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Romance de Dom Pantero No Palco Dos Pecado - Suassuna, Ariano

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Copyright © 2017 Ilumiara Ariano Suassuna

Direitos de edição da obra em língua portuguesa no Brasil adquiridos pela EDITORA


NOVA FRONTEIRA PARTICIPAÇÕES S.A. Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta
obra pode ser apropriada e estocada em sistema de banco de dados ou processo
similar, em qualquer forma ou meio, seja eletrônico, de fotocópia, gravação etc., sem a
permissão do detentor do copirraite.

EDITORA NOVA FRONTEIRA PARTICIPAÇÕES S.A.


Rua Candelária, 60 — 7º andar — Centro — 20091-020
Rio de Janeiro — RJ — Brasil
Tel.: (21) 3882-8200 — Fax: (21) 3882-8212/8313

Ilustrações de capa: Ariano Suassuna


Ilustrações de miolo: Ariano Suassuna, Alexandre Nóbrega,
Zélia Suassuna, Manuel Dantas Suassuna, J. Borges

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO


SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
S933r
2. ed.
Suassuna, Ariano, 1927-2014
Romance de Dom Pantero no palco dos pecadores [recurso eletrônico]: O
jumento sedutor, livro 1: O palhaço tetrafônico, livro 2 / Ariano Suassuna. - 2. ed. - Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 2017.
recurso digital

Formato: ebook
Requisitos do sistema: adobe digital editions
Modo de acesso: world wide web
ISBN 9788520942093 (recurso eletrônico)

1. Romance brasileiro. 2. Livros eletrônicos. I. Título.

17-46394 CDD: 869.3


CDU: 821.134.3(81)-3
SUMÁRIO
Prefácio
Dom Pantero e sua Ilumiara
Carlos Newton Júnior

Abertura Plagiada, Deturposa, Falsificada e Reversa

L IVRO I - O J UMENTO S EDUTOR

P RELÚDIO - O Protagonista Insano


R EPENTE - O Antagonista Possesso

C HAMADA - O Chabino Desamado

G ALOPE - A Trupe Errante da Estrada

L IVRO II - O P ALHAÇO T ETRAFÔNICO

P RELÚDIO - O Rapsodo Agonizante

R EPENTE - O Bufão Apocalíptico

T OCATA - O Caprípede Castanho


F UGA - A Persona do Poieta

Posfácio
Ricardo Barberena

Cronologia de Ariano Suassuna


A MARIA ,
MÃE DE DEUS ,
POR TUDO O QUE SIGNIFICOU
E SIGNIFICA PARA NÓS .
EPÍGRAFES
“Eu cantarei meu Canto de mim mesmo e nele me abrirei como se
fosse um Livro feito em carne, folheado sob a luz, pelo vento e pelo Fogo.”

C ARLOS N EWTON J ÚNIOR

“Um Povo tem o direito de guardar o seu Segredo — e aqui estão


as pedras do meu Céu e as estrelas do meu Chão. Por isso, pode-se dizer
que este é meu Lunário Perpétuo.”

A NTONIO N ÓBREGA

“Todos os Livros são Autobiografias. Mas ele conhece o segredo


das Máscaras com que nos defendemos da Morte.”

R OBERTO M OTA

“Na parte mais antiga da minha mente, que foge a meu controle,
uma ideia surgiu e vem me atormentando há algum tempo: os Cães,
perplexos, uivam para a Lua-cheia, que eles não compreendem.
“Pois bem: as singularidades do Homem são os uivos da
Humanidade para o Universo, não posso conter meu uivo.”

M ARCOS S UASSUNA
PREFÁCIO
DOM PANTERO E SUA ILUMIARA
Carlos Newton Júnior

F oitomar
em meados da década de 1980 que Ariano Suassuna começou a
as primeiras notas para escrever o Romance de Dom Pantero
no Palco dos Pecadores , livro que viria a ocupar, num crescendo, até o
fim da sua vida, quase todo o tempo que o autor conseguia dedicar à
Literatura, em meio às múltiplas atividades artísticas e culturais em que
sempre se viu envolvido. Não foram poucas as alterações que
empreendeu no plano da obra até chegar a uma forma final que o
satisfizesse plenamente. Perfeccionista declarado, Suassuna burilou o
texto o quanto pôde. Impossível quantificar os episódios e cenas
cortados e acrescentados, os nomes de personagens alterados, as
passagens inteiramente reescritas ou simplesmente descartadas. Os
milhares de páginas manuscritas conservadas em seu gabinete de
trabalho revelam que bastante coisa ficou de fora da versão final — o
que nos leva à inequívoca conclusão de que o romance cresceria muito,
caso Ariano não tivesse começado a passar, em 2013, pelos problemas
de saúde que o forçaram a colocar um ponto final na obra.
Em entrevista publicada em novembro de 2000, nos Cadernos de
Literatura Brasileira , do Instituto Moreira Salles, falando sobre este
trabalho, afirmou o autor: “Já tenho muita coisa escrita, inclusive para
frente; o difícil é que eu pretendo que o primeiro volume funcione como
uma introdução e sozinho dê conta do projeto inteiro. Assim, caso
venha a sofrer uma traição da Onça Caetana, eu terei dado a medida do
que seria o resto.”
A “medida” do projeto, interrompido com o bote de Caetana (a
morte sertaneja, que se transfigura em Onça alada no universo
suassuniano), pode de fato ser vislumbrada através do que se publica
agora, em dois “livros”, O Jumento Sedutor e O Palhaço Tetrafônico , cada
um deles composto por quatro “cartas” que o personagem Antero
Savedra dirige “Aos nobres Cavaleiros e belas Damas da Pedra do Reino”
e publica no suplemento pseudoliterário “Sibila”, do jornal “A Voz de
Igarassu”. E que medida é esta? A medida de uma “obra total”, intitulada
“A Ilumiara”, obra que representaria a súmula da produção de Ariano
Suassuna como artista e como pensador, uma vez que, transcendendo o
campo da literatura (arte temporal) para abarcar o das artes plásticas e
o das artes de síntese, sobretudo o teatro, também incursiona pelo
ensaísmo do autor, incorporando os fundamentos de sua visão acerca
da cultura brasileira e da nota peculiar que esta deveria tocar no
concerto das nações do mundo.
Como já tivemos a oportunidade de dizer, em texto introdutório
ao Romance d’A Pedra do Reino , Suassuna começa a usar o neologismo
“ilumiara” para se referir aos “anfiteatros” formados por pedras
insculpidas e ou pintadas que os primeiros habitantes do Brasil
provavelmente usavam como locais de culto, estendendo o termo,
depois, para identificar conjuntos artísticos os mais diversos, realizados
em todos os tempos e também lugares (acrescentamos agora), que
pudessem ser vistos como símbolos da força criadora de um povo ou
espaços de celebração da sua cultura. Na visão de Suassuna, até mesmo
certos livros, como A Divina Comédia e o Dom Quixote , poderiam ser
classificados como ilumiaras, pela capacidade de sintetizarem os
anseios universais do homem a partir de realidades locais e pelo
vínculo que mantêm com a tradição — aqui entendida não como cópia
do passado, mas como diálogo fraterno com os nossos mortos, um
diálogo que revele “qualquer coisa por onde se note que existiu
Homero”, como afirmou Fernando Pessoa em suas “Considerações
sobre o novo”. Voltando ao nosso contexto, as ilumiaras seriam marcos
sagratórios do “Brasil real” (em oposição ao “Brasil oficial”), erguidos
em homenagem à cultura brasileira. Assim também Ariano pensava a
sua obra: como um marco do Brasil verdadeiro e profundo, que
apontasse para o nosso povo um novo caminho a seguir, mais justo e
fraterno, do ponto de vista social, do que o que trilhamos até agora; e
mais belo e original do que o caminho da vulgaridade, da
descaracterização e do mau gosto, apontado pela massificação cultural
e pelos apóstolos da globalização.
Nossas conversas sobre este romance, ainda no início dos anos
1990, giravam em torno de um personagem chamado Laivos Schabino,
que aparece em inúmeras notas e trechos descartados da obra e acabou
dando lugar, muito provavelmente, a Antero Schabino, ou mesmo a
Antero Savedra, sobrinho, afilhado e discípulo do primeiro, escritor
frustrado que, sob a máscara de Dom Pantero, termina por ser o
protagonista da história — se é que um livro como este, composto por
uma polifonia de vozes, possui, de fato, um só protagonista. Dom
Pantero parece mais um maestro, a reger um coro formado por
inúmeros coadjuvantes e muitos protagonistas em pé de igualdade com
ele próprio, principalmente quando pensamos que o conteúdo das suas
cartas, escritas sob a forma de diálogo, resulta da fusão de textos de
diversos autores, entre os quais seu tio Antero Schabino, ensaísta, e
seus irmãos Auro e Adriel — o primeiro, romancista; o segundo,
dramaturgo. Isto sem falar nos poemas de Albano Cervonegro,
pseudônimo com que Auro e Adriel escreviam poemas baseados nos
sonhos do seu irmão Altino. Lembremos que Albano Cervonegro já
aparece na obra de Suassuna na década de 1980, no álbum de
“iluminogravuras” Sonetos de Albano Cervonegro , e que a sua
verdadeira identidade já fora revelada pelo autor na mesma entrevista
aos Cadernos de Literatura Brasileira , há pouco referida.
Não é difícil imaginar que a forma final do romance, estruturado
por “Cartas-Espetaculosas” (justamente porque procuram recriar o
ambiente das “Aulas-Espetaculosas” ministradas por Antero Savedra),
começou a se impor ao autor no momento em que ele próprio passou a
ministrar as suas famosas “Aulas-Espetáculo”, assim chamadas a partir
de sua atuação como Secretário de Cultura de Pernambuco, de 1995 a
1998. Já em 1996, quando escreveu a peça teatral A História do Amor de
Romeu e Julieta , Ariano pôs em cena Antero Savedra e Dom Pantero,
responsáveis pela apresentação e condução do espetáculo. Eram, ali,
visivelmente, dois personagens distintos; prova disso é que quando a
peça foi publicada no jornal Folha de S.Paulo , em 19 de janeiro de 1997,
Dom Pantero cedeu lugar a Quaderna, o narrador do Romance d’A Pedra
do Reino , como se Suassuna ainda estivesse duvidando da força
daquele que viria a ser o seu grande personagem, depois transformado
numa “máscara” — e não só pseudônimo — de Antero Savedra.
De 2007 a 2010, Suassuna assumiu, novamente, a Secretaria de
Cultura de Pernambuco, desta vez com uma estrutura mais direcionada
para a realização das Aulas-Espetáculo. Pôde, assim, percorrer todo o
estado com o seu “circo”, o Circo da Onça Malhada, levando uma trupe
de músicos, bailarinos, cantores, cantadores e violeiros para ilustrar as
suas bem-humoradas e quixotescas “saídas” em defesa da cultura
brasileira. Vestido de preto e vermelho, às vezes com um medalhão ao
pescoço, fez dele próprio, assim, experimento para o seu personagem
Dom Pantero, e não era à toa que terminava suas apresentações
declamando para o público os mesmos versos com que seu personagem
se despede em suas cartas:

Pois é assim: meu Circo pela Estrada.


Dois Emblemas lhe servem de Estandarte:
no Sertão, o Arraial do Bacamarte;
na Cidade, a Favela-Consagrada.
Dentro do Circo, a Vida, Onça Malhada,
ao luzir, no Teatro, o pelo belo,
transforma-se num Sonho — Palco e Prelo.
E é ao som deste Canto, na garganta,
que a cortina do Circo se levanta,
para mostrar meu Povo e seu Castelo.

O romance, assim, se apresenta, de fato, como uma


autobiografia, mas uma autobiografia deformada — deformadíssima,
diríamos melhor — pelo espelho da arte, posto que é “Musical,
Dançarina, Poética, Teatral e Vídeo-CinematoGráfica”. Uma
autobiografia em que o autor passa em revista toda a sua diversificada
obra, cuja autoria é atribuída, por gênero, a seus diversos heterônimos,
todos membros da família Savedra. E, da mesma forma que Ariano
afirmava ser a sua poesia a fonte profunda de tudo o que escrevia, toda
a obra dos Savedras é composta “com base na obscura Poesia sonhada
por Altino Sotero, irmão deles”.
Que não se confunda, então, “A Ilumiara”, a obra que Dom
Pantero pretende escrever, com a ilumiara de Ariano Suassuna. Da
primeira, poderíamos dizer, talvez, algo semelhante ao que o escritor
Antonio Carlos Villaça disse, em O Nariz do Morto , em relação ao Diário
Íntimo , de Henri-Frédéric Amiel, considerando-o como o diário de uma
frustração, de uma impotência, de uma desilusão: “Pois Amiel desejou
mais, quis fazer uma obra ambiciosa. E não pôde.” Deixada
propositalmente na forma de um arcabouço de romance, como uma
espécie de catedral inacabada, uma “Sagrada Família” feita de palavras
e imagens (“como se a tradição de minha Família fosse nunca fechar
suas Obras”, afirma o personagem em certa ocasião), “A Ilumiara” de
Dom Pantero serve-nos como uma espécie de “roteiro” para a
compreensão da ilumiara do próprio Suassuna, ou seja, para a
apreciação do universo suassuniano a partir de uma visão sistêmica, de
conjunto, em que cada obra, isoladamente, lança luz sobre as demais. A
forma como a peça A História do Amor de Romeu e Julieta é incluída no
romance, por exemplo, leva-nos a pensar como o Auto da Compadecida
(o “Auto d’A Misericordiosa”, de Adriel Soares) poderia ser levado ao
palco do Circo-Teatro Savedra, representando Dom Pantero, no caso, o
papel do Palhaço. Era assim que Ariano gostaria que víssemos toda a
sua obra: como uma ilumiara, ou como uma grande Aula-Espetáculo
sobre a cultura brasileira, sobre o Brasil, seu povo e seu destino.
Antero Savedra inicia a sua primeira “Carta-Espetaculosa”
citando versos de “Noturno”, poema de 1945 com o qual Suassuna, aos
dezoito anos de idade, deu início, oficialmente, à sua vida literária. Do
mesmo modo, sob a máscara de Dom Pantero do Espírito Santo,
Savedra termina a Carta que conclui o Romance de Dom Pantero . Assim,
ao final da leitura, voltamos forçosamente ao seu início, configurando a
imagem do eterno retorno que integra o “ser” à “pulsação do ser”: em
todo homem velho permanece algo do menino que ele foi um dia; e se
tudo o que há de permanente em nós pode ser transfigurado na grande
obra de arte, muito do que fomos fatalmente sobreviverá ao trânsito e à
ruína da condição humana.
Estamos tratando, aqui, de um romance profundamente familiar,
não apenas no sentido da família de sangue — considerando que
elementos autobiográficos encontram-se na gênese da maioria (se não
da totalidade) dos acontecimentos aqui narrados (“ meu Sangue é
minha Fonte-do-Cavalo ”, diz um verso de Albano Cervonegro). Familiar,
também, no sentido da família espiritual que todo artista possui, e cujos
vínculos acabam se tornando, muitas vezes, mais importantes que os
laços de sangue. É por isso que, quando chamados a participar do
espetáculo, os diversos autores da linhagem a que Suassuna pertence,
sejam eruditos ou populares, assumem o sobrenome Savedra ou
Schabino (às vezes fundindo seus nomes, no caso de autores de línguas
estrangeiras, aos nomes dos seus respectivos tradutores para o
português), e são eles que deformam as suas próprias palavras para as
conformarem ao discurso de Dom Pantero, legitimando, assim, o
processo de “imitação” que Antero Savedra herdou do seu tio e
padrinho Antero Schabino.
Aos poucos, à medida que o leitor vai se familiarizando com
tantas vozes e tantos nomes (até porque Dom Pantero não é a única
“máscara” de Antero Savedra, e mesmo o seu padrinho também se valia
de pseudônimos), a história vai se desvelando à sua frente — a
dolorosa história de um escritor frustrado, que sonha com uma obra
muito além das suas forças, porque além das forças de qualquer ser
humano. Sendo curto o tempo, e longa a arte, Dom Pantero almeja o
grandioso, o sublime, pois pretende alcançar, pela beleza artística,
aquele “Todo” que, nas palavras de Mefistófeles, no Fausto de Goethe,
“só para um Deus é feito”.
Entre todos os nossos grandes escritores, Suassuna foi talvez
aquele que com mais frequência revelou as influências recebidas ao
longo da construção da sua obra, desde as de escritores canônicos, a
exemplo de Camões ou Cervantes, às de outros que a crítica tem
considerado “menores”, como o italiano Rafael Sabatini, autor de
Scaramouche , ou o brasileiro Júlio Ribeiro, autor de A Carne .
Influências tão entranhadas no autor que transcendem em muito as
citações interpoladas ao longo das cartas de Dom Pantero. Para
pensarmos apenas em Sabatini, lembremos que André Luiz Moreau,
protagonista de Scaramouche , romance que se passa no contexto
histórico da Revolução Francesa, foge da perseguição das autoridades
policiais ingressando numa companhia de teatro ambulante, na qual
trabalha como escritor de peças e ator, algo semelhante ao que faz
Antero Savedra, em dado momento de sua vida, ao viajar do Recife para
Taperoá, fugindo das forças repressivas do regime militar, na década de
1970.
Que o leitor não estranhe, por fim, a profusão de iniciais
maiúsculas e de hifens aparentemente arbitrários ao longo do texto.
Talvez até mesmo neste quesito — bem como na não aceitação da
modernização dos nomes próprios — Antero Savedra tenha querido
superar o seu irmão Auro Schabino, autor do Romance d’A Pedra do
Reino . Se a inicial maiúscula de uma palavra qualquer, em um verso,
não nos causa maior estranheza, por que seria diferente num texto que
se pretende resultante da fusão de vários gêneros, como se a prosa
fosse essencialmente poética, verso expandido, e não só na medida em
que incorpora versos transcritos sem estrofação, como se trechos de
prosa fossem? No tocante aos hifens, lembremos o efeito visual que eles
provocam em determinadas palavras e expressões, que logo saltam à
nossa vista e se impõem como imagens, como ocorre já em A Pedra do
Reino com a expressão “Rapaz-do-Cavalo-Branco”.
Se Suassuna havia conseguido renovar o romance brasileiro
com o estilo “régio” de Dom Pedro Dinis Quaderna, narrador de A Pedra
do Reino , repete agora a façanha com o estilo “pantérico”, que inclusive
absorve o anterior (por sua vez contrátese dos estilos dos mestres de
Quaderna, o professor Clemente e o doutor Samuel), na síntese
definitiva que é “A Ilumiara”.
É nesta renovação que se encontra a pedra central do conjunto.
Porque se a perfeição, na obra de arte, vincula-se à forma final que o
autor consegue imprimir à sua matéria, evidenciando-se — no caso de
romances narrados sem a voz onisciente do autor — na profunda
identidade entre o personagem narrador e o estilo da narrativa, a voz
de Dom Pantero só poderia ecoar, de fato, através de um fragmentário
“Castelo de Cartas-Espetaculosas”.
Após uma obra-prima como A Pedra do Reino , uma renovação
assim (não se pode deixar de reconhecer) é empresa das mais difíceis. E
se o Romance de Dom Pantero não é livro de leitura fácil, sobretudo
devido às inúmeras referências de natureza intra e intertextual que o
compõem, deve-se também reconhecer, usando as palavras de Gógol,
que “sua substância é feita de futuro”. Não temos, portanto, a menor
dúvida em afirmar: os leitores que o irão ler e compreender, a cada
nova geração, farão dele, seguramente, um êxito da nossa literatura.
Recife, 9 de agosto de 2017.
A ILUMIARA

Autobiografia Musical, Dançarina, Poética, Teatral e


Vídeo-CinematoGráfica
A ILUMIARA
Castelo , Obra , Fortaleza ou Marco , no qual se contêm as
Confissões de Santo Antero , compostas de acordo com o sonho da Casa,
a viagem do Circo, a cadência do Espetáculo, as águas do Córrego, o
claro-escuro do Palco, o sol da Estrada e a rabeca da Sabedoria.
Incursão religiosa, orgiástica e exotérica, na qual, por meio de
Cartas, Depoimentos-Entrevistosos e Diálogos-de-Narrativa-
Espetaculosa, se apresentam ao público d’O Grande Teatro do Mundo as
Airesianas Brasileiras — imitações da Arte universal nacionalmente
refletidas pelo Espelho d’ O Grande e Verdadeiro Livro de São Cipriano e
a Bruxa Lagardona.
DOM PANTERO
Imitação de Ésquilo, Apuleio, Plauto, Dante, Santa Teresa,
Cervantes, Gregório de Mattos, Antônio José da Silva, Lima Barreto,
Euclydes da Cunha, Machado de Assis, Augusto dos Anjos e Cassandra
Rios. Baseada em notas extraídas por Gerson Camarotti, Carlos Tavares
e William Costa dos anais do Simpósio Quaterna e publicadas na Sibila
— suplemento feminino, erótico, rural e esotérico do Jornal A Voz de
Igarassu .
Memorial-Político e Jornada-Poética , empreendida, a modo de
Viagem-Filosófica ou Descida-Purificatória , ao Reino Perigoso do Ladrido
.
Poema-Heroico escrito “em romance”. Encenado, recomposto,
estilografado a ponta-de-metal e depois fotogravado por Carlos de
Souza Lima, Manuel Jaúna e Antero Savedra — Rei-de-vidrilho, Poeta-
frustrado, Profeta-extravioso, Ator-por-acaso, Mágico-amador, Palhaço-
de-suporte e Viajante-imaginário.
CHAVE DAS ILUSTRAÇÕES
As estampas que figuram n’ A Ilumiara às vezes são baseadas em
inscrições rupestres, em imagens barrocas e em gravuras populares; ou
então em obras de Artistas cujos nomes vão indicados ao pé das
páginas (e dos quais os mais frequentes são José de Azevedo Dantas e
Paulino Villar, colaboradores do Livro Negro do Cotidiano , de meu Tio
materno João Soares Sotero Veiga Schabino de Savedra — João Sotero).

MARIANO JAÚNA ANTERO SAVEDRA DOM PARIBO


SALLEMAS DOM PANTERO DO ESPÍRITO SANTO ,
IMPERADOR
NOTA
A Tipografia Armorial , usada em alguns trechos d’ A Ilumiara , foi
criada por Ricardo Gouveia de Melo e Giovana Caldas. A transposição,
para o computador, do texto e das Estilogravuras que o ilustram, foi
feita por Carlos Newton Júnior e Ricardo Gouveia de Melo. E os Vídeos
que contêm imagens dos Castelos, das Saídas e Aulas-Espetaculosas
ministradas por Dom Pantero foram organizados por Manuel Dantas
Suassuna e Manuel Dantas Vilar.

DOM PANCRÁCIO CAVALCANTI

(http://sertaofilmesailumiara.com.br/videos )
ADVERTÊNCIA
Principalmente por causa da presença, nela, de Antero Schabino
e Dom Pedro Dinis Quaderna, esta Narrativa-Espetaculosa só deve ser
lida, folheada ou vista “por adultos de sólida formação religiosa, moral,
poética e filosófica” .
ABERTURA PLAGIADA , DETURPOSA ,
FALSIFICADA E REVERSA
Com mote recorrente de Manuel Bandeira

ANDANTE INTRODUTÓRIO
ANTERO MARIANO SAVEDRA JAÚNA
“É preciso cerrar os dentes e compartilhar a sorte do nosso País”
— escreveu, um dia, o grande Poeta e Romancista que foi Boris
Pasternak. Era um tempo em que sua pátria, a Rússia, vivia a opressão
violenta, aberta e declarada do Stalinismo marxista.
Hoje, o Stalinismo acabou, Pasternak morreu, mas sua obra está
viva e cresce a cada dia, revelando-se cada vez mais como profética.
Entretanto a impostura, a opressão hipócrita do Capitalismo, a ditadura
do mercado e do consumo, da vulgaridade e do gosto médio imposto
como modelo pelos meios de comunicação de massa (essa ditadura que
se autodenomina Democracia Neoliberal ou Social-democracia) estão
fazendo algo talvez pior do que oprimir a pátria de Gógol e Dostoiévski,
primeiro traída por Gorbachev, depois aviltada por Boris Iéltsin e seus
sucessores. Lembro-me de algumas palavras de Michelet que li na
adolescência e que copiei, fazendo interiormente a promessa de nunca
esquecê-las e de sempre me manter fiel ao que ele afirmava:

JÚLIO MICHELET SCHABINO DE SAVEDRA


“A pessoa humana é coisa sagrada. Na medida em que uma Nação
assume o caráter de pessoa e se torna uma alma, sua inviolabilidade
aumenta na mesma proporção. O crime de violar a personalidade
nacional torna-se então o maior dos crimes. Assassinar um homem é um
crime. Que coisa terrível não será, portanto, assassinar uma Nação? Como
qualificar tal monstruosidade?
“Pois bem, existe uma coisa pior do que matá-la: é aviltá-la,
envilecê-la, violá-la, roubar-lhe a alma e a honra. Este crime é o único
para o qual não deveria existir prescrição.”
Assim, levando em consideração estas palavras de Michelet,
desde muito moço comecei a me opor à visão daqueles que afirmavam
(como continuam afirmando) que “a base material da Democracia é a
economia de mercado” , e que “por ser universal, a Arte ligada ao
mercado é que deve servir de modelo às Artes de todos os Países” , pois,
de outra forma, estes jamais acompanhariam os parâmetros da
modernidade e da universalidade, cada um permanecendo confinado “
nos estreitos limites do localismo arcaico” .
Ao começar meu trabalho de escritor (em 7 de Outubro de
1945), não digo que já tivesse clara consciência do que disse até aqui.
Mas, “na noite criadora da vida pré-consciente do intelecto” (noite talvez
mais clarividente do que a luz da razão puramente reflexiva), eu já
acreditava que devia escrever como se a sorte do meu País, do meu
Povo, da Rainha do Meio-Dia e até do Mundo dependessem do que eu
fizesse. Não tendo poder político nem econômico, isso era o que podia
fazer: um Romance, um Teatro, uma Poesia que pelo menos não
aviltassem o nosso País; uma Arte que, por ser ligada ao nosso Povo,
pelo menos também indicasse um caminho político e esboçasse uma
Teoria do Poder que, expressando esse mesmo Povo, desenhasse o
contorno do mapa capaz de definir nosso País como Nação.
Infelizmente, via-me obrigado a constatar: o que conseguíramos
fazer era pouco, muito pouco; porque, apesar de figuras luminosas
como Gabriel Joaquim dos Santos, Euclydes da Cunha, Heitor Villa-
Lobos, Lima Barreto ou Augusto dos Anjos, continuam violando e
roubando a alma e a honra do nosso País, cuja linha de frente é a nossa
Cultura.
Não importa. Fiel ao sonho de minha juventude, venho fazendo
o que posso e considerando cada Poema, cada Peça, cada Romance,
cada Ensaio que consigo levantar como “um Caco” semelhante aos do
genial Arquiteto popular que foi Gabriel Joaquim dos Santos: aos
poucos, cada um deles iria se juntar ao todo que é A Ilumiara — uma
outra, nova e grande Casa da Flor ; um Castelo , Obra , Marco e Padrão ,
uma Fortaleza, na qual as gerações que vão nos suceder, na pior das
hipóteses, poderão enxergar a face do Brasil verdadeiro e profundo — o
Brasil “que poderia ter sido e que não foi” .

ALEGRO SOLAR
ANTERO EÇA DE QUEIROZ SAVEDRA
“A este Livro, serve de Introdução o Romance d ’ A Pedra do Reino
, de meu irmão Auro Schabino.
“Agora que está pronto e em vésperas de ser impresso, começa a
pesar sobre mim a desconfiança de que, para ele ser aceitável, muito lhe
falta, como estilo e como história.
“Quanto à história, realmente não pretendi meter nele tudo o que
tenho a dizer sobre o Povo brasileiro — seus costumes, sua Língua (tão
parecida com o Português, o Galego e o Espanhol), sua Poesia, seu
Romance, seu Teatro, sua Música, sua Pintura etc. Que interessante
estudo não se faria, entretanto, sobre o Povo que construiu em pedra as 5
Ilumiaras que aqui aparecem — a d’ A Acauhan , a d’ A Coroada , a de
Zumbi , a do Jaúna e a da Pedra do Reino !
“No entanto, para dizer o que quero, 3.000 páginas seriam
insuficientes, e hoje ninguém mais lê um livro grande, como Memórias de
um Médico , de Alexandre Dumas; e então, a mim, como a Dom Pancrácio
Cavalcanti e Dom Porfírio de Albuquerque, nos pareceu melhor ir
contando cada caso em tomo separado, de modo a que, de volume em
volume, a história pudesse ficar mais palatável, mesmo sendo narrada
com minudência e largueza.
“É verdade que Críticos ilustres, e mesmo alguns Escritores, às
vezes me aconselham a tomar cuidado com a prolixidade, lembrando que
Stendhal, Machado de Assis, Graciliano Ramos, João Cabral de Melo Neto
e outros eram concisos, sóbrios, secos e despojados. É verdade. Mas Dante,
Shakespeare, Euclydes da Cunha e Augusto dos Anjos eram retóricos e
excessivos; escreviam num estilo pesado, cheio de imagens, de adjetivos, e,
ainda por cima, turvado pela paixão, às vezes até pelo mau gosto.
“Luxurioso, turvo e vingativo como sou, é à linhagem destes
últimos que pertenço; e escrevo num estilo carregado e tortuoso, com
adjetivação excessiva, epígrafes, citações, arrodeios, digressões e
ornamentos da mais variada natureza — o que faço para disfarçar o que
ele tem de mal-engendrado e tosco.
“Ora, existe um provérbio que afirma: ‘Punhal afiado não precisa
de brilho.’ Pode ser. Quanto a mim, não quero receber punhaladas de
ninguém. Mas se for necessário enfrentá-las, além de fazê-lo com
coragem, quero que me venham elas por um Punhal de cabo de prata,
trabalhado pelos mais artísticos lavores que se possam imaginar.
“Movido por tal convicção, arrisco-me a apresentar minha
história não secamente nua, sóbria, concisa e despojada, mas sim
pendurando-lhe por todos os lados, para torná-la mais vistosa, aquilo que
‘os descarnados’ acham de mau gosto — os dourados galões da
Eloquência, da Retórica e da Paixão.”

ADÁGIO DOLOROSO

ANTERO MARIANO SAVEDRA JAÚNA


Mas agora vejo-me obrigado a mudar de tom para acrescentar
aqui, noutro andamento, o que me aconteceu no dia de minha volta ao
Sertão.
Foi no ano de 1970 que, depois de uma longa ausência no Recife,
voltei a Taperoá. E ali, num impulso, antes mesmo de chegar à Rua,
corri para a Ponte e para o Rio onde nadara pela primeira vez,
experimentando uma das maiores e mais puras alegrias da minha vida.
Mas o choque que me desenganou foi brutal: não tanto por estar
seco e sujo o leito do Rio; mas porque, embaixo da Ponte, como se
fossem Bichos, estava arranchada uma família de Retirantes, ferida pela
fome, pela miséria, pela sujeira, pela maior degradação que se possa
imaginar. E, por cima da Ponte, desfilavam meus semelhantes —
pessoas para as quais “os Miseráveis” era como se não existissem. Nem
sequer os viam. E eu, envergonhado por mim e por eles, cuidei de
reassegurar-me pelo reencontro com a Casa onde, cicatrizado o
ferimento de 1930, fora tão feliz ao lado de meus irmãos e de minha
Mãe, Maria Carlota.
De longe, vendo a Casa e a Torre que tanto significavam para
mim, minha alma, cantando, correu para elas. Mas, ao aproximar-me e
entrar no Jardim, também ali a esperança começou a se transformar
numa dor insuportável: no lugar que, outrora, minha Mãe cobria de
Flores, e por onde eu errava, encantado, entre mil corolas e Borboletas,
só havia agora ruína, feiura e devastação. E, dentro da Casa que eu
conhecera tranquila e acolhedora, tinham derrubado paredes,
destruindo as antigas divisões e criando outras, entre as quais até o
quarto de minha Mãe desaparecera. Não era mais a minha Casa: era
outra, feia e fria, sem o Piano, sem os móveis que eu conhecera e amara.
No primeiro instante, desesperado, pensei em comprá-la,
repovoando-a com um Piano e uma mobília pelo menos parecida com a
nossa. Mas depois, amargurado, concluí que seria inútil. Tal
recuperação somente seria eficaz se, com o Piano, voltasse um certo fim
de tarde em que eu, deitado no chão, embaixo do sofá da sala da frente,
olhava minha Mãe: ela, de olhos fechados e com a cabeça recostada ao
espaldar da cadeira, ouvia meu irmão mais velho, Mauro, ao Piano,
tocando uma Música triste e bela, na qual o tema mais pungente era
entremeado aqui e ali por uma escala que, começando grave, ia quase
até as notas mais agudas do teclado.
Quem a compusera? Quem juntara aquelas notas que me
comoviam tanto?
Agora, que Mauro se matou, jamais o saberei. O que sei, e posso
garantir, é que, ali deitado, eu experimentava uma sensação indizível de
felicidade, uma plenitude tal que, neste instante, somente por recordá-
la, as lágrimas me chegam aos olhos.
Vendo, então, que era impossível recuperar a Casa, foi ali que se
implantou em mim o sonho de reconstruí-la por meio destas Cartas e
do Simpósio Quaterna, com seus Vitrais, sua Música, o claro-escuro do
Palco — enfim, com aquele ambiente-de-encantação através do qual eu
tentaria recuperar “meus dias para sempre destroçados”. E, ao lado
disso, arranjaria um jeito de, no Espetáculo, protestar contra a sorte de
todos aqueles que eram relegados (pela injustiça, pela maldade, pela
indiferença) para debaixo de todas as pontes do Mundo.

Dom Pantero do Espírito Santo, Imperador.


LIVRO I
O JUMENTO SEDUTOR
O JUMENTO SEDUTOR

Airesiana Brasileira em Sol-Maior


PRELÚDIO

O
PROTAGONISTA
INSANO
Liza e o Candelabro da Beleza

O PROTAGONISTA INSANO
Epístola de Santo Antero Schabino, Apóstolo

Escrita por seu afilhado, sobrinho e discípulo Antero Savedra,


em homenagem aos Brasileiros descendentes de Índios, nas pessoas de
Maria do Espírito Santo Arcoverde, Tupi ; Dom Antônio Filipe Camarão,
Potiguar ; Vilma, Carijó ; Quitéria, Pankararu ; Garrincha, Nô Caboclo e
Lourença, Fulniôs .
Publicada para comemorar os 500 séculos da nossa Cultura, em
sua vertente indígena.
Dirigida aos nobres Cavaleiros e belas Damas da Pedra do Reino.
E enviada, por seu intermédio, aos diversos povos do Mundo;
especialmente aos da Rainha do Meio-Dia , aqui representada por
Angola .
EPÍGRAFES
“Castelo (também denominado Obra, Marco ou Fortaleza) é uma
composição prolixa, na qual os Poetas-populares se fantasiam senhores
de um Lugar-encantado, cuja descrição fazem sem nenhum respeito pela
verossimilhança. O que os Marcos sobretudo revelam é o espírito
quixotesco dos Cantadores. José Adão Filho não constitui exceção e
blasona, façanhudo: ‘Existem belos Poemas, de Poetas de talento, mas
nenhum ainda fez, pelo meu conhecimento, um Castelo em prosa e verso,
com tamanho comprimento. Existem, no Mundo inteiro, Poetas de grande
fama, como, por exemplo, Homero, que primeiro o Povo chama; mas
nenhum inda escreveu sete Romances num Drama’.”

L EONARDO M OTA

“Agora, com a idade avançada, estou fazendo uma releitura dos


livros que li ao longo da vida. Só leio romances antigos. Hoje, se alguém
escrever um novo Dom Quixote ou uma nova Divina Comédia ,
infelizmente não vou tomar conhecimento dele.”

C ARLOS H EITOR C ONY


DEDICATÓRIA
Este Prelúdio é dedicado a Zélia de Andrade Lima Suassuna e foi
composto em memória de Raymundo Francisco de Salles Suassuna,
Mariana Felícia Corrêa de Albuquerque, Bevenuto José Pessoa de
Vasconcellos e Anna Francisca Xavier de Figueiredo.

PARA ELIZA
Soneto (com Estrambote-alexandrino reiterativo. A ser
recitado ao som de “Für Elise”, de Beethoven).

ADRIEL SOARES
Oh Romã-do-pomar, relva, esmeralda, olhos de ouro e de azul —
minha Alazã! Ária em corda do Sol, fruto de prata, meu Chão e meu Anel
— luz da Manhã!
Oh meu sono, meu sangue, Dom, coragem, Água das pedras, Rosa
e Belveder! Meu Candieiro aceso da Miragem, meu Mito e meu poder —
minha Mulher!
Dizem que tudo passa e o Tempo duro tudo esfarela: o Sangue há
de morrer! Mas quando a luz me diz que este Ouro puro se acaba por
finar e corromper, meu Sangue ferve, contra a Maldição, que há de pulsar
Amor na escuridão,
— pulsar o nosso Amor até na Escuridão!
O PROTAGONISTA INSANO E O CIRCO DO SEU
CASTELO

João Sotero | Pedro Américo — Davi e Abisag

Andante
SIBILA
Moda, Turismo & Lazer
Igarassu, 8 de Março de 2014
23 de Abril de 2016

Proposição
Com cavalos, atores, dançarinos e música-de-câmera

Prólogo a,O Espelho dos Encobertos

Aos nobres Cavaleiros e belas Damas da Pedra do Reino.

Amigos:
U ma vez, quando eu era bem menino, um Escorpião picou meu
calcanhar. Talvez por causa disso,“têm, para mim, Visões de um outro
Mundo, as Noites luminosas, azuladas, quando a Lua aparece mais
bonita”.
Mas é verdadeira, também, a face reversa da Medalha: “ Têm,
para mim, Visões de um outro Mundo, as Noites perigosas e queimadas,
quando a Lua aparece mais vermelha .”
Num caso e noutro, tais Visões me surgem porque à noite, ao
som de Violinos, Pianos, Violões, Flautas e Violoncelos, o Espelho grial e
multifacetado que fulge em meu sangue reflete à luz da Lua a imagem
de um velho Jaguar, talvez já meio cego mas ainda errante pela Caatinga
devastada, não se sabe à espera de quê.
Marcada por ele e pelas Visões noturnas que nos assaltam pelo
Espelho, A Ilumiara (a Imitação e Narrativa-Espetaculosa que se começa
a desvelar aqui) é uma Leitura-de-Trevas; “ um uivo desferido por um
Cão agoniado em direção à Lua-cheia ”.

Sendo eu antes de mais nada um Ator e Encenador, em minha


formação literária meus dois primeiros grandes Mestres foram
Alexandre Dumas e Rafael Sabatini. Este escreveu, abrindo-me a visão
do Mundo como um Palco e da Vida como um Espetáculo:

RAFAEL SABATINI SAVEDRA


“Procuro consolar-me com a lembrança de Epiteto. Dizia ele que
todos nós não passamos de atores no Palco da vida, e que representamos
os papéis que o Diretor acha por bem confiar-nos.”
DOM PANTERO
Um outro Mestre nosso, Gustavo Adolfo Bécquer, nem de longe
se pode comparar aos dois primeiros. Mas também foi importante para
mim, porque seus versos evocavam a figura de minha perdida, amada e
jamais esquecida Liza Reis:

GUSTAVO ADOLFO SHABINO BÉCQUER


— “Eu sou ardente, sensual, morena, eu sou o símbolo da paixão.
De ânsias de gozo minh’alma é plena. A mim me queres? — Não, a ti não!
— “De fronte pálida e tranças de ouro, posso ofertar-te ditas sem
fim. Eu de ternuras guardo um tesouro. A mim procuras? — Não, não a ti!

— “Eu sou um Sonho louco, impossível, vago fantasma de névoa e


luz. Sou incorpórea, sou intangível. Não posso amar-te. — Oh vem, vem
tu!”

ANTERO SAVEDRA
Pois bem: obsedado pelo Palco, vivo pela Estrada em busca de
Deus, do Santo Graal e do “ Sonho impossível ” de Liza Reis; e este
Castelo-de-Cartas-Espetaculosas foi composto nos moldes do Evangelho
de São Lucas , dos Atos dos Apóstolos e das Epístolas de São Paulo ; com
base nas minhas “ Memórias ”, nas “ Saídas ” ligadas às “ Aulas-
Espetaculosas ”, na “ paixão ” de Quaderna e nos anais do Simpósio
Quaterna , instaurado em Taperoá, a 9 de Outubro de 2000. Por isso
deve se apresentar como um Diálogo , no qual os interlocutores
aparecem sob o comando de Dom Pantero do Espírito Santo. No
conjunto, fundindo-se, nele, Encenação e Narrativa, forma uma espécie
de Romance-de-Epopeia-Lírica, de Espetáculo-de-Circo ou de grande
Peça-de-Teatro, na qual Dom Paribo Sallemas, Dom Pancrácio
Cavalcanti e Dom Porfírio de Albuquerque integram comigo o grupo
dos Narradores principais (pois Altino, Auro e Adriel, mais do que
Narradores, são Personagens que, tendo já morrido, tiveram a encarná-
los, no Circo-Teatro Savedra , 3 dos melhores Atores que compareceram
ao Simpósio).

Devo explicar a Vocês que nossas vidas foram marcadas por 4


acontecimentos terríveis. O primeiro surgiu quando, a 9 de Outubro de
1930, meu Pai foi assassinado com um tiro pelas costas. O segundo,
quando meu irmão Mauro se matou com 3 punhaladas desferidas
contra o peito, o que sucedeu no dia nefasto de 6 de Outubro de 1970. O
terceiro e o quarto, quando Auro e Adriel foram também assassinados.
Ora, uma vez meu Tio, Mestre e Padrinho Antero Schabino
afirmara que nós, Savedras, éramos “ uma família trágica, como a dos
Átridas ”. Por isso A Ilumiara é uma espécie de Orestíada , narrada, não
por Ésquilo, mas sim por aquele que, na trama, seria um outro Orestes
ou um novo Hamlet (ambos filhos de Pai assassinado, de um Rei
assassinado). Mas este “Hamlet” acertaria a vencer sua dor no Palco e
na Estrada, por meio das Armas que Deus lhe concedeu — “ o galope do
Sonho ”, do Rei, e “ o Riso a cavalo ”, do Palhaço.

DOM PARIBO SALLEMAS


E que todos sejam advertidos logo de início:

ALBANO CERVONEGRO
Quem, seguro de si, cego no Sol, entrar por este Pasto incendiado,
verá o riso, o choro e o desatino de um grande Povo, pobre e iluminado,
forjado ao sol-castanho da Favela e ao sangue do Arraial do Leopardo .
DOM PANTERO
Então, que nos seja permitido alinhar os fatos e reflexões que
temos a reunir nestas Cartas a partir de pontos de vista arbitrários e
pessoais. Somos Brasileiros de origem índia, ibérica, negra, árabe,
judaica, cigana etc. Pertencemos, portanto, a um dos Povos escuros,
mestiços, pobres e desprezados do Mundo. Povos que, filhos da
Iarandara, isto é, da Rainha do Meio-Dia, somos mais dançarinos e
musicais do que reflexivos; mais da “ plástica sensual ” e da pulsação do
ritmo estético do que da abstração.

DOM PANCRÁCIO CAVALCANTI


Para ser fiel a esse outro lado de nossa natureza, Antero
Savedra, ao assumir o posto de Narrador principal d’A Ilumiara , teve de
acrescentar, à sua história de Reis sombrios e Profetas extraviados, uma
outra, dançada pelo Poeta musical e Palhaço lírico que é Dom Pantero.

DOM PORFÍRIO DE ALBUQUERQUE


Depois de ganhar o posto de Reitor da Unipopt (e
principalmente depois que os Prefeitos Miguel de Alencar e Henrique
Accioly o nomearam Secretário da Cultura de Taperoá), o nosso Mestre
passou a vestir-se de dois modos: de roupa clara, quando encarna
Antero Savedra , e de negro-e-vermelho quando representa Dom Paribo
Sallemas ou Dom Pantero (sendo que, neste último caso, pendura um
Medalhão ao pescoço). E foi com essas roupas que ele, conduzindo sua
trupe de Músicos, Atores, Bailarinos e Cantores, passou a empreender
suas Saídas pelos palcos, estradas e descaminhos do Mundo — no caso
dele representado pelo Brasil (porque sempre sustentou que, sendo o
Ser-humano o mesmo em todos os lugares e em todos os tempos, se ele
representasse bem o Brasil estaria representando bem o Mundo inteiro,
pois “ o Brasil é o Sertão do Mundo ”).

DOM PANTERO
Mas o Espelho grial e lunar que, à noite, brilha em meu sangue, é
também cabaçal e solar; e, durante o dia, ao som de Pífanos, Violas,
Rabecas, Tambores e Marimbaus, me encandeia os olhos ao sol de
outras fulgurações.
Em tais momentos, quando em mim predomina o “ hemisfério
Palhaço ”, não é que eu esqueça o abandono e a pobreza em que vive
meu Povo: é que vejo na Festa dos pobres um belo e altivo protesto do
Sonho contra a feiura e a cinzentice da dura vida que lhes é imposta, de
maneira injusta. E aí, o que galopa dentro de mim, com o Jaguar, são
Cavalos desembestados, Atores e Dançarinos — Reis pobres e
maltrapilhos, cujos farrapos são apenas encobertos por mantos e golas
recamadas de sóis, luas, estrelas, vidrilhos e lantejoulas.
ALBANO CERVONEGRO
Impelido por eles, às vezes, olhando o alto Céu azul-iluminado,
vejo brilhar ao Sol — joia ante o Olhar divino, Rosa castanha e bela —
um Reino de muralhas, Castelos e bandeiras, de Estandartes ao vento e de
estrelas na Esfera.

DOM PANTERO
Então, para além da Leitura-de-Trevas, A Ilumiara é uma Lição-
de-Aleluia; um Cantar-jubiloso que, vencendo o sangue e o choro, se
dirige, dançando, à coroa e ao sol do Reino. E eu, com os olhos voltados
para “ O Histrião Desabusado ” que foi meu Tio e Padrinho, Antero
Schabino (Aribál Saldanha, Ademar Sallinas), cobro novo ânimo para
empreender a perigosa Viagem a mim por ele imposta, mas que
procuro realizar do modo como foi sonhada por meu Pai (isto é,
fundindo o galope épico de Os Sertões ao riso do Triste Fim de Policarpo
Quaresma e à poesia do Eu , de Augusto dos Anjos).

ALBANO CERVONEGRO
O Espelho e os girassóis apontam para o sol de Deus. Refletem um
Povo que canta sobre um Chão marcado por seu próprio sangue e
gargalha ao som de um choro causado por terríveis infortúnios.

Canta sob o Sol e dança diante das malhas do Jaguar, do voo leve
da Garça viageira e do olhar triste e belo do Cisne agonizante .

DOM PANTERO
De tal modo, além de grial e lunar, A Ilumiara é um Esconjuro
cabaçal e solar, e nela se figura uma Demanda — a labiríntica busca de
um Castelo que nos foi profetizado.
Mas é também um Diálogo estradício e arraial-romançário,
representado num Circo, em cujo picadeiro o Protagonista (Rei-de-
vidrilho e Profeta-de-sacristia) atua em contraponto a um velho
Palhaço (um Poeta-impostor, brincante, irreverente e pornográfico).
Chamo-me Antero Savedra, nobres Cavaleiros e belas Damas da
Pedra do Reino; e, como Altino, Auro e Adriel, sou filho do Cavaleiro —
João Canuto Schabino de Savedra Jaúna — e de sua Mulher e prima,
Maria Carlota Sotero Veiga Schabino de Savedra. Mas, do ponto de vista
da nossa formação intelectual, fomos educados por nosso Tio, Antero
Schabino — Paulo Antero Soares da Veiga Schabino de Savedra —,
irmão de nossa Mãe e autor de dois Livros, o Diálogo d ’ A Onça Malhada
e a Ilha Brasil e o “ quase-romance ” O Desejado , ambos publicados, à
sua custa, sob os pseudônimos de Aribál Saldanha e Ademar Sallinas .

DOM PANCRÁCIO CAVALCANTI


Aí, tentando ridicularizar esta ascendência ilustre, os
adversários dos Savedras, espalhando a versão de que o Tio deles era
mentiroso e megalomaníaco, chamavam Antero Savedra de “ Dom
Mariano Beato, O Donzelo ”; e ao Tio (principalmente por ter recebido o
título de “ Guerreiro e Rei-de-Honra ” do Maracatu-Rural Piaba de Ouro ),
de “ El-Rei Dom Antero Megalo, O Histrião ”; ou de “ Antero Mitoma, O
Hebéfilo ”, como também o apelidavam.

ANTERO SCHABINO
Não viam que, irônicas como fossem, tais alcunhas terminavam
por reconhecer a invulgaridade da nossa estirpe, a da Casa da Torre dos
Savedras , que se mudou da Galícia para Portugal em 1290 e da qual
assim falou um Poeta e Genealogista de mérito:

DOM JOÃO RIBEIRO GAIO


“ Antes que os reis fossem Reis, e que as pedras fossem Pedras,
Schabinos eram Schabinos, Savedras eram Savedras. ”

DOM PANCRÁCIO CAVALCANTI


Se é por isso, Alexandre Dumas considerava a família Cavalcanti,
“ inscrita no livro-de-ouro de Florença ”, como “ uma raça de Príncipes ”,
cujo Genealogista não era um Dom João Ribeiro Gaio qualquer, mas sim
o próprio Dante. Portanto, Palhaço como seja, é como Rei que apareço
aqui.
João Sotero e Pedro Américo: Gravuras do “Livro Negro do Cotidiano”

DOM PORFÍRIO DE ALBUQUERQUE


Minha família também marcou presença nas guerras da Índia e
do Brasil, assim como na África, na Batalha de Alcácer-Quibir , ao lado
de El-Rei Dom Sebastião.

DOM PARIBO SALLEMAS


É verdade: Dom Porfírio é um Albuquerque-palhaço; um
Albuquerque lascado, fudido e mal pago, mas, ainda assim, um
Albuquerque.
DOM PANTERO
Por causa de tais estirpes tenho o direito de montar Graciano , o
Cavalo castanho e alado que é o timbre de nossa Raça; e de, montado
nele, empreender minha Viagem, escrevendo-lhes esta Carta e
enviando-lhes, daqui, “ meu muito saudar ” — expressão que os Reis
portugueses e nosso primeiro Imperador costumavam empregar nas
suas, quando se dirigiam a seus apaniguados e cortesãos.
Conforme se vê por aí, estas Cartas pretendem apresentar uma
versão literária daquele Pasto-Incendiado através do qual se ligava
Taperoá à Ilumiara Jaúna pela Estrada de Matacavalos — Via principal da
Peregrinação dolorosa (mas celebrativa e sagratória) que se encontra
por trás do espetáculo d’ A Ilumiara .
É, portanto, indispensável que em tal Via eu os introduza, numa
espécie de Viagem-probatória e com ajuda de 3 Poetas, cujos Versos são
Variações compostas sobre o tema da Estrada.

ANTERO SAVEDRA
O primeiro deles é Dante, que assim começa seu Poema:

DANTE CRISTIANO MARTINS SAVEDRA


“ Ao meio do caminho desta Vida, achei-me a errar numa
Caatinga escura, pois a Estrada real fora perdida .
“ Ah! descrever não posso esta Espessura, a Estrada tão selvagem,
densa e forte, que ao relembrá-la a mente se tortura .”
João Sotero e Pedro Américo: Gravuras do “Livro Negro do Cotidiano”

DOM PARIBO SALLEMAS


O segundo é Augusto dos Anjos, que cantou:

AUGUSTO SCHABINO DOS ANJOS


“ Quem foi que viu a minha Dor chorando? Saio. Minh’alma sai,
agoniada. Andam Monstros sombrios pela Estrada, e, pela Estrada, entre
esses Monstros ando. ”
ANTERO SAVEDRA
O terceiro é Severino Cesário, que assim começou um de seus
Folhetos:

SEVERINO CESÁRIO SAVEDRA


“ Aqui eu mostro a Estrada do passado e do presente, que levou à
morte um Rei, molhado em seu sangue quente: um Rei, porém, que aqui
vive, como foi e é para sempre. ”

DOM PANTERO
Postando-se numa Estrada selvagem logo no começo de sua
Incursão, Dante (juntamente com Euclydes da Cunha, Cruz e Souza e
Augusto dos Anjos) é o Patrono principal daquilo que este Romance
tem de trágico, de lírico e pessoal: porque aqui, como n’ A Divina
Comédia e n’ A Vida Nova , o Narrador é o Personagem-central de seu
Poema, de seu Diálogo, de suas Cartas, de seu Espetáculo.

DOM PORFÍRIO DE ALBUQUERQUE


Já o Patrono da parte humorística é Cervantes, devidamente
coadjuvado por Gregório de Mattos, Antônio José da Silva ( “O Judeu” ),
Machado de Assis e Lima Barreto.
Ora, Cervantes, escrevendo sobre o episódio em que Dom
Quixote e Sancho, também numa Estrada, encontram uma Trupe
circense de Atores ambulantes, assim é parafraseado pel’ O Judeu :

“VIDA DO GRANDE DOM QUIXOTE DE LA


MANCHA "
Variação sobre o tema d’O Cavaleiro e o Pajem
Ópera que se representou, com Atores e Bonecos, no Teatro do Bairro Alto, em Lisboa, a 9
de Outubro de 1773

MIGUEL DE CERVANTES SCHABINO DE SAVEDRA


“ Estando os dois conversando, viram aparecer na Estrada uma
Carreta, sobre a qual vinham um Diabo, um Palhaço — um Bufão (ou
‘Mateus’), com um pau em cuja ponta havia 3 Bexigas cheias —, a Morte,
um Anjo, um Rei e outras Figuras.
“ Amedrontado, Sancho quis correr. Mas Dom Quixote segurou-o
por um braço e disse :

DOM QUIXOTE
“ Oh Sancho, espera! Não vês que aquilo é apenas um Castelo-
movediço, com muita gente dentro? Grande aventura nos chega, Deus seja
conosco!

SANCHO
“ Ai, pobre Sancho, onde estás metido? Melhor me fora estar na
minha Aldeia, que não via agora este bando de gigantes Engolias!

DOM QUIXOTE
“ Que temes, covarde? (Aos Atores) Oh vós, quem quer que sejais,
dizei-me quem sois e aonde ides!

DIABO
“ Senhor, nós somos uns pobres representantes de Comédia, que
imos aqui já vestidos para fazer um Auto-Sacramental. Eu faço o papel de
Diabo, este de Anjo, esse da Morte, aquele de Rei, outro de Palhaço, e os
demais fazem diversos papéis.

SANCHO
“ Boas novas Deus te dê, que eu já estava sem pinga de sangue no
corpo!

DOM QUIXOTE
“ Ouve, Sancho: não existe metáfora que melhor nos represente o
que somos do que a Comédia. Os Comediantes nos colocam à frente um
Espelho, onde se veem Damas, Reis, Imperadores, Cavaleiros, Pontífices e
outros Personagens, ricos ou pobres, ‘do grande teatro do Mundo’. Um faz
de Rufião, outro de Pícaro-embusteiro; este de Mercador, aquele de
Soldado; este de Camponês astucioso, aquele de ingênuo Enamorado; e,
acabado o Espetáculo, despidos os trajes, todos os Comediantes ficam
iguais.

“ Pois a mesma coisa, Sancho, acontece na comédia da Vida, onde


cada um faz o papel que lhe cabe; mas, chegando ao final, a Morte lhes
tira as roupas que os diferenciavam, e, na Sepultura, ficam todos iguais. ”

DOM PANTERO
Aqui, pois, é como se Dante fizesse o papel de Homero; Euclydes
da Cunha, o de Virgílio; Augusto dos Anjos, o de Camões; Cervantes, o
de Apuleio; Antônio José da Silva, o de Plauto; Machado de Assis e Lima
Barreto, o de Boccaccio; Cassandra Rios, o de Santa Teresa; e é como se
todos me servissem de Guias em minha incursão pela Estrada que
atravessa o Reino Perigoso do Ladrido.
Dom Pantero como Dom Quixote: Portinari - Alberto Taveira - Toni Agostinho

MARIANO JAÚNA
Quando éramos crianças, ouvimos de nossa Mãe, Maria Carlota,
uma frase que nunca mais esquecemos. Falando do Cavaleiro para
nossa Tia, Maria Francisca, irmã do nosso Pai, ela afirmou:

MARIA CARLOTA
“ Se, no dia 9 de Outubro de 1930, Canuto tivesse ficado em nossa
Casa, como lhe pedi — e não saído por aquela Estrada —, não teria sido
assassinado. Mas se era para ele fugir ou ser humilhado e desmoralizado
(como vi acontecer com outros), então foi melhor que morresse como
morreu. ”

DOM PANTERO
Desde o momento em que ouvimos tais palavras, fincou-se
dentro de nós a certeza de que a Casa era um abrigo seguro e a Estrada
um perigo mortal; mas perigo que devia ser enfrentado com coragem,
pelo “ Riso a cavalo ” e pelo “ galope do Sonho ”, no Palco daquele Teatro
que era o Mundo, ou no Circo daquela Estrada que era a Vida.
Sim, porque, para nós, o Palco sempre foi também um picadeiro
de Circo, semelhante aos que víamos em Taperoá; Circos que, quando
viajavam pela Estrada, eram “ Castelos-movediços ”, como o de Sancho e
Dom Quixote; e, quando armados na rua, eram Casas ou “ Castelos-fixos
” — Fortalezas de pano, porém muito mais brilhantes e animadas do
que as comuns, de pedra-e-cal.
Principalmente porque, dentro de sua forma uterina e circular,
encenavam-se Tragédias, Dramas e Comédias; apareciam Bailarinas,
Malabaristas, Mágicos, Palhaços, Atrizes, Atores e Trapezistas; e assim,
ora luminoso, ora sombrio, o Espetáculo assumia o caráter de “ uma
outra metáfora do Mundo ”:

MARCOS SHABINO CHAGALL


“ Para mim, o Circo era um Espetáculo mágico, que fundava todo
um universo. Além disso, o mundo do Circo tinha uma face inquietante,
profunda, secreta. Aqueles Palhaços, aquelas Equilibristas, aqueles
Acrobatas, instalaram-se de uma vez para sempre em minhas Visões .
“ Por que suas Máscaras me perturbavam tanto? É que, com elas,
eu me aproximava de outros horizontes. Era um nome mágico, aquele do
Circo — um jogo milenar que se dançava; um jogo em que os Atores, as
gargalhadas, as caretas, os saltos e os passos de Dança às vezes tomavam
a forma de uma grande Arte .
“ Mas, ao lado de sua face cômica, lírica e divertida, o Circo era
também uma encenação trágica. Através dos séculos, ouvia-se nele o grito
mais agudo e pungente da busca da alegria do Homem; e, assim, o Circo
assumia, às vezes, o caráter da mais alta Poesia. Em tais momentos, eu
tinha a impressão de, no Picadeiro, estar vendo Dom Quixote em busca de
seu ideal; e seu criador, Cervantes, como o Palhaço genial que, fundindo o
doloroso e o risível, chorara e sonhara o Amor humano. ”

DOM PANCRÁCIO CAVALCANTI


De modo semelhante, para Dom Pantero, em sua condição de
Ator e Encenador, o palco do Teatro Savedra terminou por ser um Circo ;
e no próprio universo das peças ou do romance de Adriel e Auro,
irmãos dele, o cenário e os personagens configuravam uma espécie de “
Circo singular ”.

DOM PANTERO
Entretanto, apesar dessa atmosfera luminosa do Circo, é tenso e
preocupado que escrevo agora: a Estrada de Matacavalos ligava Taperoá
à Ilumiara Jaúna , e esta à Fazenda Saco da Onça . Foi na Ilumiara que
mataram o Cavaleiro, e tenho dolorosa consciência de que, como a
escrita, a leitura destas Cartas é uma áspera Viagem que lhes imponho,
penosa de se levar adiante. Enquanto a empreendia, lembrava-me a
cada instante de um Soneto que, sob o pseudônimo de Albano
Cervonegro , meus irmãos Auro e Adriel tinham incluído na Vida-Nova
Brasileira (primeira parte d’ O Pasto Incendiado ): o Soneto bem
mostrava o que as Estradas — e aquela de Matacavalos em particular —
significavam para nós. E é importante que se recorde: a Vida-Nova
Brasileira musicada por Antonio Madureira foi incluída aqui porque,
imitando a de Dante, foi ela que me permitiu empreender a
Autobiografia-em-prosa-e-verso que é A Ilumiara .

DOM PORFÍRIO DE ALBUQUERQUE


Como acontecia com tudo o que os Savedras escreviam (e até
com os Espetáculos encenados por Dom Pantero), o Soneto fora
composto com base na obscura Poesia sonhada por Altino Sotero,
irmão deles.

DOM PANCRÁCIO CAVALCANTI


Altino era um sujeito estranho, obsedado por sexo, pela música
de Schumann, pela pintura de Carlos Pertuis e pelos poemas de
Hölderlin. E, quando envelheceu, a preferência se revelou, na verdade,
como uma identificação, pois também ele acabou sua vida mergulhado
na demência.

DOM PANTERO
Desde muito cedo, revelara total incapacidade para a vida
prática. Nós tínhamos verdadeira reverência por ele; encarregávamo-
nos de sustentá-lo; e, quando Auro foi morar na Favela-Consagrada —
ou Ilha de Deus — Altino o acompanhou, recusando-se a continuar,
comigo, com Eliza e Adriel, na Casa recifense dos Savedras, que até ali
abrigara todos nós.
DOM PORFÍRIO DE ALBUQUERQUE
Além disso, com as ideias que Auro, Adriel e o próprio Altino
sustentavam, não admira que compusessem o Soneto como uma Glosa,
cujo Mote eram os versos finais da estrofe de Augusto dos Anjos há
pouco citada aqui.

ALTINO SOTERO
É que a Vida me aparecia como uma Estrada perigosa e
estranha: uma Estrada diante da qual meu sangue se crispara de uma
vez para sempre, tornando-me cerrado e tenso perante os enigmas e as
emboscadas do Mundo.

ADRIEL SOARES
Quanto a mim, provavelmente por causa do papel que Eliza
desempenhou em minha vida, a Estrada, mesmo com aquela face
terrível e sangrenta da qual falou Altino, também se desdobrava à nossa
frente como uma Roda-de-Jogo, povoada por Cavalos, zodíacos, Cabras,
signos e insígnias, trupes de Atores, Músicos, Cantores e Bailarinos.

ANTERO SAVEDRA
E, apesar de seu perigo, sobrepondo-nos ao ferro-em-brasa com
que ela nos marcara, nós a celebrávamos assim:

A ESTRADA
Com mote de Augusto dos Anjos

ALBANO CERVONEGRO
No relógio do Sol, o sol-ponteiro sangra a Cabra, no estranho Céu
chumboso. A Pedra lasca o Mundo impiedoso. A chama da Espingarda
fere o Arqueiro.
No carrascal do Céu, azul braseiro, refulge o Girassol rubro e
fogoso. Como aceitar a sombra-sem-repouso? Como enfrentar a Morte e o
Desespero?
Lá fora, o incêndio: o aceso lampadário das Macambiras roxas e
auri-pardas vai a Arcanjos e a Tronos apelando.
Sopra o Vento, o Sertão incendiário. “Andam Monstros sombrios
pela Estrada, e, pela Estrada, entre esses Monstros ando.”

DOM PANTERO
Ora, sendo a Estrada o Palco mais significativo das Viagens, o
livro que nosso tio Antero Schabino sonhava escrever quando morreu
chamava-se exatamente A Divina Viagem ; de modo que, agora, esta
Incursão, este Castelo teatral, novelesco, circense, movediço e
ambulante, é que verdadeiramente começa a minha — a Viagem final e
insólita que estas Cartas aos poucos pretendem narrar.

O SONHO DA ILUMIARA
Variação sobre o Tema da Pedra da Profecia

DOM PANCRÁCIO CAVALCANTI


Pelas últimas palavras que alinhou aqui, vê-se como, na idade
em que se encontra (e apesar de ter abandonado a Poesia, trocando-a
pelo Palco), Dom Pantero continua a ser aquele mesmo “ Poeta ” que foi
na juventude — feio, sonhoso, falhado, quimérico, perseguido por
Visões perturbadoras.
DOM PANTERO
Ainda há pouco, no momento de começar esta Carta, fui
surpreendido por uma: ao som do Tríptico , de Antonio Madureira, vi
duas imagens iguais da mesma Mocinha.

Reconheci imediatamente o rosto gracioso, a cintura esbelta e o


busto adolescente de Liza Reis, apenas ressaltado sob o vestido, assim
como está num dos Retratos que dela me ficaram depois que a perdi.
Como frequentemente me acontece agora, o que mais me doía
naquele instante era o contraste que havia entre a minha Máscara feia,
roída pelo tempo, e a radiosa juventude de Liza: pois enquanto eu
continuava como o Velho extraviado e meio cego em que a Vida me
transformou, ela me aparecia jovem e bela, envolta no mesmo halo,
cercada pela mesma auréola que a meus olhos a iluminava desde que a
vi pela primeira vez.
Espantava-me também o Sol que, na escuridão da noite,
estranhamente brilhava entre as duas imagens. Por causa dele
inclinava-me a crer que uma daquelas Mocinhas representava a
Graciosa; e a outra, a Coroada: a Mulher Vestida de Sol; a Aparecida; a
Misericordiosa; aquela cuja figuração terrestre é a Iarandara — a Rainha
do Meio-Dia em cujo centro fica o Brasil.
Mas foi aí que uma luz de claro-escuro começou a envolver tudo
e eu me vi diante da Ilumiara Jaúna — o feroz Anfiteatro que, com
baixos-relevos insculpidos e petróglifos pintados em seus Lajedos (mas
principalmente por ter sido o lugar onde mataram o Cavaleiro), nos
propunha o Enigma, cercava-o pela festa de formas poderosas, e assim
nos desafiava a tentar sua decifração.
Quando comecei a vê-lo, eu estava em frente da Itaquatiara. Mas,
por cima da Pedra, olhava, lá adiante, para o Lajedo d’ As Tábuas da Lei ,
junto do qual estavam a Besta Fouva e a Moça Caetana — a Madre-
Terrível, a segunda entre As Sete Mulheres da Wopia (ou seja, da Zofia ,
ou Sofia , de acordo com o que, até agora, se pôde decifrar sobre os
caracteres insculpidos na Ilumiara). E era como se ela fosse a imagem
oposta à d’ A Mulher Vestida de Sol :

A MOÇA CAETANA
Com tema de Deborah Brennand

ALBANO CERVONEGRO
Eu vi a Morte, a Moça Caetana, com o Manto negro, rubro e
amarelo. Vi-lhe o inocente olhar, puro e perverso, e os dentes de coral da
Desumana .
Eu vi o Estrago, o bote, o ardor cruel, os peitos fascinantes e
esquisitos. Na mão direita, a Cobra-cascavel, e, na esquerda, a Coral, rubi
maldito .
Na fronte, uma Coroa e um Gavião. Nas espáduas, as Asas
deslumbrantes, que, ruflando entre as pedras do Sertão, pairavam sobre
Urtigas causticantes, “caules de prata, Espinhos estrelados e os cachos do
meu Sangue iluminado” .
A Moça Caetana

DOM PANTERO
No momento em que ouvi este Soneto (que me chegava como
que recitado, no sonho), os Lajedos pareciam alumiados pelo Sol, mas o
resto do Anfiteatro estava mergulhado em trevas. Sobre a Itaquatiara
pairava um enorme Pássaro — O Encourado , talvez — com as grandes
Asas espalmadas contra o Céu. E, amarrado à Pedra, um Homem, um
Velho, chorava desoladamente, com os cotovelos apoiados sobre os
joelhos e as mãos tapando o rosto. Seria por causa do Abutre? Por causa
do Crime, do Pecado e do Sonho perdido?

Ouviam-se os acordes de uma Toada-instrumental de Antonio


Madureira, A Divina Ilumiara , que servia de contraponto a outra, coral e
cantada, Canindé-Lune , na transcrição feita a capela por Heitor Villa-
Lobos. Ao som delas aparecia o Anjo-Abrasador, que perguntava:
— “ Por que chora este Homem ?”
Alguém respondia:
— “ Chora por causa da Morte, do Sofrimento, do Mal e do
Pecado. ”
E o Anjo tornava:
— “ Não é preciso mais chorar, porque agora não mais existe
fome, nem injustiça, nem opressão, nem frieza, nem qualquer outro tipo
de feiura e crueldade. Antes imperava o Pecado, pela Morte. Agora
impera a Graça, para a Vida-eterna, porque o Cordeiro venceu o Mal, o
Pecado e a Morte. ”
Aí o Sol, rompendo Nuvens cor-de-chumbo, aclarava o Céu, e eu
via, não só um grande Trono, mas, sobretudo, Aquele-que-no-trono-se-
assentava. Um cheiro embriagador — o cheiro de um Juremal, de
madrugada — começou a encantar tudo, impregnando até o som da
Música, cujo ritmo se tornava cada vez mais galopado. Abriam-se Livros
— um em especial, O Livro da Estrada , O Livro da Vida . Tinham-se
rompido as cadeias que amarravam o Homem. A Terrível, a Besta e o
Encourado tinham desaparecido e em lugar deles surgiam o Cervo, a
Corça e o Gavião, pois fora estabelecido o Reino-do-Sol.
Uma Voz bradava:
— “ O Sol é o girassol do sol de Deus! ”
Na verdade, chegara-se ao fim dos tempos e o Cordeiro
entregara o Reino a Deus-Pai, depois de ter destruído todo Estado, toda
Autoridade, todo Poder (inclusive o do Dinheiro). Já colocara todos os
nossos inimigos debaixo de seus pés e o último deles a ser destruído
fora a Morte, que, com o Inferno, fora lançada a um lago-de-fogo. O
Sangral fora encontrado: eu via o Encoberto, um novo Céu e uma nova
Terra, porque o céu e a terra que conhecemos haviam desaparecido e o
mar não mais existia. Via também descer do Céu a Cidade-Santa, o
Reino-do-Sol, o Reino-de-Deus. Outra Voz poderosa clamava, junto ao
Trono:
— “ Eis a terra de Deus com os homens (e não contra os homens);
eis a terra dos homens com Deus (e não contra Deus). Ele habitará nela
com os homens, eles serão o seu Povo e Ele será o seu Deus. Ele enxugará
todas as lágrimas dos nossos olhos, pois nunca mais haverá morte, nem
clamor de desespero, nem brutalidade, nem luto, nem dor ou sofrimento
de qualquer espécie. ”
A essa altura, porém, eu olhava para o Espelho, no qual, além de
mim mesmo, via a Ilumiara, o Anjo, a Rainha e o Gavião, todos nós
deformados e convertidos, pela inversão das imagens, em nossos
duplos-contrários. Mais uma vez, nada fora decifrado nem resolvido. O
Homem continuava encadeado à Pedra e era com a face ambivalente do
Encourado e da Terrível que o Anjo me comunicava:
A Coroada
— “ A ameaça contida nos Sinais permanece. O Mal continua,
ligado à Dor, ao Crime, à Morte, ao Pecado e ao Enigma, que continuas
obrigado a decifrar, mesmo sabendo que o risco é de morte e que a
Princesa, o Príncipe, o Rei e a Rainha jamais serão reencontrados. ”
Mas não me intimidava. Como o Rei Davi diante da Arca, ou
como os Velhos e Mestres dos Espetáculos populares brasileiros, eu me
rebelava contra o Mal pela Dança e enfrentava o Enigma pela Festa, na
qual era possível fundir o “ galope do Sonho ” do Rei com o “ Riso a
cavalo ” do Palhaço; o riso de Brincantes que ora atuavam a pé, como o
Bastião e o Mateus , ora montados, como o Capitão — todos três
participantes do Cavalo-Marinho , mas o último comandando a Festa
numa estranha e pobre montaria feita de pano, tinta, papel, cola e
madeira; e todos criando em torno de si um ambiente de sagração e
gargalhadas que se sobrepunha a qualquer dor e era, ao mesmo tempo,
risível e doloroso; cômico e lírico por um lado, épico e trágico por
outro:

FREDERICO SAVEDRA NIETZSCHE


— “Em torno do Rei, tudo vira Tragédia” — diz o Profeta .
— “Mas em torno de Semideuses como Sátiros e Faunos, tudo se
transforma em gargalhadas” — retruca o Palhaço .
E, mostrando que tais verdades são complementares, e não
opostas, conclui o Profeta:
— “É preciso que o Poeta tenha o Mundo inteiro dentro de si para
poder gerar, no chão, ao Sol, a luz de uma Estrela dançante.”

DOM PANTERO
No áspero Castelo erguido por um dos nossos Mestres, Euclydes
da Cunha, o fogo era ateado por um Sol ardente e trágico, forte e
sombrio. Mas eu tinha sempre fincadas em meu sangue as palavras que
meu irmão Auro glosara ao pensar nos Mestres:
JOÃO AURO JAURÈS SCHABINO
“Aqui não se cultuam as cinzas dos Antepassados, mas sim a
chama imortal que os animava, e que aponta para o Futuro.”

DOM PANTERO
Era em tal sentido que eu sonhava levar adiante a chama acesa
no Eu , n’ Os Sertões e no Triste Fim de Policarpo Quaresma , construindo
meu próprio Castelo, a partir destas Cartas e do Simpósio Quaterna .
Nele, o sol do Rei, a princípio radioso e brilhante, fora depois marcado
pela mancha sombria do Crime. O Príncipe se matara. Mas, precária
como fosse a compensação, era ao Rei e à Rainha, ao Príncipe e à
Princesa, que se iria votar esta Ara-de-Pedra, levantada por um Profeta
extraviado mas erguida ao sol do seu Povo, no chão de sua Raça; o
Castelo; a Fortaleza, na qual tão ardente quanto o fogo do Sol era a luz
da Estrela, dançada pelo Palhaço e cantada pelo Poeta. A Morte era
certa — e eu dançava. As Máscaras-de-Espetáculo eram apenas
disfarces que procuravam esquecer a dor e a tristeza insondável da
Vida — e eu dançava. O Poeta talvez ficasse cego — e eu dançava. O
Passado estava irremediavelmente morto — e eu dançava. A
vulgaridade, a feiura, o sofrimento e a injustiça faziam de uma das faces
do Mundo um Pesadelo sinistro, cruel e sujo que o Espelho também
deveria refletir — e, com os Cantores, Músicos e Bailarinos do meu
Circo, eu cantava, ria e dançava, procurando cercar a maldade e o
desespero de gargalhadas e lutando, com meu Canto-de-Aleluia, contra
o abismo escancarado de onde me espreitavam todas as faces do Mal e
da Morte. E um dia — quem sabe? — antes da cegueira possível e da
morte certa, talvez ainda desse tempo de a Dança me colocar diante da
Imagem que o velho Jaguar passara a vida inteira procurando por entre
as cinzas de seu Pasto Incendiado — o matagal do Mundo.

ANTERO SAVEDRA
Sim, porque aquela Visão era também uma Sagração e foi ela
que me permitiu escrever estas Cartas com a paixão que meu assunto
exigia: mesmo continuando a ser o Antero Savedra sombrio, culposo e
feio do dia a dia, a Visão, ao fundir-me à máscara-e-persona de Dom
Pantero, fizera de mim um Personagem, mais uma vez possuído pelo
Dáimone, “ um Rei imortal, transfigurado em Poeta, Palhaço e Profeta ”.

MARIANO JAÚNA
De qualquer maneira, tal foi a Visão; e era indispensável que
fosse descrita agora, porque a Ilumiara Jaúna , marcada pelo sangue do
Cavaleiro, teria de ser logo colocada aqui, como um rescaldo-de-fogo
que nunca mais deixou de arder no sono das nossas noites.

DOM PANTERO
E para que o Castelo ficasse mais de acordo com o Palco onde
atuam os Personagens e as Máscaras que a ele comparecem, aqui
também se transcreve o que dizia Joanot Martorell, em Tirante, O
Branco :

JOANOT GIORDANO MARTORELL SAVEDRA


“ Estabeleceu a Divina Providência que os 7 Planetas exerçam
influência no Mundo e tenham domínio sobre a natureza humana. Por
isso, com ajuda divina, o presente Livro de Cavalaria se dividirá em 7
partes. Sendo eu mesmo um cavaleiro, imponho-me nele a tarefa de
narrar a minha vida; de cantar o Brasil e a Iarandara; e de celebrar os
atos-de-cavalaria daquele ilustríssimo Cavaleiro que, assim como
resplandece o Sol sobre os demais Planetas, assim brilha em
singularidade de Cavalaria perante os demais cavaleiros do Mundo
(incluindo-se, aí, os da Pedra do Reino).
“ De tal modo, esta Obra iluminará aqueles que moralmente
pertencem à Cavalaria, apresentando exemplos de bons costumes,
eliminando ou atenuando pela Arte a urdidura dos Vícios e a ferocidade
dos atos monstruosos (entre os quais aqui se incluem o estupro de uma
Menina e o assassinato do Cavaleiro). E se, por acaso, eu disser ou
mostrar coisas impróprias, corrigi-as ou desconsiderai-as, pois elas
provêm de um Homem criado no Ermo. ”

DOM PANTERO
Seguindo caminho parecido, A Ilumiara é, também, A Grande e
Famosa Peleja de São Cipriano e a Morte , obra inserta na Entrevista que,
no Simpósio Quaterna , concedi a alguns de seus participantes. É um
Poema heroico e quase-teatral, às vezes cômico pelo fato de partir da
figura do “ Imperador ”; e às vezes doloroso, por se ligar à sua tentativa
incessante e cega — mas sempre esperançosamente retomada — de
ressuscitar o Rei, rever a Rainha, reencontrar o Príncipe e a Princesa. É
escrito “ em romance ”, para, sem crime (como o sonhavam Altino, Auro
e Adriel), compensar de algum modo a morte de Mauro, a de Joaquim e
a do Cavaleiro; e aqui é apresentado sob forma de CosmoAgonia-Erótica
e SolmizAção-Ritual .

DOM PANCRÁCIO CAVALCANTI


Por isso Joaquim Simão é convocado a participar da celebração,
a fim de cantar, ao som da Viola, um resumo-em-verso do Marco-
Sagratório que é A Ilumiara . É uma Sextilha, adaptada para aqui da
Cantiga do Valente Vilela :

JOAQUIM SIMÃO
“ Meu Povo, preste atenção ao que agora eu vou contar, de um
valente Cavaleiro, que morava num lugar, e que até seu assassino teve
medo de enfrentar. ”
DOM PANTERO
A tais Versos, segue-se a Invocação , no caso um Martelo-
Agalopado, à guisa de Abertura na Chave-do-Sol . Alguns integrantes do
Coro empunham, ao Sol, a sagrada Rabeviola que viemos herdando, por
aí, de Folhetistas, Bandarras, Profetas e Cantadores. E entoam, ao Sol,
na solfa que Antonio Madureira e Tonheta Meia-Garrafa escolheram
para nós entre as toadas dos Violeiros, o seguinte Martelo , composto
em 1972:

INVOCAÇÃO
Abertura ao Som da Viola
RECITATIVO
Com citação de Frei Antônio do Rosário

CORO
“ Ay, ay, ay, três vezes ay! ”

ADRIEL SOARES
Erga-se o Canto ao chão do meu Rebanho, e ao Sol-que-rege,
oculto entre as Moradas; em favor da Rainha-Desprezada, de nobre
sangue-escuro e solo-estranho. Cante o Corne, do chão negro-e-castanho,
a pulsação do Ser — fogo e legado. Mas que, ao pranto do Povo
injustiçado, ungido em Pedra e Sol, enfrente o medo, e erga o Reino-do-Sol
(sonho e segredo), nas pedras do meu Sol transfigurado .

CANTO
Com citação de Cazuza Nunes

ISAAR FRANÇA
“ Ay, ay, ay, três vezes ay, meu Deus! ”

EDINALDO COSMO DE SANTANA


O galope sem freio dos Cavalos, os punhais reluzentes do Cangaço.
As primas e bordões no seu traspasso, a matraca do Rifle e seus estralos.
O Sino, com seus toques de badalo, e as Onças com seus olhos amarelos. O
Lajedo, que é Trono e que é Castelo, o ressono do Mundo, esta Onça parda,
o vento, o Sol, o sangue, a madrugada, e eu tinindo o galope do Martelo.

ISAAR FRANÇA
“ Ay, ay, ay, três vezes ay, meu Deus! ”
OLIVEIRA DE PANELAS
Na prisão destas Pedras fui atado, aos olhos baços de uma cega
Fera. O sangue da pobreza é uma Pantera que estraçalha meu Povo
injustiçado. Onde reina a justiça do Sonhado, senhores-do-baraço-e-do-
cutelo? Ela vem! E eu, no fogo do Flagelo, mesmo em dura Prisão assim
metido, “na Cadeia dos anos, vou, detido”, retinindo o galope do Martelo.

ISAAR FRANÇA
“ Ay, ay, ay, três vezes ay, meu Deus! ”

EDINALDO COSMO DE SANTANA


E as Abelhas, o Mel acre e dourado, o Angico, o Tambor, a
Baraúna; o Concriz aurinegro, a Caraúna, o Cardeiro de frutos estrelados.
Chora a Vida: “Ai meu sangue assassinado!” Grita o Mundo: “Na Pedra, eu
me cinzelo!” E o Tempo: “Tudo eu queimo e desfarelo!” Quanto a mim, aos
açoites da Virola, vou, nas cordas de prata da Viola, retinindo o galope do
Martelo .

DOM PARIBO SALLEMAS


Filmada por Mauro Galvão, a parte cantada desta Invocação foi
colocada como Abertura do Disco-de-Vídeo realizado por Manuel
Savedra Jaúna e Dantinhas a propósito da Primeira Saída , Aula-
Espetaculosa que Antero Savedra deu em Patos, no Sertão paraibano d’
A Espinhara ; e é acentuado por seu caráter musical que ele retoma o fio
d’ A Ilumiara , empreendendo sua Dedicatória :
João Sotero: O Alfa do “Livro Negro do Cotidiano”
DEDICATÓRIA
Com versos de Olavo Bilac

DOM PANTERO
Como se pode notar pela entonação de seus versos, o Martelo
apresentado na Invocação foi composto “ ao trom e no tom do Sol-Maior
”, e assim deve ser cantado por quem, depois de nós, se atrever a
retomar A Ilumiara , seja na linha d’ O Espelho dos Encobertos , seja na d’
O Palco dos Pecadores .
Mas, como aconteceu também a São Cipriano, esta é a história
de um homem que, para expiar seus pecados, vencer sua dor e celebrar
sua festa, tenta alcançar, penetrar e decifrar (a toda hora, a cada
instante!) o Castelo da Divina Ilumiara . Isolado na Casa em que me
confinei para ver se, finalmente, consigo realizar a Viagem, de vez em
quando, numa espécie de Périplo obsessivo, empreendo uma Incursão
ao lugar em que Manuel Savedra Jaúna procura construir uma nova
Ilumiara Jaúna ; ou então ao outro local em que, agora, se veem apenas
as ruínas do Castelo; ruínas em torno das quais ainda assim fico
rondando, como as almas indignas de que falava Santa Teresa e que
jamais conseguem entrar no seu.

DOM PARIBO SALLEMAS


Para Santa Teresa, o Castelo era interior. Para nós era interior e
também exterior o Castelo que A Ilumiara terminaria por configurar. E
mais ainda: era como Castelo exterior que a Obra — construída a partir
do centro formado pelo Recife, por Olinda, Igarassu, Taperoá e
Belmonte — acabaria por definir o Brasil como um Castelo, daí por
diante imune a todas as vulgaridades ou injustiças, a todas as vilezas e
feiuras que os traidores imaginassem ou fizessem contra ele, na
tentativa de manchar e destruir sua imagem.

DOM PANTERO
Quanto a mim, apesar da advertência de Santa Teresa (e apesar
de sempre frustrado em minhas tentativas), continuo, obstinado, na
procura; principalmente porque, no caminho, tenho contado sempre
com a proteção da Coroada, da Misericordiosa, que é a incontrastável
Soberana do meu Reino. É ela quem, nas Incursões, me ajuda a
cicatrizar os ferimentos que vou recebendo pela Estrada, e assim
possibilita que eu encare como festiva, e não como dolorosa, a cisão que
me dilacera entre a Persona que vivo e as Máscaras que uso —
desnecessárias talvez para os outros, mas indispensáveis ao
cumprimento da Missão que me foi confiada pelo Rei.

João Sotero: O Ômega do “Livro Negro do Cotidiano”

Sofia em caracteres Ilumiáricos


Ora, por meio de um novo Tirante, O Branco , neste Castelo-de-
Cartas-Espetaculosas vai-se fundir uma segunda Demanda do Santo
Graal com um outro Lazarilho de Tormes .
Por isso, esta Dedicatória deveria ser feita “ em honra, louvor e
glória de Nosso Senhor Jesus Cristo e da santíssima Virgem Maria, nossa
Madre e Senhora ”.
Mas pesa-me chegar a Eles com uma Obra que, aparentemente,
tanto se desvia, às vezes, do seu impulso religioso fundamental. E
recorro à Graciosa, para que resolva: leia estas Cartas e depois decida se
elas podem ser colocadas aos pés da Coroada, diante de quem me
prostro, entregando-lhe a sorte do meu corpo, da minha alma e do meu
sonho — do meu Auto imortal: pois sempre encarei A Ilumiara como
um novo e grande Auto d’A Misericordiosa , preparado em louvor do
Rei, da Rainha, da Princesa, do Príncipe e do Cavaleiro.

Assim, não veja Ela, em tudo, a feiura e as impurezas do


Escorralho, mas o profundo amor que lhe consagro, e que venho
reafirmar aqui, no momento em que retomo pela última vez, para
refundi-los num Amálgama só (“ Ouro nativo que, na Ganga impura, a
bruta Mina entre os cascalhos vela ”), os destroços e falhados
fragmentos de uma Obra que, seguro de sua misericórdia, ouso dizer
que lhe é por inteiro dedicada.

GREGÓRIO MATEUS DE SOUSA


Entretanto, duas das mais importantes Máscaras-Coregais que
comparecem ao Espetáculo são Francisco Furiba dos Santos Filho (mais
conhecido como Chicó Chico Furiba, ou simplesmente Chicó ) e João
Tinoque Serra-Negra Júnior, João Grilo — nome sob o qual, junto com
Chicó, ele aparecia no Circo da Onça Malhada , ambos na condição de “
jograis da Misericordiosa ”.

GALDINO BASTIÃO SOARES


Então, assim como ocorreu há pouco com Joaquim Simão, agora
João Grilo e Chicó são convocados para dar tom à Dedicatória, o que
eles procuram fazer através da Ave-Maria dos Índios brasileiros:

JOÃO GRILO
“Salve Maria, cheia de formosura! O Pai-que-mora-na-tenda-da-
chuva está contigo. Entre todas as Mulheres tu és a formosíssima, e Jesus,
teu Filho, é belo!

CHICÓ
“Maria boa, Mãe do Pai-que-mora-na-tenda-da-chuva, pede por
nós, gente ruim, agora e no Sol do nosso morrer. Amém.”

DOM PANTERO
Finalmente, o Palco desta história desdobra-se em dois polos.
De um lado, o Brasil litorâneo, com a Cidade do Recife, cercada pelo Mar
e pelo “ jardim do Éden ” da Zona da Mata. De outro, o Brasil mais
agreste, que tem como núcleo o espinhento e pedregoso “ eldorado do
Sertão ”, batido por um Sol de fogo.

DOM PARIBO SALLEMAS


Por isso, A Ilumiara terá que ser, ao mesmo tempo, uma Farsa
dançarina e uma Tragédia teatral e sangrenta; uma Festa religiosa e
uma Narrativa-cantável, às vezes dolorosa, às vezes cômica, e outras
vezes orgiástica, porque está sendo composta segundo a compulsão, a
cadência e o ritmo poético da Música, a obsessão e o impulso sexual da
Dança.

DOM PANTERO
A Vida-Nova Brasileira e O Pasto Incendiado eram claramente
filiados ao “ galope do Sonho ” do Rei, que caracterizava Altino e, em
medida menor, Auro e Adriel.
Mas, para concluir a Obra deles, como sempre sonhara, eu
precisava fundir aquele “ Sonho de Rei ” ao “ Riso a cavalo ” do Palhaço.
Eu já era ligado ao Palco e ao Circo, como Encenador — condição em
que pudera avaliar: a Comédia ganhava muito mais aplausos do Público
do que a Poesia. Mas queria ser também Ator, porque não me
conformava em ficar escondido nos bastidores do Teatro quando
encenávamos nossos Espetáculos: queria ganhar, em cena aberta,
aplausos que, já Velho, me compensassem da minha infância dura,
sangrenta e atormentada, assim como do anonimato em que vivera
como jovem e como adulto.
Entretanto, era impedido de realizar tal Sonho porque era
incapaz de repetir no Palco, com naturalidade, os textos escritos das
Peças que encenávamos.
Até que, um dia, fui salvo deste beco sem saída por meu amigo
José Laurenio de Melo, que me disse:

JOSÉ LAURENIO DE MELO


“Coevo, no dia 26 de Setembro de 1946 vi Você encantar o Público
ao apresentar 3 Cantadores e 1 Poeta popular no Palco do Teatro de Santa
Isabel . Você pode ser incapaz de repetir um texto decorado; mas,
improvisando, como fez naquela espécie de Aula-Espetaculosa , pode se
tornar o Ator que sonha ser, até agora sem conseguir.”

DOM PANTERO
Estas palavras desencadearam em mim a importante
transformação que iria se refletir até na realização d’ A Ilumiara , depois
de concluído o Simpósio Quaterna .

DONA CLARABELA
Tendo acompanhado o “fenômeno” quase desde o começo,
posso assegurar que a transformação foi completa; e que, desde aquele
“ rito-de-passagem ”, a sedução e o encanto das Plateias não seriam
despertados somente pelos Músicos, Cantores e Bailarinos; pois
quando, no Palco, “ o Dáimone ” baixa em Dom Pantero, ele se
transfigura num velho Palhaço risonho e luminoso; num Palhaço que,
para usar a expressão de Florbela Espanca, “ é como um Jasmineiro em
alvoroço, ébrio de Sol, de aroma e de prazer ”; ou como o “ bonito Herói,
cheirosa criatura ”, de B. Lopes.

DOM PANTERO
Como se vê, com a brilhante centelha de sua aguda inteligência,
Dona Clarabela notou que, quando me baixa o Dáimone no sangue, eu
me transformo numa espécie de novo Antônio Conselheiro; e o Público,
“ arrebatado por este Bufão possuído por Visões apocalípticas ”, também
fica “ hipnotizado ao contato de minha insânia formidável ”, para lembrar
as palavras de Euclydes da Cunha sobre o outro Profeta, o de Canudos.
O mais curioso é que, ao contrário do que normalmente
acontece com os Palhaços, eu passei a obter, como Velho, um êxito que,
jovem, jamais alcançara; e — o que foi mais importante — por meu
intermédio é que Antero Savedra começou a se libertar do que ainda
restava de orgulhoso, sombrio, luxurioso e vingativo na parte “
hamletiana ” do seu sangue.
Mas para que os nobres Senhores e belas Damas da Pedra do
Reino entendam melhor as razões que me levaram a realizar minhas
Saídas devo dizer-lhes: Quaderna costumava se apresentar como
inventor de um gênero-literário novo, o “ Romance heroico-brasileiro,
ibero-aventuroso, criminológico-dialético e tapuio-enigmático de galhofa
e safadeza, de amor legendário e de cavalaria épico-sertaneja ”.
Ora, eu pretendia fazer destas Cartas um “ Pergaminho sagrado ”
para, através dele, compor A Ilumiara ; e nesta transformar em
Espetáculos todas as Obras deixadas por meus irmãos — o que me
tornaria Autor único de todas elas.
Ao mesmo tempo achava indispensável que, na Obra final, eu
aparecesse como Protagonista e Quaderna como Antagonista . E foi por
isso que, não podendo ficar atrás de meu oponente sob nenhum
aspecto, resolvi também criar meu “ gênero literário novo ”, o “ Romance
musical, dançarino, poético, teatral e vídeo-cinematoGráfico ”. Fiz isso
por meio dos Vídeos aqui anexados; principalmente, no início, a Aula-
Espetaculosa filmada por Vladimir Carvalho, A Pintura Rupestre do Cariri
Paraibano e a Vida-Nova Brasileira — os dois últimos preparados por
meu sobrinho e filho-adotivo Manuel Savedra Jaúna; e também por
Manuel Dantas Vilar Schabino de Savedra (Dantinhas), filho de meu
irmão mais moço, Gabriel.

NARRAÇÃO
Com entremeios teatrais, achegas poéticas e comentários
filosóficos

ALBANO CERVONEGRO
No campo-em-chamas que ora aqui se espraia, corta-se a Pedra e
estrala o som do Relho. O Cão late, no Mundo ameaçado, mas a Prata
reluz e brilha o Espelho. O Trono pardo canta à luz da Lua, e fulge a
Estrela sob o Sol vermelho.
Alexandre Nóbrega

DOM PANTERO
Pode-se dizer que A Ilumiara começou a pegar fogo na minha
cabeça, no meu sangue e no meu coração quando li a frase atrevida de
um Europeu atrevido que dissera: “ Não levo o Brasil a sério porque ele
não tem nenhum Santo e nenhum grande Poeta (como Dante, por
exemplo). ”
Assim que li tais palavras — e vendo logo que, por causa de
meus Pecados, não poderia ser um Santo — resolvi tentar ser um Poeta,
ou Poieta ; um Escritor que representasse para o Brasil o que Dante era
para a Itália e Cervantes para a Espanha. Sabia que o caminho seria
dificílimo, áspero, duro. Mas, para nele guiar-me, tinha umas palavras,
para mim sagradas, porque tinham sido proferidas por meu Pai, que
afirmara um dia, em 1927, ano do meu nascimento: “ O Brasil só terá
seu grande Escritor no dia em que alguém acerte a fundir numa só Obra
Euclydes da Cunha, Lima Barreto (ou Machado de Assis) e Augusto dos
Anjos. ”
Quando me lembrei desta afirmação de meu Pai, meu Tio,
Mestre e Padrinho Antero Schabino já tinha morrido, assim como meus
irmãos Altino, Adriel e Auro. Nenhum deles fizera “ a grande Obra ” que
nos fora proposta por Tio Antero em 1937. Entretanto, cada um deixara
uma Obra menor e incompleta: Altino, ajudado por nós, fizera O Pasto
Incendiado ; Auro, o Romance d ’ A Pedra do Reino ; Tio Antero, A Onça
Malhada ; Adriel, o Auto d ’ A Misericordiosa e as outras peças cômicas
que compunham suas Comédias Exemplares (nome a elas atribuído por
Aderbal Freire Filho); se eu conseguisse fundir tudo numa Obra só,
estaria pronta A Ilumiara , com uma Poesia que era uma versão pessoal
e recriada minha do Eu ; com outra versão em Prosa d’ A Pedra do Reino
(que seria o equivalente “ savédrico ” de Os Sertões ); e finalmente com o
riso despedaçado pelo amor ao Brasil presente no Triste Fim de
Policarpo Quaresma .

Outra coisa que me ajudou em minha busca foi, já nos últimos


anos, um Vídeo feito por Claudio Brito e intitulado Antero: Savedras ,
com depoimentos dados a meu respeito por minha irmã Afra
Cantapedra, e pelos sobrinhos e filhos-adotivos que eu herdara de
Adriel depois de sua morte. O Vídeo era dividido em 3 Partes, “ A Terra
”, “ O Homem ” e “ A Luta ”, as mesmas de Os Sertões ; sendo que a última
delas, “ A Luta ”, aludia às Saídas e Aulas-Espetaculosas por meio das
quais travava minha luta em defesa do nosso País e do nosso Povo. E,
mais importante do que tudo: no Vídeo, com sua argúcia habitual,
Carlos de Souza Lima mostrava que, sendo meu Pai um Rei destronado,
todo o meu trabalho no campo da Arte tinha como objetivo principal
recolocá-lo no Trono.
DOM PANCRÁCIO CAVALCANTI
Só havia um inconveniente na inclusão de tais Vídeos n’ A
Ilumiara : é que seus Autores (não sei se por implicância ou por
qualquer outra razão) teimavam em tratar nosso Mestre não por
Mariano Jaúna ou Antero Savedra, mas sim por um terceiro e estranho
nome, cujo objetivo era reforçar a campanha de silêncio de que tinham
resolvido obscurecer o sucesso do Antero Savedra verdadeiro.
De qualquer maneira — e fossem quais fossem as confusões e
incompreensões que tal fato iria causar —, nosso Mestre terminou
optando por incluir os Vídeos aqui porque somente com eles ficaria
evidenciado o caráter musical, poético, dançarino, teatral e vídeo-
cinematoGráfico d’ A Ilumiara .

DOM PANTERO
Mas o tempo passava e eu não conseguia levar o trabalho
adiante. Cheio de temores e hesitações, não ousava começar a honrosa
mas duríssima tarefa.
Até que começou a se aproximar o dia 8 de Março de 1997, data
na qual eu completaria 70 anos. Vi que “ era agora ou nunca ”. Então
pedi a Alexandre Nóbrega, Adriana Victor, Carlos Newton Júnior, Felipe
Santiago, Josafá Mota, Juscelino Moura e Samarone Lima que
organizassem uma Saída minha para a Cidade de Patos , a maior do
Sertão da Espinhara , na Paraíba.

Naquele ano de 1997 eu já voltara a morar no Recife, para onde


nos mudáramos em 1942, eu aos 15 anos de idade. Mas, para realizar “
a grande Obra ”, faltava-me encontrar o grande Personagem, o novo
Profeta que, como Antônio Conselheiro em Os Sertões , unificasse e
representasse tudo aquilo numa Figura que expressasse o nosso País e
o nosso Povo.
Então peguei uma Tábua, na qual gravei imagens feitas a partir
de inscrições rupestres, tendo no centro os nomes das 3 Obras que me
apontariam o caminho a seguir. Assim:

Eu

Os Sertões

Triste Fim de Policarpo Quaresma

E todas as manhãs dava meu bom-dia ao Mundo rezando diante


da Placa para pedir a Nossa Senhora que tornasse possível a ascensão
para cima e para além de mim mesmo — ascensão sem a qual não se
faria A Ilumiara .
Muito tempo passei assim. Até que um dia, mal começara a rezar
quando um raio de Sol feriu a Tábua deixando bem claro o título Eu , do
livro de Augusto dos Anjos. Foi uma espécie de relâmpago no qual
recebi a revelação: os 3 grandes Livros eram, todos, Autobiografias-
literárias disfarçadas ou involuntárias de seus Autores. E, deslumbrado,
vi que deveria seguir caminho parecido para finalmente colocar de pé
aquela Obra cujo sonho meu Tio, Mestre e Padrinho Antero Schabino
nos apontara diante da Casa recifense dos Savedras, então arruinada.
Era o dia 9 de Outubro de 1937 e, noutras Cartas que enviarei depois a
Vocês, falarei melhor de tudo isso, mostrando como o próprio Dom
Pantero veio a se revelar como o grande Personagem que eu procurava
para ser a encarnação do Povo brasileiro colocado no centro d’ A
Ilumiara .

Depois daí, descobri que deveria intensificar as 3 faces da Luta,


para afinal enfrentar A Ilumiara . Meu irmão Adriel já tinha morrido e
eu adotara sua Mulher, Eliza, e seus Filhos, Joaquim, Manuel, Alexandre,
Guilherme, Maria, Isabel, Mariana e Ana Rita como se minha Mulher e
meus Filhos fossem. Fortalecido pela Família que ganhara, a partir
desta primeira Viagem a cada Saída Eliza pendurava em meu pescoço o
Medalhão que transformava em Narraturgo, Cavaleiro, Mestre e Chefe-
de-Comediantes a pessoa de Antero Savedra. E eu saía a pé até a rua,
onde começava a Viagem num Carro antigo (o que fazia para desafiar e
provocar os Equivocados que, no Recife, me chamavam de “ Dom
Quixote arcaico ”). Quando era o caso — como me aconteceu, por
exemplo, na primeira vez em que fui ao Juazeiro do Padre Cícero — o
Carro me levava ao Aeroporto, onde eu pegava um Avião que, moderno
como fosse, para mim era apenas uma versão feia do belo 14- BIS , de
Santos Dumont.
Nossa Casa recifense estava com a restauração ainda incompleta
mas inteiramente esboçada e definida. Por isso eu a considerava, já,
como um Castelo, uma Fortaleza cuja Arte de vez em quando se poria a-
caminho pela Estrada; um Circo-de-Teatro colocado a serviço do Povo
brasileiro (e, por seu intermédio, da Rainha do Meio-Dia e de toda a
Humanidade). Em Patos iria se realizar uma certa Jornada Nacional de
Literatura ; e eu resolvera jogar meus temores e hesitações para um
lado, a fim de ali enfrentar o Palco de uma vez para sempre. Animava-
me porque o Prefeito Miguel de Alencar e Vera Ferraz tinham permitido
que me acompanhassem, na Saída , Antonio Madureira, Vladimir
Carvalho, Aglaia Costa, Mauro Galvão e o pessoal técnico da TV Ilumiara
; isto sem se falar nos dois responsáveis pela Sertão Filmes — meus
sobrinhos Manuel Savedra Jaúna e Manuel Dantas Vilar Schabino de
Savedra (Dantinhas), filho de Gabriel.
Mas, nos dias que precederam imediatamente a Viagem, ainda
me restava um impedimento para levar adiante as Aulas-Espetaculosas :
continuava a ter medo do Palco e precisava de uma garantia de sucesso
perante o Público; especialmente, por ser um Velho, diante dos Jovens
que por acaso fossem ao Teatro.
Aí fiz uma promessa a São Cipriano para que, começando pela
primeira, as Saídas e as Aulas-Espetaculosas se transformassem em
êxitos indiscutíveis e retumbantes. Escolhera aquele Santo porque,
segundo relatos de sua Vida , ele encantava e seduzia os Jovens de seu
tempo; principalmente as Moças, como consta d’ O Grande e Verdadeiro
Livro de São Cipriano e a Bruxa Lagardona . É como se vê a seguir:

VIDA DE SÃO CIPRIANO


Extraída do “Flos Sanctorum”

ADERITO VISEU SCHABINO


“ Cipriano, O Feiticeiro , nasceu em Antióquia, Cidade situada
entre a Síria e a Arábia e pertencente ao governo da Fenícia. Seu Pai,
idólatra possuidor de copiosas riquezas, vendo que a Natureza dotara o
Filho com inigualável talento para conseguir a admiração e a estima dos
Homens, destinou-o para o serviço das falsas Divindades, fazendo-o
instruir-se na ciência dos Sacrifícios que se ofereciam aos Ídolos; de modo
que ninguém tinha, como ele, tão profundo conhecimento dos Mistérios
perigosos e profanos dos bárbaros Gentios.
“Na idade de 30 anos, fez ele uma Viagem ao país da Babilônia
para aprender a Astrologia Judiciária e os outros Mistérios recônditos dos
supersticiosos Caldeus. Assim, além da grave culpa de empregar em tais
estudos pecaminosos o tempo que lhe era concedido para conhecer e
seguir a Verdade, acrescentou Cipriano terrível malícia à sua iniquidade
quando se entregou ao Demônio, fazendo um Pacto com ele e praticando
ao mesmo tempo vida impura e escandalosa: desencaminhava todas as
Donzelas que se deixavam encantar por ele, que empregava o hipnotismo
e todos os outros meios mais eficazes de sua Arte diabólica para seduzi-
las.”

DOM PANTERO
Era exatamente isso o que eu pretendia fazer nas Aulas —
encantar e seduzir o Público. E para me sobrepor ainda mais a meus
temores, lembrava-me de que o meu segundo nome, Mariano , tinha 4
vantagens.
Em primeiro lugar, lembrava o de um obscuro Santo egípcio,
que, como meu Pai, fora “ um ex-Governador assassinado ” — no caso
dele, porém, não a tiros, e sim “ afogado no Mar ”, como informa o Padre
João Batista Lehmann, em Na Luz Perpétua . Em segundo lugar, rimando
com Cipriano , aludia ao fato de que A Ilumiara é uma versão nova d’ A
Grande e Famosa Peleja de São Cipriano e o Diabo ; depois, sendo eu um
devoto da Santa Mãe de Deus, com ele se mostrava logo a condição de
grande Auto Mariano que A Ilumiara também deveria revelar desde o
começo. Finalmente, tendo eu nascido em 8 de Março de 1927, 8 de
Março é a data em que o Santo egípcio é celebrado pela Igreja (como
também se pode ler no livro do Padre Lehmann).

Foi assim, então, que, no dia memorável de minha primeira


Saída , cheguei a Patos, onde, em 3 turnos, ministrei a primeira Grande
Aula-Espetaculosa destinada a deflagrar A Ilumiara .
No turno matutino apresentei a Aula Espetaculosa filmada para a
TV Ilumiara por Vladimir Carvalho. Antes de começar a Viagem, ele me
filmara na Casa recifense dos Savedras e este início da Saída foi
mostrado como Introdução à Aula-Espetaculosa propriamente dita, na
qual, como Velho , Mateus-Bastião ou Pierrô-Arlequim (e exercitando
quase exclusivamente meu hemisfério Palhaço), eu, por antecipação,
esperava compensar o Público do tédio e do hermetismo da Vida-Nova
Brasileira . Recitei o Romance d ’ A Bela Infanta , o d’A Donzela que foi à
guerra e, cantada, a Cantiga de Dom Sebastião . E mostrei Fotografias de
duas grandes amigas minhas — Maureen Bisilliat e Anna Mariani —,
assim como uma reprodução do Candelabro da Verdade , de cenas do
Teatro indígena etc.

Como se tratava apenas de uma experiência inicial, vesti-me de


roupa clara, e não de preto-e-vermelho. Pedi a Aglaia Costa que levasse
uma Rabeca , como a do Cego Aderaldo ; Antonio Madureira deveria
tocar um Violão , como Ricardo Coração dos Outros — o Sancho
destinado a fazer companhia a Policarpo Quaresma , aquele Dom Quixote
brasileiro, genialmente esboçado por Lima Barreto.
Foi assim que Aglaia, Madureira, Isaar França, Oliveira de
Panelas e Edinaldo Cosmo de Santana apresentaram o Romance de
Minervina , o d’A Bela Infanta e a Cantiga de Dom Sebastião . E pedi a
Vladimir Carvalho que, além da Itaquatiara do Ingá , no Vídeo aparecesse
a Ilumiara Zumbi , com Mestre Salustiano colocando-me aos ombros a
Gola que eu herdara de meu Tio, Mestre e Padrinho Antero Schabino , e
recebendo eu, logo aí, o título de Guerreiro e Rei-de-Honra do Maracatu-
Rural Piaba de Ouro , que Tio Antero também me legara.
O Público riu muito e bateu palmas entusiásticas, o que me
mostrou que a proteção d’ O Santo Pecaminoso finalmente começara a
transformar o bisonho Professor que eu era num Ator de sucesso.

No turno vespertino, juntamente com uma Foto da Fazenda


Acauhan (para mim sagrada, por ter sido “ a de meu Pai ”), mostrei ao
Público as imagens ligadas a duas Oficinas que Manuel Jaúna realizara
em Taperoá e na Matureia, tendo como assunto a Pintura rupestre do
Cariri paraibano — Pintura fundamental no que se refere à parte
gráfica d’ A Ilumiara . As imagens foram mostradas ao som de músicas
compostas por um dos compositores mais velhos do Movimento
Armorial — Capiba.
Finalmente, no turno da noite, recitei os Sonetos da Vida-Nova
Brasileira . Mas com medo, como sempre, de que a Poesia entediasse o
Público, resolvera exibir também Imagens e muitas Músicas que
animassem a recitação. As imagens tinham sido criadas por Manuel
Savedra Jaúna, e a música por Antonio Madureira. Eu pedira a Manuel e
a Dantinhas que, antes mesmo de começar a recitação, eles fizessem
ouvir o Romance de Minervina , que já tinham tocado no turno da
manhã, pois queria que a raiz popular da nossa Cultura também ali
aparecesse por meio daquela música delicada, bela e aristocrática que
Madureira recriara de modo admirável.

Manuel Dantas Vilar | Acervo pessoal


E tudo terminou como eu planejara, porque, no fim, a Música foi
delirantemente aplaudida e o Público, esquecido dos tropeços e da
obscuridade da Poesia, fixou-se apenas no entusiasmo da Obra musical
e pictórica que encerrou a Aula de modo caloroso e triunfal.

Tudo isso me deixou animado (se bem que, de outra parte,


muito preocupado, porque não sabia se a proteção do Santo egípcio,
meu Padroeiro, era suficiente para compensar os riscos da promessa
que, como Antero Savedra, fizera ao pactário São Cipriano, “ O Mágico
Prodigioso ”). Fiquei, mesmo, um pouco assombrado por causa de um
incidente que me abalou ao término da Aula e que foi tão inverossímil
que somente me animo a contá-lo, primeiro porque ele aconteceu,
mesmo; e depois porque bem mostrava que a promessa feita antes da
Saída tivera quase o caráter daquele Pacto perigoso e temerário a que
me referi.
Vocês devem estar lembrados: n’ A Vida de São Cipriano ,
contava-se que ele costumava seduzir todas as Moças que cruzavam seu
caminho. Pois bem: eu estava, já, indo embora do Teatro, quando de
repente, de entre as outras pessoas que saíam também, apareceram
uma Mulher e duas Filhas jovens suas. Uma destas, ruiva, ao avistar-me,
correu para mim e, ajoelhando-se a meus pés, falou:
“ Estou aqui, prostrada a seus pés, porque, em sua Aula, Você disse
que é um Velho, o que não é verdade. Você é o jovem mais jovem que eu já
conheci; e quando, lá no Auditório, recitou o Soneto que fala numa ‘Dália
ruiva’, de seus olhos saiu uma chama que me possuiu toda. Estou aqui
inteiramente possuída, em todo o meu corpo, da cabeça aos pés; e tenho
certeza de que sua chama nunca mais deixará de queimar meu corpo e
minha alma! ”
O Soneto ao qual ela se referira era o seguinte:

O AMOR E O DESEJO
Com tema de Augusto dos Anjos

ALBANO CERVONEGRO
Eis afinal a Rosa, a encruzilhada onde moras, oh Ruiva, oh meu
desejo! Emerges a meu Sangue malfazejo, onça do Sonho, Fronte coroada.
Ao garço olhar, à vista entrecerrada, um sorriso esboçado, mas
sem pejo. Teu pescoço é um Cisne sertanejo, teus Peitos são Estrelas
desplumadas.
Embaixo, a Dália ruiva, aberta ao Dardo. O manto, a rosa, a
púrpura, a Coroa. E brilha, ao fogo dessa Chama-parda, a Coroa-de-
Frade, a Rosa-Cardo, abandonada às Onças, às Leoas, “e ao cio escuso das
Panteras magras” .

DOM PANTERO
A Mãe e a irmã aproximaram-se, levantaram-na do chão,
pediram-me desculpas, embaraçadas, e perderam-se de novo com ela
no meio das outras espantadas pessoas do Público.
Quanto a mim, não acreditava no que ouvira, e lamento que meu
sobrinho e filho-adotivo Alexandre — que hoje me acompanha em
minhas Saídas — não estivesse ainda fazendo seu Livro-de-Fotografias
O Decifrador , pois, neste caso, teríamos uma prova de que o incrível
acontecimento realmente sucedeu. A Menina mal saíra da adolescência,
e eu, além de feio como sempre fora, estava com 70 anos. Restavam-me
ainda alguns cabelos, mas já inteiramente brancos. Aquilo fora uma
loucura que se apossara dela numa extrema confusão de sentimentos. E
se eu tomasse qualquer iniciativa para levar adiante o que acontecera, o
fato mergulharia nós dois e as pessoas que nos eram próximas no mais
extraviado de todos os infortúnios.
Mas, assim que ela começara a falar, a imagem de minha amada
e nunca esquecida Liza Reis me aparecera, luminosa e pura, para me
lembrar que eu, ao conhecê-la, me tornara seu Vassalo de uma vez para
sempre — um Vassalo que a nenhuma outra Mulher jamais prestaria
culto. A Moça ignorava que os verdadeiros autores do texto em prosa e
dos Sonetos eram Altino, Auro e Adriel. Eu os recitara falando na
primeira pessoa e transformando tudo num Espetáculo aplaudido, de
modo que ela fora tocada pelo forte apelo sexual dos Sonhos dementes
de Altino (principalmente porque a “Amada secreta” dele era ruiva,
como com ela própria acontecia).
E fui recompensado na minha decisão de encerrar ali o episódio,
porque, momentos depois, era como se nada tivesse acontecido (ou
pelo menos assim pensei na primeira hora).
No outro dia, antes de começar a Viagem de volta, corri ansioso
a comprar os Jornais da cidade, para ver se saíra publicada alguma
notícia, algum comentário sobre a Aula do dia anterior. E deslumbrado
(mas ao mesmo tempo preocupado pelo “ hipnotismo cipriânico ”) vi o
seguinte, logo na primeira página do Diário da Manhã :

SAVEDRA HIPNOTIZA PÚBLICO DA


JORNADA
O Arlequim-Pierrô erudito que veio do
Sertão
“ Antero Savedra, que se considera apenas ‘um contador-de-
histórias brincalhão’, deu ontem em Patos uma aula de Vida.
“ Foi a melhor apresentação da Jornada Nacional de Literatura .
Alegre, descontraída, permeada de casos engraçados e de reflexões
profundas, de citações de Autores clássicos, medievais, renascentistas e
barrocos, que pareciam comparecer ao Palco atendendo ao chamado
daquele misto de Mateus-Arlequim e Bastião-Pierrô, que deixou em todos
os que estavam no Teatro um gosto de alegria. Apesar de longa, ninguém
queria que a Aula-Espetaculosa acabasse.
“Aos 70 anos, o paraibano Antero Savedra mostrou-se insuperável
na arte de falar das coisas do Sertão, do Nordeste, do Brasil, do Mundo
inteiro afinal; e, mais, da sua própria Obra, das pessoas que ele
transforma em Personagens, da Vida e da Morte. ‘ Sou um grande
mentiroso ’ — diz ele; e acrescenta: ‘ Todo Escritor precisa mentir para
recriar magicamente as coisas, as pessoas e os acontecimentos da Vida real.
No que a mim se refere não me bastam leitores e espectadores, preciso de
cúmplices ’ — concluiu.”
DOM PANTERO
Na Folha Patoense havia um texto assinado, no qual dizia o
Autor:

CARLOS ANDRÉ MOREIRA


“ O homem tem 70 anos; os poucos cabelos já estão brancos; é
alto, magro e ossudo como um Fantoche de madeira. Se a gente prestar
atenção dá para ver os cotovelos forçando o tecido do casaco. E, mesmo
assim, a experiência de ouvir Antero Savedra é galvanizante, a ponto de o
público se esquecer do tempo.
“ Dramaturgo, poeta, romancista, historiador, intelectual de
visões originais e polêmicas, Savedra protagonizou ontem em Patos uma
das mais esperadas apresentações da Jornada Nacional de Literatura . A
coordenação do evento tentava trazê-lo havia 10 anos, e só conseguiu isso
com a intervenção de um amigo seu.
“Savedra falou abrindo parênteses e longas digressões, afirmando
a certa altura: ‘ Não tenho medo da Morte, que, na minha terra, é uma
Mulher e se chama Caetana. Aliás, é o único jeito de eu aceitar essa maldita
— se ela vier sob a forma de uma Mulher linda, carinhosa, acolhedora e
amante’.
“ Na Aula-Espetaculosa, Antero Savedra entremeava suas
palavras com músicas, poemas e casos que lhe vinham à memória
privilegiada.
“O impressionante é que depois de ficar muito tempo divagando
sobre outros temas, Savedra voltava sempre ao ponto em que se havia
desviado. E, como disse Ricardo Barberena num jornal de Caruaru, o
público ora o ouvia em ‘respeitoso silêncio’, ora explodia em ‘sonoras
gargalhadas’, pontuadas por aplausos calorosos. ”

DOM PANTERO
Quando cheguei ao Hotel (onde o pessoal já me esperava para a
Viagem de volta) o Porteiro falou: “Hoje pela manhã, logo cedo,
deixaram aqui esta Carta para ser entregue ao senhor.”
E eu, novamente preocupado, li o seguinte:

CARTA
“ De começo, uso palavras de João Cabral de Melo Neto para lhe
mostrar por que não o acho feio:
‘É belo por que com o novo contagia. Belo porque corrompe com
sangue novo a anemia. Infecciona a miséria com vida nova e sadia, com
oásis o deserto, com o vento a calmaria’.
“ A mim, do alto dos meus 20 anos, ainda resta uma esperança:
transformar meus sonhos em realidade trocando nem que seja um deles
por um instante de eternidade.
“ Se eu pudesse ter de novo aquele momento mágico, que quase
tivemos ontem, eu lhe mostraria todo o respeito e, paradoxalmente, toda
a paixão que sinto por Você. Tocaria seu rosto com a ponta dos dedos e
habilmente aproximaria meus quadris dos seus, sentiria sua respiração
no meu pescoço, cheiraria suas roupas e o olharia de tão perto que meus
lábios o tocariam; e Você me diria:
— ‘ Minha Menina que de tantos sonhos te alimentas! Vou fazer
uma Canção só para ti’.
“ E Você a cantaria — uma música que, de tão bela, a gente
sentisse o Amor; e eu a cantaria também e o amaria, pois o Alto é Azul. ”

De qualquer modo, como por aí fica demonstrado, o êxito em


Patos fora total. E então eu me animei, passando a levar por outros
Palcos e Estradas meus Atores, Músicos, Cantores e Bailarinos, o que fez
de mim, aos poucos, o Palhaço e Dono-de-Circo que sempre sonhara ser.
Foi assim que, depois daí, passou a suceder com todas as minhas
Aulas-Espetaculosas: de um jeito ou de outro (e por mais estranho e
diferente que fosse meu modo de falar) o Público sempre terminava “
hipnotizado ao contato de minha insânia formidável ”, para lembrar de
novo as palavras de Euclydes da Cunha sobre o outro Profeta, o de
Canudos, e as de Aderito Viseu sobre São Cipriano (como, aliás, se viu
em Patos).

Dadas essas explicações seria tempo de levar adiante a Narração


; mas está acabando o espaço que me foi concedido para o Encarte em
que esta Carta será publicada.
Forçado a parar, ocorre-me, porém, um fato cuja presença é
indispensável aqui: não quero que estas Epístolas, planejadas por meu
Tio, Mestre e Padrinho, Antero Schabino, fiquem inferiorizadas na
comparação com São Paulo, que costumava terminar as suas por uma
Doxologia .
Ora, Altino, Adriel, Auro e eu — influenciados por nosso Tio e
Mestre — achávamos que 3 das vertentes mais importantes da Cultura
brasileira eram a rupestre , a popular e a barroca , fato que venho
procurando acentuar por meio das Estilogravuras que servem de
Vinhetas a esta Carta: devendo-se notar que, das últimas que incluo
aqui, uma é de filiação rupestre; e na outra (com meu traço canhestro,
que Eliza de Andrade tentou em vão afastar de um academicismo
primário), procurei fundir o barroco e o popular para, com ela, prestar
mais uma homenagem à Misericordiosa.
Por menos que o consiga, em mim — talvez por não ser mais do
que um Ator e Encenador — a inspiração que me ferve no sangue nasce,
entre outras fontes, das perspectivas e iluminadas projeções
relampeadas num Palco, pelo Prosador-barroco Antônio Vieyra, ou,
numa Estrada, pelo grande Poeta-popular que foi Severino Cesário.
Recorde-se então: tudo o que se vem alinhando aqui começou
naquele dia 9 de Outubro de 1930, quando, pela Estrada de Matacavalos ,
o Rei e Cavaleiro realizava sua derradeira caminhada pelas trilhas do
Mundo; e no dia 6 de Outubro de 1970, quando o Príncipe e Rei que foi
meu irmão Mauro se matou a punhaladas desferidas contra o próprio
peito.
Por isso, leiam a Doxologia que remata esta Epístola ouvindo o
Prelúdio em Mi-Menor , de Heitor Villa-Lobos, executado ao Violão por
Antonio Madureira. E como, em nossos Espetáculos, costumávamos
fazer as transições de cena usando Malabaristas, Palhaços, Dançarinos e
Trapezistas, imaginem que, enquanto Vocês leem, uma Bailarina e dois
Bailarinos vão dançando, de modo a transformar esta Carta num “ Circo
pungente ”, como aqueles dos quais falavam Nietzsche e Chagall; pois,
com isso, as palavras de Vieyra e Severino Cesário ganham um
significado ainda maior, a elas comunicado pela Dança e pela Música:
DOXOLOGIA
ANTÔNIO SCHABINO VIEYRA
“Este Mundo é um Teatro: os Homens e as Mulheres são as Figuras
que nele representam e a história de seus sucessos é uma Peça escrita por
Deus.
“O primor e a sutileza da Arte cênica consistem principalmente
naquela suspensão do entendimento e naquele doce enleio dos sentidos
com que o Enredo nos vai levando após si, encobrindo-se o fim da história
sem que se possa entender onde irá parar senão quando o mesmo fim vai
chegando e se revela de súbito, entre a expectação e o aplauso do Público.
“Do mesmo jeito, Deus — soberano Autor, Governador do Mundo e
perfeitíssimo Exemplar de toda natureza e de toda Arte —, para maior
manifestação de sua Glória e admiração de sua Sabedoria, de tal maneira
nos encobre as coisas futuras (ainda quando as manda escrever pelos
Profetas) que não nos deixa compreender nem alcançar os segredos de
seus intentos senão quando têm chegado ou vão chegando ao fim, o que
Ele faz para nos ter sempre suspensos na expectação e pendentes da sua
Providência.”
DOM PANTERO
Mostrado assim o Mundo como um Palco-de-Teatro, pelo
Prosador barroco, vejam-no agora como uma Estrada que, na visão do
Poeta popular, tem sua poeira mortal molhada pelo sangue dos Reis:

SEVERINO SAVEDRA CESÁRIO


“Neste Planeta terrestre, o Homem não se domina: tem que viver
sob o jugo da Providência divina; foi feito do pó da Terra, no pó da Terra
termina.
“Assim, eu mostro a Estrada do passado e do presente, Estrada
onde morrem Reis, molhados em sangue quente: hoje, tornados em Pó,
resta a Memória somente.”

DOM PANTERO
Ora, foi a morte sangrenta daquele Príncipe e daquele Rei que
deu origem a estas Cartas; a esta Viagem; a este Espetáculo; a esta
grande Tapeçaria, tecida pelas sessões-de-bordado das filhas de Adriel
e pelas sessões-de-teatro do Simpósio Quaterna .

ALBANO CERVONEGRO
O Circo: sua Estrada e o Sol de fogo. Ferido pela Faca, na
passagem, meu Coração suspira sua dor, entre os cardos e as pedras da
Pastagem. O galope do Sonho, o Riso doido, e late o Cão por trás desta
Viagem.
Pois é assim: meu Circo pela Estrada. Dois Emblemas lhe servem
de Estandarte: no Sertão, o Arraial do Bacamarte; na Cidade, a Favela-
Consagrada. Dentro do Circo, a Vida, Onça Malhada, ao luzir, no Teatro, o
pelo belo, transforma-se num Sonho — Palco e Prelo. E é ao som deste
Canto, na garganta, que a cortina do Circo se levanta, para mostrar meu
Povo e seu Castelo.

DOM PANTERO
E, com estes Versos, compostos em Martelo-Gabinete e Martelo-
Agalopado — duas Estrofes criadas pelos Cantadores brasileiros —,
aqui se despede de Vocês, nobres Cavaleiros e belas Damas da Pedra do
Reino, este que é, ao mesmo tempo, seu Soberano e seu companheiro
de cavalgadas e Cavalaria,

Dom Pantero do Espírito Santo, Imperador.


Repente

O ANTAGONISTA
POSSESSO
O ANTAGONISTA POSSESSO
Epístola de Santo Antero Schabino, Apóstolo

Escrita por seu afilhado, sobrinho e discípulo Antero Savedra,


em homenagem aos Brasileiros descendentes de Portugueses, nas
pessoas de Fernanda Suassuna, Gilvan Samico, Arnaldo Barbosa, Othon
Coelho Bastos Filho, Fernanda Montenegro, Socorro Raposo e Antunes
Filho.
Publicada para comemorar os 500 anos da nossa Cultura, em
sua vertente ibérica.
Dirigida aos nobres Cavaleiros e belas Damas da Pedra do Reino.
E enviada, por seu intermédio, aos diversos povos do Mundo;
especialmente aos da Rainha do Meio-Dia , aqui representada pelo
Brasil .
EPÍGRAFES
“Havia muito tempo que Pushkin me incitava a empreender uma
grande Obra: ‘Por que razão, possuindo o talento de adivinhar o Ser-
humano e de o pintar em corpo inteiro, não começa Você uma Obra
importante? É um pecado de sua parte’. Citou-me como exemplo o caso de
Cervantes, que, conquanto autor de algumas Novelas admiráveis, nunca
teria ocupado entre os Escritores o lugar que ocupa se não tivesse escrito
o Dom Quixote. ”

N ICOLAU G ÓGOL

“Cada um de nós explica o Mundo pelo seu Demônio.”

R ONALD DE C ARVALHO
DEDICATÓRIA
Este Repente é dedicado a Joaquim de Andrade Lima Suassuna,
Cláudia, João Urbano e Germana Bezerra Suassuna.
Foi composto em memória de Adeodato Villar de Araújo,
Olympia Josephina Villar de Araújo, Antonio Dantas Corrêa de Goes
Monteiro e Rita de Cassia Pessoa de Mello.
O ANTAGONISTA POSSESSO NA ESTRADA DO
DESCAMINHO

João Sotero | Pedro Américo — Davi e Abisag

Alegro Priápico
SIBILA
Moda, Turismo & Lazer
Igarassu, 1 1 de Março de 2014
23 de Abril de 2016

Narração
Com a Cobra traiçoeira, o Jumento estuprador e a Potra descabaçada

Aos nobres Cavaleiros e belas Damas da Pedra do Reino.

Amigos:
U ma vez que minha primeira Carta foi composta sob forma de
Prelúdio , pareceu-me conveniente escrever a de hoje como um
Repente , a fim de que Vocês tomem conhecimento dos fatos que entre
nós se cumpriram e da solidez de tudo o que no Simpósio Quaterna se
discutiu. Não levem em conta a dimensão menor de quem escreve, mas
sim a importância da Palavra da qual sou Ministro. Trata-se, aqui, de
uma Missão que me foi confiada e que eu, Emissário cego, procuro
cumprir como posso, sobrepondo-me a minha indignidade e a minhas
limitações. Confiado na Misericordiosa, retomo a tarefa que me foi
imposta e para a qual peço a benevolência que devem Súditos àquele
que, mesmo sendo apenas um companheiro a mais de Cavalgadas, é
também seu Imperador e Soberano.

Aqui devo confessar, nobres Senhores e belas Damas da Pedra


do Reino: além da imagem de meu Pai — “ brasa e Espada de ouro ” que
me impelia para o Rei pelo fogo de Deus —, sofri a partir de certa época
a influência de duas Figuras que me levavam para os lados do “ Histrião
obsceno ” — meu Tio, Antero Schabino, e Dom Pedro Dinis Quaderna.
Para falar com mais clareza: enquanto eu, segundo nossos
equivocados adversários recifenses, sou “ um Dom Quixote arcaico ”,
Quaderna era “ um Sancho turvo ”, um Sancho sem inocência, às vezes
meio maligno. E quando essa malignidade se agravava eu o demitia
temporariamente e colocava Chicó em seu lugar.
Mesmo com essa restrição, porém, o fato é que, sendo o nome
de meu Tio Paulo Antero , e o de Quaderna Pedro Dinis , depois da minha
volta para o Sertão minha vida passou a oscilar entre “ São Pedro ” e “
São Paulo ”; entre “ O Licantropo de Pernambuco ” e “ O Lobisomem da
Paraíba ” (para usar, neste último caso, o título de um folheto de José
Costa Leite). Sendo eu o único vivo dos herdeiros de meu Padrinho, foi
isso que me transformou em Protagonista , e Quaderna em Antagonista ,
no curso da bela e perigosa Viagem que meu Tio me impôs em seu leito
de morte e que tentarei empreender por meio deste Castelo-de-Cartas-
Espetaculosas.
Explicado o quê, vamos à Narração propriamente dita:

LABIRINTO
Primeira Introdução ao Palco dos Pecadores

DOM PANTERO
Antes de entrar pelo grande “ Episódio-de-Palco ” que foi o
Simpósio Quaterna , a Narração deve apresentar alguns “ Episódios-de-
Estrada ”; e para isso vou começar passando a palavra a meu Tio,
Mestre e Padrinho, aqui representado pelas Máscaras dos dois
pseudônimos que adotava — Aribál Saldanha e Ademar Sallinas ; e faço
isto com um título que pedi emprestado a Luzilá Gonçalves:
A GARÇA MALFERIDA
Variação hipolídica sobre o tema de Beldade e o Monstro

ANTERO SCHABINO
Na verdade, o episódio que tenho a contar é apenas um sonho
que, quase como se fosse “ um outro comunicado das Sombras ”, me
assaltou durante o sono.
Com uma espingarda à mão, eu esperava meu primo e cunhado
João Canuto numa escura e estranha estação de trem, da qual
partiríamos, primeiro para uma Cavalhada, depois para uma caçada.
Nisto, chegava a locomotiva, puxando pesados vagões. De um
deles, descia Canuto, e nós dois nos encaminhávamos para o bairro
popular onde se iria realizar a Cavalhada.
Ao chegarmos ao local, informavam-nos de que ela fora
transferida para um grande curral, uma espécie de arena que, situada
na Ilumiara Jaúna e banhada pelas águas do Riacho do Elo , ao invés de
cercas comuns, tivesse sua parede circular formada por pedras,
dispostas de tal maneira por um insólito capricho da Natureza.
De repente, por uma destas transições inexplicáveis dos sonhos,
eu via que estava só: João Canuto desaparecera e não se cuidava mais
de Cavalhada alguma.
O chão do curral era também lajeado por grandes ladrilhos
irregulares de granito. E, sem que ninguém me desse qualquer
esclarecimento a tal respeito, eu recebia uma revelação: além de curral,
aquele anfiteatro era uma antiquíssima necrópole cariri, que tinha, ao
centro, a mesma Itaquatiara do conjunto de lajedos da Ilumiara Jaúna .
Em cima da Pedra estava sentado um velho, em atitude de
extrema desolação (imagem que aparece, obsessivamente, em vários
dos meus sonhos).
Aí, erguendo voo das margens do riacho, surgia, no Céu, outra
imagem, esta de radiosa beleza: era uma Garça branca e pura, que a luz
oblíqua do Sol poente iluminava.
Caracteres Ilumiáricos

Sem pensar, no impulso cruel e instintivo da caça, desfechei


contra ela um tiro que a feriu no peito: e, recolhendo as asas como se
fossem duas mãos em prece, a Garça, triste e graciosa, caiu sobre mim,
que a recebi nos braços.
Com o coração já confrangido pelo crime que cometera, comecei
a notar que aquela jovem Garça não era somente o pássaro delicado e
gracioso que eu ferira: era também um Livro-Sagrado, um Pergaminho
que eu mesmo escrevera e se tinha extraviado há muito tempo (o que,
para mim, fora um prejuízo mortal). Agora, que o recuperara, eu, como
expiação do crime, teria que lê-lo em voz alta para 7 Juízes — 3 Varões e
4 Varoas — que me olhavam com ar severo; isso me deixava
intimidado: o Manuscrito estava cheio de erros e a leitura seria uma
mortificação em meu orgulho, uma espécie de Provação-purificatória.
Então, açodadamente, comecei a ler e reler o que escrevera,
procurando corrigir o Manuscrito à vista de todos. Enquanto o fazia, um
Cantador, empunhando uma Viola, cantava um Martelo-Gabinete do
Desafio de José Duda com José Galdino :
FRANCISCO ROMANO
“O meu Forte-e-Castelo é colocado entre um Morro bem alto e
uma Serra. Dentro dele, eu estando entrincheirado, vencerei qualquer
luta desta Guerra. Nele existe um Riacho soterrâneo, com 10 léguas de
fundo sob a Terra.”

ANTERO SCHABINO
Por sua vez, um Cangaceiro falava, com voz sonolenta:

SEVERINO DO ARACAJU
“A outra pessoa eu não revelaria isto. Mas revelo a Vossa Mercê,
amigo do Major Dodô, que me protegeu quando eu, Rapaz novo e
inocente, tive que matar um Homem poderoso de Santa Luzia do Sabugy.
É por isso que, a Vossa Mercê, eu vou mostrar uma coisa muito
importante.”

ANTERO SCHABINO
E, curvando-se para o chão, que se abrira, indicou-me: ali
aflorava um Tesouro, uma Mina de cristais-de-rocha, Turmalinas,
Berilos e Águas-Marinhas.
Ele apanhou 3 Pedras-cristalinas — uma azul, uma vermelha e
outra amarela. Colocou-as contra o Sol, para que eu visse o belo efeito
que a Luz, assim, tirava de sua transparência. Um Palhaço, Gregório ,
então falava, lá, de um canto afastado:

GREGÓRIO MATEUS DE SOUSA


“Esta é a quintessência do Sertão, em pedra!”

ANTERO SCHABINO
Por sua vez comentava um Beato, um Profeta, acompanhado por
uma Cantadeira e um Cego, que tocava Rabeca:

CÍCERO CORDEIRO ESPADA


“A Pedra-cristalina e as 3 Pedras-de-carvão! Mas embaixo da
Pedra, na Cova onde nasce o Riacho com o lençol de Águas sangrentas, aí
é que se lavam as 12 Pedras — o Jaspe, a Safira, a Calcedônia, a
Esmeralda, a Cornalina, a Sardônica, o Crisólito, o Berilo, o Topázio, o
Crisópraso, o Jacinto e a Ametista.”

INÁCIO DA CATINGUEIRA
“Dentro da terra, a mina de Topázios: reluz, na escuridão, a Cova
acesa. A Mãe-da-Lua cobre a Turmalina, e o Verbo se faz Carne, Sol,
Planeta! Na Taça, queimam pétalas de Rosa, e eu bebo a Lua e a prata das
Estrelas.”

ANTERO SCHABINO
Eu continuava a desfolhar o Manuscrito, e, em dado momento,
recebia outra revelação: assim como a Garça mostrara ser, também, um
Livro-Sagrado, este, na verdade, era uma Mocinha a quem eu, de modo
imperdoável, ferira o peito, com meu cruel disparo. E, aumentando com
isso meu remorso, ela, sem demonstrar qualquer mágoa, a fim de
permitir que eu pudesse continuar a leitura e a correção do Manuscrito
identificado com seu corpo, permanecia em meus braços do modo
como caíra do alto: de asas fechadas, triste, graciosa, mas sem qualquer
sentimento mau a lhe turvar o sofrimento.

Chorando de remorso e compaixão, comecei a acariciá-la para,


de algum modo, reparar o mal que lhe fizera e também consolar-me um
pouco do crime que cometera ao atirar em seu peito.
Na medida em que a acariciava, as páginas do Manuscrito iam
sendo corrigidas. O sofrimento diminuía de parte a parte e a sangrenta
Ferida, que o tiro causara, aos poucos se fechava, se bem que algumas
gotas de sangue continuassem a se misturar às águas do Riacho do Elo ,
contribuindo para agravar sua condição de Córrego — aquele do qual
falava Nô Caboclo como sendo sua fonte de inspiração:

NÔ CABOCLO
“Eu me chamo Nô Caboclo, não sei como era antes. Nasci na
Aldeia fulniô de Águas Belas, na Serra do Urubá. Mas não sou Índio-fulniô
puro: sou Caboclo, casco-de-cuia, venta-chata, pele vermelha — gente que
não presta nem pra morrer. É por isso que a Morte vai me esquecendo.
Sou mais velho do que Matusalém. Mas não sei ao certo meus anos,
porque nunca marquei minha idade.
“Vim pr’o Recife já grande. Mas no tempo em que morava na
Fazenda, já fazia Esculturas, muita gente apreciava. Eu fazia qualquer
coisa, qualquer lembrança que me vinha do Córgo. O Córgo é um Córrego:
é um sentido , é uma coisa que a pessoa que não tem o dom não pode
saber o que é.
“Eu sou perverso, mas tenho o Córgo, que aparece quando a
pessoa fecha os olhos e depois faz o que lhe vem no sentido, pelas águas
dele.”

SILVINO PIRAUÁ
“Da Gruta para a terra, a Cova acesa faz correr o Riacho perigoso.
Mas a Serra é a Ilha deste Reino, e o Vigia que espreita é poderoso. Na
espessura do Mato inda ressoa o ladrido do Cão branco e raivoso.”

ANTERO SCHABINO
Para melhor ajudar a cicatrização do ferimento, eu me postara
por trás da Menina e, passando um braço por seu delicado pescoço,
acariciei com a outra mão o local atingido por meu disparo.
Com isso, seu corpo se aconchegou ao meu, e, pelo talho do
pequeno Timão de cambraia — que era bordado por Estrelas
disseminadas entre o Sol e a Lua —, pude avistar os dois pequenos
Frutos que se alteavam no busto fino.
Senti também, pelo toque, que seu corpo, embaixo e por trás, era
um pouco mais desenvolvido do que seria de esperar em sua idade. E,
provavelmente sem que ela soubesse o que fazia, aquela pequena mas
arrebitosa e firme parte do seu corpo estava sendo pressionada contra
a frente do meu, que começou a se dilatar, projetando-se para adiante,
concentrando-se e reunindo dentro de si os tumultos que já
escachoavam em ondas na torrente selvagem do meu sangue.
João Sotero e Pedro Américo: Gravuras do “Livro Negro do Cotidiano”

FRANCISCO ROMANO
O Cavalo, excitado, solto ao Vento, e a prata-da-aliança das
Moedas. A Garça malferida, pura e branca, e o lascivo Jaguar, Besta
desperta, Besta insone, a correr pela Cornija e a ladrar entre as chamas e
a Pantera.

ANTERO SCHABINO
Então fui assaltado pelo desejo irrefreável de tocar os dois
pequenos Frutos. Mas detinha-me o temor de feri-la novamente, como
fizera havia pouco, quando ela era apenas uma Garça-e-Graça
pubescente e eu, de modo tão cruel, tinha vulnerado seu Peito ainda
sem mácula.
Entretanto, ao mesmo tempo eu sabia: além de Garça-e-Graça
adolescente, ela continuava a ser o Livro que era minha obrigação
corrigir página por página, até que sua parte derradeira, a 7ª e mais
secreta, fosse lida e decifrada.
E fui adiante. Com as pontas dos dedos, como se estivesse lendo,
pelo tacto, o alfabeto dos Cegos, desvelei, corrigi e decifrei a primeira
parte do Livro, A Nuca . Depois, parágrafo por parágrafo, examinei Os
Ombros , As Omoplatas e A Espinha Dorsal . E como continuava
consciente de que tal Exemplar único do Livro a ela pertencia, restava-
me o temor de que a Garça-e-Graça se ofendesse com a leitura
progressiva, que não solicitara.
Aí, temeroso, hesitante, eu quis parar. Mas, fazendo girar o Livro,
ela o colocou de frente para mim, reclinando seu topo em meu ombro e
entrecerrando os olhos, enquanto lhe fremiam as narinas.
Com isso, senti-me autorizado a percorrer as 3 últimas partes
do Livro, aquelas que foram assim descritas por Camões:

LUÍS SCHABINO DE CAMÕES


“Três fermosos Outeiros se mostravam, erguidos com soberba
graciosa. Dois, no alto, inda pouco se elevavam; outro, fendido, a Relva
tem, viçosa, onde as límpidas Águas já manavam, umedecendo a Fonte
deleitosa.”

ANTERO SCHABINO
Os miúdos Outeiros, quinta e sexta partes do Livro, foram
cuidadosamente revistos, tocados e corrigidos pela leitura, que incluiu
até as Aréolas, pequenas mas naquele momento começando a inchar e
se estender pelo Sismo que as estremecia.
Enquanto isso, a 7ª Parte, a d’ O Outeiro Fendido , parecia cada
vez mais uma Fonte morna que, encimada pela nascente penugem do
Pássaro ferido, agora agonizante, palpitava contra a palma da minha
mão.
Só neste momento percebi: o Velho, sobre a Itaquatiara, tinha
abandonado a postura desolada e cabisbaixa, porque a visão do
pequeno e gracioso Pomar que eu percorria também o levara a erguer e
desvelar o volume de seu próprio Livro.
Assim, no mesmo instante em que eu chegava à leitura e
decifração da última Parte, era ele quem atingia o cume e o êxtase de
todas as certezas. Jactos e mais jactos pareceram como que fecundar a
Pedra, o que transformava a Necrópole em Altar. E daí em diante, não
sei mais o que aconteceu; a sensação fora tão forte que acordei,
estremunhado. Posso acrescentar apenas que, na minha opinião, só tive
este Sonho porque, antes, passara por experiência parecida com uma
jovem Aluna minha, nas matas de seu Engenho, perto de uma
Cachoeira.

DOM PANTERO
Uma vez ouvi meu Tio contar este sonho a José Dias da Silva,
que era seu amigo e lhe ponderou que ele deveria ser mais discreto.
Lembrou que o Papa Pio XII, opondo-se à famosa “ sinceridade gideana ”,
afirmara: “ Ninguém tem o direito de contar seus segredos. ” Acentuou
que o Papa não se limitara a dizer “ Ninguém tem obrigação de contar
seus segredos ”: falara, sim, no direito de contá-los.

Na ocasião, estava presente um Crítico português, o Professor


João de Oliveira Lopes, que discordou de José Dias, dizendo: “ Pois de
minha parte, confesso que o sonho de Antero Schabino me causou forte
impressão, porque nele o Sexo aparece como algo que se opõe à Morte, ali
representada pela Necrópole. Além disso, lá, como no Evangelho de São
João, o Livro — isto é, o Verbo — se faz carne, tornando-se assim,
também, um poderoso símbolo de Vida. ”
E eu ainda comentarei depois estas palavras, porque o relato do
sonho de meu Tio desempenhou um papel terrível no meu
relacionamento com minha amada, bela e nunca esquecida Liza Reis.

Entretanto, para dar boa continuidade à Narração, devo passar a


palavra a Quaderna para que ele adiante alguns fatos que lhe
aconteceram na Estrada de Matacavalos :
A POTRA VIOLENTADA
Variação hipolídica sobre o tema de Beldade e o Monstro

ALBANO CERVONEGRO
Era uma Tarde poderosa e parda, que o Solrubro, sangrento,
alumiava. O Jaguaro-do-Sol, sobre o Lapardo, soltava a crina e a cauda
focoflava. O Mundo se queimava em suas chamas, todo o Sertão, no Sol, se
incendiava.

DOM PEDRO DINIS QUADERNA


E, seguindo aquele caminho que um dia me fora determinado,
eu deixara a minha Casa e agora palmilhava a Estrada de Matacavalos —
a Estrada que, “ por dentro ”, me levava d’ As Maravilhas até a Ilumiara
Jaúna .
Enquanto andava, ouvia de novo a Voz antiga que certa vez me
dera a inapelável ordem ligada àquela Estrada:

A SENTENÇA
Ameaça Frígia de um Destino Mortal

A MOÇA CAETANA
A sentença já foi proferida: saia da Casa e siga pela Estrada,
cruzando o Tabuleiro pedregoso.
Só lhe pertence o que por Você for decifrado. Por isso, beba o fogo
e as águas no cântaro-de-pedra dos Lajedos. Registre as malhas e o pelo
fulvo do Jaguar, o pardo-avermelhado da Suassuarana e o Cacto com seus
Frutos estrelados. Anote as Cabras e os Cavalos, o Pássaro com sua frecha
de ouro e negro, e a Tocha incendiada das Macambiras cor-de-sangue.
Resgate o que vai perecer: o Efêmero sagrado, a bravura
extraviada, a luta sem grandeza, o nobre Rei lancinado em segredo —
tudo aquilo que, depois de salvo e assinalado, será, para sempre,
exclusivamente seu.
Celebre os Homens, com sua Corçaluna, e as Mulheres, ao sol do
seu Cachorro. O Anjo, com sua Espada, e a Onça Malhada do Divino, com
seu Gavião de Ouro.
Entre o Sol e os cardos, entre a pedra e a Estrela, Você caminha
pelo Inconcebível. Assim, tem que decifrar o enigma da Fronteira, a
estranha região onde o sangue se queima aos olhos-de-fogo da Serpente e
do Jaguarsagrado.
Procure cumprir tudo, mas sabendo, desde já, que a Missão é
inútil: ela é cifrada e o Emissário é cego. Um dia, hão de quebrar-lhe as
cordas-de-prata da Viola e o arco-de-crinas da Rabeca. A Prisão já foi
preparada: puseram grossas barras e correntes ferrujosas na Cadeia; com
madeira pesada levantou-se o Patíbulo e afiaram o gume do Machado.
O Estigma permanece. O silêncio já queima, no chão, o veneno das
Serpentes, e, no campo do Sono ensanguentado, arde em brasa o Sonho
perdido, tentando, em vão, reedificar seus dias para sempre destroçados.

DOM PEDRO DINIS QUADERNA


O Sol ainda estava alto e, cego como sou, ia eu tropeçando pelos
seixos do caminho, apegado a uma das extremidades do meu Báculo-
profético, significativamente talhado em madeira de bordão-de-velho
(pois, em junho, eu completara, já, meus 73 anos).
À frente, com seu Vestido vermelho marcado por um Sol
amarelo, agarrava-se à outra ponta do Cajado minha Amante-jovem, a
Princesa Dona Lupiana Furiba dos Santos, mais conhecida como
Lupiana Cordão-de-Ouro , por ser a Diana do Auto-de-Guerreiros em que
sou Velho e Rei .
Fazia, já, muito tempo, vivia eu o sonho de uma Menina que um
dia me aparecesse, como Lua em tarde velha, e que, por meio de algum
sortilégio, acabasse com meu rondar de Cego em torno do inacessível
Castelo da Divina Ilumiara. Por causa de seu nome e de sua idade,
Lupiana, “ A Lobinha ”, era quem, naquele ano, dava alento a tal sonho.
Ou seja, “ para cantar mais alto e sonoroso ”:

ALBANO CERVONEGRO
“Minha Princesa é meu Cordão-de-Ouro: vale um Tesouro numa
Noite clara. Minha Diana é uma Pedra fina: é uma Menina, é uma Joia
rara. Minha Princesa mandou me chamar, pois quer dançar no chão da
Ilumiara.”

DOM PEDRO DINIS QUADERNA


Minha cegueira, porém, é de tal natureza que uma Mulher só
nunca me bastou para iluminá-la. E, naquele ano da incursão pela
Estrada, eu lançava mão de duas, para guiar-me; Lupiana era a face
anversa da minha sagrada Guia-bifronte; a reversa era minha Amante-
literária, Dona Clarabela Noronha de Britto Moraes.
Mas, naquele dia, Clarabela não ia comigo pela Estrada: fora
esperar-me na Ilumiara, para onde, levando o Circo da Onça Malhada ,
tínhamos aprazado encontro com 3 pessoas que eu suspeitava serem
indispensáveis à sagração final do Gênio da Raça Brasileira.
Assim, guiado apenas pela mão de Lupiana, agora eu caminhava
pela Vereda pedregosa que conduzia à entrada posterior da Ilumiara
Jaúna . E, adiante, a meu pedido, meu irmão Malaquias amarrara à beira
do caminho a jovem Égua branca, virgem, de pele rosada e crinas-cor-
de-ouro que, naquele ano, juntamente com Pedra-Lispe , era meu
predileto animal-de-montaria.
Explico-me. Num dado momento da minha vida, Malaquias me
dera de presente uma Eguazinha parecida com aquela, e eu lhe pusera o
nome de Dina (por ser este o apelido carinhoso pelo qual Camões, já
velho, chamava sua jovem amante, Dinamene).
Afeiçoei-me a Dina de tal modo que, quando ela se deixou
seduzir por um Cavalo vadio da rua, eu — que valorizo muito a
virgindade — deixei-a de lado e comprei outra igual ao Cigano
Praxedes, pondo-lhe o mesmo nome da primeira. E quando digo que
dou valor à virgindade, relembro: no grupo de Dança que integra o meu
Movimento Cabaçal só admito que entrem Mocinhas bem novas e que
nunca tenham sido possuídas por homem safado nenhum — motivo
pelo qual o grupo de Dança chama-se Balé Cabaço .
Coisa parecida passou a acontecer daí por diante, tanto a
respeito do meu Cavalo-de-sela (quando morreu o primeiro Pedra-Lispe
) quanto sobre as outras Poldrinhas brancas e virgens que eu ia
conseguindo para substituir cada uma das desonradas. Era como se
Dina e Pedra-Lispe fossem os nomes de Perso-nagens a serem
desempenhados pelos diversos Cavalos-Atores e Eguazinhas-Atrizes
com características iguais às dos primeiros.
Aliás, com isso eu estava apenas imitando o grande Cangaceiro,
Dom Virgolino Ferreira da Silva, Lampião : ele, para desmoralizar a
Polícia e engrandecer-se perante o Povo, toda vez que lhe matavam um
Cabra, colocava noutro o mesmo cognome do morto — Medalha ,
Passarinho , Bom-Deveras etc. De tal modo, quando a Polícia se jactava
publicamente de ter matado um Cangaceiro, tinha a surpresa de vê-lo
imediatamente ressuscitado — o que, na imaginação popular, fazia
crescer a fama de imortalidade que o Chefe tinha e em que, numa
gloriosa demonstração de poder, conseguia mergulhar até seus
comandados.
MARIANO JAÚNA
Permito-me interromper por um breve instante a narração de
Quaderna para informar: coisa semelhante ocorre comigo. Mesmo
como Antero Savedra, a Morte não ocupa qualquer lugar entre minhas
pretensões. Mas se, um dia, por um acaso funesto, a Moça Caetana
conseguir me armar uma emboscada fatal, Dom Pantero, Caroba, João
Grilo, Chicó, Joaquim Simão, Dona Clarabela, Antero Schabino, o próprio
Quaderna e outros viverão por mim, em sua condição de Personagens
imortais que a Posteridade consagrará.

ANTERO SAVEDRA
Outra coisa que devo esclarecer logo: quando tive conhecimento
da postura de Quaderna em relação a Dina e a Pedra-Lispe passei a fazer
coisa parecida com Graciano , o Cavalo castanho e alado que é o Timbre
dos Savedras. A partir daquele momento, todo Cavalo castanho que eu
montava recebia um invisível par de asas — o que, mais uma vez,
colocava o Protagonista d’ A Ilumiara acima de seu Antagonista:

ALBANO CERVONEGRO
Aspas do Cervo negro erguidas para o alto; asas e cascos do
Cavalo castanho cujas Patas dianteiras erguem-se no ar, enquanto as
traseiras firmam-se no chão, entre chamas-de-fogo que também nos
impelem para o alto e para o Sol.
DOM PEDRO DINIS QUADERNA
Mas continuo. Como vinha dizendo, naquele dia, na Estrada de
Matacavalos , Malaquias amarrara a um pé de Imburana a Eguazinha
que, na época, ocupava o cargo e o nome de Dina .
Ao chegarmos ao local em que ela fora atada, montei-a, em pelo,
como costumava fazer desde jovem a fim de, com isso, dar curso mais
livre a todas as fantasias que me viessem à cabeça.
Quanto a Lupiana, a pé continuaria a Viagem; e passou a segurar
meu Báculo com a mão esquerda, enquanto com a direita puxava a
corda-de-cabresto da Potra, para assim não abandonar seu posto de
Guia no resto da Incursão.

PARMÊNIDES SAVEDRA
“Banhando agora a senda dos Mortais, revela-se o pulsar do Ser
alado. Emite um som de Flauta sedutora o eixo incandescido de seu Carro.
E late o Ser, o fogo do imutável, boiando sobre a Ruína um Sol sagrado.”

DOM PEDRO DINIS QUADERNA


Foi, assim, daquele jeito — eu, montado, e Lupiana a pé —, que
retomamos, pela Estrada , a Demanda da Divina Ilumiara. Gravadas em
pedra e cortadas a cinzel numa linguagem estranha, íamos encontrando
as imagens que, apoiados pelo Doutor Pedro Vandiwoyah e por sua
mulher Ashera Acken, tínhamos encomendado a Biu Santeiro, para com
elas assinalar o caminho da Ilumiara Jaúna — o solene e doido
Anfiteatro que o bisavô de Dom Pantero, Raymundo Francisco das
Chagas Schabino de Savedra Jaúna, encontrara em 1791 ao se mudar de
Igarassu para o Sertão da Paraíba; e que passara a ser, para ele e seus
descendentes, o centro de culto da “ seita do Espírito Santo ” que
herdara de Jerônimo, primeiro de seus antepassados a chegar ao Brasil,
em 1535.
Naquele momento, pois, Lupiana e eu errávamos pela Caatinga
(ou Caiatinga) e víamos à nossa frente o Sertão pardo.
Ora, quem diz “ o Sertãopardo ” diz “ o Leopardo ”; porque o
ensolarado e insano Sertão-velho é o centro pardo e aleopardo deste
velho Mundo; fato que se comprova lendo-se a placa com o nome da
Praça que, na Estrada de Campina Grande para Taperoá, assinala o
começo do Cariri — Praça do Meio do Mundo .
Na verdade, o Sertão é o mesmo que a Chapada queimenta e
pedregosa; os desolados cafundós da Terra; o cu de Judas; a terra em
que o Diabo perdeu as botas — ou, pelo menos, a sua bota esquerda.

DOM PANCRÁCIO CAVALCANTI


Lembro aquela espécie de Dístico que Altino, Auro e Adriel
tinham composto, em “ alexandrinos espanhóis ”, para celebrar a Batalha
da Serra da Copaóba ; nele (depois de se afirmar que, no Brasil, “ o Diabo
perde as botas ”), com o verso “ há sangue nas Raízes, há ossos que
branquejam ”, alude-se a um fato estranho. Na Serra onde se travou a
Batalha, existem umas ervas que, todo ano, no dia 9 de Outubro, ficam
com as raízes molhadas pelo sangue ali derramado para que (como
aconteceu também nos Montes Guararapes ) o Brasil não fosse nunca
impelido por caminhos diferentes dos da nossa Madre escura e sagrada
— A Iarandara , a Rainha do Meio-Dia (caso que, evidentemente, não era
o dos Holandeses e de Maurício de Nassau no século XVII, nem é, hoje, o
dos Alemães e Anglo-Americanos):
DÍSTICO
ALBANO CERVONEGRO
A terra cor-de-vinho, e o Povo — Onça Malhada. Num Campo-de-
batalha — o Mundo, o ouro do Sol — há sangue nas Raízes, há ossos que
branquejam: no sol-da-terra sangra o Sol deste outro Sol.
E inda hoje esturra aqui a Onça, o Jaguapardo, mestiço e
magistral, a Onça agateada. Um de seus olhos dorme, o outro, aceso,
encandeia, vigiando o Sol, as Pedras, as Árvores-sagradas.
E Deus escreve certo suas áureas linhas tortas. Nesta terra, que é
d’Ele, o Diabo perde as botas. “Viva o sangue de Deus limpando a luz do
Mal!” — chora o clarim do Canto, ao sangue no Punhal.
DOM PEDRO DINIS QUADERNA
Mas voltemos à narração dos fatos que me aconteceram naquela
tarde, na Estrada de Matacavalos : no momento em que ali se evocava
tudo isso (e se invocava o Sertão como um desafio a qualquer outra
felonia e maldade que os Brasileiros traidores venham a tramar contra
nosso País e nosso grande Povo), Lupiana e eu chegávamos ao lugar em
que o caminho começava a ser margeado por Pedras esculpidas e
insculpidas em forma de Marco. Cada uma delas fora cortada de modo a
imitar o grande Lajedo que, no Anfiteatro da Ilumiara Jaúna , parecia um
Livro aberto e por isso era chamado de As Tábuas da Lei .
Então, insculpidas na Pedra e enquadradas em cada uma das
páginas daqueles Livros de granito, o que se via ali eram as insculturas
e imagens introdutórias d’A Divina Ilumiara.

ANTÔNIO SCHABINO VIEYRA


“Que dizem aquelas Letras? Que cobrem aquelas Pedras? As
Letras dizem Pó, as Pedras cobrem Pó, e tudo o que ali há é o Nada que
havemos de ser — tudo Pó.”

DOM PORFÍRIO DE ALBUQUERQUE


Seria mesmo? E a ressurreição do Cristo? Por acaso teria sido
ela uma fraude cuidadosamente planejada e astutamente executada
pelos Apóstolos?
DOM PARIBO SALLEMAS
Além disso, nem que fosse apenas enquanto não chegávamos ao
Pó final de que falava Vieyra, havia o sangue, o fogo, a água, a terra, o ar,
o sol, as folhas balançadas pelo vento, as Cabras, os pássaros, os
Cavalos, as pedras e, sobretudo, “ o Bosque sagrado ” — a Ilha deleitosa
do corpo feminino, cujo centro era “ a fenda da Vulva poderosa ” e pela
qual cada um de nós podia se aventurar e iluminar quando, em
momentos bem-fadados, ocasião nos aparecesse.

HERÁCLITO SCHABINO
“Ah centelha do Sol primordial, fulgor filho da Noite e do
Insondável! Ah dança da Energia numinosa, ah fogo do negror da
Claridade! Tudo aquilo que ao Pó anda e rasteja vive à guarda e ao olhar
da Inominável.”

DOM PEDRO DINIS QUADERNA


Algumas das imagens tinham sido copiadas do Livro Negro do
Cotidiano , Diário manuscrito e ilustrado pelo Doutor João Soares Sotero
Veiga Schabino de Savedra, Tio materno de Dom Pantero. Era o famoso
texto apreendido pela Polícia em 1930, a mando do Prefeito Jayme
Pessanha Villoa, e cuja publicação no Jornal A Unidade — órgão oficial
da Prefeitura de Assunção — terminara causando o assassinato dos
dois. Outras eram ampliações, em pedra, de gravuras-em-madeira feitas
para meus Folhetos por meu irmão Taparica.
Eram elas, portanto, as primeiras daquelas Pedras que,
compondo uma espécie de Gênesis Apócrifo , transformavam o conjunto
de lajedos da Ilumiara Jaúna numa enorme Obra-de-Arte escultórica,
arquitetônica e pictórica de caráter revelatório; assim como faziam de
seu pedregoso Caminho uma Via-Sacra; um Labirinto; um Roteiro-de-
Peregrinação; um Evangelho-de-Pedra, do qual o Velho Testamento era
aquele que, em Monte Santo, anunciava o sagrado Arraial de Canudos
(este, por sua vez, precedido pelo da Pedra do Reino).

DOM PANCRÁCIO CAVALCANTI


Mas, ainda a respeito da apreensão do Diário (escrito por aquele
a quem Carlos Dias Fernandes chamava “ o advogado Sotero Veiga ”):
sobre isso é melhor passarmos a palavra ao escritor Adhemar Vital,
que, pertencendo ao grupo das “ Viúvas ” — como são chamados, na
Paraíba, os admiradores incondicionais do Doutor Jayme Villoa —, dá,
involuntariamente, um testemunho indiscutível sobre a infâmia que seu
amado Chefe político cometeu contra a família Savedra em geral e
contra o Doutor João Sotero em particular:

ADHEMAR VITAL
“Naquele ano de 1930, eu estava no exercício do cargo de
Delegado do Município. Eram constantes as denúncias de que na
residência do Doutor João Sotero Veiga existia um depósito de munições.
Constantes também eram as suas ameaças de que haveria de desfeitear
em público o Prefeito Jayme Villoa, momento em que o mataria, em caso
de reação.
“Lá um dia, achando-se João Sotero no Recife, a Casa na qual
temporariamente ele morava em Assunção apareceu com sinais que
evidenciavam violação. Mandei o policial Manuel Moraes verificar o que
havia. Realmente dera-se a visita de desconhecidos à Casa, onde a Polícia
encontrou vários Rifles, munição e, espalhados, livros, papéis e
documentos importantes, que demonstravam a ignóbil posição ocupada
nos acontecimentos pelo sinistro rebento da família Schabino de Savedra.
“Alguns foram publicados. Os do Livro Negro do Cotidiano , porém,
jamais poderão ser revelados de público porque encerram as tendências
mais vis de um lúbrico e doente mental.”

A UNIDADE — 22/26 DE JULHO DE 1930


“No Cofre encontrado no quarto do Bacharel João Sotero, a Polícia
encontrou documentos que revelam a alma tortuosa dos conspiradores
contra a ordem e a dignidade da nossa terra. O Governo autorizou-nos a
estampar alguns dos documentos encontrados e é o que vamos fazer.
“Acharam-se também algumas notas redigidas pelo próprio
punho do Espião, com a narrativa de atos amorais. Tais notas não podem
ser publicadas porque ofendem ao decoro comum. Mas quem quiser vê-
las, pode fazê-lo na Polícia.”

DOM PANTERO
Em 13 de Dezembro de 1917, Carlos de Laet publicara algumas
palavras que pareciam adivinhar, para denunciá-la, a infâmia praticada
pelo governo do Doutor Jayme Villoa, e, com autorização expressa dele,
publicada pelo órgão oficial da Prefeitura de Assunção:
CARLOS DE LAET
“Arrombar um Cofre, para dele tirar quaisquer objetos preciosos,
é, certamente, coisa bem feia, e assegura a quem o pratica uma tremenda
qualificação. Mas violar uma Carta — ou, sem permissão de quem a
escreveu, publicar o que nela se contém — é ainda mais ignóbil,
porquanto o dano, produzido pela divulgação criminosa de um segredo,
moralmente supera o prejuízo causado pela subtração de roupas,
adereços ou joias.”

DOM PANTERO
Note-se que, pesando, por um lado, o arrombamento de um
Cofre, por um ladrão, para roubar joias, e, por outro, a violação de uma
Carta, Carlos de Laet, conhecido por sua inquebrantável probidade,
achou que esta última era a infâmia mais grave e mais ignóbil.
Dina

O que não diria ele, então, do crime praticado pelo governo do


Doutor Jayme Villoa quando, com sua concordância, primeiro se invadiu
a Casa de um adversário (mais sagrada ainda porque ele estava ausente,
sem poder defendê-la), e depois se arrombou um Cofre, violando-se e
publicando-se as Cartas que nele se guardavam?

DOM PEDRO DINIS QUADERNA


Entretanto, é melhor deixar essa história de lado e voltar à
narração dos fatos que me aconteceram naquela tarde, na Estrada de
Matacavalos :

ALBANO CERVONEGRO
É que, hoje, o Jumento Jararaca ao sangue me soprou, durante o
sono: “Solto, assim, pela Estrada perigosa, a Vida, para ti, é chama e
sonho. Mas a Trompa, punhal de termo e prazo, marca, aos poucos, a
data-de-abandono.”

DOM PEDRO DINIS QUADERNA


Eu tinha, já, avançado uma boa parte do caminho quando, em
certo instante, ao mesmo tempo que, sobre nós, aparecia no Céu, entre
nuvens, um enorme Gavião, ouvimos um tropel de cascos estralejando
na Caatinga. Eu já começava a me perguntar o que seria aquilo quando
vi surgir de dentro do mato um grande Jumento escuro, um mestiço de
Andaluz que corria em nossa direção, visivelmente atraído por Dina .
Ora, quando eu era menino, espalhara-se na rua, entre os
ociosos de Taperoá, a história de um incidente que teria acontecido a
um “ Homem-bom ” da nossa sociedade: numa manhã de domingo,
vinha ele de sua pequena propriedade para a Vila, onde ia assistir à
missa; estava montado numa Jumenta e os taperoaenses desocupados
juravam que, a meio caminho, um Jumento a cobrira, sem dar ao dono
da Fêmea tempo para desmontar. Diziam que, no momento crucial, as
patas dianteiras do Macho, ao se erguerem e abaixarem para o nó a ser
dado na Jumenta, tinham entrado, uma em cada lado, nos bolsos
inferiores do paletó do Homem. Ao mesmo tempo, a caceta do Jumento,
premida em suas costas, despejava-lhe nas espáduas toda a carga que
ingurgitava seus colhões, de modo que ele terminara chegando à rua
ileso, mas indignado e pegajoso, com a roupa em petição de miséria.
Por mais inverossímil que fosse, a história não deixava de ser
desmoralizante, e não custava nada tomar cuidado. Por isso, assim que
avistei o Jumento e notei com que indecorosas intenções ele vinha,
tratei de desmontar e afastar-me, o que fiz com grande rapidez,
abandonando Dina à sua sorte.
(Na véspera, eu tivera um pesadelo, durante o qual sentia as
artérias da minha fronte pulsarem num ritmo remoto. Uma voz antiga
salmodiava, anunciando a morte de alguém, e eu sonhava, entorpecido,
“ ao lucilar da estranha madrugada ”:)

ALBANO CERVONEGRO
Alguém morreu na estranha Madrugada: morreu sem lamentar-
se inutilmente. A Noite escureceu sobre a sua alma, cravaram-se as
Estrelas em seu corpo.
Alguém morreu na estranha madrugada. Uma Mulher, insone,
chorou sangue, e colunas de Pedras-tumulares pesaram sobre a Terra
adormecida.
Foi um Profeta? Um Rei? Um Cavaleiro? A Vida debateu-se no
silêncio, e foi por fim tragada pelas Águas, pelo Fogo que queima a
Ventania.
E as colunas de Pedras-tumulares quebraram-se, na aurora,
contra os Muros. Não houve pranto inútil nem lamentos: alguém morreu
na estranha Madrugada.

DOM PEDRO DINIS QUADERNA


(Na sequência do sonho, aparecia um Jumento que parecia sair
da Sombra. Um Velho era quem o conduzia, “ o nascido da Terra e do
meu fogo ”. Sem que ninguém me falasse sobre isto, eu sabia que seu
nome era Mussurano , o macho da Cobra Mussurana . O nome talvez se
devesse ao fato de, n’ As Maravilhas , ter havido um Jumento chamado
Mussulmano . Os meninos da Fazenda, porém, porque ele era brabo, só o
chamavam de Jararaca . E eu via o Velho: pernas cambaias; no cinturão,
de grosso couro cru, o Facão rabo-de-galo — o ferrão do Lacrau, a presa
da Serpente e da peçonha.)
Na Estrada, meu sangue começou a cantar, como no Sonho,
enquanto os olhos verdes de Lupiana fosforesciam como os de uma
Gata no cio:

RITORNELO
CASSANDRA SCHABINO RIOS
“Teus olhos são verdes, verdes! Por que são verdes assim? São
verdes, são muito verdes; mais verdes que o próprio Verde, que dizem eles
a mim?
“Não deviam ser tão verdes, pois tão verdes são, enfim, que, verdes
como são verdes, é com eles que me perdes, e neles vejo meu fim — esses
teus olhos, tão verdes, que outros nunca eu vi assim.”

DOM PEDRO DINIS QUADERNA


Brilhavam, ao Sol, as partes que nos cabem da Coroa, “ uma de
Pedra verde e outra tão esprandecente que bem se podia homem ver nela
como em Espelho, de maneira que todo o Ar em redor de si virava verde; e
a outra, de uma Pedra amarela cor-de-ouro, que alumiava por si e por
refletir o Sol ”. E era a verde que cantava:
Quaderna e Lupiana

HERÁCLITO SCHABINO
“Sem o Escuro, jamais eu poderia conceber a Candeia e o sol do
Todo. O Jumento prefere a Palha à Prata, mas o Fogo é que é Deus — e
Deus é Fogo. A quem, agora, Cego, profetizas? A quem diriges teu Cantar
fogoso?”

DOM PEDRO DINIS QUADERNA


(E o Velho perigoso espancava o Jumento com o enorme Facão
rabo-de-galo, a bainha de couro velho e fosco batendo-lhe na coxa e no
joelho.)
Embaixo de uma das paredes de pedra que ali margeavam a
Estrada havia uma espécie de meia-muralha formada por pedrouços:
pareciam ter rolado, nos começos do Mundo, da parte de cima dos
Lajedos para o chão. Aos coices, aos rinchos e às dentadas, o Jumento,
bruto e enfurecido pelo desejo, procurava encurralar a Eguazinha
contra aquele arremedo de muralha-baixa, a fim de que, aprisionada
num recanto, ela não mais pudesse frustrar o seu assalto.
(A calça arregaçada até o meio das canelas e o chapéu de palha
sujo, de cor amarelada pelo Tempo.)
A Fêmea, muito nova, mal caíra no primeiro Estro, ou Cio, de
modo que este ainda não atingira intensidade suficiente para vencer,
nela, o medo do Macho. Assim, com as poucas forças de que dispunha,
tentava ela impedir que o Jumento a montasse. Mas, duro, enorme,
feroz, ele não abria brecha para sua escapada.

DOM PANCRÁCIO CAVALCANTI


(De que treva teria ele surgido para o canto do sono e da paixão?
Era o filho do Chão, da tarde cega, ou, ao contrário, pai do Soldefogo que
envolve em chuva-de-ouro o Sonho que é possível neste Mundo?)

DOM PEDRO DINIS QUADERNA


A primeira cena de sexo que, na puberdade, eu vira entre
Animais de grande porte fora a posse de uma Égua por um Jumento,
cena que me arrebatara do meu mais profundo Eu-interior para fora e
para além de mim mesmo. Ao ver o Asno-selvagem penetrar a Fêmea,
tivera a impressão de que me identificava com o Animal a ponto de nele
me transfigurar. Era como dizia Apuleio:

LÚCIO APULEIO SCHABINO DE SAVEDRA


“Meu Fálus cresçeu e engrossou, pulsando e erguendo-sse,
monstruoso, por ssy mesmo. E, de-rrepente, ss ẽ m qualquer alvo concreto
contra o qual sse lançasse, fez cõm que, ẽ m-ssyncronia cõm o orgasmo
d’o Jumento, ũum vulcão- ẽ m-chamas ẽ m m ỹ m entrasse ẽ m erupção,
lançando fogo, escuma e lava para fora e fazendo aflorar obscuramente,
d’as profundezas, a ssubstãnçia d’o propryo mistéryo d’a Vida.”

DOM PEDRO DINIS QUADERNA


Aquilo passou a se repetir toda vez que eu me via diante de cena
parecida, sempre com a metamorfose, sempre com o vulcão. E só muito
tempo depois foi que uma Mulher, Maria Safira, antes de me deixar, me
ensinou a moderar-me — o que eu podia fazer mastigando a corola de
uma Rosa para readquirir forma humana e domínio sobre mim mesmo.
Mas, naquele dia, na Estrada, olhando para o local do céu onde
plainava o Gavião, falei para Lupiana, expressando um desejo que até ali
guardara comigo: “ Queria eu voar tão atrevidamente quanto o Gavião
por todo o extenso arco do Céu, para assim me tornar um Enviado da
soberana Divindade, um Emissário apto a refletir pelo Espelho o poder do
seu Reino e o lume sagrado do seu Sol. ”
Isto falei olhando o Céu e repetindo um voto que certa vez
ouvira ao Padre Manuel: mas, por dentro, sabia que, por causa de meus
pecados e da mudez do meu Espelho, era difícil me colocar à altura
daquela Missão.
Como consequência de tal falha (e porque, na minha idade, o
Vinho da Pedra do Reino me mantinha assim), ali no Chão o que passou
de novo a acontecer foi aquela estranha identificação entre mim e o
Jumento. Por fora, as modificações não eram tão visíveis. Mas, por
dentro, na raiz do sangue, “ meus pelos começaram a sse tornar crinas,
minha pele, couro, meus peés e minhas maãos a sse transformar ẽ m
cascos. Minha boca ia ficando enorme, as narinas fremiam e
rresfolegavam ẽm chamas. As orelhas eretizavam-sse, pontiagudas, e meu
Fálus assumia o tamanho e a grossura brutal d’o ssexo d’os Cavalos”
(como costumava dizer o Profeta Ezequiel). A metamorfose era real e
poderosa, e comecei a me identificar obscuramente com o sangue do
Macho, naquele rudimento de êxtase-selvagem em que a tentativa de
violação estava a mergulhá-lo.
Sim: porque o tamanho e a brutalidade do Jumento
contrastavam de tal modo com a delicadeza da Fêmea que aquilo era
quase uma violação.
(A força bruta. O presságio do sangue e o ferro-em-brasa dos
instintos. Na madrugada estranha, passava aquele Velho pela Estrada —
Cego sinistro, Cego sem roteiro. Onde a Madre? Onde a Casa
assegurosa? Único e só, nefasto em meio ao Sono, está ele, encostado ao
Paredão — este Padrão de pedra escurecida, marcado contra o céu da
Madrugada.)
HERÁCLITO SCHABINO
“Não profetizo o Ser. Eu canto o Fogo, e morrerei dançando, ébrio
do Canto. De noite, o Sono escuro apaga a Lua que mora e que reluz no
olhar humano. Eu acendi a chama desta Dança pra fazer do meu luto um
Sol-de-pranto.”

DOM PEDRO DINIS QUADERNA


Por que, então, naquela Estrada, a imagem do Mar ausente,
servindo de suporte à da Madre-Oracular que naquela tarde eu apenas
entrevia? (No sonho, para alguém que não ficava claro quem era, eu
fazia, também pela primeira vez em minha vida, a confissão de que
desejava entrar pelas chapadas e carrascais da Morte como quem
possuísse uma Mulher, acolhedora, carinhosa e amante.)

ALBANO CERVONEGRO
Às vezes, ao sonhar, acaricio as coxas de Mulheres prazerosas.
Vejo imagens sombrias da Fronteira, mas também as de luz da estranha
Rosa. Eu vou, dançando, ao limiar da Morte, nas malhas de uma Estrela
piedosa.

DOM PEDRO DINIS QUADERNA


(No entanto, ali estava o Velho, com sua barba embranquecida,
feia e intonsa, manchada de amarelo pelo fumo — o Velho que, porém,
talvez apenas procurasse no Sexo um esconjuro contra a Morte.) E,
brutalmente acossada, a Fêmea, a despeito de si mesma, aproximava-se
cada vez mais da Mureta para a qual o Jumento a impelia.

ALBANO CERVONEGRO
Que som de Trompaverde e que Fagotescuro e verdelodo é este
que aqui soa? Quem é? Quem bate? Quem anuncia a Morte? Que Cachorro
nos late que “as Letras dizem Pó”?

DOM PEDRO DINIS QUADERNA


Devo explicar, porém, que assim como Estro é a divindade que
em certos momentos assalta as Fêmeas fazendo-as caírem no cio, no
meu sonho Ridaimônio era o Cavalo que ali, agora, se apossava do corpo
do Macho; e era, já, no Jumento, uma Entidade-embriagada de tal modo
poderosa que, antes mesmo de chegarem à Muralha, de vez em quando
ele tentava montar a Fêmea, com todos os músculos ressaltados e
trêmulo-pulsantes, magnetizada a medula de seus ossos pelo impulso
de todos os desejos. (De onde vem o Mandado? De onde a Intimação?
Quem decretou a Solitude e o Lodo? “ E que maravilha é esta, que nunca
a nossa vida, com tanta beleza e viço, foi mais aprazível do que a deste
Bruto — vida que, parecendo aspra, e vil, e feia de perfia e maldade,
também é, em tal ocasião, alumiada pela chama da Candeia de Deus?” )
ALBANO CERVONEGRO
Adentrar-nos, sonhosos, pela Morte, como quem possuísse uma
Mulher. Beijar Peitos de bicos empinados e a Fonte — sol-secreto, Rosa e
mel. Pois o gozo é Cavalo e pulsa, bárbaro: com ele, arde quem quer e
quem não quer.

DOM PEDRO DINIS QUADERNA


Revelava-se agora, ainda mais, a enorme desproporção que
havia, não só entre a Fêmea nova e o Macho adulto, mas entre as
próprias linhas e medidas dele, todas alteradas e afeadas pelo desejo.
As patas dianteiras, em certos instantes erguidas no ar, pareciam então
extremamente curtas e davam-lhe, por isso, as aparências de uma Besta
apocalíptica ou pré-histórica. Empastado de suor, um tufo-de-crina,
emaranhado e sujo, projetava-se para adiante, por entre as grandes
orelhas murchadas para trás; e pregava-se à testa, que, em tais
momentos, também se mostrava desagradavelmente fugidia e baixa,
desprovida de qualquer sinal de inteligência. Era a hirsuta cabeleira de
um Bruto cego, ou Atleta desconforme, como se ele, ao invés do belo
Asno-selvagem dos dias normais, tivesse passado a ser outro Animal,
abortado e desarmonioso: um Cavalo feio e mal-conformado, a quem,
por engano, fosse permitido participar de uma competição cujo prêmio
não estava à sua altura.

HOMERO GREGO SAVEDRA


“De todas estas Dádivas, só quero a bela Taça trabalhada a fogo.
Facilmente, em teu Reino de chão fértil, nascem trigais de espigas
ondulantes. Minha terra, porém, não possui Campos: é selvagem, sagrada
e pedregosa. Tudo, ali, são pastagens e rebanhos de Jumentos, de Ovelhas
e de Cabras: não quero chegar lá de mãos vazias.”

DOM PEDRO DINIS QUADERNA


Na verdade, o prêmio, Dina , era uma aristocrática e valiosa Taça
de prata, delicadamente cinzelada, e cuja beleza o Macho era incapaz de
apreciar: não conhecendo seu valor, fatalmente a espedaçaria, “ porque
os nossos Paços, resprandecentes como o Ouro, e os nossos bens, que
sobrepujam todo siso, parecem mais feios que o Esterco a quem escança e
contempra a fermosura das moradas do Céu ”.
Aqui, devo explicar que aprendi alguns textos do Português
antigo com o Monsenhor Pedro Anísio Dantas, no Seminário da Paraíba
(este que acabo de repetir, por exemplo, é do século XII). A princípio
não ligava para eles; mas depois do nosso encontro, Dom Pantero me
deu ideia de sua importância acadêmica, e passei a usá-los de vez em
quando, por motivos de polimento e elegância do estilo.
A Assemelhadora

Voltemos, porém, à cena da Estrada. No momento em que, ali, eu


repetia para mim mesmo o texto do século XII, os olhos do Macho,
embaçosos e quebrado-febris, contrastavam mais ainda com o Fálus
desarmonioso e desproporcionado, que já se lançava pra fora da
Bainha, grosso, negro, longo e endurecido, túrgido pelo desejo e
pulsando ao ritmo do sangue espesso que o dilatava — “ Escatol e lança
turvoescura, rrombo Dardo ssombrio a percutir a parte inferior d’o
ventre, distendido cõmo ũum Tambor a’o estremeço-e-tensão d’as ancas e
d’as pernas traseiras, duramente prantadas n’o chaão ” . Pareciam,
também, estranhamente curtas, decepadas que estavam, na altura dos
jarretes, pela sombra de uma Pedra que as encobria pela metade.

ALBANO CERVONEGRO
E o Chão sagrado canta-lhe no sangue: lá na Estrada, a Mocinha
ouve a Canção. Seu Vestido vermelho — Sol marcado pela Estrela
amarela — varre o chão. E o Cabeleira-em-fogo corre o Céu, assoprando
a corneta do Verão.

DOM PEDRO DINIS QUADERNA


Aí, voltando os olhos para os Animais, vi que, perto da Fêmea, se
postara uma figuração ou forma de Mulher, nua, de frente, ajoelhada e
sem qualquer sinal de Umbigo em seu Ventre. Junto do Macho, de pé,
uma outra figura, esta de Homem. Ambas pareciam ter brotado das
Pedras-insculpidas, sendo que a macha conduzia nas mãos um Vaso-de-
oferendas.
Então, clamaram do Céu altas vozes, que diziam: “ Esta é a
Assemelhadora e este é o Assemelhador. Os dois são Ancestrais de toda a
Raça humana. ”
O Assemelhador

ALBANO CERVONEGRO
Já soa, zombeteira, a voz-de-alerta: “Toma cuidado, que este Vento
é macho.” Quanto a ti, o que vela é a Tempestade, o cheiro de suor e o Rio
amargo. Sobre a Estrada, se apossa, já, do Negro, o Macho cego, o sangue
do Cavalo.
DOM PEDRO DINIS QUADERNA
Lupiana, tensa, aproximara-se de mim, e, sem perceber
claramente o que fazia, agarrara com força o meu braço, olhando-me de
vez em quando de viés, com seus belos olhos verdeagateados.
De repente, tocou-me com o cotovelo e, com um movimento de
cabeça que lhe projetou o queixo para frente, indicou os Animais: como
se tivesse adquirido vida própria, sem que houvesse, no fato, qualquer
participação da vontade da Fêmea, sua Vulva — Rosa e Romã-fendida,
raiada pelo traço cor-de-sangue de seu corte-de-abertura e agora
inchada de sexualidade — contraíra-se e distendera-se depois, ante
mais um assalto do Jumento.

ALBANO CERVONEGRO
Pulsa o Cavalo El-Rei , descabrestado, e o Fogo sopra a chama
atrás do Vento. Será que a Morte é, mesmo, Mulher-fêmea, ou foi falso o
Profeta ao predizê-lo? A Trompa verde te conduz e marca tua Estrela no
anel fatal do Tempo.

DOM PEDRO DINIS QUADERNA


Pressentindo, num relâmpago, o que acontecera, o Macho,
rinchando bestialmente e com o Fálus retesado para cima a pulsar de
encontro ao ventre em contraponto ao estremeço de seus rinchos,
cravou os dentes na parte mais alta do pescoço da Fêmea, perto da
nuca; e uma leve espuma umedeceu as bordas da Rosácea, orvalhando
sua Corola.
Então Lupiana, que, instruída por mim, andava sempre
preparada para tais ocasiões, abriu um Aió, tirou dele duas Rosas,
comeu a corola de uma e me deu a outra, cujas pétalas também comi.
Isto era indispensável porque, ainda no Seminário, eu
encontrara um velho exemplar d’ O Asno de Ouro , que fora adquirido
por descuido ou ignorância do Padre que o comprara, e ali estava,
esquecido, entre os Livros devotos, também escritos em Latim.
Com minha curiosidade despertada pelo título, comecei a
folheá-lo, lendo aqui e ali um ou outro pedaço que meu precário
conhecimento da Língua me permitia compreender.
Mesmo, porém, apenas com tais rudimentos (e com auxílio do
velho Dicionário escrito por Nicolau Firmino), dava para eu saber que
papilla significava bico-do-peito ; e, na cena em que o Narrador, Lúcio,
metamorfoseado em Jumento, possuía uma bela Mulher, meu parco
Latim era suficiente para entender que a frase “ Tunc ipsa cuncto
prorsus spoliata tegmine, tænio quoque, qua devinxerat papillas ”
significava “ Então a Mulher se desnudou inteiramente, tirando até a
faixa que lhe cingia os bicos-dos-peitos ”. Dificultosamente, eu conseguira
decifrar também o trecho que se seguia ao desnudamento, quando o
Asno selvagem em que Lúcio Apuleio se transformara, “ mesmo ao
cavalgar aquele corpo de leite e mel e ao apertá-lo com as Patas
terminadas por duros Cascos ”, ainda temia despedaçar a Rosa “ de tão
delicada Mulher ” com seu Sexo enorme, brutal e grosso: “ Novissime,
quo pacto quamquam ex unguiculis perpruriscens, mulier tam vastum
genitale susciperet. ”
E que me seja perdoada, como a Antônio Conselheiro, “ a
ousadia extrema das citações latinas ”: por causa de tais leituras é que
agora estou conseguindo narrar em termos menos brutais aquele fato
que aconteceu na Estrada (incluindo-se aí até mesmo aquela
involuntária crispação da Vulva que sucedera à jovem Dina ).
De fato, fora a brutalidade do Macho que finalmente quebrara a
resistência da Fêmea graciosa e fina, e, mesmo, num clarão, a seduzira:
como se diz no livro do Levítico , “ todo aquele que tocar a carne da
Vítima será sagrado; e se o sangue salpicar as vestes do Sacerdote, a
mancha será lavada também num lugar sagrado ”.
Aí, houve um momento em que, como aconteceu a Tamar ao ser
violada por Amnon, tudo passou a suceder como se, de repente, o
Macho se tivesse desdobrado em dois. Ambos tinham chifres
semelhantes aos que crescem ao Cervo-negro no tempo do cio das
Veadas-fêmeas; e ambos se ajudavam um ao outro na empreitada cruel
de violar aquela pequena Fêmea indefesa.
O risco que ela corria aumentara; porque agora sua delicada
espinha-dorsal poderia se partir ao peso do Jumento, que finalmente
conseguira montá-la ante o relâmpago de submissão que a fragilizara: a
contração-e-distensão da Vulva acontecera só por um momento, e fora
um raio de oleoespuma viscoestrosa; suficiente, porém, para que o
enfurecido Dardonegro — agressor, licencioso e lascivo — a penetrasse,
num assomo de fremente estupidez. Uma, duas, três, dez vezes, as ancas
do Macho se afastaram e uniram-se de novo ao corpo da Fêmea, para
que o Fálus quase-saísse e reentrasse depois, de Vulva adentro.
Ela, cabisbaixa, com os belos olhos machucados, remoía porém
os queixos, como se, apesar da dor, experimentasse também uma
dilacerada forma de prazer.

CORO
Que via ela, ao chão e ao Sol de fogo?

ISAÍAS EZEQUIEL SCHABINO DE SAVEDRA


“Olhava, e via, e eis que se aproximava dela uma Ventania, e uma
grande Nuvem, e um Fogo chamejante; e em torno da Nuvem havia um
grande resprandor; e, em volta do Fogo, via-se alguma coisa que parecia
Âmbar amarelo ou uma liga de Ouro e Prata. E, no meio da grande
claridade, via ela 4 Animais — 4 Caribus — cada um com 4 rostos e 4
Asas. No meio deles via-se algo que parecia um amontoado de Brasas
ardentes, Lâmparas ou Tochas das quais saíam raios.
O Jumento Sedutor

“Via, também, um belo e selvagem Anfiteatro, que tinha no centro


um Santuário com um Altar alumiado. Via o Anjo-Abrasador, que era
Macho e tinha 6 Asas: com duas cobria o rosto, com duas o Sexo, e com as
outras duas voava. Ela ouvia o arruído daquelas Asas, semelhante ao
fragor de uma grande Mó-de-moinho em movimento, ou ao som das
águas de uma Cachoeira nas quais houvesse, entre enormes Pedras,
grandes Lâmparas e Tochas-de-fogo.
“A forma do Anjo era de Homem, mas suas pernas eram retas e os
pés como cascos de Cavalo. Ele saltava como um Garanhão relinchando
para uma Égua. Os gonzos da porta do Santuário oscilavam, e o recinto
se enchia dos clarões do Fogo e dos negrores da Fumaça, odorante porque
os Braseiros de que se desprendera tinham sido ateados com galhos e
resinas de Árvores aromáticas.
“O Anjo ia e vinha, à semelhança do Raio ou do Relâmpago. Entre
o Vestíbulo e o Altar postavam-se 25 Homens com as costas voltadas para
o Santuário e os rostos para o Nascente. E o Anjo, voando para perto da
Fêmea, achegou-se a ela e abrasou-lhe a Vulva com uma Brasa-ardente
que tirara do Altar. E um Raio pareceu atingi-la, fendendo ainda mais o
centro de seu corpo e de sua alma ferida. E, num relumbre, mergulhando
nas fronteiras de luz que confundiam a Vida e a Morte, ela se prostrou
ante o Sol-de-Deus, que a possuía e arrebatava para seus confins.”

ALBANO CERVONEGRO
No chão do Macho, dança a Lua fêmea, e quem puder que sangre
o seu Cavalo. Quem não puder, procure manter lúcida a loucura do Sol,
sob seus cascos: ela estilhaça os ossos da Cerviz, e o Chão se embebe ao
sangue do Riacho.

DOM PEDRO DINIS QUADERNA


A Potra, no entanto, suportava a violação como podia, e nem
sequer tinha mais força para tentar qualquer resistência. Seria inútil,
aliás: “ No Chão, o Sono escuro apaga a Lua que mora e que reluz no
olhar humano. ”
Além disso, o Jumento, ao mesmo tempo que a penetrava por
trás, imobilizava-lhe o corpo na frente, algemando seus flancos com as
patas dianteiras. Cravara de novo os dentes em sua nuca e continuava
os movimentos, que pareciam não acabar mais.
Mas, de repente, ele se inteiriçou numa contração que primeiro
se refletiu, e depois se renovou ainda algumas vezes por todo o corpo
da Fêmea.

CORO
Que via ele, ao chão e ao Sol de fogo?

ISAÍAS EZEQUIEL SCHABINO DE SAVEDRA


“Via uma Tempestade com Ventania, uma grande Nuvem e uma
espécie de Sol chamejante. Cercando a Nuvem, havia uma grande
claridade, e, no centro, alguma coisa que parecia Crisólito ou Electro no
meio do Fogo. O Fogo era brilhante e dele saíam relampos, reluzindo
sobre uma Abóbada em forma de Redoma de cristal.
“Por cima da Abóbada havia um Trono com aparência de Safira, e
sobre ele, bem no alto, via-se a Anja-Abrasadora, fêmea com jeito de
Mulher. Também tinha 6 Asas e, como o Anjo macho, com duas cobria o
Sexo, com duas o rosto e com as outras duas voava. Junto dela, fervia uma
espécie de Mar-de-Chamas.
“Dos lombos para baixo, a Anja era de fogo. Dos lombos para
cima, tinha um brilho semelhante ao do Crisólito. Ela estendeu o que
parecia ser a forma de duas mãos. Com uma, segurava o Asno-selvagem
pelo tufo de crinas de sua testa. E, colocando a outra embaixo,
aproveitava os momentos em que o Dardo surgia quase todo da Vulva,
apertava-o e arregaçava-o ainda mais, deslizando-a ao longo da forma
rija que pulsava, quente, e que, não resistindo àquilo, explodiu em lava e
espuma.
“Então, entre Candelabros — dos quais se desprendiam,
relampejando, chamas iluminosas —, o espírito lhe foi arrebatado por
entre o Céu e a Terra. E, numa visão, foi ele levado à entrada do Pátio
interior que, no Santuário, dava para o Norte — lá onde, mesmo na
turvação profunda que dele se apossara, dava para ver que estava
plantado o Ídolo do Ciúme.”

DOM PEDRO DINIS QUADERNA


Foi assim que os dois atingiram o cume da forma que lhes era
possível de êxtase-insciente e união com a Divindade. O dardo do
Macho retesou-se ao máximo para o derradeiro espasmo, fazendo
jorrar, de para além do mais profundo de si mesmo, jactos e mais jactos
de gala-sagratória — da gala jubilosa! — em quantidade tal que alguma
trasbordou de Vulva afora.
Mais um instante, e o Jumento, distendendo e afrouxando seu
grande corpo, deixou que ele caísse e se apoiasse sobre o da Fêmea.
Não resistindo ao peso — e ensonada, do mesmo jeito, pelo
toque da Divindade cuja centelha orgástica a fulminara — ela caiu ao
chão, enquanto ele, embriagado pelo Sol que também por um instante o
fulminara, saía de cima da Potra (agora transformada em Égua), ele
com o grande Fálus pesado e feio pendendo para baixo, como um
Alfange vencido que logo se recolhia à Bainha.
Dom Pantero e Liza Reis

Então, exatamente nesse instante, surgiu na Vereda, vinda do


Mato pela nossa direita, uma Onça-Tigre negra e fêmea, seguida por um
Jaguar enorme e malhado. Sem dúvida ela também estava no Cio; pois
mal apareceu a nossas vistas, estirou-se no chão, de costas, alargando
as patas e abrindo-se para o Macho, que, deitando-se sobre ela, a
cobriu, penetrando-a.
O orgasmo foi rápido. Logo depois do estremeço os dois se
levantaram e perderam-se de novo dentro do Mato pela nossa
esquerda, com o Macho sempre a seguir a Fêmea: via-se que, logo mais,
haveria outra cena parecida, já longe das nossas vistas.

ALBANO CERVONEGRO
Gata-negra, Pantera-extraviada, abres ao Sol tua Romã felina. Ao
Dardo em fogo queima-se a Colina, e há cascos e tropéis por essa Estrada.

DOM PEDRO DINIS QUADERNA


Aí, olhei para o lugar em que, antes, estavam os dois
Assemelhadores, e notei que ambos tinham desaparecido. Mas o Gavião
continuava a plainar no alto Céu iluminado; e agora estava, inclusive,
acompanhado por sua Fêmea, de modo que, com eles, boiava, só, ao
vento, aquele bafo doido da Beleza que em tais momentos se acende,
queima e faz dançar o Mundo.
Não havia mais nada a revelar-se ali: arrimado de novo a meu
bastão de Cego e guiado pela mão de Lupiana, adentrei-me ainda mais,
a vagar por aquela “ Senda perigosa ”, na Caatinga poenta e acobreada,
que, um dia, me coubera como herança na partilha do Mundo.
A SERPENTE E A TENTAÇÃO
(Entremeio Afrodítico)
Variação sobre o tema de Beldade e o Monstro

DOM PEDRO DINIS QUADERNA


Entretanto, antes de chegarmos a nosso destino, eu e Lupiana
iríamos sofrer ainda uma outra provação.
Ocorre que, em sua parte exterior, A Ilumiara Jaúna se dividia em
3 áreas concêntricas: eram as primeiras das 7 que integravam o
Labirinto de seu inextrincável Castelo.
Na medida em que, de fora, eu conseguia decifrar, de um em um,
os Sinais, gradativamente mais difíceis, insculpidos ou pintados nas
pedras, ia obtendo o direito de dar nome a tais áreas e nelas penetrar,
assim como o de chegar mais perto e mais dentro do núcleo especular e
subterrâneo do Castelo: a decifração era o preço que se tinha de pagar
para, a cada Incursão, aprofundar a Demanda, resolvendo-se, pedra a
pedra, o enigma-menor das letras, figuras e sinais que ao mesmo tempo
indicavam e defendiam o segredo-maior do Anfiteatro e de seu terrível
jogo de Espelhos.
A primeira área, Ulam , situava-se entre a cerca de pedras (que
limitava, por fora, o Cercado) e o cinturão de serras onde se achava o
conjunto de lajedos propriamente chamado de A Ilumiara Jaúna . De
todas, era essa a área cuja decifração era a menos perigosa e menos
cheia de obstáculos. Por isso, e por ser ela a que circundava as outras,
ali era “ o lugar das Assembleias ”; inclusive as do Circo da Onça Malhada
, com “ o som das Trombetas ” anunciando o começo dos Espetáculos.
Quanto à segunda área, Hekal , a do meio, estava colocada entre
a cerca de pedras e a parede natural de Lajedos que cercava o
Anfiteatro: era “ o local da Lei perpétua e das oferendas queimadas ”.
A terceira, Debir , era o próprio Anfiteatro, com sua Itaquatiara ,
uma Pedra parecida com a do Ingá mas muito mais complexa e
misteriosa do que ela. Era um Monólito-central insculpido que, por trás,
abrigava a Gruta das Vulvas , o todo significando “ o lugar do Segredo e
das águas permanentes ” (mesmo quando o Riacho do Elo estava seco).
Entretanto, por uma revelação recebida em sonho, eu ficara
sabendo: a Gruta, por mais povoada que fosse de significados, era
apenas a porta de entrada para a parte final do Castelo, a mais
importante, por ser composta pelas 4 derradeiras Moradas.
Fazia, já, muito tempo que eu rondava as paredes da Gruta,
palpando-as vulva a vulva e tentando, letra a letra, todas as
combinações possíveis de Sinais e Figuras. Achava que, assim, talvez um
dia a Pedra se abrisse e eu pudesse afinal ter acesso às Mora-das
centrais do Castelo. Principalmente à sétima, a mais interior e difícil de
todas. Ali — quem sabe? — numa espécie de fulminada ensonação,
talvez eu viesse a me unir “ ao Sol final do panóptico Deus-Desconhecido
”, para usar uma expressão ligada àquele falso e maligno Profeta que foi
o Pseudo-Jeremias .
De qualquer modo, uma incursão à Ilumiara, mesmo
empreendida às 3 Moradas mais exteriores e menos inóspitas do
Castelo, tinha que se desdobrar em 3 Etapas, ou Vias-Probatórias , a
terceira das quais precedida por uma “Noite-Escura”.
Na Estrada por onde eu caminhava naquela tarde, as Etapas
recebiam nomes adequados, alusivos à sua natureza. A primeira, era a
Via Espinescente , dos iniciados. A segunda, a Purificatória , dos errantes.
A terceira era a Convulsiva , dos implicados totais e irrecuperáveis.
A provação-iniciática do Jumento marcara a primeira Via.
Concluída ela (e novamente a pé, pois Dina fora forçada, por seu
sedutor, a continuar à mercê dele, no lugar da violação), Lupiana e eu
escalávamos agora a subida real da Serra. Caminhávamos, já, portanto,
pela Via-dos-Errantes. E, absorto como eu ia pela recordação da cena
que víramos, descuidei-me de vigiar como de costume o acidentado e
perigoso chão que nossos pés pisavam.
Lupiana, por sua vez, andava descuidosa: real Amante, ia como
uma inês-de-castro adolescente, “ posta em sossego, naquele engano
d’alma ledo e cego, que a Fortuna não deixa durar muito ”; turvação que,
em tais momentos, costuma toldar o juízo “ das Damiselas de sua idade e
condição ”.
Mas, tendo comido as Rosas, tínhamos mantido até ali uma
contenção razoável. Eu, ainda perturbado, apenas delirava um pouco,
murmurando palavras que, por antigas, eram veneráveis:

HERÁCLITO SCHABINO
“Quem pode se furtar à luz terrível deste Haver conquistado em
sangue e ouro? Por aí é que a Rosa azul da Morte verte sombra na Vida e
ao Chão dá fogo: o Fogo é o verdadeiro ser das coisas, e o Danado é
resgate do Tesouro.”

DOM PEDRO DINIS QUADERNA


Para bem se entender a cena que logo ali daria início à Noite-
Escura é preciso que se revele: Lupiana era filha-adulterina de um dos
integrantes do meu Circo, Francisco Furiba dos Santos Filho, mais
conhecido como Chicó Chico Furiba ou, simplesmente, Chicó. A mãe de
Lupiana, Dona Margarida, por alcunha A Padeira Insaciável , casara-se,
jovem e pobre, com um Homem rico, mais velho do que ela e
sabidamente estéril, Eurico de Anacrão Careto.
Um dia, vendo Chicó passar, Margarida ouviu uma de suas
Criadas comentar para outra: “ Ele ée ũum d’os Homens libertinos
d’aquy. Sseu ssexo ée como o d’os Jumentos e ssua lasçívia ée como a
lasçívia e a lubriçidade d’os Cavalos. ”

SÓFOCLES EZEQUIEL SCHABINO DE SAVEDRA


“E, fascinada, Margarida mandou chamar Chicó, e lhe alargou as
pernas, e lhe abriu as coixas, e sse entregou cõm ele a tôda-las
fornicações. E emprenhou. E como sseu Marido era estéril, não sse lhe
podia creditar a prenhez d’a Mulher.
“Ass ỹ m, teve Margarida que absconder o fruyto de ssua
fornicação. E ela pariu Lupiana longe, dando despois a Filha a outras
pessoas para que a criassem. E era ũuma Menina tão bonyta que lhe
vieram a colocar a alcunha de Beldade.
“E, de casa ẽ m casa, ela acabou por chegar àas maãos de
Quaderna, que adotou Lupiana como Filha a f ỹ m de que, n’os dois, sse
cumprisse o destino d’a Estrada de Colono. E quando ela cresçeu Moçinha
e sse transformou n’a jovem Beldade que lhe valeu a alcunha, avultaram-
lhe os piquenos Peytos e brotou-lhe o pelo.
“Entonçe, n’o Castelo d’o Monstro, ũum dia, pel’a primeyra vez,
foram aflorados por dedos cobiçosos os piquenos bicos d’os peytos d’a
Bela; e a Fera, aquele Pai estranho, cheyo de perfia e maldade, acarinhou-
lhe os sseyos inoçentes: aquele que devia guardar-la esfrolava-lhe os
peytos apenas alteados de ssua pubesçênçia. E tudo aconteçeu de tal
guisa que ela, despois, ssentia falta de ssuas primeyras impudiçíçias, e
ssaudade d’o tempo ẽ m que a maão ssacrílega do Monstro lhe arrupiava
o pelo malnasçido e os piquenos peytos, primíçias de ssua puberdade.”

DOM PEDRO DINIS QUADERNA


Naquele dia, na Estrada, houve, porém, “ uma conjunção maligna
de Planetas hostis ”; porque, quando já íamos na segunda Via do
caminho da Ilumiara, Lupiana, de repente, “ percebeu que pisara numa
espécie de rolo mole, que se achatou sob sua alpercata ”:

ALBANO CERVONEGRO
E eis que o Chão-que-rasteja exibe o dorso “na bela malha de
Losangos negros”. Ao que se diz, é o incriado Assombro, prenúncio e
desafio do Guerreiro: “focinho tronco, fossas, ventas falsas”, na ameaça do
sono e do Desejo.

DOM PEDRO DINIS QUADERNA


Sim, porque imediatamente “ um açoite fragelou-lhe o pé ”; e, no
arco inferior deste, lugar desprotegido pela sandália, ela sentiu uma
picada de fogo, semelhante à de um Lacrau, ou Escorpião. Ao mesmo
tempo, ouvíamos o chocalhar sinistro da Cobra-Cascavel; e, olhando
para a direção de onde ele vinha, avistamos uma “ Sete-Ventas ” que, a
poucos passos de nós, já se enroscava para novo bote.
ALBANO CERVONEGRO
Na cabeça lucífera vigia “o olhar negro, imantado e fugidio”.
Inocência, fascínio e crueldade, da Lança-desdobrada ao gume-e-fio; da
Língua aberta ao cascavel da Cauda, no dardo-e-flecha do Punhal
sombrio.
DOM PEDRO DINIS QUADERNA
Com duas bastonadas, desferidas pelo Cajado-profético que me
servia também de Cetro, parti a espinha e esmaguei a cabeça da velha
inimiga do nosso Rebanho; e por um momento fui dominado pela ideia
insensata de agarrar a mão de Lupiana e sair correndo com ela para a
Ilumiara, cujas Pedras sagradas talvez pudessem curá-la.
Lembrei-me, porém, de que, para evitar a circulação mais rápida
do veneno, ela deveria se abster de qualquer movimento brusco.
Desisti. E, parando no meio da Estrada, comecei a acariciar a cabeça da
Menina, para tranquilizá-la e refletir um pouco em busca de outra saída.
A sorte era que (assim como na vida real me acontecera com a
primeira cena-de-jumento-e-égua que vira) o primeiro orgasmo-
literário que eu experimentara tinha acontecido na puberdade, quando,
no Seminário, lera, escondido, um Livro, proibido pelos Padres mas que
circulava secretamente entre meus condiscípulos e companheiros de
vocação eclesiástica: no Livro, também ocorria picada de Serpente em
pé feminino, e, pelo menos naqueles instantes iniciais, eu sabia o que
tinha a fazer para que ela, salva, continuasse a contribuir para a
construção daquela Obra que eu sonhava há tanto tempo e era
indispensável à minha Coroação, à reconstrução do Brasil e à
celebração da Iarandara, da Rainha do Meio-Dia; enfim, a Obra que era
a maior e mais anunciadora de todas as apocalípticas revelações do
Terceiro Milênio que se aproximava e ao qual — graças a uma certa
decisão que tomara aos 43 anos — eu tinha certeza de chegar.
ALBANO CERVONEGRO
A Serpente sagrada perde a pele, que morre para atar-se um novo
Nó. Letal, a Cobra é quem dá luz à Vida, e a lâmpara da Morte canta o Sol.
A cinza abre caminho para o Fogo, o carvão para a Brasa, ao Sangue o
pó.

DOM PEDRO DINIS QUADERNA


Entretanto, mesmo naquele momento de Pecado (e talvez por
causa da Mulher cujo nome estava gravado a fogo em meu sangue
desde que eu conseguira decifrá-lo nas pedras da Ilumiara — Wopia ), o
que mais me vinha à memória naquele instante era a recordação de
Maria Sulpícia, Madre e Estela em meu escuro: “ Eu acendi a chama
desta Dança pra fazer do meu Luto um sol-de-pranto. ”
Então, comecei a tomar em favor de Lupiana as únicas
providências que eram possíveis ali. Tirando o lenço do bolso da minha
calça-e-camisa cáqui, rasguei-o em tiras e atei-as numa só, ligando com
ela o tornozelo da Menina e apertando bem o nó, para evitar o mais que
pudesse a circulação do veneno. Depois, lavei-lhe o pé, primeiro com
água da Cabaça, depois com vinho do Pichel. E aí, colando os lábios no
lugar da picada, comecei a sugar a Peçonha, o que, como logo pude
notar, desencadeou em Lupiana um início de prazer:

JÚLIO SAVEDRA RIBEIRO


“Ssugando-lhe a ferida causada pel’o aguilhão d’a Sserpente, ele
ia rretirando ũum Veneno mas deixando outro. Ela ssentia a ssucção
morna, demorada, forte, d’os sseus lábyos ẽ m-torno d’a picada, n’o arco-
d’o-pée çetinoso, branco, ateé aly empoeirado mas de-novo rróseo e
limpo, lavado que estaba pel’a i-Água e pel’o Vĩnho. E a ssensação
estranha, deliçiosa, incomportábil, que aquela sucção produzia,
multiplicava-sse, alastrava-sse. Era ũum formigamento que lhe ssubia
pel’as pernas, que lhe afagava o ventre, que lhe titilava os peytos, que lhe
comichava os lábyos.”

DOM PEDRO DINIS QUADERNA


Quando vi que chegara ao ponto, interrompi a sucção e abri o
Farnel de que também me munira na hora da saída.
Três dias antes de empreender aquela incursão, eu cuidara de
me preparar para os rituais religiosos que, com Lupiana, iria celebrar
no sagrado e terrível Anfiteatro da Ilumiara Jaúna .
Aqueles dias de Outubro eram especiais: preocupado com os
inumeráveis Pecados que cometera no decurso do ano (e também
atento à importância do tempo que decorria entre 4, dia de São
Francisco, e 12, festa de Nossa Senhora Aparecida), no dia 7 eu
mandara sacrificar, como expiatório, um Bode macho, sem defeito, uma
vez que se tratava de reparar as transgressões de um Chefe e Rei; e
imolar, também, uma Cabrita-fêmea perfeita, por levar em consideração
a inocência da Princesa.
HOMERO GREGO SAVEDRA
“Assim, 3 dias antes da Incursão — e enquanto, para atender a
meu pedido, se traziam o Bode e a Cabrita para o local do Sacrifício —,
eu, como Sacerdote e Rei que sou, espalhava pelo chão o pó da Resina
sagratória. Dois dos meus Irmãos bastardos ergueram no ar as cabeças
dos Animais, que foram degolados por meio de golpes de uma Faca
afiada.”

VIRGÍLIO ROMANO SCHABINO


“Mortas as Vítimas, ambas foram esfoladas. Cortaram-lhes as
coxas e untaram-nas de gordura. Separaram-se as costelas, que foram
logo salgadas e assadas com as coxas, enquanto eu, velho Profeta
consagrado, regava com Vinho-tinto todo o local e as peças do Sacrifício.”
HOMERO GREGO SAVEDRA
“A meu lado, dois outros de meus Irmãos sustinham suas Facas de
gumes afiados. Com elas, cortou-se o resto em mantas e tassalhos de
carne crua e as postas foram salgadas e expostas ao Sol para a secagem.
Mas, depois de secas, pilou-se e macerou-se uma parte, a fim de se fazer
com ela a paçoca ritual.”

DOM PEDRO DINIS QUADERNA


Tudo isso possibilitava agora que Lupiana e eu antecipássemos,
na Estrada, a celebração antes prevista para a Ilumiara. Ela já estava
mais apaziguada da perturbação que sentira no momento em que eu
lhe sugara a curva inferior do pé. Por outro lado, tinha confiança neste
Pai que o Destino lhe reservara, numa de suas inexplicáveis
emboscadas, e não demonstrava mais nenhum medo pelo risco que
correra.
Assim, como exorcismo contra a picada da Cascavel, começamos
a preparar a comida e a bebida que agora eram indispensáveis à nossa
resistência contra a Morte: a carne de sol com paçoca, alguns tacos do
queijo de cabra Arupiara , pedaços que eu já trouxera consagrados do
pão de Taperoá e, sobretudo, o verde-tinto, aromático, visageiro e
espumejante Vinho da Pedra do Reino — o mesmo que lavara o pé de
Lupiana.
ALBANO CERVONEGRO
Já que a Frecha mortal nos atordoa, eu me embriago aos êxtases
da Sorte. A Razão, no seu sono cego, espreita o sondar da Raiz no chão do
Corte. O Nada, o sol do Ser, a Pulsação, o dom do Sonho e seu contrário —
a Morte.

DOM PEDRO DINIS QUADERNA


Naquela primeira fase do ritual (e como compensação aos duros
preceitos que excluem as Mulheres do exercício do Sacerdócio),
generosamente permiti que Lupiana oficiasse, preparando, ela só, as
viandas, enquanto eu, mero Coadjutor, me limitava a comer as iguarias
que ela consagrava e servia. Saciado o Fiel, a jovem Sacerdotisa, como
fazem os Padres no final dos ritos, comeu cuidadosamente os restos de
pão, carne e queijo que eu deixara e bebeu as últimas gotas do Vinho
que tinha sobrado no Cálice, o qual ela depois enxugou com um pano
limpo e branco, também trazido nos Alforjes.
Reparada então a injustiça que se comete contra as Mulheres,
podia eu, agora, retomar meu papel de Sacerdote. E, como estávamos na
Via das Oferendas Queimadas , mandei que Lupiana, voltando a ser
Coadjutora, juntasse alguns gravetos, escolhendo, porém, somente os
de madeira cheirosa, como, entre outros, os de Cumaru, ou Umburana-
de-Cheiro.
Quando ela ajuntou gravetos em quantidade suficiente, acendi
um Braseiro, tirando fagulhas na pedra-de-fogo do meu Corrimboque; e
passei a queimar os nervos, tendões e gorduras de modo a que o cheiro
de tais resíduos — imprestáveis para comer mas agora consagrados
pelo Fogo e perfumados pela resina das madeiras — chegasse mais
perto (ou menos longe) das narinas do Deus-Desconhecido.
Aí, consumada a queima e apagado o Fogo ritual, Lupiana
piedosamente me lavou as mãos e religiosamente as enxugou, fazendo
eu, depois, o mesmo com ela.
Enquanto assim agíamos, nós ambos, de repente, num impulso,
começamos a repetir, como um outro exorcismo contra a Morte e a
peçonha da Serpente, alguns passos da Dança cultuária que o Jumento e
a Eguazinha tinham celebrado.
Atrás de Lupiana surgiu uma Figura feminina, e atrás de mim,
outra, masculina. Pareciam com as que se tinham postado perto dos
Animais mas não eram exatamente as mesmas: aparentavam culpa, e
não insciência maior.
Da extremidade dos curtos braços da feminina saíam chamas. A
masculina, que conduzia na mão um Vaso-de-Oferendas, cantava,
obstinada: “ Eu vou, dançando, ao limiar da Morte, nas malhas de uma
Estrela piedosa. ”
E eu, encandeado pelo Sol, vi, de repente, alguma coisa, que
parecia a imagem de Ashera Acken, fundir-se com Lupiana. Tal fusão foi
como que a senha para minha mudança de atitude em relação a ela.
Primeiro, porque, com isso, a culpa, nela, também passava a toldar a
inocência. Depois porque, tendo ambos comido as Rosas, eu estava
seguro de que ali não seria cometida uma violência que viesse a
traumatizá-la.

JÚLIO SAVEDRA RIBEIRO


“O que houve, entonçe, foi que todo tõm de locuela sse esvaiu
antre os dois: calavam-sse, palideçiam, o timbre d’as voçes d’ambos era
cada vez menos sseguro.
“A pedido d’o Hõmem-velho, a Damisela — louvor e frol de tôda-
las Meninas — quitou las peças de ssua vestimenta, ssalvo a Camisa. A
Cambraya disenhava o piqueno busto e as coixas delgadas, deixando
transpaireçer a nasçente penuge que começava a ensombrar, ẽ m-baxo, o
pubre d’a Menina.
“Baxando-lhe o cabeçom e començando a ficar fora de ssy, ele sse
lhe foi àa garganta e ss’achegou a’os peytos piquenos e duros que logo
começarom a sse encrespar, arrepiando-sse os mamilos.”

FREI MANUEL SCHABINO DE ITAPARICA


“Os Limões-doçes, muyto apeteçidos, estão virgíneas Tetas
imitando. E, quando sse vêem crespos, mal-cresçidos, vão as maãos
curiosas inçitando.”

CASSANDRA RIOS DE SAVEDRA


“Ele levou as maãos para a-frente, pousando-as ẽ m ssuas coixas,
alisando-as e ssubindo ẽ m-sseguida para os piquenos peytos, que
pareçiam dois Limões.”

FREI MANUEL SCHABINO DE ITAPARICA


“E a’o Hõmem lhe pareçia o Livro que ssonhava ass ỹ m como ũum
Horto, n’o qual existiam Flores e Fructos: pel’as flores sse entendia a
ssentença d’os Versos e d’a stória; e pel’os Fructos, os d’o corpo d’a
Donçela, horto de Fructos ssaborosos, tendo ẽ m ssy, escondida, como
tamb ẽ m o Livro, ũuma notável Ssentença rreligiosa.”

JÚLIO SAVEDRA RIBEIRO


“Foi ass ỹ m que, cada vez mais atrevido, ele lhe acarinhou os
peytos e lh’os osculou, primeyro rrespeitoso e atée medroso, como sse
cometesse ũum ssacrilégio, e logo oufano, insolente, lasçivo e bestial como
ũum Ssátyro.
“Cresçendo ẽ m ssua exaltaçam, ele lh’os amachucou e lh’os
chupou, mordiscando sseus piquenos bicos arreytados.
— “Leixe-me, leixe-me, ca ass ỹ m nom quero! — dizia a Donçela
cõm voz quebrada, esforçando-sse por escapar-sse, mas presa, a’o mesmo
tempo, de ũuma neçessidade invençível de sse dar e sse abandonar
àaquele que a cometia.
“De-rrepente fraquearam-lhe as pernas, os braços lhe descaíram,
ssua cabeça pendeu, graçiosa, e ela deixou de loitar, entregando-sse.
“Tanto que a viu rrendida, ele fincou os geolhos ẽ m terra e,
pegando-lhe a barra d’a Camisa, fege-lhe, baxo, ũum rrogo.”

EÇA SCHABINO DE QUEIROZ CAMÕES


“Ela, corada, dizia: ‘Nom, nom, ca ssou vergonçosa de dexar façer.’
E ele fez, porque Amor ée ũum fogo que arde ss ẽ m se ver, ée ferida que
doi e nom sse ssente.”

MANUEL SAVEDRA BOTELHO DE OLIVEIRA


“A Rromaã rrubicunda, quando aberta, àa vista agrados ée, àa
língua, oferta. Ée tesoiro d’as Fruitas, entre afagos, pois ssão Rrubys
ssuaves os sseus bagos.”
DOM PEDRO DINIS QUADERNA
Aqui, acho por bem transcrever um trecho de Literatura alheia,
que bem pode dar uma ideia daquilo que se desencadeava no sangue de
Lupiana: “ Foi n’esse momento que sse pôde notar, ẽ m todo o sseu
splendor, a maravilhosa beleza d’a Menina. Completamente desafrontada
de toda influ ẽ nçia terrestre, o ssangue que por instantes lhe ssubia a’o
rrosto e momentaneamente lhe havia colorido as façes, rrefluía de-novo
a’o coração. Os olhos, abertos ũum pouco al ẽ m d’o ordináryo, estabam
voltados para o Çéeu. As narinas, ligeiramente dilatadas, pareçiam
aspirar ũum ar mais puro. Os lábyos conservavam-sse levemente
afastados. A cabeça mantinha-sse inclinada para trás, cõm ũuma graça
inexprimível, quase angélica. Dir-sse-ia, a’o ver-la, que aquele olhar
imóvel penetraba atée os umbrais d’o trono de Deus, n’aquele êxtase n’o
qual a i-alma sse desliga d’o corpo e divaga — livre, feliz, divina —
ssobrançeyra aàs misérias terrestres. ”

DOM PARIBO SALLEMAS


Parece que, aí, quem canta é Santa Teresa, falando de si mesma
na terceira pessoa para descrever um dos êxtases em que era levada a
Deus pelo contato com o Anjo-Abrasador. Mas quem assim pensasse
incorreria em erro, pois as palavras que Quaderna acaba de citar são de
Alexandre Dumas sobre Andréia de Taverney, enquanto hipnotizada
por José Bálsamo, Conde de Cagliostro (o que de novo nos leva ao
transe hipnótico causado por Antero Savedra sobre a moça de Patos a
partir de sua promessa a São Cipriano).
EÇA SCHABINO DE QUEIROZ
“E tanto ela sse cobrou de sseu delíryo, tapou o rrosto cõm ssas
âmbalas maãos, e sse fez escarlate, e falaba, goçosa, ssuaves rrequebros e
ternas rrepreensões.”

DOM PEDRO DINIS QUADERNA


Tendo, assim, cumprido minha parte do culto, chegava agora o
momento de, mais uma vez, trocarmos de função, passando eu a ser o
Altar e Lupiana a jovem Sacerdotisa encarregada de sobre ele celebrar,
antepondo, nós, ao Macujê (isto é, ao Maracujá-fêmea ou Maracujá-
romanoso), o Caju, ou Cayu, de travo masculino e goiaboso:
MANUEL SAVEDRA BOTELHO DE OLIVEIRA
“O Marcujá, tamb ẽ m, gostoso e quente, ée Fruita ẽ m qu’ũuma
Rrelva arrufa ũum Pente. Tem, n’a pevide, mais gostoso agrado d’o que
Açúcar-rrosado: ée o Macujê, cheiroso e apreçiado. Ée belo e cordial, e,
como ée mole, qual ssuave Manjar todo sse engole; pois, ss ẽ m fazer a’o
Mel injusto agravo, n’a boca sse desfaz, qual doçe travo.
“De variada forma ée o Caju belo: ora ée mole e amarelo, ora duro
e vermelho — e então ée bravo, of’reçendo àa Romaã sseu duro travo.
Então, mostra a Coroa dilatada, ergue o Punhal e afia a ssua Espada.
Veste-sse d’escarlata, cõm majestade grata, pois, pra rreynar ssobre a
Rromaã rrachada, tem a Castanha e a C’roa-consagrada.”

DOM PEDRO DINIS QUADERNA


Mas é por meio de 3 Décimas, compostas por Cantadores e
condiscípulos meus na Escola-de-Cantoria, outrora mantida na Fazenda
Onça Malhada por João Melchíades Ferreira da Silva, que passo a
descrever melhor o Ritual sagrado que Lupiana e eu vínhamos
celebrando ali na Estrada.
A primeira de tais Décimas descreve a estranha Rosa crespa,
plantada na própria fenda-central do Altar-da-Lua. Era uma Glosa feita
por Lino Pedra-Verde sobre Mote do grande Poeta-popular Lourival
Batista, e vai recitada aqui por Joaquim Simão:

JOAQUIM SIMÃO
Eu estava láa n’a Estrada, vi a Rrosa penugenta, bela Rromaã que
nos tenta, rrubra, fendida e ssagrada. Quando ela fica arreytada, deixa o
Caju moribundo. Ssob o Çéeu alto e profundo, a Lua a deixa rrevendo, “e,
para qu ẽ m vem nascendo, ée a porteyra d’o Mundo”.
DOM PEDRO DINIS QUADERNA
A segunda, mostra o Obelisco-central do Altar-do-Sol, também
importante na Ilumiara Jaúna . Era de Severino Putrião, chamava-se O-
Bicho-Caju-da-Serra e é cantada aqui pelo Palhaço Gregório:
GREGÓRIO MATEUS DE SOUSA
“O Bicho não ée de osso, de carne também não ée. Não tem perna,
mas tem pée, não tem braço e tem pescoço. Ora ée fino, ora ée bem grosso,
cheyo de astúcia e de manha. N’a fome de ssua ssanha, levanta o chapéu-
de-couro, e verte ũuma Chuva d’ouro pel’o tesão d’a Castanha.”

DOM PEDRO DINIS QUADERNA


Finalmente a terceira, de Marcolino Arapuá, junta Romã e Caju
num Enigma só e alude ao próprio ritual religioso que eu e Lupiana
estávamos celebrando na Estrada. Aqui, quem se encarrega de cantá-la
é o Palhaço Galdino:

GALDINO BASTIÃO SOARES


“O Velho c’a Rromaã ssonha, e a Menina o Caju quer, pois n’ela
nasçe a Mulher, e n’ele ferve a Peçonha. Eis que o Caju já sse enfronha
ssobre os ovos d’o Lambu. Levanta a crista o Jacu, e ass ỹ m, Bôda
temporaã, ele macujou Rromaã, ela goiabou Caju.”

DOM PEDRO DINIS QUADERNA


Para que os nobres Cavaleiros e belas Damas não se
escandalizem com o teor e a forma de tais citações, esclareço que Dom
Pantero só permitiu que elas fossem apresentadas aqui porque alguns
dos versos mais atrevidos do meu relato foram compostos por Padres
(como, por exemplo, Frei Manuel de Santa Maria Itaparica). E o fato é
que, estimulado por esses Padres, quando dei fé, os passos de dança
que Lupiana ia executando tinham me atingido no centro de mim
mesmo, levando-me à beira da Morte nos estremeços epilépticos do
Mal-sagrado que chegava, estralando e coriscando, do meu sangue para
minha cabeça, anuviando ainda mais meus olhos cegos e reluzindo
raios, relâmpagos e estralos-de-centelhas nas antecâmaras do meu “
Panóptico-interior ” — ali onde, às escuras, os degraus inferiores do
primeiro Trono eram tateados pelo nume-profético do meu juízo-real
desgovernado.
SAMUEL APULEIO REIS DE SAVEDRA
“Entretanto, no Auto, a Donzela era Brincante, e ele figurava
apenas como Velho, Mestre e Rei. Ela era fermosa e muito bem-feita em
todo o seu corpo, cuidava do Rei e o servia. Mas, no momento azado, os
dois, juntos, mastigavam a corola de uma Rosa, de modo que o Rei nunca
a conheceu nem contra ela praticou qualquer violência.”

DOM PEDRO DINIS QUADERNA


Assim, o arrebato e a turvação foram passando. As Figuras que
tinham legitimado o ritual desapareceram; urgia retomar a caminhada:
na Ilumiara, além do almateico leite de Cabra, talvez nos fosse possível
encontrar ervas e raízes que neutralizassem algum resto de Veneno no
sangue da Princesa; o melhor, mesmo, era retomar a Incursão, naquela
Chapada pedregosa na qual me fora imposta, um dia, a tarefa de
decifrar o Mundo.
Foi o que fizemos, Lupiana e eu, enquanto por todo o caminho
elevado, estreito e penoso que agora percorríamos (e sublinhados pela
mesma Toada “ desértica e modal ” que eu sonhara naquela Madrugada)
soavam, por todos os lados, os latidos da Besta-Fouva, da Besta
Ladradora que, desolada, errava por ali, na dolorosa espera de sua
redenção.

ALBANO CERVONEGRO
Oh Fiandeira do painel da Sorte, que nos borda o destino sobre o
Pano! Hei de tecer, também, nele, a defesa do meu Rebanho infortunado e
insano, a dolorosa reivindicação do atormentado Coração humano.
Já, na Terra-estrangeira, um Mar de sono meu corpo, imerso em
suas águas, banha. Olhar com mais cuidado os Astros cegos: viver a Vida
é, já, uma façanha; erguer a fronte, honrar o chão da Raça, e entrar, como
num Sol, na Terra Estranha.

DOM PANTERO
Meu irmão Auro Schabino achava que a sociedade
contemporânea deifica 3 Ídolos — Falos , o deus do Sexo, Moloc , o do
Terror-de-Estado, e Mamon , o do Dinheiro, exacerbado pelo
Capitalismo.
A isso, opunha-se ele, dizendo:

AURO SCHABINO
Quaderna tinha, do sexo, uma visão distorcida, com a qual nunca
me conformei. Em minha visão-do-mundo, o Sexo não é, apenas, como se
costuma afirmar, “um fato normal e saudável”. Muito mais do que isso, o
Sexo é a situação extrema, o êxtase, a crispação do Amor, do carinho e da
ensonação amorosa, motivo pelo qual atinge a fronteira do Sagrado e da
Beleza, a fronteira de Deus.

Os antigos diziam que a Morte é o toque de um Deus no Ser-


humano. É como se, ao entrar em contato direto com a Divindade, nossa
natureza não suportasse aquele terrível fato e sucumbisse aos estremeços
orgiásticos da Morte, fêmea e amante para os Homens, macho e amante
para as Mulheres, materna, paterna e terrível para todos.
Daí a ligação, sempre também ressaltada, entre o êxtase sexual da
Morte, a fruição da Beleza e o êxtase quase mortal do Amor — inclusive o
sexual. Não é somente a Morte: o estremeço do Amor e do Sexo, o choque
violento da Beleza e da Arte (e também, naturalmente, o abalo, o êxtase
terrificante, fascinador e final da Morte), tudo isso são toques de Deus no
Homem; assim como a Arte e o Sexo são, em nós, expressões de revolta
contra a Morte e afirmação de uma momentânea e precária, mas ainda
assim vital e poderosa imortalidade.
É por isso que nunca estranhei a linguagem através da qual Santa
Teresa de Ávila descreve seu êxtase religioso, por ser povoada de signos e
insígnias ligadas ao Amor e ao estremeço sexual (como também acontece
com a linguagem da Arte, incluindo-se aí a Literatura). Quando me
insurjo contra a comercialização, a banalização e a vulgarização do Sexo,
contra a massificação da Arte e contra a escamoteação da Morte,
efetivadas numa sistematização cuidadosamente programada pela
sociedade contemporânea, não é por puritanismo — hipocrisia que seria
ainda mais inaceitável no Pecador que sou; mas sim exatamente por
respeito à busca da Beleza pela Arte; do Amor pelo Sexo; da Morte como
fonte da Vida, pela Ressurreição; isto é, os 3 ásperos e belos caminhos por
meio dos quais o Homem mortal às vezes experimenta, ainda neste
Mundo escuro, o toque da Divindade imortal.

DOM PANTERO
Quanto a mim, quando conheci Quaderna, o que me interessou
nele foi sua face de Personagem circense: tendo sido aluno de um velho
Cantador — João Melchíades Ferreira da Silva —, ele sabia tocar Viola;
de maneira que, como Antagonista, podia exercer junto a mim papel
parecido com aquele que Ricardo Coração dos Outros desempenhava
em relação a Policarpo Quaresma.
E foi realmente o que aconteceu, primeiro com o próprio
Quaderna, em seguida com dois Músicos que passaram a representá-lo:
uma vez que os equivocados do Recife me chamavam de “ Dom Quixote
arcaico ”, Wagner Campos passou a ser meu “ Sancho Pança ”; e Antonio
Madureira o “ Ricardo Coração dos Outros ” daquele “ novo Policarpo
Quaresma ” (que, na opinião dos nossos inimigos, “ Dom Pantero
também representava ”).

Mas novamente aqui acaba o espaço destinado a esta Carta e é


tempo de despedir-me, o que faço, como na primeira, por meio de um
Prosador barroco e de um Poeta popular:

DOXOLOGIA

MATHIAS AIRES DE SAVEDRA


“Que são os Homens, mais do que aparências de Teatro? A vaidade
e a Fortuna governam a Farsa desta Vida; todos se põem no Palco com a
pompa ou a miséria com que a Sorte os põe. Cada um recebe o seu papel:
ninguém escolhe o que lhe dão. Aquele que sai sem fausto nem Cortejo e
que, logo no rosto, indica que é sujeito à dor, à aflição e ao sofrimento,
este é que desempenha o papel de Homem.
“A Morte, que está de sentinela, numa das mãos carrega o relógio
do Tempo, na outra, a Foice fatal; com esta, de repente, desfere o golpe
certeiro e inevitável, dá fim à Tragédia, fecha a Cortina e desaparece.”

LUIZ SCHABINO DE LIRA


“Este Mundo é um Teatro de nobre e dura beleza. Seu pobre grupo
de Atores sofre dor, fome e tristeza, mas aumenta as projeções do Cine-da-
Natureza.
“São tais Atores, no Palco, Personagens valorosos, criadores de
Comédias e Dramas misteriosos. Aqui o Rei vive o sonho de seus Autos
perigosos.
“Sabe o Rei que é só um Sonho, pois aqui de nada é dono; que,
neste Palco-de-sombras, a Vida acaba num Sono. Mas, se a Morte é nosso
Emblema, o meu Teatro é meu Trono.”
Portinari - Alberto Teixeira - Toni Agostinho: Dom Pantero e Quaderna como Dom
Quixote e Sancho

ALBANO CERVONEGRO
O Circo: sua Estrada e o Sol de fogo. Ferido pela Faca, na
passagem, meu Coração suspira sua dor, entre os cardos e as pedras da
Pastagem. O galope do Sonho, o Riso doido, e late o Cão por trás desta
Viagem.
Pois é assim: meu Circo pela Estrada. Dois Emblemas lhe servem
de Estandarte: no Sertão, o Arraial do Bacamarte; na Cidade, a Favela-
Consagrada. Dentro do Circo, a Vida, Onça Malhada, ao luzir, no Teatro, o
pelo belo, transforma-se num Sonho — Palco e Prelo. E é ao som deste
Canto, na garganta, que a cortina do Circo se levanta, para mostrar meu
Povo e seu Castelo.

DOM PANTERO
E, com estes Versos, compostos em Martelo-Gabinete e Martelo-
Agalopado — duas Estrofes criadas pelos Cantadores brasileiros —,
aqui se despede de Vocês, nobres Cavaleiros e belas Damas da Pedra do
Reino, este que é, ao mesmo tempo, seu Soberano e seu companheiro
de cavalgadas e Cavalaria,

Dom Pantero do Espírito Santo, Imperador


Chamada

O CHABINO
DESAMADO
O CHABINO DESAMADO
Epístola de Santo Antero Schabino, Apóstolo

Escrita por seu afilhado, sobrinho e discípulo Antero Savedra,


em homenagem aos Brasileiros descendentes de Negros, nas pessoas
de Henrique Dias, Luiz Gama, José do Patrocínio, André Rebouças, Lima
Barreto, Cruz e Souza, Adelaide Lima, Josafá Mota, Daiane dos Santos,
Bria, Camila Pitanga, Sassá, Domício Proença Filho, Joel Rufino dos
Santos, Mônica Oliveira e Marilene Felinto.
Publicada para comemorar os 500 anos da nossa Cultura, em
sua vertente africana.
Dirigida aos nobres Cavaleiros e belas Damas da Pedra do Reino.
E enviada, por seu intermédio, aos diversos povos do Mundo;
especialmente aos da Rainha do Meio-Dia , aqui representada por Cabo
Verde.
EPÍGRAFES
“Não quero mal à Ficção. Amo-a, acredito nela, acho-a preferível à
Realidade; nem por isso deixo de filosofar sobre o destino das coisas
tangíveis em comparação com as imaginárias.”

M ACHADO DE A SSIS

“Já consultou seus Livros — grandes tratados que prometem uma


resposta a todas as indagações. Recolhe informações dos parentes mais
velhos, junta-as com suas próprias recordações, mas o que daí resulta é
uma espécie de Jogo, com uma Lei inteiramente diversa da lei dos outros.
É um desfiar contínuo de Imagens da sua vida e de Palavras de poetas de
todos os Continentes. Não se detém em sua louca busca; mas o Mistério
não se deixa vencer por meras enunciações.”

G ERMANA S UASSUNA
DEDICATÓRIA
Esta Chamada é dedicada a Maria Suassuna, Alexandre Nóbrega,
Joana e Ariano Suassuna da Nóbrega Veras.
Foi composta em memória de Alexandrino Felício Suassuna,
Joana Francisca Pessoa de Vasconcellos, Gabriel Villar de Araújo e Afra
Dantas Villar.
O CHABINO DESAMADO NAS TRILHAS DA
BESTA FOUVA

Largo Fantástico — Adágio Lídico


SIBILA
Moda, Turismo & Lazer
Igarassu, 14 de Março de 2014
23 de Abril de 2016

Aos nobres Cavaleiros e belas Damas da Pedra do Reino.

Amigos:
u escolhera 7 dias do ano para empreender minhas incursões à Ilumiara
Jaúna e minhas Saídas para dar as Aulas-Espetaculosas . Eram eles: 26
E de Abril, por ser a data da morte de minha Mãe; 15 de Agosto, dia
em que mataram Euclydes da Cunha; 5 de Outubro, porque foi a 5 de
Outubro de 1897 que as tropas capitalistas, urbanas e positivistas da
nossa primeira República arrasaram e incendiaram o Arraial
messiânico e pré-socialista de Canudos, desenterrando o corpo de seu
Profeta, Santo Antônio Conselheiro, e cortando-lhe a cabeça, levada
para a Cidade como troféu e objeto de estudos; 6 de Outubro (data do
suicídio de meu irmão Mauro), porque foi em 6 de Outubro de 1930
que nosso Tio materno João Soares Sotero Veiga Schabino de Savedra
foi degolado na Casa de Detenção do Recife, onde estava preso por ter
assassinado o Prefeito de Assunção, Doutor Jayme Pessanha Villoa; 7 de
Outubro, por causa da Batalha de Lepanto e porque, a 7 de Outubro de
1945, na pequena Revista do nosso Colégio, foi publicado meu Poema
Noturno — falhado mas importante para mim por ser ligado a Liza Reis,
frustrado e único amor de minha vida; 9 de Outubro, por causa dos
fatos discriminados abaixo; e finalmente, 12 de Outubro, por ser o dia
da Aparecida, da Nossa Senhora Negra, da Misericordiosa, da Coroada
— enfim, da Padroeira do nosso País, destas Cartas, das minhas Saídas e
do Simpósio Quaterna , que àquelas deu origem.

Quanto ao dia 9, três fatos o marcaram indelevelmente para nós:


o nascimento da Besta Fouva, em 9 de Outubro de 1230; a morte de
Dom Sebastião Barretto, o Rei da Serra da Copaóba, ocorrida em 9 de
Outubro de 1590; e o assassinato do Cavaleiro, João Canuto Schabino de
Savedra Jaúna, acontecido em 9 de Outubro de 1930. E como o
nascimento da Besta é o mais antigo, por ele começo, valendo-me das
palavras de Roberto Boron e Joanot Martorell — este o primeiro a ligar,
em meu sangue, o Segredo do corpo feminino ao enigma do Castelo e à
beleza do Mundo.

A BESTA FOUVA
Variação sobre o tema de Beldade e o Monstro

ROBERTO SCHABINO BORON


“Na era da Graça de 1230 anos, reinava na Galícia, ao norte de
Portugal, um Rei chamado Hipômenes. Este Rei tinha uma Filha tão
fermosa que em todo o Reino não havia outra que a igualasse.

JOANOT MARTORELL SAVEDRA


“A Natureza dera-lhe o máximo de si. Seus cabelos brilhavam
como se fosse ouro. As sobrancelhas pareciam feitas a pincel. Os olhos
eram duas Estrelas redondas. O nariz era estreito e afilado. O rosto tinha
a cor das Rosas, mesclada com a brancura dos Lírios. Os lábios eram
vermelhos como o Coral. As mãos eram branquíssimas, com dedos longos
e afilados. As unhas, bem curvadas e róseas. E, pelo que vivia descoberto,
bem se podia imaginar o que as vestes cobriam: os peitos (que eram dois
Frutos pequenos, rijos, brancos e lisos) e as coxas, entre as quais estava
seu Segredo.

ROBERTO SCHABINO BORON


“A Donzela tinha um irmão, que era tão belo, tão sério e de tão
boa graça que não havia ninguém que o conhecesse e não se
maravilhasse.
“Quando ela chegou à idade de 20 anos, era leda, louçã e bela,
mas amava as coisas do Mundo mais do que devia. E quando seu corpo se
dispôs aos desejos, apaixonou-se pelo Donzel, seu irmão, por causa da
beleza que nele via. Tanto o desejou que não se pôde impedir de lh’o dizer.
O irmão, porém, teve grande pesar e desgosto do que ouvia e disse à irmã:
DONZEL
— “Afasta-te de mim, Donzela mal-aventurada, e nunca mais me
fales nisso, pois do contrário te farei queimar!

ROBERTO SCHABINO BORON


“Ela teve vergonha de sua repulsa e pavor da sua ameaça, e calou-
se, toda tolhida. No entanto, não diminuiu seu desejo, que até cresceu
ainda mais. Por todos os meios a seu alcance tentava conseguir o que
queria, mas nada conseguiu.
“Entonce pegou um Cutelo afiado que tinha em sua Arca e
afastou-se de suas Damas e Pucelas, encaminhando-se para uma Horta
que pertencia àquele Castelo-davídico que era o Paço de seu Pai: tinha
resolvido matar-se junto a uma Fonte que ali havia, para assim se libertar
de seu sofrimento.
“No momento em que ia desferir o golpe em sua própria garganta,
apareceu-lhe um Homem, tão fermoso e bem-feito que ela ficou
maravilhada. E o Homem dixe:
HOMEM
— “Ay, Donçela, nom vos mateis! Esperai atée que eu fale
convosco! Detende o golpe!

DONZELA
— “Detenho o golpe, mas ssó para preguntar qu ẽ m ssois!

HOMEM
— “Ssou ũum Home que vos amo mũyto e vos prezo ssobre tôdalas
Donçelas que já vi. E ssofro por ssaber que nom pudestes ter aquilo que ẽ
m-ssegredo desejais.

DONZELA
— “E como ssabeis o que desejo e que nom posso ter?

HOMEM
— “Eu b ẽ m ssei o que desejais. Vós desejais tanto vosso irmaão
que estais a ponto de vos matar por causa d’ele. Mas eu vim aquy para
dizer-vos: sse quiserdes façer o que eu mandar, farei cõm que tenhais
vosso irmaão a vosso gosto e vontade.

DONZELA
— “B ẽ m vejo que ssois mais astuto d’o que qualquer pessoa
poderia cuidar, pois ssabeis o que nenhũum homem n ẽ m mulher poderia
ssaber, fóra eu e meu irmaão, pois nom lo dixe a ningu ẽ m mais. Estou
pronta a fazer o que quiserdes.

HOMEM
— “O que vos peço ée que, ẽ m-troca d’o que tanto desejais,
entregueis vosso amor e vosso corpo a m ỹ m!

DONZELA
— “Ay, como poderia fazer isso, sse amo tanto meu irmaão que
morro por ele?

HOMEM
— “Nom pode sser de outra forma. Ou fareis o que vos digo ou
jamais tereis vosso irmaão!

JOANOT MARTORELL SAVEDRA


“Achegando-se entom a ela, beijou-lhe tres veçes a boca.
Afroixando-lhe os cordões d’o vestido, beijou-lhe os peytos, enquanto a
maão nom permanecia oçiosa, acariçiando-lhe os mamilos e tudo mais
que alcançou.
“O rrostro d’a Donçela estaba já vermelho como as rrosas de
Mayo. Pareçia que ela tinha estado assoprando fogo, e sseus peytos,
duros, nom parabam de tremer.
“Ávido, ele a tomou n’os braços e continuou a beijar-lhe os olhos, a
boca e os peytos, metendo-lhe as maãos por lugares ẽ m que antes ningu ẽ
m tocara. Esticou a perna antre ssuas coixas, tocando-lhe ass ỹ m o lugar
proibido.
“Ela quis protestar, mas àaquela altura ele acabara por despir-la
e levou-a n’os braços, deitando-la n’o chaão, perto d’a Fonte.
“Cõm pouco, estaba nu e trabalhaba cõm a Artilharia para entrar
n’o Castelo.
“D’ahy a algũuns momentos, gemia a Donçela, cujas coixas
pareçiam brilhar:
DONZELA
— “Ay, meu ssenhor! Estais de tal maneyra presente ẽ m m ỹ m
que nom há parte algũuma d’o meu corpo que vos nom ssinta! Nom me
mateis de-todo, que, sse tiverdes compaixom de m ỹ m, eu vos dou pleno
poder para me usardes como Mulher, e nom vos terei por Cavaleyro sse
declarardes paz antes que o Castelo tenha ssido tomado e ssangre tenha
corrido!

ROBERTO SCHABINO BORON


“Assim aquela Moça, que era cheia de pecado e malaventura,
concordou em entregar sua pucelage ao Homem. E sentiu um prazer tão
grande que passou a odiar e desprezar mortalmente o amor de seu
irmão. E tanto com o outro folgava que dele ficou prenhada.
“Um dia, estava ela com seu Amigo, perto daquela mesma Fonte
em que desejara matar-se. Estava pensativa, e ele falou:

HOMEM
— “Por que estás assim? Pensas, por acaso, em como poderias
matar teu irmão?

DONZELA
— “Por Deus, é isso mesmo! Vejo que, na verdade, és o homem
mais astucioso do Mundo! Pelo amor que me tens, peço-te que me ensines
como devo agir, porque hoje não há coisa que me causasse tanto prazer
como matá-lo!

HOMEM
— “Vou te ensinar um meio. Manda pedir a teu irmão que venha
falar contigo em tua câmara. Quando ele estiver no quarto, fecha a porta
e pede-lhe que faça aquilo mesmo que já uma vez te negou. Ele recusará.
Então, agarra-o. Ele te repelirá com violência. Aí, deves gritar com
grandes vozes. Os Cavaleiros acorrerão e tu dirás que ele te forçou e
violentou (como fez Amnon à sua irmã Tamar). El-Rei fa-lo-á prender e
justiçar, e assim serás vingada de seu desprezo, ao mesmo tempo que
justificada de tua prenhez quando chegar o dia de parires.

ROBERTO SCHABINO BORON


“Bem assim como disse o Homem, assim o fez a Donzela, que
mandou chamar o irmão. Mas, quando lhe falou de seu desejo, deu-lhe o
Donzel tal bofetada que seu rosto e seu peito se cobriram de sangue.

“Então, ela começou a gritar:

DONZELA
— “Valei-me! Valei-me todos, desgraçada e infeliz que sou!

ROBERTO SCHABINO BORON


“Todas as pessoas que estavam no Paço acorreram ali, e El-Rei as
acompanhou. Derrubaram a porta, que a Donzela trancara. E quando o
Rei viu o estado em que se achava sua filha, grande foi seu pesar. E
perguntou:

REI
— “Quem te fez isso? Quem te deixou em tal estado?

DONZELA
— “Senhor, foi meu irmão, que me forçou, escarneceu e violou! Eu
estava aqui, em meu quarto, quando ele entrou e disse que comigo se
queria deitar. E, como eu o repelisse, deu-me tal bofetada que caí ao chão,
onde, coberta de sangue, fui por ele desonrada!

ROBERTO SCHABINO BORON


“El-Rei mandou prender o filho e metê-lo numa Torre, por felonia,
traição e deslealdade da irmã. E o Donzel se defendia das acusações o
melhor que podia. Mas isso de nada lhe valeu, porque seu Pai e todos os
demais cuidavam que acontecera como sua irmã dizia. E o pesar de El-Rei
era tão grande que ele chamou os Cavaleiros e homens de confiança de
sua Câmera e mandou que julgassem seu filho.
“Eles decidiram que, por direito e justiça, o Donzel havia de
morrer. E El-Rei perguntou à sua filha:

REI
— “De qual morte queres que teu irmão morra?

DONZELA
— “Quero que o deitem a Cães ferozes, para que o devorem. Os
Cães devem ser mantidos em jejum por 7 dias, para só então vosso filho
ser entregue a eles!
ROBERTO SCHABINO BORON
“Quando o Donzel viu que o condenavam à morte, e a ela não
podia escapar, disse à irmã, diante de seu Pai e dos Cavaleiros:

DONZEL
— “Minha irmã, tu sabes que me fazes morrer injustamente e que
não mereço morrer despedaçado pelos dentes de Cães ferozes, como
aqueles a que me destinaste. Não me pesa tanto a dor, mas sim a infâmia
da morte a que me entregas. Tu me fazes sofrer vergonha que não
mereço. Mas eu serei vingado por Aquele que pune e castiga as grandes
infâmias e deslealdades do Mundo. O Homem a quem entregaste tua
virgindade é um Demônio. E, ao nascer o filho de que estás prenhada,
ficará provado que não o gerei, pois nunca de Homem e Mulher saiu coisa
tão espantosa quanto aquela que de teu ventre sairá — a Besta mais
desassemelhada que nunca homem viu. E porque a dentes de Cão me
fazes despedaçar, aquele Animal terrível que sairá de tuas entranhas terá
dentro de si Cães ferozes que sempre ladrarão em relembrança dos Cães a
que me entregas.
ROBERTO SCHABINO BORON
“Assim falou o Donzel à sua irmã. E então deitaram-no aos Cães,
que logo o despedaçaram e devoraram.
“El-Rei cuidou de sua filha até o tempo de lhe nascer o fruto
doloroso nela gerado pelo Demônio, o que aconteceu aos 9 dias do mês de
Outubro da era da Graça de 1230 anos. E quando ele veio, muitas das
Donas que o tinham pegado caíram mortas, porque nascera daquela
Beldade o Monstro mais horroroso, a Besta mais dessemelhada, a Fera
mais malaventurosa de que jamais se ouvira falar. E aquele Cão, aquela
Besta que da Donzela nascera, saiu logo correndo de Paço afora e
soltando os mais pavorosos ladridos que o Mundo já ouvira.
“Quando El-Rei soube disso, logo entendeu que era verdade o que
seu filho dissera na hora de sua morte. Entendeu também em qual guisa
injusta e desatinada a Donzela o impelira a matá-lo.
“Então mandou prender a filha, e ela foi condenada a uma morte
ainda mais cruel do que aquela à qual levara o irmão.
“Foi assim que começou a correr pelo Mundo a Besta Fouva, a
Besta Ladradora, por conta de quem houve tantas malaventuras e foram
assassinados tantos e tão bons Cavaleiros em cima desta Terra.”
DOM PANTERO
Mostrado assim o nascimento da Besta Fouva — que ainda hoje
corre pelo Mundo, sempre acompanhada por seu cortejo de Cães
sinistros —, a rigor se impunha a mim agora o terrível dever de narrar a
morte do Cavaleiro.
Confesso, porém, que não me sinto ainda em condições de fazer
isso; e resolvi introduzir o assunto por meio de meus irmãos Mauro e
Afra: apesar de também Filhos dele, eram mais corajosos do que eu e,
com suas palavras, podem criar para mim um ambiente menos duro
para o que tenho a revelar depois.

O GRITO NA POEIRA
Entremeio Lídico em Dó-Sustenido Menor
ALBANO CERVONEGRO
Riacho avermelhado, sangue limpo. O limiar da Morte: a Flecha e
o Dardo. O medo; a verde treva da Serpente, o sofrimento mudo e o
Desbarato. Nestas águas sangrentas, dorme a Cobra, e o Corvo azul
persegue o Leopardo.

MAURO JAÚNA
“Sim, acho que tudo veio daí, quando meu Pai foi assassinado, em
9 de Outubro de 1930. Lembro-me de que, na ocasião, minha Mãe falou
em Deus, e os sábios homens do campo me deram explicações vagas:
falaram em encantamentos e nas bênçãos de Nossa Senhora.
“Continuei a viver, aturdido. Li os numerosos Livros que meu Pai
deixara; e então me aconteceram alguns outros infortúnios: tornei-me
ateu, comecei a sofrer crises de enxaqueca, entreguei-me ao vício do fumo
e fiquei sujeito a insônias, toda noite.
“Comecei a namorar a Morte, que descobrira pouco antes. Pensei
em suicídio. Meu instrumento seria a Cascavel, serpente comum no
Sertão. Aproximei-me de uma: ameaçadoramente ela vibrou seu
chocalho. Não estendi a trêmula mão — e até hoje não sei se fiz bem ou
mal.
“Por tudo isso, para mim é impossível classificar este Livro. Seu
assunto é a Vida e a Morte. Haverá, nele, amor, sexo, violência; episódios
trágicos e cômicos; fraudes e plágios descarados; maldade, bondade e,
finalmente, um Rei e Cavaleiro que não existe mais.”

AFRA CANTAPEDRA
“Na verdade, foi a 9 de Outubro de 1930 que recebemos o golpe
decisivo, o golpe que há muito se anunciava: meu Pai, aprazado pela
Morte, tombara, ferido pelas costas, à traição, antes que pudesse esboçar
qualquer gesto de defesa e apoiando na Pedra a mão tinta de sangue.
“Eu estava no Quintal, brincando, descuidada, com umas
panelinhas de barro bordadas a ponta de alfinete, quando ouvi um
clamor terrível, no meio do qual se destacava um grito, estridente como o
de um Pássaro (um Gavião, talvez). Corri para dentro da Casa e vi nossa
Tia, Maria Francisca, com um ar de estranha exaltação no rosto,
engolindo, como uma Ébria, o Vinho cor-de-sangue que lhe davam a
beber, num Cálice. Fiquei assustada:
— “Que foi? — perguntei.
— “Mataram Papai! — respondeu Mauro, nosso irmão mais
velho.
“No momento, fiquei meio interdita, não compreendendo muito
bem o que tudo aquilo significava: em nossa Casa não se falava na Morte;
os conhecidos que haviam morrido ‘estavam no Céu’, e eu já estava
habituada às ausências de meu Pai, que viajava muito. Assim, a princípio,
aquela morte tinha menos realidade do que as histórias de trancoso que
eu lia.

“Depois, aos poucos, a morte dele foi tomando consistência, foi


virando mesmo ‘a Morte’, minha velha Inimiga, aquela que rondava a
Fortaleza, espreitava meus passos e assombrava meus sonhos.”

ALBANO CERVONEGRO
A sagração do Sol, na dor vencida: somos filhos do Sangue
derramado. Quem entrar neste Pasto sem fronteiras, há de encontrar o
sangue e o Sagrado. O coração ferido e o sol do Lume: meu Sangue é
minha Fonte-do-Cavalo.

DOM PANTERO
Mas é melhor passar de novo a palavra àquela que, aqui, encarna
todas as grandes Mulheres da nossa Família, para que ela conte como,
aos poucos, se foi desdobrando, dentro de sua alma de criança, o doloroso
processo de corporificação da morte do Pai:

AFRA CANTAPEDRA
“Primeiro, foi a tristeza de tingir de preto todas as nossas roupas.
Depois, ninguém queria mais brincar. A Tia a errar dentro da Casa, como
um espectro sem rumo. As pessoas das Fazendas próximas com medo de
nos dirigir a palavra para não se comprometerem politicamente —
enfim, uma subversão completa de tudo.
“Mas o pior — coisa nunca vista! — era a Mãe chorando, deitada
numa rede, embalando Gabriel, o filhinho caçula, de apenas um ano de
idade.
— “Não chore não, Mamãe! — pedi-lhe.
“Parecia-me que, se ela não chorasse, tudo ainda se poderia
arranjar. Mas, a estas palavras, minha Mãe chorou ainda mais, as
lágrimas minando de seus belos olhos escuros, como a água das Cacimbas
nos Rios secos do Sertão.
“E aí eu formei um plano: Deus acabaria com aquela tristeza.
Haveria de restituir-nos o Pai, como restituíra o filho à viúva de Naim,
pois eu iria pedir-lhe isso com muita Fé.
“Como, porém, àquela altura, a Vida já me ensinara a ser
desconfiada, resolvi antes por à prova a palavra de Deus num milagre
menor. Perdera-se a chave da caixinha de prata onde nossa Mãe
guardava o dinheiro da Casa. E eu me agoniava: o que iria ser de nós?
Perseguidos, cercados de ódio; com a Polícia a revistar constantemente a
Casa onde se abrigavam somente duas Mulheres e sete Crianças; com os
Tios escondidos no Mato sem poder ajudar em nada e nem sequer dar
notícias — e agora, ainda por cima, sem Dinheiro!
“Aí, sentei-me numa mala, fechei os olhos e pedi a Deus que me
fizesse encontrar a chave, que já fora procurada em todo canto sem
resultado.
“Acabada a oração, olhei casualmente para trás da mala e lá
estava a chavezinha, que apanhei, afrontada, saindo às carreiras para
entregá-la a nossa Mãe.

O nome da Coroada em caracteres ilumiáricos

“Naquela mesma noite, cheia de esperança, comecei a pedir


àquele Deus (que, como constatara, realmente nos dava as coisas que lhe
pedíamos com Fé) que ressuscitasse meu Pai.
“Passados alguns dias, tive um choque: chegara uma Carta
remetida por meu Pai; era a Carta que ele escrevera a sua Mulher e que
conduzia no bolso para confiá-la a um Amigo quando foi assassinado.
“Cheia de alvoroço, perguntei a uma Empregada:
— “Ele escreveu lá do Céu? Como foi que essa Carta chegou aqui?
Quem trouxe?
— “Sai daqui, Menina boba! — disse a Empregada, que passara a
implicar comigo, pensando que meu estado de ansiosa expectativa era
falta de sentimento pela morte do Pai.
“Perdoei-a: a coitada não sabia do meu maravilhoso segredo, e eu
continuava a pedir e rezar sem desfalecimento.
“Passaram-se dias, meses, anos, dois anos. Sofri um
desapontamento muito grande quando soube que, ao abrirem o túmulo
de meu Pai para retirar seus ossos, tinham-no encontrado intacto: uma
espécie de névoa cobria o corpo, mas o rosto estava perfeito, como se ele
apenas tivesse estado adormecido durante todo aquele tempo.
“‘Era esta a hora de Deus ordenar que ele se levantasse e andasse,
e Deus não o fez!’ — pensei, ressentida.
“O Amigo que se encarregara do triste trabalho era Médico, e
disse que a preservação se devia às condições do terreno em que meu Pai
fora sepultado. Instruiu os Coveiros a colocar Cal viva no caixão, fechando
de novo o Túmulo, para que se cumprisse a obra de destruição que a
Terra brasileira, certamente por ele tanto a ter amado, se recusara a
fazer.
“Mas eu, teimosamente, ainda pensei que talvez tivessem sido as
minhas preces que o tinham conservado assim, inteiro. Julguei, também,
que Deus estivesse querendo provar ainda mais a minha Fé e, ao mesmo
tempo, contra a queima de toda Cal do mundo, manifestar seu poder com
um Prodígio ainda maior.
“Passaram-se mais três anos, e eu sempre rezando. Já estava até
habituada a isso, as palavras me saíam quase mecanicamente dos lábios.
“Mas afinal fui obrigada a render-me; a reconhecer que fora
enganada, quando Deus, apesar de sua promessa formal — e ao cabo de
tanto tempo de perseverança, de sofrimento e de fé — só nos devolveu,
dentro de um Caixote azul fechado a chave, um punhado de ossos.
“E agora, também convocada para este Teatro, no qual, entre
outras coisas, se fundem todas as Casas de nossa Família, rememoro tudo
isso e, cansada de sofrer, volto ao meu Quarto, para fechar, numa gaveta,
o Manuscrito em que guardo tais lembranças. Já escureceu de todo e não
consigo ler mais nada.
“Mas não quero que se acenda nenhuma luz: prefiro, mesmo,
deixar-me envolver pela melancolia que, com a sombra, desce sobre a
Terra.
“Entretanto, sei de cor um dos Poemas que meus irmãos
compuseram diante da efígie de nosso Pai; e ele vai recitado aqui, porque,
na medida em que isto é possível, suas palavras vencem, no fim, a
amargura de minhas recordações:”

O nome da Coroada em caracteres gregos

ODE
(Com mote de Sebastião Vilanova)
Variação sobre o Tema d’O Cavaleiro e a Morte

ALBANO CERVONEGRO
Muito cedo, eu ainda bem menino, a cega Fera, a fera Divindade,
marcou de sangue e fogo meu Destino: desde então arde em mim, a todo
instante, ferrando o Campo duro, em dura Dança, esse Crime sangrento,
que foi duro quinhão da minha Herança.
É por isso que aqui neste Sertão pedregoso e espinhento, contra
um Céu amarelo, turvo e pardo, cruel e poeirento, ergui — castanhas,
pobres, reluzentes — as Torres ancestrais do meu Castelo: elas são, para
mim, a Obra, o Marco, a Catedral-da-Raça, a Fortaleza que me serve de
Muro e de alicerce, como Pedra-angular para a defesa.

O nome antigo da Coroada

O nome da Coroada

É por isso, também, que, insano e ardente, criei um Reino mítico e


sagrado, batido pelo Vento ensandecido — este “Sertão” do Pasto
Incendiado. E é por isso que, em Pedestal de pedra, brilha, no Reino, a
Efígie coroada, erguida para sempre, além do Tempo, eternizada,
equestre e consagrada: é nosso Cavaleiro, em seu Cavalo. É o Rei do nosso
sonho iluminado, mantendo para sempre e sempre erguido, o estandarte
do Sonho e do Sagrado. É o Campeão das lutas sem vitória, “o bravo
Cavaleiro ensolarado”.
DOM PANTERO
Mas agora, nobres Senhores e belas Damas, devo fazer para
Vocês o relato da primeira Incursão que fiz à Ilumiara Jaúna depois da
nossa mudança para o Recife.

O GRANDE TEATRO DO MUNDO


Entremeio Frígio (de Guerra e Morte, mas também de
Esperança)

DOM PANTERO
No dia 6 de Outubro de 1930, meu Tio-materno, João Sotero
Veiga, foi encontrado morto, juntamente com seu cunhado Augusto,
ambos degolados numa cela da Casa de Detenção do Recife, onde se
encontravam presos pelo assassinato do Doutor Jayme Pessanha Villoa,
Prefeito do município paraibano de Assunção — crime cometido por
meu Tio, 3 meses antes de sua morte.
Três dias depois desta morte, meu Pai, o Cavaleiro João Canuto
Schabino de Savedra Jaúna, acusado pela Família Villoa de ser o
mandante do assassinato do Prefeito, foi, por sua vez, assassinado, às
margens do Riacho do Elo , que banhava as pedras da Ilumiara , centro
da Data do Jaúna , pertencente a minha Família desde 1791, quando fora
ocupada por meu Bisavô, Raymundo.
Depois destes acontecimentos terríveis, nós, Mulher e filhos de
meu Pai, passamos 40 anos relativamente sossegados, como se a Vida
tivesse resolvido poupar-nos por causa deles. Mas isso durou somente
até 6 de Outubro de 1970, quando meu irmão Mauro — num gesto de
trágica bravura — matou-se a punhaladas desferidas contra seu
próprio peito. Naquele dia, mais ou menos pelas 11 horas da manhã, ele
apareceu em minha casa, com um olhar triste que eu nunca lhe vira.
Disse-me: “ Vim lhe dar este Livro, porque Você é uma grande Figura. ” E
entregou-me um volume com as Obras Completas de Cervantes. Na
primeira folha em branco do Livro estava escrito:
Irobuké, o Veado Negro — Detalhe da Ilumiara Jaúna

“ Para Antero, com o amor e o carinho de seu irmão

Mauro. ”

Duas horas depois, foi encontrado morto: sem que eu soubesse,


a visita fora o modo que encontrara para se despedir de mim.
Mauro foi sepultado a 7 de Outubro. No dia seguinte, 8, viajei
para Taperoá, onde me hospedei no Hotel Pedra do Reino , pois
resolvera ir, a pé, à Ilumiara Jaúna , pedir a meu Pai que me desse forças
para enfrentar aquela nova provação — o que, achava, devia ser feito no
lugar ungido, sagrado e consagrado por seu sangue.
Na manhã seguinte, fui procurado por meu irmão Gabriel,
aquele de nós que ficara no Sertão, designado por minha Mãe para
continuar o trabalho do Cavaleiro em sua faina “ de governar seus Pastos
e Rebanhos ”: adivinhando que eu viera para ir à Ilumiara Jaúna, queria
acompanhar-me.
No momento em que, na sala de estar do Hotel, eu lhe explicava
que na Incursão queria estar só, ouvimos lá fora, vindo do Pátio, o som
de alguns instrumentos musicais, capitaneados por uma Rabeca, uma
Viola, um Pífano e um Tambor, cujos toques secos pontuavam o que os
outros tocavam.
Com os outros hóspedes, também atraídos pelo som da Música,
passamos à calçada da frente do Hotel e vimos, no Pátio, o grupo de 7
Atores do Grande Teatro Invenção Nacional Brasileira , que — como
soubemos depois — era integrado por Avó, Caetana , Mãe, Ana , Filha,
Maria Adeodata , Pai, Joaquim , e 3 Filhos-homens — Manuel , Miguel e O
Capitão Zafriel .
Maria segurava um Estandarte, com um Sol ladeado por duas
Estrelas e dois Crescentes. Manuel e Miguel conduziam uma espécie de
Padiola, com uma Imagem esculpida em madeira: era um Negro que,
montado a cavalo, encostava uma Lança ao pescoço de um Branco, que
se estorcia no chão junto a uma Serpente enrolada sobre si mesma; o
Homem tentava deter, com as mãos, o lançaço que lhe varava a
garganta. Ambos ostentavam coroa de Rei. Uma Moça, amarrada a um
tronco, parecia ser a causa da cena.
Caetana , a mulher mais velha, trazia um Vestido preto,
comprido, com uma Onça amarela na saia, e tinha os ombros cobertos
por um Pano vermelho. Na maior parte do tempo, pousava os braços
esticados sobre um Pau, que ela sustentava cruzado contra a nuca, por
trás da cabeça. E, como o Pano vermelho pendia deste Pau, os braços
davam a impressão de que se tinham transformado num par de Asas
vermelhas.
Já o Vestido da mulher mais moça, Ana, era quase cinzento, tão
desbotado era seu Azul simbólico e tão pobre seu tecido, marcado por
um Crescente amarelo que lhe decorava a saia.
A Moça, Maria Adeodata, mal saíra da adolescência. Apesar da
magreza e palidez do rosto devastado pela Fome, era uma das Mocinhas
mais bonitas que eu já vira. Alva, de cabelos castanho-claros, usava
alpercatas velhas e pobres e um Timão que, mesmo com sua Estrela
amarela, era também pobre e tocante em sua falta de graça.
Quanto aos Homens, Joaquim, Manuel e Miguel vestiam calça e
camisa comuns, mantendo à cabeça chapéus de couro de abas curtas,
escurecidos pelo uso e pelo Tempo. Joaquim empunhava uma Rabeca;
Manuel, uma Viola; e Zafriel, um Pífano. Miguel era responsável pelo
pequeno Tambor, cujos toques secos tanto nos tinham impressionado,
pontuando os uivos e silvos que Zafriel e Caetana de vez em quando
desferiam.
Zafriel era o mais estranho do grupo. Parecia um Anão, porque
sua estatura diminuía pela corcunda: era um “ Marreco ” (como chama
o Povo), com o espinhaço e o peito projetados em arco para fora, o que
lhe tornava compridas as pernas, pequeno o tronco e abaulada a caixa-
torácica. Usava túnica e calça meio-militares, talabarte de couro e, à
cabeça, um arremedo de Elmo. No peito, pintada, uma Serpente
parecida com a da Imagem.

Notando que seu público chegara, Joaquim fez um aceno para os


outros, e o grupo começou a cantar uma espécie de Cantiga-de-Abertura
que eu já conhecia de outros Espetáculos populares. Ali, Joaquim
puxava o Canto, e os outros, em coro, respondiam:

JOAQUIM
“ Oh gente, que Casa é esta? Oh gente, que Casa é esta?

CORO
“ Casa de grande valor! Casa de grande valor, onde está
entronizada, onde está entronizada a imagem do Senhor, a imagem do
Senhor!
JOAQUIM
“ Jesus santíssimo, Pai soberano, botai-me a bênção hoje, aqui, por
todo o ano!

CORO
“ Jesus santíssimo, Pai soberano, botai-me a bênção hoje, aqui, por
todo o ano .
JOAQUIM
“ Oh gente, que Casa é esta? Oh gente, que Casa é esta?

CORO
“ Casa de grande Oração! Casa de grande Oração!

JOAQUIM
“ Está chegando o nosso Reino, está chegando o nosso Reino de
Justiça e Redenção, de Justiça e Redenção!

CORO
“ Jesus santíssimo, Pai soberano, botai-me a bênção hoje, aqui, por
todo o ano! Jesus santíssimo, Pai soberano, botai-me a bênção, hoje, aqui,
por todo o ano! ”

DOM PANTERO
Terminado o Canto, Caetana uivou um silvo de Serpente, um
grito de Harpia, que Zafriel acentuou e prolongou por um toque agudo
do Pífano. Era um recurso-teatral poderoso e sinistro, quedaí por diante
iria indicar as passagens de tempo ou as mudanças de ritmo da
Narração; além disso, elevava aquele pequeno Espetáculo popular a um
significado maior, como se ali estivesse abordado, através da Cena e do
canhestro grupo de Artistas, o velho e nunca decifrado enigma do
Mundo.
E depois, no estranho silêncio que logo se fez, calando aquele
Público superficial e heterogêneo que ao acaso se reunira no Terraço,
Joaquim aproximou-se de nós, estendendo-me seu velho chapéu de
couro; e disse, com voz grave:

JOAQUIM
Apresento-me a Vossas Senhorias: sou Joaquim Vieira dos
Santos, seu criado! Esta é minha Mãe, Caetana. Minha Mulher, Ana.
Minha Filha, Maria Adeodata. Meus Filhos, Manuel, Miguel e Capitão
Zafriel.
Agora, peço a Vossas Mercês uma Esmola para o milagroso São
Canuto, para a filha dele, Santa Margarida, e para o genro, o negro Santo
Elesbão, que matou o sogro.

DOM PANTERO
Quando viu que Gabriel colocava algumas cédulas no chapéu
estendido, recitou:

JOAQUIM
“O senhor já me pagou, me pagou com sua mão. Agora, o dinheiro
é meu: vou fazer a partição. Dou um quinto a São Canuto, um quinto a
Santo Elesbão. Dou um a São Cipriano, outro a São Sebastião. E ainda me
sobra um quinto, pr’eu beber no Barracão! Mas vou ficar é com tudo,
Santo não tem precisão!”
DOM PANTERO
Ao dizer os dois últimos versos, realmente recolheu para o bolso
as notas que apanhara do chapéu, o que fez com grande rapidez e
usando a mão como se fosse uma ávida garra ou pá afiada. Foi um gesto
de Ator consumado que nos encheu de admiração; e os risos e aplausos
estalaram, ruidosos e contagiantes, numa entusiástica salva de palmas.
Joaquim, que permanecera impassível, esperou que o barulho
amainasse e só então falou de novo:

JOAQUIM
Agora peço licença para que o Grande Teatro Invenção Nacional
Brasileira apresente a Vossas Mercês a Cantiga do Valente Vilela :

O VALENTE VILELA
Cantiga de Morte e Guerra

MANUEL
Deus do céu fez este Mundo: ninguém queira duvidar! Em cima,
formou o Sol, embaixo, a Terra e o Mar! Tudo é no poder de Deus: maior
do que Deus, não há!

MIGUEL
E hoje morre alguém aqui: morre sem se lamentar. Foi Mulher ou
foi um Homem? Logo o Povo saberá! A Vida será sangrada, a Morte é
quem vai cantar.

MANUEL
Alguém teve um arrepio, sentindo a Morte passar. Outro gritou,
mas o Vento o grito veio apagar. Estrelas o traspassaram, mas há de
ressuscitar.

MIGUEL
Hoje morre alguém aqui. Quantos morrem? Quem será? Quantos
morrem, não importa; mas quem é importará! Hoje morre alguém aqui,
morre sem se lamentar!

DOM PANTERO
Nesse momento soaram de novo o silvo de Caetana e o uivo de
Zafriel. E, desta vez, a eles se seguiram 3 toques secos de Tambor.
Somente aí, os dois Cantadores continuaram a Narração:

MANUEL
“Meu Povo, preste atenção ao que agora eu vou cantar, de um
Homem muito valente, que morava num lugar, que até o próprio Governo,
tinha medo de cercar!
JOAQUIM
“Vilela era natural do Sertão paraibano, e ele, desde pequeno, que
tinha o gênio tirano. Comete o primeiro crime com a idade de 10 anos.

MANUEL
“Com 12 anos de idade, numa festa de São João, Vilela mais um
seu Mano, tiveram uma altercação. Só por causa de um Cachimbo, Vilela
mata o Irmão!

JOAQUIM
“Com 15 anos de idade, passando 3 ao depois, Vilela monta a
cavalo, vai ao Campo atrás duns Bois. Encontrou 4 Rapazes: atirou num,
matou dois.

MANUEL
“Preparou-se pra caçar, num Domingo, bem cedim’. Carregou a
Espingarda, para matar Passarim’. E, na beirada de um Poço, mata o filho
do Padrim’.

JOAQUIM
“Casou com 18 anos. Com 6 meses de casado, ’stando, um dia,
trabalhando, na derruba de um Roçado, devido à queda de um Pau, Vilela
mata o Cunhado.

MANUEL
“O Agente-de-Polícia tratou de o perseguir, sempre botando
Emboscada, mas Vilela sem cair: conhecia aquilo tudo, pois era Filho dali.

JOAQUIM
“O Agente-de-Polícia, vendo que não o prendia, escreveu pra
Capital, ver o Chefe o que fazia, e pedindo grande tropa, de linha e
Cavalaria.

MANUEL
“Nisto, o Chefe-de-Polícia mandou-lhe 30 Soldados; agraduou um
Tenente, com ordens de Delegado: morreu, não escapou um, para trazer-
lhe o recado!

JOAQUIM
“Ele tornou a mandar 30 Homens escolhidos. Agraduou um
Tenente (este era mais destemido): morreram da mesma forma que os
outros tinham morrido.

MANUEL
“Então o Chefe, zangado, mandou outro Contingente, que tinha 40
Praças, e um Cabo muito valente: só escapou o Corneta, pra se acabar de
doente.
JOAQUIM
“Este, chegando no Corpo, espalhou, na Companhia, que era
asneira mandar Tropa, que o Homem ninguém prendia: que a Força
levava tiro, sem saber de onde saía.

MANUEL
“Fala o Alferes Negreiros ao Fiscal-do-Batalhão:

JOAQUIM
“Basta o Comandante dar-me um mandado de prisão, e eu mostro
se esse Vilela visita a Cadeia ou não!

MANUEL
“Disse o Comandante a ele:
JOAQUIM
“Meu Filho, a coisa é medonha! Você, como se oferece, acho bom
que se disponha: Você vai, não traz o Homem, chega aqui me faz
vergonha!

MANUEL
“O Alferes respondeu:

JOAQUIM
“Eu sei por que me ofereço. Deixe eu escolher a escolta de
Soldados que conheço: se eu não trouxer preso ou morto, nunca mais eu
apareço!”

DOM PANTERO
Neste momento, outro silvo-e-uivo de Zafriel e Caetana
interrompeu a Narração. Pararam de cantar e Joaquim falou:

JOAQUIM
Chegou a hora d’o respeitável Público ajudar o Espetáculo. O
distinto Cavaleiro aqui não precisa pagar, porque já deu sua parte. Mas
os outros devem contribuir, se é que desejam saber como foi o encontro
do corajoso Alferes Negreiros com o valente Vilela!

DOM PANTERO
Tirou novamente o chapéu de couro e começou a circular entre
as pessoas do Público para receber o pagamento de cada um.
Enquanto durava a cobrança, Gabriel comentou para mim:
GABRIEL JAÚNA
De minha parte, paguei com alegria, porque estou encantado
com o Espetáculo! Quando Manuel e Miguel cantaram a Introdução, não
pude me impedir de compará-la com O Grande Teatro do Mundo , de
Calderón de la Barca — é verdade que este com as dimensões do Gênio.
Aqui, o Mundo é representado pelo vasto Sertão seco que nos cerca; e
os Seres-humanos que o habitam, pelos Atores e por este punhado de
Pessoas que estão assistindo à Representação. E a Divindade também
está lembrada pelo Estandarte do Sol e pelos versos que por duas vezes
repetem “ Deus do céu fez este Mundo ” e “ maior do que Deus ninguém ”!

DOM PANTERO
É verdade. Mas estou encantado também com a Cantiga do
Valente Vilela . Em primeiro lugar, por sua oralidade-teatral: estamos
diante de um pequeno Poema-épico que obviamente se destina a ser,
não lido, mas sim recitado diante de um Público: — “ Meu Povo preste
atenção ao que agora eu vou cantar ”. Mas outra coisa que me
impressionou é que, com este Espetáculo, estamos voltando à fusão
entre Poesia, Música, Dança e Teatro. Sim, porque esta Cantiga já era,
em si, profundamente teatral, o que, agora no fim, foi acentuado
quando, além dos Narradores, surgiram dois Personagens, o
Comandante e o Alferes.

Esta é uma característica da Arte de comunidades “primitivas”.


Nelas, a Poesia e a Música brotavam dos impulsos subterrâneos do
Homem, do ritmo e da pulsação do seu sangue e do seu coração.
Nasciam unidas, por meio do Canto, de passos de Dança, de cantigas e
cantares. Um Poeta-Músico, dotado também de habilidades de Ator,
postava-se num Tablado, diante de Espectadores que se reuniam na
Praça pública, em pátios de Mercado ou de Igreja. Aí, para suas
Narrativas-cantadas, empunhava a Viola ou a Rabeca, cujos toques
acentuavam o canto dos Versos; e era assim que comunicava ao Público
a encantação de sua Arte. Tinha-se, então, no Poeta, a Figura que depois
daria origem ao Cantador e ao Contador-de-histórias; ou então ao
Troveiro épico e ao Trovador lírico.
Mas se o Cantador, ou Contador, pedia a ajuda de companheiros
que figurassem os Personagens por acaso surgidos na Cantiga ; se ele
convocava Músicos e Dançarinos que ampliassem e aprofundassem a
encantação experimentada pelo Público diante daquelas Ficções —
ingênuas e terríveis como todas as da Arte —, surgiam aqueles
Espetáculos que alguns chamam de “ primitivos ” mas que são, na
verdade, diretos, rudes e vigorosos, como este que estamos vendo.
Eram Espetáculos configurados por uma Cantiga, às vezes trágica ou
dramática, às vezes cômica; de Dança ou Mímica, às vezes obscena; de
impulsos guerreiros ou religiosos; de pura diversão e disparate. Eram
Espetáculos a um tempo grotescos e comoventes, com as Máscaras e as
Danças permeando a representação, ou “ representação recriada ”, dos
crimes, sofrimentos, amores, injustiças, fomes, atos e comportamentos
cômicos, líricos ou dolorosos, que compõem a saga da Vida.

Mas não sei se Você notou: na encenação da Cantiga do Valente


Vilela , aparecem “ o Brasil oficial ”, representado pelo Alferes Negreiros,
e “ o Brasil real ”, encarnado por Vilela. E as diversas Tropas policiais
enviadas contra este último lembram as Expedições organizadas contra
o Arraial de Canudos , onde as Tropas enviadas pelo Brasil oficial
terminaram cortando a cabeça do Brasil real, ali encarnado por seu
Profeta, Santo Antônio Conselheiro.
E a metáfora precisa ser ampliada, também, ao plano universal.
Quando, no passado, Roma destruiu Cartago, era um Império rico, “
branco ”, oficial e poderoso que se lançava contra uma Colônia mestiça,
“ heterodoxa ” e mais pobre do que ela. Quando, hoje, os Estados
Unidos, “ Roma moderna ”, se lançam contra o Irã, a Líbia ou o Iraque,
estão repetindo a situação de Roma contra Cartago, ou a do Brasil
oficial “ branco, rico e poderoso ” contra o Arraial mestiço e pobre de
Canudos.
Quando, nos Estados Unidos, a sociedade branca e rica
marginaliza Negros e Hispânicos-pobres, é o País oficial que está
esmagando e perseguindo os Canudenses de lá. Quando, na União
Soviética, Russos brancos e poderosos massacram Mongóis mestiços e
pobres, é o País oficial que está esmagando populações “ inferiores ” do
País real .
Quando, na Casa de qualquer um de nós, Brasileiros “brancos” e
privilegiados, um casal rico oprime e explora uma empregada
doméstica negra e pobre, é o Brasil oficial que está ali, submetendo e
humilhando o Povo pobre do Brasil real . Quando, na Cidade, a Polícia
invade e derruba uma Favela, é outro dos inumeráveis “ Arraiais de
Canudos ” integrantes do Brasil real que está sendo assolado e
destruído pelo Brasil oficial . E quando, no interior, uma Milícia de
poderosos — governamental ou não — assassina um Pobre “ invasor ”
ou “ posseiro ”, é o Brasil dos que arrasaram o Arraial de Canudos que
está ali, novamente assassinando o Povo pobre do Brasil real .

Mas a cobrança terminara e Joaquim se dirigiu ao Público:

JOAQUIM
Quero esclarecer a todos que, aqui, minha Mãe representa A
Morte Caetana . Eu, São Joaquim . Minha Mulher, Sant ’ Ana . Minha Filha,
Adeodata, A Virgem Maria . Meu Filho, Manuel, Jesus Cristo . Miguel, São
Miguel . Meu outro Filho, Capitão Zafriel, O Encourado .
O distinto Público deve estar lembrado: Vilela venceu 3 volantes
da Polícia, duas de 30 Soldados e outra de 40. Quando o centésimo
Soldado, o Corneta, único vivo, chega ao Quartel e dá conta do que viu, o
Alferes Negreiros procura o Comandante e diz que, se lhe derem os
Soldados que pedir, ele traz Vilela preso ou morto. Diz que, se não
cumprir a promessa, nunca mais aparece no Quartel. E a história
continua assim:

MANUEL
“Tendo o mandado-de-ordem, os Soldados se arrumaram. Na
manhã do outro dia, se despediro’ e marcharam. Foram com muito
cuidado, com 15 dias chegaram.

JOAQUIM
“Sai o Alferes vagando pelos campos do Sertão. Adiante, encontra
um Rapaz e lhe dá voz de prisão: — Você me mostra o Vilela, quer Você
queira, quer não!

MANUEL
“O Rapaz disse, chorando: — O que é que eu hei de fazer? Vou lhe
mostrar o Vilela, mas na certeza de que Tropa que cerca o Vilela, o
resultado é morrer!
JOAQUIM
— “Siga, siga, Rapaizim! Quando avistar a Fazenda, chegue pra
perto de mim, fale baixo que eu entenda, que é pr’eu botá-lo num canto,
onde Bala não lhe ofenda.

MANUEL
“Pelas 10 horas da noite, diz de repente o Rapaz: — A casa do
Home’ é aquela, pegada àqueles Currais, junto daquele Cercado, e
acostada por detrás!

JOAQUIM
“Aí, o Rapaz foi solto e a toda pressa voltou, correndo de Serra
abaixo, sem medo de tombador: parece que criou pena, bateu as asa’ e
voou.

MANUEL
“Saiu de ponta de pé, tudo quanto era Soldado. E Vilela,
experiente, na sua rede deitado, acorda e diz à Mulher: — Minha Velha,
eu ’stou cercado!

JOAQUIM
“Fala o Alferes na porta: — Vilela, tem paciência! Vilela, me
entregue as Armas, que eu não quero violência! Trate de arrumar a Casa
pr’eu fazer a Diligência!

MANUEL VILELA
“Do tamãe’ que é a Cozinha, também pode ser a Sala! Da grossura
do Revólver, também deve ser a Bala! Olho e não vejo ninguém: quem
diabo é quem me fala?
JOAQUIM ALFERES NEGREIROS
“Sou o Alferes Negreiros, e vim atrás do teu nome! És a Onça desta
terra, Vilela, mas não me come! Devido à coragem, não: Vilela, eu
também sou Home’!

MANUEL VILELA
“Seu Alferes-Delegado, vá procurar seu camim’! Vá criar sua
Família, deixe eu criar meus Filhim’! Porque, se eu sair lá fora, sei que te
encontro sozim’!
JOAQUIM ALFERES NEGREIROS
“Mesmo eu ficando sozinho, não te deixo escapulir! Eu hoje tiro-te
a moda de matar pra estruir! Diga se me abre a porta, ou se quer que eu
vá abrir!

MANUEL VILELA
“Eu tenho o corpo fechado, e saiba que não lhe engano: se botar-
me a porta abaixo, de dentro espirra Tutano! Se eu bater mão do meu
Rifle, chove Bala 20 anos!

JOAQUIM ALFERES NEGREIROS


“Vilela, eu tenho comido Toicinho com mais cabelo! Mas o Diabo é
quem queria estar hoje no teu pelo! Salte pr’o Campo-da-honra! Deixe ao
meno’ eu conhecê-lo!

MANUEL VILELA
“Seu Alferes-Delegado, eu não engano ninguém; muito lhe
agradecerei não me enganando também. Queira dizer, Seu Alferes,
quantos Praças é que vêm!

JOAQUIM ALFERES NEGREIROS


“Vilela, eu não te engano: trago 180 Praças. Negro nascido em
barulho, criado em mei’ de desgraça. Pra te mandar pr’o outro Mundo,
nenhum deles se embaraça!

MANUEL VILELA
“Com 180 Praças, brigo em pé, brigo de coc’a! As Balas batendo
em mim, é Milho abrindo em Pipoca! Dou o meu pescoço à forca, se me
achar uma barróca!
JOAQUIM ALFERES NEGREIROS
“Vilela, tome cuidado! Vigie que lhe falo sério! Desta feita, Você
segue — isto é quero porque quero — ou na corda, pra Cadeia, ou na
rede, pro Cemitério!

MANUEL VILELA
“Seu Delegado, eu carrego, comigo, uma opinião: Boi solto, se
lambe todo, eu não me entrego à Prisão! Quero mesmo é que se diga: —
Morto sim, mas preso não!

JOAQUIM ALFERES NEGREIROS


“Vilela, não seja besta: Você não me faz terror! Eu trago é Tropa-
de-linha, do Monarca-Imperador! Vim te buscar preso ou morto: sem
Você, eu lá não vou!

MANUEL VILELA
“Seu Alferes-Delegado, esta razão me agradou! Você diz que é
muito Homem: se é por Home’ eu também sou! Previna o Destacamento:
se preparem que eu lá vou!”
DOM PANTERO
Aqui soaram novamente o silvo de Caetana e o uivo de Zafriel, o
que os outros Atores tiveram o cuidado de acentuar com o Tambor, o
Pífano, a Viola e a Rabeca.
E a Narração continuou:

JOAQUIM
“Quando o Alferes ouviu bulir lá dentro nuns trens, preveniu à
Soldadesca: ‘Se preparem que lá vem!’ Rodou a Casa sozinho, não
encontrou mais ninguém!

MANUEL VILELA
“Seu Alferes-Delegado, os seus Praças já corrêro’! E o melhor que
Você faz é ganhar o Marmeleiro! Pois aqui só tem um Galo, que sou eu,
neste Terreiro!
JOAQUIM
“Aí, o Alferes olhando, notou que a porta rangiu. Mas o escuro era
tanto, que ele olhou, porém não viu! Quando Vilela pulou, bala de Rifle
cobriu!

“O Alferes pegou do Rifle, ficou o Mundo tinindo! Era o dedo


amolegando e o fumaceiro cobrindo, Bala batendo em Vilela, voltando
pra trás, zunindo!

MANUEL VILELA
“Seu Alferes-Delegado, bote fora o Clavinote! Você pensa que me
ofende? Rifle pra mim é Bodoque! Hoje, nem Jesus te livra da ponta do
meu Estoque!

JOAQUIM
“Largaro’ as armas-de-fogo, cada qual o mais ligeiro: pegaram-se
aqueles Homens em luta pelo Terreiro! Os Punhais davam faíscas que só
Forja-de-ferreiro!
“Com duas horas de luta, o Alferes não pressentiu: entropicou de
repente, e num Buraco caiu. Vilela saltou em cima e, de malvado, se riu:

MANUEL VILELA
“Logo no primeiro passo perdeste o pé da chinela! O que é de Você
agora com a minha mão na goela, com meu joelho nos peitos e meu
Punhal nas costelas?

JOAQUIM ALFERES NEGREIROS


“Vilela, não é vantagem matar um Home’ à traição! Você me
pegou agora devido a um entropicão: vai me matar como Homem, porém
por covarde, não!

MANUEL VILELA
“Seu Alferes-Delegado, eu cansei de lhe dizer! Eu ’stava aqui,
descansado, vieram me aborrecer! Agora, nem Deus lhe acode: prepare-se
pra morrer!
JOAQUIM
“Disse o Alferes consigo: — Oh meu Deus, tão poderoso! Tende
compaixão de mim, que sou Pai e sou Esposo! Livrai-me, oh Deus, de
engolir este bocado amargoso!
“Que quando Vilela estava, co’o outro bem entretido, pensando
daí a pouco tivesse o Alferes morrido, saiu-lhe uma voz, de parte: — Não
mate o Homem, Marido!

MANUEL VILELA
“Eu, quando ouvi as pisadas, conheci que era Você! Com certeza lá
em casa, não tem mais o que fazer! Olhe: em briga de dois Homens,
Mulher não tem o que ver!

ANA VILELA
“Marido, não mate o Homem, que é casado e tem Fami’a! Você,
matando o Alferes, os Inocentes, quem cria? Veja que somos casados: pode
precisar-se, um dia!

MANUEL VILELA
“Não sei o que tem Mulher, que todas são cavilosas! Pra discutir
com os Maridos, são danadas de teimosas! Quando é pra fazer pedido, tu
ficas toda dengosa!

ANA VILELA
“Marido, eu nem nunca vi um gênio como esse teu! Como é que
queres matar um Homem que já perdeu? Eu lhe peço pela Virgem, pela
santa Mãe de Deus!

MANUEL VILELA
“Pois então diga ao Alferes que corra pelas Estradas! Senão, ele
sai daqui vendendo Azeite às canadas! Diga que Nossa Senhora foi a sua
Advogada!
JOAQUIM
“Sai o Alferes dali, tristonho e muito humilhado, porque, por seu
Inimigo, tinha sido perdoado. E, da vergonha que teve, morreu no Mato,
enforcado!
“Acaba o Vilela a briga, também muito arrependido; saiu de casa
por trás, de todo mundo escondido, e nem mesmo a Mulher dele soube
mais de seu Marido.

MANUEL VILELA
“Mulher, fiz tua vontade: não matei aquele Homem. Mas me vou
de Mato-adentro, me acabar de sede e fome, comendo das Frutas brabas,
daquelas que os Bichos comem!
JOAQUIM
“Saiu Vilela de casa, no Mato escolheu um canto, e ninguém nunca
pensou que ele vivesse tanto: e ao cabo de 30 anos, morreu Vilela e foi
Santo.

MANUEL
“Alvíssaras, meus Senhores! A nossa história acabou-se! O Alferes
foi valente, como valente, enforcou-se! Mais valente foi Vilela: morreu, foi
Santo e salvou-se!”

DOM PANTERO
Assim que Manuel cantou a última Estrofe, Adeodata se
aproximou de mim e, colocando uma Fita azul e vermelha em meu
ombro, estendeu-me um Folheto que continha o Romance que
acabáramos de ver, teatralizado.
Como sempre me acontece nestas horas, fiquei um momento
indeciso, sem saber quanto pagar. Felizmente notei que na contracapa
estava determinado um preço: era um ponto de partida, e entreguei à
Menina uma quantia que era o triplo da indicada.
Sem fazer qualquer comentário, ela recitou com ar tímido e tom
“ decorado ”:

ADEODATA
“Só recebo este Dinheiro por ser da mão de quem vem! É
lembrança de quem pode, carinho de Homem de bem. O senhor faça por
ter, guardados, 7 Vinténs, que é pra comer do que é bom e chegar pra
mim também!”

DOM PANTERO
Aí, passou para outros, sem, entretanto, recitar para mais
ninguém. Seu Pai e seus irmãos foi que entraram novamente em cena,
cantando as Loas finais, de agradecimento:

JOAQUIM
“A Rabeca está contente, e o Coração obrigado! No Reino de Deus
se veja meu Patrão abençoado!
“Me leve pr’onde quiser, pra fazer qualquer Mandado; pra mode
brocar de Foice, pra derrubar de Machado. Pra dar água a seu Castanho,
pra dar milho a seu Melado: tiro a sela e os arreios, guardo tudo bem
guardado!

MANUEL
“Me mande pro Piauí, me venda a troco de Gado! Só lhe peço, meu
Patrão, que não me venda fiado, pois fiado lhe dá pena, a pena lhe dá
cuidado, e seu cuidado nos mata, porque somos seus Criados.
JOAQUIM
“Agradecido, Seu Moço, muito obrigado, Patrão! Dinheiro pra nós
é Vinho, e é o sagrado Pão! É os joelhos dobrados, pra se fazer Oração.
Mas é também importante, por ser Carne e ser Feijão, por alimentar o
Peito, morada do Coração.

MANUEL
“Patrão, lhe rogo uma Praga, e ela vai ter que pegar: Chuva de
prata e de ouro, sua Casa alagará; Cobra de prata lhe morda, que é pr’o
que é seu aumentar, pr’o senhor ter com fartura, eu pedir e o senhor dar!
Só não posso é lhe dizer quando torno a vir por cá. Mas, quando as Pedras
se encontram, quanto mais nós, num lugar! As Pedras se encontra’ aqui,
as pessoas acolá: nunca houve quem soubesse as voltas que o Mundo dá!”

DOM PANTERO
Todos os instrumentos tocaram, em uníssono, um Acorde
triunfal, e os aplausos prorromperam de novo, calorosos.
Mas, vendo que o Espetáculo terminara, eu me aproximei de
Joaquim, pois queria saber de onde ele vinha e em que condições
preparara a Peça que tínhamos visto.
Comecei por indagar se ele era de Taperoá. Tirando o chapéu de
couro da cabeça, ele falou:

JOAQUIM
Não, nós somos d’ As Maravilhas , perto da Serra da Batalha , já
nas terras de Assunção , desde os tempos do finado meu Avô, que Deus
tenha.

DOM PANTERO
Como foi que Vocês vieram pra cá?
JOAQUIM
A pé.

GABRIEL JAÚNA
A pé? Esta distância toda?

JOAQUIM
Ah, meu Patrão, a gente vê bem que o senhor nunca passou
dificuldade na vida! A situação está tão braba, a Seca está tão danada
que a gente resolveu se mudar pra Campina, pra ver se, por lá, arranja
um cabo de Foice ou de Enxada pra se pegar.

DOM PANTERO
E como foi que Vocês começaram a fazer Teatro?
JOAQUIM
Meu Pai já brincava isso desde o tempo do finado meu Avô, que
foi quem ensinou a ele. Meu Pai me ensinou o Teatro e a Música, e agora
eu já estou passando pr’os Filhos. O senhor não viu como é? No Teatro,
eles me ajudam a pedir dinheiro pra São Canuto, Santa Margarida e
Santo Elesbão. Peço, me dão, e os Santos passam pra nós, que estamos
necessitados.
Mas existe outra coisa, em nossa Viagem pela Estrada: minha
Mãe acha que está chegando cada vez mais perto de Caetana.

DOM PANTERO
Caetana? Caetana não é o nome dela?

JOAQUIM
Caetana é a Morte, Patrão! O nome de minha Mãe é Amara. Mas
como, no Teatro, ela brinca como A Morte , hoje é mais conhecida como
Caetana , muito mais do que como Amara .
Pois bem; de um certo tempo pra cá, minha Mãe vem com uma
opinião, um “ propósito ”: não quer ser enterrada no chão liso de jeito
nenhum! Diz ela que vai mais descansada se for num caixão de madeira.
Não precisa ser coisa de luxo não, ela se conforma com qualquer um.
Mas acontece que, mesmo de madeira de segunda, lá na Vila da
Batalha um caixão, hoje em dia, está pela hora da morte! Aí apareceu, lá,
a notícia de que, em Campina, uma casa funerária está fazendo um
benefício muito grande aos Pobres. É uma coisa moderna, um tal de “
consórcio ”: a gente vai pagando aos poucos a prestação, e todo mês se
sorteia alguém para ganhar o caixão. Quem ganha leva o seu pra casa e
guarda. Quando a pessoa morre, a família não tem mais despesa grande
nenhuma, e a casa funerária ainda manda uma coroa de flores, como
num enterro de rico!
DOM PANTERO
Eu estava arrasado por essas espantosas revelações. Meu
coração, confrangido pela morte de Mauro, juntava agora ao sofrimento
individual o remorso que já vinha sentindo desde a véspera, quando
avistara, sob a Ponte, a primeira família de Retirantes.
Aí, deixando Manuel um pouco de lado, resolvi me dirigir a sua
Mãe, Amara (ou Caetana ). Pouco antes eu admirara sua coragem
estoica: ela sorrira para mim, timidamente, quando seu Filho se referira
à eventualidade de sua morte e à esperançosa possibilidade de realizar
seu sonho tão humilde de não ser enterrada no chão duro;
aproximando-me dela, apontei-lhe a imagem de madeira que seus netos
conduziam, indagando se aqueles Santos “ eram, mesmo, São Canuto,
Santo Elesbão e Santa Margarida ”.

AMARA
“São eles, sim! São Canuto era um Rei branco, e Santa Margarida,
filha dele, casou-se com Santo Elesbão, um Prinspe negro. Lá em São José
da Batalha, as Moças se casam com 2, 3 meses de gravidez, e aí, no dia do
casamento, vão e colocam umas grinaldas de flores na cabeça de Santa
Margarida. Acho que fazem isso porque, quando Santa Margarida casou-
se com Santo Elesbão, estava grávida, não sei se dele ou do Pai dela.
Paulino Villar: Ferros do Cariri

“O Povo diz também que São Canuto perseguia muito os Pobres,


mas Santo Elesbão protegia. Dizem que, no tempo deles, Jesus Cristo, um
dia, encontrou o Diabo, numa Estrada. O Diabo disse a Jesus Cristo: ‘Eu
vou encher o Mundo de Ouro, Dinheiro e Poder!’ Jesus Cristo respondeu:
‘Pois eu vou mandar a Seca e a Carestia, e elas vão acabar com o Ouro, o
Poder e o Dinheiro’. E não é o que está acontecendo mesmo, meu senhor?”

DOM PANTERO
Eu estava impressionado com aquelas palavras. Na pequena
Fábula que fora contada por Amara, admirava-me ver aquela Mulher
tão pobre afirmar implicitamente o caráter diabólico do Dinheiro e do
Poder. Pelo modo como falara, via-se que ela os considerava como
criações do Demônio. Tanto era assim que, em seu Conto, o Cristo
procurava enfrentá-los pela Seca e pela Carestia, que, se não os
destruíssem, pelo menos diminuiriam sua eficácia diabólica.
Paulino Villar: Ferros do Cariri

De outra parte, não deixava de ficar preocupado: a Fábula


expressava um estado de espírito que contribuía para manter um
perigoso conformismo para os Povos famintos e miseráveis do Mundo.
Aquela ideia segundo a qual nos Países ricos e nas classes ricas triunfa
o Demônio, e, nas pobres, Deus, oferecia uma justificação capitalista
para a sorte injusta e terrível “ dos Miseráveis ”, dos fracos e Pobres,
sorte justificada pela “ sobrevivência dos mais aptos ”, que dominaria a “
evolução da espécie humana ”. Contrariamente à impostura da “ Social-
democracia ” ou do “ Neoliberalismo Capitalista ”, nosso sonho era
procurar um Socialismo justo e libertário que, ainda aqui, nos
aproximasse do Reino de Deus que o Cristo anunciara: e isso sem
cometer qualquer crime, brutalidade ou violação contra a Liberdade e a
Justiça.
Comentei o fato com Gabriel que, nisso, era menos “ utópico ” do
que eu (como de vez em quando me dizia). E, voltando-se para Caetana,
ele indagou:

GABRIEL JAÚNA
Pelo que entendi, Dona Amara, Santo Elesbão está aí matando o
Sogro. Aconteceu isso, mesmo? Ele matou São Canuto?

AMARA
Matou. Já disse aqui a este Moço: São Canuto perseguia muito os
Pobres. Um dia, Santo Elesbão fez uma Viagem a cavalo pra fora de casa.
Quando ele voltou, os Pobres, cansados de tanto sofrimento, de tanta
tirania, estavam cercando o Palácio, pra matar o Rei. Aí, a cavalo mesmo
como ainda estava, Santo Elesbão tomou a frente do Povo, e entraram
todos no Palácio. Lá, o Santo descobriu que, enquanto estava fora, o Rei
tinha deflorado a Filha, a Princesa Margarida, e estava vivendo amigado
com ela.
Santo Elesbão foi, chamou o Povo e, junto com ele, matou o Rei.
Casou-se com a Princesa e agora estão os três aí na Imagem, porque diz
o Povo que todos 3 são Santos. Santa Margarida e Santo Elesbão, vá lá!
Mas São Canuto? Eu não acredito que um Velho safado como esse tenha
virado Santo de jeito nenhum!

GABRIEL JAÚNA
É, Antero, parece que Você ainda vai ter que esperar muito para
ver “ O reino de Deus ” aqui na Terra, com as pessoas humanas
transformadas, abrindo mão do Dinheiro, do Pecado, do crime, da
injustiça, do Poder, da luxúria e da brutalidade; tudo vai continuar com
ricos e poderosos de um lado, e com Revolucionários obsedados e
cruéis do outro, como aconteceu na França de 1789 e na Rússia de
1917. Ou então com a “ Democracia ” capitalista dos Empresários, essa
Plutocracia ignóbil do lucro e da corrupção.

Paulino Villar: Ferros do Cariri


Mas vamos despedir-nos do pessoal do Teatro porque o Sol está
subindo e Você tem muito o que caminhar até a Ilumiara Jaúna . Está
mesmo decidido a ir a pé e sozinho? Tendo em vista o que aconteceu
com Mauro, estou com medo disso!

DOM PANTERO
Pode ficar tranquilo! Não me matei ao vê-lo com o peito
apunhalado, agora não há mais perigo! Amanhã, antes de voltar para o
Recife, vou à Carnaúba dar-lhe um abraço.

Despedimo-nos do pessoal do Teatro, Gabriel partiu em seu


Carro, e eu segui a pé pela Estrada-Real em direção ao Panati , cujo
Cercado teria que percorrer em meu áspero Caminho para a Ilumiara
Jaúna .

ALBANO CERVONEGRO
Um Cavalo, em seu Carro, me arrebata; 3 Mulheres apontam-me o
Caminho. Uma, ousada, tirara da cabeça, o Véu marcado por um Sol-de-
Espinhos! São elas Emissárias destinadas, ou são Visões, e o Carro está
sozinho?
DOM PANTERO
Eram 7 as Etapas em que se desdobrava a Estrada: do Panati ao
Riacho-do-Fogo ; deste, à Lagoa da Onça , naquele tempo certamente
seca; dela, ao Pau-Branco ; daí ao Abismo ; desse lugar de nome
estranho ao Rajado ; do Rajado ao Serrote do Saco ; e deste até o
Anfiteatro d’ A Ilumiara , que eu buscava.
Então era na Porteira do Panati que a Incursão realmente iria
começar; e eu sentia que, depois do primeiro passo, não poderia mais
voltar, fosse o que fosse aquilo que teria de enfrentar no topo da Serra
onde se encontrava aquele terrível conjunto de Lajedos.
Enquanto seguia pela Estrada-Real em direção ao Panati , ainda
ia encontrando uma ou outra pessoa que caminhava em sentido
contrário ao meu — Mulheres vestidas de farrapos de Chita ou Homens
envolvidos em pano grosseiro e gastos pedaços de Couro. Pareciam
todos meio irreais dentro de manchas de Sol — esboços envelhecidos e
mal-terminados do Ser-humano, como se fossem desbotadas Aquarelas
anotadas de passagem para um Quadro que nunca seria feito. Pareciam
formar um pequeno Rebanho mal-arrumado, cujas Reses — poucas,
dispersas e desgarradas — errassem por ali, tangidas em direção ao
Caos pela ventania seca da Morte.
No Sertão, sempre me assustava a luz ofuscadora e amarela do
Sol terrível. E foi nesse estado de espírito que, descendo a elevação da
Estrada, cheguei à Porteira. Cruzei-a e logo cheguei a um lugar do qual
me recordava, um duro e pedregoso chão de barro a que um dia Gabriel
me levara, dizendo-me:
GABRIEL JAÚNA
“Trouxe Você aqui para que veja, mesmo, como é a terra que é a
nossa; porque o Sertão do Cariri é, mesmo, uma terra braba. Num ano de
Seca, com o Sol queimando tudo, a gente pode notar que aqui o esqueleto
do Mundo, feito de ossos e vértebras de pedra, não é, como em outros
lugares mais amenos, recoberto por uma camada de terra fértil. Seu chão
pedregoso e os ossos desnudados exibem ao Sol as vértebras sinistras do
Espinhaço e os arcos sinistros das Costelas. Acredite: aqui, a cara óssea, a
caveira esfuracada do Mundo, é tão estarrecedora que, ao meio-dia, com
o Sol a pino tremendo na vista, ninguém se espanta quando se topa com a
própria imagem do Cão, tal a semelhança que existe entre a cara
maltratada da Terra e a cara mal tratosa do Diabo.

“Mas parece que é, também, Terra-profética; Terra que, se


acarreta e invoca a presença do Demônio, é, por outro lado, um duro
pedaço de chão escolhido por Deus para seus experimentos enigmáticos,
cujo sentido e cujos objetivos até hoje ninguém foi capaz de decifrar.
“É por isso que, lá, bem escondido dentro de mim, tenho um
enorme orgulho de viver aqui, sem arredar um passo, enfrentando este
pedaço do chão do Mundo: apesar de todas as dificuldades, eu não o
trocaria por nenhum outro, menos hostil mas também menos honroso;
porque aqui é que se encontra o núcleo de sangue e ossos de pedra do
Brasil real.”

DOM PANTERO
Então, persignando-me, murmurei um Pai-Nosso e uma Ave-
Maria e olhei em frente: adiante, estendiam-se 3 léguas de terra árida. O
Sol já queimava os Tabuleiros e tive aguda consciência de que, desde a
morte de Mauro, eu estava vivendo como quem imita a si mesmo,
porque alguma coisa de vital se rompera em mim.
De repente, como se originado dos remotos confins do Matagal,
eu (talvez inconscientemente ainda impressionado pelos uivos de
Caetana e Zafriel) ouvi um Silvo aterrador: era como se uma Cascavel e
aquela Estrada fossem uma coisa só; por ali, havia 40 anos, meu Pai, o
Cavaleiro João Canuto, trilhara sua derradeira caminhada pelo Mundo
(pois ele a empreendera para ir ao encontro da Morte Caetana
exatamente no fatal Anfiteatro cujo nome arde em nosso sangue —
Jaúna ). E eu recordava, em seu especial significado, uns versos de seu
amigo, o grande poeta Augusto dos Anjos; versos nos quais ele via o
Mundo como uma Estrada que a Sorte colocara diante de si:
AUGUSTO SAVEDRA DOS ANJOS
“Estou sozinho. A Estrada se desdobra, como uma imensa e
rutilante Cobra, de epiderme finíssima de areia. E, por essa finíssima
Epiderme, eis-me passeando, como um grande Verme, que, ao Sol, em
plena podridão passeia.”

DOM PANTERO
É verdade que ali o Chão não era de areia e sim de pedra,
espinho e barro duro. De qualquer modo, nos Versos que eu evocava, o
Poeta, assim como Dante em sua Epopeia, era, ao mesmo tempo,
narrador e personagem de seu Poema e assim encarnava todos os
Homens e Mulheres que compõem o nosso pobre Rebanho.
De fato, na Incursão que eu ia começando, era como se aquela
Estrada, aquela Cobra achatada e sinuosa deitada à minha frente, fosse
a enigmática Serpente-da-Terra, sobre cujas escamas o Homem, numa
Viagem, caminhasse seu estranho destino.
Eu avançava tenso e preocupado, porque, sendo filho do
Cavaleiro, tinha consciência da importância que a Ilumiara e sua
Estrada assumiam para nós.
Além disso, espalhada não sei por quem, corria entre os filhos
dele a versão de que, ferido de morte e pouco antes de tombar no chão,
meu Pai tinha levado a mão ao ferimento; e, logo depois, tentando se
amparar no Lajedo, nele imprimira a palma ensanguentada, deixando
ali uma marca que nunca mais se apagaria.
Hoje, velho, sei que isso é impossível: o sangue não dura tanto
assim, impresso numa Pedra; e provavelmente a versão que
conhecíamos surgira porque, naqueles Lajedos, além das insculturas,
existiam algumas palmas de mão em tinta vermelha, colocadas ali
talvez como assinaturas dos integrantes da “ Tribo ancestral
desconhecida ” que pintara e insculpira as Pedras com o objetivo de
formular o Enigma e tentar sua decifração.
O caminho não era fácil, com aquela Vereda aberta por entre
Cactos, Favelas e Juremas “ unha-de-gato ”. Às vezes eu chegava a
atravessar pedaços de Caatinga fora da Estrada e desprovida até de
qualquer trilha de Cabras que me facilitasse a passagem.
A opressão maior, porém, vinha da solidão do Mato seco, ralo e
selvagem, mudo, desabitado naquele Planalto de meia-Serra ou
Tabuleiro escalavrado, erodido por milhares e milhares de anos de Seca
sem piedade. Não havia uma Pessoa ou Casa em todo o território
desolado e cada vez mais alto que eu ia subindo.

Entre o Riacho de Fogo e a Lagoa da Onça parei um pouco e


consultei minhas lembranças: achava que perto do local em que me
encontrava havia um pé de Mulungu, que realmente avistei e para onde
me dirigi, perturbando alguns Pombos selvagens que, no chão,
mariscavam sementes secas de Erva e de Capim.
Espantados com minha chegada, os Pombos levantaram voo e
pousaram sobre o Mulungu, sem folhas mas literalmente coberto de
flores vermelhas que lhe faziam chamejar toda a Copa, mais estranha e
bela ainda por estar no centro da Caatinga intrincada e espinhosa, para
onde os Pombos retomaram voo, perdendo-se de vista.

Andei mais, muito mais, e já no lugar conhecido como Pau


Branco , encontrei outra lembrança antiga — um pedaço de Chão árido,
cheio de Pedras arenosas, algumas estilhaçadas e revelando grandes
placas de Malacacheta, afloradas à superfície.

Comecei também a ouvir o canto dos Pássaros mais


exclusivamente sertanejos, como o Cancão, a Seriema e a Casaca-de-
Couro. Ali, porém, os cantos não venciam, nem sequer diminuíam, a
solidão. Pelo contrário: depois que ressoavam — com os pios, os
ásperos trinados e as gargalhadas de metal ecoando nas Pedras —
aumentavam a soledade e a opressão esmagadora do lugar.
ALBANO CERVONEGRO
Era, talvez, preciso que caíssem no fogo os Frutos mal
apodrecidos. Os Frutos: carne morta, por instantes, pelo Tempo — seu
cheiro e seus olvidos. E a Beleza: a de Deus e a do Sombroso, com seus
velhos Segredos esquecidos.

DOM PANTERO
Consultei meu relógio de algibeira: eram mais de 11 horas, o ar
e o Sol tornavam-se cada vez mais ardentes e pesados.
Quando cheguei ao Abismo , avistei, à margem esquerda do
Caminho, um Lajeiro baixo, sobre o qual, sem se saber como, tinham
brotado pés de Alastrado e uma Imburana, seca e esgalhada como o
resto.

No momento em que passava ali, uma Ticaca cruzou a Vereda,


deixando em torno um cheiro fétido, insuportável — e eu apressei os
passos, protegendo o rosto com o Lenço.
Depois, foi um Gato-do-Mato vermelho que correu por baixo de
um Umbuzeiro sem folhas, tombado há muito tempo, ao que parecia,
por alguma violenta chuva de granizo como as que por ali às vezes
açoitam aquele trecho alto, semidesértico e pedregoso do Mundo. O
Chão, em torno, parecia, por sua vez, ter se alteado mediante algum
Cataclismo de fogo-primordial que derretera as Pedras, depois
endurecidas pela Água.
E, ao passar por ali, ouvi de repente um zumbido que se
aproximava velozmente, como um Ridimunho. Pensei, primeiro, que
fosse apenas uma Ventania mais forte fazendo curvar-se e zoar a
Vegetação seca da Caatinga. Por sorte, pude notar a tempo que era um
enxame de ferozes abelhas africanas: e joguei-me ao Chão de bruços,
protegendo a cabeça com os braços; o enxame, porém, passou sobre
mim sem atacar-me e no silêncio que se fez (e que pareceu maior
depois daquela passagem de Fogo) um Gavião piou.

Durante muito tempo caminhei assim, sob o terrível Sol


sertanejo. Em minha memória, marcada pelo terrível acontecimento
que nos sangrara no Recife, errava a imagem da Corça; da Taça; da
Copa; da Coroada; da Sarça, sob cujo Manto podia haver, ainda, alguma
Esperança.
ALBANO CERVONEGRO
Copa: Coroa, sob o Sol de fogo. Ferido por Espinhos, na passagem,
meu Coração suspira sua Dor, entre os Cardos da árida Pastagem. O
Cavalo castanho uiva no Vento, e late o Cão por trás desta Viagem.

DOM PANTERO
Era, agora, cerca de uma hora da Tarde, e, perturbado por uma
espécie de Febre causada por minha dor e pelo abafo pesado do Sol, eu
caminhava já pelo Rajado , perto do Serrote do Saco , último trecho antes
da Ilumiara — o mais pesado e duro por ser o da elevação maior da
Serra.
O Sol violento exacerbava ainda mais meu ânimo febril a ponto
de transformá-lo quase numa Possessão.
Em pouco tempo, cheguei ao sopé do Serrote onde
verdadeiramente começava a Serra, cada vez mais empinada e
pedregosa. A sede agravara-se e a dor que me acomete o joelho direito
sempre que caminho muito aumentava na medida em que eu o forçava
pelas exigências da escalada.
Mas, de qualquer modo, estava chegando. Começavam a surgir
traços da passagem humana por ali: a Ilumiara era delimitada por uma
velha Cerca de pedra, meio derruída e muito velha. Fora erguida pelas
mesmas pessoas que, no século XVIII, tinham construído o povoado de
São José das Batalhas .

Saltei a Cerca e entrei no perigoso Anfiteatro que procurava.


Sobrepairando sentimentos de mortes antigas e infortúnios recentes,
estava sendo possuído também por uma estranha exaltação: é que,
perto da Cerca, quase sobre ela, havia uma grande sebe de Espinheiro-
ardente, do tipo conhecido como Sarça-de-Moisés . Naquele Sol, parecia
um outro milagre que ela, como o Mulungu, estivesse coberta de bagas
vermelhas:

MOISÉS DA TORAH SAVEDRA


“O Anjo de Deus lhe apareceu numa Chama-de-Fogo, do meio de
uma Sarça. Ele olhou e viu que a Sarça ardia no fogo mas não se
consumia.”

DOM PANTERO
Lembrei-me imediatamente de meu Tio, Mestre e Padrinho,
Antero Schabino: não sendo Poeta e enciumado diante dos Sobrinhos,
tentava safar-se da impotência criadora por meio de suas famosas “
Imitações ”. E, tendo Manuel Bandeira publicado uma tradução do “
Calefrio Aquerôntico ”, nosso Mestre compusera uma certa “ Paráfrase de
Liliencron ”, que agora me vinha à lembrança porque se aproximava do
quase-delírio febril que de mim já inteiramente se apossava:

MANUEL LILIENCRON BANDEIRA SCHABINO


“Já bica o Pica-pau os bagos vermelhos da Sarça, enquanto um
Corne pressago agoura a tarde de Outubro. Não tarda que o Estio,
soprando suas chamas, queime a Pastagem. Então se fará no Mato um
vazio. A Ventania soprará seu hálito crestador entre os troncos desnudos,
trazendo ao lugar onde estou um Carro-de-Fogo, que me arrebatará
como ao Profeta, levando-me para o Outro-Lado — aquele de onde não
há regresso, pois ali o Negror vigia os letais descaminhos da Cega
nefasta.”

DOM PANTERO
De repente avistei, do lado do Cercado, uma Cabra que parecia
uma Corça parda-avermelhada, arisca e selvagem. Corria, desesperada,
para cá e para lá, respondendo, aflita, aos balidos de sua cria, uma
Cabrita muito nova que aparentemente pulara a Cerca em lugar
derruído e não estava acertando a encontrar, de volta, o lugar por onde
passara.
Para não assustá-la, aproximei-me mansamente; peguei-a, e ia já
passá-la para o lado de fora quando a Cabrita, num impulso carinhoso e
ávido, pegou meu indicador com a boca e pôs-se a sugá-lo. Senti o
contato da pequena língua morna e o da nascente serrilha dos dentes,
quase insensível.
Notando, porém, que, fora, a aflição da Cabra aumentara, retirei
o dedo e, passando o braço sobre as pedras da Cerca, depositei
delicadamente a Filha junto da Mãe.
Vendo que recuperara a Cria, a Cabra correu para dentro do
Mato, e a Cabrita, aos saltos, seguiu, lépida, atrás dela.

Dando tempo para que se afastassem, segui por uma Vereda


situada entre Pedras e tufos de Mato seco, chegando então a um Lajedo
enorme, estranhamente encrespado por cortes e sulcos que lhe faziam
a superfície parecer um Mapa em relevo de Serras e Serrotes compridos
e ondulados. Seriam tais sulcos resultantes da Erosão que se
encarniçara, implacável e tenaz, sobre a Pedra, durante milhares de
séculos? Ou teria sido esta, primeiro, uma Pasta-mineral incandescente,
fundida por alguma erupção do Fogo primordial e depois
irregularmente solidificada daquela maneira?
Para mim, era impossível responder. A grande Pedra, não muito
alta, era larga, abaulada, coberta de vários tipos de Cacto — Facheiros,
Alastrados, Macambiras e Coroas-de-Frade —, os quais, aproveitando
as gretas, fendas e depósitos do ralo Paul retido pelos sulcos, ali tinham
medrado sobre o Lajedo.
Entre todos, destacavam-se as altas flechas das Macambiras, que
se erguiam retas, esguias e altivas sobre a Pedra. Se fosse no tempo da
Chuva, seriam vermelhas, amarelas e violeta-esverdeadas. Mas agora,
com a Seca, o Sol as crestara, transformando-as em Flechas castanhas,
enegrecidas aqui e ali. Eram riscos elegantes e retilíneos, mas severos,
como que recortados a buril numa gravura em metal.

Abaixando-me um pouco, procurei enquadrar a visão das Serras,


longe, e a da Paisagem árida mais próxima, entre duas flechas de
Macambira. Tentava, assim, aproximar a beleza real e austera do que via
ao tipo de composição que de ordinário aparecia nas litogravuras ou
nas gravuras em metal de minha cunhada e Mestra, Eliza de Andrade. E
eu não teria, talvez, prestado atenção maior a tudo aquilo se ela não
tivesse reeducado meus olhos durante anos, de acordo com a visão que
lhe era imposta por sua particular visão-de-mundo.
Como se esta recordação tivesse agravado de novo a exaltação
febril que me possuía, uma sede insuportável me assaltou de repente.
As artérias da fronte pulsavam intumescidas, comunicando-me ideias e
visões perturbadas. No ritmo das pulsações, ouvia um murmúrio
apavorante que me comunicava: para recriar, na Arte, a beleza
grandiosa e austera do lugar real em que me encontrava, seriam
indispensáveis, além da Gravura que Eliza me ensinara, as Esculturas
em granito de Arnaldo Barbosa e a Música obsedante de Antonio
Madureira — Música de gume afiado (como a lucidez meio-insana e
demente, que aos poucos me tornava possesso); Música “ de Deserto ”,
composta para Rabecas, Violas e Tambores; Música-de-Câmera, acerada
e modal — ensolarada e cortante como a Paisagem que eu via e a Pedra
sobre a qual meus pés se firmavam.
Dali de cima dava para ver que, a partir do Lajedo em que me
achava, a Vereda se bifurcava, e a Via da esquerda apontava, já, para o
Anfiteatro d’ A Divina Ilumiara .
Desci a Pedra, retomei o Caminho. E, depois de andar uns
quinhentos passos, a Ilumiara me apareceu como realmente era — um
todo austero, de terrível solidão e terríveis ameaças, um Ermo
abafadiço, pedregoso e árido, de chão arenoso e todo cercado por
Lajedos; um lugar cuja ferocidade me chamara a atenção desde o
primeiro dia em que lá fora levado (o que talvez fosse devido ao sangue
do Cavaleiro que por ali correra).

O nome da Ilumiara vinha da Data do Jaúna , Sesmaria na qual,


em 1791, fixara-se Raymundo Francisco das Chagas Schabino de
Savedra, meu Bisavô e primeiro antepassado nosso a deixar Igarassu
para morar no Sertão da Paraíba.
Chegava-se a ela por um caminho que subia a Serra, cada vez
mais pedregosa na medida em que era escalada.
O topo era um chão raso, coberto de Pedras disseminadas; e
seco, muito seco, naquele áspero estio de Outubro. A atmosfera
fulgurava, o Sol pegava fogo. Ensandecida, a Terra era uma Taça-
Ardente, em cuja concavidade, imploradoramente aberta para o Céu,
cada um de nós, acuado, abrasasse sua Paixão particular.
Ao atingir o Tabuleiro que rematava o topo da Serra, tive uma
surpresa: ateado não sei por quem, um Fogaréu isolado ardia à beira do
Caminho; e ao calor de suas chamas avistei, no centro do Anfiteatro,
deitado e ao comprido como um Jaguar à espreita, o temeroso lajedo da
Itaquatiara, que, para nós, era Beemot , A Fera Terrestre — a Esfinge-e-
Ara-de-Pedra a ser decifrada sob pena de Morte.
Para lá me dirigi pelo ressecado leito do Riacho do Elo , que, no
tempo da Chuva, banhava os grupos mais importantes dos lajedos da
Ilumiara. Entrei por um Matagal de cactos e arbustos espinhosos, o que
fiz ao som de estranhos latidos.
Ora, eu sabia que Mauro se matara ao som do ladrar de Cães.
Por isso, naquele momento, era como se, ao comando da Besta Fouva,
os Cães possessos de Lautréamont estivessem a meus calcanhares para
devorar-me:

ISIDORO SAVEDRA DUCASSE


“Os Cães, doidos, uivam contra o silêncio da Serra pedregosa.
Contra os Carcarás cujo voo oblíquo lhes roça o focinho, enquanto
conduzem no bico um Rato ou uma Cobra, que atacaram e mataram.
Contra o Assassino que foge, depois de ter cometido o Crime (como fez
aquele que, pelas costas, matou o Cavaleiro).
“Uivam contra as Serpentes. Contra seus próprios latidos, que a
eles também fazem medo. Contra os Sapos, que são abocanhados e
despedaçados pelo golpe seco de suas mandíbulas ferozes. Contra as
Árvores mirradas da Caatinga, cujas folhas empoeiradas são outros
tantos mistérios, que eles não compreendem, mas que tentam decifrar,
nelas fixando olhos obsedados.”

DOM PANTERO
Vencido o Matagal, cruzei uma espécie de Pórtico bruto,
formado por dois Rochedos verticais e paralelos; como Quaderna me
mostraria depois, apesar de mais afastados um do outro, pareciam uma
versão menor dos da Pedra do Reino.
Por entre eles, via-se o Lajedo da Lua, das Águas e do Cometa .
Mais longe, o das Tábuas da Lei — aquele que era, talvez, o de
significação mais poderosa, porque tanto podia ser a Vulva-primordial
quanto um Livro aberto ao meio: um Livro que (constituído pelas duas
Pedras mais largas unidas pelo Rochedo do centro) ora parecia, como
os Cães, ameaçar o Mundo, ora insinuar a possibilidade de sua
redenção. E eu pensava: se algum dia conseguisse descrever tudo aquilo
num Livro, A Ilumiara , suas páginas seriam enquadradas por Molduras
com a forma baseada n’ As Tábuas da Lei , as pares imitando a Pedra da
esquerda e as ímpares a da direita.

ALBANO CERVONEGRO
A Besta Fouva e seu latido rouco, a sangrar e punir a Vastidão. De
seus ladridos ergue-se, no entanto, o brado, a voz, o choro, a imploração
do meu Rebanho infortunado e insano, queimado pelo arfar da Pulsação.

DOM PANTERO
Mas vamos adiante. Entre a Pedra da Lua e o Lajedo das Tábuas
da Lei achava-se a Fera insculpida, o Altar ou Monólito-Central da
Itaquatiara , que vou detalhar mais, sob forma de Vinhetas, para que
Vocês possam avaliar por que foi sempre imperiosa, em mim, a
necessidade de decifrá-lo.
Na verdade, mais do que uma Esfinge, ou um Leviatã, aquilo era
um Jaguapardo — o Lagarto, Jaguar e Leopardo-castanho, com malhas
estreladas em sua áspera pele, entalhadas, há milhares de anos, por
uma Tribo ancestral desconhecida; eram belas e terríveis marcas,
cortadas em baixo-relevo, a modo de ferimentos e cicatrizes que
transformavam o exterior castanho do Lajedo ali deitado num imóvel
Planetário, num misterioso Planisfério-cosmogônico petrificado.
Vista de longe, a Itaquatiara parecia um torso deitado de Mulher,
com o corpo marcado pelas tatuagens insculpidas em sua grossa pele.
Mais de perto, semelhava um gigantesco Cachalote, um Monstro
marinho e pré-histórico que, aportando ali na época em que o Sertão
era um escuro fundo de Mar, encalhara e, secadas as águas pela
passagem do Tempo, fora petrificado em granito. Milhares de anos
depois, tivera sua áspera crosta alisada e insculpida pela mão dos
homens e mulheres da Tribo, nossos antepassados Cariris (instruídos
pelo Moço-Dono-do-Fogo, pela Moça-Retrato-da-Lua e principalmente
pelo Filho-do-Sol).

Eu me aproximara do Lajedo-Central e agora, “ possesso da


Serpente, asas de Arcanjo, olhos cegos no Sol incendiado ”, achava-me
prostrado, quase prosternado diante dele, com a parte mais alta e
arredondada que era a cabeça do Cachalote à esquerda, e a mais baixa,
a cauda, à direita. Assim era que o Monólito mostrava melhor os
estranhos ferimentos, as belas malhas tatuadas pelos baixos-relevos em
sua superfície, aumentando a sensação de espaço-sem-em-cima-e-sem-
em-baixo , de tempo-sem-antes-e-sem-depois que aos poucos se apossava
de mim, talvez por causa dos terríveis acontecimentos que me tinham
levado do Recife até ali; ou talvez porque o chão de pedra que meus pés
pisavam naquele instante fosse também, como a Itaquatiara, um grande
Lajedo liso, marcado por formas de Astros que o transformavam num
Céu, estrelado mas terrestre, e, por isso, contraposto ao de cima.
Um sinal que logo chamava atenção na Pedra era o da Árvore-
simbólica, embaixo da qual havia uma forma que, em 1791, fora
copiada por nosso Bisavô, Raymundo Jaúna, para ser o ferro dos
Savedras. Perto da Árvore, um Homem apresentava seu Fálus a uma
Mulher, que a ele se oferecia, abrindo as pernas com as mãos.
Os mais importantes, porém, eram os 3 Candelabros, o primeiro
dos quais parecia um Pássaro ou uma Menorá de 9 chamas. O segundo
era como uma Espiga-de-Milho. O terceiro lembrava uma Flor-de-
Mandacaru, insculpida entre os sinais que, na Ilumiara, representavam o
Alfa e o Ômega dos povos Cariris.
De modo semelhante — e assim como o Jaguar, o Cervo negro, o
Gavião e a Corça — os 3 Candelabros podiam estar ali como insígnias
da Verdade, do Bem e da Beleza — do Pai, do Filho e do Espírito Santo.
E havia outros sinais dignos de nota: um Homem — Sacerdote
ou Divindade cariri, talvez — que, com uma bola entre os pés, parecia
exercitar-se num passo de jogo ou dança, conduzindo na mão um Vaso-
de-Oferendas; um Homem coroado por um Cocar e prestes a matar
outro: seriam Caim e Abel? Talvez, assim como o Homem-fálico e a
Mulher-vulvar anteriores podiam ser Adão e Eva (ou Erae e Tidzi , que
eram seus nomes na língua dos Cariris).
Aqueles caracteres de significado obscuro sempre tinham sido
assunto de conversas entre nós — Altino, Auro, Adriel e eu. Mas, tendo-
nos mudado para o Recife, em 1942, eu nunca mais os vira. E agora
verificava que sua ameaça era muito maior do que imaginava. Primeiro,
porque, no granito, as formas eram muito mais fortes do que as
canhestras Estilogravuras que, com ajuda de Eliza de Andrade, mulher
de Adriel, eu conseguira fazer delas, de memória. Em segundo lugar,
porque, tendo feito aquelas representações gráficas, na noite anterior
eu sonhara com as Estilogravuras; e, no sono, a teia de seu Enigma era
quase tão intrincada quanto aquela que agora me enredava.
Tais sonhos me perturbavam agora diante do Lajedo, situado no
centro da Caatinga que circundava a Clareira, um Matagal austero, de
Arbustos contorcidos e Cactos espinhosos. Eu sonhara com aquelas
insculturas terrificantes; com aqueles Lagartos, Sóis, Estrelas, Sexos,
Pássaros e Serpentes — formas gravadas, não se sabia com que rudes
instrumentos primitivos, no céu opaco, duro, castanho, áspero e
chumboso da pele-de-fera da Pedra. Esta repousava sobre aquele chão
liso e estrelado em que meus pés se plantavam; e havia vários Lajedos
perto dela, alguns insculpidos, outros não.

ALBANO CERVONEGRO
Ouço latir o coro da Matilha, no Anfiteatro duro e desigual. E,
efetivando o sonho do meu Sono — temeroso, sacrílego, mortal —,
adentro-me, entre Pedras ferrujosas, nas veredas do seco Matagal.

DOM PANTERO
No todo, a Itaquatiara teria uns 20 metros de comprimento por
2 ou 3 de altura na cabeça da Fera; e os baixos-relevos entalhados em
sua superfície transformavam a Pedra numa só e grande Obra, o Altar-
Central daquele Anfiteatro bruto; numa só e grande Escultura que, por
meio daquelas formas, incorporara a si o próprio torso da Pedra inicial,
e que fora erguida ali como homenagem e oferenda ao Deus-
Desconhecido . E o conjunto das Pedras que a cercavam era como se
fosse o esboço imperfeito e mal-acabado de uma vasta Obra, meio de
Arquitetura, meio de Escultura, que ali se mantivera durante milhares
de anos por se ter fundado no sonho inquieto dos Homens e Mulheres
que a tinham construído (assim como acontecera com O Aleijadinho em
Congonhas e com Euclydes da Cunha em Os Sertões ).
A Ávore Simbólica e o Ferro dos Jaúnas

De fato, o todo acabava por ser um Anfiteatro, e a Itaquatiara


que lhe servia de centro um Altar, semelhante àquelas Aras e Tronos
brutais de pedra que os Povos contemporâneos d’ O Velho Testamento
erguiam no meio dos Desertos; ou perto de Serras pedregosas e
descalvadas como o Gólgota; ou ainda junto do Mar, das Fontes e dos
Rios, como implorações de piedade ou como locais de sacrifícios
oferecidos a suas Divindades implacáveis.
Por isso, tudo ali era aparentado com alguns enormes Carneiros
e Gaviões de pedra do norte da África; com os Leopardos e Candelabros
dos pisos de mosaico de Jerusalém; com os Bichos rupestres do Tasslit
argelino; com os Jaguares e Pirâmides maias; com as Igrejas e
Santuários etíopes, escavados, em forma de Cruz, em blocos de pedra
inteiriços e gigantescos, enfiados de chão adentro e com os tetos apenas
aflorados à superfície; com as Estupas e Estelas indianas; com as
grandes Mulheres de pedra da Estepe russa; e com os enigmáticos
Touros de Guisando , rombos, pétreos e maciços, enfileirados num
capinzal solitário da Meseta espanhola, ninguém sabe por quem e com
quais desígnios; o que, por causa do assassinato do Cavaleiro junto
àquelas Pedras selvagens, sempre me recordaria, depois daí, o pranto
chorado por Garcia Lorca:

FREDERICO GARCIA DE SAVEDRA LORCA


“ Seus olhos não se fecharam ao ver a Morte de perto; porém as
Madres-Terríveis ergueram suas cabeças, e os touros de Guisando, quase-
morte e quase-pedra, mugiram como dez séculos, fartos de pisar a Terra.”

GUILHERME SCHABINO SOLHA DE AGITALANÇA


“Mas seu Verão é eterno e não desmaiará, nem há de a possessão
perder de suas galas. Vagando em sua sombra, o Fim não o verá, pois,
neste Livro eterno, ao Tempo ele se iguala: enquanto o Homem respire e
os olhos possam ver, meu Canto existirá, e o Rei há de viver.”
DOM PANTERO
Entretanto, talvez por causa do Riacho do Elo que por ali
passava banhando as Pedras — e com cujas águas se misturara, de uma
vez para sempre, o sangue do Cavaleiro —, a impressão mais forte
daquele dia eu a experimentei diante da Gruta que, por trás d’ As
Tábuas da Lei , tinha um grande Sol insculpido na entrada, e, em seu
interior, não sei quantas Vulvas que dela faziam um escuro, sagrado,
fascinante e enigmático Gineceu.
Naquela primeira Incursão cheguei a pensar que ali se
encontrava a sétima morada do Castelo. Só depois é que, alertado por
Quaderna, iria saber: a Ilumiara (ainda assim de modo vago) marcava
apenas a primeira etapa da demanda do Sangral.
Mas agora não tinha a menor condição de refletir sobre isso,
porque a sede e aquela espécie de meia-demência me perturbavam.
Olhei em torno e vi que o Riacho do Elo estava completamente
seco, bebido que fora pelo Sol e pela poeira das Ventanias. A areia do
leito faiscava e feria-me os olhos com o brilho de seus Cristais
estilhaçados. Lembrei-me então de que, em algumas das Pedras que o
cercavam, havia umas locas arredondadas que quando Meninos nós
chamávamos de “ Caldeirões ”. Nelas, às vezes, mesmo na Seca, ficava
alguma água empoçada.
Para lá me dirigi, logo descobrindo que não me enganara: mas a
água escassa da Loca que encontrei estagnava-se, infecta, coberta por
um Lodo esverdeado e repugnante. Fervilhava pela presença de
milhares de filhotes de Sapo e de várias formas vivas, todas nojentas:
Girinos, Caçotes, seres amarelo-transparentes e verde-satúrnicos,
indefinidos entre o animal e o vegetal e que eram todos (eu o sentia!)
hostis às águas, às linfas e aos sais do Sangue humano.
Ao ver aquela água turva e esverdeada, pululando de Bichos,
hesitei entre o risco e a repugnância, por um lado, e a sede implacável
que o Sol me ressecara no sangue, por outro. Num dia comum, não
beberia. Mas naquele instante, perturbado como me encontrava,
instintivamente passei a língua nos lábios gretados e com isso a
situação se tornou de repente insuportável. Além do mais, sem que
disso tomasse consciência, eu começava também a ser possuído por um
fascínio perante o Desafio que parecia me encarar a partir do Chão e
das pedras insculpidas da Ilumiara . Tudo o que provinha dali apontava
para algo não propriamente benfazejo, mas sem dúvida sagrado. Na
Tarde árida, na Caatinga cinza-parda, ausentes todas as Entidades
ligadas à Noite lunar e fêmea, era impossível esperar carinho de
qualquer coisa de acolhedor, feminino e gruto-noturno. Na sede, no
calor sufocante, severo, hostil e duro, restava-me uma única certeza: a
de que em tal “ momento de fulminação ” eu só podia contar mesmo
com o Sol masculino e ofuscador do temeroso Antro-de-pedras que me
cercava; e com o sinistro Saturno-aquático que me espreitava ao fundo
daquela Água esverdeada e lodosa.

E aí resolvendo-me pelo caminho do Perigo, disposto a desafiar


o Sombrio saturnal do Mundo, eu, Predicador indigno do Ser, da Luz e
da Beleza, abaixei-me junto à poça. Usando as mãos como remos,
procurei primeiro afastar o Lodo que boiava na superfície. Meu
cuidado, porém, não adiantou grande coisa, porque a ondulação
causada n’água por meus movimentos trouxe à tona outros Seres ainda
mais repugnantes.
Então deixei de lado qualquer hesitação. Deitando-me sobre a
Pedra, e como quem se arrisca a transpor a Porta esverdeada e suja que
conduz ao limiar de um Quase-Inferno, ou como quem (semelhante à
Coorte extraviada das Tropas judaicas) colasse lábios sequiosos na
escura e úmida Fonte da Cancachorra , mergulhei os lábios naquela Água
infeccionada, que, como um Animal, comecei a beber a grandes sorvos,
numa avidez insaciável.
A primeira sensação que se apossou de mim foi de gozo e
êxtase, frustrado mas intenso. Era como se acabasse de escapar à
Morte-pela-sede. Mas não me iludia: conhecendo as reações
tempestuosas do meu ser, tive certeza, na mesma hora, de que recebera
também um Sinal implacável, emitido por alguma coisa que se contraíra
em minhas entranhas. Ao que tudo indicava, a carga maléfica daquela
água fora enorme. Mas, mesmo que não fosse, eu já sabia de antemão o
risco que corria só pelo fato de, com o estômago vazio, ter bebido água
a grandes e rápidos goles, como fizera.
Não contava, porém, com a rapidez fulminante do castigo, com a
crispação de fogo que acendeu mais a Febre, passando-a do Sangue
para o centro-primordial do meu Cérebro-antigo, do meu “ Paleocérebro
”, como o chamava Mauro no Livro em que procurara anotar suas
dolorosas indagações e apóstrofes sobre “ o segredo da Vida ”. Uma
saudade terrível daquele que se matara pungiu-me o coração. Uma dor
lancinante me apertou a testa e a região situada logo acima da nuca.
Para onde quer que voltasse os olhos, pulsavam-me, inchadas, as
artérias da Fronte, enchendo meu campo-de-visão de manchas
informes, fulvo-cinzentas e cambiantes. Eram manchas de Sol e
chumbo-derretido, como se o próprio Mundo se tivesse transformado,
inteiro, num Jaguar-malhado queimoso, aqui e ali panterizado por uma
tempestade cegadora de fagulhas e malhas de Sol-relampeado. Vozes
evocadas não sei donde, mas que — eu tinha certeza! — me tinham
sido reveladas por um Negro, pulsavam juntamente com a Dor e o
Desafio, a drapejar como Estandartes meio soltos, na ventania seca de
Mastros embandeirados. Um Jaguar-fulvo — Divindade de um culto
extravioso —, pisando e machucando líquenes, escalava a Rocha
soberana que ali estava. Lá em cima, outro Jaguar, o Sol sangrento,
desabrochava como um Cardo-em-fogo. E o Negro cantava:

JOÃO SAVEDRA DA CRUZ E SOUZA


“Luzia o sol do Sol, e, ao sol do Mundo, Deus acende a Coroa, a
sacra Tocha. Fulvo Jaguar do estranho Pensamento, galga da Era a
soberana Rocha. No espaço, outro Jaguar, o Sol-sangrento, já como um
Cardo-em-fogo, desabrocha.”

DOM PANTERO
A meu sangue e a meus Tímpanos, transformados de repente
em Martelos e Bigornas de couro e de metal, chegavam palavras
confusas cujo significado eu não sabia ou esquecera: “ O Bode e o
Carneiro vão se fundir ao brotarem da Pedra — o Carneiro, Massa , para
o Sacrifício, o Bode, Meriba , para o Holocausto. ” Em meus ouvidos
ressoavam 3 Sílabas, ou “ Pés ”, também de sentido enigmático mas que
se uniam a essas palavras, martelando todas, em uníssono, “ es scha dai,
es a za zel ”; ou então (era impossível discernir com precisão) seria “ ée
sha dai, ée aza zel ”; e podia ser, ainda, “ é Shaddai e é Azazel ”. E como,
nas Pedras pelas quais acabara de passar, o mais terrível dos Sinais era
o Candelabro (ou Cacto) de 9 Chamas, tudo aquilo começou a evocar o
sonho que Mauro tivera na véspera de sua morte; Sonho que ele me
contara momentos antes dela e que já indicava: a trágica Fábula
Recifense fadada a nós, Schabinos, Savedras e Jaúnas, estava por
assumir um significado mais terrificante ainda naquele Matagal,
naquele Pasto-Incendiado de arbustos contorcidos e cactos espinhosos
que cercava e cobria a Ilumiara.

HERÁCLITO PARMÊNIDES SCHABINO


“Banhando, agora, a senda dos Mortais, revela-se o pulsar do Ser-
alado. Emite um som de Flauta perigosa o eixo incandescido do seu Carro.
E late o Ser, o fogo do Imutável, pairando sobre a Ruína o Sol-sagrado.”

DOM PANTERO
Nesse momento, apesar do estado meio insano em que me
encontrava, notei um pormenor pouco frequente, mas não inédito para
mim: anunciando, já, a chegada daquilo que o Povo chama “ as
trevoadas de Outubro ”, no Céu azul-fervente duas Nuvens-de-
tempestade — chumbosas, carregadas de eletricidade e orladas de fogo
pelo Sol — caminhavam, de modo lento e pesado, uma para a outra.

AUGUSTO SAVEDRA DOS ANJOS


“A passagem dos Séculos me assombra. Para onde irá, correndo, a
minha Sombra nesse Cavalo-de-eletricidade? Caminho, e a mim pergunto,
na vertigem: — Quem sou? Para onde vou? Qual minha origem? E parece-
me um Sonho a realidade.”
DOM PANTERO
No leito seco do Riacho, o chão era arenoso; mas, dele para fora,
era de um Barro castanho sobre o qual algumas Cabras, da mesma cor
parda da que eu encontrara, retouçavam alguns ralos, secos e esparsos
tufos de Capim-panasco , amarelecidos e queimados pelo Sol; ou então
folhas, também secas, de Jurema e Mororó . E, com a dor da cabeça
diminuindo, mas sempre assaltado por aquela estranha sensação de
ameaça, eu me quedei por ali um momento, olhando o Rebanho, cujas
Fêmeas mais novas lembravam Adeodata (porque, apesar de
emagrecidas pela Seca e maltratadas pela Vida, eram as mais bonitas
que já vira por ali).
Um Bode — um “Cabro”, como se dizia quando eu era Menino —
acompanhava as Fêmeas. Elas, sóbrias, intratáveis, tinham a pelagem da
cor do chão que meus pés agora pisavam; as orelhas eram curtas e os
chifres parecidos com os das Cabras selvagens; o dorso e os “ canos ”
eram escuros. Mas o Bode era esbranquiçado, baio, e lembrava mais um
Veado ou Carneiro deslanado (semelhança acentuada pelos Chifres, 4 e
não 2, como acontece com os ovinos-machos da Raça Cocorobó ).
Além disso, havia outra diferença entre as Cabras e ele. Elas
pastavam de modo inquieto mas atento e tenaz, como se apenas em
comer tivessem interesse. Quanto ao Bode, mal retouçava. Parecia
obsedado pelas Cabras, entre as quais de vez em quando escolhia uma
para importunar, seguindo-a com ar meio insano e balindo um estranho
balido. Nesses momentos, sua cabeça e seu pescoço distendiam-se em
linha reta para frente, e uma língua curta saía-lhe dos beiços; com ela,
suplicante, procurava lamber a vulva da Fêmea. Mas as Cabras, uma a
uma, quando o sentiam por trás, encolhiam-se e fugiam, manifestando-
se descontentes com suas tentativas de aproximação.
Assim permaneceram durante certo tempo. Às vezes era o
Macho que parava repentinamente de comer e procurava se aproximar
de uma Cabra, escolhida ao acaso no meio do Rebanho. Outras vezes era
uma Fêmea que, pastando, passava, descuidosa, perto dele. Então o
Bode deixava imediatamente de tosar a relva seca e seguia a Fêmea,
sempre com aquele ar súplice e procurando tocar, com a língua, a vulva
da Cabra. Mas ela, baixando a cauda curta e dura, protegia-se contra o
contato, que não desejava, e ele passava à próxima, sempre obstinado,
sempre recusado.
Depois de assim solicitar em vão a maior parte das Cabras, uma
delas, afinal, pareceu mostrar-se menos hostil, recebendo com
desagrado menor a tentativa do Macho. Ele deixou escapar um balido
mais forte — um som gemente e curto, mas ainda assim muito diferente
do sopro ardente e bruto que o Macho-Cabro emite ao farejar na Vulva o
cheiro agreste e selvagem da Fêmea no cio. Ao mesmo tempo em que
balia, encostou o focinho à espádua da Fêmea, e uma de suas patas
dianteiras esboçou um gesto de monta, projetando-se todo para frente,
numa imploração. Mas a Cabra encolheu o corpo e fugiu. Desta vez,
porém, não para longe, a fim de não desanimar completamente o Macho
que, pelo faro, já se certificara de que ela estava no cio ou perto dele, e
não mais a deixaria enquanto não consumasse o desejo, agora mais
violentamente exacerbado pelo cheiro de Fêmea-viçando que farejara.
Deixando de lado o leito arenoso do Riacho, subi a margem e
encostei-me a uma Pedra para observá-los.
Enquanto isso, a poucos passos do Macho, a Cabra parecia ter
voltado à indiferença anterior. Pelo faro, tentava encontrar no chão
alguma folha ou talo que lhe fosse menos desagradável ao paladar; e
aparentava somente nisso ter de novo fixado seu interesse.
O Macho baio, porém, se antes já pastava pouco, agora deixara a
relva seca inteiramente de lado. Colocou-se quase a par da Cabra de
modo a que os flancos dos dois não ficassem muito afastados. Dessa
maneira, a posição escolhida permitia-lhe de vez em quando esfregar o
focinho na espádua da Fêmea e lamber delicadamente seu pescoço com
uma língua muito diferente da curta que antes lhe aparecia entre os
beiços: tremulante e rápida, saía, longa, da boca entreaberta, tocava a
pele da Cabra e logo se recolhia de volta, como a de uma Serpente.
O toque parecia agradar à Fêmea. Então, ela parava de pastar ou
de mover-se e chegava a dar mostras de se tornar receptiva durante um
momento. Curto, porém: porque, quando o Macho, com a pata dianteira,
de novo esboçava aquele mesmo gesto de monta, ela a ele se negava.
Encolhia-se e afastava-se, cobrindo a Vulva com a cauda, que depois
erguia e agitava no ar, num sinal confirmador do Cio profundo que
agora começava realmente a se apoderar dela, tornando-a possessa do
Jaguar-alado.
Instintivamente, e também atendendo a uma espécie de
chamado emitido por aquelas Pedras selvagens, olhei para a Itaquatiara
e notei que de novo eu estava me tornando “ possesso da Serpente, asas
de Arcanjo, olhos cegos no Pasto incendiado ”. Figuras antigas, imagens
encantatórias, começaram a cercar-me, ofuscando-me, turvando-me
cada vez mais o sangue e a cabeça à visão daquelas Pedras pesadas,
imóveis e solitárias naquele duro e seco pedaço do Mundo. Do jeito que
me surgiam, aquelas imagens (que ainda mais me perturbavam) só
poderiam ter uma origem: brotavam da selvagem Fronteira trevosa
para a qual de repente eu começava a ser arremessado, num arrebato e
contra minha vontade, expondo-me, sem defesa, fora, ao sol da Morte; e,
dentro, no mais profundo de mim mesmo, àquela Caatinga e Castela-
interior, estrelada também de sóis chumbosos e revelações cego-
coriscas, encravadas no chão do Céu negroso e pardo.
Até ali, eu tivera forças para me recusar àquelas regiões onde
quem quer que entrasse ficava à deriva: tinha, agora, a obscura
convicção de que, ao entrar, ficaria sem escolha e poder de decisão
enquanto durasse aquele estranho Mandato, isto é, na condição de elo,
intérprete, viandante e mergulhador de Abismos — eu, transformado,
sem querer, no guardião de todos os segredos.
Sim, porque apesar de somente suspeitá-lo até então, o que
estava começando ali era o início da minha mortal incursão pelo Reino
Perigoso do Ladrido. Na verdade, tudo se iniciara com a morte de
Mauro. E, crispando-se, a teia letal acabara por enredar-me nas malhas
em que vinha me debatendo.
Além disso (e ainda sem que, no momento, eu o discernisse com
clareza), a Incursão de novo ali se realizava em dois planos: um, de
saída para a Caatinga devastada do Mundo; o outro, numa entrada cada
vez mais ameaçadora, pela Castela-interior de minha própria Alma. E as
duas, Caatinga e Castela, dali até o desfecho, iriam se fundir numa
Trama intrincada, surgida pelo impulso de tudo o que me acontecia a
partir do momento em que me fora imposto aquele terrível selo de
guardião do Segredo.
Nas pedras que por perto se disseminavam, havia Pinturas
diversas, em preto, branco, vermelho e amarelo, feitas por aquela
mesma “ Tribo ancestral desconhecida ” que fizera as Insculturas.
Algumas tinham sido anotadas, no fim do século XVI, por Alexandre
Schabino, primeiro antepassado nosso a ser perseguido pela Inquisição.
Outras, também arcaicas — mas que apontavam, antes, para o enigma
da Fonte-do-Cavalo —, tinham sido anotadas por João Sotero, que as
copiara, também, na Serra do Xiquexique e na Cachoeira do Tanque ,
transpondo-as depois para o Livro Negro do Cotidiano — o Diário cuja
publicação seria a causa principal da morte do Prefeito, Doutor Jayme
Villoa. Todas aquelas imagens, renascidas, mortais, ressurretas,
provinham, pois, daquele Passado ameaçador e fatal: passado cuja
carniça fermentava no sangrento mosto do Presente, assim como
anunciava o vinho e o sangue-tinto do Futuro. Passado que, até ali,
somente me mostrava o salto e as chamas do Veado-Negro ou do
Cavalo-Castanho — o que, antes, me permitia sonhá-los no mais
profundo daquela Gruta-parda; no subterrâneo mais escuro da negra-
fulva Leoparda fêmea; na noite-enigma de minh’alma antera.

Entretanto, alheios a mim e a minhas visões, a Cabra e o


estranho Bode-Baio continuavam suas negaças. De vez em quando ela
parava, para que o Macho se aproximasse. Mas, quando ele vinha, ela
abalava, recusando novamente a monta. Saltava de perto dele, galopava
um pouco, diminuía a velocidade da carreira, trotava. Detinha-se,
caminhava um pouco mais. Pastava. Erguia a cabeça para mastigar o
talo que cortara ou arrancara com os dentes. E imobilizava-se de novo,
olhando para longe com ar meditativo. O Bode seguia atrás dela, ora
lambendo-lhe a espádua, ora metendo-lhe os beiços na Vulva, que
roçava, procurando excitar a Fêmea até um ponto em que ela, desejosa,
não resistisse mais e afinal lhe permitisse a posse.

Houve um momento em que a Cabra parou de pastar, curvou-se


e urinou. O Macho, rápido, caminhou para trás dela e enfiou o focinho
nos últimos jactos de urina, metendo-lhe ao mesmo tempo a língua na
Vulva. Depois, ergueu vitoriosamente a cabeça no ar e arregaçou os
beiços, de modo a encostar o superior às ventas para sentir de maneira
mais profunda o cheiro da Fêmea, “ figuração terrestre do sagrado
mosto da Romã — a granada de Deus ” (como escrevia meu Tio,
Padrinho e Mestre, Antero Schabino, sob o pseudônimo de Ademar
Sallinas ). A Cabra, no entanto, ainda uma vez se encolheu e se afastou.
Mas agora não cobrira a Vulva com a cauda, que se limitou a agitar no
ar, ansiosa, num sinal de que estava por ficar totalmente excitada.
Notando isso, o Baio começou a balir, mas com um gemido mais
demorado, o que revelava ter seu desejo também se intensificado mais.
Tentou então novamente montar a Fêmea. E seu Fálus, desdobrado,
tenso, ereto, já saía da bainha quando a Cabra, com malícia e precisão,
aguardou que ele, por trás dela, se colocasse a seu alcance. E então, com
os dois cascos traseiros de uma vez, desferiu-lhe no peito um coice, não
muito forte mas suficiente para que o Fálus, perdendo a ereção, se
recolhesse novamente à bainha.
Logo, porém, o Macho novamente se animou. Mais uma vez
aproximou-se da Cabra, desta vez com maior cautela. Mordeu-lhe
levemente a nuca e depois, recuando, encostou o focinho à sua Vulva,
para farejá-la. Mordiscou-a com seus beiços, e outra ereção se verificou.
Mas somente para ser de novo frustrada pela Fêmea, com um segundo
coice tão eficiente quanto o primeiro.
De qualquer modo, entre os dois, agora, já se estabelecera o
Ritmo obscuro, a doida Cadência, o sono Cego, o toque do Sonho: o
bater do Badalo no sino do Sangue já pulsava com violência, num
compasso-dual obsessivo onde os elos-vitais ressoavam, contraditórios
e complementares, sol-escuro e sombra-ardente, “ mors et Sexus, sexus
et Vita, vita et Mors, mors et Vita ”.

HERÁCLITO SCHABINO
“O Ser-que-pulsa é quem impele à Vida, e abarca a Noite o Sol-
primordial. O Cavalo castanho, de asas negras, me leva para a Madre-
Oracular. E as Aurigas-dançantes me seduzem, cantando contra a Morte,
o Feio e o Mal.”

DOM PANTERO
No Saco da Onça , na Acauhan e na Carnaúba , eu já vira cenas
parecidas com aquela. Mas no estado de espírito em que me encontrava
e com a dor que ainda martelava minhas têmporas, ela assumia o
significado particular de uma afirmação da Vida diante da solidão e do
sofrimento que eu vivia naquele instante.
Além disso, nos casos comuns, sabia eu que a Fêmea demorava a
se entregar porque seu instinto assim determinava: se o fizesse logo, o
orgasmo rápido do Macho chegaria antes que ela atingisse o seu.
Protelando o jogo, quando afinal permitisse a penetração, já estaria
somente à distância de uma centelha do êxtase e relâmpago-sagrado,
preparada que fora pelas tentativas contínuas e tenazes do Macho: aí,
quase que só o simples toque do Fálus ereto, firme e macio, faria com
que, da Vulva às têmporas, das têmporas ao sangue, do sangue ao
estremeço do Paleocérebro (e, deste, comunicado ao resto,
principalmente à espinha-dorsal, já transformada então em fagulhante
feixe de nervos incendiados), se desencadeasse nela um orgasmo tão
generalizado quanto o terremoto que, com chamas e tremor de terra,
abalaria o Macho, crispado em suas entranhas.
Por isso era que a Cabra, sentindo que ainda não estava pronta,
dera aqueles coices no Baio: mesmo com o Cio intensificado como já
estava, ela se deixaria talvez montar, mas não penetrar. Com as negaças,
iria ficando paulatinamente mais excitada, não só por causa do peso do
Macho em cima dela, mas também com os apertos que ele, depois de
montá-la, daria em seus flancos com as patas dianteiras. Isto sem se
falar nos rápidos e trêmulos contatos que a Vulva iria recebendo do
Fálus, pois em tal momento ele tatearia suas bordas, umedecendo-a
para o consentimento final.
Em dado momento, o Bode-Baio, mais excitado, pareceu sentir
um impulso poderoso contrair seus flancos, projetando-lhe os quadris
para a frente. Mas em vez de, com isto, tentar, de vez, a monta da Fêmea
por trás, colocou-se na posição contrária e, num gesto de extrema
confusão dos instintos, mergulhou o focinho para baixo, em direção aos
peitos da Cabra. Era como se fosse, não um Macho adulto, ferozmente
desejoso de Sexo, mas sim um Cabrito ainda novo, querendo saciar-se
de um leite que nem sequer existia para justificar seu movimento.
Chegou a babar os peitos, ao sugá-los por um curto instante. Mas a
Cabra, nervosa, recusou-se logo a aceitar aquela estranha e inesperada
forma de contato, e ele voltou a persegui-la como antes, lambendo-lhe a
Vulva e montando-a de vez em quando, mas sempre sem conseguir a
posse que buscava.
Noutra ocasião, houve uma espécie de troca de papéis: como se
percebesse da parte do Baio um arrefecimento que não compreendia —
pois já houvera um momento em que ela desejara entregar-se e o
Macho não soubera aproveitá-lo —, a Cabra, tomando a iniciativa ao ver
que o Fálus ereto do Baio estava de fora, aproximou dele o focinho e
lambeu-o delicadamente, arregaçando em seguida os beiços e
cheirando-os, como fazem os Machos.
Foi somente nesse instante que avistei aquele que
provavelmente era o dono do Rebanho: não o enxergara antes porque
ele permanecera oculto por uma Pedra, atrás da qual se escondera,
talvez por estar com suas Cabras em terra alheia.
Entretanto não pareceu preocupado demais com isso, pelo
menos a partir dali. Do lugar em que se encontrava, também vinha
observando o que se passava; e, aparecendo, achou que tudo chegara ao
ponto conveniente que aguardava.
Caminhou, então, para um pé seco de Catingueira onde, antes da
minha chegada, deixara amarrado um grande Bode, da mesma Raça
parda das Cabras mas de pelagem um pouco mais escura. Tinha aspecto
selvagem e enormes chifres em forma de forquilha. O Homem soltou-o
da corda e o grande Macho, num salto brusco, precipitou-se para o
Rebanho.
A cena que se seguiu foi rápida. O Bode-Pardo, num trote
resoluto, encaminhou-se para o lugar onde estava a Cabra, que, naquele
instante, o Baio, sempre naquele ritmo, inepto apesar de obsessivo,
mais uma vez tentava montar. Via-se, claramente, que ele não era
adversário para o Pardo, que se aproximava, e que, baixando a cabeça
armada pelos grandes Chifres, aumentou o trote, culminando o ataque
com uma marrada de tal modo violenta que o Baio e a Cabra rolaram
pelo chão, levantando uma nuvem de poeira.
Fosse pelo conhecimento de derrotas anteriores, fosse pela
violência da marrada que o derrubara, o Baio pareceu admitir
imediatamente a superioridade do outro. Ergueu-se, assustado, e
afastou-se, com um ar esquerdo e abatido. Havia uma certa falta de
dignidade na maneira passiva com que ele aceitava a derrota. Ainda
mais porque, deixando o campo ao vencedor, passou a se ocupar apenas
com o pasto, que antes não merecia qualquer atenção sua. Procurava
aparentar que não dava nenhuma importância à derrota que sofrera.
Mas não conseguia fingir total indiferença. De vez em quando, com a
cabeça baixa, olhava de viés, com expressão covarde e maldosa, na
direção do local de onde acabara de ser expulso e no qual agora o Pardo
reinava soberano, senhor do Pasto e da Fêmea que estivera a ponto de
ser do outro.
Na Cabra, porém, a brutalidade do Macho teve efeito diferente.
Talvez por ter sido solicitada tão demoradamente pelo Baio, quando ela,
empoeirada e assustada, se ergueu da queda, estava submissa e
desejosa, com todas as resistências quebradas. Não procurou mais
pastar nem fugir. Imobilizou-se e entrecerrou os olhos, parecendo não
mais repelir, e sim desejar, aquilo que até então vinha sendo buscado,
sem êxito, pelo Baio.
O Pardo, alerta, pressentiu o fato. Colocou-se por trás dela e,
achando logo o caminho que devia seguir após a marrada, lambeu-lhe
também a Vulva. Mas não suavemente, como fazia o Baio: a língua, tesa,
rápida, escura, saiu-lhe da boca, que, aberta e juntamente com as
narinas resfolegantes, deixava escapar um sopro ardente, embriagador
e bruto.
De repente, deixou de lamber; e, com a cabeça meio abaixada,
apoiou com força a testa na parte traseira das coxas da Fêmea,
empurrando-a para forçá-la a inclinar-se. E a Cabra, obediente,
mantendo imóveis as quatro patas fincadas no chão, adiantou apenas o
tronco, para alcançar a posição que o Macho queria e indicara. Assim
permaneceu ela um instante, imóvel, inclinada, expectante.
Dependendo agora de um fio de prumo apenas deslocado, poderia,
ainda uma vez, fugir ou aceitar a posse.

Mas, pelo gesto de vassalagem que fizera ao inclinar-se, notava-


se que era ela quem, agora, desejava ser invadida e assolada. Havia um
violento contraste entre suas atitudes anteriores, entre sua postura
elegante e selvagem de Gazela altiva e a passividade meio bestial a que
o Macho a relegara, destruindo sua graciosidade, como se o desejo fosse
uma outra forma de feiura.

PARMÊNIDES SAVEDRA
“A falsa Estrada e as águas de onde somos — as Águas sobre as
quais o Ser nos guarda. A Pedra, a Cabra, o Bode e a Erva nua, o Macho e
a Fêmea, estrosa e consagrada. O Fálus tenso, a desejar, fremente, e a
Vulva a se abrasar, incendiada.”
DOM PANTERO
Era claro, agora, que a Fêmea definitivamente se entregava.
Diante disso, o desejo cresceu ainda mais intensamente no sangue e nos
flancos do Bode-Pardo. Desta vez, porém, não se manifestou mais sob
forma de marrada. Foi um ímpeto feroz que, nascido nos recessos do
sangue, pareceu comunicar-se a todo o seu corpo, que também pulsava
e estremecia. No impulso, ele ergueu as patas dianteiras e trepou
brutalmente sobre a Fêmea, que, em contraste com ele, parecia agora
uma Corça indefesa e frágil.
O Macho fez-lhe cair sobre o dorso a parte dianteira de seu
próprio corpo. As pernas da frente, que se tinham erguido, abertas e
recurvadas no ar para o assalto da monta, agora, numa poderosa
demonstração de força, cravavam-se nos dois flancos da Cabra,
apertando-lhe o ventre, os quadris, e imobilizando-lhe as ancas, de
maneira a que ela não mais pudesse escapar, ainda que, eventualmente,
por uma última vez o desejasse. Ao mesmo tempo, as fortes pernas
traseiras, com tendões ressaltados, enfincavam-se ainda mais no chão.
Estremeciam-lhe por todo o corpo os músculos contraídos, trêmulos de
tensão, incitamento e desejo. O Fálus apareceu, vermelho e pulsante, e
começou a tatear as proximidades sensíveis da Vulva, da qual
avidamente procurava a fenda de entrada.
Havia, também aqui, um enorme contraste entre a ferocidade do
Macho e a delicadeza com que seu Fálus macio, tenso e retesado
buscava contato com o sexo da Fêmea. Ela, excitada ao máximo pelo
peso do Macho em seu dorso, pelo rude amplexo que aprisionava seus
flancos e, ainda mais, pelos toques do Fálus nas bordas da Vulva, estava
já a ponto de ser atingida pelo estremeço do raio e do mosto-sagrado.
Mas começou a pressentir que a demora se prolongava: o Macho
estava em dificuldade para consumar a posse final, que agora ambos
desejavam. Então, distendeu-se mais ainda, inclinando o corpo bem
para a frente, a fim de que a Vulva, oferecendo-se em rampa, se
entreabrisse e entregasse de modo ainda mais flagrante. Com isso, no
mesmo instante, o Fálus ereto do Bode-Pardo achou a Fenda que
buscava e deslizou, mergulhando fundo, de Vulva umedecida adentro.
A Cabra recebeu, prazerosa, a penetração. Alongou o pescoço e,
espichando a cabeça para baixo, permaneceu um instante de olhos
entrecerrados, numa expressão vencida, terna, sonhadora e machucada.
A cerviz mantinha-se baixa e recebia assim, sobre si, o focinho barbado
e grosseiro do Macho.
Nele, havia também uma tensão prazerosa, mas diferente
daquela que se mostrava na Fêmea: era dura e brutal, meio estúpida e
voraz. E, por isso, a catadura embriagada, a face agressiva do Sexo
pareceu de repente inchar até o Mato que cercava os dois.
Os movimentos convulsos do Macho começaram a ser
sublinhados por uma espécie de gemer soturno, contínuo e selvagem: o
espasmo aproximava-se. Sons estranhos e mal-articulados — talvez por
serem incapazes de expressar o que significavam — começaram a
brotar das duas gargantas, os dela mais gementes, os dele mais roucos e
rosnados, mas crescendo os de ambos em tensão e violência.
E o orgasmo chegou, num êxtase brusco, exaltador e cego,
lançando os dois como que para o mais profundo de si mesmos, numa
espécie de ascensão que era, ao mesmo tempo, uma queda-primordial e
que os fazia adentrarem-se, por meio de centelhas fulgurantes, no
próprio centro onde, também entre relâmpagos, se assenta Deus, em
seu Trono incendiado.
Para o Macho, era como se tivesse recebido a bênção de
alcançar, no alto, a posse de uma Corça delicada e graciosa, colocada
muito além de sua grosseria e falta de méritos:

CANTIGA DE MOTE E GLOSA


DON JUAN DE YEPES SCHABINO
“Por um amoroso lance, e não de esperança falto, subi tão alto,
tão alto, que tive da Corça alcance.

“Para que eu alcance desse àquele divino Veio, voar tanto me


conveio, que de vista me perdesse. Ela permitiu que eu desse ao gozo de
Amor avance. E contudo, nesse transe, no meu amor quedei falto. Mas o
Amor foi tão alto, que tive da Corça alcance.
“Quanto mais alto subia, se alumbrava a minha vista. Na
poderosa conquista, o desejo que me ardia se saciou de relance. Mas, por
ser de Amor o lance, dei um cego e escuro salto, e fui tão alto, tão alto, que
tive da Corça alcance.

“Quanto mais perto chegava daquele Longe subido, tanto mais


baixo, e rendido, e perturbado me achava. Aqui, como que cantava as
estrofes do Romance. Disse: — ‘Não há quem o alcance!’ E abati-me, tanto
e falto, que fui bem alto, bem alto, e tive da Corça alcance.”

DOM PANTERO
Aquilo atingiu também, no centro-pulsador do ser da Fêmea,
algo de profundamente sensível e delicado, de modo que ela se contraiu
toda, num estremeço de prazer fagulhante, quase insuportável: um
prazer que, como o do Macho, tinha alguma coisa de mortal, mas
também de relance nos Labirintos insones e rasgados por relâmpagos
do Deus-Desconhecido; sendo que, ao invés da Corça, era pelo Anjo-
Abrasador que ela era tocada:
TERESA SAVEDRA DE CEPEDA
“O Anjo, formoso e destro, segurava um Dardo direito e rijo, que
parecia me meter algumas vezes pelo Coração, de um modo que me
chegava até as entranhas. Ao retirá-lo, parecia-me que as levava consigo
e me deixava toda abrasada em grande amor de Deus. Era tão grande a
dor, que me fazia gemer queixumes; e era tão excessiva a suavidade que
me trazia aquela grandíssima dor que é impossível desejar que nos
abandone, pois já não se contenta a alma com menos que Deus. É dor
espiritual, ainda que o corpo não deixe, e muito, de nela participar. E é
um requebro tão suave aquele que se passa entre a alma e Deus que
suplico à sua bondade o dê a conhecer e saborear a quem pensar que
minto:

CANTIGA DE MOTE E GLOSA


TERESA SAVEDRA DE CEPEDA
“Pelas secretas entranhas, senti golpe repentino: o Brasão era
divino, pois obrou grandes façanhas.

“Com tal golpe fui ferida, sendo a ferida mortal, que, sendo a dor
sem igual, é morte que causa vida. Se mata, como dá vida? Se dá vida,
como morre? Se fere, como socorre, e se vê com ela unida? Pois tem tão
divinas manhas que, num tão acerbo transe, sai triunfante do lance,
obrando grandes façanhas.”
DOM PANTERO
Entretanto, diferentemente do que sucede no comum, a Cabra,
com o orgasmo, não saltou logo de sob o Macho, para se libertar. Os
dois, ainda um momento, se demoraram parados, ela contraída e
curvada, ele fincado profundamente na Fêmea, ambos estremecendo e
fruindo-se um ao outro.
Somente um pouco depois foi que ela se contraiu mais
bruscamente, para logo se distender num salto que a ergueu no ar —
um movimento gracioso e ágil de Gazela novamente altiva, que a
pousou de volta ao chão, a uns dois ou três passos do Macho. Mas seu
prazer fora tão intenso que ela ainda se crispou uma vez, num resto de
orgasmo que, desta vez, encolhendo-se, ela fruiu sozinha.
Só então recuperou inteiramente sua normalidade, como se,
afinal, se tivesse libertado da condição de possessa a que fora
submetida pelo Cio e pelo Macho; e como se o espasmo epilético e
sagrado a livrasse também do jugo do Anjo-Abrasador que dela se
apossara.
Por sua vez, o Bode-Pardo, erguendo um pouco uma das pernas
traseiras, curvou a cabeça para trás e mergulhou o focinho no próprio
ventre, mordiscando com os beiços a ponta do Fálus, que ainda
despedia finos esguichos. A espuma branca, peneirada pelo ar, diluía-se
numa espécie de poeira-molhada que o Sol iluminava — danaica chuva-
de-ouro, sagrada e fecundante.
Também, na Cabra, a Vulva ainda se contraía, abrindo e
fechando os lábios nos derradeiros movimentos de um prazer, menor
agora, mas, em compensação, com algo de apaziguado e ressurreto. Era
como se ela, de modo surpreendente até para si mesma, regressasse a
salvo de uma arriscada incursão pelos Matagais temerosos do Sagrado,
pelos êxtases insanos e ressuscitadores do Amor e da Morte, ocultos,
pelo comum, no segredo da Vida.

O Homem aproximou-se lentamente de mim. Talvez por astúcia,


não deu qualquer sinal de que sabia quem eu era e notava o mal que
naquele momento me acometia. Limitou-se a apresentar-se:
— Muito prazer em conhecê-lo. Meu nome é Pedro Dinis
Quaderna e sou sobrinho e afilhado de Dom Pedro Sebastião Garcia-
Barretto, o dono da Fazenda Onça Malhada , que morreu em Agosto de
1930, o senhor deve ter ouvido falar. Estas Cabras são da terra que foi
dele. Tinham fugido, e eu acabo de encontrá-las.
Mesmo no estado meio febril em que me encontrava, pude
conter-me e nada falei a tal respeito. Cheguei, ainda, a mostrar
curiosidade por um aspecto da cena que tinha visto. Comentei:
— Eu nunca tinha visto um Bode como este, o Baio! Um Bode
com 4 Chifres, que coisa mais estranha!
— Acontece que isso aí não é um Bode não, é um Chabino!
— Chabino? — indaguei, espantado pela semelhança entre o
som da palavra e o nome de nossa Família, Schabino .
Mas Quaderna também não notou isso, limitando-se a
confirmar:
— Sim, Chabino. Um Chabino é um filho de Bode com Ovelha ou
de Cabra com Carneiro.
— Eu nunca ouvi falar nisso! É mesmo possível nascer um
híbrido assim?
— Tanto é possível que este foi parido e agora está aí. É raro,
mas acontece. A vantagem do Chabino é que ele não emprenha as
Cabras e por isso é muito bom para ser usado como Rufião, para
descobrir e preparar, para o Bode, as Cabras que estão no Cio. As Cabras
deste rebanho são muitas para um Bode só, e assim, com o Chabino, a
gente evita que ele se canse muito no trabalho de cobrir as Fêmeas. Ele
é filho de uma Cabra com um Carneiro da raça Cocorobó , e é por isso
que tem 4 Chifres, como o Pai.
Outra coisa: não sei se o senhor notou, mas houve, aí, uma hora
em que ele ficou sem saber se mamava ou se cobria: foi porque a Cabra
que ele queria pegar hoje é filha da que deu de mamar a ele. Quando o
Chabino era pequeno, eu segurava a Mãe, e a Cabrita dela mamava num
peito e ele noutro. Agora, quando sentiu o cheiro da irmã de leite, ele se
lembrou do tempo em que mamava e sentia o cheiro das duas ao
mesmo tempo: foi aí que, de repente, ele ficou querendo mamar e
trepar de uma vez só.

ALBANO CERVONEGRO
O Bode, no sertão de seu Deserto, sonha o tempo em que as Águas
se cumpriam. No entanto, eis que a Poeira e o Sol despontam, carregando,
no ventre, a Porta e a Via. E abraçam-se, na carne, o Arco e o Termo, a
Sede escura e o Ventre que suspira.

DOM PEDRO DINIS QUADERNA


Mas vamos deixar o Chabino de lado, porque tenho coisas mais
importantes para lhe revelar. Sou proprietário da Universidade Popular
Taperoaense e do Grande Circo da Onça Malhada , onde conto com a
colaboração de Gregório, Palhaço-Obsceno ; Galdino, Palhaço-Herege ;
João Grilo, Mateus ; Chicó, Bastião ; Dona Clarabela, A Mestra ; Joaquim
Simão, O Poeta-Folhetista ; e outros e outros.
Quanto a mim, como Rei e Capitão-de-Guerreiros, monto uma
Eguazinha branca, virgem, de pele-rosada e crinas cor-de-ouro, cujo
nome é Dina . Como Profeta, minhas incursões pelas Estradas e
descaminhos do Sertão aproximam-se das que o nosso Santo Antônio
Conselheiro levava a efeito no Império do Belo-Monte do Sertão de
Canudos . Como Poeta, além de ter sido aluno do Cantador João
Melchíades Ferreira, aprendi com ele a tocar Viola. Finalmente, como
acontece com vários Donos-de-Circo que erram por aí apresentando-se
nas Vilas e Povoados nordestinos, acumulei essas funções com a de
Palhaço , que não sou tolo de confiar a mais ninguém.
Devo dizer-lhe, ainda, que, além da influência de João
Melchíades, “ O Cantador da Borborema ”, duas outras foram
fundamentais para a minha formação literária de Poeta-Épico e Autor-
de-Teatro : a de Leandro Gomes de Barros, Poeta, e a de Lourenço
Moreira Lima, “ O Bacharel Vermelho ”, o Prosador que conheci no
tempo em que, com nome trocado, participei da Grande Marcha de
Coluna Aventurosa que foi A Coluna Prestes .
Pois bem; soube de tudo o que aconteceu a seu irmão Mauro e
quero avisá-lo: Você e seus outros irmãos estão ameaçados, no Recife.
Por isso vim aqui, hoje, esperá-lo; quero que se mude pra cá. Ofereço-
lhe o cargo de Reitor-Vitalício e Professor de Filosofia da Arte na
Unipopt . Comprometo-me ainda a conseguir para Você o cargo de
Secretário da Cultura de Taperoá , que se pode acumular com o de
Professor.
Mudando-se, Você escapará aos perigos que o ameaçam no
Recife. Mas é claro que, de minha parte, também tenho muito a ganhar
com a troca: não iria lhe dar tudo isso de mão beijada. Levo duas
vantagens na sua vinda para cá. A primeira é que, não tendo eu Título
universitário nenhum, um Doutor como Você significa sólida garantia à
minha Universidade. A segunda refere-se a uma Obra que venho
tentando escrever desde 1937, quando a comecei, aos 40 anos.

DOM PANTERO
Quarenta? Em 1937?

DOM PEDRO DINIS QUADERNA


Exatamente! Admira-se? Quantos anos Você me dá?

DOM PANTERO
Acho que Você é mais ou menos da mesma idade que eu!

DOM PEDRO DINIS QUADERNA


Errou por 30 anos! No dia 16 de Junho deste ano completei 73
anos! E naquele dia, no qual resolvi compor a Obra da qual falei, tomei
ainda a resolução de não envelhecer nem morrer enquanto não a
acabasse! E preciso de sua ajuda para terminá-la.

DOM PANTERO
Nesse momento, as Nuvens carregadas, que vinham se
aproximando pouco a pouco, chegaram bem perto uma da outra. Uma
centelha deslumbrante estralou seu raio entre as duas, num estampido
ensurdecedor: parecia que o Céu se fendera meio-a-meio e pedaços
estilhaçados dele ricocheteavam pelas Pedras que havia entre o Riacho
e o lugar em que estávamos. Foi um tiro só. Mas, pelo eco, pareceu um
disparo de Canhão seguido por metralha. O lote de Cabras, espantado e
de orelhas fitas, correu em desfilada, embrenhando-se e desaparecendo
no Matagal, como um rebanho de Corças e Antílopes assustados.
Quaderna correu atrás delas, entrando também no Mato. No
silêncio que a tudo se seguiu, soou o canto do Pássaro que eu já
conhecia mas que nunca chegara a avistar. Era o mesmo que o Rei e
Cavaleiro ouvira a 9 de Outubro de 1930, na Estrada de Matacavalos . O
mesmo que cantara 7 anos depois, em 9 de Outubro de 1937, quando,
pela primeira vez, voltamos à Casa recifense dos Savedras, então
arruinada. O mesmo que ouvi no Horto do Desencontro , no dia em que,
desesperado, vim a descobrir que perdera Liza para “ o outro ”. Pássaro
que, por tudo isso — sempre escondido, sempre misterioso —, daí por
diante faria soar seu canto na Ilumiara Jaúna todas as vezes em que ali
eu ia, como a insinuar que somente quem conseguisse avistá-lo poderia,
para além de sua gargalhada escarninha, entrever, como na Vulva, “ o
segredo do Mundo ”.
E eu, depois de em vão esperar pela volta de Quaderna, procurei
instintivamente voltar à Gruta das Vulvas . No momento em que cheguei
diante dela, 3 Cavalos erravam por ali — um branco, um preto e um
alazão de pelo dourado. E, por causa dos 3 Cavalos de sela do Rei —
Bom-Deveras , Passarinho e Medalha —, comecei a recordar o Poema
composto por Altino, Auro e Adriel quando ainda muito jovens e que
aqui vai recitado pela voz de seus Autores:
OS CAVALOS
Poema evocativo, com cadência de Ode-sagratória

ALTINO SOTERO
O Sol queimava a terra cor-de-sangue, a luz de fogo rebrilhou,
violenta. Os Homens se curvaram para a terra, de corpos e de sangue já
sedenta.

ADRIEL SOARES
E, de repente, a Luz prisioneira se tornou de umas cores
esmaltadas: o Anjo descera sobre a Terra imensa, e endurecera a Pedra
consagrada.

AURO SCHABINO
Os esgalhos das Árvores torciam-se num Ar de alvo diamante e
azul escuro. E havia 3 Cavalos, um castanho, um branco e um negro —
um negro muito puro.

ALTINO SOTERO
Sentiam-se, no Céu, ruflando, as asas de inúmeros Arcanjos
invisíveis; e, nos blocos das Pedras insculpidas, paixões a debater-se,
irreprimíveis.
ADRIEL SOARES
A tarde fora apenas pressentida, o Tempo, no seu fogo, leva tudo;
e o Vento, feito pedra e feito sonho, perpassava, solene e pontiagudo.

AURO SCHABINO
Antes, a Noite estava dominada pela Lança vermelha do Poente. E,
um dia, o nosso Rei, em seu Cavalo, galopou pelo Campo reluzente.

ALTINO SOTERO
Agora, a luz puríssima resplende sobre as águas e a Pedra
ensangrentada: os restos da noturna Fronte pairam muito além destas
Árvores sagradas.
ADRIEL SOARES
E eu canto as Formas vivas, trabalhadas pelo Sonho inquieto que
nos chama. Canto os frutos, os cardos, bichos, águas, neste Mundo que
sangra, mas que dança.

AURO SCHABINO
Canto os próprios Cavalos como formas, e as Pedras como Estrelas
limitadas. O resumo da Vida: o Tempo, os Bichos, o Chão, os Rios, Árvores
e Nada.

ALTINO SOTERO
E a Tarde acaba, apenas pressentida, e o Tempo, no seu Fogo, leva
tudo, enquanto o Vento sonha, feito Pedra, perpassando, solene e
pontiagudo.
DOXOLOGIA
DOM PANTERO
Foi assim que eu, “ novo Policarpo Quaresma e Dom Quixote
arcaico ” (como dizem nossos equivocados adversários recifenses),
encontrei aquele “ Sancho e Ricardo Coração dos Outros ” que para mim
foi Quaderna: isto é, como Protagonista conheci o Antagonista que anos
e anos de convivência transformariam em meu complemento. Sem mim,
ele não poderia ser Dom Pedro Dinis Quaderna, O Decifrador . Sem ele,
eu nunca poderia me transformar em Dom Pantero do Espírito Santo,
Imperador da Pedra do Reino ; e os dois, juntos, é que iriam consumar, “
sem Crime ”, a Vingança final contra o assassinato de meu Pai (e até
contra o suicídio de Mauro, que de certa forma dele fora consequência).
Porque foi com Quaderna que aprendi: a humildade era uma qualidade
muito boa para um Santo; mas um Poeta não deveria ser alheio ao
orgulhoso sonho de erguer sua Obra — e sonhá-la na altura maior
possível, de modo a que o Brasil fizesse reluzir a sua Candeia imortal à
face de todas as nações do Mundo.
E ao pensar isto, ficou de repente claro para mim que muito
longe ainda eu estava de alcançar aquele Perdão verdadeiro e profundo
que nosso Pai pedira para os que o tinham matado. Lembrei-me da fala
de Hamlet:

GUILHERME SCHABINO SOLHA DE AGITALANÇA


“Oh, que ignóbil eu sou, que Escravo abjeto! Não é monstruoso
que esse Ator aí, por uma Fábula, uma Paixão fingida, possa forçar a
alma a sentir o que ele quer, de tal forma que seu rosto empalidece, tem
lágrimas nos olhos, angústia no semblante, a voz trêmula, e toda a sua
aparência ajustada ao que ele pretende? Que não faria ele se tivesse o
papel e a deixa da Paixão que a mim me deram?
“Eu, Filho querido de um Pai assassinado, intimado à vingança
pelo Céu e pelo Inferno, ficar desafogando minha Alma com palavras, me
satisfazendo com insultos! Maldição! Oh, trabalha, meu Cérebro! Ouvi
dizer que certos Criminosos, assistindo a uma Peça, foram tão tocados
pelas sugestões das Cenas que imediatamente confessaram seus Crimes.
Farei, então, com que esses Atores interpretem algo semelhante à morte
de meu Pai: e a Peça será a Armadilha que eu usarei para explodir a
consciência dos Assassinos.”

ALBANO CERVONEGRO
Pois é assim: meu Circo pela Estrada. Dois Emblemas lhe servem
de Estandarte: no Sertão, o Arraial do Bacamarte; na Cidade, a Favela-
Consagrada. Dentro do Circo, a Vida, Onça Malhada, ao luzir, no Teatro, o
pelo belo, transforma-se num Sonho — Palco e Prelo. E é ao som deste
Canto, na garganta, que a cortina do Circo se levanta, para mostrar meu
Povo e seu Castelo.

DOM PANTERO
E, com estes Versos, compostos em Martelo-Agalopado — uma
estrofe criada pelos Cantadores brasileiros —, aqui se despede de
Vocês, nobres Cavaleiros e belas Damas da Pedra do Reino, este que é,
ao mesmo tempo, seu Soberano e seu companheiro de cavalgadas e
Cavalaria,

Dom Pantero do Espírito Santo, Imperador .


Zélia Suassuna
Galope

A TRUPE ERRANTE
DA ESTRADA
A TRUPE ERRANTE DA ESTRADA
Epístola de Santo Antero Schabino, Apóstolo

Escrita por seu afilhado, sobrinho e discípulo Antero Savedra,


em homenagem aos Brasileiros descendentes de Árabes, nas pessoas de
Raduan Nassar, Myriam Asfora, Elias Sabbag, Carlos Nejar, João Asfora e
Carlos Abath.
Dirigida aos nobres Cavaleiros e belas Damas da Pedra do Reino.
E enviada, por seu intermédio, aos diversos povos do Mundo;
especialmente aos da Rainha do Meio-Dia , aqui representada por
Guiné-Bissau .
EPÍGRAFES
“Neste despropositado e inclassificável Livro, não é que se quebre,
mas enreda-se o fio das histórias e das observações por tal modo que,
bem o vejo, só com muita paciência se pode deslindar e seguir tão
embaraçada Teia.”

A LMEIDA G ARRETT

“Não é bem um Romance-a-chave, mas clara e decididamente


também o é. Certamente não é um Romance-de-aventuras, mas, com
certeza absoluta, posso defini-lo como o Romance da nossa desventura.
Um Romance-de-gancho, pendurado nas prateleiras das nossas livrarias
como carne em açougue.”

J OSÉ N ÊUMANNE P INTO


DEDICATÓRIA
Este Galope é dedicado a Manuel Dantas Vilar Suassuna e a
Maria Denise, Mariana e Saulo Matos Suassuna.
Foi composto em memória de João Urbano Pessoa de
Vasconcellos Suassuna e Rita de Cássia Dantas Villar.
A TRUPE ERRANTE DA ESTRADA E UM AMOR
DESVENTUROSO

Largo Melancólico — Presto Dramático


SIBILA
Moda, Turismo & Lazer
Igarassu, 17 de Março de 2014
23 de Abril de 2016

Aos nobres Cavaleiros e belas Damas da Pedra do Reino.

Amigos:
o dia 5 de Outubro de 1937, viajei, com minha Mãe, de Taperoá para o
Recife, onde iria estudar no mesmo Colégio onde já estavam, como
N alunos-internos, meus irmãos Mauro, Afra, Altino, Auro e Adriel.
Entretanto não nos dirigimos diretamente ao Recife:
fizemos uma parada no Engenho Chabino , em Igarassu, onde moravam
meus Tios e Padrinhos Antero e Maria Francisca Schabino de Savedra.
Deixando de lado alguns raros contatos que tivera com ele em 1930,
posso dizer então que só naquele dia comecei a conhecer
verdadeiramente o Mestre que iria desempenhar papel tão importante
na formação de todos nós (pois ele era Professor naquele mesmo
Colégio para onde eu ia).
Chegamos ao Engenho aí pelas 5 horas da tarde e foi com
grande emoção que vi a Casa, de onde, em 1791, partira meu Bisavô
Raymundo Francisco das Chagas Schabino de Savedra Jaúna para morar
no Sertão da Paraíba (o que fez rompendo com a Família e jurando ali
nunca mais pôr os pés).

Aliás, a Viagem já começara tensa e emocionada em Taperoá e


assim permanecera durante toda a Estrada: porque nos dias que se
seguiram ao assassinato de meu Pai, seu amigo Francisco Gouveia
Nóbrega nos trouxera uma cópia fotostática da Carta que ele nos
escrevera (o original ficara guardado nos arquivos da Polícia). Trouxera,
também, as vestes ensanguentadas que meu Pai usava no momento de
ser assassinado.
Minha Mãe guardara religiosamente aqueles objetos sagrados;
mas agora, por sugestão de Tio Antero, ia deixá-los embaixo de um
Monumento com que os dois pretendiam reiniciar a restauração da
Casa recifense dos Savedras, profundamente atingida e danificada em
1930.
Minha Mãe, então, mandara fazer uma espécie de Urna onde
guardara a roupa e a Carta; e fizera toda a viagem abraçada a ela, que,
no dia 5, foi provisoriamente colocada junto ao Santuário do quarto de
dormir que seria o nosso durante nossa estada. E Vocês bem podem
imaginar como eu me sentia ao participar de tudo isso; principalmente
desde nossa chegada ao Engenho: primeiro ao notar que a Casa, como a
nossa, de Taperoá, tinha uma Torre ao lado, se bem que fosse
quadrangular e não arredondada como a sertaneja; e depois ao ver
minha amada Mãe e minha não menos amada Tia abraçadas e chorando
convulsivamente diante da Urna que continha as últimas lembranças
daquele que era o ídolo das duas.

No dia seguinte, 6 de Outubro, completavam-se 7 anos da morte


de meu Tio João Sotero, e fomos fazer uma visita ao túmulo dele, no
Cemitério de Igarassu.
Cumprido esse dever de piedade familiar (que também nos
emocionou a todos), meu Tio resolveu dar uma volta pela parte mais
antiga da Cidade — e penso que veio daí a paixão que ainda hoje me
liga a ela.
Na medida em que caminhávamos, Tio Antero explicava o que
víamos, às vezes pronunciando nomes de Escritores, para mim
desconhecidos naquele tempo. Levou-nos, primeiro, para o conjunto de
Convento-e-Igreja de Santo Antônio, onde, logo de começo, chamou
nossa atenção para os quadros pintados sobre madeira, no forro da
entrada da Igreja. Lembro-me de ter sido profundamente tocado pela
Insígnia franciscana, “ quase surrealista ”, como disse meu Tio, ao
mostrar os dois braços — o do Cristo e o de São Francisco — assim
como as 5 chagas do Estigmatizado de Assis: lembrei-me eu,
imediatamente, de que “ Cinco Chagas ” era o nome do Navio roubado
aos Espanhóis por “ Don Pedro Sangre ”, Personagem, como “
Scaramouche ”, criado por Rafael Sabatini. E lembro-me ainda da forte
impressão a mim causada por um Quadro que representava um Santo
franciscano cavalgando e açoitando um Demônio.

Depois, na Sacristia e na própria Nave, foi o encontro dos


Azulejos, entre os quais meu Tio nos disse que “ preferia os abstratos ”
(explicando-nos logo, também, o que isto significava). Vimos Lavabos e
Golfinhos de pedra, assim como Quadros e Painéis — como um que
estava implantado no forro e mostrava um Anjo tocando “ uma Viola
ibérica de 10 cordas ”, igual àquela que, em Taperoá, eu vira pela
primeira vez nas mãos de Antônio Marinho, ao improvisar seus Versos
e cantar seu Folheto.
Mas o encanto maior foi, mesmo, o da Pinacoteca;
principalmente por causa dos Painéis que, também pintados sobre
madeira, representavam a paixão do Cristo, com os perseguidores do
Filho do Homem “ figurados numa linha parecida com a de Bosch e
Brueghel ”. Segundo Tio Antero, tinham sido feitos, no século XVI, por
Gilvânio Simaco, amigo e companheiro de arte do nosso antepassado
Alexandre Schabino; o Pintor representara-se a si próprio na figura de
um homem barbado e de óculos, perdido entre os que assistiam à cena
e, como os demais, olhando, impassível, o Cristo ser flagelado por seus
Carrascos.
Autorretrato de Gilvânio

Gilvânio Simaco pintara também um outro Quadro que me


impressionou muito — o retrato de um Frade sendo estrangulado pelo
Demônio. E, muitos anos depois — após minha primeira Aula-
Espetaculosa, a de Patos —, tudo isso seria filmado por Walter
Carvalho, num Vídeo no qual apareciam Maria Paula Costa Rêgo, Pedro
Salustiano e Gilson Santana dançando o Toré , de Antonio Madureira, no
curso de outra de minhas “ Saídas quixotescas ” pelas Estradas e
descaminhos do Mundo — a que me levou à aula de Arcoverde, em
Pernambuco.
Havia ainda retratos de Santos e Prelados, que, segundo
informação do nosso Tio, eram de autoria de um outro amigo de nosso
antepassado Alexandre Schabino — Francisco de Almeida.
E então, aos poucos, devagar, na medida em que decorriam os
anos, o casario antigo, os conventos, as igrejas, os jardins, o povo e os
espetáculos populares de Igarassu, Taperoá e São José do Belmonte
foram sendo recriados por minha imaginação e dando origem a uma
Cidade mítica, à qual me ligava uma verdadeira encantação , semelhante
àquela que existia entre Péguy e Chartres, entre Proust e Combray (ou,
melhor, Balbec ): principalmente com esta última, porque, no caso, não
era de uma Cidade real e cotidiana que se tratava, e sim de outra,
forjada por meu sonho a partir do que havia de mais belo naquelas 3
Cidades reais — uma fusão, portanto, de real e sonho, de “ matéria e
memória ”, como diria o Mestre-filósofo de Proust, Bergson (que, para o
grande Escritor francês, fora o mesmo que Sócrates para Platão, ou
Althotas para José Bálsamo, Conde de Cagliostro).
Simaco refletido pelo Espelho

Para exercer suas funções de Professor, Tio Antero ia


diariamente ao Recife num Carro. Eu e minha Mãe tínhamos viajado de
Taperoá a Igarassu num Carro alugado, no qual ela deveria voltar no dia
10; o que levara meus Tios a hospedar também seu Motorista e
proprietário, Seu Herotides, num dos vários e enormes quartos do
Engenho Chabino .
No dia 9, partimos para o Recife, eu e minha Mãe no Carro
alugado, meu Tio no dele. Mas, ao chegarmos à Praça da Casa Forte, Tio
Antero mandou que parássemos para esperá-lo; e foi ao Colégio, para
trazer Altino, Afra, Auro e Adriel a fim de que eles participassem da “
cerimônia celebrativa e sagratória ” do reencontro com aquela Casa que,
“ depois de devidamente restaurada ”, viria a abrigar todos nós (pois ele
e sua Mulher deveriam nela morar conosco). Dizia que, só com a
restauração, a Casa recifense dos Savedras se transformaria numa fusão
da Casa do Paquequer , de Dom Antônio de Mariz, com a d’ As Oiticicas ,
do Capitão-Mor Gonçalo Pires Campelo; e, mais, com a d’ O Saco da
Onça , a da Acauhan e a da Carnaúba , de Raymundo Jaúna, a do Engenho
Chabino , e finalmente com a Casa-urbana, recifense e “ aristocrática ”,
descrita por Carlos Dias Fernandes em A Renegada :
CARLOS DIAS FERNANDES SCHABINO
“Ficava na Estação d’Os Aflitos e era uma grande Casa com
alpendres laterais, edificada dentro de um Parque.
“Nela entramos num mês de Março. As Roseiras estavam
abotoadas, alimentando nas sépalas embutidas aquelas opulentas rosas
de Maio, que se ofertam como caçoulas de aroma aos pés sacrossantos de
Maria. Apenas floresciam os Rosedás, em ramos seivosos, e os Jasmins-do-
Cabo, que se espargiam na grama, como Estrelas alvas.
“Do fundo do enorme Parque, no quintal da Casa, vinha um cheiro
doce de Jacas maduras nas lentas camadas do ar fino; e as Mangas
douradas, por entre a espessa folhagem, mesclavam a tudo um intenso
perfume de terebintina.
“Havia, no Jardim, uma Peluse em forma de losango; em seu
centro, um Repuxo, que era uma grande Águia de pedra, tendo ao bico
uma Serpente, presa também por suas garras: a água esguichava-lhe da
boca entreaberta, caindo em chuvisco no Tanque circular onde Peixes
rosados nadavam.
“Uma Grade de ferro verde-musgo delimitava o terreno e,
alinhados por ela, erguiam-se, nos flancos deste, dois Palanques em forma
de Torre. Sobre eles, se debruçavam as ramagens finas e longas de um
Bambual, emprestando a esses recantos um doce recolhimento.”

Meu Tio não demorou muito a voltar, trazendo meus irmãos


que, abraçando e beijando nossa Mãe, novamente a fizeram chorar. E
sua emoção foi maior ainda quando, perto da Praça, entramos por uma
Rua à direita e ela se viu diante daquela Casa que, de várias maneiras,
revelava a paixão que a ligava ao Cavaleiro (e lembrava os gestos de
carinho dele para com sua Mulher).
A Casa pertencera ao Visconde de Savedra, no século XIX. Mas
fora vendida em 1870, passando para a mão de estranhos.
Então meu Pai, lembrado de que minha Mãe pertencia ao ramo
igarassuano e recifense dos Savedras (o mesmo do Visconde), resolvera
comprá-la para ser a residência do jovem casal formado por eles,
quando, por acaso, tivessem que ficar no Recife.
Ao chegarmos à sua frente, demoramos um pouco na calçada, à
qual faltavam alguns dos grandes tijolos que eram os dela, desde 1870.
O Portão estava fechado por uma corrente com cadeado; e, na grade de
ferro que rematava o Muro, o esmalte azul, envelhecido e descascado,
deixava à mostra, no metal castanho e ferrujoso, “ manchas que
pareciam as malhas de alguma velha Serpente cega ”, como observou
meu Tio.

Na parte de fora das colunas do Portão encravavam-se ainda,


insculpidas em pedra-calcária, as armas dos Savedras: mas em estado
lamentável, pois tinham sido rachadas, a golpes de marreta, em 1930.
Cantavam Pássaros, entre os quais aquele que ninguém
conseguia ver: era o mesmo que, ouvido pelo Cavaleiro no dia de sua
morte, passara a sublinhar os momentos decisivos de nossa vida,
sempre oculto e sempre, como num aviso de perigo mortal, a nos
rondar pelas Estradas e descaminhos do Reino Perigoso do Ladrido.
Ouvia-se também ao longe um ladrar de Cães, enquanto minha
Mãe e meu Tio olhavam tudo com uma expressão de melancolia que
logo começou a nos contagiar. Ainda assim, ele falou para nós:

ANTERO SCHABINO
As pessoas que não me entendem no Recife estranham o fato de
que, no meu Livro A Onça Malhada , exista um capítulo chamado Elogio
da Ruína : como se isto não fosse de esperar de um Pensador dialético
como eu!
Aliás, esta é a mesma posição dos principais Filósofos que, no
Brasil, refletiram sobre a Arte. Mathias Aires, por exemplo, via que, no
Mundo e no Homem, a destruição, a ruína, é uma espécie de fogo que
tudo reduz a cinzas. Mas via, também, que era este mesmo Fogo, era
esta mesma Ruína que tornava possível uma nova Florescência, outra
Ressurreição. Assim, constatava a realidade do Ser; mas percebia
também a do Vir-a-Ser, momento em que revelava uma estranha
atração pelo incessante passar da Ruína à Florescência, da Vida à Morte.
Afirmava ele:
MATHIAS AIRES SAVEDRA
“A natureza de cada coisa também se compõe do seu defeito (isto
é, do seu contrário). No Mundo, é trânsito e mudança o que nos parece
permanência. De modo que, a rigor, não podemos dizer que as coisas são,
e sim, apenas, que elas estão sendo (pois no momento em que as
avistamos, já estão a caminho da morte, da ruína e da destruição).”

DOM PANTERO
Isto significava que a Vida também se compõe de Morte, e que a
Morte e a Ruína implicam na Reflorescência, na Ressurreição. Um
século depois de Mathias Aires, João Ribeiro afirmaria, mostrando a
permanência desta linha no pensamento brasileiro:

JOÃO RIBEIRO SCHABINO


“Tudo, neste Mundo, é morte e ressurreição. Só há dois grandes
estímulos no Universo, que são as duas crises máximas: o Amor e a Morte.
O Amor explica a eternidade, e a Morte, a juventude do Universo. A Morte
traça fronteiras aos Seres que já fecundaram, dá variedade ao Eterno e
mantém a juventude universal.”

DOM PANTERO
Nós entendíamos apenas algumas partes de tudo o que nosso
Tio falava; mas o que entendíamos era suficiente para acrescer e
aprofundar a melancolia que de nós se apossava na solenidade daquele
instante.
Franqueado o Portão, entramos no Jardim, onde havia uma
Mangueira e um Cajueiro, cujos frutos apodreciam no chão, bicados por
Abelhas e Maribondos. Entretanto, como a confirmar as palavras de Tio
Antero — e como se a polpa dos Frutos estragados lhes servisse de
adubo —, as duas Árvores estavam novamente florejando. Era como se
fosse “ uma teima, um prodígio vital do Ser ”, como afirmou Tio Antero:
porque os troncos de ambas as Árvores estavam eriçados de Orelhas-
de-Pau, sufocados pela Hera, sugados por Orquídeas, Lianas, Imbés e
Trepadeiras de todos os feitios, avultando, na copa da Mangueira, as
folhagens e os cipós constritores das Ervas-de-Passarinho .
Tudo aquilo nos impressionou de tal forma que, anos depois,
num dos Martelos incluídos n’ O Pasto Incendiado , Altino, Auro e Adriel
cantavam:

ALBANO CERVONEGRO
Em Outubro, o Paudarco refloresce, no amarelo e no roxo do seu
Fado. O rebanho frutal, incendiado, seu áspero perfume reverdece. O Sol
violador como que tece o cerne do seu Fogo, eflorescendo, e os ácidos
Cajus, se desprendendo, estragam-se no Chão, entre zumbidos, enquanto
um florejar ensandecido se alimenta da Morte, renascendo.

DOM PANTERO
Lagartos meio adormecidos vigiavam sonolentamente o Musgo,
o Mofo e as Parasitas, espichados ao Sol, por entre as Ervas e os tufos de
Capim.
Mas o pormenor que mais nos tocou naquele dia era mais ligado
à Arte do que a flores, ervas, frutos e bichos. Acontece que meu Pai,
depois de comprar a Casa, para adornar seus muros mandara gravar a
fogo, em placas de Cerâmica, alguns versos que, a seu pedido, Tio
Antero compusera, na linha de suas famosas Imitações . A ideia surgira
do seu Livro A Onça Malhada , no qual havia outro capítulo intitulado A
Imitação como Processo Criador das Artes (como depois viríamos a ler e
entender).
Ali, na Casa, a primeira de tais “ Imitações ” provinha de uns
versos de Tennyson, que agora, manchados pelo Tempo e rachados a
picareta pela Multidão, “ assumiam um acento ainda mais melancólico ”,
como nosso Tio nos fez notar. Os Versos eram os seguintes:

APÓS MUITOS VERÕES


Imitação Brasileira de Tennyson

ARIBÁL SALDANHA
“Os Bosques apodrecem, as Matas se consomem, a Nuvem se
desfaz em Chuva sobre o Solo. O Homem lavra a Terra, sob a Terra jaz; e,
após muitos Verões, também o Cisne morre.”

DOM PANTERO
Na medida em que caminhávamos pelo Jardim, íamos
encontrando Esculturas despedaçadas. Cabeças, troncos, frisos, torsos e
pedestais partidos ali permaneciam, escurecidos e manchados pelo
Lodo (negro àquela altura, porque era Verão). E, no Muro principal da
Casa, rachados também a golpes de marreta e alavanca, viam-se três
outros textos, dos quais os dois primeiros eram também Imitações
feitas por Tio Antero a partir dos Poetas românticos ingleses, tão
apreciados por meu Pai:
URNA
Imitação Brasileira de Keats

ANTERO SCHABINO
“Oh bela Adolescente, de quem cuida o Silêncio, oh tu, ainda não
violada, oh noiva do Repouso! Que Legenda, franjada de folhagens, te
rodeia a forma de jovem Divindade? Doida perseguição! Que Homem é
este, que Mocinha relutante? Que luta por fugir? Que Frautas e Pandeiros,
que furor selvagem?”

OZIMÂNDIAS
Imitação Brasileira de Shelley

ANTERO SCHABINO
“Duas enormes Pernas de pedra, separadas do Corpo a que
pertenceram, ainda permanecem de pé, no Deserto. Bem a seu lado, meio
enterrada na Areia, jaz uma Cabeça humana que, pelo olhar altivo e
desdenhoso, atesta que o Artista que a esculpiu soube representar as
paixões do seu Modelo, pois elas ainda são visíveis nos fragmentos
inanimados. No Pedestal ainda se pode ler: ‘Sou Ozimândias. Sou o Rei
dos Reis. Por maior que seja o vosso esforço, a lembrança do que realizei
há de sempre fazer-vos estremecer’.

“E nada mais. Em torno destes formidáveis destroços, estende-se


apenas o Deserto de areia, despido, infindável e monótono, a perder de
vista.”

DOM PANTERO
O Tanque no qual, antes de 1930, nossa Mãe, Maria Carlota,
criava um casal de Cisnes, estava seco e abandonado, fato que merece
referência especial porque representava profunda marca na vida dela e
na de João Canuto. Os dois amavam-se apaixonadamente e com
frequência rezavam a Deus para que a Morte os levasse juntos. Então,
um dia, em Novembro de 1926, estando eles na casa do Recife, meu Pai
começara a construir o Tanque, dizendo que nele pretendia criar Peixes.
Em Janeiro do ano seguinte, a construção estava pronta. E, a 19
de Fevereiro, ele mandou a Mulher para o Engenho Chabino , dizendo
que assim fazia para lhe evitar o incômodo da Obra em seus ajustes
finais.
No dia 21, data do aniversário de minha Mãe, meu Pai foi buscá-
la, para que os dois a celebrassem juntos, no Recife.
Quando chegaram a Casa Forte, ela encontrou o casal de Cisnes
já nadando no pequeno lago.

ANTERO SCHABINO
Da parte de Canuto, era um gesto cuja delicadeza, além dos dois,
somente eu, irmão de Carlota, podia apreciar devidamente, como
expliquei a meus Sobrinhos na frente dela, sem me lembrar de quanto
ia tocá-la com minhas palavras, avivando suas pungentes recordações.
Canuto gostava muito do Soneto no qual Camões fala na morte
dos Cisnes e no Mito que se configurou em torno dela: quando eles a
sentem aproximar-se, recolhem-se à beira do Mar, dos Rios ou dos
Lagos, escondem-se e desferem aí o belo Canto-de-Despedida, que
Saint-Saëns e Villa-Lobos celebrizaram na Música e Pavlova, na Dança.
Gostava muito, também, de outro Soneto no qual o Poeta
brasileiro Júlio Salusse escolhera os Cisnes como símbolo do Amor fiel e
duradouro. Quando noivo, muitas vezes lera estes dois Sonetos para
Maria Carlota. Ela, no de Camões, gostava mais dos Quartetos, e, no de
Salusse, dos Tercetos.
Naquele ano de 1927, João Canuto, num gesto de extremo
carinho — e aludindo à prece que ele e a Mulher faziam para morrerem
juntos —, pedira-me que, noutra Imitação, fundisse os Quartetos de um
com os Tercetos do outro. Mandara gravar o Soneto resultante num
Painel de cerâmica e encravara-o no muro do Jardim, em frente ao
tanque dos Cisnes: era o presente de aniversário que preparara para
sua Mulher.

DOM PANTERO
Entretanto, no dia 9 de Outubro de 1937, assassinado o dono da
Casa, o Tanque estava seco, sujo e deserto, enegrecido embaixo por uma
camada de Lama ressecada pelo Sol.
O próprio Painel de cerâmica fora também destruído em 1930; e
de maneira mais radical: ali nem sequer fragmentos rachados do Poema
restavam mais. Ficara somente a depressão de alvenaria rebentada no
trecho do Muro que antes o abrigara.
Mas, “ Autor ” dos versos, como se considerava, Tio Antero sabia
de cor o Soneto resultante da fusão, de modo que enquanto, ao acaso,
errava conosco pelo Jardim, ia repetindo:
OS CISNES
Imitação Brasileira de Luís de Camões e Júlio Salusse

ANTERO SCHABINO
“Nós, dois Cisnes, sentindo aproximada a hora que põe termo à
nossa vida, harmonia maior, com voz sentida, levantemos na Praia
inabitada.
“Juntos, vivemos vida prolongada: juntos, cantemos, dela, a
despedida. E, mesmo na tristeza da partida, celebremos o fim desta
Jornada.
“Mas talvez um de nós morra primeiro. Se assim vier o instante
derradeiro, no Lago — que talvez o sangue tisne —, que o Cisne vivo,
cheio de saudade, nunca mais cante nem sozinho nade, nem nade nunca
ao lado de outro Cisne.”
DOM PANTERO
O primeiro Terceto iria se revelar como profético, pois 3 anos
depois o Cavaleiro seria assassinado a tiros e seu sangue iria tisnar e
marcar para sempre as águas do Riacho do Elo .
Foi ali, então, junto ao Tanque destruído, que Tio Antero nos
falou pela primeira vez de um projeto que iria dar rumo a nossas vidas.
Primeiro, disse que ele e sua irmã, nossa Mãe, iriam restaurar
aquela Casa recifense destruída; e que, feita a restauração, ele e nós nos
mudaríamos para ela. Ele e Tia Francisca deixariam Igarassu e nós
Taperoá (pois minha Mãe queria que abandonássemos “ o ambiente
carregado de ódios e vinganças do Sertão da Paraíba ”).
Apesar desses cuidados, Tio Antero, cuja personalidade era
muito diferente da de minha Mãe — como logo depois, no Colégio,
iríamos perceber —, não teve muita cautela no modo como nos falou do
projeto. Disse que a restauração da Casa deveria ser “ uma espécie de
ritual piedoso ”, empreendido como vingança e reparação “ à sagrada
memória ” de nosso Pai assassinado.
Mas, ao mesmo tempo em que, “ como um Castelo ”, se
reerguesse e restaurasse a Casa, ele, no Colégio, na qualidade de nosso
Professor, iria nos preparar para a outra etapa do projeto: aqueles de
nós que “ revelassem algum talento para a Literatura e as outras Artes ”
seriam por ele convocados para trabalhar numa Obra que, se fosse
levada a cabo, seria a mais importante de sua vida. Ele já publicara A
Onça Malhada ; o novo Livro, A Divina Viagem , baseado no primeiro
(mas composto como Romance), seria resultante de “ uma reescrita
literária ” daquele. Mais ainda: seria como um trabalho paralelo ao da
reconstrução da Casa, as duas Obras representando, uma do ponto de
vista arquitetônico, outra do literário e artístico, uma homenagem a
nosso Pai, João Canuto, e ao irmão de nossa Mãe, João Sotero, “ ambos
assassinados ao mesmo tempo em que a Casa era destruída ”.
E aí, para desespero de nossa Mãe (que tinha horror a qualquer
ideia de vingança e jamais tocava naquele assunto), relembrou a morte
do nosso Pai com todos os pormenores. Mostrou-nos um velho recorte
do Jornal A Unidade , amarelecido pelo tempo e no qual, pela primeira
vez, vimos o corpo do Cavaleiro, morto, estendido, às margens do
Riacho do Elo . Revelou o que minha Mãe até ali escondera
cuidadosamente de nós: que os Assassinos ainda estavam vivos. Dizia a
cada instante:

ARIBÁL SALDANHA
“ Nós, Schabinos de Savedra, não somos edipianos e labdácidas;
somos átridas e orestíadas, e é como eles que temos de nos portar.”

DOM PANTERO
Repetiu a frase pronunciada por um adversário nosso —
Homem que, apesar de pertencer “ ao outro lado ”, era sincero, valente e
probo:

ALCIDES CARNEIRO
“Não culpo o Assassino por tê-lo matado pelas costas: matar
Canuto de frente não era empresa para covarde.”

DOM PANTERO
Depois acendeu 12 Círios, que cravou no chão, cercando com
eles o lugar que mandara cavar na véspera, para ali enterrar a Urna que
minha Mãe levara. Distribuiu-nos folhas de papel que continham textos,
como se faz nos ensaios de Teatro.
Feito isto, mandou que Altino, eu, Auro e Adriel, no texto que
nos dera, lêssemos as frases de Orestes, e Afra as de Electra, o que
devíamos fazer porque esses dois Personagens, irmãos, também eram,
como nós, “ filhos de um Rei assassinado ”.
O texto que recitamos era assim:

ORESTES
Imitação Brasileira de Ésquilo e Eurípedes

ALTINO SOTERO
“ Ay, ay, ay, três vezes ay! Oh terra de nossos antepassados, oh
Deuses da nossa Pátria, dai-nos acolhida em nosso áspero Caminho!

AFRA CANTAPEDRA
“Acolhe-nos também, oh casa de meu Pai! Acolhe-nos, porque
haveremos de lavar tuas manchas, de ungir e curar tuas chagas — nós,
Justiceiros suscitados pelos Deuses!
AURO SCHABINO
“Oh Terra, oh Casa! Oh deus das Estradas, que estás me impelindo
à vingança! Aonde me conduzes, a que Casa perseguida pela Morte?

ADRIEL SOARES
“Casa que clama por vingança, se não quiserem seus donos ser
cúmplices de males inumeráveis: assassinatos de Parentes ilustres,
gargantas cortadas, dorsos transfixados por Balas, corpos caídos num
chão embebido pelo sangue!

ANTERO SAVEDRA
“É, por desgraça, um Sinal, uma Teia criada pelo Inferno? A
Discórdia crescia sobre a Cidade, e, tornada ainda mais escura pelo
sangue de outro Assassinado ilustre, exigia, em sua cólera, dura vingança
e cruentas represálias! Agora que sabemos que os Assassinos estão vivos,
devemos buscar, para eles, a paga devida, o justo castigo por seu Crime
infame?

AFRA CANTAPEDRA
“Ou antes, mandando celebrar Missas em silêncio, derramando
lágrimas que mitiguem a sede desta dura Terra, devemos somente velar,
chorando, esta Urna sagrada onde estão as últimas lembranças de meu
Pai, iluminadas pelas chamas de 12 Círios acesos? Ah, meu Pai, que dizer,
vertendo sobre tal Urna o óleo sagrado de uma extrema-unção formada
por nossas lágrimas?

ALTINO SOTERO
“Como em teu Túmulo sertanejo, aí dorme o Pó em que te
transformaste, ao ser teu corpo queimado pela Cal e pelo Fogo! Mas eu
gritarei contra o Crime até que a ressurreição da carne seja não mais
uma longínqua expectativa, mas sim uma realidade gloriosa, banhada,
mas não inteiramente sufocada, pelas águas lustrais da Morte!

ADRIEL SOARES
“Ay de mim! Oh minha terra, que dor insuportável me queima as
entranhas e me traspassa o Coração! Divindades cruéis, fados inelutáveis,
destituíram-nos das honras que os nossos Maiores duramente haviam
conquistado! Arruinaram a Casa e quebraram as Armas dos nossos
Antepassados!

AURO SCHABINO
“Oh Rei, como te lamentar? De dentro do nosso peito, das
profundezas de nossos corações dilacerados, que podemos ainda dizer
depois de ver o Retrato de teu corpo caído, envolto na Teia forjada pela
trama maldita — a ti, de olhos fechados para sempre?
AFRA CANTAPEDRA
“Ouve-me, oh Noite, Madre minha! Na armadilha fatal, a Fera
odiosa — Serpente de 7 cabeças — enreda em suas malhas o Ginete de
pelagem rara!
AURO SCHABINO
“Ela ataca, ferindo pelas costas, e ele tomba! Que o Rebanho cruel,
sedento do sangue da nossa Raça, saúde com um feio grito de triunfo o
sacrílego, o inominável ritual de sacrifício que ofereceram a Deuses
infames!

ADRIEL SOARES
“Quem são estas Mulheres que agora nos aparecem, vestidas de
negro e enlaçadas por Serpentes?

ANTERO SAVEDRA
“Nós, nascidos para outra sorte, sofrermos tamanha perda,
tamanha humilhação? Nós, com nossa Alma antiga, vermos, além de
nosso Pai morto, nosso País aviltado, com os traidores querendo
conformá-lo de acordo com uma imagem vulgar e feia, estranha a nós e a
ele?

AFRA CANTAPEDRA
“Ah, meu Pai, ah meu Rei infortunado! Que dizer, que falar, que
fazer, para atingir, tão longe, o lugar em que estás, com uma lembrança
de carinho? Aqui, agora, Luz e Trevas se equivalem, e a lamentação que se
endereça aos Mortos é somente um fogo impotente que nos abrasa as
entranhas!

AURO SCHABINO
“Ah, meu Pai, por que a morte assim como foi, picado teu dorso
por trás, pela Serpente? Por que não morreste em combate, como
sonhavas? Ou então, com o peito transfixado por um Punhal, por que não
morreste às mãos de um Inimigo, irreconciliável mas valente e leal, que te
ferisse pela frente?

ADRIEL SOARES
“Aí, meu Pai, com teu Cetro venerado pelos Mortais, terias legado
aos teus, além do Nome glorioso, um Túmulo de pedras consagradas, que
nos daria, com o pranto, o alívio do consolo!
Manuel Dantas Suassuna

ALTINO SOTERO
“Ouve então, oh Rei, estes lamentos desesperados! Teus Filhos
esboçam aqui, junto à Urna que contém tuas lembranças, o único gesto de
Amor que ainda lhes é possível neste Mundo! E é como se fosse teu
Túmulo que nos acolhesse, suplicantes e eLivross sobre a Terra, para
sempre marcada por teu sangue e por teus passos! Ay, ay, ay, três vezes
ay!”

DOM PANTERO
Naquela tarde de 9 de Outubro de 1937, nobres Cavaleiros e
belas Damas da Pedra do Reino, depois de recitado esse texto, meu Tio
cuidadosamente desceu a Urna para o Chão cavado do Jardim. Minha
Mãe, ele e nós, começamos a cobri-la com terra — tarefa que Laércio,
um vizinho, concluiu. E saímos pelo Portão, que só iríamos transpor de
novo com a Casa já restaurada, em 9 de Outubro de 1942, quando nos
mudamos todos para ela.
Mas ninguém pense que, naquele ano, a Casa já mostrasse o
aspecto que tem hoje. As paredes, tanto internas quanto externas,
tinham ficado nuas, desguarnecidas de qualquer adorno. A única coisa
que realmente mudara é que minha Mãe e meu Tio, pensando no
futuro, tinham mandado derrubar as Fruteiras do quintal — as
Mangueiras, o Cajueiro, o pé de Jabuticaba, o de Azeitona, o de Sapoti, a
Jaqueira etc. —, aproveitando o terreno assim ganho à vegetação para
erguer as 3 outras Casas que até hoje lá se conservam (além da
primeira e maior, que pertencera ao Visconde).
Na verdade, somente 5 dos 7 irmãos que éramos ficamos
morando no conjunto que eu, depois, batizaria com o nome de Ilumiara
A Coroada : Gabriel, o mais moço de todos, ficara na Fazenda Carnaúba ,
desmembrada do Saco da Onça , que fora invadido em 1930 e passara a
outras mãos; e o mais velho, Mauro, passara a morar numa outra Casa
que comprara, situada perto, mas separada do conjunto. De modo que,
depois de adultos, a distribuição de nossa Família pelas Casas ficou
assim: na primeira, a primitiva, ficamos minha Mãe, Tia Francisca, Tio
Antero e eu (por ser Afilhado dele); na segunda, Afra e Altino; na
terceira, Auro; e na quarta, Adriel e Eliza.
Pode-se dizer, assim, que a transformação da nossa Casa em
Ilumiara e Castelo só começou por obra minha, de Eliza e de seus filhos,
Guilherme, Manuel e Alexandre Savedra Jaúna, implantando nós ali, no
chão e nas paredes, muitas e muitas Obras-de-Arte, entre as quais a
Escultura feita por Arnaldo Barbosa que representa a Wopia (isto é, a
Sabedoria , prefiguração d’ A Misericordiosa ) e que está sobre o chão
onde se encontra a Urna com as vestes ensanguentadas de meu Pai.
Foi então na sua Casa, ainda não marcada pela presença das
Obras-de-Arte que agora a caracterizam, que, no dia 15 de Agosto de
1976, meu irmão Adriel recebeu um recado do Padre Matias Falacho
Daro: pedia-lhe este que fosse encontrá-lo na Favela Ilha de Deus , onde
orientava um grupo de jovens viciados em drogas. O Padre — um Negro
bastante mais moço do que nós — precisava tomar uma providência
urgente em favor de um dos rapazes viciados e pedia, para isso, a ajuda
imediata de Adriel.

Saindo do bairro da Casa Forte , Adriel chegou à Favela que, por


causa de seu nome, chamávamos carinhosamente de Favela-Consagrada
. Lá, deixou o carro às margens do grande Alagado, viveiro de Mariscos
e base principal de sustento da população ilhoa. A pé, meu irmão
cruzou a velha e estreita Ponte de madeira que naquele tempo ligava a
Ilha ao Continente.
Quando chegou à frente da Casa onde o Padre Matias morava e
mantinha seu grupo de trabalho, de dentro da sala da frente partiu um
tiro que matou Adriel. Quase imediatamente, soou um segundo tiro que,
no interior da Casa, matou o Padre, irmão de Joana, uma das 3
discípulas prediletas de meu irmão Auro (naquele dia preso, acusado
de atividades subversivas, pelos Órgãos de Segurança do Regime
Militar).
As versões que logo surgiram para explicar o crime eram muito
desencontradas. Segundo a Polícia, ambos os assassinatos tinham sido
cometidos pelos traficantes, inconformados com o trabalho que o Padre
estava desenvolvendo na Favela. Dois deles teriam se infiltrado no
grupo: um levara o recado para Adriel; o outro tinha disparado os tiros
que mataram meu irmão e o Padre.
Mas os amigos e admiradores do Padre Matias rebatiam essa
versão. Afirmavam que a própria Polícia armara a emboscada, na qual
Adriel também fora incluído porque “ apesar de menos radical do que
Auro, também apoiava o Padre e, como ele, antipatizava com o Regime ”.
Abalados pela morte do Padre, mas principalmente pela de
Adriel, eu e Eliza de Andrade, mulher dele, queríamos realizar as
cerimônias fúnebres na Igreja da Conceição dos Militares, na Rua Nova:
primeiro porque Adriel tinha especial devoção por Nossa Senhora;
depois por causa do Painel pintado sobre madeira no forro-e-tecto do
Coro, o qual representava a Batalha de Guararapes , símbolo da luta que,
no século XVII, impedira o Brasil de ser afastado dos caminhos da
Iarandara , da Rainha do Meio-Dia da qual falara o Cristo, num de seus
derradeiros Sermões proféticos.
Mas a Polícia proibiu isso “ para evitar qualquer
descaracterização da cerimônia religiosa, que poderia ser transformada
em manifestação política ”. Correu logo também a notícia de que “ quem
fosse ao enterro sem pertencer às Famílias dos mortos se tornaria
suspeito aos Órgãos de Segurança ”. E, a pretexto da necessidade de
fazer-se um rigoroso exame de delito dos corpos, a Polícia encarregou-
se do enterro, sendo os dois sepultados quase em segredo, no Cemitério
de Paulista, cidade próxima ao Recife.
Pode-se bem imaginar em que situação fiquei naquele
momento. Primeiro, cabia-me o dever de assumir Eliza e os filhos que
meu irmão deixara órfãos e que logo passei a considerar meus. Depois,
quem poderia garantir que eu mesmo não estaria começando a ser
visado? Nos primeiros tempos do Golpe militar fôramos deixados em
relativa paz porque, contrariando os grupos radicais da Esquerda,
tínhamo-nos oposto à nossa aliança com os Marxistas, que usavam dois
pesos e duas medidas em sua análise das relações entre os Estados
Unidos, o Brasil e a União Soviética. Mas, na medida em que passava o
tempo, Auro, desesperado, começou a pender para a Oposição, fosse ela
qual fosse, e terminara por ser preso. Agora, para minha surpresa,
chegara a vez de Adriel, que até ali nunca fora sequer considerado
suspeito (pois ele e eu continuávamos a nos opor à nossa aliança com
os Marxistas).
Assim, mal acabou a cerimônia do sepultamento, corri a falar
com um Delegado, Arnaldo Pessanha Villoa, que fora meu colega na
Faculdade de Direito. Apesar de pertencer à Família inimiga da nossa,
era protegido por meu Tio Antero Schabino: por intermédio de um
Deputado eleito por Igarassu, fora Tio Antero quem lhe conseguira
aquele cargo de Delegado. Profundamente grato a meu Tio, Arnaldo
Villoa era-lhe fiel até as últimas consequências.
Fui encontrá-lo em seu Gabinete, situado na Rua da Aurora; e lá,
assim que pude, falei daquela surpresa que, além do choque e da
tristeza, me deixara assombrado ante a morte de meu irmão.
Ele, pensativo, cuidadoso, escolhendo as palavras, respondeu
assim:

ARNALDO VILLOA
Em primeiro lugar, quero que Você me faça a justiça de não me
julgar envolvido na morte de um sobrinho do meu protetor e amigo, seu
tio Antero Schabino; nem eu nem os setores que trabalham sob minhas
ordens na Secretaria da Segurança Pública.
Agora, para poder ajudá-lo como quero, preciso de alguns
esclarecimentos sobre Você e seus irmãos. É verdade que seu Tio está
rompido com Vocês?

DOM PANTERO
Não. Romper, mesmo, ele só rompeu com Auro.

ARNALDO VILLOA
Qual foi o motivo do rompimento?

DOM PANTERO
A princípio, foi somente um problema literário. Meu Tio,
enciumado, nunca perdoou a Auro a publicação de seu Romance d ’ A
Pedra do Reino e a criação do Movimento Arraial , que ele considerou
uma dissidência inútil e inferior de seu próprio Movimento Grial .
ARNALDO VILLOA
Você disse “ a princípio ”... E depois?

DOM PANTERO
O rompimento se agravou quando Auro, levando cada vez mais a
sério suas preocupações religiosas, resolveu aprofundar aquilo que Tio
Antero chamava “ sua demagógica afetação ascética ”: Auro deixou
nossa Casa e foi morar na Favela-Consagrada d’ A Ilha de Deus .

ARNALDO VILLOA
Você e Adriel apoiaram seu irmão ou seu Tio?

DOM PANTERO
Na Ilha de Deus nós nos limitávamos a encenar, num Barracão —
o Teatro Antônio Conselheiro —, as peças que Adriel escrevia, Afra
coreografava e eu dirigia.
Quanto à briga, procuramos manter um certo equilíbrio em
relação aos dois. Em busca de uma reconciliação fomos falar primeiro
com Tio Antero. Mas, assim que tocamos no assunto, ele ficou furioso.
Disse que nós — Auro, Adriel e eu — éramos “ 3 Parricidas ”: morto
nosso Pai, tínhamos escolhido a figura dele próprio como “ Imagem
paterna ”, imagem que podíamos apunhalar sem culpa como estávamos
fazendo agora — eu e Adriel menos, Auro com mais gravidade.
Por isso, Arnaldo, não entendo que Vocês tenham se voltado
agora contra Adriel. Contra Auro, ainda posso admitir, se bem que
deseje reafirmar, mais uma vez, que ele não é nem nunca foi Marxista.

ARNALDO VILLOA
O Romance dele, a meu ver de propósito, foi escrito de maneira
muito complicada. Ainda assim, tem uma frase estranha onde ele
afirma: “ Meu sonho é fazer do Brasil um Império do Belo Monte de
Canudos, um Reino de república-popular, com a justiça e a verdade da
Esquerda e com a beleza fidalga, os cavalos, os desfiles, a grandeza, o
sonho e as bandeiras da Monarquia Sertaneja. ” Veja bem: “ República-
popular, justiça e verdade da Esquerda. ” Repúblicas-populares são
atualmente as marxistas, da Cortina de Ferro !
Mas o que preciso saber agora é a que ponto Você e Adriel
apoiavam Auro e o Padre Matias, na Ilha de Deus .

DOM PANTERO
Como normalmente acontece nas Famílias sertanejas nós todos
éramos, e somos, profundamente unidos. Mas não nos sentimos
obrigados a subscrever todas as opiniões, todos os atos, uns dos outros.
Por exemplo: nem eu nem Adriel nos mudamos para a Ilha de Deus !
ARNALDO VILLOA
Mas Você deve se lembrar de que Adriel escreveu um Poema
chamado Soneto de Babilônia e Sertão . Sua memória é conhecida: faça o
favor de recitá-lo!

DOM PANTERO
Pois não, ouça!

SONETO DE BABILÔNIA E SERTÃO


Com tema de Camões e mote de Tupan Sete

Aqui, o corvo-azul da Suspeição apodrece nas Frutas violetas; e a


Febre-escusa, a Rosa-da-infecção, canta aos Tigres de verde e malhas
pretas.
Lá, no pelo-de-cobre do Alazão, o Bilro-de-ouro fia a Lã vermelha.
Um Pio-de-metal é o Gavião, e são mansas as Cabras e as Ovelhas.
Aqui, o Lodo mancha o Gato-pardo. A Lua esverdeada sai do
Mangue e apodrece, no Medo, o Desbarato.
Lá, é Fogo e limalha a Estrela-esparsa: o sol da Morte luz no sol
do Sangue,“mas cresce a Solidão e sonha a Garça”.

ARNALDO VILLOA
Na sua opinião, o que é que significa este Soneto?

DOM PANTERO
Você o leu no Jornal ou na Vida-Nova Brasileira , do Livro O Pasto
Incendiado ?

ARNALDO VILLOA
No Jornal.

DOM PANTERO
Se fosse no Livro saberia: no Soneto, Adriel, como Sertanejo “
eLivros ” que era, falava da oposição entre a Cidade, a “ Babilônia ” onde
vivia, e o Sertão, onde passara a infância. Para isso aproveitou o tema de
um Salmo bíblico — tema que Camões usara numa Redondilha onde
opõe “ Babilônia, o mal presente ” a “ Sião, o tempo passado ”.

ARNALDO VILLOA
Chamo sua atenção para um fato importante: no Soneto de seu
irmão, todos os verbos estão no presente, de modo que, nele, a “
Babilônia ” é o Recife, lugar “ de podridão, perigo e sofrimento ”; e o
Sertão, onde se fia sossegadamente “ a Lã vermelha ”, por entre “ a
mansidão das Cabras e das Ovelhas ”, é uma espécie de “ Sião ”, não
passada mas atual, e livre de sofrimentos e perseguições.
Mas vamos, também, deixar isso para lá, porque tudo o que vou
lhe dizer daqui para diante é estritamente confidencial. Se Você revelar
qualquer coisa a respeito desta nossa conversa, colocará em perigo não
só a sua vida, mas também a minha. Você sabia que fui eu que mandei
prender Auro?

DOM PANTERO
Não!

ARNALDO VILLOA
Pois saiba agora! Fiz isso a pedido de seu Tio, para protegê-lo! E
estou arrependido por não ter feito o mesmo com Adriel: se ele tivesse
sido preso por mim não estaria morto, como está. E o fato que vou lhe
revelar agora é o mais terrível e mais perigoso de todos, tanto para mim
quanto para Você: dentro da Revolução e dos Órgãos de Segurança
existe um Poder paralelo, implacável, sinistro, ultrassecreto. Às vezes
esse Poder é exercido por fora até do conhecimento e da autoridade dos
Generais, incluindo-se aí o Presidente da República! Para que Você
possa avaliar até onde vai esse Poder, basta que lhe diga: foram seus
Agentes que praticaram a maior parte dos atentados que estão
ocorrendo no Brasil, com o resultado sangrento que Você conhece.
Pois bem, foi dos meios próximos a esse Poder que chegou a
informação: o Soneto composto por Adriel não é tão inocente quanto
Vocês querem dar a entender; aquela “ Febre-escusa ”, aquela “ Rosa-da-
infecção ”, é a Revolução que Vocês chamam de “ Golpe militar de 64 ”; e
aqueles “ Tigres de verde e malhas pretas ” são os Oficiais do Exército
que a chefiam.
Mas até no que lhe diz respeito tenho que avisá-lo: seu Tio e eu
sabemos que, durante os meses de Abril e Maio de 1964, Você escondeu
em sua Casa um quadro importante do Comitê-Central do Partido
Comunista , Hiram Pereira. E, logo nos primeiros momentos da nossa
Revolução, Você aceitou um convite de Dom Hélder Câmara para dar
suas Aulas na sede do Arcebispado.
De acordo com meu interesse pessoal — e também com o da
Revolução da qual faço parte — Você deveria ser preso agora mesmo; e
preso por mim, o que me levaria a ganhar pontos perante o “ Poder
secreto ”. Mas, levando em conta tudo o que devo a seu Tio e Padrinho,
não vou fazer isso. Vou até mais longe, arriscando-me a lhe dar um
conselho que pode deixá-lo mais resguardado. É alguma coisa que me
foi sugerida pelo próprio Soneto de seu irmão. Você tem condições,
agora, de passar uma temporada longe do Recife? Em Taperoá, por
exemplo?

DOM PANTERO
Tenho! Há tempo recebi um convite de uma pessoa que mora lá
e que, seguindo o exemplo de Balduíno Lélis, fundador da Universidade
Leiga do Trabalho , criou a Universidade Popular Taperoaense — Unipopt .
Ele me convidou para ser, nela, Professor e Reitor (o que fez levando em
conta o título de Doutor que me deram na Universidade Federal de
Pernambuco ).
Só existe um problema: é que, de início, eu teria que tirar uma
Licença-Prêmio para me afastar da Universidade, e não posso conseguir
isso assim de repente!

ARNALDO VILLOA
Você conhece, na Reitoria, um homem chamado Ernâni?

DOM PANTERO
Conheço!

ARNALDO VILLOA
Ele é ligado a nós! Pertence a meu grupo e tem conhecimento de
quase tudo o que estamos conversando. Vá lá, porque, a meu pedido, ele
resolverá, ainda hoje, todos os problemas a respeito de sua
documentação.
Neste momento quero, mais uma vez, assegurar a Você que meu
Pai não teve nenhuma participação no assassinato do seu; Aristides,
sim, meu Pai não. Muitas vezes eu ouvi, dele, afirmações em tal sentido,
num tom que tinha alguma coisa de “Confissão sagrada”.
Se puder, viaje amanhã mesmo. E agora, sem levar em conta as
nossas divergências políticas e nossas velhas brigas de família, me dê
um abraço e vá-se embora. Se puder, também, evite passar por Campina
Grande, onde os Órgãos de Segurança são mais atentos e bem
organizados: seu nome e seu retrato já podem estar por lá, entre os
Suspeitos!

Como se vê, esta foi uma Saída que não planejara e que fui
forçado a empreender levando em conta o terrível golpe que acabara de
sofrer. Segui o conselho de Arnaldo Villoa e fui para a Reitoria, onde
Ernâni realmente resolveu todo o problema burocrático que me
prendia à Universidade.
Depois, em casa, teria a oportunidade de, mais uma vez, admirar
a fortaleza que era minha Mãe. Viúva aos 34 anos, cobrira a alma e o
corpo de um luto que nunca deixaria de usar até sua morte, em 26 de
Abril de 1990. Depois, vira Mauro — seu filho predileto — matar-se
daquela maneira terrível. E agora via Adriel morrer, como o Cavaleiro,
enredado nas teias amaldiçoadas do ódio político. Mantinha-se forte e,
quando cheguei em casa, ela estava confortando Eliza pela perda de
Adriel.
Beijei as duas e combinei com Eliza: eu iria para Taperoá na
frente, e depois, caso o convite que Quaderna me fizera desse certo,
mandaria buscá-la, com os filhos. E parti no dia seguinte, em meu Carro,
ao qual, sem querer, de maneira quase inconsciente, forçava uma
velocidade bastante superior à habitual. Meu medo maior era que
algum posto da Polícia Rodoviária Federal me mandasse parar para
uma inspeção de rotina e descobrisse meu nome entre os dos “
Procurados ”.
Mas passei incólume pelo primeiro, o de Abreu e Lima. E ao
chegar às proximidades de Goiana, resolvi de repente abandonar a
Estrada principal, provavelmente mais vigiada, tomando a que segue
por Itambé e Juripiranga.
Ideia semelhante tive ao chegar a Itabaiana: ao invés de seguir a
Estrada que me levaria de volta à principal, dobrei à esquerda, pelo
caminho mais estreito, porém mais deserto, de Mogeiro e Ingá.
A chegar ao local do desvio que leva à famosa Itaquatiara , parei;
estava indeciso entre continuar logo a Viagem, como a prudência me
recomendava, e me deter um pouco para “ pegar ” a energia daquela
Pedra sagrada, tão parecida com a do Altar-central da Ilumiara Jaúna , e
que, para mim, era e fora sempre uma espécie de “ Pedra da Roseta ”, a
guardar, em seus misteriosos hieróglifos, “ o segredo do Mundo ”.
Olhei em torno, e o sossego do lugar me devolveu um pouco da
tranquilidade de que necessitava: não era possível que aquele terrível “
Poder secreto ” do qual falara Arnaldo Villoa tivesse tomado
conhecimento até do culto que nós, filhos de meu Pai, prestávamos
àquelas Pedras, mandando então seus Agentes para me espreitar
naquela congênere menor da Ilumiara Jaúna que era a Itaquatiara do Ingá
.
João Sotero Veiga: Livro Negro do Cotidiano

Aí, liguei de novo o motor do Carro e segui pelo desvio que leva
à Pedra. Mas ao chegar a suas proximidades tive um sobressalto: ao
contrário do que esperava, 3 Caminhões estavam estacionados ali, e
uma porção de gente, espalhada por todo canto, examinava
curiosamente o grande Monólito insculpido e deitado da Itaquatiara.
Meu medo só não foi maior porque um dos Caminhões tinha,
sobre a Cabine, uma espécie de Flâmula na qual estava escrito Trupe do
Cavalo Castanho . E bastou um primeiro olhar sobre aquelas pessoas
para sossegar-me: estava entre minha querida e estranha “ tribo de
Teatro ”. Pensei, como André Luiz Moreau, em Scaramouche :
João Sotero Veiga: Livro Negro do Cotidiano

ANTERO RAFAEL SABATINI SAVEDRA


“Eram gente esquisita mas simpática. Estavam todos alegres,
despreocupados, sem se importar com os apuros e tribulações de sua vida
nômade. Eram singularmente artificiais, mas de uma artificialidade
amável, teatrais na maneira de fazer as coisas mais simples, exagerados
nos gestos, afetados no falar. Pareciam pertencer a um mundo à parte,
mundo de irrealidades que somente se tornava real à luz da Ribalta, no
tablado do Palco.”

DOM PANTERO
Aproximei-me do grupo e falei: “ Desculpem a inconveniência,
mas sou também de Teatro e queria saber quem são Vocês e de onde vem
a Companhia. ”
Destacando-se dos outros, apareceram 2 homens que, pelos
modos, pareciam ser os dirigentes da Trupe. E o que parecia mais velho
e mais importante falou:

João Sotero Veiga: Livro Negro do Cotidiano

DOM PANCRÁCIO CAVALCANTI


Somos do Rio Grande do Norte e estamos batalhando pelo
Teatro há bastante tempo — eu e meu irmão Porfírio, que é este aqui e
que, comigo, dirige a Trupe do Cavalo Castanho ! Fazemos Teatro
ambulante; mas ultimamente os tempos andam ruins e estamos
pensando em dissolver a Companhia, vender os Caminhões e
estabelecer-nos, como Comerciantes, em Campina Grande. E o senhor,
quem é?

DOM PANTERO
Sou daqui mesmo, da Paraíba, e chamo-me Aribo Sallemas. ( Eu
resolvera adotar este nome, que tinha as mesmas iniciais de Antero
Savedra, porque meus lenços e minhas camisas tinham o monograma A S
, bordado por minha irmã Afra. )

João Sotero Veiga: Livro Negro do Cotidiano

DOM PORFÍRIO DE ALBUQUERQUE


Estamos espantados com esta Pedra, é a primeira vez que
estamos vindo aqui. O senhor sabe nos dizer alguma coisa sobre ela?

DOM PANTERO
Pouca coisa! Mas quanto à admiração de Vocês não me espanto.
Sempre que venho aqui, fico possuído de uma sensação de respeito
quase religioso. Porque, na minha opinião, esta Pedra é uma espécie de
Altar, de Ara, esculpida em baixo-relevo, há milhares de anos, pelos
antepassados dos povos Cariris, que habitaram o Sertão alto da Paraíba
— terras que, por causa deles, ainda hoje são chamadas de Sertão dos
Cariris Velhos da Paraíba do Norte .
Mas me digam uma coisa: pelo que entendi, Vocês estão
querendo acabar a Trupe apenas por dificuldades financeiras, não é
isso?

João Sotero Veiga: Livro Negro do Cotidiano

DOM PANCRÁCIO CAVALCANTI


É isso mesmo!

DOM PANTERO
Então, tenho uma proposta a fazer a Vocês. Estou viajando para
Taperoá, onde vou assumir o cargo de Reitor da Universidade Popular
Taperoaense . Lá, pretendo fundar um Departamento de Teatro , e uma
Companhia experiente como a de Vocês pode muito bem nos servir de
base para a dinamização dele. Vocês dois podem ser nomeados
Professores-titulares, por exemplo, de Teoria do Teatro e História do
Teatro; os outros, como depois resolveremos, poderão ser Assistentes
das diversas Cadeiras — Caracterização, Cenografia, Expressão
Corporal, Dicção etc.
Agora, não é necessário que Vocês assumam imediatamente
compromisso nenhum comigo: viajaremos juntos; e se, depois,
chegarem à conclusão de que a proposta não convém ao Grupo, voltam
para Campina Grande, vendem os Caminhões e se estabelecem, lá, como
Comerciantes.

DOM PORFÍRIO DE ALBUQUERQUE


A proposta é generosa, e, noutras condições, nós a aceitaríamos
na hora! Mas nossas necessidades são urgentes, já estamos com pouco
dinheiro e nossa decisão tem que ser tomada já, porque Campina tem
condições melhores de mercado, tanto para vender os Caminhões
quanto para abrir nossa Loja!

João Sotero Veiga: Livro Negro do Cotidiano


Paulino Villar: Ferros do Cariri

DOM PANTERO
Acho que tenho, também, uma solução para este problema:
trouxe comigo o texto manuscrito de uma Peça que encenei há muito
tempo; é Romeu e Julieta , adaptada de um Folheto escrito por João
Martins de Athayde. Não estava satisfeito com a primeira versão que
encenei e pretendia corrigir o texto logo que chegasse a Taperoá, para
encená-lo na Unipopt . Poderíamos acampar em Ingá, ensaiar a Peça e
exibi-la em Campina Grande. Acho que com o Espetáculo,
melhoraremos o caixa da Trupe, que assim poderá viajar comigo até
Taperoá, adiando, ou talvez até acabando de vez, com essa triste
resolução de fechar a Trupe do Cavalo Castanho .

DOM PANCRÁCIO CAVALCANTI


Acontece que um público como o de Campina Grande só iria ver
Romeu e Julieta se fosse uma Peça “ imprópria para menores ”, o que não
é o caso!

DOM PANTERO
Numa das encenações que fizemos antes, um Tio meu (que foi
meu Professor e do qual depois falarei melhor a Vocês) acrescentou ao
Folheto “ textos quentes de vários Escritores famosos ”, como Aluízio
Azevedo, José de Alencar e Júlio Ribeiro. Estou convencido de que, se os
usarmos, o Público campinense acorrerá em massa para ver a Peça. Um
de Vocês deve ir, antes de nós, a Campina, e dar entrevistas ao Jornal da
Paraíba e ao Diário da Borborema . Nelas, deixará bem claro que o texto é
“ pesado ” — o que, tenho certeza, atrairá o Público ao Teatro.

DOM PORFÍRIO DE ALBUQUERQUE


Mas existe o problema da Censura. Antes, com o mesmo
objetivo, costumávamos avisar que só deveriam comparecer a nossos
Espetáculos “ adultos de sólida formação religiosa, moral, poética e
filosófica ”. Mas agora a Censura está mais rigorosa e deixamos isso de
lado.

DOM PANTERO
Bem, não acredito que a Censura vá nos incomodar. Depois de
vários choques violentos que teve com a classe teatral, ela celebrou
conosco uma espécie de acordo tácito, não escrito, pelo qual, desde que
deixemos a Política de lado, eles fecham os olhos para outros assuntos,
inclusive a obscenidade.

DOM PANCRÁCIO CAVALCANTI


Sendo assim, acho que podemos aceitar a generosa proposta
que nos fez.
Paulino Villar: Ferros do Cariri

Circo da Onça Malhada

DOM PORFÍRIO DE ALBUQUERQUE


Sou da mesma opinião! Todos nós, inclusive os Atores, fomos
infeccionados de uma vez para sempre com “ o vírus do Teatro ”; e, se
nos aparece uma oportunidade como esta de levar adiante nossa bela “
Doença ”, nós a aceitamos, profundamente agradecidos!
DOM PANTERO
Foi assim que, como André Luiz Moreau em Scaramouche , eu me
coloquei “ a serviço de Téspis ”.
Ao encontrar a Trupe, pensara que, se me juntasse a ela, seria
muito mais fácil para mim escapar aos Órgãos de Segurança em
Campina, lugar mais perigoso da Viagem segundo fora advertido por
Arnaldo Villoa. E tudo aconteceu como planejáramos, inclusive no que
dizia respeito à Censura. Paramos em Ingá e ensaiamos a Peça até que
os Atores a tivessem na ponta da língua.
Outra coisa: para garantir-nos ainda mais, eu reescrevera o
texto, adotando uma Ortografia complicada e pretensamente antiga.
Com isso pretendia entediar os Censores a ponto de eles, perdendo a
paciência, deixarem de lado uma leitura completa e cuidadosa da Peça
(o que realmente veio a acontecer). E escrevi outra versão, simplificada
e clara, para facilitar o trabalho dos Atores nos ensaios.
Também tivera o cuidado de confiar os papéis masculinos de
Velhos mais importantes a Pancrácio e Porfírio, a fim de que eles me
perdoassem o de Narrador , que reservara para mim, no Espetáculo.
Por outro lado, vendo que os dois adotavam os pomposos
nomes-artísticos de Dom Pancrácio Cavalcanti e Dom Porfírio de
Albuquerque , acrescentei um P ao nome falso que vinha usando e
resolvi aparecer em cena sentado a uma Mesa, fixada no Palco do lado
direito do Público. De lá, eu faria a Narração com o nome de Dom Paribo
Sallemas , Personagem que passei a encarnar (vindo, depois, a fazer-me
substituir por dois Atores — alternadamente João Cláudio Moreno e
Aramis Trindade —, quando me era mais conveniente não aparecer em
cena e assumir somente minha condição de Encenador).
Trupe do Cavalo Castanho

Mas, para aquele primeiro Espetáculo, não havia necessidade de


esconder-me, pois a máscara de Palhaço me disfarçava a cara, talvez já
conhecida pelos temíveis Órgãos de Segurança do Regime Militar.
Outra coisa que devo explicar: sendo aquela a minha estreia
como Ator, eu, por segurança, levei cópia do texto para minha Mesa;
poderia lê-lo quando a memória falhasse, evitando-me assim qualquer
fiasco diante do Público e dos outros Atores mais experientes.
De modo que foi assim que me juntei àquela Trupe que bem
podia começar sendo, para mim, um “ Circo ”, parecido com aquele que
povoava meus sonhos desde Menino:

ALBANO CERVONEGRO
O Circo: sua Estrada e o Sol de fogo. Ferido pela Faca, na
passagem, meu Coração suspira sua dor, entre os cardos e as pedras da
Pastagem. O galope do Sonho, o Riso doido, e late o Cão por trás desta
Viagem.

DOM PANTERO
De fato, eu achava que, integrado àquela Trupe ambulante, cujos
Atores deixavam suas Casas para viver ao Sol de fogo da Estrada,
conseguiria neutralizar um pouco o sofrimento causado pela morte de
meu irmão Adriel; e, pela primeira vez em minha vida, realizava o
sonho que, desde Menino, me acompanhava — o de ser Palhaço e Dono-
de-Circo; sonho que me perseguia desde que, em Taperoá, vira o Circo
Stringhini , com o extraordinário Palhaço Gregório como Figura central:
um Circo em que, a despeito de todos os meus extravios, tudo fosse
feito, como queria Santo Inácio de Loyola, “ ad majorem Dei gloriam ”,
para maior glória de Deus.
E assim, na noite de 11 de Setembro de 1976, exatamente 20
anos depois de Adriel estrear seu “ Auto d ’ A Misericordiosa ”, abriram-
se as portas do Teatro Municipal de Campina Grande para a versão
brasileira de Romeu e Julieta , um estrondoso sucesso. Tão grande que a
direção do Teatro nos concedeu mais 3 dias para uma temporada que
nos trouxe muitos aplausos do Público, da Crítica dos dois maiores
Jornais campinenses e, o que foi melhor, os maiores lucros que a Trupe
já tinha conseguido em sua vida errante pela Estrada (o que Dom
Pancrácio e Dom Porfírio tiveram a generosidade de me confessar).
Quanto à Peça, propriamente, preciso explicar que quando lera
pela primeira vez o Folheto escrito por João Martins de Athayde, eu já
conhecia um artigo no qual o Escritor paraibano Alfredo Pessoa de
Lima dizia que a luta secular travada por nossa Família, os Savedras,
com a dos Villoas, era semelhante à das Famílias florentinas, os nossos
equivalendo aos Montéquios e os Villoas aos Capuletos.

Ora, em seu Folheto, João Martins de Athayde chamara os


Montéquios de “ Família honesta e humana ” que, com razão, se opunha
à “ Raça tirana ” dos Capuletos (o que, desde 1945, me causava imenso
orgulho).
Por outro lado, já então Liza — que eu perdera para “ o outro ”
— se transformara para mim no “ Sonho louco, vago, impossível ” do
qual falava Gustavo Adolfo Bécquer. Assim sendo, no Espetáculo
estreado em Campina, pensando no Antero Savedra jovem, eu o
colocara no papel de Romeu Montéquio , e Liza Reis no de Julieta
Capuleto .
Agira de modo parecido com outros Personagens: fundira o
Duque de Capuleto com o Doutor Jayme Villoa; Teobaldo com Aristides
Villoa: Aristides fora o mandante do assassinato de meu Pai, o Cavaleiro
João Canuto (fundido por mim, na Peça, com o Conde Montéquio );
minha Mãe, Maria Carlota Savedra, era a Condessa Montéquio ; Otacílio
Negromonte, empreiteiro do assassinato de meu Pai, era o Conde Páris ;
e os dois executores do crime, isto é, Antônio Granjeiro e Miguel Alves
de Sousa, apareciam, no Espetáculo, como os 2 Carrascos que
conduziam a Condessa Montéquio para a morte.
Seguindo a ideia que tivera antes, eu reservara o papel do Duque
de Capuleto para Dom Pancrácio Cavalcanti; o do Conde Montéquio ,
para Dom Porfírio de Albuquerque; o de Liza-Julieta para a Atriz mais
jovem e bela da Trupe; assim como o de Antero-Romeu para o Ator
jovem mais bem apessoado do Elenco.
Finalmente devo dar a todos os nobres Cavaleiros e belas Damas
da Pedra do Reino outra informação sobre o Espetáculo: eu sabia cantar
uns versos de Lorenzo Stechetti e do Barão de Paranapiacaba
(respectivamente Medievo e Violetas ), porque minha Mãe costumava
cantá-los para me fazer dormir. Assim pude ensiná-los a Renata Máttar
(que fazia parte da Trupe) e à outra Atriz que fazia a Duquesa de
Capuleto , Lucinha Guerra, a fim de que as Canções pudessem ser
apresentadas em cena.
Mas é melhor passar logo ao Espetáculo, que falará a respeito de
tudo isso bem melhor do que eu.

A HISTÓRIA DO AMOR DE ROMEU E JULIETA


Segunda Introdução a’O Palco dos Pecadores
DOM PARIBO SALLEMAS
“Eu vou contar, neste Palco, a história de Romeu, a sua curta
existência, e tudo o que padeceu: foi a história mais tocante que a minha
Pena escreveu.

“É uma história conhecida em quase toda Nação. No Teatro e no


Cinema, tem causado sensação, deixando amargas lembranças no mais
brutal coração.
“O que sofreu Julieta, quem, como eu, já tem lido todo o seu
padecimento como foi acontecido, depois de seis, sete anos, inda não está
esquecido.

“Olinda, grande Cidade da terra pernambucana, foi berço dos


Capuletos, aquela Raça tirana, inimiga dos Montéquios, Família honesta e
humana.
“O Duque de Capuleto, que tinha grande poder, queria ao Conde
Montéquio aniquilar e vencer. Os dois viviam sonhando ver um ou o outro
morrer.
“Ali, tudo era desgosto, intriga e rivalidade. Um dia, corre a
notícia que assombrou toda a Cidade, notícia que era o começo da grande
fatalidade.
“Romeu tinha quatro anos quando veio um Pelotão, mandado por
Capuleto, por uma cruel traição. Nesse dia foi Montéquio trancado numa
Prisão.
“Ficou o Conde Montéquio naquela Prisão sombria. Ali ele
ignorava se era de noite ou de dia. Era preso e acorrentado: nem se mexer
não podia.”

DOM PANTERO
Neste momento do Espetáculo, Antônio Granjeiro e Miguel Alves
de Sousa traziam a Condessa Montéquio, ela com Romeu nos braços. O
Conde, que não os via no primeiro momento, falava então:

JOÃO CANUTO MONTÉQUIO JAÚNA


“Aqui estou acorrentado, sem socorro de ninguém. Aqui estou
aprisionado, sem saber como e por quem! E, ah meu Deus, minha Mulher
vem ali, presa também!
“Que dor no meu coração, ao ver minha Esposa amada, trazida
por dois Carrascos, um de Lança, outro de Espada, ela com Romeu nos
braços, triste, só e abandonada!

MARIA CARLOTA MONTÉQUIO JAÚNA


“Eu te abraço, meu Marido, minhas queixas relatando! Vê nosso
filho Romeu, que, inocente, está chorando!

JAYME CAPULETO VILLOA


“Aqui é chegada a hora de eu ir na Prisão entrando.
“Canuto, agora eu me vingo: hoje hás de me pagar! Eu tenho ódio
dos teus e agora vou te mostrar o furor da minha ira a que ponto vai
chegar!

“Estás aí, como preso: para mim, não tens perdão! Vou decidir tua
sorte, tenha ou não tenha razão! A vida de tua Esposa está aqui, na
minha mão!
“Tua querida Mulher vai morrer, para teu mal! Talvez ela nem
mereça esta sorte tão fatal: mas vai morrer assim mesmo, cravada por
um Punhal!

JOÃO CANUTO MONTÉQUIO JAÚNA


“Eu digo, Jayme Villoa, que roubaste meu direito! Prendeste-me à
traição, não tens coração no Peito! Mata-me a mim! Que ela viva, e eu
morrerei satisfeito!

JAYME CAPULETO VILLOA


“Não, Canuto, eu vou matá-la: não adianta chorar! Te odeio
profundamente, mas vivo vou te deixar, para que da morte dela sempre te
possas lembrar!
MARIA CARLOTA MONTÉQUIO JAÚNA
“Ah meu Deus, que sina triste! Me sinto desfalecida! Olho, aqui,
para meu Filho, por ele choro, sentida, pois vejo que não me resta nem
meia-hora de vida!”

DOM PANTERO
Aqui, Antônio Granjeiro arrancava Romeu dos braços de sua
Mãe, enquanto Miguel Alves de Sousa, obedecendo às falas do Duque,
apunhalava a Condessa:

JAYME CAPULETO VILLOA


“A teus pedidos, Canuto, meu sangue não atendeu! Já ordenei a
Granjeiro, que logo me obedeceu: dos braços de sua Mãe foi arrancado
Romeu!
“Tu, Pai dele, estás aí, infeliz e acorrentado! Tu, Carlota, vem pra
cá, aqui pr’este outro lado, que é pra teu Marido ver meu ódio em ti
saciado!
“Miguel tirou o Punhal que à cintura carregava. Já crava no peito
dela — era o que eu sempre jurava! — e o sangue sai da ferida, quando o
Punhal inda entrava!

MARIA CARLOTA MONTÉQUIO JAÚNA


“Você, Duque, é muito ruim: seu coração é perverso! Mas tenha dó
do meu Filho, que ainda dorme de berço!

JAYME CAPULETO VILLOA


“Miguel, enterra o Punhal para entrar até o terço!
DOM PARIBO SALLEMAS
“Com a dor da punhalada, a Condessa estremeceu:

MARIA CARLOTA MONTÉQUIO JAÚNA


“Adeus, meu querido Esposo! Cuida do nosso Romeu! Diz a Romeu
que a Mãe dele, sendo inocente, morreu!

JAYME CAPULETO VILLOA


“Já está morta a Condessa, prostrada na Laje fria! Vou arrancar o
Punhal, onde o sangue já esfria; e mostro ao Marido dela que foi como eu
garantia!
“Então, querido Canuto, já viste como sou eu! Guarda o Punhal
para ti: agora o Punhal é teu. Quando teu Filho crescer, dá de presente a
Romeu!
“O corpo de tua Esposa, não deixarei sepultar! Vocês, Carrascos, o
levem, pela rua a se arrastar. Depois, coloquem num Saco e joguem
dentro do Mar!
DOM PARIBO SALLEMAS
“Aí tendo praticado tamanha barbaridade, Villoa foi para casa.
Quando chegou à Cidade, deu ordem pra que Canuto fosse posto em
liberdade.
“Canuto, desesperado, saiu daquela Prisão, dando uma mão para
o Filho, com o Punhal na outra mão. Foi chorar a sua sorte, sozinho, na
solidão.
“Dezesseis anos passaram!
“Romeu via sempre o Pai, muito triste, a suspirar. E o filho no seu
segredo não podia penetrar. Como o Pai nunca se abria, Romeu não quis
perguntar.
“Mas um dia o Pai achou que já havia condição de Romeu vingar a
Mãe; fez do crime a narração; e concluiu o que disse fazendo uma
exortação:

JOÃO CANUTO MONTÉQUIO JAÚNA


“Foi assim, querido Filho, que a tua Mãe morreu. No fim, Capuleto
disse: ‘Agora o Punhal é teu. Quando teu Filho crescer, dá de presente a
Romeu!’
“Filho, foi este o Punhal que a tua Mãe traspassou. Faz hoje
dezesseis anos que o Duque a assassinou, morta por este Punhal que um
dos Carrascos cravou.
“Hoje inda choro, Romeu, a nossa infelicidade! Tenho-te dado
instrução só por força de vontade. Desde aquele dia vivo fora da
sociedade.
“Isto que te digo agora, guardei na minha lembrança. Passaram
dezesseis anos, eras ainda criança. Meu Filho, o tempo é chegado: peço-te
a nossa vingança!
“Parte, Romeu, sem demora! Sai da sombra! Parte, vai! Mata o
Duque! É o que te pede o coração de teu Pai!
ANTERO ROMEU MONTÉQUIO SAVEDRA
“Eu recebo este Punhal que o meu sangue derramou! Beijando a
Cruz de seu cabo, juro o que meu Pai jurou! Mato o Duque com o Punhal
que a minha Mãe me levou!

JOÃO CANUTO MONTÉQUIO JAÚNA


“Recebo o teu juramento com muita satisfação, pois vais cumprir
a vingança que te dei como missão!

ANTERO ROMEU MONTÉQUIO SAVEDRA


“Sim, eu juro, meu bom Pai, que vingo essa maldição!
DOM PARIBO SALLEMAS
“No outro dia, Romeu, com um amigo dedicado, dirigiu-se para
Olinda e o castelo do Ducado. Dizia para o amigo que o Pai seria vingado.
“Esse amigo de quem falo e que ia com Romeu, junto a ele se
criara, junto com ele cresceu. Eram como dois irmãos: Mercúcio era o
nome seu.
“No dia em que os dois chegaram lá nas terras do Ducado, o
aniversário da filha do Duque era celebrado. O Castelo estava em festa,
ricamente embandeirado.
“Romeu saltou do Cavalo e combinou com o Amigo. Entraram lá
disfarçados, naquele Castelo antigo, pois ambos eram valentes, não
fugiam do perigo.
“Os que estavam lá na Festa, tinham ido mascarados. Assim
fizeram os dois: entraram fantasiados, ambos de Castelo adentro, em
Capotes embuçados.
“Dentro, tudo era alegria, muitos Rapazes dançavam. Algumas
Moças, sentadas, com seus Noivos conversavam. Tocavam alguns dos
Músicos, outros alegres cantavam.”

DOM PANTERO
No Espetáculo realizado em Campina Grande, eu escolhera dois
Atores e uma Atriz que tinham boa voz para que, com a música do
Romance de Minervina , cantassem a História de Bernal Francês ,
apresentada ali como um triste augúrio sobre o amor de Romeu e
Julieta:

A AMADA
“Quem bate na minha Porta? Quem bate? Quem está aí?

O AMANTE
“É Dom Bernaldo Francês, sua Porta mande abrir.
João Sotero Veiga e José Azevedo Dantas: Gravuras do Livro Negro do Cotidiano

A AMADA
“No deitar da minha Cama, eu rompi o meu Frandil. No descer da
minha Escada, me caiu o meu Chapim. No abrir da minha Porta, apagou-
se o meu Candil.
“Peguei Bernal pela mão, levei-o para o Jardim; fiz-lhe uma cama
de Rosas, travesseiro de Jasmim. Lavei-o em água de cheiro, deitei-o em
cima de mim.”
DOM PANTERO
Aqui, por exigência da Censura, representávamos, por sombras
projetadas num Lençol estendido, a posse da Amante por Dom Bernal
Francês; e, depois disso, a Narração continuava, com este voltando ao
Jardim depois de algum tempo:

O AMANTE
“Deixem que volte de novo, com minha Capa a cair. Quero ver se a
minha Dama inda se lembra de mim!

O AMIGO
“Tua Dama, meu Amigo, está morta, e eu bem a vi. Os sinais que
houve disso, vou dizer-te agora, aqui: os Sinos que lhe tocaram eram
cento e onze mil; o Caixão em que a enterraram era de Ouro e Marfim.

DOM PARIBO SALLEMAS


“Palavras não eram ditas, morre Bernal, no Jardim. Esta foi a sua
história, foi este o seu triste Fim.”

“A filha de Capuleto, a formosa Julieta, dançava com um Rapaz


que vestia roupa preta. Tinha ao seio, por enfeite, um cacho de Violetas.”

DOM PANTERO
Quando Romeu avistava aquela Mocinha, ficava como que
fulminado pelo raio da Paixão terrível e avassaladora que haveria de
matar os dois. E falava para Mercúcio:

ANTERO ROMEU MONTÉQUIO SAVEDRA


“Meu Deus, estou encantado com toda aquela beleza! Aquela
Moça parece uma Fada, uma Princesa! Mercúcio, quem é aquela? Quem é
aquela lindeza?

MERCÚCIO JOSÉ LAURÊNIO DE MELO


“ É filha de Capuleto! O Leque que ela trazia, caiu de sua bela
mão, quando, há pouco, se movia!

ANTERO ROMEU MONTÉQUIO SAVEDRA


“Eu vou lá, vou apanhá-lo! (Oferecendo o leque a Julieta) É de
Vossa Senhoria?

LIZA JULIETA VILLOA CAPULETO


“Sim, o Leque me pertence! Muito obrigada, Senhor! E em troca da
gentileza, queira aceitar esta Flor. Receba esta Violeta, em paga de seu
favor!
ANTERO ROMEU MONTÉQUIO SAVEDRA
“Eu beijo esta bela Flor, de perfume delicado! Vou guardá-la junto
ao peito, com todo amor e cuidado, como se fosse uma Joia que aqui eu
tivesse achado.
“Eu não penso mais na jura que fiz a meu velho Pai, pois o Amor é
água pura que nas nossas almas cai, e o desejo de vingança no sonho do
Amor se esvai.
“Deixe a Festa, Julieta! Finja que vai passear. Guardo comigo um
segredo que a Você vou revelar. Vá lá para a outra Sala: me espere, que
chego lá!

LIZA JULIETA VILLOA CAPULETO


“Sinto que empalideci, que estou da cor de um Jasmim! (Mais alto)
Para a outra Sala, não! É melhor lá no Jardim! Lá tu podes me dizer o que
desejas de mim! (Já no Jardim) Há pouco, quando falavas, o meu peito
estremecia! Como te chamas?

ANTERO ROMEU MONTÉQUIO SAVEDRA


“Romeu!

LIZA JULIETA VILLOA CAPULETO


“Pois, Romeu, não sei se vias que vieste me salvar da tristeza em
que eu vivia. Que é que tens pra me dizer?

ANTERO ROMEU MONTÉQUIO SAVEDRA


“Escuta, linda Criança! Eu vim tomar, de teu Pai, a mais dura das
vinganças. Mas deponho meu Punhal, diante das tuas tranças!
“Tua beleza me queima: sinto meu peito chagado. Por teus olhos
verde-azuis eu fiquei enfeitiçado! Eu estou louco de amor! Estou cego,
apaixonado!
“Teu Pai matou minha Mãe, quando eu era bem Menino. Jurei
vingar esse Crime: porém decreta o Destino que tudo seja esquecido ante
teu rosto divino!
“Serei perjuro! Jamais a meu Pai eu voltarei! A teus pés, bela
Menina, o teu Escravo serei. Juro que junto de ti viverei ou morrerei!
“Pois bem, Julieta; agora eu quero este Amor selar, e na tua linda
boca um beijo depositar. (Beija-a)

LIZA JULIETA VILLOA CAPULETO


“O que é isto? Sem pudor eu já me deixo beijar?
J. Borges: Romeu Montéquio e Julieta Capuleto

ANTERO ROMEU MONTÉQUIO SAVEDRA


“Existe, só, um remédio pr’atenuar o pudor: é repetirmos o beijo,
agora com mais calor! (Beija-a novamente)

LIZA JULIETA VILLOA CAPULETO


“Meu Deus, eu me sinto tonta! Foi a Dança ou é o Amor?”

DOM PANTERO
Neste momento, Aristides, um Tio de Julieta, que reconhecera
Romeu, irrompia pelo Jardim, cego de raiva:

ARISTIDES VILLOA CAPULETO


“Romeu, que fazes aqui? Responde-me, miserável! Que vieste
procurar? Teu sangue é sangue execrável! Sai daqui, senão a Morte é teu
fim inevitável!

ANTERO ROMEU MONTÉQUIO SAVEDRA


“Julieta, quem é este que está ali, naquele canto, pior que um Tigre
feroz, cheio de raiva e de espanto?

LIZA JULIETA VILLOA CAPULETO


“É Aristides, meu Tio! Ah meu Deus, te odeia tanto!

ARISTIDES VILLOA CAPULETO


“Julieta, sai daqui! Senão serás arrastada!

LIZA JULIETA VILLOA CAPULETO


“Não, Romeu, não lhe respondas! Meu Tio, guarda esta Espada!

ARISTIDES VILLOA CAPULETO


“Não vais desobedecer à minha ordem, já dada!

ANTERO ROMEU MONTÉQUIO SAVEDRA


“Aristides, não te atrevas! Não toques nem sua mão! Se tu deres
mais um passo, cairás, morto, no chão, pois minha Espada certeira
traspassa-te o coração!”

DOM PANTERO
Aqui, os dois começavam, a Espada, um Duelo mortal que
tínhamos ensaiado cuidadosamente. E Julieta, aterrada, comentava:
LIZA JULIETA VILLOA CAPULETO
“Meu Deus! Romeu e meu Tio cruzam, já, suas Espadas! Sinto que
aqui vou cair sobre o solo, desmaiada!”

DOM PANTERO
Chegando-se a este momento, Julieta perdia os sentidos, que só
recobrava para tomar conhecimento de seu infortúnio: quando acabara
de encontrar aquele que seria o grande e único Amor de sua vida, a
terrível vindita familiar que separava os dois tinha feito mais uma
vítima, pois Romeu matara seu Tio.
Ainda tonteada pelo desmaio, ela se erguia, passava a mão nos
olhos, como para afastar a visão insuportável, e falava:

LIZA JULIETA VILLOA CAPULETO


“Meu Deus, o que se passou? A luta está terminada!
J. Borges: Julieta e Romeu

“Tio Aristides no chão, por golpe mortal varado! O pano de sua


roupa está, de sangue, molhado! E Romeu, de pé, contempla o corpo do
assassinado!
“Já lá chega, do Castelo, o pessoal que dançava!

JAYME CAPULETO VILLOA


“O que foi que houve aqui? Quem foi que tais gritos dava? O quê?
Aristides morto? Meu irmão, que eu tanto amava?
“Prendam, já, este assassino! Levem-no para a Prisão! Vai ser
condenado à Morte, sem demora e sem perdão! Quem derrama, assim,
meu sangue, não merece compaixão!”

DOM PANTERO
Aqui, entravam novamente no Palco Antônio Granjeiro e Miguel
Alves de Sousa, que acorrentavam Romeu, enquanto Renata Máttar
cantava a versão, em Português, do Poema Medievo , de Lorenzo
Stechetti:

J. Borges: Julieta e Romeu


RENATA MÁTTAR
“Pesadas trevas, úmidas, caíam, e o Castelo real silente estava. No
fundo de um Cárcere, gemendo, prisioneiro, o Pajem murmurava:
“‘Ai de mim, ai de mim, quanto me custa louco ideal de um
coração ousado! Amo, idolatro a pálida Princesa, e é por isso que aqui
estou sepultado!
“‘Se uma lágrima, só, eu merecesse, um compassivo olhar, um
pensamento, eu não trocava esta Prisão sombria por tudo quanto é luz no
firmamento!’
“Nisto, uma Sombra pálida, esguia, como um Fantasma assomou
à Porta. ‘Quem és? Quem és?’ — pergunta o Prisioneiro, baixando a voz:
— ‘Quem és, mísera Morta?’
“‘Morta não sou!’ — volveu a branca Imagem. ‘Sinto no peito a
alma ardente, louca! Ninguém nos ouve: a Sentinela dorme! Sou a
Princesa! Oh, vem, beija-me a boca!’”

DOM PARIBO SALLEMAS


“Fazia, já, 7 dias que Romeu fora detido, quando, uma noite, ele
ouviu na Prisão grande ruído, e apareceu Julieta, envolta em branco
vestido.

LIZA JULIETA VILLOA CAPULETO


“Romeu, Romeu de minh’alma, quanto sofri tua ausência! Debalde
pedi, por ti, a meu Pai pra ter clemência! Eu vim te tirar daqui, desta
cruel penitência!
“Eu falei com Frei Lourenço, a quem contei, lealmente, que tinha
por ti, Romeu, uma paixão louca, ardente! O Frade me prometeu casar-
nos secretamente!
“Vem! Eu subornei os Guardas: não há ninguém nos seguindo. Já
soou a meia-noite, os meus Pais estão dormindo. Não tenhas medo, que é
noite, mas o luar está lindo!

ANTERO ROMEU MONTÉQUIO SAVEDRA


“Meu Deus, que felicidade! É a minha noiva-amante!
LIZA JULIETA VILLOA CAPULETO
“Vamos lá para a Capela, chegamos lá num instante! Frei
Lourenço nos espera, com o Coroinha-ajudante!”

DOM PANTERO
Aqui, noutro prenúncio de desgraça, enquanto Romeu e Julieta,
de joelhos diante de Frei Lourenço Loredano, eram por ele casados,
soava a música do Romance de Minervina , que fora usada, na Festa, para
se cantar o Romance de Bernal Francês . E, acabada a cena do
Casamento, a Narração era retomada por mim:

DOM PARIBO SALLEMAS


“Assim, Romeu, na Capela, com Julieta casou. Debaixo dos pés do
Cristo foi que ele se ajoelhou e, diante de Deus, por ela, amor eterno jurou.

FREI LOURENÇO DONACIANO FRANCISCO LOREDANO


“Romeu, vou dar-lhe um conselho: é melhor Você partir. Você deve
ir pra Goiana, lá, um tempo residir. Prometa à sua Mulher ir dela se
despedir.
“Ela sai: vai esperá-lo, fiel, em sua janela. Você, daqui a momentos,
vai lá, para estar com ela. Pule o muro do Castelo e vá para o quarto dela.

LIZA JULIETA VILLOA CAPULETO


“Romeu, vou em tua frente, para o Castelo, esperar-te. Por
enquanto, aqui tu ficas, para o Frade aconselhar-te; pois o Frade é nosso
amigo: o que pretende é salvar-te! (Sai)

FREI LOURENÇO DONACIANO FRANCISCO LOREDANO


“Muito bem, Romeu, meu filho! Você agiu bem, Romeu! Mas agora
é necessário cuidar do futuro seu. Você não diga a ninguém que quem os
casou fui eu!
“Hoje mesmo, antes que o Sol tenha chegado a sair, Você deve ir
pra Goiana: Julieta fica aqui. Se o ambiente melhorar, eu mandarei
prevenir.
“Na sua ausência, eu prometo por Julieta velar. Os ódios de
Capuleto, procurarei abrandar. Se conseguir, a notícia logo mando lhe
levar.

ANTERO ROMEU MONTÉQUIO SAVEDRA


“Beijo-lhe a mão, meu bom Frade, mas minh’alma está ferida! Vou
procurar Julieta: vou procurar minha vida! Sei que me arrisco, mas vou
celebrar a despedida!
J. Borges: A Morte de Julieta

DOM PARIBO SALLEMAS


“Ao chegar lá no Castelo, Romeu achou sua Amada. Julieta o
esperava, na Varanda debruçada. Romeu parecia ter a alma inteira
exaltada!
LIZA JULIETA VILLOA CAPULETO
“Quem bate na minha Porta? Quem bate? Quem está aí?

ANTERO ROMEU MONTÉQUIO SAVEDRA


“Ah, minha Amada, é Romeu! Sua Porta venha abrir!

LIZA JULIETA VILLOA CAPULETO


“No deitar da minha Cama, se rompeu o meu Frandil. No descer
da minha Escada, me caiu o meu Chapim.
J. Borges
J. Borges: A Ama de Julieta

“Eu te pego pela mão, tu entras no meu Jardim. Te faço cama de


Rosas, travesseiro de Jasmim. Te lavo em água de cheiro, te deito em cima
de mim.

DOM PARIBO SALLEMAS


“O que se passou ali (digo ao Teatro onde estou) é impossível
descrever, tal foi a cena de amor. Imagine-a quem já tenha vivido um
igual ardor.
“Mas, pra falar do que houve, uso um verso conhecido, que não é
da minha lavra, pois caiu num outro ouvido. Ele dá pálida ideia do que ali
foi sucedido.”
DOM PANTERO
Aqui, enquanto os Amantes falavam, um Ator e uma Atriz, por
trás de um lençol, projetavam nele suas silhuetas, que iam
reproduzindo, por gestos, as imagens daquilo que Romeu e Julieta
diziam:

ANTERO ROMEU MONTÉQUIO SAVEDRA


“Eu tirei minha Gravata, ela tirou o Vestido. Eu, o cinto, com
Revólver, ela seus 4 Corpinhos. As Anáguas engomadas soavam nos meus
ouvidos como um tecido de Seda, por 20 Facas rompido.
“Eu toquei seus belos Peitos, que estavam adormecidos, e eles se
ergueram, de súbito, como ramos de jacinto.
“Naquela noite eu passei pelo melhor dos caminhos, montado em
Potrinha branca, mas sem Sela e sem estribos. Suas coxas me escapavam,
como Peixes surpreendidos, metade cheias de Fogo, metade cheias de Frio.
João Sotero Veiga

LIZA JULIETA VILLOA CAPULETO


“Ele tirou a Gravata, eu tirei o meu Vestido. Ele, o cinto, com
Revólver, e eu, meus 4 Corpinhos. As Anáguas engomadas soavam, nos
meus ouvidos, como um tecido de Seda, por 20 Facas rompido.
“Ele tocou nos meus Peitos, que estavam adormecidos, e eles se
ergueram, de súbito, como ramos de jacinto.
“Naquela noite eu corri pelo melhor dos caminhos, montada por
um Ginete, mas sem Sela e sem estribos. Minhas coxas lhe escapavam,
como Peixes surpreendidos, metade cheias de Fogo, metade cheias de
Frio.”

DOM PARIBO SALLEMAS


“D’ahy a algũuns momentos, gemia a Donçela, cujas coxas
pareçiam brilhar:

LIZA JULIETA VILLOA CAPULETO


“Ah, meu Amor! Estás de tal maneyra presente ẽ m m ỹ m que nom
há parte algũuma d’o meu corpo que nom te ssinta! Nom me mates de-
todo, que, sse tiveres compaixom de m ỹ m, eu te dou pleno poder para me
usares como Mulher, e nom te terei por Cavaleyro sse declarares paz
antes que ssangre tenha corrido!”

DOM PARIBO SALLEMAS


“Então, que imagine o Público esta cena de Noivado, e o tempo em
que estiveram aqueles dois abraçados; quantos beijos, quantos toques,
quantos êxtases trocados.
“O Dia já vinha entrando pela brecha da Alvorada. Eles, coitados,
pensavam que inda era a Madrugada; e Romeu, feliz, beijava o corpo de
sua amada.
“Mas, de repente, os dois viram a Cama se iluminar. Romeu disse a
Julieta:

ANTERO ROMEU MONTÉQUIO SAVEDRA


“Eu inda estava a sonhar! Adeus! Nesta hora triste, eu parto: vou
te deixar.
“Vamos viver separados, pois o Destino assim quis. Eu peço a Deus
que te faça, no Mundo, muito feliz. Eu partirei para o exílio: cumpro uma
Sina infeliz!
“Se algum dia tu souberes que eu, longe de ti, morri, murmura a
Deus uma prece por quem tanto amou a ti. Nunca esqueças que a Família
por teu amor eu traí.
“Quanto a mim, também te juro que, se morreres primeiro, sobre o
teu leito de morte eu virei, triste Romeiro, dar, abraçado contigo, meu
suspiro derradeiro.

Livro Negro do Cotidiano: Ferros do Cariri


“Eu estou sentindo um triste pressentimento de Morte. Minh’alma,
como uma Nau que está perdida e sem norte, vagueia num Mar de fogo,
entregue a terrível sorte.
“Como vai ser triste e duro o tempo que vou passar longe de ti,
Julieta, da bênção do teu olhar! Adeus, enfim: vou seguir! Adeus: eu vou te
deixar.
“Adeus, Olinda, onde deixo meu sonho, minha paixão! Adeus casas,
ruas, praças, sou ave de arribação! Adeus, Julieta, eu parto, mas fica o
meu coração!

DOM PARIBO SALLEMAS


“Beijaram-se os dois Amantes, se abraçaram longamente. Juraram
que haveriam de se amar eternamente. E afinal se separaram, chorando o
Amor inocente.
“Logo após Romeu deixava o Castelo e a Morada; Julieta,
soluçando, na Varanda debruçada, ficou até que Romeu se sumiu no pó da
Estrada.
“Daquele dia em diante, a Moça não mais sorriu. Sonhando pelo
Jardim, nunca mais ninguém a viu. Do Castelo de seu Pai, pra canto
nenhum saiu.
“Todos ficaram pasmados, perante aquela tristeza. Pensavam que
era doença sua profunda frieza. Só à imagem de Romeu é que se
mantinha presa.
“Um dia, seu Pai chamou-a até a sua presença:

JAYME CAPULETO VILLOA


“Minha Filha, escuta aqui: eu quero que te convenças de que vou
dar-te um remédio pra esta tua doença!
“Ontem, veio o Conde Páris te pedir em casamento. Por ser um
moço de bem, dei-lhe o meu consentimento. Vou te apresentar a ele
dentro de poucos momentos.

LIZA JULIETA VILLOA CAPULETO


“Pai, não faça esta desgraça! Eu não quero me casar!
Eternamente solteira, quero meus dias findar! Somente a Você, meu Pai, é
que na vida hei de amar!

JAYME CAPULETO VILLOA


“Não, minha Filha, ouve bem: tu deves ter um Marido! Já dei meu
consentimento e o voto será cumprido! Já tenho o Conde por genro — e
um genro muito querido.
“Se não cumpres esta ordem que agora estou dando a ti, podes
dizer para o Mundo: ‘Para meu Pai, eu morri’; pois nunca mais deitarei
minha bênção sobre ti!

LIZA JULIETA VILLOA CAPULETO


“Paciência! Como Pai, o senhor faz o que quer! Mas eu, desse
Conde Páris, nunca serei a Mulher! Desculpe, querido Pai: não posso lhe
obedecer.

DOM PARIBO SALLEMAS


“Capuleto, furioso, de raiva cerrou os dentes. Chegou a empurrar
ao chão a pobre Filha inocente. E, todo cheio de cólera, saiu dali
bruscamente.
“Julieta, em desespero, sua Criada chamou:

LIZA JULIETA VILLOA CAPULETO


“Vá procurar Frei Lourenço, que é o meu Confessor. Diga-lhe que,
sem demora, venha aqui onde eu estou!

DOM PARIBO SALLEMAS


“Alguns momentos depois, quando o Frade ali chegou, Julieta,
para ele, os seus desgostos contou. A cena que o Pai fizera, também toda
relatou.
“Acabada a Narração, começa o Frade a falar.

FREI LOURENÇO DONACIANO FRANCISCO LOREDANO


“Ah, Filha, Você não deve deixar-se desesperar! Acho que tenho um
remédio pro casamento evitar!
“Precisa muita coragem! Mesmo assim, vou lhe propor. E Você não
tenha medo: confie em Nosso Senhor. Escute então o que eu digo, pois
meu plano vou lhe expor.
“Eu tenho, há muito, comigo, um frasco de dormideira. Se Você
tomá-la, fica morta, uma semana inteira. Com ela é que vou salvá-la, pois
não vejo outra maneira.
“Você bebe a dormideira, e vão pensar que morreu. Seu Pai faz o
seu enterro: quem vai celebrar sou eu! Acabada a cerimônia, mando
avisar a Romeu.
“Ele vem, leva seu corpo, para Goiana, no exílio. Um dia, talvez,
seu Pai o receba como Filho. Se for assim, Vocês dois vão viver o seu idílio.
DOM PARIBO SALLEMAS
“Julieta aceitou tudo o que o Frade propusera. À noite, toma o
narcótico, como o Confessor dissera. E, com pouco, no Castelo, sua Mãe se
desespera.”

DOM PANTERO
No espetáculo de Campina, Julieta caía ao chão, em cena aberta,
à frente do Público. A Duquesa de Capuleto aparecia no limiar. Ao ver a
Filha, dava um grande grito, corria para ela, beijava-a, abraçava-a, e
depois, sentando-se no chão, colocava sua cabeça no colo, embalando-a
e cantando a canção Violetas (que eu escolhera porque, na Peça, a
Violeta era como que a Flor emblemática de Julieta e de seu infortunado
amor por Romeu):

DUQUESA VILLOA DE CAPULETO


“Da planta que mais prezavas, que era, Filha, os teus amores,
venho, de pranto orvalhadas, trazer-te as primeiras Flores.
“Em vez de afagar-te o Seio, de enfeitar-te as lindas tranças,
perfumarão esta lousa do Jazigo em que descansas.
“Já lhes falta aquele viço que o teu desvelo lhes dava: gelou-se a
mão protetora, que, tão fagueira, as regava.
“Desgraçadas Violetas, a fim prematuro correm! Pobres Flores,
também sentem! Também de saudade morrem.”

DOM PANTERO
Por outro lado, na encenação, eu introduzira algumas
novidades. Em primeiro lugar, a pretexto de que a Casa pertencente ao
pai de Julieta era um Castelo, no Espetáculo eu a fundira com o Castelo
pertencente ao Conde Afonso Donaciano Francisco, fazendo então com
que Frei Lourenço o descrevesse assim:

FREI LOURENÇO DONACIANO FRANCISCO LOREDANO


“Meu Castelo ée ssingular, agreste, misteryoso, e n’ele eu posso me
entregar a tôdo-los extravios d’a minha imaginaçom. Ssó n’o Castelo ée
que eu posso ezerçer tôdo-los meus direytos, gozar tôdo-los prazeres.
N’ele eu vivo sseguro, por trás de ũuma primeyra e larga Muralha, a de
ensaio. Despois d’esta primeyra Muralha, existem algũuns Fôssos. Despois
d’eles, ũuma ssegunda Muralha, rromanesca. Despois d’esta, ũuma Çerca
viva, poética e florida. N’o f ỹ m, ũuma terçeyra Muralha, teatral e
poderosa, porque tem 10 pées de espessura. Ahy, existe ũuma Porta de
pedra que ssomente eu tenho força ssufiçiente para manejar.
“Quando eu, Frade renegado, chego aly cõm algũuma Beldade,
algũuma Mocinha que consigo persuadir a entrar n’o Castelo do Monstro,
ela vê ũuma Escada tortuosa que conduz àas entranhas d’a Terra.
A Moça Caetana — Versão Sedutora
“Despois que passamos a Porta, a Pedra volta a fechar-sse, e eu,
ssempre çercado de trevas, chego a’o çentro d’os ssoterrâneos e Moradas
mais profundas d’o Castelo: trata-sse de me familiarizar cõm a idéia d’a
Morte, e nom há melhor caminho pera isso d’o que ligar-la a ũuma vida
libertina.”

DOM PANTERO
Além disso, como fora o romantismo de José de Alencar que
abrira caminho para as cenas de sexo naturalistas de Aluízio Azevedo e
Júlio Ribeiro, eu fazia com que Frei Lourenço Loredano, furiosamente
desejoso de Julieta (em quem, para ele, se tinham fundido Cecy, Isabel,
Lucíola, Pombinha e Lenita), mandasse deitar o corpo da amada de
Romeu em sua Cama, dizendo que só ali é que poderia fazer bem sua
encomendação.
Com ervas que somente ele conhecia, preparara outra
beberagem capaz de acordar Julieta do sono aparentemente mortal em
que ele próprio a mergulhara. Mas estava resolvido a despertá-la aos
poucos e somente até certo ponto: queria que a Mocinha permanecesse
tolhida por uma espécie de torpor que quebrasse suas resistências,
deixando-a inerme, mas não insensível, a ponto de não tomar
conhecimento das carícias que ele sonhava lhe fazer.
Era, então, o que se continuava a narrar, por meio das palavras
daqueles Escritores; eu tinha certeza de que, por sua fama, eles
impressionariam os Censores, principalmente entediados como
estariam pelo Português antigo (e falsificado) que eu inventara:

JOSÉ SCHABINO DE ALENCAR


“Vendo Julieta deitada à ssua mercê ẽ m ssua Cama, Frey
Lourenço Loredano aproximou-sse e verteu antre sseus lábios as 3
primeyras gotas de sseu Licor.
“D’ahy a pouco, ao invés de morta, a Menina voltara a parecer
apenas adormeçida, envolta nas alvas rroupas de sseu Leyto, e antre as
Cortinas de cassa que aly vendavam o asilo d’o pudor e d’a inoçênçia.
Ssua delicada cabeça loura apareçia antre as rrendas finíssimas ssobre as
quais sse desenrolavam os lindos anéis de sseus Cabelos.
“O talho de ssua Camisola, abrindo-sse, deixava entrever ũum colo
de linhas puras, mais alvo d’o que a Cambraia. E com o ondular que a
branda rrespiração voltara a imprimir a sseu peyto, desenhavam-sse,
ssob a lençaria diáfana, os Sseyos mimosos.

João Sotero: Livro Negro do Cotidiano


“Frei Lourenço Loredano aproximou-sse mais, tremendo, pálido,
ofegante. A paixão brutal devorava-o, escaldando-lhe o ssangue n’as
veyas e fazendo ssaltar-lhe o coração no peito.
“E Julieta sorria, começando talvez a enlear-sse n’algũum Ssonho
graçioso. Era o Anjo ẽ m façe d’o Demônio, era a Mulher ẽ m face d’a
Serpente, a Virtude ẽ m façe d’o Víçio e d’o Crime.
“Julieta ssonhava. Sseu rrosto esclareceu-sse cõm ũuma expressão
angélica. Ssua maão, que rrepousava aninhada entre os Sseyos, moveu-
sse cõm a indolênçia e a moleza d’o Ssono. A pequena Cruz de esmalte que
tinha a’o colo, e que estaba agora presa antre os dedos, rroçou-lhe os
lábyos. E ũuma Música çeleste escapou-sse d’elees, como sse Deus tivesse
vibrado ũuma d’as cordas de ssua Harpa. Foi, a-prinçípio, ũum ssorriso
que lhe adejou n’os lábyos. Despois, o ssorriso colheu as asas e formou
ũum beijo. Por-f ỹ m, o beijo entreabriu-sse como ũuma Flor e exalou ũum
ssuspiro perfumado: Romeu!
“O colo arfou doçemente, e a maão, descaindo, foi de-novo
aninhar-sse antre o talho de ssua Camisola de cambraya.
“Frei Lourenço ergueu-sse, pálido. Não sse animava a tocar
n’aquele corpo tão casto, tão puro. Nom podia fitar aquela fisionomia,
rradiante de inoçênçia e candura.
“Mas o tempo urgia. Fez ũum esforço ssupremo ssobre ssy m ẽ
smo. Firmou o joelho àa borda d’o Leyto, fechou os olhos e estendeu as
maãos.”
DOM PARIBO SALLEMAS
“Primeiro, despojou a Menina d’a Camisola que a cobria e ficou
olhando aquele Campo-Castelo-e-Rreyno; aquele Horto-e-Jardym
povoado de Flores e de Fruitos; a Ilha que tinha, plantada ao çentro,
aquela Fenda-Gruta-e-Fonte em que talvez sse pudesse deçifrar o Enigma,
o ssegredo d’o Mundo, e onde tudo o que era ssagrado podia aconteçer.”

JÚLIO SAVEDRA RIBEIRO


“Despois de olhá-la mũyto tempo, ele verteu em ssua boca mais 3
gotas de sseu cordial. Acarinhou-lhe os peytos e lh’os osculou, primeiro
rrespeitoso e atée medroso, como sse cometera ũum ssacrilégio, e logo
oufano, insolente, lasçivo e bestial como ũum Ssátyro.
“Cresçendo ẽ m ssua exaltaçom, ele lh’os amachucou e lh’os
chupou, mordiscando seus pequenos bicos, arreytados porque, mesmo n’o
estado de meia-inconsciênçia ẽ m que estava a Menina, as caríçias cada
vez mais atrevidas de Frei Lourenço começavam a alvoroçar-lhe o
sangue.”

João Soares Sotero Veiga Schabino de Savedra


João Sotero: Gravuras do Livro Negro do Cotidiano

MATEUS SCHABINO BANDELLO


“Julieta, que já digerira a poção que tomara, começando a
despertar falou: ‘Ah Frei Lourenço, é esta a confiança que Romeu lhe
dedicava?’”

ALUÍZIO SAVEDRA DE AZEVEDO


“De-rrepente, ssentou-sse n’a Cama e começou a dar mostras de
que estava estranhando tudo aquilo. Vendo-sse descomposta, cruzou os
braços sobre o sseyo, vermelha de pudor.
“Mas Frei Lourenço, despindo-sse, ssentou-se na Cama, perto d’ela,
afagando-lhe a çintura, as coxas e o colo.
“‘Deixa!’ — ssegredou-lhe o Frade, cõm os olhos envesgados, a
pupila trêmula.
“E, apesar d’os protestos, d’as ssúplicas e atée d’as lágrimas de
Julieta, preçipitou-sse contra ela, a beijar-lhe todo o corpo, a empolgar-
lhe com os lábyos o rróseo bico d’o peyto.”

FREI LOURENÇO DONACIANO FRANCISCO LOREDANO


“Entonçe, aly, longe de tôdo-los olhares, dirigi-me àa Menina,
dizendo-lhe o que queria. E, como não tinha ela como fugir-me, começei a
apalpar-la. Inquietas, minhas maãos, quitando ssas vestimentas,
ofereçerom a meus ávidos olhos coixas tão maçias, de brancura tão
deslumbrante, que dei pausa a’o discurso para ocupar-me ssó cõm a ação.
Sseguro que estaba de obter tão bela Menina, acabei por pensar n’ũum
gênero de ataque que, n’outras condições, nũnca me teria vindo a’o
espíryto.
“Peytos de alabastro sse-me apresentaram, mesmo cõm a
rresistênçia de ssua jovem dona. Mas, n’o estado ẽ m que me encontrava,
mais propenso a’o furor d’o que àa ternura, mais inclinado a’os maltratos
d’o que àas caríçias, ẽ m-vez de beijar-los, como talvez ela esperasse,
apertei-os, mordi-os e machuquei-os.
“Entom começou a haver, n’a Menina, ũuma loita, ũum combate
entre o ssofrimento e o prazer, o que ficou claro porque logo os gemidos
de dor que ela emitia começaram tamb ẽ m a mostrar desejo.”

João Sotero: Gravuras do Livro Negro do Cotidiano


JOSÉ SCHABINO DE ALENCAR
“Era outra Mulher. O rrosto, cândido e diáfano, transformara-sse
completamente; tinha agora ũuns toques ardentes e ũum fulgor estranho
que o iluminavam. Os lábyos finos e delicados pareciam túmidos d’os
desejos que os incubavam. Havia ũum abysmo de ssensualidade n’as asas
transparentes d’as narinas, que tremiam cõm o anélito d’o rrespiro curto
e ssibilante.
“Aà ssuave fluidez d’o gesto meigo tinham ssuçedido a veemênçia
e a energia d’os movimentos. O talhe perdera a flexão ligeira que de-
ordináryo o curvava, e agora arqueava, enfunando a rrija carnadura d’o
colo e traindo ondulações felinas, n’ũum espreguiçamento voluptuoso.”

ALUÍZIO SAVEDRA DE AZEVEDO


“Mas Julieta arfava, ainda rrelutando. Entretanto, o rroçar
vertiginoso d’aqueles ásperos pelos e o atrito d’aquela espéçie de coluna
rrija n’a estação mais ssensitiva de ssua feminilidade acabaram por
foguear-lhe o ssangue, desertando-lhe a rrazão a’o embate d’os
ssentidos.”

FREI LOURENÇO DONACIANO FRANCISCO LOREDANO


“E entom, n’o momento que forçosamente a isto sse sseguiu, como
foi fasçinante e dificultosa a entrada n’o centro d’o Castelo! Como era
estreyta e apertada a fenda por onde ela sse dava! Que calor, que prazer
me deu aquela victórya! E — oh maravilhoso efeyto d’a Natureza! —
sservida, ass ỹ m, de modo tão cruel e ssingular, Julieta, apesar da
rrepugnância que por m ỹ m ssentia çedeu àss impressões contradictórias
d’a forma de prazer que eu a forçava a experimentar, e goçou.
“Ah, nom existe nada en’ o Mundo que torne mais fortemente
açeso o ssentimento de prazer ligado àa cólera lúbrica d’o que ssentir
ũuma Moçinha compartilhar conosco de tais prazeres; prinçipalmente
quando, rresistindo a prinçípyo, estranhamente passa a acumpliçiar-sse
conosco n’o gozo d’eles.”

ALUÍZIO SAVEDRA DE AZEVEDO


“Julieta agora espolinhava-sse toda, çerrando os dentes, fremindo-
lhe a carne ẽ m crispações de espasmo, a’o passo que Frei Lourenço
Loredano, por-cyma, doido de luxúria, irraçional, feroz, rrevoluteava ẽ m
corcovos de Cavalo, bufando e rrelinchando.
“E metia-lhe a língua tersa pel’a boca e pel’as orelhas, e
esmagava-lhe os olhos cõm sseus beijos lubrificados de espuma, e mordia-
lhe os ombros, e agarrava-lhe convulsivamente o cabelo, como sse
quisesse arrancar-lo a’os punhados.
“Ateé que, cõm ũum assomo mais forte, devorou Julieta n’ũum
abraço de todo o corpo. E afinal desabou para um lado, exânime, inerte,
os membros atirados n’ũum abandono de bêbado.
“Quanto àa Menina, voltara a ssy, e torçendo-sse logo ẽ m ssentido
inverso a’o adversáryo, çingiu-sse a’os travesseyros, chorando,
envergonhada e corrida.”

FREI LOURENÇO DONACIANO FRANCISCO LOREDANO


“Não chores! Que toliçe a tua! Não vês que ssou teu Confessor e
que, comigo, não ée pecado? Estávamos apenas brincando! Não tirei
pedaço nenhũum de teu corpo; e, de tua parte, não traíste Romeu, pois
estavas adormeçida!”

LIZA JULIETA VILLOA CAPULETO


“Vou contar a meu Pai tudo o que aconteceu aqui.”

FREI LOURENÇO DONACIANO FRANCISCO LOREDANO


“Se ele ouvir tua acusação vai saber que não morreste, e te casará
com Páris!”

LIZA JULIETA VILLOA CAPULETO


“Então contarei a Romeu!”
FREI LOURENÇO DONACIANO FRANCISCO LOREDANO
“Só poderás contar-lhe a primeira parte da cena. Eu contarei a
segunda, e, mesmo que ele me mate, nunca te perdoará! O melhor que
tens a fazer é voltar a beber o narcótico que te dei antes e vestir por cima
da Camisola o Vestido mais belo que haja em teu guarda-roupa. Eu direi
que vesti teu corpo depois de encomendá-lo, e o nosso plano continuará
do mesmo jeito.”

DOM PANTERO
Vendo que não tinha outro caminho, Julieta resignou-se e fez-se
tudo como Frei Lourenço aconselhara para o enterro.
Mas é melhor voltar à Narração da forma como foi imaginada
por João Martins de Athayde.

DOM PARIBO SALLEMAS


“O Duque de Capuleto ordenou um Funeral como nunca fora feito
neste Mundo terreal: Julieta teve enterro como não houve outro igual.
“O Povo seguia o Carro pelas ruas da Cidade. Eram mais de 1.000
Tocheiros, dando, a ela, claridade, e o Pai muito arrependido de sua
brutalidade.
João Sotero Veiga: Gravura do Livro Negro do Cotidiano

“Foi aí que aconteceu a maior fatalidade:


“Antes que o Frade mandasse o aviso pra Romeu, Mercúcio, indo a
Goiana, a triste nova lhe deu:

MERCÚCIO JOSÉ LAURENIO DE MELO


“Ah, meu amigo Romeu! Dou-lhe a notícia chorando, pois Julieta
morreu. Vim te buscar para a veres, linda, no túmulo seu.

DOM PARIBO SALLEMAS


“Romeu ficou como louco, ao ser-lhe a notícia dada. Comprou
então um Veneno, cingiu ao cinto a Espada, e partiu com o projeto de
morrer junto da Amada.
“Selou depressa o Cavalo, e, como um raio, partiu, em galope
doido e cego, como ninguém nunca viu; pelo caminho de Olinda, num
momento se sumiu.
“Quando, lá no Cemitério, pelo Portão já entrara, encontrou Páris
que ia levar Rosas que comprara pra colocar junto ao corpo da Bela que o
desprezara.
“Páris gritou a Romeu:

PÁRIS OTACÍLIO NEGROMONTE


“Que vens tu fazer aqui? Bem sabes que Capuleto tem grande ódio
por ti! Retira-te, se não queres também ficar morto aí!

ANTERO ROMEU MONTÉQUIO SAVEDRA


“A resposta que te dou é tirar a minha Espada e descarregar em ti
tal golpe de cutilada que te decepe a cabeça como Navalha afiada!

DOM PARIBO SALLEMAS


“Matou-o, guardou a Espada e correu para onde estava o belo
corpo daquela a quem, mais que tudo, amava, e que, naquele momento,
como morta ali se achava.”

DOM PANTERO
Ao chegar perto do corpo, vendo, desesperado, como Julieta
continuava bela, sem que a Moça Caetana tivesse obtido qualquer
vitória sobre seu corpo e sua beleza, beijou seus lábios e bebeu o
Veneno, dizendo:
João Sotero Veiga: Gravuras do Livro Negro do Cotidiano

ANTERO ROMEU MONTÉQUIO SAVEDRA


“Este Veneno é quem salva, de sua morte, a Romeu! Nada mais
tenho no Mundo, pois Julieta morreu! Vou viver, mas lá no Reino ao qual
ela se acolheu!
“Meu Amor, vou encontrar-te: eu não me deixo abater. Já faz efeito
o Veneno: ’stou começando a morrer. Já estão cegos meus olhos! Mas,
vendo-te, volto a ver! (Morre)

DOM PARIBO SALLEMAS


“Nesse instante, Julieta de seu sono despertou, e então, muito
espantada, Romeu ali avistou. Estava, porém, já morto, e ela se
desesperou:

LIZA JULIETA VILLOA CAPULETO


“Romeu! Ah, que dor terrível! Romeu, diz-me que estou louca! Com
todo o meu sacrifício, nossa sorte ser tão pouca? Não é possível! Romeu,
dá um beijo em minha boca!
“Acorda, Romeu, acorda! Faz-me um último carinho! Vamos nós
dois, descuidados, seguir o nosso caminho, e, longe daqui — bem longe!
— fazer, pra nós, outro Ninho!

DOM PARIBO SALLEMAS


“Ficou assim, muito tempo, chamando por seu Esposo, até que viu
que ele fora para o lugar do repouso, lá, onde um outro sentido têm Amor,
e sonho e gozo.
“Tirou, então, de Romeu, o seu Punhal afiado e enterrou no
coração aquele Ferro aguçado, caindo, morta, por cima do corpo do seu
Amado.
“Aí, algumas pessoas que foram ao Cemitério, ficaram muito
espantadas com todo aquele mistério: morto o casal, morto Páris, na
entrada do Presbitério.
“Depois, soube-se de tudo, porque o Frade contou. Capuleto, muito
triste, um Túmulo preparou e os Amantes, abraçados, dentro dele
sepultou.
“Somente depois de mortos foi que puderam se unir, tendo, seus
dois jovens corpos, já deixado de existir, e nada mais, neste Mundo, lhes
sendo dado fruir.”

DOM PANTERO
Na encenação de Campina, aqui os Atores se imobilizavam,
deixando-me meio isolado para concluir a Narração.

DOM PARIBO SALLEMAS


“Quem está aqui no Teatro e viu o que sucedeu, sabe a Condessa
Montéquio em que condições morreu. Também conhece a fraqueza em
que seu Filho incorreu.
“Romeu, que era valente (diz a sua biografia), soube, dita por seu
Pai, a dor que seu Pai sofria. E Romeu jurou vingá-lo, no mesmo ou num
outro dia.

“Mas esqueceu a promessa, no fundo de uma gaveta. Bastou ver,


num belo seio, um cacho de Violetas: mesmo de sangue inimigo, se rendeu
a Julieta.
“Nas condições em que estava, não tinha nenhum rodeio: era
vingar-se de tudo, fingindo como um passeio. Não tinha que perguntar se
o rosto era belo ou feio!
“Mas ele não fez assim: quando entrou naquela Sala, viu Julieta
dançando, fez tudo pra conquistá-la. Inda ela sendo uma Deusa, ele tinha
que odiá-la!
“Romeu foi falso a seu Pai, daí veio seu castigo. Faltou-lhe
tenacidade: não percebeu o perigo de se casar com a Filha de seu pior
inimigo!
“Foi este o maior motivo de sua infelicidade. Romeu traiu a
Família, faltou-lhe com a lealdade. Onde existe um ódio antigo, não pode
haver amizade.
“Os dois amantes de Olinda tiveram fim desgraçado, embora
Romeu morresse com Julieta abraçado, Julieta apunhalada e Romeu
envenenado.
“De modo que o Espetáculo acaba com a última estrofe do Folheto
sertanejo que lhe deu origem:
“Quem odeia a traição, tem que dizer como eu: ‘Como o Rapaz não
vingou-se de tudo o que o Pai sofreu, eu escrevi, mas não gosto da história
de Romeu.’”

DOM PANTERO
O Espetáculo acabara, nobres Senhores e belas Damas da Pedra
do Reino; e o Público inteiro, num só movimento, se pôs de pé,
aplaudindo, gritando e assobiando.
Depois de agradecer várias vezes a ovação que consagrava
nosso triunfo, recolhemo-nos aos Camarins. Eu, que tacitamente já
assumira, na Trupe, o posto de Chefe dos Comediantes , tivera direito a
um aposento especial, isolado; e para ali me recolhi, sentindo-me
profundamente amargurado e triste, apesar do triunfo; é que a morte
de Adriel, além da perda de um irmão querido, me trazia o desgosto de
constatar: com ele, tinham se acabado as últimas esperanças que nos
restavam de compor aquela Obra vasta e importante que Tio Antero
sonhava e da qual nos falara em 9 de Outubro de 1937, diante da Casa
arruinada dos Savedras. Mauro e Altino estavam mortos. Auro, preso,
resolvera se calar e abandonar a Literatura. E agora Adriel morria
daquela maneira, tendo tido uma conversa terrível comigo, poucos dias
antes de sua morte. Nela me dissera:

ADRIEL SOARES
Todos aqueles sonhos que iluminaram nossa juventude estão
mortos, Antero! Envelhecemos e nenhum de nós conseguiu realizar
uma Obra verdadeiramente grande que nos justificasse perante nós
mesmos! O pior é que às vezes estivemos a ponto de fazê-lo; mas, por
falta “ daquilo que realmente importa ”, todos nós falhamos!

DOM PANTERO
Não fale assim, Adriel! Suas peças fazem sucesso com o Público.

ADRIEL SOARES
Isso que Você chama “ sucesso ” é a coisa mais equívoca do
Mundo! Uma vez sonhei que encenava uma espécie de Ópera e, no meio
dos aplausos que saudavam o final do Espetáculo, nosso amigo
Fernando Raposo me advertia: “ Quem se mistura aos Anões termina por
ser um deles. ” E o Público é um Anão de mil cabeças, cujo aplauso
marca um sucesso mas não um êxito . Hamlet jamais terá o sucesso de
qualquer obra ligada à cultura de massas. Mas daqui a 3 séculos
ninguém saberá mais nem sequer os nomes desses “ ídolos ”, tão
cultuados agora, enquanto o Hamlet estará tão vivo e forte quanto hoje!
Pois era com uma grandeza como a de Hamlet que eu sonhava
na juventude! Não fazia por menos, e não posso me consolar do meu
fracasso com nenhum aplauso do Público.

DOM PANTERO
Mas eu sabia: Adriel falava assim pensando numa Tragédia
shakespeariana. Entretanto, como Autor cômico, Molière era superior a
Shakespeare, e uma vez eu lera um Crítico teatral que afirmava: “ A
França tem Molière. O Brasil, felizmente, tem Adriel Soares, cujo Auto d’
A Misericordiosa apresenta todos os grandes problemas da condição
humana. ”
De qualquer maneira, era a lembrança dessas palavras de Adriel
que me acabrunhava agora, no Teatro. Era curioso que ele tivesse falado
em Hamlet , porque mesmo quando há pouco eu estava no Palco (e
apesar de estarmos encenando Romeu e Julieta ) eram falas daquela
outra Peça que de vez em quando me vinham à memória, juntamente
com uma de Xavier de Maistre que sempre me obsedara:
XAVIER SCHABINO DE MAISTRE
“Não conheço, por dentro, a alma do criminoso (porque não sou
um criminoso). Conheço a do Homem honesto: é horrorosa.”

DOM PANTERO
Uma das falas de Hamlet seguia linha semelhante:

GUILHERME SCHABINO SOLHA DE AGITALANÇA


“Eu também sou razoavelmente virtuoso. Ainda assim, posso
acusar-me a mim mesmo de tais coisas que talvez fosse melhor minha
Mãe não me ter parido. Sou luxurioso, arrogante, vingativo, ambicioso;
com mais crimes na consciência do que pensamento para concebê-los,
imaginação para desenvolvê-los e tempo para executá-los.”
DOM PANTERO
Era assim que me sentia no Camarim, enquanto removia a
pintura com que a Máscara de Dom Paribo Sallemas me disfarçara; e
constatava mais uma vez como estava longe daquele Perdão que minha
Mãe pedira concedêssemos aos assassinos de meu Pai (e que, agora, eu
devia estender aos de Adriel). Toda a Peça, recriada por mim para a
Encenação, era uma vingança contra eles. Amargurado, eu voltava a
Hamlet , e às suas palavras que já citei antes:

GUILHERME SCHABINO SOLHA DE AGITALANÇA


“ Oh, que ignóbil eu sou, que Escravo abjeto! Não é monstruoso
que esse Ator aí, por uma Fábula, uma Paixão fingida, possa forçar a
alma a sentir o que ele quer, de tal forma que seu rosto empalideceu, tem
lágrimas nos olhos, angústia no semblante, a voz trêmula, e toda a sua
aparência ajustada ao que ele pretende? Que não faria ele se tivesse o
papel e a deixa da Paixão que a mim me deram?
“Eu, Filho querido de um Pai assassinado, intimado à vingança
pelo Céu e pelo Inferno, ficar desafogando minha Alma com palavras, me
satisfazendo com insultos! Maldição! Oh, trabalha, meu Cérebro! Ouvi
dizer que certos Criminosos, assistindo a uma Peça, foram tão tocados
pelas sugestões das Cenas que imediatamente confessaram seus Crimes.
Farei, então, com que esses Atores interpretem algo semelhante à morte
de meu Pai: e a Peça será a Armadilha que usarei para explodir a
consciência dos Assassinos.”

DOM PANTERO
Então naquela noite jurei à memória de Adriel que iria retomar
seu sonho por meio do Circo da Onça Malhada , das Aulas-Espetaculosas ,
da Trupe do Cavalo Castanho e principalmente do Simpósio Quaterna,
que concebi e batizei ainda no Camarim. Por meio dele, remeteria a
uma unidade a poesia de Altino, o romance de Auro e o teatro de Adriel,
juntando-me aos 3 a fim de formarmos aquela Quaterna a que o nome
do Simpósio também aludiria.
Como na Vida Nova , de Dante, o Romance que resultaria dos
anais do Simpósio seria uma Autobiografia em prosa-e-verso, onde o
Circo pudesse levar Mariano Jaúna , pelo “ Riso a cavalo ” e pelo “ galope
do Sonho ”, a superar aquele Antero Savedra luxurioso, vingativo e
orgulhoso, conduzindo-o da Queda ao perdão que nossa Mãe nos pedia
e à redenção que A Misericordiosa , por seu Filho , nos significava.
E então, no dia seguinte ao do último Espetáculo, retomamos a
Estrada, em direção a Taperoá.
Ao chegarmos à Praça do Meio do Mundo , parei e desci do Carro
pedindo a atenção do pessoal da Trupe. Disse a eles:
— Parei aqui de propósito para fazer a todos uma revelação:
meu nome verdadeiro é Antero Savedra; mas Dom Paribo Sallemas vai
ficar sendo, daqui por diante, minha “ Máscara teatral ”. Foi por isso
que, no Espetáculo e para a Viagem de hoje, vesti esta roupa preta-e-
vermelha. E aqui, neste lugar que é mesmo o “ do meio do Mundo ”, peço
à jovem Atriz que fez o papel de Julieta que me coloque ao pescoço o
Medalhão que me consagra na condição que sempre sonhei.
Enquanto a Moça fazia o que eu pedira, as palmas dos Atores
davam brilho à celebração, tornada ainda mais solene pelos cactos,
pedras e cardos da Caatinga que nos cercava.
Apesar da simplicidade da cerimônia eu estava profundamente
emocionado. Lembrava-me do momento em que, como Auro contara,
Quaderna, junto à Pedra do Reino, se consagrara a si próprio como Rei,
narrando o fato assim:

DOM PEDRO DINIS QUADERNA


“Ergui-me, atei ao pescoço, jogando-o para as costas, o Manto
real, e subi à Pedra dos Sacrifícios, onde fora degolada a Princesa Isabel.
Coloquei a Coroa sobre a cabeça e fiquei um momento com o Cetro na
mão direita e o Báculo na esquerda, de pé, na posição em que Dom João
Ferreira-Quaderna, O Execrável, aparece na gravura do Padre. Olhava o
Sertão batido de sol, as pedras faiscando, os catolezeiros gemendo na
ventania quente, os cactos espinhosos, o chão pedreguento. Comecei a
pronunciar as palavras sacramentais.
“De repente senti aumentar, de modo insuportável, a terrível sede
que já vinha sentindo. Em algum lugar, ali perto, escancarou-se a boca-
de-fornalha do Sertão, o bafo ardente e felino me crestou. Uma espécie de
oura começou a girar, esquentar e encantar meu juízo, meu sangue a
estremecer pelo terror sagrado e epilético, num ridimunho de glória,
inferno e realeza. Rangi os dentes: ‘Vou morrer! Ninguém pode ir tão
longe e tão alto!’ Mas reagi e me mantive firme, pronunciando até o fim
as palavras da ‘Oração da Pedra Cristalina’, até que senti que meus
lombos tinham sido consagrados e minha fronte definitivamente selada
com o Régio Selo de Deus.”

Chegamos a Taperoá, e tudo se passou como eu esperava,


inclusive com minha nomeação para o cargo de Reitor e os Atores da
Trupe do Cavalo Castanho admitidos como Professores da Unipopt .
Somente no ano de 2000, porém, é que eu iria ter condições de
organizar o Simpósio Quaterna , por meio do qual pretendia
reapresentar, num Palco, as obras de Altino, Auro e Adriel.
O principal motivo de tal demora era o caráter exigente, a
personalidade cheia de escrúpulos de meu irmão Auro, o que passo a
explicar.
Logo depois de concluir o Romance d ’ A Pedra do Reino , ele
pretendia escrever outro cuja ação começaria com a morte do Rei e
Cavaleiro que foi nosso Pai, João Canuto, e terminaria com a do nosso
irmão Mauro.
O Livro chamar-se-ia O Sangue do Cavaleiro ; e achava meu
irmão que, se acertasse a envolver aquela história, para nós terrível,
numa espécie de bruma ficcional, poética e musical, finalmente
conseguiria contá-la.
Mas Auro nunca conseguiu realizar seu projeto: fez uma, duas,
três versões, que abandonou, pois esbarrava sempre, tolhido pela carga
de sofrimento que o assunto lhe acarretava.

ALBANO CERVONEGRO
A sagração do Sol na dor antiga: sou filho e pai do Sangue
derramado. Quem se adentrar no fogo deste Pasto há de encontrar, nas
águas do Riacho, o Tiro esquerdo e o Punhal ferido: meu Sangue é minha
Fonte-do-Cavalo.

DOM PANTERO
Auro abandonou então o Romance e tentou fazer a Obra em
verso, num Poema que se chamaria Cantar do Potro Castanho . Pensava
que a Poesia era mais apta a criar um distanciamento que lhe
permitisse, afinal, compor a homenagem que sonhava.
Mas a nova tentativa também se frustrou e Auro terminou
queimando todos os manuscritos do Livro, que abandonou de vez;
entre outros motivos porque, depois de se mudar para a Favela-
Consagrada d’ A Ilha de Deus (e tornando-se cada vez mais sério, para
ele, o problema religioso), foi a própria Literatura que começou a lhe
aparecer como uma idolatria pecaminosa, sacrílega. Ele chegou até a
renegar A Pedra do Reino , a pretexto de que o Romance resultara de
sua orgulhosa pretensão de escrever uma grande Obra. E eu, ao
empreender a feitura d’ A Ilumiara , também ficava tolhido por
escrúpulos terríveis, principalmente nos trechos em que teria de recriar
os textos de Auro.
Entretanto, aquele era mais um excesso, entre os muitos que
perturbavam a alma de meu irmão, fazendo com que ele esquecesse:
além da Verdade e do Bem, o outro Candelabro que, na Ilumiara,
apontava o caminho para Deus era o da Beleza.
O fato é que, depois de certo tempo, o exercício da Literatura
começou a parecer pecaminoso a nosso irmão: passou a significar para
ele o mesmo que a Escultura São Miguel e o Demônio representava para
um certo Menezes, cujo primeiro nome se ignora mas que se sabe ter
sido um Artista brasileiro e barroco do século XVIII.
Foi por intermédio de Altino que tomamos conhecimento da
vida e da obra de Menezes, a respeito de quem ele nos falou por
imagens obscuras, como sempre fazia em tais ocasiões; e, também
como sempre, Auro e Adriel procuraram dar alguma ordem àquele novo
e estranho “ comunicado das Sombras ” que Altino nos transmitira.
Menezes ficava apavorado toda vez que esculpia um São Miguel
e o Demônio . Por isso, durante certo tempo, tentou fazer o Anjo sem a
Besta (e tenho, em casa, uma das tais versões “ expurgadas ” que ele
criou do São Miguel ). Mas recaía logo na pecaminosa versão anterior,
porque, como dizia, “ a Besta me tenta e eu não tenho forças para lhe
resistir ”.
Então, como exorcismo e esconjuro, depois que aprontava uma
versão do São Miguel , dedicava-se a fazer uma Nossa Senhora — e estes
eram os dois trabalhos que repetia obsessivamente. Costumava
modelar a Nossa Senhora em barro cozido e pintado; e esculpir, em
grandes toras de Cedro, O Anjo e a Besta Fouva , como faces de um
Corpo só, bifronte; e eu possuo, também, em casa, uma das belas
imagens da Mãe de Deus que ele executava em barro.
Foi então com fundamento nesse Artista e em sua estranha
obsessão que Altino e Auro compuseram o Poema que começa assim:

AURO SCHABINO
Esse Tronco — este Livro — a tempestade, que da Sombra e da
treva foi gerado, não me permite um Sono sossegado, exigindo, em meu
sangue, a liberdade. Preciso exorcismá-lo entre essas grades, e esculpi-lo
na Tenda do meu pouso; pois o Escopro me tenta, e, desejoso de afirmar a
bifronte Face escura, atenderei à Voz que me conjura, entregando-me ao
Sopro perigoso.
ALTINO SOTERO
Não sei por que razão, remoto e estranho, me encontro desterrado
no Deserto, onde o Vento levanta, mal desperto, ondas de um Pó escuso
em que me banho. Sinto-me triste e só, e mal tamanho não me veio,
decerto, impunemente. Perto, o Mar: Sol nas águas, claro e quente. Mas
cala-se às perguntas que lhe faço, e espero que, na paz do seu regaço, a
Noite me liberte novamente.

DOM PANTERO
Menezes tinha uma personalidade estranha, nobres Senhores e
belas Damas da Pedra do Reino. Vivia errando de Vila em Vila, ao sabor
das encomendas que recebia e do terror que aqui e ali o assaltava, sem
qualquer outra causa que não fosse o exercício de sua Arte.
Fixava-se temporariamente numa Cidade ou num Povoado, em
cujos arredores ficava numa Tenda (como fez, certa ocasião, junto à
Fortaleza de Pau Amarelo , em Olinda). Solicitado pela Autoridade
religiosa local, o Artista, em sua Tenda, esculpia um São Miguel e o
Demônio . Depois, de repente, possuído pelo pavor, convencia-se, mais
uma vez, de que, com a feitura de sua Obra, cometera um grave pecado.
Aí, tomava o Escopro, o Martelo e os poucos trastes que possuía
e, como um criminoso, fugia, ao ladrar de Cães, do lugar em que
trabalhara e no qual — de graça e como compensação pela Besta que
esculpira — deixava a última imagem da Nossa Senhora que modelara
em barro.
Assim, de fuga em fuga, viajou Menezes, a pé, do Nordeste até
Minas, onde veio a morrer, confessando seus pecados e muito
arrependido dos sacrilégios que cometera “ ao juntar, tantas vezes, o
Anjo e a Besta numa Entidade só ”. E o mais grave é que, tendo a nossa
Família seu tronco inicial surgido na dos Menezes, Altino e Auro
começaram a se identificar com aquele remoto e longínquo Parente
nosso; e a considerar cada Poema ou Romance que compunham como
versões da Besta monstruosa, obsessivamente repetida pelo Escultor:

AURO SCHABINO
Permanece fechada, a Fortaleza. Será ela um Castelo indecifrável?
Talvez a sua Face impenetrável nos esconda os sinais da luta acesa.
Impassível no Sol, é-me defesa. Exige o Arcanjo, o grito, o lodo, a Cobra, o
capacete, as Asas, as esporas; e hei de transpor seus Muros arruinados,
transfigurando, em êxtases cifrados, essa Fronte mortal na luz da Aurora.

ALTINO SOTERO
Vejo formas de fogo, poderosas: as Areias, ao Vento ensandecido,
batidas contra o Forte derruído, desenham-se em Figuras ominosas. Em
que Lodo emprenharam-se, nojosas, criando a Cobra feia, essa Visão? Não
sei. Como não sei por que razão, oh forma dessa Besta me dominas,
enquanto invoco todas as Matinas de um Reinado de fogo e solidão.
DOM PANTERO
Em sua agonia, que foi longa e penosa, Menezes pedia a Nossa
Senhora que, levando em conta as humildes e toscas imagens que lhe
dedicara, intercedesse junto a Deus para que “ o ídolo da Besta, talhado
em madeira ”, lhe fosse perdoado:

AURO SCHABINO
Sopra o Vento, o Sertão incendiário: a Morte ronda agora o
Matadouro. Crescem Flechas, Punhais, vozes em coro, que me apontam o
velho Itinerário. Já nasceu meu Arcanjo solitário, o áspero Monstro um
dia imaginado. Que estranho Sol de cobre-flamejado me oculta a
Fortaleza e seus combates? Ouço tocarem Sinos a rebate: é a vez do Santo,
o Anjo, o Santo alado.

ALTINO SOTERO
Ele é, só, o Possível-do-outro, embaixo. E chega, com o Clarim, a
Trompa e a Rota; a Armadura, a Bandeira, as duas Botas; as Asas, o-que-
busco-e-que-não-acho. O resplendor, a Espada, a Lança, o facho, a Luz
amiga, os Olhos descansados, a Gola-em-cedro, cheia de rendados; o firme
Cinturão que tudo explica; a força e a mansidão — fogo e pelica —
saltando de seu Peito e dos bordados.

DOM PANTERO
Nas almas complicadas de Auro e Altino, parece que algo
semelhante acontecia, ambos considerando cada obra que terminavam
como equivalente a cada Vila, a cada São Miguel que Menezes
abandonava em sua atormentada Viagem de fuga:

AURO SCHABINO
Pronta a Obra, eu enfrento os Areais, num êxodo de sonho não
sagrado. Como saber se guio, ou sou guiado, por esse estranho Ser de fogo
e paz? Esculpi as Molduras, os Florais; e, triste pelas últimas lembranças,
tomo as Arcas, reato as Alianças, impelido ao final desta empreitada, e
recomeço a Volta projetada, num misto de terror e de esperança.

ALTINO SOTERO
Afinal, entre o Anjo e seu destino, somente a areia, o Mato e a
soledade. A escolha já foi feita e a Potestade envolve os ombros deste
Peregrino. Conquistei a Coroa: um claro Sino me espera no fim turvo
desta Estrada. Por ela vim! Oh Rota procurada! É preciso enfrentar o
Julgamento! Que lembranças me traz a voz do Vento, mandando-me
apressar a caminhada?
AURO SCHABINO
Passei por 3 Engenhos, no Caminho, por Bandeiras nas hastes
drapejando; e, apesar de uma Igreja ir procurando, descartei qualquer
Mago ou Adivinho. Decifraram-se velhos Pergaminhos enquanto estive
ausente tantos dias. Ruiu a Torre, ruiu a Sacristia, os Monges outras duas
vão erguendo, e à Besta já meus passos vou cedendo, cumprindo um Voto
insano e a Profecia.

DOM PANTERO
De modo que, na obra dos Savedras, talvez somente o teatro de
Adriel escapasse às demências penumbrosas que obscureciam a prosa
d’ A Pedra do Reino e a poesia d’ O Pasto Incendiado . E, até para mim,
cada Saída , cada Espetáculo da Trupe do Cavalo Castanho ou do Circo da
Onça Malhada era como uma das muitas Vilas que Menezes ia
abandonando, depois de deixar na Igreja uma versão de sua Obra-
monstruosa; enfim, era como se A Ilumiara fosse a recriação musical,
poética, ficcional e espetaculosa do Poema que Auro e Altino tinham
composto sobre o Escultor e que terminava assim:

ALTINO SOTERO
É preciso chegar. Mas onde e quando? O fim da Caminhada se
aproxima. Chego ao termo arriscado da Vindima, pois sinto que o Terror
vai aumentando. Ao longe, vou aos poucos avistando a Vila e suas Casas
mais cuidadas. São para nós as áureas badaladas que pousam sobre as
asas do meu Santo? Oh vinde, aves-de-prata! Eis meu Encanto, que eu
esculpi, cravando-me de Espadas!

AURO SCHABINO
Cumpridos eram, já, 40 dias, desde que eu fora, só, com passo
incerto, para o fogo e as areias do Deserto, pra talhar, na madeira, a
Jerarquia. Agora volto. E o som da Litania? Aqui é a Porta: a Casa e a
Babilônia; o jaspe, a Pedra, a telha, a calcedônia, o odor do incenso, os
Sinos, a turquesa; e abrem sulcos meus passos na dureza das ruas de
Granito e eterna insônia.

ALTINO SOTERO
Ninguém me nota: tédio e indiferença. Eu brado, triste: “Oh
Cidadãos errantes! Daqui parti, com passos vacilantes, atendendo ao
Mandado sem dispensa! Não desejo Coroa ou recompensa, vossa Mesa,
dinheiro ou mesmo a Glória!” Mas ninguém liga ao grito de vitória, e eu
caio, insano e só, cansado e vão. É melhor procurar um outro Chão onde
se exalte o fogo da Memória.

AURO SCHABINO
E agora só me resta ir para a Igreja. Subo a Ladeira. A Porta. A
escura Nave. Com o Santo aos ombros, vou como uma Ave de madeira
vermelha que esvoeja. Vazio, o Nicho, em ouro, ali chameja. Subo ao Altar.
No vão, perto da grade, deposito a futura Raridade. Vou ao Padre. Recebo
a minha Tença. E, em meio da geral indiferença, abandono — mais uma!
— esta Cidade.
DOM PANTERO
Devo explicar, portanto, nobres Cavaleiros e belas Damas da
Pedra do Reino, que, quando decidi escrever estas Cartas que meu Tio,
Padrinho e Mestre me sugerira, várias vezes fui assaltado pelo terror:
tinha medo de que O Castelo da Ilumiara terminasse sendo para mim o
mesmo que o São Miguel e o Demônio era para Menezes — uma
Variação composta sobre o tema da luta entre o Anjo-Abrasador e a
Besta Fouva, a Besta Ladradora (risco ainda maior, para mim, por causa
de São Cipriano). Lembrava-me do que Aderito Viseu narrara entre os
Enguerimanços atribuídos ao Santo Pecaminoso :

O PACTO
Enguerimanço d’O Mágico Prodigioso

ADERITO VISEU SCHABINO


“ Victor Siderol era um jovem Lavrador dotado de grande
inteligência; e, entendendo que as terras de sua Aldeia não eram dignas
de rapaz tão instruído, começou a deixá-las sem cultivo, resultando daí
que sua colheita fosse sempre diminuindo.
“Um dia, já caindo a Noite, sentiu um mal-estar indizível ao
concluir uma sementeira; soltou os Bois, deixou o Jugo atravessado em
cima do timão do Arado e disse: ‘Aqui te deixo para sempre, meu velho
Arado. Que te leve o Demônio, assim como todos os mais apetrechos de
Lavoura que tenho na minha Casa. E com eles, quero dar-lhe a minha
Alma!’

“ Quando Siderol acabou de proferir a imprecação, ouviu reboar


pelo espaço estas palavras, que lhe pareceram saídas das entranhas da
Terra: ‘Tira-lhe o Jugo, que eu não quero nada com a Cruz.’

“ Neste somenos, tremeu a Terra e a Lua, toda manchada de


sangue, desceu rapidamente. Um Homem corpulento apareceu e Siderol
sentiu-se acometido por um frio extraordinário. O Homem tirou da
Algibeira um quarto de papel marcado sobre o qual estava escrita uma
doação referente à alma do Rapaz. Ele picou o dedo mínimo de Siderol
que, com o próprio sangue, assinou aquela Escritura.
“Após a cerimônia, o Demônio deu ao jovem Lavrador muitos
centos de Dobrões e 75.000 Cunhos de ouro, dizendo-lhe: ‘Hei de dar-te
ainda a riqueza de 7 Reinos!’
“ Depois de receber tal fortuna, a primeira coisa que Siderol fez foi
comer em um dos melhores restaurantes da Cidade. Depois de jantar
como um Príncipe, dirigiu-se ao Alfaiate, vestiu-se com a melhor roupa
que encontrou, barbeou-se e, estabelecendo residência num bom Hotel,
chamou seu protetor, Lúcifer.
— “Que desejas de mim? — perguntou o Demônio.
— “Meu amigo, onde encontrarei uma Donzela nova, bonita e
amante?
— “No Teatro Grego , onde se representa hoje uma Tragédia de
Ésquilo — respondeu o Diabo.

“ O agora querido filho da Fortuna encheu as algibeiras de Ouro e


foi ao lugar indicado. Entre grande número de pessoas pertencentes à
Nobreza, encontrou lá 3 Mulheres, Mãe e duas Filhas no esplendor da
juventude; ficou encantado com uma delas, que logo soube chamar-se
Rosa , e que lhe pareceu o que no Mundo se podia imaginar de mais
sedutor.
“Aproximou-se delas, com o desembaraço inspirado por sua atual
opulência. E disse que ficara tão encantado com Rosa que estava
resolvido a casar-se com ela.
“A Menina, por sua vez, reclamou contra a precipitação do Rapaz.
Mas sua Mãe repreendeu-a e disse a Siderol que levava muito gosto em
ver a união de sua Filha com um Rapaz tão distinto.
“Acabado o Espetáculo, Siderol, vendo-se tão bem acolhido pelas
Mulheres — coisa que antes nunca lhe acontecera —, ofereceu o braço a
Rosa, que o aceitou sem a menor hesitação.
“Uma rica Liteira esperava-os diante do Teatro. Logo que
chegaram à casa das Mulheres, elas convidaram Siderol para cear, e
serviram-no com a maior urbanidade.
“Durante a Ceia, soube Siderol que as 3 Mulheres eram
provincianas e estavam na Cidade tratando do processo de uma Herança.
Deram-lhe a entender que o Juiz aceitaria receber 2.000 Cunhos de ouro
para resolver o pleito em favor delas.
“Siderol, atrevidamente, ofereceu-lhes aquela quantia. Elas,
porém, recusaram com alguma reserva. Mas, como tinha as algibeiras
recheadas, o Rapaz insistiu e apresentou-lhes a quantia inteira em Ouro.
“Aí concordaram, mas com a condição de que lhe dariam um
Recibo em forma, para futuro pagamento da dívida. Ele aceitou; e a Mãe,
com a outra Filha, passou a seu Gabinete para preparar o Recibo,
deixando Siderol a sós com a encantadora Menina.
“O Rapaz pensou que, após um empréstimo de 2.000 Cunhos de
ouro, podia tomar algumas liberdades com Rosa; e foi o que fez.
“A Menina contentava-se em opor fracas mãos aos ataques do
atrevido conquistador.
“Defendendo-se daquela insistência, ela recuou insensivelmente e
tropeçou num sofá. Siderol aproveitou o ensejo e empurrou-a
suavemente. Com o impulso dele, ela caiu sobre o sofá. Ele lançou-se sobre
a Menina e depois... eles é que poderiam descrever o que realmente daí
por diante aconteceu.”
DOM PANTERO
Eu relia estas palavras de Aderito Viseu e ficava pensando: será
que, se a imagem de minha amada Liza Reis não tivesse acorrido tão
prontamente para socorrer-me, cena igual ou parecida não teria
acontecido entre mim e a Moça que me aparecera em Patos? E, pior:
entre a estranha declaração da Moça e o aparecimento da imagem de
Liza, não houvera um momento em que, perturbado, eu sentira, num
relâmpago, a tentação de seguir pelo caminho que a Desconhecida me
sugeria? Preocupado, recordava as palavras do Cristo:

SÃO MATEUS SCHABINO DE SAVEDRA


“ Ouvistes que foi dito aos antigos: ‘ Não cometerás adultério ’. ’ Eu,
porém, vos digo: ‘ Todo aquele que lançar um olhar de cobiça para uma
Mulher, já adulterou com ela em seu coração. ’ Tendes ouvido o que foi
dito: ‘ Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo. ’ Eu, porém, vos digo: ‘
Amai vossos inimigos, fazei bem aos que vos odeiam, orai pelos que vos
perseguem e vos maltratam. ’”

DOM PANTERO
Eram exigências a que eu não me sentia capaz de atender.
Quanto às Cartas que iriam configurando A Ilumiara , via que as 4
primeiras pelo menos já formavam uma Peça-Musical em 4 Movimentos
— Prelúdio , Repente, Chamada e Galope . Havia, é claro, o fato de ser O
Jumento Sedutor apenas a primeira parte d’ A Ilumiara , o que talvez
prejudicasse sua publicação isolada. Mas isso estava dentro de meus
planos. Lembrava-me de Machado de Assis:

MACHADO SCHABINO DE ASSIS


“ Então tive uma ideia singular: rematar a Obra agora, fosse como
fosse; qualquer coisa servia, uma vez que deixasse um pouco da minha
alma na Terra — um diálogo do Abismo, um cochicho do Nada .”

DOM PANTERO
Aí, fiz uma espécie de pacto com Deus: se Ele achasse que a
tarefa que eu ousava levar adiante era sacrílega, que a interrompesse
pela Morte — sentença com a qual desde ali me declarava de acordo.
Como, afinal, cheguei até aqui, considerei tal fato como uma
concessão (provavelmente d’Ele obtida pela Misericordiosa). Entenda-
se: minhas preocupações eram religiosas; porque, do ponto de vista da
Arte, tinha a convicção de que aos poucos estava realizando “ o Poema,
o sagrado, o que importa ”; de modo que me sentia também autorizado
a pedir, como o Poeta:
MANUEL BANDEIRA HÖLDERLIN DE SAVEDRA
“Mais um Verão, mais um Outono, oh Parcas, para
amadurecimento do meu Canto, peço me concedais: então, saciado do
doce Jogo, o coração me morra.
“Não sossegará no Orco a alma que em vida não teve a sua parte
de Divino. Mas se em meu coração acontecesse O-que-importa, o Sagrado,
o Poema — um dia teu silêncio entrarei, Mundo-de-sombras, contente
inda que as notas do meu Canto não me acompanhem, que, uma vez, ao
menos, como os Deuses vivi, nem mais desejo.”

DOM PANTERO
Foi assim que aqui cheguei, atrevendo-me até a dedicar a Obra
inteira à Misericordiosa, a cujos pés me prostro, repito, “ entregando-lhe
a sorte da minha alma, do meu corpo e do meu Sonho — do meu Auto
imortal ” (onde esperava, como espero, fundir Queda e Redenção, à luz
de uma só Estrela).
O que tornou possível tal ousadia foi o fato de ter somado o
Circo da Onça Malhada , de Quaderna, à Trupe do Cavalo Castanho , de
Dom Pancrácio Cavalcanti e Dom Porfírio de Albuquerque; e,
acompanhado por meu grupo de Cantores, Músicos, Atores e Bailarinos,
ter começado a apresentar minhas Aulas-Espetaculosas pelo Sertão do
Piauí, do Ceará, do Rio Grande do Norte, da Paraíba, de Pernambuco, de
Alagoas, de Sergipe, da Bahia etc., realizando, já na velhice, meu antigo e
frustrado sonho de me tornar Ator, Palhaço e Dono-de-Circo;
apresentando o Mundo como Palco, e a Vida como Representação (o
que eu fazia tendo como base física a minha Casa e o Circo-Teatro
Savedra ).
E, mesmo quanto a estas Cartas, eu arranjaria um jeito de
também as colocar à disposição de Deus, para que as interrompesse
quando lhe parecesse melhor: eu acabaria todas elas sempre com as
mesmas palavras, sempre com os mesmos Versos. Assim, A Ilumiara
seria a grande Obra e cada Carta um Padrão , um Marco semelhante
àqueles que, segundo Fernando Pessoa, os Navegadores portugueses
iam semeando nos areais da costa africana na medida em que
costeavam a terra em busca da Índia:

FERNANDO SCHABINO PESSOA


“ O esforço é grande e o homem é pequeno. Eu, Diogo Cão,
Navegador, deixei este Padrão ao pé do areal moreno e para diante
naveguei .
“ A Alma é divina, a Obra é imperfeita. Este Padrão sinala aos
Céus que, da Obra toda, é minha a parte feita; o por-fazer é só com Deus. ”

DOM PANTERO
De modo que posso passar à Despedida:
Doxologia
AURO SCHABINO
Agora, só me resta ir para a Igreja. Subo a ladeira. A Porta. A
escura Nave. Com o Livro aos ombros, vou como uma Ave de papel preto e
branco que esvoeja. Vazio, o Nicho, em ouro, ali flameja. Subo ao Altar. No
vão, perto da grade, deposito a futura Raridade. Vou ao Padre. Recebo a
minha Tença. E, em meio da geral indiferença, abandono — mais uma! —
esta Cidade.

ALBANO CERVONEGRO
O Circo: sua Estrada e o Sol de fogo. Ferido pela Faca, na
passagem, meu Coração suspira sua dor, entre os cardos e as pedras da
Pastagem. O galope do Sonho, o Riso doido, e late o Cão por trás desta
Viagem.
Pois é assim: meu Circo pela Estrada. Dois Emblemas lhe servem
de Estandarte: no Sertão, o Arraial do Bacamarte; na Cidade, a Favela-
Consagrada. Dentro do Circo, a Vida, Onça Malhada, ao luzir, no Teatro, o
pelo belo, transforma-se num Sonho — Palco e Prelo. E é ao som deste
Canto, na garganta, que a cortina do Circo se levanta, para mostrar meu
Povo e seu Castelo.
DOM PANTERO
E, com estes Versos, compostos em Martelo-Gabinete e Martelo-
Agalopado — duas estrofes criadas pelos Cantadores brasileiros —,
aqui se despede de Vocês, nobres Cavaleiros e belas Damas da Pedra do
Reino, este que é, ao mesmo tempo, seu Soberano e seu companheiro
de cavalgadas e Cavalaria,

Dom Pantero do Espírito Santo, Imperador .


A MARIA ,
MÃE DE DEUS ,
POR TUDO O QUE SIGNIFICOU
E SIGNIFICA PARA NÓS .
LIVRO II
O PALHAÇO TETRAFÔNICO
O PALHAÇO TETRAFÔNICO

Airesiana Brasileira em Lá-Maior


Prelúdio

O RAPSODO AGONIZANTE
O RAPSODO AGONIZANTE
Epístola de Santo Antero Schabino, Apóstolo

Escrita por seu afilhado, sobrinho e discípulo Antero Savedra,


em homenagem aos Brasileiros descendentes de Judeus, nas pessoas de
Antônio José da Silva, Rachel e Ana Canen, Jacob Schachnik, Noel Nutels,
Moacyr Scliar e Betty Gofman.
Dirigida aos nobres Cavaleiros e belas Damas da Pedra do Reino.
E enviada, por seu intermédio, aos diversos povos do Mundo;
especialmente aos da Rainha do Meio-Dia , aqui representada por
Moçambique .
EPÍGRAFE
“Um Poeta deve morrer, mas não sua Musa. Esteja eu vivo ou
morto, meu Canto continuará atingindo os outros. E nada pode
desaparecer deste Mundo no dia da minha Despedida final.”

S ÉRGIO P ARADJANOV
DEDICATÓRIA
Este Prelúdio é dedicado a Isabel de Andrade Lima Suassuna,
Diogo Ardaillon Simões, Ester e Anaís Suassuna Simões; e foi composto
em memória de Maria das Neves Dantas Villar e Joaquim Duarte
Dantas.
O RAPSODO AGONIZANTE NO CAMARIM DOS
PRESSÁGIOS

Adágio Evocativo
SIBILA
Moda, Turismo & Lazer
Igarassu, 20 de Março de 2014
23 de Abril de 2016

Aos nobres Cavaleiros e belas Damas da Pedra do Reino.

Amigos:

E screvo a Vocês como se celebrasse um ritual religioso no Palco do


Circo-Teatro Savedra . Para isso, vesti a roupa negra-e-vermelha que
herdei do meu Tio, Padrinho e Mestre, Antero Schabino. Pendurei ao
pescoço o Colar-com-Medalhão e sentei-me na Cadeira que outrora
pertenceu, no Colégio de Olinda , a Antônio Vieyra: com uma tábua
colocada de través sobre seus braços, pode ela servir de trono ao Rei, de
palco ao Poeta, de picadeiro ao Palhaço e de púlpito ao Profeta,
garantindo-me assim que Dom Pantero do Espírito Santo, Encenador e
Encorado-polifônico d’A Ilumiara , passa a integrar aquela Áurea-Catena
da qual seu primeiro ocupante sem dúvida participava.
Para ser exato, porém, devo dizer que neste momento eu me
encontro num Gabinete, oculto entre as moradas da Casa do Engenho
Coral , situada na Ilumiara Cantapedra , em São Lourenço da Mata. Nela,
Guilherme Jaúna filialmente me acolhe de vez em quando, depois que,
forçado a sair de Taperoá, me mudei de novo para o Recife, trazendo
comigo a Sibila , que passei a publicar no Jornal A Voz de Igarassu .
Aqui, de vez em quando, punge-me a saudade das Casas em que
me criei — a da Fazenda Saco da Onça , e a urbana, de Taperoá. De
acordo com as acusações dos nossos adversários, foram as duas que
iniciaram dentro de mim “ o nefasto processo de transformação de
Antero Beato num arcaico, ressentido e frustrado Arquiteto-de-escombros
” (processo concluído “ pela restauração da Ilumiara A Coroada ”).

Insisto, porém: mesmo sentado à mesa do Gabinete, é como se


estivesse no palco do Teatro; ou no terraço da nossa Casa recifense,
onde Tio Antero pronunciava suas famosas Conferências Quase-
Literárias ; ou, como já referido, na do Saco da Onça ; ou, finalmente, na
de Taperoá — aquela em que, quando Menino, morei com minha Mãe e
meus irmãos Mauro, Afra, Altino, Adriel, Auro e Gabriel, depois que o
Cavaleiro foi assassinado.
Ora, durante toda a minha vida, eu me considerei, antes de tudo,
como um filho de João Canuto. E, provavelmente por causa das
circunstâncias em que ele morreu, sempre dormi muito mal, num sono
profundamente perturbado por sonhos e pesadelos. E, ainda hoje,
mesmo durante o dia, passo grande parte do tempo numa espécie de
devaneio, na companhia dos meus mortos, o que me leva a conviver
com eles de noite e de dia, dormindo ou acordado, num Sonho quase
contínuo.
De noite, às vezes, estou sonhando e de repente ergo-me da
Cama, apavorado, ainda sacudido por soluços que me sufocam: no
sonho, poucos momentos antes, encontrava-me na velha Casa da
Fazenda Saco da Onça ; era 9 de Outubro de 1930, e mais uma vez eu
ouvia o galope de um Cavalo e o ruído de passos que desciam
precipitadamente uma Escada, com um grito que trazia no seu rouco
som empoeirado um sangue que nunca mais se apagou da minha vida.
Como Vocês bem podem entender por aí, foi assim que as Casas
pertencentes a nossa Família terminaram se fundindo numa só — a
recifense, na qual procuro efetivar agora o balanço final dos meus dias.
E é por isso que redijo estas Cartas cercado por imagens e lembranças
dos mortos familiares, que, de sua névoa, me falam carinhosamente,
ajudando-me, pelo “ Riso a cavalo ” e pelo “ galope do Sonho ”, a
transmutar em vidrilhos e lantejoulas, semelhantes aos dos nossos
Espetáculos, o sangue e as lágrimas que escorrem por estas páginas.
Variação sobre o Tema do Candelabro Rupestre da Beleza — Com citação de Pedro
Américo

É noite, agora, e, dentro de casa, a temperatura da Ilumiara


Cantapedra — situada na confluência dos Rios Tapacurá e Capibaribe —
torna-se aos poucos cada vez mais agradável. Na Ilha, perto da pequena
Corredeira que, cantando na pedra, dá nome à Fazenda, de vez em
quando relincha um Cavalo. No Curral, são os urros graves dos Bois ou
os mais agudos dos Bezerros; o berro das Cabras e o balido das Ovelhas,
Cabritos e Borregos. No Quintal, ouve-se a algazarra dos Guinés,
entremeada aqui e ali pela sinistra e bela trombeta dos Pavões que meu
irmão Gabriel me mandou de presente, da Fazenda Carnaúba .
Assim, não causa espanto que minha escrita, numa festa
provavelmente inaceitável para os outros, apareça carregada de choro
sombrio e riso desatinado: escrevo como se o Espelho me revelasse, em
claro-escuro mas dançando; às vésperas da morte mas a caminho de
vencer a Morte; ameaçado pelo Enigma mas tateando incansavelmente
em minha cegueira para ver se consigo decifrá-lo; tentando elevar-me e
levar meu Povo comigo em meu impulso para o Alto.
Variação sobre o Tema do Candelabro Rupestre da Beleza — Com citação de Pedro
Américo

De modo que, para colocar meu espírito à altura da encantação


criadora da escrita, a Música era indispensável; e, antes de começar esta
Carta, cuidei de povoar o ambiente com o som de peças como a Romaria
, de Antonio Madureira, e Sýrinx , de Claude Débussy. A primeira foi
composta para A Compadecida . Quanto à segunda, lembro que sýrinx é
o nome grego da “ flauta de Pã ”, e a peça de Débussy é ainda mais cheia
de sortilégios porque nela a Flauta soa desacompanhada de qualquer
outro instrumento.
Ao som de tais músicas, A Ilumiara torna-se, aos poucos, “ um
novo e obscuro Hieróglifo, uma Ponte sobre o Abismo ”, como dizia João
Ribeiro, um dos maiores entre os Imortais da Academia Brasileira de
Letras .
Mas, de certa maneira, é também uma Tapeçaria. Depois que,
forçados por acontecimentos políticos, nos mudamos do Recife para
Taperoá, as filhas de Adriel e Eliza — Maria, Isabel, Mariana e Ana Rita
— começaram a transpor as Litogravuras feitas pela Mãe para grossos
panos de algodão bordados por elas. Ora, as Litogravuras de Eliza
tinham sido feitas, a pedido de meu Tio, Padrinho e Mestre, como
ilustrações para o Livro que seria A Divina Viagem . E, emendadas umas
às outras, era como se fossem completando uma espécie de Ilumiara-
em-Pano ; o que me recordava um outro Tecido, o de Penélope, bordado
durante o dia e desfeito à noite, para que assim pudesse ela afastar os
Pretendentes importunos e se manter fiel a seu marido, Ulisses, o Rei
(que, enquanto isso, penava em sua Viagem, de volta da guerra de
Troia). E a comparação é ainda mais pertinente se nos lembrarmos de
que a obra de Adriel, com sua Telemaquia , era, de certo modo, uma
Odisseia ; e a de Auro, uma Orestíada .

DONA CLARABELA
A meu ver, essa interpretação sobre o bordado de Penélope é
machista, primária e mal-urdida. A ela eu objeto em primeiro lugar que
a Rainha, largada por Ulisses e deixada só em Ítaca por anos infindáveis,
tinha todo o direito de procurar um novo marido (assim como fez Ana
Emília Ribeiro ao ser abandonada por Euclydes da Cunha).
Em segundo lugar, somente se atribui significado tão superficial
ao bordado de Penélope porque ela era Mulher. Na verdade, o que se
empreendia com ele era uma Viagem-decifratória, tão importante e tão
carregada de significado quanto a de Dante em seu Poema ou a de
Cervantes em sua Novela. Era a tentativa de encontrar o Castelo e nele
penetrar, vencendo todas as dificuldades para, afinal, em sua 7ª
Morada, começar-se a decifração do Enigma anunciado pela Vulva
feminina.
Era isso, então, o que Penélope procurava, ao bordar durante o
dia. E quando, à noite, desmanchava parte do trabalho, era porque
descobrira, no que tecera, algum erro de interpretação.
Somente assim, também, é que se pode entender o sentido da
grande Tapeçaria criada, aos poucos, por Eliza e suas filhas: era ela a
recriação, em pano, d’ A Divina Viagem , a expressão plástica da grande
tentativa de decifração do segredo do Mundo, literariamente sonhada
por meu Mestre, iniciador e primeiro amante, Antero Schabino.

DOM PANTERO
A Ilumiara é, portanto, uma Confissão-heroica, uma Odisseia
embuçada nas teias de uma grande Tapeçaria, na qual se representam,
inclusive, cenas de luta e sangrentas emboscadas.

DOM PARIBO SALLEMAS


É, também, um Conto de Fadas. Mas de Fadas obscenas, amantes
de Fados cruéis e implacáveis: Destinos que elas, a serviço do
Encourado e da Moça Caetana, iam tecendo e enredando nos fios de sua
Malha inextrincável.

DOM PANCRÁCIO CAVALCANTI


E, observando critérios parecidos com os do extinto Jornal-
católico A Tribuna , aqui se avisa mais uma vez: estas Cartas-
Espetaculosas só podem ser lidas, folheadas ou vistas “ por adultos de
sólida formação religiosa, moral, poética e filosófica ”.

DOM PORFÍRIO DE ALBUQUERQUE


Mas o assunto é tão delicado que, mesmo feita esta ressalva,
também aqui se transcrevem, numa espécie de imitação falsificada do
Português arcaico, alguns versos, contos e racontos, assim como certas
citações que, como as do Cântico dos Cânticos , têm uma conotação
erótica mais evidente; ou que, como as do Profeta Ezequiel e as de
Cassandra Rios, são escritas numa linguagem capaz de transformar
Dom Pantero em Pedra-de-escândalo , sendo ele então jogado ao rio, com
outra Pedra (e esta real!) amarrada ao pescoço.

DOM PANTERO
Além disso, no processo por assim dizer “ complicatório ” aqui
adotado existe outra vantagem: com ele, a sagrada Rabeviola que é a
Língua Portuguesa vai aparecer nas Cartas como um instrumento a
mais de beleza na festa do Espetáculo. Principalmente para quem sabe
que Cervantes considerava o Português como a língua mais sonora e
musical do Mundo: apta, portanto, a transformar A Ilumiara num Palco,
onde as Personas-Dramáticas e Máscaras-Coregais poderão jogar,
brincar, chorar e improvisar à vontade em sua condição de Velhos,
Pastoras, Capitães, Pícaros, Cantadores, Quengos, Quengas e Palhaços
que, diante do Público, sabem tanger, com total liberdade, a genial
Viorrabeca da nossa Língua.

DOM PANCRÁCIO CAVALCANTI


A terceira vantagem do processo “ pantérico ” de escrever é
gráfica: em alguns trechos destas Cartas, além da referida e falsificada
Ortografia Arcaica , adota-se a Tipografia Armorial ; e ambas,
propositadamente, dificultam a leitura aos olhos inocentes dos não
iniciados, colocando a Narração mais de acordo com as Personas-
Dramáticas e as Máscaras-Coregais que comparecem ao Palco.

DOM PARIBO SALLEMAS


Dito o quê, sem mais delongas, passemos à parte realmente
mais importante desta Narrativa espaventosa e meio-desparafusada.

DOM PANTERO
Para que Vocês bem entendam o que se passou no Circo-Teatro
Savedra no dia 9 de Outubro de 2000, devo avançar alguns traços
biográficos de José Fausto Martins, o jovem Delegado de Taperoá.
Fausto era de Campina Grande, mas durante algum tempo
morara em nossa Cidade, com o objetivo de obter graduação na
Universidade Popular Taperoaense (onde foi meu aluno, no Curso de
Letras). Desde muito moço, começara a se interessar pelo problema da
culpa e do crime nas ações humanas, recortando e guardando as
notícias que sobre isso eram publicadas nos Jornais. Entrara na Polícia
Civil; e, nesta condição, ainda em Campina Grande, publicara um artigo
intitulado Crime e Romance Policial .
Advertido por um colega de que um título universitário poderia
ajudá-lo a progredir em sua carreira, matriculara-se na Unipopt , onde
escolhera o Curso que lhe parecera mais afim com seu gosto pela
Literatura.
Um dia, já meu aluno, veio procurar-me depois de uma aula que
eu dera sobre O Trágico e a Tragédia de Édipo Rei . Queria explicações
mais detalhadas sobre a teoria aristotélica do reconhecimento , assunto
da minha aula: interessara-se por aquele processo pelo qual o grande
Dramaturgo grego, em sua Narrativa, ocultara do público uma parte dos
acontecimentos (parte essa que só pouco a pouco ia sendo revelada);
era o que acontecia com Édipo, que somente no fim da história
descobre que matou o Pai e está casado com a própria Mãe. Fausto
achava curioso que Sófocles, tendo vivido antes de Cristo, tivesse usado,
já, em sua Tragédia, o processo do Romance policial moderno.
Foi a partir dessa aula e da conversa que a ela se seguiu que ele
publicou — desta vez na Gazeta do Cariry — um segundo artigo, O
Romance Policial e a Tragédia de Édipo , que levou à Unipopt , pedindo-
me que eu o lesse e comentasse.
Na aula seguinte, disse-lhe eu que havia uma diferença muito
grande entre a peça de Sófocles e um Romance policial qualquer: neste,
o reconhecimento — com a revelação final da identidade do criminoso
— é o único interesse real da narrativa; naquela, é apenas um meio do
qual o Poeta se vale para dar suporte e firmeza ao resto (muito mais
importante do que o simples desvelar da parte oculta dos
acontecimentos).
Falei-lhe, então, de Dostoiévski. Disse-lhe que o grande Escritor
russo tratava do problema do crime e da culpa com a intensidade de um
Romance policial; ao mesmo tempo, fazia isso numa altura e numa
qualidade literária que nada ficavam a dever a Sófocles. Mostrei que, em
Crime e Castigo , a gente sabe quem é o autor do crime assim que este é
cometido — e nem por isso o nosso interesse pela narração diminui.
Fausto confessou que nunca lera Dostoiévski; e para bem
cumprir minha tarefa de Professor, eu lhe emprestei Crime e Castigo , O
Idiota , Os Demônios e Os Irmãos Karamázov .
Segundo ele comentou depois, “ a leitura desses livros dividira
sua vida em duas ”. Inclusive, ele passara a ampliar sua coleção de
recortes porque, impressionado com o assassinato político de Chatov
em Os Demônios , tomara interesse pelos crimes praticados pelos
terroristas no Mundo inteiro.
Lembro-me de ter tido o cuidado de, naquela ocasião, mostrar-
lhe que talvez pior do que o terrorismo individual era o “ terrorismo de
Estado ”, nos termos praticados principalmente (se bem que não
exclusivamente) por países como os Estados Unidos e a União Soviética
(que na época ainda existia). E, voltando a Dostoiévski, mostrei-lhe
como este, mais generoso do que Tolstói, sabia apreciar a grandeza de
Cervantes e de Shakespeare. Homenageara o primeiro n’ O Idiota , na
Correspondência e no Diário de um Escritor ; e o segundo em Crime e
Castigo , na cena em que um sonho de Svidrigailov é descrito
deliberadamente como paráfrase do suicídio de Ofélia, a ele impelida
pelos malignos insultos e pela afronta imperdoável que Hamlet lhe
fizera:
TEODORO SCHABINO DOSTOIÉVSKI
“No sonho, ele subia a escada de frente da Casa e entrava num
grande salão de teto alto. Junto das Janelas, em torno da porta aberta,
por todos os lugares havia Flores; e, no meio do aposento, em cima de
uma mesa coberta por uma toalha branca, havia um Caixão, também
forrado de branco.
“Toda cercada de flores, no Caixão jazia uma mocinha vestida de
branco, com as mãos cruzadas ao peito — mãos que pareciam esculpidas
em mármore. Seus cabelos, de um louro claro, estavam molhados e uma
coroa-de-rosas cingia-lhe a fronte. O sorriso de seus pálidos lábios
deixava transluzir uma dor grande e vaga.
“Svidrigailov sabia quem era aquela; não havia imagens sagradas
nem velas, não se ouviam preces em torno do Caixão; ela se suicidara,
afogando-se. Parecia não ter mais de 14 anos; mas tinha, já, os
sentimentos desenvolvidos e havia perdido a si mesma, ofendida por uma
afronta que enchera de espanto e assombro sua terna consciência,
enchendo de imerecida vergonha sua alma pura e fazendo-a arrancar um
supremo grito de desolação que ninguém ouvira, mas que havia ressoado
na noite escura, nas trevas e no frio, no Riacho formado pelo úmido
desgelo, enquanto o vento gemia.”

DOM PANTERO
Mostrei ainda a Fausto que, além de trágico como Sófocles,
Dostoiévski às vezes era também cômico e humorístico como
Cervantes, o que se podia ver n’ Os Demônios , principalmente por meio
daquele “ dom quixote ” comovente e grotesco que é Estêvão
Trofimovitch Verkovenski. Disse-lhe que na cena em que Estêvão foge
de Casa — fuga na qual conduz ao peito aquela “ novela de cavalaria ”
que, para ele, era o Evangelho —, Dostoiévski profeticamente antevira e
narrara a fuga e a morte de Tolstói, que (também conduzindo o
Evangelho numa mochila de Peregrino e morrendo abandonado numa
estação de trem) tentara, com essa morte quixotesca, vencer a
dilaceração que sempre o humilhara, entre o ascetismo e a pobreza que
pregava e a vida de grão-senhor que o cercava em Iasnaia-Poliana.

Fausto agradeceu o empréstimo dos livros e os esclarecimentos


que acabara de dar-lhe; e, alguns dias depois, publicou na Gazeta um
terceiro artigo que tinha como título Terror, Romance Policial e Romance
Dostoiévskiano ; dedicara-o a mim para retribuir o interesse que,
segundo me disse, eu demonstrara por seus pendores literários e pela
Pintura, arte que também praticava.
Pois bem; apresentada a Vocês a figura desse meu ex-aluno e
amigo, chegou o momento de informá-los de outra circunstância
importante: o Simpósio Quaterna , realizado em Taperoá, esteve a ponto
de ser cancelado por causa de um acontecimento que abalou aquela
pequena cidade do Sertão paraibano. A notícia sobre ele foi publicada
na Gazeta do Cariry de 6 de Outubro de 2000; aqui vai transcrita nas
palavras do Jornalista que a redigiu; e o fato me impressionou mais
ainda porque, no dia da publicação, estavam-se completando 30 anos
da morte do meu irmão Mauro:

CRIME BRUTAL EM NOSSA CIDADE


VarIação sobre o Tema de Beldade e o Monstro

MARCELO REBELO
“ A Matriz de Nossa Senhora da Conceição, padroeira de Taperoá,
local sagrado que só devia ser ambiente de paz e harmonia, serviu ontem
de cenário a um crime brutal e bárbaro: Patrícia Alves dos Santos,
menina de apenas 12 anos e que encantava a todos por sua beleza e
mansidão, foi covardemente estuprada e morta na Sacristia daquela
Igreja.
“A monstruosidade aconteceu por volta das 18 horas; e o Vigário,
Padre Manuel, foi acusado pelos familiares de Patrícia de, no primeiro
momento, tentar encobrir o crime ‘para evitar escândalo’.
“A Avó da menina, Amara Santos, contou que a neta saíra de casa
mais ou menos às 15 horas; 3 horas depois, como não tinha voltado, ela
começara a ficar inquieta, e fora procurá-la.
“Ao sair pela rua, notou logo um agitado grupo de pessoas que se
tinha reunido perto da Igreja:
— “Estava tranquila, nunca imaginei que alguma coisa ruim
pudesse acontecer dentro da Igreja — declarou Amara. — Achava que ali
era o lugar mais seguro que existia. Mas, ao me aproximar, meu coração
disparou: o Padre Manuel veio em minha direção e disse que tinha havido
um acidente com Patrícia.
“Desesperada, a avó da Menina foi impedida de entrar na Igreja
pelo velho Sacristão — o antigo Cantador, Folhetista e Mestre-de-Obras
aposentado, Marcos de Oliveira Barros, 81, que para assinar seus
Folhetos usa o nome de Marcos Tebano. E logo aconteceu um novo choque
a Amara: ajudado pelo Sacristão, o Padre Manuel saiu da Igreja, com
Patrícia nos braços. Os dois entraram num Carro com a Menina e saíram
em disparada, em direção à Maternidade, situada na Rua de São José e
onde também funciona um Posto de Saúde.
“Acompanhada por seu filho Bruno Alves dos Santos — tio mais
moço e irmão-de-criação de Patrícia —, assim como por um amigo dele,
Natércio Santana (ambos Atores e Bailarinos do grupo Os Filhos do Sol ),
Amara caminhou, aos prantos, para o Posto, onde já se encontrava sua
filha, a mãe de Patrícia, Socorro Alves dos Santos, irmã mais velha de
Bruno. Tremendo e chorando muito, ela contou que, depois de violentada,
Patrícia fora estrangulada pelo estuprador; o Padre chegara ao Posto
carregando o corpo já sem vida da Menina:
— “Minha neta estava morta e com a roupa toda rasgada! —
disse Amara, chorando.
“Patrícia foi criada pela Avó porque Socorro, sua Mãe, ainda
solteira, engravidara aos 14 anos. Sentindo-se envergonhada, e sem
condições de criar a Filha, abandonara a recém-nascida numa lata de
lixo. Segundo nos contou o Padre Manuel, uma pessoa escutara o choro
da criança e entregara Patrícia à Avó. Disse ainda Amara que Patrícia
tinha até vergonha da orelhinha esquerda, à qual faltava um pedaço,
roído por um Rato enquanto ela ficara no lixo. Mas a Mãe, Socorro, nega o
abandono:
— “Tudo que disseram de mim é mentira; eu nunca abandonaria
minha Filha! — afirma ela, que, no entanto, não nega que Amara, avó da
Menina, era quem cuidava de Patrícia.
“De acordo com José Fausto Martins (que, apesar de ter feito, aqui
na Unipopt , o Curso de Letras, só há poucos dias veio de Campina Grande
para assumir o cargo de Delegado de Taperoá), o Padre Manuel não deve
ser acusado pelo ato de retirar o corpo do local do crime:
— “Pelo contrário! — disse ele. — Teria sido culpado por omissão
de socorro, caso não tivesse levado Patrícia para o Posto de Saúde. Nem
ele tentou acobertar o crime: quando levou a Menina, ainda não se sabia
se ela estava morta ou não.
“O Padre, segundo nos disse, estava fora no momento do crime.
Afirma que, ao chegar à Igreja, já encontrou a agitação causada pelo
achamento do corpo; e acrescentou que a notícia lhe foi dada pelo
Sacristão.
“Este, o velho Marcos Tebano, conta que, na hora da morte de
Patrícia, estava na Universidade Popular Taperoaense, cujas obras de
restauração foram feitas por ele quando, nos anos 70, veio do Recife para
Taperoá, a convite de Pedro Dinis Quaderna, proprietário da
Universidade. Ali, na Unipopt — onde, após a reforma, ficou trabalhando
como Porteiro —, foi ele chamado pelo Eletricista conhecido apenas por
Valter, 52. Foi Valter quem primeiro notou que uma das portas laterais da
Igreja estava entreaberta, o que não é comum àquela hora. Desconfiado,
resolveu entrar na Matriz; e, ao chegar à Sacristia, viu Patrícia no chão,
com a cabeça coberta por um saco.
— “Fiquei assustado! — disse-nos Valter, ainda muito perturbado
pelo que acontecera. — Coloquei o corpo em cima da mesa da Sacristia e
tentei reanimar a pobrezinha: prefiro pecar tentando salvar uma vida a
negar meu socorro. Mas quando vi que o caso era grave, saí e fui chamar
o Sacristão.”
ALBANO CERVONEGRO
Ladra o Cão, a Serpente, o Cego feio, a Fera cega, esse terrível Cão.
Ele instila o Veneno, e seu ladrido de sangue, medo, pus e danação, tenta
manchar as pedras do meu Reino, com seu rosnar de fogo e maldição.

DOM PANTERO
Tal foi o crime que abalou nossa pacata e pequena Cidade, no
dia em que se completavam 103 anos da destruição do Arraial de
Canudos ; na semana que assinalava os 30 anos da morte de meu irmão
Mauro e os 70 da de meu Tio, João Sotero, e de meu Pai, João Canuto; e
às vésperas da abertura do Simpósio que eu planejara com tanto
cuidado. E quem, dele, primeiro me deu notícia foi um Escultor,
Severino de Oliveira Barros, que usava o nome-artístico de Biu Santeiro .
Era filho do velho Sacristão, Marcos Tebano, e, como nós, fazia parte do
Movimento Armorial . Infelizmente, ele já começara a ser dominado pela
bebida, que depois viria quase a incapacitá-lo para o exercício de sua
Arte.
Eu era tocado pela beleza das pequenas Esculturas que ele fazia
em Pedra-calcária e entre as quais comecei a escolher algumas que ele
reproduzia em ponto maior e em Granito — o que só era possível nos
momentos em que a embriaguez não lhe tornava as mãos trêmulas
demais.
No dia da morte de Patrícia, depois do jantar, eu estava no
Terraço da nossa Casa, sentado numa Espreguiçadeira, quando Biu
Santeiro entrou pelo Portão da rua, inteiramente transtornado.
Além de Escultor, ele era Poeta, se bem que não fosse repentista
e Cantador, como o Pai. Para assinar seus Versos, usava o Pseudônimo
de Tupan Sete . Vinha com uns papéis na mão; e, no primeiro momento,
já habituado a suas estranhas falas — porque a bebida o estava
deixando meio demente —, não atinei para a gravidade do fato que
acontecera e que ele, em vão, tentava formular em termos inteligíveis,
falando já dentro do Jardim:

BIU SANTEIRO
“ O senhor já soube do que aconteceu? Aquilo foi a Besta Fouva, a
Besta Ladradora, manchando e matando a inocência! Não fui eu: porque
eu bebo, mas não sou nem ladrão, nem tarado, nem assassino, nem
maconheiro! ”

DOM PANTERO
Ao dizer isso, jogou-se ao chão e, esticado, sustendo-se apenas
nas mãos e nas pontas dos pés, por 3 vezes tocou com a testa o pó da
terra — “ uma vez pelo Pai, uma pelo Filho e outra pelo Espírito Santo ”,
como me explicou.
Depois, ergueu-se com dificuldade, cruzou o Jardim e veio para
o Terraço, postando-se junto a mim, de chapéu na mão, como era seu
hábito; e, quando falou de novo, foi tão perto que, por seu hálito, deu
para sentir que ele bebera, muito e há pouco tempo:
BIU SANTEIRO
“ Eu me joguei no chão porque, para mim, é São Francisco no Céu
e o senhor na Terra! A sombra do Ser: quem descobre o Segredo que há na
Imensidade? Eu não me esqueço de Deus um só momento, porque a Vida
eterna mora em mim.
“ O Povo, por aí, vive querendo me levar na graça porque eu bebo.
Mas eu tiro essas coisas de letra; e até escrevi sobre isso um Poema lindo,
que dediquei ao senhor e que é assim: — Por desprezo, tornei-me Mascate
de Anedotas. Vergasta, sumária régia; ordinária, presumida desdita do
Arlequim. Imbecil ! Por que tão sutil ? Pobre coração-de-pedra, sem risos,
esférico, qual um Guizo. ”

DOM PANTERO
Eu estava espantado porque, apesar de conhecer o modo de
falar do Escultor, naquele dia ele estava ainda mais confuso e
complicado do que habitualmente. O Poema fora composto contra “ o
coração-de-pedra ” de um intelectual da rua, um homem metido a
engraçado e que vivia zombando de Biu Santeiro, sem desconfiar de
que era por desprezo e por convicção de sua qualidade de Artista que o
Escultor consentia em ser visto apenas como “ um Mascate de Anedotas
”.
Mas naquela noite, o tom de voz de Biu Santeiro revelava uma
espécie de desespero que não tinha nos dias comuns. Além disso, mais
do que sempre, ele misturava com as falas que me dirigia fragmentos
mal decorados dos Poemas que compunha. Foi o que fez,
acrescentando:
BIU SANTEIRO
“ As folhas secas da sedução. Desceu a Cortina e não vi mais nada
— lá, onde o Viço nasce, onde cresce a solidão e sonha a Garça: o resto, o
Som reúne. Sigo a linha das Conchas. O Sol, as estrelas, a Lua, a escuridão.
Reais, Espelhos! Fundem-se as Pedras, rotas: beco sem saída é o endereço
das Musas. ”

DOM PANTERO
O verso “ onde cresce a solidão e sonha a Garça ” eu já conhecia:
reaparecera ali, mas pertencia a outro poema de “ Tupan Sete ”; fora
usando tal verso como Mote que meu irmão Adriel compusera o Soneto
que o tornara suspeito aos Órgãos de Segurança do Regime Militar; ao
contrário do que julgáramos, tinham desconfiado de que, no Soneto, “ lá
” era o Sertão, colocado mais a salvo, e “ aqui ” era o Recife, inçado de
Espiões e à mercê de torturas e assassinatos.
Mas, na noite daquele 5 de Outubro de 2000, Biu Santeiro
continuou:
BIU SANTEIRO
“ É como lhe digo, foi a Besta. O Anjo não é perigo, mas a Besta
acaba com qualquer um: acaba com o senhor, quanto mais com Biu
Santeiro! Está ouvindo esses latidos? É ela, na sacristia da Igreja! Estou
ficando mouco e doido! O Povo diz por aí que é por causa da bebida. Mas
não é não, são esses latidos; e eu só vou me livrar deles no dia em que
fizer, na Pedra, a escultura da Besta. ”

DOM PANTERO
Ao ouvir estas palavras, confesso que estremeci, mesmo sem
saber ainda por que Biu Santeiro estava tão aterrorizado. Estremeci
porque, quando estudávamos no Colégio, nosso Tio, Antero Schabino,
nos levara a tomar conhecimento da Besta Fouva, da Besta Ladradora
que aparece n’ A Demanda do Santo Graal .
Entretanto, naquela noite, sem fazer qualquer transição entre o
que dissera e o que ia acrescentar, Biu Santeiro, assim que falou na
esperança de exorcizar a Besta por meio da Escultura, ergueu em minha
direção uma velha Revista-de-Modas, perdida no meio dos papéis que
trazia: estava aberta numa página onde havia algumas Moças que se
tinham deixado fotografar quase nuas, para fazer propaganda de
roupas de dormir.
Biu Santeiro, que fora abandonado pela Mulher, tinha se deixado
possuir por um certo sentimento de hostilidade contra todas as
Mulheres. Apesar disso, tinha uma espécie de obsessão por revistas
daquele tipo, não fazendo distinção entre as de modas e as abertamente
pornográficas. Comprava-as aos montes, de segunda mão, nas bancas
da feira de Campina Grande, gastando nelas e em bebida a maior parte
do pouco dinheiro que, driblando a burocracia, podíamos pagar-lhe, na
Secretaria de Cultura, por seu trabalho de Escultor: não havendo tal
cargo na estrutura oficial, eu mandara contratá-lo como Marceneiro —
e era assim que ele recebia seu pequeno salário.
Naquela noite, mostrando-me, na página aberta, as fotos das
Mulheres, ele falou, com uma voz que de vez em quando soava
embargada por um meio soluço de desespero e embriaguez:
BIU SANTEIRO
“ O senhor está vendo? As que estão sérias olham pra gente desse
jeito porque querem dar! E as que estão rindo, estão mangando do
sangue de Cristo na cruz!
“ Outro dia, ouvi o Padre Manuel dizer que no Evangelho está
escrito: ‘ Toda carne verá a salvação de Deus. ’ Depois da Missa, fui falar
com ele. Perguntei se até a carne dos Pecadores — como eu e as Mulheres
das revistas — ia também, um dia, ver ‘a salvação de Deus’. Padre Manuel
disse que a misericórdia de Deus é tão grande que, se eu e elas nos
arrependêssemos, iríamos ver ‘a salvação de Deus’ .
“ Por mim, não entendo: e os que se arrependem e pecam de novo,
como eu? A única esperança que tenho é porque sei: por maiores que
sejam meus pecados, nunca hei de ver a cólera do Grão-Duque despertada
contra mim! Ouça: esta notícia me foi dada por meu Pai, que tirou ela de
um Jornal, no tempo em que a gente ainda morava no Recife. Foi escrita
por um doido. ”

DOM PANTERO
Então, tirou do bolso um velho recorte de jornal, amassado,
amarelecido pelo Tempo; e leu para mim o texto que aí vai:

O GRÃO -DUQUE
Reflexão relIgIosa, Insana e metafísIca em Dó-Menor

BIU SANTEIRO
“ Declaro, na mais mística de todas as misérias, que as referências
feitas ao Todo-Poderoso em meu nome se incluem entre as inúmeras
calúnias verdes que os antigos apelidavam Navios.
“ As rubras distorções sinceras, que um dia me habitaram, agora
se tornam cada vez mais persistentes e me desdizem de todo e qualquer
ideário de felicidade.
“ A força dos Padres reside na tortura da consciência, por
desterros voluntários, em que se notam formigas de todas as Nações, em
conspiradoras Viagens.
“ Entretanto, não me é possível despertar a cólera do Grão-Duque
imerso em sua Cinza branca — tão alto e tão tímido, que ninguém (e
nenhum Cavalo) será capaz de destroná-lo. ”

DOM PANTERO
Biu Santeiro ia, talvez, continuar. Mas foi nesse momento que
Bruno Alves dos Santos e Natércio Santana chegaram à minha Casa para
comunicar-me a morte de Patrícia. Chorando muito, os dois me
contaram o fato estarrecedor que acabara de acontecer, esclarecendo
que não se sabia ainda quem era o assassino. Algumas pessoas
suspeitavam de Valter, por sua perturbação e por ter sido o primeiro a
encontrar o corpo de Patrícia. Mas eles defendiam o Eletricista,
afirmando que não se devia incriminar ninguém com base em
suposições tão inconsistentes como aquelas.
Ao tomar conhecimento de tudo, lembrei-me imediatamente do
terrível choque que sentira ao ver, no Recife, um pobre adolescente
atropelado. Teria uns 16 anos e, segundo se falava no local, pouco antes
estava felicíssimo por ter recebido, de um Tio menos pobre do que o
Pai, uma bicicleta que lhe permitiria, afinal, assumir um modesto
emprego de Entregador. Aquela era a primeira ocasião em que ia à rua
nela: saíra e, a dois quarteirões de sua casa, fora atropelado por um
Carro em disparada. Eu tivera a pouca sorte de passar logo depois no
local do acidente e meu coração se confrangeu ante a juventude do
morto e a pobreza de suas roupas. Sentia-me dominado por uma
pesada sensação de culpa por ter tido o direito de viver tanto, em
comparação com ele; mas sobretudo pelas diferenças de classe que dele
nos separavam — ele, de um lado, e, do outro, eu e o dono do Carro que
o matara (um “ filho de rico ” imbecil, que se sentia no direito de andar
às carreiras pelas ruas para afirmar sua superioridade e exibir sua
força). Como se podia situar na ordem do Mundo e no plano de Deus
um fato estúpido e brutal como aquele? Vinham-me à lembrança as
angustiosas dúvidas de meus irmãos Auro e Adriel do ponto de vista
religioso e político:

AURO SCHABINO
Existia dentro de mim uma pergunta que me atormentava em
todos os momentos de minha vida: será que o sonho de Profetas como São
João Batista e Trótski estaria sempre condenado a, primeiro, brutalizar-
se, e depois anemizar-se, aviltar-se e por fim desaparecer? Seria sempre
tragado pelos que acham natural a existência desse mundo de baixeza e
fraude em que Damas e Senhores bem alimentados e pretensamente
elegantes olham com naturalidade, quando não com desprezo, para
aqueles “Animais” que eram “os Miseráveis”, como os chamava Victor
Hugo? Estes, por seu lado, em ocasionais explosões de revolta contra a
feiura-e-vulgaridade capitalista, às vezes estraçalhavam os ricos e seus
cúmplices; e até se despedaçavam entre si, brutalizados pela cólera, pela
demência e pela embriaguez a que se entregavam para fugir ao
sofrimento, à injustiça e ao desespero.

ADRIEL SOARES
E mais: do ponto de vista social e político, para lutar contra a
injustiça, teríamos que, forçosamente, nos aliar a guilhotinadores, como
Robespierre, ou fuziladores, como Lênine, Trótski ou Stáline? Estes e seus
companheiros de Partido tinham sido os únicos a fazer realmente eficazes
suas Revoluções, que, tornadas apocalípticas por aqueles cruéis e brutais
inimigos da Injustiça, depois da morte deles tinham de novo se dissolvido
na vergonha e na corrupção capitalista, dando a impressão de que a
tempestade revolucionária fora um pesadelo sangrento e inútil: na
França do século XVIII, como na Rússia do XX, para liquidar velhos
Regimes injustos e decadentes, tinham-se praticado todas as crueldades
do Terror; e — depois de interregnos em que a Justiça, mesmo
precariamente, predominara — tudo fora aportar no mesmo velho
Regime, fundamentado na injustiça e no lucro ignóbil; naquele estado de
coisas em que era considerado normal que um Rapaz nascesse sem a
Bicicleta que só lhe garantia uma dura subsistência, enquanto outro
nascia com o Carro que, até simbolicamente, era o instrumento do
assassinato do primeiro.

DOM PANTERO
O corpo e a Bicicleta estavam contorcidos e machucados pelo
impacto do Carro em disparada. E o que mais me chocava eram os pés
do morto, descalços, sujos, pálidos, tortos, iluminados pelo Sol poente e
pousados sobre o chão de cimento, num imenso e irreparável
abandono.
Mas, ali, pelo menos era de um “ acidente ” que se tratava, e os
superficiais podiam inventar, para ele, alguma explicação “ razoável ”
que lhes acalmasse a consciência. Já na morte de Patrícia, para agravar
nossa angústia diante da falta de sentido de tudo, havia a brutalidade
do crime, acontecido não por acaso, mas sim pela decisão do Assassino,
que não se detivera nem ante o estupro, ao qual ajuntara a crueldade
insensata do estrangulamento (provavelmente praticado para que a
Menina não gritasse nem o denunciasse).

E havia, ainda, o horror das condições em que, desde menina,


também se vira a mãe de Patrícia, aquela Adolescente, integrante “ do
povo pobre do Brasil real ”, como dizia Auro; aquela Mãe que, aos 14
anos, fora seduzida, engravidara e praticara o gesto posterior de
vergonha e desespero que agora lhe era duramente cobrado; inclusive
com o detalhe sinistro da orelhinha da Filha, roída por um Rato na lata
de lixo. Só se lembravam do seu crime: no de seu cúmplice,
provavelmente tão jovem e irresponsável quanto ela, ninguém falava. “
O salário do Pecado é a Morte ”, escrevera São Paulo. Mas, no caso, além
do Pecado original da Raça inteira, que crime cometera Patrícia para ser
punida desde seu nascimento, ocorrido em condições que tinham
levado a Mãe, pecadora de 14 anos, ao terrível abandono da recém-
nascida numa lata de lixo? Que falta tão funesta praticara a Menina,
para merecer aquela morte brutal, por estupro e estrangulamento?
E, mesmo no caso dos outros membros do “ Quarto Estado ” que
tinham fim menos dramático, que justificativa existiria para o
sofrimento e as dificuldades de seu dia a dia? Por que tanta
desigualdade e injustiça, por que tantas e tão grandes diferenças entre
uns e outros, no Mundo? Que explicação haveria para a dor, o mal e a
Morte? Lembrava-me das perguntas que, um dia, o grande Poeta-
popular Leandro Gomes de Barros formulara ao refletir sobre tais
questões:

LEANDRO SCHABINO GOMES DE BARROS


“Se eu conversasse com Deus, iria lhe perguntar por que viemos
pro Mundo pra sofrer tanto por cá. Que dívida é essa que a gente tem de
morrer pra pagar?
“Perguntaria, também, como é que Ele é feito, que não dorme, que
não come, e, assim, vive satisfeito. Por que foi que Ele não fez a gente do
mesmo jeito?
“Por que existem uns felizes, e outros que sofrem tanto, nascidos
do mesmo jeito, criados no mesmo canto? Quem foi temperar o Choro e
acabou salgando o Pranto?”

DOM PANTERO
Camus tinha escrito que “ o único problema filosófico realmente
sério era o do Suicídio ”. Mas estava enganado: o Suicídio era apenas
uma das faces do problema maior — o do Mal, da morte e do
sofrimento humano, que Leandro Gomes de Barros tão magistralmente
formulara com suas perguntas. Aquela era a questão central de todas as
Religiões, de todas as Filosofias. Era a pergunta que estava por trás da
obscura poesia de Altino; do teatro de Adriel; do romance de Auro; e até
dos Espetáculos que eu tentara encenar a partir de 1945, sendo o
primeiro deles A História do Amor de Romeu e Julieta , adaptado do
Folheto escrito por João Martins de Athayde. Como acontecera com
meus irmãos, eu também fracassara em todos; não encontrara resposta
alguma; e agora colocava minhas esperanças naquele Simpósio Quaterna
que, como a Catedral de Canudos em relação a Antônio Conselheiro,
seria para mim, pensava, “ o Monumento que me cerraria a carreira ”.

Mas agora, com aquele Crime cometido poucos dias antes de seu
início, teria condições de empreendê-lo? Eu fora profundamente
atingido pela morte brutal de Patrícia. Ao contrário do que acredito
acontecer com os ateus, eram fatos como aquele que, no recesso mais
profundo da minha alma, me sussurravam o nome de Deus, em meus
instantes de treva e sofrimento. Para mim, ou Deus existia — luz,
resposta, êxtase, explicação — ou o Mundo era uma teia cega e
desesperada, insuportável, sem sentido.
No entanto, também nunca me resignara a deixar de parte,
como se não os visse, o absurdo e a injustiça do Mundo e a crueldade de
acontecimentos como a morte de Patrícia. Impressionava-me que o
assassinato tivesse acontecido no dia de outro crime, este coletivo e
político — a destruição do Arraial de Canudos; e mais: na véspera do
aniversário da morte de nosso Tio, João Sotero, degolado na Casa de
Detenção do Recife; e a 3 dias da abertura daquele Simpósio, tão
importante para mim — entre outras coisas porque iria assinalar os 70
anos da morte do Cavaleiro, meu Pai. De modo que, quando Bruno e
Natércio me puseram a par do crime, eu disse aos dois que iria
suspender o Simpósio. Achava, inclusive, que nem eles nem eu teríamos
condições psicológicas para enfrentar o Palco, principalmente no que se
referia aos trechos cômicos do Espetáculo.
Os dois, porém, discordaram; e Biu Santeiro, mesmo
embriagado como estava, tomou partido ao lado deles. Disseram que,
no dia da Abertura, já estaríamos menos abalados. No Simpósio eles
iriam desempenhar os papéis de Tareco e Paspalho , mais na condição de
Bailarinos do que de Atores, o que exigiria mais do seu corpo do que da
fala. Por isso, não se achavam no direito de, por motivo de sofrimento
pessoal, impedir a realização do Simpósio; principalmente porque
sabiam que eu dera uma Aula poucos dias depois da morte de meu
irmão Mauro; e, mirando-se no meu exemplo, achavam que teriam
forças para agir de modo semelhante. Bruno garantiu que nenhuma
pessoa de sua Família consideraria a manutenção do Simpósio como
um desrespeito à memória da Menina. Natércio aconselhou-me a
decretar luto oficial na Unipopt e na Secretaria de Cultura , o que, na sua
opinião, seria suficiente, como homenagem a Patrícia e protesto contra
sua morte; isto sem se falar na conveniência das pessoas que tomariam
parte no Simpósio e já começavam a chegar a Taperoá.
Terminei por concordar com eles. Pensando no crime e no papel
que ele poderia desempenhar na revelação do verdadeiro significado
do Simpósio, lembrava-me das palavras de Victor Hugo:

VICTOR HUGO SCHABINO DE SAVEDRA


“Enquanto, por efeito da Lei e dos costumes, houver proscrição
social, forçando, em plena civilização, a existência de verdadeiros
infernos, e desvirtuando, por humana fatalidade, um destino que por
natureza é divino; enquanto não forem resolvidos esses três problemas —
a degradação do Homem pelo proletariado, a prostituição da Mulher pela
fome e a atrofia da Criança pelo abandono; enquanto houver lugares
onde seja possível a asfixia social; enquanto sobre a Terra houver
ignorância e miséria, Livros como este não serão inúteis.”

DOM PANTERO
Era mais ainda, a meu ver: o problema não era só político e
social. Enquanto houvesse aquelas outras perguntas, ainda mais
terríveis, sobre o significado da Vida, sobre o mistério da Morte, do mal
e do sofrimento humano, Livros em que elas fossem pelo menos
recolocadas a uma nova luz teriam um papel a representar no
Espetáculo doloroso e grotesco, cômico e trágico, da existência humana;
e, com o choro dilacerado a envolver tudo isso, de uma parte; com o “
galope do Sonho ” e o “ Riso a cavalo ” abrindo, de outra parte, um raio
de esperança em meio ao infortúnio geral do nosso pobre Rebanho —
enquanto houvesse tudo isso, denúncias, reflexões, relatos, versos e
entremezes como os do Simpósio não seriam inúteis.
E então, depois de assim refletir um momento, sentei-me à mesa
da Sala para redigir uma Portaria na qual determinava a Universidade
em luto durante os dias 6, 7 e 8. Quanto à Secretaria, achei melhor que a
própria Prefeitura se pronunciasse, por nota do Prefeito Henrique
Accioly.

Os três saíram, levando o texto que pedi fosse confiado aos


organizadores do Simpósio para ser afixado em nosso quadro de avisos.
E, possuído pela sensação de náusea que, crispando meu estômago,
sempre me acomete em tais ocasiões, fui para o Jardim, como que em
busca de socorro: é que ali, encravados na parede maior da Casa pegada
à minha, existiam 7 Mosaicos feitos por Guilherme Jaúna, participante
do Movimento Armorial, meu Sobrinho e hoje meu Filho-adotivo, por
ser filho de Eliza e Adriel. Era diante de tais Mosaicos que eu costumava
rezar, toda noite, antes de dormir, pois representavam o Cristo, Nossa
Senhora, Santa Madalena, Santa Teresa de Ávila, Santa Rita de Cássia,
Santo Inácio de Loyola e o Cavaleiro João Canuto — este último
montado em seu Cavalo negro, Passarinho , e cercado por uma chuva de
gotas de sangue.
Embaixo dos Mosaicos existia um Painel-cerâmico retangular de
Manuel Savedra Jaúna, irmão de Guilherme. Representava um Jaguar
coroado, imagem que encimava o Poema composto por Altino, Auro e
Adriel para, em 9 de Outubro de 1970, marcar os 40 anos da morte de
nosso Pai. Poema que daí a 3 dias, no Teatro Savedra , iria ser projetado
na Tela por Alexandre Jaúna — o outro irmão de Guilherme e Manuel,
que me ajudaria nas projeções indispensáveis ao Simpósio.
O Poema era o seguinte:

DÍSTICO
VarIação sobre o Tema d’O CavaleIro e a Morte

ALBANO CERVONEGRO
Sob o sol deste Pasto-Incendiado, montado para sempre num
Cavalo que a Morte lhe arreou, vê-se, aqui, quem, na vida, bravo, ardente
e indeciso sonhou.
Pelas cordas-de-prata da Viola, os cantares-de-sangue e o doido
riso de seu Povo cantou. Foi dono da palavra de seu Tempo, Cavaleiro da
gesta-sertaneja, Vaqueiro e caçador.
Se morreu moço e em sangue, teve tempo de governar seus pastos
e rebanhos, e a feiosa Velhice jamais o degradou.
Glória, portanto, à Morte e a suas garras, pois, ao sagrá-lo assim,
da vida ao meio, do Desprezo o salvou: poupou-lhe a Cinza triste, a
decadência, gravou sua grandeza em Pedra, a fogo, e assim a conservou.
DOM PANTERO
Naquela noite, diante dos Murais, rezei ao Cristo, a Nossa
Senhora, a Santo Inácio e às 3 Santas de minha especial devoção. Pedi
que intercedessem junto a Deus pelos famintos, injustiçados e
sofredores do Mundo inteiro — especialmente pelos da Iarandara e do
Brasil. Pedi pela paz no Mundo, dando atenção maior ao Oriente Médio,
oprimido, explorado e de vez em quando atacado pela Besta do Quarto
Império. Pedi pela união da América Latina, pelo Brasil e pelo Povo
brasileiro. Pela Amazônia, colocada na mira da cobiça da Besta. Rezei
pelas Nações pobres do Mundo. Pedi por liberdade, justiça e
fraternidade: não as da Revolução Francesa, que apenas tinham
instaurado brutalmente uma outra impostura — a da forma capitalista
de exploração e opressão; mas sim aquelas que radicalmente, como as
queria o Cristo, reparassem a injustiça, de modo a trazer-se ao Mundo,
do jeito como aqui era possível, aquele Reino do qual Ele falara: “ Venha
a nós o vosso Reino ”. Não desanimava ao ver que agora, como nos dias
da primeira Roma, a Santa Face, gravada em sangue no pano da
Verônica, continuava a ser escarnecida e vilipendiada: para mim, por
ser “ O Filho de Deus ”, Ele era o Rei — a mais bela, mais pura e mais
elevada encarnação do Homem (assim como sua Mãe, a Rainha, era a da
Mulher). Recordava-me das reflexões que, durante a Revolução
Francesa, fazia um personagem de Alexandre Dumas diante da imagem
d’Ele — imagem abandonada e semidestruída:
ALEXANDRE SAVEDRA DUMAS
“Os pregos que seguravam, na Cruz, o braço direito e os pés do
Cristo tinham-se partido, comidos pela Ferrugem. A imagem pendia,
retida unicamente pelo braço esquerdo, e a ninguém ocorrera a ideia
piedosa de recolocar aquele símbolo da Liberdade, da Igualdade e da
Fraternidade no lugar em que o tinham posto os homens do seu tempo. A
primeira Árvore da justiça e da liberdade fora plantada no Calvário, e
aquele Cristo, assim esquecido, causou-lhe um aperto no coração.
Procurou, numa Sebe, um Caniço delgado e rijo, trepou pela Cruz, atou o
braço do Divino Mestre à trave, beijou-lhe os pés e desceu.”

DOM PANTERO
Na noite da morte de Patrícia, depois de repetir com a imagem
do Mosaico o beijo piedoso do personagem de Dumas, pedi ao Pai uma
fé que se sobrepusesse a qualquer dúvida; ao Filho, uma esperança para
além de qualquer desespero; e ao Espírito Santo, um amor que, de
coração limpo, me colocasse acima de qualquer ira, cólera ou ideia de
vingança. Pedi a Santa Madalena que obtivesse do Cristo o perdão dos
meus pecados, das minhas faltas, das minhas omissões e contradições.
A Santa Teresa e Santo Inácio, Escritores, que interviessem junto a Deus
para que o Simpósio tivesse êxito; e, acabado ele, que A Ilumiara fosse
escrita a partir de seus Anais, numa forma à altura daquilo que meu
Povo merecia, que meu Pai sonhara e que meu Tio Antero exigira de
mim em seu leito de morte. A Santa Rita de Cássia pedi que
intercedesse por mim, por Eliza, por seus filhos, genros, noras e netos
— isto é, por aqueles que, depois da morte de Adriel, eu adotara como
minha Família. Rezei por nossos vivos e nossos mortos — bisavós, avós,
pais, tios, irmãos, primos e sobrinhos; por nossos afilhados, amigos e
todos os que trabalhavam ou tinham trabalhado para nós.

Finalmente, pedi a Deus que me ajudasse a perdoar os crimes


que nos tinham atingido em 1930. Rezei por Patrícia, por sua Família e
por seu Assassino, cujo nome ignorávamos. Para o crime que ele
praticara não podia haver qualquer justificação. E, já que era assim, eu
reafirmava a promessa de procurar para aquele a única salvação
possível em tais casos — a da Arte; a mesma que Altino, Auro e Adriel
tinham passado a vida tentando em relação ao assassinato do Pai; a de
uma Literatura que, pelo caminho musical, dançarino e teatral, tentasse
realizar uma espécie de Redenção até mesmo do crime, do sangue e do
choro, através da “ Polifonia escordata e inversa ” que Constâncio Porta
sonhara no século XVI. Não era que, por cantar, rezar e atuar no Palco,
eu me sentisse menos obrigado a lutar contra a crueldade e a injustiça:
é que a Arte era o único meio de que verdadeiramente dispúnhamos
para essa luta. Se, passados os 3 dias de luto, eu conseguisse dizer, no
Palco, o que sonhava, o Espetáculo pelo menos indicaria o caminho. E
não no âmbito individual, seguindo a linha hamletiana da vingança
contra o assassino do Pai: primeiro, porque minha Mãe e ele próprio
nos tinham pedido que não o vingássemos; depois, porque Altino, Auro,
Adriel e eu vivíamos atentos à advertência feita por Dostoiévski: a luta,
frustrada mas esperançosa, de Dom Quixote contra a injustiça era mais
bela e mais generosa do que a pessoal e vingativa de Hamlet. E, mesmo
que, na feia realidade, os traidores e poderosos tudo fizessem para
manchar e destruir a imagem do Brasil, nosso Povo poderia enxergá-la,
senão pura, pelo menos viva e brilhante para sempre, n’ A Ilumiara : no
Castelo que, fundamentado no sonho de meu Pai, nós ergueríamos a
partir do Simpósio, vencendo todas as minhas limitações, elevando-me
acima de mim mesmo e, assim, levando meu Povo comigo em meu
impulso para o Alto.

ALBANO CERVONEGRO
Votaste o sangue à Terra, com seus Frutos, e ele, teu Coração
ferido e só, se ressente do Lume dissipado, cujo canto te chama à Cal e ao
Pó. Ao som mortal, rebrilha o Lampadário, na passagem do Sono para o
Sol.

DOM PANTERO
Em nenhum momento da minha vida deixava eu de ter aguda
consciência da loucura do Mundo, tão incerto; da falta de sentido e
firmeza de seus alicerces; e do pesadelo da Vida escura — torvelinho
enigmático e torto, dentro do qual, sem nos consultarem, cada um de
nós era um dia arremessado:

ELMANO SAVEDRA DU BOCAGE


“Do Cárcere materno, em hora escura, em momento infeliz, triste,
agourado, me desaferrolhou terrível Fado, meus dias cometendo à
Desventura.”
DOM PANTERO
Mas, de outra parte, garantidos pela Coroada, nós — impelidos
pelas águas do Córrego, pelas imagens em claro-escuro da Lanterna,
pela Cadência musical, dançarina e teatral do Espetáculo, pelos reflexos
do Espelho e pela rabeca da Sabedoria — empreenderíamos nossa
tentativa de conferir significado e brilho ao torvo espetáculo do Mundo;
e o Simpósio era o caminho indicado para nos retirar da condição de
Espectros errantes e cegos, a debater-nos por entre os pelos da Fera
insana do Universo, para, transformado o Palco também em trincheira,
nos dar ocasião de entrar na luta em favor dos injustiçados com as
únicas armas de que dispúnhamos: assegurado pela proteção da
Misericordiosa, eu tinha esperança de retificar “ os desconcertos do
Mundo ”, nem que fosse apenas naquele Castelo-de-Sombras que era o
Circo-de-Cine do Teatro Savedra .
Isto me dava a confiança de permanecer animoso, pelo menos
enquanto durasse o Espetáculo. Onde, no Mundo, no Brasil, em nosso
Povo e nos outros, houvesse algo de luminoso e belo, eu o acentuaria. O
que existisse de feio, monstruoso ou sombrio, seria transfigurado pela
luz do Espelho, de modo a ser salvo pela “ luz que dançasse sobre a
harmonia dos contrários ”. E até onde nada existisse, eu me sentia no
direito de inventar uma realidade que repovoasse a aridez monótona e
sem brilho do Mundo — o que faria de modo a que também ela fosse
mergulhada no esplendoroso claro-escuro do Palco. No final das contas,
comparados ao comum dos nossos companheiros de caminhada (entre
os quais eu incluía todos os Seres-humanos de qualquer lugar do
Mundo), nós éramos um bando de privilegiados: porque, depois de
assumir o Circo-Teatro Savedra — cujo Palco, relembro, era um Altar em
que se fundiam o Cine Jaúna , o Teatro Antônio Conselheiro , o Circo da
Onça Malhada e a Gruta das Vulvas —, eu passara a contar com os
Arquitetos, Escultores, Cenógrafos, Figurinistas, Mágicos, Atores,
Malabaristas, Tapeceiros, Pintores, Músicos, Câmeras, Iluminadores e
Dançarinos que me ajudavam no Espetáculo; e também, é claro, com os
apetrechos por meio dos quais tomava posição diante da Vida: a coroa-
de-flandre de Rei-de-Teatro ; a máscara-pintada de Mestre , Palhaço e
Velho-de-Pastoril ; a canhestra Viola e a rude Rabeca de Poeta-de-Feira ; a
turva samarra de Profeta-de-Sacristia ; e a Lanterna Mago-Iconoscópica
com a qual, na Tela, se projetavam as imagens do nosso Circo-Teatro
musical, dançarino, metafísico, religioso, político e vídeo-
cinematográfico.
Precários, ineficazes e ilusórios como fossem, com tais
instrumentos é que eu passara a enfrentar a Morte Caetana,
transformando minha pessoa comum no Imperador da Pedra do Reino;
e a minha vida numa Festa, representada com fervorosa alegria no
palco desta grande Desaventura que é a Vida.
Para fazer dela “ uma Aventura pelo menos sofrível ” (como dizia
meu irmão Mauro), comecei então a valer-me das armas que Antônio
José da Silva, “ O Judeu ”, chamava de “ o aparato do Teatro e sua fábrica
”, e que, por minha conta, eu passara a contrapor ao “ Castelo
indecifrável ”, à perigosa “ Máquina do Mundo ”, à complicada e
ameaçadora “ fábrica do Universo ” de que tinham falado Camões e
Mathias Aires:
LUÍS SCHABINO DE CAMÕES
“Não vês que a grande Máquina inquieta do Mundo se desfaz toda
em tristeza, e não por causa natural, secreta?”

MATHIAS AIRES DE SAVEDRA


“A ordem natural dos sucessos não se inclui na fábrica do
Universo: é coisa exterior e indiferente. E mais: aniquilam-se os Bronzes
em que se gravam os combates; corrompem-se as Pedras em que se
esculpem os triunfos; e, apesar dos milagres da Estampa impressa,
também se desvanecem as cadências da Prosa em que se descrevem as
empresas heroicas, e se dissipam as harmonias do Verso em que se
celebram as vitórias.
“Ainda as coisas inanimadas, parece que têm um tempo certo e
limitado de vida. Mesmo o granito, de que se formam os Marcos e
Padrões, vai perdendo a união das partes em que consiste sua dureza, até
que vem reduzir-se ao princípio comum de tudo — terra e pó.”
DOM PANTERO
De certa maneira, eu poderia concordar com Mathias Aires
quanto ao resto. Mas acabarem na memória dos Homens até as
cadências da Prosa e as harmonias do Verso com as quais A Ilumiara
seria composta? Desfazer-se em pó até mesmo o granito do Marco e das
outras Esculturas implantadas na Pedra do Reino em homenagem ao
Aleijadinho?
Nunca! Que ele encaminhasse noutra direção sua voz agourenta,
carregada de chamas e trevas barrocas; porque, de minha parte, eu
tinha consciência de que, comigo, estava acontecendo algo parecido
com aquilo que sucedera ao grande Poeta popular Leandro Gomes de
Barros (o mesmo que se atrevera a interrogar Deus daquela maneira):

LEANDRO SCHABINO GOMES DE BARROS


“Eu estou compondo um Marco que nunca vai se acabar. E se,
acaso, um invejoso, entender de me negar, verá que este meu Castelo ’stá
se erguendo pra ficar.”

DOM PANTERO
Lembrava-me do dia em que Altino, Auro, Adriel e eu,
confrangidos, nos tínhamos visto diante da Fortaleza de Pau Amarelo ,
profundamente estragada pelo tempo e pelos vândalos que, ignorando
seu significado para o Brasil, para a América Latina e para a Rainha do
Meio-Dia, tinham permitido que ela chegasse a tal estado e até
contribuído para isso.
Na verdade, em nosso caso, além do significado que aquele
Forte possuía em comum com qualquer outro, havia a memória do
Escultor brasileiro do século XVIII, Menezes, que, numa Tenda próxima
a ele, esculpira em Cedro um São Miguel e o Demônio : a vida e a obra
de Menezes estava, por assim dizer, nas raízes d’ A Ilumiara .
Então, procuráramos os encarregados do Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, conseguindo, deles, que a
restauração da Fortaleza fosse empreendida. E, terminada ela, Altino,
Auro e Adriel tinham celebrado o fato num Galope à Beira-Mar que
transcrevo a seguir:

ALTINO SOTERO
Aqui, neste Forte de Pau Amarelo , eu sonho o Brasil em seu
sangue de Brasa. Reforço o alicerce de pedra da Casa e, ao sol do Sertão,
este Azul desmantelo. Que eu canto o Paudarco , o paudarco amarelo,
velando as entradas da Serra e do Mar. E a minha Viola se põe a esturrar,
ferida no sangue do Povo que é pobre, que é grande, que é raça, que é
Onça, que é nobre, cantando Galope na beira do Mar.

ADRIEL SOARES
Eu moldo o Sertão em teu sol, Litoral, e o verde da Mata florada
do Engenho é outro dos Reinos que forjo e que tenho, bebendo, do Mar,
estes verdes e o Sal. Eu sopro meu Fogo na trompa de Cal e imito os
estralos do Vento a queimar. No som dos Canhões vejo o Bronze sagrar os
Fortes de pedra da Guerra Holandesa e a Negra-e-Vermelha da Nau
Portuguesa, cantando Galope na beira do Mar.

AURO SCHABINO
Porque, no Sertão, as 3 Onças sinadas — a Negra, a Vermelha e a
Branca-da-Moura — cruzaram seus sangues-de-ferro, em tesoura,
parindo, no Sol, a Fiel, a Pintada. Castanha-da-parda, vermelha e
malhada, seu pelo é dos ouros da Rosa lunar. Nos olhos acesos, a Brasa
solar. E eu, sangue do Sol de uma Onça abrasada, celebro esta Raça
castanha e sagrada, cantando Galope na beira do Mar.

DOM PANTERO
No Galope, meus irmãos tinham escrito Paudarco assim, numa
letra diferente, porque, além de ser uma Árvore, Paudarco era o nome
do Engenho onde nascera Augusto dos Anjos. E Adriel fizera questão de
compor a segunda estrofe porque, ao casar-se com sua amada Eliza, o
Engenho Coral tornara-se, além do Sertão, um outro dos seus “ Reinos ”;
para todos nós, o Forte de Pau Amarelo era um local-sagrado de
resistência contra os inimigos da Rainha do Meio-Dia (coisa que eu
também esperava em Deus fossem o Simpósio e A Ilumiara ).
De fato, no Circo , com o “ Riso a cavalo ” e o “ galope do Sonho ”,
com a energia e o fulgor daquela estranha alegria de origem obscura
que me possuía ao entrar no Palco — e que era ainda mais
surpreendente no Velho em que me transformara —, era com as danças,
as falas, as músicas e as projeções da minha Lanterna que eu mais uma
vez encenaria o Espetáculo, retomando, no Pasto-Incendiado do Circo-
Teatro Savedra , a Grande-Marcha-de-Coluna-Aventurosa que Antônio
Conselheiro, Euclydes da Cunha, O Aleijadinho, Leandro Gomes de
Barros, Lima Barreto, Jesuíno Brilhante, Augusto dos Anjos e Heitor
Villa-Lobos tinham empreendido, cada um a seu modo e todos meio-
cegos, sabendo só em parte qual era o significado real de sua Busca.

Com a Marcha, pelo Circo, pela Dança, pela Música, pela


Lanterna — enfim, pela Festa celebrativa e sagratória do Teatro e do
Simpósio —, eu comporia A Ilumiara , como se cada uma destas Cartas
fosse uma pedra ajuntada aos muros da Fortaleza. Ao mesmo tempo, a
Obra seria meu Canto-de-Cisne; meu ritual-de-exorcismo contra o
sofrimento, a solidão e a saudade; meu jubiloso canto-de-aleluia,
entoado ante a face da Vida e da Morte. Do contrário, seria resignar-me
àquilo que o grande Cantador brasileiro Lourival Batista afirmara
assim:

LOURIVAL SCHABINO BATISTA


“Entre o gosto e o desgosto, o quadro é bem diferente: ser Moço é
ser Sol-nascente, ser Velho é ser um Sol-posto. Pelas rugas do meu rosto,
vê-se que o que fui não sou. Onte’estive, hoje não ’stou, que o Sol, ao
nascer, fulgura, mas, ao se por, deixa escura a Face que iluminou.”
DOM PANTERO
Foi na manhã de 9 de Outubro de 2000 que, no Circo-Teatro
Savedra da Universidade Popular Taperoaense — Unipopt —, se instalou o
Simpósio Quaterna , base e fundamento destas Cartas-Espetaculosas.

Além dos participantes comuns que, mediante inscrição prévia,


poderiam intervir nos debates, compareceriam ao Simpósio, como
titulares, 12 Pessoas — 9 Mulheres e 3 Homens —, o que, segundo uma
das Coordenadoras, Luzia Limeira de Carvalho, “ iria transformar o
Conclave num Dodecamerón da pós-modernidade ”.

DOM PARIBO SALLEMAS


Assim, naquela manhã, os participantes do Simpósio desceram
dos ônibus que os tinham levado desde o Hotel Pedra do Reino até a
Universidade.

DOM PANTERO
Das bandas da Cadeia-Nova chegava até eles o eco dos latidos de
um Cachorro que, acompanhado pelos uivos de uma Cainçalha
ensandecida, parecia ter se escondido entre os muros do Cemitério-
Velho para nos ameaçar a todos. Era, de novo, como se, sob o comando
da Besta Fouva, os Cães possessos de Lautréamont se tivessem soltado
para nos acometer, contaminando-nos ao instilar em nosso sangue a
peçonha funesta de seu Ladrido agoniento:
ISIDORO SAVEDRA DUCASSE
“ Os Cães, furiosos, rebentam suas cadeias e fogem das Fazendas
longínquas. Correm pra-lá-e-pra-cá, na Caatinga, possuídos pela raiva.
Param, de repente, com os olhos em fogo, numa inquietude feroz. Elevam
as cabeças, intumescem os pescoços terríveis e se põem a ladrar de-um-
em-um, como um Agonizante condenado pela Peste ou como um Gato de
ventre esfaqueado. Uivam contra o Sol, a Lua e a Estrela. Contra os
Lajedos que, ao longe, parecem Lagartos gigantescos e petrificados
dormindo ao Sol. Contra o ar seco que eles aspiram a plenos pulmões e
que torna vermelha a mucosa de suas narinas incendiadas. ”
DOM PANTERO
Descendo dos ônibus ao som de tais latidos, os participantes do
Simpósio admiraram os 7 Prédios que, naquele ano, ainda compunham
o conjunto da Universidade Popular Taperoaense, com as fachadas
recobertas por Mosaicos cujo autor era Guilherme Jaúna. Espantaram-
se, sobretudo, com a Torre-Central, onde ficava o Circo-Teatro Savedra ,
porque ali, pendurados em cordas, estavam os Atores e Bailarinos do
Grupo Arraial : pareciam Espantalhos, fantasmas ou enforcados que,
pelo impulso do vento e dos calcanhares empurrados na parede,
dançassem um simulacro da pobre tragédia do Homem.

DOM PARIBO SALLEMAS


Os convidados foram recebidos pelos organizadores do
Simpósio — Inez Viana, Carlos de Souza Lima, Rosette Fonseca dos
Santos, Álvaro Salmito, Luzia Limeira de Carvalho, Valdir Nogueira e
Maria Lopes — encarregados de guiá-los pelo interior do Castelo-de-
Rua que, em 2000, ainda era a nossa hoje extinta e destruída
Universidade. Por causa desta condição de Castelo, os Casarões que a
integravam eram, na verdade, 7 Moradas, e todas se comunicavam, por
dentro, através de Corredores, ou Vias (como mais propriamente eram
chamadas).
DOM PANTERO
Todas as paredes internas eram recobertas por Murais
semelhantes aos da fachada. Mas não feitos em mosaico: eram pintados
em Pedras lisas e chatas, encravadas na alvenaria; assim mostravam
logo o que eram — Variações de formas rupestres petropintadas ou
insculpidas nos Lajedos da hoje também destruída Ilumiara Jaúna ; e
tinham sido recriadas para ali pelos irmãos de Guilherme — Alexandre
e Manuel Savedra Jaúna.
Por outro lado, como Castelo que foi, a Unipopt era uma Variação
da Catedral profeticamente levantada por Santo Antônio Conselheiro no
Arraial de Canudos ; Igreja que, naquele nosso Velho Testamento que é Os
Sertões , Euclydes da Cunha genialmente reconstruiu em forma literária,
se bem que jamais tenha avaliado a importância real da pessoa, dos
atos e das palavras do Profeta, nem compreendido o verdadeiro
significado daquilo que ele próprio estava dizendo:

A IGREJA DE CANUDOS
PrImeIra Pedra-Angular do Castelo do Povo BrasIleIro

EUCLYDES SCHABINO DA CUNHA


“Defrontando o antigo, o novo Templo erguia-se no outro extremo
da Praça. Era retangular, e vasto, e pesado. As paredes-mestras, espessas,
recordavam muralhas de Reduto. Durante muito tempo teria esta feição
anômala, antes que as duas Torres, com ousadias de um Gótico rude e
imperfeito, o transfigurassem.
“É que a Catedral admirável dos jagunços devia surgir — Obra
formidável e bruta — da extrema fraqueza humana, alteada pelos
músculos gastos dos Velhos, pelos braços débeis das Mulheres e das
Crianças. Cabia-lhe a forma dúbia de Santuário e de Antro, de Templo e
de Fortaleza, irmanando no mesmo âmbito, onde ressoariam mais tarde
as Ladainhas e as balas, a suprema piedade e os supremos rancores.
“Fora delineada pelo próprio Antônio Conselheiro. Velho arquiteto
de Igrejas, requintara no Monumento que lhe cerraria a carreira.
Levantava, volvida para o Levante, aquela fachada estupenda, sem
módulos, sem proporções, sem regras. De estilo indecifrável. Mascarada
de frisos grosseiros e volutas impossíveis, cabriolando num delírio de
curvas incorretas. Rasgada de ogivas horrorosas. Esburacada de
troneiras. Informe e brutal, feito a testada de um Hipogeu desenterrado;
como se tentasse objetivar, a pedra e cal, a própria desordem do espírito
delirante.”

DOM PANTERO
Como se pode ver pelas Estilogravuras que vão sendo incluídas
nesta Carta, no Castelo-de-Rua que era a Unipopt , procuráramos —
Quaderna primeiro, e eu depois — fundir a Catedral de Canudos,
descrita por Euclydes da Cunha, com a Viagem e os Castelos pintados
pelo grande Artista-popular brasileiro e esquizofrênico que foi Carlos
Pertuis (escolhido para figurar aqui porque o Livro que meu Tio, Mestre
e Padrinho, Aribál Saldanha, pretendia escrever quando morreu tinha
por título A Divina Viagem ).
E vejam o que é o gênio, nobres Cavaleiros e belas Damas:
Euclydes da Cunha nunca entendeu a beleza da Catedral de Canudos.
Formado pelo Brasil oficial , jamais percebeu que aquilo que julgava feio
era apenas uma categoria brutal e nova de Beleza (aliás muito parecida
com a do estranho Livro que, depois de vê-la, brotou de seu sangue
iluminoso, profético, alucinado e sombrio).
Além disso, perturbado por ela, não notou que a Igreja de
Canudos nada tinha de gótica : era, sim, aparentada com as românicas ;
não havia, lá, ogiva nenhuma, pois todos os seus portais eram
arredondados em cima; e até aquela “ forma dúbia de Catedral e
Fortaleza ” era a mesma que se encontra em Igrejas românicas ibéricas,
como, entre outras, a Sé Velha de Coimbra e a de Lisboa.

Carlos Pertuis: Castelo

No entanto, quaisquer que sejam os “ erros ” de Os Sertões — e


assim como acontece com as esculturas em pedra d’O Aleijadinho —, as
obras “ corretas ” dos outros empalidecem diante do Livro áspero e
poderoso de Euclydes da Cunha. E eu jurava a mim mesmo: se o
Simpósio fosse levado a bom termo, A Ilumiara — Novo Testamento que
se seguiria ao Eu , a’ Os Sertões e ao Triste Fim de Policarpo Quaresma —
iria surgir também aos olhos de todos como a testada de um Hipogeu
estranho e bruto, desenterrado do Chão brasileiro pelos músculos
gastos de um Velho: mas um Velho que, tendo o Mundo inteiro dentro
de si, terminaria conseguindo gerar, ao Sol, “ a luz de uma Estrela
dançante ”. Seria ela um misto de Antro, Santuário, Catedral e Fortaleza
— o Castelo em que se irmanariam, no mesmo âmbito, o estralejar das
balas de 1930, a suprema piedade e os supremos rancores. Ou melhor:
seria a Casa em que, para atendermos ao pedido de nossa Mãe, Maria
Carlota, o sofrimento e os rancores aparecessem cicatrizados ao
término da construção, envolvidos pelo manto de uma imensa piedade.
Antero Savedra era capaz da paixão , mas não, talvez, da compaixão a
isso indispensável. Mas Dom Pantero cumpriria, por ele, a missão que
terminara cabendo ao último dos Savedras ainda vivo. Cumpri-la-ia
graças ao Dáimone que era o seu e era muito parecido com o de Antônio
Conselheiro quando delineara a Igreja; aquele que baixava em seu
sangue quando falava a seus seguidores, imediatamente possuídos e
queimados pelo fogo que ele lhes ateava:

EUCLYDES SCHABINO DA CUNHA


“Quando era grande a concorrência, improvisava-se um Palanque
no centro do largo para que a palavra do Profeta pudesse irradiar para
todos os pontos e edificar todos os crentes.
“Ele ali subia e pregava. Era assombroso, afirmam testemunhas
existentes. Uma oratória bárbara e arrepiadora, feita de excertos
truncados das Horas Marianas , desconexa, abstrusa, agravada, às vezes,
pela ousadia extrema das citações latinas; transcorrendo em frases
sacudidas; misto inextrincável e confuso de conselhos dogmáticos,
preceitos vulgares da Moral cristã e de Profecias esdrúxulas .

A Unipopt

“Era truanesco e era pavoroso, um Bufão arrebatado por visões


do Apocalipse. Parco de gestos, falava largo tempo, olhos em terra, sem
encarar a multidão, abatida sob a algaravia, que derivava
demoradamente, ao arrepio do bom senso, em Melopeia fatigante.
“Tinha, entretanto, a preocupação do efeito produzido por uma
ou outra frase mais incisiva. Enunciava-a, e emudecia; alevantava a
cabeça, descerrava de golpe as pálpebras; viam-se-lhe então os olhos,
extremamente vivos, e o olhar — uma cintilação ofuscante. Ninguém
ousava contemplá-lo. A multidão, sucumbida, abaixava, por sua vez, as
vistas, fascinada sob o estranho hipnotismo daquela insânia formidável.”
Carlos Pertuis: Metamorfoses do Peregrino em sua Viagem

DOM PANTERO
Como Vocês podem avaliar, o Dáimone que possuía Antônio
Conselheiro em Canudos era muito parecido com o de Euclydes da
Cunha e com aquele que nos incendeia a imaginação e o sangue,
quando, ao reencetar, a cada vez, a leitura de Os Sertões , repetimos sua
Viagem, percorrendo seus Tabuleiros e serranias e tomando parte em
seus combates e emboscadas, arrebatados pela mesma paixão do
Profeta que narrou a saga do Conselheiro e que, em sua cegueira de
gênio, via em tudo aquilo apenas a possessão “ da própria desordem do
espírito delirante ”.
DOM PARIBO SALLEMAS
Ora, nós sabíamos que, também possuído por seu Dáimone,
Dom Pantero (Rei, Poeta, Palhaço e Profeta) era outra espécie de “
Bufão arrebatado por visões do Apocalipse ”; e ele tinha, mesmo, que
transcrever, nesta Carta, as palavras de Euclydes da Cunha porque, no
Circo-Teatro Savedra , esperava transformar o Palco num Palanque, num
Púlpito semelhante àquele de onde falava o Profeta; e mostrar que, aqui
também, como em Canudos, a Catedral está sendo erguida pelos braços
já debilitados de um velho Mestre-de-Obras que procura dar o máximo
de si na feitura do Castelo-e-Fortaleza que lhe encerra a carreira.

ALBANO CERVONEGRO
Salva-se, assim, o Sol de todo o Reino, no pajeú-de-pedra do
Sertão. Gemem os Catolés, estralam Balas, passa, ferido, El-Rei Sebastião,
“suja de sangue e pó a real fronte”, mas vivo noutro Rei — meu Capitão.
DOM PANTERO
Foi àquele Castelo que os participantes do Simpósio chegaram
na manhã de 9 de Outubro de 2000, sendo então conduzidos através do
Labirinto enigmático, metafísico e profético da Unipopt . Falo assim
porque, tanto em sua feição interior e espiritual quanto na estrutura
exterior e arquitetônica, cada um dos 7 Casarões da nossa Universidade
naquele tempo ainda era uma Morada.
Ficava na primeira delas a única Porta que dava acesso ao
interior dos Prédios; o que suscitava muitas reclamações, porque ela,
servindo de entrada e de saída, criaria um risco a mais, em caso de
incêndio; e os reclamadores tinham razão, perigo de fogo era o que não
faltava ao Castelo (como se viu quando os mesmos criminosos que
tinham saqueado a Ilumiara Jaúna destruíram a Unipopt , a fim de que
não restasse sobre a Terra qualquer resquício mais visível de nossa
passagem pelo Mundo).
Ao passar por aquela Porta, situada na parede lateral do
primeiro Prédio, as pessoas que entravam percorriam, pela ordem, as 3
primeiras Moradas. Mas, ao saírem da 3ª, eram obrigadas a penetrar
num longo Corredor escuro que, pela parte de trás do conjunto, levava à
4ª Morada. A partir daí, passava-se pela 5ª e pela 6ª, em caminho
contrário ao da entrada; e chegava-se à 7ª Morada, a mais alta, a da
Torre-Central onde se localizava o Circo-Teatro Savedra .
A porta de acesso era ladeada por dois Mosaicos feitos por
Guilherme Jaúna: o da esquerda representava O Coroado e a Invenção
do Teatro ; o da direita, A Coroada e a Origem da Música ; encimando os
dois, viam-se os 3 candelabros da Ilumiara — o da Verdade, o do Bem e
o da Beleza.
Por aquela Porta enveredaram os participantes do Simpósio.
Deram, pela 1ª Morada, uma volta destinada ao exame dos Murais
encravados nas paredes. E, concluída ela, passaram à 2ª e à 3ª, de onde
se embrenharam na noite-escura do longo Corredor que os levaria à 4ª.
Ali, durante o trajeto — que eles percorriam tensos, calados e às
cegas, sem que lhes chegasse o som de qualquer Música —, escutava-se
apenas aquele estranho Pássaro que — sempre escondido, sempre
misterioso — fazia soar seu canto na Ilumiara Jaúna , como a insinuar
que somente quem conseguisse avistá-lo poderia, para além da sua
gargalhada escarninha, entrever, como na Vulva feminina, “ o segredo do
Mundo ”; e entender, como colocação do mistério do sofrimento
humano, a Gravura em que Manuel Savedra Jaúna representara seu tio
Mauro com o peito transfixado por 3 Punhais (e que podia ser, também,
um Cristo crucificado, piedosamente acolhido ao colo de sua Mãe).

ALBANO CERVONEGRO
À noite, a estranha luz sobre a Cidade, mas, de dia, o Sertão —
Grial vermelho. Vaga, em busca do Gral, minh’alma errante, procurando
acertar o Desacerto. Tento, em vão, penetrar neste Castelo, e o sono do
Jaguar late no Espelho.
DOM PANTERO
Então, vencida a noite-escura do Corredor — mas sem que
ninguém tivesse sequer vislumbrado o Pássaro —, os participantes do
Simpósio seguiram pelo caminho inverso até a 7ª Morada. De tal modo,
percorrendo o Castelo-de-Rua que era a Unipopt , estavam realizando
uma espécie de paráfrase das Incursões que, a pé e por ásperos
caminhos, eu empreendia ao Castelo-de-Serra d ’ A Ilumiara .
Outra coisa: diferentemente do que acontecia com o Corredor
da noite-escura, cada uma das 7 Moradas (além de tornada cheirosa por
uma infusão que Quaderna me ensinara a fazer com as entrecascas de
algumas Árvores-aromáticas) tinha sua própria música-de-ambiente; e
os convidados iam-nas ouvindo enquanto caminhavam. Todas eram do
repertório musical brasileiro; e, recriadas por Antonio Madureira,
soavam no Castelo para lembrar, com Novalis, que “ a essência da
Arquitetura é a Música imobilizada ”.
Naquele dia, as que se ouviram foram as seguintes:
Na 1ª Morada, Canindé Lune , música indígena e lunar que,
juntamente com os baixos-relevos, esculturas, cantos, mitos, danças e
petropinturas da Ilumiara, representava os milênios e milênios da Arte
que aqui se praticava desde o começo imemorial dos tempos até o
último ano do século XV.

Na 2ª Morada, 3 Músicas: o Romance da Bela Infanta , luso-


espanhol; o de Minervina , já brasileiro; e — cantada em duas versões,
uma em Espanhol, outra em Português — a Cantiga de Dom Sebastião ,
do século XVI.
Na 3ª, o Lundu , música negra do século XVII, tocada por Viola-
Brasileira, Marimbau e Violão.
Na 4ª Morada, 3 Músicas do século XVIII: Per Singulos Dies , peça
do Te-Deum , de Luis Álvares Pinto; o Kyrie , da Missa de Nossa Senhora
da Conceição , de José Maurício Nunes Garcia; e o da Missa em Mi-Bemol
, de Lobo de Mesquita.
Na 5ª, a Valsa n º 4, de Manuel de Porto-Alegre Faulhaber; é do
século XIX, e nosso Tio, Antero Schabino, tinha por ela especial apreço,
comparando-a com a Gnossiana n º 5, de Erik Satie.
Na 6ª, o 1º Movimento da Bachiana Brasileira n º 1, composta,
para Conjunto de Violoncelos, por Heitor Villa-Lobos.
Finalmente, na 7ª, a Cantata Pedra do Reino , formada pela
junção de 5 partes da Missa composta por Danilo Guanais no Rio
Grande do Norte.
As 2 últimas peças eram músicas do século XX e tocavam-se ali
para celebrar o 3º Milênio que vinha chegando e cuja Arte o Simpósio
Quaterna profeticamente anunciava.

DOM PANCRÁCIO CAVALCANTI


No entanto, foi ao som da Salve Rainha , do próprio Antonio
Madureira, que os convidados entraram na sala do Teatro, centro da 7ª
Morada. Ele possuía apenas Palco e lugar para a Plateia, de modo que,
para as sessões, as Cadeiras tinham sido emprestadas pelas famílias
Taperoaenses, “ das mais pobres às mais abastadas ”, conforme vinha
explicado no Programa.

DOM PANTERO
Entretanto, com toda aquela pobreza, no Castelo-de-Rua da
Unipopt a Morada mais importante era a 7ª. Primeiro porque, como já
disse, ali se encontrava o Circo-Teatro Savedra , o Cine de danças,
falações, cantares e projeções no qual se encenavam as Aulas e
Narrativas-Espetaculosas indispensáveis à estrutura d’ A Ilumiara .

DOM PORFÍRIO DE ALBUQUERQUE


Em segundo lugar, porque o próprio Teatro nascera, em
Taperoá, da fusão dos nossos 3 Lugares-cênicos fundamentais: o Teatro
Antônio Conselheiro , da Favela-Consagrada (ou Ilha de Deus ), do Recife;
o Cine Jaúna , de São José do Belmonte; e a Gruta das Vulvas , que era o
centro religioso e sexual do indecifrado, temeroso, agreste e
impenetrável Castelo-de-Serra d’ A Ilumiara , em Taperoá.

DOM PARIBO SALLEMAS


Nos momentos mais explicitamente religiosos da celebração, o
Teatro se transformava em Capela e a Universidade em Catedral — um
Templo afortalezado, capaz de abrigar o Rei e o Profeta , e que, como se
viu, pertencia à mesma linhagem da Igreja de Canudos. Fora a isso que
se procurara aludir em sua decoração, mas sempre de modo a que seu
caráter circense e mamulengueiro também ficasse evidenciado, com o
Palhaço e o Poeta tendo, no Palco, seus lugares garantidos.
O Coroado e a Invenção do Teatro

DOM PANCRÁCIO CAVALCANTI


Nas paredes que ladeavam a boca de cena encravavam-se 6
Murais — 6 Figuras criadas por Guilherme Jaúna. Eram imagens
baseadas em personagens do Mamulengo: de um lado, a Tragédia , uma
Lua-com-Romã e a Morte — A Moça Caetana ; do outro, a Farsa , um Sol-
com-Caju e aquele Diabo conhecido como Fedegoso, O Cão Coxo .

DOM PANTERO
Na entrada para a Plateia, viam-se dois Vitrais. O do lado do Sol
representava Santo Antônio Conselheiro, o Profeta do Arraial de
Canudos . O do lado da Lua, Santa Maria Vilanova, a bela Mulher que,
segundo o General Dantas Barreto, desempenhava ao lado do nosso
santo Conselheiro o papel de Liza Reis junto a mim, o de Beatriz para
Dante e o de Dulcineia para Dom Quixote.

A Coroada e a Origem da Música

DOM PORFÍRIO DE ALBUQUERQUE


Dentro do Teatro, nas paredes que cercavam a Plateia, estavam
representadas 33 grandes Vulvas em forma de Flor. Eram 16 de um
lado, 16 do outro, e a 33ª no centro, encimando o Nicho que, sobre o
Palco, abrigava a imagem de Santa Teresa, Padroeira literária do Castelo
e do Simpósio.

DOM PARIBO SALLEMAS


Além de Críticos e Professores-de-Literatura, as Universidades
que apoiavam o evento tinham mandado, a Taperoá, Músicos, Atores,
Bonecos e Dançarinos que, juntando-se aos Artistas locais, iriam tornar
mais festiva a celebração. Tinham sido assim reforçados o Balé Cabaço ,
o Coro Santa Cecilia , o Quinteto Cuité e a Trupe do Cavalo Castanho ,
outrora dirigida por Dom Pancrácio e Dom Porfírio — mas que Dom
Pantero incorporara à Unipopt depois de seu encontro com eles, em
Ingá do Bacamarte.

DOM PANTERO
Os outros grupos tinham sido fundados, na Unipopt , por Dom
Pedro Dinis Quaderna, para que dessem apoio a seu Movimento Cabaçal
(que, fundido ao Grial , o de Tio Antero, e ao Arraial , de Auro, tinha
dado origem ao Movimento Armorial , síntese por mim imaginada a
partir daqueles 3 anteriores — tese, antítese e contrátese).
Para criar o Armorial eu me valera do fato de ser Secretário da
Cultura de Taperoá — cargo para o qual fora nomeado pelos Prefeitos
Miguel de Alencar e Henrique Accioly —, assim como da Sibila e da TV
Ilumiara , onde trabalhava por indicação de sua Diretora, Vera Ferraz. E
o Movimento contava ainda com o apoio decisivo da Unipopt ,
instituição para a qual eu entrara a convite de Quaderna, tornando-me
seu Reitor-Vitalício, Presidente do Conselho e Professor de Filosofia da
Arte.
Mas, no Simpósio, ao Balé, à Trupe, ao Coro e ao Quinteto,
acrescentavam-se o Quarteto Romançal , o Grupo Gesta , o Quinteto da
Paraíba , o Armorial Marista , Os Filhos do Sol , o Grupo Cariry e a Tribo
Negra Cambindas Nova — a mesma que, no Carnaval daquele ano,
juntando-se ao Reisado de Mestre João Cícero e à Câmara Municipal de
Belmonte, organizara seu desfile sob o comando de Ernesto Manoel do
Nascimento e Eduardo Caetano para conferir-me o título que ostento
hoje — o de Imperador da Pedra do Reino .
Quanto à parte musical do Colóquio, ficara a cargo de Antonio
Madureira, que criara e adaptara as partituras. Ensaiara também os
grupos corais e estava já ali, de batuta em punho, pronto a reger
instrumentistas e cantores que permaneciam no Poço-da-Orquestra,
destacando-se entre eles Eltony Nascimento, Sérgio Ferraz, Sebastian
Poch, Fernando Torres Barbosa, Edilson Eulálio e Egildo Vieira (este
com o instrumento musical que criara em homenagem a mim,
colocando-lhe o nome de Pantero ).

DOM PARIBO SALLEMAS


A um lado dos outros Músicos, via-se Elyanna Caldas, sentada
em frente do Piano que pertencera aos Savedras e, em seu tempo, era o
único existente em Taperoá.

DOM PANTERO
Devo lembrar que, no Simpósio, tentaríamos fundir Poesia,
Canto, Música, Teatro e Dança, na linha dos Espetáculos-Populares
brasileiros. E, para isso, pesando a escolha das peças-musicais que
poderiam dar suporte à fusão, leváramos em conta uma certa “ Polifonia
escordata e inversa ”, criada por Constâncio Porta no século XVI e que
iria ter até uma repercussão literária no processo de redação destas
Cartas-Espetaculosas.
Procurando chegar pelo menos perto daquilo que sonhávamos
para o Simpósio, eu terminara por me fixar na escolha de 7
Compositores — 2 Brasileiros, 2 Russos, 2 Franceses e 1 Espanhol.
Eram eles: Heitor Villa-Lobos, Claude Débussy, Ígor Stravinsky, Manuel
de Falla, Erik Satie, Antonio Madureira e Sérgio Prokófiev. Escolhera-os
porque em suas peças camerísticas (ou teatrais, como o Retábulo de
Mestre Pedro ) eles seguiam um caminho aproximado da “ Polifonia
inversa ”; e cada um realizava, a seu modo, uma música de vanguarda, a
partir do som “ arcaico ” da Flauta ou “ do timbre e do gume afiado das
Cordas ”, como dizia Adriel.
Não sei se Vocês estão lembrados disso, nobres Cavaleiros e
belas Damas da Pedra do Reino: mas Stravinsky compôs a Suíte
Polichinelo (ou Suíte Italiana ) baseando-se em temas de Pergolese,
sendo que o 6º Movimento da Suíte é uma Gavota , com duas Variações .
E, seguindo esta mesma ordem de ideias, achávamos que, no campo
literário, Dante compusera A Divina Comédia como uma série de
Variações sobre o mote da “ descida aos Infernos ”, d’ A Odisseia e d’ A
Eneida ; e Cervantes fizera o mesmo no Dom Quixote , tendo como tema
“ O Fidalgo e o Pajem ” d’ O Lazarilho de Tormes .
De modo parecido, terminado o Simpósio, eu pensava em erguer
A Ilumiara por meio de Variações sobre temas de Dramaturgos como
Antônio José da Silva, O Judeu ; de Poetas como Gregório de Mattos,
Cruz e Souza e Augusto dos Anjos; e de Prosadores como José de
Alencar, Machado de Assis, Euclydes da Cunha, Júlio Ribeiro, Aluízio
Azevedo e Lima Barreto. José de Alencar e Euclydes da Cunha, por
exemplo, despertavam meu interesse porque apresentavam o Sertão
como uma terra sagrada e vestida de Sol — um Reino pobre e austero
mas grandioso; e, consequentemente, o Brasil como “ um Palco
desmedido ”, semelhante àquela Rússia que Gógol e o próprio Euclydes
da Cunha tinham profetizado.

Em tal Reino, o Sertanejo, “ um Forte ”, era tão identificado com


seu Cavalo que com ele formava “ um Centauro ” — a estátua guerreira e
equestre de um Rei:

JOSÉ SCHABINO DE ALENCAR


“Ao correr pelo Cerrado, o Sertanejo veste um traje completo, de
couro; e é um dos traços admiráveis de sua existência, essa corrida veloz
através das brenhas; ainda mais quando é o Vaqueiro a campear uma Rês
bravia. Nada o retém. Por onde passa o Boi, lá vai-lhe no encalço o
Cavalo, e com ele o Homem, que parece incorporado ao animal, como um
Centauro.”

DOM PANTERO
Apresentando uma Variação sobre esse tema de José de Alencar,
escrevia o outro Mestre nosso:

EUCLYDES SCHABINO DA CUNHA


“O aspecto do Vaqueiro recorda vagamente, à primeira vista, o de
um Guerreiro antigo. Envolto no Gibão de couro curtido, de Bode ou de
Vaqueta, suas vestes são uma Armadura. Esta Armadura, porém, não
rebrilha, ferida pelo Sol. É fosca e poenta. Mas se uma Rês alevantada
envereda, esquiva, pela Caatinga garranchenta, por onde passa o Boi
passa o Vaqueiro com seu Cavalo. Colado ao dorso deste, realiza a criação
bizarra de um Centauro bronco.”

DOM PANTERO
Bronco como meu Mestre erradamente o considerasse, era ele a
imagem mais apta a figurar “ em pedra, a fogo ”, a “ Rocha viva da Raça
brasileira ”. E, em nosso caso, deflagrava uma paixão tanto mais
poderosa porquanto para nós, Savedras, nosso Pai, João Canuto, era a
maior, mais bela e mais forte encarnação daquele “ Rei e Cavaleiro ” que,
no Sertão, vestindo a Armadura de couro dos Vaqueiros, terminara por
enfrentar a Moça Caetana, imortalizando-se por ter ido corajosamente a
seu encontro: “ A morte em sangue sagra a vida inteira ” (como, aliás,
também provara o Príncipe, Mauro Jaúna).
Era por isso que, no Simpósio, surgiriam temas que apareciam,
desapareciam e reapareciam depois: aproveitando o fato de que,
reunindo mais uma vez a Música à Literatura, existem as chamadas “
frases musicais ”, eu pretendia que, n’ A Ilumiara , determinados Versos,
textos, citações e mesmo algumas “ frases literárias ”, aparecessem,
desaparecessem e depois reaparecessem, para acentuar a importância
do significado que carregavam. Lembrava-me de que Beethoven
compusera uma Peça-instrumental intitulada “ 7 Variações sobre um
Tema d’ A Flauta Mágica , de Mozart ”: assim seria com A Ilumiara , que
deveria ser composta como se as sessões do Simpósio fossem Variações
tecidas e bordadas na Tela de uma grande Tapeçaria e reunidas em
torno de vários Temas.
O Pai (A Verdade), O Filho (O Bem) e O Espírito Santo (A Beleza)

Na verdade, o que eu pretendia era que A Ilumiara , pelo ritmo,


pela “ forma ”, pela cadência, e até nas Estilogravuras que viessem a
ilustrá-la, fosse empreendida como “ uma Tragédia composta segundo o
espírito da Música ”.
Os 12 Temas principais que nela apareceriam eram o do
Espelho, com o Jaguar; o da Casa e do Castelo; o da Estrada e da
Viagem; o do Circo e do Teatro, com o Cine e o Palco; o da Rabeca (fosse
ela a do Encourado, fosse a da Sabedoria); o da Pedra, com seus Sinais
proféticos; o do Córrego e da Cadência; o do Pássaro e da Serpente; o da
Luta entre o Anjo-Abrasador e a Besta Fouva — a Besta Ladradora; o do
Cavaleiro e o Pajem, com a Morte; o da Fonte, das Águas e dos Rios; e o
da Mulher, no qual de certo modo se fundiam os demais, porque ela ora
aparecia como Beldade diante do Monstro; ora junto às Águas; ora em
sua Casa; ora num Bosque — mata ou Caatinga; ora numa Estrada; ora
num Castelo; mas, em todos esses casos, apenas enquanto se esperava a
formosa e pura Soberana do nosso Reino.

DOM PANCRÁCIO CAVALCANTI


Mas de novo passemos à Sala dentro da qual, naquela manhã de
9 de Outubro de 2000, se viram os participantes do Simpósio Quaterna .

DOM PORFÍRIO DE ALBUQUERQUE


No local situado entre a primeira fila de cadeiras e o Proscênio,
havia, sobre um Estrado, uma grande Mesa, com diversos Microfones.
Abancados a ela, estavam Ricardo Gouveia de Melo e Adriana Victor
(respectivamente Príncipe e Princesa das Águas Belas); Gerson
Camarotti, Carlos Tavares, William Costa, Marcus Vilar, Gustavo Moura,
Claudio Brito e Vladimir Carvalho, encarregados de documentar os
debates; e, finalmente, Balduíno Lélis, como Reitor, que era, da
Universidade Leiga do Trabalho.
DOM PARIBO SALLEMAS
Encerrada a tarefa de guiar os convidados, os organizadores do
Simpósio foram se juntar aos da Mesa. E para que o Público, logo de
início, tomasse conhecimento do verdadeiro sentido do Espetáculo, 2
integrantes d’ Os Filhos do Sol , Natércio Santana e Bruno Alves dos
Santos, e 2 do Grupo Arraial , Pedro Salustiano e Jáflis Nascimento,
cruzaram a Sala por trás da Mesa, conduzindo aos ombros um Andor,
sobre o qual uma Redoma de vidro azulado representava O Cálice do
Sangral . Pedro vinha vestido de Mateus ; Jáflis, de Bastião ; Bruno, de
Tareco, O Palhaço Sabido ; e Natércio, de Paspalho, O Palhaço Besta . À
frente deles, com uma Tocha na mão, Maria Iluminada.

DOM PANTERO
Eu sempre me orgulhara muito da participação daqueles
Bailarinos no Movimento Armorial e nos Espetáculos do Circo-Teatro
Savedra : porque, sendo eles integrantes pobres do povo do Brasil real ,
eram uma demonstração concreta da capacidade de resistência do
nosso Povo que, oprimido por circunstâncias terríveis, a elas se
sobrepõe por meio da Arte, enfrentando o infortúnio pela Beleza, e a
feiura do Mundo pela Dança.
Além disso, a presença deles, ali no Palco, representava outra
vitória do amor pela Arte, porque Bruno era Tio e irmão-de-criação de
Patrícia, Menina que fora estuprada e morta em nossa Matriz no dia 5
(fato que quase nos levara a cancelar o Simpósio).
DOM PARIBO SALLEMAS
Depois que os Bailarinos se retiraram, Inez Viana se dirigiu ao
Público:

INEZ VIANA
Para começar a sessão, achamos que o ponto de partida mais
adequado seria um texto extraído da Dissertação com a qual Dona
Clarabela Noronha de Britto Moraes, aqui presente, obteve seu grau de
Mestra em Teoria Literária. Intitula-se PROMETEU E O ABUTRE —
Uma Xênia Intertextual entre a Prosa de Roberto Alvim Corrêa e a Poesia
de Albano Cervonegro .

ROSETTE FONSECA DOS SANTOS


Ao som de uma das Bachianas Brasileiras , de Villa-Lobos, vocês
ouvirão, por Ricardo Gouveia de Melo, a parte d’ O Velho Rapsodo . Pela
voz de Adriana Victor, a d’ A Mulher Consoladora .

CARLOS DE SOUZA LIMA


Enquanto eles falam — e assim como acontecerá durante todas
as sessões do Simpósio — o Coro vai colaborar, cantando ou recitando o
que for indispensável aos momentos mais significativos da celebração.
MARIA LOPES
Por outro lado, recordo aos presentes: todos os comunicados
lidos aqui devem ter por assunto a obra dos Savedras, uma vez que este
Simpósio é uma espécie de fusão, aprofundamento e ampliação dos
famosos Seminários de Schabinologia , criados por Antero Schabino,
especialmente para estudo de sua própria obra.

DONA CLARABELA
Finalmente solicitamos que as intervenções, além de breves, se
atenham ao mais absoluto rigor crítico. Somente assim este Conclave
deixa de ser uma reunião comum, de Terceiro Mundo, e torna-se uma
de Primeiro — isto é, um Convivium , um Colloquiu , um Sympósion !

DOM PARIBO SALLEMAS


Ao ouvir estas palavras, Ricardo Gouveia de Melo levantou-se da
Mesa e, dirigindo-se ao Microfone, aprontou-se para começar a leitura,
que foi apresentada ao som da Bachiana Brasileira nº 9, de Heitor Villa-
Lobos, e iniciada por um Martelo-Gabinete, da forma como se passa a
transcrever:

PROMETEU E O ABUTRE
Jornada PoétIca e EntremeIo SemIespetaculoso em doIs
Quadros

Quadro I - O VELHO RAPSODO

PARMÊNIDES SAVEDRA
“O Ser não é gerado, é imperecível: sua estrutura é firme,
inabalável. Divindade amorosa, pulsa, nele, o fogo da Paixão, o Amor
selvagem. À luz da Lua e dessa Estrela errante, qualquer outro caminho é
inaceitável.”

RICARDO GOUVEIA DE MELO


“O insolúvel é a Vida, com o Tempo, que o resolve. Começo a
perceber o invencível trabalho da Morte, em mim. Bico e garras de fogo
a tatuar-me indelevelmente, sinto cada dia com mais força aquilo que,
dentro de mim, impiedosamente me esquarteja. Toda criatura humana
tem de passar por este jugo de fogo, e é como se eu ouvisse o latejo do
Mar contra o Barco que sou.

CORO
“Figuraste o ser que tentou suprimir o inelutável. Mais amigo do
Homem, qual o sonhavas, do que dos Deuses, criaste um Ente não
apenas de barro mas também de algo que o animasse com o Fogo
celeste.
RICARDO GOUVEIA DE MELO
“De tal gesto (na opinião dos deuses, de revolta, na dos homens,
de libertação) resultou um estranho incêndio, chamado por vezes Alma.

CORO
“Desta fedra-mítica, Madrasta incestuosa que nos fascina, qual o
segredo?

RICARDO GOUVEIA DE MELO


“Aquele que nos permite comunicar com o Desconhecido. A
Alma é aquilo que o Demônio nunca pode seduzir de todo. É ela que nos
solidariza com o infortúnio, que nos ensina a ter compaixão, a lutar
contra a cegueira e o absurdo, a encarar a aventura do Homem,
ansiosamente debruçado sobre seu destino e purificado de uma culpa
injustamente considerada sua.
CORO
“O mar humano! Revelar a flora venenosa, cuja cor é visível em
nossos olhos: Deus em nós, recalcado na espessura negra.

RICARDO GOUVEIA DE MELO


“A luz do dia é uma coisa, outra é a sombria claridade, a qual,
agindo em nós, consegue levar à tona, como se fosse coisa leve, aquilo
que pesava em nós mais do que chumbo.

CORO
“Sob o vento das idades, treme e agoniza, muito lentamente, a
sombria Humanidade: criaturas já ofegantes mas ainda cobiçosas ou
cheias de luxúria no que têm de mais significativo.

RICARDO GOUVEIA DE MELO


“Afrouxamento e luz, neste imenso afresco sulfúreo. Dele,
porém, desprende-se uma solene impressão de tristeza, de fatalidade: o
Tempo que passa, que sopra, que tudo acende e tudo apaga — o ritmo
do Céu, das estações, da fecundação; os ciclos dos anos e dos séculos; o
fôlego de um Homem, as pulsações do seu coração, os sonhos que desde
a infância vêm urdindo a nossa vida — Noite que meus pecados nunca
me deixaram atravessar ileso.
“Mas é tarde: areias e rochedos pelo Sol e pelo vento mordidos;
e — proa na Viagem já avançada — Eu!
CORO
“Pelo tempo, pelas paixões, até que ponto roído?

RICARDO GOUVEIA DE MELO


“Entretanto, não devo nem posso morrer: tenho, ainda, que, pela
última vez, libertar do jugo universal algo de imperecível.
CORO
“Sim, por que a Vida-imortal seria mais impensável do que o
Mundo-absurdo?

RICARDO GOUVEIA DE MELO


“Nem todos são os mesmos antes e depois de crer em Deus,
antes ou depois de uma vingança ou de um Crime — e nesta diferença
pode haver um abismo para sempre decisivo.

CORO
“Não precisamos saber o nome de Deus para sermos religiosos:
basta possuir o senso da perfeição e da responsabilidade; e é o que
carregamos no mais íntimo que decide o nosso destino.”

DOM PARIBO SALLEMAS


Chegara a vez de Adriana Victor que, ao som do 2º Movimento
da Bachiana Brasileira n º 8, e também apoiada pelo Coro, começou sua
leitura:

Quadro II - A MULHER CONSOLADORA

HERÁCLITO SCHABINO
“Canta a Estrela que a Morte não existe, pois o Ser é também a
negação: o Ser, que funde em si a Terra e o Fogo, a Ventania e as chuvas
do Verão! Ninguém pode afirmar que o Ser não é; mas nele já começa a
Pulsação.”
ADRIANA VICTOR
“O deus da Beleza, filho do Feio e filho da Harmonia, filho do
Belo e filho da Loucura! A meu lado, o velho Rapsodo, com seus dias
contados. Todo criador é filho e pai de uma terra sua, move-se num
Reino pessoal, insubstituível.

CORO
“Eis o que dissemos àquele, tentando consolá-lo de sua morte
próxima:

A Beleza - O Bem - A Verdade


ADRIANA VICTOR
“Um Poeta é perigoso por tudo quanto ameaça em nós, não de
morte, mas justamente de vida. Quanto a mim, sempre precisei do mundo
visível para ir ao invisível: encontro no Palco, num Mundo acordado,
aquela atmosfera de realidade mais real do Sonho.

CORO
“É o Poeta que nos liberta da Morte e de todos os pesos.

ADRIANA VICTOR
“O Cômico não costuma adular ninguém, e, de todos os
observadores do ‘Eu-odiável’, nem sempre é o menos impiedoso.

CORO
“O Trágico é um lavrador que nos lavra e nos revira, para que,
dentro, apodreçam luxúria, preguiça, cólera, cobiça.

ADRIANA VICTOR
“No Mundo deles — Palco ou Prelo, Teatro ou Livro — reina a
ilusão; mas reina para nos encontrarmos com nós mesmos, numa
consciência angustiada cuja expressão se torna poética e estabelece nosso
parentesco com Personagens míticos, históricos ou imaginários.

CORO
“Participamos daquilo que reprovamos. O rumor marinho da Sala,
o lustre, a Cortina de veludo enfim levantada sobre um mundo invadido
pelos emissários dos Magos.

ADRIANA VICTOR
“Seres monstruosos, por serem quase divinos, como Abraão, Sara e
Agar. Reveladores, e por isso castigados, como Prometeu.

CORO
“Pactários, como Fausto e Cipriano. Parricidas e matricidas, como
Édipo, Electra e Orestes. Fratricidas, como Etéocles, Caim e Polinices.
Suicidas, como Nero, Judas e Cleópatra. Sedutores vulgares, ou violadores
incestuosos, como Amnon.

ADRIANA VICTOR
“Será que éramos tais Monstros? Será que somos tais Monstros?

CORO
“Sim, um pouco, ajudando as Musas a nascerem dentro de nós
estes inesperados visitantes dos nossos sonhos. A frase terrível, segredada
por Jocasta, esposa e mãe, com uma voz estrangulada:
ADRIANA VICTOR
“ ‘Infortunado! Possas tu nunca saber quem és!’

CORO
“A ressonância do fatídico aviso: ‘Neste mundo de culpabilidade
lúcida, o Dia escurece as coisas, a Noite as esclarece’.

ADRIANA VICTOR
“O mistério da Vida no que tem de mais denso: uma relação entre
o que pensamos saber e aquilo que admitimos não saber; entre a
consciência de nossa curta duração e o abismo que a cerca; entre a Vida e
a Morte.

CORO
“A grandeza da Arte desperta no Homem algo de invicto e vivo;
toda Poesia é enigma e oráculo; abeira perigos desconhecidos; é somente
uma pulsação, mas serve para medir o Mundo.

ADRIANA VICTOR
“O mais puro Poeta dispõe de sortilégios, como a Beleza, e é
escravo desta Beleza, como de um vício.
CORO
“Graças aos pesquisadores da Sombra, o domínio do que é claro
vai se estendendo cada vez mais, e o archote aceso por Gregos e Judeus
mantém sua realidade através do Tempo.

ADRIANA VICTOR
“Tudo isto dissemos ao enfermo e envelhecido Aedo, cujo olhar
revelava, a um tempo, inquietação e resignação. Quando moço, era um
criador de ritmos, um decifrador de sonhos, um revelador de mitos.
Movia-se à beira dos abismos, sua Arte coincidia com a Vida. Tudo, nele,
surgia da paixão secreta, da zona tenaz do ser: zona obscura e sombria,
mas, por estranho que possa parecer, pura.

CORO
“Havia, nele, algo de incorrupto, que exigia e feria. Tinha a
virtude do fogo e do diamante. Avivava o mais inalienável, renovando as
manhãs da primeira idade que nele ainda não de todo escurecera.

ADRIANA VICTOR
“Mas não nos iludíamos: a Morte anunciava-se, fosse em
túmulos humildes com grama e plantas que não custam caro, fosse no
implacável Campo-Santo virado em deserto, em parte calcinado e onde
jazem membros de um enorme Esqueleto demasiadamente branco. E
não havia palavras que o confortassem.
CORO
“Na verdade, que falar a uma pessoa que vai morrer? Somente
um herói pode dizer àquele que morre: ‘Seja intrépido!’ E só uma
pessoa de Deus pode lhe falar de Deus: nada humilha mais do que ser
orgulhoso.”

DOM PANTERO
Agora, porém, nobres Cavaleiros e belas Damas da Pedra do
Reino, devemos contar-lhes que, cerca de uma hora antes do início do
Simpósio Quaterna , o Anjo-Abrasador começara a esvoaçar sobre o
Santuário de Congonhas , em Minas, a fim de abençoar as figuras dos 12
Profetas, ali esculpidas em pedra por Antônio Francisco Lisboa, O
Aleijadinho .

DOM PARIBO SALLEMAS


No momento em que apareceu o Anjo, soprava sobre Congonhas
uma ventania tempestuosa, que vinha do Norte, e pairava uma grande
Nuvem cor-de-chumbo, arrodeada por uma Orla de fogo e claridade.

DOM PANTERO
Era sob essa Nuvem que o Anjo esvoaçava por cima do
Santuário, onde se dirigiu primeiro para a Escultura em que o
Aleijadinho representara o Profeta Isaías.
Olhando-o, o Abrasador lembrava-se do grave erro de
interpretação cometido pelos que apontam no grande Artista que o
esculpiu “ defeitos e erros de anatomia ”. Cegos e extraviados, não viam
que tais “ erros ” é que davam àquelas Esculturas uma força diante da
qual as “ corretas ” empalideciam. O Aleijadinho podia até ter desejado
seguir modelos europeus acadêmicos e “ bem feitos ”. Mas o gênio do
grande Escultor brasileiro (gênio que resultava da fusão de sua
espantosa imaginação criadora com o caráter peculiar e poderoso do
nosso Povo), seu gênio, graças a Deus, o impedira de imitá-los.

A Verdade - O Bem - A Beleza


Além disso, o Anjo sabia que o Santuário de Congonhas era um
Castelo, um rude e singular Teatro-de-pedra, criado pela “ fantasia tosca
e brilhante ” de um Artista mais inclinado “ à bru talidade do Grandioso
do que às harmonias do Belo”. Era algo cuja legitimidade nos fora
garantida por outro extraordinário Artista e pensador brasileiro
daquele mesmo século que produzira O Aleijadinho — Mathias Aires:

MATHIAS AIRES DE SAVEDRA


“A Arte leva consigo uma espécie de rudeza; a Formosura até se
sabe introduzir na fealdade, no horror, no espanto. A Beleza atrai só por
si, e não pela sua regularidade. Desta, sabe afastar-se a Natureza, e
então é que se esforça e produz coisas admiráveis.

A Verdade - O Bem - A Beleza


O Aleijadinho - Profeta Daniel

“A Arte também faz com que, divertido e empregado, nosso


pensamento chegue a contemplar luzida a nossa mesma Morte e vistosa
a nossa mesma Sombra. Do fugir das proporções e das medidas resulta,
muitas vezes, uma Fantasia tosca e impolida mas brilhante e forte.”

DOM PANTERO
Conforme se vê por aí, Mathias Aires afeiçoava-se até mesmo
àquela Arte nascida da Sombra, daquela região habitada pelo Mal e pela
Morte; pela Onça Caetana, pelo Encourado e pela Besta Fouva (a qual,
dentro e fora de nós, a cada instante nos faz estremecer o sangue, ao
som de seus ladridos e ao estralo de seus cascos).

DOM PANCRÁCIO CAVALCANTI


Assim, melhor do que Mathias Aires, o Abrasador, por ser um
Anjo, sabia que o Santuário de Congonhas era uma de tais Obras; e, sem
qualquer preocupação de justificá-lo, passou de Isaías a Ezequiel,
Baruc, Jeremias e Daniel. Este falou por sua boca de pedra, condenando
o Quarto Império e anunciando o nosso, o da Iarandara — o Quinto
Império da Rainha do Meio-Dia:

DANIEL SCHABINO
“Ao contemplar minhas Visões noturnas, vi um outro Animal — o
do Quarto Império. Era terrível, espantoso, cruel e extremamente forte.
Com enormes dentes de ferro, comia, triturava e depois calcava aos pés
tudo o que restava. Pior do que os 3 outros que o tinham precedido, o
quarto Animal possuía 10 grandes Chifres e uma boca que proferia
palavras arrogantes. Partia para devorar o Mundo inteiro, para calcá-lo
sob seus pés e esmagá-lo, gritando graves insultos contra o Altíssimo.
“E eu ainda olhava tudo aquilo quando notei, vindo sobre as
nuvens do Céu, um como Filho de Homem (Aquele que fora gerado pelo
Gavião nas entranhas da Pomba da Sabedoria). A Ele, sob as bênçãos de
Deus e de sua Mãe, era outorgado o Império, com a honra e o Reino. Seu
domínio jamais passará e seu Reino jamais será destruído.”

DOM PANTERO
Depois de ouvir tais palavras, o Anjo voou sobre Oseias, Jonas,
Naúm, Joel, Abdias, Habacuc e finalmente Amós, que repetiu para ele
suas advertências contra os ricos, opressores e poderosos; naquele dia,
porém, especialmente dirigidas aos que insistem em vender o Brasil,
traindo seu grande Povo e, por isso, afastando para um futuro ainda
mais longínquo o advento do Quinto Império:

AMÓS DE SAVEDRA
“Oráculo de Deus, Nosso Senhor: Não sabem agir com retidão
aqueles que amontoam opressão e rapinagem em seus Palácios, Fábricas,
Mercados, Bancos e Edifícios. Eles esmagam sobre o pó da Terra a cabeça
dos fracos e tornam ainda mais duro o caminho dos Pobres. Transformam
o Direito em veneno e lançam por terra a Justiça. No entanto, Eu quero
que o Direito corra como água pura e a Justiça como um Rio caudaloso.”

DOM PANTERO
Assim que Amós terminou de falar, vi que, concluídas suas
bênçãos sobre Congonhas, o Abrasador começara a trocar o Sertão
mineiro pelo nordestino, em rumo paralelo ao do Rio São Francisco .
Seu voo era extremamente rápido, de maneira que em poucos instantes
chegava ele à Via-Sacra de Monte Santo , perto do local em que, a 5 de
Outubro de 1897, o Exército brasileiro (infelizmente persuadido,
naquela época, por Intelectuais positivistas e Empresários capitalistas)
destruiu o Império do Belo Monte de Canudos , Arraial pré-socialista e
messiânico, liderado pelo maior dos nossos Profetas, Santo Antônio
Conselheiro.

AURO SCHABINO
A Via-Sacra de Monte Santo também teria entusiasmado
Mathias Aires, caso ele a tivesse conhecido. Euclydes da Cunha (Profeta
do nosso Velho Testamento e artista da mesma linhagem d’O
Aleijadinho) assim a recriou naquela outra Obra-de-gênio “ tosca,
brilhante, impolida e forte ” que é Os Sertões :

MONTE SANTO
Castelo, lIterarIamente recrIado a partIr de outro,
arquItetônIco, erguIdo pelo Povo brasIleIro.

EUCLYDES SCHABINO DA CUNHA


“Monte Santo é um lugar lendário. Quando, no século XVII, a
descoberta das Minas determinou a atração do interior sobre o litoral, os
Aventureiros que, ao Norte, investiam com o Sertão, arrebatados pela
miragem das minas de Prata, ali estacionavam longo tempo. A Serra
solitária atraía-os irresistivelmente: é que, num de seus flancos, escritas
em caligrafia ciclópica com grandes Pedras arrumadas, apareciam Letras
singulares — um A , um V e um S — ladeadas por uma Cruz, de modo a
fazerem acreditar que estava ali, no Sertão nordestino, o Eldorado
apetecido.
“No fim do século XVIII, redescobriu-a um Frade missionário; e,
achando-a semelhante ao Calvário, planeou logo para ali a ereção de
uma Capela, que ia ser a primeira daquele tosco, imponente e poderoso
templo da Fé religiosa.
“E fez-se o Monumento prodigioso, erguido pela Natureza e pela
Fé, mais alto do que as mais altas Catedrais do mundo; a extensa Via-
Sacra de 3 quilômetros de comprimento, em que se erigem, a espaços, 25
Capelas, encerrando os passos da Paixão. Amparada por Muros capeados;
calçada, em certos trechos; tendo noutros, como leito, a Rocha viva,
rampeada ou talhada em degraus — aquela Estrada de quartzito, onde
ressoam há mais de 100 anos as litanias das procissões da Quaresma e
têm passado legiões de Penitentes, é um prodígio de Arquitetura, de
Engenharia rude e audaciosa.”

DOM PANTERO
Ao me ver, pela primeira vez, diante da Obra que é Monte Santo ,
vi-me obrigado a confessar que a Imagem literária criada por Euclydes
da Cunha é mais bela do que a real. Ainda assim, devo dizer-lhes que,
como A Ilumiara , aquela Via-Sacra é um Castelo; uma Catedral; uma
Fortaleza que, dentro de si, contém um Palco de pedra e uma Estrada,
decisiva para os Andarilhos que temerariamente se arriscam a
percorrer suas 7 Moradas (ou Vias).

ADRIEL SOARES
Mas vamos continuar, com Euclydes da Cunha, a leitura de seu
próprio “ Monumento prodigioso ”, de sua apocalíptica Revelação:

EUCLYDES SCHABINO DA CUNHA


“A Via-Sacra começa investindo com a Serra, numa rampa
íngreme. Adiante, a partir da Capela maior — Ermida interessantíssima,
ereta num ressalto da Pedra, a cavaleiro do Abismo —, volta à direita.
Finalmente, alteia-se de improviso, retilínea, em ladeira forte,
arremetendo com o vértice pontiagudo do Monte até o Calvário, no alto.
“À medida que ascende, ofegante, estacionando nos Passos-da-
Paixão, o Peregrino, em sua Viagem-purificatória, depara perspectivas
que seguem num crescendo de grandezas soberanas. Primeiro, os planos
das Chapadas e Tabuleiros, esbatidos, embaixo, em Planuras vastas.
Depois, as Serranias remotas, agrupadas, longe, em todos os quadrantes.
E, atingido o alto, o olhar a cavaleiro das Serras — o espaço indefinido,
com a emoção estranha da altura imensa, realçada pelo aspecto da
pequena Vila embaixo, mal percebida na confusão caótica dos telhados.
“E quando, pela Semana Santa, convergem ali as Famílias da
redondeza e passam os Penitentes pelos mesmos flancos em que
vagueavam, outrora, inquietos, os Aventureiros ambiciosos, vê-se que o
Frade-missionário, mesmo sem chegar a penetrá-lo ou decifrá-lo
inteiramente, chegou perto do Castelo sacratíssimo e enigmático, oculto
no Deserto.”

DOM PANCRÁCIO CAVALCANTI


Mas agora (reafirmando que, comparada ao Velho Testamento d ’
Os Sertões , A Ilumiara é uma espécie de Novo Testamento Brasileiro ),
deixamos de lado o Anjo-Abrasador, o qual, depois de voar sobre Monte
Santo, começava a pegar o caminho da Ilumiara Pedra do Reino , situada
no Sertão, exatamente na divisa entre Pernambuco e a Paraíba.

DOM PORFÍRIO DE ALBUQUERQUE


Temos que deixá-lo porque, naquele mesmo instante, a Moça
Caetana, sob forma de Onça alada, também começara a voar sobre o
Reino triangular e sagrado onde ainda hoje se inscreve o obsessivo
Périplo que acende e queima o sangue de Dom Pantero, e que possui,
nos vértices, 3 Pontos-cardeais — Taperoá, São José do Belmonte e o
Recife (este com Olinda, os Montes Guararapes, São Lourenço da Mata,
a Ilumiara Cantapedra e Igarassu).
J. Borges

DOM PANTERO
Naquela manhã de 9 de Outubro de 2000, a Moça Caetana
aparecera primeiro como a sinistra e bela Divindade descrita no Soneto
composto, com tema de Deborah Brennand, a partir dos sonhos
obscuros de meu irmão Altino Sotero. Naquele Soneto estava presente o
“ sagrado terror ” que de nós se apossa diante da terrível Divindade que
é a Morte.
Posteriormente Auro e Adriel compuseram outro Soneto que, n’
O Pasto Incendiado , se seguia ao primeiro, sendo que, desta vez, o terror
gradativamente se transformava em aceitação e até em celebração da
Morte, integrada na paixão da Vida, que nos movia a todos:

A MOÇA CAETANA — O SOL DE DEUS


Com motes de Deborah Brennand e Renato CarneIro
Campos

ALBANO CERVONEGRO
Eu vi a Morte, a Moça Caetana, com o Manto negro, rubro e
amarelo. Vi-lhe o inocente olhar, puro e perverso, e os dentes de coral da
Desumana.
Eu vi o Estrago, o bote, o ardor cruel, os peitos fascinantes e
esquisitos. Na mão direita, a Cobra-cascavel, e, na esquerda, a Coral, rubi
maldito.
Na fronte, uma Coroa e um Gavião. Nas espáduas, as Asas
deslumbrantes, que, ruflando entre as pedras do Sertão, pairavam sobre
Urtigas causticantes, “caules de prata, Espinhos estrelados, e os cachos do
meu Sangue iluminado”.
Mas eu enfrentarei o Sol divino, a luz do Sonho em que a Pantera
arde. Saberei por que o laço do Destino não houve quem cortasse ou
desatasse.
Não serei orgulhoso nem covarde, que o Sangue se rebela ao
toque e ao Sino. Verei, feita em Topázio, a luz da Tarde — pedra do Sono,
cetro do Assassino.
Ela virá, Mulher, aflando as Asas, com os dentes de cristal
queimando Brasas, e há de sagrar-me a vista o Gavião.
Mas sei, também, que só assim verei a coroa da Estrela e Deus,
meu Rei, “assentado em seu trono do Sertão”.
DOM PEDRO DINIS QUADERNA
Naquela manhã, pois, como Mulher e ainda sob o Crescente
noturno que lhe serve de insígnia, a Moça Caetana acordara nua, na
Furna pedregosa em que mora. Deitada, estirara os braços, num
espreguiçamento. Depois, alongou a vista pelo próprio corpo perfeito,
com os dois belos Peitos opulentos e de bicos avermelhados — “ garças
do Céu, com bicos cor-de-rosa ”, para usar a expressão do genial Poeta
paraibano, Doutor José Rodrigues de Carvalho.

DOM PANTERO
A divindade brasileira da Morte aparece como fêmea aos
Homens, e como macho às Mulheres. Macho, é O Moço Caetano , cujo
nome vem de Kai-Thano , isto é, E-eu-morri . Fêmea, é A Moça Caetana ,
cujo corpo é moreno, pois ela é uma divindade de origem cariri. Seus
peitos, porém, são alvos, com aréolas e bicos de um rosado mais vivo do
que os de qualquer outra Mulher, nascida ou por nascer no Mundo.

DOM PARIBO SALLEMAS


Quando, sob forma de fêmea, ela escolhe um homem para matar,
aparece a ele, por entre delírios e prodígios, exibindo-lhe
sedutoramente seus peitos. O homem, fascinado, beija-os, e, enquanto
os morde, é picado pela Cobra-Coral que serve de colar à Moça Caetana.
DOM PANTERO
É então que ele é fulminado aos estremeços obscenos da Morte:
Caetana bebe-lhe o sangue, e é o sangue dos assassinados que
robustece seus peitos, tornando-os firmes, belos e rosados daquela
maneira.
Agora, ainda deitada, ela olha esses peitos, e, mais embaixo, a
bela Concha bivalve e vermelha, entrecerrada na relva noturna do Púbis
selvagem (“ Sol de pelos, onírico Diadema ”, nas palavras daquele outro
grande Poeta paraibano que é Luiz Correia). Com os dedos da mão
direita, apalpou, num ritual, primeiro um peito, depois o outro, e
colocou a mão esquerda espalmada sobre a Vulva, para selar o Concriz
negro-e-vermelho do Sexo.

DOM PEDRO DINIS QUADERNA


Imediatamente começou a perder sua forma de Mulher e a
assumir a de Onça. A Cobra-Coral Vermera — que lhe serve de Colar,
jamais largando seu pescoço — enroscava-se ali, ferindo o ar de vez em
quando com sua língua bipartida.
Enquanto isso, as 3 Aves-de-rapina da Morte pousavam sobre a
Onça e, cravando-lhe as garras, começaram a penetrar em seu corpo —
na pele, na carne, no sangue, nos ossos; entraram primeiro as unhas,
depois os pés, e as pernas, até que os 5 Bichos se transformassem numa
só Besta, com 6 asas e 5 cabeças — a da Onça, a da Cobra e as 3 das
Aves-de-rapina.
DOM PANTERO
Composta assim a estranha Fera, havia nela algo de belo,
fascinador e reluzente, mas também de sinistro e infame. No flanco
direito da Onça, ficou-lhe cravado pelo corpo o Gavião vermelho
Caintura , a ave-de-rapina da fome, da sede, da miséria, da doença e do
Tempo. No flanco esquerdo, Malermato , o Gavião negro da nudez, do
sofrimento, do infortúnio, do acaso, da má-sorte e da Fatalidade. Entre
os dois, o Carcará branco, negro e castanho que se chama Sombrifogo e
é a ave-de-rapina do assassinato, da chacina e do suicídio.

DOM PARIBO SALLEMAS


Aí, naquela manhã de 9 de Outubro de 2000, a Moça Caetana
saiu de sua Furna, ao mesmo tempo em que o Sol levava adiante sua
tarefa de alumiar o Mundo. Piscando os belos olhos ainda meio
enevoados de sono, ela apareceu à entrada da Gruta; e, alçando voo,
dirigiu-se para a Serra da Copaóba , regozijando-se ao rever o local onde,
a 9 de Outubro de 1590, foi morto Dom Sebastião Barretto, primeiro e
encoberto Príncipe-brasileiro-do-sangue-do-vai-e-volta.

DOM PANCRÁCIO CAVALCANTI


Depois, passou à Estrada da Santa Cruz da Piedade , no Rio de
Janeiro, onde, a 15 de Agosto de 1909, foi assassinado Euclydes da
Cunha. E, voltando ao Nordeste, começou a plainar sobre o Reino,
àquela hora já iluminado pelo Sol. Deu algumas voltas por cima do
primeiro vértice do Triângulo — vértice formado por Taperoá,
Desterro, Assunção e Teixeira —, detendo-se com mais vagar sobre as
ruínas do Arraial do Bacamarte e sobre o conjunto de Lajedos onde, na
Fazenda Saco da Onça , se encontrava a Ilumiara Jaúna , banhada pelo
Riacho do Elo (em cujas margens foi assassinado o Cavaleiro).

DOM PANTERO
Por cima de todos os lajedos da Ilumiara esvoaçou a Morte
naquela manhã de 9 de Outubro de 2000. E, concluída a primeira parte
do voo, dirigiu-se ao Recife, segundo vértice do Reino. Demorou sobre a
Igreja de Nossa Senhora da Conceição dos Militares , por causa do Painel
pintado sobre madeira e que ali celebra a vitória obtida pelos
Brasileiros em Guararapes, no século XVII; era, aquela, uma visita hostil
que a Onça fazia, não só por causa da Misericordiosa mas também
porque a Batalha fora um fato decisivo para todos nós, pois impedira
que o Brasil fosse excluído da Iarandara , da Rainha do Meio-Dia — o que
inevitavelmente aconteceria caso os Holandeses fossem vitoriosos.
DOM PORFÍRIO DE ALBUQUERQUE
Depois, Caetana voou sobre a velha Casa de Detenção do Recife ,
misto de Fortaleza e Prisão: um Castelo que, por ser “ davídico ”, é, a um
tempo, sinistro e belo, como o canto dos Pavões e como a própria Moça
Caetana. Relembro: é que ali, 3 dias antes do Cavaleiro, foi também
assassinado João Soares Sotero Veiga Schabino de Savedra, Tio-materno
de Altino, Auro, Adriel e dos outros irmãos de Dom Pantero — Mauro,
Afra e Gabriel.

DOM PANTERO
Então, a Morte passou a voar sobre o Colégio e a Sé de Olinda,
lembrando-se de que lá, no dia 15 de Agosto de 1594, nosso primeiro
antepassado brasileiro, Alexandre Schabino de Savedra, respondera a
um Processo perante Heytor Furtado de Mendoça, “ Visitador do Santo
Ofício às Partes do Estado do Brasil ”.
Depois, em Igarassu, visitou o Engenho Chabino e o Convento de
Santo Antônio , com sua Igreja. Em São Lourenço da Mata, o Engenho
Coral e a Ilumiara Cantapedra , onde agora me encontro a redigir esta
Carta: Caetana sabia que as “ Epístolas ” sonhadas por meu Tio-materno
Antero Schabino seriam decisivas na grande Peleja em que me
empenho; e queria se munir de todos os agouros que lhe fosse possível
reunir, contra elas e contra as sessões do Simpósio Quaterna , que estava
começando naquela manhã de 9 de Outubro de 2000.
DOM PARIBO SALLEMAS
Entretanto, neste segundo vértice do Triângulo, sua atenção
maior foi dada, mesmo, à Ilumiara Zumbi , ao Teatro Antônio Conselheiro
(situado na Favela-Consagrada , ou Ilha de Deus ) e à Ilumiara A Coroada ,
a Casa recifense dos Schabinos, Savedras e Jaúnas: esses eram os 3
Redutos que serviam de armas a Altino, Auro e Adriel em sua luta para
afirmar o trono e a arte do povo do Brasil real .

DOM PEDRO DINIS QUADERNA


Finalmente, a Moça Caetana passou a voar sobre o terceiro
vértice do Reino, plainando sobre Princesa, na Paraíba, e São José do
Belmonte, em Pernambuco. Ali, exatamente na divisa entre os dois
Estados, sobrevoou a Ilumiara Pedra do Reino , olhando, hostil e de viés,
para as grandes Esculturas feitas em granito por Arnaldo Barbosa:
entre elas, o Cristo Rei , a Nossa Senhora , o São José e o Marco — o
Padrão que tem, no anverso, o nome do lugar, Ilumiara Pedra do Reino ;
e, no reverso, a Inscrição-votiva, Homenagem ao Aleijadinho .

DOM PANTERO
A Moça Caetana sabia que na Serra do Reino estava sendo
erguido um Santuário para assinalar, plasticamente, a ponta nordestina
do eixo que liga o Sertão nordestino ao mineiro. E sabia que, se ficasse
pronta, A Ilumiara seria a expressão literária daquela ponta, a terceira
do “ Triângulo místico, solar e mítico ” que aparecia no Livro Luz &
Trevas , dedicado por sua autora, Maureen Bisilliat, a meu irmão Auro.
Quer dizer: fossem, ou não, concluídos aqueles dois Castelos —
o escultórico e arquitetônico da Serra do Reino, e o literário d’ A
Ilumiara —, a Moça Caetana tudo faria para destruir as partes já prontas
de cada um deles, pois sabia que ambos eram tentativas de, pela Arte,
celebrar a Vida e a imortalidade.
Por isso, pretendia se demorar ainda sobre a Ilumiara Pedra do
Reino . Mas aí avistou o Anjo Abrasador que, de Monte Santo, vinha
chegando para Belmonte, lugar que ele amava muito, porque seu nome
lhe recordava o do Império do Belo Monte de Canudos .

DOM PANCRÁCIO CAVALCANTI


Então, assustada, Caetana fugiu de volta para Taperoá, onde, às
10 horas da manhã daquele 9 de Outubro de 2000, esvoaçou sobre a
grande Pedra que encima a Serra do Pico . Ficou por um instante alçada
no ar, dando a impressão de ser uma estranha Harpia, um enorme
Gavião-Real, com 5 cabeças e corpo de Onça.

DOM PORFÍRIO DE ALBUQUERQUE


Parou, afinal, com a bela pelagem ainda mais dourada pelos
raios do Sol. Pousou. E, com as garras tocando a Pedra, acabou por se
deitar como as Onças comuns se deitam — com as patas traseiras ao
lado do corpo e as dianteiras espichadas para a frente, firmadas no topo
áspero e belo da Pedra do Pico .

Alexandre Dumas de Savedra


“Era como a antiga Esfinge, de cócoras, à entrada de seu Antro,
propondo àqueles que caminhavam pela Estrada um Enigma insolúvel.”

DOM PEDRO DINIS QUADERNA


Ali se manteve imóvel, invisível para as pessoas sensatas, mas
perfeitamente clara aos olhos visionários dos Poetas e Poietas; aos
olhos inocentes e sem mercê das Crianças; aos olhos aguçados e
culposos dos Profetas; aos olhos perturbados dos Ébrios, dos Mágicos,
dos Loucos, dos Palhaços e daqueles Reis que, bebendo o Vinho da Pedra
do Reino , são possuídos pelo dom da Poesia divina, daimoníaca,
escumejante, epiléptica e alucinatória.

DOM PANTERO
O que Vocês bem podem comprovar, no Poema que aí vai e que,
também composto com base nos sonhos dementes do nosso irmão
Altino, foi incluído por Auro e Adriel no Livro O Pasto Incendiado , por
eles publicado sob o pseudônimo de Albano Cervonegro : fato que lhes
valeu a alcunha de Os Xifópagos , colocada por nossos mesquinhos
adversários recifenses, que procuravam, ou ignorá-los, ou então
ridicularizá-los por meio de caricaturas.
DOM PARIBO SALLEMAS
Mas deixemos de parte esses equivocados, e vamos ao Poema,
que nos interessa mais:

A ONÇA
Martelo-GabInete no qual aparece o Jaguar como InsígnIa
da Morte
ALBANO CERVONEGRO
Eis a Flecha cruel que despedaça a carne dos Cabritos e Cordeiros.
Eis o Bicho sagrado, o velho Medo, no sangue mal-cravado dos meus
erros. A Besta coroada, a Fera doida, o veneno do Sono e do Desterro.
O vermelho Clarão e o verde Escuro; o Mundo — ouro e enxofre
malfadado. Possesso da Serpente, asas de Arcanjo, olhos cegos no Sol
incendiado. Que maldade se encerra na Beleza? Que sangrento, no Molde
iluminado?
Do Rebanho maldito, um verde Musgo. As Pedras, a Ferrugem
verde as tinge. À luz azul do Cérebro inquieto, o Punhal dorme, oculto
entre as Meninges. É divina esta Chaga que o Sol cura, e o Anjo é
soletrado em cega Esfinge.
O topázio dos olhos, nas Estrelas. A pele de ouro e negro, os dentes
brancos. A luxúria de púrpura e desejo, na polpa clara dos macios
Flancos. Canta em meu sangue a frauta dos meus Ossos: a corneta da
Tíbia e o punho manco.
Quem me sopra o Traspasse e a solução? Que me sussurra o fogo
desta Voz? Ai, perigo-de-ser do meu cansaço! Ai, papoula-da-vida, sangra
os Nós! — que vai, e esquiva foge, e espreita a Sombra, na cabeça de
Cacto feroz.

DOM PANTERO
Pois bem: naquela manhã de 9 de Outubro de 2000, enquanto o
Anjo-Abrasador e a Onça Caetana esvoaçavam sobre o Reino do Sete-
Estrelo do Escorpião do Nordeste, na última Casa urbana que, no
Sertão, pertencera aos Savedras, eu estava no meu Quarto, preparando-
me para comparecer ao Simpósio Quaterna .
Preocupado com a importância do Depoimento que ali iria dar,
passara a noite acordado, velando as minhas Armas, isto é, pensando
nas palavras, histórias e reflexões que, segundo esperava, justificariam
Schabinos, Savedras e Jaúnas diante de todos. Guardadas as proporções,
acontecera comigo o mesmo que a Santo Inácio na noite em que
decidira abandonar tudo para se dedicar ao caminho de Deus. Contava
ele como, ferido-de-guerra, entregara-se à leitura, em sua Cama de
enfermo:

INÁCIO SCHABINO DE LOYOLA


“Cuidando-me dos ferimentos, era forçado a guardar o leito. E
como era muito afeito a ler aqueles Livros mundanos e falsos que se
chamam de Cavalarias, pedi que me dessem alguns deles para passar o
tempo; mas, na Casa em que estava, não se achou nenhum dos que eu
costumava ler; assim me deram uma Vida de Cristo e um Livro sobre as
vidas dos Santos, estes em romance . E, estando uma noite acordado, vi
claramente uma imagem de Nossa Senhora com o santo e sagrado
Menino Jesus, fato que me acarretou grande consolo; e fui invadido de
tanto asco da minha vida passada, que me pareceu ter arrancado da
alma todos os pecados, todas as imagens e coisas carnais que, antes, nela
havia pintadas. Mas como, por outro lado, meu entendimento vivia ainda
povoado por aquelas coisas e por tudo o que lia em Amadis de Gaula e em
Livros semelhantes, determinei-me a velar minhas Armas por toda a
noite, sem me sentar ou deitar; e, em alguns momentos, ficava de joelhos
diante do altar de Nossa Senhora, pois decidira abandonar minhas
roupas comuns e vestir as armas do Cristo.
“Entretanto, já com o dia claro, vi, perto de mim, no ar, uma coisa
que me deu grande sensação de felicidade, porque era muito bonita. Não
distinguia bem o que fosse, mas parecia-me ter forma de Serpente. Tinha
belas cores e muitas coisas que resplandeciam como olhos, se bem que
não o fossem. E depois que isso durou um bom momento, caí de joelhos
diante de uma Cruz que havia perto. E, rezando e dando graças a Deus,
entendi afinal que aquela Aparição não tinha cor tão bela como me
parecia; e tive claro conhecimento de que aquele era o Demônio.”

DOM PANTERO
Ora, se tais perigos corria uma pessoa de Deus, como Santo
Inácio — uma pessoa que entendia “ tanto de coisas espirituais quanto
de coisas da Fé e das Letras ” —, o que não aconteceria com o “ velho
Pecador ” que era, e é, Dom Pantero? Eu sabia que, por trás das músicas,
das falas e das cores do Palco, o que eu iria enfrentar, mesmo, no Circo-
Teatro Savedra , eram o Encourado, a Besta Fouva e a Onça Caetana.

DOM PARIBO SALLEMAS


Tudo isso errava na memória e no coração de Dom Pantero
naquela manhã, enquanto ele se preparava para comparecer ao
Simpósio Quaterna ; Simpósio por meio do qual, na busca da redenção,
esperava ressuscitar seu passado implacavelmente destruído, celebrar
o presente e anunciar o futuro.

DOM PANCRÁCIO CAVALCANTI


No Palco, ele tentaria criar uma Cidade-literária na qual se
fundissem todas as que, no Mundo, fossem parecidas com Taperoá,
Recife, Belmonte, Olinda, Igarassu, Piranhas, Icó, Oeiras, Martins, São
Cristóvão, Alcântara e Monte Santo (esta por iniciar o caminho da Via-
Sacra da qual já se falou aqui).
DOM PANTERO
Em tal Cidade haveria um Circo, com todos os meus amados
mortos ressuscitados; e, mais, Reis, Palhaços, Mágicos, Músicos e
Bailarinos; Estradas e Bosques, com aquele mesmo cheiro de Jurema
que me encantara uma vez, de madrugada; Casas com Jardins
perfumados por Rosas, Jasmins e Bogaris; e sempre povoados por
Borboletas de todas as cores; assim como, ao cair da tarde, pelo som de
um Piano no qual se juntavam todas as Músicas que depois me fariam
cantar, rir, chorar ou sonhar.

Então, naquela manhã, enquanto os participantes do Simpósio


chegavam ao Circo-Teatro Savedra , eu saí do meu Quarto para aquele
Terraço que, juntamente com o Muro exterior, fazia do Quintal da nossa
Casa uma espécie de Claustro.
Pouco antes de sua morte, meu Pai construíra, em Taperoá,
aquela Casa, para a qual pretendia que nos mudássemos a fim de
abandonar o ambiente hostil de Assunção — Vila dominada pela
poderosa família Villoa, inimiga da nossa. E a Casa, assim como
acontecera com a do Recife, fora muito danificada em 1930 pelos
partidários daquela Família.
Depois que me mudei de volta para Taperoá e me tornei Reitor
da Unipopt , restaurei a Casa, ligando-a à Universidade e ao Circo-Teatro
por meio de um Túnel subterrâneo que, saindo da Torre situada no fim
do Quintal, ia dar no Camarim onde eu ficava antes do início de cada
Aula-Espetaculosa.
Assim, o conjunto de Casa, Túnel e Teatro era integrado pela
síntese de 3 Castelos. Deles, o primeiro, tese , era interior, plotínico e
teresiano. O segundo, antítese , era subterrâneo, inconfessável e
davídico. O terceiro, contrátese , era exterior, gabriélico e cunhal. E todos,
no fim, superando o quadernesco e o savédrico , terminariam fundidos
na síntese do pantérico .
Naquela manhã, pois, deixando o Quarto onde acabara de vestir
a roupa negra-e-vermelha que em Campina me transformara em Dom
Paribo Sallemas (e que depois viria a ser, também, a de Dom Pantero),
passei para o Quintal: lá se erguia a Torre que, pelo Túnel secreto, me
abria o caminho do Teatro.
De longe, das bandas da Cadeia e do Cemitério, chegava até mim
o eco dos latidos-de-cachorro que os participantes do Simpósio tinham
ouvido quando se aproximavam da Universidade.
Cruzei o Quintal e cheguei a seu ângulo-exterior direito, onde
ficava a Torre. Com o coração aos saltos, entrei pela pequena Porta para
o aposento térreo, naquele momento alumiado pela chama de uma Vela.
Isto me permitia ver o Mosaico, feito, a meu pedido, por Guilherme
Jaúna e que se mantinha ali, encravado na parede: representava aquele
Fogaréu pelo qual eu passara na Ilumiara em 9 de Outubro de 1970 e se
tornara, para mim, uma espécie de superstição: meus Espetáculos só se
manteriam à altura da Obra que sonhava se, ao encaminhar-me para o
Teatro, eu passasse pelo Fogo (que, para mim, era o do Espírito Santo).
Vendo-o, agora, eu sabia o que verdadeiramente me estava acontecendo
naquele instante:
ALBANO CERVONEGRO
Sobre o chão, as muralhas do Castelo, e, em torno, o Sol — o Sol, o
Fogo e a Estrada. Dali me espreitam Faces perigosas, uma sombria, a
outra iluminada. E a minha sombra se projeta, inteira, entre o chão do
Cachorro e o sol da Taça.

DOM PANTERO
Uma vez no interior daquela Torre pobre, circular e bruta,
aproximei-me da pesada tampa de madeira que havia no chão, fechada
por corrente e cadeado. Abri-a e, depois de fechá-la sobre minha
cabeça, desci os 13 degraus da Escada, chegando ao chão do Túnel
secreto pelo qual, sem conhecimento de ninguém, costumava ir para
meu Camarim: este e a Torre faziam parte daquele Castelo a que me
referi como sendo “ inconfessável e davídico ”; e o Túnel que os ligava,
escavado pelas profundezas, era parecido com aquele pelo qual
Edmundo Dantès ia encontrar o perigoso Abade Faria — o mesmo que,
como fez o Demônio com Fausto e São Cipriano, transformara o jovem,
inocente e confiante marinheiro de Marselha no sinistro, e pálido, e
lutuoso Conde de Monte Cristo.
Assim que comecei a palmilhar o caminho, começou também a
soar na escuridão do Túnel aquele mesmo canto do Pássaro
desconhecido que se ouvia no Corredor da noite escura e agreste do
Teatro. Como sempre, o canto começava harmonioso e pungente, como
o do Uirapuru , e acabava com uma gargalhada zombeteira e maligna,
como a da Casaca-de-Couro .
Ora, o Túnel, decorado por Guilherme Jaúna, era uma versão
arquitetônica, resumida e subterrânea da Estrada de Matacavalos por
onde, 70 anos antes, saíra o Cavaleiro para encontrar a Morte às
margens do Riacho do Elo .
Assim, Vocês já podem entender melhor o ansioso estado-de-
espírito em que eu me encontrava dentro do Túnel, a caminho do
Simpósio: cada Saída que eu dava de minha Casa a fim de comparecer
ao Teatro e lá ministrar uma Aula-Espetaculosa, era como uma nova
Incursão (real, e não figurada) que fizesse à Ilumiara Jaúna ; era também
como uma Viagem que fizesse com o Circo da Onça Malhada para, por
meio da Arte e da Beleza, procurar Deus e defender o Povo brasileiro; e
mais ainda daquela vez, quando iria dar o Depoimento final da minha
vida.
Ao chegar ao fim do Túnel — cujos Murais e Mosaicos naquele
momento apareciam mal iluminados pela chama da Vela que levara
comigo — subi outra Escada, de 13 degraus como a primeira; chegando
em cima, fiquei exatamente sob a segunda tampa de madeira, igual à da
Torre mas plantada no chão do Camarim. Esta, porém, ao contrário da
primeira, estava apenas encostada: erguendo-a com os ombros, firmei
as mãos na borda da abertura e alcei-me ao chão do Aposento que
procurava (o que normalmente fazia, também para imitar Edmundo
Dantès).

Nos momentos de Espetáculo eu não permitia a entrada de


ninguém ali, de modo que o Camarim estava deserto; e, sentando-me
em frente ao Espelho, dei as costas para uma parede na qual mandara
dependurar 2 Tapetes bordados pelas filhas de Adriel e Eliza: eram O
Cálice do Sangral e O Autor e a Graciosa .
Naquele instante, tão especial por causa do Simpósio, mais do
que nunca eu estava atento ao significado que o Espelho assumira em
minha vida. Lembrava-me de que Antônio Vieyra afirmara certa vez: “ O
Espelho é o Demônio mudo ”. Mas eu nunca aceitara sem reservas esta
afirmação de Vieyra. Achava que o universo do Espelho não era
demoníaco : era, sim, daimoníaco e festivo , como se via nos Circos, onde
às vezes eles deformavam nossas imagens; e eu fizera questão de
colocar dois no Teatro — um no Palco, outro no Camarim.
Carlos Pertuis: O Peregrino em Viagem ou A Incursão de Dom Pantero

Carlos Pertuis: O Peregrino em Viagem ou A Incursão de Dom Pantero

Com isso, pelos reflexos recriadores, encantados e encantatórios


da Arte, podia o Espelho abrir caminho para pelo menos eu me
aproximar do Castelo, e ali — quem sabe?— avistar, de longe, as
imagens do Rei, do Príncipe, da Rainha e da Princesa.
Tanto assim era que, noutra ocasião, o próprio Antônio Vieyra
emitira, sobre o Espelho, opinião muito diferente daquela. Afirmara ele:

Carlos Pertuis: A Incursão de Dom Pantero ou A Divina Viagem

ANTÔNIO SCHABINO VIEYRA


“Um Espelho se compõe de aço e cristal (aquele mesmo cristal de
que, segundo Santa Teresa, se compõe o Castelo interior de nossa Alma). E
que sucederia a quem se visse por um ou pelo outro lado? Quem olha para
o Espelho pela parte do aço, vê o aço, mas não se vê a si. Quem olha pela
parte do cristal, vê o cristal, e no cristal se vê a si mesmo.”

DOM PANTERO
Os assassinos do Cavaleiro tinham olhado para o Espelho pela
parte do aço, vendo nela a face monstruosa e feroz da imagem. Mas,
graças a Deus, havia outro modo de olhá-lo; um modo que Vocês vão
conhecer agora pelas vozes de Dom Paribo Sallemas, Joaquim Simão,
João Grilo, Chicó, Gregório, Galdino, Dom Pancrácio Cavalcanti e Dom
Porfírio de Albuquerque. Alguns destes eram Palhaços, Mágicos e
Malabaristas e era assim que se apresentariam no Circo-Teatro Savedra .
Mas por enquanto aparecem aqui apenas musicalmente e colocados a
serviço de Albano Cervonegro:

A CANTIGA DE JESUÍNO
Canção FrígIa (de Guerra e Morte mas também de
Esperança)

DOM PARIBO SALLEMAS


“Jesuíno já morreu: morreu o Rei do Sertão! Morreu no campo da
honra, não entregou-se à prisão, por causa de uma desfeita que fizeram a
seu irmão.”

JOAQUIM SIMÃO
Meus Senhores que aqui estão, vou cantar meu Desatino: a canção
do Cangaceiro que se chamou Jesuíno; seu Bacamarte de prata e o luar do
seu destino.

JOÃO GRILO
Num Gibão pardo e vermelho, um Punhal no cinturão, bem
montado num Cavalo, cujo nome é Zelação , Jesuíno virou logo — “ay, ay,
ay meu Deus” — Rei do povo do Sertão.

Carlos Pertuis: A Incursão de Dom Pantero ou A Divina Viagem

CHICÓ
Ver a Terra, era seu sonho — nobre terra do Sertão —,
pertencendo a todo mundo pelo sol-da-partição; e é por isso que ele
canta, de Bacamarte na mão:

DOM PANCRÁCIO CAVALCANTI


“Eu tenho um Espelho de cristal: foi Jesus Cristo que limpou ele do
Pó! Mas, lá um dia, a Terra se alumia: ao meio-dia se espalha a luz do
Sol!”

JOAQUIM SIMÃO
Mas os ricos se juntaram com o governo da Nação: botaram-lhe
uma Emboscada, e ele morre à traição. Mas o Povo não o esquece: sonha
com ele o Sertão.

GREGÓRIO MATEUS DE SOUSA


E dizem que, ainda hoje, em qualquer ocasião, se alguém sofre
uma injustiça nos caminhos do Sertão, soam tiros de seu Rifle — “ay, ay,
ay meu Deus” — e o tropel de Zelação .

GALDINO BASTIÃO SOARES


E Jesuíno Brilhante volta feito Aparição: queima o dono da
injustiça, de Bacamarte na mão. Sua voz então se afasta, cantando a
velha Canção:

DOM PORFÍRIO DE ALBUQUERQUE


“Eu tenho um Espelho de cristal: foi Jesus Cristo que limpou ele do
Pó! Mas lá um dia a Terra se alumia: ao meio-dia se espalha a luz do Sol!”

DOM PANTERO
Aliás, Manuel Savedra Jaúna e Dantinhas incluíram esta Canção
(tocada, cantada e dançada pelo Circo da Onça Malhada numa Aula-
Espetaculosa) como parte integrante d’ A Ilumiara .

ADRIEL SOARES
Foi em 1967 que eu e Auro compusemos a Cantiga de Jesuíno ,
musicada naquele mesmo ano por Lourenço da Fonseca Barbosa —
Capiba . E sempre entendemos o Espelho, aí, como uma imagem da
nossa Arte — do romance de Auro, do meu Teatro e da Poesia que
compúnhamos a partir dos sonhos de Altino; Poesia que, a nosso ver,
era a raiz, o tronco e a seiva de tudo o que escrevíamos (assim como das
imagens que minha Mulher, Eliza, gravava na Pedra para fazer suas
Litogravuras, ou modelava no Barro para queimar suas Terracotas).
AURO SCHABINO
Para nós, a Arte era o Espelho por meio do qual procurávamos
devolver à realidade a imagem recriada daquilo que nela víamos.
Imagem às vezes deformada, obscura, cruel e enigmática, por refletir “
as danações da Vida, as injustiças e os desconcertos do Mundo ”, como
dizia nosso Tio, Antero Schabino, a partir de palavras de Camões; mas
imagem que, noutros momentos, podia parecer luminosa e bela, por
fazer brilhar, de noite, a prata da Lua e das Estrelas, e, de dia, a chama e
o fulgor do Sol.

ADRIEL SOARES
Por isso, era pelo Espelho que nós cantávamos, tocávamos e
dançávamos, nisto seguindo o exemplo do nosso Povo que, apesar de
todos os sofrimentos e injustiças que suporta, também canta, e brinca, e
dança, e toca, na esperança de que, um dia, a Terra inteira se ilumine ao
sol de Deus.

DOM PANTERO
Foi assim, também, que, ao assumir a Unipopt e o Circo-Teatro
Savedra , o Espelho e a Lanterna tinham me proporcionado as
iluminações que, em certos momentos — e como relâmpagos na
escuridão do Enigma —, chegavam a cicatrizar e transfigurar, no Palco,
as chagas de feiura e maldade do Mundo. Isto sem que o Espetáculo
perdesse seu caráter também de denúncia: porque se era, por um lado,
contraponto da festa e da beleza da Vida, por outro revelava sua face
injusta, sombria e dilacerada, nele marcando-se a cara fria e indiferente
dos cruéis com o ferrete dos mais duros estigmas.
Era por isso que, naquela manhã de 9 de Outubro de 2000, já
sentado defronte do Espelho, eu me sentia, ao mesmo tempo, ansioso e
exaltado, consciente como estava de que, logo mais, iria encarnar no
Palco a figura de Dom Pantero , com a garra que o Personagem exigia e
com a raça característica do Povo brasileiro (garra e raça que levavam o
índio-fulniô Garrincha e a negra Daiane dos Santos a atuar em seus
respectivos Palcos como se estivessem dançando a serviço de Deus e
para alegria do Mundo).
A Cortina só se abriria daí a momentos; por enquanto, vibrava
somente, no interior do Teatro, aquela atmosfera que precede sua
abertura; aquela tensão que, como Encenador, eu conhecia demais e era
tanto mais fascinadora porquanto, também afetados por ela, Músicos,
Atores e Dançarinos circulavam pelo Palco e nos Corredores, repetindo
falas, frases musicais ou passos de dança, por trás do Pano fechado.

Pelo fato de meu Camarim pertencer à face-davídica do Castelo,


a princípio eu me julgava, ali, menos exposto à vigilância implacável que
caracterizava as outras dependências daquela Fortaleza que era o
prédio da Universidade e que, graças ao plano das reformas nela
executadas por Marcos Tebano, era panóptica . Mas tal isolamento era
ilusório. E disto deveria ter logo desconfiado: porque, quando lá me
encontrava, além do canto do Pássaro, ouvia o eco dos latidos de Cães e
o das músicas e falas dos Artistas que se agitavam nas Coxias, também
já dominados pela possessão do Palco.
Eu estava, ainda, sem o Colar, que só iria colocar ao pescoço
depois de pintar-me para representar aquele Encorado tetrafônico (ou
heptafônico), acompanhado, no Palco, pelas Máscaras-Coregais; mas
que nossos adversários diziam ser monofônico , pois, “ em toda aquela
história não aparecia nenhum Personagem independente, sufocados,
todos, pelo Ego hipertrofiado de seu Autor ”.
A Aguilhada ritual, antes pertencente a Quaderna (e que eu
mandara pintar de azul e rematar por um Pombo branco, em
homenagem ao Espírito-Santo), também me aguardava a um canto para
que eu a empunhasse no momento de entrar em cena. O medalhão, o
colar, a camisa vermelha, a roupa e os sapatos pretos, eu os herdara de
Tio Antero; tudo ele me legara na conversa decisiva que mantivéramos,
eu profundamente perturbado por sentimentos contraditórios, à beira
do seu leito de morte.
Era então indispensável que os usasse naquele dia, porque o
Simpósio fora planejado para ser um Castelo-e-Côrte-de-Cavalaria no
qual seria julgado meu modo de fundir, no Palco, por um lado a escrita
de Altino, Auro e Adriel, e, por outro, a encenação de Dom Paribo
Sallemas, Dom Pancrácio Cavalcanti e Dom Porfírio de Albuquerque.
Ora, de acordo com o que ouvíramos na conversa mantida por
meu Tio com Sartre em 1961, “ toda sessão de julgamento tem algo de
Teatro e toda sala de tribunal alguma coisa de Palco ”.
Assim, naquela manhã, logo mais me seriam aplicáveis as
palavras que Alexandre Dumas, um século antes de Sartre, tinha escrito
sobre o assunto:
Alexandre Schabino Dumas
“Na ocasião em que se abre a Cortina de tão sangrento e festivo
Teatro, estavam-se preparando os Jurados para analisar o Crime e
proferir a Sentença.
“O Acusado, vestido com a roupa preta-e-vermelha com a qual
haveria de caminhar para o Cadafalso, estava conversando com seus
Advogados, que se dirigiam a ele com as palavras vagas em geral
empregues pelos Médicos que já desesperam de salvar o Enfermo.
“O Público estava animado por um espírito feroz. Ora, os Jurados
também são Atores, e desempenham melhor seus papéis de Carrascos
quando os representam na frente de um Público cruel.”

DOM PANTERO
Como numa Tragédia esquiliana ou numa Comédia plautina, o
Coro iria ajudar-me nos cantares e nas falas que, no meu Depoimento,
fossem mais espetaculosas do que meramente reflexivas ou
explanatórias.
Quanto a nossas roupas, eu me vestiria, ou de roupa clara, para
ser Antero Savedra, ou de preto-e-vermelho, para ser Dom Pantero. Os
Atores que encarnariam os outros, vestir-se-iam como eles, na vida
real: Auro iria de mescla azul, traje sobre o qual, em homenagem a
Antônio Conselheiro e Antônio José da Silva, O Judeu , todo ano, nos
dias 5 e 18 de Outubro, ele usava a Túnica-sambenitada imposta aos
Profetas assassinados pela Inquisição; Adriel ia de linho claro; e Altino,
de calça azul, de mescla, e camisa branca.
Dom Paribo Sallemas iria com “ roupa de Professor ”, mas tendo
sobre os ombros a “ gola ” usada por Tio Antero no dia em que recebera
o título de “ Guerreiro e Rei-de-Honra ” do Maracatu-Rural Piaba de Ouro ;
Dom Pancrácio Cavalcanti e Dom Porfírio de Albuquerque, de casacão
preto sobre calças com losangos — vermelhos e negros, no caso do
primeiro, azuis e amarelos, no do segundo; ambas as roupas eram
baseadas nas Estilogravuras em que, a partir de Fotografias, Eliza e eu
representáramos como “ Personagens ilumiáricos ” dois grandes
Palhaços do nosso tempo — Chaplin, Pierrô , e Picasso, Arlequim : era
com tais roupas que, no Circo, Dom Pancrácio e Dom Porfírio se
punham à frente de Gregório Mateus de Sousa, Palhaço Obsceno , e
Galdino Bastião Soares, Palhaço Herege .

DOM PARIBO SALLEMAS


Quanto aos outros Personagens — principalmente os Escritores
vivos ou mortos cuja presença era indispensável à Narração —,
encarregar-se-iam deles os Atores que lidavam com Bonecos e que, por
isso, eram capazes de comunicar melhor ao Público as falas dos Mestres
dos quais seriam porta-vozes, e cujas caras tinham sido reproduzidas
nas dos Bonecos (fossem estes de-Mamulengo, Marionetes ou de-
Ventríloquo).
DOM PANCRÁCIO CAVALCANTI
Na maioria dos casos, os Artistas vinham de fora. Outros, como
era o caso de Bruno e Natércio, tinham sido recrutados nos grupos
taperoaenses de Teatro, Música e Dança. No Simpósio, todos usariam
roupas pintadas por Manuel Savedra Jaúna, Andréa Monteiro e Eveline
Borges, a partir das usadas pelos Mestres, Brincantes, Velhos, Pastoras
e Folgazões do Cavalo-Marinho , do Reisado , do Auto de Guerreiros , do
Maracatu-Rural , do Mamulengo e outros.

DOM PORFÍRIO DE ALBUQUERQUE


Devo lembrar ainda que uma coisa é o Tempo real, e outra era o
tempo dos nossos Espetáculos, em cujo Palco, por meio dos Atores,
podiam aparecer, juntas e dialogando na mesma cena, pessoas que já
eram adultas na época da Coluna Prestes (1924-1927) e outras que
continuam vivas no momento em que escrevo esta Carta. Tal
simultaneidade não deve espantar ninguém, uma vez que, no Teatro,
durante o Simpósio, todos os Personagens passavam a fazer parte do
universo daquele Encenador soberano que era Dom Pantero — o
Imperador da Pedra do Reino que a figura menor de Mariano Jaúna
apenas representava, a partir do momento em que se abria a Cortina.

SANTO AGOSTINHO DE SAVEDRA


“Misteriosa coisa é o Tempo: vem do Passado que já se extinguiu,
entra pelo Presente, que não tem duração, e caminha para o Futuro, que
não existe ainda.”
DOM PANTERO
Eram estas as preocupações que me vinham ao espírito,
enquanto, no Camarim, dava os derradeiros toques em minha pintura-
de-cara, destinada a marcar minha condição de Chefe-dos-
Comediantes, de Velho-e-Mestre das Personas-Dramáticas e Máscaras-
Coregais que tomavam parte no Espetáculo. Estremecia ante a
responsabilidade de entrar no Palco para submeter-me ao Julgamento.
Mas também começava a ser empolgado pela convicção de que, nele,
iria mais uma vez identificar-me com meu Povo, na jubilosa alegria de
um Espetáculo musical, poético, teatral e dançarino, ainda que
encenado na pobreza, por sobre a dor, o sofrimento, o sangue e o choro.
Por isso, a cada momento com mais intensidade, eu ia sendo
mergulhado num estado de espírito em que se mesclavam uma
exaltação ansiosa e a fascinante apreensão que precede a entrada de
um grande Ator em qualquer palco do Mundo.
Aliás, Ator que, no Camarim, começava a ser definitivamente
afetado pela encantação do Espelho. Na verdade, quem era, agora, a
Pessoa real, e quem a Máscara-e-Persona-de-Teatro? Qual dos dois
Mundos era mais verdadeiro — o de fora ou o do Palco, cujo sonho era
exacerbado pela Música, pela Dança, pelas imagens e visões que o
Espelho me comunicava? Quem era o Personagem real e quem o
imaginário? O Mariano Jaúna medido e comum, do dia a dia? Antero
Savedra? Ou o Imperador no qual, sob a máscara de Dom Pantero, ele
fundia, por um lado, o Profeta e o Rei, por outro, o Poeta e o Palhaço,
transfigurando-se e refletindo-se no Espelho ao entrar no Palco?
O mais fascinante, porém, era que a separação entre os dois
mundos (e entre os Personagens que por eles transitavam, graças ao
Espelho) deixara de ser uma cisão dilaceradora. Agora, pelo Cristal, era,
mesmo, uma outra possibilidade de fruição; uma linguagem exaltadora
a mais; uma dança; uma revelação iluminosa da Lanterna. E, com isso, o
Palco também passara a ser um motivo de festa e de beleza; uma
compensação, precária mas eficaz e consoladora, a todas as frustrações
que, desde a adolescência, me tinham desesperado no trato com as
Mulheres, com a Arte e, por causa delas, com a Vida e com o Mundo.
ALTINO SOTERO
Aspas do Cervo negro erguidas para o alto; asas e cascos do
Cavalo castanho, cujas Patas dianteiras erguem-se no ar, enquanto as
traseiras firmam-se no chão, entre chamas de fogo que também nos
impelem para o alto e para o Sol.

DOM PANTERO
Na idade em que me encontro, num momento em que outro
qualquer já andaria cabisbaixo ante o triste limiar e os umbrais
carrascosos da Morte, eu, preocupado mas animoso, cada vez que
compunha na cara o disfarce da Máscara, ficava me sentindo como um
Toureiro, pronto a entrar num combate, arriscado mas espetaculoso e
belo.
Era assim que eu me sentia agora, ao se aproximar o momento
de entrar no Palco. Recordava como fora longa e dura a minha vida e
como se transformara a partir do meu encontro com a Trupe do Cavalo
Castanho , de Dom Pancrácio Cavalcanti e Dom Porfírio de Albuquerque,
e com o Circo da Onça Malhada , de Quaderna. Lembrava-me do
balbuciante e frustrado Poeta-lírico que tentara ser na juventude —
solitário, feio, inferiorizado diante de Auro e Adriel; tratado com
desprezo ou indiferença pelas Mulheres; rejeitado por Liza Reis e por
meu Tio, Mestre e Padrinho, que nunca me permitira participar, ao lado
de meus irmãos, do trabalho de recriação artística de sua Obra-maior, A
Divina Viagem .
AURO SCHABINO
Quem me canta, na voz rouca do Rei, a imagem sagrada da
Rainha?

ADRIEL SOARES
Quem me canta, na luz e ao sol do Reino, a juventude e a graça da
Princesa?

DOM PANTERO
Mas, para que se entenda com mais clareza o estado de espírito
em que me encontrava, devo contar ainda que depois de um incidente
traumático, acontecido quando, em 1949, acompanhávamos Camus em
sua visita ao Recife, meu irmão Auro fizera o voto de se manter casto
para o resto da vida.
Por outro lado, não era à toa que nossos adversários recifenses
falavam da falta de compostura “ daquele Histrião pedófilo, mentiroso,
megalomaníaco e debochado ” que, segundo eles, era nosso Tio, Antero
Schabino.
Este rebatia. Afirmava que seus detratores, “ além de
preconceituosos, eram ignorantes ”: ele não era “ pedófilo ”, e sim “
hebéfilo ” (expressão que logo lhe valeu outra alcunha, entre as muitas
que já tinha — Antero Mitoma, Antero Megalo etc.). E jactava-se de
várias proezas amorosas, “ provavelmente imaginárias ”, como se
comentava, ostentando nos lugares e momentos mais inadequados sua
preferência sexual “ por Pucelinhas apenas pubescentes ”, como dizia ele,
num tom de autocomplacência que, em tudo, era o que me deixava mais
envergonhado.
Assim, de todos nós, somente Adriel, casado e apaixonadamente
fiel a sua mulher, Eliza, não passava pelos extravios e desacertos que
atormentavam a castidade austera de Auro e infamavam a histrionice
obscena de nosso Tio e Mestre, Antero Schabino.
Refiro-me a esses fatos porque, de minha parte, apesar de sentir
vergonha e repulsa pelo comportamento de meu Padrinho, nunca me
dispusera a seguir Auro em seu pesado voto. Ainda assim, meu
relacionamento com as Mulheres era tão extravioso quanto o dele.
Parecia até que, ao recusar-me, Liza Reis se transformara
definitivamente na jovem e bela Bruxa Lagardona da minha vida e
trançara em torno de mim uma teia enfeitiçada, uma espécie de
maldição: com a duvidosa exceção da moça de Patos, nenhuma Mulher
me queria; de modo que, além de frustrado na terrível paixão que me
ligara a Liza para sempre, eu sofria mais do que Auro (que, pelo menos,
tomara por si mesmo aquela dura decisão de nunca tocar em Mulher).
DOM PORFÍRIO DE ALBUQUERQUE
Era esse o teor dos pensamentos que perturbavam o espírito de
Dom Pantero naqueles últimos instantes em que ele retocava “ a
máscara da Face ”, remoendo cavilações bastante parecidas com as de
dois Poetas e um Romancista, todos três cavilosos.

DOM PARIBO SALLEMAS


O primeiro era o Juiz mineiro Raymundo Corrêa, de quem Dom
Pantero se recordava naquele instante por causa da Máscara que
acabara de pintar no rosto:

RAYMUNDO SAVEDRA CORRÊA


“Se se pudesse o espírito que chora ver através da máscara da
Face, quanta gente, talvez, que riso agora nos causa, então piedade nos
causasse.”
DOM PANCRÁCIO CAVALCANTI
O segundo, era o Romancista francês Alexandre Dumas, que
afirmava na mais longa de suas Novelas:

ALEXANDRE SCHABINO DUMAS


“A Vida é um longo Carnaval onde se anda sempre mascarado.
Que Comédia é a Tragédia humana! E quanto não choraria eu se não
tivesse preferido tomar a decisão de rir!”

DOM PARIBO SALLEMAS


O terceiro era o Padre nordestino Antônio Thomaz, que falava
sobre um Palhaço obrigado a rir e fazer rir no Palco, enquanto, nas
coxias, sua Filha pequena agonizava:

ANTÔNIO THOMAZ SAVEDRA


“Aos aplausos da Turba ele trabalha, para esconder, no Manto em
que se embuça, a cruciante angústia que o retalha. No entanto, a dor
cruel mais se lhe aguça; e, enquanto o lábio trêmulo gargalha, dentro do
peito o Coração soluça.”

DOM PANTERO
Eu sempre zombara do romantismo descabelado destes Versos.
Até que, poucos dias depois da morte de Mauro, fui obrigado a dar uma
Aula que marcara há tempo, o que fiz fingindo não ver a cada instante o
peito apunhalado do meu irmão, que se matara, pondo fim a um
sofrimento que o acompanhara desde menino, num martírio a nossos
olhos miseráveis incompatível com a bondade e a misericórdia de Deus.
Esta Visão passara a me aparecer até no Teatro, nos momentos em que
eu ria e mais fazia rir. E eu sabia que dali a pouco, no Palco, iria me
fingir de forte e sarcástico perante os ataques dos nossos adversários,
mas que, na verdade, tais ataques me atingiriam profundamente;
porque a crueldade maligna deles talvez fosse mais lúcida do que a
visão benevolente de pessoas como Carlos de Souza Lima, Rosette
Fonseca dos Santos, Maria Lopes, Aderbal Freire Filho, Gabriel Ferro,
Mário Martins etc., todos eles com os olhos perturbados pela simpatia
amiga que tinham por mim.

DOM PARIBO SALLEMAS


Fosse como fosse, o fato é que Dom Pantero continuava a ser um
sujeito invocado, melodramático e cabuloso; a “ cruciante dor ” que o
retalhava, fazia dele, no Palco, “ um Palhaço atormentado ”.

DOM PANCRÁCIO CAVALCANTI


Um Palhaço que, a cada instante, sentia, pesada, a consciência e
que, dali a pouco, se veria obrigado a causar riso, “ enquanto, dentro do
peito, seu Coração soluçava ”.
DOM PORFÍRIO DE ALBUQUERQUE
E era na linha apontada por aqueles Escritores que, no
Camarim, ele se preparava para fazer de seu Depoimento uma outra
Aula-Espetaculosa, final, definitiva, redentora, na qual pelo “ Riso a
cavalo ” e pelo “ galope do Sonho ” se fundissem o Trágico e o Cômico.

DOM PANTERO
Era assim que, pelo Humorístico, eu esperava fazer o público
perdoar a altura e a obscuridade de meus interlocutores mais
próximos, Altino, Auro e Adriel.
No Palco, por trás da Cortina fechada, Figurantes de todos os
tipos aguardavam minha chegada para ajudar-me no que fosse
necessário. Nas Coxias, os Músicos afinavam os instrumentos e, tocando
pequenos trechos, repassavam a Abertura e as outras toadas, solfas e
cantigas que animariam o Espetáculo. Por trás da forma e do timbre de
cada instrumento, o que soava eram “ a Viola, a Rabeca, o Sol sangrento,
a Lua-flauta e os cardos do meu choro ”; e o som do que tocavam
chegava até o Camarim, com sua carga lídica, lunar e melancólica, por
um lado, jônica, solar e galopada por outro.
Eu acabara de pintar-me. E, já com o Medalhão ao peito, chegara
o momento de beber o Vinho que Quaderna me legara e que me
aguardava sobre um Consolo, numa Salva de prata. Em cima desta, Inez
Viana e Felipe Santiago tinham mandado colocar uma grande Taça de
cristal, coberta por um Pano-rendado, semelhante ao dos Altares.
DOM PARIBO SALLEMAS
Aliás, tinham colocado mais duas no Púlpito de onde Dom
Pantero iria falar no Palco: sem o Vinho, ele não teria forças para
enfrentar aquilo que, de modo um tanto exagerado, chamava de “ os
momentos mais dolorosos do meu Depoimento ”.

DOM PANCRÁCIO CAVALCANTI


Então, como Introito à celebração prestes a ter início, Dom
Pantero tomou a Taça nas mãos e, como se fosse um Monge-Cavaleiro
da Ordem de Cristo, a longos tragos prazerosos bebeu aquele Vinho
que, por ser o do Pai, era sagrado anúncio do Sangue contido no Cálice
do Graal.

DOM PANTERO
Imediatamente, um calor estimulante e ardente começou a
circular dentro de mim. E, deflagrada talvez pela encantação musical
das Toadas que ensaiavam, começou também a efetivar-se a
transfiguração de Antero Mariano Savedra Jaúna em Dom Pantero.
Entretanto, o vácuo dilacerador causado pela perda e pela
ausência de Liza não se preenchia, nem mesmo depois de beber o
Vinho: porque nenhuma das Mocinhas que atuavam comigo no Palco
era tão bela e luminosa quanto aquela que, sendo eu ainda muito jovem,
avassalara meu coração de uma vez para sempre; a ponto de que, na
minha idade (e, como disse, sem ter feito qualquer voto em tal sentido),
eu era casto, como Auro.
DOM PORFÍRIO DE ALBUQUERQUE
Um casto a contragosto, como “ o Médico à força ”, de Molière;
pelo que, do mesmo jeito que acontecia a outras pessoas da Família, ele
não escapava a seus desocupados, invejosos e ressentidos adversários,
que o tratavam pela alcunha de “ Dom Mariano Beato, O Donzelo ”.

DOM PANTERO
O problema era mais grave ainda porque, Velho, eu continuava a
ser aquele mesmo Menino que, lendo O Guarani pela primeira vez,
jurara a mim mesmo: entre “ o Amor sagrado ” de Pery e “ a Paixão
profanadora ” de Loredano, eu tomaria sempre o partido do primeiro. E
ninguém pode imaginar a intensidade do desespero que me assaltava
quando Adriel me fazia de confidente para falar-me do seu amor por
Eliza e da paixão que os dois viviam na Casa e nas matas do Engenho
Coral (o mesmo do qual foi desmembrada a Ilumiara Cantapedra de onde
escrevo a Vocês). É claro que, não sendo indiscreto, ele não me contava
tudo. Mas eu supria as pausas e os silêncios de sua fala com a descrição
de cenas parecidas que ia encontrando nos livros de José Lins do Rego,
a nós recomendados por Tio Antero como “ paradidáticos ”; a família do
Escritor paraibano era dos Engenhos do vale do Rio Paraíba , de
maneira que não me era difícil fazer a transposição; as confissões que
escapavam de um e de outro bem mostravam: nem que fosse por
momentos, ambos tinham fruído junto a suas Amadas uma felicidade da
qual eu jamais sequer me aproximara!
ANTERO JOSÉ LINS DO REGO SAVEDRA
“Nós estávamos andando pela Horta, onde havia uma
Jabuticabeira cujos galhos se deitavam pelo chão fazendo uma
Camarinha de folhas secas. Para ali entramos à procura de comer os
Frutos macios e doces.

“De repente, no sombrio daquele recanto, a Menina se deitou no


chão, erguendo o Vestido, e eu pude ver sua Vulva, que já começara a se
emplumar.
“Atravessou-me as carnes do corpo uma faísca que me queimou.
Ela pegou a minha mão e apertou-a sobre a Vulva. Desabrochavam
botões de Rosa ao calor daquele Sol misterioso. E ainda hoje, no momento
em que escrevo, sinto palpitar sob minha mão aquela lindeza morna que
se arrebitava em penugem e onde se podia talvez — quem sabe? —
entrever o segredo do Mundo.”

DOM PANTERO
Para fugir a tal desespero (e como acontecia, também, no campo
da Política), o único caminho a meu alcance era o da Arte, em nosso
caso colocada nos termos da “ Polifonia escordata e inversa ” de
Constâncio Porta; e foi por este caminho que enveredei, no Palco. Nele,
tentava, às vezes, fundir duas ou três das jovens Brincantes que
participavam do Espetáculo numa Figura só, que evocasse Liza. Quando
me encontrava em cena com elas, aqui e ali o milagre acontecia, e,
graças ao Espelho, no embalo encantatório das Artes envolvidas no
Espetáculo, eu conseguia recuperar pelo menos a imagem do Amor que
perdera.
Mas, para o Simpósio, onde esperava apresentar o Espetáculo
supremo da minha vida, tínhamos tomado providências para que a
imagem de minha amada Liza aparecesse do modo mais convincente
que fosse possível, para o Público e para mim. E, no momento em que
acabei de beber o Vinho, abriu-se a porta do Camarim e entrou Maria
Iluminada, a jovem e bela Atriz que, por se parecer com meu Amor
perdido, fora rebatizada por mim com o nome-artístico de Liza Reis . Eu
lhe confiava papéis como o da Julieta , de João Martins de Athayde, ou o
da Justina , da peça O Santo Pecaminoso , composta a partir do Folheto-
de-Cordel São Cipriano e o Diabo : em minha alma, ferida pela
irreparável perda de Liza, essas duas, Justina e Julieta (assim como a
jovem amante de Abelardo, Heloísa), eram as que, de modo mais
pungente, me recordavam minha nunca esquecida Amada. E tal é a
força da Arte em mim que, apesar de saber perfeitamente que
Iluminada não era Liza, naquela manhã de 9 de Outubro de 2000, tive
mais um choque ao vê-la. Eu lhe dera a chave do Camarim e pedira-lhe:
sempre que lá fosse a meu encontro, usasse um Vestido igual ao que
Liza usava em um dos Retratos que dela me tinham restado.
Mas, naquele dia especial, Manuel Jaúna, Andréa Monteiro e
Eveline Borges tinham acentuado de propósito a semelhança entre as
duas pela caracterização, e cheguei quase a me criar a ilusão de que
estava diante da Graciosa.
Aí, Iluminada aproximou-se e carinhosamente me tomou a mão,
a fim de encaminhar-me para o Corredor onde me aguardavam as duas
outras jovens Bailarinas, Lucinda e Luziara. Iluminada era a única que
tinha permissão para entrar no Camarim; e, com aquele gesto, queria
animar-me para o Julgamento, indicando que ela e as outras duas iriam
guiar-me para o Palco enquanto durasse o Simpósio (pois, naquele ano,
era pela fusão delas que eu tentava recuperar a perdida imagem da
minha amada Liza Reis).
Carlos Pertuis: O Peregrino, a Estrada e a Viagem

DOM PARIBO SALLEMAS


Sentindo que a Graciosa o autorizara a se aproximar das
Meninas, Dom Pantero segurou uma ponta do Bastão e estendeu a
outra a Luziara. Lucinda ficou atrás, fechando o pequeno cortejo. E,
mesmo na penumbra das Coxias, dava para ver que Iluminada se
postara diante deles, andando à frente para desbravar o caminho.

DOM PANTERO
Assim, com mais coragem, comecei a palmilhar o chão do
Corredor, perturbado pelo medo do Palco, mas bafejado por aquela
sombra do carinho feminino que, irreal e quimérico como fosse, pelo
menos nunca me faltava nos momentos cruciais do Espetáculo. Na
realidade, minha vida continuava tão erma e solitária como sempre fora
desde que Liza me rejeitara naquele terrível Natal de 1944. Na visão
das jovens Atrizes e Bailarinas figurantes do Espetáculo, eu era apenas
um Velho-e-Mestre, por quem só podiam, mesmo, sentir afeto e
compaixão. Mas não importava. Fosse qual fosse sua natureza, o
carinho existia: era claro, visível e me dava forças para enfrentar o
Público.

DOM PANCRÁCIO CAVALCANTI


É, portanto, no Palco, que se desnovela a Obra inteira — a
Ilumiara Pantero , soma e fusão final da Casa, do Circo e do Castelo com a
Estrada e a Itaquatiara; do Teatro Savedra com o Romance Schabino e o
Pasto Sotero .

DOM PORFÍRIO DE ALBUQUERQUE


É o lugar em que, como afirmou Carlos de Souza Lima no Jornal
O Mossoroense , chegando ao fim da vida “ o Cisne entoa seu Canto ”.
Carlos Pertuis: O Peregrino, a Estrada e a Viagem

A Viagem e a Trupe Errante da Estrada

DOM PANTERO
Assim, este Castelo-de-Cartas é o mesmo Grande-Teatro-de-Pedra
que, englobando a Tapeçaria d’ A Divina Viagem , o Santuário da Pedra
do Reino , a música do Quarteto Romançal e a Dança do Grupo Grial ,
sempre sonhei levantar à altura da Obra deixada por Altino, Auro e
Adriel. Aqui, A Ilumiara , “ derradeiro suor de uma Alma obscura, prestes
a cair no abismo ” — como disse Machado de Assis —, transforma-se
num pedregoso e alcantilado lugar-fera , alapardado como um Jaguar
em sua Furna. É o local-sagrado que “ o Deus desconhecido ” começou a
construir e que várias gerações de Povos rebelados continuaram,
raspando e acrescentando por sobre o Original divino “ seus
Palimpsestos ultrajantes ” (para usar a expressão do imortal Euclydes da
Cunha). É, finalmente, a grande Catedral brasileira que, como um novo
Evangelho-de-Pedra e com sua fachada recoberta de Mosaicos,
exteriormente correspondia àquela Fortaleza, àquele Templo de bruta
beleza que Santo Antônio Conselheiro levantara no Arraial de Canudos;
e, interiormente, é expressão da alma de um velho Mestre-de-Obras
cujo sonho era empreender a Viagem, decifrar o Roteiro e encontrar o
Castelo que um dia, enfrentado o Enigma, lhe abriria a Porta, vendo-se
ele, então, no próprio centro interior de suas Moradas imortais.

DOM PARIBO SALLEMAS


E que ninguém o subestimasse, ninguém brincasse com tal
Velho. No Simpósio, ele tentaria fundir Gregório de Mattos, Antônio José
da Silva e Mathias Aires com Machado de Assis, Euclydes da Cunha,
Lima Barreto e Augusto dos Anjos. Se obtivesse êxito, seria admitido na
mesma linhagem do infortunado Profeta de Canudos; e do não menos
infortunado Poieta que pretendendo, a princípio, apenas combater “ o
Arraial messiânico, reduto do fanatismo e da barbárie sertaneja ”, fora
depois forçado por seu Dáimone a celebrá-lo, numa espécie de Velho
Testamento rude, apocalíptico e genial — Os Sertões .
Era movido por sonho parecido que, em seu Teatro-Antro-e-
Santuário, Dom Pantero tentaria erguer seu Castelo, reunindo, como um
Encenador ou um Arquiteto-de-Escombros, as pedras-angulares a ele
deixadas por seus familiares. E era no Palco do Circo-Teatro Savedra que
se realizaria a celebração teatral, orgiástica, literária, musical e
dançarina, anteriormente festejada na Gruta das Vulvas , e que iria ser
retomada (pela última vez, em sua forma final) na sagração maior do
Simpósio Quaterna .
Viagem do Peregrino pela Estrada que corta o Reino Perigoso do Ladrido

DOM PANTERO
Aí, naquela manhã de 9 de Outubro de 2000, usando a
Aguilhada como um bastão-de-cego, Iluminada, Lucinda, Luziara e eu
iniciamos nossa caminhada para o Palco — elas graciosas e leves em
sua juventude, eu com o andar já meio tardo dos Velhos.
Pelo simples fato de ter disfarçado a cara com a pintura, ela se
transformara numa Máscara; e o Castelo-de-Rua, formado pelo
conjunto de Casa, Torre, Túnel e Teatro, já se identificava mais uma vez
com o sagrado Castelo-de-Serra da Ilumiara. No topo do seu Lajedo
mais alto, no cimo da mais elevada Torre do seu Anfiteatro, drapejava,
num Mastro, a Bandeira do Jaguar Malhado: batida pelo sopro do Mar e
pela ventania do Sertão, estalava em frente ao Estandarte do Cavalo
Pardo — o Potro alado e castanho que, erguendo as patas dianteiras no
salto para o Sol, mantinha as de trás entre chamas de fogo que o
impeliam a se alçar do chão.
Ladeada pelos dois e perenizada em óleo-sagrado ardia “ a
Candeia imortal que tudo alumia ”: ali se guardava, dia e noite, o culto
do Jaguar-Malhado.
Quando a invocávamos, ao culto comparecia, da parte dos
Quadernas, a raça de Reis escusos que dominara a Pedra do Reino —
Personas de condição principal mas cujas Coroas pingavam sangue. A
saber:

DOM PARIBO SALLEMAS


Dom Pedro Sebastião, o velho Rei, degolado nas tramas de um
Crime indecifrável.
Dom Pedro Dinis Quaderna, O Decifrador : o Estradeiro
astucioso, de olhos dilacerados; o Dono-de-Circo que, jungido por um
pacto extravioso, avançava pela Estrada, guiado no chão duro pela mão
de sua Filha.
O Doutor Pedro Vandiwoyah, Diretor-Presidente da Colorado
Minérios S / A , e sua Mulher, Ashera Acken, principais responsáveis
pela destruição da Unipopt e da Ilumiara Jaúna .
Sinésio, O Alumioso , o Moço-Cavaleiro, errante em sua Busca.
Heliana, a jovem Dama a quem ele amava e cujas mãos viviam
ocultas, no Véu ou sob a manta de seus cabelos cor-de-ouro.
E, bastardo talvez, Arésio, o primogênito da sua Estirpe: o
Príncipe-Alanceado, que se achou a braços com A Terrível, no curso da
Demanda que o levou, com o irmão, ao Lá-maior do seu Dó-menor
tresvarioso.
DOM PANCRÁCIO CAVALCANTI
Da parte dos Savedras, por sua vez, comparecia o outro rol de
Assinalados:

Viagem do Peregrino pela Estrada que corta o Reino Perigoso do Ladrido

DOM PORFÍRIO DE ALBUQUERQUE


João Sotero, o assassino, assassinado depois, e que, ao redigir e
ilustrar o manuscrito do seu Livro Negro do Cotidiano (repleto de
imagens eróticas e anotações da Pintura rupestre), tivera a revelação do
corpo feminino como a mais perfeita figuração terrestre da Pulsação do
Ser; e, com isso, também viera a exercer forte influência na
transformação de seu sobrinho Mariano Jaúna em Antero Savedra e
Dom Pantero.
O irmão dele, Antero Schabino, que adotava 2 Pseudônimos: em
seus Ensaios, o de Aribál Saldanha; no “ quase-romance ”, O Desejado , o
de Ademar Sallinas. Era “ O Histrião Visionário ”, que, depois d’ A Onça
Malhada e d’ O Desejado , passou a vida tentando, em vão, realizar A
Divina Viagem .
João Canuto, o Cavaleiro assassinado na Ilumiara, e que, ao ser
ferido pelas costas, misturara para sempre seu sangue ao Riacho do Elo
, transformando as águas daquele Córrego na Fonte do Cavalo Castanho
que nunca mais deixou de inspirar, obsedar e atormentar o sonho dos
Savedras.
Joana, a bela Moça negra achada no rio, apunhalada
mortalmente mas ainda viva, boiando entre um casal de Cisnes, o
macho branco e a fêmea negra a nadarem em torno dela, sobre as águas
tingidas de vermelho.
Mauro, o profeta da Quinta-Força, que, desesperado, não se
resignava a ignorar o segredo da Vida e vivia a despedaçar sua fronte,
batendo a cabeça contra os grossos muros de uma Prisão irremediável.
Até que, não suportando mais o sofrimento, matou-se, aos 53 anos, no
dia 6 de Outubro de 1970.
Altino, o Poeta, que, também de modo vão, procurava “ a
centelha e o lume da Lâmpara inviolada ”, ao mesmo tempo em que
tentava opor, à Babel, a Favela e o Arraial.
Seu irmão Auro, que, ao se mudar para a Favela e compor o
Romance d ’ A Pedra do Reino , se arvorou em “ vingador sem crime ” de
toda aquela teia manchada de sangue; mas que, embaraçado e cego,
terminou por se enredar nas malhas sem rumo de uma Alegoria
inalcançável.
Adriel, “ o Príncipe da Fala de Ouro ” (como o chamava sua irmã)
e que, abrigado no sonho da Casa, procurava um Teatro, uma Dança que
fosse imortal mas dançada mortalmente na corda-bamba de seus
Jograis: músicos, atores, bailarinos e saltimbancos, os quais, com ele,
tentavam atuar num Palco, sobre um precipício amontoado de Carvões-
acesos.
Gabriel, “ o cabreiro da Malhada ”, filho mais moço do Cavaleiro e
único a seguir o Pai em sua faina “ de governar seus Pastos e rebanhos ”.
E, finalmente, Afra, a Profetiza; a Coreógrafa do Grupo Romançal
; a incansável guardiã da Urna; aquela que, sem piedade de si mesma,
permanecia, por decisão sua, lucidamente exposta à luz implacável da
sétima estrela do Escorpião.

DOM PARIBO SALLEMAS


Estas eram as principais Personas-Dramáticas que iriam figurar
no Auto. As Máscaras-Coregais seriam apresentadas aos poucos no
próprio decorrer das sessões do Simpósio. De maneira que, hasteadas
as Bandeiras e, ao modo da Sibila , anunciados os Personagens, que se
dê prosseguimento ao Espetáculo.

DOM PANTERO
Acompanhado por Lucinda e Luziara, saí do Camarim, com a
imagem da Graciosa a guiar nós três pela mão de Iluminada. Soava por
todo o Teatro a Música, ora épica e acerada, ora lírica e suave, das
Violas, dos Pífaros, das Flautas, das Rabecas, Tambores e Marimbaus.
Fora, nos 4 cantos do Mundo, 4 Dragos-de-Serpente ameaçavam o
Jaguar, o Cervo, o Touro e o Cavalo. Planando no alto Céu azul-
esbraseado, 2 Pássaros divinos — a Pomba e o Gavião: garantiam, por
acaso, que a Noite feminina e a Lua compassiva iriam afinal predominar
sobre o Dia cruel e o Sol ensangrentado?
Era impossível responder. E, de qualquer maneira, não tínhamos
como voltar: estávamos, já, quase no Palco; e, nas Coxias, encontramos
os Atores, Mímicos e Dançarinos que, sob o comando de Romero de
Souza Lima, se tinham prontificado a ajudar-nos, representando os
Personagens, Artistas e Escritores convocados a figurar no Simpósio.
Em primeiro lugar, os vivos. Mas também aqueles que, mesmo tendo
morrido, iriam ser chamados a ressuscitar no Palco, indispensáveis,
como eram, ao desenrolar do Espetáculo e ao entendimento da Ação.
Com um gesto, indiquei que todos se aprestassem para entrar
em cena, na medida em que suas presenças fossem exigidas, a começar
pelos integrantes do Coro. E, parando pela última vez fora de cena, notei
que, apagadas as luzes da Plateia, as da Ribalta, incidindo na minha
cara, impediriam que eu visse os rostos das pessoas do Público.
Somente aí começou a baixar a tensão que me dominava.
Respirei, menos opresso: sabia que assim, com a ilusão de estar só no
Teatro, teria condições de falar, ilumiarizar e panterizar à vontade,
reinventando o que bem entendesse e que fosse necessário à
construção do Castelo d ’ A Ilumiara — aquele grande Espetáculo de
Cavalo-Marinho , Circo e Auto de Guerreiros cujo Capitão era Dom
Pantero.
O Padre Manuel estava sentado na primeira fila, como eu
solicitara: o Bispo da nossa Diocese proibira as Confissões comunitárias
e eu, acanhado de fazer uma, pessoal, sem que algum fato desse, ao
Padre, ocasião para fazer suas perguntas, esperava que o meu
Depoimento abrisse caminho para elas na próxima vez em que fosse me
confessar.
Além disso, do lugar em que eu estava, deu para ver, à frente das
câmeras, fotógrafos e jornalistas ligados à TV Ilumiara e a outros órgãos
da Imprensa interiorana. Lá estavam Marcus Vilar, Douglas Machado,
Vera Ferraz, André Bezerra, Amaro Wellington e Angélica Tasso. Os três
últimos integravam, com Adriana Victor e comigo, o glorioso grupo dos
Quatro Ases e uma Curinga , que organizava, na TV Ilumiara , O Canto da
Casa Sonhosa ; e todos estavam ali, prontos para anotar, fotografar e
filmar o que acontecesse.

Os Músicos, embaixo, perto do Palco, faziam suas derradeiras


afinações, o que, “ com os murmúrios abafados do Público e o rumor
marinho da Sala ”, mantinha, na Plateia, aquele mesmo ambiente-de-
encantação que eu sentira antes, no Camarim.
Por outro lado, cuidoso de seduzir os Juízes também pelo olfato,
eu ordenara que se queimasse, em Braseiros, pó de resina de Jurema
colocado sobre gravetos envelhecidos e ressecados de Cumaru, aos
quais se ateara fogo; e, ao arderem eles, a fumaça odorante, que do
lume se desprendia, não só embriagava o Público como a todos
evidenciava a sacralidade real-e-profética , não do homem comum, que
sou eu, mas sim do Imperador Dom Pantero — a Máscara-e-Persona-
Dramática que, com seu Dáimone, já começava a se apossar da minha
alma, dos meus ossos, do meu sangue e do meu coração.
Tranquilizado, pois, quanto àquela parte, espiei para o Palco e
notei que Luiz Fernando Carvalho, usando as belas e estranhas formas
criadas por Manuel Savedra Jaúna (assim como o dramático e
misterioso claro-escuro de sua Câmera visionária), tinha transformado
o Palco do Circo-Teatro Savedra numa espécie de réplica da Ilumiara.
Por isso, era como se o local que eu estava prestes a ocupar também se
tivesse transformado no Altar de uma Catedral. Inclusive, na linha da “
pobreza despojada e bela ” que era a nossa, o Cenário fora pintado em
velhos Jornais colados uns aos outros; e, com luzes às vezes também
por trás, dava ideia de que iríamos falar e nos mover dentro de um
Castelo-interior formado por 3 grandes Vitrais.
Notei, ainda, que a Cátedra, outrora pertencente, no Colégio de
Olinda, a Antônio Vieyra, fora assentada a um lado do Palco, como eu
solicitara. Ao fundo, estava meu Púlpito, onde, juntamente com a
Rabeca simbólica e a Viola ritual, tinham sido colocados os outros dois
cálices de Vinho que eu pedira.
Dispostos em semicírculo ao correr da Rotunda, tinham sido
assinalados, no chão, os lugares em que iriam ficar meus Adjuntos
principais: à minha direita, “ no lugar do Profeta e do Rei ”, Altino, Auro e
Adriel; à esquerda, “ no lugar do Poeta e do Palhaço ”, Porfírio, Pancrácio
e Paribo. Assim:

Como se vê, no lado oposto ao da Cátedra, estava o Microfone


em que se iriam alternar os Atores pela ordem de chamada. Atrás da
Plateia, a Lanterna Mago-Iconoscópica que Quaderna nos legara e que,
de lá, apontava seu bocal para a Tela, estendida ao fundo entre duas
Tapeçarias — A Invenção do Teatro e A Origem da Música Brasileira ,
semelhantes aos Mosaicos já apresentados nesta Carta.
No pano da Rotunda, Manuel pintara um retrato de meu Pai e
seu Avô, O Cavaleiro , ladeado pel’ O Rei da Copaóba , Dom Sebastião
Barretto, e pel’ O Profeta Infortunado , Euclydes da Cunha — e os 3
Encobertos tinham rostos muito parecidos entre si.

DOM PARIBO SALLEMAS


Atores, Bonecos e Dançarinos espalhavam-se por trás da
Rotunda, em toda aquela área que, nos Teatros, fica perto do Palco mas
escondida aos olhos do Público. Tinham-se vestido de acordo com a
condição e classe de cada Personagem que iriam representar e usavam
roupas criadas por Manuel Jaúna, Romero de Souza Lima, Andréa
Monteiro e Eveline Borges. Eram como se descreve a seguir:

DOM PANCRÁCIO CAVALCANTI


As dos personagens do Povo eram pintadas no estilo Seridó , em
preto e branco.

DOM PORFÍRIO DE ALBUQUERQUE


As do Patriciado-de-Esquerda, no estilo Agreste , Cariri ou Pajeú ,
isto é, em preto, vermelho e amarelo.

DOM PARIBO SALLEMAS


As do Patronato e do Patriciado-de-Direita, sem qualquer estilo
nomeável, mostravam, misturadas, as cores capitalistas e liberais-
modernosas: cinza-feio-com-listras-de-mau-gosto, branco-frio, azul-
cruel-escuro, preto-sinistro, verde-lodoso, roxo-funéreo e rosa-
indefinido.

DOM PANTERO
Enquanto assim eu verificava se tudo estava em ordem,
Madureira me avistou. A meu sinal de concordância, ergueu
gravemente os dois braços, com a Batuta numa das mãos, e um pesado
silêncio calou o Teatro.
Nosso Mestre, Tio Antero, gostava muito da famosa Overtura em
Ré , composta no século XVIII por José Maurício Nunes Garcia. Por isso,
eu combinara com Madureira: a Música que assinalaria minha entrada
no Palco não deveria ser uma Abertura comum, mas sim uma Overtura ,
parecida com aquela e composta na linha da Entrada de Scaramouche de
O Burguês Gentilhomem , de Lully-Molière.
Por outro lado, há muito tempo eu vinha decorando textos, em
sua maioria extraídos d’ O Pasto Incendiado : destinavam-se eles a
comover em nosso favor “ até mesmo os mais duros corações que
houvesse na Plateia ”, como costumava dizer Quaderna.
Aí, concluindo que tudo se dispusera de acordo com minhas
recomendações, pensei comigo: “ Não posso adiar mais nada. Quem tiver
ouvidos para ouvir, que ouça! Dentro dos meus limites, estou fazendo o
máximo que posso: seja o que Deus quiser! ”
E, ao som da Pequena Overtura Triunfal composta por Antonio
Madureira, joguei meus temores e hesitações para um lado:
persignando-me, como um Toureiro ou um Jogador-de-Futebol,
corajosamente franqueei o limiar da Arena e empreendi minha entrada
no Palco, seguido por meus principais Auxiliares-de-Narração.
Mas agora, ainda uma vez acabado o meu espaço, passo a
despedir-me.
DOXOLOGIA
ALBANO CERVONEGRO
Agora, só me resta ir para a Igreja. Subo a ladeira. A Porta. A
escura Nave. Com o Livro aos ombros, vou como uma Ave de papel preto e
branco que esvoeja. Vazio, o Nicho, em ouro, ali flameja. Subo ao Altar. No
vão, perto da grade, deposito a futura Raridade. Vou ao Padre. Recebo a
minha Tença. E, em meio da geral indiferença, abandono — mais uma! —
esta Cidade.
Pois é assim: meu Circo pela Estrada. Dois Emblemas lhe servem
de Estandarte: no Sertão, o Arraial do Bacamarte; na Cidade, a Favela-
Consagrada. Dentro do Circo, a Vida, Onça Malhada, ao luzir, no Teatro, o
pelo belo, transforma-se num Sonho — Palco e Prelo. E é ao som deste
Canto, na garganta, que a cortina do Circo se levanta, para mostrar meu
Povo e seu Castelo.
DOM PANTERO
E, com estes Versos, compostos em Martelo-Agalopado — uma
Estrofe criada pelos Cantadores brasileiros —, aqui se despede de
Vocês, nobres Cavaleiros e belas Damas da Pedra do Reino, este que é,
ao mesmo tempo, seu Soberano e seu companheiro de cavalgadas e
Cavalaria,

Dom Pantero do Espírito Santo, Imperador .


Repente

O BUFÃO APOCALÍPTICO
O BUFÃO APOCALÍPTICO
Epístola de Santo Antero Schabino, Apóstolo

Escrita por seu afilhado, sobrinho e discípulo Antero Savedra,


em homenagem aos Brasileiros descendentes de Ciganos, nas pessoas
de Teresa Mateus, Massilânia Gomes Alcântara, Celiara Vanda Maia, Luís
Costa, Vicente Vidal de Negreiros, Damiana Bezerra e Roberto Messias
Carlos, integrantes da comunidade cigana Calom, de Sousa, Paraíba.
Dirigida aos nobres Cavaleiros e belas Damas da Pedra do Reino.
E enviada, por seu intermédio, aos diversos povos do Mundo;
especialmente aos da Rainha do Meio-Dia, aqui representada por
Portugal.
EPÍGRAFES
“O Rei é senhor e escravo de seu Reino. É o Pai encerrado em um
espaço geográfico (ou literário), e representa simbolicamente a alma
nacional, na qual todos se refletem como se estivessem diante de um
Espelho, e representando ele, portanto, aos olhos de seu Povo, o
aspecto tangível da imortalidade e da Eternidade.”

E GUIMAR S IMÕES V OGADO

“Bem vedes, não sou eu o Pierrô bufo e belo, filho de


Cassandrino ou de Polichinelo! Não! Eu sou o Palhaço de vermelho e de
preto, o Palhaço-encorado, o sangue do Esqueleto, que procura espargir
pelo Mundo tristonho, no sangue e ao pó da Morte, o galope do Sonho,
na Onça-do-imprevisto, o Riso-do-burlesco, no Mocho do fantástico, o
Tigre-romanesco.”

M ARTINS F ONTES
DEDICATÓRIA
Este Repente é dedicado a Mariana de Andrade Lima Suassuna,
Guilherme Queiroz Monteiro da Fonte, Maria Isabel, Rafael, Gabriel e
Daniel Suassuna da Fonte. Foi composto em memória de Adálida
Suassuna Barretto e Chateaubriand Maia de Arruda Barretto.
O BUFÃO APOCALÍPTICO NO CLARO -ESCURO
DO PALCO

Alegro Jocoso
SIBILA
Moda, Turismo & Lazer
Igarassu, 23 de Março de 2014
23 de Abril de 2016

Aos nobres Cavaleiros e belas Damas da Pedra do Reino.

Amigos:

E uEspetaculosa.
concebera o Simpósio Quaterna como uma grande Aula-
Desde que, para realizá-la, pudesse contar com a
música de Antonio Madureira; as câmeras de Marcus Vilar, Douglas
Machado e Claudio Brito; com os cenários e figurinos de Manuel
Savedra Jaúna; com as fotografias de Alexandre Nóbrega, Geyson Magno
e Dantinhas; com os dançarinos de Maria Paula Costa Rego; e com os
atores de Romero de Souza Lima — desde que contasse com tudo isso
eu mesmo participaria do Espetáculo como Ator-principal, Encenador,
Depoente, enfim, com o título que fora o de Tirso de Molina — O
Definidor-Geral (sua decisiva e subterrânea Eminência-Parda).
Mas, além disso, uma das minhas expectativas era que o
Simpósio nos permitisse mostrar, no Palco, a imagem verdadeira,
profunda e bela “ do Brasil-que-há-de-vir ”, a respeito do qual,
escrevendo sobre o Romance d ’ A Pedra do Reino de meu irmão Auro,
falara um certo Mário Martins, no Jornal O Lidador , de Vitória de Santo
Antão, interior de Pernambuco, no tempo em que a Rússia ainda era
chamada de União Soviética .

Ora, a Rússia desertara, primeiro enveredando por uma


Ditadura sinistra, e enfim abandonando a Missão e as esperanças nela
depositadas. Eu queria que a América Latina, unida, a substituísse. Para
isso, faria o que estava a meu alcance: mostraria no Palco (pelo menos
em imagem e para os participantes iniciados do Simpósio) aquele “
Brasil-que-há-de-vir ”, a fim de que pudéssemos manter acesas a
dignidade, a altivez, a beleza, a esperança e — quem sabe? — talvez até
devolvê-las ao nosso Povo, delas espoliado, principalmente, mas não
exclusivamente, pelo “ governo dos dois Fernandos ”, que o Profeta
Cícero Cordeiro Espada profetizara no Arraial do Bacamarte , em 1930.
DOM PARIBO SALLEMAS
Entretanto, ao lado de tais nobres motivações — e, é verdade,
pensando menos em si do que na Figura exponencial que representava
(a do Imperador do Espírito Santo) —, Dom Pantero queria fazer do
Simpósio um triunfo. Por isso, mandara espalhar entre as pessoas do
Público uma claque de amigos, alunos e ex-alunos da Unipopt ,
comandados por Maria da Salete da Silva; de modo que, enquanto ele se
encaminhava para seu lugar no Palco, a Cortina se abriu e o Teatro
inteiro estralejou ao som de uma crepitante salva de palmas. Ouviram-
se, mesmo, alguns urros e assobios que passavam um pouco da conta
no entusiasmo que tínhamos recomendado.

DOM PANTERO
Ao mesmo tempo que Iluminada, a Graciosa ocultara-se, a fim
de, novamente encoberta, possibilitar que o Espetáculo assumisse
também seu caráter de Demanda: se a Taça reaparecesse em algum de
seus volteios e episódios, seria, com certeza, por intercessão da sagrada
Figura que ela representava; por seu intermédio é que A Misericordiosa
iria aparecer no Palco como A Coroada , a Musa oposta à Moça Caetana ;
a Padroeira superior e tutelar do Simpósio, que, graças a Ela, poderia
ser encarado como celebração da Beleza e da Vida (e não, apesar de
tudo, da Feiura e da Morte):

SÃO JOÃO EVANGELISTA SCHABINO


“E viu-se um grande Sinal no céu: uma Mulher vestida de Sol; e a
Lua estava sob seus pés, e uma Coroa de 12 Estrelas sobre sua cabeça. E
estava grávida, e com dores do parto, e gemia com ânsias de dar à luz.”

DOM PANCRÁCIO CAVALCANTI


Cumprida a obrigação de conduzir Dom Pantero, Iluminada,
Lucinda e Luziara tinham voltado às Coxias, onde se juntaram aos
outros Figurantes, que ali aguardavam sua vez de entrar no Palco.
Quanto a ele, chegou, só, ao Proscênio, e curvou-se
profundamente para agradecer os aplausos, que iam arrefecendo mas
que redobraram àquele seu gesto de cortesia. Depois, subiu para o
Púlpito e, lá, bebeu o segundo cálice de Vinho — o do Filho. E foi só
neste momento que o Espetáculo realmente começou, com a recitação
do seguinte Entremeio:

O CERVO , O JAGUAR E O GAVIÃO


Pequena Jornada RetórIca, MusIcal e ProfétIca

FREI ANTÔNIO DO ROSÁRIO


“Ay, ay, ay, três vezes ay! Ay dos pensamentos, ay das palavras, ay
das obras que habitam a terra de que sou composto! Ay, ay, ay, três vezes
ay!”

DOM PANTERO
Reino solar, Reino pedregoso, Reino sagrado, Reino glorioso!
Reino sonhado, que o Mal, o Feio e a Morte querem degradar e cobrir de
vergonha, aos ais do Apocalipse!
Eu, Jaguar-do-Deserto, esconjuro, cego, a cinza fatal que cerca o
Reino! Eu, Cervonegro-do-Sol, denuncio, cego, a injustiça que se comete
contra meu Povo! Mas eu, Gavião-da-Soledade, profetizo, cego, o sol-d’O-
que-há-de-vir!
FREI ANTÔNIO DO ROSÁRIO
“Ay, ay, ay, três vezes ay! Ay do entendimento perdido, ay da
vontade cega, ay da memória desencaminhada!”

DOM PANTERO
Mas aleluia, glória e hosana ao sol dos Encobertos e à lua da
Coroada!

DOM PORFÍRIO DE ALBUQUERQUE


Aqui, Dom Pantero fez uma pausa, não muito prolongada, a fim
de não parecer que ele simplesmente esquecera o papel; mas também
suficientemente arrepiadora para que todos pudessem perceber que,
além de Cátedra, Trono, Tribuna e Picadeiro-circense, seu Púlpito era
Lajedo, como o de Prometeu, e sobretudo Gólgota, como o do Cristo
(uma vez que, depois do choro e das lamentações da Tragédia, apontava
para uma gloriosa, festiva e exaltadora Ressurreição).

DOM PARIBO SALLEMAS


Por isso, permaneceu assim um instante, com o peito empinado
para frente, de modo a que todo o Teatro ouvisse os arquejos de seus ais
e de seus gemidos , mas também os de seus hosanas , glórias e aleluias . E
só quando notou que bastava, como efeito cênico, foi que continuou,
dirigindo-se, em espírito, à sua amada Liza Reis (e, por intermédio dela,
ao público do Simpósio):

DOM PANTERO
Amor, sagrado Amor, oh Rosa do meu sangue, Rosa do meu desejo,
oh meu Sextante e Vela!
Têm, para mim, Visões de um outro Mundo, as Noites perigosas e
queimadas, quando a Lua aparece mais vermelha.
De dia, ao olhar para o Céu azul-esbraseado, vejo brilhar ao Sol, à
luz do Olhar divino, um Reino de muralhas, Castelos e bandeiras, de
Estandartes ao vento e de estrelas na Esfera.
Mas, por outro lado, têm, para mim, Visões de um outro Mundo,
as Noites luminosas, azuladas, quando a Lua aparece mais bonita — e o
Espetáculo que agora se inicia é também uma espécie de Soneta-
Noturna; de Sonata para Violino e Piano; de Concerto-Lunar (ou ao-
Luar), composto para Rabeviola e Orquestra.
Começo, portanto, com o Soneto O Profeta , incluído por Albano
Cervonegro n’ O Pasto Incendiado .

DOM PANCRÁCIO CAVALCANTI


Depois de falar assim, Dom Pantero desceu do Púlpito e sentou-
se na Cadeira que fora do Profeta e pregador do Quinto Império,
Antônio Vieyra. Colocou a Viola entre as magras pernas, como se ela
fosse uma Viola-de-Gamba ou um corpo de Mulher: seguindo, nisso,
uma sugestão do grande violeiro Roberto Corrêa, ia ele, assim,
acompanhar o Canto, esfregando o arco da Rabeca no par-de-bordões
da Viola.

DOM PORFÍRIO DE ALBUQUERQUE


Mas como o que ele sabia tocar era quase nada, pedira ajuda a
Aglaia Costa, no Violino, Jarbas Maciel, na Viola-de-Arco, e João Carlos
Araújo, no Violoncelo: porque, com a excelente execução deles, seus
próprios erros e acordes rudimentares seriam abafados e diluídos no
acerto geral dos outros, integrantes do Trio que verdadeiramente
tocava, acompanhando o Soneto.

DOM PARIBO SALLEMAS


Além disso, fundidos aqueles instrumentos numa Viorrabeca —
ou Rabeviola —, ao som de seu toque o Soneto ressoaria ainda mais
grave na rouca e feia voz do Cantador; daquele Poeta fracassado;
daquele Jaguar especuloso e cego que, herdeiro do Tio e dos irmãos, se
transformara, como Ator e Encenador, no principal responsável pela
Narração:

João Sotero e José de Azevedo Dantas: Páginas do Livro Negro do Cotidiano

João Sotero e José de Azevedo Dantas: Páginas do Livro Negro do Cotidiano

O PROFETA
Abertura sob Pele de CarneIro

ALBANO CERVONEGRO
Falso Profeta, insone, extraviado, vivo, Cego, a sondar o
Indecifrável. E, jaguar da Sibila inescrutável, meu sangue canta a rota
deste Fado.
Eu, forçado a ascender, eu, mutilado, busco a Estrela, que chama,
inapelável. E a pulsação do Ser, Fera indomável, arde ao sol do meu Pasto
incendiado.

João Sotero e José de Azevedo Dantas: Páginas do Livro Negro do Cotidiano

Por sobre a dor, a Sarça-do-Espinheiro, que acende o estranho Sol,


sangue do Ser, transforma o sangue em Candelabro e Espelho.
Por isso, não vou nunca envelhecer: com meu Cantar, supero o
desespero, sou contra a Morte e nunca hei de morrer.

DOM PANTERO
Acabando de cantar o Soneto, voltei ao Púlpito e, como Velho-e-
Mestre, bebi o terceiro cálice de Vinho, fato que definitivamente
consumou a transfiguração da minha pessoa comum e apagada em Dom
Pantero do Espírito Santo , Imperador da Pedra do Reino .

DOM PANCRÁCIO CAVALCANTI


Pouco tempo antes da morte de Adriel Soares, Antonio
Madureira fizera com ele um Disco, A Poesia Viva de Albano Cervonegro
, no qual o Poeta, com acompanhamento musical, recitava os Sonetos e
também aquela espécie de Autobiografia-em-prosa-e-verso que é a
Vida-Nova Brasileira ; de modo que a recitação, ali no Palco
empreendida por Antero Savedra, era apenas um outro plágio, entre os
muitos que ele cometia em relação às obras de seus irmãos e de outros
Escritores.

DOM PORFÍRIO DE ALBUQUERQUE


Mas a força de autopersuasão que se apodera dos falsificadores
e plagiários é tanta que, apesar de tudo, ao som da “ rabeca da
Sabedoria ”, do Cego Oliveira, o sangue de Dom Pantero, iluminado pela
chispa que a Graciosa lhe comunicava por meio de Iluminada, começou
a cantar na “ Cadência ”, de Mestre Vitalino; a ferver nas águas
sangrentas do “ Riacho do Elo ” — que é o mesmo e misterioso “ Córrego
” do qual falava Nô Caboclo; a se povoar, no “ Palco ”, das iluminosas
projeções do “ Cine-de-Circo ”, de Luiz de Lira; e dos penumbrosos
rituais em claro-escuro daquele Trono-e-Altar que se finca no centro da
“ Casa da Flor ”, de Gabriel Joaquim dos Santos.

DOM PARIBO SALLEMAS


Era como se as 7 Fontes-Sagradas do Cavalo Castanho se
tivessem reunido no Castelo-e-Teatro, no Circo que Manuel Jaúna
pintara (e que agora, alumiado pela Câmera profética da TV Ilumiara ,
se tornava uma nova Gruta das Vulvas , semelhante à do nosso
Anfiteatro). Em tal condição era a suma teatral, circense, dançarina,
literária, musical e vídeo-cinematográfica de todas elas.
Com isso, e tendo baixado de vez em seu sangue o dáimone da
Festa, Dom Pantero pôde realmente mergulhar o Teatro na pulsão
obsessiva que o Espetáculo exigia. Ele falou assim:

DOM PANTERO
Senhoras e senhores participantes do Simpósio Quaterna ! O
título do único Livro deixado pelo grande Augusto dos Anjos é Eu . Aqui,
apesar da natureza épica do Diálogo, em minha condição de Ator e
Encenador, o Personagem principal também é Eu ; ou sou Eu ; ou somos
Eu — não sei nem como diga!
Uma coisa, porém, é certa: como Encenador das Conferências
Quase-Literárias de meu Tio, Padrinho e Mestre, Antero Schabino (assim
como dos Espetáculos que meus irmãos Afra e Adriel criavam), é
seguindo processo semelhante ao deles que, aqui, penso levar meu
Depoimento adiante. Com isso, o que pretendo é fazer uma espécie de
Relato que dê alguma ordem e algum brilho ao conjunto, algum sentido
e alguma beleza à minha vida — a este amontoado de gestos, atos e
palavras que, no comum, é contraditório, às vezes angustioso, quase
sempre fosco e feio.
“ A Vida é um Sonho ”, disse um Poeta espanhol e que, como todo
grande Homem, provavelmente era meio despilotado do juízo.
Pois se a Vida é um Sonho, cuide-se de fazer aqui deste Pesadelo
triste, feio e sem graça, uma Festa; uma Dança que, como nos Circos e
nos Espetáculos populares brasileiros, tenha seus mantos e golas
recobertos de vidrilhos e lantejoulas; alegre e ensolarada aqui; noturna
e acolhedora ali; terrível e sangrenta acolá; religiosa e compassiva, em
sua profanidade; luzida e intrépida, em sua vitória sobre a feiura, o
sofrimento, a pobreza, a injustiça e a Morte. Uma Festa na qual,
refletidas pelo Espelho juntamente com o Jaguar, caibam as coisas mais
diferentes: o brilhante e o monstruoso; o trivial e o insólito; o real e o
quimérico; o grotesco e o doloroso; o trágico e o cômico; o obsceno e o
religioso.

Era esse o espírito dos Espetáculos que encenávamos no Teatro


Antônio Conselheiro , da Ilha de Deus, no Recife. Desde a longínqua
representação que, em 1945 e com base num Folheto escrito por João
Martins de Athayde, fizemos d’ A História de Romeu e Julieta , eu metera
na cabeça que, se chegasse a encenar um Espetáculo perfeito,
recuperaria meu Amor perdido; cumpriria a recomendação do Cristo,
perdoando os assassinos “ capuletos e villoas ” do Cavaleiro (que, na
minha visão, era um “ montéquio e savedra ”); consertaria as injustiças,
reparando a triste sorte de todos os pobres e desvalidos; e até
decifraria o segredo do Mundo, resgatando, nos limites do humano, a
mim mesmo, aos meus, aos filhos da Rainha do Meio-Dia e a todos os
integrantes do nosso Rebanho, das feias chagas causadas pelo
sofrimento, pelo mal, pela injustiça e pela Morte.
Como se vê, era mais uma quimera a perturbar minha vida, e foi
uma das causas que levaram nossos adversários a me chamarem de “
Dom Quixote arcaico ”: porque fracassei em todas as tentativas que,
depois de rejeitado como Poeta por meu Tio, Mestre e Padrinho, Antero
Schabino, empreendi no Palco, como Encenador, durante muitos anos.
De modo que agora, debilitado pela idade e fustigado pela doença, este
Simpósio é a última esperança que me resta de cumprir o voto
formulado na juventude.

Aqui tentarei acolher, no Palco, a tragédia e a farsa do Mundo. E,


com isso, talvez o que minha vida teve, e tem, de morno, de
incaracterístico, de errado e de feio possa terminar cicatrizado, quem
sabe até perdoado, graças ao iluminoso claro-escuro do conjunto.
No entanto, é indispensável que Vocês entendam: além do
Anfiteatro d’ A Ilumiara Jaúna — com seu Riacho do Elo — este Circo-
Teatro representa a Estrada de Matacavalos , que, passando pela
Ilumiara, unia Taperoá à Fazenda Saco da Onça ; e, estando eu no Palco,
é por aquela Estrada que convido todos a enveredar, na Viagem-de-
Circo que aqui começa.
Aliás, é o fato de “ ter um Circo ” — este Circo — que me
singulariza entre os demais Narradores, Poetas, Encenadores e Profetas
do nosso Mundo literário. É o Circo que me permite armar aqui nossa
Empanada, para que o Espetáculo seja exemplar , no sentido de que,
partindo do Eu-individual do Narrador, exiba e alcance todos os
Personagens — ricos e poderosos, ou pobres e desvalidos d’ O Grande
Teatro do Mundo ; e lance uma luz (ainda que, algumas vezes, sinistra)
sobre todo o universo que configura.

ALBANO CERVONEGRO
Aqui, mora a Coral negra e vermelha, a Serpente assassina do
Rebanho. Mas o Cantar sagrado do meu Sangue, aponta para o Sol de um
céu estranho, e ao Gavião em cujo olhar reluzem o Leopardo e a Estrela-
do-Castanho.

CARLOS DE SOUZA LIMA


Mestre, permita que eu faça, logo aqui, uma intervenção: alguns
participantes do Simpósio estão querendo transformar em Entrevista
os trechos que cada um julgue serem os mais significativos de seu
Depoimento. O senhor concorda com isso?

DOM PANTERO
Em princípio, sim; mas somente em princípio! O que me inclina
a concordar é que li, certa vez, num Jornal, uma observação maldosa
sobre os Escritores brasileiros: dizia-se ali que todos eles são muito
mais brilhantes nas Entrevistas que concedem do que em seus
Romances, Poemas ou Peças-de-Teatro, “ provavelmente porque, no caso
das Entrevistas, as palavras são escritas por outras pessoas ”.
Ora, comparando-me com meus irmãos Auro e Adriel, meu Tio,
Padrinho e Mestre, Antero Schabino, sempre me desconsiderava. Dizia
que, como Escritor, nunca eu poderia igualar-me a eles, motivo pelo
qual não me permitia colaborar na versão literária d’ A Onça Malhada ,
que seria sua Obra definitiva e final — A Divina Viagem ; levando em
conta que minha letra era mais legível e eu era o Encenador dos
espetáculos montados no Teatro Antônio Conselheiro , da Ilha de Deus,
reservava-me apenas as tarefas menores de copista de seus Ensaios e
organizador de suas famosas Conferências Quase-Literárias .

Assim, caso este Simpósio venha a assumir o espírito e a forma


dialogal da Entrevista, poderá também sanar minhas deficiências de
Escritor por meio de minhas habilidades de Encenador, propiciando-me
a oportunidade não só de igualar-me a meus irmãos mas até de
ultrapassá-los, uma vez que nenhum deles se lembrou de realizar suas
obras em forma de Entrevista.
No entanto, faço outra avaliação que me leva a hesitar sobre o
pedido: é que, nas Entrevistas, além das falsidades e loucuras que nos
atribuem — na maioria dos casos colocando-as entre aspas, como se as
tivéssemos dito —, só nos fazem perguntas óbvias, estapafúrdias,
inconvenientes ou repetitivas (o que nos força a dar, também, respostas
repetitivas, óbvias, inconvenientes e estapafúrdias).
Então, vamos ver que rumo vai tomar a conversa. O Simpósio foi
o caminho que encontrei para transformar em teatro, música, dança,
cinema e vídeo o Ensaio A Onça Malhada , de meu Tio Antero Schabino,
o romance de Auro, as peças de Adriel, a poesia de Altino e os
espetáculos que, com coreografia de nossa irmã Afra Cantapedra,
encenávamos na Favela-Consagrada da Ilha de Deus a partir de folhetos
da Literatura de Cordel — o que fazíamos tendo Adriel como
Apresentador.
Por isso, só concordarei com a Entrevista se notar que as
perguntas (e as respostas delas resultantes) podem se integrar no
Circo-e-Castelo formado pelos dois Programas semanais que mantenho
aqui, sob o comando de William Costa e Vera Ferraz: o Almanaque
Viajoso , publicado na Sibila , e O Canto da Casa Sonhosa , exibido pela
TV Ilumiara . Lembro que, além dos especialistas, pessoas comuns
tomam assento na Plateia, com direito a fazer-me perguntas. Ora, eu
divido a Humanidade em duas categorias: a dos que gostam dos
Savedras e conosco concordam, e a dos equivocados (aliás divididos em
dois outros grupos — o dos ressentidos e o dos equivocados propriamente
ditos ). Assim, minha autorização é condicional: caso eu goste dos
termos em que o Diálogo for conduzido, ela será dada. Se não gostar,
não.
Outra coisa: para evitar familiaridades excessivas, só admitirei
um tratamento por parte dos Entrevistadores — o de Mestre , que
Carlos de Souza Lima empregou há pouco, quando a mim se dirigiu. Se
a exigência não for atendida, continuarei a dar meu Depoimento, mas a
Entrevista será imediatamente cancelada.
Tomo estas precauções porque na Plateia estão presentes
alguns daqueles equivocados — indivíduos invejosos e ressentidos pelo
anonimato a que vivem relegados pelo Povo brasileiro. Cuidei então de
aí colocar também algumas pessoas amigas que, neutralizando as
hostis, podem encaminhar este Simpósio a um ambiente menos
desfavorável “ ao clã oligárquico, feudal e arcaico dos Savedras ” (como
dizem os equivocados).
ROSETTE FONSECA DOS SANTOS
A meu ver, Mestre, suas preocupações demonstram um pouco
de exagero, porque todas as pessoas que aqui estão podem ser
consideradas como schabinólogos .

DOM PANTERO
Mas nem todos são savedristas ! Um savedrista é um
schabinólogo que, além de conhecer e admirar, sem qualquer restrição,
todas as obras deixadas por Schabinos, Savedras e Jaúnas, concorda
com tudo o que eles diziam e faziam. Se manifestar uma discordância —
uma só, e insignificante como seja! — é demitido imediatamente de seu
honroso cargo e passa a integrar o detestável rebanho dos equivocados.
Notem que eu já dei uma demonstração incomum de tolerância
ao admitir que participem do Simpósio pessoas da mais diversa
procedência. Não digo nem Portugueses, Espanhóis, Galegos, Sicilianos,
Bascos, Catalães, Corsos, Gregos ou Provençais que, em sua condição de
filhos quase-legítimos da Rainha do Meio-Dia, são quase-compatriotas
dos Brasileiros (compatriotas de verdade são os outros Latino-
Americanos, os Árabes e os Africanos). Mas minha generosidade é tão
grande que permiti viesse para o Simpósio até mesmo uma pessoa que
mora nos Estados Unidos; o que causa surpresa no sobrinho, afilhado e
discípulo de um Homem que escreveu:

ANTERO SCHABINO
“No curso da História é frequente a aparição de dois Impérios
antagônicos — um de Direita, como Roma, outro de Esquerda, como
Cartago. Hoje, o Império de-direita é liderado pelos Estados Unidos. O de-
esquerda é a Iarandara, a Rainha do Meio-Dia, integrada pelos Povos
pobres da Terra; Povos insulados e marginais, pertencentes que somos à
Raça bruna, malhada e parda-escura do Mundo; Povos que, dentro de sua
pobreza e de seu abandono, têm, contudo, na sua imaginação, na sua
arte, na sua festa , uma energia, um impulso, uma alegria, uma beleza que
os ricos não mais possuem.”

DOM PANTERO
Como se pode entender por estas palavras, escritas por meu Tio
e Mestre Antero Schabino em seu Diálogo d ’ A Onça Malhada e a Ilha
Brasil , eu só permiti que a notável Maria McBride comparecesse ao
Simpósio porque ela, apesar do sobrenome arrevesado, pertence ao
contingente de fala hispânica dos Estados Unidos — aquele Império
plutocrático que atualmente é o campeão mundial do Capitalismo (e,
consequentemente, também da injustiça, da vulgaridade, da arte de
mau gosto, da violência, da hipocrisia, da impostura, das drogas e da
brutalidade). É o Quarto Império de Direita , contra o qual o Profeta
Daniel anuncia o Quinto — o nosso, o de Esquerda e da Iarandara: este
que o Brasil, sobrepondo-se aos traidores que pretendem vendê-lo e
aviltá-lo, poderá um dia revelar ao Mundo.
ELEUDA DE CARVALHO
Bem, Mestre, posso lhe garantir: pelo menos no que se refere a
nós, todos os seus Entrevistadores estão animados pelos sentimentos
mais amistosos do Mundo em relação aos Savedras!

LUZIA LIMEIRA DE CARVALHO


E existe, ainda, um outro assunto de que lhe devo falar, Mestre,
em minha condição de organizadora do Simpósio. Estive lendo, ontem,
um artigo no qual o musicólogo francês André Tubeuf chama o
compositor brasileiro Heitor Villa-Lobos de “ estranho gênio plantador,
inicial e unificador ”. Tubeuf comenta o fato de ter Villa-Lobos criado
suas Bachianas Brasileiras fazendo ressoar e elevar-se do chão selvagem
do Brasil “ a grande voz de Bach ”. E continua: “ Bach é o pai comum da
Música, seu cume e seu centro. É uma espécie de Goethe. Ou melhor, é
aquele Deus-de-legenda que, brincando com as esferas, fez a música do
Mundo. ”
MARIA LOPES
Além disso, Mestre, conversando ontem com Luzia a respeito de
Goethe e do Simpósio, disse-lhe eu que li, outro dia, uma notícia que me
deixou impressionada: um Encenador alemão vai montar o Fausto
inteiro, num Espetáculo que terá 17 horas de duração!

LUZIA LIMEIRA DE CARVALHO


A partir desses dois fatos, sugiro que as sessões do nosso
Colóquio sejam chamadas de Goethianas Brasileiras . Com tal nome,
prestaremos a Goethe homenagem parecida com a de Villa-Lobos a
Bach; e, ao mesmo tempo, o senhor enveredará por um dos poucos
caminhos capazes de aproximar um Escritor brasileiro dos intelectuais
do Primeiro Mundo.

DOM PANTERO
Discordo, tanto do nome quanto das justificativas apresentadas
para ele! Em primeiro lugar, quem lhe disse que eu quero me aproximar
“ dos intelectuais do Primeiro Mundo ”?
Depois, não posso admitir que o título de “ deus da Literatura ”
seja atribuído por Tubeuf a Goethe, e não a Aribál Saldanha, Auro
Schabino, Adriel Soares ou Altino Sotero — este apesar de ter vivido na
fronteira entre a lucidez e a demência.
João Sotero e José de Azevedo Dantas: Gravuras do Livro Negro do Cotidiano

Finalmente, acho que, antes de Vocês estarem querendo prestar


a Goethe a homenagem descabida que imaginaram, deveriam se
lembrar de que o Fausto é plagiado de 3 peças de Calderón de la Barca
— O Mágico Prodigioso , A Vida é Sonho e O Grande Teatro do Mundo .
Digo-lhe então, Luzia, que, se Tubeuf tivesse dado o título de “
deus da Literatura ” a Calderón, eu ainda aceitaria — se bem que com
restrições, para não ser injusto com a Quaterna formada pelos maiores
Escritores da nossa Família. A Goethe, nunca!
Quanto ao Encenador de quem Vocês falaram, ele também não
perde por esperar: já combinei com Romero de Souza Lima, José
Antunes e Fernando Carvalho que, se conseguirmos realizar A Ilumiara
por meio do Simpósio, eles recriarão a Obra inteira num grande
Espetáculo, misto de Teatro, Vídeo e Cinema, e que terá não apenas 17,
mas 21 horas de duração! Ele será exibido em 7 dias — o mesmo tempo
que Deus levou para criar o Mundo e descansar. Isto é: o Espetáculo
será dividido em 7 Episódios, e, por isso, bafejado pelos 7 dons do
Espírito Santo; e cada Episódio durará 3 horas, em homenagem à
Santíssima Trindade.

SOCORRO TORQUATO
Mestre, e se, por acaso, misturando-se aos 7 dons do Espírito
Santo, os 7 pecados-capitais também vierem a aparecer por aqui, para
bafejar o Simpósio?

DOM PANTERO
Não haverá qualquer problema, porque A Divina Viagem foi
imaginada por meu Tio e Mestre em dois grandes planos — O Espelho
dos Encobertos e O Palco dos Pecadores . Assim, aqui no Simpósio, o
Espelho refletirá a luz dos 7 Dons, e o Palco a sombra dos 7 Pecados.
Não sei se Vocês já repararam, mas os grandes personagens de Teatro
são, todos, grandes Pecadores: a tal ponto que, se, um dia, acabar o
Pecado (conforme nos foi prometido por São Paulo), acabará também o
Teatro.
Então, Luzia, como bem se pode deduzir por minhas palavras,
não existe a menor possibilidade de eu aceitar o título de Goethianas
Brasileiras , que Você sugeriu para as sessões do Simpósio.

DONA CLARABELA
Muito bem, a sugestão de Luzia não foi aceita! Assim, tomo a
liberdade de lembrar que a Tese com a qual obtive meu grau de Doutora
em Filosofia intitula-se HEGEL — Palavra Fundadora, Visão Dialética e
Poiesis do Filosofema . E sugiro que as sessões do Simpósio sejam
chamadas de Hegelianas Brasileiras . Como a música de Bach, o
pensamento de Hegel é uma Catedral majestosa, e o nome que
proponho é mais do que apto a satisfazer opiniões tão singulares e
exigências tão rigorosas quanto as do nosso Mestre!
João Sotero e José de Azevedo Dantas: Gravuras do Livro Negro do Cotidiano

DOM PARIBO SALLEMAS


A segunda sugestão é pior do que a primeira! Para nós, Catedral
é a de Antônio Conselheiro, e não a de Hegel! E depois, como se não
bastasse, Dona Clarabela ainda nos vem com “ Filosofema ”! Filosofema,
meu Deus! Só mesmo da cabeça de um Alemão é que poderia sair um
troço feio como esse! Rima com “ Postema ”, de modo que, no mínimo,
Filosofema deve ser alguma espécie de “ Tumor filosófico ”!

DOM PANCRÁCIO CAVALCANTI


Além disso, Clarabela, Você foi discípula e amante de Antero
Schabino, Tio, Mestre e Padrinho de Dom Pantero e que, em sua dupla
figuração de Máscara — Aribál Saldanha e Ademar Sallinas —, está
conosco, aqui no Teatro. Então, se foi aluna dele, deveria saber que
todos os Filósofos dialéticos anteriores a Antero Schabino pecaram de
modo grave contra a própria essência da Dialética, porque se
mantiveram na crença dogmática e fechada da Tríade — tese, antítese,
síntese; crença na qual se endureceram e mecanizaram, numa
interpretação extraviada e errônea da visão de Frei Joaquim de Flora —
Reino do Pai, Reino do Filho, Reino do Espírito Santo.

DOM PORFÍRIO DE ALBUQUERQUE


Foi o caso de Comte , com o “ Estado teológico ”, reino do Pai; “
Estado metafísico ”, reino do Filho; e “ Estado científico ”, reino do
Espírito Santo. Foi o caso de Marx, neopositivista, com o “ Feudalismo ”,
reino do Pai, Estado teológico; “ Capitalismo ”, reino do Filho, Estado
metafísico; e “ Socialismo ”, reino do Espírito Santo, Estado científico:
não foi por acaso que Marx e Engels opuseram ao “ Socialismo utópico ”
seu autoproclamado “ Socialismo científico ”.

DOM PARIBO SALLEMAS


Mas, infelizmente, esse foi também o caso do melhor dos
Pensadores dialéticos modernos, Hegel, que nos apresenta a Arte, a
Religião e a Filosofia como “ as 3 etapas fundamentais do Ser-humano
em seu caminho para o Absoluto ”. A Arte, tese , introduz a Ideia na
matéria, espiritualizando o Real. A Religião, antítese , capta a Ideia no
Real já espiritualizado pela Arte para apossar-se dela no interior da
consciência. À Filosofia, síntese , cabe fundir o Real-espiritualizado da
Arte com a interioridade iluminada que a Religião nos propicia na mais
profunda morada do Castelo que é a consciência humana.
DOM PANTERO
Como todos puderam ver, nem mesmo Hegel escapou ao
imobilismo da tríade , profeticamente anunciada por Frei Joaquim de
Flora mas que o Filósofo alemão não teve gênio suficiente para
ultrapassar.
Por isso, Clarabela, recuso também o nome de Hegelianas
Brasileiras , que Você sugeriu para as sessões do Simpósio.

NELLY CARVALHO
E na obra de seu Tio, Mestre, existe alguma ideia que nos afaste
dos erros de Comte, Hegel e Marx?

DOM PANTERO
É claro que sim! Aribál Saldanha chegou à solução daquele
problema numa espécie de revelação, de iluminação. No começo de
tudo, o Ser é afirmado diante da anátese inicial. Daí em diante, caminha
ele por um processo dialético, que não se baseia numa Tríade , mas sim
numa Quaterna .

DOM PANCRÁCIO CAVALCANTI


É daí, aliás, que procede o nome do nosso Simpósio; por outro
lado, ele foi escolhido por causa das 4 Obras principais que nele serão
analisadas: A Onça Malhada , tese, O Pasto Incendiado , antítese, o Auto d
’ A Misericordiosa , contrátese, e o Romance d ’ A Pedra do Reino ,
síntese.
DOM PORFÍRIO DE ALBUQUERQUE
Como se vê, em relação à Tríade , a Quaterna possui um termo a
mais, e é ele que garante a mobilidade, a pulsação, a fluidez permanente
do Ser . Desdobra-se a Quaterna em tese, antítese, contrátese e, somente
então, síntese — que é o termo final da proposição colocada e, ao
mesmo tempo, o inicial da seguinte: intuição genial que não ocorreu
nem mesmo a Hegel, o primeiro, e maior, dos seguidores modernos de
Frei Joaquim de Flora.

AURO SCHABINO
É por isso que, no caso de Deus, Trindade significa, de fato,
Unidade-na-Multiplicidade . A Santíssima Trindade, una, tem 4, 5, 6, 12
ou mais Pessoas, conforme o ângulo pelo qual, como cegos, tentemos
vislumbrar sua Santa Face.

ADRIEL SOARES
É também por isso que nos opomos a qualquer visão imobilista
do Ser-de-Deus; acho que o nome mais inapropriado e feio que já se
pensou em dar a Ele foi o imaginado por Aristóteles — Primeiro Motor
Imóvel . Que coisa horrorosa! Deus é uma Pulsação e é, sobretudo, a
Fonte sagrada, pura, misteriosa e bela de toda e qualquer pulsação.
Quando penso n’Ele, vejo o Pai como tese, Lúcifer como a orgulhosa
tentativa de antítese que pretendeu ser, e o Filho como contrátese. O
Espírito Santo — cuja Face feminina e materna é a Santa Sabedoria, a
Coroada, a Misericordiosa — é a síntese, que se consuma, na
Eternidade, entre o Passado mais remoto e a presentificação
escatológica do Futuro, com a redenção final do Encourado — salvação
levada finalmente a cabo pelo Cordeiro , a pedido d’ A Misericordiosa a
seu Filho.

DOM PANTERO
Sendo assim, Clarabela, vou aproveitar as sugestões de Vocês no
sentido de dar nome às sessões do Simpósio. Mas vou fazer isso, em
primeiro lugar, buscando um nome que aluda à sua natureza musical; e,
em segundo lugar, procurando prestar uma homenagem ao grande
Filósofo brasileiro Mathias Aires, que publicou sua obra principal em
1752, e cuja visão-de-mundo, antecipando-se à de Kant e à de Hegel, lhe
dá o direito de integrar uma Quaterna constituída por Parmênides, Tese
, Heráclito, antítese , Anaximandro, contrátese , e Mathias Aires, síntese :

MATHIAS AIRES DE SAVEDRA


“O verdadeiro ser das coisas não depende da aprovação do nosso
gosto. Mas as coisas parece que recebem mais da Forma que se lhes dá
que da natureza que têm; parece que se espiritualizam para se
entregarem a nós assim que as imaginamos. E o Homem não vem ao
Mundo mostrar o que é, mas o que parece. Não vem feito, vem fazer-se.”
DOM PARIBO SALLEMAS
Estas afirmações de Mathias Aires foram importantíssimas para
a criação de Dom Pantero ; porque, entre outras coisas, foi depois de lê-
las que Antero Mariano Savedra Jaúna se animou a transformar sua
pessoa no Personagem que, ao entrar no Palco, termina por ser , de
tanto que passou a parecer com ele, por meio de seu colar, de seu
medalhão e de suas roupas — cada uma das quais tem um significado
alegórico especial.
E Mathias Aires revelava ainda uma argúcia “ poiética e profética
” verdadeiramente admirável ao configurar uma noção de Beleza que,
somando-se à do negro africano Plotino, legitima a Arte praticada pelos
Povos escuros da Rainha do Meio-Dia:

MATHIAS AIRES DE SAVEDRA


“A Beleza até se sabe introduzir na Fealdade, no horror, no
espanto. A Arte leva consigo uma espécie de rudeza. Do fugir das
proporções e das medidas, resulta muitas vezes uma fantasia tosca e
impolida mas brilhante e forte.”
DOM PARIBO SALLEMAS
Esta visão de Mathias Aires é profundamente revolucionária:
diferentemente do Belo clássico, a Beleza — como nós, filhos da
Iarandara, a entendemos — inclui até a Arte ligada ao crime, ao feio e à
loucura: a Arte do irregular, do obsceno, do cômico, do grotesco, do
horrível e do monstruoso. Assim, a visão que dela tem Mathias Aires
permite incluir no campo da Beleza obras como a do Aleijadinho, a de
Euclydes da Cunha e a de Augusto dos Anjos (para ficar somente nesses
3 Artistas brasileiros de gênio). Euclydes da Cunha, Prosador, era
possuído por um Dáimone sertanejo, pardo, espinhento, pedregoso,
pessimista, fúnebre e ensolarado. O Dáimone que perturbava o sono e
os sonhos de Augusto dos Anjos, Poeta, era também pessimista e
fúnebre; mas não ensolarado e pardo, e sim lodoso, purulento e
esverdeado — o que talvez se devesse às próprias diferenças que
existem entre “ o eldorado do Sertão ” e “ o jardim do Éden ” da Zona da
Mata.

ARIBÁL SALDANHA
Mathias Aires, portanto, constatava a realidade do Ser . Mas
também a do Vir-a-Ser , que resulta da porção de Nada dialeticamente
introduzida na enigmática natureza do Ser . E era por causa disso que
às vezes lhe queimava o sangue uma contida mas desesperada
ponderação, composta em Dó-Sustenido Maior e que parecia soprada a
ele pelo hálito-de-fogo daquele grave Pensador que foi Heráclito:

MATHIAS AIRES DE SAVEDRA


“A natureza de cada coisa também se compõe de seu defeito (isto
é, de seu contrário; e é por isso que, no interior do Ser, a Pulsação resulta
da oposição entre o Ser e seu defeito, o Nada). Nas coisas, é trânsito (e
ruína, e mudança, e metamorfose) aquilo que nos parece permanência.
De sorte que, propriamente, só podemos dizer que as coisas vão surgindo
e se acabando, e não que estão sendo.”

DONA CLARABELA
A meu ver, esse aforismo constitui o próprio núcleo da
Weltanschauung airesiana.

DOM PANTERO
Talvez seja mesmo, se bem que eu não veja necessidade de se
usar uma palavra tão horrorosa quanto Weltanschauung em relação a
um Escritor da raça e da garra de Mathias Aires; principalmente no
curso deste Simpósio, no qual procuramos fundir o sonho de justiça do
Futuro com o prazer libertário do Presente, fundamentado na fruição
da ardente alegria brasileira do Espetáculo e da Festa.
Mas vamos deixar isso de lado, porque há pouco, Clarabela, Você
acabou me dando o nome que estávamos procurando para batizar as
sessões do Simpósio. Airesiana lembra Arlesiana , e, consequentemente,
Arles, a Provença, a Música e, através de Van Gogh, a Pintura.
Ora, quando terminar o Simpósio e eu, cumprindo a
recomendação de meu Mestre, começar a reconstituir A Divina Viagem
a partir de seus Anais, a Obra será um Marco; um Circo; um Castelo
construído ao galope e ao embalo épico da Arquitetura, da Pintura e da
Escultura, assim como ao ritmo plástico do Teatro, do Cinema e `da
Dança. Mas, sobretudo, terá sua Fonte mais secreta naquilo que o
Mestre Vitalino chamava a Cadência e que é o impulso dançarino, “
poiético ” e fogoso que se encontra nas raízes da criação em todas as
Artes (principalmente a Música e a Literatura), a Poesia:
MESTRE VITALINO
“Eu criava pela Cadência, tirando tudo do meu juízo. Fazia o que
via, mas também o que nunca tinha visto: criava pela Cadência.”

DOM PANTERO
Por isso, deixando de lado as sugestões que Vocês me
apresentaram, vou chamar de Airesianas Brasileiras as Cartas que,
depois de encerrado o Simpósio, darão origem ao Castelo-Epistolar que
será A Divina Viagem .

SÔNIA PRIETO
Mas, Mestre, se o senhor esperar pelo fim do Simpósio, A Divina
Viagem vai demorar muito a sair! Seus inimigos já andam murmurando
pelas esquinas que o senhor jamais concluirá o Livro que seu Tio lhe
encomendou. O senhor não se preocupa com isso, não?
DOM PANTERO
Eu? Pelo contrário! Por mim, mesmo que o Simpósio se conclua
antes, só entre 8 de Março de 2014 e 23 de Abril de 2016 é que
começarei a publicar as Cartas planejadas por Tio Antero e que deverão
configurar o Romance que ele me mandou fazer como se fosse uma
verdadeira Missão, a mim confiada em seu leito de morte. Pensei,
inclusive, em adiar este Simpósio, inaugurando-o somente em 19 de
Janeiro de 2005!

ELIZABETH MARINHEIRO
Por que exatamente nesta data, Mestre?

DOM PANTERO
Primeiro, porque foi em 19 de Janeiro de 1886 que nasceu o
Cavaleiro. Depois, porque em 19 de Janeiro de 2005 estarão se
completando 400 anos da publicação do Dom Quixote , uma das obras-
padroeiras deste Simpósio, e eu queria, com esta gloriosa Festa, prestar
também a minha homenagem a Cervantes.

IVAN NEVES PEDROSA


Meu caro Antero Savedra, tendo sido seu contemporâneo na
Universidade, peço-lhe que me permita dispensar o tratamento de
Mestre que Você exigiu dos outros, sem que, por isso, eu seja incluído “
no detestável rebanho dos equivocados ”.
Mas, a propósito de suas últimas palavras, quero dizer-lhe que
andei fazendo algumas pesquisas sobre o assunto e verifiquei que
realmente o Dom Quixote foi publicado em Janeiro de 1605. Mas não
precisamente no dia 19, como Você disse.
DOM PANTERO
Minhas pesquisas foram mais rigorosas do que as suas, meu
caro Ivan! Estude mais o assunto e verá que, na verdade, a primeira
parte do Dom Quixote foi publicada no dia 19 de Janeiro de 1605. E veja
que coincidência curiosa: no século seguinte, o grande Dramaturgo
brasileiro Antônio José da Silva, O Judeu (outro Patrono do nosso
Simpósio), encenou, com Atores e Bonecos, no Teatro do Bairro Alto , em
Lisboa, sua Vida do Grande Dom Quixote de la Mancha , o que, segundo
vagamente se informa, aconteceu “ em Outubro de 1773 ”.
Como Você, fiz pesquisas sobre o assunto e descobri que a
extraordinária Peça do nosso compatriota subiu ao Palco pela primeira
vez em 9 de Outubro de 1773 — o que representou outro motivo para
abrirmos hoje o Simpósio Quaterna , pois a vida do Cavaleiro durou
apenas 44 anos, de 19 de Janeiro de 1886 a 9 de Outubro de 1930.

DIEGO MAYNAR BOSTEZO


Senhor Antero Savedra, não faço parte do “privilegiado” grupo
de seus Entrevistadores, de modo que, como Ivan Neves Pedrosa (mas
numa direção bastante diferente dele), não me julgo obrigado a essa
ridicularia do tratamento de Mestre que o senhor exigiu há pouco.
Quero então dizer-lhe — e, mais até, aos participantes que
vieram de fora para o Simpósio: é por causa dessa e de outras invenções
semelhantes, que Antero Savedra, digno sobrinho e discípulo de Antero
Mitoma, é tantas vezes acusado, no Recife, de ser mentiroso.

DOM PANTERO
Senhor Diego Maynar Bostezo, não me espantam suas
expressões nem a hostilidade que elas encerram, porque o senhor é,
aqui, uma espécie de Corifeu e líder do Coro dos Equivocados (assim
como Ascenso Café desempenha o mesmo papel em relação ao Coro dos
Ressentidos).
Mas, para credibilidade deste Simpósio e de seu principal
Depoente, quero garantir, principalmente “ aos participantes de fora ”: o
que vem de baixo não me atinge! Nossos adversários são de uma
incompetência fora-do-comum, nem a insultar-nos acertam! Ao
chamar-me de Mariano Beato — e a meu Tio (e Mestre) de Antero
Megalo e Antero Mitoma — não se lembram de que, como disse Oscar
Wilde, “ a caricatura é o tributo com o qual mais comumente a
mediocridade costuma homenagear o gênio ”; o que digo,
evidentemente, pensando em Tio Antero e em meus 3 irmãos que eram
Escritores — Altino, Adriel e Auro; não em mim, Artista menor, que
nem de longe ousaria me comparar a qualquer um deles.
Aqueles medíocres que, no Recife, chamavam meu Tio e Mestre
de Antero Megalo , estavam esquecidos de que todo Escritor de gênio é
megalomaníaco, porque a própria grandeza, a própria originalidade da
sua visão-fundadora o faz assim!
Chamavam-no também de Antero Mitoma ; e, como se eu tivesse
“ puxado à bênção ” de meu Padrinho, afirmavam e afirmam (como
acaba de dizer Diego Maynar Bostezo) que, quando me convém, eu
minto descaradamente.
Se eu fosse um gênio, como meu Tio e meus irmãos, lembraria a
nossos equivocados detratores que absolutamente não seria de
estranhar que vivesse enredado na teia dos Mitos mais obsedantes que
se possam imaginar: o Mito é o único e verdadeiro chão sagrado do qual
podem brotar os sonhos, as quimeras e as visões de um grande Poeta!
Ou de um Poieta — título que, por ser mais amplo, muito agradava
àquele espantoso gênio criador que foi meu Tio, Mestre e Padrinho,
Antero Schabino.
Entretanto, como não sou um gênio comparável a meu Tio e a
meus irmãos, digo a todos, aqui: não sou um mentiroso comum, como
Diego Maynar Bostezo pretende fazer acreditar. As obras deixadas por
meu Tio e meus irmãos eram, de fato, povoadas de mitos, sonhos,
alegorias e quimeras, o que se devia à sua própria grandeza. Eu, por
causa de minhas limitações, fui e sou forçado a observar em minhas
Narrativas-Espetaculosas o mais estrito e rigoroso realismo.
Com isso quero dizer que, naquilo considerado como mentira
por Diego Maynar Bostezo, vejo apenas os reflexos do espelho sagrado
das Artes.
Assim peço ao Ator que, no Simpósio, representa o Cego
Oliveira, para recitar as palavras pronunciadas por aquele grande
Músico e Rapsodo sertanejo, cuja voz sempre me pareceu semelhante à
do outro grande Cego que foi Homero. São palavras que tiveram
influência fundamental no destino a mim traçado, não como pessoa,
mas como máscara-e-persona da “ Figura ” de Dom Pantero:

CEGO OLIVEIRA
“Quando moço, eu era bom demais. Hoje estou velho e vou ficando
meio distraído das coisas. Já esqueci muitos versos, mas ainda toco e
canto nas Romarias.
“Acredito na vida do outro Mundo, mas ninguém sabe como ela é.
“Uma vez, na hora de esbarrar o Toque, cantei uma Despedida tão
bonita que uma Mulher disse: ‘Faz pena um Homem desse ter que morrer
um dia.’
“Mas eu não tenho medo da Morte: minha Rabeca é tocada
conforme o tom da Sabedoria.”
João Sotero e José de Azevedo Dantas: Gravuras do Livro Negro do Cotidiano

DOM PANTERO
Confesso, então: ao resolver levar este Simpósio adiante, um de
meus sonhos era (e é) ver no final dele pelo menos uma das Mulheres
que estão na Plateia fazer declaração parecida, senão para Antero
Savedra, pelo menos para Dom Pantero; porque, como a do Cego, minha
Rabeca também é tocada conforme o tom da Sofia, da Misericordiosa,
da Coroada, da Sabedoria.

ALBANO CERVONEGRO
Gestos de amor, de sangue e de ouro puro, perdidos nesta riba da
Vertente. Caminhos, gerações, ecos e vozes, deitados pela terra seca e
ardente. O Esverdeado e a Pedra consagrada; o Jaguar e a peçonha da
Serpente.

DOM PANTERO
Juntas, as palavras de Albano, do Cego e de Altino configuram o
enigma do Mundo, da Vida e da Morte; e, ao mesmo tempo, mostram
que, em nosso caso, aquilo que Diego Maynar Bostezo chama de
mentira é, na verdade, “ a rabeca da Sabedoria ”; uma Arte
estreitamente ligada ao papel que a Misericordiosa desempenha na
doida história do Homem e é a única Arma de que dispomos para
enfrentar nossos erros e pecados, assim como “ os enigmas, as danações,
as injustiças e os desconcertos do Mundo ”.
Assim, sabendo que para mim — como para os outros filhos do
Cavaleiro — isso é também um dever irrenunciável que assumimos com
orgulho, eu, seguindo o exemplo do meu Pai, procuro me manter na
Estrada montando sempre o cavalo da Verdade. Mas, em meu caso, este
Cavalo chama-se Graciano . É castanho, alado e mantém as patas
traseiras entre chamas de fogo, enquanto as dianteiras se elevam no ar,
no salto para Deus e para o Sol. De tal modo é também o cavalo da
Beleza e do Sonho, tão ligado à Sabedoria quanto o da Verdade.
É por isso que, depois da Manhã e dos cochilos do Meio-Dia, eu
me escancho nele e, ainda no pino do Sol, saio a galopar pelos campos
da Tarde, do Crepúsculo e da Noite, em busca de uma Verdade que
talvez não exista ainda mas que se revelará um dia, pela Beleza.
Eu e Graciano somos assim. Assim era o Cego Oliveira. Parentes
próximos, vivia ele e vivo eu sabendo que a Vida é uma Viagem
empreendida pela Estrada poeirosa e parda-vermelha do Mundo, tendo
por luzeiro o Sol de Deus e como guia o estranho Cego-terrestre que
nasceu para sonho e tormento do Gado humano. O Mundo no qual
brotou a Vida é tropa de burlas, cavalo de devaneios, carruagem de
dementes, cortejo de maltrapilhos, vereda de cegos, desfile de foragidos
e palco para insensatos. Mas é exatamente por isso que, neste Palco, eu
canto, e falo, e toco, e danço: porque — repito — minha Rabeca, como a
do Cego Oliveira, “ é tocada conforme o tom da Sabedoria ”; e é com ela
que eu enfrento a Vida, dançando, jubiloso, por todas as estradas-de-
matacavalos do Mundo, ao mesmo tempo em que caminho para os
braços da Moça Caetana: pois acho que, apesar de todas as resoluções e
precauções que tenho tomado contra ela, talvez um dia também eu
termine por ir “ ao encontro da Morte, que me imortalizará ”.
João Sotero e José de Azevedo Dantas: Gravuras do Livro Negro do Cotidiano
LÍGIA VASSALO
Mestre, perdoe-me, mas esta digressão vai um tanto longa e
desejo fazer-lhe uma pergunta mais objetiva. Não sei se o senhor
chegou a ver isso; mas recentemente, a propósito da chegada do século
XXI, foi feita uma consulta a vários intelectuais para se eleger “ o maior
escritor do Segundo Milênio ”. De acordo com a matéria que li, o
escolhido foi Shakespeare. O senhor concorda com isso?

DOM PANTERO
De modo nenhum! Prefiro Cervantes, e Dostoiévski era da
mesma opinião que eu! Mas quero deixar claro: qualquer um dos dois
que seja o preferido, este é mais um motivo para eu só publicar minhas
Cartas de 2014 em diante, já no Terceiro Milênio e portanto a salvo de
qualquer comparação com as obras daqueles dois Escritores.

ASTIER BASÍLIO
Mestre, Gilberto Freyre declarou uma vez que, ao concluir Casa
Grande & Senzala , dissera a si mesmo: “ O homem que escreveu este
Livro, ou é um idiota ou é um gênio. ” E acrescentou que só depois
percebeu a verdadeira dimensão da Obra, passando então “ a inclinar-se
mais para a segunda hipótese ”. O senhor tem opinião parecida sobre A
Divina Viagem ?
DOM PANTERO
Não, absolutamente não! Gilberto Freyre falou assim apenas por
modéstia! Quanto a mim, não tenho dúvida alguma sobre as dimensões
da Obra que será A Divina Viagem e sobre o gênio de seu Autor, que
(preciso lembrar de novo) não sou eu: é, sim, meu Tio, Mestre e
Padrinho, Antero Schabino, coadjuvado por Altino, Auro, Adriel e Eliza
de Andrade.

DOM PARIBO SALLEMAS


E, por favor, se no meio dos Entrevistadores existe alguém que
hesita em aceitar tudo aquilo que Dom Pantero acaba de afirmar,
renuncie imediatamente a seu honroso posto de savedrista .

DOM PANCRÁCIO CAVALCANTI


Entre, de vez, no antipático rebanho dos equivocados e dê lugar
a outro schabinólogo mais fiel — alguém que saiba avaliar a Obra
deixada pelos Savedras em sua verdadeira dimensão.

DOM PORFÍRIO DE ALBUQUERQUE


Outra coisa: Dom Pantero (tomando uma decisão herdada
daquele seu Virgílio-Sancho que foi Quaderna) não pretende morrer.
Mas se, um dia, por algum acaso funesto, for inesperadamente obrigado
a recuar de sua resolução, ele — por motivos que nunca revelou quais
são — pede toda noite a Deus que a Moça Caetana só consiga lhe dar o
golpe fatal em 23 de Abril de 2016.

DOM PANTERO
E é por isso que quando eu for escrever as Epístolas que vão
construir A Ilumiara pretendo fazê-las entre 8 de Março de 2014 e 23
de Abril de 2016 — data que marquei para a minha morte.
CATARINA SANT’ANNA
Mestre, eu não penso assim: mas há quem diga que Personagens
como o Fabiano, de Vidas Secas , ou o Severino, de Morte e Vida Severina
, em seu mutismo, sua secura e sua sobriedade, são muito mais
verdadeiros, como expressões “ do Povo pobre do Brasil real ”, do que “
os loquazes e irresponsáveis falastrões que aparecem nas peças de Adriel
Soares e no Romance d ’A Pedra do Reino de Auro Schabino ”.
Não estou de acordo com essa opinião nem sou nenhuma
equivocada — tanto assim que já escrevi sobre a obra dos Savedras um
Ensaio intitulado O Riso a Cavalo e o Galope do Sonho . Mas gostaria de
saber o que o senhor tem a dizer sobre aquela opinião dos ressentidos.

DOM PANTERO
Fabiano e Severino não são sertanejos “ mais verdadeiros ”, são
apenas mais parecidos com aqueles Sertanejos pelos quais os grandes
Escritores que os criaram se interessavam (por serem, como eles, “
secos, tristes, sóbrios e despojados ”). Mas, no meio desse mesmo “ Povo
pobre do Brasil real ”, existem — no Sertão, na Mata, no Litoral, na
Cidade — pessoas tão “verdadeiras” quanto Fabiano e Severino mas
muito diferentes deles. São Capitães-de-Cavalo-Marinho , como Antônio
Pereira; Velhos-de-Pastoril , como Faceta; Rabequeiros , como O Cego
Oliveira; Mamulengueiros , como Chico Daniel; ou Mestres-de-Maracatu-
Rural como Manuel Salustiano. Todos eles passaram pelas mesmas
dificuldades enfrentadas por Fabiano e Severino. Mas, sobrepondo-se a
elas, não se tornaram mudos, secos e amargos: criaram uma Arte
enérgica e vibrante que se transformou em arma deles, inclusive para a
luta e o protesto, e que, como expressão do Povo brasileiro, é tão
legítima quanto o mutismo e a sobriedade de Fabiano e Severino.
É por isso que Auro em seu Romance, Adriel em seu Teatro e até
eu mesmo, aqui no Simpósio, nos demos o direito de apresentar esses
Personagens que consideramos dotados de coragem e generosidade,
mas que “ os descarnados ” acham que são “ irresponsáveis, festeiros e
falastrões ”.

CLÁUDIA LEITÃO
Mestre, juntamente com Rosette Fonseca, estou pensando em
realizar, em Campina Grande, um Simpósio semelhante a este. De modo
que venho pedir-lhe para nos adiantar alguma coisa sobre a linha e os
objetivos do Simpósio Quaterna , pois achamos, eu e ela, que isso
poderia ser útil para a estrutura do nosso.

DOM PARIBO SALLEMAS


Por sugestão de Clarabela, o Simpósio tem como objetivo
principal fazer-se uma “ re-leitura paralela ” de 4 Obras: o Diálogo d’ A
Onça Malhada e a Ilha Brasil , ensaio de Aribál Saldanha; O Pasto
Incendiado , livro de poemas de Albano Cervonegro; o Auto d ’ A
Misericordiosa , peça de teatro de Adriel Soares; e o Romance d ’ A Pedra
do Reino , de Auro Schabino.

A Beleza - O Bem - A Verdade


Por outro lado, a “ re-leitura paralela ” será também “ re-
criadora ”, e se, a critério do Corpo de Jurados, obtiver o êxito que todos
nós esperamos, abrirá caminho para um fato da maior importância:
concluído o Simpósio, Aribál Saldanha passará a ser, no gênero Ensaio,
o único detentor, no Mundo, do Prêmio Xerassunha Camovantes de
Literatura ; Altino Sotero ganhará o de Poesia; Adriel Soares, o de Teatro;
Auro Schabino, o de Romance; e — seguindo-se, para isso, uma aguda
observação de Iris Gomes da Costa — a Academia Taperoaense de Poesia
oficializará, aqui no Palco, o título de Imperador da Pedra do Reino , que
foi outorgado a Dom Pantero, primeiro em Belmonte, pelo Reisado de
Mestre João Cícero , e depois aqui em Taperoá, pela Tribo Negra
Cambindas Nova , por sugestão de Edízio Carvalho, Ernesto Manoel do
Nascimento e Eduardo Caetano.

DOM PANTERO
Aliás, tudo isto só se tornou possível depois do meu encontro
com Dom Pancrácio e Dom Porfírio, em Ingá, e com Quaderna, na
Ilumiara. E a oficialização, aqui, indicará que, além de Imperador da
Pedra do Reino, eu serei, ao mesmo tempo, Imperador da Língua
Portuguesa e Imperador das Línguas-de-Fogo-de-Pentecostes,
passando de Acadêmico comum a Emérito, na Academia Taperoaense
de Poesia, Cadeira nº 7; o que, sendo esta a dos 7 dons do Espírito
Santo, significará mais um passo que darei em meu caminho para a
imortalidade.

GUSTAVO PASO
Mestre, perdoe minha ignorância, mas nunca ouvi falar nesse
Prêmio ao qual Dom Paribo Sallemas acaba de se referir. De onde vem
ele e qual seu verdadeiro significado?

DOM PANTERO
Meu caro Gustavo, não fale assim de um Prêmio literário que,
para os verdadeiros Críticos do mundo inteiro, é hoje considerado mais
honroso do que o Nobel! Seu nome, pelas letras X , E e R , que o iniciam,
alude a Dom Garci Ferrandes Xerena de Cordobal, o grande Poeta
galego do século XIV; A , S e S , referem-se a Machado de Assis; U , N , H
e A , a Euclydes da Cunha; C , A , M e O , a Camões; e, finalmente, V , A ,
N , T , E e S , a Cervantes. Note, então: dois grandes Brasileiros, um
Português, um Galego e um Espanhol; o que torna o Prêmio ainda mais
significativo, porque a Cultura brasileira, a portuguesa, a galega e a
espanhola são as melhores e mais importantes do Mundo!

DIEGO MAYNAR BOSTEZO


Senhores participantes do Simpósio Quaterna , Vocês sabem que
Antero Schabino, tio e mestre de Antero Savedra, era homem de uma
vaidade doentia, que chegava às raias da loucura. O sobrinho e
discípulo é do mesmo jeito, mas com uma agravante: o Tio era um
vaidoso assumido e sincero; o discípulo e afilhado é um falso-modesto
vaidoso e hipócrita, que vive tentando se passar por humilde e discreto,
referindo-se de instante em instante a suas muitas e variadas “
limitações ”.
Mas a verdade tem muita força e, de vez em quando, a vaidade
arrebenta a máscara de modéstia com a qual Antero Savedra se
disfarça. Então ele aparece como verdadeiramente é. Foi o que
aconteceu agora com a enumeração desses títulos insanos e a
referência a esse Prêmio ridículo. É por isso que, “ modesto e limitado ”
como se diz, ele está exigindo que seus Entrevistadores só se dirijam a
ele chamando-o de “ Mestre ”.

DOM PANTERO
Você está redondamente enganado, meu caro! Explico: como “
pessoa civil ” estou sinceramente convencido de que sou um homem
comum, modesto e cheio de limitações. Acontece que, agora, não é
Antero Savedra e muito menos Mariano Jaúna quem está aqui no Palco,
não. É Dom Pantero — e para ele eu sou forçado a exigir o tratamento de
Mestre .
O que estou dizendo pode até parecer contraditório; mas só
ousei conciliar a modéstia e as limitações de minha pessoa com a
importância do Simpósio porque o Velho que assumo ao entrar no Palco
é um Velho-de-Presépe , um Velho-de-Pastoril ; e o Mestre que com ele se
funde é um simples Mestre-e-Capitão-de-Cavalo-Marinho . Tenho direito
a ambos os títulos por ser o Velho do grupo das jovens Pastoras que
tomam parte nas minhas Aulas-Espetaculosas, à frente das quais se
encontram Luziara, Lucinda e Maria Iluminada; e por ser o Mestre dos
diversos Brincantes , Guerreiros e Folgazões que também comparecem ao
Palco do Circo-Teatro Savedra .
Agora, estou ciente de que o grupo dos equivocados, ao qual
Você pertence, discorda de tudo isso e vive falando mal não somente
dos Savedras mas de todas as obras que eles nos legaram.
Por isso, tenho muitas queixas contra Vocês; queixas cívicas , se
me permitem a expressão, porque falar mal da obra dos Savedras é o
mesmo que falar mal do Brasil. E minhas queixas são perfeitamente
justificadas porque é principalmente por influência dos equivocados
que os grandes Jornais recifenses, numa sistemática campanha-de-
silêncio muito bem organizada, omitem cuidadosamente qualquer
referência ao teatro de Adriel, ao romance de Auro e à poesia de Altino.
Consolo-me do desgosto que isso me causa lendo os jornais do
interior do Nordeste — periódicos como a Vanguarda , de Caruaru; A
Província , de Goiana; O Monitor , de Garanhuns; o Jornal da Paraíba e o
Diário da Borborema , de Campina Grande; O Mossoroense e a Gazeta do
Oeste , do Sertão norte-riograndense; a Gazeta do Agreste , de Gravatá; o
Correio da Cidade e o Portal do Sertão , de Arcoverde; mas
principalmente os mais importantes e imparciais de todos: a Gazeta do
Cariry , de Taperoá, A Voz de Igarassu e O Regional , de São José do
Belmonte.
Nestes Jornais, pessoas muito mais argutas e bem informadas
do que os profissionais da Imprensa recifense têm se manifestado
sobre os Savedras de modo desvanecedor, mas sempre justo.
E como em Portugal ocorre contra nós campanha parecida, este
animoso e bem-humorado Velho que é Dom Pantero, para se
compensar de tão injusto silêncio, de tão cruel indiferença (quando não
declarada hostilidade), costuma ler e reler o que escreve sobre nós o
mais agudo e generoso de todos os Críticos portugueses
contemporâneos, José Cardoso Marques, intelectual que não se
contenta em afirmar corajosamente suas opiniões: divulga também as
de outros de suas relações, como Mário Martins e Gabriel Ferro, todos
eles admiradores dos Savedras.

DIEGO MAYNAR BOSTEZO


Acontece que, no Recife, existe a suspeita de ser José Cardoso
Marques um personagem fictício, um pseudônimo de Antero Savedra,
que na verdade seria o autor real de todos os artigos elogiosos dados
como dirigidos aos Savedras e atribuídos pelo irmão deles a José
Cardoso Marques, Mário Martins, Gabriel Ferro e outros imaginários
intelectuais portugueses!

DOM PANTERO
Senhoras e senhores participantes do Simpósio, essa é uma
versão maldosa dos nossos equivocados adversários; e Diego Maynar só
a menciona aqui porque descende de Espanhóis e escoceses, e, por isso,
implica com Portugal. Como Vocês sabem, em Espanhol bostezo significa
bocejo , e Diego descende do Fidalgo espanhol Dom Rodrigo Bostezo
Garcia, assim chamado porque costumava bocejar de tédio nas reuniões
do Conselho Real presidido por El-Rei Dom Fernando, O Católico (que
foi quem, por isso, lhe colocou a alcunha de Rodrigo “Bostezo”, depois
incorporada ao nome de Dom Rodrigo Garcia).
Dom Rodrigo passou a Portugal, onde se casou com uma Dama
ilustre, Dona Isabel Maynar, descendente de outro Fidalgo, este escocês,
e que viera para a Península Ibérica no séquito da Rainha Dona Filipa
de Lancastre, mulher de Dom João I. Entretanto, a velha hostilidade
castelhana contra Portugal permanecia viva em Dom Rodrigo Bostezo
Garcia — e ele a transmitiu a todos os seus descendentes.
Explicada, assim, a origem da implicância de Diego Maynar
Bostezo com os intelectuais portugueses, quero esclarecer de uma vez
por todas que José Cardoso Marques existe, mora em Fânzeres, perto do
Porto, tem, como Gil Vicente, a bela e honrosa profissão de Ourives, e se
não é Dramaturgo como o autor d’ A Barca do Inferno , é um intelectual
e amante da Literatura (que, sozinho, é mais inteligente e tem mais bom
gosto do que todos os nossos equivocados adversários juntos).

PAULO ALEXANDRE ESTEVES BORGES


Mestre, eu vou viajar para Portugal dentro de poucos dias. O
senhor pode me dar o endereço dele para que eu possa conhecê-lo?

DOM PANTERO
Não, infelizmente não! Eu o tinha, anotado, mas perdi-o na cheia
que, em 1975, inundou o Recife e na qual perdi livros e papéis
preciosos. Nossa Casa recifense fica à beira do Rio Capibaribe e foi
inteiramente alagada pela enchente.

VIRGÍLIO MAIA
Mas não foi em 1970 que Você voltou aqui para Taperoá,
Mestre?

DOM PANTERO
Não, 1970 foi apenas a data em que vim aqui pela primeira vez
depois da nossa mudança para o Recife. Minha volta definitiva
aconteceu depois; e, mesmo assim, eu vim só, na frente: meus livros e
papéis vieram posteriormente, após a morte misteriosa de Adriel, meu
irmão, quando assumi Eliza e seus Filhos como a única Família que
ainda tenho no Mundo — decisão que tomei depois de meu encontro
com Quaderna, Clarabela, o Doutor Pedro Vandiwoyah e sua Mulher,
Ashera Acken.
GUARACIABA MICHELETTI
Mestre, segundo afirmava Nietzsche, alguns dos maiores títulos
de glória, algumas das melhores e mais consagradoras definições que
recebemos são as alcunhas pretensamente infamantes que nossos
inimigos nos colocam. Os apelidos postos em seu Tio pelos adversários
de Vocês tinham alguma coisa a ver com isso?

DOM PANTERO
Tinham, tinham tudo a ver! Tanto assim que ele ficou
profundamente orgulhoso ao tomar conhecimento de que um
intelectual do interior de Pernambuco, procurando caricaturar sua
pessoa e sua linguagem dialética, publicara, no jornal Vanguarda , de
Caruaru, um artigo no qual afirmava: “ Dos nordestinos arcaicos e
nefastos ao Brasil já morreram Antônio Conselheiro, tese , Lampião,
antítese , e Padre Cícero, contrátese ; de modo que agora, para eliminar, de
vez, a corja, só falta morrer a síntese de todos eles, Antero Schabino. ”
VERNAIDE WANDERLEY
Mestre, não leve a mal minha estranheza; mas é verdade que seu
Tio ficou orgulhoso ao ler uma frase insultuosa como essa?

DOM PANTERO
É claro que ficou, como eu também ficaria, se ela fosse
pronunciada a meu respeito! Sendo Antônio Conselheiro, Lampião e
Padre Cícero 3 grandes Mitos brasileiros — um Profeta, um Guerreiro e
um Santo —, são Personagens somente comparáveis aos maiores da
Literatura universal; e poderia haver, para nós, companhia mais
honrosa do que a deles?

MÁRIO GUIDARINI
Mestre, Você não acha que, em vez de honrosa, a frase tinha era
alguma coisa a ver com aquelas alcunhas de Antero Mitoma e Antero
Megalo que davam a seu Tio no Recife?

DOM PANTERO
É verdade, como eu disse há pouco, de passagem; os
equivocados chamavam meu Tio, Mestre e Padrinho por esses nomes,
afirmando que, “ além de megalomaníaco ”, ele era “ um mentiroso, um
mitomaníaco ”. Coitados, não percebiam que, ainda aqui, estavam mais
uma vez homenageando Antero Schabino e nele reconhecendo as
características de todo Poeta de gênio!

ÂNGELA BEZERRA DE CASTRO


Mestre, ao que sabemos, todas as obras publicadas por seu Tio
foram escritas em prosa. Por que, pois, o senhor o considera como um
Poeta, e, ainda mais, de gênio?

DOM PANTERO
Minha filha, tenha cuidado com suas perguntas para depois não
aparecer mal em folha impressa, caso eu venha, mesmo, a concordar
com a Entrevista que Vocês solicitaram! Primeiro, quero lembrar que,
se A Onça Malhada e O Desejado foram obras escritas em prosa, meu
Tio concebera A Divina Viagem como um misto de Poema e Novela-
Épica, composto em verso e prosa ao mesmo tempo. Para realizar a
obra, ele já vinha se preparando cuidadosamente há bastante tempo:
entre outras coisas, comprou um Dicionário de Rimas e aprendeu a
metrificar, com Auro e Adriel.
Infelizmente, antes de levar seu plano a cabo, deixou-se
surpreender pela Morte. Mas quero deixar claro que ele tomava aquelas
providências apenas por precaução e para não oferecer flanco
desprotegido a nenhum ataque dos equivocados.
Falo assim porque, mesmo que só tivesse publicado aquelas
duas obras, não haveria nada de estranho em ser meu Tio considerado
um Poeta — e de gênio! Como falei há pouco respondendo às injustas
ponderações do equivocado Diego Maynar Bostezo, chamavam meu Tio
e Mestre de megalomaníaco, e ele respondia, com razão, que todo
grande Escritor é assim porque “ a própria vertiginosa possessão do
gênio o leva a isso ”.
Entretanto, escreva em prosa ou em verso, o Gênio é, antes de
tudo, um grande criador, e portanto um Poieta — um Poeta! Dos
antecessores do genial criador que concebeu A Divina Viagem , Dante,
que escreveu em verso, é o grande Poeta-nacional da Itália. Mas
Cervantes, que escreveu em prosa, é o da Espanha. Vejo sempre o Dom
Quixote como um grande Poema épico-humorístico — e não só por
causa da grande quantidade de Sonetos, Redondilhas e Romances que
povoam os Castelos, estradas e hospedarias por onde erram Sancho e o
Cavaleiro da Triste Figura: é o universo inteiro da grande Novela que se
plasma ao impulso e ao ritmo poético de uma Prosa de gênio.
Fato semelhante ocorria com A Onça Malhada , de Antero
Schabino, e com o Romance d ’ A Pedra do Reino , de meu irmão Auro:
em ambos esses Livros — e como acontece também com a Divina
Comédia e o Dom Quixote — uma espécie de ritmo musical e dançarino
é imposto pelo Poieta a todo o universo plástico e literário da obra. É
algo semelhante ao que sucedia com a tragédia de Ésquilo e a comédia
de Aristófanes, onde o Coro canta, recita, toca e dança, e a Música é o
grande impulso que, do subterrâneo, impregna todo o chão poético em
que se movem seus criadores e seus Personagens.
Era daí, portanto, que se originava aquilo que, em meu Tio, se
considerava como megalomania. Quanto à outra acusação — a de ser
ele também um mitomaníaco —, não viam aqueles medíocres
ressentidos recifenses que tal palavra vem de mito , e o Mito é o outro
chão sagrado, a única Fonte da qual podiam brotar os sonhos, as
quimeras e as visões de um Poieta como Antero Schabino.

GERALDO DA COSTA MATOS


Mas A Divina Viagem não chegou a ser escrita, Mestre! Assim,
peço-lhe que faça do Romance d ’ A Pedra do Reino o centro da
Entrevista que o senhor nos está concedendo; por dois motivos:
primeiro, porque já foi publicado; e, segundo, porque é o Romance
escolhido para ser objeto de uma releitura, aqui no Simpósio!

DOM PANTERO
Alto lá, a Entrevista ainda não está sendo concedida! Por
enquanto estou alinhando minhas palavras apenas numa espécie de
Aula-Espetaculosa em ponto grande! Só concordarei em transformá-la
numa Entrevista se notar que posso fazer desta uma Narrativa, como A
Odisseia ou O Asno de Ouro , e ao mesmo tempo um Diálogo, como
Fedro e O Banquete . E aviso logo: se vier a ser concluída, A Divina
Viagem será composta de várias partes independentes; partes que
podem ser lidas separadamente mas que integram um conjunto de
unidade perfeita, assim como, na Santíssima Trindade, as diversas
Pessoas são distintas mas unidas em uma só Natureza.

DIEGO MAYNAR BOSTEZO


Senhor Antero Savedra, seu Tio era conhecido pelo hábito,
saudável, mas não propriamente modesto, de, a qualquer propósito —
ou mesmo a propósito de coisa nenhuma —, viver se comparando a
Escritores que são dos maiores que a Humanidade já conheceu. Hoje,
porém, o senhor (que vive afirmando ser um homem modesto e cheio
de limitações) está indo mais longe do que ele, porque é à própria
Santíssima Trindade que recorre, para fazer suas comparações; o que,
sendo o senhor católico, é uma atitude até sacrílega! Então eu lhe
pergunto: será que pessoas tão “ilustres” e obras tão “importantes”
quanto as dos Savedras cabem nos estreitos limites de uma Entrevista?

DOM PANTERO
E quem lhe disse que a Entrevista é um gênero limitado e
menor? Dependendo de quem pergunte, de quem responda e de quem
transcreva, a Entrevista pode alcançar a maior qualidade possível a
uma obra literária! Não sei como não ocorreu ainda a Vocês que A
Divina Comédia , por exemplo, é uma espécie de Diálogo neoplatônico
no qual Dante, fazendo o papel de Platão — isto é, o de jovem Discípulo
—, entrevista Virgílio, que desempenha o de Sócrates, o Mestre .
Tal fato eleva o Diálogo (e consequentemente a Entrevista) à
altura dos maiores gênios e gêneros literários; e Vocês, “ jornalistas e
intelectuais pós-modernos ”, Vocês, que seriam os grandes interessados
em divulgá-lo, não o percebem! É preciso que fale dele um “ arcaico ”
como eu para que o notem pela primeira vez!

Mas não sabe o que é isso não, meu caro? É porque, arcaico
como fosse, aquele era o nível, o clima, a altura em que se movia Antero
Schabino, Elo nº 7 de uma Áurea-Catena cujos anéis anteriores são
Homero, Plauto, Apuleio, Dante, Calderón e Cervantes — um grego, um
latino, um norte-africano, um florentino e dois iberíadas (no caso,
espanhóis). Como sempre acontece em tais Catenas, nesta existe uma
Quaterna-de-Ouro , e a daqui é composta pel’ A Divina Comédia , tese,
Dom Quixote , antítese, O Grande Teatro do Mundo , contrátese, e A
Divina Viagem , síntese, por ser a consumação de tudo aquilo que as 3
Obras anteriores apenas anunciavam.

DANIELA DE LACERDA
Naquelas palavras que pronunciou há pouco respondendo a
Diego Maynar, Mestre, existe um ponto que para mim não ficou muito
claro: o senhor acha, mesmo, que A Divina Comédia é um Diálogo,
semelhante aos de Platão?
DOM PANTERO
Tenho plena certeza disso! Não é por acaso que o amor de Dante
por Beatriz é considerado como o protótipo da paixão idealizada e
platônica. Note que estou dizendo idealizada , e não espiritualizada !
Espiritualizada era a paixão que unia Santa Clara a São Francisco de
Assis, Santa Teresa a São João da Cruz, Santa Joana de Chantal a São
Vicente de Paulo e Santa Maria Vilanova a Santo Antônio Conselheiro. A
de Dante por Beatriz era apenas idealizada.

MARIETA SEVERO
E quando estiver pronta, Mestre, A Divina Viagem terá alguma
coisa a ver com os Diálogos , de Platão, e A Divina Comédia , de Dante?

DOM PARIBO SALLEMAS


Alguma coisa , não, terá tudo a ver! Mesmo não estando pronta,
esse parentesco é mais do que evidente! Veja, como prova, esse fato: n’
A Divina Comédia , o Narrador e personagem-central, Dante, desce aos
Infernos — o que, antes, já sucedera a Ulisses, n’ A Odisseia , e a Eneias,
n’ A Eneida ; e fato semelhante ocorre a Dom Pantero em sua incursão
pelo Reino Perigoso do Ladrido.

DOM PANTERO
Mas existe outra relação entre as duas obras: logo no primeiro
Canto de seu Poema, Dante — é verdade que sem muito entender o que
dizia — faz referência a um certo e misterioso Veltro que, oposto à Loba
, é uma espécie de anúncio incompleto, vago e imperfeito d’ O Encoberto
(núcleo e obsessão da obra dos Savedras). Fala Virgílio a seu jovem
Discípulo:
VIRGÍLIO CRISTIANO MARTINS SAVEDRA
“A Loba horrível que está te assustando não abre pra ninguém a
sua Estrada, e a quem encontra nela vai matando.
“De natureza fera e desgarrada, alimento nenhum pode saciá-la:
quanto mais come, mais esfomeada.
“Com Bestas numerosas se acasala cada vez mais, até que, no
final, o Veltro surge, para aniquilá-la.”

DOM PANTERO
Com exceção dos equivocados, todos, aqui, devem ter entendido
que a Loba é uma recriação florentina da Esfinge edipiana e grega. Mas
Dante apenas balbucia aquilo que, n’ A Divina Viagem , aparecerá claro
e iluminado. Inclusive, ele comete um erro em que os Savedras — fiéis
admiradores e paladinos das Mulheres — jamais incorreriam:
apresenta o Veltro, macho, como símbolo do Bem, e a Loba, fêmea,
como o do Mal. Qualquer um dos Savedras desdobraria logo esses 2 em
4 — o Veltro e a Veltra, o Lobo e a Loba.
Mas temos que desculpar Dante, porque, sendo apenas um filho
quase-legítimo da Rainha do Meio-Dia, jamais poderia ter olhos capazes
de enxergar O Encoberto e A Encoberta — aquelas Figuras sacratíssimas
sem cuja presença a obra dos Savedras não poderia sequer ter sido
imaginada.

JOSÉ VIDAL
Mestre, não se ofenda com o que eu vou dizer, mas, para nós, é
estranho que o senhor coloque ao lado d’ A Divina Comédia uma obra
que, como A Divina Viagem , nem sequer foi escrita ainda!

DOM PANTERO
É uma questão de parentesco. Guardadas as devidas proporções
— e qualquer que seja a importância de cada uma dessas obras quando
consideradas separadamente —, elas se filiam à mesma linhagem.

KILMA DE BARROS PINHEIRO


Suas palavras, Mestre, do jeito como foram formuladas, parecem
ambíguas! O senhor diz “ guardadas as devidas proporções ”, mas, para
nós, não fica bem claro qual das duas obras, na sua opinião, é a mais
importante.

DOM PANTERO
Então vocês se limitem a transcrever o que eu disse com a maior
exatidão, sem avançar qualquer “ esclarecimento ” ou interpretação não
autorizada das minhas palavras.
VILMA BARBOSA DIAS
Mestre, não leve a mal o que eu vou perguntar, mas nunca lhe
ocorreu que podem cair mal, para a Obra que seu Tio projetava
escrever, as insistentes aproximações com o imortal Poema composto
por Dante? Lembro, primeiro, que o grande Poeta florentino chamou
modestamente seu Poema de A Comédia : Boccaccio foi quem, depois,
acrescentou ao título a qualificação de Divina , que a posteridade
definitivamente incorporou à obra.
Além disso, até os dois títulos, parece que de propósito, se
assemelham — A Divina Comédia , A Divina Viagem ! Este paralelo não
o incomoda?

DOM PANTERO
Incomoda, sim: o título d’ A Divina Viagem foi escolhido por
meu Tio, que, às vezes, era um tanto pretensioso. Por isso, estou
inclinado a mudá-lo para outro que, na linha de Machado de Assis,
Graciliano Ramos e João Cabral de Melo Neto, é bem mais simples, seco,
sóbrio e despojado — A Ilumiara . Note bem: não A Divina Ilumiara ;
pura e simplesmente A Ilumiara . Como A Odisseia ! Ou como A
Orestíada , que também é uma obra musical, dançarina e teatral, “ uma
Tragédia composta segundo o espírito da Música ”. Mas penso também
em colocar-lhe o título de Dom Pantero (ou o de Romance de Dom
Pantero no Palco dos Pecadores ).
Entretanto, mesmo que eu mantenha o título dado por Tio
Antero ou que A Ilumiara não chegue a ser concluída, a aproximação da
obra dos Savedras com o Poema imortal de Dante não seria descabida.
Quero lembrar que A Pedra do Reino , Romance escrito por meu irmão
Auro (e obra muito menos importante e abrangente do que A Ilumiara ),
foi comparado — e não por mim! — com A Divina Comédia . Ouça a
referência que, sobre isso, foi publicada n’ O Regional , de São José do
Belmonte, pelo admirável Hermírio de Carvalho:

HERMÍRIO SAVEDRA DE CARVALHO FILHO


“O Romance d’A Pedra do Reino é um Livro extraordinário, como
criação, recriação, fabulação, linguagem, tipos, diálogos, atmosfera
mágica, comicidade, erotismo, epopeia. Não sou lá muito de comparações,
mas se me perguntassem com que livro eu o compararia, não teria
hesitação: com A Divina Comédia . É o mesmo ‘passeio’ do Personagem
por um mundo enigmático, que é, ao mesmo tempo, o Mundo, Deus e seu
dilacerado mundo interior; são os mesmos pecados, a mesma pequenez e
a mesma grandeza humanas. É, também, dentro das paixões que se
chocam, a serenidade: de um lado, a serenidade do irremediável; do
outro, a da Divindade, que parece ter uma certa predileção por esse
mundo de cactos, pedras, cabras, onças, cavalos pequenos e velozes,
homens duros.
“Tudo isto se movimenta numa atmosfera que não é a da
realidade e não é a do sonho: Auro Schabino ‘criou’ uma realidade; e,
criando-a, permite-se, com toda propriedade poética, jogar com os
elementos mais fantásticos de sua imaginação.
“Eis aqui, parece-me, a recriação mais fascinante que já me foi
dado observar em nossa Literatura de um elemento popular, no caso a
Literatura de Cordel. O clima é o mesmo, a arbitrariedade e o embalo
poético também. Tudo isto, numa imensa ‘Plataforma’ tão cara às Peças
de Teatro de seu irmão Adriel Soares e da qual o Romance d’A Pedra do
Reino não fugiu: a do palco do Mundo, a do picadeiro do Circo — herança
mediterrânea de Calderón de la Barca e que se transforma no Romance,
colocando-nos na posição privilegiada de sermos, ao mesmo tempo,
espectadores e Atores. Está aí, talvez, a maior mágica d’ A Pedra do Reino
: Auro Schabino fez um Romance ‘circular’, de arena, envolvendo na
mesma ação personagens e leitores. Repetindo a comparação que fiz a
princípio, lembro que A Divina Comédia também é um Livro ‘circular’.
“O livro de Auro Schabino é um Romance com princípio, meio e
fim; que conta uma história ‘real’ e ‘fantástica’; em que, de repente,
surgem umas surpresas doidas; em que os homens não são totalmente
perfeitos; em que a Divindade de vez em quando dá seus palpites; em que
os amores ora são cândidos ora são lascivos; em que se ri e em que se
chora.
“Isto como tem acontecido desde o Teatro grego. É tal o
entrosamento de Auro Schabino com as fontes mais puras do popular
brasileiro que, criando dentro dele ou recriando sobre ele, inventando ou
reinventando, compõe uma Obra lírica e trágica ao mesmo tempo.
“Para terminar, digo que, há 12 anos passados, quando Auro
Schabino partiu para escrever o Romance d ’ A Pedra do Reino , eu sabia
que ele iria escrever ‘um Livro-maior’. Valeu a pena esperar. Seu Romance
será lido e relido por mim no mesmo pé de igualdade com Almas Mortas ,
de Gógol, Os Demônios , de Dostoiévski, Dom Quixote , de Cervantes, e as
Confissões , de Santo Agostinho.”

PAULO ROBERTO GUAPIASSU


Mestre, nunca ouvi falar no autor desse artigo; mas gostaria
muito de citá-lo no texto que, por acaso, venha a escrever sobre o
Simpósio. O senhor tem o recorte d’ O Regional em que ele foi
publicado?
DOM PANTERO
Não. Eu o tinha, mas perdi-o também, na cheia de 1975.

MARIA ZÉLIA DE LUCENA NUNES


E Cervantes, Mestre? Por que o senhor coloca seu Tio entre ele e
Dante, dizendo até que A Ilumiara representará a consumação daquilo
que seus antecessores apenas anunciavam?

DOM PANTERO
É que Cervantes é outro Poieta, outro Escritor de gênio que, ao
empreender sua Narrativa, faz com que o Cavaleiro da Triste Figura,
como um Ulisses ou um Eneias demente, desça àquele misto de Selva-
selvagem e Hades-ibérico que é a Cova de Montesinos .

RIVALDETE OLIVEIRA DA SILVA


Mestre, lembro ao senhor que nunca Dom Quixote delirou e
mentiu mais do que ao contar aquela descida!
DOM PANTERO
Por mais que o fizesse, não delirou nem mentiu mais do que
Dante ao narrar sua incursão ao Inferno: o que mostra, mais uma vez,
que as mentiras e os delírios de meu Tio e Mestre eram apenas provas
de seu gênio (resultante da fusão do hemisfério Rei , dantesco, com o
hemisfério Palhaço , cervantino).
Além disso, o Dom Quixote é também um enorme Diálogo, uma
Divina Comédia que, sendo cavaleiresca como A Demanda do Santo
Graal ou Tirante, O Branco , é, ainda, picaresca e milésica, como O Asno
de Ouro (e é em homenagem a Apuleio que talvez a primeira parte d’ A
Ilumiara venha a se chamar O Jumento Sedutor ). O casto Cavaleiro que é
Dom Quixote é um Galaaz insano, montado em Rocinante; ou um Dante-
envelhecido nunca montado — a não ser alegoricamente,
platonicamente — em sua Beatriz, Dulcineia. Cervantes fez assim para
que seu Dante-Cavaleiro fosse procurar Virgílio, o Mestre, e, ao invés
dele, terminasse por encontrar aquela fusão de Lúcio-apuleico e
Lazarilho-tormesino que longamente o entrevista na pessoa de Sancho.

MARTIM SIMÕES
Mestre, peço desculpas por aquilo que pode até parecer uma
impertinência minha; mas suas ideias são de tal modo “ originais ” que
eu gostaria que o senhor as esclarecesse mais detalhadamente.

DOM PANTERO
Julgo notar um leve tom de ironia seu ao falar da “originalidade”
de minhas ideias! Ou será que estou enganado?

MARTIM SIMÕES
Completamente enganado, Mestre! Deus me livre! Queria pedir
apenas que o senhor fosse mais claro sobre esse parentesco entre A
Ilumiara e o Dom Quixote , assim como sobre a natureza musical da obra
de Cervantes (já que A Ilumiara não está pronta ainda).

DOM PANTERO
Vou começar pelo fim, porque não gostei de sua insistência em
acentuar que A Ilumiara não é, ainda, uma Obra acabada. Já disse, há
pouco, que, enquanto ela não se põe de pé, terá, para falar por ela, o
Romance d ’ A Pedra do Reino , de meu irmão Auro, que morreu sem
terminá-lo. É como se a tradição de minha Família fosse nunca fechar
suas Obras, que, no entanto, receberam a maior compreensão, quanto
ao inacabamento, por parte daquele extraordinário escritor que foi
Gabriel Ferro. Ele assim falou do romance de Auro no jornal O Monitor ,
de Garanhuns:

GABRIEL SCHABINO FERRO


“O Portugal verdadeiro só pode ser encontrado hoje num Brasil
mais lusíada do que o Portugal remanescente do seu fracasso histórico.
Aqui, sobretudo no Nordeste, existe a Pedra do Reino (como existe, ainda,
a recordação do Arraial de Canudos). Antônio Conselheiro, o Profeta
rústico do Sertão nordestino, é como um novo Encoberto. E, no Recife,
Auro Schabino escreve o seu Romance d ’ A Pedra do Reino , uma Obra de
gênio, sem igual em nossa língua: é, ainda e sempre, a mesma Pedra que,
na profecia de Daniel, se transforma numa montanha e enche a Terra
inteira, e que é o Quinto Império, o Império de Deus. E, ainda que tenha
ficado incompleto, aquele Romance é como as Capelas Imperfeitas do
Mosteiro da Batalha , as quais, mesmo inacabadas, constituem uma Obra
de gênio criada por um Povo de língua portuguesa; e que, portanto, no
campo da Arquitetura, significam o mesmo que o Romance d ’ A Pedra do
Reino no da Literatura.
“O que Auro Schabino fez foi realizar, prodigiosamente, em
Romance, na dupla dimensão do histórico-existencial e do mítico-popular,
algo de equivalente a uma maravilhosa Viagem onírica, na descoberta do
inconsciente coletivo ou arcaico — Viagem que remonta a todo o passado
próximo e longínquo da Humanidade; algo que transcende a esfera do
individual e que, afinal, é o registro orgânico e ativo, embora secreto, da
memória mítica e simbólica, herdada das gerações anteriores; tudo
convergindo, porém, no seu gênio de escritor.
“Auro Schabino só pode ser valorativamente apreciado na
altíssima perspectiva dos grandes criadores literários, junto daqueles que
realmente ultrapassaram as ‘escolas’, as ‘correntes’, as ‘modas’, para
ascender — através da verdadeira ‘escada de Jacob’ que é o concreto de
sua identidade pessoal inserta na identidade coletiva e, por assim dizer,
metafísica de seu Povo — até ao que realmente é o universal.
“Mas a interpretação da oba de Auro Schabino ficaria incompleta
se não apontássemos e entendêssemos o elemento picaresco, nele sempre
complementar do dramático e do épico-mítico. É o humor amargo,
quando não trágico, nas linhas convergentes do épico e do picaresco,
linhas convergentes da matriz camoniana e sebástica (o Rei ), cervantina
e quixotesca (o Palhaço ).
“O mesmo é apontar que, por obra e graça de um grande Escritor
de língua portuguesa, Dom Sebastião e Dom Quixote se reencontram
agora no Sertão nordestino — eles que são os dois arquétipos mais
profundos e poderosos da intra-história ibérica, o anverso e o reverso da
moeda de ouro peninsular.
“O protagonista do romance de Auro Schabino é um misto de
manhoso e positivo Sancho e de Quixote sonhador. No fundo de sua alma
é apaixonadamente crente no mito do Encoberto, que um dia virá, no seu
Cavalo branco, para elevar o Brasil ao plano de Nação messiânica e
redentora: é sempre o paradoxo do picaresco e do épico, trazendo ao
espesso da terra e ao grotesco dos homens todo o onírico, o axiológico e
mesmo o escatológico que um dia encarnaram num mito ibérico e que
reencarnaram na riquíssima Mitogenia brasileira que Auro Schabino
exprimiu e assumiu, com a paixão e a graça de seu gênio.”

DOM PANTERO
Quanto à outra questão levantada por Martim Simões, volto à
observação que fiz quando disse que A Ilumiara há de ser a fusão de
uma Farsa com “ uma Tragédia composta segundo o espírito da Música ”.
Falei, também, na importância que tiveram as Variações musicais para a
concepção deste Simpósio — que, como todos já puderam ver, é um
Espetáculo musical, dançarino, literário, mímico, teatral e vídeo-
cinematográfico.
Pois bem: não sei se Vocês sabem que Pabst fez uma versão
cinematográfica do Dom Quixote ; que Nureiev fez, dele, um Balé, com
música de Ludwig Minkus e inspirado na coreografia de Mário Petipa;
que Ricardo Strauss compôs as Fantásticas Variações Dom Quixote , para
Violino, Viola, Violoncelo e Orquestra; e Manuel de Falla o Retábulo de
Mestre Pedro , com um grande barítono espanhol no papel de Dom
Quixote .
Ora, sempre achei que, sendo o soprano das cordas, o Violino é
fêmea e deveria chamar-se a Violina (e não o Violino ). Já a Viola, tenor,
é macho, e deveria se chamar o Violo . O Violoncelo , barítono, também é
macho e deve permanecer com o nome que sempre foi o seu.
Por isso, se um dia eu me resolver a encenar o Dom Quixote
brasileiro, vou fazer dele um misto de Ópera, Teatro, Mamulengo, Balé e
Cinema, usando as Variações de Ricardo Strauss como trilha sonora e
com Dulcineia falando pela voz da Violina; Sancho pelo Violo; e Dom
Quixote pelo Violoncelo.
Agora, confesso que fiquei com medo de que, no futuro, Músicos,
Cineastas e Coreógrafos não se lembrassem de fazer com A Ilumiara o
mesmo que Pabst, Nureiev, Minkus, Strauss e Manuel de Falla fizeram
com o livro de Cervantes. E foi por isso que tratei logo de convocar, para
este Simpósio, Músicos como Antonio Madureira; Coreógrafas como
Heloísa Duque, Maria Paula Costa Rego e Marisa Queiroga; Dançarinos
como Ana Paula e Gilson Santana, Rosane Almeida, Antonio Nóbrega,
Pedro Salustiano, Jáflis Nascimento, Bruno Alves dos Santos e Natércio
Santana; Cantadores e Cantadeiras como Renata Máttar, Isaar França,
Renata Rosa, Oliveira de Panelas, Virgínia Cavalcanti e Edinaldo Cosmo
de Santana; tocadores de Flauta, Violino e Violoncelo, como Eltony
Nascimento, Sérgio Ferraz e Sebastian Poch; Encenadores, Cenógrafos e
Pintores como Romero de Souza Lima, Luiz Carlos Vasconcelos, José
Antunes, Manuel Savedra Jaúna e Eveline Borges; e Cineastas como Luiz
Fernando Carvalho, Marcus Vilar, Claudio Brito, Douglas Machado,
Rosemberg Cariry, Alexandre Montoro e Vladimir Carvalho: eu não
queria que, sob nenhum aspecto, a grande Obra sonhada por meu Tio,
Mestre e Padrinho ficasse como que ofuscada pelo Dom Quixote (que,
recordo, só teve esse caráter de Espetáculo depois, por obra de outros
Artistas, e não pelo Autor, no momento mesmo de sua criação, como
está acontecendo com A Ilumiara no Palco deste Circo-Teatro Savedra , a
partir desta data, sangrenta mas sagrada, que é 9 de Outubro de 2000
— ou melhor, sagrada por ter sido sangrenta a de 1930).

BENEDITO NUNES
Meu caro Antero Savedra, por motivos parecidos com os de Ivan
Neves Pedrosa, também me julgo dispensado do tratamento de Mestre
exigido por Você para Dom Pantero. Por outro lado, como Catarina
Sant’Anna, não sou nenhum equivocado, e dediquei um ensaio ao
Romance d ’ A Pedra do Reino , de Auro Schabino — ensaio no qual
destacava o caráter mítico daquela obra. Mas, sobre a relação desse
Romance com o Dom Quixote , gostaria realmente que Você fosse mais
claro.

DOM PANTERO
Quanto à dispensa do tratamento de Mestre, estou de acordo, se
bem que esteja também com medo de que, de exceção em exceção, a
prática se generalize: com as que concedi a Você e a Ivan são duas — e
basta!
Agora, a respeito de seu outro pedido, na verdade só tratei aqui
mais detidamente das semelhanças entre A Divina Comédia e o
Romance dos Encobertos (que, aliás, se dividiria em 3 partes, das quais
Auro só publicou uma — A Pedra do Reino ).
O Personagem principal da Trilogia era o Narrador, Quaderna,
que, na Guerra da Coluna , tentando se passar por um novo Dom
Sebastião, se apresenta sob o nome falso de Dom Sebastião Pereira.
Outros Personagens importantes eram João Tinoque (pai de João Grilo)
e Chico Furiba (pai de Chicó). Depois de ver a morte de João Tinoque e
Chico Furiba em Piancó — e sobretudo depois de ver a chacina ali
levada a efeito por integrantes da Coluna Prestes nas pessoas do Padre
Aristides Ferreira e de seus companheiros —, o Narrador deserta,
levando consigo os dois Meninos, Chicó e João Grilo. Sua fuga, até
Taperoá, seria, no romance de Auro, uma nova Demanda do Santo Graal ,
realizada no sentido de aquele novo (e falso) Dom Sebastião alçar-se a
uma altura maior do que a real, dele — o que aconteceria pela busca do
Cálice, capaz de promover sua transfiguração na figura do Encoberto.
Mas, para esclarecer melhor o que estou dizendo, vamos ouvir
Maria McBride, que, dotada de inteligência brilhante, revela excepcional
bom gosto na escolha dos textos aos quais se dedica. Dei a ela o
manuscrito das partes não publicadas do livro de Auro, e é com grande
alegria que lhe passo a palavra para apresentar aqui um resumo do
artigo que escreveu sobre o Romance e que eu, por intermédio de José
Américo de Lima, publiquei n’ O Correio do Sertão , de Petrolina —
Cidade situada às margens do São Francisco , o Rio mais sagrado do
Brasil.

MARIA SAVEDRA MC BRIDE


“Apesar de publicado em Folhetos e Encartes da Gazeta do Cariry ,
de Taperoá, interior da Paraíba, o Romance d ’ A Pedra do Reino , de Auro
Schabino, causou, no Sertão, impacto semelhante ao provocado pela
encenação do Auto d ’ A Misericordiosa e o Quengo Astucioso , peça
teatral de seu irmão Adriel Soares, encenada em 1956, num Teatro
situado em Campina Grande.
“O Personagem principal do Romance é Quaderna, um desertor da
Coluna Prestes , que foge de Piancó levando consigo dois Meninos, Chicó e
João Grilo, filhos de dois integrantes da Coluna, mortos em combate —
João Tinoque e Chico Furiba.
“E como, ao relembrar o Pai, Chicó, na medida em que envelhece,
vai também com ele se identificando, tanto sua história quanto a de
Quaderna vão assumindo, como Narração, o caráter e a forma de uma
outra Demanda do Santo Graal. ”

MÁRCIO RODRIGO
Aqui peço licença a Maria McBride, não para contestá-la, mas
para dizer que no próprio autor d’ A Pedra do Reino havia essa tentativa
de se identificar com o Pai, que ela acaba de apontar no personagem do
Romance.
“Filho do prefeito de Assunção, João Canuto Schabino de Savedra
Jaúna, assassinado em decorrência da sangrenta luta política que se
desencadeou na Paraíba às vésperas da Revolução de 1930, Auro
Schabino procurava reproduzir na área cultural e na Literatura o mesmo
caminho do Pai na Política. Preferia morrer a manchar-se , a abrir mão de
suas convicções e de seus ideais — fato raro em um mundo marcado pela
maleabilidade.
“Auro Schabino acreditava fielmente que o Sertão era o Mundo.
Costumava lembrar um trecho escrito por seu amigo Alceu Amoroso Lima
sobre aquele tema tão caro a ele: ‘Do Nordeste para Minas corre um eixo
que, não por acaso, segue o curso do São Francisco — o rio da unidade
nacional. A este eixo o Brasil tem que voltar de vez em quando, para não
se esquecer de que é Brasil’.
“O curso do Rio São Francisco exercia uma fascinação tão grande
em Auro Schabino que ele decidiu eleger dois Marcos artísticos, unindo as
extremidades do eixo entre Minas e o Nordeste. Elegeu o Santuário do
Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas, com os 12 profetas do
Aleijadinho, como o extremo mineiro. E, com ajuda do grande Escultor
popular Arnaldo Barbosa, começou a construir em São José do Belmonte,
junto às Pedras do Reino, um novo Santuário.
“No total, são 16 gigantescas Esculturas de pedra, dispostas num
círculo, no qual, segundo o idealizador, um semicírculo representaria ‘o
Sagrado’ e o outro ‘o Profano’.
“A ideia, vista à distância, poderia parecer um delírio de Auro
Schabino. E era. Definitivamente, ele não se incomodava com os
comentários que o comparavam ao personagem máximo de Cervantes:
‘Dom Quixote só poderia se considerar derrotado se não lutasse’, afirmava
ele, que não se importava se muitos julgavam perdida sua batalha em
defesa da Cultura brasileira. ‘A Cultura é a sede da alma e da honra do
nosso País’, observava ele.
“Gostasse ou não gostasse, quem quisesse, de tais ideias, Auro
Schabino, ‘o fidalgo do Sertão’, vivia convencido de que sua luta não era
travada contra os moinhos de vento quixotescos.”
DIANA MOURA
Acho curioso que Márcio Rodrigo fale assim, porque uma vez fiz
a dois professores de Literatura uma só e mesma pergunta sobre
Quaderna e Dom Quixote — e ambos responderam de um modo que a
meu ver lança luz sobre o assunto.
A pergunta nasceu do fato de que a história de um Cavaleiro,
utopicamente empenhado em mudar o Mundo para melhor, descreve
bem o personagem Dom Quixote, de Cervantes. Mas encaixa-se também
em Quaderna. Na minha opinião, mesmo um leitor pouco atento não
tem dificuldade para identificar tais aproximações entre Dom Quixote e
Quaderna, que, em certos momentos, chegam quase a travar um
diálogo.
Então, fiz a Carlos de Souza Lima e Anco Márcio Tenório Vieira a
mesma pergunta: “Que semelhanças existem entre Dom Pedro Dinis
Quaderna e Dom Quixote?”
Carlos de Souza Lima respondeu: “Ambos são apaixonados pelos
livros. Mas, quando têm que escolher, Dom Quixote decide por mudar o
Mundo pelas armas, enquanto Quaderna opta pela Literatura: ele
acredita que será capaz de escrever um grande Livro, o maior de todos,
capaz de fazer enxergar o Mundo com outros olhos.”
Já Anco Márcio Tenório Vieira respondeu de um modo que se
aproxima das palavras que Márcio Rodrigo acaba de pronunciar aqui.
Disse ele: “Todos nós sabemos que a luta de Dom Quixote era inglória;
todos somos Cavaleiros da Triste Figura, Cavaleiros que, de uma forma ou
de outra, somos sempre derrotados. Mas Dom Quixote também encerra
em si a luta dos pequenos e fracos contra os grandes e fortes, a luta de
Davi contra Golias. Dom Quixote era a possibilidade de que Davi pudesse
vencer, era o sonho de um Mundo diferente, a aposta na Vida. Em Dom
Pedro Dinis Ferreira Quaderna havia muito de Dom Quixote e do seu
espírito. Mais do que quixotesco, porém, ele era um ‘personagem’
picaresco. Neste ponto, acho que Auro Schabino era um ‘personagem’
muito mais quixotesco do que Quaderna. A luta dele por suas ideias —
por maiores que sejam as discordâncias que eu tinha e tenho em relação
a elas — era digna de louvor. Num Mundo em que as pessoas trocam de
ideias como quem troca de camisa, Auro Schabino se firmava por sua
obstinação e por sua estatura moral — o que, por si só, já era digno de
respeito e admiração.”
DOM PANTERO
Agradeço, aos dois, suas palavras, assim como agradeço a Diana
Moura, lembrado que estou da bela matéria que, no Jornal de Arcoverde
, ela publicou sobre as litografias, porcelanas e esculturas de Eliza de
Andrade, minha mestra de Gravura; assim como de outra sobre meu
sobrinho e filho-adotivo, Manuel Savedra Jaúna.

ROSETTE FONSECA DOS SANTOS


Mas agora vamos passar a palavra a Maria Odília Leal, para que
ela apresente seu brilhante Comunicado, que também se liga ao assunto
que estamos discutindo.

MARIA ODÍLIA LEAL


“A Demanda é a Aventura culminante que dá forma ao gênero da
Novela. Tem 3 Etapas principais: a da Viagem-perigosa , ‘Agon’, a da
Batalha-central , ‘Pathos’, e a da Exaltação-do-Herói , ‘Anagnorisis’.
“No romance (ou Novela) de Auro Schabino está presente ‘A
Viagem Perigosa’ na árdua Jornada que Quaderna empreende a cavalo,
por Estradas e descaminhos, atravessando a Caatinga espinhenta e
pedregosa até chegar à Pedra do Reino.
“A segunda etapa, ‘Pathos’, aparece quando ele, a pé, sobe a Serra
do Reino e entra em conflito com alguns membros de uma Família
inimiga: o significado da subida é óbvio e também faz parte da prova do
Cavaleiro ; trata-se de uma Ladeira íngreme, cercada de Mato espinhoso.
O Sol e o calor agravam o esforço da subida. O Herói acha que não poderá
suportar a prova e chega a pressentir a Morte iminente. Mas consegue
chegar ao cume da Serra, e coroar sua ‘batalha’ contra a Família inimiga
matando uma Onça, o que, para ele, assume as proporções heroicas de
um combate mortal.
“Finalmente, a terceira etapa da Demanda, a da ‘exaltação do
Herói’, acontece quando o Personagem se coroa e se consagra a si mesmo
como ‘Rei e Profeta do Quinto Império do Brasil’.
“Entretanto, a característica caleidoscópica, a contínua
transformação da Narrativa, faz com que, ao lado desta versão
idealizada e cavaleiresca da Demanda, apareça uma outra, realista,
irônica e picaresca.
“Olhadas dessa perspectiva realista, as Aventuras que acabaram
de consagrar o Personagem como Cavaleiro são bem semelhantes às de
Dom Quixote, constituindo também uma paródia da Novela de Cavalaria,
pois, em sua função de Narrador, o Herói, como um verdadeiro Pícaro,
revela, realística e despudoradamente, todos os truques de que se serviu
para projetar sua imagem heroica. Neste sentido, o Personagem — que,
primeiro, como Dom Quixote, é apresentado como um ‘ alazon ’ — agora
desempenha uma função semelhante à de Sancho Pança, ‘ eiron ’.

“Os termos ‘alazon’ e ‘eiron’ foram primeiro usados por


Aristóteles. ‘Alazon’ é o Personagem que tem ilusões sobre si mesmo, que
se acredita superior ao que realmente é. ‘Eiron’ designa o Personagem
que se deprecia, se menospreza.
“O Romance d ’ A Pedra do Reino pode, realmente, ser olhado
como uma Aprendizagem que toma um Pícaro, ‘Eiron’, e o transforma
num Cavaleiro, ‘Alazon’. Aí, segue evolução oposta à da obra-prima de
Cervantes, que termina com Dom Quixote chegando à evidência de que
não há futuro para o heroísmo, que ele é um Homem comum, ordinário, e
não um ser superior, um Herói semelhante aos da Novela de Cavalaria.
“Em suma: ao contrário de Dom Quixote, Quaderna parte da
realidade para terminar no idealismo; começa com uma Narrativa
irônica e termina com uma visão idealizada do Mundo. O gênio de Auro
Schabino se revela no acerto dos meios de que se utiliza para unificar
tantos e tão diversos elementos num todo orgânico.”

DOM PANTERO
Como se vê por aí, esta Mulher admirável que é Odília Leal, não
somente considera meu irmão Auro Schabino “ um gênio ”, mas
concorda com o que aqui se vinha dizendo sobre as semelhanças entre
o Dom Quixote e o Romance d ’ A Pedra do Reino — o que, sem dúvida, é
um dos maiores elogios que a este se podem fazer.

ASCENSO CAFÉ
Pois, a meu ver, o Comunicado feito por Odília Leal contém uma
crítica violentamente contrária ao romance de Auro Schabino e é um
desmentido frontal às palavras de Antero Savedra sobre as supostas
semelhanças entre A Pedra do Reino e o Dom Quixote — obras que,
segundo a própria Odília Leal, caminham em direções opostas: na de
Cervantes, Dom Quixote “ aprende que não existe futuro para o heroísmo
e que ele próprio é um homem comum ”; no romance de Auro Schabino
acontece o contrário com o ridículo “ Dom Pedro Dinis Quaderna, O
Decifrador ”. E eu gostaria de saber o que é que o “ iluminado ” Antero
Savedra tem a dizer sobre isso.

DOM PANTERO
Aquilo que Você chama de “ crítica violentamente contrária ” é
um dos maiores elogios já feitos ao Romance d ’ A Pedra do Reino .
Primeiro, porque mostra que o livro de Auro não é uma imitação
rasteira da genial Novela de Cavalaria escrita por Cervantes. Depois
porque a diferença apontada por Odília Leal termina assinalando o
único pecado, a única mancha do Cavaleiro da Triste Figura. Na minha
opinião, a única derrota verdadeira sofrida por Dom Quixote acontece
quando, no fim do Romance imortal, ele chega à conclusão de que seu
generoso Sonho era uma quimera grotesca, fantástica, ridícula, vã.

Mas mesmo que assim aconteça, isso não impede que nós, como
Sancho, admiremos e amemos o Cavaleiro; nem nos impede de ver que
Dom Quixote, por dentro e em alguns casos de sofrimento maior, tinha
consciência de sua terrível sorte.
Na verdade, é profundamente simpática e tocante a avaliação
que faz Sancho sobre seu senhor:

SANCHO SCHABINO DE SAAVEDRA


“Sou fiel a Dom Quixote. Somos do mesmo lugar, comi seu pão,
quero-lhe bem. Ele é agradecido e generoso, e já agora é impossível que
nos separe outro acontecimento que não seja o de jogarem algumas pás
de terra em cima de qualquer um de nós dois.”
DOM PANTERO
E não posso ouvir sem profunda piedade a dolorosa apóstrofe
em que Dom Quixote mostra como, mesmo enredado nas teias da
demência, enxerga a desventura de sua condição:

DOM QUIXOTE SCHABINO DE SAAVEDRA


“Nasci para ser exemplo dos desditosos e alvo das flechas da má-
fortuna. Sou o mais desgraçado de todos os Homens.”

DOM PANTERO
Nisto o Romance d ’ A Pedra do Reino tem um parentesco de
linhagem com o Dom Quixote ; e afasta-se do imortal Romance escrito
por Cervantes porque, nele, Quaderna mantém aceso até o fim, pela
Arte, o fogo de seu Sonho.
E o que digo do Personagem pode-se aplicar também a seu
criador: não importa que Auro Schabino (como nosso Pai e Adriel)
tenha sido assassinado pelos inimigos de seu generoso Sonho; do
tacanho e rasteiro ponto de vista dos ricos, dos poderosos e das “
pessoas sensatas ”, o Cristo também morreu derrotado — o que somente
aconteceria, porém, se Ele se resignasse a abandonar sua Missão,
concordando em passar de “ Alazon ” a “ Eiron ”.

CONSUELO PONDÉ
Mestre, uma vez ouvi Wellington Aguiar falar muito mal dos
Savedras. Além de ser contrário a “ todas as ideias arcaicas,
ultrapassadas e oligárquicas que os Savedras sustentam desde 1930 ”, ele
não perdoa o fato de que Vocês, ainda hoje, teimam em não aceitar a
mudança do nome da Cidade da Paraíba para João Pessoa .
DOM PANTERO
Querida Consuelo, entre os Paraibanos ilustres, dou importância
a Augusto dos Anjos por ter escrito o Eu ; a José Américo de Almeida,
por A Bagaceira ; e a José Lins do Rego por causa de Meus Verdes Anos ,
Banguê , Fogo Morto , Pedra Bonita e Cangaceiros .
Erae e Tidzi

João Pessoa e Wellington Aguiar são, sem dúvida, paraibanos


ilustres. Mas não me parece que tenham escrito obras da mesma
importância que aquelas. Ainda assim, caso a cidade natal de
Wellington Aguiar invente de mudar seu nome para Wellington Aguiar ,
não estarei de acordo, mas não moverei uma palha para evitar isso,
porque acho que “ cada Cidade tem o nome que merece ”.

LUIZ FERNANDO CARVALHO


Mestre, Altino, Auro e Adriel viam o Mundo e a Vida como se
fossem um Pasto incendiado. Qual seria o papel da Arte no meio deste
incêndio?
DOM PANTERO
Salvar da cinza e das chamas algo de belo e imperecível que nos
afirmasse e consolasse diante do fogo, do mal, do feio e do sofrimento.
Quanto a mim, minha alma só arde quando, no Palco, por meio do “Riso
a cavalo” e do “galope do Sonho”, consigo vencer a tristeza, as
humilhações, o desordenado e as injustiças do Mundo, armando-me
como Cavaleiro capaz de criar a Beleza e, ao mesmo tempo, de lutar,
com as armas de que disponho, em favor dos desvalidos e infortunados
desta Vida.

NIÈDE GUIDON
Mestre, não vou me pronunciar sobre as concordâncias, ou
discordâncias, que mantenho em relação a tudo o que Você fala sobre a
Arte rupestre. O que tenho a perguntar é mais grave, porque a
indagação questiona o próprio processo de criação do Livro que Você
pretende fazer com fundamento nos debates do Simpósio. Você não tem
medo de que o processo dialogal — que vai adotar por causa da
Entrevista — acabe com aquela espécie de encantação que nos causa a
leitura dos grandes Romances?
Dom Pantero e Liza

DOM PANTERO
Não, não tenho! E, feliz de estar falando com a grande Mulher
que revelou para o Mundo a beleza e a importância desse inestimável
patrimônio da Arte brasileira que é a Serra da Capivara , digo-lhe que
não tenho medo, porque o tipo de encantação que haverá n’ A Ilumiara é
diferente, mas não menos intenso, do que o de Romances como Almas
Mortas , Crime e Castigo ou Os Demônios . Lembro a Você que, como
Hamlet e Orestes, Auro — principal responsável pelo que A Ilumiara
terá de Romance — era filho de um Rei assassinado; mas, ao assumir o
papel profético (e falhado) que foi o dele na Favela-Consagrada da Ilha
de Deus , Auro se viu transformado numa espécie de Misantropo e “
palmatória do Mundo ”, de convivência tão incômoda e desagradável
quanto o imortal personagem de Molière; ou quanto aquele outro
imortal Personagem que é o Antônio Conselheiro que aparece n’ Os
Sertões — obra que lemos com encantação igual àquela que
experimentamos lendo A Orestíada , Quincas Borba ou Os Irmãos
Karamázov .
Lembro ainda que o Filósofo do romance de Machado de Assis é
também incômodo, inconveniente e insano; assim como é
inconveniente, insano, incômodo e ridículo o quase-profeta Policarpo
Quaresma, de Lima Barreto (que, porém, no fim, assume proporções
trágicas).
Por isso, não tenho medo de que falte encantação à leitura de
uma Obra resultante da fusão do espírito e da forma do Eu , do Hamlet ,
d’ O Misantropo , d’ Os Sertões , de Quincas Borba e do Triste Fim de
Policarpo Quaresma . Principalmente porque em tudo o que escrevo sob
forma dialogal — seja, ou não, o texto destinado ao Teatro — tenho
sempre presentes as palavras de Antônio Vieyra, que escreveu, um dia:

ANTÔNIO SCHABINO VIEYRA


“O primor e a sutileza da Arte cênica consiste na suspensão do
entendimento e no enleio dos sentidos com que o Enredo nos vai levando
após si, encobrindo-se o fim da história sem que se possa entender onde
irá parar senão quando o mesmo fim vai chegando e se revela de súbito,
entre a expectação e o aplauso do Público.”

DOM PANTERO
De tal modo (não sendo megalomaníaco e vaidoso como
Quaderna ou como meu Tio, Padrinho e Mestre, Antero Schabino), sei
que jamais alcançarei aquela forma de encantação que existe na leitura
de Scaramouche , d’ Os Maias , d’ O Guarani ou d’ O Conde de Monte
Cristo . Mas “ a suspensão do entendimento e o enleio dos sentidos ”
presentes em obras como O Misantropo , Édipo Rei , Os Demônios ,
Almas Mortas ou Dom Quixote , estes sim, tenho plena convicção de que
A Ilumiara os alcançará.

GABRIELA MARTIN
Mestre, quanto ao rigor ou não rigor científico de suas opiniões
sobre a Arte rupestre, faço minhas as palavras de Niède Guidon. Mas
meus temores sobre a sorte e a qualidade literária da Obra a ser feita a
partir deste Simpósio nascem de uma dúvida ainda mais grave do que a
dela. Gira sobre a Política, assunto que de vez em quando aparece em
sua fala e que, se o senhor não tomar cuidado, vai manchar de forma
irreparável a Obra que seu Tio e Mestre lhe confiou em momento tão
grave. A meu ver, a Política, num Romance, pode destruir exatamente a “
suspensão do entendimento ”, o “ enleio dos sentidos ” que, segundo
Antônio Vieyra, constitui o maior encanto da Arte. Não se esqueça
daquilo que Stendhal afirmou:
HENRIQUE BEYLE STENDHAL SAVEDRA
“No meio dos interesses da imaginação a Política é como um tiro
de Pistola no meio de um Concerto. Não se harmoniza com o som de
nenhum instrumento musical. E, qualquer que seja aquela que venha a
aparecer no Romance, irá ofender mortalmente metade das pessoas e
aborrecer a outra metade.”

DOM PANTERO
Antes de mais nada, deixe-me também prestar minhas
homenagens a essa outra grande Mulher que, além de revelar ao Povo
brasileiro o patrimônio da Arte rupestre do Seridó, foi quem me
colocou nas mãos o Diário manuscrito de meu Tio João Soares Sotero
Veiga Schabino de Savedra, o famoso Livro Negro do Cotidiano ; roubado
pela Polícia em 1930, foi localizado por Gabriela Martin, que assim
contribuiu, de modo incomparável, para os fundamentos gráficos e
literários mais importantes entre os que, um dia, possibilitarão a feitura
d’ A Ilumiara .
Dito isto, devo explicar que Auro tinha, em relação à Política, as
mesmas preocupações que Você revelou, Gabriela. Ia mais longe, até:
dizia que a atividade política só é necessária porque os Seres-humanos
ainda estão a-caminho e muito distantes daquele Absoluto libertário e
justo para o qual, segundo Hegel, nos dirigimos.
Quanto às palavras de Stendhal, quero lembrar que elas foram
incluídas no texto de O Vermelho e o Negro , um dos Romances mais
decididamente políticos entre todos os que já foram escritos —
afirmação que se pode fazer, também, a respeito de Os Demônios , de
Dostoiévski.
Mas Stendhal tem razão quando afirma que, num Romance, a
Política pode ofender ou aborrecer mortalmente seus leitores: é o que
acontece, por exemplo, com os Marxistas em relação a Dostoiévski, o
único Escritor que se emparelha com Shakespeare e com Cervantes,
mas a quem, por aversão política, Lênine, Trótski e Stáline detestavam;
o que não significa que eu deseje ver o Brasil se assemelhar àquela
Rússia tirânica, “ortodoxa” e fanática que Dostoiévski amava. Mas não
desejo, também, vê-lo submetido aos horrores opressivos e brutais do
“centralismo democrático” e da “ditadura do Proletariado”.

De qualquer maneira, atento a tudo isso, resolvi que, no


universo d’ A Ilumiara , a mancha da Política seria reparada pela Poesia,
por obra e graça dos versos de Albano Cervonegro e de outros Poetas
— entre os quais Augusto dos Anjos —, o que poderá corrigir “ o
deserto das ideias ” (inclusive políticas), nem que seja “ pelo magnetismo
misterioso do desespero endêmico do Inferno ”:

Albano Cervonegro
Saturno esverdeado, Mangue turvo, o limiar da Morte, a Flecha e
o Dardo. O Medo. A verde treva da Serpente. O sofrimento mudo e o
Desbarato. N’água salobra e infecta dorme a Cobra. E o Corvo azul
persegue o Gato-pardo.

WILSON MARTINS SAVEDRA


“Diante de tudo o que aqui se vai dizendo, ocorre-me fazer uma
indagação, uma pergunta: quais são os grandes Romances que
apareceram no Brasil depois do Grande Sertão: Veredas , de João
Guimarães Rosa?
“Posso estar cometendo alguma injustiça, mas neste momento só
vejo A Pedra do Reino , de Auro Schabino. Guimarães Rosa colocou o
Romance brasileiro contra a parede: é muito difícil ir além dele e é
impossível recuar. Terá que aparecer um Gênio que consiga restaurar ou
revitalizar o gênero, como fez Guimarães Rosa com sua obra em relação
ao Romance nordestino.
“Esse Romance dos anos 30 e 40 era de natureza
substancialmente sociológica e política. Vindo em seguida, Rosa
representou uma reação mais esteticista, de criação literária mais
exacerbada, inclusive nos aspectos linguísticos. É possível que, com o
esgotamento dessa inspiração, alguma coisa nova apareça. E será, em
termos hegelianos, uma síntese dessas duas tendências, a que não
escapamos.”

BRAULIO SCHABINO TAVARES


“A opção de Auro Schabino pelo Romance pode ter sofrido
influência indireta do lançamento do Grande Sertão: Veredas , que fez
emergir uma camada oculta do Brasil, da qual só se conhecia uma face
superficial — o Romance sertanejo — e que Guimarães Rosa foi buscar
nos níveis mais profundos da universalidade literária.
“Auro Schabino vinha tentando há anos escrever uma biografia de
seu Pai. Era um tema difícil e doloroso, e o texto, muitas vezes
recomeçado, não avançava. O impacto do Sertão literário de Guimarães
Rosa pode ter produzido nele a mais saudável das influências. Não a de
quem, impressionado com a obra alheia, tenta imitar-lhe as técnicas ou
adotar-lhe os temas, mas a de quem percebe de que maneira aquele autor
soube criar um território próprio, em que história, ambiente, memória
pessoal e voz narrativa se fundem para produzir um texto; só que desta
vez tudo visto por quem tinha tanto a dimensão do cômico quanto a do
trágico, e utilizando um instrumento, o Romance, capaz de comportar
todos os ângulos de sua Visão.”
João Sotero e José de Azevedo Dantas: Gravuras do Livro Negro do Cotidiano

WILSON MARTINS SAVEDRA


“Realmente A Pedra do Reino é um Romance extraordinário, com
uma técnica inteiramente nova em sua Narrativa. Não é um Romance
regionalista. Auro Schabino criou um estilo metafórico para descrever
fatos reais num plano altamente literário. Integrou um realismo mágico
ao realismo propriamente dito, o Sertão a uma ideia de Sertão. O milagre
— se é que é milagre — é que tenha conseguido homogeneizar tantas
coisas diferentes num texto único, coerente e de grande equilíbrio
interno.”
DOM PANTERO
Profundamente comovido, em nome de meu irmão Auro
agradeço as intervenções de Wilson Martins e Braulio Tavares. Mas
atrevo-me a pedir aos dois que esperem A Ilumiara : acredito que,
depois de sua leitura, ambos vão ter que acrescentar alguma coisa a
suas brilhantes e generosas palavras; inclusive no que diz respeito
àquele “ Gênio ” que, segundo Wilson Martins, iria aparecer para
destruir a parede contra a qual João Guimarães Rosa teria encostado o
Romance brasileiro.

GERSON CAMAROTTI
Mestre, gostaria que o senhor nos falasse sobre as acusações
que às vezes lhe são feitas de ser “ um Dom Quixote arcaico ”. O que o
senhor tem a dizer a respeito disso?

DOM PANTERO
Não perca tempo com essa gente não, meu caro Gerson! Esses “
equivocados ” são um bando de incompetentes, nem a insultar-me
acertam! Julgam que me ofendem, e o que fazem é deixar-me orgulhoso
ao me comparar com o Personagem que mais admiro no Mundo!
João Sotero e José de Azevedo Dantas: Gravuras do Livro Negro do Cotidiano

CARLOS HUMBERTO CARNEIRO DA CUNHA


Meu caro Antero Savedra, já que Gerson falou em Dom Quixote,
quero lembrar-lhe: uma vez, conversando com Você sobre o curso da
História ocidental, disse-lhe que, na minha opinião, a principal
característica dos Portugueses e Espanhóis era uma certa “
inoportunidade épica ”, uma “ extemporaneidade heroica ”. Você acha que
Dom Sebastião e Dom Quixote são dois exemplos típicos dessa
característica que apontei?

DOM PANTERO
Acho, e quero felicitá-lo pela agudeza de sua observação! No
entanto, com toda a simpatia que tenho pelos dois, devo dizer-lhe,
primeiro, que no belo delírio, no sonho generoso de Dom Sebastião,
existe uma mancha, que marca todo o resto e que só lhe perdoamos por
sua coragem e por sua morte, pois “ a Morte em sangue sagra a vida
inteira ”. Essa mancha veio do fato de ele ter atacado os Árabes e
Negros-muçulmanos, nossos irmãos (por serem, como nós, filhos da
Rainha do Meio-Dia). De qualquer modo, foi um Cavaleiro e não pode
ser comparado aos covardes ingleses, americanos ou franceses que,
armados com artefatos poderosos, se escondem nos seus Gabinetes e
de lá, protegidos, assassinam as populações indefesas do Oriente Médio
ou do norte da África.

PAULO VANZOLINI
E quanto a Dom Quixote ? O que pensa a respeito dele?

DOM PANTERO
Glosando palavras suas sobre Napoleão Bonaparte, quero lhe
dizer que, quando estou na Estrada e no Palco, “ pondo a modéstia de
parte, é Dom Quixote e eu ”; pois ambos sabemos: o que importa é o
Sonho, o delírio, a generosa loucura que nos impele para frente.
Talvez pelo fato de ser um Ator e Encenador (que em tal
condição tem levado seus Músicos, Cantores e Bailarinos por muitas
cidades do Sertão), ou talvez por causa do fascínio que “ a Estrada e o
Palco ” sempre exerceram sobre mim, no Dom Quixote dois dos meus
Episódios prediletos são aqueles em que Sancho e o Cavaleiro
encontram, numa Estrada, uma Trupe-teatral ambulante; e, numa
Hospedaria, o Teatro-de-bonecos de Mestre Pedro, que, num Palco
improvisado, encena o Retábulo , depois genialmente musicado por
Manuel de Falla.
Levando em consideração esta importância que o Palco e a
Estrada têm para mim (mas também, com todo respeito, a discordância
que sempre mantive em relação ao fim destinado por Cervantes ao
Cavaleiro da Triste Figura), assim eu ousaria refazer o final do Dom
Quixote :

ANTERO MIGUEL DE CERVANTES SAVEDRA


“Como as coisas humanas não são eternas e vão sempre em
declinação desde o princípio até seu último fim, especialmente a vida
humana; e como a de Dom Quixote não tivesse privilégio do Céu para
deixar de seguir o seu termo e acabamento, veio-lhe uma febre que o teve
seis dias de cama, sendo visitado muitas vezes pelo Cura, pelo Bacharel e
pelo Barbeiro, seus amigos, sem se lhe tirar da cabeceira o seu bom
Escudeiro, Sancho Pança.
“Ao anoitecer do sexto para o sétimo dia de sua doença, seus
amigos chamaram o Médico; tomou-lhe este o pulso e disse-lhe que, pelo
sim, pelo não, cuidasse da salvação da sua alma porque a do corpo corria
perigo.
“Ouviu-o Dom Quixote, que logo se confessou com o Cura, o que fez
de ânimo sossegado; mas não se portaram da mesma forma a Sobrinha e
Sancho, que principiaram a chorar ternamente, como se já o tivessem
morto diante de si.
“Dom Quixote pediu que o deixassem só, porque queria dormir um
pouco naquele começo de noite. Obedeceram-lhe e saíram, fechando a
porta. Mas ele, assim que se viu só, levantou-se com dificuldade, tomou a
Armadura e a Lança, pulou a janela, vestiu a primeira, empunhou a
segunda e, arrastando-se, conseguiu chegar à Estrebaria, onde Rocinante
cochilava.
“Arreou o Cavalo, montou-o e, andando a passo, chegou à Estrada,
onde estacou, de Lança em riste, esperando que lhe aparecesse algum
Gigante a enfrentar, alguma injustiça contra a qual lutasse, para levar
até o fim a generosa e bela Empresa à qual dedicara toda a sua vida.
“Ali, ao amanhecer, Sancho, com seus preocupados parentes e
amigos, foi encontrá-lo morto, montado, de Lança em punho, com os
primeiros raios do Sol a lhe iluminarem o rosto magro por ‘uma estranha
luz de devaneio’ — como chegou a dizer o Cura, afastando-se, por um
instante, de seu tacanho bom senso habitual, o que somente fora possível
graças à indômita coragem do Cavaleiro, fiel a seu insano mas generoso
Sonho até diante da Morte.”

ADERBAL FREIRE FILHO


Mestre, segundo Jorge Luis Borges, o que falta a Quevedo para
gozar da fama de Cervantes é uma grande Obra (como o Dom Quixote ).
Sem querer exagerar e duplicar esse valor cervantino da obra dos
Savedras, é possível dizer que o Romance d ’ A Pedra do Reino é uma
grande Obra, cada vez mais lida e reconhecida como um marco da
Literatura brasileira.
Com esta observação sobre a grande Obra, não quero diminuir o
valor das “Comédias exemplares”, como, ainda num paralelo com
Cervantes, podem ser chamadas as peças de Adriel Soares, cujo Auto d ’
A Misericordiosa é hoje um clássico do Teatro brasileiro.
DOM PANTERO
Você não avalia a importância que para mim têm suas luminosas
palavras, que agradeço de todo o coração, meu caro Aderbal!

Para que todos os nobres Cavaleiros e belas Damas aqui


presentes entendam seu alcance e a verdadeira significação que elas
assumem para mim, devo confessar que somente agora, ao ouvi-las,
entendi o que deveria fazer para o Simpósio Quaterna finalmente
realizar a Obra que o Brasil e os Savedras merecem.
Para isso, em primeiro lugar, não devo esquecer que, como
Encenador e herdeiro de Auro e Adriel, passei a ser, no mínimo, coautor
da “ grande Obra ” e das “ Comédias exemplares ”, escritas por eles.
Quanto a estas, poderei até reformulá-las como “ Novelas
exemplares ”, a fim de tornar ainda mais justas as generosas palavras de
Aderbal Freire Filho. Não tenho qualquer dúvida sobre sua qualidade,
porque Ricardo Schöpke escreveu, n’ O Regional de Belmonte:

RICARDO SCHABINO SCHÖPKE


“A França tem Molière. O Brasil felizmente tem Adriel Soares —
mestre que soube retratar as principais características do
comportamento humano.”

DOM PANTERO
Quanto ao Romance d ’ A Pedra do Reino , o que vou fazer é
considerá-lo como uma Airesiana Brasileira em Fá-Maior , uma
introdução ao Romance de Dom Pantero no Palco dos Pecadores ; assim,
fica ele incluído n’ A Ilumiara (a qual, por sua vez, fundindo uma lírica
poderosa, como a do Eu , ao épico de Os Sertões e ao humorístico de
Quincas Borba e do Triste Fim de Policarpo Quaresma , passará a
significar para o Brasil o mesmo que o Dom Quixote para a Espanha).
Lembro-me de Balzac: quando, pela primeira vez, lhe ocorreu a ideia de
juntar tudo o que fizera e viria a fazer num conjunto grandioso, A
Comédia Humana , ele já publicara dois ou três Romances que hoje
integram a grande Obra. Então, fez neles pequenas modificações que os
introduzissem no todo. E, concluído esse trabalho, entrou,
deslumbrado, na casa da irmã, gritando-lhe, com o estardalhaço que lhe
era habitual: “ Curve-se diante de mim. Estou a caminho de me tornar um
Gênio. ”
Coisa semelhante pretendo fazer com A Ilumiara , para, nela,
fundir uma Divina Comédia (o Rei) com uma Comédia Humana (O
Palhaço).

MARIA LOPES
Mestre, já que Você entrou por aí, vou passar a palavra a Salete
Catão Grisi, que tem algo a dizer sobre o assunto.

SALETE CATÃO GRISI


“Achei excelente essa ideia que teve nosso Mestre de, pela
‘Polifonia inversa’ de Constâncio Porta, tentar reunir, num conjunto
orgânico, as vozes mais diferentes. É como se a Literatura fosse um
espaço homogêneo onde as particularidades individuais e as
características cronológicas tendessem a desaparecer — o que nos
conduz ao conceito de ‘Literatura universal’, no sentido de abranger uma
vasta criação em que todos os Escritores seriam um ponto de encontro,
encarnando uma espécie de Espírito-intemporal.

João Sotero e Paulino Villar: Ferros de Cariri

“Segundo esta visão, poderíamos considerar todas as obras da


Literatura como obras de um Autor único, no qual seria possível
‘reconhecer’ outras vozes, outros textos de várias Literaturas e épocas
diferentes — o que determinaria o destino de imortalidade da Obra,
estando ela sempre a renascer no Tempo, mesmo que pereçam as pessoas
que escreveram e as Línguas em que foram escritas.
“Ponderações como estas nos incitam a perceber nas entrelinhas
de Proust um rastro baudelairiano, às vezes beirando a Paráfrase, como é
o caso do Poema A une passante , que se acha transformado em Prosa em
um dos volumes de Em Busca do Tempo Perdido . Fica evidente, ali, que
Proust está ludicamente dialogando com o repertório literário de seu
Leitor-virtual e demonstrando sua admiração por Baudelaire. Também
Chateaubriand e Flaubert são convocados para fazer da
intertextualidade um traço decididamente moderno e frequente em
Marcel Proust.
“Esse Diálogo entre épocas, autores e gêneros não deixa
indiferentes os Leitores, sobretudo os inveterados, aqueles que não
conseguem parar de ler. E é na qualidade de Leitora inveterada que,
partindo da visão do Autor-universal confluente, relaciono dois Escritores
de épocas e Países distintos — Marcel Proust e Auro Schabino.
“Começaríamos por mediar a distância que os separa cronológica
e geograficamente através do tratamento idêntico que ambos dão à
realidade. Tanto Em Busca do Tempo Perdido como A Pedra do Reino são
Romances em que a realidade está sempre se refazendo através de
experiências e relatos anteriores ou posteriores ao acontecimento
narrado, de forma a obter uma realidade menos infiel, mas sempre
incompleta.
“O Narrador proustiano conta-nos, por exemplo, quantas vezes se
perdeu em devaneios sobre a praia de Balbec , com sua Igreja banhada
pelas águas do Mar. Esta imagem idílica sofre uma amarga desilusão
quando da sua ida ao lugar: ele constata que a Igreja e a Praia são bem
distantes uma da outra.
“Por sua vez, em Auro Schabino, no capítulo em que o Narrador
fala sobre as Pedras do Reino ele adianta, de forma idêntica à de Proust,
que, de acordo com as leituras feitas sobre o assunto, sempre tivera
daquelas Pedras uma visão encantada, pois a descrição dava conta de
que uma das Pedras era incrustada por uma espécie de chuvisco
prateado, e isto o levava a compará-la com um Tesouro. Qual nada! Ao
vê-las, a decepção não poderia ser maior. O brilho de que falavam nada
mais era do que ‘as manchas ferrujosas de líquenes secos, que nós
chamamos, aqui no Sertão, de mijo-de-mocó’ ’.
João Sotero e Paulino Villar: Ferros de Cariri

“Essa realidade decepcionantemente redutora seria o traço


comum entre Proust e Auro Schabino. Até nas palavras utilizadas eles são,
por momentos, idênticos. Em ambos esses grandes Escritores, a realidade
decepciona porque difere da Imagem projetada, que se situa numa
dimensão maior. O encanto do real estaria justamente naquilo que lhe é
acrescido pela imaginação. É como se as coisas e as pessoas parecessem
belas de longe, revelando-se sem beleza, ou melhor, sem mistério, quando
próximas. A nós, receptores de uma imensa Herança coletiva feita de
memória ou de pura invenção, resta — ainda bem! — o mundo da
desmedida, do real ultrarrepresentado, que a Literatura (essa incrível
Arma de mobilidade no repouso) nos possibilita.”

DOM PANTERO
Muito lhe agradeço por esse Comunicado, tão brilhante, justo e
compreensivo quanto sua própria Autora! Aliás, com o assunto e “ os
dois grandes Escritores ” que Você escolheu, Salete, seria quase
impossível o Comunicado não ser brilhante! E quero até acrescentar,
aqui, uma reflexão que acaba de me ocorrer ao ouvi-la. Muitas vezes já
pensei em chamar o conjunto de Romances que formam A Ilumiara (e
dos quais os primeiros serão A Pedra do Reino e O Jumento Sedutor ) de
Romance de Dom Mariano no Espelho dos Encobertos ; ou de Romance de
Dom Pantero no Palco dos Pecadores ; ou, mais simplesmente, apenas de
Dom Pantero : pois, assim como Dom Quixote foi a última e maior de
todas as Novelas de Cavalaria já escritas (e o primeiro e maior dos
Romances modernos, aquele com o qual somente Os Demônios e Os
Irmãos Karamázov se equiparam), assim também A Ilumiara será o
último dos grandes Romances “ feitos a mão ” e ao mesmo tempo o
primeiro dos grandes romances do Terceiro Milênio; aquele que, como
certa vez afirmou Wilson Madeira Filho, “ por ser lavrado com uma
paixão artesanal fornece o símile da paixão pelo ofício , criando uma
produção sui generis , Obras-de-arte feitas a mão e expostas em Molduras,
nas casas dos amigos, em museus, casas-de-cultura etc., e criando, com
isso, uma Literatura cuja leitura só se torna possível pela prática
itinerante de seus possíveis Leitores. Auro Schabino não precisava utilizar
o Computador porque, de certa forma, inventara seu próprio
Computador. Assim, em busca de um tempo de Esclarecimento e
recuperando, pela metáfora, o Sangue derramado do Pai, com a
Literatura como Palco-de-resgate de um Trono político, Auro Schabino
estaria a relatar, alegoricamente, sua própria biografia. Numa
contemporaneidade pretensamente globalizada, num universo de
desconstrução do Sujeito, a técnica do fragmentário (sem deletar, do Jogo,
o Acaso) estará também, e com toda certeza, preparando o ressurgimento
de um Desejado, talvez já um Encoberto — o Virtual”; isto é, acrescento
eu, A Ilumiara será o grande Romance que, transcrito para o
Computador e incluindo Discos vídeo-cinematográficos, inaugura
triunfalmente a Arte “ do Terceiro Milênio ”, ao mesmo tempo em que
conclui, também triunfalmente, a do Primeiro e a do Segundo.
Mas agora, ouvindo o magnífico Comunicado de Salete Catão
Grisi, vejo que, n’ A Ilumiara , também poderia ser colocado o título de
Em Busca da Inocência Perdida ; ou o de Em Busca do Pai Perdido ; ou,
finalmente, Em Busca da Infância Perdida , uma vez que a morte
sangrenta do Pai marcou para sempre a nossa infância, aquela época
em que, nas fases melhores do Sertão, víamos o Mundo inteiro como
um Paraíso no qual, inocentes, vagávamos entre as águas dos Riachos,
os topes vermelhos das Coroas-de-Frade, as Cabras, os Cavalos, as
Pedras — tudo brilhando, recoberto que estava o nosso universo por “
um Chuvisco prateado ” que dava às coisas, às pessoas, às casas, à vida, “
um selo de Eternidade ”.

JOSÉ LAURENIO DE MELO


“Coisas da mão esquerda. Um Homem, sentado na amurada do
Cais, não pensa. Absorve, sem pesar nem relacionar. Tudo ficou por fazer.
A poesia, nenhuma. As palavras não me configuram. Abandono-me a elas,
para continuar o mínimo de mim mesmo. A pena, o silêncio, a agonia e
algo que, não pressentido, desvaira em secreta solidão. É claro que já não
estou na amurada. E que importa que esteja em algum lugar? Sei que
estou vivo. A mão que escreve me prova isto, me consola e me diverte.”

SAMARONE LIMA DE SAVEDRA


“Dou voltas ao Avesso, tocando o dorso da mesma Cicatriz. Como
um Cego no sereno, teimo em ver minha semelhança onde já não existe
Espelho amordaçado.”

JOÃO SOARES SARTIEF SCHABINO


“Provoco a ira da Besta. Ela salta e eu grito, os olhos do Anjo
vendados. Aquele que canta e, dançando, se esconde à luz do Espelho, sou
eu.”

DOM PARIBO SALLEMAS


Pouco antes de se abrir a Cortina, nobres Cavaleiros e belas
Damas da Pedra do Reino, tínhamos combinado que, quando João
Soares Sartief pronunciasse estas palavras, teria chegado o momento da
sagração de Dom Pantero.

DOM PANCRÁCIO CAVALCANTI


Portanto, assim que Sartief se calou, entraram no Palco Inez
Viana, Rosette Fonseca dos Santos, Maria Lopes e Carlos de Souza Lima.
João Sotero e Paulino Villar: Livro Negro do Cotidiano - Ferros do Cariri

DOM PORFÍRIO DE ALBUQUERQUE


Inez trazia nas mãos a Gola que Antero Schabino recebera de
Mestre Salustiano e que Antero Savedra herdara do Tio (juntamente
com o Medalhão, a camisa vermelha, a roupa e os sapatos pretos).
Rosette Fonseca dos Santos conduzia a Coroa. Maria Lopes, o Bastão,
Lança ou Cetro, que à Gola correspondia. E Carlos de Souza Lima o
Pergaminho que, assinado por Luzia Limeira de Carvalho, consagraria
Dom Pantero como “ Titular Emérito ” da Academia Taperoaense de Poesia
, Cadeira nº 7.
DOM PANTERO
A rigor, a Cerimônia só deveria acontecer no final do Simpósio,
depois do veredicto do Corpo de Jurados que iria julgar-me. Mas, entre
um momento e outro do Espetáculo daquela manhã, chegáramos à
conclusão de que era melhor não arriscar: pois quem nos garantia que,
no final, a sentença dos Juízes seria favorável a mim? Era muito mais
seguro realizar logo o ritual-acadêmico consagratório.
Assim, sentando-me na solene Cadeira que, em Olinda, fora
ocupada por Antônio Vieyra, recebi o Pergaminho das mãos de Carlos
de Souza Lima, ao mesmo tempo que as 3 Mulheres me punham a Gola
aos ombros, a Coroa à cabeça e o Cetro nas mãos.
Ergui-me então para que o Público inteiro me pudesse ver
como, agora, para sempre eu era. Sentia-me indizivelmente orgulhoso,
porque as Insígnias eram a ratificação literária e teatral do título de
Imperador da Pedra do Reino a mim concedido pela Associação Cultural
belmontense, pelo Reisado de Mestre João Cícero e pela Tribo Negra
Cambindas Nova , no Carnaval daquele ano.
Aí, como também fora combinado, Maria da Salete da Silva, a
simpática Professora que tinha sido minha aluna e chefiava a nossa
claque, começou a puxar uma nova roda de aplausos, semelhante
àquela que recebera minha entrada no Palco.
Obedientes, seus comandados — quase todos também ex-
alunos meus — seguiram seu exemplo, e outra vibrante salva de palmas
soou no Teatro, desta vez para celebrar meu título de Imperador.
Mas, de repente, comecei a notar que, na Plateia, estava se
desencadeando uma espécie de tumulto, uma gritaria bastante
diferente daqueles “ urros e assobios de entusiasmo ” que tinham soado
na Sala à minha entrada e me parecido até excessivos em relação ao que
recomendáramos.
Depois é que soubemos o que estava acontecendo: alguns
adversários dos Savedras tinham-se infiltrado no Simpósio, resolvidos a
estragar nosso majestoso “ Grande Final ” com uma Vaia, que fora
ensaiada desde a véspera. E todos agora, ao som da pateada, gritavam
em uníssono e ritmadamente:
João Sotero e Paulino Villar: Livro Negro do Cotidiano - Ferros do Cariri

CORO DOS RESSENTIDOS


Antero Beato, megalomaníaco! Antero Beato, Dom Quixote
arcaico!

CORO DOS EQUIVOCADOS


Antero Beato, mentiroso e doido! Doido e mentiroso! Mentiroso e
doido!

DOM PANTERO
Mas equivocados e ressentidos tinham subestimado a cautela e
capacidade de previsão de Salete: imaginando que um incidente como
aquele poderia ocorrer, ela tomara providências para neutralizá-lo; e,
sem que soubéssemos de nada, ensaiara, com nossos partidários, uma
contravaia que eu nunca esperara me fosse dirigida. Gritavam eles,
como contraponto aos insultos dos Equivocados:

CORO DOS ESCLARECIDOS


Savedra, Guerreiro! Profeta, Rei, Herói! Palhaço, Poeta, Madeira-
que-cupim-não-rói!

DOM PANTERO
Cerca de 15 minutos durou aquela “ nova batalha do Hernâni ”
(que marcava os 30 anos do Movimento Armorial, base do Simpósio
Quaterna e d’ A Ilumiara que dele nasceria), com a Plateia do Teatro
dividida entre aplausos entusiásticos e vaias estrepitosas.

DOM PARIBO SALLEMAS


Como noticiou, no dia seguinte, a Gazeta do Cariry , no primeiro
momento houve uma dúvida: a vaia era dirigida aos Músicos, Atores e
Bailarinos que tinham aparecido no Espetáculo ou fora organizada
como uma manifestação contra tudo aquilo que Dom Pantero
representava?
Na verdade, tal dúvida surgiu logo ali, entre nós, no Palco. Mas,
como disse Dom Pantero, ele é que não era tolo a ponto de permitir que
aquela consagração se dirigisse apenas aos Atores, Músicos, Dançarinos
e Cantores que tinham tomado parte na Aula-Espetaculosa. Apesar de
toda a sua modéstia, ele tinha a convicção de que, no Palco, não era
nenhum simples e limitado Mariano Jaúna; pois, compondo a Máscara
de Dom Pantero , tinham baixado, de uma vez, em seu sangue, os
dáimones de Altino Sotero, Auro Schabino e Adriel Soares — e aquela
Vaia era o reconhecimento, a prova definitiva do gênio de todos eles.
DOM PANTERO
Assim, encaminhei-me para o Proscênio, de onde comecei a
jogar beijos e abraços para toda a Plateia, curvando-me profundamente
para agradecer a todos; não fazia qualquer distinção entre admiradores
e equivocados — os quais (como disse também a Gazeta ) “
radicalizaram vaias e aplausos, num misto de indignação e admiração
que chegou perto das agressões físicas ”.

DOM PARIBO SALLEMAS


Mas depois, como sempre acontece nesses momentos,
adversários e admiradores foram se cansando e o barulho diminuiu.
Com o agudo faro que possui para essas ocasiões, Dom Pantero notou
que já tinha alguma condição para se fazer ouvir. Então falou para o
Público:

DOM PANTERO
De todo coração, quero agradecer a Vocês a entusiástica
manifestação que acabo de receber. Na idade em que me encontro, não
é comum que um modesto Ator e Encenador como eu desperte tanta
paixão (“ contra ou a favor, pouco importa ”). E ao ver Vocês
empenhados em tão magnífica batalha, vem-me ao espírito uma
reflexão: entre os Artistas-maiores que, pela grandeza e pelo significado
de suas Obras, assinalam o fim do Segundo Milênio e o início do
Terceiro, 3 já tinham recebido a consagração da Vaia — Picasso,
Stravinsky e Chaplin (em quem chegaram a jogar tomates e frutos
podres). Para completar a Quaterna, só faltava Eu, futuro autor d’ A
Ilumiara — Obra na qual, pela primeira vez na história da Literatura,
serão fundidos elementos gráficos, como os de Picasso, musicais, como
os de Stravinsky, mímicos, circenses e cinematográficos, como os de
Chaplin. A Vaia me fazia falta — e Vocês, agora, definitivamente
colocaram em minha modesta cabeça o peso, a honra e a
responsabilidade desta Coroa, que é, ao mesmo tempo, musical,
pictórica, teatral, dançarina e literária; régia, poética, palhaçal e
profética, portanto. De todo coração, muito obrigado, repito. Porque, do
ponto de vista do personagem Dom Pantero e da elevação de sua
Máscara-e-Persona à condição de Poeta, aqui no Palco até a Vaia
assume a condição de elemento indispensável ao ritual do Teatro.
Segundo afirmou César Leal, citando um dos seus mais caros teóricos
— o que ele fez no Jornal da Paraíba , de Campina Grande —, talvez o
Teatro seja o gênero literário mais apropriado para afirmar um Autor
como Poeta, ou Poieta:
João Sotero e José de Azevedo Dantas: Gravuras do Livro Negro do Cotidiano

CÉSAR TOMÁS STERNE LEAL


“O meio ideal para a Poesia, e seu instrumento mais direto de
utilidade social, é, a meu juízo, o Teatro. Numa Peça encontram-se vários
níveis de significação. Para o auditório mais simples, há o argumento;
para o mais intelectual, o Personagem e seu conflito; para o mais
literário, a palavra e o estilo; para o mais sensível musicalmente, o ritmo
(a cadência); e para o de maior sensibilidade e conhecimento, um sentido
que se revela pouco a pouco.”

DOM PARIBO SALLEMAS


Mais bonitas e importantes do que essas palavras, porém, foram
umas de Adélia Prado que Dom Pantero, encantado, um dia leu para
nós:

ADÉLIA SAVEDRA PRADO


“Todo Poema é revelador. Ser Poeta é uma graça, porque a
vocação já é uma graça. A Poesia é uma Flecha, um Relâmpago. A Prosa é
uma Tempestade, com raios e trovões. O Poeta, na verdade, só tem um
espectador, que é Deus — sua única Plateia.
“Os Profetas são autores de textos inspirados. Se os olharmos do
ponto de vista teológico, vamos dizer que eles são inspirados por Deus,
são sagrados. Mas podemos olhá-los com olhos laicos e dizer que são
inspirados, porque são verdadeiros Poetas.
João Sotero e José de Azevedo Dantas: Gravuras do Livro Negro do Cotidiano

“A Poesia me salvará. Nela, a Compadecida e os Santos consentem


no meu caminho apócrifo de entender a Palavra pelo seu reverso, de
captar a mensagem pelo Arauto.
“Não falo aos quatro ventos porque temo os Doutores, a
excomunhão e o escândalo dos fracos.
“A Deus, não temo. Por isso, quero ser um Poeta extraordinário e
escrever um Teatro cujo Personagem principal seja um Palhaço capaz de
fazer todo mundo rir até ficar irmão; um Teatro destinado a obter a
compaixão de Deus para o Ser-humano.”

DOM PANTERO
De tal maneira, senhoras e senhores participantes do Simpósio
Quaterna , consagrado pelas vaias e pelos aplausos que acabo de
receber, tenho agora a certeza de que, para mim, a Arte é uma forma
corajosa de vencer o sofrimento, de enfrentar o enigma e os
desconcertos do Mundo; de que talvez minha salvação seja obtida por
meio de tudo aquilo que vivo sonhando e mostrando, com “ as flechas e
relâmpagos da Prosa e da Poesia ”; por meio deste Teatro, cujo
Personagem principal é um velho Palhaço, capaz de conseguir a
compaixão de Deus para todos os nossos companheiros de caminhada
terrestre.
Sim, porque acabo de descobrir: assim como sucedeu a
Cervantes, Shakespeare e Euclydes da Cunha em relação a Dom Quixote,
Hamlet e Antônio Conselheiro (as Figuras que eles criaram para, sem
clara consciência disto, fazer suas Autobiografias), toda a força que
daqui por diante vai me permitir enfrentar a fera do Mundo, contar a
minha vida e, com ela, a do meu Povo — tudo isto somente será
possível por meio desta Persona que atende pelo nome de Dom Pantero
, Palhaço e Dono-de-Circo a percorrer as estradas e vilas do Sertão.
Lembro a Vocês um fato indispensável para se entender o
verdadeiro espírito deste Simpósio e d’ A Ilumiara : meu Pai dizia que o
Brasil somente acharia seu grande e verdadeiro Escritor se alguém, um
dia, acertasse a fundir em sua obra Augusto dos Anjos, surreal e
simbólico; Machado de Assis, clássico; Euclydes da Cunha, romântico; e
Lima Barreto, realista: isto é, Eu , tese, Os Sertões , antítese, o Triste Fim
de Policarpo Quaresma , contrátese, e A Ilumiara , síntese. Costumava ele
recordar as palavras de Gógol sobre a Rússia:

NICOLAU BELINKY SAVEDRA GÓGOL


“Rússia, Rússia! Vejo-te daqui, da minha lonjura — formosa,
maravilhosa eu te vejo! Tudo em ti é pobre, disperso e sem aconchego! Em
teu interior, tudo é escancarado e deserto, tudo é plano. Nada acaricia,
nada encanta a vista.
“E, no entanto, que misteriosa e secreta força é esta que me
arrasta para ti? Por que soa sem cessar nos meus ouvidos a tua pobre e
triste Canção? O que vibra nela? O que é isso que me chama e me aperta o
coração?

“Que som é esse, de ternura dolorosa? Rússia, o que queres de


mim? Que laço misterioso é este que nos une em segredo? Por que tudo o
que em ti existe volta para mim esse olhar cheio de expectativa?
“Ainda me quedo aqui, imóvel e perplexo, mas sobre minha cabeça
já se debruça uma Nuvem escura, carregada de tempestades, e meu
pensamento emudece diante de tua imensidão.
“Que Profecia se oculta nesta extensão ilimitada? Não será aqui,
no teu ventre, que deverá brotar a Ideia-incomensurável, já que tu mesma
és incomensurável? Não será aqui o lugar do nascimento do Gigante-
herói, já que aqui há espaço para ele crescer e soltar-se?
“Poderosa, envolve-me a tua vastidão, abalando meu peito com
uma força terrível, e um poder sobre-humano ilumina meus olhos! Que
imensidão faiscante, nunca vista no Mundo inteiro! Rússia, para onde
voas? Responde!
“Mas ela não responde. Vibram os Sinos em seu tilintar mavioso,
zune e transforma-se em Ventania o ar dilacerado em farrapos. Passa,
voando ao largo, tudo o que existe sobre a Terra, e, de olhar enviesado,
afastam-se e abrem-lhe caminho os outros Povos e os outros Países!”

DOM PANTERO
Sempre que relíamos tais palavras, Altino, Auro, Adriel e eu
ficávamos profundamente emocionados por sentir que um chamado
semelhante partia do Brasil para nós.
Foi também por causa delas que comecei a julgar o Brasil
predestinado a substituir a Rússia em sua profética missão no Mundo.
Tais convicções vieram a se aprofundar mais ainda em mim
depois que, um dia, lendo o exemplar de Contrastes e Confrontos que
pertencera a meu Pai, encontrei, assinalado por ele, um texto em que
Euclydes da Cunha, em 1907 — isto é, depois da insurreição de 1905,
mas 10 anos antes da Revolução de 1917 —, falava da Rússia nos
seguintes termos:

EUCLYDES SCHABINO DA CUNHA


“A Rússia é bárbara. Entre a sociabilidade cortês, o sentimento de
justiça e a expansiva espiritualidade latina ou saxônia, penetrou
vigorosamente o impulsivo e a rude selvatiqueza dos Tártaros, para se
criar o tipo histórico do Eslavo — isto é, um intermediário, um Povo de
vida transbordante, e forte, e incoerente, a um tempo infantil e robusto,
paciente e insofregado; um Povo em que se misturam uma incomparável
ternura e uma assombradora crueldade. Polida demais para o caráter
asiático, inculta demais para o caráter europeu, funde-os. Não é a
Europa, e não é a Ásia; é a Eurásia desmedida, desatando-se do Báltico ao
Pacífico sobre um terço da superfície da Terra, e desenrolando no
complanado das Estepes o maior palco da História.
“Mas aí está a sua força e a garantia de seu destino. Ninguém
pode prever o quanto se pode avantajar um Povo que, sem perder a
energia essencial e a coragem física das Raças que a constituem, aparelhe
a sua personalidade robusta, impetuosa e primitiva de Bárbaro com os
recursos da vida contemporânea.

“O Russo é duplamente Mongólico: pela circunstância inicial de o


constituírem as tribos Cazares e Turanas, e pelo fato acidental da
conquista tártara, no século XIII, dos netos de Gengiscan. Mas é, antes de
tudo, o tipo de uma Raça histórica. Turano pelo sangue, transmudou-se
em 500 anos de adaptação forçada, sob o permanente influxo do
Ocidente. Durante todo este tempo, não rebrilha o mais apagado nome
eslavo. Na sua iniciação demorada, que lhe impunha o abandono da
originalidade de pensar e sentir pela imitação e pela cópia, a Rússia
quedou pouco além das rudes Rapsódias heroicas dos Calmucos.
“Apareceu de golpe, já feita, e foi um espanto. Na região tranquila
da Ciência e da Arte, parecia reproduzir-se a invasão da Horda dourada
dos Mongóis. De um lado, Wronsky, uma espécie de Átila da matemática,
convulsionando-a com a sua alucinação prodigiosa de gênio. E, de outro
lado, Pushkin, Prosador e Poeta — e o poder assimilador do gênio eslavo
ostentou-se em toda a sua plenitude.
“Pouco depois, a Nação, educada pela Europa, aparecia-lhe com
uma originalidade inesperada, com Turguêniev, com Dostoiévski, com
Tchécov, com Tolstói — essa Literatura onde vibra uma nota tão
impressionadoramente dramática e humana. Qualquer Romance russo é
a glorificação de um infortúnio. Todos os humildes, todos os doentes,
todos os fracos: o Mujique, o criminoso impulsivo, o revolucionário, o
epilético incurável, o neurastênico bizarro e louco — todos ali aparecem,
num largo e generoso sentimento de piedade, diante do qual se eclipsam e
se anulam o platônico humanitarismo dos Escritores franceses e a seca
filantropia dos britânicos.
“O que caracteriza tal Literatura é a preocupação superior dos
fatos morais, o eterno problema altruísta para que tendem todos os
impulsos individuais ou políticos, através de uma análise patética dos
menores abalos da natureza humana, e visando essencialmente, no
franco estadear dos males profundos da Rússia, estimular as suas grandes
aspirações e a sua marcha para a Justiça e a Liberdade.
“O próprio Niilismo revolucionário, com as suas Mulheres varonis,
os seus Pensadores severos, os seus Poetas sentimentais e ferozes e os seus
Facínoras românticos — o Niilismo, que é um desvario dentro de um
generoso ideal —, reponta às vezes nesta crise como uma forma
tormentosa e assombradora da Justiça.
“No conflito, o que se distingue bem é o choque inevitável das duas
Rússias — a nova, dos Pensadores e Artistas, e a tradicional, dos Czares.
Daí, a sua fisionomia bárbara, porque é incoerente e revolta, surgindo
numa profusão extraordinária de vida, em que os velhos estigmas
ancestrais cada vez mais apagados mal se denunciam entre os
esplendores de um belo Sonho cada vez mais intenso e alto.”

DOM PANTERO
Lembro a todos, mais uma vez, as maravilhosas palavras que
Mário Martins escreveu sobre A Pedra do Reino , de meu irmão Auro, e
que foram publicadas n’ O Lidador , de Vitória de Santo Antão:
MÁRIO MARTINS SAVEDRA
“O sorriso de Auro Schabino, uma ironia muito dele, não nos
engana, apesar de sua ocasional ambiguidade. O Romance d ’ A Pedra do
Reino é o Apocalipse do Sertão Brasileiro, do Brasil-que-há-de-vir, que
está a vir, contendo em si uma força cósmica semelhante à da Rússia, não
sabemos até que ponto. Posta na sombra durante séculos, o rumor da
Rússia passou a encher a Literatura do nosso tempo e os movimentos
históricos de hoje em dia. A favor ou contra, pouco importa, a Rússia está
no centro do Mundo. E algo de semelhante mas ainda obscura grandeza
tem de acontecer no Brasil, graças a suas forças latentes.
“É esta a significação do Romance d ’ A Pedra do Reino : um
Apocalipse, a revelação de um Mundo que começa. Auro Schabino pode
dizer, como Gógol: ‘A minha substância é feita de futuro’. O Quinto
Império, anunciado em Portugal, tomará corpo e linha-de-rumo histórica
no Brasil em gestação. O Rapaz-do-Cavalo-Branco virá um dia, homem ou
geração. E tudo se tornará claro.
“Por conseguinte, Livro picaresco não. Bandarra? Puro Quinto
Império, como o do Padre Antônio Vieyra? Não é bem isso. É uma
Epopeia, uma projeção profética e simbólica do Futuro no tempo de
agora, a expectativa messiânica da redenção dos pobres e da explosão
das forças encantadas na Terra do Alumiar, simbolizadas ali no Rapaz-
do-Cavalo-Branco.”
DOM PANTERO
Assim sendo, digo com franqueza aos que me vaiaram: não
posso entender onde Vocês conseguiram arranjar coragem para apupar
tão grandioso, belo e generoso Sonho!

DOM PARIBO SALLEMAS


Todo o Teatro emudecera: como declararam, no dia seguinte, à
Gazeta do Cariry , os adversários dos Savedras, de sua parte estavam
eles “ assombrados ante o monstruoso cinismo e a cega megalomania
daquele charlatão arcaico ”.
Já os partidários do “clã oligárquico, feudal e ultrapassado dos
Savedras ” falavam na “ grandeza profética, régia, truanesca e poética do
Bardo-e-Vate ” que, no Simpósio, ocupara o palco do Teatro.

DOM PANTERO
De uma forma ou de outra, notei que agora, calado o tumulto, eu
já tinha condições de empreender uma retirada à altura de Dom
Pantero. A um gesto meu, Bruno Alves dos Santos, Natércio Santana,
Pedro Salustiano e Jáflis Nascimento cruzaram de novo a cena com o
Cálice do Sangral às costas. E, atrás deles, eu — acompanhado por
Iluminada, Lucinda e Luziara — deixei o Palco, sob o silêncio que
finalmente impusera a amigos e adversários.

DOXOLOGIA

AURO SCHABINO
Agora, só me resta ir para a Igreja. Subo a ladeira. A Porta. A
escura Nave. Com o Livro aos ombros, vou como uma Ave de papel preto e
branco que esvoeja. Vazio, o Nicho, em ouro, ali flameja. Subo ao Altar. No
vão, perto da grade, deposito a futura Raridade. Vou ao Padre. Recebo a
minha Tença. E, em meio da geral indiferença, abandono — mais uma! —
esta Cidade.

ALBANO CERVONEGRO
O Circo: sua Estrada e o Sol de fogo. Ferido pela Faca, na
passagem, meu Coração suspira sua dor, entre os cardos e as pedras da
Pastagem. O galope do Sonho, o Riso doido: e late o Cão por trás desta
Viagem.
Pois é assim: meu Circo pela Estrada. Dois Emblemas lhe servem
de Estandarte: no Sertão, o Arraial do Bacamarte; na Cidade, a Favela-
Consagrada. Dentro do Circo, a Vida, Onça Malhada, ao luzir, no Teatro, o
pelo belo, transforma-se num Sonho — Palco e Prelo. E é ao som deste
Canto, na garganta, que a cortina do Circo se levanta, para mostrar meu
Povo e seu Castelo.

DOM PANTERO
E, com estes Versos, compostos em Martelo-Gabinete e Martelo-
Agalopado — duas Estrofes criadas pelos Cantadores brasileiros —,
aqui se despede de Vocês, nobres Cavaleiros e belas Damas da Pedra do
Reino, este que é, ao mesmo tempo, seu Soberano e seu companheiro
de cavalgadas e Cavalaria,

Dom Pantero do Espírito Santo, Imperador.


Tocata

O CAPRÍPEDE CASTANHO
O CAPRÍPEDE CASTANHO
Epístola de Santo Antero Schabino, Apóstolo

Escrita por seu afilhado, sobrinho e discípulo Antero Savedra,


em homenagem aos Brasileiros descendentes de Russos, Gregos,
Ucranianos, Alemães, Austríacos, Búlgaros etc., nas pessoas de Augusto
Meyer, Sebastian Poch, Eduardo Dimitrov, Cleyde Yáconis, Marlene e
Georg Bräuer.
Dirigida aos nobres Cavaleiros e belas Damas da Pedra do Reino.
E enviada, por seu intermédio, aos diversos povos do Mundo;
especialmente aos da Rainha do Meio-Dia , aqui representada por São
Tomé e Príncipe .
EPÍGRAFE

“Ao Desconcerto do Mundo”

“Os bons vi sempre passar no Mundo graves tormentos. E, para


mais me espantar, os maus vi sempre nadar em mar de contentamentos.
“Cuidando alcançar, assim, o bem tão mal ordenado, fui mau; mas
fui castigado. Assim que só para mim anda o Mundo concertado.”

L UÍS V AZ DE C AMÕES
DEDICATÓRIA
Esta Tocata é dedicada a Ana Rita Suassuna, Roberto Wanderley,
Lucas, Júlia e Inês Suassuna de Albuquerque Wanderley.
Foi composta em memória de Sérgio Bezerra da Silva Suassuna.
O CAPRÍPEDE CASTANHO , O AMOR , O SEXO
E A MORTE

Adágio Sombrio
SIBILA
Moda, Turismo & Lazer
Igarassu, 26 de Março de 2014
23 de Abril de 2016

Aos nobres Cavaleiros e belas Damas da Pedra do Reino.

Amigos:

N aTeatro
tarde de 9 de Outubro de 2000, cumpridos os rituais do Circo-
Savedra, abriu-se a Cortina e Inez Viana a mim se dirigiu,
dizendo:

INEZ VIANA
Mestre, ontem, poucos momentos antes de se encerrar o prazo
para as inscrições, uma professora de Literatura pediu para apresentar,
ainda hoje, seu Comunicado sobre uma das Iluminogravuras feitas pelo
senhor e Eliza de Andrade para O Pasto Incendiado .
A princípio julguei que não seria possível. Mas depois, ouvindo-
a mais detidamente, achei tão interessante tudo o que ela dizia no
Comunicado que lhe prometi: se, na tarde de hoje, eu encontrasse uma
brecha, pediria licença ao senhor para que ela o lesse.
Pelo que estou vendo, no decorrer desta sessão, dá tempo, e o
momento é agora. Posso passar a palavra a ela?

DOM PANTERO
Pode, sim.

INEZ VIANA
Peço, então, a Ângela Vaz Leão que venha ao microfone para ler
seu Comunicado.

“A Tigre NEGRA ” :
Uma IlumInogravura de Antero Savedra
O Retrato de Joana Falacho Daro

ÂNGELA VAZ LEÃO SCHABINO


“Vi pela primeira vez em 1997 uma das Iluminogravuras feitas
por Antero Savedra a partir dos Sonetos compostos por seus irmãos
Adriel Soares e Auro Schabino e apaixonei-me imediatamente por ela. A
que vi apresentava o Soneto intitulado A Tigre Negra ou O Amor e o
Tempo , publicado sob o pseudônimo de Albano Cervonegro e escrito
sobre tema de Augusto dos Anjos.
“Pareceu-me ver alguns traços comuns aos dois poetas, aliás
ambos paraibanos. Ambos usam símbolos em seu léxico; ambos
revalorizam esses símbolos pelo uso de maiúsculas iniciais; ambos dão
ênfase a certas palavras que neles se repetem, como negro , pomas , aroma
, fogo , abrasar , crestar , dardejar .
“Quanto ao estilo, não obstante o uso comum de imagens
concretas, de contornos nítidos e firmes, Augusto dos Anjos tem a
obsessão do termo científico e do palavreado difícil, precioso, enquanto
Cervonegro opta por formas da cultura popular, mas dá-lhes um
tratamento de alta categoria, solidamente enraizado na história da
cultura ocidental.
“Ouçam o texto do Soneto:
O Jaguar-Negro e a Morte-Leoparda

A TIGRE NEGRA
ou
O Amor e o Tempo
(Com tema de Augusto dos Anjos)

ALBANO CERVONEGRO
Da Cabeleira negra, aleonada, Tocha escura que o Sol transforma
em crina, o crespo Capacete se ilumina, em faiscar de Treva agateada.
Gata negra, Pantera extraviada, abres ao Sol tua Romã felina. Ao
Dardo em fogo, queima-se a Colina, e há cascos e tropéis por esta Estrada.
Bebo, na Taça, o aroma da Sombria! A vida foge, Amor, e a
Sombra-tarda, ao fogo cresta a rosa da Paloma!
A Cega afia a sua Faca, afia, e chega o Sono, a Morte-Leoparda,
Jaguar cruel para abrasar-te as Pomas.

A Tigre Negra

ÂNGELA VAZ LEÃO SCHABINO


“Não é difícil perceber que o tema tomado a Augusto dos Anjos é o
da Morte, quase constante em sua poesia e de grande frequência na obra
dos Savedras. Neste Soneto, porém, Albano Cervonegro oculta seu tema,
usando ‘amor e tempo’ como forma alternativa de ‘amor e morte’, talvez o
maior dos temas da literatura universal de todos os tempos.
“O texto da primeira das quadras nos apresenta um ser feminino,
de cor negra e cabelos crespos, ser híbrido e misterioso. Misto de mulher e
fêmea animal, sua natureza mutante se acusa na Cabeleira negra
aleonada, portanto de mulher e de leoa, assim como na Tocha escura que
o Sol transforma em crina, portanto em pelos de animal que se cavalga.
“Se lembrarmos que o Sol, em muitas mitologias, simboliza o
masculino, podemos propor a leitura dessa quadra como a descrição
simbólica de um ato sexual. O deslumbramento desse ato se espelha em
várias palavras do campo da luz e do brilho: tocha, sol, faíscas. O
inexplicável de algumas sensações visuais durante o prazer estampa-se
em dois oximoros extraordinariamente belos, ‘Tocha escura’ e ‘faíscas de
Treva’, comparáveis ao oximoro ‘une flamme si noire’ (uma chama tão
negra) com que Racine define o amor incestuoso de Fedra.
“Como se isso não bastasse para descrever esse estado de quase
êxtase, aquelas ‘faíscas de Treva’ são ‘de Treva agateada’, o que lembra o
prazer da gata, talvez a mais fêmea de todas as fêmeas.
“Na segunda quadra, continua a metáfora da fêmea felina, Gata
negra, Pantera extraviada. Aliás, no português coloquial, as palavras
‘gata’ e ‘pantera’ podem ambas significar a mulher atraente, sedutora.
Continua ainda a imagem da mulher negra, presente no título do Soneto
e em vários sintagmas já citados.
“Essa mulher negra também é Tigre fêmea, Leoa, Gata, Pantera,
ser mutante e misterioso, cuja cabeleira se torna juba e depois crina,
fazendo-a participar da natureza e dos equinos. A essa fêmea o poeta se
dirige para cantar-lhe o ato de entrega total: ‘abres ao Sol tua Romã
felina.’ A sequência encadeada de metáforas já não deixa dúvida: trata-se
da representação simbólica de um ato amoroso, em que os elementos
masculino e feminino se fundem em imagens de grande beleza e ousadia.
O Sol, um Dardo em fogo, é recebido pela Romã felina, vulva que se abre,
rubra e ávida. Ao fogo solar, queima-se a Colina, metáfora do ventre
arredondado do corpo feminino. E os movimentos ondulatórios dos
corpos unidos, um cavalgando o outro, são evocados pelos cascos e
tropéis que se ouvem em ritmo imitativo, imagem do ato amoroso,
imagem complexa em que se misturam sensações tácteis, visuais e
sonoras.
João Sotero: Gravuras do Livro Negro do Cotidiano

“Passemos agora do texto às gravuras. Entre elas, vemos uma


cabeça de mulher negra, de perfil, com lábios sensuais e crespa cabeleira.
O ornamento de sua blusa é uma série de círculos negros, tendo cada um,
no seu interior, uma lua crescente, símbolo feminino.
“Há também uma cabeça de homem, envolvida por quatro
cabeças felinas, de fêmeas. Tigre, Leoa, Gata, Pantera, todas são uma só, a
Mulher. Entre elas, temos quatro desenhos. Dois lembram seios, com seus
bicos, mas todos também podem sugerir uma romã aberta.
“A representação pictórica da segunda quadra se completa com
uma Paloma. De frente, asas estendidas, pernas dobradas, ela abre sua
Rosa, ou sua Romã felina para o Dardo em fogo do Sol.
“Falemos agora dos dois desenhos idênticos que ladeiam o
retângulo do título. Temos, em ambos, um círculo rodeado de sinais
curvos de forma igual à da cabeleira da mulher. Na parte interna inferior
do círculo, acha-se uma lua crescente, que lembra os brincos e as
estampas da roupa da mulher. Acima da lua, vê-se um desenho com duas
espécies de tubos que convergem para o centro e se prolongam em outro
tubo vertical.
“O significado desta imagem não é unívoco, o que é normal na
obra de arte. Daí, pelo menos duas leituras são possíveis. Na primeira, o
círculo seria o sol, rodeado de seus raios, símbolo masculino, a englobar
uma lua, símbolo feminino. A forma triádica que se vê acima da lua seria
outro símbolo feminino, lembrando as duas trompas e o útero. De
qualquer forma, o desenho, no todo, simbolizaria a união do masculino e
do feminino.
“Já na segunda leitura, teríamos, no círculo rodeado de linhas
curvas, uma representação da cabeleira negra da mulher, com a presença
de outro símbolo feminino, a lua crescente, no interior do círculo. Acima
da lua, a forma triádica simbolizaria, agora, os dois testículos descendo
para o falo. Como na primeira leitura, o todo representaria o ato
amoroso, a união entre o masculino e o feminino, um encontro entre
macho e fêmea, num universo humano e escuro, Treva, mas também
celeste e resplandecente, Sol.
“Passando aos textos dos tercetos, o quadro muda. O macho bebe,
na Taça, símbolo feminino, o aroma de outra fêmea, a Sombria. Esse
macho se identifica com o próprio Poeta. E só então ele percebe que a
Sombria é a morte, que se aproxima lentamente, como uma sombra
tarda. Pressente o Poeta que a Vida foge e que, durante essa fuga, uma
Sombra-tarda vai crestando, lenta, a rosa da Paloma, flor, vulva, rosa,
genitália, que antes fora evocada como uma Romã aberta ao Dardo em
fogo do Sol. O Tempo, no seu curso inapelável, nada poupa: vai secando o
corpo feminino, ao mesmo tempo que vai transformando o morrer-de-
amor em simples morrer.
João Sotero: Gravuras do Livro Negro do Cotidiano

Masculino ou Feminino

“No primeiro verso do último terceto, o poeta vê a Morte como


uma Cega que afia a sua Faca, afia. O gesto se cumpre com lentidão e
persistência, inexorável, como sugere a repetição do verbo ‘afiar’.
“Mas, no verso seguinte, a Morte deixa de ser a Sombria, a Cega,
transformando-se na Morte-Leoparda, que avança meio agachada,
sorrateira, lentamente. E chega o Sono, o descanso que liberta o homem
da seca, da fome, da dor de viver.
“Completa-se aí o ciclo das mutações. A Morte, a princípio uma
Sombra-tarda, de contorno indefinido, foi tomando a forma de uma Cega,
a afiar, lenta, a sua faca. Ao chegar, porém, transforma-se na Morte
Leoparda, que mata durante o amor: a dor de viver se funde finalmente
com a volúpia de morrer.
“O soneto de Albano Cervonegro se inscreve, assim, na longa
tradição do tema da Morte, caro a Augusto dos Anjos. Mas, se o tema os
aproxima, a maneira de tratá-lo os separa. Enquanto em Augusto dos
Anjos a Morte se associa a cadáver, ossos, vermes, putrefação, em Albano
Cervonegro ela se confunde com um ato de amor. A Morte destruirá, sim,
o corpo do Poeta e da amante, mas o fará pelo fogo que queima, cresta,
abrasa. E o fogo tanto é símbolo do amor carnal quanto do amor divino e
da purificação.
“Para terminar com uma síntese a minha leitura do magnífico
soneto e da iluminogravura que lhe serve de quadro, parece-me que, se as
duas quadras falam do encontro amoroso entre homem e mulher, os dois
tercetos mostram o encontro amoroso entre o ser humano e a Morte,
encontro único, singular: a Morte, num ato de amor, traz a ele uma
sensação de volúpia e êxtase diante do Sono que chega para sempre.
“Nesse sentido, as duas gravuras iguais que ladeiam o título do
soneto, e que interpretei como símbolo da genitália ou feminina ou
masculina e também como símbolo do ato sexual, podem efetuar ainda
um ousado salto metafísico, simbolizando, pela figura triádica inscrita no
círculo, a Trindade Santa.
“E nada há de estranhável nessa multivocidade do símbolo. Em
algumas culturas, o erótico e o místico se acham muito próximos, sendo a
experiência erótica via de acesso ao contato com a divindade.
“Concluindo: o soneto se abre por essas duas gravuras que tanto o
sintetizam quanto sintetizam a vida humana, aproximando
simbolicamente as três experiências fundamentais do Homem: o gozo
amoroso, a volúpia de morrer e o êxtase diante do Divino.”
DOM PANTERO
Neste momento, Bruno Alves dos Santos, Natércio Santana,
Pedro Salustiano e Jáflis Nascimento cruzaram a cena com o Cálice do
Sangral aos ombros. E o novo Delegado de Taperoá aproveitou o fato
para dar outro rumo ao debate:

JOSÉ FAUSTO MARTINS


Mestre, perdoe minha intervenção, mas preciso falar-lhe agora,
antes de outros, talvez mais qualificados do que eu. Chamo-me José
Fausto Martins, fui seu aluno e sou o atual Delegado de Taperoá.
Cheguei há poucos dias para assumir o cargo; e só não fui logo procurá-
lo para pedir-lhe a bênção porque ainda não desencaixotei todos os
pacotes da mudança. Além disso, não estava ainda refeito da viagem
quando me vi diante desse crime horrível que foi o estupro e
estrangulamento de Patrícia, morta na sacristia da Igreja. O senhor
ainda se lembra de mim, Mestre?

DOM PANTERO
Claro que sim! Lembro-me perfeitamente de Você e dos artigos
que escreveu sobre Sófocles, Dostoiévski e o Romance policial — um
deles a mim dedicado como forma de agradecer o empréstimo que eu
lhe tinha feito dos romances do grande Escritor russo.

JOSÉ FAUSTO MARTINS


Mas não foi só no campo da Literatura que recebi sua ajuda,
Mestre! Quando aqui cheguei para estudar na Unipopt já alimentava o
sonho de ser Pintor e começara a copiar as obras dos Mestres que
admirava.
Um dia, mostrei meus trabalhos a um Professor e ouvi, dele, que
não devia insistir em ser Pintor: eles não tinham valor algum, por
serem simples cópias.
Fiquei desesperado, pensei em desistir. Até que, alertado por um
colega do Curso de Letras, levei os mesmos trabalhos para o senhor, a
quem relatei o incidente que acontecera com o outro.
O senhor, Mestre, discordou inteiramente dele. Repetiu, para
estimular-me, a frase de Ingres: “ Quem sabe copiar, sabe fazer ”. E
emprestou-me vários livros de Arte, um dos quais sobre a Pintura
românica catalã.
Algum tempo depois, dando uma aula, o senhor fez referência
especial a um desses quadros catalães pintados sobre madeira — um
São João Batista representado no Deserto e sentado sobre uma espécie
de Trono feito de Cactos espinhosos. E como o senhor disse que gostava
muito desse quadro, consegui uma reprodução dele, que copiei a óleo
sobre madeira e que lhe dei de presente para retribuir o estímulo, a
ajuda que me deu também no campo da Pintura.
A Paloma

DOM PANTERO
Lembro-me desse fato e ainda hoje guardo o Quadro que Você
me deu e que me tem sido muito útil, inclusive para ilustrar minhas
Aulas-Espetaculosas.

JOSÉ FAUSTO MARTINS


Pois bem, Mestre: ouvi tudo o que se disse aqui, dando atenção
maior às palavras que se referiram a uma certa identificação entre
Amor e Morte — fato que, como já ouvira o senhor mostrar em suas
aulas, é visível em algumas das maiores Obras universais.
Infelizmente, vivo num mundo em que, às vezes, essa
identificação sai do campo da Beleza e da Arte e leva a atos tão feios e
cruéis quanto a morte de Patrícia. Estou à frente das investigações e
preciso lhe fazer algumas perguntas: por mais estranho que isso pareça
a todos, têm elas alguma coisa a ver com essa morte, com este Teatro e
com este Simpósio.
É por isso que peço licença ao senhor, Mestre, assim como aos
especialistas em Literatura que aqui se encontram, para interromper os
momentos de Arte que vivemos até agora no Simpósio.

DOM PANTERO
Tendo sido meu aluno, Fausto, Você estaria perfeitamente
credenciado para falar aqui, mesmo que não estivesse à frente das
investigações. Pode fazer as perguntas que julgar necessárias.

JOSÉ FAUSTO MARTINS


O senhor pode ler, para nós, o Soneto que, n’ O Pasto Incendiado ,
chama-se O Campo , e que, a meu ver — como aquele que Ângela Vaz
Leão analisou —, contém a descrição de um corpo de Mulher?

DOM PANTERO
Ouça-o, antes, na voz do Ator que aqui faz o papel de Albano
Cervonegro .
O CAMPO
Com Tema do Barroco BrasileIro

ALBANO CERVONEGRO
Um Sol de ouro, ondulante e sossegado, refletido nas Águas que
matiza. Alvas pedras. Amena e fresca brisa; um fino Capitel transfigurado.
Os Montes. Claro céu alumiado. A água da Fonte, a Relva da
divisa. Colunas, no Frontal que o Musgo frisa, e o Campo que se espraia,
arredondado.
E o Pomar: seu odor, sua aspereza; e essa Romã fendida e
sumarenta, com seu Rubi vermelho e mal exposto.
E os Frutos esquisitos. E a Beleza — esta Onça-amarela que
apascenta a maciez da Morte e de seu gosto.
JOSÉ FAUSTO MARTINS
Bem, Mestre, a meu ver este Soneto e o que Ângela analisou
servem de introdução ao que preciso conversar com o senhor; e
gostaria muito de saber qual foi, entre seus irmãos, aquele que o
escreveu.

DOM PANTERO
Foi Auro. A ele incomodava muito a visão eurocentrista que se
tem da Beleza, incluindo-se aí também a beleza feminina. Então ele
costumava compor Sonetos fazendo de cada um uma versão parecida
mas diferente, porque a figura de Mulher cantada neles ora era negra,
ora ruiva, ora branca e de cabelos escuros. Por exemplo, “ a versão
negra ” do último Soneto aqui recitado era assim:

A Sofia, em caracteres Ilumiáricos

O CAMPO
Com Tema do Barroco BrasIleIro

ALBANO CERVONEGRO
Um Sol-negro, de escuros Encrespados, refletido nas Águas que
matiza. Alvas pedras. Amena e fresca brisa. Um fino Capitel
transfigurado.
Pardos Montes, no Chão encastoados. A Fonte. A crespa Relva, na
divisa. Colunas no Frontal que o Musgo frisa. O Vale que se fende,
aveludado.
E o Pomar; seu odor, sua aspereza; e essa Romã, fendida e
sumarenta, com o Topázio castanho, mal exposto.
E os Frutos odorantes. E a Beleza — esta Onça-amarela que
apascenta a maciez da Morte e de seu gosto.

A Sofia, em caracteres Ilumiáricos

DOM PANTERO
Auro, inclusive, pediu a Eliza de Andrade para fazer uma
Litogravura que representasse a beleza de Joana Falacho Daro, uma
jovem Negra aristocrática e delicada, pois não se conformava com a
ideia superficial que liga sempre o rosto das Negras a uma certa
grosseria.

JOSÉ FAUSTO MARTINS


É verdade que entre as alunas mais chegadas a ele havia uma
branca, uma negra e uma ruiva?
DOM PANTERO
É verdade.

JOSÉ FAUSTO MARTINS


Ele teve, como se diz, “ um caso ”, com alguma delas?

DOM PANTERO
Não. Dizia-se isso, no Recife: que, apesar de sua castidade — ou
talvez por causa dela —, Auro tinha verdadeira obsessão pelo corpo
feminino e pela Gruta que é seu centro. Falava-se que era por isso que
ele vivia cercado por Mulheres jovens: elas, pressentindo seu desejo
secreto, ficavam tentadas a desafiá-lo.
A verdade é que Auro tinha disso tudo uma visão em que se
fundiam e se identificavam o erótico e o religioso. Mas, assim, abria
perigoso flanco aos maledicentes do Recife, que o acusavam de ser “ um
Fauno hipócrita ”, cuja “ castidade ” tinha como único objetivo atrair
suas jovens alunas e dar a seus versos “ um apelo sexual e religioso que,
para aquelas pobres Moças incautas, tinha uma espécie de encanto
perverso ”.
Mas nenhuma de tais maldades era verdadeira. Para ele,
nenhuma Mulher real era A Mulher — mito e legenda do seu sonho; e
ele não escondia isso de nenhuma das que dele se aproximavam. O
corpo feminino, no qual não tocava, tão sagrado lhe era, não lhe
aparecia identificado com a Mata luxuriante e edênica que era para
Adriel (por causa das matas do Engenho Coral ). Para Auro, o corpo da
Mulher era, antes, uma clareira de matagal sertanejo povoada de Flores
selvagens que brotavam de bosques rasteiros de Quipás, Macambiras e
Coroas-de-Frade e, aqui e ali, adornada por botões de Frutos vermelhos.
Transfigurados, porém, nas formas, castas mas ardentes, de
amor que eram as suas, os velhos temas do Amor e do Desejo nele
renasciam com palavras novas. E ele, identificando a Mulher com “ a
portadora da Luz ”, assim cantava:
O AMOR E O DESEJO
Com Tema de Augusto dos Anjos

ALBANO CERVONEGRO
Eis, afinal, a Rosa, a encruzilhada, onde pulsa, cantando, o meu
Desejo. Emerges a meu sangue malfazejo, Onça-do-Sonho, Fronte
coroada.
Ao garço olhar, à vista entrecerrada, um sorriso esboçado mas
sem pejo. Teu pescoço é um Cisne sertanejo; teus Peitos são Estrelas
desplumadas.
Embaixo, a Dália ruiva, aberta ao Dardo, a Fenda, Rosa-púrpura
e Coroa. E brilha, ao fogo desta Chama parda, a Coroa-de-Frade, a Rosa-
Cardo, “ abandonada às Onças, às Leoas e ao Cio escuso das Panteras
magras ”.

JOSÉ FAUSTO MARTINS


Mestre, agora eu queria que o senhor me confirmasse uma
história que me contaram: é verdade que seu Tio, Antero Schabino,
conheceu Marcos Tebano, hoje Porteiro da Unipopt , no dia em que, no
Recife, acompanhava Albert Camus pelas ruas da Cidade?

DOM PANTERO
É, sim; e vou ter que voltar a este assunto depois, por causa da
importância que a noite daquele dia assumiu na vida de meu irmão
Auro. Elezier Xavier, Hermilo Borba Filho e Tio Antero tinham ido
buscar Camus no Grande Hotel porque queriam levá-lo ao Mercado de
São José , lugar que consideravam adequado para que ele entrasse em
contato “ com o Brasil não-oficial ”.
Quando chegaram à Praça do Mercado, dois Cantadores “ de voz
milenar ” (como disse Camus) estavam improvisando ao som de uma
Rabeca, tocada por Pedro Rufino, e uma Viola, tangida por Marcos
Tebano. Os dois cantavam “ a-desafio ” e Tebano insultou o outro:

MARCOS TEBANO
“Seu Rufino chegou no Aracati, e, encontrando um Caboclo, numa
Praça, conheceu que o Cabra era de raça, e lhe disse: ‘Meu Negro, chegue
aqui.’ Conversaram um pouquinho por ali, e, com pouco, Rufino estava nu.
Um Bicho parecido com Muçu, só entrando e saindo do Bufante, não foi
nada de mais interessante: era Pedro Rufino dando o cu.”

DOM PANTERO
Passando para o ritmo do Galope, Rufino revidou:

PEDRO MARTIM SOARES RUFINO


“Seu Marcos Tebano, de sua Mulher, se alguma traição lhe vierem
contar, não ouça o que dizem, não queira escutar, que estará mentindo
quem assim disser. É muito fiel, e muito bem lhe quer, pois só no senhor
ela vive a pensar. É isto verdade, e eu posso jurar, pois ontem, na Praia,
quando eu a fudia, só isso gritava, só isso gemia, rolando e gozando na
beira do Mar.”
DOM PANTERO
Parando imediatamente a Viola, Marcos Tebano, de má-cara,
reclamou do companheiro os termos do Galope. Rufino disse que
também fora insultado; mas o outro replicou que não falara da Mulher
dele “ porque isso está fora da Cantoria, mesmo na hora do Desafio ”.
Depois soubemos que, antes de casar-se, Marcos Tebano era
adepto “ do segredo da Mulher nova ”, e vivia perseguindo Mocinhas
pelo Pátio do Mercado. Ele mesmo contara, um dia, a Liêdo Maranhão
de Souza:

MARCOS LIÊDO DE SOUZA TEBANO


“Eu digo ao senhor por que gosto de Mulher nova. Primeiro, é pela
parte sexual; segundo, é pelo mistério. Eu li isso uma vez na Bíblia: é a
história de um Rei velho, moribundo, Davi, que chamava uma Menina
nova para ficar com ele na cama; ele, aí, ia roubando a energia dela e se
animava.
“O que anima o corpo é o espírito, mas eu chamo isso de energia .
Quando a gente leva uma pancada no cotovelo sente uma espécie de
choque na ponta do dedo mindinho: é a energia. O homem não é elétrico
mas é enérgico.
“E depois, com uma Menina nova, o homem trabalha menos,
porque a Greta dela aperta mais e dá mais sensação.
“No oposto, para a Menina, quanto mais velho o Homem, melhor,
porque ela aprende o que não sabe; e o Homem também ensina o que
sabe e aprende o que não sabe. A gente faz o papel de Homem e de Pai.
“É por isso que uma Menina nova e inteligente só quer negócio
com Homem velho. Eu, quando pego uma Menina nova, converso com ela,
leio para ela, vou pegando e é assim que pego a energia dela. Um Homem
assim vive muito tempo, porque vai sempre pegando energia.”

DOM PANTERO
Mas, naquele primeiro dia, o desfecho do caso ocorreu à noite e
foi terrível: ao deitar-se para dormir, Marcos não conseguia conciliar o
sono, porque, como disse depois, na Delegacia onde foi preso, “ quando
fechava os olhos, via a Mulher com Pedro Rufino, os dois deitados
gemendo e gozando, rolando e fudendo na beira do Mar ”.

DOM PARIBO SALLEMAS


De madrugada, desesperado, pegou o Revólver e matou a
Mulher. No julgamento, confessou: “ Dei-lhe 3 tiros. Um na cabeça, por
causa dos chifres que botou na minha. Outro, nos peitos, que ela deixou
Rufino amassar. E o terceiro na Perseguida, lugar da minha desonra e da
traição dela. ”

DOM PANTERO
Mas quero explicar a todos: depois que saiu da Prisão, Marcos
Tebano, ainda no Recife, mudou de vida. Casou-se com aquela que foi a
Mãe irrepreensível de Biu Santeiro e, deixando de lado até “ o mistério
da Mulher nova ”, tornou-se um Homem calmo, muito diferente daquele
sujeito meio insano, que chegou a matar a Mulher (aliás, inocente)
apenas por causa de um Galope que outro, por brincadeira, improvisara
num Desafio.

JOSÉ FAUSTO MARTINS


Passando a outro assunto, Mestre: pelo que ouvi falar, além das
Universidades e outras instituições públicas ligadas à Cultura, ocupa
lugar decisivo entre os patrocinadores deste Simpósio a Empresa
Colorado Minérios S / A , cujo Diretor-Presidente é o Doutor Pedro
Vandiwoyah.
Soube também que o senhor, cuidando do Simpósio como um
todo, não pôde se encarregar da encenação de cada um dos Espetáculos
que vão ser montados aqui: então, para isso, chamou um dos irmãos
Souza Lima que colaboram com seu trabalho na Unipopt , Romero.
Pois o que tenho a perguntar é o seguinte: é verdade que, no
primeiro semestre deste ano, quando os preparativos do Simpósio já
estavam em pleno curso, Romero de Souza Lima teve que viajar para
São Paulo?

DOM PANTERO
É verdade, sim.

JOSÉ FAUSTO MARTINS


E é verdade que, por causa dessa viagem, o senhor teve que
mandar trazer, do Recife, um Encenador que assumiu as funções de
Romero na organização de um dos Espetáculos?

DOM PANTERO
É verdade, também.

JOSÉ FAUSTO MARTINS


Eu soube que a mulher do Doutor Pedro Vandiwoyah, Dona
Ashera Acken, teve certa influência na escolha do Encenador que veio
substituir Romero de Souza Lima...

DOM PANTERO
Foi mais do que isso, até: eu nunca tinha ouvido falar dele, e foi
por indicação de Ashera Acken — que o conhecia do Recife — que
mandei contratá-lo.

JOSÉ FAUSTO MARTINS


É verdade que, logo na primeira entrevista, houve uma briga
entre o senhor e ele?

DOM PANTERO
Não, uma briga não! O que houve foi uma conversa, na qual se
revelaram concordâncias e discordâncias entre nós; mas tudo num
clima de cordialidade e respeito mútuo. Tanto assim, que ele ficou aqui
uns dois ou três meses, ensaiando os Atores da Trupe do Cavalo
Castanho e os Bailarinos do Grupo Arraial para A História do Amor de
Romeu e Julieta . Mas, aí, Romero de Souza Lima voltou de sua viagem e
reassumiu seu posto, de modo que a versão de Romeu e Julieta que vai
ser apresentada aqui no Simpósio terminou por receber uma forma
bastante mais aproximada da que encenei em 1945 e que foi o ponto de
partida de meu trabalho de Encenador.

JOSÉ FAUSTO MARTINS


O senhor pode me dizer como as discordâncias entre Vocês
começaram, Mestre?

DOM PANTERO
Posso, sim! No dia em que conversamos pela primeira vez, acho
que ele já ouvira falar alguma coisa a meu respeito, porque —
revelando, aliás, um grande senso de lealdade — levou na mão dois
livros e uma revista, contendo textos por meio dos quais desejava
mostrar-me o que pensava, a fim de que eu não o contratasse sem ter
exata noção da pessoa que ele era.
O primeiro daqueles Livros era A Origem da Tragédia , de
Nietzsche. Você deve se lembrar de que meu Tio, Mestre e Padrinho
Antero Schabino exaltava a visão-de-mundo dos Povos escuros da
Rainha do Meio-Dia, visão esta baseada na embriaguez orgiástica da
Festa e oposta às abstrações cinzentas dos Pensadores germânicos e
anglo-saxões.

Em linhas gerais, estou de acordo com as ideias expostas no


grande ensaio de Aribál Saldanha (se bem que, depois de ouvir a
discussão entre ele e Auro, eu tenha passado a chamar o livro pelo
título de Diálogo d ’ A Onça Malhada e a Ilha Brasil : como se vê, Malhada
, e não Castanha ).
Apesar disso, sobre aqueles Pensadores germânicos e anglo-
saxões, devo acentuar que, para não incorrermos com esses súditos do
Quarto Império nas mesmas injustiças que eles cometem contra nós,
devemos recordar que, se foi um Alemão, Hegel, quem — de maneira
arrogante, tola e pretensiosa — afirmou que “ tudo o que é real é
cognoscível ”, outro Alemão, Nietzsche, se revelou como um dos maiores
Profetas da nossa época. E se Nietzsche, entre gritos embriagados de
êxtase e soluços do mais terrível desespero, afirmou a morte de Deus,
também cantou apaixonadamente a visão estética e a plástica sensual
dos Povos ensolarados da Rainha do Meio-Dia.

AURO SCHABINO
Nietzsche jamais reclamaria contra o fato de sermos Povos
musicais e dançarinos. Mesmo sendo, em seu País, um pensador de
Direita — e mesmo por entre os extravios de sua razão, que o levaram
ao ódio pelo Cristo e ao desprezo pelo “ rebanho dos fracos e dos pobres
” —, foi ele quem anunciou ao Mundo a morte do Racionalismo estreito
e do Cientificismo dogmático de seu tempo. Cientismo falso,
Racionalismo castrador, e, por isso, tão prejudiciais à Razão verdadeira;
e, sobretudo, à selvagem alegria dos filhos da nossa Madre-oracular, A
Aparecida , a negra e bela Padroeira da Rainha do Meio-Dia .

DOM PANTERO
Quanto à monstruosidade e à morbidez de outros aspectos do
pensamento nietzschiano, devemos também perdoá-los — nós que,
sendo compatriotas de Goya, sabemos há muito tempo que “ os sonhos
da Razão produzem Monstros ”.

ADRIEL SOARES
O próprio Nietzsche, aliás, às vezes recuava, horrorizado, diante
dos Monstros que seu pensamento suscitava, em seu sangue e no dos
outros; e, intimidado, procurava escapar deles por meio de
compromissos indignos de sua nobre honradez e de sua luminosa
inteligência.

DOM PANTERO
Foi o que aconteceu, um dia, quando estava escrevendo o livro
que o jovem Encenador portava naquele dia e no qual, refletindo sobre
a origem da Tragédia segundo o espírito da Música, afirmava que “ a
existência do Mundo não pode ser justificada senão como fenômeno
estético ”. Acrescentou que assim falava expressando um pensamento de
Artista:

FREDERICO NIETZSCHE DE SAVEDRA


“O pensamento de um Deus, se quiserem; mas, em tal caso, um
Deus puramente artista, absolutamente liberto daquilo que se chama
escrúpulo ou moral e para quem a criação e a destruição, o Bem e o Mal,
fossem manifestações da sua onipotência e de seu arbítrio indiferente.”

AURO SCHABINO
Até aí, Nietzsche fala de acordo com sua visão geral do Mundo; e
é com fundamento naquela ideia de “ um Deus artista ”, um Deus
destituído de compaixão e indiferente ante o Bem e o Mal, que ele parte
para a aceitação (também no domínio da Moral, da Ética e da Política)
do espírito dionisíaco em que se fincam as raízes da criação artística.
ADRIEL SOARES
É então que fala no “ abismo que separava os Gregos dionisíacos
dos Bárbaros dionisíacos ”, incluindo entre estes últimos os Romanos e
os Babilônios. Diz que, comparadas com as gregas, as Festas dionisíacas
romanas ou babilônicas mostram a mesma diferença que existe entre “
um Sátiro barbudo e acanalhado e Dionísio ”. E acrescenta, sobre aqueles
“ Bárbaros dionisíacos tão diferentes dos Gregos ”:

FREDERICO NIETZSCHE DE SAVEDRA


“O objeto de seu regozijo era uma licença sexual desenfreada, cujo
fluxo exuberante não se detinha, respeitoso, nem mesmo perante a
consanguinidade e o incesto; e, transpondo os limites da Moral,
submergia às leis veneráveis da Família.”

DOM PANTERO
Um Dionisíaco qualquer, nosso contemporâneo e parecido com “
Asiáticos barbudos e Romanos acanalhados ”, poderia, cheio de razão,
perguntar a Nietzsche:

DOM PANCRÁCIO CAVALCANTI


Se Deus está morto, ou, caso ainda viva, se é apenas um Artista
amoral e indiferente, a quem não importa que os Homens pratiquem o
Bem ou o Mal; se o Cristo não era o Filho de Deus e não ressuscitou de
entre os mortos, então por que colocar freios “ao fluxo exuberante da
licença sexual”?

DOM PORFÍRIO DE ALBUQUERQUE


Por que nos determos “diante da consanguinidade e do incesto”?
Por que não transpor “os limites da Moral”? Ou, melhor, que “limites”
seriam estes? De onde viriam essas pretensas e ridículas “leis veneráveis
da Família”?

AURO SCHABINO
Quer dizer: no momento desse recuo, Nietzsche, apavorado pelo
rumo que suas ideias podiam tomar nas mentes e nas ações de pessoas
que não tinham nem seu caráter nem sua inteligência, termina por se
curvar diante da Família, da Moral e, consequentemente, de Deus —
única Fonte possível de normas absolutas, aptas a sustentar aquela
Moral e aquela Família pelas quais comumente ele manifestava tão
orgulhoso desprezo. Seu acerto — seu brilhante acerto! — foi pensar
em Deus como num Artista. Seu erro, triste e lamentável, foi julgá-lo
como um Artista amoral ou mesmo antimoral (e não como fonte
absoluta da Moral, como Ele é, em decorrência de sua própria
Natureza).

ADRIEL SOARES
E temos que ser justos também com Hegel, que, apesar daquela
infeliz profissão-de-fé racionalista, formulou a visão da Arte como
celebração capaz de espiritualizar o Real pela introdução, nas coisas, da
Beleza terrestre — chispa e fagulha da Beleza divina e absoluta.

DOM PANTERO
Em nossa época, por influência de Nietzsche, toda uma área do
pensamento ocidental passou a considerar o comportamento humano
como situado “ para além do Bem e do Mal ”. E parece que Oscar Wilde e
André Gide foram os principais responsáveis por se ter passado a
considerar a Arte como superior e alheia a qualquer determinação
moral.

JOSÉ FAUSTO MARTINS


O jovem Encenador admirava Wilde e Gide, Mestre?

DOM PANTERO
Acho que sim, porque identificava o problema das relações da
Arte com a Moral apenas com o da presença, ou não, no Palco, de cenas
consideradas pelos outros como “ eróticas ” ou “ obscenas ”;
consequentemente, também incorria no erro de julgar que, ao dizermos
nós “ a partir de determinado momento, também a Arte tem que levar a
Moral em conta ”, estaríamos defendendo uma Censura proibitiva e
mutilatória da obra de Arte — o que não é verdade e, de nossa parte,
seria uma contradição monstruosa e hipócrita.
JOSÉ FAUSTO MARTINS
O que foi que o senhor disse a ele, a tal respeito?

DOM PANTERO
O que sempre sustentei, inclusive em minhas aulas, como talvez
Você se recorde: que, no momento da criação da obra, a Arte nada tem a
ver com a Moral; o Artista é livre para dizer o que quiser e que for
necessário à expressão de seu universo. Mas, na hora de resolver a
quem a obra pode alcançar, não se deve permitir, por exemplo, que um
Adolescente ou uma Criança entre em contato com uma obra escrita
por um grande Artista de personalidade doentia e criminosa; obra que
difundisse entre seus indefesos jovens leitores ou espectadores a ideia
de que o prazer sexual é muito mais intenso (e, portanto, segundo os
que assim pensam, mais legítimo) quando obtido por meio da violação
de Crianças que, na hora, são estranguladas, como aconteceu com essa
Menina, Patrícia, estuprada e morta aqui.

AURO SCHABINO
Em nossa visão das coisas — e assim como acontece também
com o Feio —, o Mal é uma das faces da desordem do Mundo e da Vida.
Ambos são privações , são chagas do Ser — e o reconhecimento de tal
fato não importa em minimizar a importância da poderosa presença do
Mal e do Feio no universo da realidade e, consequentemente, no da
Arte.

ADRIEL SOARES
As pessoas que julgam antiquada, e mesmo ridícula, qualquer
referência à Moral, normalmente se envergonham de usar os critérios
de Bem e Mal em qualquer julgamento — no estético em particular.

DOM PANTERO
Na minha época de juventude, passei por uma fase em que
pensei ter me desvencilhado, como de um fardo que se joga fora, da
ideia de Deus e dos conceitos de Bem ou Mal. Até que, um dia, lendo um
daqueles Romances que lhe recomendei, de repente, numa revelação,
topei com uma frase de Ivan Karamázov, que dizia: “ Se Deus não existe,
tudo é permitido. ”

ASCENSO CAFÉ
Você nunca leu Dostoiévski com atenção: Ivan Karamázov
jamais pronunciou tal frase. O que se diz na cena do encontro entre Ivan
Karamázov e o Monge Zóssima é que “ se a imortalidade não existe, tudo
é permitido — até a antropofagia ”.

DOM PANTERO
Quem nunca leu Dostoiévski com atenção foi Você, que, por
outro lado, devia dar atenção a isto: se Deus não existe, qualquer ideia
ou esperança de imortalidade seria impossível. O próprio Dostoiévski
afirma, numa Carta: “ Deus e a imortalidade da alma são a mesma coisa.

Realmente, na cena inicial do Mosteiro o que se afirma é o que


Você diz. Mas depois, na frente de seu irmão Ivan, Smerdiákov o acusa
de tê-lo induzido a matar o Pai, e repete a frase, desta vez em termos
mais categóricos: “ Se Deus não existe, tudo é permitido. ”
Entretanto sua dúvida (que uma vez também me foi
apresentada, de modo mais cortês, por um amigo, Sidrack de Holanda
Cordeiro) tem algum fundamento: como tudo o que Ivan Karamázov
dizia, a frase era formulada em termos de dúvida, de ambiguidade
maligna; ambiguidade da qual Jean-Paul Sartre viria a sair pelo lado
oposto ao meu quando afirmou categoricamente: “ Deus não existe, e,
portanto, tudo é permitido. ”

JOSÉ FAUSTO MARTINS


O senhor conversou sobre isso com o Encenador, Mestre?

DOM PANTERO
Conversei. Ele perguntou que conclusão eu tirara da frase de
Ivan Karamázov, quando, sendo ainda muito jovem, ela saltara diante
de meus olhos pela primeira vez.
Respondi-lhe que, na mesma hora, descobrira: as normas
morais ou tinham um fundamento divino, absoluto, ou não tinham
validade alguma, porque ficariam dependendo das opiniões e paixões
de cada um — inclusive as de estupradores e assassinos. Então, apesar
da minha extrema juventude, eu tirara da frase de Ivan Karamázov a
consequência oposta à de Sartre. Dissera a mim mesmo: “ Vejo que nem
tudo é permitido; portanto, Deus existe. ” E, dali por diante, dentro das
minhas trevas e dos meus pecados, procurei ajustar minha vida e minha
Arte à convicção a que chegara.
Na noite em que me comunicaram a morte de Patrícia, Biu
Santeiro me mostrou uma Revista com fotos de Mulheres nuas: naquele
momento, eu me lembrei imediatamente do jovem Encenador. Lembrei-
me porque, no dia da nossa primeira conversa, ele também me mostrou
uma dessas Revistas, que levara de propósito porque sabia que um dos
ensaios fotográficos ali publicados iria me atingir de modo especial.
Eu acabara de pronunciar as frases a que me referi. E
acrescentei: por causa da consequência que, para nortear minha vida e
minha Arte, tirara das palavras de Ivan Karamázov, eu considerava
irresponsáveis e mal formulados tanto o princípio amoral estabelecido
por Sartre quanto o lema superficial e leviano adotado pelos jovens
Estudantes parisienses de 1968, “ É proibido proibir ”.
Ele retrucou que simpatizava com tal lema porque se
fundamentava “ numa Ética libertária do prazer ”. Fora informado, por
Ashera Acken, de que tinha sido a família Villoa que, em revide pela
morte do Prefeito Jayme Pessanha (morte cometida por meu Tio, João
Sotero), mandara matar o Cavaleiro; e novamente, segundo acredito,
queria portar-se diante de mim com firmeza e lealdade. Exibiu a
Revista que trazia, abriu-a e mostrou-me extensa matéria para a qual
posara uma Moça, bisneta do Prefeito assassinado (e, portanto,
sobrinha do homem que mandara matar o Cavaleiro). Na matéria, a
Moça — morena e de olhos escuros — declarava textualmente: “ Nada é
proibido, nada é pecado. ”

ALBANO CERVONEGRO
O Vento agita o Sono, duramente, sobre a Polpa inda viva e já
desfeita. É preciso vencer o Desespero, o seco Fruto e a garra da Suspeita,
nessa Tarde em que, dano da Memória, reluz o Candelabro e o Sono
espreita.
DOM PANTERO
Naquele dia, ao ver as fotografias da bisneta de Jayme Villoa,
lembrei-me imediatamente do Espetáculo que, em 1945, nosso último
ano no Colégio, Afra, Adriel e eu, sob a orientação de Tio Antero,
tínhamos organizado e exibido, no Auditório, com base num Folheto-
de-Cordel do grande Poeta-popular João Martins de Athayde: era aquele
mesmo Espetáculo que, recriado, o jovem Encenador agora iria ensaiar
— A História do Amor de Romeu e Julieta . Em seu Folheto, o Poeta
paraibano falava mal de Romeu, por ter traído sua Família, os
Montéquios, ao se casar com Julieta — Moça pertencente à família
inimiga da sua, os Capuletos:

JOÃO MARTINS DE ATHAYDE SAVEDRA


“Romeu foi falso a seu Pai, daí veio o seu castigo. Faltou-lhe
tenacidade: não percebeu o perigo de se casar com a filha de seu pior
inimigo!
“Foi este o grande motivo de sua infelicidade: Romeu traiu a
Família, faltou-lhe com a lealdade; onde existe um ódio antigo, não pode
haver amizade.”

DOM PANTERO
Eu, Afra e Adriel tínhamos lido um texto do Escritor paraibano
Alfredo Pessoa de Lima no qual ele afirmava: “ Savedras e Villoas são,
respectivamente, versões brasileiras e barrocas dos Montéquios e
Capuletos.”
A frase nos deixara contentes porque simpatizávamos muito
mais com a família de Romeu do que com a de Julieta, fato que também
acontecia com João Martins de Athayde. Tanto assim era que, no
começo de seu Folheto, ao apresentar o cenário e os personagens
daquela terrível e dolorosa história de Amor e Morte, dizia ele, em
versos que logo modificávamos para trazer a Tragédia ao Brasil:
JOÃO MARTINS DE ATHAYDE SAVEDRA
“Vou contar, aqui no Palco, a história de Romeu, a sua curta
existência e tudo o que padeceu; é a história mais tocante, que a minha
Pena escreveu.
“É uma história conhecida em quase toda Nação. No Teatro e no
Cinema, tem causado sensação, deixando amargas lembranças no mais
brutal coração.
“O que sofreu Julieta, quem, como eu, já tem lido, todo o seu
padecimento como foi acontecido, depois de seis, sete anos, inda não está
esquecido.
“Olinda, antiga cidade da terra pernambucana, foi berço dos
Capuletos, aquela raça tirana, inimiga dos Montéquios, família honesta e
humana.”

DOM PANTERO
Lendo tais versos, nós ficávamos contentes de pertencer à
Família “ honesta e humana ” dos Savedras-Montéquios, e não à “ tirana
” dos Villoas-Capuletos, de cujo sangue ruim brotara, apenas como
exceção, a luminosa figura de Julieta.
Apesar de agradecidos a Alfredo Pessoa de Lima e João Martins
de Athayde, nós discordávamos deste último e, contra “ o dever de
lealdade familiar ”, tomávamos o partido dos dois jovens Amantes.
Mas nosso Tio, Antero Schabino, ficava com João Martins de
Athayde. Citava o exemplo de Henry de Montherlant, que, em sua peça
A Rainha Morta , ao contrário de Camões, tomava, contra Inês de Castro,
o partido do Rei de Portugal, que autorizara o assassinato da jovem
Amante de seu filho, o Príncipe Dom Pedro, herdeiro da Coroa. Segundo
Montherlant, Inês representava um perigo para o Estado português,
uma vez que o Príncipe “ não tinha filhos de uma Esposa de sangue real ”
e, apaixonado por Inês, queria casar-se com ela, o que faria Portugal
cair de novo sob o domínio de Castela.
Por esse motivo, o Rei não tinha somente o direito: tinha era “ o
dever de matá-la ” — dever prescrito “ pela razão de Estado ”. Tio Antero
acrescentava que, em nosso caso, como no de Romeu, “ o dever de
lealdade à Família era o mesmo que a razão de Estado para o Rei ”.
Eu me obstinava na defesa dos “ amantes de Verona ”,
compadecido da sorte daqueles jovens apaixonados, os quais, por causa
da terrível vindita familiar que os separava, tinham caminhado ao
encontro da face trágica e sangrenta da Moça Caetana.
E, de qualquer modo, no que se referia a meu infortunado caso
de amor, eu não tinha medo de que, frustrado pela perda de Liza Reis,
terminasse me apaixonando por qualquer bela Moça da família que era
nossa inimiga. Mesmo quando moço, se me encontrasse um dia à frente
de uma jovem e bela Villoa como aquela, não teria que tomar, ou não
tomar, qualquer decisão como a de Romeu ao se apaixonar por Julieta
— aquela Rosa brotada de um sangue inimigo do seu: porque, apesar
da beleza da bisneta de Jayme Villoa que aparecia na Revista, eu jamais
me apaixonaria por ela, tão diferente de Liza.
O que me preocupava era ver como ainda estava longe de obter
de mim a vitória de me sobrepor ao sofrimento, à dor e ao
ressentimento causados pela morte do Cavaleiro. A moça da Revista
nada tinha a ver com aquela morte, praticada por seus parentes.
Provavelmente, nem sequer tinha conhecimento da culpa que eles
carregavam por causa do crime. E, ainda assim, eu só poderia dizer
sinceramente que perdoara a morte de meu Pai a seus assassinos se,
um dia — sentindo somente compaixão por ela ter concordado em
aviltar sua beleza numa Revista como aquela —, eu conseguisse olhar
seus olhos negros e fendidos com o mesmo coração limpo e o mesmo
êxtase sereno com que olhava os olhos claros e luminosos da minha
amada Liza Reis.
É claro que, na hora, eu me abstive de comentar esses fatos com
o jovem Encenador. Limitei-me a dizer que a frase da Moça da família
Villoa — “ Nada é proibido, nada é pecado ” — significava a mesma coisa
que o lema dos Estudantes franceses de 1968; pois para mim era claro:
se era “ proibido proibir ” era exatamente porque “ nada era pecado ”.
E então, para mostrar ao Encenador quanto sua “ Ética do prazer
” estava errada, coloquei para ele a seguinte hipótese:
“Digamos que, como está acontecendo no Recife por estes dias e
como foi publicado nos Jornais, um Rapaz rico saia por aí, em seu Carro,
aliciando Travestis e homossexuais, que, depois de manterem relações
sexuais com ele, são assassinados a tiros de Revólver. Se ele alegar que
age assim por sentir prazer na prática de tais crimes, deve-lhe ser
permitido continuar para não ferir ‘a norma libertária’ de que ‘é proibido
proibir’?”
Mostrei-lhe ainda o recorte de um Jornal publicado por aqueles
dias com a seguinte notícia:
“Um Rapaz, condenado por abusar sexualmente de 16 Meninos
antes de matá-los, recebeu, ontem, 100 chibatadas, antes de ser enforcado
diante de uma multidão enfurecida que, na periferia de Teerã, atirava
pedras e entrava em choque com a Polícia, querendo arrebatar-lhe o
condenado para fazer justiça com as próprias mãos.
“O Rapaz, de 23 anos, confessou, perante o Tribunal, que sentira
prazer ao violentar os 16 Meninos e ao matá-los depois, queimando os
corpos das vítimas, todas com idade entre 8 e 15 anos.”
Depois que o Encenador leu a notícia, eu disse a ele que, na
linha oposta à de sua “ Ética do prazer ”, eu, se tivesse poder para isso,
proibiria ao Rapaz a violação e morte dos 16 Meninos, fosse qual fosse
o prazer que ele experimentasse com isso. E proibiria, também, sua
cruel execução pelo Estado. Para mim, em ambos os casos, aqueles
eram atos que me faziam voltar à conclusão de que, ou Deus existe, ou o
Mundo é uma teia amaldiçoada, um aglomerado insano e cego de fatos
sem sentido.
Ele retrucou que, evidentemente, casos como aquele eram
exceções e não estavam incluídos no lema; o que me levou a dizer que,
se era assim, o lema deveria ser reformulado para “ Em certos casos, é
proibido proibir ” — o que era sem força, óbvio, e portanto não
precisava ser reafirmado por ninguém.
De modo que, não me parecendo satisfatórias suas explicações,
concluí mais uma vez que Hegel era quem estava no caminho certo ao
considerar a Arte, a Religião e a Filosofia como tentativas empreendidas
pelo Ser-humano em direção ao Absoluto; e a própria Vida como uma
Viagem, uma Caminhada em busca de Deus — explicação final de todos
os absurdos e fundamento de qualquer norma moral que, por não
depender da opinião e do arbítrio individual, proíbe que se venha a
considerar legítima até a realidade monstruosa do Pecado e do Crime.
Mas me diga uma coisa, Fausto: Você não está achando que foi o
jovem Encenador quem matou Patrícia não, está? Se está, quero
lembrar que ele se foi daqui há bastante tempo. E, numa Cidade tão
pequena como Taperoá, se tivesse voltado para cometer o crime, teria
sido notado e descoberto imediatamente.

JOSÉ FAUSTO MARTINS


Não, Mestre, sei que não foi ele, e assumo com o senhor o
compromisso de encontrar o criminoso e entregá-lo à Justiça, para que
seja castigado!
Mas vou, ainda, pedir licença aos outros participantes do
Simpósio para dizer que, no triste caso desta Menina que foi morta
aqui, nós, apesar da sensação de culpa e vergonha que o crime nos
causa, ainda tivemos sorte, porque o Padre nada tem a ver com tudo o
que, por desgraça, aconteceu em sua Igreja.
Falo assim porque, em Campina Grande, aconteceram
recentemente 4 crimes ligados a abuso sexual e cujos autores eram as
últimas pessoas que esperaríamos fossem capazes de praticá-los.
Ouçam a notícia que, lá, foi publicada num Jornal, e aqui reproduzida
pela Gazeta do Cariry :

O PADRE , O MESTRE ,
O PALHAÇO E O PAI

Três VarIações & uma CadêncIa sobre o Tema de Beldade


e o Monstro

MARCELO REBELO
“Recentemente, a cidade de Campina Grande foi abalada por 4
fatos que chocaram a sociedade local.
“Primeiro, foi um Padre, de 43 anos: ele confessou à Polícia ter
abusado de uma Menina que frequentava as aulas de Catecismo dadas
por ele, e que, depois delas, chegou a fazer a primeira comunhão.
“De acordo com a confissão feita à Polícia, o Padre sentiu-se
atraído pela Menina durante aquelas aulas. Para seduzi-la, começou a
dar-lhe pequenos valores em dinheiro, além de um aparelho de som e um
Telefone celular.
“Encantada com as atenções do Padre, a Menina concordou em
ser levada quase diariamente para o quarto dele, onde era despida e
tocada; mas tanto o Padre quanto a Menina disseram que, entre os dois,
não chegou a haver relações sexuais completas (o que vai ser
averiguado).
“Mesmo assim — e mesmo que a posse não se tenha consumado
—, de acordo com as determinações legais em vigor no Brasil, o Padre já
foi indiciado por atentado violento ao pudor, agravado por presunção de
violência pelo fato de a Menina ter menos de 14 anos.
“O segundo caso surgiu no curso das investigações sobre a morte,
por envenenamento, de um Homem: a Polícia suspeita que sua filha
adolescente é a responsável pela morte; e um Tio materno dela acha que
a Menina assim agiu por ter sido agredida e abusada sexualmente pelo
Pai. O Tio contou à Polícia que, no fim do ano passado, sua sobrinha fugiu
de casa e foi para o Recife, onde esperava fazer um teste para Atriz. Como
não conseguiu realizar seu sonho, foi para a casa do Tio, a quem relatou
os abusos que tinha sofrido por parte do Pai.
“Agora, o terceiro caso: um Professor, acusado de abusar
sexualmente de duas de suas alunas está preso desde ontem. O registro
policial diz que ele passou a noite num Motel, com duas Meninas de 12
anos, o que foi descoberto e denunciado pela Mãe de uma delas.
“O Professor, de 39 anos, dá aulas no Colégio onde as Meninas
estudam, e começou a seduzi-las com chicletes, bombons, dinheiro e
brinquedos. Também permitia que, sentadas em seu colo, elas dirigissem
o carro de sua propriedade.
“O Professor, que mora num quarto alugado numa casa, passou a
convidar as Meninas para almoçar, e, num Domingo, imaginou um plano
astucioso: telefonou para a casa das duas, fazendo-se passar pelo Pai de
uma e de outra e pedindo permissão para que cada uma das Meninas
dormisse na casa da colega.
“Os pais acreditaram e permitiram. O Professor, então, apanhou
as duas para passarem a noite em sua casa. Mas, na verdade, levou-as
para o Motel, onde teria ficado nu e se masturbando, enquanto as
Meninas se despiam e se banhavam na sua frente. Foi acusado de
atentado violento ao pudor. E o Delegado disse que o artigo 224 do
Código Penal estabelece que menores de 14 anos ainda não têm
capacidade de se defender contra a malícia desses atos, motivo pelo qual
o Professor cometeu ‘violência presumida’ e pode pegar pena de 6 a 10
anos de reclusão.
“Finalmente, o último caso: o Palhaço Pintuba , integrante de um
Circo que esteve armado nesta Cidade, está sendo acusado de estuprar
uma Menina de 12 anos, que o conheceu durante o Espetáculo.
“A Menina foi ao Circo com umas colegas, e, no fim do Espetáculo,
ficou no Picadeiro para ver o Palhaço (que, conforme explicou, ela
‘achara engraçado’); e Pintuba se aproveitou de sua ingenuidade para
seduzi-la.
“Ele e a Menina se encontraram pela primeira vez numa
construção, perto da casa dela, situada no bairro onde o Circo estava
armado. Houve outro encontro no mesmo local, e um terceiro ao lado do
Circo, debaixo de uma lona. Durante os três, ele manteve relações sexuais
com a Menina, com quem praticou sexo oral.
“A mãe da Menina ficou desconfiada porque ela estava chegando
tarde da noite em casa, e pressionou a filha, que contou o que acontecera.
Ela, então, deu queixa contra Pintuba, na Delegacia.
“Intimado, o Palhaço confessou o crime; mas disse que o cometera
por ignorância, sem saber que, pelo Código Penal, manter relações
sexuais com uma menor de 14 anos, mesmo com sua concordância, é
crime hediondo. E afirmou que, antes mesmo de ser intimado, já estava
pretendendo casar-se com a Menina.
“Pintuba foi despedido do Circo, que já seguiu para outra Cidade.
E agora, morando num Quarto pequeno e pobre que alugou no mesmo
bairro onde mora sua Vítima, pode pegar de 6 a 10 anos de prisão pelo
Crime que praticou.”
JOSÉ FAUSTO MARTINS
Como o senhor vê, Mestre, o mundo do Crime em geral, e o dos
crimes sexuais em particular, é repetitivo e monótono. E, infelizmente,
quando surge uma novidade, é um caso como o de Patrícia, em que o
criminoso, além de estuprar, estrangula a criança — coisa que, graças a
Deus, os criminosos de Campina não chegaram a fazer.

DOM PEDRO DINIS QUADERNA


Peço que os anais do Simpósio registrem meu protesto contra
um fato bastante generalizado, mas que aqui vem se apresentando com
uma frequência para mim preocupante: é que o relato desses crimes e
pecados normalmente é feito numa linguagem jornalística, policial ou
forense, que os afeia e não leva em conta a Beleza e a Arte.
É isso que induz José Fausto Martins a considerar “ repetitivo e
monótono o mundo do Crime ”. Aqui, estamos num recinto que é “ o
templo da Arte ”, e peço aos participantes do Simpósio que prestem
atenção: em todos os crimes relatados pelo jornal de Campina Grande a
figura do Juiz aparece sempre numa postura condenatória e
majestática, como se ele se encontrasse acima das paixões humanas.
Por isso, a todos os textos que Fausto leu aqui, peço que se
acrescente, nos anais do Simpósio, a cena descrita pelo genial Escritor
paraibano Carlos Dias Fernandes. O autor do “ abuso sexual ” é “ o
Desembargador Palma ”; “ a vítima ” é Helena, mal saída da
adolescência; nota-se perfeitamente que “ a vítima ” não só recebe com
agrado “ o abuso ”, mas, de certo modo, até lamenta que ele não tenha
ido adiante:

O HIRCO INEVITÁVEL
VarIação hIpolídIca sobre o tema de Beldade e o Monstro

HELENA DIAS FERNANDES SCHABINO


“Os beijos de Palma parecia queimarem-me a pele; e a
contiguidade áspera do seu bigode, roçando-me o colo e a face, excitava-
me para uma sensação mais complexa a que a dor não fosse estranha
para ser mais intensa.
“Ele ofegava, como se, num esforço supremo, concentrasse toda a
sua energia para transpor um obstáculo. Era quase um estado de
alucinação, a desordem dos seus instintos, confusos e unificados no
paroxismo da Luxúria.

“A transmissão direta daqueles fluidos nervosos penetrava-me a


sensibilidade, repercutindo em sensações reflexas, contínuas, na Corola
orvalhada do meu sexo: os seus lábios em fogo percorriam-me agora a
curva abdominal, num anseio ofegante de quem tem sede; já frêmitos
espasmódicos fluíam-me à flor da pele e a sua cabeça pesava-me sobre o
Púbis.
“Contraí-me um pouco para cima e senti-lhe a boca escaldada e
úmida, numa sucção muito branda, ajustar-se àquela Fenda onde se
fixavam todas as vibrações da minha volúpia.
“Aceleraram-se-me os nervos, na experimentação empolgante de
um prazer violentíssimo e sem termos, que me fez desvairar. Os seus
dedos fechavam-se como cadeias sobre os meus punhos delgados.
— “Basta! Basta! — dizia-lhe, debatendo-me na fúria da sua boca
insaciável.
“Mas ele, numa satiríase crescente, já não me ouvia a súplica
indecisa e obstinava-se com mais ânimo à gustação palatal do meu corpo,
ao deleite olfativo da minha sexualidade. Já me não era possível a
tolerância daquela angústia deleitosa em que se esvaía, num delíquio, a
resistência orgânica do meu ser: veio-me um desejo incoercível de gritar;
morreu-me a voz na garganta; era o espasmo último, desmaiei.
“Veio-me em seguida um sono profundo e, noite alta, sonhei. Era
num lugar deserto, onde me encontrava sozinha. Um Rio muito claro de
águas mansas fluía entre Ingazeiros copados. Nem um leve rumor de
Pássaros havia nas ramagens quietas, na grande Paisagem, silenciosa e
sem fim. Eu meu quedava à beira d’água, atraída pelo frescor do Rio,
dominada por um desejo irresistível de me banhar.
“A Planície imensa e deserta estendia-se em torno, sob um Céu
fusco e nimboso de alvorada. Somente as Árvores, em fila sinuosa,
emergiam da Campina sem termos e acompanhando o curso do Rio. E eu
mergulhei subitamente no seio das Águas, que eram mornas e de uma
densidade de azeite, fendendo-se sem ruído aos meus bracejos.
“Um Vento forte soprou inesperadamente e as minhas roupas,
deixadas à margem, voaram no turbilhão. A princípio, rolaram por terra,
numa rodilha informe; mas depois elevaram-se, suspenderam-se mais,
dispersaram-se todas, intumescidas pelo Vento.
“Quando as perdi totalmente de vista é que tive a noção da minha
completa nudez. Voltei-me, aflita, para o lado oposto, e notei que uma
Forma indistinta caminhava para mim. Ganhei a nado, num esforço
supremo, a Ribanceira que se afastava, alargando vertiginosamente o
leito do Rio.

“As Águas oleosas aderiam-me à pele e eu me sentia lubrificada e


totalmente nua, naquele Ermo sem fim.
“O Vulto aproximava-se a olhos vistos e já se lhe percebiam as
formas, que um trote curto agitava. Era um Caprípede castanho, com dois
Chifres retorcidos na fronte. A sua aproximação inquietava-me, afligia-
me, e fiquei possuída de um terror inexprimível quando percebi que ele,
retorcendo para mim os olhos concupiscentes, dilatava ao ar as sôfregas
narinas.
“Deitei a correr pela Planície, mas o Capro, sempre a meus flancos,
mordiscava-me as pernas, lambendo-me lascivamente as nádegas
lubrificadas e roçando-me às vezes o dorso nu com as pontas dos Chifres
ásperos.
“Já não podendo fugir ao Hirco inevitável, rolei, exausta, num
Tabuleiro de grama, despertando enfim do Pesadelo. Coava-se nas
vidraças a limpidez da manhã. Numa réstia de Sol que fendia o telhado, a
Poeira turbilhonava; e, dominando os rumores confusos dos atritos das
coisas e das vozes humanas, ouvia-se distintamente o chilrear dos
Canários.”
DOM PANTERO
Lembro mais uma vez a todos que, aqui no Circo-Teatro Savedra ,
somente se permite a entrada de “ adultos de sólida formação religiosa,
moral, poética e filosófica ”.
Mesmo assim — e nem que fosse pela presença, na Plateia, do
Padre Manuel — quero recordar que a cena descrita por Carlos Dias
Fernandes faz parte do contexto de uma obra de Arte, enquanto os fatos
apresentados por José Fausto Martins pertencem ao quadro da Vida, de
modo que o julgamento sobre uma e outros tem que ser feito sob
ângulos diversos.
E, por falar nisso, quero perguntar a Fausto: como andam as
investigações sobre a morte de Patrícia?

JOSÉ FAUSTO MARTINS


Estão tomando outro rumo e apontando para o velho Cantador e
Mestre-de-Obras a cujo antigo crime o senhor há pouco se referiu. O
senhor sabe por que Marcos Tebano veio morar tão longe do Recife?

DOM PANTERO
Marcos foi recomendado a Quaderna em sua condição de “
competente, se bem que meio-doido Mestre-de-Obras ”; a recomendação
partiu de um dos discípulos prediletos de Auro — um rapaz chamado
Álvaro Cárdenas.
Mas quero lhe fazer duas ponderações, Fausto. A primeira é que
a idade avançada do velho Pedreiro e Cantador deveria afastar dele
qualquer suspeita num caso como o de Patrícia. A segunda é que
Marcos, hoje, é um Velho profundamente religioso, manso e tranquilo, o
que foi levado em conta pelo Padre, para escolhê-lo como Sacristão, e
por mim, para mantê-lo no posto de Porteiro da Unipopt — cargo no
qual fora colocado por Quaderna ao terminarem as obras de reforma da
Universidade.
JOSÉ FAUSTO MARTINS
Mestre, a luxúria não termina com a velhice não; só a Morte
acaba com ela!
Quanto à religiosidade, lembro que a do velho Marcos Tebano
não o impediu de matar a primeira Mulher.

DOM PANTERO
Pois, quanto a mim, o que eu gostaria, mesmo, era de saber por
que as suspeitas sobre o Eletricista foram descartadas. No relato feito
por ele ao Jornal sobre sua atuação no caso de Patrícia, há um
pormenor que me pareceu estranho: como chegou ele a perceber que a
porta da Igreja estava aberta? A nossa Matriz ergue-se, isolada, no alto
de um pequeno Morro, e não é comum as pessoas passarem por sua
calçada a ponto de se notar que uma das portas laterais está
entreaberta.

JOSÉ FAUSTO MARTINS


O Eletricista mora numa das ruas próximas à Igreja e, segundo
afirmou, tem o costume de, todo dia, ir sentar-se na calçada que dá para
a Matriz, “ para ver o Sol se pôr ” — fato confirmado por seus vizinhos.
Foi assim que pôde tomar conhecimento de que, naquela hora
incomum, a porta da Igreja não estava fechada.

DOM PANTERO
Fausto, Marcos Tebano é o Sacristão, e, nessa qualidade, tem as
chaves da Igreja. Seria mais lógico, então, que, cometido o crime, ele
fechasse a porta, para, assim, retardar o mais possível o encontro do
corpo de Patrícia.

JOSÉ FAUSTO MARTINS


Também a mim ocorreu essa ideia, Mestre. Mas depois achei que
outra hipótese devia ser examinada: talvez Marcos não tenha fechado a
porta porque, apavorado pelo crime que cometeu, saiu da Igreja o mais
depressa que pôde; não podia demorar tomando aquela providência,
que aumentava o risco de ser ele notado ao sair, invalidando-se aí sua
versão de que estava aqui na Universidade no momento em que o crime
foi praticado.
E existe, ainda, a possibilidade de Marcos ser um homem frio e
astucioso, que deixou a porta aberta exatamente para sugerir a
hipótese que ocorreu a nós dois.
DOM PANTERO
Nesse momento, nobres Senhores e belas Damas da Pedra do
Reino, senti que uma sede estranha se apoderara de mim — sede
parecida com aquela que me assaltava, às vezes, na Estrada de
Matacavalos , em minhas incursões para a Ilumiara . E, notando que no
Cálice que permanecia sobre o Púlpito havia ainda um pouco de Vinho,
estendi a mão para ele a fim de bebê-lo. Mas, sem que soubesse o que
me levava àquilo, de repente detive o gesto a meio caminho, sem
completá-lo. Foi como dizia Alexandre Dumas:

ALEXANDRE SCHABINO DUMAS


“Durante o silêncio que se seguiu quis levar à boca o copo de
Vinho em que lera, talvez, lúgubres Profecias. Mas apenas o cheguei aos
lábios, repeli-o com invencível repugnância, como o teria feito ao Cálice
cheio de um Vinho amargo.”

DOM PANTERO
Ao mesmo tempo em que isso me ocorria, os trabalhos do
Simpósio eram interrompidos de maneira inesperada: sem que
ninguém lhe tivesse dado maior atenção, Biu Santeiro achara jeito de se
meter na Plateia; e, apesar da surdez, ouvira alguma coisa de tudo
aquilo que falávamos sobre seu Pai.
Então, no momento em que José Fausto Martins acabava de
externar sua opinião sobre a possível frieza e astúcia assassina de
Marcos Tebano, ele se levantou da cadeira onde estava sentado, numa
das últimas filas, e gritou alto, com a voz meio engrolada:

BIU SANTEIRO
“Poesia do Sol, sombra do Ser! Quem descobre a Vida? Dizei-me
porque existe a Vida! Ah imortalidade, ah imensidade! Eu não me
esqueço de Vós na Terra um só segundo, pois a Vida-eterna mora em
mim.
“Não foi meu Pai não, foi a Besta! Foi a Besta que matou a
Mulher dele, foi a Besta que matou a Menina e foi a Besta quem foi dizer
ao Delegado que foi meu Pai!
“Mas a gente tem quem puna por nós dois: Doutor Antero
Savedra! Com a visão soberana de um laço divino que ninguém pensou,
assim, meu Deus, ele fala dos problemas que aparecem aqui, ali, acolá,
coisas que ninguém neste Mundo pensou. Ele é Poeta de fé em todos os
lugares do Brasil, e vai punir por meu Pai e por mim, porque nós somos
dois inocentes vagando pelo Mundo!”

DOM PANTERO
Aí, nobres Cavaleiros e belas Damas da Pedra do Reino, William
Costa e Carlos Tavares, com cuidado e atenção, aproximaram-se do
Escultor e, procurando o mais possível minimizar o incidente,
retiraram-no do Teatro.

Mas é tempo de concluir esta Carta, e é o que passo a fazer.

DOXOLOGIA
AURO SCHABINO
Agora, só me resta ir para a Igreja. Subo a Ladeira. A Porta. A
escura Nave. Com o Livro aos ombros, vou como uma Ave de papel preto e
branco que esvoeja. Vazio, o nicho em ouro ali flameja. Subo ao Altar. No
vão, perto da grade, deposito a futura Raridade. Vou ao Padre. Recebo a
minha Tença. E, em meio da geral indiferença, abandono — mais uma! —
esta Cidade.

ALBANO CERVONEGRO
Pois é assim: meu Circo pela Estrada. Dois Emblemas lhe servem
de Estandarte: no Sertão, o Arraial do Bacamarte; na Cidade, a Favela-
Consagrada. Dentro do Circo, a Vida, Onça Malhada, ao luzir, no Teatro, o
pelo belo, transforma-se num Sonho — Palco e Prelo. E é ao som deste
Canto, na garganta, que a cortina do Circo se levanta, para mostrar meu
Povo e seu Castelo.

DOM PANTERO
E, com estes Versos, compostos em Martelo-Agalopado — uma
Estrofe criada pelos Cantadores brasileiros —, aqui se despede de
Vocês, nobres Cavaleiros e belas Damas da Pedra do Reino, este que é,
ao mesmo tempo, seu Soberano e seu companheiro de cavalgadas e
Cavalaria,

Dom Pantero do Espírito Santo, Imperador .


Fuga

A PERSONA DO POIETA
A PERSONA DO POIETA
Epístola de Santo Antero Schabino, Apóstolo

Escrita por seu afilhado, sobrinho e discípulo Antero Savedra,


em homenagem aos Brasileiros descendentes de Japoneses, Coreanos,
Chineses, Indianos etc., nas pessoas de Carolina e Filipe Ishigami.
Dirigida aos nobres Cavaleiros e belas Damas da Pedra do Reino.
E enviada, por seu intermédio, aos diversos povos do Mundo;
especialmente aos da Rainha do Meio-Dia , aqui representada por
Timor-Leste .
EPÍGRAFE
“Não tenho estilo para escrever. Não tenho nem para comer,
quanto mais para escrever! O Mundo, inteiriço, está dentro de mim. Não
vendo a ninguém a imagem das minhas tristezas. Quando eu rio, todos
riem comigo. E quando choro, choro sozinho.”

J OSÉ C AVALCANTI
DEDICATÓRIA
Esta Fuga é dedicada a Carlos Newton de Souza Lima Júnior,
Sílvia Fernanda de Medeiros Maciel, Heitor e Beatriz Maciel de Souza
Lima.
Foi composta em memória de Joaquim de Andrade Lima
Suassuna (30.IX.1957 — 6.X.2010).
A PERSONA DO POIETA E AS MÁSCARAS
COREGAIS

Alegro com Brio — Presto Dramático


SIBILA
Moda, Turismo & Lazer
Igarassu, 29 de Março de 2014
23 de Abril de 2016

Aos nobres Cavaleiros e belas Damas da Pedra do Reino.

Amigos:

N aanterior,
tarde de 9 de Outubro de 2000, depois do que contei na Carta
os trabalhos do Simpósio Quaterna foram retomados por
Letícia Lins, que falou:

LETÍCIA LINS
Mestre, eu gostaria muito que o senhor desse algumas
indicações sobre as mais importantes Figuras que o auxiliam em seu
Depoimento. O senhor disse que, aqui, é como se estivéssemos diante
de uma Aula-Espetaculosa, o que significa quase um espetáculo de
Teatro.
Ora, até recentemente, no programa dos Espetáculos,
costumava-se apresentar uma lista de Personagens, com os nomes dos
Atores que os encarnavam. É o que peço, agora, em relação ao Simpósio,
pois isso facilitará muito o trabalho de cada um de nós, na Entrevista.

DOM PANTERO
Atendo, com satisfação, a seu pedido. Entre as Figuras que
comparecem aqui, Dom Paribo Sallemas, Dom Pancrácio Cavalcanti e
Dom Porfírio de Albuquerque formam o trio sob cujo comando atuam
Gregório Mateus de Sousa, Palhaço-Obsceno, e Galdino Bastião Soares,
Palhaço-Herege. E, para que Vocês tenham logo uma opinião sobre eles,
chamo os dois ao Microfone para que recitem as Décimas que
compuseram sobre o Mote “ Forçado pelo Destino, já fiz muita coisa
errada ”.

GALDINO BASTIÃO SOARES


“Já corri, sem Sela e Espora, montando em Cavalo brabo. Já fiz
promessas ao Diabo, jogando a prudência fora. Falei mal, a toda hora, de
Maria Imaculada. Ri da Hóstia consagrada, ri dos chamados do Sino:
forçado pelo Destino, já fiz muita coisa errada.”

GREGÓRIO MATEUS DE SOUSA


“Eu já peguei em buceta de Mulher, no mei-da-rua, já fiz Moça
dançar nua, sem calça, mostrando a Greta. Já toquei muita Punheta,
sonhando pelas Estradas. Já trepei Mulher casada, já comi cu de mofino:
forçado pelo Destino, já fiz muita coisa errada.”

DOM PANTERO
João Grilo e Chicó eram filhos, respectivamente, de João Tinoque
e Chico Furiba, dois Sertanejos que, integrando a Coluna Prestes ,
terminaram como seguidores de “ Dom Sebastião Pereira — O Príncipe
do Cavalo Branco ”. Mortos João Tinoque e Chico Furiba, Chicó e João
Grilo vieram dar com os costados em Taperoá, onde se tornaram pajens
de Quaderna e Figuras importantes do seu famoso Circo da Onça
Malhada .
Joaquim Simão da Silva, marido de Nevinha, é o Poeta-de-Feira
— o Cantador e Folhetista preguiçoso que durante certo tempo foi
amante de Dona Clarabela.

ÂNGELA LACERDA
Mestre, acho que pelo fato de ser Mulher, eu gostaria que o
senhor falasse mais detidamente sobre Dona Clarabela.

DOM PANTERO
Dona Clarabela Noronha de Britto Moraes — uma das poucas
que ainda continuam vivas entre as Máscaras-Coregais que compõem
este Espetáculo — é 10 anos mais moça do que eu. Seus pais foram
Gustavo Moraes e Clara Swendson. Foi aluna de meu tio Antero
Schabino desde que, Menina, saiu de Taperoá para o Recife, a fim de
estudar no mesmo Colégio em que fôramos alunos-internos.
O relacionamento de professor e aluna prosseguiu depois, na
Universidade, de modo que a influência de meu Tio sobre ela foi tão
devastadora quanto para nós; na verdade foi mais fulminante ainda,
pelo fato de ela ser Mulher.
Nos meios literários do Recife, isto daria lugar a terríveis boatos
e comentários, segundo os quais “ o caso da infortunada Clarabela fora
apenas mais um episódio do costumeiro processo intelectual adotado por
‘Dom Antero Schabino, O Hebéfilo ’, para seduzir e corromper suas alunas
adolescentes ”.
Clarabela casou-se, depois, com Aderaldo Catacão, um ricaço do
Recife. Voltou a Taperoá, e foi aí que, durante um curto espaço de
tempo, manteve “ um caso ” com Joaquim Simão. Enviuvou, tornando-se,
então, a “ Amante-literária ” de Quaderna.
Hoje, viúva e desimpedida, além de minha colega na Unipopt ,
onde ensina Teoria Literária e Literatura Comparada, é uma das “
Figuras ” mais importantes do Simpósio.

UBIRATAN BRASIL
Mestre, introduzida, já, Dona Clarabela, peço-lhe que continue a
relação dos demais integrantes do Espetáculo, com ênfase sobre seus
irmãos, que foram tão importantes para a formulação deste Simpósio, e
mais importantes serão ainda quando, mais tarde, o senhor for redigir
A Ilumiara .
DOM PANTERO
Pois não, vamos lá! Altino, Poeta, com suas visões obscuras, era
quem estava por trás de Albano Cervonegro, autor de O Pasto
Incendiado .
Adriel, Dramaturgo, era casado com Eliza de Andrade, que hoje
mora aqui, com os filhos; Eliza foi a Mestra que me ensinou a arte da
Litografia, possibilitando-me a criação de minhas Estilogravuras, em
preto e branco, e depois a das Iluminogravuras, coloridas. Por ser o
autor do Auto d’A Misericordiosa , Adriel era chamado, com desprezo,
pelos equivocados da “ Esquerda arejada ”, de O Jogral da Aparecida , ou
O Palhaço da Coroada .
Auro, Prosador, foi quem escreveu o Romance d ’ A Pedra do
Reino , livro que iniciou entre ele e Tio Antero uma hostilidade
posteriormente transformada em aversão irreparável quando ele se
mudou de nossa Casa para a Favela-Consagrada (ou Ilha de Deus ), onde
ajudava as Missas celebradas pelo Padre Matias Falacho Daro; fato que
também lhe valeu os insultos dos sociólogos, historiadores e cientistas-
políticos da “ Esquerda arejada ”, que passaram a chamá-lo de “ O
Profeta-de-Sacristia ”.
SILVANA VALENÇA
E Aribál Saldanha? E Ademar Sallinas, Mestre?

DOM PANTERO
Quanto a estes, o assunto é mais delicado, porque todos dois se
ligam à complexa, terrível e fascinante figura de meu Tio, Antero
Schabino (motivo pelo qual procurei os 3 Atores mais parecidos entre si
para representá-los, aqui no Simpósio).
A obra maior de Tio Antero foi o Diálogo d ’ A Onça Malhada e a
Ilha Brasil , livro em que, a exemplo do que aconteceu no Diálogo das
Grandezas do Brasil , conversavam dois Interlocutores principais — no
caso daquele, Aribál Saldanha e Ademar Sallinas. O primeiro nome foi
escolhido porque Aribál , variante de Aribaldo , significa “ o Chefe, o
Condutor ”; e também porque Aribál Saldanha tem o mesmo número de
letras que Antero Schabino .
N’ A Onça Malhada , ensaio de interpretação do Brasil, Tio
Antero, como professor de Filosofia da Cultura, reunira suas ideias
estéticas sobre a Rainha do Meio-Dia e o mito da Ilha Brasil. Por isso, ao
publicar o livro, assinou-o com o nome de seu interlocutor principal,
Aribál Saldanha, que, para ele, era equivalente ao Brandônio , de
Ambrósio Fernandes Brandão (enquanto Ademar Sallinas era o Alviano
).
Já o “ quase-romance ” O Desejado , que publicou depois, era “
uma obra mais literária e de ficção ” — como dizia ele, afetando uma
certa superioridade desdenhosa sobre a Literatura. E, não querendo
assiná-la com o mesmo pseudônimo usado “ na mais séria ”, adotou o
nome do outro Interlocutor, Ademar Sallinas , que tinha o mesmo
número de letras de Antero Schabino e Aribál Saldanha . Era também sob
este nome que Tio Antero, tendo aos ombros a gola que ganhara de
Mestre Salustiano ao receber o título de Guerreiro e Rei-de-Honra do
Maracatu Piaba de Ouro , fazia suas entradas triunfais na sala da nossa
Casa recifense para fazer suas Conferências Quase-Literárias .

MAURICE VAN WOENSEL


Mestre, queria que Você falasse alguma coisa sobre o Romance
O Desejado .

DOM PANTERO
A ação nele contada situava-se em Olinda, no fim do século XVI,
e seu Narrador era Alexandre Schabino, um antepassado nosso, que,
amigo de Bento Teixeira, Frei Vicente do Salvador e Ambrósio
Fernandes Brandão, respondera a um Processo perante o “ Visitador do
Santo Ofício às Partes do Brasil ” Heytor Furtado de Mendonça (ou
Mendoça , forma espanholizada que o quase-inquisidor preferia, por ser
partidário da Espanha e dos Filipes).
Mas Alexandre era apenas o Narrador: o Personagem-central do
livro fora criado a partir de um Visionário que, depois da morte de Dom
Sebastião na batalha de Alcácer-Quibir, tinha aparecido em Olinda,
convencido de que era o jovem Rei de Portugal, morto na África mas
ressuscitado no Brasil por seu intermédio.
Esse Protagonista de O Desejado chamava-se Dom Sebastião
Barretto. Era um Personagem trágico, cujo Antagonista, Mateus Bicalho,
era cômico e picaresco. Segundo meu Tio, para criá-los, partira ele, em
primeiro lugar, “ de um aprofundamento da antítese Mateus-Bastião , dos
Espetáculos populares brasileiros ”; e, depois, do outro par formado pelo
Nobre faminto e seu Pajem, presentes nos capítulos X-XVII das
Aventuras do Lazarilho de Tormes , Novela-picaresca do século XVI. Mas
Tio Antero dizia que o autor do Lazarilho não tivera gênio suficiente
para entender que o jovem e faminto Escudeiro-fidalgo de sua Novela
era um Personagem trágico, “ erro que aparecia corrigido em O Desejado
”, acrescentava meu Tio.
Na verdade, para criar o Protagonista de seu “ quase-romance ”,
ele procurara levar em conta “ os 5 maiores Personagens aparecidos na
Cultura ocidental ”: segundo ele, em Dom Sebastião Barretto fundiam-se
Édipo, Orestes, Dom Quixote, Dom Juan e São Cipriano.

JUSSARA SALAZAR
Mestre, acho estranho que seu Tio não tenha incluído Hamlet e
Fausto na relação dos maiores personagens da Cultura ocidental. Havia
algum motivo especial para isso?

DOM PARIBO SALLEMAS


Havia dois, e ambos especiais. Primeiro, Antero Schabino dava
preferência aos Escritores que eram filhos legítimos ou quase-legítimos
da Rainha do Meio-Dia — o que, evidentemente, não era o caso do
inglês, Shakespeare, nem do alemão, Goethe. Em segundo lugar, dizia
ele que Hamlet era apenas uma versão requentada de Orestes (também
filho de um Rei assassinado); e o Fausto era copiado de São Cipriano:
não o Santo histórico, mas sim o grande Personagem-pactário criado, a
partir dele, por Calderón de la Barca, em O Mágico Prodigioso .
Mas, se Você não concorda com isso, Jussara, quando for
organizar sua própria lista diga: “ Os 5 maiores personagens da Cultura
ocidental são 7 ” — e então acrescente, aos outros, os 2 de quem falou,
está certo?

DOM PANTERO
E devo acrescentar, ainda, que meu Tio, na busca de enquadrar
em linhagens “ os 3 maiores Escritores da época moderna ”, costumava
afirmar, assim mesmo, na terceira pessoa, que “ se Homero era o
patrono de Tolstói, e Dante o de Dostoiévski, Cervantes era o de Ademar
Sallinas ”.

SOCORRO TORQUATO
Mestre, satisfaça uma curiosidade minha: por que é que todos
os Savedras usavam nomes literários diferentes, como se irmãos não
fossem?
DOM PANTERO
Foi uma exigência — ou melhor, um conselho — que, como em
quase tudo que nos aconteceu no campo da Arte, partiu de meu Tio,
Mestre e Padrinho, Antero Schabino. Como acabo de explicar, ele
próprio usava 2 pseudônimos — Ademar Sallinas e Aribál Saldanha. E
como nossa Família tinha um nome enorme, ele aconselhava Altino a
usar o de Sotero, Adriel o de Soares, Auro o de Schabino e eu o de
Savedra, o que, segundo nos mostrou, “ até do ponto de vista prático ”,
seria melhor para marcar “ as Personas literárias ” de cada um de nós.

REINALDO AZEVEDO
Por falar nisso, Mestre: o senhor disse alguma coisa sobre as
Personas-Dramáticas e Máscaras-Coregais que aparecem com mais
frequência em seus Espetáculos. Mas não disse quase nada sobre Dom
Pantero. Como foi que nasceu e cresceu esta que me parece a Figura
principal deste Simpósio?

DOM PANTERO
Bem, a Máscara-e-Persona de Dom Pantero, que eu incorporo,
surgiu como necessidade das Aulas-Espetaculosas. Como já aconteceu
diversas vezes com nossa Família, ela se originou de uma dessas
maldades que nossos equivocados e mesquinhos adversários
costumam arquitetar contra nós.
Tudo começou porque os Schabinos de Savedra, fiéis à sua
história familiar, têm, todos, como já disse, nomes quilométricos. Meu
Tio, por exemplo, chamava-se Paulo Antero Soares de Sousa da Veiga
Sotero Schabino de Savedra.

DOM PARIBO SALLEMAS


Com um nome tão grande, vê-se logo que Antero Schabino teria
que reduzi-lo, para assinar seus escritos. E, antes da invenção de “
Aribál Saldanha ”, ele adotou a assinatura de P. Antero Schabino — nome
logo transformado por seus adversários em P ’ Antero , Dom Pantero e,
finalmente, já na década de 50, Dom Pantero Chupacabra .

FÁTIMA BATISTA
Chupacabra? Entende-se o Dom Pantero ! Mas por que
Chupacabra , Mestre?

DOM PARIBO SALLEMAS


Tentaremos explicar, Dom Pancrácio, Dom Porfírio e eu. Na
década de 50, “ num destes surtos de obscurantismo que,
desgraçadamente, de vez em quando acometem nosso Povo ” — como
afirmaram os sociólogos e cientistas-políticos da “ Esquerda arejada ”
—, as classes mais pobres da nossa sociedade começaram a ser
assustadas por um Bicho mal-assombrado, O Chupacabra . Era um misto
de Onça, Cachorro, Morcego e Lobisomem, que seduzia as Cabras,
trepava com elas, cortava-lhes as carótidas com seus dentes afiados e
então, no momento mais agudo do prazer, chupava-lhes o sangue até
matá-las, motivo pelo qual diziam que ele era filho da Besta Fouva (ou
Besta Ladradora).

DOM PANCRÁCIO CAVALCANTI


O Chupacabra aparecera nos relatos populares sem ninguém
saber como nem por quê. E desaparecera logo depois, da mesma
maneira estranha e incompreensível. Mas reaparecera nos anos 70,
desta vez fazendo-se acompanhar por outra “ entidade ” tão grotesca e
inverossímil quanto ele, O Sovaco Cabeludo .

DOM PORFÍRIO DE ALBUQUERQUE


Ora, os adversários da família Savedra costumavam fazer contra
seus integrantes diversas acusações. Entre estas a de que, em sua Arte,
os Schabinos tinham características muito semelhantes às do
Chupacabra. Diziam que Auro e Adriel se apropriavam descaradamente
dos Folhetos e dos Espetáculos populares, “ de cujos Autores eles
chupavam o sangue, com o objetivo de injetar alguma seiva em suas
pálidas obras, anêmicas e sem força ”.
DOM PARIBO SALLEMAS
As comparações insultuosas agravaram-se quando surgiu
aquele segundo surto das aparições. Comentou-se que, “ numa de suas
inumeráveis taras sexuais, Antero Schabino — Dom Antero Mitoma, ‘ O
Histrião Hebéfilo ’ ” — proibia as Mocinhas “ que caíam sob o fascínio
intelectual do Charlatão de rasparem as axilas, porque isso o excitava de
modo especial ”.

DOM PORFÍRIO DE ALBUQUERQUE


Acrescentaram-lhe o apelido de Antero Chupacabra , alcunha que
logo estenderam ao sobrinho e afilhado Antero Savedra (numa
flagrante contradição com o apelido de Dom Antero Beato, O Donzelo ,
que já lhe tinham colocado antes). E começaram a gritar em todas as
esquinas que “ era por causa daquela tara de Antero Schabino pelas
axilas emplumadas de suas jovens alunas que O Sovaco Cabeludo tinha
passado a aparecer nas ruas do Recife, em companhia de seu Mestre e
parceiro, O Chupacabra ”.

DOM PANCRÁCIO CAVALCANTI


Tais versões ganhavam força, primeiro porque os equivocados
tinham conhecimento de que Gabriel, irmão mais moço dos Savedras,
criava Cabras, no sertão da Paraíba; e depois porque, em torno de Auro
e Antero Schabino, tinha-se criado, na Universidade, uma espécie de
“culto profano”, pelo qual algumas de suas jovens alunas eram as
principais responsáveis.
DOM PARIBO SALLEMAS
Esse culto viria a causar outras maledicências no Recife;
principalmente depois que Greta Navarro — repetindo de certa forma o
que já acontecera com a jovem Clarabela em relação a Antero Schabino
— apaixonou-se por Auro, que era seu professor de Literatura
Brasileira.

DOM PANTERO
Entretanto, como é do conhecimento de algumas pessoas que
estão na Plateia, em 1949, no dia em que acompanhávamos Albert
Camus em suas incursões pelo Recife antigo, Auro, num Bordel a que
fomos, fizera um voto de castidade (e a ele se manteria fiel até morrer);
de modo que as alunas apaixonadas por ele terminavam decepcionadas,
e as de temperamento mais sensível chegavam mesmo ao desespero.

DONA CLARABELA
Foi o que aconteceu com Joana Daro, irmã do Padre Matias.
Joana — a jovem, lunar e bela Negra que, por causa de Auro, terminou
seus dias de modo tão doloroso, cruel e dramático. Foi o que aconteceu
com “ a loura e satúrnica ” Daniela Rougane, a flautista de corpo
dourado de quem se dizia ter desempenhado um papel fatal e obscuro
nos acontecimentos que culminaram com a morte de Joana. E foi o que
aconteceu com Greta Navarro, “ a Moça das estrelas ”, alva e de cabelos
escuros, como se representasse um traço de união entre a beleza pura
de Joana e a “ de fruto terrestre e perigoso ” de Daniela: frustrada em sua
paixão por Auro, Greta ficou tão fragilizada que, exilando-se aqui em
Taperoá (para onde veio depois da morte de Auro e seguindo os passos
de Antero Savedra), terminou revivendo entre nós o mito de Beldade e o
Monstro — ela no papel da jovem Bela e Quaderna no da Fera .
DOM PANCRÁCIO CAVALCANTI
Tudo isso contribuía para estimular ainda mais as picuinhas
daqueles equivocados que, no Recife, pareciam não ter outra ocupação
que não fosse a de morder, “ de-furto ”, os calcanhares dos Savedras.

DOM PANTERO
Mas foi aí que Frederico Moraes, um intelectual de Assu, no Rio
Grande do Norte, publicou no jornal A Gazeta do Oeste , de Mossoró, um
artigo no qual afirmava que “ todo verdadeiro Artista ajuda a elaborar a
imagem do País que é seu ”. Falando, a seguir, sobre o caso particular do
Brasil, citava, como pertencentes ao grupo dos que assim procediam, 4
Artistas — Heitor Villa-Lobos, João Guimarães Rosa, Gilvan Samico e
Adriel Soares. Dizia que todos eles “ não se limitavam a transpor, para
sua Arte, a criatividade de base popular: acrescentavam a ela seu
fabulário pessoal e sua imaginação de Artistas eruditos, recriando e
reinventando aquilo que o Povo brasileiro realiza com tanta competência
e imaginação ”.
DOM PORFÍRIO DE ALBUQUERQUE
Depois deste artigo, além dos costumeiros, preconceituosos e
injustos remoques dos intelectuais da Cidade contra os do Interior, o
único recurso que restou aos equivocados adversários dos Savedras foi
inventar que “ o artigo era uma fraude, pois fora Dom Pantero quem o
escrevera ”. Disseram que Frederico Moraes não existia: “ como no caso
de José Cardoso Marques, era apenas um pseudônimo usado por Antero
Savedra para elogiar o irmão, o qual, sem isso, jamais poderia ter seu
nome alinhado aos de Villa-Lobos, João Guimarães Rosa e Gilvan Samico
— estes, sim, grandes Artistas, dos maiores que o Brasil tem tido ”.

DOM PANTERO
Mas eu, caridoso como sou, até entendo que assim falassem.
Porque não tinham outra saída, coitados! Se assim não fizessem seriam
forçados a reconhecer que, se “ o clã oligárquico, feudal e arcaico dos
Savedras ” recriava em suas obras as Cantigas, os Folhetos, as Gravuras,
os Toques e os Espetáculos populares, era somente para, como disse
Marcelo Coelho na Gazeta do Cariry , remeter todo aquele material de
origem popular “ a uma condição trágica, enfática, pessoal, gritante e
universal ”.
DOM PARIBO SALLEMAS
Como, aliás — acrescente-se a Marcelo Coelho —, tinham feito
Cervantes na Espanha, Molière na França, Shakespeare na Inglaterra,
Gógol, Tolstói e Dostoiévski na Rússia.

ANDREA BARBOSA
Mestre, nenhum de nós está de acordo com as acusações de
fraude que costumam lhe fazer no Recife. Mas, de uma forma ou de
outra, a maioria dos que estão aqui trabalha em Jornais ou em
Universidades, de modo que temos de nos ater ao mais estrito rigor
crítico. Por isso pergunto: o senhor tem os recortes com os artigos de
Frederico Moraes e Marcelo Coelho? Pode nos dar os dois, para que os
citemos, com o local e a data da publicação?

DOM PANTERO
Infelizmente não! Eu os tinha mas perdi-os também, na cheia de
1975!

DOM PARIBO SALLEMAS


Mas a memória de Dom Pantero é muito boa — quase
prodigiosa, diria ele, se a modéstia não o impedisse de falar assim! De
maneira que Vocês podem transcrever as palavras daqueles dois
grandes intelectuais brasileiros exatamente como ele as citou: garanto
que assim ficará resguardado todo o rigor crítico que se exige de
pessoas como Vocês.

JOSÉ DE CARVALHO SILVA FILHO


Mas me diga uma coisa, Mestre: mesmo depois do artigo de
Frederico Moraes, as implicâncias contra os Savedras continuaram, no
Recife?

DOM PANTERO
Continuaram e continuam! Vou-lhe dar uma prova desse fato:
recentemente, tendo em vista os 500 anos da chegada dos Portugueses
ao Brasil, os jornais recifenses realizaram uma pesquisa destinada a
escolher os 10 maiores escritores da Língua Portuguesa em todos os
tempos.

DOM PANCRÁCIO CAVALCANTI


Em Portugal, os agraciados foram Camões, Gil Vicente, Antônio
Vieyra, Alexandre Herculano, Camilo Castelo Branco, Oliveira Martins,
Antero de Quental, Eça de Queiroz, Fernando Pessoa e José Saramago.

DOM PORFÍRIO DE ALBUQUERQUE


No Brasil, foram Machado de Assis, Euclydes da Cunha, Lima
Barreto, Gilberto Freyre, Cruz e Souza, Carlos Drummond de Andrade,
Graciliano Ramos, João Guimarães Rosa, Nelson Rodrigues e João Cabral
de Melo Neto.
DOM PARIBO SALLEMAS
As organizações negras ficaram caladas, por causa de Machado
de Assis, Lima Barreto e Cruz e Souza. Mas as feministas protestaram
imediatamente, por não terem incluído Mulheres na lista. Citavam-se os
casos de Florbela Espanca e Natália Correia, em Portugal; de Cecília
Meireles e Clarice Lispector, no Brasil.

DOM PORFÍRIO DE ALBUQUERQUE


Mas não apareceu ninguém para protestar contra a exclusão do
ensaísta Aribál Saldanha, do poeta Altino Sotero, do dramaturgo Adriel
Soares e do romancista Auro Schabino.

DOM PANTERO
A princípio fiquei indignado. Mas depois, refletindo melhor, vi
que, na lista, fora deixada uma brecha para se reparar a clamorosa
injustiça.
Em primeiro lugar, notei que nela se tinham arrolado ensaístas,
poetas, romancistas e dramaturgos; mas nenhum deles fundira numa
Obra só o ensaio, a poesia, o romance, o teatro e ainda por cima a
gravura (como meu Tio sonhara para A Divina Viagem ).

DOM PANCRÁCIO CAVALCANTI


E mesmo a se levar em consideração o fato, para nós irrelevante,
de que A Divina Viagem nunca chegou a ser escrita, o pessoal que
organizou a lista deveria ter se lembrado d’ O Pasto Incendiado , d’ A
Onça Malhada , do Auto d’A Misericordiosa e do Romance d ’ A Pedra do
Reino : cada uma dessas obras era mais do que suficiente para autorizar
a entrada, no rol, de Altino Sotero, Aribál Saldanha, Adriel Soares ou
Auro Schabino.

DOM PANTERO
Mas havia, ainda, uma possibilidade de reação contra mais
aquele equívoco de nossos adversários — possibilidade essa que,
paradoxalmente, nos fora fornecida por um inimigo nosso, num Artigo
que publicou no Recife.

DOM PARIBO SALLEMAS


Nesse Artigo, do qual falaremos melhor depois, ele afirmava: “ O
pouco interesse que hoje cerca as obras de Antero Schabino surge quando
ele pronuncia suas Conferências Quase-Literárias . Aí, seus dotes de
Histrião vaidoso e megalomaníaco levam os menos avisados, inclusive
jovens, a confundi-lo com os Palhaços que os encantavam na infância. ”

DOM PANTERO
Quer dizer, nosso adversário, sem perceber o terrível erro tático
que cometia em sua guerra contra “ o clã oligárquico da família Savedra
”, terminara reconhecendo: pelo menos quando falava em suas
Conferências , Tio Antero despertava o interesse dos jovens, que viam
nele, ainda que degradada, “ uma versão dos Palhaços que os
encantavam na infância ”. E se até um inimigo despeitado como aquele
deixava escapar uma confissão de tal natureza era porque não havia
dúvida: pelo menos ao falar, Aribál Saldanha alcançava uma qualidade
que o distinguia entre os demais Escritores brasileiros.
DOM PANCRÁCIO CAVALCANTI
Entretanto, devia-se recordar, também, o caso de Adriel, “ O
Príncipe da Fala de Ouro ” (como afetuosamente o chamava sua irmã
Afra Cantapedra); e que, fazendo no Palco a apresentação dos
Espetáculos encenados por Dom Pantero, merecera referências
elogiosas de alguns Jornais interioranos.

DOM PANTERO
Principalmente da Gazeta do Cariry , cujos integrantes sentiam
orgulho porque Adriel era filho da terra, tendo nós morado em Taperoá
durante a infância e quase toda a adolescência.

DOM PORFÍRIO DE ALBUQUERQUE


Foi por causa de tal orgulho que, um dia, o Diretor da Gazeta se
deslocou para o Recife especialmente para assistir a um daqueles
Espetáculos. Ao voltar, publicou um artigo no qual, considerando Adriel
uma espécie de “ mito ”, terminou por dar sobre ele um depoimento que
seria vital para a criação, por Antero Savedra, do personagem Dom
Pantero . Disse ele:

OTÁVIO F. DE OLIVEIRA FILHO


“No Brasil, algumas pessoas vivem ainda o sonho de uma Cultura
autêntica, enraizada no repertório ibérico, enriquecido pelas tradições
africanas e indígenas.
“No Recife, no auditório de um Colégio (um dos poucos que ainda
teimam em permanecer em tal linha), fui ver, nesta semana, o maior
intérprete vivo desse sonho, Adriel Soares, autor de uma das obras-primas
do nosso Teatro, o Auto d’A Misericordiosa .
“Centenas de pessoas, a maioria jovens, fizeram fila para ouvi-lo.
Alto, magro, aristocrático, vestido de linho branco, o Mito falou em pé,
por duas horas. Arrancava aplausos ao citar trechos de Cervantes,
Góngora, Calderón, Camões e Gregório de Mattos; risos maravilhados
quando entrelaçava Clássicos com versos e casos de Cantadores
sertanejos.

“A sensação era a de ouvir Tolstói falando sobre a Rússia. Todo um


panorama de encantos ancestrais, de tradições seculares, de religiosidade
atávica, de pertinência, enfim, voltou à luz, durante aquelas duas horas.
Dava vergonha de sermos tão deslocados, tão ignorantes, igualmente
alienados daquele mundo primitivo e do mundo moderno que nos vem de
fora.”

DOM PANTERO
É verdade que o diretor da Gazeta concluía discordando de
Adriel. Achava que, “ para o bem ou para o mal, o futuro da nossa
Cultura parece estar na outra tradição, cosmopolita e litorânea,
permeável às influências estrangeiras e ao ecletismo moderno ”.

DOM PARIBO SALLEMAS


Mas não importava: referindo-se a tais discordâncias, Adriel
chegou a afirmar que elas até davam um relevo maior aos elogios
anteriores. E, invertendo os termos do ditado-popular, comentava, bem-
humorado:

ADRIEL SOARES
Se, mesmo discordando de minhas ideias sobre a Cultura
brasileira, ele me compara a Tolstói em seu amor pelo Povo russo e
considera o Auto d’A Misericordiosa como “ uma obra-prima ”, eu aceito
a troca. Quem tem um adversário como esse não precisa de aliados!

ASTIER BASÍLIO
Mestre, o senhor já confessou várias vezes que tinha ciúme
literário de seus irmãos — principalmente de Auro e Adriel. Elogios
como esse que foi feito a Adriel contribuíam para agravar tal ciúme?

DOM PANTERO
Contribuíam, sim. Mas, por outro lado, ao ser Adriel comparado
a Tolstói em seu amor pela Rússia, comecei a juntar isso àquelas
palavras que nosso inimigo dissera sobre meu Tio, Antero Schabino; e a
pensar que, no Palco, as obras dos Savedras poderiam ser
representadas, dando-se a elas um caráter celebrativo e sagratório e
mergulhando-as, pela oralidade (fonte primordial da Literatura), no
impulso de uma encenação musical, dançarina e teatral, parecida com
aqueles Espetáculos que encenávamos no Teatro Antônio Conselheiro ,
instalado por Auro e pelo Padre Matias Daro num barracão da Favela
Ilha de Deus .
DOM PORFÍRIO DE ALBUQUERQUE
Foi aí, também, que Antero Savedra começou a querer
transformar em Aulas-Espetaculosas as Conferências Quase-Literárias de
seu Tio, Mestre e Padrinho Antero Schabino.

DOM PANCRÁCIO CAVALCANTI


O sonho, modesto a princípio, começou a crescer de forma
assustadora. Em pouco tempo ele não queria mais somente igualar-se
ao Tio e aos irmãos: pensava em ultrapassá-los, pois, se conseguisse
realizar suas Aulas como Espetáculos baseados nas obras deles, poderia
ganhar, do Público, como Ator, aplausos que nunca são dados a simples
escrevinhadores de Romances, Poemas, Ensaios ou Peças-de-Teatro.

DOM PORFÍRIO DE ALBUQUERQUE


Entretanto, mesmo nos momentos mais empolgantes de seu
sonho, de repente ele era assaltado pelo desânimo, pois via que era
impedido de realizá-lo por algumas de suas terríveis limitações.

DOM PARIBO SALLEMAS


Por exemplo: Antero Savedra era conhecido entre seus alunos
como um Professor horrivelmente tedioso; principalmente quando, “
com sua voz fraca, feia, baixa e rouca, se metia a Filósofo ” — segundo
comentavam eles, aborrecidos.

DOM PANTERO
Até ali eu acertara a conviver com esse fato de modo razoável.
Mas, depois de um sonho tão grandioso como aquele que passara a me
incendiar o sangue, ele começou a se tornar insuportável. E eu estava a
ponto de cair em desespero quando a Providência Divina veio em meu
socorro. Foi como se passa a contar.

DOM PANCRÁCIO CAVALCANTI


Um dia, ao se aproximar da sala em que iria dar uma aula,
Antero Savedra viu em torno de sua mesa um grupo de alunos que, ao
som da Viola-Brasileira, tangida por Antonio Madureira, e da Rabeca,
tocada por Aglaia Costa, estavam improvisando uma pequena
Pantomima. Seus Personagens eram caricaturas de Antero Schabino,
Auro, Adriel, Altino e ele próprio, Antero Savedra; era “ a Santíssima
Trindade Universitária ” (como, nela, os 5 eram chamados, por sugestão
de Romero de Souza Lima, que idealizara e dirigia tudo). E o que logo
chamou sua atenção foi que, na Pantomima, seu Tio, Mestre e Padrinho
era chamado de Dom Pantero Pai , e ele, Antero Savedra, de Dom Pantero
Filho .

DOM PORFÍRIO DE ALBUQUERQUE


Antero chegara antes da hora e por isso é que surpreendera o
grupo. Vendo-o, todos ficaram meio desconcertados. Mas, percebendo
que ele os olhava divertido, foram adiante com a brincadeira.
DOM PANTERO
Enquanto prosseguiam, de repente eu tive a intuição de que
poderia tirar partido de tudo aquilo para vencer os obstáculos e
frustrações que me impediam de atuar bem, na Cátedra. Dos
Estudantes que ali estavam transformando os Savedras em Personagens
, Antonio Madureira estudava Violão e Viola-Brasileira; Aglaia Costa,
Violino e Rabeca; Maria Paula Costa Rego, Dança; Romero de Souza
Lima, Teatro; e se concordassem em ajudar-me, dali por diante
ninguém mais dormiria em minhas Aulas, nem que fosse pela gritaria
das falas, pelos passos de dança e pelo som dos instrumentos musicais.

DOM PANCRÁCIO CAVALCANTI


Então, naquele dia, terminada a Aula, Antero Savedra chamou os
4 para uma conversa; fez a proposta e foi atendido. Inclusive, pediu a
Aglaia Costa que lhe ensinasse a afinar e empunhar a Rabeca de modo a
que, em certos momentos, com pequenos toques do arco nas cordas,
pudesse fingir que tocava junto com os outros.
DOM PORFÍRIO DE ALBUQUERQUE
Fez pedido igual a Antonio Madureira sobre a Viola. Sabia que,
em ambos os casos, jamais se transformaria num Músico. Mas,
acompanhando seus dois alunos com aqueles pequenos toques, a
excelência deles supriria sua irremediável canhestrice, a qual,
explorada comicamente, podia até resultar num recurso cênico a mais.

DOM PANTERO
Foi assim que comecei a convidar Artistas para participarem das
Aulas, depois batizadas de Espetaculosas. Em tal companhia, até no
Palco eu me animaria a aparecer, pois, com suas Artes, eles sanariam
minhas deficiências de Ator, criando em torno do bisonho Professor que
eu fora até ali aquela aura-de-encantação que cercava Adriel nas
apresentações dos nossos Espetáculos. Agora, à oralidade teatral das
novas Aulas, esta aura acrescentaria a beleza musical e dançarina da
Festa , presente nos Espetáculos populares brasileiros e que eu,
sozinho, era incapaz de alcançar.

CIDA SEPÚLVEDA
E o senhor partiu logo para o confronto com Adriel Soares,
Mestre? Teve coragem de iniciar logo as Aulas-Espetaculosas, mesmo
sabendo que elas não iriam escapar ao cotejo com as aparições de
Adriel no Palco?

DOM PANTERO
Eu? Deus me livre! Somente depois que Aribál Saldanha, Altino,
Auro e Adriel morreram foi que me atrevi a começá-las; em minha
qualidade de sobrinho e irmão, passei a me considerar como herdeiro
natural deles.
Foi, portanto, fundindo depoimentos como o de Otávio F. de
Oliveira Filho com encenações como aquela, feita por meus alunos, que,
rivalizando com Altino, Auro e Adriel, eu pude finalmente juntá-los
numa Figura só, que, ao lado de Dom Paribo Sallemas, Dom Pancrácio
Cavalcanti e Dom Porfírio de Albuquerque, era tetrafônica, fosse
quando olhada pelo ângulo do Rei, fosse quando encarada pelo do
Palhaço; era o Personagem encorado e polifônico de Dom Pantero —
esta Persona-Dramática-e-Máscara-Coregal baseada em Savedras já
mortos mas que, dali por diante, passariam a reaparecer, ressurretos e
imortais, no Palco. Era aquele Narrador coral, batizado com a alcunha
que os equivocados tinham inventado como escárnio e que agora
voltava como glória, cravado, como para sempre estava, no centro
mesmo do nosso Espetáculo.

CARLOS CÂNDIDO FEITOSA


Seu modo de vestir tem alguma coisa a ver com tudo isso,
Mestre?
DOM PANTERO
Tem, sim! Às vezes eu me visto de branco, como Adriel; às vezes
de cáqui, como Quaderna; outras vezes de mescla azul, como Auro; ou
de calça azul e camisa branca, como Altino.
Neste primeiro dia do Simpósio, como se trata de uma Overtura
solene, vim de preto-e-vermelho, como Tio Antero, e ainda com o Colar-
e-Medalhão que ele usava como insígnia e que, em nossa derradeira
conversa ao pé de seu leito de morte, também me deu licença para usar,
concedendo-me afinal o direito de assumir minha condição de seu
herdeiro e sucessor.
E foi bom que o fizesse; porque somente assim é que Dom
Pantero Filho tem a coragem indispensável para somar-se a Dom Pantero
Pai e, com todas as limitações de sua pessoa comum e modesta,
apresentar-se diante de todos como Dom Pantero do Espírito Santo ; ou
Dom Pantero Chupacabra Filho , como continuam preferindo chamar-me
nossos equivocados e invejosos adversários.

DOM PANCRÁCIO CAVALCANTI


Então, como agora já pode ser entendido por todos, forçado, por
suas limitações, a ser mais modesto do que Flaubert, Antero Savedra
não pode dizer “ Dom Pantero sou eu ”. Dom Pantero é apenas uma
Figura , criada a partir da fusão de Aribál Saldanha, Altino Sotero, Auro
Schabino e Adriel Soares.

DOM PORFÍRIO DE ALBUQUERQUE


Aribál Saldanha era um Ensaísta, um Pensador. Altino Sotero,
um Poeta. Auro Schabino, um Romancista, um Narrador. E Adriel
Soares, um Dramaturgo.
Por isso, Dom Pantero, herdeiro universal deles, é um Poieta, um
Narraturgo: um Personagem centáurico, metade Homem e metade
Cavalo, como um Capitão desses que figuram no Cavalo-Marinho . É o
Imperador e, ao mesmo tempo, o Corego e Encenador dos nossos
Espetáculos.

DOM PANCRÁCIO CAVALCANTI


Mas não oculta, por trás de seu nome, pessoa real alguma. É
somente uma espécie de Nicho; o que, aliás, é bom e salutar, pois
impede qualquer vaidosa e antipática pretensão por parte daquele que,
somente no Palco, ocupa o Nicho destinado à figuração do Personagem:
daquele que, melhor do que ninguém, radiosamente representa o Povo
brasileiro.

DOM PORFÍRIO DE ALBUQUERQUE


Esta simples Figuração , porém, era importantíssima; porque,
como Aribál Saldanha lembrou uma vez numa de suas Conferências
Quase-Literárias , “ as maiores Obras literárias criadas pela Humanidade
giram em torno de Personagens representativos de seus povos de
Cabreiros e de suas comunidades primitivas, como acontecia com Édipo,
Ulisses, Sancho ou Dom Quixote ”; mas, acrescentava Aribál Saldanha, “
ao mesmo tempo (e por isso mesmo), tais Personagens eram universais,
porque encarnavam o grande sonho de todos os seres humanos — aquele
que está por trás da Demanda; da Viagem, que, de uma forma ou de outra
(e mesmo que nem todos saibam disso), significa a vida de cada um de
nós ”.

DOM PARIBO SALLEMAS


De tal modo, tendo conseguido levantar, no Palco, a Figura com a
qual sonhara, Dom Pantero passou a encarnar todo o Povo brasileiro;
por meio dele, os filhos da Iarandara; e mesmo toda a Humanidade,
porque, como dissera em Canudos o nosso santo Profeta, Antônio
Conselheiro, “ a vida de qualquer pessoa é uma Viagem em busca do
Sangral; e todos nós, sob os olhos de Deus, nosso Pai, formamos um só
Pastor e um só Rebanho ”.

MAUREEN BISILLIAT
Mestre, eu admirava muito a pessoa e a obra de Auro Schabino,
cujo Romance d ’ A Pedra do Reino me levou a incluí-lo, como terceiro
vértice, no Triângulo literário, místico, telúrico, trevoso e iluminado do
Sertão — Euclydes da Cunha, João Guimarães Rosa e Auro Schabino.
Mas aqui, agora, talvez por causa da Arte que pratico, gostaria que Você
adiantasse alguma coisa sobre as imagens que passaram a ilustrar as
Aulas-Espetaculosas e, consequentemente, o Simpósio.
DOM PANTERO
É com o maior prazer que respondo a essa grande Artista, cuja
câmera iluminada nos serviu de guia, a mim e a Fernando Carvalho,
para algumas cenas do Espetáculo intitulado O Amor de Rosa e
Francisco nos Labirintos da Sorte .
E já que falei nisso, acrescento que Fernando Carvalho e Miguel
de Alencar marcaram muito minha vida e a forma deste Simpósio,
ambos por terem usado obras de meus irmãos em programas da TV
Ilumiara . Miguel foi autor do Espetáculo A Coroada , feito com base no
Auto d ’ A Misericordiosa , de Adriel. Fernando realizou outro, Ao Sol da
Pedra do Reino , fundamentado no Romance d ’ A Pedra do Reino , de
meu irmão Auro Schabino: do ponto de vista da ligação da Arte com
minha vida, este me tocou profundamente por causa da cena em que
Heliana passa mel nos seios. Já falei, aqui, do papel que as jovens
Atrizes e Bailarinas que tomam parte em minhas Aulas-Espetaculosas a
partir de certo tempo começaram a desempenhar na minha vida, triste
e solitária desde aquele terrível dia em que, no Horto de Dois Irmãos,
soube, pela própria Liza Reis, que ela me rejeitava para sempre, por ter
dado seu amor a outro.
Quando essa cena dolorosa me punge a lembrança, eu corro
para o Camarim, a colocar no aparelho de televisão a fita de vídeo que
ganhei de Fernando. E ninguém pode imaginar os sentimentos
contraditórios de encantação e desespero que me possuem em tais
momentos: por um lado, porque a beleza da jovem Atriz que faz
Heliana, aliada ao iluminoso claro-escuro da cena criada por Fernando,
chegam a expressar alguma coisa do que Liza significava e significa
para mim; por outro lado, porque, naquele dia, no Horto, morreram
todas as esperanças que porventura eu tivesse de ver uma cena
parecida acontecer diante de meus olhos, não mais em imagem, mas
sim com a figura real e encantadora de minha amada Liza Reis.
Explicado isso, devo dizer-lhe, Maureen: dois foram os fatos que
me levaram a introduzir imagens nas minhas Aulas. O primeiro foi o
seguinte: logo depois da morte de Tio Antero, nossos adversários,
transferindo para mim as implicâncias que tinham com ele, começaram
a dizer que era no mínimo estranho fosse encarregado de escrever um
Livro chamado A Divina Viagem um homem como eu, que nunca saíra
do Brasil; e até de sua Casa somente saía quando não tinha outro jeito.

ASCENSO CAFÉ
“E seus adversários tinham razão. É conhecido seu orgulho ao
declarar que nunca saiu de casa, ou seja, da ‘pátria’, resistindo aos
encantos do exterior, o que o leva à posição estreita, limitada e
retrógrada de viver de frente para o passado. O senhor poderia ter
assumido uma infidelidade transgressora e libertadora em relação à Casa
e ao universo familiar e paterno. E, no entanto, não o fez, de modo que
tem, hoje, num Poeta geográfica e tematicamente próximo, o seu
antípoda: João Cabral de Melo Neto, Poeta itinerante, percorreu o Mundo,
deixou-se influenciar por autores distantes como Francis Ponge e
Marianne Moore, e, ao invés de investir na fundação de uma Poesia
brasileira, procurou e achou uma sensibilidade despojada, austera e
pétrea, que estabelece uma supernacionalidade, por meio de um verbo
descarnado que ele traz como herança de sua circunstância nordestina.

“Conclui-se que, se o senhor é o filho que ficou junto ao Pai


cuidando de sua propriedade, João Cabral é o pródigo que se perdeu pelas
estradas do Mundo para só assim encontrar a sua pátria mais íntima.
“O grande escritor mexicano Octavio Paz elogia os Escritores que
viajam, como João Cabral viajou, afirmando que ‘a experiência deles
confirma que para voltar à nossa Casa é necessário primeiro arriscar-se a
abandoná-la’. Só quem regressa é o filho pródigo.
“A lição do ‘filho pródigo’, recusada pelo ‘filho guardião da Casa’,
lembra que o caminho da identidade passa pelo outro. Isto é, exatamente
o contrário do senhor, que vive o exílio mental de um passado para
sempre desaparecido.”

DOM PANTERO
Eu não conheci João Cabral pessoalmente, mas ele era muito
amigo do meu irmão Auro, que certa vez foi procurado por um
admirador da sensibilidade “ pétrea, despojada e austera ” de João
Cabral de Melo Neto e Graciliano Ramos. O homem era, também,
candidato a escritor e, em suas tentativas literárias, procurava imitar “ o
verbo descarnado ” dos autores de Vidas Secas e A Educação pela Pedra .
Segundo disse a meu irmão, viera para adverti-lo: Auro não escrevia
com a áspera e angulosa concisão de Graciliano Ramos e João Cabral de
Melo Neto, motivo pelo qual “ jamais expressaria o Brasil por um Sertão
árido e verdadeiro como o deles ”.
Pacientemente, Auro alinhou alguns argumentos para
responder-lhe. Disse que, como escritor e como pessoa, tinha “ a cara
que sua vida lhe marcara e jamais poderia trocá-la por outra para
assemelhar-se a quem quer que fosse ”. Afirmou que Graciliano Ramos e
João Cabral de Melo Neto eram ásperos e concisos porque, em ambos os
casos, aquela era a linguagem que convinha à expressão do universo
deles. Acrescentou que, apesar de muito admirá-los, ele, Auro, era
muito diferente dos dois e jamais poderia escrever da mesma maneira:
Graciliano e João Cabral pertenciam à linhagem clássica, despojada e
sóbria de Machado de Assis, e ele, à barroca, romântica e retórica de
Euclydes da Cunha. Disse que cada Escritor criava a linguagem
indispensável à expressão de seu universo. Lembrou que havia grandes
Escritores — como Shakespeare, por exemplo — que não se
distinguiam propriamente pela concisão, e sim pelo excesso, às vezes
retórico; de modo que, se seu interlocutor preferia outros mais sóbrios
e mais realistas como Stendhal, isso era apenas expressão de um gosto
pessoal seu; um gosto legítimo, mas que não tornava ilegítima a
preferência dele, Auro, pelos que, como “ o romântico Dostoiévski ”,
eram mais prolixos, mais retóricos e apaixonados, menos concisos e
serenos do que “ os clássicos ”. Era o mesmo motivo que, na Literatura
brasileira, o levava a preferir Euclydes da Cunha a Machado de Assis.
E como o Crítico insistisse em tomar como norma aquilo que era
apenas um gosto seu, Auro perdeu a paciência e disse que certos
imitadores de Graciliano Ramos e João Cabral de Melo Neto estavam
transformando em defeito e cacoete aquilo que era apenas uma
característica dos Mestres. Tais imitadores recordavam-lhe um
personagem de Dickens; um sujeito que tinha tanto horror aos
adjetivos, aos parágrafos longos e ao excesso de palavras que assim
descrevia um acidente no qual lhe morrera o Sogro: “ Estrada.
Carruagem. Sogro à portinhola. Disparada. Árvore. Batida. Sogro sem
cabeça. ”
Algum tempo depois desta conversa, Auro recebeu em casa um
outro Crítico, que elogiou os contos de um jovem Escritor. Eram contos
“ enxutos, precisos e descarnados ”, e, portanto, de estilo muito diferente
daquele usado por Auro no Romance d ’ A Pedra do Reino , “ que contava,
em 700 páginas, o que podia ser contado em 300 ”.
Comentando essas observações, muitas vezes ouvi Auro dizer:

AURO SCHABINO
Eu jamais poderia me entender com pessoas que têm esse gosto,
porque, para levantar o Castelo com que sonho, preciso de uma
linguagem que tenha exatamente tudo aquilo que eles consideram
como defeito; isto é, sonho com uma ficção e uma linguagem
largadamente entregues “ ao excesso, ao desbragado e ao supérfluo
linguístico ”. A Pedra está presente em tudo o que escrevo; mas, no meu
caso, ela vive cercada pelo sangue e pela festa, por causa do sangrento
mas fecundo Riacho que banha as pedras da Ilumiara. Uma das cenas “
mais belas, cavaleiras e fortes ” que vi em minha vida foi a de um Pai-de-
chiqueiro enorme e preto cobrindo uma nova e vermelha Novilha-de-
cabra num pedaço áspero e bruto da Caatinga sertaneja; era num
“Lajeiro”, isto é, sobre uma grande e baixa Pedra espalhada, quase rente
com o Chão, cercada de Macambiras e Xiquexiques e coberta de
pedaços de pedra menores, que reluziam, ao Sol, suas faíscas de
Malacacheta. Esta cena e o choque primordial de áspera Beleza que ela
me proporcionou mostravam-me, de uma vez para sempre, que a Vida é
cruel e dura, mas bela — e sua beleza está ao alcance de qualquer um
(mesmo do mais pobre e bruto dos Sertanejos). Fabiano e Severino
deviam ter visto muitas vezes cenas parecidas; e seus Pais só não as
contaram porque por elas não tinham interesse.
DOM PANCRÁCIO CAVALCANTI
Levando em conta estas palavras de Auro, Dom Pantero
terminou decidindo que aqui no Simpósio nós também nos
entregaríamos à paixão, ao excesso, ao retórico e ao desbragado, tanto
na linguagem quanto nas imagens. Assim poderíamos garantir que
Vocês, aqui no Teatro, não entrarão em contato com nenhuma Poesia “
asséptica e assexuada ”; nem com um Teatro “ medido e de bom gosto ”;
nem com um Romance “ contido e descarnado ”. Verão, sim, a arte de um
velho Ator e Encenador que não tem medo da “ paixão ” nem do “ mau
gosto ”; e que, como os velhos Cantadores e Folhetistas (ou como os
velhos Mestres dos nossos Espetáculos populares), não se deixa vencer
pela velhice nem pela feiura: velho como é, e feio como sempre foi, sabe
que, ao entrar no Palco para travar sua Peleja, o Dáimone baixa em seu
sangue e o Público, hipnotizado por ele, também se queima e ilumina à
centelha do Sagrado, como Ricardo Barberena viu em Arcoverde.

DOM PORFÍRIO DE ALBUQUERQUE


E não foi por acaso que Dom Pancrácio falou em Peleja: aqui,
cada sessão do Simpósio é como que um Episódio da longa e decisiva
Peleja do Velho Guerreiro contra a Besta do Quarto Império ; e o todo será
O Grande Desafio do Beato Antero perante o Enigma da Vida e da Morte ;
enfim, A Grande e Famosa Peleja de São Cipriano e o Diabo .

DOM PANTERO
E volto à pergunta de Maureen Bisilliat, cuja Câmera — como a
de Walter e Fernando Carvalho — também pertence à linhagem barroca
de El Greco, Antônio José da Silva, Antônio Vieyra, Goya e Gregório de
Mattos. Volto a ela explicando que Vera Ferraz, depois de assistir a uma
daquelas Aulas-Espetaculosas que eu começara a dar, convidou-me
para fazer, na TV Ilumiara , um programa semanal intitulado O Canto da
Casa Sonhosa — programa que, aliás, estamos exibindo aos poucos, aqui
no Simpósio, pelas projeções da Lanterna Mago-Iconoscópica que herdei
de Quaderna.
DOM PANCRÁCIO CAVALCANTI
Foi assim que, por meio d’ O Canto da Casa Sonhosa e de outros
programas exibidos pela TV Ilumiara , Dom Pantero, sem sair de sua
Casa, começou a ser levado, pelas imagens, aos lugares mais diversos e
remotos do Mundo.

DOM PORFÍRIO DE ALBUQUERQUE


Lembro-me do dia em que, no espaço de meia-hora, ele viajou
pelo templo de Angkor, por Cartágena e por Palenque, espantando-se
primeiro, em Angkor, com aquela Catedral gigantesca, mais bela, mais
forte e maior do que todas as europeias, e com paredes decoradas por
Esculturas diante das quais esmorecem, juntas, as obras de
Miguelângelo e as de Rodin; encantando-se depois, em Palenque, diante
das ruínas veneráveis daquela civilização Maia, cujas obras são da
mesma linhagem da Ilumiara e que representou para a América Latina
o mesmo que a Egípcia para os Europeus; e, finalmente, ao terminar o
programa, encantando-se com algumas Igrejas românicas da Península
Ibérica e com os redutos, Fortalezas e muralhas barrocas de Cartágena.
DOM PANTERO
De tal modo, minha Trupe Ambulante de Teatro, meu Cine-de-
Circo, minha particular e diferente Divina Viagem, foi aos poucos se
configurando, sem que eu me visse obrigado a sair da tranquila e
maravilhosa Casa que tanto amo e à qual me mantenho fiel, mesmo
incorrendo, por isso, no desapreço dos “ pródigos, concisos e
descarnados viajantes do Mundo ”.
O melhor, porém, foi que, como acabo de lembrar, o pessoal da
TV Ilumiara resolveu fazer dois Seriados, um a partir do Auto d’A
Misericordiosa , de Adriel, dirigido por Miguel de Alencar, o outro
fundamentado no Romance d ’ A Pedra do Reino , de Auro — este último
dirigido por Fernando Carvalho. E, depois da exibição, ganhei de
presente as fitas de vídeo dos dois Espetáculos.
Instalei então, no meu Camarim deste Circo-Teatro Savedra , um
aparelho de som e uma televisão. E às vezes, para inspirar-me antes de
entrar no Palco, costumo tirar o som da televisão para ver as cenas de
um e de outro ao som de músicas diversas, o que transforma as fitas
num misto de Ópera, Balé e Cinema-mudo.
Logo passei a comprar fitas de vídeo que exibiam Espetáculos
circenses e com as quais passei a fazer o mesmo, nunca me esquecendo
do deslumbramento que experimentei ao ver uma delas ao som da
música de Antonio Madureira No Reino da Ave dos Três Punhais .
Outro fato que devo recordar é que, certa vez, à noite, eu via o
belo Espetáculo-de-dança que Nureyev fez a partir do Dom Quixote . De
repente, senti profunda compaixão de Cervantes, que, em vida, nunca
pudera constatar quantas Obras-de-Arte tinham nascido de seu Livro
imortal. E apressei-me a substituir a obra de Nureyev, colocando em seu
lugar a que Fernando Carvalho fizera com base no Romance d ’ A Pedra
do Reino . Encantado, dizia para mim mesmo: “ Auro não está mais aqui.
Mas eu estou. E, na falta dele, tenho a alegria que Cervantes, coitado,
nunca teve. ”

JEANINE BRANDÃO
Mestre, Paulo Coelho declarou, outro dia, que daqui a 50 anos
será reconhecido como “ um clássico ”. Por outro lado, soube que o
senhor recomendou aos organizadores do Simpósio que esta sessão só
durasse um dia. E o que lhe pergunto é isto: tendo em vista as clássicas
unidades de ação, tempo e lugar, sua preocupação de terminar os
trabalhos antes que o dia acabe revelaria, por acaso, preocupação
semelhante à de Paulo Coelho — no seu caso em relação à Obra “
clássica ” que seu Tio lhe encomendou?

DOM PANCRÁCIO CAVALCANTI


Antes de mais nada, quero deixar claro que, como já foi dito aqui
a respeito de Gilberto Freyre, é por pura modéstia que Paulo Coelho fala
assim: tanto no caso dele quanto no de Dom Pantero, não vimos
necessidade nenhuma de esperar 50 anos para que os dois sejam
declarados “ clássicos da Literatura de Língua Portuguesa ”.
DOM PARIBO SALLEMAS
E recordo: foi daquela maneira, inclusive pelas imagens da
Lanterna, que “ a Figura feudal e arcaica ” de Dom Pantero terminou
ultrapassando as fronteiras da “ modernidade ”, da “ pós-modernidade ”
ou de qualquer outra “ idade ” que, no futuro, esse pessoal novidadeiro
ache por bem inventar.

DOM PORFÍRIO DE ALBUQUERQUE


Entretanto, seríamos ainda agradavelmente surpreendidos por
outro golpe de sorte: o Diretor da Gazeta do Cariry , aquele mesmo
Otávio F. de Oliveira Filho, provavelmente por causa da admiração que
tinha por Adriel Soares, convidou Dom Pantero para escrever na Sibila ,
Suplemento no qual, sob as ordens de William Costa, ele deveria ir
publicando uma coluna turística e literária, o Almanaque Viajoso .

DOM PANCRÁCIO CAVALCANTI


Ali, Dom Pantero adotaria o conhecido processo do “ Jornalismo-
de-tesoura ”, suprindo com ele sua falta de Viagens e sanando essa falha
por meio dos relatos publicados pelos outros em qualquer Jornal que
lhe caísse nas mãos: era um processo semelhante ao que já vinha
seguindo com as imagens da TV Ilumiara , completando ele, pela fusão
de imagens e relatos alheios, as Viagens imaginárias e sonhosas de que
precisava para efetivar A Divina Viagem (Obra que, na falta de Altino,
Auro e Adriel, seu Tio, no fim da vida, se resignara a confiar-lhe).
DOM PORFÍRIO DE ALBUQUERQUE
Ao receber o convite de Otávio, Dom Pantero imaginou o
Almanaque Viajoso como uma fusão do Livro Negro do Cotidiano , de seu
tio-materno João Sotero, com A Onça Castanha , de seu outro tio, Antero
Schabino. Atento à crítica que Auro fizera ao “ castanho ” do título do
livro de Aribál Saldanha (“ castanho ” que, sem o confessar, este herdara
do “ moreno ” de Sylvio Romero e Araripe Júnior, e do “ pardo ” de
Euclydes da Cunha), Dom Pantero decidira “ rebatizar ” a Onça desde o
título do Almanaque ; assim como todos podem ver no letreiro
projetado na Tela:
ALMANAQUE VIAJOSO
DIálogo d’A Onça Malhada e a Ilha BrasIl. Contendo IdeIas,
enIgmas, relatos de VIagens reaIs ou ImagInárIas, lembranças,
Informações, comentárIos, reflexões e a narração de casos acontecIdos ou
Inventados, escrItos por Antero SchabIno, e reunIdos, em prosa e verso,
num LIvro Negro do CotIdIano, por seu afIlhado, sobrInho e dIscípulo
Antero Savedra — Bacharel em FIlosofIa, Doutor em HIstórIa e
LIcencIado em Artes.

DOM PANTERO
Fiquei tentado a aceitar porque tudo aquilo era um reforço
considerável para o que, além de Romance, de Poesia e Teatro, A Divina
Viagem deveria ter de Ensaio. Otávio prometia-me ainda que, caso eu
aceitasse o convite, a Sibila publicaria, depois, as Epístolas que Tio
Antero planejara para a feitura da Obra (o que era uma tentação para
um Autor que, como todos os Savedras, tinha uma enorme dificuldade
de encontrar Editor que corresse o risco de publicá-lo).

DOM PANCRÁCIO CAVALCANTI


Mas, por outro lado, impunha-se a Dom Pantero uma condição
para que o trato se efetivasse. Ocorre que a Sibila — o Caderno
feminino, rural e turístico da Gazeta do Cariry — era ilustrado, e o Jornal
não tinha verba para pagar a um Artista o trabalho suplementar de que
o Almanaque necessitava para se colocar de acordo com o resto da
publicação. Assim, tudo somente seria possível se o próprio Dom
Pantero se encarregasse de fazer as Gravuras que ilustrariam a Coluna.

DOM PORFÍRIO DE ALBUQUERQUE


Modesto e cheio de limitações como é, Antero Savedra ponderou
a Otávio que não tinha capacidade suficiente para a tarefa. Mas ele
respondeu: pelo que pudera avaliar até ali, dava para Dom Pantero se
transformar num Artista-gráfico menor; o que, aliás, já começara a
acontecer, graças ao ato tirânico de seu Tio, que o obrigara a se tornar
Copista, inclusive adotando o Alfabeto Sertanejo que Dom Pantero
também deveria usar, com base nas anotações de Paulino Villar (um
Fazendeiro que, no século XIX, registrara a forma de vários ferros e
ribeiras do Cariri paraibano); assim como a Tipografia Armorial , que
Ricardo Gouveia de Melo e Giovana Caldas tinham criado a partir
daquele.

DOM PANTERO
Lembrei-me então de que Eliza de Andrade fizera algumas
experiências com os obscuros poemas de meu irmão Altino — poemas
que ela copiava a mão num papel em que, antes, imprimira uma de suas
Litogravuras.
Recordei-me, depois, de que Pedro Américo — o maior Pintor
brasileiro da época imperial — era nosso parente: minha Bisavó, Anna,
era irmã do Pai dele, Daniel.
Talvez entusiasmado por esse parentesco, Tio Antero costumava
nos mostrar, nas aulas, reproduções dos quadros e das caricaturas de
Pedro Américo. Mostrava-nos, também, as charges com as quais os
adversários do nosso ilustre parente o importunavam. E dizia que tanto
as caricaturas feitas pelo “ Pintor imperial ” quanto as de seus inimigos “
eram mais próximas do gosto contemporâneo do que a pintura oficial e
acadêmica de Pedro Américo ”.

DOM PANCRÁCIO CAVALCANTI


Entre os inimigos do “ Pintor imperial ”, Aribál Saldanha citava o
caso de Angelo Agostini, que fizera d’ A Carioca uma versão irônica, na
qual a Mulher brasileira do quadro aparecia tocando Flauta nos
próprios cabelos.

DOM PORFÍRIO DE ALBUQUERQUE


E então, estimulado por tudo isso, Dom Pantero resolveu
preparar-se para se embrenhar na “ Selva selvagem ” do Almanaque —
selva que, depois, seria incluída na própria Estrada (ou “ Caatinga bruta
”) d’ A Divina Viagem . Estudou Escultura com Arnaldo Barbosa;
Tapeçaria com Ana Maria Vilar, Maria, Isabel, Mariana e Ana Rita
Savedra; Litografia com Eliza de Andrade; Xilografia com Gilvan Samico;
Mosaico e Gravura-em-Metal com Guilherme, Manuel e Alexandre,
filhos de Eliza e Adriel.
DOM PANTERO
O primeiro trabalho que intentei como exercício em meus
diversos cursos foi uma gravura feita a ponta-de-metal — uma
Estilogravura, portanto. Era um meio-termo entre o quadro de Pedro
Américo e a versão caricatural que Angelo Agostini fizera dele. E como
eu desejava que as Estilogravuras e Iluminogravuras, a exemplo das
Iluminuras ibéricas, fundissem texto e ilustração, coloquei naquela um
título que era também uma recriação “ ilumiarizada ” das ironias
dirigidas contra nosso Parente por seu despeitado, invejoso e
equivocado inimigo. Assim:

ANGELO AGOSTINI SAVEDRA

VARIAÇÃO PARA FLAUTA E MULHER


“Segunda Flauteação, Opus 36.270 , em Si-Menor, de Pedro
Américo. Da primeira Variação para esta, apesar de todos os banhos de
azeite que a Carioca tomou para curar a desproporção de sua coxa esquerda,
ela continua inchada em relação à direita. Quanto ao Jarro que verte água
perto dela, não se sabe se é a ânfora de Afrodite ou o Vaso-Noturno em que
a Divindade brasileira cabocla passa as madrugadas vertendo suas
micções.”

DOM PANTERO
Mas tudo isso foi depois e fica para melhor ser explicado depois.
Importante, agora, é dizer: nosso Tio e Mestre costumava mostrar-nos
que o papel desempenhado por Pedro Américo e Angelo Agostini no
que se referia às Artes Plásticas era equivalente, para nós, ao de José de
Alencar, Euclydes da Cunha, Machado de Assis e Lima Barreto, na
Literatura. Mostrava como, abrindo caminho para Os Sertões , o autor
de Lucíola , neste último Romance, descrevia alguns contingentes da
população brasileira diante da Capela barroca de Nossa Senhora do
Outeiro da Glória , no Rio de Janeiro:

JOSÉ SCHABINO DE ALENCAR


“A primeira vez em que Paulo veio ao Rio de Janeiro foi em 1855.
Poucos dias depois de sua chegada, um amigo de infância, o Doutor Sá,
levou-o à Festa da Glória, uma das poucas Festas populares da Corte.
Conforme o costume, a grande Romaria, desfilando pela Rua da Lapa, e
ao longo do Cais, serpejava nas faldas do Outeiro e apinhava-se em torno
da Ermida, cujo âmbito regurgitava com a multidão do Povo.
“Era a Ave-Maria quando os dois chegaram ao Adro. Perdida a
esperança de romper a Mó de gente que murava cada uma das portas da
Igreja, resignaram-se a gozar da fresca viração que vinha do Mar.
“Enquanto Sá era disputado pelos numerosos amigos e
conhecidos, Paulo gozava de sua tranquila e independente obscuridade,
sentado comodamente sobre a pequena Muralha e resolvido a estabelecer
ali o seu observatório.
“Para um provinciano recém-chegado à Corte, que melhor Festa
do que ver passar-lhe pelos olhos, à doce luz da tarde, uma parte da
população de uma grande Cidade, com seus vários matizes e infinitas
gradações?
“Todas as raças, desde o Caucasiano sem mescla até o Africano
puro; todas as posições, desde as figuras ilustres da Política, da fortuna e
do talento, até o Proletário humilde e desconhecido; todas as profissões,
desde o Banqueiro até o Mendigo — finalmente, todos os tipos da
Sociedade brasileira desfilaram em face dele, a Seda e a Casimira roçando
pela Baeta ou pelo Algodão, misturando-se os perfumes delicados às
impuras exalações, o fumo aromático do Charuto-havana às acres
baforadas do Cigarro-de-palha.”

DOM PANTERO
E, para que comparássemos os dois Escritores, Tio Antero
mandava que relêssemos aquele texto em que Euclydes da Cunha
descreve os mais variados tipos que, aos poucos, iam caldeando o Povo
brasileiro — tipos que ele apresentava reunidos em volta da Igreja de
Canudos, assim como Alencar os mostrara em torno da Igreja da Glória:

EUCLYDES SCHABINO DA CUNHA


“A antiga Capela era frágil e pequena. Ao cair da tarde, a voz do
Sino apelidava os fiéis para a oração. A multidão repartia-se, separados
os sexos em dois agrupamentos destacados. E em cada um deles notava-se
um baralhamento enorme de contrastes.
“Todas as idades, todos os tipos, todas as cores. Grenhas
maltratadas de Crioulas retintas; cabelos corredios e duros de Caboclas;
trunfas escandalosas de Africanas; madeixas castanhas e louras de
Brancas legítimas.
“Destacava-se, mais compacto, o grupo varonil dos Homens,
mostrando idênticos contrastes: Vaqueiros rudes e fortes, trocando, como
Heróis-decaídos, a bela Armadura-de-couro pelo uniforme reles de Brim;
Criadores, ricos outrora, felizes pelo abandono das Boiadas e dos Pousos
animados; e, menos numerosos, porém mais em destaque, Gandaieiros de
todos os matizes, recidivos de todos os delitos.”
DOM PANTERO
Mas logo meu Tio chamava nossa atenção para outro fato:
diferentemente daquilo que acontecia com Euclydes da Cunha, em José
de Alencar a visão austera e masculina dos Vaqueiros (Centauros
sertanejos) era complementada pela das Mulheres urbanas,
verdadeiras Centauras-fêmeas, diante das quais éramos empolgados
por uma paixão que nos atingia com grande intensidade. Era o caso de
Lúcia, bela Mulher que, por causa de seu sangue centáurico, se
dilacerava em duas Personas opostas — a da Moça casta e pura que se
chamava Maria da Glória e era devota de Nossa Senhora, e a de Lucíola ,
a Cortesã sensual que, fundida à outra, compunha a Face bifronte e
fascinadora do Emblema feminino — resumo do enigma do Mundo.
Esse Emblema começava a se configurar logo na primeira vez
em que Paulo, Moço do interior como nós, avistava a Romaria a voltear
em torno da Ermida, com aqueles tipos tão diversificados de Caboclos
índios, Negros africanos, Árabes, Judeus e Ibéricos que, desde o século
XVI, tinham começado a formar o Povo brasileiro. E Paulo, de longe,
primeiro tinha conhecido a face humana, quase angélica, daquela jovem
Centaura-fêmea. Fora no Outeiro da Glória e ela estava numa
Carruagem:

JOSÉ SCHABINO DE ALENCAR


“Naquela ocasião, Paulo descobrira a alguns passos diante de si
uma linda Moça que, numa Carruagem, parara um instante para
contemplar no horizonte as Nuvens brancas esgarçadas sobre o Céu.
Admirou-lhe, ao primeiro olhar, um talhe esbelto e de suprema elegância.
O Vestido que o moldava era cinzento, com orlas de Veludo castanho e
dava esquisito realce a um desses rostos suaves, puros e diáfanos, que
parecem vão desfazer-se ao menor sopro, como os tênues vapores da
Alvorada. Ressumbrava na sua muda contemplação laivos de tão ingênua
castidade que o olhar dele repousava calmo e sereno na mimosa
Aparição. Sentada ao lado de uma Senhora idosa, recostava-se
preguiçosamente sobre o macio estofo, e deixava pender pela cobertura
derreada da Carruagem a mão que brincava com um Leque de penas
escarlates. Havia nessa atitude, cheia de abandono, muita graça, mas
graça simples, correta e harmoniosa; não desgarro, com os ares altivos e
decididos que certas Mulheres afetam, mas um perfil suave e delicado, e a
fronte límpida, que brilhava de viço e juventude.”

DOM PANTERO
Entretanto, poucos dias depois do primeiro encontro,
informado, por um amigo, de que a Menina se chamava Lúcia e era uma
Cortesã, Paulo, ressentido e desafiado em sua “virilidade”, vai procurá-
la em sua casa. Encontra-a sentada ao Piano. Passa-lhe o braço pela
cintura e aperta-a ao peito. Seus lábios procuram o colo da Moça, “
embebendo-se, sequiosos, na covinha que, nascendo, formavam os dois
Seios, modestamente ocultos na Cambraia ”.
Com isso, de repente, naquela Moça centáurica, opera-se uma
transformação; e, sobre o Anjo, depois de algumas lágrimas, aparece “ a
Jumenta ciosa ” que dormia também em sua natureza:

JOSÉ SCHABINO DE ALENCAR


“Lúcia dirigiu-se a uma Porta lateral. Fazendo correr, com um
movimento brusco, a Cortina de seda, desvendou de relance uma Alcova
elegante e primorosamente ornada. Então, voltou-se para Paulo e, com
riso nos lábios, de um gesto faceiro da mão convidou o Rapaz a entrar,
parando no meio do Aposento, defronte dele.
“Era outra Mulher. O rosto cândido e diáfano, que tanto o
impressionara, transformara-se completamente; tinha agora uns toques
ardentes e um fulgor estranho que o iluminavam. Os lábios finos e
delicados pareciam túmidos dos desejos que incubavam. Havia um
abismo de sensualidade nas asas transparentes das narinas, que tremiam
com o anélito do respiro curto e sibilante, e também rios de fogos surdos
que incendiavam a pupila negra.
“À suave fluidez do gesto meigo, tinham sucedido a veemência e a
energia dos movimentos. O talhe perdera a ligeira flexão que de ordinário
o curvava, como uma haste delicada ao sopro das auras; e agora
arqueava, enfunando a rija carnação de um colo soberbo e traindo as
ondulações felinas, num espreguiçamento voluptuoso. O sangue,
abrasando-lhe as veias, dava à branca epiderme reflexos de nácar e às
formas, uma exuberância de seiva e de vida que realçava sua radiante
beleza.
“Era uma transfiguração completa. Enquanto Paulo a admirava,
a sua mão ágil e sôfrega desfazia — ou, antes, despedaçava — os frágeis
laços que lhe prendiam as vestes. À mais leve resistência, ela se dobrava
sobre si mesma como uma Cabra, e os dentes de pérola talhavam, mais
rápidos do que a Tesoura, o cadarço de seda que lhe opunha obstáculos.
Até que o Penteador de veludo voou pelos ares, as tranças luxuriosas dos
cabelos negros rolaram pelos ombros, arrufando a pele melindrosa; uma
nuvem de rendas e Cambraias abateu-se a seus pés, e Paulo viu aparecer
a seus olhos pasmos, nadando em ondas de luz no esplendor de sua
completa nudez, a mais formosa Bacante que esmagara outrora, com o
pé lascivo, as uvas de Corinto.
“Não foi Paulo que possuiu aquela Mulher, e sim ela que o possuiu
todo; tanto que, depois, não lhe restava daquela noite mais do que uma
sensação de imenso deleite, na qual se sentia afogar num mar de volúpia.
Aqueles beijos não era possível que os gerasse duas vezes o mesmo lábio,
porque onde nasciam queimavam, como certas plantas vorazes que
passam, deixando a terra maninha e estéril. Quando ela colocava a sua
boca na dele, parecia-lhe que todo o seu ser se difundia na ardente
aspiração; ele sentia fugir-lhe a vida, como o líquido de um Jarro haurido
em ávido e longo sorvo.
“Havia na fúria amorosa daquela Mulher um quer que seja da
rapacidade da Fera. Sedenta de gozo, era preciso que o bebesse por todos
os poros, de um só trago, num único e imenso beijo, sem pausa, sem
intermitência e sem repouso. Era a Serpente que enlaçava a presa nas
suas mil voltas, triturando-lhe o corpo; era a brutalidade da Jumenta
ciosa que se precipita pelo campo, mordendo os Cavalos; era a Vertigem
que arrebata uma pessoa à consciência da própria existência, alheava um
Homem de si e o fazia viver mais anos em uma hora do que em toda a sua
vida.
“Ao delírio sucedeu prostração absoluta, orgasmo da constituição
violentamente abalada. Quando o primeiro raio da manhã veio aclará-
los, Lúcia, reclinada a face na mão, olhava-o com o ressumbro de doce
melancolia, que era a flor de seu semblante em repouso. Embebendo o
olhar no dele, procurava o pensamento no fundo de sua alma. Paulo
sorriu, ela corou. Mas desta vez entravam também no rubor os toques
vivazes do júbilo que lhe iluminara a fronte.”

DOM PANTERO
Como se vê por aí, os Romances urbanos de José de Alencar
estavam na origem, não só dos de Machado de Assis, mas na dos de
Aluízio Azevedo. A diferença era que este não se limitava a mostrar o
Sexo nas alcovas ricas, porém sim, mais brutal, nas populares.
Quanto a mim, quando os comparava, um fato contribuía para
que Lúcia não me impressionasse tanto como acontecia com outros
Personagens femininos: é que os cabelos dela eram negros; os de Liza
Reis eram louros, de modo que eu ficava verdadeiramente fascinado era
ao tomar conhecimento de que morava no Cortiço, cantado e celebrado
por Aluízio Azevedo, uma Adolescente, Pombinha, que, linda e loura
como Liza Reis, “ não pagara ainda à Natureza o cruento tributo da
puberdade ”.
Um dia, indo ela com a Mãe, Isabel, visitar a desavergonhada
cocote Léonie, havia entre as duas uma cena que, no Romance, era
narrada assim:

ALUÍZIO SAVEDRA DE AZEVEDO


“Depois d’a rrefeição, Dona Isabel, que não estava habituada a
tomar Vinho, ssentiu vontade de descansar o corpo. Léonie franqueou-lhe
ũum Quarto, cõm boa Cama. E, mal perçebeu que a Velha dormia, fechou
a porta pel’o lado de fora para melhor ficar ẽ m liberdade cõm a Menina.
— “B ẽ m, agora estamos a ssós! Vem cá, minha Flor! — disse-lhe,
puxando-a para ssy e deixando-sse cair ssobre ũum Divã. — Ssabes? Eu te
quero cada vez mais! Estou louca por ty!
“E devoraba-la de beijos violentos, rrepetidos, quentes, que
ssufocavam a Menina, enchendo-a de espanto.
“A Cocote perçebeu o sseu enleyo e ergueu-sse, ss ẽ m largar-lhe a
maão.
— “Descansemos nós também! — propôs, arrastando-a para a
Alcova.
“Pombinha assentou-sse, constrangida, n’o rrebordo d’a Cama; e,
toda perplexa, cõm vontade de afastar-sse mas ss ẽ m ânimo de protestar,
tentou rreatar o fyo d’a conversa. Léonie fingia prestar-lhe atenção, mas
nada mais fazia d’o que afagar-lhe a çintura, as coxas e o colo. Depois,
como que distraidamente, começou a desabotoar-lhe o corpinho d’o
Vestido.
— “Não! Para quê? Não quero despir-me! — falou a Menina.
— “Mas está fazendo tanto calor!
— “Estou b ẽ m ass ỹ m, não quero!
— “Que toliçe a tua! Não vês que ssou Mulher, tolinha? De que
tens medo? Olha, vou dar o exemplo!
“E, n’ũum rrelançe, desfez-sse d’a rroupa e prosseguiu n’o ataque.
“A menina, vendo-sse descomposta, cruzou os braços ssobre o
sseyo, vermelha de pudor.
— “Deixa! — ssegredou-lhe a outra, cõm os olhos envesgados, a
pupila trêmula.
“E, apesar d’os protestos, d’as ssúplicas e atée d’as lágrymas d’a
pobrezinha, arrancou-lhe a última vestimenta e preçipitou-sse contra ela,
a beijar-lhe todo o corpo, a empolgar-lhe cõm os lábios o rróseo bico d’o
peyto.
— “Oh, oh, deixa d’isso! — rreclamava Pombinha estorçendo-sse ẽ
m cóçegas e deixando ver preçiosidades de nudez fresca e virginal que
enlouqueçiam a Prostituta.
— “Que mal faz? Estamos brincando!
— “Não, não! — balbuçiou a Menina, rrepelindo-a.
— “Ss ỹ m, ss ỹ m! — insistiu Léonie, fechando-a entre sseus
braços e pondo ẽ m contacto cõm o d’ela todo o sseu corpo nu.
“Pombinha arfava, rrelutando. Mas o atrito d’aquelas duas
grossas Pomas irrequietas ssobre sseu mesquinho peyto de Donçela
impúbere, e o rroçar vertiginoso d’aqueles pelos ásperos e crespos n’a
estação mais ssensitiva de ssua feminilidade, acabaram por foguear-lhe a
pólvora do ssangue, desertando-lhe a rrazão a’o embate d’os ssentidos.
“Agora espolinhava-sse toda, çerrando os dentes, fremindo-lhe a
carne ẽ m crispações de espasmo, a’o passo que a outra, por-çima, doida
de luxúria, irraçional, feroz, rrevoluteava ẽ m corcovos de Égua, bufando
e rrelinchando.
“E metia-lhe a língua tesa pel’a boca e pel’as orelhas, e esmagava-
lhe os olhos cõm sseus beijos lubrificados de espuma, e mordia-lhe os
ombros, e agarrava-lhe convulsivamente o cabelo, como se quisesse
arrancar-los a’os punhados.
“Ateé que, cõm ũum assomo mais forte, devorou-a n’um abraço de
tôdolo corpo, ganindo ligeiros gritos, ssecos, curtos, mũyto agudos. E
afinal desabou para o lado, exânime, inerte, os membros atirados n’ũum
abandono de bêbada, ssoltando de instante a instante ũum ssoluço
estrangulado.

“Quanto àa Menina, voltara a ssy e torçera-sse logo ẽ m ssentido


contráryo àa adversária, çingindo-sse rrente a’os Travesseiros e abafando
sseu pranto, envergonhada e corrida.”

ADRIEL SOARES
Entretanto, a cena que Aluízio Azevedo descrevia depois — e
que acontecia como consequência desta primeira — causava em nós
uma impressão ainda mais forte.

AURO SCHABINO
Primeiro porque, por alusão, mostrava como era poderosa, para
os Homens, até a simples imagem, ou evocação, daquela Gruta, Fenda e
Rosa que mesmo a Mulher mais despida de atrativos possuía entre as
coxas — “ Sol de pelos, onírico Diadema ”, como a cantara Luiz Correia.
Depois porque ali, já agora na antevisão do Sexo como Paraíso
desabrochado diante da Natureza, aparecia-nos, pela primeira vez
tratado como o Mito e másculo deus que era, aquele sagrado Sol-
brasileiro, desde muito cedo tão importante em nossa vida. Cantava o
autor d’ O Cortiço:

ALUÍZIO SAVEDRA DE AZEVEDO


“N’o pouco que Pombinha dormiu n’aquela noyte, teve ssonhos
agitados e passou mal, cõm molezas de febre e dores n’o Útero.
“Entre as onze e o meyo-dia era tal o sseu constrangimento e tal o
sseu desassossego que ssaiu a dar ũuma volta por detrás d’o Cortiço, àa
ssombra d’os Bambus e d’as Mangueyras.
“Ũuma irresistível neçessidade de estar ssó, ũuma aflição de
conversar consigo mesma a apertava n’o sseu estreyto Quarto. Pungia-lhe
a pureza d’a i-alma virxem ũum arrependimento inçisivo d’as torpezas
d’a véspera. Mas, lubrificada por tal rrecordação, toda a ssua carne rria e
sse rrejubilava, pressentindo delíçias que lhe pareçiam reservadas para
mais tarde. Dentro d’ela balbuçiavam desejos ateé aly mudos e
adormeçidos. E mistéryos desvendavam-sse n’o ssegredo d’o sseu corpo,
enchendo-a de ssurpresa e mergulhando-a ẽ m fundas conçentrações de
êxtase. Ũum inefável quebranto afrouxava-lhe a energia e distendia-lhe os
músculos, cõm ũuma embriaguez de Flores traiçoeyras.
“Não pôde rresistir: assentou-se debaixo das Árvores, ũum
cotovelo ẽ m terra, a cabeça rreclinada contra a palma d’a maão.
“N’a doçe tranquilidade d’aquela ssombra morna, o calor tirava
d’o Cap ỹ m ũum cheiro ssensual. A Menina fechou as pálpebras, vençida
pel’o sseu deliçioso entorpeçimento, e estendeu-sse de-todo n’o chaão, de
barriga para o ar e pernas abertas.
“Adormeçeu. Começou logo a ssonhar que ẽ m-rredor ia tudo sse
fazendo de ũum cor-de-rrosa a prinçípyo muyto leve e transparente,
depois mais e mais carregado, ateé formar-sse ẽ m-torno d’ela ũuma
Mata vermelha, cor-de-sangue, onde largos Tinhorões rrubros sse
agitavam lentamente. E viu-sse nua, toda nua, exposta a’o Céeu, ssob a
tépida luz de ũum Sol embriagador, que lhe batia de-chapa ssobre os
Sseyos.

“Mas, pouco-a-pouco, sseus olhos, posto que b ẽ m abertos, nada


mais enxergavam d’o que ũuma claridade, onde o Ssol, grande Borboleta-
macho feyta de ũuma ssó mancha rreluzente osçilava como ũum Pêndulo
fantástico.
“Entretanto, notava que ẽ m-volta de ssua nudez alourada pel’a
luz, iam-sse formando ondulantes camadas sanguíneas, que sse agitavam,
desprendendo aromas de Flor. E, rrodando o olhar, perçebeu, cheya de
encanto, que sse achava deitada entre pétalas gigantescas, n’o rregaço de
ũuma Rrosa interminável ẽ m que sseu corpo sse atufava como ẽ m ninho
fofo, maçio, trescalante e morno.
“Ssuspirando, espreguiçou-sse toda, n’ũum enleyo de volúpia
asçética.
“Lá d’o alto, o Ssol a fitava obstinadamente, enamorado de ssuas
mimosas formas de Menina. Ela ssorriu para ele, rrequebrando os olhos; e
então o fogoso Astro tremeu, agitou-sse, e, desdobrando as asas,
prinçipiou a fremir, atraído e perplexo.
“Mas, de-rrepente, n ẽ m que de-improviso sse lhe inflamasse o
desejo, preçipitou-sse lá de çima, agitando as asas; e, enorme Borboleta
de fogo, veio adejar luxuriosamente em-torno d’a imensa Rrosa, ẽ m cujo
rregaço a virgem permaneçia cõm os peytos a ele franqueados. E a
Donçela, ssempre que o Ssol sse aproximava d’a Rrosa, ssentia-sse
penetrar de ũum calor estranho, que lhe açendia, gota a gota, todo o sseu
ssangue de Moça.

“O Ssol, ss ẽ m parar nunca, doidejava ẽ m todas as direções, ora


fugindo rrápido, ora sse chegando lentamente, como sse temesse ferir
com ssuas antenas de brasa a pele delicada e pura d’a Menina.
“Ela, delyrante de desejo, ardia por sser alcançada, e empinava o
colo para ele. Mas o Ssol fugia; e ũuma ssofreguidão lúbrica, desensofrida,
apoderou-sse de Pombinha. Queria a todo custo que o Ssol pousasse n’ela,
a’o menos ũum ssó instante, e a fechasse n’ũum rrápido abraço dentro de
ssuas asas ardentes. Mas o Ssol, ssempre doido, não conseguia deter-sse:
mal sse adiantava, fugia logo, irrequieto, desvairado de volúpia.
— “V ẽ m, v ẽ m! — ssuplicava a Donzela, apresentando-lhe o
corpo. — Pousa ũum instante ẽ m m ỹ m! Queima-me a carne n’o calor de
tuas asas!
“E a Rrosa que tinha a’o colo ée que pareçia falar, e não ela. De
cada vez que o Ssol sse avizinhava cõm ssuas negaças, a Rrosa
arregaçava-sse toda, abrindo as pétalas, dilatando o sseu pistilo vermelho
e ávida d’aquele contacto cõm a Luz:
— “Não fujas! Não fujas! Pousa ũum instante! — gemia a Menina.
“O Ssol não pousou. Mas, n’ũum del ỹ rio, convulso de amor,
ssacudiu as asas cõm mais ímpeto e ũuma Nuvem de poeira dourada
desprendeu-sse ssobre a Rrosa, fazendo a Donzela ssoltar gemidos e
ssupiros, tonta de gosto ssob aquele eflúvio luminoso e fecundante.
“N’isto, Pombinha ssoltou ũum ay formidável e despertou
ssobressaltada, levando logo ssas âmbalas mãaos a’o meyo d’o corpo. E
feliz, e cheya de ssusto a’o mesmo tempo, a rrir e a chorar, ssentiu o grito
d’a puberdade ssair-lhe afinal d’as entranhas, ẽ m ũuma onda vermelha e
quente.
“A Natureza ssorriu-lhe, comovida. Ũum Ssino, a’o longe, batia,
alegre, as 12 badaladas d’o Meyo-Dia. O Ssol, vitorioso, estaba a-pino, e,
por-entre a copagem d’a Mangueira, ũum de sseus rrayos desçia ẽ m fyo
de ouro ssobre o ventre d’a Rrapariga, abençoando a nova Mulher que sse
formava para o Mundo.”

DOM PANTERO
Então, ontem à noite, preocupado com o Depoimento que iria
dar aqui no Simpósio — e também, é claro, com o que deveria falar
sobre o papel que tais leituras desempenharam em minha vida —, não
consegui dormir nem por um instante. Fiquei um bom tempo andando
pelo meu Quarto, rezando e, como Santo Inácio, “ velando minhas Armas
”, isto é, passando e repassando na cabeça tudo o que iria dizer aqui no
dia de hoje.
Depois, fui para o Quintal, postando-me junto à Torre que o
remata, encostada ao Muro exterior da Casa.
Lá, por um bom quarto-de-hora, fiquei a contemplar o Pé-de-
Figo, as Romãs e o Cajueiro. E, de repente, comecei a notar que não era
somente o Jardim: com as reformas e restaurações, por mim efetuadas,
depois da minha volta, para ver se ela recuperava seu original “ poder
de encantações ”, a Casa, agora, com seus quadros, esculturas e
mosaicos, estava se aproximando cada vez mais da outra, o Castelo
recifense dos Savedras. E mais ainda: minha Casa e o Livro que Tio
Antero me encarregara de levar adiante mantinham entre si uma
impressionante unidade; é que ambos apresentavam grande
semelhança com a máscara-e-persona de Dom Pantero; o qual, por sua
vez, por meio desta roupa, deste colar e das Aulas-Espetaculosas, ia
assumindo um sentido alegórico, tão significativo quanto o deste Circo-
Teatro Savedra e d’ A Ilumiara que destas Aulas resultará.

A noite estava cheirosa e enluarada, e comecei a me sentir


inebriado pelo cheiro da terra e da vegetação. Como sempre me
acontece em tais momentos, aquele aroma capitoso foi aos poucos me
levando para o estado de embriaguez encantada que as noites
recifenses me causavam no tempo em que Liza Reis vivia perto de mim
e ainda me restava alguma esperança de obter o seu amor.
Em tais noites, o cheiro da terra era o mesmo que de seus
cabelos se desprendia. Era um tempo em que às leituras de adolescente
— O Guarani , Memórias de um Médico , O Sertanejo , Scaramouche ,
Lucíola , A Carne — eu começava a acrescentar outras, como A Odisseia
, Almas Mortas , A Ilíada , O Conde de Monte Cristo , Os Sertões , o Eu , Os
Demônios , Quincas Borba , Os Lusíadas , A Divina Comédia , O Cortiço ,
Dom Quixote e o Triste Fim de Policarpo Quaresma .
Assim, obsedado por tais leituras, não é de admirar que algumas
imagens daqueles Livros me acompanhassem para o resto da vida: Cecy
em seu banho no Rio Paquequer ; a carruagem de Althotas na Estrada;
Lenita nua, no lago da Cachoeira ; o carroção de Teatro-ambulante de
Scaramouche; Gilberto espreitando Andréia mudar de roupa em seu
Quarto; ou Lúcio a errar em torno de Soledade nas matas do seu
Engenho. Não era apenas uma forte impressão que os Livros me
causavam: eu vivia intensamente a vida de seus Personagens e
identificava Liza com cada uma das belas Mocinhas por quem eles eram
apaixonados.
Por isso, passado certo tempo, nem Eu era mais somente Eu,
nem Liza era só Liza, pois em nossas imagens tinham-se fundido outras,
literárias. E meu amor por ela, permanecendo real, e doloroso, e vivo,
era também o de Pery por Cecy; o de Dom Quixote por Dulcineia; o de
Lúcio por Soledade; o de Scaramouche por Alina; o de Raskólnikov por
Sônia; o de Edmundo Dantès por Mercedes; e o de Dante por Beatriz.

SOCORRO RAPOSO
Mestre, Você poderia adiantar alguma coisa sobre a paixão que o
ligou a ela?

DOM PANTERO
Para responder-lhe, tenho que voltar àquele momento em que,
ontem à noite, insone, fiquei a errar pelo Jardim e pelo Quintal,
lembrando a Vocês que, assim como empreendemos, graças a minha
Mãe e a meu Tio, a restauração da nossa Casa recifense, eu, depois que
voltei para o Sertão, comecei a fazer da sertaneja uma espécie de
imitação daquela, valendo-me, para isso, das esculturas de Arnaldo
Barbosa e Biu Santeiro, dos quadros de Manuel e Alexandre Jaúna, dos
mosaicos de Guilherme, irmão deles, e das gravuras, porcelanas e
esculturas em terracota de Eliza de Andrade, mulher de Adriel.

Como expliquei há pouco, errei ali pelo Jardim por entre várias
daquelas Obras-de-Arte, terminando por me deter perto da Torre
circular que existe no Quintal.
Não demorou muito para que a lembrança de Liza Reis
começasse a me dançar na memória e a me abrasar o sangue,
enchendo-me de saudade. Sem querer, fui evocando as palavras do
Poema que tentara compor depois de perdê-la e que fora imaginado na
pobre e vã esperança de pelo menos recuperá-la em imagem.
Naquele tempo, torturado pela frustração e pela saudade, o
Poema ia-se formando aos poucos dentro de mim e eu vagava, como um
sonâmbulo, pelas ruas mais amadas do Recife: as do Poço e da Casa-
Forte, perfumadas de Jasmins; ou as da Cruz e da Aurora, porque nelas
ficavam as “ repúblicas ” em que, quando frequentava a Faculdade de
Direito do Recife, se hospedava o Cavaleiro, juntamente com seus
amigos Arthur, Aprígio e Augusto dos Anjos.
Às vezes, em minhas andanças recifenses, eu passava, à boca-da-
noite, diante de alguma Casa, que tinha um pequeno Jardim à frente. O
dono não chegara ainda, de volta do seu trabalho. Mas, à sua espera,
com o Jardim já escuro e as janelas iluminadas, mesmo de fora dava
para se ouvir o rumor dos pratos e talheres, que tiniam, ao ser posta a
Mesa. E eu, adolescente solitário, eLivros de casa e agora, ali,
embriagado pelo cheiro das Flores, sentia uma saudade dilaceradora da
nossa grande, quieta e acolhedora casa de Taperoá, onde àquela hora,
com minha doce Mãe presente, os Jasmins e Bogaris também estariam
cheirando e soariam os ruídos familiares da nossa Mesa sendo posta.
Assaltava-me a terrível convicção, a dolorosa certeza de que jamais eu
encontraria uma outra Mocinha que me amasse e que tivesse um
significado pelo menos longinquamente parecido com aquele que Liza
representava para mim.
Era com essas recordações que, ontem à noite, ainda recostado à
parede circular da nossa Torre, eu procurava reconstituir em minha
memória as palavras do Noturno que tentara compor para ela.
Começaram a voltar a meu espírito, juntamente com as imagens
canhestras do Poema, os sentimentos contraditórios de exaltação,
desespero e melancolia que a lembrança de Liza me causa ainda,
mesmo passados tantos anos desde sua tempestuosa irrupção em
minha vida.
Ao mesmo tempo, em meus devaneios junto à Torre, de vez em
quando me vinha à lembrança meu dever para com o Povo pobre do
Brasil real, dilacerado há tanto tempo pela pobreza e pela injustiça.
De repente, porém, a imagem de Liza voltou, irresistível e
soberana, e foi como se de novo eu a enxergasse, pura e linda diante de
mim, com aquele vestido que era o mesmo do de um dos Retratos que
dela me ficaram depois que a perdi.
Aí, num clarão de memória, relembrei o Poema que, antigo e
com todos os defeitos de composição juvenil que tivesse, parecia estar
sendo sonhado ali, sob a Lua, diante da graciosa imagem feminina que o
inspirara. E como somente com ajuda da Música é que posso sugerir
aquilo que Liza Reis significava e significa para mim, tiro do peito por
alguns momentos o Medalhão que herdei de meu Tio, para que todos
saibam: mesmo permanecendo vestido de negro-e-vermelho, enquanto
durar a recitação, é Antero Savedra, e não Dom Pantero ou Dom Paribo
Sallemas, quem fala; e peço que Antonio Madureira e João Carlos
Araújo, ao Violão e ao Violoncelo, toquem a transcrição, feita para esses
instrumentos por Rodrigo Alguati e Daniel Wolff, da Ginopedia n º1, de
Erik Satie, música lunar, graciosa, melancólica e portanto apropriada
para acompanhar um Poema composto à luz da Lua para aquela que,
para mim, foi e é o Emblema mais acabado e perfeito do Sexo feminino:
NOTURNO
PrImeIra tentatIva falhada de Poema-lírIco

ANTERO SAVEDRA
Têm, para mim, Visões de um outro Mundo, as Noites luminosas,
azuladas, quando a Lua aparece mais bonita. São idos Sonhos, nossas
mágoas santas, são Fantasmas antigos, carinhosos, que, neste Mundo vivo
e mais ardente, consumam tudo o que desejo aqui.

CORO
Será que mais alguém os vê e escuta?

ANTERO SAVEDRA
Sinto o roçar de suas Asas puras, e ouço velhas Canções
encantatórias que tento, em vão, de mim desapossar.

CORO
Diluídos na branca luz da Lua, a quem dirigem seus etéreos
Cantos?
ANTERO SAVEDRA
Pressinto um vaporoso esvoejar: passaram-me por cima da
cabeça, e, como um Halo puro te envolveram. Eis-te de branco, como no
Retrato, a Ventania me agitando em torno o perfume que sai de teus
Cabelos.
Que vale a Natureza sem teus olhos, oh aquela por quem meu
sangue pulsa?
Da terra sai um cheiro bom de vida, e os nossos pés a ela estão
ligados: deixa que teu Cabelo, solto ao vento, alise levemente as minhas
mãos.

CORO
Mas não: o Halo estranho inda te envolve. O Vento franja as águas
dos dois Rios, e continua a ronda, à luz da Lua.

ANTERO SAVEDRA
E, se és, agora e sempre, a minha Vida, oh meu Amor, por que te
ligo à Morte?

CARLOS DE SOUZA LIMA


Mestre, de modo geral não acho que a análise biográfica dos
Escritores explique seus textos. Mas para alguns deles é fundamental:
são aqueles que vivenciaram grandes encruzilhadas biográficas. A meu
ver é o caso de seus irmãos Altino, Auro, Adriel e até mesmo o seu,
porque, para Vocês, a morte trágica do “Cavaleiro sertanejo João
Canuto” representou a mais terrível das encruzilhadas.
É verdade que Você não é um Escritor, e sim um Ator e
Encenador. Mas, conforme já li em várias Entrevistas suas à Gazeta do
Cariry , concluído o Simpósio, Você, baseado em seus Anais, pretende
escrever o Livro encomendado por seu Tio, depois combinado para ser
feito em conjunto com Quaderna e que, hoje pela manhã, já deu
condições a Você de passar de Acadêmico comum a Emérito, na Cadeira
nº 7, da Academia Taperoaense de Poesia .

Deve-se recordar, então, que, também no seu caso, a pessoa e a


obra de seu Tio, Antero Schabino, foram decisivas na sua formação. E
são ligadas a isso as indagações que tenho a lhe fazer em relação ao
Poema que acaba de ser citado aqui. É verdade que a figura do
Cavaleiro foi tão decisiva para Você quanto para seus irmãos? É verdade
que o Noturno causou um grande conflito — o primeiro dos muitos que
vieram a ocorrer entre seu Tio e Você?

DOM PANTERO
Vamos por partes. Quanto à primeira pergunta, devo dizer-lhe
que, acima de si, nas fronteiras de Deus, cada Ser-humano possui seus
Abrasadores — Anjos, Guerreiros, Mártires e Santos —, modelos
sagrados sem os quais se acomodaria numa vida marcada pela
mornidão, pelo vício, pelo crime, pelo pecado e pela covardia. Quanto a
mim, tive a sorte — ou a desgraça, ou a sina, não sei! — de ter o meu
Herói em casa, como uma Brasa ardente colocada desde muito cedo
sobre a minha cabeça, uma Asa-negra de fogo com cinco ardentes Rosas
de ouro a me chamarem para o Alto. É que eu sabia, com meu sangue,
que, entre o lerdo Gado que somos nós, entre o tardo Rebanho humano,
e o luminoso Gavião de Ouro do Divino, existem os Cavaleiros, os Beatos
e Profetas, os Cantadores e os Cangaceiros — aqueles que pressentem
que só a Morte une realmente o Homem ao Gavião-de-fogo de Deus; por
isso, inconscientemente, vivem procurando se encontrar com ela, para
que a Morte, chagando-os e queimando-os, termine por purificá-los e
imortalizá-los.
Então, somente o fato de a morte do meu Pai possuir tão forte
significado no meu mundo particular dá-lhe importância para qualquer
pessoa. Todos nós repetimos a mesma áspera desaventura da Vida e da
Morte. Aqui no Sertão nós nunca precisaremos de inventar uma
imagem falsa da Vida para poder amá-la, porque é na dureza e sob o Sol
que somos forçados a isso, com o que ela tem de ardente e glorioso, mas
também com o que possui de doido e de sangrento. O que é insano e
cruel também faz parte da Vida, e terá que ser enfrentado com as armas
do “ Riso a cavalo ” e do “ galope do Sonho ”; com a valente tenacidade
do homem diante do que a Vida tem de mais desordenado — o
sofrimento, a injustiça, a humilhação e a Morte.
É por isso que todos nós sonhamos em nos unir, pela Morte, com
o sangue do Divino, superando os Demônios e tornando-nos
verdadeiros Filhos de Deus.
Aqui no Sertão, a Morte é uma Mulher; e, para usar suas
expressões, por causa da morte de meu Pai foi que eu, atraído,
temeroso mas também fascinado, me vi diante dessas encruzilhadas de
fogo: a Vida e a Morte; a Mulher e a Sina; Deus e o Demônio; o Sol e a
Treva; o Mundo e o Pó — as cinzas do meu Pasto Incendiado. A Morte
era aquela Mulher chamada Caetana, e eu sempre a vi jovem, cruel,
bela, impiedosa, vestida de vermelho, negro e amarelo como uma Dama
de Espadas; com uma Cobra na mão, com unhas felinas, com dois
Carcarás (mas também com o Gavião de Ouro e fogo do Divino
coroando sua cabeça).
Quanto a meu Tio, Antero Schabino (ou, melhor dizendo, quanto
às Figuras que ele encarnava — Aribál Saldanha e Ademar Sallinas), é
melhor que eu confesse logo: ele, principal responsável por minha
formação intelectual, foi, ao mesmo tempo, o grande fascínio e o grande
horror da minha vida. Somente depois de sua morte — que me libertou
daquela pesada presença — foi que tive condições de reavaliá-lo em sua
real dimensão, voltando aí à admiração que tinha por ele na infância
mas que foi bastante perturbada pela crise de passagem da
adolescência para a juventude.

CARLA SEIXAS
A que se deveram tais dificuldades, Mestre?

DOM PANTERO
É que, como acontece normalmente com as personalidades
acima do comum, a convivência com meu Tio não era fácil. Por exemplo:
causando em mim uma insuportável sensação de ciúme, ele dava a
meus irmãos Auro e Adriel uma preferência literária que eu achava
absurda, inaceitável. Para Vocês terem uma ideia: nos dias decisivos e
terrivelmente dolorosos que passei a viver depois que perdi Liza,
quando finalmente consegui compor aquele exorcismo que era o
Noturno , trêmulo e ansioso fui levá-lo a meu Tio, para que o avaliasse.
Já então ele pensava em escrever A Divina Viagem , uma “ recriação
literária e artística ” de seu Diálogo d ’ A Onça Malhada e a Ilha Brasil ; e,
para acréscimo de meu ciúme e de minha frustração, convidara
somente Auro, Adriel e Eliza para ajudá-lo “ na grande e honrosa tarefa
”. A mim, além do trabalho menor de organizador de suas Conferências
Quase-Literárias que já me confiava, reservava agora apenas a função de
Copista d’ A Divina Viagem : sua letra era péssima, quase ilegível; e, “
para facilitar o trabalho futuro de Programadores-visuais e Artistas-
gráficos ”, ele me obrigara a praticar a Caligrafia vertical , para os textos
comuns, e a inclinada , para os que desejava destacar.

VERA FERRAZ
Mestre, Você pode nos dizer alguma coisa sobre essas
Conferências Quase-Literárias , que a meu ver desempenharam papel
importante na concepção de suas Aulas-Espetaculosas ?
DOM PANTERO
Respondo com a maior satisfação. As Conferências Quase-
Literárias eram umas Aulas que Tio Antero costumava dar na sala de
visitas da nossa Casa recifense “ para um mínimo de 3 e um máximo de
12 pessoas ”; porque, como acrescentava, “ para além daí era, já, a
multidão ”, coisa que lhe causava “ verdadeira e profunda repugnância ”.
Diziam, porém, os adversários dos Savedras, que “ tais afetações
aristocráticas de Antero Megalo ” resultavam pura e simplesmente da
inveja que meu Tio sentia por causa do sucesso que outros Escritores
pernambucanos — “ como, por exemplo, Gilberto Freyre ” — obtinham
em suas aparições públicas.
Esse era, pois, o homem de quem eu sonhava agora obter a
mesma honra de colaborar na criação d’ A Divina Viagem . Esperava
consegui-la por meio do Noturno , pois ficara acabrunhado com a
rejeição dele, que era meu Tio, como dos outros, mas era também meu
Padrinho; e, apesar disso, só mostrava admiração por Auro e Adriel.
Mas Tio Antero foi cortante e brutal em sua recusa. Depois que
acabou de ler meu Poema disse-me secamente:

ARIBÁL SALDANHA
A vaga que havia, entre nós, para Poeta, já foi ocupada por Auro
e Adriel (se bem que eu não goste dos Poemas individuais e líricos que
os dois às vezes escrevem). A meu ver, nosso País e nosso Povo exigem
o épico e o coletivo, não havendo, aqui, lugar para a Lírica.
Ora, seu “poema” é muito inferior, mesmo aos piores versos
líricos de seus irmãos. É manchado por um sentimentalismo
ridiculamente melancólico e vago, que Você contraiu com os Poetas
românticos ingleses e que nada tem a ver com o Brasil!

DOM PANTERO
Eu, intimidado e inseguro, tentei, no entanto, levantar uma
objeção àquele duro julgamento. Disse:

ANTERO SAVEDRA
Minha admiração por Tennyson, Keats e Shelley vem do senhor
mesmo, meu Tio! É resultado de sua influência, porque em nossa Casa
recifense havia versos daqueles 3 Poetas incrustados nas paredes do
Jardim, e todos em traduções suas!
ADEMAR SALLINAS
Não concordo com sua observação! Fiz aquelas “ traduções ” não
por iniciativa minha, e sim a pedido de seu Pai, que gostava dos
Românticos ingleses e italianos. Além disso, ali não se tratava de
simples “ traduções ”, como Você disse. Eu jamais me rebaixaria a fazer
traduções: se as fizesse, estaria confessando implicitamente que, como
Escritor, minha estatura é menor do que a de Shelley, Keats, Tennyson e
outros, o que não é verdade!

Assim, os poemas que figuravam na Casa recifense da nossa


Família eram, na verdade, recriações que compus na linha determinada
pelo capítulo que, n’ A Onça Castanha , tem o título de A Imitação como
Processo Criador da Arte . No seu “poema” pode-se dizer que Você fez o
contrário, porque seus versos não acrescentam nada aos autores que o
influenciaram: a forma vaga e o conteúdo sentimental e lacrimejante
chegam até a ser piores do que em seus “Mestres”!
DOM PANTERO
De repente, ele percebeu que estava se afastando dos modos de
um Tio e Padrinho tratar seu Afilhado. E procurou amenizar o tom de
suas observações:

ARIBÁL SALDANHA
Não leve a mal a rudeza com que emito minha opinião, faço isto
para seu bem! Minha obrigação de Tio e Mestre é adverti-lo, para que
Você não perca tempo num caminho equivocado.
Sim, porque não falo mais nem sequer em relação aos Poetas
europeus do século XIX: seus versos são inferiores até aos dos
Românticos brasileiros, ainda mais vagos e sentimentais do que os da
Europa!

DOM PANTERO
Meu Tio pronunciou aquelas duras sentenças e deu-me as
costas, deixando-me arrasado.
Consegui, porém, recuperar-me aos poucos do choque que ele
me causara, e comecei a sonhar com outra porta para me aproximar
dele e de sua Obra. Já que falhara como Poeta, pensei em escrever um
Romance, cujo fundamento seriam os capítulos que, n’ A Onça Malhada ,
falavam sobre Dom Sebastião Barretto, O Encoberto da Serra da Copaóba
.
Cautelosamente, fiz primeiro um esboço do Romance. Era um
projeto contendo uma sinopse de cada capítulo e que, depois de pronto,
levei também à apreciação daquele implacável Mestre, tutor-intelectual
de todos nós.
Mas a reação de Tio Antero foi ainda mais dura que da primeira
vez. Disse ele:

ADEMAR SALLINAS
Sua tentativa de prosa é pior do que o “poema”! O assunto que
escolheu é ótimo (e não poderia ser de outra forma, porque foi extraído
da Obra-prima que é A Onça Castanha ). Mas isto é a única coisa que se
pode louvar em seu esboço: quanto ao mais, digo-lhe com toda
franqueza que é impossível sair de tal monstruosidade um Romance
digno de sua origem. E se Você quer, mesmo, participar dos trabalhos
ligados ao grande Livro que pretendo fazer, poderá fazê-lo, como lhe
disse: na condição de copista dos textos e diretor-de-cena das minhas
Conferências Quase-Literárias — pois elas farão parte do Romance que
projetei com o título de A Divina Viagem .

DOM PANTERO
Meu Tio falou assim, mas não me deixou logo, como da outra
vez. Não concordando com a tímida proposta que lhe fiz de refazer o
esboço para submetê-lo a nova apreciação, apossou-se do meu
manuscrito, que levou consigo, dizendo que iria ver se era possível “
consertar o Monstro ” (o qual, em caso positivo, me seria devolvido).
Passou um bom tempo sem me falar do assunto. E, quando
voltou a fazê-lo, foi para me fazer uma revelação, para mim fulminante:
ele cortara aqui, acrescentara ali, reescrevera acolá, enfim, refizera o
esboço como bem quisera; e depois, “ animando-se ” — conforme
explicou —, terminara por pilhar-me, roubando minha ideia para
escrever seu “ quase-romance ” O Desejado .

EDUARDO DIMITROV
E qual foi a reação da Crítica ao “ quase-romance ” de seu Tio,
Mestre?

DOM PANTERO
Nos dias que antecederam sua publicação — como sempre paga
pelo próprio Autor — Tio Antero estava como um Menino em véspera
de férias, pois esperava um grande êxito. Mas foi uma decepção: os
sociólogos, críticos e cientistas-políticos da “ Esquerda arejada ”
recifense atacaram duramente o livro, chamando seu Autor de “
irresponsável e alienado ”. Reclamavam contra o fato de não se poder
jamais chamar O Desejado de “ uma outra Bíblia dos miseráveis ”, como,
por exemplo, “ se podia dizer de Vidas Secas ”. Mostravam o contraste
que existia entre “ um Bobo alegre, um Histrião palavroso e retórico ”,
como meu Tio, e “ um Mestre sóbrio, um clássico, como Machado de Assis
”, ou “ um Escritor sério, despojado e pungente, como Graciliano Ramos ”.

RACHEL BERTOL
Antero Schabino respondeu às críticas, Mestre?

DOM PANTERO
Meu Tio, a princípio, afetou desdém e manteve diante delas um
silêncio que considerou “ soberano e cheio de olímpico desprezo ”. Na
verdade, não respondeu logo porque os grandes Jornais recifenses nos
eram hostis, fazendo contra nós uma campanha que às vezes assumia a
face de ataques como aquele, mas que, na maioria dos casos, fazia pior:
transformava-se em “ campanha de silêncio ”, não falando dos Savedras
nem mesmo para atacá-los.

Em tal aparente calma permaneceu Tio Antero durante certo


tempo. Mas seu estado de espírito não era tão superior quanto ele
quisera aparentar: tanto que, obtendo acolhimento no Jornal da Paraíba ,
de Campina Grande, publicou nele um artigo no qual afirmava que era
melhor ser “ um Histrião retórico e um Bobo alegre ” do que “ um Chato
triste ” — categoria na qual enquadrava todos aqueles que tinham
atacado seu “ quase-romance ”.

MÀNYA MILLEN
Aliás, Mestre, este subtítulo de quase-romance também foi
motivo de polêmicas e controvérsias no Recife, não é verdade?
DOM PANTERO
É verdade. Em sua dupla condição de Escritor e Professor, meu
Tio concebera seu livro como uma Novela épica, histórica, mas também
como um Ensaio estético e artístico que comportava uma reflexão sobre
a Cultura brasileira. Por isso é que, sob o título de O Desejado , colocara
o subtítulo de Um Quase-Romance . E um Crítico maldoso, que, por
conta própria, colocara na cabeça a carapuça de “ Chato triste ”,
publicou um artigo que, segundo afirmava, iria “ acabar com Antero
Mitoma ”, iria “ arrasar Antero Megalo ”.
Entre outras coisas, dizia-se, no artigo (que já citei de
passagem):

UM HISTRIÃO
Pequena bIografIa de um mItomaníaco vaIdoso

GILBERTO FRANCIS
“O pouco interesse que hoje cerca as obras e as ideias de Antero
Schabino surge quando ele pronuncia suas Conferências Quase-Literárias .
Aí, seus dotes de Histrião vaidoso e megalomaníaco levam os mais jovens
a confundi-lo com os Palhaços que os encantavam na infância.
“Falo assim porque, em seus Ensaios, e agora, com O Desejado ,
sob os cognomes de Aribál Saldanha e Ademar Sallinas, o referido Antero
Schabino conseguiu a façanha de, juntando-se a Rubem Braga, Miguel
Arraes e Oscar Niemeyer, entrar no privilegiado grupo dos maiores
chatos do Brasil.
“Por isso, sugiro que, em seu mais recente livro, o subtítulo seja
trocado para ‘quase-nada’.”
DOM PANTERO
Foi enorme a gargalhada que reboou pelas esquinas e rodas
literárias do Recife. E, apesar da pilhagem que sofrera, quem ficou
arrasado fui eu, que me considerava coautor do Livro, mesmo tendo
meu Tio omitido qualquer referência ao fato de que a ideia inicial do “
quase-romance ” lhe fora sugerida por mim.
Mas Tio Antero era realmente um homem superior, que sempre
teve a maior habilidade para reverter as maldades daquele tipo em
favor de si. Ele esperou que a tempestade amainasse, e, lá um dia,
publicou 4 Artigos, n’ O Mossoroense , do Rio Grande do Norte. No
primeiro, mostrava que a Odisseia — por conter, além da trama épica,
um ensaio sobre a formação da Grécia e de sua Cultura — era um quase-
romance . No segundo, apresentou tese semelhante sobre A Divina
Comédia . No terceiro, fez o mesmo com o Dom Quixote . E coroou sua
magistral análise com o quarto artigo, no qual mostrava que, com o seu,
aqueles três quase-romances formavam “ uma Quaterna dialética, na
qual a Odisseia era a tese, A Divina Comédia a antítese, o Dom Quixote a
contrátese, e O Desejado a síntese genial daquelas 3 Obras ”, precursoras
da sua.

LEONARDO GUELMAN
Mestre, pretendo apresentar, no Simpósio, um Comunicado
sobre a sátira que, no Romance d ’ A Pedra do Reino , de Auro Schabino,
é feita ao pensamento de Heidegger. Mas vou deixar isso para depois.
Agora, o que pretendo perguntar é se todas essas ideias “ grandiosas ”
de seu Tio, Mestre e Padrinho repercutiram de algum modo na
concepção deste Simpósio e da Obra que dele resultará — A Ilumiara .

DOM PANTERO
Para falar a verdade, meu sonho era que o Governo, percebendo
a importância literária, política, plástica e religiosa que A Ilumiara tem
(para o Mundo, para a Iarandara em geral e para o Brasil em
particular), me desse condições de colocar, na Estrada que liga Taperoá
a Belmonte, Belmonte ao Recife, e o Recife de novo a Taperoá, milhares
de Lajedos semelhantes ao tríptico que é As Tábuas da Lei . Em tais
Lajedos seriam insculpidos todos os sinais e todas as letras que venho
reunindo aqui, de modo a que os eventuais leitores da Obra só
pudessem tomar conhecimento dela transformando-se em Peregrinos
que, pela Estrada, realizassem, a pé e por etapas, a Viagem, parando
defronte de cada Lajedo para ver e ler, rezando, o que cada um
continha. Por trás de cada Lajedo seria colocada uma grande
Iluminogravura feita em Mosaico por Guilherme Jaúna, de modo a
transformar realmente A Ilumiara no Evangelho de Pedra que eu sempre
imaginara.
Durante algum tempo, pensei em fazer isso usando o cargo, que
Quaderna também me conseguiu, de Secretário de Cultura de Taperoá.
Mas a Obra, considerada “ faraônica ” pelos adversários do Prefeito, foi
descartada por falta de verbas, e eu me vi obrigado a limitar meu sonho
pelas dimensões deste Simpósio.

WILSON MADEIRA FILHO


“A essas palavras gostaria de acrescentar que conheci Auro
Schabino e li seu Romance d ’ A Pedra do Reino , ilustrado por
Litogravuras de sua cunhada Eliza de Andrade, de modo que posso
assegurar aos participantes deste Simpósio que sua organização — assim
como a Cavalgada na qual o irmão de Auro, Dom Pantero, toma parte
todo ano em São José do Belmonte — guarda, com o Romance, uma
estreita relação.
“No Romance de Auro, a escrita era associada à intimidade do
Artista com a pena e com a página em branco: o Livro sobreviveria
enquanto Romance, ajudando o Autor a reconhecer a própria
individualidade.
“Assim, ao propor a recuperação do trabalho de Autor num
Romance escrito a mão e ilustrado artesanalmente, Auro Schabino
estaria se encaminhando para a recomposição de uma ‘aura artística’. E,
por haver sido lavorada com uma paixão artesanal, sua Obra prometia
não só um exemplo de resistência e inconformidade como também, e
principalmente, fornecia o símile da paixão pelo ofício .
“Auro Schabino era afeito ao resgate do clássico e do
consuetudinário, explorando a dicotomia de sua formação e contrapondo
o resgate do Romanceiro Popular como antítese da modernização
tecnológica. Chegava a declarar sua rejeição aos Computadores, uma vez
que sua Arte se elaborava pelo contato intimista com o papel e a tinta.
Criava uma produção sui generis , principalmente quando, com seu irmão
Adriel Soares e com ilustrações de Eliza de Andrade, espalhava Sonetos e
outros Poemas pelo Nordeste: novamente Obras-de-Arte feitas a mão e
expostas em Molduras nas casas dos amigos, museus, casas de cultura
etc., criando, com isso, uma Literatura cuja leitura só se tornava possível
pela prática itinerante de seus possíveis Leitores. Em suma: Auro
Schabino não precisava utilizar o Computador porque, de certa forma,
inventara seu próprio Computador.
“Contudo, o que ressalta de maneira subliminar da leitura do
Romance, constituir-se-ia, de fato, numa paradoxal eleição da Literatura
como Palco de resgate de um Trono político. Ao contar sua história de
forma parodística imbricada na fantasia sebástica (a qual, através de
peripécias históricas, contribuiu para a transmigração do Mito para o
Sertão nordestino), o Autor, Auro Schabino, estaria a relatar,
alegoricamente, sua própria biografia.
“Filho de João Canuto Schabino de Savedra Jaúna, Prefeito de
Assunção de 1924 a 1928 e assassinado em 1930, Auro Schabino de
Savedra Jaúna era o próprio filho do Desejado: órfão do Pai, ao crescer,
constrói sua Fortaleza literária para fazer frente ao falso Poder: o
Governo que se instalara na Paraíba na década de 30, alegado mandante
do crime, e posteriormente representado pela Ditadura militar.
“Desse modo, filho do Cavaleiro João Canuto, Auro Schabino seria
de fato ‘o Alumioso’, em busca de um tempo de Esclarecimento e
recuperando, pela metáfora, o Sangue derramado — o do Pai e, por
extensão, o do Povo brasileiro, a banhar continuamente a Pedra do Reino,
entendida como realidade social.
“A obra de Auro Schabino, retomada neste Simpósio pelo
dinamismo e pela limpidez de seu irmão Antero Savedra — que, aos 73
anos, convive com o Maracatu Atômico e com movimentos messiânicos
impulsionados pela memória de Antônio Conselheiro, Padre Cícero e Frei
Damião —, consagra-se numa outra Paródia-lírica. A cavalgada à Pedra
do Reino — marcha de Cavaleiros que, saindo de São José do Belmonte,
seguem, paramentados conforme idealizado no Romance, em direção à
Pedra encravada no Sertão — já se tornou o mais importante evento
cultural do Nordeste. E, durante a Cavalgada, que ocorre no último final
de semana de Maio, Antero Savedra, montando um Cavalo e trajado de
Imperador do Sertão, conduz, pelos 43 quilômetros de caminhos
pedregosos, os Cavaleiros do Idílio.
“Numa contemporaneidade pretensamente globalizada, num
universo de desconstrução do Sujeito, a técnica do fragmentário,
ampliando nossas probabilidades discursivas (sem deletar, do Jogo, o
Acaso), estará também, e com toda certeza, preparando o ressurgimento
de um Desejado, talvez já um Encoberto — o Virtual. ”

INEZ VIANA
Mestre, Rosette Fonseca dos Santos preparou também um
Comunicado que deseja ler agora; com muita alegria, passo-lhe a
palavra.

ROSETTE FONSECA DOS SANTOS


“No romance de Auro Schabino, o Pai é o Rei transfigurado em
Sol: rei e sol representam duas metáforas privilegiadas para designar o
Pai — um estudo psicanalítico permitiria esclarecer o sentido e a
complexidade dessas metáforas na obra de Auro Schabino e faria
aparecerem muitas metáforas secundárias da Figura paterna.
“É interessante notar que, entre as 10 palavras grifadas com
maiúsculas iniciais e de maior ocorrência no Romance d ’ A Pedra do
Reino , encontram-se Sol , Rei e, principalmente, Onça , cujo peso atinge
quase o de Sertão , e na qual pode ser identificado, através de uma
verdadeira rede metafórica, um outro aspecto deste Pai proteiforme,
retomado na alusão à Onça Suassuarana.
“Num Poema anterior, Auro Schabino evocava em termos
simbólicos esse Pai, cuja ausência contribuiu, talvez, para tornar maior
ainda aquela Imagem, através da magia da lembrança familiar,
exacerbada por um sentimento profundo de injustiça e fatalidade.
“A Literatura brasileira conta com muitas Pedras, semeadas pelos
seus Poetas. Auro Schabino escolheu duas Pedras monumentais, situadas
no alto Sertão, exatamente na divisa de Pernambuco com a Paraíba; e
conseguiu colocá-las em movimento.
“Do Livro, nasceu a Legenda, do relato histórico da Pedra Bonita
surgiu a reinvenção histórico-lendária da Cavalgada à Pedra do Reino,
quando São José do Belmonte ‘reconstitui’ o que talvez nunca tenha
acontecido e passa a ‘rememorar’, numa Festa, a visão heroica-
maravilhosa criada por Auro Schabino a partir do que foi um entre os
muitos e terríveis episódios messiânicos da história do Brasil.
“Do Livro também nasceu outra Festa, única e singular, que
desfilou nos passos e na glória do Reisado de Mestre João Cícero , de
Belmonte, e da Tribo Negra Cambindas Nova , de Taperoá, que
homenagearam o Autor e sua Obra na ‘ Aclamação e Coroação do
Imperador da Pedra do Reino ’, cantando:
“ Sol inclemente ! Vai além da imaginação ! Sopro ardente, árida
terra, desse Poeta-Cantador ! Sede de vida, gente sofrida: salve o Lanceiro,
Guerreiro do Amor !
“Do Livro, ainda, escrito numa Língua portuguesa que lança mão
de todos os recursos que lhe são oferecidos, incluindo-se aí os arcaísmos
que ainda vigoram nas Falas sertanejas; da história ‘que não cabia no
Palco ’ e de seus Personagens singulares, nasceram uma Peça-de-Teatro ,
de Romero de Souza Lima e José Antunes, e um seriado, exibido pela TV
Ilumiara , de Taperoá, sob direção de Fernando Carvalho.
“Como acontece com qualquer adaptação para o Cinema ou para
o Teatro, a Peça e o Seriado tiveram que escolher entre as possíveis e
numerosas leituras:
“o olhar histórico, que liga a tragédia familiar (com o
assassinato do pai de Auro Schabino em Outubro de 1930) à história do
Nordeste e às muitas outras tragédias da história do Brasil: se
repararmos na diferença de idade entre o Narrador e o Autor — 30 anos
— começaremos a ler no Romance, ambientado em 1938, as questões e a
visão crítica da sociedade de 1968;
“o olhar antropológico, que manifesta permanentemente a
riqueza do cruzamento dos universos culturais, com seus jogos de
recriação e apropriação de Folhetos de Cordel, assim como de obras da
Literatura universal, tecendo-se o texto schabiniano dos múltiplos fios da
Cultura popular sobre a trama grandiosa do Teatro elizabetano, com riso
de escárnio e grande prazer em maldizer;
“a visão poética, que une Verso e Prosa, Imagem e Música,
procurando rearticular as formas e as expressões que as Belas-Artes nos
ensinaram tão cuidadosamente a distinguir e separar;
“enfim, a visão mística, que decifra o permanente
enfrentamento do Bem e do Mal, na Terra, no Mundo e no Sertão; que une
Sexo e Transgressão, e em que o sobrenatural cruza o cotidiano, ora sob a
forma de um Diabo funcionário público andando de Bicicleta, ora sob a
da terrível Besta Fouva, a Besta Bruzacã.”
NIVALDO MULATINHO
Mestre, antes de mais nada quero lhe dizer que, comigo, o
senhor pode ficar inteiramente seguro e tranquilo porque não vim para
cá com o propósito de fazer a ninguém qualquer crítica desfavorável.
Pelo contrário: sendo, além de schabinólogo, um savedrista convicto,
trouxe comigo um intelectual do Rio Grande do Norte, Carlos Werneck,
que vai apresentar aos participantes do Simpósio um Comunicado que
preparou a partir de um Artigo publicado pel’ O Mossoroense de 18 de
Novembro de 1971:

CARLOS WERNECK
“O Romance d ’ A Pedra do Reino , de Auro Schabino, é um livro
novo, fascinante, disparatado e poderoso. Muitos episódios que relata são
verdadeiros. Mas o Autor mistura-os com os de sua exclusiva criação, a
ponto de recriar a história do Brasil e invadir a do próprio Mundo, com
sua Mitologia particular.
“Mas, antes de falar do Livro, parece-me importante falar do
Autor, Auro Schabino. Quando começou o Movimento militar de 3 e 4 de
Outubro de 1930, o Prefeito de Assunção, João Canuto Schabino de
Savedra Jaúna, já tinha tomado partido contra ele. E foi assassinado no
dia 9. Auro Schabino, seu filho, estava com 7 anos de idade.
“Passam-se os anos, com sua vassoura de varrer ilusões, e não se
ouve mais falar dos Jaúnas, que enterraram seu morto. Mas, 25 anos
depois, surge uma Peça-de-Teatro que dá o que falar, o Auto d ’ A
Misericordiosa , escrito pelo irmão de Auro Schabino, Adriel Soares.
“O Auto d ’ A Misericordiosa é uma espécie de obra-prima. Mas foi
o Romance d ’ A Pedra do Reino o livro que realmente me surpreendeu,
logo a partir da fotografia do Autor, colocada no começo do Livro. Ali está
ele, então, o filho de João Canuto, cujo assassinato — praticado por um
desses instrumentos da Tragédia, um ser obscuro armado pelo ódio como
agente da fatalidade — tão profundamente marcou aqueles dias em que
se enraizou em mim, em golpes tão profundos, o interesse pelo drama do
meu País.
“Pelo que marcou em mim, avalio o que deve ter significado para
a família do Prefeito João Canuto. Ouvi dizer que, na formação das
crianças que lhe foram deixadas para criar, a Mãe, Dona Maria Carlota,
temente a Deus e corajosamente preocupada com o que seria a sorte dos
Filhos, preparou-os para o perdão. Contaram-me que ela disse: ‘Meus
Filhos, nada de vingança. A melhor desforra é Vocês terem uma vida séria
e bem realizada.’
“Disseram-me também que a formação de Auro Schabino foi
presidida por essa vocação tutelar de sua Mãe: como única vingança, o
esforço para ser alguém, para se alçar a um modelo acima do comum,
plasmado a partir da figura e do exemplo do Pai.
“Agora, na fotografia — de olhos baixos, rindo para si mesmo, a
testa alta, o cabelo escuro e cortado curto, as mãos magras, uma no
espaldar da cadeira de balanço, outra apoiando o rosto de nariz
comprido e boca fina, o rosto magro marcado de pregas, sob os olhos
ensombrados por sobrancelhas que dividem a cara em dois pedaços, o da
testa que pensa e o da face que sorri —, vejo Auro Schabino, o filho de
João Canuto e Dona Maria Carlota.
“Pouco sei de sua vida. Sei que é Católico e muito apegado à
Família. Terei de saber mais, para melhor entender a gênese de um Livro
como este, cuja importância desde logo avulta, escrito numa língua que
flui, que escorre, suculenta como sumo entre os dedos.
“Mas para melhor entender o Livro, será preciso situá-lo numa
perspectiva que não é a dos paralelos literários, das influências e
parentescos, e sim alguma coisa mais profunda, na qual a análise
literária seria apenas um instrumento para chegar ao fundo da questão.
“O fundo da questão é uma ânsia de fantasia no Mundo real,
desesperadamente real, em que as pessoas se esterilizam. Pois Auro
Schabino, ao realizar o voto de sua Mãe, parece que nos vinga a todos e
tira sobre os erros do Mundo uma tremenda desforra, representada nesse
Monumento à fantasia. Entremeado, todo o tempo, de símbolos e alusões,
de recordações e fantasmas, poço inesgotável de estudos analíticos, livro
de cabeceira para Psicólogos e Sociólogos, esse Romance é uma explosão
de maravilha. Não há que buscar nele o Folclore, o regional, o ocasional, o
circunstancial, e sim o universal, o permanente. Como em Dom Quixote :
na secura do Mundo, a invasão das águas, a enchente da imaginação que
repovoa o Mundo de mitos e devolve ao Ser-humano a ideia da Busca, da
procura de um sentido para a Vida além da Vida.”

DOM PANTERO
Meio escondido em meu Púlpito eu ouvia estas palavras como se
a mim mesmo — e não a Auro — elas fossem dirigidas. E, muito
comovido, ficara pensando em como tudo aquilo era importante para
mim: no meio da tristeza e solidão que cercavam minha vida, só
contavam, na verdade, aqueles momentos iluminados em que
conseguia compor no Palco a figura de Dom Pantero — o Personagem
central das nossas Aulas-Espetaculosas; porque naquela minha vida
árida, erma e solitária, o Palco (ou o Picadeiro-circense que, em meu
caso, o configurava) passara a ser a Fonte do Cavalo Castanho que me
possibilitava colocar-me à mesma altura do romance de Auro, da poesia
de Altino e dos espetáculos teatrais, dançarinos e musicais de Afra e
Adriel; isto é, no Palco tinham começado a brotar e correr para mim as
mesmas águas, sangrentas mas fecundas, do Riacho do Elo — águas
que, para meus irmãos, significavam o mesmo que a Cadência , para o
Mestre Vitalino; a Rabeca da Sabedoria , para o Cego Oliveira; o Sonho da
Casa , para Gabriel Joaquim dos Santos; o Córrego , para Nô Caboclo; e
as iluminosas projeções do Cine da Natureza para Luiz de Lira.
E, mesmo correndo o risco de me tornar repetitivo, atrevo-me a
recordar a bela declaração do Cego:

CEGO OLIVEIRA
“Quando moço, eu era bom demais. Hoje, estou Velho e vou
ficando meio distraído das coisas. Já esqueci muitos versos, mas ainda
toco e canto nas Romarias.
“Deus é todo-poderoso e é quem manda no destino de todos nós.
Acredito na vida do outro Mundo, mas ninguém sabe como ela é.
“Uma vez, na hora de esbarrar o Toque, cantei uma Despedida tão
bonita que uma Mulher disse: ‘Faz pena um Homem desse ter que morrer
um dia.’
“Mas eu não tenho medo da Morte: minha Rabeca é tocada
conforme o tom da Sabedoria.”

DOM PANTERO
O Auto d’A Misericordiosa e Romeu e Julieta eram Peças-de-
juventude; o Romance d ’ A Pedra do Reino e Hamlet , Obras-de-
maturidade; e eu esperava em Deus que A Ilumiara fosse, como Dom
Quixote , uma Obra típica da velhice de seu Autor.
Ao dizer isso, devo confessar outro fato que passou a me
acontecer desde que completei 70 anos. Até então eu era um Velho
animoso e bem-humorado, que só pensava no futuro, iluminado que me
sentia pela Obra projetada há tempo e cuja derradeira possibilidade de
ser feita estaria configurada no Simpósio Quaterna . Mas agora chegava à
conclusão de que meu tempo se esgotava e eu não conseguia levantar a
Obra que sonhava. Por outro lado, Vocês não podem ter ideia do
sofrimento que me empolgava ao me ver forçado a admitir: meu tempo
de juventude estava irremediavelmente morto e sepultado.
Sim, porque a partir de 1997 comecei a ser assaltado pela
irreparável saudade daquela época, quando o Mundo se descortinava
diante de mim como uma grande e estranha Caatinga iluminada pelo
Sol e cortada por Rios e Estradas; ora povoada por Águas cantantes,
Corolas selvagens e Urzes perfumadas, ora “ se contorcendo em Cactos
espinhosos e Esgalhos tortos, estorricados e flexuosos, no bracejar da
Flora agonizante ” (como diziam José de Alencar e Euclydes da Cunha).
Era essa “ Caatinga do Mundo ” que nós, Savedras, deveríamos
conquistar por meio da nossa Arte. E a cada tentativa que
empreendíamos, no Teatro, na Poesia, no Romance, era com a conquista
do Mundo, da cidadela da Arte e da Beleza que sonhávamos.
É por isso que, ainda hoje, não tenho condições de julgar o valor
(ou desvalor) de algumas das Músicas que nos empolgavam naqueles
dias de juventude; peças como o Adágio da Sonata ao Luar , de
Beethoven, Clair de Lune , de Débussy, O Cisne , de Saint-Saëns, a Pavane
, de Ravel, ou a Serenata da Suíte Italiana , de Stravinsky: elas me levam
às lágrimas porque eu mal saíra da adolescência quando as ouvi pela
primeira vez; e sempre que as ouço, é como se voltassem aqueles dias
em que o Mundo me aparecia como aquela vasta, bela, fascinante e
perigosa Caatinga que nossa Arte era chamada a conquistar. Efetuar-se-
ia a conquista com base num Castelo, ou Fortaleza, por meio do qual eu
ergueria um Mundo novo; um ousado Palimpsesto que, mesmo “
ultrajante ” (como, de acordo com Euclydes da Cunha, eram os traçados
pelos guerreiros do Arraial de Canudos), poderia ser colocado sem
desonra sobre os originais que o tinham deflagrado.

Foi também nesse tempo de juventude que, além da Música e da


Literatura, a paixão pela Dança começou a se apossar de mim. Lembro-
me da memorável temporada realizada no Recife por alguns integrantes
do Balé da Ópera de Paris . Nela, além de ver pela primeira vez o Prelúdio
da Tarde de um Fauno (dançado por um Bailarino chamado Roger
Fenonjois), fui atingido profundamente por O Cavaleiro da Rosa , de
Ricardo Strauss, peça dançada por uma Bailarina e um Dançarino, ele
conduzindo na mão uma Rosa vermelha, e ela como se fosse um Cisne-
fêmea de formas não angulosas — como normalmente são as das
Bailarinas —, mas sim arredondadas e voluptuosas. Os dois se
aproximavam um do outro, em movimentos de sedução e posse
repassados de grande sensualidade; no auge, ele chegava por trás e
abraçava a Mulher, fazendo a mão primeiro acariciar sua bela coxa e,
depois, espalmada, premir-lhe o ventre. Com isso, numa cena frontal,
víamos que a parte de trás dos belos quadris da Bailarina — quadris
que tinham passado a se mover horizontalmente num ritmo cada vez
mais vibrátil e possesso — era apertada contra o Fálus dele. E então,
sempre a mover os quadris como se eles fossem a cauda de um belo
Cisne-fêmea possuído pelo Macho, ela erguia, de lado, o rosto para ele,
que esmagava seus lábios com um beijo, clara representação do êxtase
final a que ambos tinham chegado.
Assim, naquela tarde de 9 de Outubro de 2000, eu combinara
com os organizadores do Simpósio: logo que Carlos Werneck acabasse
de falar, deveríamos apresentar um pequeno número de Dança, ao som
da adaptação que Antonio Madureira fizera, para Flauta, Violão, Violino
e Violoncelo, da Serenata incluída por Stravinsky na Suíte Italiana (por
ele composta sobre temas de Pergolese).
Aos Músicos — Madureira, Sergio Ferraz, Sebastian Poch e
Eltony Nascimento — vieram se juntar os Bailarinos: o primeiro par era
formado por Luziara, Contra-Mestra do Cordão-Encarnado , e Bruno
Alves dos Santos, misto de Mateus , Arlequim e Palhaço Sabido ; o
segundo, por Lucinda, Mestra do Cordão-Azul , e Natércio Santana —
Bastião , Pierrô e Palhaço Besta .
Esses quatro Bailarinos postaram-se de lado, formando uma
espécie de Guarda-de-Honra para o terceiro par, composto por mim e
por Maria Iluminada. Ela representaria o Sexo-feminino, na plena posse
de sua graça, beleza e juventude: desse modo seria, para mim, a
figuração de Liza Reis — único, puro e perdido Amor de minha vida.
Quanto a mim, quase não me movia, pois a idade avançada
impedia-me de agir de outra maneira: apesar de Dom Pantero, eu
continuava a ser aquele mesmo Velho que encarnava no Palco — um
solitário e melancólico Velho-de-Presepe ; eu mestrava os Jovens e, ao
mesmo tempo, sofrendo muito, via como eles ainda eram capazes de
viver a bela e poderosa paixão do “ Amor terrível ”; paixão que, naquele
momento de Dança e graças à encantação da Arte, fazia a figura de
Maria Iluminada perder cada vez mais os traços de Liza Reis e ganhar
os da Moça Caetana: era para seduzir-me e matar-me que ela se
travestia com o rosto e os modos de minha nunca esquecida Amada; e
agora de mim se aproximava com movimentos que na verdade eram
letais mas que volteavam ao meu redor como os da Bailarina em torno
do Cavaleiro — bela, jovem, radiosa, fascinadora, ao acenar-me com a
possibilidade de uma Morte prazerosa, feminina, compassiva e
acolhedora. E a tentação de a ela me entregar era ainda maior porque
Liza Reis me aparecera, pela primeira vez, num Palco como aquele em
que agora nos encontrávamos. Surgira-me emoldurada por uma auréola
que a iluminava e tocando Piano; e agora eu, numa extrema confusão de
sentimentos, via Liza na jovem Bailarina atual e descobria: enquanto eu
envelhecera terrivelmente, Liza continuava radiosamente bela e jovem.
Iluminada, por sua vez, sentia por mim apenas um carinhoso afeto. E
tudo isso evidenciava a terrível verdade: chegara o momento de me
retirar, dando vez aos jovens e verdadeiros Bailarinos que ali estavam e
aos quais cabia continuar a dança da Vida, enquanto eu
melancolicamente voltava à Cadeira de onde nunca deveria ter saído. E
a evocação era ainda mais dolorosa porque eu recordava: fora no Palco
de um Auditório como o do Teatro Savedra que eu ouvira pela primeira
vez Dona Carmem Câmara tocar a Serenata , enquanto eu, sentado na
Plateia ao lado de Liza Reis, inebriado por aquela música lunar (e mais
ainda pelo cheiro capitoso que se desprendia dos cabelos e do corpo de
minha Amada), me obrigava a prender o mais possível a respiração
para não perturbar meu enlevo e, ao mesmo tempo, para impedir que o
coração me pulasse do peito para a garganta sufocada.
Entretanto, ao notar que Dom Pantero corria perigo, Inez Viana,
Carlos de Souza Lima, Rosette Fonseca dos Santos e Maria Lopes
resolveram intervir para evitar que a melancolia e as recordações do
homem Antero Savedra prejudicassem a máscara corajosa do
Personagem que ali dominava o Palco; de modo que, quando me sentei
na Cadeira, os 4 entraram em cena, conduzindo aos ombros O Cálice do
Sangral .
Bruno, Natércio, Jáflis e Pedro Salustiano, entendendo o gesto,
apressaram-se a retomar sua função principal, cruzando a cena e
entrando para as Coxias com a Redoma aos ombros.
Quanto às Bailarinas, refizeram o Cortejo, e eu, cabisbaixo, saí
com elas do Palco.

Mas encontrei as Coxias em polvorosa por um acontecimento


que bem mostrava aonde, às vezes, podiam acabar as ideias que,
vestidas pela Arte, pareciam tão para além da Culpa nas palavras de Tio
Antero e de Quaderna. Eu sempre afirmara: aquilo que realmente
distingue o Ser-humano dos outros Animais não era a Razão, mas sim o
senso do Bem e do Mal — e era daí que vinham nossa grandeza e nossa
miséria. Ninguém podia acusar um Cavalo de ser um criminoso
perverso. Mas, em troca, nenhum Cavalo podia chegar a ser um São
Francisco ou Santo Inácio, a escrever A Divina Comédia ou o Dom
Quixote .
De modo semelhante, a sexualidade dos Animais era sempre
inocente. No Homem, podia ser elevada à espiritualidade de Santa
Teresa. Mas em pessoas comuns, o Sexo — a princípio versão menor do
êxtase sagrado — podia começar por carícias e sonhos poéticos e
terminar na realidade brutal do Pecado e do Crime.
Naquele dia, tudo isso ficou, de repente, claro para mim: porque,
enquanto, no Palco, nós nos despedíamos do Público, o Delegado, José
Fausto Martins, entrara, por trás, no Teatro e dera voz de prisão ao
nosso Bailarino, Natércio Santana — Paspalho , O Palhaço Besta :
segundo se apurara, fora ele o estuprador e assassino de Patrícia; e
todas as palavras que Fausto dissera sobre o velho pai de Biu Santeiro
tinham tido como objetivo apenas tranquilizar o criminoso sobre a
presença do Delegado no Teatro, evitando-se, assim, sua fuga.
Quando entrei, Natércio acabara de confessar o crime; e,
chorando, ajoelhado aos pés de seu amigo e parceiro Bruno — Tareco,
O Palhaço Sabido —, repetia, como um demente e com as duas mãos
postas, numa prece desesperada:

NATÉRCIO SANTANA
Acredite, Bruno, pelo amor de Deus acredite: eu não queria
matar Patrícia! Foi ela quem me chamou para a Sacristia, dizendo que
queria me mostrar uns sinaizinhos que tinha na barriga. Vi os sinais,
comecei a acariciá-los e juro a Você que, no começo, queria somente
ficar nesses carinhos.
Mas, de repente, comecei a ficar excitado e fui adiante. Ela ficou
assustada e pediu que eu parasse. Tentou fugir. Foi aí que segurei
Patrícia por trás, pelo pescoço, e fiz força até ela cair.
Daí em diante, fiquei cego, não sei mais nada, não me lembro
mais de nada! Só depois de tudo foi que vi que a pobrezinha estava
morta. Me perdoe, pelo amor de Deus e de Nossa Senhora!

DOM PANTERO
Bruno retirou as mãos com que tapava o rosto para não ver o
assassino e, olhando de lado, com lágrimas também lhe correndo pelas
faces, falou com voz surda e carregada:
BRUNO ALVES DOS SANTOS
Perdoar? Perdoar Você, que, além de fazer o que fez, ainda vem
culpar Patrícia pelo que aconteceu? Peça perdão a Deus, porque, quanto
a mim, quero que Você seja amaldiçoado e condenado ao fogo do
Inferno por toda a Eternidade!

DOM PANTERO
José Fausto Martins aproximou-se de Natércio e pegou-o pelo
braço para levá-lo preso. Ele não fez qualquer resistência. Mas,
detendo-se ainda um pouco antes de sair, voltou-se para o Padre
Manuel, que, consternado, via tudo aquilo; disse:

NATÉRCIO SANTANA
Padre Manuel, preciso de um favor seu: vá procurar aquele
Padre pecador de Campina Grande e peça a ele que venha falar comigo
na Cadeia, porque só a um Padre como ele é que terei coragem de me
confessar!

PADRE MANUEL
Acho que ele está suspenso de ordens, Natércio, e só pode
confessar alguém que esteja em situação extrema; como um agonizante,
por exemplo.

NATÉRCIO SANTANA
Agonizantes somos todos nós! Uma vez ouvi o senhor dizer, na
Igreja, que existe uma “ comunhão dos santos ” e que é dela que nos
valemos, nos momentos ruins, para compensar nossos erros.
Pois existe também uma “ comunhão dos pecadores ”. Todos os
que estão aqui participaram do meu crime! Todos nós vivemos esta “
comunhão dos pecadores ”, e é em nome dela que lhe fiz esse pedido, o
senhor possa atendê-lo ou não!

DOM PANTERO
José Fausto Martins saiu com Natércio. Eu, com o coração
pesado, depois de abraçar Bruno demoradamente, chorando com ele,
consegui afinal desprender-me; e, acompanhado por meu Cortejo
feminino, que chorava comigo, segui para o Camarim.
Chegando à porta dele, agradeci a Iluminada, Lucinda e Luziara.
Despedi-me das 3 e, sentando-me em frente ao Espelho, comecei a
refletir sobre o que acontecera. Via, mais uma vez, que somente
assumindo a máscara-e-persona de Dom Pantero é que eu podia
enfrentar a Fera sangrenta, culposa e insana do Mundo. Principalmente
porque, como acontecera a Quaderna, pelo caminho cada vez mais
perigoso que eu estava percorrendo (e sublinhados pela mesma Toada
desértica e modal que soava na Estrada de Matacavalos ), o que se ouvia
no Teatro, como que sussurrados por Cães, eram os latidos do Cachorro
e os uivos da Besta Fouva, da Besta Ladradora “ que errava por ali na
espera dolorosa de sua redenção ”.

Os ladridos provavam que, com o Espetáculo daquele dia, mais


uma vez eu falhara no meu propósito religioso, pessoal e político: não
me sobrepusera à Queda, não alcançara a Redenção; nada fizera para
ajudar na luta em busca daquele Reino luminoso de justiça e liberdade
que o Cristo anunciara. Pelo contrário: o que fizera até ali, o que vira
acontecer nas coxias do Teatro? Ao invés de, pelo menos no limitado
universo que era o nosso, ver os Atores abraçando-se fraternalmente
como filhos do mesmo Deus, vira a queda de um Ser-humano, meu
semelhante e meu irmão; e caíra com ele (porque no fundo de meu
coração sabia que, como ele próprio afirmara, seu Crime era de todos
nós).
Assim, o que me restava era pedir perdão do fundo das Trevas
em que caíra; e, mais uma vez, tentar, pela Obra, que Deus me
permitisse sobrepor-me à Queda e, pela luz da Estrela, alcançar a
Redenção.
Com um pano, comecei a remover “ a máscara da Face ”, a fim de
me libertar do honroso mas duro e pesado Dáimone , ao qual, no Palco,
servia de Cavalo. Habitualmente, era num misto de alívio e vacuidade
que executava a operação, para recuperar minha personalidade
confortável e cotidiana. Mas, daquela vez, ao começar a despojar-me da
Máscara, notei imediatamente que sua falta iria me fragilizar mais do
que em todas as ocasiões anteriores. Fui possuído por uma dolorosa
sensação de medo e sofrimento, de terror até. Acabara de descobrir: o
homem Mariano Jaúna estava muito perto da morte; já começara,
mesmo, a morrer, velho, desamparado, nu, humilhado pela tristeza, pela
solidão e, o que era pior, pela convicção de que jamais concluiria a Obra
que sonhara à altura do meu País e do meu Povo. Cheguei à fraqueza de
me indagar: não seriam aqueles Artigos publicados em pequenos
Jornais do interior nordestino as “ Novelas de Cavalaria ” que haviam
levado à loucura o Homem limitado e sem brilho que eu era,
convencendo-me de que seria capaz de escrever uma “ Obra-maior ”,
que significasse para o Brasil e para a Língua portuguesa o mesmo que
o Livro imortal de Cervantes para a Espanha? E em que fraude, em que
mentira, em que impostura eu não deixara, insensivelmente e aos
poucos, degenerar a vida que bondosamente recebera de Deus, com a
missão de aproximá-la o mais que me fosse possível da figura luminosa
do Cristo? Onde andariam agora o Retirante e sua Família, que eu vira
debaixo da Ponte? Em que recanto do Palco, em que beira da Estrada
estava agora — pisoteado, perdido, talvez irremediavelmente
dilacerado — o Pergaminho, escrito com minhas lágrimas e com meu
sangue, e no qual, no dia da minha volta a Taperoá, eu assumira o
compromisso de lutar em favor “ de todos aqueles que eram relegados
(pela injustiça, pela maldade, pela indiferença) para debaixo de todas as
pontes do Mundo ”? Lembrava-me de Policarpo Quaresma, que, preso,
desesperado, desiludido de seus sonhos fantásticos, pensava, à espera
de sua execução:
POLICARPO LIMA BARRETO QUARESMA
“Meu sacrifício fora inútil. Tudo o que nele eu punha de
pensamento não fora atingido. Passava por doido, tolo, maníaco, e a vida
se ia fazendo inexoravelmente, com a sua brutalidade e fealdade. O tempo
estava de morte e carnificina. Eu próprio iria morrer, naquela mesma
noite. Que tinha feito de minha vida? Nada. Levara toda ela atrás da
miragem da Pátria por amá-la e querê-la muito. Não teria levado a
minha vida norteado por uma ilusão? Como é que eu, tão sereno, tão
lúcido, envelhecera atrás de tal quimera?”

DOM PANTERO
Na expectativa de ser executado, era portanto esse desgosto — e
não o medo da Morte — que atormentava o grande sonhador
Quaresma. E ali, no Camarim, eu, parecido com ele (mas menos
corajoso, menos digno e menos puro), comecei a murmurar a prece que
de vez em quando me vinha aos lábios e ao coração: “ Meu Deus, no
momento em que me aproximo da Morte, não leve em conta as omissões,
as fraquezas e os feios pecados deste seu filho, mas sim o amor que
consagro à sua Mãe. E, pela intercessão da Medianeira de todas as
Graças, receba em seus braços a minha alma, para que, um dia, também
meu corpo, purificado, ressuscite para a Vida eterna; o que lhe peço em
nome de seu Filho, o Cristo, na unidade do Espírito Santo, por todos os
séculos dos séculos. Amém. ”

Mas, terminada a prece, de novo recordei Policarpo Quaresma,


que, à espera da Morte, pensava: o pior de tudo é que “ não se fizera
comunicar, nada dissera, que prendesse seu Sonho, dando-lhe corpo e
substância ”.
Era o fio de esperança que me restava: levar a termo a Obra que
prendesse meu Sonho, dando-lhe corpo e substância. Teria somente
que tomar cuidado para não chegar, como Quaderna, ao delírio de
julgar-me “ apto a escrever o maior dos livros, capaz de fazer enxergar o
Mundo com outros olhos ” — como afirmara Carlos de Souza Lima.
Então, por meio de Álvares de Azevedo, voltei a Dom Quixote:

ÁLVARES SCHABINO DE AZEVEDO


“Deus, que eu morra no Palco! Não me coroem de Rosas
infecundas a agonia! Que não doure o sonhar do Agonizante só o falso
Pincel da fantasia! Que eu nunca desanime: Dom Quixote, montado em
Rocinante, erguendo a Espada, nunca voltou de medo. Então, valente, que
à feia Morte eu nunca volte a cara.”

DOM PANTERO
E apressei-me a restaurar a Máscara, porque sabia: ao contrário
de mim, Dom Pantero era imortal; e só com sua roupa e seu Medalhão é
que eu poderia concluir o Simpósio. Se mantivesse sua Máscara, mesmo
que a Onça-da-Morte me armasse uma Emboscada, me encontraria no
Palco, na Estrada — montado em meu Cavalo Graciano e pronto para
enfrentar “ os desconcertos, as feiuras e as injustiças do Mundo ”. Como
afinal acontecera a Dom Quixote: não o de Cervantes, é claro, mas
aquele cujo fim eu forjara com base em Dom Pantero.
Então, abrindo a porta, chamei Felipe Santiago, a quem pedi:
dali por diante, além do Banheiro que já havia, ele deveria munir o
Camarim de uma Cama e uma pequena Mesa, nas quais eu pudesse
dormir, fazer minhas refeições e, toda noite, depois das sessões do
Simpósio, dar forma literária aos relatos que delas me trariam Gerson
Camarotti, Carlos Tavares e William Costa a partir de suas anotações.
Resolvera morar no Teatro; pois, mesmo que o bote de Caetana me
atingisse num momento fora do Espetáculo, eu poderia me arrastar até
o Palco para ali findar, morto mas não derrotado; pois a Morte só fora
capaz de me atingir estando eu naquele Local sagrado , com meu Circo,
em plena Viagem, em plena Estrada, em pleno exercício de minha Arte
imortal.
Wopia — Zofia — Sofia — Maria
DOXOLOGIA
AURO SCHABINO
Agora, só me resta ir para a Igreja. Subo a Ladeira. A Porta. A
escura Nave. Com o Livro aos ombros, vou como uma Ave de papel preto e
branco que esvoeja. Vazio, o Nicho, em ouro, ali chameja. Subo ao Altar.
No vão, perto da grade, deposito a futura Raridade. Vou ao Padre. Recebo
a minha Tença. E, em meio da geral indiferença, abandono — mais uma!
— esta Cidade.

JOSÉ LAURENIO DE MELO


“Coisas da mão esquerda. Um Homem, sentado na amurada do
cais, não pensa. Absorve, sem pesar nem relacionar. Tudo ficou por fazer.
A poesia, nenhuma. As palavras não me configuram. Me abandono a elas
para continuar o mínimo de mim mesmo. É claro que já não estou na
amurada. E que importa que esteja em algum lugar? Sei que estou vivo. A
mão que escreve me prova isto, me consola e me diverte.”
SAMARONE LIMA DE SAVEDRA
“Dou voltas ao Avesso, tocando o dorso da mesma Cicatriz. Como
um Cego no sereno, teimo em ver minha semelhança onde já não existe
Espelho amordaçado.”

JOÃO SOARES SARTIEF SCHABINO


“Provoco a ira da Besta. Ela salta e eu grito, os olhos do Anjo
vendados. Aquele que canta e, dançando, se revela à luz do Espelho, sou
Eu.”

DOM PANTERO
Uma vez, quando eu era bem menino, um Escorpião picou meu
calcanhar. Talvez por causa disso, “ têm, para mim, Visões de um outro
Mundo, as Noites luminosas, azuladas, quando a Lua aparece mais bonita
”.
Mas é verdadeira, também, a face reversa da Medalha: “ Têm,
para mim, Visões de um outro Mundo, as Noites perigosas e queimadas,
quando a Lua aparece mais vermelha. ”
Também talvez seja por causa disso que às vezes acordo no
meio da noite com o coração a ponto de me saltar do peito: acabara de
sonhar com um áspero e desolado Tabuleiro onde, por entre Pedras e
Cactos espinhosos, fosforesciam os olhos amarelos de Onças proféticas,
Leopardos cruéis, Tigres insones e Panteras extraviadas.
ALBANO CERVONEGRO
Pois é assim: meu Circo pela Estrada. Dois Emblemas lhe servem
de Estandarte: no Sertão, o Arraial do Bacamarte; na Cidade, a Favela-
Consagrada. Dentro do Circo, a Vida, Onça Malhada, ao luzir, no Teatro, o
pelo belo, transforma-se num Sonho — Palco e Prelo. E é ao som deste
Canto, na garganta, que a cortina do Circo se levanta, para mostrar meu
Povo e seu Castelo.
DOM PANTERO
E, com estes Versos, compostos em Martelo-Agalopado , aqui se
despede de Vocês, nobres Cavaleiros e belas Damas da Pedra do Reino,
este que é seu Soberano e seu companheiro de cavalgadas e Cavalaria,

Dom Pantero do Espírito Santo, Imperador (mas também


filho turvo, indigno e pecaminoso “do Amor que move o Sol
e as Estrelas ”).

Recife, 7. X. 1945
12. X. 2013
Dia de Nossa Senhora Aparecida,
Padroeira do Brasil
POSFÁCIO
Ricardo Barberena

“Uma vez, mandado pelo Jornal Vanguarda , de Caruaru, fui a


Arcoverde, onde assisti a uma Aula-Espetaculosa ministrada por Antero
Savedra e testemunhei o contraste entre o respeitoso silêncio que cercava
o Palco em certos momentos e as sonoras gargalhadas que assinalavam
outros.
“O motivador desses espasmos de comicidade e admiração era
Dom Pantero: naquela atmosfera de oralidade, impregnada de sentidos
mágicos e míticos, perpetuava-se um espírito poético, que introduzia um
Sertão sonhoso e brutal. Antero Savedra (ou Dom Pantero por ele)
instaurava uma enigmática territorialidade da qual emergiam Deuses e
Diabos, sob a lei do acaso e da fatalidade. Estes seres-ameaçadores
resultavam de uma imaginação que produzia sentidos desérticos e
espinhentos de uma terra-fera: o Reino sertanejo do delírio e do sacrifício.
Dom Pantero acabou desencadeando, no interior da Arte brasileira, uma
nova conceptualidade que navega entre Iluminogravuras, arabescos e
acordes de Rabeca. Vi que, ali no Palco, se configurava uma Epopeia
satírica e apocalíptica, constituída por alucinações e desventuras que
focalizavam a prometida volta de Dom Sebastião por meio de um banho
de sangue nas pedras do Reino sertanejo. Na crueza espinhenta e
indomada da ressurreição do Mito, nascia a esperança da contemplação
de um Reino presentificado por duas enormes Pedras onde pingos
prateados brilham ao Sol. Como Esfinges a serem decifradas, as Pedras
traziam consigo o mistério de uma metamorfose visceral: o fraco
tornava-se forte, o real tornava-se fantástico, a memória tornava-se
lenda. Assim, era preciso que ouvíssemos aquele pedregoso Discurso, que
brotava da tênue separação entre a anedota tragicômica e o lamento da
desesperança lírica. Os enigmas do Reino estavam camuflados nas Pedras
que resistiam ao Tempo, simbolizando a força de uma Cultura que,
formada pelo sangue dos seus Heróis, Profetas e Santos, permanecia
renovada no Espetáculo encenado por Dom Pantero. E foi por isso que,
como um Quixote sertanejo, ali em Arcoverde ele hipnotizou uma Plateia
de quase 2.000 pessoas, com a sua técnica de encantação que remonta
aos primórdios da expressão literária — a Arte oral de narrar histórias.

“Pois bem: terminada a Aula, Antero Savedra, com uma


amabilidade que não pode ser traduzida em palavras, convidou-me para
ir a seu Camarim, onde eu — e mais duas ou três pessoas — tivemos um
encontro que se prolongaria por quase duas horas. Com a força lírica da
contação de estórias, Savedra novamente encantou a todos nós. Num
momento de supremo magicismo, recitou o Poema Infância , de Paulo
Mendes Campos; e depois o Soneto, de igual título, publicado no Livro O
Pasto Incendiado , e que transcrevo a seguir (pois nele se fala sobre o que,
menino, ele sentiu ao ter o Pai assassinado):
INFÂNCIA
Com tema de MaxImIano Campos

Sem lei nem Rei, me vi arremessado, bem menino, a um Planalto


pedregoso. Cambaleando, cego, ao sol do Acaso, vi o Mundo rugir — Tigre
maldoso.
O cantar do Sertão, Rifle apontado, vinha malhar seu Corpo furioso.
Era o Canto demente, sufocado, rugido nos Caminhos sem repouso.
E veio o Sonho: e foi despedaçado. E veio a Morte: o Marco
ensanguentado, a luta extraviada e a minha Grei.
Tudo apontava o Sol: fiquei embaixo, na Cadeia em que estive e em
que me acho, a chorar e a cantar, sem lei nem Rei.

“Os olhos marejados e a voz embargada acabaram por


interrompê-lo. O silêncio, embebido em sagração, fez-se necessário.
Retomada a voz, comentou a importância da estética cervantina na
criação de sua Obra.
“Savedra traduz a simplicidade desértica de um grande homem
em dissonância com as encasteladas moradas dos ególatras e dos
medalhões que permeiam uma sociedade de ‘homens importantes’. Na
contramão aos ritos de soberba de uma mundanidade opressiva,
inscreve-se numa generosidade que transporta bondade, confiança e
sinceridade. Esse espaço pedregoso de Savedra evidencia um sopro de
esperança para todos nós; é possível ainda perceber a magnitude da
humildade numa sociedade-espetáculo. Deparamo-nos com o verdadeiro
e libertário exercício da alteridade. Desabrigando-se de possíveis
guaridas da cultura letrada, Savedra desvela uma infinita humanidade
ao buscar destituir-se de vestígios de uma centricidade das belas-letras.
Sua sublime simplicidade torna-se um impactante rebelo contra a
espetacularização de pseudocelebridades massificadas. Enquanto
Imperador da Pedra do Reino, o imortal Dom Pantero reinventa uma
poeticidade que faz brotar do Sertão-osso a intersubjetividade do
conversar e do ouvir o Outro.
“Incansável com sua Trupe, Antero Savedra já proferiu mais de
200 aulas pelo interior do Nordeste. Nesses privilegiados fóruns de
discussão, navega pelas idiossincrasias da identidade cultural brasileira.
Cabe ressaltar que o Movimento Armorial tem possibilitado uma reflexão
mítico-simbólica no tocante à migrância de imaginários plurais: a
heráldica medieval, brasões ibéricos, estandartes de maracatu, bandeiras
de futebol. O legado de Savedra permite que façamos uma discussão
sobre uma nacionalidade fragmentada que se apresenta imaginada a
cada reinvenção de uma tradição inacabada. Essa cosmovisão estética
acaba por metamorfosear uma simples mirada regionalista num
memorial popular sob a égide da decifração dos narrares nacionais. A
Epopeia savedriana, tecida em palavras-magma, produz constelações de
um viver na Pedra. Se as rochas contam a história da Terra, a escritura-
fabulação de Savedra narra uma territorialidade nacional encarnada no
cordel, no Teatro, no folhetim, nas Iluminogravuras, na falação sem dono.
“Há, ainda, uma questão fundamental que não podemos perder de
vista: a poética de Savedra. Segundo ele próprio, toda a sua Obra
descende diretamente de sua condição de Poeta. É na sua capacidade de
encantamento dos mitos do Reino do Sertão que repousa uma matéria
imaginante capaz de inserir na historiografia literária uma
potencialidade lírica popular: do Auto nordestino às mitificações
mediterrâneas. E é justamente aí que reside a poética savedriana. Ao
rechaçar os estereótipos da identidade nacional, o nosso Imperador da
Pedra-do-Sonho reconstitui uma estética quixotesca, movida pelo mar de
estórias da cultura brasileira. Fascinado pelo Circo, Savedra confessa que
se considera um Palhaço frustrado. Se o mundo circense pode ter perdido
muito, por outro lado o mundo literário ganhou um escritor que carrega
no olhar a ternura de um Palhaço chapliniano.”
CRONOLOGIA DE ARIANO SUASSUNA
1927
Nascimento de Ariano Vilar Suassuna, a 16 de junho, na cidade
da Paraíba (atual João Pessoa), capital do Estado da Paraíba. Oitavo dos
nove filhos do casal João Urbano Suassuna e Rita de Cássia Vilar
Suassuna, Ariano nasce no Palácio do Governo, pois seu pai exercia, à
época, o cargo de Presidente da Paraíba, o que equivale ao atual cargo
de Governador.

1928
A 22 de outubro, terminado o seu mandato, João Suassuna passa
o cargo de presidente a João Pessoa. A família Suassuna volta a seu
lugar de origem, o sertão da Paraíba, indo residir na fazenda Acauhan,
pertencente a João Suassuna e localizada no atual município de
Aparecida.

1929
Iniciam-se, na Paraíba, as dissensões políticas que antecedem a
Revolução de 30.

1930
Começa a luta armada, na Paraíba. O coronel José Pereira Lima,
líder político do município de Princesa e aliado de João Suassuna,
declara a independência do seu município, que passa a se chamar
Território Livre de Princesa, resistindo às investidas das tropas de João
Pessoa. A 26 de julho, o presidente João Pessoa, que se encontrava no
Recife, é assassinado por João Dantas. Entre os dias 3 e 4, rebenta a
Revolução de 30, na Paraíba. A 6 de outubro, João Dantas é assassinado
na Casa de Detenção do Recife. A 9 de outubro, João Suassuna, então
deputado federal, que viajara ao Rio de Janeiro para defender-se, junto
à Câmara dos Deputados, da injusta acusação de cúmplice no
assassinato de João Pessoa, é por sua vez assassinado, aos 44 anos de
idade, na Rua do Riachuelo, por um pistoleiro de aluguel, a mando da
família Pessoa.

1933
D. Rita, agora chefe da família Suassuna, muda-se para Taperoá,
sertão da Paraíba, ficando sob a proteção dos seus irmãos.

1934-1937
Em Taperoá, Ariano Suassuna estuda as primeiras letras,
primeiro em casa, depois na escola, com os professores Emídio Diniz e
Alice Dias. Assiste, pela primeira vez na vida, a um desafio de viola, uma
peleja travada entre os cantadores Antônio Marinho e Antônio
Marinheiro. Numa feira, assiste também, pela primeira vez, a uma peça
de mamulengo, o tradicional teatro de bonecos do Nordeste. Dona Rita,
em dificuldades financeiras, vende a fazenda Acauhan, para custear a
educação dos filhos.

1938-1942
Ariano Suassuna faz o curso ginasial no Colégio Americano
Batista, no Recife, em regime de internato, passando os períodos de
férias escolares em Taperoá. Seus primeiros mestres de literatura são
de Taperoá: os tios Manuel Dantas Vilar, “meio ateu, republicano e
anticlerical”, e Joaquim Duarte Dantas, “monarquista e católico”. O
primeiro lhe indica leituras de Eça de Queiroz, Guerra Junqueiro e
Euclydes da Cunha; o segundo, a leitura de Dom Sebastião , de Antero de
Figueiredo. Muitos dos livros que lê são encontrados na biblioteca
deixada por João Suassuna, que foi um grande leitor. Em 1942, a família
Suassuna fixa-se no Recife. A 30 de novembro de 1942, Ariano discursa
como Orador da Turma na solenidade de encerramento do curso
ginasial.
1943
Estuda no Ginásio Pernambucano (Colégio Estadual de
Pernambuco), no Recife. Torna-se amigo, no colégio, de Carlos Alberto
de Buarque Borges, que o inicia em música erudita e em pintura.

1945
Estuda no Colégio Oswaldo Cruz, no Recife, tornando-se amigo
do pintor Francisco Brennand, seu colega de turma. A 7 de outubro,
inicia-se na vida literária, com a publicação do poema “Noturno”, no
Jornal do Commercio , do Recife.

1946
Ingressa na tradicional Faculdade de Direito do Recife. Na
Faculdade, junta-se ao grupo que, liderado por Hermilo Borba Filho,
retoma, sob nova inspiração teórica, o Teatro do Estudante de
Pernambuco (TEP). Torna-se amigo do poeta e tradutor José Laurenio
de Melo. Organiza, com o apoio do Diretório Acadêmico de Direito, uma
apresentação de cantadores, levada ao palco do Teatro Santa Isabel, no
Recife, a 26 de setembro. Dá início à publicação dos seus primeiros
poemas ligados ao romanceiro popular nordestino, em periódicos
acadêmicos e suplementos de jornais do Recife.

1947
Baseando-se no romanceiro popular nordestino, escreve a sua
primeira peça de teatro, Uma Mulher Vestida de Sol . A peça, que não é
encenada, recebe, no ano seguinte, o Prêmio Nicolau Carlos Magno.

1948
Escreve a peça Cantam as Harpas de Sião , montada no mesmo
ano, pelo TEP, com direção de Hermilo Borba Filho e cenário e figurinos
de Aloisio Magalhães. A peça estreia a 18 de setembro, durante a
inauguração da “Barraca”, palco erguido no Parque Treze de Maio, no
Recife, sob inspiração do trabalho de García Lorca. O primeiro ato de
Uma Mulher Vestida de Sol é publicado na revista Estudantes , do
Diretório Acadêmico da Faculdade de Direito.

1949
A 6 de março, conclui a peça Os Homens de Barro , iniciada no
ano anterior.

1950
Escreve a peça Auto de João da Cruz , com a qual recebe o
Prêmio Martins Pena. Forma-se em Direito, pela Faculdade de Direito
da Universidade do Recife (atual Universidade Federal de Pernambuco).
Adoece de tuberculose, indo para Taperoá, à procura de bom clima para
se tratar.

1951
Em Taperoá, para receber sua noiva Zélia e alguns familiares
seus, que o foram visitar, escreve seu primeiro trabalho ligado ao
cômico, uma peça para mamulengo, intitulada Torturas de um Coração
ou Em Boca Fechada não Entra Mosquito , peça por ele mesmo montada,
com acompanhamento musical do “terno de pífanos” de Manuel
Campina. Converte-se ao catolicismo. É publicado, pela Livraria-Editora
da Casa do Estudante do Brasil, do Rio de Janeiro, É de Tororó –
Maracatu , primeiro volume da Coleção Danças Pernambucanas,
contendo o seu ensaio “Notas sobre a música de Capiba”.

1952
De volta ao Recife, trabalha como advogado no escritório do
jurista Murilo Guimarães. Escreve a peça O Arco Desolado , com a qual
participa de concurso organizado pela Comissão do IV Centenário da
Cidade de São Paulo.

1953
Escreve O Castigo da Soberba , entremez baseado num folheto
da literatura de cordel. Assina coluna literária no jornal Folha da Manhã
, do Recife.

1954
Escreve O Rico Avarento , entremez baseado numa peça
tradicional do mamulengo nordestino. Ministra curso de teatro no
Colégio Estadual de Pernambuco, dirigindo os estudantes numa
montagem de Antígona , de Sófocles, que ele mesmo traduziu, e cuja
estreia se dá a 9 de novembro, no Teatro Santa Isabel, com cenário e
roupagens de Aloisio Magalhães. Participa do grupo de artistas,
escritores e intelectuais que funda O Gráfico Amador (1954-1961),
importante movimento de artes gráficas sediado no Recife.

1955
A 24 de maio, estreia a sua tradução da peça A Panela , de
Plauto, montada pelo Teatro do Colégio Estadual de Pernambuco, ainda
sob sua direção, com cenário e roupagens de Aloisio Magalhães.
Escreve a peça Auto da Compadecida . Publica o poema Ode , em edição
de O Gráfico Amador, do Recife.

1956
Estreia, em abril, no núcleo do SESI de Santo Amaro, no Recife,
nova montagem de A Panela , de Plauto, sob sua direção, agora
encenada por um grupo de operários. A 14 de maio, dia do aniversário
do Colégio Estadual de Pernambuco, o grupo de teatro do Colégio
apresenta, sob sua direção, a peça em ato único O Processo do Cristo
Negro , que escreve num só dia, e que é, nas suas palavras, “uma espécie
de ‘facilitação’ do terceiro ato do Auto da Compadecida ”. É convidado
para ensinar Estética na Universidade do Recife (atual Universidade
Federal de Pernambuco) e abandona definitivamente a advocacia.
Escreve o seu primeiro romance, A História do Amor de Fernando e
Isaura , que permanecerá inédito até 1994. A 11 de setembro, o Auto da
Compadecida estreia no Teatro Santa Isabel, em montagem do Teatro
Adolescente do Recife, sob a direção de Clênio Wanderley e cenário de
Aloisio Magalhães. A partir de 12 de setembro, a convite de Mauro
Mota, passa a assinar coluna sobre teatro no Diário de Pernambuco.

1957
Casa-se, a 19 de janeiro, dia do aniversário de nascimento do
seu pai, com a artista plástica Zélia de Andrade Lima. Viaja para o Rio
de Janeiro, em lua de mel, e assiste à consagradora apresentação do
Auto da Compadecida no Primeiro Festival de Amadores Nacionais,
promovido pela Fundação Brasileira de Teatro e realizado no mês de
janeiro, no Teatro Dulcina. A peça é apresentada no dia 25, pelo mesmo
Teatro Adolescente do Recife, dirigido por Clênio Wanderley, e é logo
considerada pela melhor crítica do país uma obra-prima, recebendo a
Medalha de Ouro do Festival. De 10 de junho a 26 de julho, escreve a
peça O Casamento Suspeitoso . A 27 de julho, estreia, pelo Teatro
Amador Sesiano de Pernambuco, sob sua direção, a peça As Trapaças de
Escapim , de Molière, que ele próprio traduziu, com figurino assinado
por sua irmã, Germana Suassuna, e cenário de Juvêncio Lopes. A 30 de
setembro, nasce seu primeiro filho, Joaquim. Em outubro, o Auto da
Compadecida é publicado pela editora Agir. De 7 a 18 de novembro,
escreve a peça O Santo e a Porca .

1958
A 6 de janeiro, no Teatro Bela Vista, em São Paulo, estreia a peça
O Casamento Suspeitoso , em montagem da Companhia Nydia
Licia/Sérgio Cardoso, sob direção de Hermilo Borba Filho. Entre janeiro
e março, reescreve a sua primeira peça, Uma Mulher Vestida de Sol . A
peça O Santo e a Porca estreia no Teatro Dulcina, no Rio, a 5 de março,
em montagem da companhia Teatro Cacilda Becker, sob direção de
Ziembinski. De 12 a 13 de maio, reescreve a peça Cantam as Harpas de
Sião , mudando seu título para O Desertor de Princesa . Em junho,
encerra sua coluna teatral no Diário de Pernambuco . A 21 de julho, no
Teatro Santa Isabel, no Recife, é apresentada uma montagem do Auto de
João da Cruz , pelo Teatro do Estudante da Paraíba, sob a direção de
Clênio Wanderley, no âmbito do I Festival Nacional de Teatros de
Estudantes. A 4 de outubro, nasce sua filha Maria das Neves.

1959
Escreve a peça A Pena e a Lei , a partir do entremez Torturas de
um Coração , de 1951. Funda, com Hermilo Borba Filho, o Teatro
Popular do Nordeste (TPN). O Auto da Compadecida é publicado na
Polônia, na revista Dialog , em tradução de Witold Wojciechowski e
Danuta Zmij ( Historia o Milosiernej czyli Testament Psa ).

1960
A Pena e a Lei estreia a 2 de fevereiro, no Teatro do Parque, no
Recife, em montagem do TPN, sob direção de Hermilo Borba Filho. A 4
de outubro, nasce seu filho Manuel. Escreve a peça Farsa da Boa
Preguiça . Forma-se em Filosofia, pela Universidade Católica de
Pernambuco. O Auto da Compadecida é publicado em Portugal, na
Coleção Teatro no Bolso, impresso na Editora Gráfica Portuguesa, de
Lisboa, sem referência ao ano da edição.

1961
A Farsa da Boa Preguiça estreia a 24 de janeiro, no Teatro de
Arena do Recife, em montagem do TPN, sob a direção de Hermilo Borba
Filho, com cenários e figurinos de Francisco Brennand. A peça O
Casamento Suspeitoso é publicada pela Editora Igarassu, do Recife.
Escreve A Caseira e a Catarina , peça em um ato.

1962
A 25 de novembro, nasce sua filha Isabel. Publica, na revista
DECA , do Departamento de Extensão Cultural e Artística da Secretaria
de Educação e Cultura de Pernambuco, nº 5, a primeira parte da
Coletânea da Poesia Popular Nordestina: Romances do Ciclo Heroico .

1963
Publica, na revista DECA , nº 6, a segunda parte da Coletânea da
Poesia Popular Nordestina: Romances do Ciclo Heroico . O Auto da
Compadecida é publicado nos Estados Unidos, pela Editora da
Universidade da Califórnia, em tradução de Dillwyn F. Ratcliff ( The
Rogues’ Trial ).

1964
Publica, na revista DECA , nº 7, a terceira e última parte da
Coletânea da Poesia Popular Nordestina: Romances do Ciclo Heroico . As
peças Uma Mulher Vestida de Sol e O Santo e a Porca são publicadas pela
Imprensa Universitária da Universidade do Recife. A 21 de junho, nasce
sua filha Mariana. A 23 de dezembro, deixa o Teatro Popular do
Nordeste (TPN).

1965
O Auto da Compadecida é publicado na Holanda, pela fundação
Ons Leekenspel, de Bussum, em tradução de J. J. van den Besselaar ( Het
Testament van de Hond ), e na Espanha, pelas Edições Alfil, de Madrid,
em tradução de José María Pemán ( Auto de la Compadecida ).

1966
A peça O Santo e a Porca é publicada na Argentina, pelas edições
Losange, de Buenos Aires, em tradução de Ana María M. de Piacentino (
El Santo y la Chancha ), junto com a peça Lisbela e o Prisioneiro , de
Osman Lins, em tradução de Montserrat Mira ( Lisbela y el Prisionero ).
De 7 a 30 de março, escreve o romance O Sedutor do Sertão ou O Grande
Golpe da Mulher e da Malvada , inicialmente pensado como roteiro de
cinema. A 10 de junho, nasce sua filha Ana Rita.

1967
Recebe, da Assembleia Legislativa do Estado de Pernambuco, o
título de Cidadão de Pernambuco. Por indicação de Rachel de Queiroz,
torna-se membro fundador do Conselho Federal de Cultura.
1968
Torna-se membro fundador do Conselho Estadual de Cultura de
Pernambuco.

1969
O reitor Murilo Guimarães o nomeia diretor do Departamento
de Extensão Cultural (DEC) da Universidade Federal de Pernambuco.
Inicia, no DEC, os trabalhos que irão abrir caminho para o lançamento,
no ano seguinte, do Movimento Armorial. Estreia o filme A
Compadecida , do diretor George Jonas, primeira versão
cinematográfica da peça Auto da Compadecida .

1970
Recebe, a 3 de outubro, da Câmara Municipal de Taperoá,
Paraíba, o diploma de Cidadão Taperoaense. A 9 de outubro, data do
aniversário da morte de João Suassuna, conclui o Romance d’A Pedra do
Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta , que começara a escrever a
19 de julho de 1958, no dia do aniversário de sua esposa Zélia. Com o
concerto Três Séculos de Música Nordestina – do Barroco ao Armorial e
uma exposição de artes plásticas, é lançado oficialmente, a 18 de
outubro, na Igreja de São Pedro dos Clérigos, no Recife, o Movimento
Armorial, por ele idealizado para procurar uma arte erudita brasileira a
partir da cultura popular. O Auto da Compadecida é publicado na
França, pela Editora Gallimard, em tradução de Michel Simon-Brésil ( Le
Jeu de la Miséricordieuse ou Le Testament du Chien ) .

1971
A peça A Pena e a Lei é lançada, em junho, pela Editora Agir. Em
agosto, é publicado, pela Editora José Olympio, o Romance d’A Pedra do
Reino . Para o exemplar do editor, escreve a seguinte dedicatória:
“Mestre José Olympio: A única coisa que posso lhe dizer neste momento
é que a edição deste livro por você era um sonho meu. Estou, então, não
é alegre, não: é profundamente orgulhoso. Com o afetuoso abraço de
Ariano. Rio, 1. IX. 71”.
1972
Funda o Quinteto Armorial. O Romance d’A Pedra do Reino
recebe o Prêmio Nacional de Ficção, do Instituto Nacional do Livro –
INL/MEC. Deixa o Conselho Estadual de Cultura de Pernambuco.
Estreia, no Jornal da Semana , do Recife, na edição de 17 a 23 de
dezembro, uma página literária semanal, intitulada “Almanaque
Armorial do Nordeste”.

1973
Desliga-se do Conselho Federal de Cultura.

1974
A Editora José Olympio publica três de suas peças: em janeiro,
em volume único, O Santo e a Porca e O Casamento Suspeitoso ; em maio,
a Farsa da Boa Preguiça , ambos os volumes com estampas de Zélia
Suassuna. Encerra a publicação do “Almanaque Armorial do Nordeste”
no Jornal da Semana , na edição de 2 a 8 de junho. A Editora
universitária da Universidade Federal de Pernambuco publica O
Movimento Armorial , contendo a base teórica do Movimento lançado
em 1970. É publicado, pelas Edições Guariba, do Recife, o álbum Ferros
do Cariri: Uma Heráldica Sertaneja . A 1º de outubro, é dispensado, a
pedido, da direção do DEC/UFPE. Em dezembro, a Editora José Olympio
publica, em convênio com o INL/MEC, a Seleta em Prosa e Verso de
Ariano Suassuna , com estudo, comentários e notas de Silviano Santiago
e estampas de Zélia Suassuna, livro que será lançado no início do ano
seguinte.

1975
Publica Iniciação à Estética , pela Editora da Universidade
Federal de Pernambuco. A convite do prefeito Antônio Farias, assume o
cargo de secretário de educação e cultura do Recife. A 15 de novembro,
dá início à publicação de “Ao Sol da Onça Caetana”, primeiro livro da
História d’O Rei Degolado nas Caatingas do Sertão , em folhetim semanal
no Diário de Pernambuco . A 18 de dezembro, com a estreia, no Teatro
Santa Isabel, da Orquestra Romançal Brasileira, por ele fundada,
encerra-se a primeira fase do Movimento Armorial, chamada de
“Experimental”, iniciando-se a segunda, a fase “Romançal”.

1976
A 25 de abril, conclui os folhetins do primeiro livro de O Rei
Degolado , iniciando, a 2 de maio, a publicação do segundo, intitulado
“As Infâncias de Quaderna”, no mesmo Diário de Pernambuco . A 18 de
junho, estreia, no Teatro Santa Isabel, o Balé Armorial do Nordeste, por
ele idealizado, com direção e coreografia de Flávia Barros. É
inaugurada, a 26 de agosto, no Recife, no Casarão João Alfredo, a
exposição Os Dez Anos de Casa Caiada no Mundo do Armorial , com
tapetes criados a partir dos desenhos que realizou para ilustrar o
Romance d’A Pedra do Reino e a História d’O Rei Degolado . A exposição
segue para o Rio, sendo inaugurada no Museu Nacional de Belas Artes,
a 16 de dezembro. A 30 de dezembro, defende, na Universidade Federal
de Pernambuco, sua tese de livre-docência, intitulada A Onça Castanha e
a Ilha Brasil: uma Reflexão sobre a Cultura Brasileira , com a qual recebe
diploma de doutor em História.

1977
Publicação, em março, pela Editora José Olympio, do primeiro
livro da História d’O Rei Degolado nas Caatingas do Sertão , intitulado
“Ao Sol da Onça Caetana”. A 19 de junho, conclui a publicação dos
folhetins de “As Infâncias de Quaderna”. A 26 de junho, com o artigo “A
confissão desesperada”, passa a assinar coluna opinativa aos domingos,
no mesmo Diário de Pernambuco .

1978
A 31 de maio, é exonerado, a pedido, do cargo de secretário de
educação e cultura do Recife.

1979
O Romance d’A Pedra do Reino é publicado na Alemanha, edição
de Hobbit Presse/Klett-Cotta, de Stuttgart, em tradução de Georg
Rudolf Lind ( Der Stein des Reiches ).

1980
Lança o álbum de iluminogravuras Dez Sonetos com Mote Alheio
.

1981
Publica, no Diário de Pernambuco , a 9 de agosto, o célebre
artigo “Despedida”, encerrando a sua colaboração dominical com o
jornal e comunicando o seu afastamento da vida literária. Deixa de dar
entrevistas e de participar de eventos culturais, limitando-se à sua
atividade docente na Universidade Federal de Pernambuco.

1985
Lança o álbum de iluminogravuras Sonetos de Albano
Cervonegro .

1986
O Auto da Compadecida é publicado pela Editora Diá, de St.
Gallen/Wuppertal, em tradução alemã de Willy Keller ( Das Testament
des Hundes oder Das Spiel von Unserer Lieben Frau der Mitleidvollen ).

1987
Estreia o filme Os Trapalhões no Auto da Compadecida , baseado
em sua obra e dirigido por Roberto Farias. A 16 de junho, para
comemorar seu aniversário de 60 anos, intelectuais, artistas populares
e admiradores em geral promovem uma grande festa em frente à sua
residência, na rua do Chacon, no bairro de Casa Forte, no Recife.
Também por ocasião do seu aniversário, a Editora da UFPE lança a
plaquete Suassuna e o Movimento Armorial , de George Browne Rêgo e
Jarbas Maciel. Volta a escrever para teatro, com a peça As
Conchambranças de Quaderna .

1988
Em setembro, a peça As Conchambranças de Quaderna estreia no
Teatro Valdemar de Oliveira, no Recife, em montagem da
Cooperarteatro, com direção de Lúcio Lombardi e cenários e figurinos
de Romero de Andrade Lima.

1989
É publicada, pela Editora Record, do Rio de Janeiro, sua
tradução do livro The Revolution that Never Was ( A Revolução que
Nunca Houve ), do escritor norte-americano Joseph A. Page. Aposenta-
se do cargo de professor da Universidade Federal de Pernambuco, onde
lecionou Estética, História da Arte, Cultura Brasileira, Teoria do Teatro e
disciplinas afins.

1990
A 26 de abril, morre sua mãe, D. Rita Suassuna, aos 94 anos. A 9
de agosto, toma posse na Academia Brasileira de Letras (cadeira nº 32).
Filia-se, pela primeira vez na vida, a um partido político, o Partido
Socialista Brasileiro (PSB).

1991
A 26 de outubro, é publicada, na Folha de S.Paulo , uma extensa
entrevista concedida a Marilene Felinto e Alcino Leite Neto, anunciando
a escritura de um novo romance.

1992
O Auto da Compadecida é publicado na Itália, pela
Guaraldi/Nuova Compagnia Editrice, em tradução de Laura Lotti.

1993
É realizada, em São José do Belmonte, Pernambuco, por jovens
do município, a I Cavalgada à Pedra do Reino. A Editora Francisco Alves,
do Rio de Janeiro, lança o livro O Sertão Medieval: Origens Europeias do
Teatro de Ariano Suassuna , de Ligia Vassallo. A 1º de dezembro, toma
posse na Academia Pernambucana de Letras (cadeira nº 18).

1994
A 12 de julho, a Rede Globo de Televisão exibe o especial Uma
Mulher Vestida de Sol , baseado na sua primeira peça de teatro e dirigido
por Luiz Fernando Carvalho. A Editora Bagaço, do Recife, publica o seu
primeiro romance, A História do Amor de Fernando e Isaura , cujo
lançamento ocorre a 7 de outubro. A Editora da Universidade Federal
da Paraíba publica a Aula Magna , transcrição da conferência que
proferiu na instituição a 16 de novembro de 1992.

1995
A convite do governador Miguel Arraes, assume, a 1º de janeiro,
a Secretaria de Cultura de Pernambuco. A 28 de maio, participa, em São
José do Belmonte, da III Cavalgada à Pedra do Reino, agora organizada
pela Associação Cultural Pedra do Reino, que lhe confere o título de
Cavaleiro da Pedra do Reino. Em junho, apresenta o Projeto Cultural
Pernambuco-Brasil, por ele elaborado para nortear as ações da
Secretaria de Cultura, entre as quais se inclui a apresentação de “aulas-
espetáculo” contendo explicações “sobre a cultura brasileira popular e
erudita, com exibição de números de música e dança ou de imagens
ligadas à arquitetura, à escultura, à pintura etc.” A 30 de novembro, a
Universidade Federal de Pernambuco concede-lhe o título de Professor
Emérito. A 5 de dezembro, a Rede Globo de Televisão apresenta o
especial A Farsa da Boa Preguiça , baseado em sua peça, com direção de
Luiz Fernando Carvalho e cenários assinados por seu filho, Manuel
Dantas Suassuna.

1996
Escreve A História do Amor de Romeu e Julieta , peça em um ato,
a partir de um folheto de cordel. Com Antonio Madureira, que liderara o
Quinteto Armorial, funda o Quarteto Romançal, ligado à Secretaria de
Cultura de Pernambuco. A 26 de setembro, realiza, no Teatro do Parque,
no Recife, a “Grande Cantoria Louro do Pajeú”, aula-espetáculo em que
apresenta repentistas, em comemoração ao cinquentenário da cantoria
por ele organizada em 1946, enquanto estudante de Direito. A 14 de
novembro, estreia, no Teatro da Universidade Federal de Pernambuco, a
peça A História do Amor de Romeu e Julieta , montagem da Trupe
Romançal de Teatro, sob a direção de Romero de Andrade Lima, com
cenários de Manuel Dantas Suassuna e figurinos de Luciana Buarque.

1997
A 19 de janeiro, o suplemento “Mais!”, da Folha de S.Paulo ,
publica o texto da peça A História do Amor de Romeu e Julieta , ilustrado
com gravuras de J. Borges. A 15 de junho, um domingo, o Jornal do
Commercio , do Recife, publica caderno especial em homenagem aos
seus 70 anos. A 26 de agosto, é inaugurado, no Recife, o Teatro Arraial,
fruto do seu trabalho na Secretaria de Cultura, e cujo nome homenageia
o arraial de Canudos. A 20 de novembro, estreia, no Teatro do Parque,
do Recife, A Pedra do Reino , uma adaptação teatral do seu romance,
realizada por Romero de Andrade Lima, que também assina a direção,
com cenários de Manuel Dantas Suassuna. A 16 de dezembro, o artista
plástico Guilherme da Fonte inaugura, na Academia Pernambucana de
Letras, a exposição Mosaicos Armoriais , com trabalhos em granito e
mármore, realizados a partir dos seus desenhos. O Ministério da
Cultura lança o vídeo Aula-Espetáculo , com direção e roteiro de
Vladimir Carvalho, contendo um registro condensado da aula-
espetáculo que apresentou a convite do Ministério, na Universidade de
Brasília.

1998
Concebe e escreve o roteiro do espetáculo de dança A Demanda
do Graal Dançado , que estreia a 19 de março, no Teatro Arraial, com
coreografia de Maria Paula Rêgo e direção de arte e cenografia de
Manuel Dantas Suassuna. Elabora o roteiro musical para o espetáculo
de dança Pernambuco – do Barroco ao Armorial , cuja estreia ocorre a
22 de maio, no Teatro Arraial, com direção geral de Marisa Queiroga,
coreografias de Heloísa Duque e cenários e figurinos de Manuel Dantas
Suassuna. A 9 de setembro, é lançado, no Recife, o CD A Poesia Viva de
Ariano Suassuna , em que declama seus poemas sob fundo musical de
Antonio Madureira. O Romance d’A Pedra do Reino é publicado na
França, pelas edições Métailié, de Paris, em tradução de Idelette Muzart
Fonseca dos Santos ( La Pierre du Royaume ). É editado, em Portugal,
pela Aríon Publicações, de Lisboa, o seu ensaio Olavo Bilac e Fernando
Pessoa: uma presença brasileira em Mensagem ? , originalmente
publicado na revista Estudos Universitários , da UFPE, em 1966. A 31 de
dezembro, com o fim do governo de Miguel Arraes, deixa a Secretaria
de Cultura de Pernambuco.

1999
De 5 a 8 de janeiro, a Rede Globo de Televisão exibe os quatro
capítulos da minissérie O Auto da Compadecida , adaptação de sua peça
realizada por Guel Arraes, Adriana Falcão e João Falcão, com direção de
Guel Arraes. A 2 de fevereiro, estreia coluna semanal, às terças-feiras,
no jornal Folha de S.Paulo , na seção “Opinião”. A 19 de março, estreia,
no programa NE-TV:1a Edição , da Rede Globo, o quadro “O Canto de
Ariano”, apresentado semanalmente, às sextas-feiras. Ainda em março,
estreia coluna mensal na revista Bravo! , na seção “Ensaio!”. A Editora
da UFPE publica uma antologia de seus poemas organizada por Carlos
Newton Júnior. O Auto da Compadecida é publicado em bretão, na
cidade de Brest, França, em tradução de Remi Derrien. A Editora da
Unicamp lança o livro Em Demanda da Poética Popular: Ariano Suassuna
e o Movimento Armorial , de Idelette Muzart Fonseca dos Santos.

2000
A 27 de abril, recebe, em Natal, o título de Doutor Honoris Causa
da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Em junho, encerra sua
colaboração com a revista Bravo! . A 4 de julho, encerra a coluna que
vinha escrevendo na Folha de S.Paulo , às terças, para estrear a 10 de
julho, em novo formato e no mesmo jornal, às segundas, uma outra
coluna, que chama de “Almanaque Armorial”. É inaugurada, a 25 de
agosto, na unidade do SESC de Casa Amarela, no Recife, a exposição
Iluminogravuras , com exemplares dos dois álbuns lançados na década
de 1980. A 15 de setembro, estreia, nos cinemas, O Auto da
Compadecida , dirigido por Guel Arraes, filme montado a partir da
minissérie exibida no ano anterior. Toma posse, a 9 de outubro, na
Academia Paraibana de Letras (cadeira nº 35). É lançada, pela Editora A
União, de João Pessoa, a plaquete Ariano Suassuna , escrita pelo
jornalista José Nunes para a série histórica “Paraíba: Nomes do Século”.
A 6 de dezembro, é lançado, no Recife, no Forte das Cinco Pontas, o
número 10 da coleção Cadernos de Literatura Brasileira , do Instituto
Moreira Salles, dedicado à sua obra. A 26 de dezembro, é exibido, na
Rede Globo, o especial O Santo e a Porca , baseado em sua peça, com
roteiro de Adriana Falcão e direção de Maurício Farias.

2001
A 26 de março, encerra a publicação do “Almanaque Armorial”
na Folha de S.Paulo . A 31 de outubro, recebe, no Rio, título de Doutor
Honoris Causa, concedido pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro.

2002
É homenageado no carnaval do Rio de Janeiro pela escola de
samba Império Serrano, que desfila na Sapucaí com o enredo
Aclamação e Coroação do Imperador da Pedra do Reino Ariano Suassuna
. A 15 de maio, recebe, em Aracaju, título de Doutor Honoris Causa,
concedido pela Universidade Federal de Sergipe. A 16 de junho, por
ocasião do seu aniversário de 75 anos, o jornal A União , da Paraíba,
dedica-lhe um caderno especial, editado pelo jornalista William Costa.
A 29 de junho, em João Pessoa, recebe título de Doutor Honoris Causa,
concedido pela Universidade Federal da Paraíba. A 10 de agosto, recebe,
em Salvador, o Prêmio Nacional Jorge Amado de Literatura e Arte. A
Editora Palas Athena, de São Paulo, publica o livro O Cabreiro
Tresmalhado: Ariano Suassuna e a Universalidade da Cultura , de Maria
Aparecida Lopes Nogueira.
2003
Em maio, reescreve a peça Os Homens de Barro , cuja primeira
versão havia sido concluída em 1949. A 29 de setembro, recebe, em
Mossoró, título de Doutor Honoris Causa concedido pela Universidade
do Estado do Rio Grande do Norte. A 25 de novembro, na sede da
Academia Brasileira de Letras, no Rio, é lançado o documentário em
longa-metragem O Sertãomundo de Suassuna , do cineasta Douglas
Machado.

2005
A Editora Agir lança edição especial do Auto da Compadecida ,
em comemoração aos 50 anos da peça. A edição é ilustrada por Manuel
Dantas Suassuna e contém textos críticos de Braulio Tavares, Carlos
Newton Júnior e Raimundo Carrero. A 31 de julho, o jornal O Povo , de
Fortaleza, lança caderno especial sobre a sua obra, editado pela
jornalista Eleuda de Carvalho, antecipando as comemorações dos seus
60 anos de vida literária, completados a 7 de outubro. A 25 de agosto,
recebe, em Passo Fundo (RS), título de Doutor Honoris Causa,
concedido pela Universidade de Passo Fundo. A 25 de novembro,
recebe, no Recife, título de Doutor Honoris Causa, concedido pela
Universidade Federal Rural de Pernambuco. A Editora 7 Letras, do Rio
de Janeiro, lança Teatro e Comicidades: Estudos sobre Ariano Suassuna e
Outros Ensaios , de vários autores, com organização de Beti Rabetti. O
fotógrafo Gustavo Moura lança o livro Do Reino Encantado , com
fotografias inspiradas no sertão suassuniano.

2006
A 14 de março, ministra aula-espetáculo de abertura do ano
acadêmico, na Academia Brasileira de Letras, e participa, logo em
seguida, na Galeria Manuel Bandeira, da abertura da exposição Do Reino
Encantado: Iluminogravuras de Ariano Suassuna e fotografias de Gustavo
Moura , sob a curadoria de Alexei Bueno. A 13 de maio, é apresentado o
último programa do quadro “O Canto de Ariano”. A 25 de maio, recebe,
na Câmara Municipal de São Paulo, o título de Cidadão Paulistano.
Estreia em São Paulo, a 20 de julho, no Teatro Anchieta, do SESC, o
espetáculo A Pedra do Reino , adaptação para teatro do Romance d’A
Pedra do Reino e da História d’O Rei Degolado , realizada e dirigida por
Antunes Filho. A 21 de agosto, antecipando as comemorações dos seus
80 anos, a Universidade Federal de Pernambuco inaugura o Núcleo
Ariano Suassuna de Estudos Brasileiros (NASEB).

2007
A convite do governador Eduardo Campos, assume, a 1º de
janeiro, a Secretaria Especial de Cultura de Pernambuco. A 19 de
janeiro, comemora, com Zélia, filhos e netos, as suas Bodas de Ouro. A
23 de abril, por ocasião da abertura do 11º Cine PE, no Centro de
Convenções de Pernambuco, é exibido o documentário em longa-
metragem O Senhor do Castelo , do cineasta Marcus Vilar, sobre sua vida
e obra. Recebe, em Salvador, na Assembleia Legislativa, a 10 de maio, o
título de Cidadão Baiano. Por ocasião do seu 80º aniversário, recebe
uma série de homenagens. Em João Pessoa, é homenageado durante o
3º CINEPORT (Festival de Cinema de Países de Língua Portuguesa), de 4
a 13 de maio, com uma exposição de fotografias de Gustavo Moura. No
Rio de Janeiro, realiza-se, entre os dias 10 e 17 de junho, sob a
coordenação artística da atriz Inez Viana, o projeto Ariano Suassuna 80,
promovido pela Sarau Agência de Cultura Brasileira, com apoio da Rede
Globo. O projeto é iniciado com uma aula-espetáculo no Theatro
Municipal e segue com uma “Semana Armorial”, com extensa
programação de palestras, mesas-redondas, exposições, apresentações
musicais, exibição de filmes etc. De 12 a 16 de junho, a Rede Globo
exibe a minissérie A Pedra do Reino , em 5 capítulos, adaptação do seu
romance realizada por Luiz Fernando Carvalho, Luís Alberto de Abreu e
Braulio Tavares, com direção de Luiz Fernando Carvalho. A 14 de junho,
é lançado, no município de Floriano, durante uma “Semana de Arte
Armorial” promovida pelo Centro Federal de Educação, Ciência e
Tecnologia do Piauí, o documentário em média-metragem Ariano
Suassuna: Cabra de Coração e Arte ou O Cavaleiro da Alegre Figura , do
cineasta Claudio Brito. A 12 de julho, a Academia Brasileira de Letras
promove uma mesa-redonda em sua homenagem, no Salão Nobre do
Petit Trianon, com Moacyr Scliar, José Almino de Alencar e Carlos
Newton Júnior, seguida da abertura da exposição Ariano Suassuna, uma
fotobiografia , na Galeria Manuel Bandeira. De 18 a 30 de setembro,
realiza-se, em São Paulo, o projeto Ariano Suassuna 80 anos: o local e o
universal, também iniciado com aula-espetáculo do autor e com uma
extensa programação de palestras, exposições, mostra de filmes etc. De
29 a 30 de outubro, realiza-se, na Universidade Paris X – Nanterre,
França, o Colóquio Ariano Suassuna 80 anos, com conferências e mesas-
redondas sobre a sua obra. Ainda no âmbito das comemorações dos
seus 80 anos, são lançados três livros sobre a sua vida e a sua obra: ABC
de Ariano Suassuna , de Braulio Tavares, pela Editora José Olympio;
Ariano Suassuna: Um Perfil Biográfico , de Adriana Victor e Juliana Lins,
pela Editora Jorge Zahar; Ode a Ariano Suassuna , organizado por Maria
Aparecida Lopes Nogueira, contendo ensaios e depoimentos de vários
autores, pela Editora da UFPE. A 25 de setembro, recebe, na Câmara
Municipal de Natal, título de Cidadão Natalense. Em dezembro, a
Editora Paulistana, de São Paulo, lança Discurso e Memória em Ariano
Suassuna , com textos de vários autores e organização de Guaraciaba
Micheletti.

2008
É homenageado no carnaval de São Paulo pela escola de samba
Mancha Verde. A 20 de agosto, é lançado, no Rio de Janeiro, pela Editora
José Olympio, o Almanaque Armorial , coletânea de seus ensaios
organizada por Carlos Newton Júnior.

2009
A 21 de setembro, é lançado, em João Pessoa, o documentário
em média-metragem Ariano: Impressões , do cineasta Claudio Brito.

2010
A 10 de junho, recebe, em Fortaleza, título de Doutor Honoris
Causa, concedido pela Universidade Federal do Ceará. A 24 de agosto,
em Maceió, recebe o título de Doutor Honoris Causa, concedido pela
Universidade Federal de Alagoas. A 6 de outubro, no Recife, morre seu
filho mais velho, Joaquim, aos 53 anos. A 31 de dezembro, deixa a
Secretaria Especial de Cultura de Pernambuco.

2011
A Editora José Olympio publica sua peça Os Homens de Barro . O
artista plástico Alexandre Nóbrega lança o livro O Decifrador , ensaio
fotográfico realizado a partir das suas viagens para ministrar aulas-
espetáculo em diversas cidades do país. A 13 de agosto, na fazenda
Carnaúba, em Taperoá, sob a coordenação artística de seu filho, Manuel
Dantas Suassuna, dá início à execução da “Ilumiara Jaúna”, conjunto
escultórico em baixo-relevo que será descrito no Romance de Dom
Pantero no Palco dos Pecadores .

2013
A 17 de abril, o cineasta Claudio Brito lança mais um
documentário sobre a sua obra, o longa-metragem Ariano: Suassunas .
Começa a apresentar problemas de saúde. A 21 de agosto, é internado,
no Hospital Português, no Recife, devido a um infarto. A 4 de setembro,
recebe alta do hospital, para continuar tratamento de recuperação em
casa.

2014
É homenageado no carnaval do Recife pelo bloco O Galo da
Madrugada, comparecendo ao desfile. A 18 de julho, ministra, em
Garanhuns, Pernambuco, no âmbito do Festival de Inverno, aquela que
seria a sua última aula-espetáculo. A 21 de julho é internado, no
Hospital Português do Recife, vítima de acidente vascular cerebral
hemorrágico, morrendo a 23 de julho, de parada cardíaca. É sepultado,
no dia 24, no cemitério Morada da Paz, em Paulista, município da
Região Metropolitana do Recife. Deixa, inédito, entre outras obras, o
Romance de Dom Pantero no Palco dos Pecadores . É homenageado na
10ª Festa Literária Internacional de Pernambuco (FLIPORTO), que
acontece de 13 a 16 de novembro, em Olinda. A 19 de dezembro, o
Tribunal de Contas do Estado da Paraíba inaugura, em João Pessoa, o
Centro Cultural Ariano Suassuna, edifício projetado pelo arquiteto
Expedito Arruda, contendo auditório, salão de exposições, biblioteca
etc.

2015
A revista literária Hoblicua dedica número especial em sua
homenagem. A 4 de outubro, realiza-se em Taperoá, Paraíba, no âmbito
do IV Festival Internacional de Folclore e Artes do Cariri, mesa-redonda
em comemoração aos 60 anos do Auto da Compadecida , com
participação do ator Matheus Nachtergaele, do artista plástico Manuel
Dantas Suassuna e do escritor Carlos Newton Júnior.

2016
O condomínio de herdeiros de Ariano Suassuna assina contrato
para edição de toda a sua obra com a Editora Nova Fronteira, do Rio de
Janeiro.
DIREÇÃO EDITORIAL
Daniele Cajueiro

EDITORA RESPONSÁVEL
Janaína Senna

PRODUÇÃO EDITORIAL
Adriana Torres
André Marinho

FIXAÇÃO DE TEXTO E CRONOLOGIA DE ARIANO SUASSUNA


Carlos Newton Júnior

PESQUISA ICONOGRÁFICA
Mariana Suassuna
Ester Suassuna Simões

REVISÃO
Ana Grillo, Pedro Staite, Rachel Rimas, Eduardo Carneiro, Luíza Côrtes, Roberto
Jannarelli, Suelen Lopes, Olga de Mello, Frederico Hartje

DIREÇÃO DE ARTE
Manuel Dantas Suassuna

CAPA , PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO


Ricardo Gouveia de Melo

PRODUÇÃO DO E BOOK
Ranna Studio
Auto da compadecida
Suassuna, Ariano
9788520942833
208 páginas

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O "Auto da Compadecida" consegue o equilíbrio perfeito entre a tradição popular


e a elaboração literária ao recriar para o teatro episódios registrados na tradição
popular do cordel. É uma peça teatral em forma de Auto em 3 atos, escrita em
1955 pelo autor paraibano Ariano Suassuna. Sendo um drama do Nordeste
brasileiro, mescla elementos como a tradição da literatura de cordel, a comédia,
traços do barroco católico brasileiro e, ainda, cultura popular e tradições
religiosas. Apresenta na escrita traços de linguagem oral [demonstrando, na fala
do personagem, sua classe social] e apresenta também regionalismos relativos ao
Nordeste. Esta peça projetou Suassuna em todo o país e foi considerada, em
1962, por Sábato Magaldi "o texto mais popular do moderno teatro brasileiro".

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Box Todos os romances e contos consagrados
de Machado de Assis
Assis, Machado de
9788520941133
1632 páginas

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O primeiro volume do boxe Todos os romances e contos consagrados contém os


quatro romances iniciais de Machado de Assis, que compõem o que se
convencionou chamar de fase romântica do escritor: Ressurreição, A mão e a
luva, Helena e Iaiá Garcia. No segundo volume, as obras-primas de Machado de
Assis, que para muitos críticos representariam a introdução do realismo no Brasil:
Memórias póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba e Dom Casmurro. O terceiro
volume é composto pelos dois últimos romances escritos pelo Bruxo do Cosme
Velho — em que aparece a figura do conselheiro Aires, espécie de alter ego do
escritor — e por uma seleção dos seus contos mais famosos.

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A pátria de chuteiras
Rodrigues, Nelson
9788520938188
136 páginas

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"Já descobrimos o Brasil e não todo o Brasil. Ainda há muito Brasil para descobrir.
Não há de ser num relance, num vago e distraído olhar, que vamos sentir todo o
Brasil. Este país é uma descoberta contínua e deslumbrante."Nelson
RodriguesNelson Rodrigues marcou um lugar indiscutível, revolucionário no
teatro. No entanto, o Nelson cronista, o comentarista de futebol, não é menos
importante. Nelson Rodrigues foi o escritor brasileiro que "leu", "releu" nosso país
pelo campo, pela bola, pelos craques. Ele viu e compreendeu, antes de todos, a
grandiosidade da nossa pátria. Defendeu a nação com uma paixão pura.
"Anunciou", "promoveu", "profetizou" a força do Brasil.

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O que é arte?
Tolstói, Leon
9788520941188
248 páginas

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Sucesso nos anos 2000, a Coleção Clássicos Ilustrados está ganhando nova vida
pelas mãos da Nova Fronteira. Marcando esse retorno, chega às livrarias a
versão repaginada de O que é arte?, que traz a polêmica visão de Leon Tolstoi.
Durante as décadas em que ficou famoso pelos clássicos Guerra e paz e Anna
Karenina, Tolstoi também desfrutou de notoriedade como sábio e pregador.
Escreveu vários ensaios sobre temas ligados à justiça social, à religião e à
moralidade, que culminaram no livro O que é arte?. As obras de diversos artistas
e mesmo seus próprios livros são duramente questionados no curso de sua
apaixonada redefinição da arte como força propulsora do bem, da fraternidade, da
ética e do progresso do homem. O texto é entremeado por imagens que ajudam
na compreensão do que é abordado. Um clássico imperdível.

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Somos o Brasil
Rodrigues, Nelson
9788520938218
128 páginas

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Graças à seleção, descobrimos o Brasil. Tenho um amigo que é um dos tais


brasileiros rubros de vergonha. Dizia-me: — "Junto da europeia, a nossa
paisagem faz vergonha." Mas ele dizia isso porque jamais olhara a nossa
paisagem. O escrete, porém, derrotou o seu esnobismo hediondo. Depois da
vitória sobre a Bulgária, ele viu, pela primeira vez, o Cristo do Corcovado. E veio
me dizer, de olho rútilo: — "Parece que temos aí um morro que promete, um tal de
Pão de Açúcar!"Thanks to the soccer national team, we discovered Brazil. I have a
friend who is one of such Brazilians who are crimson with shame. He told me: —
"In comparison with the European landscape, ours is a shame." But he said that
because he had never looked at our landscape. The team, however, defeated its
heinous snobbishness. After the victory over Bulgaria, he saw, for the first time, the
Christ of Corcovado. And he came to tell me, with bright eyes: — "It seems that we
have here a promising hill, the Sugarloaf Mountain!"EDIÇÃO BILÍNGUE
/BILINGUAL EDITION

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