RATTS, Alex. Trajetórias Intelectuais Negras - As Rotas de Beatriz Nascimento (2006)
RATTS, Alex. Trajetórias Intelectuais Negras - As Rotas de Beatriz Nascimento (2006)
RATTS, Alex. Trajetórias Intelectuais Negras - As Rotas de Beatriz Nascimento (2006)
Alex Ratts
Revista PUCviva. Ano 7. Nº. 28, out/dez, 2006, p. 76-81.
Mestre em geografia e doutor em Antropologia (USP), e graduação e pós-graduação do Instituto de Estudos
Sócio-Ambientais da Universidade Federal de Goiás, coordenador geral do Núcleo de Estudos Africanos e Afro9-
Descendentes (NEAAD/UFG).
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Este artigo contempla uma parte dos levantamentos contida e abordada num livro recente (RATTS, 2006).
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Percursos do pensamento
1. Racismo
Em 1974, no artigo Por uma história do homem negro, tendo como tema principal
a flagrante despreocupação da academia brasileira com os temas vinculados à história da
população negra, no máximo, reduzidos aos genéricos estudos da escravidão, Beatriz
parte de uma forte motivação que excede preocupações de uma pesquisadora restrita
aos muros universitários. A eleição do tema de estudo vem da vida experimentada em
condições raciais desiguais (NASCIMENTO, 1974a: 42).
Atenta à diferenciação das situações racistas e à dubiedade de suas
interpretações, Beatriz se mostra como pensadora de um fenômeno que se multiplica
como se, aparentemente, não tivesse fim. Um dos dilemas que ela focaliza se situa no
entendimento de que um ato, uma situação, é predominantemente racista. Na sociedade
brasileira, em geral, mas especificamente no segmento negro, há pessoas que se
recusam ou demoram a reconhecer a emergência do racismo (IDEM: 42). Em artigo que
dá seqüência ao mencionado, uma das proposições de Beatriz diz respeito ao estudo “do
negro” face à identidade nacional em que a suposta democracia racial emerge como idéia
central (1974b: 65).
A exemplo de outros(as) pensadores(as) negros(as), Beatriz destrincha os
mecanismos racistas na vida diária, com destaque para as relações interpessoais e para
o âmbito profissional e, em especial, o acadêmico. No entanto, a ela interessava a
pessoa negra vista como uma totalidade, passado e presente, mente e corpo.
Retornando à sua experiência pessoal, ela desvenda um dos mecanismos comuns de
reação da pessoa negra ao racismo que também se prolonga para além da infância: a
busca por ser a melhor, a primeira, combinada com uma certa dose, parcialmente auto-
imposta, de invisibilidade (NASCIMENTO, 1982).
Como pode o preconceito contra a população negra ser, ao mesmo tempo,
violento e sutil, latente e manifesto? Como é possível que na sociedade brasileira entre
negros e negras e entre negros(as) e brancos(as) exista tanto amor, quanto ódio? Os
aparentes paradoxos devem ser desvendados.
Beatriz Nascimento radicaliza a investigação dos efeitos do racismo sobre a
pessoa negra. Esta ida à raiz de um fenômeno tão intricado levou-a a por em questão o
ser negro como uma identidade atribuída pelo Outro, o ser oposto, o branco (1974b).
Neste ponto cabe uma reflexão sobre a idéia de ser negro que, em seus textos, não pode
ser vista como estanque. A autora abordou a noção de negro em face de um racismo
múltiplo. Portanto, não caberia em seu pensamento uma concepção essencialista de
negritude. À semelhança de Neusa Santos Souza (1982) para quem “ser negro não é
uma condição dada, a priori. É um vir a ser. Ser negro é tornar-se negro.” (p.77), suas
preocupações voltaram-se igualmente para esse processo em que um segmento étnico-
social tem problemas para ser e tornar-se ele mesmo e, inclusive pela falta ou
afastamento de referências negras positivas, deseja ser ou tornar-se o Outro.
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2. Quilombo
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Essa pesquisa acerca de quilombos, desde o projeto até o relatório conclusivo (1981), com as revisões,
recortes e delimitações que foram necessárias, apesar de feita um curso de especialização, teria hoje o porte de
um mestrado.
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3. Corporeidade
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Acerca desse ponto, ver a compreensão da autora de que o agrupamento de escravizados de Jabaquara, em
Santos, São Paulo, formado às vésperas da abolição, mesmo denominado de quilombo, não o era em face de
ter sido organizado por “pessoas de fora” desse segmento e por se constituir em local precário, numa “cidade-
favela” (NASCIMENTO, 1979).
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A cabeça sintetiza tudo isso. Rosto e cabelo são marcas da raça social e política
que nos diferencia. Cabeça – intelecto, memória, pensamento. Cada um tem o direito de
fazer essa viagem de volta. Olhar-se no espelho da raça e reconstruir sua identidade e
seu corpo, pensando na sua trajetória e nas rotas do povo ao qual se sente vinculado.
Para Beatriz Nascimento o corpo negro se constitui e se redefine na experiência
da diáspora e na transmigração (por exemplo, da senzala para o quilombo, do campo
para a cidade, do Nordeste para o Sudeste). Seus textos, sobretudo em Ori, apontam
uma significativa preocupação com essa (re)definição corpórea. Neste tema, a
encontramos discorrendo acerca da sua própria imagem, da “perda da imagem” que
atingia os(as) escravizados(as) e da busca dessa (ou de outra) imagem perdida na
diáspora (NASCIMENTO, 1989). Beatriz se refere à perda das imagens africanas, de
África, das várias Áfricas, que afeta o reconhecimento da pessoa negra.
Em Ori, a câmera subjetiva nos coloca no lugar daquele(a) que foge mata
adentro, nos deixando pressupor uma pessoa “só com a roupa do corpo”, com pouca ou
nenhuma bagagem material, alguém que corre e talvez se arranha e se machuca na
fuga. Por conta das imagens que se sedimentam ao longo do que convencionamos
chamar de História, o corpo negro é, em parte, o corpo raptado em África, jogado em
porões de navios negreiros, acorrentado em senzalas, obrigado a trabalhos forçados; o
corpo vestido de algodão cru ou de rendas, mas descalço porque escravizado, que se
movia das cozinhas para as ruas.
Certamente, para o período escravista, a pesquisa iconográfica e relativa a
representações sociais pode nos apontar outras imagens. O que nos interessa no
pensamento de Beatriz é a interrelação entre corpo, espaço e identidade que pode ser
refeita por aquele(a) que busca tornar-se pessoa (e não coisa) no quilombo, na casa de
culto afro-brasileiro, num espaço de encontro e/ou diversão, no movimento negro, diante
do espelho ou de uma fotografia.
Desta forma, o corpo negro pode ser, também em parte, aquele que foge, mas
que conquista temporadas de tranqüilidade, aquele que se recolhe no terreiro e sai da
camarinha refazendo, em movimento, narrativas de divindades africanas; pode ser o
jovem que dança sozinho ou em grupo ao som do funk, pode ser a mulher ou o homem
que delineia suas tranças ou seu penteado black; pode ser igualmente aquele que se
“fantasia” de africano num desfile de escola de samba.
O corpo negro pode se estender até se confundir com a paisagem e com toda a
Terra, numa geopoética africana ou afro-brasileira, pois Nanã é o orixá que representa a
própria terra. O corpo negro pode ser (re)definido no olhar de Beatriz Nascimento para
suas várias imagens: diante de sua foto de primeira comunhão em que ela não se
reconhece mais e afirma seu afastamento do pensamento cristão; diante do retrato de
sua irmã Carmem na pose de formatura como normalista, o que indica um sonho de
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trajetória intelectual; na visão de uma diva como Marilyn Monroe, um ideal de beleza
ocidentalizado disseminado pelo mundo.
Ao “ler” os seus textos escritos ou falados e, sobretudo ao ver as poucas imagens
em movimento de Beatriz, me arrisco a afirmar que ela demonstrava profundo senso de
sua figura. Imagino que ela não agia como se estivesse encenando ao fazer uma
conferência ou uma declaração para um documentário4, mas como se construísse essa
imagem com a consciência de quem se vê e de quem é vista. Mais ainda, deduzo que
Beatriz o fazia como quem sabe a importância da definição visual, além da aparência,
para as pessoas negras no mundo contemporâneo, em especial nas sociedades que
foram escravistas e onde opera um preconceito de marca como a brasileira.
O corpo negro a que Beatriz se refere pode ser, então, aquele que porta carências
radicais de liberdade, que procura e constrói lugares de referência transitórios ou
duradouros. Lugares transitórios como os desfiles das escolas de samba e os bailes black
(NASCIMENTO, 1989). Esse corpo negro se move por essa cartografia cultural,
consciente ou inconscientemente, em transe ou em trânsito, embalado em trilhas
sonoras do Atlântico Negro, acústicas e/ou mecânicas: afoxé, congada, samba, blues,
jazz, reggae, funk, etc..
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Refiro-me às suas aparições no filme Ori, sobretudo durante a conferência Historiografia do Quilombo,
proferida na Quinzena do Negro na Universidade de São Paulo em 1977 e no documentário Abolição de Zózimo
Bulbul de 1988.
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Bibliografia
BOURDIEU, Pierre (1996) A Ilusão Biográfica In: FERREIRA, Marieta de Moraes e AMADO,
Janaína (Org.) Usos & Abusos da História Oral. Rio de Janeiro, Editora da Fundação
Getúlio Vargas, pp. 183-191. [1986].
GILROY, Paul (2001) O Atlântico Negro: modernidade e dupla consciência. São Paulo, Ed.
34/Rio de Janeiro, Universidade Cândido Mendes – Centro de Estudos Afro-Asiáticos.
hooks, bell & West, Cornell (1991) Breaking bread: insurgent black intellectual life.
Toronto, Between The Lines.
__________ (1990) A mulher negra e o amor. Rio de Janeiro, Maioria Falante, No. 17,
fevereiro – março, p. 3.
__________ (1977a) Nossa democracia racial. Revista IstoÉ. 23/11/1977, pp. 48-49.
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__________ (1974b) Negro e racismo. Revista de Cultura Vozes. 68 (7), pp. 65-68.
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__________ (1974a) Por uma história do homem negro. Revista de Cultura Vozes.
68(1), pp. 41-45.
RATTS, Alex. Eu sou atlântica: a trajetória de Beatriz Nascimento. São Paulo: Imprensa
Oficial do Estado/Instituto Kuanza.
SANTOS, Milton. Ser negro no Brasil hoje. In: SANTOS, Milton. O país distorcido. São
Paulo: Publifolha. Publicado originalmente no jornal Folha de São Paulo em 07/05/2000.