Carlos Coelho
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Resumo
Analisamos neste artigo o projeto hermenêutico de Ricoeur que, na esteira
de Dilthey, aspira estabelecer um diálogo entre a filosofia e as ciências
humanas. Para isso, Ricoeur propõe um “enxerto do problema hermenêutico
no método fenomenológico”. Segundo o filósofo francês, há duas vias para
realizar este enxerto: uma curta, que é a via adotada por Heidegger em Ser e
Tempo e uma longa, a via adotada pelo próprio Ricoeur e que visamos expor
neste trabalho.
Palavras-chave: Hermenêutica. Fenomenologia. Epistemologia. Ontologia.
Estruturalismo.
Astract
We analise in this article the hermeneutical project of Ricoeur wich
following Dilthey's study pretends to stablish a dialogue between
philosophy and human sciences. Ricoeur introduces the hermeneutical
problem in the phenomenological method. According to the french
philosopher, there are two ways of realising this objective. The first and
short way, adopted by Heidegger in Being and Time, and the second and
long way adopted by Ricouer. We are going to study in this article this
second thought.
Keywords: Hermeneutics. Phenomenology. Epistemology. Ontology.
Structuralism
(Paul Ricoeur)
1. Fenomenologia e hermenêutica
que a hermenêutica se constituiu não apenas como uma disciplina que trata da
interpretação de textos, mas também como uma disciplina epistemológica que tenta
diferenciar o método das ciências do espirito, do método das ciências da natureza.
Esta via curta adotada por Heidegger não é a de Ricoeur, contudo, o pensador
francês não crê que estes dois caminhos sejam inconciliáveis. Muito pelo contrário, ele
considera que uma Analítica do Dasein não é necessariamente oposta a uma
epistemologia da interpretação que tem como fim a formulação de uma ontologia, mas
uma ontologia militante mediada pela interpretação dos signos e símbolos de nossa
cultura3, ontologia esta que, como veremos mais adiante, pode ser resumida na seguinte
fórmula: explicar mais para compreender melhor.
Então, a questão de Ricoeur passa a ser: o que acontece com uma epistemologia
da interpretação que se origina de uma reflexão sobre a exegese, sobre o método da
história, sobre a psicanálise, sobre o estruturalismo, etc., quando ela é tocada, animada
e, se se pode dizer, aspirada, por uma ontologia da compreensão?4 Só a hermenêutica da
via longa pode responder satisfatoriamente a esta questão.
3 "Se começo por este ato de equidade em relação à filosofia de Heidegger, é porque não a
considero como uma solução adversa; a sua Analítica do Dasein não é outro termo de uma
alternativa que nos obrigaria a escolher entre uma ontologia da compreensão e uma
epistemologia da interpretação" (CI, p.8)
não uma “ontologia triunfante”5 como a de Heidegger. Com efeito, partindo do polo
subordinado, a saber, o do conhecimento histórico, o pensador francês, tenta achar os
rastros de sua subsunção para só depois chegar – por intermédio da interpretação – ao
plano ontológico. Há que se partir, portanto, “do próprio plano em que a compreensão
se exerce, isto é, do plano da linguagem” (CI, p.12). Só com uma reflexão demorada
sobre a linguagem – seja psicanalítica, estruturalista, analítica etc. – que se passa de
uma ontologia imediata (via curta) para uma ontologia de percurso (via longa) que
aparecerá como promessa a ser alcançada.
No dizer de Ricoeur:
6 Em francês, o termo usado por Ricoeur é signe, desta forma, optamos traduzir esta palavra
por signo e não sinal, como consta na tradução portuguesa.
Fenomenologia e hermenêutica: a crítica de Paul Ricoeur à hermenêutica de Martín Heidegger
Por exemplo:
8 Não podemos deixar de notar que a psicanálise, apesar de ser a motivadora de uma grande
revolução para as filosofias do sujeito, ainda depende do conceito filosófico de identidade e de
sujeito. Como afirma o filósofo francês Jean-Luc Nancy: "Tal é a identidade do que nós
chamamos, em qualquer sentido possível, um sujeito ou o sujeito – a qual é, em ultima análise,
o sujeito filosófico. Esta identidade não é a posição simples e abstrata de uma coisa como
imediatamente ela é e apenas o que ela é; ao contrário, ela se atualiza como se estivesse
tomando posse de si mesma através da unidade que eu sou em mim mesmo: um Ego, um núcleo
irredutível de auto-constituição. Quem quer que diga "sujeito" pressupõe este Ego auto-
constituído, por mais remoto e tênue que ele possa ser. Até mesmo o sujeito psicanalítico ainda
pressupõe o sujeito filosófico – ao menos nos termos de uma prescrição prática (que não pode
evitar de se apoiar numa teoria) de onde a análise se separa da hipnose (e da sedução, como
Freud deixa claro à Ferenczi). Como o Eu katiano, e indiferente em relação à qualquer
COELHO, C. Ensaios Filosóficos, Volume IX – Maio/2014
fragmentação do seu ego, o analisando, sendo um locutor consciente, deve estar apto a
acompanhar todas as suas representações. O mesmo se dá com o analista." (NANCY, 1994, p.9)
situação cultural.
Nesta formulação de uma ontologia militante aparece, pela primeira vez, uma
questão que é central na pesquisa, a saber, a tensão entre o possível e o impossível.
Podemos pensar esta ontologia da interpretação que aparece no lugar de uma analítica
do dasein como uma tarefa findável? Ou ela deve ser entendida como uma tarefa
(infinita) e, portanto, impossível?
Explicação e Compreensão
É com esta prerrogativa que, no decorrer de sua obra, Ricoeur se empenha para
construir uma filosofia que enfrente os desafios colocados pelas ciências humanas. Ele
defende que a filosofia não pode fechar os olhos para o grande avanço dessas ciências e
contesta Gadamer12 que, ao dar continuidade a via curta de Heidegger, estabelece uma
oposição entre verdade e método, ou, para empregar a terminologia de Dilthey, entre
compreensão e explicação. Segundo o hermeneuta francês,
Por mais que conheçamos todas as causas que levaram à criação de uma
determinada obra de arte ou de um livro, jamais poderemos de fato compreender o
sentido deles pelas causas que o construíram. Imaginemos um cientista tentando analisar
a música “So What” tocada por Miles Davis e John Coltrane. Ele poderá reduzir essa
música a diversas substancias fônica, poderá analisar a variação de volume, de timbre,
mas com essa análise causal, ele jamais conseguirá captar o sentido que esta canção
desperta naquele que a ama, ele nunca conseguirá medir o sentimento despertado por
esta música tocada por estes grandes jazzistas. Só abdicando de seu exercício científico
e se tornando ouvinte, ele poderá sentir e compreender a música.
12 Apesar do diálogo entre Ricoeur e Gadamer não ser central neste trabalho, vale lembrar
que, malgrado as críticas ao pensamento do filósofo alemão, Ricoeur era um grande admirador
da sua obra, sendo inclusive um dos responsáveis pela introdução da obra de Gadamer na
França. Para um aprofundamento desta discussão cf. Ricoeur, 1986/tradução portuguesa sem
ano, p. 102-107.
COELHO, C. Ensaios Filosóficos, Volume IX – Maio/2014
Em síntese:
A procura de uma complementaridade entre estas duas atitudes que a
hermenêutica de origem romântica [Dilthey e Schleiermacher] tende a
15 Este movimento apresentado por Ricoeur, a saber, o da co-implicação entre os métodos das ciências
do espírito e das ciências da natureza, pode ser comparado ao movimento de Hannah Arendt no seu artigo
“compreensão e política” (2002).Para esta autora, a compreensão é uma atividade interminável, é um
modo de nos relacionarmos com a realidade. Ao contrario do conhecimento científico, a compreensão não
produz resultados, ela é aquilo que tão somente confere sentido as coisas. Assim, a filósofa alemã,
seguindo o caminho traçado por Ricoeur, aplica a reflexão hermenêutica à política, defendendo que ela é
uma disciplina compreensiva. Neste sentido, o fenômeno do totalitarismo representaria uma novidade
que, ao ser caracterizado como ruptura à tradição, não pode ser explicado, mas deve ser compreendido
para que assim possamos (re)apreender este mundo que emergiu diante de nós depois do
holocausto.Segundo a filósofa alemã, conhecimento e compreensão ou, nos termos de Dilthey, explicação
e compreensão, são duas abordagens distintas, contudo, apesar da diferença que há entre estas
abordagens, elas são interdependentes. Sem o conhecimento não podemos sair de uma compreensão
preliminar, rudimentar, intuitiva e pré-reflexiva. De outro lado, sem esta compreensão preliminar, não
podemos chegar ao conhecimento, pois esse primeiro estágio de compreensão é o guia do homem que
compreende a si mesmo ao compreender o mundo. Como afirma Arendt, “conhecimento e compreensão
não são a mesma coisa, mas interligam-se. A compreensão baseia-se no conhecimento e o conhecimento
não pode se dar sem que haja uma compreensão inarticulada, preliminar.”, e continua a filosofa alemã: “a
compreensão precede e sucede o conhecimento. A compreensão preliminar, que está na base de todo o
conhecimento, e a compreensão que o transcende, têm isso em comum: conferem significado ao
conhecimento. (...) A verdadeira compreensão sempre retorna aos juízos e preconceitos que precederam e
orientaram a investigação estritamente científica” (ARENDT, A dignidade política, p. 42). Arendt faz,
então, coro as críticas realizadas por Ricoeur ao enxerto heideggeriano da hermenêutica na
fenomenologia, e está, como o filósofo francês, defendendo uma via longa da compreensão. (Cf.
ARENDT, A dignidade política, p. 39-53)
COELHO, C. Ensaios Filosóficos, Volume IX – Maio/2014
O aspecto existencial, o qual Heidegger tenta dar conta em Ser e Tempo, assume
Ricoeur, é mais fundamental do que a linguagem – do que o falo. “Há primeiramente o
ser no mundo, depois o interpretar, depois o dizer” (CI, p. 260).
É preciso, portanto,
É por isso que podemos sintetizar esta hermenêutica da via longa com a fórmula:
explicar mais para compreender melhor. Ao estudarmos também as ciências
explicativas da linguagem, estamos enriquecendo a compreensão de nossa própria
condição de dasein (ser-aí), a nossa condição de ser-no-mundo.
Referências bibliográficas
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Fenomenologia e hermenêutica: a crítica de Paul Ricoeur à hermenêutica de Martín Heidegger