Location via proxy:   [ UP ]  
[Report a bug]   [Manage cookies]                

Vasco Graça Moura e Camões

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 502

Imagem

José Manuel Rodrigues Ventura

VASCO GRAÇA MOURA E CAMÕES:


TRADIÇÃO E METAMORFOSE

Tese de Doutoramento em Literatura de Língua Portuguesa, orientada pelo Professor Doutor José Carlos Seabra
Pereira e pelo Professor Doutor Manuel Simplício Geraldo Ferro e apresentada ao Departamento de Línguas,
Literaturas e Culturas da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra

Setembro 2017
José Manuel Rodrigues Ventura

VASCO GRAÇA MOURA E CAMÕES:

TRADIÇÃO E METAMORFOSE

Tese de Doutoramento em Literatura de


Língua Portuguesa, orientada pelo Professor
Doutor José Carlos Seabra Pereira e pelo
Professor Doutor Manuel Simplício Geraldo
Ferro e apresentada ao Departamento de
Línguas, Literaturas e Culturas da Faculdade
de Letras da Universidade de Coimbra

Setembro 2017

Universidade de Coimbra
À Zézinha e ao João Pedro
Resumo

A produção lírica de Vasco Graça Moura, enquanto testemunho inequívoco de


um notável fenómeno de recepção criativa, constitui pedra angular para a análise do
privilegiado diálogo que estabelece com Camões na sua obra multímoda, quer seja
poesia, ficção narrativa, tradução ou ensaio. É justamente o modo como o autor
aproveita e recria essa fecunda matriz, em demanda de uma criação de discurso
literário original, que se afigura a finalidade primacialmente visada pelo presente
trabalho. Nesta linha, pretende-se dar conta da complexa rede de nexos
intertextuais, apoiada num quadro teórico pertinente, com o propósito de identificar
elementos compositivos e semânticos inspirados na grandeza e valor do legado
camoniano, que, longe de estar esgotado, permanece como uma das mais fecundas
heranças da tradição literária nacional.
Embora esta dissertação vá incidir essencialmente na área dos estudos literários,
também, quando se afigurar oportuno, serão considerados, na devida perspectiva,
outras realizações artísticas aduzidas e tidas como relevantes, para descortinar
aspectos nucleares do perfil intelectual e do percurso lírico de Graça Moura. A
amplitude referida permite enveredar por caminhos analíticos e reflexivos mais
abrangentes, em grande parte fundamentais para dilucidar o itinerário de uma voz
singular das letras portuguesas atuais.
Decorrente destas pressuposições, reflexões e inferências, serão retiradas
conclusões sobre a pertinência da investigação realizada, com o intuito de
corroborar a sua oportunidade. Nessa medida, o presente trabalho hermenêutico,
ancorado na análise de um selectivo corpus textual, pretende tratar o labor poético
de Graça Moura, em conexão com outras áreas da sua criatividade, visando,
sobretudo em clave camoniana, concatenar as linhas de força determinantes que
conferem indubitavelmente uma invulgar coerência à sua produção lírica, matéria
ainda não tratada com profundidade na actual bibliografia crítica disponível.

3
Abstract

The lyrical production of Vasco Graça Moura, as an unequivocal testimony of a


remarkable phenomenon of creative reception, is a cornerstone for the analysis of
the privileged dialogue established with Camões. It is precisely the way in which
the author uses and recreates this fruitful matrix, in demand of an original
expression, which seems the primary purpose proposed. In this line, it is intended
to account for the complex network of intertextual links, supported by a valid
theoretical framework, in order to identify compositional and semantic elements
inspired by the greatness and value of the Camonian legacy, which, far from being
exhausted, remains one of the most fruitful legacies of the national literary
tradition.
Although this dissertation will focus essentially on the area of literary studies,
also, when it seems appropriate, other cultural milestones deemed relevant will be
considered, in order to uncover core aspects of Graça Moura's intellectual profile
and literary career. The aforementioned amplitude allows us to embark on broader
analytical and reflexive paths, which are largely fundamental to elucidating the
path of a singular voice of the Portuguese lyrics today.
Based on these assumptions, conclusions will be drawn on the relevance of the
research carried out, in order to prove the opportunity of the dissertation. To this
extent, the hermeneutical horizon, anchored in the analysis of a selective textual
corpus, intends to deal with the poetic work of Graça Moura, with the aim of,
above all in Camonian code, to concatenate the decisive lines of force that
undoubtedly confer an unusual coherence to its lyrical production, a subject not yet
treated in depth in the bibliography available by the most recent critique.

Palavras-chave: Vasco Graça Moura, Luís de Camões, poesia, recepção,


intertextualidade, paródia

Keywords: Vasco Graça Moura, Luís de Camões, poetry, reception, intertextuality,


parody

4
Preâmbulo

A minha descoberta, embora um pouco tardia, da obra de Vasco Graça Moura


ocorreu na década de 90 do século findo e, desde logo me cativou a sua original
concepção literária, sobretudo no que concerne à recriação da tradição lírica.
Visto que ao longo do meu percurso formativo e da minha actividade docente a
investigação tem sido sempre uma vertente fulcral – e que, dentro do possível,
venho a desenvolver –, afigurou-se-me motivante para a pesquisa literária o
fascínio que a escrita do referido autor me provocou. Deste modo, tornou-se viável,
na minha esfera de interesse, um projecto, há muito almejado, de realização de uma
tese de doutoramento, com o propósito de perscrutar a lírica de vgm, bem como
delinear traços caracterizadores de uma singular arte poética no contexto das letras
contemporâneos.
De entre uma variedade de temas que a vasta e rica obra de Graça Moura
compreende, foi minha intenção debruçar-me principalmente sobre o incessante
diálogo que a produção poética de Graça Moura estabelece com Camões. Nesta
linha de estudo da intetextualidade, teve-se em vista, assim, dilucidar aspectos
fundamentais da recepção criativa de Camões, que são um vivo testemunho da
continuada recepção do autor das Rhythmas ao longo dos séculos. Assim, a
abordagem de uma obra marcada pelo indelével influxo dos versos de Camões – e
do que com ele se relaciona – pretende distinguir determinadas coordenadas que se
tornaram marcantes na poesia portuguesa no dealbar do século XXI.
Procurei, deste modo, trilhar um percurso hermenêutico, que permita dar conta,
no seu terminus, do alcance operatório de um eixo tão complexo nos estudos
literários, como o é a designada estética da recepção. Constituiu, por tudo isto, um
desafio rastrear um corpus textual coerente, provido de um assinalável grau de
originalidade nas letras portuguesas, que se afirma numa notável pluralidade.
Para concluir este breve preâmbulo, não posso deixar de expressar o meu
agradecimento à minha família e aos meus amigos pelo permanente incentivo
dispendido, visto que sem eles não teria sido possível levar a cabo o presente
trabalho.

5
No entanto, nesse percurso, força é que destaque, em particular, o acolhimento
prestado pelo senhor Doutor José Carlos Seabra Pereira e pelo senhor Doutor
Manuel Simplício Ferro, desde o primeiro momento deste projecto. Fica, pois, aqui
a minha sentida e sincera gratidão pelo modo como receberam a proposta desta
tese, bem como pela sua pronta orientação e sugestões enriquecedoras, de apurada
sensibilidade e invulgar rigor científico. Sem o seu apoio generoso e persistente –
atributo próprio de humanistas cada vez mais raros, infelizmente, na
contemporaneidade –, não teria sido possível a concretização do presente trabalho.

6
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

Introdução

Camões ocupa um lugar de privilégio nas letras portuguesas, mercê do prestígio


que lhe foi concedido, perante o reconhecimento público da sua obra. De facto, o
autor das Rhythmas, de entre os poetas nacionais, é aquele que, sem dúvida, maior
admiração tem suscitado em todas as épocas; uma permanente recriação da sua
obra e um incessante movimento hermenêutico, ilustrativos de um vasto interesse e
constante divulgação, conferem-lhe, assim, uma singular modernidade1. Aguiar e
Silva, por exemplo, sustenta que Os Lusíadas não atravessaria sucessivas gerações
se não lhe apontassem inéditos significados, onde fossem projectados os valores de
sua própria hora histórica2. Condicionado por factores literários, estéticos,
históricos e culturais, esse diálogo, que explica o status de Camões ao longo de
mais de quatro séculos, está na origem do modo como cada um interpreta a sua
obra.
Esta perspectiva analítica centrada no leitor, fundada na hermenêutica alemã,
surgiu nos finais dos anos 60 do século findo com a estética da recepção, vindo a
converter-se numa questão crucial de reflexão literária. Assente num núcleo de
trabalhos representativos do ponto de vista literário e epistemológico, abriu novos
caminhos de investigação, comprovada pelo pensamento teórico conferido ao
leitor, o “terceiro elemento” numa obra literária, no dizer de Hans Robert Jauss,
vulto pioneiro nas teorias da recepção3. Com efeito, face à crise do paradigma
objectivista – marcado pela filosofia oitocentista e pelo estruturalismo do século
XX –, a linha de pensamento invocada, alicerçada na fecunda orientação teórica de

1
Aníbal Pinto de Castro, nesta linha, destaca “A obra camoniana, oferecendo uma das constantes principais,
se não a principal, da cultura literária portuguesa, constitui uma segura pedra de toque para a determinação
da dinâmica dos códigos estéticos em Portugal” (Aníbal Pinto de Castro, “A recepção de Camões no
Neoclassicismo Português”, in Páginas de um honesto estudo camoniano, Coimbra, Centro Interuniver-
sitário de Estudos Camonianos, 2007, p. 33).
2
Cf. Vítor Manuel Aguiar e Silva, Significado e estrutura de Os Lusíadas, Lisboa, Comissão Executiva do
IV Centenário da publicação de Os Lusíadas, 1972, p. 7.
3
Na senda desta asserção, Hans Robert Jauss, (“El lector como instancia de una nueva historia de la
literatura, in P. Bürger et alii, Estética de la recepción, Madrid, Ed. Arco/Libros, 1987, p. 59) sublinha: “La
historia de la literatura, como la del arte, en general, ha sido durante demasiado tiempo la historia de los
autores y de las obras. Reprimía o silenciaba a su “tercer componente”, el lector, oyente u observador. De su
función histórica, raras veces se habló, aun siendo, como era, imprescindible. En efecto, la literatura y el arte
sólo se convierten en proceso histórico concreto cuando interviene la experiencia de los que reciben,
disfrutan y juzgan las obras”.

7
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

Aristóteles e Kant, sublinha a função histórica do destinatário, que posiciona o


texto numa “série estética” pelas contínuas interpelações formais e éticas que
suscita4. Por outro lado, o largo acolhimento que gozou a estética da recepção,
graças, segundo Jauss, à “sociologia da literatura e ao seu método imanente de
interpretação”5, deve-se fundamentalmente ao facto de estabelecer um concepção
distinta do ideário positivista de fonte, fortuna ou influência6. As noções
enunciadas foram consideradas desprovidas de validade científica, visto que
descuravam o conflito de interpretações antagónicas, bem como eram incapazes de
reflectir sobre o fenómeno literário7. A evolução dos estudos neste campo desvia,
pois, o seu interesse da concepção da obra como mero resultado do trabalho
realizado pelo seu autor num determinado contexto. As novas acepções consideram
o estudo das fontes uma assimilação passiva da tradição pelo mero cotejo de
elementos textuais, como de uma reprodução mecânica se tratasse. Além disso, o
leitor, apesar da sua singularidade cultural, não é um indivíduo isolado, uma vez
que é tributário do meio e da época onde se insere, conceito que desloca, na teoria
literária, a noção de influência para a esfera da recepção8. A continuada incidência
sobre a instância receptora fundamenta, afinal, a própria existência do texto
4
Cf. Hans Robert Jauss, Pour une esthétique de la réception, Paris, Ed Gallimard, 41978, p. 63:
“L’esthétique de la réception ne permet pas seulement de saisir le sens et la forme de l’œuvre littéraire tels
qu’ils ont été compris de façon évolutive à travers l’histoire. Elle exige aussi que chaque œuvre soit replacée
dans la ‘série littéraire’ dont elle fait partie, afin que l’on puisse déterminer sa situation historique, son rôle
et son importance dans le contexte général de l’expérience littéraire”.
5
Vide Hans Robert Jauss A literatura como provocação, Lisboa, Ed. Vega, 1993, pp. 32-33.
6
Neste domínio, não admira que recentemente H. Bloom questione o conceito pouco rigoroso de influência
no sistema literário: “E de qualquer modo, o que é a influência poética? Pode o seu estudo ser mais do que a
indústria enfadonha de caça às fontes, contagem de alusões, indústria essa que de qualquer modo cedo
chegará ao seu apocalipse quando passar dos estudiosos para os computadores?” (Cf. Harold Bloom, A
angústia da influência. Uma teoria da poesia, Lisboa, Ed. Cotovia, 1991, p. 44).
7
A crítica em torno desta problemática deriva – segundo A. Manuel Machado e D.-H. Pageaux – da noção
errónea de texto literário como “uma estrutura fechada, hermeticamente elaborada, sem nenhuma
procedência, nenhuma contaminação, nenhuma fascinação exterior, nenhuma leitura plurivalente” (Cf.
Álvaro Manuel Machado e Daniel-Henri Pageaux, Literatura portuguesa, Literatura comparada, Teoria da
literatura, Lisboa, Ed. 70, 1988, p. 77).
8
Yves Chevrel preconiza novas perspectivas hermenêuticas, alicerçadas numa melhor fundamentação
histórico-crítica da literatura, que ultrapassem as fragilidades científicas do conceito de influência. Assim,
refere que a perspectiva de recepção, mais abrangente e com meios operativos mais rigorosos, sobrepõe-se a
um ponto de vista meramente historicista e positivista de que são paradigma os estudos sobre fonte e
influências de Van Tieghem. Na sua argumentação, serve-se do postulado de Jauss: “O resultado é
sobejamente conhecido: aplicar à história da literatura o princípio da explicação puramente casual só
permitiu que se colocasse em evidência os determinismos intrínsecos às obras, conduziu ao desenvolvimento
excessivo do estudo das fontes, resumiu a especificidade da obra literária a um feixe de influências, que se
podia multiplicar indiscriminadamente”. (Cf. Yves Chevrel, “Estudos de recepção”, in Pierre Brunel e Yves
Chevrel (org.), Compêndio de Literatura Comparada, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2004, p. 8 e
pp. 185-228).

8
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

literário, cuja importância deriva de uma evolução de mentalidades ao longo dos


tempos9. A estética de recepção, na realidade, centra-se no reconhecimento da
importância do leitor, coevo do autor ou possível no futuro, na comunicação
literária, o que projecta uma nova luz sobre obras que durante séculos
permaneceram esquecidas ou inéditas.
O potencial significativo ilimitado do texto desenha uma “prefiguração de
recepção”, princípio estruturante de sugestões no âmbito da teorização, e coloca,
deste modo, a tónica no destinatário, entidade indispensável para uma reflexão
dinâmica sobre a prática interpretativa 10. A mudança de paradigma decorrente, que
problematiza globalmente o sistema literário, concentra-se nos efeitos suscitados
pelo texto e na sua recepção, recusando uma análise unívoca11. Esta esfera de
interesses começou a desenhar um percurso exegético, proveniente de argumentos
específicos para fundamentar novos princípios de significação e o próprio conceito
de recepção como condição sine qua non para a existência da obra literária. Esta
actualiza-se e concretiza-se na comunicação veiculada ao leitor, entidade criativa
na construção de sentidos12. Enquadrada no fenómeno de recepção, o acto de
leitura configura uma capital funcionalidade hermenêutica, pelo relevo similar à
produção textual, mostrando que ambas as realizações não configuram percursos
antagónicos, pelo contrário, caracterizam-se pela sua complementaridade. A obra
só ganha sentido com um sujeito que com ela se confronta, ou seja, o seu centro de
interesse privilegia a interacção entre sujeito (o leitor) e o objecto (a obra)13. A

9
Cf. Regina Zilberman, Estética da recepção e história da literatura, S. Paulo, Ed. Ática, 1989, p. 100: “A
capacidade da obra de desprender-se de seu tempo original e responder às demandas dos novos leitores é
reveladora de sua historicidade. Porém, para ocorrer esse desdobramento futuro, é preciso que, desde o
começo, ela estabeleça algum tipo de comunicação com os próprios destinatários”.
10
Cf. Wolfgang Iser, O ato de leitura, vol. 2, S. Paulo, Ed. 34, 1999, p. 9.
11
Sobre este aspectos, Iser coloca três questões basilares: “1. Como os textos são apreendidos? 2. Como são
as estruturas que dirigem a elaboração do texto naquele que o recebe? 3. Qual é a função de textos literários
em seu contexto?” (Cf. Wolfgang Iser, O ato de leitura, vol.1, S. Paulo, Ed. 34, 1996, p. 10).
12
Cf. Hans Robert Jauss, “O texto poético na mudança de horizonte de leitura”, in Luiz Costa Lima, Teoria
da literatura em suas fontes, vol. II, Rio de Janeiro, Livraria Francisco Alves Editora, 21983, p. 309: “Um
texto do passado não interessa apenas com relação ao seu contexto primário, mas também é interpretado
para elucidar seu possível significado para a situação contemporânea”.
13
Neste sentido, Robert Scholes advoga que o leitor estabelece com o texto um pacto, que é a leitura, o que
implica a necessidade de submeter a regras determinadas esse acto. Deste modo surge a acepção de
protocolo, signo proveniente da área diplomática, de leitura, estabelecendo um pacto, no dizer do crítico, na
aproximação do leitor ao texto, cabal reconhecimento do status privilegiado do receptor no fenómeno
literário. A tensão gerada deve-se a um leitor activo que persegue o desejo – impossível – da certeza na
interpretação dos textos (Cf. Robert Scholes, Protocolos de leitura, Lisboa, Ed.70, 1991, pp. 65-101).

9
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

transformação verificada, susceptível de múltiplas abordagens em torno do objecto,


representação e intérprete, aproxima-se do conceito difundido por Pierce de
“semiose ilimitada”14, uma vez que qualquer obra apenas se realiza em plenitude
pela leitura. Neste contexto, o trabalho pioneiro de Hans Robert Jauss foi
determinante para o esclarecimento da função do leitor enquanto entidade histórica
na concretização das linhas interpretativas da obra literária15. A matriz
hermenêutica e fenomenológica da renovação de estudos literários retoma, pois,
pressupostos enunciados já em obras da modernidade. Ao seguir explicitamente as
noções de Gadamer16, valoriza a condição dialógica entre a obra e o leitor, onde
ganham particular significado os sentidos textuais, provenientes do complexo
processo de recepção. O autor de A literatura como provocação destaca, assim, a
relação dialéctica do texto literário, que, numa perspectiva exegética, vem dar
resposta às interrogações do leitor, contributo fundamental para modelar o seu
horizonte de expectativa. Na esteira deste postulado, Wolfang Iser preconiza que o
receptor, num determinado momento histórico, concretiza determinados
fundamentos interpretativos da obra literária, numa “relação recíproca de
interacção”17. Esta concepção, colhida em Roman Ingarden, denota que a expressão
de uma obra se atinge por uma multiplicidade de intervenções dos destinatários,
rompendo, desse modo, com a tradicional concepção de produção literária centrada
na redutora relação entre autor e obra18.
Com efeito, o texto, se não for lido, possui apenas uma realidade virtual, uma
vez que a sua existência apenas se actualiza através da leitura, condicionando assim

14
Apud Maria Teresa Cruz, “A estética da recepção e a crítica da razão”, in Revista Comunicação e
Linguagem, nº 3, 1986, pp. 57-67.
15
Esta teoria, se por um lado prima pela originalidade, por outro vem na senda dos trabalhos de autores
anteriores, como Hans Georg Gadamer, Jürgen Habermas ou Roman Ingarden, bem como do contributo de
estudos posteriores (Cf. Manuel Simplício Geraldo Ferro, A recepção de Torquato Tasso na épica
portuguesa do Barroco e Neoclassicismo, Coimbra, Faculdade de Letras, Universidade de Coimbra, 2004,
pp. 51-54).
16
Na realidade, Jauss reconhece a importância de que revestiu o pensamento do autor alemão na linha
orientadora da sua obra: “A teoria de Gadamer da experiência hermenêutica, a explicação histórica desta
experiência na história dos conceitos humanísticos fundamentais, seu princípio de reconhecer na história do
efeito (Wirkungsgeschichte) o acesso a toda a compreensão histórica e a solução do problema da realização
controlável da fusão do horizonte, são os pressupostos metodológicos inquestionáveis, sem os quais o meu
projeto seria impensável” (Cf. Hans Robert Jauss, “A estética da recepção: colocações gerais”, in Luiz Costa
Lima, A literatura e o leitor. Textos de estética da recepção, Rio de Janeiro, Ed. Paz e Terra, 1979, p. 55).
17
Cf. Wolfgang Iser, O ato de leitura, vol. 2, loc. cit., p. 97.
18
Cf. Roman Ingarden, A obra de arte literária, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1973, p. 380.

10
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

a própria produção literária, como defendeu Jauss19. Nesta linha, o iminente


estudioso alemão liberta o texto de uma estrutura fixa e estanque e estabelece uma
dimensão plural de literatura pela convergência de autor, obra e leitor, o que marca
um novo rumo dos estudos literários, visto que não se vincula a uma orientação
onde o sentido textual se confina unilateralmente ao que o seu autor lhe tinha
desejado atribuir20. A título de exemplo, a complexa recepção de Camões,
materializada em preferências individuais, históricas e filosóficas, explica, em
grande medida, a flutuação semântica e simbólica verificada na análise de
personagens ou episódios camonianos ao longo do tempo21. No panorama da teoria
da recepção, o texto é entendido como um objecto estético, com uma historicidade
própria, onde também a historicidade do leitor, indispensável ao tratamento do
problema da comunicação literária, é valorizada como factor essencial na
22
construção desse artefacto . Assim sendo, a percepção estética não é um código
universal e datável, visto que está sujeito à evolução temporal, demonstrando como
o acto de leitura é historicamente condicionado23. O texto, provido de múltiplas
significações, convida a um constante labor exegético, que se traduz na permanente
actualidade dos enunciados ao longo dos tempos24. Esta nova atitude, que se alarga
a um número indefinido de receptores heterogéneos do ponto de vista cultural,

19
Cf. Hans Robert Jauss, A literatura como provocação, loc. cit., p.71: “O modo como uma obra literária, no
momento histórico do seu aparecimento, responde à expectativa do seu primeiro público, a ultrapassa, a
desaponta, ou contradiz, fornece evidentemente um critério para o juízo sobre o seu valor estético”.
20
A este propósito, Hans Robert Jauss (Pour une esthétique de la réception, loc. cit., p. 47) afirma:
“L’œuvre littéraire n’est pas un objet existant en soi et qui présenterait en tout temps à tout observateur la
même apparence ; un monument qui révélerait à l’observateur passif son essence intemporelle”.
21
É esclarecedora a importância de que se revestiu o episódio do sonho de D. Manuel (Os Lusíadas, IV, 67-
-75) conduziu a uma larga polémica seiscentista, sendo actualmente um episódio sem o relevo hermenêutico
verificado outrora. Vide João Franco Barreto, Micrologia camoniana, (Prefácio de Aníbal Pinto de Castro;
leitura e integração do texto de Luís Fernando de Carvalho Dias e Fernando F. Portugal, Lisboa, Imprensa
Nacional-Casa da Moeda, 1982; Maria Lucília Gonçalves Pires, A crítica camoniana no século XVII,
Lisboa, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1982; Manuel Ferro, “Estas fábulas vãs, tão bem sonhadas.
Função e Fortuna do Sonho n’Os Lusíadas”, in Colóquio Camões e a Ciência, 11 Junho 2008, disponível em
http://www.museudaciencia.org/gfx/bd/100729130200_manuel_ferro.pdf (consultado em 19 Setembro
2012); José Manuel Ventura, João Soares de Brito, um crítico barroco de Camões, Coimbra, Centro
Interuniversitário de Estudos Camonianos-Imprensa da Universidade, 2010.
22
K. Stierle chama a atenção para a complexa diversidade de reacções do leitor face ao momento da
recepção (Cf. Karlheinz Stierle “Que significa a recepção dos textos ficcionais?”, in Luiz Costa Lima, A
literatura e o leitor. Textos de estética da recepção, Rio de Janeiro, Ed. Paz e Terra, 1979, p. 133).
23
Cf. Hans Robert Jauss, “O texto poético na mudança de horizonte de leitura”, in Luiz Costa Lima, Teoria
da literatura em suas fontes, vol. II, loc. cit., p. 315.
24
“A obra de arte é um signo, porque a significação é um aspecto fundamental de sua natureza, mas ela só se
concretiza quando percebida por uma consciência, a do sujeito estético” (Cf. Regina Zilberman, Estética da
recepção e história da literatura, S. Paulo, Editora Ática, 1989, p. 21).

11
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

conduziu a um contínuo trabalho hermenêutico em torno da figura do leitor25, de


onde se destaca o conceito fundamental proposto por Wolflang Iser de leitor
implícito26, uma categoria textual, portanto uma entidade destituída de existência
real, que antecipa a presença do receptor e concede um conjunto prévio de
orientações aos seus possíveis leitores27. Assim sendo, as estruturas de um texto
regulam, em larga medida, a sua leitura, e o caleidoscópio de perspectivas
construídas obriga à assunção de um determinado ponto de vista, fazendo do leitor
real um co-autor participativo28. A sua função realiza-se, assim, consoante as suas
circunstâncias históricas e individuais, realizando certas potencialidades contidas
na estrutura textual do leitor implícito, bem como delimita uma actualização
específica, determinando a sua peculiaridade perceptiva e, por isso, única29. Como
se observa, essa concretização preenche os interstícios da referida estrutura,
representando de um modelo intimamente ligado à estética da recepção e à teoria
do efeito30. A conjugação dinâmica destes dois princípios funcionais formula
indelevelmente um novo conceito de leitor e recupera a dimensão histórica da
literatura, pela relação estabelecida entre passado e presente, condição
imprescindível para a conjugação dos aspectos estético-literários e históricos de um
texto31.

25
Sobre esta problemática, vejam-se as esclarecedoras sínteses: Vítor Manuel Aguiar e Silva, Teoria da
Literatura, Coimbra, Livraria Almedina, 41982, pp. 296 sqq e Pierre Brunel e Yves Chevrel (org.),
Compêndio de literatura comparada, loc. cit., pp. 215-216.
26
Cf. Wolfgang Iser, O ato da leitura, vol. 1, loc. cit., pp. 63-79.
27
Cf. idem, ibidem, p. 73.
28
Wolfgang Iser fundamenta esta asserção do seguinte modo: “A análise isolada dos componentes
constitutivos da obra não só é problemática se a relação entre texto e leitor corresponder exatamente ao
modelo informacional do emissor e receptor. Esse procedimento teria como pressuposto um código comum
que assegura a recepção da mensagem, pois nesse tipo de processo a comunicação se dirige unilateralmente
do transmissor para o receptor. Em obras literárias, porém, sucede uma interação na qual o leitor recebe o
sentido do texto ao constituí-lo. Em lugar de um código previamente constituído, o código surgiria no
processo de constituição, em que a recepção da mensagem coincide com o sentido da obra. Se isso é
verdade, temos que partir do pressuposto de que as condições elementares de tal interação se fundam nas
estruturas do texto. Estas são de natureza complexa: embora estruturas do texto, elas preenchem sua função
não só no texto, mas sim à medida que afectam o leitor” (Cf. idem, ibidem, p. 51).
29
Para Karl Maurer, a riqueza de um texto está na capacidade de formular o que não está formulado,
cabendo essa descoberta ao leitor implícito (Cf. Karl Maurer, “Formas de lectura”, in P. Bürger et alii,
Estética de la recepción, loc. cit., p. 242).
30
Cf. Wolfgang Iser, O ato da leitura, vol. 1, loc. cit., p. 78.
31
Cf. Regina Zilberman, Estética da recepção e história da literatura, loc. cit., p. 33).

12
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

W. Iser, a partir das reflexões formuladas por Roman Ingarden, defende que a
obra literária tem dois pólos: o artístico e o estético32; o primeiro refere-se ao texto
criado pelo autor, enquanto o segundo incide na decodificação empreendida pelo
leitor, que é decisiva na medida em que lhe compete a iniciativa de actualizar a
obra adquirindo, então, valor estético33. Esta nova visão da história literária filia-se,
deste modo, no encontro com o leitor – “a virtualidade da obra”34 –, realidade que
radica na experiência de leitura. Cada hipótese interpretativa torna-se singular na
busca de conhecer a dimensão inédita de uma obra, pelo que a constituição de
sentido de um texto é “um acto criativo”, testemunho cabal da inesgotabilidade da
literatura35.
Embora exista uma tipologia diversa nesta área em torno do destinatário36, o
“leitor implícito”, deste modo, corresponde a determinados contornos conceptuais e
a implicações epistemológicos, de que resulta uma consequência criativa englobada
no fenómeno da estética da recepção, onde cada texto suscita um determinado
papel aos seus leitores possíveis. Como concretização pessoal, o acto de leitura
comporta experiência e interacção, pelo que a obra literária deve ser pensada pelos
efeitos sugeridos ao destinatário37. Assim, face à natureza incompleta do texto,
susceptível de permanentes análises, o texto é constituído por vazios que devem ser
preenchidos pelo leitor, criando uma determinada mundividência onde, numa

32
Vide Wolfgang Iser (“El proceso de lectura: enfoque fenomenológico”, in P. Bürger et alii, Estética de la
recepción, loc. cit., p. 215): “La obra literaria tiene dos polos, que podríamos llamar el artístico y el estético:
el artístico se refiere al texto creado por el autor, y el estético a la concretización llevado a cabo por el
lector”.
33
Esta concepção do carácter estético da obra literária é similar à que Jauss propõe: “O carácter estético
deve ser introduzido como premissa hermenêutica na realização da interpretação. No entanto,
reciprocamente também a compreensão e interpretação estética necessitam da função controladora da leitura
e de reconstituição histórica. Esta evita que o texto do passado seja adaptado ingenuamente aos preconceitos
e há expectativas de significado de nossa época” (Cf. Hans Robert Jauss, “O texto poético na mudança de
horizonte de leitura”, in Luiz Costa Lima, Teoria da literatura em suas fontes, vol. II, loc. cit., p. 312).
34
Cf. Wolfgang Iser, O ato de leitura, vol.1, loc. cit., p. 50.
35
Cf. idem, O ato de leitura, vol. 2, loc. cit., p. 67.
36
Wolfgang Iser apresenta, de um modo esquemático, diversas concepções formuladas pelos estudiosos
acerca do leitor, com o intuito de fundamentar a sua teoria (Cf. idem, ibidem, pp. 67 sqq). Registe-se que
esta argumentação permite concluir que todo o sistema literário implica obrigatoriamente a presença do
leitor.
37
Umberto Eco, quando preconiza o conceito de leitor modelo, sublinha que um texto representa uma cadeia
de artifícios expressivos que o destinatário deve actualizar, o que implicitamente realça o papel crucial do
autor, texto e receptor no acto de ler. Partindo de desta perspectiva, o professor italiano conclui: “Gerar um
texto significa actuar segundo uma estratégia que inclui as previsões dos movimentos do outro” (Cf.
Umberto Eco, Leitura do texto literário. Lector in fabula, Lisboa, Ed. Presença, 1983, p. 57).

13
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

manifestação cabal de aprovação ou recusa, deposita as suas vivências e interesses.


Nesta estratégia cooperativa, afigura-se importante dilucidar nas teses de W. Iser o
conceito funcional de vazio38, apoiado no legado teórico de Roman Ingarden dos
pontos de indeterminação39. As obras, como textos abertos, apresentam uma notória
amplitude de indeterminação e, ao solicitar uma pluralidade de leitura, potenciam a
liberdade do leitor num processo particularmente reflexivo e dinâmico. Com efeito,
à medida que procura suprir as lacunas evocadas, passa por uma experiência
estética e, logo, por perspectivas novas, cujo resultado, no dizer de K. Stierle,
materializa uma “teoria das variáveis da recepção”40. O modelo concebido por Iser
entende a leitura como concretização, e desenha-se na assimetria entre o texto e o
leitor, que, neste caso, só é superado por um preenchimento interpretativo através
de projecções individuais de realização da leitura, o que comprova a estrutura
dinâmica do texto e as operações mobilizadoras do receptor41. Com efeito, este não
é um mero descodificador das carências estruturais contempladas no discurso42,
uma vez que lhe cabe, completar os vazios, com o propósito de construir possíveis
linhas significativas43. Pelo facto de um texto apresentar uma cadeia de estratégias
expressivas que o destinatário, devido à incompletude registada, deve concretizar, o
acto de leitura exige a sua acção activa e consciente. Por conseguinte, o fenómeno
dialógico da literatura implica dois momentos fundamentais: o primeiro, imanente à

38
Cf. idem, ibidem, pp. 57-58. Em consonância com este postulado, Jauss regista a sua importância na
dilucidação da sua estética de recepção (Cf. Hans Robert Jauss, “O texto poético na mudança de horizonte
de leitura”, in Luiz Costa Lima, Teoria da literatura em suas fontes, vol. II, loc. cit., p. 311).
39
Neste prisma, o autor sustenta: “Nem o objecto apresentado é total e univocamente determinado no seu
conteúdo nem é infinita a quantidade das determinações univocamente definidas e positivamente atribuídas
nem ainda a das simplesmente co-apresentadas: só é projectado um esquema formal de uma quantidade
infinita de pontos de determinação que ficam quase todos por preencher” (Cf. Roman Ingarden, op. cit., p.
273).
40
Cf. Karlheinz Stierle, “Que significa a recepção dos textos ficcionais?”, in Luiz Costa Lima (org.), op. cit.,
p. 164.
41
Cf. Wolfgang Iser, O ato da leitura, vol. 2, loc. cit., pp. 108 sqq e também do mesmo autor “A interação
do texto com o leitor”, in Luiz Costa Lima, A literatura e o leitor. Textos de estética da recepção, Rio de
Janeiro, Ed. Paz e Terra, 1979, p. 88.
42
Há, com efeito, aspectos distintos entre o conceito ingardeniano de indeterminação e o conceito de vazio
textual proposto por Iser (Cf. Wolfang Iser, O ato de leitura, vol. 2, loc. cit., pp. 108-121 e pp. 144-158).
43
Cf. Wolfgang Iser, O ato de leitura, vol. 2, loc. cit., p. 157: “O lugar vazio permite que o leitor participe
da realização dos acontecimentos do texto. Participar não significa, em vista dessa estrutura, que o leitor
incorpore as posições manifestadas do texto, mas sim que aja sobre elas”.

14
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

própria obra, configura um ponto de partida e potencia interpretações futuras; o


segundo actualiza a enunciação através da leitura.44
Nesta ordem de ideias, os estudos de Jauss, fundados na recepção histórico-
-literária de obras, privilegiam também a experiência estética, com o fito de
compreender a essência das relações entre a obra e o leitor. A valorização deste
princípio permite justificar a continuidade histórica de uma determinada obra, o
que não invalida o seu carácter transgressor, pela derrogação dos códigos
intrínsecos a um determinado texto. A realização resultante, intimamente associada
à emancipação comunicativa, actua, deste modo, como um estímulo à
concretização de inovadores processos de leitura face à criação artística45, que
decorre – no dizer de Jauss – fundamentalmente de três factores: a poesis, próxima
da Estética de Hegel, liga-se à praxis produtiva, a aethesis, que compreende a
recepção, enquanto a catarsis, de índole comunicativa, conduz, através dos afectos,
à liberdade estética de julgar46.
De igual modo, W. Iser preconiza que o acto de leitura, antecipado de uma
prévia análise interpretativa, com características que conferem ao texto um estatuto
literário, implica um determinado efeito47; na verdade; a construção de novos
sentidos é fundamentalmente uma actividade criadora, pelo que o efeito estético se
reveste de um papel hermenêutico fulcral48. Deste modo, o amplo potencial de
referentes apresentados actualiza-se no processo de leitura, através da relação

44
Na complexidade que emana do fenómeno de leitura, esta questão é retirada num interessante artigo de
Wolfang Iser; reconhece no leitor um agente activo que perscruta os sentidos do texto através da sua
interpretação. Vide Wolfang Iser, “The Reading process: a phenomenological approach”, in Jane P.
Tompkins (ed.), Reader-response criticism. From formalism to post-structuralism, Baltimore, Ed.
University Press, 1980, pp. 50-69.
45
Segundo Regina Zilberman (Estética da recepção e história da literatura, loc. cit., p. 54): “Caracterizando
a experiência estética, Jauss explica por que é lícito pensá-la como propiciadora da emancipação do sujeito:
em primeiro lugar, liberta o ser humano dos constrangimentos e da rotina quotidiana; estabelece uma
distância entre ele e a realidade convertida em espetáculo; pode proceder a experiencia, implicando então a
incorporação de novas formas, fundamentais para a atuação na compreensão da vida prática, e enfim, é
concomitantemente antecipação utópica, quando projetas vivencias futuras, e reconhecimento retrospectivo,
a preservar o passado e permitir a redescoberta de acontecimentos enterrados”.
46
Cf. Hans Robert Jauss, Pour une esthétique de la réception, loc. cit., pp. 130-131. Veja-se o sucinto
comentário de Regina Zilberman (Estética da recepção e história da literatura, loc. cit., pp. 52-57) sobre as
três actividades relacionadas com a experiência estética.
47
Wolfgang Iser, O ato da leitura, vol. 1, loc. cit., pp. 52-53.
48
Cf. idem, ibidem, p. 10: “Se os textos literários produzem algum efeito, então eles libertam um
acontecimento, que precisa de ser assimilado. Em consequência, os processos de tal elaboração estão no
centro do interesse do efeito estético”.

15
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

dialéctica dos signos do texto com o leitor49. Assim, a teoria do efeito está ancorada
no texto, enquanto a recepção se integra nos juízos históricos dos leitores; é
precisamente na conjugação destes dois princípios – efeito e recepção – que tem
lugar a realização da estética da recepção50.
A natureza interactiva51 da reciprocidade entre texto e receptor, permite explorar
aspectos específicos do discurso literário, onde se recuperam os fundamentos que
explicam uma pluralidade de leituras complementares e se define a ideia de “obra
aberta”, expressão cunhada por Umberto Eco52, justificando, deste modo, as
possibilidades de interpretações, a um tempo, distintas e complementares de uma
obra literária. Com efeito, a produção camoniana permite uma análise de recepção
que convoca todo o potencial de sentidos imanentes, que, apesar de tudo, nunca se
torna arbitrária ou descontextualizada, devido ao horizonte de expectativa
estabelecida pela obra53. Neste quadro referencial, é possível rever o conceito de
história da literatura como uma manifestação de produção e recepção estéticas

49
Neste contexto, W. Iser usa ainda o conceito de “jogo” para pensar a interacção entre autor-texto-leitor e
identificar as operações levadas a cabo no processo textual. O leitor assume, com efeito, uma participação
ativa no processo de descodificação: ele não apenas lê de forma passiva, mas também cria um significado
graças ao envolvimento dinâmico no processo interpretativo; a essa criação está intimamente ligado o
conceito de “suplemento”, implícito a cada texto e considerado na sua individualidade, pois resulta de cada
leitor, e está implícito a cada texto (Idem, “O jogo”, in João Cezar de Castro Rocha (org.), Teoria da ficção.
Indagações à obra de Wolfgang Iser, Rio de Janeiro, Ed. Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 1999,
pp.105-115).
50
Cf. idem, O ato da leitura, vol. 1, loc. cit., pp. 52-53, p. 7: “Deste modo, o efeito e a recepção formam os
princípios centrais da estética da recepção, que, em face de suas diversas metas orientadoras, operam com
método histórico-sociológicos (recepção) ou teorético-textuais (efeito). A estética da recepção alcança,
portanto, a sua mais plena dimensão quando essas duas metas diversas se interligam”.
51
Cf. idem, “Problemas da teoria da literatura actual: o imaginário e os conceitos-chave da época”, in Luiz
Costa Lima, Teoria da literatura em suas fontes, vol. II, Rio de Janeiro, Livraria Francisco Alves, 21975,
p. 375: “[É] o conceito de interação que determina a relação entre texto e leitor. As inovações de um texto
derivam principalmente da recodificação de fragmentos de textos selecionados, ou seja, de valores e normas
selecionadas. […] Tem o caráter de reciprocidade e sujeita ambos os pólos a um processo auto-regulador”.
52
Cf. Teresa Cruz, “Prefácio”, in Hans Robert Jauss, A literatura como provocação, loc. cit., p. 15.
Note-se que Umberto Eco se aproxima da teoria da escola de Constança ao tratar do fruidor do texto para o
contributo da construção de uma obra previamente produzida, devido ao modo como é abordada,
denominada de “obra em movimento”, e cujo paradigma se observa sobretudo na área da composição
musical. A abertura e dinâmica do texto literário permitem uma integração num desafio contínuo,
proveniente do diálogo entre o texto e o leitor, baseado numa perspectiva pessoal de um indivíduo inserido
numa época. Para o autor de O nome da rosa, cada leitura é simultaneamente definitiva e provisória, não
esgotando a infinidade de leituras possíveis; os signos interpelam a sensibilidade do receptor, possuidor de
um determinado gosto, pelo que a recepção se destina a alguém diferente que apreciou uma determinada
obra e dela se apropriou (Cf. Umberto Eco, Obra aberta, Lisboa, Ed. Difel, 1989, pp. 61-62).
53
Cf. Klaus Dirscherl, “A estética da recepção e suas consequências”, in Cadernos de Literatura, nº 14,
Coimbra, Universidade de Coimbra-Instituto Nacional de Investigação Científica, 1983, p. 86.

16
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

através do leitor, do escritor e do crítico que reflecte e emite juízos valorativos 54.
Segundo este critério, a literatura realça primordialmente a continuada experiência
de receptores contemporâneos ou posteriores ao aparecimento da obra55. Este jogo
textual cria, assim, o horizonte de expectativa56, sistema prévio de conhecimentos
de géneros, formas, temas e linguagens, conceito haurido por Jauss na
hermenêutica filosófica de Hans-Georg Gadamer57. Torna-se, deste modo, um
elemento fundamental do sistema de comunicação literária e define-se como um
procedimento que permite ao público receber as obras, enquadrando-as dentro de
uma tradição, com normas estabelecidas, e, mesmo aquelas mais inovadoras,
pressupõem sempre um determinado conjunto de traços identificadores58. O
horizonte de expectativa constitui, pois, uma “isotopia paradigmática”, que se
transforma com a passagem do tempo, e a recepção da obra funciona de acordo
com o sistema semiológico que oscila entre o pólo do desenvolvimento e da
correcção do próprio sistema59, predispondo o receptor para identificar determinada
forma de expressão em busca de uma coerência textual60. Cada acto de leitura não

54
Cf. Hans Robert Jauss, A literatura como provocação, loc. cit., p. 62: “A história da literatura é um
processo de recepção e produção estética que se cumprem na actualização de textos literários, através do
leitor que lê, do escritor que produz e do crítico que reflecte”.
55
Cf. Idem, ibidem, p. 71: “O modo como uma obra literária, no momento histórico do seu aparecimento,
responde à expectativa do seu primeiro público, a ultrapassa, a desaponta ou contradiz, fornece
evidentemente um critério para o juízo sobre o seu valor estético.
Jauss só em estudos posteriores acrescentou à sua definição de horizonte de expectativa outros elementos
além dos estéticos. Considerou, pois, indispensável a diferenciação de horizontes literários e extraliterários
no jogo dialógico entre o texto e o leitor, visto que permite a inscrição do passado nos horizontes sincrónicos
de compreensão e ensaia processos interpretativos de reconstrução de horizonte de expectativas ulteriores.
(Cf. Hans Robert Jauss, “El lector como instancia de una nueva historia de la literatura”, in P. Bürger et alii,
op. cit., pp. 59-85).
56
Hans Robert Jauss (Cf. “El lector como instancia e una nueva historia de la literatura”, loc. cit., p. 76)
considera a obra literária determinante para a formação de uma sociedade, sendo o horizonte de expectativa
fundamental para definir uma nova história literária.
57
Sobre o conceito de horizonte de expectativa, veja-se a excelente síntese e respectiva bibliografia de Vítor
Manuel Aguiar e Silva, Teoria de literatura, loc. cit., pp.108-109, nota 154.
58
À luz do enfoque estético e hermenêutico, aspectos decisivos na estética da recepção, Gadamer sustenta
que na complexa relação entre poetizar e interpretar, ou seja, entre criação artística e crítica, é na poesia que
esse vínculo é mais estreito, comparativamente a outros domínios. Deste modo, a palavra poética é
especulativa e implica uma experiência hermenêutica, como sublinha: “La palabra del habla cotidiana, así
como la del discurso científico y filosófico, apunta a algo, desapareciendo ella misma, como algo pasajero,
por detrás de lo que muestra. La palabra poética, por el contrario, se manifiesta ella misma en su mostrar,
quedándose, por así decirlo, plantada. La una es como una moneda de calderilla, que se toma y se da lugar a
otra cosa; la otra, la palabra poética, es como el oro mismo” (Hans-Georg Gadamer, “Poetizar e interpretar”,
in José Manuel Cuesta Abad e Julián Jiménez Heffernan (ed.), Teorías literárias del siglo XX, Madrid, Ed.
Akal, 2005, p. 859).
59
Cf. Hans Robert Jauss, A literatura como provocação, loc. cit., p. 67.
60
Cf. Vítor Manuel Aguiar e Silva, op. cit., pp. 529 sqq e Umberto Eco, Leitura do texto literário. Lector in
fabula, loc. cit., 1983, pp. 97-107).

17
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

constitui uma simples redundância interpretativa, visto que essa actividade


relativamente às precedentes apresenta novas posições, conduzindo a correlações
estruturais que estimulam, e, ao mesmo tempo, regulam a ordem das suas
interpretações61. Este exercício exegético, de vincado relevo comunicativo, concebe
a obra como a convergência entre o texto e o leitor62.
Nesta ordem de ideias, o acto de leitura estabelece e pressupõe implicitamente
uma determinada recepção, condicionada pelos códigos dominantes num
determinado momento histórico, critério que adquiriu um papel nuclear no modelo
teórico de Jauss. Porém, esta nova concepção também contempla um cariz
diacrónico, uma vez que concebe a história da literatura como um ininterrupto
diálogo entre as obras e os seus intérpretes – os autores e os críticos que
posteriormente as recriam63. O leitor, historicamente situado, deverá ter presente
não só as circunstâncias actuais da sua recepção, mas também aquelas que
motivaram a escrita do texto e os condicionalismos percepcionados pelos primeiros
receptores. A história da literatura é, pois, uma evolução do horizonte de
expectativa e não uma sucessão cronológica de autores e obras. Ao reivindicar uma
determinada consciência estética e epistemológica, a abordagem hermenêutica
compreende um cenário da mais variada ordem, a partir do qual se constrói o
significado do texto literário64. A aproximação ao campo da recepção vem destacar
que a leitura é uma actividade que abre os mundos do texto, transformando-os e
amplificando-os a partir da experiência artística. Assim, um texto possui um
determinado destino, como lembra o célebre verso virgiliano “Habent sua fata

61
Cf. Wolfgang Iser, “Problemas da teoria da literatura atual: o imaginário e os conceitos-chave da época”,
in Luiz Costa Lima (org.), Teoria da literatura em suas fontes, vol. II, loc. cit., p. 380: “Por conseguinte,
todos os conceitos de sentido que a interpretação postula como sendo o horizonte final do texto, são, em
última instância, conceito de mediação e apropriação, que permitem, pelo ato de compreensão, ligar a
dimensão imaginária do texto aos quadros de referência existentes”.
62
R. Zilberman sustenta que, no trabalho de Hans Robert Jauss, o conceito de leitor se baseia, em grande
parte, no horizonte de expectativa, princípio que conjuga os códigos vigentes e as experiências acumuladas
por ele (Cf. Regina Zilberman, op. cit., p. 49).
63
Cf. A. Kibédi Varga, “Recepção e classificação: Letras-Artes-Géneros”, in Teoria da literatura, Lisboa,
Ed. Presença, 1981, p. 173: “Para o receptor, as formas convencionais de que os textos se podem revestir
têm uma dupla função: criam uma ‘espectativa’ precisa e proporcionam simultaneamente um sentimento de
familiaridade, garantem o ‘reconhecimento’. A surpresa é canalizada, juntam-se o conhecido e
desconhecido”.
64
Cf. Álvaro Manuel Machado e Daniel-Henri Pageaux, op. cit., p. 61.

18
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

libelli”65, onde a representação textual se associa a mecanismos de leitura inseridos


em modelos literários, estéticos, históricos e sociológicos66. Porque não é uma
entidade semioticamente neutra, o receptor, num exercício indubitavelmente activo,
é tomado como um ponto de partida e não de chegada, o que representa um factor
determinante da sua dinâmica de leitura67. A estética da recepção começa com o
horizonte de expectativa e continua, segundo Jauss, com um movimento de
perguntas e respostas que coloca em estreita relação a posição dos primeiros
receptores com aqueles que lhe sucedem68, permitindo um desenvolvimento que
actualiza o potencial significativo de uma obra69. Neste ponto de vista,
caracterizado por uma legitimação estética baseada em determinadas
circunstâncias, o receptor deixa de ter um papel passivo, cabendo-lhe encontrar
respostas; o texto exige, pois, uma compreensão que ensaia uma série de opções
interpretativas, que, se não são infinitas, são pelo menos indefinidas. Por outro
lado, nesta lógica as perguntas ainda não formuladas constituem uma possibilidade
nova para os vindouros, enquadrando esta dialéctica na história de interpretação
textual. Deste modo, a persistência das perguntas, estratégia metatextual, deve a sua
continuidade – ainda assim considerada relativa – à identidade social e à herança
cultural dos leitores70, construindo o sentido global de sucessivas interpretações que
dela se fazem.

65
Cf. Vergílio, Eneida, II, 204 (Virgile, Eneide, livres IV-V, texte établi et traduit par Jacques Perret, Paris,
Ed. Les Belles Lettres, 21981).
66
Umberto Eco, nesta linha, salienta: “Um texto é um produto cujo destino interpretativo deve fazer parte do
seu próprio mecanismo gerativo: gerar um texto significa actuar segundo uma estratégia que inclui as
pressões dos movimentos da obra” (Cf. Umberto Eco, Leitura do texto literário. Lector in fabula, loc. cit.,
p. 57).
67
Sobre esta matéria, Horst Steinmetz (“Recepção e interpretação”, in A. Kibédi Varga, Teoria da
literatura, loc. cit., p. 160) assevera: “Reconstruindo o horizonte de expectativas dos receptores, Jauss
pretende determinar a situação histórica de cada obra literária. O horizonte é função do sistema de referência
(género, forma, tema), e este é por sua vez determinado pelo conjunto de obras, anteriormente lido e
recebido’. Deste modo, o horizonte de expectativas representa primariamente uma espécie de código
artístico, que permite ao leitor abordar uma obra recentemente surgida, e, portanto, ainda desconhecida”.
68
As perguntas ainda não levantadas constituem uma oportunidade para os intérpretes futuros. Elas não
precisam levar necessariamente à rejeição das respostas encontradas pelo predecessor” (Cf. Hans Robert
Jauss, “O texto poético na mudança de horizonte de leitura”, in Luiz Costa Lima, Teoria da literatura em
suas fontes, vol. II, loc. cit., p. 350).
69
Sobre este postulado difundido por Jauss, Regina Zilberman (op. cit., p. 63) sublinha: “O princípio da
pergunta e resposta, definido metodologicamente como dialético e filosoficamente como horizonte, é talvez
a sua principal arma teórica, acompanhando-o em quase todos os ensaios, por possibilitar a explicitação
tanto do processo de interpretação dos textos, como a natureza dialógica da literatura”.
70
Cf. Hans Robert Jauss, “O texto poético na mudança de horizonte de leitura”, in Luiz Costa Lima, Teoria
da literatura em suas fontes, vol. II, loc. cit., p. 350.

19
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

Também a distância estética, decorrente do arco temporal compreendido entre a


criação artística e os códigos estéticos vigentes num momento posterior, mostra
como o mundo do receptor da obra que lê não se restringe a um mero reflexo da
realidade, mas constitui, pela separação cronológica, um processo formador dessa
realidade. Com efeito, à leitura, por circunstâncias da mais variada ordem, é
proposto um número de receptores heterogéneos, pelo que o enunciado se realiza
de modos distintos como objecto estético, quer num plano diacrónico, quer
sincrónico.
Assim, cabe à teoria da recepção identificar os horizontes e as eventuais
distâncias estéticas, observando os juízos críticos e os condicionalismos das
evoluções verificadas do passado ao presente71. No entanto, segundo Jauss, também
se pode estudar cada fase de evolução através de cortes sincrónicos, possibilitando
descortinar marcas específicas de um determinado momento da história literária 72.
Assim é também possível que um momento delimitado se abra à decodificação de
uma variedade de obras, que podem ser anteriores ou contemporâneas do leitor. A
recepção é entendida, deste modo, como um complexo processo multímodo de
convergência das idiossincrasias do receptor e dos condicionalismos decorrentes de
um momento histórico e cultural. Esta concepção, múltipla e aberta, tipifica novos
valores, indicativo claro de que a beleza literária e o gosto estético não se
encontram estabelecidos invariavelmente ad aeternum, uma vez que, como
preceituou D. Francisco Manuel de Melo, “os gostos variam com o tempo”73.
Tendo em conta os princípios operatórios evocados, o fito deste trabalho incide
no modo como a obra camoniana se integra na produção literária de Graça Moura.
Neste sentido, as composições analisadas procuram ser lidas como uma forma de
recepção activa decorrente da interpretação que as composições originais e a figura
de Camões suscitaram, testemunho cabal da capacidade de constante revalidação da

71
Cf. Hans Robert Jauss, A literatura como provocação, loc. cit., pp. 45 sqq.
72
Cf. idem, ibidem, p. 64: “A literatura, como conexão de acontecimentos, constitui-se primacialmente no
horizonte de expectativa (Erwartungshorizont) da experiência literária de leitores, críticos e autores, que lhe
são contemporâneos ou posteriores. Compreender e descrever a História da literatura na sua historicidade
própria depende da possibilidade de objectivar este horizonte de expectativa”.
73
D. Francisco Manuel de Melo, Le dialogue Hospital das Letras, texte établi d’après l'édition princeps et
les manuscrits, variantes et notes de Jean Colomès, Paris, Fundação Calouste Gulbenkian, 1970, p. 37.

20
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

dimensão comunicativa da grandeza literária do “Príncipe dos poetas”. Com efeito,


o texto literário não é uma entidade absoluta de sentido; é uma conjugação de
signos que, em contextos distintos no tempo e no espaço, podem ser diferentemente
interpretados. Esta afirmação permite observar que o horizonte de expectativa se
desenha na existência e experiência do leitor, num constante movimento de acção e
reacção, como sublinha Claudio Guillén74.
Justamente nesta dinâmica de assimilação e transformação reside o princípio da
imitação, fundamento valorizado e difundido de toda a criação artística no
Renascimento, que gozou não só de uma gloriosa tradição, como de ostracismo a
que foi votado nos séculos mais recentes. Por ele e através dele enfatiza-se a
tradição literária, celebrando-a, ao mesmo tempo, pelo que constitui assim um
marcante factor legitimador do fenómeno literário75. A preocupação permanente de
justificar a perfeição estética das obras consagradas, levava os comentadores a
defender que a essência da poesia consistia na imitação, indelével quadro de
referência da originalidade. Tal questão incessantemente divulgada, merecera já
especial atenção aos Antigos76, chegando ainda com grande vitalidade aos períodos
barroco e neoclássico77. Defendida por críticos e teorizadores, consistia numa
atitude reflexiva que buscava incessantemente a perfeição através da superação dos
modelos consagrados, tendo provocado o desenvolvimento de uma teoria literária
de carácter normativo que preconizava a sujeição a um conjunto rígido de normas e
modelos. Nesta linha, o conhecido passo de Horácio “O imitatores, seruum
pecus...”78 exorta os escritores a imitar, mas, em vez da realização de um simples
decalque, devem trilhar os caminhos da perfeição artística, pressupondo ainda a

74
Cf. Claudio Guillén, Entre lo uno y lo diverso. Introducción a la literatura comparada, Barcelona, Ed.
Crítica, 1985, p. 42.
75
Segundo Graça Moura, Camões cumpre magistralmente esta faceta da imitação, concebida como ponto de
partida ou de passagem, mas nunca como ponto de chegada: “Em Camões, essa imitação e os demais
processos estão ao serviço de uma ansiedade e de um poder expressivo inimitáveis, cerzindo-se numa
pessoalíssima maneira de estar no mundo e de pensá-lo” (Cf. Vasco da Graça Moura, Luís de Camões:
alguns desafios, Lisboa, Ed. Vega, s/d. [1980], p. 11).
76
Nesta óptica, Aníbal Pinto de Castro salienta a importância da imitação, que constituía um caminho seguro
para o estudo do fenómeno literário, cuja presença é marcante nos teorizadores greco-latinos, sobretudo em
Aristóteles, Cícero e Quintiliano (Cf. Aníbal Pinto de Castro, Retórica e teorização literária em Portugal.
Do Humanismo ao Neoclassicismo, Coimbra, Centro de Estudos Românicos, 1973, p. 9).
77
Cf. Rui Manuel Afonso Mateus, A recepção de Camões no Barroco português, Lisboa, Imprensa
Nacional-Casa da Moeda, 2011.
78
Cf. Horácio, Epistulae, I, 19 (Épitres, Paris, Ed. Les Belles Lettres, 41961).

21
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

superação dos autores consagrados. Deste modo, a imitação “que redunda em glória
do próprio modelo imitado”, como sublinha Lucília Pires79, é uma via orientadora e
disciplinadora da criação poética.
Nestas circunstâncias, ganha particular relevo o fenómeno de contaminatio,
celebrizada pela metáfora barroca do ramalhete de flores, um sinal da originalidade
poética proveniente do aproveitamento de uma multiplicidade de elementos e
formas colhidas em vários modelos para a criação de novas obras80. A capacidade
electiva e selectiva de fazer próprios os modelos seguidos, de os reorganizar e
integrar numa nova síntese, segundo Claude Gilbert Dubois, revela uma marca
fulcral na literatura do século XVII81. Com efeito, a principal característica da
poesia reside, pois, na arte de entretecer pacientemente as flores, de que resulta a
transfiguração da matéria. A originalidade, neste contexto, não pressupõe a
espontaneidade criativa, mas liga-se à capacidade poética de seguir – e fazer seus –
os modelos consagrados, reelaborando-os, através de uma ordem harmoniosa e
equilibrada.
Sob o signo desta herança cultural reguladora do sistema literário, ganha
particular acuidade considerar os mecanismos da intertextualidade, categoria que
funciona como relação dialógica entre diversos textos, renunciando às antigas
noções de fontes e das influências82, e que provoca uma evidente mudança de
paradigma: enquanto a noção de influência tende a reduzir-se à perspectiva do
autor, este processo apresenta um alargamento conceptual pelos múltiplos nexos
significativos sugeridos83. Praticamente infindável, a convocação de modelos,
génese de complexos mecanismos textuais, congrega simultaneamente referentes

79
Cf. Maria Lucília Gonçalves Pires, A crítica camoniana no século XVII, Lisboa, Instituto de Cultura e
Língua Portuguesa, 1982, p. 20.
80
Aníbal Pinto de Castro definiu a contaminatio como o aproveitamento de “elementos conteudísticos e
formais colhidos em vários modelos, para a criação de obra tão novas quanto possível” (Cf. Aníbal Pinto de
Castro, “Os códigos poéticos em Portugal do Renascimento ao Barroco. Seus fundamentos. Seus conteúdos.
Sua evolução”, in Revista da Universidade de Coimbra, vol. XXXI, 1985, p. 519).
81
Cf. Claude-Gilbert Dubois, Le Maniérisme, Paris, P. U. F., 1979, p. 46.
82
Sobre este assunto, Leyla Perrone-Moisés (“A intertextualidade crítica”, in Laurent Jenny et alii,
Intertextualidades. Poëtique, nº 27, Coimbra, Livraria Almedina, 1979, p. 210) conclui: “Não podemos
reduzir a intertextualidade ao uso da citação ou ao aparato referencial da crítica das fontes. Tratar-se, nestes
casos, de uma intertextualidade rudimentar. A que nos interessa aqui não é uma simples soma de textos, mas
um trabalho de absorção e de transformação de outros textos por um texto”.
83
Sobre a mudança de paradigma que a problemática da intertextualidade provocou em relação à crítica das
fontes, vide Geniève Idt, “Intertextualité, transposition, critique des sources”, in Nova Renascença, vol. IV,
nº 13, 1984, pp. 5-20.

22
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

de unidade e de diferença, susceptíveis de análise metodológica84 pelas questões


pertinentes no âmbito da produção textual e da estética da recepção85.
Assim sendo, o resultado desse processo, ligado à sugestiva imagem do
palimpsesto,86 configura o intertexto, o texto sobreposto ou absorvido por outro
texto, pelo que as relações estabelecidas resultam, pois, de um trabalho de
transformação e assimilação, que proporciona novos significados87. Esta relação
intertextual é, pela sua natureza, um processo dinâmico e aberto entretecido por
várias vozes, “mosaico de citações”, no dizer de Julia Kristeva88, o que, em vez de
traduzir um mero acto erudito, constitui uma estratégia comunicativa onde a ideia
de inovação se eleva à de subordinação, pelas práticas expendidas em demanda da
criatividade89. Permite-se, pois, um reencontro com outros modelos literários e o
grau dessa intersecção alarga de tal forma os limites interpretativos do texto que o
converte num ponto de partida para outras leituras. As relações intertextuais
adquirem, desta forma, uma nova projecção pela identificação dos diálogos

84
Na determinação das práticas operatórias de intertextualidade, Carlos Reis enumera os seguintes aspectos
fundamentais a ter em conta: “a questão da inovação criativa relação à que a procedeu, a conexão entre a
criação literária e o lastro de referências culturais que envolvem o escritor, a produção textual perspectivada
como contínua transformação de textos precedentes, etc.” (Carlos Reis, “Intertextualidade e leitura”, in
Construção de leitura, Coimbra, Instituto Nacional de Investigação Científica, 1982, p. 31).
85
Aguiar Silva aborda de forma muito pertinente esta questão: “Se a intertextualidade decorre do princípio
fundamental de não existe semiose ex nihilo e se a sua análise deve ter em conta a existência de universais
pragmáticos, semânticos e sintáticos, também é certo que a intertextualidade constitui um fenómeno de
semiose cultural, actuante na história e no confronto das forças ideológicas e sociais, carecendo de
convalidação científica a ideia que os textos da cultura representam tão-só a modulação metamórfica de
matrizes a temporais” (Cf. Vítor Manuel Aguiar e Silva, Teoria da literatura, loc. cit., p. 594).
86
Na senda desta concepção, Genette afirma sobre a obra de Proust: “Est un palimpseste où se confondent et
s’enchevêtrent plusieurs figures et plusieurs sens, toujours présents tous à la fois, et qui ne se laissent
déchifrer que tous ensemble, dans leur inextricable totalité” (Cf. Gérard Genette, “Proust palimpseste”, in
Figures I, Paris, Ed. Seuil, 1966, p. 67). Presente num título de um livro de Gérard Genette (Palimpsestes,
La littérature au second degré, Paris, Ed. Seuil, 1982), o palimpsesto – lexema colhido na paleografia –
designa o pergaminho de onde são raspados textos para que outros possam ser escritos, o que sugere a
possibilidade de sob um texto existirem outros, que de algum modo estão ocultos.
87
No que a este assunto diz respeito, Aguiar e Silva assevera: “O texto é sempre, sob modalidades várias,
um intercâmbio discursivo, uma tessitura polifónica na qual confluem, se entre cruzam, se metamorfoseiam,
se corroboram ou se contestam outros textos, outras vozes e outras consciências” (Vítor Manuel Aguiar e
Silva, Teoria da literatura, loc. cit., p. 593).
88
Neste contexto, Julia Kristeva afirma : “Tout texte se construit comme mosaïque de citations, pour texte
est absorption et transformation d’un autre texte” (Cf. Julia Kristeva, Semeiotike. Recherches pour une
sémanalyse, Paris, Ed. Seuil, 1969, p. 146).
89
Laurent Jenny afirma que não há literatura sem aceitação, realização, transformação ou transgressão dos
modelos arquétipos (Cf. Laurent Jenny, “A estratégia da forma”, in Laurent Jenny et alii, Intertextualidades,
loc. cit., pp. 5 sqq).

23
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

existentes na compreensão de obras distanciadas no tempo e no espaço, e,


simultaneamente, contribuem para uma perspectiva distinta do estudo das fontes90.
No entanto, este fecundo quadro de reflexões de natureza mais teórica abrange,
para além da criação estética, a questão da recepção, a que os modernos estudos
comparativistas procuraram responder. Assim sendo, a obra literária não é criada
somente a partir da visão do autor, uma vez que situada num universo preexistente
de textos, se concretiza na relação a outras obras91, tornando-se imperativo
descortinar aspectos relevantes do enunciado que lhe serviu de modelo e o modo
como o moldou a novos conteúdos semântico-pragmáticos. Nesta linha, sob o signo
da referencialidade, a reescrita de fragmentos convocados problematiza o acto de
leitura pela permanente solicitação da intervenção interpretativa. A
intertextualidade encerra, pois, determinadas estruturas temáticas, formais, códigos
culturais, cabendo ao leitor, numa actividade de apropriação, reflectir sobre o texto
inserido numa tradição histórica, afirmando-se como uma estratégia eficaz na
consolidação do seu horizonte de expectativa92. Esta prática estruturante convoca,
então, a experiência do leitor, entidade provida de gosto estético, em grande parte,
devido aos textos que previamente leu93. O receptor deste modo não é o resultado
absoluto de uma leitura de um determinado texto; pelo contrário, como entidade
dinâmica, modifica-se em grau variável em cada leitura que perfaz, visto que lhe
cabe compreender a complexa rede de relações intertextuais.94
Esta aproximação hermenêutica relaciona-se com o horizonte de expectativa de
um determinado receptor, que, através da intertextualidade, pode aderir ou rejeitar
um determinado texto. O leitor pode partilhar os códigos de um autor coevo, mas,
nem a distância temporal, nem os padrões socioculturais diferentes, excluem a

90
Cf. Álvaro Manuel Machado e Daniel-Henri Pageaux, op. cit., pp. 89-97.
91
Cf. Yves Chevrel, “Estudos de recepção”, in Pierre Brunel e Yves Chevrel (org.), Compêndio de
Literatura Comparada, loc. cit., pp. 185-228.
92
Idt destaca o interesse do conceito de intertextualidade nos estudos literários do seguinte modo: “elle
permet d’insérer le système du texte, provisoirement clos par les méthodes formalistes, dans le système des
textes, dans un contexte culturel, dans une perspective historique (Cf. Geniève Idt, “Intertextualité,
transposition, critique des sources”, in op. cit., p.19).
93
Hans Robert Jauss reforça esta ideia em História literária como desafio à ciência literária; Literatura
medieval e teoria dos géneros, loc. cit., p. 98: “O texto novo evoca para o leitor (o auditor) o horizonte de
uma expectativa e de regras que ele conhece graças aos textos anteriores, e que sofrem imediatamente
variações, rectificações, modificações ou então que, muito simplesmente, são reproduzidos”.
94
Cf. idem, ibidem, p. 46.

24
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

possibilidade de uma efectiva adesão à obra, como sublinhou K. Stierle95. É


possível, pois, que textos mais recentes tragam à colação textos mais antigos96,
convite motivador de leituras múltiplas o que explica, em grande parte, a constante
consagração de determinadas obras ao longo dos tempos.
Neste âmbito, a sugestão literária oferecida pelo cotejo de textos, numa estreita
conjugação entre ruptura e continuidade, constitui um aspecto privilegiado de
abordagem neste trabalho, pelo aproveitamento criativo de Graça Moura do modelo
camoniano e que está na génese da sua poesia. Com efeito, os desígnios líricos
marcantes na produção do autor contemporâneo são assumidos deliberadamente
como um imenso e variado intertexto camoniano, constituindo uma representação
ilustrativa do seu inestimável prestígio na cultura portuguesa.
Outro aspecto importante a contemplar no âmbito da estética da recepção, e
estreitamente articulado com o trabalho desenvolvido nesta dissertação, prende-se
com o conceito de género literário97, marco fundamental no labor exegético na
Antiguidade Clássica – constituindo referências fundamentais a Poética de
Aristóteles e a Ars Poetica de Horácio98 – e continuado nas inúmeras poéticas
vindas a lume desde o Renascimento até ao Neoclassicismo setecentista99.
Este conceito apresenta características estruturais, que estimulam e inspiram os
autores, e, ao mesmo tempo, regulam as características formais e semânticas das

95
“O texto ficcional relaciona-se com os paradigmas literários por meio de imitação, da superação, da
continuação, da paródia, etc. Por outro lado, relaciona-se com o horizonte de expectativa de um leitor
pressuposto e é por este inserido, com maior ou menor direito, em seu próprio horizonte de expectativa. A
intertextualidade contida no próprio texto, pode coincidir ou se opor ao horizonte de expectativa do leitor”
(Cf. Karhleinz Stierle, “Que significa a recepção dos textos ficcionais?”, in Luiz Costa Lima, A literatura e o
leitor. Textos de estética da recepção, loc. cit., 175-176).
96
Cf. Geniève Idt, “Intertextualité, transposition, critique des sources”, in op. cit., p. 12 : “Si toute écriture
est lecture des textes antérieurs, toute lecture est toujours double, toute lecture remonte l’ordre
chronologique, déchiffre dans un texte les traces des textes antérieurs. Dans cette perspective, c’est la lecture
du texte le plus ancien qui est seconde : il est toujours lu à travers les textes postérieurs, on ne peut en faire
une lecture fidèle, on ne remonte jamais à un sens premier comme à une source pure ”.
97
Esta controversa questão da teoria dos géneros literários é analisada com particular acuidade por Manuel
Ferro a propósito da recepção de Tasso em Portugal (Cf. Manuel Simplício Geraldo Ferro, A recepção de
Torquato Tasso na épica portuguesa do Barroco e Neoclassicismo, loc. cit., pp.70-78).
98
Neste sentido, Aguiar e Silva sublinha: “As regras eram extraídas, quer dos teorizadores e perceptistas
literários mais autorizados – sobretudo Aristóteles e Horácio –, quer das grandes obras da antiguidade greco-
-latina elevadas pelo humanismo renascentista a modelos ideias das modernas literaturas europeias” (Vítor
Manuel Aguiar e Silva, Teoria da literatura, loc. cit., p. 345).
99
Veja-se, por exemplo, Bernard Weinberg, A history of literary criticism in the Italian Renaissance, 2 vols.,
Chicago, Midway Reprint, 21974.

25
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

composições100. A tomada de consciência decorrente dita a subordinação da escrita


a determinadas normas, bem como constitui um factor essencial da estética da
recepção. A identidade genológica, associada ao prestígio dos autores e
determinada pelos gostos estéticos, está, sem dúvida, na base da divulgação e
consagração de uma obra101. O género afigura-se, assim, a memória do sistema,
vinculado à poética classicista, mas, por outro lado, promove múltiplas recriações,
reveladoras de linhas de força de uma constante evolução literária102. Na verdade,
apesar da universalidade normativa proclamada, os géneros literários, concebidos
como categorias históricas, têm progredido ao longo do tempo e desempenham um
importante papel na organização e na transformação do sistema literário103.
Esta matéria tem constituído uma das questões mais debatidas da teoria literária
pelos problemas epistemológicos suscitados e continua a ser objecto de análise nos
estudos actuais, se bem que noutros pressupostos hermenêuticos104. Tendo em
conta o conhecimento dos modelos perpetuados, em grande medida, pelos preceitos
normativos consignados sobretudo pela imitatio e o momento histórico em que o
acto de leitura tem lugar, é possível colher uma determinada apreciação estética105.
Tal possibilidade permite, pois, descortinar na história da literatura a relação que as
obras estabelecem com os leitores, permitindo compreender o sentido global de
sucessivas interpretações que delas se fazem, uma vez que a obediência às regras
ditadas neste âmbito pelas poéticas constitui um preponderante factor na avaliação

100
“O género foi concebido como uma essência inalterável ou, pelo menos, como uma entidade invariante
governada por regras bem definidas, vigorosamente articuladas entre si e imutáveis” (Cf. Vítor Manuel
Aguiar e Silva, Teoria da literatura, loc. cit., p. 345).
101
Cf. Margarida Vieira Mendes, “Gil Vicente: o génio e os géneros”, in Estudos portugueses. Homenagem
a António José Saraiva, Lisboa, ICALP, Universidade de Lisboa, 1990, p. 328: “Os géneros existem dentro
e fora das obras: são princípios virtuais, reportórios de conteúdos, catálogos de soluções formais e de
funções típicas, possibilidade de actuação códigos de comportamentos – depositados, disponíveis e
combináveis numa série de tradições móveis, que só se conhecem e realizam em cada uma das obras.”
102
Cf. Hans Robert Jauss (História literária como desafio à ciência literária; Literatura medieval e teoria
dos géneros, loc. cit., p. 119): “Os géneros literários não existem isoladamente, mas constituem as diferentes
funções do sistema literário da época e colocam a obra individual em relação com o sistema”.
103
Cf. Gerhard R. Kayser, Introdução à Literatura comparada, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian,
1989, p. 410: “Só a partir da mais avançada reflexão estética – sobre a teoria da literatura, sobre o conceito
de forma e sobre a poética dos géneros, sobre a norma, o valor e a função estética – se poderão entender
adequadamente os respectivos fenómenos de culturas distantes no tempo ou no espaço”.
104
Cf. René Wellek e Austin Warren, Teoria da Literatura, Mem Martins, Publ. Europa-América, 31976,
pp. 281-297 e Vítor Manuel Aguiar e Silva, Teoria da literatura, loc. cit., pp. 331-393.
105
Nesta linha, Karlheinz Stierle (Existe uma linguagem poética? Seguido de obra e intertextualidade, Vila
Nova de Famalicão, Ed. Quasi, 2008, p. 42) sustenta: “Os textos que estão na origem de um género, antes
que entrem numa configuração que revela a sua potencialidade genológica, remetem em primeiro lugar para
um género já existente”.

26
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

do valor estético-literário de uma obra106. Jauss, a propósito da literatura medieval,


trata a questão dos géneros literários de um modo inovador; em vez da tradicional
abordagem em torno da especificidade formal e semântica dos textos, privilegia
uma análise baseada no horizonte de expectativa de cada leitor107. Se a
interpretação da obra literária é condicionada pelo género, também é necessário ter
em conta o momento em que ocorre108. As alterações verificadas prendem-se com a
reformulação dos gostos, evoluções sociais, adopção de temas ou contaminação de
outros géneros109, factores, sem dúvida, reveladores de uma complexa teia de
condicionalismos, que, pelo seu teor sociológico, estão para além das
características ou convenções consagradas pela tradição110. Assim, os géneros
apresentam um conjunto rígido de traços, que, no entanto, apesar de variações
criativas, não deixam de sinalizar marcos orientadores da actividade
hermenêutica111. A dinâmica transformativa permite identificar, segundo Manuel
Ferro, subgéneros graças a variantes periodológicas, como por exemplo a distinção
entre a épica renascentista e a épica barroca112. Esta classificação possibilita, pois,
destrinçar diversos horizontes de expectativa, bem como distinguir traços estético-

106
Vítor Manuel Aguiar e Silva (Teoria da literatura, op. cit., p. 108) afirma a propósito: “Em relação ao
autor/emissor, os códigos dos géneros literários funcionam como um filtro, como um modelo interpretativo
da realidade do mundo, da sociedade e do homem, quer no plano temático, quer no plano formal”.
107
Hans Robert Jauss (Cf. História literária como desafio à ciência literária; Literatura medieval e teoria
dos géneros, Vila Nova de Gaia, Ed. José Soares Martins, 1974, p. 90) preconiza que o género, um factor
crucial na recepção de uma obra, não se observa num único horizonte de uma expectativa: “Toda a obra
literária pertence a um género, o que equivale a afirmar pura e simplesmente que toda a obra supõe o
horizonte de uma expectativa, quer dizer, de um conjunto de regras preexistentes para orientar a
compreensão do leitor (do público) e permitir-lhe uma recepção apreciativa”.
108
Veja-se o estudo fundamental neste domínio de Manuel Ferro; as epopeias, segundo o autor, talvez
constituam o caso paradigmático pelas constantes codificações realizadas ao longo dos tempos, sempre
determinadas pelo gosto literário e pelo contexto sociocultural em que ocorreram. (Cf. Manuel Simplício
Geraldo Ferro, A recepção de Torquato Tasso na épica portuguesa do Barroco e Neoclassicismo, loc. cit.).
109
Já Aristóteles, na sua definição de tragédia e de epopeia, considera a noção de género susceptível de
evolução (Cf. Aristóteles, Poética, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2004, p. 38).
110
Jauss sobre este assunto conclui: “É preciso que nos libertemos da ideia de uma justaposição de géneros
fechados entre mesmos e procurar as respectivas interrelações, que formam o sistema literário em dado
momento histórico” (Cf. Hans Robert Jauss, História literária como desafio à ciência literária; Literatura
medieval e teoria dos géneros, loc. cit., p. 116).
111
Cf. Luiz Costa Lima, Teoria da literatura em suas fontes, vol. 1, loc. cit., p. 269.
112
Manuel Ferro sintetiza com pertinência este assunto respeitante à evolução genológica: “Assim, as
alterações que um género sofre numa perspectiva diacrónica podem ter a ver com o sistema de formas
literárias privilegiadas numa dada época, denunciando a evolução social, a reformulação do gosto, a
interferência ou contaminação de elementos de outros géneros mais em voga, a adopção de temas e motivos,
enfim, um rol de factores que mostram como esse complexo de géneros se encontra exposto a
condicionalismos, não só de ordem estética e literária, mas também de teor sociológico” (Cf. Manuel
Simplício Geraldo Ferro, A recepção de Torquato Tasso na épica portuguesa do Barroco e Neoclassicismo
loc. cit., pp. 72-73).

27
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

-literários e periodológicos específicos, constituindo uma relevante condição prévia


do acto interpretativo, uma vez que evoca tacitamente a obediência ou infracção às
regras convencionadas113. Assim, cada análise é pré-estabelecida pelo próprio
género e, por seu turno, cada obra configura as regras do género em que se
insere114; por mais que as abordagens divirjam, existe uma essência literária
constante, que permanece acessível aos leitores de todos os tempos115.
Neste contexto, a obra de Camões tem proporcionado as mais diversas leituras,
testemunho, ora de acesas polémicas, ora de particular fascínio116, em torno da
lírica e da épica cultivadas pelo autor quinhentista117, de onde se salienta, no
presente trabalho, a produção literária de Graça Moura.
A tradução, e os problemas que coloca, constitui outra vertente fundamental a
considerar na reflexão desenvolvida sobre o fenómeno literário118 e representa
igualmente “uma forma de recepção”, no dizer de Jürgen von Stackelberg 119. O
estudo da tradução ou traduções de uma determinada obra é, sem dúvida, um
aspecto central a valorizar pelas questões suscitadas em torno, por exemplo, da
sensibilidade do seu autor ou da época em que foi realizado à luz dos códigos
literários vigentes120. A tarefa de transformação varia, assim, de acordo com os

113
Hans Robert Jauss (História literária como desafio à ciência literária; Literatura medieval e teoria dos
géneros, loc. cit., p. 97) sublinha: “Só o estudo diacrónico permite verificar a relação entre elementos
constantes e elementos variáveis, uma vez que os seguros só aparecem numa caminhada histórica”.
114
Luiz Costa Lima, Teoria da Literatura em suas fontes, Vol. 1, loc. cit., p. 252. Sobre a questão do
impacto da noção de género Kibédi Varga adianta: “O escritor, por seu lado, pretende sem dúvida comunicar
uma nova visão do mundo contemporâneo, mas não pode certamente impedir-se de integrar o seu texto
numa tradição formal. Pode ser – como de resto qualquer utente do discurso – conservador e moderno de
duas maneiras diferentes: pode aceitar as convenções formais mais estritas e oferecer, nesse âmbito uma
mensagem audaciosa (Racine), ou procurar modificar a forma, embora dando à mensagem um carácter mais
conforme ao gosto do público (Corneille)” (Cf. A. Kibédi Varga, Teoria da Literatura, loc. cit., p. 173).
115
Kaiser considera a historicidade dos géneros uma das áreas críticas fundamentais no âmbito da literatura
comparada (Cf. Gerhard R. Kaiser, Introdução à literatura comparada, Lisboa, Fundação Calouste
Gulbenkian, 1989, pp. 173-202).
116
Cf. Maria Lucília Gonçalves Pires, A crítica camoniana no século XVII, loc. cit., pp. 35 sqq.
117
Manuel Ferro, evoca, por exemplo, a controvérsia em torno do respeito escrupuloso das regras da épica,
segundo as rígidas normas prescritivas da teoria clássica dos géneros (Cf. Manuel Simplício Geraldo Ferro,
A recepção de Torquato Tasso na épica portuguesa do Barroco e Neoclassicismo, loc. cit., p. 77).
118
No dizer de Eco, “Traduzir, portanto, quer dizer compreender o sistema interno de uma língua e a
estrutura de um texto dado nessa língua, e construir um duplo do sistema textual que, sobre uma certa
descrição, possa produzir efeitos análogos no leitor, tanto no plano semântico e sintáctico, como no plano
estilístico, métrico, fonossimbólico, e quanto aos efeitos passionais, para que tende o texto-fonte” (Umberto
Eco, Dizer quase a mesma coisa. Sobre a tradução, Algés, Ed. Difel, 2005, p. 15).
119
Jürgen von Stackelberg, apud Pierre Brunel e Yves Chevrel (org.), Compêndio de literatura comparada,
loc. cit., p. 224.
120
Yves Chevrel fundamenta os estudos recentes de recepção apoiado na análise de traduções literárias,
sublinhando a sua pertinência no domínio dos estudos literários: “Os estudos de recepção […] encaram os

28
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

contextos históricos e culturais, o que significa que o processo interpretativo levado


a cabo pelo tradutor o torna, de facto, um leitor121. A prática enunciada comporta
diversas motivações, uma vez que representa uma evidente adesão estética, bem
como um acto de leitura confinado às circunstâncias da sua realização122. Por outro
lado, as traduções feitas em épocas distintas apresentam óbvias divergências,
devido, em grande parte, ao facto do texto-fonte necessitar de adaptações aos
códigos literários que ainda não existiam quando veio a lume123. Esta questão da
historicidade inscreve o texto vertido numa prática e numa teoria determinada e
pressupõe que o tradutor tem em conta o horizonte de expectativa do público
leitor124. Não é despiciente neste contexto referir a rápida desactualização a que
estão sujeitas as traduções, porque exigem que, volvidos alguns anos, surjam
outras, devido, em grande medida, à evolução das sensibilidades literárias125. Esta
concepção valorativa da literatura traduzida configura, na verdade, um paradigma
hermenêutico que fornece diversas possibilidades de análise do sistema literário,
pela sua pertinência enquanto objecto cultural e estratégia de renovação literária126.
As dificuldades decorrentes das traduções conduzem, muitas vezes, à introdução
de paratextos – dedicatórias, prefácios ou observações do autor –, que explicam as
orientações e as preferências, bem como individualizam as linhas dominantes do

textos traduzidos como elementos de um conjunto e o estudo das estratégias dos tradutores […] pode
facilitar o acesso à compreensão das normas do sistema literário que acolhe essas traduções, dobrando-as
parcialmente às suas leis e que, em contra partida, sofre alterações” (Pierre Brunel e Yves Chevrel (org.)
Compêndio de literatura comparada, loc. cit., p. 224).
121
“O tradutor não compara, cria, ou se preferirem recria” (Cf. Jean-Marie Zemb, “O próprio e o outro”, in
Jean-René Ladmiral, A tradução e os seus problemas, Lisboa, Ed. 70, 1980, p. 132).
122
“A existência ou não de traduções assinadas por escritores conhecidos permite igualmente ver em que
hierarquia cultural se situa, num determinado momento, o acto de traduzir” (Cf. Álvaro Manuel Machado e
Daniel-Henri Pageaux, op. cit., p. 24).
123
“Da mesma maneira, deveremos estar atentos ao papel desempenhado pelas traduções na evolução dos
géneros literários e da própria linguagem literária: contributos lexicais, mudanças de estilo de uma cultura
para outra. Estes fenómenos permitem não só compreender o estilo de uma época, a sua mentalidade, a sua
sensibilidade, mas também obter elementos para uma reflexão mais genérica sobre literatura (Cf. Álvaro
Manuel Machado e Daniel-Henri Pageaux, op. cit., p. 25).
124
“Les traducteurs eux-mêmes sont des objets d’étude importants. Plusieurs sont, à la fois, critiques et
créateurs” (Cf. Yves Chevrel, La littérature comparée, Paris, PUF, 1989, p. 57).
125
Umberto Eco fala em “horizontes do tradutor”, visto que o envelhecimento a que estão sujeitas as
traduções derivam das tradições e convenções literárias que influenciam os gostos (Cf. Umberto Eco, Dizer
quase a mesma coisa. Sobre a tradução, loc. cit., pp. 282-283).
126
Cf. Marta Teixeira Anacleto, “Aspectos da recepção do romance pastoril ibérico em França”, in
Margarida L. Losa et alii (org.), Literatura comparada: os novos paradigmas, Porto, Associação Portuguesa
de Literatura Comparada, 1996, p. 213.

29
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

labor dispendido127. A importância destes enunciados, que actualizam e justificam


os critérios apresentados, reside precisamente numa orientação deliberada de
leitura128. Com efeito, esta tarefa reveste-se, para além do interesse estético-literário
que lhe é próprio, numa atitude cívica e didáctica, uma vez que permite colocar à
disposição da comunidade uma obra estrangeira, divulgação que seria, em muitos
casos, impossível devido aos obstáculos linguísticos dos textos originais 129. Além
disso, a aproximação aos modelos considerados clássicos conduz ao alargamento e
difusão de valores considerados universais, permitindo melhor identificar as
dinâmicas culturais de uma sociedade num determinado momento. Privilegiado
meio de recepção, as obras vertidas, por outro lado, são um exemplo claro de
reconhecimento e consagração do seu inegável valor, comprovado nas diversas
traduções de Os Lusíadas de Camões iniciadas ainda em Quinhentos130. Com
efeito, as sucessivas versões de uma obra, numa ou mais línguas, disponibilizam
leituras diversas do texto, conferindo-lhe uma cabal importância hermenêutica, e
determinam o seu reconhecimento no sistema literário que as acolhe. Como diz
Steiner, “entender uma significação é traduzir”131, pelo que este exercício exegético
conduz à renovação da escrita face aos horizontes de expectativa dos leitores132.
Assim, o sentido metamórfico da tradução atinge uma importante funcionalidade
pragmática, visto que plasma um conjunto de identidades, projecções e
transformações textuais, com implicações estéticas, literárias e sociais, decisivo
contributo interdisciplinar para a renovação dos estudos literários dentro da estética

127
Já Schleiermacher chama a atenção para a dualidade de atitude do tradutor perante o texto de partida e a
sua própria actividade, podendo aproximar o leitor do texto ou, em sentido contrário, aproximar o texto do
leitor. Na primeira das alternativas, traduz o texto de partida, permanecendo fiel ao original o mais possível
e explicando em notas ou textos suplementares os aspectos de mais difícil compreensão (Cf. Friedrich
Schleiermacher, Sobre os diferentes métodos de traduzir, Porto, Porto Editora, 2003).
128
Cf. Álvaro Manuel Machado e Daniel-Henri Pageaux, op. cit., p. 25.
129
Susan Bassnett, em nota prefacial, sintetiza de forma sucinta o papel multifacetado do tradutor: “Um
artista criativo que garante a sobrevivência da escrita no tempo e no espaço, um mediador intercultural e um
intérprete, uma figura de incomensurável importância para continuidade de difusão cultural (Cf. Susan
Bassnett, Estudos de Tradução, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2003, p. 7.
130
Cf., v.g., Maria Lucília Gonçalves Pires, A crítica camoniana no século XVII, loc. cit., pp. 39-46.
131
Cf. George Steiner, Depois e Babel. Aspectos de linguagem e tradução, Lisboa, 2002, Ed. Relógio
d’Água, p. 16.
132
Cf. Marta Teixeira Anacleto, “Aspectos da recepção do romance pastoril ibérico em França”, in
Margarida L. Losa et alii (Org.), Literatura comparada: os novos paradigmas, loc. cit., p. 215: “À prática
tradutora e à apropriação da escrita por um ‘eu’ que reflecte na reescrita, que pratica as expectativas do
público e os seus modelos de leitura ou ‘julgamentos de valor literário’, está subjacente a percepção de um
regime intertextual que permite valorizar o papel da literatura traduzida na história literária e na genologia”.

30
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

da recepção133. Como espaço privilegiado de diálogo e encontro, conduz


necessariamente a textos de chegada que se assumem de forma clara como
recriação, fruto de uma profunda consciência linguística e cultural134. Essa
apropriação pressupõe uma dimensão metalinguística135 face ao gosto dominante, à
sua visão do mundo, aos seus arquétipos culturais e estéticos, que se constroem
necessariamente sob a forma de uma poética explícita. Assim, o complexo trabalho
referido constitui um cabal exemplo dos problemas fundamentais no seio da
estética de recepção pela configuração de um paradigma hermenêutico que abre
múltiplas possibilidades ao sistema literário136. Nesse sentido, o status do tradutor é
também o de autor, que, a partir de um processo de identificação com o texto de
partida, questiona e encara o seu labor como actividade artística e dinâmica. Deste
modo, a tradução, pelo seu sentido criativo, é um claro exemplo de recepção
produtiva137; a sua apreciação estética decorre de uma estratégia cultural de
renovação literária, que Graça Moura definiu lapidarmente na metáfora do “jogo de
xadrez”138.
O amplo campo teórico que a estética da recepção encerra leva Jauss a
considerar uma nova área de investigação ligada à função sociocultural da
literatura139, visto que o horizonte de expectativa decorre de contextos específicos,
modela a cosmovisão do leitor, bem como determina a sua atitude face aos

133
Steiner fala em “interanimação”, identidade mútua entre o texto original e o traduzido que lhes confere
uma determinada energia de sentido (Cf. George Steiner, op. cit., 511-512).
134
Cf. Jean-Marie Zemb (“O próprio e o outro”, in Jean-René Ladmiral (org.), As traduções e os seus
problemas, Lisboa, loc.cit., p. 132): “O tradutor não compara, cria, ou se quiserem, recria”.
135
Aguiar e Silva define metatextos da literatura, como “aqueles textos nos quais, com objectivos analítico-
-explicativos e/ou normativos, se mencionam, formulam, caracterizam ou justificam as convenções, as
regras, os mecanismos semióticos que subjazem aos processos de produção, estruturação e recepção dos
textos literários” (Cf. Vítor Manuel Aguiar e Silva, Teoria da literatura, loc. cit., p.110).
136
Neste contexto, Stierle defende o carácter intertextual da prática da tradução, uma vez que existe uma
dinâmica especular decorrente de uma relação de dependência mútua entre o texto de partida e o de chegada
(Cf. Karlheinz Stierle, Existe uma linguagem poética? Seguido de Obra e Intertextualidade, loc. cit., p. 60).
137
Segundo Gunter Grimm,“ O domínio da recepção produtiva abrange todo o processo de produção de uma
obra provocado pela recepção ou por ela fortemente influenciada […] O estudo da recepção produtiva ou da
produção receptiva distingue-se do velho estudo das influências pela inversão da perspectiva: já não é a obra
mais antiga que actua de forma casualístico-mecanicista sobre a mais tardia, mas é o produtor desta última
que se apropria da primeira através de um trabalho imenso” (Apud Maria Manuela Gouveia Delille e Maria
Teresa Delgado Mingocho, A recepção do teatro de Schiller em Portugal no século XIX, I - O drama “Die
Räuber”, Coimbra, Instituto Nacional de Investigação Científica, 1980, p. 9).
138
Cf. Vasco Graça Moura, Alguns amores de Ronsard, Chiado, Ed. Bertrand, 2003, p. 18.
139
Cf. Álvaro Manuel Machado e Daniel-Henri Pageaux, op. cit., p. 116: “O fenómeno literário é também
um processo de socialização, pela própria existência de público leitor, das relações entre produção literária e
realidades sociais”.

31
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

outros140. Assim, repensar os fundamentos da história literária, conduz


necessariamente a questionar o papel da literatura no mundo141, o que implica
considerar os modos de funcionamento e das transformações da comunicação
literária, contemplando não só uma dimensão histórica, mas também numa
dimensão sociológica142. A estética da recepção orienta-se precisamente por
padrões determinados ao privilegiar uma análise crítica das repercussões históricas
do leitor143. Este ponto de vista mais lato, que projecta uma consciência
sociocultural, potencia e torna mais complexas as funções do receptor, pólo
relevante na dinâmica do processo criativo144. Assim sendo, os juízos de valor
literário são modelados por sistemas culturais que dialogam com o mundo e
matizam a escrita, fazendo parte de um processo de socialização da literatura.145
Nesta óptica, as variações epocais de mundividência, condicionam do ponto de
vista ideológico, entre outros, o modo como um texto é abordado146. Assim, na
vasta e rica corrente hermenêutica proporcionado por Camões, é possível observar
uma polifonia interpretativa ditada por princípios literários, culturais e
sociológicos, como não existe outro nas letras portuguesas. Além disso, o amplo e

140
Cf. Hans Robert Jauss, A literatura como provocação, loc. cit., p. 105: “A função social da literatura só
manifesta genuinamente as suas possibilidades quando a experiência literária do leitor intervém no horizonte
de expectativa da sua vida quotidiana, orienta ou modifica a sua visão no mundo, e age consequentemente
sobre o seu comportamento social”.
141
Aguiar e Silva refere que os códigos actuantes na estrutura de um texto dependem, em grande medida, de
múltiplos factores socioculturais (Cf. Vítor Manuel Aguiar e Silva, “O texto literário e os seus códigos”, in
Revista Colóquio/Letras, nº 21, Setembro, 1974, pp. 29-30).
142
Para Álvaro Manuel Machado e Daniel-Henri Pageaux (op. cit., p. 79), pelos múltiplos sentidos que o
texto literário veicula, cabe aos investigadores reflectir sobre a natureza do texto (perspectiva de crítica
textual) e a sua função (perspectiva histórica e sociológica).
143
Regina Zilberman (op. cit., p. 100) consagra as seguintes palavras sobre esta matéria: “A capacidade da
obra de desprender-se de seu tempo original e responder às demandas dos novos leitores é reveladora de sua
historicidade. Porém, para ocorrer esse desdobramento futuro, é preciso que, desde o começo, ela estabeleça
algum tipo de comunicação com os próprios destinatários. O vínculo com a época de aparecimento antecipa
aquela historicidade, que se propaga para o futuro desde as modalidades iniciais de recepção”.
144
Pierre V. Zima destaca esta possibilidade de abordagem crítica, quando afirma que se pode “encarar a
estrutura textual como sendo mediatizada por estruturas sociais e/ou económicas heterónimas, isto é, analisar
a sociedade e as suas transformações históricas no texto” (Cf. Pierre V. Zima, “Literatura e sociedade: para
uma abordagem sociológica da escrita”, in A. Kibédi Varga, Teoria da Literatura, loc. cit., p. 237).
145
Segundo Regina Zilberman (op. cit., p. 6), “Ler assume hoje um significado tanto literal, sendo, neste
caso, um problema da escola, quanto metafórico, envolvendo a sociedade (ou, ao menos, seus setores mais
esclarecidos) que busca encontrar sua identidade pesquisando as manifestações da cultura”.
146
Cf. Carlos Reis, O conhecimento da literatura. Introdução aos estudos literários, Coimbra, Livraria
Almedina, 1995, p. 83: “O termo cosmovisão, bem como os seus sinónimos ‘mundividência’ e naturalmente
‘visão do mundo’, tem que ver, pois, do ponto de vista do escritor, com uma certa forma de reagir perante o
mundo, os seus problemas e contradições, desencadeando-se então uma resposta esteticamente elaborada a
estímulos e solicitações ético-artísticas formuladas pela sociedade, pela história e pela cultura
contemporânea e anterior ao escritor”.

32
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

diversificado leque de matizes proposto por cada acto de leitura torna-se um


precioso instrumento de legitimação da obra camoniana, impregnada de questões
existenciais e, sobretudo na épica, de preocupações de interesse nacional, presentes,
por exemplo, no ofício do rei ou na missão heróica das descobertas147. A
consciência de identidade nacional surge fundamentalmente em épocas históricas
de crise, como foram o domínio filipino148 ou o conturbado período anterior à
implantação da República149, onde a figura e a mensagem de Camões constituem
um símbolo aglutinador de independência e liberdade.
Desta maneira se entende a razão pela qual a estética da recepção veio contribuir
decisivamente para a compreensão de mecanismos sociológicos da literatura, da
sua função estética e dos modelos de percepção das obras150. A obra literária deixa
de ter uma leitura fixa e atemporal, pela possibilidade de sentidos que o leitor
decodifica, de acordo com o seu conhecimento estético-literário e o contexto
histórico e ideológico em que se situa151. Por outro lado, o texto, provido de
carácter ontológico, formula significações, mundividências ou sentidos cívicos, o
que elevou Camões, sob a égide de forte cariz ideológico, à categoria de entidade
nacional152. Com efeito, a variedade de interpretações em torno desta figura tutelar
foi alimentada, sobretudo no século XIX, por confusas propagandas partidárias

147
Cf. Maria Vitalina Leal de Matos, “Os valores n’Os Lusíadas”, in Camões: sentido e desconcerto,
Coimbra, Centro Interuniversitário de Estudos Camonianos-Imprensa da Universidade, 2011, pp. 229-246.
148
Cf. Hernâni Cidade, A literatura autonomista sob os Filipes, Lisboa, Livraria Sá da Costa, 1943.
149
Cf. Carlos Manuel Ferreira da Cunha, A construção do discurso da história literária na literatura
portuguesa do século XIX, Braga, Universidade do Minho-Centro de Est. Humanísticos, 2002, pp. 393-456.
150
Cf. Wolfang Iser, “Problemas da teoria da literatura atual”, in Luiz Costa Lima, Teoria da literatura em
suas fontes, vol. II, Rio de Janeiro, Livraria Francisco Alves Editora, 21983, p. 371: “O texto literário reúne e
acumula muitos outros textos, os quais, em sentido estrito, podem ser literários e relacionar-se à literatura
precedente, ma que também podem ser contextuais, na medida em que retratam convenções sociais, normas
e valores”.
151
Segundo Pina Martins, o poeta quinhentista é o caso paradigmático, porque “Camões es el cantor del
pasado, pero no un ‘laudator temporis acti’, porque tan solo celebra los heroísmos del pasado en la medida
en que transcienden el pasado para proyectarse en el futuro” (Cf. Eugenio Asensio e José V. de Pina
Martins, in Luís de Camões. El humanismo en su Obra Poética Los Lusiadas y las Rimas en la Poesía
Española (1580-1640), Paris, Fundação Calouste Gulbenkian, 1982, p. 10).
152
A obra de Camões não se confina à sua dimensão exclusivamente literária, uma vez que foi lida sob
vincados princípios ideológicos, percurso hermenêutico que Aníbal Pinto de Castro sintetiza do seguinte
modo: “É por estes caminhos que, dando lugar a um permanente fenómeno de recepção crítica e recreativa,
mas também a um ininterrupto movimento de hermenêutica cívica, ideológica e até política, ainda quando
degenerada em fontes de desvios e interpretações manifestamente erradas, Camões (e com ele a sua obra!)
assume o seu pleno significado na cultura e na sociedade portuguesas atingindo ao mesmo tempo uma
dimensão intemporal que intrínseca e definitivamente o identifica com a colectividade de que, num
momento limitado da história, foi parte” (Cf. Aníbal Pinto de Castro, “Camões, poeta pelo mundo em
pedaços repartido”, in Páginas de um honesto estudo camoniano, loc. cit., p. 29).

33
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

resultantes da situação política vigente, como destacou Eduardo Lourenço153. No


entanto, a partir da segunda metade do século XX, o estudo da dimensão literária
da obra camoniana assume significativa preponderância, no dizer de Lucília
Pires154. Nesta apropriação contínua, verifica-se, pois, que o sentido do autor de Os
Lusíadas se estrutura basicamente face aos valores dominantes e ao contexto
cultural em que a leitura é realizada155.
Como se observa, o forte poder evocativo da obra de Camões, paradigma de
“obra viva” na expressão de Jauss 156, constitui um exemplo singular no âmbito da
estética da recepção, uma vez que a constante hermenêutica ao longo de mais de
quatro séculos faz parte do imaginário colectivo nacional. A sua indelével
originalidade, observada nas leituras realizadas, constitui uma janela que se abre a
renovados valores axiológicos, simbólicos e estéticos157.
Assim, a vertente poética e a dimensão crítica de Graça Moura integram-se nessa
ininterrupta exegese de aproveitamento da fecunda matriz camoniana, contribuindo
indubitavelmente para a formação de uma consciência literária explícita,
propugnada em Portugal sobretudo a partir do Modernismo158. Nesta linha, quando
o autor de “Sonetos familiares”, se refere, em entrevista, aos poetas portugueses
afirma: “Estava sobretudo a pensar num Camões ou num Cesário Verde, que são

153
Cf. Eduardo Lourenço, Portugal como destino seguido de mitologia da saudade, Lisboa, Ed. Gradiva,
1999, p. 147.
154
Cf. Maria Lucília Gonçalves Pires, “Camonologia”, in Biblos. Enciclopédia Verbo das Literaturas de
Língua Portuguesa, vol. 1, Lisboa-S. Paulo, Ed. Verbo, 1995, cols. 911-912: “Superou-se assim a
instrumentalização do poema transformado em bandeira de uma qualquer ideologia política para se encarar a
sua leitura como diálogo de uma obra que é expressão da cultura do seu tempo com valores éticos e estéticos
do nosso tempo”.
155
Nesta linha, Graça Moura afirma: “A obra é também o que o seu leitor, com a sua sensibilidade, a sua
inteligência, a sua informação, a sua capacidade, puder ler nela” (Cf. Vasco Graça Moura, Luís de Camões:
alguns desafios, loc. cit., p. 11).
156
Para Jauss, uma obra permanece viva quando “faz apelo a uma interpretação e age através de uma
multiplicidade de significações” (Hans Robert Jauss, A literatura como provocação, loc. cit., p. 47).
157
Cf. Vítor Manuel Aguiar e Silva, Teoria da literatura, loc. cit., pp. 312-313: “A diversidade sincrónica e
diacrónica das concretizações de um texto literário constitui o fundamento da vida desse mesmo texto, isto é,
a sua capacidade de durar, de preservar a sua identidade e de se modificar parcialmente, através de múltiplos
e sucessivos actos de leitura, em correlação com transformações horizontais e verticais do código literário e
de outros códigos semióticos com ele conexionados, bem como da sua capacidade de influir nos processos
de produção e recepção de outros textos e, em última estância, da sua capacidade de contribuir para a
estática ou para a dinâmica do próprio sistema semiótico literário”.
158
Cf. José Carlos Seabra Pereira, “Em torno das relações paragramáticas da poesia de Afonso Duarte com a
obra de Camões”, in Do fim-de-século ao tempo de Orfeu, 1979, Coimbra, Livraria Almedina, 1979, pp.119-
-148 e “Notas sobre Camões e o(s) Modernismo(s) em Portugal”, in Isabel Almeida et alii (org.) Estudos
para Maria Idalina Resina Rodrigues, Maria Lucília Pires e Maria Vitalina Leal de Matos, Lisboa,
Departamento de Lit. Românicas da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2007, pp. 519-536.

34
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

para mim no firmamento literário português, os dois astros da máxima


grandeza”159. Noutro passo mais recente reitera esse fascínio: “Como também já
tive ocasião de dizer, Camões é um dos dois autores (o outro é Cesário Verde) que
se tornaram uma referência frequente na minha poesia, não propriamente procurada
e muito menos espartilhante, mas antes como a presença de uma sombra tutelar que
se manifesta e me ocorre naturalmente, como maneira de ‘respirar melhor’ na
minha língua e na minha escrita...”. Este apreço por Camões – justifica o autor –
“começou por ser um conjunto fragmentário de referências da minha infância”, que
“começou nos anos terminais do curso liceal, muito por via da História da
Literatura Portuguesa de Óscar Lopes e António José Saraiva que o mundo
camoniano começou a ser revelado no seu esplendor”. Acrescenta também que “ao
longo dos anos 60, um contacto mais fecundo com a obra camonista de Jorge de
Sena e de Aguiar e Silva, entre outros, contribuiu para introduzir no mundo
fascinante da crítica e da erudição camonianas, de par com uma reflexão sobre os
caminhos do maneirismo europeu e as fontes literárias de Camões”160. Estas
palavras sintetizam, pois, as coordenadas de um interessante percurso intelectual do
autor de Adamastor, nomen gigantis, feito de referências modelares determinantes
na sua formação literária, onde, sem dúvida, a figura do poeta quinhentista se eleva.
Ao ocupar um papel fulcral na avaliação epistemológica dos estudos literários, a
teoria da recepção constitui um fundamento teórico pertinente, e consequentemente
metodológico, para discutir e aprofundar questões referentes ao modo como o labor
literário de Graça Moura lê e aproveita Camões, numa perspectiva, que, em vez de
confirmar somente uma evidente consagração, pretende valorizar sobretudo a
diferenciação criativa, matéria que merecerá particular atenção nos próximos
capítulos do presente trabalho.
Assim sendo, no que concerne à estrutura do trabalho, cumpre explicar que se
divide em diversas partes interligadas, cujo objetivo principal reside em dar conta
dos esteios essenciais do trabalho realizado.

159
Cf. José Viale Moutinho, “Apenas a transcrição de uma conversa José Viale Moutinho/Vasco Graça
Moura (que poderá ser apensa às actas)”, in José da Cruz Santos (org.), Modo Mudando. Sete ensaios sobre
Vasco Graça Moura, Porto, Campo das Letras, 2000, p. 147.
160
Vasco Graça Moura, “Versos que sabemos de cor”, in JL. Jornal de Letras, Artes e Ideias, 19 Outubro
2011, p. 11.

35
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

A partir da formulação teórica enunciada, em primeiro lugar, estabelece-se o


eixo estruturante dos capítulos seguintes, que engloba os fundamentos sobre os
quais a investigação se organizou, trilhando um possível caminho interpretativo da
obra poética de Vasco Graça Moura. O percurso adoptado fundamenta-se na
estética da recepção e em conceitos essenciais em torno, entre outros, do fenómeno
da leitura, da imitatio, da intertextualidade, da tradução. Com efeito, tais
concepções, consagradas pela teorização literária, permitem traçar um itinerário do
autor de Sonetos familiares, tendo Camões como figura tutelar.
Estabelecido e apresentado o propósito fundamental da tese, o capítulo
inaugural, com um sentido abrangente, debruça-se sobre o fazer poético de Graça
Moura, com o fito de estabelecer o contexto literário em que se integra, bem como
o seu perfil cultural. Tendo em conta uma perspectiva complementar de leitura, não
se afigurou descurado também referir a sua prolixa produção crítica, sobretudo no
que concerne aos textos dedicados ao poeta quinhentista; de facto, tal exegese
apresenta uma notória sintonia em relação à vertente lírica, o que revela uma
peculiar sensibilidade estética.
Tendo sempre em conta o anteriormente proposto, os capítulos seguintes, com
um encadeamento lógico entre si, pretendem analisar a dinâmica intertextual, no
seu sentido mais amplo, procurando, através de processos e intenções, descortinar
essencialmente a importância da figura tutelar de Camões na obra de Graça Moura,
imprescindível para compreender determinados traços estruturantes dos seus
versos, cuja riqueza plurissignificativa convoca uma constante questionação
hermenêutica. O poeta, ciente da indelével dimensão estética e ontológica dos
versos camonianos, destaca, assim, a sublime função da poesia, consubstanciada na
celebração do sentido da existência e o que dela fica na memória. Esta
mundividência, dotada de um desejo incontido de novidade, permite, sem dúvida,
observar a deliberada proximidade entre Graça Moura e Camões. Na linha referida,
o itinerário evocado do poeta “peregrino vago e errante” revela-se sob o signo de
vicissitudes, desenganos, naufrágios, um conjunto de elementos associados a uma
imagem disfórica de Portugal, entendida como pátria perdida. Decorre daqui o
sentimento de uma vivência de felicidade ilusória, de cunho maneirista, que traduz

36
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

uma dilacerante dor e inquieta solidão. Este infindável filão artístico configura a
dimensão experimental da construção literária do poeta contemporâneo,
intimamente ligada à recriação interpretativa do imaginário do autor de Os
Lusíadas, testemunho cabal de uma visão do mundo, da vida e da condição
humana, num determinado momento da história nacional.
Por fim, o derradeiro momento em torno da abordagem da obra de vgm,
pretende extrair conclusões que validem a abordagem realizada e o travejamento
desse exercício de análise. O percurso que emana do diálogo intertextual decorre,
em última instância, da leitura que Graça Moura faz da poesia quinhentista de
Camões.
Segue-se, como não podia deixar de ser em trabalhos desta índole, a base
documental em que assentou a análise consagrada; a selecção bibliográfica – activa
e passiva – teve em vista rastrear e comprovar as coordenadas principais da
produção literária de Graça Moura, a partir de uma base hermenêutica segura e
adequada à fundamentação realizada.

37
Gravura inserta na Apologia em que defende João Soares de Brito
a poesia do príncipe dos poetas d’Espanha Luís de Camões
1. Fundamentos de uma ars poetica: entre
a sublimação e a superação
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

1.1. Produção poética e perfil cultural de Vasco Graça Moura

A escrita de Graça Moura afirma-se através de uma difusa rede de eixos


estruturantes e revisita, em clave reflexiva, um conjunto alargado de memórias
pessoais, em demanda de uma individualidade criadora. O autor, na verdade, faz da
sua obra um espaço de cultura, uma espécie de caixa-de-ressonância haurida numa
tradição das mais diversas vozes. Porém, esta singular concepção estética também
se plasma na sugestiva capacidade referencial, pela convocação de situações
concretas colhidas no quotidiano, numa relação única com a literatura. Com efeito,
alicerçada numa invulgar sensibilidade, a atitude reflexiva de Graça Moura
desvenda fragmentos do mundo onde não há lugar para a indiferença face à
realidade. O seu vasto e plurifacetado percurso intelectual – desenhado numa
singular diversidade, embora firmemente coerente – configura o poeta, o
ficcionista, o crítico, o dramaturgo, o tradutor, o antologiador, o editor e o gestor
cultural161.
Graça Moura, nascido em 1942, no Porto, repartiu-se por múltiplos domínios;
licenciou-se em Direito na Universidade de Lisboa, exerceu advocacia,
desempenhou vários cargos públicos de relevo na área da política e da cultura. Na
sua dedicação à causa pública, foi Secretário de Estado de dois Governos
Provisórios (1975-1976) e desempenhou funções directivas na RTP (1978), na
Imprensa Nacional-Casa da Moeda (1979-1989) e na Comissão das Comemorações
do Centenário de Fernando Pessoa (1988). Integrou o Conselho Geral da Unesco
(1983-1987), foi também director da Fundação Casa de Mateus, Comissário Geral
para a Exposição Universal de Sevilha (1988-1992) e para as Comemorações dos
Descobrimentos Portugueses (1989-1995). A partir de 1996 e até 1999, dirigiu o
Serviço de Bibliotecas e Apoio à Leitura da Fundação Calouste Gulbenkian e foi
director da revista Oceanos. Entre 1999 e 2009, foi deputado ao Parlamento
Europeu e, de Janeiro de 2012 a 2014, foi Presidente do Centro Cultural de Belém,

161
A bibliografia de Graça Moura apresentada ao longo destas páginas surge sistematizada no final deste
trabalho. Os poemas serão citados de Vasco Graça Moura, Poesia reunida, vols.1 e 2, Lisboa, Ed. Quetzal,
2012. Deste modo, doravante a indicação bibliográfica será sempre abreviada, indicando somente o número
do volume e o da(s) página(s).

43
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

uma das mais importantes instituições culturais do país162. A sua ampla experiência
e saber, reconhecidos unanimemente, permitiram-lhe integrar diversos júris de
prestigiados prémios literários; presidiu, por exemplo, ao júri do Prémio Literário
Revelação Agustina Bessa-Luís e do Prémio Literário Fernando Namora. Elaborou,
no Parlamento Europeu, dois relatórios dos programas-quadro Cultura 2000 e
Cultura 2007-2013, que constituíram o principal instrumento da política cultural da
União Europeia. Foi também sócio correspondente da Classe de Letras da
Academia das Ciências de Lisboa.
Oriundo de uma ilustrada família portuense, a sua educação, alicerçada na
leitura de autores consagrados desde tenra idade, seria de facto decisiva na
determinação de uma cultura superior, frisando que esses valores lhe foram
inculcados pelo pai163. Também quando refere vultos marcantes no seu percurso
escolar, destaca, entre outros, o magistério excepcional de Óscar Lopes, tendo-lhe
dedicado o comovente poema um senhor de matosinhos:

“andava eu no liceu: no salão nobre


dos paços do concelho em matosinhos,
um professor, o óscar lopes, vinha

mostrar à noite que a literatura


importa a toda a dignidade humana.
iam autores ouvi-lo, jornalistas,

estudantes, gente que ali morava […]

é sempre desconforme a literatura,


é mal-estar, princípio de prazer,
é trabalho forçado e liberdade

e um modo mais verbal de estar no mundo,

162
Como agente cultural tem consciência do trabalho que realizou, como se observa neste passo: “Na
Imprensa Nacional-Casa da Moeda, onde estive dez anos, na Comissão dos Descobrimentos, onde estive
oito, tinha o prazer de poder promover coisas que achava importantes. Estava convencido da utilidade e da
necessidade do que fazia”. Vide http://www.seleccoes.pt/vasco_gra% C3%A7a_moura_%C2%Abpassa_tu-
do_ pela_disciplina_e_o_esfor%C3%A7o#sthash.hHoqFo0J.dpuf (consultado em 10 Janeiro 2014).
163
Embora tenha origem nortenha, esse facto não o impediu, muito pelo contrário, de se abrir ao mundo e a
muitas outras culturas, influenciado por uma educação literária clássica e exigente que o seu pai lhe
proporcionou (Cf. Rodrigues da Silva, “Ele não é tão mau como isso”, in JL. Jornal de Letras, Artes e
Ideias, 17 Junho 1995). Nesta linha informa: “O meu pai tinha uma razoável biblioteca, tinha sobretudo um
culto enorme da literatura. Para ele, de resto, a literatura terminava no Proust. Pertencia a uma geração que
cultivava muito a memória. Durante as refeições, fazia-nos citações e contava páginas de livros, sabia
trechos inteiros do Eça, do Camilo… Isso teve uma importância enorme em condicionar a minha vontade
para a leitura”, in Ana Sousa Dias, “Vasco Graça Moura. O impaciente europeu”, in Revista Ler, Janeiro
2014, p. 36.

44
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

e nesse mar óscar lançava redes


da pesca milagrosa”. (PR1, 552-553)

As circunstâncias biográficas da juventude do autor de concerto campestre,


apesar de nunca ter sido seu discípulo, sublinham um deliberado e sincero tributo à
importância do homem de letras e mestre, que, na análise do fenómeno literário,
abriu novos horizontes hermenêuticos na literatura nacional164. Em testamento de
vgm reitera esse reconhecimento:
“o óscar lopes e o david,
deram-me as regras do jardim:
vinho fazer da minha vide,
nunca ficar assim-assim,
montar em pêlo e em selim.
das teorias me dispenso:
pensaram tudo antes de mim
o e. p. c. e o lourenço.” (PR2, 253)

O apreço pela literatura, leva-o a evocar Óscar Lopes, David Mourão-Ferreira,


Eduardo Prado Coelho e Eduardo Lourenço, “pensaram tudo” e estimularam a sua
formação cultural, bem como influenciaram a sua obra.
Assim, tais factos ajudam a explicar a vocação lírica de Graça Moura, que se
estreou, em 1963, com o livro Modo Mudando, marco afectivo de referência da sua
multifacetada trajectória, como confessa:

“era um livro pequeno, a catorze de fevereiro,


quando num sobressalto fui buscá-lo ao tipógrafo e o levei à livraria,
há trinta anos numa tarde de sábado, creio que era de sábado,
e tudo se misturava: alegria, apreensão, alguma pose, as frases feitas.” (PR1, 436)

O sujeito de enunciação, com um propósito testemunhal, revisita o entusiasmo e


as peripécias da sua estreia literária vinda a lume em edição de autor, que engloba
ansiedade e orgulho, bem como alude à tipografia que editou os livros e à livraria
164
Quando do falecimento de Óscar Lopes frisou em entrevista à Agência Lusa: “Foi um grande rasgador de
horizontes para homens como eu, que tinham 16, 17 anos no fim dos anos 1950, e para quem ele abriu
perspectivas diferentes do fenómeno literário”. Vide http://noticias.sapo.pt/lusa (consultado em 22 Março
2013). Com efeito, os ensinamentos colhidos são reiteradamente assinalados, como revela em significativo
passo: “Nunca fui aluno directo de Óscar Lopes e todavia sempre me senti como se o tivesse sido. Foi no
convívio fascinado com muito do que ele escreveu e com muito do que lhe ouvi, que aprendi a ler os nossos
grandes autores antigos e modernos, a lançar pontes de uns para os outros, a procurar neles o que os torna
tão vitalmente nossos contemporâneos, apesar das distâncias que são, por vezes, consideráveis no tempo e
no espaço. E foi com ele também que comecei a construir os meus próprios padrões de valor e de gosto
literário, a compreender a importância de certas estruturas e efeitos, entoações, substâncias e derivas, enfim,
de Camões e D. Francisco Manuel de Melo, a Cesário, António Nobre, Vitorino Nemésio, Eugénio de
Andrade, tantos outros” (Cf. Vasco Graça Moura, “Óscar Lopes”, in Eduardo Prado Coelho et alii, Uma
homenagem a Óscar Lopes, Porto, Ed. Afrontamento-Câmara Municipal de Matosinhos, 1996, pp.153-154).

45
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

onde estariam à venda. O escritor conta com uma obra extensa e representativa
com mais de sessenta títulos publicados, estando a sua produção lírica coligida em
Poesia reunida165.
A comunidade literária – nacional e estrangeira – não ficou indiferente à sua
dedicação às letras; soube reconhecer o valor da consistente e vastíssima trajectória
e granjeou-lhe um amplo conjunto de prémios. Em 1997, foi-lhe atribuída a
medalha de ouro de Florença pelas suas traduções de Dante e o Ministério da
Cultura transalpino considerou-o, em 2008, o melhor tradutor estrangeiro de obras
nacionais166. Foi agraciado com a Ordem de Santiago de Espada (1983) e, no
Brasil, com a Grã-Cruz da Ordem do Rio Branco, no Brasil (2005). O Presidente da
República de Portugal condecorou o escritor com a Grã-Cruz da Ordem de
Sant'Iago da Espada, durante a homenagem que foi prestada ao homem de cultura e
personalidade pública, na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, em 31 de
janeiro de 2014167. Neste ciclo de homenagens dedicadas ao tradutor de Dante
distingue-se uma inúmera quantidade de eventos. A Universidade Fernando Pessoa
organizou o Colóquio 50 anos de Vida Literária de Vasco Graça Moura, a 31 de
Maio de 2012 na Faculdade de Ciências, com a intervenção de diversos estudiosos
sobre a produção literária do homenageado168. Realizou-se também uma

165
Esta estratégia editorial em voga surgiu nos anos 80 do século passado, sendo até então somente
reservada a autores consagrados de vasta bibliografia, muitas vezes esgotada. Foi o caso, por exemplo, das
obras completas de Ruy Belo, Sophia de Mello Breyner ou Eugénio de Andrade.
166
De entre as diversas distinções literárias atribuídas ao autor, contam-se as seguintes: Prémio Gulbenkian
de tradução da Academia das Ciências de Lisboa (1978); Prémio de ensaio da Associação dos Jornalistas e
Homens de Letras do Porto (1985); Prémio Pessoa (1995); Grande Prémio de Tradução do PEN Clube
Português (1996); Prémio Jacinto do Prado Coelho (ensaio, da Associação Internacional dos Críticos
Literários (1998); Prémios literários das Câmaras Municipais do Porto e de Lisboa; Medalha de Ouro do
Comune di Firenze (1998); Grande Prémio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores (1999);
Prémio de Poesia do PEN Clube Português (1999); Premio Internazionale la Cultura dei Mare, San Feüce
Circeo (2002); Distinção nos 30 anos do 25 de Abril, na área da literatura, Árvore-Cooperativa de
Actividades Artísticas (2004); Coroa de Ouro do Festival de Struga (Macedónia, 2004); Prémio
Internazionale Diego Valleri, Monselice (2004), atribuído à sua tradução das Rimas de Petrarca; Grande
Prémio de Romance e Novela da APE (2004); Prémio de Tradução Paulo Quintela, da Faculdade de Letras
de Coimbra, atribuído à sua tradução das Rimas de Petrarca (2006); Prémio Vergílio Ferreira da
Universidade de Évora (2007); Prémio Clube Literário do Porto (2010); Prémio Europa-David Mourão
Ferreira, da Universidade de Bari (2103), e o Prémio Morgado de Mateus (2013). Este vasto reconhecimento
leva o periódico francês Le Monde (27 Avril 2014) na notícia da morte de Graça Moura a considerá-lo de
uma cultura abissal, bem como “Grande figure de la vie publique portugaise, écrivain prolifique, traducteur,
avocat et homme politique”.
167
Eduardo Lourenço e Rui Vieira Nery (coord.), Colóquio Homenagem a Vasco Graça Moura, Lisboa,
Fundação Calouste Gulbenkian, 2014.
168
Cf. Eduardo Paz Barroso e Isabel Ponce de Leão (org.), “Vasco Graça Moura”, in Revista Artes entre
Artes, nº 75, Universidade Fernando Pessoa, 2012 e José Carlos Seabra Pereira, Vasco Graça Moura

46
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

Homenagem-Colóquio Vasco Graça Moura: 50 anos de vida literária na


Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, em 23 Outubro de 2012, com
diversas comunicações sobre a sua obra. Neste colóquio foi lançada a antologia A
vista desarmada, o tempo largo. Poetas em homenagem a Vasco Graça Moura,
que integra textos de diversos autores dedicados ao homenageado.169 No dia
consagrado a escritores, a 17 de maio de 2015, teve lugar O Dia Vasco Graça
Moura, no ciclo organizado pelo Centro Cultural de Belém e pelo Centro Nacional
de Cultura. Os painéis, que contaram com reputados estudiosos, foram os
seguintes: O poeta e o ficcionista, O ensaísta e o polemista e O político europeu e
homem de ação cultura.170 Em 7 de Março de 2014, a Universidade do Porto
distinguiu-o com o título de Doutor honoris causa durante uma cerimónia que teve
lugar no Salão Nobre da Reitoria. Miguel Veiga foi o padrinho e o elogio ao
doutorando foi proferido por Gaspar Martins Pereira, professor catedrático da
Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
A forte individualidade de Graça Moura, independente e avessa a filiações de
escola171, conjuga a contaminação do Pós-Modernismo com o que há de melhor na
tradição literária, como conscientemente canta “só me resta viver a melancolia do
conflito / de gerações, sentir-me um marginal / no ocidente” (PR1, 346) afirma-se
como uma voz modelarmente inovadora e eclética no actual panorama literário
português, com traços distintivos de uma expressão irónica, indissociável de um
notável jogo intertextual, onde Camões é figura tutelar172. A sua escrita, estruturada
por um sentido de matriz clássica e atravessada por uma contida melancolia neo-

mediador de Camões”, in Eduardo Paz Barroso e Isabel Ponce de Leão (org.), Revista Artes entre Artes,
nº 87, Universidade Fernando Pessoa, pp.10-12.
169
Maria do Céu Fialho e Teresa Carvalho (org.), A Vista Desarmada, o Tempo Largo. Antologia. Poetas em
homenagem a Vasco Graça Moura, Lisboa. Ed Quetzal, 2012.
170
Vide https://www.ccb.pt/Default/pt/Noticias/Noticia?A=252 (consultado em 9 Junho 2015).
171
Graça Moura não se enquadra nos ditames de uma determinada geração artística, uma vez que o conceito
desta conota a noção de convergências de ordem estética e cultural no contexto de uma época. Acresce que a
geração pós-moderna se caracteriza, em grande parte, pelo seu vincado eclectismo literário.
172
Nesta linha, Rui Carvalho Homem, numa colectânea por si elaborada, integra cinco poemas de Vasco
Graça Moura (o moinho de café, em praga, soneto da poesia narrativa, salmo 136 e omaggio a giacomo). O
poeta ombreia com vultos maiores da literatura nacional e estrangeira, como por exemplo, Fernando
Guimarães, Fernando Echevarría, Nuno Júdice, Charles Tomlinson, Elio Pecora, Seamus Heaney e Pilar
Pallarés (Cf. Rui Carvalho Homem, (org.), Identidades: alguns poetas europeus, Porto, Faculdade de Letras
da Universidade, 2005, pp. 81-88).

47
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

-maneirista, no dizer de Pinto do Amaral173, é seduzida reiteradamente pelo diálogo


com a pintura, a música ou a fotografia. Não obstante, os primeiros textos de Graça
Moura apresentam uma influência surrealista, como se observa em “imagem ágil”,
o seu primeiro poema publicado em Quadrante, da Associação Académica da
Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, revista que também editou
durante o período dos seus estudos superiores em Lisboa:

“na tarde assemelhavas-


-te a uma gota de água
mas não vinda de nuvens
antes macia lava

lava aguda surgias


pela rua oleosa
gota de água entre as outras
que da água se isola

água filamento
no interior da lâmpada
cristal só por dentro
cintilação rápida

por fora macio


afago de olhos
boiando no rio
que fazes de sonhos”.174

Os versos deixam antever já um poeta promissor, como o tempo veio a mostrar,


num auspicioso percurso de cinquenta anos delineado num progressivo e contínuo
amadurecimento literário.
É precisamente na dilucidação em torno da produção lírica de Graça Moura, que
se vão centrar as próximas páginas, uma vez que, embora possua um carácter
variado de interesses literários, é a poesia que mais o marca, como testemunha no
discurso de agradecimento na homenagem que lhe foi promovida, em Janeiro de
2014, na Fundação Gulbenkian: “agrada-me que me vejam como poeta porque essa
foi a via por onde me estreei e aquela que tenho cultivado mais”175.

173
Esta feliz e lúcida expressão constitui de facto uma pedra de toque da poesia de Graça Moura. (Cf.
Fernando Pinto do Amaral, “A poesia neo-maneirista de Vasco Graça Moura”, in Vasco Graça Moura,
Poemas escolhidos (1963-1995), Lisboa, Ed. Bertrand, 1996, pp. 7-11.
174
Vasco Graça Moura, “imagem ágil”, in Revista Quadrante, nº 10, Associação Académica da Faculdade
de Direito da Universidade de Lisboa, Janeiro de 1962, p.14.
175
“Homenagem a Vasco Graça Moura”, in Diário de Notícias, 1 Fevereiro 2014, p. 39.

48
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

Não obstante, o fascínio pelas letras leva-o a organizar, numa notável dimensão
informativa e pedagógica, antologias evocativas de autores ou de temas universais.
As compilações, como é sabido, são condicionadas por critérios arbitrários e
subjectivos, bem como pela época em que são realizadas; no entanto, revelam a
profusão dos interesses do autor, bem como a notável atenção dispendida ao
fenómeno literário, que não esconde um particular gosto em divulgá-lo. Para além
de um interesse documental, essas colectâneas congregam o conhecimento de um
sentido estético globalizante, que convida o leitor a procurar e encontrar motivos de
identificação, gosto e de fruição estética. As escolhas, resultado de um notável
eclecticismo, revelam a prodigiosa erudição de Graça Moura, como se observa nos
próprios títulos das seguintes obras que assina: Os melhores contos e novelas
portugueses (3 volumes); Gloria in excelsis. As mais belas histórias portuguesas de
Natal; Natal… Natais, Oito séculos de poesia de Natal; 366 poemas que falam de
amor e O Binómio de Newton & A Vénus de Milo. Poesia e Ciência na Literatura
Portuguesa - Uma Antologia. É também o responsável pela selecção de obras da
colecção Grandes clássicos da literatura Portuguesa, da Editora DeAgostini, tendo
escrito uma nota bibliográfica para cada autor. Os títulos de estreia são Amor de
perdição de Camilo Castelo Branco e Poesia de Álvaro de Campos, fazendo parte
desta abrangente colecção também, entre outros, Gil Vicente; Camões, Almeida
Garrett, Alexandre Herculano, Júlio Dinis, Eça de Queirós e Aquilino Ribeiro.
Seguindo uma tradição antológica da poesia nacional, pontificada por vultos
importantes da cultura portuguesa176, Graça Moura selecionou, por exemplo, textos
de Pedro Homem de Mello, Vitorino Nemésio177.

176
Cf. Cabral do Nascimento (org.), Poesia portuguesa do século XII a 1915, Lisboa, Ed. Verbo, 1972;
Alexandre Pinheiro Torres, Antologia da poesia portuguesa do século XII ao século XX, Porto, Ed. Lello e
Irmão, 1977, Jorge de Sena (org.), Líricas Portuguesas, Lisboa, Ed. 70, 1984; Osvaldo Manuel Silvestre e
Pedro Serra (org.), Século de ouro. Antologia crítica da poesia portuguesa do século XX, Braga-Coimbra-
-Lisboa, Ed. Angelus Novus & Cotovia, 2002; Manuel de Freitas (org.) Poetas sem qualidades. Lisboa, Ed.
Averno, 2002; José Régio, Cabral do Nascimento e Jorge de Sena, Antologias universais-Líricas
portuguesas, Lisboa, Portugália Editora, 1958; Branquinho da Fonseca, Poesias, Lisboa, Ed.
Portugália,1966, Herberto Hélder, Edoi leloi doura. Antologia das vozes comunicantes da poesia moderna
portuguesa, Lisboa Assírio e Alvim, 1985; Luís Miguel Nava, Antologia de Poesia Portuguesa-1960/1990,
Lisboa, Ed. Caminho, 1991, Gastão Cruz, Quinze poetas do século XX, Lisboa, Ed. Assírio e Alvim, 2004.
177
Cf. Vitorino Nemésio, Antologia Poética, Porto, Ed. Asa, 2002, prefácio e selecção de Vasco Graça
Moura e Pedro Homem de Mello, Poesias escolhidas, selecção e prefácio de Vasco Graça Moura, Porto, Ed.
Asa, 2004.

49
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

É interessante destacar, neste contexto, o volume Os poemas da minha vida,


onde dá a conhecer as suas preferências poéticas, reveladores de um conhecimento
profundo dos textos, que influenciaram, de algum modo, as obras do
antologiador178. De facto, o trecho introdutório afigura-se de particular importância
para discernir a orientação seguida, que, como não podia deixar de ser, tem sempre
um cariz pessoal, como adverte:

“A experiência de um leitor tem registos e modalidades que se vão interpenetrando, critérios de


apreciação que podem flutuar, memórias de fruição que podem, por sua vez, não coincidir com
garantias de qualidade. Assim, vou correr o risco de umas fidelidades mais constantes e tentar
situar-me em relação a elas pelo próprio facto de cada uma das escolhas.”179

Como se lê, as cintilações da memória entrelaçam determinadas opções pessoais


que o autor partilha com os outros, tendo em vista estimular outras leituras. Assim,
a selecção de Graça Moura, que retoma várias traduções suas, inclui alguns
clássicos europeus (Horácio, Dante, Villon, Ronsard, Shakespeare, Blake, Goethe,
Hofmannsthal, Rilke, Yeats, Lorca, Benn), autores brasileiros (Manuel Bandeira,
Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, Vinicius de Moraes) e uma
escolha criteriosa autores portugueses desde a poesia trovadoresca: D. Dinis,
Bernardim Ribeiro, Sá de Miranda, Camões, Almeida Garrett, Cesário Verde,
António Nobre, António Patrício, Camilo Pessanha, Fernando Pessoa, Vitorino
Nemésio, David Mourão-Ferreira, Jorge de Sena, Alexandre O'Neill, Sophia de
Mello Breyner. Nesse conjunto, demonstrativo de uma tomada de posição
valorativa de autores pretéritos ou contemporâneos, regista-se uma notável mescla
de cânone e sensibilidade, funcionando como uma chave segura para entrar na obra
de poesia de Vasco Graça Moura. Nas páginas preambulares, Graça Moura fornece
um curioso contributo quando enuncia o modo como tomou contacto com estes
seus escritores: Pessoa, em casa de amigos; Rilke na Livraria Buchholz; Cesário
numa selecta do liceu; Nobre motivado por Óscar Lopes; um soneto de
Shakespeare citado por Aldous Huxley; Cavafis através de Sena. A sua actividade
de antologiador, embora “necessariamente impressionista e com uma forte
radicação numa experiência autobiográfica e literária quase sempre situável no
178
Sobre esta escolha pessoal, recorrente nos poetas contemporâneos, veja-se, por exemplo, Eugénio de
Andrade, Antologia Pessoal da Poesia Portuguesa, Porto, Ed. Campo das Letras, 2002.
179
Vasco Graça Moura, Os poemas da minha vida, Lisboa, Ed. Público, 2005, p. 7.

50
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

tempo”180 proporciona, deste modo, ao leitor, a possibilidade de conhecer obras dos


grandes autores nacionais e estrangeiros, prova cabal de uma imensa sensibilidade
e de vasto conhecimento literário, numa diversidade que permite afirmar tratar-se
de um dos principais críticos de poesia na actualidade.
Para além disso, participou em diversas e importantes antologias com prefácios
enriquecedores pelo modo como aborda núcleos de sentido que atravessam muitos
dos textos coligidos, onde se destacam as introduções às seguintes obras: Obra
poética de Cabral do Nascimento, Nome do pai. Pequena antologia do pai na
poesia portuguesa, Anos 90 e agora: uma antologia da poesia portuguesa de Jorge
Reis-Sá e ainda Poemas Portugueses. Antologia da Poesia Portuguesa do Séc. XIII
ao Séc. XXI, da autoria de Jorge Reis-Sá e Rui Lage. Neste último volume, com
uma estrutura monumental pelo arco diacrónico contemplado e vastidão de textos
escolhidos, Graça Moura é ainda responsável por um significativo número de
entradas que comportam uma tábua biobibliográfica contextualizando poemas e
autores da sua preferência.
Entre os poetas coligidos contam-se Guerra Junqueiro, António Patrício, Afonso
Lopes Vieira, Augusto Casimiro, Mário Beirão, Florbela Espanca, José Gomes
Ferreira, Tomaz de Figueiredo, António Gedeão, Miguel Torga, Políbio Gomes dos
Santos, Mário Dionísio, Jorge de Sena, Sebastião da Gama, António Osório, Pedro
Tamen, Alberto Pimenta, Fiamma Hasse Pais Brandão, Gastão Cruz, Luís Filipe
Castro Mendes e Fernando Pinto do Amaral. Ora, este projecto revela uma sincera
partilha cívica ao colocar os textos ao alcance de um vasto público interessado na
literatura portuguesa181, uma vez que, no dizer de Graça Moura, a referida antologia
“recupera autores, que por vezes, não se encontram facilmente disponíveis no
mercado editorial”, bem como “propõe ao grande público uma compilação
monumental e pistas fascinantes no interior da cultura portuguesa”182.

180
Idem, ibidem, p. 9.
181
Genette refere que as funções paratextuais de um prefácio escrito por um autor diferente do autor da obra
(“préface allographe”, na designação do estudioso francês), são as de apresentação e comentário a um livro.
Este efeito estimulante da obra prefaciada, simultaneamente intelectual e afectivo, confere-lhe uma
legitimação que constitui uma recomendação ao leitor. (Cf. Gérard Genette, Seuils, Paris, Editions du Seuil,
1987, p. 166).
182
Jorge Reis-Sá e Rui Lage (org.), Poemas Portugueses. Antologia da Poesia Portuguesa do Séc. XIII ao
Séc. XXI, Porto, Porto Editora, 2010, p. 7.

51
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

São coligidos ainda em Poemas Portugueses quinze textos poéticos de Graça


Moura, designadamente, entre outros: o sentimento de um ocidental, do tempo que
passa, praias, ulisses, um cão para pompeia, os 39 degraus, presente do indicativo,
celebração de modo mudando, campo santo em leça da palmeira, para uma
canção de embalar, sinais de cinza, poema social, eira do catavento. Nesta
continuada actividade literária, na celebração do seu sexagésimo aniversário, Graça
Moura compila uma colectânea da sua própria poesia, intitulada precisamente
Antologia dos sessenta anos, o que permite descortinar o valor estético atribuído
aos seus textos poéticos e à diversidade de temas tratados. Embora Miguel Torga
na sua Antologia poética advirta que “nem sempre um autor é bom juiz em causa
própria”183, o florilégio empreendido pelo autor de sonetos familiares engloba
textos fundamentais para delimitar o universo estético-literário de Graça Moura,
como considera a actual crítica literária em torno do autor. De facto, o referido
volume reúne 50 textos saídos originariamente em diversos livros, oferecendo uma
panorâmica da criação poética do autor, além de demonstrar a sua consciência
sobre o fazer poético. O seu desejo de divulgação de continuadas edições de obras
de autores de diferentes latitudes e épocas marcam, a todos os níveis, uma
deliberada intenção cívica, bem como uma clara motivação pedagógica.
Como é sabido, um antologiador é, em primeiro lugar, um leitor e Graça Moura
apresenta neste campo, pelo amplo e diversificado conjunto de autores
compulsados, uma experiência assente numa prática continuada e aturada que
combina dois critérios: o primeiro liga-se a critérios de exigência, o outro à
variedade dos temas abordados.
A curiosidade intelectual insaciável e um percurso trilhado sob o signo da
partilha fazem de Graça Moura um incansável estudioso da literatura. Ao longo da
sua carreira, sempre concedeu à tradução literária um lugar privilegiado no quadro
de pensar criativamente a poesia como fenómeno cultural. Ao convocar autores de
momentos históricos e lugares distintivos, a actividade de traduzir, que o poeta
considera “um jogo de xadrez”184, concede um meio de divulgar vozes

183
Miguel Torga, Antologia poética, Coimbra, ed. autor, 1981, p. 7.
184
Vasco Graça Moura, Alguns amores de Ronsard, Lisboa, Ed. Bertrand, 2003, p. 18.

52
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

fundamentais da literatura ao meio cultural português. Graça Moura salienta,


quando da atribuição em Itália do “Prémio Tradução de 2007” que a importância
desta actividade, no plano cívico, é “um veículo fundamental para o conhecimento
e entendimento dos povos”185. Com efeito, o labor referido, com um claro propósito
de divulgação, aproxima indubitavelmente culturas, bem como rasga novos
horizontes de recepção de autores estrangeiros nas letras portuguesas186.
Os seus centros de interesse, num arco temporal que se estende da Antiguidade à
contemporaneidade, passam pela poesia latina, hispânica, francófona, anglo-
-saxónica, sueca e alemã. Dotado de uma notável arte, as traduções do autor de
Poemas com pessoas reflectem o interesse cultural e estético, como também o grau
de domínio das línguas de partida. Registe-se neste âmbito que Graça Moura,
escreveu poemas em castelhano, francês, inglês ou alemão. É exemplo disso, em
homenagem a François Villon, o seu testamento literário (le testament de vgm),
escrito em português e na língua materna do autor francês:

“puis qu’en politique incorrect,


l’amour, les lettres m’accordèrent
quelques sueurs, quelques affects,
quelques nuances plus amères,
et quelques ombres moins légères,
et même quelques sentiments
plus profonds, donc je tiens à faire
aujourd’hui mon testament.” (PR2, 261)

A genialidade e a versatilidade do seu trabalho de tradução proporcionaram-


-lhe um unânime reconhecimento internacional pela atribuição de diversos
galardões, como foi anteriormente enunciado. O notável elenco de obras vertidas de
outras línguas faz dele um tradutor particularmente experimentado e competente,
considerando que “a tradução ideal se prende com todas as dimensões significantes
do original traduzido, incluindo a própria materialidade sonora” 187. Assim, em

185
Cf. “Vasco Graça Moura vence Prémio de Tradução 2007 do Ministério da Cultura italiano”, in Público,
16 Abril 2008, p. 30.
186
María Morrás refere com acuidade a dimensão diacrónica e divulgativa que a tradução encerra: “La
traducción de un texto, literario o no, implica su recepción en un espacio, una lengua y, a menudo también,
un tiempo distantes a aquellos que rodearon su creación. Por ello, cada época y cada comunidad de lectores
actualiza de acuerdo con unos valores culturales y unos usos lingüísticos propios unas traducciones cuya
validez tiene siempre fecha de caducidad” (Cf. María Morrás, “El debate entre Leonardo Bruni y Alonso de
Cartagena: las razones de una polémica”, in Quaderns. Revista de traducción, nº 7, 2002, p. 34).
187
Vasco Graça Moura, Poemas escolhidos, Venda Nova, Ed. Bertrand, 1996, p. 474.

53
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

colaboração com Marianne Sandels e Ana Hatherly, traduziu, entre outros autores
suecos, poemas de Werner Aspenström, Gunnar Ekelöf, Lars Forsssell, Lars
Gustafsson e Tomas Tranströmer188. Este último, granjeado com o Prémio Nobel
em 2011, surgiu pela primeira vez em português pela pena de Graça Moura189, que
editou em parceria com Ana Hatherly a colectânea 21 poetas suecos190. Tem
traduzido alguns dos maiores clássicos da literatura europeia: Horácio, Ronsard,
Shakespeare, François Villon, Edmond Rostand, Racine, Corneille, Jaime Sabines,
Garcia Lorca, Gottfried Benn, Walter Benjamin e Rainer Maria Rilke191. Pela
fortuna editorial, O triunfo de amores e as Rimas, de Petrarca, bem como a Vida
nova e a Divina comédia de Dante – obras imortais da poesia italiana – vêm
preencher uma lacuna no diálogo literário nacional com a literatura italiana, tendo
adquirido Graça Moura por direito próprio um lugar cimeiro na recepção destes
autores em Portugal192. No que diz respeito ao corpus traduzido verifica-se um
forte intuito de divulgação e motiva o desejo ao leitor de conhecer na íntegra outros
textos.
O continuado exercício de tradução deve ser entendido como um prolongamento
natural da sua própria escrita que assim estabelece pontes entre a cultura
portuguesa e a estrangeira, sobretudo europeia, como explicitamente canta em
rondó da escrita:

“no que escrevi me traduzi


e traduzi outros também

188
Registe-se que Graça Moura não dissimula, num processo intelectual honesto, a falta de domínio seguro
da língua de partida e afirma recorrer a versões intermediárias ou a outros tradutores nas línguas que lhe
oferecem dificuldade.
189
Este autor sueco aparece invocado em carta de inverno, prova cabal da influência na sua criação poética:
“nunca conheci tomas tranströmer / mas traduzi poemas dele / com a ajuda do coração bilingue de mariane
sandels” (PR2, p. 60).
190
Ana Hatherly e Vasco Graça Moura (org.), 21 poetas suecos. Antologia poética, Lisboa, Ed. Vega, s/d.
191
Vide na bibliografia final deste trabalho a rubrica dedicada às traduções de Vasco Graça Moura.
192
Vejam-se os seguintes textos críticos sobre as traduções de Graça Moura: Xosé Manuel Dasilva,
“Petrarca na voz portuguesa de Vasco Graça Moura”, in Giovanni Biagioni (dir.), Estudos Italianos em
Portugal, nº 1, 2006, pp. 103-111; Xosé Manuel Dasilva, “O Canzoniere de Petrarca traduzido por Vasco
Graça Moura”, in Rita Marnoto (coord.), Petrarca. 700 anos, Instituto de Estudos Italianos da Faculdade de
Letras da Universidade de Coimbra, 2005, pp. 33-52; Luciana Stegagno Picchio, “Vasco Graça Moura
tradutor de Petrarca”, in op. cit., pp. 13-27; João R. Figueiredo, “Resposta à conferência de Luciana
Stegagno Picchio”, in op. cit., p. 29; Mário Santos, “Petrarca segundo Graça Moura”, in Público, 1
Novembro 2003, p. 30; João Barrento, “Vasco Graça Moura: os riscos do decassílabo”, in O poço de Babel.
Para uma poética da tradução literária, Lisboa, Ed. Relógio d’Água, 2002, pp. 229-231; idem, “O ser e o
canto. Rilke pela mão de Vasco Graça Moura”, in Rainer Maria Rilke, Elegias de Duíno e os sonetos de
Orfeu, tradução de Vasco Graça Moura, Lisboa, Ed. Quetzal, 22017, pp. 7-15.

54
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

e traduzindo me escrevi
e a escrever fui eu quem

das várias coisas que senti


fez sofrimento de ninguém.” (PR2, 255)

O próprio Graça Moura, em entrevista, declara o sentido deste passo:

“Nesse rondó procuro conciliar duas ideias. Uma julgo que vem de George Steiner, para quem
a nossa própria expressão já é uma tradução, quer no nosso íntimo, que de coisas que se
conjugaram na nossa percepção, na nossa experiência, na nossa cultura acumulada. A outra é que
quando traduzo também me assumo como autor, portanto também há aquilo que faço como
tradutor uma afirmação pessoal da minha própria individualidade”.193

O trecho levanta questões fundamentais no exercício da tradução, bem como


releva as marcas autorais contidas nas estratégias e soluções que materializam a sua
tradução em fecundo diálogo com o texto de partida 194. Não obstante, mais que a
origem, importa a partilha poética proporcionada pelo texto traduzido nascido de
uma voz – uma terceira voz – que emerge das múltiplas estruturas da memória,
como destacou João Barrento195. Esta linha de pensamento surge reiterada noutro
passo:

“Traduzo para conhecer melhor uma obra ou um autor. Para conhecer melhor a minha própria
língua. Para me conhecer melhor. E também como uma espécie de desporto, de luta corpo a corpo
com uma língua estrangeira e com a sua concretização num dado texto literário”.196

Torna-se sempre difícil rastrear os motivos que levam um poeta com obra
próprio a traduzir outros autores. Não obstante, no caso concreto de Graça Moura,
como é anunciado, a tradução, sob o signo da comunhão, emerge do conhecimento
literário colhido noutras vozes, do exercício linguístico e também da compulsão
para a escrita que se expande com as palavras de outros poetas197. O ofício de
tradução, instrumento fundamental do diálogo intercultural, plasma-se na sua
sensibilidade estética e, sem trair os textos originais, revela conhecimento das
193
Rodrigues da Silva, “VGM. Testamento e futuro”, in JL. Jornal de Letras, Artes e Ideias, 3 Outubro
2001.
194
Cf. Vasco Graça Moura, “Eu não sou um tradutor profissional” (Entrevista de Elisabete França), in
Diário de Notícias, 28 Agosto 2002, p. 35.
195
João Barrento, “A terceira voz: quem fala no texto traduzido?”, in Poço de Babel. Para uma poética da
tradução literária, loc. cit., p. 109.
196
Vasco Graça Moura, “As confissões de um tradutor de poesia”, in Relâmpago. A tradução em poesia,
nº 17, 2005, p. 94.
197
A este respeito, Graça Moura sustenta: “Na verdade nunca escrevemos nada que nos pertença por inteiro,
nem nada que nos seja completamente alheio, porque a escrita dos outros nos espelha medularmente,
traduzir é também assumir esse facto de transpersonalização com uma clareza mais peremptória e nas
modalidades facultadas pelo nosso tempo” (Cf. Vasco Graça Moura, Poemas escolhidos, loc. cit., p. 472).

55
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

línguas de origem e familiaridade com o conteúdo das obras. Assim, provido de


domínio soberano da língua portuguesa, as suas traduções primam pelo rigor, pela
clareza e por um estilo fluente e de leitura agradável198.
Com efeito, a propósito da tradução da Divina comédia, Graça Moura disse ter
chegado à conclusão que a tradução pode ser comparada a uma fotografia a preto e
branco e acrescenta que “nela está tudo o que se encontra na realidade fotografada.
E, no entanto, olha-se para a fotografia e sabe-se quem é. Portanto esse ponto da
conhecibilidade, tão completo quanto possível, é o que me interessa na
tradução”.199
Na estreita comunhão ente tradução e criação, abordada com particular minúcia
por Octavio Paz200, é pertinente registar que esse ofício assume uma oportunidade
privilegiada para aprofundar e divulgar o autor vertido. A partir de uma dimensão
metaliterária contida nos paratextos aos textos vertidos procura divulgar um
conjunto de nomes predilectos. Considera que o acto de traduzir não se confina a
um mero decalque; é, pelo contrário, uma capacidade criadora para atingir com
eficácia um ponto de equilíbrio literário201.
A leitura das páginas prefaciais às suas traduções revela a importância de uma
análise crítica das traduções realizadas, configurando, sem dúvida, o seu
pensamento na exigência da complexidade textual decorrente da tradução, com
objetivos claramente enunciados, que convergem para as hipóteses discursivas da
realização da versão dos textos. Embora se considere neste ofício “um amador não
profissionalizado”202, a reconhecida qualidade das traduções realizadas, algumas
inéditas no mundo editorial português, bem como os paratextos que as
acompanham, contribuem para uma visibilidade pouco comum entre os poetas

198
Em resposta à questão posta por Lionel Ray acerca do ofício da tradução, reproduzida em entrevista a
Miguel Real, Graça Moura afirma: “Il y a surtout un dialogue avec les œuvres littéraires qui m’ont fort
impressionné et dont le texte m'accompagne depuis de longues décennies. Il est très rare que je me décide à
entreprendre une traduction d’après un programme préalablement établi. Je ne sais jamais qui je vais traduire
plus tard. Il faut que le texte se mette à réverbérer dans ma tête, qu'il y ait des fragments qui surgissent tout à
coup dans ma langue, que ces fragments gagnent, comme par hasard, leur dorme portugaise. Alors je sais
que la traduction de ce text mûrit et ‘demande’ à être faite…” (Cf. Miguel Real, António Carlos Cortez e
Carlos Leone, “Vasco Graça Moura”, in Revista com vida nº 2, 2010, p. 150).
199
Cf. “Divina Comédia com retratos de Júlio Pomar”, in Jornal de Notícias, 20 Novembro 2006, p. 36.
200
Octavio Paz, Versiones y diversiones, Barcelona, Ed. Galaxia Gutenberg, 2000.
201
Vasco Graça Moura, “João Barrento e o poço de Babel”, in Discursos vários poéticos, Lisboa, Ed. Verbo,
2013, p. 315.
202
Idem, ibidem, p. 313.

56
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

nacionais203. Neste contexto, Isabel Beires e Pedro Tavares, a propósito da proposta


de candidatura de Vasco Graça Moura ao Prémio Vergílio Ferreira, sintetizam o
seu labor literário neste domínio:

“A actividade de tradução a que se consagra cada vez mais e com mais intensidade, para além
do mérito de revelar aos leitores de língua portuguesa alguns dos mais prestigiados,
representativos e fundacionais escritores das literaturas estrangeiras (as suas traduções de
Shakespeare, Dante e Petrarca são já definitivamente marcos na história da tradução em
Português), confirma Vasco Graça Moura como um hábil manejador da Língua, de cujas
potencialidades plásticas, expressivas e estéticas detém elevada consciência. E ainda que o
traduttore implique sempre, de alguma forma, o traditore, Vasco Graça Moura procura dar do
texto de que partiu a imagem mais rigorosa e aproximada que a nossa língua pode permitir,
evitando exibir as cicatrizes da conversão.”204

Tal como nas antologias por si organizadas, a tradução, e tudo o que envolve
esta actividade, revela uma necessidade imperiosa de partilha, num processo de
auto-tradução de si mesmo. Neste impulso dedica um interessante e lúcido conjunto
de textos consagrados a esta matéria: Traduzir Petrarca205, Traduzir Shakespeare.
Várias versões do Hamlet em português e o mais que adiante se verá 206, Tradução
e passagem do tempo207, Cunhal e o rei Lear208 e Homenagem a Paulo Quintela209.
Entre outros méritos, as edições das traduções são concebidas a pensar no leitor
pelos importantes e actualizados estudos introdutórios que junta ao seu trabalho,
apontando aspectos tradutológicos relacionados com o texto e com contexto em que
essa tradução se realizou. Assim, quer a qualidade das traduções, quer as reflexões
veiculadas nos paratextos iniciais fazem de Graça Moura uma referência para quem
quiser ler ou estudar poetas estrangeiros de reconhecida importância.
Dotado de uma primorosa preparação humanística, colhida desde jovem, foi-lhe
possível realizar traduções de grande fôlego como a Divina comédia de Dante. O
prefácio deste volume, provido de uma explícita vertente metapoética, abre com
uma reflexão sobre o complexo acto de traduzir, expressa recorrentemente na
203
No âmbito da tradução, de entre os autores contemporâneos contam-se Jorge de Sena, David Mourão
Ferreira, Eugénio de Andrade ou, no âmbito restrito da literatura hispânica, José Bento.
204
Isabel Morujão de Beires e Pedro Vilas-Boas Tavares, “Proposta de candidatura de Vasco Graça Moura
ao Prémio Vergílio Ferreira”, in http://ler.letras.up. pt/uploads/ ficheiros/5629.pdf (consultado em 10
Dezembro 2013).
205
Vasco Graça Moura, “Traduzir Petrarca”, in Rita Marnoto (coord.), Petrarca. 700 anos, loc. cit., pp. 53-
-61.
206
Idem, Várias vozes, Lisboa, Ed. Presença, 1987, pp. 210-228.
207
Idem, Discursos vários poéticos, loc. cit., pp. 327-333.
208
Idem, ibidem, pp. 340-346.
209
Idem, ibidem, pp. 347-367.

57
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

metáfora do “corpo a corpo”. Refere ainda a fortuna editorial da obra enunciada, o


seu percurso hermenêutico e a recepção em Portugal, bem como uma rica e
sugestiva bibliografia de questões fundamentais que marcam indelevelmente
sentidos modernos imanentes ao poema.
Parece também prevalecer uma rede poética de afinidades que obviamente tem
repercussões estéticas como poeta e como crítico, o que faz dele um cidadão
consciente e responsável na valorização do legado histórico210. Nesta linha de
pensamento, o autor, na tradução de Garcia Lorca, destaca as afinidades entre o
poeta-tradutor e o poeta-traduzido a nível de cosmovisão poética, num processo
contínuo de interpretação, fugindo à tentação de apropriação de um texto alheio 211.
Com efeito, a tradução, “transferência cultural” no dizer de A. Lefevre212, deixa de
ser concebida como um trabalho menor de translação, e é pensada como uma forma
de reescrita, onde a figura do tradutor assume o estatuto de intermediário que marca
de uma maneira decisiva a imagem do autor traduzido na cultura de destino, uma
vez que todo esse processo é um percurso estético-literário inserido num contexto
histórico preciso213.
Nesta prolixa actividade, com uma notável coerência, participa ainda em
frequentes intervenções públicas como conferencista e colabora regularmente na
imprensa escrita com textos dispersos por vários jornais e revistas
especializados214.
Esta ampla intervenção tem sido, sobretudo, realizada nas crónicas semanais
que vem desenvolvendo no Diário de Notícias desde 1994. O seu leque de

210
José Mário Silva (in http://bibliotecariodebabel.com/tag/vasco-graca-moura/) afirma, em Julho de 2009,
que Vasco Graça Moura iria ser editor consultivo da International Literary Quarterly. A notícia é dada no
blogue da revista:“The Editors of The International Literary Quarterly are delighted to announce that Vasco
Graça Moura, the Portuguese poet who has authored many collections including Uma carta no inverno,
Testamento de VGM and Laocoonte, Rimas Várias, Andamentos Graves, who has translated Dante’s La
Divina Commedia, and the complete sonnets of Shakespeare into English, in addition to translations of work
by writers such as Gottfried Benn, Seamus Heaney, Petrarch, Rilke, and who was a Member of the European
Parliament for the Social Democratic Party-People’s Party Coalition, has kindly agreed to act as a
Consulting Editor of the review with effect from Issue 8” (consultado em 11 Novembro 2015).
211
Vasco Graça Moura, Garcia Lorca: o Romanceiro e o Pranto, Lisboa, Ed. Quetzal, 1998, p. 7.
212
André Lefevere, Traducción, reescritura y la manipulación del canon literario, Salamanca, Ed. Colégio
de España, 1997, p. 77.
213
Miguel Torga (Cf. Diário XVI, Coimbra, Ed. Gráfica de Coimbra, 1993, p. 39) assinala que “Traduzir é,
primordialmente, um acto de amor. Só quem for tocado na mente e no coração pela singularidade radical de
uma voz sente a necessidade e o gosto de a alargar aos ouvidos do mundo”.
214
Dão conta desta prolixa produção, por exemplo, os textos coligidos em Vasco Graça Moura, Discursos
vários poéticos, loc. cit.

58
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

interesses prima pela extraordinária amplitude de temas com um indiscutível


interesse cívico com uma forte componente cultural, como notou Fernando
Venâncio215. Com efeito, as características híbridas de implicações heterogéneas da
crónica jornalística constituem um meio privilegiado para abordar, com particular
facilidade e com singular lucidez, muitos problemas de natureza diversa, além da
polémica com que frequentemente os reveste, quer se trate de questões do
património nacional, ortográficas ou educativas, entre outras.
Num país pouco dado a debates ou a polémicas, já notado há muito por Verney,
o papel dinamizador de Graça Moura, por vezes pouco consensual, tem o mérito de
erguer a sua voz em prol dos seus ideais em diversas intervenções públicas. Com
efeito, a coerência das suas convicções, que se concretiza em apologais
apaixonadas ou invectivas severas, afiguram-se como um meio privilegiado para
conhecer a sua invulgar personalidade intelectual. Na sua intervenção cívica tem
desempenhado um papel relevante pela frontalidade como discorda da aplicação do
Acordo Ortográfico, do ensino na literatura na escola ou de outras polémicas onde
interveio216. Desde 1987, essa posição tem-lhe dado uma larga visibilidade pelo
modo como tem divergido dos defensores do referido acordo, considerado um
“cadáver adiado”217, visto que, segundo o autor, é um desvio funesto, com prejuízo
para a identidade nacional e a língua portuguesa218.
Num tempo marcado por controvérsias pedagógicas em torno do ensino da
língua portuguesa, Graça Moura testemunha o dinamismo de um cidadão motivado

215
Cf. Fernando Venâncio salienta que o século XX é prolífero em escritores cultores da crónica, entre os
quais Graça Moura, o que, pela sua índole crítica e conotativa, aproxima-se da literatura e afasta-se da
natureza referencial do texto jornalístico (Cf. Fernando Venâncio, A crónica jornalística do século 20,
Lisboa, Ed. Círculo Leitores, 2004, p. 7).
216
O autor de Sonetos familiares refere, com efeito, a sua propensão polemista: “A polémica é estimulante, é
lúdica e a mim diverte-me. Mas eu não intervenho apenas no circunstancial, ocupo-me de muitos outros
assuntos: literatura, música, artes plásticas. Infelizmente, as pessoas ligam mais a uma tomada de posição
política do que a um texto sobre Tristão e Isolda” (Cf. Rodrigues da Silva, “Ele não é tão mau como isso”, in
JL. Jornal de Letras, Artes e Ideias, 7 Junho 1995, p. 14).
217
Vasco Graça Moura, “O cadáver adiado”, in Diário de Notícias, 2 Janeiro 2013, p. 54.
218
A verticalidade de Graça Moura em nota de apresentação ao seu livro Acordo ortográfico: a perspectiva
do desastre, leva-o afirmar: “Trata-se de um contributo que faço na tripla qualidade de escritor, de cidadão e
de político, e com consciência de ter cumprido nesta matéria os meus deveres cívicos e culturais em tudo o
que estava ao meu alcance” (Cf. Vasco Graça Moura, Acordo ortográfico: a perspectiva do desastre,
Lisboa, Ed. Alêtheia, 2008, p. 6). Outros textos do autor publicados depois deste volume sobre a mesma
matéria são os seguintes: “O reino da estupidez” (in Diário de Notícias, 29 Junho 2011, p. 54), “Intimação
ao professor Malaca” (in Diário de Notícias, 8 Agosto 2012, p. 54), “O Acordo, outra vez” (in Diário de
Notícias, 21 Novembro 2012, p. 54, “Urgentemente” (in Diário de Notícias, 9 Janeiro 2013, p. 54).

59
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

em torno de questões fundamentais do nosso idioma. Os temas sobre a realidade


escolar mereceram-lhe especial atenção, tendo em vista o incremento da língua e
literatura, devido à sua decrescente importância nos programas escolares, bem
como preconiza a criação de um cânone literário que sirva de estímulo à promoção
da leitura junto de jovens. De entre um alargado conjunto de textos sobre o ensino
do português, apresenta pertinentes sugestões sobre metodologias pedagógicas e
defende o paradigma de exigentes práticas educativas baseadas em textos
consagrados pela história literária219. Não concorda com a inserção, em 2004, da
TLEBS (Terminologia Linguística para os Ensinos Básico e Secundário) nos
programas educativos, pelo que travou uma polémica nos jornais nacionais220. A
sua voz dissonante, que não enjeita a polémica221, leva-o, num registo contundente,
a afirmar:

219
Vasco Graça Moura, “A escola e a cultura”, in Os meus livros, Janeiro 2004, p. 12; “Os livros pois”, 14
Junho 2006, p. 54; “Vbi sunt?”, [sobre o livro Literatura no ensino secundário, de José Cardoso Bernardes],
in Diário de Notícias 21 Junho 2006, p. 54; “A literatura em perigo”, in Diário de Notícias, 24 Janeiro 2007,
p.54; “O ensino do Português”, in Diário de Notícias, 13 Novembro 2013, p. 54; “A urgência da literatura”,
in Diário de Notícias, 15 Janeiro 2014, p. 54 e “O ensino do português e o acordo ortográfico”, in Diário de
Notícias, 22 Janeiro 2014, p. 54.
Registe-se as escolhas do autor de um cânone literário para os programas escolares, propondo a inclusão
de literatura estrangeira produzida até finais do século XIX, uma vez que o cânone do século XX ainda não
está completamente estabilizado. Assim a sua proposta é a seguinte: “A Ilíada e a Odisseia (Homero), a
Bíblia, o Édipo Rei e a Antígona (Sófocles), a Eneida (Virgílio), as Metamorfoses (Ovídio), as Odes
(Horácio). Depois, a Divina Comédia (Dante), o Cancioneiro (Petrarca), o Decameron (Boccaccio), a
Utopia (Thomas More), O Príncipe (Maquiavel), o Orlando Furioso (Ariosto), o Pantagruel (Rabelais), os
Ensaios (Montaigne), os Sonetos e o teatro de Shakespeare (pelo menos Hamlet, Rei Lear, Romeu e Julieta,
Júlio César, Macbeth e Othello), o D. Quixote (Cervantes), La vida es sueño (Caldéron), as Soledades
(Gôngora), as Fábulas (La Fontaine), Robinson Crusoe (Daniel Defoe), as Viagens de Gulliver (Swift).
Seguem-se Orgulho e preconceito (Jane Austen), o Prelúdio (Wordsworth), o Candide (Voltaire), as Odes
(Keats), os Poemas de Hölderlin, o Fausto (Goethe), a Comédia Humana de Balzac (pelo menos Le Père
Goriot, Eugénie Grandet, Illusions Perdues, Splendeurs et Misères des Courtisanes), La Chartreuse de
Parme e Le Rouge et le Noir (Stendhal), os romances de Dickens (pelo menos David Copperfield, Oliver
Twist e The Great Expectations), Crime e Castigo (Dostoievsky), Les Fleurs du Mal (Baudelaire), Madame
Bovary (Flaubert), Folhas de Erva (Walt Whitman), os Monólogos dramáticos (Browning), as Poesias de
Mallarmé, as Poesias de Rimbaud, os Sonetos a Orfeu e as Elegias de Duino (Rilke), a Recherche de Proust
e o Ulisses de Joyce” (Cf. Vasco Graça Moura, “A minha ária do catálogo”, in Diário de Notícias, 29
Agosto 2012, p. 54).
220
Em Lusitana praia, o autor num capítulo intitulado “Camões e a kalashnikov” colige quinze artigos
saídos na imprensa escrita, de onde, entre outros, se destacam: “Os novos Hunos”, “O big brother e a língua
portuguesa”, “A literatura no ensino da língua portuguesa” e “Kolmi” (Cf. Vasco da Graça Moura, Lusitana
praia, Porto, Ed. Asa, 2004, pp. 65-115). Pedro Mexia, sobre esta obra, afirma: “São peças eruditas, onde a
cada passo se pressente a existência de uma vastíssima biblioteca e de uma visão enciclopédica que lembra
Óscar Lopes. E não é apenas literatura, Graça Moura disserta sobre matérias histórias, políticas, e mesmo
sobre temas mais minuciosos, como a heráldica. Mas há também aqui um lado guerrilheiro, de polemista
com verve e graça” (Cf. Pedro Mexia, “Memória e critério na cultura”, in Diário de Notícias, 21 Outubro
2005, p. 42).
221
Acerca de uma polémica travada nos jornais entre Inês Duarte e Graça Moura, veja-se http://ciberdu-
vidas.pt/controversias.php?act=list&subtype=TLEBS&start=50 (consultado em 10 Outubro 2013).
Observe-se ainda dois textos mais recentes sobre esta matéria: “Ainda a TLEBS”, in Diário de Notícias, 15

60
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

“Quando um produto é perigoso para a saúde pública, logo as autoridades o mandam retirar
da circulação e venda. A situação é parecida. A TLEBS é um composto de alta perigosidade para a
‘saúde pública’ escolar, como já foi demonstrado de inúmeras maneiras, no plano científico, no
plano jurídico, no plano pedagógico e no plano prático.”222

Ainda sobre esta questão, em “A autópsia de Tioneu” aplica com vincada


ironia a terminologia linguística a uma estância de Os Lusíadas (II,12),
desencadeando um discurso confuso e ambíguo, com o intuito de demonstrar a
análise redutora e a fragilidade da validade científica da TLEBS, concluindo que “o
ódio à Literatura atinge o seu paroxismo nestes modelos de autópsia”.223
O estilo é, muita das vezes, informal, justaposto ao registo literário, revelador
de uma notável capacidade de metamorfosear a sua escrita, tendo em conta as
matérias abordadas. Os textos, sempre abertos a polémica, como é seu apanágio,
encarnam bem o espírito comunicativo com o leitor, acrescentando-lhe uma cultura
universal que actualmente se pode considerar rara224. Contudo a profundidade da
sua obra, apoiada numa apurada técnica e num invulgar conhecimento, não evita –
nem pretende evitar – um deliberado “exibicionismo virtuoso”, no dizer de Pedro
Mexia225. Com efeito, as crónicas que escreve num registo solto, apresenta uma
enorme intensidade expressiva que muitas vezes antecipa, resume ou estimula
questões centrais na sua criação literária, aspectos essenciais de particular
importância na definição da mundividência cultural de Graça Moura, como se lê
neste passo:
“A literatura é algo que nos define como cidadãos reflexivos de uma cultura historicamente
situada, com um património que hoje, cada vez mais, devemos aprender a valorizar, a praticar e a
transformar. É nessa conjugação que reside a eminente dignidade da literatura.”226

Janeiro 2006, p. 54 e “A ditadura dos linguistas”, in Diário de Notícias, 4 Setembro 2012, p. 54. Para uma
perspectiva de conjunto sobre este assunto, vide António Emiliano, “Dossier TLEBS”, in http://www.
fcsh.unl.pt/Docentes/aemiliano /documentos_diversos/TLEBS.html (consultado em 1 Dezembro 2013).
222
Vasco Graça Moura, “TLEBS em 2007”, in Diário de Notícias, 3 Janeiro 2007, p. 54.
223
Idem, “A autópsia do Tioneu”, in Diário de Notícias, 22 Novembro 2006, p. 54.
224
Como cronista, vejam-se os seguintes volumes de Vasco Graça Moura: Circunstâncias vividas, Lisboa,
Ed. Bertrand, 1995; idem, Papéis de jornal. Crónicas e outros materiais, Lisboa, Ed. Bertrand, 1997; idem,
Contra Bernardo Soares e outras observações, Porto, Ed. Campo das Letras, 1999.
225
Pedro Mexia, “Tradição, técnica, talento”, in Diário de Notícias, 1 Abril 2005, p. 42.
226
Vasco Graça Moura, “A urgência da literatura”, in Diário de Notícias, 15 Janeiro 2014, p. 54. Reitera a
concepção referida no seguinte passo: “Hoje temos todos a consciência de que a literatura é um instrumento
do conhecimento e corresponde a um meio de funcionamento ao nível da sociedade que vai muito mais
longe. Penso que seria agradável que a escola portuguesa, tanto ao nível de docentes, como de discentes,
tivesse a capacidade de conjugar estas perspectivas com o território, tantas vezes esquecido, das
Humanidades” (Vasco Graça Moura, “Apresentação”, in Helena Buescu e António Carlos Cortez (org.)
Presente e futuro: a urgência da Literatura, Lisboa, Ed. Centro Cultural de Belém, 2014, p. 13).

61
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

Como se observa, a escrita suscita a promoção do debate, bem como


documenta magistralmente os seus interesses culturais, dominado, em muitos
casos, pelas circunstâncias da sociedade sua contemporânea. Acresce dizer que à
efemeridade intrínseca à crónica, emerge um leque de textos de significativa
actualidade.
Uma singular vocação comunicativa leva-o também a lançar um olhar sobre
os caminhos da política cultural portuguesa. Neste âmbito, travou na sua coluna
semanal do Diário de Notícias uma polémica com António Ribeiro Pinto, autor
que, num gesto raro em jeito de tributo, publicou os textos do seu contendor em
livro, num capítulo intitulado Património cultural versus arte contemporânea: o
conflito227. Num registo elevado, Vasco Graça Moura face a um novo paradigma
cultural, denuncia a banalidade dominante no discurso sobre o património e aborda,
em contraponto ao seu opositor, aspectos cruciais na problemática das prioridades
culturais estatais, testemunhados, por exemplo, Ainda Santarém e o seu património
ou Châteaux do Loire e castelo de Alcanede228. A sua voz interventiva, que ocupa
um espaço muito próprio na sua obra, preconiza a intervenção vital do estado para
o desenvolvimento de políticas culturais no âmbito da herança patrimonial e
também nas criações artísticas contemporâneas229.
No seu percurso de escritor, ensaísta e cidadão, empenhado na res publica,
nunca deixou de salientar a convergência de literatura e pensamento, mas, mais do
que isso, persistiu no incremento da cultura, como ponte para um futuro diálogo
entre saberes230. Por esse motivo, mesmo após a sua morte, tem sido valorizada a
dimensão humanística e universalista do tradutor da Divina Comédia231.

227
António Pinto Ribeiro, Abrigos: Condições sobre as cidades e energia da cultura, 2004, Lisboa, Ed.
Cotovia, 2004, pp. 123-151. Publicou quatro artigos de Vasco Graça Moura intitulados “Subversão e
subvenção I, II, III e IV”, saídos no Diário de Notícias, respectivamente a 18 e 25 de Setembro, bem como a
2 e 9 Outubro de 2002.
228
Vasco Graça Moura, “Ainda Santarém e o seu património”, in Diário de Notícias, 22 Novembro 2001,
p. 54; idem, “Châteaux do Loire e castelo de Alcanede”, in Diário de Notícias, 7 Agosto 2002, p. 54.
229
Nesta linha, o autor sustenta que “a criação cultural de uma dada época histórica corresponde a um
processo multipolarizado e flutuante, em permanente refiguração e interactividade” (Cf. Vasco Graça
Moura, “A cultura portuguesa em finais do século XX”, in Lusitana praia, loc. cit., p. 36. Veja-se também,
como exemplo, o sucessivo interesse mantido ao longo dos anos: Vasco Graça Moura “Sopinha dos pobres”,
in Diário de Notícias, 8 Setembro 2010, p. 54.
230
No Centro Cultural de Belém, entre as muitas iniciativas de cariz cultural (comemorações do Dia
Mundial da Poesia, ciclos de colóquios sobre escritores, a homenagens, ou maratonas de leitura), Graça
Moura conseguiu realizar um movimento de abertura do CCB aos temas literários, onde pontificam a figura

62
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

1.2. Labor poético versus inspiração

Numa prolixa produção literária, Graça Moura é poeta pouco dado à angústia do
acto criativo, como o próprio confessa em nota paratatextual aos seus Poemas
escolhidos:

“Não sou um autor que viva a tortura da página em branco ou a agonia visceral da produção
literária. Escrever é, sem dúvida, para mim, uma pulsão absolutamente necessária e um modo
verbal de estar no mundo.”232

Com efeito, a angústia da influência, conceito cunhado por Bloom233, não parece
ter lugar no universo poético de Graça Moura, que, com elevado grau de confiança,
proclama também a citação e a intertextualidade234. Daí que se justifique a máxima
grega de Apeles, referida na Naturalis Historia de Plínio, o velho, “nulla dies sine
linea”, epígrafe ao poema 9. glosa para José Aurélio, (PR2, 283) que valoriza o
trabalho contínuo do fazer poético.

de Camões, a língua latina e a mitologia greco-latina. Integrado nestes múltiplos interesses, organizou, por
exemplo, com o apoio do Centro Nacional de Cultura, o 1º Encontro “Presente e Futuro: A Urgência da
Literatura, reflexão plural que procura lançar novas interrogações sobre a literatura, quer na sua dimensão
social, quer estética. Para tal contou com o testemunho de prestigiadas figuras nessa área (Cf. Helena Buescu
e António Carlos Cortez (org.) Presente e Futuro: A urgência da literatura, loc. cit.).
231
Perante o inegável valor do poeta, o grupo Estoril-Sol, em parceria com a editora Babel, criou, em 2014,
o Prémio Vasco Graça Moura Cidadania Cultural, vocacionado para distinguir um vulto da cultura
nacional, em memória do homenageado, pela sua invulgar atividade intelectual. O primeiro vencedor do
galardão foi Eduardo Lourenço. Por seu turno, a Imprensa Nacional-Casa da Moeda instituiu, em 2015, o
Prémio INCM/Vasco Graça Moura, antigo administrador da empresa e responsável pela esfera editorial. O
galardão terá uma periodicidade anual e visa distinguir obras inéditas nas áreas de actuação onde Graça
Moura se destacou: poesia, ensaio e tradução. Vide https://www.incm.pt/portal/vgm_premio. jsp (consultado
em 15 Setembro 2015). Em 2105, História do século vinte, obra de José Gardeazabal, foi distinguida com o
Prémio INCM/Vasco Graça Moura na primeira edição dedicada à Poesia. Em 2016, Francisco Pedreira, com
a sua obra Uma aproximação à estranheza, foi distinguido com o prémio de Ensaio INCM/Vasco Graça
Moura. Ainda instituído pela editora Modo de ler, o Prémio Poesia Vasco Graça Moura 2015, teve o
surpreendente número de 230 concorrentes, não obstante o galardão não foi atribuído por falta de qualidades
dos trabalhos. Em 2016, este prémio foi atribuído a Nuno de Figueiredo (Dias verticais, Porto, Ed.
Afrontamento-Ed. Modo de Ler, 2017). José da Cruz Santos, responsável da referida editora, a sucessora da
extinta Editorial Inova, que foi a primeira chancela de Graça Moura com diversas edições, promoveu no
Porto a primeiro colóquio que lhe foi dedicado e a primeira homenagem que foi prestada ao escritor (Cf.
“Prémio VGM: 230 concorrentes”, in JL. Jornal de Letras, Arte e Ideias, 14 Outubro 2015, p. 3). Para além
disso, a Feira do Livro do Porto de 2014 homenageou Vasco Graça Moura no ano da sua morte; o poeta foi
lembrado, através do simbolismo de uma tília plantada, bem como numa sessão comemorativa com um
título de um poema seu: Todo o poema é perfeitamente impuro (Patrícia Carvalho, “Feira do Livro do Porto
homenageia Vasco Graça Moura este ano e Agustina Bessa-Luís em 2015”, in Público, 2 Setembro 2014,
p. 32).
232
Vasco Graça Moura, Poema escolhidos, loc. cit., p. 471.
233
Harold Bloom, Angústia de influência, Lisboa, Ed. Cotovia, 1991.
234
Fernando Matos Oliveira, “A descontração melancólica de Vasco Graça Moura”, in José da Cruz Santos
(org.), Modo mudando, loc. cit., p. 46.

63
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

Deste modo, a lapidar imagem fundadora do gesto criador surge textualmente


explicitada no seguinte passo:

“a palavra poética

ao fim de tudo, é uma


questão de técnica
e de melancolia”.235 (PR1, 310)

Estes conhecidos versos emergem de uma capacidade notável de síntese de


recorte programático e revestem-se de particular importância para a definição da
génese da sua poesia236. A dualidade entre técnica e melancolia, lexemas
representativos de uma atitude estética, não assume contornos opostos; pelo
contrário, converge reciprocamente em demanda da originalidade criadora.237
Em clave a partir da qual são escritos os seus poemas, estes versos comportam
uma óbvia intencionalidade, a par de uma tendência recorrente de teor metapoético
e auto-reflexivo, materializado na prioridade da ars:

“a técnica é muitas vezes uma saída excelente, as circunstâncias


podem torná-la pungente, mais respirada, poeticamente exacta”. (PR1, 452)

Assim, a recorrente dimensão conceptual subjacente a “pôr a / técnica à prova”


(PR2, 9) configura o trabalho oficinal do poeta, que possui uma determinada
competência técnica, haurida na tradição238. A poesia é, nesta óptica, um trabalho

235
Neste âmbito, Graça Moura confessa: “interessa-me muita a técnica, elaboradíssima, sobretudo quando
passa despercebida”. Este pensamento está em consonância com muitos dos seus versos, influenciados pelo
jogo de ocultação da metáfora floral dos tratados maneiristas e barrocos (Cf. Helena Barbas, “Retrato a
sanguínea”, in Expresso/Cartaz, 21 Janeiro 1995, p. 21). Em entrevista a José Carlos Vasconcelos e Maria
Leonor Nunes, reitera: “Fio-me na questão técnica, na capacidade artesanal de produzir um texto” (Cf.
“Vasco Graça Moura, meio século de escritas”, in JL. Jornal de Letras, Artes e Ideias, 27 Junho 2012,
p. 11).
236
Esta convergência aproxima-se da concepção artesanal de poesia preconizada por Sophia de Mello
Breyner Andresen (Cf. “Arte poética II”, in Obra poética, Lisboa, Ed. Caminho, 2010, p. 839).
237
Ao longo dos tempos, de acordo com o contexto histórico-literário e com a dinâmica dos movimentos
estéticos, foram-se modelando diversas imagens do poeta (Cf. Mikel Dufrenne, Le Poétique, Paris, PUF,
2
1973).
238
Esta concepção, próxima da poesia quinhentista, não esconde a sua preferência pela ars, a superioridade
da razão sobre a emoção, que se liga ao trabalho cuidado e metódico, contribuindo de modo decisivo para
aperfeiçoar a actividade do poeta e, consequentemente, a obra por ele criada. A valorização da ars
privilegiava o saber teórico e reflexivo; cabia a este esforço disciplinador, que cada poeta lucidamente
deveria observar ao longo da sua aprendizagem. Tal concepção encontra-se em Horácio, na sua Epistula ad
Pisones, v. 309, ao exigir ao bom poeta um sólido saber, fonte de onde a poesia deveria brotar: “Scribendi
recte sapere est et principium et fons”. (Cf. Aníbal Pinto de Castro, “Os códigos poéticos em Portugal. Do
Renascimento ao Barroco”, in Revista da Universidade de Coimbra, vol. XXXI, 1985, pp. 505-531).

64
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

diligente de aperfeiçoamento, sublinhado em testamento de vgm, numa oitava


dedicada ao ofício da escrita:

“fiz uma longa aprendizagem


muitas rasuras e rascunhos
muitos registos de passagem
muitos borrões e gatafunhos”. (PR2, 253)

O eu lírico encara o seu trabalho com uma “longa aprendizagem”, assente numa
continuada disciplina que passa pela consciência lúcida e precisa da produção
poética239. Esta tendência é recorrente nos versos do autor, definindo-se artesão
capaz, no seu labor, de rasurar e voltar a escrever, constituindo uma marca
distintiva da sua poesia240. Esta meditação aponta para uma prática filiada
essencialmente na concepção horaciana do trabalho aturado da criação lírica, uma
vez que Graça Moura não acredita na perfeição suprema, mas na sua demanda: “Há
quem escreva persistindo numas rilkeanas / imagens delicadas […] / como se o
verso fosse uma coisa pura”. (PR1, 439)
Entendida como artefacto do exercício verbal, esta concepção valorativa confere
ao poeta o estatuto de artifex, visto que é um detentor de uma técnica específica na
construção laboriosa da palavra, claramente reiterada nos seguintes versos:

“eu acredito
mas é na técnica. nunca a inspiração
me deu fosse o que fosse. nem um grito.

feito a sanguínea, prefiro-me artesão.


escrevo e rasuro, volto e escrever, repito”. (PR1, 493)

Inevitavelmente sugestivos, estes versos, a lembrar a “lima diligente” de que


falava António Ferreira241, reiteram a consciência oficinal da poesia de Graça
Moura, que nunca “a técnica recusa” (PR2, 283), contribuindo, de facto, para uma
dinâmica criativa e estruturante.

239
Como notou Aguiar e Silva, este processo integra-se nos ideais clássicos, uma vez que a essência da
poesia reside na técnica e no labor paciente que permite a transfiguração da matéria tratada. (Cf. Vítor
Manuel Aguiar e Silva, Para uma interpretação do classicismo, Coimbra, Ed. Coimbra Editora, 1962,
p. 78).
240
Este ideal, de matriz horaciana, traduz-se no desejo de equilíbrio e harmonia fundamento do ideal
clássico. (Cf. Segismundo Spina, Introdução à poética clássica, S. Paulo, Ed. Martins Fontes, 1995, pp. 27
sqq).
241
António Ferreira, Poemas lusitanos, edição crítica, introdução e comentário de T. F. Earle, Lisboa,
Fundação Calouste Gulbenkian, 22008, p. 307.

65
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

No poema sugestivamente intitulado ars poetica, que dá título à colectânea onde


se insere, o sujeito de enunciação ao reiterar os seus propósitos: “técnica, técnica
até ao sarro do silêncio e do ruído” (PR2, 344), exibe, de facto, uma invulgar
mestria oficinal pela capacidade de conferir aos seus versos uma espessura
reflexiva sobre a natureza do acto criativo.
O próprio autor sintetiza com particular lucidez este aspecto da sua poética em
nota final aos seus Poemas escolhidos, a sua primeira recolha de textos de diversas
obras:

“O poema é, para mim, também uma espécie de desdizer e, sempre, um produto instintivamente
calculado e cerebral, aparentemente contraditório, lugar de investimento de uma técnica que lhe é
essencial, mesmo quando se pretende uma efusão lírica que nunca existe em estado puro”. 242

Síntese sugestiva que se ajusta à sua poesia, a fulguração lírica, como foi
referido, conjuga a “técnica” e a “melancolia”, que, no seu dizer, é “razão do
vivido” (PR2, 400). Este último lexema de grande fortuna semântica, identificado
geralmente como uma profunda tristeza, comporta acepções que variam entre o
fisiológico e o psicológico-moral, numa heterogénea constelação de valores:
espiritualidade, imaginação ou narcisismo243. Deste modo, “aquela / melancolia
como escrevo as minhas coisas” (PR2, 165), como frisou Aguiar e Silva, constitui
uma preocupação humanista herdada do século XVI e do Maneirismo, sobretudo de
matriz camoniana, convertendo-se em coordenadas fundamentais para compreender
esse período histórico244.
Com efeito, esta faceta saturniana da existência, constitui um princípio
estruturante da produção literária de Graça Moura e permite discernir alguns
aspectos relevantes em que mergulham os seus pensamentos245. Deste modo, em
entrevista concede uma dimensão nuclear a princípio:

242
Vasco Graça Moura, Poemas escolhidos, loc. cit., p. 473.
243
Fernando Pinto do Amaral, “Na órbita de Saturno. Um ponto de vista sobre a melancolia e as suas
relações com alguma literatura”, in Na órbita de Saturno, Lisboa, Ed. Hiena, 1982, pp. 117-148.
244
Sobre o conceito de melancolia e estudos sobre o tema, veja-se Vítor Manuel Aguiar Silva, “As canções
de melancolia: aspectos do maneirismo de Camões”, in Camões: labirintos e fascínios, Lisboa, Ed. Cotovia,
1994, pp. 209-210.
245
Como notou Peter Hanenberg, o título da colectânea Instrumento para a melancolia sugere um conjunto
de recursos recorrentes de Graça Moura que configura um autor virtuoso no estilo, nas formas e nas figuras
(Cf. Peter Hanenberg, “Navegações pela terra-firme da poesia sobre Vasco Graça Moura”, in Revista
Máthesis, nº 9, 2000, p. 163)

66
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

“A melancolia tem muito a ver com um certo sentido de uma ordem perdida do mundo. E com
um certo sentido de incapacidade fonciére da plenitude do mundo. Nos melancólicos isso gera um
lado mais saturniano, mas humoral, mais irónico e mais reflexivo”.246

Este passo é exemplificativo de uma singular concepção do discurso literário e


materializa uma notável sensibilidade pela capacidade interpretativa de perscrutar
os significados ocultos do mundo, abrindo as portas à transcendência. Noutro passo
reitera esse conceito:

“É uma forma sombria de ver o mundo, muitas vezes agonizada, que normalmente reclama
uma expressão artística, ligada a um certo pathos na relação com o mundo ou a um certo
maneirismo estilístico”.247

Face ao exposto, a melancolia abarca tudo o que é humano, possui um teor


profundamente intimista e favorece a meditação248, fazendo jus à célebre máxima
de Wallace Stevens: “Poetry is a form of melancholia”249. A experiência haurida
desperta, pois, a criação poética, o que influencia toda a interpretação da obra
multifacetada de Graça Moura250. É precisamente a este sentido sob o signo de
Saturno que se associa a melancolia do poeta, que, como observou Aguiar e Silva,
“é a consciência dos limites da condição humana, é a memória da plenitude perdida
e o reconhecimento da caducidade e da fragmentação presentes, mas é também a
impulsão, a atitude dinâmica”.251
Uma personagem da narrativa A morte de ninguém a partir de uma famosa
gravura quinhentista, intitulada precisamente Melancolia, apresenta uma
interpretação na esteira das enunciadas anteriormente:

246
Vasco Graça Moura, “Tudo passa pela disciplina e esforço”, in http://www.seleccoes.pt/vasco-gra%C3%
A7a_moura_%C2%ABpassa_tudo_pela_disciplina_e_o_esfor%C3%A7o#sthash.hHoqFo0J.dpuf (consulta-
do em 10 Janeiro 2014).
247
Ana Marques Gastão, “Entrevista para o Diário de Notícias de Vasco Graça Moura”, in José da Cruz
Santos (org.), Modo mudando, loc. cit., p. 22.
248
De entre muitos passos dedicados a melancolia, veja-se o seguinte extraído do capítulo Anatomia da
melancolia na narrativa Alfreda ou a Quimera, em que João Saraiva discorre: “A melancolia tem sempre a
ver com um desfasamento do ser humano em relação ao mundo. E eu estava a ficar cada vez mais
melancólico, por muitos esforços que fizesse para que ninguém notasse essa propensão sombria por muito
que me tentasse convencer de ser essa uma fase passageira e pouco significativa que passaria num estalar de
dedos, assim eu achasse que achasse realmente a pena”. (Cf. Vasco Graça Moura, Alfreda ou a Quimera,
Lisboa, Ed. Bertrand, 2008, p. 108).
249
Wallace Stevens, “Adagia”, in Opus Posthumous, New York, Ed. Alfred A. Knopf, 1972, p. 160.
250
Na predilecção por este tema, Graça Moura destaca a transversalidade da melancolia, marca distintiva
nacional que atravessa, por exemplo, a pintura e a música (Cf. Vasco Graça Moura, “Sobre a melancolia em
Portugal”, in Contra Bernardo Soares e outras observações, Porto, Ed. Campo das Letras, 1999, pp.111-
-114.
251
Idem, ibidem, p. 213.

67
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

“Teria de ver a melancolia, no protótipo que nos vem desde a célebre gravura do Albrecht
Dürer, como a atitude fundamental de desfasamento metafísico em relação ao mundo, mesmo o
mais anodinamente quotidiano, que esses artistas experimentam e exprimem. A violência, os
pressentimentos surdos, a contemplação tingida de amargura perante uma realidade quotidiana e
anódina, surpreendida como estranhamente intimidante e hostil, ganham um relevo extraordinário
para a inteligibilidade mais profunda desse período.”252

Referência capital, a gravura de uma mulher, rodeada por elementos que


simbolizam as artes e interpretada como uma reflexão sobre o espírito artístico,
constitui uma das mais antigas e complexas descrições sobre o acto criativo. Esta
dimensão pessoal e inquietante de ver o mundo é “estranha ameaça ocidental”
(PR1, 200), o que se coaduna com a ideia de que a melancolia, pelo seu teor
polissémico, é imprecisa e difícil de definir, acentuando o carácter transcendente da
sua poesia253.
Privilegiado princípio estruturante, este lexema reveste-se de um significado
particular em canção da foz do douro:

“foz do douro: vem cá, melancolia,


a lembrar prosas de raul brandão,
de gente, areias e barcos, na sombria,
humidade do dia”. (PR2, p. 436)

A apóstrofe contida em “vem cá, melancolia”, invocativo de Raúl Brandão e da


foz do Douro desencadeia a memória e a criação artística. Como se observa, ganha
particular força no processo de escrita de Graça Moura outra fulguração
melancólica sob o signo do difuso, fazendo jus à noção de que “a escrita é uma orla
inquieta das coisas, /uma sombra das figuras” (PR1, 303).
Ao estreitar os vínculos entre a “técnica” e a “melancolia”, a voz singular de
Graça Moura considera-as como valores intrínsecas à criação poética, configurando
uma arte poética pessoal fundada numa permanente busca da conjugação da mestria
oficinal com a depuração lírica. A poesia processa-se, pois, em clave reflexiva,
configurada por mecanismos internos de legitimação, como demonstra a inclinação
especulativa da poesia sobre si mesmo, que assume uma evidente modernidade pela
transcendência veiculada.

252
Vasco Graça Moura, A morte de ninguém, Lisboa, Ed. Quetzal, 1998, p. 23.
253
Para João Barrento, a melancolia é uma modalidade saturniana, ou seja, subjectiva e difusa do
conhecimento do mundo. (Cf. João Barrento, “O astro baço - a poesia portuguesa sob o signo de Saturno”, in
A palavra transversal, Lisboa, Ed. Cotovia, 1996, pp. 79-94).

68
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

Ao considerar-se incompreendido, o sujeito poético adverte quem o acusa de


“cerebral”:

“eu sou mais frio e descritivo


até em acusam de cerebral, ando atrás de uma certa
qualidade neutra de escrita e volta e meia
utilizo a minha vida.” (PR2, 41)

Os versos dão conta da preocupação poética que se traduz na expressão de uma


reiterada atitude pendular, feita de convergência e divergência, vectores em
demanda de uma qualidade de escrita254. A obsidiante reflexividade leva o poeta a
reiterar noutro passo em advertência irónica: “quem me chamava cerebral / faça
favor de me ler bem” (PR2, 255).
Apesar da aparente racionalização das paixões e sentimentos, explicada em boa
parte por uma poesia saturada de alusões ou citações, Graça Moura é capaz, quando
o acusam de ser “cerebral”, de apresentar um assinalável cunho lírico, como se
observa no poema o cão para pompeia:

“você é um cerebral”, disse-me cloé, flava e enervada.


“sim”, disse-lhe eu com prudência, “mas há tantos,
e o amor e a morte sempre foram pensáveis”. (PR1, 386)

Com efeito, Graça Moura a quem, no dizer de Eduardo Lourenço, “os deuses
concederam a graça de ser um grande poeta”255, possui um inegável arrebatamento
subjectivo e uma notável pulsão intimista.
Um poema consagrado a Eugenio Montale com um verso seu, que serve também
de epígrafe, “la furiosa passione per il tangibile”, apresenta indubitavelmente
marcas líricas256:

“só
as colunas mastreavam partida.
ele partiria uma outra vez, movido de cruéis engenhos,
de impiedade, da furiosa paixão pelo tangível, halo que
em várias vozes variamente ardia”. (PR1, 373)

254
Em entrevista, o autor (Cf. Miguel Real et alii, “Vasco Graça Moura”, in Revista Letras com vida -
Literatura, cultura e arte, nº 2, 2º semestre, 2010, p. 156) afirma: “o grande desafio, para mim, é um
equilíbrio esteticamente eficaz entre cerebralidade e sensualidade”.
255
Eduardo Lourenço, “Vasco Graça Moura”, in Público, 1 Fevereiro 2014, p. 30.
256
A título de exemplo, outros poemas que seguem uma linha de indubitável cariz lírico e intimista são uma
invenção da penumbra (PR2, 514) e obscura matéria (PR2, 520).

69
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

O aproveitamento de um segmento alheio, demonstrativo de um tributo ao autor


italiano, integra-se num registo lírico com uma linguagem culta e refinada, onde o
tema da partida assume um evidente registo poético. Com efeito, este passo
exemplifica uma consciência criativa pela força da sua vocação lírica, presente
também no poema borges e as rosas:

“sonhou as rosas, rosas de ninguém


de substâncias de sombras evanescentes,
e na roda das pétalas ausentes
ficou o olhar perdido, no vaivém

das brisas no jardim do esquecimento.


tinham carne de noite e de perfume
e tacteou-as devagar, o gume
afiou-se num macio desalento

de lhes ter dado o nome: rosas, rosas


fictícias alastrando o seu vermelho
de golfadas de sangue ao vão do espelho
das águas e das luas ardilosas.

e soube que o real era essa imagem


devolvida no espelho, de passagem”. (PR2, 156)

O poema desenvolve-se numa mescla de sensações e sentimentos moduladas


pelo fascínio pela poesia de Borges257, reconhecendo que a vida e a realidade está
condenada à finitude, consubstanciadas nas referências disfóricas de perda:
“evanescentes”, “ausentes” e “esquecimento”.
Evocativas da existência que rapidamente se dissipa, as rosas, símbolo por
excelência da efemeridade258, dão o tom à inquietação reflexiva de raiz ontológica
do “eu” lírico. Nesta linha, a natureza do “espelho” intensifica o teor interpretativo,
uma vez que a multiplicidade infinita de ângulos da imagem especular desvenda
uma visão do mundo, bem como refracta o estado de alma do sujeito poético.
Num registo questionante, os princípios enunciados, ligados ao silêncio que
propicia “rima” e “música”, metáforas da fusão de elementos vários na construção

257
Veja-se no poema Hino de Luis Borges a bela alusão às rosas: “Esta manhã / há no ar a incrível
fragrância / das rosas do paraíso” (Jorge Luis Borges, Obras completas, vol. III - 1975/1985, Lisboa, Ed.
Teorema, 1998, p. 321). Este apreço pelo escritor argentino manifesta-se também num texto crítico. Veja-se
Vasco Graça Moura, “A poética de Jorge Luis Borges”, in Contra Bernardo Soares e outras observações,
loc.cit., pp. 219-221.
258
Veja-se o interessante estudo de Maria Teresa Schiappa de Azevedo, “Fernando Pessoa e o nome das
flores: o girassol e o malmequer,” in Rostos de Pessoa, Coimbra, Ed. Almedina, 2000, pp. 53-80.

70
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

poética, permitem que o intimismo invada paulatinamente os versos na difícil


relação entre linguagem e arte, configurando, segundo Pinto do Amaral, uma
“hipersensibilidade”, um dos traços mais originais da poética do autor 259. Com
efeito, o belo verso “a arte é hipocrisia da memória”, destaca, a um tempo, o relevo
do legado colhido na tradição e da criação ficcional na perscrutação do mundo.
Neste contexto, soneto do amor e da morte, inserto na sua Antologia dos
Sessenta Anos, dá conta dessa interpelação:

“quando eu morrer murmura esta canção


que escrevo para ti. quando eu morrer
fica junto de mim, não queiras ver
as aves pardas do anoitecer
a revoar na minha solidão.

quando eu morrer segura a minha mão,


põe os olhos nos meus se puder ser,
se inda neles a luz esmorecer,
e diz do nosso amor como se não

tivesse de acabar, sempre a doer,


sempre a doer de tanta perfeição
que ao deixar de bater-me o coração
fique por nós o teu inda a bater,
quando eu morrer segura a minha mão.” 260

Face à contingência da finitude, o topos do homem, preso a um destino


inexorável, materializa um poema construída em torno do núcleo semântico da vida
e da morte, como o título regista. A tensão entre estes dois grandes mitos da
existência atinge a sua expressão suprema na fragilidade do sentimento da condição
humana. O processo anafórico, contido na expressão “quando eu morrer”, recupera
na palavra “morte” as virtualidades semânticas que a finitude suscita, bem como
acentua o desgosto da separação.
Não se julgue, no entanto, que a profunda humanidade convocada implique
necessariamente o ensimesmamento, que tende a excluir a relação com os outros.
Bem pelo contrário, verifica-se a insistente interpelação a um “tu” e nela se
inscreve um apelo partilhado e um diálogo íntimo num pungente processo
gradativo de paixão. Registe-se, no entanto, que a tristeza dilacerante não apresenta

259
Fernando Pinto do Amaral, “A poesia neo-maneirista de Vasco Graça Moura”, in Vasco Graça Moura,
Poemas escolhidos, loc. cit., p. 9.
260
Vasco Graça Moura, Antologia dos sessenta anos, Porto, Ed. Asa, 2002, p. 157.

71
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

laivos românticos; pelo contrário, deixa descortinar a consciência das dimensões


reais da transitoriedade, representada na figura obsidiante da morte. Esse encontro
proporciona o apaziguamento redentor e decorre do amor que suaviza o fim261.
Face à serenidade e contenção de um pathos agónico, o segmento exortativo
“segura a minha mão” abre portas a uma mensagem de espiritualidade e assume
uma crescente actualidade em função da precariedade da vida. Além disso, a “mão”
simboliza a força vital do afecto que ergue uma barreira contra o irremediável fluir
do tempo.262
Em última análise, a morte, em versos contidos de uma dor ilimitada que
exprime o inexorável drama humano, dá sentido à vida e ao amor, forças
primordiais da existência humana que provocam um fascínio pelos seus estreitos e
misteriosos vínculos consentâneos com o fundamento que nunca enjeita a
sensibilidade ou a densidade reflexiva263.
Defendendo o equilíbrio, a coerência e a proporção entre os motivos e a técnica,
entre os temas e as formas, Graça Moura procura conciliar os valores da tradição e
da modernidade. Este ideário eclectico plasma-se indubitavelmente na sua obra
poética que representa a feliz aliança da sensibilidade criadora e da construção
rigorosa, sendo, por isso, considerado detentor de uma notável oficina lírica.

1.3. As artes plásticas na poesia de vgm

A forte vocação dialogante da poesia de Graça Moura estabeleceu uma


privilegiada relação de contiguidade com outras formas de arte. Com efeito, o
autor, que confessa “Sempre fui voraz meditativo” (PR1,181), mantém-se sensível

261
As seguintes palavras do autor estão em consonância com essa ideia: “A contemplação do mundo que os
poemas de amor envolvem é inseparável da consciência da finitude e da ilusão da eternidade. No poema de
amor joga-se o efémero contra o absoluto. E quanto mais arriscado for esse reenvio mais mobilizador será o
poema na sua aposta e mais melancólica será a sua voz na sua expressão” (Cf. Miguel Real et alii, in Letras
Com Vida - Literatura, Cultura e Arte, nº 2, 2º semestre de 2010, p. 157).
262
Veja-se o estudo de Óscar Lopes em torno dos múltiplos sentidos interpretativos que as mãos
representam: Óscar Lopes, “As mãos e o espírito”, in Uma arte de música e outros ensaios, Porto, Ed.
Oficina Musical, 1986, pp. 151-176.
263
Com particular acuidade, Aguiar e Silva sustenta que em Graça Moura a poesia configura uma dimensão
culturalista que “se afirma como um discurso híbrido de emoção e de pensamento em que se fundem
experiências biográficas e correlativos culturais proporcionados por uma enciclopédia espantosamente
complexa, abarcando a literatura e a pintura, a música e a filosofia …” (Cf. Vítor Aguiar e Silva, “A outorga
do Prémio Morgado de Mateus a Vasco Graça Moura”, in Brotéria, nº 180, 2015, p. 174).

72
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

a uma ampla diversidade de estímulos marcada por um vivo sentido intelectual e


por deliberadas preferências culturais.
É ilustrativo desse interesse o título da sua obra Laocoonte, rimas várias e
andamentos graves (PR1, 341-495), que convoca simultaneamente as artes
plásticas, a poesia e a música, numa conjugação ímpar de tradição e de
contemporaneidade. Neste contexto abrangente, Pinto do Amaral sublinha essa
atitude culturalista:

“A obra poética de Graça Moura revisita sob um olhar culto e esteticizante as relações entre a
poesia e certas artes como a pintura e a música, de cujos labirintos tão fascinantes colhe muitas
vezes preciosas fontes para a génese dos seus poemas”.264

A escrita apresenta-se, pois, como uma encruzilhada de caminhos, pautado por


um assumido ecletismo de códigos artísticos, que, justapostos, constituem a fonte e
a força motriz da criatividade, bem como configuram um estimulante desafio
experimental. É justamente nessa conciliação e versatibilidade de relações que
emerge de um modo inovador a produção poética de Graça Moura265.
Deste modo, a evocação da pintura, traço fundamental na expressão lírica do
poeta, pode ler-se no poema sugestivamente intitulado ut pictura poesis266:

“nalgumas pinturas busco a força latente dos volumes,


o espaço pensado, a solidez angelical das figuras,
a sua comovida geometria. mas noutras, sinto a sombra
comendo os contornos das faces, ou o efeito de espelho

anulando o suporte e um sentido único na matéria”. (PR2, 96)

264
Fernando Pinto do Amaral, “A poesia neo-maneirista de Vasco Graça Moura”, in Vasco Graça Moura,
Poemas escolhidos, loc. cit., p. 8.
265
Márcia Arruda Franco (Cf. “Aves mudaves de M.C. Escher no poema de Vasco Graça Moura”, in
http://www.criticaecompanhia.com.br/marciarruda.htm - consultado em 15 Abril 2014) destaca que, na
poesia nacional contemporânea, Jorge de Sena foi o pioneiro na composição de poemas a partir de imagens
ou composições musicais, seguindo Graça Moura de perto esse processo criativo.
266
Este preceito haurido na Ars Poetica de Horácio, que prevaleceu ao longo do dos tempos nas estéticas
clássicas, recorda que a pintura se prende com a representação poética da natureza; logo a poesia, como a
pintura, é uma arte de imitação celebrizado pelo famoso símile de notação quiástica de Simónides de Ceos
sobre a pintura e a poesia, preservado pelo testemunho de Plutarco: a pintura é poema tacitum e a poesia é
pictura loquens (De Gloria Atheniensium, 346, F). A pintura, considerada a arte representativa da realidade
por excelência, ergue-se como fundamento de todas as outras, e a referida comparação, usada também por
Cícero, Quintiliano e outros tratadistas da Antiguidade até aos nossos dias, valoriza a poesia como arte
mimética, conferindo-lhe legitimação estética. (Cf. Vítor Manuel de Aguiar e Silva, “Relações da literatura
com outras artes”, in Teoria e Metodologia Literárias, Lisboa, Universidade Aberta, 1990, pp.159-179;
Carlos de Miguel Mora, “Os limites de uma comparação: ut pictura poesis”, in Ágora. Estudos clássicos em
debate, nº 6, Departamento de Línguas e Literaturas da Universidade de Aveiro, 2004, pp. 7-26; Joana
Matos Frias, “Vt pictura poesis non erit”, in Relâmpago. Poesia e artes visuais, nº 23, 2008, pp. 163-178).

73
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

Assim, as implicações metafóricas e simbólicas intrínsecas à decodificação da


linguagem plástica ganham novos contornos quando essa realidade se desenha nos
versos. Neste texto crítico fundamental, a pintura desencadeia impulsos vários, que
se manifestam de modos muito diversificados; na observação in situ da
representação pictórica, Graça Moura associa, de forma livre, ideias e imagens
decorrentes da fruição artística, onde a pulsão criativa desempenha uma função
determinante. O sujeito de enunciação descreve as diferentes perspectivas de
contemplação pictórica, em função dos volumes, representações geométricas ou
formas, não ignorando os contrastes entre a luz e a sombra no pormenor dos
“contornos da face”. Como se observa, a perspectiva revela as leis da representação
pictórica entendida como sistema semiótico.
No entanto, o singular olhar crítico enunciado, resultante de um notável labor
autodidacta267, não corresponde numa aptidão inata, como, em clave
autobiográfica, confessa no seu rondó das artes:

“bem quis as artes da pintura.


tinha algum jeito no desenho
mas o real sempre era estranho
e havia sempre uma fissura

entre o real e o meu engenho


e desisti dessa captura.” (PR2, 252)

Como se lê, a pintura assume um valor estruturante na poesia de vgm268, onde


tradição e processos criativos assumem deliberadamente uma intenção lúdica pelas

267
A este propósito, Graça Moura lamenta, em entrevista, não ter cursado História de Arte, Música ou
Belas-Artes (Cf. Helena Barbas, “Retrato a sanguínea”, in Expresso-Cartaz, 21 Janeiro 1995, p. 21).
268
Esta relação artística está patente na reprodução de obras plásticas escolhidas para as capas e interior dos
livros de Graça Moura. Este diálogo havia de se tornar uma marca distintiva, visto que a maioria dos seus
livros apresenta outro tipo de criação artística. Assim escreveu sobre desenhos, fotografias, pinturas e outras
manifestações artísticas ou dando a elas origem. Intitulou colectâneas ou poemas com o nome de artistas ou
de obra, bem como lhes dedicou, noutros casos, textos. Sensível à expressão pictórica, publicou textos em
conjunto com trabalhos de pintores (v.g., Graça Morais) e editou também livros com pequenos ensaios sobre
alguns artistas plásticos portugueses. A título exemplificativo vejam-se as seguintes obras do autor:
Arredores da família, com desenho de Nahir Parente; Instrumentos para a melancolia, com três desenhos de
José Rodrigues, Concerto campestre, com pintura de Henrique Pousão; Garrett, numa cópia perdida do Frei
Luís de Sousa, com fotografia de Ana Gaiaz; Laocoonte, rimas várias, andamentos graves, com fotografia
da estátua de Laocoonte; Musa da música, com pintura de Cruz Filipe; Imitação das artes, com pintura de
Jorge Pinheiro; Artes poéticas. Pequena antologia reflexiva com uma aguarela de Mário Botas; Uma carta
de Inverno, com pintura de Piero della Francesca; Poemas com pessoas, com fotografias de Gérard Castello-
-Lopes.

74
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

alusões pictóricas ou referências específicas à arte de cada artista, como se verá


adiante.
A prevalência da dimensão pictórica é inquestionável no poema prado: la dánae
de Ticiano, que o sujeito poético faz questão de escrever em castelhano, reitera que
sabe apreciar, sob um ângulo estético, um quadro:

“la luz en los museos no me gusta:


hay que buscar el punto más neutral
para mirar el cuadro, desde el cual
brilla otra luz, más interior, más justa”. (PR2, 181)

A enunciação de análise pessoal, “hay que buscar el punto más neutral”,


demonstra uma invulgar cultura estética, saber técnico e a alusão a luz assume à
mediação que conduz o olhar interpretativo sobre as minudências moldadas no
quadro. Por outro lado, a sugestão do museu269, patente logo no título e no interior
do próprio texto, constitui um espaço decisivo de legitimação estética pelo valor
concedido às obras. Nesta celebração, Graça Moura evoca o conceito de museu
imaginário, consagrado por Malraux, como espaço privilegiado de contacto poético
com a arte antiga270.
O conhecido poema homme au verre de vin valoriza o enquadramento estético-
-literário, visto que representa a memória do passado e preserva a perenidade da
tradição artística ocidental:

“numa sala do louvre dedicada à


pintura espanhola há um quadro
atribuído à escola portuguesa
de quatrocentos. é o

homem do copo de vinho, ou, dir-se-ia,


do copo de solidão; e é possível
que seja flamengo e triste.” (PR1, 315)

269
Este espaço cultural ocupa uma preocupação constante no pensamento de Vasco Graça Moura (Cf.
“Sobre os museus”, in Contra Bernardes Soares e outras observações, loc. cit., pp. 75-81).
270
Em interessante ensaio Graça Moura apresenta uma reflexão que é simultaneamente um testemunho
sobre a sua experiência criativa e em particular sobre a sua experiência como poeta. Considera, no referido
texto, “a criação artística uma via para o conhecimento, mas sem ter de estar cerebralmente presente no
trabalho do autor em cada momento da sua actividade” (Cf. Vasco Graça Moura, “O fazer através e por cima
das fronteiras”, in Ana Gabriela Macedo et alii (org.), XIII Colóquio de Outono. Estética, cultura material e
diálogos, Universidade do Minho, Ed. do Centro de Estudos Humanístico, 2012, p. 81).

75
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

A visita ao Louvre ilustra uma “natureza museológica”, no dizer de Matos


Oliveira, em torno do projecto poético de Graça Moura, concedendo uma
significativa primazia às obras consagradas pela tradição271. As vicissitudes em
torno da autoria do quadro levam a uma reflexão que se centra, num sentido
abrangente, no papel da arte enquanto elemento privilegiado da relação do homem
com o conhecimento. O olhar fixa-se no copo “de vinho” ou “de solidão”, sugestão
de uma melancolia subjacente ao próprio quadro, sendo esta linha de leitura
proporcionada pelo património de valor superior.
Esta poética estimulada pelo desígnio claro de fruição dos objetos de arte
configura um imperativo incontornável da sua produção lírica, que o seguinte passo
em torno de Ticiano dá conta:

“passeando
no louvre, uma vez, de mãos dadas, e a custo
atravessando magotes excitados de turistas,

disse à minha mulher que estava ali, à nossa


frente, uma prova na pintura italiana
do século XVI, a evidência de que só

o ticiano se importava com as mulheres


de maneira ostensiva e radical. a ambiguidade
era dos outros, mais libidinosos, a esfumarem

os seus desvios, propensões, manias


conhecidas e mostrei-lhe os trejeitos
que alguns punham na pincelada e nos modos da

representação.” […]

acabei a murmurar em voz audível:


‘ – that old chap did actually care about women,
didn’t he?’ – bendita écfrase.” (PR2, 68-69)

271
Fernando Matos Oliveira (“Poesia e museologia em Vasco Graça Moura”, in Inimigo Rumor, Revista de
poesia Brasil e Portugal, nº12, Rio de Janeiro, 1° semestre de 2002, p. 14) dá conta da “natureza
museológica que envolve todo o projecto poético de VGM”. E acrescenta que “o museu ideal de VGM seria,
por isso mesmo, aquele que concentrasse a diversidade e a riqueza patrimonial dos grandes museus públicos
com a circulação restrita das coleções privadas. [...] É sob estas condições ideais – onde o burguês se
reconcilia com o mundo da arte – que a poesia de VGM tem preferencialmente visitado o museu, dando
absoluta primazia às obras ‘realmente’ boas” (Cf. idem, ibidem, p. 15).

76
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

O sujeito de enunciação traz à colação a prática da ekphrasis, a descrição


detalhada e valorativa de um objecto estético272, que, no dizer de Fernanda
Conrado, é a
“verbalização de textos reais ou fictícios compostos num sistema sígnico não-
verbal e não dependente do recurso a procedimentos de espacialização
mimética”273. Esta modalidade, investida de uma nova sensibilidade que sintetiza
as pulsões nucleares da escrita274, explora, em toda a sua latitude, o diálogo entre a
representação verbal e a representação visual275, levando Graça Moura a afirmar,
em entrevista, o seu “interesse por formas de arte combinatória e por princípios de
ekphrasis”276. A enunciação em torno de Ticiano afigura-se, pois, similar à
perfeição artística, uma vez que ela é um artefacto ou produto humano com um
intuito estético, como preconiza Genette.277
Como é próprio da poesia ecfrástica, que tem a sua origem na ambição estética
de ter “the world captured in the word”278, o tema é extraído de uma obra do pintor
da escola veneziana que se distinguiu por uma notável capacidade de figuração

272
Grant F. Scott realça, na fruição da arte, a importância da ligação estreita entre a écfrase e os museus (Cf.
Grant F. Scott, The sculpted word: Keats, ekphrasis, and the visual a rts, loc. cit., p. xi).
273
Fernanda Conrado, “Eleonora di Toledo: ekphrasis em Jorge de Sena”, in Gilda Santos (org.), Jorge de
Sena em rotas entrecruzadas, Lisboa, Ed. Cosmos, 1999, p. 91.
274
Há uma similitude no gosto de Catarina, personagem de Naufrágio de Sepúlveda, sobre este processo
compositivo: “Tinha analisado, em cada peça, os tipos de pincelada, de velocidade de execução e de
acabamento, percorrera os inventários conhecidos e pertinentes dos três últimos séculos, cotejara as obras
umas com as outras, analisara os trajos, sobretudo os mais exóticos e os já fora de moda no tempo de
Rembrandt, sobretudo os de origem italiana, com que ele se tinha representado. Estudara possíveis
influências do Ticiano e do Caravagio, tentava situar as fontes de luz e, porque esta incidia num jorro de
ouro escuro, quase sempre, a partir da esquerda, aproveitava para formular a hipótese de o atelier do pintor
ter grossos vidros amarelados ou não ser voltado ao norte.” (Cf. Vasco Graça Moura, Naufrágio de
Sepúlveda, Lisboa, Ed. Quetzal, 1988, p.110).
275
Nas páginas que dedica a esta questão, Graça Moura destaca: “é de salientar a importância crescente do
processo da ekphrasis, isto é, da representação verbal de uma obra de arte visual, cuja teorização está na
moda nos meios universitários norte-americanos e que desde os anos sessenta, com as metamorfoses de
Jorge de Sena fizeram uma entrada triunfal na nossa literatura. Muita da nossa poesia escrita nos últimos
anos busca essa relação especial com obras da criação artística noutros domínios (e também Jorge de Sena
escreveu uma Arte da Música) procurando-lhes equivalentes ou simulando-lhes as características através da
palavra” (Cf. Vasco Graça Moura, “A cultura portuguesa em finais do século XX”, in Lusitana praia, Porto,
Ed. Asa, 2005, p. 45).
276
De larga fortuna desde a Antiguidade, este expediente literário caracteriza-se pela pormenorização ou
comentário de uma obra de arte, seja uma pintura, uma escultura ou outro tipo de manifestação artística, e
tem como modelo ímpar a célebre descrição, no canto XVIII da Ilíada, do escudo de Aquiles (Cf. Vítor
Manuel Aguiar e Silva, “Relações da literatura com outras artes”, in Teoria e metodologia literárias, loc.
cit., pp. 163 sqq).
277
Gérard Genette, “A obra de arte-imanência e transcendência”, in Kelly Basílio (org.), Concerto das artes,
Porto, Ed. Campo das Letras, p. 17.
278
Murray Krieger, Ekphrasis: the illusion of the natural sign, Baltimore-Londres, The Johns Hopkins
University Press, 1992, p. 11.

77
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

sensual da mulher. Não esquece nesta arte representativa, ao invés de Ticiano, a


ansiedade resultante dos outros artistas que hesitam se deve ou não acrescentar
mais alguma pincelada, deixando transparecer os “desvios, propensões, manias”, de
que resulta o pentimento, ou seja, a alteração pretendida ou o engano corrigido, em
demanda da perfeição artística. O sujeito poético indaga, pois, as práticas artísticas
com uma aturada metodologia exegética e com um notável sentido crítico sublinha
as correcções realizadas num quadro, prática muito apreciada nas oficinas de
pintura, configurando um indicador da capacidade de perfeição artística: “os
trejeitos / que alguns punham na pincelada e nos modos / da representação”. O
incitamento à fruição do observador, mais do que a mera descrição de um quadro é
a interpretação suscitada, concedendo ao texto poético uma dimensão cultural,
demonstrando conhecimentos sólidos de arte e, em registo conclusivo, exalta:
“bendita écfrase”279. Nesta perspectiva, Luís Quintais, justifica que “a ekphrasis é
uma representação de outra representação, logo ela radica numa faculdade meta-
representacional”280. Apetrechado de uma metodologia crítico-exegético, espelhada
nas referências ditas pelo eu lírico somente à sua mulher acerca do quadro de
Ticiano, revela uma consciência estética e uma notável capacidade reflexiva, em
contraste com o afluxo no museu dos “magotes excitados de turistas”, manifestação
de um interesse diminuto na contemplação serena da arte. Assim, a poesia de vgm é
um testemunho de uma experiência vivida na escrita, onde a écfrase é a expressão
das possibilidades visuais que a poesia oferece, quer por equivalentes metafóricos,
quer por processos descritivos, quer ainda por correspondências compositivas281.

279
Graça Moura organizou uma antologia pessoal, onde dá conta da sua poesia ecfrástica, e na introdução
destaca: “Onde quero chegar com a ecfrase? Antes de mais incorporar sinais de outros ‘fazeres’ no meu
fazer poético. Coisas que me marcaram, processos e resultados que mexeram comigo e ficaram a ‘remoer-
me’ por dentro e que eu tenho necessidade de retomar com a minha utensilagem específica. É também uma
forma de ‘tradução’ que não me surge só na poesia. No romance Partida de Sofonisba às 6.12 da manhã há
passagens ecfrásticas sobre a Ginevra de’Benci de Leonardo da Vinci e sobre um quadro de Eduardo Luís,
para além de todo o livro girar em torno de um quadro ‘extraviado’ e de autor desconhecido” (Cf. Vasco
Graça Moura, Imitação das artes: antologia ecfrástica, Porto, Ed. Asa, 2002, p. 12).
280
Cf. Luís Quintais, “A ekphrasis como meta-representação”, in Relâmpago. Poesia e artes visuais, nº 23,
2008, p. 94.
281
Em notas a variações metálicas, em registo metatextual, fala na dimensão visual dos seus poemas:
“surgiram directamente da contemplação das peças, procurando eu que o texto funcionasse como uma
modalidade da sua representação verbal, ou seja, ecfrástica.[…] Todos procuram reencontrar-se com um
jogo criativo e, por sua vez, se propõem como exercício literário, ao mesmo tempo autónomo e
complementar, sobre uma série de experiências visuais e de processo de literalidade e alusão: metáforas
predominantemente elaboradas sobre referentes metálicos; controlo lírico das intervenções da memória e da

78
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

A celebração do museu decorre, deste modo, do exercício ecfrástico, processo


relativamente recente na poesia nacional, como o autor sintetiza:

“Na nossa literatura moderna, o recurso a este processo, inaugurado, suponho com um poema
de Eugénio de Andrade sobre Augusto Gomes e outro de Jorge de Sena sobre O Patinir das
Janelas Verdes, nos idos de 50, só ganha foros de cidade com Metamorfoses de Jorge de Sena a
partir de 1963, embora, desde então, seja abundante, muito variado e frequente nos mais diversos
autores, entre eles o destas linhas”.282

Como se observa nos textos aduzidos, o museu, espaço de descoberta e de


conhecimento, associa-se intimamente à inspiração poética (recorde-se, a propósito,
a relação etimológica de museu com musa ou música), pelos infinitos sentidos de
imagens, elementos privilegiados constitutivos dos poemas, alimento da poesia que
a recebe e fixa. Deste modo, o património cultural é encarado de um modo amplo e
inovador, o que permite compreendê-lo no seu maior significado.
Graça Moura apresenta na sua produção lírica uma apurada consciência estética,
que se inscreve nos vários sentidos colhidos na leitura de objetos de arte,
necessidade imperativa da sua poesia:

“Ler um texto (plástico, musical, literário, etc.), implica uma busca de sentido e não uma busca
de gratuidades mais ou menos travestidas de conceptuais. [...] Trata-se de abordar aquilo que me
‘diz’ coisas suficientemente importantes para me fazer ‘dizer’ por minha vez aquilo que preciso de
exprimir”.283

Na conexão entre a palavra e a imagem, a poesia, no seu olhar penetrante, é


entendida pela sua nitidez, contensão e exigente equilíbrio num evidente jogo
revelador de que a arte não é um processo ex nihilo:

“de um livro sobre conchas fica


um nome, nautilus pompilius.
parece de almirante romano
dominador das trirremes e dos mares […]
entre naturalia e mirabilia, enquanto,
no sonho tópico do imperador, arcimboldo
imaginava conchas várias agregando-se
em fundo escuro para o retrato de pitágoras.” (PR2, 82)

história e das citações (e recitações…) abrindo caminho para outros planos; amostragem muito diversificada
relativamente às áreas criativas do escultor” (PR2, 565-566).
282
Vitorino Nemésio, Antologia Poética, apresentação e selecção de Vasco Graça Moura, Porto, Ed. Asa,
2002, p. 14.
283
Cf. “Vasco Graça Moura. Entrevista. Sou fundamentalmente um poeta de circunstâncias vividas”, in
Inimigo Rumor, Revista de poesia Brasil e Portugal, nº 12, Rio de Janeiro, 2002, p. 12.

79
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

A elevação lírica emerge de um artista consagrado pela história de arte,


Arcimboldo, e adquire inigualável e visualidade nas metáforas marinhas
conducentes à criatividade. Os versos, marcados por um certo nível de
experimentalismo, tendem a iluminar as relações entre a poesia e e as artes visuais,
demonstrando uma singular capacidade literária capaz de fundir exaltação
emocional com reflexão e análise, no caso a questão entre “naturalia” e “mirabilia”,
preocupação constante dos artistas284. Com efeito, em Cadernos de olhares ao
escrever sobre a obra plástica de Armando Alves ou sobre a escultura de João
Cutileiro285 aborda a relação entre o concreto e o imaginário ou a arte e a natureza,
inscrevendo na sua percepção das obras destes autores num modo de pensar a
poesia e a linguagem286. Com efeito, o sentido de cada poema de Graça Moura
resulta de um profundo amadurecimento cultural, o que permite indubitavelmente
uma recriação lírica repleta de sentidos.
Publicada pela primeira vez na revista Relâmpago287, na fase de maturidade de
Graça Moura, piranesiana, celebração verbal do conhecido desenho de Piranesi,
cujo título se destaca no verso inaugural, constitui um dos mais representativos
textos de dimensão ecfrástica da sua produção lírica:

“carceri d’inuenzione, tormentos, maus prenúncios


por vãos escuros, arcadas, passadiços, ruínas
e outros sinais gravados do destino […]

e é quando alguém a um canto, estremecendo,


se inventa uma prisão a amarfanhar a alma
prepara de raiz uma descida aos infernos

284
Sobre esta vexata quaestio, Graça Moura dirá em entrevista: “Não me interessa muito a introspecção
regiana nem a insinceridade pessoana. O poeta fabrica cada um dos seus momentos e propõe a sua
qualificação como ficção de qualquer coisa, sobrepondo-se à mentira e/ou à verdade. Isto é, estas são
categorias ‘fabricadas’ a partir do próprio poema – nisso está a sua autenticidade – com todas as armas de
que disponha para se prender à realidade ou desprender dela, transformando-a ou transtornando-a. Dante e
Petrarca, Camões e Cesário, Lorca e Eliot, Álvaro de Campos e Drummond de Andrade, João Cabral e Jorge
de Sena, Borges, Nemésio e David são nomes em que me revejo como autor” (Cf. Miguel Real et alii,
“Vasco Graça Moura”, in Letras Com Vida - Literatura, cultura e arte, nº2, 2º semestre de 2010, p. 157).
285
Vasco Graça Moura, Caderno de olhares, loc. cit., pp. 9-16 e pp. 32-39, respectivamente. O poeta, como
crítico de pintura escreveu inúmeras páginas fundamentais sobre a pintura e pintores em Portugal. A obra
referida resulta de uma prática de escrita motivada pela contemplação de quadros e constitui um elemento de
trabalho imprescindível para aqueles que procuram compreender a personalidade de Graça Moura através da
clarificação de sentidos de uma das suas artes preferidas: a pintura.
286
Diana Pimentel, “No ‘labirinto’, a liberdade: estudo sobre a relação entre ekphrasis e hipertexto em
Vasco Graça Moura”, in Revista de Estudos Literários, nº 2, Centro de Literatura Portuguesa - Faculdade de
Letras da Universidade de Coimbra, 2012, pp. 379-408.
287
Vasco Graça Moura, “Piranesiana”, in Relâmpago. Poesia e artes visuais, nº 23, 2008, p. 94.

80
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

e busca as densidades e as penumbras de dizer a solidão.

sobram inquietas cantarias e nessas pedras e nervuras se edifica o templo


onde o desenho há-de sair da palavra com uma outra natureza
a escrever-se por metamorfoses, a encarcerar-se no real
dos seus próprios rasgões, das suas agonias.” (PR2, 543)

Inquestionavelmente uma das obras mais amplamente difundidas de Piranesi,


móbil do processo criativo de Graça Moura, permite entrar no espaço de intimidade
proporcionado pela imaginação. O conjunto figurativo do templo – formado por
“vãos”, “arcadas, “passadiços”, “prisões” – evoca a luta interior das “agonias” do
acto artístico288. Assim, a tónica colocada na metamorfose, “onde o desenho há-de
sair da palavra”, exprime a complexa produção criativa da écfrase, concretizado na
interpretação pessoal289. Esta obra, que nunca foi finalizada, gozou de uma enorme
fama até à actualidade; no entanto, apenas é conhecida graças a uma reprodução do
original perdido, tendo merecido a Graça Moura o seguinte comentário:

“Preparava-me eu para falar da minha relação com Giovanni Battista Piranesi (ver, neste
caderno de fantasias cromáticas, piranesiana) e da impressão que sempre tive de haver algo de
figuração dantesca nas suas prisões imaginárias, daí puxando para alguma notas melancólicas do
meu poema, quando me ocorreu que seria muito mais interessante (e tecnicamente muito mais
problemático) falar de uma figura oculta ou repintada num quadro, daquilo a que normalmente se
chama ‘desenho subjacente’. Digo muito mais problemático porque a tentativa de representação
verbal deixa de referir-se a uma obra de arte visual, para ser sobre uma hipótese abandonada dela.
E dei por mim a escrever sobre Vénus adormecida de Giorgione, com uma alusão à Vénus de
Urbino de Tiziano…” (PR2, 552)

Neste interessante passo, o abrangente horizonte hermenêutico da criação


artística revela um claro pendor multifacetado na abordagem realizada, uma vez
que a escrita se concretiza através de um diálogo interartístico290. Com efeito, a
recriação poética das artes plásticas constituiu, ao longo dos tempos, um dos
olhares mais originais sobre arte. O sentido suscitado pelo “desenho subjacente”,

288
Joana Matos Frias (“Vt pictura poesis non erit”, in Relâmpago. Poesia e artes visuais, nº 23, 2008,
p. 165) sustenta que o pendor predominantemente visual da ekphrasis favoreceu o desenvolvimento de uma
metalinguagem, integrando o campo pictórico no espaço lírico.
289
É de realçar que este recurso, comos e observa, é recorrente na sua poesia. Com efeito, o poeta invoca as
meninas em Sonetos familiares, recria com humor o célebre quadro de Velasquez Las niñas, Degas ou texto
em diálogo com Mário Botas (Nó Cego). Também produz poemas a partir de Picasso, De Chirico, Jorge
Pinheiro, entre tantos outros.
290
Rosa Maria Martelo (Cf. Vidro do mesmo vidro: tensões e deslocamentos na poesia portuguesa depois de
1961, Porto, Ed. Campo das Letras, 2007, p. 48) dá conta desta recorrente prática: “Hoje, a poesia
portuguesa mantém-se frequentemente em diálogo com a tradição poética e artística (através da citação, da
reformulação ou da ekphrasis) muitas vezes associando esse diálogo a um processo de evocação que se
combina com um efeito de realismo e um registro lírico”.

81
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

pilar do trabalho artístico, denota as fragilidades decorrentes do objecto e, por


consequência, as próprias hesitações do seu autor diante das contingências
históricas e estéticas da fortuna do quadro291.
Nesta consciência íntima em demanda da criação de uma poética própria, os
versos rememorativos de Graça Moura, invadidos pelo espaço cultural da pintura,
não ignoram Josefa de Óbidos:

“pintava cordeirinhos
em óbidos, josefa,
dispondo em alvo linho
uvas, figos, cerejas,
conventuais compotas,
doces de calda espessa,
caixas, cristais, talheres,
fruteiras e travessas, […]
e em tudo isto conferia
ingénua transcendência
à natureza morta”. (PR2, 417)

Ciente da dimensão pictórica do texto poético, apoia-se com particular à vontade


na metalinguagem própria da crítica nesta área. A larga panóplia de elementos
figurativos distintivos da pintora seiscentista adquire uma renovada importância,
reforçando a instauração de uma nova ordem visual, determinada pelos estritos
critérios da objectividade292. A aparente dimensão estática ganha um notório
dinamismo pela enumeração, onde a representação verbal, os meios e os modos de

291
Esta atitude recorrente de variedade e combinação entre literatura e artes plásticas, num sentido de arte
total, é recordada por Alberto Casiraghy nos libricini, pequenos livros feitos manualmente de tiragem
numerada, limitada e única que combinam fotografias, xilografias desenhos ou litografias com poemas ou
aforismos. Neste contexto, em busca de uma certa beleza perdida com o devir do tempo, que contrasta com
as edições impressas, o artista italiano dedica a Graça Moura os últimos libricini (números 8864, 8865, 8869
e 8877) inseridos na exposição 9000 formas da felicidade: as edições Pulcinoelefante, exibida na Biblioteca
Nacional de Portugal entre Outubro de 2014 e Janeiro de 2015 (Cf. “O padeiro dos livros felizes edita uma
obra por dia”, in Diário de Noticias, 25 Outubro 2014, p. 29).
292
Graça Moura demonstra conhecer com significativa segurança os temas em torno de naturezas mortas;
invoca, para além de Josefa de Óbidos, Fantin Latour, Eduardo Viana e Caravggio, para se deter na
abordagem de num quadro de Juan Sánchez Cotán (1560-1627), que está no Museu de Arte de San Diego.
Sobre o quadro, representando um marmelo, uma couve, melão e um pepino, efectua uma homenagem ao
artista contemporâneo Eduardo Luís, estabelecendo afinidades estéticas entre os dois artistas: “E assim,
escolher esta peça é homenagear um grande pintor português do século XX por via de uma das suas fontes
do século XVII. E faço-o também por ver nesta peça um exercício precursor de muito do que veio depois, no
severo ascetismo da representação (Cotán veio a tomar-se frade cartuxo no ano seguinte a ter pintado este
quadro), na minúcia fotográfica no tratamento de cada elemento figurado, no exercício sobre luz, sombra,
perspectiva, tridimensionalidade e encenação a que ele corresponde, na poética da sobriedade despojada e da
perícia geométrica assim desenvolvida, e ainda numa estranheza da figuração que poderia ser afim de algum
surrealismo metafísico do século XX” (Cf. Vasco Graça Moura, “Geometria e noite de mundo”, in JL.
Jornal de Letras, Artes e Ideias, 27 janeiro 2010, p. 20).

82
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

pintar exibem uma obra em movimento, a ponto de conceder uma visão ampla do
quadro. Na contemplação da representação iconográfica do poema, pode-se
observar o universo de relações contido nos seus elementos, que, na concretização
de fixar as imagens, prefigura uma “tentação ecfrástica”, expressão cunhada por
Krieger.293 Na representação enunciada, com uma harmonia das qualidades
plásticas, longe da profusa enumeração caótica surrealista, a imagética, sob o signo
do preceito ut pictura poesis, é motivada pela figura simbólica do agnus dei.
Neste apreço pelas artes visuais, Graça Moura escreve o poema o princípio de
m. c. escher (II) (PR1, 351-352) sobre Dia e Noite, um dos seus mais famosos
quadros de Escher, ao qual dedica ainda dois poemas: o princípio de m. c. escher
(I) (PR1, 338-342) e o princípio de m. c. escher (III) (PR1, 355-357).
O incipit do primeiro poema enunciado constitui uma celebração da palavra
associada às imagens concebidas pelo artista holandês:

“é quando as aves brancas voam para a noite que


as aves negras voam para o dia, sobre as árvores, no vento, vão
em bandos, batem asas pausadas. sobre as árvores
as aves brancas tomam a noite clara, as negras,
opostas companheiras, escurecem o dia, voam baixo,
no ar para onde fogem ocupando o intervalo
das outras, e as brancas só cortam o espaço, exactas guias,
entre o voo das pretas. bandos, bandos
de oposto movimento, na luz de transição,
lá, onde se cruzam, voam
aves cinzentas para os dois lados, no lugar indeciso
em que das matérias do ar e da chuva
se elevam as árvores dessa parda fronteira”. (PR1, 351)

Com significativa mestria compositiva, justapondo luz e sombra, modela o voo


das aves, onde a estratégia ecfrástica configura um cuidado exemplar de apreciação
estética associada à estruturação imagética. A série de poemas o princípio de m. c.
escher, a ekphrasis, variação regulada em torno de um tema294, organiza-se sob o
processo criativo das gravuras de Escher295, como confessa no verso “recordar m. c.

293
Murray Krieger, “Imagem e palavra, espaço e tempo: a exaltação - e a exasperação - da ekphrasis
enquanto assunto”, in Kelly Basílio (coord.), Concerto das artes, loc. cit., p. 143.
294
Roland Barthes, “L’ancienne rhétorique. Aide-mémoire”, in Communication, nº 16, 1970, p. 183.
295
Na introdução a Imitação das artes, o poeta afirmará sobre esta série ecfrástica: “Nos três poemas de a
sombra das figuras que intitulei o princípio de m.c. escher (I, II e III), há tentativas estruturantes que se
pretendem estritamente de índole contrapuntística, e portanto musical, e também de ordem imagética ligada

83
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

escher, pensar uma grafia cautelosa” (PR1, 213). Em registo contrastivo, as aves
negras são “opostas companheiras, escurecem o dia, voam baixo, / no ar para onde
fogem ocupando o intervalo das outras”. Pelo contrário, as aves “brancas só cortam
o espaço, exactas guias, / entre o voo das pretas”. O poema tem, como é recorrente
em Escher, uma forma circular: começa e termina por descrever o voo, oposto e
recíproco, de dois bandos de aves, o das brancas e o das negras. Os primeiros
versos cantam “é quando as aves brancas voam para a noite que /as aves negras
voam para o dia”; por sua vez, os derradeiros: “é quando / as aves brancas voam
para a noite que, no avesso, voam para o dia as aves negras e lá, onde se cruzam, as
cinzentas”. Marcia Franco Arruda, num estudo sobre a recepção de Sá de Miranda
e Jorge de Sena na obra de Graça Moura, afirma acerca dos versos em torno de
Escher:

“Ao lançar mão da ekphrasis, o poema de Graça Moura relê a tópica Sena/Miranda,
oferecendo uma resposta particular e criativa, que deixa entrever não só um conhecimento
autónomo do poeta quinhentista, mas a produtividade da criação poética nesta área de ‘parda
fronteira’ entre a poesia e a gravura”.296

O íntimo convívio da palavra poética com a herança cultural proveniente da


pintura antiga materializa-se numa singular irradiação do pensamento:

“pouco se sabe de giorgione. o sol rasga as nuvens e bate


no rebordo da pedra, a faiscar por entre os restos do aguaceiro. […]

afinal, parto amanhã e o encanto da manhattan é o de se poder pensar


[em giorgione,

de caminhar junto ao parque, depois da rua 59, a ruminar diálogos sobre


[a pintura
do early cinquecento e os seus grandes, bucólicos mistérios.” (PR1, 463)

ao mundo de Escher, e portanto visual (aliás tudo inspirado por The Golden Braid, Gödel, Escher, Bach, de
Hofstadter)” (Cf. Vasco Graça Moura, Imitação das artes: antologia ecfrástica, loc. cit., p. 12).
Registe-se que o primeiro poema, com o subtítulo “prelúdio e fuga sobre um tema popular”, a contiguidade
entre o positivo e o negativo de algumas figuras de Escher, como a dos peixes ou das pombas, constrói-se
através da repetição característica da linguagem musical infantil, sendo a escrita do poema uma espécie de
decalque da gravura: “lá sai uma, saem as duas / as três pombas do papel / saem do bico da pena / que nesta
folha as escreve” (PR1, 338).
296
Márcia Arruda Franco, “Aves mudaves de M.C. Escher no poema de Vasco Graça Moura”, in
http://www.criticaecompanhia.com.br/marciarruda.htm (consultado em 15 Abril 2014). Veja-se também
Sandra Teixeira, “Sá de Miranda par Vasco Graça Moura”, in Colloque pluridisciplinaire: Nouvelles
perspectives de la recherche française sur la culture portugaise, Maison des Sciences de l´Homme de
Clermont-Ferrand, Chaire Sá de Miranda/CRLMC, EA 1002, 2007, pp. 135-143).

84
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

Familiarizado com os grandes vultos da história da pintura, a hipérbole de cariz


animalesco contida no verbo “ruminar” expressa o fascínio pelo “early cinquento”,
a partir de Giorgione. O texto não se fecha sobre si mesmo, uma vez que fica em
aberto uma inquietação nos “bucólicos mistérios” que a obra de pintor renascentista
suscita, no domínio das impressões luminosas e cromáticas. Note-se, por outro
lado, que este segmento se integra no poema concerto campestre, que também dá
título ao livro do autor, remetendo para um quadro de autoria incerta, atribuída
tanto a Giorgione como a Ticiano.
No entanto, o poeta na valorização da expressão pictórica de uma maneira
singular pela revisitação de uma sequência lógica de afinidades de importantes
artistas, nacionais e estrangeiros, conferindo um sentido universal à arte:

“vemos a luz de cada um no que se diz dos seus pintores


(cf. augusto gomes e as suas praias de cinza em matosinhos), mas
um canaletto poderia dar a mateus a sua luz tombada de viena,
um greco, ao lado sul de coimbra

por sóis intimidantes, a sua de toledo,


botelho deu a lisboa o que ela lhe devia
e ângelo de sousa o fez à cidade da alma
onde pesquisa a raiz nua da pintura: os guardi despojados
para a geometria palpitante, por falar […]
procedem por pequenas simetrias
visuais, auditivas, outras alegrias contrapontísticas:
perfumes matinais”. (PR1, 221-222)

Os valores semânticos dos versos, sob o signo da luz, derivam de espaços


distintos numa configuração conceptual das cidades preferidas dos artistas. O
exercício ecfrástico, numa “geometria palpitante”, surge consagrado através de
técnicas e perspectiva de pintores como El Greco, Ângelo de Sousa ou Carlos
Botelho, criação feita de sentidos coincidentes; o segmento de cunho sensorial
“pequenas simetrias/visuais auditivas” interpela e provoca interrogação, sendo que
a poesia é sempre espaço de indagação e conhecimento297. Com efeito, este

297
Em similitude com este poema, no tocante aos artistas nacionais confessa: “Para mim, que cresci vendo a
pintura dos artistas do Porto, esta questão é interessante pelo simples facto de haver pintores cuja genealogia
plástica me é mais fácil de estabelecer. Por exemplo, sou capaz de ver linhas de continuidade entre Augusto
Gomes, Júlio Resende e Armando Alves, ou Jorge Pinheiro e vários outros, mais facilmente do que entre
Júlio Pomar e qualquer outro grande pintor do nosso tempo. É possível que a minha sensibilidade a certos
traços de escola esteja condicionada por essa primeira aprendizagem visual e tão portuense. (Cf. Vasco
Graça Moura, “Julius Pomarius est hic”, in Diário de Notícias, 3 Abril 2013, p. 54).

85
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

contexto sintetiza uma observação filtrada pelo pensamento, onde se cruzam


memórias, configurando um programa estético. O canto de Graça Moura constitui,
deste modo, uma aproximação ao meio cultural dos pintores, que na sua
diversidade criativa difundem infinitas imagens do seu imaginário, bem como
exigem uma atitude reflexiva do leitor.298
Nesta perspectiva lúdica, os delicados tons de cor, que acentuam a perspectiva e
a luz, leia-se um trecho de uma frágil medula:

“a aguarela é a arte da média burguesia.


já cesário o recordou,

naquele picnic de burguesas


jogando com os acasos controlados
da água que alastrava e os seus

efeitos de mancha florida,


renda, aves,
a aguarela

afirma quase sempre a sinceridade


de uma relação com o exterior
sem ter história nem grandezas”. (PR1, 410)

O poeta que canta “sei de pintores que se inquietavam por / pressentirem uma
relação entre a cor e a palavra” (PR2,184), na contida confidência da metáfora da
aguarela, “arte da média burguesia”, sugere uma espécie de revelação poética por
via da cor e da luz. No entanto, metonímia da arte, a aguarela deflui para uma
determinada mundividência, uma vez que o tom dubitativo “afirma quase sempre a
realidade”, oscila entre um efeito mimético e uma dimensão imaginativa, que
conduz à noção de referencialidade, de particular relevo no domínio das artes
plásticas e da poesia. O eco explícito do poema De tarde de Cesário Verde299, bem
como do seu léxico (“aguarela”, “renda”, “grandezas”) traduz já a demanda da
298
A esta atitude positiva enunciada não deixa Graça Moura de manifestar apreciações negativas como esta
atribuída a uma personagem de Naufrágio de Sepúlveda: “Eu sempre achei as Demoiselles d'Avignon o
quadro mais detestável do século XX, uma espécie de negação intrínseca da Europa que consistiu
essencialmente em transferir a noção de horror, ou de monstruoso, do plano da representação da realidade
para o plano dos próprios processos, objectivos ou subjectivos, do acto de pintar, que se atreveu a
desarticular, em nome da pintura, um determinado sentido das formas em favor de uma violenta expressão
das forças, quem diria às obscuras figurantes de um bordel de Barcelona, mais precisamente da rua de
Avignon, encerradas pela memória implacável de Picasso” (Cf. Vasco Graça Moura, Naufrágio de
Sepúlveda, loc. cit., p.110).
299
Cf. Cesário Verde, Cânticos do realismo: o livro de Cesário Verde, introdução e nota bibliográfica de
Helena Carvalhão Buescu, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2015, p.130).

86
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

captação do real patente na aguarela, que “afirma quase sempre a sinceridade/de


uma relação com o exterior”.
Conhecedor da arte e dos artistas do seu tempo, a pintura paisagística é uma
linha elucidativa pelos efeitos impressionistas que suscita; Graça Moura canta os
sinais dos pequenos gestos do labor criativo que mobilizam os pintores e os
modelos colhidos na realidade:

“teresa vieira e carlos seixas estiveram a combinar


como ela havia de frasear
para que entre as magnólias devagar
se modulasse o azul desta melancolia”. (PR1, 350)

Neste contexto, também convoca as possibilidades de leitura iconográfica


convocadas em pintura de ilda david:

“O homem e o bicho estão


na luz azul e rosa das
suas origens ancestrais, as de uma
aurora harmónica. ainda vêm

da pura oralidade
do gesto divino, da intenção
de as imagens e o tempo
se contraírem a partir da cor
das hortênsias”. (PR1, 343)

Não é possível vislumbrar a obra da artista onde o autor se terá inspirado devido
ao vasto conjunto que a mesma produziu. Assim, nesta omissão deliberada, o texto
dialoga com a criação plástica de Ilda David realçando a dimensão lírica da sua
pintura, apresentada como expressão de uma emancipação reveladora do processo
compositivo300.
Como se observa, a palavra poética, signo em constante rotação, adquire uma
natureza polissémica na depuração da leitura da pintura dos dois textos enunciados,
conduzindo a universos artísticos singulares proporcionados pela sugestão
conotativa das “magnólias” ou das “hortênsias”.

300
Manuel António Pina (Cf. “Poesia e artes plásticas”, in Revista Relâmpago. Poesia e artes visuais, nº 23,
2008, p. 100) reitera também a aproximação da artista à poesia do seguinte modo: “há ‘pintura’ que
reconheço como ‘poesia’ (o exemplo que imediatamente me ocorre na pintura portuguesa contemporânea é o
de Ilda David)”.

87
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

Neste processo, os versos de Graça Moura instigam a imaginação do leitor para


a intuição de significados mais complexos da linguagem plástica:

“só georges braque pintava esta manhã


numa cabeça azul ou numa concha
em que um peixe pousado não pesasse
mais que o pincel copiando-o da água.” (PR1, 20)

Os elementos marinhos convocados, que rejeitam agora o anonimato da autoria,


destacam a destreza manual pela construção de naturezas mortas construídas
pacientemente. Como é reconhecido pela crítica, o pintor cubista, revela uma
intensidade e um poder de observação, marcas distintivas e uma apurada técnica
figurativa, o que fez dele um autor de reconhecido valor.
Ainda contemplando o comentário técnico-formal dedicado ao pintor, apresenta
o seguinte poema intitulado georges braque par lui-même:

“também uma figura uma janela um ombro


um jarro de água fria um tabuleiro
tempo do cobre
eis o real inútil uma longa espera
um assobio às vezes na matéria
o fim do mundo alheio”. (PR1, 86)

Com efeito, as naturezas mortas, tratadas numa perspectiva moderna,


evidenciam minuciosamente a evolução transfigurativo do trabalho do artista, não
esquecendo noutro texto o tratamento da cor das “nuvens” e o “azul do céu” de
Georges Braque (PR2, 506). O forte sentido culturalista da poesia do autor de
recitativos convida o leitor a fruir cada poema, porque como adverte no poema
antígrafo “não me interpretes demais que podes magoar-te no arame farpado”
(PR1, 379).
Admirador também da obra de Delvaux, Graça Moura põe em evidência a
atracção pela realidade do artista surrealista belga, como se observa neste passo
significativo:

“(a escrita é impensável) a ocupação dos sonhos


modalidade de delvaux pintando
as estações nocturnas como le nôtre
concebia jardins.” (PR1, 170)

88
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

Na panóplia de temas tratados por Delvaux, destaca ainda o motivo mitológico


em torno de Vénus e desvenda, na leitura iconográfica, sentidos vários:

“das vénus que delvaux pintou, nenhuma


entre os espelhos e a melancolia
das gares e das luas, quando a cinza
do dia-a-dia as almas desarruma
em flamengo e francófona rezinza.
burguês. à chuva. adeus. sem maresia.” (PR2, 419)

A escrita do autor do poema ut pictura poesis, fruto da cosmovisão assente em


diferentes formas artísticas, plasma-se em inovadoras e variadas modalidades. Num
legado estético, perpetuado desde a Antiguidade, a larga revisitação de artistas
plásticos consagrados, nacionais e estrangeiros, revela, nesse gesto celebrativo, um
profundo fascínio pelas suas obras.

1.4. Contornos especulares: o retrato

Como se observa, a afinidade entre o repositório colhido no visualismo e a


escrita do autor foi motivo de inspiração lírica e possibilitou-lhe também diversos
trabalhos críticos, testemunho de uma insofismável cultura. Graça Moura, nessa
rica alusão a artistas, tradições e processos artísticos, no poema pintura de júlio
pomar. badinerie, com uma epígrafe retirada do próprio artista, “o jogo
imprevisível entre o esquecimento e a memória”, demonstra um notável
conhecimento da estética pictórica:

“tal qual pomar pintando o tempo


no seu catálogo de formas
armadilhando o movimento
ao tempo em bruto dando a volta

entre memória e esquecimento


e a vibração de uma energia
que vai do olhar ao pensamento
e deste à mão e da mão fica

feita de manchas um momento


a ondular por toda a tela
no emaranhar de forma e tempo
que assim se enreda e desenreda

89
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

entre o desenho e o pigmento


em que as figuras vêm à tona
num jogo feito de acrescento
e de filtragens da memória

assim pomar pintando o tempo


às cambalhotas e furtivo
ao que não vimos deu alento
e fez do visto o imprevisível”. (PR2, 384)

O íntimo convívio da palavra poética com o legado exemplarmente sintetizado


nas referências aos registos plásticos de Pomar materializa-se num ponto de
irradiação de pensamento, que se desenvolve como protocolo de leitura 301. O
carácter comunicativo da manifestação artística, em que a concepção de
representação é entendida com um pendor hermenêutico, é uma interpretação de
sentido sobre o mundo302. Em registo pausado e profundo, o ritmo dos versos
desenha-se na variação constante dos ângulos de focagem: “a tela / no emaranhar
de forma e tempo / que assim se enreda e desenreda” estabelece uma das marcas
indeléveis de Júlio Pomar: a distorção das formas, complexo processo criador de
um dinamismo no olhar dos seus quadros, que configura um determinado
conhecimento de alguém ou do mundo. Porém, a pintura não é considerada apenas
pelas exigências de ordem visual; os sentidos correspondem-se pelas sensações
produzidas, que no dizer de Graça Moura “em Pomar há sempre uma capacidade de
inovação e surpresa em que ele se distingue dos processos da maior parte dos seus
contemporâneos”303. Com efeito, e nesta linha, a estrofe final sintetiza
exemplarmente formulação preconizada por Júlio Pomar: “Um retrato que não é
inesperado, é um retrato que não existe como tal”304. Com efeito, o artista capta as
pequenas percepções que dão sentido às figuras.

301
Esta constante alusão observa-se nas epígrafes dedicadas a pintores, de que são exemplo as seguintes:
“francisco relógio” (PR1, 17), “madeira luís” (PR1, 25), “francisco correia gomes” (PR1, 31), “antónio de
Lourenço” (PR1, 46), “isabel gentil” (PR1, 47), “abel costa” (PR1, 73) e “júlio pomar” (PR2, 384) . Este
fascínio surge também em títulos de poemas: georges braque par lui-même (PR1, 86), desenho de jorge
pinheiro (PR1, 311), glosas para josé aurélio (PR2, 283), pintura de júlio pomar.badinerie (PR2, 384).
302
No dizer de Graça Moura, Júlio Pomar “parece apostado em romper os próprios limites da pintura como
linguagem, tratando a imagem e os heterónimos de Pessoa por uma via em que Expressionismo e
Romantismo acabam por combinar-se com interrogações sobre a efemeridade e sobre a transformação da
representação por um instável sentido de tempo” (Cf. Vasco Graça Moura, “Poesia e outras artes”, in
Românica. Itinerários de Poesia, nº 8, 1998, p. 177).
303
Vasco Graça Moura, “Julius Pomarius est hic”, in Diário de Notícias, 3 Abril 2013, p. 54.
304
Júlio Pomar, Então e a pintura?, Lisboa, Ed. D. Quixote, 2002, p. 98.

90
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

Este encontro entre o autor da Maria da Fonte e o poeta decorre não só de uma
longa amizade recíproca, mas também do facto do poeta continuadamente se
debruçar sobre a relação do pintor com a literatura305. As cumplicidades estéticas
levaram Pomar a pintar vgm, tendo sido a obra apresentada na Fundação Calouste
Gulbenkian numa homenagem, referida já anteriormente, ao poeta pouco tempo
antes da sua morte. Curiosamente, a lembrar o conhecido Retrato do artista quando
jovem, romance da autoria de James Joyce, comenta o seu retrato em artigo de
jornal intitulado Retrato do artista quando adulto:

“Nos seus cinzentos e nas suas velaturas, no modelado da face acentuado aqui e ali por uma
espécie de chiaroscuro, este quadro de Pomar põe-me precisamente a questão de como pode
ajudar-me a conhecer-me melhor, agora, numa época mais tardia da vida, em que flashbacks e
retrospectivas autobiográficas são muito mais frequentes e vindos do íntimo da idade madura,
encontrando-se mais do que ultrapassada a rimbaldiana oisive jeunesse.
É um óleo em cuja gama de cinzentos e castanhos de que ressaltam um colorido e uma aura de
luminosidade inesperados, num efeito quase tridimensional, posso rever-me em uma série de
décadas da minha vida adulta ao contemplá-lo e também localizar com maior ou menor nitidez
nesses períodos vários estados de alma, meditações, tomadas de decisão, ironias, prazeres e
desprazeres, venturas e amarguras, tempos fortes e tempos fracos.”306

Neste belo texto, provido de um sentido intimista, o autor, a um tempo, fala de si


e do quadro, e, num registo especular, comenta-o criticamente sendo o próprio
modelo; a obra de Pomar é assumida como um jogo do próprio texto, uma vez que
apresenta referências específicas à arte de cada um. Essa convivialidade é
recorrente e surge testemunhada, por exemplo, num conjunto de retratos de Dante,
alguns inéditos, da autoria de Júlio Pomar, que integrou a edição de luxo de A
Divina Comédia de Dante Alighieri, com tradução de Graça Moura307.
Com singular sensibilidade, de entre outros aspectos indeléveis na obra do seu
amigo, destaca o seu labor de retratista:

“O retrato é, em Pomar, uma ferramenta epistemológica, uma via de busca e de empatia para o
conhecimento da humanidade alheia. E aí, o procedimento plástico é menos da ordem do

305
Joana Monteiro conclui que “o universo pictórico de Júlio Pomar permitiu concluir que no modo
operativo intrínseco ao pintor, e consequentemente, na sua obra são detectáveis características muito
próprias que se inscrevem numa vontade permanente de reinventar, reinterpretar e revisitar temas de
períodos anteriores ou posteriores, motivos que desaparecem e reaparecem na sua poética. A fusão entre
uma prática oficinal, onde os recursos se multiplicam, e um saber-fazer notável tem como denominador
comum a descoberta, a experimentação e a transformação de que as séries temáticas são um exemplo
paradigmático” (Cf. Joana d’Oliva Monteiro, Júlio Pomar, Lisboa, Ed. Quidnovi, s/d, p. 80).
306
Vasco Graça Moura, “Retrato do artista quando adulto”, in Diário de Notícias, 5 Fevereiro 2014, p. 54.
307
A divina comédia de Dante, obra traduzida por Vasco Graça Moura com retratos de Júlio Pomar, edição
de luxo, Lisboa, Ed. Bertrand, 2006.

91
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

simbólico do que da ordem do encontro figural, do representativo por via da fixação de uma
semelhança que nos permita a reconhecibilidade da personagem na óptica essencial de quem a vê e
na técnica indissociável de quem a representa.”308

A paixão recorrente no seu trabalho pelo auto-retrato e a notável capacidade de


análise levam o sujeito de enunciação a apresentar um quadro, intitulado
precisamente retrato em causa própria:
“fez-me o retrato a namorada russa.
bebia grand marmier, fazia frases.
e como luso engenho que se aguça
a perceber do que é que são capazes
as eslavas rugindo, as trepidantes,
dei-me ares de autor em transe de altos partos,
despenteado mental de então e de antes,
friamente romântico, a três quartos.
assim me simulei”. (PR1, 493)

Numa inversão de valores, assente num resultado irónico de um jogo reflectido,


o sujeitoi de enunciação descreve-se a si próprio, sendo ele o modelo retratado. Sob
o signo privilegiado de identidade, ou que julga que ele é, os sentidos
correspondem-se pelas sensações produzidas, o que explica o verso final, “assim
me simulei”, afigurando-se uma indagação que é simultaneamente auto-referencial
e metadiscursiva309, adquirindo grande complexidade pelo duplo sentido de
representação: o que retrata, simultaneamente, é retratado. Deste modo, introduz o
tópico do reflexo do espelho inerente à prática do olhar, numa cadeia de efeitos que
repercutem as operações do complexo frente a frente amoroso. Esta representação
de si próprio, conducentes a determinados valores introspectivos, emerge também
nos versos de auto-retrato com musa:
“vejo-me ao espelho: a cara
severa dos sessenta,
alguns cabelos brancos,
os óculos por vezes
já mais embaciados.

sobrancelhas espessas,
nariz nem muito ou pouco,
sinal na face esquerda,

308
Vasco Graça Moura, “Julius Pomarius est hic”, in op. cit., p. 54.
309
Esta perspectiva de auto-retrato, recorrente em Graça Moura e de forte repercussão na poesia nacional,
tem paralelo, entre outros, em Bocage, Alexandre O’Neill ou Herberto Hélder (Cf. Eunice Ribeiro, “O
autorretrato em literatura. Ilustração e ruína”, in Carlos Cruz Corais (org.), Encontros Estúdio Um, #8
Autorrepresentação, Braga, Escola de Arquitectura da Universidade do Minho, 2014, pp. 19-35).

92
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

golpe breve no queixo


(andanças da gilette).[…]

quem amo o que é que pode


fazer deste retrato? […]

assim nem john ashberry,


nem o parmegianino,

nem espelho convexo,


nem mesmo auto-retrato.
só uma sombra que é
na sombra de quem amo
provavelmente a minha.” (PR2, 349-350)

Em singular pulsão representativa, a presença do eu lírico ao espelho, “ponto


estático do tempo”, (PR1, 253) imprime uma modalidade reflexiva aos seus versos
e oferece sugestões difusas da sua própria imagem, uma vez que desvenda, em
registo irónico, como se percepciona310. Os traços fisionómicos e sentimentais do
sujeito apresentam a sua visão de si próprio, configurando uma deliberada
dimensão especular, referente privilegiado no verso inaugural, o leit-motiv que
possibilita um olhar impressivo sobre si mesmo311. Por outro lado, o auto-retrato
em “espelho convexo” produz um efeito transcendental, visto que as possibilidades
infinitivas do reflexo divergente realçam o jogo estético da poesia pelo seu papel
transformador da realidade. Para tal invoca Parmegianino, que no seu célebre
“Auto-retrato num espelho convexo” permite que a reflexão esférica se estenda
para além do retrato. Na esteira deste tema, também surge a alusão a John
Ashberry, poeta americano que cultivou o jogo estético e transformador do real. O
espelho, metáfora convencional da revelação do eu próprio, assume um
distanciamento da função da visibilidade da imagem; o sujeito poético mira-se a si
mesmo, plasmando-se num espelho de consciência. Deste modo, num movimento

310
Como se observa, Graça Moura compraz-se no recurso a descrições autobiográficas de corrosivo tom
irónico, numa paródia de lugares comuns dos géneros ligados à biografia, como no exemplicativo poema
gouvães: pias recordações (PR1, 362-368). Sobre o referido texto, Paula Morão observa que se trata de uma
“autobiografia em tons de irónica melancolia, que serve de móbil a uma paródia de tiques e lugares comuns
dos géneros ligados à biografia (Cf. Paula Morão, “Vasco Graça Moura. A lucidez obscura das figuras”, in
Viagens na terra das palavras, Lisboa, Ed. Cosmos, 1993, p. 93). Esta propensão retratista serve também de
mote ao conto “Indagação do rosto” (Cf. Vasco Graça Moura, “Indagação do rosto”, in Morte no retrovisor,
Lisboa, Ed. Quetzal, 2008, pp. 213-220).
311
João Barrento num curioso texto dedicado a Graça Moura, que oscila entre a poesia e o ensaio, declara:
“O retrato e o rosto e o poema-em-tradução / afirma assim a sua autonomia” (Cf. João Barrento, “Carta na
primavera para Vasco Graça Moura, in Isabel Ponce Leão e Eduardo Paz Barrosos (org.), Cinquenta anos de
vida literária de Vasco Graça Moura, Porto, Ed. Modo de Ler, 2012, p. 99.

93
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

permanente de reescrita e metamorfose em demanda de novos sentidos, o retrato,


no dizer de Eunice Ribeiro, “é sempre um lugar de interpelação e de
autointerpretação”312, o que rastreia com particular mestria as diversas modalidades
expressivas do campo estético da pós-modernidade. Na contínua demanda de si
próprio, as sucessivas tentativas de auto-retrato enunciadas são bem
exemplificativas desse olhar daquele que vê a sua própria figura, espelho não só de
si mesmo, mas também do mundo.313
Assim, para o sujeito de enunciação “o poeta é um figurador” (PR1, 159),
sugestão indubitavelmente do célebre verso pessoano “o poeta é um fingidor” 314,
que tem ainda paralelo explícito com o passo de Vitorino Nemésio “o poeta é o
portador”315. João Barrento, que dedica um interessante texto crítico na
aproximação do verso de Graça Moura a um projecto estético em demanda de um
sentido poético316, formula também em verso essa asserção:

“O poeta é um figurador
O poeta é um figurador, não
consta que fernando conhecesse varrão (de
ling. lat. 6, 78:
fictor cum dicit fingo figuram imponit)”
(V. G. Moura, recitativos ix)
Traduzo livremente a linha de Varrão:
“ao dizer ‘finjo’, o fingidor impõe uma imagem”.
Uma imagem que, diga-se já, não é imagem
que repete, imita ou reproduz o outro,
mas figura que o figura, o re-faz
enquanto coisa própria e viva.”317

312
Eunice Maria da Silva Ribeiro, “Sem título. Retratos e desfigurações: de Henrique Pousão a Vasco Graça
Moura”, in Carlos Mendes de Sousa e Rita Patrício (org.), Largo mundo alumiado. Estudos em homenagem
a Vítor Aguiar e Silva, Braga, Centro de Estudos Humanísticos, Universidade do Minho, 2004, p. 286.
313
Segundo Paula Morão, a questão do eu que se descreve a si próprio pertence à esfera da alografia, visto
que há sempre uma cisão mesmo que o observado e o observador sejam a mesma pessoa, o que a leva a
afirmar: “quem escreve vidas não escreve vidas verdadeiras: “o auto-retrato é um alo-retrato - é, em suma,
um retrato”. (Cf. Paula Morão, “Retrato e auto-retrato - fronteiras e limites”, in O secreto e o real. Ensaios
sobre literatura portuguesa, Lisboa Ed. Campo da Comunicação, 2011, p. 61).
314
Fernando Pessoa, Poesias, Lisboa, Ed. Ática, 41952, p. 237.
315
Vitorino Nemésio, Obras Completas - vol. II Poesia, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1989,
p. 323.
316
João Barrento, “O poeta é um figurador”, in JL. Jornal de Letras, Artes e Ideias, 17 Janeiro 2013, p. 10.
317
Idem, “Carta na primavera para Vasco Graça Moura”, in Isabel Ponce de Leão e Eduardo Paz Barroso
(org.), Vgm. Cinquenta anos de vida literária de Vasco Graça Moura, loc. cit., p. 96.

94
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

O plano da imagem, derivado da experiência do indivíduo, das informações


recebidas e das marcas por ela deixada318, surge metamorfoseado, segundo João
Barrento, em “coisa própria e viva”, isto é, reivindica a autonomia e criatividade da
construção textual. Com efeito, a inspiração colhida no plano imagético surge
deliberadamente no poema desenho de jorge pinheiro:

“na minha mesa está pousado este


retrato à pena de uma mulher sentada.
a sua face rural e melancólica
debruça-se equânime como a fitar por dentro

as figuras de sombra do côncavo das vagas,


ou, citereia de trazer por casa,
sabe de mim, medita intimamente
as coisas certas sobre o meu trabalho”. (PR1, 311)

Os versos partem do “retrato à pena” de uma “citereia de trazer por casa”, deusa
do amor, confidente inspiradora do seu processo criativo, uma vez que, no dizer do
poeta, “medita intimamente/as coisas certas sobre o meu trabalho”.
Sensível ao apelo visual, Graça Moura é levado a questionar essa estratégia
poética precisamente em os rostos comunicantes:

“mas, de tantas solidões da arte,


como escrever sobre uma, não a partir dela,
cabeça de rapariga, um perugino
sobre papel cinzento?

como falar de retratos, da sua reverberação anímica,


daqueles que precisam da quase obscuridade
luz velada que os preserve? sua mina, de chumbo,
crayon branco, papel a desbotar?” (PR1, 265)

O poeta, em tom indagativo, coloca a tónica na relação da poesia com as artes


plásticas através da “sua reverberação anímica”, ou seja, do modo como a
sensibilidade do poeta aborda a descrição visual do retrato319. O retrato convocado
pelo texto convoca fornece uma dimensão fundamental captado pelo pintor (“o teu
olhar”), bem como realiza um arco temporal para se cruzar com o olhar de quem
contempla o retrato.
318
Bernardo Pinto de Almeida, O plano de imagem: espaço da representação e lugar do espectador, Lisboa,
Ed. Assírio & Alvim, 1996, p. 42.
319
Não é fortuito que seja precisamente este texto que serve de epígrafe aos seus Caderno de olhares,
volume que colige diversos artigos do autor sobre crítica de arte. (Cf. Vasco Graça Moura, Caderno de
olhares, loc. cit., 1983).

95
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

Em poema dedicado a Mário Botas, destaca o significado subjacente à


representação do rosto, marca distintiva do artista:

“ele pintava devagar, sem esventrar a vida


com uma caçadeira […]
ele pintava devagar, para saber
se é um rosto do resto, se a memória tem resto
ou se a morte tem resto”. (PR1, 296)

O cariz subjectivo da memória, bem como a sugestão da anáfora “ele” ou a


aliteração (v.g., “rosto do resto”) delineiam a procura incessantemente de “uma
medida humana de representação” (PR2, 96), constituindo um elemento centrípeto
do retrato, conceito evidenciado exemplarmente em o retrato de francisca
matroco320:

“no outono de 1879, em vila viçosa,


mais exactamente a dezoito de outubro,
henrique pousão desenhou o retrato de francisca matroco,
sua prima, talvez já sua namorada.

deve tê-la feito sentar no vão de uma janela


para que ao chegar a luz à sua pele
o sol de outono pousasse mais moroso
sobre o lado direito e as sombras fossem leves

levemente esfumadas, luminosas,


na sua face esquerda. os olhos dela captavam
a transparência da tarde, isto enquanto o fitava,
quase séria mas doce […]

e o retrato
ia ficando parecido no seu jogo de penumbras
imponderáveis, como um milagre fotográfico
entre perfumes vindos lá de fora e o bem-estar
do recanto. francisca aguardava, talvez submissa

mas ferozmente certa desse resultado.


era um momento do lápis em que aflorava a sua vida
e se concentrava no devagar da tarde,
depois de os olhos de pousão intensamente

a percorrerem, interrogando-a para que ela


não duvidasse nunca dos amores no outono,
nem dos silêncios de uma vila no alentejo,
nem da luz, nem das sombras, nem da realidade”. (PR2,108-109)

320
Sobre o artista plástico, vide Bernardo Pinto de Almeida, Henrique Pousão, Lisboa, Ed. Assírio e Alvim,
1999 e António Rodrigues, Henrique Pousão, Lisboa, Ed. Círculo de Leitores, s/d.

96
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

Num processo distintivo na poética de Graça Moura, o eu lírico explica a génese


criativa e revela o seu conhecimento e apreço por Henrique Pousão, pioneiro de
uma nova perspectiva na pintura portuguesa. Mostra o fulgor simbólico na
figuração animada de sentidos vários de sua prima, Francisca Matroco, por quem se
terá enamorado. A orientação interpretativa sob uma precisão espácio-temporal,
“no outono de 1879, em vila viçosa”, estratégia recorrente em Graça Moura,
constitui um motivo de arranque à estrutura digressiva do poema, como notou
Eunice Ribeiro em minucioso estudo321. Podem-se distinguir duas grandes linhas de
sentido, numa convergência de tensão irónica: por um lado, e como ponto de
partida, existe o retrato, a obra concreta produzida; por outro lado, o sujeito poético
situa a jovem retratada na sua relação com o artista.
Nos derradeiros versos, o poema anuncia um amor intenso, construído a partir da
personificação dos olhos do pintor, pelo apelo à mulher amada que “não duvidasse
nunca dos amores no outono, / nem dos silêncios de uma vila no alentejo, / nem da
luz, nem das sombras, nem da realidade”. Assim, o acto de criação torna-se mais
importante do que a própria pintura, sendo Francisca uma metáfora de amor à
própria concepção estética.
Com efeito, a percepção visual proporcionada pela pintura não é um fenómeno
instantâneo; pelo contrário, engloba preocupações atentas e sucessivas, que
culminam numa síntese final em que os seus elementos constitutivos coexistem
simultaneamente. A riqueza imagética do retrato, provido de uma unidade interna
na poesia de Graça Moura, mostra-se capaz de transmitir estados de espírito
marcado pela angústia, medo ou ausência, uma vez que, no seu dizer, “as figuras
serão também fumos de cinza” (PR2, 205).
Nesta linha de pensamento, Graça Moura apresenta uma sequência poemática
cujo núcleo central se centra em quadros em torno da sua família, intitulado
justamente sonetos familiares. O texto retrato.1827, cuja data enfatiza a inexorável
finitude de gerações, é um claro exemplo disso:

Eunice Maria da Silva Ribeiro, “Sem título. Retratos e desfigurações: de Henrique Pousão a Vasco Graça
321

Moura”, in Carlos Mendes de Sousa e Rita Patrício (org.), op. cit., pp. 275-288.

97
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

“lá em gouvães, estava no salão:


seguia com o olhar quem lá entrasse.
de tão escanhoada a sua face
quase azulava em cima do fogão.

de repas para a testa, casacão,


gola como se o queixo lhe entalasse
e ar de quem de lisboa dispensasse
trejeito liberais, constituição.

para nós todos esse era “o jacinto”. (PR1, 490)

No incipit do poema, a valorização do espaço onde se encontrava o quadro, “lá


em gouvães, estava no salão”, proclama um propósito memorialista 322. Na destreza
descritiva dos traços físicos, o sujeito poético capta o gesto e a expressão vincada,
sinais evocativos que se explana notavelmente nestas e noutras composições323. A
energia plástica da palavra centra-se, pois, no rosto que perscruta, num gesto de
esplendor de representação, bem como se debruça sobre a essência da sua própria
individualidade324.
Como se observa, a galeria de figuras evocadas a partir do universo familiar
permite uma interpretação que se deixa contaminar pelo imaginário. O que é
oferecido ao olhar do poeta são as sugestões, a um tempo, densas e difusas, das
imagens sugeridas pela sombra do passado. Essa apropriação permite criar
encenações próprias que envolvem essas personagens. A particularidade da relação
entre o retrato e o retratado ocorre de uma espécie de dupla referencialidade, que é
assumida pelo labor do pintor e, seguidamente, pela sua representação verbal. É

322
Note-se que, em tom memorialista, Gouvães é o espaço privilegiado da diegese de Por detrás da
magnólia, que é referente também da produção lírica de Graça Moura (Cf. Vasco Graça Moura, Por detrás
da magnólia, Lisboa, Ed. Quetzal, 2004).
323
Sobre uma perspectiva diacrónica do retrato nas diversas artes, vide José-Augusto França, O retrato na
arte portuguesa, Lisboa, Livros Horizonte, 1981.
324
O particular gosto de Graça Moura pelo retrato estende-se também à narrativa, como se lê em Quatro
últimas estações: “Da filha de Maria Luísa e Joaquim Albano restavam apenas duas fotografias a sépia já
bastante estragadas e delidas, que deixavam entrever uma rapariga muito nova e muito bela, e um pequeno
retrato a óleo, de autor desconhecido, que lhe apanhara uma certa inexpressividade do olhar, um rosto de
mulher de um oval muito perfeito e muito moreno, e um cabelo muito preto, apartado em cachos para os
lados, a partir do meio da cabeça. Usava um vestido de veludo cor de cereja, com gola de rendas e mangas
de seda lavrada, em tons de pérola, que sobressaíam em reflexos moles contra os bordos da moldura larga de
gesso patinado a ouro velho, com florões em relevo. Chamava-se Mafalda” (Cf. Vasco Graça Moura, Quatro
últimas estações, Lisboa, Ed. Quetzal, 2008, p. 103).

98
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

precisamente desta mediação e de transitividade que reside o valor expressivo de


uma figura de grau de parentesco incerto em retrato.1845:

“é uma trisavó ou uma tia


irmã dela, corpete de veludo,
cabelo liso, o rosto oval e tudo
a condizer, de boa burguesia.

grave, severa quase impassível, fria,


nem feia, nem bonita, de ar sisudo,
a sua vida não merece estudo
e há cento e tantos anos morreria”. (PR1, 491)

A fixação reiterada do olhar do eu lírico na figura feminina, na procura da


nitidez, conjuga o pormenor anatómico, “rosto oval”, com uma posse rígida e
austera contida na expressividade da adjetivação: “grave, severa quase impassível,
fria”. A sua realização lírica, o que é oferecido ao olhar do poeta são as sugestões
difusas de fragmentadas imagens da memória, visto que o retrato legitima uma
exigência afectiva motivada por um vazio físico. O pendor meditativo da
acumulação de traços cria encenações próprias que envolvem essa personagem,
retendo, assim, uma peculiar teatralidade. Neste registo contido no olhar da figura
“grave e “fria” reside, por assim dizer, uma dimensão fotográfica do quadro,
patente na representação do instante. Por outro lado, põe também em evidência essa
situação tão misteriosa como é a existência humana, onde o retrato guarda a
imagem da inevitável morte, característica fundamental que se afirma dentro da
pós-modernidade325.
Em notação por vezes difusa, o retrato simboliza, assim, fragmentos de vida e
reminiscências várias, desdobrando-se numa espécie de álbum da família, infinita
complexidade de impulsos afectivos, num intenso diálogo que perscruta as
recônditas emoções escondidas no estado de espírito do poeta. O sentido de
figuração, a que a literatura nunca foi alheia, conjuga várias derivas expressivas,
que criam a própria textualidade dos poemas, num fascinante e fulgurante mosaico

325
Nesta linha, Eunice Ribeiro destaca o seu fundamento matricial: “a morte está no princípio do retrato”
(Cf. Eunice Ribeiro “Poéticas do retrato - o desgaste das figuras”, in Revista Diacrítica, nº 22/23, 2008,
p. 269). Vide ainda sobre este assunto, Daniel Tavares, “Do retrato e da ausência: Vasco Graça Moura &
Noé Sendas”, in Diacrítica, vol. 28, nº3, Braga, Centro de Estudos Humanísticos da Universidade do
Minho, 2014, pp. 275-288.

99
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

de imagens, onde não falta, num registo introspectivo, uma representação do


próprio Graça Moura.

1.5. A representação do humano na câmara escura

O autor de modo mudando, possuidor de uma notável erudição, explora uma


heterogeneidade de campos artísticos, que configura determinados eixos
estruturantes do seu universo poético. Nessa contaminação, a fotografia também
lhe merece um particular interesse326, testemunhado exemplarmente no texto
écfrase, empernamentos:

“antes da vénus de urbino, eu buscarei,


eu busco na internet a nudez grave
da vénus adormecida de giorgione.

a imagem não dá sinal de ter


havido uma cabeça subjacente
de cupido, um pentimento, um repinte

talvez de tiziano, quando


completou a pintura da paisagem
e do céu. mas está lá, dizem exames

por infravermelhos, ultravioletas,


luz rasante, coisas assim. dizem-no
há muito. na verdade,

uma fala sobre o que está


ali, sob o visível, deveria prender-se
a esse cupido evaporado, oculto

por outras representações,


árvores, caminhos, colinas, ar e casa,
nuvens, espaços, esverdeamentos,

jutamente na paisagem.
sonharia qualquer deles,
giorgione ou tiziano, aí por 1510, que sob

a imagem que me chega


se lê full resolution
(1,0208 x 732 pixels, file size: 149KB,

MIME type: image/jpeg)?” (PR2, 550-551)

326
Graça Moura destaca (Cf. PR2, 208) que uma imagem fotográfica é um dos motivos inspiradores da sua
colectânea garrett, numa cópia perdida do frei luís de sousa (31.12.1843).

100
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

Desta múltipla conjugação de pintura, foto e novas tecnologias emerge de novo a


perspectiva ecfrástica, convertendo deliberadamente os seus versos numa metáfora
da visibilidade327. A percepção e a qualidade da pintura, celebração da
modernidade e hino à digitalização, revelam a significativa importância que o autor
fornece à ciência e à tecnologia328. Os versos, de um modo inovador,
problematizam o papel das tecnologias na era digital, pelas novas possibilidades de
fruição cultural e conhecimento que potenciam. De um modo inesperado e
inovador, a linguagem científica justapõe-se à linguagem poética: a fotografia
digital permite que a pintura seja iluminada a pixéis, com o pormenor técnico de
“1,0208 x 732 pixels, file size…”. A foto adquire o status mediador entre a palavra
e a pintura, configurando uma nova forma de expressão no xadrez de possibilidades
que o sistema literário encerra. Com efeito, outro aspecto marcante neste poema
reside nas potencialidades do formato digital que trazem consigo outra vantagem: é
precisamente o facto de ser uma obra aberta a contínuos protocolos de leitura,
incorporando novos contributos pelo resultado das pesquisas, permitindo alargar e
aprofundar o conhecimento acerca de uma obra. A tecnologia incorpora, pois,
inovadoras práticas virtuais de conhecer o mundo; a recepção de uma pintura passa
pela ausência do espaço físico, o que confere uma vocação universalista ao modo
de pensar a arte329.
Esta modalidade de representação, valorizada pela mediação da fotografia digital
na pintura, reforça a singular poética de imagens cultivada por Graça Moura, bem
como conhecimentos seguros das técnicas da pintura antiga, como o “pentimento”
ou o “repinte”, práticas que constituem uma via fundamental para estudar a génese
criativa de uma obra.
No entanto, o interesse do autor não se restringe à fotografia digital, como se lê
no seguinte poema:

327
Este texto, como nota Graça Moura, partiu de um pedido de Fernando Pinto do Amaral, que lhe solicitou
um poema ecfrástico inédito para publicar na revista Relâmpago e concluiu: “E dei por mim a escrever sobre
Vénus adormecida de Giorgione, com uma alusão à Vénus de Urbino de Tiziano…” (PR2, 552).
328
Cf. Vasco Graça Moura, O binómio de Newton & A Vénus de Milo. Poesia e ciência na literatura
portuguesa - uma antologia (em colaboração com Maria Bochichio), Lisboa, Ed. Aletheia, 2011.
329
António Pinto Ribeiro, Abrigos: Condições sobre as cidades e energia da cultura, Lisboa, Ed. Cotovia,
2004, p. 166. Neste contexto também Bernardo Almeida destaca: “Com o advento da digitalização da
imagem […] a relação com os museus tende para se virtualizar cada vez mais” (Cf. Bernardo Pinto de
Almeida, “A imagem do museu”, in Imagem da fotografia, Lisboa, Ed. Assírio & Alvim, 1995, p. 67).

101
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

“agora que passaste muito queimada do sol


o vento vem pela estrada até à duna
com uma folha de jornal desdobrada
aos baldões e as vozes dos piqueniques.

tu desceste da moto e foste


comprar um gelado, […]

tudo isto dava uma fotografia


com o teu peito em grande plano
e a cena reflectida nos óculos escuros”. (PR1, 314)

Como se observa, a fixação poética do esplendor da beleza feminina materializa-


se de novo através de ecos do conhecido poema De tarde de Cesário Verde330,
autor por quem Graça Moura nutre um particular fascínio, como continuadamente
afirma. A mulher não desce do burrico, nem come pão-de-ló; o tom lúdico desta
recriação sobre o poema oitocentista, que com ele mantém uma intertextualidade
deliberada, desloca-se para a actualidade, assinalada pelo “gelado” e pela “moto”.
Por outro lado, o seu “peito em grande plano”, em vez de uma aguarela, “dava uma
fotografia”. Nesta metáfora do olhar, patente na “cena reflectida”, o jogo especular
da realidade é representado pelo filtro dos óculos escuros.
A vulgaridade da fotografia331, de novo em tom irónico, o sujeito poético
motiva-lhe um comentário:

“a média burguesia
desatou a tirar retratos nos picnics

ou a fixar as vistas que a comoviam


com máquinas fotográficas. voltemos aos sítios.
o que me fica das pontes,

das águas, das barcaças, dos poentes,


das árvores, dos largos, das praças,
ou das ruas do porto?” (PR1, 411)

A burguesia, que usa as máquinas fotográficas para “tirar retratos nos picnics /
ou a fixar as vistas que a comoviam”, ou seja, constitui uma prática social radicada
no momento espontâneo, banal e na emoção suscitada. A finalidade da fotografia
esgota-se nela própria, testemunhado na ironia do prosaico contida em “desatou a
330
Cesário Verde, Cânticos do realismo: o livro de Cesário Verde, loc. cit., p. 130.
331
A este propósito, Sontag considera a fotografia “um rito social”, uma vez que é vista como
entretenimento e não praticada como arte (Cf. Susan Sontag, Ensaios Sobre Fotografia, Lisboa, Lisboa, Ed.
D. Quixote, 1986, p. 18).

102
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

tirar retratos”. Porém, em contraste, as interrogações do eu face a lugares


portuenses revelam um gosto por imagens que encerram tensões e sentimentos.
Exprime, pois, uma intencionalidade que acompanha a revelação da própria
essência das coisas, o que permite também concluir que, neste contexto, essa
poética imagética comporta uma génese fotográfica. Assim, o pano de fundo deste
poema, a fotografia, de mero documento dá lugar a uma dimensão expressiva capaz
de condensar uma meditação sobre o mundo.
A perspectiva imagética do poema, materializada pela fotografia que capta o
efémero instante da vida, motivo recorrente em Graça Moura, que, em tom
amoroso, canta:
“não quero o teu retrato
nem o meu, a não ser
num templo em ruínas […]

e ficar de mãos dadas


sob um céu de ameaça
olhando a objectiva. há
felizmente um disparo

automático a
fuzilar-nos de amor na nossa imagem”. (PR1, 257)

Espécie de revelação interior, o “disparo / automático” provoca uma consciência


amargurada e desolada da passagem do tempo; a fotografia, no dizer de Susan
Sontag é memento mori, porque “testemunha a inexorável dissolução do tempo,
precisamente por seleccionar e fixar um determinado momento”332. É precisamente
o olhar dirigido à “objectiva” que amplia e dá conta da caducidade da condição
humana, contida na metáfora do “templo em ruínas” e na hipérbole do fuzilamento.
A consciência de um devir perturbador, destacado a cada momento pelo
instantâneo fixado na retina, acaba por sugerir que vida e morte estão separadas por
um simples disparo, como notou Barthes quando ligou a fotografia à morte333. O
léxico fotográfico contamina os versos, onde o pendor inimitável da fotografia, não
permite restituir o que se perdeu num momento passado e confronta o sujeito de
enunciação com a sua própria existência precária.

332
Idem, ibidem, p. 24.
333
Roland Barthes, A câmara clara, Lisboa, Ed. 70, p. 112.

103
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

No poema sugestivamente intitulado fotografia, o tema do tempus fugit surge de


novo:

“não é só na fotografia
a tua imagem a apagar-se:
é muito mais o que eu não via
e surge agora sem disfarce.

a sombra alastra. Principia


cada feição a evaporar-se
porque a emulsão já se arrepia
na cor a deteriorar-se

de muita luz que lhe sobrou


destemperadamente rude,
como o excesso desse agosto”. (PR1, 526)

Os versos de Graça Moura encontram na fotografia um espaço de cumplicidade;


a efemeridade de “a emulsão já se arrepia / na cor a deteriorar-se”; o olhar da
realidade provém das imagens a desvanecerem-se perante a erosão do tempo e o
perscrutar da luz e das sombras do mundo conduz a uma angústia existencial da
qual fica apenas uma sensação de destruição.
A fotografia, concebida como artefacto artístico334, leva o poeta a invocar
Gérard Castello-Lopes335, num exercício de escrita, que designou precisamente
giraldomachias. onze poemas e um labirinto sobre fotografias de gérard castello-
lopes336:

334
No dizer de Philippe Hamon, devido ao advento da presença de suportes fotográficos no universo
artístico, a relação da literatura com as artes tem vindo a sofrer profundas alterações que se traduziram na
valorização da imagem em detrimento do preceito horaciano do ut pictura poesis. Assim, o referente a
descrever está na imagem recolhida e não na pintura, o que justifica a crescente importância do impulso
ecfrástico da fotografia na poesia contemporânea (Cf. Philippe Hamon, Imageries: littérature et image au
XIXe siècle, Paris, Ed. José Corti, 2004, p. 32).
335
Graça Moura tem um particular apreço pela obra fotográfica de Castello-Lopes e, quando da morte deste
em 2001, apresenta na sua crónica semanal no Diário de Notícias um sincero tributo ao artista numa análise
depurada: “O seu trajecto mostra-o capaz de privilegiar o flagrante feliz e também o efeito paradoxal, numa
atitude de olhar à sua volta que não seria muito distante da de um Cartier-Bresson ou de um André Kertézs.
Há nas suas fotografias um sentido denso, crítico mas não panfletário, de uma humanidade próxima de nós:
dir-se-ia, ao mesmo tempo, uma complacência à maneira de Alexandre O’Neill para com os nossos brandos
costumes e uma ironia poética e precisa, na representação de gente humilde nas calçadas de Lisboa, de
homens a verem o mar encostados a um muro alto da Ericeira, de cenas de taberna, de faces, figuras,
paisagens, pormenores, efeitos de luz e de sombra, cuja efémera estranheza ou singularidade ele se sentira
movido a fixar” (Cf. Vasco Graça Moura, “Gérard”, in Diário de Notícias, 15 Fevereiro 2001, p. 54).
336
Sobre a essência da dimensão fotográfica na linguagem poética de vgm e particularmente com a obra de
Castello-Lopes, Sandra Teixeira fala com pertinência em “poème photographié” (Cf. Sandra Teixeira,
“Poésie et photographie ou l’empreinte du regard poétique chez Vasco Graça Moura, Ana Luísa Amaral et
Al Berto”, in Cadernos de literatura comparada. Técnicas do olhar, nº 21, 2009, pp.152-155). Vide também
sobre o diálogo entre os dois artistas os seguintes artigos de Teresa Carvalho: “Em demanda de Moura.
Giraldomachias”, in Boletim de Estudos Clássicos, nº 43 (Junho 2005), pp. 169-180; “Em demanda da

104
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

“que limites para o conhecimento de si mesmo


e a própria experiência do mundo? […]

de luz dos olhos que, diz o sermão da montanha,


são a candeia da alma, num relance intrigado
ou num relâmpago de flash mental. mental. coisa mental
é o retrato, sempre. nesse momento quem se
representa, fá-lo por vezes como não se vê,
mas se entende mais fundo
e tenta comunicá-lo desesperadamente
a outros que se propõem o mesmo exercício.

voyeurs. voyeurs somos nós todos desde pequenos,


logo a partir das sombras da memória. vejamos: giraldo-
machia é o combate de gérard consigo mesmo, a procura
do que está para lá da sua cara. no que viveu e viu.” (PR2, 226)

A dimensão lírica do poema insere a fotografia no universo artístico, bem como


assume uma vertente ontológica com os ecos do passo bíblico “luz dos olhos”337,
que, neste contexto, confere à enunciação uma aura de mistério338. O fotógrafo não
busca o efeito do real, a mensagem não está na imagem, mas na sintaxe visual
perpetuada pelo autor. Explicado etimologicamente pela translineação e mudança
de verso: “giraldo- / machias é o combate de gérard consigo mesmo”, o sujeito de
enunciação procura perscrutar o imaginário de um “verdadeiro cidadão do
mundo”339. O retrato, a “coisa mental” condensa o sortilégio da fotografia –
sintagma tanta vez repetido –, uma vez que abrange o que a imaginação possa
conceber. O verso “voyeurs. voyeurs somos nós todos desde pequenos” associa o
aspecto temporal à dimensão omnívora da arte que imobiliza o referente no instante
decisivo – efeito perverso enfatiza essencialmente o acto de captação que legitima a
expressão verbal do poema340.

Moura. Giraldomachias”, in Boletim de Estudos Clássicos, nº 44 (Dezembro 2005), pp. 195-205 e “Gérard
Castello-Lopes em demanda de Vasco Graça Moura: ut photographia poiesis?”, in Boletim de Estudos
Clássicos, nº 45 (Junho 2006), pp. 169-178.
337
Bíblia Sagrada, Lisboa-Fátima, Ed. Difusora Bíblica, 32001, pp. 1571-1572.
338
Gérard Castello Lopes apresenta uma curiosa analogia entre o labor poético e o do fotógrafo: “O poeta
interpreta uma realidade no seu poema, o fotógrafo interpreta o poema e dá-lhe uma realidade visual que,
mesmo sem ser exactamente justaponível à que exprime o poeta, poderá (deverá?) ter com ela, um ar de
família. Tudo que está em tudo” (Cf. Gérard Castello Lopes, Vasco Graça Moura, Em demanda de Moura =
a la recherche de Moura;Giraldomachias = Gerardomachies, Lisboa, Ed. Quetzal, 2000, pp. 114-115).
339
Cf. Vasco Graça Moura, “Gérard”, in Diário de Notícias, 15 Fevereiro 2001, p. 54.
340
Sontag afirma que o voyeur da classe média, adepto das alegrias e da observação do mundo, uniformiza o
significado de todos os acontecimentos e estabelece a fotografia como prolongamento do seu olhar do
flâneur (Cf. Susan Sontag, Ensaio sobre fotografia, loc. cit., pp. 20 e 57).

105
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

No entanto, o que interessa não é a imagem feita, mas antes o próprio fazer, as
suas modalidades de constituição; a colectânea poemas com pessoas, Graça Moura,
no texto ressonâncias de escala, reitera a essência da pulsão fotográfica da
linguagem poética341:

“isto não é um retrato de gérard


castello-lopes, mas uma incursão
imaginando-o a magicar nas questões de escala
que há tanto tempo o preocupam
e no modo de chegar à música
com o realejo das vistas,
que era como antigamente
um padre do minho chamava

à máquina fotográfica.
por isso o imagino como se tivesse
ido a um subúrbio, em busca
de qualquer charco de água reflectindo
rasgões do mundo, sombras,
vestígios metafísicos
de alguma anódina passagem,
como se tivesse aproveitado
para assestar a objectiva com
o seu pequeno fole na cega
que cantava numa esquina
o fado a seco, sem fôlego,
junto ao prato de esmolas,
com um filho nos braços.
em casa, terá depois pousado
a camera obscura na mesa de trabalho
e transposto mentalmente
outras coisas a preto e branco
para uma intensa realidade”. (PR2, 62)

Provido de uma diversificada experiência cultural, o poeta assume o status de


crítico e realça a trajetória da rica e prolixa obra de Gérard Castello-Lopes, artista
de olhar inquieto, que criou, sem dúvida, uma sobriedade imagética no contexto
nacional, contributo para a renovação estética da fotografia, reconhecida na década

341
Esta estratégia enunciativa do poeta é sublinhada por Fernando Matos Oliveira: “Deve dizer-se que em
Vasco Graça Moura (VGM) a fotografia tende a assumir um vínculo figurativo que é por si da maior
importância, além de condição para certa felicidade ecfrástica.” (Cf. Osvaldo Manuel Silvestre, Pedro Serra
(org.), Século de Ouro. Antologia crítica da poesia portuguesa do século XX, Lisboa, Ed. Cotovia, p. 453).

106
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

de 80 do século findo342. A atenção recai, pois, sobre o fotógrafo, que escapa à


voracidade popular que a câmara tem nos tempos modernos, pela importância
artística do seu labor343. Em demanda da compreensão do seu processo criativo, o
sujeito poético submete a obra de Gérard aos desígnios interpretativos da poesia na
busca da assimilação de uma nova modalidade de representação344. A fotografia
veicula uma “ética de visão”, nas palavras de Susan Sontag345, gerando um pathos,
na busca daalteridade, como é o exemplo ilustrativo, colhido nos pequenos
acontecimentos, da cega que “cantava numa esquina / o fado”. Esse testemunho,
traço marcante do seu itinerário artístico, concebe a fotografia como um desenho
que regista, interpela e cria uma memória de dimensão afectiva que emerge de um
apurado sentido estético346. O final comporta um momento introspectivo pelo modo
como o artista terá visto a realidade, “a preto e branco”, privilegiando a relação luz-
sombra, que motiva a própria imaginação do poeta “para uma intensa realidade”,
sintetizada com pertinência por vgm num artigo intitulado Gérard:

“Interessava-o uma espécie de filosofia da imagem, mas sem quaisquer a prioris. Uma atitude
conceptual menos assente na discursividade do que feita de reflexões dispersas e muito pessoais,
como quem as vai segregando e amadurecendo à medida que reelabora pontualmente uma imagem
do mundo através da objectiva, compendiando as ideias nessa fenomenologia emergente da sua
própria prática de fotógrafo.”347

342
Matos Oliveira escolheu o poema viagem de verão, com origem numa foto de Castello-Lopes, para
integrar uma monumental antologia sobre poesia do século XX, na apresentação crítica salienta: “Deve
dizer-se que em Vasco Graça Moura o fotógrafo tende a assumir um vínculo figurativo que é para si da
maior importância, além de condição para uma certa felicidade ecfrástica” (Cf. Fernando Matos Oliveira, “A
viagem de verão de Vasco Graça Moura”, in Osvaldo Silvestre e Pedro Serra (org.), Século de Ouro.
Antologia Crítica da Poesia Portuguesa no Século XX, loc. cit., p. 453).
343
Como sublinha num breve, mas interessante texto, Fernando Luís Sampaio (Cf. Relâmpago. Poesia-artes
visuais, 2008, p. 62), para certos autores, a écfrase necessita de obedecer a um conjunto de requisitos
consagrados pela tradição. No entanto, a partir do início do século XX opera-se uma transformação na sua
essência, com a valorização de conceitos da mais diversa ordem, sobretudo de natureza reflexiva, o que
permitiu a abertura de novas possibilidades na reconfiguração discursiva. É precisamente tendo em conta
este aspecto que se verifica o exercício ecfrástico na poesia de Graça Moura.
344
Como sublinha Walter Benjamin (Cf. A modernidade, Lisboa, Ed. Assírio & Alvim, 2006, p. 252),
“aquilo que é decisivo para a fotografia é sempre a relação dos fotógrafos com a sua técnica”.
345
Susan Sontag, Ensaio sobre fotografia, loc. cit., p. 30.
346
Pinto de Almeida sintetiza a criação artística de Gerard Castello Lopes do seguinte modo: “Fotografando
tudo, por toda a parte, os homens deixaram de guardar memórias, recordações, lembrança, para guardar
antes imagens.
A memória flui, tergiversa, inventa e baralha, enquanto a fixidez da imagem fotográfica prende, atesta,
confirma e esquece” Bernardo Pinto de Almeida (“Imagem da memória”, in Imagem da fotografia, Lisboa,
Ed. Assírio e Alvim, 1995, p. 69).
347
Vasco Graça Moura (Cf. “Gérard”, in Diário de Notícias, 15 Fevereiro 2001, p. 54) observa ainda neste
artigo sobre o autor: “Há nas suas fotografias um sentido denso, crítico mas não panfletário”, a que
acrescenta “E há também na sua obra, para além de uma preocupação de equilíbrio e de atenção aos valores
plásticos, a afirmação de um sentido "musical", contrapuntístico, da composição e da estrutura da imagem. E

107
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

A essência criativa do referido artista, como se observa, resulta da impressão


resultante de um olhar inovador que abre novos horizontes visuais, sendo assim
uma referência ímpar na cultura fotográfica nacional.
O apreço pela capacidade perceptiva, e simultaneamente especulativa que a
imagem encerra, observa-se também no poema fotografia de ana gaiaz:

“no eixo de Monsanto,


que voltas deu o mundo
para que o seu minúsculo
olho de quartzo encaixe
em micas e feldspato
e logo no preciso
instante do instantâneo?
quantas asceses viu?
de quantas desconfia?
de quantas mais se ri?” (PR2, 333)

O eu lírico, no campo visual proporcionado por Monsanto, procura compreender


a circunstância do fenómeno da técnica compositiva da fotografia, “o instante do
instantâneo”, que reside na conjugação de dois processos na acção química da luz
sobre as substâncias – “quartzo”, “micas e feldspato” – e a formação de imagem
através das materialidades específicas do dispositivo óptico348. Por outro lado, a
metalinguagem poética é contaminada pelo léxico haurido no campo fotográfico.
Esta metamorfose constitui o pretexto para a realização lírica, uma vez que
constitui motivo privilegiado de reflexão, continuada no poema tarde em idanha-a-
nova:
“soam as badaladas de horas de bronze: impávida
a cegonha no ninho, à hora de mais sol.
numa janela aberta ainda há sardinheiras,
nuns muros mais abaixo ainda há madressilvas.
tens, meu amor, daqui, do alto desta escada,
um ângulo melhor para a fotografia”. (PR2, 332)

A imagem torna-se inseparável do acto que capta a realidade, da singularidade


do ângulo colhido ou de referentes de grande sugestão visual – neste caso, as
“sardinheiras” ou as “madressilvas” –, porque, caso contrário, não havia fotografia,

uma poética do rigor e da nitidez, do controle preciso dos efeitos do preto e branco, da beleza sóbria com
que ele dava a ver o que a sua retina registava”.
348
Em consonância com este motivo essencial do poema, R. Barthes sustenta o seguinte: “Tecnicamente, a
fotografia está na encruzilhada de dois processos absolutamente distintos: um, de ordem química, a acção a
luz sobre certas substâncias; o outro, de ordem física, a formação da imagem através de um dispositivo
óptico” (Roland Barthes, A câmara escura, loc. cit., p. 24).

108
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

como frisou Barthes349. O derradeiro verso sugere, assim, o combate ao


esquecimento e à letargia da vida e do amor, que proporciona “o ângulo melhor”.
Esta atitude fundada na afinidade entre a representação visual e a escrita
configura-se, também, nas mais prosaicas questões e motiva, em registo
metaliterário, o comentário do poeta:

“como quem entrevê fotografias


e uma fracção do tempo a preto e branco
iludindo a realidade implacável
porque foi vista assim, manipulada

na câmara escura da alma: ressonâncias e luz


em sua gama de cinzentos, seus
negros mais profundos, seus grandes planos
nítidos, seus longes desfocados.” (PR2, 165)

O apelo visual exercido sobre o poeta, num registo notável, configura a essência
da pulsão lírica. A singularidade da imagem fotográfica, fundada no hic est hunc, é
inseparável do referente que se traduz no pensamento de W. Benjamin: a fotografia
reproduz de modo infinito aquilo que só acontece uma vez, pelo que nunca mais
poderá repetir-se no tempo, residindo aí a sua autenticidade350. É, pois, uma arte
complexa que não se cinge a um simples disparo, em virtude de trazer a
necessidade de pensar e de conhecer. O difícil equilíbrio artístico da representação
o mundo realiza-se através da “fracção de tempo a preto do branco”, que, pelas
suas características únicas, fixa-se nas formas resultantes das imagens mais ricas
nos detalhes. Por outro lado, esta reformulação estética do chiarioscuro barroco
produz imagens simbólicas que permitem descortinar novos sentidos
interpretativos351.
A vocação meditativa e o apelo à dimensão visual acompanham as reflexões do
sujeito poético, alcançando a densidade e a espessura nos seus versos. Assim, o
poema tem como premissa a liberdade artística que perscruta a essência do mundo;
do mesmo modo a captação singular da arte fotográfica apresenta um valor

349
Idem, ibidem, p. 19.
350
Walter Benjamin, Sobre arte, técnica, linguagem e política, Lisboa, Ed. Relógio d’Água, 1992, p. 77.
351
Numa visão histórico-cultural, Joana Matos Frias preconiza que a primazia da fotografia sobre a pintura,
derivada da qualidade de representação da fotografia artística, trouxe uma nova acepção do conceito da
écfrase na poesia, alterando a fórmula horaciana de ut pictura poesis (Cf. Joana Matos Frias, “Peeping
Tongue: ut photographia poesis ou o verso da evidência”, in Cadernos de Literatura Comparada, nº 17,
2007, pp. 213-241).

109
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

irredutível de testemunho do mundo. Não eterniza o momento, “a realidade


implacável”; pelo contrário, mostra como ele é perecível. A fotografia torna-se,
deste modo, um pólo de atracção discursiva mostrando o interesse pelos
mecanismos que regem a sua produção.
Em prefácio a uma obra fotográfica da autoria de Maria José Palla sobre poetas
portugueses, Graça Moura apresenta uma notável síntese sobre os conceitos
anteriormente enunciados, que permite indubitavelmente descortinar o alcance de
uma poética construída com base no universo da câmara escura:

“Retratos, portanto, retratos combinando-se com objectos, reflexos, estruturas, profundidades


de campo, opacidades e transparências, alusões e efemeridades desmultiplicadas. Imagens em cuja
produção colaboraram, poses em que aceitaram colocar-se, procuradas simulações de naturalidade
ou desatenções propositadas ao desenrolar da sessão, mas imagens em que interveio o olhar alheio,
olhar cortante, na rapidez e na decisão com que seccionou esse momento figurado em que eles
passaram a existir sem mais variação no próprio presente ilimitado de cada rosto reconhecível, e
olhar mais ou menos moroso nas vias concretas que percorreu para obtê-las, estudando ângulos e
enquadramentos, luminosidades e texturas, gestos e posições, ironias e melancolias, focando e
desfocando, fazendo e refazendo e repetindo.”352

Nessa rica e elucidativa convocação, a simbologia que emana da fotografia


ganha foros peculiares. A sua funcionalidade, no seio do universo lírico de Graça
Moura, reside na captação da realidade – de acontecimentos, cenários ou pessoas.
No entanto, cada foto não deixa também de expressar estados de alma, colorário do
sortilégio deliberadamente perseguido pelo sujeito de enunciação, bem como joga
com as noções de ausência-presença e de identidade-alteridade, constituindo um
dos mais fecundos veios de sentido de vgm.
Deste modo, a linha de força dominante do cruzamento da poesia com a
fotografia é vincada por um forte poder de ilusão e engano, convertendo-se os
elementos retratados num singular exercício de reflexão, sempre à espreita, num
constante interesse pela condição humana.

352
Maria José Palla, Poetas, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian/Acarte, 1998, pp. 8-9.

110
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

1.6. A estatuária: arte performativa da figuração das imagens

No ecletismo de uma experiência estética de sensibilidade pós-moderna, a


escultura, merece também particular atenção ao autor de rostos comunicantes,
numa escrita oscilante entre o lúdico e o reflexivo.
Deste modo, o relevo dispendido a Laocoonte353, obra-prima da arte escultórica
da Antiguidade Clássica, descoberta em 1506, constitui um topos primordial de
écfrase, destacado logo na sua presença no título de uma colectânea da sua
autoria354. A análise realizada por Winckelmann, historiador alemão de arte, é
possivelmente o exemplo mais conhecido do movimento agónico do sacerdote
troiano e seus filhos.
Graça Moura realça, em registo narrativo, a descoberta da mítica estátua:

“três meses antes de miguel ângelo fugir de roma,


zangado com júlio ii e sentindo-se ameaçado
por bramante, uma estranha estátua foi desenterrada
perto dos banhos de tito, numa vinha do esquilino […]

e logo o papa, sabedor do achado,


e antes de a removerem, mandou lá
giuliano de sangallo e miguel ângelo […]

‘este é o laocoonte de que fala plínio’, exclamara, debruçando-se


entre as vides reconhecidas e sem folhas, naquela manhã fria

e um deles pôs-se também a recitar a eneida, gravemente,


começando em horresco referens” (PR2, 368)

Conhecedor como poucos da história de arte, o poeta traz à colação as


circunstâncias em torno da descoberta fortuita da estátua, “o laocoonte de que fala
Plínio”, que, na sua Naturalis Historiae, confessa ter visto no palácio do imperador
Tito. Em contexto da vasta erudição, também é descrito a agonia da morte de
Laocoonte e seus filhos enlaçados pelas serpentes, narrada por Vergílio, no canto II
(vv.199-227) da Eneida, episódio iniciado com “horresco referens”, citação onde

353
Veja-se o importante testemunho de Eunice Ribeiro em torno das repercussões poéticas suscitadas por
Laocoonte, na produção lírica de Graça Moura e outros poetas (Eunice Ribeiro, “A hipótese de realidade:
sobre o Laocoonte”, in Relâmpago. Poesia e artes visuais, nº 23, 2008, pp. 145-162).
354
Vasco Graça Moura, Laocoonte, rimas várias, andamentos graves, Lisboa, Ed. Quetzal, 2005.

111
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

colhe a sua inspiração. Neste contexto, a contorção em dolorosa agonia constitui


um convite à leitura dos seus versos na sua dimensão inquieta e disfórica, de
pendor maneirista, contrastiva com uma visão apolínea regida pela clareza e
harmonia renascentista355. Esta propensão testemunha, com efeito, um eixo
fundamental de compreensão da poética de matriz clássica de Graça Moura356.
Nesta sequência, no poema seguinte, em torno das vicissitudes de descoberta
desta estátua, a tónica é colocada na enigmática posição de um braço, perdido
durante muito tempo, que faltava à imagem de Laocoonte, colocando a questão da
posição genuína do braço, bem como a presumível autoria da estátua, atribuída por
Plínio à produção colectiva de três artistas da escola de Rodes. Além disso, o
poema revela o dramatismo inigualável da figura, espécie de retrato da condição
humana:

“ao laocoonte retirado do cascalho


faltava o braço direito e
era um verso de virgílio que permitia
as reconstituições: a figura, a brandir armas,

implicaria o braço erguido do pai,


estendido em diagonal, a proteger os filhos
do ataque das serpentes. muito mais tarde, o fragmento
do braço original, achado nos terrenos de um pedreiro,

veio mostrar que o braço se flectia,


em direcção à cabeça e que, ou a citação da eneida
não fora bem compreendida, ou as palavras
não cobriam exactamente o gesto representado […]

messer buonarroti comentava fascinado que a estátua era um milagre

355
Graça Moura enfatiza que o escritor é “alguém cuja escrita encontra várias maneiras de se solidarizar com
uma tradição cultural” (Cf. Francisco José Viegas, “E agora, Vasco?”, in Revista Ler, nº 33, 1996, pp. 54-
-61).
356
Sobre a tradição clássica em Graça Moura, vide Teresa Carvalho, “Presenças clássicas na poesia de
Vasco Graça Moura: da reverência à contrafacção irónica”, in Cristina Pimentel e Paula Morão (coord.), A
literatura clássica ou os clássicos na literatura. Uma (re)visão da literatura portuguesa das origens à
contemporaneidade, Lisboa, Ed. Campo da Comunicação, 2012, pp. 299-318; Isabel Pires de Lima, “Entre
dois mundos: referências clássicas na poesia de Vasco Graça Moura”, in José da Cruz Santos (org.), Modo
mudando. Sete ensaios sobre Vasco Graça Moura, Porto: Ed. Campo das Letras, 2000, pp. 85-100; José
Cândido Martins, “Reescrita mitológica e intertexto clássico: Píramo e Tisbe na poesia de Vasco de Graça
Moura”, in VI Congresso Nacional Associação Portuguesa de Literatura Comparada / X Colóquio de
Outono Comemorativo das Vanguardas-Universidade do Minho 2009/10, in http://ceh.ilch.uminho.
pt/publicações/pub_jose_martins.pdf (consultado em 3 Setembro 2013); José Manuel Ventura, “A tradição
sempre renovada em sombras de Aquiles e Pentesileia de Vasco Graça Moura”, in Virgínia Soares Pereira e
Ana Lúcia Curado (org.), A Antiguidade Clássica e nós. Herança e identidade cultural, Centro de Estudos
Humanísticos, Universidade do Minho, 2006, pp. 505-516.

112
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

singular da arte em que devíamos ver


o génio do artista mais do que imitá-lo.
mas que artista? para plínio eram três, hagesandros,
polidoro e atenodoro de rodes, os agentes daquela perfeição.
e o que é que poderia imitar-se: a dor humana? a contenção do
[desespero?

a humanidade dilacerada que os antigos tinham sabido exprimir?


e era então que ele escrevia, sob a candeia bruxuleante e as sombras
devoradoras do mundo, transpondo o que devia ser transposto,
mudando o que tinha de ser mudado.” (PR2, 369-370)

À medida que o poema flui, toma significativa importância a energia vibrante


dos movimentos representativos do braço de Laocoonte, que originam as mais
diversas interpretações, prova cabal dos múltiplos e ricos sentidos suscitados. De
novo, o exercício ecfrástico assume um lugar de charneira nos versos do poeta
contemporâneo; a expressividade haurida na obra escultórica, interpelativa pela
pluralidade de planos, provém do pathos doloroso que se prolonga na palavra. A
descrição realiza-se pela acumulação de pormenores (v.g., “o braço se flectia, / em
direcção à cabeça”), espécie de glosa da figura em si, que acaba por traduzir um
retrato de mundividência e da existência pelas constantes interrogações: “a dor
humana? A contenção do desespero?”.
Com efeito, o sentido da arte provém da monumentalidade escultórica da figura
humana, numa escala imponente, onde se distingue a intensidade da dor que elas
exprimem, bem como o apurado detalhe fisionómico, símbolo supremo da beleza
estética. A extraordinária visualidade poética, resultante de uma construção
deliberadamente culta, encerra conceitos e conhecimentos da história de arte e da
literatura numa trajectória que se renova numa peculiar linguagem plástica. Na
realidade, a escrita do autor de ariadne em naxos é ostensiva e provocatória,
abertamente contaminada, experimental, construída sobre a ironia e a
multiplicidade das alusões explícitas. Nesta estratégia compositiva, tão do agrado
de poeta contemporâneo, saliente-se o segmento “candeia bruxuleante”, que tem
357
eco num célebre verso de Jorge de Sena: Uma pequenina luz bruxuleante .O

357
Jorge de Sena, “Uma pequena luz”, in Poesia II, Lisboa, Ed. Moraes, 1978, pp. 52-53. Registe-se ainda
que Graça Moura, na sua crónica semanal no Diário de Notícias em torno da conjuntura política em época
natalícia, apresenta o título homónimo ao do poema de Sena, bem como cita um passo desse texto: “Apesar
de tudo, as pessoas não deixam de se agarrar a ‘uma pequenina luz bruxuleante’, como diria Jorge de Sena”
(Cf. Vasco Graça Moura, “Uma pequenina luz”, in Diário de Notícias, 26 Dezembro 2012, p. 54.

113
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

sentido de luz que emana do verso de Graça Moura sugere o legado humanístico da
cultura greco-latina, “a humanidade dilacerada”, que chegou à actualidade358,
envolvendo o leitor numa viagem por uma vasta cultura contida nos versos.
A essa compulsiva enumeração não é estranha a Graça Moura a vontade, no seu
dizer, de “meter o mundo / num poema” (PR2, 371), onde, ainda nesta sequência,
os versos emergem de uma intertextualidade adensada de sombras, ao jeito de um
remate conclusivo:

“depois dos ventos da destruição, das catástrofes da ignomínia,


os vencidos não podem ser sacerdotes de apolo,
mesmo que, uma vez desenterrados,
de plínio a lessing sirvam para se falar das artes.

ficamo-nos por um esforço, um olhar, um contraluz,


e acidentais subterfúgios e perorantes escólios,
colecções de coisas desgarradas”. (PR2, 372)

Graça Moura aspira a uma poesia plural, enquadrada numa recepção complexa
que presta um inequívoco tributo à tradição. Um forte sentido histórico interpela,
pois, os desígnios da humanidade, envoltos em “ventos da destruição” e
“catástrofes da ignomínia”, ou seja, os sacrifícios e os sofrimentos infligidos ao
homem, consubstanciados na sua própria essência contraditória, numa consciência
amargurada e desolada de um olhar que dá conta do sofrimento humano.
Este diálogo interartístico está patente também no seguinte texto inserido na
série poemática tercetos do aleijadinho, cujo verso inaugural evoca claramente o
conhecido incipit de ela canta pobre ceifeira359, da autoria de Fernando Pessoa,
tendo subjacente a consciência de si mesmo no momento do acto criativo:

“ele dorme, pobre ceifeiro, quando


a goiva e o formão
lhe encontraram
o corpo circunscrito sob
o lenho supérfluo.[…]

dorme no seu anonimato, não

358
Nesta ordem de ideias, Rosa Martelo preconiza: “Hoje, a poesia portuguesa mantém-se frequentemente
em diálogo com a tradição poética e artística (através da citação, da reformulação ou da ekphrasis) muitas
vezes associando esse diálogo a um processo de evocação que se combina com um efeito de realismo e um
registo lírico” (Rosa Martelo, Vidro do mesmo vidro: tensões e deslocamentos na poesia portuguesa depois
de 1961, loc. cit., p. 48).
359
Fernando Pessoa, Poesias, Lisboa, Ed. Ática, 41952, pp. 110-111.

114
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

vai enlevado para


parte nenhuma

seu corpo se fez sono


e deus, ou seja,
a palavra poética

ao fim de tudo, é uma


questão de técnica
e de melancolia”. (PR1, 310)

O eu lírico deliberadamente afasta-se do paradigma pessoano; ao invés de evocar


a “pobre ceifeira”, canta o “pobre ceifeiro”, que dorme. O estaticismo da figura
contrasta com o dinamismo da goiva e do formão que dá forma à estátua de
madeira, descrita numa deliberada plasticidade. Com efeito, a escultura configura
um ponto de intersecção entre movimento e repouso, o que explica o seu singular
poder expressivo. Por outro lado, o poema é minuciosamente construído verso a
verso, num labor análogo ao esculpir de um bloco de madeira. Nesse processo in
fieri, a dimensão artesanal da escultura é, pois, similar à criação lírica, porque como
conclui o sujeito de enunciação, “a palavra poética // ao fim de tudo, é uma /
questão de técnica / e de melancolia”.
No entanto, no que diz respeito à escultura, a malha intertextual tecida
multiplica-se; deste modo, o poeta apreciador de artistas contemporâneos, dedica o
poema o anjo de ferro a José Aurélio:

“um anjo de metal pousou adrede


na gaze ou na quadrícula de um mapa.
vista de perto, a gaze é uma rede
e as asas do anjo são de chapa.

visto de perto, o anjo é todo em ferro


e entre hélices girando se transtorna
a figura rangente no seu berro
e é martelo no vento e é bigorna.

vulcano o engendrou”. (PR2, 276)

Como se observa, a centralidade da vertente escultórica insere uma deliberada


intenção verbal. O anjo, elemento espiritual, distingue-se pela sua dimensão
plástica que o eu lírico procura desenhar em novas expressões artísticas. Na
verdade, o poeta, que em tom transgressivo às proposições épicas da Eneida e de

115
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

Os Lusíadas, enuncia “canto o rebite, o cravo, a dobradiça / a luz coada junto das
limalhas” (PR2, 275), debruça-se sobre a minuciosa descrição de “um anjo de
metal”, destacando a matéria de que é feita a sua obra artística (“rede”, “chapa” e
“ferro”), que, sob o signo da metamorfose, são trabalhos executados pelo
“martelo”, pela “bigorna” e pelo fogo, simbolizado na metáfora de “vulcano”.
Assim, este projecto performativo afirma-se e depura-se na transfiguração estética
marca distintiva de Graça Moura360.
Mas o diálogo profícuo com a mundividência de José Aurélio estende-se
também a outros textos:

“agora eu olho este pequeno objecto de metal,


esta maquete de josé aurélio, para um monumento
ao 25 de abril, e ocorre-me o cesário”. (PR2, 290)

Como se verifica, a concepção da harmonia escultórica entendida como um


monumento assinala uma celebração colectiva. Além disso, o “objecto de metal”
convoca Cesário Verde, que, neste contexto, é uma metonímia da poesia,
estabelecendo, assim, uma relação próxima entre as duas artes.
Esta riqueza dialógica surge reiterada no seguinte poema:

“tartarugamente sobre
a peça que aurélio à mão
com berbequim e formão
faz de casca lenta e pobre
que eu tinha em casa no chão:
fendas feitas, se descobre
de um e de outro lado o vão
e a carcaça em pé, mais nobre,
com bolas em posição”. (PR2, 282)

A concretização artística realiza-se pelo labor artesanal da “peça que aurélio faz
à mão”. O curioso neologismo “tartarugamente” sugere o trabalho lento e aturado
que está na base desta permanente reflexão do fazer escultórico, que, em crescendo,
toma forma: “se descobre /… a carcaça em pé”.

360
Face a esta asserção, Graça Moura sobre a referida colectânea afirma: “Alguns dos poemas explicam-se
exactamente por procurarem transmitir essa impressão, ligada ao ofício, à artesanalidade, ao habitat da
criação, ao combate com as formas e ao engendramento delas. Outros, surgiram directamente da
contemplação das peças, procurando eu que o texto funcionasse como uma modalidade da sua representação
verbal, isto é, ecfrástica” (PR2, 565).

116
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

Assim, este texto pleno de expressividade, como muitos outros de Graça


Moura, concretiza-se através de determinados procedimentos, materiais, formas de
percepção, que sintetizam a essência da arte escultórica.
Como se verifica nos seus versos, Graça Moura aprecia e conhece como poucos
a obra do escultor, como faz questão de mostrar no paratexto a variações
metálicas361:

“O que mais me impressiona na obra de José Aurélio é a sua enorme versatilidade. Da madeira
ao ferro, da pedra ao plástico, do vidro à cerâmica e a outros desvairados materiais, o escultor
utiliza uma linguagem específica, uma humildade artesanal e uma força articuladora da descoberta,
uma simbologia e uma relação com o espaço e os elementos naturais, que creio serem únicas no
panorama das nossas artes.” (PR2, 563)

Neste contexto, José Rodrigues, outra figura contemporânea marcante, é trazido


à colação362; com efeito Graça Moura, no seu continuado processo ecfrástico,
descreve uma estátua de bronze do referido artista em o caderno da casa das
nuvens, a última colectânea poética publicada em vida:

“ó anja, ó mensageira de uma outra dimensão


que estás aí de sentinela, aos quatro ventos,
premeditas que vão interpelar-te a lo divino?
não. ah, não. perguntem ao zé rodrigues que te fez.
na tua equanimidade, cintilas porque ambos esses modos
te deixam indiferente
e o teu corpo de bronze irá polindo as horas
e nesse espelho delas se perfaz
o calendário da alma.
deixa-me olhar mais uma vez o rio
que vai lá muito em baixo
e para que rasga bucólico o terraço,
ó anja, que estás aí, nesse ângulo de relva
entre as hortênsias, dentro e fora do tempo,
talvez de guarda ao caminho de pasárgada.
esta casa das nuvens é assim,
engendrada para os doces enlevos e as fundas

361
Cf. Teresa Carvalho, “Quando as oficinas se encontram: uma leitura de variações metálicas de Vasco
Graça Moura”, in Revista Românica, nº 16, 2007, pp. 185-201.
362
O narrador de Naufrágio de Sepúlveda a dado passo anuncia: “E depois tive de ir ao Porto de fugida e
aproveitei essa rápida ida ao Porto para ir ver a exposição de José Rodrigues. Eram mais de quarenta
desenhos de grandes dimensões, executados a carvão sobre um papel de tonalidade acastanhada, o que lhes
dava clarões e sombras de um diálogo imemorial e fulgurante com o tempo e os mitos” (Cf. Vasco Graça
Moura, Naufrágio de Sepúlveda, loc. cit., p. 143).

117
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

respirações da alma,
com sombras, árvores, pássaros, arbustos,
desníveis e ruazinhas
e sebes e jardim
e o sol e o vento do costume
e o rumor de água que corre.
é onde uma arte poética enlaça uma arte de viver
num remanso com cestas de rosas, cachos de uvas, folhas
de vides entrelaçadas
e o pronto acolhimento da ternura e a pax idyllica
a enovelar as nuvens que lhe pairam no nome
para embalar, ó anja, o teu convívio ameno.” (PR2, 500)

O título do poema, homónimo da invocação inaugural “ó anja, ó mensageira”,


constitui o núcleo central dos versos, e o pretexto descritivo da peça no jardim da
casa do amigo Miguel Veiga.
O trabalho figurativo materializa uma cabal síntese da poesia de Graça Moura,
uma vez que, em boa parte, é o corolário dos processos do poeta na construção da
sua escrita, o que permite descortinar algumas informações de particular interesse
para definir o seu perfil cultural. A experiência lírica da descrição enumerativa,
convertida num todo indivisível, consubstancia-se no seu carácter panorâmico, uma
vez que se estende e multiplica para além da estátua, indo dos planos amplos aos
restritos, ou seja, do rio que “vai lá muito em baixo” ao espaço exterior da casa363.
Este cenário comporta num certo paganismo, uma vez que o elemento divino não
tem razão de ser, como destaca o poeta; o que se torna fundamental é a
contemplação de um abrangente cenário de extrema beleza: “a pax idyllica”. Por
outro lado, ao aliar a precisão lexical e a captação de uma atmosfera bucólica,
comprovadas, por exemplo, em “esta casa das nuvens é assim, / engendrada para os
doces enlevos e as fundas / respirações da alma, / com sombras, árvores, pássaros,
arbustos”, o sujeito poético desenha uma poética singular onde não faltam as
naturezas mortas: “uma arte poética enlaça uma arte de viver / um remanso com
cestas de rosas, cachos de uvas, folhas / de vide entrelaçadas”. O objecto estético
surge como um reflexo das emoções do poeta e do seu modo de sentir e entender o

363
Graça Moura dá conta desse propósito quando afirma: “certas palavras, certas ideias e certas imagens são
retomadas com efeitos diferentes de modo a articular com mais força a almejada unidade de conjunto, […]
no quadro da paisagem que se vive e se avista de uma casa alcandorada sobre a margem sul do rio Minho, e
por entre as nuvens reais e metafóricas que vão do nome da própria habitação aos céus galegos e minhotos e
aos ares atlânticos empurrados pelo vento oeste” (PR2, 570).

118
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

mundo. A transmutação do domínio visual para o domínio verbal configura, pois,


determinados actos de leitura assentes numa poética de forte conotação cultural
intrinsecamente associada à criação artística.
Conhecedor também da arte popular portuguesa, evoca Rosa Ramalho, uma
referência incontornável dos mestres barristas nacionais, por uma poesia filtrada
pela memória sugerida pela alusão temporal: “há muitos anos”.

“há muitos anos, numa feira de loiça,


rosa ramalho deu-me um dos seus bonecos
de barro […]

pequeno monstro
mágico, das suas metamorfoses

ingénuas fez-se pó. é o destino dos monstros


populares e dos outros, no
barro de que são feitos”. (PR2, 30)

O título deste texto – a explosão da imagem – plasma o fascínio pelo fazer da


Rosa Ramalho, das “metamorfoses // ingénuas”, com um sentido melancólico
decorrente do lexema “pó”, símbolo barroco da finitude humana com o qual o autor
joga para lá dos desígnios figurativos.
Mas as referências a esta arte não são apenas de cariz popular; não deixa de
destacar o labor multifacetado de José Rodrigues, por quem nutre um particular
fascínio:
“Queria descalçar-te no relvado […] como se, entre a brisa e as surdinas, escutasses um blues a
acidular de leve o fim da tarde, a envolver os mitos modelados nos barros do Zé Rodrigues, a
misturar-se com tantas vozes, tantos gestos, tantas formas”. (PR2, 325)

Os elementos verbais presente na iconografia da mundividência ceramista


afirmam-se, também, numa energia nova a partir, como é recorrente em Graça
Moura, da sua experiência do quotidiano:

“com palavras tentei, artesanal, o que não fiz na roda


da olaria: usá-las, modelá-las, prendê-las
na sua rotação, e guardar nelas vinho, azeite, pão e água,
pô-las ao lume aceso e misturar paladares,
matar a fome e a sede, fazê-las ressumar
da agreste consistência do mundo
com a sua argila imaterial, aquela sua
sonora precariedade”. (PR2, 367)

119
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

O sujeito poético enfatiza, no discurso literário, os valores plásticos que o barro


possibilita pela sua capacidade sugestiva, bem como o labor do oleiro na sua
técnica e nas raízes actualmente perdidas. Neste diálogo entre o discurso poético e
a arte, de novo a materialidade de argila sugere “sonora precariedade”, metáfora do
grito lancinante da consciência humana face à iminência da morte.
Com uma notável capacidade de modernizar e humanizar a matéria mitológica, o
poeta, que anuncia peremptoriamente “eu cá transformo tudo em literatura” (PR1,
455), traz à colação, em sombras com aquiles e pentesileia, um quadro da
Antiguidade. Segundo a tradição, Aquiles vence em combate Pentesileia, bela e
destemida amazona; no entanto, no momento em que a mata, o olhar de ambos
cruza-se e o impulsivo guerreiro apaixona-se pelo encanto da sua opositora.
Exéquias, célebre oleiro grego, deixou este momento para a posteridade:

“era preciso dilatar o apartado instante


a escapar-se da ânfora da vida
como exékias, o oleiro, os representa, ele aflito
sustendo o corpo dela, que flecte e desfalece
na curva superfície do barro. são estas as negras
alucinações do poema, quando
violência e paixão o dilaceram
na passagem das palavras à morte.” (PR2, 167-168)

Graça Moura, como se verifica, faz dos seus versos um lugar de cultura, na
incessante procura da novidade; explora, pois, a figuração mitológica concebida,
nascendo a motivação poética, nascida do olhar, da capacidade interpretativa do
trabalho do famoso pintor364. A sugestão imagética da “curva superfície do barro”,
potenciadora de uma enunciação similar ao próprio jogo poético, possibilita a
teatralidade e a plasticidade suscitada pelo quadro mitológico. A capacidade de
apreensão da essência da vida, colhida nos momentos finais de Pentesileia e
sugerida pela metáfora “o apartado instante // a escapar-se da ânfora da vida”,
reflecte um momento psicológico fulcral no mito. A força dramática dos gestos de
Aquiles, grito dilacerante de angústia e desespero, proporciona uma cadência
rítmica, aproveitada nestes versos com conseguida harmonia: “ele aflito/sustendo o
364
As descrições mitológicas de Exéquias, um dos mais notáveis pintores de Atenas, são consideradas uma
das matrizes da pintura ocidental (Cf. Maria Helena Rocha Pereira, Estudos de História da Cultura
Clássica-Cultura grega, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 92003, p. 629).

120
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

corpo dela, que flecte e desfalece / na curva superfície do barro”. O vaso


enunciado, proveniente de Vulci e actualmente no Museu Britânico, como o autor
faz questão de informar em nota informativa (PR2, 178)365, coloca em evidência a
conexão entre a palavra e a imagem, numa clara aproximação recorrente à poesia
ecfrástica366. Deste modo, as representações fixadas pelo oleiro são similares a esta
representação literária, como reconhece o sujeito poético: “são estas as negras /
alucinações do poema”.
As imagens aduzidas, hauridas em matrizes culturais diversas e tratadas pelo
modo transfigurador das artes visuais dedicadas ao corpo, sintetizam, assim, a
construção de uma riquíssima mundividência poética. Na realidade, o processo
compositivo enunciado nos versos referenciados, apelativo dos sentidos, sobretudo
visuais, permite ao leitor uma fecunda interpretação imaginativa.
Com efeito, o valor estético das figuras, quer sejam criadas em pedra, barro ou
madeira é idêntico, visto que elas não são mais do que um constructo humano, onde
as particularidades anatómicas resultam do trabalho incessante do artista.

1.7. O gosto melómano do poeta

Graça Moura, no seu amplo diálogo com as mais diversas artes, estabelece uma
relação privilegiada também com o universo musical367, concedendo singulares
linhas de força aos seus versos. Este espaço de abertura só é possível, segundo
Aguiar e Silva, graças à natureza aberta do polissistema literário, que contém regras
e convenções legitimadoras das inter-relações formais e semânticas da literatura
com outras linguagens, pelo que é abusivo falar em envolvimento intertextual do
texto literário com um determinado texto pictórico ou musical 368. Por seu lado,

365
Refira-se a propósito que, no Museu de Munique, existe também uma pintura num vaso sobre este mito
da autoria do designado Pintor de Pentesileia, que é considerada a sua obra-prima (Cf. Idem, ibidem, p. 633).
366
Graça Moura assume de um modo explícito particular predilecção por este género de poesia, como refere
num artigo precisamente intitulado “O que farei com esta écfrase?”, in Os Meus Livros, Julho de 2002,
pp. 86-87.
367
Exemplo elucidativo desse fascínio é Orfeu canta, antologia que apresenta poemas dedicados à música de
Adolfo Casais Monteiro, António Ramos Rosa, Camilo Pessanha, Jorge Sena e Eugénio de Andrade entre
outros. Deste modo, a referida colectânea integra três textos de Graça Moura: prelúdio nº 8, o suporte da
música e schubert (Cf. José da Cruz Santos (org.), Orfeu canta. Pequena antologia da poesia portuguesa
sobre música, Porto, Ed. Modos de Ler, 2014, pp. 56-59).
368
Vítor Manuel Aguiar e Silva, Teoria da literatura, Coimbra, Livraria Almedina, 41982, p. 597.

121
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

Cesare Segre propõe o termo interdiscursividade para designar as conexões que um


texto literário estabelece com outras manifestações artísticas369. O autor de
concerto campestre, com uma formação de recorte musical, é o que se pode chamar
um melómano, quando declara: “Bach, Mozart e Schubert são os meus
compositores preferidos, muito embora agora ande voltado para Brahams,
Chotakovitch e Scriabine”370. Dito isto, esse universo não é fortuito, como se
observa nos títulos de obras ou poemas onde é notória a enorme erudição do
autor371. Dois exemplos ilustrativos, entre muitos outros, são os seguintes: a
narrativa As quatros últimas canções372, evocativa da obra homónima de Strauss, e
a estrutura da obra lírica A sombra das figuras (PR1, 303-362), que evolui como
uma fuga, uma interpretação musical celebrizada por Bach373.
Assim, a arte dos sons, uma das mais disseminadas no universo criador de Graça
Moura374, assume uma especial relevância, como o próprio assinalou, que deu por
ele a
“corporizar, embora carregado de livros, todo um conjunto de alusões musicais, nomeadamente
as minhas preocupações de encontro, de estruturas literárias correlativas de certos processos
contrapuntísticos… Estes aspectos, de pesquisa contrapuntistica e da problemática da
representação, já prenunciados na nota platócina e em certos processos de camera obscura do meu
livro nó cego, o regresso (1982), predominam em a sombra das figuras (1985) que Gérard tomou
como ponto de partida quer para o retrato, quer para as restantes imagens que apresentou”.375

A música, pedra angular da sua obra, como se observa, ocupa um papel crucial
neste passo, onde, numa espécie de construção orquestral, o ruído confunde-se e

369
Cesare Segre, Teatro e romanzo. Due tipi di comunicazione letteraria, Torino, Ed. Einaudi, 1984, p. 111.
370
Cf. Rodrigues da Silva, “Ele não é tão mau como isso”, in JL. Jornal de Letras, Artes e Ideias, 7 Junho
1995, p. 16.
371
Dando relevo a esta dimensão estruturante, o autor coligiu e publicou os textos que considera mais
significativos neste domínio (Cf. Vasco Graça Moura, Musa da música, Lisboa, Ed. Asa, 2002).
372
Vasco Graça Moura, As quatro últimas estações, Lisboa, Ed. Quetzal, 22009.
373
Vieira Nery sublinha os conhecimentos musicais de Graça Moura: “E para alguém que não tinha uma
formação técnico-musical especializada, demonstrava um conhecimento surpreendentemente aprofundado
dos autores e das obras com quem mais se identificava, para lá de dominar com uma segurança
impressionante, por exemplo, a tratadística da estética musical medieval e renascentista.” (Rui Vieira Nery,
“A divina proporção”, in JL. Jornal de Letras, Artes e Ideias, 14 Maio 2014, p. 11).
374
Vgm, consciente do fecundo diálogo da música e da poesia apresenta criticamente uma notável
perpectiva diacrónica sobre essa matéria: “Escrever poesia a propósito da música é uma prática muito antiga.
Talvez em dante encontremos uma das mais vastas capacidades de o fazer. Nota Mimi Stillman que
estridência e a dissonância caracterizam o Inferno, enquanto a harmonia das esferas é própria do Paraíso
realizando-se no Purgatório a ponte musical entre a anti-música do Inferno e a música celestial do Paraíso.
De resto o Purgatório é o lugar onde Dante coloca os artistas, que acabarão, portanto, por se salvar, uma vez
espiados os seus pecados (Vasco Graça Moura, “Poesia da música e música da poesia: uma experiência
pessoal”, in Discursos vários poéticos, op. cit., p. 498).
375
Cf. Gérard Castello Lopes, Vasco Graça Moura, Em demanda de Moura = a la recherche de Moura;
Giraldomachias = Gerardomachies, loc. cit., p.116).

122
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

funde-se nos sentidos. Com efeito, a arte dos sons representa uma matriz de
questionação existencial de significativa e explícita importância, que faz da
dimensão musical a matéria da sua poesia:

“a experiência
da música restitui-nos a origem e o destino,
entre o trágico, o patético, o consolante,
o redentor, e a dimensão de um outro,
de um talvez outro conhecimento…”, (PR2, 17)

Com uma forma marcadamente intimista, a música, “exercício da alma” 376, é


sempre tratada como uma vivência, que oscila entre a angústia e o consolo
apaziguador, em demanda doque existe nela de celebração. Com efeito, nesta
conjugação com o lirismo radica a célebre formulação quinhentista de António
Ferreira: “As artes entre si se comunicam”377.
Esta atracção encantatória, cuja descrição ecfrástica se estende à música,
transparece mediante uma expressividade a que não são alheias preocupações de
natureza introspectiva378. Os versos de Graça Moura não constituem, pois, meras
descrições de formas musicais; ao invés, retomam uma tradição especulativa e
cultural da poesia portuguesa. Esta envolvência configura um significativo
testemunho de sentimentos e emoções, na busca de uma linguagem inovadora,
como se pode ler nestes sugestivos versos:

“o sublime é melancólico,
a respiração se sustém e a
alma se obscurece porque entende
a vibração de analogias e contrários.

disto se faz o entendimento da música


por dentro da ansiedade das palavras”. (PR2, 198)

O eu lírico aproxima a experiência musical da experiência do sublime, o que há


de mais alto no espírito humano. De uma forma sucinta e clara, como é seu
apanágio, o autor apresenta uma admirável formulação de poesia: feita de palavras,
ela assenta, em primeiro lugar, na sua musicalidade, concretizada na tensão gerada

376
Cf. Óscar Lopes, Uma arte de música e outros ensaios, Porto, Ed. Oficina musical, 1986, p. 29.
377
António Ferreira, Poemas Lusitanos, loc. cit., p. 322.
378
A este propósito, Graça Moura quando fala dos seus textos sublinha a “exploração de relações mais ou
menos estruturais e contrapontísticas com processos de pintura e da música” (PR2, 102).

123
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

na “ansiedade das palavras”, concepção que atravessa a sua obra e constitui um


traço distintivo inovador, visto que, no dizer de Ricardo Nunes, “a mais recente
poesia portuguesa mantém a tradição de diversidade e singularidade que a marca
desde os finais dos anos 60”379.
Deste modo, o emprego frequente do lexema música reveste-se de particular
significado, visto que o valor polissémico e a comunhão com a poesia surgem com
peculiar sentido. Além disso, não são também alheios os afectos, presentes no belo
poema o suporte da música:

“o suporte da música pode ser a relação


entre um homem e uma mulher, a pauta
dos seus gestos tocando-se, ou dos seus
olhares encontrando-se, ou das suas
vogais adivinhando-se abertas e recíprocas,
ou dos seus obscuros sinais de entendimento,
crescendo como trepadeiras entre eles.
o suporte da música pode ser uma apetência
dos seus ouvidos e do olfato, de tudo o que se
ramifica entre os timbres, os perfumes,
mas é também um ritmo interior, uma parcela
do cosmos, e eles sabem-no, perpassando
por uns frágeis momentos, concentrado
num ponto minúsculo, intensamente luminoso,
que a música, desvend

ando-se, desdobra,
entre conhecimento e cúmplice harmonia.” (PR2, 56)

Estes versos colocam a tónica na relação dinâmica entre a poesia e a música, que
“é também um ritmo interior, uma parcela do cosmos”, como alude o sujeito de
enunciação. O que marca indelevelmente estes versos é a sugestiva convocação
para uma viagem rítmica, representada entre o individual e o universal, que enlaça,
simultaneamente, a sua sensibilidade com o significado profundo dos estilos
musicais380. A solicitação da música, pela sua riqueza e complexidade, que

379
José Ricardo Nunes, 9 poetas para o século XXI, Coimbra, Ed. Angelus Novus, 2002, p. 7.
380
A produção narrativa de Graça Moura concede uma particular atenção a interpretação de peças,
reveladoras do seu gosto musical. Veja-se, por exemplo, este passo, quando o narrador de Naufrágio de
Sepúlveda visita uns amigos: “Pelas seis da tarde, subi no elevador ronceiro de um prédio confortável da
Rua dos Navegantes, onde, por sinal, vivem dois amigos meus, e fui introduzido pela criada silenciosa numa
sala em que se ouvia o segundo andamento da sonata em dó maior de Brahms, no lirismo discreto das suas
variações sobre uma canção popular antiga, um Minnelied. Não gosto muito de Brahms, foi um compositor
que nunca conseguiu atingir o sublime, que apenas soube limitar-se a ser muito competente, só Bach e

124
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

acompanha e modula a vida, afigura-se estímulo e objecto de escrita; a tessitura


discursiva assume um carácter impressionista pelas reflexões suscitadas, onde o
sortilégio da palavra poética reside precisamente para fazer sentir e fazer pensar.
Estabelece-se, pois, um pacto, deixando transparecer uma relação fundada em laços
de grande cumplicidade e espiritualidade, como se pode inferir desde logo a partir
do título, convocadores de um universo umbilicalmente ligado à música.
Assim, esta continuidade está também presente em schubert, D 960381:

“há uma melodia que habita rente às palavras e


sai do que as prende à morte. a terra é coruscante e melancólica
como a juventude doente. saber tudo isto em surdina,
numa espiral de saudades a que se deu ouvidos.

ah, coração ingénuo, coração aluado


nos bosques do entardecer, na terra de ninguém.
flutuas na agonia, ficaste um cão de rumos tristes,
um focinho de sangue aveludado no caderno

diário das paixões, quando a música exprime tão densos


remorsos vagabundos de viver assim
e tudo pode ser singelo, furtivo e lancinante
como uma oliveira a arder por dentro do seu silêncio.” (PR2, 392)

A experiência íntima deriva de uma multiplicidade de sentimentos que se


cruzam. O poeta não é indiferente à melodia; além das referências musicais
também os processos ajudam a definir uma musicalidade peculiar nos seus versos.
Assim, a interjeição “ah”, a abrir a segunda estrofe, e a construção assindética,
estimulada pelo encadeamento frásico, representam um ritmo próprio e um sentido
criador. Esta relação interartística fortalecida atinge um momento de rara mestria
pelo lirismo indagador que preserva as recorrências especulativas e o
conhecimento, marcas indeléveis da poesia de Graça Moura.
Uma vez que a poesia é “música do sentido”, no dizer de Gastão Cruz382, estes
versos adensam o mistério existencial, sendo bem significativo neste contexto o
seguinte poema:

Mozart, Beethoven e Schubert, fizeram algumas experiências do sublime e da sua rarefacção na área da
indicibilidade pura” (Cf. Vasco Graça Moura, Naufrágio de Sepúlveda, Lisboa, Ed. Quetzal, 1988, p. 53).
381
Graça Moura dedica dois poemas a esta sonata para piano nº 21 de Schubert; ao texto acima transcrito,
segue-se um segundo também de grande beleza que começa deste modo: “olha a sombra os álamos, perpassa
/ nas águas do espelho desolado, quando o vento / se enrola assim na roda de fiar. / escuta lá fora o realejo
das misérias do inverno” (PR2, 393).

125
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

“caminhas neste andamento levemente musical.


caminhas dentro da minha cabeça,
enquanto cai uma chuvinha melancólica
e eu estou numa pastelaria de campo de ourique,
e tomo estas notas, meio atordoado,
a ver-te caminhar dentro da minha cabeça
con che soavità.” (PR2, 554)

Nos versos inaugurais, a anáfora “caminhas”, que concentra uma forte carga
passional e expressividade rítmica, bem como as emoções do sujeito poético, “meio
atordoado” face a um tu “con che soavità”, intertexto de um poema de Giovanni
Battista Guarini, presente num madrigal de Claudio Montverdi, de que resulta uma
simbiose entre música e poesia.
No entanto, a resignação face às vicissitudes da vida convoca referências
musicais que corporizam a indignação em o sentimento dum ocidental:

“nós que sofremos de mazelas crónicas


tão ocas como um stradivarius
e da apatia febril das mnemónicas
circenses de requintes culinários

gostamos de basófias filarmónicas


de pompas fúnebres do ar dos funcionários
públicos e suportamos as mazelas crónicas”. (PR1, 34)

No confronto do real, o texto encerra em si um carácter colectivo, que veicula


“mazelas crónicas”, traz à liça a esfera musical: a caixa de um “stradivarius” e as
“basófias filarmónicas”383. Os signos disfóricos – “sofremos”, “apatia”, “pompas
fúnebres” – são reforçados com o “ar dos funcionários públicos”, ironia prosaica à
maneira de Alexandre O'Neill, a lembrar as expressões “dia burocrático” ou “o
modo funcionário de viver” em Um Adeus português384. Produto de constantes
tensões, sonhos ou contradições, a criação musical, marca indelével da nossa
condição humana, é, pois, neste livro uma janela que se abre sobre o mundo.

382
Esta expressão é extraída de um interessante artigo do autor, que faz uma sucinta resenha diacrónica da
relação entre poesia e música, desde as cantigas medievais até autores dos séculos XIX e XX. (Cf. Gastão
Cruz, “Música do som e sentido”, in A vida da poesia. Textos críticos reunidos, Lisboa, Ed. Assírio e Alvim,
2008, pp. 29-32).
383
A aproximação afectiva à música onde é possível encontrar um sem-número de ocorrências, que se
estendem dos géneros musicais, aos compositores ou ainda a instrumentos. Estes surgem a cada passo num
caleidoscópio de sentidos: lira, piano, guitarra e flauta. Aos géneros, o poeta dedica múltiplas ocorrências:
balada, rondó, madrigal, ópera, tocata, sonata. Os compositores, como foi exemplificado anteriormente, de
época e estilos diferentes, merecem-lhe também uma particular atenção.
384
Alexandre O’Neill, Poesia completa, Lisboa, Ed. Assírio & Alvim, 2001, p. 52.

126
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

Na mundividência musical, à variedade de instrumentos são trazidos à colação


com os mais diversos sentidos, comprovado nos versos de adágio op.7:

“de húngara ou cátara


iludes a evidência
tão rápida quanto
baste ver-te […]
de húngara ou cátara
ou música de câmara
ou artes do deserto”. (PR1, 48)

Assim, a aproximação do autor contemporâneo aos instrumentos constitui


motivo para explorar novos núcleos significativos. A música do mundo,
configurada em géneros diferentes, atesta a universalidade da arte dos sons e
conduz o leitor para um domínio carregado de notações simbólicas. A reiteração de
“húngara ou cátara”, em demanda de um gesto prosódico, que proporcionam a
inspiração do poema, possibilitam uma sinfonia íntima. A sugestão da analogia
musical, materializada nas vogais abertas dos lexemas “cátara ou rápida”, assinala a
possibilidade semântica das relações entre a poesia e a música, artes que, segundo
T. S. Eliot, têm a suprema faculdade de desvendar sentimentos e emoções385.
Esse diálogo impõe-se, de facto, como uma evidência:

“através de um murto de teixo,


violinos, clarinetes…
e o som parece sair
dos graciosos cupidos
sentados em derredor
a tangê-los, a tecerem
suas grinaldas de flores,
entres festões variegados
que irrompem de brancos vasos:
goivos, jasmins e lilases…” (PR2, 72-73)

O poema instaura, desde logo, a naturalidade musical saída dos “violinos” e


“clarinetes” no poema, intitulado viena do canaletto, que decorre dos elementos
florais matizados na linguagem típica da mundividência poética do Barroco, como
é o caso do segmento “o som parece sair/dos graciosos cupidos”. Esta música, por
assim dizer verbal, tem muito a ver com a sonoridade concreta das palavras, por

385
T. S. Eliot, “A música na poesia”, in Ensaios de doutrina crítica, Lisboa, Guimarães Editores, 21997,
pp. 92-93.

127
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

exemplo nos sons sibilantes de “goivos, jasmins e lilases” cujo referente é também
o mundo concreto. A ênfase concedida ao som da linguagem, destacada na própria
versificação, comporta uma deliberada dimensão auditiva da palavra, enriquecendo,
nessa influência mútua, a sequência semântica que encerra. Neste contexto, a
infindável percepção sonora mesclada por um contexto pictórico, partindo da
realidade, conduz à transcendência, testemunhada por um fazer poético alargado a
outros domínios artísticos.
A ligação profunda que sempre existiu entre Graça Moura e a música constitui
uma das suas mais duradouras paixões, como se pode ler no prefácio de Camões e
a divina proporção:

“No acaso de escrever estas linhas ao som do Agnus Dei da Missa solene de Beethoven (e
perguntando-me se o adágio do quinteto para dois violoncelos de Schubert não teria sido um acaso
ainda mais adequado à circunstância…) ocorre-me que tentar propor pistas para a parcial
decifração do poema corresponde ao aflorar de mais uma daquelas modalidades de esperança de
que a cultura, afinal, é a grande matriz e o único horizonte utópico concretamente humano.” 386

A sua pluralidade de interesses, com uma consciência histórico-musical,


derivada do conhecimento apreciável de música erudita387, leva o sujeito poético a
cantar:

“em cada sombra o tempo amadurece


mozart amadurece em cada canto
macias movediças as palavras
são éguas reluzentes e maduras […]

em cada sombra o canto amadurece


mozart insere-se nesse espaço ambíguo
entre a paz e a página onde as éguas ondas
musculosas andam

e se um fio de sono as prende e cerca


e em madeira longínqua as desenvolve
são tanto tempo branco tanto que
quem poderá dizer onde começam?” (PR1, pp. 21-22)

386
Vasco Graça Moura, Camões e a divina proporção, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1994,
p. 9.
387
Confirma, neste âmbito, a importância da música na sua poesia: “Só por via de uma noção alargada
poético podemos tentar descrever o efeito que provoca em nós uma peça de Bach ou Mozart, de Haydn ou
Schubert, de Beethoven ou de Mahler. E ligamos a cada um deles e ao seu estilo determinadas interpretações
e sentimentos que nos chegam a partir de uma audição da sua música, frequentemente contaminada (no bom
sentido) por informações de outra índole e por uma tradição ligada à própria escuta (Cf. Vasco Graça Moura,
“Poesia da música e música da poesia: uma experiência pessoal”, in Discursos vários poéticos, loc. cit.,
pp. 496-497).

128
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

A experiência da fruição musical tem simultaneamente uma dimensão espiritual


haurida na obra de Mozart, confirmando o diálogo entre ficção e composição.
Legitima ainda também a ressonância de elementos e recursos musicais dentro da
expressão lírica388, tocando uma rara sensibilidade:

“digo outra vez da substância triste:


oiço um quarteto de mozart e penso
de que outono de sons se faz mais denso
o silêncio da música. persiste
uma rosa de sons, uma explosiva
mas contida espiral dilacerada,
como se o mundo fosse apenas nada
e a rosa fosse a própria alma cativa”. (PR1, 498)

A meditação sobre o sortilégio da existência desencadeia-se pela escrita; num


processo estético singular, a metáfora da “rosa de sons” revela o seu poder
encantatório e possibilita um momento privilegiado de comunhão entre o poeta e o
mundo, proporcionado pelo convívio com a música clássica. Emerge, assim, um
efeito de audição da obra musical sobre o leitor, numa ligação íntima entre poema e
peça musical, uma vez que o leit motiv decorre de “oiço um quarteto de Mozart”.
A dinâmica interactiva entre artes dá conta de um fascínio recorrente causado pelo
classicismo vienense de Haydn, Mozart e Beethoven:

“releio um dos seus


versos: ‘toco Haydn num dia
sombrio’ e ouço ecoar algum fugaz
tempo di minueto de quase
risonha resistência,
delicadamente palaciano, mas
deixando entrever mais funda
a dimensão de angústias e
tristezas. e os seus graves direitos.
num dia sombrio, tomas trantrömer,
suponho, deve ainda escutar
haydn interiormente, como um lume
feito de sons perlados que se obstina
nas fronteiras e florestas
melancólicas do tempo humano,
tocar-lhe a mão séria por dentro

388
A este propósito, Graça Moura confessa “gostaria de ser recordado pelo meu apego à herança clássica e à
tradição viva da grande cultura europeia de todos os tempos, sobretudo nas formas dela que mais prezo, a
literatura, as artes plásticas e a música”. (Cf. Miguel Real et alli, “Vasco Graça Moura”, in Letras com vida-
-Literatura, cultura e arte, nº 2, 2º semestre de 2010, p.149).

129
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

da partitura, por dentro da


noção de liberdade, por dentro
de cada ressonância, por dentro
de cada recapitulação pianissimo, para
não capitular”. (PR2, 60-61)

Sob o signo de Orfeu, a lira de Graça Moura convoca os intertextos musicais de


Haydn e literários de Tomas Trantrömer, poeta que traduziu, como foi já
referenciado anteriormente. A enunciação denota uma reciprocidade, a partir da
qual o sujeito poético perspectiva o mundo e a si mesmo. Os lugares vazios que as
palavras preenchem são assim intensificados por ecos musicais que marcam uma
presença particular, exigindo ao leitor que saiba descodificar o valor semântico dos
versos. O poema desenvolve-se, em crescendo, terminando com a referência a
“partitura”, metáfora que impulsiona uma aproximação ao valor musical, pela
similitude de temas e disposição tipográfica, proporcionando, a um tempo,
compreender a poesia ou compreender a arte dos sons389.
Mas também outros compositores são referenciados no poema Leipzig, 21.3.97:

“as ossadas de johann


sebastian bach estão ali,
ao fim da nave,
sob uma placa de bronze
com o seu nome.
faz hoje, com a entrada
da primavera, trezentos
e doze anos que nasceu”. (PR2, 46)

O pensamento do sujeito de enunciação experimenta, nos passos transcritos,


variados sentimentos e emoções, configurando um acto poético que recebe o
estímulo dos modelos da ópera italiana390. Partindo da efemeridade, assinala a
transitoriedade humana e a imortalidade, consagrada pela obra genial do
compositor da Paixão segundo São Mateus. Deste modo, a dimensão celebrativa do

389
Este topos surge já no prefácio de Mallarmé ao seu poema Un coup de dés, pp. 3-4, in https://math.dart-
mouth.edu/doyle/docs/coup/scan/coup.pdf (consultado em 12 Janeiro 2015).
390
Alardeando uma invulgar erudição, Graça Moura aprecia criticamente Stabat Mater de Rossini, na
interpretação de Carol Vaness, Cecilia Bartoli, Francisco Araiza e Feruccio Furlanetto, sob a direção de
Bychko (Vasco Graça Moura, “Um Stabat Mater”, in Papéis de jornal. Crónicas, Venda Nova, Ed.
Bertrand, 1997, pp. 292-294).

130
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

texto amplia o seu poder evocativo, graça a uma atitude solene capaz de tomar o
pulso ao mistério da vida que o poeta nunca desiste de interpelar.
Como se observa, Graça Moura desenha uma forma de manifestação do
pensamento estético, que, neste contexto, amplia significativamente a experiência
fulgurante da palavra. Dotado de uma vasta formação cultural, convoca com
deliberada intencionalidade nos títulos dos poemas, ou no seu interior, obras,
compositores ou outros elementos sugestivos do imaginário musical, referentes que
se tornam motor de reflexão, ultrapassando um mero intuito descritivo para se
tornarem criação poética.
Veja-se a este respeito o seguinte poema:
“e esse acorde importante do scher-
zo opus 31 chopiniano
e as dentadas nasais que dá um preso
à cauda abreviada do piano”. (PR1, 70)

O texto poético vincula-se através de uma relação primordialmente crítica à


prática artística, onde Chopin é um ponto de referência privilegiado num itinerário
em demanda da experiência auditiva, sugerida pela sinestesia “dentadas nasais”.
As alusões sucedem-se, como o poeta faz menção:

“shubert, recorda-se? modulava


comovido; desde o primeiro livro que escrevi
que falo em schubert, devo andar a imitar-me.” (PR1, 167)

De facto, o eu lírico canta de forma explícita esta tendência de recepção musical


de Schubert391, recorrente em Graça Moura, ao estabelecer uma profunda ligação,
cria nos versos do poeta uma singular dimensão metapoética, que permite novos e
inovadores horizontes interpretativos. Na verdade, a questão fundamental reside na
procura da expressão de uma relação verbal com outras expressões artísticas que
não se situa estritamente na esfera da palavra.

391
Fernando Matos Oliveira elege, na antologia crítica da poesia portuguesa do século XX, Século de Ouro,
o poema a viagem de verão (PR2, 215), da autoria de Graça Moura, cujo Der Lindenbaum (A tília) de Franz
Schubert, como nota o crítico, encerra a resposta às questões que o incipit poema levanta. Registe-se que
este arranjo para piano se insere num ciclo musical, composto em 1827, por Schubert sobre poemas de
Wilhelm Müller, e, segundo o próprio compositor, tratava-se do seu preferido (Cf. Osvaldo Silvestre e Pedro
Serra (org.), Século de Ouro. Antologia crítica da poesia portuguesa no século XX, Ed. Cotovia, 2002,
pp. 451-457).

131
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

As opções literárias enunciadas assumem um claro sentido dinâmico na


revalorização crítica e selectiva de uma herança poética e cultural, preconizado
pelo classicismo modernista de T. S. Eliot392. A atitude enunciada não se confina,
pois, à mera produção textual; ela modela, como se mostrou, uma estreita relação
entre a literatura e música. Assim, é determinante para a compreensão da poética do
autor do fado vulgar a teia de relações que estabelece com os outros, os processos
de que se reveste essa relação e o modo como se opera essa concretização.
Neste processo contínuo de depuração, numa poética que não se pretende
somente refractária das referências musicais, veja-se:

“ariadne dispõe-se agora a repousar


no ciciar de algum mestre de música.
e talvez tenha ido ter a bombaim

à procura de alguma zerbinetta, fiquemos por


aqui: o lieber dr. strauss confessava a hugo von
hoffmanstahl nutrir deveras uma
antipatia nata por todos os artistas,
em especial compositores,
poetas e pintores, metidos
nos dramas e romances”. (PR2, 18)

Ariadne em Naxos, a ópera mais famosa de Richard Strauss leva Graça Moura,
com um cariz irónico, a evocar algumas das suas personagens: “ariadne”, “mestre
da música” ou “zerbinetta”. Além disso, refere ainda o ponto de vista do
compositor em relação à referência a artistas no universo ficcional, a Hugo von
Hofmannsthal, o autor do libreto da referida ópera. Registe-se que, a partir da peça
Jacob e o Anjo, da autoria de José Régio, Graça Moura escreveu o libreto Bankters,
texto de uma ópera tragicómica encenada por João Botelho, com música de Nuno
Côrte-Real, estreada no Teatro de São Carlos, em Março de 2011. Excertos dessa
ópera, enquadrada na Temporada Darcos 2015, foi motivo de uma homenagem a
Graça Moura, em Abril desse ano, em Torres Vedras. Também no Centro Cultural
de Belém, quando passou um ano sobre o falecimento de Graça Moura, em 27 de
Abril de 2014, a ópera de câmara enunciada, dirigida pelo maestro Pedro Teixeira,
subiu à cena em dois espetáculos393.

392
T. S. Eliot, “O que é um clássico?”, in Ensaios escolhidos, Lisboa, Ed. Cotovia, 1992, pp. 129-146.
393
“Vai acontecer”, in JL. Jornal de Letras, Artes e Ideias, 1 Abril 2015, p. 3.

132
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

Como sustenta o autor, poesia e música não podem ser analisados isoladamente,
uma vez que a matriz colhida nos compositores surge depurada e reinventada no
seu discurso poético. Com efeito, o lexema lirismo, proveniente da lira que
acompanhava a récita dos poemas na Antiguidade, traduz precisamente a
conjugação harmoniosa das artes enunciadas e adequa-se de modo admirável à obra
de Graça Moura.394
Mas os conhecimentos de Graça Moura não se restringem aos compositores
eruditos, também assinalam outros gostos estéticos que trazem consigo um
horizonte próprio à expressão lírica. A comprová-lo, atente-se em ouvir nina
simone:

“ao som rouco de um blues […]

a ouvir nina simone até ao âmago das sílabas de agosto,


sabendo que começa aí a liberdade
na sua terna e frágil segurança.” (PR2, 512-513)

A voz inesquecível da autora de Wild is the wind enfatiza metaforicamente a


expressividade da linguagem musical “até ao âmago das sílabas” que contempla, de
facto, a estrutura e os conteúdos poéticos à luz dialogante com um “blues” 395
.A

394
No seu interesse pela música erudita, Graça Moura integrou também, na Fundação Casa de Mateus, o
programa A Cultura em Diálogo, que perdura até à actualidade; esta iniciativa integra projectos locais e
internacionais e abrange as mais diversas formas de cultura desenvolvendo actividades regulares na área da
música, das artes plásticas ou da literatura, e ainda seminários de reflexão política, científica e cultural (Cf.
http://www.casademateus.com/actividades.htm - consultado em 27 Janeiro 2013).
Em Quatro estações, num jogo de espelhos entre a realidade e a ficção, a Casa de Mateus constitui um
espaço privilegiado. Em nota final à referida obra, o autor observa: “Nos últimos doze anos, a minha relação
com a Casa de Mateus e com as pessoas a ela ligadas - por razões familiares ou institucionais, nos vários
planos em que se desdobra, e que vão de uma amizade muito grande e fraterna até uma colaboração estreita
no sentido da prossecução dos objectivos estatuários da fundação que nela tem a sua sede -, tem-me
proporcionado momentos de profundo enriquecimento humano e cultural” (Cf. Vasco Graça Moura, Quatro
estações, Lisboa, Ed Quetzal, 22009 p. 203).
Na qualidade de presidente do conselho de administração da Fundação Centro Cultural de Belém (CCB),
promoveu iniciativas similares às enunciadas anteriormente em prol da divulgação da cultura. Empreendeu
um notável labor numa programação rica e variada com temporadas de orquestras, bem como o acolhimento
de agrupamentos dedicados, em particular, à música barroca. De entre outros, Beethoven, Verdi e Mahler
são alguns dos compositores interpretados. A presença também de artistas portugueses atravessa toda a
programação de espetáculos, desde a música clássica, ao fado, jazz, música do mundo, dança e teatro.
Não são descuradas ainda iniciativas dedicadas à literatura e às disciplinas das Humanidades, pelo que
decorreram ciclos de encontros dedicados à História de Portugal, à Língua Portuguesa e à ficção nacional,
designadamente a Os Lusíadas (Cf. http://www.google.pt/#q=ccb+musica+temporada+2013+vasco+gra%
C 3A7a+moura&start=20 - consultado em 2 Fevereiro 2013).
395
No conto Quatro da manhã, num encontro fortuito, o narrador afirma como a música de Simone
contribui para um cenário amoroso: “Sorriu como se estivesse habituado a situações dessas, disse que ia à
cozinha buscar champanhe e, no trajecto, aproveitou para pôr um disco a tocar quase em surdina. Nina
Simone, Wild the wind. Estirada, ela semicerrava os olhos, expelia o fumo em longas baforadas e trauteava a

133
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

prática poética na sua excepcionalidade constrói-se, assim, na sua liberdade


criadora, espelhada nas mais transitórias emoções e “na sua terna e frágil
segurança”.
Ecos de várias canções e intérpretes de tempos modernos revelam um ecletismo
culto e elegante. Na realidade, o panorama musical proveniente de raízes e
tradições desenvolvido em meados do século findo oferece um inegável filão
inspirador ao poeta, testemunhado em quizás, quizás, quizás:

“quando se está com gripe e nos dói toda a cara


o mal-estar só passa imaginando
que mozart uma vez encontrou nat king cole
e pôs-se a acompanhar quizás, quizás, quizás.

a voz de um era rouca na curva do bolero


e o piano gemendo em graves da mão esquerda
dava a sua resposta a siempre que me preguntas
e triste era o refrão, quizás, quizás, quizás.

na música e na vida, algum desesperado,


mesmo sem estar com gripe ia perdendo o tempo,
sombrio, alcoolizado, pelas melancolias
da voz e do piano, quizás, quizás, quizás”. (PR2, 118)

A consciência melómana apresenta, neste caso, uma miscigenação de estilos


musicais, protagonizada pelo encontro entre Mozart e Nat King Cole, com destaque
para o reconhecimento do efeito encantatória da conhecida canção Quizás, quizás,
quizás do autor norte-americano, que constitui, no dizer do sujeito de enunciação,
um paliativo para “quando se está com gripe”. Assim, Graça Moura oferece no seu
poema, numa clara fuga ao convencionalismo, uma estrutura musical com
diferentes andamentos criando uma espécie de polifonia, evidenciado pelo ritmo
sugerido, com particular ênfase para a aliteração sibilante “quizás”, que funciona
no texto como uma espécie de refrão, bem como reconstitui um ritmo poético.
Na verdade, apontar estas ocorrências na obra de vgm não se trata de uma
novidade; esta referencialidade, segundo Pinto do Amaral, em diversos poetas
contemporâneos justifica-se do seguinte modo:

música, ciciando-lhe a letra” (Cf. Vasco Graça Moura, “Quatro da manhã”, in A morte de revisor, Lisboa,
Ed Quetzal, 2008 p. 54).

134
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

“Os poetas mais recentes não escrevem directamente contra a geração anterior, indo colher
influências a um largo espectro cultural, que muitas vezes relaciona a poesia com outras formas de
expressão – o cinema, a música, as artes visuais, etc.”396

A música do mundo, configurada em instrumentos ou géneros diferentes, atesta


a universalidade da arte dos sons e conduz o leitor para um universo carregado de
notações simbólicas em soneto do jazzband:

“era noite, era noite, marcámos de mãos dadas


um ritmo interior dos corações, saía
do trombone em surdina quase uma voz humana,
uma voz rouca em scat, ah!, pulsações do banjo,

trompete, clarinete, estrídulo woody allen,


puro prazer do ritmo, convite a dançar blues,
e em tantos contrapontos eu só sabia amar-te,
na sombra a tua face vibrava repentina,

e o piano e os drums e o contrabaixo, e aquelas


batidas do swing, o jazzband em pleno,
luzinhas na plateia e os beijos que te dei,

na onda esfuziavas e eu vi-me nos teus olhos


e ouvimos dixieland, e ouvimos new orleans
e eu amo-te, i love you, eu amo-te for ever.” (PR2, 326)

A música é a confidente e salvação que intensifica, em crescendo, a paixão. Os


versos providos de diversos géneros – “blues”, “swing” ou “jazzband”– ou de
grupos de jazz – “dixieland” e “new orleans” – revelam um percurso demonstrativo
das motivações plasmadas nos seus versos. Com efeito, estas revelam a natureza
plástica da realidade musical e verifica-se uma intenção ecfrástica na composição
do texto, com o fito deliberado de destacar a musicalidade da poesia397.
Graça Moura sustenta que, como toda a manifestação artística, a música é um
constructo determinado por motivações culturais. A convergência de dinâmicas
heterogéneas desenha, deste modo, identidades próprias, o que, em boa parte,

396
Fernando Pinto do Amaral, “A porta obscura da poesia”, in Relâmpago. Nova poesia portuguesa, nº 12,
2003, p. 20.
397
Para Sandra Teixeira as referências intertextuais do soneto O sol é grande … de Sá de Miranda no poema
o princípio de m.c. escher II, da autoria de Graça Moura, surgem como se tratasse de uma melodia graças a
determinados lexemas: aves negras, mundaves, vãs, aves de suaves claves ou graves, entre outros. Com
efeito, a imagética das aves e das suas cores disseminam-se na gravura, que observa, a um tempo, uma
passagem do domínio pictórico para o domínio musical. Esta estratégia compositiva realiza, assim, uma
estrutura pictórica musical, fornecendo uma percepção do mundo sob diversos ângulos. (Cf. Sandra
Teixeira, “Sá de Miranda par Vasco Graça Moura”, in Actes du colloque interdisciplinaire: Nouvelles
perspectives de la recherche française sur la culture portugaise (5-6 février 2007), p. 142).

135
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

explicam os estreitos nexos entre estilos musicais e a poesia. A raiz essencial da


poesia radica na própria música, na “dimensão aérea e musical”, como canta o
poeta, e abre-se a uma harmonia, sugestiva do movimento alado que remete para a
melodia. Os compositores invocados denotam um cruzamento de tempos e
referências de diferentes sonoridades, bem como realçam os mecanismos de fruição
de música pelo poder sugestivo de uma canção que marca a memória do eu lírico.
Numa valoração de surpreendente diversidade, os versos demonstram uma apurada
consciência estética, pelas alusões a peças musicais, autores e opiniões críticas.
O poeta, que aspira a “uma espécie de música que vá vibrando em mim” (PR2,
329), cruza ecos que se estendem desde a Antiguidade à actualidade:

“dantes até me vinham as lágrimas aos olhos


quando ouvia louis armstrong a cantar
st. james infirmary, aquela marcha fúnebre
a que já aludi há muito tempo, tão sombria, tão pungente,
tão desarmada e triste. […]

nesse compasso rouco para a morte de amor:


so cold, so sweet, so fair,
deixai passar, deixai passar, onde quer que eles
estejam nunca houve amor assim,
iseu crepuscular, tristão desamparado,
ambos morrendo por de nada ter valido”. (PR2, 532)

A escrita parece-se mover ao som da orquestra de Louis Armstrong, num registo


compassado, que é atravessado pelo topos de Eros e Tanatos, assinalado por uma
vivência trágica como destino inexorável, cujo paradigma, neste contexto, é Iseu e
Tristão, ópera de Wagner. Memória e contemporaneidade juntam-se, pois, numa
mundividência, concedendo um deliberado halo de modernidade398.
Como se observa, as complexas teias entre o património musical e as motivações
poéticas de Graça Moura levam a um conjunto alargado de autores, reveladores de
um longo percurso de aprendizagem, que, obviamente, exprime uma explícita
diversificação de conhecimentos. Esta referencialidade concorre, sem dúvida, para
produzir um efeito plurissignificativo, abrindo um leque largado de potencialidades
interpretativas, bem como preenche um espaço muito próprio. Originárias de
398
Na tradição portuguesa, os poetas contemporâneos, no dizer de Óscar Lopes (Uma arte de música e
outros ensaios, op. cit., p. 32), referem ocorrências, num registo culto, de todos os géneros musicais com o
consequente cruzamento dos códigos simbólicos. Vasco Graça Moura não é alheio a esta tendência literária,
por exemplo, no poema “Escuta esta música…” (PR1, 284).

136
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

diferentes latitudes e épocas, as alusões enunciadas, dotadas de profundo sentido


interpretativo configuram, pois, uma trajectória que permite descortinar uma linha
de pensamento dinâmica, provida de grande cultura e admirável sensibilidade.

1.8. O cinema: os sentidos em movimento

A poesia de Graça Moura, como se observa, revela-se mediante um diálogo


frutuoso com linguagens estéticas da mais variada ordem, onde também os ecos do
cinema marcam presença e alargam os horizontes do universo lírico do autor399.
O poema burlesca regista essa ligação à sétima arte, a partir da sua experiência
de espectador:

“no outro dia fui à cinemateca ver um filme de godard


o primeiro problema realmente foi o de me encaixar
no assento onde não havia espaço para as minhas pernas
que tiveram de ficar entaladas contra o encosto
da parceira da frente”. (PR1, 387)

Em tom autobiográfico, o eu lírico alude a um espaço emblemático da


divulgação do cinema em Portugal, a Cinemateca, onde o visionamento de um
filme de Jean-Luc Godard é marcado pelo desconforto das cadeiras400. Em seguida,
o eu lírico considera que “o segundo problema foi o de perceber o filme” e, na sua
longa invectiva longa, destaca:

“até havia mortos num assalto de tipo terrorista


pode-se morrer em toda a parte dirá a lógica de qualquer taxidermista
e aparecia também com a barba por fazer o próprio deus godard
numa clínica e escrevia déjà vu com ar de estar solenemente a defecar
contraponto sibilino daquilo com que nos ia acometer
e que para agarrarmos bem ele tinha evidentemente de escrever
e havia lacónicas as cenas alciónicas por exemplo a da mulher da
[limpeza
a lavar o chão do banco ao pé de um morto ensanguentado como um
[rosbife à inglesa
sem lhe ligar importância absolutamente nenhuma”. (PR1, 388)

399
Rosa Maria Martelo (Cf. “Qualquer poema é um filme?”, in Cinema e poesia, Lisboa, Ed. Documenta,
2012, pp.185-186) sustenta que na maioria dos poetas contemporâneos o diálogo da poesia com o cinema
radica numa tradição que permitiu indubitavelmente o desenvolvimento de novas técnicas do olhar, que
comportam um forte pendor ecfrástico. Ora, Graça Moura não ignora essa tradição, como se observa nos
seus versos.
400
Rosa Martelo, a este propósito afirma: “Quando a poesia fala da experiência do espectador de cinema,
essa experiência facilmente e confunde com a do poeta enquanto escreve” (Cf. Rosa Maria Martelo, “Na sala
escura”, in Cinema e poesia, loc. cit., p. 181).

137
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

O passo transcrito consubstancia-se num registo metalinguístico que combina o


poético com o tom pessoal de desagrado perante o filme. Pontuado pelo absurdo
das sequências, a lembrar fotogramas, a reflexão poética incide sobre um
argumento “déjà vu” do cineasta franco-suíço, o “deus godard”, onde não falta a
inusitada comparação “um morto ensanguentado como um rosbife à inglesa”.
O sujeito de enunciação, nos derradeiros versos, revela então o título da película,
“prénom carmen”. A sua apreciação contrasta com os restantes espectadores, que,
“em transe”, veneram Godard e termina deliberadamente com o sintagma “ámen”,
como de um culto se tratasse:

“ocorreu-me isto na cinemateca enquanto a ver prénom carmen


as multidões em transe aplaudiam o godard. ámen.” (PR1, 389)

Na sua experiência de espectador, o poeta também refere outros filmes como “a


rosa púrpura do cairo” (PR1, 335), realizado por Woody Allen, concedendo entre
heterogéneas proveniências hauridas nas diversas artes, uma particular atenção ao
cinema, elemento determinante de um novo espaço representativo na poesia, como
se lê na nota final aos seus Poemas escolhidos:

“Nessa manipulação, também tem acontecido que obras de arte de diferente natureza (quadros,
esculturas, fotografias, filmes, peças musicais) acabem por gerar ecos com elas solidários em
poemas que escrevi. [….] Quanto a alguns filmes, o fiz pela procura de equivalentes de
investimento dramático (por exemplo, o poema IV de o mês de dezembro, sobre uma cena de O
charme discreto da burguesia, ou ‘a noite americana’, em a furiosa paixão pelo tangível, sobre a
cena final de Sunset Boulevard).” 401

No tocante aos textos acima referidos, o primeiro poema enunciado, o poema IV


de o mês de dezembro, apresenta o seguinte incipit:

“os namorados mortos não sabiam


e não queriam morrer, nunca ninguém
em verdade o quis já, mas acontece
que quase sempre morte e amor se tocam” (PR1, 145)

Ao prestar um deliberado tributo às virtualidades do cinema, o eu lírico, como


afirma no metatexto, inspirou-se num célebre filme de Luis Buñuel que não refere
nos seus versos; com efeito, para a compreensão do poema não é necessário que o
leitor reconheça a proveniência desses versos, uma vez que o vetusto tema do amor

401
Vasco Graça Moura, Poemas escolhidos, loc. cit., p. 475.

138
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

e da morte, num notável recorte emocional, surge com uma forte densidade lírica,
uma vez “que quase sempre morte e amor se tocam”402.
Na esteira desta mundividência, também o poema a noite americana, que no
dizer do autor, é “sobre a cena final de Sunset Boulevard” revela a precariedade da
condição humana:

“a casa é perto da várzea de colares e eu nunca lá fui,


apesar de ouvir ainda a sua voz estridente
a exclamar na pose certa “oh darling, it's lovely, lovely”
da primeira vez que lá chegou, se é que lá chegou,
com um turbante inevitável e monograma nas malas.

isto é uma intrusão, mas vê-se que foi assim e agora


estará tudo ao abandono, ou destelhado ou quase; deve haver estuque
[e vãos esbotenados,
cortinas encardidas e caprichosos frascos de perfume vazios,
e os uivos do atlântico podem entrar à vontade
e alguma rajada de vento escancarar as portadas.

mas às vezes gloria swanson ainda desce as escadas, coleando prateada


contra o salitre das paredes, segundo todas as regras de escola,
e a acção volta a começar sob os projectores acesos numa cruel proposta
[para o fim
da carne que deixou de ser luminosa e quente e versátil”. (PR1, 384)

Na génese do poema está o drama noir realizado por Billy Wilder, que tem
como protagonista Gloria Swanson no papel de Norma Desmond, uma decadente
estrela do cinema mudo que sonha um regresso triunfante às telas. Esta antiga diva
de Hollywood, passava regularmente temporadas junto à Praia Grande, em
Portugal, evocadas no sintagma “a casa é perto da várzea de colares”.
O tema da decadência, destacado no enredo do filme, cruza-se com a própria
biografia da actriz, que, neste poema, simboliza a finitude humana através das
insistências lexicais da casa degradada: “estará tudo ao abandono” ou “salitre das
paredes”. Estas imagens configuram o próprio definhamento da figura, sugerida
pela adjectivação utilizada e pelo expressivo polissíndeto: “carne que deixou de ser
luminosa e quente e versátil”. Com efeito, os sentidos, que se disseminam em
imagens, desencadeiam um invulgar desenvolvimento expressivo. Registe-se ainda
a alusão aos “projectores acesos numa cruel proposta para o fim”, metáfora da fama

402
Como referiu Edgar Morin (Cf. O cinema ou o homem imaginário, Lisboa, Moraes Editora, 21980,
p. 193), “O cinema é, por essência, tão indeterminado e aberto como o próprio homem”.

139
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

efémera e espécie de vertigem temporal, onde o passado está muito afastado do


presente e não há futuro, apenas “fim”. Assim, tal como no filme Sunset Boulevard,
também no poema a passagem do tempo, bem como o real e a ficção cruzam-se
indefinidamente403.
Como num caleidoscópio, na poesia cada imagem é a chave de outra imagem,
testemunho de que o imaginário poético apresenta conexões com a esfera dos
audiovisuais, como sublinha Pinto do Amaral:

“Isto quer dizer que também a poesia pode ser uma forma de cinema, ou seja, um movimento
das imagens - um cinema cujas sequências podem mover-se a um ritmo mais sereno, num
encadeamento compassado, próximo dos objectos que reflectem (é o que chamamos
“realismo”, também na literatura) ou, pelo contrário, acelerar-se até atingirem a velocidade da
luz, como se a própria memória se estilhaçasse e assim criasse novos transes, cegos escotomas
ou curto-circuitos perceptivos.”404

O dinamismo intrínseco às imagens aproxima as personagens ou acontecimentos


que reflectem, conjugação que exprime uma peculiar cosmovisão, exercendo um
raro fascínio junto do leitor.
Nesta linha de pensamento, Graça Moura canta no poema instabilidades:
“a porta envidraçada
do jardim entreaberto
reflexos interiores
na sombra das roseiras,
une dentro e fora,

oscila na
corrente de ar,
lenta, move a cortina
como num filme
de suspense.” (PR2, 40)

Através da palavra poética, herdeira de uma tradição ecfrástica que associa a


imagem ao movimento, forma-se uma espécie de cinema interior, cuja luz e sombra
se movem ao ritmo de um “filme de suspense”, como a cortina “oscila na / corrente
de ar”. É precisamente essa conceptualização visual, comum à poesia e à narrativa

403
Neste critério de verosimilhança proporcionado pelo cinema, através do qual a realidade perpassa, Yuri
Lotman salientou: “O mundo do cinema está extremamente próximo da vida. A ilusão da vida é, como
vimos, uma sua propriedade inalienável” (Cf. Yuri Lotman, Estética e semiótica do cinema, Lisboa, Ed.
Estampa, 1978, p. 45).
404
Fernando Pinto do Amaral, “Imagens em movimento”, in Relâmpago. Poesia e artes visuais, nº 23, 2008,
p. 67.

140
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

fílmica, que permite descortinar a linha de construção imagética que atravessa a


produção lírica de Graça Moura.
Também no poema ainda se verifica a mesma consciência cinematográfica que
motiva o sujeito de enunciação:

“no filme, o homem cruza o sky-line


de helicóptero, ao amanhecer,
por sobre o hudson ainda há luzes e
zonas de névoa esbranquiçada.

a mulher espera-o num terraço


elevado. […]

o helicóptero pousa, depois


de várias sacudidelas. o homem
sai e desce a escada curvando-se,
sob o movimento das pás que ainda giram.” (PR2, 78)

A organização discursiva manifesta claras influências fílmicas, onde o


visualismo, a lembrar os filmes de James Bond, veicula uma curiosa poesia
representativa, numa lógica narrativa linear própria dos filmes de acção, que faz
fluir o pensamento, configurando uma projecção cinematográfica405. É, pois, a
imagem típica de um filme onde se cruzam som, imagem e acção, sugestão paralela
da progressão do poema.
Em ambiente exótico, típico deste género de filmes, veja-se o seguinte passo do
texto medida velha:

“no terraço ajardinado bebem copos de café espesso,


alheados do esplendor dos minaretes, da luz cobre e turquesa,
e do fervilhar da multidão nas ruas de istambul.
a cidade está cheia de espiões na espreita clássica
que conhecemos do cinema, olhares de soslaio,

portas entreabertas, carros grandes com tipos vestidos de branco,


perto do grande bazar”. (PR1, 324)

405
Nesta linha, o poeta canta: “hoje em dia ninguém sabe contar histórias / talvez o cinema americano dos
anos cinquenta / fosse a última hipótese de narrativa” (PR1, 229).
O apreço pela cinematografia, contributo para melhor compreender o pensamento de vgm, pode-se verificar
nas suas notas críticas a dois filmes de Manoel de Oliveira: “O labirinto dos desconcertos” em torno de Non,
ou a vã glória de mandar e “O dia do desespero”, título homónimo ao filme sobre a vida de Camilo Castelo
Branco. Também dedica o artigo “Felliniano…” sobre a criação cinematográfica de Federico Fellini (Cf.
Vasco Graça Moura, Papéis de jornal. Crónicas, Venda Nova, Ed. Bertrand, 1997, respectivamente pp. 15-
-20, 38-41 e 252-254).

141
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

O eu lírico perscruta o roteiro de enigmas próprios dos thrilllers de espionagem,


onde os elementos visuais assumem um particular significado. Os versos,
densamente metafóricos, estabelecem um nexo explícito entre a experiência da
memória e o cinema, onde, pela sua capacidade de orientação diegética, não faltam
“espiões na espreita clássica”.
Graça Moura retoma no incipit do poema “como num filme” uma inegável carga
imagética:

“uma mulher com seus passos sonâmbulos


numa rua deserta de lisboa,
tendo como num filme, a lua a modelá-la
a acetinar um halo em sua pele”. (PR2, 164)

O sentido da circunstancialidade406 – representado na evocação de uma figura


feminina, no espaço urbano de Lisboa, e num momento nocturno – nasce de uma
poesia de carácter deambulatório, celebrizada nas letras nacionais nos versos de
Cesário Verde407. Com efeito, neste passo, marcado por uma determinada
delimitação espácio-temporal onde se movimentam figuras, o quotidiano instala-se
no texto, o que traduz uma poética intimamente ligada a situações da realidade. Na
expressão “passos sonâmbulos”, a eficácia poética da hipálage, conseguida através
da transferência do sentido do adjectivo, que passa da figura feminina para a acção
que ela pratica, realça na deambulação de uma mulher um espectro
irreparavelmente entregue à sua solidão. No entanto, esta fulguração da imagem,
concede indubitavelmente inovadoras tonalidades semânticas, acentuadas na
comparação “como num filme”,
Graça Moura, na busca de uma singular expressividade poética transporta o
inquietante quadro mitológico de Aquiles e Pentesileia, referido já anteriormente,
para a actualidade e apresenta as duas personagens integradas em grupos de
motociclistas rivais:

406
Pinto do Amaral assinala o lúcido sentido do circunstancial e do efémero como um aspecto primordial na
obra de Graça Moura (Cf. Fernando Pinto do Amaral, O mosaico fluido. Modernidade e Pós-Modernidade
na poesia portuguesa mais recente, Lisboa, Ed. Assírio e Alvim, 1991, p. 164).
407
Cf. Cesário Verde, “O sentimento dum ocidental”, in op. cit., pp. 122-129.

142
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

“o filme desdobra-se entre o relâmpago da morte


e o sussurro do mar da cor do vinho.
talvez seja o instante da paixão que sangra no destino
e sempre nele as vozes se entrelaçam.
aquiles e pentesileia comandam gangs rivais
nas suas harley davidson reluzentes, vestidos
de couro preto e capacetes de viseira”. (PR2, 169)

Este passo veicula, pois, uma determinada concepção literária: a poesia, gerada
com aturado trabalho, não surge ex nihilo, emerge da liberdade criadora da
memória. Com efeito, entrelaça-se a tradição — haurida nas figuras mitológicas,
bem como no famoso epíteto homérico “do mar cor de vinho” — com elementos
contemporâneos: “as motos”, “os fatos de couro preto” ou ainda “os capacetes com
viseira”. A atenção à realidade, captada, em larga medida, nestes últimos elementos
invocados, aponta para uma sugestiva plasticidade, que ecoa na sequência
imagética própria da sétima arte, como se lê no sintagma: “o filme desdobra--se”.
Esta preocupação de Graça Moura não se restringe à poesia; também surge na
sua produção narrativa. Como acontece frequentemente na obra de Graça Moura,
há uma intenção polémica declarada; o narrador de Naufrágio de Sepúlveda, numa
conversa sobre diversos temas de cultura, denuncia a dependência de subsídios do
cinema nacional, que tem evidentes afinidades com as posições públicas de Graça
Moura:

“Também me dizem que hoje as vanguardas são cada vez mais parasitárias, que são todas
subsidiadas pelo Estado. Aproveitei para meter a minha colherada e para dizer que no cinema
ainda é pior, nem percebia como é que havia tantos subsídios para coisas tão detestáveis como a
maior parte dos filmes portugueses que até tinham, de resto, permitido uma descoberta importante,
a de que o cinema era tanto mais exorbitantemente caro, quanto mais insuportavelmente parado,
ele se calhar não tinha visto o último filme do ... Mas o professor, ainda mergulhado nessa fase em
que havia cafés e gente dentro deles a passar horas e horas de cavaqueira, com discussões,
provocações, murros nas mesas, e exclamações de porra, murmurava: Bons tempos! Belas
noitadas de boémia e copos que passávamos.”408

408
Vasco Graça Moura, Naufrágio de Sepúlveda, loc. cit., p. 58. Em consonância com os pontos de vista
neste âmbito de Graça Moura é possível rastrear um conjunto de comentários sobre filmes. Também uma
personagem apresenta em A morte de ninguém, o mesmo assunto: “Quando me falam no cinema português,
penso logo em péssimos diálogos, histórias e textos fílmicos em não se diz coisa com coisa, planos que
duram tempos infinitos, bizarrias mais ou menos intelectualizadas, movimentos de câmara impacientantes,
patetices ou vulgaridades sobre a vida, acumulação de ensinamentos colhido nos Cahiers du Cinéma, ou
noutros cahiers quaisquer, ânsia de trufar o filme com tudo o que o realizador julgou ter aprendido. Enfim, a
verdade é que eu nunca gostei do cinema português e tenho de assumir que, a partir de certa altura, isto se
torna um relativo impressionismo, porque se deixa de ver. Mas falo do cinema em geral, sobretudo do
cinema americano dos anos 40 e 50, que foi quando estes problemas se puseram muito a sério à escrita de
ficção. O cinema dispensa muitas perífrases e páginas inteiras de descrições.” (Cf. Vasco Graça Moura, A
morte de ninguém, Lisboa, Ed. Quetzal, 1998, p. 21).

143
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

Como se observa, a abordagem de aspectos relevantes do percurso biográfico,


bem como a formação cultural de Graça Moura fornece um utilíssimo contributo
para descortinar o pensamento do autor e as suas opções estético-culturais no
domínio do cinema.
A sua produção literária, enquanto testemunho inequívoco de um notável
fenómeno de recepção criativa, constitui, de facto, uma pedra angular para a análise
do privilegiado diálogo estabelecido com outras artes e vozes, onde pontifica a
figura tutelar de Camões. Assim, nesta ordem de ideias, os capítulos seguintes do
presente trabalho abordam justamente o modo como o autor aproveita e recria esse
fecundo filão, em demanda de uma expressividade própria.

144
2. Enunciação e memória
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

2.1. Camões: ecos e reflexos em pedaços repartidos

Vasco Graça Moura vem assumindo um lugar de relevo nas letras portuguesas
pela diversidade compositiva expressa da sua rica obra; esta, corolário de um
notável percurso, onde a poesia ocupa um lugar central, permite, sem dúvida,
descortinar processos e intenções, que configuram a importância da figura tutelar
de Camões na obra do autor contemporâneo. Tal facto assume-se imprescindível
para compreender determinados traços que sustentam os seus versos, cuja riqueza
plurissignificativa convoca uma constante questionação hermenêutica.
A contínua recepção de Camões deve-se, em primeiro lugar, a todos aqueles que
ao longo dos tempos escreveram sobre a obra do poeta, bem como viram nela uma
singular qualidade poética. A este propósito Maria Lucília G. Pires assinala:

“Na história da recepção crítica da obra camoniana interessa analisar os juízos de valor que
acerca dela foram emitidos e os valores culturais que fundamentem esses juízos, interessa o
trabalho exegético desenvolvido sobres esses textos, os sentidos que nele foram lidos, os valores
de cada época (cada leitor, crítico, exegeta) neles descobriu.”409

Deste modo, Graça Moura, ciente da indelével dimensão estética e ontológica


dos versos camonianos, destaca, assim, a sublime função da poesia,
consubstanciada na celebração do sentido da existência e o que dela fica na
memória. A mundividência resultante, alicerçada em modernos padrões de pensar,
bem como dotada de um desejo incontido de novidade, permite, sem dúvida,
observar a deliberada proximidade entre os dois poetas410. Este caminho leva a um
amplo conceito, que Aguiar e Silva designa por “memória do sistema literário”,
visto que funciona “como um thesaurus em que perduram, confluem e dialogam
motivos, imagens, símbolos, temas, esquemas, técnicas compositivas, estilemas,
etc., a cujo influxo o emissor não se pode eximir”.411

409
Maria Lucília Gonçalves Pires, verbete “Camonologia”, in Biblos. Enciclopédia Verbo das Literaturas de
Língua Portuguesa, vol. 1, Lisboa-S. Paulo, Ed. Verbo, 1995, col. 910.
410
Vitalina Leal de Matos sublinha que a intertextualidade “permite mais do que relacionar um texto com
outros, apreciar um trabalho de escrita que nele se desenvolve; a capacidade de leitura é por vezes
substancialmente enriquecida: a descoberta de um modelo pode ser a chave para um sentido recôndito que a
superfície do texto não manifesta.” (Maria Vitalina Leal de Matos, “A poesia de Camões na perspectiva da
intertextualidade”, in Camões: sentido e desconcerto, loc. cit., p. 113).
411
Vítor Manuel de Aguiar e Silva, Teoria da literatura, Coimbra, Livraria Almedina, 41982, p. 255.

147
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

Depositária de um fértil legado, a produção literária do poeta contemporâneo


convive com um vasto número de vozes, testemunho revelador de uma notável
cultura, que fornece um utilíssimo contributo para compreender um peculiar
itinerário estético-literário412.
Nesta linha de pensamento, na esteira de T. S. Eliot, salienta Ramón Pérez
Parejo:

“La significacion de un escritor debe valorarse en relación a los artistas y escritores anteriores,
nunca de forma aislada.[…] El poeta debe tener en cuenta esa tradicion latente y ser consecuente y
responsable, pues de igual modo que el pasado se altera por el presente, el presente es dirigido por
el pasado. No asumirlo es un acto de ceguera y de irresponsabilidad.”413

Corroborando esta perspectiva, Rosa Martelo destaca a intertextualidade como


uma marca distintiva da poesia portuguesa dos anos 90:

“É nesta medida que aparentes regressos, como o diálogo intertextual com o passado literário,
quer ao nível da revisitação de determinados autores, quer ao nível da reelaboração de temas e
formas facilmente reconhecíveis como herança, só superficialmente podem ser entendidos assim,
porquanto correspondem, na verdade, a um reconhecimento novo da indissociabilidade entre o
mundo que se dá a conhecer e a sua mediatização por descrições.”414

Esta nova abordagem estética de olhar a herança literária é uma das noções mais
fecundas da moderna teoria literária, que não se confina a retomar as práticas da
adopção de modelos há muito rejeitadas. Pelo contrário, recria e inova processos,
formas e temas, que surgem investidos de novas potencialidades significativas.
Julia Kristeva, em torno da obra de Bakthine, afirma que todo o texto se constrói
como “mosaico de citações”, uma vez que cada texto é absorção e transformação
de um outro415. A escrita é, pois, memória sem a qual não há literatura.416

412
Vitalina Leal de Matos, nesta linha, afirma: “O texto não é uma estrutura fechada sobre si mesma:
articula-se com todo o sistema literário e com outros sistemas sociais: a história, a política, a ideologia, as
outras artes, a religião, etc. A intertextualidade aparece assim como um instrumento eficaz para recuperar a
dimensão histórica da obra literária que o estruturalismo quase esquecera (Maria Vitalina Leal de Matos,
Introdução aos estudos literários, Lisboa-São Paulo, Ed. Verbo, 2001, p. 191).
413
Ramón Pérez Parejo, Metapoesia y crítica del lenguaje (De la generación de los 50 a los novísimos),
Cáceres, Universidad de Extremadura, Servicio de Publicaciones, 2002, pp. 140-141.
414
Rosa Maria Martelo, “Anos 90. Poesia”, in Óscar Lopes e Maria de Fátima Marinho (direcção), História
da Literatura Portuguesa. As correntes contemporâneas, vol. 7, Lisboa, Ed. Alfa, 2002, p. 489.
415
Julia Kristeva, Semeiotiké. Recherches pour une sémanalyse, Paris, Éditions du Seuil, 1969, p. 146.
416
Neste âmbito, À pergunta sobre o que apreciava mais na sua faceta de escritor, vgm responde: “Sempre
me encheu as medidas pensar que a cultura não é um conjunto de linhas paralelas, mas de linhas que se
entrelaçam e se contaminam. A intertextualidade não é mais do que isso. Foi o que sempre pratiquei,
enquanto escritor”, vide “Vasco Graça Moura: A Portugal está a faltar muita poesia” (entrevista de José
Carlos Carvalho), in Revista Visão, 27 Abril 2014, p. 94.

148
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

Assim, num incessante exercício de tributo, as escolhas selectivas configuram


uma estratégia recorrente na singular cosmovisão de Graça Moura417, bem como
uma consciência literária, quando anuncia:

“os sentimentos são literatura


e a literatura um bumerangue
que nos regressa às mãos sob a figura
de uma metamorfose desde o sangue”. (PR1, 550)

A deliberada poligénese do processo criativo, onde a metáfora do


“bumerangue”, arma originariamente de arremesso que percorre diversas direcções
e regressa ao ponto inicial, vincula o autor a uma tradição, constituindo, pela sua
circularidade, um símbolo de uma reescrita contínua, uma vez que, no seu dizer,
toda “a ideia / é intertextual” (PR1, 197).
Noutro passo regressa a este conceito:

“citei vezes abundantes os meus mestres,


trinta anos de os pastar, bem os servi, e fui discreto”. (PR1, 436)

Não se afigura despiciente estabelecer aqui um paralelismo com o soneto


camoniano Sete anos de pastor Jacob servia418, que, como é sabido, o tema fulcral
é a persistência amorosa da história bíblica de Jacob, que, no trecho apresentado, se
converte na fidelidade aos “mestres”, portanto à literatura.
Deste modo, a dimensão dinâmica e plurissignificativa da intertextualidade
permite discernir determinadas inscrições anteriores e associa-se à imagem do
palimpsesto, que, na Antiguidade, designava um pergaminho de onde se raspavam
textos para que outros pudessem ser escritos419. Neste prisma, surge também o
conceito de intertexto como um conjunto de textos que entram em relação com num
determinado texto420.

417
Neste contexto, Óscar Lopes descortina na actual poesia portuguesa uma extensa informação cultural, que
propicia a tendência pós-modernista para a paráfrase, a citação, a amálgama de referências literárias,
processos distintivos na poesia de Graça Moura (Cf. António José Saraiva e Óscar Lopes, História da
Literatura Portuguesa, Porto, Porto Editora, 171996, p. 1802).
418
Cf. Alfredo Margarido, “Uma leitura antropológica do soneto de Camões Sete anos de pastor Jacó ser-
via”, in Colóquio-Letras, nº 81, 1984, pp. 6-23; Luís de Sousa Rebelo, “O texto e o contexto num soneto de
Camões”, in Arquivos do Centro Cultural Português, vol. XVI, Paris, 1981, pp. 437-446.
419
Gérard Genette, Palimpsestes. La littérature au second degré, Paris, Éditions du Seuil, 1982, pp. 7-14.
420
Michel Arrivé, Les langages de Jarry - éssai de sémiotique littéraire, Paris, Ed. Klincksieck, 1972, p. 28.

149
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

Torna-se imprescindível, pois, para descortinar núcleos fulcrais no processo


criativo de vgm apreciar o vastíssimo filão proporcionado pela égide do vate
quinhentista, tendo em conta o tempo em que viveu, os seus lapidares versos, não
esquecendo, num ângulo crítico, o insolúvel problema em torno do cânone da sua
lírica.
Esta tendência, como sublinha Fernando Martinho, é recorrente na poesia
contemporânea portuguesa421:

“De há muito que Camões ocupa um lugar incontornável na memória do sistema nacional e que
não há, portanto, poeta cimeiro que possa afirmar-se no desconhecimento da sua obra e do seu
exemplo”.422

Com efeito, Graça Moura tem um papel crucial no diálogo criativo e crítico que
estabelece com o autor de Os Lusíadas, que, no dizer de Karlheinz Stierle,
configura uma forma de colocar à prova o saber literário de um autor e de o utilizar
em novas situações expressivas423. O genuíno fascínio do poeta contemporâneo
pelo vate quinhentista424 leva-o a sublinhar em nota à sua obra testament de vgm:
“camões: Luís de Camões (XVIème siècle), les plus grand poète portugais de tous
les temps” (PR2, 563).
Esta estreita relação dialógica concretiza-se de diversificados modos; para além
de remissões camonianas incorporadas nos versos, surge também em títulos ou

421
A propósito veja-se a interessante colectânea que reúne mais de 200 poemas dedicados a Camões, de
autores como Gaspar Frutuoso ou André de Resende até à actualidade. O texto antologiado de Graça Moura
é “Não sei se Camões hoje” (Cf. António Ruivo Mouzinho (org.), Camões, grande Camões…, Porto, Ed.
Unicepe, 2002, p. 217).
422
Fernando Martinho, “Camões e a poesia portuguesa contemporânea”, in Românica. Revista de Literatura,
nº 4, Departamento de Literaturas Românicas da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa-Ed.
Cosmos, 1995, p. 64.
423
Karlheinz Stierle, Existe uma linguagem poética? Seguido de obra e intertextualidade, loc. cit., p. 62.
424
Sobre a recepção mais próxima de Camões nas letras portuguesas, vejam-se Ofélia Paiva Monteiro,
“Camões no Romantismo”, Jorge Borges de Coelho, “Camões em Portugal no século XIX” e José Augusto
Seabra, “Camões e as gerações poéticas do século XX”, in Actas da III Reunião Internacional de
Camonistas, Coimbra, Universidade de Coimbra, 1987; José Augusto Seabra, “Camões e Jorge de Sena”, in
Eugénio Lisboa (org.), in Estudos sobre Jorge de Sena, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1984; e
ainda os artigos de Fernando J. B. Martinho e Maria João Borges, intitulados respectivamente “Camões e a
poesia portuguesa contemporânea” e “Ecos de Camões em alguns poetas contemporâneos”, in Românica.
Revista de Literatura, nº 4, Departamento de Literaturas Românicas da Faculdade de Letras da Universidade
de Lisboa-Ed. Cosmos, 1995; Luis Maffei, “O poeta em poetas: alguns Camões do século XX”, in Revista
Camoniana, vol. 17, 3ª série, 2005, pp. 159-177; José Carlos Seabra Pereira “Notas sobre Camões e o(s)
Modernismo(s) em Portugal”, in Isabel Almeida, Maria Isabel Rocheta e Teresa Amado (orgs.), Estudos.
Para Maria Idalina Rodrigues, Maria Lucília Pires, Maria Vitalina Leal de Matos, Lisboa, Departamento de
Literaturas Românicas da Faculdade de Letras de Lisboa, 2007, pp. 519-536); idem, “Camões e o(s)
Modernismo(s) em Portugal”, in Vítor Aguiar e Silva (coord.), Dicionário de Luís de Camões, Lisboa, Ed.
Caminho, 2011, pp. 147-153.

150
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

epígrafes. Desta forma, as citações iniciais que antecedem as colectâneas ou as


respectivas secções poemáticas, processo recorrente em Graça Moura, afiguram-se
também de particular significado, uma vez que espelham uma matriz camoniana e
determinadas opções temáticas desenvolvidas nos poemas que as seguem425. Esse
pórtico paratextual, por assim dizer, apresenta um significativo relevo, porque,
segundo Antoine Compagnon, “est la citacion par excellence […] Elle est sortout
une icône, au sens d’une entreé privillégie dans l’énonciation.”426
Assim, num fecundo exercício intertextual em torno de Camões, a epígrafe do
poema intitulado filho de adamastor surge a fala desencantada do gigante sobre a
ninfa Tétis: “que te custava ter-me neste engano / ou fosse monte, nuvem, sonho ou
nada?”427. O poema fado kitsch abre com um segmento da fala do Gama sobre as
dificuldades marítimas, que assevera narrar “e tudo sem mentir, puras verdades”428;
no texto conhecimento, a marca paratextual inaugural provém da Ilha dos
Amores429 – “que afago tão suave, que ira honesta” – e ainda haurida na lírica,
Graça Moura cita um passo da Canção X430: “nem eu delicadezas vou cantando”
(PR2, 346).
Os versos, de cariz celebrativo, em torno do autor de Tanto do meu estado me
acho incerto continuam com notável permanência:

“continuamente, escuta, me destruo


e as longas águas sem sossego fogem
e os ossos de dezembro coincidem
e são do inverno estas metamorfoses

não falarei da vida porque a vida


perdidamente triste se sustenta
de surdos pensamentos e desastres
e devagar a luz se lhe estrangula

sempre assim foi esta periferia


da escrita a desfazer-se e é no inverno

425
Nesta linha, José Saramago adverte: “Com a leitura das epígrafes dos meus romances já se sabe tudo”
(José Saramago, O caderno, Lisboa, Ed. Caminho, 2009, p. 211).
426
Antoine Compagnon, La seconde main ou le travail de la citacion, Paris, Éditions du Seuil, 1979, p. 337.
427
Vasco Graça Moura, “Letras do fado vulgar”, in Poesia 1997-2000, Lisboa, Ed. Quetzal, 2000, p. 205.
428
Luís de Camões, Os Lusíadas, V, 57, leitura, prefácio e notas de Álvaro J. Costa Pimpão, apresentação de
Aníbal Pinto de Castro, Lisboa, Instituto de Cultura Portuguesa-Ministério da Educação, 21989. Note-se que
os passos camonianos citados serão retirados desta edição.
429
Idem, ibidem, V, 23.
430
Luís de Camões, Rimas, texto estabelecido por Álvaro J. Costa Pimpão, apresentação de Aníbal Pinto de
Castro, Coimbra, Livraria Almedina, 1994, p. 223.

151
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

que nos olhamos com ferocidade


antes que o tempo devore outros discursos”. (PR1, 142)

O sujeito poético, movido por uma aguda consciência da existência, centra-se


fundamentalmente num passo final da Elegia III de Camões431 – “porque a vida /
de imaginações tristes se sustenta”432 –, passo que recria em “porque a vida /
perdidamente triste se sustenta”. Por conseguinte, o ponto de contacto resulta do
apego deliberado à tradição, consubstanciada na metáfora da inexorável voragem
temporal da “luz que se estrangula”, associada à precariedade da condição humana
de uma “vida / perdidamente triste”.
A celebração enunciada manifesta-se também em carta a l.v.c., título com as
iniciais de Luís Vaz de Camões, texto derradeiro da colectânea instrumentos para a
melancolia:

“rasteiros nesta praia mal forrada


os cardos rasam dunas aqui na caparica.
recordo o melodino, pois que te hei-de
mandar para macau ó provedor dos bens
dos defuntos? este sol pesado
o tomam roxas tetas sobre a areia
nos meandros de junho; os corpos faiscantes?
ruídos de motor? detritos?” (PR1, 214)

Consciente do relevo do imaginário camoniano na cultura nacional, cria-se uma


voz que transporta o leitor ao tempo do poeta no Oriente, pelas referências
biográficas e geográficas, concretamente em “macau”; no entanto, estabelece uma
ponte com o presente. A uma vida infeliz, mergulhada “na rudeza / Dũa austera,
apagada e vil tristeza”433, surge na actualidade um desconhecimento generalizado
do poeta, uma vez que em “meandros de junho”, a sugerir o dia de Camões, a 10 de
Junho, todos preferem aproveitar um dia de praia na “caparica”, onde a beleza
feminina de “as roxas tetas sobre a areia”, apresenta analogias com os atributos
sensuais de Diana, surpreendida no banho por Actéon, que observa as “lácteas
tetas” ou os “roxos lírios”434 da deusa da caça. Este registo desafia as fronteiras

431
Rocha Pereira dedica um artigo a esta elegia sob os ecos ovidianos do desterro. (Maria Helena Rocha
Pereira, “A elegia III de Camões”, in Camoniana varia, Coimbra, Centro Interuniversitário de Estudos
Camonianos, 2008, pp. 51-59).
432
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 242.
433
Luís de Camões, Os Lusíadas, X, 145, loc. cit.
434
Idem, ibidem, II, 36-37.

152
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

cronológicas e espaciais, prova cabal de que não há textos definitivos, devido à


continuada sucessão de novas significações, pois, no dizer de Octavio Paz, “el
poema es una virtualidade transhistorica que se atualiza en la historia, en la
lectura.”435
Noutro texto, o autor das Rimas volta a estar no centro da atenção de Graça
Moura:
“do camões são incertas as ossadas
e do pessoa é certa a dispersão.

a pátria deles somos nós, falamos


há séculos da máquina do mundo,
de deus em derredor deste rotundo
globo, astros, fogo, paralelogramos.

e em macro e microcosmos, neste análogo,


dão-se os encontros técnicos de estilo,
pode dar-se isto a um, ao outro aquilo,
e até imaginar-se o seu diálogo.” (PR1, 360)

Os versos transcritos revelam, na esteira do espírito romântico, o


desprendimento das glórias nacionais e da sua memória, onde vultos proeminentes,
como Camões e Pessoa, são ignorados436. O sujeito de enunciação apresenta o vate
quinhentista e o poeta da Mensagem assolados pela maldição e desprezo a que
foram votados, bem como dá conta da superioridade do seu génio. O olhar acusador
perante aqueles que apenas apreciam uma idolatria hipócrita dos seus poetas em
“encontros técnicos de estilo”, adensa-se na última estrofe em torno da vacuidade
de uma crítica falhada da obra dos poetas, face à tentação de lugares comuns e
leituras superficiais, contida na expressão irónica “macro e microcosmos”.
O sujeito de enunciação oferece, pois, uma imagem desencantada da identidade
histórica de Portugal (“a pátria dele somos nós”), concluindo que é um país que
abandona as suas principais personalidades, onde a “máquina do mundo”437,
metonímia épica da exaltação divina dos nautas, e o imaginário camoniano são
remetidos ao esquecimento.

435
Octavio Paz, Los hijos del limo, Barcelona, Ed. Seix Barral, 1974, p. 209.
436
Bocalino, no Hospital das Letras, denuncia a indiferença a que Camões foi votado: “Ignoramos a sua
vida, desprezamos a sua memória” (Francisco Manuel de Melo, Le dialogue “Hospital das letras”, texte
établi d'après l'édition princeps et les manuscrits, variantes et notes de Jean Colomès, Paris, Centro Cultural
Português, 1970, p. 37).
437
Luís de Camões, Os Lusíadas, X, 80, loc. cit.

153
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

Registe-se que estes aspectos disfóricos sobre a indiferença a que o autor


quinhentista é vítima são recorrentes na contemporaneidade, como, por exemplo,
dá conta Fala apócrifa de Camões, da autoria de David Mourão-Ferreira:

“É inútil buscarem o meu signo


Procurarem-me em ruas ou retratos
Sequer em grutas gritos manuscritos
Muito menos em fósseis ou falsas
pistas que de meus ossos não existem”.438

O eu lírico assume a voz de Camões e o seu carácter simulado, presente no


próprio título, adensa o mistério subjacente à vida e às vicissitudes da sua obra.
Note-se que as ressonâncias trágicas do abandono sentido pelos poetas junto dos
seus contemporâneos, constitui um topos na Antiguidade, testemunhado por Tito
Lívio na sentença latina que atribuiu a Cipião Africano: “Ingrata patria, non
possidebis ossa mea” (pátria ingrata, não merecerás os meus restos mortais),
citada por Camões na apodada Carta da Índia.439
A fecunda leitura em torno do Épico abre-se à memória de outros textos de
Graça Moura, comprovada em jorge de sena na ilha de moçambique, título
semelhante a Camões na ilha de Moçambique, da autoria do poeta das
Metamorfoses440:

“debruçado a esta janela quinhentista sobre a água lilás


do pôr do sol, jorge de sena repousava os olhos, ainda ofuscado
pela brancura da pedra e de tanta memória, gastando-se
até onde pobremente o camões se arrastara.

438
David Mourão-Ferreira, “Fala apócrifa de Camões”, in Obra Poética 1948-1988, Lisboa, Ed. Presença,
1988, p. 397. Neste contexto, onde Camões é ícone do injustiçado e incompreendido, vejam-se também os
versos de Jorge de Sena “Nada tereis, mas nada: nem os ossos” (Cf. Jorge de Sena, “Camões dirige-se aos
seus contemporâneos”, in Poesia II, Lisboa, Morais Editores, 1978, p. 99; veja-se ainda o verso “Este país te
mata lentamente”, da autoria de Sophia de Mello Breyner Andresen, “Camões a e tença”, in Dual, Lisboa,
Ed. Caminho, 2004, p. 72).
439
Luís de Camões, Obras Completas, vol. III - Autos e cartas, com pref. e notas do prof. Hernâni Cidade,
Lisboa, Ed. Sá da Costa, 41985, p. 244. Faria e Sousa ao comentar este passo camoniano assegura que o seu
“Poeta” partiu para a Índia tão amargurado, que tinha o propósito de nunca mais regressar à pátria (Luís de
Camões, Lusíadas, comentadas por Manuel Faria e Sousa, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda,
1972, t. I, col. 28).
440
Óscar Lopes assinala em esclarecida síntese de afinidades entre os dois autores o seguinte: “Vasco Graça
Moura, que até pela sua ensaística camoniana, pela mestria de tradutor poliglota e pela omnivoracidade
cultural tanto nos recorda Jorge de Sena, é, pela sua policrómica paleta humoral, pela agilidade com que, por
exemplo, tanto retoma a sextina renascentista como, mais recentemente, constrói um rigoroso e virtuoso
contraponto poético, a partir de um simples temas de lengalenga infantil – é, tanto quanto vejo, o mais
dotado autor que podemos reconhecer dentro de uma certa continuidade de Sena” (Óscar Lopes, “Alguns
nexos diacrónicos na poesia novecentista portuguesa”, in Cifras do tempo, Lisboa, Ed. Caminho, 1990,
p. 90).

154
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

fora uma tarde desmedida


de amargos deslumbramentos, de intimidades fragmentárias, de
coisas a ressoar (‘e nunca pude saber dele’
diz-se, na década oitava, de um manuscrito, roubado).

jorge de sena andou por aqui enxugando o suor com um enorme lenço
e rugidos na alma, e nem viu as acácias, o seu fogo insolente, as mulheres
[de máscara branca,
crispado entre os amigos nesta escala da passagem
de nada para parte nenhuma, por ruelas e pátios de má fortuna
[abandonados.

viu sim os rebocos desfeitos pela traça do tempo, tanta textura de flores
[esboroadas,
tanto mapa perdido de aventurosos destinos,
e viveu tudo isso como se o próprio orgulho a prumo, com o seu nobre
[olhar
de exilado, fosse uma altiva insensatez. […]

se andava por aqui crivado de dívidas e de versos


e lhe haviam tirado o seu parnaso e foi furto notável

e muito mais do que isso é comover-nos


este adobe de lembranças a destempo, esta severa condição
de um jogo limpo em que o real
só é dizível porque algumas palavras o destroem

e algumas palavras lhe resistem. anonimamente


jorge de sena voltou a pagar os duzentos cruzados da divida:
camões parte amanhã mas continua aqui.
nem é desterro nosso que assim seja”. (PR1, 274-275)

Baseada na atenção dispendida a uma experiência lírica alheia, a evocação


meditativa que a pena de Jorge de Sena fez da passagem de Camões pela ilha de
Moçambique441 e as contingências biográficas que a rodearam, confluem na
descrição de uma paisagem exótica (“água lilás / do pôr do sol”, “brancura da
pedra”, “calor”, “acácias” e “coral”). É, pois, a concretização de uma revisitação, a
um tempo, histórica e imaginária, do poeta quinhentista que por ali passou duas
vezes: rumo à Índia e no seu regresso a Portugal. A geografia dessas paragens no
Índico, de um indelével pendor reflexivo, é tributária de um contínuo legado
cultural442. Nos versos de Graça Moura são retomadas as formulações do autor de
Sinais de fogo acerca da solidão e do desespero vividos por Camões, prova cabal de
441
Jorge de Sena, “Camões na ilha de Moçambique”, in Poesia III, Lisboa, Ed. Moraes Editores, 1978,
p. 189.
442
Sobre a recepção camoniana nesta ilha do Índico, veja-se Jorge Fernandes da Silveira, “Era uma vez
Camões na Ilha de Moçambique”, in http://www.macua.org/coloquio/ERA_UMA_VEZ_CAMOES_
Jorge_Fernandes.htm (consultado em 20 Abril 2014).

155
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

um deliberado tributo. A metáfora da janela, “debruçado a esta janela


quinhentista”, símbolo de abertura ao mundo, faz recordar “Sob esta poesia me
inclino”443, o verso inaugural de um texto de Jorge de Sena, considerado, no dizer
de Jorge Fazenda Lourenço, “o grande poema de exílio do século XX e testamento
poético” do autor de Arte de Música.444
Em diálogo com o poeta de uma “vida / pelo mundo em pedaços repartida” 445,
Jorge de Sena consagrou diversos estudos sobre a sua biografia446, sendo nesta
linha que se integra o poema de Graça Moura, publicado na revista Colóquio-
-Letras, dedicada precisamente ao referido escritor447. O sujeito poético anuncia
melancolicamente o desterro e a miséria do vate quinhentista, cuja presença
simbólica, na referida ilha, “continua aqui”, ressonância do célebre relato que dele
faz Diogo do Couto nas suas Décadas. A pulsão referencial, associada ao Pós-
Modernismo, é um procedimento muito frequente em Graça Moura; a força da
essência poética permite que os destinos se cruzem e se entrelacem num espaço
repleto de múltiplas memórias. Simultaneamente não deixa de revelar a sua
filiação, pela convergência de destinos que a ilha propicia, numa linhagem poética
de que Camões e Sena, embora de épocas distintas, são dos mais altos expoentes,
sendo O soldado prático de Diogo do Couto tributário deste arquétipo.448
Segundo os seus biógrafos, Camões, desiludido com o Oriente, parte para
Moçambique, onde Diogo do Couto, a fazer fé das suas palavras na Década 8ª, o

443
Jorge de Sena, Poesia III, Lisboa, Ed. Moraes, 1978, p. 246. Gilda Santos, sob este prisma de análise,
afirma: “Esta transposição da vivência pessoal seniana para a figura do poeta renascentista construída pelo
discurso poético, esta alquimia de memória e ficção, projecta uma nova forma de perceber o mesmo Camões
cada vez mais palpável, mais próximo de nós” (Gilda Santos, “Vasco Graça Moura e Jorge de Sena: um
diálogo possível”, in Veredas, nº 1, Porto, 1998, p. 296).
444
Jorge Fazenda Lourenço, “Sobre esta praia” de Jorge de Sena, in Osvaldo Silvestre (coord.), Século de
ouro. Antologia crítica da poesia portuguesa no século XX, loc. cit., pp. 411 sqq.
445
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 221.
446
Fernando Martinho destaca neste poema, dotado de memórias e de uma deliberada filiação literária, dois
destinos que se cruzam, “pela convergência de andanças e destinos que a ilha propicia, numa linhagem
poética de que Camões e Sena serão dos mais altos expoentes” (Fernando J. B. Martinho, “Camões e a
poesia portuguesa contemporânea”, in op. cit., p. 67).
447
Vasco Graça Moura, “Jorge de Sena na Ilha de Moçambique”, in Colóquio-Letras, n.º 67, 1982, pp. 58-
-59.
448
Maria Vitalina Leal de Matos (“Camões lido por Diogo do Couto no Soldado prático”, in Camões:
sentido e desconcerto, loc. cit., p. 102) neste prisma destaca: “A imagem do poeta pobre, injustamente
recompensado, autor de uma obra grandiosa pelo lastro de cultura e experiência que envolve, e pelo conceito
de serviço desinteressado, heróico - ao mesmo tempo modelo criado pela literatura e exemplo vivido pelo
homem. A personagem do Soldado é claramente tributária desse tipo ou, talvez melhor, desse arquétipo”.

156
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

encontra “tão pobre que comia de amigos”449. Aí estaria a preparar a edição da sua
poesia lírica num volume intitulado Parnaso450, que, no dizer do historiador
quinhentista “continha muita poesia, filosofia e outras ciências”, porém, esse
volume foi furtado, como dá conta o sujeito poético: “(‘e nunca pude saber dele’ /
diz-se, na década oitava, de um manuscrito, roubado)” e “foi furto notável”. Neste
cenário, “jorge de sena voltou a pagar os duzentos cruzados”, aliviando ao autor
das Rimas, “crivado de dívidas e de versos”, o exílio e a peregrinação, situação
paralela vivida por ambos451. Com efeito, no dizer de Severim de Faria, a viagem
de Camões foi a expensas dos seus amigos que lhe deram o dinheiro necessário
para embarcar no regresso ao reino452, sendo, em última análise, uma metáfora da
dívida de todos os portugueses ao poeta.
Numa atitude reverencial, verifica-se em Graça Moura uma poesia assinalada
por uma marcante auto-referencialidade, onde se revela a voz da experiência
pessoal colhida no passado vivido por Camões e Sena. A evocação destes é, pois,
filtrada pelo sujeito poético, assumindo uma função intermédia entre os
acontecimentos passados e o momento da enunciação. O terminus do poema, sob o
signo da partida e do desterro, apresenta a figura modelar de Camões, homo uiator
estigmatizado pela miséria e abandono a que foi votado; num tempo marcado pela
desvalorização das letras, o aproveitamento poético e a abordagem crítica da
tradição humanista, de que Sena é figura charneira, fazem de Graça Moura um
vulto notável na divulgação da recepção do autor de Os Lusíadas. A valorização da
universalidade da poesia emerge, por assim dizer, da entabulação entre os três
poetas, síntese de encontro e comunhão estética dos poetas contemporâneos com o
universo camoniano.
Nesta linha, Gilda Santos identifica essas afinidades do seguinte modo:

449
Diogo do Couto, A década 8ª da Ásia, 2 vols., ed. de Maria Augusta Lima Cruz, Lisboa, Comissão
Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses e Imprensa Nacional-Casa da Moeda,
1993-1994, p. 471.
450
Idem, ibidem, pp. 472-473.
451
Isabel Pires de Lima, “Entre dois mundos: referências clássicas na poesia de Graça Moura”, in José da
Cruz Santos (org.), op. cit., p. 89.
452
Manuel Severim de Faria, “Vida de Camões”, in Discursos vários políticos, introd. Maria Leonor S.
Albergaria Vieira, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1999, p. 121.

157
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

“Os dois poetas, embora conhecedores das páginas de muitos e muitos escritores de várias
nacionalidades – com eles estabelecendo diálogos infindos – elegeram Camões como interlocutor
privilegiado. […]
Tanto Sena quanto Graça Moura, para lá dos estudos críticos que dedicaram ao poeta maior da
língua – hoje peças indispensáveis a quem se devote seriamente aos estudos camonianos –
revisitam inúmeras vezes os versos das Rimas ou d’Os Lusíadas em suas próprias navegações
poéticas.”453

Pelo que fica dito, perpassa na escrita de vgm uma continuada evocação da
riquíssima matriz camoniana, onde pontificam processos de revisitação plasmados
em variados registos. Com efeito, a partir de diversas modalidades de
intertextualidade sob o signo da ironia e da paródia – num tom ora mais humorado
ora mais sério –, o autor contemporâneo dá expressão a uma notável
mundividência, que permite indubitavelmente compreender Camões na
contemporaneidade.

2.2. Os rostos de Camões

Neste fascínio pela obra camoniana, ausência de certezas sobre a vida de


Camões e os problemas textuais que a sua obra levanta, sobretudo no que respeita
ao corpus da lírica, configuram uma das linhas interpretativas mais fecundas da
literatura portuguesa, que vgm conhece com particular acuidade. Feito de
continuadas controvérsias, o foco hermenêutico consagrado ao longo dos tempos,
não surge por acaso na atualidade, como se descortina na assinalável repercussão
no âmbito das letras portuguesas, bem como do universo lusófono.
Assim, entre os multifacetados campos de investigação dos estudos camonianos,
ganhou particular relevo a representação iconográfica do escritor quinhentista. As
vicissitudes decorrentes da inexistência de uma imagem fidedigna do poeta, onde
não faltam interrogações e invenções, constituem um campo de particular fascínio,
volvidos cinco séculos após a sua morte454. A consabida escassez de elementos
fisionómicos credíveis, que permitisse uma individualização segura dos seus traços,

Gilda Santos, “Vasco Graça Moura e Jorge de Sena: um diálogo possível”, in op. cit., p. 295.
453
454
Vide a título ilustrativo, o estudo de referência das obras iconográficas em torno de Camões, da autoria de
Bernardo Xavier Coutinho, Camões e as Artes Plásticas, Porto, Liv. Figueirinhas, 1946-1948.

158
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

culminou numa figuração idealizada – mas também estereotipada – do rosto de


Camões.
Vasco Graça Moura, com vivo interesse, não ignora o rico e vasto filão
exegético enunciado, quando sublinha:

“O verdadeiro retrato de Camões permanece um enigma. Só por representações aproximativas


poderemos fazê-lo corresponder a uma fisionomia cujos elementos principais se foram
sedimentando na tradição iconográfica e colectiva ao longo dos séculos, a partir de um ou dois
protótipos relativamente tardios em relação ao período em que o poeta viveu”.455

Esta área crítica da camonologia, possivelmente insolúvel de desvendar, surge


disseminada, com efeito, na produção literária e ensaística do autor de Camões e a
divina proporção. Caso paradigmático, em registo ecfrástico são os versos
consagrados a uma célebre escultura da autoria de José Aurélio, intitulada
justamente o busto de camões:

“o olho num ponto. a linha


a meio das feições.
a gola lechugiña.
a síntese: camões.” (PR2, 281)

Neste poema, o processo de escrita modela-se primordialmente pela sua


dimensão visual: a concisão verbal, a nitidez figurativa e o traço escultural
encontram uma notável convergência que concedem um estatuto de
monumentalidade ao objeto artístico456. A sugestiva face que anuncia um esplendor
majestático constrói-se numa imagética pouco convencional, comentada por vgm:
“leva a abstracção ao seu ponto mais alto, sem que deixemos de dizer que se trata
de Camões”457. A força decorrente da interpretação artística e iconográfica do
sintagma “a linha a meio das feições” revela, por seu lado, um rosto de inteireza,
pelo rigor depurado de execução.

455
Vasco Graça Moura, “Retratos de Camões”, in Vítor Aguiar e Silva (coord.), Dicionário de Luís de
Camões, loc.cit., p. 849.
456
A reiterada atenção de Graça Moura pela representação da imagética camoniana está presente também
neste trecho, quando cotejou trajes em diversos retratos quinhentistas: “As golas do tipo usado por Camões
no referido retrato tinham começado por ser pouco mais que do que um renque de folhos comedidamente
cingido ao pescoço, para depois se expandirem, muito embora à roda de 1560 a lei ainda não dispusesse,
quanto à respetiva guarnição de tafetá ou de seda” (Vasco Graça Moura, “Alfacinhas”, in Papéis de jornal.
Crónicas e outros materiais, Venda Nova, Ed. Bertrand, 1997, 114-115).
457
Vasco Graça Moura, Retratos de Camões, Lisboa, SPAutores-Ed. Guerra e Paz, 2014, p. 18.

159
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

Noutro passo, Graça Moura na descrição poética do labor criativo de José


Aurélio, reitera o tom evocativo camoniano:

“vi o busto de camões


tratado sem cerimónia”. (PR2, pp. 287-288)

No centro de uma parafernália de materiais fundamentais no processo artístico


emerge “o busto de camões”, tributo ao tratamento singular e “sem cerimónia” do
escultor, prova cabal da sua originalidade.
A fisionomia do autor de Os Lusíadas constitui, de facto, um eixo estruturante
dos versos de vgm, pelo modo admirável como contínua e insistentemente recria o
busto do poeta quinhentista:

“a barba ruiva
e uma pala no olho direito afeia-o notavelmente,
como pode ver-se do outro lado da imagem”. (PR1, 324)

Esta representação, centro de uma espiral de indagação, faz ressoar a imagética


do Príncipe dos poetas veiculada já em Seiscentos. Em Vida del poeta, um dos
textos inaugurais do comentário às Rimas, Faria de Sousa dizia que Camões era
“barbirubio”458 e já antes Severim de Faria, nos seus Discursos vários políticos,
embora se debruçasse primordialmente sobre a vida e obra do autor de Os
Lusíadas, fez um relato descritivo, em consonância com os versos enunciados 459:

“Foi Luís de Camões de meã estatura, grosso e cheio do rosto, e algum tanto carregado da
fronte, tinha o nariz comprido levantado no meio, e grosso na ponta; afeava-o notavelmente a falta
do olho direito, sendo mancebo, teve o cabelo tão louro, que tirava açafroado.”460

O núcleo semântico deste excerto reside, pois, na privação de uma vista, que o
poeta faz questão de mencionar na sua carta de Goa, quando se refere a Manuel
Serrão, “sicut ut nos, manqueja de um olho”461. Esta dura realidade, patente no
sintagma latino “como nós”, procurou o autor de Os Lusíadas superar por meio da

458
Luís de Camões, Rimas Várias, comentadas por Manuel de Faria e Sousa, com nota introdutória de F.
Rebelo Gonçalves, prefácio de Jorge de Sena, Lisboa, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1972, p. 44.
459
Fazendo jus às reiteradas analogias em torno dessa tradição, Prado Coelho considera que a imagem do
poeta é “produto de leitura criadora, essencialmente poética” (Jacinto Prado Coelho, “Camões na óptica de
Pascoaes”, in Camões e Fernando Pessoa, Poetas da utopia, loc. cit., p. 97).
460
Manuel Severim de Faria,“Vida de Camões”, in Discursos vários políticos, loc. cit., p. 145.
461
Luís de Camões, Obras Completas, vol. II - Autos e cartas, com pref. e notas do prof. Hernâni Cidade
Lisboa, Ed. Sá da Costa, 41985, p. 246.

160
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

ironia epistolar. No entanto, como assevera vgm462, o poeta quinhentista também dá


conta na sua produção poética dessa deficiência, que seguramente lhe terá causado
um desgosto e um sofrimento profundos, como sejam o mote da esparsa “a ũa
dama que lhe chamou cara-sem olhos”463 ou a Canção X, quando, por vontade
divina, refere que perdeu um olho em combate:

“Agora, experimentado a fúria rara


de Marte, que cos olhos quis que logo
visse e tocasse o acerbo fruto seu”.464

A sugestão metafórica do olho cerrado parece traduzir a pouca estima que


Camões tem de si, traço a que volta ao referir-se a alguém – ou a ele próprio – da
perda da visão:

“Como aquele que cegou


É cousa vista e notória,
Que a Natureza ordenou
Que se lhe dobre em memória
O que em vista lhe faltou.”465

Como se observa, o poeta ajudou a construir de si mesmo, ao longo dos seus


versos, um retrato e, com ele, um imaginário; a deficiência física que deformou o
poeta quinhentista acaba por o singularizar e constitui um topos que vai para além
do episódio e da figura que o originaram, como frisa com pertinência Carlos
Reis466.
Com efeito, a vista cega do autor de Os Lusíadas granjeou-lhe larga
popularidade no imaginário nacional, chegando, como é sabido, à esfera do satírico,
pela conhecida expressão do olho à Camões. Neste contexto, a título
exemplificativo, em As naus, da autoria de Lobo Antunes, num cenário da
complexa situação portuguesa pós-colonial, a lembrar uma pátria mergulhada numa
“austera, apagada e vil tristeza”467, não se afigura fortuita a analogia camoniana na
caracterização do protagonista, apesar da deficiência residir no olho esquerdo: “um
462
Vasco Graça Moura, Retratos de Camões, loc. cit., p. 26.
463
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 84.
464
Idem, ibidem, p. 227.
465
Idem, ibidem, p. 45.
466
Carlos Reis, “História literária e personagens na história: os mártires da literatura”, in Carlos Reis et alii
(org.), Uma coisa na ordem das coisas. Estudos para Ofélia Paiva Monteiro, Coimbra, Imprensa da
Universidade, 2012, pp. 97-119.
467
Luís de Camões, Os Lusíadas, X, 145, loc. cit.

161
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

homem de nome Luís a que falta a vista esquerda”468. Tal deformação física
ultrapassa inclusivamente as fronteiras nacionais, como Mendonça Teles dá conta
do olho vazado de Camões, quando cita, por exemplo, versos da autoria de Álvares
de Azevedo, poeta oitocentista brasileiro.469
No seu conto Diálogo na oficina, ao se referir às conturbadas circunstâncias
editoriais por que passou a publicação de Os Lusíadas, vgm não ignora a
iconografia de Camões; assim, as linhas dedicadas a esta matéria, surgem de um
modo sui generis, no derradeiro momento do conto, demostrando um admirável
conhecimento de Camões e do seu tempo.
Aí, Pero de Magalhães anuncia ao seu interlocutor:

“– Senhor Luís de Camões, compreendo vossa penúria e as boas razões que tendes de vos
queixardes. Mas já haveis acumulado mais glória em dois anos do que todolos outros que dos
feitos lusitanos escreveram. E sei que o conde de Vimioso vos mandou tirar pelo natural a Fernão
Gomes e que do retrato se fará gravura para acompanhar vossos Cantos. Aí tereis Jerónimo Luís
ocupado a abrir vossa imagem e António Gonçalves açodado a imprimi-la. Ora dizei-me se isto
não é a glória ...”470

Com efeito, na efabulação narrativa, a personagem informa que Fernão Gomes


fora incumbido de retratar o poeta, com o intuito de se fazer “gravura para
acompanhar os vossos cantos”471 constituindo uma tradição – que chega com vigor
à atualidade – pela correspondência generalizada da edição da obra à imagem do
autor. Note-se que A História de Província de Santa Cruz, da autoria de Pero de
Magalhães, contempla a abrir dois poemas camonianos, o soneto Vós, ninfas da
gangética espessura e a elegia Despois que Magalhães teve tecida, dedicados a D.

468
António Lobo Antunes, As naus, Lisboa, Ed. D. Quixote, 42000, p. 15. De modo semelhante, também
Mario Cláudio identifica uma personagem com Camões: “O antigo capitão da nau da China, reconhecendo-
-se completamente desamparado de quem o protegesse, lhe comprasse o livro, lhe satisfizesse a tença que
El-Rei lhe arbitrara, ou até de quem simplesmente se apercebesse da sua pessoa, despojar-se-ia enfim da
máscara que adoptara. E ao retirar a venda que lhe escondia a vista supostamente cega, revelando no sítio
desta um globo ocular arregalado para o vazio do mundo, o insólito fenómeno, descrito já, voltaria a
acontecer. Uma mancha difusa, e algo como uma nuvem que se esfarrapasse, e se recompusesse, atravessaria
o horizonte diante da Ribeira das Naus, e nela os mais doridos identificariam as feições inesquecíveis do
extinto Luís de Camões” (Mário Cláudio, Os naufrágios de Camões, Lisboa, Ed. D. Quixote, 2016, p. 172).
469
Gilberto Mendonça Teles, Camões e a poesia brasileira e o mito camoniano na língua portuguesa,
Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 42001, p. 223.
470
Vasco Graça Moura, “Diálogo na oficina”, in Morte no retrovisor, Lisboa, Ed. Quetzal, 2008, p. 69. Este
conto foi publicado pela primeira vez num suplemento do jornal Expresso: Luís de Camões, Os Lusíadas,
canto IX, comentários de José Hermano Saraiva e ilustrações de Pedro Proença, Lisboa, Ed. Expresso, 2003,
pp. 3-13.
471
Graça Moura preconiza que a gravura referida foi executada para ser incluída posteriormente na edição
de uma obra camoniana (Vítor Serrão e Vasco Graça Moura, “O retrato pintado a vermelho”, in Fernão
Gomes e o Retrato de Camões, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1990, p. 45).

162
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

Leonis Pereira, governador de Malaca. Estes textos levam Graça Moura a colocar a
hipótese de uma estreita ligação de amizade, talvez iniciada no Oriente, apesar de
nada se saber quanto ao convívio entre os dois autores472. Apenas se sabe que
Gândavo e Camões viram as suas obras saídas dos prelos de António Gonçalves
sensivelmente na mesma altura. Entre outros escritores de nomeada, também
Jerónimo Corte-Real ou Jerónimo Osório, mencionados em Diálogo na oficina,
tiveram obras editadas pelo mesmo impressor, o que confere um simbolismo
indelével ao espaço da acção, pelos detalhes aduzidos nos preparativos da edição
prínceps de Os Lusíadas. Aqui, com grande rigor e erudição, não falta a alusão a
Jerónimo Luís, à altura o único ilustrador de Lisboa, que trabalhava para António
Gonçalves, como em Retratos de Camões referirá Graça Moura.473
No entanto, o retrato não patenteia a perfeição do agrado do poeta quinhentista,
o que o leva a recriar tal desacordo em verso:

“– Senhor Pero de Magalhães, bem me afadiguei a corrigir a cópia tirada dos borrões. Também
cri que do conde me viria mais algum apoio. Mas foi em vão. Agora não me sobra calor nem
contentamento para nada. E do retrato escrevi uma glosa:
“Retrato, vós não sois meu,
Retrataram-vos mui mal;
Que, a serdes meu natural,
Fôreis mofino como eu.” 474

Com um marcante carácter irónico, a consciência crítica equacionada, capaz de


articular as funções poética e a metapoética, desenha nos versos camonianos uma
consciente autorreflexividade, com evidentes traços de modernidade475. Graça

472
Vasco Graça Moura, “Sobre Camões, Gândavo e outras personagens”, in Sobre Camões, Gândavo e
outras personagens. Hipóteses de história da cultura, Porto, Ed. Campo das Letras, 2000, p. 139.
473
Vasco Graça Moura, Retratos de Camões, loc. cit., p. 44.
474
Este poema integra a edição da lírica camoniana realizada pelo Visconde de Juromenha (Cf. Luiz de
Camões, Obras, vol. IV, precedidas de um ensaio biographico no qual se relatam alguns factos
desconhecidos da sua vida, augmentadas com algumas composições inéditas do Poeta pelo Visconde de
Juromenha, Lisboa, Imprensa Nacional, 1863, p. 115-117. Note-se que este poema não é reconhecido na
edição de Costa Pimpão (Luís de Camões, Rimas, loc. cit.) para ser incluído no cânone mínimo,
contrariamente à maioria dos estudiosos. Ainda que os problemas da autoria e da fixação textual suscitem
dúvidas, Graça Moura, conhecedor das edições das Rhythmas, apresenta os diversos estudiosos que dão a
autoria das redondilhas a Camões, saídas pela primeira vez em 1668, na Terceira Parte das Rimas editada
por D. António Alvarez de Cunha, e não vê qualquer argumento válido para o considerar apócrifo (Vítor
Serrão e Vasco Graça Moura, “O retrato pintado a vermelho”, in Fernão Gomes e o Retrato de Camões,
Lisboa, loc. cit., p. 44).
475
A predileção do autor contemporâneo por este texto volta a ser motivo de interpretação noutro momento.
Ao não se cansar de sublinhar a importância crucial da composição enunciada, Graça Moura defende um
curioso ponto de vista sobre os conhecimentos camonianos das artes plásticas do seu tempo no seguinte
trecho: “As redondilhas Retrato vós não sois meu desenvolvem uma consequente teoria maneirista do

163
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

Moura, em torno da importância de que se reveste este passo, faz questão de o


interpretar: o mote anuncia que o retrato não se assemelha à efígie de Camões e foi
mal executado, porque, se fosse representado como o poeta queria, seria tão infeliz
como ele próprio.476
Neste sentido, as glosas, desenvolvimento pessoal do mote, legitimam essa
asserção:

“Inda que em vós a arte vença


O que o natural tem dado,
Não fostes bem retratado,
Que há em vós mais diferença
Que do vivo ao pintado.
Se o lugar se considera
Do alto estado que vos deu
A sorte, que eu mais quisera;
Se é que eu sou quem de antes era,
Retrato, vós não sois meu.[… ]

Mas se esse rosto fingido


Quisereis representar,
E houveram por bom partido
Dar-vos a alma do sentido
Pera a glória do lugar,
Víreis, posto nessa alteza,
Que em vós não há cousa igual;
E que nem a maior mal
Podeis vir, nem por baixeza,
Que a serdes meu natural.

Por isso não confesseis


Serdes meu, que é desatino
Com que o lugar perdereis;
Se conservar-vos quereis,
Blasonai que sois divino;
Que, se nesta ocasião
Conhecessem que éreis meu,
Por meu vos deram de mão,
[e bem que vós então] 477
Fôreis mofino, como eu.” 478

retrato, no modo como exploram um desajustamento entre as qualidades e deficiências do modelo e as


quantidades e falsidades da representação” (Vasco Graça Moura, “Do maneirismo ao pé de letra”, in Papéis
de jornal. Crónicas e outros materiais, loc. cit., p. 188). Também a encerrar, em apêndice, os seus Retratos
de Camões (loc. cit., pp. 82-84), vgm volta a incluir na íntegra este poema, considerando-o de autoria
camoniana.
476
Vítor Serrão e Vasco Graça Moura, “O retrato pintado a vermelho”, in Fernão Gomes e o Retrato de
Camões, loc. cit., p. 45.
477
Como faz questão de indicar, Graça Moura segue a sugestão proposta por Vítor Manuel Aguiar e Silva no
penúltimo verso em falta no texto original (Vasco Graça Moura, Retratos de Camões, loc. cit., p. 84, nota 2).
478
Idem, ibidem, pp. 82-84.

164
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

Com efeito, o tema proposto é parafraseado pelo sujeito de enunciação,


retomando os versos do mote no final de cada glosa, com era usual nas designadas
composições obrigadas a mote. Assim, através de um processo metonímico, surge
uma composição poética de pendor lírico, que Graça Moura resume em notável
sensibilidade analítica, o que comprova a significativa importância que lhe confere:

“Para Camões, temos as redondilhas já referidas Retrato, vós não sois meu que eu insisto em
ver associadas ao retrato de Fernão Gomes. A glosa do mote desenvolve-se como um jogo
conceptual entre a representação e o real, entre o natural e o pintado e, num plano mais
propriamente existencial, entre a condição infeliz do retratado e a consagração mundana que o
retrato proporciona. O retrato é, por assim dizer, ‘infiel’ àquela condição amargurada, muito
embora a arte do pintor favoreça fisicamente o retratado. Observe-se que a referência a uma
sepultura pode corresponder à existência luxuosa no interior de um livro. Enfim, segundo o poeta,
o pior que a tal retrato podia acontecer seria corresponder à condição do retratado e perceber-se de
quem era...”479

Graça Moura, profundo conhecedor de Camões – e do que com ele se relaciona


nos mais variados domínios –, no momento derradeiro da narrativa desenha uma
exímia inventiva ficcional, graças à convocação e intersecção de diversos
elementos ligados às vicissitudes da biografia do vate quinhentista, da fortuna
editorial da obra e da própria imagem do poeta480. Tudo isto se enquadra no que
declarou Luís Borges em admirável síntese: “Existe algo de misterioso em Camões,
não apenas no seu destino, mas no destino da sua obra.”481
Nesta linha, o corolário da atenção despendida sobre esta matéria está patente no
volume Retratos de Camões, a primeira obra póstuma de Graça Moura – embora
ainda tivesse acompanhado, como frisa o seu editor, a preparação da publicação da
obra482. Apresenta o autor contemporâneo no referido livro um minucioso estudo
diacrónico das imagens de Camões, identificando aquelas que terão sido executadas
em vida do poeta e as que deram origem à representação que dele ficou. Desse
modo, vgm revisita, em incisivo ensaio, o rico e vasto itinerário interpretativo dos
traços físicos do autor de Os Lusíadas presente nas artes plásticas, que se estende

479
Idem, ibidem, p. 84.
480
Na leitura global do poema, Camões, além de dialogar com a imagem do seu próprio retrato, deixa
antever que, ainda em vida, foi mandado pintar por alguém de condição social elevada. Tal pressuposto é
sublinhado por Aníbal Almeida ao considerar o quadro dirigir-se a um “original antigo”, aceitando, pois, a
possibilidade de o quadro ter sido executado em vida do poeta (Aníbal Almeida, O rosto de Camões, Lisboa,
Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1996, 105).
481
Jorge Luis Borges, Destino e obra de Camões, Buenos Aires, Ed. Embaixada de Portugal, 2001, p. 105.
482
Fonseca, Manuel S., “Nota do editor”, in Vasco Graça Moura, Retratos de Camões, loc. cit., pp. 10-11.

165
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

desde Quinhentos, até à atualidade, com pinturas, por exemplo, de Júlio Pomar ou
esculturas de José Aurélio e de João Cutileiro483. Com efeito, às incertezas
resultantes do desconhecimento da uera effigies de Camões, junta-se a vasta
iconografia vindoura que contribuiu, como assevera Aníbal Almeida484, para uma
“diluição sistemática da sua imagem material” que curiosamente não impede o
reconhecimento imediato do poeta.
Assim, debruça-se fundamentalmente sobre os três primeiros quadros que
condicionaram a tradição iconográfica do Épico, que envolvem, até à data,
problemas hermenêuticos de carácter distinto485. O retrato feito por Fernão Gomes,
a gravura Camões na prisão e a designada miniatura da Casa Rio Maior revelam,
face ao aparato analítico enunciado, um autor familiarizado com a matéria tratada,
bem como um indefetível camonista disponível para dar a conhecer as infinitas
incertezas que, a um tempo, acompanham a vida, obra e iconografia do vate
quinhentista486
Sobre a primeira gravura enunciada, Graça Moura traça o panorama dos
proprietários da cópia e contextualiza as vicissitudes pelas quais a gravura terá
passado, como já foi abordado anteriormente a propósito da evolução diegética de
Diálogo na oficina.

483
Como refere em entrevista, o continuado apreço de Graça Moura pelos retratos de Camões, próprio de
um invulgar espírito de investigador, fica-se a dever às “tentativas de decifração de um determinado enigma”
(José Viale Moutinho, “Apenas a transcrição de uma conversa. José Viale Moutinho / Vasco Graça Moura
(que poderá ser apensa às actas)”, in José da Cruz Santos (org.), Modo mudando. Sete ensaios sobre a obra
de Vasco Graça Moura, Porto, Ed. Campo das Letras, 2000, pp. 154-155).
484
Aníbal Almeida, O rosto de Camões, loc. cit., p. 99.
485
Este explícito tributo a Camões deriva, em grande medida, da conceção de retrato de vgm, que o autor
define com notável saber e particular acuidade: “O retrato como género artístico proporcionou desde sempre
uma série de temas de reflexão verdadeiramente fascinantes. Entre eles, podemos enumerar as relações entre
pintor e modelo, as relações de semelhança e dissemelhança entre o retrato e o retratado, a captação de
estados anímicos ou físicos do retratado que possam ser propostos ao espectador pela via do retrato, a
interpretação de estilos, expressões faciais, olhares, morfologias, símbolos, ornatos e indumentárias,
legendas, dados históricos, contextos, relações com programas iconográficos filosóficos, etc., etc., numa
rede de perspetivas e modalidades do conhecimento que são abordagem quase ilimitada e em que a figura
humana individualizada e as modalidades da representação constituem o tema fundamental” (Vasco Graça
Moura, Retratos de Camões, loc. cit., pp. 15-16).
486
Outros camonistas dispensaram igualmente uma particular atenção à efígie de Camões. Veja-se, por
exemplo, Costa Ramalho, que, em artigo consagrado a este tema, comenta, entre outros, os dois quadros
referidos (Américo da Costa Ramalho, “Para a iconografia de Luís de Camões”, in Estudos camonianos,
Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1980, pp. 87-89).

166
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

No que concerne ao famoso retrato designado por Camões na prisão, de autoria


desconhecida, onde o poeta parece estar em posição de escrita487, apresenta vgm488
uma acutilante análise, fruto de um apurado labor crítico pela controvérsia que a
obra encerra. Na crónica semanal do Diário de Notícias, corrobora a tese de Maria
Antonieta Soares de Azevedo, que revelou o quadro oriental em 1972489 e apresenta
a hipótese de ser anterior ao retrato camoniano de Fernão Gomes. Num discurso
repleto de referências eruditas, mas de acessível inteligibilidade, vgm analisa o
itinerário do referido quadro através dos seus diversos proprietários e conjetura
uma singular contextualização; no seu dizer, Camões está, na ilha de Moçambique,
a trabalhar no canto X de Os Lusíadas:

“Não sabemos se a prisão em que o poeta se encontra é a de Goa ou a da Ilha de Moçambique.


Seria muito perto da água, uma vez que, da cela, se avistam dois mastros de navio pela janela do
lado esquerdo. Na planta de Linschoten (1596), vemos que o tronco de Goa não ficava
propriamente à beira da água, mas mais recuado. Já na Ilha de Moçambique, que é uma estreita
língua de terra, de 3 km de comprimento com uma largura entre os 300 e os 500 m, seria
praticamente impossível não estar junto à água, o que explicaria a proximidade das
embarcações”.490

Sublinhe-se que vgm alterou a sua posição interpretativa graças à «relevância


documental» existente sobre o quadro491, prova cabal de um acutilante espírito
crítico. Esta admiração incondicional, que percorre toda a obra do autor de carta a
l.v.c., permite, com efeito, uma singular releitura e recepção do retrato de
Camões492. Ainda segundo Graça Moura, numa interpretação ousada, porém arguta

487
No seu retrato de Fernando Pessoa, Almada Negreiros parece ter em conta o momento criativo sugerido
pela gravura de Camões, uma vez que pinta o poeta modernista em posição idêntica e destaca ainda o
resultado da escrita: o número 2 da revista Orpheu sobre a mesa tem paralelo com o borrão camoniano do
canto X de Os Lusíadas apresentado no quadro quinhentista, segundo o ponto de vista de Graça Moura. No
dizer de José-Augusto França (A Arte em Portugal no Século XX, 1911-1961, Lisboa, Ed. Bertrand, 1991,
p. 498): “Trata-se de um dos grandes retratos da pintura portuguesa, e uma das obras mais significativas de
Almada”. Nesta sequência de inspiração camoniana, também Júlio Pomar, com o seu traço característico,
dedica dois pinturas alusivas ao referido gesto do autor de Os Lusíadas na prisão de Goa, reproduzidas em
Vasco Graça Moura, Retratos de Camões, loc. cit., pp. 73-74.
488
Moura, Vasco Graça, “Camões na prisão”, in Diário de Notícias, 9 Outubro 2013.
489
Maria Antonieta Soares de Azevedo, “Uma nova e preciosa espécie iconográfica quinhentista de
Camões”, in separata da Revista Panorama, nº 42-43, Lisboa, 1972, pp. 75-92.
490
No permanente fascínio pelo legado iconográfico camoniano, mas que também encerra pertinentes
questões biográficas, o autor já dedicara anteriormente um outro artigo, intitulado Sobre o retrato de Goa,
assente numa ampla e diversificada bibliografia (Vasco Graça Moura, “Sobre o retrato de Goa”, in Os
penhascos e a serpente e outros ensaios camonianos, Lisboa, Ed. Quetzal, 1987, pp. 67-72).
491
Vasco Graça Moura, Retratos de Camões, loc. cit., p. 15.
492
Graça Moura, ostentando uma invulgar cultura, em texto prefacial trata a especificidade do retrato na
obra do pintor quinhentista António Moro, testemunho indubitável de um gosto e saber sobre este género

167
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

e documentada, preconiza que o referido quadro é uma auto-representação do


próprio poeta; com efeito, coloca a arrojada hipótese do Retrato da prisão, de
autoria desconhecida, “tenha saído da mão do próprio Camões, num momento de
narcisismo auto-contemplativo”, visto que não se trata de obra saída da mão de um
profissional.493
Por sua vez, a designada Miniatura da Casa de Rio Maior, demonstrativa de um
incessante culto camoniano, oferece uma imagem nova do poeta, marcada pelo
exotismo. Também não se conhece em concreto a sua autoria e possui a
particularidade de ter sido feita postumamente a partir de testemunhos orais de
navegadores que conheceram Camões no Oriente. Segundo Graça Moura, poderia
destinar-se a integrar um exemplar da edição princeps de Os Lusíadas de 1572,
pertencente a D. Luís de Ataíde, irmão de Vasco de Ataíde, um dos amigos de
Camões na Índia.494
Nesta ampla cartografia da representação figurativa de Camões, que conheceu
significativa divulgação por via dos livros impressos, vgm alude à conhecida
gravura seiscentista de A. Paulus que inicia, por assim dizer, essa tradição
iconográfica. A representação inserta em Discursos vários políticos, da autoria de
Manuel Severim de Faria, em 1624, constitui, no dizer de Graça Moura, “um
protótipo, que virá a condicionar a representação das feições do épico ao longo do
tempo, com maior ou menor variação”.495
Assim, o retrato de Paulus teria sido copiado mais tarde por Manuel de Faria e
Sousa e surge na portada dos seus comentários à epopeia camoniana, editados em
1639. Entretanto, também inspirado na mesma imagem, sai, em 1641, um retrato da
autoria de Agostinho Soares Floriano496 na Apologia em que defende João Soares
de Brito a Poesia do Príncipe dos Poetas d’Espanha Luís de Camões, volume que
traz à colação uma acesa polémica seiscentista em torno da obra camoniana.497

artístico (Moura, Vasco Graça, “Denotações da majestade”, in Annemarie Jordan, Retrato da corte em
Portugal. O legado de António Moro, Lisboa, Ed. Quetzal, 1994, pp. 9-15.
493
Vasco Graça Moura, Retratos de Camões, loc. cit., p. 59.
494
Idem, ibidem, p. 48.
495
Idem, ibidem, p. 31.
496
Idem, ibidem, p. 31-33.
497
José Manuel Ventura, João Soares de Brito. Um crítico barroco de Camões, Coimbra, Imprensa da
Universidade, 2010.

168
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

Também o fundo lendário em redor da vida nebulosa do poeta, tendo como base
a perspectiva iconográfica, ao proporcionar, no dizer de Jorge de Sena, um “convite
à imaginação”498, abre caminho a inúmeros indícios e hipóteses várias,
contribuindo para perpetuar essa cosmovisão.
Graça Moura demonstra, pois, essa realidade no poema sugestivamente
intitulado retrato da infanta, conjecturas:
“quando f.º de ollanda foi pintar a infanta
d. maria, preparou cuidadosamente
a tábua de carvalho, com várias
camadas leves de cola e gesso e duas mãos
de imprimidura de terra de
sintra, bem lisa e uniforme.
escolheu os pincéis mais macios, os
pigmentos mais nobres para lavrar a óleo,
bem moídos na pedra, salvo os azuis que usaria
para uma delgada atmosfera directamente na paleta.
recordou, de itália, a luz batendo em tons de âmbar
na fronte das mulheres que conhecera […]

por um lado é possível que o retrato


ficasse em vez da infanta
propriamente dita quando ela,
podendo inda ser contente, nem tendo

a esperança perdida, clandestinamente,


se entregava a devoções camonianas.
mas por outro é possível, bem possível
que o camões nunca tenha tido nada
a ver com ela. não se sabe e a
tábua perdeu-se”. (PR1, pp. 353-354)

No incipit do poema, ancorado numa deliberada sugestão camoniana, o sujeito


de enunciação destaca uma das muitas amadas atribuídas ao autor de Os Lusíadas,
a Infanta D. Maria, retratada por Francisco de Holanda499.

498
Jorge de Sena, a este propósito, afirma: “É certo que pouco ou nada se sabe de concreto acerca desse
homem, cujo nascimento, cuja vida, cuja morte e cujos restos mortais são duvidosos, maravilhosamente
duvidosos. O que é um convite à imaginação” (Jorge de Sena, “A poesia de Camões. Ensaio de revelação da
dialéctica camoniana”, in Trinta anos de Camões. 1948-1978, Lisboa, Ed. 70, 1980, pp. 17-18).
499
Sobre pontos de contactos, biográficos e estéticos, entre Camões e Francisco de Holanda, artistas
coetâneos, cf. Sylvie Deswarte-Rosa, “O templo da pintura: Camões e Francisco de Holanda”, in Seabra
Pereira e Manuel Ferro, (coord.), Actas de VI Reunião Camonistas, Coimbra, Imprensa da Universidade,
2012, pp. 567-584. Vide ainda em torno do panorama artístico no tempo do autor de Os Lusíadas, a título de
exemplo, os estudos fundamentais de Francisco Faria Paulino (coord.), A pintura maneirista em Portugal:
arte no tempo de Camões, Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos

169
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

A beleza que irradia destes versos ancora-se, neste caso, no momento fundador
do processo criativo de vgm. A materialidade – patenteada na madeira, no óleo e
nos pincéis – é meticulosamente evocada através de uma pormenorizada referência
aos elementos subjacentes à produção artística. Além disso, a valorização de novos
materiais, “o gesso” e a “terra / de sintra bem lisa e uniforme”, concedem
maleabilidade e aperfeiçoamento de execução, comprovada também no sintagma
“escolheu os pincéis mais macios, os / pigmentos mais nobres para lavrar a óleo”.
O detalhe enunciado demonstra, através do estímulo propiciado pelos sentidos, a
consciência compositiva de Francisco de Holanda, pontificada pela paciência,
reflexão e destreza manual. Deste modo, o exímio gesto sobre a superfície da tábua
é fixado não no modelo, mas na inclusão dos materiais e técnicas que dão forma à
realização pictórica. Os versos, condicionados pela perda do quadro, mostram a
forma como a suposta pintura foi produzida, com o intuito de proporcionar o efeito
visual da poesia, configurando uma espécie de metamorfose ecfrástica, uma vez
que a Infanta não é retratada, como é usual; ao invés, são valorizados os materiais e
técnicas que lhe dão origem ao sugestivo labor in fieri.
Importa, por seu lado, considerar aqui a alusão da viagem de Francisco de
Holanda a Itália, onde tomou contacto com uma base teórica de cariz maneirista
que lhe permitiu uma assinalável evolução estética; na realidade, a sólida formação
adquirida permitiu-lhe um tratamento singular da luz, traço inovador e
determinante nos seus quadros500. A presença tutelar deste reconhecido artista traz
aos versos uma constante modalidade reflexiva, atributo metapoético de particular
agrado de vgm; no entanto, nos versos há como que um vazio, uma vez que não
concretiza a figuração da filha de D. Manuel I. Com efeito, a deliberada
centralidade de que se revestem técnicas e procedimentos dos grandes mestres, que
Graça Moura conheceu bem, fornecem um inestimável contributo para melhor
entender a conceção de arte no tempo de Camões.501

Portugueses, Fundação das Descobertas - Centro Cultural de Belém, 1995 e Pedro Eugénio Dias Ferreira de
Almeida Flor, A arte do retrato em Portugal nos séculos XV e XVI, Lisboa, Ed. Assírio & Alvim, 2010.
500
José Stichini Vilela, Francisco de Holanda - vida, pensamento e obra, Lisboa, Instituto de Cultura e
Língua Portuguesa, 1982, pp. 14-15.
501
Graça Moura, em sugestivas e oportunas páginas, dá conta das eventuais relações entre a poesia
camoniana e a iconografia maneirista, testemunho indelével de um continuado labor sobre a

170
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

Num mar de incertezas em torno da ligação do poeta quinhentista à Infanta,


expresso no segmento “é possível, bem possível / que o camões nunca tenha tido
nada / a ver com ela”, enlaçada à assertividade de “a / tábua perdeu-se”, a estratégia
discursiva tem o mérito de interpretar e comentar, uma vez que o problema
equacionado é trazido para dentro do espaço poético.
A relação entre Camões e a princesa, propugnada pelas obras críticas de José
Maria Rodrigues502, é assim revisitada por Graça Moura, não deixando, no entanto,
de sugerir uma possível efabulação romanesca. Esta perspectiva, norteada por uma
linha de interpretação biográfica – refutada por muitos críticos, pela sua precária
base documental503 –, vem, em boa parte, na esteira da receção da vida e obra de
Torquato Tasso em Portugal. Deste modo, a Infanta D. Maria apresenta-se como a
grande paixão inatingível de Camões, leitura que tem paralelo nos amores lendários
entre o autor de Gerusalemme Liberata e a princesa de Ferrara, Leonor d’Este504.
Por outro lado, neste processo indagativo do poema de vgm, o sintagma “a / tábua
perdeu-se” encerra outra questão sobre a veracidade da pintura; não obstante,
parece ter sido executada ad uiuum, no dizer de versos de Manuel da Costa, como
destacou Carolina Michaelis.505
Em demanda da decifração de um mistério perpetuado pelo tempo, Os Retratos
de Camões de Graça Moura, pela sua dimensão cultural, identitária, hermenêutica e
poética constituem indubitavelmente uma marca distintiva da escrita do autor
contemporâneo.

contextualização cultural do autor de Os Lusíadas (Vasco Graça Moura, “Vénus e Tritão: dois retratos”, in
Luís de Camões: alguns desafios, loc. cit., pp. 101-109).
502
A leitura falaciosa da obra à luz da complexa relação entre a obra e a vida mereceu diversos estudos a
José Maria Rodrigues em torno da relação entre Camões e Infanta, como sustentou em diferentes momentos.
Cf. José Maria Rodrigues, Camões e a infanta D. Maria, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1910; Luís de
Camões, Lírica, ed. crítica por José Maria Rodrigues e Afonso Lopes Vieira, Coimbra, Imprensa da
Universidade, 1932 e José Maria Rodrigues, A tese da Infanta nas Líricas de Camões, Coimbra, Imprensa da
Universidade, 1933-1934.
503
Vanda Anastácio, “A Infanta D. Maria”, in Vítor Aguiar e Silva (coord.), Dicionário de Luís de Camões,
loc. cit., pp. 568-572.
504
Cf. Manuel Simplício Geraldo Ferro, A recepção de Torquato Tasso na épica portuguesa do Barroco e
Neoclassicismo, loc. cit., 2004, pp. 123 sqq. Também já Costa Miranda notara o paralelismo entre os
presumíveis amores vividos por Camões e por Tasso. José da Costa Miranda, “Camões / Tasso, um
confronto e algumas semelhanças, segundo a crítica portuguesa”, in III Reunião Internacional de
Camonistas. Actas, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1987, p. 402.
505
Cf. Carolina Michaelis de Vasconcelos, A Infanta D. Maria de Portugal e as suas damas, Lisboa,
Biblioteca Nacional, 21994, p. 102.

171
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

Assim, perante os exemplos aduzidos, Graça Moura perscruta incessantemente a


tradição imagética do autor das Rhythmas, aliando uma brilhante uis poética a uma
notável análise ensaística. A sua singular exegese fornece, pois, um pertinente
contributo para a abordagem das complexas e variadas questões suscitadas pela
iconografia de Camões, parte indelével da memória coletiva nacional e dos valores
por ela emanados.

2.3. Uma voz deflectida

A capacidade criativa de vgm feita de “palimpsestos / nas sombras de seus


pequenos volumes” (PR1, 192) irrompe também em a variação dos semestres deste
ano:

“o que é o mundo, os grandes nomes,


fortuna, caso, tempo e sorte? nesta ausência de ruídos
exteriores ao vento, ululando entre gaivotas
e referências cultas, cancrizantes, quem falou de conchinhas
ruivas ou cor das nuvens ao nascer do dia, brancos búzios
[brandos,

águas claras, delicadas pedrinhas contáveis sob as transparentes?


o camões? o pessanha?” (PR1, 225)

Com uma sensibilidade muito própria, o sujeito de enunciação perscruta o fulgor


da palavra, através da interrogação inicial: “o que é o mundo os grandes nomes, /
fortuna, caso, tempo e sorte?”. Neste pendor erudito, decalca expressões
identificáveis da produção camoniana; deste modo, a estratégia da intertextualidade
– explícita no passo “fortuna, caso, tempo e sorte”506 – provoca no leitor a fruição
do reconhecimento, processo recorrente da poesia portuguesa mais recente, como
sublinha Rosa Martelo507. Os versos seguintes condensam liricamente essa
estratégia, uma vez que a construção textual resulta justamente de outras alusões

506
Veja-se, a propósito, “Verdade, amor, razão, merecimento, / Qualquer alma farão segura e forte; / Porém,
fortuna, caso, tempo e sorte / Têm do confuso mundo o regimento” (Cf. Luís de Camões, Rimas, loc. cit.,
p. 199).
507
Cf. Rosa Maria Martelo, “Tensões e deslocamentos na poesia portuguesa depois de 1961”, in Vidro do
mesmo vidro: tensões e deslocamentos na poesia portuguesa depois de 1961, loc. cit., p. 47.

172
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

cultas explícitas508. As “águas claras, delicadas pedrinhas contáveis” descrevem


uma natureza perfeita, a lembrar o tópico do locus amoenus, patente em Camões na
Écloga VII, conhecida pela dos Faunos: “Tão claras vão as águas caminhando / que
no fundo as pedrinhas delicadas / se podem, ũa a ũa, estar contando”509.
O valor semântico das “conchinhas” convoca também o conhecido verso de
Pessanha, “Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos”510, metáfora da fragilidade
humana, um dos principais sentidos estruturantes da cosmovisão do poeta
simbolista. Nessa indagação, as questões finais do sortilégio lírico residem na busca
da perfeição, onde as reminiscências camonianas se mesclam, em clave pós-
-moderna, com uma admiração estendida também a Camilo Pessanha.
Os versos configuram ostensivamente uma voz de vozes que conjuga a
criatividade poética através do diálogo. A poesia reflecte sobre si própria e o texto
torna-se coeso precisamente pelo sistema de referências enunciadas. A consciência
estética joga-se essencialmente nessas afinidades marcantes, tendo consagrado
Graça Moura, num artigo intitulado precisamente Camões, Pessanha e Eu, uma
breve análise sobre as motivações que presidiram à concepção do referido
poema.511
Animado pela admiração referida, veja-se o seguinte texto, intitulado
phantasiestück:

“entre tempo e figura e apertada angústia,


metamorfoses, transparências, luzes,

e as armadilhas do camões: o poema


é um beco sem saída, a certeza sumária
de ser também lugar do sofrimento, mas de breves
inteligências, reenvios, exílios.

não há mentira nem verdade, apenas os fragmentos

508
Frederico Lourenço, a propósito da análise de um epigrama de Calímaco e baseado num estudo de
Francis Page, atribui às conchas um critério de aferição de qualidade artística, amplamente divulgada desde
a Antiguidade até à actualidade, cujo paradigma é o Nascimento de Vénus de Boticelli (Frederico Lourenço,
“A arte poética de Calímaco”, in Grécia revisitada, Lisboa, Ed. Cotovia, 2004, pp. 70-71).
509
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 367. Note-se que Vitalina Leal de Matos realça nesta écloga o seu
“carácter primordial, de pureza virginal e bondade sem mancha” (Maria Vitalina Leal de Matos, O canto na
poesia épica e lírica de Camões. Estudo de isotopia enunciativa, Paris, Fundação Calouste Gulbenkian-
-Centro Cultural Português, 1981, p. 234).
510
Camilo Pessanha, Clepsydra, Carlos Reis (coord.), ed. do texto de Barbara Spaggiari, Lisboa, Imprensa
Nacional-Casa da Moeda, 2014, p. 67.
511
Vasco Graça Moura, “Camões, Pessanha e eu”, in Várias vozes, loc. cit., pp. 50-52.

173
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

de arremedo e despedida,
fantásticos, fingidos, verdadeiros.
adeus, adeus, até ao som da fala.” (PR1, 300)

Neste poema celebrativo de Camões, que Pinto do Amaral considera um dos


mais significativos do autor512, o eu lírico invoca a complexidade da poesia, um
“beco sem saída”, uma vez que acaba por cair nas suas próprias intrincadas
armadilhas, ou seja, enreda-se em determinados caminhos conducentes a uma
insatisfação poética.
Consciente das limitações que se lhe impõem, a conjugação da realidade e da
imaginação constituem uma dificuldade de criação poética513. O poeta, insaciável
artifex da palavra, oscila entre verdade e fingimento, testemunhado no jogo
antitético “fantásticos, fingidos, verdadeiros”, em contraste com a vertente
eminentemente ficcional preconizada em Os Lusíadas das façanhas “fantásticas,
fingidas, mentirosas.”514
Deste modo, os versos de vgm não deixam de comportar uma relação referencial
com o mundo, numa aproximação ao gosto eminentemente dialéctico de Camões,
na designação de Jorge de Sena515. Esta característica tem uma forte repercussão na
obra do autor de modo mudando, tecido textual atravessado por tensões
intensamente complexas, fazendo dos seus versos um exemplo modelar nas letras
nacionais.
Neste encontro, a própria valorização dos géneros literários não é ignorada:

“se serve a redondilha


para o grave andamento
que em sextina deriva,

512
Cf. Fernando Pinto do Amaral, “Outros poetas dos anos 70: contributo para um mosaico fluido”, in
Mosaico fluido. Modernidade e pós-modernidade na poesia portuguesa mais recente, Lisboa, Ed. Assírio &
Alvim, 1990, p. 164.
513
As palavras de Gilda Santos sintetizam com clareza esta matéria: “De Camões, viagens, tempo,
memórias, exílios, falam os poemas de Jorge de Sena. Mas falam também de escritas, leituras, releituras –
inscritas naquele jogo de espelhos em que o infinito se manifesta” (Cf. Gilda Santos, “Vasco Graça Moura e
Jorge de Sena: um diálogo possível”, in op. cit., p. 302).
514
Luís de Camões, Os Lusíadas, I, 11, loc. cit.
515
Jorge de Sena, “A poesia de Camões. Ensaio de revelação de dialéctica camoniana”, in Trinta anos de
Camões, I volume, Lisboa, Ed. 70, 1980, pp. 15-39. Sobre a recepção camoniana em Jorge de Sena, vide, a
título de exemplo, José Augusto Seabra, “Camões e Jorge de Sena”, in Eugénio Lisboa (org.), Estudos sobre
Jorge de Sena, Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1984, pp. 139-151; Luciana Stegagno Picchio,
“O Camões de Jorge de Sena”, in AAVV, Jorge de Sena: vinte anos depois. Colóquio de Lisboa, Lisboa,
Ed. Cosmos - Câmara Municipal, 2001, pp. 93-102 e Vítor Manuel Aguiar e Silva, Jorge de Sena e Camões.
Trinta Anos de Amor e Melancolia, Lisboa, Ed. Angelus Novus, 2009.

174
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

se por melancolia
ou desconcerto mesmo
nas voltas do vivido

quem tivesse vivido


por dentro a redondilha
a pensar em si mesmo
teria o andamento
para a melancolia
deixando-a ir à deriva

pois a fala deriva


na razão do vivido
desta melancolia […]

redondilha, andamento,
mesmo em melancolia:
deriva do vivido?” (PR2, 400-401)

Os versos carregam consigo um conhecimento das linhas dominantes da


sextina516, género maior de que apenas se conhece um texto de Camões517. O tema
central evidencia o próprio processo de construção, uma vez que é referente de si
mesmo, pelo tratamento de questões intrinsecamente relacionadas com o género
referido518. Forma poética extremamente artificiosa, o sujeito lírico apoia-se em
traços formais e conteudísticos fundamentais do género. No plano estrutural, o
referido texto de Graça Moura é formado por seis estrofes de seis versos e um
commiato de três versos, numa composição especular de palavras repetidas de
estrofe para estrofe. Dentro da melhor tradição poética, a medida velha desenha,
pois, uma mundividência peculiar, uma vez que “em sextina deriva”. No que
concerne ao conteúdo, a dimensão lírica procura o entendimento do mundo nas
suas contradições; sob o signo da melancolia e do desconcerto do mundo, temas
caros a Camões, recupera a ambiguidade que os matiza “nas voltas do vivido”, bem
como reitera a ideia inaugural do propósito compositivo: da redondilha “serve a
redondilha / para o grave andamento”.

516
Sobre a sextina em Portugal, veja-se António Cirurgião, A sextina em Portugal nos séculos XVI e XVII,
Lisboa, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa-Ministério da Educação, 1992; Rita Marnoto, “Camões e o
ciclo da sextina”, in Maria João Borges et alii, Lírica camoniana. Estudos diversos, Lisboa, Ed. Cosmos,
Centro Internacional de Estudos Camonianos da Associação Casa-Memória de Camões em Constância,
1996, pp. 101-108; Maria do Céu Fraga, Os géneros maiores na poesia lírica de Camões, Coimbra, Centro
Interuniversitário de Estudos Camonianos, 2003, pp. 118-128.
517
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 303.
518
António Cirurgião (A sextina em Portugal nos séculos XVI e XVII, loc. cit., p. 20) salienta que a sextina
tem uma notória exigência técnica, não obstante continua a ser cultivada pelos poetas contemporâneos.

175
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

Neste fecundo itinerário, Graça Moura não ignora a exegese e os próprios


estudiosos do poeta quinhentista, como destaca em glosa para dona cleonice:

“se a camões se consentisse


ter uma vida segunda
diria da mais profunda
gratidão a Cleonice.” (PR2, 94)

Com a referência sígnica camoniana “se consentisse”, os versos, de pendor


laudatório, reconhecem a possibilidade do poeta conceder a “mais profunda /
gratidão” a Cleonice Berardinelli, docente brasileira de renome que vem realizando
um notável trabalho de investigação e divulgação das letras portuguesas, sobretudo
em torno da obra de Camões519.
Neste tratamento privilegiado, que encontra nos versos camonianos matéria para
o seu canto, observe-se a atenção dispendida por Graça Moura ao soneto o dia em
que nasci moura e pereça, com uma forte relação de intertextualidade com o Livro
de Job520, no poema não sei se camões hoje:

“não sei se o camões hoje teria escrito as suas rhythmas,


começa porque não saberia ao certo quais eram e então não
[havia camonistas
para discutirem a questão. e depois talvez não valesse a pena
falar àquela gente. e os auditórios têm limites de paciência.

por exemplo, o dia em que eu nasci moura e pereça,


diz-me o aguiar e silva, não é dele quase de certeza.
e eu respondo: é tão bom que tem mesmo de ser dele.
e o vítor ri, exclamando: você já está como o faria e sousa.

a ironia desta conversa é que ela se passava


no instituto camões, calcule-se, somos ambos do conselho geral,
tratando da expansão da língua portuguesa
que se mais mundo houvera lá chegara

e estava uma tarde esplêndida de janeiro


e se o camões estivesse ali não havia de acreditar
que um de nós estivesse prestes a tirar-lhe um soneto
o mais doutamente possível e o outro lho quisesse devolver,

519
Cf. por exemplo, Cleonice Berardinelli, Estudos camonianos, Rio de Janeiro, Ed. Nova Fronteira, 22000.
Vitalina Leal de Matos destaca com particular acuidade que este soneto “se tornou evidente a desmesura do
sujeito, enunciador e personagem, aspecto este que atravessa toda a obra, interligando-se com o conceito de
liberdade e de destino” (Maria Vitalina Leal de Matos, “Que farei com este poema? (autobiografia
camonística)”, in José Cardoso Bernardes (org.), Luís Vaz de Camões revisitado, Santa Barbara Portuguese
Studies, vol. VII, 2003, p. 351.
520
Cf. Bíblia Sagrada, Lisboa, Ed. Difusora Bíblica, 32001, pp. 793 sqq.

176
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

invocando-lhe o som, a fúria e o sentido,


nem que há séculos que as coisas se vão passando assim,
tirando e pondo, invocando lições e testemunhos,
e uns gajos de nome germânico, lachmann, storck,

e mais alguns. a moral desta história é que um verso de camões


com pouca variação é sempre um verso de camões,
é a coisa mais bela e mais difícil do mundo
e dá cá uma guinada tão especial que só pode ser dele.” (PR1, 438)

A propósito dos problemas de fixação do corpus da lírica camoniana, Graça


Moura parte da controvérsia acerca da inclusão no cânone da lírica de um dos mais
conhecidos sonetos atribuídos a Camões, “O dia em que nasci moura e pareça”,
para entabular um sugestivo diálogo poético com Aguiar e Silva, o que não deixa
de constituir um desafio e um estímulo no horizonte literário português para todos
aqueles que vêem na tradição uma fonte inesgotável de renovação521. Começa por
colocar de lado as dúvidas que certos camonistas, entre os quais o referido
professor, levantam quanto à autoria problemática do poema, ao mesmo tempo que
lança um olhar irónico sobre a infindável discussão do cânone, eivada de inúmeras
incertezas522. Não obstante, o poeta aceita a autoria camoniana do texto, apontando
como fundamento de decisão o seu gosto pessoal, portanto subjectivo, oposta às
dúvidas levantadas por Aguiar e Silva523. O texto acima transcrito apresenta, pois,
um carácter performativo, uma vez que representa a acção do sujeito de
enunciação. Num contexto de dúvida, gerada pela atribuição ao autor das Rimas de
versos alheios, Graça Moura refere um encontro no Instituto Camões524, fruto de
circunstâncias e pleno de originalidade, o escritor torna-se intérprete de si próprio e

521
Alzira Seixo destaca na poesia de Graça Moura o aproveitamento de experiências várias, de traços
identificáveis do quotidiano concreto, mas como sublinha, “de modo sistemático, é a primeira vez que o
utiliza” neste poema (Maria Alzira Seixo, “Melancolia e maneirismo. O concerto campestre, de Vasco
Graça Moura”, in Outros erros, Porto, Ed. Asa, 2001, p. 260).
522
Aguiar e Silva considera mesmo que se trata de “um dos ‘casos’ mais relevantes e complexos da cultura
português” (Cf. Vítor Manuel Aguiar e Silva, “O cânone da lírica de Camões”, in Camões: labirintos e
fascínios, loc. cit., p. 38).
523
Pela importância de que se reveste, Hélio Alves dá conta das questões suscitadas nessa divergência e a
sua posição inclina-se também para a autenticidade do soneto (Hélio J. S. Alves, “A propósito do soneto O
dia em que eu nasci e do seu autor”, in Isabel Almeida, Maria Isabel Rocheta e Teresa Amado (orgs.),
Estudos. Para Maria Idalina Rodrigues, Maria Lucília Pires, Maria Vitalina Leal de Matos, Lisboa,
Departamento de Literaturas Românicas da Faculdade de Letras de Lisboa, 2007, pp. 263-295).
524
Aguiar e Silva destaca na poesia de Graça Moura a propensão de “representar coisas do real quotidiano,
de narrar e descrever situações, episódios, acontecimentos” (Vítor Aguiar e Silva, “A outorga do Prémio
Morgado de Mateus a Vasco Graça Moura”, in op. cit., p. 174).

177
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

de factos ocorridos na sua vida525. O enigma que fica por resolver é apresentado
através da devoção subjectiva a Camões: “dá cá uma guinada tão especial que só
pode ser dele”. Num exercício erudito, não falta a prosaica ironia da “guinada”526, o
que assinala, a um tempo, uma fruição emocional527 e um entendimento particular
dos versos camonianos, a lembrar, no impulso lírico das suas inquietações, a
conhecida exortação no final do soneto Enquanto quis Fortuna que tivesse: “E
sabei que, segundo o amor tiverdes, / Tereis o entendimento de meus versos”528.
Com efeito, no dizer Eduardo Lourenço, a oscilação “entre rigor e polémica” faz de
Graça Moura um singular herdeiro da herança renascentista.529
A explícita mediação, que entretece poesia e ensaísmo em torno de Camões,
faz parte estruturante do singular fazer lírico de vgm; o texto o dia em que nasci, os
versos veicula, com efeito, a esperança de compreender a grandeza do canto
camoniano. Esta dimensão culturalista, com as suas interrogações e reflexões sobre
a poesia, integra indubitavelmente um pendor metapoético, marca distintiva da pós-
modernidade, bem como exprime sobretudo a consciência do poeta contemporâneo
na sua relação com a tradição literária530. Neste cenário crítico, a recepção
camoniana ultrapassa as fronteiras nacionais; as referências a “storck e lachmann”
legitimam a universalidade da poesia de Camões que recebeu um impulso decisivo
na Alemanha, sobretudo durante o período romântico531.

525
Aguiar e Silva confirma a conversa à entrada para uma reunião no Instituto Camões. O ilustre professor a
propósito do poema de Graça Moura rastreia com particular acuidade razões filológicas e hermenêuticas,
bem como apresenta a recepção ao longo dos tempos, tendo em vista comentar a questão da autoria do
poema camoniano (Vítor Aguiar e Silva, “Epilegómenos”, in Camões: Labirintos e Fascínios, loc. cit.,
pp. 231-233).
526
Isabel Pires de Lima (“Entre dois mundos: referências clássicas na poesia de Graça Moura, in Modo
mudando, Porto, Ed. Campo das Letras, 2000, p. 98) acentua que Graça Moura não se coíbe neste processo
de celebração de parodiar o próprio culto e a exegese camoniana.
527
Nesta linha de autenticidade dos textos líricos camonianos, Graça Moura, em concordância com a voz
autorizada de Costa Pimpão, refere a especificidade dos versos do poeta quinhentista, que desenha uma “tão
particular vibração sentimental que distingue os grandes poemas de Camões” (Vasco Graça Moura,
“Observações sobre o soneto O dia em que eu nasci moura e pereça”, in op. cit., p. 146).
528
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p.117.
529
Eduardo Lourenço, “Vasco Graça Moura - um ensaísmo em arquipélago”, in José da Cruz Santos (org.)
Modo mudando, loc. cit., p. 40.
530
Vítor Aguiar e Silva, “A outorga do Prémio Morgado de Mateus a Vasco Graça Moura”, in op. cit.,
p. 175.
531
Carolina Michaelis, Wilhelm Storck, Lachmann, entre outros vultos alemães, distinguiram-se na
divulgação da obra de Camões. Wilhelm Storck editou por diversas vezes em português, sendo a última
publicação Vida e Obras de Luís de Camões, Lisboa, Ed. Bonecos Rebeldes, 32011. Por seu turno,
Lachammann tratou sobretudo de uma metodologia de crítica textual, sublinhada por Leodegário A. de
Azevedo Filho, (“Sobre o conceito de edição crítica”, in Humanitas, nº 58, 2006, p.16) do seguinte modo:

178
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

Assim sendo, noutro poema de Graça Moura a transgressão do tema haurido na


lírica camoniana contribui para expandir novos significados:

o dia em que eu nasci pode voltar à


[vontade.
não posso fazer como o camões ou o eugénio de castro ou o brecht ou
[o enzensberger,
nem dizer a data de coisas que os autores costumam dizer que
[acontecem
predestinadamente, quando eles nasceram. o que é puro expediente
[literário, narcisismo
normalmente muito apreciado, glosado, desconstruído no rodapé.” (PR1, 365-366) 532

O poeta, que confessa “deixo a meus filhos versos cultos” (PR2, 251),
manifesta um deliberado gesto de aproximação, bem como impõe sinais de
diferença; com uma simples alteração, Graça Moura modifica radicalmente o
sentido original. À paródia do soneto O dia em que nasci, marcado pela maldição
do dia natalício, cantado por vários autores, que abala a ordem do tempo e revela
uma fúria castigadora de vertente apocalíptica533, contrapõe Graça Moura o agrado
pelo seu nascimento. Assim, o sujeito de enunciação subverte as premissas
enunciadas por Camões e, na celebração da vida, transforma um dia de infortúnio
num dia festivo, desviando-se, em lógica invertida, da essência do tema de partida;
se autores, na esteira do poeta quinhentista, como Eugénio de Castro, Brecht ou
Enzensberger, maldizem o dia em que nasceram, o autor de Lusíadas para gente

“Na verdade, em Lachmann e em Bédier é que se encontram os dois pontos de partida da crítica textual de
nossos dias, por isso mesmo dividida em duas grandes correntes modernas: a neo-lachmanniana dos críticos
alemães e italianos, e a neo-bedieriana dos críticos franceses. Tanto numa como noutra, a edição crítica é
tida como operação inteiramente indispensável à perfeita compreensão de um texto, com segura base
filológica, pois a filologia é a ciência que se volta, deliberadamente, para a análise e compreensão dos textos,
no caso recorrendo a critérios que melhor possam aproximar um texto à última vontade consciente de seu
autor.” Sobre a recepção na literatura de expressão alemã do autor de Os Lusíadas, veja-se Maria Manuela
Gouveia Delille (coord.), Camões na Alemanha. A figura do poeta em obras de Ludwig Tieck e Günter Eich,
estudos de Catarina Martins e Júlia Garraio, Coimbra, Livraria Minerva-Centro Universitário de Estudos
Germanísticos, 2000 e Maria Cristina Carrington, Camões e D. Sebastião na obra de Reinhold Schneider,
Coimbra, Ed. Minerva Coimbra-Centro Universitário de Estudos Germanísticos, 2007.
532
Vide o incisivo estudo sobre este soneto: Maria Vitalina Leal de Matos, “Auto-retrato de Camões: o
soneto O dia em que nasci”, in Camões: sentido e desconcerto, loc. cit., pp. 25-37.
533
Vitalina Leal de Matos adverte que existe em Camões uma “aguda consciência maneirista da vida como
exílio, a concepção de nascimento, como origem do mal, em condições astrológicas que privam o sujeito
poético da liberdade. Esta parece ser a pedra de toque que explica não só o conceito e tempo, mas ainda a
concepção dualista da realidade, o desconcerto, o destino” (Cf. idem, “O que farei com este poema
(autobiografia camonística)”, in José Cardoso Bernardes (org.), Luís Vaz de Camões revisitado, loc. cit.,
p. 361).

179
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

nova aproxima-se da visão positiva desse dia, cantado também por Sophia ou Jorge
de Sena534.
Com efeito, o relevo concedido à “hipertrofia do eu” em Camões, expressão
cunhada por Vitalina Leal de Matos535, revela uma singular excepcionalidade face à
expressão disfórica no confronto do eu com o seu nascimento.
O incipit do poema variação de Graça Moura, em dimensão hermenêutica,
comenta essa mágoa dilacerante do poeta, não se coibindo de comentar as
“aliterações”:

“em verso em volto da amargura, ‘eclipse


nesse passo o sol padeça’,
nas suas aliterações surdamente torturadas
na sua imprecação contra o destino…” (PR2, 357)

Como se lê, a tónica incide sobre a consciência aguda do desespero e infortúnio


de um cenário apocalíptico decorrente do processo retórico hiperbolizante dos
impossibilia ou adynata536. A carga emocional que emana destes versos537 amplia o
drama camoniano da existência, a ponto de vgm comentar as “aliterações […] / na
sua imprecação contra o destino”. Esta concepção aponta para o sentido de
desencanto, raiz das muitas angústias cantadas pelo vate quinhentista, visto que o
homem é um joguete nas mãos do destino.

534
Sophia, em Grutas, como notou Isabel Almeida (Cf. “Se nenhum amor pode ser perdido. Sophia e
Camões”, in Maria Andresen Sousa Tavares (org.), Sophia de Mello Breyner Andresen. Actas do Colóquio
Internacional, Porto, Porto Editora, 2013, p. 255-256) ao dar conta deste soneto contrapõe à desgraça e ao
desespero camoniano a alegria absoluta ao momento presente, processo similar a Graça Moura: “Esta manhã
é igual ao princípio do mundo e aqui venho ver o que jamais se viu”. Esta perspectiva é trilhada também por
Jorge de Sena: “É assim, o dia em que nasci / foi p’ra mim / o que vivo, viverei e já vivi…” (Cf. Jorge de
Sena, “O dia em que eu nasci”, in Post Scriptum II, 1º vol., Lisboa, Moraes Editores e Imprensa Nacional-
-Casa da Moeda, 1985, p. 76).
535
Maria Vitalina Leal de Matos, “Auto-retrato de Camões: a hipertrofia do eu”, in Colóquio-Letras, n.º 20,
1974, pp. 13-21.
536
Predomina a ênfase neste procedimento retórico de discurso hiperbólico, que, ao invés da lógica
racionalista, enumera situações impossíveis, com fortes raízes maneiristas e barrocas (Cf. Heinrich
Lausberg, Elementos de Retórica Literária, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 31982, p. 149).
537
Curiosamente, Graça Moura sobre este passo coloca a seguinte interrogação em prol da autenticidade do
soneto: “Quem sem ser Camões, teria uma destreza técnica comparável, que seria capaz da genial aliteração
dupla de ‘eclipse nesse passo o sol padeça’, quem tem outros acentos tão desesperadamente saturninos (aqui
a raiarem até à impiedade) na sua obra, quem tinha, enfim, uma biografia própria e tão marcada pela
consciência de desventura que os fizesse ressoar numa explosão de tanta sinceridade como o dia em que
nasci?” (Cf. Vasco Graça Moura, “Observações sobre o soneto O dia em que eu nasci moura e pereça”, in
op. cit., p. 145).

180
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

Por conseguinte, o tema do referido soneto, que José Saraiva considera uma
poesia essencialmente dramática pelo debate doloroso do eu com o mundo538,
constitui um filão infindável em permanente expansão, que a partir de uma matriz
ancestral proporciona um poema constantemente reescrito539.
No entanto, a admiração de Graça Moura pela realização lírica da voz tutelar
enunciada estende-se também à sua produção crítica540. Num artigo intitulado
precisamente Observações sobre o soneto o dia em que nasci moura e pereça541, o
autor discorda, tal como no poema não sei se camões hoje, das dúvidas levantadas
por Aguiar e Silva sobre a possibilidade da autoria camoniana deste texto, uma vez
que não existe uma cabal “prova filológico-documental”542. Tendo em vista provar
a autenticidade do referido texto, numa argumentação rica e convenientemente
estruturada, vgm coteja e analisa estudos de reputados camonistas: Wilhelm Storck,
Leodegário A. Azevedo Filho, José Maria Rodrigues e Afonso Lopes Vieira ou
ainda o Visconde Juromenha. Apetrechado de conhecimentos sólidos, traz à
colação os três cancioneiros quinhentistas – o de Luís Franco, o de Cristóvão
Borges e o de Fernandes Tomás – que integram a presença do soneto, ora anónimo
ora como expressamente atribuído a Camões, o que pressupõe a circulação do texto
ainda em vida do autor. A argumentação, baseada em conhecimentos exegéticos
modernos, mostra um domínio de crítica textual e, na sua apologia da autoria
camoniana do soneto, coteja-o com outros textos cuja origem é irrefutável, como
por exemplo a Elegia V ou a Canção X. Além disso, a partir da abordagem

538
António José Saraiva, Luís de Camões. Estudo e antologia, Amadora, Ed. Bertrand, 31980, p. 49.
539
Hesíodo nos versos finais dos seus Trabalhos e dias (vv. 824-828) canta este tema caro à existência
humana com uma significativa aproximação aos versos camonianos: “Há quem louve o dia, mas poucos
sabem o que é. / Há o dia que não passa de madrasta; e o dia que nos é mãe, / feliz e venturoso é o homem
que sabe destas coisas / e que faz o seu trabalho sem ofender os imortais, /observando o voo das aves sem
exceder a sua condição” (Frederico Lourenço, “Hesíodo: a enxada das musas”, in Grécia revisitada, loc. cit.,
p. 35). Por seu turno, Jorge Osório anota que o tópico do “mau dia fui nado” surge com alguma frequência
na lírica galego-portuguesa (Cf. Jorge Osório, “Luís de Camões e Ausias March”, in Península. Revista de
Estudos Ibéricos, nº 0, 2003, p. 182).
540
Sobre a produção ensaística camoniana de Graça Moura, vide José Augusto Cardoso Bernardes, “Vasco
Graça Moura. Com Camões, no comboio rápido”, in Eduardo Lourenço e Rui Vieira Nery (org.), Colóquio
Homenagem a Vasco Graça Moura, loc. cit., pp. 95-102.
541
Vasco Graça Moura, “Observações sobre o soneto o dia em que nasci moura e pereça”, in Lusitana
Praia. Ensaios e Anotações, Porto, Ed. Asa, 2005, pp. 134-146. (Este artigo saiu primeiramente em Carlos
Mendes de Sousa e Rita Patrício (org.), Largo mundo alumiado: estudos em homenagem a Vítor Aguiar e
Silva, Braga, Centro de Estudos Humanísticos, Universidade do Minho, 2004, pp. 1059-1069).
542
Cf. Vítor Manuel Aguiar e Silva, “Inquirições sobre soneto O dia em que nasci moura e pereça”, in op.
cit., pp. 191-207.

181
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

comparativa com o livro de Job, coincidente com as vicissitudes de uma vivência


infeliz, valoriza a passagem inexorável do tempo, o papel do destino e da fortuna,
temas recorrentes na lírica camoniana. A terminar, Graça Moura neste “princípio de
polémica”543, como o próprio ironicamente afirma, refuta a posição de Aguiar e
Silva, que, perante a ausência do referido poema na edição monumental de Faria e
Sousa, conclui que não se pode atribuir a Camões. Não obstante, Graça Moura
sustenta que, se o camonista de Seiscentos tivesse conhecido este soneto, o
integraria, com certeza, na sua obra.
Neste continuado fascínio, os versos do poeta de Sonetos familiares são
contaminados pela sugestão da mudança, exemplificadas neste texto:

“mudam-se os tempos mudam-se os lugares


no envelhecer dos nervos e das feridas
e transformam-se as feridas no silêncio …

transforma-se o infortúnio na coragem”. (PR1,128)

A reescrita do incipit do conhecido soneto camoniano, Mudam-se os tempos


mudam-se as vontades544, glosado com evidentes variações, evolui em Graça
Moura para uma reflexão sobre a inexorável caducidade da vida, concepção
sugerida pelo sintagma “os lugares no envelhecer” e pela estrutura anafórica de
“mudam-se”545. Nesta estética de superação, a convocação de outra forma verbal
“transforma-se”, ressonância do soneto Transforma-se o amador na coisa
amada546, demonstra, em jeito conclusivo, a esperança do sujeito poético perante as
vicissitudes que a vida lhe reserva: o “infortúnio” dá lugar à “coragem”. Os núcleos
semânticos enunciados, com dois textos distintos de Camões em pano de fundo,
radicam, enquanto processo de interiorização, de uma notável motivação poética;
543
Vide Vasco Graça Moura, “Observações sobre o soneto O dia em que eu nasci moura e pereça”, in op.
cit., p. 134. Note-se que, não obstante essa discórdia, Graça Moura possui uma admiração especial por
Aguiar e Silva; quando da sua intervenção da entrega do prémio D. Dinis na Casa de Mateus, em 2009, o
autor de Lusíadas para gente nova afirma: “Vítor Aguiar e Silva é um autor cujo mistério tenho seguido
com a maior e mais interessada das atenções desde há quarenta anos, como é também um grande e generoso
amigo, desde que nos conhecemos pessoalmente e, last but not least, o meu fino e documentadíssimo
opositor numa polémica, aliás, muito cordial, sobre a autoria camoniana num determinado soneto. E, neste
aspecto, eu poderia até incluir o Vítor no rol das minhas ‘musas’ (salvo seja!) uma vez que há uns anos
escrevi um poema sobre o caso…” (Vasco Graça Moura, “Vítor Manuel de Aguiar e Silva”, in Discursos
vários poéticos, loc. cit., p. 261-262).
544
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 162.
545
Outros poetas contemporâneos inspiram-se neste soneto; por exemplo, Herberto Hélder, “Transforma-se
o amador na coisa amada”, in A colher na boca, Lisboa, Ed. Ática 1967, p. 16.
546
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 126.

182
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

se as semelhanças são inequívocas, não deixam de sobressair as diferenças, que não


desmentem, antes confirmam, uma notável recepção criativa.
Os versos do autor da Canção X oferecem, assim, um privilegiado eixo de
referência, procedimento recorrente em Graça Moura, como se lê em elegia:

“a tensa sombra
da juventude e os lugares da cinza,
amargurado amor, de termos visto
o amador a transformar-se em sombra
a coisa amada a transformar-se em cinza”. (PR1, 138)

A paixão arrebatadora e intensa desvanece-se com o tempo, exprimindo o ritmo


binário dos versos a instabilidade do estado amoroso, acepção que Graça Moura
encena a partir do poeta quinhentista. De facto, verifica-se uma nítida transposição
do soneto camoniano acima referido para um universo lírico diferente, o
“amargurado amor” dissipa-se na juventude, que se transforma disforicamente em
“sombra” e “cinza”, signos associados, respectivamente, ao “amador” e à “coisa
amada”.
No poema fado do amador são retomadas as concepções enunciadas:

“dizia o amador à coisa amada


em que se transformou: fala comigo
o meu retrato em ti é o que persigo
como a seara ao ondular do trigo
fica no vento em curva prolongada.”547

Os efeitos do amor, hauridos em Petrarca, consubstanciam-se na modulação


rítmica dos versos, bem como são gerados pelo dinâmico fluxo discursivo
alicerçado no enjambement. A formulação poética legitima as verdadeiras
intenções do sujeito poético, quando afirma “o meu retrato em ti é o que persigo”,
tem o desejo que se perpetue no tempo ao “vento em curva prolongada”. Como se
observa, sob a forma de um palimpsesto, como já foi referido, o texto camoniano é
decalcado por outro, de modo a criar uma nova camada textual provida de sentido,
o que configura um seguro testemunho de uma singular experiência de leitura.548
Esse exercício compositivo, sempre aberto ao diálogo, continua neste trecho
paradigmático:
547
Vasco Graça Moura, “Letras do fado vulgar”, in Poesia 1997-2000, loc. cit., p. 208.
548
Vítor Manuel Aguiar e Silva, Teoria da literatura, loc. cit., p. 626.

183
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

“amador transformado
na própria coisa amada
por muito imaginar”. (PR2, 350)

De novo, a poesia nasce da memória, o sujeito poético, tal como o fez Camões,
invoca e celebra o poder metamórfico que a mulher exerce sobre o “amador
transformado”, o que pressupõe a existência de um amor idealizado “por muito
imaginar”.
A remissão para o carácter paradoxal do sentimento amoroso ressurge de novo
aflorada no seguinte passo, relevador de um indubitável interesse de vgm pela
poesia camoniana:

“transforma-se o amador
na coisa amada e vê que não interessa, serve só
para fazer mais versos deleitosos”. (PR1, 569)

A reinterpretação dos versos convocados, que o poeta aproveita a seu modo,


evolui na exacta medida de um deslumbramento549, com o fito de provocar fruição
através dos “versos deleitosos”, como já anunciara Tétis em Os Lusíadas550. Nesta
rememoração, em clave sincrética e transformativa, o sujeito poético opta por
entretecer, de novo, dois passos célebres, conjugando elementos líricos e épicos,
com o fito de desenhar uma inovadora expressão poética.
Apesar do sentido filosófico que os versos camonianos encerram551, Graça
Moura privilegia com o lexema “transformar”, presente nos sintagmas “o amador
transformado na coisa amada” ou “transforma-se o amador / na coisa amada”552,
uma simbologia de metamorfose em demanda de novos sentidos. Assim, as

549
Jorge de Sena ao referir-se à peculiar poesia camoniana sublinha: “A procurada perplexidade entre a
verdade e a ficção, que é a própria essência da criação poética, viveu-a Camões com uma intensidade e uma
lucidez, que fazem dele um dos mais estranhos poetas” (Jorge de Sena, “A poesia de Camões. Ensaio de
revelação da dialéctica camoniana”, in Trinta anos de Camões, vol. I, loc. cit., p. 29).
550
Luís de Camões, Os Lusíadas, X, 82.
551
Vide Maria Helena Ribeiro da Cunha, Neoplatonismo de Camões, in Vítor Aguiar e Silva (coord.),
Dicionário de Luís de Camões, Lisboa, Ed. Caminho, 2011, pp. 634-642. A visão platónica segundo a qual
as realidades concretas são apenas sombras de ideias, visto que o amor pode ser simplesmente idealizado e
cristalizado na coisa amada. Assim, o amor alicerça-se numa contemplação sensual da amada numa linha de
continuidade interdita ao desejo carnal. Para Vitalina Leal de Matos, o platonismo no conjunto da obra
camoniana desempenha o papel de incentivador do desejo e garantia da sua permanente insatisfação amorosa
(Maria Vitalina Leal de Matos, O canto na poesia épica e lírica de Camões. Estudo da isotopia enunciativa,
Paris, Fundação Calouste Gulbenkian, 1981, pp. 264 sqq).
552
Jorge de Sena colocou em relevo que o encontro de contrários é uma característica indelével da poesia
camoniana (Jorge de Sena, “A poesia de Camões. Ensaio de revelação da dialéctica camoniana, in Trinta
anos de Camões 1948-1978 (Estudos camonianos e correlatos), Lisboa, Ed. 70, pp. 15-39).

184
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

complexas implicações filosóficas do modelo camoniano são arredadas da


enunciação de Graça Moura, uma vez que a formulação de sentimentos se norteia
por uma maior objectividade e circunstancialidade; deste modo, a “pura semideia”,
a transfiguração do pensamento do poeta por influência da amada, não merece
particular atenção ao poeta contemporâneo553. Com efeito, a modalidade imitativa,
desenvolvida de um modo autónomo e original, constitui a materialização de um
fazer poético, que se traduz num universo lírico singular.
A poética de vgm, provida de significativa erudição e atenta ao rico legado
camoniano, verifica-se na invocação da célebre metáfora do bicho da terra em dois
textos intitulados pintura de ilda david, I e II:

“o homem e o bicho estão


na luz azul e rosa das suas
origens ancestrais”. (PR1, 343)

“o homem e o bicho …
retém-lhes a fugaz
semelhança terrestre”. (PR1, 344)

É curioso reflectir sobre as relações intertextuais entre os versos transcritos e o


passo épico do homem, “um bicho da terra tão pequeno”554, bem como os versos de
da canção IX: “Somente o Céu severo, / as Estrelas e o Fado sempre fero, / com
meu perpétuo dano se recreiam, /mostrando-se potentes e indignados / contra um
corpo terreno, / bicho da terra vil e tão pequeno” 555. Nesta linha, Graça Moura
aproveita o pensamento explanado, em clave maneirista, do homem reduzido à
pequenez da terra que o gerou, enunciação da caducidade, que tanto desesperara o
poeta quinhentista, sobre a insegurança da vida e a fragilidade da condição humana.
Este modo de lirismo percorre a epopeia camoniana, derrogando a força dominante
dos códigos em voga na época, através de apreciações pessoais acerca de questões

553
Joaquim de Carvalho, proeminente historiador da cultura portuguesa, nos seus Estudos sobre as leituras
filosóficas de Camões, aproxima a obra do poeta do pensamento aristotélica: “Aristóteles é de todos os
filósofos o que melhor foi conhecido pelo poeta. Na sua obra abundam as referências, já claras, já obscuras,
à doutrina do Estagirita”. É que esta “transformação” consiste numa conformação da alma do sujeito com
uma pura semi-ideia. A introdução destas categorias aristotélicas, ao invés do princípio petrarquista norteada
pela teoria do amor de índole neoplatónica, traduz-se numa simples concretização psicológica. (Cf. Joaquim
de Carvalho, “Estudos sobre as leituras filosóficas de Camões”, in Obra completa, vol. I, Lisboa, Fundação
Calouste Gulbenkian, 21992, p. 320).
554
Luís de Camões, Os Lusíadas, I, 106, loc. cit.
555
Idem, Rimas, loc. cit., p. 222.

185
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

éticas, literárias, morais e sociais556. A humanidade é grande, graças à abertura do


pensamento poético, porém é pequena, pois o homem é um ser precário e indefeso
pela sua infinita pequenez. O tema camoniano reside, pois, na debilidade e na
efemeridade da vida humana face aos grandes perigos a que está exposta, asserção
seguida por Graça Moura, quando canta, em versos estruturados por uma
variabilidade enunciativa, as “origens ancestrais” do homem e do bicho ou a sua
“fugaz / semelhança terrestre”. Assim, a poesia plasma-se numa vasta densidade de
referências literárias, com uma imensa capacidade auto-reflexiva, da qual resulta
uma voz íntima que toma como modelo privilegiado o Príncipe dos poetas.
A sombra tutelar deste verifica-se também de um modo menos explícito, mas
não menos sugestivo, em barbie em diagonal:

“sem percorrer os dois lados da praça,


a atravessá-la pela hipotenusa,
de mini-saia curta que esvoaça
e mais ao léu com top em vez de blusa,

o tornozelo fino a dar-lhe a raça


nervosa e descuidada que produza
reflexos do seu corpo na vidraça
das lojas, dentro e fora, esguia e lusa

no porte de modelo, longas pernas


e cabelos ao vento. mas depressa,
que tão segura vai, se vê do seu

olhar que não atenta nem sequer nas


surpresas de viés quando atravessa:
tudo o que dá foi isto que me deu.” (PR1, 531)

No poema transcrito, provido de significados vários, ecoa a tradição intertextual


da figura de Leanor, tratada poeticamente por António Gedeão no seu poema da
auto-estrada557, a partir da redondilha camoniana conhecida por Descalça vai para

556
Vide, a título de exemplo, Jorge de Sena, “Aspectos do pensamento de Camões através da estrutura
linguística de Os Lusíadas”, in Actas da I Reunião de Camonistas, Lisboa, Comissão Executiva do quarto
centenário da publicação d’Os Lusíadas”, 1973, pp. 45-58; Eduardo Lourenço, “Camões e o tempo ou a
razão oscilante”, in Poesia e Metafísica. Camões. Antero. Pessoa, Lisboa, Ed. Sá da Costa, pp. 31-49; Maria
Vitalina Leal de Matos, “Que farei com este poema? Como evolui o projecto da epopeia ao longo de Os
Lusíadas?”, in AAVV, Épica. Épicas. Épica Camoniana, Constância-Lisboa, Centro Internacional de
Estudos Camonianos da Associação Casa-Memória de Camões em Constância-Ed. Cosmos, 1997, pp. 55-
-70; Hélio J. S. Alves, “Camões e o lirismo confessional na epopeia quinhentista”, in Românica, nº 16, 2007,
pp. 59-73.
557
António Gedeão, Poesias completas, Lisboa, Ed. Sá da Costa, 1964, p. 194.

186
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

a fonte558, onde é evidente o tom lúdico desta recriação literária mantendo um grau
de textualidade deliberada designada por pastiche. Este exercício de incorporação
de uma personagem reconhecível, dotado de um intuito crítico e inovador, acaba,
em pendor contrastivo, por constituir uma metamorfose ao poema referido. Foram
certamente a riqueza e a invulgaridade de vocábulos e sonoridades, a par de uma
dimensão imagética camoniana de beleza petrarquista e cortesanesca, que
chamaram a atenção de poetas posteriores a Quinhentos. Recorde-se o poema
seiscentista de Rodrigues Lobo que tenta nova glosa no mote de Leonor559,
aproximando-se de Camões por um grau de intertextualidade flagrante. Essas
relações adquirem, pois, uma nova projecção por denunciarem aproximações a
obras de épocas distintas, bem como contribuem para perspectivar o
aproveitamento realizado por Graça Moura. Num admirável confronto, que
funciona como apropriação poética560, evoca o realismo do pormenor descritivo de
uma mulher, bem como moderniza o padrão da beleza feminina testemunhado
numa indumentária sensual, “mini-saia curta” e “top em vez de blusa”, a lembrar a
“blusinha terileno” de Gedeão. O carácter dinâmico da figura feminina, que não vai
de lambreta, mas num andar rápido com os “cabelos ao vento”, recorda também o
texto do autor da Pedra filosofal, característica elitista intrínseca à paródia pela
exigência de leitura suscitada561. Graça Moura poetiza, assim, o que é
tradicionalmente considerado avesso ao lirismo; há, pois, uma exploração
sistemática do prosaico, que está nos antípodas dos padrões estéticos subjacentes à
redondilha camoniana. Esta intertextualidade parodística562, que não implica
necessariamente o cómico ou o ridículo, configura uma forma de auto-
referencialidade563, visto que, a partir de códigos da modernidade, apresenta “uma
abordagem criativa/produtiva da tradição”, segundo L. Hutcheon564. Neste prisma,

558
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., pp. 55-56.
559
Francisco Rodrigues Lobo, Poesias, selecção, prefácio e notas de Afonso Lopes Vieira, 31968, Lisboa,
Livraria Sá da Costa, pp.170-171.
560
Nesta tradição, Graça Moura canta: “a espuma, / a cor são mais literárias: fina escarlata, / vos vi em saia”
(PR1, 336).
561
Linda Hutcheon, Uma teoria da paródia, Lisboa, Ed. 70, 1989, pp. 97 sqq.
562
Sobre esta matéria, vide J. Cândido Martins, Teoria da paródia surrealista, Braga, Ed. da APPACDM,
1995.
563
Linda Hutcheon, Uma teoria da paródia, loc. cit., p. 41.
564
Idem, ibidem, p. 19.

187
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

M. Bakhtine realça a paródia como uma relação textual entre dois ou mais textos,
classificando-a como um género intradiscursivo, de natureza dialógica565. Por outro
lado, numa alargada memória literária, recria o refrão camoniano “Vai formosa e
não segura”, com o segmento “tão segura vai”, notação psicológica da figura
feminina divergente do texto onde se inspira, uma vez que vai segura e confiante da
sua beleza; ao invés, o passo tem paralelo em António Gedeão, que canta: “Vai
ditosa e bem segura”. A evocação referencial comprova, pois, a vitalidade do
processo enunciado, constituindo as sucessivas variações em torno do tema comum
da beleza feminina a demonstração do engenho poético de Graça Moura. Com
efeito, nesta confluência de textos temporalmente muito distantes, os paralelismos
inesperados desencadeiam uma imagética singular de que resulta uma paródia
intertextual a desafiar uma cabal competência literária566. Registe-se ainda que o
verso derradeiro apresenta um carácter conclusivo, uma vez que explica, em
dimensão metapoética, a inspiração lírica haurida e a indiferença a que aquela
mulher sujeita o eu de enunciação: “tudo o que dá foi isto que me deu”.
A relação dialógica, formulada com outros textos que os procederam ou lhes são
contemporâneos, apresenta, com efeito, um paralelismo com a concepção de poesia
proposta por Carlos de Oliveira:

“Em todo o caso temos consciência, mais ou menos, que a poesia de cada um se faz também
com a poesia dos outros no permanente confronto da criação. Para descobrir o que há de pessoal
em nós, para nos distanciarmos, já se vê.”567

De facto, essa estratégia polifónica, inscrita em padrões do pós-modernismo,


desenha uma recriação lúdica, que Eco designa por ironia intertextual; não se
assume como um discurso paralelo, mas com o desejo de alcançar a almejada
originalidade, exigindo um leitor modelo, capaz de atingir um horizonte de sentidos
profundos pelas sugestões implícitas contidas no poema:

“A ironia intertextual, pondo em jogo a possibilidade de uma dupla leitura, não convida todos
os leitores para o mesmo festim. Seleciona-os e privilegia os leitores intertextualmente
avisados”.568

565
Mikhail Bakhtine, Esthétique et théorie du roman, Paris, Ed. Gallimard, 1987, p. 431.
566
Sobre este conceito, vide Vítor Manuel Aguiar e Silva, Competência linguística e Competência literária,
Coimbra, Livraria Almedina, 1977, pp. 103 sqq.
567
Carlos de Oliveira, “Micropaisagem”, in O aprendiz de feiticeiro, Lisboa, Ed. Seara Nova, 21973, p. 263.
568
Umberto Eco, “Ironia intertextual e níveis de leitura”, in Sobre literatura, Lisboa, Ed. Difel, 2003, p. 225.

188
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

Assim, a prática referida pelo autor de O nome da rosa, motivada por uma
pulsão criativa, pode-se observar no seguinte passo:

“se podia dizer-se por acaso


que a boca é rubra, os dentes de marfim,
de oiro o cabelo e as vestes de cetim,
a que se havia de igualar o naso?

adunco não podia ser, nem raso,


nem grande, nem formado assim-assim
nem se viu já o nariz em querubim,
nem ter pêlo na venta vinha ao caso.” (PR2, 337)

Os versos apresentados desenham uma poética atenta à tradição pela


apresentação dos referentes convencionais da beleza (“dentes de marfim” ou “de
ouro cabelo”569) integrados na convenção estética e poética da beleza feminina de
substrato camoniano, por exemplo, no soneto Ondados fios de ouro reluzente570.
No entanto, Graça Moura derroga os atributos canónicos do retrato feminino571; as
indagações em torno das saliências do nariz, “adunco não podia ser, nem raso”, não
integram os códigos poéticos vigentes da descrição da mulher572. No último verso,
com particular ironia, a frieza dos sentimentos petrarquistas dá lugar
surpreendentemente ao sintagma popular, “pêlo na venta”, revelador da única
característica psicológica: a arrogância ou o mau génio da mulher. O paradigma de
referência feminina, valorizado em signos estilizados, reveste-se de características
singulares pela incorporação de elementos inesperados na descrição poética com
assomos, de novo, de uma forte vertente parodística, contendo um singular
potencial de sentidos, uma vez que, no dizer de Graça Moura, “a escrita é uma orla
inquieta das coisas / uma sombra das figuras” (PR1, 303).
Neste contexto, Graça Moura consciente do seu processo criativo
intencionalmente afirma:

“Na verdade, nunca escrevemos nada que nos pertença por inteiro, nem nada que nos seja
completamente alheio”.573

569
Rita Marnoto, O Petrarquismo português do Renascimento e do Maneirismo, Coimbra, Acta Vniver-
sitatis Conimbrigensis, 1997, p. 563.
570
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 164.
571
Sobre esta matéria, vide Rita Marnoto, “A figura feminina petrarquista em Camões, entre imitação e
transformação”, in Maria João Borges et alii, Lírica camoniana. Estudos diversos, loc. cit., pp. 49-63.
572
Como nota Rita Marnoto (O Petrarquismo português do Renascimento e do Maneirismo, loc. cit.,
p. 558), esta evolução poética da construção da personagem feminina já surge no período maneirista.
573
Vasco Graça Moura, Poemas escolhidos, loc. cit., p. 472.

189
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

Outro texto invocativo que deriva de um incipit de um célebre soneto


camoniano, Erros meus, má fortuna, amor ardente / Em minha perdição se
conjuraram574, é o seguinte:

“e de repente estava ali a musa […]


e em minha perdição se conjurou
premeditadamente a esfrangalhar-me.
era a musa a cravar o seu punhal

e a medir o seu tempo pelo sangue


que jorrasse de mim. e eu perdi.
e em minha perdição se renovou.” (PR2, 534)

A dimensão dialógica contida no lamento profundo da não correspondência do


amor, entendido dentro do drama com todas as perplexidades e incertezas próprias
da cosmovisão maneirista575, leva o eu lírico a transformar o canto camoniano “em
minha perdição se conjurou” no segmento “em minha perdição se renovou”, sinal
de esperança do amor. Por outro lado, Graça Moura evidencia, através da alusão
afectiva à “musa”, reiterada nos seus poemas a lembrar as invocações de Os
Lusíadas, a existência de uma intensidade lírica, que anima significativamente os
seus versos.
Em vasto e rico filão imitativo, a figura do Adamastor é trazida também à
colação:

“e depois tudo eram


[metamorfoses
dos adamastores de algibeira num pequeno país a ocidente.
e os símbolos eram os mais vulgares, como os tigres tensos
das ilhas provocando alterações da experiência.” (PR1, 372)

Na evocação do gigante, ao jeito de reflexão nos finais de canto de Os Lusíadas,


os versos de vgm traçam uma degradação generalizada que se confunde com um
atávico modo de ser português. A metáfora pejorativa das “metamorfoses / dos
adamastores de algibeira” adverte para a falta de coragem e vulgaridade dos
portugueses, pouco consentânea com o episódio camoniano do ser mitológico,
representação da ousadia e espírito de sacrifício dos nautas perante os obstáculos e

574
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 170.
575
Eunice Ribeiro destaca neste texto o “singular concerto de timbres, um memento mori maneirista com a
dorida dicção camoniana” (Eunice Ribeiro, “Retrato do poeta como artista”, in Eduardo Lourenço e Rui
Vieira Nery (org.), in Colóquio Homenagem a Vasco Graça Moura, loc. cit., p. 73).

190
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

dificuldades enfrentados. Graça Moura, dedica, a partir de uma escultura de José


Guimarães, a esta figura mitológica um estudo crítico, não só na sua referência
primordial em Os Lusíadas, mas também nas suas derivas no poema Camões, de
Almeida Garrrett, e no Mostrengo, da autoria de Fernando Pessoa.576
A partir de uma fotografia de Gerárd Castello-Lopes, o poema sugestivamente
intitulado desforra, entrelaça os mitos do Velho do Restelo e do Adamastor:

“é a vingança do velho do restelo:


cavar a terra junto à torre de belém.
andámos séculos a montar a história em pêlo
e o que tivemos deixamos já de tê-lo.
não digas a ninguém.

nem império, nem nada. a terra com minhocas


(se inda as tiver) é boa pró cultivo
de legumes”. (PR2, 225)

Neste “poema de perdição”, no dizer de Aguiar e Silva577, o contraste entre a


horta, sustento pobre de sobrevivência, e a torre de Belém, símbolo de glória,
constituem “a vingança” do velho de “aspecto venerando”, num sentimento
desolador da história nacional. Como observa Aguiar e Silva, não se trata de uma
atitude narcisista magoada de implicação camoniana; ao invés, enraíza-se “em
dramáticas perdas imemoriais, em desconcertos presentes e em funestos avisos para
o futuro”578. Esta enunciação anti-épica observa-se ainda pelo monumento
emblemático das descobertas, que fica junto à terra, “boa pró cultivo / de legumes”,
agora cultivada por aqueles que ergueram um império irremediavelmente perdido.
Nestas alusões parodísticas à obra camoniana, em tom corrosivo, ao passado
glorioso contrapõe-se uma realidade decepcionante de penúria deliberadamente
marcada pelo sintagma “nem império, nem nada”. João Barrento, neste contexto,
observa que as implicações agudas da consciência histórica no exercício poético
são uma marca distintiva da pós-modernidade579. O Velho do Restelo, a
consciência nacional, metáfora do começo e fim do império, inscreve-se na
humilhação da pátria reduzida a “nada” e assume contornos de resignação e

576
Vasco Graça Moura, Adamastor. Nomen Gigantis, Lisboa, Ed. Afrontamento, 2000.
577
Idem, ibidem, p. 177.
578
Idem, ibidem, p. 176.
579
João Barrento, “Palimpsestos do tempo. O paradigma da narratividade na poesia dos anos oitenta”, in A
palavra transversal. Literatura e ideias do século XX, Lisboa, Ed. Cotovia, 1996, p. 71.

191
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

agonia580, que parece ter resposta de Graça Moura nos versos decassilábicos de Os
Lusíadas para gente nova:

“(O velho do Restelo não se cala


Apela à sensatez e à prudência
É um homem que sabe do que fala
E faz ouvir a voz da experiência,
Já muita gente veio interpretá-la
Como a defesa de uma desistência,
Mas ele só previu nos seus lamentos
O preço humano dos Descobrimentos.)” 581

Porém, nesta “mísera sorte, estranha condição”582, célebre fala do ancião citada
por Graça Moura (PR1, 557), irrompe o Adamastor:

“resta falar a freud do adamastor profundo.


Da sua sombra densa encolhe, mas distingo-a,
humana, universal, e me corcundo:
dizem que vamos reconquistar o mundo.
bastam a beldroega e a lusa língua.” (PR2, 225)

Estes versos sugerem, pela alusão a “freud”, um ponto de vista psicanalítico do


mito do Adamastor, símbolo do heroísmo luso em ultrapassar os “vedados
términos”583. Na aproximação de duas personagens camonianas, com efeitos
extremamente sugestivos, a surpresa neológica, “me corcundo”, reitera o insucesso
português no momento presente, bem como os versos “vamos reconquistar o
mundo / bastam a beldroega e a lusa língua” satirizam, em registo premonitório, a
ilusão megalómana da grandeza nacional. Deste modo, a voz enunciadora, provida
de uma tonalidade pessimista do destino nacional, configura, uma vez mais, a
inversão parodística com um consequente sentido irónico. Como nota Aguiar e
Silva, a velha retórica da grandeza histórica, simbolizada nos mitos do velho do
Restelo e do Adamastor, dá lugar, nos versos de vgm, a um olhar lúcido sobre as
debilidades de Portugal.584

580
Sobre a recriação poética das suas figuras, o poeta anuncia: “personagens / convertidas no verso, as suas /
falas são, aí, um silêncio / imaginado: a loquaz invenção // da prosódia e da técnica” (PR1, 282).
581
Vasco Graça Moura, Os Lusíadas para gente nova, Lisboa, Ed. Gradiva, 2012, p. 70.
582
Luís de Camões, Os Lusíadas, IV, 104, loc. cit.
583
Idem, ibidem, V, 41.
584
Vítor Aguiar e Silva, “A outorga do Prémio Morgado de Mateus a Vasco Graça Moura”, in op. cit.,
pp. 176-177.

192
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

Graça Moura tem um particular apreço pelo gigante, como se verifica nas várias
referências que lhe dedica em diferentes momentos. Em Os Lusíadas para gente
nova, a figura é caracterizada, segundo a sugestão camoniana:

“Estavam a passar aquele oculto


E grande cabo dito Tormentório,
Nesse lugar lhes surge o escuro vulto
Feito dum gigantesco promontório.
Ora ameaça ora prefere o insulto,
Ora se mostra muito merencório.
E viram nessas vagas violentas
Que passavam o Cabo das Tormentas.

Mas seria um gigante ou um penedo?


Mas seria um penedo ou um gigante?
Fosse o que fosse ali metia medo
Ao coração de cada navegante,
E Camões inventou logo um enredo
Naquela ponta de África distante,
Chamando-lhe o gigante Adamastor
E pondo-o a descrever um grande amor.”585

De um modo admirável situa o texto no espaço, no “cabo dito Tormentório”, e o


escuro vulto” provoca grande medo aos navegadores. Em notação quiástico, as
perguntas iniciais da segunda estrofe deixam transparecer uma figura de contornos
imprecisos, a que Camões chamou Adamastor586. Nesta exaltação épica de
conquista do amares, a menção ambígua de “um grande amor” pode reportar-se à
paixão do gigante, que não é correspondida pela ninfa Tétis, mas também sugere o
trágico episódio de Manuel de Sousa Sepúlveda, sendo ambas as circunstâncias
referidas por vgm587. Neste processo reveste-se, sem dúvida, de particular
significado a incessante actividade de questionamento, pedra angular, aliás, de toda
a escrita do autor.

585
Vasco Graça Moura, Os Lusíadas para gente nova, loc. cit., p. 78.
586
Costa Ramalho, propõe uma interpretação etimológica para o nome da figura mitológica, bem como
interpreta a importância deste episódio em Os Lusíadas. Vide Américo da Costa Ramalho, “Sobre o nome de
Adamastor” e “Aspectos clássicos do Adamastor”, in Estudos camonianos, loc. cit., respectivamente, pp. 27-
-34 e 35-44.
587
Vasco Graça Moura, Os Lusíadas para gente nova, loc. cit., pp. 80-81. Nesta ordem de ideias, Aníbal
Pinto de Castro destaca diversas derivas inovadoras no episódio e, de entre elas, dá relevo à combinação do
épico, trágico e lírico, ganhado este último elemento uma importância nuclear no caso do amor cantado pelo
gigante (Aníbal Pinto de Castro, “O episódio do Adamastor”, in Páginas de um honesto estudo camoniano,
loc. cit., p. 178).

193
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

O fascínio por esta personagem imortalizada por Camões leva vgm a analisá-la
de um ponto de vista amplo e sincrónico também em Adamastor, nomen gigantis,
onde apresenta diversas variações que dela fizeram Almeida Garrett, em Camões, e
Fernando Pessoa, em O mostrengo, poema incluído na Mensagem.
É curiosa a cumplicidade colhida no imaginário camoniano, uma vez que o texto
de vgm conjuga literatura, crítica e artes plásticas, quebrando as barreiras
genológicas dos modos literários. Num registo de notável erudição, debruça-se
sobre o processo compositivo da figura mítica do Adamastor, a partir de uma
escultura popular de José de Guimarães, bem como de esboços do artista e amigo,
por quem Graça Moura tinha grande admiração, como já foi referido anteriormente.
Consequentemente, realiza uma leitura crítica do artista, resultante de
conhecimentos sólidos nas artes plásticas, e uma aturada sensibilidade estética:

“A iconografia tradicional do Adamastor representa-o como uma criatura enorme de vulto


humano e disforme, emergindo pesadamente das águas revoltas, numa aura sinistra. Os artistas
seguiram mais ou menos à letra a descrição camoniana da figura colossal. O resultado não vai por
vezes sem recordar certas esculturas no interior das grutas maneiristas italianas, confirmando
inquietantes seres de forma humana obtida a par das concreções geológicas da pedra, mais ou
menos adaptadas pela mão dos artistas, e de que o próprio Camões pode aliás ter conhecido
representações em gravuras e desenhos, como é muito provável que tenha conhecido por idêntica
via processo de agregação de elementos de vária ordem para compor figuras antropomórficas,
semelhantes aos de Arcimboldo, como pode supor-se pelo retrato de Tritão no canto VI (17-
-19).”588

Face ao exposto, Graça Moura apresenta uma interessante e inovadora análise da


génese da figura camoniana, de vincado traço maneirista, pelos elementos
iconográficos das várias procedências que lhe terão serviram de inspiração.
Por outro lado, não deixa de salientar o fundo inspirador de Camões na obra do
autor referido:

“José de Guimarães é, de há muito, um leitor e um intérprete plástico de Camões. Mas até


agora, ele tinha ido buscar ao poeta uma temática e uma emblemática para os registos exuberantes
da sua pintura. Com o Adamastor, José de Guimarães vai antes buscar a Camões a ideia geral de
uma figura, um príncipio de monstruosidade e gerador de monstruosidades, que depois combina
com outros elementos, literários e extras-literários.”589

A presença e tributo prestados a Camões, análogos ao de Graça Moura,


manifestam-se de modo distintivo na iconografia idealizada por de José de

588
Vasco Graça Moura, Adamastor. Nomen gigantis, loc. cit., sem indicação de número de página.
589
Idem, ibidem, sem indicação de número de página.

194
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

Guimarães, uma vez que é assinalado um momento evolutivo da sua interpretação


do poeta quinhentista. O foco central reside, pois, nas “monstruosidades”, que
evoca a brutalidade destruidora da contemporaneidade, o que confere ao Adamastor
uma indelével modernidade, como preconiza Cardoso Bernardes.590
Este legado, perpetuado pela tradição, permite falar, na literatura actual, numa
construção ímpar da personagem de Os Lusíadas, como diversos autores dão conta.
Manuel Ferro aprecia a recepção do monstro em duas obras da pós-modernidade:
Adamastor, nome gigantis, da autoria de vgm e o romance Adamastor de E. S.
Tagino591.Também, nesta esfera de interesses, Maria Aparecida Ribeiro analisa
influências camonianas, com particular incidência nesta figura horrenda, nas obras
de Nélida Piñon592. No âmbito da literatura infanto-juvenil, Manuel António Pina,
em Aquilo que os olhos vêem ou o Adamastor, centra-se na referida personagem
camoniano, tendo como pano de fundo a passagem do Cabo das Tormentas.593
Não são, pois, poucos os signos ou personagens da galeria camoniana594, como se
observa neste trecho de fado entrecortado que dá conta da trágica morte de Inês de
Castro595:

“ó grande, e horrível crime, estranho caso


da linda Inês jazendo apunhalada!
tinham-lhe os fados já marcado o prazo
e o seu colo de garça agora é vaso
das pétalas da rosa ensanguentada…”596

590
Segundo este autor, “Para além da repercussão literária que viria a obter, a figura do Adamastor haveria
ainda de transformar-se num tópico cultural, representando obstáculos sobre-humanos e os medos
arquetipais com quer o homem (nauta de qualquer época) tem de se confrontar na conquista dos seus
desígnios” (José Augusto Cardoso Bernardes, “Episódio do Adamastor”, in Vítor Aguiar e Silva (org.),
Dicionário de Luís de Camões, loc. cit., p. 19. Vide também José Augusto Cardoso Bernardes, “Tétis, o
Adamastor e o peito ilustre lusitano”, in Biblos, LXIV (1988), pp. 119-134.
591
Manuel Ferro, “The myth of Adamastor in postmodernity: between legend and art, fiction and history”, in
Antonella Lipscomb y José Manuel Losadas (coord.), Los mitos antiguos, medievales y modernos en la
literatura y las artes contemporáneas, Bari, Levante Editori, 2013, pp.119-128.
592
Maria Aparecida Ribeiro, “Um Adamastor ambíguo, uma tuba enrouquecida: Camões na leitura de
Nélida Piñon”, in Maria do Céu Fraga et alii (org.), Camões e os contemporâneos, loc. cit., pp. 745-755.
593
Manuel António Pina, Aquilo que os olhos vêem ou o Adamastor, ilustr. de José M. Ribeiro e Pedro
Aguilar, Coimbra, Angelus Novus, 2102.
594
Pela importância que suscitam os aspetos enunciados, Carlos Reis sublinha: “Em meu entender é da
história literária e do imaginário camoniano por ela fomentado que nutrem muitos dos textos (e certamente
não só na literatura portuguesa) que tratam de explorar os traços mais sedutores e mais singularmente
‘heróicos’ da personalidade e de Camões, traço que não raro são metonimicamente associados ao destino
colectivo português” ( Carlos Reis, “História literária e personagens na história: os mártires da literatura”, in
Carlos Reis et alii (org.), loc. cit., p. 112).
595
Sobre a recepção, interpretação e indicações bibliográficas deste episódio, vide José Carlos Seabra
Pereira, “Inês de Castro”, in Vítor Aguiar e Silva (coord.), Dicionário de Luís de Camões, loc. cit., pp. 444-
-449.

195
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

Em estreita consonância com os princípios poéticos de substrato camoniano, o


episódio lírico e trágico, repleto de notações disfóricas, preserva a emoção do poeta
que oferece signos impressivos: “horrível crime” ou “jazendo apunhalada”. Não
faltam, por outro lado, neste passo uma desconstrução desta personagem
emblemática597; não só se verifica uma similitude, pela exploração do núcleo
significativo do episódio, como se valorizam novos aspectos que só se alcançam
através do cotejo com o texto camoniano. Em Os Lusíadas, a expressão “colo de
garça” dá agora lugar a um “vaso das pétalas da rosa ensanguentada”.
O poder sugestivo deste procedimento lúdico leva Graça Moura, num pendor
homo-autoral, a referir-se noutro passo, num registo distinto, à figura de Inês de
Castro, contextualizada numa vasta recepção nem sempre cientificamente correcta:

“acredite que o mundo


é uma cópia dos livros […]

para falar de uma obscura gaja em quem o rei se punha


e dizem que foi morta só por razões de estado.
já estava posta em carónica e eu pu-la em sossego
à custa do petrarca. e toda a gente se aproveitou do mito
a torto e a direito. em coisas de emoção e patetice

toda a gente aproveita e diz asneiras.” (PR1, 325)

O excerto é elucidativo do modo como a expressão poética encerra, neste


contexto, um princípio transfigurador, uma vez que já não se trata propriamente de
uma figura trágica, pelo contrário é descrita, numa linguagem inesperada, com
desprezo: é “uma obscura gaja em quem o rei se punha”. Este distanciamento
crítico configura, pois, uma visão pós-moderna, marca indelével da escrita de vgm;
longe de um mero ethos ridicularizador do passado, o ousado jogo intertextual
apresenta como traço dominante uma particular admiração pela obra camoniana.
Na esteira de passos subordinados ao imaginário camoniano, o gesto criativo do
poeta contemporâneo comporta, uma vez mais, um notável carácter dialógico no
poema leda e o cisne:

596
Cf. Vasco Graça Moura, Poesia 2001-2005, Lisboa, Ed. Quetzal, 2006, p. 91.
597
Cândido Martins destaca que a paródia corrói deliberadamente todas as manifestações dominadas por
uma estética da imitação, o que se aplica com propriedade ao contexto enunciado (José Cândido Martins,
Teoria da paródia surrealista, loc. cit., p. 81).

196
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

“o cisne
quando sente ser chegada a hora, etc.,
diz o camões cantando desfavores,
e é final este enlace e só de música
espectral de poetas e pintores.” (PR2, 353-354)

Visto que a poesia se faz também de versos alheios, o passo, entre aspas, encerra
uma citação598 do incipit de um soneto de Camões599, no conhecido topos clássico
do cisne, que, perante a morte eleva o seu canto, lamentando o fim dos seus dias.
Assim, também o desespero da morte sentido pelo ser humano, inspiração “de
música / espectral de poetas e pintores”, sugere o derradeiro canto da referida ave.
Com efeito, o poema camoniano reparte-se difusamente entre o carácter
indissociável da elevação do canto e a tristeza da morte, topos que possui uma larga
fortuna desde a Antiguidade Clássica até à actualidade, como notou Frederico
Lourenço.600
Nesta dimensão intertextual sempre procurada, portanto aberta ao sistema
literária, também a célebre redondilha Aquela cativa de Camões601 é sugerida por
Graça Moura:

“a que me cativa
se nas nuvens vivo
também me cativa
se dela me esquivo
p’lo mesmo motivo
de que nela vivo
sem alternativa

a que me cativa
mas dá liberdade
nesta tentativa
de que um dia há-de
ser data festiva
por termos vontade
de que assim se viva

598
Esta estratégia enunciativa, que consiste na apropriação selectiva de versos de outrem no interior do corpo
textual de Graça Moura é, no dizer de Laurent Jenny, uma forma particular de intertextualidade. A autora
refere ainda que um aspecto fulcral da intertextualidade verifica-se no “aproveitamento duma determinada
unidade textual abstraída do seu contexto e inserida assim mesmo num novo sintagma textual” (Cf. Laurent
Jenny, “A estratégia da forma”, in Laurent Jenny et alii, Intertextualidades. Poëtique, nº 27, loc. cit., p. 14).
599
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 143.
600
Segundo Frederico Lourenço, Camões retomou a alusão ao canto, nos últimos instantes de vida, do cisne,
“a ave das Musas”, já presente num poema de Calímaco: “É quando a ave das Musas já não consegue mover
as asas / que o seu canto atinge o auge do seu esplendor” (Frederico Lourenço, “A arte poética de
Calímaco”, in Grécia revisitada, loc. cit., p. 125).
601
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 89.

197
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

a que me cativa
e me traz cativo
só faz com que eu viva
porque nela vivo:” (PR2, 504)

De novo a capacidade parodística, patente logo no título, imitado de camões,


mostra um dos traços mais recorrentes desta poesia: a paráfrase da escrita, ou
melhor, o gosto de dialogar com a voz tutelar quinhentista. Ligada à rica linguagem
poética de Camões, muito contribui o jogo polissémico da continuada repetição do
lexema “cativo”, com aliterações várias (“vivo”, “motivo”)602. No entanto, de um
modo refratário, em Graça Moura a personagem não é nomeada, nem os seus
singulares atributos: “rosto singular”, “pretos os cabelos” ou “tão doce a figura”.
Todavia, os ecos explícitos do texto enunciado fundem-se sobretudo nos
sentimentos do poeta, “a que me cativa / se nas nuvens vivo / também me cativa”.
Com efeito, a capacidade de síntese transgressora não valoriza a beleza exótica de
uma mulher de pele negra, dando Graça Moura novos significados e modernidade
aos versos do autor de Alma gentil que te partiste. Nesta metamorfose registe-se
que o passo inspirador “pois nela vivo / é força que viva” transforma-se em
“porque nela vivo”, sugestão do intimismo do poeta, contribuindo, este último
verso, para que seja sentido com maior intensidade o seu estado de alma. Por
conseguinte, numa linha marcadamente maneirista, a complexa expressão da
elevação da mulher amada é consagrada pelo canto.
Com efeito, esta aproximação ao intertexto camoniano estabelece um
multifacetado jogo conceptual, exercido por via de uma notável selecção e
tratamento de versos, que o leitor, conhecedor da herança camoniana e da
modernidade, consegue identificar, conferindo à produção lírica de Graça Moura
uma espécie de jogo cultural ininterrupto.

602
Rita Marnoto, “Camões, Laura e Bárbora escrava”, in Máthesis, nº 6, 1997, pp. 77-103.

198
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

2.4. O divino e o profano

O seu universo literário, densamente reflexivo e humanista, continua em torno


de Sôbolos rios, texto que, pela indiscutível riqueza de pensamento camoniano 603,
constitui um infindável filão que tem sido objecto de múltiplas leituras, nem
sempre coincidentes604:

“vou dizer ao camões que sobre os rios não


passarei mais a noite.

a escrita polui-se: refaz seu exercício


e ao fim é exercida em labirinto.

e os erros e o poder que se escondiam


no coração humano (as jogadas mais íntimas os trabalhos
preparatórios)
a corromper a claridade sobre
os rios”. (PR1, 152)

Os versos impõem, desde logo, notações referenciais que valem como ponto de
partida inspirador do referido poema. A consciência lírica objectiva-se no acto de
constituição do próprio texto, concluindo Graça Moura que “a escrita polui-se”, na
incapacidade de chegar à perfeição lírica605. O diálogo com o poeta quinhentista,
“vou dizer ao camões”, explora uma dimensão autobiográfica, que se desdobra
“sobre os rios”, numa enumeração de elementos geradores de lamento e
desencanto, análogos à glosa camoniana do salmo 136606. A meditação do poeta
contemporâneo associa a tensão existencial às angústias da essência poética,
plasmada no sentido saturnino do lexema “noite”; como notou João Minhoto

603
Graça Moura sintetiza a importância deste poema do seguinte modo: “Paradigma por excelência intra e da
intertextualidade camonianas, em Sobre os rios poderão identificar-se dezenas e dezenas de topoi e lugares
paralelos das mais variadas proveniências, com ecos, reelaborações e recorrências no poema e quase verso a
verso” (Vasco Graça Moura, “Quatro breves anotações a Sobre os rios”, in David Mourão Ferreira et alii
(org.), Afecto às letras, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1984, p. 653).
604
Com efeito, a riqueza das redondilhas referidas leva Jorge de Sena a afirmar num artigo intitulado Babel e
Sião: “Este tema, de grande importância na tradição judaica e na cristã, assume crucial valor em Portugal,
sobretudo por ser do Salmo respectivo, que Camões transformou numa pessoal e individualizada expressão
do seu pensamento poético não só da sua obra, como do seu tempo ou da poesia universal, a oposição
simbólica entre Babilónia e Jerusalém” (Jorge de Sena, “Babel e Sião”, in Trinta anos de Camões 1948-
-1978 (Estudos camonianos e correlatos), loc. cit., p. 113).
605
Neste prisma, Graça Moura em poema conclui: “todo o poema é perfeitamente impuro” (PR1, 9).
606
Cf. Maria Vitalina Leal de Matos, “Sôbolos rios. Uma estética arquitectónica”, in Ler e escrever, loc. cit.,
p. 64. Embora sejam atribuídos a Camões outros textos, Costa Pimpão (Cf. Luís de Camões, Rimas, loc. cit.)
assinala somente dois sonetos dedicados a este tema: Cá desta Babilónia donde mana (p. 118) e Na ribeira
do Eufrates assentado (p. 129).

199
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

Marques, o problema da redenção pessoal faz-se, em primeiro lugar, através da


poesia e não pelo reconhecimento da acção de Deus, subjacente ao texto
camoniano607. Deste modo, em Redondilhas Sôbolos rios que vão ou Sobre os rios
que vão, verbete da responsabilidade de vgm inserto no Dicionário de Luís de
Camões, o autor sublinha a primazia do canto de carácter profano:608

“O sentido geral das redondilhas é o de nelas se fazer a palinódia em relação ao canto profano,
reorientando-se este a lo divino, a partir de certa altura”.609

Com efeito, a concepção platónica abriu caminho à valorização da poesia ao


divino, convertendo as redondilhas em cântico religioso. No entanto, consciente da
amarga precariedade da condição humana, a interpelação de Graça Moura ao texto
camoniano não valoriza a sua dimensão espiritual, a caminhada terrena da alma em
direcção à esfera inteligível que é a Jerusalém Celeste. David, no dizer de Camões,
chora em Babilónia as lembranças de Sião, “vi que todo o bem passado / não é
gosto, mas é mágoa”610, e anseia veementemente o repouso em Deus. Seabra
Pereira realça as incidências de Santo Agostinho na crise existencial de Sôbolos
rios que vão611, matéria já abordada, entre outros, por António Salgado Júnior612.
No entanto, o professor de Coimbra aborda com outra profundidade este assunto e
conclui que a ânsia do absoluto tem paralelo no pensamento augustiano: é a luta

607
João Minhoto Marques, “Camões e a poesia de Vasco Graça Moura, in Maria do Céu Fraga et alii (org.)
Camões e os contemporâneos, Braga, Centro Interuniversitário de Estudo Camonianos-Universidade dos
Açores-Universidade Católica Portuguesa, 2012, p. 692.
608
Vasco Graça Moura (Camões e a divina proporção, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 21994,
pp. 57 sqq) dedica à palinódia, canto de arrependimento de difícil definição, uma particular atenção. Registe-
-se que a propósito do pensamento platónico no poeta quinhentista vários autores manifestaram posições
contrárias sobre a possível fonte em que terá haurido Camões o seu conceito de palinódia. O primeiro (Costa
Pimpão, “Teria Camões lido Platão?”, in Estudos diversos, Coimbra, Acta Vniversitatis Conimbrigensis,
1972, pp. 111-120) defende que Camões se inspirou no Fedro de Platão; o autor da Aparição, por seu lado
(Vergílio Ferreira, “Teria Camões lido Platão?”, in Biblos, vol. XVIII, 1942, pp. 225-247) preconiza que a
génese privilegiada do texto camoniano é a ode horaciana O matre pulchra filia pulchrior. Vítor Manuel
Aguiar e Silva (“Amor e mundividência na lírica camoniana”, in Camões: Labirintos e fascínios, loc. cit.,
p. 169, nota 24), sem invalidar os argumentos apresentados, afirma que o conceito de palinódia estava muito
divulgado na literatura quinhentista, pelo que é difícil, senão impossível, determinar com rigor a fonte
textual de Camões.
609
Vasco Graça Moura, “Redondilhas Sôbolos rios ou sobre os rios que vão”, in Vítor Aguiar e Silva
(coord.), Dicionário de Luís de Camões, loc. cit., pp. 834.
610
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 105.
611
Cf. José Carlos Seabra Pereira, “Para o estudo das incidências augustinianas na lírica de Camões”, in
Actas da IV Reunião Internacional de Camonistas, Ponta Delgada, Universidade dos Açores, 1984, pp. 431-
-448 e idem, “Apontamentos sobre uma elegia augustiniana de Camões. Se quando contemplamos as
secretas”, in David Mourão Ferreira et alii (org.), Afecto às letras, loc. cit., pp. 329-335.
612
António Salgado Júnior, Camões e Sôbolos rios. Ensaio de interpretação destas redondilhas, separata do
vol. X da Revista Labor, Aveiro, 1936.

200
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

terrena do homem com o fito de atingir o repouso na morte, termo de um processo


ascensional.
Ao invés, para Graça Moura, o entendimento da vida não nasce do
reconhecimento do poder divino, mas radica no próprio homem e nos seus enganos,
plasmados no sintagma “os erros e o poder que se escondiam / no coração
humano”, revelando, assim, um tratamento diverso da glosa camoniana referida. O
sortilégio da poesia é concebido como “labirinto”, metáfora da confusão e
impedimento de qualquer possibilidade de saída para a degradada condição
humana, que acaba por “corromper a claridade sobre os rios”. A associação ao
labirinto, modelo disfórico de desencontro e temor, liga-se à imagem do canto, bem
como ao continuado desejo do eu lírico encontrar um caminho, em demanda de
uma “claridade” corrompida por um mundo babélico.613
O referido poema, considerado a “coluna vertebral da lírica” camoniana, como
notou António Sérgio quando se lhe referiu614, é retomado por Graça Moura em
redondilhas dos gestos, sequência de textos dedicados a José Aurélio com o título
global de variações metálicas:

“sôbolos os ferros que vão


por babilónia me achei
e lá passando encontrei
bronzes, arames, latão,
chumbo, zinco, oiro de lei. […]

vi que tudo se aproveita


mesmo o já desnecessário
e ou se entorta ou se endireita,
ou se liga, alarga, estreita
ao sabor do imaginário […]

sôbolos os ferros, os restos,


que em babilónia encontrei,
tudo aqui emaranhei
para perceber os gestos.
foi dos gestos que falei.” (PR2, 287-289)

613
Ao utilizar o lexema “labirinto”, Graça Moura não descura as afinidades à mundividência labiríntica de
Babel no soneto camoniano Cá nesta babilónia donde mana (Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 176),
quando canta: “Cá neste labirinto, onde a nobreza, / o valor e o saber pedindo vão / as portas da cobiça e da
vileza” (Cf. Maria Leonor Carvalhão Buescu, “Babel e o labirinto”, in Ensaios de literatura portuguesa,
Lisboa, Ed. Presença, 1986, pp. 68-69).
614
António Sérgio, “Apêndice ao ensaio sobre a lírica de Camões”, in Ensaios, tomo V, Lisboa, Ed. Sá da
Costa, 21981, p. 211.

201
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

Com um tratamento peculiar, o sujeito poético reescreve parodisticamente o


incipit camoniano “sôbolos os rios que vão” em “sôbolos os ferros que vão”; tal
estratégia vincula-se, pois, a um factor de identificação imediata, pelo jogo
intertextual desenhado entre o trecho de Graça Moura e a composição camoniana.
O fito do sujeito poético, em visita à oficina do escultor de Alcobaça, centra-se no
ofício artístico e daí decorre a importância concedida, em registo ecfrástico, a
materialidade da concepção plástica: “bronzes, arames latão, / chumbo, zinco, oiro
de lei”. A enumeração denota os vários elementos que dão forma à construção
imagética, bem como o turbilhão desses componentes sugere a experiência estética,
num evidente tributo à arte de José Aurélio.
A estrofe final do passo transcrito sugere, de novo, um singular labor estético
realizado numa variedade incomensurável de processos, que o poeta tenta
compreender: “tudo aqui emaranhei / para perceber os gestos”. A oficina do
referido artista surge metaforizada na confusão de “babilónia”, referente espacial
intrinsecamente ligado à pluralidade que preside ao acto criativo, uma vez “que
tudo se aproveita / […] ao sabor do imaginário”, a lembrar a célebre Lei de
Lavoisier.
Na relação inevitável que vgm mantêm com outros textos, nunca deixa de
explorar novas formas de poetar, como se lê em babel revisited:

“não comparo babilónia ao mal presente e


nada sei de sião, em termos pessoais,
a não ser por interpostas redondilhas. depois,

sempre deixei que por cá viessem aquelas


humanas figuras e tentassem alterar-me à sua vontade,
algumas vezes propondo-me a mentira em série

e outras vezes a verdade capciosa. a mim, tanto fazia, o importante era virem
ao som da flauta, ao som da lira.”615

A voz lírica, em momento de reflexão, contempla a evidente sugestão bíblica


associada à revisitação do Salmo 136616, “por interpostas redondilhas”, o que

615
Vasco Graça Moura, “Babel revisited”, in Artur Anselmo et alii, Babel sobre babel, Lisboa, Ed. Babel,
2010, p. 113
616
Graça Moura destaca o vasto potencial poético dos salmos, em especial a partir do último quartel do
século XVI, quer de proveniência bíblica, quer profana” (Vasco Graça Moura, Camões e a divina
proporção, loc. cit., pp. 57 sqq).

202
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

contribui para explicar o próprio título. Camões, de facto, chora em Babilónia as


lembranças de Sião, “E tudo bem comparado / Babilónia ao mal presente / Sião ao
tempo passado”617, trecho da maior relevância para a interpretação global das
redondilhas, que vgm não ignora. No entanto, não se verifica nos versos
contemporâneos o desdobramento do “processo da simetria e antítese”618, porque,
ao confrontar o presente e o passado, o carácter temporal e espacial
complementam-se, diferindo assim do paradigma dicotómico camoniano, pelo forte
sentido individual da realidade vivida, sinalizada por “em termos pessoais”.
Implicitamente pode-se ler nos interstícios do texto um convite insistente à reflexão
crítica sobre os valores e problemas da sociedade actual, comprovada na denúncia
da “mentira em série”. Nessa atitude exegética, plasmada num discurso inovador,
estabelece-se com o leitor uma relação de aprendizagem, estratégia que o convida,
sem dúvida, a um trabalho de desvendamento, desafio pós-moderno e frequente no
poeta contemporâneo.
Ora, no âmbito de uma intertextualidade de matriz bíblica, sob o signo da
constante dialéctica entre o jogo das aparências e a realidade, o segmento “e outras
vezes a verdade capciosa. a mim, tanto fazia, o importante era virem / ao som da
flauta, ao som da lira” lembra as referências aos instrumentos do canto, enunciados
num dos mais conhecidos passos de Sôbolos rios:619

“Fique logo pendurado


a frauta com que tangi,
ó Hierusalém sagrada
e tome a lira dourada
para só cantar de ti.”620

Deste modo, os versos transcritos são abordados por Graça Moura numa
perspectiva ligada sobretudo ao poder do canto, que, por extensão, evoca a
dimensão da própria poesia, embora, ainda assim, reconheça a dimensão divina,
aceite pela maioria dos exegetas:

617
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 105.
618
Maria Vitalina Leal de Matos, “Sôbolos rios. Uma estética arquitectónica”, in Ler e escrever, loc. cit.,
p. 56.
619
Cleonice Bernardinelli destaca que de entre os núcleos significativos das redondilhas camonianas, ligados
ao poeta, ao amante e ao crente “predomina largamente o canto” (Cleonice Bernardinelli, “Sobre os rios: a
mudança da mudança”, in Estudos camonianos, loc. cit., p. 205 e nota 5).
620
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 111.

203
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

“À flauta sucede a lira dourada, ao instrumento idóneo para a pulsão dos sentidos e da
sensualidade, bem como para a provocação da metamorfose órficas, substitui-se a lira dourada, o
instrumento das cordas de Apolo, num registo puramente intelectual e próprio para entoar um
canto à divindade”.621

Esta palavras são, pois, direccionadas pela meditação sobre o destino humano e
o modo de o exprimir; a lira afigura-se um dos símbolos por excelência da exegese
bíblica e do canto divino622, sobrepondo-se à flauta, símbolo sensual de cariz
profano623. A este propósito, Rita Marnoto, ao estudar as relações de Camões com
Sannazaro, valoriza o instrumento consagrado a Orfeu na Antiguidade:

“Só a lira, o instrumento de Orfeu e o instrumento que é especificamente referido no texto


hebraico do salmo 136, o pode conduzir a Deus. Sob esta óptica, também a estrutura das
redondilhas evolui de acordo com um movimento circular entre Sião e Jerusalém, entre a flauta e a
lira, mas que implica, porém, uma ascensão de grau, nos termos em que é entendido pelo
neoplatonismo cristão.”624

No poema de Graça Moura, intitulado precisamente salmo 136, é notória uma


correspondência contrastiva no processo compositivo:

“não são muitos os que enfrentam o real, retesando a


percepção no meio do salgueiro, em desapego
crepuscular dos instrumentos bíblicos:

flautas e cítaras sobre a terra tão áspera,


que tocam e rejeitam e rejeitam e tocam.” (PR2, 77)

A pacificação possível não é encontrada em Deus, mas na possibilidade de cada


ser humano ver no mundo uma força reparadora625; no entanto, em registo
reprovativo, denuncia que “não são muitos os que enfrentam o real”. O sujeito de
enunciação não dispensa as correlações entre a música e os salmos, porém
apresenta um registo diferenciado face aos temas órficos evocados em Sôbolos

621
Vasco Graça Moura, “Redondilhas Sôbolos rios ou sobre os rios que vão”, in Vítor Aguiar e Silva
(coord.), Dicionário de Luís de Camões, loc. cit., p. 834.
622
Manuel Augusto Rodrigues, “Sôbolos rios que vão à luz da exegese bíblica moderna”, in Arquivos de
Centro Cultural Português, vol. XVI, Paris, Fundação Calouste Gulbenkian, 1982, pp. 417-418.
623
O autor não ignora a tradição augustiniana que considera “a música rítmica, a da lira dourada, própria
para o canto da razão e da medida, para o hino de elevação a Deus” (Vasco Graça Moura, “Redondilhas
Sôbolos rios ou sobre os rios que vão”, in Vítor Aguiar e Silva (coord.), Dicionário de Luís de Camões, loc.
cit., p. 835).
624
Rita Marnoto, “Da Arcádia a Sôbolos rios”, in Sete ensaios camonianos, Coimbra, Centro
Interuniversitário de Estudos Camonianos, 2007, p. 220.
625
As convicções de vgm levam-no a aproximar das teorias evolucionistas, quando confidencia: “não creio
em deus, não me atingiram / seus metafísicos engodos. / no homem que sou evoluíram / peixes, macacos,
alga, lodos” (PR2, 256).

204
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

rios626; renuncia ao poder divino da música presente em Camões, como se verifica


na construção quiástica das “flautas e cítaras”, “que tocam e rejeitam e rejeitam e
tocam”, tornando-se a complexidade que daí resulta uma clara sugestão da pouca
espiritualidade despertada pelo seu som “sobre a terra tão áspera”. Os instrumentos
enunciados simbolizam, pois, o apego humano ao mundo dos sentidos e à
instabilidade verificada na esfera terrena. Assim, numa forte intensidade lírica,
desprovidos de capacidade encantatória, a flauta e a cítara não são capazes de
motivar harmonia e paz entre os homens.627
No que concerne à reconhecida interpretação religiosa de Sôbolos rios, os versos
de Graça Moura dão conta dessa vertente628, embora de um modo distanciado,
quando anunciam de modo provocatório:

“babel não faz o frete a deus

e deixa o homem desarmado: ele nem quer a mais alta torre,


nem perde a vida por delicadeza, não ata nem zigurata não trepa
nem sai de cima: ele deixa-se ficar para ali, miserere, miserere, […]

compadrios, trepidações. no mundo como vontade e representação,


na confusão de babel, meditativo e melancólico, irónico e literário,
ah, maria, maria, eu vou descalço a imaginar-me em lírios às mãos cheias

e flores de púrpura espalhando-se no caminho, por entre as sombras.”629

Num mundo actual, impregnado de contradições e pouco vocacionado para


uma cosmovisão divina e transcendente, Babel assume neste passo a perplexidade
dos novos tempos, com uma consciência indagativa da ausência de Deus,
perspectiva diferente das interpretações canónicas. Em contraste deliberado com
uma leitura teológica do Salmo 136, o poeta revela um certo cepticismo face ao

626
Sobre esta matéria, presente no autor da Canção X, vide Maria Helena Rocha Pereira, “O mito de Orfeu e
Eurídice em Camões”, in Novos ensaios sobre temas clássicos na poesia portuguesa, Lisboa, Imprensa
Nacional-Casa da Moeda, 1988.
627
Tal como em Camões, o abandono do canto em Graça Moura é símbolo de desistência e de renúncia
(Cf. Maria Vitalina Leal de Matos, O canto na poesia épica e lírica de Camões, Paris, Fundação Calouste
Gulbenkian, 1981, p. 15).
628
A pertinência desta aproximação é sublinhada por alguns autores, que consideram a conjugação de temas
religiosos e profanos como uma característica distintiva de muitos poetas do Maneirismo (Isabel Almeida,
Poesia maneirista, loc. cit., p. 58)
629
Vasco Graça Moura, “Babel revisited”, in Artur Anselmo et alii, Babel sobre babel, loc. cit., p. 114.

205
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

divino630, atitude que assumiu ao longo da vida, porém não deixa de invectivar a
sociedade e o mundo, como testemunha o sintagma “na confusão de babel”.631
Com óbvias conotações simbólicas, essa aguda consciência existencial de
Graça Moura concretiza-se, numa admirável súmula do seu perfil, imprescindível
para o entendimento dos seus versos: “meditativo e melancólico, irónico e
literário”. É a partir da construção do mundo às avessas que o poeta apanha o
sentido da vida; denuncia a desumanização, bem como descortina que essa atitude é
característica do seu tempo, prova cabal de que o poeta explora a dimensão moral
contemplada nos salmos632. Deste modo, a irrupção destes valores enfatiza que o
melhor exemplo não deriva somente de Deus, mas também da alquimia do canto,
revelando indubitavelmente um novo sentido aos versos de Graça Moura –
precisamente é esse mundo incerto, inquietante e desconcertante, a lembrar a
complexidade do Maneirismo, que desenha o seu discurso poético.
Em tom irónico e até provocatório, a apóstrofe, contida na expressão “ah maria,
maria”, assinala uma poesia marcada por uma tonalidade de desolação e
arrependimento, semelhante a uma ladainha. Associa-se-lhe “misere, misere”, ecos
do Salmo 51, de súplica individual que na Vulgata começa com o último lexema
referido633; o eu lírico assume-se, assim, como suplicante, peregrino descalço a
espalhar flores, revelação pungente da experiência do sofrimento.
A descrença e o cepticismo, na realidade, invadem-lhe o espírito, porque Deus
“deixa o homem desarmado”, sem amparo divino, o que explica uma
espiritualidade profundamente disfórica, como Graça Moura escreve no polémico
título Contra Deus:

630
Sobre este assunto, com particular acuidade, Carlos André sublinha a propensão de diversos estudiosos
para destacar a dimensão religiosa do poema; no entanto, os versos de Graça Moura estão em consonância
com a sua hermenêutica, uma vez que destaca o “caracter enigmático” para a compreensão do poema, que
configura uma estética predominantemente maneirista (Carlos Ascenso André, “Super flumina: as
redondilhas camonianas e outras paráfrases quinhentistas”, in Seabra Pereira e Manuel Ferro (coord.), Actas
de VI Reunião de Camonistas, loc. cit., p. 471).
631
Este ideário é consentâneo com a análise suscitada por George Steiner; este autor relaciona o enorme
vazio moral e emocional da civilização ocidental com a crise dos sistemas religiosos vigentes (George
Steiner, Nostalgia do absoluto, Lisboa, Ed. Relógio d’Água, 2013, pp. 67-68).
632
Nesta linha de pensamento, Salgado Júnior sustenta que “o Salmo pode servir de meio de comparação
para situações morais sem sentido religioso, como seja o estado de abatimento, consequente de desastre na
vida ou a saudade de tempos felizes, realçando-os poeticamente” (António Salgado Júnior, Camões e
Sôbolos rios. Ensaio de interpretação destas redondilhas, Aveiro, Gráfica Aveirense, 1936, p. 5).
633
Vide Bíblia Sagrada, loc. cit., pp. 890-891.

206
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

“Deus explica-me e incomoda-me. Explica-me porque sou um produto da civilização ocidental


e muito especialmente da sua matriz judeo-cristã. Incomoda-me porque está na origem dos
problemas, dos equívocos e das características dessa civilização porque não acredito nele”.634

Assim, a ausência de uma religiosidade segura, “entre a decepção e o declive, no


fio bambo / sobre os rios que vão por babilónia” (PR2, 77), adensa a degradação
social, sugerida pelo sintagma “compadrios, trepidações”.
Neste contexto poético e especulativo, em versos conclusivos, o sujeito de
enunciação canta:

“ninguém quer saber de sião nem de músicas celestiais,


ninguém se senta, ninguém chora, ninguém contempla os salgueiros,

e se alguém ainda se abriga, abriga-se sem objecções de consciência,


encolhido entre arbustos e embustes, já nem sequer espalha tristes
palavras ao vento.”635

A veemente voz poética denuncia, num ímpeto acusador, o carácter


desencantado pela ausência de valores e falta de solidariedade, onde “ninguém quer
saber de sião”, sobressaem os fracassos e as humilhações para as quais apenas resta
uma amarga saída. A linguagem directa irrompe num agudo dissídio com o auto-
comprazimento espiritual; a negação do bem colhido na terra prometida, não dá
lugar à redenção ou ao consolo. Por conseguinte, nos versos enunciados, em tom
judicativo, avulta uma reflexão grave da existência, uma vez que Graça Moura
revela uma visão babilónica e desconcertante do mundo, repleto de marcas
fortemente conotativas. O eu lírico concede, por conseguinte, uma atenção
privilegiada ao quotidiano que mescla com uma vertente erudita, relacionando-os
pela palavra poética. A aurea mediocritas horaciana é apenas uma miragem como
refúgio à desventura; daí a manifestação de um estado de alma estigmatizado por
uma angústia marcadamente maneirista636. O carácter repetitivo da anáfora negativa
sobre Sião, “ninguém chora, ninguém contempla”, explica que não há

634
Vide Vasco Graça Moura, “Contra Deus”, in Discursos vários poéticos, loc. cit., p. 396. O pensamento
veiculado nestes versos e reiterado ao longo da vida, corresponde, em grande medida, ao que, por exemplo,
declara em entrevista: “Sou um ateu convicto. No há tentações nem volta a dar. Mas compreendo a vivência
das religiões e o tipo de angústia metafisica” (Tiago Salazar, “Com sua Graça e tudo”, in Magazine Artes,
nº 47, Janeiro 2007, p. 27).
635
Vasco Graça Moura, “Babel revisited”, in Artur Anselmo et alii, Babel sobre babel, loc. cit., pp. 113-114.
636
As redondilhas em questão são consideradas o mais perfeito exemplo da vertente maneirista de Camões,
como preconizam diversos autores (Cf., por exemplo, Jorge de Sena, “O maneirismo de Camões”, in Trinta
anos de Camões, loc. cit., pp. 43-92).

207
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

consequências entre o passado e o presente, o que contraria a exegese dominante


das redondilhas camonianas637. Com efeito, é para um mundo sem memória, que
remete a linha ideológica de Graça Moura. A questão do desengano, tão apreciada
pela estética do Maneirismo, implica uma perspectiva ontológica na medida que,
neste contexto referencial, destaca o vivido, representado, por exemplo, pelo
lexema “embuste”, associado à ilusão e à falsidade. Babilónia é, sem dúvida, um
tempo de dor e ausência638; simboliza a manifestação de um desassossego espiritual
e a expressão de uma sociedade fustigada por um atormentado sentimento de crise.
Nesta inquietude verifica-se, pois, o desabar das certezas do homem moderno
invadido por um agudo tormento num mundo em irreversível derrocada.
Atravessam estes versos uma contínua dúvida, numa espécie de manifestação
elegíaca dos homens entregues à sua sorte; a condição humana, desapossada de
espiritualidade, vinca uma gradual dessacralização que a ausência de valores
impõe, tecida numa escrita de forte pendor lírico.
Ainda a partir do veio inspirador de Sôbolos rios, o eu lírico apresenta um
horizonte exegético da vasta recepção das redondilhas, prova cabal da sua
importância:

“e para babel ressoar melhor na dissonância o verbo fez-se contraposição

oposição, proposição, transposição, deposição (ricordarsi del tempo


felice nella miseria, ohmé, nessun maggior dolore).”639

Assim, “para babel ressoar melhor na dissonância” sugere que o salmo foi
motivo de vasta e divergente fortuna criativa640, graças à glosa produzida por

637
Por exemplo, Cleonice Berardinelli mostra como “a Babilónia temporal se insere na dor, enquanto Sião -
tempo passado, é substituída pela terra da Glória” (Cleonice Berardinelli, “Sôbolos rios: a mudança da
mudança”, in Estudos camonianos, loc. cit., p. 208).
638
Segundo Jeanneret, o canto bíblico adequa-se ao gosto pelas imagens hiperbólicas, tão apreciadas pelo
Maneirismo, o que explica as múltiplas edições do referido salmo por toda a Europa (Michael Jeanneret,
Poésie et tradition biblique au XVIe. siècle: recherches stylistiques sur les paraphrases des ‘Psaumes’, de
Marot à Malherb, Paris, Ed. José Corti, 1969, p. 444).
639
Vasco Graça Moura, “Babel revisited”, in Artur Anselmo et alii, Babel sobre babel, loc. cit., p. 114.
640
A título de exemplo, Maria de Lourdes Belchior (“As glosas do salmo 136 e a saudade portuguesa”, in Os
homens e os livros. Séculos XVI e XVII, Lisboa, Ed. Verbo, 1971, pp. 17-28) conta-se entre os autores que
analisaram com significativa acuidade a recepção criativa do salmo 136, desenvolvida sobretudo a partir das
redondilhas camonianas, centrando-se sobretudo na literatura peninsular dos séculos XVI e XVII não
deixando de referir na actualidade O canto de Babel, de Aureliano de Lima, e o conto Super flumina
Babylonis, da autoria de Jorge de Sena. Neste contexto, vide a interpretação e a bibliografia indicada por
Rita Marnoto, “Da Arcádia a Sôbolos os rios”, in Sete ensaios camonianos, Coimbra, Centro
Interuniversitário de Estudos Camonianos, 2007, pp. 189-221 e Carlos André, “Super Flumina: as

208
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

Camões, “o verbo fez-se contraposição / oposição, proposição”, concluindo com


um passo de Dante, na língua original: “ricordarsi del tempo / felice nella miseria,
ohmé, nessun maggior dolore” (Graça Moura traduz este passo do seguinte modo:
“nenhuma maior dor / do que a de recordar tempo feliz já na miséria”641). Além de
apresentar estreitas afinidades semânticas com o texto camoniano, este trecho do
canto V da Divina Comédia (vv.121-123) confere uma dimensão universal à
poesia, o que revela a valorização lírica da magoada tristeza da recordação de um
tempo passado, topos já presente no poeta florentino642.
Assim, a referencialidade realizada por Graça Moura pressupõe criações
artísticas e culturais diversas, num incessante diálogo, uma vez que, no dizer do
poeta, “a leitura é um puro contacto da alma” (PR1, 376). O fascínio pelas
redondilhas camonianas traduziu-se também na sua produção ensaística, como se
regista no volume Camões e a divina proporção643. A título exemplificativo, dedica
o primeiro capítulo à recepção de Super Flumina Babylonis em Quinhentos644, bem
como dispensa uma particular atenção à música dos salmos645. Refere ainda a
questão das relações intertextuais entre a Imagem da vida cristã de Frei Heitor
Pinto e Sobre os rios e, corroborado pela autoridade de Eduardo Lourenço646,
conclui que Camões compulsa, sem dúvida, passos de Heitor Pinto647. Nesta linha,
também dá conta do legado de Sôbolos rios na colectânea por si organizada, cujo

redondilhas camonianas e outras paráfrases quinhentistas”, in Seabra Pereira e Manuel Ferro (coord.), Actas
da VI Reunião Internacional de Camonistas, Coimbra, Imprensa da Universidade, 2012, pp. 471-485.
641
A Divina Comédia de Dante, tradução de Vasco Graça Moura, Venda Nova. Ed. Bertrand, 1995,
pp. 68-69.
642
Nesta óptica, o poeta contemporâneo teve sempre o almejado desejo de cultivar “a qualidade intrínseca
de Camões, a sua força cultural e literária no seu sentido universalista”, no dizer de Guilherme d’Oliveira
Martins (“Que se lhe dobre a memória”, in JL. Jornal de Letras, Artes e Ideias, 4 Dezembro 2014, p. 27).
643
Vasco Graça Moura, em Camões e a divina proporção, debruça-se sobre esquemas pitagóricos-
-matemáticos aplicados ao texto camoniano, sobretudo a teoria do número de ouro que é tomada como
modelo de conhecimento capaz de atingir a unidade através de reacções proporcionais, preconizadas no De
diuina proportione (publicado em 1509) de Luca Pacioli, matemático italiano de Quinhentos, que dá título
ao volume (Vasco Graça Moura, “Camões e a divina proporção”, in Camões e a divina proporção, loc. cit.,
pp. 133-167).
644
Idem, “Os salmos e o humanismo”, in op. cit., pp. 11-45.
645
Idem, “A música em Sobre os rios”, in op. cit., pp. 171-213.
646
Eduardo Lourenço, “Camões e Frei Heitor Pinto”, in Poesia e metafísica, Lisboa, Ed. Sá da Costa, 1983,
pp. 103-115.
647
Vasco Graça Moura, “Camões e Fr. Heitor Pinto”, in Camões e a divina proporção, loc. cit., p. 120.

209
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

título é: Babel em redondilhas: Luís de Camões, D. Francisco Manuel de Melo e


Afonso Duarte648.
Com efeito, a alusão de Graça Moura aos versos do autor das Rhythmas abre um
vasto horizonte de possibilidades; numa voz comprometida com a herança
quinhentista, não deixa de se demarcar graças a uma recepção peculiar, fornecendo,
sem dúvida, uma cartografia ligada ao próprio processo criativo. Numa escrita
digressiva, a descrição de emoções apela o leitor a pensar na inquietude que
persegue cada ser humano. Por outro lado, as coordenadas interpretativas
sustentadas por vgm assentam na consciência da dignidade do canto, em detrimento
de uma dimensão preponderantemente cristã e aceite pela maioria dos exegetas, o
que confere um núcleo significativo inovador ao seu poema. Deste modo, as
redondilhas enunciadas configuram um quadro poético com determinadas
preocupações éticas e pessoais, que entretecem a memória e a celebração,
mostrando como a poesia configura um depurado palimpsesto.
A apropriação efectuada por vgm das conhecidas redondilhas constitui um facto
significativo, no entanto afasta-se do sentido estruturante de Camões. Neste, o
sofrimento e a solidão são purificados por uma linha de intensa religiosidade,
enquanto que para o poeta contemporâneo é a poesia o único meio de recuperação
das vivências humanas e parece ser a única forma de expiar a dor e o sofrimento649.
Deste modo, uma ironia amarga salvação percorre os versos de Graça Moura, uma
vez que revela uma profunda crise e de confiança do homem no seu próprio
destino, onde a única certeza converge para uma irrecuperável plenitude da
existência sem qualquer possibilidade redentora.

648
Idem, Babel em redondilhas: Luís de Camões, D. Francisco Manuel de Melo e Afonso Duarte, pref. de
Vasco Graça Moura, Lisboa, Ed. Ática, 2010.
649
A riqueza da essência lírica do canto camoniano de Sôbolos rios leva Jorge de Sena a concluir que se
trata de um poema da fase final da vida do poeta, referindo que constitui “uma profissão de fé pessoalíssima,
e uma despedida ou testamento poético” (Cf. Jorge de Sena, “Babel e Sião”, in Trinta anos de Camões 1948-
-1978. Estudos camonianos e correlatos, loc. cit., p.127). Registe-se que Vasco Graça Moura (“O texto e o
naufrágio”, in Camões e a divina proporção, in loc. cit., p. 59) preconiza que “tudo concorre a indicar terem
as redondilhas sido escritas em Lisboa e na última fase da vida de Camões.” Em consonância com esta
perspectiva, veja-se ainda Vítor Manuel Aguiar Silva, “Epilegómenos”, in Camões: labirintos e fascínios,
loc. cit., p. 238. Em larga medida, esta asserção apresenta uma forte analogia com o poema Babel revisited,
de Graça Moura, editado também nos últimos anos de vida do autor.

210
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

2.5. Tradução dos versos castelhanos de Camões: a literatura em diálogo

Nesta vasta e complexa rede intertextual de matriz camoniana, que atravessa a


obra de Graça Moura, a sua coletânea Poesias castelhanas de Camões650 assume
neste contexto um particular relevo significativo. Reconhecido o mérito do labor
tradutório dispendido pelo autor651, convém, no entanto, observar a especificidade
verificada na referida obra, provida de um vincado intuito divulgativo, como é seu
apanágio.652
O facto de os textos terem sido escritos em castelhano tem conduzido653, em
certa medida, ao seu esquecimento junto do grande público654; após a morte do
poeta pátrio por excelência, as vicissitudes de um período histórico incómodo pela
perda da independência nacional explicam, porventura, os poucos estudos e
traduções que lhes têm sido consagrados655. Não obstante, a prática bilingue de
poetar, fenómeno complexo sedimentado devido a questões culturais relacionadas
com as casas reais dos dois países, não é nova na época de Camões656. Já

650
Poesias castelhanas de Camões, tradução e prefácio de Vasco Graça Moura, Lisboa, Ed. Ática, 2010.
651
Neste sentido, Frederico Lourenço, no enaltecimento das qualidades literárias de vgm considera-o um
“sobredotado tradutor”, pela liberdade criativa e pelo conhecimento seguro e concreto das línguas que verteu
para português (Frederico Lourenço, “Vasco Graça Moura”, in O lugar supraceleste. Crónicas, Lisboa. Ed.
Cotovia, 2015, p. 260).
652
Como observa, João Barrento, sobre a versão de vgm da poesia de Rilke, considera que qualquer
experiência da tradução é sempre “animada do sopro da necessidade e do génio” (João Barrento, “O ser e o
canto. Rilke pela mão de Vasco Graça Moura”, in Rainer Maria Rilke, Elegias de Duíno e Os Sonetos a
Orfeu, Lisboa, Ed. Quetzal, 22017, p. 14).
653
Aguiar e Silva tem uma curiosa posição sobre os poemas castelhanos de Camões. Segundo o reputado
camonista, o poeta quinhentista apenas escreveu um diminuto número de sonetos; no que respeito as
redondilhas, acrescenta o professor, “são escritas em castelhano, em conformidade com a língua dos motes,
quase todos anónimos” (Vítor Manuel Aguiar e Silva, Maneirismo e Barroco na poesia lírica portuguesa,
loc. cit., pp. 390-391).
654
Há uma considerável e importante série de estudos consagrados aos versos castelhanos de Camões, a
título exemplificativo, vide: Antero Vieira de Lemos, A obra espanhola de Camões, Porto, Editora Pax,
2
1972; José Filgueira Valverde, “Camões, clássico castelhano”, in Camões, Coimbra, Liv. Almedina, 21981,
pp. 325-357; Ana Maria Garcia Martín, “O uso do castelhano na obra de Camões”, in Aguiar e Silva (org.),
Dicionário de Camões, loc. cit., pp. 937-940.
655
Veja-se a este propósito, Pilar Vazquez Cuesta, “O bilinguismo castelhano-português na época de
Camões, in Arquivos do Centro cultural Português, vol. XVI, Fundação Calouste Gulbenkian, Paris, 1981,
pp. 807-827; Jorge de Sena, “Autonomia política sob os Filipes”, in Amor e outros verbetes, Lisboa, Edições
70, 1992, p. 138.
656
Embora García Martín reconheça dificuldades na delimitação precisa das coordenadas temporais sobre
este fenómeno linguístico dual, sublinha: “A dimensão que o fenómeno do bilinguismo luso-castelhano
assume na literatura portuguesa é extraordinária, tanto pela quantidade de como pela qualidade dos autores
portugueses que escreveram toda ou parte ou da sua obra em castelhano. Por essa razão, é possível afirmar
que a língua castelhano foi, durante três séculos uma das línguas de expressão da literatura portuguesa” (Ana
Maria García Martín, “O bilinguismo literário luso-castelhano na época de Camões”, in Vítor Aguiar e Silva
(coord.), Dicionário de Luís de Camões, loc. cit., p. 78).

211
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

anteriormente Gil Vicente escrevera peças em castelhano, sendo paradigmático o


Auto da Visitação, considerada a sua primeira representação, e os poetas do
Cancioneiro Geral, entre muitos outros, também não ignoram a língua de
Cervantes, o que originou uma produção literária comum em português e
castelhano657. A este propósito, Vítor Aguiar e Silva distingue o conceito de
comunidade interliterária, fundamental para compreender o fenómeno referido:

“O sistema de uma literatura nacional, no seu repertório e nas suas normas e convenções, é
sempre em rigor um sistema interliterário, constituído graças às afinidades memoriais, históricas,
linguísticas, geoculturais, geopoéticas, étnicas, religiosas, etc., existente entre as várias nações e
nos intercâmbios recíprocos que vão desde as grandes concepções poetológicas até aos temas e aos
estilemas, que entre elas se estabelecem.”658

É neste contexto de convivência literária entre autores peninsulares659 que


Graça Moura, também escritor de poemas em castelhano, traduziu Camões na
medida velha e na medida nova660. Este notável domínio, verificado já nas suas
traduções em diversas línguas, como se fez menção no capítulo I, não é, pois,
fortuito nem ocasional661. Embora não sendo muito extenso o número de textos
vertidos, Graça Moura faz questão de esclarecer a estrutura organizativa seguida:
considerou o corpus fixado por Costa Pimpão (treze redondilhas e dois sonetos),
acrescentou ainda o monólogo de Aónia, da Écloga I662 e incluiu ainda cinco sonetos
aceites por Hernâni Cidade663.

657
Paul Teyssier sustenta a este respeito: “Numa época em que a cultura portuguesa e a cultura espanhola se
encontravam tão intimamente ligadas em Portugal, a maior parte dos escritores deste país dominava com
igual facilidade as duas línguas (Paul Teyssier, A língua de Gil Vicente, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da
Moeda, 2005, p. 351).
658
Vítor Manuel Aguiar e Silva, “Camões e a comunidade interliterária luso-castelhana nos séculos XVI e
XVII (1572-1648)”, in A lira dourada e a tuba canora, Lisboa, Ed. Cotovia, 2008, p. 56.
659
Nesta linha, a profusão do fenómeno do bilinguismo é uma marca distintiva dos poetas maneiristas, como
assevera Vítor Manuel Aguiar e Silva (Maneirismo e barroco na poesia lírica portuguesa, loc. cit., pp. 389
sqq). Cf. também Manuel Ferro, “O bilinguismo na épica portuguesa do período filipino: entre a expressão
autonómica, a afirmação identitária e a importância do contexto cultural espanhol envolvente”, in Carmen
M. Fernandez de Cañete et alii (org.), Crisis y ruptura peninsular. III Congreso Internacional de la
SEEPLU, Cáceres, Universidad de Extremadura, 2014, pp. 81-99.
660
Aguiar e Silva apresenta uma síntese de estudiosos que se debruçaram sobre a obra de Camões a partir do
conceito de comunidade interliterária (Cf. Vítor Manuel Aguiar e Silva, “Camões e a comunidade
interliterária luso-castelhana nos séculos XVI e XVII (1572-1648)”, in op. cit., p. 58).
661
Neste fascínio por Camões, o vgm confidencia, em entrevista, o principal motivo do seu trabalho de
tradutor: “A primeira razão que me leva a traduzir é adensar o meu conhecimento do autor que me interessa"
(Mário Santos, “Petrarca segundo Graça Moura”, in jornal Público, 1 Dezembro 2003, p. l3).
662
Ao passo da Écloga I (p. 56-59), juntam-se as seguintes redondilhas: Pues me distes tal herida (p. 16);
Desque una vez miré (p. 18); Tiempo perdido es aquel (p. 20); Falsos loores os dán (p. 22); Ved que
enganos señorea (p. 24); Posible es a mi cuidado (p. 26); Mi corazón me han robado (p. 28); Dióme Amor
tormentos dos (p. 30); Mi nueva y dulce querella (p. 34); Después que Amor me formó (p. 36); Madre, si me
fuere (p. 42); Sepa quién padece (p. 46); Vuelve acá, no estês pasmado (p. 50). No que concerne aos

212
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

Curiosamente, o autor de semana inglesa afirma peremptoriamente que estes


textos não representam o melhor que Camões produziu664, o que contradiz Faria e
Sousa que, embora considere ridículos os poetas nacionais que escreveram em
língua castelhana, exceptua Camões julgando admirável “que la escribiesse mi P.
com tanta perfecion”665. Deste modo, a prática tradutória em torno de Camões,
apresentada em versão bilingue, regista uma assinalável divulgação da sua lírica,
onde as marcas intertextuais possibilitam descortinar uma estreita comunicação
entre realidades literárias e culturais666, bem como revelam as afinidades existentes
entre países próximos.
Na colectânea referida, consagrada a revelar um determinado panorama
histórico-cultural, Graça Moura traduz deste modo o seguinte poema:

GLOSA GLOSA
A este moto: A este moto:
Que veré que me contente? Que verei que me contente?

Desque una vez miré, Senhora, desde que olhei,


Señora, vuestra beldad, vossa beleza, em verdade
jamás por mi voluntad nunca por minha vontade
los ojos de vos quité. os olhos de vós tirei.
Pues sin vos placer no siente Pois sem vós prazer não sente
mi vida, ni lo desea, minha vida, e o não deseja,
si no queréis que os vea, se não quereis que vos veja,
qué veré que me contente? (p. 18) que verei que me contente? (p. 19)

A proximidade entre os textos transcritos é evidente – o título, a forma, o


vocabulário –, o que configura as potencialidades múltiplas do reconhecido
engenho do tradutor. A dimensão do texto-fonte desenha-se no desejo de uma
correspondência amorosa, expressa no vocativo “Senhora”, que não se alcança,

sonetos, são apresentados com os seguintes títulos: El vaso reluciente y cristalino (p. 52) e Pues lágrimas
tratáis, mis ojos tristes (p. 54) (Cf. Luís de Camões, Rimas, loc. cit.).
663
Os sonetos são os seguintes: De piedra, de metal, de cosa dura (p. 62); Do están los claros ojos que
colgada (p. 64); Ilustre gracia, nombre de una moza (p. 66); Ondas que por el mundo caminando (p. 68)
Orfeu enamorada que tañía (p.70) (Cf. Hernâni Cidade, Obras Completas de Luís de Camões, vol. I -
- Redondilhas e sonetos, Lisboa, Ed. Sá da Costa, 51985).
664
Poesias castelhanas de Camões, tradução e prefácio de Vasco Graça Moura, loc. cit., p. 8.
665
Luís de Camões, Rimas várias de Luís de Camões Comentadas por Manuel de Faria e Sousa, Primeira
Parte-Tomo I e II, nota introdutória do Prof. F. Rebelo Gonçalves, prefácio do Prof. Jorge de Sena, loc. cit.,
p. 266.
666
Esta asserção liga-se ao pensamento de Umberto Eco, quando afirma que na tradução “não entender uma
referência cultural ou irónica significa empobrecer o texto” (Umberto Eco, Dizer quase a mesma coisa sobre
a tradução, Lisboa, Ed. Difel, 2005, p. 32).

213
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

“pois sem vós prazer não sente a minha vida”. A dificuldade de alcançar o amor
torna-se um elemento fundamental para superar o descontentamento avassalador,
comprovado na interrogação do verso derradeiro, que também dá título à glosa:
“que verei que me contente?”.
Os exemplos aduzidos, inseridos num vasto palimpsesto que é a tradução, são
completamente conseguidos, graças ao equilíbrio entre a linguagem própria das
redondilhas e o universo camoniano667. A actividade enunciada, como é sabido,
ultrapassa o mero conhecimento linguístico e coloca sempre problemas textuais
complexos; neste contexto específico surge atenuada pela proximidade dos idiomas
e pelos códigos literários comuns na época, que Graça Moura conhece como
poucos668. A contiguidade linguística permite, por exemplo, uma série ilimitada de
analogias, comparações e imagens, concorrendo para uma musicalidade do discurso
(v.g., “verdade /vontade” ou “deseja / veja”). Contudo, não se confina a esta estrita
dimensão, uma vez que procura também um equilíbrio semântico e obedece às
convenções métricas, rimáticas e estróficas da redondilha maior.
Neste processo de versão portuguesa dos textos castelhanos, só alcançado
plenamente graças ao labor continuado em torno do acto de traduzir e ao
conhecimento aturado de Camões, pode-se ler na seguinte redondilha:

“GLOSA “GLOSA
A este moto: A este moto:
Vos tenéis mi corazón. Vós tendes meu coração.

Mi corazón me han robado, Foi-me o coração roubado,


y Amor viendo mis enojos, e Amor vendo meu penar
mi dijo: fuéte llevado me disse foi-te levado
por los más hermosos ojos pelo mais formoso olhar
que desque vivo he mirado. que dês que vivo hei mirado.
Gracias sobrenaturales, Graças sobrenaturais
te lo tienen en prisión, to mantêm em prisão
y si Amor tiene razón, e se Amor tiver razão,
Señora por las señales Senhora, pelos sinais,
vos tenéis mi corazón”. (p. 28) vós tendes meu coração”. (p. 29)

667
Graça Moura conhece com grande segurança esta matéria, como testemunha na enunciação das
publicações estrangeiras de obra camoniana. Por exemplo, na qualidade de crítico, comenta positivamente
uma recente edição inglesa da poesia de Camões, efectuada por Richard Zenith (Cf. Vasco Graça Moura, “O
Camões de Richard Zenith”, in Discursos vários poéticos, loc. cit., pp. 334-339).
668
A este propósito, Gastão Cruz adverte que as palavras de outros jamais põem em causa a individualidade
do que cada um escreve (Gastão Cruz, A poesia portuguesa hoje, Lisboa, Ed. Relógio d’Água, 21999,
p. 125).

214
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

De novo, a poesia de pendor cortesanesca tem relevo na tradução do poeta


contemporâneo669. Embora todo o exercício tradutório seja condicionado pelas
estruturas da língua do texto de partida, Graça Moura tem um conhecimento
privilegiado da história e da literatura peninsular em que o texto se insere. Ao
realizar uma versão bilingue, como já foi assinalado, o tradutor-autor, no dizer de
João Barrento670, denota a sua preocupação em seguir, pari passu, o texto original,
partilhando com o leitor horizontes de possibilidades. Na procura de
correspondências entre idiomas, opta ainda pelas proximidades vocabulares e pela
fixação do significado decorrente da sua interpretação, bem como demonstra o seu
trabalho oficinal proporcionado pela eficácia estilística da adjectivação, por
exemplo, em “roubado” ou “formoso”: “Mi corazón me han robado” – “Foi-me o
coração roubado”, ou “por los más hermosos ojos” – “pelo mais formoso olhar”.
Neste prisma, no dizer de Rita Marnoto, a tradução de Graça Moura é animada
“pela personalidade do autor, pela sua bagagem intelectual, pelas suas capacidades
técnicas e pela sua sensibilidade, entranha-se pela espessura das palavras,
conferindo densidade à tradução”671. Com efeito, o fecundo rasto camoniano que
percorre a sua obra lírica, configurado em múltiplos aproveitamentos intertextuais,
facilitou-lhe decerto este trabalho de tradução.672
No continuado convívio com os textos castelhanos de Camões e um significativo
gosto pela variedade de estilos e formas, veja-se também a tradução de um soneto:

“Pues lágrimas tratáis, mis ojos tristes “Pois lágrimas tratais, meus olhos tristes

Pues lágrimas tratáis, mis ojos tristes, Pois lágrimas tratais, meus olhos tristes,
y en lágrimas pasáis la noche y día, e em lágrimas passais a noite e o dia,

669
Aníbal Pinto de Castro (Cf. “Camões e a tradição poética peninsular”, in Páginas de um honesto estudo
camoniano, Coimbra, Centro Interuniversitário de Estudos Camonianos-Imprensa da Universidade, 2007,
p. 89) sublinha: “A persistência de certos temas, tópicos ou estilemas vindos de uma tradição que remonta à
poesia trovadoresca na obra camoniana, explica-se com fácil clareza pela tradição contínua e tenaz que os
manteve através dos tempos, das épocas e dos códigos literários).
670
João Barrento, “O ser e o canto. Rilke pela mão de Vasco Graça Moura”, in Rainer Maria Rilke, Elegias
de Duíno e Os Sonetos a Orfeu, loc. cit., p. 9).
671
Cf. Rita Marnoto, “Pelas florestas da noite. Vasco Graça Moura tradutor e poeta”, in Rassegna Iberistica,
nº 98, Aprile, 2013, p. 94.
672
Xosé M. Dasilva, nesta linha, destaca: “Antes de finalizar, se hace necesario en que Poesias Castelhanas
de Camões supone un hito novedoso en lo concerniente a la obra lírica en español del poeta, al suministrarse
por primera vez em portugués. Además, estas versiones representan un complemento nada desdeñable para
acercarse al papel desempeñado en calidad de canonista” (Cf. Xosé Manuel Dasilva, “Vasco Graça Moura
como traductor de Camões”, in Actas do CEL-Centre d'Études Lusophones de Genève, Filologia e
literatura, nº 4, 2016, p. 25).

215
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

mirad si es llanto este que os envía vede se é pranto o que ora vos envia
aquella por quien vos tantas vertistes. aquela por quem vós tantas carpistes.

Sentid, mis ojos, bien esta que vistes, Senti, meus olhos, bem esta que vistes
y si ella lo es, oh gran ventura mia! e se ela o é, maior minha alegria!
por muy bien empleadas las habría Por muito bem empregues haveria
mil cuentos que por esta sola distes. mil contos que por esta só cumpristes.

Mas una cosa mucho deseada, Mas se uma cousa muito desejada,
aunque se vea cierta, no es creída inda que sendo certa, não é crida,
cuanto más esta, que me es enviada. quanto mais esta, que me é enviada.

Pero digo que aunque sea fingida, Porém digo que embora a ser fingida,
que basta que por lágrima sea dada. bastaria por lágrima ser dada,
porque sea por lágrima tenida.” (p. 54) para ela então por lágrima ser tida.” (p. 55)

A reescrita apurada deste soneto, com uma indubitável qualidade literária, revela
uma marca indelével do modo lírico: a abertura às mais diversas possibilidades
significativas deriva da transposição de uma língua para outra, tornando-se o jogo
de palavras uma modalidade privilegiada ao dispor de Graça Moura. Remete,
assim, para um diálogo intertextual e para uma concepção da tradução como
metamorfose e assimilação. A ductilidade expressiva, presente, por exemplo, no
passo “meus olhos tristes, / e em lágrimas passais a noite e o dia”, o respeito pelo
enjambement, que entrelaça os versos numa unidade semântica perfeita, o ritmo, as
assonâncias e as rimas análogas harmonizam-se em modulações extraordinárias,
desenhando, sem dúvida, uma sonoridade melódica e harmoniosa673. Nesta linha, a
tradução de vgm inscreve-se numa prática de escrita, modelada na homogeneidade
do acto de traduzir e no labor de escrever, como assevera Henri Meschonnic674.
Deste modo, a poesia traduzida tem o dom de se converter em genuína criação
lírica, visto que o autor de recitativos trata com particular mestria a sua complexa
essência675.
As Poesias castelhanas de Camões, pelos exemplos aduzidos, mostram à
saciedade que Graça Moura é um tradutor da linhagem de Pessoa ou de Jorge de
673
Neste prisma, é elucidativo o reconhecimento da actividade no domínio da tradução de vgm, quando
Frederico Lourenço foi distinguido com o Prémio Pessoa 2016: “Tenho muita admiração por Vasco Graça
Moura, […] as suas traduções são de uma beleza literária extraordinária” (“Prémio Pessoa para o tradutor de
Homero e da Bíblia”, in Público, 10 Dezembro 2016, p. 31).
674
Cf. Henri Meschonnic, Pour la poétique II, Ed. Gallimard, Paris, 1973, p. 320.
675
Na nota introdutória à tradução da poesia de Petrarca, na sua tarefa Graça Moura arvora-se em autor,
como observa: “Nada disto quer dizer que a tradução não abra ensejo à expressão da personalidade do autor.
Pelo contrário. O tradutor também é actor” (Cf. Vasco Graça Moura, As rimas de Petrarca, Lisboa, Ed.
Bertrand, 2003, p. 32).

216
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

Sena, pela ampla erudição demonstrada e pelo sentido cívico de dar a conhecer
textos escritos noutras línguas, inacessíveis a muitos leitores nacionais676.

2.6. Língua portuguesa: “és nossa”

Deste modo, as questões que dizem respeito à língua assumem em Graça Moura
uma importante função como objecto de pesquisa, reflexão, produção e polémica,
como já foi demonstrado anteriormente. O seu papel na difusão da língua nacional
é inegável e surge testemunhado quando fala do seu amigo Aguiar e Silva, à
entrada para uma reunião no Instituto Camões: “somos ambos do conselho geral
tratando da expansão da língua portuguesa / que mais mundo houvera lá chegara”
(PR1, 438).
Neste contexto, o poema Lamento para a língua portuguesa é fulcral para
compreender o pensamento do autor contemporâneo nessa área, que faz parte da
tradição literária nacional. António Ferreira, por exemplo, foi o primeiro autor a
não escrever um único verso em castelhano e foi com ele que principiaram os
elogios da língua portuguesa677, como exorta num dos seus mais célebres passos:

“Floreça, fale, cante, ouça-se e viva


A portuguesa língua, e já, onde for,
Senhora vá de si, soberba e altiva”.678

Este vetusto topos a que não é alheio Graça Moura, chega com grande vitalidade
aos poetas actuais, como assinala Rocha Pereira679. Graça Moura exemplifica essa
realidade; a “língua lusitana”, no seu dizer, é “aromática, linfática e vernácula”
(PR1,77). Neste contexto, também um segmento do título de um ensaio de João

676
De modo similar, no intuito de divulgar autores nacionais que não escreverem textos na língua materna,
registe-se, a propósito, que vgm realizou também traduções para português de alguns poemas ingleses do
heterónimo pessoano Alexander Search e efectuou apreciações interpretativas sobre os referidos textos. (Cf.
Vasco Graça Moura, “Alexandre ‘em busca’ de Fernando, ou cinco breves notas sobre a poesia de
Alexander Search, seguidas de oito poemas seus e respectivas traduções”, in Várias vozes, loc. cit., pp. 80-
-97).
677
Aguiar e Silva, neste percurso laudatório da língua portuguesa, aponta já “calorosas apologias”
consagradas pelos poetas do período maneirista (Vítor Manuel Aguiar e Silva, Maneirismo e barroco na
poesia lírica portuguesa, loc. cit., p. 389).
678
António Ferreira, Poemas lusitanos, ed. crítica, introd. e comentário de T. F. Earle, Lisboa, Fundação
Calouste Gulbenkian, 22008, p. 263.
679
Cf. Maria Helena Rocha Pereira, “Elogios da língua portuguesa”, in Máthesis, nº 15, 2006, pp. 257-273.

217
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

Barrento é extraído precisamente do poema Lamento para a língua portuguesa de


Graça Moura: Não és mais do que as outras, mas é nossa … - a língua portuguesa
na poesia portuguesa de hoje680, concluindo o referido autor que os aspectos
linguísticos são recorrentes nas reflexões dos poetas seus coevos:

“A questão da língua e a consciência dela ganham contornos palpáveis, tornando-se objecto de


reflexão em muitos poemas, espelho de um estado de coisas mais vasto, muitas vezes visto como
deplorável, mas também motivo de um orgulho ou de um entusiasmo”.681

A linha de pensamento, em Lamento para a língua portuguesa, apresenta um


intuito crítico pela deterioração a que se encontra votado o idioma nacional, que é
casa e pátria: “ruiu a casa que és do nosso ser / e este anda por isso desavindo”
(PR1, 556). Os versos inaugurais mostram a estreita relação do sujeito poético com
a língua e o continuado descuido da comunidade no seu uso:

“Não és mais do que as outras, mas és nossa,


e crescemos em ti. nem se imagina
que alguma vez uma outra língua possa
pôr-te incolor, ou inodora, insossa,
ser remédio brutal, mera aspirina,
ou tirar-nos de vez de alguma fossa,
ou dar-nos vida nova e repentina.
mas é o teu país que te destroça,
o teu próprio país quer-te esquecer
e a sua condição te contamina
e no seu dia-a-dia te assassina.” (PR1, 556)

Como se observa, trata-se de um hino à língua portuguesa e as infinitas


possibilidades plásticas e o seu raro fulgor, no entanto, em jeito de amarga
denúncia, é o “país que te destroça”. O admirável início apresenta o tom dominante
do longo poema, com uma consciência aguda da palavra; o valor expressivo do
pronome “nossa” enfatiza, simultaneamente, a individualidade e o sentido

680
O autor justifica do seguinte modo o aproveitamento que efectuou: “O meu título vem de um poema
recente de Vasco Graça Moura, ‘Lamento para a língua portuguesa’, que tomarei como texto de referência a
que sistematicamente regressarei, e que me serve desde já para perspectivar o tema e o ponto de vista que me
orienta. Nesse longo poema, incluído no livro uma carta no inverno, Graça Moura assume o duplo papel de
observador e utente da língua (um utente muito especial, como veremos), para constatar, primeiro, o estado
‘destroçado’ a que chegou a língua portuguesa e depois afirmar a vontade de, apesar de tudo, se servir dela,
do que dela resta e do muito que nela existe soterrado, em latência, como fonte que alimenta um outro uso
possível, factor permanente de renovação e de conservação da memória da língua, e que é o seu uso poético”
(Cf. João Barrento, “Não és mais do que as outras, mas és nossa … - a língua portuguesa na poesia
portuguesa de hoje”, in Agulha. Revista de cultura #30, Fortaleza, São Paulo, Novembro 2002, (http:// www.
jornaldepoesia.jor.br/ag30barrento.htm - consultado em 12 Março 2014).
681
Idem, ibidem.

218
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

comunitário da língua portuguesa, pertença de todos, porque, como diz, “crescemos


em ti”.
No entanto, o país, segundo vgm, não protege a língua condignamente, pelo que
irrompe uma advertência magoada: “o teu próprio país quer-te esquecer / e a sua
condição te contamina / e no seu dia-a-dia te assassina.” Deste modo, o quotidiano
sujeita-a a toda a espécie de vicissitudes, pelo que se torna imperioso trazer-lhe
criatividade e renovação, ou seja, “vida nova”682. Acentua-se, assim, uma
consciência linguística profundamente amarga e um sentido disfórico face ao “país
que te destroça”, numa crítica desencantada pela generalização da fuga à norma.
Apesar de maltratada, o poeta vai em demanda da riqueza da língua; a variedade e a
abundância de adjetivos expressivos (“incolor”, “insossa”, “repentina”) fornecem,
sem dúvida, uma eficácia estético-literária, ao mesmo tempo que se realiza um
aproveitamento das virtualidades da matéria fónica, com a utilização de consoantes
sibilantes ou nasais (“aspirina”, “fossa”, “contamina”, “assassina”). Este processo
representa, sem dúvida, na dinâmica do discurso, um enriquecimento assinalável a
nível formal e de conteúdo.683
Esta consciência, orientada para a valorização linguística, está já ancorada na
invocação de Os Lusíadas, quando Camões implora às Tágides um “estilo
grandíloquo e corrente”684. Assim, vgm não ignora esta indelével dimensão
camoniana, quando a canta, em jeito de preito, no seu Os Lusíadas para gente
nova:
“E à nossa língua deu um brilho novo
E uma moderna musicalidade,
Com palavras que são do povo
E algumas mais difíceis, é verdade,
Só de ver como o faz eu me comovo
Como ele exprime a nossa identidade.
Dizendo o que pensa, sabe e sente,
De uma maneira muito cá da gente.” 685

682
Umberto Eco sustenta a este propósito: “A língua, por definição vai para onde ela quer, nenhum decreto
vindo de cima, nem por parte da política nem por parte da academia, pode deter o seu caminho” (Umberto
Eco, “Sobre algumas funções da literatura”, in Sobre literatura, Ed. Difel, 2003, p. 10).
683
Graça Moura não ignora o contributo do labor poético para a riqueza da língua nacional, por exemplo, em
glosa para os anos de eugenio de andrade: “ao sal / em que a língua dá sinal / ostinato em seu rigor” (PR2,
318).
684
Luís de Camões, Os Lusíadas, I, 4. Sobre o sentido deste este passo, vide J. A. Segurado de Campos, “O
estilo corrente de Camões (Lusíadas I, 4)”, in Revista Humanitas, vol. XLV, 1993, pp. 307-312.
685
Vasco Graça Moura, Os Lusíadas para gente nova, loc. cit., p. 16.

219
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

O juízo de valor do sujeito enunciador reside na exaltação da actualidade de


Camões, notável artífice da língua português a moderna – nascida como poeta
quinhentista e a quem deu “um brilho novo” – e a visão da história nacional, visto
que exprime “a nossa identidade”686. Ao invés, à originalidade enunciada, num
outro momento, faz uma apreciação pouco lisonjeira das letras nos tempos
modernos: “não são muitos, são muito poucos, os poetas / que inventam a poesia
portuguesa / como radical abalo do mundo” (PR2, 77).
Porém, o sentimento de denúncia do tratamento actual da língua, plasmado logo
no lexema “lamento” do título, surge em Graça Moura reiterado noutro passo, onde
os próprios meios de comunicação são responsáveis por esta funesta realidade:

“a ciranda
de violência alvar que não abranda
entre rádios, jornais, televisão.
e toda a gente o diz, mesmo essa que anda
por tal degradação tão mais feliz
que o repete por luxo.” (PR1, 556)

Com ironia, a inevitável vulgaridade do erro linguístico adquire foros nacionais


e, por displicente ignorância e superficialidade, é motivo de um orgulho falacioso,
porque é repetido “por luxo”687. A chocante mediocridade cultural em que vive
aturdido o país impossibilita-o de perceber a real riqueza dessa tradição linguística,
pois foi objecto de continuada erosão ao nível da sua memória688. O protagonismo
dos meios de comunicação é, por seu lado, um factor determinante do

686
Severim de Faria, neste âmbito, enaltece o contributo de Camões no idioma nacional: “De maneira que
Luís de Camões assi nesta parte como nas mais se mostrou excelente Poeta, e com esta sua obra ficou
enriquecido grandemente a Língua Portuguesa, porque lhe deu muitos termos novos, e palavras bem
achadas, que depois ficaram perfeitamente introduzidas” (Manuel Severim de Faria, Discursos vários
políticos, loc. cit., p. 132). Recentemente, determinados autores preconizaram o papel decisivo no
desenvolvimento da língua portuguesa, como por exemplo, José G. Herculano de Carvalho, “Contribuição
de Os Lusíadas para a renovação da língua portuguesa”, in Separata de Revista Portuguesa de Filologia,
Vol. 18, Coimbra, Centro de Estudos Românicos, Faculdade de Letras da Universidade, 1980 e Barbara
Spaggiari, “Algumas considerações sobre a língua de Camões”, in Camões e o Outono do Renascimento,
Coimbra, Centro Interuniversitário de Estudos Camonianos, 2011, pp. 59-75.
687
Nesta tradição apologética do português, já no Diálogo I de Corte de aldeia, não faltam considerações
sobre esta matéria. O Doutor, uma das personagens da referida obra, ao enumerar as qualidades idiomáticas
da língua nacional, não deixa de invectivar aqueles que a fustigam, numa curiosa comparação ligada ao
empobrecimento idiomático: “E para que diga tudo, só um mal tem: e é que, pelo pouco que lhe querem seus
naturais, trazem mais remendada que capa de pedinte” (Francisco Rodrigues Lobo, Corte na aldeia,
introdução, notas e fixação do texto de José Adriano de Carvalho Lisboa, Ed. Presença, 1991, p. 69).
688
George Steiner (“O leitor incomum”, in Paixão intacta, Lisboa, Ed. Relógio d’Água, 2003, p. 32) fala em
“amnésia planificada” da cultura actual, visto que no passado a leitura era facilitada graças a uma ampla
memória literária.

220
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

empobrecimento linguístico, pela sua “violência alvar”, reveladores de traços


comportamentais de um povo inculto.
Na senda desta linha de pensamento, o autor contemporâneo reitera esse valor
colectivo da língua, como se pode ler neste trecho:

“A língua portuguesa, para aqueles que a amam e nela vivem e se exprimem tem um imenso
património acumulado em séculos de literatura, tem uma gramática que hoje em dia é cada vez
mais descurada, transporta uma visão do mundo que nos identifica e em que nos reconhecemos,
tem valores próprios e possibilidades expressivas extraordinárias, em cuja ignorância,
infelizmente, as gerações mais novas têm vindo a ser mantidas por culpa que é um pouco a culpa
de todos, mas que é especialmente mais grave da parte de alguns.”689

As invectivas disseminadas ao longo do poema não surpreendem; a língua,


segundo o eu lírico, não se renova hoje em dia e é motivo apenas de banal e
descuidada utilização:

“agora que és refugo e cicatriz


esperança nenhuma hás-de manter:
o teu próprio domínio foi proscrito” […]

“ficou-te o mito
de haver milhões que te uivam triunfantes
na raiva e na oração, no amor, no grito
de desespero.” (PR1, 558)

A língua, “refugo e cicatriz”, repleta de agressões confrangedoras, é marcada por


confusão e desleixo, num exibicionismo fútil por aqueles que “uivam triunfantes”.
Por conseguinte, para Graça Moura, as ambiguidades e o preocupante
desconhecimento traduzem-se na amarga consciência de uma língua maltratada,
conducentes a um “conjunto de grunhidos comunicacionais”:

“As questões da identidade começam por estar relacionadas com a língua materna e esta deve a
Camões a sua dimensão moderna. Mas estão à vista as consequências que, para a identidade,
decorrem do actual estado de coisas: a língua materna está cada vez mais deteriorada, tornou-se
uma espécie de caixote do lixo onde cabem todos os dejectos e, tal como é utilizada e falada, um
dia destes mal conseguirá distinguir-se de um mero conjunto de grunhidos comunicacionais.”690

Como se lê, verifica-se a ideia primordial de que a língua e a cultura são uma
realidade autêntica, visto que se ligam a “questões da identidade”, que, como
afirmou Bocalino no Hospital das Letras, o idioma nacional “despojou da sua

689
Vasco Graça Moura, “A escrita e o real”, in JL. Jornal de Letras, Artes e Ideias, 17 Agosto 2015, p. 18.
690
Idem, “A língua de Camões?”, in Diário de Notícias, 9 Junho 2010, p 54.

221
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

primazia a língua castelhana”691. No entanto, a língua também é memória e a sua


“dimensão moderna” deve-se a Camões – “mestre da língua”, no dizer de Rebelo
Gonçalves692 –, poeta que teve um relevante papel na sua renovação e
enriquecimento. Essa concepção manifesta-se quando alude à simpatia de Vénus
pela língua portuguesa, a qual “com pouca corrupção crê que é a latina693, não era
ao idioma quinhentista que o poeta se queria referir, mas antes à introdução de uma
constelação de palavras recriadas em Os Lusíadas, como sublinhou com acuidade
Frederico Lourenço.694
Neste horizonte poético, a reflexão continua mais adiante:

“foste memória, música e matriz


de um áspero combate: apreender
e dominar o mundo” (PR1, 557)

O canto camoniano deu, na realidade, um impulso decisivo à expressividade da


língua; no entanto, ela é também espelho do mundo e da visão que se tem dela, por
“apreender e dominar o mundo”. Portanto, vgm não ignora a palavra como
construção e herança, que desenha uma identidade relacional, como a definiu
Edouard Glissant695, visto que se constrói a partir de múltiplos elementos
identitários relacionados entre si. Esta asserção do seu poder, transformador e
difusor, integra-se na lusofonia, feição plural do espaço linguístico universal e
ponte entre culturas, testemunho das suas imensas potencialidades, nem sempre
homogéneas e uniformes. Neste sentido, a língua constitui um elemento
identificador, como adverte Vergílio Ferreira:

“Uma língua é o lugar de onde se vê o mundo e em que se traçam os limites do nosso pensar e
sentir. Da minha língua vê-se o mar.”696

Na realidade, neste conhecido passo, o autor, à semelhança de Graça Moura,


coloca a tónica nos desígnios de uma invulgar cartografia da história e cultura
nacionais.

691
Francisco Manuel de Melo, Le dialogue “Hospital das letras”, texte établi d'après l'édition princeps et les
manuscrits, variantes et notes de Jean Colomès, loc. cit., p. 16.
692
Francisco Rebelo Gonçalves, “Camões, mestre da língua”, in Obras completas III, loc. cit., pp. 67-85.
693
Luís de Camões, Os Lusíadas, I, 33.
694
Frederico Lourenço, “O Tejo no proémio d’Os Lusíadas”, in Grécia revisitada, loc. cit., 2004, p. 267.
695
Edouard Glissant, Poética da relação, Porto, Sextante Editora, 2011.
696
Vergílio Ferreira, Espaço do invisível, V, Venda Nova, Ed. Bertrand, 1998, p. 84.

222
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

O tributo enunciado, num momento alto de criatividade poética, continua em


Lamento para a língua portuguesa, em jeito de advertência, com a intenção de que
todos ganhem consciência da sua importância:

“venturas, infortúnios, cativeiros,


e paisagens e luas e monções,
e os caminhos da terra a percorrer,
e arados, atrelagens e veleiros,
pedacinhos de conchas, verde jade,
doces luminescências e luzeiros,
que podias dizer e desdizer
no teu corpo de tempo e liberdade.” (PR1, 557)

Com efeito, todo o longo texto está impregnado de inúmeros lexemas evocativos
do poeta de Quinhentos – “venturas, infortúnios, cativeiros” –, numa clara
consciência da dignidade da poesia e do seu contributo para a língua portuguesa,
onde o sentido histórico não é ignorado. O poeta utiliza uma selecção vocabular de
grande riqueza plástica e de forte apelo sensorial dando azo a uma proliferação de
imagens, em versos de ritmo rápido marcadamente enumerativo. A rica construção
metafórica e a assonância das consoantes sibilantes (v.g. “pedacinhos de conchas,
verde jade, / doces luminescências e luzeiros”), num lirismo penetrante, revelam as
inúmeras possibilidades idiomáticas do português, que podem “dizer e desdizer”
num “corpo de tempo e liberdade”.
No dizer do vate contemporâneo, a metáfora de versatilidade e expressividade
“dessa liberdade acesa / uma língua, a portuguesa” (PR2, 95) configura um
repositório da construção identitária e da história de Portugal, onde a memória da
pátria surge, pois, plasmada na língua e no canto de Camões697. De facto, de entre
as múltiplas preferências de Graça Moura, de modo indelével, distingue-se o autor
de Os Lusíadas, num fecundo diálogo onde a dimensão linguística ocupa um lugar
de relevo, exemplarmente sintetizado no seguinte passo:

“Como já tive ocasião de dizer, Camões é um dos dois autores (o outro é Cesário Verde) que se
tornaram uma referência frequente na minha poesia, não propriamente procurada e muito menos

697
Aníbal Pinto de Castro (“Camões e a língua portuguesa”, in Páginas de um honesto estudo camoniano,
loc. cit., pp. 315-328) apresenta um aturado artigo sobre o contributo de Camões no enriquecimento da
língua portuguesa e apresenta um vasto acervo bibliográfico sobre os estudos realizados nesta área. Sobre o
contributo de Camões para a construção da língua portuguesa, vide a síntese de Ivo de Castro, “Língua de
Camões”, in Vítor Aguiar e Silva (coord.), Dicionário de Luís de Camões, loc. cit., pp. 461-469.

223
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

espartilhada, mas antes como a presença de uma figura tutelar que se manifesta e ocorre
naturalmente como uma maneira de ‘respirar melhor’ na minha língua e na minha escrita…”698

O legado do Príncipe dos poetas é, deste modo, a pedra de toque privilegiada


para a compreensão do universo poético de Graça Moura. Assim, nos derradeiros
versos, apresenta um carácter conclusivo:

“enredada em vilezas, ódios, troça,


no teu próprio país te contaminas
e é dele essa miséria que te roça.
mas com o que te resta me iluminas.” (PR1, 538)

Manifesta-se, pois, uma tonalidade dicotómica, que oscila entre a destruição da


língua, “enredada em vilezas, ódios, troça”, devido a um sem-número de intricados
equívocos, e a sua dimensão positiva, marcada por uma expressão optimista: “mas
com o que te resta me iluminas”. Esta formulação, surge em consonância com o
sentimento inicial de pertença: “Não és mais do que as outras, mas és nossa, / e
crescemos em ti”. Nesta circularidade, o poema, apesar de todo o cepticismo e
desencanto enunciados, reivindica, ainda assim, uma réstia de esperança pela
capacidade criativa e pela perene herança do idioma nacional.
Deste modo, a prolixa produção lírica de Graça Moura vincula-se
indubitavelmente a diversos quadrantes do imaginário camoniano, trilhando
caminhos inovadores, como se observará, de novo, no próximo capítulo.

698
Vasco Graça Moura, “Versos que sabemos de cor”, in JL. Jornal de Letras, Artes e Ideias, 19 Outubro
2012, p. 11.

224
3. Imagens camonianas das “perigosas
cousas do mar” e da terra
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

3.1. Sob o signo do naufrágio: Dinamene e Sepúlveda

Em Os Lusíadas, a viagem do Gama em demanda da Índia configura um percurso, a


um tempo, grandioso e complexo, que se desenha a nível individual e colectivo,
histórico e mítico, terreno e divino699; em suma, é a figuração simbólica de uma
memória urdida de sonhos imperiais e de trágicos desastres700. A descoberta de
novas terras “por mares nunca dantes navegados”701 dos marinheiros portugueses,
triunfantes no mundo e na história, evitando os mais imprevistos escolhos, integra um
processo de exaltação prescrito pelos códigos épicos702.
Neste contexto, Vitalina Leal de Matos acentua a notável amplitude do mar na obra
do autor quinhentista:

“O mar interpela Camões enquanto elemento do seu mundo poético, portador duma
mensagem e funcionando relativamente a certos objectivos”.703

Nas diversas hipóteses exegéticas colocadas, destacam-se, de entre outros, a


dimensão do universo vivencial do poeta, a exaltação da saga nacional, onde se
manifesta o espírito de aventura e o desafio do desconhecido.
Pelas suas imensas potencialidades expressivas, o mar é, na realidade, um forte
motivo de inspiração que chega com grande vitalidade à poesia actual704, e, neste
contexto, a sua evocação em Graça Moura actualiza a metáfora camoniana dos
naufrágios e do amor. A simbologia das águas revoltas acompanha, sem dúvida, a
699
Segundo Curtius, as metáforas ligadas ao mundo marinho, cuja origem remonta já à poesia da
Antiguidade Clássica, tiveram grande fortuna até à actualidade (Cf. Ernst Robert Curtius, Literatura
Europeia e Idade Média Latina, Rio de Janeiro, Instituto Nacional do Livro, 1969, pp. 37 sqq).
700
Sobre uma visão diacrónica da presença do mar nas letras portuguesas, veja-se o verbete de Nuno Júdice,
“Mar”, in Biblos. Enciclopédia Verbo das Literaturas de Língua Portuguesa, vol. 3, Lisboa-S. Paulo, Ed.
Verbo, 1999, cols. 448-451.
701
Luís de Camões, Os Lusíadas, I, 1, loc. cit.
702
O lexema mar é recorrente em Camões, como atestam Telmo Verdelho, Luís de Camões: concordância
da obra toda, Coimbra, Centro Interuniversitário de Estudos Camonianos, 2012, p. 851-855 e António
Geraldo da Cunha, Índice analítico do vocabulário de Os Lusíadas, Rio de Janeiro, Ed. Presença-Instituto
Nacional do Livro, 21980, pp. 129-131.
703
Maria Vitalina Leal de Matos, “O mar de Camões”, in Camões: sentido e desconcerto, loc. cit., p. 148.
Sobre este assunto, vide também Manuela de Azevedo (org.), Os mares e Camões. VI Forum Camoniano,
Lisboa, Ed. Colibri-Centro de Internacional de Estudos Camonianos da Casa Memória de Camões em
Constância, 2000.
704
Veja-se o belo poema sobre o mar de Graça Moura intitulado cinzentos: “sim, as gaivotas acinzentam / o
dia, sim, o dia acinzenta / as gaivotas desenhando-as / a lápis, sim, o cinzento / paira imponderável, // sim, o
mar acinzenta /esses voos, sim, esses voos / acinzentam as águas, / sim, o cinzento /vai na crista das ondas, //
sim, a vaga acinzenta / fundos de areia, algas, / corais (PR1, 21) (Sobre esta matéria, cf. Maria do Céu
Fialho, “O mar na poesia portuguesa contemporânea”, in Francisco de Oliveira et alii (org.), O mar greco-
-latino, Coimbra, Imprensa da Universidade de Brest-Imprensa da Universidade de Coimbra, 2006, pp. 397-
-415).

227
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

expressão de uma consciência inquieta, a que não é alheia a criação poética705,


porque, no dizer do poeta, “caravelas / são apenas metáforas, disfarce” (PR2, 225).
Esta dimensão marítima comporta, pois, grande alcance significativo, como
assinala Alzira Seixo:

“O mar é um dos referentes fundamentais da cultura portuguesa da época clássica, e não é de


estranhar que o seu aproveitamento literário se estenda por temas, motivos, organizações
isotópicas, campos semânticos de significação diversíssima, susceptíveis de interpretações que
enriquecem o património das nossas letras. Nomeadamente, o mar como extensão imensa de
uma possibilidade diferenciada de percursos, sujeitos à acção imprevisível da contingência,
tanto como às consequências previsíveis, mas nem sempre evitadas, da desmedida originada
por sentimentos humanos contraditórios onde o bem e o mal, a virtude e o erro, muitas vezes se
conjugam de forma indestrinçável, o mar das descobertas e da exploração das terras abordadas,
o mar aberto ao conhecimento do homem mas ainda tão fechado no desvendamento dos seus
perigos e na sua simbologia de caminho desvendado por eufórico esforço renascentista, de via
de transviados passos e ínvios desígnios, este mar é uma espécie de órgão semântico vital do
texto literário português de Quinhentos e de Seiscentos”.706

Assim, no seio deste imenso imaginário marítimo, o risco permanente de


insucessos, doenças707, fome e, na sua forma extrema, naufrágios708, são uma cruel
realidade associada ao amor e morte e materializada na vertente da precariedade e
da instabilidade humana709. O apelo do mar acentua, pois, as dolorosas
contradições entre a euforia dos descobrimentos e a frágil condição humana, onde a
desgraça espreita a cada momento da vida710.

705
Maria Vitalina Leal de Matos, Introdução à Lírica de Camões, Lisboa, Instituto de Cultura e Língua
Portuguesa, 1991, p. 72.
706
Cf. Maria Alzira Seixo, Poéticas da viagem na literatura, Lisboa, Ed. Cosmos, Lisboa, 1998, p. 70.
707
Segundo Camões, o escorbuto é “Doença crua e feia” (Cf. Luís de Camões, Os Lusíadas, V, 81), que
Graça Moura, a propósito do doloroso exílio do poeta quinhentista, recria do seguinte modo: “Cheiros de
miséria / que a doença, escorbuto da alma, acicata” (PR1, 226).
708
Giulia Lanciani destaca que o relato de naufrágios na literatura portuguesa dos séculos XVI e XVII
configuram um corpus de textos providos de homogeneidade e características específicas que permitem
atribuir-lhe um lugar de relevo na história literária nacional (Cf. Giulia Lanciani, Os relatos de naufrágios
na literatura portuguesa dos séculos XVI e XVII, Lisboa, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1979,
p. 29).
709
Numa dimensão diacrónica e filosófica deste tema, veja-se Hans Blumenberg, Naufrágio com espectador,
Lisboa, Ed. Vega, 1990.
710
Como frisou Aníbal Pinto de Castro, “Não falta na obra de Camões um único momento de quantos
compõem uma viagem” (Cf. Aníbal Pinto de Castro “Viajar com os poetas portugueses do Renascimento e
do Maneirismo”, in Ana Maria Falcão et alii (org.), Literatura de Viagem. Narrativa, história, mito, Lisboa,
Ed. Cosmos, 1997, p. 354). Esta asserção é reiterada por Maria do Céu Fraga no que concerne às Rimas:
“Encontram-se a despedida e o projecto de regresso, as lágrimas do apartamento e o suave engano da
fantasia, as tempestades, os naufrágios e a bonança”. Vide Maria do Céu Fraga, “O tempo e o espaço: a
errância na lírica camoniana”, in Revista Floema, Ano VI, nº 7, Jul./Dez. 2010, p. 46, (http://periodicos.
uesb.br/ index. php/floema/article/view/465/507 - consultado em 29 Janeiro 2016).

228
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

Registe-se que Graça Moura, em diversos passos disseminados pela sua obra
lírica, convoca precisamente “as perigosas cousas do mar”711; no entanto,
consagrou também uma arguta abordagem crítica à descrição do fogo de Santelmo
e da tromba marítima712, intitulada Vi claramente visto o lume vivo ou Camões e D.
João de Castro713, em que sustenta, de entre outras possíveis referências
intertextuais no passo camoniano, o contributo haurido nas ciências,
particularmente do Roteiro de Lisboa a Goa, de D. João de Castro714. A perspectiva
veiculada, com abundantes e esclarecedoras notas, contraria os pontos de vista de
reputados especialistas, que consideraram a descrição dos fenómenos naturais
apenas o resultado directo de um “saber só de experiências feito”715. Nesta abertura
a novos horizontes hermenêuticos, Graça Moura não invalida o aproveitamento da
experiência pessoal, não obstante rastreia, entre uma bibliografia variada, as
edições anotadas do Roteiro, reconhecendo uma relação explícita com o referido
livro quinhentista, a que não é alheio o saber livresco de Camões na notável
descrição dos atemorizadores fenómenos716. O título do ensaio não ignora também
o lapidar verso pleonástico camoniano, sugestão da valorização do olhar, que volta
a ser reiterado nos seus versos, quando cita na íntegra o verso “vi claramente visto
o lume vivo”, no poema canção grave (PR2, 440).
Assim, a escrita de Graça Moura constrói-se sob o signo da viagem, “riquíssimo
veio da poesia camoniana”, no dizer de Aníbal Pinto de Castro717. É precisamente
no contexto de “No mar tanta tormenta e tanto dano / tantas vezes a morte
apercebida”718, que Graça Moura dedica um notável ciclo de sete poemas a

711
Luís de Camões, Os Lusíadas, V, 16, loc. cit.
712
Idem, ibidem, V, 16-23.
713
Vasco Graça Moura, “Vi claramente visto Camões e D. João de Castro”, in Os penhascos e a serpente e
outros ensaios camonianos, loc. cit., pp. 135-162.
714
D. João de Castro, Roteiros, 3 vol., pref. e anot. por A. Fontoura da Costa, Lisboa, Ed. da Agência Geral
das Colónias Comemorativa do Duplo Centenário da Fundação e Restauração de Portugal, 21939-1940.
715
Luís de Camões, Os Lusíadas, IV, 94, loc. cit.
716
Sobre esta controversa matéria, Vasco Graça Moura (Luís de Camões: alguns desafios, loc. cit., s/d,
pp. 57-59 e 63) não rejeita este aspecto, mas tal não o impede de admitir o conhecimento que Camões obteve
de textos relativos a viagens, concretizado na selecção e tratamento dos fenómenos naturais, no caso da
descrição da tempestade, no trajecto entre Melinde e Calecute, no fogo de Santelmo e na tromba marítima.
Aceita também que Camões pudesse ter visto o Roteiro na sua viagem à Índia, pois a obra poderia ser um
apoio de navegação utilizado.
717
Cf. Aníbal Pinto de Castro, “Viajar com os poetas portugueses do Renascimento e do Maneirismo”, in
Ana Margarida Falcão et alii (org.), op. cit., p. 355.
718
Luís de Camões, Os Lusíadas, I, 106, loc. cit.

229
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

Dinamene719, apodada por Camões de “sombra benina”720, onde a exaltação


amorosa sugere um excesso fugaz e, muitas vezes, desesperado. Assim, o
infortúnio decorre da morte da amada do poeta, num naufrágio de contornos mais
lendários do que reais, imposição definitiva de ausência, até de índole petrarquista
que não contempla o regresso.
Esta figura feminina, a quem Camões já dedicara diversos versos721, inscreve-se
na tradição biográfica do poeta: Camões naufraga junto ao rio Mecon, quando
regressava a Goa, perde a sua amada e salva Os Lusíadas a nado722. Este topos
remonta já à Antiguidade, quando Suetónio em Os doze Césares relata que Júlio
César, atacado por inimigos perto de Alexandria, viu-se obrigado a atirar-se ao mar
e “nadou duzentos pés até ao barco mais próximo, mantendo a mão esquerda
levantada, para não molhar os escritos que levava”723. De um modo similar, a
imagem de Camões, disposto a salvar a todo o custo a sua obra, tem servido para
perpetuar o mito do maior poeta nacional724, vindo a repercutir-se no imaginário
coletivo português725.
Curiosamente, Graça Moura, em paródia intertextual, confunde-se com Camões,
a partir do acontecimento referido:

“dando à costa
do mundo e em prisões baixas, e só precisei de autores
para falar de céus vários, de qualidades diferentes.
nunca do que vi e a terra há-de comer,

719
Sobre a recepção da figura de Dinamene em Camões e noutros autores, veja-se a introdução de Costa
Pimpão a Luís de Camões, Rimas, loc. cit., pp. LXXI-LXXII.
720
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 166.
721
No âmbito da lírica camoniana, os textos consagrados a Dinamene integram um ciclo de sonetos onde a
morte da mulher amada constitui um ponto de partida para a exploração dos temas do amor/morte e
presença/ausência. Este motivo surge também deliberadamente vincado no texto de Graça Moura em torno
desta figura feminina. (Cf. Luís de Camões, Rimas, loc. cit., por exemplo, os sonetos Ah minha Dinamene,
assim deixaste ou Quando de minhas mãos a comprida, respectivamente p. 174 e p. 166).
722
Rocha Pereira notou que Dinamene é um antropónimo grego; surge na Ilíada de Homero e está presente
também na Teogonia de Hesíodo (Cf. Maria Helena Rocha Pereira, “Nome de ninfas”, in Novos Ensaios
sobre Temas Clássicos na Poesia Portuguesa, loc. cit., p. 41).
723
Suetónio, As vidas dos doze Césares, vol. I, estudo, introdução e notas de Victor Raquel, Lisboa, Ed.
Sílabo, 2005, p. 86.
724
Severim de Faria nos seus Discursos vários políticos dá conta desse episódio: “Luís de Camões se salvou
em ũa tábua, e em tão apertado, e manifesto perigo só teve lembrãça dos cantos dos seus Lusíadas para os
levar consigo, esquecendo-se de tudo o mais que trazia, no que não merece menor louvor que o que se dá a
César, quando escapou no porto de Alexandria nadando com ũa mão, e levando os seus Comentários na
outra” (Cf. Manuel Severim de Faria, Discursos vários políticos, loc. cit., p. 116).
725
Maria Vitalina Leal de Matos, Tópicos para a leitura de Os Lusíadas, Coimbra, Ed. Almedina, 2014,
p. 144.

230
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

mas do que li e me serviu. acredite que o mundo


é uma cópia dos livros. até o meu naufrágio, imagine,
um tão simples naufrágio que iá fez correr
mais tinta do que as águas da foz em que nadei,
tinha o modelo em césar”. (PR1, 324-325)

A lembrar os versos camonianos “A Fortuna me traz peregrinando / novos


trabalhos vendo e novos danos”726, a intensidade poética de Graça Moura ancora-se
num contexto referencial associado a um percurso existencial; a sobrevivência do
poeta, espelhado na glória de vencer as ondas revoltas da tempestade727, concede-
-lhe o estatuto de herói, ligando a poesia à vida, através do desafio intelectual da
referência “tinha o modelo em césar”. O repositório evocado atravessa e enriquece
os versos do poeta contemporâneo, modelando assim uma escrita indelevelmente
celebrativa. A imagem do náufrago perdido, joguete de forças que não consegue
dominar constitui o paradigma do homem celebrado pela literatura maneirista728,
constituindo a morte de Dinamene, o ponto de partida para a expressão pungente do
tema do amor e morte, enquadrada na concepção de vgm que “todo o canto é cruel”
(PR, 126). Com efeito, o “naufrágio triste e miserando”, no dizer do Épico,
mereceu um penetrante estudo de Luciana Stegagno Picchio729. O rio Mecon, que
recebeu “no seu regaço os Cantos que molhados vêm”730, traduz um determinado
momento autobiográfico intensamente vivido e dolorosamente cantado por
Camões.
É justamente nessa linha discursiva dissonante que vgm consagra os poemas em
torno de Dinamene, antropónimo de inegável vínculo intertextual, que conjugam

726
Luís de Camões, Os Lusíadas, VII, 79, loc. cit.
727
Rocha Pereira sublinha que a “tempestade marítima era um tema épico por excelência, desde a Odisseia”,
ocupando uma importância fulcral na produção literária de Camões, como observa em diversos exemplos
ilustrativos (Cf. Maria Helena Rocha Pereira, “Tempestade marítima de Os Lusíadas. Estudo comparativo”,
in Camoniana varia, Coimbra, Centro Interuniversitário de Estudos Camonianos, 2008, pp. 85-94).
728
Cf. Isabel Almeida, “Maneirismo”, in Biblos. Enciclopédia Verbo das Literaturas de Língua Portuguesa,
vol. 3, loc. cit., col. 422.
729
Luciana Stegagno Picchio, “O canto molhado: contributo para o estudo das biografias camonianas”, in
Arquivos do Centro Cultural Português, vol. XVI, 1981, pp. 243-265. Cf. também Maria Vitalina Leal de
Matos, Maria Vitalina Leal de Matos, O canto na poesia épica e lírica de Camões. Estudo da isotopia
enunciativa, loc. cit., pp. 41-86.
730
Vide os célebres versos do Canto X: “Este receberá, plácido e brando, / No seu regaço os Cantos que
molhados / Vêm do naufrágio triste e miserando / Dos procelosos baxos escapados” (Cf. Luís de Camões,
Os Lusíadas, X, 128, loc. cit.).

231
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

sete meditações marcadamente líricas, configurando o poema inaugural, ao


princípio era a ninfa dormindo-se, a génese da sequência poemática:

“ao princípio era à ninfa dormindo-se. e a ninfa era uma moça china
chamada dinamene, com quem vinha embarcado.
ali ficava, reclinada e nua, a deixar-se lentamente contemplar,
na maneira da sua linha das ancas a moldar o leve, o verde

lençol entretecido das gramíneas frágeis, das linhas da fortuna,


das velaturas do vento nas porcelanas brancas da memória.
a praia ainda está húmida da espuma das ondas,
das ondas retirando-se das lisas colunas […]

ao princípio era a ninfa que depois naufragou,


a que depois foi lastro de todos os navios”. (PR1, 420)

A memória, haurida em Camões, serve os propósitos de um universo poético que


faz da força imagética o seu fundamento maior; Dinamene constitui uma espécie de
mosaico sobre um passado que testemunha a história trágica da vida do poeta731.
Registe-se que em torno da “moça china”, epíteto que Graça Moura vai buscar à
Década VIII de Diogo do Couto732, levanta-se uma série de problemas sobre a sua
existência. Faria e Sousa não consegue decifrar este nome: “Los nombres fingidos
suelen ser anagramas de los verdadeiros; mas não sé a qual verdadero corresponda
este fingido de Dinamene. […] Quien ha de poder adevinar estas cosas?”733. De
facto, não se sabe se a figura feminina se cruzou com a vida de Camões, originando
interpretações distintas: José Maria Rodrigues e Afonso Lopes Vieira734, Afrânio
Peixoto735 e Roger Bismut736 defendem a sua existência, enquanto que, pelo

731
A contemporaneidade lírica dá, de facto, um sugestivo relevo à figura de Dinamene e ao modo como se
relaciona com o autor de Os Lusíadas. Manuel Alegre, nessa linha, canta: “Naufrágio Dinamene amor
ausente / caravela partindo nas vogais / amar e mar e nunca ter senão / desterro despedida e nunca mais” (Cf.
Manuel Alegre, Vinte poemas para Camões, Lisboa, Ed. D. Quixote, 1992, p. 11).
732
O autor do Soldado prático afirma: “Camões por dita escapou com as suas Lusiadas como elle diz nellas
e aly se afogou hũa moça china que trazia muito fermosa com que vinha embarcado e muito obrigado; e em
terra fez sonetos à sua morte” (Cf. Diogo do Couto, A década 8ª da Ásia, 2 vols., ed. de Maria Augusta Lima
Cruz, Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses/Imprensa
Nacional-Casa da Moeda, 1993-1994, p. 469).
733
Rimas várias de Luís de Camões comentadas por Manuel de Faria e Sousa, nota introdutória do Prof. F.
Rebelo Gonçalves, prefácio do Prof. Jorge de Sena, Primeira Parte-Tomos I e II, Lisboa, Imprensa Nacional-
-Casa da Moeda, 1972, p. 278.
734
Estes estudiosos consagraram nove poemas camonianos a Dinamene (Cf. Luís de Camões, Lírica, crítica
pelo Dr. José Maria Rodrigues e Afonso Lopes Vieira, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1932, pp. 151-
-153 e apêndice e notas pp. IV e XLVII-XLIX).
735
Luís de Camões, Dinamene, alma minha gentil, estudo de Afrânio Peixoto seguido de 44 poesias de Luís
de Camões, Lisboa, Ed. Aillaud-Bertrand, 1926.

232
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

contrário, Costa Pimpão737 refuta as teses desses estudiosos, considerando-as


falaciosas devido à ausência de documentação segura.
No poema acima transcrito, o eu da enunciação começa por salientar a beleza
feminina, feita da tensão entre desejo e realidade, entre luz e obscuridade, o que
dota indubitavelmente os versos de vgm de valor indagativo. Por outro lado, nesse
processo figurativo, imperativo incontornável para Graça Moura, a delicada
sensualidade de Dinamene738 condensa um forte tom lírico pela acumulação de
referentes de ordem representativa, onde impera a ideia de um amor talhado pelo
sofrimento739. Numa convocação à realidade, os elementos marítimos – “ondas”,
“praia”, “ondas”, “navios” – tornam-se seguros indicadores do famigerado
naufrágio. O cenário marítimo do Oriente e a deambulação de Camões,
representação simbólica dos navegadores portugueses, enfatizam o exotismo e os
mistérios desses lugares longínquos, num registo próximo do género de literatura
de viagens740, onde o lamento e profundo desespero do poeta ultrapassam o âmbito
pessoal para assumir um valor colectivo, materializado no segmento “lastro de
todos os navios”741.
O forte arrebatamento elegíaco742, está patente, por exemplo, no passo “lençol
entretecido das gramíneas frágeis, das linhas da fortuna, / das velaturas do vento
nas porcelanas brancas da memória”, onde a dimensão visual sugerida, que se
prolonga nesta sequência poemática, demonstra uma vincada preocupação plástica.
O fulgor poético nasce, pois, da dimensão humana, onde a beleza e o desejo se

736
Roger Bismut, La lyrique de Camões, Paris, Presses Universitaires de France, 1970, pp. 522-524 e nota
113. Noutro estudo, o lusófilo, entre outros textos aduzidos, considera que Alma minha gentil que te partiste,
Ondas, dizia, antes que Amor me mate e Quando das minhas mágoas a comprida são sonetos dirigidos a
Dinamene: “Il est difficile de ne pas voir dans ces trois sonnets – en comptant celui qui s’adresse à
Dynamène – des références à la même tragédie” (Cf. Roger Bismut, “Plaidoyer pour Dynamène”, in Bulletin
des Études Portugais, tome 30, 1969, p. 92).
737
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., pp. LXI sqq.
738
O lexema Dinamene simboliza, noutro contexto, a exaltação da figura feminina: “esta minha dinamene
[…] morenaça a escapar-se” (PR2, 556).
739
Esta referencialidade em torno de Dinamene rompe com a tipologia predominante do masculino da
literatura de viagens (Cf. Maria Alzira Seixo, Poéticas da viagem na literatura, loc. cit., pp. 22 sqq).
740
Idem, ibidem, p. 16.
741
Graça Moura vincula-se, deste modo, ao lirismo maneirista e barroco, que, num confessado fascínio pelo
trágico e pela morte, recorreu muitas vezes à alegoria do mar da vida, como frisou Vítor Aguiar e Silva
(Maneirismo e Barroco na poesia lírica portuguesa, loc. cit., p. 230).
742
José Maria Rodrigues e Afonso Lopes Vieira designam por “sonetos elegíacos” os poemas camonianos
consagrados a Dinamene (Cf. Lírica de Camões, edição crítica pelo Dr. José Maria Rodrigues e Afonso
Lopes Vieira, loc. cit., p. X).

233
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

misturam com um destino implacável, metáfora da vida e da morte que se fundem-


se, em alquimia, num grito de dor. Ao contrário de Camilo Pessanha, que canta, em
743
Vénus I , o corpo da mulher destroçado pelo mar inóspito, os versos de Graça
Moura integram a figura feminina na natureza marítima, concedendo-lhe um valor
conotativo de expressiva harmonia, resultante da infinita plasticidade sugerida pela
água, onde o predomínio de sons vocálicos se articula com o próprio conteúdo
sensual: “ali ficava, reclinada e nua”744.
Os derradeiros versos, “ao princípio era a ninfa que depois naufragou, / a que
depois foi lastro de todos os navios”, são a sinédoque dos naufrágios sofridos pelos
portugueses, ilustrados abundantemente na literatura de viagens, que sintetiza os
enigmas e anseios do ser humano destinado à morte, numa evidente complexidade
maneirista745. Nesse sentido, como canta Graça Moura, “só os naufrágios se dão em
in medias res, / do entredito ao interdito, das devorações num oceano brusco”
(PR1, 396) constitui uma inegável convocação, feita de enigmas e desolação, da
história trágico-marítima nacional.746

743
“À flor da vaga, o seu cabelo verde, / Que o torvelinho enreda e desenreda... / O cheiro a carne que nos
embebeda! / Em que desvios a razão se perde! // Pútrido o ventre, azul e aglutinoso, / Que a onda, crassa,
num balanço alaga” (Cf. Camilo Pessanha, Clepsydra, loc. cit., p. 99).
744
O sentido da morte percorre a história portuguesa, como adverte Jaime Cortesão: “Procurai bem nos
olhos dum português: todos no fundo têm a morte. É que durante muitos séculos convivemos com ela na
mais triste e trágica figura – a dos naufrágios” (Cf. Jaime Cortesão, “Náufragos portugueses”, in Revista
Águia, 2ª série, vol. III, 1913, p. 118).
745
Sobre esta ideia, Chevalier e Gheerbrant sustentam “Tudo sai do mar e a ele regressa: lugar de
nascimentos, transformações e renascimentos […] um estado transitório entre as possibilidades ainda
informais e as realidades formais, uma situação de ambivalência, que é a da incerteza, da dúvida, da
indecisão, e que pode terminar bem ou mal. Daí que o mar seja ao mesmo tempo a imagem da vida e da
morte” (Cf. Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, Dicionário de símbolos, Lisboa, Ed. Teorema, 1994, p. 439).
746
Sobre este assunto, que marca de maneira tão específica o panorama das letras nacionais, vide Rodrigues
Lapa (coord.) Quadros da história trágico-marítima, Lisboa, Seara Nova, 1951; António Sérgio, Ensaios
VIII, Lisboa, Livraria Sá da Costa, 1974, pp. 75-174; Giulia Lanciani, Os relatos de naufrágios na literatura
portuguesa dos séculos XVI e XVII, Lisboa, Instituto de Cultura Portuguesa, 1979; Manuel Simões, A
literatura de viagens nos séculos XVI e XVII, Lisboa, Ed. Comunicação, 1985; Pedro Balaus Custódio, A
História Trágico-Marítima: do herói ao anti-herói (texto policopiado), Coimbra, Faculdade de Letras da
Universidade, 1992; João Rocha Pinto, “Literatura de viagens”, in Luís de Albuquerque (org.), Dicionário
de História dos Descobrimentos, vol. II, Lisboa, Ed. Caminho, 1994; José Manuel Garcia, “O significado do
naufrágio de Sepúlveda na cultura portuguesa”, in Ao encontro dos descobrimentos. Temas de História da
Expansão, Lisboa, Ed. Presença, 1994, pp. 229-234; Andreia A. Paula Martins, “As funções do narrador nos
relatos de naufrágios”, in Mathesis, nº 5, 1996, pp. 335-348; António Manuel de Andrade Moniz, A História
Trágico-Marítima: identidade e condição humana, Lisboa, Ed. Colibri, 2000, pp. 335-348; José Cândido de
Oliveira Martins, “A literatura trágico-marítima e a escrita contemporânea, in Naufrágio de Sepúlveda: texto
e intertexto, Lisboa, Ed. Replicação, 1977, pp. 143-173; idem, “História Trágico-Marítima (antiepopeia da
decadência do império)”, in Vítor Aguiar e Silva (coord.) Dicionário de Camões, loc. cit., pp. 410-416;
Maria Luísa Malaquias Urbano, História Trágico-Marítima - uma visão maneirista do homem: queda,
expiação e morte, Coimbra, Centro Interuniversitário de Estudos Camonianos, 2012.

234
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

Este ciclo criativo747 é retomado no poema entre risos e súplicas, que desperta
particular atenção à figura e biografia do autor quinhentista:

“ah, minha dinamene, naufragada.


é a história do soldado, é a história do marinheiro,
do que antes se dissera amargamente
a acordar agarrado a um rochedo.

este homem teve sempre estrela de poeta


que é iludirem-se todos e enfim pouca ventura
e uma natureza terribel. e serem todos pobres.
dinamene contempla estrelas infelices

e flutua nua no cabo das tormentas.


em sua perdição, um corpo de mulher”. (PR 1, 421)

O adensamento da presença da morte na apóstrofe inicial, “ah, minha Dinamene,


naufragada”, embora seja uma figura do apelo, convoca perda e finitude, análoga
ao célebre soneto camoniano: “Ah! Minha Dinamene! Assim deixaste / quem não
deixara nunca de querer-te”748. Esses sentimentos similares, de matriz petrarquista,
destacam o sofrimento e a perda de quem ama, perspectivando uma experiência
quase sacrificial do amor, onde o almejado anseio pela plenitude camoniana –
como em vgm – é sempre precária e contraditória749. A primeira impressão colhida
é a ênfase lexical e discursiva de matriz quinhentista, capaz de evocar uma

747
Muitos autores nacionais, dos finais de Oitocentos ou do início do século XX, glosaram a imagem de
Camões como personificação do génio do poeta-soldado, que lutou com a pena e com a espada pelo
engrandecimento da pátria, bem como a aventura marítima portuguesa. A título ilustrativo dos interesses e
conhecimentos estético-literários de Graça Moura (“Notas sobre a Mensagem”, in Discursos vários poéticos,
loc. cit., p. 16), registe-se a proximidade da análise realizada entre, por exemplo, o poema “Sagres” de
Lusitânia, de Mário Beirão, e o “Infante” da Mensagem, de Pessoa: “E há um instante supremo em que ele
cuida / Suster nas mãos o mundo; / Mas lenta e fluida, / Discorre a noite pelo mar profundo…, diz-se no
primeiro, sendo este, sem dúvida, um passo a confrontar com: “Em seu trono entre o brilho das esferas, /
Com seu manto de noite e solidão, / Tem aos pés o mar novo e as mortas eras -… / O único imperador que
tem deveras / O globo do mundo em sua mão (Mensagem)”. Veja-se o importante estudo, assinalado por
Graça Moura (Ibidem, p. 16), que Seabra Pereira consagra a este período: Mário Beirão, Poesias completas,
edição organizada por António Cândido Franco e Luís Amaro, e prefaciada por José Carlos Seabra Pereira,
Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1996, pp. 15-47. Cf. também José Carlos Seabra Pereira, “Em
torno das relações paragramáticas da poesia de Afonso Duarte com a obra de Camões”, in Do fim-de-século
ao tempo do Orfeu, Coimbra, Liv. Almedina, 1979, pp. 119-148.
748
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p.167.
749
Aníbal Pinto de Castro sobre esta acepção da viagem que culmina em tragédia afirma: “À medida que as
luminosas certezas do Renascimento dão lugar, no espírito do Homem português de Quinhentos, à angústia
existencial daquele findar de século tão carregado de dúvidas e temores, a viagem deixa de ser um mero
tópico de celebração de ideias e pensamentos, próprios ou alheios, para se transformar numa vivência que
toca o mais profundo da existência espiritual do indivíduo ou da sociedade em que ele se integra, e, depois,
na expressão simbólica de um percurso angustiadamente vencido”. Vide Aníbal Pinto de Castro, “Viajar
com os poetas portugueses do Renascimento e do Maneirismo”, in Ana Margarida Falcão (org.), op. cit.,
p. 354.

235
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

atmosfera cultural classicista; vocábulos como “ventura”, “terribel” ou “infelices”,


próximos da enunciação camoniana, valem particularmente pelas conotações que
encerram. Porém, matizado numa vastíssima erudição, o percurso multifacetado do
Épico convoca também uma dimensão heróica renascentista: “é a história do
soldado”, que “teve sempre estrela de poeta”750, a lembrar afinidades flagrantes
com o célebre topos do soldado-poeta invocado no célebre passo “numa mão
sempre a espada e noutra a pena”751. Expressão autobiográfica camoniana na
Canção X, “As estrelas infelices”, assinalam uma força superior inexorável,
determinante na morte de Dinamene e no destino fatídico do poeta752. Por outro
lado, “a história do marinheiro” tem uma estreita correlação com a busca da
criatividade e da perfeição poética, que teve larga fortuna, segundo Curtius 753, entre
os autores latinos: a produção literária do poeta, arvorado em marinheiro, é uma
viagem repleta de perigos e a sua obra compara-se a um barco754. Nesta linha,
Prado Coelho755 assinala que este motivo está presente em Os Lusíadas quando
Camões implora o favor divino das ninfas do Tejo e do Mondego, uma vez que
compara a sua poesia a um batel acossado por um mar revolto:

“Vosso favor invoco, que navego


Por alto mar com vento contrário,
Que se não me ajudais, hei grande medo,
Que o meu fraco batel se alague cedo.”756

750
Recriada por Graça Moura, esta expressão de Diogo do Couto surge no passo dedicado à precária
passagem de Camões pela ilha de Moçambique: “Mas como este homem teve sempre estrela de poeta que he
serem todos pobres, e hũa natureza terríbel e emfim pouca fortuna […] ficou em estado de viver d’esmolas
de algũas pessoas” (Cf. Diogo do Couto, A década 8ª da Ásia, 2 vols., ed. de Maria Augusta Lima Cruz, loc.
cit., pp. 470-471).
751
Luís de Camões, Os Lusíadas, VII, 79 (Cf. sobre este tópico, Luís de Sousa Rebelo, Tradição Clássica na
Literatura Portuguesa, Lisboa, Ed. Livros Horizonte, 1982, pp. 195-240; António Cirurgião, “As armas e as
letras na literatura portuguesa dos séculos XVI e XVII”, in Novas leituras de clássicos portugueses, Ed.
Colibri, 1997, pp. 147-169; Maria do Céu Fraga, “Armas e letras”, in Vítor Aguiar e Silva (coord.),
Dicionário de Luís de Camões, loc. cit., pp. 42-45).
752
Maria do Céu Fraga (Os géneros maiores na poesia lírica de Camões, loc. cit., p. 76) refere que na
Canção X, vv. 41-46, “o determinismo astronómico” é um factor inexorável, privando o ser humano de livre
arbítrio, pelo que Camões, votado à incerteza da fortuna, não se considera totalmente culpado das suas
acções.
753
Ernst Robert Curtius, Literatura Europeia e Idade Média Latina, loc. cit., pp. 133-134.
754
A comparação da vida com o mar tempestuoso encerra múltiplas possibilidades simbólicas e metafóricas.
Camões, na realidade, é apresentado por vgm como um mareante em perigo ou um náufrago, topos que o
acompanha volvidos cinco séculos.
755
Cf. Jacinto Prado Coelho, “Do fraco batel de Camões”, in Camões e Pessoa. Poetas da utopia, Mem
Martins, Publ. Europa-América, 1983, pp. 33 sqq.
756
Cf. Luís de Camões, Os Lusíadas, VII, 78, loc. cit.

236
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

Com feito, Graça Moura não renega o amplo fundo representativo do mar
camoniano, cenário de permanente interrogação, em demanda da criatividade lírica;
o signo da perda, que se estende pela sequência textual em análise, é retomado no
seguinte poema:

“a sua dinamene, a pobre moça china,


ei-la cativa entre nenúfares brancos e tufos de junquilhos.
o seu corpo é uma inquieta deslembrança,
e de plácidas águas se faz agora o seu regaço.

vi, claramente vista, aquela ninfa.


e vi grutas e nuvens, revoltas sonoridades. águas transparentes, calcários,
conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos, estrelas do mar, ânforas do
[esquecimento,
fragmentos do canto a escapar sob a linha clara.

e também a linha da costa, o recorte das fortalezas, os procelosos baixos


os sinais da terra e os sinais do firmamento.
e outros sinais do mar. e os náufragos por socorrer.
tanto corpo por enterrar, tanta mágoa por reparar, tanto cabo por
[dobrar,
tanto nó, tanto dó, tanta paixão,
tanto infortúnio, tanta cobiça, tanta ventura, tanto dano”. (PR1, 424)

A enunciação, como se observa, desenvolve-se em crescendo numa sugestiva


encenação do mar tenebroso que tudo destrói. Os versos combinam, em sinestesia,
elementos visuais (“nenúfares brancos”) e auditivos (“revoltas sonoridades”), para
dar conta dolorosamente da revolta e dor da deterioração da beleza feminina no
fundo do mar.
Particularmente sensível à luz, essa exploração sensitiva dos efeitos de
degradação ressalta predominantemente do olhar do segmento de matriz camoniana
“vi, claramente vista, a ninfa”, ampliado no reforço dos signos “águas
transparentes” ou “sinais do firmamento”. Num ambiente marítimo de contornos
disfóricos imediatamente associáveis à morte, contraponto do Nascimento da Vénus
de Boticelli, esta sequência compositiva, sugere a tela de um quadro em que se
pinta uma natureza morta, onde a espuma do mar envolve um sensual corpo
feminino757. O desenvolvimento do texto perde o sentido eufemístico da descrição
poética para dar lugar a um contexto trágico-marítimo marcado por um grande

757
Em consonância com esta linha, Graça Moura define a sua concepção de imaginário aquático: “um vil
enredamento / de fluvialidades que apodrecem, uma / alteração virtual da realidade” (PR1, 225).

237
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

sofrimento, em registo próprio da literatura de viagens758. Num cenário exótico, a


limpidez das “águas transparentes” e os elementos aquáticos orientais (“nenúfares”
e “junquilhos”) contrastam com a fúria dos “procelosos baixos”, sintagma
camoniano evocativo do seu naufrágio759. Num processo de depuração lexical, a
desgraça desenha-se na imagem harmoniosa da amada fundida com a natureza e
amplia-se, em cariz pendular, na enumeração disfórica “tanto corpo por enterrar,
tanta mágoa por reparar, tanto cabo por dobrar”; deste modo, prevalece, em síntese,
o memento mori (realidade da morte), representação inquietante da finitude
humana760. A expressividade, ancorada no naufrágio camoniano e imortalizado
pelo imaginário colectivo, decorre das contrariedades do mar. À selecção de um
léxico impressivo – “conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos”, passo integral de
um poema de Camilo Pessanha761 – o universo criativo de Graça Moura incorpora
outros elementos, como “estrelas do mar, / ânforas do esquecimento”.
Por outro lado, nesta relação dialógica de tendência evolutiva, a figura de
Dinamene762 é a representação simbólica de uma meditação histórica e literária
sobre os desastres nacionais, que Camões tão bem conheceu. A imagética do
naufrágio é, pois, um sintoma inequívoco da própria nação num momento
particularmente difícil. Os versos finais do texto acima transcrito, a lembrar a
célebre fala do Velho do Restelo, definem o sentido da viagem e configuram um
sugestivo ponto de vista semântico, a partir do sentimento de desgosto provocado
pela morte de Dinamene763, não havendo lugar para “as memórias gloriosas”, o que

758
Manuel Simões, A literatura de viagens nos séculos XVI e XVII, loc. cit., p.16.
759
Luís de Camões, Os Lusíadas, X, 128, loc. cit.
760
Este tópico do navio naufragado é recorrente nas letras portuguesas, no dizer de Aguiar e Silva:
“Imagem-símbolo da predilecção dos poetas barrocos para exprimir a precariedade da vida humana” (Cf.
Vítor Manuel Aguiar e Silva, Maneirismo e Barroco na Poesia Lírica Portuguesa, Coimbra, Centro de
Estudos Românicos, 1971, p. 409).
761
Camilo Pessanha, Clepsydra, loc. cit., p. 66. Maria Alzira Seixo, (“O pensamento da morte na poesia de
Camilo Pessanha”, in Outros erros, Lisboa, Ed. Asa, 2001, p. 110) considera os diminutivos “um dos
aspectos mais importantes da visão da morte em Pessanha”.
762
Hélder Macedo, ao se debruçar sobre a simbologia dos nomes femininos camonianos, assinala que
Dinamene, recorrente antropónimo camoniano, vem na tradição clássica, constituindo um “criptómano
pastoril” de que se serviu o poeta quinhentista em duas éclogas. Acrescenta que Garcilaso também o havia
utilizado para designar uma ninfa do Tejo (Fernando Gil e Hélder Macedo, “Apetite e razão na lírica
camoniana”, in Viagens do olhar: retrospecção, visão e profecia no Renascimento português, Porto, Ed.
Campo das Letras, 1998, p. 389).
763
O pungente sentimento camoniano observa-se, por exemplo, no seguinte soneto: “Ah! Minha Dinamene!
[…] / somente a dura Morte / Me deixou que tão cedo o negro manto / em teus olhos deitado consentiste!”
(Cf. Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 174).

238
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

desmistifica uma ideia heróica de Portugal. Os derradeiros elementos axiais


postulados por Graça Moura desenham-se, em registo anafórico, na força estilística
e persuasiva sob a égide da reiteração sucessiva da perda inexorável (“tanto nó,
tanta dó…”): explora aspectos centrados nos custos humanos, bem como se liga
intimamente à melancolia camoniana relacionada com o sentido funesto de
privação da coisa amada, na busca da unidade perdida764. Neste ângulo, Sílvio
Castro destaca: “Viagem e naufrágio, no sistema camoniano, são elementos que
englobam toda a consciência da existência e sintetizam a forma de ser e pensar do
poeta de Dinamene”.765
Na verdade, Graça Moura, como Camões, transforma o naufrágio em metáfora
da sua criação poética. Esta evocação, assinalada pelo apelo da viagem, surge
reiterada no seguinte passo:

“o tempo não podia correr numa ilha sem lugar e sem sombras.
mas abolido o tempo, a história deixava de existir.
ao princípio era a ninfa e o silêncio da máquina do mundo.
era o silêncio no mais puro momento da sua glória inteligível. […]

os olhos percorriam-na avidamente em horas de ventura e de aventura,


e os seus roxos lírios, e às suas níveas tetas.
estava ali embebida no seu sonho nunca dantes navegado,
ondulando no seu sono de sossegos”. (PR1, 423)

Neste deliberado exercício de intertextualidade, que, no dizer de Graça Moura,


“da experiência alheia se apropria” (PR1, 181), os referentes camonianos neste
passo são deliberadamente marcantes. A alusão à “ilha sem lugar”, à “ninfa” e ao
“silêncio da máquina do mundo” sugere o episódio camoniano da Ilha dos
amores766, símbolo maior de um justo prémio dos portugueses e promessa divina de
uma consagração absoluta do esforço e mérito humanos767. A narrativa culmina
com a glorificação maior dos navegadores nacionais, quando Tétis proporciona ao

764
Vítor Manuel Aguiar e Silva, “As canções da melancolia”, in Camões: labirintos e fascínios, Lisboa, Ed.
Cotovia, 1994, p. 219.
765
Sílvio Castro, “Naufrágio como metáfora e palinódia em Camões”, in Revista Camoniana, vol. 13,
3ª série, Bauru, São Paulo, 2003, p. 144.
766
Luís de Camões, Os Lusíadas, IX, 18-95 e X, 1-143, loc. cit.
767
Vítor Aguiar e Silva apresenta em “Episódio da ilha dos amores” (in Vítor Aguiar e Silva (coord.),
Dicionário de Luís de Camões, loc. cit., pp. 437-444) o modo com este episódio foi lido ao longo dos
séculos. Vide também os importantes estudos deste insigne camonista: “Função e significado do episódio da
Ilha dos Amores na estrutura de Os Lusíadas” e “Imaginação e pensamento utópico no episódio da Ilha dos
Amores”, in Camões: labirintos e fascínios, Lisboa, Ed. Cotovia, 1994, pp. 131-143.

239
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

Gama o privilégio de contemplar os segredos da “máquina do mundo”768,


constituindo, no âmbito da doutrina neoplatónica , o poder mais alto 769, proclamado
no passo “era o silêncio no mais puro momento da sua glória inteligível”,
testemunho de uma recompensa situada na esfera do transcendente, uma vez que os
contemporâneos de Camões não valorizam o seu canto como deveriam, nem a
glória intemporal das descobertas nacionais770.
Sobre a descrição de um modelo da máquina do mundo, vgm consagra um
importante estudo pelas afinidades de Camões com as artes plásticas
renascentistas771, não ignorando a ciência do seu tempo. Deste modo, evoca a
representação do universo em autores de Quinhentos e a sua possível relevância na
arquitectura do episódio camoniano: “Todo o sistema cosmo-teológico de Camões
em X, 77/91 se encontra em Castro […], embora possa ter ido buscar elementos ao
tratado de Pedro Nunes em pontos de pormenor”772.
“Os roxos lírios” e “níveas tetas”, epítetos camonianos atribuídos a uma ninfa,
assinalam, a um tempo, uma rara sensualidade e um foco do desejo sexual 773. Este
processo figurativo apresenta ecos explícitos do passo de sedução de Vénus a seu
pai no Concílio dos deuses774, onde se regista o invulgar conhecimento de Graça
Moura para entretecer de um modo pessoal elementos diversos na sua poética. Com
efeito, são versos como estes e outros da “Angélica ilha pintada”, demonstrativos

768
Luís de Camões, Os Lusíadas, X, 77-91(De entre uma bibliografia numerosa sobre esta matéria, vide:
António José Saraiva, “Os tempos verbais e a estrutura d’Os Lusíadas”, in Estudos sobre a arte d’Os
Lusíadas, Lisboa, Ed. Gradiva, 1992, pp. 19 sqq; Maria Lucília Gonçalves Pires, “Harmonia Mundi. A
descrição camoniana da máquina do mundo”, in Arquivos do Centro Cultural Calouste Gulbenkian, Vol.
XXXVII, Homenagem a Maria de Lourdes Belchior, Lisboa-Paris, 1998, pp. 201-210; Hélio J. S. Alves,
Camões, Corte-Real e o Sistema da Epopeia Quinhentista, loc. cit., pp. 607-642; idem, “A máquina do
mundo n’Os Lusíadas”, in Vítor Aguiar e Silva (coord.), Dicionário de Luís de Camões, loc. cit., pp. 555-
-559).
769
António José Saraiva, “O objectivismo d’Os Lusíadas”, in Estudos sobre a arte d’ Os Lusíadas, loc. cit.,
pp. 104-106.
770
Y. K. Centeno destaca o valor pedagógico subjacente à máquina do mundo: “Mistério que é revelado ao
Gama, e do qual se depreende que os portugueses devem tirar também algum ensinamento: sobre a sua
história passada, presente e futura, apontada como símbolo de progressão da humanidade em geral (Cf. Y.
K. Centeno, “O cântico da água em Os Lusíadas”, in Y. K. Centeno et alii, A viagem de Os Lusíadas:
símbolo e mito, Lisboa, Ed. Arcádia, 1981, p.13.
771
Vasco Graça Moura, “Vi claramente visto Camões e D. João de Castro”, in op. cit., pp. 148 sqq.
772
Idem, ibidem, p. 150.
773
Jorge de Sena destaca que os actos do amor configuram a divinização dos heróis (Jorge de Sena,
“Aspectos do pensamento de Camões através da estrutura linguística de Os Lusíadas”, in Actas da I Reunião
Internacional de Camonistas, Lisboa, Comissão Executiva do IV Centenário da Publicação de Os Lusíadas,
1973, p. 51.
774
Luís de Camões, Os Lusíadas, II, 20-4, loc. cit.

240
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

da beleza sensual de Vénus, que Camões – e Graça Moura – se compraz em


cantar775. Pela importância de que reveste, o autor contemporâneo em Os Lusíadas
para gente nova, interpreta do seguinte modo o episódio da Ilha dos amores:

“Camões descreve um quadro sensual


E as ninfas satisfazem os desejos
Dos pobres marinheiros que afinal
Só na imaginação lhes davam beijos,
E assim foi no regresso a Portugal.
A fantasia tem desses lampejos
E as recompensas vão os nautas tê-las
Numa ilha do amor de cinco estrelas.” 776

A complexidade estrutural de Os Lusíadas, fruto da vasta cultura de Camões,


decorrente da pluralidade de episódios e da configuração de vários mundos, reais
ou imaginários, proporciona os mais variados caminhos hermenêuticos, nem
sempre coincidentes. No contexto do episódio enunciado, Graça Moura trava uma
polémica sobre as coordenadas espaciais de Os Lusíadas, em “O globo transparente
e a concepção de espaço n’Os Lusíadas”777, onde refuta Giuseppe Tavani, que
preconiza incongruências na representação do espaço na epopeia camoniana em
contraposição com a dimensão temporal, derrogando, desse modo, os códigos do
género. Nesta formulação, o professor italiano sublinha que provoca “no leitor a
impressão de uma descontinuidade na organização geral do poema”778. Ao invés,
Graça Moura, no referido artigo, ao trazer à colação argumentos de diversos
estudiosos, defende que a relação da poesia camoniana com a pintura renascentista
só foi possível graças ao conhecimento do poeta da obra de Ticiano, onde se terá
inspirado para a descrição do modelo da máquina do mundo. Porém, na sua
argumentação, de entre diversos exemplos aduzidos da epopeia camoniana, dedica
particular atenção às coordenadas espaciais na Ilha dos Amores, episódio que, no
seu dizer, é “epicamente perfeito”779. Depois de considerar o espaço uma categoria,

775
As ninfas são uma alegoria das honras, que os nautas não têm em Portugal: “Aquelas preminências
gloriosas, / Os triunfos, a fronte coroada / De palma e louro, a glória e maravilha, / Estes são os deleites
desta ilha” (Cf. Luís de Camões, Os Lusíadas, IX, 89, loc. cit.).
776
Vasco Graça Moura, Os Lusíadas para gente nova, loc. cit., p. 132.
777
Idem, “O globo transparente e a concepção de espaço n’Os Lusíadas”, in Luís de Camões. Alguns
desafios, loc. cit., pp. 123-131.
778
Giussepe Tavani, “A estrutura espácio-temporal de Os Lusíadas”, in Ensaios portugueses: filologia e
linguística, 1988, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, p. 432.
779
Vasco Graça Moura, “O globo transparente e a concepção de espaço n’Os Lusíadas”, in op. cit., p. 131.

241
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

sem valor absoluto, de apreensão do real, salienta que em Os Lusíadas essa


componente narrativa “tem mais complexa e coerente articulação e transfiguração
mítica do que a que as que lhe atribui o professor italiano”780. Deste modo, conclui
peremptoriamente: “Os Lusíadas são realmente o verdadeiro manifesto épico do
renascimento europeu, como igualmente foram um manifesto maneirista dele, ou,
se se quiser, a única epopeia autêntica da europa moderna”781. G. Tavani insiste,
num outro texto, na defesa da sua tese e refuta as considerações expendidas pelo
autor de Os Lusíadas para gente jovem, que, contudo, não respondeu ao ilustre
filólogo782.
Porém, a carga dramática, em amarga toada presente ao longo desta sequência
lírica, surge também ancorada no seguinte texto:

“e no fim era a ninfa acquis extincta


e a terra prometida era o seu corpo
impresso numa ilha, era o seu nome,
e a música das esferas o seu canto,

desenrolado como a via láctea.


e a ilha era o seu metal polido e áspero,
era o seu aço limpo de sinais concêntricos
e de corais rugosos, escuramente incendiados.

ao princípio era a ninfa, que era a terra,


que era a ilha, que era a noite.
que eram os corais a explodirem.
por onde as aves às vezes navegavam contra o vento

e as naves, sem saberem, passavam, avistando-a


como um ponto de sombras ancorado no horizonte”. (PR1, 426)

Em tom elegíaco, Dinamene, invocada por Camões como “Ah! Ninfa


minha!”783, surge designada por “ninfa acquis extincta”, expressão decalcada do
latim que, no dizer de Faria e Sousa, é o título desse soneto camoniano presente nos
manuscritos: Ad Dinamenem acquis extincta784. Essa tonalidade afectiva faz do
mar, elemento primordial e presença assídua nos versos camonianos, configurando
descrições sensoriais e emotivas que enquadram indubitavelmente um determinado

780
Idem, ibidem, p. 129.
781
Idem, ibidem, p. 131.
782
Giussepe Tavani, “Ainda sobre a estrutura espácio-temporal de Os Lusíadas”, in op. cit., pp. 437-449.
783
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p.167.
784
Rimas várias de Luís de Camões comentadas por Manuel de Faria e Sousa, loc. cit., p. 278.

242
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

percurso existencial785. Este, numa pulsão metafórica, dissemina-se no poema numa


tensão lírica numa reiterada força rítmica, bem como o lugar estratégico dos
lexemas no permanente entretecer de versos, demonstrando que o mar camoniano é
o “espaço da saudade”, como sublinha Prado Coelho786. A construção lírica tem a
particularidade de associar elementos quer visuais (“via láctea”), quer auditivos
(“música das esferas o seu canto”), contribuindo para um clima poético em que se
revela um estado de alma. A figura feminina enaltecida e associada à força vital
que dinamiza a existência e suscita emoções, em clave maneirista, é a voz do
sentimento de ausência e finitude que institui, sob a égide da memória, o
sofrimento e a desgraça. Assim, o naufrágio é a metáfora tragicamente ilustrativa
da condição humana.
O referente de Dinamene afogada não é ignorado também no longo poema
regresso de camões a lisboa:

“e partiu dinamene e não se gravam


nem de seu corpo a curva mais vibrante,
nem as volutas leves do seu riso,
nem o peito acerado, o dorso liso,
nem os gestos que então a desenhavam,
nem as pegadas, nem sinais ardentes,
nem várias linguagens e costumes,
nem dolorosos versos que ficavam
medindo roucamente, impacientes,
desejos enlaçados com ciúmes,
cores vibrantes, rosas e perfumes,
a fúria e o impulso a abandoná-la,
lá onde a lua sobe e o sol se cala
quando riscam o céu súbitos lumes
e se fazem presságios”. (PR1, 511)

Esta profundidade emotiva centrada na amada abre-se, através de um processo


acumulativo, numa infinidade de referências que converte a palavra em
sentimentos. O verso inicial imprime um pendor peculiar que funcionou como um
traçado preliminar para o seu poema; as vivências de um eu que se questiona,
reiterando uma clara cumplicidade amorosa; a cadência marcada por um ritmo
binário e por uma adjetivação valorativa de matriz camoniana – “leves”,

785
Maria Vitalina Leal de Matos (Cf. O canto na poesia épica e lírica de Camões. Estudos de isotopia
enunciativa, loc. cit., p. 231) destaca em Camões a associação recorrente da mulher e da água. Graça Moura
segue de perto este topos, conforme se observa nos poemas consagrados a Dinamene.
786
Jacinto Prado Coelho, Camões e Pessoa. Poetas da utopia, loc. cit., p. 101.

243
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

“ardentes”, “aceso” – acentua a sensualidade feminina, que, no entanto, está


irremediavelmente destruída, porque “partiu Dinamene” com “a fúria e o impulso a
abandoná-la”. Graça Moura, em demanda das angústias que Camões exprimira
lapidarmente nos seus versos, oferece neste trecho uma das mais belas
manifestações do enlevo lírico. A decorrente fugacidade da felicidade ilusória
agudiza um profundo desengano e provoca, a um tempo, dor e solidão onde a
função expressiva é suscitada pela amplitude do ritmo, intensificada pelo
persistente predomínio de anáforas sob o signo da negatividade. Assim, nestes
versos, está implícita a morte, que, envolta em sentimentos contraditórios, constitui
uma oportunidade de reflexão sobre a existência humana consagrada pelo conceito
maneirista de finitude787. Mas a aproximação a Camões multiplica-se no trecho
referido; as notações visuais presentes no binómio “lá onde a lua sobe e o sol se
cala” afloram, em registo celebrativo, uma admirável deriva do verso proferido
pelo Gama ao rei de Melinde: “onde a terra se acaba e o mar começa” 788. Num
deliberado tributo ao autor de Os Lusíadas, o pathos criado em torno da amada do
poeta aproxima-se dos traços semânticos intrínsecos à canção, caracterizados por
Maria do Céu Fraga do seguinte modo:

“A universalidade do significado das canções resulta da universalização do significado individual


de um caso particular, que na sua dimensão trágica, não pode deixar de mover ao leitor
comiseração”.789

Mercê de uma notável força reinventiva da escrita, os versos do autor de poemas


com pessoas, a partir do lexema “Dinamene”, de elevada ocorrência ou sugestão no
corpus textual, ajusta-se a uma notável hermenêutica reveladora de uma forte raiz
ontológica. Os poemas enunciados convocam, com efeito, eixos estruturantes bem
definidos; em longo diálogo, a apropriação de marcas discursivas diversificadas e
hauridas essencialmente em Camões impulsiona um encadeamento semântico, bem
como uma visão trágica da existência humana. Esta consciência do naufrágio
assume-se assim, no dizer de Graça Moura, “como traço identificador do nosso

787
Fernando Pinto do Amaral, “A poesia neo-maneirista de Vasco Graça Moura”, in Vasco Graça Moura,
Poemas escolhidos, Lisboa, Ed. Bertrand, 1990, pp. 1-7.
788
Luís de Camões, Os Lusíadas, III, 20, loc. cit.
789
Maria do Céu Fraga, Os géneros maiores na poesia lírica de Camões, loc. cit., p. 59.

244
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

imaginário”790. Não obstante, o motivo conclusivo parece estar neste belo passo de
3.o seu lugar:

“esse modo verbal de estar na vida


e engendrar presenças, a sonhar murmúrios
e bálsamos para o naufrágio”. (PR2, 133)

Para Graça Moura, “o poema / são restos de naufrágio” (PR2, 29), traçando uma
bela síntese da relação da literatura com a sua fulguração criativa. Este tópico do
naufrágio estende-se à produção romanesca do autor contemporâneo, pelo que os
evidentes vasos comunicantes desenham uma marca pós-moderna, pelas reiteradas
reflexões na obra de um escritor791. Exemplo disso, é a narrativa Naufrágio de
Sepúlveda792, cujo título e paratexto evocam o célebre e dramático relato anónimo
de 1555 da “Relação da muy notável perda do Galeão grande S. João”, da História
Trágico-Marítima, compilação de textos realizada por Gomes de Brito793.
Impregnado de sofrimento e dor, este relato dos acontecimentos, imortalizado por
Camões794, contribui de forma particular para a sua projecção nas actuais letras
nacionais795, quando o Adamastor profetiza o fatídico desastre:

“Outro também virá de honrada fama,


Liberal, cavaleiro, enamorado,
E consigo trará a formosa dama
Que Amor por grã mercê lhe terá dado.
Triste ventura e negro fado os chama
Neste terreno meu, que duro e irado

790
Vasco Graça Moura, “A consciência do naufrágio”, in Contra Bernardo Soares e outras observações,
Porto, Ed. Campo das Letras, 1999, p. 201.
791
Matei Calinescu, As 5 faces da modernidade, Lisboa, Ed. Vega, 2006, p. 259.
792
Vasco Graça Moura, Naufrágio de Sepúlveda, Lisboa, Ed. Quetzal, 1987. Sobre esta obra veja-se: Maria
Luísa Leal, “O naufrágio de Sepúlveda: variantes e invariantes de uma matéria narrativa”, in Ana Margarida
Falcão (org.), op. cit., pp. 629-639; André Luiz Alves Caldas Amóra, “Vasco Graça Moura e o naufrágio de
Sepúlveda”, in http://www.filologia.org.br/xvi_cnlf/tomo_3/256_B.pdf (consultado em 14 Dezembro 2015);
José Cândido Martins, “Literatura trágico-marítima e a literatura contemporânea”, in op. cit., pp. 143-173.
793
Cf. Bernardo Gomes de Brito, “Relação da mui notável perda do Galeão grande S. João”, in História
Trágico-Marítima, vol. I, Mem Martins, Publ. Europa-América, 1981, pp. 25-43. A propósito desta
continuada recepção de naufrágios da carreira da Índia, Cândido Martins conclui: “A matéria narrativa do
naufrágio de Sepúlveda transformou-se em tema literário, inspirando variadíssimos autores, textos e géneros
(narrativa, teatro, poesia música, pintura, etc.) num intenso e prolongado processo de reescrita intertextual e
interdiscursiva” (Cf. José Cândido Martins, “Naufrágio de Sepúlveda”, in Vítor Aguiar e Silva (coord.),
Dicionário de Luís de Camões, loc. cit., p. 633).
794
Aníbal Pinto de Castro, “O relato do naufrágio do galeão grande S. João e o texto d’Os Lusíadas”, in José
Augusto Cardoso Bernardes (org.), Luiz Vaz de Camões Revisitado, loc. cit., pp. 17-28.
795
José Cândido Martins, “Literatura trágico-marítima e a literatura contemporânea”, in op. cit., pp. 143-
-168.

245
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

Os deixará dum cru naufrágio vivos


Para verem trabalhos excessivos”.796

O referido relato da perda do navio, devido a uma terrível tempestade, e a morte


trágica do capitão e sua família, é cantada também no poema épico de
mundividência maneirista intitulado precisamente Naufrágio e perdição de
Sepúlveda e Leonor, da autoria de Jerónimo Corte Real797, também ele personagem
da obra de Graça Moura798. A diegese centra-se nos infortúnios do empresário
Manuel de Sousa Sepúlveda, homónimo do célebre navegador, com quem
apresenta determinados traços biográficos799. As circunstâncias evocadas do
período histórico conturbado de transição para a democracia em Portugal800
revestem-se de significativo alcance metafórico, uma vez que o cepticismo em
torno do percurso do protagonista coincide com o incerto futuro de Portugal,
configurando, assim, um naufrágio quer pessoal, numa relação próxima com o
período das descobertas801. O autor de nó cego focaliza, assim, de forma crítica, a

796
Luís de Camões, Os Lusíadas, V, 46, loc. cit.
797
Jerónimo Corte-Real, Obras (Sucesso do Segundo Cerco de Diu - Naufrágio de Sepúlveda - Auto dos
Quatro Novíssimos do Homem - Elegias), introd. e rev. de M. Lopes de Almeida, Porto, Ed. Lello & Irmão,
1979. Vide sobre a referida obra, Hélio J. S. Alves, “As memórias gloriosas e o inglório esquecimento:
na(rra)ção e canonização nos Lusíadas de Camões e no Sepúlveda de Corte-Real”, in http:// old. www.
cidehus.uevora.pt/textos/artigos/memorias_gloriosas.pdf (consultado em 20 Dezembro 2015). Cf. também o
estudo pormenorizado de Hélio J. S. Alves, Naufrágio e perdição de Sepúlveda e Leonor de Jerónimo Corte
Real, in Hélio J. S. Alves, Camões, Corte-Real e o Sistema da Epopeia Quinhentista, loc. cit., pp. 229-245.
798
Graça Moura conhece bem esta matéria que tem como núcleo privilegiado os naufrágios, quando afirma:
“Há, em certas situações, um dramatismo intrínseco como naquele que é talvez o mais célebre naufrágio, o
do galeão grande S. João, também conhecido por naufrágio de Manuel de Sousa Sepúlveda, relato anónimo
de 1555, várias vezes reeditado, cujo tema foi explorado literariamente logo a partir de Camões e de
Jerónimo Corte Real, decorridos escassos vinte anos sobre os acontecimentos. Surge assim muito cedo uma
primeira relação da escrita literária com os testemunhos de ‘rudes marinheiros’ sobreviventes”. (Cf. Vasco
Graça Moura, “A consciência do naufrágio”, in Contra Bernardo Soares e outras observações, loc. cit.,
pp. 199-200)
799
Sobre esta matéria, Cândido Martins destaca: “O narrador conta-nos, se assim podemos dizer, o naufrágio
financeiro de um empresário, nas vésperas da Revolução de 25 de Abril (naufrágio de um Portugal?), mas
com uma particularidade muito significativa, ao nível da selecção onomástica [...]. Com efeito, os nomes das
personagens da família do protagonista, Manuel de Sousa Sepúlveda, coincidem com os nomes da família do
infeliz navegador quinhentista, coincidências que se estendem a vários pormenores biográficos”. (Cf. José
Cândido Martins, “Literatura Ttrágico-marítima e a literatura contemporânea”, in op. cit., p. 162).
800
Isabel Pires de Lima, nesta perspectiva, sublinha: “Não é impunemente que uma velha nação secular,
senhora do último dos impérios coloniais, quer essa posse fosse vivida numa delirante atitude eufórica ou
com uma dramática má-consciência, se vê subitamente reduzida à sua dimensão europeia. […] na cauda do
desenvolvimento económico e social, não podia deixar de gerar perplexidades, interrogações, medos...” (Cf.
Isabel Pires de Lima, “O regresso de D. Sebastião: narrativa e mito na narrativa portuguesa contemporânea”,
in Ana Margarida Falcão (org.), op. cit., p. 455.
801
A contemporaneidade do naufrágio é sublinha por Luísa Leal do seguinte modo: “Não são apenas as
variantes de um relato de naufrágios relacionadas com os géneros literários a merecer a atenção dos
estudiosos interessados nas relações de intertextualidade. Os contextos de recepção e de reescrita revelam
diferentes matizes ideológicos, o que mostra que um tema como o do naufrágio de Sepúlveda partilha uma

246
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

própria decadência da identidade nacional contemporânea, imagem recorrente


traçada em demanda de um rumo802. No dizer de Cândido Martins, “O recurso
intertextual à literatura trágico-marítima e, em particular, ao Naufrágio de
Sepúlveda é uma forma peculiar de reescrever a nossa História e um modo inédito
de repensar Portugal, perspectivando o presente e o futuro do país à luz do seu
passado”803, o que se aplica indubitavelmente à obra de Graça Moura.
Em exercício intertextual, plasmado numa apurada inclinação estética, surgem,
na narrativa, referentes culturais inspirados na compilação de Bernardo de Brito,
como por exemplo, a ópera de Wagner, O Navio Fantasma, relacionada na
narrativa contemporânea com os amores infelizes de Catarina, filha de Manuel de
Sepúlveda, com um holandês errante804, ou ainda a alusão a História trágico-
-marítima, célebre quadro da autoria de Vieira da Silva805. Registe-se ainda
diversos passos hauridos no livro de Bernardo de Brito:

“Em verdade, quem conhecera a Manuel de Sousa, e soubera sua discrição, e brandura, e lhe
vira fazer isto, bem poderia dizer que já não ia em seu perfeito juízo; porque era discreto e bem
atentado: e dali por diante ficou de maneira que nunca mais governou a sua gente, como até ali o
tinha feito. E chegando da outra banda, se queixou muito da cabeça…”.806

Também D. Leonor, envergonhada, enterra-se na areia para esconder a sua


nudez e são citados ainda passos da epopeia de Corte-Real807:

“Vendo-se D. Leonor despida, lançou-se logo no chão, e cobriu-se toda com os seus cabelos,
que eram muito compridos, fazendo uma cova na areia, onde se meteu até à cintura, sem mais se
erguer dali... mas contudo nunca mais se quis erguer daquele lugar, onde se deixou cair, quando se
viu nua. No poema de Jerónimo Corte-Real, do outro, havia aqui dois versos razoáveis, Assentase
na branca area, & cobre / Co dourado cabello a lisa carne”.808

vertente que tende para a atemporalidade característica do mito, como uma vertente que mergulha
profundamente na temporalidade histórica” (Cf. Maria Luísa Leal, “O naufrágio de Sepúlveda: variantes e
invariantes de uma matéria narrativa”, in Ana Margarida Falcão (org.), op. cit., pp. 637-638).
802
Neste contexto disfórico sobre Portugal, Graça Moura traz à liça um lapidar passo camoniano que
constitui a primeira epígrafe a Naufrágio de Sepúlveda: “O naufrágio, que constituir também peripécia na
vida e no texto épico do autor de Os Lusíadas, muito provavelmente passou a ser reconduzido a uma espécie
de arquétipo da desgraça nacional. ‘Corre sem vela e sem leme / a nau que se vai perder’, diz-se num famoso
labirinto camoniano. Cada naufrágio cujo retrato chegou até nós podia ser lido como metáfora de um
desastre em que era o próprio país a ir ao fundo”. (Cf. Vasco Graça Moura “A consciência do naufrágio”, in
Contra Bernardo Soares e outras observações, loc. cit., p. 200).
803
José Cândido Martins, “Literatura trágico-marítima e a literatura contemporânea”, in op. cit., p. 168.
804
Vasco Graça Moura, Naufrágio de Sepúlveda, loc. cit., p. 151.
805
Idem, ibidem, p. 52.
806
Idem, ibidem, p. 102.
807
Sobre este autor, vide o estudo fundamental de Hélio J. S. Alves, Camões, Corte-Real e o Sistema da
Epopeia Quinhentista, loc. cit.
808
Idem, ibidem, p. 134.

247
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

Assim, num texto entretecido de citações e alusões, é narrado o percurso de um


homem endividado que tenta salvar a sua actividade profissional na “batalha naval
nas águas da banca portuguesa”809. Derivado de um naufrágio económico-
-financeiro, o desfecho da narrativa do autor de A morte de ninguém incide sobre o
infortúnio anunciado do casal, num dia de forte intempérie, um cenário próximo ao
da tempestade sofrida pelo grande Galeão São João. Sepúlveda e a esposa são
encontrados mortos no rio Tejo, num acidente que parece ter sido provocado pelo
empresário. Em tempos modernos, o desfecho fatal do protagonista insere-se nos
quadros dramáticos da História trágico-marítima, perspectivando, através de uma
reescrita ficcional, uma deliberada atitude indagante sobre a identidade nacional.
Como se observa, verifica-se a inversão irónica que a paródia proporciona810;
enquanto a figura quinhentista mantém a coragem e a integridade, numa luta
desesperada contra a morte, a personagem contemporânea, pelo contrário, parece
buscar no fundo do rio a solução para os problemas com os quais não sabe lidar,

809
Idem, ibidem, p. 66.
810
Linda Huctheon, Teoria da paródia, loc. cit., p. 48. Cf. sobre o conceito de paródia, os seguintes autores
e títulos: Fred W. Householder, Jr, “Παρωδía”, in Classical Philology, vol. XXXIX, nº 1944, pp. 1-9; F. J.
Lelièvre, “The basis of ancient parody”, in Grecce & Rome, 2.nd Series, nº 1, 1954, pp. 66-81; J.G.
Riewald, “Parody as criticism”, in Neophilologus, vol. 1, nº 1, 1956, pp. 17-30; Sanda Golopentia-Erestecu,
“Grammaire de la parodie”, in Cahiers de linguistique théorique et appliquée, nº 6, 1969, pp. 167-181;
Olga M. Freidenberg, “The origin of parody ”, in Semiotcs and Structuralism. Readings from the the Soviet
Union, White Plains (New York), Internacional Arts and Sciences Press, 1975, pp. 269-283; António
Gomez-Moriana, “Intertextualité, interdiscursivité et parodie. Pour une semanalyse du roman picaresque”,
in Canadian Journal of Research in Tematics, nº 8, 1980-1981, pp. 15-32 ; Gérard Genette, Palimpsestes. La
littérature au second degré, Paris, Ed. du Seuil, 1982, pp. 157-164 ; Claude Abastado, “Situation de la
parodie”, in Dérives des signes, Paris, Ed. Publidix, 1988, pp. 149-168; Daniel Sangsue, La Parodie, Paris,
Ed. Hachette, 1994; Daniel Sangsue, La relation parodique, Paris, Ed. José Corti, 2007 ; Margaret A. Rose,
Parody-Ancient, Modern and Post-Modern, London, Cambridge Univ. Press, 1993; Gilberto Mendonça
Teles, Camões e a poesia brasileira, loc. cit., pp. 324-356; Paulo Sérgio Ferreira, Os elementos paródicos no
Satyricon de Petrónio e o seu significado, Lisboa, Ed. Colibri, 2000; idem, “O significado da paródia na
Apocolocyntosis de Séneca”, in De Augusto a Adriano. Actas de Literatura Latina, Lisboa, Centro de
Estudos Clássicos, 2002. pp. 361-369; idem, "Paródia ou paródias?”, in Carlos de Miguel Mora (org.),
Sátira, paródia e caricatura: da Antiguidade aos nossos dias, Aveiro, Universidade de Aveiro, 2003,
pp. 279-300; Manuel Ferro, “A implantação da República Portuguesa sob o olhar acutilante da paródia:
Republicaníadas, de Marco António (António Correia Pinto de Almeida)”, in Republicaníadas, Coimbra-
-Figueira da Foz, Centro Interuniversitário de Estudos Camonianos / Câmara Municipal da Figueira da Foz,
2010; idem, “A utopia sob o signo do poema herói-cómico: O balão aos habitantes da Lua (1819), de José
Daniel Rodrigues da Costa, entre paródia e crítica social”, in Biblos, vol. XI, 2013, pp. 303-333; José
Cândido Martins, Teoria da Paródia Surrealista, Braga, APPACDM, 1995; idem, “Memorial do Convento,
de José Saramago: intertexto, interdiscurso e paródia carnavalizadora”, Flávia Corradin e Lilian Jacoto
(org.), in Literatura Portuguesa (Ontem, Hoje), S. Paulo, Ed. Paulistana, 2008, pp. 93-118; idem, “Paródias
d’Os Lusíadas”, in Vítor Aguiar e Silva (org.), Dicionário de Camões, loc. cit., pp. 659-667; idem,
“Paródias”, in Biblos. Enciclopédia Verbo das Literaturas de Língua Portuguesa, vol. 3, Lisboa-S. Paulo,
Ed. Verbo, 1995, cols.1418-1422; idem, “Paródia da construção determinista da personagem em Eusébio
Macário e A Corja”, in Boletim de Estudos Camilianos, V série, nº 1, 2016, pp. 105-134.

248
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

confirmada pela previsibilidade do depoimento da criada, que, ao lamentar o


sucedido, apresenta as circunstâncias motivadoras daquele fatídico desfecho:

“Parecia que o senhor engenheiro andava desesperado havia uns tempos por coisas lá da vida
dele, os negócios parece que estavam a correr-lhe muito mal e ele tinha ido entregar tudo ao
banco”.811

Após a consumação do suicídio, as derradeiras páginas da obra apresentam, pois,


uma coincidência explícita com o relato anónimo de Quinhentos, quando um
inspector da Judiciária, num passo de inegável vínculo intertextual, afirma que
“aquilo era um novo naufrágio de Sepúlveda”812. A linha discursiva configura o
paradigma da precária condição da viagem da vida, que oscila entre a felicidade e a
morte, bem como, num sentido mais lato, concorre ao nível cultural e literário para
uma questionação da pátria, repleta de constantes perdas, rumo a um irremediável
destino.
Esta curiosa recriação intertextual está patente também, como já foi observado,
nos versos de Graça Moura, testemunhando a crucial importância concedida à
frágil condição humana. A ideia de naufrágio, reiterada em Dinamene e Manuel de
Sepúlveda, traz à tona uma visão profundamente dissonante de um colectivo
humano, prevalecendo uma notação inequívoca de desordem moral, onde não há
lugar para qualquer réstia de esperança813. Como as naus que sulcam os oceanos em
constante perigo, trata-se de uma projecção alargada do naufrágio coletivo no mar
tempestuoso da existência, incontornável imagem dissonante da memória nacional.

3.2. Cartografia do regresso

Graça Moura, que confessa rever-se “na matéria verbal de que me faço” (PR2,
425), reitera, neste contexto, a errância amargurada de Camões pelo Oriente, num
longo poema de 265 versos, publicado em 1995, na revista Oceanos, em número
dedicado ao vate quinhentista, por ocasião do quarto centenário da publicação das

811
Idem, ibidem, p. 166.
812
Idem, ibidem, p. 167.
813
Nesta linha, quando se refere a Naufrágio de Sepúlveda, Aguiar e Silva sustenta: “O naufrágio é a
metáfora de uma pátria em risco contínuo de perdição” (Vítor Manuel Aguiar e Silva, “A outorga do Prémio
Morgado de Mateus a Vasco Graça Moura”, in op. cit., p. 176).

249
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

Rhythmas814. Numa clara transgressão às convenções, o surpreendente paratexto


inaugural em verso, da qual Graça Moura era director, permite dilucidar um
singular exercício lírico, modelado por vivências, sentimentos e um vasto lastro
cultural, como se observa no seu incipit:

“num areal de goa li as dez


canções camonianas e tomei
razões e sem razões pelas marés,
vaivéns do coração vindos ao rés
da praia de ninguém por onde andei”. (PR1, 509)

A memória do eu lírico, plasmada no canto lírico de Camões revisita o percurso


do poeta quinhentista pelo Oriente815. O texto, com um título sobremaneira
sugestivo, regresso de camões a lisboa, direcciona desde logo o leitor para um
vasto leque de significações, constituído por via da memória e pelo filtro biográfico
do sujeito poético. A consciência do presente ganha uma particular expressão, visto
que a prática poética e vivencial são duas faces de uma experiência comum. As
circunstâncias de enunciação, decorrentes do horizonte de referência perpetuado
pela tradição, convocam, desde logo, um conjunto de ideias nucleares para a
compreensão do sentido global deste poema. O sujeito de enunciação encontra-se
no espaço mítico e distante do “areal de Goa”816, símbolo da presença portuguesa
no Oriente e das viagens do poeta quinhentista817. Com efeito, tema emblemático
da modernidade, a deambulação pressupõe um percurso incerto e constitui o prisma
de inúmeras reflexões sobre as vicissitudes da condição humana, bem como sobre
as raízes históricas da gesta marítima nacional818. A escrita afigura-se, pois, uma

814
Vasco Graça Moura, “regresso de camões a lisboa”, in Revista Oceanos, Agora, peregrino vago e
errante, nº 23, Julho/Setembro, 1995, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos
Portugueses, pp. 4-5.
815
Sobre a importância do Oriente nas letras nacionais, em que Graça indubitavelmente se inscreve, Álvaro
Machado destaca os “elementos decisivos da sua originalidade e da sua universalidade” (Cf. Álvaro Manuel
Machado, O mito do Oriente na literatura portuguesa, Lisboa, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa,
1983, p. 117).
816
Faria e Sousa diz que a canção Junto dum seco frio e estéril monte foi escrita pelo poeta em Goa (Cf.
Rimas várias de Luis de Camões comentadas por Manuel de Faria y Sousa, nota introdutória do Prof. F.
Rebelo Gonçalves, prefácio do Prof. Jorge de Sena, Tomo II, loc.cit., p. 67).
817
Genette sustenta que a evocação do espaço na poesia configura um sentido real e uma dimensão
existencial, constituindo uma forma de estruturação da mundividência lírica (Cf. Gérard Genette, “La
litteráture et l’espace”, in Figures II, Paris, Ed. Seuil, 1969, pp. 43-47).
818
Vide Helena Langrouva, A viagem na poesia de Camões, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2006.

250
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

aventura simultaneamente verbal e existencial, fundada na deliberada evocação


camoniana da errância819.
Num registo impressivo, os versos inaugurais “num areal de goa li as dez /
canções camonianas” apresentam indicadores temporais e geográficos ligados às
vivências orientais de Camões idênticas às do próprio sujeito poético820. O acto
enunciativo acentua um momento temporal que se funde com um determinado
espaço, o que comprova um sistema de valores em processo de reflexão. Esta
exaltação de uma tradição histórica e cultural, presente nas canções de Camões
apresenta uma clara opção estética, visto que são expressão de sentimentos
perpetuados ao longo dos tempos, consciência estética na linha de pensamento de
Graça Moura, quando afirma: “um autor tem que se ligar a um património”821.
O referente espacial enunciado, a lembrar o sintagma camoniano “praias
húmidas de Goa” na elegia Que novas tristes são822, configura um lugar
privilegiado de reflexão, proporcionado pelas “dez canções camonianas”, o número
de composições considerado por Costa Pimpão na sua edição das Rimas823.
Explicitamente evocado, o exercício de ler, que o poeta quinhentista
recorrentemente evocara nos seus versos824, encerra uma viagem interior, onde a
sugestão proporcionada pelo sintagma “vaivéns” destaca o movimento ondulante
que oscila entre a pulsação da palavra e o acto criativo, bem como entre as
fronteiras da imanência e do transcendente.
Mas a complexa rede significativa criada ganha uma singular força expressiva,
perpetuada pelo tempo e cristalizada na memória:

819
Segundo Aguiar e Silva, o tópico da errância e da peregrinação adquire uma particular expressão
dramática nas canções IX e X de Camões (Cf. Vítor Manuel Aguiar e Silva, “As canções da melancolia”, in
Camões: labirintos e fascínios, Lisboa, Ed. Cotovia, 1994, p. 220).
820
No poema toada de goa, da autoria de Graça Moura, é reiterada este topos de timbre camoniano: “nesta
dura deriva / da memória cativa /que a saudade magoa / amanhecer em goa / anoitecer em goa” (PR1, 441).
821
Francisco José Viegas, “E agora Vasco?”, in Revista Ler, nº 33, 1996, p. 61.
822
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 248.
823
A edição da lírica camoniana de Costa Pimpão, considerada até ao momento a mais credível, contempla
dez canções. No entanto, Hernâni Cidade atribui onze canções ao poeta quinhentista. Sobre esta complexa
matéria, vide Vítor Manuel Aguiar e Silva, “O cânone da lírica de Camões: estado actual do problema;
perspectivas de investigação futura” e “Notas sobre o cânone da lírica camoniana (II)”, in Camões:
labirintos e fascínios, Ed. Cotovia, Lisboa, 1994, respectivamente pp. 37-55 e 57-71.
824
Maria Vitalina Leal de Matos, O canto na poesia épica e lírica de Camões. Estudos de isotopia
enunciativa, loc. cit., pp. 253-254.

251
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

“ao longe, perpassavam sombras ténues


que a memória persegue e não alcança
e o poder das palavras ainda menos”. (PR1, 509)

Com efeito, o canto de Graça Moura, homo uiator como Camões, plasma-se nas
“sombras ténues”, sob a égide da “memória” e do “poder das palavras”, através de
um constante jogo intertextual que convoca múltiplos sentidos, fazendo jus à sua
definição de poesia: “Um poema liga-se sempre a todos os poemas que o
precedem”825. Esta concepção, contextualizada nas experiências da vida e enraizada
no vasto legado literário, legitima o recurso aos versos camonianos, uma vez que,
na esteira dos códigos petrarquistas, o vate quinhentista cultivou um lirismo de
memória de onde brotam os sentidos e as emoções do passado, como observou
Aguiar e Silva com particular acuidade:

“No plano épico, como no plano lírico, a memória é indissociável da história – da história da
comunidade nacional dos seus heróis e da história-biografia de um homem – e, ao mesmo tempo,
da precariedade e da exemplaridade, eufórica e disfórica, dessa mesma história”.826

Como se observa, os versos de Graça Moura apresentam um efeito polifónico


em que várias linhas temáticas se cruzam e descruzam. Assim, a “vida / pelo
mundo em pedaços repartida” de Camões827 e a sua ligação à pátria não são
descuradas no exercício poético do autor de uma carta no inverno, desenhando uma
tensão emotiva:
“os saberes
dispersos naufragados nas jornadas
e a matéria do mal nas enseadas
de humano desgoverno e cupidez,
inveja, ardil, injúria, insensatez
que as almas todas trazem governadas”. (PR1, 512)

Como num palimpsesto, Graça Moura procura reescrever e reinventar o próprio


texto do Épico numa trama de alusões que irradia múltiplas pistas de reflexão,
demonstrando que a sua escrita é, em clave camoniana, “um saber só de
experiência feito”828; persegue, deste modo, os princípios da epopeia camoniana
enquanto género relacionado com o tópico da viagem. O “humano desgoverno e

825
Vasco Graça Moura, “Como se faz um poema”, in Discursos vários poéticos, loc. cit., p. 488.
826
Vítor Manuel de Aguiar e Silva, “Aspectos petrarquistas da lírica de Camões”, in Camões: labirintos e
fascínios, loc. cit., p. 188.
827
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 221.
828
Luís de Camões, Os Lusíadas, IV, 95, loc. cit.

252
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

cupidez”, representação da ambição desmedida e do egoísmo individual, decorre,


segundo Pina Martins, da denúncia moral suscitada pelos valores humanísticos, que
se estende de Petrarca a Erasmo829. O sentimento disfórico enunciado no segmento
“inveja, ardil, injúria, insensatez / que as almas todas trazem governadas”, tem
afinidades com a Canção X, num passo considerado, no dizer de Óscar Lopes830, o
paradigma camoniano dos nefastos poderes do mundo:

“Enfim, não houve transe de fortuna;


nem perigos, nem casos duvidosos,
injustiças daqueles, que o confuso
regimento do mundo, antigo abuso,
faz sobre os outros homens poderosos”.831

O poema em análise, por outro lado, não pode lido sem o título, uma vez que
sugere o repatriamento de Camões e pressupõe uma determinada referência
espacial bem delimitada – Goa é a origem e Lisboa o seu destino. Por outro lado,
revela uma tendência da poesia moderna baseada na ideia da personalização; o “eu”
ocupa a centralidade do processo enunciativo, na criação poética, o que não exclui
a ficcionalidade intrínseca ao texto literário; como sublinhou Graça Moura, a
escrita “não surge ex nihilo, mas é um modo verbal de estar no mundo”.832
Na “apropriação fragmentária”, como o autor faz questão de destacar no
posfácio a Poemas escolhidos833, quando se refere à dimensão intertextual da sua
obra, a viagem de Camões é feita de momentos que se refletem e se refratam nos
seus versos; é precisamente neste contexto, em crescendo metafórico, que projecta
como nota dominante a isotopia do regresso do Oriente:

“e afinal
só com os próprios ecos tem cotejo
e entre seus reenvios despedaça
o alento que na alma inda perpassa
e de ousadias próprias se faz pejo
de tão viva lembrança que desfaça
de apagadas venturas o sobejo

829
José V. Pina Martins, “O humanismo na obra de Camões”, in Arquivos do Centro Cultural Português,
vol. XVI, Paris, Fundação Calouste Gulbenkian, 1981, p. XX.
830
Óscar Lopes, “Um pacto de leitura”, in Revista Oceanos, Agora, peregrino vago e errante, nº 23,
Julho/Setembro, loc. cit., pp. 12-15.
831
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., pp. 227-228.
832
Vasco Graça Moura, “Como se faz um poema”, in Discursos vários poéticos, op. cit., p. 487.
833
Idem, Poemas escolhidos, loc. cit., p. 476.

253
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

e a vida se embacie mais escassa.


e vindo ao mar de tinta então se enfuna,
colhendo ao sol inóspito lampejo
de asa contraditória que esvoaça,
a vaga vela aos ventos da fortuna
para o regresso percorrendo as ilhas,
demorando o trajecto até ao tejo”. (PR1, 513)

O excerto apresentado, ao serviço de uma estética de indagação sobre o destino


comum ao poeta e a Portugal, emerge do próprio texto camoniano. Os elementos
convocados são portadores de uma mensagem cujo objetivo primordial reside nas
experiências marítimas. Sob a forma de uma poética implícita, confirma uma
considerável teia de reminiscências intertextuais, que unem a produção camoniana
a este poema de vgm; o verso rico de aliterações com fonemas fricativos, “a vaga
vela aos ventos”, relembra certos passos de Os Lusíadas, como, por exemplo, o
início da narrativa in medias res: “Já no largo Oceano navegavam, / As inquietas
ondas apartando, / Os ventos brandamente respiravam, / Das naus as velas
côncavas inchando”834. No texto referido, “o regresso percorrendo as ilhas”, tem
subjacente, a precária estadia de Camões na ilha de Moçambique, como foi referido
anteriormente. Ainda nesta dinâmica, “demorando o trajecto até ao tejo”, a lembrar
o retorno da armada do Gama no verso camoniano “Entra pela foz do Tejo
ameno”835 a alusão ao rio, sinédoque de Portugal, constitui um referente de
preponderante valor estruturante na lírica e épica camoniana, como salientou
Frederico Lourenço836. A imagética inscrita neste passo, revela, assim, o destino
trágico do poeta quinhentista, visto que a viagem, pressupõe um percurso
axiológico relacionado com a errância, topos vinculado aos códigos temáticos
quinhentistas837, que busca a realização do seu destino.

834
Luís de Camões, Os Lusíadas, I, 19, loc. cit.
835
Idem, ibidem, X, 144.
836
Frederico Lourenço, “O Tejo no proémio d’Os Lusíadas”, in Grécia revisitada, loc.cit., pp. 267-272.
837
Nesta linha, Aguiar e Silva salienta: “O tópico da errância geográfica recobra na voz lírica de Camões
uma densidade e fundura existenciais singulares, à luz da sua vida, das suas experiências de homem
português de meados do século XVI” (Cf. Vítor Manuel Aguiar e Silva, “As canções da melancolia”, in
Camões: Labirintos e Fascínios, loc. cit., p. 221).

254
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

No entanto, depois de enfrentar as fúrias do mar, o regresso do poeta, em vez de


traduzir reconhecimento e glória, traz somente tristeza e desalento838:

“assim, por entre as ilhas não achando


repouso à inquieta consciência,
nem mais que conchas mortas e medusas,
nem que o calor da alma se aumentava,
nem que a respiração feita de ausência
o regressar ao tejo libertava”. (PR1, 514)

Perdido o ideal de plenitude, a viagem de regresso “por entre ilhas”, segmento


típico dos relatos de viagens, assume capital importância para dilucidar a
mundividência que o texto encerra. A relação com a pátria corresponde à angústia
existencial da “inquieta consciência”, acentuada pelo reiterado uso da conjunção
“nem”, evocação anafórica de sentimentos negativos839. De Lisboa, capital do
império, onde afluem gentes e naus de todo o mundo, resta apenas “a respiração
feita de ausência”840.
Com efeito, no dizer de Aníbal Pinto de Castro, toda a obra camoniana se
organiza entre uma partida e uma chegada841, pelo que não é fortuito o veemente
desejo de regresso do Gama, depois de concluída a descoberta marítima da Índia:
“Esta é a ditosa pátria minha amada, / à qual se o Céu me dá que eu sem perigo /
torne, com esta empresa já acabada”842. Porém, nos versos de vgm a chegada a
Lisboa é avessa à consagração apoteótica843 do poeta que cantou como ninguém “o
peito ilustre lusitano”844:

838
Sob o signo do desengano, Cleonice Berardinelli (“Junto dum seco, fero e estéril monte”, in Estudos
Camonianos, loc. cit., pp. 235 sqq) a propósito da Canção X, salienta que a almejada felicidade alimenta
continuadamente o poeta quinhentista de enganosas esperanças.
839
Neste registo dialogante em torno das dez canções camonianas, Graça Moura enfatiza a dialéctica entre
escrita e experiência, cujo apego às vivências configura uma função testemunhal da poesia já presente em
Jorge de Sena, matéria estudada por Jorge Fazenda Lourenço (A poesia de Jorge de Sena: testemunho,
metamorfose, peregrinação, Centre Culturel Calouste Gulbenkian, Paris, 1998).
840
Segundo Eduardo Lourenço, “A exegese óbvia que se costuma fazer da relação Camões-pátria é um
espelhismo romântico. É Camões quem pessoaliza a pátria, não é ela que o ‘camoniza’, que o problematiza”
(Cf. Eduardo Lourenço, “Da literatura como interpretação de Portugal”, in O labirinto da saudade, Lisboa,
Ed. Gradiva, 72010, p. 82).
841
Aníbal Pinto de Castro, “Viajar com os poetas portugueses do Renascimento e do Maneirismo”, in Ana
Margarida Falcão et alii (org.), op. cit., 1997, p. 354.
842
Luís de Camões, Os Lusíadas, III, 21, loc. cit.
843
Cardoso Bernardes afirma que o facto da recompensa não se verificar, como seria mais óbvio no terminus
do regresso, visto que obedece, antes de mais, a uma finalidade estética: a glorificação só se pode realizar no
plano mitológico antes de “os nautas serem devolvidos às coordenadas da história real” (Cf. José Augusto
Cardoso Bernardes, “O ‘nunca ouvido canto’ de Camões e as estâncias finais d’Os Lusíadas”, in Seabra
Pereira e Manuel Ferro (coord.), Actas da VI Reunião Internacional de Camonistas, loc. cit., p. 587) Esta
interpretação também é sustentada por Jorge de Sena (“A estrutura de Os Lusíadas”, in A estrutura de ‘Os

255
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

“murmúrio murmurado sobre o branco


de alguma espuma a mais vinda do rio
em quietas mordeduras no seu flanco.
mas desalento e nojo, peste e fome
e sombras na chegada do navio,
que é fantasma também, tudo consome
o branco cintilante no sombrio
recorte da cidade no vazio
em que ela se tornou e faz seu nome
desterro e cerração e ódio frio
e uma doença de alma, estranha lei
de que um estranho pão ali se come”. (PR1, 515)

Como se observa, o tópico da pátria assombrada alimenta-se continuadamente de


uma singular imagética, potenciada numa notável irradiação semântica. O
“murmúrio murmurado”, de inegável afinidade com as lapidares aliterações
camonianas, como “bramindo, o negro mar de longe brada”845, veicula, de facto,
um forte registo melancólico. Como se lê, a dimensão trágica adquire maior realce
“na chegada do navio / que é fantasma também”, o que fica na lembrança são os
sofrimentos e o injusto desprezo, tal como já tinha desabafado Camões nas
vicissitudes de uma “pobreza avorrecida”846. Os versos criticam a deplorável
ambição que assola a sociedade portuguesa; o segmento “desterro e cerração e ódio
frio / e uma doença de alma” intensifica um grito de revolta, decorrente de uma
dilacerada dor existencial, marcada por um “sombrio / recorte da cidade”.
O sentido figurado, de profunda ingratidão, contrasta com o anseio de um justo
reconhecimento do poeta, contido na oposição “pátrio ninho amado vs longo
mar”847. A intensificação dos efeitos líricos consubstancia-se numa torrencialidade
expressiva, deixando entrever uma complexa elaboração oficinal, visto que o
processo de criação poética radica em motivos de larga ressonância no poeta
quinhentista. A carga metafórica contida na formulação “um estranho pão ali se
come” constitui, em síntese, o desencontro de Camões, vítima de incompreensão,
com uma sociedade em crise. Com efeito, a imagética sugerida afigura-se vinculada

Lusíadas’ e outros estudos camonianos e de poesia peninsular do século XVI, Lisboa, Edições 70, 1980,
p. 74).
844
Luís de Camões, Os Lusíadas, I, 3, loc. cit.
845
Idem, ibidem, V, 18.
846
Idem, ibidem, VIII, 80.
847
Maria Vitalina Leal de Matos, O canto na poesia épica e lírica de Camões. Estudo da isotopia
enunciativa, loc. cit., p. 84.

256
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

a uma ideia de queda, pelo advento do mal e o alastramento da decadência de uma


pátria em risco contínuo de perdição, marcado pela peste, fome, desterro e
corrupção. Nos versos de Graça Moura, num claro registo de denúncia, o autor de
Os Lusíadas é vítima da indiferença dos seus contemporâneos, o que não se
coaduna com o paradigma do herói renascentista848. Lisboa, “cidade no vazio”,
símbolo de catástrofe e decadência, condena o poeta ao horror do esquecimento e
sujeita-o à miserável condição de prisioneiro na cidade parada e morta849. Num
tempo de acentuada crise cultural e espiritual, a capital portuguesa desenha matizes
diametralmente opostos: um passado glorioso dá lugar a um presente sombrio. Este
processo, sobretudo de decadência moral, desemboca numa funesta idade de ferro,
adquirindo a escrita poética, então, tonalidades elegíacas, representação que nada
possui de sentimentos idílicos. O regresso, metáfora universal da ausência que
irradia uma significativa riqueza simbólica, por múltiplas razões – onde se inclui a
indiferença dos seus contemporâneos – sugere o padecimento do poeta face à
pátria.
Esta acepção, num determinado momento trágico, que se abate sobre Camões,
atinge particularmente Portugal e os portugueses850, como testemunha Teixeira de
Pascoaes:

“Compreende-se o doloroso espanto de Poeta ao desembarcar na Ribeira. Diante dele erguia-se


a sombra da pátria de olhos fechados – morta! Ei-lo divagando entre fantasmas, pelas ruas da
cidade, verdes da primavera e do abandono…”851

848
Cf. Aníbal Pinto de Castro, “O relato do naufrágio do galeão grande S. João e o texto d’Os Lusíadas”, in
José Augusto Cardoso Bernardes (org.), Luiz Vaz de Camões revisitado, loc. cit., p. 28.
849
Esta imagem de estranheza e desconforto que Lisboa provoca é recorrente nas letras portuguesas, como,
entre outros, mostra Cesário Verde. Num curioso artigo, David Mourão-Ferreira refere que O sentimento
dum Ocidental, poema editado numa folha comemorativa dedicada a Camões num jornal portuense, apenas
lhe consagra duas referências. No entanto, o autor de A débil, numa carta dirigida ao organizador dessa
publicação, recorda humildemente o seguinte: “Não poderia eu, por falta de aptidão, dedicar um trabalho
artístico especial a Luís de Camões; mas julgo que fiz notar menos mal o estado presente desta grande
Lisboa, que em relação ao seu glorioso passado, parece um cadáver de cidade”. (Apud David Mourão-
-Ferreira, “Cesário e Camões. Uma leitura complementar de O sentimento dum ocidental”, in Colóquio-
-Letras, nº 135-136, 1995, p. 83).
850
Carlos Reis, “Intertextualidade e ideologia na imagem romântica de Camões”, in Construção de leitura.
Ensaios de metodologia e crítica literária, Coimbra, Instituto Nacional de Investigação Científica, 1982,
p. 173.
851
Teixeira de Pascoaes, Os poetas lusíadas, Lisboa, Ed. Assírio & Alvim, 1987, pp. 88-89. Também
Teófilo de Braga se refere à peste que fustigava Lisboa, quando Camões regressou ao reino, e descreve um
cenário idêntico ao que é sugerido pelos versos de Graça Moura (Cf. Teófilo de Braga, Camões: época e
vida, Porto, Ed. Chardron, 1907, pp. 699 sqq).

257
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

A imagética do nostos ou dor de regresso, cujo paradigma é a figura de


Ulisses852, acentua a excepcional figura de um ser injustiçado e desprezado, topos
que se pode rastrear na obra de poetas como Jorge de Sena ou Sophia de Mello
Breyner853. A forte relação afectiva do poeta quinhentista com a terra natal
contrasta com a indiferença do seu povo, o que constituiu um ponto de partida para
a glorificação do herói romântico, segundo o modelo consagrado em Camões de
Almeida Garrett, como conclui Óscar Lopes854. Na verdade, a calamidade da
doença que fustiga Lisboa traduz a ausência de valores ético-morais dos seus
contemporâneos, conferindo uma premonição de um destino nacional trágico. Esta
visão tem paralelo, como é sabido, no excurso dos derradeiros versos de Os
Lusíadas:

“Nô mais, Musa, nô mais, que a lira tenho


Destemperada e a voz enrouquecida,
E não do canto, mas de ver que venho
Cantar a gente surda e endurecida.
O favor com que mais se acende o engenho
Não no dá a pátria, não, que está metida
No gosto da cobiça e na rudeza
Dũa austera, apagada e vil tristeza”.855

Numa linguagem repleta de sentido, o poeta apresenta, em clave pessimista, um


determinado momento da história de que faz parte; “a gente surda e endurecida”
não merece o poeta que a cantou, bem como este não descura a desoladora

852
Maria Helena Rocha Pereira, Estudos de História da Cultura Clássica-Cultura Grega, Lisboa, Fundação
Calouste Gulbenkian, 92003, p. 73.
853
Esta “consciência amarga do desprezo alheio”, expressão de Jorge de Sena (Cf. Poesia II, Lisboa, Ed.70,
1988, p. 71), esboça um tópico frequente nos poetas de Novecentos acerca da indiferença a que a poesia e
Camões foram votados. A propósito, vejam-se os seguintes textos de Jorge de Sena: Camões na ilha de
Moçambique e Camões dirige-se aos seus contemporâneos, talvez o seu mais conhecido poema; de Sophia
de Mello Breyner destacam-se Camões e a tença e Gruta de Camões. Sobre estes dois autores, cf. José
Augusto Seabra “Camões e Jorge de Sena”, in Nicolás Extremera Tapia e Manuel Correia Fernandez (org.),
Homenaje a Camoens, Granada, Universidad de Granada, 1980, pp 387-395, (Jorge Fazenda Lourenço,
“Camões em Jorge de Sena (algumas linhas)”, in Revista Relâmpago, nº 20, Lisboa, Fundação Luís Miguel
Nava, 2007, p. 23-34, Virgínia Boechat “Aquele que recebeu em paga: acerca de um Camões no poema de
Sophia”, in Abril. Revista do Núcleo de Estudos de Literatura Portuguesa e Africana da UFF, vol. 3, Abril
de 2010, pp. 105-115 e Isabel Almeida, “Se nenhum amor pode ser perdido. Sophia e Camões”, in “Se
nenhum amor pode ser perdido. Sophia e Camões”, in Maria Andresen Sousa Tavares (org.), Sophia de
Mello Breyner Andresen. Actas do Colóquio Internacional, loc. cit., pp. 252-262.
854
Óscar Lopes, “Um pacto de leitura”, in Revista Oceanos, Agora, peregrino vago e errante, nº 23,
Julho/Setembro, loc. cit., p. 19.
855
Luís de Camões, Os Lusíadas, X, 145. Sobre a perífrase “venho cantar”, Prado Coelho tem uma
interessante leitura: o amor à pátria de Camões intensifica-se pela distância, pelo que “a alegria do regresso é
muito maior na antevisão do que na realidade” (Cf. Jacinto Prado Coelho, Camões e Pessoa. Poetas da
utopia, loc. cit., p. 103).

258
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

realidade em que “está metida” a pátria, numa “austera apagada e vil tristeza”.
Graça Moura comenta este passo de modo sui generis em Os Lusíadas para gente
jovem, através do diálogo entabulado entre versos da sua autoria e um célebre passo
do epos, em oitava rima e métrica decassilábica de matriz camoniana:

“Quase a chegar ao fim, é o momento


De Camões se queixar, e lamentando
Viver num tempo triste e tão cinzento,
E o jovem rei depois aconselhando,
Passa a expor um claro pensamento
Sobre como há-de ele ir governando
Para tornar o povo mais feliz.
Ora oiçamos então o que ele diz:

Não mais, Musa, não mais, que a lira tenho


Destemperada e a voz enrouquecida.”856

Acentue-se que não é do canto o desencanto, mas da gente nele cantada, que
afinal não estará à altura de tal sublimidade, o que contradiz o postulado da
invocação inicial, em que o poeta suplica às Tágides: “Dai-me igual canto aos
feitos da famosa gente vossa”857. O designado plano do poeta, em que se depara o
sujeito de enunciação a falar de si próprio, bem como das concepções cívicas,
axiológicas e estéticas que o norteiam – por vezes eivado de certa severidade
judicativa, outras vezes entregue à lamentação mais fatalista – surge praticamente
só na segunda metade do poema, se excluirmos a proposição, a invocação e a
dedicatória, que antecedem a narração, iniciada na estância 19 do Canto I. Isto
significa que as experiências deceptivas de Camões, testemunho de uma invulgar
modernidade, o terão conduzido gradualmente a uma crise de epopeia, que vão
corroer o intuito épico de glorificação.
A clarividência enunciada, atravessada por uma melancolia devastadora de uma
voz repassada de dor, não hesita em invetivar os sinuosos caminhos de Portugal 858.

856
Vasco Graça Moura, Os Lusíadas para gente jovem, loc. cit., p.146.
857
Luís de Camões, Os Lusíadas, I, 5, loc. cit.
858
Camões – segundo alguns camonistas, entre os quais José Maria Rodrigues – compôs o seu poema nos
dois primeiros decénios da segunda metade do século XVI, que corresponderão sensivelmente aos anos da
sua estadia no Oriente, longa e amarga experiência humana, que progressivamente o levará à lúcida
consciência do desconcerto do mundo, bem como motivará uma certa ambiguidade evolutiva do projecto
épico. Com efeito, a partir do final do Canto V (92-100), quando reflecte sobre o topos clássico das armas e
das letras, canta a supremacia dos valores culturais sobre os guerreiros, ao invés do que os portugueses afinal
testemunhavam. Derrogando os cânones da epopeia, poeta imiscui-se, com certa regularidade, em
determinados momentos da enunciação, com o fito de proferir juízos de valor cada vez mais críticos e

259
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

Na dialéctica entre o poeta que escreve e o homem amargurado perante uma


vivência quotidiana desenha-se o drama final de uma crise decepcionante, em
contraste com o orgulho inaugural cantado na epopeia através do passo lapidar “por
mares nunca dantes navegados”.859
Depois de desbravar os mares ignotos e de descobrir novas terras, Portugal volta
a fechar-se, em expressão magoada, numa “apagada e vil tristeza”. Nesta sincera
evocação de Camões, o final do poema de Graça Moura desenha uma espiral que
entretece deliberadamente inúmeras marcas imagéticas e simbólicas ligadas ao
autor de Os Lusíadas, uma vez que a perspectiva meditativa, a um tempo, abre e
encerra uma determinada filiação estética do eu lírico:

“foi desse pão que incerta vez provei


num areal de goa, ao ler as dez
canções camonianas, mas não sei
já distinguir os versos das marés,
vaivéns do coração e mar ao rés
do silêncio das conchas que escutei.
não perguntes, canção, porque cantei.” (PR1, 515)

Como se lê, o epílogo do extenso poema reveste-se de particular importância,


visto que oferece um carácter conclusivo norteado pelo tributo prestado ao autor da
Rimas; o “areal de Goa”, referente enunciado já no verso inaugural do poema,
permite uma interpretação peculiar do Épico, ancorada na metáfora da ressonância
do “silêncio das conchas que escutei”, eco da memória e de sentimentos suscitados
por mistérios quase insondáveis, transmite um halo de incompletude e inquietação
existencial que só a poesia pode redimir. O distanciamento lúdico e o recurso à
vivência de lugares transformam os versos de Graça Moura em privilegiada matéria
celebrativa, o que faz da sua poesia um singular exercício de cultura. Por outro
lado, o passo “o pão que incerta vez provei” expressa a comunhão da escrita e o
fascínio pela poesia camoniana, na aproximação particularmente visível nos versos
da Canção X: “as águas que então bebo, e o pão que como / lágrimas tristes são”860.
A posição estratégica do verso final, inserida no estilo conclusivo próprio do
commiato das canções, assume uma posição indagadora idêntica às formulações

contrastantes entre o ideal de heroísmo, bem como a excelência do seu canto e a surdez dos seus
contemporâneos.
859
Luís de Camões, Os Lusíadas, I, loc. cit.
860
Idem, “Canção X”, in Rimas, loc. cit., p. 228.

260
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

camonianas, pela enunciação interpelativa do próprio texto: “não perguntes,


canção, porque cantei”861. Na verdade, este jogo dialógico permanentemente
procurado evidencia que o homem, ser precário e finito, apenas se perpetua pelo
sortilégio que emana da poesia, fazendo de Camões o supremo exemplo das letras
nacionais.
Presente e passado vivem da palavra, que encerra o itinerário de todas as viagens
de Camões, constituindo um texto axial pela prevalência do confuso desgosto
existencial sob a forma do taedium uitae. Com efeito, é o sentido oposto “de onde a
terra acaba e o mar começa”862, cantado pelo Gama, visto que os versos se
inscrevem na relação entre o poeta errante e a sua pátria863. O diálogo convocado
pela poesia de Graça Moura revela, com efeito, um apreço desmedido pelo
Príncipe dos poetas, como confessa: “um verso de Camões / é a coisa mais bela e
difícil do mundo” (PR1, 438), o que abre múltiplos horizontes de reflexão sobre a
interminável demanda que a condição humana, o mundo e a vida encerram.
Assim, marco fundamental da relação entre os dois poetas, o regresso de
Camões, notável fenómeno de receção criativa, trilha indubitavelmente caminhos
de originalidade, uma vez que se converte em elemento estruturante presente já na
obra camoniana. Esta “dor do regresso impossível” (PR2, 371), cantada
conscientemente por vgm, revela esse itinerário de absoluto desengano:

“que de nada precisas. mas se pudesses inda


desejar tanto uma nossa claridade acerba
para falar de amor com as palavras
que em escura prisão nos deixam livres
se não houvesse cães e invertidos
a espiar-te os gestos e contrários
não corressem os ventos que alguns chamam
da história.” (PR1, 214)

861
Nesta sequência, vejam-se, por exemplo, as seguintes invocações camonianas similares: Canção, neste
desterro viverás (Canção VI) e No mais, canção, no mais (Canção X). Para Vitalina Leal de Matos, a
reflexão metapoética constitui um claro exemplo da modernidade do autor quinhentista, correlativamente
acrescente-se que este processo, como se observa, se afigura também uma marca distintiva do universo
poético de Graça Moura (Cf. Maria Vitalina Leal de Matos, O canto na poesia épica e lírica de Camões.
Estudos de isotopia enunciativa, loc. cit., pp. 97-131).
862
Luís de Camões, Os Lusíadas, III, 20, loc. cit.
863
A propósito do episódio do Adamastor, Pinto de Castro aponta as três intenções que tão intimamente se
conjugam em Os Lusíadas: a ousadia épica, o sofrimento trágico e o desengano lírico. Esta acepção aplica-
-se indubitavelmente aos versos de Graça Moura, que tão bem conhece este processo metamórfico de
Camões (Cf. Aníbal Pinto de Castro, “O episódio do Adamastor: seu lugar e significação na estrutura de Os
Lusíadas”, in Páginas de um honesto estudo camoniano, loc.cit., pp. 175-190).

261
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

Graça Moura, profundo conhecedor da cultura de Quinhentos, na metáfora dos


“ventos que alguns chamam / da história” perspectiva, num momento trágico, a
vida e os versos de Camões, “para falar do amor com as palavras”, onde a ausência
de sinais de pontuação e o recurso ao enjambement marcam uma cadência rápida a
sugerir um grito de revolta, que nada tem de épico864. Os versos intimistas, sem
perder um ápice de tensão, também fazem sentir ressonâncias camonianas: o
segmento “escura prisão” relembra o soneto Em prisões baixas fui um tempo
atado865. Esta visão pessimista de infortúnio e degradação humana, tão cara ao
desencanto maneirista866, como o seria, no século seguinte, à mundividência
barroca867 decorre, em boa parte, da mesquinhez dos contemporâneos do autor de
Os Lusíadas, “os cães invertidos / a espiar-te os gestos”, arrastando consigo uma
pesada herança feita de medos e fantasmas, que assombram a amarga existência do
poeta.
O infortúnio de um tempo de dor e perseguição ressoa também no seguinte
passo, paradigma de uma poesia de lúcida consciência:

“disto se faz o mundo: do sono e de crescermos


no combate co anjo, dos erros e volúpias
e das nossas verdades mais íntimas, aquelas
sem as quais não se espera uma justiça agreste,
e do ranger de dentes, da experiência de darmos
para além do coração, das culpas, das ofensas,
para além do razoável, do que é correntemente
havido por humano, da ternura calcada”. (PR1, 214-215)

Os versos transcritos sugerem uma perspectiva profundamente desalentada de


um colectivo humano, fornecida pelas notações de degradação, miséria e desordem
moral, onde não reluz qualquer sinal de esperança868. O determinante possessivo no

864
Esta acepção dissonante compagina-se com o pensamento camoniano, como refere Vitalina Leal de
Matos em relação a Os Lusíadas: “Euforia, orgulho, confiança – tudo isto constitui o tecido mais aparente e
a principal dimensão poema. Mas o texto é complexo e, por vezes, contraditório. Em certos momentos exibe
uma face menos gloriosa, aquela em que emergem as críticas, as dúvidas, o sentimento de crise” (Cf. Maria
Vitalina Leal de Matos, Tópicos para a leitura de Os Lusíadas, Lisboa, Ed. Verbo, 2003, p. 21).
865
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 159.
866
Cf. Claude-Gilbert Dubois, Le Maniérisme, Paris, P.U.F., 1979, pp. 200 sqq.
867
Cf. José Antonio Maravall, La cultura del Barroco, Barcelona, Editorial Ariel, 51990.
868
Este passo justifica indubitavelmente o seguinte pensamento de Sophia de Mello Breyner: “Camões
assume a pátria sua e nossa, duplamente. Assume-a como palavra e assume-a como História” (Cf. Sophia de
Mello Breyner Andresen, “Luís de Camões-ensombramentos e descobrimentos”, in Cadernos de Literatura,
nº 5, Coimbra, Centro de Literatura Portuguesa da Universidade, 1980, p. 23).

262
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

segmento “nossas verdades” comprova a subjectividade do eu lírico em relação ao


seu país; não obstante, ao mesmo tempo, alarga os horizontes, quer temporais quer
espaciais, visto que os referentes se universalizam dando lugar ao mundo. Não é,
pois, desprovido de intenção um sentido maneirista do desengano, com a sua
desencantada visão da realidade e da razão humana em crise; em clima de intensa
melancolia numa “paisagem de ruínas”869, o leitor presencia um espaço através da
percepção perturbada do sujeito poético, abalado por indisfarçáveis sentimentos de
perda e de decadência. Os efeitos de dissonância, na verdade, colidem com um
cenário de triunfo heróico, devido ao predomínio dos sentidos negativos “das
culpas, das ofensas”. A explicação existencial busca uma atitude ética num
preocupante mundo injusto e corrupto, “uma justiça agreste” e “para além do
razoável”, onde a linha enunciativa se desenha num desabafo confessional,
potenciada pela expressão conclusiva “disto se faz o mundo” ou pela construção
anafórica “para além do”, que ombreia com o de Camões, sobretudo nas estâncias
finais de Os Lusíadas, “momento climático de desalento e desilusão”, no dizer de
Cleonice Berardinelli870.
Num cenário especular de confessionalidade, em registo agónico, o mal
circundante perturba uma ordem harmoniosa do mundo, sob o signo da indiferença
colectiva e de uma lacerante tristeza. Esta perspectiva marca indubitavelmente o
percurso poético de Graça Moura onde a memória das palavras é realizada nas
tensões entre os sinais que actualizam o passado e os signos que organizam o
presente.

3.3. O desencanto da chegada: desejo e ausência

Camões passa inúmeras atribulações longe da sua pátria, como o poeta diz de si
mesmo, de modo desolado, em Os Lusíadas:
“Olhai que há tanto tempo que, cantando
O vosso Tejo e os vossos Lusitanos,
A fortuna me traz peregrinando,
Novos trabalhos vendo, e novos danos”.871

869
Claude-Gilbert Dubois, Le Maniérisme, loc. cit., p. 202.
870
Cleonice Berardinelli, Estudos camonianos, loc. cit., p. 40.
871
Luís de Camões, Os Lusíadas, VII, 79, loc. cit.

263
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

Como muitos outros, os versos transcritos contrariam, como notou Cardoso


Bernardes, o cenário de triunfante serenidade, trave-mestra de todo o epos
camoniano, uma vez que se observa uma marcante alteração de tom, com evidentes
implicações na própria enunciação872. A saudade do regresso ao cais873, que o
destino “traz peregrinando”, leva o sujeito de enunciação a interrogar-se sobre a sua
condição de ser humano; a voz elegíaca do poeta contemporâneo vai também nesse
sentido, gerando um sentido decepcionante de dorido afastamento e finitude,
próximo de Camões, convocado neste passo:

“nunca
o nó duma vida se desata,
nunca altera a matéria mísera,
frágil, da existência”. (PR1, 240)

O passo transcrito de acentuado vínculo emocional oferece uma interpretação


em torno da precariedade do homem: “matéria mísera, / frágil, da existência”. O
exemplo dessa inexorável instabilidade numa época de “razão oscilante”, no dizer
de Eduardo Lourenço874, coloca a tónica na ausência:

“as pessoas sabem que vão ficar com a máquina assassina da ausência
e aceitam isso e é dela que vão surgir entrecortando-se as
fantásticas pinturas de alegria que fala o camões, sim,
mas que as vão esfarrapando sombriamente na memória destroçada”. (PR2, 244-245)

Os versos colhem nas motivações duvidosas da partida as razões de um regresso


inglório, claramente desprovida dos predicativos heróicos consagrados pelos
códigos épicos875. A viagem é indissociável do destino do poeta, o regresso a
Lisboa é precisamente uma das simbólicas referências que tem inspirado as actuais
letras portuguesas: depois do passado marítimo e colonial, Portugal interroga-se

872
José Augusto Cardoso Bernardes, “O ‘nunca ouvido canto’ de Camões e as estâncias finais d’Os
Lusíadas”, in Seabra Pereira e Manuel Ferro (coord.), Actas da VI Reunião Internacional de Camonistas,
loc. cit., pp. 589-590.
873
Registe-se que o rio Tejo constitui uma metonímia da saudade da pátria, invocada nas estrofes iniciais de
Camões de Almeida Garrett: “peito malsofrido / à foz do Tejo” (Cf. Almeida Garrett, Camões, apresentação,
notas e sugestões para análise literária de Teresa Sousa de Almeida, Lisboa, Ed. Comunicação, 1986, p. 56).
874
Eduardo Lourenço, “Camões e o tempo ou a razão oscilante”, in Poesia e metafísica, Lisboa, Ed. Sá da
Costa, 1983, pp. 31-49.
875
Com efeito, o Gama em Os Lusíadas canta o veemente desejo de regresso à pátria, sinónimo do apego
afectivo às suas origens, onde deseja morrer: “Esta é a ditosa pátria minha amada, / A qual se o Céu me dá
que eu sem perigo / Torne, com esta empresa já acabada, / Acabe-se esta luz ali comigo” (Cf. Luís de
Camões, Os Lusíadas, III, 21, loc. cit.).

264
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

sobre o seu destino. Como se observa, este texto demonstra mais uma vez a
existência de uma sugestiva matriz camoniana nos versos de vgm, visto que
entrelaça o canto poético com a figura tutelar do Épico. Sintetiza-se, assim, uma
meditação acerca do comportamento do homem, afligido por contrariedades e
infortúnios, em demanda da superação do sofrimento, considerando-se, assim,
natural e inevitável que o homem, perante a dor, experimente uma viva dilaceração.
Esta invulgar capacidade enunciativa, que fornece ao texto uma coesão temática
e estilística, não se dissocia, num registo de modernidade, de uma deliberada
reflexibilidade, como o poeta contemporâneo confessa “sou / a obscura matéria de
uma ausência” (PR2, 520), configurando uma cartografia de significativa
singularidade na poesia portuguesa contemporânea. Neste contexto, através da
explícita mediação camoniana, vgm decalca um verso da Canção X:

“lágrimas tristes são, que eu nunca domo


senão com fabricar na fantasia
fantásticas pinturas de alegria”.876

O explicit demonstra sombriamente, a um tempo, o sentido elegíaco e antiépico,


marca de uma aguda consciência moderna, que atravessa, por vezes, os versos
camonianos, onde a única réstea de alento decorre de uma mundividência assente
em “fantásticas pinturas de alegria”; o sonho e a ilusão desvanecem-se, pois,
perante a realidade. A perspectiva grandiosa cantada em Os Lusíadas ensombra-se
devido ao entretecer dos ideais heróicos e do desânimo maneirista, no conflito
dilacerante entre a transcendência contida em “mais do que prometia a força
humana” e a “vil tristeza” do momento presente e da fragilidade humana. Esta
atitude lembra, no dizer de Maria do Céu Fraga, “o mesmo choque que se encontra
na Lírica entre o mundo ideal cantado por Camões e o universo imperfeito e injusto
que o exclui da harmonia, perseguindo-o malevolamente”.877
Nesta recriação intertextual, feita de escolhas electivas, Graça Moura volta ao
passado através da recordação:

“nem as lembranças
a que camões chamaria doces e da passada glória

876
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 228.
877
Maria do Céu Fraga, “O tempo e o espaço: a errância na lírica camoniana”, in op. cit., p. 57.

265
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

a que nós vamos arquivando sob a ameaça das chuvas

enquanto as coisas se modificam por imperfectíveis variações”. (PR2, 539)

Como se observa, o poeta incrusta passos líricos do autor das Rhythmas, onde o
sentimento do doloroso vazio de desengano plasma, assim, o ethos de uma poesia
marcadamente disfórica878; os condicionalismos políticos subjacentes à produção
do autor desenham uma atmosfera opressiva e doentia de pátria malograda, que se
filia no seguinte soneto camoniano:

“Doces lembranças da passada glória,


que me tirou Fortuna roubadora […]

Vivo em lembranças, mouro d’esquecido,


de quem sempre devera ser lembrado,
se lhe lembrara estado tão contente”. 879

Os versos harmonizam-se nas “doces lembranças” da glória; no entanto, o


momento presente leva o sujeito de enunciação a viver da recordação”, visto que é
ignorado por aqueles que o deviam lembrar: “Vivo em lembranças, mouro de
esquecido, / de quem sempre devera ser lembrado”. O poeta sulcou um Tejo repleto
de memórias, no entanto confronta-se com uma realidade que não esperava; a
indagação veiculada transmite, deste modo, um sentimento dilacerante marcado
pelo absurdo e pelo caos, não sendo possível rasurar as sombras de um tempo que
reclama um futuro luminoso.
Os Lusíadas, opus magnum da portugalidade, configura-se como um pilar maior
da construção da identidade nacional; esse traço comum reflecte-se tanto pela força
do canto, como pelo profundo desengano que deixa transparecer por uma pátria,
cuja história é motivo de ressentimento no tempo presente. Deste modo, a figura de
Camões, bem como a sua obra, hão-de servir para uma constante questionação do
destino de Portugal poucos anos após a sua morte.880

878
Uma visão radicalmente sombria das relações sociais já integra a poesia de Sá de Miranda, como cantou
na carta a el-rei D. João III: “Onde ha homens ha cobiça / Ca e la tudo ela empeca / Se a santa igual justiça /
Não corta ou não desempeca / Quanto a malícia enliça (Cf. Sá de Miranda, Poesias, Ed. de Carolina
Michaelis de Vasconcelos, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1989, p. 88).
879
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 157.
880
Nesta óptica, Eduardo Lourenço destaca a excepcionalidade do poeta: “A identificação de Portugal com
Camões, por obra conjugada dos acontecimentos históricos e da revolução cultural romântica, é um caso
único no quadro da cultura europeia” (Cf. Eduardo Lourenço, “Romantismo, Camões e saudade”, in
Portugal como destino seguido de Mitologia da saudade, loc. cit., p. 146). Embora o auge dessa afinidade

266
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

Neste sentido, no dizer de Graça Moura, o esforço de superação da ausência


nunca foi cabalmente resolvido pelo Épico, uma vez que regressa amargurado e
desiludido e encontra a capital do império respirando pestilência, morte e
degradação moral:

“tétanos, podridões, desastres, tudo,


todas as mortes e incestos, tudo
o que foi vão e vil, a urina e esta
pobre matéria de alegria póstuma,
os lugares da loucura e da miséria,
os retratos torcidos, tudo visto
contado e dividido, já previsto
por infames motivos”. (PR1, 138)

O destino do vate joga-se agora numa dimensão que já não é marítima. Com
efeito, é dominado pelo grotesco dos “retratos retorcidos” e de onde sobressai uma
imagem nacional de decrepitude em “lugares da loucura e da miséria”881. O vínculo
do sujeito poético à pátria institui-se como motivo central e congregador, cenário
onde impera a ganância e a ambição em detrimento da dedicação e da nobreza882.
Os versos abrem-se, pois, sob o signo do desencanto em diferentes modulações,
constituindo um significativo vector axial. A imagem épica de Portugal dissipa-se e
deixa transparecer os contornos trágicos de uma pátria moribunda, despojada da
majestosidade de outrora, a mensagem veiculada assume o reverso desmistificador
das virtudes heróicas das descobertas, denotando uma atitude de desânimo, onde
são eixos nucleares a importância da pátria e das acções humanas883. Os elementos

ocorra no século XIX, remonta já a Seiscentos, quando Portugal se encontrava na dependência da coroa
espanhola, a polémica em torno da perfeição da obra camoniana, obra central do espírito autonomista face ao
domínio vigente, responde simultaneamente a posições ideológicas e a preocupações de natureza estético-
literária. Como observa Fidelino Figueiredo, “Nas horas de crise os portugueses voltam-se para Camões
como uma fonte de renovação estética e de sugestiva força nacionalizadora” (Cf. Fidelino Figueiredo, A
épica portuguesa no século XVI, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1993, p. 21). Sobre o carácter
nacionalista intrínseco à contenda referida, vide José Manuel Ventura, João Soares de Brito. Um crítico
barroco de Camões, loc. cit., pp. 38 sqq.
881
António Quadros neste contexto conclui: “Nos últimos decénios do século XIX e por todo o século XX, a
cultura portuguesa tem sido o teatro, não só de uma luta de conceitos acerca do que é ou deve ser Portugal,
mas também de uma batalha entre juízos de valor quanto à natureza do que fomos como povo histórico e do
que somos, como sociedade, nação e pátria” (Cf. António Quadros, A ideia de Portugal na literatura
portuguesa dos últimos 100 anos, Lisboa, Ed. Fundação Lusíada, 1989, p. 21).
882
Esta atitude contida no trecho de Graça Moura convoca o comportamento social do tempo de Camões,
denunciado pelo poeta de um modo claro, por exemplo, nestes versos: “Quem faz injúria vil e sem razão, /
Com forças e poder em que está posto, / Não vence, que a vitória verdadeira / É saber ter justiça nua e
inteira” (Cf. Luís de Camões, Os Lusíadas, X, 58, loc. cit.).
883
A leitura camoniana de José Saramago em Que farei com este livro? é curiosa, uma vez que Damião de
Góis, personagem da obra, considera que os acrescentos de marcada disforia em Os Lusíadas foram feitos já

267
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

interpretativos “tétanos, podridões, desastres, tudo” destacam um momento


histórico que é o de Camões, tendo este cantado um cenário dominado pela
indiferença, sem razão para qualquer apaziguamento, o que desenha, em cariz
colectivo, o próprio destino nacional884. A posição do poeta altera-se – quase se
inverte – perante o valor do objecto do canto à medida que, por contraste, uma
progressiva auto-consciência do valor lírico se acentua. Grosso modo, quanto mais
o poeta conhece os homens, mais valor confere ao canto, uma vez que a poiesis não
ilumina a polis tanto quanto ele pretenderia. Camões acaba, pois, condenado a um
dissídio solitário – a um tempo, despeitado e orgulhoso –, que é já, de algum modo,
a condição do artista moderno. Assim, consciente da importância dos seus versos,
arvora-se em paradigma do herói completo, à falta de o não encontrar entre os
demais portugueses:

“Nem me falta na vida honesto estudo,


Com longa experiência misturado,
Nem engenho, que aqui vereis presente,
Cousas que juntas se acham raramente”.885

Num halo de mistério, a imagem traçada revela um país desolado que decai, não
permitindo a concretização de uma nova vida886, numa deliberada desconstrução
das glórias da história, marca indelével, no dizer de Paula Arnaut887, do Pós-
-Modernismo. A hostilidade do cenário transcrito e as conotações de sofrimento
que caracterizam Lisboa, são suficientemente claras; a tragédia desencadeia-se
agora sob a forma de doenças, desenganos, crueldades e mortes, arrastando o país

em Lisboa, antes da obra entrar nos prelos, em clara denúncia da decadência nacional: “O que trouxestes da
Índia, Luís Vaz foi a história do antigo Portugal, mais a grande navegação. Tudo isso que acrescentastes são
casos dos nossos dias de agora, deste tempo em que não sabemos para onde Portugal vai”. (Cf. José
Saramago, Que farei com este livro?, Lisboa, Ed. Caminho,1980, p. 92). Sobre este assunto, vide Francisco
Maciel Silveira, “O que farei com este livro? - De Os Lusíadas, segundo Saramago”, in Seabra Pereira e
Manuel Ferro (coord.), Actas da VI Reunião Internacional de Camonistas, loc. cit., p. 444.
884
Aguiar e Silva refere que Camões encontra uma pátria insensível ao seu canto, visto que um “manto de
decadência político-militar, social e económica envolvia melancolicamente Portugal” (Cf. Vítor Manuel
Aguiar e Silva, “Epilegómenos”, in Camões: labirintos e fascínios, loc. cit., p. 236).
885
Luís de Camões, Os Lusíadas, X, 154.
886
Aguiar e Silva assinala a este propósito que “a imaginação e o pensamento utópicos de Camões, porém,
encontram-se em conflito com uma antropologia pessimista e com uma mundividência trágica que estão
expressos em muitos textos da sua lírica. A distopia ameaça assim inelutavelmente a utopia, corroendo a sua
lógica e a sua coerência” (Cf. Vítor Manuel Aguiar e Silva, “Imaginação e pensamento utópicos”, in
Camões: labirintos e fascínios, loc. cit., p. 153).
887
Ana Paula Arnaut, Post-Modernismo no romance português contemporâneo-fios de Ariadne, máscaras
de Proteu, Coimbra, Livraria Almedina, 2002, p. 317.

268
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

para a miséria e a catástrofe. Os males de que enferma a sociedade revelam um


cenário de profunda crise, como observa Pinto de Castro:

“À medida que as luminosas certezas do Renascimento dão lugar, no espírito do Homem


português de Quinhentos, à angústia existencial daquele findar de século tão carregado de dúvidas
e temores, a viagem deixa de ser um mero tópico de celebração de ideias e pensamentos, próprios
ou alheios, para se transformar numa vivência que toca o mais profundo da existência espiritual do
indivíduo ou da sociedade em que ele se integra, e, depois, na expressão simbólica de um percurso
angustiadamente vencido.” 888

Camões cantou como ninguém Portugal e o seu povo em Os Lusíadas, poema


pátrio por excelência, como Graça Moura faz questão de salientar com a inesperada
abreviatura epistolar post-scriptum, que constitui, em final do poema, uma
advertência:
“p.s. - pois o poeta quase disponível
o fez agora mesmo à esferográfica
( ou ainda se ao menos fosse feito à máquina)
a letra dos poetas é incrível
e já o camões morreu por sua pátria.” (PR1, 74)

O eu lírico confessa, em registo metapoético, que acabara de escrever o poema e


conclui que a poesia, “a letra dos poetas” contribui para o enaltecimento de
Portugal, cujo exemplo maior é Camões, o paradigma do poeta genial. Elevado à
condição de figura tutelar – “poeta da pátria e da ausência”, no dizer de Seabra
Pereira889 – encarna um modelo cívico de patriotismo e heroísmo, uma vez que
“camões morreu por sua pátria” 890. Como é sabido, a identificação de Camões com
Portugal deriva das insolúveis questões da sua biografia, despertadas logo após a
sua morte, contribuindo para desenhar uma visão melancólica da vida e da sua
tormentosa infelicidade, que conhece uma significativa expressão no Romantismo
nacional891.

888
Aníbal Pinto de Castro, “Viajar com os poetas portugueses do Renascimento e do Maneirismo", in Ana
Margarida Falcão et alii (org.), op. cit., p. 354.
889
José Carlos Seabra Pereira, “O poeta maldito e os profundos desejos decepados”, in Gomes Leal, A fome
de Camões, Lisboa, Ed. Assírio & Alvim, 1999, p. 9.
890
Este verso, que integra indubitavelmente o imaginário nacional, faz ecoar o final de Camões de Garrett:
“Pátria, ao menos junto morremos…” (Cf. Almeida Garrett, Camões, loc. cit., p. 194).
891
Cf. Ofélia Paiva Monteiro, “Camões no Romantismo”, in Luís de Albuquerque et alii (org.), Actas da III
Reunião Internacional de Camonistas, Coimbra, Universidade de Coimbra, 1987, pp. 119-137; idem,
“Camões e o Romantismo português”, in Vítor Aguiar e Silva (coord.), Dicionário de Luís de Camões, loc.
cit., pp. 176-182.

269
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

No entanto, o verdadeiro e justo reconhecimento não lhe é prestado, perdurando


somente o silêncio e a solidão, como evoca a estigmatização de Camões no incipit
do poema de Graça Moura mudam-se os tempos, mudam-se os lugares, integrado
na coletânea o mês de dezembro e outros poemas:

“transforma-se o infortúnio na coragem


de cor no coração enquanto o corpo
de todo não resguarda os seus lugares
às duras silicoses do silêncio
enquanto dura o martelar dos meses […]

pelo silêncio tornam-se estas feridas


na coragem de suportar os meses
à custa dos lugares do próprio corpo”. (PR1, 128-129)

Com um ritmo próprio e uma pulsão dramática, derivada de um silêncio


ensurdecedor, neste trecho não é difícil perscrutar o rasto de Camões; os versos
revelam, pois, o carácter perturbador da escrita num clima carregado de
instabilidade, “enquanto dura o martelar dos meses”, evidenciando um rumo
colectivo irremediavelmente entrado no ocaso892. A alegria do regresso, é muito
maior na antevisão do que na realidade, o que desenha um nítido contraste entre um
sonho de uma pátria engrandecida e a mesquinhez de uma sociedade sem
valores893; Portugal adquire, pois, foros de perda e desastre de um país adiado e
perdido, como asseverou com acuidade Eduardo Lourenço894. Registe-se que o
arrebatamento lírico verificado no passo transcrito plasma processos compositivos,
focalizados na relação entre função retórica e crise política na epopeia
camoniana895, assunto tratado com particular acuidade por Graça Moura: “Os

892
Celso Lafer destaca o pensamento do poeta quinhentista do seguinte modo: “As contradições do poema
são as contradições do seu século, e desta conclusão podemos inferir a marca da sua universalidade” (Cf.
Celso Lafer, “O problema dos valores n’Os Lusíadas”, in Revista Camoniana, nº 2, São Paulo, 1965,
p. 108).
893
A referência ao declínio nacional atravessa a literatura portuguesa, como se verifica na obra de Camões
ou de Graça Moura. Esta afinidade é explicada por Seabra Pereira do seguinte modo: “Só pode cantar a
decadência quem está convencido de que houve uma grandeza pátria” (Cf. José Carlos Seabra Pereira, "Os
paradoxos da nação percursora”, in José Jorge Letria e António Carvalho (ed.), Actas dos 3ºs Cursos
Internacionais de Verão de Cascais, vol. 4, (Literatura, artes e identidade nacional), Cascais, Ed. Câmara
Municipal de Cascais, 1997, p. 171.
894
Eduardo Lourenço, O labirinto da saudade, loc. cit., pp. 23-66.
895
Sobre esta matéria, Graça Moura salienta: “Na crise nacional e mental que se pressentia no tempo de
Camões, a retórica podia fornecer mecanismos compensatórios e portadores de sentido, como podia
fornecer, do mesmo passo, um conhecimento e um convencimento, uma ordem de valores e uma regra de
acção” (Cf. Vasco Graça Moura, “Universo retórico e crise de valores”, in Luís de Camões. Alguns desafios,
loc. cit., p.116)

270
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

Lusíadas eram supostos dinamizar uma consciência colectiva cujo nervo


esmorecia, estabelecer uma identidade que, por soçobrar no real, passara já a ser
retórica”896. Com efeito, numa época de ansiedade e incerteza em que a realidade
tende a fragmentar-se em múltiplas realidades, o manancial de procedimentos
portadores de sentidos, hauridos na retórica, tem a finalidade primeira de delectare,
no dizer de Aníbal Pinto de Castro897.
É neste retrato impiedoso – “hora depressiva e amarga”, sublinha Hernâni
Cidade898 –, que, a partir da epígrafe, sem indicação do título da fonte, “Fico
fazendo oras para meu degredo; que mais áspero pode ter por pátria quem na pátria
vive em degredo”, da autoria de D. Francisco Manuel de Melo, que, com agudo
sentido crítico, Graça Moura sugere implicitamente o sentido da pátria de Camões
com Portugal nos derradeiros anos vividos no seu “pátrio ninho amado”899:

“quem mais áspero amor ainda teve


da pátria quando nela escuro vive
degradado degredo injusto tempo
quem dela a si regressa e não encontra
outra certeza que não sejam muros
ar cinzento malícia escuridão
vil apagada escura escuridão
de quem demais em frente aos olhos teve
os desmedidos demorados muros
e dentro deles sem esperanças vive;
o que merece cada um encontra
mas merecerá durar este seu tempo?

e quanto tempo ainda quanto tempo


este de todos? oca escuridão
de iníquas noites acossadas contra
o corpo desta pátria que já teve
mas já não tem o solo em que se vive
porque só tem a sombra destes muros
anel de morte sobem nela os muros
onde se afasta rigoroso o tempo
quem de amargura dentro deles vive
quando a percorre pela escuridão
inda se lembra, ouviu, sabe que teve
mas indo procurá-la a não encontra […]

quem vive a sua morte e quando a encontra

896
Idem, ibidem, p. 119.
897
Aníbal Pinto de Castro, Retórica e Teorização Literária em Portugal. Do Humanismo ao Neoclassicismo,
loc. cit., p. 60.
898
Hernâni Cidade, Luís de Camões. O épico, Lisboa, Ed. Presença, 31985, p.19.
899
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 227.

271
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

(degredo, muros, silêncios só quer teve)


na escuridão vazia vai a tempo?” (PR1, 130)

Pela importância de que se reveste, este texto, transcrito quase na íntegra,


desmistifica o destino de poeta, “intérprete da portugalidade”900, bem como uma
forma peculiar de reescrever e repensar um momento da história nacional,
perspectivando um presente carregado de desânimo e desgoverno901. Por outro
lado, esta imagem, pelas aproximações sugeridas, é consentânea com aquela que o
imaginário romântico valorizou em torno da biografia de Camões: o poeta maldito
e incompreendido, perseguido pelo infortúnio e ignorado pelo seu tempo902. Feita
de revolta contra a tirania, a representação poética de uma pátria ingrata afigura-se
um momento de denúncia onde é possível descortinar um espaço onde os homens
são considerados exilados903. A reiteração do lexema “muros” sugere o poeta
enclausurado, não existindo lugar para qualquer tipo de liberdade reconfortante. O
leitor presencia, pois, uma paisagem perturbada pela percepção conturbada do
sujeito poético, abalado por indisfarçáveis sentimentos de perda e de decadência904.
O imaginário invocado recorda, por exemplo, os lamentos de Camões, quando
canta “trabalhos tão usados me inventaram / com que em tão duro estado me

900
Jacinto Prado Coelho, “Camões hoje”, in Camões e Fernando Pessoa. Poetas da utopia, loc. cit., p. 27.
901
Nesta perspectiva, Pires de Lima destaca: “Interrogar o ‘ser’ da pátria parece ser, enfim, um traço comum
às narrativas de destino pátrio, que dominam um filão significativo da ficção portuguesa actual e de algum
do nosso ensaísmo, contribuindo ambos para continuar a inventar uma imagem de Portugal ou para a
reinventar, em horas de procura de novos rumos, de outros destinos que todavia não deixam de integrar o
passado mítico”. Vide Isabel Pires de Lima, “Em busca de uma nova pátria: o romance de Portugal e de
Angola após a descolonização”, in http://www.revistas.usp.br/viaatlantica/article/view/48677/52748
(consultado em 23 Dezembro 2015).
902
Jacinto Prado Coelho ao descrever a vida malograda de Camões, sujeito às mais variadas provações,
identifica o “topos do poeta maldito” (Cf. Jacinto do Prado Coelho, “Camões: um lírico do transcendente”,
in A letra e o leitor, Porto, Ed. Lello & Irmão, 31996, p. 21). Sob este prisma, João Pedro George, (O que é
um escritor maldito?, Lisboa, Ed. Verbo, 2013, p. 11) destaca: “O escritor maldito é o centro de gravidade
da literatura ocidental moderna. Constitui a espinha dorsal do escritor autónomo, independente e original
que defende a sua criação até às últimas consequências, sem nunca fazer concessões ou trair a sua
consciência artística, não raro com prejuízo da própria vida, ou resvalando nos abismos do infortúnio e do
sofrimento, ou entregando-se a todos os excessos e autodestruindo-se. Incompreendido no seu tempo mas
imortalizado pelo futuro, o maldito confunde-se com a própria literatura, é a representação do trágico destino
do escritor genial e da sua ressurreição”.
903
Graça Moura sintetiza cabalmente esta acepção: “Os Lusíadas não cantam apenas os feitos heróicos,
verberam também a degradação dos valores e a perversão dos costumes, a cobiça, a ambição, a cupidez, o
abandono do hinterland e das questões europeias” (Cf. Vasco Graça Moura, “Os Lusíadas como epopeia
global”, in Revista Persona, nº 5, 2003, p. 52).
904
Esta desencantada visão da realidade e da razão humana em crise, em clima de intensa melancolia e numa
paisagem de ruínas, é uma característica indelével do Maneirismo, segundo Claude-Gilbert Dubois (Le
Maniérisme, loc. cit., p. 202).

272
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

deitaram”905, dando conta de uma pátria, que, ao invés, de acolhedora e grata por
todos aqueles que o poeta celebrava em verso o poeta, recusa o claro
reconhecimento o valor do poeta906. A atitude camoniana revela, pois, a
consciência de uma degeneração cívica denunciada ao longo da epopeia e reforçada
no final da obra907. Nesta óptica, Graça Moura, tendo em conta o paradigma da
realidade amarga vivida por Camões e D. Francisco Manuel de Melo, filia-se numa
genealogia de escritores, que, no dizer de Eduardo Lourenço, “a partir de Garrett e
Herculano, Portugal, enquanto realidade histórico-social, constituirá o núcleo de
uma pulsão literária dominante”908.
Num momento de acentuada crise moral, a idealizada pátria ganha matizes
diametralmente opostos, tornando-se sombria e decepcionante, bem como funciona
como uma ampla metonímia de um domicílio que se procura em vão 909. No
denunciado processo de decadência, a escrita poética adquire tonalidades elegíacas,
chegando o poeta a confessar: “o corpo desta pátria que já teve / mas já não tem o

905
Luís de Camões, Os Lusíadas, VII, 81, loc. cit.
906
Vitalina Leal de Matos vê nesta progressiva intromissão do sujeito-poeta na epopeia uma implicação
pessoal do autor real que tende a afastar-se do cânone genológico, sofrendo a contaminação da lírica, modo,
aliás, mais consentâneo com a atmosfera estética e a mundividência maneirista que Camões viveu: “O autor
está cada vez mais implicado, envolvido e confundido com o poema: dir-se-ia que uma inspiração lírica
domina o termo da epopeia” (Maria Vitalina Leal de Matos, “Evolução do projecto da epopeia ao longo
d’Os Lusíadas”, in Camões: sentido e desconcerto, loc. cit., p. 193).
907
Esta linha de pensamento presente em Graça Moura deriva de uma tradição que remonta
fundamentalmente ao século XIX, como frisou Aguiar e Silva: “Desde Camões ou, melhor, desde Camões
lido pelo Romantismo, a ideia de Portugal, da sua identidade e do seu destino, torna-se um tema obsidiante
da literatura portuguesa, modulado em géneros e em registos múltiplos, que vão da elegia ao canto épico, da
farsa à tragédia, do romance à crónica. A visão - ou a antevisão ou o fantasma - da decadência, do desastre e
do soçobro de Portugal, é uma chaga sempre aberta no pensamento, na sensibilidade e no imaginário dos
maiores poetas, ficcionistas e pensadores portugueses desde o Romantismo” (Cf. Vítor Aguiar e Silva, “A
outorga do Prémio Morgado de Mateus a Vasco Graça Moura”, in Revista Brotéria, vol. 180, Fevereiro
2015, p. 176).
908
Cf. Eduardo Lourenço, O labirinto da saudade, loc. cit., p. 82. Ainda nesta linha de pensamento, O
ensaísta destaca “O projecto novo de problematizar a relação do escritor, ou mais genericamente, de cada
consciência individual, com a realidade específica e autónoma que é Portugal” (Cf. Idem, ibidem, p. 81).
909
Camões fora adquirindo consciência de que o seu tempo, com todos os avatares da decadência ética e
cultural que o poeta não se exime de apontar aos contemporâneos, se desviaria da épica – narrativa exemplar
que tendia a divinizar a gesta humana, individual e/ou colectiva –, já sem lugar num tempo em que o homem
começava burguesmente a viver bem com a ideia de que era um “ser caído” sem remissão (a corrosiva
paródia quixotesca não tardaria). A derrota de Camões e a sua exasperada lamentação maneirista, se, por um
lado, se encontra um pouco por toda a obra lírica, não deixa, por outro lado, de estar presente também na
epopeia, em lugares periféricos dela, é certo, e apesar do cânone genológico o não legitimar. E, releve-se,
quase sempre em contradição com passos do poema de exaltação épica dos heróis e dos seus feitos. Não
admira que o grande vate, logo após a inglória morte, rapidamente encontrasse todas as condições de
“salvação” e fosse elevado à categoria de autêntico herói, desses raros que, perante os tributos materiais e
efémeros do mundo, poderiam dizer: “Milhor é merecê-los sem os ter, / Que possuí-los sem os merecer” (Cf.
Luís de Camões, Os Lusíadas, IX, 93, loc. cit.).

273
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

solo em que se vive”910. Os tempos novos – onde o vício reina “sem esperança” –
não são sequer propícios ao amor à pátria, ao contrário das saudosas épocas
pretéritas, porque “inda se lembra, ouviu, sabe que teve / mas indo procurá-la a não
encontra”911. Sob o signo da inveja, derradeiro lexema que encerra Os Lusíadas que
alguns consideram enigmático912, mostra uma sociedade contaminada pelo
ressentimento; os versos acima transcritos redundam, assim, num complexo
exercício exegético sobre a realidade, visto que abarca uma variedade de aspectos
nefastos913. O verso final, em forma de pergunta retórica, ilustra uma ausência,
espelhada na metáfora da “escuridão vazia”, assim como concede um desfecho que
não é inequivocamente conclusivo, uma vez que exprime à saciedade o agónico
ressentimento de um sujeito que é vítima de um “degradado degredo”. O sujeito é,
deste modo, uma espécie de exilado sentimental, vagueante ostracizado, sem
entusiasmo nem sentido para o mundo envolvente, o que vinca o profundo dissídio
existente entre ele e a sociedade, testemunhada na mais profunda indiferença914;
talvez, por isso mesmo, nessa continuidade, Graça Moura dirá: “há quem me
recomende que descanse / e deixe de escrever da pátria ingrata” (PR2, 324).
O interesse por Camões, a interpretação da sua obra insere-a no momento mais
alto da criação poética, pela sua visão do tempo e do mundo. A evocação de
910
Nestas circunstâncias, o desterro não se define pela distância, mas antes pelo sentimento elegíaco de
perda, sendo Portugal o espaço da privação. Nesta linha, vide Vlademir Jankélévitch, L’irreversible et la
nostalgie, Paris, Ed. Flammarion, 1983.
911
Este sentimento disfórico é justificado por Vitalina Leal de Matos do seguinte modo: “É por esta razão
que Os Lusíadas continuam a interpelar-nos; revelam uma sensibilidade próxima da atual. São um misto de
entusiamo heroico e de melancolia desalentada. Um texto épico e antiépico. Uma afirmação de fé, com um
avesso de dúvida, de descrença, de interrogações. Como assegurar a fama e a recompensa dos heróis quando
delas se descrê? Este poema resulta bem mais da consciência maneirista da fragilidade, do que da segurança
confiante do Renascimento. Esta ambiguidade humana e a radical ambivalência das coisas têm muito a ver
com os tempos de crise que vivemos do que teria um poema serenamente otimista.” (Cf. Maria Vitalina Leal
de Matos, “Os Lusíadas”, in Aguiar e Silva (coord.), Dicionário de Camões, loc. cit., p. 497).
912
Graça Moura apresenta uma interpretação singular sobre o passo final de Os Lusíadas. Sustenta que
Camões, ao escrever aquela última palavra do derradeiro canto da sua epopeia, não teve qualquer espécie de
intenção pejorativa, como sustentam alguns autores. O lexema surge intrinsecamente ligada à invocação
inicial de Camões às Tágides, quando solicita um estilo grandíloquo e corrente. Deste modo, no desfecho da
epopeia, o poeta, num registo elevado, cantará de tal modo os feitos de D. Sebastião, que “Alexandre Magno
se poderá rever no rei português, sem precisar de invejar a sorte de Aquiles: sem à dita de Aquiles ter inveja”
(Cf. Vasco Graça Moura, “A desnecessidade da inveja”, in Diário de Notícias, 13 Agosto 2008, p. 8).
913
Almeida Garrett dá conta de tempos de ignomínia, quando Camões desabafa: “Voltei por fim à pátria /
Outra vez de esperança iludido” (Cf. Almeida Garrett, Camões, loc. cit., p. 93).
914
Oliveira Martins, nesta linha de pensamento, conclui: “É em Camões que encontramos a força que
procura desvendar a ‘fisionomia espiritual’ do povo e da pátria. Aí temos Portugal em toda a sua
complexidade – orgulho e indignação, maravilhoso pagão e maravilhoso cristão, sensualidade e ‘saudade do
céu’, grandeza e aviltante decadência” (Cf. Guilherme d’Oliveira Martins, Portugal: identidade e diferença.
Aventuras da memória, Lisboa, Ed. Gradiva, 2007, p. 94).

274
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

Camões e do contexto histórico-cultural de Quinhentos revela uma aguda


consciência histórica do poeta contemporâneo915; portanto, não se confina apenas a
uma época ou lugar, pelo contrário estende-se por mares e lugares por onde
Camões deambulou. Por isso, o poeta, símbolo maior da identidade colectiva chega
com vitalidade aos nossos dias e constitui um testemunho crucial sobre o poder
criativo sugerido pelos versos camonianos. Assim, no dizer de João Barrento, as
implicações existenciais do exercício poético suscitadas pela História são uma
marca distintiva da pós-modernidade.916
Os versos de Graça Moura, pensador do seu país e da sua identidade, exprimem,
pois, uma feição interpelativa, residindo aí a sua razão de ser na actualidade; por
outro lado, através da figura de Camões, adquirem avatares de decadência ética e
cultural que o poeta quinhentista não se eximiu de apontar aos seus
contemporâneos.917

3.4. A representação da Europa: identidade e memória

A abrangência da escrita de Graça Moura não se confina apenas a motivos


nacionais, perscruta também, em clave universalizante, os desígnios do espírito
europeu918. Com efeito, a história portuguesa não pode ser compreendida sem a sua
ligação às raízes múltiplas e, por vezes contraditórias, do velho continente 919,

915
A este propósito, Eduardo Lourenço (Cf. “Vasco Graça Moura - um ensaísmo em arquipélago”, in José
da Cruz Santos (org.), Modo mudando, loc. cit., p. 41) afirma sobre Graça Moura: “É na sua poesia, em
particular naquela onde se cruzam, num subtil xadrez de representações históricas, de mitos, de fait divers
elevados à dignidade corrosiva da epopeia melancólica, os fantasmas da nossa Cultura na hora da sua última
metamorfose”.
916
João Barrento, A palavra transversal. Literatura e ideias no século XX, Lisboa, Ed. Cotovia, 1996, p. 71.
917
Sobre esta matéria, Eduardo Lourenço considera “O sentimento profundo da fragilidade nacional […] é
uma constante da mitologia, não só histórico-política, mas também cultural portuguesa”. Esta vetusta
acepção, também cultivada por Camões, inscreve-se, sem dúvida, nos versos de Graça Moura (Cf. Eduardo
Lourenço, “Portugal como destino. Dramaturgia cultural portuguesa”, in Portugal como destino seguido de
Mitologia da saudade, Lisboa, Ed. Gradiva, 42011, p. 12).
918
Este fascínio, que marcou sempre o pensamento do autor de semana inglesa, está presente na contracapa
do opúsculo de José Augusto Seabra, Portugal face à Europa, Porto, Ed. Athena, 1997. Aí é anunciado um
estudo de Graça Moura em parceria com Luís Neiva Santos, intitulado O caminho da Europa - a tutela
internacional dos direitos do homem na Europa. Não obstante, a obra nunca terá sido editada, uma vez que
não consta dos acervos das principais bibliotecas nacionais.
919
Ao longo dos séculos, complexo diálogo de Portugal, no contexto ibérico, com a Europa foi alvo de um
aturado estudo de Eduardo Lourenço, que realça: “A ‘nossa identidade’ dentro da Europa não pode
prescindir dessa experiência. Faz parte da nossa memória e nós dela” (Cf. Eduardo Lourenço, Nós e a
Europa ou as duas razões, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1990, p. 65).

275
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

matéria que ocupa um lugar de relevo na produção literária do autor920.


Testemunho inequívoco dessa afinidade é o prefácio que Vasco Graça Moura
escreve para a edição da sua tradução de O poema sobre o destino de Lisboa de
Voltaire:

“O terramoto de 1 de Novembro de 1755 provocou uma profunda alteração na consciência


europeia, quer no ponto de vista científico relativo à Natureza, quer no plano ético, teológico e
filosófico, no tocante à origem e à natureza do Mal e do sofrimento”.921

Com efeito, na análise da mentalidade setecentista face ao acontecimento trágico


que fustigou Lisboa, este passo, sintetiza, em boa parte, o significativo fascínio e o
inegável interesse do autor pelo tema enunciado, suscitado pela “profunda alteração
verificada na consciência europeia”922.
Presença constante na literatura portuguesa, a Europa, embora abordada em
perspectivas, processos e estilos distintos, constitui um privilegiado tópico nas
letras nacionais, presente, por exemplo, em Camões, Almeida Garrett, Antero de
Quental, Eça de Queirós, Fernando Pessoa, Adolfo Casais Monteiro ou David
Mourão-Ferreira923. Efectivamente, a ancestral necessidade do homem europeu em
explorar as raízes da sua identidade inscreve-se paradigmaticamente na produção
literária de Graça Moura, como se depreende quando afirma em entrevista:

920
Também na esfera editorial, em 1980, quando Graça Moura era administrador da Imprensa Nacional-
Casa da Moeda, foram publicados dois estudos fundamentais para compreender a relação de Portugal com a
Europa: Eduardo Lourenço, Nós e a Europa ou das duas razões, loc. cit., e Jorge Borges de Macedo,
Portugal-Europa. Para além da circunstância, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1980.
921
Vasco Graça Moura, O poema sobre o destino de Lisboa de Voltaire, Lisboa, Ed. Alêtheia, 2012, p. 7.
922
Da bibliografia de Vasco Graça Moura sobre esta matéria, vide A identidade cultural europeia, Lisboa,
Ed. Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2013 e Anotações europeias, Lisboa, Ed. Bertrand, 2008. Este
volume reúne um número significativo de crónicas semanais de Vasco Graça Moura sobre a Europa,
publicadas na sua coluna do Diário de Notícias, bem como diversas intervenções proferidas no Parlamento
Europeu. Editados posteriormente no referido jornal destacam-se ainda os seguintes títulos consagrados à
política europeia: “A seguir à catástrofe” (16 Março 2011, p. 54 ); “Ceci tuera cela” (21 setembro 2011,
p. 54); “A herança comum dos europeus” (25 Janeiro 2012, p. 54); “Sobre alguns lugares sagrados” (28
Março 2012, p. 54); “A Europa e o caos” (6 Fevereiro 2013, p. 54); “A Europa e o Papa” (6 Março 2013, p.
62); “As preocupações” (7 Agosto 2013, p. 54); “A identidade europeia na europa do pós-guerra”(11
Setembro 2013, p. 54); “Ítaca”, (30 Outubro 2013, p. 54 ); “Imigração e crise europeia” (6 Novembro 2013,
p. 54).
923
Cf., a título de exemplo, Nuno Júdice, “Fernando Pessoa e a Europa”, in Colóquio-Letras, nº 175,
Setembro 2010, pp. 45-52; Urbano Tavares Rodrigues, “David Mourão-Ferreira e a Europa: um esteta do
amor e da morte”, in Colóquio-Letras, nº 145/146, Julho 1997, pp. 120-124; Almeida Garrett, Portugal na
Balança da Europa, Lisboa, Livros Horizonte, 2005; Adolfo Casais Monteiro, Europa, Maia, Ed. Nova
Renascença, 1991; David Mourão-Ferreira, “Imagens da Poesia Europeia I e II”, in Revista Colóquio-Letras,
nº 166/9, Janeiro-Junho 2004.

276
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

“Acho que tudo o que escrevo tem sempre alguma coisa a ver com a Europa. E por isso, se não
fosse desmedida a jactância, gostaria de ser recordado nos termos em que Faria e Sousa, na sua
Europa Portuguesa, recordam Camões em apenas quatro palavras: el poeta de Europa.”924

Neste sentido de profunda consciência europeia, confessa uma ambição literária,


“ser recordado”, alicerçada numa citação de Faria e Sousa, paradigma de uma
notável cultura, testemunho de uma invulgar “tendência omnívora”, no dizer de
Isabel Pires de Lima925. Com efeito, as questões que a Europa e o mundo suscitam
a Graça Moura surgem na esteira do pensamento camoniano926.
O poeta quinhentista logo no canto I de Os Lusíadas expressa uma notação de
índole geográfica927:

“Nem sou da terra, nem da geração


Das gentes enojosas de Turquia:
Mas sou da forte Europa belicosa,
Busco as terras da Índia tão famosa.”928

Porém, à alusão espacial “da forte Europa belicosa”929, associa-se uma realidade
também política e espiritual, sugerida pela alteridade “Das gentes enojosas de
Turquia”, uma das principais ameaças para a estabilidade europeia, enquanto
civilização cristã930. Como sustenta Graça Moura, esta perspectiva ideológica,
retomada noutros passos da epopeia, tem nexos intertextuais explícitos com o
Esmeraldo de situ orbis de Duarte Pacheco Pereira e com a História do

924
Miguel Real et alii, “Vasco Graça Moura”, in Revista Letras com Vida-Literatura, cultura e arte, nº 2,
2º semestre, 2010, p. 149.
925
Isabel Pires de Lima, “Entre dois mundos: referências clássicas na poesia de Graça Moura”, in José da
Cruz Santos (org.), op. cit., p. 87.
926
Graça Moura, a propósito da produção literária de David Mourão-Ferreira coloca a tónica na vocação
europeia do poeta, o que se aplica indubitavelmente ao seu próprio pensamento, como se observa nesta
citação do autor de Amor feliz: “Se é possível a conservação de um regnum Europae ou se, pelo contrário,
teremos de eternamente resignar à existência de múltiplos regna Europae; saber, em suma se a unidade será
possível a despeito da natural diversidade (melhor: com o respeito pela natural diversidade) ou se não pode
extirpar-se, do inconsciente europeu, um pertinaz fermento de desagregação” (Apud Vasco Graça Moura, “O
amor e o ocidente na obra de David Mourão-Ferreira”, in Revista Colóquio Letras, nº 37, Maio 1977, p. 13).
927
Sebastião Pinho, em interessante estudo, analisa o carácter visualista da epopeia camoniana e as variadas
fórmulas enunciativas que plasmam a cartografia figurativa e a representação antropomórfica da Europa
(Cf. Sebastião Tavares de Pinho, “A descrição camoniana da Europa e a cartográfica ginecomórfica”, in
Decalogia Camoniana, Coimbra, Centro Interuniversitário de Estudos Camonianos, 2007, pp. 133-170).
928
Luís de Camões, Os Lusíadas, I, 64, loc. cit.
929
Na epopeia camoniana, ocorrem várias fórmulas enunciativas do velho continente, veja-se a título de
exemplo: soberba Europa ou Europa cristã (Cf. António Gerardo da Cunha, Índice analítico do vocabulário
de Os Lusíadas, loc. cit., p. 79).
930
Com efeito, Os Lusíadas não se fecham sobre si mesmo, antes se abrem numa perspectiva global que lhe
confere um sentido universal, o que constitui, no dizer de Vitalina Leal de Matos, um sinal distintivo de
matéria épica ( Maria Vitalina Leal de Matos, Tópicos para a leitura de Os Lusíadas, loc. cit., p. 61).

277
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

Descobrimento e Conquista da Índia pelos Portugueses de Fernão Lopes de


Castanheda.931
Neste quadro, na alegoria do Ilha dos Amores, quando é permitido ao Gama
contemplar o sistema do universo e as várias partes do mundo, Camões confronta a
Europa com a sua espiritualidade932:

“Vês Europa Cristã, mais alta e clara


Que as outras em polícia e fortaleza”.933

Em uma carta de inverno, Graça Moura, nesta linha, traz à colação as referidas
interrogações plasmadas na epopeia camoniana sobre a coincidência histórica e
religiosa934, visto que, no seu dizer, o texto “utiliza a queda de Constantinopla e de
um quadro de Piero della Francesca para elaborar o que pretende ser
essencialmente uma metáfora complexa da perturbante identidade europeia”
(PR2,102-103). Assim, o extenso poema meditativo – contém 590 versos – revisita,
a um tempo, história, cultura e valores civilizacionais, marcas indeléveis da criação
de Graça Moura935, bem como o incontornável marco de viragem histórica
apresenta eixos interpretativos que possibilitam descortinar um percurso literário
em constante diálogo com a realidade ocidental936.

931
Vasco Graça Moura, “Camões e uma concepção da Europa”, in Revista Oceanos, nº 16, Dezembro, 1993,
p. 59.
932
A propósito desta concordância, Martim de Albuquerque designa a Europa como “respublica christiana”
(Cf. Martim de Albuquerque, A ideia da Europa, Lisboa, Ed. Verbo, 2014, p. 39).
933
Luís de Camões, Os Lusíadas, X, 92, loc. cit.
934
Camões, com efeito, reconduz a Europa à ideia de cristandade, quando lamenta a queda de
Constantinopla, em 1453, e o destino de todas as religiões subjugadas pelo império otomano: “Gregos,
Traces, Arménios, Georgianos, / Bradando-vos estão que o povo bruto /Lhe obriga os caros filhos aos
profanos / Preceptos do Alcorão” (Cf. Idem, ibidem, VII, 13, op. cit.). Segundo Oliveira Martins, este trecho
constitui um incentivo camoniano, com o propósito de banir os turcos da Europa (Cf. Oliveira Martins,
Camões. Os Lusíadas e a Renascença portuguesa, Lisboa, Guimarães editores, 41986, p. 197. Vide também
José Augusto Seabra, Portugal face à europa. Um horizonte cultural, Porto, 1977, pp. 16-17.
935
Quando o autor recebeu, em 1999, o Grande Prémio de Poesia APE-CTT as suas palavras iniciais sobre
uma carta no inverno, a obra galardoada, foram as seguintes: “No Janeiro muito invernoso de 1997, movido
à reflexão por circunstâncias ligadas ao que se ia passando no mundo, muito em especial nos Balcãs e em
África, pus a mim mesmo a questão de como a consciência da identidade europeia não podia deixar de sofrer
perturbações inquietantes e de que essas perturbações tinham por certo razões histórias e culturais” (Cf.
Vasco Graça Moura, “uma carta no inverno”, in Discursos vários poéticos, loc. cit., p. 511). Como já foi
referido anteriormente, registe-se ainda que esta obra também foi distinguida, em 2007, com o prémio
francês de poesia Max Jacob.
936
Graça Moura apresenta pontos de contacto com Luís de Camões (Os Lusíadas, VII, 13, loc. cit.), que
lamenta o destino da cidade de Constantino e dos povos subjugados pelos turcos; refere-se ainda aos feitos
desumanos que obriga os gregos, trácios, arménios e georgianos a educar os seus filhos nos preceitos do
Alcorão. Veja-se a este propósito, Martim de Albuquerque, A ideia de Europa no pensamento português,
Lisboa, Ed. Verbo, 2014, p. 52; José Augusto Seabra, Portugal face à Europa (Um horizonte cultural),

278
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

De facto, o verso inaugural do texto referido, “sob as bátegas de chuva


lembremos a queda de Constantinopla” (PR1, 560), desenha, com um carácter
interpelativo, a memória colectiva numa simbologia ligada à conflitualidade
ancestral da Europa, com inequívocas repercussões no seu rumo937. A exortação
formulada remete, pois, para um encontro entre o presente e o passado num
processo diacrónico de decadência e crise938, como se lê nos seguintes versos:

“os mecanismos do poder foram-se corroendo,


os negócios de génova e veneza, o recrudescer
dos inimigos próximos, as dissensões familiares,

as mortes e as alianças, a doença, a podridão


e o mais que sói acontecer, aconteceu. as igrejas
não conseguiram unificar-se. a cristandade continuava
a opor duas europas, a oriente e a ocidente,
como duas noites desavindas ou como os dentes

de cadmo desparzidos.” (PR1, 560)

Espaço de diversos conflitos, a Europa foi-se afirmando através de sinais ambí-


guos939, provocados por “mecanismos do poder”. O registo enumerativo
apresentado abre caminho a uma indagação sobre momentos conturbados da
história do continente e dos acontecimentos que o afectaram940. Neste âmbito,
assume particular relevo a crise profundamente enraizada que conduziu à dissensão
da Igreja e às guerras religiosas. Deste modo, a tonalidade lírica, proporciona uma
viagem pelos mitos e acontecimentos que povoam uma ideia de Europa, marcada
por guerras, divergências, misérias e grandezas, “entre o esplendor e o caos”, como

Porto, Ed. Athena, 1977, pp. 16-17 e Oliveira Martins, Camões. Os Lusíadas e a Renascença em Portugal,
loc. cit., pp. 197-198.
937
Camões, sensivelmente um século depois, apela ainda às nações cristãs que lutavam entre si, para se unir
contra o perigo otomano (Cf. Luís de Camões, Os Lusíadas, VII, 4-14).
938
O topos de crise europeia percorre a literatura nacional, como se verifica em Eça de Queirós: “A ‘crise’ é
a condição quase regular da Europa. E raro se tem apresentado o momento em que um homem, derramando
os olhos em redor, não julgue ver a máquina a desconjuntar-se, e tudo perecendo, mesmo o que é
imperecível - a virtude e o espírito” (Cf. Eça de Queirós, Notas contemporâneas, Lisboa, Ed. Livros do
Brasil, 6ª ed., s./d., pp. 149-150).
939
Sobre a etimologia do lexema Europa, vide Maria Helena Rocha Pereira, “Europa: os enigmas de um
nome”, in Estudos sobre Roma - A Europa e o legado clássico, Coimbra, Fundação Calouste Gulbenkian-
- Imprensa da Universidade de Coimbra, 2015, pp. 147-153.
940
Em consonância com este ideal, Eduardo Lourenço conclui: “Não haverá Europa sem a lembrança deste
longo passado de dilaceramento social e cultural (Cf. Eduardo Lourenço, Nós e a Europa ou das duas
razões, loc. cit., p. 64).

279
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

observa Eduardo Lourenço941. Torna-se evidente neste passo, uma questionação do


conceito de civilização, assente na esfera do divino; a ausência de espiritualidade
que abalou os povos constitui um factor marcante de ruína. A sugestão de um
declínio eminente, apresentado sob ameaça, agudiza o desencanto elegíaco que
percorre todo o poema. Não obstante, não falta a alusão mitológica aos “dentes de
cadmo desparzidos” contém um sentido conotativo da divergência das “europas, a
oriente e a ocidente”, reiterada na primeira estrofe de 1. disputationes minores, da
autoria de Graça Moura, o que explica o simbolismo em torno de Cadmo942:

“nestes tempos da europa, é bom lembrar


cadmo que ia em busca de sua irmã raptada,
quando matou o dragão de guarda à fonte
e lhe espalhou os dentes: aqui estão,
metáfora de uma europa procurada.” (PR2, 150)

Associado ao imaginário da “metáfora de uma europa procurada”943, o eu lírico


explica as divisões verificadas ao longo dos tempos, concepção haurida na riqueza
dos versos de Os Lusíadas, “a primeira epopeia europeia”944, que reflecte
indubitavelmente uma consciência consentânea com o dealbar da modernidade945:

“Ó míseros cristãos, pola ventura


Sois os dentes, de Cadmo esparzidos,
Que uns aos outros se dão à morte dura,
Sendo todos de um ventre produzidos?”. 946

Como se observa, a referência central deste encontro de poetas de épocas


distintas configura, pois, um dialogismo947, que não se inscreve apenas no universo

941
Eduardo Lourenço, “Vasco Graça Moura - um ensaísmo em arquipélago”, in José de Cruz Santos (org.),
Modo mudando. Sete ensaios sobre a obra de Vasco Graça Moura, loc. cit., p. 41.
942
Esta escolha selectiva de Graça Moura, vem na esteira do pensamento de Eduardo Lourenço, que
salienta: “A visão mitológica antecede a história” (Cf. Eduardo Lourenço, Portugal como destino, loc. cit. p.
14).
943
A fortuna do mito da Europa deriva, em boa parte, da representação artística do rapto da jovem por Zeus.
Graça Moura faz uma excelente súmula desse imaginário em “A Europa, José Rodrigues e o mais que se
verá”, in Revista Egoísta, Junho 2004, pp. 78-83.
944
Eduardo Lourenço, Nós e a Europa ou as duas razões, loc. cit., p. 87.
945
A propósito da epopeia camoniana, Aurelio Roncaglia salienta a dimensão global do texto: “Os Lusíadas
celebram antes de tudo uma concepção da vida que não pertence especificamente à nação portuguesa, mas à
história europeia, dentro da qual constitui um momento de altíssima tensão ideal” (Cf. Aurelio Roncaglia,
“Os Lusíadas: ut pictura poesis”, in Arquivos do Centro Cultural Português, vol. IX, 1975, p. 281).
946
Luís de Camões, Os Lusíadas, VII, 9.
947
Eduardo Lourenço (Cf. “O mundo de Vasco. Entre a epopeia e a melancolia”, in JL. Jornal de letras,
artes e ideias, 19 Fevereiro 2014, p. 13) não fica indiferente à importância de que se reveste o sentido
europeu de Camões no pensamento de Graça Moura: “Europeu convicto e europeísta, daqueles que não lêem

280
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

textual, visto que entra na esfera civilizacional: o confronto da Europa com o seu
imaginário e a sua história, num apelo à união, contém o intuito de defender a
Cristandade, contributo crucial de uma ideia da Europa948. Segundo a tradição
mitológica, Cadmo949, irmão de Europa, foi em busca da jovem raptada por Zeus
metamorfoseado em touro. Junto à Fonte de Ares, matou um dragão, que tinha
devorado os seus companheiros. Então, a deusa Atena aconselhou-o a espalhar os
dentes do dragão dos quais saíram guerreiros, depois Cadmo arremessou, sem o
observarem, uma pedra no meio deles, vindo a desencadear uma violenta disputa,
que provocou uma continuada dissensão entre povos950. Assim, a poesia de Camões
remete explicitamente para contextos sociais, políticos, espirituais e éticos, que
desenham a desunião da Europa951, responsabilidade dos povos cristãos no decurso
dramático dos acontecimentos.
Neste enquadramento, a epopeia camoniana não se fecha sobre si mesmo, antes
se abre numa perspectiva global, conferindo-lhe um sentido universal, como se
observa no exemplo oferecido pelo seguinte passo:

“Vede’los Alemães, soberbo gado,


Que por tão largos campos se apacenta;
Do sucessor de Pedro rebelado,
Novo pastor e nova seita inventa;
Vede’lo em feias guerras ocupado,
Que inda co cego error se não contenta,

Portugal numa perspetiva complexada em relação à Europa, mas de dentro dela, em que primeiro do que
ninguém, camonianamente, nos incluímos. […] VGM está, em todos os planos, na Europa como todos
devíamos estar”.
948
Sobre o alcance universal do Épico, Graça Moura sustenta: “Camões foi com certeza o poeta de um
sistema de valores que eram os da cultura e civilização europeias, com plena consciência da superioridade
efectiva que eles, na sua época, representavam em relação aos das demais zonas do globo. A primeira da
universalidade de Camões está em ele ter sabido ser um poeta europeu, quer pelo sentido temporal da
revalorização, utilização e criação a partir do património trans-secular da cultura ao seu alcance (e essa era a
cultura europeia ocidental acumulada, no sentido ilustrado do termo), quer pelo sentido espacial, geo-
político se quisermos, de diferenciação do nosso continente como área de solidariedade específica,
imperativa, e também cultural e civilizacional, entre as partes que a compunham” (Cf. Vasco Graça Moura,
“Camões, nós e a unidade europeia”, in Os penhascos e a serpente, loc. cit., p. 16).
949
Pierre Grimal, “Cadmo”, in Dicionário da Mitologia Grega e Romana, Lisboa, Ed. Difel, 2009, pp. 67-
-68.
950
Nesta linha, de modo assertivo, Eduardo Lourenço (Cf. Nós e a Europa ou as duas razões, loc. cit., p.
161), afirma: “Enquanto realidade histórica a Europa, ou antes, o conjunto dos povos e culturas diversos que
a constituíram no passado e a constituem no presente, foi muitas vezes ameaçada do exterior e ela mesma
constituiu uma ameaça para outros continentes e, até, para o mundo inteiro. De uma certa maneira e como é
óbvio, essas ameaças (persas, turcos, tártaros, árabes) forjaram a sua identidade. No fim de contas, o único
inimigo que os europeus sempre tiveram foram eles mesmos”.
951
Sobre este assunto, Graça Moura destaca na obra camoniana “Um sentido geográfico, político e
agudamente crítico da Europa enquanto Cristandade, sujeita a dissensões e a perigos de vária ordem”
(Cf. Vasco Graça Moura, A identidade cultural europeia, loc. cit., p. 36).

281
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

Não contra o superbíssimo Otomano,


Mas por sair do jugo soberano.

Vede’lo duro Inglês, que se nomeia


Rei da velha e santíssima Cidade,
Que o torpe Ismaelita senhoreia
(Quem viu honra tão longe da verdade?),
Entre as Boreais neves se recreia,
Nova maneira faz de Cristandade:
Pera os de Cristo tem a espada nua
Não por tomar a terra que era sua.” 952

Os versos apresentam indubitavelmente o conceito de pertença europeia, que não


ignora a consciência de diferença, numa percepção de ordem civilizacional pela
ameaça declarada e pela divisão interna do Ocidente da Europa cristã953. Num
retrato sem complacências, os alemães, “o soberbo gado”, atributo pejorativo de
arrogância, revoltados com o papa, dividem-se em lutas religiosas: “em feias
guerras ocupado”. Em Inglaterra, em dissensão com Roma, Henrique VIII, que se
intitula rei de Jerusalém, “a santíssima Cidade”, funda a Igreja Anglicana. Nas
estâncias seguintes, a inventiva continua com a aliança francesa de Francisco I,
apodado de “galo indino”954, com os turcos, bem como denuncia a Itália “sumersa
em vícios mil”955. Como se observa, há em Camões um notável sentido geográfico,
politico e agudamente critico da Europa enquanto Cristandade, sujeita a evidentes
dissensões e perigos da mais diversa ordem, síntese que entronca no pensamento de
Graça Moura.
Sob um juízo crítico, a um tempo, político e religioso, acerca de figuras ou
povos europeus, a enunciação, espelhada num tempo ensombrado pela decadência,
coloca a tónica num sentimento – enraizado desde há séculos – de uma consciência
identitária desta zona do globo956. No entanto, esta acepção histórica, entendida
como sucessão de catástrofes, consolida-se nos atropelos do poder, injustiças,

952
Luís de Camões, Os Lusíadas, VII, 4-5, loc. cit. Note-se que Camões, consciente das circunstâncias da
tomada de Constantinopla, evoca a sujeição religiosa de muitos povos: “Gregos, Traces, Arménios,
Georgianos” (Cf. Idem, ibidem, VII, 13).
953
Vitalina Leal de Matos considera neste passo a “grande força oratória: construído sobre uma estrutura
antitética cerrada” pelo contraste da atitude dos portugueses, que obedece a Roma, com os outros povos
europeus (Cf. Maria Vitalina Leal de Matos, Tópicos para a leitura de Os Lusíadas, loc. cit., p. 62).
954
Luís de Camões, Os Lusíadas, VII, 6, loc. cit.
955
Idem, ibidem, VII, 8.
956
Cf. sobre este assunto, Maria Helena Rocha Pereira, “Les fondements classiques de l’idée européenne”,
in Estudos sobre Roma-A europa e o legado clássico, loc. cit., pp. 179-192.

282
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

hipocrisias, guerras e litígios da mais diversa ordem, é recorrente noutros passos de


uma carta no Inverno:

“a morte vem tapada por clamores,


actos de liderança torpe, macaqueios, pantominas.” (PR1, 561)

Ou ainda:

“devorações, crueldades abandonos, carnificinas.” (PR1, 563)

Os versos estão vinculados a um deceptivo cenário europeu de guerra, crise e


pilhagem; desde logo a história é entendida como uma sucessão de catástrofes,
ideia plasmada também nos seguintes versos, que sintetizam questões fulcrais:

“o império estava perdido, a europa divorciada,


o castigo do deus iminente, bizâncio muito longe,
e amar sombras e pó não evitaria o desastre

nem salvaria a alma de ninguém. transforma-se o amador


na coisa amada e vê que não interessa, serve só
para fazer versos mais deleitosos.” (PR1, 569)

Há, por isso, uma aguda tensão de ressonância histórica, onde o segmento “o
império estava perdido, a europa divorciada” mostra o declínio do continente e as
divisões que o assolam. Tal inquietação é reforçada no célebre verso camoniano
“transforma-se o amador / na coisa amada”957, testemunho da prática intertextual da
poesia de Graça Moura958. Em crescendo, as ressonâncias do autor de Os Lusíadas
transparecem ainda em “serve só / para fazer versos mais deleitosos”959, a lembrar
o célebre passo da deusa Tétis, símbolo inequívoco da primazia do fingimento, que,
representa, neste contexto, uma severa crítica aos centros de decisão alheados das
necessidades concretas para o desenvolvimento do espaço europeu960.

957
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 126.
958
O diálogo com outras vozes, que atravessa toda a obra de Graça Moura, é desde logo estabelecido na
epígrafe de uma carta de inverno através de versos de “Sailing to Byzantium”, poema de W.H.Yates:
“Consume my heart away; sick with desire / And fastened to a dying animal // It knows not what it is”.
959
Luís de Camões, Os Lusíadas, X, 82, loc. cit.
960
Em nota de apresentação a Anotações europeias, Graça Moura salienta: “Enfim, a Europa é uma
construção permanente e como tal, não podem deixar de ter lugar nela as vozes críticas, sobretudo quando
são também as de quem é convicta e profundamente europeu” (Cf. Vasco Graça Moura, Anotações
europeias, loc. cit., p. 9).

283
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

Neste panorama indagativo, o sujeito poético não ignora a aproximação da gesta


marítima portuguesa à realidade europeia:

“por essa altura já andávamos embarcadas.


a europa esboroava-se por um lado e expandia-se por outro,
o infante recebia cartas de poggio bracciolini, acrescentava
sua honra e fazenda e pavoneava-se a cavalo em lagos,
enquanto decorria a venda de escravos

e se apartava as mães dos filhos, os maridos das mulheres, e


os irmãos uns dos outros, não consta que o infante
se comovesse, muito menos a europa.” (PR1, 566)

Como se observa, na relação de Portugal com o mundo, a enunciação indaga um


processo histórico feito de glórias e misérias; a antítese, contida em “a europa
esboroava-se por um lado e expandia-se por outro”961, exprime a tensão entre duas
realidades distintas. Em primeiro lugar, a vocação para a acção, sinónimo do legado
nacional de abertura às cinco partidas do mundo, testemunhada na evocação das
cartas encomiásticas de Poggio Bracciolini. Endereçadas ao Infante D. Henrique
sobre as grandes descobertas marítimas, versavam sobre a importância de Portugal
no destino europeu pela acção pioneira do Navegador962. Esta matéria mereceu
particular atenção a Graça Moura numa abordagem crítica dedicada à epopeia
camoniana, intitulado precisamente Vasco da Gama entre Poggio Bracciolini e
Camões. O notável humanista florentino, como sustenta o autor contemporâneo,
formula nas suas epístolas os principais tópicos tratados por Camões na proposição
de Os Lusíadas, configuração épica da viagem do Gama963. Em segundo lugar, o
sujeito de enunciação alude à dolorosa imagem do tráfico de escravos em Lagos,
perante o olhar insensível e ambicioso do Infante, episódio narrado por Gomes
Eanes de Zurara na sua Crónica da Guiné964. Num tom crítico e desencantado, a
forma verbal “apartava”, associada aos lexemas “mães”, “maridos”, “mulheres” e

961
Esta sinédoque está em consonância com o pensamento de Graça Moura sobre este período, quando frisa:
“Pode dizer-se que os descobrimentos foram um momento da história europeia que tornou também possível
a expansão de outras nações europeias, mas que coube a Portugal ser a vanguarda” (Cf. Vasco Graça Moura,
“Identidade nacional, fim do império e destino europeu”, in Lusitana praia, loc. cit., p. 12).
962
Cf. J. V. Pina Martins, “O Humanismo italiano”, in Cultura italiana, Lisboa, Ed. Verbo, 1971, pp. 153-
-170.
963
Vasco Graça Moura, “Vasco da Gama entre Poggio Bracciolini e Camões”, in Seabra Pereira e Manuel
Ferro (coord.), Actas da VI Reunião Internacional de Camonistas, Seabra Pereira e Manuel Ferro (coord.),
loc. cit., pp. 513-526.
964
Gomes Eanes de Zurara, Crónica de Guiné, introd., notas, novas considerações e glossário de José de
Bragança, Porto, Ed. Civilização, 1994, pp. 123-124.

284
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

“filhos”, constitui uma sugestão explícita de matriz camoniana, que conota


disforicamente separação e desgraça, a lembrar, mais uma vez, a condenação da
ambição e do expansionismo nacional do Velho do Restelo965.
O autor de semana inglesa, com uma aguda consciência de crise, não descura o
relevo da Cristandade, que funda, sem dúvida, a identidade milenar da Europa,
como se verifica neste passo:

“o concílio discutia a procissão do espírito santo


se do pai ou do filho ele emanava, ou de ambos,
e o sentido das preposições e que explicações podiam
juntar-se ao símbolo e qual a autoridade

de s. basilio contra eunómio, ou as razões de marcos de éfeso.


entretanto constantinopla apodrecia”. (PR1, 560)

Ao pressentir a queda de Constantinopla, de marcas profundas na história


europeia, João VIII Paleólogo solicitou o apoio da cristandade contra a ameaça
otomana nos Concílios de Ferrara e Florença. Ora, nesses conclaves, as
preocupações centraram-se em questões doutrinais sobre o Espírito Santo, e não
existiu preocupação em acorrer ao Império do Oriente na manutenção de uma
integridade europeia coincidente com os seus valores espirituais. Num registo
crítico, a forma verbal “apodrecia” acentua hiperbolicamente a cisão europeia, que
continua na actualidade afastada “das subtilezas / do espírito santo como o não
foram príncipes e cardeais” (PR1, 561).
A invectiva continua mais à frente:

“agora, os próceres europeus em

conclaves tecnológicos, defendendo regras salvíficas


ou negando-as, em nome da gestão comum, mesmo que
elas se desmoronem como a avalanche atrás dos esquiadores.” (PR1, 561)

Em versos matizados de modernidade, os signos “tecnológicos” e “esquiadores”


remetem para problemas actuais, uma vez que o vazio de ideias na construção
europeia, a “gestão comum”, é sugerido pela comparação expressa no sentido
destruidor da “avalanche”, símbolo de incertezas e devastação. Por outro lado, o
deítico “agora” situa o discurso lírico ao nível da imanência, prova de que a poesia

965
Luís de Camões, Os Lusíadas, IV, 94-104, loc. cit.

285
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

depurada de Graça Moura não se alheia do concreto, na resolução dos variados


reptos colocados966, como afirma:

“Acreditar na Europa, como eu pessoalmente acredito, não é ignorar os seus problemas. É ter
consciência deles, lucidez e informação que permita enquadrá-los e empenhamento, ao menos
empenhamento para resolvê-los.”967

Com efeito, o autor, em diálogo permanente com a Europa, enfatiza a ideia de


que para compreender a recente história do velho continente torna-se necessário
mergulhar nos seus permanentes contrastes, com a consciência de que não existem
respostas definitivas e imediatas, o que explica em boa parte o sentido do seguinte
segmento:

“a europa nasceu de uma cristandade aflita


e assim continuou, enquanto inventava
sistemas filosóficos, máquinas, movimentos sociais,
revoluções e catástrofes”. (PR1, 573)

Os versos, construídos sob a égide de uma espiritualidade vacilante 968, reiteram


como sucessivas mutações, da mais diversa ordem, a tradição europeia 969. As
discussões teológicas, os debates políticos, os conflitos sociais, marcantes no
decurso do tempo, são “sentimentos que denunciam um cansaço civilizacional”,
como adverte João Barrento970. A propósito do verso “a europa nasceu de uma
cristandade aflita”, Graça Moura, em entrevista, justifica a ideia veiculada do
seguinte modo:

966
Pinto do Amaral nesta linha destaca que nos versos do autor de Concerto campestre existe uma “fluidez
das fronteiras entre o passado e o presente, acarretando uma noção mais volátil e menos linear do tempo”
(Cf. Fernando Pinto do Amaral, “A poesia neomaneirista de Vasco Graça Moura”, in Vasco Graça Moura,
Poesia 1963-1995, loc. cit., p. 8).
967
Cf. Vasco Graça Moura, “uma carta no inverno”, in Discursos vários poéticos, loc. cit., p. 514.
968
Miguel Baptista Pereira (“Europa e filosofia”, in Revista Filosófica de Coimbra, nº 4, vol. 2, 1993,
p. 270) considera precisamente a dimensão transcendental o principal traço da Europa: “A essência da
europa não é traçada pelos limites geográficos de uma pequena península do continente eurásico, mas por
um ‘princípio espiritual’, que habita neste espaço e, na Antiguidade, abrangeu a cultura greco-romana, na
Idade Média coincidiu com os limites da cristandade e na Modernidade foi a unidade espiritual”.
969
Nesta linha, Graça Moura sublinha a cosmovisão inquietante, de cariz maneirista, coordenada fulcral na
criação camoniana: “E, ontem como hoje, trata-se de um mundo em crise: a soberba Europa aludida em II,
80 e descrita a partir de III, 6 e segs., encontrava-se no estado deplorável referido em VII, 4 e segs., a braços
com uma crise internacional, que hoje diríamos de identidade geo-política, e múltiplas crises internas; não
obstante, é dado ao Gama contemplar o seu significativo valor ideal, em X, 92: Vês Europa cristã, mais alta
e clara /Que as outras em polícia e fortaleza” (Cf. Vasco Graça Moura, “Camões, nós e a unidade europeia”,
in Os penhascos e a serpente, loc. cit., p. 19).
970
João Barrento, Umbrais. O pequeno livro dos prefácios, Lisboa, Ed. Cotovia, 2000, p. 130.

286
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

“A Europa nasceu de uma noção de cristandade, a que corresponde uma unidade territorial
grande, e de vectores que tinham vocação imperial ou espiritual-expansiva. Daí surge um
continente em que se sobrepõe uma matriz civilizacional/perímetro geográfico, que entra em fase
crítica a partir de certa altura.” 971

Apesar de ter sido palco de frequentes guerras, há a clara consciência de uma


unidade espiritual, uma vez que a Igreja tem um papel crucial na difusão do ideal
cristão. Além disso, apesar de vicissitudes várias, o passo dá corpo à afirmação de
uma cultura europeia incontestável.972
Nesta multifacetada recepção, tanto dinâmica como diversa, a poesia plural de
uma carta no inverno recupera, para além da relação com a história, também uma
proximidade entre a espiritualidade e a arte, comprovada no modo como a pintura
contamina os seus versos, em demanda de um sentido para a representação do
mundo973, o que demonstra o desejo do regresso paradigmático às suas raízes
culturais, actualmente posta em causa974.
Exemplo disso é o destaque concedido ao quadro Flagelação de Urbino de Piero
della Francesca, pintor marcante do Quatrocento italiano975:

“é o acaso; suponhamos o desgaste das razões


de piero della francesca na flagelação de urbino.
ninguém sabe ao certo quem é o jovem descalço,
nem porque estará o imperador de bizâncio
no lugar de pilatos.” (PR1, 564)

971
“Ana Marques Gastão entrevista para o Diário de Notícias Vasco Graça Moura”, in José de Cruz Santos
(org.), Modo mudando. Sete ensaios sobre a obra de Vasco Graça Moura, Porto, Ed. Campo das Letras,
2000, p. 19. Esta ideia volta a ser reiterada: “Na Europa, há valores religiosos, políticos e filosóficos que
importa preservar. Não digo que todos devam ser cristãos. Eu, pessoalmente, não sou crente, mas os
princípios da religião são fundamentais” (Cf. “Vasco Graça Moura: A Portugal está a faltar muita poesia”
(entrevista de José Carlos Carvalho), in Revista Visão, 27 Abril 2014, p. 92).
972
De modo similar, Vasco Graça Moura, volta, em Os Lusíadas para gente nova (loc. cit., p. 101), a
colocar a tónica da infinita e complexa diversidade europeia, embora, e não obstante, viva sob a égide da
Cristandade: “A Europa que Camões nos descreveu / era uma europa falha de unidade / Em guerras e
discórdias ela cresceu / Embora pertencesse à Cristandade”.
973
Sobre este assunto Graça Moura observa: “Este problema das relações da escrita com o real e com outras
formas de representação dele, nomeadamente pela imagem, preocupa-me há muito tempo. A ele tenho
dedicado textos ensaísticos e poemas” (Cf. Vasco Graça Moura, “A escrita e o real”, in JL. Jornal de Letras,
Artes e Ideias, 17 Agosto 2005, p. 17).
974
George Steiner (Cf. A ideia da Europa, Lisboa, Ed. Gradiva, 42007, p. 50) sintetiza os caminhos do velho
continente do seguinte modo, revelando uma estreita aproximação ao pensamento de Graça Moura: “A
‘ideia de Europa’ está entretecida das doutrinas e da história da Cristandade ocidental. A nossa arquitectura,
arte, música, literatura e pensamento filosófico encontram-se saturados de referências e valores cristãos”.
975
Cf. Carlo Ginzburg, Investigando Piero, S. Paulo, Ed. Cosac Naify, 2010 e Roberto Longhi, Piero della
Francesca, S. Paulo, Ed. Cosac Naify, 2007.

287
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

Espaço cultural, rico de memória, a poesia, emanada de um convite à


contemplação, apresenta uma enigmática figura na vez de Pilatos, “o imperador de
bizâncio”, que se supõe ser João VIII Paleólogo976, o que atesta do ponto de vista
icónico um compromisso entre o cristianismo e a cultura clássica 977. A
representação evocada coloca a tónica numa das maiores encruzilhadas da
civilização ocidental – quer no plano político, quer no ponto de vista espiritual –,
visto que a possível presença de um personagem contemporânea de Piero contém
uma importância decisiva para entender as implicações de natureza figurativa
subjacentes ao quadro, considerado uma obra-prima da história da pintura978.
Em registo interpretativo, configurando uma diversidade de escrita, o texto
continua:

“mas não explica

o imperador, paleólogo sentado, absorto junto à escada,


prevendo a queda de bizâncio, em mármore branco e róseo […]

agora não há anjos, nem arestas hialinas, nem coros celestiais,


apenas pátrias violentas e desgarradas no temporal”. (PR1, 564-565)

O passo transcrito tem na sua génese uma sugestiva dimensão sensorial, que
demarca o núcleo preponderante do sentir do sujeito poético979. Na procura de
“uma medida humana de representação” (PR2, 96), cantada pelo poeta, acrescenta

976
Sobre o processo ecfrástico na sua poesia, Graça Moura destaca que o referido quadro é “tocado pelo
mistério e pela indecifrabilidade. O Pilatos que se senta ao fundo, à esquerda, será mesmo Pilatos ou é o
imperador João VIII Paleólogo, de Constantinopla, de acordo com a medalha de Pisanello? O jovem
representado à direita é alguém que morreu? Que tipo de funda inquietação é contrabalançada pela serena
geometria dominante? […]. Trata-se, pois, nesse caso, de uma ecfrase muito complexa” (Cf. Vasco Graça
Moura, “O que farei com esta ecfrase?”, in Discursos vários poéticos, loc. cit., p. 492).
977
O caleidoscópio cultural, marca distintiva na própria história da Europa, é descrito de modo pertinente e
lúcido do seguinte modo: “Quando falamos de identidade cultural europeia, estamos a utilizar estes
conceitos em múltiplas direcções e, do mesmo passo a problematizá-los. Essa identidade redunda de um
conjunto plural e interativo de diversidades” (Cf. Vasco Graça Moura, A identidade cultural europeia, loc.
cit., p. 20). Neste prisma, Miguel Pereira Baptista sintetiza, numa sugestiva antonomásia, a essência da
Europa: “Sem Abraão e Ulisses não podemos repensar a Europa, sem regresso às raízes não há promessa,
sem o passado não há esperança, a não ser numa cisão gnóstica irreparável da história” (Cf. Miguel Pereira
Baptista, “Europa e filosofia”, in Revista Filosófica de Coimbra, nº 4, 2ª série, 1993, p. 293-301).
978
Segundo Graça Moura, neste quadro, o facto de Piero ser coevo do imperador e a perspectiva rigorosa da
perspectiva permitem uma representação inovadora da realidade, o que revela uma diferença europeia em
relação a outras civilizações (Cf. Ana Marques Gastão, “Entrevista para o Diário de Notícias Vasco Graça
Moura”, in José de Cruz Santos (org.), op. cit., p. 17).
979
Vasco Graça Moura (Cf. “Arte e fé”, in Diário de Notícias, 23 Outubro 2013, p. 54) considera
“enigmática e cerebral a Flagelação de Urbino”, bem como revela a sua preferência estética: “Nas relações
entre arte e fé, estes casos interessam-me bem mais do que as meras cenas de martírio religioso de que a
pintura flamenga dá tantos exemplos torturantes, com brasas, degolações, setas, rodas de Santa Catarina,
etc., que, a meu ver, traduzem menos uma fé do que um exercício oficinal”.

288
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

à capacidade descritiva uma sugestiva dimensão reflexiva, uma vez que o sujeito
poético, a partir de uma figuração contextualizada, decorrente de uma “tentação
ecfrástica”, no dizer de M. Krieger980, coloca reiteradas interrogações sobre a
história europeia:

“ou sofia de monferrat,


ou maria comnena, entre alianças para salvar o império,
propostas de união das igrejas, humilhações e pestes,
as questões de filioque no concílio,
entre ferrara e florença, ardis na luta dos irmãos, tudo […]

enquanto cristo era amarrado à coluna e flagelado”. (PR1, 576-577)

Com um forte teor narrativo, processo compositivo tão do agrado de vgm981, a


escrita acompanha uma determinada factualidade histórica, num processo de
partilha com o leitor. A presença de figuras femininas (“sofia de monferrat, / ou
maria comnena”), esposas por conveniência dos pretendentes ao trono do Império
Bizantino, e a alusão à separação das duas igrejas denunciam, em tom irónico, a
única preocupação de então se restringiu a “questões de filioque”, ou seja, a
discussões teológicas em torno do Espírito Santo.982
A pintura, ponto de partida para a criação poética, converte-se em pretexto para
um exercício hermenêutico que ultrapassa os limites descritivos e abre caminhos a
novos horizontes criativos da escrita de Graça Moura, onde cada personagem é
portadora de um fragmento da história983. Em tempo de crise e desengano, no seio
de uma mundividência religiosa, o tema da paixão de Cristo, “amarrado à coluna e
flagelado”, surge intimamente ligada a uma concepção de violência representativa

980
Murray Krieger, “Imagem e palavra, espaço e tempo: a exaltação - e a exasperação - da ekphrasis
enquanto assunto”, in Kelly Basílio (coord.), Concerto das artes, loc. cit., p. 143.
981
Sobre processos narrativos em Graça Moura, vide João Barrento, “Palimpsestos do tempo. O paradigma
da narratividade na poesia dos anos oitenta”, in A palavra transversal. Literatura e ideias do século XX,
Lisboa, loc.cit., pp. 69-78 e Ana Margarida Simões Falcão Seixas, Novos shâmanes. Um contributo para o
estudo da narratividade na poesia portuguesa mais recente, Funchal, Universidade da Madeira, 2003,
pp. 351-364.
982
Nesta linha, Bernard Guetta declarou com particular pertinência a importância de que se revestem
determinados acontecimentos que marcaram o destino do velho continente: “Não citar a herança cristã da
Europa significa negar uma evidência histórica” (Apud Maria Helena Rocha Pereira, “Da necessidade do
preâmbulo da constituição europeia”, in Estudos sobre Roma-A Europa e o legado clássico, loc. cit., p. 223).
983
Esta atitude vem no seguimento do pensamento de George Steiner, que, na análise da estreita relação
entre espiritualidade e arte, considera: “A ‘ideia de Europa’ está entretecida das doutrinas e da história da
Cristandade ocidental. A nossa arquitectura, arte, música, literatura e pensamento filosófico encontram-se
saturados de referências de valores cristãos” (Cf. George Steiner, Uma ideia de Europa, loc. cit., p. 50).

289
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

da própria queda da Europa984. Por outro lado, a interpretação dominante dessa


representação consubstancia-se no paradigma humano do martírio, contendo uma
“função celebrativa da comunidade, isto é, da ordem de valores com que esta se
identifica”, como sublinha Carlota Urbano985. Assim, torna-se necessário
considerar o contexto implicado na sua representação, como surge em nota
explicativa ao poema, integrada na continuada praxis paratextual de Graça
Moura986:

“A exploração de alguns aspectos nucleares desse quadro, conjugada com o resto, permitiu-me
avançar mais decididamente para uma certa conjugação operada entre geometria e melancolia,
entre a limpidez da forma e a meditação saturniana, que podia caracterizar a Europa e que, hoje,
até talvez tenha sido... profética.”987

Desenham-se, neste passo, as coordenadas estruturantes do pensamento de Graça


Moura sobre a Europa; na melancólica contemplação do passado, que explica o
presente, ocorre um jogo entre as personagens e os acontecimentos, onde a
enunciação parece estar presa a uma teia configuradora de um destino colectivo988
na celebração inegável de uma tradição. É possível descortinar, deste modo, um
núcleo de elementos decisivos que permitem uma visão no tempo e no espaço, a
partir de momentos cruciais e de viragens históricas. O quadro referido representa,
pois, a afirmação da identidade europeia e da sua cultura, questão colocada com
particular recorrência nos tempos modernos989.

984
Note-se que a representação de Deus, dos santos e do homem através de imagens foi capital para o
desenvolvimento e fortuna da arte europeia, ao contrário das religiões judaica e muçulmana.
985
Carlota Miranda Urbano, “Martírio e identidade no advento da Europa moderna. Narrativa, memória
colectiva e consciência europeia”, in Nair de Nazaré Castro Soares; Santiago López Moreda (coord.) Génese
e consolidação da ideia de Europa, vol. IV, Coimbra, Imprensa da Universidade, 2009, p. 418. Sobre a
representação literária do modelo de mártir, vide Carlota Miranda Urbano, “Tipologias literárias do martírio
na hagiografia: as origens”, in separata da Revista Theologica, II série, vol. XLI, fasc. 2, 2006, pp. 331-358.
986
Esta praxis metatextual ganha particular força na definição de processo de escrita. De facto, em paralelo
com Jorge de Sena, as notas de roda-pé, paratextos, citações ou remissões para outros livros indicam
motivações de um deliberado estatuto autoral (Cf. Jorge Fazenda Lourenço, A poesia de Jorge de Sena.
Testemunho, metamorfose e peregrinação, loc. cit., pp. 271 sqq).
987
Vasco Graça Moura, “O fazer através e por cima das fronteiras”, in Ana Gabriela Macedo et alii (org.),
XIII Colóquio de Outono - Estética, cultura material e diálogos intersemióticos, Braga, Edições do Centro
de Estudos Humanísticos da Universidade do Minho, p. 85.
988
Sobre este assunto, Eunice Ribeiro, “Sob o visível: empernamentos e linhas de fuga na poesia de VGM”,
in Isabel Ponce de Leão e Eduardo Paz Barroso (org.), op. cit., p. 45.
989
No percurso, por vezes sinuoso, da Europa, Martim de Albuquerque observa: “O mito greco-romano da
Europa, ao fundir-se com o mito bíblico-cristão, permitiu que ao lado de um puro conceito geográfico se
desenhasse um conceito ético, valorativo, que perdura ainda modernamente na ideia de que a Europa
representa um estádio superior resultante da convergência da cultura clássica e da cultura cristã” (Cf. Martim
de Albuquerque, “Primeiro ensaio sobre a história da ‘ideia de Europa’ no pensamento português”, in

290
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

Nessa revisitação, o eu, através de uma imagem perturbadora, projecta-se


reiteradamente nos seus versos:

“a corrente
de consciência desaguando em literatura, a sôfrega criação
de mais realidade, enquanto cristo era flagelado,
amarrado à coluna”. (PR1, 570)

Com efeito, este passo valoriza a enunciação lírica, inscrita na esfera da “poesia
figurativa”, expressão cunhada por Garcia Martín990 e característica indelével de
Graça Moura. Com efeito, através da ecfrasis, exercício peculiar da sua recriação
poética ao serviço da própria construção verbal, o autor revela uma singular
vocação representativa991, “enquanto cristo era flagelado, / amarrado à coluna”. A
reiteração enunciada afirma-se, pois, através de uma entidade espiritual, bem como
de uma realidade cultural, forma singular do pensamento europeu. Como
sublinham os versos de Graça Moura, a estreita relação entre espiritualidade e arte
está na base da construção do continente europeu, fundamento indelével da sua
identidade.
Porém, neste tributo à sugestiva iconografia e perfeição artística de Piero della
Francesca, o sujeito poético não consegue concretizar a expressão verbal da
pintura, embora a procure incessantemente:

“uma carta de inverno

nem sequer pode dar conta do rigor da perspectiva,


a organizar entre colunas, a luz do nascente, a do poente
e a interior irradiante”. (PR1, 564)

O sujeito poético, num gesto de tributo, dá conta da techne do artista e confessa


não conseguir “dar conta do rigor da perspectiva”, uma característica inovadora de
Piero della Francesca, que introduziu na pintura a tridimensionalidade, com o fito

Estudos de Cultura portuguesa, vol. I, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1984, pp. 249-350,
especialmente pp. 278 sqq).
990
José Luis García Martín, La poesía figurativa. Cronica parcial de quinze años de poesia española,
Sevilha, Ed. Renacimiento, 1992, p. 211.
991
Eunice Ribeiro, “Sem título. Sombras e desfigurações: de Henrique Pousão a Vasco Graça Moura, in
Carlos Mendes de Sousa e Rita Patrício (org.), Largo mundo aluminado. Estudos de homenagem a Vítor
Manuel Aguiar e Silva, vol. I, Braga, Centro de Estudos Humanísticos da Universidade do Minho, 2004,
pp. 275-286.

291
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

de proporcionar uma representação plástica mais concreta da realidade992. A


revisitação realizada propõe continuadamente ao leitor novos sentidos como
acontece com este complexo quadro que entrelaça um sopro clássico com uma
figuração inovadora.
Na esteira da permanente indagação sobre o destino europeu, o autor de Sonetos
familiares considera:

“não sei se estamos na europa finalmente,


nem onde a terra se acaba e o mar começa.
a europa jaz feita num oito.” (PR1, 577-578)

A expressão dubitativa, patente em “não sei se estamos na europa finalmente”,


assinala um momento presente de incerteza e cepticismo, reforçado pelo
aproveitamento de dois passos alusivos ao velho continente. Ostensivamente
decalca o lapidar passo de Vasco da Gama, “Onde a terra se acaba e o mar
começa”993, bem como apresenta ecos do segmento “Jaz a soberba Europa”994,
retomado também no célebre incipit de O dos castelos, poema inaugural da
Mensagem de Fernando Pessoa995. No entanto, o processo criativo realiza-se sob o
signo da transgressão, visto que os versos são submetidos a uma deliberada
modelização parodística, traduzindo na sua essência um aproveitamento que visa
um distanciamento crítico996. O verso referido, colhido de Os Lusíadas apresenta-se
em Graça Moura na forma negativa, bem como o segundo surge metamorfoseado
numa inesperada expressão prosaica, tocada pela ironia, que assinala a encruzilhada
vivida pela Europa: “jaz feita num oito”.
No mesmo prisma, em jeito de desabafo, o poeta reitera o desencanto enunciado:

992
Neste contexto interpretativo, Graça Moura afirma: “Piero, como inventor da perspectiva tridimensional,
é uma das figuras que mais contribuíram para essa nota absolutamente específica da nossa civilização (mais
nenhuma inventou a perspectiva simuladora da tridimensionalidade na representação do espaço). A
Flagelação é uma das obras em que se torna mais nítida essa invenção” (Cf. Vasco Graça Moura, “O que
farei com esta ecfrase?”, in Discursos vários poéticos, loc. cit., p. 492).
993
Luís de Camões, Os Lusíadas, III, 20, loc. cit.
994
Idem, ibidem, III, 6.
995
Fernando Pessoa “A Europa jaz, posta nos cotovelos: / De Oriente a Ocidente jaz”, in Mensagem, Lisboa,
Ed. Ática-Babel, 2010, p. 19.
996
Sob o signo da transgressão em demanda da originalidade criativa, Araújo Pereira nota que no poema
decassílabo (PR2, 446), o segmento “todavia fodido” conjuga dois signos de registo diferente, o que confere
significativa singularidade ao texto de Graça Moura (Ricardo Araújo Pereira, A doença, o sofrimento e a
morte entram num bar. Uma espécie de manual de escrita humorística, Ed. Tinta da China, 2016, p. 48).

292
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

“ah, europa, europa, e eu sempre disse que eras uma orquídea


posta nos cotovelos”. (PR2, 89)

Com evidentes ecos pessoanos reiterados, o juízo de valor enunciado possui,


pois, uma carga depreciativa, incidindo na falta de objectividade daqueles que
assume as rédeas do poder, bem como os perigos resultantes dessa fragilidade. Os
versos enunciados convergem, pois, num renovado sinal de modernidade, uma vez
que, na denúncia das vicissitudes verificadas, intensificam com fina lucidez as
preocupações do sujeito poético.
Assim, ancorada no passado, uma carta no inverno, constitui, deste modo, uma
carta de marear pela memória, o que não impede de exprimir um tempo que é
também o do poeta. Vasco Graça Moura, que, na decifração do mundo confessa
“eu cá transformo tudo em literatura” (PR1, 455), expende na sua produção lírica
uma aturada atenção às relações tensas e frágeis que configuram a génese da
Europa, prova cabal de uma poesia comprometida com uma mundividência,
universalista e humanista, tributária de uma singular consciência ancestral997.
Assim, a densa e profunda rememoração de um percurso cultural e histórico,
convocado pelo referido poema, revela um homem atento ao mundo, que se define
numa vasta tradição cultural, traço distintivo de Graça Moura em demanda da
identidade europeia, “entre heródoto e o new review of books” (PR1, 578).998
Não obstante, numa espécie de espiral em que várias coordenadas temáticas se
agregam em torno do mesmo eixo de reflexão, Graça Moura não fica indiferente
aos desafios contemporâneos suscitados pelo velho continente, traduzidos na
“reflexividade sobre si mesmo”:999

“e antes que a europa no seu rumo


febril ao darem-lhe as sezões
do alargamento ajuste como
há-de engendrar mais instruções
pra repartir mais uns tostões.” (PR2, 259)

997
Com particular acuidade, Graça Moura não ignora essa faceta: “O espaço europeu criou condições para
uma profunda reflexão do homem sobre si mesmo e sobre o mundo. Arte e filosofia, nesse aspecto,
partilham o terreno, muito embora com processos, métodos e objectivos diferentes. Essa propensão para
reflectir sobre si mesmo e para se pôr em questão acabou por se propagar à mentalidade do homem europeu”
(Vasco Graça Moura, A identidade cultural europeia, loc. cit., p. 62).
998
Lucien Febvre (A Europa. Génese de uma civilização, Lisboa, Ed. Teorema, 2001 p. 133) sublinha que a
Europa, mais do que uma noção geográfica concreta, distingue-se na sua dimensão cultural.
999
Vasco Graça Moura, A identidade cultural europeia, loc. cit., p. 51.

293
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

Numa clara posição ideológica, onde o futuro da Europa adquire particular


pertinência, os tempos conturbados, coincidentes com o passado e derivados do
alargamento da comunidade europeia, prendem-se com pressupostos estruturais do
âmbito económico, traduzidas em “repartir mais uns tostões”, aspecto candente que
ainda hoje se levanta entre os estados-membros1000. A voz crítica denuncia o
advento de uma lógica administrativa e meramente utilitária de um continente, que,
incapaz de responder aos desafios colocados, abdica dos seus ancestrais valores
espirituais e culturais.1001
Em registo exclamativo, retoma a fragilidade das intuições:

“a lei a europa é irmos


sofregamente até o fundo da espiral vertiginosa,
até nos revoltarmos contra tudo para nos destruímos,
até rompermos o círculo e nos desviarmos da realidade”. (PR1, 576)

Os dois versos finais deste trecho são de Gunnar Ekelöf, poeta sueco (1907-
-1968) que Graça Moura traduziu em parceria com Ana Hartherly. A tradução do
passo citado, extraídos do poema Coro, é da responsabilidade da autora de 463
Tisanas, que vgm deliberadamente faz questão de citar na legitimação do seu ponto
de vista1002. Esta comunhão tem o fito de legitimar, em clave universalista, um
pensamento crítico comum sobre a Europa. Por outro lado, a notável metáfora da
“espiral vertiginosa” com uma carga conotativa disfórica sobre a realidade
europeia, foi aproveitada por João Barrento para intitular um importante conjunto
de textos críticos1003, prova do fascínio do autor pela poesia de Graça Moura.
O pendor sombrio do futuro europeu surge ainda em soneto pardacento de modo
contundente:

1000
A este respeito, Graça Moura crítica veementemente as actuais directivas traçadas por Bruxelas: “O
sistema não é de freios e contrapesos institucionais ao nível da Europa. É antes uma teia obscura de
interacções e condicionamentos políticos por via de uma intergovernamentalização do todo ditada pelos
mais fortes e acolitada pela coreografia impune dos euroburocratas” (Cf. idem, ibidem, p. 18).
1001
Uma perspectiva similar é preconizado George Steiner (Uma ideia de Europa, loc. cit., p. 50), quando
sustenta: “A Europa morrerá efectivamente, se não lutar pelas suas línguas, tradições locais e autonomia
sociais”.
1002
Gunnar Ekelöf, Antologia poética, tradução de Ana Hatherly e Vasco Graça Moura, Lisboa, Ed. Quetzal,
1992, p. 17.
1003
João Barrento, Espiral vertiginosa. Ensaios sobre a cultura contemporânea, Lisboa, Ed. Cotovia, 2001.
Além do título, os versos constituem a epígrafe do livro: “a lei a europa é irmos / sofregamente até o fundo
da espiral vertiginosa”. Registe-se que esta metáfora, tão do agrado de Graça Moura, surge reiterada noutro
passo da sua obra poética: “lírico, incontido, entre golfadas de espiral vertiginosa” (PR2, 59).

294
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

“na europeia babel, rios de tinta


correm em cada língua oficial.
um dia, quando os quinze forem trinta,
deixa de haver europa ocidental”. (PR2, 419)

Como se observa, a “europeia babel”, metáfora sugestiva de implicações


caóticas e de vulnerabilidade, veicula uma clara opinião desfavorável, apresentada
de forma frontal, sobre a adesão de novos países, sobretudo oriundos de leste, à
Comunidade Europeia. Esta atitude denuncia, em registo premonitório, um fracasso
inevitável, uma vez que “deixa de haver europa ocidental”, questão candente
suscitada na actualidade1004.
Na sequência deste cariz interpelativo, a incapacidade de definir o velho
continente sob a égide uma cultura alicerçada na alteridade, verifica-se no seguinte
passo:

“da europa a consciência é estranha:


talvez não saibamos nada dela […]

descobrir essa presença matricial


na dignidade da sua história, dos seus trabalhos e dos seus dias,
da sua paz, das suas guerras, das sombras mais profundas
de um conhecimento quantas vezes trágico.

da europa que se faz e se imperfaz


de tantas línguas, céus vários e costumes,
talvez saibamos pouco, talvez eu saiba apenas
ter consciência disso”. (PR2, 359)

Com efeito, “a consciência estranha” desenha um sentido pertinente da Europa,


do qual não se retira qualquer conclusão, como se a sua construção fosse perpétua,
sem nunca ter fim, face às suas matrizes complexas e diversificadas. Nascida da
diversidade de “tantas línguas […] e costumes”, que faz dela um caleidoscópio
heterogéneo, a multiplicidade linguística e cultural evocada na sua diferença,
constitui uma privilegiada expressão na consolidação e garantia dessa

1004
Graça Moura, na sua crónica semanal no Diário de Notícias (“A Europa e o caos”, 6 Fevereiro 2013,
p. 54) reitera o seu ponto de vista semelhante ao trecho lírico: “Esta soberba Europa, mais alta e clara / que
as outras em polícia e fortaleza (a fórmula é de Camões), está em risco de franca desagregação. O seu
esboroar acelerou-se com a passagem dos 15 aos 27 Estados-membros. Afinal, até 2004, a Europa era
pensada em termos de uma ‘Europa ocidental’, assumida como herança de muitos séculos por um núcleo de
Estados que se encontravam entre aqueles primeiros 15. O alargamento trouxe problemas novos.
Começaram a estalar os quadros em que a Europa tinha alguma probabilidade de acontecer na prática, em
que a ideia europeia podia dizer alguma coisa de concreto aos cidadãos e em que os cidadãos se sentiam
mais ou menos comprometidos com essa ideia”.

295
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

diversidade1005. O sujeito poético equaciona, assim, um feixe de preocupações feito


“da sua paz, das suas guerras”, que busca o conhecimento de uma determinada
realidade, impossível de caracterizar na sua plenitude pelas diferenças registadas ao
longo de uma história multissecular1006. O segmento dubitativo “talvez não
saibamos nada dela”, reiterado na variação “talvez saibamos pouco”, apela para um
imperativo cívico de uma busca permanente do saber, em demanda da descoberta
da sua “presença matricial”1007. Reside neste aspecto a dignidade, entretecida de
humanismo e alicerçada no conhecimento desinteressado, em contraste com o
desejo de bens materiais, cada vez mais trivializados nas actuais sociedades 1008. A
Europa mais do que um fim em si mesmo, é, para o autor de A furiosa paixão pelo
tangível, uma encruzilhada enquanto comunidade plural de destinos e valores, o
que precisamente se justapõe ao dizer de Eduardo Lourenço: “Cada país europeu,
cada nação europeia é uma maneira de ser Europa”1009. Efectivamente, a construção
europeia norteia-se por uma inegável ambiguidade e apenas se realizará plenamente
quando se reencontrar a si própria, ou seja, resolvendo o presente a pensar no
futuro.
A panorâmica reflexiva da contemporaneidade, como decorre dos versos
enunciados, consubstancia-se simbolicamente sob o signo do palimpsesto, visto
que é através do diálogo travado com sombras fundadoras perpetuadas pelo legado
literário – de que Camões é figura tutelar –, que nasce a criação lírica. Com efeito,
na visão abrangente enunciada, pautada por uma dimensão comprometida da
realidade europeia, as questões suscitadas são parte integrante de um todo

1005
Em consonância com este perspectiva Graça Moura conclui: “A unidade europeia só poderá ter êxito se
conseguirmos realizá-la no quadro da diversidade cultural e linguística, valorizando devidamente o que é
próprio da dimensão cultural europeia: as suas raízes comuns, o imenso tecido que se formou ao longo dos
séculos em todas as áreas da cultura e cujas malhas se espelham e se respondem de modo caleidoscópico no
espaço e no tempo” (Vasco Graça Moura, A identidade cultural europeia, loc. cit., p. 83).
1006
Oliveira Martins sustenta que a “Europa é uma ideia, mais do que um continente”. Vide Guilherme
d’Oliveira Martins, “Ponto de encontro de identidades (Relatório final)”, in Isabel Capeloa Gil (coord.),
Identidade europeia: identidades na Europa, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2009, p. 157.
1007
Em consonância com este ideal, o Papa Francisco, ao receber o Prémio Carlos Magno, sublinha os
perigos que a Europa corre, pela renúncia às suas raízes culturais, essência primordial que ao longo dos
séculos a distinguiu: “Que te sucedeu, Europa humanista, paladina dos direitos humanos, da democracia e da
liberdade? Que te sucedeu, Europa terra de poetas, filósofos, artistas, músicos, escritores?”, in http://
www.imissio.net/v2/papa-francisco/discurso-integral-do-papa-francisco-na-entregadopremio-carlosmagno:
4431 (consultado em 22 Maio 2016).
1008
Sob o ideal grego de paideia, esta perspectiva cívica, que atravessa toda a sua obra, concebe a cultura
como criação e revelação, contributo indelével para a formação humana.
1009
Eduardo Lourenço, Pequena meditação europeia, Lisboa, Ed. Verbo, 2011, p. 22.

296
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

incindível, constituindo em Graça Moura, nas páginas críticas ou de produção


literária, um topos privilegiado para descortinar as principais linhas do seu
pensamento.
Assim, a riqueza da produção lírica de Graça Moura deriva, em grande parte, de
múltiplos núcleos estruturantes, vinculados a uma aguda dimensão histórica e
cultural, haurida em inúmeras referências, contributo fundamental para descortinar
um singular percurso estético, onde os temas abordados ocupam uma particular
centralidade.

297
4. Em demanda dos sentidos do mundo
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

4.1. Circunstância e poesia

4.1.1. A tentação da realidade

Os versos de Graça Moura condensam fragmentos de memórias, sentimentos,


episódios reais e ficcionais, num estilo intenso e emotivo, a que não é indiferente o
leitor. As palavras emergem, pois, da inquietante ternura dos gestos, de breves
contentamentos, de longas nostalgias, de lugares, da vida e da morte1010; em última
instância, o poeta explora, através da alquimia do verbo, a infinita complexidade da
realidade.
Assim, uma vincada dimensão autobiográfica, presente nas suas múltiplas
implicações significativas na produção literária do autor de Circunstâncias vividas,
configura determinados elementos estruturantes que mapeiam indubitavelmente um
vasto e rico território lírico1011. Sob este prisma, a sua poesia modela, como o
próprio autor diz, uma “escrita omnívora // do mundo” (PR1, 230), o que significa,
em primeiro lugar, uma vocação para captar a realidade, plasmada na lucidez das
suas preocupações, porque “a vida é feita de pequenas coisas [...] dos irremediáveis
actos que nos ficam” (PR1, 214). Tal acepção, complexa e precária, não permite
descortinar a veracidade decorrente do seu contexto de produção, marca indelével
de conjectura ficcional intrínseca a qualquer texto literário. Por conseguinte, as
grandes linhas de força de Graça Moura derivam, em grande medida, da

1010
Rosa Maria Martelo assinala esta tendência entre os autores nacionais: “A poesia dos anos 90 é
particularmente marcada pela articulação do poema com a experiência emocional do mundo, sendo esta
entendida não só num sentido puramente afectivo, mas numa relação que é simultaneamente sentimental e
heurística.” (Rosa Maria Martelo, “Anos 90. Poesia”, in Óscar Lopes e Maria de Fátima Marinho, História
da Literatura Portuguesa. As correntes contemporâneas, vol. VII, Lisboa, Ed. Alfa, 2002, p. 502).
1011
Sobre esta matéria, Eduardo Paz Barroso sustenta: “Poucas serão, como a de Vasco Graça Moura, as
vozes poéticas capazes de utilizar o discurso autobiográfico como material de criação, explorando as suas
vertentes lírica e irónica. Os múltiplos itinerários do autor, que o poema movimenta numa incessante busca
de sentidos refractários, dão lugar a uma espécie de metafísica do quotidiano, onde as palavras acabam
transmutadas em geografia interior. Lugar ambíguo onde o leitor caminha para também ele se procurar,
primeiro às cegas, depois mais solto no sono que é o trabalho do poema. A singularidade do trabalho poético
de Vasco Graça Moura, no que respeita à utilização de recursos autobiográficos como material de criação
literária, tem desde logo essa originalidade de transferir para o poético um conjunto de informações, alusões
existenciais, vivências e traçados que, na sua aparente objectividade, acabam por produzir uma deriva
conotativa” (Eduardo Paz Barroso, “Uma acústica do ‘eu’. A poética autobiográfica de Vasco Graça
Moura”, in Isabel Ponce Leão e Eduardo Paz Barroso (org.) Vgm. Cinquenta anos de vida literária, Porto,
Ed. Modo de Ler, 2012, p. 29).

301
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

circunstancialidade, constituindo paradigma evocativo dessa constante tentativa de


decifração do mundo o o excerto do poema soneto da poesia narrativa:

“foi assim que cheguei à poesia narrativa:


nos poemas moviam-se figuras
e a essas figuras aconteciam coisas
e essas coisas tinham um sentido deslizante,
era uma espécie de hipálage do mundo”. (PR2, 86)

Configuração do limiar da criação estética, a génese construtiva modela-se pela


palavra, decorrendo a sua relação com a realidade naturalmente dessa condição
verbal. Como se observa, o poeta, em demanda de um sentido para os seus versos,
apresenta a chave para a compreensão da sua produção poética; as “figuras” e “as
coisas” revelam uma intencionalidade lírica que nunca renuncia à novidade e ao
cunho pessoal, gerando uma singular mundividência. Por outro lado, a alusão à
“poesia narrativa”, característica indelével que emerge ao longo da sua obra, é
justificada de forma exemplar no texto acima transcrito. Este processo, que implica
uma determinada arte poética, remete para uma recriação que “tende para a prosa //
e a recusa”, como salienta Graça Moura (PR1, 414). Nesta linha de pensamento,
ganha também particular sentido a expressão “espécie de hipálage do mundo”, uma
vez que denota a preocupação estética da escrita, o que intensifica, por assim dizer,
o sentido ecléctico, dividido entre o imanente e o transcendente, dos seus textos1012.
A alusão aos recursos retóricos, com o fito da singularidade poética, surge reiterada
noutro passo: “A simples capacidade de produzir imagens metáforas, hipálages e
outras figuras encerra um princípio de ficção”1013. Deste modo, a ênfase concedida
no trecho acima transcrito ao sintagma “sentido deslizante” realça o efeito de
acumulação semântica como fundamento poético e, como se verá mais adiante,
permite um jogo inesperado entre a experiência vivida e a metamorfose poética da
realidade.
Esta acepção surge legitimada no poema, justamente intitulado traição.1996:

1012
Aguiar e Silva, a propósito deste passo lapidar de Graça Moura, destaca: “As pessoas e as coisas da sua
poesia narrativa têm um ‘sentido deslizante / são uma espécie de hipálage do mundo’, o que o mesmo é dizer
que são reais e sobrerreais. Esta visão do mundo refractada pela hipálage deve algo à liberdade e à errância
figurais da herança surrealistas” (Vítor Aguiar e Silva, “A outorga do Prémio Morgado de Mateus a Vasco
Graça Moura”, in op. cit., p. 175).
1013
Vasco Graça Moura, “A escrita e o real”, in JL. Jornal de Letras, Artes e Ideias, 17 Agosto 2005, p. 17.

302
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

“a mais verbal
traição das realidades,
oficinal e ficcional,
entre inverdades e verdades.” (PR1, 522)

O processo poético vincula-se, pois, à realidade, porém não rejeita os trilhos


recriativos oferecidos pelo concreto. Desta forma, a tónica dominante elucida, de
novo, uma certa apoteose da arquitectura lírica de Graça Moura:

“e as figuras serão também fumos de cinza,


sem poderem valer-me ou assistir-me.
só as mais cruéis estarão lá,
apertando-me a testa até ao fim,

dissipada a realidade, quando


a ordem natural das coisas for o caos,
com os versos que me deram
a martelar-me as fontes

na fronteira de perder as ironias


e o meu modo verbal de estar no mundo”. (PR2, 205)

Na verdade, o inquietante olhar sobre o mundo, primordial preocupação de


ordem estética, relembra o mesmo topos em Camões, quando cioso do
reconhecimento da sua capacidade artística, anuncia os pressupostos literários que
presidiram à sua obra, na contraposição do real ao fabuloso:

“Ouvi, que não vereis com vãs façanhas,


Fantásticas, fingidas, mentirosas”.1014

Voltando ao passo de Graça Moura, acima transcrito, a vivência, plasmada pela


palavra, desenha uma contínua intromissão do acento autobiográfico, sinal
distintivo pelo efeito de auto-representação, tal como se verifica nos versos
camonianos1015. É evidente, por conseguinte, um deliberado propósito das múltiplas
manifestações da atenção ao real, uma vez que está vocacionado para captar os
sinais do mundo, como afirma: “os poetas também sabem da vida / sobretudo os
que a foram escrevendo” (PR2, 304). Esta vertente evidencia um acentuado pendor

1014
Luís de Camões, Os Lusíadas, I, 11, loc. cit.
1015
Prado Coelho, quando trata do lirismo camoniano, salienta já essa faceta, patente em Graça Moura: “O
conjunto dos seus poemas líricos constitui, por assim dizer, um diário, uma longa série de confidências,
queixas e meditações. Mas, como a própria vida que flui, como próprio amor que nos domina, esse diário é
contraditório, vário, paradoxal” (Jacinto Prado Coelho, “Camões um lírico do transcendente”, in A letra e o
leitor, Porto, Ed. Lello & Irmão, 31996, p. 23).

303
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

maneirista de matriz camoniana, visto que a poesia é a imitação da realidade, nas


suas grandezas e misérias, facultando um rico campo exegético.1016
Pela importância de que se reveste a rica articulação de sentidos da sua escrita, o
poema auto-retrato com musa inscreve-se nestas coordenadas, quando Graça
Moura enumera o que procura nos seus versos:

“tantas coisas,
palavras, objectos,
sentimentos, paisagens,
também pessoas, claro.” (PR2, 349)

A criação lírica, provida de aguda consciência, configura, pois, uma continuada


indagação, afirmada numa mundividência singular, que não descura o propósito de
uma estruturação dotada de implicações biográficas. Os versos indiciam, por assim
dizer, um manifesto poético pela assumpção de um estreito laço entre a literatura e
a vida. Tal formulação, com um sentido global, segue de perto o magistério
camoniano, quando o vate quinhentista canta:

“Nestas fábulas vãs, tão bem sonhadas,


A verdade que eu conto nua e pura
Vence toda grandíloqua escritura.”1017

Como se observa, a complexa ambiguidade resultante da tentativa de


representação poética da realidade, processo de relacionamento entre o factual e o
fantástico, leva também Graça Moura a interrogar-se:

“o real será
a tradução da sombra
a intranquilidade
de existirmos? […]

o real será
a epígrafe
de sermos?

uma espécie de canto


que a música transcende?
uma realidade?” (PR1, 241)

1016
Esta acepção é formulada de forma magistral por Ramón de Campoamor no célebre passo: “Y es que en
el mundo traidor / nada hay verdad ni mentira: / Todo es según el color / del cristal con que se mira” (Ramón
de Campoamor, “Las dos linternas”, in Obras poeticas completas, Madrid, Ed. M. Aguilar, 61951, p. 149).
1017
Luís de Camões, Os Lusíadas, V, 89, loc. cit.

304
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

Em clave dubitativa, modelada pelas sucessivas interrogações, a escrita nasce de


uma singular figuração em demanda de “uma realidade”, ou seja, da busca de uma
singular inteligibilidade do mundo, imprimindo-lhe uma dimensão ontológica1018.
Isabel Pires de Lima, a propósito deste poema, salienta o sentido nuclear do labor
poético, que tem por “objectivo a construção / a figuração da realidade que permite
aceder ao real”1019, aspecto fulcral para o entendimento dos versos de Graça Moura.
De facto, o real afigura-se uma autêntica potencialidade criadora, não obstante uma
visão biografista é reducionista e indubitavelmente vazia de sentido; é precisamente
a tensão entre realidade e ficção, génese da poesia, que impulsiona Graça Moura a
explorar os limites de sentido e a prorrogar os códigos dominantes, com o intuito de
rasgar novos horizontes, propósito de larga fortuna que Camões não enjeitara, no
dizer de Fernando Gil.1020
Em torno desta uexata quaestio, o autor de a furiosa paixão pelo tangível,
consciente da complexidade daí decorrente, introduz uma enunciação interrogativa:

“como meter o mundo


num poema? traduzir-lhe
a áspera realidade, a doçura
intranquila?”. (PR1, 255)

Em registo auto-reflexivo, o sentido autoral, que se repercute ao longo da sua


obra, revela uma reiterada inquietação perante a “áspera realidade”, em demanda de
um significado profundo da vida. A verbalização da mundividência, a lembrar o
trecho camoniano “Agora o mar, agora experimentando / Os perigos
Mavórcios”1021, encerra determinados problemas suscitados pela representação
lírica; com efeito, a experiência vivida é transfigurada pela palavra, testemunhando

1018
Esta demanda incessante, comum a Camões e a Graça Moura, tem a sua origem no modelo petrarquista
pelos elos que, do ponto de vista programático, ligam a poesia à realidade (Cf. Rita Marnoto, O
Petrarquismo português do Renascimento e do Maneirismo, loc. cit., p. 387).
1019
Isabel Pires de Lima, “Entre dois mundos: referências clássicas na poesia de Graça Moura”, in José da
Cruz Santos (org.), op. cit., p. 94.
1020
Fernando Gil, sobre esta matéria, salienta: “Numa obra que, logo desde o eco virgiliano, remete para a
intertextualidade, Camões colocou um histórico e um mítico, o factual e o imaginário, os deuses e os
homens ao mesmo nível de representação estética. No centro dessa obra, no entanto, está o próprio poeta que
a escreveu e que explicitamente se assume não apenas como o seu autor, mas também como a sua
personagem exemplar, por virtude de em si ter reunido as verdades da experiência vivida, os ensinamentos
da cultura recebida, e a capacidade de as transformar numa nova significação totalizante. (Fernando Gil e
Hélder Macedo, “A poética da verdade d’Os Lusíadas”, in Viagens do olhar: retrospecção, visão e profecia
no Renascimento português, loc. cit., p. 121-122).
1021
Luís de Camões, Os Lusíadas, VI, 79, loc. cit.

305
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

as ténues fronteiras ente o concreto e a poesia, como justifica em jeito conclusivo:


“o mundo / é uma cópia dos livros” (PR1, 325)1022.
A indagação enunciada no sintagma “como meter o mundo / num poema?”
merecerá curiosamente resposta num poema publicado por vgm sensivelmente
vinte anos depois:

“uma vez perguntei como meter o mundo


num poema. nem aprendi, nem soube
se alguém tinha resposta em muito anos.
hoje entendo melhor as minhas dúvidas:

só no tempo de homero é que o mundo


cabia nalguns versos. depois deixou de haver
a mesma coincidência fulgurante
que fazia o real entrar pelas palavras dentro”. (PR2, 371)

Face a uma maturidade poética adquirida ao longo do tempo, o texto resulta


numa manifestação melancólica, tão intensamente explorada pelo autor, visto que
“só no tempo de homero é que o mundo / cabia nalguns versos”. Como defende
Eunice Ribeiro, não se trata de uma atitude passiva e meramente contemplativa,
mas de uma melancolia reactiva1023. A escrita de Graça Moura orienta-se, assim, na
almejada demanda da “coincidência fulgurante / que fazia o real entrar pelas
palavras dentro”, sinal referencial da pós-modernidade. Tal consciência
metaliterária, norteada pelo enlace do signo poético com as circunstâncias, afigura-
-se indubitavelmente no cruzamento entre os planos do discurso literário e da
realidade empírica1024. Também no modo narrativo, em Meu amor era de noite,
esta consciência autoral está presente na voz de Eugénia:

“Aprendi logo que mesmo as situações autobiográficas podem ser transformadas noutras e que,
mesmo nas que não têm nada a ver com a própria vida, acaba por se projetar qualquer coisa dela.

1022
Este topos, recorrente em Graça Moura, surge noutro passo, quando uma voz, que encarna a figura de
Camões, cita um passo do De crepusculis do pseudo Umbrano: “nihil est in mundo / quod prius non fuerit in
libro” (nada existe no mundo que antes não tenha existido em livro). Sobre este assunto, vide Sandra
Teixeira, “L’excès référentiel dans trois poèmes de V. G. Moura: un excès de mémoire”, in Débordements:
études sur l'excès, nº 13, Octobre 2006, pp. 91 sqq.
1023
Eunice Ribeiro afirma que a melancolia do autor se afasta da tese contemplativa preconizada por
Claudio Magris e tende preferencialmente para “uma melancolia reactivamente, demiurgicamente,
transformativa e refiguradora” (Eunice Ribeiro, “Retrato do poeta como artista”, in Eduardo Lourenço e Rui
Vieira Nery (coord.), Colóquio Homenagem a Vasco Graça Moura, loc. cit., 2014, p. 65).
1024
Para abordar a relação entre a vertente autobiográfica o texto literário, vide o estudo fundamental de
Philippe Lejeune, Le pacte autobiographique, Paris, Ed. Seuil, 1975.

306
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

Sempre foi assim do vulnerável Vergílio como à infeliz Carson McCullers. O que não se pode é
perder o pé na ficção, nem ter pena das personagens”. 1025

O passo transcrito coloca a tónica na depuração criativa da circunstância, visto


que a realidade constitui uma forma concreta e imediata para se metamorfosear em
“qualquer coisa”, possibilidade criadora de que está investida a literatura de todos
os tempos – do “vulnerável Virgílio” à “infeliz Carson McCullers”. Assim, a
conjugação da vida com as alusões livrescas faz jus ao célebre passo camoniano:

“Nem me falta na vida honesto estudo,


Com longa experiência misturado,
Nem engenho, que aqui vereis presente,
Cousas que juntas se acham raramente.” 1026

Este ponto da relação da escrita com o mundo apresenta evidentes implicações


semânticas; com efeito, o passo transcrito debruça-se sobre a perplexa demanda
entre verdade e ficção, afinal a essência da criação literária, que Camões e Graça
Moura vivem com particular intensidade e lucidez.
Como se observa, nesta poética que Octavio Paz cunhou de “consagração do
instante”1027, o olhar contemporâneo, fortemente reflexivo, conjuga a memória com
o presente das coisas, das pessoas e dos lugares, com o fito da transfiguração
poética1028. O desejo veemente de apreender o real no poema revela-se de múltiplos
modos, sendo que as circunstâncias vividas pelo poeta apresentam uma
significativa recorrência e fornecem um claro exemplo da escrita autobiográfica do
autor, que não se cinge à poesia1029. Na esteira de Jorge de Sena, que enuncia “toda

1025
Vasco Graça Moura, Meu amor era de noite, loc. cit., p. 118.
1026
Luís de Camões, Os Lusíadas, X, 145, loc. cit.
1027
Octavio Paz, “A consagração do instante”, in Signos em rotação, S. Paulo, Ed. Perspectiva, 31996, p. 51.
1028
Nesta linha, em nota final a Alfreda ou a quimera, vgm sustenta: “Ao longo do romance, vários textos de
circunstância, alguns inéditos, outros obscuramente publicados, ou então curtos fragmentos deles, foram
sendo incorporados na trama narrativa, por, em meu entender, fazer sentido cerzi-los em determinadas
passagens e eles contribuírem para caracterizar melhor personagens, ambientes e situações. Na verdade, um
romance é o culminar de muitas reflexões e muitas experiências da vida e da escrita” (Vasco Graça Moura,
Alfredo e a quimera, Lisboa, Ed. Bertrand, 2008, p. 235).
1029
Sobre a fortuna da poesia de circunstância, Paul Éluard, na esteira do pensamento de Goethe, preconiza:
“El mundo es tan grande, tan rico, y la vida ofrece un espectáculo tan diverso que nunca faltarán temas para
la poesía. Pero es necesario que esta sea siempre de circunstancia, es decir, que la realidad suministre la
ocasión y la materia […]. Mis poemas son todos de circunstancia, porque se inspiran, se fundan y reposan en
la realidade. Yo no tengo que hacer poemas que no traten de nada” (Paul Éluard, Oeuvres complètes, vol. 2,
Paris, Ed. Gallimard, 1968, p. 934, apud Fernand Cabo Aseguinolaza (org.), Teoría sobre la lírica, loc. cit.,
p. 140).

307
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

a poesia é circunstancial”1030, Graça Moura tem perfeita consciência dessa


perspectiva, como esclarece:

“As circunstâncias que levam à génese do poema prendem-se, portanto, e frequentemente, com
intensificações de um dado tipo de memória, ou de situação, ou de jogo das ficções e das palavras
com elas, no próprio acto de eu as formular funcionalmente na perspectiva de escrita desse poema”
(PR2, 103-104).

Sendo fingimento, a criatividade não deixa de trazer à superfície dos textos uma
determinada verdade autobiográfica, encenada por Graça Moura.
Neste contexto, que preza o instante, norteado pelo limiar do efémero, uma
baleia encalhada numa praia do Norte dá o mote ao poema 1. maneiras
oitocentistas:

“este é caso flácido da baleia morta


que deu à costa perto da póvoa do varzim
que o bicho morreu ninguém se importa
tinha morrido há muito e estava tida torta.
em todo o caso bem dava um folhetim.” (PR1, 428)

Este caso fortuito constitui um pretexto para desencadear, a partir da realidade, a


criação1031, porque “em todo o caso bem dava um folhetim”, ressonância deliberada
de um célebre passo de Cesário Verde1032. Com efeito, o sujeito de enunciação
integra, em tom irónico, experiências pessoais no tecido discursivo, num claro jogo
de combinação da vida com a escrita.
Esta poética, caracterizada pela ocasião, onde o eu se projecta na própria escrita
e configura uma peculiar mundividência, é marcada por momentos diversos, como
este:

“uma vez no benim, o ministro da


cultura, que parecia enrolado numa capulana […]

tirou uma serpente e


passou-ma para as mãos. decerto a minha
imunidade era mais do que diplomática, porque
o réptil não fez mal nenhum. […]

1030
Jorge de Sena, Poesia II, Lisboa, Ed. 70, 1978, p. 20.
1031
Em entrevista a João Luís Barreto Guimarães (“Conversa com Vasco Graça Moura”, in http://poesia
ilimitada. blogspot.pt/ 2006/ 04/conversa-com-vasco-graca-moura.htmlpoesia & lda. - consultado em 12
Agosto 2016), vgm destaca a preocupação crucial que concede à realidade na sua produção lírica: “As
palavras estão presas ao real. Não há praticamente nenhuma poesia, nenhuma literatura, que sobreviva se
não houver uma especial coerência entre elas e a realidade”.
1032
No poema De tarde, Cesário Verde, na descrição do “pic-nic de burguesas” anuncia: “Em todo o caso
dava uma aguarela” (Cesário Verde, Cânticos do realismo: o livro de Cesário Verde, loc. cit., p.130).

308
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

só me lembrei dos diálogos dos mortos


de luciano de samósata, onde se lê,
entre outras perorações niveladoras,
que filipe e alexandre no outro mundo

se reconhecem como pai e filho.


já desde a macedónia. sem serpentes.
depressa desmontando aquela fábula
e com uma evidência desarmante”. (PR2, 11-12)

A capacidade invulgar de gritante autenticidade patenteada neste texto, justifica


“a dimensão autobiográfica” 1033, no dizer de vgm, da sua poesia, sem, no entanto,
deixar de lhe associar um cunho culturalista, pela introdução da inesperada
associação explícita no encontro de Filipe e Alexandre Magno no Hades, referida
no Diálogo dos mortos de Luciano1034. O poema afigura-se, pois, um repositório de
memória – pessoal e cultural –, reunida segundo o obsessivo modelo biográfico da
concepção sugerida nos versos iniciais, a propósito de uma compra, aproximando-
-se de elementos que caracterizam geralmente a narrativa.1035
A memória haurida numa viagem, com a valorização expressiva do pendor
episódico, característica indelével da poética de Graça Moura, volta no trecho do
poema ariadne em naxos:

“em bombaim, na quitanda


de um velho árabe desdentado
comprei uma peça de talha europeia
de seculo e tema ignorados.
eu diria que se trata de baco e ariadne”. (PR2, 18)

1033
Em entrevista, não é por acaso que, em torno deste poema, Graça Moura apresenta a seguinte acepção
desta vertente lírica: “Prefiro pois falar de ‘dimensão autobiográfica’ no especial sentido em que a minha
escrita, regra geral, supõe e propõe uma factualidade cujo nexo pessoal com o autor induz a matéria mesma
daquela ressonância a que chamamos poética. Um bom exemplo disso é o poema ‘a serpente e eu’. É
rigorosamente verdadeira a situação inicial descrita: há alguns anos estive no Benim e tive de segurar uma
serpente viva que me foi passada para as mãos pelo ministro da Cultura daquele país. Mas só a leitura de
Luciano de Samosata é que me ‘produziu’, já em 1997, o poema correspondente. Por sua vez, a simulação
essencial neste caso está em se ter operado uma simultaneidade entre a situação fáctica descrita e a reflexão
sobre Alexandre Magno” (PR2, 103).
1034
Luciano, Diálogos dos mortos, introdução, versão do grego e notas de Américo da Costa Ramalho,
Coimbra, Instituto Nacional de Investigação Científica, 1989, pp. 58-60.
1035
Sobre as ténues fronteiras entre a lírica e a narrativa, recorrentes na obra do poeta contemporâneo,
sobretudo na sua faceta autobiográfica, vide Sandra Teixeira, “Vasco Graça Moura, um poeta que tende para
a prosa e a recusa…”, in Revista Colóquio-Letras, nº 173, Janeiro-Abril, 2010, pp. 76-83.

309
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

Como se lê, de novo o contexto exótico sugerido por Bombaim centra-se na


compra de uma “peça de talha europeia”, que contém a alusão mitológica de Baco e
Ariadne.1036
A atracção que o real exerce na escrita de Graça Moura continua patente no belo
soneto pax rustica, uma ironia:

“atravesso o pinhal. o meu cão salta.


fulvo tigrado ele é da cor do mato.
por entre o tojo escapuliu-se um gato
e liga as copas uma nuvem alta.

evito a estrada e o seu traçado exacto


que a lentidão municipal asfalta.
antes o cimo em que o pulmão se exalta
e as pinhas vêm à ponta do sapato.

restolho e urze, giestas, estalidos


de folhas secas, água a correr, ruídos,
vozes distantes chamam dos quintais.

já o sol vai a pino. já no ermo,


como a manhã, todo o prazer tem termo:
chegado à vila, vou comprar jornais”. (PR1, 484)

A possibilidade de olhar o mundo pelo prisma da poesia, numa sugestão de paz e


serenidade, surge configurada logo pelo título, num texto publicado em 1995, na
colectânea Sonetos Familiares. A importância do cenário natural convocado,
sugestão do ideal horaciano da aurea mediocritas, de larga fortuna na literatura, é
enfatizado pelo segmento do título em latim: “pax rustica”. Deste modo, Camões
ecoa nestes versos por via da natureza, que é explorada de modo inovador1037; os
sentimentos são reflectidos na natureza por sensações visuais (“sol ao pino”) e
auditivas (“vozes distantes”). Este referencial privilegiado na construção da
subjectividade lírica determina não só uma mera descrição bucólica, mas também
desenha uma articulação de sentidos, fundamental para plasmar um discurso

1036
Segundo uma versão deste célebre mito, Teseu abandona Ariadne na ilha de Naxos. A filha do rei de
Minos é, então, acolhida por Baco, que a toma como esposa. (Cf. Pierre Grimal, Dicionário de mitologia
grega e romana, Lisboa, Ed. Difel, 1992, pp. 45-46).
1037
O mundo rural vivenciado é apresentado no poema canção prosaica, quando recorda nos versos
inaugurais: “o meu vizinho vem tratar da vinha /aqui ao pé de casa. sei que é dono / de um pequeno trator de
que gralha o motor / a gasóleo, e sei que este ano deu / excelentes maçãs de que sobra / uma açafata cheia”
(PR2, 426).

310
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

imagético, formulação essa que problematiza a ponte entre a linguagem poética e o


mundo1038.
No entanto, regressa ao contexto envolvente, quando canta que “todo o prazer
tem limites”; determinados referentes, como o asfalto e os jornais, pertencem ao
tempo do poeta1039, que canta “escrevo, escreverei para espelhar a realidade” (PR2,
521) revela, atrás da força anafórica das formas verbais, um desejo incessante, na
demonstração de um singular projecto estético: a escrita é presente e será futuro.
Nesta linha de pensamento, Paz Barroso sustenta:

“Poucas serão, como a de Vasco Graça Moura, as vozes poéticas capazes de utilizar o discurso
autobiográfico como material de criação, explorando as suas vertentes lírica e irónica. Os
múltiplos itinerários do autor, que o poema movimenta numa incessante busca de sentidos
refractários, dão lugar a uma espécie de metafísica do quotidiano, onde as palavras acabam
transmutadas em geografia interior.”1040

Como se observa, a importância dos versos do poeta verifica-se em situações


localizáveis e identificáveis no seu percurso pessoal. A compreensão da existência
observa-se, em primeira instância, pela escrita, o que revela que se trata de um
inevitável exercício transformativo. É neste sentido que vgm fala da dimensão
autobiográfica dos seus textos; no entanto, não se julgue que os versos são uma
representação biográfica fiável e segura, como adverte o autor em paratexto final a
Poemas Escolhidos: “a poesia é para mim também uma espécie de desdizer”1041.
Por conseguinte, nunca se esquece de que “a vida é feita de pequenas coisas / […]
dos irremediáveis actos que nos ficam” (PR1, 214) e cujo sentido único parece
indecifrável: “não há mentira, nem verdade, apenas os fragmentos / de arremedo e
despedida” (PR1, 300).1042

1038
Sobre este assunto, Antonio Maravall dá relevo às imagens estéticas que veiculam, entre outras, a ideia
de circunstancialidade, transmissora de uma mensagem de carácter ético (José Antonio Maravall, La cultura
do barroco, loc. cit., p. 254-256).
1039
Este cenário campestre, sugerido pelo autor com o seu cão “fulvo trigado”, ilustra uma fotografia, que
acompanha uma entrevista, na sua propriedade em Glória do Ribatejo (“Vasco Graça Moura: A Portugal
está a faltar muita poesia”, entrevista concedida a Isabel Nery, in Revista Visão, 20 Março 2014, p. 94).
1040
Eduardo Paz Barroso, “Uma acústica do ‘eu’. A poética autobiográfica de Vasco Graça Moura”, in
Isabel Ponce Leão e Eduardo Paz Barroso (org.), in op. cit., p. 29.
1041
Vasco Graça Moura, Poemas escolhidos 1963-1995, loc. cit., p. 473.
1042
Como explica num paratexto à sua poesia, Graça Moura descreve, em sentido programático, os
horizontes e os fundamentos da sua experiência lírica: “A base autobiográfica que um poema porventura
tenha não prejudica um grau de despersonalização que o torna susceptível de eficácia poética junto do
destinatário. A afirmação é do senso comum, muito embora essa base não colida com os vários graus
possíveis e necessários de insinceridade, encenação, simulação, ficcionalização, e mais tudo aquilo em que a
teoria literária costuma gastar centenas de páginas. Nem todos os poemas que se escrevem narram uma

311
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

A relação da escrita com o mundo adquire, com efeito, um particular significado


em vgm. Os inúmeros feixes semânticos que irradiam da captação episódica da
realidade desencadeiam um inovador e variado processo poético. Nessa
representação, marcada por um vincado eclectismo, as impressões líricas hauridas
nas circunstâncias do quotidiano, revela um sujeito de enunciação atento ao que o
rodeia, em busca dos imperscrutáveis sentidos da vida. Configura-se, a partir daí,
uma peculiar cosmovisão, marca indelével de toda a produção poética de Graça
Moura.

4.1.2. As pessoas: memórias e afectos

Graça Moura possui uma admirável capacidade de recriar situações onde se


movem figuras, suscitando um notável enquadramento de sugestões e alusões.
Desta forma, o poeta concede uma particular atenção à condição humana, fazendo
jus à máxima preceituada por Terêncio: “Nada do que é humano me é alheio”.1043
Tal consciência – ontológica, mas também estética – surge sintetizada num dos
poemas iniciais de uma carta de inverno:

“em cada verso insinuo


um metal, uma rasura,
uma voz, uma figura,
um avanço e um recuo.” (PR1, 525)

Esta inclinação para o concreto conflui num largo filão de adesão aos frémitos e
às vicissitudes do quotidiano; o sujeito de enunciação dá conta que “o poema / é um
ruído modelado / de gente” (PR2, 33), a quem acontece coisas num determinado
tempo e espaço, com o adjectivo “modelado” a marcar uma “necessária
semiotização do discurso poético”, no dizer de Aguiar e Silva1044. Este pressuposto
ecléctico, de facto, configura um discurso de afectos fundidos em experiências

experiência apenas historicamente situada ou caracterizada do autor. Mas muitos transportam a marca dela e
todos propõem uma experiência e uma possibilidade de simulação carregadas de sentido ao próprio leitor,
‘como se tivesse sido ele a’... É exactamente por isso que são poemas” (Vasco Graça Moura, “Poesia e
autobiografia”, in Poesia 1997-2000, Ed. Quetzal, 2000, p. 185).
1043
Terêncio, “O homem que se puniu a si mesmo”, in Comédias, vol. I, introd., trad. do latim e notas de
Walter de Medeiros e Aires do Couto, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2008, p. 219.
1044
Cf. Vítor Aguiar e Silva, “A outorga do Prémio Morgado de Mateus a Vasco Graça Moura”, in op. cit.,
p. 174.

312
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

biográficas, a que não são alheios os próprios títulos dos seus livros, como por
exemplo, poemas com pessoas ou sonetos familiares.1045
Por consequência, o fulgor pelo quotidiano, onde se modelam os gestos e os
vultos do dia-a-dia, as pessoas ocupam um lugar primacial; em madrigal do peixe
fresco, a figura típica da varina é destacada:

“vendes polvos, tamboris,


carapaus, raias, tainhas,
azevias e sardinhas
e com gestos senhoris
enquanto vendes te ris
das furiosas vizinhas
senhoras do seu nariz […]

fazem um grande escabeche


com inveja da mais pura
dos tabuleiros de peixe
que te chegam à cintura
a rematar-te a figura
e a pôr-lhe um brilho que mexe
de escamas a meia altura”.1046

O poeta dirige-se a um tu feminino, desde logo, identificado pelos referentes


alusivos à sua actividade de varina – “vendes polvos, tamboris / carapaus”… –
que, pela sua beleza, se distingue das outras mulheres a pontos de provocar
“inveja”1047. A espontaneidade da figura, que incomoda também pela sua beleza
natural – a lembrar a Leanor camoniana – distingue-a das “furiosas vizinhas”; a
nível fónico o lexema final do verso “senhoras do seu nariz”, apresenta uma
concordância fónica com “tamboris”, “senhoris” e “ris”, revelando, em tom irónico,

1045
Com significativa pertinência, Paz Barroso sintetiza a vertente enunciada: “Mas esta influência
culturalista, que não se deve confundir com exercícios de erudição, é essencialmente transposição para a
dimensão literária de uma certa experiência da vida, da fruição estética, do gozo e ressonância dos sentidos.
Depois, o poeta é trabalhado interiormente por imagens e sons que contaminaram a sua existência, as suas
preocupações e afetos, os seus amores e desamores. Acontece, porém, que em VGM a intensidade do real
passa, por assim dizer intacta, para a matéria do poema o que lhe confere uma singular vibração da palavra”
(Eduardo Paz Barroso, “Ressonância de uma meditação poética”, in As Artes entre as Letras, nº 75, 30 Maio
2012, p.7).
1046
Vasco Graça Moura, “letras do fado vulgar”, in Poesia 1997-2000, loc. cit., p. 223.
1047
A continuada intenção de captar o mundo plasmada pela invulgar capacidade de convocar vivências,
caracterizadas na sua individualidade, Graça Moura centra-se também noutras figuras femininas: “as
mulheres lavando roupa”, (PR2, 44) ou “a costureira” (PR2, 23). Os quadros sugeridos têm explícitas
afinidades com Cesário Verde, poeta oitocentista que, no dizer Óscar Lopes, cantou os calafates, os
carpinteiros, as varinas, a hortaliceira e a engomadeira. As personagens evocadas não se reduzem a meras
sombras, visto que são “recortadas nas suas circunstâncias de tempo e de lugar, na sua indumentária ou na
sua gesticulação característica” (Óscar Lopes, “Cesário Verde ou do Romantismo ao Modernismo”, in Entre
Fialho e Nemésio. Estudos de literatura portuguesa contemporânea, vol. II, Lisboa, Imprensa Nacional-
-Casa da Moeda, 1987, p. 470).

313
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

o desagrado das mulheres face à varina. Por último, nesta exaltação de um retrato
vivo da sensualidade feminina, num enquadramento marítimo, surge ainda a
representação imagética da sereia, sugerida pela notação conotativa das “escamas a
meia altura”.
No poema como num filme surge de novo a figura feminina anónima:

“uma mulher com seus passos sonâmbulos


numa rua deserta de lisboa,
tendo, como num filme, a lua a modelá-la,
a acetinar um halo em sua pele

de calcário e centeio e a alucinar a noite


entre cheiros de sombra e lúcia-lima,
quando de uma janela se entreabriam
espumas de uma música impossível,

circunstâncias anódinas impressas


algures na alma, rimando e desrimando.
era helena de tróia, briseida, pentesileia
uma figura do desejo outra vez iluminada”. (PR2, 164)

Aspecto marcante da poesia de vgm são as circunstâncias espaciais e temporais


– “rua deserta de lisboa” de “noite”; estas alusões, primordiais na génese do poema,
assinalam um vincado cunho concreto. No entanto, este quadro é intensificado por
uma certa memória, filtrada por um processo culturalista, assíduo recurso
compositivo dos seus versos. As figuras da Antiguidade, “helena de tróia, briseida e
pentesileia” representam a atracção pela beleza que o poeta vê naquela “figura do
desejo”. Com efeito, o cenário sugerido materializa-se na revisitação do imaginário
mitológico, contextualizado na contemporaneidade, enfatizada na hipálage “passos
sonâmbulos” ou na sinestesia “cheiros de sombra”, recursos expressivos que
enleiam sentidos na demanda sempre procurada, porém difusa, do concreto. Este
processo compositivo, que entretece momentos da realidade com marcas cultas
hauridas na mitologia, é similar, por exemplo, ao episódio camoniano do Velho do
Restelo, quando a personagem de “aspeito venerando” se socorre da mitologia para
legitimar, no seu lamento, o elevado sacrifício humano decorrente da aventura
portuguesa:

“Trouxe o filho de Jápeto do Céu


o fogo que ajuntou ao peito humano,

314
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

fogo que o mundo em armas acendeu


em mortes, em desonras (grande engano!).”1048

O fogo que Prometeu, “filho de Jápeto”, trouxe aos homens acabou por
constituir uma acção funesta, visto que possibilitou o fabrico de armas, culminando
“em mortes, em desonras”. Como se verifica esta estratégia discursiva camoniana
colhida na erudição mitológica, também do agrado de Graça Moura, constitui um
dos motivos legitimadores da severa crítica do ancião.
Porém, nesta galeria de representações humanas, surgem figuras reais ligadas ao
círculo de amigos do poeta contemporâneo; em testamento de vgm, espécie de
auto-retrato poético e testemunho vivo da sua época, ao jeito de François Villlon,
não ignora determinados vultos de cultura e artistas das suas relações e presta-lhes
sentido e sincero tributo:

“aos meus amigos, ao martim,


aos mangualdes, ao cruz dos santos
ao miguel veiga e ao domin-
gos de oliveira e sem espantos
pacheco p’reira e mais uns quantos,
deixo um lugar neste quadro,
se me levarem agapantos,
saibam quanto lhes fico grato.” (PR2, 253)

A convocação de amigos revela uma estreita comunhão de sentimentos que


perdurará até ao fim da vida1049. José da Cruz Santos, dinamizador activo da cultura
portuguesa, empreendeu um sem-número de promoções editoriais, exposições e
colóquios; nesse labor em prol das letras nacionais, publicou grande parte das obras
de vgm e, com particular empenho, promoveu diversas iniciativas culturais de
inestimável importância para o conhecimento e divulgação da obra de Graça
Moura1050. Exemplo ilustrativo dessa relação recíproca de amizade e admiração,

1048
Luís de Camões, Os Lusíadas, IV, 103, loc. cit.
1049
Em Páginas do Porto, como nos célebres catálogos homéricos, vgm enumera, de modo emotivo, muitos
dos seus amigos ou de figuras com quem tinha afinidades (Vasco Graça Moura, Páginas do Porto, Porto,
Ed. Asa, 2001, pp. 86 sqq).
1050
A qualidade editorial de Cruz dos Santos, fruto de uma singular sensibilidade, destaca-se no relevo
concedido particularmente à publicação de poesia, que faz na sua actual editora Modo de Ler um marco
representativo no panorama dos livros nacionais. A título ilustrativo, testemunho de um labor exemplar,
destaque-se a sua intensa actividade em diversas editoras, cruciais para a divulgação das letras portuguesas:
Portugália, Inova, Ouro do Dia e Asa.

315
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

verifica-se nas cartas publicadas, que integram a vasta correspondência trocada,


expressão em tom familiar de uma opinião pessoal:

“Dr. Vasco Graça Moura


Querido Amigo
Não tirei apontamentos durante a leitura de Alfreda, ou a Quimera. O que conseguir dizer-lhe
das minhas impressões de leitor reteve-o a memória. Se lá não ficou houve para isso alguma razão.
Começo pelo fim: estou em crer que pela fluidez de narrativa e naturalidade dos diálogos e pela
harmonia da construção este é o seu melhor romance. Ainda que numa ou outra passagens ceda um
pouco seu pendor ensaístico.
Há um capítulo que não aprecio de todo, não pelo tema, que aliás aparece tratado com certa má
vontade, mas por algumas descrições de um algum mau gosto: Noites Negras. Reparei no nome
Madruga que conheceu da homenagem na Feira do Livro ...”1051

Estas palavras revelam, pois, pormenores evocados de um itinerário marcado


pela amizade e cumplicidade literária. No entanto, o apreço é recíproco, o autor de
modo mudando dedica poemas a Cruz dos Santos Mudando, como se observa, a
título exemplificativo, em glicínias (PR2, 406) e um homem gostava de
glicínias...1052 Este último texto surge integrado numa homenagem colectiva ao
editor constituída por escritos, pinturas e desenhos, intitulada Alameda das
glicínias. Pinturas e poema para um aniversário:1053

“um homem gostava de glicínias, de ver, de respirar


o seu arabesco perfumado pelas tardes de verão.
e também gostava de palavras, do modo como elas
se afirmam contra a morte. […]
e hoje vemos isto; um homem, o seu trabalho,
a sua sóbria dignidade
de amigo simples das palavras e das glicínias
dando a mão aos amigos e dizer-lhes calmamente
sim, esta é a minha vida.”1054

1051
José da Cruz Santos, “Vasco Graça Moura. Querido Amigo”, in As Artes sobre as Letras, loc. cit., p. 6.
1052
No que a esta questão diz respeito, de entre muitos exemplos possíveis, destaque-se, em nota final, o
agradecimento ao editor pela “paciente generosidade” de ler o original de Quatro últimas canções em
fotocópias (Vasco Graça Moura, Quatro últimas canções, loc. cit., p. 177). Por seu turno, o editor de Modo
de Ler realizou uma homenagem no Porto intitulada 5 Esboços para um retrato de Vasco Graça Moura
(http:// expresso.sapo.pt/cultura/vasco-graca-moura-recordado-no-porto=f876009 - consultado em 20
Janeiro 2017). Também, um ano após a morte de Graça Moura, a editora Modo de Ler, em parceria com os
bancos BPI e BCP, a Fundação Gulbenkian e a Edições Afrontamento, anunciou novo prémio literário
dedicado à poesia, invocativo da figura do autor (“Modo de Ler lança Prémio Vasco Graça Moura”, in
https://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/modo-de-ler-lanca-premio-vasco-graca-moura-169385028/4/
/2015 - consultado em 1 Outubro 2016). No entanto, embora tivessem participado mais de 200 obras, o
prémio não foi atribuído.
1053
José da Cruz Santos (coord.), Alameda das Glicínias. Pinturas e poemas para um aniversário,
apresentação de Miguel Veiga, prefácio de Laura Castro e Luís Miguel Queirós, Porto, Ed. Modo de Ler,
2015.
1054
Vasco Graça Moura, “Um homem gostava de glicínias”, in JL. Jornal de letras, Artes e Ideias,
23 Dezembro 2015, p. 32.

316
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

O eu de enunciação entoa um hino à estima profunda, através de um retrato da


personalidade de Cruz dos Santos, revelador do modo de ser de uma figura sensível
e solidária, pelo modo como dá “a mão aos amigos”1055. Neste contexto poético, a
glicínia, símbolo da amizade no Japão, é uma flor predilecta do conceituado
editor1056; este não se esquece deste poema e, num texto dedicado a vgm depois da
sua morte, surge referenciado o significado dessa flor ligado aos afectos
humanos.1057
Nesta rememoração de cumplicidades de Graça Moura, o indefectível amigo
Miguel Veiga1058 é evocado, por exemplo, na epígrafe de coubert: l’origine du
monde (PR2, 182) e na dedicatória de caderno de nuvens, derradeira colectânea
poética, em que explicitamente consta: “para a belicha e o miguel” (PR2, 498).
Reforço desses vínculos amigos e duradouros, o poema carta a miguel veiga (PR2,
321) saiu no volume Porque a amizade é o mais belo lugar do mundo, homenagem
dedicada ao jurista portuense e editada por José da Cruz Santos1059. Note-se que as

1055
Ao que esta questão diz respeito, Vasco Graça Moura conheceu como poucos a actividade editorial.
Nesta área, foi um importante divulgador de livros e autores – muitos dos quais não seriam conhecidos –
pelas responsabilidades na Imprensa Nacional-Casa da Moeda e, posteriormente, na Comissão dos
Descobrimentos, o que levou Mega Ferreira a sublinhar: “Para lá do vigor na sua obra literária, é como
editor que a obra de VGM mais definitiva e duradouramente me aparece marcar a vida cultural portuguesa”
(António Mega Ferreira, “O editor memorável”, in JL. Jornal de Letras, Artes e Ideias, 14 Maio 2014,
p. 14).
1056
Miguel Veiga curiosamente destaca o particular gosto de editor, também amigo comum de vgm, por
aquela flor num texto de apresentação numa colectânea que lhe foi dedicado: “Cultivador de flores, deleitado
com as subtis e delicadas glicínias da sua afeição, e do seu encantamento, Cruz Santos é, da cabeça aos pés,
um criador fascinado e silencioso das glicínias, o objecto desejado dos seus desejos, dos seus sonhos e dos
seus afectos mais entranhados e encantados” (José da Cruz Santos (coord.), Alameda das glicínias. Pinturas
e poema para um aniversário, loc. cit., p. 8).
1057
José da Cruz Santos, “Diálogo que nunca termina”, in JL. Jornal de Letras, Artes e Ideias, 14 Maio
2014, p. 15.
1058
Miguel Veiga, reconhecido advogado, político e homem de cultura do Porto, acentua o percurso similar
dos dois amigos: “Pertencemos àquela família cultural e política (e, até de vez em quando, nos parecemos,
pois então, como ‘políticos’) que não reconhece certezas nem admite tabus, que toma a verdade apenas
como direcção do seu agir e nunca como realidade possuída, tentando esclarecer a opacidade do mundo e
compreender a diversidade dos homens, fiel à única medida da verdade que a vida nos concede: a nossa
razão humana” (Miguel Veiga, “ Sobre Vasco Graça Moura”, in José da Cruz Santos (org.), Modo mudando.
Sete ensaios sobre a obra de Vasco Graça Moura, loc. cit., p. 114). Vide ainda um outro texto que rasga um
sentido elogio ao amigo, expressão de uma comunhão, patente no gosto comum pelo Porto: “Poucas
pessoas terão sabido falar do Porto como o Miguel Veiga, captar-lhe a dimensão burguesa e popular, a altiva
tradição cívica e a pungente humanidade, a luminosidade da paisagem, entre granito, rio e mar, o registo
urbano e a modulação intimista, a dimensão prática e a dimensão poética, ou, se se quiser, e como ele diz
numa imagem extraordinária, o ‘sotaque do ser’. Somos ambos portuenses e fozeiros de gema e muito
amigos há mais de trinta anos” (Vasco Graça Moura, “Miguel Veiga. O portuense”, in Artur Santos Silva et
alii, Miguel Veiga. Cinco esboços para um retrato, Porto, Ed. Modo de Ler, 2011, pp. 47).
1059
Segundo o jornal Público, de 1 Junho 2007, participaram entre outros, Mário Soares, Artur Santos Silva,
Mário Cláudio, Marcelo Rebelo de Sousa e Nuno Júdice (Vide Luís Miguel Queirós, “Miguel Veiga, um

317
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

referências evocadas traduzem um claro exemplo da ligação entre os três homens


de cultura.
Assim, recentemente o mesmo editor traz a lume outra colectânea de textos de
personalidades relevantes e amigas, dedicados ao referido vulto, quando completou
80 anos de vida e a que chamou O Porto de Miguel Veiga1060. Nas badanas deste
livro surge um excerto de um poema de vgm sobre o amigo, prova inequívoca de
um círculo que envolve Miguel Veiga, José de Cruz Santos e Graça Moura.
Em carta a miguel1061, a lembrar os poemas quinhentistas de António Ferreira ou
de Sá de Miranda, acrescido no incipit do poema da fórmula convencional do
vocativo “miguel”, constitui uma estratégia discursiva do sujeito poético no intuito
de prestar um franco tributo ao interlocutor.

“miguel, o mar atlântico parece


que entra no quarto andar pela varanda
e a casa em luz salina lhe humedece, […]

na pacatez fozeira da avenida,


tempos de maresia e liberdade,
e nesse carpe diem faz da vida

a praia privativa na cidade,


entre livros, pintura, honesto estudo
a que mistura o culto da amizade, […]

aí, entre a cidade e o atlântico,


quem é sagaz, sensato e ponderado
sem perder o fulgor de ser romântico”. (PR2, 321-322)

O modo como se organiza essa homenagem a uma figura da “pacatez fozeira”


tem em vista exaltar as qualidades intelectuais de Miguel Veiga, “entre livros,
pintura, honesto estudo”, a que não é alheio “o culto da amizade”. Este ideal sugere
a lapidar expressão camoniana do “honesto estudo”, símbolo de uma vasta cultura
haurida no conhecimento livresco. Nos derradeiros versos, os atributos sintetizam a
personalidade do advogado portuense, “sagaz, sensato e ponderado”. Nestes versos

cavalheiro excêntrico”, in https://www.publico.pt/temas/jornal/miguel-veiga-um-cavalheiro-excentrico-2170


82 - consultado em 1 Agosto 2016).
1060
José da Cruz Santos (coord.), O Porto de Miguel Veiga. Fotografias, poemas, prosa & outros lugares
poéticos, Porto, Ed. Modo de Ler, 2016.
1061
No Jornal de Letras, este poema de Graça Moura surge publicado integralmente na evocação de Miguel
Veiga após a sua morte, acompanhado de um texto de José da Cruz Santos, intitulado “Uma glicínia para
Miguel” (JL. Jornal de Letras, Artes e Ideias, 23 Novembro 2016, p. 6).

318
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

laudatórios, o monóstico final, contrastivo com a composição do poema em


tercetos, remata com a sensibilidade e os afectos de um “ser romântico”. Neste
contexto, noutro exemplo significativo de reconhecimento face aos seus
semelhantes, vgm exorta: “olhemos as figuras, a sombra projectada dos /
sentimentos vindo até às palavras e aos olhares” (PR2, 167).
Na galeria de figuras amigas, dedica, em epígrafe, balada de acolhimento a
Pacheco Pereira e sua esposa, Teresa Calçada, texto que demostra a cordialidade
daquela família:
“de perto ou longe, viandante,
aqui serás bem acolhido
com amizade e muita estante,
tudo de livros bem provido,
que o mundo é para ser lido
enquanto um livro o contiver
e cá em casa, sem ruído,
o tens, dê lá por onde der.

mesmo que o aches inquietante,


podes ficar muito entretido
e à noite olhar um astro errante,
jogar xadrez, ou ver servido
um belo tinto envelhecido.
terás um copo e um talher.
mesmo aposento guarnecido
o tens, dê lá por onde der.” (PR2, 335)

O trecho, marcado pela “amizade e muita estante”, ou seja, pela perspectiva


cultural e dimensão afectiva, encerra características de Pacheco Pereira. Por um
lado, evidencia-se a referência ao seu ímpar e notável acervo documental “de livros
bem provido”; por outro, observa-se o acolhimento generoso, traço humanista que
lembra a célebre hospitalidade cultivada pelos gregos, como o sujeito poético
adverte ao viandante: “terás um copo e um talher. / mesmo aposento guarnecido / o
tens”.
Tal atitude está nos antípodas de um festim de Camões endereçado a amigos na
Índia, nas famosas trovas que dão conta de uma oferta para uma refeição. No
entanto, em lugar de iguarias seriam servidas aos convivas os próprios versos:

“Ceia não a papareis;


contudo, para que não minta,
para beber achareis,

319
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

não Caparica, mas tinta,


e mil coisa que papeis”.1062

Porém, a estreita relação observa-se também nos diversos poemas que Graça
Moura publicou no blog Abrupto do amigo, um dos mais célebres da blogosfera e a
quem, como prova de gratidão e admiração, em 6 de Maio de 2008, dedica glosa
para josé pacheco pereira:

“são sentimentos humanos,


eu na alma hei-de pôr luto:
o abrupto hoje faz anos,
não pode ficar ‘abruto’! […]

se lhe tirassem o p,
vigorosa consoante
do seu título, bastante
mal faziam, já se vê.
e percebe-se porquê
sem se gastar um minuto:
se do p ficar enxuto,
vão-se a força e a coragem
abruptamente da imagem:
não pode ficar ‘abruto’!”1063

Na sua permanente posição sobre a aplicação do Acordo Ortográfico, como já


foi referido anteriormente, Graça Moura, num repentismo invulgar faz um jogo
lúdico com a consoante “p” do título do blog, exemplo do principal pomo de
discórdia face à supressão de consonantes mudas, contemplado no referido acordo.
Ressoam ecos de quotidiana convivialidade onde se vislumbram marcas alusivas a
um caminho cultural que anuncia o advento de palavras de amizade.
No dia do falecimento de Graça Moura, a 28 de Abril de 2014, Pacheco Pereira
publicou um post no seu blog Ephemera, que sintetiza as afinidades entre os
amigos. Pela importância de que se reveste o testemunho enunciado do texto,
justifica que se reproduza na íntegra:

“Quando lhe tirei esta fotografia, no dia do seu doutoramento honoris causa pela Universidade
do Porto, o Vasco, mais que sabedor da sua condição terminal, sorriu e disse: vou pôr-me na

1062
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 95. Mário Cláudio (Naufrágios de Camões, Lisboa, D. Quixote,
2016, p. 43) dá conta, de um modo irónico, deste texto a propósito da “questão do banquete”, propugnada
por Timothy, personagem que não compreende o neoplatonismo camoniano e confunde-o com as célebres
trovas do poeta quinhentista.
1063
Cf. “Um poema inédito de Vasco Graça Moura”, in abrupto.blogspot.com/2008/05/um-poema-inedito-
de-vasco-graca-moura.html (consultado em 17 Agosto 2016).

320
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

posição do Jorge Luís Borges. E colocou as mãos, o corpo e a bengala na posição de uma célebre
fotografia de Borges. Vasco, como Borges, era um amador de livros, um bibliófilo, e tinha um
especial gosto pela sua biblioteca pessoal, cujas aquisições mais raras tinham, como sempre
acontece nestes casos, histórias associadas.
Na prática da nossa amizade os livros eram uma constante: comprávamos livros em conjunto,
trocávamos informações sobre o que estávamos a ler e dizíamos um ao outro o que cada
um “tinha” que ler. Foi assim até alguns dias antes da sua morte. O Vasco, sempre que me
visitava, passeava entre as estantes e consultava algumas raridades que muito prezava, sendo que o
último livro que me recordo de folhear com interesse foi uma edição setecentista de Grócio. Sobre
os meus livros e o labirinto que os abriga escreveu um poema onde está tudo dito.
Mas foi mais longe: ofereceu ao Arquivo/Biblioteca alguns dossiers do seu arquivo pessoal, e
aqui estão registados alguns poemas repentistas que muitas vezes fazia enquanto estava no
Parlamento Europeu, ao almoço, ou nas longas caminhadas nos corredores infindos nos edifícios
de Bruxelas ou Estrasburgo. Em português, francês e… alemão.”1064

As referências enunciadas afiguram-se, deste modo, uma prova inequívoca da


admiração e generosidade de vgm para com os seus amigos, bem como apresentam
uma clara sintonia de pensar e sentimentos, como se observa nas considerações
elogiosas de Pacheco Pereira.
O tom confessional do autor de borges e as rosas, com recorrentes alusões aos
amigos nos seus versos, desvenda, pois, uma singular visão das suas relações
interpessoais, considerando no texto sugestivamente intitulado ars poetica, que a
escrita é “trabalhar o mundo as relações de vizinhança / entre os seres e as coisas,
no intervalo exacto” (PR2, 344).
Outro aspecto neste exercício acerca do sortilégio da vida, concomitantemente
afectivo e intimista, verifica-se na presença obsidiante de momentos passados,
consubstanciados em imagens e recordações que o tempo não apaga. Graça Moura
procura, no seu trajecto poético, “chegar a uma dada reconhecibilidade do real”1065,
numa evidente poética de afectos; o ritmo da memória concretiza-se, assim, na
inesgotável força da palavra. Neste contexto, a infância é um dos lugares
privilegiados, uma vez que se estende, de um modo afectivo, pelo espaço textual,
permitindo traçar uma cartografia sentimental e experiencial de significativo
interesse para descortinar os sentidos poéticos do autor de flauta mágica.1066

1064
Cf. José Pacheco Pereira, Morreu hoje um amigo do Ephemera: Vasco Graça Moura, in
https://ephemera jpp.com/.../morreu-hoje-um-amigo-do-ephemera-vasco-graca-moura (consultado em 17
Agosto 2016).
1065
Vasco Graça Moura, “Nota final”, in Poemas Escolhidos, loc. cit., p. 472.
1066
As recorrentes alusões à infância surgem disseminadas na poesia de vgm; vide, por exemplo, ulisses
(PR1, 371) e para uma colecção de bonecas (PR2, 334).

321
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

Um exemplo significativo do ponto de vista enunciado é o seguinte:


“o tempo é o da infância
ou da adolescência,
artificialmente recuperado.” (PR1, 414)

A sugestão de um tempo “artificialmente recuperado”, implica uma propensão


lírica revitalizada e quando tece considerações sobre a “vida das palavras”, mostra
a sua precoce inclinação para as letras, no poema justamente intitulado
reverberações:

“uma ressonância
em que transformei
tudo, deste a infância.” (PR1, 523)

Este ideal surge aprofundado em trechos de cunho memorialista, como confessa:


“nós construíamos os modelos da realidade fantasiada sob os chapéus de palha”
(PR1, 370). Deste modo, o poema ulisses, texto inaugural da colectânea a furiosa
paixão pelo tangível, demonstra uma “realidade fantasiada”:

“os barcos eram feitos de papel e tinham dobras meticulosas,


às vezes com palavras de cartas que a água diluía azuladamente,
ou eram de cortiça talhada a canivete, ou
de cascas de pinheiro boleadas numa pedra,
e para se moverem agitavam-se as varas nos extremos do tanque, […]

assim nós construíamos modelos da realidade fantasiada sob os chapéus


[de palha,
vikings, sandokans, os traiçoeiros ingleses, entre o troar dos canhões e o
[choque
metálico das espadas, devidamente imitados na vozearia de cana rachada
dos que depois se zangavam e diziam assim não, pá, assim não jogo
[mais.” (PR1, 371)

Através da recordação, o sujeito lírico delimita o perímetro de evocação e da


melancolia, que ganham particular harmonia. Em ambiente que marcou a sua
infância, a indissociável relação entre temporalidade e memória, plasmada nas
brincadeiras de rua, surge fortemente enraizada no imaginário pessoal de Graça
Moura, enfatizado pela expressão colhida na oralidade, “assim não, pá”. Os
elementos relacionados com a sua vivência infantil – “barcos”, “canhões”,
“espadas” – revelam-se símbolos efémeros de felicidade, num momento mágico da
vida pautado por um espaço de liberdade e descoberta, mas também associada à

322
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

aprendizagem de emoções e de partilha. Esta característica melancólica, como


observa Eduardo Lourenço, domina a actual literatura, uma vez que o presente
prefigura permanentemente momentos de nostalgia1067. A a escrita é o único meio
capaz de diminuir a distância entre o tempo rememorado e o presente vivido pelo
sujeito de enunciação. No fundo, a memória afigura-se um filtro da infância,
porque, num processo continuado de associação e reconstituição, é particularmente
selectiva porque recorta os aspectos felizes do passado, além do real poético ser
apurada pela imaginação criativa.
Deste modo, a partir de uma foto de Ana Gaiaz, dá expressão a esse ideário para
uma colecção de bonecas nos seguintes termos:

“guarda a infância num armário


para que o tempo vá brincando.
depois, se vês que é necessário
tira-a de lá de vez em quando.” (PR2, 334)

A presença constante do passado organiza-se em torno do período da infância,


constituindo assim uma depurada evocação de um regresso, mesmo que seja pela
recordação, a momentos felizes. Neste sentido, vgm reflecte uma infância bem
resolvida, como assevera Paz Barroso1068; ao invés da idade adulta, que desvenda
uma ordem perdida do mundo, o poeta exorta a reviver a felicidade sentida em
tenra idade: “tira-a de lá de vez em quando”. Em soneto para um regresso, o sujeito
de enunciação tenta definir esse ideal:

“infância: construção da idade adulta


simulada na escrita que nos rói
pela ficção do que se desoculta
no excesso do real que assim constrói, […]

um embuste do tempo e fica a mais


a baixa-mar falhada de alguns versos:
desconstrução da idade adulta, a infância”. (PR2, 144)

Num tom disfórico, a impossibilidade da memória trazer de novo as origens


irremediavelmente perdidas projecta o eu numa dimensão indefinida, o que,

1067
Cf. Eduardo Lourenço, A Europa desencantada. Para uma mitologia europeia, Lisboa, Ed. Visão, 1994,
p. 33.
1068
Cf. Eduardo Paz Barroso, “Uma acústica do ‘eu’. A poética autobiográfica de Vasco Graça Moura”, in
Isabel Ponce Leão e Eduardo Paz Barroso (org.), in op. cit., p. 32, nota 13.

323
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

consciente da limitação da condição humana, questiona, sem dúvida, a existência.


A infância, metáfora da pureza inicial, dá sentido ao “embuste do tempo”,
incessante decifração do mundo, “construção” ou “desconstrução da idade adulta”,
que cabe à escrita apresentar-se como o meio de a recuperar.
No cadinho que funda escrita e memória, também a família é o centro de uma
espiral de meditações de Graça Moura, testemunhando uma comovente sequência
de cinco poemas consagrados à morte de sua mãe1069, que intitulou lâmpada
votiva1070:

“teve longa agonia a minha mãe:


seu ser tornou-se um puro sofrimento
e a sua voz apenas um lamento
sombrio e lancinante, mas ninguém

podia fazer nada, era novembro,


levou-a o sol da tarde quando a face
lhe serenou, foi como se acordasse
outra espessura dela em mim. relembro

sombras e risos, coisas pequenas, nadas,


e horas graves da infância e idade adulta
que este silêncio oculta e desoculta
nessas pobres feições desfiguradas”. (PR1, 502)

O poema é regulado por um sentimento pungente de “longa agonia”,


irremediável perda da sua progenitora; este texto inaugural apresenta uma evidente
centralidade no conjunto dos poemas e integra-se nos códigos clássicos da elegia,
traço recorrente em vgm, como salienta com pertinência João Barrento1071. É num
contexto de recordação da figura materna que a memória1072 se reveste de múltiplas
formas e sentidos, como por exemplo, “relembro // sombras e risos, coisas
pequenas, nadas”, referência temporal que assume uma aguda consciência

1069
José da Cruz Santos (coord.), O primeiro dia: pequena antologia da mãe na poesia portuguesa, com
pintura de Manuel Ribeiro de Pavia, pref. João Paulo Vinagre, Porto, Ed. Modo de Ler, 2012.
1070
Em torno do processo poético, Graça Moura refere as circunstâncias conducentes à série poemática
dedicada à mãe: “Escrevi, quase de jacto e recorrendo a processos menos habituais da minha poesia, na
sequência da morte de minha Mãe, o período de mais intensa e acelerada desorganização do ser que já me
foi dado experimentar em toda a vida” (Vasco Graça Moura, “Nota final”, in Poemas escolhidos, loc. cit.,
p. 473).
1071
Cf. João Barrento, “O Astro Baço. A poesia portuguesa sob o signo de Saturno”, in A Palavra
transversal. Literaturas e ideias no século XX, Lisboa, Ed. Cotovia, 1996, p. 89.
1072
Sobre a importância da memória no fenómeno literário, veja-se Fernando Guimarães, O Modernismo e a
sua poética, Porto, Lello Editores, 1999, pp. 27-30.

324
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

nostálgica, assente na dolorosa experiência e na efusão lírica, que tudo galvaniza


através da rememoração.
Tal acepção motiva um desejo quase alucinante de voltar à casa de família:

“de repente,
a minha mãe já não estava morta:
era o vulto que à noite se recorta
na luz do corredor, se está doente

algum de nós, a mão que pousa e traz


algum sossego à fronte, a voz que chama
para o almoço, ou nos tira da cama,
quem nos trata das roupas, ou nos faz

bolos de anos e as malas, na partida,


e a quem a voz tremia à despedida”. (PR1, 503)

O falecimento da mãe, confere, de facto, ao texto um profundo sentido elegíaco,


como foi referido, permitindo, deste modo, um olhar ambivalente sobre a morte.
Trata-se, a um tempo, de uma epifania e um desejo de redenção consubstanciada na
poesia, caminho possível para resistir à devastação e perda, contidas na revisitação
plena de amor da “voz que chama”. Tal convocação só pode ser compensado ou
preenchida através do exercício paliativo da memória, a lembrar o tópico clássico
do contraste entre o bem passado e o mal presente. Esta celebração fúnebre de um
ente querido, reveladora de uma atmosfera eminentemente maneirista, verifica-se,
como sublinha Cândido Oliveira, em versos de Diogo Bernardes ou Camões.1073
A recordação amplifica a referida sugestão:

“poderá ter morrido. ressuscita


neste lugar humano, pobre fio
de água verbal que vai a medo, hesita
e tenta desmedir-se como um rio. […]

virão dias, semanas, meses, anos,


e os ciclos dos astros indiferentes,
mover-se-ão na mesma os oceanos
e as placas que sustentam continentes.

mola do mundo, o coração aviva


a chama desta lâmpada votiva”. (PR1, 506)

1073
Jose Cândido de Oliveira Martins, “Figuras maneiristas da morte em O Lima de Diogo Bernardes”, in
Ana Paula Pinto et alii (org.), Do reino das sombras: figurações da morte, 2014, Braga, Ed. Aletheia,
pp. 284-289.

325
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

Nesta experiência dolorosa traduzida no espectro da morte, o sujeito poético


afirma a sua individualidade e a palavra poética é um repositório emotivo de
ausências e vazios1074. A “lâmpada votiva” simboliza a celebração da sua mãe,
retirada num outro texto, quando confessa a importância das “sílabas votivas”, na
construção da” matéria verbal” (PR2, 425). Os versos implicam mais do que um
nostálgico sentimento de vazio, associado a uma aguda interrogação sobre o
sentido da morte.
É num contexto de recordação que, de um modo evidente, a memória se associa
à morte em múltiplas formas e sentidos, que se encontram disseminados pelos
versos de Graça Moura. Deste modo, não é de estranhar que o sujeito poético
anuncie que a mãe “agora dorme e vai ficar assim, / imóvel e coberta”. (PR1, 505)
A passagem do tempo não retira a saudade, como se lê também em junto a um
retrato:

“era vermelha a rosa


que a minha mulher cortou para pôr junto ao retrato
de minha mãe, que fazia anos ontem.
era de um fulgor surdo e recatado,
a implodir tantas coisas já sem nome
para o interior macio das pétalas.” (PR2, 43)

O trecho, sob o signo da memória, enfatizada no marcador cronológico “fazia


anos ontem”, reafirma um passado, bem como, em tom melancólico, aceita o fluxo
que o tempo deixa. Na lâmpada votiva, a “chama”, imperceptível na sua
intermitência, é, afinal, a própria vida. A mesma incandescência encontra-se na
“rosa”, observada “metonimicamente como chama que ilumina o retrato de sua
mãe, em cenário que relembra uma certa devoção”, como sublinha Daniel
Tavares1075. A deliberada função referencial da enunciação, alicerçada nos gestos

1074
Neste quadrante, em volume de cariz autobiográfico, vgm confessa: “Sábado, 26.11.94: A minha Mãe
morreu anteontem, às quatro da tarde. Fui, na noite de quarta para quinta-feira, às duas e meia da manhã, a
guiar para o Porto. O Pedro, ao telefone, tinha dito que era uma questão de horas. Agora, que tudo acabou,
escrevo os quatro primeiros sonetos de uma sequência votiva. Dou comigo a funcionar em duas pistas
simultâneas: uma, carente e angustiada, em que todo o processo da doença e da morte se adensa e mal se
exprime, a não ser pela via da escrita. A outra, quase mecânica, mas agudizada numa fria melancolia, a
solicitar-me do exterior”. E acrescenta: “Segunda-feira, 28.11.94: Termino lâmpada votiva, à memória de
minha Mãe. Começo imediatamente a organizar um livro” (Vasco Graça Moura, Circunstâncias vividas,
Vendas Novas, Ed. Bertrand 1995, p. 277-278). Registe-se que a colectânea referida por Graça Moura é
Sonetos familiares, Lisboa, Ed. Quetzal, 1995.
1075
Daniel Tavares, “Do retrato e da ausência: Vasco Graça Moura & Noé Sendas”, in Diacrítica, vol. 28,
Revista do Centro de Estudos Humanísticos, Universidade do Minho, 2014, p. 281.

326
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

afectivos e numa magoada nostalgia, plasma uma sentida emotividade do eu lírico,


simbolizada pela sugestão que irrompe da rosa colocada “junto ao retrato de minha
mãe”, que transporta um sem-número de sentimentos decorrentes de vivências
recordadas com saudade e impossíveis de repetir, visto que são coisas “já sem
nome”. No entanto, nos versos de vgm, a perda e a ausência não implicam um
vazio, pelo contrário, as rememorações da mãe revelam um constante afecto.
Sob o signo de uma memória sombria, a matéria poética, moldada pela dimensão
autobiográfica, continua também na evocação do pai1076:

“meu pai está em leça da palmeira, lá perto do farol da boa nova,


num cemitério varrido pela nortada e pelo cheiro a maresia,
não longe das melhores coisas do siza vieira e de lugares do antónio
[nobre,
não longe da petrogal e dos seus grandes cilindros metálicos,
não longe do lugar onde nasceu, numa casa depois demolida para
[as obras de leixões […]

agora fiquei eu com a integral do balzac que ele passava a vida a ler,
e faz-me a maior das impressões que ele esteja para ali sem livros,
[sem o eça, sem nós todos”. (PR1, 447)

A vocação para as letras não despertou por mero acaso, como enaltece Graça
Moura quando exalta a acção formativa paterna1077. O recurso a dados concretos da
vida do autor torna-se mais importantes para estruturar a maioria dos poemas, já
que desse modo a carga emocional se entrelaça com o fluxo dos acontecimentos,
afigurando-se uma marca distintiva das letras contemporâneas, como destacou
Seabra Pereira1078. Na evocação paterna, o sujeito poético, contrariando

1076
Sobre a importância de que se reveste o topos da figura paterna, vide José da Cruz Santos (org.), Em
nome do pai: pequena antologia do pai na poesia portuguesa, pref. Vasco Graça Moura, Porto, Ed. Modo
de Ler, 2008.
1077
Sobre o papel do pai na sua formação literária, Graça Moura confessa em entrevista a Anabela Ribeiro:
“Desde a minha infância mais recuada preocupava-se muito com a minha educação cultural, digamos assim.
Uma vez ele chegou a casa e eu mostrei-lhe uns versos que tinha feito; explicou-me todo o jogo de tónicas, a
métrica... Eu tinha para aí seis anos ou sete” (Vasco Graça Moura, in http://anabelamotaribeiro.pt/vasco-
-graca-moura-103058 - consultado em 20 Janeiro 2016). Noutra entrevista volta a colocar a tónica na
decisiva importância paterna no seu gosto literário: “O meu pai tinha uma razoável biblioteca, tinha
sobretudo um culto enorme da literatura. Para ele, de resto a literatura terminava no Proust. Pertencia a uma
geração que cultivava muito a memória. Durante as refeições, fazia-nos citações e contava páginas de livros,
sabia trechos inteiros do Eça, do Camilo… Isso teve uma importância enorme em condicionar a minha
vontade para a leitura” (Ana Sousa Dias, “Vasco Graça Moura. O impaciente europeu”, in Revista Ler,
nº 131, Janeiro 2014, p. 36).
1078
Neste âmbito, o autor afirmou: “Pela nossa parte, parece-nos que estamos perante novo período de
fecunda afirmação da criação poética, cujo timbre identitário e título de mérito histórico residirá em crer-se a
ação comunicativa inalienável, numa escrita que se impõe como princípio e ética da vida e em saber afirmar-

327
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

deliberadamente uma lógica edipiana, resgata um tempo perdido transfigurado em


espaço de ausência.
A sua escrita é claramente marcada por um assumido culturalismo, navegando
por entre múltiplas alusões, em que a ironia dá a medida do lúdico, sem que este
absorva totalmente um lado de meditação subtil e de memória afectiva. A poesia é,
pois, um modo de reler a vida, a partir do horizonte criativo sugerido, onde os
versos incorporam planos descritivos de lugares concretos, bem como evocam a
obra de figuras centrais no panorama da cultura nacional. Desta forma, busca
conseguir a almejada cumplicidade com o leitor, pela alusão a referentes concretos;
ecoam nestes versos as “melhores coisas de siza vieira”, ou seja, a piscina oceânica
e a célebre casa de chá da Boa Nova, um dos primeiros trabalhos do reputado
arquitecto António Siza Vieira. Estas estruturas, em sintonia com o farol e
enquadradas no cenário marítimo de Leça da Palmeira, celebram o talento de um
artista sensível ao espaço1079. Outro testemunho que Graça Moura consagra a este
lugar prende-se com a evocação de António Nobre que cantou magistralmente a
paisagem referida1080. No entanto, “os grandes cilindros metálicos” da refinaria da
Petrogal, destoam naquele espaço, assinalando um agudo pendor crítico1081.
Também a expressividade sugerida pela anáfora “não longe”, reveladora do
dinamismo cinematográfico do olhar, enaltece o papel da lembrança e intensifica o
seu fascínio do poeta por aquele lugar, proporcionando um reencontro com o pai.
Como se observa, o poeta assume, sem reservas, o lado autobiográfico da sua
escrita, sempre contextualizada, partindo de situações transfiguradas pela palavra

se enquanto tal abraçado aos temas triviais do quotidiano e da circunstância” (José Carlos Seabra Pereira,
“Novos tempos de ‘a interminável preparação’. Apontamentos sobre a poesia portuguesa no primeiro
decénio do século XXI”, in Álvaro Manuel Machado et alii, Cultura XXI-Ensaios, Lisboa, Ed. Labirinto das
Letras, 2015, pp. 119).
1079
Eugénio de Andrade, em clave também ecfrástica, enaltece o processo criativo desse edifício
contemporâneo no poema Casa de Álvaro Siza Vieira na Boa Nova, integrado em Homenagens e outros
epitáfios (Eugénio de Andrade, Poesia, Porto, Fundação Eugénio de Andrade, 22005, p. 253).
1080
Exemplo significativo presente em António Nobre é o seguinte: “Na praia lá da Boa Nova, um dia, /
Edifiquei (foi esse o grande mal) / Alto Castelo, o que é a fantasia, / Todo de lápis-lazúli e coral!” (António
Nobre, Só, in Poesia completa 1867-900, Lisboa, Ed. D. Quixote, p. 301).
1081
Ideia idêntica surge retirada no início de Página do Porto, quando o autor condena o “contraponto
grotesco” daquela sublime paisagem (Vasco Graça Moura, Página do Porto, loc. cit., pp. 14-15).

328
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

poética1082. Sem nunca renunciar à vida, despende uma particular atenção aos
quadros caseiros, num conjunto de poemas consagrados às suas filhas, por
exemplo, quando as adormece:

“embalo a minha filha joana que acordou num berreiro.


a casa está às escuras, vou passando com cuidado
para não dar encontrões nos móveis, […]
enquanto a irmã está a dormir meio atravessada nos lençóis. […]
oxalá cresçam ambas airosas e seguras,
e possam ir na vida serenamente como os rios correm.” (PR1, 461)

Pouco habitual na poesia, a imagética sugerida, complacente e feliz, de um pai a


adormecer as filhas, constitui um retrato original, compaginado nas possibilidades
proporcionadas pela beleza e graciosidade1083. Os versos, entendidos como espaço
de afectos, acalentam a esperança de um futuro risonho para as meninas, quando
num gesto de amor espontâneo pretende que “possam ir na vida serenamente como
os rios correm”. Este passo constitui uma reformulação do conhecido incipit do
soneto camoniano Correm turvas as águas deste rio1084, que é acrescida de
“serenamente”, lexema do campo lexical de sereno, particularmente caro ao autor
das Rimas1085, como ilustra, por exemplo, o verso inicial da sua Écloga II: “Ao
longo do sereno / Tejo”.1086 A matriz metamorfoseada revela, deste modo, assinala
a consciência da génese da poética de Graça Moura.
O carinho paterno, haurido no quotidiano, configura uma singular memória
afectiva, como se observa neste passo:

“lavam os dentes, já tomaram banho


E em suas camisinhas de flanela
dão boas-noites numa tarantela. […]
amanhã de manhã levam vestida
a blusinha de lã azul xadrez
a sainha encarnada, as meias pretas.” (PR1, 481)

1082
Pinto do Amaral, nesta perspectiva, conclui que a poesia de vgm constrói-se numa sequência “composta
por episódios recortados do ritmo quotidiano e de controlos por vezes assumidamente biográficos”
(Fernando Pinto do Amaral, “A poesia neo-maneirista de Vasco Graça Moura”, in op. cit., p. 11).
1083
Como pai atento, os primeiros passos de sua filha Joana merecem-lhe uma referência: “Domingo,
10.1.93: Anos da Joaninha. Um ano. Descobriu hoje que pode andar de pé, sozinha, de um lado para o
outro” (Vasco Graça Moura, Circunstâncias vividas, loc. cit., p. 14).
1084
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 168.
1085
Telmo Verdelho, Luís de Camões: concordância da obra toda, loc. cit., pp. 1272-1273.
1086
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 319.

329
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

A valorização da vida materializa-se em nome da família, no seio íntimo da sua


casa1087; os versos, investidos de intensidade e paixão, desenham-se nos rotineiros
hábitos de higiene, factor inovador e, sem dúvida, um dos mais atractivos de vgm
1088
. A depurada descrição, em registo ecfrástico, apresenta a indumentária garrida
das crianças, onde sobressaem as cores: “a blusinha de lã azul xadrez / a sainha
encarnada, as meias pretas”.
Noutro passo, próximo também de um registo diarístico, por assim dizer, surge
reiterado o mesmo afecto, presença que nunca de dissipa, patente no olhar
enternecido das filhas a nadar:

“as minhas filhas nadam. a mais nova


leva nos braços bóias pequeninas,
a outra dá um salto e põe à prova
o corpo esguio, as longas pernas finas:

entre risadas como serpentinas,


vai como a formosinha numa trova,
salta a pés juntos, dedos nas narinas,
e emerge ao sol que o seu cabelo escova. […]

e ficam, de ternura e de surpresa,


nas toalhas de cor em que se embrulham,
ninfinhas sobre a relva, de repente.” (PR1, 480)

Como se pode descortinar, a importância conferida às vivências pessoais é


inegável; o eterno encanto dos gestos da inocência infantil aproxima-se do desejo
de simplicidade que a própria escrita alcança através de meios expressivos tendo
presente signos de deliberado matriz camoniana. O verso “vai como a formosinha
numa trova” remete para o texto Descalça vai para a fonte, paradigma aparente da
jovialidade e inocência de uma jovem1089. As “ninfinhas”, por outro lado, sugerem
as divindades presentes, quer na lírica, quer na épica de Camões. Fundados em
motivos íntimos, os versos, que discorrem sobre a realidade, transfiguram-se por

1087
O autor das casas e das feições, como explica em entrevista, advoga uma singular concepção lírica: “Sou
fundamentalmente um poeta de circunstâncias vividas. Toda a minha poesia, num certo sentido é
autobiográfica, no sentido de que se concede como radicando permanentemente numa experiência pessoal,
embora com muitas simulações e jogos em que muitas dessas circunstâncias se tornam vividas apenas
porque inventadas” (“Vasco Graça Moura: entrevista”, in Inimigo Rumor, nº 12, 2002, p.10).
1088
As vestes das meninas impressionam o pai; com efeito, este processo é central em Graça Moura quando
canta a sua filha Joana em Mateus, a jovem é retratada como se de um quadro se tratasse: “Joana aos quatro
anos, num saiote / curto e de quadradinhos cor-de-rosa, / carinha oval, olhar ladino, posa / com umas flores
na mão e um laçarote” (PR2, 91).
1089
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., pp. 55-56.

330
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

meio de ressonâncias literárias, neste caso, hauridas no vate quinhentista. Tal


processo demostra a metamorfose lírica da vida, paradigma da singularidade de
uma escrita simultaneamente acessível e directa, mas também apurada e culta.
O poeta, na equação da relação entre a vida e a escrita, centra os seus versos
numa crónica de rotina diária, mostrando que a sua proximidade com as filhas não
é fortuita:

“um pai aguenta tudo, mesmo uma criança


de oito anos a estudar no seu violino,
a poucos metros de distância, entre o que lembra
a chiadeira de um carro de bois […]

dos nossos filhos que são sempre os melhores do mundo,


nem me ocorre chamar-lhe paganina, mas
espero que ela um dia saiba, desse modo
chegar à música por dentro.” (PR2, 70)

Esta dimensão interior, impulsionada pela fixação, sempre procurada, de


determinados momentos de ambiente familiar, alarga-se à aprendizagem do violino.
Uma filha “de oito anos”, num momento de aprendizagem musical, está na génese
do poema; o incómodo do som desperta no poeta uma indagação sobre a relação
entre pai e filhas, porque, como testemunha o segmento afectuoso, os “filhos […]
são sempre os melhores do mundo”. O acento sensorial, contida na metáfora “a
chiadeira de um carro de bois, expressão nuclear do ruído, enfatiza a “chiadeira”,
provocado pela execução da criança, que enternece o sujeito poético, porque “um
pai aguenta tudo”. Com efeito, as tonalidades do sentir entrelaçam-se com o
pensamento, desenhando indubitáveis manifestações da singular criatividade de
vgm.
Com efeito, a consciência autoral de Graça Moura mescla emoções com
situações da rotina familiar, transformando-as numa harmoniosa rede discursiva; de
facto, o pulsar da sua poesia configura o convívio inevitável com a realidade de
todos os dias. A disseminação do banal converte-se, pois, num inovador universo
lírico, gesto essencial na poética do autor e funda-se frequentemente num jogo
intertextual com excertos do corpus camoniano.

331
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

4.1.3. Espaços e horizontes

Sob a égide do concreto, as alusões poéticas ao espaço não são descuradas. O


Porto1090, terra natal de Graça Moura, demonstra o incessante apelo que a realidade
exerce sobre o autor; com efeito, constrói um peculiar imaginário, revestindo-se de
crucial importância para compreender os seus versos, como se pode observar, a
título exemplificativo, no conjunto de poemas de rostos comunicantes dedicados à
cidade invicta (PR1, 267 sqq)1091. Em testamento de vgm, afirma com orgulho
“porto, onde nasci” (PR2, 256), bem como não faltam referências às típicas
moradias que “pela sua dilatada extensão se chamam ilhas” (PR1, 157) 1092. Numa
espécie de mitologia pessoal, encontra a génese evocativa de lugares, figuras e
situações, uma vez que, no seu dizer, “lá nasci, lá fui educado, lá me tornei
homem”1093, segmento revelador da sua força criador. A memória do Porto
converte-se, pois, em sonho ou desassossego das grandes questões existenciais
colocadas ao sujeito de enunciação.
Na construção de um peculiar imaginário portuense, o poema sobre a minha
cidade dá conta desse perseguido desejo:

“sobre a minha cidade, falei-te ontem mostrei-te


as esquinas do tempo, a imagem das fachadas
que ainda conheci, de outras que
eu próprio ignorava; sobre

1090
Eduardo Paz Barroso, que tem dedicado particular atenção à importância do Porto na obra de Graça
Moura sintetiza com lucidez: “O Porto como espaço urbano e realidade psicológica constitui outra das linhas
de força da obra, quer romanesca quer poética de VGM, não se trata de uma antropologia da cidade, mas da
sua reconfiguração imaginária. Por isso, é que um conjunto de figuras que vão de Óscar Lopes, Eugénio de
Andrade, ou de Miguel Veiga a José Rodrigues, nos aparecem como sujeitos e personagens de uma
deambulação onde o autor se procura. As ruas, um certo espírito de flâneur, a errância, o movimento ritual
dos paços das imediações do mar da foz, ganham nas páginas de VGM uma espessura e uma cadência que
desloca a cidade para o coração da fala. Entre uma genealogia e uma estética do granito e das brumas, o
Porto é uma razão de ser” (Eduardo Paz Barroso, “Ressonância de uma meditação poética”, in As Artes entre
as Letras, nº 75, 30 Maio 2012, p. 7).
1091
Em nota final ao romance Alfreda ou a quimera, Graça Moura declara: “E desejaria que o Porto, não um
Porto propriamente ‘realista’, mas um Porto quase tumultuariamente imaginado num tropel em que se
sobrepõem referências objectivas e reminiscências afectivas, fosse tomado como uma das personagens desta
história” (Vasco Graça Moura, Alfredo ou a quimera, Lisboa, Ed. Bertrand, 2008, p. 236). Registe-se, entre
outros, os poemas que são dedicados à cidade nortenha: picasso visto do porto (PR1, 267), o porto nunca
teve um minotauro obscuro (PR1, 268), esta injustiça afectava a cultura da cidade (PR1, 269) e lavores
(PR2, 45).
1092
Graça Moura adverte em nota que, nessa descrição poética, se inspirou num passo de Padre Agostinho
Rebelo da Costa, Descrição topográfica e histórica da cidade do Porto, 1788 (PR1, 583).
1093
Edite Estrela, “Entrevista a Vasco Graça Moura”, in Bem dizer. Bem escrever, Lisboa, Editorial Notícias,
1985, p. 52.

332
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

a minha cidade e suas pedras, seus espaços


de árvores graves; e o que foi arrasado,
ou está a desfazer-se, as manchas do presente,
a poluição do homem.” (PR1, 283)

Em primeiro lugar, note-se, em sentido apreço, o valor afectivo do pronome


possessivo da expressão “minha cidade”, que dá título ao poema, unindo duas
vertentes: o homem e o seu tempo. Porém, em clave culturalista, refere “esquinas
do tempo”, álbum fotográfico que colige imagens antigas e actuais do Porto 1094. O
volume permite, então, ao sujeito poético revelar a um tu, que é também o leitor, as
diferenças do património portuense que conheceu ao longo da sua vida: “a imagem
das fachadas / que ainda conheci, de outras que eu próprio ignorava”. Atento ao
que o rodeia, contrapõe, nesta deliberada perspectiva crítica, a deterioração dos
“espaços / de árvores graves”, bem como “o que foi arrasado, / ou está a desfazer-
-se”. A metáfora “mancha do tempo”, por seu lado, intensifica no presente um
cenário de degradação, denunciado pelo poeta de modo veemente, bem como
revela que os versos não têm fronteiras no mundo real, trilhando caminhos
subjectivos, comprovados pela “poluição do homem”. O sujeito de enunciação
projecta, pois, as suas memórias no quotidiano, e o seu regresso às origens e a
vivências constrói-se num depurado pendor criador, traço fundamental da sua
extensa e variada obra.1095
O sentido estético suscitado pelo Porto, que se estende pela poesia de Graça
Moura, abre-se a outros registos artísticos, vincado no poema num parque, à
contraluz:
“houve pintores do porto
que inventaram assim
para seu uso o porto

as suas sombras negras e douradas


pertencem-lhes.” (PR1, 413)

1094
Graça Moura realça que é precisamente o álbum Esquinas do tempo que está na origem deste poema
(Cf. idem, ibidem, p. 52).
1095
No paratexto inicial numa compilação do poeta, Martins Pereira sublinha “Graça Moura leva-nos pelas
ruas e praças da sua cidade vivida e mostra-nos não apenas a superfície das coisas, fachadas, monumentos
ou paisagens urbanas, mas, sobretudo, a topografia íntima e profunda da sua cidade sentida” (Gaspar
Martins Pereira, “Apresentação”, in Vasco Graça Moura, Visto da margem sul do rio. O Porto, Porto, Ed.
Modo de Ler, 2012, p. 12).

333
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

Ao tratar da relação do Porto com os pintores, a paisagem, pautada pelas


“sombras negras e douradas”, desenha um contraste cromático que procura uma
luminosidade própria. No irreprimível impulso descritivo, resulta o chioscuro, jogo
entre as penumbras nocturnas e as serenas claridades, com um olhar sempre ávido
de novas imagens, absorvendo imagens, sons, aromas e os infinitos relevos de que
é feito o real.
Esta mundividência, recriada pela vivência citadina dos artistas, surge reiterada,
numa perspectiva ecfrástica, no texto eugénio e os pintores:

“sei de pintores que se inquietavam por


pressentirem uma relação entre a cor e a palavra.
era nos anos sessenta em s. lázaro, quando
a luz entardecia, muita gente se afadigava no

lento regresso a casa, as aves recolhiam e


eles sabiam que havia alguém para falar
das águas e das luas e da sombra
das cores.” (PR 2, 184)

Os versos sustentam um interesse particular em revelar como as várias


expressões artísticas, “a cor e a palavra”, se inspiram na evocação cromática de
“quando / a lua entardecia” no Porto. A representação imagética, decorrente da
visão furtiva e espectral do crepúsculo, num exercício de transposição semiótica,
combina as duas artes, uma vez que o processo criativo da pintura se assemelha, na
sua essência, ao labor poético, alicerçado simultaneamente na convocação do
transcendente da “sombra das cores” e do imanente haurido em “s. lázaro”.
Não falta nesta continuada intenção de apreender os detalhes do concreto,
consagrada à cidade invicta, patenteado em romance no passeio alegre:

“as réstias do sol morrendo


por sobre os renques de espuma

nos mirantes da foz velha


e no granito das ruas.” (PR1, 433)

De novo, este belo trecho crepuscular, na representação urbana banhada por uma
luz oblíqua, perscruta “as réstias de sol”, exemplo claro de como vinca os

334
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

referentes estruturantes, marcas identitárias do imaginário portuense e dele se


apropria.1096
O poema visto da margem sul do rio, que dá título a uma antologia poética
pessoal coligida por Graça Moura1097, é paradigmático da sua ligação à terra natal:

“visto da margem sul do rio o porto não explode


sob a tarde de verão, a água reflecte
renques de casario humilde a encastelar-se
irregular em ocres e granito, manchas, vãos, recatos.
é quando os jacarandás se fazem desse azul mais surdo
do anoitecer e concentram uma ameaça do tempo
contida nas cores tensas das fachadas, a entrecortar
os jardins do crepúsculo, aprendidos de cor”. (PR2, 190)

Em registo ecfrástico, a descrição panorâmica desenha-se num notável quadro


poético, revelador de uma notável energia transfiguradora, comprovada
lapidarmente no segmento “renques de casario humilde a encastelar-se / irregular
em ocres e granito”. Os versos, que perscrutam a serenidade do rio Douro,
convocam um espaço reflexivo, que está nos antípodas do locus horrendus do
incipit da Canção IX, Junto dum seco, fero e estéril monte1098, de Camões. O
quadro portuense, que pede uma aturada atenção dos sentidos, irradia uma luz
difusa “irregular em ocres e granitos, manchas, vãos, recatos”, expressão conotativa
do ambiente crepuscular de imagens de textura severa e cores esbatidas. É
paradigmática na poesia de Graça Moura a descrição registada, evocação
melancólica da imagem camoniana do “esconder do sol pelos outeiros”1099;
paralelamente, a paisagem moderna surge envolta num certo ambiente difuso, onde
se vislumbram contornos pouco nítidos proporcionados pela luminosidade do fim

1096
Eduardo Paz Barroso, sobre o imaginário enunciado, destaca com acuidade: “O Porto transporta-se por
isso na escrita de Vasco Graça Moura, mesmo quando ela não se ocupa desta cidade de certo modo fala por
ela e com ela, num diálogo cheio de ressonâncias, umas mais íntimas, outras dissimuladas, outras ainda
abertas ao esplendor de uma afirmação cuja integridade estética possui um alcance visual rigoroso e
transfigurador, ancorado no real, sem se fechar à reverberação dos sentimentos ou fidelidades várias, sejam
elas políticas, culturais, digam respeito a laços familiares, a laços ou a casas” (Eduardo Paz Barroso, “A
apropriação da cidade na obra de Vasco Graça Moura: o Porto, de certo modo”, in Estudos, revista mensal
do C.A.D.C., Coimbra, nº 11, 2014, p. 173).
1097
Vasco Graça Moura, Visto da margem sul do rio. O Porto, loc. cit. Registe-se que esta colectânea surgiu
na sequência das comemorações dos 50 anos de actividade editorial de José da Cruz Santos, como explicou
Paula Marinho, responsável da Editora Modo de Ler (Cf. “O Porto Faz Parte da Minha Maneira de Ser”, in
Revista Norte Médico, nº 54, (Janeiro-Março), Ordem dos Médicos-Secção Regional do Norte, 2013, p. 60).
1098
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 220.
1099
Idem, ibidem, p. 184.

335
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

do dia. Neste sentido, Pinto do Amaral sustenta que a ambiência poética –


consagrada por um sujeito sensível a cada ínfima alteração vislumbrada – sugere
“ténues emoções emaranhadas numa rede que dilui as fronteiras preceptivas”1100,
comprovadas no passo transcrito. Assim, o momento evocado, na “contínua busca
de um ethos tripeiro”, no dizer de Martins Pereira1101, deliberada rejeição do
efémero, em demanda do perpétuo, pretende constituir um legado para o futuro, a
partir de um mosaico de cores e sensações de invulgar beleza poética.
Porém, o poeta, que nunca se desviou das suas origens, também estende o seu
fascínio, num cariz de autenticidade, às festas e às suas gentes, de que a noite de
São João é um momento marcante:

“no s. joão do porto, o fogo-de-artificio estrepitoso


lançado das barcaças a meio do rio douro […]

vozes, apitos, assobios, a multidão nas margens,


estrídulas sirenes, estalidos secos, cheiros a sardinha assada.” (PR2, 339)

Como se observa, o poeta, na valorização poética da objectividade do mundo,


enaltece a célebre festa popular, que, para além de frisar a alegria colectiva, que
povoa e dá vida à cidade, constitui uma forte marca identitária pela sua genuína
espontaneidade1102. A arte de olhar, capital para compreender a obra do autor de
real acerado, apresenta uma animação da vida ribeirinha emoldurada pela
paisagem urbana, povoada por figuras e acontecimentos típicos do Porto. Com
efeito, na expressão pitoresca desta mundividência há uma mescla de sensações,
que se abre à percepção de uma imagética inovadora: a visão, sugerida pelo
cromatismo dos fogos de artifício e “pela multidão das margens”; a audição,

1100
Fernando Pinto do Amaral, “A caligrafia do tempo: uma leitura de melancolia na poesia de Vasco Graça
Moura”, in José da Cruz Santos, (org.), Modo mudando, loc. cit., pp. 79-80.
1101
Gaspar Martins Pereira, “Apresentação”, in Vasco Graça Moura, Visto da margem sul do rio. O Porto,
loc. cit., p. 12.
1102
Em nota paratextual, Graça Moura destaca: “s. joão: grande parte deste poema veio a ser utilizado num
capítulo do romance Por detrás da magnólia” (PR2, 567). Como se pode observar, a similitude entre os dois
passos é evidente: “Numa ocasião que Monique achou de mais tédio ainda do que o habitual, o grupo dos
Silveira Pimentel resolveu ir da Foz ao Porto, depois da música de Wagner e da ceia. […] Quando chegaram
lá ao fundo, para lá da amurada, do Barredo, avistado por entre encontrões e exclamações ruidosas, o fogo-
de-artificio era estrepitoso, lançado das barcaças a meio do Douro. […] Havia vozes, apitos, assobios, a
multidão nas margens, sirenes estrídulas, estalidos secos, petardos e bichas de rabiar, gente que saltava
fogueiras, cheiro a sardinha assada, e havia outra vez, havia o tempo todo, aquela voz a vir-lhe de dentro, do
âmago de uma zona desconhecida e imperiosa” (Vasco Graça Moura, Por detrás da magnólia, loc. cit.,
pp. 154-155).

336
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

presente no frenesim das “vozes, apitos, assobios”; o olfacto, exemplificado nos


“cheiros a sardinha assada”. No contexto cantado, a percepção visual não apaga os
outros sentidos, pelo contrário a conjugação sensorial permite colher, com um forte
sentimento de comunidade, a forma como o sujeito poético se apropria dos rumores
do quotidiano e os plasma uma singular prática expressiva; por conseguinte, é
através do incorporação de sugestivas sinestesias que é assinalado o ambiente
autêntico da cidade.
A escrita materializa-se, pois, no espaço urbano e na energia impulsionadora da
uis lírica, configurando o signo nuclear de uma geografia pessoal, como testemunha
canção da foz do douro:

“palmeiras desgrenhadas, ventania,


e o castelo de d. sebastião
onde as gaivotas têm cidadania.

na cantareira havia fome e havia


um cheiro de sardinha, um cheiro a pão,
e uma mulher de luto repetia
na voz que lhe fugia
o naufrágio do irmão,
do filho ou do marido, a freguesia
tem por antigo orago s. joão
e era perto da igreja que eu vivia.” (PR2, 436)

Esta vontade de circunscrever, de apreender o espírito dos lugares, focaliza-se na


foz do douro1103 e em referentes subjacentes, que materializam os traços individuais
do espaço: o “castelo de d. sebastião” ou a Igreja Matriz. A configuração do
espaço, assinalada por “palmeiras desgrenhadas, ventania” conjuga-se com a vida
difícil da gente desfavorecida, a lembrar a jovem hortaliceira de Cesário Verde no
célebre poema Num Bairro moderno1104. Os versos, polvilhados de imagens
sugestivas da atmosfera portuense, pretendem ampliar os horizontes do seu roteiro
urbano, condição sine qua non na construção do seu imaginário. A comprová-lo,
notem-se os segmentos disfóricos: “na cantareira havia fome”, “uma mulher de
luto” chora “o naufrágio do irmão, / do filho ou do marido”. Com efeito, o

1103
Não é despropositado notar, neste caso, que o final da primeira edição de Húmus de Raúl Brandão
encerra com a referência ao lugar e ao ano da sua conclusão: “Foz do Douro - 1916” (Cf. Raúl Brandão,
Húmus, Porto, Ed. Renascença Portuguesa, 1917).
1104
Cesário Verde, Cânticos do realismo: o livro de Cesário Verde, loc. cit., pp. 100-103.

337
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

eufemismo contido no segmento “repetia / na voz que lhe fugia” expressa as


vicissitudes de um destino inexorável que se abate sobre aquela amargurada
mulher. Como é seu apanágio, Graça Moura alberga nos seus versos diversos
momentos temporais, desenhando, portanto, uma paisagem do presente da
enunciação mesclada com os ecos da recordação, comprovada pelo predomínio das
formas verbais num passado ainda vivo: “havia fome” e “eu vivia” 1105. À medida
que o fluxo da memória se deixa impregnar por lugares concretos e por recordações
de pescadores e naufrágios, que são, no dizer de Paz Barroso, um belo exemplo de
como o autor reconhece a identidade de um espaço e dele se apropria graças ao
facto de ter ali nascido e vivido1106. É precisamente o apego à terra natal que motiva
dados contextuais concretos, ligando, com particular acuidade, a poesia à realidade
circundante1107. Tal memória, inscrita no imaginário das múltiplas refracções que
esse espaço potencia, apresenta-se como um espelho do poeta onde o passado se
projecta continuamente e permite um profundo exercício retrospectivo1108. Como se

1105
Revestida de diversos sentidos, a figura do flâneur é recorrente nos poetas nacionais, como frisou Rosa
Martelo, que considera uma condição existencial citadina o impulso de observação do sujeito deambulante
(Rosa Maria Martelo, “Reencontrar o leitor: alguns lugares da poesia portuguesa”, in Em parte incerta.
Estudos de poesia portuguesa moderna e contemporânea, Porto, Ed. Campo das Letras, 2004, pp. 242 sqq).
1106
Eduardo Paz Barroso, “A apropriação da cidade na obra de Vasco Graça Moura: o Porto, de certo
modo”, in Isabel Ponce Leão e Eduardo Paz Barroso (org.), op. cit., p. 173.
1107
Eduardo Lourenço destaca o eclectismo da produção literária de Graça Moura, que “sem ser superficial,
se expõe como uma pluralidade de textos, de criações, de recriações no espaço nada metafísico de um
imaginário plural, assumidamente lúdico, em forma de arquipélago, brilhando ao sol da realidade e sendo,
como ela, naturalmente diverso por fora e não menos ostensivamente unido por dentro (Eduardo Lourenço:
“Vasco Graça Moura - um ensaísmo em arquipélago”, in José da Cruz Santos (org.), op. cit., p. 30).
1108
Da extensa bibliografia sobre a memória, um tema candente na pós-modernidade, vide a título
ilustrativo: Gaston Bachelard, A dialética da duração, São Paulo, Ed. Ática, 1988; Ecléa Bosi, O tempo vivo
da memória, São Paulo, Ed. Ateliê Editorial, 2004; Antonio Cândido, “Poesia e ficção na autobiografia”, in
A educação pela noite e outros ensaios, São Paulo, Ed. Ática, 32000; Maria José Craveiro, “O sentido da
memória. Viagens por espaços da memória e do esquecimento”, in Dedalus - Revista Portuguesa de
Literatura Comparada, Lisboa, Ed. Cosmos, nº 10, Janeiro 2005, pp. 231-248; Joana Duarte, “Memória e
narração. Invólucro do silêncio na expressão do vário”, in Revista de História das Ideias, vol. 27, Coimbra,
Instituto de História e Teoria das ideias, 2006, pp. 529-546; Maurice Halbwachs, La Mémoire Collective,
Nouvelle édition revue et augmentée, Paris, Ed. Albin Michel, 1997; Pierre Janet , “Le problème de la
mémoire”, in L’évolution de la mémoire et de la notion du temps, Paris, Éd. Chaline, 1928, pp. 181-202;
Jacques Le Goff, “Memória”, in Enciclopédia Einaudi, vol. 1, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda,
1984, pp. 11-50; idem, História e Memória, São Paulo, Editora da Unicamp, 2003; Ricardo Piglia, “Memoria
y tradición”, in 2º Congresso Abralic, Literatura e Memória Cultural: Anais, Associação Brasileira de
Literatura Comparada, Belo Horizonte, 1991, pp. 60-66; PaulRicoeur, A memória, a história, o
esquecimento, Campinas, São Paulo, Editora da UNICAMP, 2007; Paolo Rossi, O passado, a memória, o
esquecimento: seis ensaios da história das ideias, São Paulo, Editora UNESP, 2010; Edward Said, Fora de
lugar: memórias, São Paulo, Ed. Companhia das Letras, 2004; Bella Jozef, “O resgate da memória na
literatura contemporânea”, in 2º Congresso Abralic: Literatura e Memória Cultural: Anais, Associação
Brasileira de Literatura Comparada, Belo Horizonte, 1991, pp. 454-460; Eduardo Portella, “Paradoxes de la
mémoire”, in Diogéne, nº 201, 2003, pp. 3-4; Claude Simon, “Roman et Mémoire” (extrait d’une conférence

338
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

observa, o poema progride em planos distintos pelo jogo dos vários níveis que
harmoniosamente se justapõem.1109
O olhar melancólico, numa emotividade sentida e experimentada, enleia-se
numa cortina de brumas no reiterado fascínio pela Foz do Douro:

“esta manhã na foz, onde eu nasci, o mar cor do chumbo


mugia contra o molhe, acometia o gilreu exasperado
e era um bulcão de espuma pardacenta a tresmalhar-se nos rochedos. […]

agora não passa ninguém. desta orla das horas


sem socorros a náufragos, destas águas enfurecidas
onde só há lugar certo para os afogados.” (PR2, 535)

Perante o retorno ao lugar que testemunha o tempo dos verdes anos, a que o
sujeito lírico volta sempre num incessante acto de recriação e de redescoberta, a
Foz, metonímia do Porto, é uma janela que se abre nos versos de vgm, na demanda
da sua própria identidade e de um sentido para a sua existência. Nessa enumeração,
sob o signo da memória, o texto evolui de forma contínua, configurando, pelos
referentes evocados, um vincado sentido autobiográfico.
Ancorado numa neblina espessa, o sentimento de perda, “agora não passa
ninguém”, repete, na senda do texto anterior, um tempo passado que não
regressa1110. A ideia referida lembra, como sublinha Martins Pereira, que “Vasco
Graça Moura, quando evoca o Porto, traduz a cada passo, esse trabalho incessante
da memória e do acto criativo”.1111

inédite), in Revue des Sciences Humaines: Claude-Simon, nº 220, octobre-décembre, 1990, pp. 191-192;
Jean-Yves Tadié et Marc Tadié, Le Sens de la Mémoire, Paris, Ed. Gallimard, 1999.
1109
Com argúcia, Rui Lage fornece, num cariz abrangente, as principais linhas de força de vgm: “Poetas há,
como Vasco Graça Moura, que perseguem o mundo no seu conjunto na sua mudança, no visível e no
invisível, no histórico e no fortuito, no episódico e no essencial, no exterior e no interior, no perene e no
efémero, cientes que toda a representação é mediata pela cultura herdada, de que o talento individual só pode
emanar de uma tradição consabida e refundida sem descanso” (Rui Lage, “Nada se perde, tudo se
transforma em literatura”, in Eduardo Lourenço e Rui Vieira Nery, Colóquio Homenagem a Vasco Graça
Moura, loc. cit., p. 55).
1110
Testemunhando que os processos enunciativos para o autor não são estanques, num passo narrativo do
autor volta a estar presente o tópico poético: “Eu não sabia se estava a ver realmente a ver a Foz Velha que
estava ali na minha frente, ou se estava a misturá-la com memórias da Foz Velha da minha infância, com
uma simultaneidade dos caminhos percorridos para chegar ao colégio, das casas em que tínhamos morado
ou que tinham sido da famílias antigas ou onde tinham vivido namoradas, das claridades regressando agora
dos nomes das ruas” (Vasco Graça Moura, Naufrágio de Sepúlveda, loc. cit., p. 132).
1111
Gaspar Martins Pereira, “O Porto no imaginário literário de Vasco Graça Moura, in isabel Ponce de Leão
e Eduardo Paz Barroso (org.), Vgm: cinquenta anos de vida literária de Vasco Graça Moura, loc. cit., p. 73.

339
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

Não obstante, o seu profundo apego à matriz portuense não impede Graça Moura
de se abrir a outras geografias1112. Se é poeta do Porto, também não deixa de ser um
dos poetas de Lisboa, pela incessante referência aos lugares e elementos simbólicos
da capital portuguesa, onde viveu largo período da vida, até à sua morte 1113. Cada
urbe, pela sua especificidade, configura cenários distintos, visto que, como canta,
“cada cidade tem uma gramática / e sombrias gaivotas” (PR1, 146); assim, esse
espaço funciona como uma espécie de mote desenvolvido ao longo dos seus versos.
Na esteira deste tributo, no poema intitulado poetas de lisboa, consagrado ao
fado e magistralmente interpretado por Carlos do Carmo1114, Graça Moura
evidencia o legado poético no imaginário lisboeta da canção portuguesa:

“é bom lembrar mais vozes pois Lisboa


cidade com poético fadário
cabe toda num verso do Cesário
e alguma em ironias do Pessoa

para cada gaivota há um do O'Neill


para cada paixão um do David
e há Pedro Homem de Mello que divide
entre Alfama e Cabanas seu perfil

e há também o Ary e muitos mais,


entre eles o Camões e o Tolentino.”1115

Como se observa, o sujeito de enunciação canta o sortilégio do “poético


fadário”, canção lisboeta cuja identidade se soube alimentar de múltiplas
mundividências líricas de Cesário Verde, Alexandre O’Neill, David Mourão
Ferreira, Pedro Homem de Mello, Ary dos Santos, Nicolau Tolentino e finalmente
Fernando Pessoa, que comparece com reservas por via das suas “ironias”1116. Neste

1112
Quando compilou textos sobre o tratamento poético do espaço, Graça Moura afirma: “Lugares,
paisagens, sítios por onde as musas do autor vagueiam e a que o poema se refere: esta é uma antologia ligada
aos espaços, quase sempre concretamente identificados e que, desde os meus primeiros livros, por uma razão
ou por outra, se interligam com a matéria do poema” (Vasco Graça Moura, Outros lugares, Lisboa, Ed. Asa,
2002, p. 11).
1113
Neste contexto, o autor confessa: “Sou um homem do Porto, aclimatado em Lisboa” (Vasco Graça
Moura, “Asfikchiado”, in Papéis de jornal. Crónicas, loc. cit., p. 110).
1114
Carlos do Carmo, Ao vivo no CCB. Os sucessos de 35 anos de carreira, Ed. EMI-Valentim de Carvalho,
1999.
1115
Vasco Graça Moura, “Letras do fado vulgar”, loc. cit., p. 18.
1116
Cardoso Pires, ao se referir às gravuras de Júlio Pomar na estação do metropolitano do Alto dos
Moinhos, também dá relevo, na escrita de Camões, à influência da cosmovisão lisboeta: “Camões, ali, está
na companhia de Bocage, Pessoa e Almada Negreiros, e muito bem porque os quatro escreveram em Lisboa

340
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

singular efeito de sentido, há um deliberado acento musical que emerge, por


exemplo, das correspondências vocálicas (“lisboa”-“pessoa” ou “o’neill”-“perfil”),
bem como da modulação poética de ritmo binário de cada verso.
Nesta enumeração, no que concerne a Camões, note-se a sua ligação afectiva a
Lisboa, onde publicou Os Lusíadas e provavelmente nasceu, viveu e veio a falecer,
como Hernâni Cidade sustenta:

“De qualquer modo, é em termos da muito mais viva emoção que o Poeta se refere à cidade
onde de, se não nasceu para a vida e amanheceu para a cultura, acordou para as experiências da
vida”. 1117

Neste contexto, Camões convoca a capital portuguesa com significativo afecto:


“E tu, nobre Lisboa, que no mundo
Facilmente das outras és princesa.”1118

Lisboa não é exaltada como mero lugar, mas na solenidade retórica da


prosopopeia, visto que Camões a elege como interlocutora, atribuindo-lhe um título
nobiliárquico: “princesa”. Nessa singularidade invocativa, que sugere a importância
da capital na história nacional1119, o Príncipe dos Poetas não deixa também de
cantar, segundo a tradição mitológica, a “ínclita Ulisseia”1120, topónimo proveniente
de Ulisses, o fundador da cidade: “Cá na Europa Lisboa ingente funda”.1121
O enaltecimento de Lisboa1122, numa orgulhosa perspectiva de invulgar grandeza
futura, é considerado, à semelhança da cidade eterna e por vontade divina, o centro
nevrálgico de evolução política, económica e espiritual da Europa e do mundo:

“Via estar todo o Céu determinado


De fazer de Lisboa nova Roma”.1123

as suas vidas” (José Cardoso Pires, Lisboa. Livro de bordo, vozes, olhares, memorações, Lisboa, Ed. Dom
Quixote, 1997, p. 105).
1117
Hernâni Cidade, Camões em Lisboa e Lisboa nos Lusíadas, Lisboa, Biblioteca de Estudos
Olisiponenses, 1972, p. 7.
1118
Luís de Camões, Os Lusíadas, III, 57, loc. cit.
1119
Fernando Castelo-Branco (“A história de Lisboa em Os Lusíadas”, in Lisboa, Revista Municipal, ano
XLIII, 2ª série, 1982, pp. 24-30) debruça-se, na epopeia camoniana, sobre a importância de Lisboa em
momentos fulcrais da história de Portugal, de que se distinguem, entre outros, a conquista aos mouros e a
movimentação social na crise de 1383-1385. Estas referências, que não têm paralelo em mais nenhuma
história local, revelam o particular interesse citadino do poeta, visto que metonimicamente a cidade é a
representação de Portugal. Cf. ainda Maria Helena Rocha Pereira, “Uma descrição poética da Lisboa
quinhentista”, in Novos ensaios sobre temas clássicos, loc. cit., pp. 139-147.
1120
Luís de Camões, Os Lusíadas, IV, 84, loc. cit.
1121
Idem, ibidem, VIII, 5.
1122
Sobre as ocorrências de Lisboa na produção literária camoniana, vide Telmo Verdelho, Luís de Camões:
concordância da obra toda, loc. cit., p. 807.

341
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

A linha culturalista de vgm1124, que apresenta analogia com Camões, carrega


uma significativa carga conotativa em torno do imaginário alfacinha, como se lê:

“leva a Lisboa azul quadriculada


que a Vieira da Silva já pintou
e a última gaivota que riscou
a sua leve luz acidulada

leva a névoa que cai pela amurada


e a corrente do tejo não lavou
leva as pedras que o tempo afeiçoou
e a saudade na voz sobressaltada.”1125

A poesia liga-se indubitavelmente à pintura, graça à evocação de Vieira de Silva,


e também à música, visto que se trata de uma letra para o fado. Neste sentido,
surgem signos predominantes da canção nacional investidos de grande carga
afectiva, como “tejo, gaivota, neve e saudade”. Como se observa, o eu lírico dá
conta das solicitações proporcionadas por diferentes ângulos e metamorfoses da
realidade, materializada na anáfora verbal “leva”, que em crescendo, motiva
determinados pensamentos sob a égide da “saudade na voz sobressaltada”.
encontro
O poema canção do terreiro do paço1126 reitera uma singular poetização do
espaço urbano:

“está lisboa em dia de sol frio


e trânsito parado.
é quase inverno, mas vai manso o rio
marulhar no bugio
como em barco encalhado.
a rua do arsenal é o princípio
do meu deambular assim na baixa,
de atravessar a faixa
dos peões e passar no município,
olhando de caminho,
no seu mármore esguio, o pelourinho.

1123
Luís de Camões, Os Lusíadas, VI, 7, loc. cit.
1124
Noutro significativo passo, vgm volta a enumerar poetas de Lisboa: “nas escalas de lisboa / camões,
cesário, borges e pessoa / destes encontros sob a lua errante” (PR1, 361). Sob o signo do “encontro”, lexema
que fornece precisamente o título ao poema, além de Pessoa e Borges, surgem também Camões e Cesário,
figuras de eleição reiteradamente convocados por Graça Moura. Esta demanda inscreve-se numa trajectória
reflexiva, centrada no desejo celebrativo da poesia e no seu carácter universal, estratégia compositiva
constante no autor de variações metálicas.
1125
Vasco Graça Moura, Letras do fado vulgar, loc. cit., p. 15.
1126
Este poema integra a colectânea de Ana Isabel Queiroz et alii (org.), Em Lisboa, sobre o mar. Poesia
2001-2010, Lisboa, Ed. Poetica Vrbis, 2013, p. 28. O volume, entre outros escritores, colige textos de Ana
Haterly, Eugénio de Andrade, Ana Luísa Amaral, Manuel Alegre, Nuno Júdice e Pedro Mexia.

342
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

chegando à vastidão feita de arcadas


e a rasgar para o tejo
do terreiro do paço, onde apressadas
em bando, as mais lavadas
das tágides mal vejo,
vindas dos cacilheiros, matinais, […]

abrem as bancas três alfarrabistas


e ao centro, a dar nas vistas,
no bronze patinado a verde sarro
lá está o d. josé
que aprecia melhor quem for a pé.” (PR2, 433-434)

Uma das características intrínsecas à escrita de Graça Moura é o fulgor


descritivo, desenhado na toponímia e na moldura arquitectónica da Baixa
pombalina, como sugerem os referentes concretos facilmente reconhecíveis pelo
leitor: “rua do arsenal”, “pelourinho” e “terreiro do paço”1127. A perspectiva
dinâmica do poema, proporcionada pela sugestão do movimento deambulatório,
plasma a realidade circundante, fazendo ecoar aspectos reminiscentes da voz tutelar
de Cesário Verde. Na contextualização da matéria poética, os lojistas não estão à
porta, como no autor de Cristalizações; agora, o olhar do eu lírico detém-se nos
alfarrabistas, que “abrem as bancas”. Em clave intertextual, também o universo
feminino merece a Graça Moura especial atenção; a evocação camoniana das
“tágides”1128, a desembarcar dos “cacilheiros”, barcos fluviais tipicamente
lisboetas, surgem ao poeta “apressadas / em bando”, o que convoca, como foi
referido anteriormente, a força imagética da azáfama das varinas, celebradas pela
pena de Cesário Verde. Neste cenário, como não podia deixar de ser, o rio Tejo,
apodado de “manso”1129, e, por isso, evocativo do célebre verso camoniano “o

1127
O fascínio do imaginário lisboeta suscitado ao poeta leva-o a destacar com significativa sensibilidade:
“Lisboa foi assim reedificada na segunda metade do século XVIII, com aquela devida ‘regularidade e
grandeza’ imposta pela mentalidade racionalista e avançada das Luzes e daí deriva a geometria clara da
baixa pombalina, na quadrícula ordenadora das ruas e no ritmo simplificado e preciso das fachadas,
nivelando-se em relação ao Tejo e confluindo para a vastidão espectacular do Terreiro do Paço. A luz no
sentido dos grandes passos de circulação, as necessidades da vida e do tráfego urbano foi tudo ponderado e
contemplado. (Vasco Graça Moura, “Regularidade e grandeza”, in Papéis de jornal. Crónicas, loc. cit.,
p. 262).
1128
Virgínia Soares Pereira, “Tágides”, in Vítor Aguiar e Silva (coord.), Dicionário de Luís de Camões, loc.
cit., p. 917.
1129
Telmo Verdelho, Luís de Camões: concordância da obra toda, loc. cit., pp. 846-847.

343
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

manso caminhar destes ribeiros”1130 é outro elemento preponderante da construção


do imaginário da capital portuguesa.
Proporcionado pela deambulação urbana, o olhar do poeta radicado em Lisboa
mescla, assim, o itinerário interior com a realidade que emerge a cada esquina,
abrindo novas perspectivas interpretativas1131. De facto, a deliberada dimensão
referencial plasmada ganha significativo relevo pela constante sugestão reflexiva,
na tentativa de revelar a essência da capital portuguesa, à semelhança do que
acontece no cântico celebrativo do Porto. A estrutura rítmica do poema imprime a
ideia de um percurso do qual ressalta uma peculiar fruição do olhar, onde é possível
descortinar a figura do flâneur1132, que na sua deambulação traz à liça diferentes
momentos da história da cidade. A alusão a signos característicos de Lisboa,
testemunho de uma capacidade invulgar de diálogo com a realidade, ao modo do
autor de Um sentimento dum ocidental, surge também expressa nos seguintes
versos:

“vem comigo subiremos a avenida


ruminantes da casca das palmeiras
de mãos dadas ou não tanto nos faz
neste quarto de tarde lisboeta
e se ouvirmos um realejo um violino
um ardina um cauteleiro ou uma praga
cuidadosamente pegando num bloco
transcreveremos as palavras as buzinas
seremos ambos um só cesário verde
sem enjoo nem spleen”. (PR1, 38-39)

1130
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 184.
1131
Na efabulação romanesca de um conto de Nélida Piñon, que antecede o canto X de Os Lusíadas,
Camões já à beira da morte, amargurado e triste, vagueia por Lisboa, e dá conta do desprezo que foi votado,
consciente do valor do seu canto na exaltação, por isso refere a “cruel Lisboa”. A lembrar os versos de vgm,
de entre outros lugares apresentados da Lisboa quinhentista (v.g., Limoeiro, Rossio, palácio da Inquisição),
observem-se estes: “Percorro o Terreiro do Paço. […] Não saio à noite para não gastar o azeite do archote.
À luz do dia, lá está a Alcáçova, no miolo da cidade. Ao descer já ao pé da colina, contorno a Sé, precedido
pelo escravo, próximo às paredes de pedras, outra igreja, onde Santo António teria vivido” (Nélida Piñon,
“A desdita da lira”, in Luís de Camões, Os Lusíadas, canto X, comentários de José Hermano Saraiva e
ilustrações de Pedro Proença, Lisboa, Ed. Expresso, 2003, p. 9). Sobre a recepção camoniana nesta autora
brasileira, vide Maria Aparecida Ribeiro, “Um Adamastor ambíguo, uma tuba enrouquecida: Camões na
leitura de Nélida Piñon”, in Maria do Céu Fraga et alii (org.), Camões e os contemporâneos, loc. cit., pp.
745-755.
1132
Rosa Martelo (“Tensões e deslocamentos na poesia portuguesa depois de 1961”, in Vidro do mesmo
vidro: tensões e deslocamentos na poesia portuguesa depois de 1961, loc. cit., p. 39) destaca a figuração do
espaço citadino como marca indelével das letras contemporâneas: “A narratividade, a atenção dada ao
quotidiano urbano, articulada com a busca de um olhar capaz de o transfigurar e de lhe conferir espessura, a
ênfase colocada na cumplicidade com o leitor são alguns sintomas dessa inflexão que parece vir resituar a
questão matricial da modernidade estética no seu ponto de partida”.

344
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

Ao final do dia, sugerida pela metáfora “num quatro de tarde”, na Avenida da


Liberdade, o poeta, caminha acompanhado, “de mãos dadas ou não”, num percurso
sedutor, envolvendo em cada verso o leitor. No apelo à realidade circundante,
predominam os sentidos; o sujeito de enunciação evoca a visualidade da “casca das
palmeiras” ou a solicitação auditiva de “um realejo” ou de “um violino”; contudo,
não há um “desejo absurdo de sofrer”, nem “enjoo”, há sim uma dimensão
eufórica, derivada da comunhão do amor e da poesia: “seremos ambos um só
cesário verde”. Neste espaço, onde se movem personagens típicas como o “ardina”,
apresenta uma conexão com uma outra cantada pelo aludido poeta oitocentista:
“regouga um cauteleiro rouco”.1133
Nesta multiplicidade de situações, não destituída de um claro pendor
cinematográfico, pelo seu cunho dinâmico, o elevador de Santa Justa, monumento
icónico, merece uma especial atenção a Graça Moura:

“podes caber à larga e não à justa no elevador de santa justa,


não te leva a parte nenhuma no sentido utilitário normal,
mas é a nossa torre eiffel. faz a experiência. por sinal
é um caso em que não custa aprender à nossa custa:
variamente na vida e na ascese se flibusta,
e aprender à nossa custa é muito mais ascensional.

podes subir ao miradouro se a altura não te assusta:


lisboa é cor de rosa e branco, o céu azul ferrete é tridimensional,
podes subir sozinho, há muito espaço experimental.

no tejo há a barcaça, a caravela, a nau, o cacilheiro, a fusta,


luzindo à noite numa memória intensa e desigual.
com o cesário dorme a última varina, a mais robusta.
não é para desoras o elevador de santa justa,
arrefece-lhe o esqueleto de metal,
mas tens o dia todo à luz do dia. não faz mal”. (PR1, 432)

1133
Cesário Verde, “O sentimento dum ocidental”, in Cânticos do realismo. O livro de Cesário Verde, loc.
cit., p. 127. Nesta linha Óscar Lopes, em 1964, quando se refere ao livro inaugural de vgm, modo mudando,
já dá conta desta relação dialógica: “O experimentalismo do livro de estreia de Vasco Graça Moura, tem
uma qualidade rara entre aqueles que temos percorrido: é que Graça Moura medita o sentido das suas
próprias experiências e comunica-nos a sua emoção frente à aventura intentada. Daí que os textos que
poderíamos chamar da sua arte poética tenham um real interesse. Ao contrário de quase toda a actual poesia
portuguesa sobre poesia, não se trata de um auto-encarecimento do poeta: o objecto é que polariza a atenção.
Ora, é este mesmo tremor sagrado da descoberta que vemos neste livro propagar-se a um simples olhar sobre
a mão, a uma simples manhã sentida em estilo de Braque, a certos momentos citadinos ainda reminiscentes
de Cesário Verde” (António Lobo Xavier et alli, Vasco Graça Moura. 35 anos de trabalho literário, Porto,
Árvore-Cooperativa de Actividades Artísticas, Fundação Eng. António de Almeida, Livraria Modo de Ler,
1998, p. 29).

345
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

No dizer de Graça Moura, a liberdade expressiva decorre de “um primeiro nível


de inteligibilidade imediata do poema”1134, proporcionando possibilidades várias de
leitura aos seus versos, como fica demostrado neste poema. A presença do referido
elevador, ex-libris nacional, no título tem o fito evidente de despertar a atenção do
leitor. O próprio trocadilho produzido com o nome do elevador, “podes caber à
larga e não à justa”, dá o mote a um vincado lado lúdico, graças ao entrelaçamento
do concreto com uma singular espessura reflexiva.1135
Esta marca iconográfica constitui uma janela que se abre sobre a cidade; por um
lado, a luz deslumbrante que ela emana: “lisboa é cor de rosa e branco, o céu azul
ferrete é tridimensional”. Por outro, o olhar alonga-se até ao Tejo onde vogam “a
barcaça, a caravela, a nau, o cacilheiro, a fusta”, embarcações que assinalam
tempos diferentes, prova de uma “memória intensa e desigual”. Neste imaginário a
alusão à “varina” contextualiza, a partir de Cesário Verde, essa mundividência; a
profusão de imagens, na configuração de Lisboa, luminosa e enigmática, é, em
última instância, metáfora da vida que nela se vive e das pessoas que nela se
movem. O fascínio por lugares emblemáticos é, pois, uma manifestação dos tempos
modernos; o elevador, símbolo do progresso técnico, é frémito de esplendores, de
gentes que configura um universo específico1136. Com efeito, o convite para
conhecer e visitar o elevador de Santa Justa é, ao mesmo tempo, uma proposta para
conhecer o mundo poético de Graça Moura.
O poema contrapontos veicula, de novo, implicações e reflexões na construção
poética enunciada:
“as luzes da margem sul, as luzes
dos barcos a passarem, salpicando
a água escura e as manchas de óleo,
as luzes dos automóveis deste lado,

repetidas do outro lado, ou, paradas,


as luzes que assinalam muitos vagarosos

1134
Vasco Graça Moura, Poemas escolhidos. 1963-1995, loc. cit. p. 472.
1135
A singularidade histórica e cultural de Lisboa lê-se no texto em torno de Memorias das principaes
providencias que se deraõ no terramoto que padeceo a Corte de Lisboa no anno de 1755…, livro
oitocentista de autoria desconhecida. O volume propicia a vgm diversas reflexões sobre a capital portuguesa,
que o conduz às seguintes conclusões: “Levar Lisboa e reencontrar-se com o seu imaginário próprio é o
imperativo de cultura – roteiro cultural sobre locais emblemáticos que permitem falar da identidade de uma
cidade” (Vasco Graça Moura, “Regularidade e grandeza”, in Papéis de jornal. Crónicas, loc. cit., p. 264).
1136
Sobre a análise deste texto, vide Peter Hanenberg, “Navegações pela terra-firme da poesia sobre Vasco
Graça Moura”, in Revista Máthesis, nº 9, 2000, pp. 160-163.

346
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

lugares no seu halo, ou as luzes


de várias mobilidades em várias direcções”. (PR2, 80)

Os versos afloram uma clara intenção do poeta na delimitação de um espaço,


bem como mostram a capacidade do olhar na fixação do desenho urbano, através
da panorâmica da ponte sobre o rio Tejo, um dos símbolos mais representativos de
Lisboa. A focalização registada, marcado pelo torvelinho das luzes dos navios e
dos carros surge atenta aos estímulos suscitados pela cidade, que mais não são do
que as tensões do homem moderno, onde a realidade é vista como um processo
onde tudo está em contínuo movimento. O segmento “as luzes da margem sul”,
perspectiva similar ao verso “visto da margem sul do rio o porto”, exprime uma
proliferação de imagens a partir de elementos da predilecção poética de Graça
Moura: água, luz, cor e reflexos. A sinergia resultante, de pendor impressionista,
amplifica o esplendor do instante nocturno e as fulgurações enunciadas nessa
apropriação sensorial permitem, sem dúvida, tecer laços privilegiados entre o poeta
e o universo.
Na configuração de espaços distintos, interessante estratégia compositiva desta
poética do quotidiano, Graça Moura dá conta da sucessão de estados de espírito
vivido num congestionamento de trânsito.
Os versos, contaminados por matizes inerentes à complexidade da realidade
urbana, esclarecem o sentido de poema para o túnel das amoreiras:

“estás quase a chegar


ou quase a abandonar
lisboa devagar
e já sabes de cor
que às vezes é melhor
e às vezes é pior,
a par, a par, a par ...” (PR2, 117)

O eu lírico explora a experiência diária do tráfego em Lisboa1137, que sugere


estados de espírito antagónicos “às vezes é melhor / e às vezes é pior”, que é
comum a todos os automobilistas, visto que andam “a par”. O ritmo do poema

1137
Outro exemplo significativo da referência aos meios de transporte e aos seus utilizadores é a metáfora
presente no segmento “labirinto de luras” (PR1, 537), que evoca a agitação dos passageiros no metropolitano
no soneto das horas de ponta.

347
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

convoca a lentidão do trânsito, culminando essa morosidade no registo anafórico,


numa espécie de refrão.
Sob o signo da condução, o poema manhã. impaciências regressa à vida do dia-
-a-dia:
“nestes dias de filas intermináveis na auto-estrada do estoril,
em que os carros já não buzinam, as pessoas já não protestam
e as crianças já não acham graça nenhuma à vida a caminho da escola
a bocejarem no banco de trás e a perguntarem interminavelmente
pai, quando é que chegamos?, nestes dias em que as mulheres
retocam a pintura ao volante e isso também não tem perigo nenhum,
perigo era se não retocassem, depois de uma noite mal dormida
ou de uma noitada trepidante, macilentas e com
papos debaixo dos olhos e as unhas por arranjar,
nestes dias em que os condutores fumam como locomotivas,
rogam pragas, escutam na tsf as entrevistas do savimbi,
vêem as estatísticas a subirem perigosamente nas análises, […]
que volta a voz de arestas límpidas entre nuvens de sono
da maria flor pedroso e mais raramente a de alguma colega dela,
falando de uma greve, de uma guerra, de um morto mais açodado,
ou simplesmente do frio que vai fazer das suas.” (PR1, 456)

Em registo marcadamente narrativo1138, o eu lírico dá conta das vicissitudes do


trânsito “na auto-estrada do Estoril”, com uma impaciência tal que “os carros já não
buzinam, as pessoas já não protestam”. Em demanda do ritmo da realidade
quotidiana, as crianças, como é habitual, perguntam “pai, quando é que
chegamos?”; por seu lado, “os condutores fumam como locomotivas” e “escutam
na tsf as entrevistas do Savimbi”, com locução da jornalista “maria flor pedroso”,
figura do agrado do poeta e evocada, noutro poema, realça a voz “nítida como uma
gravura de aço” (PR1, 457).
Como se observa, os acontecimentos e os implícitos problemas práticos da vida
formam um mosaico lírico pouco convencional, metamorfoseando os aspectos
banais num marco inovador da escrita de Graça Moura. O poema acima transcrito,
com uma clara noção de que o instante exige um poema, ajuda a explicar este
segmento de auto-análise: “Eu prefiro a narração. os meus poemas têm cada vez /

1138
O arguto sentido crítico de vgm leva-o a evocar o texto na sua escrita diarística: “Estou a escrever um
poema sobre a viagem até à cidade de Lisboa todas as manhãs e os encravamentos no trânsito. A minha
poesia está definitivamente a organizar-se segundo esquemas narrativos” (Vasco Graça Moura,
Circunstâncias vividas, loc. cit., p. 20).

348
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

essa tendência perversa de acontecer / alguma coisa a alguém num tempo e num
lugar” (PR1, 439).
Num processo criativo orientado pelo contacto directo com o real1139, a poesia de
vgm fornece, pois, uma percepção plural de uma imagética inovadora, onde a
inspiração, colhida no vivido, perscruta, com notável acuidade, o quotidiano, em
demanda de novos contornos líricos.

4.1.4. A imitatio vitae

O universo lírico de Graça Moura apresenta, como se observa, um deliberado


pendor autobiográfico; o autor sabe que tal processo constitui um registo poroso
onde se entrelaçam factos e subjectividade1140, como enuncia no incipit do poema
som de mazurkas: “a autobiografia / a contradição / a ironia” (PR2, 411). Esta
concepção poética desenha um modo peculiar de ver e sentir o mundo, alcançada
através da importância concedido à contextualização empírica1141, que desenha um
estatuto ontológico do eu, um dos aspectos mais distintivos da lírica de vgm.1142
A auto-referencialidade evocada pelo vate de poemas com pessoas move-se e
concentra-se num universo específico e conscientemente verbal, o que configura
uma constante meditação poética, expressa em momentos de desabafo lírico e

1139
No que a esta questão diz respeito, Rosa Martelo, na identificação de algumas tendências do lirismo
contemporâneo, destaca na actual sugestão poética da urbanidade a importância concedida ao circunstancial,
numa valorização da experiência individual e da memória (Rosa Maria Martelo, “Reencontrar o leitor:
alguns lugares da poesia portuguesa”, in Em parte incerta. Estudos de poesia portuguesa moderna e
contemporânea, Porto, Ed. Campo das Letras, 2004, p. 246).
1140
Com efeito, as fronteiras ente o factual e o ficcional são impossíveis de definir, como a moderna crítica
tem largamente evidenciado. A título de exemplo, vide Gérard Genette, Fiction et diction, Paris, Éd. du
Seuil, 1991, pp. 65 sqq.
1141
Para João Barrento, a poesia de Graça Moura contraria uma tendência da poesia moderna baseada na
ideia de despersonalização. Entidade quase desaparecida com as teses estruturalistas, a reiterada presença do
sujeito poético testemunha a valorização da dimensão autobiográfica na criação poética, o que não exclui
obviamente a ficcionalidade intrínseca ao texto literário (João Barrento, “Palimpsestos do tempo. O
paradigma da narratividade na poesia dos anos 80”, in A palavra transversal. Literatura e ideias no século
XX, Lisboa, Ed. Cotovia, 1996, p. 71).
1142
Neste âmbito, Karlheinz Stierle (“Lenguaje y identidad del poema. El ejemplo de Höderlin”, in Fernando
Cabo Aseguinolaza (org.), Teorías sobre la lírica, Madrid, Ed. Arcos/Libros, 1999, p. 224) considera: “El
sujeto lírico es, pues, de todas las formas un sujeto problemático que talvez pueda ser delimitado como un
sujeto con una identidad sentimental. Es un sujeto en busca de su propia identidad, cuya articulación lírica
está contenida en el movimiento de esta misma búsqueda. Por eso, los temas clásicos de la lírica son
aquellos en los que la identidad se percibe como precaria: el amor, la muerte, la autorreflexión, la vivencia
del Otro no representado socialmente y, en particular, el paisaje”.

349
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

numa visão pessoal de ver e sentir o mundo, criando um efeito de verosimilhança


pragmática, de acordo com o que José Maravall preconiza1143.
Na complexa rede de relações estabelecidas pelos textos, o leitor depara-se com
uma peculiar concepção da criação poética, de onde emerge a constante presença
do quotidiano. A autobiografia afigura-se, sem dúvida, um dos géneros mais
estudados ao longo da literatura, uma vez que tacitamente pressupõe a natureza de
um eu, o seu modo de sentir e pensar, a sua visão e experiência do mundo, a
linguagem e a história, ou ainda a possibilidade de conhecimento1144. Tal
concepção, herdada pela singularidade própria de cada sujeito de enunciação, é,
pois, expressão, por assim dizer, celebrativa da individualidade, constituída, a um
tempo, pelos êxitos e fracassos de um eu.
Com particular acuidade, no seu primeiro livro dedicado ao tema, Philippe
Lejeune apresenta o cerne do discurso autobiográfico, através da conjugação da
vida, memória e criação:

“L’autobiographie ne peut donc pas être simplement un agréable récit de souvenirs contés avec
talent: elle doit avant tout essayer de manifester l’unité profonde d'une vie, elle doit manifester un
sens, en obéissant aux exigences souvent contraires de la fidélité et de la cohérence. Raconter toute
sa vie est impossible. L’autobiographie repose sur des séries de choix: celui déjà fait par la
mémoire, et celui que fait l’écrivain sur ce que la mémoire lui livre. Sont retenus et organisés tous
les éléments qui ont un rapport avec ce que l'auteur pense être la ligne directrice de sa vie”.1145

Na actualidade, ainda segundo do critico francês, le mythe du moi consubstancia-


-se numa fascinante e rica textualidade ao colocar a tónica nas vivências da
personalidade humana, foco fulcral da ficção moderna1146, matéria que merece a
Graça Moura uma particular atenção:

“Entendo que escrever um poema corresponde à verbalização e à proposta de uma dada


experiência humana que formula, caso a caso, as suas regras concretas e o seu registo próprio, a
sua equação de disciplina, liberdade e até ‘abandono’, e não um posicionamento teórico ou um
pronunciamento de escola” .1147

1143
José Luis Maravall, Antiguos y modernos. Visión de la historia e idea de progreso hasta el
Renacimiento, Madrid, Ed. Alianza Nacional, 21986, pp. 455 sqq.
1144
Neste âmbito, Philippe Lejeune (Le pacte autobiographique, Paris, Ed. du Seuil, 21996, p. 33) sustenta o
seguinte: “L’autobiographie est le genre littéraire qui, par son contenu même, marque le mieux la confusion
de l’auteur et de la personne, confusion laquelle est fondée toute la pratique et la problématique de la
littérature occidentale depuis la fin du XVIIIe siècle”.
1145
Philippe Lejeune, L’autobiographie en France, Paris, Liv. Armand Colin, 21998, p. 15.
1146
Idem, ibidem, p. 72.
1147
Vasco Graça Moura, Poemas escolhidos, loc. cit., p. 473.

350
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

No seguimento desta linha, Pinto do Amaral, na sua actividade ensaística,


destaca a ancoragem ao real verificada na poesia portuguesa a partir dos anos 70 do
século findo, fornecendo um precioso contributo para descortinar linhas de força
específicas na sua própria poesia:

“É bom frisar que a poesia portuguesa das últimas décadas se foi construindo como um
regresso ao sentido. Com isto quero dizer três coisas: o retorno a processos de escrita apoiados
num fio condutor, isto é, menos voltados para malabarismos verbais do que para a simples
afirmação de linhas de sentido (o significado tenta impor-se de novo ao significante); em segundo
lugar, a retoma de um lirismo assumido sem complexos e de uma emocionalidade relativamente
explícita, o que nos dá a ilusão de um discurso mais sentido; e finalmente a exploração de áreas
semânticas ligadas à fisicidade, ao uso vivido de sensações materiais e directas e que podemos
associar os nossos (muito mais dos que cinco) sentidos”.1148

Com efeito, o autor, à construção de um subjectivismo poético de pendor


abstractizante e formalista, contrapõe o “regresso ao sentido”, que se traduz nos
efeitos de uma nova dimensão reivindicada por uma escrita contemplativa em que
se cruzam a memória de um tempo recuado e a realidade presente, no dizer de
Graça Moura, numa “vontade vagabunda de escrever” (PR2, 410). Tal atitude
confere ao seu universo lírico inovadoras concepções poéticas capazes de
descortinar rumos criativos distintos, que implicam modos discursivos diferentes e
novos contratos de leitura1149. Na verdade, nesta conjugação do tempo pretérito
com o presente, o poeta encontra um fôlego criativo que se aproxima da narrativa,
num discurso naturalmente metafórico e imbuído de subjectividade, mas também
de uma deliberada fluidez, centrando-se em acontecimentos aparentemente
irrelevantes, mas que se afiguram como enormes janelas para longos horizontes
meditativos. Desses factos, aparentemente banais e quotidianos, a memória evoca o
passado num tom nostálgico que conduz o poeta a confidenciar episódios, muitas
vezes circunstanciais, relacionados com a morte, o afecto ou a família1150. A
realidade, na sua riqueza polissémica, é, pois, um dos signos mais frequentes da

1148
Fernando Pinto do Amaral, “O regresso ao sentido”, in Fernando Pinto do Amaral et alii (org.), Um
século de poesia (1888-1988). A Phala, Lisboa, Ed. Assírio e Alvim, 1988, p. 161. Sobre esta publicação de
incontornável interesse para o estudo contemporâneo das letras portuguesas, veja-se a recensão de José
Carlos Seabra Pereira, “Um século de poesia em revista”, in Revista Colóquio-Letras, nº 112, Novembro-
-Dezembro, 1989, pp. 83-90.
1149
Rosa Maria Martelo, “Reencontrar o leitor: alguns lugares da poesia contemporânea”, in op. cit., p. 250.
1150
Graça Moura, no texto Poesia e Autobiografia, insiste na ideia de que as marcas autobiográficas
implicam sempre uma recriação lírica. Cabe ao leitor considerar os pormenores biográficos evocados, porém
os poemas exigem, no processo de descodificação, um “grau de despersonalização” (PR2, 104).

351
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

poesia portuguesa, pelo que os versos de vgm nascem do diálogo com a vida e o
mundo e o modo com estes se convertem em poesia.
Deste modo, reveste-se de particular significado o status da instância emissora;
não há obra sem escritor, o que não significa que na poesia de cariz autobiográfica
ele partilhe inteiramente as ideias e os sentimentos do sujeito de enunciação. De
acordo com esta perspectiva da teoria da literatura, Aguiar e Silva distingue entre
autor empírico e textual:

“O primeiro possui existência como ser biológico e jurídico-social e […] o segundo existe no
âmbito de um determinado texto literário, como uma identidade ficcional que tem a função de
enunciador do texto o que só é cognoscível e caracterizável pelos leitores desse mesmo texto.”1151

O autor empírico, entidade real fora do texto, não deixa, porém, de marcar a
actividade do eu textual, “a instância imediatamente responsável pela produção de
um texto”1152. Numa relação de implicação, a persona textual não é de facto
indiferente à situação social, à formação cultural, aos interesses, bem como a uma
multiplicidade de factores que condicionam indubitavelmente o ser empírico 1153, o
que obviamente estabelece uma gama de interferências que não deixam de ser
marcadas por uma distância que o referido desdobramento implica.1154
Sem perder totalmente o carácter peculiar de um percurso existencial, não é
difícil ao receptor aceitar esta vertente ficcional de alteridade, bem como os
recursos formais e semânticos, inerentes à enunciação. Daí resulta, em última
instância, que características do texto autobiográfico, carregadas de incertezas e
ambiguidades não são, de modo algum, tributárias da autenticidade e da veracidade
cantadas, no entanto mantêm uma estreita aproximação com a realidade, que
ultrapassa a simples relação de verosimilhança, propugnada desde a
Antiguidade1155. Com efeito, neste amplo processo dialéctico, a representação fiel

1151
Vítor Manuel de Aguiar e Silva, Teoria da literatura, Coimbra, Livraria Almedina, 41982, p. 219.
1152
Idem, ibidem, p. 219.
1153
Rosa Maria Goulart, “O regresso do autor”, in Literatura e teoria da literatura em tempo de crise,
Braga, Ed. Angelus Novus, 2001, p. 45.
1154
Helena Buescu também dedica a sua atenção a esta problemática e apresenta perspectivas de diversos
críticos sobre esta matéria (Helena Carvalhão Buescu, “Porque é que o autor é um problema?”, in Em busca
do autor perdido, Lisboa, Ed. Cosmos, 1998, pp. 11-14).
1155
Este preceito também ligado à imitatio, na esteira do postulado aristotélico, irá ter grande fortuna entre
os tratadistas do Renascimento. Sobre esta matéria, vide Aristóteles, Poética, prefácio de Maria Helena
Rocha Pereira, tradução e notas de Ana Maria Valente, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 52015 e, a

352
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

da realidade não se coaduna com as premissas de autonomia e liberdade criadora,


mesmo que, muitas vezes, o discurso se materialize na primeira pessoa gramatical.
Justamente, neste sentido, Graça Moura afirma:

“A partir dos estruturalistas, o autor quase morreu, evaporou-se, pelo menos em termos de
teoria literária. Reajo um pouco contra isso. De um modo provocatório, resolvi salientar os efeitos
dos eventos biográficos na criação poética. Isso não exclui o trabalho de tipo ficcional, de
simulação, de ocultação”.1156

O conceito de poeta, simultaneamente pessoa e persona, reveste-se, pois, de


particular complexidade: nem o eu lírico deve ser entendido no sentido positivista
de um ser biográfico, nem, de um modo redutor, a poesia se distingue somente pela
expressão na primeira pessoa de sentimentos ou emoções1157. Ela é, pois, um jogo
de espelhos, que implica criador, personagem e leitor, onde o sujeito de enunciação
participa num jogo, longe de interpretação literal dos seus versos.
Desta premissa, plasmada na problematização na literatura entre circunstâncias
empíricas e ficcionalidade, Graça Moura dá conta no seguinte passo:

“é o seu retrato, porque


você é o meu tu do autor, hão-de dizer os críticos exultando
sem perceberem que eu é que sou o tu da sua leitura.” (PR1, 230)

O trocadilho, que acentua as marcas autobiográficas presente em “você é o meu


tu”, funciona, deste modo, como uma legitimação do enlace da realidade e da
ficção na escrita, o que implica um contínuo acto criativo1158. O pano de fundo
sugerido, testemunhado na incidência no eu enunciativo, apresenta um evidente
traço especular de matriz petrarquista que faz emergir a poesia de vgm. Contudo, os
referentes de percurso existencial não devem ser considerados previamente em
relação ao poema; ao invés, devem ser analisados como construção ficcional deste.
É precisamente no reconhecimento intrínseco do texto como veículo comunicativo

título meramente ilustrativo, a teoria quinhentista de Paolo Beni sintetizada por Bernard Weinberg, A
History of Literary Criticim in the Italian Renaissance, Chicago, Midway Reprint, vol. II, 21974, p. 706.
1156
Ana Marques Gastão, “Entrevista para o Diário de Notícias - Vasco Graça Moura”, in José da Cruz
Santos, (org.), Modo mudando, loc. cit., p. 14.
1157
Octavio Paz (El arco y la lira: el poema, la revelación poética, poesía e historia, México, Ed. Fondo de
Cultura Económica, 51983, p. 16) distingue essa dimensão indelével nas suas pertinentes considerações
sobre o fenómeno lírico: “Y esas diferencias no son el fruto de las de variaciones históricas, sino de algo
mucho más sutil e inapresable: la persona humana.”
1158
Sobre o trecho citado, vide a leitura de Sandra Teixeira, “Vasco Graça Moura, um poeta que tende para a
prosa e a recusa”, in Colóquio-Letras, nº 173, Janeiro, 2010, p. 79.

353
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

de paixões e de gostos, dentro de uma determinada circunstancialidade espacial e


temporal, que é possível identificar as vivências singulares do poeta e o seu modo
transfigurador de olhar o mundo. Assim, a figura do autor não é indiferente ao
deleite estético1159. A questão, pela complexidade nem sempre nítida de que se
reveste, encerra diversos problemas de ordem hermenêutica; neste âmbito, destaca-
se o conceito de pacto autobiográfico, proposto por Philippe Lejeune1160, que
coloca em causa de modo indubitável a coincidência entre entidade enunciativa e
autor. Esta perspectiva retórico-compositiva mais não é, segundo as disposições
teóricas do mesmo crítico, do que uma modalidade do pacto referencial1161,
assumida pelo pressuposto ilusório da sinceridade ou objectividade do sujeito
poético submetida à verificação do destinatário. Deste modo, a poética da
autobiografia, mais ou menos explícita, baseia-se essencialmente nos critérios do
leitor e comporta, no dizer de Lejeune, “un effet contractuel historiquement
variable”.1162
A escrita de Graça Moura é motivada, pois, por um ostensivo pendor biográfico,
haurido no princípio petrarquista da imitatio uitae, já cultivado por Camões1163,
tendo tal acepção alcançado particular relevo no século XVI, como diz Aguiar e
Silva:

“Na história do petrarquismo quinhentista alcançou grande importância o princípio da imitatio


uitae ao lado do princípio da imitatio stili concedendo-se assim ênfase à ideia de que Petrarca
devia ser objecto de imitação como poeta que criara um requintado e paradigmático repositório
estilístico-formal, mas que devia também ser imitado como poeta que modelarmente realizara a
sua obra poética como um espelho da vida”.1164

1159
Sophia de Mello Breyner, nesta via interpretativa, revela uma concepção lírica similar à preconizada por
Graça Moura: “Pois a poesia é a minha explicação com o universo, a minha convivência com as coisas, a
minha participação no real, o meu encontro com as vozes e as imagens. Por isso, o poema não fala de uma
vida ideal, mas sim da vida concreta: ângulo da janela, ressonância das ruas, das cidades e dos gestos,
sombra dos muros, aparição dos rostos, silêncio, distância e brilho das estrelas, respiração da noite, perfume
da tília e do orégão. É esta relação com o universo que define o poema como poema, como obra de criação
poética.” (Sophia de Mello Breyner Andresen, “Arte poética II”, in Geografia, Lisboa, Ed. Salamandra,
1967, p. 87).
1160
Philippe Lejeune, Le pacte autobiographique, loc. cit., pp. 13-46 (sobretudo, pp. 29-30).
1161
Idem, ibidem, pp. 36-37.
1162
Philippe Lejeune, Le pacte autobiographique, loc. cit., p. 45.
1163
Rita Marnoto, “Petrarquismo em Camões”, in Vítor Aguiar e Silva (coord.), Dicionário de Luís de
Camões, loc. cit., pp. 679-688.
1164
Vítor Manuel Aguiar e Silva, “Aspectos petrarquistas da lírica de Camões”, in Camões: labirintos e
fascínios, loc. cit., pp. 181-182.

354
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

Assim, há uma estreita relação entre a escrita e a trajectória humana, tornando-se


Camões, e neste caso de vgm, o exímio modelo petrarquista de um percurso
poético1165. Por conseguinte, o poeta contemporâneo recorre indubitavelmente ao
princípio da imitatio vitae, difundindo no petrarquismo quinhentista, processo
mimético da experiência vivencial que corporiza uma das funções retóricas da
imitação, que Camões magistralmente enunciou: “e não falo senão verdades puras /
que m’ensinou a viva experiência”1166. Tal poética, similar à de Graça Moura,
pressupõe necessariamente a anterioridade do vivido em relação ao momento da
escrita1167. Assim, o labor lírico na decifração do mundo do autor contemporâneo
evoca circunstâncias, figuras e referentes; esta concepção poética desenha um
modo peculiar de ver e sentir o mundo, conseguido através da importância
concedido à contextualização empírica em consonância com o canto de “verdades
puras são e não defeitos”, verso do texto inaugural das Rhythmas camonianas, de
acentuado pendor programático1168.
Nesta linha que não enjeita a fecunda matriz do poeta de Arezzo, Graça Moura
no prefácio à tradução das Rimas de Petrarca conclui:

“Na poesia europeia, Camões foi dos que compreenderam mais a fundo a dimensão existencial
da lírica petrarquiana e o coeficiente de absurdo e irresolvido do destino humano que ela punha à
vista nas suas séries de antíteses, investindo de ressonâncias pessoais e dramáticas o seu
testemunho poético”.1169

Os referentes enunciados acentuam, pois, a figura tutelar do autor de Os


Lusíadas nas letras portuguesas, revelando, deste modo, as personalidades,
sentimentos e vivências de ambos os poetas, sob a égide de Petrarca1170. Na Canção

1165
Sobre esta matéria que tornou Petrarca o paradigma do lirismo ocidental, vide Rita Marnoto, “Camões.
Quem é quem”, in Sete Ensaios Camonianos, Coimbra, Centro Interuniversitário de Estudos Camonianos,
2007 pp. 119 sqq.
1166
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 163.
1167
Comum a Camões e Graça Moura, e recorrente na cultura ocidental, como sublinha Aguiar e Silva, o
pendor autobiográfico configura-se na “manifestação, ou a revelação, através dos actos de escrita –
sobretudo da vida íntima, da vida espiritual, e da vida sentimental – do eu sujeito enunciador desse mesmo
acto de escrita” (Vítor Manuel Aguiar e Silva, “Aspectos petrarquista da lírica de Camões”, in Camões:
labirintos e fascínios, loc. cit., p. 179).
1168
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 163.
1169
Vasco Graça Moura, “Setecentos anos de Petrarca”, in As Rimas de Petrarca, Chiado, Ed. Bertrand,
2003, p. 29.
1170
Os códigos petrarquistas, baseados no princípio da imitatio, conseguem uma particular valorização ao
vivido; é neste prisma que se compreende, com efeito, a afinidade entre Camões e Vasco Graça Moura.
Sobre esta matéria, vide Jacinto Prado Coelho, “Camões um lírico do transcendente”, in A letra e o leitor,
loc. cit., pp. 17-35; Vítor Manuel Aguiar e Silva, “Aspectos petrarquista da lírica de Camões”, in Camões:

355
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

X, singular exemplo da dimensão confessional da obra camoniana, o poeta põe em


evidência a supremacia do registo experiencial das “puras verdades” em relação ao
fingimento das “fábulas sonhadas”:

“Nem eu delicadezas vou cantando


co gosto do louvor, mas explicando
puras verdades já por mim passadas.
Oxalá foram fábulas sonhadas!”1171

Os versos transcritos, de carácter programático, garantem a consciência realística


como fonte dominante da efabulação poética, a que Hélder Macedo, a partir de
exemplos, chamou “poética da verdade”1172; uma recorrência singular a ter em
conta na exegese em torno de vgm, uma vez que o poeta é intermediário entre a
ficção e a realidade.1173
Nesta linha de pensamento, Paz Barroso considera:

“A singularidade do trabalho poético de Vasco Graça Moura, no que respeita à utilização de


recursos autobiográficos como matéria de criação literária tem desde logo essa originalidade de
transferir para o poético um conjunto de informações, alusões existenciais, vivências e traçados
que, na sua aparente objectividade, acabam por produzir uma forte deriva conotativa”.1174

Através da vinculação a uma poética pós-modernista, em vgm prevalece uma


concepção oficinal de texto, que ficcionaliza momentos vividos; o poeta, na senda
dos códigos petrarquistas cultivados por Camões, procura espelhar simbolicamente
as vicissitudes da existência.1175
A imitatio vitae processo ficcional da experiência do poeta, seguindo o modelo
camoniano, materializa uma das funções retóricas da imitação, na demanda de
traduzir simbolicamente os eventos e as vicissitudes fulcrais de um itinerário

labirintos e fascínios, loc. cit., pp. 179-190 e Rita Marnoto, O Petrarquismo português do Renascimento e
do Maneirismo, loc. cit., pp. 331- 508).
1171
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 229.
1172
Fernando Gil e Hélder Macedo, “A poética da verdade d’Os Lusíadas”, in Viagens do olhar:
retrospecção, visão e profecia no Renascimento português, loc. cit., p. 140.
1173
Segundo Jorge de Sena (Da poesia portuguesa, Lisboa, Ed. Ática, 1959, p. 61), este passo é
paradigmático da perplexidade entre verdade e fingimento, essência da criação poética, que Camões cantou
com singular intensidade e lucidez.
1174
Eduardo Paz Barroso, “Uma acústica do ‘eu’. A poética autobiográfica de Vasco Graça Moura”, in
Isabel Ponce Leão e Eduardo Paz Barroso (org.), op. cit., p. 29.
1175
Vítor Manuel Aguiar e Silva, “Aspectos petrarquistas da lírica de Camões”, in Camões: labirintos e
fascínios, loc. cit., p.182.

356
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

autobiográfico1176. Sem embargo, essa estratégia literária está intimamente ligada


ao imitatio stili, configurando um determinado código poético, que cada vate
actualiza, com o propósito de reflectir a vida do autor empírico, identificado ou
confundido com o eu lírico. Com efeito, Aguiar e Silva, quando se refere às
mediações estabelecidas entre a vida e a obra de Camões, põe em destaque o papel
desempenhado pelo exemplo de Petrarca: “Não é, deste modo, a biografia que gera
a poesia, mas a poesia que, segundo determinadas notas e convenções semióticas,
constrói uma biografia”.1177
Assim, tal como se verificara já em Camões, os versos de Graça Moura
configuram um universo próprio, que, mesmo em momentos de aparente expressão
fragmentária, manifestam núcleos temáticos, desenhando progressivamente uma
singular síntese de uma obra coerente e plural.

4.2. Temas de sugestão camoniana

4.2.1. O tópico do tempus fugit

Com efeito, é a partir da percepção da condição humana que a escrita de Graça


Moura afirma a sua essência1178; a configuração temática, que estrutura
indubitavelmente os versos do autor, permite depois descortinar um caminho para a
compreensão do mundo que nele se reflecte. Um mundo complexo, tecido de
contradições, que ora se equilibra em tensão dramática, ora se exibe num notável

1176
Esta acepção merece particular atenção a Graça Moura, como se pode ler em nota preambular à sua
tradução das Rimas de Petrarca: “O projecto autobiográfico ligado ao que viria a ser o Canzoniere torna-se
mais denso sobre a pressão daquelas circunstâncias íntimas. Nomeadamente no tocante à obra em vulgar, a
dialéctica petrarquiana começa por se estabelecer entre a dispersão dos fragmenta e a unidade global daquele
projecto, minuciosamente regulada em termos cronológicos e simbólicos, mesmo quando possa considerar-
-se discutível a exactidão factual invocada ou implícita” (Vasco Graça Moura, “Setecentos anos de
Petrarca”, in As Rimas de Petrarca, loc. cit., p.16).
1177
Vítor Manuel Aguiar e Silva, “Aspectos petrarquistas da lírica de Camões”, in Camões: labirintos e
fascínios, loc. cit., p.189.
1178
Octavio Paz (El arco y la lira: el poema, la revelación poética, poesía e historia, México, Ed. Fondo de
Cultura Económica, 51983, p. 16) distingue essa dimensão indelével nas suas pertinentes considerações
sobre o fenómeno lírico, quando realça que as diferenças entre poetas não se devem a variações históricas,
mas à sensibilidade criativa de cada autor.

357
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

lirismo, inclinação que permite identificar uma singular visão cultural, feita de
devoções e afinidades selectivas.
A perspectiva enunciada pelo autor de a sombra das figuras surge sintetizada
numa implícita alusão a uma retórica maneirista de raiz camoniana, como está
patente no poema de tanto sonho e nada:

“escrevo devagar
a doze de novembro […]

por lembranças, vaivéns


de bens passados, sarros,
desoras, estranhezas,
tanto desassossego,
tanta contradição,

tanta coisa perdida.


nem eu delicadezas
vou cantando, mas duras
sinas, remordimentos,
entrecortadas

de fantásticas pinturas.” (PR2, 346-347)

Como se observa, a poesia de Graça Moura, marcada pelas pequenas coisas


quotidianas, entrelaça-se com a fugacidade dos dias e a inevitabilidade da morte, o
que revela um particular fascínio pela interpretação dos grandes enigmas da vida.
Deste modo, a memória deambula pelos interstícios do tempo, evoca momentos,
lugares abandonados ou figuras ausentes, possibilitando observar determinados
eixos interpretativos pelas possibilidades de sentido que encerra. Significa, em
primeiro lugar, uma vocação para captar o que o mundo transmite, porque o
esquecimento irá transformar tudo em “dúvidas, incertezas, cinzas dispersas, pó”
(PR1, 454), como o poeta canta noutro passo.
A enunciação inquietante afigura-se paradigmática pela inclusão de dois
significativos segmentos camonianos; “nem eu delicadezas / vou cantando”,
constitui um decalque de um célebre verso da Canção X1179, que conduz Graça
Moura a cantar as “duras / sinas”, motivado pelas “puras verdades”. Esta espiral,
que envolve na sua génese o lirismo do autor das Rimas, leva o poeta
contemporâneo a convocar um outro passo da canção referida:

1179
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 229.

358
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

“lágrimas tristes são que eu nunca domo


senão com fabricar na fantasia
fantásticas pinturas de alegria.”1180

A metáfora das “fantásticas pinturas” do poema de Graça Moura focaliza-se na


perplexidade da relação entre verdade e ficção, cantada também por Camões com
particular lucidez. A essência da criação poética reside na evasão da realidade, uma
vez que às “lágrimas tristes”, representação metafórica das vicissitudes da vida,
opõe-se a “alegria” do canto. Esta é, de facto, a expressão de um amargo dissídio
entre os planos da transcendência e imanência, marca indelével da poesia
maneirista.1181
Assim, a vida, o infortúnio ou o canto exemplificam a variedade de temas
hauridos na grande tradição poética ocidental, que ultrapassa a mera realidade:

“o coração não aguenta


a atroz pressão dos versos numa prega
mais da realidade.” (PR2, 64)

A saturação da realidade na literatura, constitui a consciência da necessidade


marcante de uma subjectividade intrínseca, com o fito de uma singular criação
poética. Impera, pois, em Graça Moura uma visão predominantemente amargurada
geradora de um leque bem definido de temas.
Na sua polimórfica poética, o sentido da efemeridade, essencial ao próprio ser
humano, configura a afirmação da importância fundamental da subjectividade na
construção poética de Graça Moura1182, que, ciente da sua condição finita de
mortal, conclui “estou só, a medir-me com o tempo” (PR2, 553)1183, eco similar ao
verso inaugural da sextina camoniana “Foge-me pouco a pouco a curta vida”1184.

1180
Idem, ibidem, p. 228.
1181
Sobre esta matéria, vide Isabel Almeida, Poesia maneirista, loc. cit., p. 54.
1182
De entre uma panóplia de alusões cronológicas disseminadas nos seus textos, observe-se, por exemplo, a
referência cronológica no título traição.1996, poema que incorpora referências à idade do poeta: “tive vinte
anos / […] agora, com cinquenta e quatro” (PR1, 522).
1183
Os passos evocativos do tempo em estreita relação com a escrita são recorrentes em Graça Moura, como
se pode observar nos seguintes exemplos: “o tempo é também uma criação verbal” (PR1, 165), “o tempo
torna-se som no espaço e fora dele / nada vibra” (PR2, 216) e “o tempo era uma ondulação / da matéria das
palavras / na alma (PR1, 334).
1184
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 303.

359
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

Em ambos os poetas, a consciência de uma dilacerada mudança de tudo, associada


a vicissitudes existenciais, interferem indubitavelmente na produção criativa.1185
Tal relação profunda condiciona, com efeito, a tonalidade da poesia do autor
contemporâneo, como assevera Pinto do Amaral:1186

“Concilia um tom prosaico próximo das falas banais do quotidiano e por outro lado na
preocupação filosófica e humanista, bebida no séc. XVI no maneirismo, em que avultam alguns
topoi essenciais, como a reflexão sobre o tempo, ou a consciência da morte que se ergue como
sombra tutelar de qualquer obra humana”.1187

Com efeito, os temas tratados, que se podem considerar permanentes na poesia,


abrem-se a múltiplas questões cruciais na dilucidação da escrita de Graça
Moura1188. A experiência existencial, correlata à visão do mundo, possibilita a
criação poética, projectando os seus textos muito para além dos limites de uma
confidencialidade ou de um intimismo pessoal:

“luz de inverno nas dunas,


na areia um brilho mate,
palavras rasas de água […]
e o sussurro dos búzios
onde o mar se tritura
no princípio das trevas
desse exílio do mundo

e encrespadas ondinhas
fugindo-se uma a uma,
e bernardim diz: ontem
pôs-se o sol e a noute”. (PR2, 531)

O poema faz emergir diversificadas questões sobre a condição humana e a


escassez de formas verbais marca o sortilégio e as interrogações que o tempo
encerra. Os versos são conduzidos por um pressentimento contínuo de perda, onde
a serenidade da escrita equivale à inquieta lucidez com que as questões são
tratadas; o ritmo, o deslumbramento ou os feixes imaginários do “sussurro dos
búzios” e das “encrespadas ondinhas” marcam de um modo significativo essa

1185
A título de exemplo, veja-se a importância deste topos na poesia em Vítor Manuel Aguiar e Silva,
Maneirismo e Barroco na poesia lírica portuguesa, loc. cit., pp. 280-281.
1186
Fernando Pinto do Amaral, “A caligrafia do tempo: uma leitura da melancolia na poesia de VGM”, in
José da Cruz Santos (org.), op. cit., pp. 77-84.
1187
Idem, ibidem, p. 77.
1188
Em consonância com esta conjugação, Claude-Gilbert Dubois assinala que, o tempo, topos marcante do
Maneirismo, é uma categoria determinante do conhecimento, sem a qual nada pode ser entendido pelo
espírito humano (Claude-Gilbert Dubois, Le maniérisme, loc. cit., p. 117).

360
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

poesia. A contenção expressiva, desenhada na sobriedade vocabular, concede uma


significativa amplitude semântica, uma vez que o poeta comtempla o mar à luz do
inverno, constituindo um motivo para reflectir sobre a passagem inexorável dos
dias, que no dizer de Camões, “Tem o tempo a sua ordem já sabida”.1189
O poema move-se, por fim, num registo intertextual ao eleger um passo de uma
sextina de Bernardim Ribeiro1190, prova cabal do cariz indagativo do poema e
testemunho de que o tema por si tratado se enraíza na tradição.
No entanto, vgm aceita com resignação o avanço dos dias:

“o tempo passa e não me preocupa:


nem traz angústia especial, vexame,
fraqueza ou solidão, nem faço exame
de esquadrinhar a consciência à lupa.

teve uns momentos altos e outros baixos.” (PR1, 533)

Como o tempo se estrutura nos versos de vgm é uma questão crucial para
compreender a génese da sua poesia; o seu relevo afigura-se, deste modo, um traço
distintivo das poéticas dos séculos XVI e XVII, configurando, nas palavras de
Orosco Díaz, o “protagonista do drama barroco”.1191
O poeta é tocado pela aceitação do seu curso, porque “o tempo não passa e não
me preocupa: / nem traz angústia especial”; a sua relação com a temporalidade,
confessada e vivida, convoca o pensamento de Camões. Não obstante, esta
aceitação não provoca a Graça Moura o mesmo travo pessimista que percorre os
versos de Camões, paradigmaticamente expresso “Em errei todo o discurso de
meus anos”1192. Ao invés, em registo eufórico, revela a esperança no futuro, como
vgm remata no poema do tempo que passa: “e que temos livros e que estamos
vivos / podemos construir alguma coisa” (PR1, 96). De facto, a aceitação da vida
como ela é foge à influência comum entre poetas do tópico do tempus fugit, visto
que os livros fazem perdurar as virtudes do espírito1193.

1189
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 168.
1190
Bernardim Ribeiro, “Ontem pôs-se o sol e a noute”, in Obras de Bernardim Ribeiro, org., introd. e notas
de Hélder Macedo e Maurício Matos, Barcarena, Ed. Presença, 2010, p. 218.
1191
Emilio Orozco Díaz, Manierismo y Barroco, Madrid, Ediciones Cátedra, 21975, p. 59.
1192
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p.170.
1193
Carlos Ascenso André, Caminhos do amor em Roma, Lisboa, Ed. Cotovia, 2006, pp. 148-149.

361
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

As vicissitudes da fugacidade da vida são reiteradas no universo poético, na


constatação da condição humana submetida ao condicionalismo da obstinada
sucessão dos dias, sempre presente:

“o tempo, entretanto,
colaborou
com algumas manchas,

de um efémero,
a outro efémero,
porque é fugaz a alma dos lugares

e o seu peso oscilante


marca as horas”. (PR1, 409)

Na procura do sentido da vida, a mundividência, assinalada pelos signos


“efémero” e “fugaz”, revela uma sensibilidade marcada pelo incessante avanço dos
dias num “peso oscilante”, revelando ser um obstinado devorador da existência. Tal
acepção assume uma importância essencial no labor poético, que Graça Moura
conscientemente destaca: “o tempo era uma ondulação / de matéria das palavras /
na alma” (PR1, 334).
O título expressivo com algumas amigas acentua o carácter enunciado:
“tenho algumas amigas que envelhecem devagar
mas com técnica e sabedoria: há muitos cremes
para alguma ruga que desponte mais cruel. […]

o tempo também passou por mim. somos


da mesma idade e encontrámo-nos a tempo
ou falhámos o essencial do encontro, agora, tanto faz:
com algumas amigas envelheço devagar”. (PR2, 110)

O tópico decadentista do envelhecimento – com as frustrações, obstáculos e


expectativas decorrentes da vida – torna-se difícil para o ser humano, uma vez que
a ameaça da mudança dos dias acaba por esvair a beleza. A voz lírica, vigilante da
sua finitude, regista e compara as mágoas do implacável fluir temporal; não
obstante, a sua consciência impede o envelhecimento, o sujeito poético não se
esquece do passado e continua a querer ser o que foi. Nesta perspectiva, envelhecer
é crescer interiormente, pela aura pacificadora do sujeito poético, quase serena,
equidistante da felicidade e da angústia. Ao reconhecer os limites inerentes à
condição humana, a experiência do sujeito poético é similar à das suas amigas que,

362
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

no entanto, “envelhecem devagar”, pelo uso dos cosméticos. Este paralelismo, por
meio do qual o sujeito enunciador contempla e se comtempla, traduz uma
consciente aceitação da passagem dos dias, explica o carácter plural da condição
humana sujeita à inexorável passagem dos anos1194. A força vital dos versos
transmite a estóica aceitação clássica da passagem do tempo e do envelhecimento,
de que Cícero e Séneca, ou, na poesia portuguesa, Ricardo Reis são casos
paradigmáticos. Tal modo de conceber a vida, de modo análogo, surge com
recorrência na obra lírica e épica em Camões, como notou Vitalina Leal de
Matos.1195
A idade traz uma amarga reflexão no poema intitulado criação do tempo, visível
na clepsidra, instrumento simbólico de medição:

“reverbera vazia uma clepsidra


que as frias quantidades não mediu
da água em que a memória deliu:
é quando à luz o olhar dele se vidra

e em baços sobressaltos repentinos


o tempo de ninguém se torna o quando,
o como, o onde, o pó fino ondulando
que usurpa então as molas dos destinos.” (PR2, 159)

O sujeito poético conhece-se ao tomar a consciência dolorosa da


irreversibilidade da vida. A clepsidra é, por conseguinte, pretexto para uma
reflexão sobre a finitude, uma vez que coloca a tónica na condição humana: “o pó
fino ondulando / que usurpa então as molas dos destinos”. Este último sintagma,
singular expressão metafórica marcada pela imprevisibilidade, exprime um
inesperado grau de novidade na vulnerabilidade dos seres.
A clepsidra1196, elemento expressivo pelo seu efeito devorador do “tempo a
engolir a realidade” (PR2, 529), verifica continuadamente a efemeridade de tudo,
pela sua função idêntica à do relógio:

1194
Esta acepção de Graça Moura está nos antípodas da célebre fala sedutora do marinheiro luso a Efire, no
episódio camoniano da Ilha dos amores, ao desejar à sua esquiva ninfa uma formosura eterna, advertindo
que ela está condicionada pela implacável passagem dos dias: “Ó não me fujas! Assim nunca o breve /
Tempo fuja de tua formosura!” (Luís de Camões, Os Lusíadas, IX, 79, loc. cit.).
1195
Maria Vitalina Leal de Matos, “O tempo na poesia camoniana”, in Ler e escrever. Ensaios, loc. cit.,
p. 79.
1196
R. Wellek e A. Warren quando se debruçam sobre os símbolos na literatura apresentam um conceito
enquadrado neste contexto; preconizam que “os signos ou imagens apresentados, em benefício das

363
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

“Sendo um relógio apenas engrenagem


sendo apenas metal o de um relógio
e situado o mostrador aquém
da multidão de voltas em depósito […]

digo que o tempo se governa dentro


do seu próprio tempo do seu flanco
sendo apenas a coluna ou cotovelo
do seu próprio governo, castigado”. (PR1, 80)

Numa continuada vontade renovadora de voltar a este motivo, a evocação do


relógio1197 reitera a irremediável marcha regida por Cronos, obsessão da poesia
maneirista e barroca, recorrente nos textos camonianos. O instrumento de medição
das horas, que impiedosamente passam, transporta consigo o homem1198;
consequentemente, a efemeridade preside à representação da transitoriedade da
vida humana, que culmina em morte, tantas vezes cantada pelos poetas 1199. Por
outro lado, a voragem dos anos sugere outra meditação especulativa, visto que “o
tempo se governa dentro do seu próprio tempo”, ou seja, a tirania de Cronos, regida
por uma complexa inversão de valores, exerce um poder desconcertante e
incompreendido pela humanidade, reiterado no segmento “os ponteiros do relógio é
que giram em sentido / contrário ao de terra” (PR1, 215). Sob o signo da mudança e
da fugacidade, a acepção inovadora de Graça Moura, embora cultivada ao longo
dos séculos aproxima-se dos princípios estéticos do Maneirismo e Barroco, como
notou Aguiar e Silva a propósito de versos camonianos1200. Com efeito, a
consciência da modernidade, haurida na referida ideia de crise, consubstancia-se na

realidades transcendentes, morais ou filosóficas, encontram-se para além deles (René Wellek e Austin
Warren, Teoria da literatura, Mem Martins, Publicações Europa-América, 51980, p. 233).
1197
Sobre o motivo poético do relógio, vide Maria Lucília Gonçalves Pires, Poetas do período barroco, loc.
cit., p. 32.
1198
Camões dá conta do avanço lento e inflexível do tempo, medido em unidades que sucessivamente
passam: “E o mundo, que com tempo se consume, / Na sexta idade andava enfermo e lento: / Nela vê, como
tinha por costume, / Cursos do sol quatorze vezes cento, / Com mais noventa e sete, em que corria, / Quando
no mar a armada se estendia” (Luís de Camões, Os Lusíadas, II, 2, loc. cit.).
1199
A importância de que reveste a efemeridade no período barroco leva António Maravall a destacar que
“es la época de esplendor del arte de la relojería” (José Antonio Maravall, La cultura del barroco, loc. cit.,
p. 384).
1200
O reputado professor destaca: “Para exprimir a instabilidade e a fugaz duração da vida, os poetas
maneiristas utilizam metáforas e comparações que, embora provindas de uma antiquíssima tradição literária,
alcançaram no período maneirista, e depois no período barroco, uma ressonância nova, quer pela sua
frequência, quer pelo contexto histórico existencial a que estão vinculadas” (Vítor Manuel Aguiar e Silva,
Maneirismo e Barroco na poesia lírica portuguesa, loc. cit., p. 286).

364
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

inquirição do destino humano, bem como procura descortinar os limites terrenos de


cada indivíduo dramaticamente situado num mundo de enganos.
A asserção enunciada observa-se também na reflexão sobre o final de cada ano
que passa:

“termina mais um ano. acendo


a lareira e fico a ver as chamas
a lamberem as achas e não sei
que horas são. ficou aberto o livro

abandonado na poltrona: nessa página


em que pousam os óculos e
o som e o tempo se incorporam
para um poema de expiação”. (PR2, 197)

O tempo desencantado, no seu percurso vertiginoso, revela-se num pulsar


silencioso, “que tudo desbarata” no dizer de Camões1201; de larga fortuna na
Antiguidade Clássica, a imagem serena do poeta junto à lareira com “as suas
chamas” contribui para um momento inspirador de que resulta um “poema de
expiação”. De facto, em registo de fria serenidade, o poder dos versos repara o
sentido irreversível dos anos, bem como salva do esquecimento o percurso
existencial.
De novo, a implacável corrosão observada ocupa um lugar crucial no seguinte
trecho:
“então também se dizia ‘termina
mais um ano’, mais um segmento
da história do mundo, como um tronco
carcomido do tempo a apagar-se devagar,
sem sobressaltos e sem luz. morreu mais gente,
nasceu mais gente, sofreu mais gente, ponto
final. o clarão do lume cresce, corre
contra as fibras da madeira”. (PR2, 199)

O tempo que tudo arrasta, sintetizada em “termina mais um ano”, é a fonte de


meditação melancólica da escrita a lembrar o incipit do soneto camoniano “Oh!
Como se alonga, de ano a ano, / peregrinação cansada minha” 1202. Para vgm a
percepção temporal é, por assim dizer, fechada, visto que o “clarão do lume” tudo
consome, “como um tronco / carcomido do tempo. Ao invés, a passagem dos anos

1201
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 124.
1202
Idem, ibidem, p.19.

365
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

para Camões desenha-se num percurso de sofrimento, sugerido pela “peregrinação


cansada”. Graça Moura tem, pois, presente a formulação horaciana das estações do
ano1203, numa aceitação estóica que contrasta com a dilacerada vivência da
temporalidade cantada também por Camões na sua Ode IX, “Fogem as neves
frias”1204. Nestas circunstâncias, inseridas numa filiação literária, não se pode
omitir a linha meditativa da enunciação do poeta contemporâneo, visto que o valor
da palavra reside precisamente na sua resistência a essa passagem inexorável dos
anos.1205
O escoamento ininterrupto enunciado surge noutro elucidativo texto:

“onde os comboios já não passam, onde ervas desoladas


e fetos do silêncio invadem os carris, onde apodrecem
tempo e locomotivas, onde há apeadeiros
vazios, instalações desertas, máquinas abandonadas […]
onde enferrujam cancelas e lanternas, tabuletas
de ‘pare, escute, olhe’, pilares de pontes velhas,
onde entre ferros retorcidos, pedregulhos, silvas, cardos,
entre algum rio e algum monte, uma charneca e um olhar,
se amontoa sucata, apenas sucata para a alma,

e não se passa nada e não passa ninguém.” (PR2, 420-421)

Sob o signo de que “o real é perecível” (PR1, 202), neste excerto, dedicado a
Histórias dos cavalos de ferro, obra fotográfica de António Lopes1206, o principal
motivo de interesse reside, sem qualquer complacência, na aguda consciência da
passagem inexorável de Cronos, baseado num halo de modernidade configurado no
universo ferroviário. De larga fortuna no Barroco, o tema das ruínas, neste caso
inovador de ruínas industriais, num espaço que “amontoa sucata”, constitui um
cabal testemunho de uma consciência histórica1207. A poesia surge, assim,
empenhada em captar o instante e tudo o que é transitório; não faltando, perante a

1203
Idem, ibidem, p. 275. Sobre os nexos intertextuais deste topos ente o Venusino e Camões, vide Américo
da Costa Ramalho, “Três odes de Horácio em alguns quinhentistas portugueses”, in Camões no seu tempo e
no nosso, Coimbra, Liv. Almedina, 1992, pp. 326-329.
1204
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 275-277.
1205
Maria Alzira Seixo (“Melancolia e Maneirismo. O concerto campestre, de Vasco Graça Moura, Lisboa,
Ed. Asa, 2001, pp. 260-263) sublinha justamente que, na obra de Graça Moura, a escrita se alimenta de uma
mundividência maneirista plasmada na conjugação entre os interstícios do real e as fracturas provocadas
pelo efémero.
1206
António Lopes, Histórias dos cavalos de ferro, Lisboa, Ed. Câmara Municipal, 2001.
1207
Sobre esta matéria, vide, por exemplo, Helmut Anthony Hatzfeld, Estudios sobre el Barroco, Madrid,
Ed. Gredos, 21966, pp. 383-387.

366
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

fim inevitável da vida, a exortação ao leitor: “pare, escute, olhe”1208. A visão


elegíaca oferecida pela decadência das “ervas desoladas” ou dos “ferros
retorcidos”, mais do que contemplativa, é deceptiva pela aguda consciência de que
a crueldade da temporalidade tudo domina e esmaga, marca distintiva da
cosmovisão barroca1209. Assim, a poesia, inquietante e perturbadora, plasma o que
tem de mais íntimo – a tensão máxima entre a plenitude das coisas e a vacuidade da
existência, expressa numa cruel desolação, uma vez que “não se passa nada e não
passa ninguém”1210. Densos e apurados, os versos de Graça Moura, resultante das
contradições decorrentes da existência, apresentam claras ressonâncias camonianas,
de que este soneto, pela sua abrangência semântica, é paradigma:

“Oh! como se me alonga, de ano em ano,


a peregrinação cansada minha!
Como se encurta, e como ao fim caminha
este meu breve e vão discurso humano!

Vai-se gastando a idade e cresce o dano;


perde-se-me um remédio, que inda tinha;
se por experiência se adivinha,
qualquer grande esperança é grande engano.

Corro após este bem que não se alcança;


no meio do caminho me falece,
mil vezes caio, e perco a confiança.

Quando ele foge, eu tardo; e, na tardança,


se os olhos ergo a ver se inda parece,
da vista se me perde e da esperança.” 1211

1208
Este processo, por assim dizer, metamórfico, é sublinhado justamente por Seabra Pereira, “Não
surpreende, pois, que a literatura novecentista (e outras artes, em especial o cinema) revisite assombrada o
tópico das ‘ruínas’ e o reconverta, por vezes, em poética da ruína. Representação pungente da realidade
empírica da História e metáfora poderosa da experiência íntima e dos mundos aluídos, de sistema de valores
pervertidos ou desagregados” (José Carlos Seabra Pereira, “Alotropia e desejo de plenitude na modernidade
ocidental”, in Maria de Fátima Silva (coord.), Utopias & distopias, Coimbra, Imprensa da Universidade,
2009, p. 280. Sobre o tratamento crítico do tópico das ruínas, vide, a título exemplificativo, Pierre Brunel,
L’Arcadie blessée - le monde de l’idylle dans la littérature et les arts de 1870 à nos jours, Mont-de-Marsan,
Editions Interuniversitaires, 1996 e António Manuel Ferreira e Paulo Alexandre Pereira (coord.), Escrever a
ruína, Aveiro, 13º Encontro de Estudos Portugueses, Universidade de Aveiro, 2006.
1209
Segundo Antonio Maravall, o tema da ruína, de matriz barroca, relembra ao homem que não se pode
livrar da sua própria fugacidade (José Antonio Maravall, La cultura do barroco, loc. cit., pp. 254-256). Cf.
ainda sobre este assunto, Vítor Manuel Aguiar e Silva, Teoria da literatura, loc. cit., p. 461.
1210
Vasco Graça Moura proclama a vivência temporal como uma das infinitas facetas da condição humana,
o que se aproxima de Camões. Essa atitude estética do poeta quinhentista é sublimada do seguinte modo por
Eduardo Lourenço (“Camões e o tempo ou a razão oscilante”, in Poesia e Metafísica, loc. cit., p. 47): “A
verdadeira originalidade camoniana, com efeito, situa-se aquém da reflexão abstracta sobre o tempo, ao
nível da vivência concreta da temporalidade”.
1211
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 129.

367
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

É nítido, neste texto, o sentimento trágico do percurso da existência, tipicamente


maneirista: “a peregrinação cansada” do sujeito lírico pelo mundo é marcada pela
angústia da transitoriedade, que tudo destrói no seu fluir contínuo, sentindo que a
sua vida foi em vão. A felicidade almejada, que no dizer do eu lírico, “da vista se
me perde e da esperança”, lembra a tonalidade nostálgica do belo verso de Graça
Moura: “é tudo uma questão de olhar: / muita coisa passou e pouco sobrevive”
(PR1, 272).
Camões constitui, na realidade, o privilegiado eixo de tributo selectivo de temas
e processos, recuperados por Graça Moura que, na senda da poética da imitação,
segue uma inovadora concepção poética do mundo. Com efeito, o sentido gerado
nos versos de vgm, com inegável coerência, perscruta a passagem inexorável dos
dias e dos anos. Nessa ordem cósmica, consciente da contínua mudança de tudo, o
autor não esquece a transitoriedade da condição do homem ou a fugacidade e o
declínio das coisas que o rodeiam. Na longa e lúcida meditação, em demanda desse
grande enigma ancestral da existência, associado à morte, o poeta encara resignado
a fugacidade da vida, valorizando-a sem qualquer fatalismo ou pessimismo. O
itinerário poético de Graça Moura mantém, pois, uma pertinente actualidade na
afirmação da fragilidade humana, cantada por Camões e a que não são alheias as
coordenadas estéticas maneiristas e barrocas.

4.2.2. A representação da morte

Neste contexto, a produção lírica de Graça Moura não é alheia ao tema da morte,
como testemunha a seguinte interpelação: “como meter a morte / nas palavras?
(PR1, 255); o espectro de finitude, provocado pela decadência inexorável da
passagem dos dias, merece inclusivamente uma sequência de poemas (PR1, 540-
-544), a lembrar o “caminho da vida nunca certo”1212, que motiva a célebre
interrogação camoniana sobre o enigma da existência:
“Onde pode acolher-se um fraco humano,
Onde terá segura a curta vida,
Que não se arme e se indigne o Céu sereno
Contra um bicho da terra tão pequeno?”1213

1212
Luís de Camões, Os Lusíadas, I, 105, loc. cit.
1213
Idem, ibidem, I, 106.

368
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

Assim, não deixa de ser significativo o tratamento deste tema pelo poeta
contemporâneo no poema miudinha e quietinha:

“pé ante pé há-de chegar a morte:


alminha vagabunda, enquanto ofegas
são as gotas da vida cabras cegas
na hora escapulada que te exporte.

alguém dirá que ao criador te entregas,


terás um atavio em lenho forte
e um necrológio do melhor recorte:
azar, lampejos, erros meus, refregas”. (PR1, 541)

A força expressiva dos versos veicula uma profunda perplexidade do percurso


vivencial como travessia convocando a metáfora do homo viator, já presente em
Camões, em idêntico sentido, no passo “peregrino vago e errante” 1214. Neste
enquadramento culto, marca distintiva da poesia de Graça Moura, a “alminha
vagabunda” recorda um verso do imperador Adriano, epígrafe do Memórias de
Adriano, da autoria de Margarite Yourcenar1215. Os versos acima transcritos
demostram um sentimento contraditório e perturbador, uma vez que o “lenho
forte”, metáfora do esquife, bem como o “necrológio”, registo evocativo dos
falecidos, são signos desencantados sobre a morte1216. A autenticidade realista
enunciada afasta-se de qualquer pendor especulativo para se centrar, no dizer de
Pinto do Amaral, nas “pequenas mortes de todos os dias e da sua declinação
pessoal ao nível do sofrimento mais dilacerante”.1217
A riqueza conotativa do trecho de Graça Moura, que faz ressoar sintagmas do
soneto Erros meus, má fortuna, amor ardente1218, deriva da ênfase concedida às
dilacerantes contrariedades que a vida acarreta. Para o vate contemporâneo,
conhecedor da experiência do desamparo e perigo, bem como rendido à fatalidade

1214
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 227.
1215
Os versos são os seguintes: “Animula vagula blandula / Hospes comesque corporis, / Quae nunc abibis
in loca / Pallidula rigida nudula, / Nec, ut soles, dabis iocos…” (Margarite Yourcenar, Memórias de
Adriano, Lisboa, Ed. Ulisseia, 202014, p. 6).
1216
Esta dimensão disfórica, no poema justamente intitulado cronóptica, surge reiterada no verso inaugural:
“neste tempo que corre melancólico” (PR1, 33).
1217
Fernando Pinto do Amaral, “A caligrafia do tempo: uma leitura da melancolia na poesia de Vasco Graça
Moura”, in José da Cruz Santos (org.), op. cit., p. 81.
1218
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 170.

369
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

das forças que o dominam, a escrita é um paliativo para a única certeza humana que
é a morte.1219
Um esclarecedor e elucidativo exemplo do sentido da existência continua no
poema wild is the wind, título de uma canção interpretada por Nina Simone e David
Bowie, cujo ponto de partida volta a ser a referida epígrafe de Margarite
Yourcenar, agora explicitamente citada:

“agora, só diria, em-mim-mesmado, como adriano,


ó alminha, brandinha, vagabunda,
suspende a clepsidra e deixa-te ficar um pouco mais comigo,
só para eu poder contemplá-la e depois acabar serenamente,

entre a resignação do estóico, um estremecimento de ternura,


um fulgor grave do seu olhar, a faiança azul das hidrângeas
e um cheiro de alecrim, ao findar agosto de dois mil e nove,
quando o vento se torna mais bravio”. (PR2, 508)

As emoções veiculadas projectam uma sentida indagação sobre a transitoriedade


humana perante o inevitável fluir do tempo, simbolizado, de novo, na “clepsidra”.
O sentimento de existência humana, prisioneira do tempo, é motivo para o sujeito
poético preconizar, em demanda da felicidade, a “resignação do estóico”, associada
ao ideal horaciano do carpe diem, pela captação sensorial da realidade,
testemunhada no “azul das hidrângeas” ou no “cheiro de alecrim”.
Em morte convencional surge de novo, como se lê no título, o espectro da
finitude:
“dizem que a coisa é assim: a grande sonsa
crepuscular alastra pelas veias,
fogem tacto e olfacto à geringonça
e o gosto, o ouvido, a vista e as ideias.

o cabelo suado, a barba intonsa.


as demais circunstâncias muito feias,
alguma gente em pranto que responda
num negrume confuso de alcateias.

deitam o olho às jóias, à mobília,


os membros menos tristes da família
e a chuva dá nos vidros grosso açoite.

1219
Como num sistema de vasos comunicantes, esta acepção surge uma vez mais de modo consciente no
seguinte passo narrativo do autor contemporâneo: “Escrever é encarar a morte, sempre, não é jogar às
escondidas com ela, é fitá-la bem nos olhos e esperar-lhe o embate no retorno, a navalha de ponta e mola
assestada ao coração, a estocada, o projéctil, o que você quiser, sempre o fim sangrento e inexorável” (Vasco
Graça Moura, Meu amor, era de noite, loc. cit., p. 91).

370
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

vai-se em cata da agência à luz das velas


nas páginas abertas, amarelas,
a murmurar: ‘não passa desta noite’.” (PR1, 540)

Os versos, impregnados de uma ironia provocatória, apresentam claramente o


valor de uma crítica às reacções humanas perante a hora da agonia derradeira. Ao
jeito de uma história, que começa como o verbo de sujeito indeterminado “dizem”,
a morte é vista, em registo gradativo, pela falência dos sentidos que captam o
mundo: “fogem tacto e olfacto à geringonça / e o gosto, o ouvido, a vista e as
ideias”. Os familiares do moribundo revelam um ávido interesse perante a riqueza
do moribundo: estes heredipetae, caçadores de heranças, “deitam a olho às jóias, à
mobília”, notavelmente tratados no Satyricon de Petrónio1220, numa atitude de
avidez pelos bens materiais. A denúncia observa-se, pois, num dos momentos mais
tristes da vida: o momento trágico da morte em que os sentidos se desvanecem.
Como uma coreografia, o retrato de circunstância, norteado por interesses
mesquinhos, mostra o desejo rápido do fim de um ser humano, expresso na procura
do número de telefone da agência mortuária “nas páginas abertas, amarelas”.
Sob a égide da finitude, embora noutra variante, a alusão à morte de Assis
Pacheco, que dá o título ao poema, merece uma particular atenção ao poeta:

“com novembro a findar morreu fernando


assis pacheco numa livraria,
entrava nela sempre que podia
a ver as novidades e foi quando

de ensaios ou romance ou poesia


alguns volumes ia folheando
que o coração então lhe vacilando
lhe emudeceu a escrita nesse dia”. (PR1, 542)

A voz que discorre sobre o autor de Musa irregular, título enunciado mais
adiante no poema de Graça Moura, evoca o momento fatídico da morte de Assis
Pacheco, numa “livraria” de Lisboa, enquanto folheava as “novidades” editoriais. O
simbolismo temporal e espacial, enunciado em 1995, “com novembro a findar […]

1220
Veja-se sobre este assunto, a título de exemplo, Walter Medeiros, “Do desencanto à alegria: o Satyricon
de Petrónio e o Satyricon de Fellini”, in Revista Humanitas, nº 48, Instituto de Estudos Clássicos da
Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1996, pp. 169-175; Delfim Leão, “Poder sabedoria e
finitude no Satyricon de Petrónio”, in Fábio Cerqueira et alii (org.), Saberes e poderes no Mundo Antigo,
vol.II- Dos poderes, Coimbra, Imprensa da Universidade, 2013, pp. 33-52.

371
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

/ numa livraria”, cenário onde qualquer escritor desejaria morrer: junto de “ensaios
ou romance ou poesia”.1221
Neste contexto, que perpetua o homem na escrita1222, outra figura da sua
devoção é apresentada no momento da sua morte:

“quando morreu, diz o dicionário,


a cabeceira de max reger
havia as provas corrigidas
do motete ‘o homem vive
e subsiste por curto tempo apenas’.” (PR2, 50)

A oscilação entre aspectos eruditos e a curiosidade das “provas corrigidas” de


um trecho de um motete, género da música polifónica, do célebre compositor
alemão Max Reger reveste-se de particular significado, uma vez que a questão da
transitoriedade terrena, “o curto tempo”, não se concretiza apenas na literatura,
estende-se igualmente a outra forma artística, plasmada, neste caso, na música.
Na esteira de que tudo está fadado à morte, celebrado pelos mais diversos
autores, Graça Moura glosa “todo o ano passamos alheios / pelo dia da nossa
morte”, passo lírico de Alexei Bueno, vulto de relevo das actuais letras brasileiras:

“todo o ano passamos alheios


pelo dia da nossa morte:
não tenhas então receios
de que a parca antes te corte
o fio cujos enleios
deram rumo ao teu desnorte:
o fim justifica os meios
e estes atrasam a morte,
não é coisa que me importe:
os anos passados, dei-os,
e o mais que pude gastei-os,
seja esta a ideia forte.
por muito que nos entorte,
todos passamos alheios
pelo dia da nossa morte”. (PR2, 312)

1221
Determinados vectores de significação em torno da morte de escritores pode ser encontrado noutros
poemas de Graça Moura: carta à mulher amada sobre a morte de vitorino nemésico (PR1, 181), morte de
david (PR1, 543), ofício de morrer (PR1, 286-287) e morte de camilo (PR2, 53). Estes dois últimos poemas
versam sobre os acontecimentos trágicos em torno dos suicídios célebres de Cesare Pavese e de Camilo
Castelo Branco.
1222
Neste âmbito, Maria Lucília Gonçalves Pires (Poetas do período barroco, loc. cit., p. 33) advoga: “A
morte de alguém (alguém ilustre pela sua beleza, pela sua sabedoria pelo seu poder, pela sua elevada
categoria social) é um dos motivos mais frequentemente tratados e utilizados como ponto de partida de
meditação sobre a efemeridade dos bens terrenos.”

372
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

Este poema marcadamente meditativo, que propende para um canto de


serenidade pela cadência rítmica de cada verso, exige uma determinada
disponibilidade reflexiva do leitor. Efectivamente, o texto configura um caminho
conducente à compreensão da mensagem poética, visto que se trata de uma notável
síntese das linhas de forças que atravessam os versos de Graça Moura. O sentido da
morte brota da aguda preocupação com a irreversibilidade do tempo, contido na
perífrase mitológica da Parca que corta o fio da vida 1223. Reforça essa acepção a
circularidade patente na repetição dos versos, como que a lembrar que o homem,
consciente da sua condição, é um ser efémero e indefeso, no dizer de Graça Moura:
“o que em nós se destrói / é a escolha da morte, não podermos pensá-la” (PR1,
295). Com efeito, o convite à indiferença perante o “dia da nossa morte”, presente
no sintagma “não tenha então receios”, surge legitimado pela importância de se ter
vivido: “os anos passados, dei-os, / e o mais que pude gastei-os”.
Nesta óptica, presente nas mais variadas manifestações artísticas, a
representação da morte, disseminado nos versos de vgm, reveste-se de particular
pertinência, porque ilustra uma das linhas de força do pensamento do autor.
Haurida sobretudo na tradição poética dos séculos XVI e XVII, a percepção da
finitude, um dos maiores enigmas colocado ao ser humano, perscruta, assim, os
mistérios da existência e dos seus recônditos sentidos.

4.2.3. O desconcerto do mundo

De larga tradição literária, também o tema do desconcerto do mundo, “um dos


pensamentos favoritos de Camões”1224, não surge de forma gratuita no percurso
dialéctico dos versos de vgm. Num rico e sugestivo deambular criativo, a feição
enunciativa abre-se ao pereat mundus, centro de uma constelação de múltiplas
possibilidades simbólicas e metafóricas, assinalado indelevelmente por
ressonâncias camonianas, como sugere de modo paradigmático “Tem o tempo a
sua ordem já sabida, / o mundo, não; mas anda tão confuso”.1225

1223
Pierre Grimal, “Parcas”, in Dicionário de mitologia, loc. cit., p. 355.
1224
António José Saraiva, Luís de Camões. Estudos e antologia, Lisboa, Ed. Bertrand, 31980, p. 84.
1225
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 168.

373
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

Neste impulso estético e existencial de escrita, que oscila, no dizer de Pinto do


Amaral, “entre a sensualidade saudável e a melancolia maneirista”1226 se joga o
conflito entre a harmonia e a dissonância, a concórdia e a discórdia, testemunhado
numa tensão de deliberado acento lírico. 1227
Assim, num admirável exercício que inscreve a memória no tecido textual,
Graça Moura glosa um poema de Sá de Miranda:

“Comigo me desavim,
sou posto em todo perigo;
não posso viver comigo
nem posso fugir de mim.
Sá de Miranda

ando enredado, confesso,


em pontos de introspecção
e às vezes sinto que em vão
em mim mesmo me atravesso.
é certo que nunca meço
uma angústia até ao fim,
há sempre um não contra um sim,
como sombra que não passa,
e assim, e por mais que faça,
comigo me desavim”. (PR2, 546)

Como se observa, a apropriação fragmentada de referências culturais, revela a


complexidade da existência, modelada num feixe dinâmico de tensões
contraditórias: “há sempre um não contra um sim”, numa clara exaltação da fruição
intelectual da memória literária.
O incipit de Graça Moura, “ando enredado, confesso”, acentua a tonalidade
lírica inquietante do poema, que não é mais do que uma “introspecção” do sujeito
de enunciação, visto que no seu dizer, “em vão em mim mesmo me atravesso”.
Graça Moura é – e para voltar aos versos de Sá de Miranda – um sujeito perdido
que se movimenta sem saber por onde, sugestão reveladora do mundo às avessas. O
verso mirandino “comigo me desavim” encerra não apenas o poema, mas também
moderniza e acentua uma personagem sensível com dúvidas existenciais.

1226
Fernando Pinto do Amaral, “A caligrafia do tempo: uma leitura da melancolia na poesia de VGM”, in
José da Cruz Santos (org.), op. cit., p. 78.
1227
Segundo Aguiar e Silva, mais do que um mero efeito retórico, este topos reveste-se de uma profunda
consciência significativa: “Na literatura maneirista, o tópico do desconcerto do mundo perde frequentemente
o carácter de esquema retórico para se volver em dolorosa reflexão sobre a confusão e a desordem cósmicas,
sobre a sem-razão do mundo e da vida” (Vítor Manuel Aguiar e Silva, Maneirismo e Barroco na poesia
lírica portuguesa, loc. cit., p. 236).

374
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

Também para Camões, o mundo, como a vida, é visto igualmente sob o prisma
maneirista de uma exacerbada desconfiança; tal inquietação, conduz o vate a um
cântico plangente de uma cosmovisão cruel, onde imperam a desgraça, o caos e os
conflitos, que, no dizer de Prado Coelho, são “motivo de indignação e espanto”.1228
Neste contexto, Camões adverte em registo plangente:

“Se por experiência se adivinha,


qualquer grande esperança é grande engano”.1229

O tema do “mundo desconcertado” abre espaço para queixas e críticas contra a


desordem, a injustiça, a corrupção e a inversão de valores prevalecentes na
sociedade quinhentista.
No longo poema designado por Oitavas a D. António de Noronha, Camões
enumera e analisa, melancólica e criticamente, as vicissitudes proporcionadas pelo
mundo, comprovadas no incipit do texto:

“Quem pode ser no mundo tão quieto,


ou quem terá tão livre o pensamento,
quem tão experimentado e tão discreto,
tão fora, enfim, de humano entendimento
que, ou com público efeito, ou com secreto,
lhe não revolva e espante o sentimento,
deixando-lhe o juízo quási incerto,
ver e notar do mundo o desconcerto?”1230

Os versos do autor das Rimas configuram, deste modo, um dos tópicos centrais
da sua mundividência lírica, o desconcerto do mundo1231. Com efeito, o texto cifra
a vida humana em dor e pranto, enfatizando que o trajecto existencial redunda em
miséria e sofrimento, marca distintiva do Maneirismo.1232
Nesta linha deceptiva ressoam os versos da conhecida esparsa camoniana:

1228
Jacinto Prado Coelho, “Camões, a cultura e o poder”, in Camões e Pessoa. Poetas da utopia, loc. cit.,
p. 48.
1229
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 129.
1230
Idem, ibidem, loc. cit., p. 286.
1231
Sobre este tema, vejam-se Ernst Robert Curtius, Literatura Europeia e Idade Média Latina, loc. cit.,
1957, pp. 99 sqq; Vítor Manuel Aguiar e Silva, Maneirismo e Barroco na poesia lírica portuguesa, loc. cit.,
pp. 235 sqq.; António José Saraiva, Luís de Camões. Estudos e antologia, loc. cit., pp. 83-115; Maria
Vitalina Leal de Matos, Introdução à poesia de Camões, loc. cit., pp. 70 sqq.; idem, “O homem perante o
destino na obra de Camões”, in Ler e escrever. Ensaios, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1987, pp. 65-
-78; Gustav R. Hocke, Maneirismo: o mundo como labirinto. São Paulo, Ed. Perspectiva, 21986; Márcia
Arruda Franco, “Desconcerto do mundo”, in Aguiar e Silva (coord.), Dicionário de Camões, loc. cit.,
pp. 312-316.
1232
Para uma análise global da poesia maneirista em Portugal, cf. a bibliografia apresentada por Rita
Marnoto, O Petrarquismo português do Renascimento e do Maneirismo, loc. cit., pp. 514-515, nota 9.

375
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

“Os bons vi sempre passar


no mundo grandes tormentos;
e pera mais me espantar,
os maus vi sempre nadar
em mar de contentamentos.
Cuidando alcançar assim
o bem tão mal ordenado,
fui mau, mas fui castigado:
assi que, só para mim,
anda o mundo concertado.”1233

O sujeito poético analisa, melancólica e criticamente, o espectáculo que o mundo


proporciona, desenhando indubitavelmente os “grandes tormentos” do desconcerto
do mundo.1234
Assim, na linha camoniana de matriz maneirista, o canto de Graça Moura
concretiza um núcleo significativo disfórico ligado à amarga condição humana,
adquirindo um sentido de confronto permanente:

“a agonia do mundo pode residir


numa carne da alma, intensa e sóbria,
a enervar-se entre a música e o sentido,
as chamas e o seu espectro, quando

entre o sarro e a espuma, a luz e as penumbras


agitadas, ecoam toda a vida e toda a morte
numa flor fictícia, perfumada de palavras,
e essa ficção absorve o ser como se fosse

o seio de deus, o inefável nenúfar de que nos falavam


quando éramos pequenos. mas é tempo
de viver o fim do tempo sem metáforas,
na nudez dos objectos esquecidos, […]

eu, árcade de mim, eu se quisesse


contar o belo, o verdadeiro, não faria mais
do que falsificar-me nobrezas da razão.
só digo do que manda o desmedido sentimento”. (PR2, 200)

O que mais sobressai neste texto é uma visão desencantada do mundo, uma vez
que se trata da “agonia do mundo”, sugerindo complexas inquietações,
comprovadas no sintagma “o regimento seu está encoberto”1235. O lirismo que
emana destes versos prenuncia uma aguda crise do sujeito de enunciação, visto que

1233
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 102.
1234
Eduardo Lourenço (“Camões e o tempo ou a razão oscilante”, in Poesia e Metafísica, loc. cit., p. 44),
quando identifica as inúmeras variações camonianas sobre o tema, dá como exemplo uma das estrofes de
Sôbolos rios, cujo verso inaugural é “E vi que todos os danos”.
1235
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 199.

376
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

é “tempo de viver / o fim do tempo sem metáforas”, ou seja, urge encarar a


realidade como ela é. De cariz maneirista, o mundo às avessas adquire, assim, uma
nova irradiação na poesia de vgm, tópico bem revelador de como esse desconcerto
constitui um grave problema existencial perpetuado na literatura através dos
séculos.
Neste âmbito, a acepção veiculada é similar à perspectiva agónica da existência,
plasmada em Camões num registo interrogativo:

“Que poderei do mundo já querer,


pois no mesmo em que pus tamanho amor,
não vi senão desgosto e desamor,
e morte, enfim; que mais não pode ser?” 1236

Em jeito conclusivo, configura-se o topos do desconcerto do mundo: o sujeito


poético confessa a dilacerante discrepância entre o que pensa e o que é a realidade,
assumindo o derradeiro verso um relevante significado pelo “desmedido
sentimento”, com um amargo timbre camoniano.
Como sublinhou Eduardo Lourenço1237, o poeta quinhentista de modo similar já
tinha cantado uma visão do mundo, bem conhecida de Graça Moura:

“Verdade, Amor, Razão, Merecimento,


qualquer alma farão segura e forte;
porém, Fortuna, Caso, Tempo e Sorte,
têm do confuso mundo o regimento”.1238

É neste contexto irracional, marcado pela ausência absoluta de valores humanos,


que os interesses mundanos prevalecem em detrimento de princípios éticos – daí o
poeta contemporâneo apenas observar “desgosto e desamor”.
A complexidade resultante da formulação enunciada surge reiterada em
giraldomachia:
“que limites para o conhecimento de si mesmo
e a própria experiência do mundo? é costume
reflectir, usar o espelho, começar pelas feições
investigar o seu significado melancólico,

entre a ambição e amargura e alguma vaidade


de chegar ao mundo a partir do nosso olhar

1236
Idem, ibidem, p. 160.
1237
Eduardo Lourenço, “Camões e o tempo ou a razão oscilante”, in Poesia e Metafísica, loc. cit., p. 82.
1238
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 199.

377
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

sobre o que somos e não somos. são questões


de profundidade do campo de abertura objectiva.” (PR2, 226)

A arte fotográfica de Gérard Castello-Lopes é fonte de um exercício meditativo,


herdado do maneirismo camoniano e os versos constroem-se conscientemente pelos
sentimentos que invadem o sujeito poético, em demanda de uma singular criação
poética. É precisamente na elucidativa hesitação do jogo antitético ordem versus
desordem que se desenha, de modo desiludido, o universo lírico1239. O sujeito de
enunciação interroga-se sobre a amplitude do caos do mundo e da vida e, quando
canta “sobre o que somos e não somos”, defronta-se com o sentido da existência,
um dos problemas fundamentais do destino humano.
Outro exemplo dessa mundividência disfórica surge comprovado no título
restos, sugestão do fecundo núcleo temático:

“veio a noite do mundo, a esfinge, a pietà,


a mãe que perde o filho, o morto que ali está,
o medo a desfazê-la, as sombras a adensá-la,
o sangue que secou, a baioneta, a bala,

a fome, a morte, a guerra, o paredão, o muro,


a mudez de ter sido, o ulular no escuro,
a turva madrugada, a máscara espectral,
e desespero e gelo e solidão letal,

e restos de nudez, do olhar sem vida restos,


restos a figurar restos dos próprios gestos,
restos de espaço e tempo e restos de tortura
restos de apocalipse e restos de amargura.” (PR2, 356)

Animados de um espírito disfórico, convocado, desde logo, pela “noite do


mundo”, os versos transcritos apontam para um dilacerante assomo de tristeza,
materializado através de uma panóplia de signos, que denunciam a violência dos
homens, sintetizada no verso “fome, morte, guerra, o paredão, o muro”. Para além
disso, o sujeito poético, que revela o “dúbio maneirismo / a que hoje cedo” (PR2,
349), pinta com cores sombrias o caos em que o mundo se converteu devido ao

1239
Graça Moura, em entrevista concedida a Anabela Mota Ribeiro, salienta a lição camoniana de uma
consciência atormentada profundamente maneirista, que chegou com vitalidade aos tempos modernos: “A
melancolia tem muito a ver com um certo sentido de uma ordem perdida do mundo. E com um certo sentido
de incapacidade fonciére da plenitude do mundo. Nos melancólicos isso gera um lado mais saturniano, mas
humoral, mais irónico e mais reflexivo” (in http://anabelamotaribeiro.pt/vasco-graca-moura-103058 -
- consultado em 2 Março 2017).

378
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

desprezo de valores, expressa no valor anafórico de “restos”, associado às graves


faltas éticas patenteadas nos signos “tortura”, “apocalipse” e “amargura”. Trata-se,
pois, de um sistema propício à criação da uma desordem, numa estética marcada
pela confusão, análoga à dos versos camonianos.1240
Nesta linha, o poeta quinhentista exorta na Canção X:

“Chegai, desesperados, para ouvir-me,


e fujam os que vivem de esperança
ou aqueles que nela se imaginam.”1241

Os versos projectam, deste modo, uma arrebatadora inquietude interior,


desenhada em várias derivas de aproximação a uma sensibilidade desencantada,
que o destino ajuda a construir.
Nesta linha de pensamento, reflexo da atitude do homem em relação ao mundo,
adquire também um singular sentido em Graça Moura:

“o destino é uma vã mariposa


e elas seguem-lhe os bordos das asas,
são as duas a orla do voo
sobre um eixo traçado por escher.
só podiam deter-se outra vez
lado a lado no mesmo lugar
quando a morte acendesse o sinal.
mas o tempo com isto introduz-se
e é efémera qualquer simetria
e é precária qualquer semelhança. […]
o finito é um modelo contínuo
de uma valsa infinita do mundo.” (PR1, 357)

A metáfora inicial “o destino é uma vã mariposa” fornece o mote para o poema;


a vida afigura-se, pois, um frágil símbolo humano da metamorfose que culmina na
morte1242, como cantou Dante em A divina comédia, obra traduzida, como já foi
referido, por Graça Moura1243. Acresce ainda neste âmbito, a alusão culturalista a

1240
Aguiar e Silva, ao estudar os temas maneiristas em Camões, expende as seguintes considerações: “O
tema do desconcerto do mundo adquire na lírica camoniana uma expressão perturbadamente dolorida, pois
nela se revela, através de uma tessitura verbal filosoficamente analítica, uma visão ensombrada do mundo e,
em alguns casos, uma visão até anti-providencialista, como se o universo fosse dominado pelo acaso, por
forças inexplicáveis e em tresvario, sem que Deus manifeste nas coisas e nos seres a sua vontade e a sua
ordem” (Vítor Manuel Aguiar e Silva, Maneirismo e Barroco na poesia lírica portuguesa, loc. cit., p. 240).
1241
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 224.
1242
Aguiar e Silva observa que os poetas maneiristas portugueses cultivaram o símile da borboleta que
morre atraída pela luz da chama, haurida directamente em Petrarca ou nas obras de petrarquistas italianos e
espanhóis” (Vítor Manuel Aguiar e Silva, Maneirismo e Barroco na poesia lírica portuguesa, loc. cit.,
pp. 266-277).
1243
Cf. A divina comédia de Dante, tradução de Vasco Graça Moura, loc. cit., p. 393.

379
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

M. C. Escher, um dos artistas predilectos do autor contemporâneo, pela sua famosa


xilogravura do voo das borboletas “sobre um eixo traçado por escher”, tributo ao
notável jogo visual e força poética da sua obra. O sujeito de enunciação perscruta,
deste modo, o devir da condição humana, que é a sua, na sugestão lírica da errância
e efemeridade do voo da “vã mariposa”.
Este é, sem dúvida, um dos traços maiores da poesia de vgm, sugestão do topos
camoniano do ledo engano1244, uma vez que “é efémera qualquer simetria / e é
precária qualquer semelhança”, radicado no desencanto, marca indelével de matriz
maneirista. A força impulsionadora do destino, em intrínseca relação com a morte e
o tempo, configura uma preocupação metafísica do sentido cósmico; a “valsa
infinita do mundo” deixa a sensação de uma conclusão sempre em falta, sempre
adiada. Os versos elegem, pois, a aproximação do homem ao todo que o envolve,
na íntima comunhão do ser e com o universo.
Pelo que fica dito, o desconcerto do mundo, um dos temas camonianos de matriz
maneirista mais apreciados pelos actuais estudos críticos, surge com significativo
vigor expressivo nos versos de vgm. A tensão entre o eu e o mundo, convertida em
perplexos juízos de valor, assume um valor gnosiológico: o presente é um tempo de
conhecimento ou, pelo menos, uma tentativa de compreender um mundo cruel e
injusto. Sob diversas formas, o poeta contemporâneo revela, por conseguinte, a
consciência dolorosa de uma mundividência disfórica.

4.2.4. O poeta no seu labirinto

O labirinto, considerado como significativo estímulo de reflexão tão rica quanto


surpreendente na sua modernidade, constitui, nos versos de vgm, outro tema
recorrente1245. Este, de larga fortuna na Antiguidade é, no dizer de Ribeiro Ferreira,
“permanência assídua na cultura posterior e, nos seus vários sentidos, seja
frequente na poesia portuguesa contemporânea, quer em simples alusões, quer

1244
Na descrição do estado de espírito de Inês de Castro, que vive uma felicidade passageira, Camões canta
“Naquele engano da alma ledo e cego” (Luís de Camões, Os Lusíadas, III, 120, loc. cit.).
1245
José Ribeiro Ferreira, “Temas clássicos em Vasco Graça Moura”, in Boletim de Estudos Clássicos,
nº 28, Dezembro de 1997, pp.107-117.

380
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

como motivo de poemas, quer em títulos de livros”1246. Num quadro vasto e


erudito, revelador de uma rara coerência, o autor defende uma cosmovisão de cariz
cultural nas oitavas da oficina dedicado à obra de José Rodrigues:

“no labirinto
habita o minotauro, o que devora
no mais fundo do antro materiais
que despedaça à serra e à tesoura
e agrega depois noutros sinais,
o monstro vagaroso que elabora
a dúctil lentidão dos seus metais
e nas formas que engendra tem ofício
de conjugar silêncio e desperdício.” (PR2, 275)

O sujeito poético descreve a essencialidade dos elementos do “labirinto”, o


atelier do artista plástico e, entre o caos dos “materiais”, evoca o “minotauro”,
representação mitológica da metamorfose criativa, sugerida pela enumeração de
verbos dinâmicos: “devora”, “despedaça” “agrega” e “elabora”.
O tema relacionado com o Minotauro surge reiterado numa alusão à cidade do
Porto:

“o porto nunca teve um minotauro obscuro, era


um labirinto deslavado da nossa adolescência”. (PR1, 268)

A experiência da “adolescência” inscreve-se numa visão desafiante do percurso


existencial e do mundo, o que revela um momento temporal concreto sem grandes
sobressaltos, portanto “deslavado”. No entanto, a carga simbólica de que se
revestem os versos transmite um sentido de aprisionamento, de onde não é fácil
sair. A propósito deste sentido enigmático da existência, o fascínio pela “selva
oscura”1247, metáfora da teia intrincada da existência, segundo Dante, fornece a
ideia dos meandros labirínticos, de algo inexplicável, como vgm declara em
entrevista.1248

1246
Idem, “O labirinto e o Minotauro na poesia portuguesa contemporânea”, in Labirinto e Minotauro. Mito
de ontem e de hoje, Coimbra, Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos da Universidade, 2008, p. 45.
1247
Dante Aligheri, A Divina Comédia, tradução de Vasco Graça Moura, loc. cit., p. 31.
1248
Cf. “Vasco Graça Moura”, in http://anabelamotaribeiro.pt/vasco-graca-moura-103058 (consultado em
20 Janeiro 2016). Note-se ainda a recepção deste topos em Graça Moura no texto projecto em selva oscura,
que abre com os seguintes versos: “junto ao buraco onde é vergílio e dante, / me conduziu e os cantos se
articulam” (PR2, 285).

381
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

É nesta linha de dilemas sobre a condição humana, assinalada por uma singular
vocação lírica, que se constrói uma sequência poética, recorrente em Graça Moura,
designada por labirinto1249, em desesperada demanda de compreensão do mundo:

“em tudo nos enredamos,


estranhando na verdade
ver a própria liberdade
enredar-se em tantos ramos
como dentro de uma grade.
esta a condição que temos:
quanto mais nos libertamos,
tanto mais então andamos.
se mais andamos mais vemos
se mais vemos mais pensamos”. (PR2, 229)

Fica a sensação no incipit, de pendor meditativo, de uma dolorosa perturbação: o


sujeito poético, como Teseu encerrado no palácio do Minotauro, procura
desesperadamente uma saída1250. Os versos sugerem, deste modo, a metáfora do
cativeiro da existência humana em demanda do caminho para a libertação da
clausura quotidiana. Numa estrutura de pendor quiástica, os versos “Se mais
andamos mais vemos / se mais vemos mais pensamos” revelam a sinuosidade de
um percurso revelador do absurdo da vida.
O sintagma “em tudo nos enredamos” demonstra o carácter plural atinente à
condição humana, que se afirma como um dos temas principais da literatura
moderna1251. De modo similar, a existência, enquanto expressão representativa do
confuso e inextricável caos terreno, é cantada com particular força expressiva.
Embora não concretize um excerto textual preciso, o poema de Graça Moura tem
paralelo com versos camonianos, o que acentua uma deliberada conexão temática:

“cá neste labirinto, onde a nobreza


com esforço e saber pedindo
vão às portas da cobiça e da vileza;
cá neste escuro caos da confusão,
cumprindo estou o curso da natureza.”1252

1249
Sobre o tema do labirinto, vide Arnold Hauser, Maneirismo: a crise da Renascença e a origem da arte
moderna, São Paulo, Ed. Perspectiva, 21993; Emilio Carrilla, Manierismo y Barroco en las literaturas
hispánicas, Madrid, Ed. Gredos, 1983 e Károly Kerényi et alli, Estudos do labirinto, Lisboa, Ed. Assírio &
Alvim, 2008.
1250
Vide Pierre Grimmal, “Teseu”, in Dicionário de mitologia, loc. cit., p. 441.
1251
Silvina Rodrigues Lopes, “Labirinto”, in Biblos, Enciclopédia Verbo das Literaturas de Língua
Portuguesa, vol. 2, loc. cit., cols. 1321-1326.
1252
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 176.

382
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

Como se observa, o tema enunciado em torno do mito grego percorre caminhos


semânticos idênticos aos cantados por vgm1253, que numa dimensão disfórica,
define vectores negativos: o “esforço e o saber” subordinam-se à “cobiça” e à
“vileza”. A inquietante imagem decorrente adensa o mistério paradigmático do
mundo às avessas, desenhada na constatação dos valores disfóricos que regem o
mundo.1254
Deste modo, é perceptível o forte apelo do referido imaginário da Antiguidade
exercido na inquietante modernidade de Graça Moura, pela evocação maneirista da
fragilidade ontológica:
“quanto em nós não foi traído,
que assim sendo é decepção,
ser achado e ser perdido,
na tristeza de ter sido
um bater do coração
e é passar de fumo e vento
nos horizontes acesos.
o que vai ser-nos alento
a ser-nos impedimento,
se disso ficarmos presos.” (PR2, 230)

O estado de espírito descortinado neste segmento – de um sujeito perante si


mesmo – denuncia a hostilidade do mundo. Além disso, revela um contínuo
desdobramento metafórico, com o propósito da expressão original de sentimentos,
presente em “bater do coração” ou “ficarmos presos”, que se coaduna com o
preceito horaciano de “transformar em novidade as palavras correntes” 1255. O
desencanto que modela o texto pode considerar-se paradigmático de um desespero
sinuoso, mantido sem descontinuidade ao longo dos versos:

“em tudo nos enredamos


até que faça sentido

1253
Acerca da representação simbólica da construção de Dédalo nas letras portuguesas, vide Maria Leonor
Carvalhão Buescu, “Babel e o labirinto”, in Ensaios sobre literatura portuguesa, Lisboa, Ed. Presença,
1986, pp. 67-75.
1254
Aguiar e Silva, numa lapidar súmula, sublinha: “Como símbolo, o labirinto significa confusão,
dificuldade, esforço, temor e ansiedade, pois nos seus meandros múltiplos se perde o homem, embora
também neles se encontre a salvadora mensagem para a liberdade. A concepção do mundo e da vida como
um labirinto, mesmo tendo em conta a possibilidade de o homem encontrar na trama labiríntica a saída
libertadora – saída identificável, no plano religioso, no plano de deus –, revela inquietude e angústia vital,
senso agónico da sua existência e dúvida acerca do destino final do ser humano” (Vítor Manuel Aguiar e
Silva, Maneirismo e Barroco na poesia lírica portuguesa, loc. cit., p. 247).
1255
Horácio, Arte Poética, introdução, tradução e comentário de R. M. Rosado Fernandes, Lisboa, Ed.
Inquérito, 31984, p. 59.

383
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

no próprio tempo perdido


quanto ainda conservamos,
quanto em nós não foi traído,
estranhando na verdade
a própria contradição
no passar de cada idade,
ser de sombras e saudade
que assim sendo é decepção. […]
quanto mais libertamos
tanto mais ficamos presos
das questões que colocamos.
donde vimos? onde vamos?
nos horizontes acesos
tanto mais então andamos,
quanto mais temos sustento
das respostas que encontramos.
como nos equilibramos?
o que vai ser-nos alento?” (PR2, 231-232)

A contínua tensão, que enleia o sujeito poético, desenha-se na contradição


existencial do espaço enunciativo e reflecte com rara clarividência a consciência do
mundo. As formas verbais na primeira pessoa do plural (“conversamos”,
“libertamos” ou “colocamos”, entre outras), mantidas ao longo da sequência
poemática, exprime as vicissitudes da condição humana1256. É, pois, neste prisma
dos “labirintos do sentimentalismo crítico” (PR1, 213), como canta vgm, que
evolui a composição num registo marcado pela construção anafórica de carácter
dubitativo. Tem ainda particular interesse a reiteração de perguntas retóricas,
reveladoras dessa inquietação e demostrativas de que a formulação enunciada, em
vez de representar a forma perfeita da geometria labiríntica, revela o caótico e a
confusão.
Tal encenação do sujeito sobre si mesmo prossegue de modo veemente nos
seguintes versos, conferindo-lhes maior amplitude significativa:

“sentindo-nos indefesos
da vida cada momento,
quanto mais temos sustento
tanto mais ficamos presos
no vagar do pensamento.
encravar o sim no não,

1256
Nesta linha, já em 1994, Eduardo Prado Coelho afirma: “O que faz todo o interesse da poesia de Vasco
Graça Moura é precisamente este jogo complexo e enredado, feito de cedências, recusas, medo, timidez e
agressividade, em que o autor deseja atingir a mais serena evidência poética num estilo que poderíamos
designar em termos vulgares de “como quem não quer a coisa”. Só que a ‘coisa’ trabalha o texto em todos os
seus níveis e incidências” (António Lobo Xavier et alli, Vasco Graça Moura. 35 anos de trabalho literário,
loc. cit., p. 33).

384
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

ser livre no proibido


do tempo que foi vivido
(a própria contradição
até que faça sentido).

se mais vemos mais pensamos,


se mais andamos mais vemos.
tanto mais então andamos
quanto mais nos libertamos.
esta a condição que temos
como dentro de uma grade:
enredar-se em tantos ramos
ver a própria liberdade.
estranhando na verdade
em tudo nos enredamos.” (PR2, 234)

As dúvidas e contradições evocadas, signos de uma asfixiante claustrofobia,


atormentam o sujeito poético e traduzem a incapacidade de escolha de um caminho
próprio. As desilusões conducentes a um inevitável desengano configuram uma
fadiga existencial baseada numa meditação ensimesmada. Através da sugestão do
labirinto, o sujeito poético apresenta desorientação, incerteza e tormento,
sentimentos associados à imagem do cárcere, pela “condição que temos / como
dentro de uma grade”. De matriz maneirista1257, o homem enclausurado é o centro
de uma linha de tensão plasmada nas contradições existenciais e tem paralelo, por
exemplo, na denúncia em Os Lusíadas do comportamento humano representado em
“O baixo trato humano embaraçado”.1258
A asserção exposta, eixo dominante na poesia de Graça Moura, continua de
modo pungente:
“na tristeza de ter sido
guardar o que deslembramos,
mas não sendo consentido
ser livre no proibido,
enredar-se em tantos ramos,
ser achado e ser perdido
nalgum travo amargo que há-de
ter prazo de validade
do tempo que foi vivido.
ver a própria liberdade

que assim sendo é decepção,


ser de sombras e saudade

1257
Aguiar e Silva, neste prisma, conclui que “No mundo desconcertado, labiríntico, ambíguo do
Maneirismo, […] a razão não apenas oscila mas soçobra” (Vítor Manuel Aguiar e Silva, “As canções da
melancolia: aspectos do Maneirismo de Camões”, in Camões. labirintos e fascínios, loc. cit., p. 227).
1258
Luís de Camões, Os Lusíadas, VI, 99, loc. cit.

385
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

no passar de cada idade,


a própria contradição.
estranhando na verdade
quanto em nós não foi traído,
quanto ainda conservamos,
no próprio tempo perdido
até que faça sentido.
em tudo nos enredamos”. (PR2, 235)

Neste melancólico pathos, materializado a partir do mito do Minotauro,


exprime um modelo de vida consubstanciado na busca da identidade, só possível de
alcançar através da poesia, como sublinha Graça Moura: “pelo verbo sempre o
mundo / no poema se encaminha” (PR2, 284). Os corredores sinuosos e
enigmáticos do labirinto estão, pois, no próprio sujeito poético e alargam-se,
perante a utilização do plural, a todos os homens, a quem é vedada a compreensão
do mundo. Exprimem, sem ambiguidade, o desejo de possuir o fio de Ariadne que
lhe permita fugir do labirinto, ou seja, do quotidiano caótico, marcado pela
profusão de signos disfóricos: “tristeza”, “decepção” ou contradição”. Assumindo
um significado simbólico, o verso “em tudo nos enredamos”, espécie de refrão que
sintetiza o conteúdo aduzido, expressa o imaginário da construção consagrada a
Minos. O trecho referido surge obsessivamente no incipit, bem como a fechar toda
a sequência de poemas; a reiteração da forma verbal “enredamos” domina, na sua
dimensão semântica, o contexto em que se situa, materializando uma circularidade
sugestiva da ideia absurda de fechamento1259. O desabafo lírico constitui, assim, a
chave de uma mundividência, carregada dos múltiplos sentimentos desencantados,
que assaltam o sujeito poético, e onde não se vislumbra qualquer saída para a
felicidade.
Mercê das suas “devoções camonianas” (PR1, 354), Graça Moura encontra no
lirismo do poeta quinhentista um vasto campo de recriação; a imagem do labirinto é
retomada com extraordinária beleza pela aproximação semântica, como se observa,
por exemplo, neste passo do soneto Cá nesta Babilónia, donde mana:
“cá, neste labirinto, onde a nobreza
com esforço e saber pedindo

1259
O explicit de O sentimento dum ocidental sugere também este topos de fechamento, quando o sujeito de
enunciação confessa: “Mas se vivemos, os emparedados / Sem árvores, no vale escuro das muralhas”
(Cesário Verde, “O sentimento dum ocidental”, in Cânticos do realismo: o livro de Cesário Verde, loc. cit.,
p. 128).

386
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

vão às portas da cobiça e da vileza;


cá neste escuro caos da confusão,
cumprindo estou o curso da natureza.”1260

Este passo sintetiza a inversão de valores e constrói uma imagem inquieta do


mundo às avessas, onde o valor e o saber dão lugar à “cobiça” e à “vileza”,
paradigma de um “escuro caos da confusão”. De pendor maneirista, como diz vgm,
“dúbio maneirismo / a que hoje cedo” (PR2, 349), a amarga imagética enunciada,
ao invés de mostrar uma janela que se abre, apresenta as dificuldades inerentes à
possibilidade de uma saída redentora. Com base nesta estética e no entendimento
do homem e do mundo a ele subjacente, assim se descortina a produção poética do
autor de espaço interior. Por outro lado, a própria escrita é um percurso, com
avanços e recuos, no labirinto, onde o eu, encurralado nos corredores da sua
interioridade, procura a sua salvação, visto que busca reencontrar-se dentro do seu
próprio labirinto. Esta realidade não deixa de ser reveladora do desejo veemente de
substituir o caos pela ordem, aguda consciência de uma densa rede de doloroso
desencanto, potenciado pela proximidade de um trajecto vivencial, que ambos os
poetas, Camões e Graça Moura, transportam consigo, em demanda do
entendimento do caminho intrincado e, muitas vezes, misterioso da existência.
Assim, e para concluir, os versos, na sua inexcedível faculdade de exprimir as
provações humanas, interpelam o leitor a partir do célebre topos do labirinto. Este
mito, de larga repercussão na poesia de vgm, é, de resto, um símbolo maior dos
complexos caminhos da vida e do mundo onde o poeta contemporâneo se vê
enredado na sua condição humana.

4.2.5. O encanto feminino

4.2.5.1. A mulher inúmera

Para compreender a amplitude dos versos de vgm é imprescindível rastrear a


importância da figura feminina e, em paralelo, a multifacetada experiência amorosa
cantada pelo autor de adão e eva. Com efeito, a sua poesia, além de circunstancial,

1260
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 176.

387
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

filia-se nos temas hauridos nas tradições líricas anteriores, de que Camões faz
parte, percorrendo uma gama de modulações focadas, sobretudo, no prazer
sensual.
Graça Moura revela conhecer com minúcia essa rica memória literária como
testemunha 365 poemas de amor1261, colectânea por si organizada. Com efeito, esta
presença, disseminada nos seus versos, sobressai claramente uma obsessão pela
representação da mulher, onde os eixos de sentido se centram no amor e paixão,
exprimindo, por vezes, um desejo repleto de erotismo, distanciado do amor
sublimado camoniano de raiz platónica.1262
Neste contexto, as figuras femininas que povoam o seu universo lírico não são
identificadas:

“uma vez eu disse que tinha


transformado as mulheres da minha vida
todas em literatura. foi o bom
e o bonito, todas a quererem

reconhecer-se e eu com evasivas,


de autor, evidentemente. não se imagina
o número de candidatas a laura que andam
por aí, retrospectivas e acirradas.” (PR2, 115)

As paixões de Graça Moura, embora aludidas, não são premeditadamente


individualizadas; as mulheres desejam-se reconhecer nos versos; no entanto, o
sujeito poético confessa as suas “evasivas, de autor”. Ao aproximar a poesia da
vida, o sintagma “o número de candidatas a laura” realça o domínio superior e viril
do sujeito poético, que as evoca sem as identificar, testemunho directo da
intensidade das paixões sentidas. Há, portanto, um claro propósito de desmitificar
esse padrão inspirador e celebrativo da nomeação da amada, que percorre, desde os

1261
Vasco Graça Moura (org.), 365 poemas de amor, Lisboa, Ed. Quetzal, 32009. Nesta compilação, notável
síntese da tradição lírica amorosa ocidental, Camões é o poeta mais representado com seis poemas,
respectivamente a Canção IX (pp.132-136), Amor é um fogo que arde sem se ver (p. 221), Aquela cativa
(pp. 287-288), Quando de minhas mágoas a companhia (p. 352), Transforma-se o amador na coisa amada
(p. 422) e O céu, a terra, o vento sossegado … (p. 458).
1262
A recepção de Petrarca constitui também um dos factores determinantes na difusão do tema do amor nas
letras portuguesas de Quinhentos, como Rita Marnoto sublinha: “O modelo petrarquista erige-se em pedra
angular da expressão do sentimento amoroso” (Rita Marnoto, O Petrarquismo português do Renascimento e
do Maneirismo, loc. cit., p. 357)

388
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

primórdios, a tradição literária1263. O distanciamento em relação às suas


interlocutoras, “penélopes de bolso” (PR1, 423), tem paralelo na formulação do
segmento: “um dia hei-de morrer /, roído pelo silêncio de quem amei” (PR1, 204).
A sua poesia transcende declaradamente o íntimo vivido para se converter em
experiência poética, numa atitude pretensamente desprendida, como demonstra:

“penso nas mulheres que amei. nas que


me fizeram sentir que vivia e que morria.
penso muito nas que amei muito. essas,

talvez eu as tenha inventado desmedidamente


e sou punido por tanto excesso cometido.” (PR2, 553)

A experiência amorosa é ficticiamente reelaborada pela palavra, como o sujeito


poético esclarece: “talvez as tenha inventado desmedidamente”. Lugar de fascínio e
irracionalidade, a paixão do eu lírico configura-se na realidade, e, como tal,
percorre um caminho distintivo da obrigação de cantar Beatriz ou Laura, como
fizeram Dante e Petrarca. Neste sentido, Graça Moura alude, pois, a destinatárias
inomináveis, sugestão do sentido global do papel desempenhado no jogo amoroso
dos seus versos, presente também no sugestivo título as autoras de mim:

“houve nomes efémeros e as formas comoventes e perigosas


avistadas agora nas margens de um tempo entre dádivas e dúvidas.
são como cisnes diluídos num lago de ácidos contentamentos,

a deslizarem ao longo de um verso de hördelin,


são pastas de porcelana numa luminescência íntima
entre os vapores do banho.” (PR1, 443)

Com efeito, a voz poética mostra-se fiel à transitoriedade da relação amorosa,


dissipada “entre os vapores do banho”, sinónimo da vulnerabilidade das paixões
sentidas, conjugada com a sua diversidade, sugerida pelos “nomes efémeros”. Ao
modo de Camões, o poeta contemporâneo canta, deste modo, amores passageiros e
inúmeras amadas “em várias flamas” em que “variamente ardia”.1264
Como se observa, a figura feminina, sem explicitar a sua identidade, ocupa um
lugar de destaque na poesia de vgm, no seguimento de um legado poético que

1263
Sobre a abundante bibliografia dedicada a esta matéria na Antiguidade, vide, a título de exemplo, Carlos
Ascenso André, Caminhos do amor em Roma, loc. cit., pp. 355-363.
1264
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 166.

389
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

remonta à Antiguidade. Deste modo, num gesto celebrativo de paixão, de


incidência autobiográfica, ganha particular significado no modo como o poeta canta
a mulher, testemunho evidente de uma continuada atracção e profundo fascínio.

4.2.5.2. A beleza e a inspiração

Graça Moura deixa-se, pois, seduzir pela tentação haurida nas várias tradições de
amor que a lírica ocidental oferece; nesta linha, a imagem da mulher retratada por
Graça Moura surge como se fosse uma donna angelicata, de onde emana um
fascinante brilho que percorre os sentidos do poeta pela sugestão da sinestesia de
“os timbres ravelianos das / luzes da primavera” (PR1, 336). Os versos refractam,
deste modo, como o eu lírico vive e sente o imaginário feminino.
As notações depuradas de recorte clássico provocam um motivo inspirador e
surgem disseminadas na escrita, como testemunha a seguinte composição:

“e de repente estava ali a musa


no espelho embaciado do silêncio,
feita de lua e bronze e alabastro.

penteava o cabelo ensimesmada


e era feito de névoa o seu olhar
implacável de sonhos e tristeza.

e em minha perdição se renovou


a condição da musa incomovida
e esse estranho fulgor ficou inerte,
feito de lua e bronze e alabastro.” (PR2, 534)

A imagem idealizada da “musa” – que cativa, enleia e seduz – é colhida no


exemplo camoniano, como se observa na reiteração de “alabastro”. De facto, o
poeta contemporâneo, numa atmosfera classicizante resultante da alusão divina,
acentua aspectos, que a nível de conteúdo e de expressão, contribuem para acentuar
o carácter trágico da sua “perdição”, atributo nuclear na caracterização de Inês de
Castro em Os Lusíadas:

“No colo de alabastro, que sustinha


As obras com que Amor matou de amores
Aquele que depois a fez rainha”.1265

1265
Luís de Camões, Os Lusíadas, III, 132, loc. cit.

390
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

O imaginário inesiano, presente na reiteração referida, plasma-se, assim, em


Graça Moura na definição de um amor que acaba mal, visto que não é
correspondido, como se infere do neologismo presente em “musa incomovida”.
Esse sentimento, em clave camoniana, reforçado também “em minha perdição se
renovou”, deriva do conhecido verso camoniano “em minha perdição se
conjuraram”, sentida mágoa do infortúnio do poeta quinhentista perante os “Erros
meus, má fortuna, amor ardente”1266.
A figura feminina, embora seja fonte de angústia, não deixa de ser motivo de
inspiração para o poeta de vénus ao espelho:

“ó meu amor, falo de amor e é grave


a ordem das palavras, se procuro
o lugar do teu rosto na canção
e nela te construo e és a chave
para abrir no que digo um obscuro
ramal de coração a coração.” (PR2, 439)

A metáfora da “chave para abrir” sugere a inspiração do cântico amoroso; no


entanto, o sujeito de enunciação procura “a ordem das palavras”, ou seja, a poesia
configura a expressão desses sentimentos pelo papel reflexivo que lhes confere.
Tal atitude surge veemente proclamada quando questiona:

“onde é que estão as minhas musas,


as que cantei porque as amava,
as que surgiam nas confusas
curvas do tempo que passava,
e passa ainda em cinza a lava
a derivar melancolias
e no seu curso mas agrava,
por tantas noites, tantos dias?” (PR2, 250)

Há nestes versos uma dimensão genuinamente lírica que, pela condição


enigmática contida na interrogação formulada, não deixa de tocar o leitor. A
experiência afectiva, sob o signo do desengano, manifesta-se em contradições,
seguindo de perto a lição camoniana de que o “Amor obriga a […] / A diversas
vontades”1267. Na verdade, configura-se um mapa íntimo do eu com o fito de um
sentido para a experiência da vida, conjugada com uma aguda introspecção
permitida pela escrita.
1266
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p.170.
1267
Idem, ibidem, p. 117.

391
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

Assim, a figura da mulher – e a inspiração que ela motiva – ocupa um lugar


significativo no seu desabafo intimista; o deleite derivado da admiração da
formosura do corpo, constitui um sinal distintivo que atravessa a obra de Graça
Moura. Porém, tal constatação não deixa, ao mesmo tempo, de colocar o sujeito
poético perante si próprio, proclamando, num pendor confessional, os seus estados
de alma perante a beleza feminina.

4.2.5.3. A definição do Amor

Os versos de Graça Moura, presididos por Eros, levam-no a reconhecer “tive


amores e desamores” (PR1, 578). Em soneto de companhia, em consonância com a
epígrafe, um passo do Purgatório da Divina Comédia de Dante, que traduziu1268,
Graça Moura confessa:

“falo às vezes do amor, dos seus dilemas,


e das noites de insónia em que me viro
para um e outro lado, mas prefiro
que o próprio amor escreva os meus poemas”. (PR2, 145)

Seguindo a tradição literária, que Camões tão bem conheceu, o poeta


contemporâneo não deixa de celebrar uma concepção de amor peculiar e sobre ele
reflectir1269. O mundo interior, “nas noites de insónia”, proporciona uma
perspectiva de observação única, onde a paixão é o tema da sua escrita.1270
Neste contexto, não deixa de referir em caderno da casa das nuvens, o seu
derradeiro livro de poemas, em paratexto final, com o evocativo título camoniano

1268
O trecho paratextual é o seguinte: “E io a lui: I mi son un che, quando / Amor mi spira, noto, e quel
modo / ch’ e’ ditta dentro vo significando. Purg. XXIV, 52-54”. Graça Moura traduziu-o deste modo: “E eu
a ele disse: Esse sou eu que, quando / me inspira amor, o noto, e desse modo, / que dentro dita, o vou
significando” (A Divina Comédia de Dante, tradução de Vasco Graça Moura, loc. cit., p. 509).
1269
A este propósito, Graça Moura considera: “A lírica de Camões não cabe num figurino estreito da lírica
amorosa que é o seu quadro de referência imediato. Vai mais fundo na expressão das contradições e
angústias da condição humana. Nela, os dados existenciais, a matéria dos sentimentos, a palpitação afetiva, a
apreensão de instável mutabilidade do mundo, tudo se transfigura a partir de uma espécie de exílio absoluto
da consciência, num processo que é quase sempre o da figuração de um ‘bem passado’ irremediavelmente
irrecuperável, a não ser pelo exercício da palavra poética” (Vasco Graça Moura, “Versos que sabemos de
cor”, in JL. Jornal de Letras, Artes e Ideias, nº 1071, 19 Outubro 2011, p. 11).
1270
Neste prisma, um passo que dá título a uma narrativa de Graça Moura, a voz de Mateus revela os
sentimentos amorosos contraditórios que Constança lhe provoca, em clave antitética: “Meu amor, era de
noite e eu não sabia que ia ao seu encontro ou se ia a fugir de si, ou se era a fugir de mim que eu ia ao seu
encontro.” (Cf. Vasco Graça Moura, Meu amor, era de noite, Lisboa, Ed. Quetzal, 32002, p. 37).

392
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

de “para um entendimento dos meus versos”1271, apresenta o eixo estruturante que


presidiu à obra:

“O caderno da casa das nuvens desenvolve-se como uma sequência de poemas de amor que
começou a ser produzida no remanso desse Duíno do Portugal minhoto, cuja interlocutora ou
destinatária se pudesse declinar numa quintessencialidade unitária da figuração de várias mulheres
e da experiência de amá-las.
Não foi, todavia, iniciado com esse propósito: a dada altura transformou-se nele e assim, por
essa como que ‘despersonalização objectiva’, ganhou uma dimensão que eu mesmo vivo como
qualitativamente diferente, uma vez que, às tantas, procurei fazer com que eventuais conotações ou
referencialidades de cariz autobiográfico surgissem um tanto ou quanto despojadas de notas que
seriam mais pessoais, para funcionarem também como ingredientes de ficção.” (PR2, 569-570)

Com efeito, o autor de o desgaste das imagens faz um balanço deliberado do seu
percurso poético e exprime a ambivalência de sentimentos patente nos seus textos.
A linha exegética referida comporta um cunho biografista e liga indubitavelmente a
intrínseca comunhão entre a obra e a vida, a sublinhar que ao prazer estético não é
indiferente a figura do autor, traço definidor do pensamento de Graça Moura.
Ao se debruçar sobre a génese do seu último livro de poesia, refere Duíno,
castelo situado na zona italiana de Trieste, cenário idílico perpetuado por Rainer
Maria Rilke, um dos seus interlocutores de língua alemã preferidos1272. Num gesto
comemorativo, converte, por assim dizer, o imaginário rilkiano num espaço de
portugalidade, para o qual elegeu o norte do país, uma vez que se reporta ao
“remanso desse Duíno do Portugal minhoto”. Indelével testemunho da sua ampla
recepção nas letras portuguesas1273, a convocação demonstrativa do fascínio pelo
autor de As elegias de Duíno1274, reforça, “na sequência de poemas de amor”, a
força de Eros por “várias mulheres”, que se concretiza, no dizer de Graça Moura,
na “experiência de amá-las”.1275

1271
O título, também com uma finalidade metaliterária, convoca os célebres versos finais do soneto
Enquanto quis amor que tivesse: “E sabei que segundo o amor tiverdes, / tereis o entendimento dos meus
versos!” (Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 117).
1272
Em nota final aos seus Poemas escolhidos, vgm, numa série de figuras de que se reconhece devedor,
elege como interlocutores privilegiados, na literatura de expressão alemã, Hölderlin e Rilke (Vasco Graça
Moura, Poemas escolhidos, loc. cit., p. 476).
1273
Acerca desta matéria, vide Maria António H. J. Ferreira Höster, Para uma história da recepção de
Rainer Maria Rilke em Portugal (1920-1960), Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2002.
1274
Sobre a tradução de Graça Moura das obras de Rilke, vide “Rainer Maria Rilke”, in A palavra
transversal, loc. cit., pp.109-127.
1275
Sobre a presença de Rilke na obra de Graça Moura, vide Rita Marnoto, “Pelas florestas da noite. Vasco
Graça Moura, tradutor e poeta”, in Rassegna Iberistica, nº 98, 2013, pp. 91-102.

393
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

A presença recorrente do referido escritor na obra de vgm verifica-se, em boa


parte, por via da tradução1276 e por reiteradas alusões na sua escrita. Tal apreço
observa-se na produção ensaística de Graça Moura, pela abordagem de ecos de
Rilke na produção literária de Miguel Torga e de Eugénio de Andrade1277. No
universo lírico, com um pendor irónico, evoca, na sua juventude, a moda cultural
generalizada de referenciar o autor de O Livro das Horas: “era felicidade macilenta
// de debitar rilkasso, que bom era imitar / imitações alheias” (PR1, 269).
Também a sequência poemática de quinze sonetos - um deles em língua alemã -
sobre o trabalho de tradução de Der Panther, famoso texto de Rainer Maria Rilke,
aparecido, pela primeira vez, no blog Abrupto de Pacheco Pereira é determinante
para descortinar a recepção do autor em Graça Moura (PR2, 457-474). No texto
inaugural, aretnap a pantera, um divertimento em ressonâncias, dedicado a
Joaquim Francisco Coelho, professor brasileiro em Havard, que também traduziu o
texto do poeta, leva o eu lírico a utilizar a primeira pessoa do plural:

“fomos os dois à caça da pantera


que estava já da jaula sob o tecto […]

devíamos levar a rainer rilke


esta parelha opaca e transparente
à trela, quando formos ao parnaso”. (PR2, 457)

Num registo lúdico, a fazer jus ao “divertimento”, segmento do subtítulo do


poema, o tema da caça, pretexto para os poemas seguintes de vgm, metaforiza os
cambiantes de reflexão do acto de traduzir. Também ambas as traduções, “parelha
opaca e transparente”, deveriam chegar ao autor alemão, testemunho do valor dos
seus poemas1278.

1276
Cf. Rainer Maria Rilke, Carrossel e outros poemas, organização e tradução de Vasco Graça Moura,
com dez desenhos de Júlio Resende, Porto, Ed. Asa, 2004; idem, Elegias de Duíno e Os Sonetos a Orfeu,
tradução de Vasco Graça Moura, Lisboa, Ed. Quetzal, 2017 e idem, Cartas a um Jovem Poeta, tradução,
prefácio e notas de Vasco Graça Moura, Porto, Ed. Modo de Ler, 2014. João Barrento consagra um
pertinente texto introdutório em torno das traduções de Rilke realizadas por vgm; aí identifica o conceito que
o poeta português faz dos textos vertidos do alemão, configurando um tradutor-autor, visto que Graça Moura
preconiza a criatividade do seu labor (Cf. João Barrento, “O ser e o canto. Rilke pela mão de Vasco Graça
Moura”, in Elegias de Duíno e Os Sonetos a Orfeu, loc. cit., pp. 7-15).
1277
Vasco Graça Moura, “Miguel Torga, honrado poeta sinaleiro” e “Eugénio de Andrade ou a memória de
Tebas (ensaio sobre Limiar de pássaros)”, in Várias vozes, loc. cit., respectivamente, pp. 101-103 e pp. 135-
-137.
1278
Sobre este poema, vide Rita Marnoto, “Pelas florestas da noite. Vasco Graça Moura, tradutor e poeta”, in
op. cit., pp. 95 sqq e Maria António H. J. Ferreira Hörster, “Tradutores e tradução na lírica portuguesa dos

394
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

Assim, o contínuo interesse pela literatura estrangeira, neste caso de expressão


alemã, bem como a originalidade da notável assimilação da obra de Rilke
constituem um factor determinante para um cabal entendimento das marcas
distintivas da escrita de vgm, no que concerne essencialmente ao sentimento
passional.
Outro passo significativo que encontra ecos nesse domínio é o atol dos amores,
inserto na colectânea rostos comunicantes, poema que questiona a essência do
amor:
“é uma porção de terra rodeada
de amor por todos os lados?
uma porção de amor rodeada
de terra por todos os lados?
rodeada de água?
rodeada?
ah todo o amor é árduo a humano trato
e se interroga e ninguém
é uma ilha
onde se caça. apenas
se conhece asperamente
seu rodeado mapa de coral. apenas
contra a morte
a ilha, a redondilha.” (PR1, 291)

Neste passo, não deixa de pairar a memória do episódio camoniano da Ilha dos
Amores, com a reiteração dos lexemas “ilha” e “amor”, implícita celebração do
poder de Eros e recompensa divina consagrada aos segundos argonautas1279. O
sentimento intimista, decorrente das hesitações sugeridas pelas sucessivas
interrogações, não permite definir o amor, porque “apenas / se conhece
asperamente / seu rodeado mapa de coral”.
No poema sobre o mês de dezembro que deu título a uma colectânea da autoria
de vgm, surge de novo a mesma isotopia:

“foi há vinte anos, eu estava de cabeça perdida, devia mesmo estar,


há vinte anos, a escrever um poema no dia trinta e um
de dezembro, por causa de uma mulher que amava loucamente

séculos XX e XXI: José Bento, Vasco Graça Moura e Armando Silva Carvalho”, in Cadernos da literatura
comparada, nº 34, 2016, pp. 528-530.
1279
A este propósito, Aníbal Pinto de Castro destaca a importância de que se reveste o poder do amor em
Camões: “Constituindo o núcleo temático de todo o universo poético por ele manifestado, o amor enriquece-
-se e aprofunda-se em função de uma visão do mundo e da vida equacionada segundo uma forte
contraposição dialética entre o indivíduo e os outros, que dá lugar a uma complexa e serrada rede de relações
que o associam a outros temas” (Aníbal Pinto de Castro, “Rimas”, in Biblos. Enciclopédia Verbo das
Literaturas de Língua Portuguesa, vol. 4, loc. cit., cols. 847-848).

395
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

isto é, que eu julgava amar duma maneira desvairada,


e que ia casar com não sei quem, só sei que não era comigo.
e então pus-me a escrever uma coisa a que chamei mês de dezembro

tinha amargas prosódias e uma cadência repetitiva,


uma estrutura assim entre o contraponto e a fuga rudimentar”. (PR1, 452)

Como se observa, o monólogo íntimo ganha particular força lírica a partir da


consciência de um irresolúvel dilema pessoal pela volúpia de um apaixonado num
determinado momento da sua vida: “foi há vinte anos”. Se esta referência
cronológica, recorrente nos versos de Graça Moura, é moderna também tem raízes
antigas; António Ferreira apresenta na sua poesia, segundo Rita Marnoto1280, dados
pessoais precisos, como a sua idade ou traços da sua personalidade.
Inesperadamente emerge uma aguda ironia decorrente da auto-análise dos seus
versos, que confessa possuírem “amargas prosódias e uma cadência repetitiva”.
Esta linha metaliterária, consagrada ao amor contrariado, volta a estar presente num
passo narrativo do autor:
“Também há quem diga que escrever é enfrentar o desaire humano. Talvez seja tudo a mesma
coisa. Num grande romance de amor, e só uma aguda intuição do trágico faz os grandes romances
de amor”.1281

Esta conjugação entre amor desenfreado e literatura tem o intuito de enfatizar,


uma vez mais, o pendor biográfico que Graça Moura concede aos seus versos. O
poeta ancora-se, pois, na representação e indagação suscitada pelo texto lírico, na
busca da harmonia primordial, feita de simplicidade e despojamento, mas também
consciente de si mesma, dos seus poderes e dos seus limites, características fulcrais
da actual poesia portuguesa, no dizer de Rosa Martelo.1282
Porém, o poeta, ao proclamar a sua paixão pelas letras, glosa um cantar
trovadoresco, manifestação da vertente amorosa da sua poesia:

“nem cantarei
de amor amargamente nesta meia idade:
não vos sei parelha

1280
Rita Marnoto, O Petrarquismo português do Renascimento e do Maneirismo, loc. cit., p. 387.
1281
Vasco Graça Moura, Meu amor, era de noite, loc. cit., p. 91.
1282
Rosa Martelo, neste contexto, conclui: “Por fim, acrescentaria que a poesia actual é uma poesia capaz de
conciliar uma vertente reflexiva e abstractizante com a atenção a uma factualidade muito concreta apoiada
num efeito de realismo; e que procura aliar o registo lírico e a construção de identidades sentimentais e
mesmo a criação de efeitos pseudo-autobiográficos à sugestão de que esse registo é ainda (e mesmo assim)
uma máscara” (Rosa Maria Martelo, “Tensões e deslocamentos na poesia portuguesa depois de 1961”, in
Vidro do mesmo vidro: tensões e deslocamentos na poesia portuguesa depois de 1961, loc. cit., p. 50).

396
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

brancas e vermelhas
moiro por vós, ai”. (PR1,337)

Esta celebração de uma exacerbada paixão, expressa pela técnica do dobre do


refrão desta composição, “moiro por vós, ai”, segue de perto, em dimensão
deliberadamente dialógica, um célebre cantar trovadoresco, conhecido por Cantiga
da Guarvaia, atribuído a Paio Soares de Taveirós, o que revela, de um modo
similar a Camões, um aproveitamento da tradição medieval:1283
“mentre em foi como me vai,
ca já moiro por vós e ai
mia senhor branca e vermelha”.1284

Deste modo, nos versos de Graça Moura prevalece uma determinada tonalidade
passional e dramática, marcante nos primórdios da tradição poética nacional. Assim
sendo, o poema, provido da musicalidade da poesia medieval, ganha do ponto de
vista estético e cultural todo o sentido, visto que “o amor é uma terna fadiga
inteligente” (PR1, 235).
Não obstante, em blues da morte de amor faz uma paródia da celebração de uma
vida apaixonada:

“já ninguém morre de amor, eu uma vez


andei lá perto, estive mesmo quase,
era um tempo de humores bem sacudidos,
depressões sincopadas, bem graves, minha querida,
mas afinal não morri, como se vê, ah, não,
passava o tempo a ouvir deus e música de jazz,
emagreci bastante, mas safei-me à justa, oh yes,
ah, sim, pela noite dentro, minha querida”. (PR1, 437)
O ritmo sugerido nos versos sugere uma orquestra, cuja vibração musical,
proporcionada pela sugestão da “música de jazz”, representa a vida e as emoções.
O insanável dilema que o amor provoca, não possibilita uma saída isenta de

1283
Aníbal Pinto de Castro aponta a convivência de Camões com a tradição peninsular das composições
obrigadas a mote e dos versos em redondilha, que Graça Moura, conhecedor dessa realidade, não enjeita.
(Aníbal Pinto de Castro, “Camões e a tradição poética peninsular”, in Páginas de um honesto estudo
camoniano, loc. cit., pp. 85-104, sobretudo p. 89). Vide também Aida Fernanda Dias, “Camões - uma
memória poética”, in Actas do 3º Congresso da Associação Internacional de Lusitanistas, Coimbra,
Ed. Associação Internacional de Lusitanistas, 1992, pp. 99-118 e Albano Figueiredo, “Poesia peninsular do
século XV e Camões”, in Vítor Aguiar e Silva (coord.), Dicionário de Luís de Camões, loc. cit., pp. 700-
-703.
1284
Cf. Carolina Michaëlis de Vasconcelos, Cancioneiro da Ajuda, vol. II, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa
da Moeda, 1990, p. 317 e Paio Soares de Taveirós, “No mundo nom me sei parelha”, in Cantigas Medievais
Galego-Portuguesas / cantigas.fcsh.unl.pt/cantiga.asp?cdcant=124m (consultado em 5 Fevereiro 2017).

397
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

sofrimento. Por outro lado, o trecho “já ninguém morre de amor” contraria o topos
do amor e morte, imortalizado pela criação artística desde a Antiguidade.1285
A complexidade dos sentimentos leva o autor a declarar em registo antitético:
“nosso amor / nosso contentamento / e nosso sofrimento” (PR2, 538) é sinal de que
as crises mais dolorosas são as crises sentimentais. Similarmente, na Ode XII de
Camões, o sujeito poético compreende a paixão como limitação à consciência do
amante, quando confessa “o coração tenho turbado / sempre d’escuras nuvens
rodeado”, ou seja, submetido à escravidão emocional do amor.1286
Ao questionar a razão de ser da ligação afectiva, que nem sempre é duradoura, o
eu lírico confessa o seu desencanto:

“o nosso amor foi sendo segregado


e ciciado, nacarado e lento,
translúcido e silente, […]

nosso contentamento
e nosso sofrimento,
nosso consentimento
e nosso desalento.” (PR2, 538)

As insanáveis contrariedades, tisnadas pelos signos “sofrimento” e “desalento”


de tom deliberadamente camoniano, não permitem uma saída isenta de tristeza,
encontrando nessa celebração amorosa uma faceta efémera, e aí “já estaríamos / tão
fartos um do outro” (PR1,167). Tal complexidade de sentimentos de gosto
maneirista ocorre também em lamento por diotima:

“o que vamos fazer amanhã


neste caso de amor desesperado?
ouvir música romântica
ou trepar pelas paredes acima?

amarfanhar-nos numa cadeira


ou ficar fixamente diante
de um copo de vinho ou de uma ravina? […]

mas que vamos fazer amanhã


entre as árvores e a solidão?” (PR1, 442)

1285
José Ribeiro Ferreira, Amor e morte na cultura clássica, Coimbra, Imprensa da Universidade, 2013.
1286
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 283.

398
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

O poema contém, no contexto referido, uma significativa intencionalidade lírica;


a única presença feminina dos diálogos platónicos, Diotima, nomeada no título, é
uma personagem do Banquete, que revelou a Sócrates a origem do amor1287. Na
multiplicidade de sentidos interpretativos, graças à sua profunda especulação
filosófica, como notou Teresa Schiappa1288, a argumentação enigmática desta
mulher de Mantineia, no contexto lírico de Graça Moura, situa-se na natureza
contraditória do “amor desesperado”. Este realiza-se, pois, a partir dos desejos do
eu lírico que medita sobre o significado da paixão, contida no sintagma
interrogativo “ou trepar pelas paredes acima?”. A sucessão de questões, expressão
da instabilidade do amor, equaciona esse conceito conscientemente ligado a uma
existência concreta. Com efeito, a obra do filósofo grego sobre a égide de Eros
dominará ao longo de dois mil anos a visão ocidental do amor, matéria que vgm
conhece bem. Cabe aqui recordar a recepção de Diotima na literatura de expressão
alemã verificada, por exemplo, nos arroubos passionais na poesia de Goethe1289,
que prosseguirá com Hölderlin, na sua peculiar revisitação da noção do amor. Com
efeito, em Susette Gontard viu este último autor Diotima, quer no romance elegíaco
Hyperion, quer nos seus poemas, de que Lamentos de Ménon por Diotima, título
semelhante ao de vgm, se tornou numa das mais belas composições de amor1290.
Assim, os ecos recorrentes de ambos os poetas em Graça Moura registam-se, por
exemplo, num verso goethiano que serve de epígrafe ao poema para uma teoria da
ficção (PR2, 529), bem como no título imputado a hölderlin (PR2, 528).
Proveniente do rico ideário evocativo de Diotima, o pendor especulativo, coado
também por outras circunstâncias e momentos, chega com particular vigor aos dias

1287
Platão, O Banquete, tradução, introdução e notas de Maria Teresa Schiappa de Azevedo, Lisboa, Ed. 70,
1991, pp. 77 sqq.
1288
Sobre os diversos matizes do amor na obra referida, vide Maria Teresa Schiappa de Azevedo,
“Introdução”, in Platão, O Banquete, loc. cit., pp. 9-23 e Frederico Lourenço, “Para uma leitura do
Banquete”, in Grécia revisitada, loc. cit., pp. 199-210.
1289
Graça Moura, na sua admiração pela poesia amorosa deste autor, glosa no texto com a musa enlaçada
(PR2, 376) a Elegia Romana V de Goethe, servindo-lhe um segmento textual de epígrafe. Como sublinha
João Barrento, esta composição é central na poesia goethiana, visto que se trata de “um bom exemplo desta
unio poetica et erotica” (João Barrento, “Priapeia goethiana”, in Umbrais, o pequeno livro dos prefácios,
Lisboa, Ed. Cotovia, 2000, p. 262). Cf. também J. W. Goethe, Poemas. Antologia, versão portuguesa, notas
e comentários de Paulo Quintela, Coimbra, Ed. Centelha, 31979.
1290
O inicipit da primeira elegia, na tradução de Paulo Quintela, é o seguinte: “Todos os dias saio, sempre à
busca de outro caminho / Há muito interroguei já todos os da terra; / Além os cimos frescos, todas as
sombras visito / E as fontes” (Hölderlin, Poemas, prefácio, selecção e tradução de Paulo Quintela, Lisboa,
Ed. Relógio d’Agua, s./d., p. 229).

399
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

de hoje, ao fomentar novos caminhos exegéticos1291, testemunhados no poder


mobilizador do amor platónico nos versos de vgm.
O incipit do poema, de timbre clássico, inspira-se, de entre uma infinidade de
exemplos cultivados por Graça Moura, na dialéctica camoniana do amor:

“Amor nunca vi
que muito durasse,
que não magoasse.”1292

Deste modo, a complexidade da amargura do amor “que os fortes


enfraquece”1293, na multiplicidade de sentidos e situações, que a experiência
humana associa a Eros, é cultivada de modo ímpar pelo autor de Amor é um fogo
que arde sem se ver1294 e emerge também nos versos do poeta contemporâneo.
Assim, o poeta tenta perscrutar, em clave intimista, a essência do amor, como o
fizera Camões, na senda de Petrarca. A este processo, como se depreende, não é
alheio um caleidoscópio de alusões, que assinalam as preferências de vgm, sinais
indeléveis de uma vasta cultura e de uma apurada sensbilidade. Neste contexto
sobressaem, pois, de um modo evidente as contradições do amor, numa tensão
emotiva de estrutura circular, portanto repetitiva e inconclusiva, que acentua a
impossibilidade da sua definição.

4.2.5.4. Estratégias da conquista

Na sua humanidade, feita de sentidos, a dimensão amorosa de Graça Moura


ganha diversos matizes, motivando caminhos de sedução perante um indomável
interesse pela figura feminina, como se pode ler:

“a rapariga de jeans atravessa o restaurante


faz-me lembrar a helena a pentear-se”. (PR1, 202)

1291
A propósito deste assunto, vide Maria Teresa Schiappa de Azevedo, “Retórica filosófica feminina em
Platão: Aspásia e Diotima”, in Antonio Lopez Eire et alii (coord.), Retórica, política e ideologia. Actas del
II Congresso Internacional de Salamanca, Salamanca, Ed. Asociación Española de Estudios sobre Lengua
Pensamiento y Cultura Clásica, 1998, p. 228.
1292
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 89.
1293
Idem, Os Lusíadas, III, 139.
1294
Idem, Rimas, loc. cit., p. 119.

400
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

Com níveis cronológicos distintos que se intersectam, a alusão à modernidade,


“a rapariga de jeans”, e a imagem delicada de “helena a pentear-se”, figura da
Antiguidade simbolizada pela sua invulgar formosura, acabam por constituir um
momento celebrativo de uma mulher.
Do mesmo modo, esse impulso leva o poeta a proclamar um determinado
modelo de beleza:

“quer-se translúcida a mulher,


com sombras leves, curvas puras,
se a luz lhe der onde lhe der
pétalas graves, inseguras,
luminescências às escuras.” (PR2, 286)

Os tons contrastivos da luz incidindo na figura feminina, plasmado no


chiaroscuro das “luminescências às escuras”, funciona como um pólo atractivo,
reforçado na metáfora vegetal das “pétalas graves”, bem como serve de motivo ao
labor poético. Esta descrição difusa da formosura tem paralelo nos processos de
caracterização camoniano; a título de exemplo, a sublime delicadeza de Leanor
contradiz o enigma emocional do verso “vai fermosa e não segura”.1295
Não obstante, a imagem idealizada, entrelaçada com a metáfora da perseguição
amatória, conduz a um fascínio incontido:

“na discoteca vi à noite as barbies:


passavam pernilongas e lascivas
sem verem bem as minhas tentativas
e deu-me então uma gana de exclamar: bis […]
e sem saber se tanto me aventuro,
vou-me dando ares de sedutor maduro.” (PR1, 530)

Perspetivado pelo eu lírico, um “sedutor maduro”1296, marcado pela idade e pela


sabedoria, não esconde as suas intenções; o encanto suscitado pelas “barbies”, que
passavam “pernilongas e lascivas”, acalenta a esperança de conquistas amorosas,
que se pode ler noutro momento de deslumbramento face a um encontro
inesperado:

1295
Idem, Rimas, loc. cit., pp. 55-56. Vide, a propósito, Rita Marnoto, “Retratos femininos na poesia de
Camões”, in Vítor Aguiar e Silva (coord.), Dicionário de Luís de Camões, loc. cit., pp. 851-855.
1296
Em consonância com esta faceta da vida, Ana Hatherly destaca em versos consagrados ao autor: “Mas tu
sempre elegante e sedutor / Fostes sempre fatal / Fatal para as mulheres (Ana Hatherly, “Adeus”, in Maria
do Céu Fialho e Teresa Carvalho (org.), A vista desarmada, o tempo largo, loc. cit., p. 45).

401
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

“fui encontrar madame bovary,


trajando lycra negra e cabedal,
a sair de uma loja tax free,
já na sala de embarque. […]

ela acendeu
com um isqueiro de ouro a cigarrilha.
ofereci-lhe um café. não quis”. (PR2, 83)
A sugestiva imagética resultante deste trecho passa pela revelação de gestos,
palavras e desejos, em suma, enumera as etapas da encenação da sedução 1297; o
valor apelativo do vestuário “lycra preta e cabedal”, que desenha uma figura
estereotipada, junta-se ao charme decorrente do “isqueiro de ouro” e da
“cigarrilha”, exemplos significativos do processo de aproximação, exercendo uma
atracção sexual, confessada sem rebuço pelo eu poético, que tenta seduzir “madame
bovary”, símbolo da beleza provocatória e do amor arrebatador, imortalizado por
Flaubert1298. Note-se a singular enunciação, sinal indelével de Graça Moura, que
aproxima situações quotidianas e marcas culturais, pelas etapas da encenação da
sedução. O sujeito poético arvora-se, pois, em Don Juan, convicto do seu poder
atraente, quando anuncia: “ofereci-lhe um café”. A recusa, plasmada na altivez de
“não quis”, mostra a tensão convencional de Eros entre o desejo masculino e a
indiferença feminina. O desejo é um estímulo para o amor, atitude distante do cariz
neoplatónico que Camões tão bem interpretou1299; deste modo, a única
possibilidade circunscreve-se, nos versos acima transcritos de vgm, ao amor
sensual.
De novo, com um ritmo narrativo, o sujeito de enunciação, na constante atenção
despendida à mulher, refere um encontro com uma ninfa num restaurante. Em
ambiente propício ao enamoramento, o poeta, ciente do seu poder sedutor e provido
de uma cultura invulgar, procura conquistá-la, num discurso eloquente e emotivo

1297
Graça Moura dedica a esta questão um texto intitulado, justamente, Da sedução: “Nas relações entre
homem e mulher, a sedução proporciona uma essencial dimensão qualitativa e comunicativa em que são
convocadas a emoção e inteligência. É um jogo que envolve lucidez e sensibilidade e que se alimenta de
surpresas e empatias. Uma forma de prazer que implica exercício de liberdade e sentido constante do risco
[…] A sedução implica uma invenção permanente e bilateral. Tem qualquer coisa de jogos de espelhos e de
empate técnico. O que não impede iniciativas ‘de assalto’, tal como na esgrima” (Vasco Graça Moura,
Papéis de jornal. Crónicas, loc. cit., pp. 250-251).
1298
Gustave Flaubert, Madame Bovary, Lisboa, Ed. Relógio D'Água, 2011.
1299
A título de exemplo, vide verbete e bibliografia apresentada por Maria Helena Ribeiro da Cunha,
“Neoplatonismo de Camões”, in Vítor Aguiar e Silva (coord.), Dicionário de Luís de Camões, loc. cit.,
pp. 634-642.

402
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

atravessado pelos grandes temas que se colocam à condição humana; quando julga
ter alcançado, finalmente, um motivo convincente, conclui:

“e servi-lhe mais vinho e atalhei


com a tirada que julguei definitiva,
e até podia, quem sabe?, dar engate
ou namoro sem grandes dissonâncias”. (PR2, 16)

Como faz tenção de anunciar, esse encontro que pode “dar engate / ou namoro”,
tem o fito de criar uma cumplicidade que ligue o leitor ao texto e, por outro lado,
funciona como espécie de chave de ouro com o eu lírico remata as considerações
de um sedutor experimentado. Com efeito, a progressão do poema é impulsionada
pelo jogo verbal, que, por sua vez, é gerado pelo anseio da conquista amorosa. Tal
tentativa simboliza, pois, uma demanda que o desejo exige e supõe.
Nessa pulsão confessional, o poeta apaixonado pela formosura do corpo
feminino, que noutro segmento repara nas “pernas bem cruzadas daquela rapariga”
(PR1, 20) reitera:

“na praia lá do guincho as velas


de windsurf saltam sobre as ondas
e o meu olhar, equestre,
pula nos peitos das banhistas […]
dou
lume a uma italiana e enquanto
ela agradece ocorre-me que despi-la já não é
cosa mentale.” (PR1, 312)

Numa manifestação de voyeurismo, o poeta compraz-se em observar os “seios


das banhistas”; afigura-se, pois, um Actéon contemporâneo, que a partir da
observação das “velas de windsurf”, fixa, à distância, o olhar nas jovens que não
dão conta que estão a ser observadas. O arrojo enunciado, marcado pela
modernidade, deixa transparecer a síntese camoniana de que “Não é amor amor, se
não vier / com doudices”1300. Esse encantamento, que se traduz num impulso
erótico, é realçado quando o sujeito poético dá “lume a uma italiana”, que lhe
provoca uma vontade de consumação amorosa: “ocorre-me que despi-la já não é
cosa mentale” (PR1, 312). O único prazer reside, pois, na sensualidade, não se
realizando na “cosa mentale”, na sua dimensão espiritual, que neste caso se traduz

1300
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 327.

403
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

numa explícita insatisfação. Essa contínua atracção é impossível de perscrutar e


controlar, porque não pode “ver burras de saias” (PR1, 532), o que leva Miguel
Veiga a referir-se a essa vontade irrefreável, com particular acuidade:

“Persegue-o a decifração desse mistério, desse enigma que se instaura, quanto mais real e
tocante mais oculto, no corpo encantatório da mulher, amado território em que o homem se perde,
se encontra e se salva. Dessa eterna esfinge que a mulher encerra, invisível, indivisível,
inviolável”.1301

Na aproximação ao universo feminino, a lembrar, de certo modo, a figura


arquetípica de D. Juan, não oculta Graça Moura as imagens de conquista amorosa;
enfatiza, assim, os momentos vividos numa admirável relação poética do eu com
um tu, contribuindo para uma emotividade lírica e, consequentemente, para uma
desmonstração do seu poder sedutor. O desejo de posse, por vezes interdito,
também apresenta, por outro lado, cumplicidades, pelo que as estratégias de
sedução enunciadas almejam, de modo deliberado, estabelecer uma relação
amorosa.

4.2.5.5. O amor sensual

O poeta, com efeito, confere uma importância crucial ao erotismo nos seus
versos, quando busca “as palavras para o gozo das coisas // a fruição dos actos
(PR1, 322). O amor sensual – o baixo amor camoniano, sublinhado por Hélder
Macedo1302, por via da submissão do espírito ao corpo – reveste-se, deste modo, de
significativa importância:

“escrevo escreverei para espelhar a realidade,


suas sombras rasteiras, suas nuvens altas,
a luz mais líquida de algum olhar, as difíceis ausências
e as plantas lascivas trepando entre os silêncios,

entre lisas colunas, níveas tetas, roxos lírios


e citações assim, da minha juventude,
e os ritmos do vento e a erosão dos seixos,
e os fios de algumas ariadnes, solícitas e lúbricas.” (PR2, 521)

1301
Miguel Veiga, “O génio da minha geração”, in As Artes entre As Letras, nº 75, 30 Maio 2012, p. 2.
1302
Hélder Macedo, Camões e a viagem iniciática, Lisboa, Ed. Abysmo, 2013, p. 21.

404
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

A poesia, enfatizada num trabalho incessante de repetição, “escrevo, escreverei”,


deriva de “cantando escreverei”, conhecida introdução camoniano da designada
Écloga dos faunos1303. Além disso, o verso inaugural exprime o pendor carnal do
sujeito poético, numa tensão provocada pela investida de Cupido1304. A urgência da
fruição, entrelaçada com a premência da escrita, conserva traços comuns e signos
idênticos à deslumbrante descrição de Vénus, no célebre episódio do Consílio dos
deuses.
Na realidade, Graça Moura, na matéria amorosa, entabula um diálogo
privilegiado com o filão poético camoniano:

“Andando, as lácteas tetas lhe tremiam,


Com quem Amor brincava, e não se via;
Da alva petrina flamas lhe saíam,
Onde o menino as almas acendia;
Pelas lisas colunas lhe trepavam
Desejos, que como hera se enrolavam.

C’um delgado sendal as partes cobre,


De quem vergonha é natural reparo,
Porém nem tudo esconde, nem descobre,
O véu, dos roxos lírios pouco avaro.”1305

O erotismo, um dos muitos fios que entrelaçam Graça Moura e Camões, está
presente, por exemplo, no deliberado decalque de “níveas tetas, roxos lírios” do
poeta contemporâneo, pelo poder encantatório da imagem da mulher num apelo aos
sentidos1306. Neste contexto, não deixa de ser significativo que, em ambos os
poetas, o canto de amor é predominantemente um canto do corpo feminino, na sua
força irradiante e tentadora; tal concepção, em grande medida desabrida, plasma a
deriva sugestiva de uma forte carga sensual.1307

1303
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 366.
1304
Neste quadro dos amantes in praesentia, vgm afasta-se do conceito propugnado por Aguiar e Silva do
exclusus amator da poesia camoniana, visto que “o amante é sempre excluído da presença e dos afectos da
mulher amada” (Vítor Aguiar e Silva, “O tema do exclusus amator na lírica de Camões”, in A lira dourada e
a tuba canora, loc. cit., p. 164).
1305
Luís de Camões, Os Lusíadas, II, 36-37, loc. cit.
1306
Pinto do Amaral, na análise do cariz amoroso na poesia de Graça Moura, reconhece que “a volatilidade
dos seus estados de alma” revela cambiantes vários, no entanto destaca a primazia da vertente sensorial em
detrimento de um amor especulativo (Fernando Pinto do Amaral, “A caligrafia do tempo: uma leitura de
melancolia na poesia de Vasco Graça Moura”, in José da Cruz Santos (org.), op. cit., p. 82).
1307
No que concerne a esta matéria presente nos versos camonianos, vide Vítor Aguiar e Silva, “Erotismo,
petrarquismo e neoplatonismo na ‘Écloga dos faunos’ de Camões”, in A lira dourada e a tuba canora, loc.
cit., pp. 183-204.

405
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

Em Lusíadas para gente nova, os versos dedicados a este passo camoniano


atestam, com um cariz original, o valor significativo concedido por vgm à exegese,
que surge incorporada no meio dos versos acima citados:

“Os crespos fios d’ouro se esparziam


Pelo colo que a neve escurecia;
Andando, as lácteas tetas lhe tremiam,
Com quem Amor brincava e não se via;
Da alva faixa as flamas lhe saíam
E Cupido excitava quem a via.
Pelas lisas colunas lhe trepavam
Desejos, que como hera se enrolavam.

Cum delgado cendal as partes cobre


De quem vergonha é natural reparo;
Porém nem tudo esconde nem descobre
O véu, dos roxos lírios pouco avaro;
(A arte de Camões lança aqui sobre
Impudor e pudor um verso raro.)
Já se sentem no Céu, por toda a parte,
Ciúmes em Vulcano, amor em Marte.”1308

O amor sensual, que emana da escrita do autor de obscuro desejo, desenha-se,


assim, no paradigmático texto coligido em sonetos familiares, o que explica a
proposta polissémica da epígrafe inaugural anteposta aos poemas: “familiar, adj. 2
gén., que é da família, caseiro, doméstico, habitual, simples (do dicionário)” (PR1,
468). Com efeito, o adjectivo já dera o título a uma obra de Cícero1309 e volta a
estar presente nas Cartas familiares de D. Francisco Manuel de Melo1310. Assim
sendo, o lexema “familiar” contribui para delucidar o alcance dos versos de Graça
Moura, visto que, neste caso, não se circunscreve somente ao seio familiar,
sugerindo as referidas entradas do dicionário um sentido mais abrangente,
configurado num procurado registo íntimo:
“estava nua, só um colar lhe dava
horizontes de incêndio sobre o peito,
a transmutar, num halo insatisfeito,
a rosa de rubis em quente lava. […]

toda a nudez, toda a melancolia,


a dor do mundo, a deslembrança, a febre, os
olhos rasos de água e solidão.” (PR1, 472)

1308
Vasco Graça Moura, Os Lusíadas para gente nova, loc. cit., pp. 36-37.
1309
Marco Tulio Cicero, Ad familiares, Paris, Ed. Belles Lettres, 1976.
1310
Francisco Manuel de Melo, Cartas familiares, prefácio e notas de Maria da Conceição Morais Sarmento,
Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1981.

406
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

O poema é regulado pela contemplação de formas esbeltas, manifestação directa


de um aberto impulso erótico, que se exprime na afirmação do desejo explícito do
corpo. O retrato feminino, com efeito, configura a serenidade de uma dona
angelicata moderna, que, com um colar sobre a sua nudez, revela um deliberado
deleite do eu lírico, a lembrar a faceta amorosa do “outro Camões”1311, pela
expressão da “volúpia do amor e dos sentidos”, no dizer de Céu Fraga1312. Com
efeito, o segmento metafórico de “a rosa de rubis em quente lava” evoca óbvias
conotações sexuais, de que este passo camoniano é um exemplo significativo:

“Pode um amor imenso


arder no peito tanto,
que à branda e viva alma e fogo intenso
lhe gaste as nódoas do terreno manto.”1313

Com efeito, o fogo e o seu campo lexical, metáfora da paixão, consagra o prazer
que o amor suscita, patente em ambos os poetas.
Intimamente ligado a este sentimento arrebatador, também a imagem
privilegiada da nudez, abordagem ecfrástica dos atributos físicos, de matriz
petrarquista, tem ressonância camoniana, emergindo quando canta:

“o anjo aguarda e faz as contas


enquanto entras, nua e neutra,
de cabelos molhados, uma das mãos

cruzando o peito, a outra


a cobrir o púbis, o olhar
semicerrado e tenso.” (PR1, 405)

Por conseguinte, presente nos versos de vgm, o retrato da figura feminina, “nua
e neutra”, revisita a conhecida representação do Nascimento de Vénus, pintura
quinhentista de Botticelli1314. A posição anatómica das mãos, expressão de uma
atitude de pudor, representa uma mulher a sair do banho, “de cabelos molhados”,

1311
Eduardo Lourenço, “Camões e Frei Heitor Pinto”, in op. cit., p. 108.
1312
Maria do Céu Fraga, Camões: um bucolismo intranquilo, Coimbra, Ed. Almedina, 1989, p. 104.
1313
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 269.
1314
Sobre a relação sugerida na obra camoniana, vide Helena Longrouva, “Luís de Camões e Sandro
Botticelli”, in Maria do Céu Fraga et alii, Camões e os seus contemporâneos, loc. cit., 2012, pp. 376-389.

407
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

com ecos similares à desnudada deusa a emergir do mar1315. Por seu turno, ao invés
da figura clássica do poeta decepcionado, o sujeito de enunciação apresenta-se
como um vigoroso amante atraído pelo corpo desnudado. Este pensamento tem eco
na advertência da cantiga camoniana: “És falso amador / Tu não vês que Amor / se
pinta despido?”.1316
A nudez, sugerida pelo acto de despir, estimula o olhar do sujeito poético na
captação do instante:

“musa, quando você se despe no meu quarto


e à meia-luz o seu olhar faísca atrás de um ombro
e muito de costas nuas o cigarro vicioso desponta a um canto da pintura
[agressiva
e as suas pernas se arqueiam antecipando a música,

o movimento do colar faz-me lembrar baudelaire


mas você cita t. s. elliot e outros cerebrais”. (PR1, 267)

A sugestão plástica do corpo humano, em pendor realista, constitui o motivo


inspirador do poema, onde a circunstância e o espaço, envoltos em sombra e
esbatimento, se configura no campo lexical de uma atmosfera lasciva: “meia-luz”,
“costas nuas” e “pintura agressiva”. A hipálage presente em “cigarro vicioso”, eco
do “pensativo cigarro” queirosiano1317, enfatiza o envolvimento da figura feminina,
e, em crescendo, o jogo de sedução culmina na instigação ao acto sexual: “e as suas
pernas se arqueiam antecipando a música”. A invocação da “musa” veicula uma
força elocutória, de proveniência clássica e recorrente em Camões, que demonstra a
sujeição do poeta, a um tempo, à amada e à própria inspiração poética 1318,
reiteração do carácter divino do canto1319. A nomeação de Baudelaire e T. S. Eliot,
de modo inesperado e avesso à convencionalidade, traz à colação, respectivamente,
a vetusta questão da paixão e da razão, numa clara nota erudita, como é timbre de
Graça Moura.

1315
Sobre a presença desta divindade na obra camoniana, vide Vítor Aguiar e Silva, “Vénus”, in Vítor
Aguiar e Silva (coord.), Dicionário de Luís de Camões, loc. cit., pp. 957-961.
1316
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 24.
1317
Eça de Queirós, A cidade e as serras, Lisboa, Ed. Livros do Brasil, s/d, p. 71.
1318
Acerca do carácter divino do canto no ideário poético camoniano, vide Abel N. Pena, “Musas”, in Vítor
Aguiar e Silva (coord.), Dicionário de Luís de Camões, loc. cit., pp. 628-629.
1319
Para compreender os diversos cambiantes da funcionalidade das deusas inspiradoras, vide Maria Helena
Rocha Pereira, “Musas e tágides n’Os Lusíadas”, in Seabra Pereira e Manuel Ferro (coord.), op. cit., pp. 51-
-61.

408
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

O prazer decorrente do amor, profusamente ilustrado nos seus versos, volta a ser
a tónica dominante:

“acerados sinais para o desejo,


os bicos do teu peito, quando os mordo,
já me desliza a mão noutro rebordo
e cheiro, provo, apalpo, escuto e vejo.” (PR2, 377)

A poesia, com espontaneidade e sem pudor, desenha um deliberado horizonte


poético. O sujeito poético entra, neste caso, num ímpeto erótico, onde a vertente
sensorial ocupa um lugar privilegiado no verso gradativo “cheiro, provo, apalpo,
escuto e vejo”, sugestão dos cinco sentidos humanos, despertados pelo
despojamento das vestes1320. Em paralelo, o predomínio do assíndeto sugere o
movimento que procura o corpo feminino, onde a plenitude do instante inaugura o
prazer carnal1321. Esta vertente emerge na epopeia camoniana, quando na Ilha
angélica é cantado o amor carnal: “Ó que famintos beijos na floresta […] / Que
afagos tão suaves”1322.
O topos enunciado surge ainda com particular relevo na glosa:

“O desejo, que se estende


ao que menos se concede,
sobre vós pede e pretende,
como o doente que pede
o que mais se lhe defende.”1323

Na verdade, através da avidez incontrolável que o impulso sensual provoca,


“como o doente que pede”, pode-se descortinar no autor das Rimas, no dizer de
Eduardo Lourenço, o “Amador-cego”, que escapa aos códigos platónicos do
amor.1324
O sujeito de enunciação do poema meu amor, meu quente marulhar, da autoria
de Graça Moura, sempre com a omnipresença feminina, canta essa concepção:

“meu amor, meu quente marulhar das águas ancestrais,

1320
Hernâni Cidade (Luís de Camões. O lírico, Lisboa, Ed. Presença, 31984, pp. 166 sqq.) trata a importância
de que se reveste a nudez na lírica e na épica camoniana.
1321
Esta tendência, segundo Octavio Paz, é própria da poesia pela recorrente conjugação entre a dimensão
lírica e a natureza erótica (Octavio Paz, A dupla chama. Amor e erotismo, S. Paulo, Ed. Siciliano, 1994,
p. 12).
1322
Luís de Camões, Os Lusíadas, IX, 83, loc. cit.
1323
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 44.
1324
Eduardo Lourenço, “Camões e a visão neoplatónica do mundo”, in op. cit., p. 23.

409
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

meu alvoroço terno das manhãs, há um vaporzinho no ar,


percorro a linha fina do teu corpo, o seu desenho ainda ensonado,
e és para mim toda a realidade nesse instante.
há roupas, sim. roupas que vais vestindo, algum creme que pões,
uma cama desfeita, um leve baloiçar das árvores lá fora
e o sol de inverno a alastrar nas vinhas.” (PR2, 328)

Neste estado passional, a questão central enunciada reside na consumação do


envolvimento amoroso, quando o poeta evoca a sua interlocutora: “roupas que vais
vestindo, algum creme que pões”. Além disso, essa consumação intensifica-se na
“cama desfeita”, a que se associa o apóstrofe “meu amor”, o que, em termos
referenciais, exprime uma relação íntima num momento de serenidade amorosa,
equivalente, em Os Lusíadas, ao momento em que as ninfas aguardam os nautas em
“fermosos leitos”1325. No entanto, no caso dos versos de Graça Moura, respira-se a
alegria derivada da convencional euforia da consumação do amor, a recordar o
verso camoniano um “homem sou só de carne e osso” 1326. A meditação enunciada
celebra, pois, os irresistíveis momentos redentores da monotonia da existência. O
motivo da partida pela manhã, testemunhada na hipálage do “desenho ainda
ensonado” – a lembrar as albas da poesia trovadoresca e o soneto “Alma minha
gentil que te partiste”1327 –, traz à memória o momento do prazer vivido1328. Como
Camões, derrogam-se as convenções petrarquistas do amor cortês, uma vez que o
poeta privilegia o acto físico de amar, que está nos antípodas da exaltação da
mulher ou da angústia que daí nasce, processos tão apreciados pelos poetas
maneiristas.1329
Do mesmo modo, esta acepção comprova uma poesia implicada com a figura
recorrente da atracção:

“quando, minha luminosa, deitado penso em ti


e a teu lado bebo as sombras que te pousam na pele,
apenas a harmonia, apenas a harmonia se respira
da tua testa pousada no meu peito, das tuas mãos e presas às minhas.” (PR2, 329)

1325
Luís de Camões, Os Lusíadas, IX, 41, loc. cit.
1326
Idem, Rimas, loc. cit., p. 209.
1327
Idem, ibidem, p. 156.
1328
Também, com nexos intertextuais, o texto Ternura de David Mourão-Ferreira (Obra poética.1948-1988,
Ed. Presença, 4 2001, p.170) é similar ao trecho referido de Graça Moura: “Desvio dos teus ombros o lençol,
/ que é feito de ternura amarrotada, […] // Olho a roupa no chão: que tempestade! / Há restos de ternura pelo
meio, / como vultos perdidos na cidade / onde uma tempestade sobreveio ... // Começas a vestir-te,
lentamente.”
1329
Vítor Manuel Aguiar e Silva, Maneirismo e Barroco na poesia lírica portuguesa, loc. cit., pp. 263 sqq.

410
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

Movido pela paixão, embora o sujeito poético esteja só, invoca uma fisionomia
“luminosa”, metáfora da beleza capaz de irradiar por todo o mundo, e recorda com
agrado o afecto partilhado pelos amantes, motivo de mútuo deleite, como exprime:
“a tua testa pousada no meu peito, das tuas mãos e presas às minhas”. A eclosão
lírica, provém, em clave pessoal, das emoções vividas na relação amorosa,
resultante da cumplicidade entre dois seres, visível, por exemplo, no recurso aos
pronomes “tua” e “meu”, revelando uma natureza que Camões designou de
“terrestre e humana”.1330
No entanto, esta perspectiva de prazer afigura-se falaciosa, quando o sujeito de
enunciação canta:

“ó pura dissonância, amor humano,


morte de amantes transformado em beijos
o tempo só de dois corpos unidos
que então conhecem tudo ou pelo menos
conhecem a ilusão de conhecerem.” (PR1, 137-138)

A necessidade insaciável da conquista, reiterada “na percussão macia em que se


tece / do amor depois do amor nova aventura” (PR2, 376), desenha um percurso
circunstancial e efémero da relação amorosa, onde não falta um verdadeiro
sensualismo sugerido pelo segmento “o tempo só de dois corpos unidos”.
Como um sátiro, conotado pela virilidade desmedida, o poeta retoma a acepção
referida de modo notável noutro texto significativo:

“eurídice, a florista, curvando-se sobre o espelho,


sopesa as mamas pequenas num leve afago das duas mãos em conha
ajustando-se a perfeição dos bicos espetados
e se põe a sorrir para mim nesses reflexos […]
a pedir-me que a escreva e a modele, que a modele e a module,
sem eu precisar de ter remorsos, mas oficina e memória
de um tempo do amor ocidental, de um
tempo que vem das cíntias e das lésbias, das beatrizes e das lauras,
das helenas e das bárbaras escravas,
mulheres que envelheceram à candeia mas ficaram
todas elas eternamente jovens sentadas à noitinha,
ao cair da noitinha macia nas palavras,
todas até a deolinda do protopoema da serra de arga,
com seus tornozelos grossos e suas ancas parideiras,
até mesmo esta minha dinamene, esta minha eurídice florista,
morenaça a escapar-se entre morrinha e morriña
antes de eu aprender a ser um orfeu contrabandista da sombra mais amada”. (PR2, 556)

1330
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 120.

411
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

Este belo trecho, o derradeiro poema do seu último livro publicado, é uma
projecção irreverente da representação sensual da mulher; com efeito, ocupa um
lugar privilegiado nos versos de Graça Moura pela maturidade revelada, bem como
pela aturada síntese do seu universo lírico, onde os contornos eruditos não são
descurados.1331
Descritos numa sugestiva perífrase, os seios, um indicativo fundamental da
feminidade, contaminam todas as circunstâncias de mise en scène, pela atenção que
o sujeito poético lhe despende, manifestando ser “descomplexado numa
heterossexualidade efusiva e elegante”, no dizer de Pedro Mexia1332. O jogo de
sedução enunciado reside na tensão estabelecida entre dois seres, concepção similar
a Camões, que é, como sublinha Hélder Macedo, assumida como experiência
pessoal vivida, ao invés da idealização contemplativa da beleza feminina
subjacente ao neoplatonismo renascentista1333. A florista ainda solicita ao sujeito
de enunciação que “a escreva a modele”, numa clara transgressão aos códigos
petrarquistas do comportamento feminino, tão caro a Camões quando canta a
atitude passiva no soneto Um mover d’olhos, brando e piadoso1334. De facto, os
versos não traçam uma dimensão espiritual ou divina de um ser humano; pelo
contrário, convertem-se na exaltação de uma mulher concreta, como testemunha a
sugestão sensual contida em “mamas pequenas” e “bicos espetados”. 1335

1331
Constituindo, sem dúvida, um ponto de referência no tratamento do tema do amor, observe-se o texto
prefacial de Graça Moura à sua tradução de Alguns amores de Ronsard, que, ao abordar os versos
traduzidos, sintetiza de modo similar a poesia do autor português: “Mas o que o singulariza é precisamente
o confronto constante entre erotismo e tempo que passa, entre a variação da condição física e a frustração
amorosa, entre o desejo e o corpo da mulher, entre figuras da mitologia clássica e ocorrências do quotidiano,
entre simular-se em situação num sem-número de metamorfoses ou arder variamente em várias flamas
(como diria Camões) e um princípio ou uma figura do Amor delas independente, entre humor, ternura,
capricho mais ou menos libertino e lirismo, entre convencionalismo, naturalidade, imitação, variação e
destra exploração inovadora de uma língua a fixar a sua modernidade e a sua coloquialidade literárias”
(Vasco Graça Moura, Alguns amores de Ronsard, Chiado, Ed. Bertrand, 2003, p. 14).
1332
Pedro Mexia, “VGM”, in Biblioteca, Lisboa, Ed. Tinta de China, 2015, pp. 22-23.
1333
Hélder Macedo, Camões e a viagem iniciativa, loc. cit., p. 9.
1334
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 156.
1335
Este passo está em sintonia com a definição da poética de Graça Moura, propugnada por Rui Lage:
“Poucos poetas recentes foram tão longe na exploração no pacto autobiográfico: não pelo desnudamento,
pelo transbordo lírico ou por estratégias de transgressão, mas pela sabotagem irónica, pelo desprendimento
com que se confessam fraquezas, peripécias, cumplicidades, boutades, tentações, atrevimentos.” (Rui Lage,
“Nada se perde, tudo se transforma em literatura”, in Eduardo Lourenço e Rui Vieira Nery, Colóquio
Homenagem a Vasco Graça Moura, loc. cit., p. 60).

412
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

Neste contexto, Graça Moura, na sua poligénese criativa1336, produz, como é seu
apanágio, um jogo intertextual incessante ao convocar também versos de António
Pedro – “deolinda do protopoema da serra de arga”1337 –, testemunho de um sentido
apreço e afinidade com o autor.
Nesta evocação culturalista, a memória literária é o eterno retorno a que Graça
Moura sempre regressa, pela convocação de Orfeu e Eurídice, tema tão caro,
também, a outros poetas modernos1338. Com efeito, conjuga, em apurada mestria, o
acento erótico, na sua feição íntima, com as alusões alegóricas, na senda da
conhecida exortação camoniana sobre o amor: “Melhor é experimentá-lo que julga-
-lo, / Mas julgue-o quem não pode experimentá-lo”.1339
Esta assimilação criativa, filtrada, entre outras, pela pena de Camões, nasce num
contexto de tonalidade burlesca pela justaposição do universo fabuloso e do
prosaísmo contemporaneidade1340; em última análise, os versos evocam, suscitam e
celebram o amor.1341
A paixão veiculada pelo mito de Orfeu e Eurídice1342, afigura-se, por
conseguinte, uma sobreposição da aventura mitológica e das próprias vivências do
poeta, à semelhança do modelo camoniano da Canção II:

“Despois que aquela em quem minh’alma vive


quis alcançar o baixo atrevimento,
debaixo deste engano a alcancei:
a nuvem do contino pensamento

1336
Graça Moura dá conta desse processo compositivo numa colectânea dos seus próprios versos: “Reúno,
nesta antologia de convívios, um conjunto de poemas em que são referidos outros escritores, muitos deles,
mas não todos eles nem só eles, determinantes para a minha própria escrita. […] A poesia é também um
exercício sobre a, e a partir da escrita alheia, numa teia de relações sincrónicas e diacrónicas que se vai
sucessivamente alterando, inflectindo e adensando” (Vasco Graça Moura, Antologia de convívios, Porto, Ed.
Asa, 2002, p. 11).
1337
Este passo evoca o seguinte passo de António Pedro: “A poesia da Serra d’Arga está no desejo de poesia
/ Que fica depois da gente lá ter ido / Ver dançar a Deolinda” (Cf. António Pedro, Antologia poética, Lisboa,
Ed. Angelus Novus, 1998, pp. 53-54).
1338
Maria Helena Rocha Pereira, “Motivos clássicos na poesia portuguesa contemporânea”, in Novos
ensaios sobre temas clássicos na poesia portuguesa, loc. cit., pp. 303-322.
1339
Luís de Camões, Os Lusíadas, IX, 83, loc. cit.
1340
Esta conjugação tem um claro paralelo com a poesia quinhentista nacional; como refere Rita Marnoto, é
recorrente os poetas petrarquistas retomarem temas mitológicos para, a partir deles, “em homenagem ao
poeta de Arre, cantarem a sua história de amor” (Rita Marnoto, O Petrarquismo português do Renascimento
e do Maneirismo, loc. cit., p. 401).
1341
Para Denis de Rougemont, toda a concepção do amor é inseparável de uma ideia de homem e do próprio
sentido de existência, formulação que se aplica sem dúvida, aos dois poetas (Denis de Rougemont, Les
mythes de l’amour, Paris, Ed. Albin Michael, 21996, p. 43).
1342
Sobre a simbologia em torno de Orfeu, vide Pablo Cabañas, El mito de Orfeo en literatura española,
Madrid, Ed. Consejo Superior de Investigaciones Científicas, 1948.

413
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

m’afigurou nos braços, e assi a tive,


sonhando o que acordado desejei”.1343

Por outro lado, ainda no que concerne ao poema de vgm, a enumeração dos
nomes femininos (“cíntias”, “lésbias”, “beatrizes”, “lauras”) celebrizados na
história da literatura desde a Antiguidade1344, são cantados por Camões e por Graça
Moura. Nessa panóplia, a convocação de personagens camonianas como Helena e
Dinamene, associa-se a uma determinada imagem caracterizadora da mulher: a
atracção, a sensualidade e o erotismo desenham um deslumbramento dos sentidos e
paixão, conforme já foi referido anteriormente.
O sintagma “antes de eu aprender a ser um orfeu contrabandista da sombra mais
amada”, em clave conclusiva, faz eco do mito protagonizado por Orfeu e Eurídice
que foi aproveitado, entre outros, por Camões, constituindo, no dizer de Rocha
Pereira, uma “preferência quase obsessiva”1345. Como é vulgarmente conhecido, o
filho de Calíope, quando regressa com a amada resgatada dos infernos, volta-se
para trás, gesto que lhe estava vedado, vindo a perdê-la irremediavelmente1346.
Este desenlace trágico intensifica, entre outras versões possíveis perpetuadas pela
Antiguidade1347, o poder do amor, visto que se converteu num “orfeu
contrabandista”. Este atributo configura, em registo clandestino, uma descida do eu
ao seu íntimo e à consumação do amor; Graça Moura parte, deste modo, de uma
relação para outra, onde cada mulher é sempre uma Eurídice por resgatar. O
episódio mitológico – presença recorrente no autor de apolo e mársias – afigura-se-
lhe um significativo recurso e contribui de um modo decisivo, pela variedade de
sentidos aduzidos, para a singularidade poética da sua obra. De facto, o caminho da

1343
Luís de Camões, Rimas, loc. cit., p. 206.
1344
Sobre a importância de que se reveste a sua nomeação no tecido da tradição literária ocidental, Graça
Moura observa: “As líricas amorosas organizam-se e desenvolvem-se apoiadas nessa ‘fidelidade’
paradigmática: basta recordar Cynthia e Lésbia, Laura e Beatriz” (Vasco Graça Moura, David Mourão-
-Ferreira ou a mestria de Eros, Porto, Brasília Editora, 1978, p. 9).
1345
Sobre este mito de ampla fortuna em Camões, sobretudo na sua lírica, Rocha Pereira trata, em acutilante
análise, os diversos intertextos de que se apropria o autor quinhentista (Maria Helena Rocha Pereira, “O
mito de Orfeu e Eurídice em Camões”, in Novos ensaios sobre temas clássicos na poesia portuguesa, loc.
cit., p. 71).
1346
Versos justificativos deste singular processo compositivo, no dizer do autor, são os seguintes: “o real é
perecível, nem os mitos / transpõem as distancias que improviso / entre os registos da representação / para o
amor desmedido” (PR1, 202).
1347
Pierre Grimal, Dicionário de mitologia grega e latina, loc. cit., pp. 340-341.

414
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

paixão, simbolizado por Orfeu, é uma espécie de “descendus ad inferos” virgiliano,


narrado no canto VI da Eneida.1348
O envolvimento amoroso é, com efeito, outro eixo estruturante da relação com
as mulheres e destaca-se nos versos de vgm graças à forte incidência imagética
concedida aos atributos físicos femininos. Porém, a heterogeneidade dos efeitos
figurativos enunciados acaba por conter uma inquietante olhar introspectivo do
poeta sobre si mesmo, devido à emotividade genuína que coloca no seu canto.
Neste processo, Graça Moura adequa o substrato camoniano à realidade da sua
época; no entanto, o quadro evocado não se afigura tão pungente como o tratado
por Camões, visto que em registo inovador, o poeta contemporâneo sobrepõe o
tema da sedução e do prazer sensual ao sofrimento interior do poeta enamorado.
A relação da escrita com o mundo, marcada por um singular eclectismo,
desencadeia um inovador e variado processo poético. As circunstâncias vividas e os
espaços, povoados por personagens, geram múltiplos sentimentos, não faltando a
constante advertência à passagem inexorável do tempo, que, como um estigma,
relembra ao homem a sua condição de mortal. A tensão reinante do eu face à
complexidade da vida leva-o a um continuado esforço de compreender um mundo
desconcertante. Neste contexto, a figura feminina ocupa um lugar fucral em vgm,
quer se trate da evocação da sua beleza ou de meios sedutores, conducentes à
aventura amorosa. Logo, as profusas referências poéticas à mulher concedem-lhe o
status de musa suspiradora, na esteira, consciente e procurada, de uma tradição
perpetuada ao longo do tempo.
A notável capacidade metamórfica da escrita de vgm leva-o, assim, a recriar os
temas e modelos consagrados, muitas vezes em clave parodística, sendo esta linha
de força, considerada por Linda Hutcheon1349, a pedra angular do Pós-Modernismo,
desenhando de modo peculiar a actualidade e invulgar originalidade dos versos do
poeta contemporâneo. Na verdade, conhece profundamente os diversos quadrantes
da produção literária ocidental desde a Antiguidade Clássica, o que lhe permite
explorar o grande filão poético de Camões e de outros autores. É, pois, a

1348
Virgile, Eneide, livres V-VIII, texte établi et traduit par Jacques Perret, Paris, Ed. Les Belles Lettres,
1978.
1349
Linda Hutcheon, Uma teoria da paródia, loc. cit.

415
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

imaginação criativa de Graça Moura que, como se de um filtro se tratasse, depura e


selecciona as opções estético-literárias recortadas na memória literária. Deste
modo, pode-se falar de uma continuada reelaboração atualizadora dos casos
emblemáticos de que se serve, com o notável mérito de os trazer, com particular
vigor e pertinência, para o dealbar do século XXI.

416
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

Conclusão

Alinhar e estabelecer linhas de continuidade e modernização de receptividade


entre o poeta mais sublime da literatura nacional e a obra dum autor incontornável
no panorama das letras contemporâneas em Portugal representa mais do que um
desafio; foi um estímulo que presidiu e incentivou a elaboração desta proposta de
leitura de ambos os escritores, vultos tutelares da identidade nacional.
Graça Moura é, na realidade, uma personalidade ímpar das letras nacionais da
actualidade pela vasta amplitude e profundidade de saberes, a que juntou uma
infatigável capacidade de trabalho, espelhada numa cultura, por assim dizer,
enciclopédica. De tudo isto resultou, por um lado, uma valiosa e prolixa obra, da
qual se destaca o multifacetado escritor de criação lírica e novelística, de múltiplos
registos formais e temáticos, bem como um crítico rigoroso e um notável tradutor,
graças às várias línguas que dominava. É justamente neste eclectismo que a sua
poesia se afirma como um discurso compósito de emoção e de pensamento, onde se
fundem experiências biográficas e eruditas.
O autor revisita, sob um olhar culto e melancólico, as relações entre a produção
lírica e as artes, que abarcam a pintura, a escultura, a música, a fotografia e o
cinema, de múltiplas épocas e origens, bem como de diversos estilos e tendências.
A convergência estética enunciada, aspecto nuclear de criatividade paragramática,
explora uma heterogeneidade de campos artísticos, que, associados a um aturado
labor de investigador e a uma invulgar sensibilidade, traz à obra de Graça Moura
uma profundidade tal que não se afigura fácil encontrar equivalente na literatura
nacional contemporânea. Na apreensão do sentido do mundo, a sua escrita é, pois,
um imenso palimpsesto onde comparecem, em diversas camadas sobrepostas,
acontecimentos, pessoas, lugares, bem como as mais diversas manifestações
artísticas.
A sua admirável uis lírica permite-lhe, assim, conjugar um lastro de memórias,
feita de vivências quotidianas, familiares ou de cariz amoroso, com uma vocação
humanista herdada do século XVI, sobretudo do maneirismo camoniano. Nos seus
versos desenham-se pessoas, lugares e circunstâncias quotidianas, transfiguradas,

417
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

muitas vezes, pela memória, sugestões e referências, alusões e citações, onde não
faltam processos ecfrásticos, na construção imagética de uma peculiar cosmovisão.
A diversidade de temas tratados, corolário das múltiplas contradições ou certezas
do poeta, interpela continuamente o leitor, que se vê confrontado com aspectos, à
primeira vista tão comuns como o do adormecer as filhas, entrelaçados com alusões
plasmadas numa rica e vasta erudição. Daí resulta, num lúcido sentido do efémero e
circunstancial, a capital importância da profusão de temas poéticos, decorrentes dos
grandes enigmas da vida: a passagem do tempo, a finitude da existência, o
desconcerto do mundo ou o desejo do amor.
Por outro lado, essa notável consciência leva o poeta, não raro envolto em
polémica, a problematizar sobre matérias candentes: o cânone literário, o ensino do
português, o acordo ortográfico ou a identidade europeia. No que concerne a este
último ponto, registe-se que o poeta, na esteira do pensamento já traçado por
Camões, não se confina apenas ao reconhecimento de uma indelével identidade
nacional; analisa também, com particular acuidade, quer em registo lírico, quer em
registo ensaístico, as vicissitudes da construção da Europa. Esta abrangente visão
confere indubitavelmente um sentido universal à obra de Graça Moura.
Assim, foi nossa intenção primordial a identificação das matrizes compulsadas,
oriundas dos mais diversos domínios, que concorreram para a definição do conceito
de recepção. Os pressupostos epistemológicos e teóricos-literarios, considerados
válidos e pertinentes, enunciados no capítulo inicial, permitiram dilucidar um
conjunto de questões pertinentes em torno do alcance do referido fenómeno na
poesia, com um privilegiado enfoque no intertexto camoniano.
O poder sugestivo dos textos do criador de Os Lusíadas, com efeito, converte-se
num privilegiado ponto de assimilação da apurada produção lírica do poeta
contemporâneo. A sua presença na actividade criativa e ensaística de vgm é um
exemplo ilustrativo da inesgotável riqueza e validade da mensagem do vate
quinhentista ao longo da história da cultura portuguesa. Esse diálogo instaura uma
significativa comunhão de interesses, que, de modo diverso, se podem descortinar
no poeta contemporâneo. De facto, tais laços ligam a memória do sistema literário,
no imprescindível diálogo instaurado entre uma persona criadora e um leitor com

418
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

capacidade receptiva, da qual radica um admirável poder de revelação e o exercício


aturado da construção poética. Nessa reciprocidade, o poeta, ciente da dimensão
estética e ontológica dos versos camonianos, que aproveita e recria, configura,
assim, a sublime função da poesia, consubstanciada na celebração do sentido da
existência e o que dela fica na memória. A rica herança recebida, teia de afinidades
e complexidades, permite ao autor de carta a l.v.c. a criação de um universo
pessoal e não hesita em a adaptar à sua intencionalidade textual através de
sucessivas modelizações, que dão origem, a um tempo, a um núcleo clássico e a um
outro de pendor moderno, simultaneamente distintos e em perfeita simbiose.
Graça Moura inscreve a sua consciência metalinguística sobretudo no diálogo
intertextual com a poesia camoniana – de que, recorde-se, é também penetrante
exegeta –, proporcionando uma estimulante ponte para múltiplas reflexões em
torno do fenómeno literário. Esta polimórfica concepção, norteada por
continuidades e rupturas, plasma uma invulgar originalidade na sua escrita. Com
efeito, o presente diálogo com o mundo da cultura é um estimulante ponto de
referência para vgm se empenhar numa renovação de caminhos que passam pela
assimilação transformativa da tradição. Nesta vertente, o aproveitamento explícito
– pela alusão de fragmentos, passos, ou outras sugestões camonianas – esboça, sob
o signo da pós-modernidade, um desejo incontido de novidade, que se estende a
uma louvável atitude crítica para uma renovada atualização dos estudos
camonianos na contemporaneidade.
Ao longo de cinco séculos, Camões tem suscitado complexas interpretações,
fazendo cada época a sua própria leitura, o que prova a sua constante presença nas
letras portuguesas. As sombras da sua difusa vida e obra proporcionam um labor
lírico e exegético, por vezes, muito desigual, contribuindo cada autor a seu modo
para que indubitavelmente se possa descortinar como foi lido e assimilado o vate na
contemporaneidade. Tal facto permitiu uma permanente revitalização da sua
mensagem, que o conduziu a vencer as barreiras do tempo; é precisamente neste
contexto que o olhar crítico de vgm se insere, num caminho de renovada
descoberta. Concedeu, sem dúvida, um indelével contributo, nos mais diversos
registos, para o conhecimento da célebre personalidade quinhentista, elo entre o

419
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

passado e o presente, projectando, com inegável mérito, novos caminhos de


investigação no âmbito dos estudos camonianos.
Em estreita relação com o que foi dito, o escritor contemporâneo, marcado por
um vivo sentido culturalista, apresenta sinais evidentes de uma concepção
dialógica, derivada da interacção com outros textos provenientes de uma
diversificada plêiade de nomes eminentes da literatura. A construção poética
vincula-se, pois, a práticas intertextuais – ora mais explícitas, ora mais implícitas –,
que enriquecem os versos e, como tal, permitem melhor avaliar o seu alcance de
sentido. As opções registadas confirmam uma estratégia discursiva com
determinados vínculos da sua preferência; nesta prática, que incluiu Camões e
outros escritores de diferentes épocas e latitudes, plasma-se uma galeria notável de
vozes, testemunho cabal de uma sólida cultura. Como num sistema de vasos
comunicantes, a obra é em si mesma um amplo espaço que valida indubitavelmente
um propósito criativo. Nesta linha, plasmada em afinidades electivas, logo
denuncia o claro intertexto camoniano enquanto modelo de referência, patente no
amplo imaginário em torno do quinhentista, onde pontificam, por exemplo,
Dinamene, o Velho do Restelo ou o Adamastor, personagens que pela sua
simbologia, são recriadas na actualidade com aturada mestria. O reflexo enunciado,
por outro lado, contribui para conhecer um período recente da história literária
nacional, assim como para definir o modo, a partir de opções estético-literárias, que
enforma o respetivo gosto.
Tal labor oficinal, embora pressuponha de modo incondicional a tradição, é
entendido como metamorfose, visto que a absorção transfiguradora de sentidos,
hauridos noutros textos, irrompe de modo avassalador, em demanda da
originalidade, onde não falta uma deliberada intenção parodística.
Os textos compulsados por Graça Moura, paradigma do âmbito cultural em que
se formou, configuram um inestimável contributo para compreender o seu espírito,
as suas opções estético-culturais e a recepção de determinados autores. O
hibridismo verificado enquadra-se, por conseguinte, numa atitude típica do pós-
-modernismo e a perspectiva inovadora emerge inegavelmente da harmonização de

420
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

elementos que, de outra forma, surgiriam dispersos e desprovidos de significativo


valor semântico.
A sua voz singular configura, deste modo, numa inovadora produção poética,
que marca indubitavelmente os últimos decénios das letras nacionais. O relevo
assumido pelo canto, próximo da matriz helénica, liga-se ao verbo grego πoιeῖv,
com o significado de “fazer”, e demonstra a feição artesanal do fenómeno literário,
na busca continuada da criação, como destaca com ironia: “um poema é sempre a
briga / de mais olho que barriga / e de um desejo maior” (PR2, 549). O horizonte
gerado, graças às conexões estabelecidas, permite descortinar a escrita como teia,
uma vez que é composta por gestos contínuos de refazer, constituindo, assim, um
contributo decisivo para delinear os eixos estruturantes de vgm. Assim, o labor
poético implica uma produção textual in fieri e torna-se um convite para desvendar
os significados intrínsecos das referências ao seu canto, que, ao invés de os
dissimular, revela a génese da sua motivação literária que legitima uma singular
atitude estética sobre o sentido da escrita. O sujeito de enunciação apresenta-se
crítico de si mesmo, como se pode observar em muitos dos seus versos; a
espontaneidade está excluída desta asserção, visto que a escrita resulta da almejada
“técnica”, resultante de diligente “mão nocturna e diurna”, como preceituava
Horácio. O singular talento de Graça Moura emana, desta maneira, de uma cultura
poiética incansavelmente refundida.
Neste contexto, a lógica da ansiedade da influência, que Graça Moura
reiteradamente confessa não sentir, dissipa-se numa profusa ligação a outras vozes,
comprovativa de um explícito e coerente trajecto poético, que, de um modo
admirável, procura a sua própria singularidade. A consciência oficinal, princípio
basilar da sua produção literária, ressalta nos seus versos, mas também nas
inúmeras notas que acrescenta aos textos, explicitando intenções que, de algum
modo, condicionaram ou motivaram as opções estético-literárias subjacentes aos
seus poemas. É evidente que a escolha para análise de determinadas composições
preferenciais, de entre o rico corpus poético de Graça Moura, pautou-se por
critérios selectivos de responsabilidade pessoal, mas sempre com o fito de rastrear
uma poética marcada pela constante reflexão sobre a criação literária. No entanto,

421
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

admito que ficaram de fora outros textos que gostaria de ter chamada à colação,
restando-me a esperança de futuramente poder realizar essa tarefa.
Por outro lado, tendo como pano de fundo a traditio, longe de se satisfazer uma
perspectiva estática, ela deve ser entendida no sentido dinâmico pela revalorização
selectiva de todo um legado, sendo, pois, a poesia entendida, na esteira do
modernismo de teor classicista de T. S. Eliot, como uma sempre renovada tradição
estético-literária. A ideia de movimento insere-se, portanto, num espaço fluido
entre memória e inovação. Na demanda de novos trilhos, o poder de transfiguração
que irrompe é conseguido através de estratégias inovadoras decorrentes de uma
concepção tão lúdica quanto artífica do exercício literário; sob o signo da
metamorfose, converge para o reconhecimento de uma originalidade indutora de
novos sentidos, configurando um dos maiores reptos colocado desde sempre à
poesia. A referida tónica, fecunda e criativa, desenha uma cartografia de leituras
que está na génese do próprio processo criativo, longe de se confinar a uma
perspectiva estática da tradição.
Por esta razão, e nesse contexto, destaca-se o exercício da construção paródica,
tomada no seu sentido etimológico de “ao lado ou em frente ao canto”, que
compreende sobretudo o arrojo de dialogar com os textos aclamados pelo cânone,
ocupando a obra camoniana um importante lugar no universo poético de vgm. A
sua inclusão inclui estratégias de reconhecimento demonstrativas de que os versos
não irrompem ex nihilo, antes resultam de uma escolha motivada perante as
portencialidades proporciondas pela tradição. Note-se que Graça Moura não
compõe as Rhythmas, nem vive já no remoto séc. XVI; no entanto, a sua
contemporaneidade não silencia nem olvida o legado recebido. Ao invés, procura
marcar uma distância irónica, sem nunca rejeitar o fascínio pelo modelo
consagrado. Integrada num panorama de intencional retorno à tradição, esta
perspectiva paródica, conscientemente assumida e nunca rejeitada, tem o mérito de
permitir retomar e revitalizar a produção literária haurida em Quinhentos. A
mundividência recriada, de dimensão pós-moderna, esboça um desejo incontido de
novidade, o que concede, sem dúvida, a Graça Moura uma posição preponderante
nas letras nacionais.

422
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

Fonte inesgotável de uma permanente renovação estético-literária, a figura


proeminente de Camões – e o que com ele se relaciona – constrói novos modos de
olhar a experiência humana, o mundo e a literatura, o que conduz vgm a aproveitar
com notável mestria os versos do poeta quinhentista. A recepção criativa registada
revela que a presença de Camões não é fortuita, é propositada e reflectida, bem
como, longe de ser ocasional, é constante e procurada. Os passos aduzidos, quer
líricos, quer épicos do “Príncipe dos poetas” constituem, de facto, um privilegiado
recurso e asseguram um notável testemunho de uma fecunda assimilação estético-
-literária. O vulto contemporâneo explora esse vasto e singular manancial,
conferindo um sentido estruturante ao conjunto da sua produção poética, graças à
garantia de uma cultura viva capaz de revisitar o que merece ser recordado e de
recusar o perigo de indiferença.
É justamente numa vasta e erudita variedade de processos compositivos,
assentes em modernos padrões de pensar e sentir, que se configura a identidade
poética do autor de Luís de Camões: alguns desafios. As linhas de força
evidenciadas nos seus versos bem poderão ser consideradas as matrizes do seu
pensamento e da sua obra, que, ao proporcionarem estimulantes desafios,
demonstram também uma determinada visão da poesia contemporânea portuguesa.
Assim, poucos são os que, como Vasco Graça Moura, dotado de uma fina
sensibilidade e de um aturado labor, manifestam de forma tão singular um itinerário
lírico que, em vez de representar um ponto de chegada, se projecta na dinâmica do
devir.

423
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

Bibliografia

1. Obras de Vasco Graça Moura

1. 1. Poesia

Modo mudando, ed. autor, 1963.


Semana Inglesa, ed. autor, 1965.
Quatro sextinas, ed. autor, 1973.
O mês de dezembro e outros poemas, Porto, Ed. Inova, 1976.
Recitativos, Ed. Inova, Porto, 1977.
Dezassete sonetos de Shakespeare, Porto, Ed. Inova, 1977.
Sequências regulares, Porto, Ed. O Oiro do Dia, 1978.
Instrumentos para a melancolia, Porto, Ed. O Oiro do Dia, 1980.
A variação dos semestres deste ano, 365 versos, seguido de A escola de Frankfurt,
ed. autor, 1981.
Nó cego, o regresso, Porto, Ed. O Oiro do Dia, 1982.
Os rostos comunicantes, Lisboa, Ed. D. Quixote, 1984.
A sombra das figuras, ed. autor, 1985.
A furiosa paixão pelo tangível, Lisboa, Ed. Quetzal, 1987.
O concerto campestre, Lisboa, Ed. Quetzal, 1993.
Sonetos familiares, ed. autor, 1994.
Retratos de Isabel e outras tentativas, Lisboa, Ed. Quetzal,1994.
Poemas escolhidos (1963-1995), Venda Nova, Ed. Bertrand, 1996.
Uma carta no inverno, Lisboa, Ed. Quetzal, 1997.
Poemas com pessoas, Lisboa, Ed. Quetzal, 1997.
Letras do fado vulgar, Lisboa, Ed. Quetzal, 1997.
O retrato de Francisca Matroco e outros poemas, Lisboa, Ed. Quetzal, 1998.
Garcia Lorca: o romanceiro e o pranto, Lisboa, Ed. Quetzal, 1998.
Sombras com Aquiles e Pentesileia, Lisboa, Ed. Quetzal, 1999.
Garrett, numa cópia perdida de Frei Luís de Sousa (31.12.1843), Porto, Ed.
Campo das Letras, 1999.

425
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

Giraldomachias, onze poemas e um labirinto sobre imagens de Gérard Castelo-


-Lopes, Lisboa, Ed. Quetzal e Casa Fernando Pessoa, 1999.
Poesia, 1997-2000, Lisboa, Ed. Quetzal, 2000.
Adamastor, nomen gigantis, Porto, Ed. Afrontamento, 2000.
Poesia, 1963-1995, Lisboa, Ed. Círculo de Leitores, 2001.
Poesia, 1997-2000, Lisboa, Ed. Círculo de Leitores, 2001.
Sete livros e um CD, Porto, Ed. Asa, 2002.
Testamento de vgm, Porto, Ed. Asa, 2002.
Variações metálicas, Porto, Ed. Asa, 2004.
Mais fado & companhia, Lisboa, Ed. Público, 2004.
Laocoonte, rimas várias, andamentos graves, Lisboa, Ed. Quetzal, 2005.
Poesia 2001-2005, Lisboa, Ed. Quetzal, 2006.
O caderno da casa das nuvens, Porto, Ed. Afrontamento, 2010.
Os Lusíadas para gente nova, Lisboa, Ed. Gradiva, 2011.
Poesia reunida, vol. 1 e 2, Lisboa, Ed. Quetzal, 2012.

1. 2. Participação em antologias

AAVV., Magusto poético, Lisboa, Ed. Casa Fernando Pessoa- Fundação das Casas
de Fronteira e Alorna, 1998.
Jorge Reis-Sá, Anos 90 e agora. Uma antologia da Nova Poesia Portuguesa, Vila
Nova de Famalicão, Ed. Quasi, 2001.
António Ruivo Mouzinho (org.), Camões, grande Camões…, Porto, Ed. Unicepe,
2002.
Rui Carvalho Homem, Identidade. Alguns poetas europeus, Porto, Faculdade de
Letras da Universidade, 2005.
Jorge Reis-Sá e Rui Lage, Poemas de Portugal. Antologia da poesia portuguesa do
séc. XII ao séc. XXI, Porto, Porto Editora, 2010.
Artur Anselmo et alii, Babel sobre babel, Lisboa, Ed. Babel, 2010.
José da Cruz Santos (coord.), O primeiro dia: pequena antologia da mãe na poesia
portuguesa, com pintura de Manuel Ribeiro de Pavia, pref. João Paulo
Vinagre, Porto, Ed. Modo de Ler, 2012.

426
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

Ana Isabel Queiroz et alii (org.), Em Lisboa, sobre o mar. Poesia 2001-2010,
Lisboa, Ed. Poetica Vrbis, 2013.
José da Cruz Santos (org.), Orfeu canta. Pequena antologia da poesia portuguesa
sobre música, Porto, Ed. Modos de Ler, 2014.

1. 3. Organização de antologias

Vitorino Nemésio. Antologia poética, apresentação e selecção de Vasco Graça


Moura, Porto, Ed. Asa, 2002.
Pedro Homem de Mello, Poesias escolhidos, selecção e prefácio de Vasco Graça
Moura Porto, Ed. Asa, 2004.
Antologia dos sessenta anos, Porto, Ed. Asa, 2002.
Imitação das artes: antologia ecfrástica, Porto, Ed. Asa, 2002.
Antologia de convívios, Porto, Ed. Asa, 2002.
Antologia da família: antologia dos afectos, Porto, Ed. Asa, 2002.
Musa da música: antologia das ontologias, Porto, Ed. Asa, 2002.
Artes plásticas: pequena antologia reflexiva, Porto, Ed. Asa, 2002.
Outros lugares: antologia de alguns percursos, Porto, Ed. Asa, 2002.
Clássicos Portugueses - 75 obras, Lisboa, Ed. Planeta Agostini.
366 poemas que falam de amor, Lisboa, Ed. Bertrand, 2003
Natal… Natais, oito séculos de poesia de Natal, Lisboa, Ed. Público, 2005.
Poemas da minha vida, Lisboa, Ed. Público, 2005.
Gloria in excelsis, Histórias portuguesas de Natal, Lisboa, Ed. Bertrand, 2008.
Babel em redondilhas: Luís de Camões, D. Francisco Manuel de Melo e Afonso
Duarte, Lisboa, Ed. Ática, 2010.
Visto da margem sul do rio. O Porto, Porto, Ed. Modo de Ler, 2012.

1. 4. Tradução de poesia

50 Sonetos de Shakespeare, Porto, Ed. Inova, 1978.


23 Poemas de H.M. Enzensberger, Porto, Ed. O Oiro do Dia, 1980.
21 poetas suecos (em colaboração com vários autores), Lisboa, Ed. Vega, 1981.

427
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

50 poemas de Gotfried Benn, Porto, Ed. O Oiro do Dia, 1982.


Antologia poética de Gunnar Ekelöf (em colaboração com Marianne Sandels e Ana
Haterly), Lisboa, Ed. Quetzal, 1992.
Os sonetos a Orfeu de Rainer Maria Rilke, Lisboa, Ed. Quetzal, 1994.
A Vita Nuova de Dante Alighieri, Lisboa, Ed. Bertrand, 1995.
A Divina Comédia de Dante Alighieri, Lisboa, Ed. Bertrand, 1995.
Os amorosos e outros poemas de Jaime Sabines, Lisboa, Ed. Quetzal, 1996.
Os testamentos de François Villon e outras baladas mais, Porto, Ed. Campo das
Letras, 1997.
Poemas de Seamus Heaney, Porto, Ed. Campo das Letras, 1998.
Os sonetos de Walter Benjamin, Porto, Ed. Campo das Letras, 1999.
Os sonetos de Shakespeare, Lisboa, Ed. Quetzal, 2002.
Cartas a um jovem poeta de Rainer Maria Rilke, Porto, Ed. Asa, 2002.
Alguns amores de Ronsard, Chiado, Ed. Quetzal, 2003.
As Rimas de Petrarca, Chiado, Ed. Bertrand, 2003.
Rilke, Carrossel e outros poemas, Porto, Ed. Asa, 2004.
Os Triunfos de Petrarca, Lisboa, Ed. Bertrand, 2004.
O poema sobre o desastre de Lisboa de Voltaire, Lisboa, Ed. Alêtheia, 2005.
Poesias castelhanas de Camões, Lisboa, Ed. Ática, 2010.
Rainer Maria Rilke, Elegias de Duíno e os sonetos de Orfeu, Lisboa, Ed. Quetzal,
2017.

1. 5. Narrativa

Quatro últimas canções, Lisboa, Ed. Quetzal, 1987.


Naufrágio de Sepúlveda, Lisboa, Ed. Quetzal, 1988.
Partida de Sofonisba às seis e doze da manhã, Lisboa, Ed. Quetzal, 1993.
A morte de ninguém, Lisboa, Ed. Quetzal, 1998.
Meu amor, era de noite, Lisboa, Ed. Quetzal, 2001.
As Botas do Sargento, Lisboa, Ed. Quetzal, 2001.
O enigma de Zulmira, Lisboa, Ed. Quetzal, 2002.
Por detrás da magnólia, Lisboa, Ed. Quetzal, 2004.

428
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

Duas mulheres em Novembro, Revista Visão, 2006.


O Pequeno-Almoço do Sargento Beauchamp, Lisboa, Alêtheia Editores, 2008.
O mestre da música, Lisboa, Alêtheia Editores, 2008.
Morte no retrovisor, ficções e quase ficções, Lisboa, Ed. Bertrand, 2008.
Os desmandos de Violante, Lisboa, Alêtheia Editores, 2010.

1. 6. Teatro

Ronda dos meninos expostos (auto breve de Natal), Lisboa, Ed. Quetzal, 1987.
Auto de Mofino Mendes (farsa de Natal), ed. autor, 1994.

1. 7. Tradução de teatro

Berenice de Jean Racine, Lisboa, Ed. Bertrand, 2005.


Fedra de Jean Racine, Lisboa, Ed. Bertrand, 2005.
Andrómaca, de Jean Racine, Chiado, Ed. Bertrand, 2006.
O Misantropo de Molière, Lisboa, Ed. Bertrand, 2007.
Cyrano de Bergerac de Edmond Rostand, Lisboa, Ed. Bertrand, 2007.
O Cid de Pierre Corneille, Lisboa, Ed. Bertrand, 2008.

1. 8. Crónicas

Circunstâncias vividas, Lisboa, Ed. Bertrand, 1995.


Papéis de jornal. Crónicas e outros materiais, Lisboa, Ed. Bertrand, 1997.
Páginas do Porto, Porto, Ed. Asa, 2001.
Anotações europeias, Lisboa, Ed. Bertrand, 2008.

1. 9. Produção ensaística e crítica

“O amor e o Ocidente na obra de David Mourão-Ferreira”, in Revista Colóquio-


-Letras, nº 37, Maio 1977, pp. 13-23.
David Mourão-Ferreira ou a mestria de Eros, Porto, Ed. Brasília, 1978.

429
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

Herculano poeta, Porto, Fundação Eng. António de Almeida, 1978.


Nemésio: o lance do verbo, Porto, Ed. Sopete, 1980.
Luís de Camões: alguns desafios, Lisboa, Ed. Vega, 1980.
José Rodrigues e as armadilhas miméticas, Porto, Ed. O Oiro do Dia, 1980.
“Os jogos da memória e do destino”, in Revista Colóquio-Letras, nº 60, Março
1981, pp. 7-14.
“Jorge de Sena na Ilha de Moçambique”, in Revista Colóquio-Letras, nº 67, Maio
1982, pp. 58-59.
“Sobre Agustina e Almeida Faria”, in Revista Colóquio-Letras. nº 69, Setembro de
1982, pp. 36-40.
Caderno de olhares, Ed. O Oiro do Dia, Porto, 1983.
“Quatro breves anotações a Sobre os rios”, in David Mourão Ferreira et alii (org.),
Afecto às letras, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1984, pp. 84-91.
“Apresentando Dentro de Momentos de Pedro Tamen”, in Revista Colóquio-
-Letras, nº 84, Março de 1985, pp. 83-85.
Camões e uma concepção da Europa”, in Revista Oceanos, nº 16, Dezembro, 1993,
pp. 59-64.
Camões e a divina proporção, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 21994.
“Fernando Pessoa visto hoje por poetas portugueses e brasileiros”, in Revista
Colóquio-Letras, nº 88, Novembro1985, pp. 140-141.
Os penhascos e a serpente e outros ensaios camonianos, Lisboa, Ed. Quetzal,
1987.
Várias vozes, Lisboa, Ed. Presença, 1987.
“A Europa está de parabéns” (Sobre Eduardo Lourenço), in JL. Jornal de Letras,
Artes e Ideias, 14 Setembro 1988, p. 8.
Fernão Gomes e o Retrato de Camões (em colaboração com Vítor Serrão), Lisboa,
Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1989.
“Tabucchi /Bosh. Uma relação difícil”, in Revista Ler, Janeiro1989, pp. 87-88.
Cristóvão Colombo e a floresta das asneiras, Lisboa, Ed. Quetzal, 1991.
José Rodrigues: fragmentos para uma ilha dos amores, Porto, Ed. TLP, 1993.
O Tratado de Tordesilhas, Lisboa, Ed. CTT Correios, 1994.
“Denotações da majestade”, in Annemarie Jordan, Retrato da corte em Portugal. O
legado de António Moro, Lisboa, Ed. Quetzal, 1994, pp. 9-15.

430
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

“Óscar Lopes”, in Eduardo Prado Coelho et alii, Uma homenagem a Óscar Lopes,
Porto, Ed. Afrontamento-Câmara Municipal de Matosinhos, 1996, pp.153-
-154.
O despertar da pintora: uma incursão (sobre Graça Morais), Lisboa, Ed. Quetzal,
1997.
“Sobre um Nocturno de David Mourão-Ferreira”, in Revista Colóquio-Letras,
nº 145-146, Julho 1997, pp. 175-179.
“Asfikchiado”, in Papéis de jornal. Crónicas, Venda Nova, Ed. Bertrand, 1997,
107-110.
“Alfacinhas”, in Papéis de jornal. Crónicas e outros materiais, Venda Nova, Ed.
Bertrand, 1997, 113-116.
Damião de Góis e o livro de Horas dito de D. Manuel, Lisboa, Ed. Artibérica,
1999.
“Lutos”, in Diário de Notícias,13 Outubro 1999, p. 14.
Contra Bernardo Soares e outras observações, Porto, Ed. Campo das Letras, 1999.
Sobre Camões, Gândavo e outras personagens, hipóteses de história e de cultura,
Porto, Ed. Campo das Letras, 2000.
“Uma nova antologia camoniana”, in Público-leituras, 23 Setembro 2000, pp. 2-3.
“O português do milénio ?”, in Público, 31 Dezembro 2000, p. 4.
“Do Porto, objecto de desejo”, in Os Meus Livros, nº 20 Maio 2001, pp. 46-47.

“Agustina e Paula”in Os Meus Livros, nº 22 Junho 2001, pp. 40-41.

“As grandes leituras”, in Os Meus Livros, nº 23 Agosto 2001, pp. 86-87.

“Não, Camões não era gay - obviamente não era”, in Os Meus Livros, Junho de
2002, pp. 21-25.
“O que farei com esta ecfrase?”, in Os Meus Livros, Julho de 2002, pp. 86-87.
“Schubert e a escritura”, in Os Meus Livros, Junho de 2002, pp. 80-81.
“A memória dos outros”, in Os Meus Livros, Agosto 2002, pp. 46-47.
“O lugar de honra”, in Os Meus Livros, Setembro 2002, pp. 58-59.
“Rilke e o senhor Kappus”, in Os Meus Livros, Outubro 2002, pp. 44-45.
“Algumas notas numa tarde de Outono”, in Os Meus Livros, Novembro 2002,
pp. 28-29.
“O espírito de Dürer na casa de Mateus”, in Os Meus Livros, Novembro 2002,
pp. 70-74.

431
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

Figuras em Mateus, Lisboa, Ed. Quetzal, 2002.


“Bernardim Ribeiro e Gil Vicente”, in Diário de Notícias, 19 Junho 2002, p. 9.
“Subversão e subvenção I”, in Diário de Notícias, 18 Setembro 2002, p. 9.
“Subversão e subvenção II”, in Diário de Notícias, 25 Setembro, 2002, p. 9.
“Subversão e subvenção III”, in Diário de Notícias, 2 Outubro 2002, p. 9.
“Subversão e subvenção IV”, in Diário de Notícias, 9 Outubro 2002, p. 9.
“Anfíbios sistemas de palavras, ou a poesia de amor de Vitorino Nemésio”, in
Giorgio de Marchis (org.), Criação e crítica. Homenagem de 8 poetas e 8
ensaístas, Lisboa, Ed. Caminho, 2003, pp. 95-110.
“Sobre estudos portugueses”, in Diário de Notícias, 1 Outubro 2003, p. 8
“Para Sophia”, in Diário de Notícias, 29 Outubro 2003, p. 8.
“A escola e a cultura”, in Os meus livros, Janeiro 2004, p. 78.
“Como se faz um poema?”, in Relâmpago, nº 14, 2004, pp. 70-71.
Lusitana Praia, Porto, Ed. Asa, 2005.
“Traduzir Petrarca”, in Rita Marnoto (org.), Petrarca 700 anos, Instituto de
Estudos Italianos da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 2005,
pp. 53-61.
“As confissões de um tradutor de poesia”, in Relâmpago. A tradução em poesia,
nº 17, 2005, pp. 94-97.
“A escrita e o real”, in JL. Jornal de Letras, Artes e Ideias, 17 Agosto 2005, pp. 17-
-18.
Fantasia e objetividade dos descobrimentos (em colaboração com Martim de
Albuquerque), Lisboa, Ed. Alêtheia Editores, 2006.
“Escrever uma fuga com palavras”, in Relâmpago, nº 19, 2006, pp.152-154.
“Os livros pois”, in Os meus livros, 14 Junho 2006, p. 6.
“A literatura em perigo”, in Diário de Notícias, 24 Janeiro 2007, p. 54.
“O panteão de memória”, in Diário de Notícias, 10 Outubro 2007, p. 54.
“Manuel Sousa Tavares. Sete densidades”, in JL. Jornal de Letras, Artes e Ideias, 7
Novembro 2007, p. 20.
Acordo Ortográfico: a perspectiva do desastre, Lisboa, Alêtheia, 2008.
“Uma agenda europeia para a cultura no mundo globalizado”, in Temas de
integração nº 26, 2º semestre 2008, pp. 315-317.
Diálogo com (algumas) imagens, Lisboa, Ed. Guimarães, 2009.

432
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

Amália: dos poetas populares aos poetas cultivados, Lisboa, Ed. Tugaland, 2009.
“Geometria e noite de mundo”, in JL. Jornal de Letras, Artes e Ideias, 27 Janeiro
2010, p. 20.
“A língua de Camões?”, in Diário de Notícias, 9 Junho 2010, p. 54.
“Recensão crítica a Uma viagem à Índia, de Gonçalo M. Tavares”, in Revista
Colóquio-Letras, nº177, Janeiro 2011, pp. 271-274.
“Uma semana em Março”, in JL. Jornal de Letras, Artes e Ideias, 6 Abril 2011,
p. 36.
“O bicho harmonioso: ressonâncias (efeitos acústicos em Vitorino Nemésio)”, in
Revista Relâmpago, nº 28 Abril 2011, pp. 147-149.
O Binómio de Newton & A Vénus de Milo. Poesia e ciência na literatura
portuguesa - uma antologia, (em colaboração com Maria Bochichio), Lisboa,
Ed. Aletheia, 2011.
“Redondilhas Sôbolos rios que vão ou sobre os rios que vão”, in Vítor Aguiar e
Silva (coord.), Dicionário de Luís de Camões, Lisboa, Ed. Caminho, 2011,
pp. 832-836.
“Retratos de Camões”, in Vítor Aguiar e Silva (coord.), Dicionário de Luís de
Camões, Lisboa, Ed. Caminho, 2011, p. 849-851.
“O reino da estupidez”, in Diário de Notícias, 29 Junho 2011, p. 54.
“Miguel Veiga. O portuense”, in Artur Santos Silva et alii, Miguel Veiga. Cinco
esboços para um retrato, Porto, Ed. Modo de Ler, 2011, pp. 47-49.
“Prefácio”, in Eugénio de Andrade, Traduções, Porto, Ed. Modo de Ler, 2012.
“José Afonso é mais que uma bandeira política?”, in Diário de Notícias
(suplemento Quociente de Inteligência), 27 Abril 2012, p. 25.
“A minha ária do catálogo”, in Diário de Notícias, 29 Agosto 2012, p. 54.
“Testemunhos”, in Cristina Pimentel e Paula Morão (coord.), A literatura clássica
ou os clássicos na literatura. Uma (re)visão da literatura portuguesa das
origens à contemporaneidade, Lisboa, Ed. Campo da Comunicação, 2012,
pp. 385-388.
“Versos que sabemos de cor”, in JL. Jornal de Letras, Artes e Ideias, 19 de
Outubro de 2012, p. 11.
“Vasco da Gama entre Poggio Bracciolini e Camões”, in Seabra Pereira e Manuel
Ferro (coord.), Actas da VI Reunião Internacional de Camonistas, Seabra
Pereira e Manuel Ferro (coord.), Coimbra, Imprensa da Universidade, 2012,
pp. 513-526.

“Intimação ao professor Malaca”, in Diário de Notícias, 8 Agosto 2012, p. 54.

433
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

“O fazer através e por cima das fronteiras”, in Ana Gabriela Macedo et alii (org.),
XIII Colóquio de Outono. Estética, cultura material e diálogos
intersemióticos, Braga, Ed. do Centro de Estudos Humanísticos da
Universidade do Minho, 2012, pp. 81- 88).
“Os Lusíadas para gente nova”, in Maria do Céu Fraga et alii, Camões e os seus
contemporâneos, Braga, Centro Interuniversitário de Estudos Camonianos,
Universidade dos Açores, Universidade Católica Portuguesa, 2012, pp. 111-
-115.
“O Acordo, outra vez”, in Diário de Notícias, 21 Novembro 2012, p. 54.
“Uma pequenina luz”, in Diário de Notícias, 26 Dezembro 2012, p. 54.
“O cadáver adiado”, in Diário de Notícias, 2 Janeiro 2013, p. 54.
“Urgentemente”, in Diário de Notícias, 9 Janeiro 2013, 54.
Saint-John Perse/Calouste Gulbenkian. Correspondance 1946-1954, Édition
établie, annotée et présentée par Vasco Graça Moura, Paris, Ed. Gallimard,
2013.
“Julius Pomarius est hic”, in Diário de Notícias, 3 Abril 2013, p. 54.
Discursos vários poéticos, Lisboa, Ed. Verbo, 2013.
A identidade cultural europeia, Lisboa, Ed. Fundação Francisco Manuel dos
Santos, 2013.
“O ensino do Português”, in Diário de Notícias, 13 Novembro 2013, p. 54.
“Os Lusíadas como epopeia global. The Lusiad, a global epopee”, in Revista de
ideias e magazine whith ideas, n º 5, Dezembro 2013, pp. 42-59.
“A urgência da literatura”, in Diário de Notícias, 15 Janeiro 2014, p. 54.

“O ensino do português e o acordo ortográfico”, in Diário de Notícias, 22 Janeiro


2014, p. 54.
“Luís de Camões: o poeta das contradições existneciais”, in José da Cruz Santos
(org.), 21 personalidades dos séculos XX-XXI escolhem as vinte e uma
personalidades do milénio, Porto, Ed. Modo de Ler, 2014, pp. 125-137.
“Retrato do artista quando adulto”, in Diário de Notícias, 5 Fevereiro 2014, p.54.
Retratos de Camões, Lisboa, SPAutores-Ed. Guerra e Paz, 2014.
“Ruy Belo: torrencialidade, lirismo e ironia”, in Manaíra Aires Athayde (org.),
Literatura explícita. Ensaios sobre Ruy Belo, Lisboa, Ed. Assírio & Alvim,
2015, pp. 127-144.

434
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

“Sôbolos rios que vão”, in Rita Marnoto (coord.), Comentário a Camões, vol. 3 -
Redondilhas Sôbolos rios, odes, Coimbra-Genève, Centro Interuniversitário
de Estudos camonianos- Centre d’Études Lusophones, 2016, pp. 15-41.
“Ensaio sobre um ensaio”, in José Saramago, Ensaio sobre a cegueira, Lisboa,
Ed. Guerra e Paz, 2017, pp. 9-20.

1. 10. Publicações do autor no estrangeiro

Nodo cieco, il retorno, a cura di Carlo Vittorio Cattaneo, Roma, Ed. Florida, 1984.

L’ombra delle figure, organização, tradução e prefácio de Maria José de Lancastre,


Fondazione Piazzola, Roma, 1993.

L’ombre des figures, organização e tradução de Michèle Giudicelli, prefácio de


Marc Blanchet, Bordeaux, L’Escampette, 1997.

In acht gedichte, tradução de Peter Hanenberg, ed. autor, 1997, (textos depois
publicados em Akzente, 1Februar 2000).

Världen accelererade, organização, apresentação e tradução de Marianne Sandels,


Ariel Stehag (Svezia) 1996.

Ett vinterbrev och andra dikter, organização, apresentação e tradução de Marianne


Sandels, Ariel (Svezia), 2000.

Una carta en invierno y otros poemas, versão castelhana de Jesús Munárriz,


Madrid, Ed. Hiperión, 2000.

Tra connascenza e complice armonia, organização e tradução de Giulia Lanciani,


Roma, Ed. Japadre, 2002

Inchiostro nero che danza sulla. Antologia di poesia portoghese contemporanea,


organização e tradução de Giulia Lanciani, Ed. Mondadori, 2003.

Poemas escolhidos, selecção de Vlada Urosevic, trad. para macedónio de Mateja


Matevski, Jordan Plevnes e Vlada Urosevic, 2004.

Une lettre en hiver et autres poèmes (1963-2005), selecção, tradução e


apresentação de Joaquim Vital, Paris, Ed. La Différence, 2007.

Le magnolia, Paris, Ed. La Difference, 2008.

Här fattas det en högrvuxen lind, selecção, tradução e prefácio de Marianne


Sandels, Uppsala, Ed. Almaviva, 2009.

435
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

1. 11. Entrevistas

ANDRADE, Diogo Queiroz de, “Entrevista com Vasco Graça Moura”,


in Semanário, Metro, 14 Março 1998, pp. 6-9.

BARBAS, Helena, “Retrato a sanguínea”, in Expresso / Revista, 21 Janeiro 1995,


p. 21.

CRUZ, Valdemar, “Vasco Graça Moura, o escritor que não acreditava na


inspiração”, in Expresso, 26 Maio 2012, pp. 21-22.

DIAS, Ana Sousa, “Vasco Graça Moura. O impaciente europeu”, in Revista Ler,
Janeiro 2014, pp. 28-39.

ESTRELA, Edite, “Entrevista a Vasco Graça Moura”, in Bem dizer. Bem escrever,
Lisboa, Editorial Notícias, 1985, p. 52-53.

FRANÇA, Elisabete, “Eu não sou um tradutor profissional”, in Diário de Notícias,


28 Agosto 2002, pp. 35-36.

GASTÃO, Ana Marques, “Entrevista para o Diário de Notícias-Vasco Graça


Moura”, in José da Cruz Santos (org.), Modo Mudando. Sete ensaios sobre
Vasco Graça Moura, Porto, Campo das Letras, 2000, pp. 13-28.

GUEDES, Maria José, “Vasco Graça Moura. Mais tempo, mais livros, mais
clássicos”, in As Artes entre as Letras, nº 75, 30 Maio 2012, pp. 4-5.

GUIMARÃES, João Luís Barreto, “Conversa com Vasco Graça Moura”, in


http://poesia ilimitada. blogspot.pt/ 2006/ 04/conversa-com-vasco-graca-
moura.htmlpoesia & lda. - consultado em 12 Agosto 2016).

MALDONADO, Fátima e GUERREIRO, António, “Vasco Graça Moura, o poeta


contra a desordem”, in Expresso/Revista, 30 Dezembro 1995, pp. 24-34.

MAR, Diana do, “Poeta até ao umbigo, os baixos prosa”, in Cadernos de


jornalismo nº 0, Abril 2007, pp. 5-8.

MOUTINHO, José Viale, “Apenas a transcrição de uma conversa José Viale


Moutinho/Vasco Graça Moura (que poderá ser apensa às actas)”, in José da
Cruz Santos (org.), Modo Mudando. Sete ensaios sobre Vasco Graça Moura,
Porto, Campo das Letras, 2000, pp. 143-160.

MOURA, Vasco Graça, “Já traduzi tudo o que me interessava. Entrevista”, in


Diário de Notícias-6ª, 10 Fevereiro 2006, pp. 32-33.

— “Vasco Graça Moura. Entrevista”, in Público, 6 Janeiro 1995, p. 10.


436
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

— “Vasco Graça Moura. Entrevista. Sou fundamentalmente um poeta de


circunstâncias vividas”, in Inimigo Rumor, Revista de poesia Brasil e
Portugal, nº 12, Rio de Janeiro, 2002, pp. 7-13.

— “Vasco Graça Moura. Tudo passa pela disciplina e esforço”, in


http://www.seleccoes.pt/vascogra%C3%A7a_moura_%C2%ABpassa_tudo_p
eladisciplina_eo_esfor%C3%A7o#sthash.hHoqFo0J.dpuf (consultado em 10
Janeiro 2014).

NERY, Isabel, “Vasco Graça Moura: A Portugal está a faltar muita poesia”, in
Revista Visão, 20 Março 2014, pp. 90- 95.

QUEIRÓS, Luís Miguel, “A pronúncia da língua corre o risco de ser transfigurada


a breve prazo”, in Cão Celeste, nº 1, Abril 2012, pp. 11-16.

REAL, Miguel et alii, “Vasco Graça Moura”, in Revista Letras com vida-Litera-
tura, cultura e arte, nº 2, 2º semestre, 2010, pp. 149-159.

RIBEIRO, Anabela Mota, “Vasco Graça Moura”, in http://anabelamotaribeiro.pt/


vasco-graca-moura-103058 (consultado em 20 Janeiro 2016).

SALAZAR, Tiago, “Com sua Graça e tudo”, in Magazine Artes, nº 47, Janeiro
2007, pp. 20-27.

SALEMA, Isabel e RATO Vanessa, “Há criadores que acham que sou uma espécie
de monstro horrendo”, in Público-P2, 1 Fevereiro 2012, pp. 4-6.

SILVA, Rodrigues da, “Ele não é tão mau como isso”, in JL. Jornal de Letras,
Artes e Ideias, 17 Junho 1995, pp. 12-13.

— “VGM. Testamento e futuro”, in JL. Jornal de Letras, Artes e Ideias, 3 Outubro


2001, pp.14-18.

SOUSA, Margarida B. de, “Os intelectuais estão em vias de extinção”, in Jornal i,


17 Agosto 2013, pp. 24-27.

VASCONCELOS, José Carlos de e NUNES, Maria Leonor, “Vasco Graça Moura.


Meio século de escrita”, in JL. Jornal de Letras, Artes e Ideias, 27 Junho
2012, pp. 10-14.

VIEGAS, Francisco José, “Vasco Graça Moura: Sou um homem de acção”, in


Revista Ler, nº 3, 1988, pp. 16-19.

— “E agora, Vasco?”, in Revista Ler, nº 33, 1996, pp. 54-61.

437
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

2. Bibliografia sobre Vasco Graça Moura

AAVV, “Dez crónicas escolhidas de Vasco Graça Moura”, in Diário de notícias,


suplemento Quociente de Inteligência, 3 Maio 2014, pp. 6-11.

ALMEIDA, Isabel, “Recensão crítica a Sobre Camões, Gândavo e Outras


Personagens. Hipóteses de História da Cultura, de Vasco Graça Moura”, in
Revista Colóquio-Letras, nº 157-158, Julho de 2000, pp. 425-426.

ALVES, Clara Ferreira, “O físico prodigioso”, in Expresso/Atual, 3 Maio 2014,


pp. 11-13.

AMARAL, Fernando Pinto do, “A poesia neo-maneirista de Vasco Graça Moura”,


in Vasco Graça Moura, Poemas escolhidos (1963-1995), Lisboa,
Ed. Bertrand, 1996, pp. 7-11.

— “Vasco Graça Moura”, in Enciclopédia Verbo das Literaturas de Língua


Portuguesa, vol. 3, Lisboa-S. Paulo, Ed. Verbo, 1999, cols. 977-979.

— “Vasco Graça Moura. Instrumentos para a melancolia”, in 100 Livros


portugueses do século XX, Lisboa, Instituto Camões, 2002, p.164.

— “A caligrafia do tempo: uma leitura da melancolia na poesia de VGM”, in José


da Cruz Santos (org.), José da Cruz Santos (org.), Modo Mudando. Sete
ensaios sobre Vasco Graça Moura, Porto, Campo das Letras, 2000, pp. 77-
-84.
— “A arte de fazer versos”, in Público, 30 Abril 2006, p. 12.

— “Vasco Graça Moura - a poesia com uma ‘arte de viver’ entre o amor e a
melancolia”, in Isabel Ponce Leão e Eduardo Paz Barroso (org.) Vgm.
Cinquenta anos de vida literária, Porto, Ed. Modo de Ler, 2012, p. 59-68.

ALVES, Hélio J. S., “A propósito do soneto O dia em que eu nasci e do seu autor”,
in Isabel Almeida, Maria Isabel Rocheta e Teresa Amado (orgs.), Estudos.
Para Maria Idalina Rodrigues, Maria Lucília Pires, Maria Vitalina Leal de
Matos, Lisboa, Departamento de Literaturas Românicas da Faculdade de
Letras de Lisboa, 2007, pp. 263-295).

ALMEIDA, Teresa, “As ironias do amor”, in Expresso, 5 Janeiro 2002, p. 29.

AMÓRA, André Luiz Alves Caldas, “Vasco Graça Moura e o naufrágio de


Sepúlveda”, in http://www.filologia.org.br/xvi_cnlf/tomo_3/256_B.pdf (con-
sultado 14 Dezembro 2015).

438
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

ANSELMO, Fernanda, “Ambíguas paixões”, in Os meus livros, Novembro 2002,


p. 46.

AURÉLIO, Diogo Pires, “A excepção e o estilo”, in Expresso-Revista, 23 Agosto


1997, p. 28.

BARBAS, Helena, “Secreta ciência: Camões a divina proporção”, in Expresso/


Revista, 21 Janeiro 1995, p. 21.
— “O tradutor do inferno”, in Expresso /Revista, 30 Dezembro 1995, pp. 34-35.

BARRENTO, João, “Palimpsesto do tempo, O paradigma da narratividade na


poesia dos anos oitenta”, in Umbrais, Pequeno livro de prefácios, Lisboa, Ed.
Cotovia, 2000, pp. 69-78.

— “Vasco Graça Moura: os riscos do decassílabo”, in O poço de Babel. Para uma


poética da tradução literária, Lisboa, Ed. Relógio d’Água, 2002, pp. 229-
-231.
— “Carta na primavera para Vasco Graça Moura”, in Isabel Ponce Leão e Eduardo
Paz Barroso (org.) Vgm. Cinquenta anos de vida literária, Porto, Ed. Modo de
Ler, 2012, pp. 95-111.

— “O poeta é um figurador”, in JL. Jornal de Letras, Artes e Ideias, 17 Janeiro


2013, p. 10.

— “Poeta figurador de poetas”, in JL. Jornal de Letras, Artes e Ideias, 14 Maio


2014, p. 12.

— “O ser e o canto. Rilke pela mão de Vasco Graça Moura”, in Rainer Maria
Rilke, Elegias de Duíno e Os Sonetos a Orfeu, Lisboa, Ed. Quetzal, 22017,
pp. 7-15.

BARROSO, Eduardo Paz, “Uma acústica do ‘eu’. A poética autobiográfica de


Vasco Graça Moura”, in Isabel Ponce Leão e Eduardo Paz Barroso (org.)
Vgm. Cinquenta anos de vida literária, Porto, Ed. Modo de Ler, 2012, pp. 28-
-40.

— “Ressonância de uma meditação poética”, in As Artes entre as Letras, nº 75, 30


Maio 2012, p.7.

— “A apropriação da cidade na obra de Vasco Graça Moura: o Porto, de certo


modo”, in Estudos, revista mensal do C.A.D.C., Coimbra, nº 11, 2014,
pp. 173-177.

BEIRES, Isabel Morujão de, e TAVARES, Pedro Vilas-Boas, “Proposta de


candidatura de Vasco Graça Moura ao Prémio Vergílio Ferreira”, in

439
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/5629.pdf (consultado em 10 Dezem-


bro 2013).

BERNARDES, José Augusto Cardoso, “A íntima sintonia”, in JL. Jornal de


Letras, Artes e Ideias, 14 Maio 2014, p. 10.

— “Vasco Graça Moura, com Camões… no comboio rápido”, in Eduardo


Lourenço e Rui Vieira Nery (coord.), Colóquio Homenagem a Vasco Graça
Moura, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2014, pp. 95-102.

BOCHICCHIO, Maria, “Sobre o poema de Vasco Graça Moura Para esconder um


verso de Catulo”, in Revista Colóquio-Letras, nº 188, Janeiro 2015, pp. 205-
-209.

BRITES, Andreia Cristina Nóbrega, Murmúrios [Im]Possíveis-O desafio


dialogante entre poesia e artes plásticas em Vasco Graça Moura, Funchal,
Universidade da Madeira, 2012.

BUESCU, Maria Leonor Carvalhão, “Babel e o labirinto”, in Ensaios sobre


literatura portuguesa, Lisboa, Ed. Presença, 1986, pp. 67-75.

CALÇADA, Teresa, “O ‘amante’ de livros”, in JL. Jornal de Letras, Artes e Ideias,


14 Maio 2014, p.12.

CARVALHO, António, “Retrato de um país distante”, in Diário de Notícias, 26


Outubro 2002, p. 41.

CARVALHO, Teresa Margarida Duarte, “Em Demanda de Moura. Giraldomachias


(I): Vt photographia poesis?”, in Boletim de Estudos Clássicos, nº 43, Junho
2005, pp. 169-179.

— “Em Demanda de Moura. Giraldomachias (II): Vt photographia poesis?”,


Boletim de Estudos Clássicos, nº 44, Dezembro 2005, pp. 195-203.

— “Gérard Castello-Lopes em demanda de Vasco Graça Moura: ut photographia


poiesis?”, in Boletim de Estudos Clássicos, nº 45 Junho 2006, pp. 169-177.

— “Nada que ver com Vulcano”, in Boletim de Estudos Clássicos, nº 45,


Dezembro 2006, pp. 173-177.

— “Quando as oficinas se encontram: uma leitura de variações metálicas de Vasco


Graça Moura”, in Revista Românica, nº 16, 2007, pp. 185-20.

— “O que farei com esta mesa?”, in JL. Jornal de Letras, Artes e Ideias, 27 Junho
2012, pp. 12-13.

440
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

— “Presenças clássicas na poesia de Vasco Graça Moura: da reverência à


contrafacção irónica”, in Cristina Pimentel e Paula Morão (coord.), A
literatura clássica ou os clássicos na literatura. Uma (re)visão da literatura
portuguesa das origens à contemporaneidade, Lisboa, Ed. Campo da
Comunicação, 2012, pp. 299-318.

— “Um nunca ouvido canto: notas de Os Lusíadas para gente nova”, in Boletim de
Estudos Clássicos, nº 57, Junho 2012, pp. 105-114.

— “Da imagem literária de Vasco Graça Moura: sobr(exposição) e recato”, in


Revista Colóquio-Letras, nº 193, Setembro 2016, pp.123-134.

CASTRO, Laura (coord.), Vasco Graça Moura, 35 anos de trabalho literário


1963-1998, Porto, Fundação Eng. António de Almeida, 1998.

COELHO, Carlos, “O combate político do intelectual”, in JL. Jornal de Letras,


Artes e Ideias, 14 Maio 2014, p. 14.

COELHO, Eduardo Prado, “Vasco Graça Moura: alguma racionalidade e muita


melancolia”, in O cálculo das sombras, Rio Tinto, Ed. Asa, 1997, pp. 302-
-306.

— “A sétima saudade ou a nota de Deus (Vasco Graça Moura)”, in A escala do


olhar, Lisbosa, Texto Editora, 2003, pp. 81-84.

COELHO, Joaquim-Francisco, “Testamento de VGM”, in JL. Jornal de Letras,


Artes e Ideias, 2 Outubro 2002, pp. 20-21.

CONDINHO, Levi, “Recensão crítica a O Concerto Campestre, de Vasco Graça


Moura”, in Revista Colóquio-Letras, nº 135-136, Janeiro de 1995, p. 239-240.

CORDEIRO, Cristina Robalo, “Recensão crítica a A Morte de Ninguém, de Vasco


Graça Moura”, in Revista Colóquio-Letras, nº 153/154, Julho de 1999, p. 317-
-318.

CORTEZ, António Carlos, “Da palavra e dos silêncios”, in Os meus livros, Março
2004, p. 58.
— “Um modo mutante”, in JL. Jornal de Letras, Artes e Ideias, 6 Dezembro 2006,
p. 25.

— “Vasco Graça Moura: instrumentos e melancolia”, in JL. Jornal de Letras, Artes


e Ideias, 21 Abril 2010, pp.18-19.

— “Vasco Graça Moura: o poeta é um figurador”, in JL. Jornal de Letras, Artes e


Ideias, 9 Janeiro 2013, pp. 10-11.

441
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

— “Vasco Graça Moura: 50 anos de vida literária. Um modo verbal de estar no


mundo”, in Revista Colóquio-Letras, nº 185, Janeiro 2014, pp 162-170.

— “Vasco Graça Moura. Uma voz a muitas vozes”, in JL. Jornal de letras, Artes e
Ideias, 14 Maio 2014, pp. 8-9.

COSTA, Paula Cristina, “Recensão crítica a O Caderno da Casa das Nuvens, de


Vasco Graça Moura”, in Revista Colóquio/Letras, nº 175, Setembro de 2010,
pp. 161-164.

CRUZ, José dos Santos (org.), Modo Mudando. Sete ensaios sobre Vasco Graça
Moura, Porto, Campo das Letras, 2000.

— ...Porque a amizade é o mais belo lugar da terra, Porto, Ed. Modo de Ler, 2017.

DASILVA, Xosé Manuel, “O Canzoniere de Petrarca traduzido por Vasco Graça


Moura”, in Rita Marnoto (coord.), Petrarca. 700 anos, Instituto de Estudos
Italianos da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 2005, pp. 33-
-52.

— “O Canzoniere de Petrarca traduzido por Vasco Graça Moura”, in Rita Marnoto


(coord.), Petrarca. 700 anos, Instituto de Estudos Italianos da Faculdade de
Letras da Universidade de Coimbra, 2005, pp. 33-52.

— “Petrarca na voz portuguesa de Vasco Graça Moura”, in Giovanni Biagioni


(dir.), Estudos Italianos em Portugal, nº 1, 2006, pp. 103-111.

— “Vasco Graça Moura como traductor de Camões”, in Actas do CEL – Centre


d'Études Lusophones de Genève, Filologia e literatura, nº 4, 2016, p. 11-27.

DIOGO, Américo António Lindeza, “A prova da técnica (Vasco Graça Moura)”, in


No mercado das letras, Pontevedra, Ed. Caderno do Povo-Ensaio, 1998,
pp. 171- 214.

DUARTE, Luís Ricardo, “A morte de um grande ‘senhor’ da literatura e cultura


portuguesas”, in JL. Jornal de letras, Artes e Ideias, 30 Abril 2014, pp. 5-6.

DUARTE, Rita Taborda, “A virtude de ser virtuoso”, in Público, 2 Dezembro


2000, p. 11.

FARIA, Duarte “Recensão crítica a David Mourão-Ferreira ou a Mestria de Eros,


de Vasco Graça Moura”, in Revista Colóquio/Letras, nº 48, Março 1979,
p. 88.

FERREIRA, António Mega, “O editor memorável”, in JL. Jornal de Letras, Artes e


Ideias, 14 Maio 2014, p. 14.

442
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

FERREIRA, José Ribeiro, “Temas clássicos em Vasco Graça Moura”, in Boletim


de Estudos Clássicos, nº 28, Dezembro 1997, pp.107-117.

FERRO, Manuel, “The myth of Adamastor in postmodernity: between legend and


art, fiction and history”, in Antonella Lipscomb y José Manuel Losadas
(coord.), Los mitos antiguos, medievales y modernos en la literatura y las
artes contemporáneas, Bari, Levante Editori, 2013, pp.119-128.

FIALHO, Maria do Céu, e CARVALHO, Teresa (org.), A vista desarmada, o


tempo largo. Antologia. Poetas em homenagem a Vasco Graça Moura,
Lisboa, Ed. Quetzal, 2012.

FIGUEIREDO, João Ricardo, “Os Lusíadas e a vaidade da poesia”, in Revista


Colóquio-Letras, nº 155-156, Janeiro 2000, pp. 9-38.

— “Resposta à conferência de Luciana Stegagno Picchio”, in Rita Marnoto (org.),


Petrarca 700 anos, Instituto de Estudos Italianos da Faculdade de Letras da
Universidade de Coimbra, 2005, pp. 29-32.

FLOR, João Almeida, “Recensão crítica a ‘50 Sonetos de Shakespeare’, de Vasco


Graça Moura”, in Revista Colóquio/Letras, nº 48, Março de 1979, pp. 86-87.

FRANÇA, Elisabete, “Andrómaca ou a cativa senhora de si”, in Diário de


Notícias-6ª, 29 setembro 2006, p. 37.

FRANCO, Márcia Arruda, “Aves mudaves de M.C. Escher no poema de Vasco


Graça Moura”, in http://www.criticaecompanhia.com.br/marciarruda.tm
(consultado em 15 Abril 2014).

FURTADO, José Afonso, “Une lecture bien faite”, in JL. Jornal de Letras, Artes e
Ideias, 14 Maio 2014, p. 12.

GASTÃO, Ana Marques, “Poemas, melancolia e ironia”, in Diário de Notícias, 29


Setembro 2000, p. 37.

— “Abecedário Vasco Graça Moura”, in As palavras fracturadas, Lisboa,


Ed. Theya, 2013, pp. 168-177.

GOBERN, João, “Cara e coroa: perfil de Vasco Graça Moura”, in Revista Visão,
nº 146, 1996, pp. 32-36.

GONÇALVES, Rui-Mário, “Recensão crítica a Diálogo com (algumas) imagens,


de Vasco Graça Moura”, in Revista Colóquio-Letras, nº 175, Setembro 2010,
pp. 251-255.

443
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

GUERREIRO, António, “Sonetos familiares”, in Expresso, 28 Outubro 1995,


p. 25.

— “Literatura e prestigitação”, in Expresso/Actual, 4 Junho 2005, pp. 54-55.

— “Engenho e arte (Os Lusíadas para gente nova)”, in Expresso/Atual, 11 Agosto


2012, p. 32.

GUIMARÃES, Fernando, “Recensão crítica a A Variação dos Semestres deste ano;


365 versos seguido de a escola de frankfurt, de Vasco Graça Moura”, in
Revista Colóquio-Letras, nº 71, Janeiro 1983, pp. 94-95.

— “A figuração irónica na poesia de Vasco Graça Moura”, in A poesia


contemporânea portuguesa e o fim da modernidade, Lisboa, Ed. Caminho,
1989, pp. 115-118.

— “A poesia poderá ser com a pintura?”, in JL. Jornal de Letras, Artes e Ideias,
8 Fevereiro, 1994, p. 9.

— “António Osório, Vasco Graça Moura e Nuno Júdice: sentimento, ironia e vida
textual”, in A poesia contemporânea portuguesa, Famalicão, 2ª ed. revista e
aumentada, 2002, pp.116-119.

— “Nava, Ramos Rosa e Vasco Graça Moura. Elogio da diversidade”, in JL.


Jornal de Letras, Artes e Ideias, 25 Maio 2005, p. 22.
— “Entre a poesia e o romance”, in JL. Jornal de Letras, Artes e Ideias, 9 Março
2011, p. 15.

HANENBERG, Peter, “Navegações pela terra-firme da poesia sobre Vasco Graça


Moura”, in Revista Máthesis, nº 9, 2000, pp. 159-171.

HÖRSTER, Maria António, “Tradutores e tradução na lírica portuguesa dos


séculos XX e XXI: José Bento, Vasco Graça Moura e Armando Silva
Carvalho”, in Cadernos de literatura comparada, nº 34, Junho 2016, pp. 523-
-538.

JÚDICE, Nuno, “A poesia como totalidade”, in Revista Relâmpago, nº 17, Outubro


2005, pp. 204-205.

— “Vasco Graça Moura (1942-2014)”, in Revista Colóquio-Letras, nº 185, Janeiro


2014, p. 3.

LAGE, Rui “Nada se perde, tudo se transforma em literatura”, in Eduardo


Lourenço e Rui Vieira Nery, Colóquio Homenagem a Vasco Graça Moura,
Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2014, pp. 55-61.

444
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

— “Elegia para Vasco Graça Moura”, in Público, 2 Maio 2014, p. 49.

LEÃO, Isabel Ponce, “Entre poetas”, in As Artes entre as Letras, nº 75, 30 Maio
2012, p. 3.

LEÃO, Isabel Ponce e BARROSO, Eduardo Paz (org.), VGM - cinquenta anos de
vida literária de Vasco Graça Moura, Porto, Ed. Modo de Ler, 2012.

LEME, Carlos Câmara e BRAGA, Isabel, “Divina Comédia”, in Público, 16


Dezembro 2016, p. 26.

LEONARDO, Ana Cristina, “Das farpas e da farsa”, in Expresso, 9 Novembro


2002, p. 53.

— “Da arte do romace”, in Expresso/Atual, 10 Maio 2008, pp. 32-32.

LIMA, Isabel Pires, “Entre dois mundos: referências clássicas na poesia de Vasco
Graça Moura”, in José da Cruz Santos (org.), Modo mudando. Sete ensaios
sobre Vasco Graça Moura, Porto: Ed. Campo das Letras, 2000, pp. 85-100.

LISBOA, Eugénio, “Recensão crítica a Nó Cego, o Regresso de Vasco Graça


Moura”, in Revista Colóquio-Letras, nº 78, Março de 1984, pp. 92-93.

LOPES, Óscar, “Alguns nexos diacrónicos na poesia novecentista portuguesa”, in


Cifras do tempo, Lisboa, Ed. Caminho, 1990, pp. 77-96.

LOURENÇO, Eduardo, “Vasco Graça Moura - um ensaísmo em arquipélago”, in


José da Cruz Santos (org.) Modo mudando. Sete ensaios sobre Vasco Graça
Moura, Porto, Ed. Campo das Letras, 2000, pp. 29-42.

— “O mundo de Vasco. Entre a epopeia e a melancolia”, in JL. Jornal de Letras,


Artes e Ideias, 19 Fevereiro 2014, p. 13.

LOURENÇO, Eduardo e NERY Rui Vieira (coord.), Colóquio Homenagem a


Vasco Graça Moura, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2014, pp. 41-
-58.

LOURENÇO, Frederico, “Vasco Graça Moura”, in O lugar supraceleste. Crónicas,


Lisboa, Ed. Cotovia, 2015, pp. 260-261.

MACHADO, Álvaro Manuel, “Recensão crítica a O Mês de Dezembro e Outros


Poemas, de Vasco Graça Moura”, in Revista Colóquio-Letras, nº 46,
Novembro 1978, pp. 95-96.

— “Vasco Graça Moura”, in Dicionário de Literatura Portuguesa, Lisboa, Ed.


Presença, 1996, p. 327.

445
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

MÃE, Valter Hugo, “Convite à discordância”, in JL. Jornal de Letras, Artes e


Ideias, 14 Maio 2014, p. 15.

MARQUES, João Minhoto, “Camões e a poesia de Vasco Graça Moura”, in Maria


do Céu Fraga et alli (org.), Camões e os contemporâneos, Centro
Interuniversitário de Estudos Camonianos, Braga, Universidade dos Açores,
Universidade Católica Portuguesa, 2012, pp. 687-696.

MARNOTO, Rita, “Pelas florestas da noite. Vasco Graça Moura, tradutor e poeta”,
in Rassegna Iberistica, nº 98, 2013, pp. 91-102.

— “Vasco Graça Moura: a grandeza das letras”, in Revista Colóquio-Letras,


nº 185, Janeiro 2014, pp. 143-145.

MARTINHO, Fernando J. B. “Vasco Graça Moura - sobre um autor crítico de um


autor assumidamente vário”, in Brotéria, nº 180, Fevereiro 2015, p. 163-172.

MARTINS, Guilherme d’Oliveira, “Vasco de Graça Moura e a Europa”, in JL.


Jornal de Letras, Artes e Ideias, 19 Fevereiro 2014, p. 26.

— “O lugar da cultura”, in JL. Jornal de Letras, Artes e Ideias, 27 Maio 2014,


p. 25.

— “Que se lhe dobre a memória”, in JL. Jornal de Letras, Artes e Ideias, 4


Dezembro 2014, p. 27.
MARTINS, José Cândido, “Reescrita mitológica e intertexto clássico: Píramo e
Tisbe na poesia de Vasco de Graça Moura”, in VI Congresso Nacional
Associação Portuguesa de Literatura Comparada / X Colóquio de Outono
Comemorativo das Vanguardas-Universidade do Minho 2009/10, in
http://ceh.ilch.uminho.pt/publicações/pub_jose_martins.pdf (consultado em 3
Setembro 2013).

— “Recensão crítica a Os Lusíadas para gente nova, de Vasco Graça Moura”, in


Revista Colóquio-Letras, nº 182, Janeiro 2013, pp. 244-247.

— “Humor e reescrita paródica da mitologia na poética de Vasco Graça Moura”, in


Paula Morão e Cristina Pimentel (coord.), Matrizes Clássicas da Literatura
Portuguesa. Uma (re)visão da literatura portuguesa das origens à
contemporaneidade, Lisboa, ed. Campo da Comunicação, 2015, pp. 519-532.

— “Vasco Graça Moura: 50 anos de vida literária. Maturidade de uma poética da


melancolia”, in Revista Colóquio-Letras, nº 185, Janeiro 2014, pp. 155-162.

MARTINS, Manuel Frias, “O conhecimento do possível”, in JL. Jornal de Letras,


Artes e Ideias, 1 Setembro 1981.

446
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

— “Instrumentos para a melancolia”, in Sombras e transparências na literatura,


Lisboa, Nacional-Casa da Moeda, 1983, pp. 83-90.
— “Discurso da cultura e campo estético”, in 10 anos de poesia em Portugal:
1974-1984. Leitura de uma década, Lisboa, Ed. Caminho, 1986, pp. 97-112.

MATHIAS, Marcello Duarte, “Recensão crítica a A identidade cultural da Europa


de Vasco Graça Moura”, in Revista Colóquio-Letras, nº 187, Setembro 2014,
pp. 219-222.

MELLID-FRANCO, “Vasco Graça Moura. O pequeno-almoço do sargento


Beauchamp”, in Expresso/Actual, 15 agosto 2008, p. 28.

MEXIA, Pedro, “A maldição de Midas”, in Diário de Notícias- DNA, 20 Outubro


2001, pp. 48-49.

— “Tradição, técnica, talento”, in Diário de Notícias, 1 Abril 2005, p. 42.

— “Memória e critério de cultura”, in Diário de Notícias, 21 Outubro 2005, p. 42.

— “Versos sem regresso”, in Diário de Notícias, 5 Dezembro 2005, p. 42.

— “O gesto oficinal”, in Diário de Notícias, 29 Setembro 2006, pp. 42-43.

— “Crónica da burguesia”, in Público-Ipsilon, 23 Maio 2008, p. 53.


— “História trágico-marítima. Naufrágio de Sepúlveda”, in Público-Íplison, 10
Julho 2009, p. 34.
— “Pentimento. O caderno da casa das Nuvens”, in Público-Íplison, 29 Janeiro,
2010, p. 32.

— “A felicidade da incerteza” (sobre Partida de Sofonisba às seis e doze da


manhã), in Expresso/Atual, 21 Julho 2012, p.14.

— “VGM”, in Expresso/Atual, 3 Maio 2014, p. 3.

MORAIS, Ana Paiva, “Os testamentos de François Villon ou a arte da despedida”,


in Revista Colóquio-Letras, nº 153-154, Julho 1999, pp. 295-298.

MORÃO, Paula, “Vasco Graça Moura. A lucidez obscura das figuras”, in Viagens
na terra das palavras, Lisboa, Ed. Cosmos, 1993, pp. 91-93.

MOUTINHO, José Viale, “Um testamento escarninho”, in Diário de Notícias, 28


Setembro 2001, p. 30.

447
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

NERY, Isabel, “Vasco Graça Moura (1942-2014). O Poeta”, in Revista Visão, 1


Maio 2014, pp. 24-25.

NERY, Rui Vieira, (coord.), Colóquio Homenagem a Vasco Graça Moura, Lisboa,
Fundação Calouste Gulbenkian, 2014.

— “A divina proporção”, in JL. Jornal de Letras, Artes e Ideias, 14 Maio 2014,


p. 11.

OLIVEIRA, Fernando Matos, “Vasco Graça Moura: Garrett numa cópia perdida e
noutra achada” (crítica a Garrett, numa cópia perdida do Frei Luís de Sousa
(31.12.1843), de Vasco Graça Moura), in Revista Colóquio-Letras, nº 153-
-154, Julho 1999, pp. 291-295.

— “Poesia e museologia em Vasco Graça Moura”, in Carlito Azevedo e Osvaldo


Manuel Silvestre (ed.), Inimigo Rumor. Revista de poesia-Brasil e Portugal,
nº 12, 2002, pp.14-19.

— “A viagem de Verão de Vasco Graça Moura”, in Osvaldo Manuel Silvestre e


Pedro Serra (org.), Século de Ouro. Antologia crítica da poesia portuguesa do
século XX, Ed. Angelus Novus e Ed. Cotovia, Braga, Coimbra, Lisboa, 2002,
pp. 453-461.

PADRÃO, Maria da Glória, “Recensão crítica a Naufrágio de Sepúlveda, de Vasco


Graça Moura”, in Revista Colóquio-Letras, nº 104-105, Julho 1988, p.166-
-167.

PEDROSA, Inês, “O Vasco”, in Jornal i, 2 Maio 2014, p. 25.

PEREIRA Gaspar Martins, “Apresentação”, in Vasco Graça Moura, Visto da


margem sul do rio. O Porto, Porto, Ed. Modo de Ler, 2012, pp. 4-15.

PEREIRA, José Carlos Seabra, “Vasco Graça Moura, mediador de Camões”, in As


Artes entre as Letras, nº 787, 20 Novembro 2012, pp.10-12.

PEREIRA, José Pacheco, “Vasco Graça Moura: uma perpectiva política”, in Isabel
Ponce de Leão e Eduardo Paz Barroso (org.), Vgm. Cinquenta anos de vida
literária, Porto, Ed. Modo de Ler, 2012, pp. 112-119.

— “O Vasco perto do fim”, in Público, 3 Maio 2014, p. 46.

PEREIRA, Maria Helena da Rocha, “Recensão crítica a Luís de Camões: Alguns


Desafios, de Vasco Graça Moura”, in Revista Colóquio-Letras, nº 57,
Setembro 1980, p. 90-92.

448
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

PIMENTEL, Diana, “No ‘labirinto’, a liberdade: estudo sobre a relação entre


ekphrasis e hipertexto em Vasco Graça Moura”, in Revista de Estudos
Literários, nº 2, Centro de Literatura Portuguesa-Faculdade de Letras da
Universidade de Coimbra, 2012, pp. 379-408.

PICCHIO, Luciana Stegagno, “Vasco Graça Moura tradutor de Petrarca”, in Rita


Marnoto (org.), Petrarca 700 anos, Instituto de Estudos Italianos da
Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 2005, pp. 13-28.

PIRES, Maria Lucília Gonçalves, “Recensão crítica a Várias vozes, de Vasco Graça
Moura”, in Revista Colóquio-Letras, nº107, Janeiro 1989, pp. 99-100.

PITTA, Eduardo, “Petrarca e As rimas… Tradução de Vasco Graça Moura”, in


Revista Ler, nº 62, 2004, pp. 86-89.

— “A Terrível Simetria”(sobre Poesia 2001/2005), in Público-Mil Folhas, 13


Outubro 2006, p.10.

— “Tempo, criação verbal”, in Público-Ípsilon, 18 Maio 2007, p. 28.

— “Histórias com gente dentro”, in Público-Ípsilon, 6 Fevereiro 2009, p.33.

QUEIRÓS, Luís Miguel, “O regresso de nó cego”, in Público, 16 dezembro 2000,


p. 9.

— “Graça Moura reescreve Os Lusíadas a meias com Camões”, in Público, 21


Maio 2012, pp.126-27.

— “Uma travessia lírica com paragens em alguns apeadeiros”, in Eduardo


Lourenço e Rui Vieira Nery (org.), Colóquio Homenagem a Vasco Graça
Moura, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2014, pp. 43-53.

— “Vasco Graça Moura - um intelectual com espírito renascentista”, in Público, 28


Abril 2014, pp. 2-3.

— “Nos poemas de ‘vgm’ moviam-se figuras e a essas figuram aconteciam coisas”,


in Público, 28 Abril 2014, p. 4.

RANGEL, Paulo, “VGM: o tradutor e o intérprete”, in Público, 29 Abril 2014,


p. 42.

RAMOS, Emanuel Paulo, “Recensão crítica a Os penhascos e a serpente e outros


ensaios camonianos, de Vasco Graça Moura”, in Revista Colóquio-Letras,
nº 100, Novembro de 1987, pp. 165-168.

449
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

REAL, Miguel, “Um espírito camiliano”, in JL. Jornal de letras, Artes e Ideias, 16
Fevereiro 2005, p. 19.

— “Realismo e esteticismo”, in JL. Jornal de Letras, Artes e Ideias, 1 Julho 2008,


pp. 24-25.
— “Uma escrita camiliana”, in JL. Jornal de Letras, Artes e Ideias, 14 Maio 2014,
p. 9.
REBELO, Luís de Sousa, “Recensão crítica a Camões e a Divina proporção, de
Vasco Graça Moura”, in Revista Colóquio-Letras, nº 92, Julho 1986, pp. 107-
-109.

RIBEIRO, Ana Cristina Mendes, Rostos que comunicam: a presença da pintura na


poesia de Vasco Graça Moura, Braga, Universidade do Minho, 2003.

RIBEIRO, António Pinto, Abrigos: Condições sobre as cidades e energia da


cultura, 2004, Lisboa, Ed. Cotovia, 2004, pp. 123-151.

RIBEIRO, Eunice Maria da Silva, “Sem título. Retratos e desfigurações: de


Henrique Pousão a Vasco Graça Moura”, in Carlos Mendes de Sousa e Rita
Patrício (org.), Largo mundo alumiado. Estudos em homenagem a Vítor
Aguiar e Silva, Braga, Centro de Estudos Humanísticos, Universidade do
Minho, 2004, pp. 275-288.

— “A hipótese da realidade: sobre o Laocoonte”, in Revista Relâmpago, nº 23,


2008, pp. 145-162.

— “Sob o visível: empernamentos e linhas de fuga na poesia de VGM”, in Isabel


Ponce de Leão e Eduardo Paz Barroso (org.), Vgm. Cinquenta anos de vida
literária, Porto, Ed. Modo de Ler, 2012, pp. 41-58.

— “Retrato do poeta como artista”, in Eduardo Lourenço e Rui Vieira Nery


(coord.), Colóquio Homenagem a Vasco Graça Moura, Lisboa, Fundação
Calouste Gulbenkian, 2014, pp. 41-58.

ROCHA, Rui, “Desafio ao leitor: Retrato de Isabel e outras tentativas”, in


Expresso/Revista, 21 Janeiro 1995, p. 21.

SANTOS, Gilda, “Vasco Graça Moura e Jorge de Sena: um diálogo possível”, in


Veredas, nº 1, Porto, 1998, pp. 294-298.

SANTOS, Mário, “Petrarca segundo Graça Moura”, in Público, 1 Novembro 2003,


pp. 12-13.

SANTOS, José da Cruz (org.), Modo mudando: sete ensaios sobre a obra de Vasco
Graça Moura, Porto, Ed. Campo da Letras, 2000.

450
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

SARMENTO, Ângela, “Vasco Graça Moura: O retrato de Francisco Matroco e


outros poemas”, in Cadernos de Serrúbia, nº 3, Dezembro 1998, Fundação
Eugénio de Andrade, pp. 31-32.

SEIXO, Maria Alzira, “Recensão crítica a Quatro últimas canções, de Vasco Graça
Moura”, in Revista Colóquio/Letras, nº 100, Novembro de 1987, pp. 159-161.

— “Melancolia e maneirismo. O concerto campestre de Vasco Graça Moura”, in


Outros erros, Lisboa, Ed. Asa, 2001, pp. 260-263.

— “A descoincidência fulgurante”, in JL. Jornal de Letras, Artes e Ideias, 14


Março 2007, pp. 18-19.
— “Vasco, Luísa e Gonçalo. Grandes narradores de hoje”, in JL. Jornal de Letras,
Artes e Ideias, 23 Fevereiro 2011, pp. 14-16.

SENA-LINO, Pedro, “Uma investigação sanguínea”, in Público, 8 Fevererio 2006,


p. 8.

SILVA, Rodrigues da,“ Vasco Graça Moura. Ele não é tão como isso”, in JL.
Jornal de Letras, Artes e Ideias, 7 Junho 1995, pp. 14-17.

SILVA, Vítor Manuel de Aguiar, “A outorga do Prémio Morgado de Mateus a


Vasco Graça Moura”, in Brotéria, nº 180, Fevereiro 2015, pp. 173-179.

SOARES, Miguel Luso, Ainda Vasco Graça Moura e a Divina Comédia de Dante
Alighieri: uma décima observação, ed. autor,1996.

— Acerca da ilustração constante da capa do livro Os testamentos de François


Villon e algumas baladas mais, ed. autor, 2004.

SOUSA, João Rui de, “Recensão crítica a A Sombra das Figuras, de Vasco Graça
Moura”, in Revista Colóquio-Letras, nº 93, Setembro de 1986, pp. 136-138.

TAVARES, Daniel, “Do retrato e da ausência: Vasco Graça Moura & Noé
Sendas”, in Diacrítica, vol. 28, Braga, Centro de Estudos Humanísticos da
Universidade do Minho, 2014, pp. 275-288.

TAVARES, Gonçalo M., “Vasco Graça Moura, poesia”, in Revista Visão, 15 Maio
2014, p. 8.

TEIXEIRA, Sandra, Le jeu de la référence dans la poésie de Vasco Graça Moura,


Paris, Ed. Américaines, Université Paris III, Université Sorbonne Nouvelle-
-Paris III, 2003.

451
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

—“L’excès référentiel et excès de mémoire dans trois poèmes de V. G. Moura”, in


Débordements: études sur l'excès, nº 13, Octobre 2006, pp. 91-103.
— “Sá de Miranda par Vasco Graça Moura”, in Colloque pluridisciplinaire:
Nouvelles perspectives de la recherche française sur la culture portugaise,
Maison des Sciences de l´Homme de Clermont-Ferrand, 2007, pp. 136-143.

— “Le paysage fendu chez Vasco Graça Moura”, in Jacqueline Penjon (dir.), Voies
du paysage. Représentations du monde lusophone, Cahier nº 14, Centre de
Recherche sur les Pays Lusophone-CREPAL, Press Sorbonne Nouvelle,
Paris, 2007, pp. 65-77.

— “Poésie et photographie ou l’empreinte du regard poétique chez Vasco Graça


Moura, Ana Luísa Amaral et Al Berto”, in Cadernos de Literatura
Comparada. Técnicas do olhar, nº 21, Novembro de 2009, pp. 146-167.

— “Vasco Graça Moura, um poeta que tende para a prosa e a recusa…”, in Revista
Colóquio-Letras, nº 173, Janeiro-Abril, 2010, pp. 76-83.

— “A oficina da escrita na poesia de Vasco Graça Moura: um manancial artesanal


e reflexivo nas dobras do mundo”, in Isabel Ponce Leão e Eduardo Paz
Barroso (org.) Vgm. Cinquenta anos de vida literária, Porto, Ed. Modo de
Ler, 2012, p. 120-140.

MIGUEL, Telma, “Poeta com muito mundo”, in Sol/Tabu, 2 Maio 2014, pp. 34-
-38.

VASCONCELOS, José Carlos de, “Vasco Graça Moura. Meio século de escritas”,
in JL. Jornal de Letras, Artes e Ideias, 27 Julho 2012, p. 10-11.

— “VGM, único”, in JL. Jornal de Letras, Artes e Ideias, 14 Maio 2014, p. 3.

VEIGA, Miguel, “O génio da minha geração”, in As Artes entre As Letras, nº 75,


30 Maio 2012, p. 2.

— VGM. O génio da minha geração, Porto, Ed. Modo de Ler, 2012.

VENTURA, José Manuel, A tradição sempre renovada em sombras de aquiles e


pentesileia de Vasco Graça Moura”, in Virgínia Soares Pereira e Ana Lúcia
Curado (org.), A Antiguidade Clássica e nós. Herança e identidade cultural,
Braga, Centro de Estudos Humanísticos, Universidade do Minho, 2006,
pp. 505-516.

— “Cartografias do regresso: o intertexto camoniano em Vasco Graça Moura, in


Maria do Céu Fraga et alli (org.), Camões e os contemporâneos, braga Centro
Interuniversitário de Estudos Camonianos, Braga, Universidade dos Açores,
Universidade Católica Portuguesa, 2012, pp. 763-773.

452
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

— “Vasco Graça Moura e Fernando Pessoa: alguns desafios”, in Brotéria, nº 179,


Outubro 2014, pp. 269-283.

— “Efabulações mitológicas ovidianas na poesia de Vasco Graça Moura”, in Paula


Morão e Cristina Pimentel (coord.), Matrizes Clássicas da Literatura
Portuguesa. Uma (re)visão da literatura portuguesa das origens à
contemporaneidade, Lisboa, ed. Campo da Comunicação, 2015, pp. 507-518.

— VOUGA, Vera Lúcia, “Recensão crítica a A furiosa paixão pelo tangível, de


Vasco Graça Moura e Ronda dos meninos expostos. Auto breve de Natal, de
Vasco Graça Moura”, in Revista Colóquio-Letras, nº 108, Março 1989,
pp. 101-104.

3. Obras de Luís de Camões

CAMÕES, Luís de, Lírica, ed. crítica por José Maria Rodrigues e Afonso Lopes
Vieira, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1932

— Lusíadas, comentadas por Manuel de Faria e Sousa, com introdução de Jorge


de Sena e prefácio do Professor Rebelo Gonçalves, Lisboa, Imprensa
Nacional - Casa da Moeda, 1972.

— Rimas Várias, comentadas por Manuel de Faria e Sousa, com nota introdutória
do prof. F. Rebelo Gonçalves, prefácio de Jorge de Sena, Lisboa, Imprensa
Nacional - Casa da Moeda, 1972.

— Obras Completas de Luís de Camões, vol. I - Redondilhas e sonetos, com pref. e


notas do prof. Hernâni Cidade, Lisboa, Ed. Sá da Costa, 41985.

— Obras Completas de Luís de Camões, vol. II - Géneros líricos maiores, com


pref. e notas do prof. Hernâni Cidade, Lisboa, Ed. Sá da Costa, 41985.

— Obras Completas, vol. III - Autos e cartas, com pref. e notas do prof. Hernâni
Cidade, Lisboa, Ed. Sá da Costa, 41985.

— Os Lusíadas, Leitura, prefácio e notas de Álvaro Júlio da Costa Pimpão,


apresentação de Aníbal Pinto Castro, Lisboa, Instituto de Cultura e Língua
Portuguesa, 21989.

— Rimas, texto estabelecido e prefaciado por Álvaro J. da Costa Pimpão, com


apresentação de Aníbal Pinto Castro, Coimbra, Livraria Almedina, 1994.

— Poesia lírica, antologia organizada por Fernando Pinto do Amaral, Lisboa,


Ed. Quixote, 2003.

453
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

4. Outros autores citados

ALEGRE, Manuel, Vinte poemas para Camões, Lisboa, Ed. D. Quixote, 1992.

ANDRADE, Eugénio de, Poesia, Porto, Fundação Eugénio de Andrade, 22005.

ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner, Geografia, Lisboa, Ed. Salamandra, 1967.

— Dual, Lisboa, Ed. Caminho, 2004.

ANTUNES, António Lobo, As naus, Lisboa, Ed. D. Quixote, 42000.

BEIRÃO, Mário, Poesias completas, edição organizada por António Cândido


Franco e Luís Amaro, e prefaciada por José Carlos Seabra Pereira, Lisboa,
Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1996.

BORGES, Jorge Luis, Obras completas, vol. III -1975/1985, Lisboa, Ed. Teorema,
1998.

CAMPOAMOR, Ramón de, in Obras poeticas completas, Madrid, Ed. M. Aguilar,


6
1951.

CASTRO, João de, Roteiros, 3 vol., pref. e anot. por A. Fontoura da Costa, Lisboa,
Ed. da Agência Geral das Colónias Comemorativa do Duplo Centenário da
Fundação e Restauração de Portugal, 21939-1940.

CICERO, Marco Tulio, Ad familiares, Paris, Ed. Belles Lettres, 1976.

CLÁUDIO, Mário, Os naufrágios de Camões, Lisboa, Ed. D. Quixote, 2016.

COUTO, Diogo do, A década 8ª da Ásia, 2 vols., ed. de Maria Augusta Lima Cruz,
Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos
Portugueses e Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1993-1994.

FARIA, Manuel Severim de, Discursos vários políticos, introdução, actualização e


notas de Maria Leonor S. A. Vieira, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da
Moeda, 1999.

FERREIRA, António, Poemas lusitanos, ed. crítica, introd. e comentário de T. F.


Earle, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 22008.

FERREIRA, Vergílio, Espaço do invisível, V, Venda Nova, Ed. Bertrand, 1998.

FIGUEIREDO, Nuno de, Dias verticais, Porto, Ed. Afrontamento -Ed. Modo de
Ler, 2017.

454
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

FLAUBERT, Gustave, Madame Bovary, Lisboa, Ed. Relógio D’Água, 2011.

GARRETT, Almeida, Camões, apresentação, notas e sugestões para análise


literária de Teresa Sousa de Almeida, Lisboa, Ed. Comunicação, 1986.

GEDEÃO, António, Poesias completas, Lisboa, Ed. Sá da Costa, 1964.

GOETHE, J. W., Poemas, antologia, versão portuguesa, notas e comentários de


Paulo Quintela, Coimbra, Ed. Centelha, 31979.

HÉLDER, Herberto, A colher na boca, Lisboa, Ed. Ática, 1967.

HÖLDERLIN, Poemas, prefácio, selecção e tradução de Paulo Quintela, Lisboa,


Ed. Relógio d’Agua, s./d.

LOBO, Francisco Rodrigues, Poesias, selecção, prefácio e notas de Afonso Lopes


Vieira, Lisboa, Livraria Sá da Costa, 31968.

— Corte na aldeia, introdução, notas e fixação do texto de José Adriano de


Carvalho Lisboa, Ed. Presença, 1991.

MELO, D. Francisco Manuel de, Le dialogue Hospital das Letras de Francisco


Manuel de Melo, texte établi d'après l’édition princeps et les manuscrits,
variantes et notes de Jean Colomès, Paris, Fundação Calouste Gulbenkian,
1970.

— Cartas familiares, prefácio e notas de Maria da Conceição Morais Sarmento,


Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1981.

MIRANDA, Sá de, Poesias, Ed. de Carolina Michaelis de Vasconcelos, Lisboa,


Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1989.

MONTEIRO, Adolfo Casais, Europa, Maia, Ed. Nova Renascença, 1991.

NEMÉSIO, Vitorino, Obras Completas-vol. II. Poesia, Lisboa, Imprensa Nacional-


-Casa da Moeda, 1989.

NOBRE, António, Poesia completa 1867-900, Lisboa, Ed. D. Quixote, 2001.

O’NEILL, Alexandre, Poesia completa, Lisboa, Ed. Assírio & Alvim, 2001.

PASCOAES, Teixeira de, Os poetas lusíadas, Lisboa, Ed. Assírio & Alvim, 1987.

PEDRO, António, Antologia poética, Lisboa, Ed. Angelus Novus, 1998.

455
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

PESSANHA, Camilo, Clepsydra, ed. do texto de Barbara Spaggiari, Lisboa,


Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2014.

PESSOA, Fernando, Poesias, Lisboa, Ed. Ática, 41952.

— Mensagem, Lisboa, Ed. Ática-Babel, 2010.

PINA, Manuel António, Aquilo que os olhos vêem ou o Adamastor, ilustr. de José
M. Ribeiro e Pedro Aguilar, Coimbra, Angelus Novus, 2102.

PIÑON, Nélida, “A desdita da lira”, in Luís de Camões, Os Lusíadas, canto X,


comentários de José Hermano saraiva e ilustrações de Pedro Proença, Lisboa,
Ed. Expresso, 2003.

PIRES, José Cardoso, Lisboa. Livro de bordo, vozes, olhares, memorações, Lisboa,
Ed. D. Quixote, 1997.

PLATÃO, O Banquete, tradução, introdução e notas de Maria Teresa Schiappa de


Azevedo, Lisboa, Ed. 70, 1991.

QUEIRÓS, Eça de, A cidade e as serras, Lisboa, Ed. Livros do Brasil, s/d.

RIBEIRO, Bernardim, Obras, org., introd. e notas de Hélder Macedo e Maurício


Matos, Barcarena, Ed. Presença, 2010.

SENA, Jorge de, Poesia II, Lisboa, Ed. Moraes, 1978.

TORGA, Miguel, Antologia poética, Coimbra, ed. autor, 1981.

VERDE, Cesário, Cânticos do realismo: o livro de Cesário Verde, introdução e


nota bibliográfica de Helena Carvalhão Buescu, Lisboa, Imprensa Nacional-
-Casa da Moeda, 2015.

VIRGILE, Eneide, livres V-VIII, texte établi et traduit par Jacques Perret, Paris,
Ed. Les Belles Lettres, 1978.

ZURARA, Gomes Eanes de, Crónica de Guiné, introd., notas, novas considerações
e glossário de José de Bragança, Porto, Ed. Civilização, 1994.

5. Estudos de teoria, história e crítica literárias

AAVV, Actas da I Reunião Internacional de Camonistas, Lisboa, Comissão


Executiva do IV Centenário da Publicação de Os Lusíadas, 1973.

456
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

AAVV, Épica. Épicas. Épica Camoniana, Constância-Lisboa, Centro Internacional


de Estudos Camonianos da Associação Casa-Memória de Camões em
Constância-Edições Cosmos, 1997.

AAVV, Revista Oceanos, nº 23, Agora, peregrino, vago e errante, Julho-


-Setembro, 1995.

ABAD, José Manuel Cuesta e HEFFERNAN, Julián Jiménez (ed.), Teorías


literárias del siglo XX, Madrid, Ed. Akal, 2005.

ABASTADO, Claude, “Situation de la parodie”, in Dérives des signes, Paris, Ed.


Publidix, 1988, pp. 149-168.

ADORNO, Theodor W., Poesia lírica e sociedade, Coimbra, Ed. Angelus Novus,
2003.

ALBUQUERQUE, Martim de,“Primeiro ensaio sobre a história da ‘ideia de


Europa’ no pensamento português”, in Estudos de Cultura portuguesa, vol. I,
Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1984, pp. 249-350.

— A Expressão do Poder em Luís de Camões, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da


Moeda, 1988.

— A ideia da Europa, Lisboa, Ed. Verbo, 2014.

ALMEIDA, Aníbal, O rosto de Camões, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da


Moeda, 1996.

ALMEIDA, Bernardo Pinto de, Imagem da fotografia, Lisboa, Ed. Assírio &
Alvim, 1995.

— O plano de imagem: espaço da representação e lugar do espectador, Lisboa,


Ed. Assírio & Alvim, 1996.

— Henrique Pousão, Lisboa, Ed. Assírio e Alvim, 1999.

ALMEIDA, Isabel, “Camões e a poesia de arte menor”, in Lírica Camoniana.


Estudos diversos, Constância-Lisboa, Ed. Cosmos, 1996, pp. 29-45.

— Poesia maneirista. apresentação, crítica, selecção, notas e sugestões para a


análise literária, Lisboa, Ed. Comunicação, 1998.

— “Maneirismo”, in Biblos. Enciclopédia Verbo das Literaturas de Língua


Portuguesa, vol. 3, Lisboa S. Paulo, Ed. Verbo, 1999, cols. 415-426.

457
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

— “Se nenhum amor pode ser perdido. Sophia e Camões”, in Maria Andresen
Sousa Tavares (org.), Sophia de Mello Breyner Andresen. Actas do Colóquio
Internacional, Porto, Porto Editora, 2013, pp. 252-262.
ALMEIDA, Isabel et alii, Os Lusíadas de Luís de Camões. Comentados por D.
Marcos de S. Lourenço, Coimbra, Centro Interuniversitário de Estudos
Camonianos, 2014.

ALVES, Hélio J. S., “A dinâmica do herói na viagem de Os Lusíadas”, in Ana


Margarida Falcão et alii (org.). Literatura de viagem. Narrativa, história e
mito, Lisboa, Edições Cosmos, 1997, pp. 299-307.

— Camões, Corte-Real e o sistema da epopeia quinhentista, Coimbra, Centro


Interuniversitário de Estudos Camonianos, 2001.

— “O som e a fúria d’Os Lusíadas”, in Luiz Vaz de Camões revisitado. Santa


Barbara Portuguese Studies, vol. VII (2003), Coimbra-Santa Barbara, Centro
Interuniversitário de Estudos Camonianos-Center for Portuguese Studies at
the University of California, 2006, pp. 49-65.

— “A propósito do soneto O dia em que eu nasci e do seu autor”, in Isabel


Almeida, Maria Isabel Rocheta e Teresa Amado (orgs.), Estudos. Para Maria
Idalina Rodrigues, Maria Lucília Pires, Maria Vitalina Leal de Matos, Lisboa,
Departamento de Literaturas Românicas da Faculdade de Letras de Lisboa,
2007, pp. 263-295).

— “Camões e o lirismo confessional na epopeia quinhentista”, in Românica, nº 16,


Lisboa, Ed. Cosmos, 2007, pp. 59-73.

— “Épica na literatura portuguesa no século XVI”, in Vítor Aguiar e Silva (coord.),


Dicionário de Luís de Camões, Lisboa, Editorial Caminho, 2011, pp. 345-
-353.

— “A máquina do mundo n’Os Lusíadas”, in Vítor Aguiar e Silva (coord.),


Dicionário de Luís de Camões, Lisboa, Editorial Caminho, 2011, pp. 555-
-559.

— “As memórias gloriosas e o inglório esquecimento: na(rra)ção e canonização


nos Lusíadas de Camões e no Sepúlveda de Corte-Real”, in http:// old. www.
cidehus.uevora.pt/textos/artigos/memorias_gloriosas.pdf (consultado em 20
Dezembro 2015).

AMARAL, Fernando Pinto do, “O regresso ao sentido”, in Um século de poesia


(1888-1988) - A Phala, Ed. especial, Lisboa, Assírio e Alvim, 1988, pp. 159-
-167.

458
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

— O Mosaico Fluido. Modernidade e Pós-Modernidade na poesia portuguesa


mais recente, Lisboa, Ed. Assírio & Alvim, 1991.

— “Os sentidos sentidos. Uma perspectiva não excessivamente melancólica sobre


os actuais estudos literários”, in Na Órbita de Saturno. Cinco ensaios e uma
paráfrase, Lisboa, Ed. Hiena, 1992, pp. 17-79.

— “Na órbita de Saturno. Um ponto de vista sobre a melancolia e as suas relações


com alguma literatura”, in Na órbita de Saturno. Cinco ensaios e uma
paráfrase, Lisboa, Ed. Hiena, 1992, pp. 117-148.

— “A tradição já não é o que era”, in Românica-Citação, Lisboa, Ed. Cosmos,


1996, pp. 22-31.

— “Anos 70 e 80. Poesia”, in Óscar Lopes et alii (direcção), História da Literatura


Portuguesa - vol. VII, Lisboa, Ed. Alfa, 2002, p. 417-441.

— “A poesia obscura da poesia”, in Relâmpago. Nova poesia portuguesa, nº 12,


Lisboa, Fundação Luís Miguel Nava, 2003, pp. 19-27.

— “Narrativa”, in Fernando J. B. Martinho (coord.), Literatura portuguesa do


século XX, Lisboa, Ed. Instituto Camões, 2004, pp.55-94.

— “Imagens em movimento”, in Relâmpago. Poesia e artes visuais, nº 23, 2008,


pp. 66-68.

ANASTÁCIO, Vanda, “A Infanta D. Maria”, in Vítor Aguiar e Silva (coord.),


Dicionário de Luís de Camões, Lisboa, Ed. Caminho, 2011, pp. 568-572.

ANDRÉ, Carlos Ascenso, “A dimensão visual de Os Lusíadas”, in IV Reunião


Internacional de Camonistas, Ponta Delgada, Universidade dos Açores, 1984,
pp. 61-70.

— Caminhos do amor em Roma, Lisboa, Ed. Cotovia, 2006.

— O poeta no miradouro do mundo. Leituras camonianas. Coimbra, Centro


Interuniversitário de Estudos Camonianos, 2007.

— “Super flumina: as redondilhas camonianas e outras paráfrases quinhentistas”, in


Seabra Pereira e Manuel Ferro (coord.), Actas de VI Reunião de Camonistas,
Coimbra, Imprensa da Universidade, 2012, pp. 471-485.

ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner, “Luís de Camões-ensombramentos e


descobrimentos”, in Cadernos de Literatura, nº 5, Coimbra, Centro de
Literatura Portuguesa da Universidade 1980, pp. 22-29.

459
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

ARISTÓTELES, Poética, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2004.

ARNAUT, Ana Paula, Post-Modernismo no romance português contemporâneo-


-fios de Ariadne, máscaras de Proteu, Coimbra, Livraria Almedina, 2002.

ARRIVÉ, Michel, Les langages de Jarry - éssai de sémiotique littéraire, Paris, Ed.
Klincksieck, 1972.

ASENSIO, Eugénio e MARTINS, José V. de Pina, Luís de Camões. El Humanismo


en su Obra Poética. Los Lusíadas y las Rimas en la Poesía Española (1580-
-1640), Paris, Centro Cultural Português, 1982.

AZEVEDO, Manuela de (coord.), Os Mares de Camões. VI Forum Camoniano,


Lisboa, Colibri/Centro Internacional de Estudos Camonianos da Associação
da Casa-Memória de Camões em Constância, 2000.

AZEVEDO, Maria Antonieta Soares de, “Uma nova e preciosa espécie


iconográfica quinhentista de Camões”, in separata da Revista Panorama,
nº 42-43, Lisboa, 1972, pp. 75-92.

AZEVEDO, Maria Teresa Schiappa de, “Retórica filosófica feminina em Platão:


Aspásia e Diotima”, in Antonio Lopez Eire et alii (coord.), Retórica, política
e ideologia. Actas del II Congresso Internacional de Salamanca, Ed.
Asociación Española de Estudios sobre Lengua Pensamiento y Cultura
Clásica, Salamanca, 1998, pp. 224-249.

— “Fernando Pessoa e o nome das flores: o girassol e o malmequer,” in Rostos de


Pessoa, Coimbra, Ed. Almedina, 2000, pp. 53-80.

BACHELARD, Gaston, A dialética da duração, São Paulo, Ed. Ática, 1988.

— Poética do Espaço, S. Paulo, Ed. Martins Fontes, 1996.

BAKHTINE, Mikhail, Esthétique et théorie du roman, Paris, Ed. Gallimard, 1987.

BARRENTO, João, A palavra transversal. Literatura e ideias no século XX, Ed.


Cotovia, 1996.

— Umbrais.O Pequeno livro de prefácios, Lisboa, Ed. Cotovia, 2000.

— Espiral vertiginosa. Ensaios sobre a cultura contemporânea, Lisboa, Ed.


Cotovia, 2001.

— “Não és mais do que as outras, mas és nossa … - a língua portuguesa na poesia


portuguesa de hoje”, in Agulha. Revista de cultura # 30-Fortaleza, São Paulo,
Novembro 2002, (http// www. jornaldepoesia.jor.br/ag30barrento.htm - con-
sultado em 12 Março 2014).
460
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

— “A terceira voz: quem fala no texto traduzido?”, in Poço de Babel. Para uma
poética da tradução literária, Lisboa, Ed. Relógio d’Água, 2002, pp. 106-
-122.

BARTHES, Roland, Crítica e verdade, Lisboa, Edições 70, 1987.

— A câmara escura, Lisboa, Ed. Lisboa, 1998.

BRAGA, Teófilo de, Camões: época e vida, Porto, Ed. Chardron, 1907.

BASSNETT, Susan, Estudos de Tradução, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian,


2003.

BELCHIOR, Maria de Lourdes, Os homens e os livros. Séculos XVI e XVII, Lisboa,


Ed. Verbo, 1971.

BERARDINELLI, Cleonice, Estudos Camonianos, Rio de Janeiro, Editora Nova


Fronteira, 2000.

BERNARDES, José Cardoso, O bucolismo português, A égloga do Renascimento e


do Maneirismo, Coimbra, Liv. Almedina, 1988.

— “Tétis, o Adamastor e o peito ilustre lusitano”, in Biblos, nº LXIV, 1988,


pp. 119-134.

— “O nunca ouvido canto de Camões e as estâncias finais d’Os Lusíadas”, in


Mathesis, nº 9, Viseu, Universidade Católica Portuguesa, 2000, pp. 69-84.

— (org.), História Crítica da Literatura Portuguesa, Vol. II - Humanismo e


Renascimento, Lisboa, Ed. Verbo, 1999.

— (org.), Luiz Vaz de Camões revisitado. Santa Barbara Portuguese Studies, vol.
VII (2003). Coimbra/Santa Barbara, Centro Interuniversitário de Estudos
Camonianos/Center for Portuguese Studies at the University of California,
2006.

— “O reino de cristal, líquido e manso. Derivas de utopia na épica camoniana”, in


Francisco de Oliveira et alii, Mar Greco-Latino, Coimbra, Imprensa da
Universidade, 2006, pp. 361-372.

— “Eduardo Lourenço, Camões e o poder da literatura”, in Revista Colóquio-


-Letras, nº 171, Maio 2009, pp. 119-132.

— “Episódio do Adamastor”, in Vítor Aguiar e Silva (org.), Dicionário de Luís de


Camões, Lisboa, Ed. Caminho, 2011, pp. 18-20.

461
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

— “O ‘nunca ouvido canto’ de Camões e as estâncias finais d’Os Lusíadas”, in


Seabra Pereira e Manuel Ferro (coord.), Actas da VI Reunião Internacional de
Camonistas, Coimbra, Imprensa da Universidade, 2012, pp. 585-596.

BENJAMIN, Walter, Sobre arte, técnica, linguagem e política, Lisboa, Ed. Relógio
d’Água, 1992.

— A modernidade, Lisboa, Ed. Assírio & Alvim, 2006.

BISMUT, Roger, “Plaidoyer pour Dynamène”, in Bulletin des Études Portugais,


tome 30, 1969, pp. 90-98.

—La lyrique de Camões, Paris, Presses Universitaires de France, 1970.

— “Camões et son ouvre lyrique”, in Visages de Luís de Camões, Conferénces,


Paris, Fundação Calouste Gulbenkian, 1972, pp. 33-53.

— Les Lusiades de Camões, confession d’un poète, Paris, Centro Cultural


Português, 1974.

— “Fiction et réalité dans Os Lusíadas”, in Camões à la Renaissance, Colloque


Internacional Nov. 1980, Paris, Centre Culturel Portugais, 1983, pp. 87-107.

BLOOM, Harold, A angústia da influência. Uma teoria da poesia, Lisboa, Ed.


Cotovia, 1991.

BLUMENBERG, Hans, Naufrágio com espectador, Lisboa, Ed. Vega, 1990.

BOECHAT, Virgínia, “Aquele que recebeu em paga: acerca de um Camões no


poema de Sophia”, in Abril. Revista do Núcleo de Estudos de Literatura
Portuguesa e Africana da UFF, vol. 3, Abril 2010, pp. 105-115.

BORGES, Jorge Luís, Destino e obra de Camões, Buenos Aires, Ed. Embaixada de
Portugal, 2001.

BORGES, Maria João, “Ecos de Camões em alguns poetas contemporâneos”, in


Românica 4, Revista de Literatura, Departamento de Literaturas Românicas
da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa-Ed. Cosmos, 1995, pp. 89-
-104.

— “Glosas contemporâneas de Camões: crítica de poesia”, in Lírica Camoniana.


Estudos diversos, Constância-Lisboa, Ed. Cosmos, 1996, pp. 13-26.

BOSI, Ecléa, O tempo vivo da memória, São Paulo, Ed. Ateliê Editorial, 2004.

462
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

BRANDÃO, Fiama Hasse Pais, O labirinto camoniano e outros labirintos, Lisboa,


Ed. Teorema, 1985.

BRUNEL, Pierre, L’Arcadie blessée - le monde de l’idylle dans la littérature et les


arts de 1870 à nos jours, Mont-de-Marsan, Editions Interuniversitaires, 1996.

BUESCU, Maria Leonor Carvalhão, “Babel e o labirinto”, in Ensaios de literatura


portuguesa, Lisboa, Ed. Presença, 1986, pp. 67-75.

CABAÑAS, Pablo, El mito de Orfeo en literatura española, Madrid, Ed. Consejo


Superior de Investigaciones Científicas, 1948.

CALINESCU, Matei, As 5 faces da modernidade, Lisboa, Ed. Vega, 2006.

CALVINO, Italo, “Porquê ler os clássicos?”, in Porquê ler os clássicos?, Lisboa,


Ed. Teorema, 1991, pp. 7-27.

— “Eugenio Montale. Talvez uma manhã andando”, in Porquê ler os clássicos?,


Lisboa, Ed. Teorema, 1991, pp. 207-215.

CAMPOS, Harold de, Metalinguagem e outras metas, S. Paulo, Ed. Perspectiva,


4
1992.

CAMPOS, Segurado, “O estilo corrente de Camões (Os Lusíadas I, 4)”, in Revista


Humanitas, vol. XLV, 1993, pp. 307-312.

CÂNDIDO, Antonio, “Poesia e ficção na autobiografia”, in A educação pela noite


e outros ensaios, São Paulo, Ed. Ática, 32000.

CARMELO, Luís, A novíssima poesia portuguesa e a experiência estética


contemporânea, Mem Martins, Publ. Europa-América, 2005.

CARVALHO, José G. Herculano de, “Contribuição de Os Lusíadas para a


renovação da língua portuguesa”, in Separata de Revista Portuguesa de
Filologia, Vol. 18, Coimbra, Centro de Estudos Românicos, Faculdade de
Letras da Universidade, 1980.

CASTELO-BRANCO, Fernando, “A história de Lisboa em Os Lusíadas”, in


Lisboa, Revista Municipal, ano XLIII, 2ª série, 1982, pp. 24-30.

CASTRO, Aníbal Pinto, “O episódio do Adamastor: seu lugar e significação na


estrutura de Os Lusíadas”, in XLVIII Curso de Férias da Faculdade de Letras
de Coimbra. Ciclo de lições comemorativas do IV Centenário da Publicação
de Os Lusíadas, 1972, pp. 61-78.

463
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

— Retórica e teorização literária em Portugal. Do Humanismo ao Neoclassicismo,


Coimbra, Centro de Estudos Românicos, 1973.
— “Camões e a língua portuguesa”, in Quatro Orações Camonianas, Lisboa,
Academia Portuguesa de História, 1980, pp. 15-36.

— “Camões, poeta pelo mundo em pedaços repartido”, in Separata da Sociedade


de Geografia, 1980-1981, pp. 11-37.

— “Os códigos poéticos em Portugal. Do Renascimento ao Barroco”, in Revista da


Universidade de Coimbra, vol. XXXI, 1985, pp. 505-531.

— “A recepção de Camões no Neoclassicismo Português”, in Actas da III Reunião


Internacional de Camonistas, Coimbra, Universidade de Coimbra, 1987,
pp. 99-118.

— “A Mitologia na Lírica de Camões”, in Românica-Revista de Literatura, Lisboa,


Edições Cosmos, 1995, pp. 43-61.

— “Sea and sky in the portuguese literature of the Renaissance and Manierism”, in
Portugal Newsletter, 3(8), Nova Delhi, 1996, p. 2-16.

— “Viajar com os poetas portugueses do Renascimento e do Maneirismo”, in


Literatura de viagem. Narrativa, história, mito, Lisboa, Ed. Cosmos, 1997,
pp. 347-358.

— Páginas de um honesto estudo camoniano, Coimbra, Centro Interuniversitário


de Estudos Camonianos, 2007.

— “Rimas”, in Biblos. Enciclopédia Verbo das Literaturas de Língua Portuguesa,


vol. 4, Lisboa-S. Paulo, Ed. Verbo, 2001, cols. 844-851.

CASTRO, Ivo de, “Língua de Camões”, in Vítor Aguiar e Silva (coord.),


Dicionário de Luís de Camões, Lisboa, Ed. Caminho, 20111, pp. 461-469.

CASTRO, Sílvio, “Naufrágio como metáfora e palinódia em Camões, in Revista


Camoniana, vol. 13, 3ª série, Bauru, São Paulo, 2003, pp.140-150.

CARRILA, Emilio, Manierismo y Barroco en las literaturas hispánicas, Madrid,


Ed. Gredos, 1983.

CARRINGTON, Maria Cristina, Camões e D. Sebastião na obra de Reinhold


Schneider, Coimbra, Ed. Minerva, Coimbra-Centro Universitário de Estudos
Germanísticos, 2007.

CARVALHO, Joaquim de, “Estudos sobre as leituras filosóficas de Camões”, in


Obra completa, vol. I, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 21992.
464
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

— A vida da poesia. Textos críticos reunidos, Lisboa, Ed. Assírio e Alvim, 2008.

CENTENO, Yvette, “O cântico da água em Os Lusíadas”, in Yvette Centeno e


Stephen Reckert (org.), A viagem de Os Lusíadas: símbolo e mito, Lisboa, Ed.
Arcádia, 1981, pp.13-31.

CHAVES, Henrique de Almeida, O mito de Camões em Itália, Lisboa, Ed. Colibri,


2001.

CHEVALIER, Jean e CHEERBRANT, Alain, Dicionário de símbolos, Lisboa, Ed.


Teorema, 1994.

CHEVREL, Yves, La littérature comparée, Paris, PUF, 1989.

— “Estudos de recepção”, in Pierre Brunel e Yves Chevrel (org.), Compêndio de


Literatura Comparada, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2004,
pp. 185-228.

CIDADE, Hernâni, Camões em Lisboa e Lisboa nos Lusíadas, Lisboa, Biblioteca


de Estudos Olisiponenses, 1972.

— Luís de Camões. O lírico, Lisboa, Ed. Presença, 41984.

— Luís de Camões. O Épico, Lisboa, Ed. Presença, 41985.

CIRURGIÃO, António, “As armas e as letras na literatura portuguesa dos séculos


XVI e XVII”, in Novas leituras de clássicos portugueses, Lisboa, Ed. Colibri,
1997, pp. 147-169.

— Leituras alegóricas de Camões, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda,


1999.

COELHO, Eduardo Prado et alii, Uma homenagem a Óscar Lopes, Porto, Ed.
Afrontamento-Câmara Municipal de Matosinhos, 1996, pp.153-154.

COELHO, Jacinto do Prado, “Camões - poeta do desengano”, in Problemática da


história literária, Lisboa, Ed. Ática, 1961, pp. 83-90.

— Dicionário de Literatura portuguesa, Brasileira, Galega e de estilística


literária, Porto, Livraria Figueirinhas, 31978.

—Camões: ideologia e poesia”, in Cuatro lecciones sobre Camoens, Madrid,


Fundácion Juan March, 1981, pp. 43-70.

— “História e discurso n’Os Lusíadas”, in Ao contrário de Penélope, Lisboa,


Bertrand, 1976, pp. 87-92.

465
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

— Camões e Pessoa. Poetas da utopia, Mem Martins, Publ. Europa-América,


1983.

— “Camões: um lírico do transcendente”, in A letra e o leitor, Porto Ed. Lello &


Irmão, 31996.

COMPAGNON, Antoine, La seconde main ou le travail de la citacion, Paris,


Éditions du Seuil, 1979.

CORTESÃO, Jaime, “Náufragos portugueses”, in Revista Águia, 2ª série, vol. III,


1913.

COUTINHO, Bernardo Xavier, Camões e as artes plásticas, Porto, Liv.


Figueirinhas, 1946-1948.

CRAVEIRO, Maria José, “O sentido da memória. Viagens por espaços da memória


e do esquecimento”, in Dedalus - Revista Portuguesa de Literatura
Comparada, Ed. Cosmos, nº 10, Janeiro 2005, pp. 231-248.

CRUZ, Gastão, Quinze poetas do século XX, Ed. Assírio e Alvim, 2004.

— A vida da poesia. Textos críticos reunidos, Lisboa, Ed. Assírio e Alvim, 2008.

CRUZ, Maria Teresa, “A estética da recepção e a crítica da razão”, in Revista


Comunicação e Linguagem, nº 3, 1986, pp. 57-67.

CUESTA, Pilar Vazquez, “O bilinguismo castelhano-português na época de


Camões, in Arquivos do Centro cultural Português, vol. XVI, Paris, Fundação
Calouste Gulbenkian, 1981, pp. 807-827.

CUNHA, António Geraldo da, Índice analítico do vocabulário de Os Lusíadas, Rio


de Janeiro, Ed. Presença-Instituto Nacional do Livro, 21980 .

CUNHA, Carlos Manuel Ferreira da, A construção do discurso da história literária


na literatura portuguesa do século XIX, Braga, Universidade do Minho-
-Centro de Estudos Humanísticos, 2002.

CUNHA, Maria Helena Ribeiro, “Neoplatonismo de Camões”, in Vítor Aguiar e


Silva (coord.), Dicionário de Luís de Camões, Lisboa, Ed. Caminho, 2011,
pp. 634-642.

CURTIUS, Ernst Robert, Literatura Europeia e Idade Média Latina, Rio de


Janeiro, Instituto Nacional do Livro, 1957.

CUSTÓDIO, Pedro Balaus, A História-Trágico-Marítima: do herói ao anti-herói,


Coimbra, Faculdade de Letras da Universidade, 1992.

466
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

DELILLE, Maria Manuela Gouveia (coord.), Problemas da tradução literária,


Coimbra, Liv. Coimbra, 1986.

— (coord.), Camões na Alemanha. A figura do poeta em obras de Ludwig Tieck e


Günter Eich, estudos de Catarina Martins e Júlia Garraio, Coimbra, Livraria
Minerva-Centro Universitário de Estudos Germanísticos, 2000.

DERRIDA, Jacques, Che cos’è la poesia?, Coimbra, Ed. Angelus Novus, 2003.

DESWARTE-ROSA, Sylvie, “O templo da pintura: Camões e Francisco de


Holanda”, in Seabra Pereira e Manuel Ferro, (coord.), Actas de VI Reunião
Camonistas, Coimbra, Imprensa da Universidade, 2012, pp. 567-584.

DIAS, Aida Fernanda, “Camões-uma memória poética”, in Actas do 3º Congresso


da Associação Internacional de Lusitanistas, Coimbra, Ed. Associação
Internacional de Lusitanistas, 1992, pp. 99-118.

DÍAZ, Emilio Orozco, Manierismo y Barroco, Madrid, Ed. Cátedra, 1975.

DIOGO, Américo A. Lindeza, Modernismos, Pós-Modernismos, Anacronismos,


Lisboa, Ed. Cosmos, 1993.

DIRSCHERL, Klaus, “A estética da recepção e suas consequências”, in Cadernos


de Literatura, nº 14, Coimbra, Universidade de Coimbra-Instituo Nacional de
Investigação científica, 1983, pp. 87-89.

D’ORS, Eugenio, O Barroco, Lisboa, Vega, 1990.

DUARTE, Joana, “Memória e narração. Invólucro do silêncio na expressão do


vário”, in Revista de História das Ideias, vol. 27, Coimbra, Instituto de
História e Teoria das ideias, 2006, pp. 529-546.

DUBOIS, Claude Gilbert, Le Maniérisme, Paris, P.U.F., 1979.

— L’Imaginaire de la Renaissance, Paris, P.U.F., 1985.

DUCROT, Oswald e TODOROV, Tzvetan, Dictionnaire Encyclopedique des


Sciences du Langage, Paris, Seuil, 1972.

DUFRENNE, Mikel, Le Poétique, Paris, PUF, 21973.

ECO, Umberto, Leitura do texto literário. Lector in fabula, Lisboa, Ed. Presença,
1983.
— Obra aberta, Lisboa, Ed. Difel, 1989.

— Sobre literatura, Lisboa, Ed. Difel, 2003.


467
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

— Dizer quase a mesma coisa. Sobre a tradução, Lisboa, Ed. Difel, 2005.

EIRAS, Pedro (coord.), Jovens ensaístas lêem jovens poetas, Porto, Deriva
Editores, 2008.

ELIOT, T. S., Ensaios escolhidos, Lisboa, Ed. Cotovia, 1992.

— Ensaios de doutrina crítica, Lisboa, Guimarães Editores, 21997.

FEBVRE, Lucien, A Europa. Génese de uma civilização, Lisboa, Ed. Teorema,


2001.

FERNANDES, Raúl M. Rosado, “Camoës et l’héritage classique”, in Arquivos do


Centro Cultural Português, vol. XV, Paris, Fundação Calouste Gulbenkian,
1980, pp. 3-24.

FERREIRA, António Manuel e PEREIRA, Paulo Alexandre (coord.), Escrever a


ruína, Aveiro, 13º Encontro de Estudos Portugueses, Universidade de Aveiro,
2006.

FERREIRA, José Ribeiro, Labirinto e Minotauro. Mito de ontem e de hoje,


Coimbra, Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos da Universidade, 2008.

— Amor e morte na cultura clássica, Coimbra, Imprensa da Universidade, 2013.

FERREIRA, Paulo Sérgio, Os elementos paródicos no Satyricon de Petrónio e o


seu significado, Lisboa, Ed. Colibri, 2000.

— “O significado da paródia na Apocolocyntosis de Séneca”, in De Augusto a


Adriano. Actas de Literatura Latina, Lisboa, Centro de Estudos Clássicos,
2002. pp. 361-369.

— “Paródia ou paródias?”, in Carlos de Miguel Mora (org.), Sátira, paródia e


caricatura: da Antiguidade aos nossos dias, Aveiro, Universidade de Aveiro,
2003, pp. 279-300.

FERRER, Manuel, “La mitología en Os Lusíadas: una posible interpretacíon”, in


Revista Camoniana, nº 3, S. Paulo, 1971, pp. 11-55.

FERRO, Manuel Simplício, A recepção de Torquato Tasso na épica portuguesa do


Barroco e Neoclassicismo, Coimbra, Faculdade de Letras, Universidade de
Coimbra, 2004.

— “Estas fábulas vãs, tão bem sonhadas. Função e fortuna do sonho n’Os
Lusíadas”, in Colóquio Camões e a Ciência, 11 Junho 2008, disponível em
http://www.museudaciencia.org/gfx/bd/100729130200 (consultado em 19
Setembro 2012).
468
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

— “A implantação da República Portuguesa sob o olhar acutilante da paródia:


Republicaníadas, de Marco António (António Correia Pinto de Almeida)”, in
Republicaníadas, Coimbra-Figueira da Foz, Centro Interuniversitário de
Estudos Camonianos-Câmara Municipal da Figueira da Foz, 2010.

— “A utopia sob o signo do poema herói-cómico: O balão aos habitantes da Lua


(1819), de José Daniel Rodrigues da Costa, entre paródia e crítica social”, in
Biblos, vol. XI, 2013, pp. 303-333.

— “O bilinguismo na épica portuguesa do período filipino: entre a expressão


autonómica, a afirmação identitária e a importância do contexto cultural
espanhol envolvente”, in Carmen M. Fernandez de Cañete et alii (org.), Crisis
y ruptura peninsular. III Congreso Internacional de la SEEPLU, Cáceres,
Universidad de Extremadura, 2014, pp. 81-99.

FIALHO, Maria do Céu, “O mar na poesia portuguesa contemporânea”, in


Francisco de Oliveira et alii (org.), O mar greco-latino, Coimbra, Imprensa da
Universidade de Brest-Imprensa da Universidade de Coimbra, 2006, pp. 397-
-415.

FIGUEIREDO, Albano, “Poesia peninsular do século XV e Camões”, in Vítor


Aguiar e Silva (coord.), Dicionário de Luís de Camões, Lisboa, Ed. Ca-
minho, 2011, pp. 700-703.

FIGUEIREDO, Fidelino de, A Épica Portuguesa no Século XVI, Lisboa, Imprensa


Nacional-Casa da Moeda, 1993.

FIGUEIREDO, João Ricardo, “Os Lusíadas e a vaidade da poesia”, in Revista


Colóquio Letras, nº 155-156, Janeiro 2000, pp. 9-38.

— A autocomplacência da mimese. Uma defesa da poesia: Os Lusíadas e A Vida


de Frei Bertolameu dos Mártires, Lisboa, Ed. Angelus Novus, 2003.

FLOR, Pedro Eugénio Dias Ferreira de Almeida, A arte do retrato em Portugal nos
séculos XV e XVI, Lisboa, Ed. Assírio & Alvim, 2010.

FRAGA, Maria do Céu, Camões: um bucolismo intranquilo, Coimbra, Liv.


Almedina, 1989.

— “A corrosão do idílico nas éclogas camonianas”, in Lírica Camoniana. Estudos


Diversos, Lisboa/Constância, Ed. Cosmos, 1996, pp. 65-86.

— Os géneros maiores na poesia lírica de Camões, Coimbra, Centro


Interuniversitário de Estudos Camonianos, 2003.

469
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

— “O tempo e o espaço: a errância na lírica camoniana”, in Revista Floema, Ano


VI, nº 7, Jul./Dez. 2010, p. 46, disponível em http://periodicos. uesb.br/ index.
php/floema/article/view/465/507 (consultado em 29 Janeiro 2016).

— “Armas e letras”, in Vítor Aguiar e Silva (coord.), Dicionário de Luís de


Camões, Lisboa, Ed. Caminho, 2011, pp. 42-45.

FRAGA, Maria do Céu et alii, Camões e os seus contemporâneos, Braga, Centro


Interuniversitário de Estudos Camonianos, Universidade dos Açores,
Universidade Católica Portuguesa, 2012.

FRANÇA, José-Augusto, O retrato na arte portuguesa, Lisboa, Livros Horizonte,


1981.

— A Arte em Portugal no Século XX, 1911-1961, Lisboa, Ed. Bertrand, 1991.

FRANCO, José Eduardo, e CALAFATE, Pedro (coord.), A Europa segundo


Portugal. Ideias de Europa na cultura portuguesa, século a século, Lisboa,
Ed. Gradiva, 2102.

FRANCO, Márcia Arruda, “Desconcerto do mundo”, in Aguiar e Silva (coord.),


Dicionário de Camões, Lisboa, Ed. Caminho, 2011, pp. 312-316.

FREIDENBERG, Olga M., “The origin of parody”, in Semiotics and


Structuralism. Readings from the Soviet Union, White Plains-New York,
International Arts and Sciences Press, 1975, pp. 269-283.

FRIAS, Joana Matos, “Peeping Tongue: ut photographia poesis ou o verso da


evidência”, in Cadernos de Literatura Comparada, nº 17, 2007, pp. 213-241.

— “Vt pictura poesis non erit”, in Relâmpago. Poesia e artes visuais, nº 23, 2008,
pp.163-178.

FREITAS, Manuel de (org.), Poetas sem qualidades. Lisboa, Ed. Averno, 2002.

GADAMER, Hans-Georg, “Poetizar e interpretar”, in José Manuel Cuesta Abad e


Julián Jiménez Heffernan (ed.), Teorías literárias del siglo XX, Madrid, Ed.
Akal, 2005, pp. 858-865.

GARCIA, José Manuel, “O significado do naufrágio de Sepúlveda na cultura


portuguesa”, in Ao encontro dos descobrimentos. Temas de história da
expansão, Lisboa, Ed. Presença, 1994, pp. 229-234.

GARRETT, Almeida, Portugal na balança da Europa, Lisboa, Livros Horizonte,


2005.

GENETTE, Gérard, Figures I, Éditions du Seuil, Paris, 1966.


470
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

— Figures II, Éditions du Seuil, Paris, 1969.

— Palimpsestes, La littérature au second degré, Paris, Éditions du Seuil, 1982.

— Seuils, Paris, Éditions du Seuil, 1987.

— Fiction et diction, Paris, Éd. du Seuil, 1991.

GENTIL, Georges le, Camões, Lisboa, Portugália Editora, 1969.

GEORGE, João Pedro, O que é um escritor maldito?, Lisboa, Ed. Verbo, 2013.

GIL, Fernando e MACEDO, Hélder, Viagens do olhar: retrospecção, visão e


profecia no Renascimento português, Porto, Ed. Campo das Letras, 1998.

GLISSANT, Edouard, Poética da relação, Porto, Sextante Editora, 2011.

GOLOPENTIA-ERESTECU, Sanda, “Grammaire de la parodie”, in Cahiers de


linguistique théorique et appliquée, nº 6, 1969, pp. 167-181.

GOMEZ-MORIANA, António, “Intertextualité, interdiscursivité et parodie. Pour


une semanalyse du roman picaresque”, in Canadian Journal of Research in
Tematics, nº 8, 1980-1981, pp. 15-32.

GONÇALVES, Francisco Rebelo, Dissertações Camonianas, S. Paulo, Companhia


Editora Nacional, 1937.

— Obra completa III - Estudos camonianos, Lisboa, Fundação Calouste


Gulbenkian, 2002.

GOULART, Rosa Maria, Artes Poéticas, Braga, Ed. Angelus Novus, 1988.

— “O regresso do autor”, in Literatura e teoria da literatura em tempo de crise,


Braga, Ed. Angelus Novus, 2001, pp. 43-50.

GUERREIRO, António, “Alguns aspectos da poesia contemporânea”, in


Relâmpago, nº 12, “Nova poesia Portuguesa”, Lisboa, Fundação Luís Miguel
Nava, 2003, pp. 11-18.

GUILLÉN, Claudio, Entre lo uno y lo diverso. Introducción a la literatura


comparada, Barcelona, Ed. Crítica, 1985.

GUIMARÃES, Fernando, A poesia contemporânea portuguesa e o fim da


modernidade, Lisboa, Ed. Caminho, 1989.

471
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

— “Em direcção ao fim do século”, in A poesia contemporânea portuguesa, Vila


Nova de Famalicão, Edições Quasi, 22002.
— “Tradição inovadora”, in JL. Jornal de Letras, Artes e Ideias, 27 Abril 2005,
p. 10.

GRIMAL, Pierre, Dicionário da Mitologia Grega e Romana, Lisboa, Ed. Difel, s/d.

HALBWACHS, Maurice, La mémoire collective, nouvelle édition revue et


augmentée, Paris, Ed. Albin Michel, 1997.

HAMON, Philippe, Imageries: littérature et image au XIXe siècle, Paris, Ed. José
Corti, 2004.

HATZFELD, Helmut Anthony, Estudios sobre el Barroco, Madrid, Ed. Gredos,


2
1966.

HAUSER, Arnold, Literatura y Maneirismo, Madrid, Ediciones Guadarrama, 1969.


— Maneirismo: a crise da Renascença e a origem da arte moderna, São Paulo, Ed.
Perspectiva, 21993.

HOCKE, Gustav R., Maneirismo: o mundo como labirinto, São Paulo, Editora
Perspectiva, 21986.

HORÁCIO, Arte Poética. Introdução, tradução e comentário de R. M. Rosado


Fernandes, Lisboa, Editorial Inquérito, 31984.

HÖSTER, Maria António H. J. Ferreira, Para uma história da recepção de Rainer


Maria Rilke em Portugal (1920-1960), Lisboa, Fundação Calouste
Gulbenkian, 2002.

HOUSEHOLDER JR., Fred W., “Παρωδía”, in Classical Philology, vol. XXXIX,


1944, pp. 1-9.

HUTCHEON, Linda, Uma teoria da paródia, Lisboa, Ed. 70, 1989.

— Poética do Pós-Modernismo, Rio de Janeiro, Ed. Imago, 1991.

KAYSER, Gerhard R., Introdução à Literatura comparada, Lisboa, Fundação


Calouste Gulbenkian, 1989.

KAYSER, Wolfgang, Análise e interpretação da obra literária, Coimbra, Ed.


Arménio Amado, 71985.

KRISTEVA, Julia, Semeiotike. Recherches pour une sémanalyse, Paris, Ed. Seuil,
1969.

472
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

KERÉNYI, Károly et alli, Estudos do labirinto, Lisboa, Ed. Assírio & Alvim,
2008.

KRIEGER, Murray, Ekphrasis: The illusion of the natural sign, Baltimore -


Londres, The Johns Hopkins University Press, 1992.

IBSCH, Elrud, “A Recepção literária”, in Mark Angenot, et alii (org.). Teoria


literária. Problemas e perspectivas, Lisboa, Ed. D. Quixote, 1995.

IDT, Geniève, “Intertextualité, transposition, critique des sources”, in Nova


Renascença, vol. IV, nº 13, 1984, pp. 5-20.

INGARDEN, Roman, A obra de arte literária, Lisboa, Fundação Calouste


Gulbenkian, 1973.

ISER, Wolfgang, “The Reading process: a phenomenological approach”, in Jane P.


Tompkins (ed.), Reader-response criticism. From formalism to post
structuralism, Baltimore, Ed. University Press, 1980, pp. 50-69.

— “Problemas da teoria da literatura atual: o imaginário e os conceitos-chave da


época”, in Luiz Costa Lima (org.), Teoria da literatura em suas fontes, vol. II,
Rio de Janeiro, Livraria Francisco Alves Editora, 21983.

— El proceso de lectura: enfoque fenomenológico”, in P. Bürger et alii, Estética de


la recepción, Madrid, Ed. Arco/Libros, 1987.

— O ato de leitura, vol.1, S. Paulo, Ed. 34, 1996.

— O ato de leitura, vol. 2, S. Paulo, Ed. 34, 1999.

— “O jogo”, in João Cezar de Castro Rocha (org.), Teoria da ficção. Indagações à


obra de Wolfgang Iser, Rio de Janeiro, Ed. Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, 1999, pp.105-115.

JANET, Pierre, “Le problème de la mémoire”, in L’évolution de la mémoire et de


la notion du temps, Paris, Éd. Chaline, 1928, pp. 181-202.

JANKELEVITCH, Vlademir, L’irreversible et la nostalgie, Paris, Ed. Flammarion,


1983.

JAUSS, Hans Robert, História literária como desafio à ciência literária. Literatura
medieval e teoria dos géneros, Vila Nova de Gaia, Ed. José Soares Martins,
1974.

— Pour une Esthétique de la Réception, Paris, Ed. Gallimard, 1978.

473
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

— “A estética da recepção: colocações gerais”, in Luiz Costa Lima, A literatura e o


leitor. Textos de estética da recepção, Rio de Janeiro, Ed. Paz e Terra, 1979.

— “O texto poético na mudança de horizonte de leitura”, in Luiz Costa Lima,


Teoria da literatura em suas fontes, vol. II, Rio de Janeiro, Livraria Francisco
Alves Editora, 21983.

— Experiencia estética y hermenéutica literaria. Ensayos en el campo de la


experiencia estética. Madrid, Ed. Taurus, 1986.

— El lector como instancia de una nueva historia de la literatura, in P. Bürger et


alii, Estética de la recepción, Madrid, Ed. Arco/Libros, 1987.

— A literatura como provocação, Lisboa, Ed. Vega, 1993.

JENNY, Laurent et alii, Intertextualidades, Poëtique, nº 27, Coimbra, Livraria


Almedina, 1979.

JOSEF, Bella, “O resgate da memória na literatura contemporânea”, in 2º


Congresso Abralic: Literatura e Memória Cultural: Anais, Associação
Brasileira de Literatura Comparada, Belo Horizonte, 1991, p. 454-460.

JÚDICE, Nuno, Cem anos de Literatura Portuguesa, Lisboa, Ed. Relógio d’Água,
1997.

— “Mar”, in Biblos. Enciclopédia Verbo das Literaturas de Língua Portuguesa,


vol. 3, Lisboa S. Paulo, Ed. Verbo, 1999, cols. 448-451.

— “Fernando Pessoa e a Europa”, in Colóquio-Letras, nº175, Setembro 2010,


pp. 45-52.

LAFER, Celso, “Problemas dos valores n’Os Lusíadas”, in Revista Camoniana,


nº 2, S. Paulo, 1965, pp. 73-108.

LANCIANI, Giulia, Os relatos de naufrágios na literatura portuguesa dos séculos


XVI e XVII, Lisboa, Instituto de Cultura Portuguesa, 1979.

LANGROUVA, Helena, A Viagem na Poesia de Camões. Lisboa, Fundação


Calouste Gulbenkian/Fundação para a Ciência e Tecnologia, 2006.

— “Luís de Camões e Sandro Botticelli”, in Maria do Céu Fraga et alii, Camões e


os seus contemporâneos, Braga, Centro Interuniversitário de Estudos
Camonianos, Universidade dos Açores, Universidade Católica Portuguesa,
2012, pp. 376-389.

474
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

LAPA, Rodrigues (coord.) Quadros da história trágico-marítima, Lisboa, Ed.


Seara Nova, 1951.

LAUSBERG, Heinrich, Elementos de Retórica Literária, Fundação Calouste


Gulbenkian, 31982.

LEÃO, Delfim, “Poder sabedoria e finitude no Satyricon de Petrónio”, in Fábio


Cerqueira et alii (org.), Saberes e poderes no Mundo Antigo, vol.II - Dos
poderes, Coimbra, Imprensa da Universidade, 2013, pp. 33-52.

LEFEVERE, André, Traducción, reescritura y la manipulación del canon literario,


Salamanca, Ed. Colégio de España, 1997.

LEJEUNE, Philippe, L’autobiographie en France, Paris, Liv. Armand Colin,


2
1998.

— Le pacte autobiographique, Paris, Ed. du Seuil, 21996.

LELIÈVRE, F. J., “The basis of ancient parody”, in Grecce & Rome, 2.nd Series,
nº 1, 1954, pp. 66-81.

LEMOS, Antero Vieira de, A obra espanhola de Camões, Porto, Editora Pax,
2
1972.

LE GOFF, Jacques, “Memória”, in Enciclopédia Einaudi, vol.1, Lisboa, Imprensa


Nacional-Casa da Moeda, 1984, pp. 11-50.

— História e Memória, São Paulo, Editora da Unicamp, 2003.

LIMA, Luiz Costa (org), Teoria da Literatura em suas fontes, Rio de Janeiro, Ed.
Francisco Alves, 1975.

— A literatura e o leitor. Textos de estética da recepção. Rio de Janeiro, Ed. Paz e


Terra 1979.

LOPES, Óscar, “As mãos e o espírito”, in Uma arte de música e outros ensaios,
Porto, Ed. Oficina Musical, 1986, pp. 151-176.

— “Cesário Verde ou do Romantismo ao Modernismo”, in Entre Fialho e


Nemésio. Estudos de literatura portuguesa contemporânea, vol. II, Lisboa,
Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1987, pp. 461-472.

— “Alguns nexos diacrónicos na poesia novecentista portuguesa”, in Cifras do


tempo, Lisboa, Ed. Caminho, 1990, pp. 77-96.

475
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

— “Um pacto de leitura”, in Revista Oceanos, Agora, peregrino vago e errante,


nº 23, Julho/Setembro, Comissão Nacional para as Comemorações dos Des-
cobrimentos Portugueses, 1995, pp. 8-20.

LOPES, Óscar e MARINHO, Maria de Fátima, História da Literatura Portuguesa.


As correntes contemporâneas, vol.7, Lisboa, Publ. Alfa, 2002.

LOPES, Silvina Rodrigues, “Labirinto”, in Biblos, Enciclopédia Verbo das


Literaturas de Língua Portuguesa, vol. 2, Lisboa-S. Paulo, Ed. Verbo, 1997,
cols. 1321-1326.

— Literatura, defesa do atrito, Lisboa, Ed. Vendaval, 2003.

LOTMAN, Yuri, Estética e semiótica do cinema, Lisboa, Ed. Estampa, 1978.

LOURENÇO, Eduardo, Poesia e metafísica, Lisboa, Livraria Sá da Costa, 1980.

— Nós e a Europa ou as duas razões, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda,


1990.

— Europa desencantada. Para uma mitologia europeia, Lisboa, Ed. Visão, 1994.

— O labirinto da saudade, Lisboa, Ed. Gradiva, 72010.

— Portugal como destino seguido de Mitologia da saudade, Lisboa, Ed. Gradiva,


4
2011.

— Pequena meditação europeia, Lisboa, Ed. Verbo, 2011.

LOURENÇO, Frederico, Grécia revisitada, Lisboa, Ed. Cotovia, 2004.

— “Luís e Os Lusíadas”, in Valsa nobre e sentimentais. Crónicas, Lisboa, Ed.


Cotovia, 2007, pp. 64-68.

LUCIANO, Diálogos dos mortos, introdução, versão do grego e notas de Américo


da Costa Ramalho, Coimbra, Instituto Nacional de Investigação Científica,
1989.

MAURER, Karl, “Formas de lectura”, in P. Bürger et alii, Estética de la recepción,


Estética de la recepción, Madrid, Ed. Arco/Libros, 1987.

MESCHONNIC, Henri, Pour la poétique II, Ed. Gallimard, Paris, 1973.

MACEDO, Hélder, “O braço e a mente, “O Poeta como herói n’Os Lusíadas”, in


Arquivos do Centro Cultural Português, vol. XVI, Fundação Calouste
Gulbenkian, Paris, 1981, pp. 61-72.

476
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

— “O poeta Simónides e o capitão Temístocles”, in João Camilo dos Santos e


Frederick G. Williams (org.), O amor das letras e das gentes; in honor of
Maria de Lourdes Belchior Pontes, Santa Barbara, University of California-
Center for Portuguese Studies, 1995, pp.100-104.

— Camões e a viagem iniciática, Lisboa, Ed. Abysmo, 2013.

— Camões e outros contemporâneos, Lisboa, Ed. Presença, 2017.

MACEDO, Jorge Borges de, Os Lusíadas e a História, Lisboa, Editorial Verbo,


1979.

— Portugal-Europa. Para além da circunstância, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa


da Moeda, 1980.

MACHADO, Álvaro Manuel, O mito do Oriente na literatura portuguesa, Lisboa,


Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1983.

— “Oriente: exotismo e mito, de Camões a Fernando Pessoa”, in Do Ocidente ao


Oriente. Mitos, imagens, modelos, Lisboa, Ed. Presença, 2003, pp. 30-37.

MACHADO, Álvaro Manuel e PAGEAUX, Daniel-Henri, Literatura portuguesa,


Literatura comparada, Teoria da literatura, Lisboa, Ed. 70, 1988.

MADELÉNAT, Daniel, L’epopée, Paris, P.U.F., 1986.

MAFFEI, Luis, “O poeta em poetas: alguns Camões do século XX”, in Revista


Camoniana, vol. 17, 3ª série, 2005, pp. 159-177.

MAGALHÃES, Joaquim Manuel, Os dois crepúsculos. Sobre poesia portuguesa


actual e outras crónicas, Lisboa, Ed. A Regra do Jogo, 1981.

— Um Pouco da Morte, Lisboa, Ed. Presença, 1989.

MARAVALL, José Antonio, Antiguos y modernos. Visión de la historia e idea de


progreso hasta el Renacimiento, Madrid, Ed. Alianza Nacional, 21986.

— La Cultura del Barroco, Barcelona, Editorial Ariel, 51990.

MARCHESE, Angelo y FORRADELAS, Joaquin, Diccionario de retórica, crítica


e terminología literaria, Barcelona, Ed. Ariel, 1989.

MARGARIDO, Alfredo, “Uma leitura antropológica do soneto de Camões Sete


anos de pastor Jacó servia”, in Colóquio-Letras, nº 81, 1984, pp. 6-23.

477
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

MARINHO, Maria de Fátima, A poesia portuguesa nos meados do Século XX.


Rupturas e continuidades, Lisboa, Ed. Caminho, 1989.

MARINO, Adrian, “Récurrence et circularité”, in La critique des idées littéraries,


bruxelles, Ed. Complexe, 1977, pp. 81-114.

MARNOTO, Rita, “A figura feminina petrarquista em Camões, entre imitação e


transformação”, in Lírica Camoniana. Estudos diversos, Lisboa, Ed. Cosmos,
1996, pp. 49-63.
— O Petrarquismo português do Renascimento e do Maneirismo, Coimbra,
Biblioteca Geral da Universidade, 1997.

— “Da Arcádia a Sôbolos rios”, in Actas do V Congresso da Associação


Internacional de Lusitanistas, Oxford-Coimbra, 1998.

— "Camões, Laura e Bárbora escrava", in Mathesis, 6, 1997, pp.77-103.

— “Camões: a ordem dos clássicos e o ruído de fundo”, in Aprendizagem-


-desenvolvimento, vol. 10, n.º 39-40, Lisboa, 2001, pp. 145-156.

— Sete ensaios camonianos, Coimbra, Centro Interuniversitário de Estudos


Camonianos, 2007.

— “Petrarquismo em Camões”, in Vítor Aguiar e Silva (coord.), Dicionário de


Luís de Camões, Lisboa, Ed. Caminho, 2011, pp. 679-688.

— “Retratos femininos na poesia de Camões”, in Vítor Aguiar e Silva (coord.),


Dicionário de Luís de Camões, Lisboa, Ed. Caminho, 2011, pp. 851-855.

— Comentário a Camões, vol. 1 e 2 - Sonetos, Rita Marnoto (coord.), Lisboa-


-Coimbra, Ed. Cotovia-Centro Interuniversitário de Estudos Camonianos,
2012.

— “O poema de Camões entre Europa e Oceano”, in Sudi (e testi) italiani, nº 34, a


curi di Roberto Gigliucci Roma, Bulzoni Ediotre, secondo semestre 2014,
pp. 123-132.

— O Petrarquismo português do Cancioneiro Geral a Camões, Lisboa, Imprensa


Nacional-Casa da Moeda, 2015.

— Comentário a Camões, vol. 3 - Redondilhas Sôbolos rios, odes, Rita Marnoto


(coord.), Coimbra-Genève, Centro Interuniversitário de Estudos Camonianos-
Centre d’Études Lusophones, 2016.

— Comentário a Camões, vol. 4 - Sonetos, redondilhas, Rita Marnoto (coord.),


Coimbra-Genève, Centro Interuniversitário de Estudos Camonianos- Centre
d’Études Lusophones, 2016.
478
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

MARQUES, F. da Costa, “Reflexões sobre a concepção épica camoniana e sua


expressão artística”, in Separata da Revista Labor, Aveiro, 1954.

MARTELO, Rosa Maria, “Anos noventa: breve roteiro da novíssima poesia


portuguesa”, in Via Atlântica, nº 3, Dezembro, 1999, pp. 9-15.

— “Reencontrar o leitor”, in revista Relâmpago-Nova poesia Portuguesa, nº 12,


Lisboa, Fundação Luís Miguel Nava, 2003, pp. 39-52.

— “Anos 90. Poesia”, in Óscar Lopes e Maria de Fátima Marinho, História da


Literatura Portuguesa. As correntes contemporâneas, vol. 7, Lisboa, Publ.
Alfa, 2002, pp. 487-508.

— Em parte incerta. Estudos de poesia portuguesa moderna e contemporânea,


Porto, Ed. Campo das Letras, 2004.

— Vidro do mesmo vidro. Tensão e deslocamentos na poesia portuguesa depois de


1961, Porto, Ed. Campo das Letras, 2007.

— Cinema e poesia, Lisboa, Ed. Documenta, 2012.

MARTÍN, Ana Maria García, “O bilinguismo literário luso-castelhano na época de


Camões”, in Vítor Aguiar e Silva (coord.), Dicionário de Luís de Camões,
Lisboa, Ed. Caminho, 2011, pp. 77-80.

— “O uso do castelhano na obra de Camões”, in Aguiar e Silva (org.), Dicionário


de Luís de Camões, Lisboa, Ed. Caminho, 2011, pp. 937-940.

MARTÍN, José Luis García, La poesía figurativa. Cronica parcial de quinze años
de poesia española, Sevilha, Ed. Renacimiento, 1992.

MARTINHO, Fernando J. B., “Dez anos de literatura portuguesa (1974-1984), in


Colóquio-Letras, nº 78, Março 1984, pp. 17-29.

— Panorama da literatura universal – II vol., A literatura portuguesa no século


XX, Lisboa, Ed. Círculo de Leitores, 1991.

— Tendências dominantes na poesia portuguesa da década de 50, Lisboa, Ed.


Colibri, 1996.

— “Camões e a poesia portuguesa contemporânea”, in Românica. Revista de


Literatura, nº 4, Departamento de Literaturas Românicas da Faculdade de
Letras da Universidade de Lisboa-Ed. Cosmos, 1995, pp. 63-79.

479
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

— “Poesia”, in Fernando J. B. Martinho (coord.), Literatura portuguesa do século


XX, Lisboa, Ed. Instituto Camões, 2004, pp.11-53.

MARTINS, Andreia A. Paula, “As funções do narrador nos relatos de naufrágios”,


in Mathesis, nº 5, 1996, pp. 335-348.

MARTINS, Guilherme d’Oliveira, Portugal: identidade e diferença. Aventuras da


memória, Lisboa, Ed. Gradiva, 2007.
— “Ponto de encontro de identidades (Relatório final)”, in Isabel Capeloa Gil
(coord.), Identidade europeia: identidades na Europa, Lisboa, Universidade
Católica Editora, 2009, p. 156-168.

MARTINS, Manuel Frias, Dez anos de poesia em Portugal (1974-1984): Leitura


de uma década, Lisboa, Ed. Caminho, 1984.

MARTINS, Oliveira, Camões. Os Lusíadas e a Renascença em Portugal, Lisboa,


Guimarães Editores, 41986.

MARTINS, José Cândido, “A literatura trágico-marítima e a escrita


contemporânea”, in Naufrágio de Sepúlveda: texto e intertexto, Lisboa, Ed.
Replicação, 1977, pp. 143-173.

— Teoria da Paródia Surrealista, Braga, APPACDM, 1995.

— “História trágico-marítima (antiepopeia da decadência do império)”, in Vítor


Aguiar e Silva (coord.), Dicionário de Camões, Lisboa, Ed. Caminho, 2011,
pp. 410-416.

— “Paródias d’Os Lusíadas”, in Vítor Aguiar e Silva (org.), Dicionário de


Camões, Lisboa, Ed. Caminho, 2011, pp. 659-667.

— “Paródias”, in Biblos. Enciclopédia Verbo das Literaturas de Língua Portugue-


sa, vol. 3, Lisboa-S. Paulo, Ed. Verbo, 1999, cols.1418-1422.

— “Figuras maneiristas da morte em O Lima de Diogo Bernardes”, in Ana Paula


Pinto et alii (org.), Do reino das sombras: figurações da morte, Braga, Ed.
Aletheia, 2014, pp. 284-289.

MARTINS, José Vitorino de Pina, “O Humanismo italiano”, in Cultura Italiana,


Lisboa, Editorial Verbo, 1971, pp.151-170.

—“Camões et la pensée platonicienne de la Renaissance”, in Visages de Luís de


Camões, Conferénces, Paris, Fundação Calouste Gulbenkian, 1972, pp. 55-
- 107.

480
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

— “O Humanismo na obra de Camões”, in Arquivos do Centro Cultural Português,


vol. XVI, Paris, Fundação Calouste Gulbenkian, 1981, pp. XVII-XXIX.

— “Camões lírico e o renascimento italiano”, in IV Reunião Internacional de


Camonistas, Ponta Delgada, Universidade dos Açores, 1984, pp. 329-347.

MATEUS, Rui Manuel Afonso, A recepção de Camões no Barroco português,


Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2011.

MATOS, Maria Vitalina Leal de, Introdução à poesia de Luís de Camões, Lisboa,
Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1980.

— O canto na poesia épica e lírica de Camões. Estudos de isotopia enunciativa,


Paris, Centro Cultural Português, 1981.

— “A poesia de Camões na perspectiva da intertextualidade”, in Actas da III


Reunião Internacional de Camonistas, Coimbra, 1989, pp. 67-86.

— “Sôbolos rios. Uma estética arquitectónica”, in Ler e escrever, Lisboa, Imprensa


Nacional-Casa da Moeda, 1987, pp. 55-64.

— “O tempo na poesia camoniana”, in Ler e escrever, Lisboa, Imprensa Nacional-


-Casa da Moeda, 1987, pp. 79-96.

— “A écloga em Sá de Miranda e Camões”, in Arquipélago, Revista da


Universidade dos Açores. Línguas e Literaturas, vol. XIV, Ponta Delgada,
1994-1996, pp. 15-35.

— Introdução aos estudos literários, Lisboa-São Paulo, Ed. Verbo, 2001.

— Tópicos para a leitura de Os Lusíadas, Lisboa, Verbo, 2003.

— “Que farei eu com este poema? Como evolui o projecto de epopeia ao longo
d’Os Lusíadas”, in AAVV, Épica. Épicas. Épica camoniana, Lisboa,
Cosmos, 1997, pp. 53-70.

— “Os Lusíadas”, in Aguiar e Silva (coord.), Dicionário de Camões, Lisboa, Ed.


Caminho, 2011, pp. 490-515.

— Camões: sentido e desconcerto, Coimbra, Centro Interuniversitário de Estudos


Camonianos, 2011.

— Lírica de Luís de Camões. Antologia, Lisboa, Ed. Caminho, 2012.

481
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

MEDEIROS, Walter, “Do desencanto à alegria: o Satyricon de Petrónio e o


Satyricon de Fellini”, in Revista Humanitas, nº 48, Instituto de Estudos
Clássicos da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1996, pp. 169-
-175.

MILTON, J., O poder da tradução. São Paulo, Ed. Ars Poetica, 1993.

MIRANDA, José da Costa, “Camões / Tasso, um confronto e algumas


semelhanças, segundo a crítica portuguesa”, in III reunião Internacional de
Camonistas, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1987, pp. 387-402.

MONIZ, António Manuel de Andrade, A história trágico-marítima: identidade e


condição humana, Lisboa, Ed. Colibri, 2000.

MONTEIRO, Joana d’Oliva, Júlio Pomar, Lisboa, Ed. Quidnovi, s/d.

MONTEIRO, Ofélia Milheiro Caldas Paiva, “Os Lusíadas: significado epocal e


estrutura do poema”, in XLVIII Curso de Férias da Faculdade de Letras de
Coimbra. Ciclo de lições comemorativas do IV Centenário da Publicação de
Os Lusíadas, 1972, pp. 31-59.

— A poesia de viagem em Camões: experiência do caos, compensação, catarse, in


Biblos, vol. LXIV, 1988, pp. 91-103.

MORA, Carlos de Miguel, “Os limites de uma comparação: ut pictura poesis”, in


Ágora. Estudos clássicos em debate, nº 6, Departamento de Línguas e
Literaturas da Universidade de Aveiro, 2004, pp.7-26.

MORÃO, Paula, “Retrato e auto-retrato - fronteiras e limites”, in O secreto e o


real. Ensaios sobre literatura portuguesa, Lisboa Ed. Campo da
Comunicação, 2011, pp. 55-65.

MORIN, Edgar, O cinema ou o homem imaginário, Lisboa, Moraes Editora, 21980.

MOURÃO-FERREIRA, David, “Cesário e Camões. Uma leitura complementar de


O sentimento dum ocidental”, in Revista Colóquio-Letras, nº 135-136, Janeiro
1995, pp. 83-94.

— “Imagens da Poesia Europeia I e II”, in Revista Colóquio-Letras, nº 166-169,


Janeiro-Junho 2004.

MOREIRA, Maria Micaela Dias Pereira Ramon, Os sonetos amorosos. Estudos


tipológicos, Braga, Universidade do Minho-Centro de Estudos Humanísticos,
1998.

NANCY, Jean-Luc, Resistência da poesia, Lisboa, Ed. Vendaval, 2005.

482
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

NAVA, Luís Miguel, Antologia de Poesia Portuguesa-1960/1990, Lisboa, Ed.


Caminho, 1991.

NEVES, Leonor Curado, “Para uma leitura do episódio do Adamastor: sobre um


artigo de António José Saraiva”, in Estudos Portugueses. Homenagem a
António José Saraiva, Lisboa, Instituto de Cultura e Língua
Portuguesa/Faculdade de Letras da Universidade, 1990, pp. 281-292.

NETO, João Cabral de Melo, Poesia e composição: a inspiração e o trabalho de


arte, Coimbra, Ed. Angelus Novus, 2003.

NUNES, José Ricardo, 9 poetas para o século XXI, Coimbra, Ed. Angelus Novus,
2002.

OLIVEIRA, Carlos de, O aprendiz de feiticeiro, Lisboa, Ed. Seara Nova, 21973.

OSÓRIO, Jorge, “Luís de Camões e Ausias March”, in Península. Revista de


Estudos Ibéricos, nº 0, 2003, p. 181-186.

PALLA, Maria José, Poetas, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian/Acarte, 1998.

PAREJO, Ramón Pérez, Metapoesia y crítica del lenguaje (De la generación de los
50 a los novísimos), Cáceres, Universidad de Extremadura, Servicio de
Publicaciones, 2002.

PAULINO, Francisco (coord.), A pintura maneirista em Portugal: arte no tempo


de Camões, Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos
Descobrimentos Portugueses, Fundação das Descobertas - Centro Cultural de
Belém, 1995.

PAZ, Octavio, Los hijos del limo, Barcelona, Ed. Seix Barral, 1974.

— La otra voz - poesia y fin de siglo, Barcelona, Ed. Seix Barral, 1990.

— A dupla chama. Amor e erotismo, S. Paulo, Ed. Siciliano, 1994.

— Signos em rotação, S. Paulo, Ed. Perspectiva, 31996.

— Versiones y diversiones, Barcelona, Ed. Galaxia Gutenberg, 2000.

— El arco y la lira, México, Ed. Fondo de cultura económica, 192012.

PENA, Abel N., “Musas”, in Vítor Aguiar e Silva (coord.), Dicionário de Luís de
Camões, Lisboa, Ed. Caminho, 2011, pp. 628-629.

483
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

PEREIRA, José Carlos Seabra, “Em torno das relações paragramáticas da poesia de
Afonso Duarte com a obra de Camões”, in Do Fim-de-Século ao tempo de
Orfeu, Coimbra, Livraria Almedina, 1979, pp.119-148.

— “Apontamentos sobre uma elegia augustiniana de Camões Se quando


contemplamos as secretas”, in Afectos às letras. Homenagem da literatura
portuguesa contemporânea a Jacinto Prado Coelho, Lisboa, Imprensa
Nacional-Casa da Moeda, 1984, pp. 329-335.

— “Para o estudo das incidências augustinianas na lírica de Camões”, in Actas da


IV Reunião Internacional de Camonistas, 1984, pp. 431-448.

— “Um século de poesia em revista”, in Revista Colóquio-Letras, nº 112,


Novembro-Dezembro, 1989, pp. 83-90.

— História crítica da literatura portuguesa. Do fim-de-século ao modernismo,


vol. VII, Lisboa, Ed. Verbo, 1995.

— “Os paradoxos da nação percursora”, in José Jorge Letria e António Carvalho


(ed.), Actas dos 3ºs Cursos Internacionais de Verão de Cascais, vol. 4
(Literatura, artes e identidade nacional), Cascais, Ed. Câmara Municipal de
Cascais, 1997, p. 170-185.

— “O poeta maldito e os profundos desejos decepados”, in Gomes Leal, A fome de


Camões, Lisboa, Ed. Assírio & Alvim, 1999, pp. 9-41.

— “Notas sobre Camões e o(s) Modernismo(s) em Portugal”, in Isabel Almeida et


alii (org.) Estudos para Maria Idalina Resina Rodrigues, Maria Lucília Pires
e Maria Vitalina Leal de Matos, Lisboa, Departamento de Literaturas
Românicas da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2007, pp.519-
-536.

— “Alotropia e desejo de plenitude na modernidade ocidental”, in Maria de Fátima


Silva (coord.), Utopias & distopias, Coimbra, Imprensa da Universidade,
2009, pp. 277-285.

— “A pena da escrita e o canto - de Camões a Pessoa”, in Actas do CEL – Centre


d'Études Lusophones de Genève, Filologia e literatura, nº 1, 2009, pp. 113-
-122.

— “Camões e o(s) Modernismo(s) em Portugal”, in Vítor Aguiar e Silva (coord.),


Dicionário de Luís de Camões, Lisboa, Ed. Caminho, 2011, pp. 147-153.

— “Camões e o neorromantismo”, in Vítor Aguiar e Silva (coord.), Dicionário de


Luís de Camões, Lisboa, Ed. Caminho, 2011, pp. 167-172.

484
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

— “Inês de Castro”, in Vítor Aguiar e Silva (coord.), Dicionário de Luís de


Camões, Lisboa, Ed. Caminho, 2011, pp. 444-449.

— Camões e a espiritualidade do seu tempo, in Maria do Céu Fraga et alii, Camões


e os seus contemporâneos, Braga, Centro Interuniversitário de Estudos
Camonianos, Universidade dos Açores, Universidade Católica Portuguesa,
2012, pp. 117-154.

— “Ainda Actéon na Écloga dos Faunos e a cisão na lírica camoniana”, in Seabra


Pereira e Manuel Ferro (coord.), Actas da VI Reunião Internacional de
Camonistas, Coimbra, Imprensa da Universidade, 2012, pp. 109-119.

— “Novos tempos de ‘a interminável preparação’ – Apontamentos sobre a poesia


portuguesa no primeiro decénio do século XXI”, in Álvaro Manuel Machado
et alii, Cultura XXI-Ensaios, Lisboa, Ed. Labirinto das Letras, 2015, pp. 117-
-188.

PEREIRA, Luís Alexandre Cabral da Silva, Imagens da lírica camoniana,


repertório e interpretação, Braga, Faculdade de Filosofia da Universidade
Católica Portuguesa, 2001.

PEREIRA, Maria Helena Rocha, “Nomes de ninfas em Camões”, in Novos ensaios


sobre temas clássicos na poesia portuguesa, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa
da Moeda, 1988, pp. 31-44.

— “O tema da metamorfose na poesia camoniana”, in Novos Ensaios sobre Temas


Clássicos na Poesia Portuguesa, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda,
1988, pp. 45-67.

— “O mito de Orfeu e Eurídice em Camões”, in Novos ensaios sobre temas


clássicos na poesia portuguesa, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda,
1988, pp. 69-81.

— “Uma descrição poética de Lisboa quinhentista”, in Novos ensaios sobre temas


clássicos na poesia portuguesa, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda,
1988, pp. 139-147.

— História da cultura clássica - Cultura romana, Lisboa, Fundação Calouste


Gulbenkian, 21990.

— “Elogios da língua portuguesa”, in Máthesis, nº 15, 2006, pp. 257-273.

— História da cultura clássica - Cultura grega, Lisboa, Fundação Calouste


Gulbenkian, 112012.

485
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

— Camoniana varia. Coimbra, Centro Interuniversitário de Estudos Camonianos,


2007.

— “Musas e Tágides n’Os Lusíadas”, in Seabra Pereira e Manuel Ferro (coord.),


Actas da VI Reunião Internacional de Camonistas, Coimbra, Imprensa da
Universidade, 2012, pp. 51-61.

— “Europa: os enigmas de um nome”, in Estudos sobre Roma - A Europa e o


legado clássico, Coimbra, Fundação Calouste Gulbenkian-Imprensa da
Universidade de Coimbra, 2015, pp. 147-153.

— “Les fondements classiques de l’idée européenne”, in Estudos sobre Roma - A


Europa e o legado clássico, Coimbra, Fundação Calouste Gulbenkian-
-Imprensa da Universidade de Coimbra, 2015, pp. 179-192.

PEREIRA, Ricardo Araújo, A doença, o sofrimento e a morte entram num bar.


Uma espécie de manual de escrita humorística, Lisboa, Ed. Tinta da China,
2016.

PEREIRA, Seabra e FERRO, Manuel (coord.), Actas da VI Reunião Internacional


de Camonistas, Coimbra, Imprensa da Universidade, 2012.

PEREIRA, Virgínia Soares, “Tágides”, in Vítor Aguiar e Silva (coord.), Dicionário


de Luís de Camões, Lisboa, Ed. Caminho, 2011, p. 917.

PERRONE-MOISÉS, Leyla, “A intertextualidade crítica”, in Laurent Jenny et alii,


Intertextualidades, Poëtique, nº 27, Coimbra, Livraria Almedina, 1979,
pp. 209-230.

PICCHIO, Luciana Stegagno, “O canto molhado: contributo para o estudo das


biografias camonianas”, in Arquivo Centro Cultural Português, vol. XVI,
Paris, Fundação Calouste Gulbenkian, 1981, pp. 243-265.

— “Para uma mitografia portugesa. O mito de Camões”, in Seabra Pereira e


Manuel Ferro (coord.), Actas da VI Reunião Internacional de Camonistas,
Coimbra, Imprensa da Universidade, 2012, pp. 73-82.

PIGLIA, Ricardo, “Memoria y tradición”, in 2º Congresso Abralic, Literatura e


Memória Cultural: Anais, Associação Brasileira de Literatura Comparada,
Belo Horizonte, 1991, pp. 60-66.

PIMPÃO, Álvaro Júlio da Costa, “Camões, sa vie et son oeuvre”, in Visages de


Luís de Camões. Conférences, Paris, Centro Cultural Português, 1972, pp. 11-
-32.

486
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

— “Camões leu Platão?”, in Escritos diversos, Coimbra, Acta Universitatis


Conimbrigensis, 1972, pp. 111-120.

PINTO, João Rocha, “Literatura de naufrágio”, in Luís de Albuquerque (org.),


Dicionário de História dos Descobrimentos, vol. II, Lisboa, Ed. Caminho,
1994, pp. 606-613.

PIRES, Maria Lucília Gonçalves, “José de Macedo: um ‘crítico’ de Camões”, in


Revista Colóquio-Letras, nº 40, Novembro, 1977, p. 20-27.

— Poetas do período barroco, Lisboa, Ed. Comunicação, 1985.

— “Camões no Barroco”, in Actas da III Reunião Internacional de Camonistas,


Coimbra, 1987, pp. 87-98.

— “Camonologia”, in Biblos. Enciclopédia Verbo das Literaturas de Língua


Portuguesa, vol. 1, Lisboa-S. Paulo, Ed. Verbo, 1995, cols. 906-911.

— Xadrez de Palavras, Lisboa, Ed. Cosmos, 1996.

— “Harmonia Mundi. A descrição camoniana da máquina do mundo”, in Arquivos


do Centro Cultural Calouste Gulbenkian-Homenagem a Maria de Lourdes
Belchior,Vol. XXXVII, Lisboa-Paris, 1998, pp. 201-210.

— História Crítica da Literatura Portuguesa, Vol. III - Maneirismo e Barroco, (em


colaboração com José Adriano de Carvalho), Lisboa, Ed. Verbo, 2001.

PINA, Manuel António, “Poesia e artes plásticas”, in Revista Relâmpago. Poesia e


artes visuais, nº 23, 2008, pp. 100-101.

PINHO, Sebastião Tavares de, “Fórmulas de expressão cronotópica n’ Os


Lusíadas”, Actas do V Congresso da Associação Internacional de
Lusitanistas, Oxford/Coimbra, Ed. Imprensa da Universidade de Coimbra,
1998, p. 1257-1267.

— Decalogia Camoniana. Coimbra, Centro Interuniversitário de Estudos


Camonianos, 2007.

PIÑON, Nélida, “A desdita da lira”, in Luís de Camões, Os Lusíadas, canto X,


comentários de José Hermano Saraiva e ilustrações de Pedro Proença, Lisboa,
Ed. Expresso, 2003.

POMAR, Júlio, Então e a pintura?, Lisboa, Ed. D. Quixote, 2002.

QUADROS, António - A ideia de Portugal na literatura portuguesa dos últimos


100 anos, Lisboa, Ed. Fundação Lusíada, 1989.

487
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

QUINTAIS, Luís, “A ekphrasis como meta-representação”, in Relâmpago. Poesia


e artes visuais, nº 23, 2008, pp. 92-95.

— “Camões, Montaigne e a sensibilidade antropológica moderna”, in Revista


Colóquio-Letras, nº 182, Janeiro 2013, pp. 32-41.

RAMALHO, Américo da Costa, “Sobre a cultura de Camões”, in Colóquio-Letras,


nº 70, Janeiro de 1979, pp. 70-73.

— Estudos Camonianos, Lisboa, Instituto Nacional de Investigação Científica,


1980.

— Camões no seu tempo e no nosso, Coimbra, Livraria Almedina, 1992.

REBELO, Luís de Sousa, “O texto e o contexto num soneto de Camões”, in


Arquivos do Centro Cultural Português, vol. XVI, Paris, 1981, pp. 437-446.

— A Tradição clássica na literatura portuguesa, Lisboa, Livros Horizonte, 1982.

— “As crónicas portuguesas do século XVI”, in Fernando Gil e Helder Macedo,


Viagens do Olhar. Retrospecção, visão e profecia no Renascimento
Português, Porto, Ed. Campo das Letras, 1998, pp. 175-201.

RÉGIO, José, “Discurso sobre Camões”, in Ensaios de interpretação crítica,


Lisboa, Ed. Portugália, 1964, pp. 7-70.

REIS, Carlos, “Intertextualidade e ideologia na imagem romântica de Camões”, in


Construção de leitura. Ensaios de metodologia e crítica literária, Coimbra,
Instituto Nacional de Investigação Científica, 1982, pp. 59-73.

— “Camões nas Viagens”, in Construção de leitura. Ensaios de metodologia e


crítica literária, Coimbra, Instituto Nacional de Investigação Científica, 1982,
pp. 75-101.

— O conhecimento da literatura. Introdução aos estudos literários, Coimbra,


Livraria Almedina, 1995.

— História Crítica da Literatura Portuguesa, Vol. IX - Do Neo-Realismo ao Pos-


-Modernismo, Lisboa, Ed. Verbo, 2006.

— “História literária e personagens na história: os mártires da literatura”, in Carlos


Reis et alii (org.), Uma coisa na ordem das coisas. Estudos para Ofélia Paiva
Monteiro, Coimbra, Imprensa da Universidade, 2012, pp. 97-119.

REIS-SÁ, Jorge e LAGE, Rui (org.), Poemas portugueses. Antologia da poesia


portuguesa do séc. XIII ao séc. XXI, Porto, Porto Editora, 2010.

488
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

REYNAUD, Maria João, Sentido literal - ensaios de literatura portuguesa, Porto,


Ed Campo das Letras, 2004.

— Matéria poética. Ensaios de literatura portuguesa, Porto, Ed. Campo das


Letras, 2009.

RIBEIRO, Eunice, “Poéticas do retrato - o desgaste das figuras”, in Revista


Diacrítica, nº 22/23, 2008, pp. 265-322.

— “O autorretrato em literatura. Ilustração e ruína”, in Carlos Cruz Corais (org.),


Encontros Estúdio Um, #8 Autorrepresentação, Braga, Escola de
Arquitectura da Universidade do Minho, 2014, pp. 19-35.

RIBEIRO, Maria Aparecida, “Um Adamastor ambíguo, uma tuba enrouquecida:


Camões na leitura de Nélida Piñon”, in Maria do Céu Fraga et alii (org.),
Camões e os contemporâneos, loc. cit., pp. 745-755.

RICOEUR, Paul, A memória, a história, o esquecimento, Campinas, São Paulo,


Editora da UNICAMP, 2007.

RIEWALD, J.G., “Parody as criticism”, in Neophilologus, vol. 1, nº 1, 1956,


pp. 17-30.

RODRIGUES, José Maria, Camões e a infanta D. Maria, Coimbra, Imprensa da


Universidade, 1910.

— A tese da Infanta nas Líricas de Camões, Coimbra, Imprensa da Universidade,


1933-1934.

— Fontes d’Os Lusíadas, prefácio de Américo da Costa Ramalho, Lisboa,


Academia das Ciências, 21979.

RODRIGUES, Urbano Tavares, “David Mourão-Ferreira e a Europa: um esteta do


amor e da morte”, in Colóquio-Letras, nº 145/146, Julho 1997, pp. 120-124.

RONCAGLIA, Aurelio, “Os Lusíadas de Camões: ut pictura poesis”, in Arquivos


do Centro Cultural Português, vol. IX, Paris, Fundação Calouste Gulbenkian,
1975, pp. 253-285.

— “Couleurs de peinture et coleurs de rhétorique dans la poésie lyrique de


Camões”, in Arquivos do Centro Cultural Português, vol. XVI, Paris,
Fundação Calouste Gulbenkian, 1981, pp. 371-386.

ROSA, António Ramos, Parede azul, Lisboa, Ed. Caminho, 1991.

489
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

ROSE, Margaret A., Parody - ancient, modern and post-modern, London,


Cambridge Univ. Press, 1993.

ROSSI, Paolo, O passado, a memória, o esquecimento: seis ensaios da história das


ideias, São Paulo, Editora UNESP, 2010.

ROUGEMONT, Denis de, Les mythes de l’amour, Paris, Ed. Albin Michael, 21996.

SALGADO JÚNIOR, António, Os Lusíadas e a viagem do Gama. O tratamento


mitológico duma realidade histórica, Porto, Club Fenianos Portuenses, 1939.

SAID, Edward, Fora de lugar: memórias, São Paulo, Ed. Companhia das Letras,
2004.

SANGSUE, Daniel, La parodie, Paris, Ed. Hachette, 1994.

— La relation parodique, Paris, Ed. José Corti, 2007.

SANTOS, José da Cruz (coord.), Alameda das Glicínias. Pinturas e poemas para
um aniversário, apresentação de Miguel Veiga, prefácio de Laura Castro e
Luís Miguel Queirós, Porto, Ed. Modo de Ler, 2015.

— (coord.), O Porto de Miguel Veiga. Fotografias, poemas, prosa & outros


lugares poéticos, Porto, Ed. Modo de Ler, 2016.

SARAIVA, António José, “Os Lusíadas e o ideal renascentista da epopeia”


(comentários em torno de um pseudo-problema), in Para a História da
Cultura em Portugal, vol. I, Lisboa, Ed. Europa-América, 1972, pp. 81-161.

— “Introdução”, in Luís de Camões, Os Lusíadas, Porto, Livraria Figueirinhas,


1978.

— Estudos sobre a arte d’Os Lusíadas, Lisboa, Ed. Gradiva, 1992.

— Luís de Camões. Estudo e antologia. Lisboa, Livraria Bertrand, 31980.

SARAIVA, António José e LOPES, Óscar, “Anos 70-90”, História da Literatura


Portuguesa, 17ª ed. corrigida e actualizada, Porto, Porto Editora, 1996.

SCHOLES, Robert, Protocolos de leitura, Lisboa, Ed. 70, 1991.

SCOTT, Grant F., The sculpted word: Keats, ekphrasis, and the visual arts,
London, University Press of New England, 1994.

490
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

SEABRA, José Augusto, “Camões e as gerações poéticas do século XX”, in Actas


da III Reunião Internacional de Camonistas, Coimbra, Universidade de
Coimbra, 1987, pp. 181-196.

— “Camões e Jorge de Sena”, in Nicolás Extremera Tapia e Manuel Correia


Fernandez (org.), Homenaje a Camoens, Granada, Universidad de Granada,
1980, pp. 387-395.

— Portugal face à Europa, Porto, Ed. Athena, 1997.

SEIXO, Maria Alzira (coord.), Poéticas do século XX, Lisboa, Livros Horizonte,
1984.

— Poéticas da viagem na literatura, Lisboa, Ed. Cosmos, Lisboa, 1998.

— Outros erros, Porto, Ed. Asa, 2001.

SENA, Jorge de, A estrutura de Os Lusíadas e outros estudos camonianos e de


poesia peninsular do século XVI, Lisboa, Ed. Portugália, 1970.

— “Aspectos do pensamento de Camões através da estrutura linguística de Os


Lusíadas”, in Actas da I Reunião Internacional de Camonistas, Lisboa,
Comissão Executiva do IV Centenário da Publicação de Os Lusíadas, 1973,
pp. 43-58.

— Dialécticas da Literatura, Lisboa, Edições 70, 1973.

— Dialécticas Aplicadas da Literatura, Lisboa, Edições 70, 1978.

— Trinta anos de Camões (1948-1978), Lisboa, Edições 70, 1980.

— A estrutura de Os Lusíadas e outros estudos camonianos e de poesia peninsular


do século XVI, Lisboa, Edições 70, 1980.

— Uma canção de Camões, Lisboa, Edições 70, 1984.

SÉRGIO, António, Ensaios, tomo V, Lisboa, Ed. Sá da Costa, 21981.

SILVA, Luís de Oliveira e, Ideologia, retórica e ironia n’Os Lusíadas, Lisboa,


Edições Salamandra, 1999.

— “Ideologia e retórica n’Os Lusíadas”, in Seabra Pereira e Manuel Ferro (coord.),


Actas da VI Reunião Internacional de Camonistas, Coimbra, Imprensa da
Universidade, 2012, pp. 125-134.

491
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

SILVA, Vítor Manuel Aguiar e, Para uma interpretação do classicismo, Coimbra,


Coimbra Editora, 1962.

— Maneirismo e Barroco na Poesia Lírica Portuguesa, Coimbra, Centro de


Estudos Românicos, 1971.

— Significado e estrutura de Os Lusíadas, Lisboa, Comissão executiva do IV


centenário da publicação de Os Lusíadas, 1972.

— “O texto literário e os seus códigos”, in Revista Colóquio-Letras, nº 21,


Setembro 1974, pp. 21-33.

— Competência linguística e competência literária, Coimbra, Livraria Almedina,


1977.

— Teoria da literatura, Coimbra, Livraria Almedina, 41982.

— Teoria e metodologia literárias, Lisboa, Universidade Aberta, 1990.


— Camões: labirintos e fascínios, Lisboa, Edições Cotovia, 1994.

— A lira dourada e a tuba canora, Lisboa, Ed. Cotovia, 2008.

— Jorge de Sena. Trinta anos de amor e melancolia, Coimbra, Ed. Angelus Novus,
2009.
— “Vénus”, in Vítor Aguiar e Silva (coord.), Dicionário de Luís de Camões,
Lisboa, Ed. Caminho, 2011, pp. 957-961.

SILVEIRA, Jorge Fernandes da, “Era uma vez Camões na Ilha de Moçambique”,
in http://www.macua.org/coloquio/ERA_UMA_VEZ_CAMOES_Jorge_Fer-
nandes.htm (consultado em 20 Abril 2014).

SILVESTRE, Osvaldo Manuel, e SERRA, Pedro (org.), Século de Ouro. Antologia


crítica da poesia portuguesa do século XX, Lisboa, Ed. Cotovia.

SIMÕES, Manuel, A literatura de viagens nos séculos XVI e XVII, Lisboa, Ed.
Comunicação, 1985.

SIMON, Claude, “Roman et mémoire” (extrait d’une conférence inédite), in Revue


des Sciences Humaines: Claude-Simon, nº 220, octobre-décembre, 1990,
pp. 191-192.

SONTAG, Susan, Ensaios sobre fotografia, Lisboa, Lisboa, Ed. D. Quixote, 1986.

SPAGGIARI, Barbara, Camões e o Outono do Renascimento, Coimbra, Centro


Interuniversitário de Estudos Camonianos, 2011.

492
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

SPINA, Segismundo, Introdução à poética clássica, S. Paulo, Ed. Martins Fontes,


1995.

STEINER, George, Depois e Babel. Aspectos de linguagem e tradução, Lisboa, Ed.


Relógio d’Água, 2002.

— Paixão Intacta, Lisboa, Ed. Relógio d’Água, 2003.

— A ideia da Europa, Lisboa, Ed. Gradiva, 42007.

— Nostalgia do absoluto, Lisboa, Ed. Relógio d’Água, 2013.

STEINMETZ, Horst, “7. Recepção e Interpretação”, in A. Kibédi Varga (org.)


Teoria da Literatura, Lisboa, Ed. Presença, 1982.

STIERLE, Karlheinz, “Que significa a recepção dos textos ficcionais?”, in Luiz


Costa Lima, A literatura e o leitor. Textos de estética da recepção, Rio de
Janeiro, Ed. Paz e Terra, 1979.

— “Lenguaje y identidad del poema”, in Teoria sobre la lírica, Madrid,


Ed. Arcos/libros, 1999.

— Existe uma linguagem poética? Seguido de obra e intertextualidade, Vila Nova


de Famalicão, Ed. Quasi, 2008.

STORCK, Wilhelm, Vida e obras de Luís de Camões, Lisboa, Ed. Bonecos


Rebeldes, 32011.

TADIÉ, Jean-Yves et TADIÉ, Marc, Le Sens de la Mémoire, Paris, Ed. Gallimard,


1999.

TAVANI, Giuseppe, “A estrutura espácio-temporal de Os Lusíadas”, in Ensaios


portugueses: filologia e linguística, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da
Moeda, 1988, pp. 429-436.

— “Ainda sobre a estrutura espácio-temporal de Os Lusíadas”, in Ensaios


portugueses: filologia e linguística, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da
Moeda, 1988, pp. 437-449.

TELES, Gilberto Mendonça, Camões e a poesia brasileira e o mito camoniano na


língua portuguesa, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 42001.

TEYSSIER, Paul, A língua de Gil Vicente, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da


Moeda, 2005.

TOMPKINS, Jane P. (ed.), Reader-response criticism: from formalism to post-


-structuralism, Baltimore, The Johns Hopkins University Press, 1980.
493
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

TROUSSON, Raymond, Temas e motivos. Questões de método, Lisboa, Livros


Horizonte, 1988.

URBANO, Carlota Miranda, Tipologias literárias do martírio na hagiografia: as


origens”, in separata da Revista Theologica, II série, vol. XLI, fasc. 2, 2006,
pp. 331-358.

— “Martírio e identidade no advento da Europa moderna. Narrativa, memória


colectiva e consciência europeia”, in Nair de Nazaré Castro Soares e Santiago
López Moreda (coord.) Génese e consolidação da ideia de Europa, vol. IV,
Coimbra, Imprensa da Universidade, 2009, 415-431.

URBANO, Maria Luísa Malaquias, História trágico-marítima: uma visão


maneirista do homem. Queda, expiação e morte, Coimbra, Centro
Interuniversitário de Estudos Camonianos, 2012.

VALVERDE, José Filgueira, Camões, Coimbra, Livraria Almedina, 1981.

VASCONCELOS, Carolina Michaelis de, A Infanta D. Maria de Portugal e as


suas damas, Lisboa, Biblioteca Nacional, 21994.

VENÂNCIO, Fernando, A crónica jornalística do século 20, Lisboa, Ed. Círculo


Leitores, 2004.

VENTURA, José Manuel, “A sugestão do oriente camoniano em Manuel Alegre”,


in Boletim de Estudos Clássicos, nº 35, Junho 2001, Ed. Colibri-Associação
Portuguesa de Estudos Clássicos, pp. 141-149.

— João Soares de Brito, um crítico barroco de Camões, Coimbra, Centro


Universitário de Estudos Camonianos-Imprensa da Universidade, 2010.

VERDELHO, Telmo, Luís de Camões: concordância da obra toda, Coimbra,


Centro Interuniversitário de Estudos Camonianos, 2012.

VILELA, José Stichini, Francisco de Holanda-vida, pensamento e obra, Lisboa,


Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1982.

WELLEK, René e WARREN, Austin, Teoria da Literatura, Mem Martins,


Publicações Europa-América, 1976.

ZILBERMAN, Regina, Estética da recepção e história da literatura, S. Paulo, Ed.


Ática, 1989.

494
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

Índice onomástico
Bieres, Isabel Morujão de - 57
Bismut, Roger - 222, 233
A
Bloom, Harold - 8, 64
Blumenberg, Hans - 228
Abad, José Manuel Cuesta - 17 Bochichio, Maria -101
Abastado, Claude - 248 Boechat, Virgínia - 258
Albuquerque, Luís de - 234, 269 Borges, Jorge Luis - 71, 165
Albuquerque, Martim de - 278, 290 Borges, Maria João, 150, 175, 189
Alegre, Manuel - 232, 342 Bosi, Ecléa - 338
Almeida, Aníbal - 165, 166 Braga, Teófilo de - 257
Almeida, Bernardo Pinto de - 95, 96, 101, 107 Brunel, Pierre - 8, 12, 24, 29, 367
Almeida, Isabel - 34, 150, 177, 180, 182, 205, Buescu, Maria Leonor Carvalhão - 61, 63, 86,
211, 258, 359 201, 252, 383
Alves, Hélio J. S. - 177, 186, 240, 246, 247 Bürger, P. - 7, 12, 13, 17
Amaral, Fernando Pinto do - 48, 51, 66, 71, 73,
101, 135, 140, 142, 174, 244, 286, 336, 351, 360,
374 C
Amóra, André Luiz Alves Caldas - 245
Anacleto, Marta Teixeira- 29, 30
Anastácio, Vanda - 171 Cabañas, Pablo - 414
Andrade, Eugénio de - 45, 46, 50, 57, 79, 121, Calinescu, Matei - 245
328, 332, 342, 394 Camões, Luís de - 3, 4, 5, 6 ,7, 8, 11, 21, 28, 30,
André, Carlos Ascenso - 206, 361, 389 32, 33, 34, 35, 36, 37, 39, 45, 46, 47, 48, 60, 63,
Andresen, Sophia de Mello Breyner - 46, 50, 64, 66, 80, 128, 129, 144, 147, 150, 151, 152, 153,
154, 258, 262, 354 154, 155, 156, 157, 158, 159, 160, 161, 162, 163,
Antunes, António Lobo - 162 164, 165, 166, 167, 168, 169, 170, 171, 172, 173,
Aristóteles - 8, 21, 25, 27, 185, 352 174, 175, 176, 177, 178, 179, 180, 181, 182, 184,
Arnaut, Ana Paula - 273 185, 186, 187, 188, 189, 190, 191, 192, 193, 194,
Arrivé, Michel - 149 195, 196, 197, 198, 199, 200, 201, 202, 203, 204,
Asensio, Eugenio - 33 205, 206, 207, 208, 209, 210, 211, 212, 213, 214,
Aurélio, José - 64, 90, 116, 117, 161, 162, 168, 215, 216, 217, 219, 220, 221, 222, 223, 227, 228,
204, 229, 230, 231, 232, 233, 234, 235, 236, 239, 240,
Azevedo Filho, Leodegário A. - 171, 181 241, 242, 243, 244, 245, 246, 247, 248, 249, 250,
Azevedo, Manuela de - 227 251, 252, 253, 254, 255, 256, 257, 258, 259, 260,
Azevedo, Maria Antonieta Soares de - 167 261, 262, 263, 264, 265, 266, 267, 268, 269, 270,
Azevedo, Maria Teresa Schiappa de - 70, 399, 271, 272, 273, 274, 275, 276, 277, 278, 279, 280,
400 281, 282, 283, 284, 285, 286, 287, 292, 295, 296,
303, 304, 305, 306, 307, 310, 315, 319, 320, 325,
329, 330, 335, 340, 341, 342, 343, 344, 354, 355,
356, 357, 359, 360, 361, 363, 364, 365, 366, 367,
B
368, 369, 370, 373, 375, 377, 379, 380, 382, 385,
387, 386, 389, 390, 391, 392, 393, 395, 397, 398,
Bachelard, Gaston - 338 400, 401, 402, 403, 404, 405, 406, 407, 408, 409,
Bakhtine, Mikhail - 188 410, 411, 412, 413, 414, 415, 416, 418, 419, 420,
Barbas, Helena - 64,74 423
Barrento, João - 54, 55, 56, 68, 93, 94, 191, 211, Campoamor, Ramon de - 309
215, 218, 221, 275, 286, 289, 324, 349, 394, 399 Campos, A. J. Segurado de - 219
Barroso, Eduardo Paz - 46, 47, 93, 290, 301, 311, Cândido, António - 235
313, 323, 332, 338, 339, 356 Carmo, Carlos do - 340
Barthes, Roland - 83, 103, 108 Carrila, Emilio - 385
Bassnett, Susan - 30 Carrington, Maria Cristina -182
Batista, Manuel Pereira - 293 Carvalho, Joaquim de - 185
Beirão, Mário - 51, 235 Carvalho, José G. Herculano de - 220
Belchior, Maria de Lourdes - 208, 240 Carvalho, Teresa - 47, 104, 112, 117, 402
Benjamin, Walter - 54, 107, 109 Castelo-Branco, Fernando - 341
Berardinelli, Cleonice - 176, 208, 255, 263 Castro, Aníbal Pinto de - 7, 11, 21, 22, 33, 64,
Bernardes, José Augusto Cardoso - 60, 176, 179, 151, 155, 193, 215, 223, 228, 229, 235, 245, 249,
181, 195, 245, 255, 257, 264 255, 257, 261, 271, 395, 397
Castro, D. João de - 229, 240
Castro, Ivo de - 223

495
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

Castro, Laura - 316 Ferreira, António - 65, 123, 217, 318, 396
Castro, Sílvio - 239 Ferreira, António Manuel - 367
Centeno, Y. K. - 240 Ferreira, António Mega - 317
Chevalier, Jean - 234 Ferreira, José Ribeiro - 380, 398
Chevrel, Yves - 24, 28, 29 Ferreira, Paulo Sérgio - 248
Cícero - 21, 73, 363, 406 Ferreira, Vergílio - 46, 57, 200, 222
Cidade, Hernâni - 33, 160, 251, 341, 409 Ferro, Manuel - 6, 11, 25, 27, 28, 169, 206, 212,
Cirurgião, António -117, 236 248, 255, 264, 284
Cláudio, Mário - 162, 317, 320 Fialho, Maria do Céu - 47, 227, 402
Coelho, Eduardo Prado - 45, 384 Figueiredo, Albano - 397
Coelho, Jacinto do Prado - 46, 263, 272, 274 Flaubert, Gustave - 60, 402
Colomès, Jean - 20, 153, 222 Flor, Pedro Eugénio D. Ferreira de Almeida - 170
Compagnon, Antoine - 151 Fraga, Maria do Céu - 178, 195, 200, 228, 236,
Cortesão, Jaime - 234 244, 344, 408
Cortez, António Carlos - 56, 61, 63, 72, 80, 129, França, Elisabete - 55
278 França, José-Augusto - 98, 167
Costa, A. Fontoura da - 229 Franco, Márcia Arruda - 74, 382, 473
Coutinho, Bernardo Xavier -158 Freidenberg, Olga M. - 252
Couto, Diogo do - 156, 157, 232, 236 Freitas, Manuel de - 49
Craveiro, Maria José - 338 Frias, Joana Matos - 73, 81, 109
Cruz, Gastão - 49, 51, 126, 214
Cruz, Maria Teresa - 10, 16
Cuesta, Pilar Vazquez - 211 G
Cunha, António Geraldo da - 227, 277
Cunha, Carlos Manuel Ferreira da - 33 Gadamer, Hans-Georg - 17
Cunha, Maria Helena Ribeiro da - 184, 403 Garcia, José Manuel - 234
Curtius, Ernst Robert - 227, 236, 375 Garrett, Almeida - 49, 50, 194, 258, 264, 269,
Custódio, Pedro Balaus - 234 274, 276
Gastão, Ana Marques - 67, 207, 288, 353
Gedeão, António - 51, 186, 188
D Genette, Gérard - 23, 51, 77, 149, 248, 250
George, João Pedro - 272
Dasilva, Xosé Manuel - 54, 215 Gil, Fernando - 238, 305, 356
Delille, Maria Manuela Gouveia - 31, 179 Gil, Isabel Capeloa - 296
Deswarte-Rosa, Sylvie - 169 Glissant, Edouard - 222
Dias, Aida Fernanda - 397 Goethe - 50, 60, 307, 309
Dias, Ana Sousa - 44, 327 Golopentia-Erestecu, Sanda - 248
Diaz, Emilio Orozco - 361 Gomez-Moriana, António - 222
Dirscherl, Klaus - 16 Gonçalves, Francisco Rebelo - 224
Duarte, Joana - 338 Goulart, Rosa Maria - 352
Dubois, Claude-Gilbert - 22, 262, 263, 360 Grimal, Pierre - 281, 310, 373, 415
Dufrenne, Mikel - 64 Guillén, Claudio - 21
Guimarães, Fernando - 47, 324
Guimarães, José de - 194
E
H
Earle, T. L. - 65, 217
Ekelöf, Gunnar - 54, 294
Eliot, T. S. - 80, 127, 132, 148, 409, 422 Halbwachs, Maurice - 338
Estrela, Edite - 332 Hamon, Philippe - 104
Eco, Umberto - 13, 16, 17, 19, 28, 29, 188, 213, Hanenberg, Peter - 66, 346
219 Hatherly, Ana - 54, 294, 4082
Hatzfeld, Helmut Anthony - 366
Hauser, Arnold - 382
Hélder, Herberto - 49, 92, 182
F
Hocke, Gustav R. - 375
Hölderlin - 60, 393, 399
Faria, Manuel Severim de - 157, 160, 168, 220, Horácio - 21, 22, 23, 54, 60, 64, 73, 366, 383, 421
230 Höster, Maria António H. J. Ferreira - 393
Febvre, Lucien – 293 Householder, Fred W. – 248

496
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

I Luciano - 309
Langrouva, Helena - 412
Idt, Geniève - 23, 24, 25 Lourenço, José Fazenda - 156, 255, 258, 290
Ingarden, Roman - 10, 13, 14
Iser, Wolfgang - 9, 10, 12, 13, 14, 15, 16, 18, 23
M

J
Macedo, Hélder - 238, 305, 356, 361, 404, 405,
412
Janet, Pierre - 344 Macedo, Jorge Borges de - 280
Jankélévitch, Vlademir - 274 Machado, Álvaro Manuel - 8, 18, 24, 29, 30, 32,
Jauss, Hans Robert -7, 8, 9, 10, 11, 13, 14, 15, 16, 250, 327
17, 18, 19, 20, 24, 26, 27, 31, 32, 34 Maffei, Luis - 150
Jenny, Laurent - 22, 23, 199 Maravall, José Antonio - 262, 311, 350, 364, 367
Jordan, Annemarie - 168 Margarido, Alfredo - 149
Jozef, Bella - 338 Marinho, Maria de Fátima -148, 227
Júdice, Nuno - 47, 227, 276, 317, 342 Marnoto, Rita - 54, 57, 175, 189, 198, 204, 208,
Júnior, António Salgado - 200, 206 215, 305, 354, 355, 375, 388, 394, 395, 401, 414
Marques, João Minhoto - 199, 200
Martelo, Rosa Maria - 81, 114, 137, 148, 172,
K 301, 338, 344, 349, 351, 396
Martín, Ana Maria García - 211
Martín, José Luis García - 291
Kayser, Gerhard R. - 26, 28
Martinho, Fernando J. B. - 150, 156
Kerényi, Károly - 382
Martins, Andreia A. Paula - 234
Krieger, Murray - 78, 83, 289 Martins, Guilherme d’Oliveira - 209, 274, 296
Kristeva, Julia - 23, 148 Martins, José Cândido - 112, 196, 245, 246, 248
Martins, José V. Pina - 33, 253, 284
Martins, Oliveira - 278, 279
L Mateus, Rui Manuel Afonso - 21
Matos, Maria Vitalina Leal de - 33, 147, 148,
Ladmiral, Jean René - 29, 31 150, 156, 173, 176, 177, 179, 180, 184, 186, 199,
Lafer, Celso - 270 203, 205, 227, 228, 230, 231, 243, 256, 261, 262,
Lage, Rui - 52, 339, 420 273, 274, 277, 282, 363, 375
Lanciani, Giulia - 232, 238, 413 Maurer, Karl - 12
Langrouva, Helena - 250 Medeiros, Walter - 312, 371
Lapa, Rodrigues - 234 Melo, D. Francisco Manuel de - 20, 45, 153, 210,
Lausberg, Heinrich - 180 222, 271, 273, 406
Leão, Delfim - 371 Mendes, Margarida Vieira - 26
Leão, Isabel Ponce - 93, 301, 311, 323, 338, 356 Meschonnic, Henri - 216
Lefevere, André - 58 Mexia, Pedro - 60, 61, 342, 412
Lejeune, Philippe - 306, 350, 354 Miranda, José da Costa - 171
Lelièvre, F. J. - 248 Miranda, Sá de - 50, 84, 135, 136, 266, 318, 374
Lemos, Antero Vieira de - 211 Moniz, António Manuel de Andrade - 234
Lima, Isabel Pires de - 112, 157, 178, 246, 272, Monteiro, Joana d’Oliva - 91
277, 305 Monteiro, Ofélia Paiva - 150, 161, 269
Lima, Luiz Costa - 9, 10, 11, 13, 14, 16, 18, 19, Mora, Carlos de Miguel - 73, 248
25, 27, 28, 33 Morão, Paula - 93, 94, 112
Lisboa, Eugénio - 150, 174 Morin, Edgar - 139
Lobo, Francisco Rodrigues - 187, 220 Moura, Vasco Graça - 3, 4, 5, 31, 34, 35, 36, 37,
Lopes, Óscar - 35, 44, 45, 60, 72, 123, 136, 148, 38, 39, 40, 43, 44, 45, 46, 47, 48, 50, 52, 53, 54,
149, 154, 253, 258, 313, 332, 345 55, 56, 57, 58, 59, 60, 61, 62, 63, 64, 65, 66, 67,
Lopes, Silvina Rodrigues - 382 68, 69, 70, 71, 73, 75, 76, 77, 78, 79, 80, 81, 82,
Lotman, Yuri - 140 84, 85, 86, 87, 88, 89, 90, 91, 92, 93, 94, 95, 96,
Lourenço, Eduardo - 34, 45, 63, 69, 178, 181, 97, 98, 99, 100, 101, 102, 103, 104, 105, 106,
186, 190, 209, 255, 264, 266, 270, 273, 275, 276, 107, 108, 109, 110, 111, 112, 113, 114, 115, 116,
279, 280, 281, 296, 323, 338, 339, 367, 376, 377, 117, 118, 119, 120, 121, 122, 123, 124, 125, 126,
407, 410 127, 128, 130, 131, 132, 133, 134, 136, 138, 141,
Lourenço, Frederico - 173, 181, 197, 211, 216, 143, 144, 147, 151, 154, 156, 158, 159, 160, 161,
222, 254, 399 162, 163, 164, 165, 166, 167, 168, 171, 173, 174,

497
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

177, 178, 180, 181, 182, 183, 189, 191, 192, 193, Pereira, José Pacheco – 319, 320, 321, 394
194, 195, 199, 200, 202, 204, 207, 208, 209, 210, Pereira, Maria Helena Rocha – 120, 121, 152,
211, 213, 214, 215, 216, 217, 218, 219, 221, 224, 205, 217, 230, 231, 258, 279, 282, 289, 341, 352,
229, 231, 232, 235, 237, 239, 240, 241, 244, 245, 409, 413, 414
246, 247, 249, 250, 253, 258, 259, 264, 265, 269, Pereira, Paulo Alexandre - 367
270, 271, 272, 273, 274, 275, 276, 277, 278, 280, Pereira, Ricardo Araújo - 292
281, 283, 284, 285, 286, 287, 288, 289, 290, 291, Pereira, Virgínia Soares - 112, 343
292, 293, 294, 295, 296, 301, 302, 303, 304, 305, Perrone-Moisés, Leyla - 22
306, 307, 308, 309, 310, 311, 312, 313, 314, 315, Pessanha, Camilo - 50, 121, 173, 234, 238
316, 317, 318, 319, 320, 321, 322, 323, 324, 325, Pessoa, Fernando - 43, 46, 47, 50, 70, 94, 114,
326, 327, 328, 329, 331, 332, 333, 334, 335, 336, 160, 167, 191, 272, 276, 292, 340
337, 338, 339, 340, 341, 342, 343, 344, 345, 346, Picchio, Luciana Stegagno - 54, 177, 231
347, 348, 349, 350, 353, 354, 355, 356, 357, 358, Piglia, Ricardo - 338
359, 360, 361, 362, 363, 364, 365, 366, 367, 368, Pimentel, Diana - 80
369, 370, 371, 372, 373, 374, 376, 377, 378, 379, Pimpão, Costa - 153, 163, 178, 199, 200, 212,
380, 381, 382, 383, 384, 385, 386, 387, 388, 389, 230, 233, 251
390, 391, 392, 393, 394, 395, 396, 397, 398, 399, Pina, Manuel António - 87, 195
400, 401, 402, 403, 404, 405, 406, 407, 408, 409, Pinho, Sebastião Tavares de - 277
410, 411, 414, 416, 417, 418, 419, 420, 421, 422, Piñon, Nélida - 195, 344
423 Pinto, João Rocha - 234
Mourão-Ferreira, David - 45, 50, 199, 200, 276, Pires, Maria Lucília Gonçalves - 11, 22, 28, 30,
277, 340, 410 34, 147, 240, 364, 372
Moutinho, José Viale - 35, 166 Platão - 200, 399, 400
Mouzinho, António Ruivo - 150 Pomar, Júlio - 56, 85, 89, 90, 91, 166, 167, 340

Q
N
Quadros, António - 267
Queirós, Eça de - 49, 276, 279, 408
Nava, Luís Miguel - 49, 258
Queirós, Luís Miguel - 316, 317
Nemésio, Vitorino - 45, 49, 50, 79, 94
Quintais, Luís - 78
Nery, Rui Vieira - 46, 122, 181, 190, 306, 339,
413
Neto, João Cabral de Melo - 50
R
Nobre, António - 45, 50, 328
Nunes, José Ricardo -124
Ramalho, Américo da Costa - 166, 193, 309, 366
Real, Miguel - 56, 69, 72, 80, 129, 277
O Rebelo, Luís de Sousa -149, 236
Régio, José - 49, 132
Reis, Carlos - 22, 32, 161, 173, 195, 257
Oliveira, Carlos de - 188
Reis-Sá, Jorge – 51
Oliveira, Fernando Matos - 63, 76, 106, 107, 131
Ribeiro, António Pinto - 62, 101
Oliveira, Francisco de - 227
Ribeiro, Bernardim - 50, 361
O'Neill, Alexandre - 50, 92, 104, 126, 340
Ribeiro, Eunice Maria da Silva - 94, 97, 99, 111,
Osório, Jorge - 181
290, 291, 306
Ribeiro, Maria Aparecida - 195, 344
Ricoeur, Paul - 388
P Riewald, J. G. - 248
Rodrigues, José - 74, 117, 119, 280, 332, 381
Pageaux, Daniel-Henri - 8, 18, 24, 29, 31, 32 Rodrigues, José Maria - 171, 181, 232, 233, 259
Palla, Maria José - 110 Roncaglia, Aurelio - 280
Parejo, Ramón Pérez - 148 Rosa, António Ramos -121
Pascoaes, Teixeira - 160, 257 Rose, Margaret A. - 248
Paz, Octavio - 56, 153, 307, 353, 357, 409 Rossi, Paolo - 338
Pedro, António - 413
Peixoto, Afrânio - 232 S
Pena, Abel N. - 409
Pereira, José Carlos Seabra - 34, 46, 150, 169, Said, Edward - 338
195, 200, 206, 209, 235, 264, 268, 269, 270, 284, Salazar, Tiago - 207
327, 351, 367, 409

498
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

Sangsue, Daniel - 248 U


Santos, Gilda - 77, 157, 158, 174
Santos, José da Cruz - 35, 63, 67, 112, 121, 157, Urbano, Carlota Miranda - 290
166, 178, 275, 305, 315, 316, 318, 324, 327, 335, Urbano, Maria Luísa Malaquias - 234
323, 336, 338, 406 Urbano, Tavares Rodrigues - 276
Saraiva, António José - 25, 35, 151, 183, 244,
379, 381
Scholes, Robert - 9 V
Scott, Grant F. - 77
Seabra, José Augusto - 150, 174, 258, 275, 278
Seixas, Ana Margarida S. Falcão - 289 Valverde, José Filgueira - 211
Seixo, Maria Alzira - 177, 228, 233, 238, 366 Varga, A. Kibédi - 18, 19, 28, 32
Sena, Jorge de - 35, 49, 50, 51, 57, 73, 77, 79, 80, Vasconcelos, Carolina Michaelis de - 171, 266
84, 113, 152, 154, 155, 156, 157, 158, 160, 169, Vasconcelos, José Carlos - 64
174, 180, 184, 186, 199, 207, 208, 210, 211, 213, Veiga, Miguel - 47, 118, 315, 317, 318, 332, 404
217, 232, 240, 250, 255, 258, 290, 307, 308, 356 Venâncio, Fernando - 59
Séneca - 248, 363 Ventura, José Manuel - 11, 112, 168, 267
Sérgio, António - 201, 234 Verde, Cesário - 35, 50, 86, 102, 116, 142, 223,
Serra, Pedro - 49, 106, 107, 131 257, 308, 313, 337, 340, 343, 344, 345, 346, 386
Silva, Rodrigues da - 44, 55, 59, 122 Verdelho, Telmo - 227, 239, 341, 343
Silva, Vítor Manuel Aguiar e - 7, 12, 17, 23, 25, Viegas, Francisco José - 112, 251
26, 27, 31, 32, 34, 65, 66, 67, 72, 73, 94,121, 122, Vilela, José Stichini - 170
147, 150, 159, 164,171, 174, 176, 177, 178,181, Virgílio - 19, 60, 111, 307
182, 183, 184, 188, 191, 192, 195, 200, 204, 211,
212, 217, 223, 233, 234, 236, 238, 239, 240, 245,
248, 249, 251, 252, 254, 268, 269, 273, 274, 291, W
302, 312, 343, 352, 354, 356, 357, 360, 364, 367,
374, 375, 379, 383, 385, 397, 401, 403, 405, 406, Warren, Austin - 26, 363, 364
408, 409, 411 Weinberg, Bernard - 25, 353
Silveira, Francisco Maciel - 268 Wellek, René - 26, 363, 364
Silveira, Jorge Fernandes da - 155
Silvestre, Osvaldo Manuel - 49, 106, 107, 157
Simões, Manuel - 234, 238 Z
Simon, Claude - 338
Sontag, Susan - 102, 103, 105, 107, 108
Spaggiari, Barbara - 75, 220 Zemb, Jean-Marie - 29, 31
Spina, Segismundo - 65 Zilberman, Regina - 9, 11, 12, 15, 18, 19, 32
Steiner, George - 30, 31, 55, 206, 220, 287, 289, Zurara, Gomes Eanes - 284
294
Steinmetz, Horst -19
Stierle, Karlheinz - 11, 14, 25, 26, 31, 150
Storck, Wilhelm - 177, 178, 181

Tadié, Jean-Yves - 338


Tadié, Marc - 338
Tavani, Giuseppe - 241, 242
Tavares, Daniel - 99, 336
Tavares, Maria Andresen Sousa - 180, 258
Tavares, Pedro Vilas-Boas - 57
Teixeira, Sandra - 84, 104, 135, 136, 306, 309,
353
Teles, Gilberto Mendonça - 162, 248
Terêncio - 312
Teyssier, Paul - 212
Tompkins, Jane P. - 15, 473
Torga, Miguel - 51, 52, 58, 394

499
Vasco Graça Moura e Camões: tradição e metamorfose

Índice geral
Resumo ................................................................................................................................ 3
Abstract ............................................................................................................................... 4
Preâmbulo ........................................................................................................................... 5
Introdução ........................................................................................................................... 7
1. Fundamentos de uma ars poetica: entre a sublimação e a superação
1.1. Produção poética e perfil cultural de Vasco Graça Moura .......................................... 43
1.2. Labor poético versus inspiração .................................................................................. 63
1.3. As artes plásticas na poesia de vgm ............................................................................ 72
1.4. Contornos especulares: o retrato ................................................................................. 89
1.5. A representação do humano na câmara escura .......................................................... 100
1.6. A estatuária: arte performativa da figuração das imagens ........................................ 111
1.7. O gosto melómano do poeta ...................................................................................... 121
1.8. O cinema: os sentidos em movimento ....................................................................... 137
2. Enunciação e memória
2.1. Camões: ecos e reflexos em pedaços repartidos........................................................ 147
2.2. Os rostos de Camões ................................................................................................. 158
2.3. Uma voz deflectida .................................................................................................... 172
2.4. O divino e o profano .................................................................................................. 199
2.5. Tradução dos versos castelhanos de Camões: a literatura em diálogo ...................... 211
2.6. Língua portuguesa: “és nossa” .................................................................................. 217
3. Imagens camonianas das “perigosas cousas do mar” e da terra
3.1. Sob o signo do naufrágio: Dinamene e Sepúlveda .................................................... 227
3.2. Cartografia do regresso ............................................................................................. 249
3.3. O desencanto da chegada: desejo e ausência ............................................................. 263
3.4. A representação da Europa: identidade e memória ................................................... 275
4. Em demanda dos sentidos do mundo
4.1. Circunstância e poesia ............................................................................................... 301
4.1.1. A tentação da realidade .......................................................................................... 301
4.1.2. As pessoas: memórias e afectos ............................................................................. 312
4.1.3. Espaços e horizontes............................................................................................... 332
4.1.4. A imitatio vitae ....................................................................................................... 349
4.2. Temas de sugestão camoniana .................................................................................. 357
4.2.1. O tópico do tempus fugit ........................................................................................ 357
4.2.2. A representação da morte ....................................................................................... 368
4.2.3. O desconcerto do mundo ........................................................................................ 373
4.2.4. O poeta no seu labirinto.......................................................................................... 380
4.2.5. O encanto feminino ................................................................................................ 387
4.2.5.1. A mulher inúmera ................................................................................................ 387
4.2.5.2. A beleza e a inspiração ........................................................................................ 390
4.2.5.3. A definição do Amor ........................................................................................... 392
4.2.5.4. Estratégias da conquista ...................................................................................... 400
4.2.5.5. O amor sensual .................................................................................................... 404
Conclusão ........................................................................................................................ 417
Bibliografia...................................................................................................................... 425
Índice onomástico ........................................................................................................... 495
501

Você também pode gostar