, “Versos que sabemos de cor”, in JL. Jornal de Letras, Artes e Ideias, 19 Outubro
2011, p. 11.
35
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
36
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
uma dilacerante dor e inquieta solidão. Este infindável filão artístico configura a
dimensão experimental da construção literária do poeta contemporâneo,
intimamente ligada à recriação interpretativa do imaginário do autor de Os
Lusíadas, testemunho cabal de uma visão do mundo, da vida e da condição
humana, num determinado momento da história nacional.
Por fim, o derradeiro momento em torno da abordagem da obra de vgm,
pretende extrair conclusões que validem a abordagem realizada e o travejamento
desse exercício de análise. O percurso que emana do diálogo intertextual decorre,
em última instância, da leitura que Graça Moura faz da poesia quinhentista de
Camões.
Segue-se, como não podia deixar de ser em trabalhos desta índole, a base
documental em que assentou a análise consagrada; a selecção bibliográfica – activa
e passiva – teve em vista rastrear e comprovar as coordenadas principais da
produção literária de Graça Moura, a partir de uma base hermenêutica segura e
adequada à fundamentação realizada.
37
Gravura inserta na Apologia em que defende João Soares de Brito
a poesia do príncipe dos poetas d’Espanha Luís de Camões
1. Fundamentos de uma ars poetica: entre
a sublimação e a superação
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
161
A bibliografia de Graça Moura apresentada ao longo destas páginas surge sistematizada no final deste
trabalho. Os poemas serão citados de Vasco Graça Moura, Poesia reunida, vols.1 e 2, Lisboa, Ed. Quetzal,
2012. Deste modo, doravante a indicação bibliográfica será sempre abreviada, indicando somente o número
do volume e o da(s) página(s).
43
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
uma das mais importantes instituições culturais do país162. A sua ampla experiência
e saber, reconhecidos unanimemente, permitiram-lhe integrar diversos júris de
prestigiados prémios literários; presidiu, por exemplo, ao júri do Prémio Literário
Revelação Agustina Bessa-Luís e do Prémio Literário Fernando Namora. Elaborou,
no Parlamento Europeu, dois relatórios dos programas-quadro Cultura 2000 e
Cultura 2007-2013, que constituíram o principal instrumento da política cultural da
União Europeia. Foi também sócio correspondente da Classe de Letras da
Academia das Ciências de Lisboa.
Oriundo de uma ilustrada família portuense, a sua educação, alicerçada na
leitura de autores consagrados desde tenra idade, seria de facto decisiva na
determinação de uma cultura superior, frisando que esses valores lhe foram
inculcados pelo pai163. Também quando refere vultos marcantes no seu percurso
escolar, destaca, entre outros, o magistério excepcional de Óscar Lopes, tendo-lhe
dedicado o comovente poema um senhor de matosinhos:
162
Como agente cultural tem consciência do trabalho que realizou, como se observa neste passo: “Na
Imprensa Nacional-Casa da Moeda, onde estive dez anos, na Comissão dos Descobrimentos, onde estive
oito, tinha o prazer de poder promover coisas que achava importantes. Estava convencido da utilidade e da
necessidade do que fazia”. Vide http://www.seleccoes.pt/vasco_gra% C3%A7a_moura_%C2%Abpassa_tu-
do_ pela_disciplina_e_o_esfor%C3%A7o#sthash.hHoqFo0J.dpuf (consultado em 10 Janeiro 2014).
163
Embora tenha origem nortenha, esse facto não o impediu, muito pelo contrário, de se abrir ao mundo e a
muitas outras culturas, influenciado por uma educação literária clássica e exigente que o seu pai lhe
proporcionou (Cf. Rodrigues da Silva, “Ele não é tão mau como isso”, in JL. Jornal de Letras, Artes e
Ideias, 17 Junho 1995). Nesta linha informa: “O meu pai tinha uma razoável biblioteca, tinha sobretudo um
culto enorme da literatura. Para ele, de resto, a literatura terminava no Proust. Pertencia a uma geração que
cultivava muito a memória. Durante as refeições, fazia-nos citações e contava páginas de livros, sabia
trechos inteiros do Eça, do Camilo… Isso teve uma importância enorme em condicionar a minha vontade
para a leitura”, in Ana Sousa Dias, “Vasco Graça Moura. O impaciente europeu”, in Revista Ler, Janeiro
2014, p. 36.
44
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
45
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
onde estariam à venda. O escritor conta com uma obra extensa e representativa
com mais de sessenta títulos publicados, estando a sua produção lírica coligida em
Poesia reunida165.
A comunidade literária – nacional e estrangeira – não ficou indiferente à sua
dedicação às letras; soube reconhecer o valor da consistente e vastíssima trajectória
e granjeou-lhe um amplo conjunto de prémios. Em 1997, foi-lhe atribuída a
medalha de ouro de Florença pelas suas traduções de Dante e o Ministério da
Cultura transalpino considerou-o, em 2008, o melhor tradutor estrangeiro de obras
nacionais166. Foi agraciado com a Ordem de Santiago de Espada (1983) e, no
Brasil, com a Grã-Cruz da Ordem do Rio Branco, no Brasil (2005). O Presidente da
República de Portugal condecorou o escritor com a Grã-Cruz da Ordem de
Sant'Iago da Espada, durante a homenagem que foi prestada ao homem de cultura e
personalidade pública, na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, em 31 de
janeiro de 2014167. Neste ciclo de homenagens dedicadas ao tradutor de Dante
distingue-se uma inúmera quantidade de eventos. A Universidade Fernando Pessoa
organizou o Colóquio 50 anos de Vida Literária de Vasco Graça Moura, a 31 de
Maio de 2012 na Faculdade de Ciências, com a intervenção de diversos estudiosos
sobre a produção literária do homenageado168. Realizou-se também uma
165
Esta estratégia editorial em voga surgiu nos anos 80 do século passado, sendo até então somente
reservada a autores consagrados de vasta bibliografia, muitas vezes esgotada. Foi o caso, por exemplo, das
obras completas de Ruy Belo, Sophia de Mello Breyner ou Eugénio de Andrade.
166
De entre as diversas distinções literárias atribuídas ao autor, contam-se as seguintes: Prémio Gulbenkian
de tradução da Academia das Ciências de Lisboa (1978); Prémio de ensaio da Associação dos Jornalistas e
Homens de Letras do Porto (1985); Prémio Pessoa (1995); Grande Prémio de Tradução do PEN Clube
Português (1996); Prémio Jacinto do Prado Coelho (ensaio, da Associação Internacional dos Críticos
Literários (1998); Prémios literários das Câmaras Municipais do Porto e de Lisboa; Medalha de Ouro do
Comune di Firenze (1998); Grande Prémio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores (1999);
Prémio de Poesia do PEN Clube Português (1999); Premio Internazionale la Cultura dei Mare, San Feüce
Circeo (2002); Distinção nos 30 anos do 25 de Abril, na área da literatura, Árvore-Cooperativa de
Actividades Artísticas (2004); Coroa de Ouro do Festival de Struga (Macedónia, 2004); Prémio
Internazionale Diego Valleri, Monselice (2004), atribuído à sua tradução das Rimas de Petrarca; Grande
Prémio de Romance e Novela da APE (2004); Prémio de Tradução Paulo Quintela, da Faculdade de Letras
de Coimbra, atribuído à sua tradução das Rimas de Petrarca (2006); Prémio Vergílio Ferreira da
Universidade de Évora (2007); Prémio Clube Literário do Porto (2010); Prémio Europa-David Mourão
Ferreira, da Universidade de Bari (2103), e o Prémio Morgado de Mateus (2013). Este vasto reconhecimento
leva o periódico francês Le Monde (27 Avril 2014) na notícia da morte de Graça Moura a considerá-lo de
uma cultura abissal, bem como “Grande figure de la vie publique portugaise, écrivain prolifique, traducteur,
avocat et homme politique”.
167
Eduardo Lourenço e Rui Vieira Nery (coord.), Colóquio Homenagem a Vasco Graça Moura, Lisboa,
Fundação Calouste Gulbenkian, 2014.
168
Cf. Eduardo Paz Barroso e Isabel Ponce de Leão (org.), “Vasco Graça Moura”, in Revista Artes entre
Artes, nº 75, Universidade Fernando Pessoa, 2012 e José Carlos Seabra Pereira, Vasco Graça Moura
46
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
mediador de Camões”, in Eduardo Paz Barroso e Isabel Ponce de Leão (org.), Revista Artes entre Artes,
nº 87, Universidade Fernando Pessoa, pp.10-12.
169
Maria do Céu Fialho e Teresa Carvalho (org.), A Vista Desarmada, o Tempo Largo. Antologia. Poetas em
homenagem a Vasco Graça Moura, Lisboa. Ed Quetzal, 2012.
170
Vide https://www.ccb.pt/Default/pt/Noticias/Noticia?A=252 (consultado em 9 Junho 2015).
171
Graça Moura não se enquadra nos ditames de uma determinada geração artística, uma vez que o conceito
desta conota a noção de convergências de ordem estética e cultural no contexto de uma época. Acresce que a
geração pós-moderna se caracteriza, em grande parte, pelo seu vincado eclectismo literário.
172
Nesta linha, Rui Carvalho Homem, numa colectânea por si elaborada, integra cinco poemas de Vasco
Graça Moura (o moinho de café, em praga, soneto da poesia narrativa, salmo 136 e omaggio a giacomo). O
poeta ombreia com vultos maiores da literatura nacional e estrangeira, como por exemplo, Fernando
Guimarães, Fernando Echevarría, Nuno Júdice, Charles Tomlinson, Elio Pecora, Seamus Heaney e Pilar
Pallarés (Cf. Rui Carvalho Homem, (org.), Identidades: alguns poetas europeus, Porto, Faculdade de Letras
da Universidade, 2005, pp. 81-88).
47
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
água filamento
no interior da lâmpada
cristal só por dentro
cintilação rápida
173
Esta feliz e lúcida expressão constitui de facto uma pedra de toque da poesia de Graça Moura. (Cf.
Fernando Pinto do Amaral, “A poesia neo-maneirista de Vasco Graça Moura”, in Vasco Graça Moura,
Poemas escolhidos (1963-1995), Lisboa, Ed. Bertrand, 1996, pp. 7-11.
174
Vasco Graça Moura, “imagem ágil”, in Revista Quadrante, nº 10, Associação Académica da Faculdade
de Direito da Universidade de Lisboa, Janeiro de 1962, p.14.
175
“Homenagem a Vasco Graça Moura”, in Diário de Notícias, 1 Fevereiro 2014, p. 39.
48
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
Não obstante, o fascínio pelas letras leva-o a organizar, numa notável dimensão
informativa e pedagógica, antologias evocativas de autores ou de temas universais.
As compilações, como é sabido, são condicionadas por critérios arbitrários e
subjectivos, bem como pela época em que são realizadas; no entanto, revelam a
profusão dos interesses do autor, bem como a notável atenção dispendida ao
fenómeno literário, que não esconde um particular gosto em divulgá-lo. Para além
de um interesse documental, essas colectâneas congregam o conhecimento de um
sentido estético globalizante, que convida o leitor a procurar e encontrar motivos de
identificação, gosto e de fruição estética. As escolhas, resultado de um notável
eclecticismo, revelam a prodigiosa erudição de Graça Moura, como se observa nos
próprios títulos das seguintes obras que assina: Os melhores contos e novelas
portugueses (3 volumes); Gloria in excelsis. As mais belas histórias portuguesas de
Natal; Natal… Natais, Oito séculos de poesia de Natal; 366 poemas que falam de
amor e O Binómio de Newton & A Vénus de Milo. Poesia e Ciência na Literatura
Portuguesa - Uma Antologia. É também o responsável pela selecção de obras da
colecção Grandes clássicos da literatura Portuguesa, da Editora DeAgostini, tendo
escrito uma nota bibliográfica para cada autor. Os títulos de estreia são Amor de
perdição de Camilo Castelo Branco e Poesia de Álvaro de Campos, fazendo parte
desta abrangente colecção também, entre outros, Gil Vicente; Camões, Almeida
Garrett, Alexandre Herculano, Júlio Dinis, Eça de Queirós e Aquilino Ribeiro.
Seguindo uma tradição antológica da poesia nacional, pontificada por vultos
importantes da cultura portuguesa176, Graça Moura selecionou, por exemplo, textos
de Pedro Homem de Mello, Vitorino Nemésio177.
176
Cf. Cabral do Nascimento (org.), Poesia portuguesa do século XII a 1915, Lisboa, Ed. Verbo, 1972;
Alexandre Pinheiro Torres, Antologia da poesia portuguesa do século XII ao século XX, Porto, Ed. Lello e
Irmão, 1977, Jorge de Sena (org.), Líricas Portuguesas, Lisboa, Ed. 70, 1984; Osvaldo Manuel Silvestre e
Pedro Serra (org.), Século de ouro. Antologia crítica da poesia portuguesa do século XX, Braga-Coimbra-
-Lisboa, Ed. Angelus Novus & Cotovia, 2002; Manuel de Freitas (org.) Poetas sem qualidades. Lisboa, Ed.
Averno, 2002; José Régio, Cabral do Nascimento e Jorge de Sena, Antologias universais-Líricas
portuguesas, Lisboa, Portugália Editora, 1958; Branquinho da Fonseca, Poesias, Lisboa, Ed.
Portugália,1966, Herberto Hélder, Edoi leloi doura. Antologia das vozes comunicantes da poesia moderna
portuguesa, Lisboa Assírio e Alvim, 1985; Luís Miguel Nava, Antologia de Poesia Portuguesa-1960/1990,
Lisboa, Ed. Caminho, 1991, Gastão Cruz, Quinze poetas do século XX, Lisboa, Ed. Assírio e Alvim, 2004.
177
Cf. Vitorino Nemésio, Antologia Poética, Porto, Ed. Asa, 2002, prefácio e selecção de Vasco Graça
Moura e Pedro Homem de Mello, Poesias escolhidas, selecção e prefácio de Vasco Graça Moura, Porto, Ed.
Asa, 2004.
49
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
50
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
180
Idem, ibidem, p. 9.
181
Genette refere que as funções paratextuais de um prefácio escrito por um autor diferente do autor da obra
(“préface allographe”, na designação do estudioso francês), são as de apresentação e comentário a um livro.
Este efeito estimulante da obra prefaciada, simultaneamente intelectual e afectivo, confere-lhe uma
legitimação que constitui uma recomendação ao leitor. (Cf. Gérard Genette, Seuils, Paris, Editions du Seuil,
1987, p. 166).
182
Jorge Reis-Sá e Rui Lage (org.), Poemas Portugueses. Antologia da Poesia Portuguesa do Séc. XIII ao
Séc. XXI, Porto, Porto Editora, 2010, p. 7.
51
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
183
Miguel Torga, Antologia poética, Coimbra, ed. autor, 1981, p. 7.
184
Vasco Graça Moura, Alguns amores de Ronsard, Lisboa, Ed. Bertrand, 2003, p. 18.
52
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
185
Cf. “Vasco Graça Moura vence Prémio de Tradução 2007 do Ministério da Cultura italiano”, in Público,
16 Abril 2008, p. 30.
186
María Morrás refere com acuidade a dimensão diacrónica e divulgativa que a tradução encerra: “La
traducción de un texto, literario o no, implica su recepción en un espacio, una lengua y, a menudo también,
un tiempo distantes a aquellos que rodearon su creación. Por ello, cada época y cada comunidad de lectores
actualiza de acuerdo con unos valores culturales y unos usos lingüísticos propios unas traducciones cuya
validez tiene siempre fecha de caducidad” (Cf. María Morrás, “El debate entre Leonardo Bruni y Alonso de
Cartagena: las razones de una polémica”, in Quaderns. Revista de traducción, nº 7, 2002, p. 34).
187
Vasco Graça Moura, Poemas escolhidos, Venda Nova, Ed. Bertrand, 1996, p. 474.
53
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
colaboração com Marianne Sandels e Ana Hatherly, traduziu, entre outros autores
suecos, poemas de Werner Aspenström, Gunnar Ekelöf, Lars Forsssell, Lars
Gustafsson e Tomas Tranströmer188. Este último, granjeado com o Prémio Nobel
em 2011, surgiu pela primeira vez em português pela pena de Graça Moura189, que
editou em parceria com Ana Hatherly a colectânea 21 poetas suecos190. Tem
traduzido alguns dos maiores clássicos da literatura europeia: Horácio, Ronsard,
Shakespeare, François Villon, Edmond Rostand, Racine, Corneille, Jaime Sabines,
Garcia Lorca, Gottfried Benn, Walter Benjamin e Rainer Maria Rilke191. Pela
fortuna editorial, O triunfo de amores e as Rimas, de Petrarca, bem como a Vida
nova e a Divina comédia de Dante – obras imortais da poesia italiana – vêm
preencher uma lacuna no diálogo literário nacional com a literatura italiana, tendo
adquirido Graça Moura por direito próprio um lugar cimeiro na recepção destes
autores em Portugal192. No que diz respeito ao corpus traduzido verifica-se um
forte intuito de divulgação e motiva o desejo ao leitor de conhecer na íntegra outros
textos.
O continuado exercício de tradução deve ser entendido como um prolongamento
natural da sua própria escrita que assim estabelece pontes entre a cultura
portuguesa e a estrangeira, sobretudo europeia, como explicitamente canta em
rondó da escrita:
188
Registe-se que Graça Moura não dissimula, num processo intelectual honesto, a falta de domínio seguro
da língua de partida e afirma recorrer a versões intermediárias ou a outros tradutores nas línguas que lhe
oferecem dificuldade.
189
Este autor sueco aparece invocado em carta de inverno, prova cabal da influência na sua criação poética:
“nunca conheci tomas tranströmer / mas traduzi poemas dele / com a ajuda do coração bilingue de mariane
sandels” (PR2, p. 60).
190
Ana Hatherly e Vasco Graça Moura (org.), 21 poetas suecos. Antologia poética, Lisboa, Ed. Vega, s/d.
191
Vide na bibliografia final deste trabalho a rubrica dedicada às traduções de Vasco Graça Moura.
192
Vejam-se os seguintes textos críticos sobre as traduções de Graça Moura: Xosé Manuel Dasilva,
“Petrarca na voz portuguesa de Vasco Graça Moura”, in Giovanni Biagioni (dir.), Estudos Italianos em
Portugal, nº 1, 2006, pp. 103-111; Xosé Manuel Dasilva, “O Canzoniere de Petrarca traduzido por Vasco
Graça Moura”, in Rita Marnoto (coord.), Petrarca. 700 anos, Instituto de Estudos Italianos da Faculdade de
Letras da Universidade de Coimbra, 2005, pp. 33-52; Luciana Stegagno Picchio, “Vasco Graça Moura
tradutor de Petrarca”, in op. cit., pp. 13-27; João R. Figueiredo, “Resposta à conferência de Luciana
Stegagno Picchio”, in op. cit., p. 29; Mário Santos, “Petrarca segundo Graça Moura”, in Público, 1
Novembro 2003, p. 30; João Barrento, “Vasco Graça Moura: os riscos do decassílabo”, in O poço de Babel.
Para uma poética da tradução literária, Lisboa, Ed. Relógio d’Água, 2002, pp. 229-231; idem, “O ser e o
canto. Rilke pela mão de Vasco Graça Moura”, in Rainer Maria Rilke, Elegias de Duíno e os sonetos de
Orfeu, tradução de Vasco Graça Moura, Lisboa, Ed. Quetzal, 22017, pp. 7-15.
54
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
e traduzindo me escrevi
e a escrever fui eu quem
“Nesse rondó procuro conciliar duas ideias. Uma julgo que vem de George Steiner, para quem
a nossa própria expressão já é uma tradução, quer no nosso íntimo, que de coisas que se
conjugaram na nossa percepção, na nossa experiência, na nossa cultura acumulada. A outra é que
quando traduzo também me assumo como autor, portanto também há aquilo que faço como
tradutor uma afirmação pessoal da minha própria individualidade”.193
“Traduzo para conhecer melhor uma obra ou um autor. Para conhecer melhor a minha própria
língua. Para me conhecer melhor. E também como uma espécie de desporto, de luta corpo a corpo
com uma língua estrangeira e com a sua concretização num dado texto literário”.196
Torna-se sempre difícil rastrear os motivos que levam um poeta com obra
próprio a traduzir outros autores. Não obstante, no caso concreto de Graça Moura,
como é anunciado, a tradução, sob o signo da comunhão, emerge do conhecimento
literário colhido noutras vozes, do exercício linguístico e também da compulsão
para a escrita que se expande com as palavras de outros poetas197. O ofício de
tradução, instrumento fundamental do diálogo intercultural, plasma-se na sua
sensibilidade estética e, sem trair os textos originais, revela conhecimento das
193
Rodrigues da Silva, “VGM. Testamento e futuro”, in JL. Jornal de Letras, Artes e Ideias, 3 Outubro
2001.
194
Cf. Vasco Graça Moura, “Eu não sou um tradutor profissional” (Entrevista de Elisabete França), in
Diário de Notícias, 28 Agosto 2002, p. 35.
195
João Barrento, “A terceira voz: quem fala no texto traduzido?”, in Poço de Babel. Para uma poética da
tradução literária, loc. cit., p. 109.
196
Vasco Graça Moura, “As confissões de um tradutor de poesia”, in Relâmpago. A tradução em poesia,
nº 17, 2005, p. 94.
197
A este respeito, Graça Moura sustenta: “Na verdade nunca escrevemos nada que nos pertença por inteiro,
nem nada que nos seja completamente alheio, porque a escrita dos outros nos espelha medularmente,
traduzir é também assumir esse facto de transpersonalização com uma clareza mais peremptória e nas
modalidades facultadas pelo nosso tempo” (Cf. Vasco Graça Moura, Poemas escolhidos, loc. cit., p. 472).
55
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
198
Em resposta à questão posta por Lionel Ray acerca do ofício da tradução, reproduzida em entrevista a
Miguel Real, Graça Moura afirma: “Il y a surtout un dialogue avec les œuvres littéraires qui m’ont fort
impressionné et dont le texte m'accompagne depuis de longues décennies. Il est très rare que je me décide à
entreprendre une traduction d’après un programme préalablement établi. Je ne sais jamais qui je vais traduire
plus tard. Il faut que le texte se mette à réverbérer dans ma tête, qu'il y ait des fragments qui surgissent tout à
coup dans ma langue, que ces fragments gagnent, comme par hasard, leur dorme portugaise. Alors je sais
que la traduction de ce text mûrit et ‘demande’ à être faite…” (Cf. Miguel Real, António Carlos Cortez e
Carlos Leone, “Vasco Graça Moura”, in Revista com vida nº 2, 2010, p. 150).
199
Cf. “Divina Comédia com retratos de Júlio Pomar”, in Jornal de Notícias, 20 Novembro 2006, p. 36.
200
Octavio Paz, Versiones y diversiones, Barcelona, Ed. Galaxia Gutenberg, 2000.
201
Vasco Graça Moura, “João Barrento e o poço de Babel”, in Discursos vários poéticos, Lisboa, Ed. Verbo,
2013, p. 315.
202
Idem, ibidem, p. 313.
56
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
“A actividade de tradução a que se consagra cada vez mais e com mais intensidade, para além
do mérito de revelar aos leitores de língua portuguesa alguns dos mais prestigiados,
representativos e fundacionais escritores das literaturas estrangeiras (as suas traduções de
Shakespeare, Dante e Petrarca são já definitivamente marcos na história da tradução em
Português), confirma Vasco Graça Moura como um hábil manejador da Língua, de cujas
potencialidades plásticas, expressivas e estéticas detém elevada consciência. E ainda que o
traduttore implique sempre, de alguma forma, o traditore, Vasco Graça Moura procura dar do
texto de que partiu a imagem mais rigorosa e aproximada que a nossa língua pode permitir,
evitando exibir as cicatrizes da conversão.”204
Tal como nas antologias por si organizadas, a tradução, e tudo o que envolve
esta actividade, revela uma necessidade imperiosa de partilha, num processo de
auto-tradução de si mesmo. Neste impulso dedica um interessante e lúcido conjunto
de textos consagrados a esta matéria: Traduzir Petrarca205, Traduzir Shakespeare.
Várias versões do Hamlet em português e o mais que adiante se verá 206, Tradução
e passagem do tempo207, Cunhal e o rei Lear208 e Homenagem a Paulo Quintela209.
Entre outros méritos, as edições das traduções são concebidas a pensar no leitor
pelos importantes e actualizados estudos introdutórios que junta ao seu trabalho,
apontando aspectos tradutológicos relacionados com o texto e com contexto em que
essa tradução se realizou. Assim, quer a qualidade das traduções, quer as reflexões
veiculadas nos paratextos iniciais fazem de Graça Moura uma referência para quem
quiser ler ou estudar poetas estrangeiros de reconhecida importância.
Dotado de uma primorosa preparação humanística, colhida desde jovem, foi-lhe
possível realizar traduções de grande fôlego como a Divina comédia de Dante. O
prefácio deste volume, provido de uma explícita vertente metapoética, abre com
uma reflexão sobre o complexo acto de traduzir, expressa recorrentemente na
203
No âmbito da tradução, de entre os autores contemporâneos contam-se Jorge de Sena, David Mourão
Ferreira, Eugénio de Andrade ou, no âmbito restrito da literatura hispânica, José Bento.
204
Isabel Morujão de Beires e Pedro Vilas-Boas Tavares, “Proposta de candidatura de Vasco Graça Moura
ao Prémio Vergílio Ferreira”, in http://ler.letras.up. pt/uploads/ ficheiros/5629.pdf (consultado em 10
Dezembro 2013).
205
Vasco Graça Moura, “Traduzir Petrarca”, in Rita Marnoto (coord.), Petrarca. 700 anos, loc. cit., pp. 53-
-61.
206
Idem, Várias vozes, Lisboa, Ed. Presença, 1987, pp. 210-228.
207
Idem, Discursos vários poéticos, loc. cit., pp. 327-333.
208
Idem, ibidem, pp. 340-346.
209
Idem, ibidem, pp. 347-367.
57
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
210
José Mário Silva (in http://bibliotecariodebabel.com/tag/vasco-graca-moura/) afirma, em Julho de 2009,
que Vasco Graça Moura iria ser editor consultivo da International Literary Quarterly. A notícia é dada no
blogue da revista:“The Editors of The International Literary Quarterly are delighted to announce that Vasco
Graça Moura, the Portuguese poet who has authored many collections including Uma carta no inverno,
Testamento de VGM and Laocoonte, Rimas Várias, Andamentos Graves, who has translated Dante’s La
Divina Commedia, and the complete sonnets of Shakespeare into English, in addition to translations of work
by writers such as Gottfried Benn, Seamus Heaney, Petrarch, Rilke, and who was a Member of the European
Parliament for the Social Democratic Party-People’s Party Coalition, has kindly agreed to act as a
Consulting Editor of the review with effect from Issue 8” (consultado em 11 Novembro 2015).
211
Vasco Graça Moura, Garcia Lorca: o Romanceiro e o Pranto, Lisboa, Ed. Quetzal, 1998, p. 7.
212
André Lefevere, Traducción, reescritura y la manipulación del canon literario, Salamanca, Ed. Colégio
de España, 1997, p. 77.
213
Miguel Torga (Cf. Diário XVI, Coimbra, Ed. Gráfica de Coimbra, 1993, p. 39) assinala que “Traduzir é,
primordialmente, um acto de amor. Só quem for tocado na mente e no coração pela singularidade radical de
uma voz sente a necessidade e o gosto de a alargar aos ouvidos do mundo”.
214
Dão conta desta prolixa produção, por exemplo, os textos coligidos em Vasco Graça Moura, Discursos
vários poéticos, loc. cit.
58
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
215
Cf. Fernando Venâncio salienta que o século XX é prolífero em escritores cultores da crónica, entre os
quais Graça Moura, o que, pela sua índole crítica e conotativa, aproxima-se da literatura e afasta-se da
natureza referencial do texto jornalístico (Cf. Fernando Venâncio, A crónica jornalística do século 20,
Lisboa, Ed. Círculo Leitores, 2004, p. 7).
216
O autor de Sonetos familiares refere, com efeito, a sua propensão polemista: “A polémica é estimulante, é
lúdica e a mim diverte-me. Mas eu não intervenho apenas no circunstancial, ocupo-me de muitos outros
assuntos: literatura, música, artes plásticas. Infelizmente, as pessoas ligam mais a uma tomada de posição
política do que a um texto sobre Tristão e Isolda” (Cf. Rodrigues da Silva, “Ele não é tão mau como isso”, in
JL. Jornal de Letras, Artes e Ideias, 7 Junho 1995, p. 14).
217
Vasco Graça Moura, “O cadáver adiado”, in Diário de Notícias, 2 Janeiro 2013, p. 54.
218
A verticalidade de Graça Moura em nota de apresentação ao seu livro Acordo ortográfico: a perspectiva
do desastre, leva-o afirmar: “Trata-se de um contributo que faço na tripla qualidade de escritor, de cidadão e
de político, e com consciência de ter cumprido nesta matéria os meus deveres cívicos e culturais em tudo o
que estava ao meu alcance” (Cf. Vasco Graça Moura, Acordo ortográfico: a perspectiva do desastre,
Lisboa, Ed. Alêtheia, 2008, p. 6). Outros textos do autor publicados depois deste volume sobre a mesma
matéria são os seguintes: “O reino da estupidez” (in Diário de Notícias, 29 Junho 2011, p. 54), “Intimação
ao professor Malaca” (in Diário de Notícias, 8 Agosto 2012, p. 54), “O Acordo, outra vez” (in Diário de
Notícias, 21 Novembro 2012, p. 54, “Urgentemente” (in Diário de Notícias, 9 Janeiro 2013, p. 54).
59
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
219
Vasco Graça Moura, “A escola e a cultura”, in Os meus livros, Janeiro 2004, p. 12; “Os livros pois”, 14
Junho 2006, p. 54; “Vbi sunt?”, [sobre o livro Literatura no ensino secundário, de José Cardoso Bernardes],
in Diário de Notícias 21 Junho 2006, p. 54; “A literatura em perigo”, in Diário de Notícias, 24 Janeiro 2007,
p.54; “O ensino do Português”, in Diário de Notícias, 13 Novembro 2013, p. 54; “A urgência da literatura”,
in Diário de Notícias, 15 Janeiro 2014, p. 54 e “O ensino do português e o acordo ortográfico”, in Diário de
Notícias, 22 Janeiro 2014, p. 54.
Registe-se as escolhas do autor de um cânone literário para os programas escolares, propondo a inclusão
de literatura estrangeira produzida até finais do século XIX, uma vez que o cânone do século XX ainda não
está completamente estabilizado. Assim a sua proposta é a seguinte: “A Ilíada e a Odisseia (Homero), a
Bíblia, o Édipo Rei e a Antígona (Sófocles), a Eneida (Virgílio), as Metamorfoses (Ovídio), as Odes
(Horácio). Depois, a Divina Comédia (Dante), o Cancioneiro (Petrarca), o Decameron (Boccaccio), a
Utopia (Thomas More), O Príncipe (Maquiavel), o Orlando Furioso (Ariosto), o Pantagruel (Rabelais), os
Ensaios (Montaigne), os Sonetos e o teatro de Shakespeare (pelo menos Hamlet, Rei Lear, Romeu e Julieta,
Júlio César, Macbeth e Othello), o D. Quixote (Cervantes), La vida es sueño (Caldéron), as Soledades
(Gôngora), as Fábulas (La Fontaine), Robinson Crusoe (Daniel Defoe), as Viagens de Gulliver (Swift).
Seguem-se Orgulho e preconceito (Jane Austen), o Prelúdio (Wordsworth), o Candide (Voltaire), as Odes
(Keats), os Poemas de Hölderlin, o Fausto (Goethe), a Comédia Humana de Balzac (pelo menos Le Père
Goriot, Eugénie Grandet, Illusions Perdues, Splendeurs et Misères des Courtisanes), La Chartreuse de
Parme e Le Rouge et le Noir (Stendhal), os romances de Dickens (pelo menos David Copperfield, Oliver
Twist e The Great Expectations), Crime e Castigo (Dostoievsky), Les Fleurs du Mal (Baudelaire), Madame
Bovary (Flaubert), Folhas de Erva (Walt Whitman), os Monólogos dramáticos (Browning), as Poesias de
Mallarmé, as Poesias de Rimbaud, os Sonetos a Orfeu e as Elegias de Duino (Rilke), a Recherche de Proust
e o Ulisses de Joyce” (Cf. Vasco Graça Moura, “A minha ária do catálogo”, in Diário de Notícias, 29
Agosto 2012, p. 54).
220
Em Lusitana praia, o autor num capítulo intitulado “Camões e a kalashnikov” colige quinze artigos
saídos na imprensa escrita, de onde, entre outros, se destacam: “Os novos Hunos”, “O big brother e a língua
portuguesa”, “A literatura no ensino da língua portuguesa” e “Kolmi” (Cf. Vasco da Graça Moura, Lusitana
praia, Porto, Ed. Asa, 2004, pp. 65-115). Pedro Mexia, sobre esta obra, afirma: “São peças eruditas, onde a
cada passo se pressente a existência de uma vastíssima biblioteca e de uma visão enciclopédica que lembra
Óscar Lopes. E não é apenas literatura, Graça Moura disserta sobre matérias histórias, políticas, e mesmo
sobre temas mais minuciosos, como a heráldica. Mas há também aqui um lado guerrilheiro, de polemista
com verve e graça” (Cf. Pedro Mexia, “Memória e critério na cultura”, in Diário de Notícias, 21 Outubro
2005, p. 42).
221
Acerca de uma polémica travada nos jornais entre Inês Duarte e Graça Moura, veja-se http://ciberdu-
vidas.pt/controversias.php?act=list&subtype=TLEBS&start=50 (consultado em 10 Outubro 2013).
Observe-se ainda dois textos mais recentes sobre esta matéria: “Ainda a TLEBS”, in Diário de Notícias, 15
60
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
“Quando um produto é perigoso para a saúde pública, logo as autoridades o mandam retirar
da circulação e venda. A situação é parecida. A TLEBS é um composto de alta perigosidade para a
‘saúde pública’ escolar, como já foi demonstrado de inúmeras maneiras, no plano científico, no
plano jurídico, no plano pedagógico e no plano prático.”222
Janeiro 2006, p. 54 e “A ditadura dos linguistas”, in Diário de Notícias, 4 Setembro 2012, p. 54. Para uma
perspectiva de conjunto sobre este assunto, vide António Emiliano, “Dossier TLEBS”, in http://www.
fcsh.unl.pt/Docentes/aemiliano /documentos_diversos/TLEBS.html (consultado em 1 Dezembro 2013).
222
Vasco Graça Moura, “TLEBS em 2007”, in Diário de Notícias, 3 Janeiro 2007, p. 54.
223
Idem, “A autópsia do Tioneu”, in Diário de Notícias, 22 Novembro 2006, p. 54.
224
Como cronista, vejam-se os seguintes volumes de Vasco Graça Moura: Circunstâncias vividas, Lisboa,
Ed. Bertrand, 1995; idem, Papéis de jornal. Crónicas e outros materiais, Lisboa, Ed. Bertrand, 1997; idem,
Contra Bernardo Soares e outras observações, Porto, Ed. Campo das Letras, 1999.
225
Pedro Mexia, “Tradição, técnica, talento”, in Diário de Notícias, 1 Abril 2005, p. 42.
226
Vasco Graça Moura, “A urgência da literatura”, in Diário de Notícias, 15 Janeiro 2014, p. 54. Reitera a
concepção referida no seguinte passo: “Hoje temos todos a consciência de que a literatura é um instrumento
do conhecimento e corresponde a um meio de funcionamento ao nível da sociedade que vai muito mais
longe. Penso que seria agradável que a escola portuguesa, tanto ao nível de docentes, como de discentes,
tivesse a capacidade de conjugar estas perspectivas com o território, tantas vezes esquecido, das
Humanidades” (Vasco Graça Moura, “Apresentação”, in Helena Buescu e António Carlos Cortez (org.)
Presente e futuro: a urgência da Literatura, Lisboa, Ed. Centro Cultural de Belém, 2014, p. 13).
61
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
227
António Pinto Ribeiro, Abrigos: Condições sobre as cidades e energia da cultura, 2004, Lisboa, Ed.
Cotovia, 2004, pp. 123-151. Publicou quatro artigos de Vasco Graça Moura intitulados “Subversão e
subvenção I, II, III e IV”, saídos no Diário de Notícias, respectivamente a 18 e 25 de Setembro, bem como a
2 e 9 Outubro de 2002.
228
Vasco Graça Moura, “Ainda Santarém e o seu património”, in Diário de Notícias, 22 Novembro 2001,
p. 54; idem, “Châteaux do Loire e castelo de Alcanede”, in Diário de Notícias, 7 Agosto 2002, p. 54.
229
Nesta linha, o autor sustenta que “a criação cultural de uma dada época histórica corresponde a um
processo multipolarizado e flutuante, em permanente refiguração e interactividade” (Cf. Vasco Graça
Moura, “A cultura portuguesa em finais do século XX”, in Lusitana praia, loc. cit., p. 36. Veja-se também,
como exemplo, o sucessivo interesse mantido ao longo dos anos: Vasco Graça Moura “Sopinha dos pobres”,
in Diário de Notícias, 8 Setembro 2010, p. 54.
230
No Centro Cultural de Belém, entre as muitas iniciativas de cariz cultural (comemorações do Dia
Mundial da Poesia, ciclos de colóquios sobre escritores, a homenagens, ou maratonas de leitura), Graça
Moura conseguiu realizar um movimento de abertura do CCB aos temas literários, onde pontificam a figura
62
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
Numa prolixa produção literária, Graça Moura é poeta pouco dado à angústia do
acto criativo, como o próprio confessa em nota paratatextual aos seus Poemas
escolhidos:
“Não sou um autor que viva a tortura da página em branco ou a agonia visceral da produção
literária. Escrever é, sem dúvida, para mim, uma pulsão absolutamente necessária e um modo
verbal de estar no mundo.”232
Com efeito, a angústia da influência, conceito cunhado por Bloom233, não parece
ter lugar no universo poético de Graça Moura, que, com elevado grau de confiança,
proclama também a citação e a intertextualidade234. Daí que se justifique a máxima
grega de Apeles, referida na Naturalis Historia de Plínio, o velho, “nulla dies sine
linea”, epígrafe ao poema 9. glosa para José Aurélio, (PR2, 283) que valoriza o
trabalho contínuo do fazer poético.
de Camões, a língua latina e a mitologia greco-latina. Integrado nestes múltiplos interesses, organizou, por
exemplo, com o apoio do Centro Nacional de Cultura, o 1º Encontro “Presente e Futuro: A Urgência da
Literatura, reflexão plural que procura lançar novas interrogações sobre a literatura, quer na sua dimensão
social, quer estética. Para tal contou com o testemunho de prestigiadas figuras nessa área (Cf. Helena Buescu
e António Carlos Cortez (org.) Presente e Futuro: A urgência da literatura, loc. cit.).
231
Perante o inegável valor do poeta, o grupo Estoril-Sol, em parceria com a editora Babel, criou, em 2014,
o Prémio Vasco Graça Moura Cidadania Cultural, vocacionado para distinguir um vulto da cultura
nacional, em memória do homenageado, pela sua invulgar atividade intelectual. O primeiro vencedor do
galardão foi Eduardo Lourenço. Por seu turno, a Imprensa Nacional-Casa da Moeda instituiu, em 2015, o
Prémio INCM/Vasco Graça Moura, antigo administrador da empresa e responsável pela esfera editorial. O
galardão terá uma periodicidade anual e visa distinguir obras inéditas nas áreas de actuação onde Graça
Moura se destacou: poesia, ensaio e tradução. Vide https://www.incm.pt/portal/vgm_premio. jsp (consultado
em 15 Setembro 2015). Em 2105, História do século vinte, obra de José Gardeazabal, foi distinguida com o
Prémio INCM/Vasco Graça Moura na primeira edição dedicada à Poesia. Em 2016, Francisco Pedreira, com
a sua obra Uma aproximação à estranheza, foi distinguido com o prémio de Ensaio INCM/Vasco Graça
Moura. Ainda instituído pela editora Modo de ler, o Prémio Poesia Vasco Graça Moura 2015, teve o
surpreendente número de 230 concorrentes, não obstante o galardão não foi atribuído por falta de qualidades
dos trabalhos. Em 2016, este prémio foi atribuído a Nuno de Figueiredo (Dias verticais, Porto, Ed.
Afrontamento-Ed. Modo de Ler, 2017). José da Cruz Santos, responsável da referida editora, a sucessora da
extinta Editorial Inova, que foi a primeira chancela de Graça Moura com diversas edições, promoveu no
Porto a primeiro colóquio que lhe foi dedicado e a primeira homenagem que foi prestada ao escritor (Cf.
“Prémio VGM: 230 concorrentes”, in JL. Jornal de Letras, Arte e Ideias, 14 Outubro 2015, p. 3). Para além
disso, a Feira do Livro do Porto de 2014 homenageou Vasco Graça Moura no ano da sua morte; o poeta foi
lembrado, através do simbolismo de uma tília plantada, bem como numa sessão comemorativa com um
título de um poema seu: Todo o poema é perfeitamente impuro (Patrícia Carvalho, “Feira do Livro do Porto
homenageia Vasco Graça Moura este ano e Agustina Bessa-Luís em 2015”, in Público, 2 Setembro 2014,
p. 32).
232
Vasco Graça Moura, Poema escolhidos, loc. cit., p. 471.
233
Harold Bloom, Angústia de influência, Lisboa, Ed. Cotovia, 1991.
234
Fernando Matos Oliveira, “A descontração melancólica de Vasco Graça Moura”, in José da Cruz Santos
(org.), Modo mudando, loc. cit., p. 46.
63
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
“a palavra poética
235
Neste âmbito, Graça Moura confessa: “interessa-me muita a técnica, elaboradíssima, sobretudo quando
passa despercebida”. Este pensamento está em consonância com muitos dos seus versos, influenciados pelo
jogo de ocultação da metáfora floral dos tratados maneiristas e barrocos (Cf. Helena Barbas, “Retrato a
sanguínea”, in Expresso/Cartaz, 21 Janeiro 1995, p. 21). Em entrevista a José Carlos Vasconcelos e Maria
Leonor Nunes, reitera: “Fio-me na questão técnica, na capacidade artesanal de produzir um texto” (Cf.
“Vasco Graça Moura, meio século de escritas”, in JL. Jornal de Letras, Artes e Ideias, 27 Junho 2012,
p. 11).
236
Esta convergência aproxima-se da concepção artesanal de poesia preconizada por Sophia de Mello
Breyner Andresen (Cf. “Arte poética II”, in Obra poética, Lisboa, Ed. Caminho, 2010, p. 839).
237
Ao longo dos tempos, de acordo com o contexto histórico-literário e com a dinâmica dos movimentos
estéticos, foram-se modelando diversas imagens do poeta (Cf. Mikel Dufrenne, Le Poétique, Paris, PUF,
2
1973).
238
Esta concepção, próxima da poesia quinhentista, não esconde a sua preferência pela ars, a superioridade
da razão sobre a emoção, que se liga ao trabalho cuidado e metódico, contribuindo de modo decisivo para
aperfeiçoar a actividade do poeta e, consequentemente, a obra por ele criada. A valorização da ars
privilegiava o saber teórico e reflexivo; cabia a este esforço disciplinador, que cada poeta lucidamente
deveria observar ao longo da sua aprendizagem. Tal concepção encontra-se em Horácio, na sua Epistula ad
Pisones, v. 309, ao exigir ao bom poeta um sólido saber, fonte de onde a poesia deveria brotar: “Scribendi
recte sapere est et principium et fons”. (Cf. Aníbal Pinto de Castro, “Os códigos poéticos em Portugal. Do
Renascimento ao Barroco”, in Revista da Universidade de Coimbra, vol. XXXI, 1985, pp. 505-531).
64
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
O eu lírico encara o seu trabalho com uma “longa aprendizagem”, assente numa
continuada disciplina que passa pela consciência lúcida e precisa da produção
poética239. Esta tendência é recorrente nos versos do autor, definindo-se artesão
capaz, no seu labor, de rasurar e voltar a escrever, constituindo uma marca
distintiva da sua poesia240. Esta meditação aponta para uma prática filiada
essencialmente na concepção horaciana do trabalho aturado da criação lírica, uma
vez que Graça Moura não acredita na perfeição suprema, mas na sua demanda: “Há
quem escreva persistindo numas rilkeanas / imagens delicadas […] / como se o
verso fosse uma coisa pura”. (PR1, 439)
Entendida como artefacto do exercício verbal, esta concepção valorativa confere
ao poeta o estatuto de artifex, visto que é um detentor de uma técnica específica na
construção laboriosa da palavra, claramente reiterada nos seguintes versos:
“eu acredito
mas é na técnica. nunca a inspiração
me deu fosse o que fosse. nem um grito.
239
Como notou Aguiar e Silva, este processo integra-se nos ideais clássicos, uma vez que a essência da
poesia reside na técnica e no labor paciente que permite a transfiguração da matéria tratada. (Cf. Vítor
Manuel Aguiar e Silva, Para uma interpretação do classicismo, Coimbra, Ed. Coimbra Editora, 1962,
p. 78).
240
Este ideal, de matriz horaciana, traduz-se no desejo de equilíbrio e harmonia fundamento do ideal
clássico. (Cf. Segismundo Spina, Introdução à poética clássica, S. Paulo, Ed. Martins Fontes, 1995, pp. 27
sqq).
241
António Ferreira, Poemas lusitanos, edição crítica, introdução e comentário de T. F. Earle, Lisboa,
Fundação Calouste Gulbenkian, 22008, p. 307.
65
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
“O poema é, para mim, também uma espécie de desdizer e, sempre, um produto instintivamente
calculado e cerebral, aparentemente contraditório, lugar de investimento de uma técnica que lhe é
essencial, mesmo quando se pretende uma efusão lírica que nunca existe em estado puro”. 242
Síntese sugestiva que se ajusta à sua poesia, a fulguração lírica, como foi
referido, conjuga a “técnica” e a “melancolia”, que, no seu dizer, é “razão do
vivido” (PR2, 400). Este último lexema de grande fortuna semântica, identificado
geralmente como uma profunda tristeza, comporta acepções que variam entre o
fisiológico e o psicológico-moral, numa heterogénea constelação de valores:
espiritualidade, imaginação ou narcisismo243. Deste modo, “aquela / melancolia
como escrevo as minhas coisas” (PR2, 165), como frisou Aguiar e Silva, constitui
uma preocupação humanista herdada do século XVI e do Maneirismo, sobretudo de
matriz camoniana, convertendo-se em coordenadas fundamentais para compreender
esse período histórico244.
Com efeito, esta faceta saturniana da existência, constitui um princípio
estruturante da produção literária de Graça Moura e permite discernir alguns
aspectos relevantes em que mergulham os seus pensamentos245. Deste modo, em
entrevista concede uma dimensão nuclear a princípio:
242
Vasco Graça Moura, Poemas escolhidos, loc. cit., p. 473.
243
Fernando Pinto do Amaral, “Na órbita de Saturno. Um ponto de vista sobre a melancolia e as suas
relações com alguma literatura”, in Na órbita de Saturno, Lisboa, Ed. Hiena, 1982, pp. 117-148.
244
Sobre o conceito de melancolia e estudos sobre o tema, veja-se Vítor Manuel Aguiar Silva, “As canções
de melancolia: aspectos do maneirismo de Camões”, in Camões: labirintos e fascínios, Lisboa, Ed. Cotovia,
1994, pp. 209-210.
245
Como notou Peter Hanenberg, o título da colectânea Instrumento para a melancolia sugere um conjunto
de recursos recorrentes de Graça Moura que configura um autor virtuoso no estilo, nas formas e nas figuras
(Cf. Peter Hanenberg, “Navegações pela terra-firme da poesia sobre Vasco Graça Moura”, in Revista
Máthesis, nº 9, 2000, p. 163)
66
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
“A melancolia tem muito a ver com um certo sentido de uma ordem perdida do mundo. E com
um certo sentido de incapacidade fonciére da plenitude do mundo. Nos melancólicos isso gera um
lado mais saturniano, mas humoral, mais irónico e mais reflexivo”.246
“É uma forma sombria de ver o mundo, muitas vezes agonizada, que normalmente reclama
uma expressão artística, ligada a um certo pathos na relação com o mundo ou a um certo
maneirismo estilístico”.247
246
Vasco Graça Moura, “Tudo passa pela disciplina e esforço”, in http://www.seleccoes.pt/vasco-gra%C3%
A7a_moura_%C2%ABpassa_tudo_pela_disciplina_e_o_esfor%C3%A7o#sthash.hHoqFo0J.dpuf (consulta-
do em 10 Janeiro 2014).
247
Ana Marques Gastão, “Entrevista para o Diário de Notícias de Vasco Graça Moura”, in José da Cruz
Santos (org.), Modo mudando, loc. cit., p. 22.
248
De entre muitos passos dedicados a melancolia, veja-se o seguinte extraído do capítulo Anatomia da
melancolia na narrativa Alfreda ou a Quimera, em que João Saraiva discorre: “A melancolia tem sempre a
ver com um desfasamento do ser humano em relação ao mundo. E eu estava a ficar cada vez mais
melancólico, por muitos esforços que fizesse para que ninguém notasse essa propensão sombria por muito
que me tentasse convencer de ser essa uma fase passageira e pouco significativa que passaria num estalar de
dedos, assim eu achasse que achasse realmente a pena”. (Cf. Vasco Graça Moura, Alfreda ou a Quimera,
Lisboa, Ed. Bertrand, 2008, p. 108).
249
Wallace Stevens, “Adagia”, in Opus Posthumous, New York, Ed. Alfred A. Knopf, 1972, p. 160.
250
Na predilecção por este tema, Graça Moura destaca a transversalidade da melancolia, marca distintiva
nacional que atravessa, por exemplo, a pintura e a música (Cf. Vasco Graça Moura, “Sobre a melancolia em
Portugal”, in Contra Bernardo Soares e outras observações, Porto, Ed. Campo das Letras, 1999, pp.111-
-114.
251
Idem, ibidem, p. 213.
67
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
“Teria de ver a melancolia, no protótipo que nos vem desde a célebre gravura do Albrecht
Dürer, como a atitude fundamental de desfasamento metafísico em relação ao mundo, mesmo o
mais anodinamente quotidiano, que esses artistas experimentam e exprimem. A violência, os
pressentimentos surdos, a contemplação tingida de amargura perante uma realidade quotidiana e
anódina, surpreendida como estranhamente intimidante e hostil, ganham um relevo extraordinário
para a inteligibilidade mais profunda desse período.”252
252
Vasco Graça Moura, A morte de ninguém, Lisboa, Ed. Quetzal, 1998, p. 23.
253
Para João Barrento, a melancolia é uma modalidade saturniana, ou seja, subjectiva e difusa do
conhecimento do mundo. (Cf. João Barrento, “O astro baço - a poesia portuguesa sob o signo de Saturno”, in
A palavra transversal, Lisboa, Ed. Cotovia, 1996, pp. 79-94).
68
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
Com efeito, Graça Moura a quem, no dizer de Eduardo Lourenço, “os deuses
concederam a graça de ser um grande poeta”255, possui um inegável arrebatamento
subjectivo e uma notável pulsão intimista.
Um poema consagrado a Eugenio Montale com um verso seu, que serve também
de epígrafe, “la furiosa passione per il tangibile”, apresenta indubitavelmente
marcas líricas256:
“só
as colunas mastreavam partida.
ele partiria uma outra vez, movido de cruéis engenhos,
de impiedade, da furiosa paixão pelo tangível, halo que
em várias vozes variamente ardia”. (PR1, 373)
254
Em entrevista, o autor (Cf. Miguel Real et alii, “Vasco Graça Moura”, in Revista Letras com vida -
Literatura, cultura e arte, nº 2, 2º semestre, 2010, p. 156) afirma: “o grande desafio, para mim, é um
equilíbrio esteticamente eficaz entre cerebralidade e sensualidade”.
255
Eduardo Lourenço, “Vasco Graça Moura”, in Público, 1 Fevereiro 2014, p. 30.
256
A título de exemplo, outros poemas que seguem uma linha de indubitável cariz lírico e intimista são uma
invenção da penumbra (PR2, 514) e obscura matéria (PR2, 520).
69
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
257
Veja-se no poema Hino de Luis Borges a bela alusão às rosas: “Esta manhã / há no ar a incrível
fragrância / das rosas do paraíso” (Jorge Luis Borges, Obras completas, vol. III - 1975/1985, Lisboa, Ed.
Teorema, 1998, p. 321). Este apreço pelo escritor argentino manifesta-se também num texto crítico. Veja-se
Vasco Graça Moura, “A poética de Jorge Luis Borges”, in Contra Bernardo Soares e outras observações,
loc.cit., pp. 219-221.
258
Veja-se o interessante estudo de Maria Teresa Schiappa de Azevedo, “Fernando Pessoa e o nome das
flores: o girassol e o malmequer,” in Rostos de Pessoa, Coimbra, Ed. Almedina, 2000, pp. 53-80.
70
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
259
Fernando Pinto do Amaral, “A poesia neo-maneirista de Vasco Graça Moura”, in Vasco Graça Moura,
Poemas escolhidos, loc. cit., p. 9.
260
Vasco Graça Moura, Antologia dos sessenta anos, Porto, Ed. Asa, 2002, p. 157.
71
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
261
As seguintes palavras do autor estão em consonância com essa ideia: “A contemplação do mundo que os
poemas de amor envolvem é inseparável da consciência da finitude e da ilusão da eternidade. No poema de
amor joga-se o efémero contra o absoluto. E quanto mais arriscado for esse reenvio mais mobilizador será o
poema na sua aposta e mais melancólica será a sua voz na sua expressão” (Cf. Miguel Real et alii, in Letras
Com Vida - Literatura, Cultura e Arte, nº 2, 2º semestre de 2010, p. 157).
262
Veja-se o estudo de Óscar Lopes em torno dos múltiplos sentidos interpretativos que as mãos
representam: Óscar Lopes, “As mãos e o espírito”, in Uma arte de música e outros ensaios, Porto, Ed.
Oficina Musical, 1986, pp. 151-176.
263
Com particular acuidade, Aguiar e Silva sustenta que em Graça Moura a poesia configura uma dimensão
culturalista que “se afirma como um discurso híbrido de emoção e de pensamento em que se fundem
experiências biográficas e correlativos culturais proporcionados por uma enciclopédia espantosamente
complexa, abarcando a literatura e a pintura, a música e a filosofia …” (Cf. Vítor Aguiar e Silva, “A outorga
do Prémio Morgado de Mateus a Vasco Graça Moura”, in Brotéria, nº 180, 2015, p. 174).
72
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
“A obra poética de Graça Moura revisita sob um olhar culto e esteticizante as relações entre a
poesia e certas artes como a pintura e a música, de cujos labirintos tão fascinantes colhe muitas
vezes preciosas fontes para a génese dos seus poemas”.264
264
Fernando Pinto do Amaral, “A poesia neo-maneirista de Vasco Graça Moura”, in Vasco Graça Moura,
Poemas escolhidos, loc. cit., p. 8.
265
Márcia Arruda Franco (Cf. “Aves mudaves de M.C. Escher no poema de Vasco Graça Moura”, in
http://www.criticaecompanhia.com.br/marciarruda.htm - consultado em 15 Abril 2014) destaca que, na
poesia nacional contemporânea, Jorge de Sena foi o pioneiro na composição de poemas a partir de imagens
ou composições musicais, seguindo Graça Moura de perto esse processo criativo.
266
Este preceito haurido na Ars Poetica de Horácio, que prevaleceu ao longo do dos tempos nas estéticas
clássicas, recorda que a pintura se prende com a representação poética da natureza; logo a poesia, como a
pintura, é uma arte de imitação celebrizado pelo famoso símile de notação quiástica de Simónides de Ceos
sobre a pintura e a poesia, preservado pelo testemunho de Plutarco: a pintura é poema tacitum e a poesia é
pictura loquens (De Gloria Atheniensium, 346, F). A pintura, considerada a arte representativa da realidade
por excelência, ergue-se como fundamento de todas as outras, e a referida comparação, usada também por
Cícero, Quintiliano e outros tratadistas da Antiguidade até aos nossos dias, valoriza a poesia como arte
mimética, conferindo-lhe legitimação estética. (Cf. Vítor Manuel de Aguiar e Silva, “Relações da literatura
com outras artes”, in Teoria e Metodologia Literárias, Lisboa, Universidade Aberta, 1990, pp.159-179;
Carlos de Miguel Mora, “Os limites de uma comparação: ut pictura poesis”, in Ágora. Estudos clássicos em
debate, nº 6, Departamento de Línguas e Literaturas da Universidade de Aveiro, 2004, pp. 7-26; Joana
Matos Frias, “Vt pictura poesis non erit”, in Relâmpago. Poesia e artes visuais, nº 23, 2008, pp. 163-178).
73
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
267
A este propósito, Graça Moura lamenta, em entrevista, não ter cursado História de Arte, Música ou
Belas-Artes (Cf. Helena Barbas, “Retrato a sanguínea”, in Expresso-Cartaz, 21 Janeiro 1995, p. 21).
268
Esta relação artística está patente na reprodução de obras plásticas escolhidas para as capas e interior dos
livros de Graça Moura. Este diálogo havia de se tornar uma marca distintiva, visto que a maioria dos seus
livros apresenta outro tipo de criação artística. Assim escreveu sobre desenhos, fotografias, pinturas e outras
manifestações artísticas ou dando a elas origem. Intitulou colectâneas ou poemas com o nome de artistas ou
de obra, bem como lhes dedicou, noutros casos, textos. Sensível à expressão pictórica, publicou textos em
conjunto com trabalhos de pintores (v.g., Graça Morais) e editou também livros com pequenos ensaios sobre
alguns artistas plásticos portugueses. A título exemplificativo vejam-se as seguintes obras do autor:
Arredores da família, com desenho de Nahir Parente; Instrumentos para a melancolia, com três desenhos de
José Rodrigues, Concerto campestre, com pintura de Henrique Pousão; Garrett, numa cópia perdida do Frei
Luís de Sousa, com fotografia de Ana Gaiaz; Laocoonte, rimas várias, andamentos graves, com fotografia
da estátua de Laocoonte; Musa da música, com pintura de Cruz Filipe; Imitação das artes, com pintura de
Jorge Pinheiro; Artes poéticas. Pequena antologia reflexiva com uma aguarela de Mário Botas; Uma carta
de Inverno, com pintura de Piero della Francesca; Poemas com pessoas, com fotografias de Gérard Castello-
-Lopes.
74
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
269
Este espaço cultural ocupa uma preocupação constante no pensamento de Vasco Graça Moura (Cf.
“Sobre os museus”, in Contra Bernardes Soares e outras observações, loc. cit., pp. 75-81).
270
Em interessante ensaio Graça Moura apresenta uma reflexão que é simultaneamente um testemunho
sobre a sua experiência criativa e em particular sobre a sua experiência como poeta. Considera, no referido
texto, “a criação artística uma via para o conhecimento, mas sem ter de estar cerebralmente presente no
trabalho do autor em cada momento da sua actividade” (Cf. Vasco Graça Moura, “O fazer através e por cima
das fronteiras”, in Ana Gabriela Macedo et alii (org.), XIII Colóquio de Outono. Estética, cultura material e
diálogos, Universidade do Minho, Ed. do Centro de Estudos Humanístico, 2012, p. 81).
75
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
“passeando
no louvre, uma vez, de mãos dadas, e a custo
atravessando magotes excitados de turistas,
representação.” […]
271
Fernando Matos Oliveira (“Poesia e museologia em Vasco Graça Moura”, in Inimigo Rumor, Revista de
poesia Brasil e Portugal, nº12, Rio de Janeiro, 1° semestre de 2002, p. 14) dá conta da “natureza
museológica que envolve todo o projecto poético de VGM”. E acrescenta que “o museu ideal de VGM seria,
por isso mesmo, aquele que concentrasse a diversidade e a riqueza patrimonial dos grandes museus públicos
com a circulação restrita das coleções privadas. [...] É sob estas condições ideais – onde o burguês se
reconcilia com o mundo da arte – que a poesia de VGM tem preferencialmente visitado o museu, dando
absoluta primazia às obras ‘realmente’ boas” (Cf. idem, ibidem, p. 15).
76
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
272
Grant F. Scott realça, na fruição da arte, a importância da ligação estreita entre a écfrase e os museus (Cf.
Grant F. Scott, The sculpted word: Keats, ekphrasis, and the visual a rts, loc. cit., p. xi).
273
Fernanda Conrado, “Eleonora di Toledo: ekphrasis em Jorge de Sena”, in Gilda Santos (org.), Jorge de
Sena em rotas entrecruzadas, Lisboa, Ed. Cosmos, 1999, p. 91.
274
Há uma similitude no gosto de Catarina, personagem de Naufrágio de Sepúlveda, sobre este processo
compositivo: “Tinha analisado, em cada peça, os tipos de pincelada, de velocidade de execução e de
acabamento, percorrera os inventários conhecidos e pertinentes dos três últimos séculos, cotejara as obras
umas com as outras, analisara os trajos, sobretudo os mais exóticos e os já fora de moda no tempo de
Rembrandt, sobretudo os de origem italiana, com que ele se tinha representado. Estudara possíveis
influências do Ticiano e do Caravagio, tentava situar as fontes de luz e, porque esta incidia num jorro de
ouro escuro, quase sempre, a partir da esquerda, aproveitava para formular a hipótese de o atelier do pintor
ter grossos vidros amarelados ou não ser voltado ao norte.” (Cf. Vasco Graça Moura, Naufrágio de
Sepúlveda, Lisboa, Ed. Quetzal, 1988, p.110).
275
Nas páginas que dedica a esta questão, Graça Moura destaca: “é de salientar a importância crescente do
processo da ekphrasis, isto é, da representação verbal de uma obra de arte visual, cuja teorização está na
moda nos meios universitários norte-americanos e que desde os anos sessenta, com as metamorfoses de
Jorge de Sena fizeram uma entrada triunfal na nossa literatura. Muita da nossa poesia escrita nos últimos
anos busca essa relação especial com obras da criação artística noutros domínios (e também Jorge de Sena
escreveu uma Arte da Música) procurando-lhes equivalentes ou simulando-lhes as características através da
palavra” (Cf. Vasco Graça Moura, “A cultura portuguesa em finais do século XX”, in Lusitana praia, Porto,
Ed. Asa, 2005, p. 45).
276
De larga fortuna desde a Antiguidade, este expediente literário caracteriza-se pela pormenorização ou
comentário de uma obra de arte, seja uma pintura, uma escultura ou outro tipo de manifestação artística, e
tem como modelo ímpar a célebre descrição, no canto XVIII da Ilíada, do escudo de Aquiles (Cf. Vítor
Manuel Aguiar e Silva, “Relações da literatura com outras artes”, in Teoria e metodologia literárias, loc.
cit., pp. 163 sqq).
277
Gérard Genette, “A obra de arte-imanência e transcendência”, in Kelly Basílio (org.), Concerto das artes,
Porto, Ed. Campo das Letras, p. 17.
278
Murray Krieger, Ekphrasis: the illusion of the natural sign, Baltimore-Londres, The Johns Hopkins
University Press, 1992, p. 11.
77
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
279
Graça Moura organizou uma antologia pessoal, onde dá conta da sua poesia ecfrástica, e na introdução
destaca: “Onde quero chegar com a ecfrase? Antes de mais incorporar sinais de outros ‘fazeres’ no meu
fazer poético. Coisas que me marcaram, processos e resultados que mexeram comigo e ficaram a ‘remoer-
me’ por dentro e que eu tenho necessidade de retomar com a minha utensilagem específica. É também uma
forma de ‘tradução’ que não me surge só na poesia. No romance Partida de Sofonisba às 6.12 da manhã há
passagens ecfrásticas sobre a Ginevra de’Benci de Leonardo da Vinci e sobre um quadro de Eduardo Luís,
para além de todo o livro girar em torno de um quadro ‘extraviado’ e de autor desconhecido” (Cf. Vasco
Graça Moura, Imitação das artes: antologia ecfrástica, Porto, Ed. Asa, 2002, p. 12).
280
Cf. Luís Quintais, “A ekphrasis como meta-representação”, in Relâmpago. Poesia e artes visuais, nº 23,
2008, p. 94.
281
Em notas a variações metálicas, em registo metatextual, fala na dimensão visual dos seus poemas:
“surgiram directamente da contemplação das peças, procurando eu que o texto funcionasse como uma
modalidade da sua representação verbal, ou seja, ecfrástica.[…] Todos procuram reencontrar-se com um
jogo criativo e, por sua vez, se propõem como exercício literário, ao mesmo tempo autónomo e
complementar, sobre uma série de experiências visuais e de processo de literalidade e alusão: metáforas
predominantemente elaboradas sobre referentes metálicos; controlo lírico das intervenções da memória e da
78
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
“Na nossa literatura moderna, o recurso a este processo, inaugurado, suponho com um poema
de Eugénio de Andrade sobre Augusto Gomes e outro de Jorge de Sena sobre O Patinir das
Janelas Verdes, nos idos de 50, só ganha foros de cidade com Metamorfoses de Jorge de Sena a
partir de 1963, embora, desde então, seja abundante, muito variado e frequente nos mais diversos
autores, entre eles o destas linhas”.282
“Ler um texto (plástico, musical, literário, etc.), implica uma busca de sentido e não uma busca
de gratuidades mais ou menos travestidas de conceptuais. [...] Trata-se de abordar aquilo que me
‘diz’ coisas suficientemente importantes para me fazer ‘dizer’ por minha vez aquilo que preciso de
exprimir”.283
história e das citações (e recitações…) abrindo caminho para outros planos; amostragem muito diversificada
relativamente às áreas criativas do escultor” (PR2, 565-566).
282
Vitorino Nemésio, Antologia Poética, apresentação e selecção de Vasco Graça Moura, Porto, Ed. Asa,
2002, p. 14.
283
Cf. “Vasco Graça Moura. Entrevista. Sou fundamentalmente um poeta de circunstâncias vividas”, in
Inimigo Rumor, Revista de poesia Brasil e Portugal, nº 12, Rio de Janeiro, 2002, p. 12.
79
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
284
Sobre esta vexata quaestio, Graça Moura dirá em entrevista: “Não me interessa muito a introspecção
regiana nem a insinceridade pessoana. O poeta fabrica cada um dos seus momentos e propõe a sua
qualificação como ficção de qualquer coisa, sobrepondo-se à mentira e/ou à verdade. Isto é, estas são
categorias ‘fabricadas’ a partir do próprio poema – nisso está a sua autenticidade – com todas as armas de
que disponha para se prender à realidade ou desprender dela, transformando-a ou transtornando-a. Dante e
Petrarca, Camões e Cesário, Lorca e Eliot, Álvaro de Campos e Drummond de Andrade, João Cabral e Jorge
de Sena, Borges, Nemésio e David são nomes em que me revejo como autor” (Cf. Miguel Real et alii,
“Vasco Graça Moura”, in Letras Com Vida - Literatura, cultura e arte, nº2, 2º semestre de 2010, p. 157).
285
Vasco Graça Moura, Caderno de olhares, loc. cit., pp. 9-16 e pp. 32-39, respectivamente. O poeta, como
crítico de pintura escreveu inúmeras páginas fundamentais sobre a pintura e pintores em Portugal. A obra
referida resulta de uma prática de escrita motivada pela contemplação de quadros e constitui um elemento de
trabalho imprescindível para aqueles que procuram compreender a personalidade de Graça Moura através da
clarificação de sentidos de uma das suas artes preferidas: a pintura.
286
Diana Pimentel, “No ‘labirinto’, a liberdade: estudo sobre a relação entre ekphrasis e hipertexto em
Vasco Graça Moura”, in Revista de Estudos Literários, nº 2, Centro de Literatura Portuguesa - Faculdade de
Letras da Universidade de Coimbra, 2012, pp. 379-408.
287
Vasco Graça Moura, “Piranesiana”, in Relâmpago. Poesia e artes visuais, nº 23, 2008, p. 94.
80
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
“Preparava-me eu para falar da minha relação com Giovanni Battista Piranesi (ver, neste
caderno de fantasias cromáticas, piranesiana) e da impressão que sempre tive de haver algo de
figuração dantesca nas suas prisões imaginárias, daí puxando para alguma notas melancólicas do
meu poema, quando me ocorreu que seria muito mais interessante (e tecnicamente muito mais
problemático) falar de uma figura oculta ou repintada num quadro, daquilo a que normalmente se
chama ‘desenho subjacente’. Digo muito mais problemático porque a tentativa de representação
verbal deixa de referir-se a uma obra de arte visual, para ser sobre uma hipótese abandonada dela.
E dei por mim a escrever sobre Vénus adormecida de Giorgione, com uma alusão à Vénus de
Urbino de Tiziano…” (PR2, 552)
288
Joana Matos Frias (“Vt pictura poesis non erit”, in Relâmpago. Poesia e artes visuais, nº 23, 2008,
p. 165) sustenta que o pendor predominantemente visual da ekphrasis favoreceu o desenvolvimento de uma
metalinguagem, integrando o campo pictórico no espaço lírico.
289
É de realçar que este recurso, comos e observa, é recorrente na sua poesia. Com efeito, o poeta invoca as
meninas em Sonetos familiares, recria com humor o célebre quadro de Velasquez Las niñas, Degas ou texto
em diálogo com Mário Botas (Nó Cego). Também produz poemas a partir de Picasso, De Chirico, Jorge
Pinheiro, entre tantos outros.
290
Rosa Maria Martelo (Cf. Vidro do mesmo vidro: tensões e deslocamentos na poesia portuguesa depois de
1961, Porto, Ed. Campo das Letras, 2007, p. 48) dá conta desta recorrente prática: “Hoje, a poesia
portuguesa mantém-se frequentemente em diálogo com a tradição poética e artística (através da citação, da
reformulação ou da ekphrasis) muitas vezes associando esse diálogo a um processo de evocação que se
combina com um efeito de realismo e um registro lírico”.
81
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
“pintava cordeirinhos
em óbidos, josefa,
dispondo em alvo linho
uvas, figos, cerejas,
conventuais compotas,
doces de calda espessa,
caixas, cristais, talheres,
fruteiras e travessas, […]
e em tudo isto conferia
ingénua transcendência
à natureza morta”. (PR2, 417)
291
Esta atitude recorrente de variedade e combinação entre literatura e artes plásticas, num sentido de arte
total, é recordada por Alberto Casiraghy nos libricini, pequenos livros feitos manualmente de tiragem
numerada, limitada e única que combinam fotografias, xilografias desenhos ou litografias com poemas ou
aforismos. Neste contexto, em busca de uma certa beleza perdida com o devir do tempo, que contrasta com
as edições impressas, o artista italiano dedica a Graça Moura os últimos libricini (números 8864, 8865, 8869
e 8877) inseridos na exposição 9000 formas da felicidade: as edições Pulcinoelefante, exibida na Biblioteca
Nacional de Portugal entre Outubro de 2014 e Janeiro de 2015 (Cf. “O padeiro dos livros felizes edita uma
obra por dia”, in Diário de Noticias, 25 Outubro 2014, p. 29).
292
Graça Moura demonstra conhecer com significativa segurança os temas em torno de naturezas mortas;
invoca, para além de Josefa de Óbidos, Fantin Latour, Eduardo Viana e Caravggio, para se deter na
abordagem de num quadro de Juan Sánchez Cotán (1560-1627), que está no Museu de Arte de San Diego.
Sobre o quadro, representando um marmelo, uma couve, melão e um pepino, efectua uma homenagem ao
artista contemporâneo Eduardo Luís, estabelecendo afinidades estéticas entre os dois artistas: “E assim,
escolher esta peça é homenagear um grande pintor português do século XX por via de uma das suas fontes
do século XVII. E faço-o também por ver nesta peça um exercício precursor de muito do que veio depois, no
severo ascetismo da representação (Cotán veio a tomar-se frade cartuxo no ano seguinte a ter pintado este
quadro), na minúcia fotográfica no tratamento de cada elemento figurado, no exercício sobre luz, sombra,
perspectiva, tridimensionalidade e encenação a que ele corresponde, na poética da sobriedade despojada e da
perícia geométrica assim desenvolvida, e ainda numa estranheza da figuração que poderia ser afim de algum
surrealismo metafísico do século XX” (Cf. Vasco Graça Moura, “Geometria e noite de mundo”, in JL.
Jornal de Letras, Artes e Ideias, 27 janeiro 2010, p. 20).
82
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
pintar exibem uma obra em movimento, a ponto de conceder uma visão ampla do
quadro. Na contemplação da representação iconográfica do poema, pode-se
observar o universo de relações contido nos seus elementos, que, na concretização
de fixar as imagens, prefigura uma “tentação ecfrástica”, expressão cunhada por
Krieger.293 Na representação enunciada, com uma harmonia das qualidades
plásticas, longe da profusa enumeração caótica surrealista, a imagética, sob o signo
do preceito ut pictura poesis, é motivada pela figura simbólica do agnus dei.
Neste apreço pelas artes visuais, Graça Moura escreve o poema o princípio de
m. c. escher (II) (PR1, 351-352) sobre Dia e Noite, um dos seus mais famosos
quadros de Escher, ao qual dedica ainda dois poemas: o princípio de m. c. escher
(I) (PR1, 338-342) e o princípio de m. c. escher (III) (PR1, 355-357).
O incipit do primeiro poema enunciado constitui uma celebração da palavra
associada às imagens concebidas pelo artista holandês:
293
Murray Krieger, “Imagem e palavra, espaço e tempo: a exaltação - e a exasperação - da ekphrasis
enquanto assunto”, in Kelly Basílio (coord.), Concerto das artes, loc. cit., p. 143.
294
Roland Barthes, “L’ancienne rhétorique. Aide-mémoire”, in Communication, nº 16, 1970, p. 183.
295
Na introdução a Imitação das artes, o poeta afirmará sobre esta série ecfrástica: “Nos três poemas de a
sombra das figuras que intitulei o princípio de m.c. escher (I, II e III), há tentativas estruturantes que se
pretendem estritamente de índole contrapuntística, e portanto musical, e também de ordem imagética ligada
83
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
escher, pensar uma grafia cautelosa” (PR1, 213). Em registo contrastivo, as aves
negras são “opostas companheiras, escurecem o dia, voam baixo, / no ar para onde
fogem ocupando o intervalo das outras”. Pelo contrário, as aves “brancas só cortam
o espaço, exactas guias, / entre o voo das pretas”. O poema tem, como é recorrente
em Escher, uma forma circular: começa e termina por descrever o voo, oposto e
recíproco, de dois bandos de aves, o das brancas e o das negras. Os primeiros
versos cantam “é quando as aves brancas voam para a noite que /as aves negras
voam para o dia”; por sua vez, os derradeiros: “é quando / as aves brancas voam
para a noite que, no avesso, voam para o dia as aves negras e lá, onde se cruzam, as
cinzentas”. Marcia Franco Arruda, num estudo sobre a recepção de Sá de Miranda
e Jorge de Sena na obra de Graça Moura, afirma acerca dos versos em torno de
Escher:
“Ao lançar mão da ekphrasis, o poema de Graça Moura relê a tópica Sena/Miranda,
oferecendo uma resposta particular e criativa, que deixa entrever não só um conhecimento
autónomo do poeta quinhentista, mas a produtividade da criação poética nesta área de ‘parda
fronteira’ entre a poesia e a gravura”.296
ao mundo de Escher, e portanto visual (aliás tudo inspirado por The Golden Braid, Gödel, Escher, Bach, de
Hofstadter)” (Cf. Vasco Graça Moura, Imitação das artes: antologia ecfrástica, loc. cit., p. 12).
Registe-se que o primeiro poema, com o subtítulo “prelúdio e fuga sobre um tema popular”, a contiguidade
entre o positivo e o negativo de algumas figuras de Escher, como a dos peixes ou das pombas, constrói-se
através da repetição característica da linguagem musical infantil, sendo a escrita do poema uma espécie de
decalque da gravura: “lá sai uma, saem as duas / as três pombas do papel / saem do bico da pena / que nesta
folha as escreve” (PR1, 338).
296
Márcia Arruda Franco, “Aves mudaves de M.C. Escher no poema de Vasco Graça Moura”, in
http://www.criticaecompanhia.com.br/marciarruda.htm (consultado em 15 Abril 2014). Veja-se também
Sandra Teixeira, “Sá de Miranda par Vasco Graça Moura”, in Colloque pluridisciplinaire: Nouvelles
perspectives de la recherche française sur la culture portugaise, Maison des Sciences de l´Homme de
Clermont-Ferrand, Chaire Sá de Miranda/CRLMC, EA 1002, 2007, pp. 135-143).
84
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
297
Em similitude com este poema, no tocante aos artistas nacionais confessa: “Para mim, que cresci vendo a
pintura dos artistas do Porto, esta questão é interessante pelo simples facto de haver pintores cuja genealogia
plástica me é mais fácil de estabelecer. Por exemplo, sou capaz de ver linhas de continuidade entre Augusto
Gomes, Júlio Resende e Armando Alves, ou Jorge Pinheiro e vários outros, mais facilmente do que entre
Júlio Pomar e qualquer outro grande pintor do nosso tempo. É possível que a minha sensibilidade a certos
traços de escola esteja condicionada por essa primeira aprendizagem visual e tão portuense. (Cf. Vasco
Graça Moura, “Julius Pomarius est hic”, in Diário de Notícias, 3 Abril 2013, p. 54).
85
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
O poeta que canta “sei de pintores que se inquietavam por / pressentirem uma
relação entre a cor e a palavra” (PR2,184), na contida confidência da metáfora da
aguarela, “arte da média burguesia”, sugere uma espécie de revelação poética por
via da cor e da luz. No entanto, metonímia da arte, a aguarela deflui para uma
determinada mundividência, uma vez que o tom dubitativo “afirma quase sempre a
realidade”, oscila entre um efeito mimético e uma dimensão imaginativa, que
conduz à noção de referencialidade, de particular relevo no domínio das artes
plásticas e da poesia. O eco explícito do poema De tarde de Cesário Verde299, bem
como do seu léxico (“aguarela”, “renda”, “grandezas”) traduz já a demanda da
298
A esta atitude positiva enunciada não deixa Graça Moura de manifestar apreciações negativas como esta
atribuída a uma personagem de Naufrágio de Sepúlveda: “Eu sempre achei as Demoiselles d'Avignon o
quadro mais detestável do século XX, uma espécie de negação intrínseca da Europa que consistiu
essencialmente em transferir a noção de horror, ou de monstruoso, do plano da representação da realidade
para o plano dos próprios processos, objectivos ou subjectivos, do acto de pintar, que se atreveu a
desarticular, em nome da pintura, um determinado sentido das formas em favor de uma violenta expressão
das forças, quem diria às obscuras figurantes de um bordel de Barcelona, mais precisamente da rua de
Avignon, encerradas pela memória implacável de Picasso” (Cf. Vasco Graça Moura, Naufrágio de
Sepúlveda, loc. cit., p.110).
299
Cf. Cesário Verde, Cânticos do realismo: o livro de Cesário Verde, introdução e nota bibliográfica de
Helena Carvalhão Buescu, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2015, p.130).
86
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
da pura oralidade
do gesto divino, da intenção
de as imagens e o tempo
se contraírem a partir da cor
das hortênsias”. (PR1, 343)
Não é possível vislumbrar a obra da artista onde o autor se terá inspirado devido
ao vasto conjunto que a mesma produziu. Assim, nesta omissão deliberada, o texto
dialoga com a criação plástica de Ilda David realçando a dimensão lírica da sua
pintura, apresentada como expressão de uma emancipação reveladora do processo
compositivo300.
Como se observa, a palavra poética, signo em constante rotação, adquire uma
natureza polissémica na depuração da leitura da pintura dos dois textos enunciados,
conduzindo a universos artísticos singulares proporcionados pela sugestão
conotativa das “magnólias” ou das “hortênsias”.
300
Manuel António Pina (Cf. “Poesia e artes plásticas”, in Revista Relâmpago. Poesia e artes visuais, nº 23,
2008, p. 100) reitera também a aproximação da artista à poesia do seguinte modo: “há ‘pintura’ que
reconheço como ‘poesia’ (o exemplo que imediatamente me ocorre na pintura portuguesa contemporânea é o
de Ilda David)”.
87
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
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Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
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Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
301
Esta constante alusão observa-se nas epígrafes dedicadas a pintores, de que são exemplo as seguintes:
“francisco relógio” (PR1, 17), “madeira luís” (PR1, 25), “francisco correia gomes” (PR1, 31), “antónio de
Lourenço” (PR1, 46), “isabel gentil” (PR1, 47), “abel costa” (PR1, 73) e “júlio pomar” (PR2, 384) . Este
fascínio surge também em títulos de poemas: georges braque par lui-même (PR1, 86), desenho de jorge
pinheiro (PR1, 311), glosas para josé aurélio (PR2, 283), pintura de júlio pomar.badinerie (PR2, 384).
302
No dizer de Graça Moura, Júlio Pomar “parece apostado em romper os próprios limites da pintura como
linguagem, tratando a imagem e os heterónimos de Pessoa por uma via em que Expressionismo e
Romantismo acabam por combinar-se com interrogações sobre a efemeridade e sobre a transformação da
representação por um instável sentido de tempo” (Cf. Vasco Graça Moura, “Poesia e outras artes”, in
Românica. Itinerários de Poesia, nº 8, 1998, p. 177).
303
Vasco Graça Moura, “Julius Pomarius est hic”, in Diário de Notícias, 3 Abril 2013, p. 54.
304
Júlio Pomar, Então e a pintura?, Lisboa, Ed. D. Quixote, 2002, p. 98.
90
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
Este encontro entre o autor da Maria da Fonte e o poeta decorre não só de uma
longa amizade recíproca, mas também do facto do poeta continuadamente se
debruçar sobre a relação do pintor com a literatura305. As cumplicidades estéticas
levaram Pomar a pintar vgm, tendo sido a obra apresentada na Fundação Calouste
Gulbenkian numa homenagem, referida já anteriormente, ao poeta pouco tempo
antes da sua morte. Curiosamente, a lembrar o conhecido Retrato do artista quando
jovem, romance da autoria de James Joyce, comenta o seu retrato em artigo de
jornal intitulado Retrato do artista quando adulto:
“Nos seus cinzentos e nas suas velaturas, no modelado da face acentuado aqui e ali por uma
espécie de chiaroscuro, este quadro de Pomar põe-me precisamente a questão de como pode
ajudar-me a conhecer-me melhor, agora, numa época mais tardia da vida, em que flashbacks e
retrospectivas autobiográficas são muito mais frequentes e vindos do íntimo da idade madura,
encontrando-se mais do que ultrapassada a rimbaldiana oisive jeunesse.
É um óleo em cuja gama de cinzentos e castanhos de que ressaltam um colorido e uma aura de
luminosidade inesperados, num efeito quase tridimensional, posso rever-me em uma série de
décadas da minha vida adulta ao contemplá-lo e também localizar com maior ou menor nitidez
nesses períodos vários estados de alma, meditações, tomadas de decisão, ironias, prazeres e
desprazeres, venturas e amarguras, tempos fortes e tempos fracos.”306
“O retrato é, em Pomar, uma ferramenta epistemológica, uma via de busca e de empatia para o
conhecimento da humanidade alheia. E aí, o procedimento plástico é menos da ordem do
305
Joana Monteiro conclui que “o universo pictórico de Júlio Pomar permitiu concluir que no modo
operativo intrínseco ao pintor, e consequentemente, na sua obra são detectáveis características muito
próprias que se inscrevem numa vontade permanente de reinventar, reinterpretar e revisitar temas de
períodos anteriores ou posteriores, motivos que desaparecem e reaparecem na sua poética. A fusão entre
uma prática oficinal, onde os recursos se multiplicam, e um saber-fazer notável tem como denominador
comum a descoberta, a experimentação e a transformação de que as séries temáticas são um exemplo
paradigmático” (Cf. Joana d’Oliva Monteiro, Júlio Pomar, Lisboa, Ed. Quidnovi, s/d, p. 80).
306
Vasco Graça Moura, “Retrato do artista quando adulto”, in Diário de Notícias, 5 Fevereiro 2014, p. 54.
307
A divina comédia de Dante, obra traduzida por Vasco Graça Moura com retratos de Júlio Pomar, edição
de luxo, Lisboa, Ed. Bertrand, 2006.
91
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
simbólico do que da ordem do encontro figural, do representativo por via da fixação de uma
semelhança que nos permita a reconhecibilidade da personagem na óptica essencial de quem a vê e
na técnica indissociável de quem a representa.”308
sobrancelhas espessas,
nariz nem muito ou pouco,
sinal na face esquerda,
308
Vasco Graça Moura, “Julius Pomarius est hic”, in op. cit., p. 54.
309
Esta perspectiva de auto-retrato, recorrente em Graça Moura e de forte repercussão na poesia nacional,
tem paralelo, entre outros, em Bocage, Alexandre O’Neill ou Herberto Hélder (Cf. Eunice Ribeiro, “O
autorretrato em literatura. Ilustração e ruína”, in Carlos Cruz Corais (org.), Encontros Estúdio Um, #8
Autorrepresentação, Braga, Escola de Arquitectura da Universidade do Minho, 2014, pp. 19-35).
92
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
310
Como se observa, Graça Moura compraz-se no recurso a descrições autobiográficas de corrosivo tom
irónico, numa paródia de lugares comuns dos géneros ligados à biografia, como no exemplicativo poema
gouvães: pias recordações (PR1, 362-368). Sobre o referido texto, Paula Morão observa que se trata de uma
“autobiografia em tons de irónica melancolia, que serve de móbil a uma paródia de tiques e lugares comuns
dos géneros ligados à biografia (Cf. Paula Morão, “Vasco Graça Moura. A lucidez obscura das figuras”, in
Viagens na terra das palavras, Lisboa, Ed. Cosmos, 1993, p. 93). Esta propensão retratista serve também de
mote ao conto “Indagação do rosto” (Cf. Vasco Graça Moura, “Indagação do rosto”, in Morte no retrovisor,
Lisboa, Ed. Quetzal, 2008, pp. 213-220).
311
João Barrento num curioso texto dedicado a Graça Moura, que oscila entre a poesia e o ensaio, declara:
“O retrato e o rosto e o poema-em-tradução / afirma assim a sua autonomia” (Cf. João Barrento, “Carta na
primavera para Vasco Graça Moura, in Isabel Ponce Leão e Eduardo Paz Barrosos (org.), Cinquenta anos de
vida literária de Vasco Graça Moura, Porto, Ed. Modo de Ler, 2012, p. 99.
93
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
“O poeta é um figurador
O poeta é um figurador, não
consta que fernando conhecesse varrão (de
ling. lat. 6, 78:
fictor cum dicit fingo figuram imponit)”
(V. G. Moura, recitativos ix)
Traduzo livremente a linha de Varrão:
“ao dizer ‘finjo’, o fingidor impõe uma imagem”.
Uma imagem que, diga-se já, não é imagem
que repete, imita ou reproduz o outro,
mas figura que o figura, o re-faz
enquanto coisa própria e viva.”317
312
Eunice Maria da Silva Ribeiro, “Sem título. Retratos e desfigurações: de Henrique Pousão a Vasco Graça
Moura”, in Carlos Mendes de Sousa e Rita Patrício (org.), Largo mundo alumiado. Estudos em homenagem
a Vítor Aguiar e Silva, Braga, Centro de Estudos Humanísticos, Universidade do Minho, 2004, p. 286.
313
Segundo Paula Morão, a questão do eu que se descreve a si próprio pertence à esfera da alografia, visto
que há sempre uma cisão mesmo que o observado e o observador sejam a mesma pessoa, o que a leva a
afirmar: “quem escreve vidas não escreve vidas verdadeiras: “o auto-retrato é um alo-retrato - é, em suma,
um retrato”. (Cf. Paula Morão, “Retrato e auto-retrato - fronteiras e limites”, in O secreto e o real. Ensaios
sobre literatura portuguesa, Lisboa Ed. Campo da Comunicação, 2011, p. 61).
314
Fernando Pessoa, Poesias, Lisboa, Ed. Ática, 41952, p. 237.
315
Vitorino Nemésio, Obras Completas - vol. II Poesia, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1989,
p. 323.
316
João Barrento, “O poeta é um figurador”, in JL. Jornal de Letras, Artes e Ideias, 17 Janeiro 2013, p. 10.
317
Idem, “Carta na primavera para Vasco Graça Moura”, in Isabel Ponce de Leão e Eduardo Paz Barroso
(org.), Vgm. Cinquenta anos de vida literária de Vasco Graça Moura, loc. cit., p. 96.
94
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
Os versos partem do “retrato à pena” de uma “citereia de trazer por casa”, deusa
do amor, confidente inspiradora do seu processo criativo, uma vez que, no dizer do
poeta, “medita intimamente/as coisas certas sobre o meu trabalho”.
Sensível ao apelo visual, Graça Moura é levado a questionar essa estratégia
poética precisamente em os rostos comunicantes:
95
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
e o retrato
ia ficando parecido no seu jogo de penumbras
imponderáveis, como um milagre fotográfico
entre perfumes vindos lá de fora e o bem-estar
do recanto. francisca aguardava, talvez submissa
320
Sobre o artista plástico, vide Bernardo Pinto de Almeida, Henrique Pousão, Lisboa, Ed. Assírio e Alvim,
1999 e António Rodrigues, Henrique Pousão, Lisboa, Ed. Círculo de Leitores, s/d.
96
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
Eunice Maria da Silva Ribeiro, “Sem título. Retratos e desfigurações: de Henrique Pousão a Vasco Graça
321
Moura”, in Carlos Mendes de Sousa e Rita Patrício (org.), op. cit., pp. 275-288.
97
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
322
Note-se que, em tom memorialista, Gouvães é o espaço privilegiado da diegese de Por detrás da
magnólia, que é referente também da produção lírica de Graça Moura (Cf. Vasco Graça Moura, Por detrás
da magnólia, Lisboa, Ed. Quetzal, 2004).
323
Sobre uma perspectiva diacrónica do retrato nas diversas artes, vide José-Augusto França, O retrato na
arte portuguesa, Lisboa, Livros Horizonte, 1981.
324
O particular gosto de Graça Moura pelo retrato estende-se também à narrativa, como se lê em Quatro
últimas estações: “Da filha de Maria Luísa e Joaquim Albano restavam apenas duas fotografias a sépia já
bastante estragadas e delidas, que deixavam entrever uma rapariga muito nova e muito bela, e um pequeno
retrato a óleo, de autor desconhecido, que lhe apanhara uma certa inexpressividade do olhar, um rosto de
mulher de um oval muito perfeito e muito moreno, e um cabelo muito preto, apartado em cachos para os
lados, a partir do meio da cabeça. Usava um vestido de veludo cor de cereja, com gola de rendas e mangas
de seda lavrada, em tons de pérola, que sobressaíam em reflexos moles contra os bordos da moldura larga de
gesso patinado a ouro velho, com florões em relevo. Chamava-se Mafalda” (Cf. Vasco Graça Moura, Quatro
últimas estações, Lisboa, Ed. Quetzal, 2008, p. 103).
98
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
325
Nesta linha, Eunice Ribeiro destaca o seu fundamento matricial: “a morte está no princípio do retrato”
(Cf. Eunice Ribeiro “Poéticas do retrato - o desgaste das figuras”, in Revista Diacrítica, nº 22/23, 2008,
p. 269). Vide ainda sobre este assunto, Daniel Tavares, “Do retrato e da ausência: Vasco Graça Moura &
Noé Sendas”, in Diacrítica, vol. 28, nº3, Braga, Centro de Estudos Humanísticos da Universidade do
Minho, 2014, pp. 275-288.
99
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
jutamente na paisagem.
sonharia qualquer deles,
giorgione ou tiziano, aí por 1510, que sob
326
Graça Moura destaca (Cf. PR2, 208) que uma imagem fotográfica é um dos motivos inspiradores da sua
colectânea garrett, numa cópia perdida do frei luís de sousa (31.12.1843).
100
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
327
Este texto, como nota Graça Moura, partiu de um pedido de Fernando Pinto do Amaral, que lhe solicitou
um poema ecfrástico inédito para publicar na revista Relâmpago e concluiu: “E dei por mim a escrever sobre
Vénus adormecida de Giorgione, com uma alusão à Vénus de Urbino de Tiziano…” (PR2, 552).
328
Cf. Vasco Graça Moura, O binómio de Newton & A Vénus de Milo. Poesia e ciência na literatura
portuguesa - uma antologia (em colaboração com Maria Bochichio), Lisboa, Ed. Aletheia, 2011.
329
António Pinto Ribeiro, Abrigos: Condições sobre as cidades e energia da cultura, Lisboa, Ed. Cotovia,
2004, p. 166. Neste contexto também Bernardo Almeida destaca: “Com o advento da digitalização da
imagem […] a relação com os museus tende para se virtualizar cada vez mais” (Cf. Bernardo Pinto de
Almeida, “A imagem do museu”, in Imagem da fotografia, Lisboa, Ed. Assírio & Alvim, 1995, p. 67).
101
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
“a média burguesia
desatou a tirar retratos nos picnics
A burguesia, que usa as máquinas fotográficas para “tirar retratos nos picnics /
ou a fixar as vistas que a comoviam”, ou seja, constitui uma prática social radicada
no momento espontâneo, banal e na emoção suscitada. A finalidade da fotografia
esgota-se nela própria, testemunhado na ironia do prosaico contida em “desatou a
330
Cesário Verde, Cânticos do realismo: o livro de Cesário Verde, loc. cit., p. 130.
331
A este propósito, Sontag considera a fotografia “um rito social”, uma vez que é vista como
entretenimento e não praticada como arte (Cf. Susan Sontag, Ensaios Sobre Fotografia, Lisboa, Lisboa, Ed.
D. Quixote, 1986, p. 18).
102
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
automático a
fuzilar-nos de amor na nossa imagem”. (PR1, 257)
332
Idem, ibidem, p. 24.
333
Roland Barthes, A câmara clara, Lisboa, Ed. 70, p. 112.
103
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
“não é só na fotografia
a tua imagem a apagar-se:
é muito mais o que eu não via
e surge agora sem disfarce.
334
No dizer de Philippe Hamon, devido ao advento da presença de suportes fotográficos no universo
artístico, a relação da literatura com as artes tem vindo a sofrer profundas alterações que se traduziram na
valorização da imagem em detrimento do preceito horaciano do ut pictura poesis. Assim, o referente a
descrever está na imagem recolhida e não na pintura, o que justifica a crescente importância do impulso
ecfrástico da fotografia na poesia contemporânea (Cf. Philippe Hamon, Imageries: littérature et image au
XIXe siècle, Paris, Ed. José Corti, 2004, p. 32).
335
Graça Moura tem um particular apreço pela obra fotográfica de Castello-Lopes e, quando da morte deste
em 2001, apresenta na sua crónica semanal no Diário de Notícias um sincero tributo ao artista numa análise
depurada: “O seu trajecto mostra-o capaz de privilegiar o flagrante feliz e também o efeito paradoxal, numa
atitude de olhar à sua volta que não seria muito distante da de um Cartier-Bresson ou de um André Kertézs.
Há nas suas fotografias um sentido denso, crítico mas não panfletário, de uma humanidade próxima de nós:
dir-se-ia, ao mesmo tempo, uma complacência à maneira de Alexandre O’Neill para com os nossos brandos
costumes e uma ironia poética e precisa, na representação de gente humilde nas calçadas de Lisboa, de
homens a verem o mar encostados a um muro alto da Ericeira, de cenas de taberna, de faces, figuras,
paisagens, pormenores, efeitos de luz e de sombra, cuja efémera estranheza ou singularidade ele se sentira
movido a fixar” (Cf. Vasco Graça Moura, “Gérard”, in Diário de Notícias, 15 Fevereiro 2001, p. 54).
336
Sobre a essência da dimensão fotográfica na linguagem poética de vgm e particularmente com a obra de
Castello-Lopes, Sandra Teixeira fala com pertinência em “poème photographié” (Cf. Sandra Teixeira,
“Poésie et photographie ou l’empreinte du regard poétique chez Vasco Graça Moura, Ana Luísa Amaral et
Al Berto”, in Cadernos de literatura comparada. Técnicas do olhar, nº 21, 2009, pp.152-155). Vide também
sobre o diálogo entre os dois artistas os seguintes artigos de Teresa Carvalho: “Em demanda de Moura.
Giraldomachias”, in Boletim de Estudos Clássicos, nº 43 (Junho 2005), pp. 169-180; “Em demanda da
104
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
Moura. Giraldomachias”, in Boletim de Estudos Clássicos, nº 44 (Dezembro 2005), pp. 195-205 e “Gérard
Castello-Lopes em demanda de Vasco Graça Moura: ut photographia poiesis?”, in Boletim de Estudos
Clássicos, nº 45 (Junho 2006), pp. 169-178.
337
Bíblia Sagrada, Lisboa-Fátima, Ed. Difusora Bíblica, 32001, pp. 1571-1572.
338
Gérard Castello Lopes apresenta uma curiosa analogia entre o labor poético e o do fotógrafo: “O poeta
interpreta uma realidade no seu poema, o fotógrafo interpreta o poema e dá-lhe uma realidade visual que,
mesmo sem ser exactamente justaponível à que exprime o poeta, poderá (deverá?) ter com ela, um ar de
família. Tudo que está em tudo” (Cf. Gérard Castello Lopes, Vasco Graça Moura, Em demanda de Moura =
a la recherche de Moura;Giraldomachias = Gerardomachies, Lisboa, Ed. Quetzal, 2000, pp. 114-115).
339
Cf. Vasco Graça Moura, “Gérard”, in Diário de Notícias, 15 Fevereiro 2001, p. 54.
340
Sontag afirma que o voyeur da classe média, adepto das alegrias e da observação do mundo, uniformiza o
significado de todos os acontecimentos e estabelece a fotografia como prolongamento do seu olhar do
flâneur (Cf. Susan Sontag, Ensaio sobre fotografia, loc. cit., pp. 20 e 57).
105
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
No entanto, o que interessa não é a imagem feita, mas antes o próprio fazer, as
suas modalidades de constituição; a colectânea poemas com pessoas, Graça Moura,
no texto ressonâncias de escala, reitera a essência da pulsão fotográfica da
linguagem poética341:
à máquina fotográfica.
por isso o imagino como se tivesse
ido a um subúrbio, em busca
de qualquer charco de água reflectindo
rasgões do mundo, sombras,
vestígios metafísicos
de alguma anódina passagem,
como se tivesse aproveitado
para assestar a objectiva com
o seu pequeno fole na cega
que cantava numa esquina
o fado a seco, sem fôlego,
junto ao prato de esmolas,
com um filho nos braços.
em casa, terá depois pousado
a camera obscura na mesa de trabalho
e transposto mentalmente
outras coisas a preto e branco
para uma intensa realidade”. (PR2, 62)
341
Esta estratégia enunciativa do poeta é sublinhada por Fernando Matos Oliveira: “Deve dizer-se que em
Vasco Graça Moura (VGM) a fotografia tende a assumir um vínculo figurativo que é por si da maior
importância, além de condição para certa felicidade ecfrástica.” (Cf. Osvaldo Manuel Silvestre, Pedro Serra
(org.), Século de Ouro. Antologia crítica da poesia portuguesa do século XX, Lisboa, Ed. Cotovia, p. 453).
106
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
“Interessava-o uma espécie de filosofia da imagem, mas sem quaisquer a prioris. Uma atitude
conceptual menos assente na discursividade do que feita de reflexões dispersas e muito pessoais,
como quem as vai segregando e amadurecendo à medida que reelabora pontualmente uma imagem
do mundo através da objectiva, compendiando as ideias nessa fenomenologia emergente da sua
própria prática de fotógrafo.”347
342
Matos Oliveira escolheu o poema viagem de verão, com origem numa foto de Castello-Lopes, para
integrar uma monumental antologia sobre poesia do século XX, na apresentação crítica salienta: “Deve
dizer-se que em Vasco Graça Moura o fotógrafo tende a assumir um vínculo figurativo que é para si da
maior importância, além de condição para uma certa felicidade ecfrástica” (Cf. Fernando Matos Oliveira, “A
viagem de verão de Vasco Graça Moura”, in Osvaldo Silvestre e Pedro Serra (org.), Século de Ouro.
Antologia Crítica da Poesia Portuguesa no Século XX, loc. cit., p. 453).
343
Como sublinha num breve, mas interessante texto, Fernando Luís Sampaio (Cf. Relâmpago. Poesia-artes
visuais, 2008, p. 62), para certos autores, a écfrase necessita de obedecer a um conjunto de requisitos
consagrados pela tradição. No entanto, a partir do início do século XX opera-se uma transformação na sua
essência, com a valorização de conceitos da mais diversa ordem, sobretudo de natureza reflexiva, o que
permitiu a abertura de novas possibilidades na reconfiguração discursiva. É precisamente tendo em conta
este aspecto que se verifica o exercício ecfrástico na poesia de Graça Moura.
344
Como sublinha Walter Benjamin (Cf. A modernidade, Lisboa, Ed. Assírio & Alvim, 2006, p. 252),
“aquilo que é decisivo para a fotografia é sempre a relação dos fotógrafos com a sua técnica”.
345
Susan Sontag, Ensaio sobre fotografia, loc. cit., p. 30.
346
Pinto de Almeida sintetiza a criação artística de Gerard Castello Lopes do seguinte modo: “Fotografando
tudo, por toda a parte, os homens deixaram de guardar memórias, recordações, lembrança, para guardar
antes imagens.
A memória flui, tergiversa, inventa e baralha, enquanto a fixidez da imagem fotográfica prende, atesta,
confirma e esquece” Bernardo Pinto de Almeida (“Imagem da memória”, in Imagem da fotografia, Lisboa,
Ed. Assírio e Alvim, 1995, p. 69).
347
Vasco Graça Moura (Cf. “Gérard”, in Diário de Notícias, 15 Fevereiro 2001, p. 54) observa ainda neste
artigo sobre o autor: “Há nas suas fotografias um sentido denso, crítico mas não panfletário”, a que
acrescenta “E há também na sua obra, para além de uma preocupação de equilíbrio e de atenção aos valores
plásticos, a afirmação de um sentido "musical", contrapuntístico, da composição e da estrutura da imagem. E
107
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
uma poética do rigor e da nitidez, do controle preciso dos efeitos do preto e branco, da beleza sóbria com
que ele dava a ver o que a sua retina registava”.
348
Em consonância com este motivo essencial do poema, R. Barthes sustenta o seguinte: “Tecnicamente, a
fotografia está na encruzilhada de dois processos absolutamente distintos: um, de ordem química, a acção a
luz sobre certas substâncias; o outro, de ordem física, a formação da imagem através de um dispositivo
óptico” (Roland Barthes, A câmara escura, loc. cit., p. 24).
108
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
O apelo visual exercido sobre o poeta, num registo notável, configura a essência
da pulsão lírica. A singularidade da imagem fotográfica, fundada no hic est hunc, é
inseparável do referente que se traduz no pensamento de W. Benjamin: a fotografia
reproduz de modo infinito aquilo que só acontece uma vez, pelo que nunca mais
poderá repetir-se no tempo, residindo aí a sua autenticidade350. É, pois, uma arte
complexa que não se cinge a um simples disparo, em virtude de trazer a
necessidade de pensar e de conhecer. O difícil equilíbrio artístico da representação
o mundo realiza-se através da “fracção de tempo a preto do branco”, que, pelas
suas características únicas, fixa-se nas formas resultantes das imagens mais ricas
nos detalhes. Por outro lado, esta reformulação estética do chiarioscuro barroco
produz imagens simbólicas que permitem descortinar novos sentidos
interpretativos351.
A vocação meditativa e o apelo à dimensão visual acompanham as reflexões do
sujeito poético, alcançando a densidade e a espessura nos seus versos. Assim, o
poema tem como premissa a liberdade artística que perscruta a essência do mundo;
do mesmo modo a captação singular da arte fotográfica apresenta um valor
349
Idem, ibidem, p. 19.
350
Walter Benjamin, Sobre arte, técnica, linguagem e política, Lisboa, Ed. Relógio d’Água, 1992, p. 77.
351
Numa visão histórico-cultural, Joana Matos Frias preconiza que a primazia da fotografia sobre a pintura,
derivada da qualidade de representação da fotografia artística, trouxe uma nova acepção do conceito da
écfrase na poesia, alterando a fórmula horaciana de ut pictura poesis (Cf. Joana Matos Frias, “Peeping
Tongue: ut photographia poesis ou o verso da evidência”, in Cadernos de Literatura Comparada, nº 17,
2007, pp. 213-241).
109
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
352
Maria José Palla, Poetas, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian/Acarte, 1998, pp. 8-9.
110
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
353
Veja-se o importante testemunho de Eunice Ribeiro em torno das repercussões poéticas suscitadas por
Laocoonte, na produção lírica de Graça Moura e outros poetas (Eunice Ribeiro, “A hipótese de realidade:
sobre o Laocoonte”, in Relâmpago. Poesia e artes visuais, nº 23, 2008, pp. 145-162).
354
Vasco Graça Moura, Laocoonte, rimas várias, andamentos graves, Lisboa, Ed. Quetzal, 2005.
111
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
355
Graça Moura enfatiza que o escritor é “alguém cuja escrita encontra várias maneiras de se solidarizar com
uma tradição cultural” (Cf. Francisco José Viegas, “E agora, Vasco?”, in Revista Ler, nº 33, 1996, pp. 54-
-61).
356
Sobre a tradição clássica em Graça Moura, vide Teresa Carvalho, “Presenças clássicas na poesia de
Vasco Graça Moura: da reverência à contrafacção irónica”, in Cristina Pimentel e Paula Morão (coord.), A
literatura clássica ou os clássicos na literatura. Uma (re)visão da literatura portuguesa das origens à
contemporaneidade, Lisboa, Ed. Campo da Comunicação, 2012, pp. 299-318; Isabel Pires de Lima, “Entre
dois mundos: referências clássicas na poesia de Vasco Graça Moura”, in José da Cruz Santos (org.), Modo
mudando. Sete ensaios sobre Vasco Graça Moura, Porto: Ed. Campo das Letras, 2000, pp. 85-100; José
Cândido Martins, “Reescrita mitológica e intertexto clássico: Píramo e Tisbe na poesia de Vasco de Graça
Moura”, in VI Congresso Nacional Associação Portuguesa de Literatura Comparada / X Colóquio de
Outono Comemorativo das Vanguardas-Universidade do Minho 2009/10, in http://ceh.ilch.uminho.
pt/publicações/pub_jose_martins.pdf (consultado em 3 Setembro 2013); José Manuel Ventura, “A tradição
sempre renovada em sombras de Aquiles e Pentesileia de Vasco Graça Moura”, in Virgínia Soares Pereira e
Ana Lúcia Curado (org.), A Antiguidade Clássica e nós. Herança e identidade cultural, Centro de Estudos
Humanísticos, Universidade do Minho, 2006, pp. 505-516.
112
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
357
Jorge de Sena, “Uma pequena luz”, in Poesia II, Lisboa, Ed. Moraes, 1978, pp. 52-53. Registe-se ainda
que Graça Moura, na sua crónica semanal no Diário de Notícias em torno da conjuntura política em época
natalícia, apresenta o título homónimo ao do poema de Sena, bem como cita um passo desse texto: “Apesar
de tudo, as pessoas não deixam de se agarrar a ‘uma pequenina luz bruxuleante’, como diria Jorge de Sena”
(Cf. Vasco Graça Moura, “Uma pequenina luz”, in Diário de Notícias, 26 Dezembro 2012, p. 54.
113
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
sentido de luz que emana do verso de Graça Moura sugere o legado humanístico da
cultura greco-latina, “a humanidade dilacerada”, que chegou à actualidade358,
envolvendo o leitor numa viagem por uma vasta cultura contida nos versos.
A essa compulsiva enumeração não é estranha a Graça Moura a vontade, no seu
dizer, de “meter o mundo / num poema” (PR2, 371), onde, ainda nesta sequência,
os versos emergem de uma intertextualidade adensada de sombras, ao jeito de um
remate conclusivo:
Graça Moura aspira a uma poesia plural, enquadrada numa recepção complexa
que presta um inequívoco tributo à tradição. Um forte sentido histórico interpela,
pois, os desígnios da humanidade, envoltos em “ventos da destruição” e
“catástrofes da ignomínia”, ou seja, os sacrifícios e os sofrimentos infligidos ao
homem, consubstanciados na sua própria essência contraditória, numa consciência
amargurada e desolada de um olhar que dá conta do sofrimento humano.
Este diálogo interartístico está patente também no seguinte texto inserido na
série poemática tercetos do aleijadinho, cujo verso inaugural evoca claramente o
conhecido incipit de ela canta pobre ceifeira359, da autoria de Fernando Pessoa,
tendo subjacente a consciência de si mesmo no momento do acto criativo:
358
Nesta ordem de ideias, Rosa Martelo preconiza: “Hoje, a poesia portuguesa mantém-se frequentemente
em diálogo com a tradição poética e artística (através da citação, da reformulação ou da ekphrasis) muitas
vezes associando esse diálogo a um processo de evocação que se combina com um efeito de realismo e um
registo lírico” (Rosa Martelo, Vidro do mesmo vidro: tensões e deslocamentos na poesia portuguesa depois
de 1961, loc. cit., p. 48).
359
Fernando Pessoa, Poesias, Lisboa, Ed. Ática, 41952, pp. 110-111.
114
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
115
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
Os Lusíadas, enuncia “canto o rebite, o cravo, a dobradiça / a luz coada junto das
limalhas” (PR2, 275), debruça-se sobre a minuciosa descrição de “um anjo de
metal”, destacando a matéria de que é feita a sua obra artística (“rede”, “chapa” e
“ferro”), que, sob o signo da metamorfose, são trabalhos executados pelo
“martelo”, pela “bigorna” e pelo fogo, simbolizado na metáfora de “vulcano”.
Assim, este projecto performativo afirma-se e depura-se na transfiguração estética
marca distintiva de Graça Moura360.
Mas o diálogo profícuo com a mundividência de José Aurélio estende-se
também a outros textos:
“tartarugamente sobre
a peça que aurélio à mão
com berbequim e formão
faz de casca lenta e pobre
que eu tinha em casa no chão:
fendas feitas, se descobre
de um e de outro lado o vão
e a carcaça em pé, mais nobre,
com bolas em posição”. (PR2, 282)
A concretização artística realiza-se pelo labor artesanal da “peça que aurélio faz
à mão”. O curioso neologismo “tartarugamente” sugere o trabalho lento e aturado
que está na base desta permanente reflexão do fazer escultórico, que, em crescendo,
toma forma: “se descobre /… a carcaça em pé”.
360
Face a esta asserção, Graça Moura sobre a referida colectânea afirma: “Alguns dos poemas explicam-se
exactamente por procurarem transmitir essa impressão, ligada ao ofício, à artesanalidade, ao habitat da
criação, ao combate com as formas e ao engendramento delas. Outros, surgiram directamente da
contemplação das peças, procurando eu que o texto funcionasse como uma modalidade da sua representação
verbal, isto é, ecfrástica” (PR2, 565).
116
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
“O que mais me impressiona na obra de José Aurélio é a sua enorme versatilidade. Da madeira
ao ferro, da pedra ao plástico, do vidro à cerâmica e a outros desvairados materiais, o escultor
utiliza uma linguagem específica, uma humildade artesanal e uma força articuladora da descoberta,
uma simbologia e uma relação com o espaço e os elementos naturais, que creio serem únicas no
panorama das nossas artes.” (PR2, 563)
361
Cf. Teresa Carvalho, “Quando as oficinas se encontram: uma leitura de variações metálicas de Vasco
Graça Moura”, in Revista Românica, nº 16, 2007, pp. 185-201.
362
O narrador de Naufrágio de Sepúlveda a dado passo anuncia: “E depois tive de ir ao Porto de fugida e
aproveitei essa rápida ida ao Porto para ir ver a exposição de José Rodrigues. Eram mais de quarenta
desenhos de grandes dimensões, executados a carvão sobre um papel de tonalidade acastanhada, o que lhes
dava clarões e sombras de um diálogo imemorial e fulgurante com o tempo e os mitos” (Cf. Vasco Graça
Moura, Naufrágio de Sepúlveda, loc. cit., p. 143).
117
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
respirações da alma,
com sombras, árvores, pássaros, arbustos,
desníveis e ruazinhas
e sebes e jardim
e o sol e o vento do costume
e o rumor de água que corre.
é onde uma arte poética enlaça uma arte de viver
num remanso com cestas de rosas, cachos de uvas, folhas
de vides entrelaçadas
e o pronto acolhimento da ternura e a pax idyllica
a enovelar as nuvens que lhe pairam no nome
para embalar, ó anja, o teu convívio ameno.” (PR2, 500)
363
Graça Moura dá conta desse propósito quando afirma: “certas palavras, certas ideias e certas imagens são
retomadas com efeitos diferentes de modo a articular com mais força a almejada unidade de conjunto, […]
no quadro da paisagem que se vive e se avista de uma casa alcandorada sobre a margem sul do rio Minho, e
por entre as nuvens reais e metafóricas que vão do nome da própria habitação aos céus galegos e minhotos e
aos ares atlânticos empurrados pelo vento oeste” (PR2, 570).
118
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
pequeno monstro
mágico, das suas metamorfoses
119
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
Graça Moura, como se verifica, faz dos seus versos um lugar de cultura, na
incessante procura da novidade; explora, pois, a figuração mitológica concebida,
nascendo a motivação poética, nascida do olhar, da capacidade interpretativa do
trabalho do famoso pintor364. A sugestão imagética da “curva superfície do barro”,
potenciadora de uma enunciação similar ao próprio jogo poético, possibilita a
teatralidade e a plasticidade suscitada pelo quadro mitológico. A capacidade de
apreensão da essência da vida, colhida nos momentos finais de Pentesileia e
sugerida pela metáfora “o apartado instante // a escapar-se da ânfora da vida”,
reflecte um momento psicológico fulcral no mito. A força dramática dos gestos de
Aquiles, grito dilacerante de angústia e desespero, proporciona uma cadência
rítmica, aproveitada nestes versos com conseguida harmonia: “ele aflito/sustendo o
364
As descrições mitológicas de Exéquias, um dos mais notáveis pintores de Atenas, são consideradas uma
das matrizes da pintura ocidental (Cf. Maria Helena Rocha Pereira, Estudos de História da Cultura
Clássica-Cultura grega, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 92003, p. 629).
120
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
Graça Moura, no seu amplo diálogo com as mais diversas artes, estabelece uma
relação privilegiada também com o universo musical367, concedendo singulares
linhas de força aos seus versos. Este espaço de abertura só é possível, segundo
Aguiar e Silva, graças à natureza aberta do polissistema literário, que contém regras
e convenções legitimadoras das inter-relações formais e semânticas da literatura
com outras linguagens, pelo que é abusivo falar em envolvimento intertextual do
texto literário com um determinado texto pictórico ou musical 368. Por seu lado,
365
Refira-se a propósito que, no Museu de Munique, existe também uma pintura num vaso sobre este mito
da autoria do designado Pintor de Pentesileia, que é considerada a sua obra-prima (Cf. Idem, ibidem, p. 633).
366
Graça Moura assume de um modo explícito particular predilecção por este género de poesia, como refere
num artigo precisamente intitulado “O que farei com esta écfrase?”, in Os Meus Livros, Julho de 2002,
pp. 86-87.
367
Exemplo elucidativo desse fascínio é Orfeu canta, antologia que apresenta poemas dedicados à música de
Adolfo Casais Monteiro, António Ramos Rosa, Camilo Pessanha, Jorge Sena e Eugénio de Andrade entre
outros. Deste modo, a referida colectânea integra três textos de Graça Moura: prelúdio nº 8, o suporte da
música e schubert (Cf. José da Cruz Santos (org.), Orfeu canta. Pequena antologia da poesia portuguesa
sobre música, Porto, Ed. Modos de Ler, 2014, pp. 56-59).
368
Vítor Manuel Aguiar e Silva, Teoria da literatura, Coimbra, Livraria Almedina, 41982, p. 597.
121
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
A música, pedra angular da sua obra, como se observa, ocupa um papel crucial
neste passo, onde, numa espécie de construção orquestral, o ruído confunde-se e
369
Cesare Segre, Teatro e romanzo. Due tipi di comunicazione letteraria, Torino, Ed. Einaudi, 1984, p. 111.
370
Cf. Rodrigues da Silva, “Ele não é tão mau como isso”, in JL. Jornal de Letras, Artes e Ideias, 7 Junho
1995, p. 16.
371
Dando relevo a esta dimensão estruturante, o autor coligiu e publicou os textos que considera mais
significativos neste domínio (Cf. Vasco Graça Moura, Musa da música, Lisboa, Ed. Asa, 2002).
372
Vasco Graça Moura, As quatro últimas estações, Lisboa, Ed. Quetzal, 22009.
373
Vieira Nery sublinha os conhecimentos musicais de Graça Moura: “E para alguém que não tinha uma
formação técnico-musical especializada, demonstrava um conhecimento surpreendentemente aprofundado
dos autores e das obras com quem mais se identificava, para lá de dominar com uma segurança
impressionante, por exemplo, a tratadística da estética musical medieval e renascentista.” (Rui Vieira Nery,
“A divina proporção”, in JL. Jornal de Letras, Artes e Ideias, 14 Maio 2014, p. 11).
374
Vgm, consciente do fecundo diálogo da música e da poesia apresenta criticamente uma notável
perpectiva diacrónica sobre essa matéria: “Escrever poesia a propósito da música é uma prática muito antiga.
Talvez em dante encontremos uma das mais vastas capacidades de o fazer. Nota Mimi Stillman que
estridência e a dissonância caracterizam o Inferno, enquanto a harmonia das esferas é própria do Paraíso
realizando-se no Purgatório a ponte musical entre a anti-música do Inferno e a música celestial do Paraíso.
De resto o Purgatório é o lugar onde Dante coloca os artistas, que acabarão, portanto, por se salvar, uma vez
espiados os seus pecados (Vasco Graça Moura, “Poesia da música e música da poesia: uma experiência
pessoal”, in Discursos vários poéticos, op. cit., p. 498).
375
Cf. Gérard Castello Lopes, Vasco Graça Moura, Em demanda de Moura = a la recherche de Moura;
Giraldomachias = Gerardomachies, loc. cit., p.116).
122
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
funde-se nos sentidos. Com efeito, a arte dos sons representa uma matriz de
questionação existencial de significativa e explícita importância, que faz da
dimensão musical a matéria da sua poesia:
“a experiência
da música restitui-nos a origem e o destino,
entre o trágico, o patético, o consolante,
o redentor, e a dimensão de um outro,
de um talvez outro conhecimento…”, (PR2, 17)
“o sublime é melancólico,
a respiração se sustém e a
alma se obscurece porque entende
a vibração de analogias e contrários.
376
Cf. Óscar Lopes, Uma arte de música e outros ensaios, Porto, Ed. Oficina musical, 1986, p. 29.
377
António Ferreira, Poemas Lusitanos, loc. cit., p. 322.
378
A este propósito, Graça Moura quando fala dos seus textos sublinha a “exploração de relações mais ou
menos estruturais e contrapontísticas com processos de pintura e da música” (PR2, 102).
123
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
ando-se, desdobra,
entre conhecimento e cúmplice harmonia.” (PR2, 56)
Estes versos colocam a tónica na relação dinâmica entre a poesia e a música, que
“é também um ritmo interior, uma parcela do cosmos”, como alude o sujeito de
enunciação. O que marca indelevelmente estes versos é a sugestiva convocação
para uma viagem rítmica, representada entre o individual e o universal, que enlaça,
simultaneamente, a sua sensibilidade com o significado profundo dos estilos
musicais380. A solicitação da música, pela sua riqueza e complexidade, que
379
José Ricardo Nunes, 9 poetas para o século XXI, Coimbra, Ed. Angelus Novus, 2002, p. 7.
380
A produção narrativa de Graça Moura concede uma particular atenção a interpretação de peças,
reveladoras do seu gosto musical. Veja-se, por exemplo, este passo, quando o narrador de Naufrágio de
Sepúlveda visita uns amigos: “Pelas seis da tarde, subi no elevador ronceiro de um prédio confortável da
Rua dos Navegantes, onde, por sinal, vivem dois amigos meus, e fui introduzido pela criada silenciosa numa
sala em que se ouvia o segundo andamento da sonata em dó maior de Brahms, no lirismo discreto das suas
variações sobre uma canção popular antiga, um Minnelied. Não gosto muito de Brahms, foi um compositor
que nunca conseguiu atingir o sublime, que apenas soube limitar-se a ser muito competente, só Bach e
124
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
Mozart, Beethoven e Schubert, fizeram algumas experiências do sublime e da sua rarefacção na área da
indicibilidade pura” (Cf. Vasco Graça Moura, Naufrágio de Sepúlveda, Lisboa, Ed. Quetzal, 1988, p. 53).
381
Graça Moura dedica dois poemas a esta sonata para piano nº 21 de Schubert; ao texto acima transcrito,
segue-se um segundo também de grande beleza que começa deste modo: “olha a sombra os álamos, perpassa
/ nas águas do espelho desolado, quando o vento / se enrola assim na roda de fiar. / escuta lá fora o realejo
das misérias do inverno” (PR2, 393).
125
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
Nos versos inaugurais, a anáfora “caminhas”, que concentra uma forte carga
passional e expressividade rítmica, bem como as emoções do sujeito poético, “meio
atordoado” face a um tu “con che soavità”, intertexto de um poema de Giovanni
Battista Guarini, presente num madrigal de Claudio Montverdi, de que resulta uma
simbiose entre música e poesia.
No entanto, a resignação face às vicissitudes da vida convoca referências
musicais que corporizam a indignação em o sentimento dum ocidental:
382
Esta expressão é extraída de um interessante artigo do autor, que faz uma sucinta resenha diacrónica da
relação entre poesia e música, desde as cantigas medievais até autores dos séculos XIX e XX. (Cf. Gastão
Cruz, “Música do som e sentido”, in A vida da poesia. Textos críticos reunidos, Lisboa, Ed. Assírio e Alvim,
2008, pp. 29-32).
383
A aproximação afectiva à música onde é possível encontrar um sem-número de ocorrências, que se
estendem dos géneros musicais, aos compositores ou ainda a instrumentos. Estes surgem a cada passo num
caleidoscópio de sentidos: lira, piano, guitarra e flauta. Aos géneros, o poeta dedica múltiplas ocorrências:
balada, rondó, madrigal, ópera, tocata, sonata. Os compositores, como foi exemplificado anteriormente, de
época e estilos diferentes, merecem-lhe também uma particular atenção.
384
Alexandre O’Neill, Poesia completa, Lisboa, Ed. Assírio & Alvim, 2001, p. 52.
126
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
385
T. S. Eliot, “A música na poesia”, in Ensaios de doutrina crítica, Lisboa, Guimarães Editores, 21997,
pp. 92-93.
127
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
exemplo nos sons sibilantes de “goivos, jasmins e lilases” cujo referente é também
o mundo concreto. A ênfase concedida ao som da linguagem, destacada na própria
versificação, comporta uma deliberada dimensão auditiva da palavra, enriquecendo,
nessa influência mútua, a sequência semântica que encerra. Neste contexto, a
infindável percepção sonora mesclada por um contexto pictórico, partindo da
realidade, conduz à transcendência, testemunhada por um fazer poético alargado a
outros domínios artísticos.
A ligação profunda que sempre existiu entre Graça Moura e a música constitui
uma das suas mais duradouras paixões, como se pode ler no prefácio de Camões e
a divina proporção:
“No acaso de escrever estas linhas ao som do Agnus Dei da Missa solene de Beethoven (e
perguntando-me se o adágio do quinteto para dois violoncelos de Schubert não teria sido um acaso
ainda mais adequado à circunstância…) ocorre-me que tentar propor pistas para a parcial
decifração do poema corresponde ao aflorar de mais uma daquelas modalidades de esperança de
que a cultura, afinal, é a grande matriz e o único horizonte utópico concretamente humano.” 386
386
Vasco Graça Moura, Camões e a divina proporção, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1994,
p. 9.
387
Confirma, neste âmbito, a importância da música na sua poesia: “Só por via de uma noção alargada
poético podemos tentar descrever o efeito que provoca em nós uma peça de Bach ou Mozart, de Haydn ou
Schubert, de Beethoven ou de Mahler. E ligamos a cada um deles e ao seu estilo determinadas interpretações
e sentimentos que nos chegam a partir de uma audição da sua música, frequentemente contaminada (no bom
sentido) por informações de outra índole e por uma tradição ligada à própria escuta (Cf. Vasco Graça Moura,
“Poesia da música e música da poesia: uma experiência pessoal”, in Discursos vários poéticos, loc. cit.,
pp. 496-497).
128
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
388
A este propósito, Graça Moura confessa “gostaria de ser recordado pelo meu apego à herança clássica e à
tradição viva da grande cultura europeia de todos os tempos, sobretudo nas formas dela que mais prezo, a
literatura, as artes plásticas e a música”. (Cf. Miguel Real et alli, “Vasco Graça Moura”, in Letras com vida-
-Literatura, cultura e arte, nº 2, 2º semestre de 2010, p.149).
129
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
389
Este topos surge já no prefácio de Mallarmé ao seu poema Un coup de dés, pp. 3-4, in https://math.dart-
mouth.edu/doyle/docs/coup/scan/coup.pdf (consultado em 12 Janeiro 2015).
390
Alardeando uma invulgar erudição, Graça Moura aprecia criticamente Stabat Mater de Rossini, na
interpretação de Carol Vaness, Cecilia Bartoli, Francisco Araiza e Feruccio Furlanetto, sob a direção de
Bychko (Vasco Graça Moura, “Um Stabat Mater”, in Papéis de jornal. Crónicas, Venda Nova, Ed.
Bertrand, 1997, pp. 292-294).
130
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
texto amplia o seu poder evocativo, graça a uma atitude solene capaz de tomar o
pulso ao mistério da vida que o poeta nunca desiste de interpelar.
Como se observa, Graça Moura desenha uma forma de manifestação do
pensamento estético, que, neste contexto, amplia significativamente a experiência
fulgurante da palavra. Dotado de uma vasta formação cultural, convoca com
deliberada intencionalidade nos títulos dos poemas, ou no seu interior, obras,
compositores ou outros elementos sugestivos do imaginário musical, referentes que
se tornam motor de reflexão, ultrapassando um mero intuito descritivo para se
tornarem criação poética.
Veja-se a este respeito o seguinte poema:
“e esse acorde importante do scher-
zo opus 31 chopiniano
e as dentadas nasais que dá um preso
à cauda abreviada do piano”. (PR1, 70)
391
Fernando Matos Oliveira elege, na antologia crítica da poesia portuguesa do século XX, Século de Ouro,
o poema a viagem de verão (PR2, 215), da autoria de Graça Moura, cujo Der Lindenbaum (A tília) de Franz
Schubert, como nota o crítico, encerra a resposta às questões que o incipit poema levanta. Registe-se que
este arranjo para piano se insere num ciclo musical, composto em 1827, por Schubert sobre poemas de
Wilhelm Müller, e, segundo o próprio compositor, tratava-se do seu preferido (Cf. Osvaldo Silvestre e Pedro
Serra (org.), Século de Ouro. Antologia crítica da poesia portuguesa no século XX, Ed. Cotovia, 2002,
pp. 451-457).
131
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
Ariadne em Naxos, a ópera mais famosa de Richard Strauss leva Graça Moura,
com um cariz irónico, a evocar algumas das suas personagens: “ariadne”, “mestre
da música” ou “zerbinetta”. Além disso, refere ainda o ponto de vista do
compositor em relação à referência a artistas no universo ficcional, a Hugo von
Hofmannsthal, o autor do libreto da referida ópera. Registe-se que, a partir da peça
Jacob e o Anjo, da autoria de José Régio, Graça Moura escreveu o libreto Bankters,
texto de uma ópera tragicómica encenada por João Botelho, com música de Nuno
Côrte-Real, estreada no Teatro de São Carlos, em Março de 2011. Excertos dessa
ópera, enquadrada na Temporada Darcos 2015, foi motivo de uma homenagem a
Graça Moura, em Abril desse ano, em Torres Vedras. Também no Centro Cultural
de Belém, quando passou um ano sobre o falecimento de Graça Moura, em 27 de
Abril de 2014, a ópera de câmara enunciada, dirigida pelo maestro Pedro Teixeira,
subiu à cena em dois espetáculos393.
392
T. S. Eliot, “O que é um clássico?”, in Ensaios escolhidos, Lisboa, Ed. Cotovia, 1992, pp. 129-146.
393
“Vai acontecer”, in JL. Jornal de Letras, Artes e Ideias, 1 Abril 2015, p. 3.
132
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
Como sustenta o autor, poesia e música não podem ser analisados isoladamente,
uma vez que a matriz colhida nos compositores surge depurada e reinventada no
seu discurso poético. Com efeito, o lexema lirismo, proveniente da lira que
acompanhava a récita dos poemas na Antiguidade, traduz precisamente a
conjugação harmoniosa das artes enunciadas e adequa-se de modo admirável à obra
de Graça Moura.394
Mas os conhecimentos de Graça Moura não se restringem aos compositores
eruditos, também assinalam outros gostos estéticos que trazem consigo um
horizonte próprio à expressão lírica. A comprová-lo, atente-se em ouvir nina
simone:
394
No seu interesse pela música erudita, Graça Moura integrou também, na Fundação Casa de Mateus, o
programa A Cultura em Diálogo, que perdura até à actualidade; esta iniciativa integra projectos locais e
internacionais e abrange as mais diversas formas de cultura desenvolvendo actividades regulares na área da
música, das artes plásticas ou da literatura, e ainda seminários de reflexão política, científica e cultural (Cf.
http://www.casademateus.com/actividades.htm - consultado em 27 Janeiro 2013).
Em Quatro estações, num jogo de espelhos entre a realidade e a ficção, a Casa de Mateus constitui um
espaço privilegiado. Em nota final à referida obra, o autor observa: “Nos últimos doze anos, a minha relação
com a Casa de Mateus e com as pessoas a ela ligadas - por razões familiares ou institucionais, nos vários
planos em que se desdobra, e que vão de uma amizade muito grande e fraterna até uma colaboração estreita
no sentido da prossecução dos objectivos estatuários da fundação que nela tem a sua sede -, tem-me
proporcionado momentos de profundo enriquecimento humano e cultural” (Cf. Vasco Graça Moura, Quatro
estações, Lisboa, Ed Quetzal, 22009 p. 203).
Na qualidade de presidente do conselho de administração da Fundação Centro Cultural de Belém (CCB),
promoveu iniciativas similares às enunciadas anteriormente em prol da divulgação da cultura. Empreendeu
um notável labor numa programação rica e variada com temporadas de orquestras, bem como o acolhimento
de agrupamentos dedicados, em particular, à música barroca. De entre outros, Beethoven, Verdi e Mahler
são alguns dos compositores interpretados. A presença também de artistas portugueses atravessa toda a
programação de espetáculos, desde a música clássica, ao fado, jazz, música do mundo, dança e teatro.
Não são descuradas ainda iniciativas dedicadas à literatura e às disciplinas das Humanidades, pelo que
decorreram ciclos de encontros dedicados à História de Portugal, à Língua Portuguesa e à ficção nacional,
designadamente a Os Lusíadas (Cf. http://www.google.pt/#q=ccb+musica+temporada+2013+vasco+gra%
C 3A7a+moura&start=20 - consultado em 2 Fevereiro 2013).
395
No conto Quatro da manhã, num encontro fortuito, o narrador afirma como a música de Simone
contribui para um cenário amoroso: “Sorriu como se estivesse habituado a situações dessas, disse que ia à
cozinha buscar champanhe e, no trajecto, aproveitou para pôr um disco a tocar quase em surdina. Nina
Simone, Wild the wind. Estirada, ela semicerrava os olhos, expelia o fumo em longas baforadas e trauteava a
133
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
música, ciciando-lhe a letra” (Cf. Vasco Graça Moura, “Quatro da manhã”, in A morte de revisor, Lisboa,
Ed Quetzal, 2008 p. 54).
134
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
“Os poetas mais recentes não escrevem directamente contra a geração anterior, indo colher
influências a um largo espectro cultural, que muitas vezes relaciona a poesia com outras formas de
expressão – o cinema, a música, as artes visuais, etc.”396
396
Fernando Pinto do Amaral, “A porta obscura da poesia”, in Relâmpago. Nova poesia portuguesa, nº 12,
2003, p. 20.
397
Para Sandra Teixeira as referências intertextuais do soneto O sol é grande … de Sá de Miranda no poema
o princípio de m.c. escher II, da autoria de Graça Moura, surgem como se tratasse de uma melodia graças a
determinados lexemas: aves negras, mundaves, vãs, aves de suaves claves ou graves, entre outros. Com
efeito, a imagética das aves e das suas cores disseminam-se na gravura, que observa, a um tempo, uma
passagem do domínio pictórico para o domínio musical. Esta estratégia compositiva realiza, assim, uma
estrutura pictórica musical, fornecendo uma percepção do mundo sob diversos ângulos. (Cf. Sandra
Teixeira, “Sá de Miranda par Vasco Graça Moura”, in Actes du colloque interdisciplinaire: Nouvelles
perspectives de la recherche française sur la culture portugaise (5-6 février 2007), p. 142).
135
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
136
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
399
Rosa Maria Martelo (Cf. “Qualquer poema é um filme?”, in Cinema e poesia, Lisboa, Ed. Documenta,
2012, pp.185-186) sustenta que na maioria dos poetas contemporâneos o diálogo da poesia com o cinema
radica numa tradição que permitiu indubitavelmente o desenvolvimento de novas técnicas do olhar, que
comportam um forte pendor ecfrástico. Ora, Graça Moura não ignora essa tradição, como se observa nos
seus versos.
400
Rosa Martelo, a este propósito afirma: “Quando a poesia fala da experiência do espectador de cinema,
essa experiência facilmente e confunde com a do poeta enquanto escreve” (Cf. Rosa Maria Martelo, “Na sala
escura”, in Cinema e poesia, loc. cit., p. 181).
137
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
“Nessa manipulação, também tem acontecido que obras de arte de diferente natureza (quadros,
esculturas, fotografias, filmes, peças musicais) acabem por gerar ecos com elas solidários em
poemas que escrevi. [….] Quanto a alguns filmes, o fiz pela procura de equivalentes de
investimento dramático (por exemplo, o poema IV de o mês de dezembro, sobre uma cena de O
charme discreto da burguesia, ou ‘a noite americana’, em a furiosa paixão pelo tangível, sobre a
cena final de Sunset Boulevard).” 401
401
Vasco Graça Moura, Poemas escolhidos, loc. cit., p. 475.
138
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
e da morte, num notável recorte emocional, surge com uma forte densidade lírica,
uma vez “que quase sempre morte e amor se tocam”402.
Na esteira desta mundividência, também o poema a noite americana, que no
dizer do autor, é “sobre a cena final de Sunset Boulevard” revela a precariedade da
condição humana:
Na génese do poema está o drama noir realizado por Billy Wilder, que tem
como protagonista Gloria Swanson no papel de Norma Desmond, uma decadente
estrela do cinema mudo que sonha um regresso triunfante às telas. Esta antiga diva
de Hollywood, passava regularmente temporadas junto à Praia Grande, em
Portugal, evocadas no sintagma “a casa é perto da várzea de colares”.
O tema da decadência, destacado no enredo do filme, cruza-se com a própria
biografia da actriz, que, neste poema, simboliza a finitude humana através das
insistências lexicais da casa degradada: “estará tudo ao abandono” ou “salitre das
paredes”. Estas imagens configuram o próprio definhamento da figura, sugerida
pela adjectivação utilizada e pelo expressivo polissíndeto: “carne que deixou de ser
luminosa e quente e versátil”. Com efeito, os sentidos, que se disseminam em
imagens, desencadeiam um invulgar desenvolvimento expressivo. Registe-se ainda
a alusão aos “projectores acesos numa cruel proposta para o fim”, metáfora da fama
402
Como referiu Edgar Morin (Cf. O cinema ou o homem imaginário, Lisboa, Moraes Editora, 21980,
p. 193), “O cinema é, por essência, tão indeterminado e aberto como o próprio homem”.
139
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
“Isto quer dizer que também a poesia pode ser uma forma de cinema, ou seja, um movimento
das imagens - um cinema cujas sequências podem mover-se a um ritmo mais sereno, num
encadeamento compassado, próximo dos objectos que reflectem (é o que chamamos
“realismo”, também na literatura) ou, pelo contrário, acelerar-se até atingirem a velocidade da
luz, como se a própria memória se estilhaçasse e assim criasse novos transes, cegos escotomas
ou curto-circuitos perceptivos.”404
oscila na
corrente de ar,
lenta, move a cortina
como num filme
de suspense.” (PR2, 40)
403
Neste critério de verosimilhança proporcionado pelo cinema, através do qual a realidade perpassa, Yuri
Lotman salientou: “O mundo do cinema está extremamente próximo da vida. A ilusão da vida é, como
vimos, uma sua propriedade inalienável” (Cf. Yuri Lotman, Estética e semiótica do cinema, Lisboa, Ed.
Estampa, 1978, p. 45).
404
Fernando Pinto do Amaral, “Imagens em movimento”, in Relâmpago. Poesia e artes visuais, nº 23, 2008,
p. 67.
140
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
405
Nesta linha, o poeta canta: “hoje em dia ninguém sabe contar histórias / talvez o cinema americano dos
anos cinquenta / fosse a última hipótese de narrativa” (PR1, 229).
O apreço pela cinematografia, contributo para melhor compreender o pensamento de vgm, pode-se verificar
nas suas notas críticas a dois filmes de Manoel de Oliveira: “O labirinto dos desconcertos” em torno de Non,
ou a vã glória de mandar e “O dia do desespero”, título homónimo ao filme sobre a vida de Camilo Castelo
Branco. Também dedica o artigo “Felliniano…” sobre a criação cinematográfica de Federico Fellini (Cf.
Vasco Graça Moura, Papéis de jornal. Crónicas, Venda Nova, Ed. Bertrand, 1997, respectivamente pp. 15-
-20, 38-41 e 252-254).
141
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
406
Pinto do Amaral assinala o lúcido sentido do circunstancial e do efémero como um aspecto primordial na
obra de Graça Moura (Cf. Fernando Pinto do Amaral, O mosaico fluido. Modernidade e Pós-Modernidade
na poesia portuguesa mais recente, Lisboa, Ed. Assírio e Alvim, 1991, p. 164).
407
Cf. Cesário Verde, “O sentimento dum ocidental”, in op. cit., pp. 122-129.
142
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
Este passo veicula, pois, uma determinada concepção literária: a poesia, gerada
com aturado trabalho, não surge ex nihilo, emerge da liberdade criadora da
memória. Com efeito, entrelaça-se a tradição — haurida nas figuras mitológicas,
bem como no famoso epíteto homérico “do mar cor de vinho” — com elementos
contemporâneos: “as motos”, “os fatos de couro preto” ou ainda “os capacetes com
viseira”. A atenção à realidade, captada, em larga medida, nestes últimos elementos
invocados, aponta para uma sugestiva plasticidade, que ecoa na sequência
imagética própria da sétima arte, como se lê no sintagma: “o filme desdobra--se”.
Esta preocupação de Graça Moura não se restringe à poesia; também surge na
sua produção narrativa. Como acontece frequentemente na obra de Graça Moura,
há uma intenção polémica declarada; o narrador de Naufrágio de Sepúlveda, numa
conversa sobre diversos temas de cultura, denuncia a dependência de subsídios do
cinema nacional, que tem evidentes afinidades com as posições públicas de Graça
Moura:
“Também me dizem que hoje as vanguardas são cada vez mais parasitárias, que são todas
subsidiadas pelo Estado. Aproveitei para meter a minha colherada e para dizer que no cinema
ainda é pior, nem percebia como é que havia tantos subsídios para coisas tão detestáveis como a
maior parte dos filmes portugueses que até tinham, de resto, permitido uma descoberta importante,
a de que o cinema era tanto mais exorbitantemente caro, quanto mais insuportavelmente parado,
ele se calhar não tinha visto o último filme do ... Mas o professor, ainda mergulhado nessa fase em
que havia cafés e gente dentro deles a passar horas e horas de cavaqueira, com discussões,
provocações, murros nas mesas, e exclamações de porra, murmurava: Bons tempos! Belas
noitadas de boémia e copos que passávamos.”408
408
Vasco Graça Moura, Naufrágio de Sepúlveda, loc. cit., p. 58. Em consonância com os pontos de vista
neste âmbito de Graça Moura é possível rastrear um conjunto de comentários sobre filmes. Também uma
personagem apresenta em A morte de ninguém, o mesmo assunto: “Quando me falam no cinema português,
penso logo em péssimos diálogos, histórias e textos fílmicos em não se diz coisa com coisa, planos que
duram tempos infinitos, bizarrias mais ou menos intelectualizadas, movimentos de câmara impacientantes,
patetices ou vulgaridades sobre a vida, acumulação de ensinamentos colhido nos Cahiers du Cinéma, ou
noutros cahiers quaisquer, ânsia de trufar o filme com tudo o que o realizador julgou ter aprendido. Enfim, a
verdade é que eu nunca gostei do cinema português e tenho de assumir que, a partir de certa altura, isto se
torna um relativo impressionismo, porque se deixa de ver. Mas falo do cinema em geral, sobretudo do
cinema americano dos anos 40 e 50, que foi quando estes problemas se puseram muito a sério à escrita de
ficção. O cinema dispensa muitas perífrases e páginas inteiras de descrições.” (Cf. Vasco Graça Moura, A
morte de ninguém, Lisboa, Ed. Quetzal, 1998, p. 21).
143
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
144
2. Enunciação e memória
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
Vasco Graça Moura vem assumindo um lugar de relevo nas letras portuguesas
pela diversidade compositiva expressa da sua rica obra; esta, corolário de um
notável percurso, onde a poesia ocupa um lugar central, permite, sem dúvida,
descortinar processos e intenções, que configuram a importância da figura tutelar
de Camões na obra do autor contemporâneo. Tal facto assume-se imprescindível
para compreender determinados traços que sustentam os seus versos, cuja riqueza
plurissignificativa convoca uma constante questionação hermenêutica.
A contínua recepção de Camões deve-se, em primeiro lugar, a todos aqueles que
ao longo dos tempos escreveram sobre a obra do poeta, bem como viram nela uma
singular qualidade poética. A este propósito Maria Lucília G. Pires assinala:
“Na história da recepção crítica da obra camoniana interessa analisar os juízos de valor que
acerca dela foram emitidos e os valores culturais que fundamentem esses juízos, interessa o
trabalho exegético desenvolvido sobres esses textos, os sentidos que nele foram lidos, os valores
de cada época (cada leitor, crítico, exegeta) neles descobriu.”409
409
Maria Lucília Gonçalves Pires, verbete “Camonologia”, in Biblos. Enciclopédia Verbo das Literaturas de
Língua Portuguesa, vol. 1, Lisboa-S. Paulo, Ed. Verbo, 1995, col. 910.
410
Vitalina Leal de Matos sublinha que a intertextualidade “permite mais do que relacionar um texto com
outros, apreciar um trabalho de escrita que nele se desenvolve; a capacidade de leitura é por vezes
substancialmente enriquecida: a descoberta de um modelo pode ser a chave para um sentido recôndito que a
superfície do texto não manifesta.” (Maria Vitalina Leal de Matos, “A poesia de Camões na perspectiva da
intertextualidade”, in Camões: sentido e desconcerto, loc. cit., p. 113).
411
Vítor Manuel de Aguiar e Silva, Teoria da literatura, Coimbra, Livraria Almedina, 41982, p. 255.
147
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
“La significacion de un escritor debe valorarse en relación a los artistas y escritores anteriores,
nunca de forma aislada.[…] El poeta debe tener en cuenta esa tradicion latente y ser consecuente y
responsable, pues de igual modo que el pasado se altera por el presente, el presente es dirigido por
el pasado. No asumirlo es un acto de ceguera y de irresponsabilidad.”413
“É nesta medida que aparentes regressos, como o diálogo intertextual com o passado literário,
quer ao nível da revisitação de determinados autores, quer ao nível da reelaboração de temas e
formas facilmente reconhecíveis como herança, só superficialmente podem ser entendidos assim,
porquanto correspondem, na verdade, a um reconhecimento novo da indissociabilidade entre o
mundo que se dá a conhecer e a sua mediatização por descrições.”414
Esta nova abordagem estética de olhar a herança literária é uma das noções mais
fecundas da moderna teoria literária, que não se confina a retomar as práticas da
adopção de modelos há muito rejeitadas. Pelo contrário, recria e inova processos,
formas e temas, que surgem investidos de novas potencialidades significativas.
Julia Kristeva, em torno da obra de Bakthine, afirma que todo o texto se constrói
como “mosaico de citações”, uma vez que cada texto é absorção e transformação
de um outro415. A escrita é, pois, memória sem a qual não há literatura.416
412
Vitalina Leal de Matos, nesta linha, afirma: “O texto não é uma estrutura fechada sobre si mesma:
articula-se com todo o sistema literário e com outros sistemas sociais: a história, a política, a ideologia, as
outras artes, a religião, etc. A intertextualidade aparece assim como um instrumento eficaz para recuperar a
dimensão histórica da obra literária que o estruturalismo quase esquecera (Maria Vitalina Leal de Matos,
Introdução aos estudos literários, Lisboa-São Paulo, Ed. Verbo, 2001, p. 191).
413
Ramón Pérez Parejo, Metapoesia y crítica del lenguaje (De la generación de los 50 a los novísimos),
Cáceres, Universidad de Extremadura, Servicio de Publicaciones, 2002, pp. 140-141.
414
Rosa Maria Martelo, “Anos 90. Poesia”, in Óscar Lopes e Maria de Fátima Marinho (direcção), História
da Literatura Portuguesa. As correntes contemporâneas, vol. 7, Lisboa, Ed. Alfa, 2002, p. 489.
415
Julia Kristeva, Semeiotiké. Recherches pour une sémanalyse, Paris, Éditions du Seuil, 1969, p. 146.
416
Neste âmbito, À pergunta sobre o que apreciava mais na sua faceta de escritor, vgm responde: “Sempre
me encheu as medidas pensar que a cultura não é um conjunto de linhas paralelas, mas de linhas que se
entrelaçam e se contaminam. A intertextualidade não é mais do que isso. Foi o que sempre pratiquei,
enquanto escritor”, vide “Vasco Graça Moura: A Portugal está a faltar muita poesia” (entrevista de José
Carlos Carvalho), in Revista Visão, 27 Abril 2014, p. 94.
148
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
417
Neste contexto, Óscar Lopes descortina na actual poesia portuguesa uma extensa informação cultural, que
propicia a tendência pós-modernista para a paráfrase, a citação, a amálgama de referências literárias,
processos distintivos na poesia de Graça Moura (Cf. António José Saraiva e Óscar Lopes, História da
Literatura Portuguesa, Porto, Porto Editora, 171996, p. 1802).
418
Cf. Alfredo Margarido, “Uma leitura antropológica do soneto de Camões Sete anos de pastor Jacó ser-
via”, in Colóquio-Letras, nº 81, 1984, pp. 6-23; Luís de Sousa Rebelo, “O texto e o contexto num soneto de
Camões”, in Arquivos do Centro Cultural Português, vol. XVI, Paris, 1981, pp. 437-446.
419
Gérard Genette, Palimpsestes. La littérature au second degré, Paris, Éditions du Seuil, 1982, pp. 7-14.
420
Michel Arrivé, Les langages de Jarry - éssai de sémiotique littéraire, Paris, Ed. Klincksieck, 1972, p. 28.
149
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
“De há muito que Camões ocupa um lugar incontornável na memória do sistema nacional e que
não há, portanto, poeta cimeiro que possa afirmar-se no desconhecimento da sua obra e do seu
exemplo”.422
Com efeito, Graça Moura tem um papel crucial no diálogo criativo e crítico que
estabelece com o autor de Os Lusíadas, que, no dizer de Karlheinz Stierle,
configura uma forma de colocar à prova o saber literário de um autor e de o utilizar
em novas situações expressivas423. O genuíno fascínio do poeta contemporâneo
pelo vate quinhentista424 leva-o a sublinhar em nota à sua obra testament de vgm:
“camões: Luís de Camões (XVIème siècle), les plus grand poète portugais de tous
les temps” (PR2, 563).
Esta estreita relação dialógica concretiza-se de diversificados modos; para além
de remissões camonianas incorporadas nos versos, surge também em títulos ou
421
A propósito veja-se a interessante colectânea que reúne mais de 200 poemas dedicados a Camões, de
autores como Gaspar Frutuoso ou André de Resende até à actualidade. O texto antologiado de Graça Moura
é “Não sei se Camões hoje” (Cf. António Ruivo Mouzinho (org.), Camões, grande Camões…, Porto, Ed.
Unicepe, 2002, p. 217).
422
Fernando Martinho, “Camões e a poesia portuguesa contemporânea”, in Românica. Revista de Literatura,
nº 4, Departamento de Literaturas Românicas da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa-Ed.
Cosmos, 1995, p. 64.
423
Karlheinz Stierle, Existe uma linguagem poética? Seguido de obra e intertextualidade, loc. cit., p. 62.
424
Sobre a recepção mais próxima de Camões nas letras portuguesas, vejam-se Ofélia Paiva Monteiro,
“Camões no Romantismo”, Jorge Borges de Coelho, “Camões em Portugal no século XIX” e José Augusto
Seabra, “Camões e as gerações poéticas do século XX”, in Actas da III Reunião Internacional de
Camonistas, Coimbra, Universidade de Coimbra, 1987; José Augusto Seabra, “Camões e Jorge de Sena”, in
Eugénio Lisboa (org.), in Estudos sobre Jorge de Sena, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1984; e
ainda os artigos de Fernando J. B. Martinho e Maria João Borges, intitulados respectivamente “Camões e a
poesia portuguesa contemporânea” e “Ecos de Camões em alguns poetas contemporâneos”, in Românica.
Revista de Literatura, nº 4, Departamento de Literaturas Românicas da Faculdade de Letras da Universidade
de Lisboa-Ed. Cosmos, 1995; Luis Maffei, “O poeta em poetas: alguns Camões do século XX”, in Revista
Camoniana, vol. 17, 3ª série, 2005, pp. 159-177; José Carlos Seabra Pereira “Notas sobre Camões e o(s)
Modernismo(s) em Portugal”, in Isabel Almeida, Maria Isabel Rocheta e Teresa Amado (orgs.), Estudos.
Para Maria Idalina Rodrigues, Maria Lucília Pires, Maria Vitalina Leal de Matos, Lisboa, Departamento de
Literaturas Românicas da Faculdade de Letras de Lisboa, 2007, pp. 519-536); idem, “Camões e o(s)
Modernismo(s) em Portugal”, in Vítor Aguiar e Silva (coord.), Dicionário de Luís de Camões, Lisboa, Ed.
Caminho, 2011, pp. 147-153.
150
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
425
Nesta linha, José Saramago adverte: “Com a leitura das epígrafes dos meus romances já se sabe tudo”
(José Saramago, O caderno, Lisboa, Ed. Caminho, 2009, p. 211).
426
Antoine Compagnon, La seconde main ou le travail de la citacion, Paris, Éditions du Seuil, 1979, p. 337.
427
Vasco Graça Moura, “Letras do fado vulgar”, in Poesia 1997-2000, Lisboa, Ed. Quetzal, 2000, p. 205.
428
Luís de Camões, Os Lusíadas, V, 57, leitura, prefácio e notas de Álvaro J. Costa Pimpão, apresentação de
Aníbal Pinto de Castro, Lisboa, Instituto de Cultura Portuguesa-Ministério da Educação, 21989. Note-se que
os passos camonianos citados serão retirados desta edição.
429
Idem, ibidem, V, 23.
430
Luís de Camões, Rimas, texto estabelecido por Álvaro J. Costa Pimpão, apresentação de Aníbal Pinto de
Castro, Coimbra, Livraria Almedina, 1994, p. 223.
151
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
431
Rocha Pereira dedica um artigo a esta elegia sob os ecos ovidianos do desterro. (Maria Helena Rocha
Pereira, “A elegia III de Camões”, in Camoniana varia, Coimbra, Centro Interuniversitário de Estudos
Camonianos, 2008, pp. 51-59).
432
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 242.
433
Luís de Camões, Os Lusíadas, X, 145, loc. cit.
434
Idem, ibidem, II, 36-37.
152
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
435
Octavio Paz, Los hijos del limo, Barcelona, Ed. Seix Barral, 1974, p. 209.
436
Bocalino, no Hospital das Letras, denuncia a indiferença a que Camões foi votado: “Ignoramos a sua
vida, desprezamos a sua memória” (Francisco Manuel de Melo, Le dialogue “Hospital das letras”, texte
établi d'après l'édition princeps et les manuscrits, variantes et notes de Jean Colomès, Paris, Centro Cultural
Português, 1970, p. 37).
437
Luís de Camões, Os Lusíadas, X, 80, loc. cit.
153
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
438
David Mourão-Ferreira, “Fala apócrifa de Camões”, in Obra Poética 1948-1988, Lisboa, Ed. Presença,
1988, p. 397. Neste contexto, onde Camões é ícone do injustiçado e incompreendido, vejam-se também os
versos de Jorge de Sena “Nada tereis, mas nada: nem os ossos” (Cf. Jorge de Sena, “Camões dirige-se aos
seus contemporâneos”, in Poesia II, Lisboa, Morais Editores, 1978, p. 99; veja-se ainda o verso “Este país te
mata lentamente”, da autoria de Sophia de Mello Breyner Andresen, “Camões a e tença”, in Dual, Lisboa,
Ed. Caminho, 2004, p. 72).
439
Luís de Camões, Obras Completas, vol. III - Autos e cartas, com pref. e notas do prof. Hernâni Cidade,
Lisboa, Ed. Sá da Costa, 41985, p. 244. Faria e Sousa ao comentar este passo camoniano assegura que o seu
“Poeta” partiu para a Índia tão amargurado, que tinha o propósito de nunca mais regressar à pátria (Luís de
Camões, Lusíadas, comentadas por Manuel Faria e Sousa, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda,
1972, t. I, col. 28).
440
Óscar Lopes assinala em esclarecida síntese de afinidades entre os dois autores o seguinte: “Vasco Graça
Moura, que até pela sua ensaística camoniana, pela mestria de tradutor poliglota e pela omnivoracidade
cultural tanto nos recorda Jorge de Sena, é, pela sua policrómica paleta humoral, pela agilidade com que, por
exemplo, tanto retoma a sextina renascentista como, mais recentemente, constrói um rigoroso e virtuoso
contraponto poético, a partir de um simples temas de lengalenga infantil – é, tanto quanto vejo, o mais
dotado autor que podemos reconhecer dentro de uma certa continuidade de Sena” (Óscar Lopes, “Alguns
nexos diacrónicos na poesia novecentista portuguesa”, in Cifras do tempo, Lisboa, Ed. Caminho, 1990,
p. 90).
154
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
jorge de sena andou por aqui enxugando o suor com um enorme lenço
e rugidos na alma, e nem viu as acácias, o seu fogo insolente, as mulheres
[de máscara branca,
crispado entre os amigos nesta escala da passagem
de nada para parte nenhuma, por ruelas e pátios de má fortuna
[abandonados.
viu sim os rebocos desfeitos pela traça do tempo, tanta textura de flores
[esboroadas,
tanto mapa perdido de aventurosos destinos,
e viveu tudo isso como se o próprio orgulho a prumo, com o seu nobre
[olhar
de exilado, fosse uma altiva insensatez. […]
155
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
443
Jorge de Sena, Poesia III, Lisboa, Ed. Moraes, 1978, p. 246. Gilda Santos, sob este prisma de análise,
afirma: “Esta transposição da vivência pessoal seniana para a figura do poeta renascentista construída pelo
discurso poético, esta alquimia de memória e ficção, projecta uma nova forma de perceber o mesmo Camões
cada vez mais palpável, mais próximo de nós” (Gilda Santos, “Vasco Graça Moura e Jorge de Sena: um
diálogo possível”, in Veredas, nº 1, Porto, 1998, p. 296).
444
Jorge Fazenda Lourenço, “Sobre esta praia” de Jorge de Sena, in Osvaldo Silvestre (coord.), Século de
ouro. Antologia crítica da poesia portuguesa no século XX, loc. cit., pp. 411 sqq.
445
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 221.
446
Fernando Martinho destaca neste poema, dotado de memórias e de uma deliberada filiação literária, dois
destinos que se cruzam, “pela convergência de andanças e destinos que a ilha propicia, numa linhagem
poética de que Camões e Sena serão dos mais altos expoentes” (Fernando J. B. Martinho, “Camões e a
poesia portuguesa contemporânea”, in op. cit., p. 67).
447
Vasco Graça Moura, “Jorge de Sena na Ilha de Moçambique”, in Colóquio-Letras, n.º 67, 1982, pp. 58-
-59.
448
Maria Vitalina Leal de Matos (“Camões lido por Diogo do Couto no Soldado prático”, in Camões:
sentido e desconcerto, loc. cit., p. 102) neste prisma destaca: “A imagem do poeta pobre, injustamente
recompensado, autor de uma obra grandiosa pelo lastro de cultura e experiência que envolve, e pelo conceito
de serviço desinteressado, heróico - ao mesmo tempo modelo criado pela literatura e exemplo vivido pelo
homem. A personagem do Soldado é claramente tributária desse tipo ou, talvez melhor, desse arquétipo”.
156
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
encontra “tão pobre que comia de amigos”449. Aí estaria a preparar a edição da sua
poesia lírica num volume intitulado Parnaso450, que, no dizer do historiador
quinhentista “continha muita poesia, filosofia e outras ciências”, porém, esse
volume foi furtado, como dá conta o sujeito poético: “(‘e nunca pude saber dele’ /
diz-se, na década oitava, de um manuscrito, roubado)” e “foi furto notável”. Neste
cenário, “jorge de sena voltou a pagar os duzentos cruzados”, aliviando ao autor
das Rimas, “crivado de dívidas e de versos”, o exílio e a peregrinação, situação
paralela vivida por ambos451. Com efeito, no dizer de Severim de Faria, a viagem
de Camões foi a expensas dos seus amigos que lhe deram o dinheiro necessário
para embarcar no regresso ao reino452, sendo, em última análise, uma metáfora da
dívida de todos os portugueses ao poeta.
Numa atitude reverencial, verifica-se em Graça Moura uma poesia assinalada
por uma marcante auto-referencialidade, onde se revela a voz da experiência
pessoal colhida no passado vivido por Camões e Sena. A evocação destes é, pois,
filtrada pelo sujeito poético, assumindo uma função intermédia entre os
acontecimentos passados e o momento da enunciação. O terminus do poema, sob o
signo da partida e do desterro, apresenta a figura modelar de Camões, homo uiator
estigmatizado pela miséria e abandono a que foi votado; num tempo marcado pela
desvalorização das letras, o aproveitamento poético e a abordagem crítica da
tradição humanista, de que Sena é figura charneira, fazem de Graça Moura um
vulto notável na divulgação da recepção do autor de Os Lusíadas. A valorização da
universalidade da poesia emerge, por assim dizer, da entabulação entre os três
poetas, síntese de encontro e comunhão estética dos poetas contemporâneos com o
universo camoniano.
Nesta linha, Gilda Santos identifica essas afinidades do seguinte modo:
449
Diogo do Couto, A década 8ª da Ásia, 2 vols., ed. de Maria Augusta Lima Cruz, Lisboa, Comissão
Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses e Imprensa Nacional-Casa da Moeda,
1993-1994, p. 471.
450
Idem, ibidem, pp. 472-473.
451
Isabel Pires de Lima, “Entre dois mundos: referências clássicas na poesia de Graça Moura”, in José da
Cruz Santos (org.), op. cit., p. 89.
452
Manuel Severim de Faria, “Vida de Camões”, in Discursos vários políticos, introd. Maria Leonor S.
Albergaria Vieira, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1999, p. 121.
157
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
“Os dois poetas, embora conhecedores das páginas de muitos e muitos escritores de várias
nacionalidades – com eles estabelecendo diálogos infindos – elegeram Camões como interlocutor
privilegiado. […]
Tanto Sena quanto Graça Moura, para lá dos estudos críticos que dedicaram ao poeta maior da
língua – hoje peças indispensáveis a quem se devote seriamente aos estudos camonianos –
revisitam inúmeras vezes os versos das Rimas ou d’Os Lusíadas em suas próprias navegações
poéticas.”453
Pelo que fica dito, perpassa na escrita de vgm uma continuada evocação da
riquíssima matriz camoniana, onde pontificam processos de revisitação plasmados
em variados registos. Com efeito, a partir de diversas modalidades de
intertextualidade sob o signo da ironia e da paródia – num tom ora mais humorado
ora mais sério –, o autor contemporâneo dá expressão a uma notável
mundividência, que permite indubitavelmente compreender Camões na
contemporaneidade.
Gilda Santos, “Vasco Graça Moura e Jorge de Sena: um diálogo possível”, in op. cit., p. 295.
453
454
Vide a título ilustrativo, o estudo de referência das obras iconográficas em torno de Camões, da autoria de
Bernardo Xavier Coutinho, Camões e as Artes Plásticas, Porto, Liv. Figueirinhas, 1946-1948.
158
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
455
Vasco Graça Moura, “Retratos de Camões”, in Vítor Aguiar e Silva (coord.), Dicionário de Luís de
Camões, loc.cit., p. 849.
456
A reiterada atenção de Graça Moura pela representação da imagética camoniana está presente também
neste trecho, quando cotejou trajes em diversos retratos quinhentistas: “As golas do tipo usado por Camões
no referido retrato tinham começado por ser pouco mais que do que um renque de folhos comedidamente
cingido ao pescoço, para depois se expandirem, muito embora à roda de 1560 a lei ainda não dispusesse,
quanto à respetiva guarnição de tafetá ou de seda” (Vasco Graça Moura, “Alfacinhas”, in Papéis de jornal.
Crónicas e outros materiais, Venda Nova, Ed. Bertrand, 1997, 114-115).
457
Vasco Graça Moura, Retratos de Camões, Lisboa, SPAutores-Ed. Guerra e Paz, 2014, p. 18.
159
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
“a barba ruiva
e uma pala no olho direito afeia-o notavelmente,
como pode ver-se do outro lado da imagem”. (PR1, 324)
“Foi Luís de Camões de meã estatura, grosso e cheio do rosto, e algum tanto carregado da
fronte, tinha o nariz comprido levantado no meio, e grosso na ponta; afeava-o notavelmente a falta
do olho direito, sendo mancebo, teve o cabelo tão louro, que tirava açafroado.”460
O núcleo semântico deste excerto reside, pois, na privação de uma vista, que o
poeta faz questão de mencionar na sua carta de Goa, quando se refere a Manuel
Serrão, “sicut ut nos, manqueja de um olho”461. Esta dura realidade, patente no
sintagma latino “como nós”, procurou o autor de Os Lusíadas superar por meio da
458
Luís de Camões, Rimas Várias, comentadas por Manuel de Faria e Sousa, com nota introdutória de F.
Rebelo Gonçalves, prefácio de Jorge de Sena, Lisboa, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1972, p. 44.
459
Fazendo jus às reiteradas analogias em torno dessa tradição, Prado Coelho considera que a imagem do
poeta é “produto de leitura criadora, essencialmente poética” (Jacinto Prado Coelho, “Camões na óptica de
Pascoaes”, in Camões e Fernando Pessoa, Poetas da utopia, loc. cit., p. 97).
460
Manuel Severim de Faria,“Vida de Camões”, in Discursos vários políticos, loc. cit., p. 145.
461
Luís de Camões, Obras Completas, vol. II - Autos e cartas, com pref. e notas do prof. Hernâni Cidade
Lisboa, Ed. Sá da Costa, 41985, p. 246.
160
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
161
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
homem de nome Luís a que falta a vista esquerda”468. Tal deformação física
ultrapassa inclusivamente as fronteiras nacionais, como Mendonça Teles dá conta
do olho vazado de Camões, quando cita, por exemplo, versos da autoria de Álvares
de Azevedo, poeta oitocentista brasileiro.469
No seu conto Diálogo na oficina, ao se referir às conturbadas circunstâncias
editoriais por que passou a publicação de Os Lusíadas, vgm não ignora a
iconografia de Camões; assim, as linhas dedicadas a esta matéria, surgem de um
modo sui generis, no derradeiro momento do conto, demostrando um admirável
conhecimento de Camões e do seu tempo.
Aí, Pero de Magalhães anuncia ao seu interlocutor:
“– Senhor Luís de Camões, compreendo vossa penúria e as boas razões que tendes de vos
queixardes. Mas já haveis acumulado mais glória em dois anos do que todolos outros que dos
feitos lusitanos escreveram. E sei que o conde de Vimioso vos mandou tirar pelo natural a Fernão
Gomes e que do retrato se fará gravura para acompanhar vossos Cantos. Aí tereis Jerónimo Luís
ocupado a abrir vossa imagem e António Gonçalves açodado a imprimi-la. Ora dizei-me se isto
não é a glória ...”470
468
António Lobo Antunes, As naus, Lisboa, Ed. D. Quixote, 42000, p. 15. De modo semelhante, também
Mario Cláudio identifica uma personagem com Camões: “O antigo capitão da nau da China, reconhecendo-
-se completamente desamparado de quem o protegesse, lhe comprasse o livro, lhe satisfizesse a tença que
El-Rei lhe arbitrara, ou até de quem simplesmente se apercebesse da sua pessoa, despojar-se-ia enfim da
máscara que adoptara. E ao retirar a venda que lhe escondia a vista supostamente cega, revelando no sítio
desta um globo ocular arregalado para o vazio do mundo, o insólito fenómeno, descrito já, voltaria a
acontecer. Uma mancha difusa, e algo como uma nuvem que se esfarrapasse, e se recompusesse, atravessaria
o horizonte diante da Ribeira das Naus, e nela os mais doridos identificariam as feições inesquecíveis do
extinto Luís de Camões” (Mário Cláudio, Os naufrágios de Camões, Lisboa, Ed. D. Quixote, 2016, p. 172).
469
Gilberto Mendonça Teles, Camões e a poesia brasileira e o mito camoniano na língua portuguesa,
Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 42001, p. 223.
470
Vasco Graça Moura, “Diálogo na oficina”, in Morte no retrovisor, Lisboa, Ed. Quetzal, 2008, p. 69. Este
conto foi publicado pela primeira vez num suplemento do jornal Expresso: Luís de Camões, Os Lusíadas,
canto IX, comentários de José Hermano Saraiva e ilustrações de Pedro Proença, Lisboa, Ed. Expresso, 2003,
pp. 3-13.
471
Graça Moura preconiza que a gravura referida foi executada para ser incluída posteriormente na edição
de uma obra camoniana (Vítor Serrão e Vasco Graça Moura, “O retrato pintado a vermelho”, in Fernão
Gomes e o Retrato de Camões, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1990, p. 45).
162
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
Leonis Pereira, governador de Malaca. Estes textos levam Graça Moura a colocar a
hipótese de uma estreita ligação de amizade, talvez iniciada no Oriente, apesar de
nada se saber quanto ao convívio entre os dois autores472. Apenas se sabe que
Gândavo e Camões viram as suas obras saídas dos prelos de António Gonçalves
sensivelmente na mesma altura. Entre outros escritores de nomeada, também
Jerónimo Corte-Real ou Jerónimo Osório, mencionados em Diálogo na oficina,
tiveram obras editadas pelo mesmo impressor, o que confere um simbolismo
indelével ao espaço da acção, pelos detalhes aduzidos nos preparativos da edição
prínceps de Os Lusíadas. Aqui, com grande rigor e erudição, não falta a alusão a
Jerónimo Luís, à altura o único ilustrador de Lisboa, que trabalhava para António
Gonçalves, como em Retratos de Camões referirá Graça Moura.473
No entanto, o retrato não patenteia a perfeição do agrado do poeta quinhentista,
o que o leva a recriar tal desacordo em verso:
“– Senhor Pero de Magalhães, bem me afadiguei a corrigir a cópia tirada dos borrões. Também
cri que do conde me viria mais algum apoio. Mas foi em vão. Agora não me sobra calor nem
contentamento para nada. E do retrato escrevi uma glosa:
“Retrato, vós não sois meu,
Retrataram-vos mui mal;
Que, a serdes meu natural,
Fôreis mofino como eu.” 474
472
Vasco Graça Moura, “Sobre Camões, Gândavo e outras personagens”, in Sobre Camões, Gândavo e
outras personagens. Hipóteses de história da cultura, Porto, Ed. Campo das Letras, 2000, p. 139.
473
Vasco Graça Moura, Retratos de Camões, loc. cit., p. 44.
474
Este poema integra a edição da lírica camoniana realizada pelo Visconde de Juromenha (Cf. Luiz de
Camões, Obras, vol. IV, precedidas de um ensaio biographico no qual se relatam alguns factos
desconhecidos da sua vida, augmentadas com algumas composições inéditas do Poeta pelo Visconde de
Juromenha, Lisboa, Imprensa Nacional, 1863, p. 115-117. Note-se que este poema não é reconhecido na
edição de Costa Pimpão (Luís de Camões, Rimas, loc. cit.) para ser incluído no cânone mínimo,
contrariamente à maioria dos estudiosos. Ainda que os problemas da autoria e da fixação textual suscitem
dúvidas, Graça Moura, conhecedor das edições das Rhythmas, apresenta os diversos estudiosos que dão a
autoria das redondilhas a Camões, saídas pela primeira vez em 1668, na Terceira Parte das Rimas editada
por D. António Alvarez de Cunha, e não vê qualquer argumento válido para o considerar apócrifo (Vítor
Serrão e Vasco Graça Moura, “O retrato pintado a vermelho”, in Fernão Gomes e o Retrato de Camões,
Lisboa, loc. cit., p. 44).
475
A predileção do autor contemporâneo por este texto volta a ser motivo de interpretação noutro momento.
Ao não se cansar de sublinhar a importância crucial da composição enunciada, Graça Moura defende um
curioso ponto de vista sobre os conhecimentos camonianos das artes plásticas do seu tempo no seguinte
trecho: “As redondilhas Retrato vós não sois meu desenvolvem uma consequente teoria maneirista do
163
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
164
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
“Para Camões, temos as redondilhas já referidas Retrato, vós não sois meu que eu insisto em
ver associadas ao retrato de Fernão Gomes. A glosa do mote desenvolve-se como um jogo
conceptual entre a representação e o real, entre o natural e o pintado e, num plano mais
propriamente existencial, entre a condição infeliz do retratado e a consagração mundana que o
retrato proporciona. O retrato é, por assim dizer, ‘infiel’ àquela condição amargurada, muito
embora a arte do pintor favoreça fisicamente o retratado. Observe-se que a referência a uma
sepultura pode corresponder à existência luxuosa no interior de um livro. Enfim, segundo o poeta,
o pior que a tal retrato podia acontecer seria corresponder à condição do retratado e perceber-se de
quem era...”479
479
Idem, ibidem, p. 84.
480
Na leitura global do poema, Camões, além de dialogar com a imagem do seu próprio retrato, deixa
antever que, ainda em vida, foi mandado pintar por alguém de condição social elevada. Tal pressuposto é
sublinhado por Aníbal Almeida ao considerar o quadro dirigir-se a um “original antigo”, aceitando, pois, a
possibilidade de o quadro ter sido executado em vida do poeta (Aníbal Almeida, O rosto de Camões, Lisboa,
Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1996, 105).
481
Jorge Luis Borges, Destino e obra de Camões, Buenos Aires, Ed. Embaixada de Portugal, 2001, p. 105.
482
Fonseca, Manuel S., “Nota do editor”, in Vasco Graça Moura, Retratos de Camões, loc. cit., pp. 10-11.
165
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
desde Quinhentos, até à atualidade, com pinturas, por exemplo, de Júlio Pomar ou
esculturas de José Aurélio e de João Cutileiro483. Com efeito, às incertezas
resultantes do desconhecimento da uera effigies de Camões, junta-se a vasta
iconografia vindoura que contribuiu, como assevera Aníbal Almeida484, para uma
“diluição sistemática da sua imagem material” que curiosamente não impede o
reconhecimento imediato do poeta.
Assim, debruça-se fundamentalmente sobre os três primeiros quadros que
condicionaram a tradição iconográfica do Épico, que envolvem, até à data,
problemas hermenêuticos de carácter distinto485. O retrato feito por Fernão Gomes,
a gravura Camões na prisão e a designada miniatura da Casa Rio Maior revelam,
face ao aparato analítico enunciado, um autor familiarizado com a matéria tratada,
bem como um indefetível camonista disponível para dar a conhecer as infinitas
incertezas que, a um tempo, acompanham a vida, obra e iconografia do vate
quinhentista486
Sobre a primeira gravura enunciada, Graça Moura traça o panorama dos
proprietários da cópia e contextualiza as vicissitudes pelas quais a gravura terá
passado, como já foi abordado anteriormente a propósito da evolução diegética de
Diálogo na oficina.
483
Como refere em entrevista, o continuado apreço de Graça Moura pelos retratos de Camões, próprio de
um invulgar espírito de investigador, fica-se a dever às “tentativas de decifração de um determinado enigma”
(José Viale Moutinho, “Apenas a transcrição de uma conversa. José Viale Moutinho / Vasco Graça Moura
(que poderá ser apensa às actas)”, in José da Cruz Santos (org.), Modo mudando. Sete ensaios sobre a obra
de Vasco Graça Moura, Porto, Ed. Campo das Letras, 2000, pp. 154-155).
484
Aníbal Almeida, O rosto de Camões, loc. cit., p. 99.
485
Este explícito tributo a Camões deriva, em grande medida, da conceção de retrato de vgm, que o autor
define com notável saber e particular acuidade: “O retrato como género artístico proporcionou desde sempre
uma série de temas de reflexão verdadeiramente fascinantes. Entre eles, podemos enumerar as relações entre
pintor e modelo, as relações de semelhança e dissemelhança entre o retrato e o retratado, a captação de
estados anímicos ou físicos do retratado que possam ser propostos ao espectador pela via do retrato, a
interpretação de estilos, expressões faciais, olhares, morfologias, símbolos, ornatos e indumentárias,
legendas, dados históricos, contextos, relações com programas iconográficos filosóficos, etc., etc., numa
rede de perspetivas e modalidades do conhecimento que são abordagem quase ilimitada e em que a figura
humana individualizada e as modalidades da representação constituem o tema fundamental” (Vasco Graça
Moura, Retratos de Camões, loc. cit., pp. 15-16).
486
Outros camonistas dispensaram igualmente uma particular atenção à efígie de Camões. Veja-se, por
exemplo, Costa Ramalho, que, em artigo consagrado a este tema, comenta, entre outros, os dois quadros
referidos (Américo da Costa Ramalho, “Para a iconografia de Luís de Camões”, in Estudos camonianos,
Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1980, pp. 87-89).
166
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
487
No seu retrato de Fernando Pessoa, Almada Negreiros parece ter em conta o momento criativo sugerido
pela gravura de Camões, uma vez que pinta o poeta modernista em posição idêntica e destaca ainda o
resultado da escrita: o número 2 da revista Orpheu sobre a mesa tem paralelo com o borrão camoniano do
canto X de Os Lusíadas apresentado no quadro quinhentista, segundo o ponto de vista de Graça Moura. No
dizer de José-Augusto França (A Arte em Portugal no Século XX, 1911-1961, Lisboa, Ed. Bertrand, 1991,
p. 498): “Trata-se de um dos grandes retratos da pintura portuguesa, e uma das obras mais significativas de
Almada”. Nesta sequência de inspiração camoniana, também Júlio Pomar, com o seu traço característico,
dedica dois pinturas alusivas ao referido gesto do autor de Os Lusíadas na prisão de Goa, reproduzidas em
Vasco Graça Moura, Retratos de Camões, loc. cit., pp. 73-74.
488
Moura, Vasco Graça, “Camões na prisão”, in Diário de Notícias, 9 Outubro 2013.
489
Maria Antonieta Soares de Azevedo, “Uma nova e preciosa espécie iconográfica quinhentista de
Camões”, in separata da Revista Panorama, nº 42-43, Lisboa, 1972, pp. 75-92.
490
No permanente fascínio pelo legado iconográfico camoniano, mas que também encerra pertinentes
questões biográficas, o autor já dedicara anteriormente um outro artigo, intitulado Sobre o retrato de Goa,
assente numa ampla e diversificada bibliografia (Vasco Graça Moura, “Sobre o retrato de Goa”, in Os
penhascos e a serpente e outros ensaios camonianos, Lisboa, Ed. Quetzal, 1987, pp. 67-72).
491
Vasco Graça Moura, Retratos de Camões, loc. cit., p. 15.
492
Graça Moura, ostentando uma invulgar cultura, em texto prefacial trata a especificidade do retrato na
obra do pintor quinhentista António Moro, testemunho indubitável de um gosto e saber sobre este género
167
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
artístico (Moura, Vasco Graça, “Denotações da majestade”, in Annemarie Jordan, Retrato da corte em
Portugal. O legado de António Moro, Lisboa, Ed. Quetzal, 1994, pp. 9-15.
493
Vasco Graça Moura, Retratos de Camões, loc. cit., p. 59.
494
Idem, ibidem, p. 48.
495
Idem, ibidem, p. 31.
496
Idem, ibidem, p. 31-33.
497
José Manuel Ventura, João Soares de Brito. Um crítico barroco de Camões, Coimbra, Imprensa da
Universidade, 2010.
168
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
Também o fundo lendário em redor da vida nebulosa do poeta, tendo como base
a perspectiva iconográfica, ao proporcionar, no dizer de Jorge de Sena, um “convite
à imaginação”498, abre caminho a inúmeros indícios e hipóteses várias,
contribuindo para perpetuar essa cosmovisão.
Graça Moura demonstra, pois, essa realidade no poema sugestivamente
intitulado retrato da infanta, conjecturas:
“quando f.º de ollanda foi pintar a infanta
d. maria, preparou cuidadosamente
a tábua de carvalho, com várias
camadas leves de cola e gesso e duas mãos
de imprimidura de terra de
sintra, bem lisa e uniforme.
escolheu os pincéis mais macios, os
pigmentos mais nobres para lavrar a óleo,
bem moídos na pedra, salvo os azuis que usaria
para uma delgada atmosfera directamente na paleta.
recordou, de itália, a luz batendo em tons de âmbar
na fronte das mulheres que conhecera […]
498
Jorge de Sena, a este propósito, afirma: “É certo que pouco ou nada se sabe de concreto acerca desse
homem, cujo nascimento, cuja vida, cuja morte e cujos restos mortais são duvidosos, maravilhosamente
duvidosos. O que é um convite à imaginação” (Jorge de Sena, “A poesia de Camões. Ensaio de revelação da
dialéctica camoniana”, in Trinta anos de Camões. 1948-1978, Lisboa, Ed. 70, 1980, pp. 17-18).
499
Sobre pontos de contactos, biográficos e estéticos, entre Camões e Francisco de Holanda, artistas
coetâneos, cf. Sylvie Deswarte-Rosa, “O templo da pintura: Camões e Francisco de Holanda”, in Seabra
Pereira e Manuel Ferro, (coord.), Actas de VI Reunião Camonistas, Coimbra, Imprensa da Universidade,
2012, pp. 567-584. Vide ainda em torno do panorama artístico no tempo do autor de Os Lusíadas, a título de
exemplo, os estudos fundamentais de Francisco Faria Paulino (coord.), A pintura maneirista em Portugal:
arte no tempo de Camões, Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos
169
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
A beleza que irradia destes versos ancora-se, neste caso, no momento fundador
do processo criativo de vgm. A materialidade – patenteada na madeira, no óleo e
nos pincéis – é meticulosamente evocada através de uma pormenorizada referência
aos elementos subjacentes à produção artística. Além disso, a valorização de novos
materiais, “o gesso” e a “terra / de sintra bem lisa e uniforme”, concedem
maleabilidade e aperfeiçoamento de execução, comprovada também no sintagma
“escolheu os pincéis mais macios, os / pigmentos mais nobres para lavrar a óleo”.
O detalhe enunciado demonstra, através do estímulo propiciado pelos sentidos, a
consciência compositiva de Francisco de Holanda, pontificada pela paciência,
reflexão e destreza manual. Deste modo, o exímio gesto sobre a superfície da tábua
é fixado não no modelo, mas na inclusão dos materiais e técnicas que dão forma à
realização pictórica. Os versos, condicionados pela perda do quadro, mostram a
forma como a suposta pintura foi produzida, com o intuito de proporcionar o efeito
visual da poesia, configurando uma espécie de metamorfose ecfrástica, uma vez
que a Infanta não é retratada, como é usual; ao invés, são valorizados os materiais e
técnicas que lhe dão origem ao sugestivo labor in fieri.
Importa, por seu lado, considerar aqui a alusão da viagem de Francisco de
Holanda a Itália, onde tomou contacto com uma base teórica de cariz maneirista
que lhe permitiu uma assinalável evolução estética; na realidade, a sólida formação
adquirida permitiu-lhe um tratamento singular da luz, traço inovador e
determinante nos seus quadros500. A presença tutelar deste reconhecido artista traz
aos versos uma constante modalidade reflexiva, atributo metapoético de particular
agrado de vgm; no entanto, nos versos há como que um vazio, uma vez que não
concretiza a figuração da filha de D. Manuel I. Com efeito, a deliberada
centralidade de que se revestem técnicas e procedimentos dos grandes mestres, que
Graça Moura conheceu bem, fornecem um inestimável contributo para melhor
entender a conceção de arte no tempo de Camões.501
Portugueses, Fundação das Descobertas - Centro Cultural de Belém, 1995 e Pedro Eugénio Dias Ferreira de
Almeida Flor, A arte do retrato em Portugal nos séculos XV e XVI, Lisboa, Ed. Assírio & Alvim, 2010.
500
José Stichini Vilela, Francisco de Holanda - vida, pensamento e obra, Lisboa, Instituto de Cultura e
Língua Portuguesa, 1982, pp. 14-15.
501
Graça Moura, em sugestivas e oportunas páginas, dá conta das eventuais relações entre a poesia
camoniana e a iconografia maneirista, testemunho indelével de um continuado labor sobre a
170
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
contextualização cultural do autor de Os Lusíadas (Vasco Graça Moura, “Vénus e Tritão: dois retratos”, in
Luís de Camões: alguns desafios, loc. cit., pp. 101-109).
502
A leitura falaciosa da obra à luz da complexa relação entre a obra e a vida mereceu diversos estudos a
José Maria Rodrigues em torno da relação entre Camões e Infanta, como sustentou em diferentes momentos.
Cf. José Maria Rodrigues, Camões e a infanta D. Maria, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1910; Luís de
Camões, Lírica, ed. crítica por José Maria Rodrigues e Afonso Lopes Vieira, Coimbra, Imprensa da
Universidade, 1932 e José Maria Rodrigues, A tese da Infanta nas Líricas de Camões, Coimbra, Imprensa da
Universidade, 1933-1934.
503
Vanda Anastácio, “A Infanta D. Maria”, in Vítor Aguiar e Silva (coord.), Dicionário de Luís de Camões,
loc. cit., pp. 568-572.
504
Cf. Manuel Simplício Geraldo Ferro, A recepção de Torquato Tasso na épica portuguesa do Barroco e
Neoclassicismo, loc. cit., 2004, pp. 123 sqq. Também já Costa Miranda notara o paralelismo entre os
presumíveis amores vividos por Camões e por Tasso. José da Costa Miranda, “Camões / Tasso, um
confronto e algumas semelhanças, segundo a crítica portuguesa”, in III Reunião Internacional de
Camonistas. Actas, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1987, p. 402.
505
Cf. Carolina Michaelis de Vasconcelos, A Infanta D. Maria de Portugal e as suas damas, Lisboa,
Biblioteca Nacional, 21994, p. 102.
171
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
506
Veja-se, a propósito, “Verdade, amor, razão, merecimento, / Qualquer alma farão segura e forte; / Porém,
fortuna, caso, tempo e sorte / Têm do confuso mundo o regimento” (Cf. Luís de Camões, Rimas, loc. cit.,
p. 199).
507
Cf. Rosa Maria Martelo, “Tensões e deslocamentos na poesia portuguesa depois de 1961”, in Vidro do
mesmo vidro: tensões e deslocamentos na poesia portuguesa depois de 1961, loc. cit., p. 47.
172
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
508
Frederico Lourenço, a propósito da análise de um epigrama de Calímaco e baseado num estudo de
Francis Page, atribui às conchas um critério de aferição de qualidade artística, amplamente divulgada desde
a Antiguidade até à actualidade, cujo paradigma é o Nascimento de Vénus de Boticelli (Frederico Lourenço,
“A arte poética de Calímaco”, in Grécia revisitada, Lisboa, Ed. Cotovia, 2004, pp. 70-71).
509
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 367. Note-se que Vitalina Leal de Matos realça nesta écloga o seu
“carácter primordial, de pureza virginal e bondade sem mancha” (Maria Vitalina Leal de Matos, O canto na
poesia épica e lírica de Camões. Estudo de isotopia enunciativa, Paris, Fundação Calouste Gulbenkian-
-Centro Cultural Português, 1981, p. 234).
510
Camilo Pessanha, Clepsydra, Carlos Reis (coord.), ed. do texto de Barbara Spaggiari, Lisboa, Imprensa
Nacional-Casa da Moeda, 2014, p. 67.
511
Vasco Graça Moura, “Camões, Pessanha e eu”, in Várias vozes, loc. cit., pp. 50-52.
173
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
de arremedo e despedida,
fantásticos, fingidos, verdadeiros.
adeus, adeus, até ao som da fala.” (PR1, 300)
512
Cf. Fernando Pinto do Amaral, “Outros poetas dos anos 70: contributo para um mosaico fluido”, in
Mosaico fluido. Modernidade e pós-modernidade na poesia portuguesa mais recente, Lisboa, Ed. Assírio &
Alvim, 1990, p. 164.
513
As palavras de Gilda Santos sintetizam com clareza esta matéria: “De Camões, viagens, tempo,
memórias, exílios, falam os poemas de Jorge de Sena. Mas falam também de escritas, leituras, releituras –
inscritas naquele jogo de espelhos em que o infinito se manifesta” (Cf. Gilda Santos, “Vasco Graça Moura e
Jorge de Sena: um diálogo possível”, in op. cit., p. 302).
514
Luís de Camões, Os Lusíadas, I, 11, loc. cit.
515
Jorge de Sena, “A poesia de Camões. Ensaio de revelação de dialéctica camoniana”, in Trinta anos de
Camões, I volume, Lisboa, Ed. 70, 1980, pp. 15-39. Sobre a recepção camoniana em Jorge de Sena, vide, a
título de exemplo, José Augusto Seabra, “Camões e Jorge de Sena”, in Eugénio Lisboa (org.), Estudos sobre
Jorge de Sena, Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1984, pp. 139-151; Luciana Stegagno Picchio,
“O Camões de Jorge de Sena”, in AAVV, Jorge de Sena: vinte anos depois. Colóquio de Lisboa, Lisboa,
Ed. Cosmos - Câmara Municipal, 2001, pp. 93-102 e Vítor Manuel Aguiar e Silva, Jorge de Sena e Camões.
Trinta Anos de Amor e Melancolia, Lisboa, Ed. Angelus Novus, 2009.
174
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
se por melancolia
ou desconcerto mesmo
nas voltas do vivido
redondilha, andamento,
mesmo em melancolia:
deriva do vivido?” (PR2, 400-401)
516
Sobre a sextina em Portugal, veja-se António Cirurgião, A sextina em Portugal nos séculos XVI e XVII,
Lisboa, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa-Ministério da Educação, 1992; Rita Marnoto, “Camões e o
ciclo da sextina”, in Maria João Borges et alii, Lírica camoniana. Estudos diversos, Lisboa, Ed. Cosmos,
Centro Internacional de Estudos Camonianos da Associação Casa-Memória de Camões em Constância,
1996, pp. 101-108; Maria do Céu Fraga, Os géneros maiores na poesia lírica de Camões, Coimbra, Centro
Interuniversitário de Estudos Camonianos, 2003, pp. 118-128.
517
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 303.
518
António Cirurgião (A sextina em Portugal nos séculos XVI e XVII, loc. cit., p. 20) salienta que a sextina
tem uma notória exigência técnica, não obstante continua a ser cultivada pelos poetas contemporâneos.
175
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
519
Cf. por exemplo, Cleonice Berardinelli, Estudos camonianos, Rio de Janeiro, Ed. Nova Fronteira, 22000.
Vitalina Leal de Matos destaca com particular acuidade que este soneto “se tornou evidente a desmesura do
sujeito, enunciador e personagem, aspecto este que atravessa toda a obra, interligando-se com o conceito de
liberdade e de destino” (Maria Vitalina Leal de Matos, “Que farei com este poema? (autobiografia
camonística)”, in José Cardoso Bernardes (org.), Luís Vaz de Camões revisitado, Santa Barbara Portuguese
Studies, vol. VII, 2003, p. 351.
520
Cf. Bíblia Sagrada, Lisboa, Ed. Difusora Bíblica, 32001, pp. 793 sqq.
176
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
521
Alzira Seixo destaca na poesia de Graça Moura o aproveitamento de experiências várias, de traços
identificáveis do quotidiano concreto, mas como sublinha, “de modo sistemático, é a primeira vez que o
utiliza” neste poema (Maria Alzira Seixo, “Melancolia e maneirismo. O concerto campestre, de Vasco
Graça Moura”, in Outros erros, Porto, Ed. Asa, 2001, p. 260).
522
Aguiar e Silva considera mesmo que se trata de “um dos ‘casos’ mais relevantes e complexos da cultura
português” (Cf. Vítor Manuel Aguiar e Silva, “O cânone da lírica de Camões”, in Camões: labirintos e
fascínios, loc. cit., p. 38).
523
Pela importância de que se reveste, Hélio Alves dá conta das questões suscitadas nessa divergência e a
sua posição inclina-se também para a autenticidade do soneto (Hélio J. S. Alves, “A propósito do soneto O
dia em que eu nasci e do seu autor”, in Isabel Almeida, Maria Isabel Rocheta e Teresa Amado (orgs.),
Estudos. Para Maria Idalina Rodrigues, Maria Lucília Pires, Maria Vitalina Leal de Matos, Lisboa,
Departamento de Literaturas Românicas da Faculdade de Letras de Lisboa, 2007, pp. 263-295).
524
Aguiar e Silva destaca na poesia de Graça Moura a propensão de “representar coisas do real quotidiano,
de narrar e descrever situações, episódios, acontecimentos” (Vítor Aguiar e Silva, “A outorga do Prémio
Morgado de Mateus a Vasco Graça Moura”, in op. cit., p. 174).
177
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
de factos ocorridos na sua vida525. O enigma que fica por resolver é apresentado
através da devoção subjectiva a Camões: “dá cá uma guinada tão especial que só
pode ser dele”. Num exercício erudito, não falta a prosaica ironia da “guinada”526, o
que assinala, a um tempo, uma fruição emocional527 e um entendimento particular
dos versos camonianos, a lembrar, no impulso lírico das suas inquietações, a
conhecida exortação no final do soneto Enquanto quis Fortuna que tivesse: “E
sabei que, segundo o amor tiverdes, / Tereis o entendimento de meus versos”528.
Com efeito, no dizer Eduardo Lourenço, a oscilação “entre rigor e polémica” faz de
Graça Moura um singular herdeiro da herança renascentista.529
A explícita mediação, que entretece poesia e ensaísmo em torno de Camões,
faz parte estruturante do singular fazer lírico de vgm; o texto o dia em que nasci, os
versos veicula, com efeito, a esperança de compreender a grandeza do canto
camoniano. Esta dimensão culturalista, com as suas interrogações e reflexões sobre
a poesia, integra indubitavelmente um pendor metapoético, marca distintiva da pós-
modernidade, bem como exprime sobretudo a consciência do poeta contemporâneo
na sua relação com a tradição literária530. Neste cenário crítico, a recepção
camoniana ultrapassa as fronteiras nacionais; as referências a “storck e lachmann”
legitimam a universalidade da poesia de Camões que recebeu um impulso decisivo
na Alemanha, sobretudo durante o período romântico531.
525
Aguiar e Silva confirma a conversa à entrada para uma reunião no Instituto Camões. O ilustre professor a
propósito do poema de Graça Moura rastreia com particular acuidade razões filológicas e hermenêuticas,
bem como apresenta a recepção ao longo dos tempos, tendo em vista comentar a questão da autoria do
poema camoniano (Vítor Aguiar e Silva, “Epilegómenos”, in Camões: Labirintos e Fascínios, loc. cit.,
pp. 231-233).
526
Isabel Pires de Lima (“Entre dois mundos: referências clássicas na poesia de Graça Moura, in Modo
mudando, Porto, Ed. Campo das Letras, 2000, p. 98) acentua que Graça Moura não se coíbe neste processo
de celebração de parodiar o próprio culto e a exegese camoniana.
527
Nesta linha de autenticidade dos textos líricos camonianos, Graça Moura, em concordância com a voz
autorizada de Costa Pimpão, refere a especificidade dos versos do poeta quinhentista, que desenha uma “tão
particular vibração sentimental que distingue os grandes poemas de Camões” (Vasco Graça Moura,
“Observações sobre o soneto O dia em que eu nasci moura e pereça”, in op. cit., p. 146).
528
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p.117.
529
Eduardo Lourenço, “Vasco Graça Moura - um ensaísmo em arquipélago”, in José da Cruz Santos (org.)
Modo mudando, loc. cit., p. 40.
530
Vítor Aguiar e Silva, “A outorga do Prémio Morgado de Mateus a Vasco Graça Moura”, in op. cit.,
p. 175.
531
Carolina Michaelis, Wilhelm Storck, Lachmann, entre outros vultos alemães, distinguiram-se na
divulgação da obra de Camões. Wilhelm Storck editou por diversas vezes em português, sendo a última
publicação Vida e Obras de Luís de Camões, Lisboa, Ed. Bonecos Rebeldes, 32011. Por seu turno,
Lachammann tratou sobretudo de uma metodologia de crítica textual, sublinhada por Leodegário A. de
Azevedo Filho, (“Sobre o conceito de edição crítica”, in Humanitas, nº 58, 2006, p.16) do seguinte modo:
178
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
O poeta, que confessa “deixo a meus filhos versos cultos” (PR2, 251),
manifesta um deliberado gesto de aproximação, bem como impõe sinais de
diferença; com uma simples alteração, Graça Moura modifica radicalmente o
sentido original. À paródia do soneto O dia em que nasci, marcado pela maldição
do dia natalício, cantado por vários autores, que abala a ordem do tempo e revela
uma fúria castigadora de vertente apocalíptica533, contrapõe Graça Moura o agrado
pelo seu nascimento. Assim, o sujeito de enunciação subverte as premissas
enunciadas por Camões e, na celebração da vida, transforma um dia de infortúnio
num dia festivo, desviando-se, em lógica invertida, da essência do tema de partida;
se autores, na esteira do poeta quinhentista, como Eugénio de Castro, Brecht ou
Enzensberger, maldizem o dia em que nasceram, o autor de Lusíadas para gente
“Na verdade, em Lachmann e em Bédier é que se encontram os dois pontos de partida da crítica textual de
nossos dias, por isso mesmo dividida em duas grandes correntes modernas: a neo-lachmanniana dos críticos
alemães e italianos, e a neo-bedieriana dos críticos franceses. Tanto numa como noutra, a edição crítica é
tida como operação inteiramente indispensável à perfeita compreensão de um texto, com segura base
filológica, pois a filologia é a ciência que se volta, deliberadamente, para a análise e compreensão dos textos,
no caso recorrendo a critérios que melhor possam aproximar um texto à última vontade consciente de seu
autor.” Sobre a recepção na literatura de expressão alemã do autor de Os Lusíadas, veja-se Maria Manuela
Gouveia Delille (coord.), Camões na Alemanha. A figura do poeta em obras de Ludwig Tieck e Günter Eich,
estudos de Catarina Martins e Júlia Garraio, Coimbra, Livraria Minerva-Centro Universitário de Estudos
Germanísticos, 2000 e Maria Cristina Carrington, Camões e D. Sebastião na obra de Reinhold Schneider,
Coimbra, Ed. Minerva Coimbra-Centro Universitário de Estudos Germanísticos, 2007.
532
Vide o incisivo estudo sobre este soneto: Maria Vitalina Leal de Matos, “Auto-retrato de Camões: o
soneto O dia em que nasci”, in Camões: sentido e desconcerto, loc. cit., pp. 25-37.
533
Vitalina Leal de Matos adverte que existe em Camões uma “aguda consciência maneirista da vida como
exílio, a concepção de nascimento, como origem do mal, em condições astrológicas que privam o sujeito
poético da liberdade. Esta parece ser a pedra de toque que explica não só o conceito e tempo, mas ainda a
concepção dualista da realidade, o desconcerto, o destino” (Cf. idem, “O que farei com este poema
(autobiografia camonística)”, in José Cardoso Bernardes (org.), Luís Vaz de Camões revisitado, loc. cit.,
p. 361).
179
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
nova aproxima-se da visão positiva desse dia, cantado também por Sophia ou Jorge
de Sena534.
Com efeito, o relevo concedido à “hipertrofia do eu” em Camões, expressão
cunhada por Vitalina Leal de Matos535, revela uma singular excepcionalidade face à
expressão disfórica no confronto do eu com o seu nascimento.
O incipit do poema variação de Graça Moura, em dimensão hermenêutica,
comenta essa mágoa dilacerante do poeta, não se coibindo de comentar as
“aliterações”:
534
Sophia, em Grutas, como notou Isabel Almeida (Cf. “Se nenhum amor pode ser perdido. Sophia e
Camões”, in Maria Andresen Sousa Tavares (org.), Sophia de Mello Breyner Andresen. Actas do Colóquio
Internacional, Porto, Porto Editora, 2013, p. 255-256) ao dar conta deste soneto contrapõe à desgraça e ao
desespero camoniano a alegria absoluta ao momento presente, processo similar a Graça Moura: “Esta manhã
é igual ao princípio do mundo e aqui venho ver o que jamais se viu”. Esta perspectiva é trilhada também por
Jorge de Sena: “É assim, o dia em que nasci / foi p’ra mim / o que vivo, viverei e já vivi…” (Cf. Jorge de
Sena, “O dia em que eu nasci”, in Post Scriptum II, 1º vol., Lisboa, Moraes Editores e Imprensa Nacional-
-Casa da Moeda, 1985, p. 76).
535
Maria Vitalina Leal de Matos, “Auto-retrato de Camões: a hipertrofia do eu”, in Colóquio-Letras, n.º 20,
1974, pp. 13-21.
536
Predomina a ênfase neste procedimento retórico de discurso hiperbólico, que, ao invés da lógica
racionalista, enumera situações impossíveis, com fortes raízes maneiristas e barrocas (Cf. Heinrich
Lausberg, Elementos de Retórica Literária, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 31982, p. 149).
537
Curiosamente, Graça Moura sobre este passo coloca a seguinte interrogação em prol da autenticidade do
soneto: “Quem sem ser Camões, teria uma destreza técnica comparável, que seria capaz da genial aliteração
dupla de ‘eclipse nesse passo o sol padeça’, quem tem outros acentos tão desesperadamente saturninos (aqui
a raiarem até à impiedade) na sua obra, quem tinha, enfim, uma biografia própria e tão marcada pela
consciência de desventura que os fizesse ressoar numa explosão de tanta sinceridade como o dia em que
nasci?” (Cf. Vasco Graça Moura, “Observações sobre o soneto O dia em que eu nasci moura e pereça”, in
op. cit., p. 145).
180
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
Por conseguinte, o tema do referido soneto, que José Saraiva considera uma
poesia essencialmente dramática pelo debate doloroso do eu com o mundo538,
constitui um filão infindável em permanente expansão, que a partir de uma matriz
ancestral proporciona um poema constantemente reescrito539.
No entanto, a admiração de Graça Moura pela realização lírica da voz tutelar
enunciada estende-se também à sua produção crítica540. Num artigo intitulado
precisamente Observações sobre o soneto o dia em que nasci moura e pereça541, o
autor discorda, tal como no poema não sei se camões hoje, das dúvidas levantadas
por Aguiar e Silva sobre a possibilidade da autoria camoniana deste texto, uma vez
que não existe uma cabal “prova filológico-documental”542. Tendo em vista provar
a autenticidade do referido texto, numa argumentação rica e convenientemente
estruturada, vgm coteja e analisa estudos de reputados camonistas: Wilhelm Storck,
Leodegário A. Azevedo Filho, José Maria Rodrigues e Afonso Lopes Vieira ou
ainda o Visconde Juromenha. Apetrechado de conhecimentos sólidos, traz à
colação os três cancioneiros quinhentistas – o de Luís Franco, o de Cristóvão
Borges e o de Fernandes Tomás – que integram a presença do soneto, ora anónimo
ora como expressamente atribuído a Camões, o que pressupõe a circulação do texto
ainda em vida do autor. A argumentação, baseada em conhecimentos exegéticos
modernos, mostra um domínio de crítica textual e, na sua apologia da autoria
camoniana do soneto, coteja-o com outros textos cuja origem é irrefutável, como
por exemplo a Elegia V ou a Canção X. Além disso, a partir da abordagem
538
António José Saraiva, Luís de Camões. Estudo e antologia, Amadora, Ed. Bertrand, 31980, p. 49.
539
Hesíodo nos versos finais dos seus Trabalhos e dias (vv. 824-828) canta este tema caro à existência
humana com uma significativa aproximação aos versos camonianos: “Há quem louve o dia, mas poucos
sabem o que é. / Há o dia que não passa de madrasta; e o dia que nos é mãe, / feliz e venturoso é o homem
que sabe destas coisas / e que faz o seu trabalho sem ofender os imortais, /observando o voo das aves sem
exceder a sua condição” (Frederico Lourenço, “Hesíodo: a enxada das musas”, in Grécia revisitada, loc. cit.,
p. 35). Por seu turno, Jorge Osório anota que o tópico do “mau dia fui nado” surge com alguma frequência
na lírica galego-portuguesa (Cf. Jorge Osório, “Luís de Camões e Ausias March”, in Península. Revista de
Estudos Ibéricos, nº 0, 2003, p. 182).
540
Sobre a produção ensaística camoniana de Graça Moura, vide José Augusto Cardoso Bernardes, “Vasco
Graça Moura. Com Camões, no comboio rápido”, in Eduardo Lourenço e Rui Vieira Nery (org.), Colóquio
Homenagem a Vasco Graça Moura, loc. cit., pp. 95-102.
541
Vasco Graça Moura, “Observações sobre o soneto o dia em que nasci moura e pereça”, in Lusitana
Praia. Ensaios e Anotações, Porto, Ed. Asa, 2005, pp. 134-146. (Este artigo saiu primeiramente em Carlos
Mendes de Sousa e Rita Patrício (org.), Largo mundo alumiado: estudos em homenagem a Vítor Aguiar e
Silva, Braga, Centro de Estudos Humanísticos, Universidade do Minho, 2004, pp. 1059-1069).
542
Cf. Vítor Manuel Aguiar e Silva, “Inquirições sobre soneto O dia em que nasci moura e pereça”, in op.
cit., pp. 191-207.
181
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
182
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
“a tensa sombra
da juventude e os lugares da cinza,
amargurado amor, de termos visto
o amador a transformar-se em sombra
a coisa amada a transformar-se em cinza”. (PR1, 138)
183
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
“amador transformado
na própria coisa amada
por muito imaginar”. (PR2, 350)
De novo, a poesia nasce da memória, o sujeito poético, tal como o fez Camões,
invoca e celebra o poder metamórfico que a mulher exerce sobre o “amador
transformado”, o que pressupõe a existência de um amor idealizado “por muito
imaginar”.
A remissão para o carácter paradoxal do sentimento amoroso ressurge de novo
aflorada no seguinte passo, relevador de um indubitável interesse de vgm pela
poesia camoniana:
“transforma-se o amador
na coisa amada e vê que não interessa, serve só
para fazer mais versos deleitosos”. (PR1, 569)
549
Jorge de Sena ao referir-se à peculiar poesia camoniana sublinha: “A procurada perplexidade entre a
verdade e a ficção, que é a própria essência da criação poética, viveu-a Camões com uma intensidade e uma
lucidez, que fazem dele um dos mais estranhos poetas” (Jorge de Sena, “A poesia de Camões. Ensaio de
revelação da dialéctica camoniana”, in Trinta anos de Camões, vol. I, loc. cit., p. 29).
550
Luís de Camões, Os Lusíadas, X, 82.
551
Vide Maria Helena Ribeiro da Cunha, Neoplatonismo de Camões, in Vítor Aguiar e Silva (coord.),
Dicionário de Luís de Camões, Lisboa, Ed. Caminho, 2011, pp. 634-642. A visão platónica segundo a qual
as realidades concretas são apenas sombras de ideias, visto que o amor pode ser simplesmente idealizado e
cristalizado na coisa amada. Assim, o amor alicerça-se numa contemplação sensual da amada numa linha de
continuidade interdita ao desejo carnal. Para Vitalina Leal de Matos, o platonismo no conjunto da obra
camoniana desempenha o papel de incentivador do desejo e garantia da sua permanente insatisfação amorosa
(Maria Vitalina Leal de Matos, O canto na poesia épica e lírica de Camões. Estudo da isotopia enunciativa,
Paris, Fundação Calouste Gulbenkian, 1981, pp. 264 sqq).
552
Jorge de Sena colocou em relevo que o encontro de contrários é uma característica indelével da poesia
camoniana (Jorge de Sena, “A poesia de Camões. Ensaio de revelação da dialéctica camoniana, in Trinta
anos de Camões 1948-1978 (Estudos camonianos e correlatos), Lisboa, Ed. 70, pp. 15-39).
184
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
“o homem e o bicho …
retém-lhes a fugaz
semelhança terrestre”. (PR1, 344)
553
Joaquim de Carvalho, proeminente historiador da cultura portuguesa, nos seus Estudos sobre as leituras
filosóficas de Camões, aproxima a obra do poeta do pensamento aristotélica: “Aristóteles é de todos os
filósofos o que melhor foi conhecido pelo poeta. Na sua obra abundam as referências, já claras, já obscuras,
à doutrina do Estagirita”. É que esta “transformação” consiste numa conformação da alma do sujeito com
uma pura semi-ideia. A introdução destas categorias aristotélicas, ao invés do princípio petrarquista norteada
pela teoria do amor de índole neoplatónica, traduz-se numa simples concretização psicológica. (Cf. Joaquim
de Carvalho, “Estudos sobre as leituras filosóficas de Camões”, in Obra completa, vol. I, Lisboa, Fundação
Calouste Gulbenkian, 21992, p. 320).
554
Luís de Camões, Os Lusíadas, I, 106, loc. cit.
555
Idem, Rimas, loc. cit., p. 222.
185
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
556
Vide, a título de exemplo, Jorge de Sena, “Aspectos do pensamento de Camões através da estrutura
linguística de Os Lusíadas”, in Actas da I Reunião de Camonistas, Lisboa, Comissão Executiva do quarto
centenário da publicação d’Os Lusíadas”, 1973, pp. 45-58; Eduardo Lourenço, “Camões e o tempo ou a
razão oscilante”, in Poesia e Metafísica. Camões. Antero. Pessoa, Lisboa, Ed. Sá da Costa, pp. 31-49; Maria
Vitalina Leal de Matos, “Que farei com este poema? Como evolui o projecto da epopeia ao longo de Os
Lusíadas?”, in AAVV, Épica. Épicas. Épica Camoniana, Constância-Lisboa, Centro Internacional de
Estudos Camonianos da Associação Casa-Memória de Camões em Constância-Ed. Cosmos, 1997, pp. 55-
-70; Hélio J. S. Alves, “Camões e o lirismo confessional na epopeia quinhentista”, in Românica, nº 16, 2007,
pp. 59-73.
557
António Gedeão, Poesias completas, Lisboa, Ed. Sá da Costa, 1964, p. 194.
186
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
a fonte558, onde é evidente o tom lúdico desta recriação literária mantendo um grau
de textualidade deliberada designada por pastiche. Este exercício de incorporação
de uma personagem reconhecível, dotado de um intuito crítico e inovador, acaba,
em pendor contrastivo, por constituir uma metamorfose ao poema referido. Foram
certamente a riqueza e a invulgaridade de vocábulos e sonoridades, a par de uma
dimensão imagética camoniana de beleza petrarquista e cortesanesca, que
chamaram a atenção de poetas posteriores a Quinhentos. Recorde-se o poema
seiscentista de Rodrigues Lobo que tenta nova glosa no mote de Leonor559,
aproximando-se de Camões por um grau de intertextualidade flagrante. Essas
relações adquirem, pois, uma nova projecção por denunciarem aproximações a
obras de épocas distintas, bem como contribuem para perspectivar o
aproveitamento realizado por Graça Moura. Num admirável confronto, que
funciona como apropriação poética560, evoca o realismo do pormenor descritivo de
uma mulher, bem como moderniza o padrão da beleza feminina testemunhado
numa indumentária sensual, “mini-saia curta” e “top em vez de blusa”, a lembrar a
“blusinha terileno” de Gedeão. O carácter dinâmico da figura feminina, que não vai
de lambreta, mas num andar rápido com os “cabelos ao vento”, recorda também o
texto do autor da Pedra filosofal, característica elitista intrínseca à paródia pela
exigência de leitura suscitada561. Graça Moura poetiza, assim, o que é
tradicionalmente considerado avesso ao lirismo; há, pois, uma exploração
sistemática do prosaico, que está nos antípodas dos padrões estéticos subjacentes à
redondilha camoniana. Esta intertextualidade parodística562, que não implica
necessariamente o cómico ou o ridículo, configura uma forma de auto-
referencialidade563, visto que, a partir de códigos da modernidade, apresenta “uma
abordagem criativa/produtiva da tradição”, segundo L. Hutcheon564. Neste prisma,
558
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., pp. 55-56.
559
Francisco Rodrigues Lobo, Poesias, selecção, prefácio e notas de Afonso Lopes Vieira, 31968, Lisboa,
Livraria Sá da Costa, pp.170-171.
560
Nesta tradição, Graça Moura canta: “a espuma, / a cor são mais literárias: fina escarlata, / vos vi em saia”
(PR1, 336).
561
Linda Hutcheon, Uma teoria da paródia, Lisboa, Ed. 70, 1989, pp. 97 sqq.
562
Sobre esta matéria, vide J. Cândido Martins, Teoria da paródia surrealista, Braga, Ed. da APPACDM,
1995.
563
Linda Hutcheon, Uma teoria da paródia, loc. cit., p. 41.
564
Idem, ibidem, p. 19.
187
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
M. Bakhtine realça a paródia como uma relação textual entre dois ou mais textos,
classificando-a como um género intradiscursivo, de natureza dialógica565. Por outro
lado, numa alargada memória literária, recria o refrão camoniano “Vai formosa e
não segura”, com o segmento “tão segura vai”, notação psicológica da figura
feminina divergente do texto onde se inspira, uma vez que vai segura e confiante da
sua beleza; ao invés, o passo tem paralelo em António Gedeão, que canta: “Vai
ditosa e bem segura”. A evocação referencial comprova, pois, a vitalidade do
processo enunciado, constituindo as sucessivas variações em torno do tema comum
da beleza feminina a demonstração do engenho poético de Graça Moura. Com
efeito, nesta confluência de textos temporalmente muito distantes, os paralelismos
inesperados desencadeiam uma imagética singular de que resulta uma paródia
intertextual a desafiar uma cabal competência literária566. Registe-se ainda que o
verso derradeiro apresenta um carácter conclusivo, uma vez que explica, em
dimensão metapoética, a inspiração lírica haurida e a indiferença a que aquela
mulher sujeita o eu de enunciação: “tudo o que dá foi isto que me deu”.
A relação dialógica, formulada com outros textos que os procederam ou lhes são
contemporâneos, apresenta, com efeito, um paralelismo com a concepção de poesia
proposta por Carlos de Oliveira:
“Em todo o caso temos consciência, mais ou menos, que a poesia de cada um se faz também
com a poesia dos outros no permanente confronto da criação. Para descobrir o que há de pessoal
em nós, para nos distanciarmos, já se vê.”567
“A ironia intertextual, pondo em jogo a possibilidade de uma dupla leitura, não convida todos
os leitores para o mesmo festim. Seleciona-os e privilegia os leitores intertextualmente
avisados”.568
565
Mikhail Bakhtine, Esthétique et théorie du roman, Paris, Ed. Gallimard, 1987, p. 431.
566
Sobre este conceito, vide Vítor Manuel Aguiar e Silva, Competência linguística e Competência literária,
Coimbra, Livraria Almedina, 1977, pp. 103 sqq.
567
Carlos de Oliveira, “Micropaisagem”, in O aprendiz de feiticeiro, Lisboa, Ed. Seara Nova, 21973, p. 263.
568
Umberto Eco, “Ironia intertextual e níveis de leitura”, in Sobre literatura, Lisboa, Ed. Difel, 2003, p. 225.
188
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
Assim, a prática referida pelo autor de O nome da rosa, motivada por uma
pulsão criativa, pode-se observar no seguinte passo:
“Na verdade, nunca escrevemos nada que nos pertença por inteiro, nem nada que nos seja
completamente alheio”.573
569
Rita Marnoto, O Petrarquismo português do Renascimento e do Maneirismo, Coimbra, Acta Vniver-
sitatis Conimbrigensis, 1997, p. 563.
570
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 164.
571
Sobre esta matéria, vide Rita Marnoto, “A figura feminina petrarquista em Camões, entre imitação e
transformação”, in Maria João Borges et alii, Lírica camoniana. Estudos diversos, loc. cit., pp. 49-63.
572
Como nota Rita Marnoto (O Petrarquismo português do Renascimento e do Maneirismo, loc. cit.,
p. 558), esta evolução poética da construção da personagem feminina já surge no período maneirista.
573
Vasco Graça Moura, Poemas escolhidos, loc. cit., p. 472.
189
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
574
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 170.
575
Eunice Ribeiro destaca neste texto o “singular concerto de timbres, um memento mori maneirista com a
dorida dicção camoniana” (Eunice Ribeiro, “Retrato do poeta como artista”, in Eduardo Lourenço e Rui
Vieira Nery (org.), in Colóquio Homenagem a Vasco Graça Moura, loc. cit., p. 73).
190
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
576
Vasco Graça Moura, Adamastor. Nomen Gigantis, Lisboa, Ed. Afrontamento, 2000.
577
Idem, ibidem, p. 177.
578
Idem, ibidem, p. 176.
579
João Barrento, “Palimpsestos do tempo. O paradigma da narratividade na poesia dos anos oitenta”, in A
palavra transversal. Literatura e ideias do século XX, Lisboa, Ed. Cotovia, 1996, p. 71.
191
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
agonia580, que parece ter resposta de Graça Moura nos versos decassilábicos de Os
Lusíadas para gente nova:
Porém, nesta “mísera sorte, estranha condição”582, célebre fala do ancião citada
por Graça Moura (PR1, 557), irrompe o Adamastor:
580
Sobre a recriação poética das suas figuras, o poeta anuncia: “personagens / convertidas no verso, as suas /
falas são, aí, um silêncio / imaginado: a loquaz invenção // da prosódia e da técnica” (PR1, 282).
581
Vasco Graça Moura, Os Lusíadas para gente nova, Lisboa, Ed. Gradiva, 2012, p. 70.
582
Luís de Camões, Os Lusíadas, IV, 104, loc. cit.
583
Idem, ibidem, V, 41.
584
Vítor Aguiar e Silva, “A outorga do Prémio Morgado de Mateus a Vasco Graça Moura”, in op. cit.,
pp. 176-177.
192
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
Graça Moura tem um particular apreço pelo gigante, como se verifica nas várias
referências que lhe dedica em diferentes momentos. Em Os Lusíadas para gente
nova, a figura é caracterizada, segundo a sugestão camoniana:
585
Vasco Graça Moura, Os Lusíadas para gente nova, loc. cit., p. 78.
586
Costa Ramalho, propõe uma interpretação etimológica para o nome da figura mitológica, bem como
interpreta a importância deste episódio em Os Lusíadas. Vide Américo da Costa Ramalho, “Sobre o nome de
Adamastor” e “Aspectos clássicos do Adamastor”, in Estudos camonianos, loc. cit., respectivamente, pp. 27-
-34 e 35-44.
587
Vasco Graça Moura, Os Lusíadas para gente nova, loc. cit., pp. 80-81. Nesta ordem de ideias, Aníbal
Pinto de Castro destaca diversas derivas inovadoras no episódio e, de entre elas, dá relevo à combinação do
épico, trágico e lírico, ganhado este último elemento uma importância nuclear no caso do amor cantado pelo
gigante (Aníbal Pinto de Castro, “O episódio do Adamastor”, in Páginas de um honesto estudo camoniano,
loc. cit., p. 178).
193
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
O fascínio por esta personagem imortalizada por Camões leva vgm a analisá-la
de um ponto de vista amplo e sincrónico também em Adamastor, nomen gigantis,
onde apresenta diversas variações que dela fizeram Almeida Garrett, em Camões, e
Fernando Pessoa, em O mostrengo, poema incluído na Mensagem.
É curiosa a cumplicidade colhida no imaginário camoniano, uma vez que o texto
de vgm conjuga literatura, crítica e artes plásticas, quebrando as barreiras
genológicas dos modos literários. Num registo de notável erudição, debruça-se
sobre o processo compositivo da figura mítica do Adamastor, a partir de uma
escultura popular de José de Guimarães, bem como de esboços do artista e amigo,
por quem Graça Moura tinha grande admiração, como já foi referido anteriormente.
Consequentemente, realiza uma leitura crítica do artista, resultante de
conhecimentos sólidos nas artes plásticas, e uma aturada sensibilidade estética:
588
Vasco Graça Moura, Adamastor. Nomen gigantis, loc. cit., sem indicação de número de página.
589
Idem, ibidem, sem indicação de número de página.
194
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
590
Segundo este autor, “Para além da repercussão literária que viria a obter, a figura do Adamastor haveria
ainda de transformar-se num tópico cultural, representando obstáculos sobre-humanos e os medos
arquetipais com quer o homem (nauta de qualquer época) tem de se confrontar na conquista dos seus
desígnios” (José Augusto Cardoso Bernardes, “Episódio do Adamastor”, in Vítor Aguiar e Silva (org.),
Dicionário de Luís de Camões, loc. cit., p. 19. Vide também José Augusto Cardoso Bernardes, “Tétis, o
Adamastor e o peito ilustre lusitano”, in Biblos, LXIV (1988), pp. 119-134.
591
Manuel Ferro, “The myth of Adamastor in postmodernity: between legend and art, fiction and history”, in
Antonella Lipscomb y José Manuel Losadas (coord.), Los mitos antiguos, medievales y modernos en la
literatura y las artes contemporáneas, Bari, Levante Editori, 2013, pp.119-128.
592
Maria Aparecida Ribeiro, “Um Adamastor ambíguo, uma tuba enrouquecida: Camões na leitura de
Nélida Piñon”, in Maria do Céu Fraga et alii (org.), Camões e os contemporâneos, loc. cit., pp. 745-755.
593
Manuel António Pina, Aquilo que os olhos vêem ou o Adamastor, ilustr. de José M. Ribeiro e Pedro
Aguilar, Coimbra, Angelus Novus, 2102.
594
Pela importância que suscitam os aspetos enunciados, Carlos Reis sublinha: “Em meu entender é da
história literária e do imaginário camoniano por ela fomentado que nutrem muitos dos textos (e certamente
não só na literatura portuguesa) que tratam de explorar os traços mais sedutores e mais singularmente
‘heróicos’ da personalidade e de Camões, traço que não raro são metonimicamente associados ao destino
colectivo português” ( Carlos Reis, “História literária e personagens na história: os mártires da literatura”, in
Carlos Reis et alii (org.), loc. cit., p. 112).
595
Sobre a recepção, interpretação e indicações bibliográficas deste episódio, vide José Carlos Seabra
Pereira, “Inês de Castro”, in Vítor Aguiar e Silva (coord.), Dicionário de Luís de Camões, loc. cit., pp. 444-
-449.
195
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
596
Cf. Vasco Graça Moura, Poesia 2001-2005, Lisboa, Ed. Quetzal, 2006, p. 91.
597
Cândido Martins destaca que a paródia corrói deliberadamente todas as manifestações dominadas por
uma estética da imitação, o que se aplica com propriedade ao contexto enunciado (José Cândido Martins,
Teoria da paródia surrealista, loc. cit., p. 81).
196
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
“o cisne
quando sente ser chegada a hora, etc.,
diz o camões cantando desfavores,
e é final este enlace e só de música
espectral de poetas e pintores.” (PR2, 353-354)
Visto que a poesia se faz também de versos alheios, o passo, entre aspas, encerra
uma citação598 do incipit de um soneto de Camões599, no conhecido topos clássico
do cisne, que, perante a morte eleva o seu canto, lamentando o fim dos seus dias.
Assim, também o desespero da morte sentido pelo ser humano, inspiração “de
música / espectral de poetas e pintores”, sugere o derradeiro canto da referida ave.
Com efeito, o poema camoniano reparte-se difusamente entre o carácter
indissociável da elevação do canto e a tristeza da morte, topos que possui uma larga
fortuna desde a Antiguidade Clássica até à actualidade, como notou Frederico
Lourenço.600
Nesta dimensão intertextual sempre procurada, portanto aberta ao sistema
literária, também a célebre redondilha Aquela cativa de Camões601 é sugerida por
Graça Moura:
“a que me cativa
se nas nuvens vivo
também me cativa
se dela me esquivo
p’lo mesmo motivo
de que nela vivo
sem alternativa
a que me cativa
mas dá liberdade
nesta tentativa
de que um dia há-de
ser data festiva
por termos vontade
de que assim se viva
598
Esta estratégia enunciativa, que consiste na apropriação selectiva de versos de outrem no interior do corpo
textual de Graça Moura é, no dizer de Laurent Jenny, uma forma particular de intertextualidade. A autora
refere ainda que um aspecto fulcral da intertextualidade verifica-se no “aproveitamento duma determinada
unidade textual abstraída do seu contexto e inserida assim mesmo num novo sintagma textual” (Cf. Laurent
Jenny, “A estratégia da forma”, in Laurent Jenny et alii, Intertextualidades. Poëtique, nº 27, loc. cit., p. 14).
599
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 143.
600
Segundo Frederico Lourenço, Camões retomou a alusão ao canto, nos últimos instantes de vida, do cisne,
“a ave das Musas”, já presente num poema de Calímaco: “É quando a ave das Musas já não consegue mover
as asas / que o seu canto atinge o auge do seu esplendor” (Frederico Lourenço, “A arte poética de
Calímaco”, in Grécia revisitada, loc. cit., p. 125).
601
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 89.
197
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
a que me cativa
e me traz cativo
só faz com que eu viva
porque nela vivo:” (PR2, 504)
602
Rita Marnoto, “Camões, Laura e Bárbora escrava”, in Máthesis, nº 6, 1997, pp. 77-103.
198
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
Os versos impõem, desde logo, notações referenciais que valem como ponto de
partida inspirador do referido poema. A consciência lírica objectiva-se no acto de
constituição do próprio texto, concluindo Graça Moura que “a escrita polui-se”, na
incapacidade de chegar à perfeição lírica605. O diálogo com o poeta quinhentista,
“vou dizer ao camões”, explora uma dimensão autobiográfica, que se desdobra
“sobre os rios”, numa enumeração de elementos geradores de lamento e
desencanto, análogos à glosa camoniana do salmo 136606. A meditação do poeta
contemporâneo associa a tensão existencial às angústias da essência poética,
plasmada no sentido saturnino do lexema “noite”; como notou João Minhoto
603
Graça Moura sintetiza a importância deste poema do seguinte modo: “Paradigma por excelência intra e da
intertextualidade camonianas, em Sobre os rios poderão identificar-se dezenas e dezenas de topoi e lugares
paralelos das mais variadas proveniências, com ecos, reelaborações e recorrências no poema e quase verso a
verso” (Vasco Graça Moura, “Quatro breves anotações a Sobre os rios”, in David Mourão Ferreira et alii
(org.), Afecto às letras, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1984, p. 653).
604
Com efeito, a riqueza das redondilhas referidas leva Jorge de Sena a afirmar num artigo intitulado Babel e
Sião: “Este tema, de grande importância na tradição judaica e na cristã, assume crucial valor em Portugal,
sobretudo por ser do Salmo respectivo, que Camões transformou numa pessoal e individualizada expressão
do seu pensamento poético não só da sua obra, como do seu tempo ou da poesia universal, a oposição
simbólica entre Babilónia e Jerusalém” (Jorge de Sena, “Babel e Sião”, in Trinta anos de Camões 1948-
-1978 (Estudos camonianos e correlatos), loc. cit., p. 113).
605
Neste prisma, Graça Moura em poema conclui: “todo o poema é perfeitamente impuro” (PR1, 9).
606
Cf. Maria Vitalina Leal de Matos, “Sôbolos rios. Uma estética arquitectónica”, in Ler e escrever, loc. cit.,
p. 64. Embora sejam atribuídos a Camões outros textos, Costa Pimpão (Cf. Luís de Camões, Rimas, loc. cit.)
assinala somente dois sonetos dedicados a este tema: Cá desta Babilónia donde mana (p. 118) e Na ribeira
do Eufrates assentado (p. 129).
199
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
“O sentido geral das redondilhas é o de nelas se fazer a palinódia em relação ao canto profano,
reorientando-se este a lo divino, a partir de certa altura”.609
607
João Minhoto Marques, “Camões e a poesia de Vasco Graça Moura, in Maria do Céu Fraga et alii (org.)
Camões e os contemporâneos, Braga, Centro Interuniversitário de Estudo Camonianos-Universidade dos
Açores-Universidade Católica Portuguesa, 2012, p. 692.
608
Vasco Graça Moura (Camões e a divina proporção, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 21994,
pp. 57 sqq) dedica à palinódia, canto de arrependimento de difícil definição, uma particular atenção. Registe-
-se que a propósito do pensamento platónico no poeta quinhentista vários autores manifestaram posições
contrárias sobre a possível fonte em que terá haurido Camões o seu conceito de palinódia. O primeiro (Costa
Pimpão, “Teria Camões lido Platão?”, in Estudos diversos, Coimbra, Acta Vniversitatis Conimbrigensis,
1972, pp. 111-120) defende que Camões se inspirou no Fedro de Platão; o autor da Aparição, por seu lado
(Vergílio Ferreira, “Teria Camões lido Platão?”, in Biblos, vol. XVIII, 1942, pp. 225-247) preconiza que a
génese privilegiada do texto camoniano é a ode horaciana O matre pulchra filia pulchrior. Vítor Manuel
Aguiar e Silva (“Amor e mundividência na lírica camoniana”, in Camões: Labirintos e fascínios, loc. cit.,
p. 169, nota 24), sem invalidar os argumentos apresentados, afirma que o conceito de palinódia estava muito
divulgado na literatura quinhentista, pelo que é difícil, senão impossível, determinar com rigor a fonte
textual de Camões.
609
Vasco Graça Moura, “Redondilhas Sôbolos rios ou sobre os rios que vão”, in Vítor Aguiar e Silva
(coord.), Dicionário de Luís de Camões, loc. cit., pp. 834.
610
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 105.
611
Cf. José Carlos Seabra Pereira, “Para o estudo das incidências augustinianas na lírica de Camões”, in
Actas da IV Reunião Internacional de Camonistas, Ponta Delgada, Universidade dos Açores, 1984, pp. 431-
-448 e idem, “Apontamentos sobre uma elegia augustiniana de Camões. Se quando contemplamos as
secretas”, in David Mourão Ferreira et alii (org.), Afecto às letras, loc. cit., pp. 329-335.
612
António Salgado Júnior, Camões e Sôbolos rios. Ensaio de interpretação destas redondilhas, separata do
vol. X da Revista Labor, Aveiro, 1936.
200
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
613
Ao utilizar o lexema “labirinto”, Graça Moura não descura as afinidades à mundividência labiríntica de
Babel no soneto camoniano Cá nesta babilónia donde mana (Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 176),
quando canta: “Cá neste labirinto, onde a nobreza, / o valor e o saber pedindo vão / as portas da cobiça e da
vileza” (Cf. Maria Leonor Carvalhão Buescu, “Babel e o labirinto”, in Ensaios de literatura portuguesa,
Lisboa, Ed. Presença, 1986, pp. 68-69).
614
António Sérgio, “Apêndice ao ensaio sobre a lírica de Camões”, in Ensaios, tomo V, Lisboa, Ed. Sá da
Costa, 21981, p. 211.
201
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
e outras vezes a verdade capciosa. a mim, tanto fazia, o importante era virem
ao som da flauta, ao som da lira.”615
615
Vasco Graça Moura, “Babel revisited”, in Artur Anselmo et alii, Babel sobre babel, Lisboa, Ed. Babel,
2010, p. 113
616
Graça Moura destaca o vasto potencial poético dos salmos, em especial a partir do último quartel do
século XVI, quer de proveniência bíblica, quer profana” (Vasco Graça Moura, Camões e a divina
proporção, loc. cit., pp. 57 sqq).
202
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
Deste modo, os versos transcritos são abordados por Graça Moura numa
perspectiva ligada sobretudo ao poder do canto, que, por extensão, evoca a
dimensão da própria poesia, embora, ainda assim, reconheça a dimensão divina,
aceite pela maioria dos exegetas:
617
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 105.
618
Maria Vitalina Leal de Matos, “Sôbolos rios. Uma estética arquitectónica”, in Ler e escrever, loc. cit.,
p. 56.
619
Cleonice Bernardinelli destaca que de entre os núcleos significativos das redondilhas camonianas, ligados
ao poeta, ao amante e ao crente “predomina largamente o canto” (Cleonice Bernardinelli, “Sobre os rios: a
mudança da mudança”, in Estudos camonianos, loc. cit., p. 205 e nota 5).
620
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 111.
203
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
“À flauta sucede a lira dourada, ao instrumento idóneo para a pulsão dos sentidos e da
sensualidade, bem como para a provocação da metamorfose órficas, substitui-se a lira dourada, o
instrumento das cordas de Apolo, num registo puramente intelectual e próprio para entoar um
canto à divindade”.621
Esta palavras são, pois, direccionadas pela meditação sobre o destino humano e
o modo de o exprimir; a lira afigura-se um dos símbolos por excelência da exegese
bíblica e do canto divino622, sobrepondo-se à flauta, símbolo sensual de cariz
profano623. A este propósito, Rita Marnoto, ao estudar as relações de Camões com
Sannazaro, valoriza o instrumento consagrado a Orfeu na Antiguidade:
621
Vasco Graça Moura, “Redondilhas Sôbolos rios ou sobre os rios que vão”, in Vítor Aguiar e Silva
(coord.), Dicionário de Luís de Camões, loc. cit., p. 834.
622
Manuel Augusto Rodrigues, “Sôbolos rios que vão à luz da exegese bíblica moderna”, in Arquivos de
Centro Cultural Português, vol. XVI, Paris, Fundação Calouste Gulbenkian, 1982, pp. 417-418.
623
O autor não ignora a tradição augustiniana que considera “a música rítmica, a da lira dourada, própria
para o canto da razão e da medida, para o hino de elevação a Deus” (Vasco Graça Moura, “Redondilhas
Sôbolos rios ou sobre os rios que vão”, in Vítor Aguiar e Silva (coord.), Dicionário de Luís de Camões, loc.
cit., p. 835).
624
Rita Marnoto, “Da Arcádia a Sôbolos rios”, in Sete ensaios camonianos, Coimbra, Centro
Interuniversitário de Estudos Camonianos, 2007, p. 220.
625
As convicções de vgm levam-no a aproximar das teorias evolucionistas, quando confidencia: “não creio
em deus, não me atingiram / seus metafísicos engodos. / no homem que sou evoluíram / peixes, macacos,
alga, lodos” (PR2, 256).
204
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
626
Sobre esta matéria, presente no autor da Canção X, vide Maria Helena Rocha Pereira, “O mito de Orfeu e
Eurídice em Camões”, in Novos ensaios sobre temas clássicos na poesia portuguesa, Lisboa, Imprensa
Nacional-Casa da Moeda, 1988.
627
Tal como em Camões, o abandono do canto em Graça Moura é símbolo de desistência e de renúncia
(Cf. Maria Vitalina Leal de Matos, O canto na poesia épica e lírica de Camões, Paris, Fundação Calouste
Gulbenkian, 1981, p. 15).
628
A pertinência desta aproximação é sublinhada por alguns autores, que consideram a conjugação de temas
religiosos e profanos como uma característica distintiva de muitos poetas do Maneirismo (Isabel Almeida,
Poesia maneirista, loc. cit., p. 58)
629
Vasco Graça Moura, “Babel revisited”, in Artur Anselmo et alii, Babel sobre babel, loc. cit., p. 114.
205
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
divino630, atitude que assumiu ao longo da vida, porém não deixa de invectivar a
sociedade e o mundo, como testemunha o sintagma “na confusão de babel”.631
Com óbvias conotações simbólicas, essa aguda consciência existencial de
Graça Moura concretiza-se, numa admirável súmula do seu perfil, imprescindível
para o entendimento dos seus versos: “meditativo e melancólico, irónico e
literário”. É a partir da construção do mundo às avessas que o poeta apanha o
sentido da vida; denuncia a desumanização, bem como descortina que essa atitude é
característica do seu tempo, prova cabal de que o poeta explora a dimensão moral
contemplada nos salmos632. Deste modo, a irrupção destes valores enfatiza que o
melhor exemplo não deriva somente de Deus, mas também da alquimia do canto,
revelando indubitavelmente um novo sentido aos versos de Graça Moura –
precisamente é esse mundo incerto, inquietante e desconcertante, a lembrar a
complexidade do Maneirismo, que desenha o seu discurso poético.
Em tom irónico e até provocatório, a apóstrofe, contida na expressão “ah maria,
maria”, assinala uma poesia marcada por uma tonalidade de desolação e
arrependimento, semelhante a uma ladainha. Associa-se-lhe “misere, misere”, ecos
do Salmo 51, de súplica individual que na Vulgata começa com o último lexema
referido633; o eu lírico assume-se, assim, como suplicante, peregrino descalço a
espalhar flores, revelação pungente da experiência do sofrimento.
A descrença e o cepticismo, na realidade, invadem-lhe o espírito, porque Deus
“deixa o homem desarmado”, sem amparo divino, o que explica uma
espiritualidade profundamente disfórica, como Graça Moura escreve no polémico
título Contra Deus:
630
Sobre este assunto, com particular acuidade, Carlos André sublinha a propensão de diversos estudiosos
para destacar a dimensão religiosa do poema; no entanto, os versos de Graça Moura estão em consonância
com a sua hermenêutica, uma vez que destaca o “caracter enigmático” para a compreensão do poema, que
configura uma estética predominantemente maneirista (Carlos Ascenso André, “Super flumina: as
redondilhas camonianas e outras paráfrases quinhentistas”, in Seabra Pereira e Manuel Ferro (coord.), Actas
de VI Reunião de Camonistas, loc. cit., p. 471).
631
Este ideário é consentâneo com a análise suscitada por George Steiner; este autor relaciona o enorme
vazio moral e emocional da civilização ocidental com a crise dos sistemas religiosos vigentes (George
Steiner, Nostalgia do absoluto, Lisboa, Ed. Relógio d’Água, 2013, pp. 67-68).
632
Nesta linha de pensamento, Salgado Júnior sustenta que “o Salmo pode servir de meio de comparação
para situações morais sem sentido religioso, como seja o estado de abatimento, consequente de desastre na
vida ou a saudade de tempos felizes, realçando-os poeticamente” (António Salgado Júnior, Camões e
Sôbolos rios. Ensaio de interpretação destas redondilhas, Aveiro, Gráfica Aveirense, 1936, p. 5).
633
Vide Bíblia Sagrada, loc. cit., pp. 890-891.
206
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
634
Vide Vasco Graça Moura, “Contra Deus”, in Discursos vários poéticos, loc. cit., p. 396. O pensamento
veiculado nestes versos e reiterado ao longo da vida, corresponde, em grande medida, ao que, por exemplo,
declara em entrevista: “Sou um ateu convicto. No há tentações nem volta a dar. Mas compreendo a vivência
das religiões e o tipo de angústia metafisica” (Tiago Salazar, “Com sua Graça e tudo”, in Magazine Artes,
nº 47, Janeiro 2007, p. 27).
635
Vasco Graça Moura, “Babel revisited”, in Artur Anselmo et alii, Babel sobre babel, loc. cit., pp. 113-114.
636
As redondilhas em questão são consideradas o mais perfeito exemplo da vertente maneirista de Camões,
como preconizam diversos autores (Cf., por exemplo, Jorge de Sena, “O maneirismo de Camões”, in Trinta
anos de Camões, loc. cit., pp. 43-92).
207
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
Assim, “para babel ressoar melhor na dissonância” sugere que o salmo foi
motivo de vasta e divergente fortuna criativa640, graças à glosa produzida por
637
Por exemplo, Cleonice Berardinelli mostra como “a Babilónia temporal se insere na dor, enquanto Sião -
tempo passado, é substituída pela terra da Glória” (Cleonice Berardinelli, “Sôbolos rios: a mudança da
mudança”, in Estudos camonianos, loc. cit., p. 208).
638
Segundo Jeanneret, o canto bíblico adequa-se ao gosto pelas imagens hiperbólicas, tão apreciadas pelo
Maneirismo, o que explica as múltiplas edições do referido salmo por toda a Europa (Michael Jeanneret,
Poésie et tradition biblique au XVIe. siècle: recherches stylistiques sur les paraphrases des ‘Psaumes’, de
Marot à Malherb, Paris, Ed. José Corti, 1969, p. 444).
639
Vasco Graça Moura, “Babel revisited”, in Artur Anselmo et alii, Babel sobre babel, loc. cit., p. 114.
640
A título de exemplo, Maria de Lourdes Belchior (“As glosas do salmo 136 e a saudade portuguesa”, in Os
homens e os livros. Séculos XVI e XVII, Lisboa, Ed. Verbo, 1971, pp. 17-28) conta-se entre os autores que
analisaram com significativa acuidade a recepção criativa do salmo 136, desenvolvida sobretudo a partir das
redondilhas camonianas, centrando-se sobretudo na literatura peninsular dos séculos XVI e XVII não
deixando de referir na actualidade O canto de Babel, de Aureliano de Lima, e o conto Super flumina
Babylonis, da autoria de Jorge de Sena. Neste contexto, vide a interpretação e a bibliografia indicada por
Rita Marnoto, “Da Arcádia a Sôbolos os rios”, in Sete ensaios camonianos, Coimbra, Centro
Interuniversitário de Estudos Camonianos, 2007, pp. 189-221 e Carlos André, “Super Flumina: as
208
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
redondilhas camonianas e outras paráfrases quinhentistas”, in Seabra Pereira e Manuel Ferro (coord.), Actas
da VI Reunião Internacional de Camonistas, Coimbra, Imprensa da Universidade, 2012, pp. 471-485.
641
A Divina Comédia de Dante, tradução de Vasco Graça Moura, Venda Nova. Ed. Bertrand, 1995,
pp. 68-69.
642
Nesta óptica, o poeta contemporâneo teve sempre o almejado desejo de cultivar “a qualidade intrínseca
de Camões, a sua força cultural e literária no seu sentido universalista”, no dizer de Guilherme d’Oliveira
Martins (“Que se lhe dobre a memória”, in JL. Jornal de Letras, Artes e Ideias, 4 Dezembro 2014, p. 27).
643
Vasco Graça Moura, em Camões e a divina proporção, debruça-se sobre esquemas pitagóricos-
-matemáticos aplicados ao texto camoniano, sobretudo a teoria do número de ouro que é tomada como
modelo de conhecimento capaz de atingir a unidade através de reacções proporcionais, preconizadas no De
diuina proportione (publicado em 1509) de Luca Pacioli, matemático italiano de Quinhentos, que dá título
ao volume (Vasco Graça Moura, “Camões e a divina proporção”, in Camões e a divina proporção, loc. cit.,
pp. 133-167).
644
Idem, “Os salmos e o humanismo”, in op. cit., pp. 11-45.
645
Idem, “A música em Sobre os rios”, in op. cit., pp. 171-213.
646
Eduardo Lourenço, “Camões e Frei Heitor Pinto”, in Poesia e metafísica, Lisboa, Ed. Sá da Costa, 1983,
pp. 103-115.
647
Vasco Graça Moura, “Camões e Fr. Heitor Pinto”, in Camões e a divina proporção, loc. cit., p. 120.
209
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
648
Idem, Babel em redondilhas: Luís de Camões, D. Francisco Manuel de Melo e Afonso Duarte, pref. de
Vasco Graça Moura, Lisboa, Ed. Ática, 2010.
649
A riqueza da essência lírica do canto camoniano de Sôbolos rios leva Jorge de Sena a concluir que se
trata de um poema da fase final da vida do poeta, referindo que constitui “uma profissão de fé pessoalíssima,
e uma despedida ou testamento poético” (Cf. Jorge de Sena, “Babel e Sião”, in Trinta anos de Camões 1948-
-1978. Estudos camonianos e correlatos, loc. cit., p.127). Registe-se que Vasco Graça Moura (“O texto e o
naufrágio”, in Camões e a divina proporção, in loc. cit., p. 59) preconiza que “tudo concorre a indicar terem
as redondilhas sido escritas em Lisboa e na última fase da vida de Camões.” Em consonância com esta
perspectiva, veja-se ainda Vítor Manuel Aguiar Silva, “Epilegómenos”, in Camões: labirintos e fascínios,
loc. cit., p. 238. Em larga medida, esta asserção apresenta uma forte analogia com o poema Babel revisited,
de Graça Moura, editado também nos últimos anos de vida do autor.
210
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
650
Poesias castelhanas de Camões, tradução e prefácio de Vasco Graça Moura, Lisboa, Ed. Ática, 2010.
651
Neste sentido, Frederico Lourenço, no enaltecimento das qualidades literárias de vgm considera-o um
“sobredotado tradutor”, pela liberdade criativa e pelo conhecimento seguro e concreto das línguas que verteu
para português (Frederico Lourenço, “Vasco Graça Moura”, in O lugar supraceleste. Crónicas, Lisboa. Ed.
Cotovia, 2015, p. 260).
652
Como observa, João Barrento, sobre a versão de vgm da poesia de Rilke, considera que qualquer
experiência da tradução é sempre “animada do sopro da necessidade e do génio” (João Barrento, “O ser e o
canto. Rilke pela mão de Vasco Graça Moura”, in Rainer Maria Rilke, Elegias de Duíno e Os Sonetos a
Orfeu, Lisboa, Ed. Quetzal, 22017, p. 14).
653
Aguiar e Silva tem uma curiosa posição sobre os poemas castelhanos de Camões. Segundo o reputado
camonista, o poeta quinhentista apenas escreveu um diminuto número de sonetos; no que respeito as
redondilhas, acrescenta o professor, “são escritas em castelhano, em conformidade com a língua dos motes,
quase todos anónimos” (Vítor Manuel Aguiar e Silva, Maneirismo e Barroco na poesia lírica portuguesa,
loc. cit., pp. 390-391).
654
Há uma considerável e importante série de estudos consagrados aos versos castelhanos de Camões, a
título exemplificativo, vide: Antero Vieira de Lemos, A obra espanhola de Camões, Porto, Editora Pax,
2
1972; José Filgueira Valverde, “Camões, clássico castelhano”, in Camões, Coimbra, Liv. Almedina, 21981,
pp. 325-357; Ana Maria Garcia Martín, “O uso do castelhano na obra de Camões”, in Aguiar e Silva (org.),
Dicionário de Camões, loc. cit., pp. 937-940.
655
Veja-se a este propósito, Pilar Vazquez Cuesta, “O bilinguismo castelhano-português na época de
Camões, in Arquivos do Centro cultural Português, vol. XVI, Fundação Calouste Gulbenkian, Paris, 1981,
pp. 807-827; Jorge de Sena, “Autonomia política sob os Filipes”, in Amor e outros verbetes, Lisboa, Edições
70, 1992, p. 138.
656
Embora García Martín reconheça dificuldades na delimitação precisa das coordenadas temporais sobre
este fenómeno linguístico dual, sublinha: “A dimensão que o fenómeno do bilinguismo luso-castelhano
assume na literatura portuguesa é extraordinária, tanto pela quantidade de como pela qualidade dos autores
portugueses que escreveram toda ou parte ou da sua obra em castelhano. Por essa razão, é possível afirmar
que a língua castelhano foi, durante três séculos uma das línguas de expressão da literatura portuguesa” (Ana
Maria García Martín, “O bilinguismo literário luso-castelhano na época de Camões”, in Vítor Aguiar e Silva
(coord.), Dicionário de Luís de Camões, loc. cit., p. 78).
211
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
“O sistema de uma literatura nacional, no seu repertório e nas suas normas e convenções, é
sempre em rigor um sistema interliterário, constituído graças às afinidades memoriais, históricas,
linguísticas, geoculturais, geopoéticas, étnicas, religiosas, etc., existente entre as várias nações e
nos intercâmbios recíprocos que vão desde as grandes concepções poetológicas até aos temas e aos
estilemas, que entre elas se estabelecem.”658
657
Paul Teyssier sustenta a este respeito: “Numa época em que a cultura portuguesa e a cultura espanhola se
encontravam tão intimamente ligadas em Portugal, a maior parte dos escritores deste país dominava com
igual facilidade as duas línguas (Paul Teyssier, A língua de Gil Vicente, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da
Moeda, 2005, p. 351).
658
Vítor Manuel Aguiar e Silva, “Camões e a comunidade interliterária luso-castelhana nos séculos XVI e
XVII (1572-1648)”, in A lira dourada e a tuba canora, Lisboa, Ed. Cotovia, 2008, p. 56.
659
Nesta linha, a profusão do fenómeno do bilinguismo é uma marca distintiva dos poetas maneiristas, como
assevera Vítor Manuel Aguiar e Silva (Maneirismo e barroco na poesia lírica portuguesa, loc. cit., pp. 389
sqq). Cf. também Manuel Ferro, “O bilinguismo na épica portuguesa do período filipino: entre a expressão
autonómica, a afirmação identitária e a importância do contexto cultural espanhol envolvente”, in Carmen
M. Fernandez de Cañete et alii (org.), Crisis y ruptura peninsular. III Congreso Internacional de la
SEEPLU, Cáceres, Universidad de Extremadura, 2014, pp. 81-99.
660
Aguiar e Silva apresenta uma síntese de estudiosos que se debruçaram sobre a obra de Camões a partir do
conceito de comunidade interliterária (Cf. Vítor Manuel Aguiar e Silva, “Camões e a comunidade
interliterária luso-castelhana nos séculos XVI e XVII (1572-1648)”, in op. cit., p. 58).
661
Neste fascínio por Camões, o vgm confidencia, em entrevista, o principal motivo do seu trabalho de
tradutor: “A primeira razão que me leva a traduzir é adensar o meu conhecimento do autor que me interessa"
(Mário Santos, “Petrarca segundo Graça Moura”, in jornal Público, 1 Dezembro 2003, p. l3).
662
Ao passo da Écloga I (p. 56-59), juntam-se as seguintes redondilhas: Pues me distes tal herida (p. 16);
Desque una vez miré (p. 18); Tiempo perdido es aquel (p. 20); Falsos loores os dán (p. 22); Ved que
enganos señorea (p. 24); Posible es a mi cuidado (p. 26); Mi corazón me han robado (p. 28); Dióme Amor
tormentos dos (p. 30); Mi nueva y dulce querella (p. 34); Después que Amor me formó (p. 36); Madre, si me
fuere (p. 42); Sepa quién padece (p. 46); Vuelve acá, no estês pasmado (p. 50). No que concerne aos
212
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
GLOSA GLOSA
A este moto: A este moto:
Que veré que me contente? Que verei que me contente?
sonetos, são apresentados com os seguintes títulos: El vaso reluciente y cristalino (p. 52) e Pues lágrimas
tratáis, mis ojos tristes (p. 54) (Cf. Luís de Camões, Rimas, loc. cit.).
663
Os sonetos são os seguintes: De piedra, de metal, de cosa dura (p. 62); Do están los claros ojos que
colgada (p. 64); Ilustre gracia, nombre de una moza (p. 66); Ondas que por el mundo caminando (p. 68)
Orfeu enamorada que tañía (p.70) (Cf. Hernâni Cidade, Obras Completas de Luís de Camões, vol. I -
- Redondilhas e sonetos, Lisboa, Ed. Sá da Costa, 51985).
664
Poesias castelhanas de Camões, tradução e prefácio de Vasco Graça Moura, loc. cit., p. 8.
665
Luís de Camões, Rimas várias de Luís de Camões Comentadas por Manuel de Faria e Sousa, Primeira
Parte-Tomo I e II, nota introdutória do Prof. F. Rebelo Gonçalves, prefácio do Prof. Jorge de Sena, loc. cit.,
p. 266.
666
Esta asserção liga-se ao pensamento de Umberto Eco, quando afirma que na tradução “não entender uma
referência cultural ou irónica significa empobrecer o texto” (Umberto Eco, Dizer quase a mesma coisa sobre
a tradução, Lisboa, Ed. Difel, 2005, p. 32).
213
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
“pois sem vós prazer não sente a minha vida”. A dificuldade de alcançar o amor
torna-se um elemento fundamental para superar o descontentamento avassalador,
comprovado na interrogação do verso derradeiro, que também dá título à glosa:
“que verei que me contente?”.
Os exemplos aduzidos, inseridos num vasto palimpsesto que é a tradução, são
completamente conseguidos, graças ao equilíbrio entre a linguagem própria das
redondilhas e o universo camoniano667. A actividade enunciada, como é sabido,
ultrapassa o mero conhecimento linguístico e coloca sempre problemas textuais
complexos; neste contexto específico surge atenuada pela proximidade dos idiomas
e pelos códigos literários comuns na época, que Graça Moura conhece como
poucos668. A contiguidade linguística permite, por exemplo, uma série ilimitada de
analogias, comparações e imagens, concorrendo para uma musicalidade do discurso
(v.g., “verdade /vontade” ou “deseja / veja”). Contudo, não se confina a esta estrita
dimensão, uma vez que procura também um equilíbrio semântico e obedece às
convenções métricas, rimáticas e estróficas da redondilha maior.
Neste processo de versão portuguesa dos textos castelhanos, só alcançado
plenamente graças ao labor continuado em torno do acto de traduzir e ao
conhecimento aturado de Camões, pode-se ler na seguinte redondilha:
“GLOSA “GLOSA
A este moto: A este moto:
Vos tenéis mi corazón. Vós tendes meu coração.
667
Graça Moura conhece com grande segurança esta matéria, como testemunha na enunciação das
publicações estrangeiras de obra camoniana. Por exemplo, na qualidade de crítico, comenta positivamente
uma recente edição inglesa da poesia de Camões, efectuada por Richard Zenith (Cf. Vasco Graça Moura, “O
Camões de Richard Zenith”, in Discursos vários poéticos, loc. cit., pp. 334-339).
668
A este propósito, Gastão Cruz adverte que as palavras de outros jamais põem em causa a individualidade
do que cada um escreve (Gastão Cruz, A poesia portuguesa hoje, Lisboa, Ed. Relógio d’Água, 21999,
p. 125).
214
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
“Pues lágrimas tratáis, mis ojos tristes “Pois lágrimas tratais, meus olhos tristes
Pues lágrimas tratáis, mis ojos tristes, Pois lágrimas tratais, meus olhos tristes,
y en lágrimas pasáis la noche y día, e em lágrimas passais a noite e o dia,
669
Aníbal Pinto de Castro (Cf. “Camões e a tradição poética peninsular”, in Páginas de um honesto estudo
camoniano, Coimbra, Centro Interuniversitário de Estudos Camonianos-Imprensa da Universidade, 2007,
p. 89) sublinha: “A persistência de certos temas, tópicos ou estilemas vindos de uma tradição que remonta à
poesia trovadoresca na obra camoniana, explica-se com fácil clareza pela tradição contínua e tenaz que os
manteve através dos tempos, das épocas e dos códigos literários).
670
João Barrento, “O ser e o canto. Rilke pela mão de Vasco Graça Moura”, in Rainer Maria Rilke, Elegias
de Duíno e Os Sonetos a Orfeu, loc. cit., p. 9).
671
Cf. Rita Marnoto, “Pelas florestas da noite. Vasco Graça Moura tradutor e poeta”, in Rassegna Iberistica,
nº 98, Aprile, 2013, p. 94.
672
Xosé M. Dasilva, nesta linha, destaca: “Antes de finalizar, se hace necesario en que Poesias Castelhanas
de Camões supone un hito novedoso en lo concerniente a la obra lírica en español del poeta, al suministrarse
por primera vez em portugués. Además, estas versiones representan un complemento nada desdeñable para
acercarse al papel desempeñado en calidad de canonista” (Cf. Xosé Manuel Dasilva, “Vasco Graça Moura
como traductor de Camões”, in Actas do CEL-Centre d'Études Lusophones de Genève, Filologia e
literatura, nº 4, 2016, p. 25).
215
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
mirad si es llanto este que os envía vede se é pranto o que ora vos envia
aquella por quien vos tantas vertistes. aquela por quem vós tantas carpistes.
Sentid, mis ojos, bien esta que vistes, Senti, meus olhos, bem esta que vistes
y si ella lo es, oh gran ventura mia! e se ela o é, maior minha alegria!
por muy bien empleadas las habría Por muito bem empregues haveria
mil cuentos que por esta sola distes. mil contos que por esta só cumpristes.
Mas una cosa mucho deseada, Mas se uma cousa muito desejada,
aunque se vea cierta, no es creída inda que sendo certa, não é crida,
cuanto más esta, que me es enviada. quanto mais esta, que me é enviada.
Pero digo que aunque sea fingida, Porém digo que embora a ser fingida,
que basta que por lágrima sea dada. bastaria por lágrima ser dada,
porque sea por lágrima tenida.” (p. 54) para ela então por lágrima ser tida.” (p. 55)
A reescrita apurada deste soneto, com uma indubitável qualidade literária, revela
uma marca indelével do modo lírico: a abertura às mais diversas possibilidades
significativas deriva da transposição de uma língua para outra, tornando-se o jogo
de palavras uma modalidade privilegiada ao dispor de Graça Moura. Remete,
assim, para um diálogo intertextual e para uma concepção da tradução como
metamorfose e assimilação. A ductilidade expressiva, presente, por exemplo, no
passo “meus olhos tristes, / e em lágrimas passais a noite e o dia”, o respeito pelo
enjambement, que entrelaça os versos numa unidade semântica perfeita, o ritmo, as
assonâncias e as rimas análogas harmonizam-se em modulações extraordinárias,
desenhando, sem dúvida, uma sonoridade melódica e harmoniosa673. Nesta linha, a
tradução de vgm inscreve-se numa prática de escrita, modelada na homogeneidade
do acto de traduzir e no labor de escrever, como assevera Henri Meschonnic674.
Deste modo, a poesia traduzida tem o dom de se converter em genuína criação
lírica, visto que o autor de recitativos trata com particular mestria a sua complexa
essência675.
As Poesias castelhanas de Camões, pelos exemplos aduzidos, mostram à
saciedade que Graça Moura é um tradutor da linhagem de Pessoa ou de Jorge de
673
Neste prisma, é elucidativo o reconhecimento da actividade no domínio da tradução de vgm, quando
Frederico Lourenço foi distinguido com o Prémio Pessoa 2016: “Tenho muita admiração por Vasco Graça
Moura, […] as suas traduções são de uma beleza literária extraordinária” (“Prémio Pessoa para o tradutor de
Homero e da Bíblia”, in Público, 10 Dezembro 2016, p. 31).
674
Cf. Henri Meschonnic, Pour la poétique II, Ed. Gallimard, Paris, 1973, p. 320.
675
Na nota introdutória à tradução da poesia de Petrarca, na sua tarefa Graça Moura arvora-se em autor,
como observa: “Nada disto quer dizer que a tradução não abra ensejo à expressão da personalidade do autor.
Pelo contrário. O tradutor também é actor” (Cf. Vasco Graça Moura, As rimas de Petrarca, Lisboa, Ed.
Bertrand, 2003, p. 32).
216
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
Sena, pela ampla erudição demonstrada e pelo sentido cívico de dar a conhecer
textos escritos noutras línguas, inacessíveis a muitos leitores nacionais676.
Deste modo, as questões que dizem respeito à língua assumem em Graça Moura
uma importante função como objecto de pesquisa, reflexão, produção e polémica,
como já foi demonstrado anteriormente. O seu papel na difusão da língua nacional
é inegável e surge testemunhado quando fala do seu amigo Aguiar e Silva, à
entrada para uma reunião no Instituto Camões: “somos ambos do conselho geral
tratando da expansão da língua portuguesa / que mais mundo houvera lá chegara”
(PR1, 438).
Neste contexto, o poema Lamento para a língua portuguesa é fulcral para
compreender o pensamento do autor contemporâneo nessa área, que faz parte da
tradição literária nacional. António Ferreira, por exemplo, foi o primeiro autor a
não escrever um único verso em castelhano e foi com ele que principiaram os
elogios da língua portuguesa677, como exorta num dos seus mais célebres passos:
Este vetusto topos a que não é alheio Graça Moura, chega com grande vitalidade
aos poetas actuais, como assinala Rocha Pereira679. Graça Moura exemplifica essa
realidade; a “língua lusitana”, no seu dizer, é “aromática, linfática e vernácula”
(PR1,77). Neste contexto, também um segmento do título de um ensaio de João
676
De modo similar, no intuito de divulgar autores nacionais que não escreverem textos na língua materna,
registe-se, a propósito, que vgm realizou também traduções para português de alguns poemas ingleses do
heterónimo pessoano Alexander Search e efectuou apreciações interpretativas sobre os referidos textos. (Cf.
Vasco Graça Moura, “Alexandre ‘em busca’ de Fernando, ou cinco breves notas sobre a poesia de
Alexander Search, seguidas de oito poemas seus e respectivas traduções”, in Várias vozes, loc. cit., pp. 80-
-97).
677
Aguiar e Silva, neste percurso laudatório da língua portuguesa, aponta já “calorosas apologias”
consagradas pelos poetas do período maneirista (Vítor Manuel Aguiar e Silva, Maneirismo e barroco na
poesia lírica portuguesa, loc. cit., p. 389).
678
António Ferreira, Poemas lusitanos, ed. crítica, introd. e comentário de T. F. Earle, Lisboa, Fundação
Calouste Gulbenkian, 22008, p. 263.
679
Cf. Maria Helena Rocha Pereira, “Elogios da língua portuguesa”, in Máthesis, nº 15, 2006, pp. 257-273.
217
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
680
O autor justifica do seguinte modo o aproveitamento que efectuou: “O meu título vem de um poema
recente de Vasco Graça Moura, ‘Lamento para a língua portuguesa’, que tomarei como texto de referência a
que sistematicamente regressarei, e que me serve desde já para perspectivar o tema e o ponto de vista que me
orienta. Nesse longo poema, incluído no livro uma carta no inverno, Graça Moura assume o duplo papel de
observador e utente da língua (um utente muito especial, como veremos), para constatar, primeiro, o estado
‘destroçado’ a que chegou a língua portuguesa e depois afirmar a vontade de, apesar de tudo, se servir dela,
do que dela resta e do muito que nela existe soterrado, em latência, como fonte que alimenta um outro uso
possível, factor permanente de renovação e de conservação da memória da língua, e que é o seu uso poético”
(Cf. João Barrento, “Não és mais do que as outras, mas és nossa … - a língua portuguesa na poesia
portuguesa de hoje”, in Agulha. Revista de cultura #30, Fortaleza, São Paulo, Novembro 2002, (http:// www.
jornaldepoesia.jor.br/ag30barrento.htm - consultado em 12 Março 2014).
681
Idem, ibidem.
218
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
682
Umberto Eco sustenta a este propósito: “A língua, por definição vai para onde ela quer, nenhum decreto
vindo de cima, nem por parte da política nem por parte da academia, pode deter o seu caminho” (Umberto
Eco, “Sobre algumas funções da literatura”, in Sobre literatura, Ed. Difel, 2003, p. 10).
683
Graça Moura não ignora o contributo do labor poético para a riqueza da língua nacional, por exemplo, em
glosa para os anos de eugenio de andrade: “ao sal / em que a língua dá sinal / ostinato em seu rigor” (PR2,
318).
684
Luís de Camões, Os Lusíadas, I, 4. Sobre o sentido deste este passo, vide J. A. Segurado de Campos, “O
estilo corrente de Camões (Lusíadas I, 4)”, in Revista Humanitas, vol. XLV, 1993, pp. 307-312.
685
Vasco Graça Moura, Os Lusíadas para gente nova, loc. cit., p. 16.
219
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
“a ciranda
de violência alvar que não abranda
entre rádios, jornais, televisão.
e toda a gente o diz, mesmo essa que anda
por tal degradação tão mais feliz
que o repete por luxo.” (PR1, 556)
686
Severim de Faria, neste âmbito, enaltece o contributo de Camões no idioma nacional: “De maneira que
Luís de Camões assi nesta parte como nas mais se mostrou excelente Poeta, e com esta sua obra ficou
enriquecido grandemente a Língua Portuguesa, porque lhe deu muitos termos novos, e palavras bem
achadas, que depois ficaram perfeitamente introduzidas” (Manuel Severim de Faria, Discursos vários
políticos, loc. cit., p. 132). Recentemente, determinados autores preconizaram o papel decisivo no
desenvolvimento da língua portuguesa, como por exemplo, José G. Herculano de Carvalho, “Contribuição
de Os Lusíadas para a renovação da língua portuguesa”, in Separata de Revista Portuguesa de Filologia,
Vol. 18, Coimbra, Centro de Estudos Românicos, Faculdade de Letras da Universidade, 1980 e Barbara
Spaggiari, “Algumas considerações sobre a língua de Camões”, in Camões e o Outono do Renascimento,
Coimbra, Centro Interuniversitário de Estudos Camonianos, 2011, pp. 59-75.
687
Nesta tradição apologética do português, já no Diálogo I de Corte de aldeia, não faltam considerações
sobre esta matéria. O Doutor, uma das personagens da referida obra, ao enumerar as qualidades idiomáticas
da língua nacional, não deixa de invectivar aqueles que a fustigam, numa curiosa comparação ligada ao
empobrecimento idiomático: “E para que diga tudo, só um mal tem: e é que, pelo pouco que lhe querem seus
naturais, trazem mais remendada que capa de pedinte” (Francisco Rodrigues Lobo, Corte na aldeia,
introdução, notas e fixação do texto de José Adriano de Carvalho Lisboa, Ed. Presença, 1991, p. 69).
688
George Steiner (“O leitor incomum”, in Paixão intacta, Lisboa, Ed. Relógio d’Água, 2003, p. 32) fala em
“amnésia planificada” da cultura actual, visto que no passado a leitura era facilitada graças a uma ampla
memória literária.
220
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
“A língua portuguesa, para aqueles que a amam e nela vivem e se exprimem tem um imenso
património acumulado em séculos de literatura, tem uma gramática que hoje em dia é cada vez
mais descurada, transporta uma visão do mundo que nos identifica e em que nos reconhecemos,
tem valores próprios e possibilidades expressivas extraordinárias, em cuja ignorância,
infelizmente, as gerações mais novas têm vindo a ser mantidas por culpa que é um pouco a culpa
de todos, mas que é especialmente mais grave da parte de alguns.”689
“ficou-te o mito
de haver milhões que te uivam triunfantes
na raiva e na oração, no amor, no grito
de desespero.” (PR1, 558)
“As questões da identidade começam por estar relacionadas com a língua materna e esta deve a
Camões a sua dimensão moderna. Mas estão à vista as consequências que, para a identidade,
decorrem do actual estado de coisas: a língua materna está cada vez mais deteriorada, tornou-se
uma espécie de caixote do lixo onde cabem todos os dejectos e, tal como é utilizada e falada, um
dia destes mal conseguirá distinguir-se de um mero conjunto de grunhidos comunicacionais.”690
Como se lê, verifica-se a ideia primordial de que a língua e a cultura são uma
realidade autêntica, visto que se ligam a “questões da identidade”, que, como
afirmou Bocalino no Hospital das Letras, o idioma nacional “despojou da sua
689
Vasco Graça Moura, “A escrita e o real”, in JL. Jornal de Letras, Artes e Ideias, 17 Agosto 2015, p. 18.
690
Idem, “A língua de Camões?”, in Diário de Notícias, 9 Junho 2010, p 54.
221
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
“Uma língua é o lugar de onde se vê o mundo e em que se traçam os limites do nosso pensar e
sentir. Da minha língua vê-se o mar.”696
691
Francisco Manuel de Melo, Le dialogue “Hospital das letras”, texte établi d'après l'édition princeps et les
manuscrits, variantes et notes de Jean Colomès, loc. cit., p. 16.
692
Francisco Rebelo Gonçalves, “Camões, mestre da língua”, in Obras completas III, loc. cit., pp. 67-85.
693
Luís de Camões, Os Lusíadas, I, 33.
694
Frederico Lourenço, “O Tejo no proémio d’Os Lusíadas”, in Grécia revisitada, loc. cit., 2004, p. 267.
695
Edouard Glissant, Poética da relação, Porto, Sextante Editora, 2011.
696
Vergílio Ferreira, Espaço do invisível, V, Venda Nova, Ed. Bertrand, 1998, p. 84.
222
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
Com efeito, todo o longo texto está impregnado de inúmeros lexemas evocativos
do poeta de Quinhentos – “venturas, infortúnios, cativeiros” –, numa clara
consciência da dignidade da poesia e do seu contributo para a língua portuguesa,
onde o sentido histórico não é ignorado. O poeta utiliza uma selecção vocabular de
grande riqueza plástica e de forte apelo sensorial dando azo a uma proliferação de
imagens, em versos de ritmo rápido marcadamente enumerativo. A rica construção
metafórica e a assonância das consoantes sibilantes (v.g. “pedacinhos de conchas,
verde jade, / doces luminescências e luzeiros”), num lirismo penetrante, revelam as
inúmeras possibilidades idiomáticas do português, que podem “dizer e desdizer”
num “corpo de tempo e liberdade”.
No dizer do vate contemporâneo, a metáfora de versatilidade e expressividade
“dessa liberdade acesa / uma língua, a portuguesa” (PR2, 95) configura um
repositório da construção identitária e da história de Portugal, onde a memória da
pátria surge, pois, plasmada na língua e no canto de Camões697. De facto, de entre
as múltiplas preferências de Graça Moura, de modo indelével, distingue-se o autor
de Os Lusíadas, num fecundo diálogo onde a dimensão linguística ocupa um lugar
de relevo, exemplarmente sintetizado no seguinte passo:
“Como já tive ocasião de dizer, Camões é um dos dois autores (o outro é Cesário Verde) que se
tornaram uma referência frequente na minha poesia, não propriamente procurada e muito menos
697
Aníbal Pinto de Castro (“Camões e a língua portuguesa”, in Páginas de um honesto estudo camoniano,
loc. cit., pp. 315-328) apresenta um aturado artigo sobre o contributo de Camões no enriquecimento da
língua portuguesa e apresenta um vasto acervo bibliográfico sobre os estudos realizados nesta área. Sobre o
contributo de Camões para a construção da língua portuguesa, vide a síntese de Ivo de Castro, “Língua de
Camões”, in Vítor Aguiar e Silva (coord.), Dicionário de Luís de Camões, loc. cit., pp. 461-469.
223
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
espartilhada, mas antes como a presença de uma figura tutelar que se manifesta e ocorre
naturalmente como uma maneira de ‘respirar melhor’ na minha língua e na minha escrita…”698
698
Vasco Graça Moura, “Versos que sabemos de cor”, in JL. Jornal de Letras, Artes e Ideias, 19 Outubro
2012, p. 11.
224
3. Imagens camonianas das “perigosas
cousas do mar” e da terra
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
“O mar interpela Camões enquanto elemento do seu mundo poético, portador duma
mensagem e funcionando relativamente a certos objectivos”.703
227
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
705
Maria Vitalina Leal de Matos, Introdução à Lírica de Camões, Lisboa, Instituto de Cultura e Língua
Portuguesa, 1991, p. 72.
706
Cf. Maria Alzira Seixo, Poéticas da viagem na literatura, Lisboa, Ed. Cosmos, Lisboa, 1998, p. 70.
707
Segundo Camões, o escorbuto é “Doença crua e feia” (Cf. Luís de Camões, Os Lusíadas, V, 81), que
Graça Moura, a propósito do doloroso exílio do poeta quinhentista, recria do seguinte modo: “Cheiros de
miséria / que a doença, escorbuto da alma, acicata” (PR1, 226).
708
Giulia Lanciani destaca que o relato de naufrágios na literatura portuguesa dos séculos XVI e XVII
configuram um corpus de textos providos de homogeneidade e características específicas que permitem
atribuir-lhe um lugar de relevo na história literária nacional (Cf. Giulia Lanciani, Os relatos de naufrágios
na literatura portuguesa dos séculos XVI e XVII, Lisboa, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1979,
p. 29).
709
Numa dimensão diacrónica e filosófica deste tema, veja-se Hans Blumenberg, Naufrágio com espectador,
Lisboa, Ed. Vega, 1990.
710
Como frisou Aníbal Pinto de Castro, “Não falta na obra de Camões um único momento de quantos
compõem uma viagem” (Cf. Aníbal Pinto de Castro “Viajar com os poetas portugueses do Renascimento e
do Maneirismo”, in Ana Maria Falcão et alii (org.), Literatura de Viagem. Narrativa, história, mito, Lisboa,
Ed. Cosmos, 1997, p. 354). Esta asserção é reiterada por Maria do Céu Fraga no que concerne às Rimas:
“Encontram-se a despedida e o projecto de regresso, as lágrimas do apartamento e o suave engano da
fantasia, as tempestades, os naufrágios e a bonança”. Vide Maria do Céu Fraga, “O tempo e o espaço: a
errância na lírica camoniana”, in Revista Floema, Ano VI, nº 7, Jul./Dez. 2010, p. 46, (http://periodicos.
uesb.br/ index. php/floema/article/view/465/507 - consultado em 29 Janeiro 2016).
228
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
Registe-se que Graça Moura, em diversos passos disseminados pela sua obra
lírica, convoca precisamente “as perigosas cousas do mar”711; no entanto,
consagrou também uma arguta abordagem crítica à descrição do fogo de Santelmo
e da tromba marítima712, intitulada Vi claramente visto o lume vivo ou Camões e D.
João de Castro713, em que sustenta, de entre outras possíveis referências
intertextuais no passo camoniano, o contributo haurido nas ciências,
particularmente do Roteiro de Lisboa a Goa, de D. João de Castro714. A perspectiva
veiculada, com abundantes e esclarecedoras notas, contraria os pontos de vista de
reputados especialistas, que consideraram a descrição dos fenómenos naturais
apenas o resultado directo de um “saber só de experiências feito”715. Nesta abertura
a novos horizontes hermenêuticos, Graça Moura não invalida o aproveitamento da
experiência pessoal, não obstante rastreia, entre uma bibliografia variada, as
edições anotadas do Roteiro, reconhecendo uma relação explícita com o referido
livro quinhentista, a que não é alheio o saber livresco de Camões na notável
descrição dos atemorizadores fenómenos716. O título do ensaio não ignora também
o lapidar verso pleonástico camoniano, sugestão da valorização do olhar, que volta
a ser reiterado nos seus versos, quando cita na íntegra o verso “vi claramente visto
o lume vivo”, no poema canção grave (PR2, 440).
Assim, a escrita de Graça Moura constrói-se sob o signo da viagem, “riquíssimo
veio da poesia camoniana”, no dizer de Aníbal Pinto de Castro717. É precisamente
no contexto de “No mar tanta tormenta e tanto dano / tantas vezes a morte
apercebida”718, que Graça Moura dedica um notável ciclo de sete poemas a
711
Luís de Camões, Os Lusíadas, V, 16, loc. cit.
712
Idem, ibidem, V, 16-23.
713
Vasco Graça Moura, “Vi claramente visto Camões e D. João de Castro”, in Os penhascos e a serpente e
outros ensaios camonianos, loc. cit., pp. 135-162.
714
D. João de Castro, Roteiros, 3 vol., pref. e anot. por A. Fontoura da Costa, Lisboa, Ed. da Agência Geral
das Colónias Comemorativa do Duplo Centenário da Fundação e Restauração de Portugal, 21939-1940.
715
Luís de Camões, Os Lusíadas, IV, 94, loc. cit.
716
Sobre esta controversa matéria, Vasco Graça Moura (Luís de Camões: alguns desafios, loc. cit., s/d,
pp. 57-59 e 63) não rejeita este aspecto, mas tal não o impede de admitir o conhecimento que Camões obteve
de textos relativos a viagens, concretizado na selecção e tratamento dos fenómenos naturais, no caso da
descrição da tempestade, no trajecto entre Melinde e Calecute, no fogo de Santelmo e na tromba marítima.
Aceita também que Camões pudesse ter visto o Roteiro na sua viagem à Índia, pois a obra poderia ser um
apoio de navegação utilizado.
717
Cf. Aníbal Pinto de Castro, “Viajar com os poetas portugueses do Renascimento e do Maneirismo”, in
Ana Margarida Falcão et alii (org.), op. cit., p. 355.
718
Luís de Camões, Os Lusíadas, I, 106, loc. cit.
229
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
“dando à costa
do mundo e em prisões baixas, e só precisei de autores
para falar de céus vários, de qualidades diferentes.
nunca do que vi e a terra há-de comer,
719
Sobre a recepção da figura de Dinamene em Camões e noutros autores, veja-se a introdução de Costa
Pimpão a Luís de Camões, Rimas, loc. cit., pp. LXXI-LXXII.
720
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 166.
721
No âmbito da lírica camoniana, os textos consagrados a Dinamene integram um ciclo de sonetos onde a
morte da mulher amada constitui um ponto de partida para a exploração dos temas do amor/morte e
presença/ausência. Este motivo surge também deliberadamente vincado no texto de Graça Moura em torno
desta figura feminina. (Cf. Luís de Camões, Rimas, loc. cit., por exemplo, os sonetos Ah minha Dinamene,
assim deixaste ou Quando de minhas mãos a comprida, respectivamente p. 174 e p. 166).
722
Rocha Pereira notou que Dinamene é um antropónimo grego; surge na Ilíada de Homero e está presente
também na Teogonia de Hesíodo (Cf. Maria Helena Rocha Pereira, “Nome de ninfas”, in Novos Ensaios
sobre Temas Clássicos na Poesia Portuguesa, loc. cit., p. 41).
723
Suetónio, As vidas dos doze Césares, vol. I, estudo, introdução e notas de Victor Raquel, Lisboa, Ed.
Sílabo, 2005, p. 86.
724
Severim de Faria nos seus Discursos vários políticos dá conta desse episódio: “Luís de Camões se salvou
em ũa tábua, e em tão apertado, e manifesto perigo só teve lembrãça dos cantos dos seus Lusíadas para os
levar consigo, esquecendo-se de tudo o mais que trazia, no que não merece menor louvor que o que se dá a
César, quando escapou no porto de Alexandria nadando com ũa mão, e levando os seus Comentários na
outra” (Cf. Manuel Severim de Faria, Discursos vários políticos, loc. cit., p. 116).
725
Maria Vitalina Leal de Matos, Tópicos para a leitura de Os Lusíadas, Coimbra, Ed. Almedina, 2014,
p. 144.
230
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
726
Luís de Camões, Os Lusíadas, VII, 79, loc. cit.
727
Rocha Pereira sublinha que a “tempestade marítima era um tema épico por excelência, desde a Odisseia”,
ocupando uma importância fulcral na produção literária de Camões, como observa em diversos exemplos
ilustrativos (Cf. Maria Helena Rocha Pereira, “Tempestade marítima de Os Lusíadas. Estudo comparativo”,
in Camoniana varia, Coimbra, Centro Interuniversitário de Estudos Camonianos, 2008, pp. 85-94).
728
Cf. Isabel Almeida, “Maneirismo”, in Biblos. Enciclopédia Verbo das Literaturas de Língua Portuguesa,
vol. 3, loc. cit., col. 422.
729
Luciana Stegagno Picchio, “O canto molhado: contributo para o estudo das biografias camonianas”, in
Arquivos do Centro Cultural Português, vol. XVI, 1981, pp. 243-265. Cf. também Maria Vitalina Leal de
Matos, Maria Vitalina Leal de Matos, O canto na poesia épica e lírica de Camões. Estudo da isotopia
enunciativa, loc. cit., pp. 41-86.
730
Vide os célebres versos do Canto X: “Este receberá, plácido e brando, / No seu regaço os Cantos que
molhados / Vêm do naufrágio triste e miserando / Dos procelosos baxos escapados” (Cf. Luís de Camões,
Os Lusíadas, X, 128, loc. cit.).
231
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
“ao princípio era à ninfa dormindo-se. e a ninfa era uma moça china
chamada dinamene, com quem vinha embarcado.
ali ficava, reclinada e nua, a deixar-se lentamente contemplar,
na maneira da sua linha das ancas a moldar o leve, o verde
731
A contemporaneidade lírica dá, de facto, um sugestivo relevo à figura de Dinamene e ao modo como se
relaciona com o autor de Os Lusíadas. Manuel Alegre, nessa linha, canta: “Naufrágio Dinamene amor
ausente / caravela partindo nas vogais / amar e mar e nunca ter senão / desterro despedida e nunca mais” (Cf.
Manuel Alegre, Vinte poemas para Camões, Lisboa, Ed. D. Quixote, 1992, p. 11).
732
O autor do Soldado prático afirma: “Camões por dita escapou com as suas Lusiadas como elle diz nellas
e aly se afogou hũa moça china que trazia muito fermosa com que vinha embarcado e muito obrigado; e em
terra fez sonetos à sua morte” (Cf. Diogo do Couto, A década 8ª da Ásia, 2 vols., ed. de Maria Augusta Lima
Cruz, Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses/Imprensa
Nacional-Casa da Moeda, 1993-1994, p. 469).
733
Rimas várias de Luís de Camões comentadas por Manuel de Faria e Sousa, nota introdutória do Prof. F.
Rebelo Gonçalves, prefácio do Prof. Jorge de Sena, Primeira Parte-Tomos I e II, Lisboa, Imprensa Nacional-
-Casa da Moeda, 1972, p. 278.
734
Estes estudiosos consagraram nove poemas camonianos a Dinamene (Cf. Luís de Camões, Lírica, crítica
pelo Dr. José Maria Rodrigues e Afonso Lopes Vieira, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1932, pp. 151-
-153 e apêndice e notas pp. IV e XLVII-XLIX).
735
Luís de Camões, Dinamene, alma minha gentil, estudo de Afrânio Peixoto seguido de 44 poesias de Luís
de Camões, Lisboa, Ed. Aillaud-Bertrand, 1926.
232
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
736
Roger Bismut, La lyrique de Camões, Paris, Presses Universitaires de France, 1970, pp. 522-524 e nota
113. Noutro estudo, o lusófilo, entre outros textos aduzidos, considera que Alma minha gentil que te partiste,
Ondas, dizia, antes que Amor me mate e Quando das minhas mágoas a comprida são sonetos dirigidos a
Dinamene: “Il est difficile de ne pas voir dans ces trois sonnets – en comptant celui qui s’adresse à
Dynamène – des références à la même tragédie” (Cf. Roger Bismut, “Plaidoyer pour Dynamène”, in Bulletin
des Études Portugais, tome 30, 1969, p. 92).
737
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., pp. LXI sqq.
738
O lexema Dinamene simboliza, noutro contexto, a exaltação da figura feminina: “esta minha dinamene
[…] morenaça a escapar-se” (PR2, 556).
739
Esta referencialidade em torno de Dinamene rompe com a tipologia predominante do masculino da
literatura de viagens (Cf. Maria Alzira Seixo, Poéticas da viagem na literatura, loc. cit., pp. 22 sqq).
740
Idem, ibidem, p. 16.
741
Graça Moura vincula-se, deste modo, ao lirismo maneirista e barroco, que, num confessado fascínio pelo
trágico e pela morte, recorreu muitas vezes à alegoria do mar da vida, como frisou Vítor Aguiar e Silva
(Maneirismo e Barroco na poesia lírica portuguesa, loc. cit., p. 230).
742
José Maria Rodrigues e Afonso Lopes Vieira designam por “sonetos elegíacos” os poemas camonianos
consagrados a Dinamene (Cf. Lírica de Camões, edição crítica pelo Dr. José Maria Rodrigues e Afonso
Lopes Vieira, loc. cit., p. X).
233
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
743
“À flor da vaga, o seu cabelo verde, / Que o torvelinho enreda e desenreda... / O cheiro a carne que nos
embebeda! / Em que desvios a razão se perde! // Pútrido o ventre, azul e aglutinoso, / Que a onda, crassa,
num balanço alaga” (Cf. Camilo Pessanha, Clepsydra, loc. cit., p. 99).
744
O sentido da morte percorre a história portuguesa, como adverte Jaime Cortesão: “Procurai bem nos
olhos dum português: todos no fundo têm a morte. É que durante muitos séculos convivemos com ela na
mais triste e trágica figura – a dos naufrágios” (Cf. Jaime Cortesão, “Náufragos portugueses”, in Revista
Águia, 2ª série, vol. III, 1913, p. 118).
745
Sobre esta ideia, Chevalier e Gheerbrant sustentam “Tudo sai do mar e a ele regressa: lugar de
nascimentos, transformações e renascimentos […] um estado transitório entre as possibilidades ainda
informais e as realidades formais, uma situação de ambivalência, que é a da incerteza, da dúvida, da
indecisão, e que pode terminar bem ou mal. Daí que o mar seja ao mesmo tempo a imagem da vida e da
morte” (Cf. Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, Dicionário de símbolos, Lisboa, Ed. Teorema, 1994, p. 439).
746
Sobre este assunto, que marca de maneira tão específica o panorama das letras nacionais, vide Rodrigues
Lapa (coord.) Quadros da história trágico-marítima, Lisboa, Seara Nova, 1951; António Sérgio, Ensaios
VIII, Lisboa, Livraria Sá da Costa, 1974, pp. 75-174; Giulia Lanciani, Os relatos de naufrágios na literatura
portuguesa dos séculos XVI e XVII, Lisboa, Instituto de Cultura Portuguesa, 1979; Manuel Simões, A
literatura de viagens nos séculos XVI e XVII, Lisboa, Ed. Comunicação, 1985; Pedro Balaus Custódio, A
História Trágico-Marítima: do herói ao anti-herói (texto policopiado), Coimbra, Faculdade de Letras da
Universidade, 1992; João Rocha Pinto, “Literatura de viagens”, in Luís de Albuquerque (org.), Dicionário
de História dos Descobrimentos, vol. II, Lisboa, Ed. Caminho, 1994; José Manuel Garcia, “O significado do
naufrágio de Sepúlveda na cultura portuguesa”, in Ao encontro dos descobrimentos. Temas de História da
Expansão, Lisboa, Ed. Presença, 1994, pp. 229-234; Andreia A. Paula Martins, “As funções do narrador nos
relatos de naufrágios”, in Mathesis, nº 5, 1996, pp. 335-348; António Manuel de Andrade Moniz, A História
Trágico-Marítima: identidade e condição humana, Lisboa, Ed. Colibri, 2000, pp. 335-348; José Cândido de
Oliveira Martins, “A literatura trágico-marítima e a escrita contemporânea, in Naufrágio de Sepúlveda: texto
e intertexto, Lisboa, Ed. Replicação, 1977, pp. 143-173; idem, “História Trágico-Marítima (antiepopeia da
decadência do império)”, in Vítor Aguiar e Silva (coord.) Dicionário de Camões, loc. cit., pp. 410-416;
Maria Luísa Malaquias Urbano, História Trágico-Marítima - uma visão maneirista do homem: queda,
expiação e morte, Coimbra, Centro Interuniversitário de Estudos Camonianos, 2012.
234
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
Este ciclo criativo747 é retomado no poema entre risos e súplicas, que desperta
particular atenção à figura e biografia do autor quinhentista:
747
Muitos autores nacionais, dos finais de Oitocentos ou do início do século XX, glosaram a imagem de
Camões como personificação do génio do poeta-soldado, que lutou com a pena e com a espada pelo
engrandecimento da pátria, bem como a aventura marítima portuguesa. A título ilustrativo dos interesses e
conhecimentos estético-literários de Graça Moura (“Notas sobre a Mensagem”, in Discursos vários poéticos,
loc. cit., p. 16), registe-se a proximidade da análise realizada entre, por exemplo, o poema “Sagres” de
Lusitânia, de Mário Beirão, e o “Infante” da Mensagem, de Pessoa: “E há um instante supremo em que ele
cuida / Suster nas mãos o mundo; / Mas lenta e fluida, / Discorre a noite pelo mar profundo…, diz-se no
primeiro, sendo este, sem dúvida, um passo a confrontar com: “Em seu trono entre o brilho das esferas, /
Com seu manto de noite e solidão, / Tem aos pés o mar novo e as mortas eras -… / O único imperador que
tem deveras / O globo do mundo em sua mão (Mensagem)”. Veja-se o importante estudo, assinalado por
Graça Moura (Ibidem, p. 16), que Seabra Pereira consagra a este período: Mário Beirão, Poesias completas,
edição organizada por António Cândido Franco e Luís Amaro, e prefaciada por José Carlos Seabra Pereira,
Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1996, pp. 15-47. Cf. também José Carlos Seabra Pereira, “Em
torno das relações paragramáticas da poesia de Afonso Duarte com a obra de Camões”, in Do fim-de-século
ao tempo do Orfeu, Coimbra, Liv. Almedina, 1979, pp. 119-148.
748
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p.167.
749
Aníbal Pinto de Castro sobre esta acepção da viagem que culmina em tragédia afirma: “À medida que as
luminosas certezas do Renascimento dão lugar, no espírito do Homem português de Quinhentos, à angústia
existencial daquele findar de século tão carregado de dúvidas e temores, a viagem deixa de ser um mero
tópico de celebração de ideias e pensamentos, próprios ou alheios, para se transformar numa vivência que
toca o mais profundo da existência espiritual do indivíduo ou da sociedade em que ele se integra, e, depois,
na expressão simbólica de um percurso angustiadamente vencido”. Vide Aníbal Pinto de Castro, “Viajar
com os poetas portugueses do Renascimento e do Maneirismo”, in Ana Margarida Falcão (org.), op. cit.,
p. 354.
235
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
750
Recriada por Graça Moura, esta expressão de Diogo do Couto surge no passo dedicado à precária
passagem de Camões pela ilha de Moçambique: “Mas como este homem teve sempre estrela de poeta que he
serem todos pobres, e hũa natureza terríbel e emfim pouca fortuna […] ficou em estado de viver d’esmolas
de algũas pessoas” (Cf. Diogo do Couto, A década 8ª da Ásia, 2 vols., ed. de Maria Augusta Lima Cruz, loc.
cit., pp. 470-471).
751
Luís de Camões, Os Lusíadas, VII, 79 (Cf. sobre este tópico, Luís de Sousa Rebelo, Tradição Clássica na
Literatura Portuguesa, Lisboa, Ed. Livros Horizonte, 1982, pp. 195-240; António Cirurgião, “As armas e as
letras na literatura portuguesa dos séculos XVI e XVII”, in Novas leituras de clássicos portugueses, Ed.
Colibri, 1997, pp. 147-169; Maria do Céu Fraga, “Armas e letras”, in Vítor Aguiar e Silva (coord.),
Dicionário de Luís de Camões, loc. cit., pp. 42-45).
752
Maria do Céu Fraga (Os géneros maiores na poesia lírica de Camões, loc. cit., p. 76) refere que na
Canção X, vv. 41-46, “o determinismo astronómico” é um factor inexorável, privando o ser humano de livre
arbítrio, pelo que Camões, votado à incerteza da fortuna, não se considera totalmente culpado das suas
acções.
753
Ernst Robert Curtius, Literatura Europeia e Idade Média Latina, loc. cit., pp. 133-134.
754
A comparação da vida com o mar tempestuoso encerra múltiplas possibilidades simbólicas e metafóricas.
Camões, na realidade, é apresentado por vgm como um mareante em perigo ou um náufrago, topos que o
acompanha volvidos cinco séculos.
755
Cf. Jacinto Prado Coelho, “Do fraco batel de Camões”, in Camões e Pessoa. Poetas da utopia, Mem
Martins, Publ. Europa-América, 1983, pp. 33 sqq.
756
Cf. Luís de Camões, Os Lusíadas, VII, 78, loc. cit.
236
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
Com feito, Graça Moura não renega o amplo fundo representativo do mar
camoniano, cenário de permanente interrogação, em demanda da criatividade lírica;
o signo da perda, que se estende pela sequência textual em análise, é retomado no
seguinte poema:
757
Em consonância com esta linha, Graça Moura define a sua concepção de imaginário aquático: “um vil
enredamento / de fluvialidades que apodrecem, uma / alteração virtual da realidade” (PR1, 225).
237
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
758
Manuel Simões, A literatura de viagens nos séculos XVI e XVII, loc. cit., p.16.
759
Luís de Camões, Os Lusíadas, X, 128, loc. cit.
760
Este tópico do navio naufragado é recorrente nas letras portuguesas, no dizer de Aguiar e Silva:
“Imagem-símbolo da predilecção dos poetas barrocos para exprimir a precariedade da vida humana” (Cf.
Vítor Manuel Aguiar e Silva, Maneirismo e Barroco na Poesia Lírica Portuguesa, Coimbra, Centro de
Estudos Românicos, 1971, p. 409).
761
Camilo Pessanha, Clepsydra, loc. cit., p. 66. Maria Alzira Seixo, (“O pensamento da morte na poesia de
Camilo Pessanha”, in Outros erros, Lisboa, Ed. Asa, 2001, p. 110) considera os diminutivos “um dos
aspectos mais importantes da visão da morte em Pessanha”.
762
Hélder Macedo, ao se debruçar sobre a simbologia dos nomes femininos camonianos, assinala que
Dinamene, recorrente antropónimo camoniano, vem na tradição clássica, constituindo um “criptómano
pastoril” de que se serviu o poeta quinhentista em duas éclogas. Acrescenta que Garcilaso também o havia
utilizado para designar uma ninfa do Tejo (Fernando Gil e Hélder Macedo, “Apetite e razão na lírica
camoniana”, in Viagens do olhar: retrospecção, visão e profecia no Renascimento português, Porto, Ed.
Campo das Letras, 1998, p. 389).
763
O pungente sentimento camoniano observa-se, por exemplo, no seguinte soneto: “Ah! Minha Dinamene!
[…] / somente a dura Morte / Me deixou que tão cedo o negro manto / em teus olhos deitado consentiste!”
(Cf. Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 174).
238
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
“o tempo não podia correr numa ilha sem lugar e sem sombras.
mas abolido o tempo, a história deixava de existir.
ao princípio era a ninfa e o silêncio da máquina do mundo.
era o silêncio no mais puro momento da sua glória inteligível. […]
764
Vítor Manuel Aguiar e Silva, “As canções da melancolia”, in Camões: labirintos e fascínios, Lisboa, Ed.
Cotovia, 1994, p. 219.
765
Sílvio Castro, “Naufrágio como metáfora e palinódia em Camões”, in Revista Camoniana, vol. 13,
3ª série, Bauru, São Paulo, 2003, p. 144.
766
Luís de Camões, Os Lusíadas, IX, 18-95 e X, 1-143, loc. cit.
767
Vítor Aguiar e Silva apresenta em “Episódio da ilha dos amores” (in Vítor Aguiar e Silva (coord.),
Dicionário de Luís de Camões, loc. cit., pp. 437-444) o modo com este episódio foi lido ao longo dos
séculos. Vide também os importantes estudos deste insigne camonista: “Função e significado do episódio da
Ilha dos Amores na estrutura de Os Lusíadas” e “Imaginação e pensamento utópico no episódio da Ilha dos
Amores”, in Camões: labirintos e fascínios, Lisboa, Ed. Cotovia, 1994, pp. 131-143.
239
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
768
Luís de Camões, Os Lusíadas, X, 77-91(De entre uma bibliografia numerosa sobre esta matéria, vide:
António José Saraiva, “Os tempos verbais e a estrutura d’Os Lusíadas”, in Estudos sobre a arte d’Os
Lusíadas, Lisboa, Ed. Gradiva, 1992, pp. 19 sqq; Maria Lucília Gonçalves Pires, “Harmonia Mundi. A
descrição camoniana da máquina do mundo”, in Arquivos do Centro Cultural Calouste Gulbenkian, Vol.
XXXVII, Homenagem a Maria de Lourdes Belchior, Lisboa-Paris, 1998, pp. 201-210; Hélio J. S. Alves,
Camões, Corte-Real e o Sistema da Epopeia Quinhentista, loc. cit., pp. 607-642; idem, “A máquina do
mundo n’Os Lusíadas”, in Vítor Aguiar e Silva (coord.), Dicionário de Luís de Camões, loc. cit., pp. 555-
-559).
769
António José Saraiva, “O objectivismo d’Os Lusíadas”, in Estudos sobre a arte d’ Os Lusíadas, loc. cit.,
pp. 104-106.
770
Y. K. Centeno destaca o valor pedagógico subjacente à máquina do mundo: “Mistério que é revelado ao
Gama, e do qual se depreende que os portugueses devem tirar também algum ensinamento: sobre a sua
história passada, presente e futura, apontada como símbolo de progressão da humanidade em geral (Cf. Y.
K. Centeno, “O cântico da água em Os Lusíadas”, in Y. K. Centeno et alii, A viagem de Os Lusíadas:
símbolo e mito, Lisboa, Ed. Arcádia, 1981, p.13.
771
Vasco Graça Moura, “Vi claramente visto Camões e D. João de Castro”, in op. cit., pp. 148 sqq.
772
Idem, ibidem, p. 150.
773
Jorge de Sena destaca que os actos do amor configuram a divinização dos heróis (Jorge de Sena,
“Aspectos do pensamento de Camões através da estrutura linguística de Os Lusíadas”, in Actas da I Reunião
Internacional de Camonistas, Lisboa, Comissão Executiva do IV Centenário da Publicação de Os Lusíadas,
1973, p. 51.
774
Luís de Camões, Os Lusíadas, II, 20-4, loc. cit.
240
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
775
As ninfas são uma alegoria das honras, que os nautas não têm em Portugal: “Aquelas preminências
gloriosas, / Os triunfos, a fronte coroada / De palma e louro, a glória e maravilha, / Estes são os deleites
desta ilha” (Cf. Luís de Camões, Os Lusíadas, IX, 89, loc. cit.).
776
Vasco Graça Moura, Os Lusíadas para gente nova, loc. cit., p. 132.
777
Idem, “O globo transparente e a concepção de espaço n’Os Lusíadas”, in Luís de Camões. Alguns
desafios, loc. cit., pp. 123-131.
778
Giussepe Tavani, “A estrutura espácio-temporal de Os Lusíadas”, in Ensaios portugueses: filologia e
linguística, 1988, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, p. 432.
779
Vasco Graça Moura, “O globo transparente e a concepção de espaço n’Os Lusíadas”, in op. cit., p. 131.
241
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
780
Idem, ibidem, p. 129.
781
Idem, ibidem, p. 131.
782
Giussepe Tavani, “Ainda sobre a estrutura espácio-temporal de Os Lusíadas”, in op. cit., pp. 437-449.
783
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p.167.
784
Rimas várias de Luís de Camões comentadas por Manuel de Faria e Sousa, loc. cit., p. 278.
242
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
785
Maria Vitalina Leal de Matos (Cf. O canto na poesia épica e lírica de Camões. Estudos de isotopia
enunciativa, loc. cit., p. 231) destaca em Camões a associação recorrente da mulher e da água. Graça Moura
segue de perto este topos, conforme se observa nos poemas consagrados a Dinamene.
786
Jacinto Prado Coelho, Camões e Pessoa. Poetas da utopia, loc. cit., p. 101.
243
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
787
Fernando Pinto do Amaral, “A poesia neo-maneirista de Vasco Graça Moura”, in Vasco Graça Moura,
Poemas escolhidos, Lisboa, Ed. Bertrand, 1990, pp. 1-7.
788
Luís de Camões, Os Lusíadas, III, 20, loc. cit.
789
Maria do Céu Fraga, Os géneros maiores na poesia lírica de Camões, loc. cit., p. 59.
244
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
imaginário”790. Não obstante, o motivo conclusivo parece estar neste belo passo de
3.o seu lugar:
Para Graça Moura, “o poema / são restos de naufrágio” (PR2, 29), traçando uma
bela síntese da relação da literatura com a sua fulguração criativa. Este tópico do
naufrágio estende-se à produção romanesca do autor contemporâneo, pelo que os
evidentes vasos comunicantes desenham uma marca pós-moderna, pelas reiteradas
reflexões na obra de um escritor791. Exemplo disso, é a narrativa Naufrágio de
Sepúlveda792, cujo título e paratexto evocam o célebre e dramático relato anónimo
de 1555 da “Relação da muy notável perda do Galeão grande S. João”, da História
Trágico-Marítima, compilação de textos realizada por Gomes de Brito793.
Impregnado de sofrimento e dor, este relato dos acontecimentos, imortalizado por
Camões794, contribui de forma particular para a sua projecção nas actuais letras
nacionais795, quando o Adamastor profetiza o fatídico desastre:
790
Vasco Graça Moura, “A consciência do naufrágio”, in Contra Bernardo Soares e outras observações,
Porto, Ed. Campo das Letras, 1999, p. 201.
791
Matei Calinescu, As 5 faces da modernidade, Lisboa, Ed. Vega, 2006, p. 259.
792
Vasco Graça Moura, Naufrágio de Sepúlveda, Lisboa, Ed. Quetzal, 1987. Sobre esta obra veja-se: Maria
Luísa Leal, “O naufrágio de Sepúlveda: variantes e invariantes de uma matéria narrativa”, in Ana Margarida
Falcão (org.), op. cit., pp. 629-639; André Luiz Alves Caldas Amóra, “Vasco Graça Moura e o naufrágio de
Sepúlveda”, in http://www.filologia.org.br/xvi_cnlf/tomo_3/256_B.pdf (consultado em 14 Dezembro 2015);
José Cândido Martins, “Literatura trágico-marítima e a literatura contemporânea”, in op. cit., pp. 143-173.
793
Cf. Bernardo Gomes de Brito, “Relação da mui notável perda do Galeão grande S. João”, in História
Trágico-Marítima, vol. I, Mem Martins, Publ. Europa-América, 1981, pp. 25-43. A propósito desta
continuada recepção de naufrágios da carreira da Índia, Cândido Martins conclui: “A matéria narrativa do
naufrágio de Sepúlveda transformou-se em tema literário, inspirando variadíssimos autores, textos e géneros
(narrativa, teatro, poesia música, pintura, etc.) num intenso e prolongado processo de reescrita intertextual e
interdiscursiva” (Cf. José Cândido Martins, “Naufrágio de Sepúlveda”, in Vítor Aguiar e Silva (coord.),
Dicionário de Luís de Camões, loc. cit., p. 633).
794
Aníbal Pinto de Castro, “O relato do naufrágio do galeão grande S. João e o texto d’Os Lusíadas”, in José
Augusto Cardoso Bernardes (org.), Luiz Vaz de Camões Revisitado, loc. cit., pp. 17-28.
795
José Cândido Martins, “Literatura trágico-marítima e a literatura contemporânea”, in op. cit., pp. 143-
-168.
245
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
796
Luís de Camões, Os Lusíadas, V, 46, loc. cit.
797
Jerónimo Corte-Real, Obras (Sucesso do Segundo Cerco de Diu - Naufrágio de Sepúlveda - Auto dos
Quatro Novíssimos do Homem - Elegias), introd. e rev. de M. Lopes de Almeida, Porto, Ed. Lello & Irmão,
1979. Vide sobre a referida obra, Hélio J. S. Alves, “As memórias gloriosas e o inglório esquecimento:
na(rra)ção e canonização nos Lusíadas de Camões e no Sepúlveda de Corte-Real”, in http:// old. www.
cidehus.uevora.pt/textos/artigos/memorias_gloriosas.pdf (consultado em 20 Dezembro 2015). Cf. também o
estudo pormenorizado de Hélio J. S. Alves, Naufrágio e perdição de Sepúlveda e Leonor de Jerónimo Corte
Real, in Hélio J. S. Alves, Camões, Corte-Real e o Sistema da Epopeia Quinhentista, loc. cit., pp. 229-245.
798
Graça Moura conhece bem esta matéria que tem como núcleo privilegiado os naufrágios, quando afirma:
“Há, em certas situações, um dramatismo intrínseco como naquele que é talvez o mais célebre naufrágio, o
do galeão grande S. João, também conhecido por naufrágio de Manuel de Sousa Sepúlveda, relato anónimo
de 1555, várias vezes reeditado, cujo tema foi explorado literariamente logo a partir de Camões e de
Jerónimo Corte Real, decorridos escassos vinte anos sobre os acontecimentos. Surge assim muito cedo uma
primeira relação da escrita literária com os testemunhos de ‘rudes marinheiros’ sobreviventes”. (Cf. Vasco
Graça Moura, “A consciência do naufrágio”, in Contra Bernardo Soares e outras observações, loc. cit.,
pp. 199-200)
799
Sobre esta matéria, Cândido Martins destaca: “O narrador conta-nos, se assim podemos dizer, o naufrágio
financeiro de um empresário, nas vésperas da Revolução de 25 de Abril (naufrágio de um Portugal?), mas
com uma particularidade muito significativa, ao nível da selecção onomástica [...]. Com efeito, os nomes das
personagens da família do protagonista, Manuel de Sousa Sepúlveda, coincidem com os nomes da família do
infeliz navegador quinhentista, coincidências que se estendem a vários pormenores biográficos”. (Cf. José
Cândido Martins, “Literatura Ttrágico-marítima e a literatura contemporânea”, in op. cit., p. 162).
800
Isabel Pires de Lima, nesta perspectiva, sublinha: “Não é impunemente que uma velha nação secular,
senhora do último dos impérios coloniais, quer essa posse fosse vivida numa delirante atitude eufórica ou
com uma dramática má-consciência, se vê subitamente reduzida à sua dimensão europeia. […] na cauda do
desenvolvimento económico e social, não podia deixar de gerar perplexidades, interrogações, medos...” (Cf.
Isabel Pires de Lima, “O regresso de D. Sebastião: narrativa e mito na narrativa portuguesa contemporânea”,
in Ana Margarida Falcão (org.), op. cit., p. 455.
801
A contemporaneidade do naufrágio é sublinha por Luísa Leal do seguinte modo: “Não são apenas as
variantes de um relato de naufrágios relacionadas com os géneros literários a merecer a atenção dos
estudiosos interessados nas relações de intertextualidade. Os contextos de recepção e de reescrita revelam
diferentes matizes ideológicos, o que mostra que um tema como o do naufrágio de Sepúlveda partilha uma
246
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
“Em verdade, quem conhecera a Manuel de Sousa, e soubera sua discrição, e brandura, e lhe
vira fazer isto, bem poderia dizer que já não ia em seu perfeito juízo; porque era discreto e bem
atentado: e dali por diante ficou de maneira que nunca mais governou a sua gente, como até ali o
tinha feito. E chegando da outra banda, se queixou muito da cabeça…”.806
“Vendo-se D. Leonor despida, lançou-se logo no chão, e cobriu-se toda com os seus cabelos,
que eram muito compridos, fazendo uma cova na areia, onde se meteu até à cintura, sem mais se
erguer dali... mas contudo nunca mais se quis erguer daquele lugar, onde se deixou cair, quando se
viu nua. No poema de Jerónimo Corte-Real, do outro, havia aqui dois versos razoáveis, Assentase
na branca area, & cobre / Co dourado cabello a lisa carne”.808
vertente que tende para a atemporalidade característica do mito, como uma vertente que mergulha
profundamente na temporalidade histórica” (Cf. Maria Luísa Leal, “O naufrágio de Sepúlveda: variantes e
invariantes de uma matéria narrativa”, in Ana Margarida Falcão (org.), op. cit., pp. 637-638).
802
Neste contexto disfórico sobre Portugal, Graça Moura traz à liça um lapidar passo camoniano que
constitui a primeira epígrafe a Naufrágio de Sepúlveda: “O naufrágio, que constituir também peripécia na
vida e no texto épico do autor de Os Lusíadas, muito provavelmente passou a ser reconduzido a uma espécie
de arquétipo da desgraça nacional. ‘Corre sem vela e sem leme / a nau que se vai perder’, diz-se num famoso
labirinto camoniano. Cada naufrágio cujo retrato chegou até nós podia ser lido como metáfora de um
desastre em que era o próprio país a ir ao fundo”. (Cf. Vasco Graça Moura “A consciência do naufrágio”, in
Contra Bernardo Soares e outras observações, loc. cit., p. 200).
803
José Cândido Martins, “Literatura trágico-marítima e a literatura contemporânea”, in op. cit., p. 168.
804
Vasco Graça Moura, Naufrágio de Sepúlveda, loc. cit., p. 151.
805
Idem, ibidem, p. 52.
806
Idem, ibidem, p. 102.
807
Sobre este autor, vide o estudo fundamental de Hélio J. S. Alves, Camões, Corte-Real e o Sistema da
Epopeia Quinhentista, loc. cit.
808
Idem, ibidem, p. 134.
247
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
809
Idem, ibidem, p. 66.
810
Linda Huctheon, Teoria da paródia, loc. cit., p. 48. Cf. sobre o conceito de paródia, os seguintes autores
e títulos: Fred W. Householder, Jr, “Παρωδía”, in Classical Philology, vol. XXXIX, nº 1944, pp. 1-9; F. J.
Lelièvre, “The basis of ancient parody”, in Grecce & Rome, 2.nd Series, nº 1, 1954, pp. 66-81; J.G.
Riewald, “Parody as criticism”, in Neophilologus, vol. 1, nº 1, 1956, pp. 17-30; Sanda Golopentia-Erestecu,
“Grammaire de la parodie”, in Cahiers de linguistique théorique et appliquée, nº 6, 1969, pp. 167-181;
Olga M. Freidenberg, “The origin of parody ”, in Semiotcs and Structuralism. Readings from the the Soviet
Union, White Plains (New York), Internacional Arts and Sciences Press, 1975, pp. 269-283; António
Gomez-Moriana, “Intertextualité, interdiscursivité et parodie. Pour une semanalyse du roman picaresque”,
in Canadian Journal of Research in Tematics, nº 8, 1980-1981, pp. 15-32 ; Gérard Genette, Palimpsestes. La
littérature au second degré, Paris, Ed. du Seuil, 1982, pp. 157-164 ; Claude Abastado, “Situation de la
parodie”, in Dérives des signes, Paris, Ed. Publidix, 1988, pp. 149-168; Daniel Sangsue, La Parodie, Paris,
Ed. Hachette, 1994; Daniel Sangsue, La relation parodique, Paris, Ed. José Corti, 2007 ; Margaret A. Rose,
Parody-Ancient, Modern and Post-Modern, London, Cambridge Univ. Press, 1993; Gilberto Mendonça
Teles, Camões e a poesia brasileira, loc. cit., pp. 324-356; Paulo Sérgio Ferreira, Os elementos paródicos no
Satyricon de Petrónio e o seu significado, Lisboa, Ed. Colibri, 2000; idem, “O significado da paródia na
Apocolocyntosis de Séneca”, in De Augusto a Adriano. Actas de Literatura Latina, Lisboa, Centro de
Estudos Clássicos, 2002. pp. 361-369; idem, "Paródia ou paródias?”, in Carlos de Miguel Mora (org.),
Sátira, paródia e caricatura: da Antiguidade aos nossos dias, Aveiro, Universidade de Aveiro, 2003,
pp. 279-300; Manuel Ferro, “A implantação da República Portuguesa sob o olhar acutilante da paródia:
Republicaníadas, de Marco António (António Correia Pinto de Almeida)”, in Republicaníadas, Coimbra-
-Figueira da Foz, Centro Interuniversitário de Estudos Camonianos / Câmara Municipal da Figueira da Foz,
2010; idem, “A utopia sob o signo do poema herói-cómico: O balão aos habitantes da Lua (1819), de José
Daniel Rodrigues da Costa, entre paródia e crítica social”, in Biblos, vol. XI, 2013, pp. 303-333; José
Cândido Martins, Teoria da Paródia Surrealista, Braga, APPACDM, 1995; idem, “Memorial do Convento,
de José Saramago: intertexto, interdiscurso e paródia carnavalizadora”, Flávia Corradin e Lilian Jacoto
(org.), in Literatura Portuguesa (Ontem, Hoje), S. Paulo, Ed. Paulistana, 2008, pp. 93-118; idem, “Paródias
d’Os Lusíadas”, in Vítor Aguiar e Silva (org.), Dicionário de Camões, loc. cit., pp. 659-667; idem,
“Paródias”, in Biblos. Enciclopédia Verbo das Literaturas de Língua Portuguesa, vol. 3, Lisboa-S. Paulo,
Ed. Verbo, 1995, cols.1418-1422; idem, “Paródia da construção determinista da personagem em Eusébio
Macário e A Corja”, in Boletim de Estudos Camilianos, V série, nº 1, 2016, pp. 105-134.
248
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
“Parecia que o senhor engenheiro andava desesperado havia uns tempos por coisas lá da vida
dele, os negócios parece que estavam a correr-lhe muito mal e ele tinha ido entregar tudo ao
banco”.811
Graça Moura, que confessa rever-se “na matéria verbal de que me faço” (PR2,
425), reitera, neste contexto, a errância amargurada de Camões pelo Oriente, num
longo poema de 265 versos, publicado em 1995, na revista Oceanos, em número
dedicado ao vate quinhentista, por ocasião do quarto centenário da publicação das
811
Idem, ibidem, p. 166.
812
Idem, ibidem, p. 167.
813
Nesta linha, quando se refere a Naufrágio de Sepúlveda, Aguiar e Silva sustenta: “O naufrágio é a
metáfora de uma pátria em risco contínuo de perdição” (Vítor Manuel Aguiar e Silva, “A outorga do Prémio
Morgado de Mateus a Vasco Graça Moura”, in op. cit., p. 176).
249
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
814
Vasco Graça Moura, “regresso de camões a lisboa”, in Revista Oceanos, Agora, peregrino vago e
errante, nº 23, Julho/Setembro, 1995, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos
Portugueses, pp. 4-5.
815
Sobre a importância do Oriente nas letras nacionais, em que Graça indubitavelmente se inscreve, Álvaro
Machado destaca os “elementos decisivos da sua originalidade e da sua universalidade” (Cf. Álvaro Manuel
Machado, O mito do Oriente na literatura portuguesa, Lisboa, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa,
1983, p. 117).
816
Faria e Sousa diz que a canção Junto dum seco frio e estéril monte foi escrita pelo poeta em Goa (Cf.
Rimas várias de Luis de Camões comentadas por Manuel de Faria y Sousa, nota introdutória do Prof. F.
Rebelo Gonçalves, prefácio do Prof. Jorge de Sena, Tomo II, loc.cit., p. 67).
817
Genette sustenta que a evocação do espaço na poesia configura um sentido real e uma dimensão
existencial, constituindo uma forma de estruturação da mundividência lírica (Cf. Gérard Genette, “La
litteráture et l’espace”, in Figures II, Paris, Ed. Seuil, 1969, pp. 43-47).
818
Vide Helena Langrouva, A viagem na poesia de Camões, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2006.
250
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
819
Segundo Aguiar e Silva, o tópico da errância e da peregrinação adquire uma particular expressão
dramática nas canções IX e X de Camões (Cf. Vítor Manuel Aguiar e Silva, “As canções da melancolia”, in
Camões: labirintos e fascínios, Lisboa, Ed. Cotovia, 1994, p. 220).
820
No poema toada de goa, da autoria de Graça Moura, é reiterada este topos de timbre camoniano: “nesta
dura deriva / da memória cativa /que a saudade magoa / amanhecer em goa / anoitecer em goa” (PR1, 441).
821
Francisco José Viegas, “E agora Vasco?”, in Revista Ler, nº 33, 1996, p. 61.
822
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 248.
823
A edição da lírica camoniana de Costa Pimpão, considerada até ao momento a mais credível, contempla
dez canções. No entanto, Hernâni Cidade atribui onze canções ao poeta quinhentista. Sobre esta complexa
matéria, vide Vítor Manuel Aguiar e Silva, “O cânone da lírica de Camões: estado actual do problema;
perspectivas de investigação futura” e “Notas sobre o cânone da lírica camoniana (II)”, in Camões:
labirintos e fascínios, Ed. Cotovia, Lisboa, 1994, respectivamente pp. 37-55 e 57-71.
824
Maria Vitalina Leal de Matos, O canto na poesia épica e lírica de Camões. Estudos de isotopia
enunciativa, loc. cit., pp. 253-254.
251
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
Com efeito, o canto de Graça Moura, homo uiator como Camões, plasma-se nas
“sombras ténues”, sob a égide da “memória” e do “poder das palavras”, através de
um constante jogo intertextual que convoca múltiplos sentidos, fazendo jus à sua
definição de poesia: “Um poema liga-se sempre a todos os poemas que o
precedem”825. Esta concepção, contextualizada nas experiências da vida e enraizada
no vasto legado literário, legitima o recurso aos versos camonianos, uma vez que,
na esteira dos códigos petrarquistas, o vate quinhentista cultivou um lirismo de
memória de onde brotam os sentidos e as emoções do passado, como observou
Aguiar e Silva com particular acuidade:
“No plano épico, como no plano lírico, a memória é indissociável da história – da história da
comunidade nacional dos seus heróis e da história-biografia de um homem – e, ao mesmo tempo,
da precariedade e da exemplaridade, eufórica e disfórica, dessa mesma história”.826
825
Vasco Graça Moura, “Como se faz um poema”, in Discursos vários poéticos, loc. cit., p. 488.
826
Vítor Manuel de Aguiar e Silva, “Aspectos petrarquistas da lírica de Camões”, in Camões: labirintos e
fascínios, loc. cit., p. 188.
827
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 221.
828
Luís de Camões, Os Lusíadas, IV, 95, loc. cit.
252
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
O poema em análise, por outro lado, não pode lido sem o título, uma vez que
sugere o repatriamento de Camões e pressupõe uma determinada referência
espacial bem delimitada – Goa é a origem e Lisboa o seu destino. Por outro lado,
revela uma tendência da poesia moderna baseada na ideia da personalização; o “eu”
ocupa a centralidade do processo enunciativo, na criação poética, o que não exclui
a ficcionalidade intrínseca ao texto literário; como sublinhou Graça Moura, a
escrita “não surge ex nihilo, mas é um modo verbal de estar no mundo”.832
Na “apropriação fragmentária”, como o autor faz questão de destacar no
posfácio a Poemas escolhidos833, quando se refere à dimensão intertextual da sua
obra, a viagem de Camões é feita de momentos que se refletem e se refratam nos
seus versos; é precisamente neste contexto, em crescendo metafórico, que projecta
como nota dominante a isotopia do regresso do Oriente:
“e afinal
só com os próprios ecos tem cotejo
e entre seus reenvios despedaça
o alento que na alma inda perpassa
e de ousadias próprias se faz pejo
de tão viva lembrança que desfaça
de apagadas venturas o sobejo
829
José V. Pina Martins, “O humanismo na obra de Camões”, in Arquivos do Centro Cultural Português,
vol. XVI, Paris, Fundação Calouste Gulbenkian, 1981, p. XX.
830
Óscar Lopes, “Um pacto de leitura”, in Revista Oceanos, Agora, peregrino vago e errante, nº 23,
Julho/Setembro, loc. cit., pp. 12-15.
831
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., pp. 227-228.
832
Vasco Graça Moura, “Como se faz um poema”, in Discursos vários poéticos, op. cit., p. 487.
833
Idem, Poemas escolhidos, loc. cit., p. 476.
253
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
834
Luís de Camões, Os Lusíadas, I, 19, loc. cit.
835
Idem, ibidem, X, 144.
836
Frederico Lourenço, “O Tejo no proémio d’Os Lusíadas”, in Grécia revisitada, loc.cit., pp. 267-272.
837
Nesta linha, Aguiar e Silva salienta: “O tópico da errância geográfica recobra na voz lírica de Camões
uma densidade e fundura existenciais singulares, à luz da sua vida, das suas experiências de homem
português de meados do século XVI” (Cf. Vítor Manuel Aguiar e Silva, “As canções da melancolia”, in
Camões: Labirintos e Fascínios, loc. cit., p. 221).
254
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
838
Sob o signo do desengano, Cleonice Berardinelli (“Junto dum seco, fero e estéril monte”, in Estudos
Camonianos, loc. cit., pp. 235 sqq) a propósito da Canção X, salienta que a almejada felicidade alimenta
continuadamente o poeta quinhentista de enganosas esperanças.
839
Neste registo dialogante em torno das dez canções camonianas, Graça Moura enfatiza a dialéctica entre
escrita e experiência, cujo apego às vivências configura uma função testemunhal da poesia já presente em
Jorge de Sena, matéria estudada por Jorge Fazenda Lourenço (A poesia de Jorge de Sena: testemunho,
metamorfose, peregrinação, Centre Culturel Calouste Gulbenkian, Paris, 1998).
840
Segundo Eduardo Lourenço, “A exegese óbvia que se costuma fazer da relação Camões-pátria é um
espelhismo romântico. É Camões quem pessoaliza a pátria, não é ela que o ‘camoniza’, que o problematiza”
(Cf. Eduardo Lourenço, “Da literatura como interpretação de Portugal”, in O labirinto da saudade, Lisboa,
Ed. Gradiva, 72010, p. 82).
841
Aníbal Pinto de Castro, “Viajar com os poetas portugueses do Renascimento e do Maneirismo”, in Ana
Margarida Falcão et alii (org.), op. cit., 1997, p. 354.
842
Luís de Camões, Os Lusíadas, III, 21, loc. cit.
843
Cardoso Bernardes afirma que o facto da recompensa não se verificar, como seria mais óbvio no terminus
do regresso, visto que obedece, antes de mais, a uma finalidade estética: a glorificação só se pode realizar no
plano mitológico antes de “os nautas serem devolvidos às coordenadas da história real” (Cf. José Augusto
Cardoso Bernardes, “O ‘nunca ouvido canto’ de Camões e as estâncias finais d’Os Lusíadas”, in Seabra
Pereira e Manuel Ferro (coord.), Actas da VI Reunião Internacional de Camonistas, loc. cit., p. 587) Esta
interpretação também é sustentada por Jorge de Sena (“A estrutura de Os Lusíadas”, in A estrutura de ‘Os
255
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
Lusíadas’ e outros estudos camonianos e de poesia peninsular do século XVI, Lisboa, Edições 70, 1980,
p. 74).
844
Luís de Camões, Os Lusíadas, I, 3, loc. cit.
845
Idem, ibidem, V, 18.
846
Idem, ibidem, VIII, 80.
847
Maria Vitalina Leal de Matos, O canto na poesia épica e lírica de Camões. Estudo da isotopia
enunciativa, loc. cit., p. 84.
256
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
848
Cf. Aníbal Pinto de Castro, “O relato do naufrágio do galeão grande S. João e o texto d’Os Lusíadas”, in
José Augusto Cardoso Bernardes (org.), Luiz Vaz de Camões revisitado, loc. cit., p. 28.
849
Esta imagem de estranheza e desconforto que Lisboa provoca é recorrente nas letras portuguesas, como,
entre outros, mostra Cesário Verde. Num curioso artigo, David Mourão-Ferreira refere que O sentimento
dum Ocidental, poema editado numa folha comemorativa dedicada a Camões num jornal portuense, apenas
lhe consagra duas referências. No entanto, o autor de A débil, numa carta dirigida ao organizador dessa
publicação, recorda humildemente o seguinte: “Não poderia eu, por falta de aptidão, dedicar um trabalho
artístico especial a Luís de Camões; mas julgo que fiz notar menos mal o estado presente desta grande
Lisboa, que em relação ao seu glorioso passado, parece um cadáver de cidade”. (Apud David Mourão-
-Ferreira, “Cesário e Camões. Uma leitura complementar de O sentimento dum ocidental”, in Colóquio-
-Letras, nº 135-136, 1995, p. 83).
850
Carlos Reis, “Intertextualidade e ideologia na imagem romântica de Camões”, in Construção de leitura.
Ensaios de metodologia e crítica literária, Coimbra, Instituto Nacional de Investigação Científica, 1982,
p. 173.
851
Teixeira de Pascoaes, Os poetas lusíadas, Lisboa, Ed. Assírio & Alvim, 1987, pp. 88-89. Também
Teófilo de Braga se refere à peste que fustigava Lisboa, quando Camões regressou ao reino, e descreve um
cenário idêntico ao que é sugerido pelos versos de Graça Moura (Cf. Teófilo de Braga, Camões: época e
vida, Porto, Ed. Chardron, 1907, pp. 699 sqq).
257
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
852
Maria Helena Rocha Pereira, Estudos de História da Cultura Clássica-Cultura Grega, Lisboa, Fundação
Calouste Gulbenkian, 92003, p. 73.
853
Esta “consciência amarga do desprezo alheio”, expressão de Jorge de Sena (Cf. Poesia II, Lisboa, Ed.70,
1988, p. 71), esboça um tópico frequente nos poetas de Novecentos acerca da indiferença a que a poesia e
Camões foram votados. A propósito, vejam-se os seguintes textos de Jorge de Sena: Camões na ilha de
Moçambique e Camões dirige-se aos seus contemporâneos, talvez o seu mais conhecido poema; de Sophia
de Mello Breyner destacam-se Camões e a tença e Gruta de Camões. Sobre estes dois autores, cf. José
Augusto Seabra “Camões e Jorge de Sena”, in Nicolás Extremera Tapia e Manuel Correia Fernandez (org.),
Homenaje a Camoens, Granada, Universidad de Granada, 1980, pp 387-395, (Jorge Fazenda Lourenço,
“Camões em Jorge de Sena (algumas linhas)”, in Revista Relâmpago, nº 20, Lisboa, Fundação Luís Miguel
Nava, 2007, p. 23-34, Virgínia Boechat “Aquele que recebeu em paga: acerca de um Camões no poema de
Sophia”, in Abril. Revista do Núcleo de Estudos de Literatura Portuguesa e Africana da UFF, vol. 3, Abril
de 2010, pp. 105-115 e Isabel Almeida, “Se nenhum amor pode ser perdido. Sophia e Camões”, in “Se
nenhum amor pode ser perdido. Sophia e Camões”, in Maria Andresen Sousa Tavares (org.), Sophia de
Mello Breyner Andresen. Actas do Colóquio Internacional, loc. cit., pp. 252-262.
854
Óscar Lopes, “Um pacto de leitura”, in Revista Oceanos, Agora, peregrino vago e errante, nº 23,
Julho/Setembro, loc. cit., p. 19.
855
Luís de Camões, Os Lusíadas, X, 145. Sobre a perífrase “venho cantar”, Prado Coelho tem uma
interessante leitura: o amor à pátria de Camões intensifica-se pela distância, pelo que “a alegria do regresso é
muito maior na antevisão do que na realidade” (Cf. Jacinto Prado Coelho, Camões e Pessoa. Poetas da
utopia, loc. cit., p. 103).
258
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
realidade em que “está metida” a pátria, numa “austera apagada e vil tristeza”.
Graça Moura comenta este passo de modo sui generis em Os Lusíadas para gente
jovem, através do diálogo entabulado entre versos da sua autoria e um célebre passo
do epos, em oitava rima e métrica decassilábica de matriz camoniana:
Acentue-se que não é do canto o desencanto, mas da gente nele cantada, que
afinal não estará à altura de tal sublimidade, o que contradiz o postulado da
invocação inicial, em que o poeta suplica às Tágides: “Dai-me igual canto aos
feitos da famosa gente vossa”857. O designado plano do poeta, em que se depara o
sujeito de enunciação a falar de si próprio, bem como das concepções cívicas,
axiológicas e estéticas que o norteiam – por vezes eivado de certa severidade
judicativa, outras vezes entregue à lamentação mais fatalista – surge praticamente
só na segunda metade do poema, se excluirmos a proposição, a invocação e a
dedicatória, que antecedem a narração, iniciada na estância 19 do Canto I. Isto
significa que as experiências deceptivas de Camões, testemunho de uma invulgar
modernidade, o terão conduzido gradualmente a uma crise de epopeia, que vão
corroer o intuito épico de glorificação.
A clarividência enunciada, atravessada por uma melancolia devastadora de uma
voz repassada de dor, não hesita em invetivar os sinuosos caminhos de Portugal 858.
856
Vasco Graça Moura, Os Lusíadas para gente jovem, loc. cit., p.146.
857
Luís de Camões, Os Lusíadas, I, 5, loc. cit.
858
Camões – segundo alguns camonistas, entre os quais José Maria Rodrigues – compôs o seu poema nos
dois primeiros decénios da segunda metade do século XVI, que corresponderão sensivelmente aos anos da
sua estadia no Oriente, longa e amarga experiência humana, que progressivamente o levará à lúcida
consciência do desconcerto do mundo, bem como motivará uma certa ambiguidade evolutiva do projecto
épico. Com efeito, a partir do final do Canto V (92-100), quando reflecte sobre o topos clássico das armas e
das letras, canta a supremacia dos valores culturais sobre os guerreiros, ao invés do que os portugueses afinal
testemunhavam. Derrogando os cânones da epopeia, poeta imiscui-se, com certa regularidade, em
determinados momentos da enunciação, com o fito de proferir juízos de valor cada vez mais críticos e
259
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
contrastantes entre o ideal de heroísmo, bem como a excelência do seu canto e a surdez dos seus
contemporâneos.
859
Luís de Camões, Os Lusíadas, I, loc. cit.
860
Idem, “Canção X”, in Rimas, loc. cit., p. 228.
260
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
861
Nesta sequência, vejam-se, por exemplo, as seguintes invocações camonianas similares: Canção, neste
desterro viverás (Canção VI) e No mais, canção, no mais (Canção X). Para Vitalina Leal de Matos, a
reflexão metapoética constitui um claro exemplo da modernidade do autor quinhentista, correlativamente
acrescente-se que este processo, como se observa, se afigura também uma marca distintiva do universo
poético de Graça Moura (Cf. Maria Vitalina Leal de Matos, O canto na poesia épica e lírica de Camões.
Estudos de isotopia enunciativa, loc. cit., pp. 97-131).
862
Luís de Camões, Os Lusíadas, III, 20, loc. cit.
863
A propósito do episódio do Adamastor, Pinto de Castro aponta as três intenções que tão intimamente se
conjugam em Os Lusíadas: a ousadia épica, o sofrimento trágico e o desengano lírico. Esta acepção aplica-
-se indubitavelmente aos versos de Graça Moura, que tão bem conhece este processo metamórfico de
Camões (Cf. Aníbal Pinto de Castro, “O episódio do Adamastor: seu lugar e significação na estrutura de Os
Lusíadas”, in Páginas de um honesto estudo camoniano, loc.cit., pp. 175-190).
261
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
864
Esta acepção dissonante compagina-se com o pensamento camoniano, como refere Vitalina Leal de
Matos em relação a Os Lusíadas: “Euforia, orgulho, confiança – tudo isto constitui o tecido mais aparente e
a principal dimensão poema. Mas o texto é complexo e, por vezes, contraditório. Em certos momentos exibe
uma face menos gloriosa, aquela em que emergem as críticas, as dúvidas, o sentimento de crise” (Cf. Maria
Vitalina Leal de Matos, Tópicos para a leitura de Os Lusíadas, Lisboa, Ed. Verbo, 2003, p. 21).
865
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 159.
866
Cf. Claude-Gilbert Dubois, Le Maniérisme, Paris, P.U.F., 1979, pp. 200 sqq.
867
Cf. José Antonio Maravall, La cultura del Barroco, Barcelona, Editorial Ariel, 51990.
868
Este passo justifica indubitavelmente o seguinte pensamento de Sophia de Mello Breyner: “Camões
assume a pátria sua e nossa, duplamente. Assume-a como palavra e assume-a como História” (Cf. Sophia de
Mello Breyner Andresen, “Luís de Camões-ensombramentos e descobrimentos”, in Cadernos de Literatura,
nº 5, Coimbra, Centro de Literatura Portuguesa da Universidade, 1980, p. 23).
262
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
Camões passa inúmeras atribulações longe da sua pátria, como o poeta diz de si
mesmo, de modo desolado, em Os Lusíadas:
“Olhai que há tanto tempo que, cantando
O vosso Tejo e os vossos Lusitanos,
A fortuna me traz peregrinando,
Novos trabalhos vendo, e novos danos”.871
869
Claude-Gilbert Dubois, Le Maniérisme, loc. cit., p. 202.
870
Cleonice Berardinelli, Estudos camonianos, loc. cit., p. 40.
871
Luís de Camões, Os Lusíadas, VII, 79, loc. cit.
263
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
“nunca
o nó duma vida se desata,
nunca altera a matéria mísera,
frágil, da existência”. (PR1, 240)
“as pessoas sabem que vão ficar com a máquina assassina da ausência
e aceitam isso e é dela que vão surgir entrecortando-se as
fantásticas pinturas de alegria que fala o camões, sim,
mas que as vão esfarrapando sombriamente na memória destroçada”. (PR2, 244-245)
872
José Augusto Cardoso Bernardes, “O ‘nunca ouvido canto’ de Camões e as estâncias finais d’Os
Lusíadas”, in Seabra Pereira e Manuel Ferro (coord.), Actas da VI Reunião Internacional de Camonistas,
loc. cit., pp. 589-590.
873
Registe-se que o rio Tejo constitui uma metonímia da saudade da pátria, invocada nas estrofes iniciais de
Camões de Almeida Garrett: “peito malsofrido / à foz do Tejo” (Cf. Almeida Garrett, Camões, apresentação,
notas e sugestões para análise literária de Teresa Sousa de Almeida, Lisboa, Ed. Comunicação, 1986, p. 56).
874
Eduardo Lourenço, “Camões e o tempo ou a razão oscilante”, in Poesia e metafísica, Lisboa, Ed. Sá da
Costa, 1983, pp. 31-49.
875
Com efeito, o Gama em Os Lusíadas canta o veemente desejo de regresso à pátria, sinónimo do apego
afectivo às suas origens, onde deseja morrer: “Esta é a ditosa pátria minha amada, / A qual se o Céu me dá
que eu sem perigo / Torne, com esta empresa já acabada, / Acabe-se esta luz ali comigo” (Cf. Luís de
Camões, Os Lusíadas, III, 21, loc. cit.).
264
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
sobre o seu destino. Como se observa, este texto demonstra mais uma vez a
existência de uma sugestiva matriz camoniana nos versos de vgm, visto que
entrelaça o canto poético com a figura tutelar do Épico. Sintetiza-se, assim, uma
meditação acerca do comportamento do homem, afligido por contrariedades e
infortúnios, em demanda da superação do sofrimento, considerando-se, assim,
natural e inevitável que o homem, perante a dor, experimente uma viva dilaceração.
Esta invulgar capacidade enunciativa, que fornece ao texto uma coesão temática
e estilística, não se dissocia, num registo de modernidade, de uma deliberada
reflexibilidade, como o poeta contemporâneo confessa “sou / a obscura matéria de
uma ausência” (PR2, 520), configurando uma cartografia de significativa
singularidade na poesia portuguesa contemporânea. Neste contexto, através da
explícita mediação camoniana, vgm decalca um verso da Canção X:
“nem as lembranças
a que camões chamaria doces e da passada glória
876
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 228.
877
Maria do Céu Fraga, “O tempo e o espaço: a errância na lírica camoniana”, in op. cit., p. 57.
265
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
Como se observa, o poeta incrusta passos líricos do autor das Rhythmas, onde o
sentimento do doloroso vazio de desengano plasma, assim, o ethos de uma poesia
marcadamente disfórica878; os condicionalismos políticos subjacentes à produção
do autor desenham uma atmosfera opressiva e doentia de pátria malograda, que se
filia no seguinte soneto camoniano:
878
Uma visão radicalmente sombria das relações sociais já integra a poesia de Sá de Miranda, como cantou
na carta a el-rei D. João III: “Onde ha homens ha cobiça / Ca e la tudo ela empeca / Se a santa igual justiça /
Não corta ou não desempeca / Quanto a malícia enliça (Cf. Sá de Miranda, Poesias, Ed. de Carolina
Michaelis de Vasconcelos, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1989, p. 88).
879
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 157.
880
Nesta óptica, Eduardo Lourenço destaca a excepcionalidade do poeta: “A identificação de Portugal com
Camões, por obra conjugada dos acontecimentos históricos e da revolução cultural romântica, é um caso
único no quadro da cultura europeia” (Cf. Eduardo Lourenço, “Romantismo, Camões e saudade”, in
Portugal como destino seguido de Mitologia da saudade, loc. cit., p. 146). Embora o auge dessa afinidade
266
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
O destino do vate joga-se agora numa dimensão que já não é marítima. Com
efeito, é dominado pelo grotesco dos “retratos retorcidos” e de onde sobressai uma
imagem nacional de decrepitude em “lugares da loucura e da miséria”881. O vínculo
do sujeito poético à pátria institui-se como motivo central e congregador, cenário
onde impera a ganância e a ambição em detrimento da dedicação e da nobreza882.
Os versos abrem-se, pois, sob o signo do desencanto em diferentes modulações,
constituindo um significativo vector axial. A imagem épica de Portugal dissipa-se e
deixa transparecer os contornos trágicos de uma pátria moribunda, despojada da
majestosidade de outrora, a mensagem veiculada assume o reverso desmistificador
das virtudes heróicas das descobertas, denotando uma atitude de desânimo, onde
são eixos nucleares a importância da pátria e das acções humanas883. Os elementos
ocorra no século XIX, remonta já a Seiscentos, quando Portugal se encontrava na dependência da coroa
espanhola, a polémica em torno da perfeição da obra camoniana, obra central do espírito autonomista face ao
domínio vigente, responde simultaneamente a posições ideológicas e a preocupações de natureza estético-
literária. Como observa Fidelino Figueiredo, “Nas horas de crise os portugueses voltam-se para Camões
como uma fonte de renovação estética e de sugestiva força nacionalizadora” (Cf. Fidelino Figueiredo, A
épica portuguesa no século XVI, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1993, p. 21). Sobre o carácter
nacionalista intrínseco à contenda referida, vide José Manuel Ventura, João Soares de Brito. Um crítico
barroco de Camões, loc. cit., pp. 38 sqq.
881
António Quadros neste contexto conclui: “Nos últimos decénios do século XIX e por todo o século XX, a
cultura portuguesa tem sido o teatro, não só de uma luta de conceitos acerca do que é ou deve ser Portugal,
mas também de uma batalha entre juízos de valor quanto à natureza do que fomos como povo histórico e do
que somos, como sociedade, nação e pátria” (Cf. António Quadros, A ideia de Portugal na literatura
portuguesa dos últimos 100 anos, Lisboa, Ed. Fundação Lusíada, 1989, p. 21).
882
Esta atitude contida no trecho de Graça Moura convoca o comportamento social do tempo de Camões,
denunciado pelo poeta de um modo claro, por exemplo, nestes versos: “Quem faz injúria vil e sem razão, /
Com forças e poder em que está posto, / Não vence, que a vitória verdadeira / É saber ter justiça nua e
inteira” (Cf. Luís de Camões, Os Lusíadas, X, 58, loc. cit.).
883
A leitura camoniana de José Saramago em Que farei com este livro? é curiosa, uma vez que Damião de
Góis, personagem da obra, considera que os acrescentos de marcada disforia em Os Lusíadas foram feitos já
267
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
Num halo de mistério, a imagem traçada revela um país desolado que decai, não
permitindo a concretização de uma nova vida886, numa deliberada desconstrução
das glórias da história, marca indelével, no dizer de Paula Arnaut887, do Pós-
-Modernismo. A hostilidade do cenário transcrito e as conotações de sofrimento
que caracterizam Lisboa, são suficientemente claras; a tragédia desencadeia-se
agora sob a forma de doenças, desenganos, crueldades e mortes, arrastando o país
em Lisboa, antes da obra entrar nos prelos, em clara denúncia da decadência nacional: “O que trouxestes da
Índia, Luís Vaz foi a história do antigo Portugal, mais a grande navegação. Tudo isso que acrescentastes são
casos dos nossos dias de agora, deste tempo em que não sabemos para onde Portugal vai”. (Cf. José
Saramago, Que farei com este livro?, Lisboa, Ed. Caminho,1980, p. 92). Sobre este assunto, vide Francisco
Maciel Silveira, “O que farei com este livro? - De Os Lusíadas, segundo Saramago”, in Seabra Pereira e
Manuel Ferro (coord.), Actas da VI Reunião Internacional de Camonistas, loc. cit., p. 444.
884
Aguiar e Silva refere que Camões encontra uma pátria insensível ao seu canto, visto que um “manto de
decadência político-militar, social e económica envolvia melancolicamente Portugal” (Cf. Vítor Manuel
Aguiar e Silva, “Epilegómenos”, in Camões: labirintos e fascínios, loc. cit., p. 236).
885
Luís de Camões, Os Lusíadas, X, 154.
886
Aguiar e Silva assinala a este propósito que “a imaginação e o pensamento utópicos de Camões, porém,
encontram-se em conflito com uma antropologia pessimista e com uma mundividência trágica que estão
expressos em muitos textos da sua lírica. A distopia ameaça assim inelutavelmente a utopia, corroendo a sua
lógica e a sua coerência” (Cf. Vítor Manuel Aguiar e Silva, “Imaginação e pensamento utópicos”, in
Camões: labirintos e fascínios, loc. cit., p. 153).
887
Ana Paula Arnaut, Post-Modernismo no romance português contemporâneo-fios de Ariadne, máscaras
de Proteu, Coimbra, Livraria Almedina, 2002, p. 317.
268
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
888
Aníbal Pinto de Castro, “Viajar com os poetas portugueses do Renascimento e do Maneirismo", in Ana
Margarida Falcão et alii (org.), op. cit., p. 354.
889
José Carlos Seabra Pereira, “O poeta maldito e os profundos desejos decepados”, in Gomes Leal, A fome
de Camões, Lisboa, Ed. Assírio & Alvim, 1999, p. 9.
890
Este verso, que integra indubitavelmente o imaginário nacional, faz ecoar o final de Camões de Garrett:
“Pátria, ao menos junto morremos…” (Cf. Almeida Garrett, Camões, loc. cit., p. 194).
891
Cf. Ofélia Paiva Monteiro, “Camões no Romantismo”, in Luís de Albuquerque et alii (org.), Actas da III
Reunião Internacional de Camonistas, Coimbra, Universidade de Coimbra, 1987, pp. 119-137; idem,
“Camões e o Romantismo português”, in Vítor Aguiar e Silva (coord.), Dicionário de Luís de Camões, loc.
cit., pp. 176-182.
269
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
892
Celso Lafer destaca o pensamento do poeta quinhentista do seguinte modo: “As contradições do poema
são as contradições do seu século, e desta conclusão podemos inferir a marca da sua universalidade” (Cf.
Celso Lafer, “O problema dos valores n’Os Lusíadas”, in Revista Camoniana, nº 2, São Paulo, 1965,
p. 108).
893
A referência ao declínio nacional atravessa a literatura portuguesa, como se verifica na obra de Camões
ou de Graça Moura. Esta afinidade é explicada por Seabra Pereira do seguinte modo: “Só pode cantar a
decadência quem está convencido de que houve uma grandeza pátria” (Cf. José Carlos Seabra Pereira, "Os
paradoxos da nação percursora”, in José Jorge Letria e António Carvalho (ed.), Actas dos 3ºs Cursos
Internacionais de Verão de Cascais, vol. 4, (Literatura, artes e identidade nacional), Cascais, Ed. Câmara
Municipal de Cascais, 1997, p. 171.
894
Eduardo Lourenço, O labirinto da saudade, loc. cit., pp. 23-66.
895
Sobre esta matéria, Graça Moura salienta: “Na crise nacional e mental que se pressentia no tempo de
Camões, a retórica podia fornecer mecanismos compensatórios e portadores de sentido, como podia
fornecer, do mesmo passo, um conhecimento e um convencimento, uma ordem de valores e uma regra de
acção” (Cf. Vasco Graça Moura, “Universo retórico e crise de valores”, in Luís de Camões. Alguns desafios,
loc. cit., p.116)
270
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
896
Idem, ibidem, p. 119.
897
Aníbal Pinto de Castro, Retórica e Teorização Literária em Portugal. Do Humanismo ao Neoclassicismo,
loc. cit., p. 60.
898
Hernâni Cidade, Luís de Camões. O épico, Lisboa, Ed. Presença, 31985, p.19.
899
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 227.
271
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
900
Jacinto Prado Coelho, “Camões hoje”, in Camões e Fernando Pessoa. Poetas da utopia, loc. cit., p. 27.
901
Nesta perspectiva, Pires de Lima destaca: “Interrogar o ‘ser’ da pátria parece ser, enfim, um traço comum
às narrativas de destino pátrio, que dominam um filão significativo da ficção portuguesa actual e de algum
do nosso ensaísmo, contribuindo ambos para continuar a inventar uma imagem de Portugal ou para a
reinventar, em horas de procura de novos rumos, de outros destinos que todavia não deixam de integrar o
passado mítico”. Vide Isabel Pires de Lima, “Em busca de uma nova pátria: o romance de Portugal e de
Angola após a descolonização”, in http://www.revistas.usp.br/viaatlantica/article/view/48677/52748
(consultado em 23 Dezembro 2015).
902
Jacinto Prado Coelho ao descrever a vida malograda de Camões, sujeito às mais variadas provações,
identifica o “topos do poeta maldito” (Cf. Jacinto do Prado Coelho, “Camões: um lírico do transcendente”,
in A letra e o leitor, Porto, Ed. Lello & Irmão, 31996, p. 21). Sob este prisma, João Pedro George, (O que é
um escritor maldito?, Lisboa, Ed. Verbo, 2013, p. 11) destaca: “O escritor maldito é o centro de gravidade
da literatura ocidental moderna. Constitui a espinha dorsal do escritor autónomo, independente e original
que defende a sua criação até às últimas consequências, sem nunca fazer concessões ou trair a sua
consciência artística, não raro com prejuízo da própria vida, ou resvalando nos abismos do infortúnio e do
sofrimento, ou entregando-se a todos os excessos e autodestruindo-se. Incompreendido no seu tempo mas
imortalizado pelo futuro, o maldito confunde-se com a própria literatura, é a representação do trágico destino
do escritor genial e da sua ressurreição”.
903
Graça Moura sintetiza cabalmente esta acepção: “Os Lusíadas não cantam apenas os feitos heróicos,
verberam também a degradação dos valores e a perversão dos costumes, a cobiça, a ambição, a cupidez, o
abandono do hinterland e das questões europeias” (Cf. Vasco Graça Moura, “Os Lusíadas como epopeia
global”, in Revista Persona, nº 5, 2003, p. 52).
904
Esta desencantada visão da realidade e da razão humana em crise, em clima de intensa melancolia e numa
paisagem de ruínas, é uma característica indelével do Maneirismo, segundo Claude-Gilbert Dubois (Le
Maniérisme, loc. cit., p. 202).
272
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
deitaram”905, dando conta de uma pátria, que, ao invés, de acolhedora e grata por
todos aqueles que o poeta celebrava em verso o poeta, recusa o claro
reconhecimento o valor do poeta906. A atitude camoniana revela, pois, a
consciência de uma degeneração cívica denunciada ao longo da epopeia e reforçada
no final da obra907. Nesta óptica, Graça Moura, tendo em conta o paradigma da
realidade amarga vivida por Camões e D. Francisco Manuel de Melo, filia-se numa
genealogia de escritores, que, no dizer de Eduardo Lourenço, “a partir de Garrett e
Herculano, Portugal, enquanto realidade histórico-social, constituirá o núcleo de
uma pulsão literária dominante”908.
Num momento de acentuada crise moral, a idealizada pátria ganha matizes
diametralmente opostos, tornando-se sombria e decepcionante, bem como funciona
como uma ampla metonímia de um domicílio que se procura em vão 909. No
denunciado processo de decadência, a escrita poética adquire tonalidades elegíacas,
chegando o poeta a confessar: “o corpo desta pátria que já teve / mas já não tem o
905
Luís de Camões, Os Lusíadas, VII, 81, loc. cit.
906
Vitalina Leal de Matos vê nesta progressiva intromissão do sujeito-poeta na epopeia uma implicação
pessoal do autor real que tende a afastar-se do cânone genológico, sofrendo a contaminação da lírica, modo,
aliás, mais consentâneo com a atmosfera estética e a mundividência maneirista que Camões viveu: “O autor
está cada vez mais implicado, envolvido e confundido com o poema: dir-se-ia que uma inspiração lírica
domina o termo da epopeia” (Maria Vitalina Leal de Matos, “Evolução do projecto da epopeia ao longo
d’Os Lusíadas”, in Camões: sentido e desconcerto, loc. cit., p. 193).
907
Esta linha de pensamento presente em Graça Moura deriva de uma tradição que remonta
fundamentalmente ao século XIX, como frisou Aguiar e Silva: “Desde Camões ou, melhor, desde Camões
lido pelo Romantismo, a ideia de Portugal, da sua identidade e do seu destino, torna-se um tema obsidiante
da literatura portuguesa, modulado em géneros e em registos múltiplos, que vão da elegia ao canto épico, da
farsa à tragédia, do romance à crónica. A visão - ou a antevisão ou o fantasma - da decadência, do desastre e
do soçobro de Portugal, é uma chaga sempre aberta no pensamento, na sensibilidade e no imaginário dos
maiores poetas, ficcionistas e pensadores portugueses desde o Romantismo” (Cf. Vítor Aguiar e Silva, “A
outorga do Prémio Morgado de Mateus a Vasco Graça Moura”, in Revista Brotéria, vol. 180, Fevereiro
2015, p. 176).
908
Cf. Eduardo Lourenço, O labirinto da saudade, loc. cit., p. 82. Ainda nesta linha de pensamento, O
ensaísta destaca “O projecto novo de problematizar a relação do escritor, ou mais genericamente, de cada
consciência individual, com a realidade específica e autónoma que é Portugal” (Cf. Idem, ibidem, p. 81).
909
Camões fora adquirindo consciência de que o seu tempo, com todos os avatares da decadência ética e
cultural que o poeta não se exime de apontar aos contemporâneos, se desviaria da épica – narrativa exemplar
que tendia a divinizar a gesta humana, individual e/ou colectiva –, já sem lugar num tempo em que o homem
começava burguesmente a viver bem com a ideia de que era um “ser caído” sem remissão (a corrosiva
paródia quixotesca não tardaria). A derrota de Camões e a sua exasperada lamentação maneirista, se, por um
lado, se encontra um pouco por toda a obra lírica, não deixa, por outro lado, de estar presente também na
epopeia, em lugares periféricos dela, é certo, e apesar do cânone genológico o não legitimar. E, releve-se,
quase sempre em contradição com passos do poema de exaltação épica dos heróis e dos seus feitos. Não
admira que o grande vate, logo após a inglória morte, rapidamente encontrasse todas as condições de
“salvação” e fosse elevado à categoria de autêntico herói, desses raros que, perante os tributos materiais e
efémeros do mundo, poderiam dizer: “Milhor é merecê-los sem os ter, / Que possuí-los sem os merecer” (Cf.
Luís de Camões, Os Lusíadas, IX, 93, loc. cit.).
273
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
solo em que se vive”910. Os tempos novos – onde o vício reina “sem esperança” –
não são sequer propícios ao amor à pátria, ao contrário das saudosas épocas
pretéritas, porque “inda se lembra, ouviu, sabe que teve / mas indo procurá-la a não
encontra”911. Sob o signo da inveja, derradeiro lexema que encerra Os Lusíadas que
alguns consideram enigmático912, mostra uma sociedade contaminada pelo
ressentimento; os versos acima transcritos redundam, assim, num complexo
exercício exegético sobre a realidade, visto que abarca uma variedade de aspectos
nefastos913. O verso final, em forma de pergunta retórica, ilustra uma ausência,
espelhada na metáfora da “escuridão vazia”, assim como concede um desfecho que
não é inequivocamente conclusivo, uma vez que exprime à saciedade o agónico
ressentimento de um sujeito que é vítima de um “degradado degredo”. O sujeito é,
deste modo, uma espécie de exilado sentimental, vagueante ostracizado, sem
entusiasmo nem sentido para o mundo envolvente, o que vinca o profundo dissídio
existente entre ele e a sociedade, testemunhada na mais profunda indiferença914;
talvez, por isso mesmo, nessa continuidade, Graça Moura dirá: “há quem me
recomende que descanse / e deixe de escrever da pátria ingrata” (PR2, 324).
O interesse por Camões, a interpretação da sua obra insere-a no momento mais
alto da criação poética, pela sua visão do tempo e do mundo. A evocação de
910
Nestas circunstâncias, o desterro não se define pela distância, mas antes pelo sentimento elegíaco de
perda, sendo Portugal o espaço da privação. Nesta linha, vide Vlademir Jankélévitch, L’irreversible et la
nostalgie, Paris, Ed. Flammarion, 1983.
911
Este sentimento disfórico é justificado por Vitalina Leal de Matos do seguinte modo: “É por esta razão
que Os Lusíadas continuam a interpelar-nos; revelam uma sensibilidade próxima da atual. São um misto de
entusiamo heroico e de melancolia desalentada. Um texto épico e antiépico. Uma afirmação de fé, com um
avesso de dúvida, de descrença, de interrogações. Como assegurar a fama e a recompensa dos heróis quando
delas se descrê? Este poema resulta bem mais da consciência maneirista da fragilidade, do que da segurança
confiante do Renascimento. Esta ambiguidade humana e a radical ambivalência das coisas têm muito a ver
com os tempos de crise que vivemos do que teria um poema serenamente otimista.” (Cf. Maria Vitalina Leal
de Matos, “Os Lusíadas”, in Aguiar e Silva (coord.), Dicionário de Camões, loc. cit., p. 497).
912
Graça Moura apresenta uma interpretação singular sobre o passo final de Os Lusíadas. Sustenta que
Camões, ao escrever aquela última palavra do derradeiro canto da sua epopeia, não teve qualquer espécie de
intenção pejorativa, como sustentam alguns autores. O lexema surge intrinsecamente ligada à invocação
inicial de Camões às Tágides, quando solicita um estilo grandíloquo e corrente. Deste modo, no desfecho da
epopeia, o poeta, num registo elevado, cantará de tal modo os feitos de D. Sebastião, que “Alexandre Magno
se poderá rever no rei português, sem precisar de invejar a sorte de Aquiles: sem à dita de Aquiles ter inveja”
(Cf. Vasco Graça Moura, “A desnecessidade da inveja”, in Diário de Notícias, 13 Agosto 2008, p. 8).
913
Almeida Garrett dá conta de tempos de ignomínia, quando Camões desabafa: “Voltei por fim à pátria /
Outra vez de esperança iludido” (Cf. Almeida Garrett, Camões, loc. cit., p. 93).
914
Oliveira Martins, nesta linha de pensamento, conclui: “É em Camões que encontramos a força que
procura desvendar a ‘fisionomia espiritual’ do povo e da pátria. Aí temos Portugal em toda a sua
complexidade – orgulho e indignação, maravilhoso pagão e maravilhoso cristão, sensualidade e ‘saudade do
céu’, grandeza e aviltante decadência” (Cf. Guilherme d’Oliveira Martins, Portugal: identidade e diferença.
Aventuras da memória, Lisboa, Ed. Gradiva, 2007, p. 94).
274
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
915
A este propósito, Eduardo Lourenço (Cf. “Vasco Graça Moura - um ensaísmo em arquipélago”, in José
da Cruz Santos (org.), Modo mudando, loc. cit., p. 41) afirma sobre Graça Moura: “É na sua poesia, em
particular naquela onde se cruzam, num subtil xadrez de representações históricas, de mitos, de fait divers
elevados à dignidade corrosiva da epopeia melancólica, os fantasmas da nossa Cultura na hora da sua última
metamorfose”.
916
João Barrento, A palavra transversal. Literatura e ideias no século XX, Lisboa, Ed. Cotovia, 1996, p. 71.
917
Sobre esta matéria, Eduardo Lourenço considera “O sentimento profundo da fragilidade nacional […] é
uma constante da mitologia, não só histórico-política, mas também cultural portuguesa”. Esta vetusta
acepção, também cultivada por Camões, inscreve-se, sem dúvida, nos versos de Graça Moura (Cf. Eduardo
Lourenço, “Portugal como destino. Dramaturgia cultural portuguesa”, in Portugal como destino seguido de
Mitologia da saudade, Lisboa, Ed. Gradiva, 42011, p. 12).
918
Este fascínio, que marcou sempre o pensamento do autor de semana inglesa, está presente na contracapa
do opúsculo de José Augusto Seabra, Portugal face à Europa, Porto, Ed. Athena, 1997. Aí é anunciado um
estudo de Graça Moura em parceria com Luís Neiva Santos, intitulado O caminho da Europa - a tutela
internacional dos direitos do homem na Europa. Não obstante, a obra nunca terá sido editada, uma vez que
não consta dos acervos das principais bibliotecas nacionais.
919
Ao longo dos séculos, complexo diálogo de Portugal, no contexto ibérico, com a Europa foi alvo de um
aturado estudo de Eduardo Lourenço, que realça: “A ‘nossa identidade’ dentro da Europa não pode
prescindir dessa experiência. Faz parte da nossa memória e nós dela” (Cf. Eduardo Lourenço, Nós e a
Europa ou as duas razões, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1990, p. 65).
275
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
920
Também na esfera editorial, em 1980, quando Graça Moura era administrador da Imprensa Nacional-
Casa da Moeda, foram publicados dois estudos fundamentais para compreender a relação de Portugal com a
Europa: Eduardo Lourenço, Nós e a Europa ou das duas razões, loc. cit., e Jorge Borges de Macedo,
Portugal-Europa. Para além da circunstância, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1980.
921
Vasco Graça Moura, O poema sobre o destino de Lisboa de Voltaire, Lisboa, Ed. Alêtheia, 2012, p. 7.
922
Da bibliografia de Vasco Graça Moura sobre esta matéria, vide A identidade cultural europeia, Lisboa,
Ed. Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2013 e Anotações europeias, Lisboa, Ed. Bertrand, 2008. Este
volume reúne um número significativo de crónicas semanais de Vasco Graça Moura sobre a Europa,
publicadas na sua coluna do Diário de Notícias, bem como diversas intervenções proferidas no Parlamento
Europeu. Editados posteriormente no referido jornal destacam-se ainda os seguintes títulos consagrados à
política europeia: “A seguir à catástrofe” (16 Março 2011, p. 54 ); “Ceci tuera cela” (21 setembro 2011,
p. 54); “A herança comum dos europeus” (25 Janeiro 2012, p. 54); “Sobre alguns lugares sagrados” (28
Março 2012, p. 54); “A Europa e o caos” (6 Fevereiro 2013, p. 54); “A Europa e o Papa” (6 Março 2013, p.
62); “As preocupações” (7 Agosto 2013, p. 54); “A identidade europeia na europa do pós-guerra”(11
Setembro 2013, p. 54); “Ítaca”, (30 Outubro 2013, p. 54 ); “Imigração e crise europeia” (6 Novembro 2013,
p. 54).
923
Cf., a título de exemplo, Nuno Júdice, “Fernando Pessoa e a Europa”, in Colóquio-Letras, nº 175,
Setembro 2010, pp. 45-52; Urbano Tavares Rodrigues, “David Mourão-Ferreira e a Europa: um esteta do
amor e da morte”, in Colóquio-Letras, nº 145/146, Julho 1997, pp. 120-124; Almeida Garrett, Portugal na
Balança da Europa, Lisboa, Livros Horizonte, 2005; Adolfo Casais Monteiro, Europa, Maia, Ed. Nova
Renascença, 1991; David Mourão-Ferreira, “Imagens da Poesia Europeia I e II”, in Revista Colóquio-Letras,
nº 166/9, Janeiro-Junho 2004.
276
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
“Acho que tudo o que escrevo tem sempre alguma coisa a ver com a Europa. E por isso, se não
fosse desmedida a jactância, gostaria de ser recordado nos termos em que Faria e Sousa, na sua
Europa Portuguesa, recordam Camões em apenas quatro palavras: el poeta de Europa.”924
Porém, à alusão espacial “da forte Europa belicosa”929, associa-se uma realidade
também política e espiritual, sugerida pela alteridade “Das gentes enojosas de
Turquia”, uma das principais ameaças para a estabilidade europeia, enquanto
civilização cristã930. Como sustenta Graça Moura, esta perspectiva ideológica,
retomada noutros passos da epopeia, tem nexos intertextuais explícitos com o
Esmeraldo de situ orbis de Duarte Pacheco Pereira e com a História do
924
Miguel Real et alii, “Vasco Graça Moura”, in Revista Letras com Vida-Literatura, cultura e arte, nº 2,
2º semestre, 2010, p. 149.
925
Isabel Pires de Lima, “Entre dois mundos: referências clássicas na poesia de Graça Moura”, in José da
Cruz Santos (org.), op. cit., p. 87.
926
Graça Moura, a propósito da produção literária de David Mourão-Ferreira coloca a tónica na vocação
europeia do poeta, o que se aplica indubitavelmente ao seu próprio pensamento, como se observa nesta
citação do autor de Amor feliz: “Se é possível a conservação de um regnum Europae ou se, pelo contrário,
teremos de eternamente resignar à existência de múltiplos regna Europae; saber, em suma se a unidade será
possível a despeito da natural diversidade (melhor: com o respeito pela natural diversidade) ou se não pode
extirpar-se, do inconsciente europeu, um pertinaz fermento de desagregação” (Apud Vasco Graça Moura, “O
amor e o ocidente na obra de David Mourão-Ferreira”, in Revista Colóquio Letras, nº 37, Maio 1977, p. 13).
927
Sebastião Pinho, em interessante estudo, analisa o carácter visualista da epopeia camoniana e as variadas
fórmulas enunciativas que plasmam a cartografia figurativa e a representação antropomórfica da Europa
(Cf. Sebastião Tavares de Pinho, “A descrição camoniana da Europa e a cartográfica ginecomórfica”, in
Decalogia Camoniana, Coimbra, Centro Interuniversitário de Estudos Camonianos, 2007, pp. 133-170).
928
Luís de Camões, Os Lusíadas, I, 64, loc. cit.
929
Na epopeia camoniana, ocorrem várias fórmulas enunciativas do velho continente, veja-se a título de
exemplo: soberba Europa ou Europa cristã (Cf. António Gerardo da Cunha, Índice analítico do vocabulário
de Os Lusíadas, loc. cit., p. 79).
930
Com efeito, Os Lusíadas não se fecham sobre si mesmo, antes se abrem numa perspectiva global que lhe
confere um sentido universal, o que constitui, no dizer de Vitalina Leal de Matos, um sinal distintivo de
matéria épica ( Maria Vitalina Leal de Matos, Tópicos para a leitura de Os Lusíadas, loc. cit., p. 61).
277
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
Em uma carta de inverno, Graça Moura, nesta linha, traz à colação as referidas
interrogações plasmadas na epopeia camoniana sobre a coincidência histórica e
religiosa934, visto que, no seu dizer, o texto “utiliza a queda de Constantinopla e de
um quadro de Piero della Francesca para elaborar o que pretende ser
essencialmente uma metáfora complexa da perturbante identidade europeia”
(PR2,102-103). Assim, o extenso poema meditativo – contém 590 versos – revisita,
a um tempo, história, cultura e valores civilizacionais, marcas indeléveis da criação
de Graça Moura935, bem como o incontornável marco de viragem histórica
apresenta eixos interpretativos que possibilitam descortinar um percurso literário
em constante diálogo com a realidade ocidental936.
931
Vasco Graça Moura, “Camões e uma concepção da Europa”, in Revista Oceanos, nº 16, Dezembro, 1993,
p. 59.
932
A propósito desta concordância, Martim de Albuquerque designa a Europa como “respublica christiana”
(Cf. Martim de Albuquerque, A ideia da Europa, Lisboa, Ed. Verbo, 2014, p. 39).
933
Luís de Camões, Os Lusíadas, X, 92, loc. cit.
934
Camões, com efeito, reconduz a Europa à ideia de cristandade, quando lamenta a queda de
Constantinopla, em 1453, e o destino de todas as religiões subjugadas pelo império otomano: “Gregos,
Traces, Arménios, Georgianos, / Bradando-vos estão que o povo bruto /Lhe obriga os caros filhos aos
profanos / Preceptos do Alcorão” (Cf. Idem, ibidem, VII, 13, op. cit.). Segundo Oliveira Martins, este trecho
constitui um incentivo camoniano, com o propósito de banir os turcos da Europa (Cf. Oliveira Martins,
Camões. Os Lusíadas e a Renascença portuguesa, Lisboa, Guimarães editores, 41986, p. 197. Vide também
José Augusto Seabra, Portugal face à europa. Um horizonte cultural, Porto, 1977, pp. 16-17.
935
Quando o autor recebeu, em 1999, o Grande Prémio de Poesia APE-CTT as suas palavras iniciais sobre
uma carta no inverno, a obra galardoada, foram as seguintes: “No Janeiro muito invernoso de 1997, movido
à reflexão por circunstâncias ligadas ao que se ia passando no mundo, muito em especial nos Balcãs e em
África, pus a mim mesmo a questão de como a consciência da identidade europeia não podia deixar de sofrer
perturbações inquietantes e de que essas perturbações tinham por certo razões histórias e culturais” (Cf.
Vasco Graça Moura, “uma carta no inverno”, in Discursos vários poéticos, loc. cit., p. 511). Como já foi
referido anteriormente, registe-se ainda que esta obra também foi distinguida, em 2007, com o prémio
francês de poesia Max Jacob.
936
Graça Moura apresenta pontos de contacto com Luís de Camões (Os Lusíadas, VII, 13, loc. cit.), que
lamenta o destino da cidade de Constantino e dos povos subjugados pelos turcos; refere-se ainda aos feitos
desumanos que obriga os gregos, trácios, arménios e georgianos a educar os seus filhos nos preceitos do
Alcorão. Veja-se a este propósito, Martim de Albuquerque, A ideia de Europa no pensamento português,
Lisboa, Ed. Verbo, 2014, p. 52; José Augusto Seabra, Portugal face à Europa (Um horizonte cultural),
278
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
Porto, Ed. Athena, 1977, pp. 16-17 e Oliveira Martins, Camões. Os Lusíadas e a Renascença em Portugal,
loc. cit., pp. 197-198.
937
Camões, sensivelmente um século depois, apela ainda às nações cristãs que lutavam entre si, para se unir
contra o perigo otomano (Cf. Luís de Camões, Os Lusíadas, VII, 4-14).
938
O topos de crise europeia percorre a literatura nacional, como se verifica em Eça de Queirós: “A ‘crise’ é
a condição quase regular da Europa. E raro se tem apresentado o momento em que um homem, derramando
os olhos em redor, não julgue ver a máquina a desconjuntar-se, e tudo perecendo, mesmo o que é
imperecível - a virtude e o espírito” (Cf. Eça de Queirós, Notas contemporâneas, Lisboa, Ed. Livros do
Brasil, 6ª ed., s./d., pp. 149-150).
939
Sobre a etimologia do lexema Europa, vide Maria Helena Rocha Pereira, “Europa: os enigmas de um
nome”, in Estudos sobre Roma - A Europa e o legado clássico, Coimbra, Fundação Calouste Gulbenkian-
- Imprensa da Universidade de Coimbra, 2015, pp. 147-153.
940
Em consonância com este ideal, Eduardo Lourenço conclui: “Não haverá Europa sem a lembrança deste
longo passado de dilaceramento social e cultural (Cf. Eduardo Lourenço, Nós e a Europa ou das duas
razões, loc. cit., p. 64).
279
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
941
Eduardo Lourenço, “Vasco Graça Moura - um ensaísmo em arquipélago”, in José de Cruz Santos (org.),
Modo mudando. Sete ensaios sobre a obra de Vasco Graça Moura, loc. cit., p. 41.
942
Esta escolha selectiva de Graça Moura, vem na esteira do pensamento de Eduardo Lourenço, que
salienta: “A visão mitológica antecede a história” (Cf. Eduardo Lourenço, Portugal como destino, loc. cit. p.
14).
943
A fortuna do mito da Europa deriva, em boa parte, da representação artística do rapto da jovem por Zeus.
Graça Moura faz uma excelente súmula desse imaginário em “A Europa, José Rodrigues e o mais que se
verá”, in Revista Egoísta, Junho 2004, pp. 78-83.
944
Eduardo Lourenço, Nós e a Europa ou as duas razões, loc. cit., p. 87.
945
A propósito da epopeia camoniana, Aurelio Roncaglia salienta a dimensão global do texto: “Os Lusíadas
celebram antes de tudo uma concepção da vida que não pertence especificamente à nação portuguesa, mas à
história europeia, dentro da qual constitui um momento de altíssima tensão ideal” (Cf. Aurelio Roncaglia,
“Os Lusíadas: ut pictura poesis”, in Arquivos do Centro Cultural Português, vol. IX, 1975, p. 281).
946
Luís de Camões, Os Lusíadas, VII, 9.
947
Eduardo Lourenço (Cf. “O mundo de Vasco. Entre a epopeia e a melancolia”, in JL. Jornal de letras,
artes e ideias, 19 Fevereiro 2014, p. 13) não fica indiferente à importância de que se reveste o sentido
europeu de Camões no pensamento de Graça Moura: “Europeu convicto e europeísta, daqueles que não lêem
280
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
textual, visto que entra na esfera civilizacional: o confronto da Europa com o seu
imaginário e a sua história, num apelo à união, contém o intuito de defender a
Cristandade, contributo crucial de uma ideia da Europa948. Segundo a tradição
mitológica, Cadmo949, irmão de Europa, foi em busca da jovem raptada por Zeus
metamorfoseado em touro. Junto à Fonte de Ares, matou um dragão, que tinha
devorado os seus companheiros. Então, a deusa Atena aconselhou-o a espalhar os
dentes do dragão dos quais saíram guerreiros, depois Cadmo arremessou, sem o
observarem, uma pedra no meio deles, vindo a desencadear uma violenta disputa,
que provocou uma continuada dissensão entre povos950. Assim, a poesia de Camões
remete explicitamente para contextos sociais, políticos, espirituais e éticos, que
desenham a desunião da Europa951, responsabilidade dos povos cristãos no decurso
dramático dos acontecimentos.
Neste enquadramento, a epopeia camoniana não se fecha sobre si mesmo, antes
se abre numa perspectiva global, conferindo-lhe um sentido universal, como se
observa no exemplo oferecido pelo seguinte passo:
Portugal numa perspetiva complexada em relação à Europa, mas de dentro dela, em que primeiro do que
ninguém, camonianamente, nos incluímos. […] VGM está, em todos os planos, na Europa como todos
devíamos estar”.
948
Sobre o alcance universal do Épico, Graça Moura sustenta: “Camões foi com certeza o poeta de um
sistema de valores que eram os da cultura e civilização europeias, com plena consciência da superioridade
efectiva que eles, na sua época, representavam em relação aos das demais zonas do globo. A primeira da
universalidade de Camões está em ele ter sabido ser um poeta europeu, quer pelo sentido temporal da
revalorização, utilização e criação a partir do património trans-secular da cultura ao seu alcance (e essa era a
cultura europeia ocidental acumulada, no sentido ilustrado do termo), quer pelo sentido espacial, geo-
político se quisermos, de diferenciação do nosso continente como área de solidariedade específica,
imperativa, e também cultural e civilizacional, entre as partes que a compunham” (Cf. Vasco Graça Moura,
“Camões, nós e a unidade europeia”, in Os penhascos e a serpente, loc. cit., p. 16).
949
Pierre Grimal, “Cadmo”, in Dicionário da Mitologia Grega e Romana, Lisboa, Ed. Difel, 2009, pp. 67-
-68.
950
Nesta linha, de modo assertivo, Eduardo Lourenço (Cf. Nós e a Europa ou as duas razões, loc. cit., p.
161), afirma: “Enquanto realidade histórica a Europa, ou antes, o conjunto dos povos e culturas diversos que
a constituíram no passado e a constituem no presente, foi muitas vezes ameaçada do exterior e ela mesma
constituiu uma ameaça para outros continentes e, até, para o mundo inteiro. De uma certa maneira e como é
óbvio, essas ameaças (persas, turcos, tártaros, árabes) forjaram a sua identidade. No fim de contas, o único
inimigo que os europeus sempre tiveram foram eles mesmos”.
951
Sobre este assunto, Graça Moura destaca na obra camoniana “Um sentido geográfico, político e
agudamente crítico da Europa enquanto Cristandade, sujeita a dissensões e a perigos de vária ordem”
(Cf. Vasco Graça Moura, A identidade cultural europeia, loc. cit., p. 36).
281
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
952
Luís de Camões, Os Lusíadas, VII, 4-5, loc. cit. Note-se que Camões, consciente das circunstâncias da
tomada de Constantinopla, evoca a sujeição religiosa de muitos povos: “Gregos, Traces, Arménios,
Georgianos” (Cf. Idem, ibidem, VII, 13).
953
Vitalina Leal de Matos considera neste passo a “grande força oratória: construído sobre uma estrutura
antitética cerrada” pelo contraste da atitude dos portugueses, que obedece a Roma, com os outros povos
europeus (Cf. Maria Vitalina Leal de Matos, Tópicos para a leitura de Os Lusíadas, loc. cit., p. 62).
954
Luís de Camões, Os Lusíadas, VII, 6, loc. cit.
955
Idem, ibidem, VII, 8.
956
Cf. sobre este assunto, Maria Helena Rocha Pereira, “Les fondements classiques de l’idée européenne”,
in Estudos sobre Roma-A europa e o legado clássico, loc. cit., pp. 179-192.
282
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
Ou ainda:
Há, por isso, uma aguda tensão de ressonância histórica, onde o segmento “o
império estava perdido, a europa divorciada” mostra o declínio do continente e as
divisões que o assolam. Tal inquietação é reforçada no célebre verso camoniano
“transforma-se o amador / na coisa amada”957, testemunho da prática intertextual da
poesia de Graça Moura958. Em crescendo, as ressonâncias do autor de Os Lusíadas
transparecem ainda em “serve só / para fazer versos mais deleitosos”959, a lembrar
o célebre passo da deusa Tétis, símbolo inequívoco da primazia do fingimento, que,
representa, neste contexto, uma severa crítica aos centros de decisão alheados das
necessidades concretas para o desenvolvimento do espaço europeu960.
957
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 126.
958
O diálogo com outras vozes, que atravessa toda a obra de Graça Moura, é desde logo estabelecido na
epígrafe de uma carta de inverno através de versos de “Sailing to Byzantium”, poema de W.H.Yates:
“Consume my heart away; sick with desire / And fastened to a dying animal // It knows not what it is”.
959
Luís de Camões, Os Lusíadas, X, 82, loc. cit.
960
Em nota de apresentação a Anotações europeias, Graça Moura salienta: “Enfim, a Europa é uma
construção permanente e como tal, não podem deixar de ter lugar nela as vozes críticas, sobretudo quando
são também as de quem é convicta e profundamente europeu” (Cf. Vasco Graça Moura, Anotações
europeias, loc. cit., p. 9).
283
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
961
Esta sinédoque está em consonância com o pensamento de Graça Moura sobre este período, quando frisa:
“Pode dizer-se que os descobrimentos foram um momento da história europeia que tornou também possível
a expansão de outras nações europeias, mas que coube a Portugal ser a vanguarda” (Cf. Vasco Graça Moura,
“Identidade nacional, fim do império e destino europeu”, in Lusitana praia, loc. cit., p. 12).
962
Cf. J. V. Pina Martins, “O Humanismo italiano”, in Cultura italiana, Lisboa, Ed. Verbo, 1971, pp. 153-
-170.
963
Vasco Graça Moura, “Vasco da Gama entre Poggio Bracciolini e Camões”, in Seabra Pereira e Manuel
Ferro (coord.), Actas da VI Reunião Internacional de Camonistas, Seabra Pereira e Manuel Ferro (coord.),
loc. cit., pp. 513-526.
964
Gomes Eanes de Zurara, Crónica de Guiné, introd., notas, novas considerações e glossário de José de
Bragança, Porto, Ed. Civilização, 1994, pp. 123-124.
284
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
965
Luís de Camões, Os Lusíadas, IV, 94-104, loc. cit.
285
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
“Acreditar na Europa, como eu pessoalmente acredito, não é ignorar os seus problemas. É ter
consciência deles, lucidez e informação que permita enquadrá-los e empenhamento, ao menos
empenhamento para resolvê-los.”967
966
Pinto do Amaral nesta linha destaca que nos versos do autor de Concerto campestre existe uma “fluidez
das fronteiras entre o passado e o presente, acarretando uma noção mais volátil e menos linear do tempo”
(Cf. Fernando Pinto do Amaral, “A poesia neomaneirista de Vasco Graça Moura”, in Vasco Graça Moura,
Poesia 1963-1995, loc. cit., p. 8).
967
Cf. Vasco Graça Moura, “uma carta no inverno”, in Discursos vários poéticos, loc. cit., p. 514.
968
Miguel Baptista Pereira (“Europa e filosofia”, in Revista Filosófica de Coimbra, nº 4, vol. 2, 1993,
p. 270) considera precisamente a dimensão transcendental o principal traço da Europa: “A essência da
europa não é traçada pelos limites geográficos de uma pequena península do continente eurásico, mas por
um ‘princípio espiritual’, que habita neste espaço e, na Antiguidade, abrangeu a cultura greco-romana, na
Idade Média coincidiu com os limites da cristandade e na Modernidade foi a unidade espiritual”.
969
Nesta linha, Graça Moura sublinha a cosmovisão inquietante, de cariz maneirista, coordenada fulcral na
criação camoniana: “E, ontem como hoje, trata-se de um mundo em crise: a soberba Europa aludida em II,
80 e descrita a partir de III, 6 e segs., encontrava-se no estado deplorável referido em VII, 4 e segs., a braços
com uma crise internacional, que hoje diríamos de identidade geo-política, e múltiplas crises internas; não
obstante, é dado ao Gama contemplar o seu significativo valor ideal, em X, 92: Vês Europa cristã, mais alta
e clara /Que as outras em polícia e fortaleza” (Cf. Vasco Graça Moura, “Camões, nós e a unidade europeia”,
in Os penhascos e a serpente, loc. cit., p. 19).
970
João Barrento, Umbrais. O pequeno livro dos prefácios, Lisboa, Ed. Cotovia, 2000, p. 130.
286
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
“A Europa nasceu de uma noção de cristandade, a que corresponde uma unidade territorial
grande, e de vectores que tinham vocação imperial ou espiritual-expansiva. Daí surge um
continente em que se sobrepõe uma matriz civilizacional/perímetro geográfico, que entra em fase
crítica a partir de certa altura.” 971
971
“Ana Marques Gastão entrevista para o Diário de Notícias Vasco Graça Moura”, in José de Cruz Santos
(org.), Modo mudando. Sete ensaios sobre a obra de Vasco Graça Moura, Porto, Ed. Campo das Letras,
2000, p. 19. Esta ideia volta a ser reiterada: “Na Europa, há valores religiosos, políticos e filosóficos que
importa preservar. Não digo que todos devam ser cristãos. Eu, pessoalmente, não sou crente, mas os
princípios da religião são fundamentais” (Cf. “Vasco Graça Moura: A Portugal está a faltar muita poesia”
(entrevista de José Carlos Carvalho), in Revista Visão, 27 Abril 2014, p. 92).
972
De modo similar, Vasco Graça Moura, volta, em Os Lusíadas para gente nova (loc. cit., p. 101), a
colocar a tónica da infinita e complexa diversidade europeia, embora, e não obstante, viva sob a égide da
Cristandade: “A Europa que Camões nos descreveu / era uma europa falha de unidade / Em guerras e
discórdias ela cresceu / Embora pertencesse à Cristandade”.
973
Sobre este assunto Graça Moura observa: “Este problema das relações da escrita com o real e com outras
formas de representação dele, nomeadamente pela imagem, preocupa-me há muito tempo. A ele tenho
dedicado textos ensaísticos e poemas” (Cf. Vasco Graça Moura, “A escrita e o real”, in JL. Jornal de Letras,
Artes e Ideias, 17 Agosto 2005, p. 17).
974
George Steiner (Cf. A ideia da Europa, Lisboa, Ed. Gradiva, 42007, p. 50) sintetiza os caminhos do velho
continente do seguinte modo, revelando uma estreita aproximação ao pensamento de Graça Moura: “A
‘ideia de Europa’ está entretecida das doutrinas e da história da Cristandade ocidental. A nossa arquitectura,
arte, música, literatura e pensamento filosófico encontram-se saturados de referências e valores cristãos”.
975
Cf. Carlo Ginzburg, Investigando Piero, S. Paulo, Ed. Cosac Naify, 2010 e Roberto Longhi, Piero della
Francesca, S. Paulo, Ed. Cosac Naify, 2007.
287
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
O passo transcrito tem na sua génese uma sugestiva dimensão sensorial, que
demarca o núcleo preponderante do sentir do sujeito poético979. Na procura de
“uma medida humana de representação” (PR2, 96), cantada pelo poeta, acrescenta
976
Sobre o processo ecfrástico na sua poesia, Graça Moura destaca que o referido quadro é “tocado pelo
mistério e pela indecifrabilidade. O Pilatos que se senta ao fundo, à esquerda, será mesmo Pilatos ou é o
imperador João VIII Paleólogo, de Constantinopla, de acordo com a medalha de Pisanello? O jovem
representado à direita é alguém que morreu? Que tipo de funda inquietação é contrabalançada pela serena
geometria dominante? […]. Trata-se, pois, nesse caso, de uma ecfrase muito complexa” (Cf. Vasco Graça
Moura, “O que farei com esta ecfrase?”, in Discursos vários poéticos, loc. cit., p. 492).
977
O caleidoscópio cultural, marca distintiva na própria história da Europa, é descrito de modo pertinente e
lúcido do seguinte modo: “Quando falamos de identidade cultural europeia, estamos a utilizar estes
conceitos em múltiplas direcções e, do mesmo passo a problematizá-los. Essa identidade redunda de um
conjunto plural e interativo de diversidades” (Cf. Vasco Graça Moura, A identidade cultural europeia, loc.
cit., p. 20). Neste prisma, Miguel Pereira Baptista sintetiza, numa sugestiva antonomásia, a essência da
Europa: “Sem Abraão e Ulisses não podemos repensar a Europa, sem regresso às raízes não há promessa,
sem o passado não há esperança, a não ser numa cisão gnóstica irreparável da história” (Cf. Miguel Pereira
Baptista, “Europa e filosofia”, in Revista Filosófica de Coimbra, nº 4, 2ª série, 1993, p. 293-301).
978
Segundo Graça Moura, neste quadro, o facto de Piero ser coevo do imperador e a perspectiva rigorosa da
perspectiva permitem uma representação inovadora da realidade, o que revela uma diferença europeia em
relação a outras civilizações (Cf. Ana Marques Gastão, “Entrevista para o Diário de Notícias Vasco Graça
Moura”, in José de Cruz Santos (org.), op. cit., p. 17).
979
Vasco Graça Moura (Cf. “Arte e fé”, in Diário de Notícias, 23 Outubro 2013, p. 54) considera
“enigmática e cerebral a Flagelação de Urbino”, bem como revela a sua preferência estética: “Nas relações
entre arte e fé, estes casos interessam-me bem mais do que as meras cenas de martírio religioso de que a
pintura flamenga dá tantos exemplos torturantes, com brasas, degolações, setas, rodas de Santa Catarina,
etc., que, a meu ver, traduzem menos uma fé do que um exercício oficinal”.
288
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
à capacidade descritiva uma sugestiva dimensão reflexiva, uma vez que o sujeito
poético, a partir de uma figuração contextualizada, decorrente de uma “tentação
ecfrástica”, no dizer de M. Krieger980, coloca reiteradas interrogações sobre a
história europeia:
980
Murray Krieger, “Imagem e palavra, espaço e tempo: a exaltação - e a exasperação - da ekphrasis
enquanto assunto”, in Kelly Basílio (coord.), Concerto das artes, loc. cit., p. 143.
981
Sobre processos narrativos em Graça Moura, vide João Barrento, “Palimpsestos do tempo. O paradigma
da narratividade na poesia dos anos oitenta”, in A palavra transversal. Literatura e ideias do século XX,
Lisboa, loc.cit., pp. 69-78 e Ana Margarida Simões Falcão Seixas, Novos shâmanes. Um contributo para o
estudo da narratividade na poesia portuguesa mais recente, Funchal, Universidade da Madeira, 2003,
pp. 351-364.
982
Nesta linha, Bernard Guetta declarou com particular pertinência a importância de que se revestem
determinados acontecimentos que marcaram o destino do velho continente: “Não citar a herança cristã da
Europa significa negar uma evidência histórica” (Apud Maria Helena Rocha Pereira, “Da necessidade do
preâmbulo da constituição europeia”, in Estudos sobre Roma-A Europa e o legado clássico, loc. cit., p. 223).
983
Esta atitude vem no seguimento do pensamento de George Steiner, que, na análise da estreita relação
entre espiritualidade e arte, considera: “A ‘ideia de Europa’ está entretecida das doutrinas e da história da
Cristandade ocidental. A nossa arquitectura, arte, música, literatura e pensamento filosófico encontram-se
saturados de referências de valores cristãos” (Cf. George Steiner, Uma ideia de Europa, loc. cit., p. 50).
289
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
“A exploração de alguns aspectos nucleares desse quadro, conjugada com o resto, permitiu-me
avançar mais decididamente para uma certa conjugação operada entre geometria e melancolia,
entre a limpidez da forma e a meditação saturniana, que podia caracterizar a Europa e que, hoje,
até talvez tenha sido... profética.”987
984
Note-se que a representação de Deus, dos santos e do homem através de imagens foi capital para o
desenvolvimento e fortuna da arte europeia, ao contrário das religiões judaica e muçulmana.
985
Carlota Miranda Urbano, “Martírio e identidade no advento da Europa moderna. Narrativa, memória
colectiva e consciência europeia”, in Nair de Nazaré Castro Soares; Santiago López Moreda (coord.) Génese
e consolidação da ideia de Europa, vol. IV, Coimbra, Imprensa da Universidade, 2009, p. 418. Sobre a
representação literária do modelo de mártir, vide Carlota Miranda Urbano, “Tipologias literárias do martírio
na hagiografia: as origens”, in separata da Revista Theologica, II série, vol. XLI, fasc. 2, 2006, pp. 331-358.
986
Esta praxis metatextual ganha particular força na definição de processo de escrita. De facto, em paralelo
com Jorge de Sena, as notas de roda-pé, paratextos, citações ou remissões para outros livros indicam
motivações de um deliberado estatuto autoral (Cf. Jorge Fazenda Lourenço, A poesia de Jorge de Sena.
Testemunho, metamorfose e peregrinação, loc. cit., pp. 271 sqq).
987
Vasco Graça Moura, “O fazer através e por cima das fronteiras”, in Ana Gabriela Macedo et alii (org.),
XIII Colóquio de Outono - Estética, cultura material e diálogos intersemióticos, Braga, Edições do Centro
de Estudos Humanísticos da Universidade do Minho, p. 85.
988
Sobre este assunto, Eunice Ribeiro, “Sob o visível: empernamentos e linhas de fuga na poesia de VGM”,
in Isabel Ponce de Leão e Eduardo Paz Barroso (org.), op. cit., p. 45.
989
No percurso, por vezes sinuoso, da Europa, Martim de Albuquerque observa: “O mito greco-romano da
Europa, ao fundir-se com o mito bíblico-cristão, permitiu que ao lado de um puro conceito geográfico se
desenhasse um conceito ético, valorativo, que perdura ainda modernamente na ideia de que a Europa
representa um estádio superior resultante da convergência da cultura clássica e da cultura cristã” (Cf. Martim
de Albuquerque, “Primeiro ensaio sobre a história da ‘ideia de Europa’ no pensamento português”, in
290
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
“a corrente
de consciência desaguando em literatura, a sôfrega criação
de mais realidade, enquanto cristo era flagelado,
amarrado à coluna”. (PR1, 570)
Com efeito, este passo valoriza a enunciação lírica, inscrita na esfera da “poesia
figurativa”, expressão cunhada por Garcia Martín990 e característica indelével de
Graça Moura. Com efeito, através da ecfrasis, exercício peculiar da sua recriação
poética ao serviço da própria construção verbal, o autor revela uma singular
vocação representativa991, “enquanto cristo era flagelado, / amarrado à coluna”. A
reiteração enunciada afirma-se, pois, através de uma entidade espiritual, bem como
de uma realidade cultural, forma singular do pensamento europeu. Como
sublinham os versos de Graça Moura, a estreita relação entre espiritualidade e arte
está na base da construção do continente europeu, fundamento indelével da sua
identidade.
Porém, neste tributo à sugestiva iconografia e perfeição artística de Piero della
Francesca, o sujeito poético não consegue concretizar a expressão verbal da
pintura, embora a procure incessantemente:
Estudos de Cultura portuguesa, vol. I, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1984, pp. 249-350,
especialmente pp. 278 sqq).
990
José Luis García Martín, La poesía figurativa. Cronica parcial de quinze años de poesia española,
Sevilha, Ed. Renacimiento, 1992, p. 211.
991
Eunice Ribeiro, “Sem título. Sombras e desfigurações: de Henrique Pousão a Vasco Graça Moura, in
Carlos Mendes de Sousa e Rita Patrício (org.), Largo mundo aluminado. Estudos de homenagem a Vítor
Manuel Aguiar e Silva, vol. I, Braga, Centro de Estudos Humanísticos da Universidade do Minho, 2004,
pp. 275-286.
291
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
992
Neste contexto interpretativo, Graça Moura afirma: “Piero, como inventor da perspectiva tridimensional,
é uma das figuras que mais contribuíram para essa nota absolutamente específica da nossa civilização (mais
nenhuma inventou a perspectiva simuladora da tridimensionalidade na representação do espaço). A
Flagelação é uma das obras em que se torna mais nítida essa invenção” (Cf. Vasco Graça Moura, “O que
farei com esta ecfrase?”, in Discursos vários poéticos, loc. cit., p. 492).
993
Luís de Camões, Os Lusíadas, III, 20, loc. cit.
994
Idem, ibidem, III, 6.
995
Fernando Pessoa “A Europa jaz, posta nos cotovelos: / De Oriente a Ocidente jaz”, in Mensagem, Lisboa,
Ed. Ática-Babel, 2010, p. 19.
996
Sob o signo da transgressão em demanda da originalidade criativa, Araújo Pereira nota que no poema
decassílabo (PR2, 446), o segmento “todavia fodido” conjuga dois signos de registo diferente, o que confere
significativa singularidade ao texto de Graça Moura (Ricardo Araújo Pereira, A doença, o sofrimento e a
morte entram num bar. Uma espécie de manual de escrita humorística, Ed. Tinta da China, 2016, p. 48).
292
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
997
Com particular acuidade, Graça Moura não ignora essa faceta: “O espaço europeu criou condições para
uma profunda reflexão do homem sobre si mesmo e sobre o mundo. Arte e filosofia, nesse aspecto,
partilham o terreno, muito embora com processos, métodos e objectivos diferentes. Essa propensão para
reflectir sobre si mesmo e para se pôr em questão acabou por se propagar à mentalidade do homem europeu”
(Vasco Graça Moura, A identidade cultural europeia, loc. cit., p. 62).
998
Lucien Febvre (A Europa. Génese de uma civilização, Lisboa, Ed. Teorema, 2001 p. 133) sublinha que a
Europa, mais do que uma noção geográfica concreta, distingue-se na sua dimensão cultural.
999
Vasco Graça Moura, A identidade cultural europeia, loc. cit., p. 51.
293
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
Os dois versos finais deste trecho são de Gunnar Ekelöf, poeta sueco (1907-
-1968) que Graça Moura traduziu em parceria com Ana Hartherly. A tradução do
passo citado, extraídos do poema Coro, é da responsabilidade da autora de 463
Tisanas, que vgm deliberadamente faz questão de citar na legitimação do seu ponto
de vista1002. Esta comunhão tem o fito de legitimar, em clave universalista, um
pensamento crítico comum sobre a Europa. Por outro lado, a notável metáfora da
“espiral vertiginosa” com uma carga conotativa disfórica sobre a realidade
europeia, foi aproveitada por João Barrento para intitular um importante conjunto
de textos críticos1003, prova do fascínio do autor pela poesia de Graça Moura.
O pendor sombrio do futuro europeu surge ainda em soneto pardacento de modo
contundente:
1000
A este respeito, Graça Moura crítica veementemente as actuais directivas traçadas por Bruxelas: “O
sistema não é de freios e contrapesos institucionais ao nível da Europa. É antes uma teia obscura de
interacções e condicionamentos políticos por via de uma intergovernamentalização do todo ditada pelos
mais fortes e acolitada pela coreografia impune dos euroburocratas” (Cf. idem, ibidem, p. 18).
1001
Uma perspectiva similar é preconizado George Steiner (Uma ideia de Europa, loc. cit., p. 50), quando
sustenta: “A Europa morrerá efectivamente, se não lutar pelas suas línguas, tradições locais e autonomia
sociais”.
1002
Gunnar Ekelöf, Antologia poética, tradução de Ana Hatherly e Vasco Graça Moura, Lisboa, Ed. Quetzal,
1992, p. 17.
1003
João Barrento, Espiral vertiginosa. Ensaios sobre a cultura contemporânea, Lisboa, Ed. Cotovia, 2001.
Além do título, os versos constituem a epígrafe do livro: “a lei a europa é irmos / sofregamente até o fundo
da espiral vertiginosa”. Registe-se que esta metáfora, tão do agrado de Graça Moura, surge reiterada noutro
passo da sua obra poética: “lírico, incontido, entre golfadas de espiral vertiginosa” (PR2, 59).
294
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
1004
Graça Moura, na sua crónica semanal no Diário de Notícias (“A Europa e o caos”, 6 Fevereiro 2013,
p. 54) reitera o seu ponto de vista semelhante ao trecho lírico: “Esta soberba Europa, mais alta e clara / que
as outras em polícia e fortaleza (a fórmula é de Camões), está em risco de franca desagregação. O seu
esboroar acelerou-se com a passagem dos 15 aos 27 Estados-membros. Afinal, até 2004, a Europa era
pensada em termos de uma ‘Europa ocidental’, assumida como herança de muitos séculos por um núcleo de
Estados que se encontravam entre aqueles primeiros 15. O alargamento trouxe problemas novos.
Começaram a estalar os quadros em que a Europa tinha alguma probabilidade de acontecer na prática, em
que a ideia europeia podia dizer alguma coisa de concreto aos cidadãos e em que os cidadãos se sentiam
mais ou menos comprometidos com essa ideia”.
295
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
1005
Em consonância com este perspectiva Graça Moura conclui: “A unidade europeia só poderá ter êxito se
conseguirmos realizá-la no quadro da diversidade cultural e linguística, valorizando devidamente o que é
próprio da dimensão cultural europeia: as suas raízes comuns, o imenso tecido que se formou ao longo dos
séculos em todas as áreas da cultura e cujas malhas se espelham e se respondem de modo caleidoscópico no
espaço e no tempo” (Vasco Graça Moura, A identidade cultural europeia, loc. cit., p. 83).
1006
Oliveira Martins sustenta que a “Europa é uma ideia, mais do que um continente”. Vide Guilherme
d’Oliveira Martins, “Ponto de encontro de identidades (Relatório final)”, in Isabel Capeloa Gil (coord.),
Identidade europeia: identidades na Europa, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2009, p. 157.
1007
Em consonância com este ideal, o Papa Francisco, ao receber o Prémio Carlos Magno, sublinha os
perigos que a Europa corre, pela renúncia às suas raízes culturais, essência primordial que ao longo dos
séculos a distinguiu: “Que te sucedeu, Europa humanista, paladina dos direitos humanos, da democracia e da
liberdade? Que te sucedeu, Europa terra de poetas, filósofos, artistas, músicos, escritores?”, in http://
www.imissio.net/v2/papa-francisco/discurso-integral-do-papa-francisco-na-entregadopremio-carlosmagno:
4431 (consultado em 22 Maio 2016).
1008
Sob o ideal grego de paideia, esta perspectiva cívica, que atravessa toda a sua obra, concebe a cultura
como criação e revelação, contributo indelével para a formação humana.
1009
Eduardo Lourenço, Pequena meditação europeia, Lisboa, Ed. Verbo, 2011, p. 22.
296
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
297
4. Em demanda dos sentidos do mundo
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
1010
Rosa Maria Martelo assinala esta tendência entre os autores nacionais: “A poesia dos anos 90 é
particularmente marcada pela articulação do poema com a experiência emocional do mundo, sendo esta
entendida não só num sentido puramente afectivo, mas numa relação que é simultaneamente sentimental e
heurística.” (Rosa Maria Martelo, “Anos 90. Poesia”, in Óscar Lopes e Maria de Fátima Marinho, História
da Literatura Portuguesa. As correntes contemporâneas, vol. VII, Lisboa, Ed. Alfa, 2002, p. 502).
1011
Sobre esta matéria, Eduardo Paz Barroso sustenta: “Poucas serão, como a de Vasco Graça Moura, as
vozes poéticas capazes de utilizar o discurso autobiográfico como material de criação, explorando as suas
vertentes lírica e irónica. Os múltiplos itinerários do autor, que o poema movimenta numa incessante busca
de sentidos refractários, dão lugar a uma espécie de metafísica do quotidiano, onde as palavras acabam
transmutadas em geografia interior. Lugar ambíguo onde o leitor caminha para também ele se procurar,
primeiro às cegas, depois mais solto no sono que é o trabalho do poema. A singularidade do trabalho poético
de Vasco Graça Moura, no que respeita à utilização de recursos autobiográficos como material de criação
literária, tem desde logo essa originalidade de transferir para o poético um conjunto de informações, alusões
existenciais, vivências e traçados que, na sua aparente objectividade, acabam por produzir uma deriva
conotativa” (Eduardo Paz Barroso, “Uma acústica do ‘eu’. A poética autobiográfica de Vasco Graça
Moura”, in Isabel Ponce Leão e Eduardo Paz Barroso (org.) Vgm. Cinquenta anos de vida literária, Porto,
Ed. Modo de Ler, 2012, p. 29).
301
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
1012
Aguiar e Silva, a propósito deste passo lapidar de Graça Moura, destaca: “As pessoas e as coisas da sua
poesia narrativa têm um ‘sentido deslizante / são uma espécie de hipálage do mundo’, o que o mesmo é dizer
que são reais e sobrerreais. Esta visão do mundo refractada pela hipálage deve algo à liberdade e à errância
figurais da herança surrealistas” (Vítor Aguiar e Silva, “A outorga do Prémio Morgado de Mateus a Vasco
Graça Moura”, in op. cit., p. 175).
1013
Vasco Graça Moura, “A escrita e o real”, in JL. Jornal de Letras, Artes e Ideias, 17 Agosto 2005, p. 17.
302
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
“a mais verbal
traição das realidades,
oficinal e ficcional,
entre inverdades e verdades.” (PR1, 522)
1014
Luís de Camões, Os Lusíadas, I, 11, loc. cit.
1015
Prado Coelho, quando trata do lirismo camoniano, salienta já essa faceta, patente em Graça Moura: “O
conjunto dos seus poemas líricos constitui, por assim dizer, um diário, uma longa série de confidências,
queixas e meditações. Mas, como a própria vida que flui, como próprio amor que nos domina, esse diário é
contraditório, vário, paradoxal” (Jacinto Prado Coelho, “Camões um lírico do transcendente”, in A letra e o
leitor, Porto, Ed. Lello & Irmão, 31996, p. 23).
303
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
“tantas coisas,
palavras, objectos,
sentimentos, paisagens,
também pessoas, claro.” (PR2, 349)
“o real será
a tradução da sombra
a intranquilidade
de existirmos? […]
o real será
a epígrafe
de sermos?
1016
Esta acepção é formulada de forma magistral por Ramón de Campoamor no célebre passo: “Y es que en
el mundo traidor / nada hay verdad ni mentira: / Todo es según el color / del cristal con que se mira” (Ramón
de Campoamor, “Las dos linternas”, in Obras poeticas completas, Madrid, Ed. M. Aguilar, 61951, p. 149).
1017
Luís de Camões, Os Lusíadas, V, 89, loc. cit.
304
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
1018
Esta demanda incessante, comum a Camões e a Graça Moura, tem a sua origem no modelo petrarquista
pelos elos que, do ponto de vista programático, ligam a poesia à realidade (Cf. Rita Marnoto, O
Petrarquismo português do Renascimento e do Maneirismo, loc. cit., p. 387).
1019
Isabel Pires de Lima, “Entre dois mundos: referências clássicas na poesia de Graça Moura”, in José da
Cruz Santos (org.), op. cit., p. 94.
1020
Fernando Gil, sobre esta matéria, salienta: “Numa obra que, logo desde o eco virgiliano, remete para a
intertextualidade, Camões colocou um histórico e um mítico, o factual e o imaginário, os deuses e os
homens ao mesmo nível de representação estética. No centro dessa obra, no entanto, está o próprio poeta que
a escreveu e que explicitamente se assume não apenas como o seu autor, mas também como a sua
personagem exemplar, por virtude de em si ter reunido as verdades da experiência vivida, os ensinamentos
da cultura recebida, e a capacidade de as transformar numa nova significação totalizante. (Fernando Gil e
Hélder Macedo, “A poética da verdade d’Os Lusíadas”, in Viagens do olhar: retrospecção, visão e profecia
no Renascimento português, loc. cit., p. 121-122).
1021
Luís de Camões, Os Lusíadas, VI, 79, loc. cit.
305
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
“Aprendi logo que mesmo as situações autobiográficas podem ser transformadas noutras e que,
mesmo nas que não têm nada a ver com a própria vida, acaba por se projetar qualquer coisa dela.
1022
Este topos, recorrente em Graça Moura, surge noutro passo, quando uma voz, que encarna a figura de
Camões, cita um passo do De crepusculis do pseudo Umbrano: “nihil est in mundo / quod prius non fuerit in
libro” (nada existe no mundo que antes não tenha existido em livro). Sobre este assunto, vide Sandra
Teixeira, “L’excès référentiel dans trois poèmes de V. G. Moura: un excès de mémoire”, in Débordements:
études sur l'excès, nº 13, Octobre 2006, pp. 91 sqq.
1023
Eunice Ribeiro afirma que a melancolia do autor se afasta da tese contemplativa preconizada por
Claudio Magris e tende preferencialmente para “uma melancolia reactivamente, demiurgicamente,
transformativa e refiguradora” (Eunice Ribeiro, “Retrato do poeta como artista”, in Eduardo Lourenço e Rui
Vieira Nery (coord.), Colóquio Homenagem a Vasco Graça Moura, loc. cit., 2014, p. 65).
1024
Para abordar a relação entre a vertente autobiográfica o texto literário, vide o estudo fundamental de
Philippe Lejeune, Le pacte autobiographique, Paris, Ed. Seuil, 1975.
306
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
Sempre foi assim do vulnerável Vergílio como à infeliz Carson McCullers. O que não se pode é
perder o pé na ficção, nem ter pena das personagens”. 1025
1025
Vasco Graça Moura, Meu amor era de noite, loc. cit., p. 118.
1026
Luís de Camões, Os Lusíadas, X, 145, loc. cit.
1027
Octavio Paz, “A consagração do instante”, in Signos em rotação, S. Paulo, Ed. Perspectiva, 31996, p. 51.
1028
Nesta linha, em nota final a Alfreda ou a quimera, vgm sustenta: “Ao longo do romance, vários textos de
circunstância, alguns inéditos, outros obscuramente publicados, ou então curtos fragmentos deles, foram
sendo incorporados na trama narrativa, por, em meu entender, fazer sentido cerzi-los em determinadas
passagens e eles contribuírem para caracterizar melhor personagens, ambientes e situações. Na verdade, um
romance é o culminar de muitas reflexões e muitas experiências da vida e da escrita” (Vasco Graça Moura,
Alfredo e a quimera, Lisboa, Ed. Bertrand, 2008, p. 235).
1029
Sobre a fortuna da poesia de circunstância, Paul Éluard, na esteira do pensamento de Goethe, preconiza:
“El mundo es tan grande, tan rico, y la vida ofrece un espectáculo tan diverso que nunca faltarán temas para
la poesía. Pero es necesario que esta sea siempre de circunstancia, es decir, que la realidad suministre la
ocasión y la materia […]. Mis poemas son todos de circunstancia, porque se inspiran, se fundan y reposan en
la realidade. Yo no tengo que hacer poemas que no traten de nada” (Paul Éluard, Oeuvres complètes, vol. 2,
Paris, Ed. Gallimard, 1968, p. 934, apud Fernand Cabo Aseguinolaza (org.), Teoría sobre la lírica, loc. cit.,
p. 140).
307
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
“As circunstâncias que levam à génese do poema prendem-se, portanto, e frequentemente, com
intensificações de um dado tipo de memória, ou de situação, ou de jogo das ficções e das palavras
com elas, no próprio acto de eu as formular funcionalmente na perspectiva de escrita desse poema”
(PR2, 103-104).
Sendo fingimento, a criatividade não deixa de trazer à superfície dos textos uma
determinada verdade autobiográfica, encenada por Graça Moura.
Neste contexto, que preza o instante, norteado pelo limiar do efémero, uma
baleia encalhada numa praia do Norte dá o mote ao poema 1. maneiras
oitocentistas:
1030
Jorge de Sena, Poesia II, Lisboa, Ed. 70, 1978, p. 20.
1031
Em entrevista a João Luís Barreto Guimarães (“Conversa com Vasco Graça Moura”, in http://poesia
ilimitada. blogspot.pt/ 2006/ 04/conversa-com-vasco-graca-moura.htmlpoesia & lda. - consultado em 12
Agosto 2016), vgm destaca a preocupação crucial que concede à realidade na sua produção lírica: “As
palavras estão presas ao real. Não há praticamente nenhuma poesia, nenhuma literatura, que sobreviva se
não houver uma especial coerência entre elas e a realidade”.
1032
No poema De tarde, Cesário Verde, na descrição do “pic-nic de burguesas” anuncia: “Em todo o caso
dava uma aguarela” (Cesário Verde, Cânticos do realismo: o livro de Cesário Verde, loc. cit., p.130).
308
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
1033
Em entrevista, não é por acaso que, em torno deste poema, Graça Moura apresenta a seguinte acepção
desta vertente lírica: “Prefiro pois falar de ‘dimensão autobiográfica’ no especial sentido em que a minha
escrita, regra geral, supõe e propõe uma factualidade cujo nexo pessoal com o autor induz a matéria mesma
daquela ressonância a que chamamos poética. Um bom exemplo disso é o poema ‘a serpente e eu’. É
rigorosamente verdadeira a situação inicial descrita: há alguns anos estive no Benim e tive de segurar uma
serpente viva que me foi passada para as mãos pelo ministro da Cultura daquele país. Mas só a leitura de
Luciano de Samosata é que me ‘produziu’, já em 1997, o poema correspondente. Por sua vez, a simulação
essencial neste caso está em se ter operado uma simultaneidade entre a situação fáctica descrita e a reflexão
sobre Alexandre Magno” (PR2, 103).
1034
Luciano, Diálogos dos mortos, introdução, versão do grego e notas de Américo da Costa Ramalho,
Coimbra, Instituto Nacional de Investigação Científica, 1989, pp. 58-60.
1035
Sobre as ténues fronteiras entre a lírica e a narrativa, recorrentes na obra do poeta contemporâneo,
sobretudo na sua faceta autobiográfica, vide Sandra Teixeira, “Vasco Graça Moura, um poeta que tende para
a prosa e a recusa…”, in Revista Colóquio-Letras, nº 173, Janeiro-Abril, 2010, pp. 76-83.
309
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
1036
Segundo uma versão deste célebre mito, Teseu abandona Ariadne na ilha de Naxos. A filha do rei de
Minos é, então, acolhida por Baco, que a toma como esposa. (Cf. Pierre Grimal, Dicionário de mitologia
grega e romana, Lisboa, Ed. Difel, 1992, pp. 45-46).
1037
O mundo rural vivenciado é apresentado no poema canção prosaica, quando recorda nos versos
inaugurais: “o meu vizinho vem tratar da vinha /aqui ao pé de casa. sei que é dono / de um pequeno trator de
que gralha o motor / a gasóleo, e sei que este ano deu / excelentes maçãs de que sobra / uma açafata cheia”
(PR2, 426).
310
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
“Poucas serão, como a de Vasco Graça Moura, as vozes poéticas capazes de utilizar o discurso
autobiográfico como material de criação, explorando as suas vertentes lírica e irónica. Os
múltiplos itinerários do autor, que o poema movimenta numa incessante busca de sentidos
refractários, dão lugar a uma espécie de metafísica do quotidiano, onde as palavras acabam
transmutadas em geografia interior.”1040
1038
Sobre este assunto, Antonio Maravall dá relevo às imagens estéticas que veiculam, entre outras, a ideia
de circunstancialidade, transmissora de uma mensagem de carácter ético (José Antonio Maravall, La cultura
do barroco, loc. cit., p. 254-256).
1039
Este cenário campestre, sugerido pelo autor com o seu cão “fulvo trigado”, ilustra uma fotografia, que
acompanha uma entrevista, na sua propriedade em Glória do Ribatejo (“Vasco Graça Moura: A Portugal
está a faltar muita poesia”, entrevista concedida a Isabel Nery, in Revista Visão, 20 Março 2014, p. 94).
1040
Eduardo Paz Barroso, “Uma acústica do ‘eu’. A poética autobiográfica de Vasco Graça Moura”, in
Isabel Ponce Leão e Eduardo Paz Barroso (org.), in op. cit., p. 29.
1041
Vasco Graça Moura, Poemas escolhidos 1963-1995, loc. cit., p. 473.
1042
Como explica num paratexto à sua poesia, Graça Moura descreve, em sentido programático, os
horizontes e os fundamentos da sua experiência lírica: “A base autobiográfica que um poema porventura
tenha não prejudica um grau de despersonalização que o torna susceptível de eficácia poética junto do
destinatário. A afirmação é do senso comum, muito embora essa base não colida com os vários graus
possíveis e necessários de insinceridade, encenação, simulação, ficcionalização, e mais tudo aquilo em que a
teoria literária costuma gastar centenas de páginas. Nem todos os poemas que se escrevem narram uma
311
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
Esta inclinação para o concreto conflui num largo filão de adesão aos frémitos e
às vicissitudes do quotidiano; o sujeito de enunciação dá conta que “o poema / é um
ruído modelado / de gente” (PR2, 33), a quem acontece coisas num determinado
tempo e espaço, com o adjectivo “modelado” a marcar uma “necessária
semiotização do discurso poético”, no dizer de Aguiar e Silva1044. Este pressuposto
ecléctico, de facto, configura um discurso de afectos fundidos em experiências
experiência apenas historicamente situada ou caracterizada do autor. Mas muitos transportam a marca dela e
todos propõem uma experiência e uma possibilidade de simulação carregadas de sentido ao próprio leitor,
‘como se tivesse sido ele a’... É exactamente por isso que são poemas” (Vasco Graça Moura, “Poesia e
autobiografia”, in Poesia 1997-2000, Ed. Quetzal, 2000, p. 185).
1043
Terêncio, “O homem que se puniu a si mesmo”, in Comédias, vol. I, introd., trad. do latim e notas de
Walter de Medeiros e Aires do Couto, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2008, p. 219.
1044
Cf. Vítor Aguiar e Silva, “A outorga do Prémio Morgado de Mateus a Vasco Graça Moura”, in op. cit.,
p. 174.
312
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
biográficas, a que não são alheios os próprios títulos dos seus livros, como por
exemplo, poemas com pessoas ou sonetos familiares.1045
Por consequência, o fulgor pelo quotidiano, onde se modelam os gestos e os
vultos do dia-a-dia, as pessoas ocupam um lugar primacial; em madrigal do peixe
fresco, a figura típica da varina é destacada:
1045
Com significativa pertinência, Paz Barroso sintetiza a vertente enunciada: “Mas esta influência
culturalista, que não se deve confundir com exercícios de erudição, é essencialmente transposição para a
dimensão literária de uma certa experiência da vida, da fruição estética, do gozo e ressonância dos sentidos.
Depois, o poeta é trabalhado interiormente por imagens e sons que contaminaram a sua existência, as suas
preocupações e afetos, os seus amores e desamores. Acontece, porém, que em VGM a intensidade do real
passa, por assim dizer intacta, para a matéria do poema o que lhe confere uma singular vibração da palavra”
(Eduardo Paz Barroso, “Ressonância de uma meditação poética”, in As Artes entre as Letras, nº 75, 30 Maio
2012, p.7).
1046
Vasco Graça Moura, “letras do fado vulgar”, in Poesia 1997-2000, loc. cit., p. 223.
1047
A continuada intenção de captar o mundo plasmada pela invulgar capacidade de convocar vivências,
caracterizadas na sua individualidade, Graça Moura centra-se também noutras figuras femininas: “as
mulheres lavando roupa”, (PR2, 44) ou “a costureira” (PR2, 23). Os quadros sugeridos têm explícitas
afinidades com Cesário Verde, poeta oitocentista que, no dizer Óscar Lopes, cantou os calafates, os
carpinteiros, as varinas, a hortaliceira e a engomadeira. As personagens evocadas não se reduzem a meras
sombras, visto que são “recortadas nas suas circunstâncias de tempo e de lugar, na sua indumentária ou na
sua gesticulação característica” (Óscar Lopes, “Cesário Verde ou do Romantismo ao Modernismo”, in Entre
Fialho e Nemésio. Estudos de literatura portuguesa contemporânea, vol. II, Lisboa, Imprensa Nacional-
-Casa da Moeda, 1987, p. 470).
313
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
o desagrado das mulheres face à varina. Por último, nesta exaltação de um retrato
vivo da sensualidade feminina, num enquadramento marítimo, surge ainda a
representação imagética da sereia, sugerida pela notação conotativa das “escamas a
meia altura”.
No poema como num filme surge de novo a figura feminina anónima:
314
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
O fogo que Prometeu, “filho de Jápeto”, trouxe aos homens acabou por
constituir uma acção funesta, visto que possibilitou o fabrico de armas, culminando
“em mortes, em desonras”. Como se verifica esta estratégia discursiva camoniana
colhida na erudição mitológica, também do agrado de Graça Moura, constitui um
dos motivos legitimadores da severa crítica do ancião.
Porém, nesta galeria de representações humanas, surgem figuras reais ligadas ao
círculo de amigos do poeta contemporâneo; em testamento de vgm, espécie de
auto-retrato poético e testemunho vivo da sua época, ao jeito de François Villlon,
não ignora determinados vultos de cultura e artistas das suas relações e presta-lhes
sentido e sincero tributo:
1048
Luís de Camões, Os Lusíadas, IV, 103, loc. cit.
1049
Em Páginas do Porto, como nos célebres catálogos homéricos, vgm enumera, de modo emotivo, muitos
dos seus amigos ou de figuras com quem tinha afinidades (Vasco Graça Moura, Páginas do Porto, Porto,
Ed. Asa, 2001, pp. 86 sqq).
1050
A qualidade editorial de Cruz dos Santos, fruto de uma singular sensibilidade, destaca-se no relevo
concedido particularmente à publicação de poesia, que faz na sua actual editora Modo de Ler um marco
representativo no panorama dos livros nacionais. A título ilustrativo, testemunho de um labor exemplar,
destaque-se a sua intensa actividade em diversas editoras, cruciais para a divulgação das letras portuguesas:
Portugália, Inova, Ouro do Dia e Asa.
315
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
1051
José da Cruz Santos, “Vasco Graça Moura. Querido Amigo”, in As Artes sobre as Letras, loc. cit., p. 6.
1052
No que a esta questão diz respeito, de entre muitos exemplos possíveis, destaque-se, em nota final, o
agradecimento ao editor pela “paciente generosidade” de ler o original de Quatro últimas canções em
fotocópias (Vasco Graça Moura, Quatro últimas canções, loc. cit., p. 177). Por seu turno, o editor de Modo
de Ler realizou uma homenagem no Porto intitulada 5 Esboços para um retrato de Vasco Graça Moura
(http:// expresso.sapo.pt/cultura/vasco-graca-moura-recordado-no-porto=f876009 - consultado em 20
Janeiro 2017). Também, um ano após a morte de Graça Moura, a editora Modo de Ler, em parceria com os
bancos BPI e BCP, a Fundação Gulbenkian e a Edições Afrontamento, anunciou novo prémio literário
dedicado à poesia, invocativo da figura do autor (“Modo de Ler lança Prémio Vasco Graça Moura”, in
https://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/modo-de-ler-lanca-premio-vasco-graca-moura-169385028/4/
/2015 - consultado em 1 Outubro 2016). No entanto, embora tivessem participado mais de 200 obras, o
prémio não foi atribuído.
1053
José da Cruz Santos (coord.), Alameda das Glicínias. Pinturas e poemas para um aniversário,
apresentação de Miguel Veiga, prefácio de Laura Castro e Luís Miguel Queirós, Porto, Ed. Modo de Ler,
2015.
1054
Vasco Graça Moura, “Um homem gostava de glicínias”, in JL. Jornal de letras, Artes e Ideias,
23 Dezembro 2015, p. 32.
316
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
1055
Ao que esta questão diz respeito, Vasco Graça Moura conheceu como poucos a actividade editorial.
Nesta área, foi um importante divulgador de livros e autores – muitos dos quais não seriam conhecidos –
pelas responsabilidades na Imprensa Nacional-Casa da Moeda e, posteriormente, na Comissão dos
Descobrimentos, o que levou Mega Ferreira a sublinhar: “Para lá do vigor na sua obra literária, é como
editor que a obra de VGM mais definitiva e duradouramente me aparece marcar a vida cultural portuguesa”
(António Mega Ferreira, “O editor memorável”, in JL. Jornal de Letras, Artes e Ideias, 14 Maio 2014,
p. 14).
1056
Miguel Veiga curiosamente destaca o particular gosto de editor, também amigo comum de vgm, por
aquela flor num texto de apresentação numa colectânea que lhe foi dedicado: “Cultivador de flores, deleitado
com as subtis e delicadas glicínias da sua afeição, e do seu encantamento, Cruz Santos é, da cabeça aos pés,
um criador fascinado e silencioso das glicínias, o objecto desejado dos seus desejos, dos seus sonhos e dos
seus afectos mais entranhados e encantados” (José da Cruz Santos (coord.), Alameda das glicínias. Pinturas
e poema para um aniversário, loc. cit., p. 8).
1057
José da Cruz Santos, “Diálogo que nunca termina”, in JL. Jornal de Letras, Artes e Ideias, 14 Maio
2014, p. 15.
1058
Miguel Veiga, reconhecido advogado, político e homem de cultura do Porto, acentua o percurso similar
dos dois amigos: “Pertencemos àquela família cultural e política (e, até de vez em quando, nos parecemos,
pois então, como ‘políticos’) que não reconhece certezas nem admite tabus, que toma a verdade apenas
como direcção do seu agir e nunca como realidade possuída, tentando esclarecer a opacidade do mundo e
compreender a diversidade dos homens, fiel à única medida da verdade que a vida nos concede: a nossa
razão humana” (Miguel Veiga, “ Sobre Vasco Graça Moura”, in José da Cruz Santos (org.), Modo mudando.
Sete ensaios sobre a obra de Vasco Graça Moura, loc. cit., p. 114). Vide ainda um outro texto que rasga um
sentido elogio ao amigo, expressão de uma comunhão, patente no gosto comum pelo Porto: “Poucas
pessoas terão sabido falar do Porto como o Miguel Veiga, captar-lhe a dimensão burguesa e popular, a altiva
tradição cívica e a pungente humanidade, a luminosidade da paisagem, entre granito, rio e mar, o registo
urbano e a modulação intimista, a dimensão prática e a dimensão poética, ou, se se quiser, e como ele diz
numa imagem extraordinária, o ‘sotaque do ser’. Somos ambos portuenses e fozeiros de gema e muito
amigos há mais de trinta anos” (Vasco Graça Moura, “Miguel Veiga. O portuense”, in Artur Santos Silva et
alii, Miguel Veiga. Cinco esboços para um retrato, Porto, Ed. Modo de Ler, 2011, pp. 47).
1059
Segundo o jornal Público, de 1 Junho 2007, participaram entre outros, Mário Soares, Artur Santos Silva,
Mário Cláudio, Marcelo Rebelo de Sousa e Nuno Júdice (Vide Luís Miguel Queirós, “Miguel Veiga, um
317
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
318
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
319
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
Porém, a estreita relação observa-se também nos diversos poemas que Graça
Moura publicou no blog Abrupto do amigo, um dos mais célebres da blogosfera e a
quem, como prova de gratidão e admiração, em 6 de Maio de 2008, dedica glosa
para josé pacheco pereira:
se lhe tirassem o p,
vigorosa consoante
do seu título, bastante
mal faziam, já se vê.
e percebe-se porquê
sem se gastar um minuto:
se do p ficar enxuto,
vão-se a força e a coragem
abruptamente da imagem:
não pode ficar ‘abruto’!”1063
“Quando lhe tirei esta fotografia, no dia do seu doutoramento honoris causa pela Universidade
do Porto, o Vasco, mais que sabedor da sua condição terminal, sorriu e disse: vou pôr-me na
1062
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 95. Mário Cláudio (Naufrágios de Camões, Lisboa, D. Quixote,
2016, p. 43) dá conta, de um modo irónico, deste texto a propósito da “questão do banquete”, propugnada
por Timothy, personagem que não compreende o neoplatonismo camoniano e confunde-o com as célebres
trovas do poeta quinhentista.
1063
Cf. “Um poema inédito de Vasco Graça Moura”, in abrupto.blogspot.com/2008/05/um-poema-inedito-
de-vasco-graca-moura.html (consultado em 17 Agosto 2016).
320
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
posição do Jorge Luís Borges. E colocou as mãos, o corpo e a bengala na posição de uma célebre
fotografia de Borges. Vasco, como Borges, era um amador de livros, um bibliófilo, e tinha um
especial gosto pela sua biblioteca pessoal, cujas aquisições mais raras tinham, como sempre
acontece nestes casos, histórias associadas.
Na prática da nossa amizade os livros eram uma constante: comprávamos livros em conjunto,
trocávamos informações sobre o que estávamos a ler e dizíamos um ao outro o que cada
um “tinha” que ler. Foi assim até alguns dias antes da sua morte. O Vasco, sempre que me
visitava, passeava entre as estantes e consultava algumas raridades que muito prezava, sendo que o
último livro que me recordo de folhear com interesse foi uma edição setecentista de Grócio. Sobre
os meus livros e o labirinto que os abriga escreveu um poema onde está tudo dito.
Mas foi mais longe: ofereceu ao Arquivo/Biblioteca alguns dossiers do seu arquivo pessoal, e
aqui estão registados alguns poemas repentistas que muitas vezes fazia enquanto estava no
Parlamento Europeu, ao almoço, ou nas longas caminhadas nos corredores infindos nos edifícios
de Bruxelas ou Estrasburgo. Em português, francês e… alemão.”1064
1064
Cf. José Pacheco Pereira, Morreu hoje um amigo do Ephemera: Vasco Graça Moura, in
https://ephemera jpp.com/.../morreu-hoje-um-amigo-do-ephemera-vasco-graca-moura (consultado em 17
Agosto 2016).
1065
Vasco Graça Moura, “Nota final”, in Poemas Escolhidos, loc. cit., p. 472.
1066
As recorrentes alusões à infância surgem disseminadas na poesia de vgm; vide, por exemplo, ulisses
(PR1, 371) e para uma colecção de bonecas (PR2, 334).
321
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
“uma ressonância
em que transformei
tudo, deste a infância.” (PR1, 523)
322
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
1067
Cf. Eduardo Lourenço, A Europa desencantada. Para uma mitologia europeia, Lisboa, Ed. Visão, 1994,
p. 33.
1068
Cf. Eduardo Paz Barroso, “Uma acústica do ‘eu’. A poética autobiográfica de Vasco Graça Moura”, in
Isabel Ponce Leão e Eduardo Paz Barroso (org.), in op. cit., p. 32, nota 13.
323
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
1069
José da Cruz Santos (coord.), O primeiro dia: pequena antologia da mãe na poesia portuguesa, com
pintura de Manuel Ribeiro de Pavia, pref. João Paulo Vinagre, Porto, Ed. Modo de Ler, 2012.
1070
Em torno do processo poético, Graça Moura refere as circunstâncias conducentes à série poemática
dedicada à mãe: “Escrevi, quase de jacto e recorrendo a processos menos habituais da minha poesia, na
sequência da morte de minha Mãe, o período de mais intensa e acelerada desorganização do ser que já me
foi dado experimentar em toda a vida” (Vasco Graça Moura, “Nota final”, in Poemas escolhidos, loc. cit.,
p. 473).
1071
Cf. João Barrento, “O Astro Baço. A poesia portuguesa sob o signo de Saturno”, in A Palavra
transversal. Literaturas e ideias no século XX, Lisboa, Ed. Cotovia, 1996, p. 89.
1072
Sobre a importância da memória no fenómeno literário, veja-se Fernando Guimarães, O Modernismo e a
sua poética, Porto, Lello Editores, 1999, pp. 27-30.
324
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
“de repente,
a minha mãe já não estava morta:
era o vulto que à noite se recorta
na luz do corredor, se está doente
1073
Jose Cândido de Oliveira Martins, “Figuras maneiristas da morte em O Lima de Diogo Bernardes”, in
Ana Paula Pinto et alii (org.), Do reino das sombras: figurações da morte, 2014, Braga, Ed. Aletheia,
pp. 284-289.
325
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
1074
Neste quadrante, em volume de cariz autobiográfico, vgm confessa: “Sábado, 26.11.94: A minha Mãe
morreu anteontem, às quatro da tarde. Fui, na noite de quarta para quinta-feira, às duas e meia da manhã, a
guiar para o Porto. O Pedro, ao telefone, tinha dito que era uma questão de horas. Agora, que tudo acabou,
escrevo os quatro primeiros sonetos de uma sequência votiva. Dou comigo a funcionar em duas pistas
simultâneas: uma, carente e angustiada, em que todo o processo da doença e da morte se adensa e mal se
exprime, a não ser pela via da escrita. A outra, quase mecânica, mas agudizada numa fria melancolia, a
solicitar-me do exterior”. E acrescenta: “Segunda-feira, 28.11.94: Termino lâmpada votiva, à memória de
minha Mãe. Começo imediatamente a organizar um livro” (Vasco Graça Moura, Circunstâncias vividas,
Vendas Novas, Ed. Bertrand 1995, p. 277-278). Registe-se que a colectânea referida por Graça Moura é
Sonetos familiares, Lisboa, Ed. Quetzal, 1995.
1075
Daniel Tavares, “Do retrato e da ausência: Vasco Graça Moura & Noé Sendas”, in Diacrítica, vol. 28,
Revista do Centro de Estudos Humanísticos, Universidade do Minho, 2014, p. 281.
326
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
agora fiquei eu com a integral do balzac que ele passava a vida a ler,
e faz-me a maior das impressões que ele esteja para ali sem livros,
[sem o eça, sem nós todos”. (PR1, 447)
A vocação para as letras não despertou por mero acaso, como enaltece Graça
Moura quando exalta a acção formativa paterna1077. O recurso a dados concretos da
vida do autor torna-se mais importantes para estruturar a maioria dos poemas, já
que desse modo a carga emocional se entrelaça com o fluxo dos acontecimentos,
afigurando-se uma marca distintiva das letras contemporâneas, como destacou
Seabra Pereira1078. Na evocação paterna, o sujeito poético, contrariando
1076
Sobre a importância de que se reveste o topos da figura paterna, vide José da Cruz Santos (org.), Em
nome do pai: pequena antologia do pai na poesia portuguesa, pref. Vasco Graça Moura, Porto, Ed. Modo
de Ler, 2008.
1077
Sobre o papel do pai na sua formação literária, Graça Moura confessa em entrevista a Anabela Ribeiro:
“Desde a minha infância mais recuada preocupava-se muito com a minha educação cultural, digamos assim.
Uma vez ele chegou a casa e eu mostrei-lhe uns versos que tinha feito; explicou-me todo o jogo de tónicas, a
métrica... Eu tinha para aí seis anos ou sete” (Vasco Graça Moura, in http://anabelamotaribeiro.pt/vasco-
-graca-moura-103058 - consultado em 20 Janeiro 2016). Noutra entrevista volta a colocar a tónica na
decisiva importância paterna no seu gosto literário: “O meu pai tinha uma razoável biblioteca, tinha
sobretudo um culto enorme da literatura. Para ele, de resto a literatura terminava no Proust. Pertencia a uma
geração que cultivava muito a memória. Durante as refeições, fazia-nos citações e contava páginas de livros,
sabia trechos inteiros do Eça, do Camilo… Isso teve uma importância enorme em condicionar a minha
vontade para a leitura” (Ana Sousa Dias, “Vasco Graça Moura. O impaciente europeu”, in Revista Ler,
nº 131, Janeiro 2014, p. 36).
1078
Neste âmbito, o autor afirmou: “Pela nossa parte, parece-nos que estamos perante novo período de
fecunda afirmação da criação poética, cujo timbre identitário e título de mérito histórico residirá em crer-se a
ação comunicativa inalienável, numa escrita que se impõe como princípio e ética da vida e em saber afirmar-
327
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
se enquanto tal abraçado aos temas triviais do quotidiano e da circunstância” (José Carlos Seabra Pereira,
“Novos tempos de ‘a interminável preparação’. Apontamentos sobre a poesia portuguesa no primeiro
decénio do século XXI”, in Álvaro Manuel Machado et alii, Cultura XXI-Ensaios, Lisboa, Ed. Labirinto das
Letras, 2015, pp. 119).
1079
Eugénio de Andrade, em clave também ecfrástica, enaltece o processo criativo desse edifício
contemporâneo no poema Casa de Álvaro Siza Vieira na Boa Nova, integrado em Homenagens e outros
epitáfios (Eugénio de Andrade, Poesia, Porto, Fundação Eugénio de Andrade, 22005, p. 253).
1080
Exemplo significativo presente em António Nobre é o seguinte: “Na praia lá da Boa Nova, um dia, /
Edifiquei (foi esse o grande mal) / Alto Castelo, o que é a fantasia, / Todo de lápis-lazúli e coral!” (António
Nobre, Só, in Poesia completa 1867-900, Lisboa, Ed. D. Quixote, p. 301).
1081
Ideia idêntica surge retirada no início de Página do Porto, quando o autor condena o “contraponto
grotesco” daquela sublime paisagem (Vasco Graça Moura, Página do Porto, loc. cit., pp. 14-15).
328
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
poética1082. Sem nunca renunciar à vida, despende uma particular atenção aos
quadros caseiros, num conjunto de poemas consagrados às suas filhas, por
exemplo, quando as adormece:
1082
Pinto do Amaral, nesta perspectiva, conclui que a poesia de vgm constrói-se numa sequência “composta
por episódios recortados do ritmo quotidiano e de controlos por vezes assumidamente biográficos”
(Fernando Pinto do Amaral, “A poesia neo-maneirista de Vasco Graça Moura”, in op. cit., p. 11).
1083
Como pai atento, os primeiros passos de sua filha Joana merecem-lhe uma referência: “Domingo,
10.1.93: Anos da Joaninha. Um ano. Descobriu hoje que pode andar de pé, sozinha, de um lado para o
outro” (Vasco Graça Moura, Circunstâncias vividas, loc. cit., p. 14).
1084
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 168.
1085
Telmo Verdelho, Luís de Camões: concordância da obra toda, loc. cit., pp. 1272-1273.
1086
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 319.
329
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
1087
O autor das casas e das feições, como explica em entrevista, advoga uma singular concepção lírica: “Sou
fundamentalmente um poeta de circunstâncias vividas. Toda a minha poesia, num certo sentido é
autobiográfica, no sentido de que se concede como radicando permanentemente numa experiência pessoal,
embora com muitas simulações e jogos em que muitas dessas circunstâncias se tornam vividas apenas
porque inventadas” (“Vasco Graça Moura: entrevista”, in Inimigo Rumor, nº 12, 2002, p.10).
1088
As vestes das meninas impressionam o pai; com efeito, este processo é central em Graça Moura quando
canta a sua filha Joana em Mateus, a jovem é retratada como se de um quadro se tratasse: “Joana aos quatro
anos, num saiote / curto e de quadradinhos cor-de-rosa, / carinha oval, olhar ladino, posa / com umas flores
na mão e um laçarote” (PR2, 91).
1089
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., pp. 55-56.
330
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
331
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
1090
Eduardo Paz Barroso, que tem dedicado particular atenção à importância do Porto na obra de Graça
Moura sintetiza com lucidez: “O Porto como espaço urbano e realidade psicológica constitui outra das linhas
de força da obra, quer romanesca quer poética de VGM, não se trata de uma antropologia da cidade, mas da
sua reconfiguração imaginária. Por isso, é que um conjunto de figuras que vão de Óscar Lopes, Eugénio de
Andrade, ou de Miguel Veiga a José Rodrigues, nos aparecem como sujeitos e personagens de uma
deambulação onde o autor se procura. As ruas, um certo espírito de flâneur, a errância, o movimento ritual
dos paços das imediações do mar da foz, ganham nas páginas de VGM uma espessura e uma cadência que
desloca a cidade para o coração da fala. Entre uma genealogia e uma estética do granito e das brumas, o
Porto é uma razão de ser” (Eduardo Paz Barroso, “Ressonância de uma meditação poética”, in As Artes entre
as Letras, nº 75, 30 Maio 2012, p. 7).
1091
Em nota final ao romance Alfreda ou a quimera, Graça Moura declara: “E desejaria que o Porto, não um
Porto propriamente ‘realista’, mas um Porto quase tumultuariamente imaginado num tropel em que se
sobrepõem referências objectivas e reminiscências afectivas, fosse tomado como uma das personagens desta
história” (Vasco Graça Moura, Alfredo ou a quimera, Lisboa, Ed. Bertrand, 2008, p. 236). Registe-se, entre
outros, os poemas que são dedicados à cidade nortenha: picasso visto do porto (PR1, 267), o porto nunca
teve um minotauro obscuro (PR1, 268), esta injustiça afectava a cultura da cidade (PR1, 269) e lavores
(PR2, 45).
1092
Graça Moura adverte em nota que, nessa descrição poética, se inspirou num passo de Padre Agostinho
Rebelo da Costa, Descrição topográfica e histórica da cidade do Porto, 1788 (PR1, 583).
1093
Edite Estrela, “Entrevista a Vasco Graça Moura”, in Bem dizer. Bem escrever, Lisboa, Editorial Notícias,
1985, p. 52.
332
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
1094
Graça Moura realça que é precisamente o álbum Esquinas do tempo que está na origem deste poema
(Cf. idem, ibidem, p. 52).
1095
No paratexto inicial numa compilação do poeta, Martins Pereira sublinha “Graça Moura leva-nos pelas
ruas e praças da sua cidade vivida e mostra-nos não apenas a superfície das coisas, fachadas, monumentos
ou paisagens urbanas, mas, sobretudo, a topografia íntima e profunda da sua cidade sentida” (Gaspar
Martins Pereira, “Apresentação”, in Vasco Graça Moura, Visto da margem sul do rio. O Porto, Porto, Ed.
Modo de Ler, 2012, p. 12).
333
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
De novo, este belo trecho crepuscular, na representação urbana banhada por uma
luz oblíqua, perscruta “as réstias de sol”, exemplo claro de como vinca os
334
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
1096
Eduardo Paz Barroso, sobre o imaginário enunciado, destaca com acuidade: “O Porto transporta-se por
isso na escrita de Vasco Graça Moura, mesmo quando ela não se ocupa desta cidade de certo modo fala por
ela e com ela, num diálogo cheio de ressonâncias, umas mais íntimas, outras dissimuladas, outras ainda
abertas ao esplendor de uma afirmação cuja integridade estética possui um alcance visual rigoroso e
transfigurador, ancorado no real, sem se fechar à reverberação dos sentimentos ou fidelidades várias, sejam
elas políticas, culturais, digam respeito a laços familiares, a laços ou a casas” (Eduardo Paz Barroso, “A
apropriação da cidade na obra de Vasco Graça Moura: o Porto, de certo modo”, in Estudos, revista mensal
do C.A.D.C., Coimbra, nº 11, 2014, p. 173).
1097
Vasco Graça Moura, Visto da margem sul do rio. O Porto, loc. cit. Registe-se que esta colectânea surgiu
na sequência das comemorações dos 50 anos de actividade editorial de José da Cruz Santos, como explicou
Paula Marinho, responsável da Editora Modo de Ler (Cf. “O Porto Faz Parte da Minha Maneira de Ser”, in
Revista Norte Médico, nº 54, (Janeiro-Março), Ordem dos Médicos-Secção Regional do Norte, 2013, p. 60).
1098
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 220.
1099
Idem, ibidem, p. 184.
335
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
1100
Fernando Pinto do Amaral, “A caligrafia do tempo: uma leitura de melancolia na poesia de Vasco Graça
Moura”, in José da Cruz Santos, (org.), Modo mudando, loc. cit., pp. 79-80.
1101
Gaspar Martins Pereira, “Apresentação”, in Vasco Graça Moura, Visto da margem sul do rio. O Porto,
loc. cit., p. 12.
1102
Em nota paratextual, Graça Moura destaca: “s. joão: grande parte deste poema veio a ser utilizado num
capítulo do romance Por detrás da magnólia” (PR2, 567). Como se pode observar, a similitude entre os dois
passos é evidente: “Numa ocasião que Monique achou de mais tédio ainda do que o habitual, o grupo dos
Silveira Pimentel resolveu ir da Foz ao Porto, depois da música de Wagner e da ceia. […] Quando chegaram
lá ao fundo, para lá da amurada, do Barredo, avistado por entre encontrões e exclamações ruidosas, o fogo-
de-artificio era estrepitoso, lançado das barcaças a meio do Douro. […] Havia vozes, apitos, assobios, a
multidão nas margens, sirenes estrídulas, estalidos secos, petardos e bichas de rabiar, gente que saltava
fogueiras, cheiro a sardinha assada, e havia outra vez, havia o tempo todo, aquela voz a vir-lhe de dentro, do
âmago de uma zona desconhecida e imperiosa” (Vasco Graça Moura, Por detrás da magnólia, loc. cit.,
pp. 154-155).
336
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
1103
Não é despropositado notar, neste caso, que o final da primeira edição de Húmus de Raúl Brandão
encerra com a referência ao lugar e ao ano da sua conclusão: “Foz do Douro - 1916” (Cf. Raúl Brandão,
Húmus, Porto, Ed. Renascença Portuguesa, 1917).
1104
Cesário Verde, Cânticos do realismo: o livro de Cesário Verde, loc. cit., pp. 100-103.
337
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
1105
Revestida de diversos sentidos, a figura do flâneur é recorrente nos poetas nacionais, como frisou Rosa
Martelo, que considera uma condição existencial citadina o impulso de observação do sujeito deambulante
(Rosa Maria Martelo, “Reencontrar o leitor: alguns lugares da poesia portuguesa”, in Em parte incerta.
Estudos de poesia portuguesa moderna e contemporânea, Porto, Ed. Campo das Letras, 2004, pp. 242 sqq).
1106
Eduardo Paz Barroso, “A apropriação da cidade na obra de Vasco Graça Moura: o Porto, de certo
modo”, in Isabel Ponce Leão e Eduardo Paz Barroso (org.), op. cit., p. 173.
1107
Eduardo Lourenço destaca o eclectismo da produção literária de Graça Moura, que “sem ser superficial,
se expõe como uma pluralidade de textos, de criações, de recriações no espaço nada metafísico de um
imaginário plural, assumidamente lúdico, em forma de arquipélago, brilhando ao sol da realidade e sendo,
como ela, naturalmente diverso por fora e não menos ostensivamente unido por dentro (Eduardo Lourenço:
“Vasco Graça Moura - um ensaísmo em arquipélago”, in José da Cruz Santos (org.), op. cit., p. 30).
1108
Da extensa bibliografia sobre a memória, um tema candente na pós-modernidade, vide a título
ilustrativo: Gaston Bachelard, A dialética da duração, São Paulo, Ed. Ática, 1988; Ecléa Bosi, O tempo vivo
da memória, São Paulo, Ed. Ateliê Editorial, 2004; Antonio Cândido, “Poesia e ficção na autobiografia”, in
A educação pela noite e outros ensaios, São Paulo, Ed. Ática, 32000; Maria José Craveiro, “O sentido da
memória. Viagens por espaços da memória e do esquecimento”, in Dedalus - Revista Portuguesa de
Literatura Comparada, Lisboa, Ed. Cosmos, nº 10, Janeiro 2005, pp. 231-248; Joana Duarte, “Memória e
narração. Invólucro do silêncio na expressão do vário”, in Revista de História das Ideias, vol. 27, Coimbra,
Instituto de História e Teoria das ideias, 2006, pp. 529-546; Maurice Halbwachs, La Mémoire Collective,
Nouvelle édition revue et augmentée, Paris, Ed. Albin Michel, 1997; Pierre Janet , “Le problème de la
mémoire”, in L’évolution de la mémoire et de la notion du temps, Paris, Éd. Chaline, 1928, pp. 181-202;
Jacques Le Goff, “Memória”, in Enciclopédia Einaudi, vol. 1, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda,
1984, pp. 11-50; idem, História e Memória, São Paulo, Editora da Unicamp, 2003; Ricardo Piglia, “Memoria
y tradición”, in 2º Congresso Abralic, Literatura e Memória Cultural: Anais, Associação Brasileira de
Literatura Comparada, Belo Horizonte, 1991, pp. 60-66; PaulRicoeur, A memória, a história, o
esquecimento, Campinas, São Paulo, Editora da UNICAMP, 2007; Paolo Rossi, O passado, a memória, o
esquecimento: seis ensaios da história das ideias, São Paulo, Editora UNESP, 2010; Edward Said, Fora de
lugar: memórias, São Paulo, Ed. Companhia das Letras, 2004; Bella Jozef, “O resgate da memória na
literatura contemporânea”, in 2º Congresso Abralic: Literatura e Memória Cultural: Anais, Associação
Brasileira de Literatura Comparada, Belo Horizonte, 1991, pp. 454-460; Eduardo Portella, “Paradoxes de la
mémoire”, in Diogéne, nº 201, 2003, pp. 3-4; Claude Simon, “Roman et Mémoire” (extrait d’une conférence
338
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
observa, o poema progride em planos distintos pelo jogo dos vários níveis que
harmoniosamente se justapõem.1109
O olhar melancólico, numa emotividade sentida e experimentada, enleia-se
numa cortina de brumas no reiterado fascínio pela Foz do Douro:
Perante o retorno ao lugar que testemunha o tempo dos verdes anos, a que o
sujeito lírico volta sempre num incessante acto de recriação e de redescoberta, a
Foz, metonímia do Porto, é uma janela que se abre nos versos de vgm, na demanda
da sua própria identidade e de um sentido para a sua existência. Nessa enumeração,
sob o signo da memória, o texto evolui de forma contínua, configurando, pelos
referentes evocados, um vincado sentido autobiográfico.
Ancorado numa neblina espessa, o sentimento de perda, “agora não passa
ninguém”, repete, na senda do texto anterior, um tempo passado que não
regressa1110. A ideia referida lembra, como sublinha Martins Pereira, que “Vasco
Graça Moura, quando evoca o Porto, traduz a cada passo, esse trabalho incessante
da memória e do acto criativo”.1111
inédite), in Revue des Sciences Humaines: Claude-Simon, nº 220, octobre-décembre, 1990, pp. 191-192;
Jean-Yves Tadié et Marc Tadié, Le Sens de la Mémoire, Paris, Ed. Gallimard, 1999.
1109
Com argúcia, Rui Lage fornece, num cariz abrangente, as principais linhas de força de vgm: “Poetas há,
como Vasco Graça Moura, que perseguem o mundo no seu conjunto na sua mudança, no visível e no
invisível, no histórico e no fortuito, no episódico e no essencial, no exterior e no interior, no perene e no
efémero, cientes que toda a representação é mediata pela cultura herdada, de que o talento individual só pode
emanar de uma tradição consabida e refundida sem descanso” (Rui Lage, “Nada se perde, tudo se
transforma em literatura”, in Eduardo Lourenço e Rui Vieira Nery, Colóquio Homenagem a Vasco Graça
Moura, loc. cit., p. 55).
1110
Testemunhando que os processos enunciativos para o autor não são estanques, num passo narrativo do
autor volta a estar presente o tópico poético: “Eu não sabia se estava a ver realmente a ver a Foz Velha que
estava ali na minha frente, ou se estava a misturá-la com memórias da Foz Velha da minha infância, com
uma simultaneidade dos caminhos percorridos para chegar ao colégio, das casas em que tínhamos morado
ou que tinham sido da famílias antigas ou onde tinham vivido namoradas, das claridades regressando agora
dos nomes das ruas” (Vasco Graça Moura, Naufrágio de Sepúlveda, loc. cit., p. 132).
1111
Gaspar Martins Pereira, “O Porto no imaginário literário de Vasco Graça Moura, in isabel Ponce de Leão
e Eduardo Paz Barroso (org.), Vgm: cinquenta anos de vida literária de Vasco Graça Moura, loc. cit., p. 73.
339
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
Não obstante, o seu profundo apego à matriz portuense não impede Graça Moura
de se abrir a outras geografias1112. Se é poeta do Porto, também não deixa de ser um
dos poetas de Lisboa, pela incessante referência aos lugares e elementos simbólicos
da capital portuguesa, onde viveu largo período da vida, até à sua morte 1113. Cada
urbe, pela sua especificidade, configura cenários distintos, visto que, como canta,
“cada cidade tem uma gramática / e sombrias gaivotas” (PR1, 146); assim, esse
espaço funciona como uma espécie de mote desenvolvido ao longo dos seus versos.
Na esteira deste tributo, no poema intitulado poetas de lisboa, consagrado ao
fado e magistralmente interpretado por Carlos do Carmo1114, Graça Moura
evidencia o legado poético no imaginário lisboeta da canção portuguesa:
1112
Quando compilou textos sobre o tratamento poético do espaço, Graça Moura afirma: “Lugares,
paisagens, sítios por onde as musas do autor vagueiam e a que o poema se refere: esta é uma antologia ligada
aos espaços, quase sempre concretamente identificados e que, desde os meus primeiros livros, por uma razão
ou por outra, se interligam com a matéria do poema” (Vasco Graça Moura, Outros lugares, Lisboa, Ed. Asa,
2002, p. 11).
1113
Neste contexto, o autor confessa: “Sou um homem do Porto, aclimatado em Lisboa” (Vasco Graça
Moura, “Asfikchiado”, in Papéis de jornal. Crónicas, loc. cit., p. 110).
1114
Carlos do Carmo, Ao vivo no CCB. Os sucessos de 35 anos de carreira, Ed. EMI-Valentim de Carvalho,
1999.
1115
Vasco Graça Moura, “Letras do fado vulgar”, loc. cit., p. 18.
1116
Cardoso Pires, ao se referir às gravuras de Júlio Pomar na estação do metropolitano do Alto dos
Moinhos, também dá relevo, na escrita de Camões, à influência da cosmovisão lisboeta: “Camões, ali, está
na companhia de Bocage, Pessoa e Almada Negreiros, e muito bem porque os quatro escreveram em Lisboa
340
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
“De qualquer modo, é em termos da muito mais viva emoção que o Poeta se refere à cidade
onde de, se não nasceu para a vida e amanheceu para a cultura, acordou para as experiências da
vida”. 1117
as suas vidas” (José Cardoso Pires, Lisboa. Livro de bordo, vozes, olhares, memorações, Lisboa, Ed. Dom
Quixote, 1997, p. 105).
1117
Hernâni Cidade, Camões em Lisboa e Lisboa nos Lusíadas, Lisboa, Biblioteca de Estudos
Olisiponenses, 1972, p. 7.
1118
Luís de Camões, Os Lusíadas, III, 57, loc. cit.
1119
Fernando Castelo-Branco (“A história de Lisboa em Os Lusíadas”, in Lisboa, Revista Municipal, ano
XLIII, 2ª série, 1982, pp. 24-30) debruça-se, na epopeia camoniana, sobre a importância de Lisboa em
momentos fulcrais da história de Portugal, de que se distinguem, entre outros, a conquista aos mouros e a
movimentação social na crise de 1383-1385. Estas referências, que não têm paralelo em mais nenhuma
história local, revelam o particular interesse citadino do poeta, visto que metonimicamente a cidade é a
representação de Portugal. Cf. ainda Maria Helena Rocha Pereira, “Uma descrição poética da Lisboa
quinhentista”, in Novos ensaios sobre temas clássicos, loc. cit., pp. 139-147.
1120
Luís de Camões, Os Lusíadas, IV, 84, loc. cit.
1121
Idem, ibidem, VIII, 5.
1122
Sobre as ocorrências de Lisboa na produção literária camoniana, vide Telmo Verdelho, Luís de Camões:
concordância da obra toda, loc. cit., p. 807.
341
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
1123
Luís de Camões, Os Lusíadas, VI, 7, loc. cit.
1124
Noutro significativo passo, vgm volta a enumerar poetas de Lisboa: “nas escalas de lisboa / camões,
cesário, borges e pessoa / destes encontros sob a lua errante” (PR1, 361). Sob o signo do “encontro”, lexema
que fornece precisamente o título ao poema, além de Pessoa e Borges, surgem também Camões e Cesário,
figuras de eleição reiteradamente convocados por Graça Moura. Esta demanda inscreve-se numa trajectória
reflexiva, centrada no desejo celebrativo da poesia e no seu carácter universal, estratégia compositiva
constante no autor de variações metálicas.
1125
Vasco Graça Moura, Letras do fado vulgar, loc. cit., p. 15.
1126
Este poema integra a colectânea de Ana Isabel Queiroz et alii (org.), Em Lisboa, sobre o mar. Poesia
2001-2010, Lisboa, Ed. Poetica Vrbis, 2013, p. 28. O volume, entre outros escritores, colige textos de Ana
Haterly, Eugénio de Andrade, Ana Luísa Amaral, Manuel Alegre, Nuno Júdice e Pedro Mexia.
342
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
1127
O fascínio do imaginário lisboeta suscitado ao poeta leva-o a destacar com significativa sensibilidade:
“Lisboa foi assim reedificada na segunda metade do século XVIII, com aquela devida ‘regularidade e
grandeza’ imposta pela mentalidade racionalista e avançada das Luzes e daí deriva a geometria clara da
baixa pombalina, na quadrícula ordenadora das ruas e no ritmo simplificado e preciso das fachadas,
nivelando-se em relação ao Tejo e confluindo para a vastidão espectacular do Terreiro do Paço. A luz no
sentido dos grandes passos de circulação, as necessidades da vida e do tráfego urbano foi tudo ponderado e
contemplado. (Vasco Graça Moura, “Regularidade e grandeza”, in Papéis de jornal. Crónicas, loc. cit.,
p. 262).
1128
Virgínia Soares Pereira, “Tágides”, in Vítor Aguiar e Silva (coord.), Dicionário de Luís de Camões, loc.
cit., p. 917.
1129
Telmo Verdelho, Luís de Camões: concordância da obra toda, loc. cit., pp. 846-847.
343
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
1130
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 184.
1131
Na efabulação romanesca de um conto de Nélida Piñon, que antecede o canto X de Os Lusíadas,
Camões já à beira da morte, amargurado e triste, vagueia por Lisboa, e dá conta do desprezo que foi votado,
consciente do valor do seu canto na exaltação, por isso refere a “cruel Lisboa”. A lembrar os versos de vgm,
de entre outros lugares apresentados da Lisboa quinhentista (v.g., Limoeiro, Rossio, palácio da Inquisição),
observem-se estes: “Percorro o Terreiro do Paço. […] Não saio à noite para não gastar o azeite do archote.
À luz do dia, lá está a Alcáçova, no miolo da cidade. Ao descer já ao pé da colina, contorno a Sé, precedido
pelo escravo, próximo às paredes de pedras, outra igreja, onde Santo António teria vivido” (Nélida Piñon,
“A desdita da lira”, in Luís de Camões, Os Lusíadas, canto X, comentários de José Hermano Saraiva e
ilustrações de Pedro Proença, Lisboa, Ed. Expresso, 2003, p. 9). Sobre a recepção camoniana nesta autora
brasileira, vide Maria Aparecida Ribeiro, “Um Adamastor ambíguo, uma tuba enrouquecida: Camões na
leitura de Nélida Piñon”, in Maria do Céu Fraga et alii (org.), Camões e os contemporâneos, loc. cit., pp.
745-755.
1132
Rosa Martelo (“Tensões e deslocamentos na poesia portuguesa depois de 1961”, in Vidro do mesmo
vidro: tensões e deslocamentos na poesia portuguesa depois de 1961, loc. cit., p. 39) destaca a figuração do
espaço citadino como marca indelével das letras contemporâneas: “A narratividade, a atenção dada ao
quotidiano urbano, articulada com a busca de um olhar capaz de o transfigurar e de lhe conferir espessura, a
ênfase colocada na cumplicidade com o leitor são alguns sintomas dessa inflexão que parece vir resituar a
questão matricial da modernidade estética no seu ponto de partida”.
344
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
1133
Cesário Verde, “O sentimento dum ocidental”, in Cânticos do realismo. O livro de Cesário Verde, loc.
cit., p. 127. Nesta linha Óscar Lopes, em 1964, quando se refere ao livro inaugural de vgm, modo mudando,
já dá conta desta relação dialógica: “O experimentalismo do livro de estreia de Vasco Graça Moura, tem
uma qualidade rara entre aqueles que temos percorrido: é que Graça Moura medita o sentido das suas
próprias experiências e comunica-nos a sua emoção frente à aventura intentada. Daí que os textos que
poderíamos chamar da sua arte poética tenham um real interesse. Ao contrário de quase toda a actual poesia
portuguesa sobre poesia, não se trata de um auto-encarecimento do poeta: o objecto é que polariza a atenção.
Ora, é este mesmo tremor sagrado da descoberta que vemos neste livro propagar-se a um simples olhar sobre
a mão, a uma simples manhã sentida em estilo de Braque, a certos momentos citadinos ainda reminiscentes
de Cesário Verde” (António Lobo Xavier et alli, Vasco Graça Moura. 35 anos de trabalho literário, Porto,
Árvore-Cooperativa de Actividades Artísticas, Fundação Eng. António de Almeida, Livraria Modo de Ler,
1998, p. 29).
345
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
1134
Vasco Graça Moura, Poemas escolhidos. 1963-1995, loc. cit. p. 472.
1135
A singularidade histórica e cultural de Lisboa lê-se no texto em torno de Memorias das principaes
providencias que se deraõ no terramoto que padeceo a Corte de Lisboa no anno de 1755…, livro
oitocentista de autoria desconhecida. O volume propicia a vgm diversas reflexões sobre a capital portuguesa,
que o conduz às seguintes conclusões: “Levar Lisboa e reencontrar-se com o seu imaginário próprio é o
imperativo de cultura – roteiro cultural sobre locais emblemáticos que permitem falar da identidade de uma
cidade” (Vasco Graça Moura, “Regularidade e grandeza”, in Papéis de jornal. Crónicas, loc. cit., p. 264).
1136
Sobre a análise deste texto, vide Peter Hanenberg, “Navegações pela terra-firme da poesia sobre Vasco
Graça Moura”, in Revista Máthesis, nº 9, 2000, pp. 160-163.
346
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
1137
Outro exemplo significativo da referência aos meios de transporte e aos seus utilizadores é a metáfora
presente no segmento “labirinto de luras” (PR1, 537), que evoca a agitação dos passageiros no metropolitano
no soneto das horas de ponta.
347
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
1138
O arguto sentido crítico de vgm leva-o a evocar o texto na sua escrita diarística: “Estou a escrever um
poema sobre a viagem até à cidade de Lisboa todas as manhãs e os encravamentos no trânsito. A minha
poesia está definitivamente a organizar-se segundo esquemas narrativos” (Vasco Graça Moura,
Circunstâncias vividas, loc. cit., p. 20).
348
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
essa tendência perversa de acontecer / alguma coisa a alguém num tempo e num
lugar” (PR1, 439).
Num processo criativo orientado pelo contacto directo com o real1139, a poesia de
vgm fornece, pois, uma percepção plural de uma imagética inovadora, onde a
inspiração, colhida no vivido, perscruta, com notável acuidade, o quotidiano, em
demanda de novos contornos líricos.
1139
No que a esta questão diz respeito, Rosa Martelo, na identificação de algumas tendências do lirismo
contemporâneo, destaca na actual sugestão poética da urbanidade a importância concedida ao circunstancial,
numa valorização da experiência individual e da memória (Rosa Maria Martelo, “Reencontrar o leitor:
alguns lugares da poesia portuguesa”, in Em parte incerta. Estudos de poesia portuguesa moderna e
contemporânea, Porto, Ed. Campo das Letras, 2004, p. 246).
1140
Com efeito, as fronteiras ente o factual e o ficcional são impossíveis de definir, como a moderna crítica
tem largamente evidenciado. A título de exemplo, vide Gérard Genette, Fiction et diction, Paris, Éd. du
Seuil, 1991, pp. 65 sqq.
1141
Para João Barrento, a poesia de Graça Moura contraria uma tendência da poesia moderna baseada na
ideia de despersonalização. Entidade quase desaparecida com as teses estruturalistas, a reiterada presença do
sujeito poético testemunha a valorização da dimensão autobiográfica na criação poética, o que não exclui
obviamente a ficcionalidade intrínseca ao texto literário (João Barrento, “Palimpsestos do tempo. O
paradigma da narratividade na poesia dos anos 80”, in A palavra transversal. Literatura e ideias no século
XX, Lisboa, Ed. Cotovia, 1996, p. 71).
1142
Neste âmbito, Karlheinz Stierle (“Lenguaje y identidad del poema. El ejemplo de Höderlin”, in Fernando
Cabo Aseguinolaza (org.), Teorías sobre la lírica, Madrid, Ed. Arcos/Libros, 1999, p. 224) considera: “El
sujeto lírico es, pues, de todas las formas un sujeto problemático que talvez pueda ser delimitado como un
sujeto con una identidad sentimental. Es un sujeto en busca de su propia identidad, cuya articulación lírica
está contenida en el movimiento de esta misma búsqueda. Por eso, los temas clásicos de la lírica son
aquellos en los que la identidad se percibe como precaria: el amor, la muerte, la autorreflexión, la vivencia
del Otro no representado socialmente y, en particular, el paisaje”.
349
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
“L’autobiographie ne peut donc pas être simplement un agréable récit de souvenirs contés avec
talent: elle doit avant tout essayer de manifester l’unité profonde d'une vie, elle doit manifester un
sens, en obéissant aux exigences souvent contraires de la fidélité et de la cohérence. Raconter toute
sa vie est impossible. L’autobiographie repose sur des séries de choix: celui déjà fait par la
mémoire, et celui que fait l’écrivain sur ce que la mémoire lui livre. Sont retenus et organisés tous
les éléments qui ont un rapport avec ce que l'auteur pense être la ligne directrice de sa vie”.1145
1143
José Luis Maravall, Antiguos y modernos. Visión de la historia e idea de progreso hasta el
Renacimiento, Madrid, Ed. Alianza Nacional, 21986, pp. 455 sqq.
1144
Neste âmbito, Philippe Lejeune (Le pacte autobiographique, Paris, Ed. du Seuil, 21996, p. 33) sustenta o
seguinte: “L’autobiographie est le genre littéraire qui, par son contenu même, marque le mieux la confusion
de l’auteur et de la personne, confusion laquelle est fondée toute la pratique et la problématique de la
littérature occidentale depuis la fin du XVIIIe siècle”.
1145
Philippe Lejeune, L’autobiographie en France, Paris, Liv. Armand Colin, 21998, p. 15.
1146
Idem, ibidem, p. 72.
1147
Vasco Graça Moura, Poemas escolhidos, loc. cit., p. 473.
350
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
“É bom frisar que a poesia portuguesa das últimas décadas se foi construindo como um
regresso ao sentido. Com isto quero dizer três coisas: o retorno a processos de escrita apoiados
num fio condutor, isto é, menos voltados para malabarismos verbais do que para a simples
afirmação de linhas de sentido (o significado tenta impor-se de novo ao significante); em segundo
lugar, a retoma de um lirismo assumido sem complexos e de uma emocionalidade relativamente
explícita, o que nos dá a ilusão de um discurso mais sentido; e finalmente a exploração de áreas
semânticas ligadas à fisicidade, ao uso vivido de sensações materiais e directas e que podemos
associar os nossos (muito mais dos que cinco) sentidos”.1148
1148
Fernando Pinto do Amaral, “O regresso ao sentido”, in Fernando Pinto do Amaral et alii (org.), Um
século de poesia (1888-1988). A Phala, Lisboa, Ed. Assírio e Alvim, 1988, p. 161. Sobre esta publicação de
incontornável interesse para o estudo contemporâneo das letras portuguesas, veja-se a recensão de José
Carlos Seabra Pereira, “Um século de poesia em revista”, in Revista Colóquio-Letras, nº 112, Novembro-
-Dezembro, 1989, pp. 83-90.
1149
Rosa Maria Martelo, “Reencontrar o leitor: alguns lugares da poesia contemporânea”, in op. cit., p. 250.
1150
Graça Moura, no texto Poesia e Autobiografia, insiste na ideia de que as marcas autobiográficas
implicam sempre uma recriação lírica. Cabe ao leitor considerar os pormenores biográficos evocados, porém
os poemas exigem, no processo de descodificação, um “grau de despersonalização” (PR2, 104).
351
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
poesia portuguesa, pelo que os versos de vgm nascem do diálogo com a vida e o
mundo e o modo com estes se convertem em poesia.
Deste modo, reveste-se de particular significado o status da instância emissora;
não há obra sem escritor, o que não significa que na poesia de cariz autobiográfica
ele partilhe inteiramente as ideias e os sentimentos do sujeito de enunciação. De
acordo com esta perspectiva da teoria da literatura, Aguiar e Silva distingue entre
autor empírico e textual:
“O primeiro possui existência como ser biológico e jurídico-social e […] o segundo existe no
âmbito de um determinado texto literário, como uma identidade ficcional que tem a função de
enunciador do texto o que só é cognoscível e caracterizável pelos leitores desse mesmo texto.”1151
O autor empírico, entidade real fora do texto, não deixa, porém, de marcar a
actividade do eu textual, “a instância imediatamente responsável pela produção de
um texto”1152. Numa relação de implicação, a persona textual não é de facto
indiferente à situação social, à formação cultural, aos interesses, bem como a uma
multiplicidade de factores que condicionam indubitavelmente o ser empírico 1153, o
que obviamente estabelece uma gama de interferências que não deixam de ser
marcadas por uma distância que o referido desdobramento implica.1154
Sem perder totalmente o carácter peculiar de um percurso existencial, não é
difícil ao receptor aceitar esta vertente ficcional de alteridade, bem como os
recursos formais e semânticos, inerentes à enunciação. Daí resulta, em última
instância, que características do texto autobiográfico, carregadas de incertezas e
ambiguidades não são, de modo algum, tributárias da autenticidade e da veracidade
cantadas, no entanto mantêm uma estreita aproximação com a realidade, que
ultrapassa a simples relação de verosimilhança, propugnada desde a
Antiguidade1155. Com efeito, neste amplo processo dialéctico, a representação fiel
1151
Vítor Manuel de Aguiar e Silva, Teoria da literatura, Coimbra, Livraria Almedina, 41982, p. 219.
1152
Idem, ibidem, p. 219.
1153
Rosa Maria Goulart, “O regresso do autor”, in Literatura e teoria da literatura em tempo de crise,
Braga, Ed. Angelus Novus, 2001, p. 45.
1154
Helena Buescu também dedica a sua atenção a esta problemática e apresenta perspectivas de diversos
críticos sobre esta matéria (Helena Carvalhão Buescu, “Porque é que o autor é um problema?”, in Em busca
do autor perdido, Lisboa, Ed. Cosmos, 1998, pp. 11-14).
1155
Este preceito também ligado à imitatio, na esteira do postulado aristotélico, irá ter grande fortuna entre
os tratadistas do Renascimento. Sobre esta matéria, vide Aristóteles, Poética, prefácio de Maria Helena
Rocha Pereira, tradução e notas de Ana Maria Valente, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 52015 e, a
352
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
“A partir dos estruturalistas, o autor quase morreu, evaporou-se, pelo menos em termos de
teoria literária. Reajo um pouco contra isso. De um modo provocatório, resolvi salientar os efeitos
dos eventos biográficos na criação poética. Isso não exclui o trabalho de tipo ficcional, de
simulação, de ocultação”.1156
título meramente ilustrativo, a teoria quinhentista de Paolo Beni sintetizada por Bernard Weinberg, A
History of Literary Criticim in the Italian Renaissance, Chicago, Midway Reprint, vol. II, 21974, p. 706.
1156
Ana Marques Gastão, “Entrevista para o Diário de Notícias - Vasco Graça Moura”, in José da Cruz
Santos, (org.), Modo mudando, loc. cit., p. 14.
1157
Octavio Paz (El arco y la lira: el poema, la revelación poética, poesía e historia, México, Ed. Fondo de
Cultura Económica, 51983, p. 16) distingue essa dimensão indelével nas suas pertinentes considerações
sobre o fenómeno lírico: “Y esas diferencias no son el fruto de las de variaciones históricas, sino de algo
mucho más sutil e inapresable: la persona humana.”
1158
Sobre o trecho citado, vide a leitura de Sandra Teixeira, “Vasco Graça Moura, um poeta que tende para a
prosa e a recusa”, in Colóquio-Letras, nº 173, Janeiro, 2010, p. 79.
353
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
1159
Sophia de Mello Breyner, nesta via interpretativa, revela uma concepção lírica similar à preconizada por
Graça Moura: “Pois a poesia é a minha explicação com o universo, a minha convivência com as coisas, a
minha participação no real, o meu encontro com as vozes e as imagens. Por isso, o poema não fala de uma
vida ideal, mas sim da vida concreta: ângulo da janela, ressonância das ruas, das cidades e dos gestos,
sombra dos muros, aparição dos rostos, silêncio, distância e brilho das estrelas, respiração da noite, perfume
da tília e do orégão. É esta relação com o universo que define o poema como poema, como obra de criação
poética.” (Sophia de Mello Breyner Andresen, “Arte poética II”, in Geografia, Lisboa, Ed. Salamandra,
1967, p. 87).
1160
Philippe Lejeune, Le pacte autobiographique, loc. cit., pp. 13-46 (sobretudo, pp. 29-30).
1161
Idem, ibidem, pp. 36-37.
1162
Philippe Lejeune, Le pacte autobiographique, loc. cit., p. 45.
1163
Rita Marnoto, “Petrarquismo em Camões”, in Vítor Aguiar e Silva (coord.), Dicionário de Luís de
Camões, loc. cit., pp. 679-688.
1164
Vítor Manuel Aguiar e Silva, “Aspectos petrarquistas da lírica de Camões”, in Camões: labirintos e
fascínios, loc. cit., pp. 181-182.
354
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
“Na poesia europeia, Camões foi dos que compreenderam mais a fundo a dimensão existencial
da lírica petrarquiana e o coeficiente de absurdo e irresolvido do destino humano que ela punha à
vista nas suas séries de antíteses, investindo de ressonâncias pessoais e dramáticas o seu
testemunho poético”.1169
1165
Sobre esta matéria que tornou Petrarca o paradigma do lirismo ocidental, vide Rita Marnoto, “Camões.
Quem é quem”, in Sete Ensaios Camonianos, Coimbra, Centro Interuniversitário de Estudos Camonianos,
2007 pp. 119 sqq.
1166
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 163.
1167
Comum a Camões e Graça Moura, e recorrente na cultura ocidental, como sublinha Aguiar e Silva, o
pendor autobiográfico configura-se na “manifestação, ou a revelação, através dos actos de escrita –
sobretudo da vida íntima, da vida espiritual, e da vida sentimental – do eu sujeito enunciador desse mesmo
acto de escrita” (Vítor Manuel Aguiar e Silva, “Aspectos petrarquista da lírica de Camões”, in Camões:
labirintos e fascínios, loc. cit., p. 179).
1168
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 163.
1169
Vasco Graça Moura, “Setecentos anos de Petrarca”, in As Rimas de Petrarca, Chiado, Ed. Bertrand,
2003, p. 29.
1170
Os códigos petrarquistas, baseados no princípio da imitatio, conseguem uma particular valorização ao
vivido; é neste prisma que se compreende, com efeito, a afinidade entre Camões e Vasco Graça Moura.
Sobre esta matéria, vide Jacinto Prado Coelho, “Camões um lírico do transcendente”, in A letra e o leitor,
loc. cit., pp. 17-35; Vítor Manuel Aguiar e Silva, “Aspectos petrarquista da lírica de Camões”, in Camões:
355
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
labirintos e fascínios, loc. cit., pp. 179-190 e Rita Marnoto, O Petrarquismo português do Renascimento e
do Maneirismo, loc. cit., pp. 331- 508).
1171
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 229.
1172
Fernando Gil e Hélder Macedo, “A poética da verdade d’Os Lusíadas”, in Viagens do olhar:
retrospecção, visão e profecia no Renascimento português, loc. cit., p. 140.
1173
Segundo Jorge de Sena (Da poesia portuguesa, Lisboa, Ed. Ática, 1959, p. 61), este passo é
paradigmático da perplexidade entre verdade e fingimento, essência da criação poética, que Camões cantou
com singular intensidade e lucidez.
1174
Eduardo Paz Barroso, “Uma acústica do ‘eu’. A poética autobiográfica de Vasco Graça Moura”, in
Isabel Ponce Leão e Eduardo Paz Barroso (org.), op. cit., p. 29.
1175
Vítor Manuel Aguiar e Silva, “Aspectos petrarquistas da lírica de Camões”, in Camões: labirintos e
fascínios, loc. cit., p.182.
356
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
1176
Esta acepção merece particular atenção a Graça Moura, como se pode ler em nota preambular à sua
tradução das Rimas de Petrarca: “O projecto autobiográfico ligado ao que viria a ser o Canzoniere torna-se
mais denso sobre a pressão daquelas circunstâncias íntimas. Nomeadamente no tocante à obra em vulgar, a
dialéctica petrarquiana começa por se estabelecer entre a dispersão dos fragmenta e a unidade global daquele
projecto, minuciosamente regulada em termos cronológicos e simbólicos, mesmo quando possa considerar-
-se discutível a exactidão factual invocada ou implícita” (Vasco Graça Moura, “Setecentos anos de
Petrarca”, in As Rimas de Petrarca, loc. cit., p.16).
1177
Vítor Manuel Aguiar e Silva, “Aspectos petrarquistas da lírica de Camões”, in Camões: labirintos e
fascínios, loc. cit., p.189.
1178
Octavio Paz (El arco y la lira: el poema, la revelación poética, poesía e historia, México, Ed. Fondo de
Cultura Económica, 51983, p. 16) distingue essa dimensão indelével nas suas pertinentes considerações
sobre o fenómeno lírico, quando realça que as diferenças entre poetas não se devem a variações históricas,
mas à sensibilidade criativa de cada autor.
357
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
lirismo, inclinação que permite identificar uma singular visão cultural, feita de
devoções e afinidades selectivas.
A perspectiva enunciada pelo autor de a sombra das figuras surge sintetizada
numa implícita alusão a uma retórica maneirista de raiz camoniana, como está
patente no poema de tanto sonho e nada:
“escrevo devagar
a doze de novembro […]
1179
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 229.
358
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
1180
Idem, ibidem, p. 228.
1181
Sobre esta matéria, vide Isabel Almeida, Poesia maneirista, loc. cit., p. 54.
1182
De entre uma panóplia de alusões cronológicas disseminadas nos seus textos, observe-se, por exemplo, a
referência cronológica no título traição.1996, poema que incorpora referências à idade do poeta: “tive vinte
anos / […] agora, com cinquenta e quatro” (PR1, 522).
1183
Os passos evocativos do tempo em estreita relação com a escrita são recorrentes em Graça Moura, como
se pode observar nos seguintes exemplos: “o tempo é também uma criação verbal” (PR1, 165), “o tempo
torna-se som no espaço e fora dele / nada vibra” (PR2, 216) e “o tempo era uma ondulação / da matéria das
palavras / na alma (PR1, 334).
1184
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 303.
359
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
“Concilia um tom prosaico próximo das falas banais do quotidiano e por outro lado na
preocupação filosófica e humanista, bebida no séc. XVI no maneirismo, em que avultam alguns
topoi essenciais, como a reflexão sobre o tempo, ou a consciência da morte que se ergue como
sombra tutelar de qualquer obra humana”.1187
e encrespadas ondinhas
fugindo-se uma a uma,
e bernardim diz: ontem
pôs-se o sol e a noute”. (PR2, 531)
1185
A título de exemplo, veja-se a importância deste topos na poesia em Vítor Manuel Aguiar e Silva,
Maneirismo e Barroco na poesia lírica portuguesa, loc. cit., pp. 280-281.
1186
Fernando Pinto do Amaral, “A caligrafia do tempo: uma leitura da melancolia na poesia de VGM”, in
José da Cruz Santos (org.), op. cit., pp. 77-84.
1187
Idem, ibidem, p. 77.
1188
Em consonância com esta conjugação, Claude-Gilbert Dubois assinala que, o tempo, topos marcante do
Maneirismo, é uma categoria determinante do conhecimento, sem a qual nada pode ser entendido pelo
espírito humano (Claude-Gilbert Dubois, Le maniérisme, loc. cit., p. 117).
360
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
Como o tempo se estrutura nos versos de vgm é uma questão crucial para
compreender a génese da sua poesia; o seu relevo afigura-se, deste modo, um traço
distintivo das poéticas dos séculos XVI e XVII, configurando, nas palavras de
Orosco Díaz, o “protagonista do drama barroco”.1191
O poeta é tocado pela aceitação do seu curso, porque “o tempo não passa e não
me preocupa: / nem traz angústia especial”; a sua relação com a temporalidade,
confessada e vivida, convoca o pensamento de Camões. Não obstante, esta
aceitação não provoca a Graça Moura o mesmo travo pessimista que percorre os
versos de Camões, paradigmaticamente expresso “Em errei todo o discurso de
meus anos”1192. Ao invés, em registo eufórico, revela a esperança no futuro, como
vgm remata no poema do tempo que passa: “e que temos livros e que estamos
vivos / podemos construir alguma coisa” (PR1, 96). De facto, a aceitação da vida
como ela é foge à influência comum entre poetas do tópico do tempus fugit, visto
que os livros fazem perdurar as virtudes do espírito1193.
1189
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 168.
1190
Bernardim Ribeiro, “Ontem pôs-se o sol e a noute”, in Obras de Bernardim Ribeiro, org., introd. e notas
de Hélder Macedo e Maurício Matos, Barcarena, Ed. Presença, 2010, p. 218.
1191
Emilio Orozco Díaz, Manierismo y Barroco, Madrid, Ediciones Cátedra, 21975, p. 59.
1192
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p.170.
1193
Carlos Ascenso André, Caminhos do amor em Roma, Lisboa, Ed. Cotovia, 2006, pp. 148-149.
361
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
“o tempo, entretanto,
colaborou
com algumas manchas,
de um efémero,
a outro efémero,
porque é fugaz a alma dos lugares
362
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
no entanto, “envelhecem devagar”, pelo uso dos cosméticos. Este paralelismo, por
meio do qual o sujeito enunciador contempla e se comtempla, traduz uma
consciente aceitação da passagem dos dias, explica o carácter plural da condição
humana sujeita à inexorável passagem dos anos1194. A força vital dos versos
transmite a estóica aceitação clássica da passagem do tempo e do envelhecimento,
de que Cícero e Séneca, ou, na poesia portuguesa, Ricardo Reis são casos
paradigmáticos. Tal modo de conceber a vida, de modo análogo, surge com
recorrência na obra lírica e épica em Camões, como notou Vitalina Leal de
Matos.1195
A idade traz uma amarga reflexão no poema intitulado criação do tempo, visível
na clepsidra, instrumento simbólico de medição:
1194
Esta acepção de Graça Moura está nos antípodas da célebre fala sedutora do marinheiro luso a Efire, no
episódio camoniano da Ilha dos amores, ao desejar à sua esquiva ninfa uma formosura eterna, advertindo
que ela está condicionada pela implacável passagem dos dias: “Ó não me fujas! Assim nunca o breve /
Tempo fuja de tua formosura!” (Luís de Camões, Os Lusíadas, IX, 79, loc. cit.).
1195
Maria Vitalina Leal de Matos, “O tempo na poesia camoniana”, in Ler e escrever. Ensaios, loc. cit.,
p. 79.
1196
R. Wellek e A. Warren quando se debruçam sobre os símbolos na literatura apresentam um conceito
enquadrado neste contexto; preconizam que “os signos ou imagens apresentados, em benefício das
363
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
realidades transcendentes, morais ou filosóficas, encontram-se para além deles (René Wellek e Austin
Warren, Teoria da literatura, Mem Martins, Publicações Europa-América, 51980, p. 233).
1197
Sobre o motivo poético do relógio, vide Maria Lucília Gonçalves Pires, Poetas do período barroco, loc.
cit., p. 32.
1198
Camões dá conta do avanço lento e inflexível do tempo, medido em unidades que sucessivamente
passam: “E o mundo, que com tempo se consume, / Na sexta idade andava enfermo e lento: / Nela vê, como
tinha por costume, / Cursos do sol quatorze vezes cento, / Com mais noventa e sete, em que corria, / Quando
no mar a armada se estendia” (Luís de Camões, Os Lusíadas, II, 2, loc. cit.).
1199
A importância de que reveste a efemeridade no período barroco leva António Maravall a destacar que
“es la época de esplendor del arte de la relojería” (José Antonio Maravall, La cultura del barroco, loc. cit.,
p. 384).
1200
O reputado professor destaca: “Para exprimir a instabilidade e a fugaz duração da vida, os poetas
maneiristas utilizam metáforas e comparações que, embora provindas de uma antiquíssima tradição literária,
alcançaram no período maneirista, e depois no período barroco, uma ressonância nova, quer pela sua
frequência, quer pelo contexto histórico existencial a que estão vinculadas” (Vítor Manuel Aguiar e Silva,
Maneirismo e Barroco na poesia lírica portuguesa, loc. cit., p. 286).
364
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
1201
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 124.
1202
Idem, ibidem, p.19.
365
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
Sob o signo de que “o real é perecível” (PR1, 202), neste excerto, dedicado a
Histórias dos cavalos de ferro, obra fotográfica de António Lopes1206, o principal
motivo de interesse reside, sem qualquer complacência, na aguda consciência da
passagem inexorável de Cronos, baseado num halo de modernidade configurado no
universo ferroviário. De larga fortuna no Barroco, o tema das ruínas, neste caso
inovador de ruínas industriais, num espaço que “amontoa sucata”, constitui um
cabal testemunho de uma consciência histórica1207. A poesia surge, assim,
empenhada em captar o instante e tudo o que é transitório; não faltando, perante a
1203
Idem, ibidem, p. 275. Sobre os nexos intertextuais deste topos ente o Venusino e Camões, vide Américo
da Costa Ramalho, “Três odes de Horácio em alguns quinhentistas portugueses”, in Camões no seu tempo e
no nosso, Coimbra, Liv. Almedina, 1992, pp. 326-329.
1204
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 275-277.
1205
Maria Alzira Seixo (“Melancolia e Maneirismo. O concerto campestre, de Vasco Graça Moura, Lisboa,
Ed. Asa, 2001, pp. 260-263) sublinha justamente que, na obra de Graça Moura, a escrita se alimenta de uma
mundividência maneirista plasmada na conjugação entre os interstícios do real e as fracturas provocadas
pelo efémero.
1206
António Lopes, Histórias dos cavalos de ferro, Lisboa, Ed. Câmara Municipal, 2001.
1207
Sobre esta matéria, vide, por exemplo, Helmut Anthony Hatzfeld, Estudios sobre el Barroco, Madrid,
Ed. Gredos, 21966, pp. 383-387.
366
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
1208
Este processo, por assim dizer, metamórfico, é sublinhado justamente por Seabra Pereira, “Não
surpreende, pois, que a literatura novecentista (e outras artes, em especial o cinema) revisite assombrada o
tópico das ‘ruínas’ e o reconverta, por vezes, em poética da ruína. Representação pungente da realidade
empírica da História e metáfora poderosa da experiência íntima e dos mundos aluídos, de sistema de valores
pervertidos ou desagregados” (José Carlos Seabra Pereira, “Alotropia e desejo de plenitude na modernidade
ocidental”, in Maria de Fátima Silva (coord.), Utopias & distopias, Coimbra, Imprensa da Universidade,
2009, p. 280. Sobre o tratamento crítico do tópico das ruínas, vide, a título exemplificativo, Pierre Brunel,
L’Arcadie blessée - le monde de l’idylle dans la littérature et les arts de 1870 à nos jours, Mont-de-Marsan,
Editions Interuniversitaires, 1996 e António Manuel Ferreira e Paulo Alexandre Pereira (coord.), Escrever a
ruína, Aveiro, 13º Encontro de Estudos Portugueses, Universidade de Aveiro, 2006.
1209
Segundo Antonio Maravall, o tema da ruína, de matriz barroca, relembra ao homem que não se pode
livrar da sua própria fugacidade (José Antonio Maravall, La cultura do barroco, loc. cit., pp. 254-256). Cf.
ainda sobre este assunto, Vítor Manuel Aguiar e Silva, Teoria da literatura, loc. cit., p. 461.
1210
Vasco Graça Moura proclama a vivência temporal como uma das infinitas facetas da condição humana,
o que se aproxima de Camões. Essa atitude estética do poeta quinhentista é sublimada do seguinte modo por
Eduardo Lourenço (“Camões e o tempo ou a razão oscilante”, in Poesia e Metafísica, loc. cit., p. 47): “A
verdadeira originalidade camoniana, com efeito, situa-se aquém da reflexão abstracta sobre o tempo, ao
nível da vivência concreta da temporalidade”.
1211
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 129.
367
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
Neste contexto, a produção lírica de Graça Moura não é alheia ao tema da morte,
como testemunha a seguinte interpelação: “como meter a morte / nas palavras?
(PR1, 255); o espectro de finitude, provocado pela decadência inexorável da
passagem dos dias, merece inclusivamente uma sequência de poemas (PR1, 540-
-544), a lembrar o “caminho da vida nunca certo”1212, que motiva a célebre
interrogação camoniana sobre o enigma da existência:
“Onde pode acolher-se um fraco humano,
Onde terá segura a curta vida,
Que não se arme e se indigne o Céu sereno
Contra um bicho da terra tão pequeno?”1213
1212
Luís de Camões, Os Lusíadas, I, 105, loc. cit.
1213
Idem, ibidem, I, 106.
368
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
Assim, não deixa de ser significativo o tratamento deste tema pelo poeta
contemporâneo no poema miudinha e quietinha:
1214
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 227.
1215
Os versos são os seguintes: “Animula vagula blandula / Hospes comesque corporis, / Quae nunc abibis
in loca / Pallidula rigida nudula, / Nec, ut soles, dabis iocos…” (Margarite Yourcenar, Memórias de
Adriano, Lisboa, Ed. Ulisseia, 202014, p. 6).
1216
Esta dimensão disfórica, no poema justamente intitulado cronóptica, surge reiterada no verso inaugural:
“neste tempo que corre melancólico” (PR1, 33).
1217
Fernando Pinto do Amaral, “A caligrafia do tempo: uma leitura da melancolia na poesia de Vasco Graça
Moura”, in José da Cruz Santos (org.), op. cit., p. 81.
1218
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 170.
369
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
das forças que o dominam, a escrita é um paliativo para a única certeza humana que
é a morte.1219
Um esclarecedor e elucidativo exemplo do sentido da existência continua no
poema wild is the wind, título de uma canção interpretada por Nina Simone e David
Bowie, cujo ponto de partida volta a ser a referida epígrafe de Margarite
Yourcenar, agora explicitamente citada:
1219
Como num sistema de vasos comunicantes, esta acepção surge uma vez mais de modo consciente no
seguinte passo narrativo do autor contemporâneo: “Escrever é encarar a morte, sempre, não é jogar às
escondidas com ela, é fitá-la bem nos olhos e esperar-lhe o embate no retorno, a navalha de ponta e mola
assestada ao coração, a estocada, o projéctil, o que você quiser, sempre o fim sangrento e inexorável” (Vasco
Graça Moura, Meu amor, era de noite, loc. cit., p. 91).
370
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
A voz que discorre sobre o autor de Musa irregular, título enunciado mais
adiante no poema de Graça Moura, evoca o momento fatídico da morte de Assis
Pacheco, numa “livraria” de Lisboa, enquanto folheava as “novidades” editoriais. O
simbolismo temporal e espacial, enunciado em 1995, “com novembro a findar […]
1220
Veja-se sobre este assunto, a título de exemplo, Walter Medeiros, “Do desencanto à alegria: o Satyricon
de Petrónio e o Satyricon de Fellini”, in Revista Humanitas, nº 48, Instituto de Estudos Clássicos da
Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1996, pp. 169-175; Delfim Leão, “Poder sabedoria e
finitude no Satyricon de Petrónio”, in Fábio Cerqueira et alii (org.), Saberes e poderes no Mundo Antigo,
vol.II- Dos poderes, Coimbra, Imprensa da Universidade, 2013, pp. 33-52.
371
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
/ numa livraria”, cenário onde qualquer escritor desejaria morrer: junto de “ensaios
ou romance ou poesia”.1221
Neste contexto, que perpetua o homem na escrita1222, outra figura da sua
devoção é apresentada no momento da sua morte:
1221
Determinados vectores de significação em torno da morte de escritores pode ser encontrado noutros
poemas de Graça Moura: carta à mulher amada sobre a morte de vitorino nemésico (PR1, 181), morte de
david (PR1, 543), ofício de morrer (PR1, 286-287) e morte de camilo (PR2, 53). Estes dois últimos poemas
versam sobre os acontecimentos trágicos em torno dos suicídios célebres de Cesare Pavese e de Camilo
Castelo Branco.
1222
Neste âmbito, Maria Lucília Gonçalves Pires (Poetas do período barroco, loc. cit., p. 33) advoga: “A
morte de alguém (alguém ilustre pela sua beleza, pela sua sabedoria pelo seu poder, pela sua elevada
categoria social) é um dos motivos mais frequentemente tratados e utilizados como ponto de partida de
meditação sobre a efemeridade dos bens terrenos.”
372
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
1223
Pierre Grimal, “Parcas”, in Dicionário de mitologia, loc. cit., p. 355.
1224
António José Saraiva, Luís de Camões. Estudos e antologia, Lisboa, Ed. Bertrand, 31980, p. 84.
1225
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 168.
373
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
“Comigo me desavim,
sou posto em todo perigo;
não posso viver comigo
nem posso fugir de mim.
Sá de Miranda
1226
Fernando Pinto do Amaral, “A caligrafia do tempo: uma leitura da melancolia na poesia de VGM”, in
José da Cruz Santos (org.), op. cit., p. 78.
1227
Segundo Aguiar e Silva, mais do que um mero efeito retórico, este topos reveste-se de uma profunda
consciência significativa: “Na literatura maneirista, o tópico do desconcerto do mundo perde frequentemente
o carácter de esquema retórico para se volver em dolorosa reflexão sobre a confusão e a desordem cósmicas,
sobre a sem-razão do mundo e da vida” (Vítor Manuel Aguiar e Silva, Maneirismo e Barroco na poesia
lírica portuguesa, loc. cit., p. 236).
374
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
Também para Camões, o mundo, como a vida, é visto igualmente sob o prisma
maneirista de uma exacerbada desconfiança; tal inquietação, conduz o vate a um
cântico plangente de uma cosmovisão cruel, onde imperam a desgraça, o caos e os
conflitos, que, no dizer de Prado Coelho, são “motivo de indignação e espanto”.1228
Neste contexto, Camões adverte em registo plangente:
Os versos do autor das Rimas configuram, deste modo, um dos tópicos centrais
da sua mundividência lírica, o desconcerto do mundo1231. Com efeito, o texto cifra
a vida humana em dor e pranto, enfatizando que o trajecto existencial redunda em
miséria e sofrimento, marca distintiva do Maneirismo.1232
Nesta linha deceptiva ressoam os versos da conhecida esparsa camoniana:
1228
Jacinto Prado Coelho, “Camões, a cultura e o poder”, in Camões e Pessoa. Poetas da utopia, loc. cit.,
p. 48.
1229
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 129.
1230
Idem, ibidem, loc. cit., p. 286.
1231
Sobre este tema, vejam-se Ernst Robert Curtius, Literatura Europeia e Idade Média Latina, loc. cit.,
1957, pp. 99 sqq; Vítor Manuel Aguiar e Silva, Maneirismo e Barroco na poesia lírica portuguesa, loc. cit.,
pp. 235 sqq.; António José Saraiva, Luís de Camões. Estudos e antologia, loc. cit., pp. 83-115; Maria
Vitalina Leal de Matos, Introdução à poesia de Camões, loc. cit., pp. 70 sqq.; idem, “O homem perante o
destino na obra de Camões”, in Ler e escrever. Ensaios, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1987, pp. 65-
-78; Gustav R. Hocke, Maneirismo: o mundo como labirinto. São Paulo, Ed. Perspectiva, 21986; Márcia
Arruda Franco, “Desconcerto do mundo”, in Aguiar e Silva (coord.), Dicionário de Camões, loc. cit.,
pp. 312-316.
1232
Para uma análise global da poesia maneirista em Portugal, cf. a bibliografia apresentada por Rita
Marnoto, O Petrarquismo português do Renascimento e do Maneirismo, loc. cit., pp. 514-515, nota 9.
375
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
O que mais sobressai neste texto é uma visão desencantada do mundo, uma vez
que se trata da “agonia do mundo”, sugerindo complexas inquietações,
comprovadas no sintagma “o regimento seu está encoberto”1235. O lirismo que
emana destes versos prenuncia uma aguda crise do sujeito de enunciação, visto que
1233
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 102.
1234
Eduardo Lourenço (“Camões e o tempo ou a razão oscilante”, in Poesia e Metafísica, loc. cit., p. 44),
quando identifica as inúmeras variações camonianas sobre o tema, dá como exemplo uma das estrofes de
Sôbolos rios, cujo verso inaugural é “E vi que todos os danos”.
1235
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 199.
376
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
1236
Idem, ibidem, p. 160.
1237
Eduardo Lourenço, “Camões e o tempo ou a razão oscilante”, in Poesia e Metafísica, loc. cit., p. 82.
1238
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 199.
377
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
1239
Graça Moura, em entrevista concedida a Anabela Mota Ribeiro, salienta a lição camoniana de uma
consciência atormentada profundamente maneirista, que chegou com vitalidade aos tempos modernos: “A
melancolia tem muito a ver com um certo sentido de uma ordem perdida do mundo. E com um certo sentido
de incapacidade fonciére da plenitude do mundo. Nos melancólicos isso gera um lado mais saturniano, mas
humoral, mais irónico e mais reflexivo” (in http://anabelamotaribeiro.pt/vasco-graca-moura-103058 -
- consultado em 2 Março 2017).
378
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
1240
Aguiar e Silva, ao estudar os temas maneiristas em Camões, expende as seguintes considerações: “O
tema do desconcerto do mundo adquire na lírica camoniana uma expressão perturbadamente dolorida, pois
nela se revela, através de uma tessitura verbal filosoficamente analítica, uma visão ensombrada do mundo e,
em alguns casos, uma visão até anti-providencialista, como se o universo fosse dominado pelo acaso, por
forças inexplicáveis e em tresvario, sem que Deus manifeste nas coisas e nos seres a sua vontade e a sua
ordem” (Vítor Manuel Aguiar e Silva, Maneirismo e Barroco na poesia lírica portuguesa, loc. cit., p. 240).
1241
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 224.
1242
Aguiar e Silva observa que os poetas maneiristas portugueses cultivaram o símile da borboleta que
morre atraída pela luz da chama, haurida directamente em Petrarca ou nas obras de petrarquistas italianos e
espanhóis” (Vítor Manuel Aguiar e Silva, Maneirismo e Barroco na poesia lírica portuguesa, loc. cit.,
pp. 266-277).
1243
Cf. A divina comédia de Dante, tradução de Vasco Graça Moura, loc. cit., p. 393.
379
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
1244
Na descrição do estado de espírito de Inês de Castro, que vive uma felicidade passageira, Camões canta
“Naquele engano da alma ledo e cego” (Luís de Camões, Os Lusíadas, III, 120, loc. cit.).
1245
José Ribeiro Ferreira, “Temas clássicos em Vasco Graça Moura”, in Boletim de Estudos Clássicos,
nº 28, Dezembro de 1997, pp.107-117.
380
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
“no labirinto
habita o minotauro, o que devora
no mais fundo do antro materiais
que despedaça à serra e à tesoura
e agrega depois noutros sinais,
o monstro vagaroso que elabora
a dúctil lentidão dos seus metais
e nas formas que engendra tem ofício
de conjugar silêncio e desperdício.” (PR2, 275)
1246
Idem, “O labirinto e o Minotauro na poesia portuguesa contemporânea”, in Labirinto e Minotauro. Mito
de ontem e de hoje, Coimbra, Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos da Universidade, 2008, p. 45.
1247
Dante Aligheri, A Divina Comédia, tradução de Vasco Graça Moura, loc. cit., p. 31.
1248
Cf. “Vasco Graça Moura”, in http://anabelamotaribeiro.pt/vasco-graca-moura-103058 (consultado em
20 Janeiro 2016). Note-se ainda a recepção deste topos em Graça Moura no texto projecto em selva oscura,
que abre com os seguintes versos: “junto ao buraco onde é vergílio e dante, / me conduziu e os cantos se
articulam” (PR2, 285).
381
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
É nesta linha de dilemas sobre a condição humana, assinalada por uma singular
vocação lírica, que se constrói uma sequência poética, recorrente em Graça Moura,
designada por labirinto1249, em desesperada demanda de compreensão do mundo:
1249
Sobre o tema do labirinto, vide Arnold Hauser, Maneirismo: a crise da Renascença e a origem da arte
moderna, São Paulo, Ed. Perspectiva, 21993; Emilio Carrilla, Manierismo y Barroco en las literaturas
hispánicas, Madrid, Ed. Gredos, 1983 e Károly Kerényi et alli, Estudos do labirinto, Lisboa, Ed. Assírio &
Alvim, 2008.
1250
Vide Pierre Grimmal, “Teseu”, in Dicionário de mitologia, loc. cit., p. 441.
1251
Silvina Rodrigues Lopes, “Labirinto”, in Biblos, Enciclopédia Verbo das Literaturas de Língua
Portuguesa, vol. 2, loc. cit., cols. 1321-1326.
1252
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 176.
382
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
1253
Acerca da representação simbólica da construção de Dédalo nas letras portuguesas, vide Maria Leonor
Carvalhão Buescu, “Babel e o labirinto”, in Ensaios sobre literatura portuguesa, Lisboa, Ed. Presença,
1986, pp. 67-75.
1254
Aguiar e Silva, numa lapidar súmula, sublinha: “Como símbolo, o labirinto significa confusão,
dificuldade, esforço, temor e ansiedade, pois nos seus meandros múltiplos se perde o homem, embora
também neles se encontre a salvadora mensagem para a liberdade. A concepção do mundo e da vida como
um labirinto, mesmo tendo em conta a possibilidade de o homem encontrar na trama labiríntica a saída
libertadora – saída identificável, no plano religioso, no plano de deus –, revela inquietude e angústia vital,
senso agónico da sua existência e dúvida acerca do destino final do ser humano” (Vítor Manuel Aguiar e
Silva, Maneirismo e Barroco na poesia lírica portuguesa, loc. cit., p. 247).
1255
Horácio, Arte Poética, introdução, tradução e comentário de R. M. Rosado Fernandes, Lisboa, Ed.
Inquérito, 31984, p. 59.
383
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
“sentindo-nos indefesos
da vida cada momento,
quanto mais temos sustento
tanto mais ficamos presos
no vagar do pensamento.
encravar o sim no não,
1256
Nesta linha, já em 1994, Eduardo Prado Coelho afirma: “O que faz todo o interesse da poesia de Vasco
Graça Moura é precisamente este jogo complexo e enredado, feito de cedências, recusas, medo, timidez e
agressividade, em que o autor deseja atingir a mais serena evidência poética num estilo que poderíamos
designar em termos vulgares de “como quem não quer a coisa”. Só que a ‘coisa’ trabalha o texto em todos os
seus níveis e incidências” (António Lobo Xavier et alli, Vasco Graça Moura. 35 anos de trabalho literário,
loc. cit., p. 33).
384
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
1257
Aguiar e Silva, neste prisma, conclui que “No mundo desconcertado, labiríntico, ambíguo do
Maneirismo, […] a razão não apenas oscila mas soçobra” (Vítor Manuel Aguiar e Silva, “As canções da
melancolia: aspectos do Maneirismo de Camões”, in Camões. labirintos e fascínios, loc. cit., p. 227).
1258
Luís de Camões, Os Lusíadas, VI, 99, loc. cit.
385
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
1259
O explicit de O sentimento dum ocidental sugere também este topos de fechamento, quando o sujeito de
enunciação confessa: “Mas se vivemos, os emparedados / Sem árvores, no vale escuro das muralhas”
(Cesário Verde, “O sentimento dum ocidental”, in Cânticos do realismo: o livro de Cesário Verde, loc. cit.,
p. 128).
386
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
1260
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 176.
387
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
filia-se nos temas hauridos nas tradições líricas anteriores, de que Camões faz
parte, percorrendo uma gama de modulações focadas, sobretudo, no prazer
sensual.
Graça Moura revela conhecer com minúcia essa rica memória literária como
testemunha 365 poemas de amor1261, colectânea por si organizada. Com efeito, esta
presença, disseminada nos seus versos, sobressai claramente uma obsessão pela
representação da mulher, onde os eixos de sentido se centram no amor e paixão,
exprimindo, por vezes, um desejo repleto de erotismo, distanciado do amor
sublimado camoniano de raiz platónica.1262
Neste contexto, as figuras femininas que povoam o seu universo lírico não são
identificadas:
1261
Vasco Graça Moura (org.), 365 poemas de amor, Lisboa, Ed. Quetzal, 32009. Nesta compilação, notável
síntese da tradição lírica amorosa ocidental, Camões é o poeta mais representado com seis poemas,
respectivamente a Canção IX (pp.132-136), Amor é um fogo que arde sem se ver (p. 221), Aquela cativa
(pp. 287-288), Quando de minhas mágoas a companhia (p. 352), Transforma-se o amador na coisa amada
(p. 422) e O céu, a terra, o vento sossegado … (p. 458).
1262
A recepção de Petrarca constitui também um dos factores determinantes na difusão do tema do amor nas
letras portuguesas de Quinhentos, como Rita Marnoto sublinha: “O modelo petrarquista erige-se em pedra
angular da expressão do sentimento amoroso” (Rita Marnoto, O Petrarquismo português do Renascimento e
do Maneirismo, loc. cit., p. 357)
388
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
1263
Sobre a abundante bibliografia dedicada a esta matéria na Antiguidade, vide, a título de exemplo, Carlos
Ascenso André, Caminhos do amor em Roma, loc. cit., pp. 355-363.
1264
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 166.
389
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
Graça Moura deixa-se, pois, seduzir pela tentação haurida nas várias tradições de
amor que a lírica ocidental oferece; nesta linha, a imagem da mulher retratada por
Graça Moura surge como se fosse uma donna angelicata, de onde emana um
fascinante brilho que percorre os sentidos do poeta pela sugestão da sinestesia de
“os timbres ravelianos das / luzes da primavera” (PR1, 336). Os versos refractam,
deste modo, como o eu lírico vive e sente o imaginário feminino.
As notações depuradas de recorte clássico provocam um motivo inspirador e
surgem disseminadas na escrita, como testemunha a seguinte composição:
1265
Luís de Camões, Os Lusíadas, III, 132, loc. cit.
390
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
391
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
1268
O trecho paratextual é o seguinte: “E io a lui: I mi son un che, quando / Amor mi spira, noto, e quel
modo / ch’ e’ ditta dentro vo significando. Purg. XXIV, 52-54”. Graça Moura traduziu-o deste modo: “E eu
a ele disse: Esse sou eu que, quando / me inspira amor, o noto, e desse modo, / que dentro dita, o vou
significando” (A Divina Comédia de Dante, tradução de Vasco Graça Moura, loc. cit., p. 509).
1269
A este propósito, Graça Moura considera: “A lírica de Camões não cabe num figurino estreito da lírica
amorosa que é o seu quadro de referência imediato. Vai mais fundo na expressão das contradições e
angústias da condição humana. Nela, os dados existenciais, a matéria dos sentimentos, a palpitação afetiva, a
apreensão de instável mutabilidade do mundo, tudo se transfigura a partir de uma espécie de exílio absoluto
da consciência, num processo que é quase sempre o da figuração de um ‘bem passado’ irremediavelmente
irrecuperável, a não ser pelo exercício da palavra poética” (Vasco Graça Moura, “Versos que sabemos de
cor”, in JL. Jornal de Letras, Artes e Ideias, nº 1071, 19 Outubro 2011, p. 11).
1270
Neste prisma, um passo que dá título a uma narrativa de Graça Moura, a voz de Mateus revela os
sentimentos amorosos contraditórios que Constança lhe provoca, em clave antitética: “Meu amor, era de
noite e eu não sabia que ia ao seu encontro ou se ia a fugir de si, ou se era a fugir de mim que eu ia ao seu
encontro.” (Cf. Vasco Graça Moura, Meu amor, era de noite, Lisboa, Ed. Quetzal, 32002, p. 37).
392
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
“O caderno da casa das nuvens desenvolve-se como uma sequência de poemas de amor que
começou a ser produzida no remanso desse Duíno do Portugal minhoto, cuja interlocutora ou
destinatária se pudesse declinar numa quintessencialidade unitária da figuração de várias mulheres
e da experiência de amá-las.
Não foi, todavia, iniciado com esse propósito: a dada altura transformou-se nele e assim, por
essa como que ‘despersonalização objectiva’, ganhou uma dimensão que eu mesmo vivo como
qualitativamente diferente, uma vez que, às tantas, procurei fazer com que eventuais conotações ou
referencialidades de cariz autobiográfico surgissem um tanto ou quanto despojadas de notas que
seriam mais pessoais, para funcionarem também como ingredientes de ficção.” (PR2, 569-570)
Com efeito, o autor de o desgaste das imagens faz um balanço deliberado do seu
percurso poético e exprime a ambivalência de sentimentos patente nos seus textos.
A linha exegética referida comporta um cunho biografista e liga indubitavelmente a
intrínseca comunhão entre a obra e a vida, a sublinhar que ao prazer estético não é
indiferente a figura do autor, traço definidor do pensamento de Graça Moura.
Ao se debruçar sobre a génese do seu último livro de poesia, refere Duíno,
castelo situado na zona italiana de Trieste, cenário idílico perpetuado por Rainer
Maria Rilke, um dos seus interlocutores de língua alemã preferidos1272. Num gesto
comemorativo, converte, por assim dizer, o imaginário rilkiano num espaço de
portugalidade, para o qual elegeu o norte do país, uma vez que se reporta ao
“remanso desse Duíno do Portugal minhoto”. Indelével testemunho da sua ampla
recepção nas letras portuguesas1273, a convocação demonstrativa do fascínio pelo
autor de As elegias de Duíno1274, reforça, “na sequência de poemas de amor”, a
força de Eros por “várias mulheres”, que se concretiza, no dizer de Graça Moura,
na “experiência de amá-las”.1275
1271
O título, também com uma finalidade metaliterária, convoca os célebres versos finais do soneto
Enquanto quis amor que tivesse: “E sabei que segundo o amor tiverdes, / tereis o entendimento dos meus
versos!” (Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 117).
1272
Em nota final aos seus Poemas escolhidos, vgm, numa série de figuras de que se reconhece devedor,
elege como interlocutores privilegiados, na literatura de expressão alemã, Hölderlin e Rilke (Vasco Graça
Moura, Poemas escolhidos, loc. cit., p. 476).
1273
Acerca desta matéria, vide Maria António H. J. Ferreira Höster, Para uma história da recepção de
Rainer Maria Rilke em Portugal (1920-1960), Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2002.
1274
Sobre a tradução de Graça Moura das obras de Rilke, vide “Rainer Maria Rilke”, in A palavra
transversal, loc. cit., pp.109-127.
1275
Sobre a presença de Rilke na obra de Graça Moura, vide Rita Marnoto, “Pelas florestas da noite. Vasco
Graça Moura, tradutor e poeta”, in Rassegna Iberistica, nº 98, 2013, pp. 91-102.
393
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
1276
Cf. Rainer Maria Rilke, Carrossel e outros poemas, organização e tradução de Vasco Graça Moura,
com dez desenhos de Júlio Resende, Porto, Ed. Asa, 2004; idem, Elegias de Duíno e Os Sonetos a Orfeu,
tradução de Vasco Graça Moura, Lisboa, Ed. Quetzal, 2017 e idem, Cartas a um Jovem Poeta, tradução,
prefácio e notas de Vasco Graça Moura, Porto, Ed. Modo de Ler, 2014. João Barrento consagra um
pertinente texto introdutório em torno das traduções de Rilke realizadas por vgm; aí identifica o conceito que
o poeta português faz dos textos vertidos do alemão, configurando um tradutor-autor, visto que Graça Moura
preconiza a criatividade do seu labor (Cf. João Barrento, “O ser e o canto. Rilke pela mão de Vasco Graça
Moura”, in Elegias de Duíno e Os Sonetos a Orfeu, loc. cit., pp. 7-15).
1277
Vasco Graça Moura, “Miguel Torga, honrado poeta sinaleiro” e “Eugénio de Andrade ou a memória de
Tebas (ensaio sobre Limiar de pássaros)”, in Várias vozes, loc. cit., respectivamente, pp. 101-103 e pp. 135-
-137.
1278
Sobre este poema, vide Rita Marnoto, “Pelas florestas da noite. Vasco Graça Moura, tradutor e poeta”, in
op. cit., pp. 95 sqq e Maria António H. J. Ferreira Hörster, “Tradutores e tradução na lírica portuguesa dos
394
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
Neste passo, não deixa de pairar a memória do episódio camoniano da Ilha dos
Amores, com a reiteração dos lexemas “ilha” e “amor”, implícita celebração do
poder de Eros e recompensa divina consagrada aos segundos argonautas1279. O
sentimento intimista, decorrente das hesitações sugeridas pelas sucessivas
interrogações, não permite definir o amor, porque “apenas / se conhece
asperamente / seu rodeado mapa de coral”.
No poema sobre o mês de dezembro que deu título a uma colectânea da autoria
de vgm, surge de novo a mesma isotopia:
séculos XX e XXI: José Bento, Vasco Graça Moura e Armando Silva Carvalho”, in Cadernos da literatura
comparada, nº 34, 2016, pp. 528-530.
1279
A este propósito, Aníbal Pinto de Castro destaca a importância de que se reveste o poder do amor em
Camões: “Constituindo o núcleo temático de todo o universo poético por ele manifestado, o amor enriquece-
-se e aprofunda-se em função de uma visão do mundo e da vida equacionada segundo uma forte
contraposição dialética entre o indivíduo e os outros, que dá lugar a uma complexa e serrada rede de relações
que o associam a outros temas” (Aníbal Pinto de Castro, “Rimas”, in Biblos. Enciclopédia Verbo das
Literaturas de Língua Portuguesa, vol. 4, loc. cit., cols. 847-848).
395
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
“nem cantarei
de amor amargamente nesta meia idade:
não vos sei parelha
1280
Rita Marnoto, O Petrarquismo português do Renascimento e do Maneirismo, loc. cit., p. 387.
1281
Vasco Graça Moura, Meu amor, era de noite, loc. cit., p. 91.
1282
Rosa Martelo, neste contexto, conclui: “Por fim, acrescentaria que a poesia actual é uma poesia capaz de
conciliar uma vertente reflexiva e abstractizante com a atenção a uma factualidade muito concreta apoiada
num efeito de realismo; e que procura aliar o registo lírico e a construção de identidades sentimentais e
mesmo a criação de efeitos pseudo-autobiográficos à sugestão de que esse registo é ainda (e mesmo assim)
uma máscara” (Rosa Maria Martelo, “Tensões e deslocamentos na poesia portuguesa depois de 1961”, in
Vidro do mesmo vidro: tensões e deslocamentos na poesia portuguesa depois de 1961, loc. cit., p. 50).
396
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
brancas e vermelhas
moiro por vós, ai”. (PR1,337)
Deste modo, nos versos de Graça Moura prevalece uma determinada tonalidade
passional e dramática, marcante nos primórdios da tradição poética nacional. Assim
sendo, o poema, provido da musicalidade da poesia medieval, ganha do ponto de
vista estético e cultural todo o sentido, visto que “o amor é uma terna fadiga
inteligente” (PR1, 235).
Não obstante, em blues da morte de amor faz uma paródia da celebração de uma
vida apaixonada:
1283
Aníbal Pinto de Castro aponta a convivência de Camões com a tradição peninsular das composições
obrigadas a mote e dos versos em redondilha, que Graça Moura, conhecedor dessa realidade, não enjeita.
(Aníbal Pinto de Castro, “Camões e a tradição poética peninsular”, in Páginas de um honesto estudo
camoniano, loc. cit., pp. 85-104, sobretudo p. 89). Vide também Aida Fernanda Dias, “Camões - uma
memória poética”, in Actas do 3º Congresso da Associação Internacional de Lusitanistas, Coimbra,
Ed. Associação Internacional de Lusitanistas, 1992, pp. 99-118 e Albano Figueiredo, “Poesia peninsular do
século XV e Camões”, in Vítor Aguiar e Silva (coord.), Dicionário de Luís de Camões, loc. cit., pp. 700-
-703.
1284
Cf. Carolina Michaëlis de Vasconcelos, Cancioneiro da Ajuda, vol. II, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa
da Moeda, 1990, p. 317 e Paio Soares de Taveirós, “No mundo nom me sei parelha”, in Cantigas Medievais
Galego-Portuguesas / cantigas.fcsh.unl.pt/cantiga.asp?cdcant=124m (consultado em 5 Fevereiro 2017).
397
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
sofrimento. Por outro lado, o trecho “já ninguém morre de amor” contraria o topos
do amor e morte, imortalizado pela criação artística desde a Antiguidade.1285
A complexidade dos sentimentos leva o autor a declarar em registo antitético:
“nosso amor / nosso contentamento / e nosso sofrimento” (PR2, 538) é sinal de que
as crises mais dolorosas são as crises sentimentais. Similarmente, na Ode XII de
Camões, o sujeito poético compreende a paixão como limitação à consciência do
amante, quando confessa “o coração tenho turbado / sempre d’escuras nuvens
rodeado”, ou seja, submetido à escravidão emocional do amor.1286
Ao questionar a razão de ser da ligação afectiva, que nem sempre é duradoura, o
eu lírico confessa o seu desencanto:
nosso contentamento
e nosso sofrimento,
nosso consentimento
e nosso desalento.” (PR2, 538)
1285
José Ribeiro Ferreira, Amor e morte na cultura clássica, Coimbra, Imprensa da Universidade, 2013.
1286
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 283.
398
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
1287
Platão, O Banquete, tradução, introdução e notas de Maria Teresa Schiappa de Azevedo, Lisboa, Ed. 70,
1991, pp. 77 sqq.
1288
Sobre os diversos matizes do amor na obra referida, vide Maria Teresa Schiappa de Azevedo,
“Introdução”, in Platão, O Banquete, loc. cit., pp. 9-23 e Frederico Lourenço, “Para uma leitura do
Banquete”, in Grécia revisitada, loc. cit., pp. 199-210.
1289
Graça Moura, na sua admiração pela poesia amorosa deste autor, glosa no texto com a musa enlaçada
(PR2, 376) a Elegia Romana V de Goethe, servindo-lhe um segmento textual de epígrafe. Como sublinha
João Barrento, esta composição é central na poesia goethiana, visto que se trata de “um bom exemplo desta
unio poetica et erotica” (João Barrento, “Priapeia goethiana”, in Umbrais, o pequeno livro dos prefácios,
Lisboa, Ed. Cotovia, 2000, p. 262). Cf. também J. W. Goethe, Poemas. Antologia, versão portuguesa, notas
e comentários de Paulo Quintela, Coimbra, Ed. Centelha, 31979.
1290
O inicipit da primeira elegia, na tradução de Paulo Quintela, é o seguinte: “Todos os dias saio, sempre à
busca de outro caminho / Há muito interroguei já todos os da terra; / Além os cimos frescos, todas as
sombras visito / E as fontes” (Hölderlin, Poemas, prefácio, selecção e tradução de Paulo Quintela, Lisboa,
Ed. Relógio d’Agua, s./d., p. 229).
399
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
“Amor nunca vi
que muito durasse,
que não magoasse.”1292
1291
A propósito deste assunto, vide Maria Teresa Schiappa de Azevedo, “Retórica filosófica feminina em
Platão: Aspásia e Diotima”, in Antonio Lopez Eire et alii (coord.), Retórica, política e ideologia. Actas del
II Congresso Internacional de Salamanca, Salamanca, Ed. Asociación Española de Estudios sobre Lengua
Pensamiento y Cultura Clásica, 1998, p. 228.
1292
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 89.
1293
Idem, Os Lusíadas, III, 139.
1294
Idem, Rimas, loc. cit., p. 119.
400
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
1295
Idem, Rimas, loc. cit., pp. 55-56. Vide, a propósito, Rita Marnoto, “Retratos femininos na poesia de
Camões”, in Vítor Aguiar e Silva (coord.), Dicionário de Luís de Camões, loc. cit., pp. 851-855.
1296
Em consonância com esta faceta da vida, Ana Hatherly destaca em versos consagrados ao autor: “Mas tu
sempre elegante e sedutor / Fostes sempre fatal / Fatal para as mulheres (Ana Hatherly, “Adeus”, in Maria
do Céu Fialho e Teresa Carvalho (org.), A vista desarmada, o tempo largo, loc. cit., p. 45).
401
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
ela acendeu
com um isqueiro de ouro a cigarrilha.
ofereci-lhe um café. não quis”. (PR2, 83)
A sugestiva imagética resultante deste trecho passa pela revelação de gestos,
palavras e desejos, em suma, enumera as etapas da encenação da sedução 1297; o
valor apelativo do vestuário “lycra preta e cabedal”, que desenha uma figura
estereotipada, junta-se ao charme decorrente do “isqueiro de ouro” e da
“cigarrilha”, exemplos significativos do processo de aproximação, exercendo uma
atracção sexual, confessada sem rebuço pelo eu poético, que tenta seduzir “madame
bovary”, símbolo da beleza provocatória e do amor arrebatador, imortalizado por
Flaubert1298. Note-se a singular enunciação, sinal indelével de Graça Moura, que
aproxima situações quotidianas e marcas culturais, pelas etapas da encenação da
sedução. O sujeito poético arvora-se, pois, em Don Juan, convicto do seu poder
atraente, quando anuncia: “ofereci-lhe um café”. A recusa, plasmada na altivez de
“não quis”, mostra a tensão convencional de Eros entre o desejo masculino e a
indiferença feminina. O desejo é um estímulo para o amor, atitude distante do cariz
neoplatónico que Camões tão bem interpretou1299; deste modo, a única
possibilidade circunscreve-se, nos versos acima transcritos de vgm, ao amor
sensual.
De novo, com um ritmo narrativo, o sujeito de enunciação, na constante atenção
despendida à mulher, refere um encontro com uma ninfa num restaurante. Em
ambiente propício ao enamoramento, o poeta, ciente do seu poder sedutor e provido
de uma cultura invulgar, procura conquistá-la, num discurso eloquente e emotivo
1297
Graça Moura dedica a esta questão um texto intitulado, justamente, Da sedução: “Nas relações entre
homem e mulher, a sedução proporciona uma essencial dimensão qualitativa e comunicativa em que são
convocadas a emoção e inteligência. É um jogo que envolve lucidez e sensibilidade e que se alimenta de
surpresas e empatias. Uma forma de prazer que implica exercício de liberdade e sentido constante do risco
[…] A sedução implica uma invenção permanente e bilateral. Tem qualquer coisa de jogos de espelhos e de
empate técnico. O que não impede iniciativas ‘de assalto’, tal como na esgrima” (Vasco Graça Moura,
Papéis de jornal. Crónicas, loc. cit., pp. 250-251).
1298
Gustave Flaubert, Madame Bovary, Lisboa, Ed. Relógio D'Água, 2011.
1299
A título de exemplo, vide verbete e bibliografia apresentada por Maria Helena Ribeiro da Cunha,
“Neoplatonismo de Camões”, in Vítor Aguiar e Silva (coord.), Dicionário de Luís de Camões, loc. cit.,
pp. 634-642.
402
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
atravessado pelos grandes temas que se colocam à condição humana; quando julga
ter alcançado, finalmente, um motivo convincente, conclui:
Como faz tenção de anunciar, esse encontro que pode “dar engate / ou namoro”,
tem o fito de criar uma cumplicidade que ligue o leitor ao texto e, por outro lado,
funciona como espécie de chave de ouro com o eu lírico remata as considerações
de um sedutor experimentado. Com efeito, a progressão do poema é impulsionada
pelo jogo verbal, que, por sua vez, é gerado pelo anseio da conquista amorosa. Tal
tentativa simboliza, pois, uma demanda que o desejo exige e supõe.
Nessa pulsão confessional, o poeta apaixonado pela formosura do corpo
feminino, que noutro segmento repara nas “pernas bem cruzadas daquela rapariga”
(PR1, 20) reitera:
1300
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 327.
403
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
“Persegue-o a decifração desse mistério, desse enigma que se instaura, quanto mais real e
tocante mais oculto, no corpo encantatório da mulher, amado território em que o homem se perde,
se encontra e se salva. Dessa eterna esfinge que a mulher encerra, invisível, indivisível,
inviolável”.1301
O poeta, com efeito, confere uma importância crucial ao erotismo nos seus
versos, quando busca “as palavras para o gozo das coisas // a fruição dos actos
(PR1, 322). O amor sensual – o baixo amor camoniano, sublinhado por Hélder
Macedo1302, por via da submissão do espírito ao corpo – reveste-se, deste modo, de
significativa importância:
1301
Miguel Veiga, “O génio da minha geração”, in As Artes entre As Letras, nº 75, 30 Maio 2012, p. 2.
1302
Hélder Macedo, Camões e a viagem iniciática, Lisboa, Ed. Abysmo, 2013, p. 21.
404
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
O erotismo, um dos muitos fios que entrelaçam Graça Moura e Camões, está
presente, por exemplo, no deliberado decalque de “níveas tetas, roxos lírios” do
poeta contemporâneo, pelo poder encantatório da imagem da mulher num apelo aos
sentidos1306. Neste contexto, não deixa de ser significativo que, em ambos os
poetas, o canto de amor é predominantemente um canto do corpo feminino, na sua
força irradiante e tentadora; tal concepção, em grande medida desabrida, plasma a
deriva sugestiva de uma forte carga sensual.1307
1303
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 366.
1304
Neste quadro dos amantes in praesentia, vgm afasta-se do conceito propugnado por Aguiar e Silva do
exclusus amator da poesia camoniana, visto que “o amante é sempre excluído da presença e dos afectos da
mulher amada” (Vítor Aguiar e Silva, “O tema do exclusus amator na lírica de Camões”, in A lira dourada e
a tuba canora, loc. cit., p. 164).
1305
Luís de Camões, Os Lusíadas, II, 36-37, loc. cit.
1306
Pinto do Amaral, na análise do cariz amoroso na poesia de Graça Moura, reconhece que “a volatilidade
dos seus estados de alma” revela cambiantes vários, no entanto destaca a primazia da vertente sensorial em
detrimento de um amor especulativo (Fernando Pinto do Amaral, “A caligrafia do tempo: uma leitura de
melancolia na poesia de Vasco Graça Moura”, in José da Cruz Santos (org.), op. cit., p. 82).
1307
No que concerne a esta matéria presente nos versos camonianos, vide Vítor Aguiar e Silva, “Erotismo,
petrarquismo e neoplatonismo na ‘Écloga dos faunos’ de Camões”, in A lira dourada e a tuba canora, loc.
cit., pp. 183-204.
405
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
1308
Vasco Graça Moura, Os Lusíadas para gente nova, loc. cit., pp. 36-37.
1309
Marco Tulio Cicero, Ad familiares, Paris, Ed. Belles Lettres, 1976.
1310
Francisco Manuel de Melo, Cartas familiares, prefácio e notas de Maria da Conceição Morais Sarmento,
Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1981.
406
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
Com efeito, o fogo e o seu campo lexical, metáfora da paixão, consagra o prazer
que o amor suscita, patente em ambos os poetas.
Intimamente ligado a este sentimento arrebatador, também a imagem
privilegiada da nudez, abordagem ecfrástica dos atributos físicos, de matriz
petrarquista, tem ressonância camoniana, emergindo quando canta:
Por conseguinte, presente nos versos de vgm, o retrato da figura feminina, “nua
e neutra”, revisita a conhecida representação do Nascimento de Vénus, pintura
quinhentista de Botticelli1314. A posição anatómica das mãos, expressão de uma
atitude de pudor, representa uma mulher a sair do banho, “de cabelos molhados”,
1311
Eduardo Lourenço, “Camões e Frei Heitor Pinto”, in op. cit., p. 108.
1312
Maria do Céu Fraga, Camões: um bucolismo intranquilo, Coimbra, Ed. Almedina, 1989, p. 104.
1313
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 269.
1314
Sobre a relação sugerida na obra camoniana, vide Helena Longrouva, “Luís de Camões e Sandro
Botticelli”, in Maria do Céu Fraga et alii, Camões e os seus contemporâneos, loc. cit., 2012, pp. 376-389.
407
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
com ecos similares à desnudada deusa a emergir do mar1315. Por seu turno, ao invés
da figura clássica do poeta decepcionado, o sujeito de enunciação apresenta-se
como um vigoroso amante atraído pelo corpo desnudado. Este pensamento tem eco
na advertência da cantiga camoniana: “És falso amador / Tu não vês que Amor / se
pinta despido?”.1316
A nudez, sugerida pelo acto de despir, estimula o olhar do sujeito poético na
captação do instante:
1315
Sobre a presença desta divindade na obra camoniana, vide Vítor Aguiar e Silva, “Vénus”, in Vítor
Aguiar e Silva (coord.), Dicionário de Luís de Camões, loc. cit., pp. 957-961.
1316
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 24.
1317
Eça de Queirós, A cidade e as serras, Lisboa, Ed. Livros do Brasil, s/d, p. 71.
1318
Acerca do carácter divino do canto no ideário poético camoniano, vide Abel N. Pena, “Musas”, in Vítor
Aguiar e Silva (coord.), Dicionário de Luís de Camões, loc. cit., pp. 628-629.
1319
Para compreender os diversos cambiantes da funcionalidade das deusas inspiradoras, vide Maria Helena
Rocha Pereira, “Musas e tágides n’Os Lusíadas”, in Seabra Pereira e Manuel Ferro (coord.), op. cit., pp. 51-
-61.
408
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
O prazer decorrente do amor, profusamente ilustrado nos seus versos, volta a ser
a tónica dominante:
1320
Hernâni Cidade (Luís de Camões. O lírico, Lisboa, Ed. Presença, 31984, pp. 166 sqq.) trata a importância
de que se reveste a nudez na lírica e na épica camoniana.
1321
Esta tendência, segundo Octavio Paz, é própria da poesia pela recorrente conjugação entre a dimensão
lírica e a natureza erótica (Octavio Paz, A dupla chama. Amor e erotismo, S. Paulo, Ed. Siciliano, 1994,
p. 12).
1322
Luís de Camões, Os Lusíadas, IX, 83, loc. cit.
1323
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 44.
1324
Eduardo Lourenço, “Camões e a visão neoplatónica do mundo”, in op. cit., p. 23.
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Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
1325
Luís de Camões, Os Lusíadas, IX, 41, loc. cit.
1326
Idem, Rimas, loc. cit., p. 209.
1327
Idem, ibidem, p. 156.
1328
Também, com nexos intertextuais, o texto Ternura de David Mourão-Ferreira (Obra poética.1948-1988,
Ed. Presença, 4 2001, p.170) é similar ao trecho referido de Graça Moura: “Desvio dos teus ombros o lençol,
/ que é feito de ternura amarrotada, […] // Olho a roupa no chão: que tempestade! / Há restos de ternura pelo
meio, / como vultos perdidos na cidade / onde uma tempestade sobreveio ... // Começas a vestir-te,
lentamente.”
1329
Vítor Manuel Aguiar e Silva, Maneirismo e Barroco na poesia lírica portuguesa, loc. cit., pp. 263 sqq.
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Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
Movido pela paixão, embora o sujeito poético esteja só, invoca uma fisionomia
“luminosa”, metáfora da beleza capaz de irradiar por todo o mundo, e recorda com
agrado o afecto partilhado pelos amantes, motivo de mútuo deleite, como exprime:
“a tua testa pousada no meu peito, das tuas mãos e presas às minhas”. A eclosão
lírica, provém, em clave pessoal, das emoções vividas na relação amorosa,
resultante da cumplicidade entre dois seres, visível, por exemplo, no recurso aos
pronomes “tua” e “meu”, revelando uma natureza que Camões designou de
“terrestre e humana”.1330
No entanto, esta perspectiva de prazer afigura-se falaciosa, quando o sujeito de
enunciação canta:
1330
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 120.
411
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
Este belo trecho, o derradeiro poema do seu último livro publicado, é uma
projecção irreverente da representação sensual da mulher; com efeito, ocupa um
lugar privilegiado nos versos de Graça Moura pela maturidade revelada, bem como
pela aturada síntese do seu universo lírico, onde os contornos eruditos não são
descurados.1331
Descritos numa sugestiva perífrase, os seios, um indicativo fundamental da
feminidade, contaminam todas as circunstâncias de mise en scène, pela atenção que
o sujeito poético lhe despende, manifestando ser “descomplexado numa
heterossexualidade efusiva e elegante”, no dizer de Pedro Mexia1332. O jogo de
sedução enunciado reside na tensão estabelecida entre dois seres, concepção similar
a Camões, que é, como sublinha Hélder Macedo, assumida como experiência
pessoal vivida, ao invés da idealização contemplativa da beleza feminina
subjacente ao neoplatonismo renascentista1333. A florista ainda solicita ao sujeito
de enunciação que “a escreva a modele”, numa clara transgressão aos códigos
petrarquistas do comportamento feminino, tão caro a Camões quando canta a
atitude passiva no soneto Um mover d’olhos, brando e piadoso1334. De facto, os
versos não traçam uma dimensão espiritual ou divina de um ser humano; pelo
contrário, convertem-se na exaltação de uma mulher concreta, como testemunha a
sugestão sensual contida em “mamas pequenas” e “bicos espetados”. 1335
1331
Constituindo, sem dúvida, um ponto de referência no tratamento do tema do amor, observe-se o texto
prefacial de Graça Moura à sua tradução de Alguns amores de Ronsard, que, ao abordar os versos
traduzidos, sintetiza de modo similar a poesia do autor português: “Mas o que o singulariza é precisamente
o confronto constante entre erotismo e tempo que passa, entre a variação da condição física e a frustração
amorosa, entre o desejo e o corpo da mulher, entre figuras da mitologia clássica e ocorrências do quotidiano,
entre simular-se em situação num sem-número de metamorfoses ou arder variamente em várias flamas
(como diria Camões) e um princípio ou uma figura do Amor delas independente, entre humor, ternura,
capricho mais ou menos libertino e lirismo, entre convencionalismo, naturalidade, imitação, variação e
destra exploração inovadora de uma língua a fixar a sua modernidade e a sua coloquialidade literárias”
(Vasco Graça Moura, Alguns amores de Ronsard, Chiado, Ed. Bertrand, 2003, p. 14).
1332
Pedro Mexia, “VGM”, in Biblioteca, Lisboa, Ed. Tinta de China, 2015, pp. 22-23.
1333
Hélder Macedo, Camões e a viagem iniciativa, loc. cit., p. 9.
1334
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 156.
1335
Este passo está em sintonia com a definição da poética de Graça Moura, propugnada por Rui Lage:
“Poucos poetas recentes foram tão longe na exploração no pacto autobiográfico: não pelo desnudamento,
pelo transbordo lírico ou por estratégias de transgressão, mas pela sabotagem irónica, pelo desprendimento
com que se confessam fraquezas, peripécias, cumplicidades, boutades, tentações, atrevimentos.” (Rui Lage,
“Nada se perde, tudo se transforma em literatura”, in Eduardo Lourenço e Rui Vieira Nery, Colóquio
Homenagem a Vasco Graça Moura, loc. cit., p. 60).
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Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
Neste contexto, Graça Moura, na sua poligénese criativa1336, produz, como é seu
apanágio, um jogo intertextual incessante ao convocar também versos de António
Pedro – “deolinda do protopoema da serra de arga”1337 –, testemunho de um sentido
apreço e afinidade com o autor.
Nesta evocação culturalista, a memória literária é o eterno retorno a que Graça
Moura sempre regressa, pela convocação de Orfeu e Eurídice, tema tão caro,
também, a outros poetas modernos1338. Com efeito, conjuga, em apurada mestria, o
acento erótico, na sua feição íntima, com as alusões alegóricas, na senda da
conhecida exortação camoniana sobre o amor: “Melhor é experimentá-lo que julga-
-lo, / Mas julgue-o quem não pode experimentá-lo”.1339
Esta assimilação criativa, filtrada, entre outras, pela pena de Camões, nasce num
contexto de tonalidade burlesca pela justaposição do universo fabuloso e do
prosaísmo contemporaneidade1340; em última análise, os versos evocam, suscitam e
celebram o amor.1341
A paixão veiculada pelo mito de Orfeu e Eurídice1342, afigura-se, por
conseguinte, uma sobreposição da aventura mitológica e das próprias vivências do
poeta, à semelhança do modelo camoniano da Canção II:
1336
Graça Moura dá conta desse processo compositivo numa colectânea dos seus próprios versos: “Reúno,
nesta antologia de convívios, um conjunto de poemas em que são referidos outros escritores, muitos deles,
mas não todos eles nem só eles, determinantes para a minha própria escrita. […] A poesia é também um
exercício sobre a, e a partir da escrita alheia, numa teia de relações sincrónicas e diacrónicas que se vai
sucessivamente alterando, inflectindo e adensando” (Vasco Graça Moura, Antologia de convívios, Porto, Ed.
Asa, 2002, p. 11).
1337
Este passo evoca o seguinte passo de António Pedro: “A poesia da Serra d’Arga está no desejo de poesia
/ Que fica depois da gente lá ter ido / Ver dançar a Deolinda” (Cf. António Pedro, Antologia poética, Lisboa,
Ed. Angelus Novus, 1998, pp. 53-54).
1338
Maria Helena Rocha Pereira, “Motivos clássicos na poesia portuguesa contemporânea”, in Novos
ensaios sobre temas clássicos na poesia portuguesa, loc. cit., pp. 303-322.
1339
Luís de Camões, Os Lusíadas, IX, 83, loc. cit.
1340
Esta conjugação tem um claro paralelo com a poesia quinhentista nacional; como refere Rita Marnoto, é
recorrente os poetas petrarquistas retomarem temas mitológicos para, a partir deles, “em homenagem ao
poeta de Arre, cantarem a sua história de amor” (Rita Marnoto, O Petrarquismo português do Renascimento
e do Maneirismo, loc. cit., p. 401).
1341
Para Denis de Rougemont, toda a concepção do amor é inseparável de uma ideia de homem e do próprio
sentido de existência, formulação que se aplica sem dúvida, aos dois poetas (Denis de Rougemont, Les
mythes de l’amour, Paris, Ed. Albin Michael, 21996, p. 43).
1342
Sobre a simbologia em torno de Orfeu, vide Pablo Cabañas, El mito de Orfeo en literatura española,
Madrid, Ed. Consejo Superior de Investigaciones Científicas, 1948.
413
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
Por outro lado, ainda no que concerne ao poema de vgm, a enumeração dos
nomes femininos (“cíntias”, “lésbias”, “beatrizes”, “lauras”) celebrizados na
história da literatura desde a Antiguidade1344, são cantados por Camões e por Graça
Moura. Nessa panóplia, a convocação de personagens camonianas como Helena e
Dinamene, associa-se a uma determinada imagem caracterizadora da mulher: a
atracção, a sensualidade e o erotismo desenham um deslumbramento dos sentidos e
paixão, conforme já foi referido anteriormente.
O sintagma “antes de eu aprender a ser um orfeu contrabandista da sombra mais
amada”, em clave conclusiva, faz eco do mito protagonizado por Orfeu e Eurídice
que foi aproveitado, entre outros, por Camões, constituindo, no dizer de Rocha
Pereira, uma “preferência quase obsessiva”1345. Como é vulgarmente conhecido, o
filho de Calíope, quando regressa com a amada resgatada dos infernos, volta-se
para trás, gesto que lhe estava vedado, vindo a perdê-la irremediavelmente1346.
Este desenlace trágico intensifica, entre outras versões possíveis perpetuadas pela
Antiguidade1347, o poder do amor, visto que se converteu num “orfeu
contrabandista”. Este atributo configura, em registo clandestino, uma descida do eu
ao seu íntimo e à consumação do amor; Graça Moura parte, deste modo, de uma
relação para outra, onde cada mulher é sempre uma Eurídice por resgatar. O
episódio mitológico – presença recorrente no autor de apolo e mársias – afigura-se-
lhe um significativo recurso e contribui de um modo decisivo, pela variedade de
sentidos aduzidos, para a singularidade poética da sua obra. De facto, o caminho da
1343
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 206.
1344
Sobre a importância de que se reveste a sua nomeação no tecido da tradição literária ocidental, Graça
Moura observa: “As líricas amorosas organizam-se e desenvolvem-se apoiadas nessa ‘fidelidade’
paradigmática: basta recordar Cynthia e Lésbia, Laura e Beatriz” (Vasco Graça Moura, David Mourão-
-Ferreira ou a mestria de Eros, Porto, Brasília Editora, 1978, p. 9).
1345
Sobre este mito de ampla fortuna em Camões, sobretudo na sua lírica, Rocha Pereira trata, em acutilante
análise, os diversos intertextos de que se apropria o autor quinhentista (Maria Helena Rocha Pereira, “O
mito de Orfeu e Eurídice em Camões”, in Novos ensaios sobre temas clássicos na poesia portuguesa, loc.
cit., p. 71).
1346
Versos justificativos deste singular processo compositivo, no dizer do autor, são os seguintes: “o real é
perecível, nem os mitos / transpõem as distancias que improviso / entre os registos da representação / para o
amor desmedido” (PR1, 202).
1347
Pierre Grimal, Dicionário de mitologia grega e latina, loc. cit., pp. 340-341.
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1348
Virgile, Eneide, livres V-VIII, texte établi et traduit par Jacques Perret, Paris, Ed. Les Belles Lettres,
1978.
1349
Linda Hutcheon, Uma teoria da paródia, loc. cit.
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Conclusão
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muitas vezes, pela memória, sugestões e referências, alusões e citações, onde não
faltam processos ecfrásticos, na construção imagética de uma peculiar cosmovisão.
A diversidade de temas tratados, corolário das múltiplas contradições ou certezas
do poeta, interpela continuamente o leitor, que se vê confrontado com aspectos, à
primeira vista tão comuns como o do adormecer as filhas, entrelaçados com alusões
plasmadas numa rica e vasta erudição. Daí resulta, num lúcido sentido do efémero e
circunstancial, a capital importância da profusão de temas poéticos, decorrentes dos
grandes enigmas da vida: a passagem do tempo, a finitude da existência, o
desconcerto do mundo ou o desejo do amor.
Por outro lado, essa notável consciência leva o poeta, não raro envolto em
polémica, a problematizar sobre matérias candentes: o cânone literário, o ensino do
português, o acordo ortográfico ou a identidade europeia. No que concerne a este
último ponto, registe-se que o poeta, na esteira do pensamento já traçado por
Camões, não se confina apenas ao reconhecimento de uma indelével identidade
nacional; analisa também, com particular acuidade, quer em registo lírico, quer em
registo ensaístico, as vicissitudes da construção da Europa. Esta abrangente visão
confere indubitavelmente um sentido universal à obra de Graça Moura.
Assim, foi nossa intenção primordial a identificação das matrizes compulsadas,
oriundas dos mais diversos domínios, que concorreram para a definição do conceito
de recepção. Os pressupostos epistemológicos e teóricos-literarios, considerados
válidos e pertinentes, enunciados no capítulo inicial, permitiram dilucidar um
conjunto de questões pertinentes em torno do alcance do referido fenómeno na
poesia, com um privilegiado enfoque no intertexto camoniano.
O poder sugestivo dos textos do criador de Os Lusíadas, com efeito, converte-se
num privilegiado ponto de assimilação da apurada produção lírica do poeta
contemporâneo. A sua presença na actividade criativa e ensaística de vgm é um
exemplo ilustrativo da inesgotável riqueza e validade da mensagem do vate
quinhentista ao longo da história da cultura portuguesa. Esse diálogo instaura uma
significativa comunhão de interesses, que, de modo diverso, se podem descortinar
no poeta contemporâneo. De facto, tais laços ligam a memória do sistema literário,
no imprescindível diálogo instaurado entre uma persona criadora e um leitor com
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admito que ficaram de fora outros textos que gostaria de ter chamada à colação,
restando-me a esperança de futuramente poder realizar essa tarefa.
Por outro lado, tendo como pano de fundo a traditio, longe de se satisfazer uma
perspectiva estática, ela deve ser entendida no sentido dinâmico pela revalorização
selectiva de todo um legado, sendo, pois, a poesia entendida, na esteira do
modernismo de teor classicista de T. S. Eliot, como uma sempre renovada tradição
estético-literária. A ideia de movimento insere-se, portanto, num espaço fluido
entre memória e inovação. Na demanda de novos trilhos, o poder de transfiguração
que irrompe é conseguido através de estratégias inovadoras decorrentes de uma
concepção tão lúdica quanto artífica do exercício literário; sob o signo da
metamorfose, converge para o reconhecimento de uma originalidade indutora de
novos sentidos, configurando um dos maiores reptos colocado desde sempre à
poesia. A referida tónica, fecunda e criativa, desenha uma cartografia de leituras
que está na génese do próprio processo criativo, longe de se confinar a uma
perspectiva estática da tradição.
Por esta razão, e nesse contexto, destaca-se o exercício da construção paródica,
tomada no seu sentido etimológico de “ao lado ou em frente ao canto”, que
compreende sobretudo o arrojo de dialogar com os textos aclamados pelo cânone,
ocupando a obra camoniana um importante lugar no universo poético de vgm. A
sua inclusão inclui estratégias de reconhecimento demonstrativas de que os versos
não irrompem ex nihilo, antes resultam de uma escolha motivada perante as
portencialidades proporciondas pela tradição. Note-se que Graça Moura não
compõe as Rhythmas, nem vive já no remoto séc. XVI; no entanto, a sua
contemporaneidade não silencia nem olvida o legado recebido. Ao invés, procura
marcar uma distância irónica, sem nunca rejeitar o fascínio pelo modelo
consagrado. Integrada num panorama de intencional retorno à tradição, esta
perspectiva paródica, conscientemente assumida e nunca rejeitada, tem o mérito de
permitir retomar e revitalizar a produção literária haurida em Quinhentos. A
mundividência recriada, de dimensão pós-moderna, esboça um desejo incontido de
novidade, o que concede, sem dúvida, a Graça Moura uma posição preponderante
nas letras nacionais.
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Bibliografia
1. 1. Poesia
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Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
1. 2. Participação em antologias
AAVV., Magusto poético, Lisboa, Ed. Casa Fernando Pessoa- Fundação das Casas
de Fronteira e Alorna, 1998.
Jorge Reis-Sá, Anos 90 e agora. Uma antologia da Nova Poesia Portuguesa, Vila
Nova de Famalicão, Ed. Quasi, 2001.
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Letras da Universidade, 2005.
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séc. XII ao séc. XXI, Porto, Porto Editora, 2010.
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José da Cruz Santos (coord.), O primeiro dia: pequena antologia da mãe na poesia
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Ana Isabel Queiroz et alii (org.), Em Lisboa, sobre o mar. Poesia 2001-2010,
Lisboa, Ed. Poetica Vrbis, 2013.
José da Cruz Santos (org.), Orfeu canta. Pequena antologia da poesia portuguesa
sobre música, Porto, Ed. Modos de Ler, 2014.
1. 3. Organização de antologias
1. 4. Tradução de poesia
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1. 5. Narrativa
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1. 6. Teatro
Ronda dos meninos expostos (auto breve de Natal), Lisboa, Ed. Quetzal, 1987.
Auto de Mofino Mendes (farsa de Natal), ed. autor, 1994.
1. 7. Tradução de teatro
1. 8. Crónicas
429
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
430
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
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Damião de Góis e o livro de Horas dito de D. Manuel, Lisboa, Ed. Artibérica,
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“Lutos”, in Diário de Notícias,13 Outubro 1999, p. 14.
Contra Bernardo Soares e outras observações, Porto, Ed. Campo das Letras, 1999.
Sobre Camões, Gândavo e outras personagens, hipóteses de história e de cultura,
Porto, Ed. Campo das Letras, 2000.
“Uma nova antologia camoniana”, in Público-leituras, 23 Setembro 2000, pp. 2-3.
“O português do milénio ?”, in Público, 31 Dezembro 2000, p. 4.
“Do Porto, objecto de desejo”, in Os Meus Livros, nº 20 Maio 2001, pp. 46-47.
“Não, Camões não era gay - obviamente não era”, in Os Meus Livros, Junho de
2002, pp. 21-25.
“O que farei com esta ecfrase?”, in Os Meus Livros, Julho de 2002, pp. 86-87.
“Schubert e a escritura”, in Os Meus Livros, Junho de 2002, pp. 80-81.
“A memória dos outros”, in Os Meus Livros, Agosto 2002, pp. 46-47.
“O lugar de honra”, in Os Meus Livros, Setembro 2002, pp. 58-59.
“Rilke e o senhor Kappus”, in Os Meus Livros, Outubro 2002, pp. 44-45.
“Algumas notas numa tarde de Outono”, in Os Meus Livros, Novembro 2002,
pp. 28-29.
“O espírito de Dürer na casa de Mateus”, in Os Meus Livros, Novembro 2002,
pp. 70-74.
431
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
432
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
Amália: dos poetas populares aos poetas cultivados, Lisboa, Ed. Tugaland, 2009.
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“Recensão crítica a Uma viagem à Índia, de Gonçalo M. Tavares”, in Revista
Colóquio-Letras, nº177, Janeiro 2011, pp. 271-274.
“Uma semana em Março”, in JL. Jornal de Letras, Artes e Ideias, 6 Abril 2011,
p. 36.
“O bicho harmonioso: ressonâncias (efeitos acústicos em Vitorino Nemésio)”, in
Revista Relâmpago, nº 28 Abril 2011, pp. 147-149.
O Binómio de Newton & A Vénus de Milo. Poesia e ciência na literatura
portuguesa - uma antologia, (em colaboração com Maria Bochichio), Lisboa,
Ed. Aletheia, 2011.
“Redondilhas Sôbolos rios que vão ou sobre os rios que vão”, in Vítor Aguiar e
Silva (coord.), Dicionário de Luís de Camões, Lisboa, Ed. Caminho, 2011,
pp. 832-836.
“Retratos de Camões”, in Vítor Aguiar e Silva (coord.), Dicionário de Luís de
Camões, Lisboa, Ed. Caminho, 2011, p. 849-851.
“O reino da estupidez”, in Diário de Notícias, 29 Junho 2011, p. 54.
“Miguel Veiga. O portuense”, in Artur Santos Silva et alii, Miguel Veiga. Cinco
esboços para um retrato, Porto, Ed. Modo de Ler, 2011, pp. 47-49.
“Prefácio”, in Eugénio de Andrade, Traduções, Porto, Ed. Modo de Ler, 2012.
“José Afonso é mais que uma bandeira política?”, in Diário de Notícias
(suplemento Quociente de Inteligência), 27 Abril 2012, p. 25.
“A minha ária do catálogo”, in Diário de Notícias, 29 Agosto 2012, p. 54.
“Testemunhos”, in Cristina Pimentel e Paula Morão (coord.), A literatura clássica
ou os clássicos na literatura. Uma (re)visão da literatura portuguesa das
origens à contemporaneidade, Lisboa, Ed. Campo da Comunicação, 2012,
pp. 385-388.
“Versos que sabemos de cor”, in JL. Jornal de Letras, Artes e Ideias, 19 de
Outubro de 2012, p. 11.
“Vasco da Gama entre Poggio Bracciolini e Camões”, in Seabra Pereira e Manuel
Ferro (coord.), Actas da VI Reunião Internacional de Camonistas, Seabra
Pereira e Manuel Ferro (coord.), Coimbra, Imprensa da Universidade, 2012,
pp. 513-526.
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Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
“O fazer através e por cima das fronteiras”, in Ana Gabriela Macedo et alii (org.),
XIII Colóquio de Outono. Estética, cultura material e diálogos
intersemióticos, Braga, Ed. do Centro de Estudos Humanísticos da
Universidade do Minho, 2012, pp. 81- 88).
“Os Lusíadas para gente nova”, in Maria do Céu Fraga et alii, Camões e os seus
contemporâneos, Braga, Centro Interuniversitário de Estudos Camonianos,
Universidade dos Açores, Universidade Católica Portuguesa, 2012, pp. 111-
-115.
“O Acordo, outra vez”, in Diário de Notícias, 21 Novembro 2012, p. 54.
“Uma pequenina luz”, in Diário de Notícias, 26 Dezembro 2012, p. 54.
“O cadáver adiado”, in Diário de Notícias, 2 Janeiro 2013, p. 54.
“Urgentemente”, in Diário de Notícias, 9 Janeiro 2013, 54.
Saint-John Perse/Calouste Gulbenkian. Correspondance 1946-1954, Édition
établie, annotée et présentée par Vasco Graça Moura, Paris, Ed. Gallimard,
2013.
“Julius Pomarius est hic”, in Diário de Notícias, 3 Abril 2013, p. 54.
Discursos vários poéticos, Lisboa, Ed. Verbo, 2013.
A identidade cultural europeia, Lisboa, Ed. Fundação Francisco Manuel dos
Santos, 2013.
“O ensino do Português”, in Diário de Notícias, 13 Novembro 2013, p. 54.
“Os Lusíadas como epopeia global. The Lusiad, a global epopee”, in Revista de
ideias e magazine whith ideas, n º 5, Dezembro 2013, pp. 42-59.
“A urgência da literatura”, in Diário de Notícias, 15 Janeiro 2014, p. 54.
434
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
“Sôbolos rios que vão”, in Rita Marnoto (coord.), Comentário a Camões, vol. 3 -
Redondilhas Sôbolos rios, odes, Coimbra-Genève, Centro Interuniversitário
de Estudos camonianos- Centre d’Études Lusophones, 2016, pp. 15-41.
“Ensaio sobre um ensaio”, in José Saramago, Ensaio sobre a cegueira, Lisboa,
Ed. Guerra e Paz, 2017, pp. 9-20.
Nodo cieco, il retorno, a cura di Carlo Vittorio Cattaneo, Roma, Ed. Florida, 1984.
In acht gedichte, tradução de Peter Hanenberg, ed. autor, 1997, (textos depois
publicados em Akzente, 1Februar 2000).
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Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
1. 11. Entrevistas
DIAS, Ana Sousa, “Vasco Graça Moura. O impaciente europeu”, in Revista Ler,
Janeiro 2014, pp. 28-39.
ESTRELA, Edite, “Entrevista a Vasco Graça Moura”, in Bem dizer. Bem escrever,
Lisboa, Editorial Notícias, 1985, p. 52-53.
GUEDES, Maria José, “Vasco Graça Moura. Mais tempo, mais livros, mais
clássicos”, in As Artes entre as Letras, nº 75, 30 Maio 2012, pp. 4-5.
NERY, Isabel, “Vasco Graça Moura: A Portugal está a faltar muita poesia”, in
Revista Visão, 20 Março 2014, pp. 90- 95.
REAL, Miguel et alii, “Vasco Graça Moura”, in Revista Letras com vida-Litera-
tura, cultura e arte, nº 2, 2º semestre, 2010, pp. 149-159.
SALAZAR, Tiago, “Com sua Graça e tudo”, in Magazine Artes, nº 47, Janeiro
2007, pp. 20-27.
SALEMA, Isabel e RATO Vanessa, “Há criadores que acham que sou uma espécie
de monstro horrendo”, in Público-P2, 1 Fevereiro 2012, pp. 4-6.
SILVA, Rodrigues da, “Ele não é tão mau como isso”, in JL. Jornal de Letras,
Artes e Ideias, 17 Junho 1995, pp. 12-13.
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Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
— “Vasco Graça Moura - a poesia com uma ‘arte de viver’ entre o amor e a
melancolia”, in Isabel Ponce Leão e Eduardo Paz Barroso (org.) Vgm.
Cinquenta anos de vida literária, Porto, Ed. Modo de Ler, 2012, p. 59-68.
ALVES, Hélio J. S., “A propósito do soneto O dia em que eu nasci e do seu autor”,
in Isabel Almeida, Maria Isabel Rocheta e Teresa Amado (orgs.), Estudos.
Para Maria Idalina Rodrigues, Maria Lucília Pires, Maria Vitalina Leal de
Matos, Lisboa, Departamento de Literaturas Românicas da Faculdade de
Letras de Lisboa, 2007, pp. 263-295).
438
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
— “O ser e o canto. Rilke pela mão de Vasco Graça Moura”, in Rainer Maria
Rilke, Elegias de Duíno e Os Sonetos a Orfeu, Lisboa, Ed. Quetzal, 22017,
pp. 7-15.
439
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
— “O que farei com esta mesa?”, in JL. Jornal de Letras, Artes e Ideias, 27 Junho
2012, pp. 12-13.
440
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
— “Um nunca ouvido canto: notas de Os Lusíadas para gente nova”, in Boletim de
Estudos Clássicos, nº 57, Junho 2012, pp. 105-114.
CORTEZ, António Carlos, “Da palavra e dos silêncios”, in Os meus livros, Março
2004, p. 58.
— “Um modo mutante”, in JL. Jornal de Letras, Artes e Ideias, 6 Dezembro 2006,
p. 25.
441
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
— “Vasco Graça Moura. Uma voz a muitas vozes”, in JL. Jornal de letras, Artes e
Ideias, 14 Maio 2014, pp. 8-9.
CRUZ, José dos Santos (org.), Modo Mudando. Sete ensaios sobre Vasco Graça
Moura, Porto, Campo das Letras, 2000.
— ...Porque a amizade é o mais belo lugar da terra, Porto, Ed. Modo de Ler, 2017.
442
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FURTADO, José Afonso, “Une lecture bien faite”, in JL. Jornal de Letras, Artes e
Ideias, 14 Maio 2014, p. 12.
GOBERN, João, “Cara e coroa: perfil de Vasco Graça Moura”, in Revista Visão,
nº 146, 1996, pp. 32-36.
443
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
— “A poesia poderá ser com a pintura?”, in JL. Jornal de Letras, Artes e Ideias,
8 Fevereiro, 1994, p. 9.
— “António Osório, Vasco Graça Moura e Nuno Júdice: sentimento, ironia e vida
textual”, in A poesia contemporânea portuguesa, Famalicão, 2ª ed. revista e
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444
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LEÃO, Isabel Ponce, “Entre poetas”, in As Artes entre as Letras, nº 75, 30 Maio
2012, p. 3.
LEÃO, Isabel Ponce e BARROSO, Eduardo Paz (org.), VGM - cinquenta anos de
vida literária de Vasco Graça Moura, Porto, Ed. Modo de Ler, 2012.
LIMA, Isabel Pires, “Entre dois mundos: referências clássicas na poesia de Vasco
Graça Moura”, in José da Cruz Santos (org.), Modo mudando. Sete ensaios
sobre Vasco Graça Moura, Porto: Ed. Campo das Letras, 2000, pp. 85-100.
445
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
MARNOTO, Rita, “Pelas florestas da noite. Vasco Graça Moura, tradutor e poeta”,
in Rassegna Iberistica, nº 98, 2013, pp. 91-102.
446
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OLIVEIRA, Fernando Matos, “Vasco Graça Moura: Garrett numa cópia perdida e
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-154, Julho 1999, pp. 291-295.
PEREIRA, José Pacheco, “Vasco Graça Moura: uma perpectiva política”, in Isabel
Ponce de Leão e Eduardo Paz Barroso (org.), Vgm. Cinquenta anos de vida
literária, Porto, Ed. Modo de Ler, 2012, pp. 112-119.
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PIRES, Maria Lucília Gonçalves, “Recensão crítica a Várias vozes, de Vasco Graça
Moura”, in Revista Colóquio-Letras, nº107, Janeiro 1989, pp. 99-100.
449
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REAL, Miguel, “Um espírito camiliano”, in JL. Jornal de letras, Artes e Ideias, 16
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SANTOS, José da Cruz (org.), Modo mudando: sete ensaios sobre a obra de Vasco
Graça Moura, Porto, Ed. Campo da Letras, 2000.
450
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Moura”, in Revista Colóquio/Letras, nº 100, Novembro de 1987, pp. 159-161.
SILVA, Rodrigues da,“ Vasco Graça Moura. Ele não é tão como isso”, in JL.
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SOARES, Miguel Luso, Ainda Vasco Graça Moura e a Divina Comédia de Dante
Alighieri: uma décima observação, ed. autor,1996.
SOUSA, João Rui de, “Recensão crítica a A Sombra das Figuras, de Vasco Graça
Moura”, in Revista Colóquio-Letras, nº 93, Setembro de 1986, pp. 136-138.
TAVARES, Daniel, “Do retrato e da ausência: Vasco Graça Moura & Noé
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Universidade do Minho, 2014, pp. 275-288.
TAVARES, Gonçalo M., “Vasco Graça Moura, poesia”, in Revista Visão, 15 Maio
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Recherche sur les Pays Lusophone-CREPAL, Press Sorbonne Nouvelle,
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— “Vasco Graça Moura, um poeta que tende para a prosa e a recusa…”, in Revista
Colóquio-Letras, nº 173, Janeiro-Abril, 2010, pp. 76-83.
MIGUEL, Telma, “Poeta com muito mundo”, in Sol/Tabu, 2 Maio 2014, pp. 34-
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Vieira, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1932
— Rimas Várias, comentadas por Manuel de Faria e Sousa, com nota introdutória
do prof. F. Rebelo Gonçalves, prefácio de Jorge de Sena, Lisboa, Imprensa
Nacional - Casa da Moeda, 1972.
— Obras Completas, vol. III - Autos e cartas, com pref. e notas do prof. Hernâni
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ALEGRE, Manuel, Vinte poemas para Camões, Lisboa, Ed. D. Quixote, 1992.
BORGES, Jorge Luis, Obras completas, vol. III -1975/1985, Lisboa, Ed. Teorema,
1998.
CASTRO, João de, Roteiros, 3 vol., pref. e anot. por A. Fontoura da Costa, Lisboa,
Ed. da Agência Geral das Colónias Comemorativa do Duplo Centenário da
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COUTO, Diogo do, A década 8ª da Ásia, 2 vols., ed. de Maria Augusta Lima Cruz,
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Portugueses e Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1993-1994.
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Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
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Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
Índice onomástico
Bieres, Isabel Morujão de - 57
Bismut, Roger - 222, 233
A
Bloom, Harold - 8, 64
Blumenberg, Hans - 228
Abad, José Manuel Cuesta - 17 Bochichio, Maria -101
Abastado, Claude - 248 Boechat, Virgínia - 258
Albuquerque, Luís de - 234, 269 Borges, Jorge Luis - 71, 165
Albuquerque, Martim de - 278, 290 Borges, Maria João, 150, 175, 189
Alegre, Manuel - 232, 342 Bosi, Ecléa - 338
Almeida, Aníbal - 165, 166 Braga, Teófilo de - 257
Almeida, Bernardo Pinto de - 95, 96, 101, 107 Brunel, Pierre - 8, 12, 24, 29, 367
Almeida, Isabel - 34, 150, 177, 180, 182, 205, Buescu, Maria Leonor Carvalhão - 61, 63, 86,
211, 258, 359 201, 252, 383
Alves, Hélio J. S. - 177, 186, 240, 246, 247 Bürger, P. - 7, 12, 13, 17
Amaral, Fernando Pinto do - 48, 51, 66, 71, 73,
101, 135, 140, 142, 174, 244, 286, 336, 351, 360,
374 C
Amóra, André Luiz Alves Caldas - 245
Anacleto, Marta Teixeira- 29, 30
Anastácio, Vanda - 171 Cabañas, Pablo - 414
Andrade, Eugénio de - 45, 46, 50, 57, 79, 121, Calinescu, Matei - 245
328, 332, 342, 394 Camões, Luís de - 3, 4, 5, 6 ,7, 8, 11, 21, 28, 30,
André, Carlos Ascenso - 206, 361, 389 32, 33, 34, 35, 36, 37, 39, 45, 46, 47, 48, 60, 63,
Andresen, Sophia de Mello Breyner - 46, 50, 64, 66, 80, 128, 129, 144, 147, 150, 151, 152, 153,
154, 258, 262, 354 154, 155, 156, 157, 158, 159, 160, 161, 162, 163,
Antunes, António Lobo - 162 164, 165, 166, 167, 168, 169, 170, 171, 172, 173,
Aristóteles - 8, 21, 25, 27, 185, 352 174, 175, 176, 177, 178, 179, 180, 181, 182, 184,
Arnaut, Ana Paula - 273 185, 186, 187, 188, 189, 190, 191, 192, 193, 194,
Arrivé, Michel - 149 195, 196, 197, 198, 199, 200, 201, 202, 203, 204,
Asensio, Eugenio - 33 205, 206, 207, 208, 209, 210, 211, 212, 213, 214,
Aurélio, José - 64, 90, 116, 117, 161, 162, 168, 215, 216, 217, 219, 220, 221, 222, 223, 227, 228,
204, 229, 230, 231, 232, 233, 234, 235, 236, 239, 240,
Azevedo Filho, Leodegário A. - 171, 181 241, 242, 243, 244, 245, 246, 247, 248, 249, 250,
Azevedo, Manuela de - 227 251, 252, 253, 254, 255, 256, 257, 258, 259, 260,
Azevedo, Maria Antonieta Soares de - 167 261, 262, 263, 264, 265, 266, 267, 268, 269, 270,
Azevedo, Maria Teresa Schiappa de - 70, 399, 271, 272, 273, 274, 275, 276, 277, 278, 279, 280,
400 281, 282, 283, 284, 285, 286, 287, 292, 295, 296,
303, 304, 305, 306, 307, 310, 315, 319, 320, 325,
329, 330, 335, 340, 341, 342, 343, 344, 354, 355,
356, 357, 359, 360, 361, 363, 364, 365, 366, 367,
B
368, 369, 370, 373, 375, 377, 379, 380, 382, 385,
387, 386, 389, 390, 391, 392, 393, 395, 397, 398,
Bachelard, Gaston - 338 400, 401, 402, 403, 404, 405, 406, 407, 408, 409,
Bakhtine, Mikhail - 188 410, 411, 412, 413, 414, 415, 416, 418, 419, 420,
Barbas, Helena - 64,74 423
Barrento, João - 54, 55, 56, 68, 93, 94, 191, 211, Campoamor, Ramon de - 309
215, 218, 221, 275, 286, 289, 324, 349, 394, 399 Campos, A. J. Segurado de - 219
Barroso, Eduardo Paz - 46, 47, 93, 290, 301, 311, Cândido, António - 235
313, 323, 332, 338, 339, 356 Carmo, Carlos do - 340
Barthes, Roland - 83, 103, 108 Carrila, Emilio - 385
Bassnett, Susan - 30 Carrington, Maria Cristina -182
Batista, Manuel Pereira - 293 Carvalho, Joaquim de - 185
Beirão, Mário - 51, 235 Carvalho, José G. Herculano de - 220
Belchior, Maria de Lourdes - 208, 240 Carvalho, Teresa - 47, 104, 112, 117, 402
Benjamin, Walter - 54, 107, 109 Castelo-Branco, Fernando - 341
Berardinelli, Cleonice - 176, 208, 255, 263 Castro, Aníbal Pinto de - 7, 11, 21, 22, 33, 64,
Bernardes, José Augusto Cardoso - 60, 176, 179, 151, 155, 193, 215, 223, 228, 229, 235, 245, 249,
181, 195, 245, 255, 257, 264 255, 257, 261, 271, 395, 397
Castro, D. João de - 229, 240
Castro, Ivo de - 223
495
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
Castro, Laura - 316 Ferreira, António - 65, 123, 217, 318, 396
Castro, Sílvio - 239 Ferreira, António Manuel - 367
Centeno, Y. K. - 240 Ferreira, António Mega - 317
Chevalier, Jean - 234 Ferreira, José Ribeiro - 380, 398
Chevrel, Yves - 24, 28, 29 Ferreira, Paulo Sérgio - 248
Cícero - 21, 73, 363, 406 Ferreira, Vergílio - 46, 57, 200, 222
Cidade, Hernâni - 33, 160, 251, 341, 409 Ferro, Manuel - 6, 11, 25, 27, 28, 169, 206, 212,
Cirurgião, António -117, 236 248, 255, 264, 284
Cláudio, Mário - 162, 317, 320 Fialho, Maria do Céu - 47, 227, 402
Coelho, Eduardo Prado - 45, 384 Figueiredo, Albano - 397
Coelho, Jacinto do Prado - 46, 263, 272, 274 Flaubert, Gustave - 60, 402
Colomès, Jean - 20, 153, 222 Flor, Pedro Eugénio D. Ferreira de Almeida - 170
Compagnon, Antoine - 151 Fraga, Maria do Céu - 178, 195, 200, 228, 236,
Cortesão, Jaime - 234 244, 344, 408
Cortez, António Carlos - 56, 61, 63, 72, 80, 129, França, Elisabete - 55
278 França, José-Augusto - 98, 167
Costa, A. Fontoura da - 229 Franco, Márcia Arruda - 74, 382, 473
Coutinho, Bernardo Xavier -158 Freidenberg, Olga M. - 252
Couto, Diogo do - 156, 157, 232, 236 Freitas, Manuel de - 49
Craveiro, Maria José - 338 Frias, Joana Matos - 73, 81, 109
Cruz, Gastão - 49, 51, 126, 214
Cruz, Maria Teresa - 10, 16
Cuesta, Pilar Vazquez - 211 G
Cunha, António Geraldo da - 227, 277
Cunha, Carlos Manuel Ferreira da - 33 Gadamer, Hans-Georg - 17
Cunha, Maria Helena Ribeiro da - 184, 403 Garcia, José Manuel - 234
Curtius, Ernst Robert - 227, 236, 375 Garrett, Almeida - 49, 50, 194, 258, 264, 269,
Custódio, Pedro Balaus - 234 274, 276
Gastão, Ana Marques - 67, 207, 288, 353
Gedeão, António - 51, 186, 188
D Genette, Gérard - 23, 51, 77, 149, 248, 250
George, João Pedro - 272
Dasilva, Xosé Manuel - 54, 215 Gil, Fernando - 238, 305, 356
Delille, Maria Manuela Gouveia - 31, 179 Gil, Isabel Capeloa - 296
Deswarte-Rosa, Sylvie - 169 Glissant, Edouard - 222
Dias, Aida Fernanda - 397 Goethe - 50, 60, 307, 309
Dias, Ana Sousa - 44, 327 Golopentia-Erestecu, Sanda - 248
Diaz, Emilio Orozco - 361 Gomez-Moriana, António - 222
Dirscherl, Klaus - 16 Gonçalves, Francisco Rebelo - 224
Duarte, Joana - 338 Goulart, Rosa Maria - 352
Dubois, Claude-Gilbert - 22, 262, 263, 360 Grimal, Pierre - 281, 310, 373, 415
Dufrenne, Mikel - 64 Guillén, Claudio - 21
Guimarães, Fernando - 47, 324
Guimarães, José de - 194
E
H
Earle, T. L. - 65, 217
Ekelöf, Gunnar - 54, 294
Eliot, T. S. - 80, 127, 132, 148, 409, 422 Halbwachs, Maurice - 338
Estrela, Edite - 332 Hamon, Philippe - 104
Eco, Umberto - 13, 16, 17, 19, 28, 29, 188, 213, Hanenberg, Peter - 66, 346
219 Hatherly, Ana - 54, 294, 4082
Hatzfeld, Helmut Anthony - 366
Hauser, Arnold - 382
Hélder, Herberto - 49, 92, 182
F
Hocke, Gustav R. - 375
Hölderlin - 60, 393, 399
Faria, Manuel Severim de - 157, 160, 168, 220, Horácio - 21, 22, 23, 54, 60, 64, 73, 366, 383, 421
230 Höster, Maria António H. J. Ferreira - 393
Febvre, Lucien – 293 Householder, Fred W. – 248
496
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
I Luciano - 309
Langrouva, Helena - 412
Idt, Geniève - 23, 24, 25 Lourenço, José Fazenda - 156, 255, 258, 290
Ingarden, Roman - 10, 13, 14
Iser, Wolfgang - 9, 10, 12, 13, 14, 15, 16, 18, 23
M
J
Macedo, Hélder - 238, 305, 356, 361, 404, 405,
412
Janet, Pierre - 344 Macedo, Jorge Borges de - 280
Jankélévitch, Vlademir - 274 Machado, Álvaro Manuel - 8, 18, 24, 29, 30, 32,
Jauss, Hans Robert -7, 8, 9, 10, 11, 13, 14, 15, 16, 250, 327
17, 18, 19, 20, 24, 26, 27, 31, 32, 34 Maffei, Luis - 150
Jenny, Laurent - 22, 23, 199 Maravall, José Antonio - 262, 311, 350, 364, 367
Jordan, Annemarie - 168 Margarido, Alfredo - 149
Jozef, Bella - 338 Marinho, Maria de Fátima -148, 227
Júdice, Nuno - 47, 227, 276, 317, 342 Marnoto, Rita - 54, 57, 175, 189, 198, 204, 208,
Júnior, António Salgado - 200, 206 215, 305, 354, 355, 375, 388, 394, 395, 401, 414
Marques, João Minhoto - 199, 200
Martelo, Rosa Maria - 81, 114, 137, 148, 172,
K 301, 338, 344, 349, 351, 396
Martín, Ana Maria García - 211
Martín, José Luis García - 291
Kayser, Gerhard R. - 26, 28
Martinho, Fernando J. B. - 150, 156
Kerényi, Károly - 382
Martins, Andreia A. Paula - 234
Krieger, Murray - 78, 83, 289 Martins, Guilherme d’Oliveira - 209, 274, 296
Kristeva, Julia - 23, 148 Martins, José Cândido - 112, 196, 245, 246, 248
Martins, José V. Pina - 33, 253, 284
Martins, Oliveira - 278, 279
L Mateus, Rui Manuel Afonso - 21
Matos, Maria Vitalina Leal de - 33, 147, 148,
Ladmiral, Jean René - 29, 31 150, 156, 173, 176, 177, 179, 180, 184, 186, 199,
Lafer, Celso - 270 203, 205, 227, 228, 230, 231, 243, 256, 261, 262,
Lage, Rui - 52, 339, 420 273, 274, 277, 282, 363, 375
Lanciani, Giulia - 232, 238, 413 Maurer, Karl - 12
Langrouva, Helena - 250 Medeiros, Walter - 312, 371
Lapa, Rodrigues - 234 Melo, D. Francisco Manuel de - 20, 45, 153, 210,
Lausberg, Heinrich - 180 222, 271, 273, 406
Leão, Delfim - 371 Mendes, Margarida Vieira - 26
Leão, Isabel Ponce - 93, 301, 311, 323, 338, 356 Meschonnic, Henri - 216
Lefevere, André - 58 Mexia, Pedro - 60, 61, 342, 412
Lejeune, Philippe - 306, 350, 354 Miranda, José da Costa - 171
Lelièvre, F. J. - 248 Miranda, Sá de - 50, 84, 135, 136, 266, 318, 374
Lemos, Antero Vieira de - 211 Moniz, António Manuel de Andrade - 234
Lima, Isabel Pires de - 112, 157, 178, 246, 272, Monteiro, Joana d’Oliva - 91
277, 305 Monteiro, Ofélia Paiva - 150, 161, 269
Lima, Luiz Costa - 9, 10, 11, 13, 14, 16, 18, 19, Mora, Carlos de Miguel - 73, 248
25, 27, 28, 33 Morão, Paula - 93, 94, 112
Lisboa, Eugénio - 150, 174 Morin, Edgar - 139
Lobo, Francisco Rodrigues - 187, 220 Moura, Vasco Graça - 3, 4, 5, 31, 34, 35, 36, 37,
Lopes, Óscar - 35, 44, 45, 60, 72, 123, 136, 148, 38, 39, 40, 43, 44, 45, 46, 47, 48, 50, 52, 53, 54,
149, 154, 253, 258, 313, 332, 345 55, 56, 57, 58, 59, 60, 61, 62, 63, 64, 65, 66, 67,
Lopes, Silvina Rodrigues - 382 68, 69, 70, 71, 73, 75, 76, 77, 78, 79, 80, 81, 82,
Lotman, Yuri - 140 84, 85, 86, 87, 88, 89, 90, 91, 92, 93, 94, 95, 96,
Lourenço, Eduardo - 34, 45, 63, 69, 178, 181, 97, 98, 99, 100, 101, 102, 103, 104, 105, 106,
186, 190, 209, 255, 264, 266, 270, 273, 275, 276, 107, 108, 109, 110, 111, 112, 113, 114, 115, 116,
279, 280, 281, 296, 323, 338, 339, 367, 376, 377, 117, 118, 119, 120, 121, 122, 123, 124, 125, 126,
407, 410 127, 128, 130, 131, 132, 133, 134, 136, 138, 141,
Lourenço, Frederico - 173, 181, 197, 211, 216, 143, 144, 147, 151, 154, 156, 158, 159, 160, 161,
222, 254, 399 162, 163, 164, 165, 166, 167, 168, 171, 173, 174,
497
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
177, 178, 180, 181, 182, 183, 189, 191, 192, 193, Pereira, José Pacheco – 319, 320, 321, 394
194, 195, 199, 200, 202, 204, 207, 208, 209, 210, Pereira, Maria Helena Rocha – 120, 121, 152,
211, 213, 214, 215, 216, 217, 218, 219, 221, 224, 205, 217, 230, 231, 258, 279, 282, 289, 341, 352,
229, 231, 232, 235, 237, 239, 240, 241, 244, 245, 409, 413, 414
246, 247, 249, 250, 253, 258, 259, 264, 265, 269, Pereira, Paulo Alexandre - 367
270, 271, 272, 273, 274, 275, 276, 277, 278, 280, Pereira, Ricardo Araújo - 292
281, 283, 284, 285, 286, 287, 288, 289, 290, 291, Pereira, Virgínia Soares - 112, 343
292, 293, 294, 295, 296, 301, 302, 303, 304, 305, Perrone-Moisés, Leyla - 22
306, 307, 308, 309, 310, 311, 312, 313, 314, 315, Pessanha, Camilo - 50, 121, 173, 234, 238
316, 317, 318, 319, 320, 321, 322, 323, 324, 325, Pessoa, Fernando - 43, 46, 47, 50, 70, 94, 114,
326, 327, 328, 329, 331, 332, 333, 334, 335, 336, 160, 167, 191, 272, 276, 292, 340
337, 338, 339, 340, 341, 342, 343, 344, 345, 346, Picchio, Luciana Stegagno - 54, 177, 231
347, 348, 349, 350, 353, 354, 355, 356, 357, 358, Piglia, Ricardo - 338
359, 360, 361, 362, 363, 364, 365, 366, 367, 368, Pimentel, Diana - 80
369, 370, 371, 372, 373, 374, 376, 377, 378, 379, Pimpão, Costa - 153, 163, 178, 199, 200, 212,
380, 381, 382, 383, 384, 385, 386, 387, 388, 389, 230, 233, 251
390, 391, 392, 393, 394, 395, 396, 397, 398, 399, Pina, Manuel António - 87, 195
400, 401, 402, 403, 404, 405, 406, 407, 408, 409, Pinho, Sebastião Tavares de - 277
410, 411, 414, 416, 417, 418, 419, 420, 421, 422, Piñon, Nélida - 195, 344
423 Pinto, João Rocha - 234
Mourão-Ferreira, David - 45, 50, 199, 200, 276, Pires, Maria Lucília Gonçalves - 11, 22, 28, 30,
277, 340, 410 34, 147, 240, 364, 372
Moutinho, José Viale - 35, 166 Platão - 200, 399, 400
Mouzinho, António Ruivo - 150 Pomar, Júlio - 56, 85, 89, 90, 91, 166, 167, 340
Q
N
Quadros, António - 267
Queirós, Eça de - 49, 276, 279, 408
Nava, Luís Miguel - 49, 258
Queirós, Luís Miguel - 316, 317
Nemésio, Vitorino - 45, 49, 50, 79, 94
Quintais, Luís - 78
Nery, Rui Vieira - 46, 122, 181, 190, 306, 339,
413
Neto, João Cabral de Melo - 50
R
Nobre, António - 45, 50, 328
Nunes, José Ricardo -124
Ramalho, Américo da Costa - 166, 193, 309, 366
Real, Miguel - 56, 69, 72, 80, 129, 277
O Rebelo, Luís de Sousa -149, 236
Régio, José - 49, 132
Reis, Carlos - 22, 32, 161, 173, 195, 257
Oliveira, Carlos de - 188
Reis-Sá, Jorge – 51
Oliveira, Fernando Matos - 63, 76, 106, 107, 131
Ribeiro, António Pinto - 62, 101
Oliveira, Francisco de - 227
Ribeiro, Bernardim - 50, 361
O'Neill, Alexandre - 50, 92, 104, 126, 340
Ribeiro, Eunice Maria da Silva - 94, 97, 99, 111,
Osório, Jorge - 181
290, 291, 306
Ribeiro, Maria Aparecida - 195, 344
Ricoeur, Paul - 388
P Riewald, J. G. - 248
Rodrigues, José - 74, 117, 119, 280, 332, 381
Pageaux, Daniel-Henri - 8, 18, 24, 29, 31, 32 Rodrigues, José Maria - 171, 181, 232, 233, 259
Palla, Maria José - 110 Roncaglia, Aurelio - 280
Parejo, Ramón Pérez - 148 Rosa, António Ramos -121
Pascoaes, Teixeira - 160, 257 Rose, Margaret A. - 248
Paz, Octavio - 56, 153, 307, 353, 357, 409 Rossi, Paolo - 338
Pedro, António - 413
Peixoto, Afrânio - 232 S
Pena, Abel N. - 409
Pereira, José Carlos Seabra - 34, 46, 150, 169, Said, Edward - 338
195, 200, 206, 209, 235, 264, 268, 269, 270, 284, Salazar, Tiago - 207
327, 351, 367, 409
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Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
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Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose
Índice geral
Resumo ................................................................................................................................ 3
Abstract ............................................................................................................................... 4
Preâmbulo ........................................................................................................................... 5
Introdução ........................................................................................................................... 7
1. Fundamentos de uma ars poetica: entre a sublimação e a superação
1.1. Produção poética e perfil cultural de Vasco Graça Moura .......................................... 43
1.2. Labor poético versus inspiração .................................................................................. 63
1.3. As artes plásticas na poesia de vgm ............................................................................ 72
1.4. Contornos especulares: o retrato ................................................................................. 89
1.5. A representação do humano na câmara escura .......................................................... 100
1.6. A estatuária: arte performativa da figuração das imagens ........................................ 111
1.7. O gosto melómano do poeta ...................................................................................... 121
1.8. O cinema: os sentidos em movimento ....................................................................... 137
2. Enunciação e memória
2.1. Camões: ecos e reflexos em pedaços repartidos........................................................ 147
2.2. Os rostos de Camões ................................................................................................. 158
2.3. Uma voz deflectida .................................................................................................... 172
2.4. O divino e o profano .................................................................................................. 199
2.5. Tradução dos versos castelhanos de Camões: a literatura em diálogo ...................... 211
2.6. Língua portuguesa: “és nossa” .................................................................................. 217
3. Imagens camonianas das “perigosas cousas do mar” e da terra
3.1. Sob o signo do naufrágio: Dinamene e Sepúlveda .................................................... 227
3.2. Cartografia do regresso ............................................................................................. 249
3.3. O desencanto da chegada: desejo e ausência ............................................................. 263
3.4. A representação da Europa: identidade e memória ................................................... 275
4. Em demanda dos sentidos do mundo
4.1. Circunstância e poesia ............................................................................................... 301
4.1.1. A tentação da realidade .......................................................................................... 301
4.1.2. As pessoas: memórias e afectos ............................................................................. 312
4.1.3. Espaços e horizontes............................................................................................... 332
4.1.4. A imitatio vitae ....................................................................................................... 349
4.2. Temas de sugestão camoniana .................................................................................. 357
4.2.1. O tópico do tempus fugit ........................................................................................ 357
4.2.2. A representação da morte ....................................................................................... 368
4.2.3. O desconcerto do mundo ........................................................................................ 373
4.2.4. O poeta no seu labirinto.......................................................................................... 380
4.2.5. O encanto feminino ................................................................................................ 387
4.2.5.1. A mulher inúmera ................................................................................................ 387
4.2.5.2. A beleza e a inspiração ........................................................................................ 390
4.2.5.3. A definição do Amor ........................................................................................... 392
4.2.5.4. Estratégias da conquista ...................................................................................... 400
4.2.5.5. O amor sensual .................................................................................................... 404
Conclusão ........................................................................................................................ 417
Bibliografia...................................................................................................................... 425
Índice onomástico ........................................................................................................... 495
501