A Paixão de Cleopatra
A Paixão de Cleopatra
A Paixão de Cleopatra
Conteúdo
PRIMEIRA PARTE
Capítulo 1: Arredores do Cairo
Capítulo 2: Veneza
Capítulo 3: Alexandria
Capítulo 4: Chicago
Capítulo 5: Paris
Capítulo 6
Capítulo 7: Monte Carlo
Capítulo 8
Capítulo 9: Mar Mediterrâneo
SEGUNDA PARTE
Capítulo 10: SS Orsova
Capítulo 11: Twentieth Century Limited
Capítulo 12: SS Orsova
Capítulo 13: Londres
Capítulo 14
Capítulo 15: Cornualha
Capítulo 16
Capítulo 17: RMS Mauretania
Capítulo 18: SS Orsova
Capítulo 19: Havilland Park
Capítulo 20
Capítulo 21: Propriedade Rutherford
Capítulo 22: Yorkshire
Capítulo 23: Propriedade Rutherford
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
TERCEIRA PARTE
Capítulo 27: Cornualha
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30: Havillad Park
Capítulo 31: Cornualha
Capítulo 32
Capítulo 33: Havillad Park
Capítulo 34: Cornualha
Capítulo 35: Havillad Park
Capítulo 36
Capítulo 37
Capítulo 38
Capítulo 39: Cornualha
Capítulo 40
Capítulo 41
Capítulo 42: Propriedade Rutherford
Capítulo 43
QUARTA PARTE
Capítulo 44: Yorkshire
Capítulo 45: Cornualha
Capítulo 46: Ilha de Skye
Epílogo
Os autores
RAMSÉS, O MALDITO:
A paixão de Cleópatra
LIVRO DIGITAL DISPONIBILIZADO PELO GRUPO ANNE RICE BRASIL, JANEIRO DE 2021.
Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e incidentes são produto da imaginação dos autores ou
são usados ficticiamente. Qualquer semelhança com pessoas reais, vivas ou mortas, eventos ou locais é mera
coincidência.
Chame-me de Ramsés, o Maldito. Pois este é o nome que me dei. Mais um dia eu fui Ramsés, o
Grande, do Alto e do Baixo Egito, matador dos hititas. Pai de muitos filhos e filhas, que
governou o Egito por sessenta e quatro anos. Meus monumentos ainda estão de pé; a estela
reconta minhas vitórias, embora mil anos tenham se passado desde que eu, como uma criança
mortal, fui tirado do ventre.
Ah, momento fatal agora enterrado pelo tempo, quando, das mãos de uma sacerdotisa hitita
tomei o elixir. Seus avisos não considerei. A imortalidade eu desejava. Então bebi o veneno do
cálice transbordante...
...Como posso continuar carregando este fardo? Como posso ainda suportar a solidão? Mas
não posso morrer...
Assim escreveu um ser que afirmava ter vivido mil anos, dormindo na escuridão
quando os grandes reis e rainhas de seu reino não precisavam dele, sempre pronto para
ser ressuscitado e oferecer sabedoria e conselho, até que a morte de Cleópatra e do
próprio Egito levou-o a um descanso eterno.
O que o mundo poderia fazer com essa estranha história, ou com o fato de Lawrence
Stratford, o descobridor do mistério, ter morrido na própria tumba no momento de seu
maior triunfo?
Julie Stratford, filha do grande egiptólogo e única herdeira da fortuna da Companhia
de Navegação Stratford, trouxe a controversa múmia, junto com os misteriosos
pergaminhos e venenos, a Londres para homenagear a descoberta de seu pai através de
uma exposição privada em sua casa em Mayfair. Depois de alguns dias, Henry, o primo de
Julie, fez um frenesi de declarações alegando que a múmia havia se levantado de seu
sarcófago e tentado assassiná-lo, e boatos da maldição da múmia deixaram os londrinos
estupefatos. Antes que os rumores acabassem, Julie apareceu em público com um
misterioso egípcio de olhos azuis chamado Reginald Ramsey, e os dois viajaram de volta
para o Cairo na companhia de seus queridos amigos Elliott, o Conde de Rutherford; seu
filho, Alex Savarell, e o aflito Henry.
Mais eventos chocantes aconteceram.
Um corpo não identificado roubado do Museu do Cairo, assassinatos horríveis entre
os lojistas europeus da cidade e o próprio Ramsey procurado pela polícia do Cairo, bem
como o desaparecimento de Henry. Finalmente, uma tremenda explosão deixou várias
testemunhas perplexas e Alex Savarell em desespero, chorando por uma mulher anônima
que fugiu aterrorizada da Ópera do Cairo levando seu carro até os trilhos de onde um trem
se aproximava.
Em meio ao caos e ao mistério, Julie Stratford emergiu como a noiva devotada do
enigmático Reginald Ramsey, viajando pela Europa com seu amado enquanto na
Inglaterra a família Savarell tentava entender o exílio do Conde de Rutherford e a aflição
de seu filho Alex pela perda trágica da mulher falecida nas chamas no deserto egípcio. Os
rumores desapareceram; os jornais viraram a página.
No início de nossa história, a propriedade rural do Conde de Rutherford em breve
sediará a festa de noivado entre Reginald Ramsey e Julie Stratford, enquanto ecos da
história do imortal Ramsés, o Maldito e seu elixir lendário, são ouvidos em todos os
lugares, embora seu corpo mumificado, trazido a Londres com tanto alarde, está há muito
desaparecido.
Como posso continuar carregando este fardo? Como posso ainda suportar a solidão? Mas
não posso morrer. Os venenos dela não podem me fazer mal. Conservam meu elixir para que
eu possa ainda sonhar com outras rainhas, boas e sábias, para partilhar os séculos comigo.
— RAMSÉS, O MALDITO.
3600 a. C.: Jericó
O jovem médico nunca havia conhecido uma mulher tão encantadora como aquela que
agora se deitava sob ele. Seu desejo era insaciável. Sua fome por ele parecia uma fome
pela própria vida.
Quando fora chamado ao quarto dela dias antes, foi-lhe assegurado que sua morte era
iminente. "Queimada da cabeça aos pés", lamentaram as enfermeiras. O corpo dela havia
sido retirado de debaixo dos caixotes no fundo de um vagão de carga. Não havia como
dizer quem ela era ou de quão longe havia sido carregada pelo trem. Ou como diabos ela
ainda estava viva.
Mas quando levantou o mosquiteiro, ele a encontrou sentada na cama, tão linda que
era quase doloroso olhá-la. As feições intactas dela eram primorosamente proporcionais.
Seu cabelo ondulado, repartido ao meio, formando uma grande pirâmide de escuridão em
cada lado de sua cabeça. Palavras como sina e destino vieram à mente. Ainda assim, ele
ficou instantaneamente envergonhado de como a visão dos seus mamilos sob o lençol
deixaram-no excitado.
— Você é um homem muito bonito — sussurrou ela.
Seria ela um anjo caído? De que outra forma explicar a recuperação física milagrosa?
De que outra forma explicar a total ausência de dor ou desorientação? Mas, então, havia
o seu sotaque. Britânico perfeito e refinado. E quando ele perguntou se ela tinha algum
amigo, qualquer pessoa que ele pudesse contatar, ela dissera a coisa mais estranha: Eu
tenho amigos, sim. E compromissos a cumprir. E contas a acertar.
Mas ela não fez mais nenhuma menção a esses amigos nas horas depois que ele a levou
para longe daquele pequeno posto avançado na fronteira do Sudão. Horas em que ele
havia se jogado em seus braços; cavalgado as serpenteantes ondulações de seu corpo
imaculado de pele dourada.
A princípio, ela insistiu que fossem para o Egito. Quando lhe perguntou se esses
amigos que ela havia mencionado podiam ser encontrados na terra dos faraós, ela havia
dito simplesmente: “Eu tive muitos amigos no Egito, doutor. Muitos.” E o sorriso dela o
desarmou mais uma vez.
No Egito, declarou, ela revelaria mais de seu mistério.
No Egito, ela lhe daria uma ideia de como era possível ficar sem dormir, consumir
grandes quantidades de comida a qualquer hora sem ganhar um quilo. Como ela podia
fazer amor com uma paixão avassaladora que nunca a cansava nem um pouco. E talvez
também oferecesse alguma explicação sobre o azul deslumbrante de seus olhos, tão raro
em uma mulher de aparência mediterrânea.
Mas ela compartilharia com ele o detalhe mais importante de todos?
Ela lhe diria seu nome?
— Theodore, — ele sussurrou para ela.
— Sim, — ela respondeu. — Seu nome é Dr. Theodore Dreycliff. Um bom médico
britânico.
Apesar do tempo que haviam passado juntos, ela disse essas palavras como se fossem
vagamente familiar. Como se contivessem fatos dos quais ela precisava ser
constantemente lembrada.
— Não muito bom aos olhos de meus colegas, tenho certeza —, disse ele. — Um bom
médico não abandona seu hospital sem explicação. Não foge repentinamente com uma
bela paciente.
Ela não recebeu esse comentário com a risada indulgente que ele teria esperado de
uma daquelas mulheres terrivelmente chatas de Londres com quem seus pais desejavam
que ele se casasse. Ela apenas olhou para ele em silêncio. Talvez ela realmente não tenha
entendido, ou talvez sentisse que havia mais nessa história que ele também não tinha
compartilhado.
Dreycliff não tinha boa reputação, isso era certo. Ele havia feito um bom trabalho
naquele pequeno posto avançado no Sudão, mas havia sido um terrível erro juvenil que o
havia banido para lá anos antes. Recém-saído da faculdade de medicina e desesperado
para provar-se competente para seus colegas mais velhos, ele não fez as perguntas que
deveria ter feito durante as primeiras semanas de prática. Como resultado, faltou pouco
para aleijar uma paciente ao prescrever uma quantidade obscenamente inapropriada de
medicamento.
Inapropriada, não foi exatamente a palavra que seus colegas usaram. Imprudente.
Criminosa. O centro médico foi poupado da ruína apenas pela boa graça de Deus. Eles o
haviam criticado por colocar sua vaidade acima das necessidades de um paciente. E só
concordaram em não denunciá-lo, se ele fizesse uma destas duas coisas: abandonar a
prática da medicina ou deixar Londres.
Que triste satisfação ele sentiu pela maldita hipocrisia deles. Pouco lhes importava se
ele machucasse ou não um paciente em algum canto remoto do mundo, contanto que as
repercussões não viajassem por todo império e lhes batesse à porta.
Quanta vaidade, ele pensou na época.
Foi assim que ele acabou exercendo a medicina no que seus antigos colegas de
faculdade chamavam desdenhosamente de África mais negra. Ele tinha chegado como um
homem diferente, impetuoso e arrogante, mas também mimado e mal acostumado. A
África o havia mudado, havia lhe mostrado as fraquezas e limites do Império Britânico,
mostrado- lhe experiências milagrosas para as quais a igreja cristã de sua juventude não
tinha explicação ou mesmo nome.
Igualmente ela. Na verdade, era mais fácil pensar nela como uma experiência do que
como uma pessoa.
A palavra “pessoa” era muito comum para descrever a impossibilidade mágica de ela
estar viva.
E, no entanto, mesmo enquanto estavam enroscados nos membros nus um do outro,
ela com uma expressão radiante de êxtase, os pensamentos de Theodore ainda estavam
ocupados pelo segundo e talvez insuperável escândalo que ele certamente havia
desencadeado com sua repentina ausência do hospital.
Uma modesta quantia de dinheiro foi o suficiente para salvar sua pele da primeira vez,
cobrindo sua viagem ao Sudão e suas despesas de manutenção nos meses após sua
chegada. Agora ele não tinha certeza de qual seria o custo exato para sua reputação
profissional. Ou se poderia bancá-lo. Não havia como voltar para sua família. Depois de
contabilizar as despesas desta viagem, havia sobrado muito pouco para viver. Dois
automóveis alugados, um para as tendas e suprimentos, outro para os dois, e um
motorista para cada um. Comida e água suficientes para alguns dias. Ou não, se o apetite
de sua bela companheira não diminuísse em algum momento. E dinamite. Várias
ameaçadoras bananas de dinamite.
Mas ela havia prometido a ele, prometido a todos, que tudo o que encontrassem no
final desta jornada pelo deserto seria o suficiente para pagar todas as suas dívidas,
presentes e futuras.
No silêncio que se seguiu, as abas da tenda estremeciam com o vento do deserto. Ele
podia ouvir a risada distante dos motoristas, que haviam sido instruídos a manter uma
distância respeitosa da tenda. Até agora, eles obedeciam.
—Teddy —, ela sussurrou, acariciando sua bochecha com as pontas dos dedos.
Ele ficou tão surpreso com esse toque repentino que se assustou.
—Logo eu devo dizer-lhe o meu nome —, sussurrou ela.
ELE SE SENTIA UM MENINO tolo por tapar os ouvidos com os dois dedos. Mas nunca antes
esteve tão perto de uma explosão. Ele não tinha ideia do que esperar.
Sua bela companheira não demonstrou medo enquanto observava os homens
desaparecerem entre os montes à frente, com pavios de dinamite nas mãos.
Diante deles estava uma ilha de torres de arenito em erosão. Elas formavam uma vaga
estrutura em torno de um monte alto de areia dourada. Teddy sabia muito pouco sobre as
escavações arqueológicas do Egito, exceto que elas espalhavam uma fileira de tendas pela
paisagem. Ali não havia sinais de qualquer escavação.
Eles estavam a dois dias de carro do Cairo. No meio do nada, aparentemente. No
entanto, ela os havia conduzido até ali com total confiança, simplesmente observando as
estrelas. E agora, enquanto os homens corriam pela areia, rastilhos acesos jogados no
caminho, o corpo dela se retorcia com uma tensão quase sexual.
Teddy pressionou os dedos com mais força nos ouvidos.
Os homens, ainda correndo, tapavam as orelhas com as palmas das mãos. A explosão
enviou uma onda de choque tremulante pela areia e aos seus pés. Uma nuvem de fumaça
se ergueu alto no ar. Ela se pôs a bater palmas. Batia palmas e sorria como se a dinamite
contivesse uma magia tão poderosa quanto a que ele percebia emanando dela.
Assim que a fumaça se dissipou, Teddy pôde ver que um lado do monte havia
desaparecido. Uma porta de pedra foi perfurada pela explosão, seus restos despedaçados
espalhados como dentes podres.
Ninguém havia mexido naquele solo há muito tempo, e ela sabia a localização exata
daquele templo enterrado.
Os homens egípcios recuaram.
Eles estavam certos em ter medo?
Recentemente os jornais haviam publicado muitas fofocas. Um magnata de uma
poderosa companhia de navegação britânica havia descoberto a tumba de uma múmia,
cheia de inscrições proclamando ser o local de descanso final de Ramsés, o Maldito. No
interior também fora encontrado móveis romanos e uma estátua que supostamente
representava Cleópatra, a última rainha do Egito.
O caso todo era uma loucura completa, sustentavam os jornalistas. Ramsés II governou
mil anos antes do reinado de Cleópatra. E seu corpo estava no Museu do Cairo. Todo
mundo sabia disso!
No entanto, quando o homem que descobriu a tumba de repente caiu morto dentro de
suas paredes antes enterradas, rumores sobre maldições antigas tomaram a dianteira nas
discussões acadêmicas. O corpo da múmia havia sido despachado para Londres, segundo
a última notícia que havia lido, a pedido da filha do falecido arqueólogo. Seu sobrenome
era Stratford, ele se lembrava agora. Onde ela colocara a múmia?, ele se perguntava. Em
sua sala de estar? Que macabro! Obviamente ela não temia nenhuma maldição da múmia.
Talvez não fosse uma maldição que os homens ao seu redor temessem agora, mas a
mulher que os trouxera a este lugar.
Sua lanterna mal atravessava a escuridão do interior. Ela caminhava longe o suficiente
para apenas permanecer dentro do halo de luz. Mas parecia ansiosa para enfrentar a
escuridão, ele sabia. Esta cripta, mesmo na escuridão absoluta, era totalmente familiar
para ela.
Quando a luz de sua lanterna iluminou os tesouros brilhantes à frente, ele engasgou.
Ela parou e esperou que ele a alcançasse, esperou até que o brilho enchesse o espaço com
o poder de uma dúzia de velas.
Com os nervos à flor da pele, ele girou no lugar, procurando por um sarcófago ou
algum outro sinal de uma múmia desidratada dormindo naquele lugar escuro. Mas tudo o
que ele viu foram pilhas de moedas. Um antigo cofre de tesouros incalculáveis. E sua bela
companheira caminhou entre eles vagarosamente, varrendo a poeira e a areia de cima das
pilhas brilhantes com gestos delicados de sua mão. Também havia estátuas de tamanhos
variados, alinhadas contra paredes de pedra sem elegância. Tinham sido trazidas aqui às
pressas, ao que parecia, por proteção.
— Como você sabia que tudo isso estava aqui? —perguntou ele.
— Porque ordenei aos meus soldados que os trouxessem para cá —, respondeu ela.
A risada dele foi seca, incrédula. Então ele viu o rosto da estátua mais próxima a ele.
Sua respiração o abandonou junto com qualquer sensação de um mundo ordenado e
racional.
— Você tem sido muito gentil comigo, Teddy —, disse a mulher. — Posso esperar mais
gentileza de você em troca de algumas dessas riquezas?
Ele tentou responder. Mas só conseguiu fazer um som áspero e seco que o lembrou da
vez em que quase engasgou com um pedaço de bife.
A respiração dela estava em seu ouvido agora, seus braços delgados se dobrando ao
redor dele por trás. Seus lábios úmidos roçando-lhe o pescoço. Vivos, respirando. A
estátua que o encarava através da luz bruxuleante da lanterna mostrava a exata imagem
dela, assim como todas as estátuas escondidas dentro daquela tumba. O mesmo rosto de
proporções perfeitas; o mesmo cabelo negro e a bela pele em tom de oliva. Apenas a cor
dos olhos era diferente. Nas estátuas, eles eram escuros, não azuis, mas tinham o mesmo
tamanho generoso e pareciam cheios de vida e inteligência, mesmo sob camadas de
poeira.
— Um homem moderno olharia para esta cripta e simplesmente me acusaria de
saquear meu próprio reino em suas horas finais. De não ter fé em meu próprio amante.
Nenhuma fé de que a Batalha de Áccio deteria o avanço de Otaviano.
Otaviano. Áccio. Uma mulher que não dormia e não podia morrer. A mulher perante ele
e atrás dele. Viva, viva, viva...
— Isto não é… —, o médico gaguejou. — Impossível. Isto é… impossível.
— Ninguém sabia tão bem quanto eu que a maior proteção de um império está em sua
riqueza, não em seu exército. Foram as riquezas que nos trouxeram a paz com Roma por
anos. Riquezas e grãos. Isso fazia sentido para esses historiadores, não fazia? Que nas
horas finais do meu reino, nas minhas horas finais como rainha, eu fiz pouco mais do que
acumular tesouros.
“Mas, veja, eles estariam errados. Muito errados. Uma vez que ficou claro que Otaviano
não poderia ser parado, uma vez que eu decidi dar minha vida através da picada da
serpente, não pude suportar a ideia de que minha imagem fosse destruída por seus
soldados. Que escrevessem minha história como a da rainha prostituta, mas por Ísis eu
não entregaria a minha imagem à mutilação das hordas romanas.”
Não eram apenas as estátuas, percebeu Teddy. Eram as moedas, eram os tesouros. Ela
aparecia em todas aquelas moedas. E tudo esteve escondido naquela cripta por mais de
dois mil anos.
—Pergunte de novo, querido Teddy —, sussurrou ela. — Pergunte-me meu nome.
— Qual é o seu nome? — ele sussurrou.
Ela girou-o gentilmente, segurou seu queixo com mãos delicadas que possuíam uma
força sobrenatural. Mas o beijo dela foi gentil, demorado, e ela beijou-o enquanto olhava
em seus olhos.
— Cleópatra —, respondeu ela. — Cleópatra é meu nome. E é meu desejo que você me
mostre todos os prazeres deste novo mundo, para que eu possa compartilhá-los com você.
Você gostaria disso, Teddy?
— Sim —, ele sussurrou. — Sim, Cleópatra.
FOI UMA HISTÓRIA INCRÍVEL a que ela contou. Uma história de imortais, despertares e
acidentes terríveis e trágicos.
Ela falou de sua morte como sendo um grande lago de escuridão do qual ela havia sido
puxada repentinamente.
Até ser descoberto, seu cadáver havia sido preservado pela lama do Delta do Nilo.
Durante as décadas seguintes, ficou no Museu do Cairo dentro de uma caixa de vidro,
catalogada com o tedioso letreiro: MULHER DESCONHECIDA, PERÍODO PTOLEMAICO.
Deste então, inúmeros historiadores e turistas pressionavam o rosto contra o vidro sem
perceber que estavam olhando para a mesma figura que encantara César e Marco Antônio.
E então, dois meses antes, ela havia sido reconhecida na morte; reconhecida por um
homem de seu passado antigo que estava rondando a terra novamente.
Ramsés! E então eram verdadeiras aquelas histórias nos jornais sobre a tumba recém-
descoberta, cujo ocupante mumificado deixara pergaminhos afirmando ser, na verdade,
Ramsés II, um dos faraós mais importante do Egito. A mobília romana no interior, a
história impossível de um conselheiro imortal que serviu e aconselhou muitos dos
grandes soberanos do Egito por milhares de anos. Tudo isso, tão categoricamente
rejeitado por acadêmicos e historiadores, era absolutamente verdade, e a mulher diante
dele era a prova viva e ressuscitada disso.
Ramsés II. Ele caminhava pela terra mesmo agora, afirmava ela. Em Londres, talvez.
Ou talvez em algum outro lugar, Cleópatra não sabia. O que ela sabia era o seguinte: ele
havia sido acordado pelo sol depois que seu túmulo havia sido descoberto e o corpo
enviado a Londres. Então, ao reconhecê-la no Museu do Cairo, ele a despertou com o
mesmo elixir que lhe dera a vida imortal, um elixir roubado de uma sacerdotisa hitita
louca durante seu reinado como faraó do Egito.
O reencontro foi o oposto do primeiro encontro deles, dois mil anos antes, quando os
velhos sacerdotes em Alexandria lhe contaram histórias de um sábio conselheiro imortal
que havia sido levantado do sono eterno pelo bisavô da própria Cleópatra. Ela riu aqueles
sacerdotes, e exigiu ser levada para a tumba daquele suposto imortal. Ao ver a múmia
murcha lá dentro, ela ordenou que abrissem as entradas da tumba para que luz do sol
inundasse o local. Seu desdém pelos mitos antigos se transformou em admiração quando
aquele banho de luz celestial restaurou a pele, o cabelo e as belas feições da forma sem
vida que repousava na laje.
As histórias revelaram-se verdadeiras! E o homem que ela havia despertado, o próprio
Ramsés, o Grande, serviu como seu principal conselheiro e amante por anos a partir de
então.
E depois veio sua traição.
Ele havia aprovado o caso dela com César, aconselhando-a até mesmo a procurá-lo.
Mas em Marco Antônio ele vislumbrou as sementes da ruína de sua rainha. E então,
quando ela veio até ele na véspera da Batalha de Áccio, exigindo o elixir, não para ela, mas
para seu amante, para que pudesse criar um exército imortal para impedir o avanço de
Otaviano, Ramsés recusou. E ela, em desespero, acabou se entregando à picada da
serpente.
E agora?
O Ramsés deste novo século se unira a um grupo de aristocratas londrinos, amigos e
parentes do homem, Lawrence Stratford, que descobriu sua tumba e morreu pouco
depois. Juntos, este grupo viajou para o Egito. Por qual motivo exato, ela não sabia. Sabia
apenas que, quando Ramsés encontrou o corpo dela no museu, ele foi dominado pela dor
e realizou um ato que nunca havia realizado antes.
Derramou o precioso elixir nos restos de seu cadáver. Então, aparentemente, ele havia
fugido, abandonando-a na loucura e confusão que a dominaram naqueles primeiros dias.
Uma loucura da qual ela falava em termos mais gerais.
Teddy não a pressionou.
Mas estava claro, terrivelmente claro, que Ramsés fugira horrorizado do que fizera,
que ela fora deixada aos cuidados de um dos membros de seu grupo de viagem, um conde
britânico, Elliott Savarell. Esse homem tinha um filho, Alex, mas quando ela chegou à parte
da história em que este desempenhava um papel, ela se tornou distante e distraída
novamente. Ela disse esse nome duas vezes... Alex... Alex Savarell. Como se a simples
menção a oprimisse. Como se o som pusesse peso em sua língua.
Foi raiva, culpa ou desgosto que sentiu quando se lembrou desse homem, desse
visconde de Londres? Havia algo, com certeza. Algo entre ela e esse tal Alex que era o
suficiente para distraí-la mesmo agora.
E havia outras lacunas na história, outros momentos em que as pausas se
transformavam em longos silêncios que sugeriam uma falha de memória ou distúrbios
emocionais aos quais ela se recusava a se render. E Teddy podia sentir desses silêncios
que, naqueles primeiros dias de loucura, de não saber o que realmente era, ela havia
ceifado vidas.
E que assim fosse.
Ela não era uma criatura governada por leis naturais. Como ele ousava impor a ela as
leis do homem?
— E o acidente? — Teddy perguntou finalmente. — Aquele em que você foi tão
gravemente queimada?
Foi a primeira coisa que ele disse em uma hora. Os ventos finalmente cessaram e a
conversa animada dos homens próximos não mais era soprada para longe da barraca.
Claro que eles estavam animados. Ela havia prometido dar a eles uma porcentagem dos
tesouros para os quais os havia conduzido naquele dia.
— Um acidente, sim —, disse ela. — Foi um acidente terrível.
E ela não disse mais nada.
De modo que havia terminado mal. Terrivelmente, talvez. Dois finais trágicos com esse
Ramsés imortal, e ela não queria falar de nenhum deles. Mas nas primeiras horas após sua
cura milagrosa, ela havia aludido à vingança. E agora, ele compreendia que tudo o que ela
lhe pedisse, ele se empenharia de corpo e alma.
— Você deseja ver essas pessoas de novo? — perguntou ele, sabendo que havia uma
possibilidade muito real de ela querer machucá-los.
Por um momento, ela o encarou fixamente. Teddy queria acreditar que ela o estava
avaliando, julgando se ele era um companheiro digno, agora que revelara a verdade. Mas
ele sabia que isso era improvável, e isso o entristeceu. Doía-lhe acreditar que ela olhava
através dele para sua própria história.
— Com o tempo—, sussurrou ela. — Com o tempo.
— E então o que você deseja fazer agora?
— Eu desejo estar viva, Teddy. — O sorriso de Cleópatra deu a ele tanto prazer quanto
a sensação das unhas dela ao longo de sua coluna. — Eu desejo estar viva com você.
Nenhuma outra palavra jamais lhe trouxe tanta alegria.
2
Veneza
Ramsés tinha a impressão de estar vivendo um sonho. Ele nunca tinha visto uma
cidade mais esplêndida. Ele olhou pela janela para o Grande Canal, com sua interminável
fileira de palácios em frente; olhou para o céu azul brilhante da tarde, depois para baixo
mais uma vez na direção da água verde escura. Gôndolas pretas reluzentes deslizavam
rapidamente, lotadas de europeus e americanos vestidos com cores vivas, olhando com
espanto e entusiasmo para as mesmas maravilhas que o cativavam e o deixavam sem
palavras. Quantos chapéus exuberantes, carregados de penas e flores. E nas margens os
mercados de flores com suas bancas policromadas radiantes. Ah, Itália. Ah, paraíso. Ele
sorriu, maravilhado com sua incapacidade de aprender línguas modernas com rapidez
suficiente para desvendar um tesouro de palavras que poderia descrever tal beleza. Havia
nomes deslumbrantes para o vermelho desbotado e verde escuro daqueles prédios
antigos, para seus arcos e varandas decorativas, nomes para as épocas da história e os
estilos que lhes deram origem.
Ah, aquela grande terra, aquela terra esplêndida, e aquele tempo imbatível que
poderia nutrir metrópoles tão densas, onde plebeus e nobres igualmente desfrutavam de
tal beleza com tão pouco esforço. Ele queria ver mais, ele queria ver o mundo inteiro e
nunca partir.
A brisa do Adriático dissipava o calor da tarde. A cidade havia despertado de seu
cochilo. Era hora de ele sair também.
Ele fechou as venezianas verdes e voltou para o magnífico quarto que para ele era
mágico em si, um tesouro. Reis e rainhas haviam ficado naqueles quartos com afrescos
com muita alegria, ou pelo menos foi o que lhe disseram.
—É apropriado para você, querido—, Julie disse a ele. —E o preço é uma bagatela.
Sua Julie se entregou a ele com total confiança.
A Companhia de Navegação Stratford, a grande corporação que ela herdara de seu pai,
estava em pleno funcionamento novamente sob o olhar atento de seu tio arrependido, e
Julie garantiu a Ramsés que eles sempre teriam ouro em abundancia. Mas nenhuma
quantidade de ouro poderia comprar aquele nível de luxo na época de Ramsés.
Pisos com motivos de madeira tão duros e lustrosos como pedra, mesinhas de
cabeceira e penteadeiras decoradas em latão brilhante e espelhos, ah, os enormes
espelhos. Para onde quer que olhasse, via-se sorrindo naqueles grandes espelhos escuros,
como se seu duplo vivesse e respirasse do outro lado do vidro.
Aquela era uma época gloriosa, sem dúvida, e o culminar de muitos séculos gloriosos
durante os quais ele dormiu em sua tumba no Egito, alheio ao tempo, alheio à consciência,
nem mesmo sonhando que tais maravilhas o aguardavam.
Ramsés, o Maldito, que havia fechado os olhos em vez de testemunhar a queda
desesperada do Egito. Ramsés, o Maldito, que sabia que uma vez enterrado longe do sol
ficaria impotente e então se decomporia, decompor-se-ia infinitamente, até que fosse
trazido à luz por mortais desavisados de uma era futura.
Ele poderia muito bem ter refletido sobre tudo isso ali em paz e sossego para sempre,
o que se perdeu e o que agora o cativava para onde quer que olhasse.
Mas Elliott Savarell — o conde de Rutherford—e sua amada Julie estavam esperando
por ele, e esta cidade esperava por ele, esperava que ele viajasse novamente por seus
encantadores canais secundários até a Piazza San Marcos, onde ele entraria mais uma vez
a igreja que quase o colocou de joelhos na primeira vez que a viu. Em todos esses lugares
ele vira igrejas cheias de estátuas e pinturas de uma perfeição inimaginável, mas nenhum
santuário consagrado o havia subjugado como San Marcos.
Com pressa, ele terminou de se arrumar, ajustando a gravata preta em volta do
pescoço e colocando as abotoaduras de ouro que Julie havia lhe dado. Passou a escova de
cabo de pérola em seu cabelo castanho espesso. E aplicou uma pequena quantidade de
colônia em seu rosto recém-barbeado. No espelho, ele viu um homem moderno, um
europeu de pele escura e olhos azuis radiantes, e nenhum sinal do soberano que tinha
sido para milhares de súditos em uma época que não poderia ter imaginado esta.
—Ramsés—, ele sussurrou em voz alta. —Nunca mais mergulhe naquele sonho
passivo e sem esperança. Nunca. Não importa o que este mundo ofereça ou faça a você.
Lembre-se deste momento e deste quarto em Veneza, e jure que terá a coragem de
enfrentar o que está por vir.
Ele desceu casualmente a ampla escadaria de mármore e cruzou o movimentado
saguão do hotel até o cais.
Em questão de segundos, o atendente de libré tinha uma gôndola à sua disposição.
—Piazza San Marcos—, disse ele ao gondoleiro com roupas coloridas, entregando-lhe
um punhado de moedas. —E se isso me levar rápido...
Ele se recostou, olhando para os prédios mais uma vez, tentando se lembrar dos nomes
dos arcos que mais admirava. Eram mouros? Eram góticos? E como eram chamados os
pequenos postes lindamente torneados nas varandas? Balaústres. Quantas palavras lhe
passaram pela cabeça, com suas infinitas conotações—decadente, barroco, grandeza,
rococó, monumental, duradouro, trágico.
Ideias, conceitos, histórias, contos intermináveis da ascensão e queda de reinos e
impérios, de terras longínquas além do vasto mar e terreno montanhoso e reinos de gelo
e neve; tudo aglomerado em mil maravilhas.
Um mundo assim precisava de uma riqueza de palavras para defini-lo, com certeza. E
fascinado como estava, sua mente vagou de volta ao passado, de volta à sua barcaça de
prazer no Nilo há tanto tempo, com suas belas donzelas nuas nos remos e a brisa que
pairava sobre o largo rio, onde o povo simples se reunia em ambas as margens para se
curvar ao faraó que passava. Como era lento o ritmo sem o tique-taque e as badaladas dos
relógios, como parecia eterna a areia dourada e as áreas de lodo escuro do rio com seus
campos verdes lindamente cuidados. Palmeiras balançando contra um céu perfeito, e os
limites de tudo aquilo poderiam ser conhecidos com grande certeza. Agora parecia que o
sonho era aquela época de outrora, e não aqueles grandes e importantes palácios
elevando-se diante dele.
—Não, nunca mais volte a dormir—, sussurrou para si mesmo.
O estilizado barco preto chegou ao cais e em um instante ele já estava entrando na
multidão da grande praça, em busca do restaurante onde iria encontrar sua amada e seu
melhor amigo. Os turistas lotavam as portas sombrias da igreja de San Marcos. Ele
gostaria de entrar sozinho por um momento e ver todo aquele ouro reluzente e os
esplêndidos mosaicos mais uma vez.
Mas já estava atrasado. A igreja teria que esperar, por enquanto, até o dia seguinte ou
o próximo.
Talvez seus queridos amigos não se importassem. Talvez eles estivessem absortos na
beleza e ostentação daquela cidade esplêndida sem igual.
Ele os viu antes que percebessem sua presença e parou no meio dos turistas pelo
simples prazer de observá-los. Julie e Elliott em uma mesa externa sob o dossel vermelho;
ela vestia-se elegantemente com um paletó branco masculino, o cabelo preso em um
coque baixo, o chapéu de palha masculino com uma fita preta na aba, seus olhos azuis
vibrando enquanto falava apaixonadamente, e tom sério, com conde de Rutherford de
aparência jovem, que se recostava em sua cadeira de taboa, com os tornozelos cruzados,
balançando a cabeça enquanto olhava para além de Julie.
Como o elixir havia transformado os dois; aqueles mortais, os únicos seres vivos a
quem ele já havia dado o fluido divino. Como o elixir os havia curado de seus medos mais
sutis e dissolvido suas muitas inibições.
Eles não sabiam realmente, não da maneira como ele via, pois ele os conhecia muito
bem antes de lhes dar a poção mágica. E agora ficava maravilhado, observando-os, por ter
feito tal coisa, por ter tido a audácia de compartilhar com eles o segredo do elixir, quando
em todos aqueles séculos anteriores não o havia oferecido a ninguém. Ninguém, exceto
seu amor sombrio, Cleópatra, que em vida recusou-o e que na morte não teve escolha;
Cleópatra, cuja rejeição lhe havia partido o coração.
Um sombrio arrepio percorreu seu corpo inteiro. Sua Cleópatra. Queria esquecer para
sempre que apenas dois meses antes havia tropeçado em seu cadáver não identificado no
Museu do Cairo e que, em um momento de loucura absoluta, havia derramado o precioso
elixir sobre o corpo para trazê-lo de volta à vida.
Ah, que vergonha. Que horror. E ele mesmo o fizera, não um mortal incompetente, mas
ele, Ramsés, o Grande; ele cometera aquele ato imperdoável só para ver perdida outra vez
aquela miserável Cleópatra ressuscitada, aquela criatura confusa, louca, impulsiva,
quando seu carro colidiu com o trem que corria pelo deserto.
Poderia ele expiar aquele erro? Será que algum dia ele se perdoaria por derramar o
precioso fluido sobre aquele cadáver meio apodrecido que tinha sido seu grande amor,
regenerando um monstro assassino com memórias incompletas e coração de monstro?
Queria esquecer com toda a sua alma.
Ele ficou lá imerso em pensamentos enquanto os turistas iam e vinham ao seu redor.
Esse pecado mancharia sua alma para sempre, apesar do fato de que ele tivesse nascido
acreditando que nunca poderia ser culpado do pecado e que seus menores impulsos
falavam pelos deuses do Egito. Bem, houve outro erro grosseiro, outro crime terrível, sim,
Ramsés teve que admitir isso também.
Foi um ato anterior de impetuosidade imperdoável, um ato cometido milhares de anos
antes. Tinha acontecido em um país inimigo, e ele cometeu contra uma sacerdotisa hitita
louca e zombeteira de quem ele havia reivindicado um tesouro que era seu por direito de
conquista: o elixir e o segredo de seus ingredientes, aquele que o transformou neste
homem imortal que ele era agora.
A imolação impensada daquela sacerdotisa diante de seu altar indefeso foi claramente
um erro hediondo. Isso sempre o assombrava. Isso o assombrava até mesmo naquele
reino de sonho onde suaves luzes elétricas estavam acesas nas janelas, onde velas eram
colocadas nas mesas de jantar, onde postes de luz eram acesos ao seu redor no azul
radiante do crepúsculo.
Isso o assombrava porque tinha sido estúpido suprimir o único vínculo humano que
ele tinha com a origem daquele estranho líquido que lhe dera milênios para refletir sobre
suas origens.
Isso não importava. O pecado de ter ressuscitado e matado Cleópatra bastou para
ofuscar aquela noite sublime e a visão de seus excelentes companheiros.
E agradeceu aos deuses, quem quer que fossem e onde quer que estivessem, por não
estar mais sozinho com o poder que o elixir lhe dera, por Julie e Elliott agora
compartilharem com ele.
Julie o viu. Olhando para trás, ela o viu, e ele viu o sorriso em seus lábios. O terraço
elevado em frente ao restaurante era agora um mar de velas bruxuleantes.
Ele caminhou rapidamente em direção a ela e se inclinou para beijar sua bochecha
gentil e respeitosamente, assim como os europeus faziam, então se virou para apertar a
mão firme de Elliott Savarell.
Elliott havia se levantado e agora empurrava a cadeira para a direita para que Ramsés
pudesse se sentar de frente para a piazza, entre ele e Julie.
—Finalmente—, disse Elliott. —Vocês não estão morrendo de fome?
—Vamos fazer um banquete—, disse Ramsés. —Sinto muito por tê-los deixado
esperando. Eu precisava passar algum tempo sozinho para ficar calmo, tempo para pensar
sobre tudo isso—, disse ele, sorrindo enquanto olhava para a multidão. —Agora tudo que
quero fazer é viajar, ver mais, saber mais, aprender mais.
—Eu o entendo perfeitamente—, disse Elliott. —É uma obsessão que compartilhamos,
meu rei. Você me deu o mundo e eu quero percorrê-lo, mas tenho uma tarefa urgente que
não pode esperar.
—Do que se trata, Elliott? — questionou Ramsés.
—Não vale a pena discuti-la. Permita-me dizer que vou para Monte Carlo e outros
lugares com um cassino. Descobri, graças ao elixir, que tenho um talento especial para as
cartas que nunca havia mostrado antes. E tenho que usá-lo por razões óbvias.
—Elliott, tudo que você precisa fazer é pedir... —disse Julie.
—Não minha querida. Não. Já passamos por isso e não posso fazer.
Ramsés compreendeu o orgulho do amigo. Ele tinha entendido quando eles se
conheceram. Elliott era um nobre sem os meios usuais de um nobre, um homem bem
nascido de classe alta, sem os recursos para manter as casas que possuía ou o estilo de
vida que se sentia compelido a oferecer aos que lhe eram próximos. Elliott conhecia o
mundo; Elliott conhecia livros, história, literatura; e Elliott conhecia a vergonha silenciosa
de estar em dívida e sempre à beira da ruína. Agora ele tinha o elixir da vida eterna em
suas veias, mas ainda não havia se libertado das amarras de seu coração.
—Bem, talvez eu tenha uma solução para você, Conde de Rutherford—, disse Ramsés.
—Sim, vá para Monte Carlo e aposte com seu presente recém-descoberto. Mas vou lhe dar
algo para o futuro. —Ele tocou o bolso interno da jaqueta. Todas aquelas roupas europeias
eram grossas, acolchoadas, cheias de bolsos secretos. Sim, ali estava o pedaço de papel em
que ele havia desenhado o mapa. Ele deu ao Conde. —Você consegue decifrar isso? —
perguntou.
Elliott pegou o papel timbrado do hotel e estudou-o cuidadosamente antes de
responder. Ramsés percebeu a curiosidade que surgiu nos olhos azuis brilhantes de Julie,
mas esperou.
—Claro que sei o que é, aqui é a Costa do Ouro, na África; você usou todos os nomes
modernos—, disse Elliott. —Nunca estive lá…
—Compre terras lá, exatamente onde marquei—, disse Ramsés. —Ninguém está
procurando ouro neste lugar. Mas você o encontrará se procurar bem e descobrirá os
restos de algumas antigas minas que já pertenceram ao Faraó do Egito.
—Mas por que você está me dando isso?
—Aceite—, respondeu Ramsés. —Tenho outros recursos tão ricos quanto esse ou
mais. Fiz perguntas, muitas perguntas, aos banqueiros que conheci aqui e em toda parte,
aos agentes que cuidam dos negócios de Julie. O mundo se esqueceu desses meus recursos.
Posso fazer uso deles quando precisar. Esta é apenas uma mina de ouro e é meu presente
para você, e ordeno que o aceite.
Elliott sorriu com ternura, mas com um leve ar de desaprovação. Ramsés viu a tragédia
em seus olhos, a humilhação. E ele viverá para sempre, pensou, e um dia, daqui a séculos,
ele nem mesmo se lembrará da agonia deste momento. Mas estamos neste momento e esta
agonia é real.
—Estou falando sério—, disse Ramsés. —Você aceitou o elixir que lhe dei, Conde de
Rutherford. Agora aceite isso. Eu exijo.
Elliott refletiu por um longo tempo, as luzes brincaram em seus olhos, olhos quase do
mesmo tom que os de Julie, quase certamente como os de Ramsés. Olhos azuis de uma
certa tonalidade que eram a prova infalível da existência do elixir. Então ele dobrou o
mapa e o colocou no bolso.
—Vá para Monte Carlo—, disse Ramsés novamente. —Seja prudente com seus ganhos,
e esperto. E em breve você terá os meios para explorar essa mina.
Elliott concordou com a cabeça.
—Muito bem, Sua Majestade—, disse ele com um ligeiro tom irônico. —Muito gentil
de sua parte.
Elliott sorriu, mas havia derrota por trás de seu sorriso.
Ramsés deu de ombros.
—Converse com seus banqueiros sobre esta terra agora. Um atraso no seu
desenvolvimento irá trabalhar a seu favor. Mas você deve adquiri-la o mais rápido
possível. —Ele deu uma olhada em Julie. —Quanto à minha preciosidade, tenho outros
mapas, como já disse.
Julie olhava-o com admiração sem reservas.
Estava anoitecendo. E o reino mágico da Piazza San Marcos foi ainda mais
transformado à medida que o céu desaparecia na névoa e acordes de um quarteto de
cordas se erguiam dos terraços dos restaurantes ao redor. Talvez a grande igreja dourada
fechasse suas portas. De qualquer forma, ele a veria no dia seguinte. Iria durante as horas
calmas da tarde, quando os italianos dormiam.
Os garçons iam e vinham, serviam vinho, e Ramsés teve uma fome terrível ao perceber
os aromas dos pratos que estavam sendo servidos nas mesas vizinhas. Esse apetite nunca
era realmente saciado, nem a sede de vinho ou cerveja, que nunca o deixariam bêbado.
Que sirvam a comida, ele pensou com entusiasmo. A embriaguez era coisa do passado, mas
ansiava por aquela onda do calor do vinho que durava apenas alguns minutos após cada
gole.
Julie falava italiano fluentemente com o garçom. Mas alguém tocou em seu braço. Era
um dos muitos ingleses que a conheciam de Londres.
Ela se levantou, cumprimentou o homem bem vestido à sua frente e beijou a mulher
na bochecha; uma família de mercadores de Londres.
—Oh! Que olhos, Julie! — Disse a mulher. —Você tem olhos azuis! Julie, seus olhos!
Ramsés olhou para Elliott. Sempre acontecia a mesma coisa, e sempre com a mesma
convicção Julie contava a história da febre misteriosa que contraiu no Egito e que havia
mudado seus olhos de castanhos para azuis. Incrivelmente absurdo. Elliott estava
escondendo seu sorriso. Mas o casal continuou seu caminho, apaziguado e atordoado. O
Conde de Rutherford não fora reconhecido e Julie não fizera apresentações.
—Salvo de novo—, disse Elliott, e suspirou. —Mas por que eles acreditam nisso?
—No quê? —Julie perguntou, se acomodando em sua cadeira. Ela ergueu o copo. —
Que a febre fez meus olhos mudarem de cor? Vou lhe dizer por que eles acreditam: eles
precisam acreditar.
Ramsés riu. Ele sabia exatamente o que ela queria dizer.
—Os olhos dos seres humanos não mudam de cor, é simples assim—, disse Julie. —
Assim, eles recebem bem a explicação e a aceitam, e então retornam ao mundo normal,
onde tais coisas não acontecem. —Ela tomou um gole do vinho. —Delicioso—, sussurrou.
Disfarçou a sede e em pequenos goles tomou o copo inteiro.
A mão de um garçom apareceu em seu ombro para encher seu copo novamente.
—Faz todo o sentido do mundo—, disse Elliott. —No entanto, continua a me
surpreender. Saiu nos jornais de Londres, como você bem sabe. ”A herdeira Stratford pega
febre em Alexandria e os olhos ficam azuis”. Algo do tipo. Alex me enviou o recorte.
—O que foi, Ramsés? —perguntou Julie.
Ele percebeu que a olhava fixamente. A princípio ele não respondeu. Então se voltou
para Elliott
Na luz fraca das velas, seus companheiros imortais lhe pareciam incrivelmente belos.
—Para mim, vocês são deuses—, ele sussurrou. Pegou o vinho e bebeu lentamente de
um só gole, sem esperar que o garçom enchesse sua taça. Ele saboreou o rico aroma de
Chianti e então sorriu. —Vocês não podem imaginar como me sinto—, disse ele. —Depois
de tantos séculos sozinho, sozinho com este poder, sozinho nesta jornada, e agora vocês
estão aqui comigo, vocês dois. E me pergunto por que foi tão fácil para mim dar-lhes o
elixir quando durante séculos sofri com essa solidão, esse isolamento. E é porque vocês
são deuses para mim, vocês dois, a quintessência desses tempos.
—Para nós você é o deus —, disse Elliott, — e acho que você já sabe disso.
Ramsés assentiu.
—Mas você nunca saberá como é sua aparência; quão erudito, independente e forte.
—Acho que entendo—, disse Elliott.
—E vocês nunca saberão o que significa para mim tê-los como companhia.
Ramsés ficou em silêncio. Ele bebeu uma segunda taça de vinho e se recostou em
aprovação enquanto o garçom servia o primeiro prato para o jantar, uma sopa aromática
de frutos do mar e vegetais em caldo vermelho. Comida, como isso sempre o deixava
faminto, e como Julie e Elliott também ansiavam por ela agora, os dois, já que eram muito
jovens no elixir para se cansarem da fome.
Julie bateu palmas e baixou a cabeça. Ela murmurou uma prece silenciosa aos deuses
que Ramsés não conhecia.
—Para quem você está orando, querida?— Elliott perguntou. Ele estava tomado a sopa
com uma pressa nada cavalheiresca. —Diga-me.
—Isso importa, Elliott? —Julie respondeu. —Rezo ao deus que ouve, ao deus que sabe,
ao deus que pode querer uma oração minha. Talvez o deus que criou o elixir. Não sei. Você
parou de orar, Elliott?
Elliott olhou para Ramsés. Em seguida, de volta para Julie. Ele já havia terminado a
sopa e Ramsés estava apenas começando. Uma sombra de tristeza cruzou o rosto de
Elliott.
—Acho que não, minha querida—, disse ele. —Quando tomei o elixir, não pensei em
Deus. Se tivesse, talvez não o tivesse bebido.
—Por quê? —indagou Ramsés, pasmo. Naquela gruta hitita de tanto tempo atrás,
quando Ramsés alcançou o cálice do elixir, estava convencido de que, sendo faraó, sempre
cumpria a vontade dos deuses. E se aquele líquido, aquele líquido sagrado, era
propriedade de um deus hitita, bem, era seu direito roubá-lo.
—Eu teria pensado mais em Edith e em meu filho—, disse Elliott. —Do jeito que estou,
sinto-me para sempre separado deles. E não tenho certeza se essa é a vontade dos deuses
que nós, britânicos, adoramos.
—Pare de bobagens, Elliott—, protestou Julie. —Sua única preocupação é cuidar dos
dois.
—É verdade—, disse Ramsés. —E você tem suas aventuras em Monte Carlo pela
frente. Algum dia eu gostaria de visitar Monte Carlo. Quero ver tudo.
—Sim. Na verdade, vou embora de carro esta noite —, anunciou Elliott. —Parece-me
que meus ganhos começaram a chamar a atenção aqui em Veneza.
—Você não está em perigo? — perguntou Julie.
—Não, não, longe disso—, respondeu Elliott. —Foi um grande golpe uma sorte
fabulosa jogar com alguns cavalheiros, mas não tenho intenção de insistir. E devo dizer
que vou sentir sua falta. Dos dois. Eu sentirei muito falta.
—Mas você certamente irá a Londres, não? — perguntou Julie. —Quero dizer, para a
festa de noivado. Você sabia que prometi a Alex que ele e Edith seriam os anfitriões? Eles
estão fazendo isso por nós. Eles realmente querem nos ver felizes.
—Festa de noivado—, murmurou Ramsés. —Que costumes estranhos. Mas se é isso
que Julie quer, eu aceito de bom grado.
—Sim, eu ouvi-os falarem a respeito. Estou honrado por você permitir. Eu gostaria de
poder comparecer. Mas duvido que volte a vê-los tão cedo. No entanto, quero agradecer
por ser tão gentil com Alex, Julie.
Ramsés via sinceridade absoluta em Elliott quando disse essas palavras sem um pingo
de sua habitual aspereza. Qual era a palavra para isso? Sarcasmo? Cinismo? Ele não se
lembrava. Sabia apenas que o Conde de Rutherford amava Julie e que amava o filho, Alex,
e era uma pena para Elliott que Julie e Alex não fossem mais se casar, mas o Conde de
Rutherford estava feliz em aceitar tudo.
Na verdade, o jovem Alex Savarell praticamente havia superado Julie. Na verdade, ele
ainda estava de luto pela mulher misteriosa que conhecera no Cairo, a mulher anônima e
trágica que ele amara, aquela que poderia tê-lo matado com a mesma facilidade com que
matou outros; Cleópatra tão diabolicamente desperta do sono da morte pelo elixir.
O conhecido rubor de vergonha reapareceu no rosto de Ramsés enquanto
contemplava essa cena. “Toda a minha vida, não importa quanto tempo, onde quer que eu
vá, esse pecado...”.
Mas a noite estava bonita demais, o faisão assado que serviam era saboroso demais, o
ar úmido e perfumado demais para pensar nessas coisas. Ele não ficou triste por retornar
à Inglaterra para assistir a esta festa. Ele queria ver toda a Inglaterra novamente, ver as
regiões verdes e arborizadas da Inglaterra, ver os lendários lagos da Inglaterra, toda a
Inglaterra que ainda não tinha visto antes.
Uma orquestra havia começado a tocar uma daquelas valsas etéreas que Ramsés tanto
amava, mas não havia pista de dança e apenas alguns violinos alimentavam o som
crescente, que ainda assim era delicioso.
Oh sim, lembre-se sempre deste momento, com a música tocando e sua amada
sorrindo para você, e este novo amigo Elliott ao seu lado, e não importa o que o futuro lhe
reserve, nunca se renda à escuridão novamente, nunca ceda ao sono, em fuga. Este mundo
é simplesmente maravilhoso demais para isso.
Uma hora depois, eles se despediram de Elliott no movimentado saguão do hotel antes
de subirem para seus quartos.
Julie tirou suas apertadas roupas masculinas como uma flor rosa escapando de uma
bainha branca. Ela caiu em seus braços.
—Minha rainha, minha rainha imortal—, disse Ramsés, com lágrimas escorrendo
pelos olhos. Ele permitiu que ela tirasse seu paletó e o jogasse de lado, para então
desabotoar a pesada camisa engomada.
Uma vez nus, eles se abraçaram na cama enorme, entre lençóis que cheiravam a sol e
chuva, enquanto a música de um gondoleiro entrava pelas janelas.
E ela nunca morrerá como as outras morreram, pensou Ramsés, beijando seus cabelos,
seus seios, a carne tenra na parte de trás de seus braços torneados, suas pernas macias.
Nunca morra como todas as outras, todas aquelas outras mortais com as quais ele
esforçava-se em câmeras à luz fraca.
—Minha Julie—, sussurrou ele.
Ao penetrá-la, ele viu seu rosto enrubescer e gotejar de suor, o sangue pulsando em
suas bochechas, seus lábios distendidos e as pálpebras semicerradas. Rendição tão
confiante, quando agora ela era tão poderosa quanto ele. Ele a pegou e segurou contra
enquanto gozava.
Obrigado, obrigado, Deus do Elixir. Obrigado por esta esposa abençoada que viverá tanto
quanto eu viver.
AMANHECIA. Na verdade, ele nunca dormia. Sim, cochilava de vez em quando, descansava,
mas nunca realmente dormia; entretanto Julie dormia, aninhada entre os travesseiros,
rosada como as rosas de um vaso próximo, o cabelo esplêndido no travesseiro. Ele olhou
pela janela novamente para o canal escuro e brilhante abaixo, então olhou para o céu com
suas estrelas inescrutáveis. Uma vez, como faraó, ele pensara que viajaria para lá quando
morresse, um dos imortais, e agora sabia a verdade sobre aquelas estrelas, a verdade
moderna das vastas extensões do espaço e a verdade de seu minúsculo e insignificante
planeta.
Ele pensou em Cleópatra, ou melhor, no monstro que ele havia ressuscitado dos
mortos. Viu o clarão que ocorreu depois que o carro colidiu com o trem e a gasolina
explodiu.
Perdoe-me, seja você quem for! Não sabia. Eu simplesmente não sabia.
Caminhou na ponta dos pés pelo chão polido, de volta ao caramanchão de cobertas e
almofadas onde havia deixado sua Julie.
—Esta vive—, sussurrou ele. —Ela vive e me ama, e forjamos um vínculo entre nós
que me dará forças para me perdoar por tudo o resto.
Ele beijou seus lábios. Julie despertou. Olhou para ele, que não conseguia parar de
beijar seus lábios, seu pescoço, seus ombros, seus seios quentes. Seus dedos encontraram
seus mamilos e os apertaram enquanto beijava sua boca aberta. Ele sentia o calor da
virilha dela contra ele. Para sempre. Para sempre com ela, o futuro brilhante e magnífico
como neste exato instante. Descoberta e maravilha, e amor sem fim.
3
Alexandria
Alex Savarell era o autor desta mensagem. O homem lindo e adorável com quem ela
compartilhou uma única noite inesquecível no Cairo. Um homem que havia prometido
tudo a ela, mesmo sem estar realmente ciente de quem ela era nem como ela voltou à vida.
Havia muito para absorver nesta mensagem simples e concisa. E, no entanto, essa era
a palavra que parecia flutuar do papel em sua direção repetidas vezes, tão poderosa
quanto a estranha visão que tivera apenas alguns minutos antes.
Alex…
—É ele, não é? Sr. Ramsey? Esse é o nome que ele usa agora. Ele vai se casar, com
essa tal Julie Stratford. Ela é a filha do homem que descobriu a tumba, não é?
—Sim—, respondeu ela.
—Você deseja ir até ele?— perguntou Teddy.
Cleópatra se forçou a olhá-lo nos olhos, e a afastar todos os pensamentos de outros
homens com quem havia dormido e mulheres que quase havia matado.
—Não, em absoluto. Não desejo recorrer a ele. Desejo encontrar respostas que só ele
terá. Portanto, eu não tenho outra escolha.
—Nós, minha querida—, disse ele, pegando sua mão. —Nós não temos outra escolha,
minha Bella Regina Cleópatra.
1Antigamente os telegramas eram transmitidos através do telégrafo e eram pagos à letra, levando a que,
naturalmente, estas fossem usadas com o máximo de economia. Grande parte das palavras era abreviada
e não se usava acentuação, de modo a poupar caracteres — de forma muito semelhante ao que se faz
hoje com as mensagens de texto. Para além disso, usava-se o termo internacional STOP (cujos caracteres
não eram cobrados ao remetente) para marcar as pausas no texto. (N. do T.)
ERA ELA! A MULHER DO RETRATO. E seu companheiro era um jovem bonito, provavelmente
britânico, exatamente como os homens que supostamente estavam procurando por
aquela mulher.
O homem os havia seguido desde a estação de trem e agora tinha certeza. Era um bom
esboço, feito por um artista muito caro, então não havia como confundir a aparência.
Tinha sido entregue a ele semanas antes por seu primo, que afirmou que um amigo seu
do Cairo estava procurando por aquela mulher. Seu primo sabia pouco mais, exceto que
o tal amigo, um certo Samir Ibrahim, tinha sido o companheiro de um famoso arqueólogo
britânico recentemente falecido, e os parentes deste, por algum motivo, estavam
desesperados para encontrar aquela mulher.
Desde então, ele visitava as estações ferroviárias sempre que um trem chegava do
Cairo. Procurava o rosto da mulher na multidão.
E hoje, quando se cansava dessa perseguição, ele a viu emergindo do trem matinal nos
braços de seu belo companheiro, e os havia seguido em todas as suas andanças.
Havia recebido a ordem de segui-la por tempo suficiente para estabelecer um
detalhado relatório e nada mais. Ela era perigosa, essa mulher, ou assim pensavam os
britânicos.
Tinha visto o suficiente.
Ele sumiu na multidão novamente, então correu na direção da estação de telégrafo
mais próxima.
4
Chicago
Sibyl Parker tinha pressa em anotar o conteúdo do sonho que acabara de desperta-la.
Sacou o diário da gaveta da mesinha ao lado da cama sem acender a lâmpada.
Na fraca luz prateada que fluía pelas frestas da porta do quarto, ela escreveu
febrilmente.
Vi a mulher novamente, uma linda mulher com pele mais escura que a minha, cabelos negros e olhos
azuis. Tinha o mar atrás dela, em uma cidade que eu não reconheci. Ela olhava para mim. Até estendeu-
me a mão no exato momento em que eu parecia estar tentando alcança-la. E então o sonho acabou.
Neste sonho não houve violência como nos outros. Uma bênção, eu diria. Será que minha praga de
pesadelos está chegando ao fim?
COMO ELA SUSPEITAVA, o pacote era de seu negociante de antiguidades em Nova York, E.
Lynn Wilson. Ela rasgou a embalagem com as mãos. Que Deus a livrasse de descer para
buscar um abridor de cartas e correr o risco de encontrar seus irmãos novamente.
A estatueta estava intacta, graças a Deus. E em perfeitas condições. A deusa Ísis
sentada em uma pequena plataforma, com suas asas abertas; a perna direita apoiada na
plataforma do joelho ao pé e a esquerda fletida, para que ela pudesse voltar seu olhar para
a extensão de sua asa esquerda.
PS: Como sei que compartilhamos a mesma paixão por todas as coisas egípcias, incluí
alguns recortes de imprensa enviados a mim por um amigo do Cairo sobre um assunto
intrigante publicado pelos jornais de lá: tenho presunção suficiente para supor que podem
constituir uma boa base para uma de suas emocionantes histórias no futuro.
Ele havia dobrado vários recortes de jornais que estavam atados com fita no interior
da caixa.
Seu primeiro impulso foi jogá-los na lata de lixo.
Embora ele parecesse um bom homem, a última coisa que ela queria era algum tipo de
reclamação enganosa contra ela pelo autor do artigo ou pelo próprio Wilson, se algo que
ela escrevesse no futuro tivesse a menor semelhança com o que a história contava.
Mas no final a curiosidade venceu.
Ela desdobrou as páginas cuidadosamente.
Soltou o ar em um sibilo longo e surpreso e se viu afundada ao pé da cama enquanto
lia.
A manchete dizia: MISTERIOSO EGÍPCIO ABSOLVIDO EM RELAÇÃO AO ROUBO DE
UMA MÚMIA E DE ASSASSINATO TRUCULENTO NO MUSEU.
Embaixo estava um esboço a tinta do homem bonito que ela vira em seu pesadelo.
Ele estava junto a um camelo, com o condutor do camelo à sua esquerda. A linda
mulher que aparecia no esboço com ele, Sibyl não sabia se era americana ou britânica, não
estava identificada, mas a legenda dizia "Vale dos Reis". Orgulhoso, bonito e cavalheiresco
em calças e paletó de seda branca, o homem não demonstrava nada do terror que
demonstrara em seu sonho quando ela estendia-lhe os braços com mãos de esqueleto.
Mas era ele, disso ela tinha certeza. Seus olhos marcantes e mandíbula bem esculpida.
Seu porte majestoso.
Teve a sensação de um grande peso pressionando seu peito. Suas mãos tremiam.
Ela se forçou a ler.
Alguém havia roubado uma múmia do Museu do Cairo e assassinado um funcionário.
A múmia em questão eram os restos mortais perfeitamente preservados de uma mulher
do período ptolomaico que passou séculos enterrada na lama do delta do Nilo até ser
descoberta e transportada para o museu. Por um tempo, a polícia suspeitou do Sr. Ramsey,
um "egípcio misterioso" que estivera de férias no Egito com membros da família
proprietária da Companhia de Navegação Stratford. Uma vez livre das suspeitas, Ramsey
fora liberado para retornar a Londres com seus companheiros de viagem.
E isso era tudo e todos deveriam estar satisfeitos.
Mas a detetive amadora que havia em Sibyl percebeu as lacunas na história. Ela tinha
visto do que famílias ricas e influentes eram capazes. As impressões digitais de um deles
estavam em todos aqueles itens.
Se o Sr. Ramsey havia sido inocentado, quem era agora o principal suspeito? E o que
se sabia sobre o paradeiro daquela múmia misteriosa do período ptolomaico que havia
sido roubada?
Ela estava se distraindo brincando de detetive, distraindo-se da nova sensação que
sentia em seus membros. Um formigamento que sugeria falta de ar. Mas também outra
sensação mais difícil de explicar.
Excitação. Uma sensação de excitação tremenda e quase incompreensível.
Seus pesadelos haviam se tornado tão vívidos e aterrorizantes no último mês que o
medo de perder a cabeça se tornara tão constante e persistente quanto a pulsação de seu
coração. Mas agora, a sugestão de uma explicação mais milagrosa tinha literalmente
chegado à sua porta, uma explicação que poupava sua sanidade e implicava haver muito
mais magia verdadeira e maravilhas no mundo do que as que ela tentava escrever em seus
contos.
O homem do meu sonho existe, pensou. De uma forma ou de outra, estamos conectados.
E se eu seguir essa conexão até o fim, talvez meus pesadelos acabem!
Imediatamente tirou várias folhas de papel timbrado da gaveta da escrivaninha e
começou a escrever. A carta era endereçada ao seu editor em Londres.
Reconsiderei seus inúmeros convites e agora concordo com você que é uma excelente ideia
visitar Londres e aceitar quaisquer convites que você possa recomendar para fazer palestras
ou aparições para autógrafos...
Assim que o sol nasceu, ela ligou para seu agente em Nova York.
NA HORA DO CAFÉ DA MANHÃ, Sibyl colocou duas aspirinas na frente de cada um de seus
irmãos, nenhum dos quais ergueu os olhos dos ovos mexidos quase intactos, nenhum dos
quais parecia se importar minimamente por ser quase meio-dia de uma segunda-feira e
não haver tentativas de iniciar as tarefas da semana.
—Estou de saída—, disse Sibyl.
Gregory levou vários segundos para pegar suas aspirinas. Ele as engoliu com um
pequeno gole d'água para não afetar seu estômago torturado.
Ethan parou de massagear as têmporas, abriu um olho injetado de sangue e fez o
possível para olhar para ela.
—Outra caminhada pelo conservatório de Lincoln Park?— resmungou ele. —Para
fingir que é uma dama idosa em um daqueles romances sombrios que você tanto ama?
—Estou indo um pouco mais longe do que o parque, na verdade.
Gregory ergueu os olhos do prato e viu que ela estava vestida com seu traje de viagem:
uma jaqueta xadrez preta e azul feita sob medida com lapelas forradas de cetim azul. A
banda no chapéu simples também era de um tom de azul combinando. Nunca fora
propensa a usar o espartilho como se tivesse acabado de sair de uma ilustração de Charles
Dana Gibson, mas as mãos nervosas de Lucy naquela manhã deixaram-na com uma
aparência particularmente rígida. E isso fazia sentido, pensou Sibyl. Fazia sentir-se tão
elegante quanto a proa do navio em que planejava embarcar em breve.
—Quão longe?— Ethan choramingou. —Você tem para escrever.
—Sim, e não sei se você já sabe, mas agora só é possível escrever na cidade de Chicago.
O presidente Wilson acaba de colocar em vigor essa lei.
—Bem, eu não sei o que o presidente diria sobre sua língua afiada—, resmungou
Gregory.
—Quem sabe? —respondeu Sibyl. —Talvez ele seja fã dos meus livros.
—Ha! Ninguém lê suas ninharias nos corredores do poder, senhorita — gritou
Gregory.
—Onde você está indo, Sybil? —perguntou Ethan.
—A Londres.
—Londres! — Os dois exclamaram ao mesmo tempo, a indignação rompendo o véu da
ressaca.
Seus irmãos começaram a gritar sobre responsabilidades que não eram realmente
dela, e que nenhum deles era capaz de cuidar sozinho. Ela já esperava tal reação. Mas
sempre soube que Ethan e Gregory eram tão preguiçosos que se ela apresentasse sua
viagem iminente como um fato consumado, eles poderiam não protestar com toda a
artilharia.
—Por quanto tempo? —Gregory perguntou finalmente, vendo que suas acusações e
reclamações não a perturbaram nem um pouco.
—O que for preciso—, respondeu Sibyl.
—O que for preciso? Por que você tem que ser tão enigmática? Rumores de guerra
estão circulando, sabe? Já houve uma nos Bálcãs e, à medida que avançam, a Alemanha e
a Áustria logo criarão problemas.
—Bem feito para eles—, Ethan resmungou. —Apertando todos aqueles países naquele
minúsculo continente como cavalos em um estábulo. O que eles achavam que iria
acontecer?
—E você não pode viajar sozinha, não vou permitir! Você já foi à Europa cinco vezes
com a mamãe. Você já viu tudo o que há para ver lá.
—Já era hora de eu ir sozinha—, disse Sibyl. —Afinal, o que eu estava esperando?
Mas então o sonho veio à mente, e o artigo de jornal, o rosto do homem.
—Quando eu voltar, Ethan—, disse ela, — estou convencida de que você terá assumido
um papel importante nos assuntos mundiais e poderá compartilhar sua grande visão com
nosso presidente.
—Precisamos de você aqui—, disse Gregory. —Os funcionários precisam de você.
—O que você quer dizer é que terá de gerenciá-los por conta própria—, respondeu
Sibyl.
Ela estava quase na porta da frente quando Ethan gritou atrás dela:
—É apropriado que você fuja um pouco antes do início da semana!
—É segunda-feira, senhores—, ela gritou de volta. —A semana começou horas atrás!
Ela bateu a porta no momento em que ouviu o tilintar de copos derrubados e as pernas
das cadeiras raspando no piso de madeira da sala de jantar.
O velho Philip estava esperando por ela na garagem, assim como Lucy. A bagagem já
estava devidamente colocada no Rolls-Royce e Lucy e o velho Philip sorriam para ela como
se estivessem orgulhosos da rapidez com que ela conseguira escapar de casa naquela
manhã.
Era uma novidade aquela voz autoritária que ela descobrira possuir, aquela
autoconfiança. Quando ela soltou-a sem restrições, aquela sensação de poder a fez se
sentir duas vezes maior. No passado, ela teria escapulido sem dizer uma palavra aos
irmãos e então, no caminho para a estação de trem, teria se preocupado
interminavelmente sobre como eles reagiriam à sua ausência repentina e se ela estava
quebrando a promessa que fizera a seus falecidos pais de cuidar de seus irmãos, mesmo
apesar da terrível autocomplacência de ambos.
Mas agora ela se sentia completamente como outra Sibyl Parker, capaz de cruzar o
globo por conta própria e afastar qualquer um que ousasse ficar em seu caminho.
5
Paris
ASSIM QUE SAMIR SE FOI, Julie voltou o olhar para ele. Foi a primeira vez em semanas que ela
pareceu tão perturbada. Ramsés odiava vê-la. Odiava que sua viagem dos sonhos por de
países e continentes tivesse um fim tão abrupto.
Ou ele estava equivocado? Pois ela parecia mais preocupada com o humor dele do que
com o conhecimento de que Cleópatra estava viva.
— Você acha que devemos temê-la, Ramsés?
— Ela ameaçou quebrar seu pescoço como um junco. Essas foram as palavras exatas
dela.
— Bem, ela não pode agora. E, além disso, ela disse isso momentos depois de falhar na
tentativa. Ela ficou sozinha comigo por um bom tempo, se você se lembra, e tudo o que ela
fez foram ameaças.
— Sim, mas vocês foram interrompidas, não foram? Você realmente acredita que as
intenções dela mudaram?
— É impossível dizer com certeza.
— Então direi isso —, disse Ramsés. — Foi a vergonha que a afastou da ópera.
Vergonha e raiva de mim por permitir que Marco Antônio fosse derrotado tantos anos
atrás. Ela estava possessa. Foi por isso que ela perdeu o controle e dirigiu para os trilhos
do trem. Veja, ela nunca quis o elixir. Eu ofereci a ela quando ela era rainha, e ela recusou-
o. Só quando seu amante, seu compatriota, estava prestes a ser derrotado, ela me pediu, e
mesmo assim, ela o quis para ele e apenas para ele. Por algum sonho louco de um exército
imortal.
— E você estava certo em não dar a ela, Ramsés. Pense em como o mundo poderia ter
mudado terrivelmente como resultado. Às vezes, a morte é a única coisa que pode nos
libertar de um déspota. Se essa mão divina parasse de influenciar daqueles que estão no
poder... Bem, eu estremeço só de pensar.
—Não sei o que dizer—, disse ele. Sua voz se transformou em um sussurro. —
Verdade, ela era uma rainha, mas ela teria sobrevivido ao seu despotismo. Eu era um rei
e sobrevivi ao meu; eu me retirei das câmaras de poder. Eu não sei. Eu nunca saberei. Eu
sei que ela agora está viva e mata sem hesitação ou remorso. E eu sou responsável por
isso, por quem ela é agora, nestes tempos. E temo que ela seja muito mais perigosa agora
do que jamais poderia ter sido naquelas épocas antigas.
Julie não respondeu. Ele a mirou. Ela havia se sentado novamente à mesa e olhava-o
com grande tristeza.
— Eu não a amo, minha querida, — ele disse. — Não é saudade dela que você ouve.
Isso é arrependimento pelo que eu fiz ao despertá-la.
Aproximou-se e se ajoelhou diante de Julie. Ele viu paciência em seus olhos e o mais
profundo dos afetos.
— Você é meu verdadeiro e único amor—, disse ele. — Nós temos uma verdadeira
parceria de mente, corpo e espírito, de dois imortais. Mas agora a sombra dela cai sobre
nosso caminho novamente, esta criatura que eu admiti em nosso paraíso.
Julie o pôs de pé e se virou para encará-lo quando ele se sentou à mesa em frente a ela.
— Já se passaram dois meses desde o terrível acidente dela —, disse Julie. —Se ela
ainda busca vingança, definitivamente está demorando.
— Mais uma razão pela qual estou começando a acreditar que ela não quer nenhum
contato conosco.
— Há alguma coisa que você queira me dizer? — perguntou Julie. — Ramsés, não tema
o ciúme de colegial de minha parte por esta criatura. O que quer que ela seja, eu sou igual
a ela agora em força e invulnerabilidade.
— Eu sei —, disse ele.
— E eu acredito, como eu acreditava no passado, que ela não é a verdadeira Cleópatra.
— Julie, quem mais ela pode ser?
— Ramsés, ela não pode ter a alma de Cleópatra nela. Simplesmente não pode. E
acredito que todos nós possuímos uma alma. Agora, para onde vão essas almas quando
morremos, não sei, mas certamente não descansam dentro de nossos cadáveres na terra
ou em um museu por séculos.
Ramsés estendeu a mão e acariciou seu dela. Como ela era radiante e viva, como ela
era ousada e destemida.
Almas. O que qualquer um de nós sabe sobre almas?
Tantas coisas passavam por sua cabeça, tantas orações antigas, tantos cânticos. Ele viu
os rostos de antigos sacerdotes. Foi subitamente atingido pelo fardo do dever que tinha
sido seu por muitos longos anos como rei, no qual ele participava de rituais ao amanhecer,
anoitecer e meio-dia. Havia descido na nova tumba que estava sendo preparado para ele
durante seu reinado e teve as infindáveis inscrições nas paredes lidas em voz alta para
ele. Sua alma deveria viajar pelos céus após sua morte terrena. Mas onde ela estava agora?
Dentro dele, é claro.
Era demais. Ele sabia que aquela criatura era Cleópatra! Julie podia dizer que era
impossível, chamá-la de aparição, um monstro, e falar de reinos cristãos para os quais as
almas voam com asas invisíveis. Mas ele sabia que aquela coisa que ele havia criado no
Museu do Cairo era Cleópatra.
— Venha—, disse Julie. — Vamos caminhar. Estamos em uma das cidades mais bonitas
do mundo e não precisamos dormir. Se quisermos voltar logo para Londres, vamos andar
por essas ruas sem medo de batedores de carteira, de acidentes ou da própria Cleópatra.
Com uma risada de alegria, ele permitiu que ela o colocasse de pé com uma força que
Julie não possuía meses antes.
6
O inglês fez amor como um francês, e Michel Malveaux ficou profundamente grato por
isso.
Os garçons e crupiês do cassino se referiam ao homem como o Conde de Rutherford,
e era assim que Michel preferia pensar nele agora. O título era um lembrete elegante de
como ele era diferente dos outros clientes de Michel.
Ele levara Michel para a cama com o mesmo vigor com que jogava nas mesas do
cassino por vários dias seguidos. O vigor de um homem com metade de sua idade. O vigor
de um homem com metade da idade de Michel, aliás. Seus movimentos não emanavam a
menor sensação de pressa. Tampouco hesitação ou nervosismo. Na verdade, o belo
aristocrata de olhos azuis acariciou, explorou e provou o corpo de Michel com a mesma
vivacidade que Michel havia experimentado em homens mais jovens nos vinhedos atrás
da fazenda de sua família quando era menino.
Não, nada parecido com seus outros clientes, aqueles homens e mulheres que o
convidavam a voltar para seus quartos de hotel com sinais furtivos e codificados. Que se
despediam dele apressadamente, assim que o ato estava consumado, mas não antes de
lhe darem o presente necessário. Dinheiro, jóias ou a promessa de uma boa refeição, tudo
com a intenção de comprar sua discrição e talvez seu retorno na noite seguinte em
circunstâncias semelhantes.
Até o quarto era diferente.
Michel frequentava bastante os quartos do Hotel de Paris, mas não esta suíte em
particular, com seu papel de parede da cor de um céu claro, janelas altas que se abriam
facilmente para o mar e uma pequena varanda. E como era audacioso o conde deixando
as janelas abertas para que a brisa do oceano acariciasse seus corpos nus enquanto se
entregavam a uma paixão que muitos considerariam indizível.
Mas foi exatamente essa audácia que atraiu Michel para o homem vários dias antes. O
conde era um dos melhores jogadores que já tinha visto. Possuidor de uma habilidade
quase sobrenatural de ler o baralho, a roda e as expressões do crupiê. E todos os dias, no
exato momento em que parecia que poderia levantar suspeitas da banca, ele gentilmente
se afastava da mesa. Depois dava uma gorjeta generosa aos garçons, que o mantinham
bem alimentado com um suprimento constante de pequenos petiscos que pareciam
sustentá-lo.
Quais seriam seus truques? Michel estava desesperado para saber. Pois foi por isso
que ele tinha vindo a Monte Carlo anos antes: para aprender os segredos dos melhores
jogadores, para dominar a própria sorte, para poder sustentar sua mãe enferma e viúva.
Sua pobre mãe.
Ela acreditava que ele havia alcançado seu objetivo. Teria partido o coração dela saber
que o dinheiro que ele mandava para casa vinha do atendimento às necessidades privadas
e sensuais dos ricos. Ele havia recentemente enviado a ela um anel de esmeralda
incrustado de diamantes, e ela havia escrito no outro dia para dizer a ele que o usava com
orgulho e grande alegria sempre que suas irmãs vinham visitá-la. Se ela soubesse que
tinha sido presente de um general alemão e sua esposa depois de levar os dois a
momentos simultâneos de êxtase, ele tinha certeza que ela ficaria arrasada.
Mas Michel era um homem mais jovem e mais tolo quando saiu de casa. E depois de
apenas alguns meses morando em um apartamento lotado com vários crupiês, se viu
forçado a encarar a verdade. Ele já era um excelente amante, mas demoraria algum tempo
para se tornar um jogador melhor. Nenhuma escolha a não ser colocar seu primeiro dom
em uso enquanto tentava adquirir o segundo.
Mas agora ele queria saber muito sobre aquele homem, além dos truques nas mesas.
Muito mais.
E quando o conde o levou ao clímax, os gritos que escaparam de Michel soaram
suplicantes e extasiados, e o conde de Rutherford pareceu deleitar-se com eles,
aumentando o ritmo de suas estocadas até que ambos estivessem amontoados nos lençóis
emaranhados.
A sonolência o dominou.
Seu companheiro, por outro lado, não parecia nem remotamente cansado. Ele
acariciou o cabelo de Michel molhado de suor, afastando-o da testa.
— O conde de Rutherford tem muitos segredos e habilidades, — Michel finalmente
sussurrou.
— Talvez depois de outro momento como este, eu consiga convencê-lo a me chamar
de Elliott.
— Você é um homem de grande mistério e habilidade, Elliott.
— Você fala das minhas habilidades na mesa de blackjack ou...? — Com um dedo, o
homem desenhou um lento círculo no estômago de Michel.
— Ambas as coisas.
— Entendo. E então os boatos sobre você são verdade, jovem Michel Malveaux.
— Que boatos?
— Que você é muito hábil na arte da sedução. Que assim você ganha bem a vida. Talvez
seja por isso também que eu quis tanto mostra-lo a extensão de minhas habilidades.
— Somos cortesãos adversários, então?
— Não, dificilmente.— Elliott riu.
— Tenho certeza. Você tem um título.
— E o que exatamente este fato permite que você presuma sobre mim?
— Nada—, sussurrou Michel. — Não posso presumir nada sobre você, pois você já
desafiou todas as minhas expectativas. Você não tem nada da reserva de um aristocrata
inglês e qualquer pretensão. Pelo menos quando comparado com os que conheci.
— Quantos você conheceu, querido menino? — perguntou Elliott com um sorriso
malicioso.
— Seja gentil, Elliott. Nem todos nós descendemos de grandes riquezas. Fazemos o
que temos que fazer para sobreviver.
— Para você, não desejo ser nada além de gentil—, disse ele, e deu-lhe um beijo gentil,
— repetidamente e com grande entusiasmo.
— E então os rumores sobre mim não incomodam você?
— De modo algum. Minha vida está em um período de grande transição. Como
resultado, fui libertado de velhas restrições e rótulos.
— Seu título é um desses rótulos dos quais você agora está livre?
— Se é o meu título que me permite ter acesso a uma beleza como a sua, jovem Michel,
espero nunca me livrar dele.
— Essa ousadia, Elliott. Isso define você. De onde vem? Sua habilidade nas mesas lhe
dá essa confiança?
— Você deseja aprender meus truques, é isso? Você acha que eu tenho contado as
cartas?
— Desejo aprender muitas coisas sobre você, Elliott.
Ah, e lá estava, uma pequena rachadura na fachada do homem, um olhar
repentinamente distante em seus olhos azuis cristalinos. Ele tinha falado demais? Havia
muito desejo nessas palavras? Era quase complacente a maneira como Elliott roçava a
lateral do rosto com os dedos dobrados.
—Poderíamos dizer que estou vivendo uma grande aventura. Mas também estou
trabalhando para pagar algumas dívidas. Agora tenho o privilégio de combinar os dois
empreendimentos.
—Pagando dívidas. Com seus ganhos?
—Sim.
— E logo você vai seguir em frente? — perguntou Michel, esperando ter colocado
bastante frieza em suas palavras.
— Sim.
— Para Baden-Baden, ou outro cassino, onde você usará suas habilidades até atrair as
suspeitas da casa.
— Você é um menino inteligente, Michel. Está claro que você viu muito do mundo.
— De jeito nenhum. Tenho visto muito de Monte Carlo. E grande parte do mundo agora
vem para Monte Carlo.
— Grande parte do mundo que tem dinheiro vem para Monte Carlo. Mas há grande
parte do mundo que não tem dinheiro. E há grande parte do mundo que permanece
envolto em grande mistério.
— Quanto você viu deste mundo misterioso, Elliott?
Parecia que Elliott de repente foi capturado por memórias tão vívidas que levaram sua
mente para longe desta bela suíte de hotel com sua vista imponente do mar. Michel se
sentia como se fosse uma tela através da qual Elliott estava olhando, e isso o feriu mais
profundamente do que ele queria. Era um cruel lembrete de que eles logo se separariam.
Que logo o conde de Rutherford se tornaria apenas mais um viajante cuja generosidade e
atenções ele conhecera por apenas um momento.
— Meu querido Michel—, Elliott finalmente sussurrou. Era claro que ele havia se
esquecido de si mesmo e as palavras que vinham dele agora eram espontâneas. —
Ultimamente tenho visto coisas neste mundo que desafiam qualquer explicação. Coisas
que me levaram a questionar tudo em que um dia acreditei sobre a vida e a morte. Tudo
graças a um rei.
Um rei? Mas ele não disse nada. Fazer isso seria destruir a sinceridade súbita e
hipnótica do homem. Mas Elliott lembrou-se disso quase instantaneamente. Uma
expressão de medo passou por seu rosto. Ele tentou disfarçar com um sorriso repentino
e caloroso, mas o fez um segundo atrasado.
— Lave-se e depois nos sentaremos na varanda e apreciaremos a paisagem.
A temperatura pareceu cair vários graus no segundo em que o peso de Elliott deixou
o colchão. Parecia uma dispensa, mas ao menos o conde de Rutherford não havia pedido
que ele fosse embora. Michel não estava sendo mandado para fora do quarto. Ainda não,
pelo menos. E então ele se lavou, seguindo as instruções que lhe foram dadas.
Quando ele voltou para o quarto, Elliott estava sentado na varanda do lado de fora. A
fumaça de seu cigarro subiu em uma espiral ao lado de sua cabeça.
Havia uma carta na cômoda ao lado da carteira de Michel e, embora ele não precisasse
dela naquele momento, por algum motivo, sua proximidade parecia uma desculpa para
dar uma espiada nas poucas páginas de letra manuscrita.
Sabendo que aquela noite maravilhosa logo chegaria ao fim, que aquelas palavras
poderiam ser talvez a única coisa real que ele vislumbraria sobre o homem que a
propiciara, Michel examinou a carta com o que parecia ser uma fome desesperada.
O autor era filho do conde, um certo Alex Savarell.
Ele estava grato por Elliott finalmente telegrafá-lo informando a data de sua chegada
a Monte Carlo. As somas de dinheiro que Elliott transferiu para sua família foram muito
apreciadas. Como resultado, eles reabriram a propriedade rural de Yorkshire,
contratando mais funcionários. Lá era onde dariam uma festa de noivado para uma
mulher chamada Julie Stratford e seu novo noivo, um tal Sr. Reginald Ramsey.
Em páginas adicionais, ele notou repetidos apelos para que Elliott retornar à
Inglaterra. Mas não houve menção do que exatamente conectava Julie Stratford e Reginald
Ramsey ao conde de Rutherford e seu filho. Referências a uma “grande e calamitosa
aventura pelo Egito”, mas nenhum outro detalhe, exceto insinuação de que Elliott estava
viajando, em parte, para escapar das implicações daquela “aventura”.
Um ruído de metal vindo de fora o assustou.
Ele largou a carta e se afastou da cômoda.
Elliott simplesmente apoiou um pé contra a grade da varanda para que pudesse
inclinar a cadeira para trás sobre as pernas traseiras.
Sua espionagem passou despercebida. Ou não? O homem parecia ter uma habilidade
sobrenatural de ler as mesas de jogos. Será que ele agora poderia detectar os atos furtivos
de Michel a poucos metros de distância?
Ele vestiu a calça tentando fazer barulho.
Quando ele saiu para a varanda, Elliott cumprimentou-o com um sorriso e gesticulou
para a cadeira vazia ao lado da sua.
Abaixo, o porto brilhava.
Havia tantas perguntas que ele queria fazer ao conde, Elliott dos lindos olhos azuis,
muitas coisas que ele queria saber, mas temia que o esforço fosse o mesmo que estender
a mão rápido demais para um balão caindo; um simples toque o faria flutuar com
velocidade repentina.
Coisas que me levaram a questionar tudo em que um dia acreditei sobre a vida e a morte.
Tudo graças a um rei.
O que essas palavras podiam significar?
E por que Elliott estava sorrindo para ele?
Ele sabe, Michel pensou, ele sabe que li a carta. Ele podia sentir isso da mesma forma
que podia sentir quais cartas o crupiê irá distribuir.
— Você é jovem—, disse Elliott finalmente.
— Por que me lembrar disso? —perguntou Michel.
— Porque você deseja ir comigo quando eu partir. Por isso, é meu dever dizer-lhe que
seria uma péssima ideia. Esplêndida para mim, talvez, mas terrível para você.
— E por quê?
— Porque você é jovem, meu querido menino.
— E você tem a confiança de alguém tão jovem quanto eu.
— Por que você diz isso?
— Porque você tem como certo que eu iria com você a qualquer momento. — Michel
deu-lhe um sorriso irônico, ao qual Elliott retribuiu.
— Diga-me que estou errado — sussurrou o conde.
Ele não podia. Na verdade, ele mal conseguia sustentar o olhar curioso do conde e
percebeu que estava corando e fazendo beicinho.
— Seus truques nas mesas. Talvez seja a única coisa que me interesse.
Elliott riu calorosamente, sem se ofender.
— Sorte, meu querido menino. Isso é tudo. Pura sorte. A mesma sorte que me trouxe
uma noite tão linda com alguém como você.
— Você me lisonjeia.
— Não. Falo com mais franqueza do que você está acostumado.
Sim, pensou Michel. Porque você é audaz, e é a fonte de sua audácia que desejo conhecer.
Para saboreá-la.
— Uma esposa se reunirá a você na sua próxima escala —, disse Michel.
— Não mesmo —, disse Elliott.
— Eu sei que sim. Uma esposa e uma família de filhos e seria impossível para você
explicar que sou seu novo criado porque sou muito bonito e jovem. E francês!
— Ah! Eu sabia! Você deseja se juntar a mim —, respondeu Elliott.
— Receio que sua sorte faça minha língua se soltar demais.
— Minha esposa e eu temos um acordo e levamos vidas separadas, cada um com um
grau apropriado de expectativa do outro, e nosso único filho é crescido. E nenhum deles é
o motivo pelo qual terei que me despedir de você no fim desta noite. Mas chega de falar
de mim. E você, Michel? Existe uma mulher especial em sua vida?
— Fiz muitas amizades em Monte Carlo.
— Entendo. Mas você prefere a companhia de homens, não é? Eu percebi isso.
— Foi uma sensação que você gostou?
— Muito mesmo. Mas posso dançar à luz do sol ou da lua. Se esse não for o seu caso,
querido menino, você não deve ter vergonha disso. Mas você também não deve se
apaixonar pelo primeiro homem que não fizer amor com você como se fosse uma coisa
rápida e vergonhosa que deve ser despachada prontamente para evitar descoberta.
— Você acredita que é esse homem para mim? — Havia um tremor na voz de Michel,
e a presença desse tremor transformou sua pergunta em uma declaração, uma confissão.
Sim. Você tem sido esse homem para mim, conde de Rutherford.
— Não me permita ser, querido Michel. Isso é o que peço a você. Pegue suas memórias
de mim e desta noite, e deixe-as inspirar você.
— Inspirar-me de que maneira?
— Inspirar você a evitar todos aqueles que o tratariam como se você fosse algo
vergonhoso.
Não devia chorar com essas palavras. Devia permanecer calmo, equilibrado.
Profissional, se é que tal conceito poderia se aplicar àquela noite. Afinal, Elliott ainda não
havia oferecido um presente, e Michel não teve coragem de pedi-lo. Na verdade, aquela
conversa sem pressa, na varanda com sua bela vista, era um presente o mais que
suficiente.
— Você é um mistério completo, Elliott, um mistério que diz coisas estranhas sobre a
vida, a morte e os reis.
Elliott riu e se levantou. Quando segurou o rosto de Michel com as mãos, este não
conseguiu evitar olhar para o deslumbrante azul de seus olhos.
— Então pense em mim como um mistério —, sussurrou Elliott.
— Um mistério que logo vai partir.
—A noite ainda não acabou, e em sua presença, querido Michel, me sinto
milagrosamente restaurado.
Surpreendente. Ele poderia realmente repetir?
Quando Elliott o jogou na cama, Michel teve sua resposta.
De repente pensou nas estátuas de mulheres de seios nus que formavam parte da
fachada do hotel. Elas estavam apenas alguns andares abaixo, aquelas estátuas, seus
braços abertos como asas. Pela primeira vez dentro daquele grande hotel, Michel se sentiu
literalmente apoiado por aquelas mulheres de pedra seminuas de coragem sensual e
desavergonhada.
NÃO ERA A PRIMEIRA VEZ que ele voltava para casa ao amanhecer, cheirando à pele de outra
pessoa. Mas foi a primeira vez que ele fez isso com o coração tão pesado.
Por isso, não o surpreendeu por ter demorado tanto para notar os passos que vinham
atrás dele.
Foi a velocidade deles que finalmente chamou sua atenção.
No momento em que ele ergueu a vista, a mulher estava caminhando diretamente ao
lado dele. Ela não parecia bêbada ou desgrenhada. Uma presilha com joias prendia seu
cabelo dourado em um coque elegante no alto da cabeça, mas seu espartilho parecia solto
sob a blusa; sua saia plissada dava-lhe a impressão de estar pronta para uma manhã de
compras. Mas as lojas demorariam horas para abrir. Na verdade, apenas o mais tênue
rubor do amanhecer beijava as águas do porto.
Havia algo estranho nos sapatos dela. Eles eram robustos, resistentes, não pareciam
feitos para passeios relaxantes.
—Espero que você tenha passado uma noite agradável com o conde de Rutherford. —
Ela tinha um sotaque britânico perfeito. Aparentemente, era a noite dos ingleses.
— E quem é você, mademoiselle? — perguntou Michel.
— Alguém que vê as coisas tão bem quanto você, Michel Malveaux.
Em outra noite, ele teria tentado cativá-la, seduzi-la. Canalizar sua curiosidade para
uma experiência sensual que ela desejaria manter em segredo. Isso, por sua vez, manteria
em segredo qualquer coisa que ela pudesse ter testemunhado entre ele e o conde. Era
assim que os segredos funcionavam. Mas sua saída do quarto de Elliott o deixou abalado
e vulnerável. Sem mencionar o fato de que ele estava completamente esgotado pelo desejo
insaciável daquele homem.
— Se você tiver a gentileza de me desculpar, é muito tarde e neste momento não estou
com vontade de falar sobre minha noite.
Em um piscar de olhos, ela agarrou um de seus pulsos. Ela agarrou-o com uma força
incrível. E os olhos que de repente se fixaram nele eram tão azuis quanto os do Conde de
Rutherford.
— Se é cedo ou tarde é uma questão a se discutir, você não acha? — perguntou ela. —
E depende muito de como se passou as horas anteriores.
Não foi a primeira vez que ele foi ameaçado. Os clientes apontavam-lhe facas,
ameaçavam-no com garrafas de bebida vazias. Mas ele sempre conseguiu encontrar uma
maneira de cativá-los. Essa mulher, por outro lado, possuía um propósito e uma malícia
que não eram fruto de embriaguez, desespero ou luxuria. E assim Michel só viu uma saída:
mentir.
— Independentemente da hora, o que fiz esta noite é problema meu. Não sei quem é
esse Conde de Rutherford e quero que solte minha mão imediatamente.
Ela não atendeu ao pedido.
— No entanto, a primeira vez que eu disse o nome dele, você não expressou confusão.
Você só perguntou o meu.
— E você ainda não me disse. Por favor, deixe-me ir.
Ele puxou o pulso abruptamente. Ela soltou-o com um sorriso e retirou
ostensivamente a mão. Ambos os gestos indicavam que ela poderia facilmente ter
continuado a segurá-lo, não importa o quanto ele tivesse lutado.
— Estou apenas de passagem —, respondeu ela, e Michel viu que aquilo não era
absolutamente uma resposta. — Mas você é daqui e tem uma reputação a zelar. — Ela
praticamente desdenhou quando disse a palavra reputação.
— Temos um código aqui, mademoiselle, mas aparentemente você o desconhece.
— Sério?
— Sim. Os que estão de passagem não têm poder de manchar a reputação dos que
ficam. Não é assim as coisas funcionam em Monte Carlo.
Era um total absurdo essa afirmação. Uma reclamação irada de um visitante rico a um
dos hotéis poderia barrar sua entrada para sempre. O próprio príncipe poderia escoltá-lo
até a fronteira caso seu comportamento de alguma forma ameaçasse o fluxo de turistas
que vinham àquele pequeno paraíso à beira-mar. Mas a mulher diante dele parecia
impressionada com sua confiança, para dizer o mínimo. Talvez um pouco da audácia do
Conde o tenha influenciado.
— Descanse um pouco, Michel—, disse a mulher. — Estou convencida de que nos
encontraremos novamente.
— Acredito que sim. Talvez em circunstâncias mais agradáveis, que nos permitam nos
ver sob uma luz diferente.
Ele ergueu a mão dela e deu um beijo gentil.
Ele deveria ter tentado aquela estratagema antes. Agora provavelmente era tarde
demais para sedução, pois ele havia conquistado sua ira, quem quer que ela fosse.
Quaisquer que fossem seus motivos.
Ela sorriu, acenou com a cabeça e depois recuou com passos tão rápidos quanto
aqueles que a levaram até ele.
De onde ela veio? Do hotel? De um dos navios do porto? E o que ela estava procurando?
Informações sobre o Conde de Rutherford ou informações sobre ele, Michel?
Deveria avisar Elliott de que uma estranha os vira juntos e suspeitava de algo?
Este último pensamento ainda o perseguia quando ele chegou ao seu minúsculo
apartamento.
Enviar uma missiva a Elliott, fazer qualquer tentativa de se comunicar com ele
novamente, seria quebrar a confiança depositada nele por todos os seus clientes, já que
só havia uma maneira de fazer isso, e era através da recepção do hotel.
Seria a mulher uma esposa zangada de algum cliente anterior?
Seria ela a esposa de Elliott?
Esses pensamentos eram insanos; lançavam-se sobre ele como um bando de gaivotas,
como se ele fosse o único homem em quilômetros com um pedaço de pão na mão.
Não tem nada a ver com o Conde de Rutherford, ele finalmente disse a si mesmo, e essas
palavras, junto com as que se seguiram, tornaram-se um mantra que o levou ao sono. O
Conde de Rutherford não tem medo. O Conde de Rutherford não se preocupa com o mundo e
nunca se preocupará.
Ele acordou apenas algumas horas depois, sentindo-se ligeiramente descansado, mas
ainda insuportavelmente inquieto.
Antes que pudesse pensar duas vezes sobre o assunto, ligou para a recepção do Hotel
de Paris e pediu para ser transferido para o quarto de Elliott. Quando lhe disseram que o
homem havia deixado o hotel horas antes, Michel sentiu uma saudade penetrante e um
tremendo alívio.
Ele estava grato por Elliott ter partido logo depois que eles disseram adeus, pois isso
significava que ele provavelmente tinha sido poupado de um encontro com a estranha
louca que perambulava pela noite com mãos poderosas.
Ele sentiria muita falta de Elliott.
Esperaria secretamente por seu retorno.
Ele acalentaria cada lembrança que pudesse de seu tempo juntos, usaria esses
momentos para se satisfazer. Perigoso demais anotá-los e arriscar ser descoberto, mas,
ah, como ele queria. Sua memória teria que bastar.
Mas, ao encerrar a ligação para o hotel, percebeu que seria o fim de sua breve aventura
de amor.
Três dias depois, alguém bateu na porta de seu apartamento. Ele estava quase
terminando de se vestir para a noite, prestes a sair para o cassino em busca de novos e
antigos clientes. Ainda estava fechando uma das abotoaduras quando abriu a porta e viu
um envelope pousado no degrau da frente.
Esquecida a abotoadura, ele rasgou o envelope e retirou uma folha de papel com um
mapa do porto desenhado à mão. Uma flecha apontava uma rampa para só uma
embarcação.
Preso ao pedaço de papel com um pequeno alfinete estava o anel de esmeralda e
diamantes que ele enviara para a mãe semanas antes.
8
Ele saiu correndo de seu apartamento vestindo calças, uma camisa formal e uma
gravata borboleta. Para os turistas pelos quais passava, ele deve ter parecido um garçom
chegando terrivelmente atrasado para seu turno.
Mas ele não ligava para o que as outras pessoas pensavam. Seus únicos pensamentos
eram sobre a mãe. Sua pobre e frágil mãe, a apenas um dia de viagem de trem. Sua mãe,
que apreciava tanto o anel que ele agora carregava no bolso que sempre o usava quando
recebia visitas.
Alguém havia tirado aquele anel dela.
Ou a haviam trazido para Monte Carlo com ele.
Ambas as possibilidades o apavoraram.
Já estava escuro quando ele chegou ao porto. O cais em questão fora preenchido por
um navio quase tão grande quanto o iate real de Mônaco. Parecia um transatlântico em
miniatura com sua única chaminé e um longo casco branco com uma fileira de vigias.
A mulher de punho poderoso esperava por ele no convés. Ela havia mudado de seu
vestido matinal para um vestido de baile escuro com babados. E por alguma razão o
aterrorizou que ela considerasse o horrível presente que havia deixado em sua porta
como uma ocasião digna de um vestido luxuoso. De repente ele entendeu porque estava
calçando sapatos de sola dura e uma explicação de por que ela parecia ter saído do próprio
porto.
Esse navio era a casa dela.
—Onde ela está? — gritou Michel, incapaz de se conter.
—Acalme-se se quiser embarcar—, disse a mulher. Sua superioridade era irritante. Ele
teria quebrado seu pescoço e a jogado no mar, se pudesse. — Não queremos alarmá-la
ainda mais.
Então ela estava ali. Esta mulher, de alguma forma conseguiu trazê-la. Como
prisioneira, com certeza, o que significava que ela não estava trabalhando sozinha.
Ela estendeu-lhe a mão.
Não estava apenas oferecendo ajuda para embarcar. Estava lembrando-o da força que
havia mostrado em seu primeiro encontro. Claro, Michel não teve escolha a não ser aceitar
a oferta, embora o contato com a pele dela o enojasse.
Por dentro, o iate era decorado com tanto elegância quanto os quartos do Hotel de
Paris. Acessórios de latão, algumas antiguidades e estofados em tons pastéis, todos
visivelmente e invisivelmente aparafusados para evitar que fossem jogados ao mar.
Atrás da casa do leme, uma cabine central alongada levava a uma sala mais rebaixada
de onde começava um corredor curto, forrado com madeira escura, que levava às cabines.
No meio da cabine central estava uma mulher da mesma estatura de sua mãe,
amarrada a uma cadeira. Havia um saco de papel sobre sua cabeça. Dois homens bem
vestidos a flanqueavam. Um deles era enorme. Embora sua barba ruiva era aparada e bem
penteada, ele tinha a aparência de um viking gigante no que os britânicos chamavam de
vestido de noite. O outro homem parecia extremamente ágil em comparação. Mas os dois
olhavam para Michel com o mesmo olhar fixo da mulher que o levara àquele lugar.
Aterrorizante que eles estivessem usando smoking e gravata borboleta durante um
sequestro. Terrível e aterrorizante, pois sugeria que eram capazes de cometer tais crimes
sem nem mesmo romper uma costura.
—Boa noite, Monsieur Malveaux—, disse o homem mais baixo.
—Deixe-me vê-la.
Michel teve a sensação de que alguém havia dito essas palavras através dele.
O homem removeu o saco.
Sua mãe tinha sido amordaçada com um laço de pano amarrado em volta da cabeça.
Seu rosto magro e enrugado tinha a mesma expressão cansada que ela mostrava sempre
que estava exausta por um ataque de choro. Mas quando ela viu o filho, seus olhos se
arregalaram e ela fez um som desesperado através da mordaça. O gigante reagiu
colocando uma grande mão no topo de sua cabeça. Ele acariciou seus cabelos. Teria tanta
força quanto sua parceira?
Michel correu para ela e ajoelhou-se. Eles permitiram a ele essa demonstração. E isso
o apavorou ainda mais. Eles pareciam não temer o que ele poderia fazer.
Ele colocou as mãos sobre as dela. Ela inclinou a cabeça para o lado, tentando
transmitir alguma mensagem apenas com os olhos. Michel murmurou desculpas e
garantias tentando tranquilizá-la, apesar de não saber quais eventos os haviam conduzido
a esta conjuntura terrível.
—Bem—, disse a mulher finalmente, — você se acha um pouco mais inclinado a
comentar sobre a noite que passou com o Conde de Rutherford?
—Sim. —Michel levantou-se de um salto. A mulher estava agora ao seu lado. Quando
ele se virou para ela, seus narizes quase se tocaram. —Tudo. Eu vou lhe contar tudo se
você prometer libertá-la. Mantenha-me aqui para qualquer propósito e pelo tempo que
quiser, mas, por favor, deixe-a ir!
—Ótimo—, disse o homem baixo. —Vamos ouvir sua história, então.
O tom casual da voz do homem era insano, como se Michel tivesse sido trazido ali para
se aconselhar sobre os melhores restaurantes de Monte Carlo.
—Minha mãe não precisa ouvir isso. Ela nada sabe sobre aquele homem.
—Nem mesmo a vida que você leva aqui, suponho—, disse a mulher.
O baixinho disse ao seu compatriota:
—Leve-a para a popa. Dê-lhe um pouco de água. Se nosso novo amigo for
comunicativo, der também algo para comer. Suponho que ela vai estar com muita fome
depois de nossa viagem.
O gigante agarrou com os dois braços a cadeira onde a mãe de Michel estava sentada.
Ele carregou-a vagarosamente pelo corredor e a colocou em uma das cabines privadas.
Como ele poderia ter tal pedido? Assim que perdeu a mãe de vista, o pânico o dominou
novamente. Como poderia tê-la mandado embora dessa forma?
Essas pessoas o manipulavam à vontade. Seu amor, sua vergonha, sua necessidade de
segredo. Quem eram esses malditos monstros?
Sua mãe estava a uma curta distância, mas, dadas as circunstâncias, parecia que
quilômetros de terreno montanhoso os separavam. E assim, de uma vez, ele relatou sua
noite com o Conde de Rutherford.
Nunca antes havia discutido sua vida, sua profissão, em detalhes tão imprudentes. Mas
essas pessoas não irradiavam nenhum julgamento, apenas um cálculo frio disfarçado de
atenção.
Quem quer que fossem, seus segredos sexuais não pareciam interessá-los. Os detalhes
sobre o Conde de Rutherford, no entanto, mantiveram esses seres monstruosos em
suspense. E quando ele repetiu as estranhas palavras que Elliott havia compartilhado com
ele sobre a vida e a morte e um rei, o homem e a mulher diante dele deram um passo à
frente, fascinados.
—Tudo graças a um rei. — O fizeram repetir essa frase várias vezes.
E oh, como doeu para ele incluir detalhes da carta escrita pelo filho de Elliott. A festa
de noivado em sua propriedade em Yorkshire. Os nomes de Julie Stratford e Reginald
Ramsey. Mas Michel também era um filho, e sua mãe, a vida de sua pobre e doce mãe
estava em jogo.
—Repita esse nome—, interrompeu a mulher.
—Qual?
—Ramsey, você disse? Sr. Reginald Ramsey?
Michel assentiu com a cabeça e, pela primeira vez, o homem e a mulher que o
mantinham cativo desviaram-lhe o olhar e entreolharam-se fixamente.
—Tudo graças a um rei—, sussurrou a mulher.
AS PERNAS DE SUA MÃE fraquejaram quando chegaram à colina que levava a seu
apartamento.
Michel ainda estava surpreso por terem sido libertados tão cedo. Impossível não olhar
para trás enquanto ele e a mãe corriam para fora do porto.
Quando ele desceu do barco, implorou à mãe para conter-se e não dizer uma palavra.
A pior coisa que podiam fazer era alertar os outros sobre o que aquelas pessoas horríveis
haviam feito.
Mas ela estava desesperada para contar a ele sobre sua experiência terrível, de como
haviam entrado em sua pequena casa para levá-la como se ela não pesasse nada, como se
ela não fosse nada. Como se isso não tivesse a menor importância. Pouco depois de Michel
convencê-la a ficar quieta, a exaustão a dominou.
Por isso ele foi forçado a carregá-la nos braços, como um noivo cruzando a porta de
sua casa nova com sua amada.
Quando Michel entrou no apartamento, sua mãe estava delirando. Mas apesar de seu
torpor, ela conseguiu comentar sobre como o apartamento era lindo, embora tivesse
apenas um quarto. Sobre como estava orgulhosa dele. Muito, muito orgulhosa. Que
sempre fora muito orgulhosa. E Michel se deu conta que ela sabia que ele pensava que a
história que contara aos seus captores a envergonharia, e agora ela estava tentando
libertá-lo de seu medo e culpa, e isso trouxe lágrimas aos seus olhos.
Ele a acomodou na cama, encheu um copo d'água e a encorajou a beber. Ao fazer isso,
ele notou a protuberância dura do anel de esmeralda em um bolso de sua calça, puxou-o
para fora e delicadamente pegou a mão direita de sua mãe. A princípio ela ficou confusa,
então o viu colocar o anel em seu dedo e com um sorriso repentino, lágrimas surgiram em
seus olhos.
—Meu menino—, ela sussurrou. —Meu querido menino, você me salvou, você me
salvou de novo como sempre faz.
Michel deu-lhe um breve abraço para que ela não visse suas lágrimas, para que
pensasse que ele era tão forte quanto ela precisava que fosse, agora e para sempre.
Depois de um tempo, a sonolência a dominou e, quando Michel a colocou na cama, ela
respirava profunda e regularmente.
De repente, sentiu-se sozinho e com medo novamente. Ele tinha certeza de que esse
assunto perturbador não havia terminado. Que logo haveria outra batida na porta e outro
presente horrível. Mas, ao se levantar, teve um vislumbre da vista parcial do porto sobre
a encosta dos telhados vizinhos.
Ele viu o navio em que sua mãe havia sido mantida em cativeiro navegar para o vasto
mar escuro.
Elliott, queridíssimo Conde de Rutherford. Que você seja um mistério forte o suficiente
para repelir a força das trevas que não tive escolha a não ser liberar contra você.
9
Mar Mediterrâneo
SUAS VESTES ESTAVAM DETERIORADAS, de modo que eles foram buscar roupas novas no navio.
Mas ele ainda não tinha se vestido. Nu, ele mastigava grandes pedaços das frutas e do pão
que haviam trazido para ele. Teria sido mais fácil servi-lo no iate, é claro. Mas eles não
ousaram convidá-lo a embarcar. Ainda não. Seria presunçoso.
Saqnos ainda não havia decidido deixar aquela ilha e aquela tumba.
Pelo que sabiam, ele ouviria o relato deles e pediria para ser selado novamente.
Também haviam se preparado para ira dele. No momento ele não havia mostrado
nenhuma.
Ele ouviu atentamente e com os olhos brilhantes a história do jogador imortal que fora
localizado em Monte Carlo.
Jeneva ficou maravilhada com sua pele restaurada, sua juba lustrosa e de cabelos
crespos e negros como azeviche. Nesta era moderna, a cor da sua pele seria descrita como
de oliva, típica do Oriente Médio, mas no reino em que nascera, ele servira a uma rainha
de pele negra.
Este antigo império caído, Saqnos disse a eles, existia em uma época antes de o sol de
repente e impiedosamente chamuscar o extremo norte da África, criando um deserto em
suas terras ancestrais, levando os sobreviventes da grande praga que derrubou seu reino
para o sul e o leste. Famintos e com medo de doenças, esses sobreviventes de Shaktanu se
agruparam em tribos temíveis, unidas pela mais primitiva das razões: a cor de sua pele ou
fragmentos esparsos de história, a maior parte mitos, que sugeriam uma ancestralidade
comum. E tudo isso resultou em guerras tribais incessantes. Tudo isso, esse legado de
escassez, medo e percepção equivocada, constituíram a base ancestral das tribos e reinos
que surgiriam nos anos posteriores nas fronteiras de um novo deserto criado por um sol
cruel.
Mas antes daqueles tempos terríveis, sua civilização havia sido verdadeiramente
global e, nela, as preocupações raciais que afligiam esta era moderna simplesmente não
existiam, e Shaktanu, no que era agora o vasto Deserto do Saara, era o centro do poder.
Shaktanu. Jeneva podia contar nos dedos de uma mão o número de vezes seu pai
conseguira pronunciar aquele nome sem chorar.
Agora ele não chorava.
Escutava e comia, e permitia que eles se maravilhassem com a visão de seu corpo nu
lindamente restaurado, banhado pelos raios de sol que ainda se derramavam do alto.
Jeneva nunca tinha testemunhado o despertar de um puro imortal antes.
A leve confusão de Saqnos desapareceu rapidamente. Sua consciência se recuperou
por completo antes de seu corpo. Enquanto isso, sua fome e sede eram enormes.
Quando terminaram de atualizá-lo dos acontecimentos, ele tinha comido toda a
comida que havia sido trazida para ele. E então, todos eles perceberam, em grave silêncio,
que um momento de decisão havia chegado.
Havia mais comida a bordo do navio. Ele os acompanharia?
—Eu não criei esses imortais, se isso é realmente o que eles são—, Saqnos finalmente
disse. — É por isso que você me acordou? Para saber disso?
—Em parte, sim—, respondeu Jeneva. — Tememos a rainha, como você sempre nos
ensinou. Se este Conde de Rutherford é um de seus asseclas, ou seu filho, então estávamos
certos em não...
—Bektaten dorme—, disse Saqnos rispidamente, com muita autoridade. Mas eles
deram a ele essa certeza. Que outra escolha eles tinham? Eles nunca tinham visto essa
rainha, a única com o poder de destruir todos eles. Ele raramente compartilhava detalhes
dela além do mais assustador de todos. — A intenção dela era guardar o elixir puro, não
distribuí-lo por aí. Ela não criaria imortais dessa maneira. Por tanto, se vocês me
despertaram, meus filhos, foi com a esperança de uma busca. Uma missão que nenhum de
vocês tem tempo para completar.
— Você terá tempo, mestre—, disse Jeneva. — É por isso que o despertamos.
—E por isso estamos diante escolha—, disse Callum. — Uma que não podemos
resolver sozinhos, já que somos tão poucos.
— Que escolha é essa? —perguntou Saqnos.
—Seguimos este jogador aristocrata em suas viagens ou nos reunimos em Londres e
tentamos aprender tudo o que pudermos sobre esse Sr. Reginald Ramsey do Egito?
Um longo silêncio se seguiu. Para Jeneva, foi um tormento.
Saqnos olhou além deles; ao quê, exatamente, ela não sabia. O suave bater do mar
podia ser ouvido do outro lado das paredes rochosas da caverna. A luz do sol que
penetrava na caverna começou a diminuir.
O crepúsculo logo cairia sobre a ilha e, com isso, seu pai poderia escolher iniciar outro
longo sono.
—Nós viajamos para Londres —, disse Saqnos finalmente. — Viajamos para Londres
para descobrir tudo o que pudermos sobre esse Sr. Ramsey.
SEGUNDA PARTE
10
SS Orsova
O navio era infinitamente mais potente do que aquele que a levara a Roma milhares
de anos antes.
Exceto em uma tempestade de areia, jamais havia sido exposta a ventos tão fortes.
Antes de estar disposta a aventurar-se no convés, forçara Teddy a garantir-lhe que não
seria levada pelo vento.
—As coisas se movem tão rápido agora, e esse movimento cria um vento forte e
constante—, explicou Teddy. —Se o trem que nos levou a Alexandria não tivesse teto,
teríamos notado praticamente a mesma coisa, minha linda rainha.
Isso tinha sido no primeiro dia de viagem e agora, alguns dias depois, ela reunira
coragem para se soltar da amurada e se deleitar com a agradável sensação do vento
levantando os cabelos da nuca.
Que pensamentos absurdos. Absurdo acreditar que a força fornecida pelo elixir não
seria suficiente para manter os seus pés fincados no chão.
“Olhe para os outros passageiros!” O vento não os carregava como se fossem grãos de
areia. Mas é por isso que ela precisava do belo jovem médico ao seu lado: para esclarecer
os mistérios repentinos e inesperados deste mundo moderno com suas máquinas
voadoras e trens ruidosos.
Gostaria que Teddy também pudesse lhe revelar os mistérios do elixir.
No entanto, para isso ela precisava de Ramsés. Mais uma vez, essa constatação
despertou nela grande amargura, ameaçando transformar essa viagem moderna através
dos mares até Londres em uma espécie de marcha fúnebre do espírito.
Como era possível que sua sede de vingança tivesse evaporado tão rapidamente?
Semanas antes, ela teria se deleitado com a perspectiva de torturar as respostas de seu
antigo amante, seu antigo conselheiro, seu rei imortal. Agora isso a assustava. E era
impossível colocar sua vida em perigo, disso ela tinha certeza. Claro, havia a vida daqueles
a quem ele agora amava, daqueles com quem havia viajado pelo Egito. Portanto, se ele se
recusasse a lhe dar qualquer explicação para as estranhas visões que começaram a
atormentá-la, havia a possibilidade de ameaçar facilmente um deles.
E esse casamento com Julie Stratford significava que ele também lhe dera o elixir?
Duvidava muito disso. Ela era uma covarde de pele clara. Covarde demais para aceitar o
desafio da vida eterna.
Duvidava que Ramsés tivesse oferecido o elixir a Julie. Ele ansiava apenas pela ilusão
de ter relacionamentos com mortais. Afinal, ele desejava estar livre para que pudesse
passar para o próximo sono prolongado, a próxima nova era. Por que outro motivo ele
teria negado o elixir quando ela o pediu tantos anos antes, causando a ruína total do Egito?
“Ele não negou seu pedido pelo elixir. — Era enfurecedor que a voz de sua consciência
soasse tanto como a de Ramsés. —Ele negou o pedido de Marco Antônio de reunir um
exército imortal. A você ele ofereceu, e você o rejeitou porque acreditava que reinaria até
que o corpo aguentasse”.
Quanta confusão, todavia.
Ela tirou do bolso do vestido o telegrama que Teddy lhe dera, e seus dedos se
apertaram para evitar que fosse levado pelo vento.
Ela não se lembrava de como havia voltado para a cabine, mas estava na cama, com
Teddy ao seu lado aplicando várias vezes toalhas molhadas em sua testa, bochechas e
pescoço enquanto seu peito subia e descia com um esforço tão desesperado que
provocava dor aguda em todo o torso.
Teddy a havia confortado durante outras visões, mas nenhuma tão chocante. Dor e
escuridão; coisas que se tornaram estranhas para ela depois que deixou para trás aqueles
primeiros dias de terror após sua ressurreição. E o entanto, sem aviso, eles desceram
sobre ela como uma nuvem de gafanhotos capazes de desmembrá-la membro por
membro.
Tinha apenas uma vaga memória da reação dos outros passageiros ao seu grito, de
Teddy enxotando-os com explicações vazias.
—Vertigem, só isso—, rosnou para eles. —Ela não percebeu o quão alto estávamos até
olhar por sobre a amurada.
O rosto. O rosto de uma mulher. Quem era essa estranha?
“Ramsés”, pensou ela, e o nome a encheu de ira. Mas essa ira lhe deu foco, expulsando
os últimos traços de pânico de suas veias recuperadas. “Isso é por causa do que você fez
comigo. Você me trouxe de volta dos mortos para deixar a insanidade me atormentar”.
—Cleópatra—, disse Teddy, mas sua voz estava hesitante e fraca, e ele se absteve de
usar o título favorito dela: sua rainha. E isso foi uma surpresa? O comportamento dela era
de uma sacerdotisa louca, não de uma rainha.
—Chega—, ela se ouviu dizer.
—Você deve descansar—, Teddy insistiu.
O contato repetido da toalha úmida e o toque ocasional das pontas dos dedos de Teddy
em sua garganta pareciam ácido em sua pele. De repente, ela estendeu a mão com a
intenção de agarrar o pulso dele. Só com um estrondo é que percebeu que havia jogado-o
contra a penteadeira do outro lado da cabine. Ela havia esquecido sua própria força.
A expressão no rosto de Teddy a enojou; era a mesma expressão aterrorizada da
vendedora que matara no Cairo. Espanto e incompreensão tingidos de repulsa.
—Você tem medo de mim—, disse.
Teddy não respondeu. Ele tentou balançar a cabeça, mas não conseguiu. Quedou-se
imóvel, de olhos arregalados.
—Você olha para mim e vê um monstro.
—Não! —exclamou Teddy.
—Mentiroso! —ela respondeu no topo de sua voz.
Teddy foi até ela, sentou-se na cama ao lado dela e segurou seu rosto com as duas
mãos. De repente, significou muito para ela que ele tivesse feito isso. Que sua violenta
explosão não o levou a fugir da cabine em pânico, como Ramsés fugira do local onde jazia
seu corpo ressuscitado.
—Meu único medo é não ter uma cura para o que a aflige. Sou médico, mas não posso
tratar de algo que nem sei como chamar, e ver você assim é um tormento, minha rainha.
—Ele saberá —, sussurrou Cleópatra. —É por isso que devemos encontrá-lo.
—Claro—, respondeu Teddy.
—Eu preciso de mais—, disse ela. —Tem que ser isso. Ele não me deu elixir suficiente
e é por isso que minha mente não... não...
Não é minha, foram as palavras que quase saíram de seus lábios, mas a aterrorizaram,
então ela virou o rosto para o travesseiro como uma criança assustada enquanto a
sensação horrível a rasgava com uma força paralisante. “Minha mente, meu corpo. Não são
meus”.
E a mera ideia de que um episódio tão grave como este pudesse se repetir a apavorava.
Ela pediu a Teddy que lhe mostrasse o mundo moderno, sim, mas se sua condição
piorasse, ela se tornaria sua escrava.
No entanto, Teddy estava acariciando seu cabelo, acariciado seu pescoço com os lábios
tentando atraí-la de seu devaneio escuro com terna paixão.
—Minha rainha—, sussurrou. —Eu estou aqui com você, minha rainha.
—Prove—, sussurrou ela.
—Provar o quê? —perguntou Teddy.
—Prove-me que ainda sou sua rainha.
Ela usou sua força novamente, de forma medida desta vez, para jogá-lo na cama. Ela
montou nele, rasgando sua camisa com força suficiente para arrancar os botões. E quando
sentiu a rigidez dele sob ela, quando viu o medo em seus olhos substituído por desejo,
quando sentiu nele a luxúria por ela, mesmo que ela estivesse liberando o lado mais brutal
de seu ser ressuscitado, o terror diminuiu e o gosto dos lábios de Teddy era um bálsamo
tão doce quanto néctar.
E uma vez que estavam nus e unidos, com seu pênis dentro dela, Teddy disse as
palavras que ela desejava e disse sem hesitação ou medo.
—Sempre—, sussurrou Teddy. —Sempre minha rainha.
13
Londres
— E quando eu disse a ela que tinha o título de lorde e nenhum dinheiro, ela respondeu
da maneira mais estranha, Julie—, disse Alex Savarell. — 'Vou obter a riqueza, milorde,
isso não é nada. Não quando alguém é invulnerável. ' O que diabos você acha que ela quis
dizer?
— Alex, você não deve se torturar assim—, respondeu Julie.
— Não é uma tortura. De verdade. É que ela era tão estranha, tão estranhamente
confiante. Não posso deixar de me perguntar se ela era invulnerável de alguma forma. Mas
se fosse, ela teria sobrevivido àquele terrível acidente e a todas aquelas chamas.
— Eram delírios de uma louca, querido—, disse Julie. — Isso é tudo. Qualquer tentativa
de decifrá-los com certeza o deixará louco também.
O único filho do Conde de Rutherford, o homem com quem Julie Stratford antes fora
prometida, levou a xícara de chá aos lábios com um movimento tão rápido que mal
disfarçou o tremor de sua mão.
O chá da tarde no Claridge’s Hotel não era o lugar para vozes elevadas, mas se ela
lutasse bravamente para livrar Alex de sua obsessão pela mulher misteriosa que o
conquistou no Cairo, certamente acabariam levantando a voz. Mas o chá da tarde no
Claridge's também não era lugar para engano, e que outra palavra poderia ser aplicada ao
que ela estava fazendo?
Uma coisa era nunca ter amado Alex de verdade; uma coisa era nunca ter desejado a
mão dele em casamento — esses fatos eram facilmente evidentes para todos que a
conheciam, até mesmo os parentes que conspiraram para casá-los por razões puramente
financeiras. Mesmo assim doía admitir isso para o próprio Alex.
Mas seu desesperado ex-pretendente continuava sendo o único membro do grupo de
viagem que ainda ignorava por completo tudo o que acontecera durante a viagem ao Egito.
Ver Alex atormentado por essa mistura de ignorância e dor era quase mais do que Julie
poderia suportar. E sua perturbação parecia terrivelmente deslocada em meio às toalhas
de mesa brancas que pareciam flutuar como nuvens sobre o carpete vermelho e sob os
arcos dourados no teto. Ainda mais em meio de todos os outros clientes, que falavam em
sussurro educado enquanto ocasionalmente olhavam para a bela e jovem herdeira que
não estava vestida com um tradicional vestido de tarde, mas com um terno masculino com
um colete de seda branca e um lenço frouxamente amarrado em volta do pescoço.
Ela tinha combinado de se encontrar com Alex um dia depois que ela e Ramsés
voltaram a Londres. E não esperava que o encontro fosse totalmente agradável. Frágil, na
melhor das hipóteses. Frio, na pior.
Mas não estava sendo nenhuma das duas coisas. Na verdade, ela estava surpresa com
o grau em que Alex permanecia totalmente obcecado pela mulher que o havia cortejado
no Cairo, e o grau em que essa obsessão o transformara em um homem totalmente
diferente. Vulnerável e ansioso, mas também mais vibrante e vivo do que ela já o tinha
visto.
Sua única esperança era deixá-lo se cansar de falar sobre ela. Enquanto isso, a verdade
estava mais perto do que nunca dos lábios dela.
Ela era um monstro, Alex, e você foi apenas um peão em um plano para punir Ramsés, o
criador dela. Um terrível peão. Isso é tudo. O ingresso para a ópera que ela lhe ofereceu foi
roubado de um cadáver. E enquanto você a esperava regressar ao assento do camarote, ela
se esgueirou para o banheiro, onde pretendia quebrar meu pescoço para que pudesse
colocar meu corpo aos pés de Ramsés. Foi tudo vingança, entende? Vingança pelo fato de
Ramsés ter se recusado a dar o elixir ao amante dela há milhares de anos.
Mas o risco de compartilhar essas coisas com ele era muito grande.
—Seus óculos estão chamando a atenção—, disse Alex, trazendo-a de volta ao
presente.
— Estão? — perguntou ela. — Foram recomendados pelo médico — acrescentou.
—O médico ou o Sr. Ramsey? Aquele homem conhece muitos remédios antigos. Ou
pelo menos o que diz deles. Em sua última carta, meu pai me escreveu sobre um antigo
tônico que Ramsey deu a ele que curou completamente o problema em sua perna.
Curou muito mais do que a perna machucada, meu querido.
Talvez uma pequena revelação aliviasse sua consciência.
Quando ela tirou os óculos, quando Alex olhou em seus olhos que tinham se tornado
deslumbrantemente azuis pelo poder transformador do elixir, a expressão dele foi de pura
surpresa. O homem aflito foi substituído por um jovem que parecia estar testemunhando
o nascer do sol do topo de uma montanha pela primeira vez.
— Oh, Deus—, sussurrou ele.
— É bastante surpreendente, eu sei—, disse ela.
— E a causa?
— Os médicos dizem que é uma reação ao estresse ou uma lesão causada pelo sol. A
perda do meu pai, talvez. — Ela estava mudando a história, embelezando-a? Ela esperava
que não.
— Aflição e lesão, então —, disse ele.
— Sim —, respondeu Julie, voltando a colocar os óculos na ponta do nariz. — Eu não
queria assustá-lo com isso.
— Que maravilha —, disse Alex calmamente.
— Você acha mesmo? —perguntou ela.
— Que esse sofrimento e a lesão podem se combinar para produzir algo tão bonito—,
disse ele, sua voz soando embargada e longínqua. — Embora eu suponha que não seja
realmente um mistério. Dizem que os diamantes são criados pela violência que acontece
debaixo da superfície da terra.
— Não são diamantes, Alex. Apenas meus olhos.
— Mas são tão bonitos quanto diamantes —, disse ele. — E temo que seja por isso que
você não quis mostrá-los para mim.
— O que você quer dizer?
— Medo de despertar alguns dos meus antigos sentimentos românticos por você,
talvez.
— Não sou tão vaidosa, espero.
— Não. Você não é nada vaidosa. Só quero garantir que abandonei todas as antigas
expectativas, por assim dizer. Houve um tempo, antes de nossa viagem, em que me
contentava em esperar para sempre. Eu estava confiante de que um dia você chegaria a
ver meus sentimentos por você como algo diferente de um fardo.
— Eu nunca os vi como um fardo, Alex.
— Você via. E é perfeitamente compreensível. Era meu pai quem queria que nos
casássemos. Meu pai e seu tio. E então que defesa eu tinha contra qualquer homem que
realmente cativasse seu coração? Assim que o Sr. Ramsey entrou em sua vida, ficou claro
que eu havia perdido o jogo. Agora estou resignado. Meu único lamento é não ter perdido
com um pouco mais de elegância na época.
Ele estava se referindo àquela noite terrível no navio com destino ao Egito, quando
Alex citou todos os tipos de meias-verdades misturadas com opiniões sobre a história
egípcia com a intenção de provocar seu novo rival pelo afeto de Julie. Pior ainda, ele se
recusou a retirar qualquer uma delas, quando ficou claro o quanto isso aborreceu seu
companheiro de viagem egípcio.
Ainda assim, ele estava sendo fiel ao seu costume, compassivamente injusto consigo
mesmo. Ao longo da história, pretendentes rejeitados tinham feito coisas muito piores do
que começar uma pequena briga à mesa de jantar.
— Você é um perfeito cavalheiro, Alex Savarell, e sempre será.
— Você está sendo gentil.
— Porque você não ganhou nada de mim além de gentileza.
— Eu simplesmente quis dizer que você não deve hesitar em me mostrar qualquer
coisa que a torne ainda mais bonita. Agora você está livre, Julie. Livre de quaisquer antigos
sentimentos meus não correspondidos, embora educadamente. Livre por minha obsessão
por uma louca, receio.
— Oh, Alex. Não tenho certeza se é um preço aceitável.
— Bem, felizmente, sou eu que terei que pagar.
— Só enquanto você insistir em assumir a responsabilidade pela loucura e delírios de
outra pessoa—, disse Julie.
— Então não há uma grande fraqueza em mim? —perguntou Alex. — Algo que repeliu
você? Algo que repeliu ela também, que fez com que ela fosse embora de forma tão
imprudente, mesmo quando eu implorei para não ir?
— Claro que não!
— Então eu não tenho estou defeitos? Fico feliz em saber.
— Você tem as mesmas fraquezas de muitos homens de linhagem nobre.
— E quais são elas? — Alex perguntou, levantando uma sobrancelha.
— Um pouco de teimosia e uma tendência a rejeitar sentimentos profundos.
— Ramsey certamente a encorajou a ser mais livre em suas opiniões, eu admito. Então
você não concorda com meu pai?
— Com relação a quê? — perguntou Julie, endireitando-se. Ela estava esperando por
mais informações sobre Elliott além dos boatos de que ele fora visto em vários cassinos
em toda a Europa, e as poucas menções que Alex fizera às somas substanciais que ele
enviara para casa. Ela sentia falta de Elliott.
— É algo que ele disse há pouco tempo —, respondeu Alex. — Eu o ouvi dizer isso sem
querer, na verdade. Ele disse a um amigo que minha salvação consistia em não ter
sentimentos profundos. O que ele pensaria de mim agora, me vendo dilacerado por uma
traquinagem com uma sedutora histérica delirante?
— Foi injusto da parte de Elliott dizer tal coisa—, Julie respondeu. Ela falou sério.
Havia algo tão inegavelmente bom em Alex, tão inegavelmente inocente.
— Foi mesmo? —perguntou Alex. — Talvez não. Não se ele estivesse convencido de
que a pessoa em questão não tinha sentimentos reais.
— Mas você é um homem de sentimentos profundos, Alex. Isso está mais do que claro.
E em todo caso, essa experiência dolorosa que você viveu no Cairo deu-lhe uma nova
sensibilidade que você deve acolher de braços abertos. Ouso dizer que muitas mulheres
podem achar isso muito atraente. — Alex sorriu e desviou os olhos como um menino. —
Veja, às vezes, Alex, temos que perder coisas para aprender a ter compaixão. E às vezes
somos vencidos por mudanças que chegam com certa violência, mas nos transformam
para melhor.
— Como seus novos olhos, por exemplo—, disse ele.
— Talvez.
— Você se lembra do que me disse no navio naquela noite? Quando eu fiz papel de
idiota discutindo com Ramsey sobre a história egípcia?
— Infelizmente, só me lembro da briga.
— Qual é a sua paixão? — disse ele, citando-a. — Isso foi o que você me disse. Você me
perguntou o que me despertava alegria. Minha paixão. E naquele momento eu não soube
responder. Você não lembra?
— Agora sim.
— É ser amado, Julie. É ser amado como aquela mulher me amou. Ou pareceu me amar.
Eu nunca tinha conhecido esse tipo de paixão, esse tipo de devoção antes. Em certo
sentido, é por isso que fui capaz de libertar você tão facilmente ao retornar. Porque estava
claro que você nunca sentiria por mim o que aquela mulher sentiu, e depois que ela
morreu, tudo que eu queria era ser amado daquele jeito novamente. E cada vez que ouço
você ou Ramsey dizer que o amor dela era fruto da loucura, meu coração se parte
novamente.
Melhor acreditar que ela era louca —pensou Julie —, do que saber que você era só uma
marionete.
Embora fosse, o que Julie realmente sabia sobre o clone assassino de Cleópatra? O que
ela sabia, além daquele momento terrível em que acreditou morreria nas mãos daquela
mulher? A criatura em questão sentia um desejo sincero por Alex? Sentia por ele um amor
tão louco e irracional, mas tão genuíno quanto seu desejo de se vingar de Ramsés?
Ela não sabia as respostas para nenhuma dessas perguntas e duvidava que algum dia
as conhecesse. Melhor ainda, esperava que nunca tivesse que descobrir. Fazê-lo
significaria encontrar aquela criatura horrível novamente.
No momento, ela não tinha escolha a não ser deixar Alex acreditar que as chamas a
haviam devorado.
Deixá-lo acreditar que um dia ele encontraria uma paixão igualmente avassaladora,
mas com uma mulher de coração puro.
ALEX PARECIA ESTAR DE melhor humor quando eles saíram do hotel para a calçada lotada.
Ele puxou o relógio de prata do bolso da jaqueta e olhou a hora.
— Ainda não sei se meu pai vai voltar a tempo para a nossa festa —, disse Alex. Havia
afeto na maneira como ele pronunciou as palavras “nossa festa”. Portanto ele não havia
organizado o evento por algum triste sentimento de obrigação, um desejo de se manter as
aparências. Isso a animou. — Acho que meu pai sente muita falta do seu pai e quer passar
um tempo sozinho.
— Claro —, disse Julie. — Mas espero que Elliott volte. Pelo menos, espero que ele
reconsidere. Espero que você esteja insistindo em suas cartas.
— Certamente, eu estou. Tive dificuldades para localizá-lo. Ele está sempre de um
lugar para o outro, ao que parece. Ele não se demorou muito no Cairo depois que todos
nós partimos. Receio que o telegrama que enviei a ele ficou parado lá. Eu finalmente o
alcancei em um de seus hotéis favoritos em Roma. Ele telegrafou de volta para dizer que
estaria em Monte Carlo dentro de uma semana. Enviei-lhe uma carta bastante longa;
nenhuma resposta ainda. Espero que ele tenha recebido. Tenho que admitir que fico
bastante nervoso por tê-lo no exterior com tantos rumores de guerra. Mamãe, por outro
lado, está fora de si de tanta empolgação. Ela voltou de Paris. Duvido que ela tenha
passado tanto tempo em nossa propriedade rural nos últimos anos. Quando os
preparativos estiverem concluídos, todo Yorkshire estará animado para celebrar você e o
Sr. Reginald Ramsey como um casal feliz de noivos.
— É muito bonito de vocês dois fazerem isso—, disse Julie. — De verdade, Alex.
— Considere isso um fruto da minha nova sensibilidade.— Ele a agraciou com um beijo
educado na bochecha.
— Onde está o Rolls? — perguntou Alex. —Edward não trouxe você?
— Oh, eu preferi caminhar.
— Caramba. É um longo caminho. Você não quer que eu a leve em casa?
— Na verdade eu gosto bastante da caminhada.
Porque agora posso andar e andar sem medo de me cansar. Assim como seu pai
provavelmente está andando por toda a Europa.
— Tudo bem, então —, disse Alex.
Mas tudo o que Julie disse foi:
— Foi um prazer ver você, Alex. E não quero ofender quando digo que também é um
prazer vê-lo um tanto mudado.
Alex estendeu a mão e deslizou os óculos pela ponte do nariz de Julie, expondo seus
olhos azuis aos transeuntes. Em seguida, ele os dobrou e os colocou suavemente na mão
dela.
— O sentimento é mútuo, Julie.
Então ela seguiu seu caminho, e após alguns minutos decidiu manter os óculos
exatamente onde Alex os havia colocado.
14
NA ÉPOCA EM QUE RAMSÉS II governava o Egito, a peste varreu o Império Hitita até o norte
do Egito.
Não era uma praga como aquela que eliminou os últimos resquícios de seu antigo
reino. Mas suas vítimas eram muitas, então ela e seus servos viajaram para o Império
Hitita na esperança de cuidar dos enfermos.
Durante suas andanças, Bektaten descobriu muitas plantas milagrosas florescendo no
topo das montanhas ou prosperando nas profundezas de cavernas escuras. Algumas
faziam milagres apenas no sangue daqueles que haviam tomado o elixir. E uma delas, o
lírio estrangulador, era diretamente um veneno, descoberto quando o atrevido e
magnífico leopardo que ela havia transformado em um companheiro imortal mordiscou
algumas folhas e se transformou em cinzas diante de seus olhos.
Mas Bektaten nunca havia renunciado à sua vocação de curandeira, um papel que
desempenhou muito antes ascender ao trono como rainha de Shaktanu, e, portanto havia
descoberto e formulado medicamentos de potência surpreendente que podiam ser
usados para tratar mortais doentes.
Ansiava por curar o mundo, é claro, mas esse era um desejo perigoso e sempre seria;
uma enxurrada de emoções imprudentes sem um propósito claro e ordenado.
Administrar o elixir significava correr o risco de expô-lo àqueles que poderiam usá-lo para
dominação e controle. E sempre que ela considerava essa possibilidade, memórias
amargas e irritantes de Saqnos a paralisavam.
Ainda assim, a peste, seus horrores e seu custo final, sempre a atraíam como o canto
de uma sereia.
A peste despertava suas memórias torturadas das horas finais de Shaktanu.
E foi assim que, para curar aqueles afligidos pela peste, ela entrou no reino dos hititas
no ano que agora chamam de 1274 a.C., levando consigo muitos remédios e poções.
Lá, na terra dos hititas, uma estranha tragédia se abateu sobre Bektaten. Ela sucumbiu
ao feitiço de uma sacerdotisa dissidente e destemida chamada Marupa, uma adoradora de
Kamrusepa, a deusa da cura.
Marupa possuía notável força e independência. Farta de cidades e cortes, ela havia
criado em uma montanha remota um santuário consagrado à sua deusa, ao qual muitos
vinham em busca de cura. Aos olhos de Bektaten, Marupa possuía uma beleza antiga e
muito selvagem. Tinha o cabelo com mechas cinza, e havia momentos em que ela inclinava
a cabeça, ouvindo a voz da deusa, e então começava a dançar e cantar em um frenesi que
aterrorizava aqueles que vinham até ela por sua magia curativa. Mas suas mãos nodosas
traziam conforto e suas poções faziam a dor desaparecer, até mesmo curar ossos, ao que
parecia, e Marupa nunca afastava ninguém do altar de Kamrusepa.
Marupa sabia, sem que lhe dissessem, que Bektaten não era um ser humano comum.
Mas ela sentia apenas simpatia e admiração pela estranha etíope que procurava
compartilhar suas próprias poções curativas com tanta generosidade.
Embora Bektaten não orasse a nenhum deus ou deusa, e por muito tempo fosse
contrária a todo o panteão por considera-lo uma mentira, ela se maravilhava com a fé de
Marupa e sua insistência para que Kamrusepa falasse com ela.
Marupa tornou-se uma companheira preciosa para Bektaten. E por fim, sucumbindo à
solidão que tantas vezes a levara a revelar seus segredos, Bektaten contou-lhe tudo. Elas
passaram muitas horas conversando, horas que se tornaram semanas e semanas que se
tornaram meses. Todas as suas dúvidas, suas mágoas, seus grandes medos, Bektaten
despejara nesta nova amiga, inspirada pela ternura de Marupa.
O pior segredo de sua alma, confidenciou Bektaten, era que gostaria de nunca ter
descoberto o elixir e temia nunca saber como usá-lo em favor dos outros. Não era como
suas outras poções ou remédios, ela confessou. E Marupa a ouviu com lágrimas nos olhos,
sem censura ou julgamento. Por fim, Marupa fez um pedido a Bektaten:
— Permita-me dar este elixir às pombas do meu santuário, os pássaros sagrados da
grande Kamrusepa. E deixe-me apresentar à própria deusa um cálice dessa estranha
mistura, e deixe Kamrusepa nos dizer se isso é boa ou má, se devemos destruí-la ou usá-
la, e como ela pode ajudar a humanidade.
Bektaten não tinha fé na existência de Kamrusepa, mas diante do sorriso e da voz
gentil de Marupa, diante a fé de Marupa, ela cedeu.
E foi assim que um altar foi erguido no santuário da montanha, com um cálice do elixir
e também uma placa de pedra onde estava escrito o segredo dos ingredientes. E o elixir
foi dado aos pássaros do santuário. E Marupa disse a Bektaten para ser paciente e esperar
até que a deusa desse seu veredicto.
Bektaten não se surpreendeu quando a deusa, tão falante e comunicativa, nada disse
a sua devotada Marupa. Esta nunca teria enganado Bektaten.
— Espere —, disse Marupa. — Dê à grande Kamrusepa tempo para falar—,
acrescentou. E Bektaten concordou. O altar, a placa, o cálice, os pássaros imortais que
agora voavam incansavelmente em volta do santuário, tudo isso deu a Bektaten uma
espécie de esperança. Pouco importava que essa esperança pudesse morrer com Marupa.
Bektaten continuou suas excursões pelas montanhas, visitando pastores solitários que
precisavam de suas curas e colhendo novas plantas que poderiam lhe ser úteis; sempre
na companhia de seus devotados Enamon e Aktamu.
Então, certa manhã cedo, Bektaten voltou ao santuário e encontrou uma pequena
multidão de aldeões chorando na entrada. Todos recuaram de medo quando ela os
questionou. Entrando sozinha, Bektaten encontrou Marupa morta aos pés do altar de
Kamrusepa. Alguém havia bebido ou roubado o elixir do cálice, que estava espatifado no
chão, misturada aos pedaços quebrados da placa que continha a fórmula.
Bektaten soltou um grito tão espantoso que o povo fugiu para se salvar. Seus
devotados companheiros não foram capazes de confortá-la. E coube a eles a tarefa de
enterrar a brava e independente sacerdotisa que conhecia toda a vida de sua querida
amiga Bektaten.
Aquela mulher, que nunca havia pedido o elixir para si mesma, uma mulher a quem
Bektaten poderia ter dado a poção um dia com sua bênção, foi enterrada em uma
sepultura sem nome na encosta de uma montanha varrida pelo vento.
— Quem fez isso? — Bektaten perguntou ao povo da montanha por toda parte. —
Quem cometeu este sacrilégio?
Ela nunca descobriria. Aqueles a quem ela tentava perguntar se acovardavam ou se
encolhiam diante dela. Teria sido Saqnos? Será que ele havia perseguido Bektaten até ali
e roubado não apenas o elixir, mas também o segredo de como preparar a versão pura e
perfeita?
Bektaten nunca saberia.
Por fim, ela partiu do reino hitita, deixando sem vingança o assassinato de Marupa.
Abandonou o império Hati à sua pestilência e às suas guerras, enquanto o grande Ramsés
II do Egito lutava contra o rei hitita, Muwatalli, em Kadesh.
Com o tempo, o destino levou Bektaten para perto de Saqnos novamente, apenas para
se certificar de que ele não tinha sido o ladrão e assassino de Marupa. Na lendária cidade
da Babilônia, com seus cem mil habitantes, Enamon e Aktamu espiaram Saqnos facilmente
de longe e subornaram seus servos mortais para obter informações sobre ele.
Era bastante claro que ele havia se cercado de alquimistas, pagando-lhes somas
absurdas e que havia construído um laboratório secreto onde, juntos, buscavam
desesperadamente a forma pura e incorrupta do elixir que ele havia suplicado a Bektaten
em Jericó. Quase a entristecia vê-lo ainda perdido e vítima dessa obsessão.
Mas ela não o confrontou. Abandonou a Babilônia sem sequer dirigir-lhe a palavra. No
entanto, a partir de então, ela manteve uma rede de espiões mortais para informá-la sobre
o paradeiro e as ações de Saqnos. Às vezes, a rede falhava e Saqnos desaparecia para ser
redescoberto em uma data posterior, empenhado em realizar os mesmos experimentos.
Rumores circulavam entre os mortais sobre um louco que sempre atraía novos
curandeiros ou alquimistas com subornos substanciais e promessas absurdas, o louco que
pagava somas absurdas por cada nova planta, remédio, poção ou purgante no mercado.
Quem havia roubado o elixir da sacerdotisa assassinada? Quem havia matado Marupa?
Bektaten estudava os recortes de jornal, antigos e recentes, espalhados sobre a mesa
à sua frente.
E o mais recente:
Poderia ter sido o próprio Ramsés II que cometeu aquele grande erro terrível dentro
naquela caverna há tanto tempo? Será que ele ousou beber o elixir até o fim e matar a
indefesa Marupa com sua espada?
As histórias dos tempos antigos nada diziam a Bektaten. Mas e quanto ao boato que
circulava sobre "olhos azuis", os belos olhos azuis do enigmático egípcio, assim como as
fofocas sobre os olhos azuis de Julie Stratford — uma consequência notável de uma febre
contraída no Cairo?
Bektaten levantou-se para atiçar o fogo da lareira e depois vagou pela pequena
biblioteca com paredes de pedra antes de se inclinar para contemplar a paisagem
escarpada esculpida pelo mar.
O tempo havia esfriado sua raiva. Era verdade. E embora a dor que sentia pela perda
de Marupa nunca fosse embora totalmente, ela tinha que admitir para si mesma que sentia
agora mais curiosidade do que desejo de vingança.
Ela acomodou-se na cadeira mais uma vez e mal se deu conta quando sua amada gata,
Bastet, entrou na sala, esgueirando-se até a cadeira para esfregar o lombo contra as
pernas e dobras do longo manto de Bektaten. Sem olhar para o animal, Bektaten a pegou
nos braços e beijou-a, os longos dedos de Bektaten massageando seu pelo e os ossos por
baixo.
Bastet ergueu o olhar para sua dona e fitou-a com olhos azuis — exatamente como
fazia nos últimos trezentos anos, desde o dia em que Bektaten dera à gata o elixir. Não era
uma crueldade com esses animais, pensou Bektaten, não para aquelas ternas criaturas
que viviam o presente sem esforço, talvez como todas as criaturas devessem,
aproveitando cada momento de estar vivas sem lembrança nem antecipação de nada além
de uma refeição de peixe ou cordeiro, ou uma tigela de água limpa e fresca.
—Às vezes eu gostaria de não saber mais do que você sabe, minha linda —, disse
Bektaten, erguendo a gata para que pudesse sentir o pelo sedoso contra sua bochecha. —
Às vezes, gostaria de não saber de nada.
Ramsés, o Maldito. A maldição da múmia. Superstições.
Três mil anos haviam passado desde que Bektaten se ajoelhou chorando naquela
caverna, desde que o temível faraó do Egito liderou seus exércitos em fúria às margens do
rio Orontes na terra dos hititas. Certamente ele havia aprendido muito desde então, assim
como a própria Bektaten havia aprendido. E talvez isso fosse muito mais importante do
que encerrar a vida do maldito rei com uma dose do lírio estrangulador. Embora, por
outro lado, talvez não. Bektaten tinha muito que estudar, muito para ponderar, muito para
aprender sobre o homem chamado Reginald Ramsey.
16
QUANDO ELES VIERAM VÊ-LA, ela acabara de ler seus diários dos tempos em que Ramsés II
governava o Egito.
Ler havia despertado sua coleção infinita de memórias daquela época. A busca por
Saqnos a levara a todos os lugares durante aquele período, mas raramente ao Egito, já que
não havia notícias do Egito indicando que Saqnos estivesse lá. Haveria acaso perdido
pistas, mesmo enquanto as anotava? Oh, quantas coisas para ponderar. Mas não agora.
Agora era a hora da bênção conjugal de sua nova morada.
Quando seus homens apareceram, silenciosos, determinados, ela estava pronta para
eles.
Ansiosa por eles.
Ela levou-os para seu quarto, onde não poderia haver dúvida de suas intenções, já que
a cama estava coberta com pétalas de flores e o incenso perfumava o ar.
Passaram-se anos desde que os três dormiram juntos, e parecia milagroso quão pouco
lhes custava ficarem juntos novamente.
Ela permitiu que seu turbante fosse removido e seu cabelo escuro alisado. Deixou-os
tirar suas roupas e depois fazer o mesmo com as dela.
Três esplêndidos corpos imortais, abraçando-se na penumbra das velas, prontos para
afundar no canteiro de flores e travesseiros.
Momentos antes, Bektaten estivera lendo sobre suas experiências amorosas, três mil
anos atrás. Descobriu que não houve mudanças. Quando um é imortal, ela havia escrito,
este não exige desesperadamente o contato do outro. Ele não tem medo de perdê-lo e,
portanto, não busca contê-lo, nem limitá-lo, nem descrevê-lo com uma linguagem que não
seja suficiente.
—Tomem-me—, sussurrou ela, fechando os olhos. —Tomem-me e me façam esquecer
do ardor trágico dos amantes mortais, o gosto da morte que sempre acompanha seus
beijos, o gosto da perda que obscurece seus abraços.
Eles a ergueram e deitaram-na na cama macia e perfumada.
Aktamu a beijou, enfiando a língua entre seus lábios, acariciando seus mamilos, a parte
inferior de seus seios. Ela ficou imediatamente excitada da cabeça aos pés, amando o peso
de quadris dele contra os sues, amando a pressão do pênis contra seus lábios inferiores.
Ela entregou-se a ele por completo enquanto ele a cavalgava até que ela estava
gritando naquela agonia divina que sempre soou muito como dor.
—Meu Enamon — disse Bektaten, procurando por ele com os olhos fechados.
E então aquelas mãos que ela conhecia tão bem apareceram, muito mais ásperas que
as de Aktamu, e aqueles beijos ásperos, as mãos de Enamon embaixo dela, levantando-a
enquanto ele a penetrava, sua respiração cheia de sussurros irregulares:
—Minha amante e senhora, minha rainha, minha amada e bela Bektaten.
Excitado novamente, sem se conter, Aktamu segurou o rosto dela com as duas mãos e
puxou-a para longe de seu parceiro, mas este parceira não desistir dela. Ela sentiu a boca
de Enamon em sua barriga e depois em seu seio esquerdo. Sentiu a língua dele em seu
mamilo e os dedos emaranhados em seu cabelo. Aktamu tentou atraí-la para si, Enamon
levando sua paixão ao topo.
Bektaten regozijava-se naquela confusão de corpos, em ser absolutamente devotada
ao combate para possuí-la, aos seus esforços frenéticos para superá-la com prazer, para
conquistá-la completamente como talvez nunca o fariam em vida. Ela estava
entusiasmada com esse abandono nas mãos daqueles homens a quem ela comandava dia
após dia, essa entrega àqueles que a adoravam com um temor reverencial que ela nunca
havia compreendido totalmente.
Aktamu colocou-a de joelhos, abraçou-a por trás, segurando seus seios para Enamon
chupar, e Bektaten desabou em cima deles, perdeu toda noção de tempo e espaço, livre de
qualquer preocupação.
E isso é o que somos, só isso, esse êxtase que a carne pode dar à carne.
A cada orgasmo devastador que se seguia, vinham-lhe visões, visões do jardim
farfalhando no pátio abaixo, com seus grandes brotos e flores infundidos com vida pelo
mesmo elixir que transformara o que antes era um doloroso e superficial ritual em uma
celebração de corpo e alma.
Aqueles amantes imortais conheciam o mapa de seu corpo, o mapa de seus sentidos,
melhor do que qualquer deus que reivindicasse o mérito por sua criação. Aqueles amantes
imortais entendiam sua fome, sua resistência, como um mortal nunca faria.
“Vida—, ela pensou novamente—. A vida se tornou incessante. A vida se tornou
impenitente”.
Tudo graças ao elixir.
Tudo como um lembrete de por que o elixir deve ser protegido para sempre, por que
aquela magia gloriosa nunca deve ser roubada dela novamente.
Finalmente, eles terminaram. Deitaram juntos, quietos, exaustos e divinamente
desprovidos de qualquer desejo. Depois de um tempo, eles tomariam banho juntos, se
vestiriam. Mas, por enquanto, estavam amontoados um contra o outro em uma exaustão
sublime. E na antiga linguagem de Shaktanu foram confiadas palavras de afeto, promessas
de lealdade eterna, beijos de puro afeto e leves risos e lágrimas.
—Selados em êxtase—, murmurou Aktamu com sua voz profunda de barítono.
—Atados a você para sempre—, disse Enamon.
De repente, ela estava soluçando, tremendo. Enterrou o rosto no pescoço de Enamon.
—Amados, amados, amados—, repetiu ela enquanto sua mão agarrava a nuca de
Aktamu.
—Minha preciosidade—, disse Aktamu. —Tudo o que sou é seu.
Enamon beijou seus olhos fechados.
—Seu escravo, agora e para sempre. Um verdadeiro escravo que lhe entregou sua
alma.
Nas horas que se seguiram, eles se tornaram seus servos mais uma vez.
Depois do banho longo e vagaroso, seu cabelo foi trançado.
Eles separaram os fios da juba fofa de cabelo encaracolado em longas tranças finas,
cuidadosamente tecidas com frágeis correntes de ouro pontilhadas com pequenas
pérolas. Era uma tarefa trabalhosa, tecer tantas tranças, mas esses dois homens o faziam
com tanta paciência e carinho quanto suas criadas faziam nos tempos antigos. E quando
o espelho foi trazido a ela para que pudesse ver o resultado final, oh, a perfeição e clareza
daqueles espelhos modernos, ela teve a sensação de olhar para uma rainha egípcia dos
tempos anteriores a Ramsés, quando tantas mulheres nobres usavam seus cabelos com
aquele penteado. Em torno de sua cabeça, eles colocaram um diadema de ouro forjado,
uma leve coroa.
E então vieram os últimos beijos devotados, antes que eles se retirassem, obedecendo
às suas ordens gentis.
Mais uma vez vieram os soluços. Ela espreguiçou-se nas almofadas e chorou. Chorou
por eles e por ela e por todos os corpos e almas que viviam presos na alienação e sempre
em busca de uma união, uma união que só poderia terminar de novo e de novo naquela
doce e terrível dor.
17
RMS Mauretania
Sibyl estava com muito medo de ter outro devaneio ao fazer as refeições no
restaurante da primeira classe. No entanto, os outros passageiros continuavam a saudá-
la com sorrisos calorosos e acenos respeitosos quando passavam por ela no convés, como
se ela fosse uma companheira de confiança, simplesmente por ter embarcado na mesma
viagem.
Alguns deles, a maioria aristocratas britânicos voltando de férias dos Estados Unidos,
indagavam sobre suas repetidas ausências durante as refeições. Para isso, Sibyl inventou
uma história sobre a viagem ser tão de última hora que não teve tempo de incluir na
bagagem roupas apropriadas para o jantar. Talvez se esses companheiros de viagem
fossem americanos teriam insistido em alguma violação do decoro, mas para os britânicos
seu desejo de não parecer fora do lugar ou abaixo de sua posição social parecia
perfeitamente compreensível.
No entanto, ela não lhes confidenciou que seu verdadeiro temor. Após seu terrível
delírio no Twentieth Century, não seria prudente se afastar mais do que um breve passeio
ou uma curta caminhada de sua cabine, onde Lucy sempre a esperava com um copo d'água
e alguns comprimidos que ela raramente precisava.
E então ela planejou fazer a maioria de suas refeições na cabine. Esse arranjo deu-lhe
tempo para estudar seus diários, para estabelecer uma cronologia coerente dos estranhos
delírios que haviam começado a alterar o curso de sua vida.
Era uma conexão o que a atormentava agora. Não havia palavra melhor para
descrever.
Ela sentia uma conexão poderosa e inexplicável com outra mulher, uma bela mulher
de cabelos negros que atendia pelo nome da grande última rainha do Egito. E pensou que
era muito possível que tivesse imaginado essa parte; que sua própria obsessão de toda a
vida por Cleópatra resultou em uma espécie de falha mental enquanto tentava assimilar
sua visão mais recente. Mas essa mulher, quem quer que fosse, assim como Sibyl, parecia
mover-se no mundo contemporâneo. E mesmo que tudo fosse simplesmente uma série de
alucinações — o que era altamente duvidoso visto que um homem muito real, o Sr.
Reginald Ramsey, aparecia em um dos seus pesadelos —, e em todas essas visões ela via
o mudo, súbita e violentamente, através dos olhos de outra mulher. E por alguma razão,
esta conexão havia ganhado força suficiente para escapar dos confins de seus sonhos.
Tudo isso parecia lógico e coerente quando ela o colocava no papel. Quando
sussurrava isso para si mesma, ela se sentia como uma completa louca.
E esses eram geralmente os momentos em que ela se arriscava a dar uma volta pelo
convés do Mauretania.
Sua hora favorita do dia para esse ritual era o entardecer, quando o sol poente
delineava a silhueta das quatro grandes chaminés do navio, fazendo-as parecerem
monólitos antigos suspensos no ar.
Ela cruzava com grupos de passageiros de primeira classe bem vestidos que
respiravam um pouco de ar fresco antes do jantar.
Às vezes, ela se inclinava o suficiente por cima da amurada para ver as crianças da
terceira classe pulando corda e brincando de pega-pega nos conveses inferiores. Mas seu
deleite com a despreocupação deles logo cedia lugar à amargura. Ela não gostava do
sistema de classe que dividia as pessoas em grupos considerados superiores ou inferiores.
Irritava-a que todas as crianças a bordo não fossem livres para correr por todo o navio em
grandes círculos até ficarem sem fôlego, imaginando-se piratas ou vikings ou quaisquer
grandes figuras marítimas que povoavam seus sonhos. Pior ainda, ela estava convencida
de que seus irmãos e sua falecida mãe, e talvez até seu falecido pai, teriam defendido
veementemente tal sistema, mesmo que deixasse as crianças com apenas um pequeno
espaço do convés onde pudessem correr, brincar e sonhar.
Quando sua raiva ameaçava dominá-la — e cada vez ameaçava fazê-lo com mais
frequência; outra estranha consequência de suas perturbações, ao que parecia — ela
contemplava as águas cinzentas e agitadas e rezava pelos passageiros do Titanic que
haviam perdido a vida naqueles mares alguns anos antes.
E então, uma vez concluído o ritual, e geralmente no lado norte do navio, com o sol se
pondo totalmente atrás das chaminés e a maioria dos passageiros haviam entrado para o
jantar, ela fazia algo perigoso.
Tentava estabelecer a conexão sozinha.
Agarrava-se ao parapeito com as duas mãos, apertando até que os nós dos dedos
ficassem brancos, e convocava cada fragmento de cada sonho e pesadelo, até o último
fragmento da visão que a dominara no Twentieth Century. O convés de outro navio, não
tão grande quanto este em que estava agora. Singrando o mar; possivelmente neste
mesmo mar, talvez outro. Ela não tinha como saber, mas tentava se lembrar de cada
detalhe.
Quem é você, Cleópatra? Fale comigo. Diga-me onde você está. E já que você está aí, por
favor, me diga, como justificar tão grandioso nome?
Após vários dias de tentativas vãs, não houve resposta.
Ela permanecia totalmente impotente e isso a desapontava. Mas sua decepção fez algo
muito mais significativo.
Provou-lhe que ela não temia mais a conexão. Que isso havia, de formas pequenas e
grandes, despertado uma parte dela que tinha estado adormecida por muito tempo. Esta
parte foi capaz de resistir a seus irmãos tolos; dera-lhe coragem de cruzar o Atlântico
Norte até Londres sozinha. De certa forma, eram coisas milagrosas, tão milagrosas quanto
a ideia de que estava recebendo vislumbres de outra parte do mundo através dos olhos
de uma estranha.
Quem quer que fosse essa outra mulher, Sibyl estava extraindo força dela?
Estavam dando força uma à outra?
Ela não tinha como saber, apenas tinha uma vaga sensação de que o Sr. Ramsey teria
algum tipo de resposta. E até então, só contava com seus diários e o esplêndido e luxuoso
isolamento de sua cabine.
NO TERCEIRO DIA DEtravessia, Sibyl tinha acabado de começar sua caminhada noturna
quando avistou um homem lendo uma cópia de um de seus livros publicado cinco anos
antes.
Chamava-se A Ira de Anúbis e, como tantos de seus romances, fora inspirado por uma
vida inteira de sonhos vívidos sobre o Egito antigo.
O homem estava sentado sozinho, tão absorto em seu texto que ela teve dificuldade
em reprimir um sorriso ao passar por ele.
No livro, uma poderosa rainha desperta um antigo rei egípcio que se tornou imortal
graças a uma maldição dos deuses. O rei concorda em servir como seu conselheiro. Logo
os dois se apaixonam perdidamente. Mas o amor deles é despedaçado quando a rainha faz
um pedido impossível: que o rei desencadeie a mesma maldição que o tornou imortal em
seu exército particular, concedendo-lhe assim seu próprio bando de mercenários
indestrutíveis.
O rei se recusa e a abandona. Em desespero, ela se joga em um trecho infestado de
crocodilos no Nilo.
Seu editor havia insistido no final absurdo, chegando até mesmo a exigir que Sibyl
acrescentasse longas descrições da rainha sendo dilacerada, membro a membro, pelos
répteis sedentos de sangue. Mas ela conseguiu se divertir um pouco com as cenas, dando
a elas sua imaginação com naturalidade, mesmo quando seu estômago embrulhava-se a
cada nova frase.
Para inspiração geral, ela havia usado apenas fragmentos da verdadeira história
egípcia. Para sua rainha mítica, Aktepshan, Sibyl combinou as histórias mais dramáticas
em torno de Cleópatra e Hatshepsut, embora milhares de anos as separassem.
Há muito ela desistira de tentar tornar seus livros historicamente precisos, como
resultado das cansativas brigas com seu editor.
Os leitores querem contos, Sibyl. Não aulas de História!
Ela não acreditava nisso, nem por um segundo. Mas perdeu a energia para argumentar,
e a maior parte da história em seus romances era uma mistura de história antiga e
ptolomaica com nomes mudados, como ela às vezes dizia ironicamente a si mesma, para
proteger o que era verdadeiramente interessante. E, de certa forma, foi uma espécie de
bênção. Libertar-se do fardo da precisão histórica permitira que seus próprios sonhos de
infância com o Egito, com todas suas estranhas abstrações, reinassem supremos sobre seu
processo criativo.
Sibyl havia escrito tantos romances que às vezes as tramas se misturavam em sua
cabeça. Mas por alguma razão, A Ira de Anúbis se destacava dos outros. Talvez fosse em
função do único sonho que o inspirou.
Ela adiou o resto da caminhada da tarde e voltou ao local onde o homem estava
sentado lendo seu livro.
A esposa havia se juntado a ele agora.
Sibyl não tinha certeza do que esperava conseguir sentando-se tão perto deles. Ela se
perguntou se sua recém-descoberta força a levaria a estender a mão e se apresentar como
autora. Não havia fotografia ou ilustração dela na maioria das edições. A bordo ela não
tinha contado a ninguém sobre sua profissão e ainda não tinha sido reconhecida. Em vez
disso, ela fingia estar arrebatada pelo mar, lançando um olhar de soslaio de vez em quando
na direção deles.
—Humm—, disse o homem finalmente, fechando o livro com um baque. —Ouso dizer
que Sibyl Parker é um pouco socialista.
—Como assim, querido?— perguntou a esposa, parecendo completamente
indiferente.
— Na maior parte é uma história genial. Mas então há um sermão bem aqui no meio,
que certamente é desnecessário.
—Um sermão? De que tipo?
— Temos aqui uma rainha egípcia que se apaixona perdidamente por um homem
imortal que, ao que parece, já governou o Egito. Juntos, eles vivem todos os tipos de
aventuras, e então, uma noite, ele, vestido como um plebeu, aparece em seus aposentos e
exige que ela faça o mesmo, tudo para que possam andar por sua própria cidade sem
serem reconhecidos. Como gente comum, sabe.
E lá estava!
Nem mesmo o desdém malicioso do homem que contava sua recriação ficcional pouco
poderia fazer para diluir a força do sonho. Sibyl tinha a sensação, desde pequena, de que
fora uma rainha egípcia e que um companheiro imortal a conduzia, em trajes de plebeia,
pelos becos e ruas de alguma cidade real que ela não conseguia identificar. Talvez fosse
Alexandria. Talvez fosse Tebas. Ela nunca poderia ter certeza. Os detalhes eram muito
vagos.
O sonho não era tanto uma experiência visual, mas sim um tipo de conhecimento que
se instalava em seu sono. Imersa nele, ela conhecia as coisas com aquela certeza mágica
que alguém só parece alcançar em sonhos: ela sabia que o homem que caminhava ao seu
lado, segurando sua mão, era imortal; ela sabia que era rainha do Egito. Ela sabia que o
amor dele por ela havia assumido a forma de uma jornada através de seu próprio reino,
vista pelos olhos de seus súditos. Mas eram fragmentos de conhecimento acompanhados
de escassas imagens. E dessa forma o sonho parecia vago e incompleto. Ela nunca tinha
visto o rosto do homem que a acompanhava, e quando teve que descrevê-lo no livro,
roubou as feições de um dos atores de teatro mais bonitos de Chicago.
—Eu diria que existe uma boa distância entre isso e o socialismo, querido—, sussurrou
a esposa.
—Você consegue imaginar o rei disfarçado de mendigo e vagando pelas ruas de
Londres?
—Talvez—, respondeu a esposa. —Mas não consigo imaginá-lo aprendendo muito
com isso.
—E por que ele deveria? Sujeira é sujeira. É para ser limpa pronto. Ele só deve se
dedicar àquilo que o torna um governante eficaz. Fingir ser um mendigo não serviria de
nada!
E ali estava mais uma vez, sua força recém-descoberta, e antes que percebesse, Sibyl
estava se dirigindo ao homem em um tom calmo e confiante.
—E talvez não seja possível para um rei que não conhece verdadeiramente seu povo,
todo o seu povo, ser um governante eficaz.
O homem a olhou fixamente sem compreender. Atirou o livro no assento ao lado e se
levantou.
—Querido?— perguntou sua esposa, claramente entretida. —Você não vai responder?
De costas para Sybil, o homem disse:
— Aqueles com quem não falei não devem esperar resposta quando falarem comigo.
E com isso, ele saiu trotando, mas não antes de resmungar algo baixinho sobre
americanos idealistas.
Sua esposa deu um sorriso triste para Sybil e se levantou para segui-lo.
—Perdoe meu marido. Ele mal suporta ser questionado por outros homens. Levará
anos antes que ele se sinta confortável em ser questionado por uma mulher, se é que isso
acontecerá.
Mas Sibyl não se incomodou com a grosseria do homem; foi a escolha das palavras de
despedida que a sobressaltou e, depois que a esposa se retirou, ela se levantou e foi até a
amurada do convés.
Aqueles com quem não falei não devem esperar resposta quando falarem comigo.
Desde que o Mauretania havia zarpado do porto de Nova York, ela tinha tentando
estabelecer a conexão entre ela e a tal Cleópatra, e todas as vezes o fazia com os olhos
fechados, em busca de lugar profundo e invisível dentro de seu eu interior. E cada
tentativa tinha sido como tentar encontrar um quarto escuro e silencioso sem que seus
sentidos pudessem guiá-la.
E sim, havia chamado a mulher mentalmente, silenciosamente, ocasionalmente com
um sussurro. Mas se realmente quisesse falar com aquela mulher, isso tinha que ser feito
durante um de seus raros momentos de conexão. Até lá, como ela poderia esperar uma
resposta?
Sibyl correu de volta para sua cabine. Ela encorajou Lucy a dar uma volta pelos
conveses e tomar um pouco de ar fresco. A criada se opôs no início, até perceber que não
era uma sugestão.
Por um longo tempo, Sybil sentou-se e ponderou sobre a escolha exata de palavras da
mensagem, e, depois de jogar algumas folhas amassadas na cesta de lixo, escolheu uma
que achou que poderia funcionar.
O texto devia ser simples e claro. Se o próximo transe fosse parecido com o anterior,
ela teria apenas um ou dois minutos para mostrar sua mensagem à estranha que de
repente estaria vendo o mundo através dos olhos de Sibyl.
Depois de escrever a mensagem, ela a olhou fixamente por um tempo.
Deveria carregá-la consigo e puxá-la do bolso à primeira ameaça de desorientação? O
papel era grande o suficiente? Deveria usar um batom para escrever no espelho do
banheiro, mesmo correndo o risco de Lucy pensar que ela estava louca?
Talvez se sua primeira tentativa falhasse, ela recorresse a essas medidas, mas por
enquanto, deixou o bilhete na cômoda, ao alcance da mão.
2 Cesário ou Cesarião (do latim Caesarion, "pequeno César”). Segundo historiadores, as duas
denominações estão corretas, embora, atualmente, a segunda seja a mais empregada em documentos
históricos. Os tradutores optaram por usar Cesário por esta se tratar de uma obra de ficção sem
compromisso com a precisão histórica. (N. dos T.)
Mas era uma esperança vã e estúpida. Que efeito uma substância tão branda como o
café poderia ter sobre uma criatura como ela?
O que ele próprio poderia fazer?
Essa pergunta voltou a assombrá-lo quando ela aconchegou-se a ele.
Os soluços morreram, e então parecia que ela tinha estado mentalmente ausente do
quarto, apesar do fato de permanecer em seus braços. Seus olhos estavam tão vazios e
vidrados que Teddy cedeu à necessidade persistente de sacudi-la a cada poucos minutos
para se certificar de que ela não havia entrado em algum tipo de coma.
Sibyl Parker. Ele revirou aquele nome repetidamente em sua cabeça. Era familiar.
Britânico ou americano? Não tinha certeza. E por que essa familiaridade?
Finalmente, ele percebeu. Um livro que lera enquanto trabalhava no Sudão. Um conto
espetacularmente divertido de magia e antigos reis e rainhas egípcios. Ele mal se
lembrava do enredo, apenas que tinha gostado tremendamente. O nome da autora, Sibyl
Parker.
—Eu tenho que deixá-la sozinho por um momento—, sussurrou ele de repente. —
Volto com mais comida e bebida.
Nem dor nem medo na expressão de Cleópatra ao ouvi-lo. Mas ela estendeu a mão para
ele. Teddy segurou a mão dela. Parecia que ela o estava estudando com compaixão.
—Você afirma me amar, Dr. Theodore Dreycliff. Você ainda me ama?
—Não é uma declaração—, disse ele. —É a constatação de um fato.
—Como? Como pode quando nem não sabe quem eu sou?
—Eu sei quem você é—, disse Teddy, segurando o rosto dela com as duas mãos.
Embora seus lábios estivessem a apenas alguns centímetros de distância, seus olhos ainda
o estudavam, agora friamente. —Eu sei quem você é, mesmo que você não saiba. E
também sei quem vai salvá-la dessas visões perturbadoras. O veremos em breve e não
desistiremos até que ele nos dê as respostas que buscamos.
Ele não a beijou, embora a postura dela o convidasse. Em vez disso, ela acariciou o lado
de seu rosto com uma das mãos. Delicadamente, distraidamente, enquanto o olhar dela
passava por ele e mais uma vez mirava o vazio de seu próprio desespero.
—Só por um momento, minha querida—, disse Teddy. —Estarei de volta em questão
de minutos.
Como era desorientador correr pelo navio depois de tantos dias isolado da agitação
enquanto cuidava dela na cabine.
Ele encontrou a biblioteca do navio em um piscar de olhos.
Eles não tinham um, mas dois títulos da escritora Sibyl Parker. Nenhum deles era o
que ele havia lido anos antes, mas uma rápida olhada nos primeiros capítulos foi o
suficiente para ver que ambos se passavam no Egito; aventuras tão divertidas quanto a
que tanto gostara.
Mas não incluíam fotos ou ilustrações da autora.
Ainda assim, o nome, a conexão com o Egito antigo, eram pistas, não eram?
E então uma suspeita fria o atingiu, gelando a boca de seu estômago.
Ela era uma louca? Uma louca que lera histórias tão fantasiosas quanto essas e que
tinha enlouquecido ao entregar-se a elas?
Não podia ser.
Não poderia ser o resumo de tudo, pelo menos.
Isso não explicava sua força. Não explicava que as enfermeiras juraram por suas vidas
que ela se recuperou de horríveis queimaduras em questão de horas. Isso não explicava a
notável semelhança entre seu próprio rosto e o das estátuas e medalhas escondidas na
tumba fora do Cairo.
No entanto, a natureza dessa conexão residia de uma forma ou de outra nesses livros.
Não tanto nos livros quanto na autora.
Ele deveria mostrá-los a ela?
Não, ainda não. Ela estava muito frágil. Ela acreditava que Sibyl Parker estava dentro
de sua cabeça, roubando memórias. Não a confortaria saber que essa mulher poderia estar
aproveitando-se desse esforço.
Não, no momento ele tinha que guardar para si mesmo. Servi-la. Protegê-la. Guiá-la até
o fim dessa jornada. Mas não pôde deixar de se perguntar se eles não haviam feito a
jornada errada. Se não deveriam estar viajando para ver Ramsés, o Grande, mas sim a
própria Sibyl Parker.
19
Havilland Park
Bektaten ainda não havia viajado tão ao norte, e as vastas extensões de campo aberto
a intrigavam. Esta região da Grã-Bretanha parecia muito mais isolada do que a costa
acidentada que ela agora chamava de lar. Lá se encontravam as complexas construções de
minas e as aldeias necessárias para abrigar quem trabalhava nelas. Aqui, grandes paredes
de pedra pareciam durar para sempre. Cercavam mares de ondulantes colinas verdes. Vez
ou outra, uma grande casa se erguia sobre essas colinas como um transatlântico à deriva.
Havilland Park era uma dessas casas, explicou Aktamu.
Durante a maior parte da viagem, ela havia embalado Bastet no colo. Quando
finalmente pararam, a gata sentou-se imediatamente, apoiou as patas contra a janela e
examinou as sombras.
Daquela distância, a propriedade era apenas um halo que se projetava através de uma
densa copa de galhos, como uma estrela erguendo-se sobre um mar envolto em névoa.
O carro em que viajavam era destinado ao serviço de táxi, Enamon lhe dissera: um Unic
Landaulette. A parte traseira consistia em dois bancos opostos, que ofereciam bastante
espaço para Bektaten reclinar-se enquanto os homens montavam guarda do lado de fora.
Ela havia moído várias das flores de anjo em um pó fino e guardado tudo em um
pequeno frasco que agora usava ao redor do pescoço. Ela o esvaziou nas palmas das mãos
e esfregou-as. Quando as mãos mostraram uma tonalidade alaranjada visível até mesmo
na penumbra, ela as esfregou sobre o pelo elegante do gato, aplicando o pólen também no
focinho.
Bastet ronronou e lambeu os dedos de sua dona. Depois que a gata se fartou, Bektaten
esfregou um pouco no próprio nariz e nos lábios.
A poucos metros do carro estacionado, Enamon assumiu seu posto como um autêntico
sentinela.
Aktamu mantinha a porta traseira do Landaulette aberta enquanto observava
Bektaten trabalhar.
Ela havia exigido que ambos os homens encontrassem chapéus do tamanho correto
para suas cabeças gigantes, e eles encontraram. Eles os usavam agora e, junto a seus
sobretudos escuros, esses acessórios os ajudavam a se misturar nas sombras.
E então, silenciosamente, e sem alarde, a conexão foi feita.
A última coisa que Bektaten ouviu antes que o ponto de vista de Bastet se tornasse
completamente o seu foi o clique suave de Aktamu fechando a porta do carro assim que a
gata saiu correndo, perdendo-se noite adentro.
Era de se esperar uma pequena disputa com os instintos do animal.
Quando Bektaten ouviu um roedor correr pelos arbustos próximos, ela foi forçada a
reprimir o desejo de Bastet de persegui-lo. A falta de palavras governava essa conexão; a
melhor maneira de controlar a gata era visualizando o que ela queria que o animal fizesse
em seguida e, ocasionalmente, grandes ondas de desejo e necessidade podiam levar a
criatura a reagir. A linguagem, na maior parte, era inútil.
Elas escalaram o muro de pedra que delimitava a propriedade, desceram para a
campina do outro, e então avistaram a mansão.
Ela viu a entrada de automóveis que Aktamu havia descrito, ainda cheia de carros
como ele vira dias antes. Quem quer que tenha se reunido recentemente ali parecia ter se
acomodado. Acima dessa entrada de automóveis havia um enorme alpendre, ele próprio
do tamanho de uma casa de Londres. As alas da magnífica mansão terminavam em torres
arredondadas de arenito.
Tudo naquele lugar parecia ter um desenho medieval: seus volumes contundentes, sua
austeridade geral. Mas o arenito era muito limpo e novo para ser daquele período. A
propriedade era um dos muitos ressurgimentos do estilo gótico que apareceu em todo o
país durante o século anterior.
Bektaten ainda não tinha certeza o que tudo isso sugeria sobre os seus habitantes,
além do desejo de transmitir certa ameaça.
Ela ordenou à gata que circulasse o perímetro da casa, passando pelas paredes com
hera cuidadosamente podada. No irregular terreno dos arredores, edifícios distantes
estavam envoltos em sombras e bosques. Mas, além daquelas árvores, ela pôde distinguir
a sombra de uma solitária construção de pedra de três andares no topo de uma ligeira
encosta. Parecia uma versão menor da Torre de Londres. Ela tinha visto desenhos nos
guias de viagem vitorianos das grandes propriedades rurais da Inglaterra. Esses livros se
referiam a Havilland Park como a Jaula, e a descreviam como tendo sido construída na
Idade Média, projetada para que as nobres damas pudessem espiar pelas janelas
superiores e observar seus homens caçando cervos nas encostas abaixo.
Talvez ela a explorasse mais tarde se tivesse a chance, mas primeiro tinha que
descobrir quem estava hospedado naquela imensa casa.
Ela procurou um lugar elevado ou uma janela aberta, e encontrou apenas um belo e
velho freixo acariciando uma das paredes laterais da casa.
Imaginou a gata subindo, e a gata começou a subir.
O primeiro galho permitia ver o interior de uma enorme sala gótica. Uma sucessão de
severos arcos pontiagudos sustentava o teto.
A noite estava fria, mas não tão fria a ponto de justificar o inferno queimando na lareira
de mármore, cuja cornija esculpida representava algum tipo de cena de batalha que ela
não conseguia distinguir daquela altura. Tapeçarias cobriam as paredes altas; suas
imagens de caça a veados pareciam tremeluzir à luz de velas lançada por um enorme
lustre.
Havia algum tipo de reunião na sala abaixo. Fosse o que fosse essa congregação, os
preparativos pareciam feitos para que fosse uma reunião alegre, mas a expressão nos
rostos dos presentes era sombria, séria. Concentrada. Essas pessoas estavam bem
vestidas. A maioria tinha pele clara. E todos eles tinham olhos azuis. E se tratava daquele
tom particular, aquele tom revelador. Todos eles, ela agora podia assumir sem medo de
errar, eram imortais. Mas não reconheceu nenhum.
Eram fracti? Tinham alguma relação com Saqnos?
Por um tempo, ela quedou-se e observou-os de sua posição segura, e finalmente um
homem que ela não reconheceu entrou na sala por uma de suas portas corrediças, com
um grande rolo de papéis debaixo do braço.
Ele chamou a atenção do grupo com um mero comando verbal.
Era certo que ele não estava a ponto de propor algo tão formal como um brinde. Nem
sequer sorriu para os presentes. Seu rosto profundamente enrugado não parecia capaz de
sorrir, e sua juba grisalha e desgrenhada se dividia ao meio, formando duas asas que
pareciam conter tanta energia quanto o resto de sua persona. Em seguida, começou a
desenrolar os papéis que trouxera consigo, espalhando-os sobre uma mesa de jogo
redonda no centro da sala.
Alguém já havia afastado as cadeiras da mesa. Isso permitia que o grupo se fechasse
em torno do que estava exposto.
E então a porta se abriu novamente. Uma mulher branca entrou, de olhos azuis, e
vestida com um vestido de tarde esvoaçante que combinava com as cores escuras e suaves
da sala. Ela foi seguida por um homem gigantesco em trajes de noite e outro cavalheiro
notavelmente mais baixo, também em uma jaqueta preta, camisa formal branca e gravata
borboleta. Os já presentes levantaram-se ante a entrada repentina desse trio.
A porta se abriu outra vez.
Saqnos.
Ela tremeu ao vê-lo? Seus lábios tremeram?
Impossível saber essas coisas, pois ela estava entregue inteiramente à conexão da flor
de anjo. E também não queria saber. Ela só queria observar, averiguar. Não poderia se
deixar afetar pela surpresa de ver seu antigo amante, o homem cuja traição havia selado
o curso de seus destinos. Qualquer distração emocional poderia comprometer a conexão
entre ela e Bastet, de modo que não teve escolha a não ser conter-se. Concentrar-se. E
buscar uma maneira de entrar na casa.
Obrigou Bastet a ir de um galho a outro. Por fim, elas encontraram uma janela
ligeiramente entreaberta, e Bektaten enviou Bastet apressada pelo tapete oriental de uma
sala opulenta, e do tapete para o piso de pedra até a grande escadaria, de onde o vozerio
na sala de estar se tornou suavemente audível.
Não era a melhor maneira de uma gata passar despercebida ao entrar numa sala, cega
e sem saber ao certo onde estavam as pessoas que havia lá dentro.
Mas Bektaten não tinha escolha. A porta estava prestes a se fechar atrás de um recém-
chegado. Ela forçou Bastet a entrar pela abertura. Então ordenou que ela procurasse a
escuridão mais próxima e se esgueirasse lentamente ao longo de sua extensão enquanto
se orientava.
Deu-se conta de que um grande sofá cor de vinho ocultava a gata, e por isso o homem
que falava não se distraiu um só minuto.
Alguns passos cuidadosos depois, a gata estava espiando pela borda do sofá.
O homem que trouxera os papéis conduzia a apresentação. Ele a lembrava de um
antigo romano que uma vez fora seu amante. Morto em batalha. E depois de um tempo
deixou de pranteá-lo, pois ele havia deixado claro que era a pele escura dela o que o
excitava, e nada mais. Mas era raro um imortal encontrar um amante que correspondesse
ao seu apetite, de modo que se serviu dele enquanto foi capaz de suportar a conversa
arrogante dele sobre sua beleza de ébano. No final o destino o eliminou, assim como fez
com tantos outros que ela havia amado e se se deitado, devolvendo-a para seus queridos
imortais.
Mortificar-se com as lembranças desse homem agora era uma distração e nada mais;
uma distração não se concentrar em outro homem, presente na sala, cujo semblante
inspirava nela uma tempestade de sentimentos que ela temia não ser capaz de controlar.
Saqnos.
Ele era o único sentado. O grupo abriu espaço para que ele pudesse ter a visão da mesa
redonda e do homem que se dirigia a todos em um tom que só poderia ser descrito como
nervosismo.
— E aqui está o templo romano, construído no século XIX pelo pai do atual Conde de
Rutherford. É uma estrutura bastante pequena. Mas vai se adequar perfeitamente aos
nossos propósitos, uma vez que fica no topo de um velho túnel subterrâneo que data de
uma guerra civil anterior. Hoje existe um alçapão de madeira no chão do templo, dando
acesso ao túnel. É coberto com os mais finos ladrilhos de pedra, porém indetectável.
Próximo a ele se ergue uma estátua romana. Este templo fica no gramado oeste. E se as
informações que conseguimos coletar de seus amigos estiverem corretas, a casa e o
gramado oeste são os únicos dois lugares onde os Savarell recepcionaram seus
convidados no passado. Por tanto...
— Um túnel? — indagou Saqnos com uma autoridade que silenciou o apresentador.
— Explique-nos tudo isso.
Ele reluzia a suavidade de uma ressurreição recente: o brilho dos olhos, o rosado
exuberante dos lábios. Bektaten tinha visto esses atributos em seu próprio rosto após um
despertar, e rapidamente reconheceu a origem desses sinais. Eles não envelheciam
visivelmente, mesmo assim um longo sono poderia ser restaurador.
— É perfeito para nós, mestre. Havia muitos destroços e escombros no túnel.
Aparentemente, o atual conde usava-o em sua juventude devassa para se encontrar com
amigos que seu pai desprezava. Removemos tudo.
Saqnos se levantou.
— Vá direto ao ponto! —disse ele. — Você me cansa com tudo isso. Qual é o plano de
verdade?
Todo o grupo deu um passo para trás. Isso, junto com a maneira como o velho
arrogante que liderava essa reunião se referia a ele como mestre, era a prova de que
Saqnos era o criador desses seres.
Que erro, agora ela se dava conta, com partes iguais de horror e medo. Um erro ter
entregado aquela ilha britânica a Saqnos, permitir que ele criasse legiões de seus filhos
incompletos, seus fracti. Quantas gerações houve? Quantos problemas eles causaram?
Por que não o liquidou em Jericó quando teve a chance? Ou na Babilônia, quando seus
espiões haviam localizado sua oficina secreta de alquimia? Por que havia escolhido
governá-lo por um decreto e o medo do lírio estrangulador? Havia apenas uma resposta,
com a qual ela havia lutado durante séculos. Destruí-lo seria destruir sua ligação mais
poderosa com Shaktanu.
As pessoas ali reunidas emanavam frieza, esses escravos fracti de Saqnos. Frieza e um
prazer silencioso e contido na mecânica do assunto que discutiam. Essas qualidades eram
intrínsecas ao seu fracti, um produto do elixir incompleto?
Tantas perguntas. Muitas para responder naquele momento.
Agora ela devia ser uma testemunhar e nada mais.
E o que ela testemunhou foi que, apesar da vitalidade dada a ele por sua recente
ressurreição, Saqnos estava com os olhos vidrados. Esgotados. Sofridos. Quando ele
apoiou as mãos na borda da mesa e olhou para os esquemas que seu filho estivera usando
para fazer sua pequena apresentação, não irradiava nada além de cansaço. Ele estava
longe de ser o louco enérgico que ela havia espionado em seus vários laboratórios
secretos ao longo dos anos.
Mesmo assim, seus escravos o temiam.
—E então, Burnham, você planeja atraí-la para este templo e sequestrá-la pelo
subsolo? — Saqnos perguntou. — É isso? E isso durante algum evento de gala em que
convidados circulam por toda parte? Como você se propõe a conseguir isso?
— Mestre—, disse o homem chamado Burnham. — Como mencionei, há uma estátua
no templo, em frene ao alçapão. É uma estátua de Júlio César que funciona como uma
alavanca. Vários de nós pediremos a Julie Stratford que nos mostre a propriedade.
Seremos muito insistentes. Assim que a tivermos cercado no templo, abriremos o solo e a
carregaremos através dele. Os outros não verão.
— E depois? —perguntou Saqnos, com a sobrancelha franzida, olhando para os
esquemas como se eles o tivessem ofendido.
— Outros de nós estarão esperando no túnel abaixo, aonde iremos imediatamente
trancá-la em um caixão. Juntando força, vamos selá-lo e transportá-lo para a outra
abertura do túnel perto do lago. Existe um caminho. Teremos tirado ela da festa antes que
alguém perceba.
Saqnos sorriu.
— Muito bem—, disse ele. — Não é um plano tão ruim. E um caixão, um caixão
aterrorizará esta imortal recém-nascida.
— Sim mestre. E sem luz, ela começará a enfraquecer.
Saqnos desviou o olhar, como se lhe custasse prestar atenção a esses planos:
— Levará algum tempo para a escuridão enfraquecê-la—, disse ele.
— Sim, mas ela terá medo. E saberá que foi privada de toda luz. E saberá que, se não
cooperar conosco no futuro, pode facilmente ser enterrada viva.
Saqnos sorriu com cansaço:
— Sim. E você certamente dirá a seu amado Ramsés, o Maldito, que ela está em um
caixão.
— Esse é o nosso plano, mestre—, disse Burnham. — Fique tranquilo, pois certamente
diremos a ele que ela está selada em um caixão. Mas não a manteremos neste caixão por
tanto tempo. Só até chegarmos ao nosso destino final.
Burnham sorriu com prazer como se estivesse convidando seu mestre a sorrir com
ele.
— É a Jaula que temos em mente para ela—, disse ele, e não conseguiu parar de rir. —
Venha, vamos mostrá-la a você, mestre.
20
Era muito arriscado seguir o grupo de perto, então Bektaten ordenou que a gata
subisse de volta os degraus e saísse pela janela pela qual havia entrado.
Do parapeito da janela, Bastet observou o grupo contornar a lateral da enorme casa e
começar a curta caminhada em direção ao prédio de três andares que se erguia solitário
à distância, aquele que eles chamavam de a Jaula. Uma vez que estavam a uma distância
segura, Bastet desceu do freixo e começou a segui-los das sombras.
Eles caminharam em silêncio, com Burnham e Saqnos liderando o caminho. Seus
sapatos esmagavam a grama sob os pés. As elevações da paisagem circundante eram
modestas demais para serem chamadas de colinas.
Quão curioso era este prédio do qual eles agora se aproximavam. Era como a ruína no
centro de uma cidade devastada.
Quanto mais próximos estavam, mais os instintos defensivos e primitivos
despertavam em Bastet.
Algo vivia dentro daquele prédio, algo que reagia à sua aproximação. Agora ela podia
sentir o cheiro. Uma estranha mistura de aromas almiscarados. Um tanto familiar, mas
aparentemente fora de lugar e, portanto, difícil de identificar com exatidão.
—E a rainha?— Burnham perguntou timidamente. —Como vai com a rainha?
—A rainha dorme—, rosnou Saqnos.
—Mas como você sabe...?
—Ela dorme—, Saqnos insistiu como se não quisesse ser questionado. —Ou se matou
com seu próprio veneno. Ela pensou que poderia passar a vida eterna fingindo ser uma
curandeira e uma mercadora. Vagando sem rumo, em busca do que nem ela sabia. Que
tormento, essa falta de ambição. Essa falta de clareza a destruiu. Isso a levou a uma tumba
cavada por ela mesma, tenho certeza. Se não, já teríamos ouvido falar dela há muito
tempo.
Ambição, clareza. “Então, essas eram as palavras do século XX que ele agora usa para
designar sua ganância e avareza— pensou Bektaten—. E você presume que eu estou morta
por minhas próprias mãos porque não compartilho de seu desejo de agarrar firmemente o
mundo inteiro com um só punho?”. Que arrogância desdenhosa em seu tom. Ele realmente
acreditava nisso ou apenas queria que seus filhos acreditassem?
—Mas, mestre, não podemos ter certeza de que...
—Não fale mais da rainha, Burnham. É assunto meu e sempre foi, não seu.
Eles estavam a apenas alguns passos da Jaula. A entrada era uma única porta de aço;
Bektaten tinha certeza de que não era original do prédio.
As janelas dos três andares estavam escuras.
Um após o outro, o grupo desfilou para dentro. Ela esperou até o último segundo
possível.
Mais uma vez a impressão de entrar às cegas. Mas os sentidos de Bastet foram
agredidos por mais do que o cheiro de animais ali dentro; um som terrível e ensurdecedor.
Uivos, latidos, rosnados; tudo ecoando loucamente contra as paredes de pedra nua. Não
havia móveis ali; apenas uma escada tosca sem corrimão. Bastet a lançou nas sombras
mais espessas acima, para que pudesse se virar e observar o grupo abaixo.
A característica mais notável da sala era uma grande grade de aço em um canto do
chão. Talvez outrora tivesse sido a entrada de um porão. Agora parecia que este porão
havia se transformado em um fosso, e dali vinha um coro de latidos e uivos ferozes.
Foi a presença da gata que deixou os cães loucos? Ou eles reagiam dessa forma a
qualquer intruso?
Uma fracti deu um passo à frente, uma mulher enorme, elegantemente vestida com
esplêndidos cabelos loiros presos na nuca com um grampo de joias. Ela abriu a bolsa e
jogou vários bifes crus pela grade; quatro, cinco, seis... Bektaten ficou pasma quando
contou oito ao todo. Só quando o último passou entre as barras que o coro de grunhidos
se transformou no ruído úmido de um banquete voraz.
Foram necessários oito bifes para silenciar essa horda. Quantas feras havia ali?
Mantendo um silêncio atordoado, Saqnos observou os animais comerem.
—Eles são imortais—, disse Saqnos finalmente. —Você deu o elixir impuro para
esses... cães?
—Sim, mestre—, respondeu Burnham. —E isso os deixou com muita fome. E bastante
fortes. Antes eles estavam lutando contra feras, treinados para caçar e matar. Agora eles
podem fazer as duas coisas com uma força incrível.
—Eu posso ver isso. Eu posso ver, Burnham.
Suas palavras foram quase um sussurro. Estaria ele satisfeito ou enojado?
De sua posição vantajosa, ela pôde ter um vislumbre dos grandes flancos cor de
chocolate dos cães enquanto estes lutavam e debatiam-se por pedaços de carne. Cabeças
enormes, orelhas caídas. Mastins. Grandes e poderosos cães aos quais o elixir impuro
havia dado ainda mais força.
O latido recomeçou. Os bifes tinham acabado. Oito bifes foram devorados em
segundos.
Monstros. Nas entranhas deste edifício preparado para o entretenimento ocioso de
uma nobreza há muito extinta, os filhos de Saqnos criaram monstros.
—É aqui que você deseja colocar Julie Stratford? — perguntou Saqnos.
—De fato, pai—, respondeu Burnham.
Impossível saber se os outros ficaram tão horrorizados quanto Bektaten.
— Certamente você não espera que ela morra? — perguntou Saqnos.
—Não. Isso vai ser ainda pior. Ela pode enfrentá-los às vezes. Talvez se recupere de
seus ferimentos como nós, ou como alguém com sua força. Mas o ciclo de ataque e defesa
e regeneração será incessante. Não vai acabar até que decidamos. Não vai acabar até que
o Sr. Ramsey nos diga tudo o que sabe. —Burnham sorriu gentilmente para seus irmãos e
irmãs, depois para seu pai. —Eu os chamo de cães de caça de Sísifo.
Monstruoso, pensou Bektaten. Mas ela sentiu uma estranha agitação em seu peito
humano ao ver aquela cena através dos olhos de Bastet. Qual era esse sentimento?
Esperança?
Era um crime abominável o que Burnham estava propondo, o que essas pessoas
haviam criado ali. Uma forma de tortura que rivalizava com os métodos da Inquisição
Espanhola, um evento que a fez dormir um prolongado sono sob a terra.
Saqnos sentiu o mesmo? Poderia ele sentir o mesmo? Era mesmo capaz de tanta
compaixão? Isso explicava seu silêncio e o tempo que passara estudando os animais
vorazes? Estaria imaginando uma pobre mulher, imortal ou não, fracti ou pura, sendo
forçada a repelir o ataque daquelas feras terríveis de novo e de novo? E se fosse assim,
essa fantasia bárbara ressuscitaria o homem atencioso e paciente que ela conhecera há
milhares de anos, antes que seu desejo pelo elixir o transformasse em um homem que era
pura ambição?
Recuse isso, Saqnos. Rejeite este plano. Joga seu artífice no fosso com suas criações, se
necessário, para que ele conheça o horror de seus próprios atos. Há uma parte de você que
sabe que nenhum imortal ou fracti deve dirigir seu poder contra um ser humano dessa
maneira. Você sabe. Você tem que saber.
—Burnham?
—Sim, mestre.
Saqnos se virou para o filho e deu-lhe um tapinha nas costas.
—É um bom plano e você é um bom servo.
De repente, todos se viraram e olharam para ela. O latido dos cães explodiram
novamente. Só então Bektaten percebeu que sua raiva e angústia haviam feito Bastet miar;
o grito do felino havia revelado seu esconderijo.
Ela se lançou da escada abaixo, atingiu a pedra na confusão de suas patas trêmulas e
saiu correndo pela porta aberta. O fracti não a seguiu. Saqnos tampouco.
Para eles, Bastet era nada mais do que um gato selvagem cuja toca secreta havia sido
profanada. Talvez mais tarde eles se perguntassem por que um gato chegaria tão perto de
cães enlouquecidos por conta própria, mas naquele momento teve tempo de escapar. Ela
correu pela campina e escalou a parede de pedra.
Então, bem no instante em que Bastet viu o Landaulette nas sombras à frente, Aktamu
pareceu surgir do nada. Ele a pegou e a embalou em um braço.
Quando ela se viu através dos olhos de Bastet, Bektaten pegou seu lenço. Era como
tatear por ele no escuro, mas ela havia praticado esse movimento várias vezes naquela
noite. Limpou o pólen do rosto. Aos poucos, a conexão foi enfraquecendo.
Por mais alguns minutos, ela sentiu o movimento do carro exatamente como Bastet
sentia, então suas pernas recuperaram a sensibilidade e sentiram novamente o atrito de
sua blusa contra sua pele e o peso de seu xale de seda em seus ombros e braços. .
Assim que se viu olhando para frente, vendo as costas dos dois homens no banco da
frente do carro, Bektaten disse:
—Parece que temos uma festa para ir.
21
Propriedade Rutherford
Alex Savarell seguiu a mãe pelos degraus de pedra que levavam ao amplo gramado
oeste da propriedade Rutherford.
Edith Savarell, a Condessa de Rutherford, era quase tão alta quanto seu filho, que
achava seu cabelo prateado tão lindo quanto o cabelo loiro que ela tinha anos atrás.
Elegantemente vestida com uma jaqueta justa e saia lápis, e primorosamente penteada,
para Alex ela era como uma beleza atemporal renascida.
A eminente festa de noivado de Julie e Ramsey já era o assunto de toda Londres,
mencionada duas vezes em colunas sociais. Uma famosa autora norte-americana estava
programada para comparecer junto a outras ilustres celebridades do mundo literário e
artístico. Em apenas alguns dias, algumas das famílias mais ricas da Grã-Bretanha
estariam naquele mesmo gramado.
Como parte dos preparativos, a propriedade, que havia representado um fardo terrível
para a família durante muito tempo, fora lindamente restaurada — graças ao constante
fluxo de depósitos bancários que Elliott enviava do exterior e ao renovado entusiasmo de
Edith. A propriedade havia sido trazida de volta à vida, assim como Edith, que agora
caminhava à frente dele, fazendo gestos largos e amplos para o gramado enquanto
descrevia onde ficariam as tendas, mesas e cadeiras.
Nas últimas semanas, os jardineiros conseguiram podar as sebes que cobriam toda a
extensão do gramado. Eles haviam limpado as trepadeiras que cresceram nas árvores dos
arredores nos últimos anos. No interior da propriedade, os pisos de madeira foram
encerados e polidos, as tapeçarias limpas e as janelas amplas brilhavam até a perfeição,
clareando qualquer visão alcançável da paisagem verde ondulante. O horrível e antigo
papel de parede vitoriano da sala de estar fora substituído por uma nova estampa de
William Morris, que dava a impressão de que a vegetação ao redor da casa havia se
infiltrado e, de alguma forma, estava sendo podada e domada pela mobília elegante.
Edith era uma mulher bonita e obstinada, uma herdeira americana que sempre fora a
combinação perfeita para o pai de Alex, um homem sujeito a longas viagens e "crises de
isolamento", como ela os havia descrito certa vez. Nunca reclamava da situação financeira
da família, que havia consumido sua própria herança anos atrás, administrando a casa da
melhor maneira que podia e dando as desculpas necessárias para o comportamento
frequentemente excêntrico de Elliott.
Uma mulher com maiores necessidades emocionais não teria sido capaz de suportar
tudo isso, pensou Alex. E ficou encantado ao ver sua mãe radiante de felicidade. Embora
Alex nada soubesse sobre roupas ou acessórios femininos, ele sabia que essas novas
jaqueta e saia eram caras, elegantes — na verdade, os armários dela estavam repletos de
roupas novas — e que as pérolas que ela usava haviam sido recuperadas do cofre de um
banco onde ficaram por anos como garantia para dívidas agora pagas. Isso era bom para
sua mãe. Ela merecia. Merecia estar orgulhosa e repleta de planos sociais, dos quais a festa
de noivado seria, sem dúvida, apenas o começo.
Seu pai estaria sofrendo de sua rebelião usual — sua recusa incessante em se curvar
às exigências de sua posição social? Isso explicava as viagens de Elliott por toda a Europa?
Certamente não explicava as grandes somas de dinheiro que ele mandava para casa. Ele
havia mencionado cassinos em sua carta, sim. E velhos amigos da família que o haviam
visto em Baden-Baden espalhavam fofocas ocasionais.
No banco haviam sido informados sobre uma desaconselhável aquisição de terra na
África. Mas com o dinheiro entrando, ninguém reclamou. Certamente Edith não reclamou.
Ela continuou a investir metade de cada surpreendente novo depósito sabiamente, para
o caso de seu marido apostador não ter tanta sorte no futuro. E, além disso, ela havia
administrado tudo isso, inclusive aquela restauração magnífica.
— É um tanto estranho que Julie queira dar a festa ao ar livre—, disse Edith, virando-
se para encarar o filho. — Ainda não é a temporada e não será ainda por algumas semanas.
Alex tinha uma suspeita fundamentada, mas parecia-lhe que não era da conta de sua
mãe. Julie continuava estranhamente tímida devido à extraordinária mudança que
acontecera com seus olhos. Ao ar livre, ela teria a desculpa perfeita para usar aqueles
pequenos óculos excêntricos.
— Mas o tempo parece adequado para isso por enquanto—, disse Alex.
—Por enquanto, talvez. Mas a temperatura pode cair. E depois? Suéteres e cobertores
para todos?
—Nós simplesmente moveríamos a festa para dentro, que parece tão impressionante,
graças a todo o seu trabalho duro.
— Você me dá muito crédito—, disse Edith. — Com a quantia certa de recursos, pode-
se fazer qualquer coisa. E, além disso, você mesmo tem ajudado bastante.
— O que você empreendeu aqui, é nada menos que um milagre, mãe. E um lindo
milagre.
Ele olhou de volta para a casa. As molduras de pedra em torno das janelas salientes
estavam limpas. Destacavam-se como ossos nus contra paredes de tijolos que agora eram
em um tom de vermelho brilhante como eram em sua juventude. A Propriedade
Rutherford fora restaurada à sua sutil elegância jacobina original.
— Talvez—, disse sua mãe. — Mas você sabe para quem todo esse trabalho foi
realmente feito, não sabe?
— Para o pai? Para atraí-lo para casa, talvez?
Edith acenou para o ar à sua frente como se fosse afugentar uma mosca:
— Nada desse gênero. Há muito tempo que parei de tentar controlar seu pai. E, por
favor, não tome isso como um gesto de repulsa. Eu o amo de verdade. Mas eu e ele somos
arrastados por marés diferentes. Quem sabe? Talvez vivamos em luas diferentes. De
qualquer forma, parece que estamos indo bem assim, de modo que nunca questionei isso
e não vou começar agora.
Edith subiu os degraus. De repente, Alex se tímido e corou com a força da integridade
de sua mãe.
— Além disso, ele está fazendo tudo que pode para cuidar de nós. Todo esse dinheiro
que ele nos enviou afirma ser o resultado de uma súbita sorte nas mesas de jogo. Mas
certamente é algum tipo de negócio.
— Eu não consigo imaginar.
— Nem eu. Mas, por enquanto, sejamos gratos. E vamos confiar no vento para trazê-lo
até nós, como sempre faz. Mas quero deixar uma coisa: quando se trata desta festa, há
apenas uma pessoa por quem estou fazendo isso, e é você, querido menino. Porque você
me pediu.
— De fato.
— E eu percebi que você me pediu porque era importante para você. Porque há algo
em tudo isso que permitirá que você desprenda-se de Julie uma vez por todas.
— Talvez sim, mãe. Talvez.
— Oh, e se você quiser ficar e passar a noite, eu tenho um presente para você. A última
gravação de Celeste Aida de Enrico Caruso, que me disseram, é maravilhosa. Está lá dentro,
ao lado do gramofone.
Incrível como essas palavras ternas e amorosas o atingiram como um soco no
estômago. Celeste Aida. A ópera. O Cairo. A sensação da sua mão na dela, girando,
observando-a deslizar para dentro do camarote ao lado dele, uma criatura magnífica com
joias, radiante com uma energia que parecia quase sobrenatural. E então queimada.
Devorada pelas chamas.
— Alex? É a certa, não é? Aida. Não é essa a ópera que vocês viram no Cairo? Aquela
que você tanto gosta?
Urgência na voz de sua mãe. Ela o agarrou por um ombro e o virou sem sua direção.
Lágrimas nos olhos de Alex. Que horrível. Ele nunca tinha chorado assim na frente da mãe,
desde que era pequeno.
— Alex. O que está acontecendo? É Julie, não é? Você realmente não...
— Não, mãe. É só isso. Já me desapeguei de Julie inteiramente. Isto é parte do que me
aflige agora.
— Então, há outra?
— Por assim dizer.
— Alex, eu sou sua mãe. Que a única maneira de falar um com o outro seja a mais
sincera.
— Há alguém. Havia alguém, devo dizer. Mas, aparentemente, também escapou do
meu alcance.
— Oh, querido. Alguém que você conheceu nessa aventura egípcia da qual falou tão
pouco?
— Sim.
— Eu entendo.
— Entende?
Ele ficou tão surpreso com o tom de sua voz que se afastou dela.
Sua visão ficou turva. Fazia tanto tempo que ele não derramava lágrimas que ficou
surpreso com as consequências físicas.
Ele começou a se afastar rapidamente. Sua mãe ergueu o braço como se achasse que
poderia fazê-lo retornar com um simples gesto. Ela ainda estava tentando alcançá-lo
quando ele se virou e lançou um olhar vergonhoso em sua direção.
—É realmente horrível, não é? —perguntou Alex. — Abrir o coração. É impossível
conhecer o terror que dá até que você o faça, sem reservas, eu imagino. Dizem que ela era
louca, sabe. Uma velha amiga do Sr. Ramsey. Mas ela era... De qualquer forma, eu nunca
conheci alguém como ela, e duvido que conheça novamente.
— Mas o que aconteceu com ela, Alex? — Edith pôs a mão em seu ombro com ternura.
— Ela sofreu um acidente terrível. Todos nós tínhamos ido à ópera e tinha sido uma
noite muito agradável até então. Simplesmente encantadora. Eu disse a ela tudo sobre
mim. Tudo. Que eu tinha um título, mas nenhum dinheiro. — Edith fez uma careta e baixou
a cabeça, como se os problemas financeiros da família fossem uma terrível falha sua. —
Mas essas coisas não importavam para ela, mãe. Nem um pouco. O que ela sentia por mim
era uma espécie de adoração. E instantânea. E intensa. Muito intensa.
— E você correspondia a esses sentimentos—, replicou Edith.
Não era uma pergunta, e havia um toque de compaixão em sua voz.
—De repente ela simplesmente partiu de carro noite adentro, e eu não pude impedi-
la—, continuou ele. — O carro ficou preso nos trilhos do trem e ela se recusou a descer.
Eu implorei para ela sair. Puxando-a, até. Mas foi como se ela tivesse sofrido uma
tremenda transformação. Parecia confusa. Tão confusa por muitas coisas. Exceto o que
sentia por mim. Disso ela estava segura, mãe. Ela parecia estar totalmente segura.
— Oh, Alex. Por que você não me contou nada disso antes?
— Porque contar tudo seria ... Isso.
Claramente ele conseguia manter uma certa compostura cavalheiresca enquanto
enxugava as lágrimas dos olhos.
Sua mãe, sempre tão americana, esfregou as costas de sua jaqueta, até Alex ceder e se
inclinar para aceitar seu abraço.
— Eu me culpo por isso—, disse Edith finalmente.
— Isso é um absurdo, mãe.
— Pode parecer que sim. Mas não é. O que seu pai e eu temos, o que sempre tivemos,
é uma bela amizade, não muito mais. Descrever qualquer coisa que já aconteceu entre nós
como paixão ou um grande romance seria, na melhor das hipóteses, enganoso. E na pior,
uma falácia. Foi um acordo de conveniência, mais ou menos como seria seu casamento
com Julie. E levando isso em consideração, acho que acabou muito bem. Mas nada que já
tivemos, nada que já fizemos, preparou você, nosso filho, para sentimentos dessa
magnitude. Portanto, sim, mesmo que pareça absurdo, eu me culpo.
— Bem, você não deve—, respondeu Alex. — Além disso, o que você poderia ter feito
para me preparar para a paixão de uma louca?
— Se ela for realmente louca—, respondeu Edith.
Alex ficou chocado com o tom de voz dela, que soou ao mesmo tempo distraído e
calculista. Edith olhava para longe.
— Você acredita que ela era outra coisa? —perguntou Alex.
—Eu não estava lá. — Ela o olhou nos olhos e desviou o olhar rapidamente. Lamentava
o que havia dito? — Mas me parece que se ela fosse realmente louca, alguns indícios
teriam aparecido antes do acidente.
— Mas havia indícios. Você não vê?
— Receio que não, querido. Eu não a conheci.
— Seu desejo, sua urgência. A paixão. Tudo era muito estranho.
—Você considera insanos aqueles que sentem uma atração instantânea por você? Meu
querido Alex. Diga-me que o criamos para ter um conceito mais elevado de si mesmo.
— Fale sério, mãe.
— Estou falando, e bastante.
— Bem, isso realmente não importa. Nada importa. Nada apagará o acidente e todas
aquelas chamas terríveis.
— Isso é verdade. O que importa é que você supere isso, Alex.
— Eu estou tentando. Eu prometo. Estou tentando com toda minha alma.
— Ouça a gravação—, disse sua mãe de repente. —Eu o encorajo a buscar sua força e
ouvi-la. Não deixe que todas as lembranças daquela noite sejam envenenadas por seu fim
trágico. Saboreie o que puder. Aprecie as coisas que são valiosas para você. Talvez não
agora ou imediatamente. Mas em breve, Alex. — Ela o abraçou novamente. — Em breve,
me prometa.
— Eu prometo, mãe. Eu vou tentar. Muito em breve.
22
Yorkshire
—Você não deve ir—, exclamou Teddy pela terceira vez desde que ela começou a se
vestir. —Você não está em condições!
A ideia de passar mais um minuto naquela sala pequena e empoeirada era
insuportável. Pitoresco era a palavra engraçada que Teddy usara para descrever este
lugar, esta pousada, como era chamada. Soou como uma palavra ameaçadora para ela; e o
sorriso forçado com que ele repetia isso sem parar se transformara numa espécie de
desprezo.
Desde o momento em que chegaram à Inglaterra, as atenções de Teddy passaram de
amorosas a irritantes. A ideia de que ele queria detê-la agora, quando estavam tão perto
de seu destino, quando não havia nem meia hora que a festa dedicada a Ramsés havia
começado... As coisas que ele dizia eram loucuras!
Ele já a ajudara a colocar um espartilho, mas agora que ela estava puxando os ombros
do vestido que Teddy comprara para ela no Cairo, parecia que estava desmoronando. Ela
estudou seu reflexo no espelho de corpo inteiro enquanto ele andava para frente e para
trás atrás dela.
—Fizemos uma longa jornada. Você não pode esperar que eu...
—Eu irei—, disse Teddy. —Vou explicar tudo para Ramsés. Agora ele quer viver com
um pseudônimo. Se eu ameaçar expô-lo, ele concordará em se encontrar com você
imediatamente. Ele contará tudo que você precisa saber e quase certamente lhe dará mais
elixir. Estou certo!
—Esse é o problema, querido Teddy—, disse Cleópatra. —Ela tirou o chapéu da caixa,
junto com o alfinete longo e pontudo. —Você está muito seguro. Demasiado seguro do que
está dizendo no momento.
—Você não vê? Sua condição piorou desde que chegamos. Você não deve se mover até
que possamos...
Ele gostaria de não tê-la agarrado pelos ombros. Ele gostaria de não tê-la sacudido.
Havia algo sobre a sensação de suas mãos agarrando-a de tal forma que desencadeou uma
raiva que ela foi incapaz de controlar.
Ela deu-lhe um empurrão.
Teddy se chocou contra a parede de trás com tanta força que o espelho de corpo inteiro
se inclinou, fazendo Cleópatra ver seu reflexo torto.
—Já chega! — gritou. Mas o medo nos olhos de Teddy a encheu de remorso. Quanto
medo nele, agora; medo de sua grande força, medo de seu estado, como ele o chamava.
E ele estava certo.
As coisas pioraram desde que chegaram àquela enorme ilha verde. As poderosas
visões foram substituídas por estranhas fugas psicogênicas. Ela queria dormir, mas não
conseguia dormir. A consequência foi uma espécie de dormência em que seus membros
ficaram dormentes, mal conseguia formar as palavras e ficou olhando para o nada por
vários minutos.
“Mais—, pensou. — Eu só preciso de mais. E então eu nunca terei que ver essa expressão
de medo nos olhos de Teddy novamente. Nos olhos de ninguém. Quem quer que seja essa Sibyl
Parker, ela é uma bruxa, uma sacerdotisa, e usou a feitiçaria para se aproveitar do meu
estado de fraqueza. Uma boa dose do valioso elixir de Ramsés me tornará forte contra ela.”
Mas a aparência de Teddy estava lá. Tristeza e medo. Ninguém a olhou com tanto
terror abjeto desde que Ramsés fugiu diante de seu corpo ressuscitado no Museu do Cairo.
Ela não podia suportar. Simplesmente não suportava.
—É você quem está entrando em colapso—, disse ela. —E é você quem vai ficar aqui
enquanto eu participo dessa recepção. Eu só pedi para você cuidar de mim. Eu não vou
me tornar sua escrava.
—Minha rainha—, sussurrou Teddy, chorando. —Por favor... minha rainha...
Impossível não sentir pena dele. Quando ela foi tocar-lhe o rosto, pensou que ele iria
encolher-se ou se virar. E viu a centelha desse impulso. Mas durou um momento, e quando
ela lhe acariciou a bochecha, seus olhos piscaram e se fecharam.
—Confie em mim, Teddy. Confie no que você não consegue entender totalmente.
Quão falsas eram essas palavras. Pelo menos a confiança com que as havia falado era
falsa, embora as próprias palavras fossem verdadeiras. Pois ela entendia quase tão bem
quanto ele o estado em que se encontrava.
Teddy torceu os lábios nos dedos dela e os beijou ternamente.
Acaso ele pensava que ela estava morrendo? Ou, pior ainda, que perderia a cabeça
mesmo que seu corpo resistisse?
De que outra forma interpretar sua dor?
Mas não havia tempo para tais especulações.
O chapéu que compraram no Cairo tinha uma aba larga e uma franja de penas de
avestruz que arqueava como jatos de espuma de uma fonte. Seu cabelo já estava preso
para trás para que o chapéu coubesse confortavelmente no topo. Mas se esquecera de
inserir o alfinete. Em pânico de que sua decisão desmoronasse com outro gemido de
Teddy, ela saiu correndo da sala, colocando o alfinete no lugar enquanto caminhava pelo
corredor estreito.
Quando a ponta afiada tocou seu couro cabeludo, ela gritou.
Um descuido negligente e um lembrete irritante de como ela estava doente.
Ela já havia pedido um táxi. Quando saiu para a rua, ele estava esperando por ela.
Uma vez instalada no banco traseiro e após indicar ao motorista o seu destino, foi
sentido o ponto da cabeça onde havia perfurado. Algumas gotas de sangue mancharam as
pontas de seus dedos. Ela os lambeu. A única coisa que faltou foi manchar o vestido.
O TREM ACABAVA DE ENTRAR na estação quando Sibyl Parker sentiu uma pontada de dor no
couro cabeludo. Paralisada, ela caiu de joelhos no corredor acarpetado.
Vários passageiros estenderam as mãos para ajudá-la. Em questão de segundos, ela
estava de pé, desculpando-se profusamente por sua falta de jeito. Fazendo o possível para
esconder a dor aguda que continuava latejando em seu crânio.
Ainda bem que ela convenceu Lucy a ficar em sua suíte no Claridge's.
Se sua criada e companheira tivesse testemunhado esse incidente, ela teria insistido
que dessem meia volta, ipso facto. Qualquer que fosse a aflição de Sibyl, havia piorado
consideravelmente durante o dia anterior. Impossível não acreditar que quanto mais se
aproximava do Sr. Ramsey, mais grave se tornava seu estado.
Nada iria impedir Sibyl de comparecer a esta festa. Seu editor havia providenciado sua
presença em resposta às perguntas de Sibyl sobre o estranho Sr. Ramsey. E quando Sibyl
chegou ao Claridge's, o convite a aguardava na recepção, juntamente com recortes de
imprensa recentes sobre o misterioso egípcio e a garantia de que o anfitrião estava
encantado com a presença de uma famosa escritora americana no evento.
Quando o trem parou completamente, as atenções dos demais passageiros cessaram.
Ela se sentiu segura para tocar o couro cabeludo.
Aquele episódio doloroso deixou uma marca?
Os dedos saíram secos. Ela não tinha um vergão ou ferida aberta.
Foi um aspecto novo, estranho e inexplicável dessa experiência. Tão estranho quanto
sua insônia recente, supondo que esse fosse o termo para descrevê-lo. Uma mudança
começou a atingi-la no início da manhã após sua chegada a Londres. Ela começou a sentir
que seu corpo estava acordado sem que ela pudesse evitar, e o resultado foi algo muito
próximo a um estado de fuga.
E agora isso. Uma dor fantasma que não deixou marcas nem derramou sangue.
“Prazer em conhecê-lo, Sr. Ramsey. Sei que posso parecer louca, mas viajei de muito
longe para vê-lo porque você tem aparecido nos meus sonhos nos últimos meses e…”.
Pensaria em algo melhor para dizer quando chegasse à festa, estava convencida disso.
Ou assim esperava.
23
Propriedade Rutherford
A festa parecia estar se desenrolando exatamente como Edith havia planejado, e isso
deixou Julie infinitamente encantada. Na verdade, Edith parecia tão satisfeita com o clima
agradável e o fluxo constante de convidados que chegavam que não fez nenhum
comentário sobre a vestimenta sem igual de Julie: um terno branco masculino feito
especialmente para esta ocasião, complementado por um colete de seda branca, echarpe
e cartola.
Julie e Ramsés se misturavam às pessoas no gramado, enquanto seus anfitriões, Edith
e Alex, saudavam os recém-chegados na porta da frente da casa. Eles eram os convidados
de honra e, portanto, Edith os havia posicionado na parte exterior, onde atuavam como
iscas atraindo os convidados para que se movessem rapidamente pela casa em direção ao
gramado oeste.
Na opinião de Julie, o plano estava funcionando perfeitamente.
À diante do casal que acabara de encurralá-la, ela observava o fluxo de convidados
passando pelos cômodos do primeiro andar, que estavam abertos para facilitar uma
passagem rápida para fora. O resto da casa estava fechado.
Do lado de fora das portas do terraço, garçons de libré ofereciam uma taça de vinho
aos convidados e despois indicavam aos recém-chegados que descessem os degraus de
pedra que levavam a um gramado pontilhado de tapetes orientais, mesas e cadeiras.
Como o dia estava ligeiramente nublado, Edith havia armado apenas algumas das
tendas que havia encomendado. Como resultado, as pessoas que chagavam eram
recebidas por uma visão perfeita de Julie e Ramsés em meio a guarda-sóis, lindos ternos
e vestidos brancos esvoaçantes desenhados ou inspirados por Madame Lucile, tudo isso
emoldurado pelas sebes paralelas que delimitavam os dois lados do gramado oeste e os
freixos que dançavam com a brisa nas ondulantes colinas além.
Os membros do conselho da Companhia de Navegação Stratford, acompanhados de
suas esposas e filhos mais velhos, estavam presentes e Julie havia passado um bom tempo
conversando com todos eles.
Em retribuição por fechar os olhos aos roubos do falecido filho, o tio de Julie,
Randolph, havia trabalhado diligentemente para se colocar de volta nas boas graças dos
membros do conselho de diretores enquanto corrigia o curso da empresa. A presença
deles ali era um sinal claro de que os esforços de seu tio estavam dando resultado.
Apesar do céu nublado, o dia estava claro o suficiente para que apenas um ou dois
convidados comentassem sobre seus óculos de sol. Na verdade, muitos dos convidados
usavam óculos escuros, tornando difícil reconhecê-los quando se aproximavam. Julie ficou
tentada a tirá-los e deixar que a história de sua febre misteriosa fizesse seu trabalho.
Algum dia, em breve, ela faria isso.
Muitos convidados simplesmente não a reconheceram em absoluto. Mas isso não a
surpreendeu.
Edith havia convidado não apenas seus amigos íntimos, mas também muitos
conhecidos. Afinal, quer percebessem quer não, os presentes eram mais do que
convidados: eram testemunhas. Testemunhas com tendência à fofoca e com inúmeras
relações sociais que logo espalhariam a história do casal feliz e sua linda festa de noivado.
Edith tampouco mostrou desejo de impor uma lista de convidados restrita. Que os
pintores e escritores da moda tragam seus amigos. Na opinião de Edith, se algum membro
intrometido da imprensa decidisse aparecer, melhor ainda. Deixe-os escrever uma
história sobre o casal de noivos felizes desfrutando de uma tarde jovial na zona rural de
Yorkshire. Isso tornaria mais fácil de esquecer aquelas sinistras histórias de múmias
roubadas e mortes misteriosas.
Esta festa não tinha nada de privada ou exclusiva. Era um anúncio. Não apenas de seu
noivado, mas de sua nova estabilidade.
Embora, é claro, Edith tivesse outro motivo para comemorar, Julie estava convencida:
mostrar ao mundo que sua família não tinha ressentimentos pelo noivado frustrado de
Julie e Alex. E certamente havia várias futuras noivas para Alex em circulação, com as
quais Edith passou mais do que alguns curtos momentos de conversa.
Durante grande parte da festa, o quarteto de cordas executou peças de Mozart e
Haydn. No entanto, os belos músicos negros da América finalmente haviam chegado, e o
delicioso som sincopado do piano e instrumentos de sopro enchia o ar. Julie queria dançar.
Ela sabia perfeitamente bem que Ramsés estava morrendo de vontade de dançar, antes
de ver como ele piscou o olho para ela. Mas não havia pista de dança na festa e, no fundo,
melhor ainda. Ramsés era muito dado a dançar loucamente horas a fio.
A música não estava tão alta a ponto de impedir Julie de seguir uma conversar, e agora
ela podia até ouvir Ramsés a alguns passos de distância. Ramsés finalmente havia
dominado a arte de apresentar suas histórias sobre o Egito antigo como resultado de seus
estudos e não de experiências vividas. Desapareceu sua tendência de falar de figuras
históricas há muito mortas com vívida familiaridade, como se fossem velhos amigos.
Embora em muitos casos fossem. Pelas próximas horas, ele seria Reginald Ramsey, o
egiptólogo, o noivo incrivelmente bonito de Julie.
Foi como um sonho, a festa. Como um sonho, perfeita e exatamente como ela esperava
que fosse em todos os detalhes.
— Vocês ficarão na Inglaterra, é claro—, disse a mulher com quem ela estava
conversando. Talvez ela tivesse sentido a mente de Julie divagando, o que a levou a se
sentir terrivelmente rude. — Sem mais viagens longas, tenho certeza. Não com um
casamento à vista.
Qual era o nome daquela mulher? Julie já havia esquecido. Genève ou algo assim. Ela
usava um vestido branco de babados com mangas azul-celeste; seu chapéu era compacto,
um dos menores da multidão, e com tantas penas brancas que pareciam bolas de algodão.
Seu marido era um homem reservado. Ele estudava Julie com uma intensidade
perturbadora. Um pouco antes, Julie os vira tratar com grande familiaridade um gigante
barbudo que devia ter gasto uma pequena fortuna para que lhe fizessem sob medida um
terno de tão boa qualidade.
Ambos usavam óculos escuros, assim como ela.
— O fato é que ainda não marcamos uma data—, respondeu Julie. — E não consigo
imaginar uma maneira melhor de passar o noivado do que viajando pelo mundo. Vendo
suas maravilhas. Aproveitando-as no braço do seu verdadeiro amor.
— Que prazerosamente excêntrico—, disse a mulher.
— Sim. Sinto muitíssimo, mas esqueci seus nomes.
— Callum Worth—, disse o homem, estendendo a mão rapidamente, como se o gesto
pudesse distrair Julie da grosseria de sua esposa. — E minha esposa, Jeneva.
— E vocês são amigos da Condessa de Rutherford? —perguntou Julie.
— De certa forma—, disse Jeneva. — Mas como você sem dúvida já sabe, esta festa não
é apenas o assunto de Yorkshire. É também o assunto de toda Londres. Deve nos perdoar
por ter solicitado um convite através de amigos em comum
— Conhecidos em comum é mais certo—, acrescentou Callum.
— Um noivado tão intrigante, o seu e do Sr. Ramsey! — Jeneva continuou como se o
marido não tivesse falado. — Todos nós estamos convencidos de que a história de como
se conheceram é igualmente intrigante. Não deve surpreendê-la que queremos saber
mais.
— Perdoe minha esposa, Srta. Stratford. Ela ama uma boa história.
— O que eu amo são as pessoas, Callum. — disse Jeneva, tentado colocar convicção em
suas palavras, mas falhou e, como resultado, houve um momento de silêncio frio, quando
o marido lançou-lhe um olhar que parecia carregado de reprovação. Talvez seu amor
autoproclamado ao próximo raramente o incluísse.
—De fato—, acrescentou Callum rapidamente. — Agora, Srta. Stratford, espero que
possamos alistá-la em uma pequena conspiração.
— Uma conspiração? — disse Julie. — Que enigmático.
— Veja, nós nos sentimos um pouco envergonhados por termos nos convidado para
esta adorável celebração, então pensamos em comprar um presente para a condessa.
— Tenho certeza de que Edith ficará encantada—, disse Julie.
— De fato, mas gostaríamos que fosse para o marido dela também, embora eu tenha
informações de que ele está ocupado atualmente com negócios no continente.
Não devia discutir sobre Elliott com esses estranhos; na verdade, com ninguém. Pelo
menos até que ela se inteirasse melhor dos planos dele.
— Que tipo de presente? —perguntou Julie.
— Disseram-nos que há uma réplica de um templo romano na propriedade, projetada
pelo próprio Conde de Rutherford. Ocorreu-nos que poderíamos presenteá-lo com
algumas estátuas para complementar. Se você gentilmente nos mostrasse o templo, você
nos ajudaria a escolher algo adequadamente majestoso.
—Mas gostaríamos de manter nossas intenções em segredo o máximo que pudermos,
sabe—, acrescentou Jeneva.
— E se pedir a Edith que acompanhe vocês em um passeio, temem que ela desconfie
de sua jogada—, disse Julie.
— Exatamente! —exclamou Jeneva, com um entusiasmo exagerado.
— Bem, eu ficaria encantada em...
Uma mão agarrou seu cotovelo com uma força incomum. Ela esperava encontrar
Ramsés atrás dela. Mas era Samir. Ele estava muito elegante em seu terno branco, mas sua
expressão era uma máscara de preocupação.
— Você me concede um momento, Julie—, ele disse calmamente.
— Sim, só um momento enquanto eu...
— Por favor, Julie. É uma questão de urgência.
— Sim, claro. — Para o Sr. e a Sra. Worth, Julie disse: — Se vocês me dão licença. E
mais tarde, talvez depois do brinde, ficarei feliz em organizar o que acabamos de discutir.
— Oh, isso é adorável. Simplesmente adorável. E obrigado por... — Mas Samir já a
estava guiando para longe.
— O que aconteceu? — sussurrou Julie.
— Eu peço perdão antes do que estou prestes a lhe dizer. Os homens a meu serviço
não são espiões profissionais, entende? Eles são assistentes do museu, estudantes
universitários. Eles se saíram muito bem até agora, mas...
— Samir, é claro que o perdoo. Mas me diga de uma vez por todas por que você está
tão assustado.
— Um navio chegou de Port Said ontem. Mas meus homens se confundiram. Eles foram
para Southampton em vez do Porto de Londres. Quando perceberam o erro, já era tarde
demais. Os passageiros já haviam desembarcado. E então, esses meninos, passaram o resto
do dia discutindo se deviam me contar ou não. Se eu não tivesse telefonado para eles esta
manhã pedindo um relatório, talvez nunca tivesse...
— Entendo. Mas eles observaram cada chegada desde que voltamos, não é? E já se
passaram semanas sem que víssemos algum indício.
— Esses homens em particular são novos. Estudantes universitários, como eu disse.
Talvez eu devesse tê-los monitorado mais de perto, mas...
— Não seja ridículo, Samir. Todos vocês fizeram um excelente trabalho durante
semanas. É tolice supor que você será capaz de nos proteger para sempre. Ramsés está
certo. Se Cleópatra quisesse...
— Não, Julie, não. Espere. Por favor. Eu queria ter certeza, sabe, então telefonei para
as pousadas da região. E um homem e uma mulher que se encaixam nas descrições se
hospedaram no Red Crown Inn na noite passada. E essa mulher deixou a pensão apenas
alguns momentos atrás.
Já que havia se libertado de tantos medos, agora Julie estava paralisada por uma
estranha sensação.
— Ela está aqui, Julie. Ela está aqui em Yorkshire, e acredito que está a caminho desta
festa.
Incrível a maneira como o terror voltou a ela. A sensação de estar presa enquanto a
última rainha do Egito ameaçava quebrar seu pescoço. Mas isso era uma lembrança, nada
mais. A lembrança de algo que nunca poderia acontecer novamente. Imortal.
Ela não entregaria a festa para Cleópatra.
Nem Ramsés.
Nem…
— Alex—, disse ela antes que pudesse se conter. —Venha comigo, Samir. Enviaremos
Alex e Edith para se misturarem com as pessoas e nós dois saudaremos os convidados que
chegarem.
— Mas, Julie. Ela é...
Julie começou a andar e Samir a seguiu.
—Não sou mais uma mulher mortal que estremece ao ver Cleópatra. Ela não vai ser o
centro das atenções neste evento, Samir. Ela não é mais uma rainha.
Claramente surpreso com sua determinação, Samir assentiu e a seguiu para dentro da
casa.
Alguns convidados aproximaram-se quando a viram passar. Julie fez o possível para
não notar suas atenções, sem parecer abominavelmente grosseira. Que a seguissem até a
porta da frente. Que a cumprimentassem lá. Por hora, ela percebia que tinha acelerado o
passo.
Alex. Tinha que impedi-lo de ver Cleópatra. Ele não devia cair nas garras de Cleópatra.
Não agora, não nesta festa. Não quando havia se colocado em uma posição tão vulnerável
ao entregar Julie humilde e publicamente a seu futuro marido.
Alex se virou ao som de seus passos.
O fluxo de convidados havia diminuído. Ele e a mãe conversavam perto da porta
aberta. Seus olhos brilharam quando a viu. Esta festa o havia animado, assim parecia. Ele
não estava se limitando a cumprir suas obrigações como anfitrião, como Julie temera que
fizesse; sua nova sensibilidade permitiu-lhe desfrutar mais do que antes da companhia de
outros. O sorriso que agora ele lhe dava parecia totalmente sincero.
Julie não permitiria que arruinassem este dia. Não para Alex e nem para nenhum deles.
— Vamos trocar as funções—, disse Julie, o mais jovialmente que pôde. Mas sua
veemência deixou Edith em silêncio. —Eu insisto. Vou saudar os recém-chegados aqui um
pouco. Dessa forma, vocês dois podem fazer uma pausa e aproveitar esta festa
maravilhosa que organizaram.
— Mas, o Sr. Ramsey... —, começou Edith.
— O Sr. Ramsey está esbanjando charme no gramado e não quero afastá-lo de seus
admiradores. Samir e eu libertaremos vocês de suas funções. Por favor. Eu insisto.
Será que havia mostrado muito de seu medo com este pedido? Edith estudou seu
semblante brevemente e depois olhou para Alex.
— Bem, a verdade é que estou morrendo de sede.
— Está resolvido então—, disse Alex, pegando o braço de sua mãe. —Voltaremos em
breve.
— Não se apressem por nossa causa—, disse Julie.
E finalmente eles se afastaram.
A respiração voltou a seus pulmões. O sangue voltou ao seu coração.
Ao seu lado, Samir sussurrou:
— Ela tem razão, Julie. Ramsés deveria estar aqui quando...
— Aonde Ramsés vai, a festa o segue. Não vamos chamar a atenção para a chegada de
Cleópatra além do absolutamente necessário. Além disso, se ela vier aqui hoje, é em parte
para vê-lo; não posso conceder este desejo até que seus motivos estejam claros.
— Entendido, Julie. Entendido.
Só então, os convidados que ela praticamente havia ignorado ao se dirigir apressada
para a entrada apareceram com as mãos estendidas e sorrisos educados. De repente, Julie
se perdeu em um mar de conversa enquanto Samir não tirava os olhos da porta da frente
além dela.
Era agonizante aquela pequena farsa. Cada célula de seu corpo queria se virar em
direção ao caminho de acesso, como se a chegada iminente de Cleópatra pudesse ser
magicamente predita por um farfalhar vindo das sebes, um vento estranho através dos
galhos das árvores acima.
— Julie…
Quando Samir a segurou pelo cotovelo, ela estava conversando com um encantador
jovem casal sueco com quem Edith costumava passar parte das férias.
— Julie—, disse Samir novamente.
Julie se virou e a viu.
Ela havia percorrido metade do caminho de entrada. Estava sozinha. Sua cabeça estava
ligeiramente inclinada para que seus olhos azuis grandes e expressivos fossem visíveis
sob a larga aba emplumada de seu chapéu. Seu vestido era vários tons escuros demais
para a ocasião, um azul marinho com listas diagonais douradas. Mas a verdade era que ela
estava deslumbrante nele, devastadoramente bela, na verdade.
Quando ela viu Julie, ela parou tão de repente que parecia que estava preparando seu
corpo para alçar voo. Conservava um pouco de sua antiga postura, a postura e a elegância
de uma mulher outrora educada pelos melhores tutores de Alexandria. Embora agora lhe
faltasse ímpeto.
— Se vocês me dão licença—, Julie se ouviu murmurar.
Samir distraiu o jovem casal com uma conversa improvisada enquanto Julie descia os
degraus.
A breve caminhada até aquela mulher, o ser que quase lhe tirou a vida, parecia eterna.
A cada passo, ela via com mais clareza que Cleópatra estava um pouco encurvada e que
sua respiração parecia difícil. Forçada.
— Por que você veio? —perguntou Julie.
— Leve-me até ele. Leve-me para ver Ramsés.
— Primeiro você deve me dizer por que você...
— Leve-me até ele ou vou quebrar seu pescoço como um junco.
Desespero na maneira como ela disse essas palavras. O desespero de um animal ferido,
não ameaçador.
Em resposta, Julie estendeu a mão e tirou os óculos de sol, revelando seus olhos azuis.
— Faça o que quiser, última rainha do Egito—, Julie sussurrou. — Faça o que quiser.
Foi difícil discernir as emoções na expressão de Cleópatra. Um estranho sorriso
malicioso. Quase como se estivesse aliviada por ter sido poupada da possibilidade de um
confronto físico. E também havia tristeza, uma tristeza tão profunda que irradiava
sofrimento. Mas foram sua respiração difícil e sua postura estranha que chamaram a
atenção de Julie novamente.
Doente—, pensou Julie. —Meu Deus, ela está doente. Isso é mesmo possível? Alguém que
tomou o elixir pode realmente ficar doente?
Ela não estava preparada para isso, para esse estranho sentimento de afinidade e
compaixão que brotava dentro dela ao ver outra imortal lutando para ficar ereta e
centrada.
— Venha—, disse Julie. — Nós falaremos em particular primeiro. E então vou trazer
Ramsés até você. Mas o que quer que tenhamos de fazer, você e eu, não podemos fazer na
frente de todas essas pessoas.
Sem pensar, ela estendeu a mão, como faria com qualquer idoso ou enfermo. Só
quando a atordoada Cleópatra olhou para baixo, Julie também percebeu, por sua vez,
como o gesto era estranho, dada a sua história atormentada. Mas havia tristeza nos olhos
de Cleópatra. Tristeza e necessidade, como se o consolo oferecido por aquela mão fosse
um copo de água fresca após uma longa jornada no deserto.
No entanto, ela não segurou a mão de Julie. Em vez disso, ela lançou um olhar
desconfiado para a mansão à sua frente, tendo visto que Samir a observava da varanda da
frente.
Novamente Julie teve pena dela. Pois parecia que ela estava imaginando o
constrangimento de aparecer no meio de todas aquelas pessoas em seu estado de
debilidade.
—Agora somos iguais, gostemos ou não—, disse Julie. —O que quer que a tenha
trazido aqui, devemos discutir como tal.
—Iguais—, sussurrou Cleópatra, como se essa palavra a enojasse. — Que noções tolas
este mundo moderno tira das antigas leis romanas.
—Certamente você não veio tão longe apenas para atrapalhar esta festa. Ou estou
enganada, Cleópatra?
— Em absoluto. Você não está enganada.
— Muito bem, então—, disse Julie.
Com um braço estendido, ela indicou a ala leste da casa, do lado oposto de onde a festa
estava acontecendo. Elas a contornaram e então seguiram direto para o amado templo
romano de Elliott. Ficava a uma boa distância do gramado oeste e ofereceria a elas toda a
privacidade que desejavam.
Depois do que pareceu uma eternidade, Cleópatra começou a andar.
Julie a seguiu. Elas caminharam silenciosamente entre um jardim vazio e bem cuidado
e a lateral da casa principal, até que saíram em uma grande extensão ondulante de grama.
Enquanto caminhavam, Cleópatra virava a cabeça ao ouvir os sons distantes da festa, na
direção dos convidados parados no gramado oeste, até que uma sebe alta ocultasse
totalmente a festa.
Para Julie era impossível interpretar sua expressão.
Suspeita? Anseio?
A cada passo, Julie precisava se lembrar de que agora era seguro ficar sozinha com
aquela mulher. Que ela não podia dominá-la e que, se ela não podia dominá-la, então não
haveria razão para ter medo. E cada segundo que ela a mantinha longe de Alex parecia
uma vitória.
O templo ficava no topo de uma ondulação gramada na paisagem, aninhado contra
uma densa parede de carvalhos e freixos. Sua pesada porta de aço estava aberta.
Lá dentro, sombras e estátuas as aguardavam.
24
Ele a salvaria.
Provaria seu valor mais uma vez.
Ele a impediria de alguma cena na frente de todos aqueles aristocratas e então ela o
declararia seu protetor e guardião e o usaria para mais do que apenas saciar sua
sensualidade ou guiá-la no mundo moderno.
Ela o chamaria de "querido Teddy" novamente e eles voltariam a viajar ao redor do
mundo.
Teddy tinha certeza.
Ele tinha certeza porque estava bêbado.
Mas não tão bêbado que não pudesse escalar o portão de serviço que descobrira na
noite anterior.
Coragem líquida. Isso era tudo. O que viera fazer exigia algumas doses de conhaque,
então bebeu várias dezenas antes de deixar a pensão. Por que havia trazido uma pequena
faca afiada que roubara da cozinha da pensão, ele não tinha certeza. Contra qual imortal
ele planejava usá-la? Aquele que veio para ameaçar ou aquele que veio para salvar? Não
funcionaria com nenhum deles. Mas isso pouco importava para ele quando deixou a
pensão.
Porque ele estava bêbado.
Ele estava mais bêbado agora do que quando saiu?
Não deveria se distrair com tais cálculos sem sentido. Em vez disso, ele teve que fazer
um reconhecimento do terreno para não aparecer na área de recepção e se deparar com
uma possível lista de convidados.
O importante é que agora ele estava na propriedade e finalmente havia parado de
chorar como um garotinho humilhado.
Na noite anterior, ele havia percorrido o perímetro da propriedade. Ele localizou os
portões e portas de acesso e os vários pontos onde a altura do muro de pedra variava. Ele
presumiu que ela poderia querer entrar secretamente. Com ele, é claro. Então fez um
plano mental dos lugares a serem acessados.
A estrada de serviço em que estava agora seguia em direção aos fundos da
propriedade. Havia marcas de pneus recentes na terra, provavelmente de um dos veículos
de catering. Embora ele não pudesse entender por que eles se aventuraram tão longe de
casa. Onde estacionaram? Ao lado do lago que ele avistara na noite anterior, atrás da
pequena réplica do Panteão e seu acompanhamento de árvores? Era uma distância
considerável de onde a festa parecia estar acontecendo.
Bem à frente havia um pequeno jardim recém-podado. Um pouco mais adiante, o
prédio principal. As sombras envolviam a área em penumbra àquela hora. Não era de
admira que tivessem decidido dar a festa no gramado oeste. O terraço de pedra deste lado
também era menor. E através de suas janelas de painéis ele não viu nenhum movimento
no interior da casa.
Se as portas não estivessem trancadas, esta certamente seria a sua entrada.
Vitória!
Ele entrou sorrateiramente e deparou-se em uma pequena sala de estar e biblioteca.
Imediatamente ouviu o barulho dos criados subindo correndo do porão com tigelas de
prata cheias de hors d'oeuvres fumegantes. Este lado da casa estava quase vazio e se ele
ficasse ali chamaria a atenção.
Seguiu em frente.
Ele entrou no corredor e logo foi atropelado por um homem alto, de smoking, que lhe
deu um sorriso forçado e disse:
—A festa é por aqui, senhor.
Teddy acenou com a cabeça e devolveu o sorriu. O criado continuou seu caminho,
absorto em suas tarefas.
Ele estava a um passo de entrar no corredor da mansão quando ouviu um nome que o
fez parar.
—Sibyl Parker! —Uma voz feminina exclamou.
SIBYL CONGELOU.
A mulher que ia a seu encontro de braços abertos para cumprimentá-la era sem dúvida
a anfitriã da festa, e saudava a chegada de um visitante não convidado como se fosse um
feliz acontecimento.
Quantos roteiros Sibyl havia escrito e ensaiado para aquele momento? Nenhum deles
parecia ser necessário.
Ela deu seu melhor sorriso.
—Você é Sibyl Parker, não é? —disse a mulher. Ela gentilmente pegou as mãos de Sibyl
nas suas. Puro prazer em seu sorriso. —O Daily Herald publicou algumas fotos suas. Diga-
me que não estou errada ou ficarei terrivelmente envergonhada. Você é a escritora Sibyl
Parker?
—Eu sou, de fato, e você deve ser a Condessa de Rutherford.
—Por favor, me chame de Edith. Eu sou um grande fã dos seus livros. Devo confessar
que prefiro viagens de verdade. Oh, é claro que você precisa conhecer nosso misterioso
Sr. Ramsey!
—Sr. Ramsey, sim.
Tirou-lhe fôlego pronunciar aquele nome em uma conversa tão normal. Pois, em sua
mente, adquirira conotações quase míticas.
—Vamos entrar. Uma taça de vinho a espera na sala de estar, e então encontrará o Sr.
Ramsey no gramado oeste bem em frente. Que privilégio—, disse Edith, conduzindo Sibyl
escada acima com uma das mãos nas costas. —Que privilégio! Se eu tivesse minhas cópias
de seus livros aqui, pediria que você os autografasse para mim. Mas tenho que me
contentar com seu autógrafo em um guardanapo, se você não se importar.
—Parece perfeito—, sussurrou Sibyl, tão aliviada por essa reviravolta que estava à
beira das lágrimas. —Como quiser, Edith... garanto que não tenho objeções. Não posso
agradecer o suficiente por sua hospitalidade.
—Não falemos disso. Alex querido! Esta jovem é Sibyl Parker, a romancista egípcia.
Você tem suas memórias de sua recente viagem ao Egito; eu tenho os livros dela que são
deliciosos e divertidos. E isso não vai mudar, pois não desejo viajar para um Egito que não
se assemelhe ao que ela descreve em seus romances.
Seu filho era jovem e bonito. Mas havia uma tristeza em seus olhos que parecia se
intensificar enquanto ele a estudava.
—Devo dizer, Srta. Parker—, sussurrou Alex, — que a Srta. me parece familiar.
—Bem, claro que sim. Ela é uma romancista famosa mundialmente.
—Não sou um leitor, devo confessar. Certamente não de ficção. A maior parte do
costumo ler é muito... seco. — disse Alex como se acabasse de se dar conta disso, e o
constrangimento era algo novo para ele. —Primeira vez em Yorkshire?
—Esta é a primeira vez que volto à Inglaterra em muitos anos.
—Ah, sim... Nesse caso, talvez seja apenas porque você me lembre alguém.
Sibyl teve a impressão de que aquelas palavras, e a intensidade com que Alex as havia
falado, poderiam ser uma primeira indicação do que a trouxe ali. Mas era impossível
questioná-lo agora, nos degraus de entrada.
Edith olhou rapidamente por cima do ombro de Sibyl, um sinal de que mais convidados
estavam chegando.
—Muito obrigada por esta recepção—, disse ela, baixando a cabeça. —Tem sido muito
gentil. Ambos foram.
Houve mais agradecimentos e sorrisos. Então ela se viu cambaleando pelo corredor
até a iluminada sala de estar. Do lado de fora das portas abertas do terraço, garçons em
smokings ficavam em posição de sentido com bandejas cheias de taças de vinho. Além, um
pequeno mar de convidados se misturava no vasto gramado verde entre duas altas sebes.
—Você gostaria de uma taça de vinho, senhorita?— perguntou-lhe um garçom.
Mas ela já o tinha visto e o vislumbre dele deixou-a sem palavras.
Sr. Ramsey. Bonito, egípcio. Acenando com a cabeça e ouvindo atentamente a pessoa
que estava conversando com ele. Cada detalhe de seu ser, de sua pele morena ao belo
queixo e o surpreendente azul de seus olhos encheram-na de uma memória tão
avassaladora que ela ficou sem palavras e sem fôlego. Não era o vago desenho a tinta dos
recortes de jornal. Este era o homem dos seus sonhos, em carne e osso.
Por enquanto ela podia ver que o homem que estava tão perto dela havia aparecido
não apenas em seus pesadelos mais recentes, mas também em outro sonho, um sonho que
a acompanhou por toda a vida, um sonho que tinha sido a base de seu romance A Ira de
Anubis.
Este era o homem com quem ela havia caminhado pelas ruas de uma cidade antiga e
indefinida. Ela tinha certeza absoluta! O homem de cujo porte e rosto nunca fora capaz de
lembrar depois de acordar; cuja presença ela sempre sentiu, e nada mais. Este era o
homem que lhe deu roupas de plebeia e pediu que ela visse seu próprio reino através dos
olhos de um de seus cidadãos comuns. E sua presença física diante dela era como um
toque de aquarela trazendo cor e riqueza ao que até segundos antes tinha sido apenas um
esboço a lápis.
Não tinha sido apenas um sonho. Ele não tinha sido apenas um sonho.
Mais uma vez, a pergunta abalou o chão sobre o qual ela se encontrava: como ela
poderia ter sonhado com um homem que vive e respira e que nunca havia conhecido
antes?
A menos que ela o tivesse visto, por algum motivo, em algum lugar. A menos que não
fosse um sonho, mas uma memória. A memória de um homem cujo nome era...
—Ramsés—, sussurrou Sibyl.
Seus olhos encontraram os dela no meio da multidão.
Naquele exato momento, um braço envolveu sua cintura. Muito perto, muito
repentino, muito íntimo. Ela estava a ponto de gritar, mas então um sopro de ar na nuca a
assustou. Com ele veio o bafo de bebida alcoólica.
—Não se mova—, seu agressor sussurrou com veemência, dando a cada palavra uma
ênfase terrível.
O estranho deu um passo atrás dela como se fosse um velho amante que quisesse
surpreendê-la, mas estava cravando algo afiado na base de sua espinha.
—O que você sente é uma faca—, disse ele. —Afiada como um bisturi. Mova-se um
centímetro e afundarei a lâmina entre duas vértebras. Você perderá o uso de suas pernas
instantaneamente. Você pode nunca mais andar novamente.
Quando Sibyl tentou falar, conseguiu apenas soltar uma série de suspiros fracos.
—Venha comigo—, sussurrou ele. —Não faça alarde. Caso contrário, irei furá-la e fugir
deste local antes que alguém perceba que você está sangrando até a morte. Andando.
O homem estava louco, louco e bêbado. Mas dada a força com que segurava a faca
contra ela, ele parecia terrivelmente confiante. Então ela obedeceu. Ele caminhou atrás
dela, o peito a poucos centímetros das costas de Julie e um braço em volta dos ombros
dela para dar uma impressão de intimidade.
Eles não poderiam ir muito longe dessa forma. Era muito estranho, muito chamativo.
Mas ele rapidamente a conduziu para longe dos convidados, para os quartos vazios do
primeiro andar, passando por criados que subiam e desciam as escadas do porão. A cada
passo que os distanciava mais das pessoas, da música agradável que tocava lá fora, o
terror de Sibyl aumentava e ele relaxava sua atitude presunçosa.
De repente, ele a agarrou pela nuca. Conduziu-a por uma biblioteca deserta e por um
curto corredor.
—Quem é você? — perguntou ela. —O que quer?
Com o que pareceu um único gesto, ele abriu a porta de um pequeno banheiro e a
empurrou para dentro. Assim que a porta se fechou atrás dele, ele colocou a faca em sua
garganta.
—Quem é você, Sibyl Parker? Quem você realmente é? E por que você quer destruir
minha rainha?
IMPOSSÍVEL.
Ele estava vendo coisas, imaginando coisas. Os pensamentos sobre Cleópatra o
incomodaram o dia todo. A ideia de que ela pudesse aparecer era possível, é claro. Com
que propósito, ele não tinha ideia.
Mas Samir e seus homens estavam vigiando os navios, os portos. Até o momento,
nenhum relatório.
E isso era muito bom.
No entanto, ele a tinha em mente, como agora diziam, e ele sempre a teria. Foi por isso
que reconheceu o olhar dela no rosto da loira de pele clara que acabara de aparecer pelas
portas do terraço. Os olhos dela. A mulher tinha os olhos de Cleópatra. Seus olhos antes
de ser ressuscitada. Antes que eles mudassem de cor. Castanhos, grandes, expressivos,
muito inteligentes e perspicazes. E sua postura. Perfeita, ereta, confiante.
E de repente ela não estava mais lá.
Perdida em uma corrente repentina no mar de convidados que o cercava. Não estava
à vista no terraço, nem nos degraus, ou no gramado ao redor.
Ele começou a ignorar rudemente os convidados com quem estivera conversando até
segundos antes. Desculpou-se o mais educadamente que pôde e retirou-se.
Para onde aquela mulher foi? Talvez sua semelhança com Cleópatra fosse uma
alucinação. Mas, e quanto ao seu súbito desaparecimento? Era motivo suficiente para
suspeita imediata.
Uma mão agarrou seu cotovelo.
Alex estava ao seu lado.
—Não vá muito longe, amigo. Nós vamos brindar a vocês em instantes. Traga Julie com
você, se puder.
—Sim, claro, Alex. Obrigado.
Sim, ele traria Julie; mas primeiro iria procurar a estranha com os olhos de Cleópatra.
O MEDO A TRANSPASSOU.
O que havia a temer naquele pequeno templo? Parecia uma réplica do Panteão, com
uma galeria de estátuas romanas em alcovas alinhadas nas paredes e uma estátua em um
pedestal no centro. Era César? Não tinha certeza. Ela havia perdido completamente as
memórias do semblante dele.
De onde vinha esse medo? Não era pavor. Nem ansiedade, mas uma paralisia repentina
e violenta que afetava todo o seu corpo.
Sibyl Parker. De Sibyl Parker vem esse medo. Ela está me enviando de propósito? Ou é o
que ela está sentindo agora? Estava cansando-a dar sentido a tudo.
—Você está doente—, disse Julie.
Nenhuma sugestão de malícia em sua declaração, apenas uma espécie de fascinação
terna.
Sempre gentil, essa Julie. Por que tão gentil?
—Como é possível que você esteja tão doente?— perguntou-lhe Julie. —Você não se
recuperou totalmente do incêndio?
—Eu me recuperei do incêndio. A doença... está em minha mente.
—O que você quiser, eu darei a você, ou pedirei que Ramsés dê a você, com uma
condição.
—Então agora você e eu negociamos? A rainha que alimentou Roma e a aristocrata
que chorou até cair nos braços de um faraó?
—Use sua crueldade como quiser. Não vale mais nada para você. Precisa de ajuda. Você
veio aqui procurando por ela. E é isso que lhe ofereço: ajuda.
—Mas com uma condição. Bem, diga-me, querida Julie Stratford, qual é essa condição?
—Você deve ficar longe de Alex Savarell. Para sempre. Você tem que deixá-lo em paz.
—Deixá-lo em paz—, sussurrou Cleópatra.
Quão inesperada foi a raiva que esse pedido lhe causou. A raiva que sentiu ao ver o
medo nos olhos de Julie, tão semelhante ao medo nos de Teddy quando ela o deixou na
pensão há algumas horas atrás.
—Deixá-lo esquecer de mim e do tempo que passamos juntos, você quer dizer.
—Sim—, Julie sussurrou, — é exatamente o que quero dizer.
—Então ele pensa em mim com frequência, não é? E isso a entristece? Você ainda o
ama?
—Eu nunca o amei. Não como uma mulher deveria amar seu marido.
—Entendi. Então você me considera um veneno e pensamentos dele sobre mim como
uma corrupção.
—Ele é assombrado por memórias de sua insanidade.
—Minha insanidade?— Cleópatra rugiu. —Minha insanidade é o resultado da culpa e
arrogância de seu amante! É assim que você descreve o que ele fez comigo? Como uma
insanidade que surge do meu interior e não dele? Diga-me, querida Julie, como ele lhe
ofereceu o elixir? Ele a ungiu com óleos? Você destampou a garrafa em um quarto
palaciano enquanto os músicos tocavam? Ele explicou seu poder e suas falhas para você?
O que você ganharia, o que perderia? Ele não me fez tal gentileza no Museu do Cairo. Ele
me transformou em um monstro e me abandonou por conta própria.
—Ele o ofereceu a você mil anos atrás. Você…
—E eu recusei! Eu recusei, mas ainda assim ele o impôs a mim dois mil anos depois,
na morte. Uma morte que escolhi!
Por que Julie chorava agora? Estava simplesmente com medo? Ou havia tanto
sofrimento nas palavras de Cleópatra que ela também se sentiu oprimida? Quase teve a
impressão de que se sentia culpada.
—Ele disse a você a mesma coisa, não disse? —perguntou Cleópatra. —Ele sabe o que
fez. Ele se atormenta porque sabe.
—Ele a amava—, sussurrou Julie.
—Duas vezes ele me abandonou. A primeira enquanto meu império estava
desmoronando, e então o exato momento em que me trouxe de volta a uma vida que eu
não queria. Que você, sua nova noiva, seja poupada para sempre do tipo de amor que ele
me demonstrou.
—Estou oferecendo o que você quer, mas não posso apagar os séculos entre os dois. E
nem ele.
—O que eu quero...? — disse Cleópatra entre dentes, cercando Julie. A resposta a essa
pergunta parecia estar olhando para ela de todos os lados, dos rostos estranhos e estoicos
em cada estátua nesta homenagem ao império que a havia conquistado. —Quero saber
quem são esses homens, esses romanos. Esses homens que eu deveria conhecer. Embora
essas estátuas, esses rostos, nada mais sejam do que caricaturas, eu deveria reconhecer
algumas de suas características. Alguma característica de seus queixos, cabelos ou
armaduras. E ainda assim minhas memórias deles desaparecem. E a cada dia que o sol
cruza o céu, mais desaparecem. César... —Ela se virou para a estátua no meio do templo.
—Este deveria ser César? Eu não saberia. O homem com quem me deitei, o homem com
quem concebi um filho, desapareceu da minha memória. Seu cheiro. O som de sua voz.
Perdido. E meu filho. Disseram-me que tive um filho dele, um filho que reinou brevemente
como faraó após minha morte, e ainda quando procuro por alguma lembrança dele eu
mergulho em um grande poço de escuridão. Seu nome nada significa para mim. Qual será
a próxima? Qual será a próxima coisa a se extinguir?
—Cesário—, sussurrou Julie. — O nome dele era Cesário.
—Você se delicia com tudo isso, Julie Stratford? Você se deleita com a minha
destruição?
—Você ainda deseja quebrar meu pescoço só porque sabe que vai machucar Ramsés?
—Eu não viajei tão longe para isso.
—Bem, então eu não tenho prazer sua angústia, Cleópatra. E ele também não. Mas você
ainda não me disse o que quer.
—Eu quero o elixir—, disse ela amargamente. Como ela odiava o som de seu próprio
desespero. —Ele não usou o suficiente quando me trouxe de volta. Eu tinha buracos por
todo o corpo. Eu podia ver meus próprios ossos e isso me deixou louca. Agora tenho
buracos em minha mente, em minha memória. Eles aumentam dia após dia. Existe apenas
uma chance de curá-los. E está nas mãos de Ramsés. Esta é a única razão pela qual eu
queria vê-lo, ou você, novamente.
Alívio nos olhos de Julie.
Mas então Cleópatra sentiu uma dor aguda na garganta.
Julie avançou em sua direção imediatamente.
Cleópatra recuou, apoiando-se no pedestal da estátua.
—Afaste-se—, disse Cleópatra. Impossível não interpretar o avanço daquela mulher
como um ataque, Julie aproveitando um momento de fraqueza. Mas sua expressão era de
extrema preocupação. Compaixão absoluta. Por alguma razão, isso só piorava a dor. —
Fique parada — repetiu Cleópatra, embora em um sussurro atormentado. —Não se
aproxime.
—Dor—, Julie disse em voz baixa. —Você me contou sobre memórias perdidas, mas
não sobre dor. E é dor o que você sente agora. Tudo isso é consequência do que está
acontecendo em sua mente? Não é possível.
Cleópatra não conseguia responder, não conseguia falar. Especular sobre a pergunta
de Julie significava voltar aos pensamentos aterrorizantes que a assediaram durante a
viagem até ali: que sua mente não lhe pertencia mais. Que ela havia sido invadida por
outro que estava se aproveitando de sua fraqueza. Mas era uma vulnerabilidade muito
grande para ser reconhecida no momento. Não até que tivesse o elixir em suas mãos.
Ela se agarrou ao pedestal, respirando pesadamente.
Pior do que a dor era o terror. Esse medo paralisante que a estava atacando novamente
em ondas incontroláveis. De onde vinha esse terror?
—Cleópatra—, Julie sussurrou, com a mão estendida.
—Não—, gritou Cleópatra. —Por favor, não ... me toque. Fique longe.
ELA CAIU, ESPERANDO CADA momento terrível pelo fim da queda. Tentando agarrar as
paredes de barro de ambos os lados, mas estavam longe demais para alcançá-las.
Ela continuou caindo até atingir uma superfície de metal duro. Sem dor, mas uma
espécie de perplexidade atordoada. Então, logo acima dela, arranhões e um gemido
metálico. A escuridão tornou-se impenetrável quando a tampa foi fechada sobre ela.
Ela se contorceu e se debateu, reunindo todas as suas forças. Aquilo era um caixão! Ela
estava presa dentro de um caixão! A tampa a segurou com uma força tão formidável
quanto a dela.
Ela foi a única que ouvia seus próprios gritos? Ela era a única que estava surda? Presa,
confinada, incapaz de se mover.
E então movimento.
Aquele sarcófago — o que mais poderia ser? —estava sendo carregado com os
solavancos do movimento humano. Seus gritos iam com ela, para o fundo da terra, sem
que ninguém os ouvisse, ela temia, exceto por aqueles que tinham acabado de levá-la
prisioneira.
RAMSÉS NÃO ESPERAVA QUE esse homem lutasse tanto. Esses socos selvagens, essas garras
desesperadas.
Quem era ele? Por que estava tão furioso? Ele estava louco e fedia a álcool. Isso fez
Ramsés temer sua própria força. Se ele não tomasse cuidado, iria inadvertidamente
quebrar ossos ou estilhaçar o crânio do homem. E ele não queria fazer tal coisa. Mas o
sujeito não parava de lutar!
Seu objetivo era prender o ladino contra a parede, dando uma demonstração de sua
própria força. Então, o bêbado irado não teria escolha a não ser responder às suas
perguntas.
Mas não ia ser assim.
De repente, o bêbado se libertou e seus passos se transformaram em uma dança de
embriaguez enquanto ele fugia correndo.
Alguém esperava pelo homem no final do corredor.
Uma mulher alta e esguia, pele negra como os núbios. Seu turbante dourado
combinava com o vestido esvoaçante que era complementado com um xale de brocado
amarelo e dourado; as cores misturadas faziam com que parecesse algum tipo de
armadura. Seu pescoço estava exposto, e apesar das placas de ouro irregulares que
compunham seu colar, aquela extensão visível de pele a fazia parecer extremamente
vulnerável aos avanços do louco. Mas manteve sua posição com absoluta confiança.
Ela sairia do caminho dele?
Ela não saiu.
Em vez disso, bem no momento em que o bêbado enlouquecido parecia pronto para
derrubá-la, ela estendeu a mão e o agarrou pela nuca. O homem congelou sob seu aperto
poderoso.
Pela primeira vez, Ramsés viu os olhos da mulher. Eram azuis como safiras, tão azuis
quanto os seus.
O louco rosnou:
—Solte-me, sua negra...
Ela bateu a cabeça dele contra a parede.
Isso deixou uma marca no gesso.
Ele desabou, caindo inerte no chão.
Atrás dela apareceram dois homens, também de pele negra e olhos azuis, ambos
impecavelmente vestidos.
—Levem-no daqui—, disse ela. —Amarrem-no se necessário.
Sem dizer uma palavra, os homens levantaram o corpo inconsciente. Entre os dois,
eles o carregaram como um tapete enrolado, inclinando a cabeça educadamente para
Ramsés ao passarem por ele. Eles seguiram na direção oposta ao corredor principal.
Longe da festa, longe do clamor dos convidados no gramado.
E então ele ficou sozinho com ela, com esta mulher misteriosa que apareceu do nada,
ao que parecia, e que fechou a distância entre eles com um sorriso caloroso e paciente,
como se o incidente desagradável que acabara de acontecer no corredor fosse apenas um
mero inconveniente.
—Quem é você? —perguntou Ramsés.
—Encontre sua noiva. Eles estão preparando o champanhe para o brinde. Não beba.
Nenhum dos dois. Você me entende? Você não deve beber. Eu cuidarei dela.
Ramsés tinha esquecido; esquecera a jovem loira com os olhos de Cleópatra, cujo
súbito desaparecimento o trouxera ali.
Ela estava inconsciente, caída no chão do banheiro.
—Vá, Ramsés, o Grande—, disse a negra de olhos azuis brilhantes.
—Quem é você e o que você fez?— perguntou Ramsés.
—Somente aqueles que vieram para lhe fazer mal serão punidos. Desde que você e a
Srta. Stratford não bebam o champanhe. Faça o que eu digo. Encontre sua noiva. Rápido.
Como se não tivesse dúvidas de que Ramsés obedeceria às suas ordens, a mulher
ajoelhou-se e voltou sua atenção para a bela adormecida deitada no chão do banheiro. Ela
tirou o enorme xale e a envolveu com ele. Então, sem o menor esforço, ela a ergueu. Uma
imortal, esta mulher poderosa de pele negra. Ramsés não tinha dúvidas. Mas…
O champanhe. Não beba o champanhe…
Ele começou a correr.
25
Julie corria.
Ela avistou Ramsés no terraço de pedra. Estaria ele procurando por ela?
Sim!
Quando ele a viu correndo pela vasta extensão de grama do outro lado da sebe, desceu
correndo os degraus e ziguezagueou por entre os garçons que distribuíam taças de
champanhe borbulhante a todos os convidados.
Quando ele a alcançou, Julie caiu contra ele, não apenas para buscar conforto, mas
porque assim ela poderia sussurrar tudo o que tinha visto. A sebe os escondia da festa,
mas estavam perto o suficiente para que uma conversa assustada pudesse chamar a
atenção de algum convidado.
— Ela está aqui—, murmurou Julie. — Cleópatra. Eu a levei para o templo para mantê-
la longe de Alex. Ela está doente. Algo a aflige. Ela acha que mais do elixir irá curá-la. Ela
tentou explicar, mas havia algum tipo de armadilha. Ramsés, o chão se abriu e a engoliu, e
eu ouvi movimento no túnel abaixo. Alguém a levou, Ramsés.
— Temos que encerrar esta recepção imediatamente—, disse Ramsés. — E devemos
fazer isso sem criar pânico.
— O que está acontecendo, Ramsés?
Veio-lhe uma súbita lembrança. Uma lembrança recente. Aquela mulher estranha e
delicada, Jeneva Worth, e seu marido, Callum, pedindo-lhe um passeio, não apenas pelo
terreno, mas pelo próprio templo de onde Cleópatra acabara de ser raptada.
— Julie, venha comigo. Vou explicar tudo enquanto eu...
— Aí estão vocês! — Alex Savarell gritou. Ele tinha acabado de aparecer ao lado da sebe
e agora se dirigia até eles, bêbado e animado.
— Não beba—, Ramsés sussurrou agressivamente. — Não beba o champanhe. Apenas
finja beber. Não deixe uma gota tocar seus lábios. Acene com a cabeça para indicar que me
entendeu.
Julie assentiu. Então havia algo mais, pensou ela, algo a mais naquela estranha trama
em que Cleópatra havia tropeçado; e Ramsés estava ciente disso, e a única escolha era
seguir suas instruções.
Por trás, Alex os conduziu em direção ao gramado.
— Nós procuramos por vocês em todo parte—, disse ele, soando como se já tivesse
bebido muito. — Há semanas venho preparando este brinde. Obriguem-me a esperar mais
um momento e terei um ataque de nervos que nem todo vinho de Yorkshire vai poder
remediar.
Segundos depois, Alex os posicionou ao pé da escada do terraço.
A multidão se virou para encará-los. E bem na frente estavam Jeneva Worth e seu
marido, Callum. Impossível acreditar que eles não tivessem ligação com que acabara de
acontecer dentro do templo. De que outra forma explicar seu estranho e detalhado pedido
de visitar justamente aquele lugar? Agora suas expressões eram indecifráveis, graças aos
óculos de sol que ambos usavam. Mas, certamente, eles estavam olhando em sua direção
com insistência. Estavam notando as pequenas manchas de sujeira do templo que cobriam
seu vestido?
Enquanto falava, a voz suave de Alex ecoava pelo gramado silencioso, ocasionalmente
abafada pela brisa que balançava a copa das árvores acima.
Parecia um brinde perfeitamente respeitoso, repleto de sentimentos amáveis e
humildes para comunicar ao grupo à sua frente que ele e toda a sua família haviam
realmente seguido em frente, que todos os presentes deveriam aceitar o Sr. Reginald
Ramsey e Julie como destinados um ao outro. Mas Julie só ouvia palavras soltas, de modo
que ficou surpresa quando Alex disse:
— E por isso peço aos presentes que ergam suas taças em homenagem ao Sr. Reginald
Ramsey e sua noiva, Srta. Julie Stratford.
Todos os convidados obedeceram.
Julie apenas fingiu tomar um gole, como Ramsés a havia instruído. Mas o que isso
poderia significar?
Ela olhou de taça em taça em busca de uma nuvem misteriosa ou manchas de alguma
partícula estranha. Mas viu apenas o fluido espumante em todas elas.
Houve alguns aplausos, risadas educadas, uns poucos murmúrios sobre como o
champanhe era delicioso.
Jeneva Worth enxugou o canto da boca com um guardanapo. Então súbita e
visivelmente quedou-se imóvel. A visão de algo no terraço atrás de Julie a paralisou de
medo.
Ela estendeu a mão e tirou os óculos escuros. Julie viu que os olhos dela eram tão azuis
quanto os seus. Então ela agarrou o pulso do marido e sussurrou-lhe algo que também o
fez olhar para além de Julie.
Ele também tirou os óculos. Seus olhos também eram surpreendentemente azuis.
Finalmente, Julie virou-se para o que lhes havia atraído a atenção.
Era uma das mulheres mais bonitas que Julie já vira e estava emergindo lentamente
pelas portas do terraço. Seu turbante dourado brilhava à luz do sol, e ela foi erguendo o
queixo à medida em que cruzava o terraço deserto até que suas feições fossem visíveis
para todos no gramado oeste que haviam notado sua chegada. Sua pele era escura como
ébano; seus olhos tão azuis quanto os de um imortal, e o olhar que ela fixou na multidão
diante dela parecia tão firme e imutável quanto o da Esfinge.
Muitos notaram sua chegada, mas tiveram o cuidado de não olhá-la abertamente. Esse
não foi o caso de Jeneva e Callum Worth. Ou do gigante homem barbudo com quem Julie
os vira antes. Nem de vários outros convidados que notaram a chegada daquela bela
mulher negra com um evidente horror que os deixou sem palavras e com as mãos
trêmulas. Cada um desses convidados aterrorizados usava óculos escuros que agora
tiravam. Todos eles revelaram os olhos azuis cristalinos de um imortal.
Ramsés parecia menos surpreso com a entrada dessa mulher do que Julie, mas agora
também a encarava. Reconhecia a importância de sua silenciosa chegada.
A maioria dos convidados havia retomado a conversa.
Mas Julie sentia como se todos os músculos de seu corpo tivessem se contraído.
Não beba—, dissera-lhe Ramsés. —Apenas finja beber.
E agora…
Houve um baque suave contra a grama a alguns passos de distância. Jeneva havia
deixado cair sua taça de champanhe. Olhava-a como se ela fosse uma serpente pronta para
atacar.
— A rainha—, sussurrou Callum Worth.
E então Jeneva caiu na grama de joelhos. O azul desvaneceu de seus olhos, substituído
pelo que a princípio parecia ser um tom intenso de vermelho, então seus olhos tornaram-
se órbitas pretas vazias.
Quando Callum Worth tentou tocar o ombro de sua esposa, viu que sua própria mão
estava murchando diante de seus olhos, como se até a última grama de sangue e até a
última gota de água tivessem sido sugadas de sua carne em um breve e silencioso instante.
As mãos de Jeneva pareciam exatamente iguais. Mas isso não a impediu de esticar o
braço na direção de Julie e Ramsés, apesar de sua mandíbula ter se desprendido de seu
rosto e se transformou em uma pilha de cinzas que dançava graciosamente na brisa fresca
da tarde.
E então os gritos começaram, gritos penetrantes e terríveis.
Pois a mesma coisa estava acontecendo a todos eles. A todos os imortais aterrorizados
que tiraram seus óculos de sol ao ver a magnífica mulher que agora se erguia orgulhosa
no terraço vazio, olhando para todos eles como se fosse um monarca preparando-se para
falar aos seus súditos. Mas seu discurso era silencioso, pensou Julie, e se desenrolava em
um ritmo terrível e destrutivo.
Por todo o gramado, os imortais começaram a murchar e se decompor, causando
momento de caos entre os convidados. Aqui, um braço murcho se estendia para o nada;
ali, um torso ressecado desabava sobre um par de pernas repentinamente ocas, ambas se
tornando nuvens de cinzas rodopiantes.
Cadeiras e mesas foram derrubadas enquanto todos corriam para escapar.
Quando uma mão agarrou as costas de seu vestido, Julie gritou.
Era a imponente mulher negra, a arquiteta de tudo aquilo, Julie tinha certeza.
— Venham comigo—, disse ela. — Vocês dois.
Ela agarrou Ramsés da mesma maneira e puxou os dois para que subissem de novo a
escadinha enquanto o caos reinava no gramado.
— Quem é você? — Ramsés exigiu. Ele estava mascarando o medo com fúria.
— Eu sou sua rainha—, respondeu a mulher.
— Eu não respondo a nenhuma rainha.
— Talvez não—, respondeu a mulher. — Mas você tem uma.
26
Quando Sibyl acordou de repente, um homem alto e bonito com pele negra se levantou
da cadeira ao lado da cama. Ele tinha um ar elegante. Ele estendeu a mão gentil como se
achasse que ela quisesse se levantar.
Sibyl não tinha tanta pressa. A cama em que se encontrava era um pequeno mar de
luxo. Lençóis macios beijavam suas pernas nuas. Sua cabeça repousava em um verdadeiro
campo de travesseiros macios. Tudo isso era tão reconfortante que ela não tinha vontade
de sentar-se. Ainda não.
Mas quando percebeu que alguém a tinha despido, deixando-a apenas a roupa de
baixo, ela ficou tensa. Até o espartilho tinha sido removido, tudo sem acordá-la. Este
homem estranho e sedutor tinha feito isso?
A mera ideia a envergonhou tanto que ela ficou em silêncio.
— Foi uma mulher que a preparou para dormir—, disse o homem em voz baixa e
reconfortante. Ele era incrivelmente alto, tinha pele negra e um rosto doce de menino. —
Uma mulher, garanto-lhe. Seu recato esteve a salvo em todo momento.
Ela só pôde responder acenando com a cabeça.
O sonho tinha acabado. A estranha visão de Alexandria. A visão de seu reflexo
substituído pelo de outra mulher.
Agora havia apenas aquele quarto, com suas paredes de pedra altas e lustre de ferro
cheio de velas tremeluzentes. Não, essas velas eram elétricas. E por alguma razão isso a
confortava por permanecer conectada ao mundo moderno, mesmo em meio àquelas
paredes austeras, às ondas estrondosas lá fora e ao fogo crepitante na lareira aos pés da
cama.
Haviam-na trazido a uma costa varrida pelo vento.
A que distância de Yorkshire ficava esse lugar?
Ela não conhecia o mapa da Inglaterra bem o suficiente para sequer fazer suposições.
Mas era um lugar quente e bem cuidado e o homem próximo a ela não mostrava malícia
ou hostilidade. Todas essas coisas a acalmaram.
— Um homem—, disse ela. — Um homem tentou me matar.
— Você está segura. Não pense mais naquele homem. Ele morreu devido ao seu
próprio comportamento imprudente. Ele não pode machucá-la nunca mais.
Ele serviu um copo d'água para ela de uma jarra de cristal na mesa de cabeceira e, com
um gesto ordenou que ela bebesse. Claro, podia ser veneno. Claro, esse homem poderia
ser um sequestrador muito mais temível do que o bêbado louco que a atacou na festa. Mas
ela não estava presa ou amarrada, e seu guardião era gentil. Muito gentil e delicado, e
possuidor de uma força interior para a qual ela não tinha um nome.
— Me chamo Aktamu—, disse o homem.
Um nome tão estranho. Ela nunca tinha encontrado tal nome em seus sonhos ou em
seus estudos.
Ele sustentou seu olhar durante o silêncio que se seguiu, e Sibyl percebeu que ele
estava perguntando o nome dela sem exigir.
— Sou Sibyl Parker—, disse ela. — E gostaria muito de saber onde estou.
— Vou dizer a eles que você está acordada—, disse ele. — Tenho certeza de que todos
terão muito a dizer uns aos outros.
Sibyl acenou com a cabeça, embora para ela fosse impossível saber o que isso
significava, quem eles eram, ou como ela tinha vindo parar neste lugar.
Pelo menos é bonito, ela pensou.
Pelo menos ela podia ouvir o mar.
Sentiu um movimento no cobertor ao lado dela e gritou. Mas então ela se viu
contemplando o olhar vigilante de uma gata cinza. O simpático animal se aproximou com
passos cuidadosos e então se esparramou sobre o seu colo como se para confortá-la.
Este não era um animal comum, ela tinha certeza. Sibyl começou a acariciar seu pelo
mesmo assim, e observou enquanto ela fechava suavemente os olhos azuis com uma
sonolência que parecia quase humana.
30
Havillad Park
Seu grito foi alto o suficiente para acordar uma matilha de cães nas proximidades.
Ela podia ouvi-los uivando lá fora, em algum lugar além de onde estava confinada. Seu
reflexo na água do canal havia desaparecido para ser substituído por outro: o de Sibyl
Parker. Mas as palavras da mulher eram verdadeiras? Ela realmente não queria esconder
nada, roubar nada? Estaria ela atormentava por aquela estranha conexão tanto quanto
Cleópatra?
Que bagunça confusa, aqueles pensamentos, nenhum deles absorvendo o suficiente
para distraí-la da pedra fria em suas costas, os seixos e pedras cravando em sua pele, e o
cheiro úmido de terra da cela onde agora se encontrava.
Seus olhos não precisaram de tempo para se ajustar à escuridão. Devia agradecer a
Ramsés e seu elixir.
As ranhuras no chão de pedra eram claramente visíveis, assim como o contorno de
uma porta formidável feita de algum tipo de metal. Naquele lugar escuro, um fedor de
animal também se destacava. As feras que uivavam em algum lugar próximo estavam
trancadas algum ponto do cativeiro?
Que maldição, esses sentidos aguçados. Ela teria gostado de saborear alguns segundos
de desorientação. Mais alguns minutos sentindo seu sonho com Alexandria e a mulher
chamada Sibyl Parker sair lentamente dela como uma mortalha.
Alexandria se foi. A sensação de perseguidora e ser perseguida por uma vaga
impressão de suas vielas e canais. Desapareceu a visão aterrorizante do reflexo de Sibyl
Parker onde o seu próprio deveria estar. Desapareceu o som da voz de um garotinho
chamando-a repetidamente em grego. Mãe, mãe, mãe.
E agora…
Ela ouviu um terrível som. Semelhante ao barulho que seus captores fizeram quando
fecharam a tampa do caixão que a trouxera até ali.
Uma luz laranja tênue caiu formando um pequeno retângulo no chão, até seus pés
descalços.
Através da abertura repentina na porta de metal, ela viu três rostos. Não reconheceu
nenhum. O homem do meio tinha cascatas de cachos pretos e feições primorosamente
proporcionadas. À sua esquerda, um homem que parecia muito mais velho, com uma
expressão estreita e azeda e duas mechas de cabelo grisalho e desgrenhado repartidas ao
meio que mais parecia um esfregão. À sua direita, uma mulher com cabelos louros
espessos que não se parecia em nada com os outros dois. Imortais, todos eles, e eles a
estudavam com frieza, assim como um cientista faria quando confrontado com um
experimento fracassado.
—Não é ela —, disse o homem do meio, com um tremor de raiva na voz.
—Mestre—, disse o major. —Eu realmente sinto muito, mas...
—Saia—, disse o homem do meio.
—No túnel eles agiram muito cedo e agora, com tudo que está...
—Saia! — rugiu o homem bonito.
O criado, ou o quem quer que fosse, obedeceu e a mulher saiu com ele.
No túnel eles agiram cedo demais. Ela repetiu essas palavras mentalmente. Portanto,
a armadilha em que ela caiu não tinha sido preparada para ela. Mas ainda assim eles a
confinaram. Indesejada, mas prisioneira. “Não é ela”, o homem havia dito. Portanto, a
armadilha fora preparada para uma mulher.
Ao cair havia se convencido de que fora que Julie armara tudo, que fez o chão do
templo desaparecer sob seus pés. Que tudo tinha sido pura estratagema; a doçura de Julie
Stratford, suas repetidas afirmações de que só queria ajudar. Mas lembrou-se do rosto
surpreso de Julie, a maneira como ela estendeu o braço para evitar que Cleópatra
cambaleasse e caísse no buraco.
"Não é ela…".
Julie Stratford não havia tramado a armadilha. Esses imortais haviam preparado uma
armadilha para Julie Stratford.
Mas por quê?
E o mais importante, eles a libertariam agora?
Quem quer que fossem esses imortais, melhores seriam suas chances de escapar se
eles não descobrissem sua identidade. A porta se fechou com um barulho estridente.
A escuridão a envolveu. Ela a abençoou. Isso lhe dava tempo para pensar e respirar.
Seus sentidos aguçados não detectaram passos se afastando. Então a porta era
incrivelmente grossa, incrivelmente pesada. Projetada para resistir à força de alguém
como ela.
Mas eles sabiam que ela era imortal? Suas pálpebras foram abertas enquanto ela
estava perdida em seu sonho?
Impossível saber...
A porta se abriu novamente. Ela sobressaltou-se.
—Olhe para mim—, disse o homem.
Ela se virou para a parede.
—Olhe para mim!
Ela recusou-se.
—Você ouviu aqueles cães? Você ouve os cães ainda latindo ao som do seu grito?
Obedeça-me ou vou jogá-los em cima de você bem aqui, nesta cela.
—Bem, eu vou rasgá-los membro a membro com minhas próprias mãos—, gritou ela.
Foi o desdém do homem que a fez gritar. E ao fazer isso, ela virou o rosto para a luz,
permitindo-lhe ver seus olhos azuis perfeitamente. Grande erro. Por enquanto, ele
encarava-a com tanto espanto quanto admiração. Seu sorriso foi triunfante.
Tarde demais, ela voltou o rosto para a parede.
—Então, nossa armadilha pode não ter capturado a mulher que queríamos, mas outra
imortal—, disse o homem. —Que interessante. Sim, muito interessante.
—Traga seus cães e farei o que puder para aumentar o interesse deles por mim.
—Eles são tão fortes quanto você. Seria um espetáculo e tanto. Você se acha um
gladiador romano? Eu os vi muitas vezes em ação no Coliseu. Você não tem a aparência
deles.
—Eles não tinham meu olho de lince.
O homem riu.
Ainda assim, o pensamento de cães de caça fortes e imortais se lançando sobre ela
naquela cela fez seu sangue gelar. Mas não podia demonstrar esse sentimento. Não diante
daquele estranho ser. Aquele estranho que queria trancar Julie Stratford naquela mesma
cela, talvez para poder ameaçá-la da mesma forma.
Mas ele tem o elixir! Ele tem que ter!
Como a decisão lhe parecia terrível agora. Quão impossível. Conquistar com seu
charme a cura de sua doença das mãos do seu relutante e vil captor, ou tentando escapar
para confrontar Ramsés mais uma vez.
Se ela conseguisse se libertar, Julie teria pena dela como no templo que se transformou
em uma armadilha? Isso seria o suficiente para convencer Ramsés a lhe dar outra dose?
Devia evitar mostrar sua insegurança ao seu captor. Mas uma vez feito, ela percebeu
que, ao virar o rosto para a parede, fazia exatamente isso.
—Devo dizer—, disse o homem, — que apesar de sua chegada inesperada aqui, você
me parece vagamente familiar. Já vi seu rosto antes, faz muito tempo...
E então, como se quisesse torturá-la com aquelas palavras, fechou a porta com uma
batida estridente que estremeceu até seus ossos. E lá fora, em algum canto daquele lugar,
os cães continuavam uivando.
31
Cornualha
Shaktanu...
Ramsés já tinha ouvido esse nome antes. Na época em que governava como rei. Um
nome que evocava lendas, fantasias e uma crença ingênua em uma época de ouro mais
perfeita. Um tempo sem de guerras ou conflitos, destruído pela fúria inexplicável de
deuses remotos. Shaktanu, um reino africano, uma fantasia relacionada a selvas remotas
que agora era objeto de inúmeros rumores, selvas que antes forneciam marfim, ouro,
pedras preciosas e escravos.
Essa não era uma crença tão ingênua, ele agora percebia.
Enquanto Bektaten falava de suas terras, de suas frotas de navios que navegaram pelo
mundo, de templos cujas ruínas ainda não haviam sido descobertas e que talvez nunca
seriam, de um mundo perdido por culpa da peste e das guerras tribais que sucederam a
sua queda, estava claro que ela dizia apenas a verdade. Na verdade, ela havia abraçado
seu papel de historiadora, arquivista e contadora de histórias com absoluta facilidade, e
Ramsés agora se encontrava inteiramente fascinado. Se seu olhar arregalado era uma
indicação, Julie também estava sob o feitiço da rainha.
Shaktanu.
Quando despertou neste século, ele não notou a ausência do nome do reino em
nenhum dos livros de história que devorou, nem mesmo nas populares mitologias de
antigos reinos perdidos. Mas agora ele estava bem consciente disso.
E esta mulher diante dele tinha sido a rainha de Shaktanu; e o homem que tentara
sequestrar Julie naquela tarde, seu primeiro-ministro.
Ele deveria saber.
Esse pensamento se repetia continuamente enquanto ela falava, enquanto mostrava a
eles seus diários encadernados em couro, escritos inteiramente em uma grafia antiga e
irreconhecível. Diferente de qualquer escrita que ele já tivesse visto. Primitiva. Mais
próximo do alfabeto romano do que dos hieróglifos, mas com símbolos intercalados que
pareciam quase pictogramas. Ela chamava esses diários de Shaktanis, embora também
fossem a crônica de sua vida durante os milhares de anos após a queda de seu reino.
Eu deveria saber—, ele pensou novamente. —Deveria saber que algo tão mágico e
importante como o elixir não poderia ter sido criado por uma mulher louca que vivia em
uma caverna.
Tinha sido ingênuo da parte dele ou apenas imprudente? Embora, segundo havia
admitido Bektaten, a descoberta do elixir foi, na verdade, um acidente. Ela nem mesmo
procurava o segredo da vida eterna, mas sim tônicos e curas para as doenças comuns.
Portanto, talvez ele devesse perdoar a si mesmo por sua cegueira, assim como ela buscou
se perdoar por não ter percebido a sabedoria imortal de Ramsés enquanto ele havia
liderado tantos soberanos do Egito.
Mas a descoberta que ela fizera dele não havia sido acidental.
E ela havia poupado sua vida, embora tivesse o poder de destruí-lo.
Diante da extensão de sua história, Ramsés sentiu grande humildade. E essa
humildade lhe trouxe grande alívio, pois ele não era mais o único ancião entre os imortais
recém-criados.
Mas ela o havia trazido ali para algum julgamento?
Se sim, por que ela estava sendo tão generosa com sua história?
Por que se dava ao trabalho de cuidar de Sibyl Parker?
Talvez, por enquanto, ela buscasse apenas instruí-lo e ser instruída em troca.
Mas tudo isso mudaria quando ela soubesse que ele havia usado sua criação para
despertar Cleópatra?
Os três se sobressaltaram ao som de passos. Era o servo que ela chamava de Aktamu,
aquele com rosto de menino.
— Ela está acordada—, disse ele. — Sibyl Parker está acordada.
— Então iremos vê-la—, disse Bektaten.
EM UMA GRANDE CAMA de dossel, Sibyl Parker estava recostada em uma montanha de
travesseiros. Conforme Ramsés se aproximava, seu rosto parecia dançar à luz bruxuleante
do fogo. Ele ficou aliviado ao ver que ela não tinha ferimento no pescoço pálido. Aninhada
próximo às protuberâncias de seus pés estava um esguio gato cinza que observava sua
chegada com uma atenção misteriosa.
Apesar de ter entrado no quarto com Bektaten e Julie ao seu lado, Sibyl parecia ver
apenas ele. E em sua expressão, Ramsés viu o mesmo reconhecimento de quando a olhou
entre os convidados da festa lotada.
Aktamu e Enamon esperavam em silêncio no canto mais distante, perto da janela, e
Bektaten ao lado da lareira, imóvel como uma estátua, como se pensasse que manter
distância de todos lhe permitiria assimilar melhor qualquer história estranha que Sibyl
Parker tivesse trazido a seu castelo.
— Você me salvou—, sussurrou Sibyl. — Você me salvou daquele homem terrível.
— Você está bem, Sibyl Parker? — perguntou Ramsés. — Você está machucada?
— Como você sabe meu nome? Você também me reconhece?
Sem lhe dar tempo para responder, Julie se adiantou e disse:
— Fui eu quem a reconheceu. Eu conheço seus livros muito bem. Meu pai, Lawrence
Stratford, gostava muito deles.
— E agora eu arruinei completamente sua festa de noivado. — Lágrimas encheram os
olhos de Sybil. Lágrimas e uma expressão deplorável, agravada pela exaustão; Ramsés
tinha certeza. — Eu espero que vocês possam me perdoar.
— Não, não. — Julie contornou a cama e sentou-se do outro lado para poder segurar a
mão de Sibyl. —Não há nada a perdoar.
— Julie está certa —, disse Ramsés. — Você foi apenas um dos vários convidados
extraordinários e inesperados.
— Bem, essa é uma maneira muito educada de colocar as coisas. Eu que agradeço. Mas
aquele homem. Aquele homem bêbado louco...
— Você não tem mais nada a temer. — A firmeza do tom de Ramsés causou um longo
silêncio. — E agora, por favor, Srta. Parker. Você deve nos contar o que a trouxe até aqui.
Você é americana, não é? Digo isso pelo seu sotaque.
Ramsés nada disse sobre o comportamento misterioso dessa mulher, nada sobre sua
expressão que tanto evocava a Cleópatra há muito perdida, a Cleópatra que agora estava
morta e enterrada. Nada disse sobre o estranho efeito que a voz e o comportamento dela
tinham sobre ele.
Sibyl pareceu perceber pela primeira vez que Julie segurava uma das mãos entre as
suas, e isso a fez sorrir.
— Oh, Deus! Por onde começo? — sussurrou Sibyl.
— Por onde você quiser—, disse Julie, — não temos pressa.
— Quanta gentileza. Isso é muito gentil da sua parte. É como um sonho que todos vocês
estejam sendo tão gentis. Veja, a maior parte da minha vida tive sonhos vívidos e intensos.
Sonhos com o Egito, principalmente... Oh, temo que faça tão pouco sentido o que vou lhes
contar.
Ramsés sorriu.
— Você veio ao lugar certo, Srta. Parker. Somos especialistas no que não faz muito
sentido.
— Bem—, disse Sibyl, rindo e chorando ao mesmo tempo. — Muito bem.
Julie encheu o copo de água de Sibyl e colocou-o em sua mão trêmula.
Depois de beber, ela começou seu relato.
— Como eu disse a vocês, durante toda a minha vida tive sonhos muito vívidos com o
Egito. Mas havia um em particular que se repetia continuamente. Ao acordar eu sempre
conseguia lembrar apenas de fragmentos, e esses fragmentos não eram memórias reais,
mais sim como uma consciência ou um conhecimento do que havia acontecido. Mas nesse
sonho específico estou ciente de que sou uma rainha. E você, Sr. Ramsey, ou um homem
que se parece exatamente com você, é meu guardião. E de alguma forma, nesse sonho
também estou ciente de que você é imortal.
“Uma noite, você chega a meus aposentos carregando roupas comuns de plebeia e me
pede para vesti-las para que possamos caminhar por meu reino. Para que eu possa ver
meu povo por um par de olhos diferente. Olhos de uma plebeia. Olhos compassivos e
solidários. E eu obedeço. Já que foi você, meu conselheiro imortal, quem fez o pedido, eu
obedeço. E juntos, fazemos essa jornada a pé.”
“Mas quando eu acordava desse sonho, não me lembrava de quase nada da cidade pela
qual passamos, e nada de seu rosto. Apenas a sensação de que não sentia nada por você,
exceto amor, respeito e admiração. Escrevi e publiquei um romance inteiro inspirado
nesse sonho, entende? E então, quando o vi na festa de hoje, percebi que esse homem, meu
guia imortal, era você. Veja, eu cruzei um oceano porque você apareceu em outros sonhos
meus. Sonhos mais recentes. Sonhos terríveis. E então recebi um recorte de jornal que
trazia um retrato, e lá estava você. Mas só quando te vi em carne e osso pela primeira vez
é que percebi que você era a peça que faltava em um sonho que tem me acompanhado por
toda a vida. Então eu lhe pergunto agora, como pode ser possível? E mais: é possível que
tenha sido mais que um sonho?”
Ramsés refletiu. Se continuassem nesse caminho, se suas suspeitas sobre o que
trouxera Sibyl Parker aqui estivessem corretas, ele logo não teria escolha a não ser revelar
seu grande crime a Bektaten. Mas o olhar de Julie implorava que ele respondesse à
pergunta de Sibyl da maneira mais honesta possível.
— Sim, é muito mais do que um sonho, Sibyl Parker. A cidade era Alexandria. Eu era,
de fato, seu conselheiro imortal. E você era Cleópatra.
A notícia a atingiu como um raio. Sibyl apertou a mão de Julie com mais força. Dava a
impressão de que poderia perder o contato com a realidade daquele momento e lugar, e
mergulhar em sonhos tão profundos que talvez nunca mais voltasse. Mas ela lutou para
se concentrar, para ignorar um território vasto e desconhecido de memórias, sensações e
vozes.
— Não é um sonho—, continuou Ramsés. — É uma memória. Uma memória de uma
vida passada.
— E da sua vida passada? — sussurrou Sibyl.
— Não—, respondeu Ramsés. — Não, de minha vida atual, pois sou imortal e vivo há
milhares de anos. Por isso o que você vivenciou hoje na festa foi uma experiência sem
comparação.
— O que você quer dizer? —perguntou Sibyl.
— Você, pela primeira vez, viu alguém que conheceu em uma vida passada. E não uma
versão reencarnada da pessoa em questão, mas a própria pessoa. De carne e osso. E essa
experiência por si só foi poderosa o suficiente para transformar seu sonho confuso em
uma memória coerente.
— Você. Você é de... uma vida passada?
— Sim.
Sibyl balançou a cabeça suavemente e Julie pressionou a palma da mão na testa dela
para consolá-la. Mais uma vez parecia que Sibyl poderia perder o contato com a realidade,
e que o sombrio e desconhecido território a reclamaria. Mas diante do chamado de um
mundo obscuro de fantasias, ela se agarrou a um propósito. Viver agora, viver e pensar e
saber agora.
Por algum tempo ninguém falou e ouvia-se apenas o rugido do mar.
Um sentimento de resignação silenciou Ramsés. Ele não olhou por cima do ombro para
ver Bektaten, para ver como a grande rainha respondia a essa nova informação. Ninguém
naquele quarto entendia melhor do que Ramsés as prerrogativas dos antigos monarcas, a
autoridade divina que os cercava e a rapidez com que podiam julgar ou agir. Mas eu
também sou um monarca—, pensou ele, — nascido e criado como um monarca, nascido e
criado com autoridade, e devo proteger não só a mim mesmo, mas também minha amada
Julie. Aconteça o que acontecer, serei Ramsés como sempre fui.
— Esses outros sonhos—, disse Julie finalmente, rompendo o silêncio — os mais
recentes, esses em que você também viu Ramsés. Descreva-os para nós.
— No primeiro, era como se eu saísse das trevas, da própria morte. Eu vi você de pé
em cima de mim e, quando tentei tocá-lo, minhas mãos eram as mãos de esqueleto, e você
estava apavorado.
— Meu Deus—, sussurrou Julie. — O Museu do Cairo. Quase exatamente como
aconteceu.
— Em outro, havia dois grandes trens vindo da escuridão em minha direção, e depois
o incêndio. Um fogo terrível por toda parte. E depois, em outro... — Lágrimas escorreram
de seus olhos, mas ela bravamente ainda tentava se lembrar de cada detalhe. — Eu tirei
uma vida. Com minhas próprias mãos. Fechei minhas mãos em volta da garganta de uma
mulher e tirei a vida dela. Era como se eu não soubesse o que estava fazendo. E o fato de
ser capaz de matar com minhas próprias mãos foi fonte de grande confusão… — E então
isso foi demais para ela, e ela balançou a cabeça como se para banir esses pensamentos.
— É exatamente o que eu suspeitava—, disse Julie.
Ela olhou para Ramsés, que estava sem palavras.
A culpa paralisou-o, encheu-lhe a garganta de algo que parecia um tecido, pois aqui
estava de novo, outra consequência do crime que cometera no Museu do Cairo, o crime
contra a vida e a morte, contra a natureza, contra o destino. Eram incessantes as
repercussões daquele terrível acontecimento, e agora esta pobre mortal estava fora de
combate por isso, e seus atos terríveis estavam sendo revelados a uma rainha cuja
existência ele desconhecia completamente até aquele dia. Ele não conseguia pensar no
que dizer, nada exceto de segurar a outra mão de Sibyl num esforço para confortá-la. O
rosto que ele revelou a Julie era forte, confiante, a máscara de um monarca para ocular
sua confusão.
Julie passou um braço pelos ombros de Sibyl Parker, apoiando a cabeça da moça em
seu peito. Julie a abraçou com ternura, embora ela descansasse entre almofadas de seda e
as cobertas luxuosas.
— Nossa Cleópatra do Museu do Cairo está doente—, explicou Julie. — Hoje, no
templo, ela mal conseguia ficar de pé. Ela tinha dificuldade para andar. Sua pele estava
brilhante e seus olhos muito vibrantes. Carregava todos os sinais de alguém que consumiu
o elixir. A vitalidade, a saúde física. Mas havia uma doença dentro dela. Uma doença séria
em sua mente, me disse ela. E no exato momento em que você, Sibyl, foi atacada por aquele
homem horrível, foi como se ela também tivesse sentido a agressão. Cada golpe. Há uma
conexão entre vocês duas, uma conexão vital que se formou quando nossa Cleópatra abriu
os olhos no Museu do Cairo.
— Quando eu a despertei —, disse Ramsés, — o que eu nunca deveria ter feito. — Ele
suspirou profundamente, seu olhar movendo-se pelo teto. — Esses sonhos que você teve,
Sibyl Parker—, continuou ele. — Esses pesadelos estavam todos ligados a essa nova
Cleópatra ressuscitada enquanto ela vagava pelo Cairo apenas alguns meses atrás. Ambas
estão conectadas desde que ela despertou.
Ele balançou a cabeça, lembrando-se de toda a conversa com Julie sobre clones sem
alma, e ficou ainda mais horrorizado pelo que havia feito.
— Porque você, Sibyl, é Cleópatra renascida — disse Julie, com entusiasmo. — Você é
o receptáculo do verdadeiro espírito dela.
— Não sabemos disso, Julie—, disse Ramsés. — Pode ser verdade, mas talvez não seja.
Você fala de coisas que ninguém pode saber com certeza. — Quanta angústia. O que o
havia possuído quanto estava lá no museu com o frasco de elixir nas mãos? Ele tinha sido
um homem no sentido mais trágico da palavra, um ser humano desajeitado e imperfeito,
lutando entre o poder de um deus e o coração partido de um amante.
— Não sabemos disso? — Julie o questionou. — Ramsés, que outra explicação poderia
haver? Essa Cleópatra ressuscitada é uma aberração. Eu sempre soube disso. Ela nunca
foi feita para existir. A verdadeira alma de Cleópatra, rainha do Egito, há muito havia
continuado sua jornada, vivendo e morrendo em incontáveis outras para finalmente
reencarnar nesta mulher americana extremamente humana, Sibyl Parker. O clone busca
desesperadamente a alma em Sibyl Parker, porque o clone não tem alma. E Sibyl se
beneficia à medida que o clone se deteriora.
— Você acha que estou tirando proveito disso? — sussurrou Sibyl.
Julie ficou em silêncio, assustada com essa resposta. Ela parecia nervosa, incapaz de
encontrar as palavras certas para o que queria ter dito.
—Fui tomada por visões—, disse Sibyl, — muitas delas aterrorizantes. Paralisantes.
Elas me dominam em lugares públicos e, literalmente, me colocam de joelhos. O que antes
era apenas pesadelos começou a aparecer durante o dia. Este processo que você descreve,
em que uma de nós ascende, enquanto a outra declina, não é o que tenho experimentado,
Julie. Não é o que eu experimento agora.
— Talvez não — disse Ramsés, — mas você diria que ficou cada vez mais real à medida
que vocês duas se aproximavam? Intensificou-se, como dizem agora.
— Sim. Definitivamente.
— E depois de hoje, quando vocês duas estavam no mesmo lugar, a natureza dessa
conexão mudou de alguma forma?
— Mudou no minuto em que cheguei a Londres. Parecia... Bem, parecia que de repente
desfrutávamos do tipo de conexão frequentemente descrita por gêmeos. Senti pontadas
de dor que pareciam não ter origem. Eu me sentia incapaz de dormir, mesmo quando
estava exausta. E emoção. Grandes ondas de emoção que me acometiam sem aviso, sem
qualquer relação com o que estava acontecendo em meu ambiente. Como se de repente
eu experimentasse os sentimentos de outra pessoa.
— Ela não dorme—, explicou Ramsés. — Ninguém que tenha tomado o elixir o faz.
Podemos desfrutar de uma espécie de soneca por um breve período. Mas nunca um sono
profundo. Fundamentalmente, vocês suas são seres diferentes. No entanto, estão de
alguma forma conectadas e é por isso que suas diferentes naturezas lutam entre si.
— Então temos que descobrir se o mesmo acontece com ela—, disse Sibyl, como se
fosse a sugestão mais óbvia a fazer. — Devemos encontrá-la e trazê-la aqui. Se este é um
refúgio para mim, entre seres compreensivos, então não podemos fornecer o mesmo
refúgio para ela?
Silêncio.
— No sonho—, continuou Sibyl, — aquele em que falamos, ela perguntou: foi você
quem me sequestrou? Ela está presa em algum lugar, não é? — Sibyl estudou seus
semblantes. O que ela viu em suas expressões pareceu assustá-la. —Vocês vão me ajudar
a encontrá-la, não vão? É pedir muito, que me ajudem a por um fim nisso?
Ramsés sorriu, mas seu sorriso foi discreto, reservado e triste. Depois de tudo que essa
mulher havia suportado, ela só queria ajudar a Cleópatra ressuscitada. Ali, rodeada de
imortais, a par das revelações que deveriam tê-la abalado profundamente, ela pensava
apenas na outra, no horrível fantasma que ele havia trazido à existência, como se ela não
tivesse escolha. É isso— pensou Ramsés. —Elas estão tão intimamente ligadas que essa
mulher não consegue pensar em mais nada.
— Um fim—, disse Julie, como se temesse a ideia. — Que fim você imagina para isso,
Sibyl?
— Pôr um fim a essa confusão certamente ajudará a nós duas—, disse Sibyl. — Como
posso fazê-los entender a urgência que sinto de estar com ela, de olhar em seus olhos, de
segurar suas mãos? — Ela fez uma pausa. — Sim, Ramsés—, disse ela finalmente. — Em
resposta à sua pergunta, algo mudou depois da festa. Pela primeira vez, parecíamos
compartilhar um sonho, ela e eu. Perseguíamos uma a outra pelas ruas de alguma cidade.
A voz de uma criança chamava por sua mãe. Em grego. A palavra mãe repetidamente. E
então nós olhamos uma para a outra através de uma espécie de canal. Pela primeira vez,
nos olhamos sem imprecisão ou distrações. Nós conversamos.
— O que disseram? — perguntou Ramsés.
— Ela me perguntou onde eu tinha escondido. Onde eu estava escondendo as
memórias de seu filho. E eu disse a ela ... —Lágrimas de novo. — E eu respondi que nunca
esconderia nada dela.
— Ela está perdendo suas memórias—, disse Julie. — Ela me disse hoje no templo.
Especificamente, ela mencionou o filho, Cesário. Ela não consegue se lembrar de nada
dele. Saber que tinha um filho a atormenta. Um grande poço de escuridão. Foi como ela
descreveu o lugar onde as memórias de seu filho deveriam estar, mas não estão.
— Ela mencionou Sibyl especificamente? — perguntou Ramsés.
— Não, mas havia algo que ela estava escondendo, algo que ela não diria. Eu perguntei
a ela por que uma doença da mente prejudicaria tanto seu corpo. Ela não me respondeu.
Mas isso foi o momento em que parecia que uma força invisível a empurrava. No exato
momento em que Sibyl estava sendo atacada, eu acredito. — Lágrimas brotaram dos olhos
de Julie. — Senti pena dela—, confessou Julie. — Por mais que eu a deteste, pois não posso
deixar de odiá-la, senti tanta pena dela. — A voz de Julie se suavizou, tornou-se pouco
mais que um murmúrio. — Como deve ser não ter alma, procurar por uma alma que reside
em outra pessoa? Como será estar consciente de que você é uma casca vazia?
— O homem que me atacou—, disse Sibyl, — ele sabia meu nome. Ele me acusou de
invadir a mente dela, de tentar destruir sua rainha.
—Ah—, disse Ramsés, — e então era ele, exatamente como eu pensava. O médico com
quem ela viajava. Theodore Dreycliff. Agora sabemos que Cleópatra também está ciente
de sua existência, Sibyl. Que ela detecta sua presença assim como você detecta a dela. E
que ela foi capaz de fazer isso antes da festa de hoje, antes que ambas estivessem a alguns
passos de distância.
—Enviei uma mensagem para ela—, disse Sibyl, como se fosse uma confissão
vergonhosa. — Enviei-lhe uma mensagem quando estava a bordo do Mauretania. Eu disse
a ela meu nome e perguntei como poderia encontrá-la.
— E você recebeu uma resposta? —perguntou Julie.
— Só o homem que colocou uma faca na minha garganta—, respondeu ela com os
lábios trêmulos de segurar as lágrimas. — Eu queria ajudá-la. Eu queria que nos
ajudássemos mutualmente. E agora tenho a sensação de ter feito algo terrível.
— Você não fez nada terrível, Sibyl Parker—, disse Julie rapidamente. — Nada terrível,
em absoluto.
— Mas vocês acreditam que ela sim, não é? —perguntou Sibyl. Ela lutava para conter
os soluços e adotou um tom tão lamentável em sua voz que fez Julie abraçá-la mais forte.
— Vocês a veem como uma vilã, como um monstro. Por isso não vão ajudá-la, porque
acreditam que estarei melhor se ela continuar a piorar, como vocês dizem. E se o que
dizem for verdade, ela sofrerá uma loucura que será permanente porque ela não pode
morrer. E eu deveria ficar aliviada com isso, até mesmo confortada. E se eu disser que
sinto uma conexão com ela mais profunda do que o amor que já senti por qualquer outra
pessoa, até mesmo por meus falecidos pais, vocês acreditariam em mim? Talvez pensarão
que estou cega pela emoção e pela estranha natureza dessa conexão, como vocês a
chamam. Pensarão que sou incapaz de vê-la com precisão. Incapaz de julgar
adequadamente seus crimes.
— Ela tirou vidas desenfreadamente, Sibyl—, disse Ramsés o mais gentilmente que
pôde, mas até mesmo suas palavras fizeram com que Sibyl fechasse os olhos e balançasse
a cabeça. — Ela tirou vidas humanas como se fosse um ser sem lei, um ser sem alma, como
disse Julie. Ela é capaz de fazer isso de novo.
— Eu sei—, disse Sibyl tristemente. — Eu sei. É como se eu estivesse presente nisso.
Mas eu também estava presente na sua dor e confusão, agora percebo. Eu senti seu medo.
Eu senti seu terror na escuridão. E isso me domina, e superará qualquer coisa que você
me diga sobre o que ela realmente é. Eu cruzei o mundo por você, Sr. Ramsey, pensando
que você poderia ser a chave dos meus sonhos. E agora que o encontrei, eu lhe peço,
imploro, porque você é a chave para ela. Para ela e para mim... — Ela se interrompeu, lhe
faltaram as palavras.
— Estamos felizes por você ter vindo, Sibyl—, sussurrou Julie. — Você deve saber
disso. Você deve saber que estamos felizes por você ter vindo.
— Então a encontrem. Por favor. Encontre-a e liberte-a para que possamos saber se a
experiência dela corresponde à minha. Encontre-a para que possamos descobrir se outro
encontro entre nós duas mudará a natureza dessa conexão de alguma forma que impeça
que ela nos destrua. No mínimo, deixe que ela enfrente seu julgamento. Não o julgamento
daqueles que a mantêm cativa. Pois sinto o medo que ela tem dessas pessoas como se
fosse a batida de um outro coração dentro do meu peito.
Ela silenciou o quarto com esse apelo. Ela desabou no meio abraço de Julie e deixou
que seus soluços a dominassem.
Ramsés tinha feito isso com ela. Ele e apenas ele. Ele tinha feito isso com essa mulher
e não tinha escolha a não ser consertar. Como Sibyl, ele não tinha certeza se acreditava na
teoria de Julie ou se simplesmente pensava que a versão atual da teoria, que retratava
Cleópatra como uma aberração em declínio e Sibyl como a guardiã de seu verdadeiro
espírito ressuscitado, era perfeita demais. Demasiada simples. Mas isso importava agora?
Havia algo mais importante do que aliviar o desespero que ele havia causado àquela pobre
mulher soluçante, que viajara tão longe sob tal coação, apenas para ser quase morta por
um bêbado com uma faca? Sim, havia uma coisa mais importante: dar descanso àquele
horror que ele ressuscitara no Cairo. Isso importava mais.
Sibyl agora precisava mais do que descansar, pensou Ramsés. Ela precisava da
verdade. Ela precisava de uma verdade que eles ainda não conheciam, apesar de seus
poderes e sabedoria.
Esses pensamentos inundaram a mente de Ramsés.
Julie ergueu os olhos de repente. Ramsés notou uma leve pressão em seu ombro. Uma
mão apoiando-se nele, uma voz em seu ouvido, a voz de Bektaten:
— Parece que temos mais a considerar.
— Vão vocês — sussurrou Julie. — Eu fico com ela.
32
Não devia mostrar a eles a extensão de sua humilhação. Se o fizesse, eles poderiam
suspeitar que tinham uma rainha presa em seu calabouço.
Ela tinha acabado de decidir esconder a profundidade de sua tristeza e raiva de seus
captores imortais quando a porta se abriu. O homem bonito de cabelos cacheados que a
havia ameaçado antes entrou com passos confiantes. Lá fora estavam os outros. Apesar
de não conseguir vê-los, ela podia ouvir a respiração e o barulho ocasional de suas botas
contra o chão de pedra.
— Diga-me seu nome—, ordenou seu captor.
O rosto dele estava oculto pela penumbra. Ela não mostraria o dela novamente, a
menos que fosse forçada.
— Caçadora de cães—, sussurrou ela.
Seu captor estalou os dedos. As sombras passaram pela porta atrás dele. Não apenas
os dois imortais que ela tinha visto antes, mas outros. Cinco ao todo. À medida que se
juntaram, obscureceram ainda mais a luz do corredor. Em suas mãos eles seguravam
correntes. Por si só, esses instrumentos não seriam suficientes para amarrá-la, mas
quando empunhados por aqueles tão fortes quanto ela seriam mais do que suficientes
para mantê-la prisioneira.
— Diga-me seu nome—, repetiu o homem.
— Matadora de cães—, sussurrou ela.
Eles pareciam trabalhar como uma única massa, aquelas pessoas.
Colocaram-na de pé. Seus pulsos estavam amarrados para trás. Um aro pesado se
fechou em seu pescoço. Eles a empurraram para fora da cela e para o corredor de pedra.
Com as correntes, eles a arrastaram por um lance de degraus de pedra.
Quando seus pés descalços tocaram a terra lá fora, a princípio ela sentiu um alívio frio
e macio. Então ouviu os cães mais uma vez, latido muito mais alto do que antes.
Um céu apinhado de estrelas acima, mas quando ela tentou olhar para trás, a corrente
presa ao aro de metal em seu pescoço foi puxada com força. Ela cambaleou vários passos
até recuperar o equilíbrio. Adiante, um edifício alto emergia da ondulante paisagem
noturna. Isolado em meio às colinas sombreadas. Quanto mais se aproximavam, mais
temível se tornava o latido daqueles cães sedentos de sangue.
A porta de aço do andar térreo do prédio estava totalmente aberta.
Ela foi empurrada para a entrada. A sala estava vazia. Vazia com paredes de pedra que
tornavam o caos dos terríveis animais ainda mais barulhento e avassalador. O barulho
vinha de barras de aço localizadas em um canto do chão. E quando ela viu as sombras se
contorcendo abaixo, percebeu que havia muitos mais cães furiosos lá embaixo do que ela
inicialmente havia suspeitado. Tantos que suas sombras pontuava aqui e ali um lampejo
de dentes e gengivas rosadas.
Não tenha medo. Mostre a essas pessoas que você não tem medo. Lembre-se de que você
é uma rainha.
Aqueles imortais a empurraram em direção à grade. Ela caiu de joelhos. O fedor dos
cães a assaltou em ondas incessantes. Tão incessante quanto sua fome, tão incessante
quanto sua força. Ela estremeceu não apenas pela humilhação, mas pelo terror absoluto
do que poderia aguardá-la se a atirassem no fosso.
Havia muitos cães para subjugar. Muitos para lutar. E se a fome deles fosse parecida
com a fome que o elixir havia provocado nela, eles a rasgariam com vivacidade. Eles
seriam mais rápido do que a capacidade de cura de seu corpo? Impossível saber. Ela ainda
sabia tão pouco sobre sua condição, visto que sua tentativa de confrontar Ramsés
terminara naquele terror.
— Diga-me seu nome. — Seu captor se viu obrigado a levantar a voz acima do latido
dos cães.
Novamente ela recusou. Ele empurrou o rosto dela contra as barras. Pela primeira vez,
ela viu como havia pouco espaço entre a grade e as cabeças dos cães. Uma mandíbula se
fechou a centímetros de seu nariz.
— Cleópatra! — ela gritou. — Eu sou Cleópatra Sétima. A última rainha do Egito.
Mas outra frase tomou forma em sua mente. Ajude-me, Sibyl Parker. Por favor. Ajude-
me.
Por fim a cabeça dela foi afastada da grade.
—E então é verdade—, disse seu captor. — Foi o que suspeitei quando você me
mostrou suas belas feições.
Para seu espanto, ele a colocou de pé e a arrastou pela porta. Antes que a porta se
fechasse atrás dela, ela viu os outros imortais jogarem algo pela grade, algo que de repente
acalmou os cães no fosso. Comida.
Uma vez lá fora, o homem parou diante dela como se a recebesse naquele vasto terreno
pela primeira vez, e com orgulho. Mas ela ainda era sua prisioneira. Dois imortais a
flanqueavam, segurando as correntes presas ao aro em volta de seu pescoço e as algemas
que prendiam seus pulsos atrás das costas.
— Assisti a muitos de seus desfiles triunfais em Alexandria—, disse ele. — Eu era um
grande admirador seu. Perdoe-me por não recebê-la como deveria. Mas não era você que
eu esperava conhecer hoje. Jantaremos juntos, você e eu. Tenho certeza de que você está
tão faminta quanto meus cães.
Um fingimento puro, essa polidez. Talvez uma forma mais sutil de tortura.
Mas isso acaso importava? Ele a havia subjugado e sabia disso. Ele se deleitava com
isso. Um monstro, aquele homem.
—Limpem-na e tragam algo para vestir. O vestido dela está em farrapos. Indigno de
uma rainha.
E então ele seguiu caminho pela escuridão. Pela primeira vez, ela viu a casa principal
daquela vasta propriedade a alguma distância. As janelas altas brilhavam atrás dos galhos
nus das árvores. Era um lugar muito mais esplendido do que aquele de onde ela havia sido
raptada. Mas em seu tamanho, ela só viu espaço para horrores ainda maiores.
34
Cornualha
Era impossível dizer quanto tempo havia passado. Ela tinha a sensação de ter passado
horas trancada na cela.
Estavam preparando a comida? Ou esse isolamento era outra forma de tortura sem
derramamento de sangue?
E como explicar a súbita calma que parecia ter se apoderado dela? Era resignação,
rendição?
A porta da cela se abriu.
Os imortais que antes a haviam acorrentado agora lhe traziam um vestido, uma bacia
de porcelana com água morna e um pano para se lavar. Esses itens foram apresentados a
ela como se fossem tributos reais. Ela teve que fazer um grande esforço para não zombar
desse absurdo. Tributos reais naquela cela escura que cheirava a terra e folhas podres?
Quem eram esses infelizes?
No entanto, houve uma mudança no modo com que eles a tratavam. Ela ainda era
prisioneira, mas agora acreditavam que ela era uma rainha.
O vestido era fino e leve, cravejado de pérolas e pedras preciosas que lhe recordavam
a espuma na margem do Nilo. Mais uma forma tola de adorno do que uma vestimenta.
Jóias em forma de roupa. Vesti-lo a rebaixaria, mas não tanto quanto permanecer naquela
cela precária.
Fulminou com o olhar seus captores transformados em portadores de presentes até
eles partirem, então se despiu.
Se não tivesse passado pelo terror de quase ser jogada no fosso dos cães imortais para
servir de comida, ela não teria sido capaz de suportar tamanha humilhação, lavando-se
com um único pano que teve de molhar na bacia a seus pés. Mas o pano era macio e a água
estava na temperatura certa, de modo que se sentiu grata por ambos.
E quando deslizou o vestido sobre a pele, uma onda de conforto a invadiu. Ela soube
imediatamente que não era apenas consequência do tecido acariciando sua pele. Talvez
vestir roupas limpas desencadeara aquela sensação repentina e intensa, mas sua
verdadeira origem estava muito longe dali. Era Sibyl Parker. Lençóis de seda e um
edredom pesado; era isso o que Cleópatra sentia naquele momento, como a suavidade de
um beijo. Alguém estava cuidando e confortando Sibyl Parker. Alguém a havia colocado
em uma cama luxuosa com lençóis finos. Exatamente no momento em que esse
pensamento a encheu de inveja e raiva, ela ouviu a voz de Sibyl, tão clara como a ouvira
no sonho.
Estamos chegando, Cleópatra. Não tema. Estamos indo te encontrar, eu prometo.
Ela podia ouvir o oceano, o rugido estrondoso das ondas, e quando ela permitiu que
seus olhos se fechassem, viu o contorno espectral de uma lareira acesa e as sombras das
pessoas que passavam diante dela. Mas então a visão se foi; a voz de Sibyl, no entanto, sua
memória dela, permaneceu tão clara quanto o badalar de um sino.
— Quem? — ela gritou incapaz de se conter.
A porta da cela se abriu novamente. Seus captores não tinham saído, aparentemente.
E então, para esconder aquela explosão, ela imediatamente disse:
— Estou vestida. Estou pronta para o jantar.
Quem está vindo, Sibyl? Que esperança real de resgate eles oferecem?
Sem resposta.
Quão errática a frequência dessa conexão, menos clara do que no sonho. E parecia
agora ser baseada mais em sensações físicas do que em visões insanas. Seria possível que
Sybil optasse por não responder, recusando-se a dizer quem estava vindo? Sibyl
realmente havia enviado uma equipe de resgate ou Cleópatra estava prestes a ser vítima
de um segundo sequestro?
Estava sem lar. Sem teto, sem refúgio, sem templo ou palácio. Apenas aquelas
memórias escassas às quais ela ainda podia se agarrar e uma determinação que parecia
gelo sob sua pele.
Sons de botas pisando a pedra.
Desta vez, os portadores de presentes trouxeram as correntes mais uma vez.
Ela não demonstrou resistência. Para quê? Eles eram tão fortes quanto ela, e muito
mais numerosos.
Eles deixaram seus pulsos livres, mas prenderam o aro ao redor de seu pescoço e
estenderam as correntes presas em ambos os lados para que pudessem manter uma
distância segura dela enquanto saíam da cela juntos.
Ela não era mais apenas prisioneira deles.
Era também de Sibyl Parker.
36
Sob lustres elétricos cintilantes, a longa mesa da sala de jantar estava posta com um
banquete que teria servido dez mortais. Mas a única pessoa sentada à mesa era o seu
anfitrião, que a recebeu com um olhar tão imutável que mais parecia de uma estátua.
Nas bordas da toalha de mesa, ela viu padrões feitos de pérolas bordadas. O piso de
madeira brilhava. As cortinas roxas nas paredes das janelas altas à sua direita eram tão
compridas que se amontoavam no chão.
Ela foi conduzida para aquela suntuosa sala de jantar acorrentada e colocada em uma
das pontas da mesa, de frente para seu belo anfitrião.
Enquanto se acomodava desconfortavelmente na cadeira de espaldar alto, viu um
pedaço de papel em seu prato vazio.
Era um recorte de jornal. Um artigo sobre um grande esconderijo de artefatos do Egito
ptolomaico vendidos a colecionadores particulares. Arqueólogos e curadores de museus
em todo o mundo estavam indignados, pois essas estátuas e moedas podem muito bem
conter a verdadeira imagem de Cleópatra VII, e deviam estar em um museu.
Que loucura assolou as areias do Egito? Eles se perguntaram. Seria apenas mais uma
fraude, como a descoberta de uma tumba ocupada por um louco que fingia ser Ramsés, o
Grande? Uma ilustração acompanhava o artigo: uma representação surpreendentemente
precisa de uma das estátuas que ela havia escondido dentro da tumba para a qual levara
Theodore Dreycliff. Uma ilustração que se parecia muito com ela.
Então foi assim que ele a reconheceu. Ele sabia o nome dela enquanto a torturava com
seus cães? De que outra forma explicar a rapidez com que ele acreditou nela?
Mas é seu verdadeiro nome? Você ainda o considerará seu verdadeiro nome quando sua
última memória de Alexandria se for?
Cleópatra piscou. Ela não devia derramar lágrimas diante deste homem. Tinha que ser
forte. Bem, em breve esta força poderia ser a única coisa que lhe restaria.
Se ele sabia o nome dela enquanto a torturava, um sinal de que ele também queria
quebrar seu espírito, e ela não podia permitir. Então ela agarrou o recorte de jornal e
amassou-o com o punho como se fosse um despacho de um inimigo de guerra. Então,
depois que a bola de papel foi feita, ela a largou no chão.
Ele olhou ao redor, propositalmente ignorando a reação que seu anfitrião pudesse ter
a seu gesto de desrespeito.
Apenas a escuridão era visível pelas janelas. O contorno da construção distante e
solitária mal era visível, onde estivera perto de ser jogada na cova de cães. Nas paredes
havia tapeçarias representando cenas de caça e batalhas de tempos passados enquanto
ela dormia o sono da morte. Aqui ela se sentia, como se sentira durante sua visita a Roma
mil anos antes, como se todos os adornos e tecidos luxuosos servissem para conter a
ameaça sempre invasora da natureza, as grandes florestas e os campos verdes. Aqui não
se podiam deixar as janelas abertas sem medo. Medo de animais, medo da chuva, medo
da natureza.
De modo que conservava aquela lembrança; aquela apreciação remota de paisagens
verdejantes e indomadas; aquele anseio pela simplicidade limpa da costa deserta. Poderia
ela capturar esta lembrança? Poderia capturar esta lembrança, e outras semelhantes, com
um punho?
Em pé contra a parede oposta às janelas, três outros imortais. Os três de pele clara e
olhos azuis, que pareciam vir desta terra chamada Grã-Bretanha. Mais filhos dele, sem
dúvida. Esse era o grupo inteiro, os dois que seguravam suas correntes e os três que
observavam cada movimento seu com cautela?
—Coma—, disse seu captor.
Ela poderia? Havia talheres à sua frente e seus braços e mãos estavam livres. Uma
travessa cheia de pequenos pássaros assados estava ao alcance.
Ele rasgou o primeiro pássaro com as mãos, separou a carne dos ossos minúsculos
com os dentes.
Seu captor assistiu a esta exibição com frieza. Seria sua recusa em usar garfo e faca
modernos um insulto? O olhar dele parecia perguntar.
Cleópatra não tinha vontade de responder. Ela apenas comeu. Seu captor também
comeu, mas sem olhar para a comida nem uma vez. Este homem tinha uma paciência
incrível. Um temperamento que a assustou tanto quanto a brutalidade com que ele quase
a jogou no fosso dos cães. Mas ele comia com o apetite infinito dos imortais.
Eu sei que cativei muitos homens—, ela pensou. —Eu sei que cativei governantes de
Roma. Não me recordo exatamente como, mas os livros de história me dizem que fiz isso e,
portanto, devo ser capaz de fazer de novo.
No entanto, este homem não era um governante de Roma. Em vez disso, havia uma
ausência de emoção nele que o fazia parecer menos humano.
—Então você fingiu sua morte—, disse ele de repente. —O conto da serpente. Seu
suicídio. Outra mentira de Plutarco?
Cleópatra não respondeu. O que aconteceria se ela deixasse este homem saber que sua
morte, de fato, aconteceu, que ela foi trazida de volta dois mil anos depois? Ele fora criado
desta forma? Se ele não soubesse, ele a veria como inferior, merecedora de mais tortura?
—Quero conhecer sua história—, disse ele.
—E eu a sua.
—Vamos começar com o que sabemos um do outro, então. Você tem sorte de ter
sobrevivido aos acontecimentos do dia. Nosso rapto a salvou da morte.
—Que quer dizer?
—O veneno foi distribuído na festa de noivado de Julie Stratford e do Sr. Ramsey. Um
veneno que só funciona em imortais. Que os reduz a cinzas.
Ele deu a ela um momento para absorver isso. Cleópatra começou a mastigar mais
devagar. Suas mãos tremiam. Veneno capaz de matar imortais? Ramsés nunca aludiu à
existência de tal substância em todos os anos que passaram juntos.
—Suponho que você não sabia que existia tal coisa—, ressaltou.
—Você sabia?
Ele tomou um gole de vinho de seu cálice de prata.
—Como você se salvou?— perguntou ela.
—Eu não fui à festa.
— Eu vejo.
—O que você vê, Cleópatra?
—Você liberou o veneno.
—Porque diz isso?
—Você ouviu falar do Sr. Ramsey. Histórias sobre a tumba que foi descoberta pouco
antes da aparição repentina dele em Londres. Você reconheceu nessas histórias a
presença de um imortal que não conhecia. E você não queria compartilhar o mundo com
ele. É por isso que você tentou envenená-lo. Para restaurar o que você define como ordem.
Esses pensamentos foram revelados quase involuntariamente, mas uma vez
expressos, uma vez que ela imaginou Ramsés envenenado, a tristeza tomou conta dela.
Uma tristeza que rivalizava com a profunda dor que sentia, não pelo filho, mas pelas
lembranças de ter um filho.
Seria possível que a crueldade dessas pessoas para com ela tivesse despertado seu
antigo amor por Ramsés? Essa consequência seria pior do que um espírito fragmentado?
—Se a sua história for verdadeira—, disse ele, — e eu simplesmente quisesse
envenenar o Sr. Ramsey, como você explica a armadilha em que caiu por engano?
—A armadilha que você armou para Julie Stratford, você quer dizer?
Finalmente, houve uma centelha de emoção em seus olhos azuis, que pareciam quase
humanos. Mas impossível de interpretar. Raiva? Simples surpresa? Estava impressionado
com o que ela deduziu?
—Eu nunca quis envenenar o Sr. Ramsey—, disse ele em um tom gélido.
—Mas você queria sequestrar Julie Stratford.
—Em efeito.
—E o veneno?
—O veneno não era meu. Era seu?
Isso os levou ao limiar da estranha história de sua origem, uma história muito perigosa
para Cleópatra revelar.
—Não era—, respondeu ela. —Até hoje não sabia que existia. Você sabia?
Era a segunda vez que ela fazia a mesma pergunta. Desta vez, a resposta foi o silêncio.
A tensão dos captores que a flanqueavam era tão grande que ela podia sentir.
Ele sabia, ela percebeu. Cleópatra percebeu que ele sabia sobre o veneno e ainda assim
havia enviado alguns de seu pessoal para realizar o sequestro. Quantos morreram como
resultado? Os sobreviventes a rodeavam agora, disso ela tinha certeza. A missão no túnel
sob o templo os havia salvado?
Ela sentiu em seu silêncio tenso uma divisão no grupo da qual talvez pudesse tirar
vantagem. Se ela fosse cuidadosa. Se fosse paciente.
—Você deveria ser grata a mim—, disse o homem em um tom mordaz.
—Diga-me seu nome para que minha gratidão possa ter uma forma adequada—, disse
Cleópatra calmamente.
—Saqnos—, respondeu ele. —E você é Cleópatra, a última rainha do Egito. Amiga de
Julie Stratford e seu enamorado, o misterioso egiptólogo Reginald Ramsey.
Ele estava zombando do nome que Ramsés assumira nos tempos modernos.
Incitando-a a revelar o que sabia sobre sua verdadeira identidade. Mas tudo o que ela
disse foi:
—Saqnos. De onde vem esse nome?
—Da minha história, é claro. Do meu passado.
—De que terra?
Ele considerou sua resposta.
—Da terra que existia quando todas as terras eram uma.
—Você fala dos continentes antes de se dividirem?— perguntou Cleópatra.
—Você é uma estudante de ciência moderna?
—Eu leio muitos idiomas.
—E você fala muitos. Ou pelo menos você falava quando era rainha.
—Eu não sou mais rainha.
—Você sempre será rainha. —Quase paternal a maneira como ele disse isso, como se
houvesse conceitos que importassem mais para ele do que o que estava em jogo naquela
conversa. Conceitos como a sobrevivência de títulos monárquicos. —Assim como sempre
terei o título que tive em meu reino ancestral. Os fardos que carregamos, as visões e
sonhos, irão moldar para sempre nossa vida imortal.
—Então você foi rei trezentos milhões de anos atrás, quando as terras ainda estavam
unidas?
—Você fala de unidade no sentido literal. Em termos de continentes. Refiro-me a um
reino que uniu quase todo o mundo por meio de tratados, comércio e conhecimento
compartilhados. Não foi há trezentos milhões de anos. E eu não era o rei, mas o primeiro-
ministro.
—De quando estamos falando?
—Dos tempos agora chamados de oito ou nove mil anos antes de Cristo.
Cleópatra não conseguia parar de olhar para ele.
—Shaktanu—, ela finalmente sussurrou.
—Você acha que é um mito.
—É um mito.
—Você me diz isso com uma certeza que só pode ser descrita como arrogância.
—Você exige gratidão pelas humilhações que sofri aqui porque você me salvou de um
envenenamento por acaso. A arrogância é um assunto em que você é especialista, Saqnos,
primeiro-ministro de Shaktanu.
—Humilhações? Você se recusou a nos dizer seu nome.
—Você me fez prisioneira.
—Você caiu em nossa armadilha. Ainda estou curioso para saber como e por quê. O
que liga você, Cleópatra, a Ramsés, o Grande? As histórias sobre este misterioso
egiptólogo chamaram sua atenção tanto quanto a minha? Como é que o Sr. Ramsey cria
tanta agitação no mundo moderno enquanto você permanece nas sombras até agora?
Alguém a despertou? Alguém a banhou de sol para que você pudesse andar novamente?
Disseram que seu antigo amante havia ressuscitado?
“Ou talvez Ramsés não seja nada disso. Talvez seja um antigo rival, um inimigo na
guerra. Eu ouvi dizer que você não fez amizade com o grande Rei Herodes em sua época.
Claro, a história de hoje lembra Herodes por crimes muito piores do que planejar seu
assassinato.”
—Ramsés era muito mais para mim do que qualquer uma dessas coisas que você
descreve—, disse Cleópatra.
—Era—, disse Saqnos. —Ou ainda é?
Isso era pior do que os cães, ela percebeu, pior do que ser forçada a revelar seu nome.
Reconhecer a complexidade de seus sentimentos por Ramsés na frente daquele homem.
Mas que alternativa ela tinha? De que outra forma ela poderia desviar a conversa de sua
estranha ressurreição e suas consequências destrutivas? Já era difícil admitir essas coisas
para Julie Stratford, mas para este homem, este imortal brutal e sem alma? Impossível.
—Ele foi meu conselheiro e meu guia durante os tempos mais sombrios de meu
reinado—, disse ela. —Trouxe consigo séculos de sabedoria. Ele usou essa sabedoria para
me ajudar. Contra meus próprios irmãos, contra Roma. E com Roma, quando possível.
Ela havia caído em outra armadilha. Se Saqnos decidisse questioná-la, ela seria incapaz
de responder a perguntas específicas sobre seu passado sem revelar a rapidez com que
estava perdendo suas memórias.
—Sabedoria não foi a única coisa que ele trouxe com ele, foi?— Saqnos perguntou.
Ela sustentou seu olhar.
—O elixir puro—, disse Saqnos. —Seu poder. Seus ingredientes exatos. Sua fórmula.
Uma afirmação curiosamente específica, assim como a rapidez com que levou o cálice
de vinho aos lábios, como se para distraí-la da ansiedade de seus olhos.
Sua fórmula...
Ela tentou afastar todas as emoções do seu rosto, juntar os pedaços de informação que
ele havia lhe fornecido. Então ele não tinha envenenado ninguém naquele dia. Mas tentou
sequestrar Julie.
Seu plano era deixar Ramsés vivo para que pudesse usar o sequestro de Julie contra
ele?
Sua fórmula...
Para torturar Julie e obter a fórmula do elixir?
Ela fingiu um interesse renovado pela comida. Mastigar, desmembrar ossos
minúsculos e espetar pequenos pedaços de bife Wellington com o garfo, todos os atos que
lhe permitiam desfaçar a rapidez de seus pensamentos.
Seria possível que Saqnos, claramente imortal, não tivesse o elixir? Que este o havia
transformado, assim como a transformara, mas que ele nunca o possuíra e não sabia como
prepará-lo?
O mesmo acontecia com os outros imortais que cumpriam suas ordens? Aqueles que
o chamavam de mestre? Seria estranho se o chamassem de mestre se ele não os tivesse
criado. E ela não podia ignorar a fome particular que surgiu a voz dele ao dizer duas
simples palavras. "Sua fórmula."
Ele acreditava que ela conhecia os ingredientes do elixir?
Ela deveria permitir que ele acreditasse?
E então se lembrou de outra palavra que ele acabara de usar. A frase final dele distraiu-
a, mas agora veio à sua mente, tão clara quanto suas visões de Sibyl Parker.
"Puro". Ele o havia chamado de elixir puro. Portanto, a versão que ele tinha era impura,
incompleta. Adulterada.
Ela ficou em silêncio por um longo tempo.
—Então você não sabe quem é o culpado pelo envenenamento de hoje? — perguntou
ela.
—Não é bem assim.
—Quem? —Cleópatra perguntou. —Quem fez isso?
—Estamos trocando informações, não é?
—Em efeito. Expliquei a você meu relacionamento com Ramsés. Eu confirmei a você
que o homem que se autodenomina Sr. Reginald Ramsey é na verdade Ramsés, o Grande.
Agora peço informações em troca.
Ela sentiu-se triunfante. Ela o havia enganado, era óbvio. Saqnos acreditava que ela
conhecia a fórmula do elixir puro, como ele o chamava. Seus olhos estavam muito
penetrantes e sua mandíbula cerrada.
—Os bibliotecários de Alexandria—, disse ela, — minha Alexandria, disseram que
Shaktanu era um mito. Um conto fantasioso. Uma história sobre uma época de ouro
desconhecida pela guerra. Uma fantasia reconfortante para quem não é amigo da guerra,
que não aceita sua inevitabilidade.
—Nada é inevitável. Nem mesmo a morte. Nós somos prova disso.
—Certamente seus filhos que morreram hoje acreditavam no mesmo.
—Não tente me incitar, Cleópatra. Sou imune a esses truques.
—Mas você não é imune a esse veneno, seja ele qual for. Tampouco está imune àqueles
que desejam administrá-lo.
—Sou imune aos truques daquela mulher, suas mentiras e enganos, e sempre fui—,
disse ele desdenhosamente, então percebeu, tarde demais, o que acabara de revelar.
—De quem você está falando, Saqnos?
—Seu turno acabou. Agora é minha vez de perguntar. Ramsés, o Grande. Amante ou
inimigo?
—Eles geralmente são as duas coisas. Por que me forçar a escolher?
—Você já escolheu. A escolha é baseada na razão pela qual você compareceu à festa
hoje.
—De que lhe adiantaria saber?
—Eu saberei quando eu souber.
Uma aliança. Ele estava realmente propondo uma aliança depois da maneira como a
tratou?
—Há dois mil anos ele foi meu amante—, disse. —Hoje é meu rival.
—Entendo—, disse Saqnos, — e, portanto você compareceu à festa para lhe fazer mal.
Ou usar a noiva contra ele, como planejávamos fazer.
—É a minha vez de pedir informações.
Saqnos ergueu o cálice para indicar seu consentimento.
—A envenenadora. Quem é?
Saqnos continuou mastigando.
—Amante? Rival? —Cleópatra insistiu.
Mais uma vez ele não respondeu.
—Entendo—, disse ela finalmente.
—O que? O que você entende?
—Ela era sua rainha—, sussurrou Cleópatra. —Ela ainda é sua rainha, e é por isso que
você está confinado aqui como um covarde, em sua propriedade, apesar do fato de ela ter
matado tantos de seus filhos.
— Absurdo.
—É a pura verdade. Você se diverte me torturando porque é impotente diante dela.
Você não está imune. Você é impotente!
—Ela não ousaria—, murmurou Saqnos.
—Porque não? — perguntou Cleópatra.
—Porque eu sou a única coisa que resta do nosso reino. Ela não alimentou grandes
propósitos para sua vida imortal, além de ser uma historiadora insegura e insignificante.
Ela me inveja e sente que tem um vínculo emaranhado e confuso comigo, e que assim seja.
Bem, não sou o que ela pensa que sou, e nunca fui.
Um silêncio tenso.
—Você nos disse que ela dormia.
A voz que soou ao lado dela era tímida e fraca, mas sua novidade assustou Cleópatra.
Um dos imortais tinha dito isso, o que estava à sua esquerda, segurando uma das correntes
do aro que Cleópatra usava no pescoço. Uma mulher pálida com olhos grandes e
expressivos e um vestido cintilante e frágil muito parecido com o dado a Cleópatra. Ela
sustentou o olhar furioso de Saqnos tão ferozmente quanto ele, mas era um esforço
enorme, daí as mãos trêmulas segurando a corrente de Cleópatra. Sua mandíbula também
tremia. Lágrimas vieram aos olhos dela.
—Você nos disse que não devíamos temer nada dela porque ela dormia.
Saqnos levantou-se de um salto e atingiu a mesa com os dois punhos com tanta força
que uma onda parecia ter lavado a própria toalha, empurrando todas as bandejas de
comida em seu caminho. Cleópatra ficou maravilhada. Soube imediatamente que Saqnos
lhe daria informações valiosas, ela ficou encantada em vê-lo tão abalado por dois simples
comentários de um de seus filhos.
—Semanas—, ele rosnou. —Todos vocês têm apenas semanas, dias. Se é que chegam
a isso. E foi você quem me acordou, acreditando que Ramsés, o rei, seria sua grande
esperança. O plano não era meu. Você projetou antes de eu chegar. Agora que me
responsabilizar por este massacre porque os séculos em que ela ficou em silêncio me
deram a entender que ela estava dormindo. Isto é um ultraje! Nossa prisioneira me
mostrou mais respeito.
—Ele não vai matá-lo porque você é a outra metade do reino dela—, disse Cleópatra
baixinho, —mas claramente ela não sente o mesmo por seus filhos.
—Você não sabe nada disso! —declarou Saqnos.
—Eu sei mais do que você gostaria. Vejamos. Talvez você deva expulsar seus filhos
ingratos antes que eles revelem mais. Claro, eles teriam que remover as correntes
primeiro.
—Perdemos o foco de nossa conversa—, disse Saqnos.
—Não—, respondeu Cleópatra. —Nós simplesmente adicionamos um novo membro.
Um novo membro que só tem semanas de vida, mesmo que mostre sinais de quem tomou
o elixir. Se houver apenas um elixir puro, é claro.
—É a minha vez de solicitar informações novamente.
—Por que você não me pergunta o que você realmente quer saber? —Ela devia
prolongar o desconforto que acabara de surgir, abrir mais a ferida, aprofundar o
descontentamento de seus captores. —Faça-me a pergunta que está queimando em você
desde que viu pela primeira vez o azul dos meus olhos.
—Você acha que eu só tenho uma pergunta a lhe fazer? Você subestima minha
capacidade de questionar e lidar com pensamentos complexos.
—Acho que você tem uma necessidade, uma carência maior do que todas as outras,
pela qual está disposto a colocar seus próprios filhos em perigo.
—E o que é essa necessidade?
—Você precisa do elixir. Foi dado a você, mas não o conhecimento de seus
ingredientes ou a maneira de prepará-lo. Você criou uma versão adulterada que não dura.
E tudo o leva de volta à sua rainha, não é? A rainha de Shaktanu. A rainha da qual você foi
primeiro-ministro.
—Eu a servi de tantas formas. Como primeiro-ministro. Como amante. Como amigo. E
quando ela fez a maior descoberta da humanidade, manteve em segredo. Ela escondeu de
mim. De seus súditos. Foi uma traição ao nosso reino e a todos que a serviam.
—No entanto, você de alguma forma conseguiu obtê-lo.
—Eu roubei. Era meu direito. As horas que ela passou em sua oficina eram um luxo
proporcionado por meu serviço leal.
—Posso ver. Então foi uma época de ouro, sem guerras. Tudo graças a um homem:
você.
—Foi uma época como nenhuma outra.
—Eu sei o quanto custa governar. E também sei que um rei ou rainha nunca governa
com um homem à suas costas. Em vez disso, a maior parte do tempo é gasta lutando contra
os desafios daqueles que afirmam que são a verdadeira fonte de poder e sucesso. Eu sabia
disso antes da minha ressurreição e sei disso agora. Você foi um traidor, isso é o que você
foi, Saqnos. Você fala como alguém que serviu apenas pela promessa de recompensa
pessoal.
Houve silêncio na sala. Saqnos lhe deu as costas. Ele estava ganhando forças, se
concentrando. As explosões de Cleópatra não o irritaram mais, como ela pretendia. Em
vez disso, elas o haviam apaziguado. Paralisado, de certa forma. Ela não queria aquela
paralisia. Queria sua indignação. Ela queria causar caos que pudesse aproveitar como uma
chance de escapar.
—Nesse caso—, disse Saqnos calmamente, voltando-se para ela novamente, — talvez
você devesse me dar um sermão sobre sua história como rainha. Com certeza me
beneficiará saber quais aspectos de sua própria história são verdadeiros e quais são as
fantasias criadas por um império que a desprezou e celebrou sua queda.
Ele fechou a distância entre eles. Seus filhos recuaram um pouco, mas ainda
seguravam as correntes.
—Suas vitórias foram numerosas, não foram? Seu pai a exilou de Alexandria, mas você
conseguiu retornar à cidade quando César a assumiu.
Não—, pensou Cleópatra. —Isso não. Este interrogatório, não. Não esta descida a um
passado que é pura escuridão.
Acaso não havia conseguido evitar? Não havia conseguido pular essa parte?
—Diga-me o que é verdade nesta história, Rainha Cleópatra VII. Última rainha do
Egito. A história de que você se infiltrou nos aposentos de César dentro de uma cesta cheia
de serpentes. É verdade? Ou pura fantasia?
—Não—, sussurrou Cleópatra. —Mentiras. Tudo mentira. Não foi assim que enganei o
exército de meu pai.
Um silêncio ainda maior, mais profundo, e nele, uma espécie de tensa concentração de
energia, uma nova energia que parecia unir a todos na sala de jantar.
O que ela fez? Havia cometido um erro? Havia revelado sua verdadeira e atormentada
natureza?
Lentamente, Saqnos agarrou uma ponta da corrente da mão da mulher que falara
contra ele. Ele começou a enrolá-la no pulso, apertando-a, puxando Cleópatra para frente
em sua cadeira até que a forçou a se levantar desajeitadamente.
—Não era o exército de seu pai—, murmurou Saqnos. —Era o exército do seu irmão.
Foi ele quem a baniu de Alexandria antes da chegada de César. —Ele a puxou para fora da
cadeira. Eles estavam separados por alguns centímetros. Impossível evitar seu olhar
penetrante. —E não era uma cesta de serpentes. Era um tapete enrolado. Você não sabe
dessas coisas porque não consegue se lembrar delas. E você não pode se lembrar deles
porque o seu não foi um despertar, foi uma ressurreição, como você acabou de revelar tão
claramente.
”Porque você, Rainha Cleópatra VII, não é rainha de forma alguma. Você é uma coisa
imunda trazida dos mortos, e você perde suas memórias quando seu verdadeiro espírito
renascido as recupera. Você é uma nochtin. É assim que chamo a criatura infame que você
é. Despertei muitos como você, e a única coisa que consegui ver foi como as visões
daqueles que contêm suas verdadeiras almas reencarnadas os enlouqueciam, deixando-
me apenas uma escolha: isolá-los na escuridão para sempre. E é isso que farei por você,
aspirante a um trono que chama o meu de traidor. Lanço você na escuridão antes que a
loucura eterna a reivindique.”
O grito que saiu dela foi primitivo e comovente, mais animal do que humano. Cleópatra
o atacou com as unhas, com tanta força que demorou bem pouco para que ele a soltasse.
Mas Saqnos manteve o equilíbrio e apenas deu um passo para trás. As correntes em seu
pescoço se apertaram, mas não conseguiram abafar seu grito.
—Eu sou Cleópatra! —ela rugiu.
Houve um estalo como o som de um chicote. A vidraça de uma janela atrás de Saqnos
estava completamente rachada. Seus gritos haviam quebrado o vidro?
Uma bênção, o medo que tomou conta da sala de jantar. Ele a distraiu de seu
desespero, das implicações terríveis das palavras de seu captor. Uma pedra. Isso era.
Alguém havia jogado uma pedra pequena o suficiente não para atravessar o vidro, mas
apenas com o impulso de quebrá-lo de um lado ao outro. Apenas um imortal teria força
necessária para tanto.
Os três homens que estavam parados na parede sacaram pistolas reluzentes de suas
jaquetas e correram para a porta do terraço.
Os outros dois captores, o homem e a mulher, permaneceram ao seu lado.
Com uma mão poderosa, Saqnos agarrou a parte da frente do aro frio em volta do
pescoço. Mas ele virou a cabeça para observar a saída apressada de seus homens.
Houve um momento de silêncio que imediatamente preencheu um estranho ruído
rítmico. Em um piscar de olhos, os três homens armados estavam recuando para fora da
porta, pistolas nas mãos, cabeças baixas.
Os cães foram atrás, cruzando a porta aberta um após o outro em silêncio absoluto,
com pose absoluta, olhando para os homens que apontavam suas pistolas inutilmente
para eles. Por um momento, foi impossível acreditar que eles eram os mesmos animais
dos quais ela quase foi a refeição. Por um momento, o silêncio dos animais era total e eles
se moviam em uníssono. Eram mastins, com cabeças tão grandes quanto as de um homem.
Os olhos azuis redondos pareciam mais pensativos agora que suas bocas não estavam
contraídas para rosnar. À luz bruxuleante do lustre, Cleópatra viu suas reluzentes
pelagens, variando do preto ao marrom escuro.
Atordoados, os homens cambalearam para trás. Um deles acenou com a arma no ar
como se pensasse que isso poderia impedir o avanço deles. Foi inútil. Agora Cleópatra
podia contá-los. Dez. Doze. Quinze ao todo. E a maioria de seus rostos, traços leves de um
pó laranja brilhante.
Um poderoso feitiço causou uma mudança milagrosa neles. Parecia que agora eram
governados por uma única consciência.
—Burnham—, disse Saqnos, erguendo a voz.
Dividido entre segurar uma das correntes e responder ao pedido de seu mestre, o
homem chamado Burnham pigarreou e deu um assobio agudo.
Os cães o ignoraram.
Burnham empalideceu. Tentou novamente. Os cães novamente o ignoraram. Parecia
que todo o bando — todos os quinze— estava olhando diretamente para os três homens
armados e, de repente, Cleópatra percebeu que esses homens estavam essencialmente
encurralados. Eles estavam encostados na parede.
—Burnham! — Saqnos rugiu.
—Eles não reagem, mestre. É como se estivessem enfeitiçados.
Diante dessa declaração, Saqnos se viu sem saber o que responder.
E então os cães começaram a rosnar.
Nunca antes ela tinha ouvido tal som. Nunca antes tinha ouvido quinze cães rosnando
perfeitamente em uníssono. O som era uma espécie de mistura entre o de um enxame de
abelhas furiosas e o de uma pedra sendo rolada constantemente colina acima. Um dos
homens simplesmente fugiu da sala de jantar sem se desculpar. Outro o seguiu, e então o
terceiro também. Mas primeiro ele estupidamente colocou sua pistola no console atrás de
si, como se fosse uma oferenda, um gesto que poderia aplacar a matilha de feras.
Os cães voltaram suas cabeças para Saqnos.
A mulher que havia falado contra ele antes também fugiu, deixando cair a corrente no
chão com um baque. Burnham foi atrás dela. E então os cães começaram a latir.
Ensurdecedor aquele barulho que se repetia sem parar. Perfeitamente em uníssono. Cada
latido tão alto, os sons tão bem alinhados, que faziam Cleópatra estremecer até os ossos.
Sob esse refrão aterrorizante, outros ruídos. Vidro quebrado. Passos. Desordem. Luta
em salas adjacentes. Havia mais cães daqueles? Ou alguém impediu a fuga dos filhos de
Saqnos?
Seu captor não ouviu ou não se importou, pois os cães agora avançavam sobre eles, em
perfeita sincronia novamente.
—Você está fazendo isso—, Saqnos sussurrou.
Era um prazer vê-lo tão assustado, mas ela também não estava na mira das feras?
—Não estou fazendo nada disso. Solte-me para que ambos possamos encontrar
segurança antes que seja tarde demais.
Saqnos se virou para encará-la. Seus olhos brilhavam. Seus lábios se curvaram em um
rosnado:
—Você está fazendo isso. Este era o seu plano. Você trabalha com a rainha.
—Eu nunca vi sua rainha! —Cleópatra rosnou.
Saqnos mostrou os dentes. Ele abriu a boca. E de repente foi arrastado para longe dela.
Os cães o jogaram no chão. Foi como se todos tivessem pulado ao mesmo tempo,
empilhando-se em cima dele em um delírio violento.
Cleópatra caiu para trás, derrubando a cadeira atrás de si. Eles não prestaram atenção
nela, aquelas feras.
Livre de mãos imortais, ela agora tinha forças para desatar a coleira em seu pescoço.
Ela a jogou de lado e correu para o corredor.
Ela não resistiu em olhar para trás. Os cães atacavam o corpo caído de Saqnos,
ocultando-o da vista enquanto tentavam refestelar-se. Mais raiva do que angústia nos
gemidos de Saqnos.
Ela girou e congelou ao ver o que a esperava no corredor. A poucos passos de seus pés
descalços, havia um monte de cinzas dentro do vestido da mulher que segurava uma das
correntes.
Isso foi obra de veneno! Não havia outra explicação.
Movimento atrás dela. Novamente ela girou.
Ramsés. Movendo-se para ela. Ele colocou um dedo nos lábios enquanto tirava uma
adaga do cinto. Uma adaga? Como ele poderia conciliar os dois gestos? Um para confortar,
outro para atacar?
Como ele ousa!
Estendendo a mão, ela agarrou a borda de um armário pesado cujas prateleiras
exibiam uma coleção de vasos de vários estilos. Então, quando ele a alcançou, ela jogou o
armário sobre dele, derrubando-o no chão em meio a uma cascata de porcelana e vidro
quebrados e prateleiras que o imobilizaram sobre piso de madeira.
37
VENDO QUE SUAS PALAVRAS paralisaram Ramsés, ela se virou e correu. Ele observou,
impotente, enquanto ela se atirava pela janela mais próxima. Atrás dela, o vidro caiu em
grandes cacos entre as cortinas ondulantes.
Se ela continuasse naquela direção, os outros não a alcançariam. Julie e Aktamu
estavam do outro lado da propriedade, Julie guardando o enfeitiçado Aktamu, que guiava
os cães.
Passos atrás dele. Ramsés se virou. Em ambos os braços, Enamon carregava o corpo
aparentemente sem vida de Saqnos. Não foram os cães que finalmente subjugaram o
primeiro-ministro, Ramsés tinha certeza, mas a poção da adaga de Enamon, uma injeção
que duraria umas poucas horas até que outra tivesse que ser administrada. Os grandes
cortes e ferimentos em seu rosto e mãos provocados pelos cães já começavam a cicatrizar.
— Devo levá-lo para a rainha antes que ele acorde—, disse Enamon.
— E então se eu a perseguir, terei que ir sozinho. É isso que você quer dizer?
Sem dizer uma palavra, Enamon desapareceu pela porta que estava à suas costas, com
passos confiantes, como se Saqnos não pesasse nada.
Ramsés ficou imóvel, olhando para a janela quebrada.
Quão rápido o espírito combativo o havia abandonado ao ver Cleópatra.
Ele não estava preparado para a semelhança perfeita com seu amor perdido. Ele não
estava preparado para sua agonia e desespero.
Sua última suplica lhe partiu o coração.
Quem era ele para negar a ela o pedido de viver seus dias como achasse melhor antes
que a loucura a consumisse? Ele poderia encontrá-la então? Poderia encontrá-la usando
a conexão com Sibyl? Ele teria a coragem e a força para subjugá-la em meio à sua loucura,
para isolá-la na escuridão até o fim dos tempos, assim como Saqnos havia ameaçado fazer,
mas para seu próprio bem? Ou ele poderia deixa-la livre no mundo de uma vez por todas?
Se não houvesse paz para ela, haveria para ele?
38
Eles vieram correndo pelo gramado como um rebanho. Para Julie, a princípio, eles
pareciam uma mancha mais profunda de escuridão que encobria as luzes da casa. Só
depois, suas formas individuais tornaram-se visíveis.
Julie saiu do carro onde o silencioso Aktamu jazia meio comatoso no banco de couro.
A missão sem dúvida havia terminado, caso contrário, por que Aktamu traria os cães
de volta para o covil?
Julie os seguiu a uma distância segura, embora não houvesse chance de que se
voltassem contra ela. Aktamu continuava a controlar os animais. De uma forma ou de
outra, através da flor de anjo ele os controlava e via o mundo através dos olhos deles. Coisa
extraordinária, pois eram quinze cães ao todo.
Durante a longa jornada para Havilland Park, Julie enchera Aktamu de perguntas
sobre o mistério, sobre como ele planejava virar os cães de Saqnos contra ele por meio de
um feitiço que deixaria o próprio Aktamu incapaz de ouvir ou falar. Mas Aktamu não tinha
palavras para explicar como funcionava a flor de anjo ou como pretendia juntar quinze
seres diferentes para guiá-los através de um vínculo místico. Ele havia repetidamente
assegurado a ela que o faria, que assim que jogasse a carne com uma boa dose de pólen de
flor de anjo na grade do fosso onde os cães eram mantidos, eles ficariam sob seu comando.
Julie achou fascinante, maravilhoso, mais uma revelação do reino das revelações que
ela agora compartilhava com aqueles imortais poderosos, um reino tão radicalmente
diferente de seu antigo mundo que às vezes era difícil para ela ver em perspectiva, não
importava o quanto tentasse. Ela não era mais Julie Stratford, na verdade, e sabia disso, e
era óbvio que seus frágeis laços com Londres de 1914 estavam morrendo dia após dia.
Ela estava no escuro, caminhando lentamente pela grama, atrás daqueles animais
enfeitiçados, sem medo, mas atordoada, nem por um momento repelida pelo mistério da
flor de anjo, mas ansiosa por saber mais.
Estava cativada pela visão dos grandes cães movendo-se como um só ao se
aproximarem do prédio onde moravam, pela maneira determinada como se aproximavam
da porta de seu covil. Era tão hipnótico quanto vê-los subindo do fosso meia hora antes.
Agora cada um dos ferozes cães estava sentado em silêncio na frente da porta,
esperando que ela fosse aberta.
Tremendo, Julie avançou e abriu a porta para eles. Ela deu um passo para o lado.
Eles entraram um após o outro e começaram a descer os degraus até seu horrível e
apertado fosso.
Assim que todos entraram, ela segurou a corda e baixou cuidadosamente a grade
pesada. Ela estremeceu quando todos os cães se viraram para ela. Foi obra de Aktamu,
sem dúvida. Ele estava esperando que ela fechasse o portão antes de tirar o polén de seu
rosto, libertando as feras para recuperarem sua natureza.
Ela deslizou o ferrolho no lugar com um estrondo alto.
Mas não teve coragem de partir. Ainda não. Queria ver aquele milagre até o fim.
Gradualmente, os cães começaram a sofrer uma mudança.
Alguns tremiam. Outros se sacudiam como se quisessem secar o pelo. Alguns
começaram a latir, mas seus latidos não eram tão maliciosos ou agressivos como antes.
Pareciam perguntas dolorosas. Eles estavam confusos sobre o que acabara de ser feito
com eles?
Suas patas bateram no chão de pedra. Seus movimentos pareciam atordoados e
confusos, até que Julie percebeu que eles estavam tentando se posicionar no melhor lugar
onde pudessem olhá-la através das grades.
Essas criaturas haviam mudado. Fosse o que fosse aquele milagre no jardim de
Bektaten, permitira que esses cães assassinos e ferozes dançassem brevemente com uma
mente humana. E, como consequência, eles pareciam agora submissos, subjugados e, em
seus olhares, ansiosos para retomar àquela dança.
Ela estava quase triste por deixá-los, pois aqueles cães não eram mais monstros.
De repente, a porta atrás dela se abriu e Ramsés apareceu, ofegante. Sua expressão
não era de triunfo, nem de angústia reprimida, mas de grande alívio ao vê-la. Assim que
Julie se viu em seus braços, percebeu que não sabia quem havia iniciado aquele abraço
repentino e fervoroso. Isso acaso importava?
—Onde está Cleópatra? — Julie finalmente perguntou.
—Ela escapou.
—Oh, Ramsés.
—Houve uma briga. Meu anel, o veneno. Ela o tirou de mim. Era a vida dela ou a
minha. É por isso que a deixei ir.
—Ela tem o veneno agora?
—Não. Ela abriu o anel e jogou-o em mim para me impedir de persegui-la. Está no
tapete, dentro da casa.
O barulho do motor de um carro lá fora. Qualquer que fosse o veículo, seu motor era
muito mais potente do que os carros que os trouxeram até ali.
—Encontramos a van que eles usaram para transportar Cleópatra e também o caixão.
Nós o usaremos para levar Saqnos. Mas Julie, eu devo ir com eles para ajudar a dominá-lo
se ele acordar. Você pode nos seguir no carro?
—Claro, Ramsés. Claro.
Ramsés se virou para a porta, mas assim que sua mão tocou a maçaneta, ele congelou.
—Eu falhei, Julie.
—Não, Ramsés. Não.
—Eu poderia tê-la perseguido. Houve um momento, antes de ela saltar a janela, em
que eu poderia tê-la derrubado. Mas ela me implorou para não fazer isso. Saqnos disse
coisas horríveis sobre sua natureza, Julie, sua natureza ressurreta, seu estado de espírito,
o que pode ser verdade. Nochtin. É assim que ele a chamou. Todos nós o ouvimos. Nochtin.
Eles são coisas horríveis.
—Como o quê, Ramsés?
—Como se ele próprio tivesse ressuscitado outros com o elixir, assim como eu fiz com
ela. E que aqueles nochtin, como ele os chama, enlouqueceram. Isso foi o que ele disse. —
Ramsés desviou o olhar ao dizer esta última frase. —E ela estava muito angustiada, Julie
— continuou ele, gaguejando. —Eu estava preparado para enfrentar sua crueldade e ira,
mas não sua angústia, então quando ela me pediu para libertá-la para que pudesse viver
seus últimos dias antes de enlouquecer, eu a deixei escapar.
Julie abraçou-o novamente. Ele estava tremendo, seu faraó, seu rei, seu imortal.
Tremendo com a profundidade de seus sentimentos.
—Eu mais uma vez fiz algo horrível? — perguntou Ramsés. —Tão assustador quanto
trazê-la de volta à vida?
—Não, Ramsés.
—E Sibyl? O que acontecerá com Sibyl?
—Sibyl agora está livre dos horrores que Cleópatra sofreu neste lugar. E Cleópatra
também.
—Mas isso não é tudo o que prometemos.
—“Encontre-a e liberte-a”. Estas foram as palavras de Sibyl. E nós fizemos isso. O
resto? Isso acontecerá com o tempo. Cleópatra não é mais o ser monstruoso e intrigante
que encontramos no Cairo, disso podemos ter certeza. Ela está enfraquecida. Está doente.
E agora não são as expectativas de Sibyl que deveriam nos preocupar tanto. Não foi ela
quem exigiu que levássemos Cleópatra ao castelo. Foi Bektaten. Portanto, temos que ver
se nossa nova rainha está satisfeita com o refém que estamos levando para ela.
Ramsés segurou o rosto dela as duas mãos e beijou-a com ternura.
—Você une sua sabedoria ao amor, Julie. Isso garante que serei para sempre seu
cativo.
Julie retribuiu o beijo.
A porta se abriu atrás dele e lá estava Aktamu. Ele havia limpado o pólen do rosto e
sua expressão era de expectativa.
—Vamos—, disse ele, — temos que ir.
39
Cornualha
O que ele deve ter pensado quando acordou e viu ao seu lado uma lareira
reconfortante e o barulho do mar do outro lado da janela? Sentia alívio por estar livre dos
cães?
Ramsés não poderia saber.
Quando ele viu sua rainha, sentada a uma distância dele em uma cadeira de espaldar
alto que combinava com a sua, Saqnos ficou imóvel como uma estátua e, portanto, Ramsés
não pôde determinar os pensamentos que passaram na mente dele, mas permaneceu
desesperadamente curioso.
Saqnos olhou em silêncio para Bektaten. Ela sustentou o olhar.
Ele achava bonita aquela mulher negra escultural com tranças longas e finas com joias
que lhe caiam sobre os ombros? Bem, ela não estava mais com o turbante que usara antes,
e seu longo vestido vermelho era mais justo e lisonjeiro.
Saqnos ainda estava saindo da inconsciência? O sedativo explicava o longo silêncio?
Eles haviam lhe dado outra coisa também, Ramsés tinha certeza disso. Alguma outra
poção de sua infinita variedade de poções. Ele algum dia saberia quantos remédios e
venenos eles possuíam?
Após sua chegada, Aktamu e Enamon levaram o corpo aparentemente sem vida do
homem para o arsenal e o mantiveram lá por vários minutos antes de carregá-lo para o
grande salão como uma boneca de pano gigante. Talvez o que quer que tenham dado a ele
tinha a finalidade de acelerar seu despertar.
Saqnos balançou a cabeça. Pela primeira vez, ele pareceu notar a presença de outras
pessoas na sala, além de Bektaten. Olhou primeiro para Ramsés e depois para Julie. Ambos
estavam perto da janela e da vista de um céu estrelado.
Lentamente, seus olhos encontraram as adagas que ambos empunhavam.
Ramsés se perguntou o que representava um período tão curto de inconsciência para
um imortal. Ele havia sonhado pela primeira vez em séculos?
Quantas perguntas que ele não poderia fazer, pois não cabia a ele conduzir aquele
julgamento. Ele e Julie eram testemunhas. Testemunhas e guardas.
Finalmente, Saqnos falou:
— Posso mais uma vez chamá-la de minha rainha?
Bektaten ficou em silêncio por um longo tempo antes de responder.
Ramsés notou pela primeira vez os anéis de pedras preciosas que ela usava e o cinto
de joias que definia sua cintura, destacando seus quadris bem torneados. Usava esses
adornos para Saqnos? Era por ele que ela havia colocado de lado as vestes que escondiam
seus encantos?
Isso sem dúvida afetou Ramsés, mas ele fez o possível para disfarçar, para esconder a
aceleração em seu pulso ante a visão daquele rosto real negro, emoldurado pelas tranças
transadas com fios de ouro e pérolas de uma antiga rainha egípcia, ante a visão dos seios
de formas primorosas de Bektaten.
Finalmente Bektaten falou.
— Você se lembra de Jericó?— perguntou ela.
— Cada momento que passei em sua presença vive na minha memória.
— Houve muitos momentos em que você não percebeu minha presença—, disse
Bektaten.
— Conte-me sobre esses momentos, minha rainha.
— Seu laboratório na Babilônia. Suas frequentes reuniões de alquimistas. Eu encontrei
todos eles, seus laboratórios sofisticados.
— Você estava lá. Vigiando-me.
— Sim.
— E se eu tivesse obtido êxito, você teria usado seu veneno contra mim, exatamente
como fez hoje?
— Eu não usei meu veneno contra você. Eu o usei contra seus fracti, capangas indignos
de imortalidade. Utilizei-o contra sua conspiração para raptar e torturar Julie Stratford.
Assombrosa era a gentileza entre os dois enquanto discutiam tais coisas, pensou
Ramsés. Vê-los conversando como se o tempo não tivesse passado. A avançada idade deles
permitia aquela mistura de familiaridade e reserva?
Bektaten se levantou. Ramsés notou um leve perfume emanando dela enquanto ela se
movia para frente e para trás diante de seu prisioneiro, a luz cintilava em suas longas
tranças negras.
Em volta da cabeça, na altura da testa, ela usava um diadema de ouro que evocava em
Ramsés lembranças de seu antigo reino, das mulheres magníficas no harém do rei.
Olhando para baixo, ele afastou esses pensamentos da mente, embora eles já tivessem
dotado Bektaten de um poder ainda maior sobre seu coração. Como poderia um homem
imortal não fantasiar sobre como seria ter tal mulher imortal em seus braços? E como
poderia um rei orgulhoso não negar tais pensamentos?
— Você assassinou meus filhos—, disse Saqnos calmamente.
— Agora você fala deles com afeto. Quando viajou com os fracti em Jericó, você falava
deles com repulsa. Eles eram mercenários e nada mais. Você me afastou deles para que
não ouvissem você me dizer que o elixir que haviam tomado era impuro. Você também
ocultou este segredo de seus filhos?
— Eles sabiam do seu veneno.
— Sim, eu vi o terror em seus olhos quando apareci diante deles hoje. No entanto, você
também disse a eles que eu dormia. Que nada deviam temer de mim.
— Como você sabe disso? — perguntou Saqnos.
— Meu jardim esconde muitos segredos. É assim que mantenho minha soberania,
mesmo que eu tenha apenas alguns súditos restantes.
Saqnos olhou novamente para Ramsés e Julie:
— Parece que eles são mais numerosos agora.
— Para alguém tão movido pela ganância como você, amizades não significa nada.
— E as rainhas sem noção de suas verdadeiras responsabilidade sempre assumirão
que aqueles que as servem por medo o fazem por amor.
— Você tinha medo de mim, Saqnos? É isso que definiu seu tempo como meu primeiro-
ministro, antes de sua traição?
— Eu temia que você traísse seu povo. E eu estava certo.
— Você alguma vez falou em nome do povo? Quando foi isso? Foi quando você invadiu
meu palácio, roubou o elixir de minha câmara secreta e o deu apenas aos guardas reais?
Foi assim que você falou em nome dos meus súditos, correndo para assegurar o maior
poder já conhecido apenas para você e seus guardas?
— Ah, Bektaten. Mais uma vez, chegamos à sua grande fraqueza.
— E qual seria? — perguntou Bektaten.
— Sua crença de que a busca pelo poder é uma fraqueza.
— E assim é a busca do poder pela qual você deseja ser definido. É um desejo
ambicioso, Saqnos. Pois sou a única testemunha de toda a sua história e não o vejo dessa
forma. Nem agora, nem há milhares de anos. Nem nos séculos que se passaram desde
então.
— O que importa? Não tenho mais nada. Você cuidou disso. Meus filhos, tudo tirado
de mim. Até meus cães você voltou contra mim. E o que aconteceu com a minha
propriedade? Você queimou tudo só para me irritar?
— Até que você responda minha pergunta, não responderei mais as suas.
— Que pergunta é essa?
— Como seus fracti se tornaram filhos em seu coração e em seus lábios? De onde veio
esse amor por eles?
— Você quer conhecer meu coração?
— Eu quero saber seus motivos. Eu preferia não explorar seu coração em sua
totalidade. Eu imagino que o esforço seria semelhante a perseguir um raio de lua além de
um penhasco.
— Você procura atrasar meu assassinato com tagarelice. Meus motivos sempre foram
claros para você. Eu busco o elixir puro.
— Para que seus filhos nunca morram? — perguntou Bektaten.
— Quantos imortais você criou? Você tem o elixir puro. Você não consegue entender
minha angústia. Dois séculos, Bektaten. Isso era tudo que eu poderia dar a eles. Dois
séculos de vida. Apenas uma batida de coração em meio à imortalidade. E, no entanto,
essas eram as únicas opções que me restaram após a queda do nosso reino. A dor
incessante e esmagadora de deixar outra geração murchar até virar pó ao fim de duzentos
anos. O isolamento absoluto enquanto eu percorria sozinho a terra. Ou a escuridão
absoluta abaixo dela. Então escolhi o primeiro até que apenas o terceiro fosse suportável.
E aqueles filhos, aqueles que você massacrou, tinham pouco tempo restante. Por isso me
fechei em uma tumba, sabendo que quando eles definhassem ninguém saberia minha
localização e meu sono seria tão permanente quanto a morte.
— E ainda assim eles o acordaram.
— Sim. Eles ouviram falar de Ramsés, o Maldito e viram nele a esperança de encontrar
o elixir puro.
— Você poderia facilmente tê-los rejeitado e voltado a dormir—, disse Bektaten.
— Eu expliquei meus motivos. O que mais você quer de mim?
— Você mentiu sobre eles. Eu o observei entre seus filhos, Saqnos. Nenhum grande
amor o conduzia. Você os tratava como incompetentes e escravos. Você buscava o elixir
puro para seu próprio benefício, não deles.
— Você me faz perguntas para as quais acredita já ter as respostas. Por quê? Por que
adiar por mais tempo o que você sempre desejou fazer? Transforme-me em pó! Puna-me
de uma vez por todas por aquilo que você considera traição. Assim, poderemos colocar
nossa história para dormir para sempre.
— O que eu sempre desejei fazer? Absurdo. Era você que estava inteiramente possuído
por um único objetivo. Você desperdiçou os milênios que lhe foram dados em amargura e
anseios, na busca do que não estava destinado a ter. Você não me comanda aqui ou em
qualquer lugar.
— Não. Dou-lhe explicações que você torce para justificar tudo o que deseja fazer.
— Como você ousa? — disse Bektaten. — Como ousa me tratar como se eu fosse regida
apenas pela emoção? Você encenou uma rebelião sem um plano. Sem o mínimo
conhecimento do que estava roubando. Cego por seu ciúme e raiva, você deixou que a
razão o abandonasse. Não parou nem uma vez para se questionar o que um exército
precisa para permanecer intacto. Não parou uma única vez para se questionar o que
sustentaria a lealdade dos soldados se eles não precisassem de comida, armas ou abrigo.
Você presumiu que eles o saudariam para sempre como o doador de um grande dom, e
que isso bastava para torná-lo um deus aos olhos deles, e não apenas um ladrão calculista.
“No entanto, o Saqnos que eu conhecia, o Saqnos que me serviu, teria feito a si mesmo
essas perguntas. Ele teria me encorajado a fazer essas perguntas a mim mesma se eu
tivesse contado a ele sobre tal plano. Mas o homem que invadiu meus aposentos, com as
armas de meus próprios soldados erguidas contra mim não era esse homem. É por isso
que não permitirei que se apresente diante de mim e sustente que a dor por seus fracti o
transformou no que você é agora. Você mudou milhares de anos antes, antes que uma gota
do elixir tocasse seus lábios, quando a simples ideia de sua existência o deixou louco.”
— Eu não me apresento diante de você. Sento-me e faço isso com medo de suas adagas
e seus venenos.
— E eu me apresento diante de você, com medo de que você não possa dizer a verdade
sobre si mesmo, porque não conhece a verdade sobre si mesmo.
— Então me diga você, minha rainha. Diga-me minha verdade, mesmo que você se
recuse a revelar a sua.
— Você sempre soube minha verdade.
— Isso é uma mentira! — gritou Saqnos. — Oito mil anos depois e ainda é a maior
descoberta da humanidade, e você ainda a mantém em segredo. Ainda assim, você a
guarda como se fosse apenas um pergaminho antigo.
— E o que você faria com ele se eu lhe desse? — perguntou a rainha. — O que você
teria feito então se seu plano não tivesse terminado em tremendo fracasso?
— Eu teria povoado a terra de deuses.
— Sim, — ela sussurrou. — Sim, você teria. E, para fazer isso, você teria extinguido
qualquer um que não fosse divino aos seus olhos. Você o teria usado para fortalecer seu
palácio contra todos os outros. Você teria quebrado nosso reino em um milhão de pedaços
pequenos o suficiente para atirar aos nossos pés como uma oferenda de flores. Você teria
pegado o glorioso milagre que eu descobri e usado para destruir Shaktanu em pedaços e
fazer um reino apenas com o que estava ao seu alcance. E você sabia que eu não permitiria
nenhuma dessas coisas enquanto governasse. E é por isso que você levantou armas contra
mim no momento em que soube da existência do elixir.
— E ainda assim você me permitiu viver todo esse tempo—, disse Saqnos.
— Eu nutria esperanças. Esperava que um homem a quem todo tempo do mundo foi
dado pudesse algum dia vir a conhecer seu verdadeiro eu e se esforçasse para melhorá-
lo. Mas, com o passar dos séculos, você demonstrou que tais esperanças eram vãs.
— Sofrendo por minha alma—, zombou Saqnos. — Isso lhe mantém subjugada da
mesma forma que alguns são subjugados pela bebida.
— Sim, Saqnos. Mas me livrei dessa obsessão. Eu lhe concedo a liberdade.
Ramsés se esforçou para manter o silêncio. Ao lado dele, Julie ficou tensa, apertando a
mão em torno do cabo da adaga.
—Liberdade? — questionou Saqnos, dando voz, ao que parecia, aos próprios
pensamentos de Ramsés.
— Sim. Liberdade para que você tome sua decisão final.
Enamon e Aktamu apareceram no umbral, atrás de Saqnos, adagas em punho. Mas
deixaram espaço suficiente entre eles para que Saqnos deixasse o grande salão, se assim
desejasse.
Como se não pudesse acreditar nessa súbita reviravolta nos acontecimentos, Saqnos
levantou-se lentamente e olhou para cada um deles. Parecia impressionado com a
confusão que percebeu no rosto de Ramsés, no rosto de Julie, como se qualquer indício de
que os dois não estavam cooperando naquele plano significasse que não havia
possibilidade de que fosse uma armadilha.
Sua decisão final.
A que Bektaten estava se referindo?
— Você me concede a liberdade agora que tirou tudo de mim—, disse ele. — Meus
filhos, meus cães.
— Sua casa ainda está de pé. Seus cães ainda estão lá. Embora eles não sejam tão
submissos às suas más ações como antes. Uma decisão o espera do outro lado da ponte
que o trouxe aqui. Deixo essa decisão inteiramente em suas mãos. Atravesse a ponte antes
que eu mude de ideia.
Durante um tempo ninguém falou. Os únicos sons eram o crepitar do fogo e o mar
revolto, e então um terceiro foi adicionados a esses sons: o murmúrio baixo da risada de
Saqnos, um som tão cheio de escárnio e desdém que Ramsés reagiu apertando mais o
punho de sua adaga. Pouco a pouco, esse murmúrio transformou-se em uma desenfreada
gargalhada maliciosa, e foi então que Ramsés percebeu que Saqnos tinha enlouquecido.
Bektaten ficou furiosa, mas não ordenou que Saqnos fosse embora.
— Você é uma covarde, Bektaten—, disse Saqnos finalmente, sem fôlego de tanto rir.
— Você é uma covarde que só mata a uma distância segura. Você não consegue nem
suportar me ver sendo derrubado por seus próprios homens. Você é uma covarde,
Bektaten, e sempre foi. Uma covarde que foi incapaz de enfrentar o mal em seu reino.
— Havia apenas um mal em meu reino. E era você. E eu enfrentei você por milhares
de anos. E vi seus filhos morrerem a poucos metros de onde eu estava. Até o último. Não
havia distância alguma. Foi você quem os enviou sozinhos para cumprir suas ordens
enquanto permanecia em sua propriedade. — Ela respirou fundo. — Saia deste lugar. E
saiba que de hoje em diante estarei lhe dado as costas.
Julie apertou a mão de Ramsés, consternada com a ordem de Bektaten a ponto de
quase gritar em protesto. Ela não tinha visto o que Ramsés vislumbrara quando Saqnos
virou as costas para o fogo e entrou no facho de luz mais brilhante lançada pelo lustre no
teto.
— Passe bem, minha rainha—, sussurrou Saqnos.
Bektaten não respondeu.
Saqnos se virou e passou entre seus guardas, que se viraram e o seguiram. Bektaten
também os seguiu. Ramsés fez o mesmo. Julie o agarrou com mais força para segurá-lo.
— Ramsés —, sussurrou ela ferozmente, — ela não pode deixá-lo ir. Ela não deve.
— Os olhos dele, Julie, — respondeu Ramsés. — Você viu os olhos dele?
40
O vento soprava forte, o céu acima do mar ainda escuro e estrelado. Mas no leste as
primeiras luzes do amanhecer iluminavam o céu. Um brilho pálido os cercou, permitindo
que o grupo enxergasse sem o uso de lanternas ou tochas.
A poucos metros do jardim que lhe trouxera tantos infortúnios, Saqnos diminuiu o
passo e olhou para o farfalhar das flores.
Atrás dele, todos os outros pararam. Enamon e Aktamu, que estavam em seus
calcanhares desde que deixaram o grande salão; Bektaten, alguns passos atrás deles; e
então Ramsés e Julie na retaguarda, ainda empunhando as adagas que haviam sido
impregnadas novamente com lírio estrangulador após seu retorno.
Ramsés olhou para trás, para o castelo.
Acima, Sibyl abriu sua janela. O vento açoitava seu cabelo loiro e a forçava a segurar
a gola da camisola com uma das mãos. Ela tinha ouvido a conversa deles no grande salão?
Supondo que sim, foi capaz de entendê-la? Em qualquer caso, ela ficou em silêncio. Ela
dava a entender que estava presenciando um jogo de grande importância.
Enquanto Saqnos se demorava, Ramsés esperava ouvir palavras de despedida. Mas
não havia nenhuma.
Em silêncio, ele começou a voltar para o portão do pátio, que havia sido deixado
aberto.
Quando chegou à ponte, agarrou-se a ambos os trilhos de corda para se equilibrar e
começou a atravessá-la. Devagar, cautelosamente. As tábuas sob seus pés estavam
fortemente amarradas, formando um piso quase sólido. Mas o vento balançava
constantemente toda a construção. E a espuma das ondas quebrando lá embaixo criava
uma névoa constante que tornava as tábuas escorregadias.
—Ramsés—, sussurrou Julie. —Ramsés, Bektaten não pode...
—Paciência—, Ramsés sussurrou de volta. —Paciência meu amor.
Uma luz cintilava em um objeto que parecia estar encostado em uma das rochas do
outro lado. Algum tipo de presente esperava por Saqnos do outro lado da ponte. Mas
Saqnos ainda não tinha visto.
Depois de cruzar, ele olhou para trás e viu que Enamon e Aktamu estavam em cada
lado da extremidade da ponte que dava para o promontório. Cada um deles agarrou um
corrimão de corda e o mantinha firme sobre a lâmina de sua adaga. O significado era claro:
se Saqnos tentasse voltar de repente, eles cortariam a ponte literalmente sob seus pés.
A princípio, Saqnos encarou-os com desgosto; então ele percebeu como sua situação
era perigosa.
Por que eles pensariam que esta era uma ameaça digna de assumir este silencioso e
deliberado quadro vivo?
Um imortal sobreviveria facilmente à queda. Um imortal seria forte o suficiente para
se agarrar à rocha mais próxima e evitar que as ondas o levassem para longe. Talvez tenha
sido então que Saqnos percebeu o presente que havia sido deixado para ele em algumas
rochas próximas. Ou talvez aquele estranho gesto dos homens de Bektaten o tenha levado
a examinar seus arredores em busca de sinais da decisão final à qual Bektaten havia
mencionado antes.
O espelho estava encostado em uma saliência de pedra atrás dele. Ramsés achava
difícil apreciar os detalhes de tão longe, mas era do tamanho de um espelho de mão
feminino, com uma superfície oval refletiva e uma moldura de prata reluzente.
Saqnos o ergueu e olhou para seu próprio reflexo. O som que então emergiu de suas
entranhas lembrou a Ramsés o urro de uma besta abatida com lanças. Naquele momento
Saqnos viu o que Ramsés vislumbrara no castelo momentos antes, quando Saqnos deu as
costas para a lareira, aproximando-se do brilho do lustre; seus olhos, antes azuis, agora
eram castanhos novamente.
Pelo que pareceu uma eternidade, ele não abaixou o espelho. Seus suspiros cansados
finalmente se transformaram em respiração difícil que eles não podiam ouvir àquela
distância. Ele olhou para Enamon e Aktamu. Nenhum deles baixou a adaga ou mudou a
postura um centímetro.
Agora Saqnos percebia por que a perspectiva de as cordas da ponte serem cortadas
era uma ameaça real.
Saqnos era mortal novamente.
Foi por isso que o levaram para o arsenal antes de levá-lo para a lareira no grande
salão.
Este era o segredo do jardim de Bektaten a que ela havia se referido antes de
abençoar o ataque em Havilland Park.
Saqnos ergueu o espelho com uma das mãos e jogou-o contra as pedras no chão. O
vidro quebrou instantaneamente. Ramsés a princípio pensou que essa ação era apenas
com o propósito de descarregar sua raiva, mas então Saqnos se abaixou e pegou com
cuidado um dos cacos maiores. Meticulosamente, ele deslizou uma ponta afiada na parte
interna de um antebraço, depois no outro. Ele observou o fluxo de sangue. Viu que os
cortes permaneciam abertos e vermelhos. Ele soube então, pela a brutalidade das feridas
e a velocidade com que o sangue fluía, que não era mais imortal.
—Uma escolha? —ele rugiu através do abismo tempestuoso que os separava. —É
esta a escolha da qual você estava falando? Que escolha há nisso? Agora você realmente
tirou tudo de mim. Tudo.
—Você tem sua vida! —Havia tanto poder na voz de Bektaten que ela parecia estar
falando com calma, e não gritando, embora suas palavras soassem claramente acima do
mar agitado e do assobio do vento. —E você também tem seu elixir impuro. Em suas mãos
está a decisão de criar mais filhos. Você tem a chance de viver com eles por mais dois
séculos. E, além disso, você tem a oportunidade de amá-los verdadeiramente como
companheiros, parceiros e iguais. Porque você será um deles, Saqnos. E quando eles
morrerem, você também morrerá.
—E a alternativa?— Saqnos respondeu, gritando.
Bektaten abriu os dedos de uma das mãos e gesticulou para o grande golfo de vento
e ondas que agora os separava.
Passarei o resto da existência tentando encontrar a palavra para descrever a mudança
pela qual este homem sofreu—, pensou Ramsés. Era a paz que o oprimia? Havia uma
palavra em alguma linguagem conhecida que pudesse descrever o momento em que um
imortal de milhares de anos se liberta de suas memórias, de seus fardos, se liberta do jugo
de uma experiência mais pesada do que a maioria das criaturas jamais conhecerá? Era o
momento para o qual uma palavra precisava ser inventada, e ele, Ramsés, o Grande,
Ramsés, o Maldito, um dia inventaria? Ou a palavra existia na antiga língua de Bektaten?
Estava escrita em algum lugar dos volumes que compõem seus diários?
Saqnos olhou para seus braços ensanguentados, estudando-os calma e serenamente.
Então ele ergueu os olhos e olhou mais uma vez para o violento abismo que os separava.
—Que você reine por muitos anos! — gritou ele com desdém e então saltou da beira
do penhasco.
41
Sibyl gritou.
Saqnos mergulhou silenciosamente na escuridão tempestuosa com os braços abertos
em um gesto de rendição.
Seu corpo bateu em uma saliência de rocha e depois deslizou.
Caiu de bruços contra cortinas de espumas e depois despareceu no mar agitado.
Quando se aproximou dela, Ramsés não viu lágrimas nos olhos de Bektaten. Nem
qualquer evidência de triunfo em sua expressão. No entanto, ela tinha uma resposta para
sua última pergunta, uma resposta incontestável.
Nenhum grande amor ou paixão impulsionava o homem que a traiu. Nenhum grande
amor ou paixão o prendia nesta terra, uma vez que sua imortalidade lhe foi tirada.
Consequentemente, a afirmação de sua tristeza por seus fracti era realmente uma
mentira, como havia demonstrado em seu salto final.
Saber disso lhe traria paz?
— Sibyl — disse Julie em voz baixa. Ela apertou a mão de Ramsés e correu de volta
para o pátio.
Os outros quatro permaneceram na beira do penhasco, contemplando o mar
espumoso. O vento era forte o suficiente para fazer com que o vestido vermelho de
Bektaten batesse contra seu corpo.
Quando percebeu que Aktamu e Enamon repousavam uma das mãos no ombro de
Bektaten, ele pensou, a princípio, que eles estavam tentando segurá-la com cautela contra
o vento. Mas nada em sua postura parecia instável ou inseguro. O toque era apenas para
confortar.
O olhar de Bektaten era algo que ele não conseguia descrever nem para si mesmo. Ela
estava tomada por uma profunda tristeza, embora ele não conseguisse apontar nenhuma
mudança em sua expressão ou comportamento. Ela mirava as rochas abaixo.
— Vão procurá-lo —, disse ela finalmente. — Vejam se é possível encontrar o corpo
dele.
Enamon e Aktamu assentiram e partiram.
Bektaten voltou-se para o castelo. Ela abaixou a cabeça e caminhou lentamente em
direção a ele.
Ramsés não teve escolha a não ser segui-la.
Ele fechou o portão atrás de si, como se esse gesto de alguma forma os isolasse das
consequências do que acabara de acontecer.
O vento não era tão forte dentro do pátio. Mas as plantas e flores no jardim de Bektaten
ainda dançavam em vai-e-vem e faziam uma música sussurrante ao roçarem entre si.
Alguns caules eram muito mais altos do que Bektaten e, embora muitas das flores
parecessem comuns à primeira vista, ao examiná-las mais de perto ele viu que cada uma
tinha determinada característica que a marcava como milagrosa: folhas e pétalas de
formas estranhas que o lembravam de mãos humanas, flores de tão intensas cores e
tamanhos que era quase impossível deixar de olhá-las.
Quando parou no corredor entre as duas fileiras de plantas, de segredos, de milagres,
Ramsés acreditou que ela fosse desmaiar, ou pelo menos cair de joelhos. Talvez de tristeza
ou talvez de alívio. Mas ela de permaneceu de pé, firme e forte, tocando uma das flores
mais próximas a ela.
Ouviu-se um rangido metálico acima. Ramsés levantou a vista. Era Julie fechando a
janela do quarto de Sibyl.
— E então há algo que pode nos tornar o que éramos—, disse Ramsés finalmente.
— Há mesmo? —perguntou Bektaten. —Você poderia voltar a ser o homem que era
antes de se tornar faraó? Antes de se tornar imortal? Ou suas experiências desde então o
marcaram tanto que retornar à mortalidade seria simplesmente o prelúdio para uma nova
existência, embora com um limite de anos?
— Você nunca desejou saber? Depois de tanta vida, você deve ter algum desejo de
encontrar os deuses, se é que existem. Algum desejo de ver que reino há além deste.
Ela considerou suas palavras por um tempo. Começou a caminhar novamente com
Ramsés ao lado dela, mas sua atenção parecia estar centrada em cada uma das plantas
pelas quais passava.
— Já percorri muitas vezes a extensão de terra que agora chamam de África. Visitei
outros reinos perdidos na história, menores e mais humildes que o meu. Mas não menos
gloriosos à sua maneira. Aconselhei os governantes de reinos ainda amplamente
desconhecidos neste século, reinos cujos grandes monumentos ainda não foram
descobertos. Mas muitas de minhas viagens foram solitárias. E milhares de anos atrás, eu
caminhei interminavelmente, ao que parecia, em direção a uma grande coluna de fumaça
preta no horizonte. Por fim, cheguei a um inferno escaldante que assolava uma paisagem
livre de humanos, sem nada para impedir seu avanço. Tão grande era esse incêndio que
poderia ter consumido Tebas ou Meroé. Sozinha, fiz meu caminho em direção a ele.
Sabendo, a cada passo, que me entregaria a ele. Que testaria os limites da minha
imortalidade, sozinha, com as chamas.
“Amarrei-me a uma árvore. Eu poderia facilmente me libertar se quisesse. Mas o
tempo que levaria para desfazer a corda me daria tempo para reconsiderar minha decisão.
Amarrei-me a uma árvore para poder observar o avanço das chamas. Para poder
contemplar sua fúria e seu mistério como nenhum outro humano poderia. Para poder ver
as árvores caírem perante essa fúria e se transformarem em cinzas. Para poder observar
a impotência do solo e a vida que ele havia germinado ante um elemento tão poderoso.”
“E os animais que fugiam do incêndio. Leões, girafas e os outros grandes animais,
alguns dos quais paravam para me olhar como se eu fosse um ser incompreensível para
eles. Como se minha falta de medo me tornasse um deus. E então as chamas vieram. Elas
me consumiram. Fiz o meu melhor para me entregar inteiramente a elas. Soltei gritos que
ninguém ouviu. Sons que não pareciam humanos aos meus próprios ouvidos. Era como se
eu cantasse para as próprias chamas.”
Ela estava perto de Ramsés agora. Ela deu-lhe toda a sua atenção: — E elas cantavam
de volta—, sussurrou Bektaten.
— Você ouviu as palavras dos deuses? É isso que você quer dizer?
— Eu experimentei a morte, Ramsés. É impossível medir o tempo que levou para as
chamas passarem por mim. Horas, dias. Não tenho certeza. Essas medidas não existiam
então. Apenas a passagem do sol era confiável neste sentido. E essas chamas apagaram
completamente o sol e a escuridão da noite. O fogo se moveu como uma besta pesada e
satisfeita, e eu me entreguei a ele até que passou.
— Mas o que você viu, Bektaten? O que você viu além das chamas e da ruína que elas
causaram? Qual foi esse cântico que você ouviu?
— Não há céu. Não há inferno. Não há acima ou abaixo. Se existe um reino além deste,
não é mais bonito, não é mais significativo, não é mais repleto de verdade do que o nosso
aqui na terra.
— Como pode dizer isso? O que você viu nas chamas que pudesse sugerir isso?
— Eu vi um mundo espiritual tão complexo e vasto, tão completamente entrelaçado
com nossa existência aqui na terra, que os rios das almas que partem não têm escolha a
não ser retornar a ele. Eles não estavam perdidos, esses espíritos. Eles não vagavam. Eles
não lamentavam. Eles não clamavam por orientação ou a resolução de algum mistério
insignificante que os havia atormentado durante a vida mortal. Eles voltavam. Eles
voltavam ansiosos. Eles voltavam com alegria. Eles não buscavam um reino mais
esplêndido. E o que isso poderia significar, além de que não há reino mais esplêndido do
que este, Ramsés? Então por que eu iria querer partir?
— Você não acha que foi apenas uma visão provocada pela loucura? — perguntou
Ramsés.
— Não foi uma visão. Foi algo sustentado. Durante o tempo que as chamas levaram
para me atravessar, eu vivi entre este mundo e um mundo que está aqui, mas não é visto
com clareza.
— E você saiu desse lugar acreditando que não há campos de Aaru. Nem reino dos
céus.
— Não —, respondeu Bektaten, — eu deixei aquele lugar acreditando que se tal lugar
existe, mas não oferece nenhuma maravilha maior do que as que existem aqui na terra.
Pois a essência do que vi é esta: nossa alma, uma vez libertada, busca apenas retornar. —
Ele desviou o olhar. — Você despreza esse pensamento? Isso irrita você. Você amou e
nutriu visões de um mundo além deste.
— Em meus muitos anos de vida, amei e nutri muitas visões que fui forçado a libertar.
Sua experiência sugere um desafio muito maior.
— Qual é esse desafio maior, Ramsés?
— Isso implica que todos os imortais devem ter uma experiência como a sua com o
grande incêndio, ou então estamos condenados a terminar como Saqnos. Consumido por
uma única busca cegante. Perdidos em uma solidão que nós mesmos criamos.
— Não tenha tanta certeza disso—, disse Bektaten, pegando gentilmente a mão dele e
conduzindo-o de volta para o castelo. — Não tenha certeza de nada. Nas páginas dos
Shaktanis há muitas experiências que gostaria de compartilhar com vocês. Você pode lê-
las e assimilá-las conforme lhe for conveniente. Mas assimile-as, Ramsés. Não tire
conclusões precipitadas. Não as reduza a um código precipitado de moral e leis para seres
como nós. Deixe-as abraçá-lo para que possam guiá-lo.
— Você vai me ensinar sua língua ancestral para que eu possa lê-los?
— Claro.
Ramsés parou de repente e olhou para o jardim.
— E se algum dia eu desejar...
— O quê, Ramsés?
— Se eu desejar ser mortal de novo? — perguntou ele. — Se Julie algum dia desejar?
Um longo silêncio. Ela soltou a mão dele.
— Concederei esse desejo—, disse ela finalmente. — Mas eu não concederei a nenhum
imortal que você crie a partir de hoje, pois meu desejo é que você não crie mais imortais.
Este pode ser o nosso acordo?
Acordo. Uma profunda sensação de alívio tomou conta de Ramsés. Um acordo. Ah,
então somos iguais, não somos? Este ser poderoso agora me honra falando de acordos,
em vez de julgamento. Ah, o prodígio das rainhas. Mesmo nos tempos antigos, ele tinha
ouvido falar de rainhas protegendo seus reinos, enquanto reis saiam para conquistar
outros, de rainhas preservando seu poder enquanto os reis buscavam ostentar. E nos
tempos modernos, ele ouvira falar de uma grande rainha, Elizabeth da Inglaterra, que
havia seguido exatamente esse mesmo caminho, protegendo seu vasto reino e suas
extensas colônias, mas nunca iniciando uma guerra por mais poder ou mais terras.
Ramsés sorriu.
— Um acordo? —perguntou ele. — Você fala comigo agora como se eu ainda fosse um
rei.
— Você não é? —perguntou Bektaten, em resposta.
— Amada rainha—, disse Ramsés. — Eu não lhe contei sobre o outro a quem dei o
elixir.
— E você não precisa me dizer por que eu sei. Elliott, o Conde de Rutherford, um
homem culto e sóbrio.
— Sim—, disse ele. — Como também não posso jurar a você que nunca darei o elixir a
outro. Eu sei muito sobre solidão e isolamento para lhe fazer tal promessa. Elliott Savarell,
o Conde de Rutherford, é minha responsabilidade agora, assim como Julie Stratford. E
Cleópatra, minha Cleópatra ferida, continua sendo minha responsabilidade. Não. Não
posso jurar que não darei o elixir novamente. Estamos diante de um mundo novo e
moderno com o qual nunca sonhei. Podemos nos perder um do outro neste mundo,
Bektaten. E quem sabe que tragédia, que sensatez ou que necessidade pode me levar a
fazer isso.
Bektaten olhou para ele por um longo tempo em silêncio e depois sorriu. Como ela
parecia radiante e linda com aquele sorriso.
— Você falou como um rei —, disse ela. — Mas este elixir, em toda a sua pureza e
poder, você roubou daquela a quem eu o confiei, e quando fez isso, você roubou de mim.
— Sim, minha rainha, eu estou ciente agora —, disse Ramsés. — Mas eu não posso
voltar e corrigir esse erro. E também não consigo apagar os segredos do elixir da minha
mente. Milhares de anos se passaram desde aquele grande roubo. E para o bem ou para o
mal, agora conheço o segredo. Não me peça coisas impossíveis.
— Você sabe o que estou realmente pedindo a você—, disse ela.
— Eu sei. Que eu nunca mais aja precipitadamente, que eu nunca atente contra a
natureza, que nunca mais perturbe os mortos.
— Exatamente—, ela respondeu.
— Quanto a isso, dou-lhe minha palavra. Como eu não poderia? Nunca mais farei o
que fiz quando despertei essa Cleópatra fantasma de seu sono. Eu criei uma nochtin, como
Saqnos a chamou, e, se eu pudesse, desfaria.
Ele quedou-se em silêncio, incapaz de dizer outra palavra.
— Nochtin? — ponderou Bektaten. — Nochtin, uma espécie descrita por um tolo.
Talvez sua Cleópatra fragmentada não seja uma nochtin. Lembre-se de que foi com um
elixir adulterado que Saqnos realizou suas ressurreições, o mesmo elixir adulterado que
condenou seus fracti.
— Isso é verdade—, disse Ramsés.
— Foi o elixir puro que você derramou sobre o cadáver de sua Cleópatra. Quem pode
dizer que ela é uma nochtin ou que vai enlouquecer?
— Se ao menos... — sussurrou Ramsés. — Mas ela está ficando louca, não é?
— Ela está sofrendo. Ela está confusa. Ela tem um caminho escuro diante de si. Mas,
novamente, foi o elixir puro que restaurou seu ser, e é bem possível que tomar mais lhe
faça bem.
Faltou pouco para que as lágrimas de Ramsés surgissem em seus olhos.
— Possivelmente…
—Como você mesmo disse, Ramsés, ela é sua responsabilidade. E eu não me atreveria
questionar o que você faz com essa criatura, desde que você não tente destruí-la. Isso eu
não vou tolerar.
— Compreendo.
— Estarei atenta. Eu estarei sempre vigiando.
— E você verá em mim um homem disciplinado e mais sábio —, disse Ramsés. — Eu
prometo.
— Pois bem, Ramsés, o Grande. Temos um acordo, não temos?
42
Propriedade Rutherford
Diziam-lhe que ele nunca deveria colocar os pés na propriedade novamente. Que
ninguém deveria. Ele até ouviu as enfermeiras da clínica dizerem que a casa principal, as
fazendas dos inquilinos e até o antigo templo romano haviam sido queimados até as cinzas
e a terra abençoada por sacerdotes de todas as religiões conhecidas.
Essas palavras o enfureceram. Pois essa fofoca supersticiosa também se espalhou
entre os outros convidados da festa, que estavam sendo tratados de estresse e exaustão
na mesma clínica para onde levara sua mãe. E tudo isso o aborreceu como nada em sua
vida. Nem a perda de sua bela companheira no Cairo, a amiga louca do Sr. Ramsey, nem a
perda de Julie, que nunca havia sido realmente dele para começar, nem mesmo a longa
ausência de seu pai, que até agora não enviara um único recado.
E onde estava seu pai? Em outro cassino? Talvez quando o incidente estivesse na boca
de todos no continente, ele desse sinais de vida. Mas até agora Alex não tinha recebido um
telegrama ou um telefonema; apenas mais um depósito substancial no banco.
Ao longo da noite ele conseguiu controlar sua raiva. Ele conseguiu dar as costas aos
médicos e enfermeiras fofoqueiros para não atacá-los. Enrolava um lenço entre os punhos
sempre que queria dizer àqueles que não haviam testemunhado o horror que parassem
de comentar o ocorrido.
Em vez disso, havia se comportado como um perfeito cavalheiro, um bom rapaz. Mas
ambos os papéis eram hábitos esfarrapados, incapazes de conter sua confusão e tristeza.
Quando interrogado pela polícia, a explicação supostamente lógica que estavam
armando tornou-se instantaneamente clara. Embora não tenham acusado todos na festa
de terem sofrido de insanidade coletiva, continuaram a insistir que havia fatos que
precisavam ser tratados. Como por exemplo, por que ninguém na festa reconheceu ou
conhecia as pessoas que sofreram uma morte tão horrível. A polícia conseguiu alguns
nomes daqueles que conversaram brevemente com eles no gramado. No entanto, nenhum
desses nomes era familiar para Alex, sua mãe ou qualquer um dos outros convidados com
quem conversaram. A polícia também conseguiu interrogar a secretária que preparou a
lista de convidados. Ela verificou que esses nomes não constavam na lista. Essas pessoas
misteriosas tinham aparecido do nada e desapareceram no nada. Talvez, a polícia
insinuou, eles nunca tenham realmente existido.
E então havia a questão do estranho túnel aberto na propriedade. Alex não sabia nada
sobre aquele túnel. No entanto, a polícia disse que havia rastros nele, bem como no
gramado onde ele terminava, perto do lago.
Ambas as coisas estavam ligadas, insistia a polícia. Foi tudo uma ação para desviar a
atenção, um truque de prestidigitação. Uma grande ilusão destinada a distrair com o caos
enquanto alguma atividade criminosa acontecia. Um roubo, talvez.
Quando Julie finalmente o alcançou por telefone no hospital, naquela manhã, ele
explicou tudo e sua raiva veio à tona. Como ela parecia calma. Quão reconfortantes eram
suas palavras. Ela lamentou terrivelmente por terem sido separados enquanto o caos
reinava, mas ela e Ramsey estavam muito bem, embora tão chocados quanto todos com o
que haviam testemunhado. Tampouco ela tinha sua própria explicação. Cuide de sua mãe,
ela havia dito, isso é o mais importante. Cuide de sua mãe. Eles, por sua vez, logo viajariam
para o norte para falar com a polícia.
E ela estava certa, é claro.
Ela estava meio certa. Ele amava muito sua mãe, mas a casa ainda importava. A
propriedade continuava a importar. E a ideia maluca de que algum tipo de roubo havia
ocorrido precisava ser provada ou refutada. Então, quando as enfermeiras sedaram sua
mãe mais uma vez, ele escapuliu e voltou para casa.
Descobrir que ainda estava de pé o surpreendeu muito, embora, claro, fosse um
absurdo.
Uma parte infantil de si mesmo havia adivinhado que as maldições que os convidados
traumatizados lançaram sobre o lugar tinham de alguma forma conseguido quebrar as
janelas altas, arrancar pedaços do telhado, destruir as sebes que ladeavam o longo
caminho sinuoso que levava à porta da frente.
A possibilidade era realmente tão absurda quando parou para pensar no que havia
acontecido? Pessoas, pessoas vivas e bem, convidadas para a festa, dissolvendo-se diante
de seus próprios olhos.
Como a polícia explicaria isso no final?
Uma droga. Todos haviam sido drogados para submetê-los a uma ilusão visual que
servia de disfarce para um grande roubo. No entanto, a polícia vasculhou o local durante
a noite e trouxeram a ele e sua mãe listas detalhadas do conteúdo dos quartos, incluindo
as joias que sua mãe trouxera de Londres dois dias antes.
Tudo parecia estar em seu lugar. Talvez quando sua mãe recuperasse a compostura
ela notasse que algo estava faltando nas listas. Mas seria tão grande a ponto de exigir um
túnel secreto para carregá-lo?
Alex caminhou sozinho pelos cômodos que no dia anterior haviam se enchido de risos
e deleite, depois pânico e gritos. Será que ele poderia preenchê-los com suas lembranças
da infância, como o trem de brinquedo que seu pai uma vez ajudou-o a montar na sala de
estar? Pelas horas passadas lendo junto às janelas que davam para os vastos gramados?
Eu tenho que ir para o gramado, ele disse a si mesmo. Tenho que enfrentar vê-lo
novamente, agora ou nunca.
O que dizia o velho ditado sobre cair de um cavalo? Talvez não fosse muito apropriado,
considerando que ele teria preferido quebrar um osso ao choque do que vira no dia
anterior.
"Drogas. Uma ilusão. Um truque. Um roubo".
Ele estava apenas saboreando essas palavras, provando-as, para ver se seriam
digeríveis. E ele só teria a resposta quando voltasse a olhar para a cena do crime.
As portas de vidro do terraço foram quebradas no pânico. Que estranho que a polícia
não tivesse colocado algum tipo de barricada ou prancha de madeira nas aberturas. Mas
eles não estavam no ramo de restauração. Ele cruzou a soleira com cuidado para não
soltar os cacos de vidro que ainda estavam presos à moldura. Em seguida, repetiu o
caminho que os convidados haviam percorrido no dia anterior até o terraço e desceu os
degraus até o gramado.
Ele deveria estar preparado para ver as cadeiras viradas de cabeça para baixo, as
sombrinhas tombadas, com seus toldos balançando com a brisa suave. Os destroços do
grande êxodo estavam espalhados por toda parte. Mas, graças a Deus, as pilhas de cinzas
e os vestidos e sapatos vazios haviam sumido.
Ainda assim, a visão do destroço diante dele foi mais perturbadora do que ele
esperava. Talvez a bela manhã ensolarada só estivesse piorando as coisas, trazendo à
mente dias melhores e mais felizes de pôr do sol como fogueiras laranja iluminando o
horizonte oeste além da linha de árvores verdes e farfalhantes. O tintilar de bolas de
croquet na grama. Não aquele silêncio fantasmagórico e assombrado.
Já não sou mais o mesmo, ele percebeu. O que eu vi me mudou.
Quanto tempo ele permaneceu parado na brisa? Quanto tempo ficou em meio aos
fantasmas de terror de ontem?
Quanto tempo até a música começar a tocar?
No início, parecia baixa. Pelas primeiras notas cantadas, ele pensou que poderia estar
vindo da propriedade vizinha. Mas a propriedade vizinha ficava muito longe. E a voz lírica
do homem ia aumentando de volume, as palavras italianas que lhe eram tão familiares,
vinham da sala, do gramofone ali.
Após seu retorno à Inglaterra, com a saudade da mulher que conhecera no Cairo
batendo dentro dele como um segundo coração, ele correu secretamente para a biblioteca,
onde leu todo o libreto de Aida de uma vez. Era a letra daquela ópera que ele ouvia agora,
letra cantada pela voz do grande Enrico Caruso, tão potente e insistente apesar dos
arranhões do disco. O som atravessava o gramado pelas janelas quebradas.
Celeste Aida, forma divina,
Mistico serto di luce e fior.
Sua mãe tinha recebido alta do hospital? O disco havia sido um presente dado a ele por
ela. Ela tinha mencionado isso a ele antes da festa. Mas não pode ser. Fazia quase meia
hora que ela havia sido sedada.
Talvez ele estivesse realmente ficando louco.
Mas, se fosse esse o caso, ainda sabia perfeitamente seu nome e em que país estava?
Ele agarrou a maçaneta e abriu-a com cuidado.
Ele se preparou para descobrir que talvez os médicos e enfermeiras estivessem certos:
realmente havia um mal inexplicável sob a propriedade Rutherford; talvez ele tivesse
cruzado um limiar que conduzia a um fabuloso mundo alternativo.
Del mio pensiero
tu sei regina
tu di mia vita sei
lo esplendor.
Quando ele a viu de pé ao lado do fonógrafo, em um vestido elegante que mostrava
mais pele do que o maravilhoso vestido de seda dourado que ela usara para ir à ópera,
suas costas buscaram apoio na parede mais próxima.
Quando os olhos dela, aqueles olhos cintilantes de um azul impossível, encontraram
os seus, ele prendeu a respiração.
Ele ficou paralisado enquanto ela se movia pela sala em sua direção, descalça no
assoalho. Palavras não podiam descrever a expressão em seu rosto. Expectante? Faminta?
Devotada? Ele não tinha certeza. Não tinha certeza de nada, exceto de que ela estava lá.
Ela havia colocado a música, ela estava fechando a distância entre eles.
—O que você vê, Lorde Rutherford? —perguntou. —O que você vê quando olha para
mim?
Lágrimas em seus olhos; lágrimas em Alex também.
Devo responder. Eu tenho que responder pois se eu não puder, talvez isso seja algum tipo
de loucura.
—Eu vejo…
—Sim?
A poucos centímetros dele, ela ergueu a cabeça hesitante, como se tivesse medo de
tocá-lo e ainda assim ela não queria nada mais do que sentir seu beijo.
—Estou vejo o Cairo—, sussurrou Alex. —Eu vejo a ópera a que assisti repetidas vezes
em minha mente. Em meus sonhos. Meus sonhos do tempo que passamos juntos. Eu
procuro nos corredores por qualquer sinal de você. E então eu vejo você no carro...
Ela fechou os olhos com estas lembranças, as lágrimas escorrendo pelo seu rosto.
—Vejo você consumida pelas chamas—, continuou Alex.
—Consumida, sim—, ela sussurrou, — mas não aniquilada.
—Mas você está… — Curada foi a primeira palavra que lhe veio à mente, mas parecia
pateticamente inapropriada. Era um milagre sua aparição diante dele. Que ela estivesse
viva.
Com toda a coragem que teve, Alex fechou a mão suavemente em torno dela. Ele
aproximou as pontas dos dedos dela do nariz e depois dos lábios. Um sorriso agora
acompanhava suas lágrimas, um sorriso desesperado e quase suplicante. Quando ela
levou a mão ao rosto de Alex e ele permitiu que ela lhe acariciasse a bochecha, foi como
se ela tivesse liberado uma grande tensão.
—Há um nome para o que você é? —Alex sussurrou.
—Se eu não houvesse, você poderia me amar de qualquer maneira? Aqui? Tal como
somos?
Alex queria beijar a ponta dos dedos dela suavemente. Mas ele sabia que fazer isso
seria o seu fim. O fim de qualquer vida que ele possa ter descrito anteriormente como
equilibrada e sã. E assim foi.
E então sua boca estava na dela, suas mãos passeando sob seu vestido branco com
babados. A sensação de sua pele sedosa, seu cheiro, seu sabor, a incrível força com a qual
ela o puxou para o chão. Alex envolveu sua cintura com as pernas e a saboreou,
massageou-a, arrebatou-a com seus beijos. Cada toque, cada gosto, mais do que uma
manifestação de paixão, uma confirmação de que ela existia. De sua ressurreição
milagrosa.
Repetidamente, ela repetiu o nome de Alex. E ela fez isso depois de confessar não ter
nenhum nome próprio, e isso tornou o amor que ela declarava por ele muito mais
profundo.
Era preciso haver um nome para o que eles eram agora um para o outro? O que eles
haviam sido um para o outro no Cairo? E se fosse necessário enlouquecer para entrar
naquele lugar de paixão desenfreada e sonhos realizados, a loucura seria bem-vinda para
todo o sempre.
43
Ela não o havia exaurido, pelo contrário, ele a carregou escada acima para um dos
quartos, e lá ele começou a fazer amor com ela novamente enquanto a luz do sol do
amanhecer penetrava através das cortinas de renda. O papel de parede parecia tão vívido
e brilhante como o dia que se anunciava, mais bonito e acolhedor do que qualquer coisa
dentro da propriedade escura onde ela tinha sido mantida prisioneira.
Alex não parou até que a levou a um clímax que a sacudiu até os ossos.
Então, quase sem fôlego, enquanto suavemente afastava o cabelo dela da testa, ele
começou a contar-lhe tudo o que havia acontecido no dia anterior. A festa e o grande
envenenamento, a explicação absurda oferecida pelos investigadores.
Ela não disse nada em resposta. Ela não queria interromper o fluxo de suas palavras.
Eram tão honestas, tão sinceras, escolhidas com tanto cuidado.
Suas lembranças do tempo que passaram juntos no Cairo estavam intactas e intocadas,
por isso ela se recordou mais uma vez de por que havia se apaixonado tanto por ele em
tão pouco tempo.
Havia uma proximidade com ele. Sempre. Em cada momento. A sensação de que ele
estava totalmente presente. Quando ele parava de vez em quando para organizar seus
pensamentos, ela não sentia como se a mente dele estivesse fugindo para cuidar de certos
cálculos que desejava manter em segredo. Alex desejava apenas se expressar tão
claramente quanto pudesse, e para o benefício dela. Para que ela pudesse conhecê-lo. Para
que ela soubesse de tudo o que ele tinha passado desde que seus caminhos se separaram.
Isso o distinguia de todos os seus amantes anteriores, com suas tendências à distração
perpétua; sempre preocupados com batalhas, com impérios? Ela não conseguia se
lembrar.
Mas ela conseguia se lembrar de seu breve tempo com ele no Cairo e, neste momento,
isso era tudo que importava. Lembrava-se dormir com ele naquele lindo quarto do
Shepheard's Hotel. E como era maravilhoso visitar uma memória vívida e pura, como
tantas outras que lhe estavam sendo tiradas. Não apenas visitá-la; mas viver nela, nadar
nela, prová-la. E agora, como antes, ele a tratava como se ela fosse uma mulher completa.
Como se nada lhe faltasse, como se ela estivesse longe de ser a terrível criatura condenada
que Saqnos havia descrito.
Nochtin. Ela poderia imaginar uma palavra tão brutal saindo dos lábios de Alex?
Talvez, mas não conseguia imaginá-lo sussurrando com o mesmo ódio que seu captor.
Ele estava explicando que havia experimentado uma mudança radical em sua forma
de pensar, em sua visão do mundo, baseado inteiramente no que havia testemunhado no
gramado daquela mesma propriedade. E em seu retorno milagroso. E na terrível e
esmagadora dor que sentiu depois de ver as chamas devorarem-na.
Estava claro para ela agora que seu reaparecimento, sua ressurreição, de alguma
forma tornara mais fácil para ele aceitar o que havia testemunhado no dia anterior, lá fora
daquela mesma casa.
Alex continuou falando do acontecido. Do envenenamento.
— Cinzas, minha querida. Eles literalmente se transformaram em cinzas diante de
nossos olhos. — Ele disse isso com uma espécie de deslumbrado assombro. Mas,
novamente, ela não disse nada em resposta. Não revelou a ele que estivera na mesma
propriedade antes que esses eventos ocorressem. Que estivera perigosamente perto de
prometer a Julie Stratford que nunca mais tentaria vê-lo, tudo em troca de uma dose do
elixir; uma dose talvez que pudesse acalmar seu tormento, que estancasse o fluxo de seu
próprio passado. Nada disse a ele. Seu silêncio parecia não incomodá-lo; mas por quanto
tempo?
Ele havia retrocedido em sua história, ao que parecia, chegando às explicações que
Ramsés e Julie lhe haviam dado sobre a aparição dela no Cairo. Como foi doloroso ouvir-
se descrita como louca. Mas a raiva que antes despertavam tais palavras não a acendeu.
Pois era possível que ela estivesse se tornando algo muito pior. Algo que não era imortal
nem mortal. Um ser infame ressuscitado da morte.
Nochtin, ela ouviu o rosnado de Saqnos. Nochtin...
Alex ficou em silêncio.
Ele acariciou sua bochecha. E só na dilatação muito breve de suas narinas ela pôde
sentir a tensão nele, a expectativa.
Ele tinha contado tudo a ela.
Agora era a vez dela.
— Estou doente—, sussurrou ela. — Estou doente, Lorde Rutherford.
Ele se apoiou nos cotovelos. Ao fazer isso, ele fez com que o lençol deslizasse por seu
peito largo. Estava salpicado de pelos negros que segundos antes ela entrelaçara com os
dedos. A princípio, ela pensou que ele estava recuando, mas não era assim. Ele estava
simplesmente tentando dar uma olhada melhor nela. Não havia repulsa em sua expressão.
—Doente? —perguntou Alex. — Como é possível, se você sobreviveu às chamas?
— A mesma coisa que me permitiu sobreviver às chamas... Há uma...
— Uma maldição? — perguntou. — É isso que é? Algum tipo de maldição?
— Sim, talvez devêssemos chamar de maldição.
—Como você gostaria que eu chamasse? — A angústia em sua voz era como uma
punhalada. — Preferiria pensar em você como um anjo. Corresponde inteiramente ao que
vivi com você.
— Eu não sou, Alex. Eu não sou o que você chama de anjo.
—Tudo bem então. Sempre vou chamá-la do que você quiser que eu chame.
Lágrimas vieram-lhe aos olhos ao ouvir isso. Lágrimas que turvaram sua visão do belo
quarto e daquele homem tão bonito. Ele a abraçou no momento em que as viu, levou seus
lábios ao pescoço dela, envolvendo-a no calor de sua deliciosa carne mortal.
— Não buscarei respostas que você não está pronta para dar—, sussurrou ele. — Só
uma coisa, por favor: não me abandone de novo. Por favor.
Oh, se ela pudesse prometer isso. Mas quando ela separou seus lábios dos dele, sua
respiração a deixou. Ela não pôde fazer nada além de retribuir o abraço. E então houve
um enorme silêncio, um silêncio preenchido pelos sons repentinamente lentos e
irregulares da respiração de Alex. Ele estava esgotado.
Quando ela percebeu que ele estava dormindo, sentiu-se repentina e totalmente
sozinha.
Afastou-se dele apenas até que pudesse ver seu rosto. Ele descansava contra o
travesseiro ao lado de seu próprio ombro nu. Ela estendeu a mão para sua bochecha, com
a intenção de tirar o cabelo de sua testa, assim como ele havia feito com ela. E foi então
que seus dedos tremeram. E seu desespero se transformou em algo mais sombrio. Algo
que afugentou toda tristeza, substituindo-a pela reconfortante certeza da raiva.
Ela segurou o queixo dele com a mão. Correu os dedos ao longo da linha delicada de
sua mandíbula. Sentiu o calor do sangue mortal sob sua bochecha. Correu os dedos
suavemente ao longo de sua garganta; as veias bombeando sangue por sua mente
sonhadora.
Ele sonhava com um futuro ao lado dela que nunca seria possível? Um futuro que
certamente seria destruído por sua loucura iminente?
Que escolhas ela tinha neste momento?
Rejeitá-lo? Abandoná-lo? Jogá-lo de volta à mesma dor que ele lhe havia descrito
momentos antes?
Ou seria melhor quebrar o pescoço dele? Um movimento rápido. Isso era tudo que
precisava. E ele morreria acreditando que a havia conquistado para sempre. Ele morreria
amando-a. Ele morreria tendo lhe chamado de anjo apenas alguns segundos antes.
Uma benção para ele.
Uma benção para ela?
A poucos centímetros da garganta dele, sua mão tremia. Seus dedos tremiam. E a
princípio ela confundiu os sons irregulares de sua própria respiração com alguma criatura
arranhando dentro das paredes.
Seria este o destino de todos os seres, destruir o que eles achavam belo, ao perceber
que não poderiam possuí-lo para sempre?
Era um soluço que ameaçava dominá-la. Todo o seu esforço foi necessário para abafar
o choro ao sair da cama, com cuidado, para não acordá-lo, mas rápido o suficiente para
sentir como se estivesse recuando diante da terrível possibilidade do que quase acabara
de fazer. Quebrar o pescoço. Acabar com sua vida. Alegando poupá-lo do sofrimento ao
livrar-se rapidamente de sua própria fonte de dor.
Era um tormento. Um tormento estar ali com ele. Com sua ternura e sua beleza.
Ele não se acordou. E ela queria que ele acordasse. Mas ela sabia que, se ele o fizesse,
seria mais difícil abandoná-lo.
E então ouviu ruídos lá fora. Ela moveu-se silenciosamente até a janela e viu homens
em ternos pretos saindo de vários carros estacionados ao longo da garagem. Eles
passaram pela porta de entrada da casa. Em vez de entrar, continuaram caminhando na
direção do gramado onde ocorrera o envenenamento. Eram os investigadores que ele
havia mencionado antes; tinham que ser. Eles haviam voltado para começar outro dia de
trabalho, agora que já havia amanhecido por completo.
Que agonia ficar ali mais um momento. Uma agonia que ela não podia suportar.
Ela desceu correndo os degraus e encontrou o vestido embolado no chão da sala, perto
de onde haviam feito amor. Ela tinha acabado de enfiá-lo pela cabeça e alisá-lo sobre a
cintura e as pernas quando ouviu Alex chamá-la. Ouviu os passos dele no andar de cima.
Ela começou a correr. Correu por salas vazias longe do gramado onde os
investigadores estavam reunidos. Ao ouvi-lo perseguindo-a, ela continuou a correr, e saiu
por uma porta lateral até um jardim de sebes bem podadas. Ela percebeu que estava perto
do caminho que Julie lhe havia pedido que percorresse no dia anterior. Talvez pudesse
escapar pelo mesmo túnel que fora usado para sequestrá-la.
E então ela ouviu a porta se abrir.
— Cleópatra! — gritou Alex.
Esse nome. Ouvi-lo chamá-la desse nome. Esse nome que logo deixaria de ser seu. Isso
fez com que seus passos vacilassem o suficiente para que ele a alcançasse.
— Não—, disse ele, angustiado. — Você não deve fugir. Você não deve! Se você acha
que vai me poupar de mais dor, você está errada. Pois nada poderia ser pior do que ser
devolvido à minha tristeza por você. Seja qual for essa maldição que lhe aflige, seja qual
for o seu medo, eu estarei ao seu lado o tempo todo.
— Você não deve dizer essas coisas—, ela gaguejou em meio às lágrimas. — Você não
sabe o que elas significam. Você não sabe o que está por vir!
— Você sabe? —perguntou ele. — Você sabe o que está por vir? Não sinto certeza em
você, Cleópatra. Sinto a confusão e o medo que ela gera.
Nenhuma palavra. Ela não tinha palavras para responder.
— Desde que voltei do Egito, cada dia tem sido um tormento—, disse Alex. — Eu era
um homem diferente quando viajei para lá. E então eu conheci você e foi como se todos os
meus projetos e ambições fossem passatempos de um menino. Coisas infantis que eu
ainda não tinha deixado de lado. Eu sabia. Eu sabia, Cleópatra. Que havia algo em você que
não podia ser explicado. Algo que possivelmente era assustador. Perigoso. Perturbador
para tudo que eu valorizo.
“E ainda assim, eu não podia deixar você ir. Nem mesmo as fantasias mais sombrias
do que você era, do que você poderia ser, foram suficientes para me fazer deixá-la. É assim
que é o amor, não é? Não é algo para a qual você abre um pequeno espaço em sua vida. Ele
se apodera dela e tudo o mais deve ser feito para se ajustar a ele, ou o resultado é um
arrependimento infinito ou uma insensibilidade intencional que leva à morte do seu
espírito antes da morte do seu corpo. Eu vi essa verdade nos olhos de Julie e Ramsey. E eu
vejo em seus olhos quando olho para você.”
— Você se acorrenta a um navio que está naufragando, Lorde Rutherford — sussurrou
Cleópatra.
— Não—, respondeu Alex, aproximando-se tanto dela que sua respiração beijou os
lábios dela. — Você não tem certeza do que você é. Você está confusa. Você teme que essa
confusão vá me consumir. Destruir-me. E o que estou lhe dizendo, e você deve acreditar
em mim, é que você já me consumiu. E que, se você me abandonar novamente, eu ficarei
arrasado.
Cleópatra não saberia dizer se havia caído em cima dele ou se ele a tinha tomado nos
braços. Que diferença fazia? Seu abraço era seguro. Seu abraço não precisava de outro
nome. Em seu abraço, não havia confusão, nem desespero. Nem medo da loucura por vir.
— Eu não posso ficar aqui—, sussurrou Cleópatra. — Devo me retirar deste mundo
que ainda não entendo totalmente.
— Iremos juntos, então—, disse ele. — Aonde você quiser ir, irei com você, minha Bella
Regina Cleópatra.
Ela segurou seu rosto com ambas as mãos. Acariciou-o. Beijou-o. Entregou-se a ele
como ele se entregava a ela. O desejo de acabar com a vida dele que ela havia sentido
momentos antes se foi. Desaparecido e substituído por uma necessidade por ele que era
mais do que um mero desejo de escapar.
— Estou tão cansada, Lorde Rutherford, — sussurrou ela, — muito cansada.
— Então descanse em mim—, respondeu Alex. — Confie em mim.
QUARTA PARTE
44
Yorkshire
Assim que começou, Julie percebeu que não seria tanto um interrogatório, mas uma
série de perguntas respeitosas. Edith havia insistido que o detetive o fizesse ali mesmo,
em seu próprio quarto, com todos eles reunidos em volta da cama como parentes
inquietos, ansiosos por garantir sua parte na herança de uma velha moribunda. Talvez
isso explicasse a reserva do detetive; ele estava intimidado com a presença de uma
condessa.
Edith parecia serena e preparada para a ocasião, vestida com um roupão laranja
ornamentado e seu cabelo penteado para trás de seu rosto pálido formando uma auréola
no travesseiro. Ela tinha uma aparência extremamente angelical, e Julie sentiu um grande
alívio ao vê-la tão revitalizada e composta após ter passado apenas duas noites naquele
local.
Não era tanto um hospital movimentado, mas uma curiosa clínica de aldeia, mal
equipada para tratar ferimentos graves. E era apropriado, pensou Julie, já que nenhum
dos aristocratas que normalmente ocupavam seus aposentos se queixava de algo mais
sério do que estados de choque e estresse.
Ainda assim, ela sentia que esse arranjo era inapropriado e intrusivo. Mas Edith havia
insistido. Agora ela entendia por quê. A duquesa ouviu atentamente cada palavra que saiu
da boca do inspetor, esperando que suas perguntas revelassem novas informações.
Que sorte ela teve por poder falar com Alex ao telefone no dia anterior!
Se ele não a tivesse informado sobre a teoria do inspetor, eles não teriam vindo tão
bem preparados. Mas agora Ramsés podia lidar com o homem como se ele fosse um
instrumento. Aceitar sem reservas que algum tipo de truque sofisticado realmente
aconteceu, um alucinógeno combinado com uma prestidigitação, tudo com a intenção de
desviar a atenção de um crime ainda a ser determinado. De que outra forma explicar o
estranho túnel sob o templo?
—E a senhora africana mencionada por vários convidados?— perguntou o detetive.
Edith franziu a testa. Julie ficou surpresa ao ver que Alex não teve uma reação
semelhante. Ele estava sentado em uma cadeira do outro lado do quarto, as mãos cruzadas
no colo e os olhos fixos em algum ponto acima do ombro de Julie. Resolutamente sereno,
ao que parecia.
—Ah, sim—, disse Ramsés, — ela é minha amiga, Abeba Bektul. Etíope de origem
nobre. Receio que ela tenha viajado até aqui com o propósito de comparecer à nossa festa.
—Como você se relaciona com a Srta. Bektul?
—Ela forneceu fundos e apoio geral para várias de minhas escavações na Etiópia.
—Etiópia? Nunca ouvi muito sobre múmias descobertas na Etiópia.
—A África é um lugar grande e misterioso, meu bom senhor. Um lugar cuja história,
em grande parte, ainda está por ser descoberta.
—Entendi. —A rejeição brusca do detetive implicava que ele não desejava conhecer a
África em absoluto. Talvez ele se lembrasse da grande derrota que a Etiópia infligira à
Itália anos antes e a considerasse uma ameaça iminente ao Império Britânico. —E onde
ela está agora?
—Ela alugou um quarto no Claridge's. Veja, tínhamos planejado que ela ficasse conosco
em nossa casa em Mayfair. Mas depois de todo esse estresse, ela queria privacidade. Ela
ficará feliz em responder às suas perguntas lá, se você tiver alguma a fazer.
A verdade era outra, é claro.
Bektaten reservou o quarto pouco antes de Ramsés e Julie deixarem a Cornualha, e
apenas para fornecer uma base para este álibi. E seu pseudônimo, Abeba Bektul, era um
de muitos, e diferente do que ela usara para alugar o castelo. Ela não queria ficar
completamente invisível se sua participação fosse necessária, mas não nutria o desejo de
entreter estranhos perto de seu jardim. Felizmente, tendo vivido muitas vidas em
continentes diferentes, ela tinha pseudônimos de sobra que poderia usar no caso de a
investigação se voltar para ela.
—Ainda não sei se será necessário—, respondeu o detetive, —contanto que você possa
atestar o bom caráter dela.
—Claro que sim—, Julie interveio.
—Bem, se decidirmos interrogá-la, entraremos em contato com você. Ela retornará
para a Etiópia em breve?
—Não—, disse Ramsés, —para começar, ela havia planejado uma longa estadia.
Depois de passar pelo que passou, pelo que todos nós passamos, ela não tem vontade de
fazer uma viagem oceânica tão cedo.
—Muito bem, então. —O detetive pigarreou. —Então agora parece que, como antes,
estamos em busca de um roubo. Nos dois dias desde que começamos a investigação,
nenhum outro detalhe apareceu sobre os convidados desaparecidos, infelizmente.
Investigar um assassinato sem cadáver quando nenhum ente querido, nenhum amigo ou
mesmo nenhum conhecido da pessoa desaparecida resolve reportar o desaparecimento,
enfim... é praticamente impossível. Portanto, se a polícia vai investigar este assunto, terá
que fazê-lo como se fosse um roubo.
—Ou envenenamento—, disse Edith, — mas nosso. É claro que eles nos deram algo
que nos fez alucinar. Tinha que estar misturado ao champanhe!
—Talvez, senhora—, disse o detetive, — mas receio que no pânico o champanhe
derramou e as taças foram quebradas, pisoteadas pelos convidados. Não conseguimos
recuperar um único copo intacto na propriedade e todas as garrafas abertas estavam
vazias.
—Bem, então é o enredo mais perfeito e ofuscante que já existiu. —Edith ergueu as
mãos e deu um tapa no cobertor de ambos os lados. Julie não conseguiu reprimir um
sorriso. Havia energia e vitalidade naquele gesto simples, um sinal de que Edith em breve
deixaria a clínica e voltaria a ser o que era de costume. —O que não entendo é por que não
conseguimos ver borboletas e arco-íris. Por que tivemos que ver algo tão nojento? Não
sou uma envenenadora profissional nem uma ladra, portanto, entender isso pode estar
além do meu alcance.
Houve algumas risadas no quarto.
Alex não se juntou a eles.
—É muito curioso, não é? — A atenção de Alex parecia se concentrar em Julie, embora
estivesse se dirigindo a todos os presentes. —Que todos nós alucinamos quase
exatamente da mesma forma.
—Estranho nem mesmo começa a descrever, eu temo, — disse o detetive. —Mas, para
sua informação, continuamos levando o assunto muito a sério. A polícia consultará vários
ilusionistas nos próximos dias. Talvez nos expliquem como se pode realizar uma manobra
como essa, misturando prestidigitação e uma droga, como sugere a condessa. Peço,
porém, que não repasse essas informações à imprensa. Para o bem de todos. É um tanto
incomum que a polícia peça ajuda a alguns... mágicos.
Seguiu-se uma educada troca de despedidas. Mas Julie se viu incapaz de tirar os olhos
de Alex. Ele estava em algum tipo de choque? Seu estado não fora diagnosticado porque
os médicos presentes se apressaram em dar toda a atenção à sua mãe, a condessa?
—Vocês foram muito gentis em dirigir até aqui—, disse Edith.
Julie apertou sua mão.
—Depois do que você teve que suportar por nossa causa, Edith, eu não posso...
Ela não sabia como continuar e sentiu Ramsés tocar seu ombro com a mão. Ele temia
que ela falasse demais?
—Voltaremos a Londres assim que pudermos—, disse Edith. —No momento não
tenho vontade de visitar a fazenda. Quanto a Elliott, bem, ele enviou outra grande soma
de dinheiro de algum lugar. Perdi completamente a noção do paradeiro dele.
— Certamente ele vai voltar para casa quando descobrir tudo isso—, disse Alex com
raiva. —Assim que eu enviar meu novo endereço.
—Não fique bravo com seu pai, Alex—, disse Edith. —Ele precisa de um tempo
sozinho. E a cada dois o três dias, o banco me liga para nos informar que outro depósito
chegou. Não há dúvida de que a fortuna sorriu para ele, onde quer que esteja, e ele a
compartilha com sua família, talvez mais do que ele mesmo desfrute dela.
—Sinto muito, mãe. —Agora era como uma imagem refletida de Julie, de pé ao lado da
cama, segurando a outra mão de Edith. —Tem sido dias exaustivos.
Mas ele não parecia estar exausto, pensou Julie. Em vez disso, ele parecia atordoado,
talvez um pouco bêbado. Estranhamente relaxado. E quando ele surpreendeu Julie
examinando-o, ele deu a ela um sorriso conhecedor.
—Sim, foram — sussurrou Edith, apertando a mão de Alex e depois a de Julie. —Claro
que sim. E você sempre foi um filho maravilhoso.
Alex olhou para ela como se essas palavras o entristecessem. Então, em um sussurro,
ele disse:
—Você e eu sempre fomos uma família, mãe. E o pai. E sempre seremos, independente
de onde quer que cada um de nós esteja. Independente de onde qualquer um de nós
espera estar.
—Sim, suponho que sim—, disse Edith calmamente. —Fique tranquilo, pois de vez em
quando sinto falta do seu pai. Até a melancolia tem seu encanto de vez em quando.
—Alex—, disse Julie, — você gostaria de se juntar a mim para um passeio?
Alex assentiu, mas continuou a olhar para a mãe.
A mente de Edith parecia estar em outro lugar. Talvez seja por isso que ela não
percebeu o brilho das lágrimas nos olhos do filho. Quando ele se inclinou rapidamente,
quase furtivamente, para beijar sua testa, Edith deu um tapinha gentil em sua bochecha.
Mas sua expressão indicava que ela havia retomado uma deliberação silenciosa sobre os
estranhos acontecimentos dos últimos dias.
JUNTOS, ELES CRUZARAM A PRAÇA arborizada em frente à clínica. Eles estavam cercados por
uma mistura de paredes de pedra e vitrines de lojas, e nenhum deles parecia capaz de
falar. Julie esperava que Alex explodisse com uma grande descarga de emoções. É o que
Alex de vários dias antes teria feito. Mas agora ele havia mudado mais uma vez, parecia. E
então Julie teve dificuldade em determinar seu estado de espírito sem revelar detalhes
que ela não queria que ele soubesse.
—O que você acredita, Alex? —ela finalmente perguntou a ele.
—O que você quer que eu acredite, Julie?
—Não entendo.
Mas sabia. Ela entendia. Alex nutria suspeitas, suspeitava dela.
—A maioria das pessoas não muda, não é? — Ele parou de repente, com as mãos nos
bolsos, e estava olhando para um carro que avançava lentamente. —Não importa o que
aconteça com elas. Não importa o que tenham que passar. Elas fazem tudo o que podem
para preservar seus preconceitos. Ou suas ambições, mesmo que essas ambições tenham
sido forjadas quando elas eram muito jovens e tolas. É assim que é a vida cotidiana, como
já descrevi, não é? Uma explicação convincente de novas experiências é buscada por meio
de velhas crenças.
—A vida cotidiana — disse Julie —, como você a descreveu, como eu entendi que você
a descreveu, consistia em ignorar a dor do seu coração e tentar distraí-lo com a rotina.
—Sim. Em efeito.
—O que você testemunhou mudou você, Alex?
—Talvez. Mas não é exatamente isso que quero dizer.
—Que é o que você quer dizer?
—Quero dizer, é uma expectativa razoável para a maioria das pessoas. Isso não vai
mudar. Que rejeitarão as consequências de novas experiências. —Ele a olhou nos olhos.
—A nova informação...
—Alex...
—É por isso que é compreensível, eu acho. E talvez seja a base do perdão quando você
aprende sobre coisas que foram ocultadas de você, mesmo por aqueles a quem você abriu
seu coração.
Quando Julie quis pegar sua mão, ele a retirou. Quando ela quis tocar seu rosto, ele deu
um passo para trás.
—Mas isso é novo, Julie. Este perdão. Por isso peço que ainda não o coloque à prova.
—O que mais você quer me perguntar?
—Peço que seja minha vez. Por enquanto, pelo menos.
—A sua vez? Não entendo.
—Meu pai nunca vai voltar para casa. Agora eu sei. Eu sei disso porque ele não faz
nenhuma promessa, não importa o quanto minha mãe e eu o pressionemos. E também sei
disso porque minha mãe sente um grande alívio. Ela tem o prazer de retomar seus deveres
como Condessa de Rutherford, agora que tem a nova riqueza que meu pai oferece, e por
assumir as propriedades que ela lutou tão miseravelmente para manter por tanto tempo.
Em confidência me diz que agora é sua vez de governar o pequeno reino de Rutherford, e
ela não se importa se nunca mais ver meu pai.
—Entendo—, disse Julie.
—E está tudo bem—, continuou Alex. —Mas também gostaria que fosse minha vez em
um sentido diferente.
—Ainda não entendo o que você quer dizer, Alex.
—Meu pai está gostando de suas intermináveis viagens. Você e Ramsés gostaram das
suas. E vocês farão mais. E agora eu gostaria de aproveitar as minhas.
Ramsés, ele tinha dito. Não Sr. Ramsey.
—Alex, você não deve...
—Eu não devo o quê? Por favor, Julie. Eu entendo. De verdade. Você pensava que me
pouparia da dor se eu achasse que ela era uma louca. Talvez você tenha pensado que era
um privilégio ser o único membro de nossa expedição que não estava ciente da verdadeira
natureza de nossa viagem. Que eu não sabia o quão importante era. Meu pai certamente
sabe, e isso explica em parte sua longa ausência.
—Alex, você tem que entender que eu...
—Eu entendo, Julie. Não há sarcasmo no que falo. Mas essas coisas não são fáceis de
dizer, por isso peço um pouco de respeito.
—Alex, você não entende o que essa mulher é.
—Você também não!
Julie recuou diante de sua raiva; nunca tinha ouvido nada parecido em sua voz.
—E nem Ramsés—, continuou Alex, — e esse é precisamente o ponto, estou certo?
Vocês dois queriam me proteger de um ser que vocês mesmo não entendiam de verdade.
Vocês ainda não entendem. Ela mesma não entende. Só uma coisa está clara: agora ela só
quer retornar às sombras nas quais vocês gostariam que ela permanecesse. E com isso
ambos ficariam satisfeitos, não é? Mesmo se eu for com ela. Por enquanto ela partiu. É por
isso que lhe pergunto... Não, eu não pergunto; eu exijo, Julie. Exijo que você não nos
persiga.
Nos.
—Onde ela está agora? —perguntou Julie. —Em uma das fazendas de inquilinos? Alex,
você tem que me dizer.
—Adeus, Julie — disse Alex em tom mais suave, e deu um passo em sua direção,
encurtando a distância que ele havia aberto ao recuar quando Julie quis tocá-lo. —Adeus.
Está claro para mim que você e Ramsés estão à beira de um novo mundo magnífico e
assustador, do qual ainda há muito a descobrir. Sem dúvida, essa nova amiga etíope que
você tem vem dele. Espero que este mundo lhe traga muita alegria e magia. Mas não desejo
fazer parte disso. E ela também não.
COMO ESSAS PALAVRAS PODERIAM dominá-la mais do que qualquer coisa que ela havia
testemunhado nos últimos dias? Qual foi a verdadeira causa das lágrimas que a
dominavam? A culpa? O remorso? Não parecia.
Alex agarrou seus ombros, inclinou-se e beijou-a na testa. Esse gesto foi uma bênção
depois da maneira que ele havia se afastado dela minutos antes. Então ele se afastou
trotando pela praça em direção ao carro. Por enquanto ele estava com medo. Medo de que
ela o perseguisse. Medo de que Julie alertasse Ramsés e os dois começassem a procurar
onde ele a estava escondendo, o ser que era —mas não inteiramente— Cleópatra.
Julie queria ir atrás dele. Mas estava paralisada. Paralisada pelas revelações de Alex e
sua franqueza, sua seriedade e suas demonstrações de raiva que, como a vulnerabilidade
que ele havia mostrado durante as semanas anteriores, eram absolutamente novas para
ele.
Ele podia mudar. Ele podia aceitar verdades impossíveis. Foi isso que ele acabara de
lhe dizer, não foi?
Ela observou o carro dele passar lentamente pela praça e sumir de vista ao dobrar uma
esquina.
Momentos depois, ela ouviu passos atrás dela.
Ramsés a abraçou.
Ela se virou para ele, entregou-se a seus braços e enterrou o rosto em seu peito. Ela
percebeu que não fazia sentido tentar esconder as lágrimas. Ela ouviu como eles afetavam
sua própria respiração. Sem dúvida ele as notaria através de sua camisa.
Cabia a ela agora esconder esse segredo de Ramsés? Essa era a única maneira possível
de honrar o pedido de Alex? A sua exigência, como ele havia dito.
—Ela está com ele, Ramsés. Ela está com Alex. Agora ele sabe tudo que ela sabe. Ele
pretende ir com ela e exige que não os persigamos.
—Ele está bravo com você?— perguntou Ramsés.
Julie levantou o olhar para ele.
—Não muito—, sussurrou ela, — não o bastante para explicar essas lágrimas infelizes.
E não é que eu apenas me sinta culpada ou tenha arrependimentos. Portanto, não posso
explicar esse sentimento avassalador de tristeza.
—Eu posso, minha querida.
—Bem, certamente você pode.
—Os segredos que escondemos dele. Sua preocupação por ele. A festa. Tudo isso
prolongou a questão do seu noivado arranjado. Era a única coisa que a conectava à sua
vida mortal. E agora, ao pedir para ser libertado, Alex também libertou você.
—De fato. Ele disse que você e eu estamos à beira de um novo mundo magnífico e
assustador, do qual ainda há muito a descobrir. Mas que ele não quer fazer parte disso. E
nem ela.
—Eles já fazem—, disse Ramsés calmamente.
—Podemos honrar o pedido dele?
—Podemos, é claro. Mas agora temos uma rainha a quem também devemos responder.
E há Sibyl, cujo desejo de encontrar Cleópatra é maior do que o nosso.
—Nós temos que contar a elas?
—Temos que contar a Bektaten. Ela será a única a decidir se contará a Sibyl. Mas
independentemente do que revelarmos, mencionaremos o desejo de Alex de ser deixado
em paz. Os dois. Juntos. Se for seu desejo honrar este pedido dele, é claro.
—Se eu quiser ser libertada, você quer dizer. Se eu quiser me libertar de meu último
vínculo com minha vida mortal para que eu possa me render ao seu mundo magnífico e
assustador.
—Nosso mundo, querida Julie. —Quando ela olhou para ele, ele retribuiu o seu leve
sorriso com um beijo. —Nosso mundo.
45
Cornualha
ASSIM QUE PUSERAM OS PÉS dentro do arsenal, Julie sufocou um grito de pavor.
Deitado na mesa onde Bektaten havia mostrado suas armas três noites antes estava
Saqnos. Sem vida, nu, com um leve inchaço nas feições que indicava que ele havia passado
algum tempo no mar, mas não muito. Ramsés tinha visto o que acontecia com corpos
retirados do Nilo ou do Mediterrâneo depois de vários dias. O cadáver diante deles agora
estava em melhores condições.
Haviam tirado um molde de gesso de seu rosto, uma máscara mortuária perfeita, que
agora estava pendurada na parede para que pudesse secar. Espalhados na mesa atrás de
Bektaten havia esboços detalhados de sua cabeça e torso, cada um de uma perspectiva
diferente de seu cadáver. Sem dúvida, eles seriam guardados com as páginas dos
Shaktanis, ou em alguma outra grande biblioteca que ela ainda não tinha revelado; os
únicos registros da existência de um homem chamado Saqnos.
— Esses esboços—, disse Ramsés, — são frutos de sua mão?
— Este é o dom de Aktamu—, disse ela.
— Diga-me que há esboços de seu reino em alguma parte de seus diários—, sussurrou
Julie. — Por favor. Deve haver.
— Claro. Mas existem vislumbres de Shaktanu em toda a África de hoje. Palavras da
língua antiga sobrevivem na língua dos ashanti. Os penteados e as marcas faciais dos
jovens guerreiros massais refletem os dos soldados que defendiam meu palácio. E as
pirâmides estreitas e pontiagudas de Kush e Meroé são muito parecidas com as que
cobriam nossas terras. Terras que se tornaram o deserto do Saara. A queda de Shaktanu
fez com que grandes rios fluíssem para o sul, para a África, carregando pedaços de nossa
história e cultura. Me fascina ver quais se estabeleceram e criaram raízes em outros
lugares, em outros reinos, entre diversas tribos.
— E só você sabe qual é sua verdadeira origem—, disse Ramsés.
—E Enamon sabe. E Aktamu sabe. —Bektaten olhou para Saqnos, entrelaçando os
dedos afetuosamente por uma longa mecha de seus cachos negros. — E Saqnos sabia.
Essas últimas palavras foram ditas em um sussurro.
Como definir a maneira como ela tocou aquele homem caído? Foi o gesto de uma mãe
ou de uma amante? Ou a carícia e a atenção de uma rainha imortal combinavam as duas
coisas, criando algo muito mais poderoso?
O que ela tinha visto, perguntava-se agora Ramsés, enquanto observava a queda final
daquele homem? Tinha sido tomada por memórias dele? Será que sua percepção dele
tinha ficado repentinamente afetuosa quando ele saltou para a morte? Ou ela lamentou o
reino que uma vez compartilharam? Teria ela visto seu palácio, seus aposentos, as
pirâmides altas e estreitas de seu reino cobrindo terras destinadas a se tornarem
desoladas e secas? Teria ela visto o grande bando de pássaros que circulou o palácio
repetidas vezes sem nunca se cansar, os mesmos pássaros que revelaram seu segredo ao
homem que iria traí-la?
Era possível. Era mais do que possível.
A própria imortalidade de Ramsés havia aprofundado sua capacidade de memória,
ampliado os corredores em sua mente por meio dos quais as memórias agora podiam
emergir e ser recebidas. Ele percebeu que era por isso que não podia deixar de ver
Cleópatra como uma criatura condenada; pois suas próprias memórias pareciam ter se
expandido e adquirido mais riqueza, enquanto ela afirmava ter perdido muitas das suas.
Bektaten voltou-se para o armário.
Ela tirou um frasco. A cor do fluido dentro era diferente das demais substâncias que
ela havia mostrado até agora. Mas sem dúvida Julie acreditou se tratar do elixir, porque
quando Bektaten o destampou, Julie gritou:
— Não. Não, você não deve...
Bektaten fez um gesto amigável de desprezo. Em seguida, ela derramou o fluido
tingido de azul em uma linha fina ao longo do torso de Saqnos. Em minutos, a carne — a
carne mortal, Ramsés lembrou a si mesmo — começou a se dissolver. Ela repetiu esse
processo desenhando linhas finas que iam do nariz ao centro da testa, ao longo do pescoço
e também em ambas as pernas.
Demorou apenas alguns minutos para seu corpo se desintegrasse, transformando-se
em um pó fino. E até mesmo esse pó pareceu se dissolver. Quando o processo foi
concluído, havia apenas leves traços de pó ao longo da mesa; nada que sugerisse a silhueta
ou o contorno do corpo que ali estivera momentos antes.
E então foi para um funeral que ela os havia convidado. Seus últimos ritos.
A máscara mortuária pendurada na parede atrás deles, os esboços do cadáver que
acabara de desaparecer diante de seus olhos. Junto com todas as referências a ele nos
Shaktanis, esses itens seriam a única evidência de que um homem chamado Saqnos um
dia existiu, um homem que havia servido como primeiro-ministro de um reino perdido.
—É preciso ter testemunhas. — Os olhos de Bektaten estavam marejados de lágrimas.
Ela levou os dedos ao nariz, os mesmos dedos que entrelaçaram os grandes cachos de
Saqnos, e inalou suavemente. Seu último momento de contato com o homem que ela
acabara de transformar em pó. Um beijo de despedida tolerável, talvez. O que quer que o
gesto significasse para ela, permitiu-lhe manter as lágrimas sob controle, colocando-as
atrás de alguma grande reserva de força. — A própria mão, a própria caneta, a própria
mente; essas coisas não são suficientes para que possamos viver para sempre. E assim,
neste dia do ano de 1914, no século XX, eu me despeço de uma testemunha. E eu dou boas-
vindas a outras duas.
Quanto carinho no sorriso que ela lhes dedicou.
— Tenho esperança—, disse Ramsés, — que sejamos para você muito mais do que
isso, minha rainha.
— É minha esperança também—, sussurrou Julie, — minha rainha.
— A minha também—, respondeu ela com um aceno de cabeça.
Ouviu-se um tumulto repentino no grande salão do castelo. Mas quando Julie saltou e
se agarrou ao braço de Ramsés, Bektaten apenas sorriu.
— Parece que Aktamu voltou—, disse ela.
Eles ouviram latidos antes de chegarem ao grande salão.
Julie hesitou até sentir o braço de Ramsés envolver sua cintura, incitando-a a seguir
em frente.
Bektaten passou por eles, destemida. A visão que os saudou assim que dobraram no
corredor parecia ameaçadora, a princípio. Mas depois de um ou dois minutos, Ramsés
percebeu que os grandes cães que circulavam pelo salão não estavam perseguindo
Aktamu. Eles o orbitavam como se ele fosse o sol de seu universo. E quando, vez ou outra,
ele ocasionalmente se agachava para mostrar afeto a um dos cães, os outros se
aproximavam, esperando que ele os coçasse atrás das orelhas ou também sob suas
grandes mandíbulas.
Uma visão incrível! Tantos cães grandes e poderosos sob a aparente servidão a um
único homem. Mas esses animais não estavam sob o feitiço da flor de anjo; não naquele
momento. Era como Julie havia suspeitado. Assim como Bastet, a gata atenciosa que se
sentou de guarda junto a Sibyl durante toda a sua estadia, esses cães grandes e poderosos
foram mudados para sempre depois de estarem sob o feitiço da flor de anjo. Por terem
dançado brevemente com uma mente humana.
E agora Bektaten movia-se entre eles, as palmas das mãos abertas ao lado do corpo.
Como súditos leais, vários dos cães se aproximaram dela e lhe ofereceram suas grandes
cabeças para coçar, e ela atendeu seus pedidos. Ramsés não tinha certeza se era a primeira
vez que a via rir. Talvez fosse apenas a primeira vez que ela soltava uma risada que soasse
tão satisfeita e divertida.
— São bons animais—, disse a rainha. — Eu gosto deles.
Ocorreu-lhe então, enquanto a observava movendo-se entre aquelas criaturas agora
dóceis, tão radicalmente mudadas pelos segredos de seu jardim; o que ela realmente
fizera por ele ao se dar a conhecer, ao compartilhar sua história. Ao conectá-lo a uma
história intrincada e desconhecida, ela encerrou seus anos de peregrinação. Pois mesmo
em suas viagens alegres com Julie, havia um elemento de inquietação e busca, uma
sensação de que se ele não procurasse logo se conectar a alguma instituição moderna ou
a alguma aparência de uma vida moderna comum, sua existência seria mais uma vez
definida pela solidão imortal. Não demoraria muito para que tal solidão se apoderasse de
Julie também, por mais que viajassem juntos e participassem dos grandes prazeres
sensuais da vida. Mas ela era muito nova na imortalidade para saber o quão devastador o
peso daquela solidão poderia se tornar com o tempo. Ele sabia. Sabia muito bem.
Ele sabia disso há séculos.
Por isso ele sabia também o que realmente significava a chegada de Bektaten.
A história dela, a história do elixir, agora também era dele. E em seu jardim e nas
poções, tônicos e curas que ela extraiu dele havia uma magia infinita a ser descoberta.
Ramsés estava confiante de que essa seria sua salvação para a grande falta de imaginação
sobre a qual Bektaten lhe advertira.
Ela o salvaria de tantas coisas.
Ela havia ganhado testemunhas e eles haviam ganhado uma verdadeira rainha.
O INÍCIO DA NOITE TROUXE consigo uma certa tranquilidade e um pretexto para acender as
tochas nas áreas do castelo onde os fios elétricos não alcançavam.
O canto do vento e do mar interrompiam de vez em quando os debates entre Bektaten
e Aktamu sobre como seus quinze novos residentes deveriam ser cuidados e abrigados.
Ficariam dispersos pelas várias propriedades e castelos de Bektaten?
Concordou-se que ainda se sabia muito pouco sobre a mudança pela qual eles haviam
passado para começar a planejar viagens ao redor do mundo para aqueles cães. Portanto,
por enquanto, eles permaneceriam ali, na Cornualha, assim como Bektaten e seus homens.
Ou pelo menos foi assim que o assunto foi resolvido brevemente, até que algum objeto
de valor inestimável foi derrubado por um dos cães e Bektaten novamente expressou sua
preocupação.
Pela manhã, Julie voltaria a Londres para acalmar os nervos em frangalhos dos
funcionários de sua casa em Mayfair. Garantir a eles que Julie e o Sr. Ramsey estavam, de
fato, muito bem, e que não, eles não haviam decidido deixar Mayfair por completo. Mas,
por enquanto, havia paz e sossego e uma trégua aos envenenamentos, suicídios e funerais
para aqueles que um dia foram imortais; então Ramsés aproveitou a oportunidade para
retirar-se silenciosamente do grande salão e dirigir-se à biblioteca de Bektaten na torre.
Lá, esperando por ele onde ele a havia deixado, estava a chave para a antiga língua de
Bektaten que ela havia desenhado para ele em um pedaço de papel, um papel que Ramsés
deveria queimar assim que a dominasse. Pois ela manteve o segredo da língua em que
havia escrito seus diários tão bem guardado quanto o segredo do próprio elixir.
Bektaten já o havia lhe dado algumas aulas particulares. E a mente imortal de Ramsés
absorveu partes de sua língua rapidamente, tão rápido quanto memorizou passagens dos
livros de história que ele havia devorado ao despertar naquele século. Mas antes de
embarcar na jornada que o aguardava, ele precisava estar confiante. Então ele sentou-se
mais uma vez com a chave e estudou a relação dos símbolos da antiga língua de Bektaten
com os sons da língua inglesa que ele dominava há tão pouco tempo.
Mais cedo naquele dia, ele havia traduzido uma página de frases triviais em inglês para
a língua antiga e seu trabalho foi aprovado por Bektaten. Que outro sinal poderia haver
de que ele estava pronto para começar?
E assim Ramsés, o Grande, antes Ramsés, o Maldito, levantou-se, caminhou até as
estantes e retirou o primeiro volume dos Shaktanis.
Depois de acender todas as velas da sala e se acomodar na cadeira mais confortável,
ele abriu a capa de couro do volume e embarcou no que com certeza seria uma das
maiores aventuras que já conhecera.
46
Ilha de Skye
Há dias, Sibyl tinha vislumbres deste lugar, embora ela só tivesse deixado a balsa
alguns momentos antes. Durante dias, sua conexão com Cleópatra lhe havia mostrado os
picos rochosos das montanhas Cuillin; as enseadas do mar que dividiam aquela paisagem
eram como dedos de tinta. O pequeno porto de Portree com suas casas de pedra. Mas
agora ele contemplava essas coisas com seus próprios olhos.
Ela tinha que agradecer a um livreiro em Londres por tê-la guiado até lá. Seu plano
exigia várias cópias de seus próprios livros e, assim que localizou uma loja em Londres
onde a maioria de seus títulos era vendida, ela descreveu ao livreiro os lugares que vira
em sua mente por vários dias. Os espetaculares penhascos mergulhando no mar, o farol
solitário na ponta de uma extensa faixa verde de terra que se projetava para o mar como
o dedo grande de um gigante em decomposição. Disse-lhe ela que eram imagens que vira
em um livro, desenhos que não estavam devidamente catalogados, e que queria visitar
esses lugares antes de voltar para a América.
Ah, o que você está procurando é a Ilha de Skye, senhorita.
Ela procurava muito mais do que isso, mas não fazia sentido explicar ao livreiro. Ele
estava tão satisfeito quanto surpreso por ela ter visitado sua livraria com o único
propósito de encomendar cópias de seus próprios livros. Ele os ofereceu gratuitamente,
com a condição de que ela assinasse todos os que tinha em seu estoque, e ela concordou
alegremente. Enquanto assinava cuidadosamente cada livro, o livreiro tentou puxar
conversa sobre a guerra no continente, e Sibyl não teve escolha senão alegar ignorância.
A última vez que olhou um jornal foi quando folheou os recortes de jornal sobre a festa de
noivado de Ramsey-Stratford.
Guerra? Seus estúpidos irmãos estavam certos?
O que a perspectiva de guerra significava para alguém que havia experimentado por
coisas como ela nas últimas semanas? O que significava a perspectiva da morte em si?
Embora confiasse totalmente em Ramsés e Julie, e naquela misteriosa rainha que
agora parecia controlá-los um pouco menos, ainda considerava possível que eles
mudassem de ideia sobre permitir que ela completasse a última etapa de sua jornada
sozinha, de modo que permaneceu Londres por alguns dias para ter certeza de que não
estava sendo seguida. Então, com uma mala cheio de edições de capa dura de seus
próprios livros, ela seguiu para o norte.
Para o extremo norte da Escócia, para o lugar onde Cleópatra agora vagava por
paisagens varridas por ventos de tirar o fôlego com tanta frequência que alguns pontos
de referências, as mesmas encostas, as mesmas costas tempestuosas eram transmitidas
para Sibyl repetidas vezes.
A natureza da conexão entre elas certamente mudou depois da festa, uma vez que elas
estavam tão próximos uma do outra sem perceber. As visões eram mais estáveis, mais
arraigadas quando ocorriam em momentos corriqueiros. E as grandes ondas de emoções
e sensações físicas que agora compartilhavam eram totalmente novas. E é claro que elas
poderiam, se quisessem, falar uma com o outra como se estivessem em uma linha
telefônica aberta por apenas alguns minutos de cada vez. Mas essas visões traziam consigo
uma tremenda sensação de desespero, de impotência que irradiava de Cleópatra com
tanta força que Sibyl sentiu-se tentada a falar com ela, para confortá-la com suas palavras.
Mas ela sabia que não era sensato fazer isso. Talvez ela mostrasse suas intenções,
dissesse algo que alertasse Cleópatra de sua proximidade.
Agora, se Cleópatra também pudesse ver o mundo pelos olhos de Sibyl, não havia como
manter sua jornada em segredo.
Durante a viagem de trem para o norte, ela releu suas histórias do Egito e usou uma
caneta para sublinhar as passagens que achava que poderiam ser relevantes para sua
nova missão.
Durante a travessia de balsa que encerrou sua viagem, ela sentiu um formigamento
estranho no pescoço. Era como se um acesso de energia percorresse todo o seu corpo. A
única maneira de aliviar era cerrar e abrir os punhos. Essas sensações eram totalmente
novas. E ela as interpretou como um sinal de que estava perto. Que Cleópatra estava perto.
Talvez ela tivesse sentido o mesmo na festa se não tivesse entrevisto Ramsés
imediatamente e tivesse ficado impressionada com a lembrança dele; se ela não tivesse
sido atacada por Theodore Dreycliff tão cedo, deixando-a inconsciente logo depois. Ao
pisar no cais, ela ainda tinha esses sentimentos.
"Então você está aqui", disse Cleópatra. “Venha para o pub sobre o porto, Sibyl Parker.
Venha me ver para que possamos acabar com tudo isso.”
Talvez tenha sido a decisão mais imprudente e estúpida que já havia tomado, ir para
lá sozinha. Mentir para Lucy mais uma vez sobre seu destino e suas intenções e a duração
de sua permanência longe. Talvez ela acabasse com o pescoço quebrado e o corpo jogado
ao mar.
Ela não acreditava.
Não podia acreditar.
Portanto, aquela conexão entre elas permaneceu tão semelhante àquela que os
gêmeos tinham, mas muito mais poderosa. Sem dúvida, suas emoções fluíam através da
conexão com Cleópatra tanto quanto as de Cleópatra fluíam para ela.
O pub não estava muito lotado, embora houvesse alguns clientes. As paredes e o chão
eram de madeira tão escura que a luz cinza que entrava pelas janelas parecia ofuscante
no início. Então seus olhos se ajustaram e ela a viu sentada no canto, envolta em sombras
que complementavam o vestido escuro que usava e o pesado xale preto que parecia
destinado tanto para esconder-se quanto para se aquecer. Talvez fosse por causa do
cansaço em sua expressão, o medo que parecia existir por trás de um verniz de raiva
desafiadora, ou talvez fosse por causa das cores escuras com as quais se envolvia. Ou por
estar tão perto dela. Mas foi naquele momento que Sibyl percebeu que Cleópatra havia
viajado para o norte por puro desespero, um desespero que levou à rendição total.
Pela primeira vez desde sua partida de Londres, Sibyl não temia mais por sua própria
vida.
Parecia a caminhada mais longa que ela já havia feito, aquela caminhada curta da
entrada do pub até a mesa no canto mais distante, e quando sentou-se em frente a
Cleópatra, suas mãos estavam tremendo e úmidas de suor.
—Como isso vai se desenrolar? —perguntou Cleópatra. —Como você vai exercer seu
domínio final sobre mim? Você espera que os últimos vestígios de minha alma deixem
meu corpo? Você esperava me matar assim que me visse? Talvez aconteça agora, de uma
forma tão invisível quanto à conexão entre nós. O que esses homens pensariam se
soubessem?
—Se soubessem o quê?
—Se eles soubessem que você veio me matar.
—Eu não vim para matá-la. Eu vim para restaurá-la.
—Restaurar-me? Você é o receptáculo do meu espírito renascido, não é?
—Eu não acredito em nada disso.
—Porque não? Isso foi o que disse um imortal de milhares de anos.
—Um imortal que dedicou toda a sua existência a recriar o elixir. E quando ele
descobriu que aqueles que ele havia trazido de volta dos mortos não poderiam ajudá-lo
em seu esforço, ele os isolou na escuridão total. Nem por um instante acreditei que Saqnos
estudou a complexidade de quem você é. Ou o que somos. Você e eu juntas.
—Pergunte a ele.
—Não posso. Ele já não existe.
Ela se iluminou ao ouvir isso. Resumidamente, ela tinha a promessa de um sorriso que
imediatamente desapareceu. Havia uma taça de vinho na mesa; ela a levou aos lábios.
—Isso me agrada—, ela finalmente sussurrou.
—Ele machucou você—, disse Sybil, — ele torturou você. Eu senti.
—O que mais você sentiu? O que mais você está roubando de mim?
—Eu não estou lhe roubando nada. Eu vejo vislumbres de sua vida conforme você a
vive. Eu sinto momentos do que você sente. Há um homem com você. Um jovem bonito
que te ama de todo o coração, que se recusa a acreditar que você está condenada como
você mesma acredita que está. E eu concordo com ele.
—Concorda?
—O que você sente por mim, Cleópatra? O que você vê através dos meus olhos?
—É a mesma coisa—, respondeu ela baixinho. —É exatamente como você descreveu,
só que ao contrário.
—Entende? Essa conexão que temos é muito equilibrada. E tornou-se mais estável à
medida que nos aproximamos.
—Como você pode dizer uma coisa dessas? —Cleópatra perguntou entre dentes. —
Como você pode saber se está estável? Essa palavra significa paz, não é? Regular?
Monótona? Como você pode usar palavras como essas para descrever o que está
acontecendo comigo? Perdi minhas memórias, entendeu? Levantaram-me das águas
negras da morte apenas para me despir daquilo que me faz ser quem eu sou. A perda. Você
consegue entender a perda? Não perdi a memória de ser lojista ou costureira. Perdi as
memórias de ser uma rainha.
—Mas eu não vou ganhá-las—, sussurrou Sibyl. —Você não vê? Se eu fosse o
receptáculo de sua verdadeira alma, e você fosse um ser aberrante que nunca deveria ter
sido ressuscitado, todas as suas memórias estariam fluindo através desta conexão entre
nós. Eu ficaria com todas elas. Elas se tornariam minhas. Sua mente pertenceria a mim.
— E não é assim?
—Não. As lembranças que recebi de você vieram até mim durante toda a minha vida
de uma forma agradável e, sim, regular. Em fragmentos, transmitidos ao longo dos
séculos. É à sua vida atual que estou mais conectada agora. E essa conexão me aproximou
de você, e quanto mais nos aproximamos, mais meu medo ficou para trás, e foi substituído
por um amor por você para o qual mal tenho palavras.
"Não consegue vê? Sua alma não é uma coisa minúscula que você pode colocar em uma
garrafa e passá-la para outra pessoa. Nem a minha. Nenhuma alma é assim. Não pode ser.
O que nos conecta é muito mais complexo. Mais complicado.”
Sibyl enfiou a mão na bolsa e sacou uma cópia de A Ira de Anúbis. Ela colocou-o sobre
a mesa para que Cleópatra pudesse ler seu nome na lombada.
—Eles vêm a mim na forma de sonhos—, continuou Sibyl. —Toda a minha vida tive
sonhos muito vívidos, sonhos com o Egito. Às vezes, apenas uma mistura de sensações e
imagens. Às vezes, momentos e episódios. Registrei quase todos eles em meus livros sem
saber que eram seus.
—Meus—, sussurrou Cleópatra.
—Quando cheguei à festa, quando vi Ramsés em carne e osso pela primeira vez,
percebi que ele era o homem que apareceu em um dos meus sonhos. Que um momento
que você compartilhou com ele veio a mim na forma de um sonho e eu, por minha vez, o
escrevi nestas páginas.
—Por que você está me trazendo este livro agora? Para debochar de mim?
Sibyl tirou de sua bolsa uma cópia de O Fogo de Thot, em seguida, uma cópia de A
Tempestade de Amon e depois outra de A Rebelião de Hórus. Ela os alinhou sobre a mesa
para que Cleópatra visse as lombadas novamente e seu nome, Sibyl Parker.
—Trago esses livros para você porque no sonho que compartilhamos quando você
estava presa naquele lugar horrível, você me fez uma pergunta. Você se lembra da
pergunta que me fez?
—Meu filho—, sussurrou Cleópatra, — perguntei a você sobre... meu filho.
—Você me perguntou onde suas memórias dele estavam escondidas.
—Sim—, respondeu Cleópatra.
—E esta é a resposta. Não estou tentando esconder nada de você, e nunca irei. Mas as
lembranças suas que me vieram, ao longo da minha vida, em forma de sonhos, estão todas
aqui transcritas, embora na época eu não soubesse o que estava transcrevendo. E minha
esperança é que, se você virar estas páginas, se as ler, possa restaurar o que perdeu. Minha
esperança é que haja algo em minhas palavras que a afete tanto quanto ver Ramsés na
festa me afetou. Talvez seja nos mínimos detalhes. As cores, os cheiros, as texturas. Talvez
um deles produza um momento de clareza e restauração como o que experimentei na
festa de noivado quando vi Ramsés pela primeira vez em pessoa. Não estou aqui para lhe
consumir. Nem para destruí-la, nem para lançá-la na escuridão ou na loucura. Estou aqui
para restaurá-la.
—Você acha que somos uma rainha dividida? É isso?
—Acho que sou Sibyl Parker. Americana. Romancista. Amaldiçoada com dois irmãos
horríveis que só gastam meu dinheiro em bebida e mulheres. E que sou abençoada de ter
parte do espírito de uma das maiores rainhas da história. O mistério dessa conexão ainda
está sendo desvendado. Mas esta sou eu. E você é Cleópatra Sétima, a última rainha do
Egito.
Cleópatra olhou para os livros à sua frente como se achasse que eles iriam se abrir
sozinhos. Então, hesitante, ela colocou as mãos na capa de A Ira de Anúbis e lentamente
puxou-o para si. Mas não teve coragem de abri-lo, aparentemente. Talvez ela estivesse
relutante em fazer isso.
—Não vou obrigar você a fazer nada—, disse Sibyl, levantando-se. —Mas ficarei nesta
cidade o tempo que for preciso para você colocar minha teoria à prova. Se quiser que eu
vá, não diga nada. Vou tomar isso como um sinal para voltar à América, onde valorizarei
muito os momentos de nossa conexão que você me permitir compartilhar.
Sibyl já estava de pé.
Havia espanto na expressão com que Cleópatra estava olhando para ela agora. Mas não
pediu a Sibyl que ficasse. Sabendo que esta poderia ser a última vez que se viam, Sibyl
pegou sua mala e saiu do pub para a luz da rua.
Foi a esperança que a trouxe tão longe; era a esperança que a manteria ali por um
tempo. Ela alugaria um quarto no Royal Hotel, mas não antes telefonar para Lucy no
Claridge's para garantir a ela que estava bem.
Então teria que esperar. Quanto exatamente, ela não tinha certeza.
No momento, ela iria caminhar.
Sua mala pesava consideravelmente menos agora que seus livros haviam sido
entregues, de modo que cada passo ao longo do porto a lembrava de que ela havia
realizado o que a trouxera até ali. Ela apresentou a Cleópatra sua teoria e seus escritos.
Chegou a uma costa de cascalho, pontilhada de barcos a remo encalhados. Dali ela
tinha uma vista esplêndida das águas até as montanhas ao fundo, suas encostas pintadas
pelas sombras das nuvens negras de tempestade que riscavam o céu. Pareciam grávidas
de chuva, aquelas nuvens, mas o ar ainda estava frio e seco, e o vento as empurrava tão
rápido que parecia que iam passar por ali, e por cima da cidade, sem derramar uma gota.
E então, de repente, ela foi tomada por uma visão diferente de todas que ela tinha
experimentado desde o início daquela aventura.
Cascalho, água e montanhas ao longe foram substituídos por um canal brilhante não
muito diferente daquele que a separou de Cleópatra em seu sonho compartilhado. No
entanto, enquanto a periferia daquele sonho havia sido nebulosa e abstrata, agora os
detalhes eram vistos com absoluta clareza.
Estava nas margens do canal, em um vasto pátio orlado com colunas cujos capitéis
eram folhas de acanto entalhadas. Grandes raios de luz caíam de cima e nuvens brancas
moviam-se vagarosamente no céu. E um menino correu em sua direção pelo escuro canal;
um menino com rosto de querubim e cachos negros. E sua voz agora era clara, quando ele
a chamava repetidamente: Mitera!
A luz do sol refletiu no canal ondulante, enviando reflexos brilhantes de luz em seu
rosto sorridente, e então, sem aviso, ele deu uma pirueta à sua frente, e ela pegou-o nos
braços para impedi-lo de cair na água. E o menino riu. Ele olhava-a e ria enquanto ela o
segurava em seus braços.
Ela tinha visto aquele menino inúmeras vezes em seus sonhos. Mas havia sido um dos
muitos rostos que a visitavam enquanto ela dormia. Rostos sem nome. Havia presumido
que eram todos produtos de sua imaginação fértil e de sua paixão pelo mundo antigo. Ela
estava errada então. Mas agora ela estava certa. Porque aquela criança, aquela criança
cujas feições, porte e risos encantadores ela dera a dezenas de crianças retratadas em seus
romances, tinha um nome.
Era Cesário.
Ele era filho de Cleópatra.
E a visão que Sibyl agora experimentava era uma memória desperta. Despertada pelos
sonhos de Sibyl, despertada pelas palavras de Sibyl, despertada pela disposição de
Cleópatra em abrir um dos romances de Sibyl e ler uma passagem que ela havia
sublinhado durante a viagem de trem que fizera para chegar até ali.
A visão desvaneceu-se, deixando-a sem fôlego. Sibyl se viu ajoelhada na praia de
cascalho, olhando mais uma vez para a água negra do porto e as montanhas à distância,
sombreadas por nuvens de tempestade que avançavam rapidamente. Só que ela não
estava sozinha. Ouviu uma voz, clara e gentil, falar com ela através da conexão que havia
mudado o curso de sua vida.
Volte, chamava Cleópatra. Volte para mim, Sibyl Parker.
Epílogo
ANNE RICE é uma autora best-seller com mais de quarenta livros publicados. Seu primeiro
romance, Entrevista com o vampiro, foi o inicio da bem sucedida saga das Crônicas
Vampirescas. Escreve também com os pseudônimos de A.N. Roquelaure e Anne Rampling.
Vive atualmente no sul da Califórnia. Para mais informações sobre vida e obra da autora
(em inglês) acesse:
annerice.com
CHRISTOPHER RICE, assim como a mãe, também já foi destaque na lista dos mais vendidos.
O autor publicou quatro romances best-sellers do New York Times antes dos trinta anos e
foi indicado duas vezes ao Prêmio Bram Stoker. Ao todo, Christopher já publicou cerca de
quinze romances com temáticas de suspense, thriller e ficção erótica. Acompanhe o
trabalho do autor em:
christopherricebooks.com