Hannya Shingyo Arial
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(SŪTRA DO CORAÇÃO
DA GRANDE
SABEDORIA COMPLETA)
摩訶 般若 波羅蜜多 心経
MAKA HANNYA HARAMITTA SHINGYŌ
Comentários do Mestre
泰仙 弟子丸 老師
TAISEN DESHIMARU RŌSHI
1
Da edição em castelhano. (N.T.)
3
Para a compreensão justa desta sabedoria, a leitura do
般 若 心 経 HANNYA SHINGYŌ deve ser sempre
acompanhada por uma prática assídua da meditação em
座 禅 ZAZEN, ao lado de um verdadeiro Mestre Zen da
Transmissão. Somente a partir deste estado justo de
consciência durante o 座禅 ZAZEN podemos compreender o
般若 心経 HANNYA SHINGYŌ. Durante o 座禅 ZAZEN, as
frases do Sūtra se abrem por elas mesmas, como formosas
flores de cujo perfume se impregna cada célula de nosso
corpo e cada ato de nossa vida cotidiana.
Isto é o que eu desejo, querido leitor, agora que você vai
submergir na leitura de uma obra prima da Humanidade, na
qual a consciência humana desperta para a realidade
substancial da existência, convertendo-se na Consciência de
um Buda.
Dokusho Villalba
4
INTRODUÇÃO
2
Os quatro textos do Zen publicados anteriormente (em castelhano,
N.T.) são: “Hokyu Zan Mai”, “El Samadhi del Espejo Precioso”; “San
Do Kai”, “La Esencia y los Fenômenos se interpenetran”, ambos
publicados por Editorial Kairós, dentro da obra: La Práctica Del Zen,
1982: “Shodoka”, “El canto Del Inmediato Satori”. Vision Libros, 1981,
e Shin Jin Mei, “El poema de la Fe em el Espíritu”, Miraguano
Ediciones, 1988. (N. Ed.. Esp.)
Em português, temos “Shodoka – O canto do Satori Imediato”,
Editora Pensamento, 2ª Ed., 1997. (N.T.)
3
Em castelhano. (N.T.)
4
Ver os nomes próprios e os termos essenciais explicados no léxico,
ao final do volume. (N.Ed.Esp.)
5
Por outro lado, as 23 caligrafias que o ilustram 5 seguindo
exatamente o corpo do texto, foram realizadas em escrita
tradicional.
Este Sūtra também se encontra caligrafado assim em
apenas uma página. Mestre 弟子丸 DESHIMARU, por sua
parte, quis que o texto original seguisse seus comentários,
percorrendo o Sūtra tema por tema e destacando as palavras
chave mais importantes. A escolha definitiva destes
magníficos ideogramas foi feita entre mais de 300
documentos, que ele mesmo traçou durante o
攝 心 SESSHIN de Verão de 1979, voltando a recomeçar
incansavelmente até que cada caligrafia fosse a própria
imagem do gesto justo.
Com a ajuda dos “quatro tesouros do estudo de arte”,
com os diversos pincéis de pelos delicados, com o papel 6,
com o bastãozinho de tinta e a pedra tinteiro 7 , retomava
estes gestos milenares, entretanto sempre novos, que
convertem esta escrita em pintura da linguagem e que
expressam o essencial.
Na China antiga, a caligrafia era a forma de
expressão mais elevada, a arte mais consumada. A pintura
vinha apenas em segundo lugar. O ideograma é, com efeito,
“a única arte abstrata em que a forma e o conteúdo se unem
e se complementam reciprocamente: cada ideograma tem
um significado bem definido, um som único, uma história.
Independentemente de sua beleza simbólica, estes signos
5
Que não fazem parte desta tradução, tendo sido substituídas por
seus equivalentes em 漢字 KANJI, gerados por um editor eletrônico de
japonês. (N.T.)
6
Cuja invenção, recordemos, ocorreu na China. (N. Ed. Esp.)
7
Bloco de pedra cortado especialmente sobre o qual se esfrega o
bastão de tinta (feito de cola e fuligem) com um pouco de água.
(N. Ed. Esp.)
6
têm uma virtude esotérica, iniciática, cujo vigor não perde em
nada para o da álgebra ou da geometria”.8
Na caligrafia chinesa e japonesa “a força de cada
traço deve penetrar o papel e o espírito da construção gráfica
deve desprender-se ... do papel: desta profundidade nasce a
terceira dimensão que ... é uma arte de quatro dimensões”.9
Um espelho da alma do artista, que se põe em
unidade com a energia cósmica do momento e traça sem
retoques, estas formas feitas de matizes de tinta negra e de
cor branca do papel. Tal é a caligrafia, reflexo da vida.
Esta arte sempre foi apreciada pelos mestres 禅 ZEN
que encontraram nela os três pilares do 座 禅 ZAZEN, a
meditação 禅 ZEN:
- A postura, direita e equilibrada;
- A atitude do espírito, concentrado sobre o aqui e o
agora;
- A respiração, de expiração larga e profunda. Graças
a esta expiração um traço está vivo ou não.
No Ocidente se diz que um artista tem inspiração.
Esta palavra nos faz pensar também no ato respiratório que
consiste em tomar o ar, o alento, a energia. No Oriente, o ato
criador realizado no momento da expiração equivale a
devolver esta energia adquirida, a criar uma nova vida pela
transmutação do alento no corpo, na consciência e no gesto
do artista.
Henri Michaux disse maravilhosamente desta arte
praticada desde há 3800 anos: “caligrafia ao lado da qual
cada um se mantém como que ao lado de uma árvore, de
uma rocha, de um manancial”.
8
P. Jaquillard e Ung No Lee, “Calligrafie, peinture chiniose et art
abstrait”, Ed. Ides Et Calendes. (N. Ed. Esp.)
9
“La caligraphie chinoise”, Leon L. Chang, CFL. (N. Ed. Esp.)
7
谷
の
夢
谷の夢 “TANI NO YUME”
O SONHO DO VALE
8
O SONHO DO VALE
(ESTRUTURA E ESSÊNCIA DO
般若 心経 HANNYA SHINGYŌ)
O 摩 訶 般 若 波 羅 蜜 多 心 経 MAKA HANNYA
HARAMITTA SHINGYŌ se compõe de cinco partes:
11
O único som era o murmúrio puro da água de um regato. Não
parecia haver pegadas de habitantes. O sol se ocultava,
lançando seus últimos raios. Senti o desejo de banhar-me na
onda de frescura que corria a meus pés. Depois de caminhar
por algum tempo, apareceu, como por encanto, uma
minúscula morada, – de algum ermitão – pensei. Cavada no
oco de uma rocha e rodeada de árvores, não havia podido
vê-la antes. Aproximei-me e distingui a silhueta de um jovem.
Não obstante, por suas respostas evasivas e seu
comportamento estranho, me dei conta que estava um pouco
transtornado. Um cavalo relinchou ao longe, a porta da
ermida se abriu e de repente apareceu a silhueta de uma
mulher jovem. Seu aspecto era agradável.
“O que você quer?”, perguntou.
Apetecia-me ficar ali, sem mover-me, sem desejo de
continuar meu caminho, nem de voltar sobre meus passos.
Sentia-me infinitamente distante...
“Você não viu passar um mercador?”
Sua resposta foi negativa. Era muito bela. A cor límpida
de seus olhos se fundia com a brancura de sua pele e
ressaltava seus lábios vermelhos, delicados e finos. Devido
ao cansaço do dia decidi pedir-lhe refúgio durante a noite.
“Mesmo que seja no estábulo”, disse-lhe.
“Aceito dar-lhe abrigo, mas não no estábulo, de jeito
nenhum. Meus cavalos são indomáveis. Eles o pisoteariam
num instante. Eu compartilharei minha cabana com você.
Mas minha morada é pobre e para tomar um banho ou para
saciar sua sede, o único recurso é o rio. Sua água é pura e
boa.”
A noite caia. Ela mesma me acompanhou pelo caminho
que conduzia até a cascata na qual tinha costume de se
banhar, como ela mesma me explicou. Um velho passou e
gritou:
“Senhorita, tenha cuidado de não cair no rio com este
jovem monge!”
Este velho tinha um ar sábio que não compreendi, mas
que me incitou a dizer à jovem para que não me
12
acompanhasse. Sua recusa foi-me de grande ajuda já que o
caminho era sinuoso e a noite estava escura. De repente
surgiu uma rã que se pôs a segui-la dando uns saltos tão
grandes que pareciam impossíveis para uma rã. Devo dizer
que era de um tamanho gigantesco.
“Suplico que não me incomode”, disse dirigindo-se ao
animal, “não vê que esta noite estou ocupada, com uma visita
importante? Mais tarde, mais tarde!”
E a rã desapareceu num salto na vegetação. Ao longo
do caminho cruzamos com algumas cabanas, choças podres,
sem dúvida desabitadas e de aspecto fantasmagórico. O
lugar a que chegamos estava deserto e estranhamente
selvagem. Somente o som da cascata turvava o silêncio e a
solidão. O lugar era muito belo. O burburinho do rio
contrastava com a vegetação tenebrosa dos arredores.
“Este é o rio mais belo de toda a região“, disse-me
minha acompanhante, como para confirmar meu sentimento.
Já me dispunha a introduzir meu braço no regato, quando ela
me deteve e me ordenou para que me desnudasse
completamente e como se eu não o estivesse fazendo rápido
suficiente, disse-me:
“Vou ajudá-lo”. E partiu para a ação. Livrou-me de meu
hábito negro e depois do branco. Minha nudez deixou à
mostra as marcas vermelhas devidas às picadas de aranha.
À jovem causou estranheza ver estas marcas sobre meu
corpo, a ponto de não levantar o olhar delas. Depois de
explicar-lhe a razão, ela relaxou e me disse:
“Você deve se sentir feliz e dar graças aos deuses que
te ajudaram tanto! São raros os que logram atravessar esta
selva, a maioria perde sua vida nela!”
Começou então a friccionar-me, com energia a
princípio, depois suas mãos foram ficando mais suaves; com
ternas carícias percorreu todo meu corpo com a água fresca
do rio.
Os cuidados que minha benfeitora me prodigalizava me
causaram uma doce sensação de bem estar, cujas causas
eram a doçura de suas mãos e a magia de suas carícias.
13
Meu corpo parecia flutuar numa nuvem de pétalas de flores.
Não sei por quanto tempo este doce êxtase se prolongou.
Quando voltei deste estado, ela se mantinha à minha frente,
com a beleza de seu corpo nu, cujas formas suaves e
voluptuosas iam se revelando sob a claridade da lua.
Satisfeito plenamente, saciado de frescor e com o corpo leve,
perdi-me durante alguns minutos nesta contemplação, depois
voltei a me vestir. Ao recolocar meu hábito negro, ela de
imediato se sentiu intimidada e retornou a me encarar.
Neste momento, sua cintura foi rodeada por um animal,
um cachorro talvez, que acabara de saltar de uma árvore
próxima, o qual a colocou num estado de grande cólera. Ela
golpeou com raiva o animal na cabeça, murmurando palavras
que me pareceram as mesmas que havia dirigido à rã gigante.
O pobre animal fugiu lançando uns ganidos e saltando
agilmente pelos galhos. Deduzi por isto que era um macaco.
No caminho de volta, o velho se apresentou de novo e
disse à jovem com um ar entendido e com um sorriso
sarcástico:
“Nosso jovem monge retorna com o mesmo corpo?”
Estranha pergunta cujo sentido me escapava...
Com certeza me sentia numa condição infinitamente
melhor do que por ocasião da dura jornada que havia
empreendido. Mas por que deveria ter mudado de corpo? E o
olhar deste velho, seu aspecto desalentador... E esta jovem
que parecia surda a todas as minhas perguntas! Mas me
sentia demasiado bem para me preocupar com perguntas
que se deviam certamente à decrepitude senil desse velho.
O jovem se encontrava no mesmo lugar, na soleira da
cabana, com o mesmo olhar vazio, encolhido em seu
desvario.
Finalmente me recostei sobre a cama que me estava
destinada, confiante de dormir o sono dos justos. Não foi este
o caso! Uns relinchos romperam brutalmente o silêncio
profundo da noite. Vi então, próximo da porta, o velho
tentando sem sucesso fazer avançar um cavalo.
14
“De todo jeito tenho de ir vender este maldito animal!”,
praguejava ao mesmo tempo em que esticava a corda.
“Deves ir, realmente”, disse uma voz zombeteira, “e
sabes que o caminho é comprido! Deverás apressar teu
passo se queres chegar no mercado ao amanhecer. Vamos!
Ponha-te a caminho e ande rápido!”
A voz que eu acabava de ouvir não era outra de não a
da jovem. Dizendo isto, aproximou-se do costado do animal e
se pôs a acariciá-lo de forma lasciva.
Apesar de minha incredulidade, constatei as
surpreendentes relações que uniam o cavalo à mulher. O
cavalo se excitou, relinchou, escoiceou algumas vezes,
enquanto que uma verga de carne rosada, parecida com um
tumor volumoso, crescia de maneira desmesurada.
Neste último momento de excitação, o velho puxou
violentamente o animal que, surpreendido, segui-o e ambos
desapareceram.
A jovem veio ao meu lado algum tempo depois e me
perguntou com um ar preocupado e perplexo: “Você não viu
alguém no caminho que traçou até aqui?” Respondi que
havia cruzado com um mercador que seguiu pelo mesmo
caminho uma hora antes de mim, mas que não o havia visto
novamente.
“Ah, bom!” Contentou-se em dizer, visivelmente
satisfeita. Depois não pronunciou mais nenhuma palavra e
me convidou a compartilhar a comida que, às suas ordens,
era servida pelo jovem idiota. A refeição era escassa, mas o
vinho era abundante. Ordenou ao jovem que se aproximasse
e sentasse junto a si. Durante a refeição, fez com que
bebesse diversas e copiosas vezes. Ele, um tanto ingênuo e
idiota, aproveitava da atenção que ela lhe proporcionava, e
cada copo era aceito com um amplo sorriso, com seus olhos
ávidos exageradamente abertos. Confesso que não
compreendia esta mania de sedução, desta vez com o jovem.
Pensei que, depois do cavalo e das demais criaturas
estranhas que pareciam todas encantadas, por que não um
rapaz jovem, por estúpido e feio que fosse?
15
Sua estreita cumplicidade acabou por me incomodar e
decidi voltar à minha cama no aposento contíguo. Ouvi-los rir
durante algum tempo, depois se impôs o silêncio, um silêncio
de curta duração que nem me deu tempo de pensar numa
trégua. Decididamente persistiam em me incomodar. Os
gemidos amorosos da jovem chegavam a meus ouvidos e
atormentavam a quietude em que acreditava estar instalado.
A medida em que os gemidos se intensificavam, um enorme
alvoroço crescia no exterior: mugidos, relinchos, grasnidos,
tudo misturado com golpes na porta, com pancadas no solo,
fazendo-me acreditar na iminência de uma invasão, de um
inferno animal surgido de não sei que abismos tenebrosos. A
visão da cena me atemorizou ainda mais: monstros, semi-
homens, semi-animais e animais tão gigantescos quanto
aterradores, todos gritando em uma histeria desenfreada.
Todos se encontravam em um estado de excitação extremo.
As delgadas paredes da choça, de construção precária,
pareciam a ponto de desmoronar.
Foi então que em meu espírito surgiu de repente o
canto do 般若 心経 HANNYA SHINGYŌ e me pus a recitá-lo
freneticamente. Esta era para mim a única esperança
evidente, a única alternativa para este inferno indomável:
minha fé aumentava a cada sílaba, atiçando a força com que
sentia que poderia exorcizar o mal. Minhas esperanças se
confirmaram, a agitação diminuiu ao mesmo tempo em que o
alvoroço, depois parou completamente quando a jovem
deixou de gemer.
Um novo dia começava e a luz suave dos primeiros
raios de sol, que se expandia difusa por cima dos montes,
trazia nela toda a frescura de um manancial virgem e
vivificante, toda a alegria de um nascimento de um novo
mundo.
Uma página havia sido virada e sobre a página em
branco do dia nascendo aparecia com um caractere luminoso
a palavra 攝心 SESSHIN.
Levantei-me pronto para me despedir. No momento da
partida, a jovem me dirigiu estas palavras, que para mim
16
tiveram o acento trágico e inevitável do destino que segue
seu curso: “Sem dúvida, não voltaremos a nos ver. Quando,
em seu regresso, você vir pétalas de flores de pessegueiro
flutuando sobre a corrente, pense em mim, já que meu corpo
terá sido tragado pelas ondas deste rio”.
Lamentei não ser um monge errante e ter que voltar ao
lugar do 攝心 SESSHIN. Contra a minha vontade, dei a meia
volta e me fui dali. Cada passo que dava era uma luta contra
uma corrente que me retinha ao destino da jovem.
Todos os meus 煩 悩 BONNŌ me impediam de
progredir tão rapidamente quanto havia querido. Sem cessar
me devolviam a ela e queriam que passasse com ela pelo
menos o lapso de tempo suficiente para envolver-nos em
pétalas de flores perfumadas. Quando cheguei à cascata na
qual havia me banhado no dia anterior, parei e meu olhar se
perdeu na queda da água. Ontem, gritos de alegria a vida
voltava a encontrar, hoje essa mesma vida não era mais que
uma grande queixa desesperada. Então senti, francamente, o
tom de reprovação que o salpicar glacial da água me jogava
na cara. No lugar onde a queda d’água abria caminho com
estrondo, no mesmo lugar onde no dia anterior havia gozado,
abandonando-me de corpo e alma aos cuidados conjugados
da água e da mulher, no momento em que, tenazes e
inefáveis, surgiam em minha lembrança estas imagens de
felicidade total, uma pétala branca se desprendeu de uma
gota d’água, e em minha visão se impôs a imagem lúgubre
da jovem agonizando. A rebelião que já fervia secretamente
em mim explodiu de uma vez e, a não ser por uma mão que
me segurou por trás do ombro, uma segunda pétala haveria
sido arrastada pela água da corrente, determinando que meu
corpo fosse abandonado às ondas.
O velho estava atrás de mim. Fazia muito tempo que se
encontrava ali ou acabava de chegar? Eu não sabia. O
estado ensimesmado de meu espírito nesta dolorosa
contemplação me havia privado de toda a consciência do que
me rodeava.
17
Vi nele a mão salvadora que me liberava de uma morte
suicida e, entretanto não pude reprimir um calafrio ao ver o
esgar sinistro que desenhava seu sorriso, o qual não
agourava nada de bom.
“Volto do mercado, a venda foi boa. Veja o que trago!”
disse lastimando-se num tom monocórdio. E estendeu para
que eu visse melhor o cadáver sangrento de um cordeiro que
arrastava atrás dele. E acrescentou:
“O que vai fazer agora, jovem monge? Não se canse
em sua cegueira de mongezinho sob este calor que não tarda
em ser tórrido. A distância daqui até a aldeia não é tão longa,
mas você não deve se distrair demasiadamente. Sem dúvida,
devem ter sido despertados em você terríveis sentimentos
sob o encanto daquela mulher. Compreendo bem, mas saiba
no entanto que é um milagre que você conserve ainda a sua
aparência humana. Aqueles que se aventuraram até aqui a
perderam devido ao efeito de seus poderes maléficos quando
“curava” seus corpos na água desta torrente.
O cavalo que você viu excitar-se noite passada e que
eu acabo de vender, era o homem que você viu, aquele
mercador de elixires que você não pode reencontrar. Com o
dinheiro da venda comprei este cordeiro, que será a comida
de hoje da jovem... Devo apressar-me em voltar e te convido
a que faça o mesmo antes que seja demasiado tarde.”
“Compreendo, compreendo”, balbuciei. Entretanto,
permanecia perplexo sob o choque de suas revelações.
Minha curiosidade estava atiçada, queria saber mais. “Como
pode ter acontecido isto a uma jovem tão bela e de aparência
tão amável? Por que? Explique-me”.
O velho me observou durante um longo momento,
desconfiado, não sabendo se devia responder-me ou
continuar seu caminho. Parecia aterrorizado e aparentava
que o fato de continuar seu relato lhe era tão penoso quanto
a dor provocada por uma chaga recém aberta.
“Ela é a filha do médico da aldeia”, terminou por dizer.
“Ao nascer, recebeu poderes misteriosos e a medida em que
crescia aprendeu a cultivá-los. Quando alcançou uma idade
18
razoável, decidiu pôr seus dons de cura a serviço dos
enfermos e dos desgraçados. Durante muitos anos foi muito
querida e muito respeitada. Vinham de todos os povoados e
aldeias da região para lhe implorar uma cura. Com paciência,
ela se ocupava de todos, um atrás do outro, exercendo sobre
eles a imposição de mãos. A maioria recuperava a saúde, até
que um dia sobreveio o acidente. Aconteceu com meu filho,
esse jovem que você tomou muito justamente por um louco.”
“Já sofria desde algum tempo, mas uma manhã
despertou com uma verdadeira anomalia física: tinha um
testículo a mais. Eu o acompanhei com esperanças a casa
desta jovem. Mas, qual não seria a minha pena quando, ao
terminar a consulta, vi que meu filho não podia levantar-se
nem dar um passo! Com a morte na alma, terminei a me
acostumar a essa sorte, e decidi voltar à minha casa com
meu filho nas costas.”
“Mas minha desgraça não se deteve aí. Meu filho se
negava energicamente a me seguir, suplicando-me que o
deixasse ali, com a jovem, de quem havia se apaixonado
perdidamente. Seu semblante pareceu que se transformava,
ficando inquieto, selvagem e ameaçador... Eu não nada
entendia desta convulsão brutal dos acontecimentos. Não
obstante, ousei acariciar a vaga esperança de que a situação
podia se restabelecer. Afinal de contas, isto não era mais que
um acidente e a jovem havia demonstrado o valor de seu
dom em solucionar as situações mais desastrosas.”
De todas as maneiras, não podia deixar meu filho
sozinho a mercê de sua vontade enlouquecida. Pedi então à
jovem que nos acompanhasse até nossa humilde morada,
esta mesmo na qual você passou a noite.
Ainda me pergunto porque ela aceitou. Agora penso
que, sem dúvida, havia perdido o controle de seus poderes e
que estava possuída pelas forças do mal, que se
desencadeavam anarquicamente através dela.
Mas naquele momento eu não compreendia e não
podia supor o futuro desastroso que nos esperava. Maldição!
19
Apenas havíamos entrado no vale e se armou uma
tempestade terrível, arrasando toda a região. Os bosques
foram arrastados pelas torrentes transbordadas, os vales
inundados, afogando pessoas e bens, todas as aldeias do
vale foram tragadas pelas águas. Em vários quilômetros em
volta não restou nada com vida. Só restamos meu filho, a
jovem e eu. Isto já há muito tempo.
Tenha cuidado de ter algum sentimento de piedade por
ela ou será rapidamente transformado em um vil animal
sedento de seus encantos.
Entretanto, com certeza que isto já não lhe poderá
acontecer. Você já passou pelas provas mais duras e até
agora só tem alguns arranhões. Nenhum dos poderes dela
poderá a partir de agora lhe fazer qualquer dano.
Ademais, se você a visse com seu apetite carnívoro,
devorando estas carnes ensangüentadas, com o ar feroz de
uma leoa que defende sua presa, vomitaria todos os
sentimentos que acalenta por ela, e terminaria fugindo o mais
rapidamente possível.”
Dizendo isto, afastou-se sem se despedir, sem que
sequer eu tivesse tempo de verificar o peso da esmagadora
verdade que acabava de me desvelar.
Permaneci imóvel, como um idiota, sem pensar em me
mover, sem pensar em lhe perguntar por que ele continuava
seguindo com ela.
Sua partida havia me deixado a impressão de alguém
que cumpre seu dever, ou melhor, que assume sua função,
sem motivo, simplesmente por que o haviam determinado a
fazê-lo. Dava-me a impressão que havia superado qualquer
forma de sentimento, como os seres que sofreram em
demasia, e que estava desde então habitado pela fria
indiferença do cinismo, que reconforta as almas azedadas...
De volta ao povoado, sentia-me impaciente durante o
攝 心 SESSHIN e esperava que logo terminasse. Quando
terminou, juntei comigo alguns de meus discípulos mais
fortes, preveni-os do que nos esperava, e decidi voltar com
um novo estado de espírito àqueles lugares maléficos.
20
O 般若 心経 HANNYA SHINGYŌ não deixou nossos
lábios nem um instante. Tomamos o mesmo, o único
caminho que nos conduziu até a espessa selva. O fervor do
canto do sūtra afastou todos os obstáculos encontrados
durante minha primeira viagem.
Quando avistamos a choça, detivemo-nos a curta
distância. Entoamos então com um fervor ainda maior uma
série ininterrupta de 般若 心経 HANNYA SHINGYŌ, decididos
a não nos determos até que todas as coisas se realizassem
segundo a Lei.
Um momento mais tarde, o velho se aproximou de nós
com as mãos juntas em 合 掌 GASSHŌ, e nos expôs a
situação no interior:
“A jovem tem uma ‘febre de cavalo’ e sofre um grande
martírio. Acaba de se levantar e não obstante, iniciou uma
dança louca, sacudindo a cabeça em todas as direções,
como se quisesse se libertar de seus males para sempre.”
“Meu pobre filho, sentindo a altura do transe, tentou
unir-se a ela com pantomimas mórbidas, mas não pode mais
fazer o menor movimento, já que está mais entorpecido do
que nunca. Creio que sua anomalia tenha aumentado, agora
deve ter cinco testículos.”
Cantamos o 般若 心経 HANNYA SHINGYŌ cada vez
mais forte e cada vez mais rapidamente. Ao voltar a cabeça,
vi um espetáculo horrível: corpos de crianças com cabeças
de animais, de pássaros, de rãs, de macacos... Era apenas a
fase mutante destes seres que voltavam lentamente à sua
própria natureza humana. Entramos na sórdida cabana, sem
deixar de cantar. A jovem parou sua dança imediatamente e
desmoronou inconsciente sobre o solo de terra batida.
O 般 若 心 経 HANNYA SHINGYŌ animava ainda
nossos lábios, quando sua cara marcada pelo sofrimento
iluminou-se com um sorriso tingido de serenidade. Por fim, a
morte a liberou de seu destino, de seu karma...
Meu sonho terminou aqui e despertei. O rumor do Isère
entrava por minha janela aberta: a voz do vale.
21
Tal foi o meu sonho. Eu fui ajustando a estória a
medida em que a ia contando. Entretanto, em meu
ensinamento, tudo é 公案 KŌAN e tudo deve ser matéria de
reflexão para vocês, inclusive o erotismo que baliza esta
narração. Esta estória constitui o númeno11 de Val D’Isère e
seu 公案 KŌAN forma a trama dos numerosos méritos do
般若 心経 HANNYA SHINGYŌ. Apesar de que é apenas um
sonho, a veracidade deste conto é total, já que estabelece a
fé no 般若 心経 HANNYA SHINGYŌ.
11
O autor utilizará recorrentemente esta expressão ao longo de todo
o comentário. Na acepção utilizada nesta passagem tem a conotação
de “essência” ou de “a coisa em si” em oposição ao “fenômeno ou às
coisas tais como aparecem e são conhecidas”. (N.T.)
22
Em meu sonho, todo mundo cantava ao final,
羯諦、 羯諦 GYATEI, GYATEI...
25
漢
字
漢
文
漢字 “KANJI” e 漢文 “KANBUN”.
26
TEXTO EM 漢字 KANJI,
TRANSCRIÇÃO FONÉTICA E
TRADUÇÃO DO
般若 心経 HANNYA SHINGYŌ
27
羯 是 得 菩
諦 大 阿 無 提
羯 神 耨 有 蕯
諦 故 呪 多 三 恐 埀
波 説 羅 世 怖
羅 般 能 是 三 諸 依
羯 若 除 大 藐 仏 遠 般
般 諦 波 一 明 三 離 若
羅 切 呪 菩 依 一 波
若 波 蜜 苦 提 般 切 羅
羅 多 是 若 顚 蜜
僧 呪 真 無 故 波 倒 多
心 羯 実 上 知 羅 薨 故
諦 即 不 呪 般 蜜 想
経 説 虚 若 多 心
菩 呪 是 波 故 究 無
提 日 無 羅 竟 罣
薩 等 蜜 涅 礙
婆 等 多 槃 無
訶 呪 罣
礙
故
28
無
眼 舎 観
耳 利 自
摩
無 鼻 子 色 度 在
無 舌 即 一 菩
訶
明 身 是 是 切 薩
亦 意 是 諸 空 苦
無 無 故 法 厄 行
般
苦 無 無 空 空 空 深
集 明 色 中 相 即 舎 般
若
以 滅 尽 声 是 利 若
無 道 香 無 不 色 子 波
所 乃 味 色 生 羅
波
得 無 至 触 無 不 受 色 蜜
故 知 無 法 受 滅 想 不 多
羅
亦 老 想 行 異 時
無 死 無 行 不 識 空
蜜
得 亦 眼 識 垢 亦 照
無 界 不 復 空 見
多
老 乃 浄 如 不 五
死 至 是 異 薀
尽 無 不 色 皆
心
意 増 空
識 不
経
29
界 減
GYA ZE BO
TEI DAI TOKU DAI
GYA JIN A MU SAT
30
MU
GEN SHA KAN MA
NI RI JI
MU BI SHI SHIKI DO ZAI KA
MU ZES SOKU IS BO
MYŌ SHIN ZE ZE SAI SATSU
YAKU I ZE SHO KŪ KU HAN
MU MU KO HŌ YAKU GYŌ
KU MU MU KŪ KŪ KŪ JIN NYA
SHŪ MYŌ SHIKI CHŪ SŌ SOKU SHA HAN
I METSU JIN SHŌ ZE RI NYA
MU DŌ KŌ MU FU SHIKI SHI HA HA
SHO NAI MI SHIKI SHŌ RA
TOKU MU SHI SOKU MU FU JU SHIKI MIT RA
KO CHI MU HŌ JU METSU SŌ FU TA
YAKU RŌ SŌ GYŌ I JI MIT
MU SHI MU GYŌ FU SHIKI KŪ
TOKU YAKU GEN SHIKI KU YAKU SHO TA
MU KAI FU BU KŪ KEN
RŌ NAI JŌ NYO FU GO
SHI SHI ZE I UN SHIN
JIN MU FU SHIKI KAI
I ZŌ KŪ GYŌ
SHIKI FU
KAI GEN
31
MAKA HANNYA HARAMIT-TA SHINGYŌ
KANJIZAI BO-SATSU. GYŌ JIN HANNYA HARAMIT-TA JI.
SHO KEN GO-UN KAI KŪ. DO IS-SAI KU YAKU.
SHA-RI-SHI, SHIKI FU I KŪ, KŪ FU I SHIKI,
SHIKI SOKU ZE KŪ, KŪ SOKU ZE SHIKI,
JU SŌ GYŌ SHIKI YAKU BU NYO ZE.
I MUSHOTOKU KO.
HANNYA SHINGYŌ.
32
33
TRADUÇÃO DO MAKA HANNYA HARAMITTA SHINGYŌ
34
Não há sofrimento, nem causa do sofrimento, nem
liberação do sofrimento, nem caminho que conduza à
extinção do sofrimento.
Não há sabedoria nem o que se conquistar.
O único que há é 無所得 MUSHOTOKU: Nada que
obter.
Esta é a razão pela qual no espírito do Bodhisattva,
graças a esta Ilimitada Sabedoria, não existem redes de
obstáculos, nem causas de obstáculos.
Não existe medo nem temor, nem causa de medo e
temor.
Desta maneira, o Bodhisattva se liberta das ilusões,
das perturbações e dos apegos e chega à etapa ultima da
vida, o Nirvana.
Todos os Buddha do passado, do presente e do futuro
obtiveram a Suprema Libertação graças a esta Grande e
Ilimitada Sabedoria.
Portanto, Hannya Shingyō é o Mantra Universal, o
Grande Mantra Resplandecente, o Mantra mais Elevado, o
Incomparável Mantra, aquele que extingue todo o tipo de
sofrimento. É a verdade autêntica sem erro.
Este Mantra proclamado por Hannya Shingyō se diz
assim:
35
般
若
心
経
般若 心経 ”HANNYA SHINGYŌ”
36
37
摩訶 般若 波羅蜜多 心経
38
HA MA
SHIN RA KA
GYŌ MIT HAN
TA NYA
39
波 摩
心 羅 訶
経 蜜 般
多 若
40
41
COMENTÁRIOS SOBRE O TÍTULO
12
No original, “procede de 摩訶 MAKA”. (N.T.)
42
ZAZEN, os estímulos exteriores são percebidos com um grau
de agudeza mais elevado que em tempo normal; mas seus
efeitos sobre a consciência não se prolongam, desvanecem-
se rapidamente. O mesmo ocorre com os sentimentos, as
emoções, os pensamentos que surgem do subconsciente. As
recordações aparecem e passam, expulsos pela consciência
非思量 HISHIRYŌ, que é a condição normal do espírito.
(Mestre 道元 DŌGEN)
43
necessidade de se orgulhar das boas ações, nem se
aborrecer com as más. Devemos nos sentir cheios de
compaixão por aquelas pessoas dominadas por seus 煩惱
BONNŌ, seja por falta de lucidez, seja por debilidade.
13
O autor em seus comentários voltará inúmeras vezes a utilizar esta
palavra cujo significado se refere “a coisa em si”, por oposição ao
fenômeno ou às coisas tais como aparecem e são conhecidas. (N.T.)
44
lo como discípulo. Mas Bodhidharma ( 菩 提 達 磨
BODAIDARUMA) permanecia imperturbável, e, diz-se, 慧可
EKA acabou por cortar seu próprio braço para expressar sua
determinação. Dirigindo-se a Bodhidharma (菩 提
達 磨 BODAIDARUMA), disse:
“O espírito de seu discípulo não está em paz! Mestre,
rogo-lhe que o pacifique!”
Bodhidharma (菩提達磨 BODAIDARUMA) respondeu:
“Traga-me seu espírito e eu o pacificarei.”
“Eu o tenho procurado por todas as partes”, respondeu
慧可 EKA, “mas não o pude encontrar. Não há como agarrá-
lo.”
“Isto significa que ele já está pacificado”, disse
Bodhidharma (菩提達磨 BODAIDARUMA)...
Um monge tropeçou em uma pedra e sentiu uma
grande dor no pé.
“Qual é a origem de minha dor?”, perguntou-se.
Neste mesmo momento obteve o 悟 SATORI.
45
palavra espírito, 心 SHIN pode ser traduzida também como
“essência”, “centro” ou “medula”.
心経 SHINGYŌ se refere assim a “essência dos Sūtra”,
ou ao “Sūtra essencial”. A primeira pessoa que traduziu o
Sūtra do sânscrito ao chinês 漢文 KANBUN foi o mestre 玄奘
GENJŌ, que nasceu por volta do ano 600 d.C.. A lenda conta
que, depois de ter decidido ir à Índia, tomou a firme
disposição de trazer deste país todos os Sūtra budistas que
encontrasse, para poder então propagá-los por toda a China.
Acabava de passar pelas regiões fronteiriças da China com a
Índia quando, repentinamente, caiu a noite. Dirigiu-se então a
um pobre templo isolado. Apenas havia entrado e notou
alguém falando. A voz era de um monge ancião, a ponto de
morrer, que disse a 玄奘 GENJŌ imediatamente após vê-lo:
“Sei o que é que você está à procura em nosso país. Escute-
me atentamente”. E leu o Sūtra do 般 若 心 経 HANNYA
SHINGYŌ. 玄 奘 GENJŌ ficou profundamente comovido,
pleno de alegria. Continuando sua viagem através da Índia
não parou de cantá-lo, com medo de esquecê-lo,
aumentando seu ardor quando sentia que sua vida estava em
perigo.
Uma noite, quando sua peregrinação já o havia levado
ao centro da Índia, aquele monge ancião lhe apareceu
novamente em seu leito, à noite. 玄奘 GENJŌ ficou muito
surpreendido:
- “Como pôde você ter chegado aqui?” – perguntou.
-“Sou Avalokiteshvara, o bodhisattva 観音 KANNON”,
respondeu a aparição. “Queria ensinar-lhe o maravilhoso
Sūtra do 般若 心経 HANNYA SHINGYŌ . Esta é a razão pela
qual eu vim até você”.
Ditas estas palavras a aparição se desvaneceu
novamente, deixando 玄 奘 GENJŌ novamente a sós no
aposento, de posse do esplêndido tesouro do 般 若 心 経
HANNYA SHINGYŌ, que a partir de então compreendeu
46
perfeitamente, tanto em sânscrito como em 漢文 KAMBUN.
心 SHIN – hridaya em sânscrito, significa “a essência”.
A seita 真言 SHINGON omite o qualificativo “Grande”;
para eles, o 般若 心経 HANNYA SHINGYŌ intitula-se “O
Sūtra da Essência da Sabedoria”. 經 KYŌ (ou 経 GYŌ)
corresponde a palavra sânscrita Sūtra. Os Sūtra são o
conjunto de escrituras que transmitem os ensinamentos do
Buda.
O ideograma 經 KYŌ se decompõe em dois elementos:
o elemento da esquerda simboliza “o fio”; o elemento da
direita, “a corrente viva”. Assim Sūtra, ou 經 KYŌ significa o
fio transmissor, a corrente da vida, o Caminho. 経 GYŌ
significa também “ir, caminhar direto”, como a marcha de 経
行 KIN HIN (caminhar lentamente segundo o método
transmitido, depois do 座禅 ZAZEN). Depois da morte de
Shākyamuni Buda, seus ensinamentos foram transcritos em
folhas da planta Baitara (com 8 cm de largura por 60 cm de
comprimento, aproximadamente) sobre as quais figura o
traçado de uma corrente, definindo assim a natureza do texto.
O título 摩訶 般若 波羅蜜多 心経 MAKA HANNYA
HARAMITTA SHINGYŌ pode ser traduzido então assim: O
Sūtra do Espírito da Grande Sabedoria que permite ir mais
além.
47
心
空
心空 ”SHINKŪ” – A Mente que alcança todas as coisas.
48
49
O ESPÍRITO DO VAZIO
50
KAN
JI
ZAI
BO
SATSU
Avalokiteshvara (KANJIZAI), o Bodhisattva (BOSATSU)
da Verdadeira Liberdade
51
観
自
在
菩
薩
52
HAN
NYA GYŌ
JI HA
RA
MIT JIN
TA
Através (JI) da prática profunda (GYŌ JIN)
da Grande Sabedoria (HANNYA HARAMITTA).
53
般
若 行
時 波
羅
蜜 深
多
54
SHO
KEN
GO
UN
KAI
KŪ
Compreende (SHO KEN) que os cinco Skandhas (GO-UN)
(corpo-matéria-forma, percepção e sensação, pensamento,
atividade e consciência) são (KAI) Vacuidade (KŪ).
55
照
見
五
薀
皆
空
56
DO
IS
SAI
KU
YAKU
Ajuda (DO) a todas as existências (ISSAI)
que sofrem (KU) e se afligem (YAKU)
57
度
一
切
苦
厄
58
A estrutura do 般若 心経 HANNYA SHINGYŌ é de
fato muito simples. O tema central é 空 KŪ e o ponto chave
無所得 MUSHOTOKU.
Poderíamos resumir assim a tradução do Sūtra:
Quando o Bodhisattva Avalokiteshvara pratica
profundamente a Grande Sabedoria
般 若 波 羅蜜 多 HANNYA HARAMITTA, vê que os cinco
agregados são 空 KŪ (Vacuidade) e desta maneira ajuda a
todos os que sofrem.
Por isso, 舎利子 SHARISHI (Shariputra), 色 SHIKI (os
fenômenos) não são diferentes de 空 KŪ (Vacuidade). 空 KŪ
não é diferente de 色 SHIKI. 色 SHIKI é 空 KŪ. 空 KŪ é
色 SHIKI. O mesmo acontece com a percepção, o
pensamento, a ação e a consciência.
舎利子 SHARISHI, todas as existências são 空 KŪ. São
não nascidas e não extintas, não manchadas e não puras,
não aumentam nem diminuem.
Assim, em 空 KŪ, não há cinco elementos, nem seis
órgãos da percepção, nem seis objetos da percepção, nem
seis consciências, nem ignorância, nem extinção da
ignorância, nem velhice, nem fim da velhice, nem morte, nem
fim da morte, nem Quatro Nobres Verdades, nem sabedoria,
nem proveito, somente há 無所得 MUSHOTOKU.
Esta é a razão pela qual o Bhodhisattva, graças a esta
Grande Sabedoria 般若 波羅蜜多 HANNYA HARAMITTA,
tem o espírito tranqüilo e não conhece o medo. Separa-se de
toda perturbação e de toda a ilusão e alcança o Nirvana. E os
Patriarcas dos três mundos, graças à
般若 波羅蜜多 HANNYA HARAMITTA, chegam ao mais alto
dos 悟 SATORI.
Devemos compreender então que
般若 波羅蜜多 HANNYA HARAMITTA é por excelência, o
59
Sūtra universal, o grande Sūtra luminoso, o mais alto e
incomparável Sūtra graças ao qual se pode cortar todo o tipo
de sofrimento. Na verdade autêntica não pode haver erro. Eu
declaro portanto que o Sūtra
般若 波羅蜜多 HANNYA HARAMITTA proclama este mantra:
60
SOBRE A NOÇÃO DE 空 KŪ
61
não-existência”. Pode ser também “a plenitude do vazio”, ou
a plenitude potencial”.
Existem duas noções importantes relativas a 空 KŪ:
人空 NINKŪ e 法空 HOKKŪ. 人空 NINKŪ designa o 空 KŪ do
ego, o não-númeno do ego. 法空 HOKKŪ corresponde ao
空 KŪ do dharma, ao não-númeno de todas as existências.
Todas as coisas, todos os fenômenos e todas as
existências somente são o que são pelo princípio da
interdependência e porque estão submetidas à lei da
impermanência.
No Budismo Hīnayāna (小乗仏教 SHŌJŌ-BUKKYŌ),
o conhecimento se estabelece através do método analítico.
Tudo é analisado, desde a matéria até o espiritual, para
chegar a noção final do NADA.
O mesmo ocorre no processo da ciência moderna, que
em suas últimas investigações tem chegado igualmente ao
conceito do NADA.
Mas no Budismo Mahāyāna ( 大 乗 仏 教 DAIJŌ-
BUKKYŌ), a maneira de se aproximar da realidade é
diametralmente oposta: a compreensão não nasce dos
resultados de uma análise meticulosa, mas se estabelece de
maneira sintética, a partir da intuição de 空 KŪ. A
compreensão intuitiva e imediata de 空 KŪ se converte assim
na base de todo o conhecimento. Esta intuição permite o
conhecimento e a compreensão das quatro verdades sobre a
impermanência, a interdependência, os fenômenos e a
essência.
I. 無常 MUJŌ: A IMPERMANÊNCIA
62
mesma lei universal: nascimento, desenvolvimento e
crescimento, degeneração e morte, extinção.
Nascemos, vivemos e entramos no ataúde. A mera
compreensão desta lei deveria ser suficiente para cortarmos
todos os apegos: apego à beleza, apego à juventude, ao
amor... Mas queremos permanecer cegos e continuar a nos
apegar. Tudo no cosmos sofre a lei da impermanência desde
o átomo até as galáxias. Nosso nascimento nos conduz
inexoravelmente até a morte. Por que ter medo? Por que
rechaçá-la? Podemos morrer a qualquer instante, aqui e
agora. Não há nada mais normal. Nós não podemos decidir a
duração de nossa vida, nem o momento de nossa morte.
Nosso corpo muda, evolui, transforma-se, da mesma
forma que nosso espírito. Não há númeno permanente, não
há entidade no ego. A ciência atual ainda não conseguiu
determinar a natureza da substância vital. Atualmente, suas
investigações a levaram a falar de energia fundamental, de
força vital; mas estas não podem ser definidas precisamente.
O fim da atividade vital significa a morte. No Budismo
esta força é chamada 氣 KI. É o constituinte fundamental de
todo o cosmos, e nisto, é equivalente a 空 KŪ.
Compreender o 空 KŪ de que fala o
般若 心経 HANNYA SHINGYŌ e obter a verdadeira
Sabedoria é compreender que o sofrimento nasce da ilusão
que consiste em dar ao ego uma substância própria e durável,
origem do apego.
A compreensão desta verdade é acessível durante o
座禅 ZAZEN. E seu conhecimento não é entristecedor, mas
ao contrário, proporciona a alegria suprema e a autêntica
coragem.
63
O termo dharma tem vários significados:
Designa a multiplicidade de existências e de
fenômenos, mas também, segundo a etimologia sânscrita,
indica a ação de dirigir, de governar, de suportar; por último,
seu sentido mais geral é o de ordem, lei.
Só o jogo da interdependência de fatores diversos
constitui a realidade impermanente das existências.
A aglomeração momentânea de um certo número de
elementos diversos e necessários, mantidos juntos pela força
energética em movimento, permite a existência da estrutura
fenomenal; a perda do movimento origina a redução dos
elementos, sua fixação num estado de inércia e a morte.
A lei da interdependência permite a manutenção, em
um estado de perfeito equilíbrio, de todas as relações e
interações do mundo fenomenal. Desde a água, o ar,
passando pelo corpo humano até os sistemas planetários,
tudo é regido por esta lei na perfeita harmonia das inter-
relações.
64
inconscientemente, naturalmente, automaticamente, através
do 座禅 ZAZEN. Todas as questões podem ser resolvidas
assim, todos os sofrimentos podem ser superados. Isto é
realizar o 空 KŪ do 般若 心経 HANNYA SHINGYŌ, a
autêntica e imanente verdade, é obter a liberdade suprema.
色 SHIKI representa os aspectos ou as estruturas
provisórias, temporais, momentâneas e efêmeras. 色 SHIKI
é a estrutura sem cessar em movimento do Poder Cósmico
manifesto. 空 KŪ é o potencial cósmico não manifesto, infinito
e eterno, presente na infinidade de coisas e imutável em sua
natureza. É transcendente e imanente ao mesmo tempo, está
além dos limites de qualquer coisa, mas está compreendido
na própria essência de tudo.
65
COMENTÁRIOS
観自在 菩薩 。 行 深 般若 波羅蜜多 時。
照 見 五薀 皆 空。 度一切苦厄。
KANJIZAI BOSATSU. GYŌ JIN HANNYA HARAMITTA JI.
SHO KEN GO-UN KAI KŪ. DO IS-SAI KU YAKU.
67
das crenças, dos votos e dos poderes que lhe eram
atribuídos.
A 14 観 音 KANNON original é
千手観音 SENJŪ KANNON (Sahasra-bhuja), a 観音 KANNON
de mil braços que simbolizam os múltiplos poderes de sua
compaixão utilizados para socorrer à infinidade de formas de
existência.
14
Da mesma forma em que não discutimos o “sexo dos anjos”, os
Bodhisattvas apresentam-se muitas vezes com atributos ora
femininos, ora masculinos, sendo transcendentes em matéria de
gênero. (N.T.)
68
“Gostaria que me dissesse qual é seu método de
educação.”
“Depende”, respondeu ela. “Algumas vezes devo ser
amável, outras vezes severa, algumas vezes tolerante, outras
vezes intransigente, depende.”
O jovem monge replicou então:
“Quando uma mãe educa, ainda que seja um filho
apenas, tem que usar diferentes métodos. Não estranhe
então que o Buda necessite de mil, ou dez mil braços para
salvar à infinidade de seres.”
A senhora ficou muito impressionada...
行 深 般若 波羅蜜多 時。
69
自 慳 布 施 JI KEN FUSE ( 布 施 FUSE, a doação)
significando: abandonar os desejos pessoais, ter compaixão
pelos demais. É dar o melhor de si com espírito
無所得 MUSHOTOKU, altruísta e despojado de todo o apego
a si mesmo.
持 戒 JI KAI, é observar os preceitos, o respeito da
moral. Aqui também não há de se respeitar os preceitos para
proveito próprio, pelos benefícios que se possa conseguir
com isso, mas para ajudar os demais, com um espírito
無所得 MUSHOTOKU.
忍辱 NINNIKU: a paciência. Deve ser exercida com um
espírito 無所得 MUSHOTOKU. É difícil de praticar.
精進 SHŌ JIN: o esforço, a perseverança, a prática
assídua de 座 禅 ZAZEN. Praticar 座 禅 ZAZEN para os
demais e para o cosmos inteiro, e não para si mesmo, com
uma meta egoísta, nem para se mostrar.
禅定 ZEN JŌ: 座禅 ZAZEN, o estado de serenidade.
Esta atitude corresponde ao espírito de concentração que
engendra a verdadeira atitude 無所得 MUSHOTOKU.
A doação e a compaixão constituem a base e o
resultado último destas cinco práticas.
A sexta 15 prática é a última sabedoria, o poder de
conhecer todas as coisas expresso no termo 波羅 HARA: o
fundo do mar, os abismos, e aqui no sentido de penetração
profunda.
O seguinte conto japonês ironiza a maneira corrente de
aprender a vida, com uma grande falta de sabedoria:
“Um coelho, um cavalo e um elefante decidiram um dia
atravessar correndo um rio. O coelho chapinhou na superfície
da água. O cavalo nadou e o elefante caminhou pelo fundo
do rio.”
15
Apesar de anteriormente ter falado em cinco, há uma sexta,
般若波羅蜜, HANNYA HARAMITSU. (N.T.)
70
O elefante chegou em primeiro, o cavalo em segundo e
o coelho em terceiro. No 證 道 歌 SHŌDŌKA, de
永嘉大師 YOKA DAISHI 16 está escrito; “O grande elefante
não brinca no atalho dos coelhos pequenos”. Como praticar
般 若 HANNYA, a grande sabedoria? É um grande
公案 KŌAN. O 般若 心経 HANNYA SHINGYŌ dá a resposta.
時 JI: quando, no momento em que.
Quando 観 自 在 菩 薩 KANJIZAI BOSATSU, o
bodhisattva da verdadeira liberdade, pratica
般若 波羅蜜多 HANNYA HARAMITTA, a suprema sabedoria.
照 見 五薀 皆 空。
SHO KEN GO-UN KAI KŪ.
16
Yoka Daishi –“Shodoka – O canto do Satori imediato”. Tradução e
comentários do Mestre Taisen Deshimaru Roshi, Ed. Pensamento,
São Paulo, 1997. pág. 249. (N.T)
71
O segundo skandha, 受 JU (vedanā em sânscrito) se
refere à percepção. O 漢字 KANJI 受 JU significa “receber”
através dos cinco órgãos dos sentidos. Percebemos assim as
cores, os sons, os cheiros, [os sabores] 17 , os contatos e
experimentamos sofrimento ou alegria. Esta percepção é
sempre compreendida segundo as três sensações: agradável,
desagradável e indiferente.
O 漢字 KANJI 想 SŌ (samjñā em sânscrito) designa a
ação da consciência, as concepções mentais e as idéias.
Através do segundo skandha, a percepção, e por meio da
ação da consciência, nasce 行 GYŌ, o quarto skandha
(samskāra em sânscrito) que é o skandha da volição. Depois
da percepção, das concepções mentais e das idéias, aparece
a vontade. Deseja-se agir. O 般若 心経 HANNYA SHINGYŌ
insiste amplamente sobre os elementos que estão na origem
da ação, e sem os quais não apareceria nenhum aspecto do
mundo fenomenal. Trata-se de 眼 耳 鼻 舌 身 意 GEN NI BI
ZE SHIN I.
眼 GEN: o órgão da visão; 耳 NI: o órgão auditivo;
鼻 BI: o órgão olfativo; 舌 ZE: o órgão gustativo; 身 SHIN: o
órgão tátil; 意 I: o instrumento da vontade, a consciência. A
discriminação, o juízo e o erro nascem deste cinco órgãos da
consciência.
17
Não consta do original. (N.T.)
72
“É verdade, eu também me considero diante de meus
olhos mais importante que qualquer pessoa.”
Suas palavras eram justas: cada homem ama mais a si
mesmo e cai no egoísmo e no narcisismo.
O que é o egoísmo? É um grande 公 案 KŌAN.
Abandonar o ego é muito difícil.
O quinto skandha, 識 SHIKI18 corresponde a vijñāna em
sânscrito.
Vi significa analisar e jñāna, compreender. Vijñāna ou
識 SHIKI significa a consciência do espírito. Em kanji é
意 識 I SHIKI, a consciência do espírito. O conceito de vijñāna
representa a totalidade da vida do espírito, enquanto que os
quatro skandhas restantes constituem assim a vida do corpo
e do espírito de todos os seres sensíveis assumidos pelo
mundo fenomenal e as forças do desejo. Formam o ego e
todos os aspectos do mundo fenomenal.
Sem embargo, o ser senciente não tem natureza
essencial que lhe seja própria. Tudo está submetido à
impermanência e à mudança perpétua. Os cinco agregados
não tem substância própria.
Isto é o que significa 五薀 皆 空 GO-UN KAI KŪ: os
cinco skandhās são 空 KŪ.
O ser senciente e temporal é sem substância. Existe e
pode ser observado com os olhos de nossa consciência, mas
sua condição está sempre em evolução. Sua substância é a
vacuidade.
Todos os juízos e todas as apreciações pessoais são
fruto do egoísmo. Nada existe em si nem por si. Tudo é
produto da interdependência. As interferências diversas criam
karma diversos e individualizados. Não há ego estável. A
existência é sem númeno.
18
Este 識 SHIKI (vijñāna) é em japonês homófono do primeiro
skandha, 色 SHIKI (rūpa). (N.T.)
73
Compreender isto é obter o 悟 SATORI. Durante o
座 禅 ZAZEN podemos realizá-lo. Como alcançar esta
compreensão, como obter esta sabedoria última, este poder
infinito, esta felicidade suprema?
A existência de todos os seres sencientes é 空 KŪ.
Tudo é 空 KŪ, sem númeno, tudo se modifica. E é em 空 KŪ,
no nada infinito, no abandono total do “eu”, onde se encontra
a mais alta realização do ser.
度一切苦厄。
DO IS-SAI KU YAKU.
75
abandonar a via errônea, todas estas atitudes que nos
afastam do egoísmo e nos aproximam do espírito 無所得
MUSHOTOKU, aproximam-nos tanto mais da felicidade
autêntica. A doação total de si, o abandono do ego,
transporta o ser à felicidade suprema. Compreender isto é ter
a sabedoria 般若 心経 HANNYA SHINGYŌ.
76
苦
諦
苦諦 “KU TAI” – A Nobre Verdade sobre o Sofrimento.
77
色
空 空
色
色 即 是 空 SHIKI SOKU ZE KŪ
“Os Fenômenos são Vacuidade.”
空 即 是 色 KŪ SOKU ZE SHIKI
“A Vacuidade é Fenômeno.”
色 即 是 色 SHIKI SOKU ZE SHIKI
“Fenômenos são Fenômenos”
空 即 是 空 KŪ SOKU ZE KŪ.
“Vacuidade é Vacuidade.
78
OS FENÔMENOS SÃO VACUIDADE
A VACUIDADE É FENÔMENO
79
80
KŪ SHIKI SHA
FU FU RI
I
I SHI
SHIKI KŪ
81
空 色 舎
不 不 利
異 異 子
色 空
82
KŪ SHIKI
SOKU SOKU
ZE ZE
SHIKI KŪ
Os fenômenos (SHIKI) são Vacuidade (KŪ).
A Vacuidade (KŪ) é fenômeno (SHIKI).
83
空 色
即 即
是 是
色 空
84
YAKU JU
BU SŌ
NYO GYŌ
ZE SHIKI
A percepção-sensação (JU), o pensamento (SŌ),
a atividade (GYŌ) e a consciência (SHIKI)
são igualmente (YAKU BU NYO ZE) [Vacuidade].
85
亦 受
復 想
如 行
是 識
86
COMENTÁRIOS
舎利子、色不異空、空不異色、
色即是空、空即是色、
受想行識、亦復如是。
SHARISHI, SHIKI FU I KŪ, KŪ FU I SHIKI,
SHIKI SOKU ZE KŪ, KŪ SOKU ZE SHIKI,
JU SŌ GYŌ SHIKI, YAKU BU NYO ZE.
A partir daqui começam as palavras de Buda dirigidas a
舎利子 SHARISHI. O Buda Shākyamuni ordenou dois mil e
quinhentos discípulos, entre os quais selecionou dez para
entregar a transmissão.
O primeiro é o mencionado no 般若 心経 HANNYA
SHINGYŌ, 舎利子 Sharishi ( Shāriputra em sânscrito). Era
famoso por sua grande inteligência.
O segundo é 目連 MOKUREN ou 目犍連 MOKKENREN
(Maudgalvalāyana em sânscrito), também chamado Kolita
( 拘栗 KURI). Nasceu de pai brahman na cidade de Kolita,
perto de Rājagriha (王舍城 ŌSHA JŌ). Sob a influência de
seu amigo Shāriputra fez-se discípulo de Buda Shākyamuni.
Maudgalvāyana era conhecido por sua habilidade com os
poderes mágicos.
O terceiro, 摩訶迦葉 MAKA KASHŌ (Mahākāshyapa
em sânscrito) nasceu igualmente de uma família de
brahmanes chamada Pippalayana e se tornou discípulo de
Buda três anos depois de obter o 悟 SATORI. Depois de
apenas oito dias de permanência ao lado de Buda,
converteu-se em um sábio, em um liberado. Entregou-se à
87
prática do 頭陀行 ZUDAGYŌ 19, da qual foi um dos principais
praticantes. Um dia em Benares, o Buda Shākiamuni, à
maneira de sermão, tomou uma flor em seus dedos e a fez
girar. Apenas Mahākāshyapa compreendeu o sentido deste
gesto e sorriu. Buda lhe entregou a flor e lhe transmitiu o
Dharma.
Foi ele quem primeiro recebeu o 嗣 法 SHIHŌ, a
transmissão. Antes de sua morte, ele a transmitiu por sua vez
a Ānanda, o qual obteve o mandato da ordem
頭 陀 行 ZUDAGYŌ. Sua profunda virtude lhe valeu ser
conhecido com o nome de “discípulo da pele de ouro”.
O quarto é 阿那律 ANARITSU ( Anurudha em páli,
Anirudha em sânscrito). Era primo de Buda. Sempre
adormecia durante os sermões de Buda, e por isso fez a
promessa de nunca mais dormir. Perdeu a visão em
conseqüência, mas adquiriu o olho maravilhoso que faz parte
dos seis poderes e que permite ver intuitivamente todas as
coisas.
Segundo a tradição birmanesa, Anirudha expôs o
Abhidharma-Pitaka 20 no primeiro concílio de Rājagriha
(王舍城 ŌSHA JŌ). Este concílio havia reunido, pouco menos
de um mês depois da morte de Buda, uns quinhentos
monges, de santidade reconhecida, com a tarefa de reunir e
transcrever as palavras de Buda. Desta forma, foram fixados
e transcritos os textos canônicos.
19
頭陀行 ZUDAGYŌ: Práticas ascéticas destinadas à purificação do
corpo e da consciência, e ao desapego à vestimenta, aos alimentos e
à uma moradia fixa.
20
Abhidharma-Pitaka ( 阿 毘 達 磨 ABIDATSUMA) Uma das três
divisões do cânone Budista. É formado por comentários e tratados
sobre a filosofia Budista e atribuídos aos primeiros discípulos de
Buda. Segundo o cânone Páli, este Pitaka (compilação) é composto
por sete obras principais.
88
O quinto é 須菩提 SHUBODAI (Subhūti em sânscrito).
Obteve o 悟 SATORI realizando 空 KŪ através do Sūtra do
Diamante.
O sexto é 富 楼 那 FURUNA ou Purna (Purna-
Maitrāyani-Putra). Filho de um professor de Shuddhodana
( 浄飯王 JOBONNO), rei de Kapilavastu ( 毘羅衛国 KABIRAE
KOKU), da mesma idade de Buda, nascido no mesmo mês.
Foi o pregador mais eloqüente de todos os discípulos.
O sétimo: 旃延 KASENNEN (Kātyāyana em sânscrito).
Também procedia de uma família de brahmanes do sul da
Índia. Foi um hábil orador que amava os debates.
O oitavo 優婆離 UPARI ou UBARI (Upāli em sânscrito).
Nasceu escravo. Fez-se o propagador da moral através dos
preceitos, que ele mesmo respeitava escrupulosamente.
O nono 羅 喉 羅 RAGORA ou RAUN (Rāhula em
sânscrito). Filho de Buda, nasceu antes que Shākyamuni
renunciasse ao mundo. Ele também respeitava
profundamente os preceitos.
O décimo: 阿難 ANAN (Ānanda em sânscrito). Também
era primo de Buda. Esteve a seu lado por mais de vinte anos,
ajudando-o como criado. Era de uma delicadeza e de uma
distinção notáveis. Sua beleza atraia todas as mulheres que
o viam. Esta foi a razão pela qual foi para Buda um dos
discípulos mais difíceis. Buda teve de admoestá-lo às vezes.
Mas, por outro lado, há que se reconhecer nele grandes
qualidades intelectuais e uma memória excelente. Assim
como seu condiscípulo 阿 那 律 ANARITSU, expôs seus
comentários sobre o Tripitaka ( 三 蔵 SANZO), durante o
primeiro concilio de Rājagriha (王舍城 ŌSHA JŌ).
89
般若 心経 HANNYA SHINGYŌ, era conhecido por sua
grande inteligência. É interessante saber este detalhe para
poder compreender a continuação do 般若 心経 HANNYA
SHINGYŌ. 舎利子 SHARISHI: Oh, Shāriputra...!
Nos Sūtra, as palavras sempre são dirigidas a um
discípulo em especial. Na maioria dos casos, a data e o lugar
em que se deu o ensinamento também estão indicados.
Freqüentemente se encontra também o termo 如是 NYO ZE
que significa: “Assim eu ouvi”21.
21
A forma canônica completa é 如 是 我 聞 NYOZEGABUN, que
corresponde ao sânscrito evam mayā shrutam, “assim eu ouvi”. Após
a morte de Buda, seus discípulos se reuniram e codificaram seus
ensinamentos. 阿難 ANAN (Ānanda), conhecido por sua prodigiosa
memória, recitava-os iniciando por esta fórmula. (N.T.)
22
O cânone tibetano conservou, em sua versão do Mahā Prajñā
Paramitā Hridaya Sūtra, (bCom Idam’das ma shes rab kyi pha tu phyin
p’ai snying po – Chom dän dä ma she rab kyi pa rol tu jin pai nying
po), aquilo que corresponderia a introdução:
91
com seu amigo 目連 MOKUREN, perceberam no fundo do
vale ruídos de festa e alvoroço que os tiravam de sua
melancolia.
“Vamos nos divertir com eles”, decidiram de comum
acordo.
Beberam, riram e dançaram durante toda a noite. O dia
se levantava e depositava sua luz sobre os últimos atrasados,
bêbados sempre sedentos, jovens desavergonhados, sempre
insaciáveis em sua desmesura, jovens sem ocupação,
embrutecidos, desenganados. Então verificaram a
precariedade da vida, o redemoinho que arrasta as pessoas
de um lado para o outro em menos tempo que o necessário
para verificarmos que estamos atravessando o rio da vida,
em menos tempo que o necessário para compreender a
maneira de escapar ao naufrágio.
“Vamos buscar a eternidade, vamos nos saciar da
imortalidade”, disse Shāriputra, “vamos encontrar a fonte
inesgotável que alimenta todo este movimento. Com certeza
um grande mestre nos indicará o bom caminho”.
Ficaram a procurar um verdadeiro mestre e se fizeram
discípulos de um brahman chamado Sandyana. Pouco tempo
depois, como os dois eram muito inteligentes, o mestre lhes
disse:
“Vocês também podem ser mestres. Tenho duzentos e
cinqüenta discípulos. A partir de agora vocês se ocuparão de
sua educação.” Uma semana mais tarde, converteram-se nos
representantes do mestre.
Entretanto 舎利子 SHARISHI e 目連 MOKUREN não
estavam satisfeitos. Uma manhã, durante o passeio de
mendicância (托鉢 TAKUHATSU), cruzaram com um monge
muito jovem. Este se deteve frente a eles do outro lado do
caminho.
“Que serenidade e que nobreza! Que dignidade!”
Não podiam desviar o olhar do semblante tão puro e
agradável daquele jovem monge. 舎 利 子 SHARISHI e
目連 MOKUREN estavam absortos.
92
“Certamente é mais jovem do que nós, mas sua
atitude, entretanto, é tão perfeita! Quem o dotou de tão belas
qualidades? Que sábio o guia? Sem dúvida é um mestre!”
O jovem monge respondeu:
“Meu Mestre é Shākiamuni Buda”.
舎利子 SHARISHI e 目連 MOKUREN não esperaram
mais nada para dirigirem-se a este mestre. Shākiamuni Buda
dedicou toda sua atenção à sua educação e rapidamente
converteram-se em seus melhores discípulos.
舎 利 子 SHARISHI era as vezes enviado por Buda para
pregar em seu lugar.
O poeta Pengissa, depois de ter escutado um de seus
sermões, escreveu este poema:
93
舎 利 子 SHARISHI é o símbolo da sabedoria, da
inteligência. Por isso, o 般若 心経 HANNYA SHINGYŌ é
essencialmente um discurso que a compaixão faz à razão.
舎利子、色不異空、空不異色、
色即是空、空即是色、
受想行識亦復如是。
94
E depois, 受 想 行 識 JU SŌ GYŌ SHIKI (este
識 SHIKI não é o mesmo que o anterior). Estes são os
五薀 GO-UN, os cinco agregados que tínhamos estudado
anteriormente. Cada um destes cinco agregados é por sua
vez 空 KŪ e 空 KŪ se transforma sucessivamente em cada
um destes agregados.
色 SHIKI significa: os fenômenos, o visível, o universo
material, a forma, o corporal. 空 KŪ é a Vacuidade, shūnya
em sânscrito, a existência absoluta, sem númeno, a não-
discriminação absoluta, a essência una e não
conceitualizável.
色 不 異 空 SHIKI FU I KŪ: 色 SHIKI não é diferente de
空 KŪ, os fenômenos não são diferentes da essência.
空 不 異 色 KŪ FU I SHIKI: 空 KŪ não é diferente de
色 SHIKI, a essência não é diferente dos fenômenos.
色 即 是 空 SHIKI SOKU ZE KŪ: 色 SHIKI é 空 KŪ, os
fenômenos em si são 空 KŪ, a Vacuidade.
空 即 是 色 KŪ SOKU ZE SHIKI: 空 KŪ em si é
色 SHIKI, a essência, a vacuidade mesma é fenômeno.
95
percepções não são diferentes de 空 KŪ, 空 KU não é
diferente das percepções. 受 即 是 空 JU SOKU ZE KŪ,
空 即 是 受 KŪ SOKU ZE JU: as percepções em si são 空 KŪ,
Vacuidade e a Vacuidade em si é percepção. Podemos
assim estabelecer as mesmas equações para 想 SŌ, as
concepções mentais, para 行 GYŌ, a volição, e para
識 SHIKI, a consciência. Os cinco agregados são 空 KŪ, e
空 KŪ não é outra coisa que os cinco agregados. Esta
passagem é uma das mais importantes do
般若 心経 HANNYA SHINGYŌ: define a filosofia essencial
do Mahāyāna ( 大 乗 DAIJŌ), e muito particularmente do
Budismo Zen (禅宗 ZEN-SHŪ), onde é seu pilar central.
96
行 GYŌ: a vontade, parecida com uma cebola. Pode-se
descascá-la até a total desaparição do bulbo. Não se pode
agarrar sua essência, assim é a vontade.
識 SHIKI; consciência sem númeno, ilusória. Não se
pode pegar a consciência; o estado de consciência presente
já passou, o seguinte chega, depois passa, passa.
97
Dizer: “色 SHIKI em si não é nada”, expressa uma
visão parcial, com tendência ao niilismo ontológico, atitude
perigosa porque é simplesmente destrutiva.
Segundo o sentido comum, o fenômeno não é outra
coisa senão fenômeno: 色 即 是 色 SHIKI SOKU ZE SHIKI, e
o nada é o nada: 空 即 是 空 KŪ SOKU ZE KŪ.
Este modo de apresentação tem também sua parcela
de verdade. Entretanto, 色 即 是 空 SHIKI SOKU ZE KŪ e
空 即 是 色 KŪ SOKU ZE SHIKI são seu aspecto
complementar, o pólo oposto e necessário.
Tal é a filosofia do Budismo.
O movimento segue sem cessar de um pólo ao outro;
inclusive com 空 KŪ, o nada, o pobre pode chegar a ser rico,
o negativo contém potencialmente o positivo e o atualiza
quando as condições requeridas se reúnem; o negativo se
aniquila assim liberando o positivo. Este mesmo processo se
estende a todas as formas e a todos os fenômenos do mundo
manifesto. A vida surge da morte, o nascimento nos conduz
inevitavelmente à morte. O belo se transforma em feio, o feio
em belo, o jovem contém potencialmente a velhice, e a
velhice contém a juventude. Todas as coisas são
potencialmente, todas as coisas têm um contrário, e este
mundo temporal só existe em relação a ele. Todas as coisas
podem se converter em seu contrário. O nada e o todo não
se rechaçam, e mais, só podem existir um em função do
outro, em unidade.
Se você vê 空 KŪ, vê também 色 SHIKI. Se vê 色 SHIKI,
vê igualmente 空 KŪ. Esta atitude constitui um feito
fundamental de sabedoria.
Todo o 般若 心経 HANNYA SHINGYŌ repousa sobre a
formulação desta lei. Compreender esta lei (não
intelectualmente, mas interiormente, conhecendo-a na
totalidade de nosso corpo-espírito), aplaina todos os
obstáculos, suprime as pseudo dificuldades. É possuir a
Grande Sabedoria que suprime qualquer oposição.
98
千利休 SEN NO RIKYŪ (1522-1591), o fundador da
Cerimônia do Chá (茶の湯 CHA NO YU), recebeu um dia um
ramo de flores muito bonitas 椿 TSUBAKI,24 que o Superior
do grande templo 大徳寺 DAITOKU-JI de 京都 KYŌTO lhe
havia enviado. Um jovem monge devia entregá-las.
Precisamente diante da sala de chá, tropeçou e deixou
cair no chão as delicadas flores. Todas as pétalas se
desprenderam miseravelmente, sobrando apenas os talos
despidos nas mãos do monge. Muito confuso, o jovem se
desculpou ante 千利休 SEN NO RIKYŪ, que respondeu:
“Entre na sala de chá”.
No 床の間 TOKONOMA 25 , 千利休 SEN NO RIKYŪ
depositou uma vasilha vazia. Introduziu os talos nela e
depois as
pétalas sobre o 畳 TATAMI (esteira de palha de arroz),
harmoniosamente ao redor da vasilha. O conjunto ficou muito
belo, muito natural e simples. 千利休 SEN NO RIKYŪ disse
então ao jovem monge:
“Estas flores trazidas por você eram 色 SHIKI:
色 即 是 色 SHIKI SOKU ZE SHIKI: o fenômeno é o
fenômeno. Ao cair, converteram-se em 空 KŪ, já não havia
mais flores. 色 即 是 空 SHIKI SOKU ZE KŪ: o fenômeno é
空 KŪ, nada. Com este nada, esta sala foi embelezada muito
mais que se tivéssemos colocado múltiplos artigos de
decoração. Apenas com algumas pétalas dispostas pelo
畳 TATAMI ao redor de uma vasilha sem flores no
床の間 TOKONOMA”.
24
No original, “TSUBA KIDES”.椿 TSUBAKI em japonês é camélia.
(N.T.)
25
床 の 間 TOKONOMA: nicho ou alcova nas casas japonesas
destinado à apresentação de arranjo floral (生花 IKEBANA), caligrafia
( 掛物 KAKEMONO), ou outras peças de arte. (N.T.)
99
Esta história reflete o espírito do 禅 ZEN do qual surgiu
o Caminho do Chá, 茶道 CHADŌ.
100
26
, escrito pelo autor desta teoria, mestre 洞 山 TŌZAN. Este
compêndio de poemas é considerado como a flor desta filosofia
profunda, a qual não é uma análise racional nem um sistema
edificado – o qual seria contrário ao espírito 禅 ZEN – mas uma
aproximação intuitiva das relações que sustentam o mundo
fenomenal e o mundo do absoluto. A essência desta filosofia é
formulada em cinco enunciados, deduzidos uns dos outros:
26
宝鏡 三昧 HOKYŌ ZAN MAI: Ver nota nº 2.
101
Podem ser estabelecidas assim as seguintes
similaridades:
兼 HEN 中 CHŪ 到 TŌ
102
Em 正 中 偏 SHŌ CHU HEN, ou em
空 即 是 色 KŪ SOKU ZE SHIKI, 空 KŪ se transforma no ego.
O Poder Cósmico fundamental entra no ego, nascido ele
mesmo do cosmos através da fecundação. Isto é 空 即 是 色
KU SOKU ZE SHIKI ou 正中偏 SHŌ CHŪ HEN: Deus entra
no ego.
O ego se transforma em 空 KŪ, volta ao Poder
Cósmico fundamental. Quando se morre, o ego retorna ao
cosmos. 色 SHIKI retorna a 空 KŪ, 偏 HEN entra em 正 SHŌ.
Isto é 色 即 是 空 SHIKI SOKU ZE KŪ ou
偏 中 正 HEN CHŪ SHŌ. A maioria dos homens crê
(principalmente no Ocidente) que a diferença entre os
fenômenos e o absoluto é total e irredutível. Por um lado
estão os fenômenos, nada mais que os fenômenos, o mundo
material, movido mecanicamente e diretamente observável.
Por outro lado existe a crença num mundo ideal, absoluto,
totalmente transcendente a este mundo fenomenal. Os
Orientais nunca fizeram tais discriminações, que são
consideradas por eles como um contra senso, como
absurdos totais. Eles sabem que:
色 即 是 空 SHIKI SOKU ZE KŪ ,
偏中正 HEN CHŪ SHŌ, os fenômenos são a essência.
空 即 是 色 KŪ SOKU ZE SHIKI,
正中偏 SHŌ CHŪ HEN, 空 KŪ em si é fenômeno.
兼中到 HEN CHŪ TŌ: 空 KŪ e 色 SHIKI estão em
unidade total, o cosmos e o ego se interpenetram.
103
“Quando o Bodhisattva Avalokiteshvara (o Bodhisattva
da Compaixão) teve a experiência e compreendeu a verdade
através da Prajñā-Pāramitā, deu-se conta de que as
existências são formadas pelos cinco skandha:
色 受 想 行 識 SHIKI JU SŌ GYŌ SHIKI (matéria-sensação,
percepção, pensamento, vontade e consciência).
Quando os cinco skandhās são observados através de
Prajñā se vê 空 KŪ. A origem de cada um destes skandhās é
Prajñā.
Quando se compreende isto, pode-se compreender
que:
28
六根 ROKUKON (sad indriyāni): 眼 GEN, 耳 NI, 鼻 BI, 舌 ZE,
身 SHIN e 意 I, (caksuh, shrotra, ghrāna, jihvā, kāya e manāmsi,
respectivamente). (N.T.)
29
六境 ROKKYŌ (sad visayāh): 色 SHIKI, 声 SHŌ, 香 KŌ, 味 MI,
触 SOKU e 法 HŌ (rūpa, shabda, gandha, rasa, sprastavya e dharmah,
respectivamente) (N.T.)
104
O domínio das seis consciências subjetivas, domínio
que nasce da união dos precedentes: consciências visual,
auditiva, olfativa, gustativa, tátil e consciência voluntária30.
A grande sabedoria da Prajñā Pāramitā pode nascer
igualmente, como no caso do Buda Shākiamuni, da
observação e da compreensão das Quatro Nobres Verdades
四諦 SHI TAI (catur-vidham satyam), que constituem a Via
privilegiada da realização. Estas Quatro Nobres Verdades
são:
1. A Nobre Verdade sobre o sofrimento, 苦 KU (duhka): o
mundo está cheio de sofrimentos – nascimento,
velhice, enfermidade, morte. Amar é sofrimento,
odiar é sofrimento.
30
六識 ROKUSHIKI (sad vijñānāni): 眼識 GENSHIKI, 耳識 NISHIKI,
鼻識 BISHIKI, 舌識 ZESSHIKI, 身識 SHINSHIKI e 意識 ISHIKI (caksur-
vijñāna, shrota-vijñāna, ghrāna-vijñāna, jihvā-vijñāna, kāya-vijñāna e
mano-vijñāna, respectivamente). (N.T.)
105
modo de vida justo, esforço justo, atenção justa e
concentração justa31.
31
正見 SHŌ KEN (samyag drshti), 正思惟 SHŌ SHI YUI (samyag
samkalpa), 正語 SHŌ GO (samyag vāc), 正業 SHŌ GYŌ (samyak
karmānta), 正命 SHŌ MYŌ (samyag ājīva), 正精進 SHŌ SHŌ JIN
(samiag vyāyāma) 正念 SHŌ NEN (samiak smrti) e 正定 SHŌ JŌ
(samyak samādhi) respectivamente. (N.T.)
106
“Devemos saber que receber, ler e cantar todos os
sūtra juntos, tendo um conhecimento pleno e total deles, é
preservar Prajñā Pāramitā e o Dharma. Meu falecido Mestre
如浄 NYOJŌ leu um dia este poema:
32
風鈴 FURIN: 風 FU: vento; 鈴 RIN: campainha, guizo. Este tipo de
guizo está suspenso nas portas dos templos, tilintando ao menor
sopro do vento.
107
Existe outra escritura que apresenta outro aspecto do
摩訶 般若 波羅蜜多 MAKA HANNYA HARAMITTA: trata-se
do 理 趣 經 RISHUKYŌ, também chamado de
般 若 理 趣 經 HANNYA RISHUKYŌ. É o sūtra do Prajñā
Pāramitā em cento e cinqüenta shlokah33, que descreve a
verdade de Prajñā Pāramitā ou da sabedoria perfeita de
que falava o Buda Vairoccana ( 大 日 如 来 DAINICHI
NYORAI) em benefício de Vajrasattva
(金剛薩埵 KONGŌSATTA). O sūtra começa com um convite
ao amor: “Voar sobre a flecha do amor, assim é também o
espírito puro do Bodhisattva”. Na continuação, voltarei a
estes comentários.
33
Shlokah: métrica de versificação dos textos sânscritos, composta
usualmente de duas linhas de dezesseis sílabas. (N.T.)
108
無 ”MU”.
109
NEM NASCIMENTO, NEM MORTE
110
ZE
SHO SHA
HŌ RI
KŪ SHI
SŌ
111
Oh, Shariputra! (SHARISHI). Todas (SHO) as existências (HŌ)
são (ZE) Vacuidade (KŪ).
是
諸 舎
法 利
空 子
相
112
FU FU FU
ZŌ KU SHŌ
FU FU FU
GEN JŌ METSU
113
Não (FU) há nascimento (SHŌ), nem (FU) morte (METSU).
Não (FU) há impureza (KU), nem pureza (JŌ).
Não (FU) há crescimento (ZŌ), nem (FU) diminuição (GEN).
不 不 不
増 垢 生
不 不 不
減 浄 滅
114
SŌ MU ZE
GYŌ SHIKI KO
SHIKI MU KŪ
JU CHŪ
想 無 是
行 色 故
識 無 空
受 中
116
ZES MU
SHIN GEN
I NI
BI
Não (MU) há olhos (GEN), nem ouvidos (NI),
117
nem nariz (BI), nem língua (ZE), nem corpo (SHIN)
e nem mente (I).
舌 無
身 眼
意 耳
鼻
118
MI MU
SOKU SHIKI
HŌ SHŌ
KŌ
Não (MU) há cor-forma (SHIKI), nem som (SHŌ),
119
nem cheiro (KŌ),nem sabor (MI), nem texturas (SOKU),
nem pensamento (HŌ).
味 無
触 色
法 声
香
120
I NAI MU
SHIKI SHI GEN
KAI MU KAI
121
意 乃 無
識 至 眼
界 無 界
122
MU MU
MU MU
MYŌ MYŌ
JIN YAKU
123
Não (MU) há ignorância (MU MYŌ) e (YAKU) nem (MU) extinção
(JIN) da ignorância (MU MYŌ).
無 無
無 無
明 明
尽 亦
124
YAKU NAI
MU SHI
RŌ MU
SHI RŌ
JIN SHI
125
E assim sucessivamente (NAI SHI) até não (MU) há velhice
(RŌ) e morte (SHI), e (YAKU) nem (MU) extinção (JIN) da velhice
(RŌ) e morte (SHI).
亦 乃
無 至
老 無
死 老
尽 死
126
MU MU
CHI KU
YAKU SHŪ
MU METSU
TOKU DŌ
Não (MU) há sofrimento (KU), nem causa de sofrimento (SHŪ),
nem libertação do sofrimento (METSU), nem caminho (DŌ)
que conduza à liberação do sofrimento.
127
Não (MU) há sabedoria (CHI) e (YAKU) não (MU) há
o que obter (TOKU).
無 無
知 苦
亦 集
無 滅
得 道
128
MU
KO SHO I
TOKU
129
A única coisa que há é: Nada que obter.
無
故所以
得
130
131
COMENTÁRIOS
舎利子、是諸法空相、
不生不滅、不垢不浄、不増不減、
是故空中無色無受想行識、
無眼耳鼻舌身意、
無色声香味触法、
無眼界乃至無意識界、
無無明亦無無明尽、
乃至無老死亦無老死尽、
無苦集滅道。無知亦無得、
以無所得故。
132
MU KU SHŪ METSU DŌ. MU CHI YAKU MU TOKU,
I MUSHOTOKU KO.
舎利子、是諸法空相、
不生不滅、不垢不浄、不増不減、
133
No Mahāyanā, 法 空 HŌKKŪ designa todas as
existências, 空 KŪ. 空 KŪ se manifesta através da lei de
interdependência e do principio de impermanência. Tudo é
não nascido, sem começo nem fim, 不生不滅 FU SHŌ FU
METSU, tudo é eternamente.
O que é 空 KŪ? 色 即 是 空 SHIKI SOKU ZE KŪ.
空 即 是 色 KŪ SOKU ZE SHIKI. Fenômeno e vacuidade não
são diferentes. Mas de nada serve compreender isso
intelectualmente. O importante é sentir a experiência, vivê-la
com o corpo e o espírito, realizar plenamente a absoluta
verdade. Esta experiência é 座禅 ZAZEN: a atitude do corpo
e do espírito justa.
諸 法 SHO-HŌ: 諸 SHO: tudo, todos. 法 HŌ: tem
numerosos significados. É o Dharma ensinado pelo Buda, a
lei do cosmos; mas também as existências infinitas dos
dharmas. Aqui, aplicado junto a 諸 SHO, tudo, todos, trata-se
do segundo significado.
Todos os fenômenos são formados pelos cinco
agregados, os 五薀 GO-UN. Todos os fenômenos (色 SHIKI)
são 空相 KŪSŌ ( 相 SŌ; o aspecto): aspectos de 空 KŪ.
Todas as existências são 不 生 FU SHŌ ( 不 FU:
negação, não. 生 SHŌ: nascido, produzido) não nascidas,
não produzidas; 不 滅 FU METSU: não extintas, não
desintegradas. 不 垢 FU KU: não são manchadas;
不 浄 FU JŌ: não puras. 不 増 FU ZŌ: não crescem; 不 減 FU
GEN: não diminuem, não involucionam.
134
是故空中無色無受想行識、
無眼耳鼻舌身意、
34
Os quatro skandhās restantes, depois de 色 SHIKI, ou seja,
受 想 行 識 JU SŌ GYŌ SHIKI, mais os seis órgãos dos sentidos,
眼 耳鼻 舌 身 意 GEN NI BI ZE SHIN I. (N.T.)
135
A ciência não tem conseguido responder até agora.
Onde situar nossa essência? Em que parte do corpo? Ou
fora do corpo?
Não se pode encontrar uma verdadeira raiz da
substância.
Finalmente, chegamos à energia cósmica. Quando esta
se encontra em um estado potencial, pode-se dizer que se
tem uma aproximação objetiva da natureza de 空 KŪ; mas
para compreender a natureza desta energia potencial, é
necessária a dimensão da experiência, subjetiva, vivida com
o corpo e o espírito. Esta experiência é inefável,
inexpressável. Se esta experiência se situa mais além da
consciência, como poderia ser traduzida em conceitos, em
palavras estreitas? Seu conhecimento requer uma ruptura
dos limites do ego.
Qual é a origem da luz?
Em que se baseia o Poder Cósmico fundamental?
O que sustenta esta manifestação?
A doutrina de Nāgārjuna (龍樹 RYŪJU), estipula a lei
de interdependência, 縁起 ENGI, dizendo que esta é a trama
da construção e da organização do universo. Em sânscrito se
diz Pratītya-samutpāda, a lei de coordenação sem substância
própria, sem númeno, 空 KŪ.
A interação é a lei de manifestação do Poder Cósmico
fundamental; dito de outra maneira, o potencial cósmico
fundamental, ao manifestar-se, se dispersa e materializa esta
energia cósmica; esta se divide e trabalha segundo uma
ordem regida pela lei de interdependência. Somente esta lei
dá à energia sua aparência fenomenal. 空 KŪ não tem como
único significado vacuidade; seu sentido é muito mais
profundo; as vezes se traduz por “a totalidade do cosmos, o
todo”. O 漢字 KANJI 空 KŪ significa as vezes “vazio”, as
vezes “céu”. É também o círculo que inclui tudo. Nāgārjuna
龍樹 RYŪJU, a partir da noção de 縁起 ENGI, extrai a de
無 自性 MU JI SHŌ, sendo uma corolário da outra.
136
無 自 性 MU JI SHŌ: a existência sem existência
própria, sem númeno, 空 KŪ. A doutrina de Nāgārjuna
(龍樹 RYŪJU) é definida como a doutrina do”空 KŪ ativo”, por
oposição à doutrina do “空 KŪ passivo”, ou 但空 TANKŪ,
ensinada por alguns ramos do Budismo, sobretudo pelo
Budismo Sthāvira 35 , cuja doutrina, depois de uma análise
formal de todas as formas de existência, desemboca
simplesmente na não substancialidade das existências;
inversamente, a doutrina de 不 但空 FU TANKŪ, ou “空 KŪ
ativo”, expressa o Caminho do Meio 36 . Este não se
fundamenta unicamente sobre o aspecto negativo de 空 KŪ,
mas realiza que a verdadeira natureza de 空 KŪ não é nem
existência, nem não existência, mas as duas ao mesmo
tempo.
A noção de 空 KŪ é tão vasta que, segundo a aplicação
que se tenha querido dar, em função da tendência doutrinária
dos numerosos ramos do Budismo, conduziu a doutrinas
muito variadas. Fala-se assim em 析空 SHAKUKŪ, a “não
substancialidade analítica”, estudo que procede , como seu
nome indica, da análise e que se opõe a 體 空 TAIKŪ,
aproximação interior procedente da meditação que deve
conduzir a realização da “não substancialidade de toda forma
de existência”. Nāgārjuna (龍樹 RYŪJU) em uma de suas
obras 37 , empreendeu o estudo dos múltiplos aspectos de
35
Sthāvira: ou Sthavira-vāda uma das vinte escolas do Hīnayāna. (上
座部 JŌZA BU em japonês). Também conhecida como Theravāda
(N.T.)
36
Caminho do Meio, 中道 CHŪDŌ, madhyama-pratipad. (N.T.)
37
O grande mestre Nāgārjuna (龍樹 RYŪJU) parece ter composto um
dos primeiros comentários do Prajñāparamitā, o extenso
Mahāprajñāparamitāshastra (大智度論 DAICHIDO-RON), preservado
apenas na tradição chinesa. Na tradição tibetana, as seis principais
obras de Nāgārjuna (龍樹 RYŪJU), que explicam o ensinamento de
137
空 KŪ, tal e como estavam expostos nos textos doutrinários:
mais de vinte aspectos são analisados.
O mestre 永嘉大師 YOKA DAISHI, mais tarde, em sua
obra, o 證道歌 SHŌDŌKA, 38 fará menção a isto e falará de
“a porta dos vinte 空 KŪ”.
Seja como for, a análise de 空 KŪ pode levar mesmo à
negação de 空 KŪ: 空 KŪ não é 空 KŪ, e esta negação tem
em certa maneira mais valor do que uma idéia dogmática de
空 KŪ, que pode conduzir aos extravios do niilismo.
Esta é a razão pela qual o 般 若 心 経 HANNYA
SHINGYŌ nos coloca em guarda e diz que devemos
encontrar em 空 KŪ o infinito e o eterno. Portanto, não há por
que criar conceitos, não há por que sustentar nenhuma
opinião. Somente praticar até a extinção absoluta do ego,
extinção que conduz à absorção no infinito e no eterno. Isto é
alcançar o nirvāna.
138
- Quando isto existe, aquilo existe.
- Quando isto aparece, aquilo aparece.
- Quando isto não existe, aquilo não existe.
- Quando isto desaparece, aquilo desaparece.
Tudo existe apenas por inter-relação. Todo fenômeno
está ligado a um antecedente (ou a vários antecedentes). A
lei de 縁 起 ENGI é uma negação da criação
espontânea. A filosofia Ocidental sempre tentou, de forma
analítica, aproximar-se da natureza do absoluto, peneirar a
natureza da essência. Sempre quis atribuir à essência a
consciência de númeno. A ciência atual continua este
caminho através da experimentação objetiva.
139
valor do ensinamento do Mestre 良寛 RYŌKAN 39 , assim
como a profunda sabedoria que manifestava com os seres
sofredores e seus ofuscantes desejos:
Um dia, um homem velho visitou o Mestre
良寛 RYŌKAN e lhe disse:
“Gostaria de lhe pedir que faça um 祈禱 KITŌ40 para
mim. Muitos de meus parentes morreram e eu mesmo não
tardarei a desaparecer. Rogo que faça um 祈禱 KITŌ para
que eu possa viver muito tempo.”
“Fazer um 祈禱 KITŌ para obter uma vida longa não é
difícil. Diga-me, que idade você tem?”, perguntou
良寛 RYŌKAN.
“Oitenta anos.”
“Mas você é ainda muito jovem! Um provérbio japonês
diz que até os quarenta ou cinqüenta anos, ainda se é um
bebê e que entre os sessenta e os oitenta, deve-se amar.
Até que idade você quer viver?”
“Conformo-me em viver até os cem anos.”
“Apenas cem anos! Seu desejo não é especialmente
grande. Até os cem anos! Então, só lhe restam mais vinte
anos de vida! Não é muito tempo, vinte anos! Meus
祈 禱 KITŌ são conhecidos porque permitem às pessoas
realizar seus desejos. Você morrerá portanto aos cem anos,
exatamente.”
O ancião sentiu medo e expressou seu desejo de viver
até os cento e cinqüenta anos.
39
Mestre 良 寛 RYŌKAN (1757-1831). Monge da escola
曹洞 宗 SŌTŌ SHU. Entrou para a ordem com a idade de dezoito
anos. É muito conhecido por suas obras poéticas e por suas
caligrafias, assim como por sua natureza excêntrica.
40
祈禱 KITŌ: prece às divindades para obter uma meta precisa. Os
祈禱 KITŌ não são muito praticados no 禅 ZEN, mas são hábito
corrente no Budismo esotérico.
140
“Vejamos”, replicou 良 寛 RYŌKAN, “você já tem
oitenta anos. Já viveu então metade de sua vida.... Escalar
uma montanha exige muito tempo na ida, mas na volta é bem
rápido. A partir de agora, seus últimos setenta anos vão
passar como um sonho!”
“Espere, espere! Dê-me então trezentos anos!”
“Você sabia que o grou vive até os mil anos e as
tartarugas até os dez mil?”, replicou 良寛 RYŌKAN. “Estes
animais podem viver todo este tempo e você, que é um ser
humano, só deseja viver trezentos anos!”
“Tudo isto me deixa perplexo!”, disse o ancião. “Até
quantos anos de vida você pode me dar?”.
“Percebo assim que você não quer morrer. Saiba ao
menos que sua atitude é a mais egoísta de todas!”.
“Eu sei”, respondeu o ancião.
“Então, é melhor fazer um 祈禱 KITŌ para não morrer!”
“É possível?”
“Sim, mas é muito, muito caro e requer muito tempo.”
“Tudo bem”, disse o homem, “prefiro este 祈禱 KITŌ!”
良寛 RYŌKAN disse-lhe então:
“Hoje vamos começar recitando o 般若 心経 HANNYA
SHINGYŌ apenas, depois você terá que vir todos os dias
fazer 座禅 ZAZEN no templo. E eu lhe darei sermões.”
Desta maneira, o Mestre 良寛 RYŌKAN conduziu o
ancião à fé justa e exata. 不生不滅 FU SHŌ FU METSU: nem
nascido, nem morto, a vida eterna.
141
不生不滅 FU SHŌ FU METSU: sem nascimento nem
morte.
不 垢 不 浄 FU KU FU JŌ: nem manchado, nem
imaculado. Tal é a natureza de 空 KŪ e de todas as
existências. A maioria das pessoas busca a pureza e rechaça
as manchas. Originalmente, sem embargo, todos os
fenômenos, todas as existências do cosmos não são puras
nem impuras. Sua essência é idêntica. Mas devido à suas
ações e pensamentos, o homem as vai maculando e cria tais
discriminações. A terra, as montanhas, os rios, os bosques,
os oceanos... Nada é puro nem manchado. É a natureza.
Quando o espírito do homem “se purificar”, ou seja, quando
alcançar a condição mais além de qualquer conceito de puro
e de impuro, os fenômenos se lhe aparecerão em sua
verdadeira natureza, tal qual são.
É verdade que a civilização materialista produz um
grande numero de manchas. A contaminação é o símbolo da
crise atual da civilização. Mas é o mesmo problema.
Originalmente, tudo depende do espírito do homem.
A Terra Pura 41 não existe num país longínquo, nem
mais além da morte. Se nossa consciência é justa e nossa
palavra exata, nosso comportamento reto, se as três ações
41
Terra Pura: 浄土宗 JŌDOSHŪ. A Terra Pura é uma vertente do
Budismo que oferece a hipótese de fugir ao ciclo do renascimento
samsárico através da fé num Buda deificado. Nos séculos I e II d. C.,
a especulação Mahāyāna desenvolveu uma cosmologia que era muito
mais extensa do que qualquer outro tema discutido nos primeiros
tempos do Budismo. Os Mahāyanistas propunham a existência de
mundos sem fim, cada um dos quais albergava Budas e Bodhisattvas.
Estes “territórios de Buda” são reinos paradisíacos e cada um deles é
presidido por um Buda, sendo o mais célebre o paraíso ocidental
conhecido por Sukhavati (極楽 GOKURAKU), a terra “feliz” ou “pura”.
Esta é a morada do Buda Amitabha 阿 弥 陀 仏 AMIDA-BUTSU ou
無量光仏 MURYŌKŌBUTSU. Trata-se de um paraíso onde “não há
dores físicas nem mentais, cheio de deuses e de homens que nunca
renascem exceto como Bodhisattvas.”(N.T.)
142
da palavra, do corpo e do espírito são justas, tudo o que
existe ao redor fica também justo.
Esta perfeição da atitude é praticada durante o
座禅 ZAZEN: a boca permanece em silêncio, (o silêncio é
melhor que a eloqüência), o corpo se encontra na atitude
justa, e o espírito em sua condição mais autêntica,
submergindo suas raízes na consciência original. Esta é a
razão pela qual os asiáticos veneram tanto a postura de Buda
sentado em 座禅 ZAZEN. Desde pronto, eu respeito
profundamente a Cristo crucificado. Este é o símbolo mais
puro da doação de si, do sacrifício de si para a salvação do
homem. Cristo pertence às mais altas esferas da religião. O
abandono do ego é o ato mais importante, e o mais difícil
também, de toda nossa vida. Durante o 座禅 ZAZEN pode-se
abandonar o ego inconscientemente, naturalmente,
automaticamente, pode-se esquecer de si mesmo, totalmente,
e entrar em união profunda com Deus ou com o Poder
Cósmico fundamental. Nosso karma evolui sem cessar, e o
karma daqui e de agora, criado por nossas ações, influencia
de maneira dominante o futuro.
Com a boca em sua dignidade silenciosa, o corpo em
sua postura mais nobre, durante o 座 禅 ZAZEN nossa
consciência se absorve na consciência suprema, universal e
eterna, a consciência 非思量 HISHIRYŌ.
No 普 観 座 禅 儀 FUKANZAZENGI, 道 元 DŌGEN
escreve:
144
cada vez mais complicados. Este é o caso de nossa
civilização atual, na qual o homem perdeu o senso da
apreensão direta e intuitiva e na qual, em contrapartida, os
valores já não são criados pelo bom senso mas sim pela
cortante frieza da análise. A atividade mental é um grande
perigo; em seu aspecto negativo pode construir sistemas de
uma lógica fria e implacável, e atrofiar assim o sentido inato
do justo. A atividade mental julga e aprecia segundo critérios
do indivíduo.
Não obstante, nosso espírito original é sem pureza e
sem mancha, como o cosmos infinito que é tal e qual deve
ser segundo o autêntico Dharma, segundo a Lei. Ao nascer,
o bebê ignora as noções de pureza e de mácula. Depois, a
consciência “desperta”. Mas desperta seguindo os trilhos que
foram forjados pelos pais, o meio ambiente, o entorno, a
educação. Os trilhos conduzem a um lugar determinado e
desta maneira se perde a dimensão do infinito.
O karma ignora o resultado, o efeito e a retribuição, e o
resultado ignora a causa. Onde está a falta? Onde está o
mérito? Somente a consciência humana decide se o vento
deixa cair uma flor e a empurra até o altar de Buda ou de
Deus, este vento ignora os méritos desta ação. Da mesma
forma que a flor... Tudo provém da ordem Cósmica. Não há
milagres. Só o espírito do homem cria os milagres.
Apegar-se ou fugir, buscar sempre algo ou escapar de
algo é origem de sofrimento. A maioria das pessoas ignora
que os fenômenos carecem de realidade e se apegam a eles,
esquecendo que tudo é 無常 MUJŌ e 空 KŪ.
Por isto sofrem. Esta consciência errônea é a raiz do
sofrimento e da ignorância.
Uma de minhas discípulas queria sempre que seu
corpo, que todo seu ser estivessem puros.... puros... E de
manhã até a noite se lavava continuamente. Sempre
carregava consigo uma bacia, que se converteu em sua
companheira inseparável. Eu acabei muito surpreendido e lhe
disse que sua atitude não era muito normal. Com o tempo,
esta mulher ficou verdadeiramente louca...
145
不増不減 FU ZŌ FU GEN.
不 FU: negação. 不増不減 FU ZŌ FU GEN: não cresce
nem diminui. Não há dualidade: sem começo nem fim, sem
mancha nem pureza. Nada aumenta, nada diminui. A água
se evapora e se converte em nuvem, depois volta a cair em
forma de chuva. O ser que morre subtrai uma pessoa à
humanidade, mas devolve aos quatro elementos os
componentes que o formavam. No cosmos nada aumenta
nem diminui. Obtendo-se algo, perde-se algo. Tal é a fé
perfeita, o equilíbrio cósmico. Tal é a filosofia 禅 ZEN.
Mestre 道元 DŌGEN dizia:
“Não se apegue aos benefícios nem às honras. Se
ganhar dinheiro, se receber honras, desejará que estes
aumentem durante sua vida. Será prisioneiro do conforto e da
fama”.
146
Buda então compôs um poema:
147
舎利子、是諸法空相、
不生不滅、不垢不浄、不増不減、
SHARISHI, ZE SHO HŌ KŪ SŌ,
FU SHŌ FU METSU, FU KU FU JŌ, FU ZŌ FU GEN,
是故空中無色無受想行識、
無眼耳鼻舌身意、
無色声香味触法、
無眼界乃至無意識界、
ZE KO KŪ CHŪ MU SHIKI MU JU SŌ GYŌ SHIKI,
MU GEN NI BI ZES-SHI I,
MU SHIKI SHŌ KŌ MI SOKU HŌ,
MU GEN KAI NAI SHI MU I SHIKI KAI,
Por isto, em 空 KŪ, não há nem 色 SHIKI, nem 受 JU,
[nem 想 SŌ] 42 , nem 行 GYŌ, nem 識 SHIKI (os cinco
42
Não consta no original. (N.T.)
148
agregados). Não há nem olhos, nem ouvidos, nem nariz, nem
língua, nem corpo, nem faculdades mentais. Não há nem cor,
nem som, nem cheiro, nem sabor, nem tato, nem
pensamento.
Em 空 KŪ não existe o domínio dos sentidos.
149
Em 般若 波羅蜜多 HANNYA HARAMITTA se encontra
o grande mantra:
150
filosofia ocidental deve compreender o “nicht denken”, o não
pensamento. Eu lhe respondi que o não pensamento era uma
premissa do 禅 ZEN, que em certa medida constituía o que o
jardim da infância é para a vida humana; que este não
pensamento do 禅 ZEN era o ponto de partida que permite
acessar a verdade mais elevada; que era a condição
primordial e fundamental sem a qual nenhuma busca
verdadeira podia triunfar.
Jaspers, ao final de sua vida, estudou o Budismo e nele
encontrou o alívio que lhe havia faltado durante toda sua
vida: a resposta a suas perguntas metafísicas.
Quando lhe falei do texto de 道元 DŌGEN intitulado “O
SER E O TEMPO”44, mostrou-se maravilhado e lamentou não
tê-lo conhecido antes.
44
有時 UJI (SER-TEMPO) é um capítulo do 正法眼蔵 SHŌBŌGENZŌ
do mestre 道元 DŌGEN.
151
experimentada e conhecida. Por isso, pode-se dizer que a
ciência (nossa busca fundamental) e a filosofia são como a
flecha de Zenon de Eléia 45 , que se aproxima do alvo sem
acertá-lo nunca, já que lhe falta a compreensão da
experiência vivida, ou seja, a dimensão da participação no
infinito (ou no eterno). Esta compreensão se situa além das
vias ordinárias da consciência, na via do conhecimento
investida pela infinitude do tempo e pela onipresença do
espaço ilimitado. Esta via é a via do fim da charlatanice, a via
do silêncio profundo e insondável, a via do não pensamento e
do pensamento absoluto, 非思量 HISHIRYŌ, mais além de
qualquer forma de pensamento.
Ao não saber observar, o homem se perdeu em um vão
palavrório impedido e rechaçado sem cessar por seus limites.
Palavras vãs já que fracassaram em sua missão: a de
encontrar a verdade imutável que era o objeto de sua busca.
A simples observação de uma chama pode conduzir à
identificação das leis e grandes princípios que regem o
cosmos e que se resumem nas noções de:
- A impermanência. A mudança perpétua de todas as
coisas, portanto a não entidade, a existência sem substância
própria.
- A chama morre no momento em que nasce. A chama
que arde neste instante não tem nada a ver com a que ardia
no instante precedente. A chama é a representação vívida da
não substancialidade.
- A interdependência: interdependência dos fenômenos
que são eles mesmos forças determinantes, cujas múltiplas
combinações engendram miríades de fenômenos. Por
exemplo, para que exista uma chama são requeridos alguns
elementos:
- A matéria, como a madeira.
- O ar, o oxigênio.
45
Filósofo grego, (495? - 430 a.C.) formulou numerosos paradoxos
que desafiavam as idéias de pluralismo e a existência do movimento e
da mudança.
152
- A faísca surgida ao esfregar um sílex,
por exemplo.
155
是故空中無色無受想行識、
無眼耳鼻舌身意、
無色声香味触法、
無眼界乃至無意識界、
是故 ZE KO: assim.
空中 KŪ CHŪ: em 空 KŪ.
156
- a existência “objetiva”, o mundo que nos rodeia.
色 SHIKI é um termo geral que designa a totalidade do
mundo fenomenal, espírito e matéria em unidade.
Por 色 SHIKI, união da matéria e do espírito, aparecem
as percepções: 受 JU. As percepções criam as concepções
mentais, a faculdade de conceituar: 想 SŌ. Com a
conceituação nasce o ato voluntário: 行 GYŌ.
Por último, 識 SHIKI (é a mesma fonética, mas seu
sentido é distinto) designa o saber acumulado, a memória, a
consciência e o subconsciente.
無 眼 耳 鼻 舌 身 意 MU GEN NI BI ZE SHIN I: não há
seis órgãos dos sentidos.
無 色 声 香 味 触 法 MU SHIKI SHŌ KŌ MI SOKU HŌ:
não há seis objetos dos sentidos.
色 SHIKI: as cores, as formas. 声 SHŌ: os sons. 香 KŌ:
os odores. 味 MI: os sabores. 触 SOKU: as sensações táteis.
法 HŌ: o pensamento.
無 眼 界 MU GEN KAI.
無 MU: não há. 眼 GEN: visuais. 界 KAI: mundo,
percepções.
Não há domínio (mundo) das seis percepções, o
campo das seis percepções: visuais, auditivas, olfativas,
gustativas, táteis e o domínio das percepções mentais.
Assim, por não haver seis órgãos dos sentidos,
無 眼 耳 鼻 舌 身 意 MU GEN NI BI ZE SHIN I, não
aparecem os seis tipos de percepções.
Durante o 座 禅 ZAZEN, vocês podem ter esta
experiência. Quando um ruído se manifesta, sua consciência
auditiva se manifesta ao mesmo tempo, e sua consciência
mental cria pensamentos, rememora lembranças, imagina a
origem do ruído, e sua consciência pura se distrai assim.
Isto é 色受 SHIKI JU: pela matéria 色 SHIKI, aparece a
sensação 受 JU, e se manifestam as concepções mentais, 想
SŌ.
157
Quando o responsável pelo 警 策 KYOSAKU faz ruído
com seus passos, desperta a consciência auditiva: 受 JU. O
pensamento nasce (decisão de receber o 警策 KYOSAKU):
想 SŌ. O pensamento cria a ação: 行 GYŌ.
Os três fatores reunidos (objeto exterior, órgãos dos
sentidos e consciência) conduzem à ação.
Estes três fatores devem se manifestar juntos. Se
apenas um deles falta, a ação não pode se produzir. Esta
ação manifesta as ações passadas (lembranças), e deposita
as sementes das ações futuras. Este é o fenômeno de
memorização do corpo e do espírito. Sem embargo, este
processo carece de númeno e é criado a partir da
interdependência dos elementos. Nasce da interação do
potencial manifestado:
受 JU PERCEPÇÃO
RECONHECIMENTO
想 SŌ 行 GYŌ 識 SHIKI
158
CONCEPÇÕES AÇÃO MEMÓRIA
MENTAIS
眼 GEN 色 SHIKI
耳 NI 声 SHŌ
鼻 BI 香 KŌ
舌 ZE 味 MI
身 SHIN 触 SOKU
意 I 法 HŌ
159
os 五薀 GO-UN e o reconhecimento- memória.
46
是故空中無色無受想行識、無眼耳鼻舌身意、無色声香味触法、
ZE KO KŪ CHŪ MU SHIKI MU JU SŌ GYŌ SHIKI, MU GEN NI BI ZE
SHIN I, MU SHIKI SHŌ KŌ MI SOKU HŌ, (N.T.)
162
consciência especiais, mas sem nenhuma relação com a
autêntica realização.
No 禅 ZEN, a simples postura sentada e a respiração
profunda determinam o estado de consciência justo, a
consciência 非思量 HISHIRYŌ, infinita, que inclui todas as
contradições e submerge o ser no pensamento ilimitado.
Toda visualização, toda a visão, toda a sensação é
rechaçada como ilusão. O fato de que apareça Deus ou o
Demônio não é tão importante. Não é necessário prestar a
menor atenção a isso. São fenômenos e apenas fenômenos,
ilusões mentais. Na postura justa do 座禅 ZAZEN e graças à
consciência 非思量 HISHIRYŌ, resolvem-se imediatamente
todas as contradições, todas as oposições e todas as
dualidades. Não há que procurar a “união divina”, nem a
comunhão ou a fusão. A consciência 非思量 HISHIRYŌ nos
submerge na raiz do divino. A consciência 非思量 HISHIRYŌ
é a realidade divina, a unidade suprema e a sabedoria
般 若 波 羅 蜜 多 HANNYA HARAMITTA é sua emanação
brilhante, que governa e conhece todo o cosmos.
163
無眼界乃至無意識界、
無無明亦無無明尽、
乃至無老死亦無老死尽、
無苦集滅道、
MU GEN KAI NAI SHI MU I SHIKI KAI,
MU MUMYŌ YAKU MU MUMYŌ JIN,
NAI SHI MU RŌSHI YAKU MU RŌSHI JIN,
MU KU SHŪ METSU DŌ,
164
No Budismo, buscar o Caminho significa desprender-se
das ilusões, ter uma sólida confiança em si e uma fé profunda
na busca da Verdade. Mantendo a consciência lúcida e o
espírito de devoção, sejam quais forem os obstáculos
encontrados, devemos permanecer sempre livres. Ainda que
encontremos honras e benefícios em nosso caminho, não
devemos ser influenciados por eles. Assim, através deste
ensinamento pode-se obter a verdadeira felicidade do
Dharma, a verdadeira atualização do 禅 ZEN, a verdadeira
compaixão e a profunda sabedoria 般若 波羅蜜多 HANNYA
HARAMITTA. Desta maneira pode-se conseguir ajudar aos
demais, sendo verdadeiramente um só graças a um equilíbrio
harmonioso com o cosmos.
Seja como for, a consciência apresenta o problema da
maneira de pensar. A consciência é o determinante maior
das ações, do comportamento e das atitudes. Traduz-se
igualmente na expressão da cara, no olhar, e determina não
somente a fisionomia, mas também a atitude.
Aqui e agora: como pensar?
É perigoso estar demasiado apegado ao ego, à forma
física, às faculdades mentais, à inteligência.
Em um Sūtra47 se conta que na época de Buda vivia na
Índia uma mulher orgulhosa e altaneira, que nunca obedecia
à seu marido e continuamente se levantava contra ele. Seus
pais pediram a Buda que a educasse. Mas ela não respeitava
seu ensinamento e fugia, escondendo-se em sua casa. Buda
ordenou um dia que abrissem todas as portas e janelas e
assim 玉耶 GYO KUYA não pode assim se ocultar mais. A
face de Buda lhe apareceu e ele lhe disse:
“Não fique tão orgulhosa de sua beleza, já que ela é
impermanente e passará mais rapidamente do que você
imagina. Existem sete tipos de esposas:”
47
Trata-se do 玉耶經 GYOKUYA KYŌ. (N.T.)
165
- “A que se comporta como uma mãe com seu filho,
socorre-o, mima-o, cobrindo seu marido de ternura como
uma mãe faz com seu filho.”
- “A esposa irmã que respeita seu marido, escuta-o
com atenção e segue seus conselhos como se fosse seu
irmão mais velho.”
- “A esposa educadora que sempre com muito amor
quer educar a seu marido, corrige seus erros, dando-lhe
lições de moral, ou admirando-o quando seu comportamento
é justo.”
- “A quarta esposa é a clássica, que se fecha em seu
lar, mulher fiel, honra seu marido com leais serviços e belos
filhos. Cuida sempre de manter a harmonia entre todos os
membros da família.”
- “A quinta é a esposa serva, sempre muito devotada,
nunca protesta por qualquer motivo.”
- “E por último”, disse Buda, “está a mulher que odeia
seu marido, despreza-o, só pensa em separar-se dele e a
esposa malvada e infiel, que procura por todos os meios
arruinar seu marido e sempre vai com outros homens. Esta
mulher é muito perigosa, é uma força negativa e destruidora.”
“Minha querida 玉耶 GYO KUYA”, acrescentou Buda,
“em que tipo de esposa você se reconhece?”
“Quero me entregar a meu marido”, disse ela
arrependendo-se, “quero ser sua servidora, um apoio que
possa ajudá-lo sempre. Quero estar próxima de minha família,
de meus pais e faço a promessa de não voltar a ser
orgulhosa até o momento de minha morte!”
166
sem demora e sem distinção de caso. As crônicas desta
época contam a história de uma célebre prostituta chamada
お伝 高橋 ODEN TAKAHASHI, conhecida por sua beleza e
por sua audácia. Um carrasco, chamado 浅 右 衛 門
ASAEMON, recitava sempre ao executar os prisioneiros, um
poema do grande Mestre 弘法大師 KŌBŌ DAISHI, da seita
真 言 SHINGON: “As flores desabrocham, mas um dia
morrem.” Depois de dizer isso, levantava sua espada e, com
um golpe certeiro, cortava a cabeça do condenado, para
terminar dizendo: “Não se iluda, não tenha sonhos maus, não
se embriague.” E depois de uma respeitosa reverência,
guardava sua espada na bainha. Este era seu 祈禱 KITŌ
silencioso, sua forma de exorcismo, sua maneira de ajudar o
morto a se desgarrar do véu da ilusão.
Um dia, no momento em que 浅右衛門 ASAEMON ia
cortar a cabeça da bela 芸 者 GEISHA, quando estava
recitando o terceiro verso de seu poema, a mulher se voltou
para ele, mirou-o sem medo e lhe sorriu com todo o seu
encanto. Neste momento, sua beleza poderia seduzir ao mais
feroz dos demônios. O braço de 浅 右 衛 門 ASAEMON
desviou-se e golpeou outro lugar.
167
無無明亦無無明尽、
乃至無老死亦無老死尽、
無苦集滅道、
MU MUMYŌ YAKU MU MUMYŌ JIN,
NAI SHI MU RŌSHI YAKU MU RŌSHI JIN,
MU KU SHŪ METSU DŌ,
Em 空 KŪ, 無 無明 MU MUMYŌ, não há ignorância,
無 無明尽 MU MUMYŌ JIN, nem extinção da ignorância.
乃至 NAI SHI: e assim sucessivamente.
無老死亦無老死尽 MU RŌSHI YAKU MU RŌSHI JIN:
não há degeneração e morte, nem extinção da degeneração
e da morte.
O Sūtra do 般若 心経 HANNYA SHINGYŌ contém a
essência do ensinamento de Buda. Nele se encontra a
essência do Budismo Hīnayāna e Mahāyāna.
168
Em primeiro lugar o princípio de 三法印 SANBŌIN: “o
Selo das Três Leis” (tri-drsti-namitta-mudrā). Estas três leis
são:
KANJIZAI BOSATSU.
GYŌ JIN HANNYA HARAMITTA JI.
SHO KEN GO-UN KAI KŪ.
169
O fenômeno é produzido pela união de causas e
circunstâncias múltiplas. Esta doutrina é essencialmente uma
negação da geração espontânea.
48
Também conhecidas como “Perfeições”. (N.T.)
171
学道 用心 集 GAKUDŌ YŌJIN SHŪ, “Recompilação da
aplicação do espírito ao estudo da Via”. O Mestre
道元 DŌGEN disse o seguinte a propósito do espírito do
despertar:
“Na verdade, quando se medita sobre a impermanência,
o espírito do EU e do MEU não se produz, nem tão pouco
surgem pensamentos de querer ser famoso e de ganância.
Por se estar aterrorizado com a rapidez do tempo, pratica-se
a Via com a mesma urgência de uma pessoa que deve
apagar um fogo em seus cabelos... Aquele que esquece por
um instante o EU e o MEU e pratica em seu retiro, retorna
familiarizado com o espírito do despertar.”
172
無無明亦無無明尽、
乃至無老死亦無老死尽、
173
因縁果 INNENKA ou 因果 INGA em japonês. Estes doze elos
são os doze fatores cujas interações determinam o processo
vital, a existência fenomenal50. 因縁果 INNENKA é composto
pelos 漢字 KANJI 因 IN, que significa a causa, 縁 EN, a
dependência, as ações determinantes, e 果 KA, o efeito, o
resultado.
因縁 果 INNENKA define portanto as interações que
unem a causa com o efeito por meio de condições dadas.
(No Ocidente se tende a crer que esta lei é o simples
princípio de causalidade. No capítulo consagrado ao karma
se verá que é completamente diferente, devido a um
elemento importante que o princípio mecanicista da
causalidade não leva em conta: a liberdade de escolha, a
existência de múltiplas possibilidades). Estamos também
diante dos termos 縁起 ENGI ou 依他起性 ETAKISHO que
têm significados similares. 依 他 起 性 ETAKISHO define a
produção que nasce em função de sua dependência com
elementos exteriores, ou fatores baseados em eventos51. 縁
起 ENGI se traduz literalmente por aparição dependente, ou
seja, as condições de aparição de um fenômeno.
縁 起 ENGI, entendido através dos três mundos
(passado, presente e futuro) determina o seguinte processo:
- Temos 煩悩 BONNŌ (klesha).
- Estes 煩悩 BONNŌ (klesha) determinam a produção
de karma.
- O sofrimento produz de novo 煩悩 BONNŌ (klesha).
Este ciclo se repete sem fim. É constituído pelo
conjunto 煩悩 業 苦 BONNŌ GYŌ KU (klesha-karma-duhka)
50
Ver “La práctica de la concentracion” de T. Deshimaru. Vision
Libros. Barcelona, 1982.
51
“Baseado em evento” é a tradução da curiosa expressão
“evenemencial” que consta no original e que não freqüenta a maioria
dos dicionários.(N.T.)
174
ILUSÃO-AÇÃO-SOFRIMENTO, que é o pano de fundo da
vida fenomenal normalmente observável. A análise da lei dos
doze 因 縁 INNEN (ou causas interdependentes e
determinantes) explica a aparição das existências
fenomenais e de seu corolário, os 煩悩 BONNŌ.
Esta lei fundamental da filosofia Budista é estudada em
função de dois sentidos inversos, um que segue o processo
evolutivo no sentido cronológico, do passado para o futuro, e
outro que volta até a origem do processo evolutivo. Aqui só
descreveremos o primeiro, chamado 流 轉 RU-TEN em
japonês.
175
As duas causas interdependentes conduzem à
formação embrionária. A consciência do defunto encarna no
mesmo instante da fecundação, a qual é uma manifestação
da energia cósmica.
Os três elementos que determinam a aparição do feto -
pai, mãe e consciência do defunto - são igualmente
“responsáveis”, e não somente os pais, tal como se acredita
ordinariamente, já que o antigo karma do defunto quer se
realizar e deve encontrar suporte material para manifestar-se.
176
7) Pelo contato se engendra 受 JU (vedanā), a
percepção (sétimo 因縁 INNEN).
177
ao nada”; e também 空觀 KŪ GAN: a absorção que retorna a
空 KŪ. Este foi o sentido seguido por Buda quando obteve o
悟 SATORI embaixo da árvore Bodhi. Através desta
observação compreendeu o processo da transmigração.
Buda decidiu deixar seu estado de príncipe e se fez
monge quando realizou que a vida era sofrimento e
impermanência. Ante seus olhos apareceram as imagens da
degeneração humana, do sofrimento e da morte. 無常 MUJŌ,
a impermanência, submergiu-o no tormento, e durante seis
anos de ascetismo e de mortificações que viveu depois de
sua fuga do palácio, em seu aprendizado com os yoguis,
planejou resolver apenas este enigma torturante. Sua
reflexão conduziu-o de 死 SHI, a morte, à 無明 MUMYŌ, a
ignorância, causa primordial de todo o sofrimento.
O 悟 SATORI que Buda obteve sentado em profundo
nirvāna embaixo da árvore Bodhi, investiu-o da sabedoria
que lhe fez compreender o encadeamento sem fim da vida e
da morte. O círculo começa em 無明 MUMYŌ, a ignorância e
termina em 無明 MUMYŌ. Nós podemos nos emancipar de
無明 MUMYŌ, a ignorância fundamental do mundo manifesto,
retornando à nossa natureza original, verdadeira e absoluta.
Todos os sofrimentos terminam com a extinção de
無明 MUMYŌ e o perfeito nirvāna pode ser realizado assim.
No 禅 ZEN, 無 明 MUMYŌ corresponde a
昏 沈 KONCHIN (a sonolência) e a 散 亂 SANRAN
(a dispersão). 無明 MUMYŌ aparece quando se está em um
destes dois estados, ou seja, quando nosso espírito está
dissociado da consciência universal, cósmica, quando se
estabelece em dualidade com a Ordem Cósmica. A
ignorância individual é seu reflexo exato, sua outra face. O
Mestre 塋山 KEIZAN , no 座禅 用心 記 ZAZEN YOJIN KI,
escreve: “Todos os sofrimentos, todos os 煩悩 BONNŌ, as
ilusões, as paixões nascem de 無 明 MUMYŌ. Durante o
座 禅 ZAZEN podemos clarificar nosso ego, que é sem
178
númeno. O egoísmo é o único produto de 無明 MUMYŌ. Sem
embargo, aquele que cortou todos os 煩 悩 BONNŌ sem
haver cortado 無明 MUMYŌ, não pode ser considerado como
um autêntico Buda nem como um verdadeiro patriarca. O
método mais elevado, o único e secreto para cortar
無明 MUMYŌ é a prática de 座禅 ZAZEN, que é a Via real
que nos conduz à extinção desta ignorância”.
O 般若 心経 HANNYA SHINGYŌ apenas menciona o
primeiro e o último 因 縁 INNEN, subentendendo os
intermediários com o termo 乃至 NAI SHI que significa “e
assim sucessivamente”.
O 般 若 心 経 HANNYA SHINGYŌ fala dos doze
因縁 INNEN, negando-os: “Em 空 KŪ não há nem ignorância
( 無 無 明 MU MUMYŌ), nem extinção da ignorância
(無 無明 尽 MU MUMYŌ JIN), o mesmo ocorrendo com os
demais 因 縁 INNEN. Não há velhice nem morte
(無 老死 MU RŌSHI), nem extinção da velhice e da morte
(無 老死 尽 MU RŌSHI JIN)”.
Em 空 KŪ, pois, nega-se tanto a existência como a não
existência (extinção) das doze causas interdependentes:
無 無明 亦 無 無明 尽 MU MUMYŌ YAKU MU
MUMYŌ JIN: não há ignorância nem não ignorância.
無 行 亦 無 行 尽 MU GYŌ YAKU MU GYŌ JIN: não
há ação nem não ação.
無 識 亦 無 識 尽 MU SHIKI YAKU MU SHIKI JIN:
não há consciência nem não consciência.
無 名色 亦 無 名色 尽 MU MYŌ-SHIKI YAKU MU MYŌ-
SHIKI JIN: não há nome-e-forma nem não nome-e-forma.
無 六 入 亦 無 六 入 尽 MU ROKU-NYU YAKU MU
ROKU-NYU JIN: não há seis órgãos dos sentidos nem
extinção dos seis órgãos dos sentidos.
無 觸 亦 無 觸 尽 MU SHOKU YAKU MU SHOKU JIN:
não há contato nem não contato.
179
無 受 亦 無 受 尽 MU JU YAKU MU JU JIN: não há
percepção nem não percepção.
無 愛 亦 無 愛 尽 MU AI YAKU MU AI JIN: não há
desejo nem não desejo.
無 取 亦 無 取 尽 MU SHU YAKU MU SHU JIN: não
há apego nem não apego.
無 有 亦 無 有 尽 MU U YAKU MU U JIN: não há posse
nem não posse.
無 生 亦 無 生 尽 MU SHO YAKU MU SHO JIN: não
há vir-a-ser nem não vir-a-ser.
無 老死 亦 無 老死 尽 MU RŌSHI YAKU MU RŌSHI
JIN: não há velhice e morte nem não velhice e morte.
Desta maneira apareceu ao Buda a verdade sobre a
impermanência do mundo fenomenal. Sentado em
座禅 ZAZEN, sua meditação não tinha sujeito nem objeto. A
verdade surgiu por ela mesma, a partir da consciência
非 思 量 HISHIRYŌ, a consciência ilimitada, mais além do
espaço e do tempo, mais além dos limites da consciência
humana. Vivenciou a verdade, vivenciou-a com todo o seu
ser desprovido de ego, com todo seu ser dissolvido no
cosmos. Desta experiência nasceu a sabedoria infinita que
permite compreender o princípio indiferenciado da
multiplicidade e da unidade, e que lhe permitiu formular o
principio dos doze 因縁 INNEN. Compreender esta verdade
intimamente, desde o mais profundo do ser unido ao Ser
Cósmico, é obter o 悟 SATORI.
座禅 ZAZEN é 只管打座 SHIKANTAZA, apenas sentar-
se. As funções cerebrais estão em repouso. Não há nada. Os
pensamentos subconscientes surgem, manifestam-se na
consciência, depois se desvanecem. Mas nada os retém,
simplesmente passam, naturalmente. O subconsciente se
esgota, a obscuridade se aclara, a ignorância desaparece. E
quando a ignorância desaparece tudo desaparece, tudo o
que fundamentava nosso ego ilusório. Tudo se extingue.
Tudo volta ao espírito original indiferenciado.
180
Durante o 座 禅 ZAZEN, em 空 KŪ, não há
無明 MUMYŌ, ignorância, nem extinção da ignorância. Isto é
algo contraditório, mas verdadeiro. A aparente contradição se
desvanece com a absorção da dualidade no Uno original.
Durante o 座禅 ZAZEN, muitas visões de Deus ou do
Buda podem nascer procedentes do subconsciente. Podem
surgir estados especiais de consciência. De toda a forma,
continuando assiduamente a prática, todas estas condições
fenomenais acabam por desaparecer. Em tais casos, há que
levar rapidamente a atenção à manutenção da postura justa,
há que recolher o maxilar, receber o 警 策 KYOSAKU. O
espírito muda assim, desperta. E 無明 MUMYŌ desaparece.
乃至無老死亦無老死尽、
181
da impermanência dos fenômenos, retornando à essência
primordial, voltando a 空 KŪ e convertendo-se em 空 KŪ.
52
Ver “El Cuenco y el Bastón: 120 cuentos zen”. Vision
Libros.Barcelona.
Em português: “A Tigela e o Bastão – 120 Contos Zen narrados
pelo Mestre Taisen Deshimaru”. Ed. Pensamento. São Paulo, 1990. 2ª
Edição. (N.T.)
182
inquebrantável de voltar a ver Ānanda e de casar-se com ele.
A mãe não podia crer na louca resolução de sua filha:
“Você bem sabe que Ānanda é um grande discípulo de
Shākiamuni Buda e que nunca consentirá em se casar
contigo!”.
“Mãe, sua grandeza de alma lhe permitiu sem embargo
beber água na concha de minha mão; ademais, disse-me que
eles não dão importância às castas, quaisquer que sejam.
Não tenho razão em manter a esperança? Mãe, você possui
poderes mágicos, suplico que os use por mim uma só vez.
Faça com que Ānanda fique a meu lado!”.
“Tua estupidez não tem limites, minha filha, você bem
sabe que meus poderes não têm nenhum efeito com as
pessoas 無所得 MUSHOTOKU, que já não desejam nada,
nem têm nenhum apego, menos que os mortos. Ānanda é
um destes seres. Bom discípulo de Buda, é completamente
sem desejo e respeita os preceitos. Renuncie portanto a este
amor!”
“Antes a morte!”, respondeu a jovem.
Ante estas palavras, a bruxa, que também era mãe,
aceitou a proposta de sua filha e, convencida, decidiu apelar
a Ānanda.
O ritual mágico supunha uma longa preparação. Teve
que besuntar os muros da casa com esterco de vaca,
amontoou uma boa quantidade de galhos verdes e por último
encheu oito jarras com flores raras que havia tido o trabalho
de pegar nos altos prados da montanha. Tudo estava por fim
preparado. Ateou fogo aos galhos e a fumaça invadiu
rapidamente a casa.
Sacudindo a cabeça em todos os sentidos, sua longa
cabeleira prolongando os movimentos, girava e girava com
um passo entrecortado ao redor do fogo. O transe se
intensificava e, como que possuída, gritou:
“Demônios e deuses do fogo, deuses da terra e do
paraíso! Ouvi meu tormento! Respondei às minhas
imprecações! Concedei-me estes pedidos!”. Neste momento
esvaziou no fogo o conteúdo das jarras.
183
O poder que se desprendeu do ritual surpreendeu a
juventude inexperiente e inocente de Ānanda e o perturbou.
Semi-consciente, despertou na casa da moça.
“Aceite-me como sua esposa”, murmurou ela, “não
posso conhecer a felicidade se não for contigo.”
A beleza provocante de seu corpo se oferecia a
Ānanda.
A certa distancia dali, Shākiamuni Buda estava
oficiando uma cerimônia em um palácio. De repente, recebeu
cruamente a visão do abraço amoroso de Ānanda e da jovem.
“Ānanda, Ānanda, volte. Isso é perigoso!”, disse Buda
gritando. A força de seu pensamento conduziu Ānanda ao
palácio. A moça o seguiu, mas por ser intocável, sua entrada
foi negada e teve então de esperar no portal até o fim da
cerimônia. Buda enfim saiu, seguido por seus discípulos. A
jovem se dirigiu até ele e o deteve.
“O que deseja? Aonde vai?”, perguntou –lhe Buda.
“Você me separou de Ānanda. Quero vê-lo e me
converter em sua esposa, pois o amo”, confessou.
“Por que você ama Ānanda? Pode me dizer o que é
que você ama nele?”, perguntou Buda. Depois acrescentou:
“Nos olhos de Ānanda há lágrimas. Seu nariz está
cheio de muco. Sua boca exala odores putrefatos. Seu corpo
está repleto de imundícies. Seus intestinos estão cheios de
excrementos e por seu sexo a urina se esvai! Ainda assim
pode amar a seu belo Ānanda? Convença-se então de que
seu espírito não é tão puro! Agora o encontra doce e amável!
Saiba, no entanto, que sua amabilidade não é mais que
egoísmo, sua ternura deste momento não é mais do que um
véu que dissimula seus sórdidos desejos. Quando se sentir
satisfeito, vai descartá-la como a um objeto usado. A
juventude de seus sentidos o debilita. Não caia em sua
armadilha, não permita que ele a seduza. Tenha cuidado! A
velhice vai te surpreender antes que tenha tempo de pensar
nela. Seus sentimentos então não terão tanta importância.
Quando você estiver enrugada já não será tão sedutora nem
184
tão seduzível. Da morte é a única coisa da qual não poderá
se esconder”.
Buda então pregou mais algum tempo com calma e
paciência.
Quando parou, julgando que seu ensinamento era
suficiente, os cabelos da jovem, que ela mesmo havia
adornado com flores, caíram suavemente. Suas vestes
adornadas desvaneceram, transformando-se em um
袈裟 KESA que a recobriu completamente.
Buda disse então:
“Seu corpo é efêmero. Sua beleza só dura o tempo de
sua paixão. Deixe de criar apegos e entra no Verdadeiro
Caminho! Agora permito que você veja Ānanda, seja então
sua esposa e sejam felizes.”
Entre lágrimas e soluços de remorso, a recém
ordenada monja confessou os extravios que seu coração
apaixonado a haviam conduzido.
“Até hoje, enganada por meus sentidos, extraviei-me
pelos caminhos do sofrimento. Graças à este amor, meu
espírito de apego acaba de desvanecer. Peço que me aceite
como discípula!”.
Desta maneira, converteu-se em uma verdadeira monja
discípula de Buda, a quem se devotou durante toda a sua
vida.
Esta aventura obrigou Ānanda a se desculpar ante
Buda. Confessou longamente, reconhecendo que havia sido
induzido ao erro por seus sentidos, pela atração que a moça
exercia sobre ele. Buda lhe disse:
“Você amou esta mulher. Seu espírito foi manchado por
esta paixão. Se o apego que normalmente resulta disso
houvesse se perpetuado, criaria sementes de karma para a
posteridade. Mas em seu espírito atormentado surgiu a
reflexão e o remorso o levou a confessar. Desta maneira,
lavou estas manchas, já que este espírito que venceu suas
paixões é o espírito puro e invisível, e que possui o brilho e a
solidez do diamante. Como ele, às vezes desaparece na
185
capa lamacenta das ilusões opacas. Mas quando o véu é
removido, brilha instantaneamente com todo o seu
esplendor.”
Toda a vida se realiza em função destes dois espíritos.
Às vezes um predomina. Quando nos deixamos levar pela
corrente das circunstâncias que fazem brilhar os objetos e
exacerbam os sentidos, o vagalhão das paixões se levanta,
desenraizando o bom senso e destruindo a sabedoria.
Uma vez que a tempestade tenha terminado, o outro
espírito aparece, tranqüilo e apaziguado, parecido com um
grande rio majestoso e pacífico. Os dois travam
freqüentemente um combate encarniçado. Se às vezes o
primeiro se mostra superior, o segundo permanece sempre
imutável e indestrutível, nas profundezas solitárias do
inacessível. Nada pode perturbá-lo. O fogo não pode queimá-
lo, nem a água molhá-lo. Imbuído de uma paciência infinita e
equilibrando as paixões exaltadas, age apenas com sua
presença. Um momento de calma basta para que apareça.
Este é o verdadeiro espírito, puro e eterno.”
Shākiamuni Buda perguntou então:
“Diga-me, Ānanda, onde está seu espírito de amante?”
“Sem dúvida em meu corpo”, respondeu Ānanda.
“Certo, o espírito tem a faculdade da reflexão e da
introspecção e desta maneira pode conhecer inclusive ao ser
que o habita. Mas, pode me dizer, Ānanda, mais
precisamente em que parte do corpo o situa?”
Ānanda ficou perplexo, mas respondeu:
“Talvez exista também fora de meu corpo!”
“Certo”, concordou Buda, “seu espírito tem a faculdade
de sentir a atmosfera exterior de seu corpo. Não obstante, já
que você disse que seu espírito existe fora de seu corpo,
você acredita que sentirá dor se eu quebrar este
sustentáculo?”
Ānanda foi incapaz de responder.
“O espírito abarca todo o cosmos!”, disse finalmente
Buda. “O espírito de amante existia inclusive antes que você
viesse a este mundo. Um amálgama de circunstâncias
186
fizeram-no despertar em você. Você não tem sido mais que o
joguete, a possessão deste espírito. E apesar de que você
tenha se desfeito dele, sua existência continuará!”
187
Esta dualidade nasce apenas devido aos limites de nossa
inteligência.
O estado de 散亂 SANRAN que aparece durante o
座禅 ZAZEN designa o estado de dispersão e de hipertensão.
Os pensamentos afluem. Se alguém se detém sobre eles,
estes pensamentos se desenvolvem e terminam por
açambarcar tudo.
No estado de 昏沈 KONCHIN, a sonolência invade o
espírito.
Os pensamentos e as imagens desfilam pouco a pouco,
passam sem parar. A verdadeira concentração nos faz voltar
ao 空 KŪ original, à consciência universal, sem limites e
atemporal. Esta concentração em 空 KŪ contém virtualmente
a expansão em 色 SHIKI. A expansão fenomenal 色 SHIKI
contém virtualmente o retorno a 空 KŪ. 色 SHIKI virtual se
manifesta por todas as partes, mas sempre tanto como
aparência sem existência própria, quanto produto de nossa
consciência. 空 KŪ virtual está por todas as partes em
色 SHIKI, é imanente53, apesar de não estar manifesto.
Nossa essência original é 空 KŪ, unidade, pureza.
Esta pureza pode se manifestar ao contato de um elemento,
de um fenômeno que, nele mesmo, não tem realidade
própria.
空 KŪ, o Nada, não é diferente de 色 SHIKI, os
fenômenos ilusórios.
Em japonês, o termo “ilusão” é designado às vezes
pela palavra 客塵 KAKUJIN: “a poeira que entra na casa”.
Os 煩 悩 BONNŌ são visitantes. Potencialmente
possuímos todos os 煩 悩 BONNŌ, mas apenas se
manifestam os que entram em contato com um fator externo
que desempenha um papel de catalisador. Os 煩悩 BONNŌ
são como as ondas que só se manifestam quando sopra o
vento. A ignorância, a cólera, o medo, a ansiedade, as
53
Está compreendido na própria essência do todo. (N.T.)
188
paixões e os desejos são fruto do karma passado, sementes
que florescem através da ação de estímulos externos. A capa
de sensibilidade do ego é excitada. A reação emerge. Mas
sem o oceano não pode haver ondas. Abandonando o ego
nos desfazemos ao mesmo tempo de sua textura básica: a
ignorância, os 煩 悩 BONNŌ, as ilusões, os desejos. Ao
abandonar o ego, a consciência abre-se à dimensão do
infinito. A onipresente sabedoria se atualiza.
Originalmente não há 煩悩 BONNŌ. Originalmente flui
a fonte pura de 空 KŪ. Os 煩悩 BONNŌ nascem com o ego.
Tal é a natureza de todo o cosmos e das miríades de
existências. 空 KŪ, Nada. Este Nada é inerente a tudo, está
contido em tudo e contém todas as coisas, já que é a fonte
infinita de potencialidade.
Os fenômenos emanam de 空 KŪ. Os 煩悩 BONNŌ
nascem do ego. A natureza profunda, essencial do ego é
空 KŪ; mas o ego, como tal, só deve sua existência aos
煩悩 BONNŌ. Só existe porque é um 煩悩 BONNŌ.
Cortar os 煩悩 BONNŌ é portanto abandonar o ego,
voltar a 空 KŪ. 色 SHIKI não é diferente de 空 KŪ.
Os fenômenos ilusórios são 空 KŪ, Nada. E a
ignorância produtora de fenômenos ilusórios é igualmente
空 KŪ, Nada. No 般若 心経 HANNYA SHINGYŌ se diz que
não há ignorância nem extinção da ignorância.
O 悟 SATORI só existe em função de 無明 MUMYŌ
(a ignorância) e dos 煩悩 BONNŌ (ilusões). 無明 MUMYŌ e
煩 悩 BONNŌ são portanto condição necessária para a
existência do 悟 SATORI.
189
não tem númeno. Para superar 無明 MUMYŌ, para se libertar
da ignorância de que é feito nosso ego, basta concentrar-se
sobre 空 KŪ e esquecer totalmente o ego.
Nossa existência tem a consciência de 無明 MUMYŌ.
Observar-nos e compreender a nós mesmos é observar e
compreender 無明 MUMYŌ. Não é necessário buscar 空 KŪ,
é inútil. Tão pouco há de se tentar resolver o problema de
nossa existência ou de nossa não existência. Somente há
que compreender 無明 MUMYŌ.
Nāgārjuna (龍樹 RYŪJU), em seus comentários sobre
o 般若 經 HANNYA KYŌ diz que “o Bodhisattva que quer
compreender sua verdadeira natureza deve compreender a
natureza de sua própria ignorância”.
Originalmente, os 煩悩 BONNŌ, as ilusões são 空 KŪ.
Desta maneira ainda que tenhamos 煩悩 BONNŌ, não há por
que se deter neles nem tentar extirpá-los, ou cortá-los. A
sabedoria consiste em sublimá-los, em transformá-los. Os
煩悩 BONNŌ seguirão naturalmente a direção de nossas
intenções. Sem voluntarismo, mas através da concentração e
da atenção centrados sobre cada uma de nossas ações, as
ilusões diminuem e os desejos são sublimados até uma nova
dimensão, mais elevada, mais próxima do essencial.
A doutrina do mais além da morte no Budismo é muito
simples. As condições do mais além da morte são as
seguintes segundo o 禅 ZEN:
- Os elementos constituintes do corpo voltam aos
elementos do cosmos: terra, água, ar e fogo.
- 識 SHIKI, a consciência, desprendida do ego, volta à
consciência Alaya ( 阿 賴 耶 識 ARAYA SHIKI); num dado
momento, em que as condições requeridas apareçam, estas
sementes se manifestarão de novo, materializando-se em
uma estrutura que se desenvolverá e se realizará em um
novo indivíduo. Esta é a razão pela qual a stupa (a tumba
Budista) é formada pelos seguintes elementos: na base se
encontra o elemento cúbico que corresponde à terra, à cor
190
amarela, aos joelhos. Sobre ele há um elemento esférico que
corresponde à água, à cor branca, aos intestinos. Em
seguida o elemento triangular corresponde ao fogo, à cor
vermelha, ao coração. Sobre o triângulo uma forma de meia
lua, correspondente ao vento, à cor negra, aos pulmões e às
mãos (a ação). Por último está o derradeiro elemento, uma
esfera prolongada em seu pólo superior por uma
protuberância, que corresponde ao éter, à cor azul e ao
pensamento. A stupa simboliza os elementos em mutação, o
aspecto fenomênico do cosmos. No muro posterior está
sempre inscrito o termo 識 SHIKI, que designa a essência da
consciência Alaya (阿賴耶 識 ARAYA SHIKI), que depois da
morte se confunde com a consciência Amala (無垢識 MUKU
SHIKI), ou 空 KŪ. Este é o aspecto eterno e imutável do
cosmos.
Esta consciência Amala ( 無 垢 識 MUKU SHIKI)
universal e tranqüila, é o estado da consciência durante o
座禅 ZAZEN. A autêntica e pura sabedoria emana dela, ao
mesmo tempo que 無 明 MUMYŌ desaparece. Todos os
fenômenos, todas as perguntas, todas as dúvidas podem ser
resolvidas. Uma compreensão clara e penetrante, uma visão
universal alarga o campo da consciência até o infinito. A
consciência se torna infinita, o ideal e a realidade convivem
em perfeita harmonia, em unidade. Todos os aspectos
ambivalentes se fundem. Esta é a realização de
般若 波羅蜜多 HANNYA HARAMITTA, a sabedoria suprema,
o ponto que une o mundo fenomenal com o mundo da
essência eterna. 座 禅 ZAZEN significa retornar à fonte
original, encontrar a condição normal, a natureza cósmica,
voltar à essência. O homem acorrentado a sua condição
fenomênica é anormal.
Em nossos dias uma grande parte da humanidade é
anormal. A crise atual repousa única e totalmente sobre a
anormalidade do espírito do homem, que se extraviou e
perdeu a noção do essencial, perdeu seu lugar no seio do
cosmos, esqueceu seu verdadeiro valor. Ao se fechar em seu
191
egocentrismo, ele mesmo construiu com suas próprias mãos
os muros que agora o sufocam. Como um louco que sofre
por sua loucura, mas que não sabe que está louco.
193
3) 滅 諦 METSU TAI: a verdade sobre o mundo do
absoluto, tal e como é vivido no Despertar: felicidade
pura e serenidade;
4) 道 諦 DŌ TAI: verdade sobre o Caminho que se
deve percorrer para alcançar esta condição elevada
de paz e alegria. Esta Via é o caminho óctuplo que
tomam os homens justos.
194
正 SHŌ significa justo.
見 KEN, a visão, a compreensão.
Este primeiro caminho conduz à faculdade de ver, de
discernir e de observar corretamente. É o contrário de
無明 MUMYŌ, a ignorância.
O estudo do Caminho significa fazer florescer a
verdadeira Sabedoria. Todos os tormentos do mundo provêm
da falta de discernimento. Os ideais, incluindo as intenções,
são construídos freqüentemente sobre premissas errôneas,
já que a inteligência penetrante é confundida com a
acumulação de saber. Há que saber observar e descobrir os
erros.
語 GO: as palavras.
Seguindo este terceiro caminho, podem ser produzidas
as palavras justas.
A linguagem exata deve ser a mensageira do Dharma.
Neste caso, a linguagem é criadora de bom karma. Se nosso
espírito está perturbado, se está imerso em terror, nossas
palavras seguem o mesmo curso: palavras veementes,
apaixonadas, falsas. Esta atitude é semente de mau karma.
195
Os pontos de vista justos, os pensamentos e as
palavras corretas originam um bom comportamento na vida
cotidiana.
Quando as grandes linhas da moral fundamental são
transgredidas, quando, por exemplo, mata-se, rouba-se, leva-
se uma vida licenciosa, nossa vida se converte na expressão
de um karma poderoso, incontrolado. Mas não existe nada
absoluta e definitivamente predestinado. Todo karma pode
ser corrigido a partir do momento em que se canaliza a
energia para uma direção mais propícia, para o Caminho.
Fazer 三 拝 SANPAI (prostrações), por exemplo, ou ler e
cantar os Sūtra, costurar o 袈裟 KESA (hábito de monge),
são as ações que mais eficazmente ajudam a cortar o mau
karma, ou ao menos a atenuar sua força. 座禅 ZAZEN, de
qualquer forma, é a ação mais elevada. A vida monástica é
regida de tal maneira que as múltiplas tarefas a realizar
devem conduzir o monge à paz de espírito e de corpo. A vida
em sociedade não favorece o florescimento desta serenidade.
Mas qualquer ação realizada com um espírito de
concentração profunda conduz necessariamente a um estado
de quietude. E esta quietude é produtora de bom e
destruidora de mau karma.
196
Continuando, há que se concentrar sobre as tarefas
atribuídas a cada um, com espírito 無所得 MUSHOTOKU e
altruísta. E deitar, dormir, lavar-se, comer, passear às vezes,
descansar ou praticar esportes, saber distrair-se, mas não se
concentrar exclusivamente sobre as diversões: esta é a vida
justa. Uma vida simples e ordenada não é sinônimo de rotina.
O ensinamento 禅 ZEN dá sempre muito valor à criatividade.
No ciclo da vida cotidiana, nas tarefas repetidas a cada dia –
cada dia é diferente – deve soprar um vento de frescor,
frescura que nasce da descoberta, da compreensão profunda
que aquilo que é considerado excessivo freqüentemente é
dado como algo adquirido ou apreendido.
念 NEN: a atenção.
A falta de atenção é causa de todas as atribulações
que limitam nossa vida moral e física. Estar concentrado não
significa estar tenso, mas simplesmente atento, vigilante.
Progressivamente, através do 座 禅 ZAZEN, a
concentração passa a ser um hábito. Inconscientemente,
natural e automaticamente, será possível se concentrar
perfeitamente, no 道場 DŌJŌ e fora do 道場 DŌJŌ, em
todas as ações da vida cotidiana.
197
Quando o espírito é sereno, a atenção se instaura
naturalmente. Não se esqueçam que a vida muda sem
cessar, que não tem númeno, que é 空 KŪ. Conhecendo isto,
os tormentos se acalmam, os apegos se desvanecem, o
medo desaparece.
É inútil temer pela própria vida. Esta não tem realidade
própria. Nosso pensamento deve expressar esta
compreensão. 正 念 SHŌ NEN também significa
非 思 量 HISHIRYŌ, o pensamento justo, o pensamento
absoluto, mais além dos conceitos, mais além das categorias.
É inútil atormentar-se.
198
quando já se teve um conhecimento e uma compreensão
totais. Realizar estes oito caminhos é sinônimo de perfeição.
Mas a vida, o mundo relativo e fenomênico nos ensina
a modéstia. No mundo da impermanência devemos nos
acercar da perfeição, devemos tender até ela, mas através
de um esforço natural, através do 座禅 ZAZEN, sem turvar o
pensamento com a vontade ou com a busca da obtenção dos
oito caminhos. Neste caso, uma vez que a obsessão tenha
se instalado, poderia produzir o efeito contrário.
A perfeição mais elevada do Caminho é a dimensão da
liberdade, da libertação do espírito: 無 MU, Nada, ou
非思量 HISHIRYŌ.
Esta suprema obtenção nasce do despojamento total,
graças à ação natural do 座禅 ZAZEN, sem apego, sem meta,
arrastando corpo e espírito.
正 SHŌ tem dois significados: santo e justo. Mas o
般若 心経 HANNYA SHINGYŌ diz que em 空 KŪ não há
苦 集 滅 道 KU SHŪ METSU DŌ, não há Quatro Nobres
Verdades. Também 是 故 空 中 無 色 無 受 想 行 識 ZE KO
KŪ CHŪ MU SHIKI MU JU SŌ GYŌ SHIKI, na vacuidade
inexistem os cinco agregados54.
Desta forma, 無 眼 耳 鼻 舌 身 意 MU GEN NI BI ZE
SHIN I, inexistem os cinco órgãos dos sentidos e a
consciência; 無 眼 界 乃 至 無 意 識 界 MU GEN KAI NAI
SHI MU I SHIKI KAI, inexiste o mundo da percepção; tão
pouco há 無明 亦 無 無明 尽 MUMYŌ YAKU MU MUMYŌ
JIN, ignorância e a extinção da ignorância e
老死 亦 無 老死 尽 RŌSHI YAKU MU RŌSHI JIN velhice e
morte e extinção da velhice e da morte.
無 苦 集 滅 道 MU KU SHŪ METSU DŌ, não há Quatro
Nobres Verdades. 無 知 亦 無 得 MU CHI YAKU MU TOKU,
não há sabedoria e nem obtenção.
以 無 所 得 故 I MUSHOTOKU KO: há apenas 無 所 得
MUSHOTOKU.
54
No original, “os seis objetos dos sentidos.” (N.T.)
199
Durante o 座禅 ZAZEN submergimo-nos no universo de
空 KŪ.
No 道 場 DŌJŌ, o estado de espírito muda
completamente, já que nos encontramos em um mundo
essencial, profundamente interior. O 道場 DŌJŌ é um lugar
sagrado, 空 KŪ. Ao sairmos do 道 場 DŌJŌ voltamos a
submergir em 色 SHIKI, nos fenômenos. Fora do 道場 DŌJŌ
tudo muda rapidamente. É possível beijar, falar, rir, beber
whisky... Os 煩悩 BONNŌ surgem muito rapidamente.
Eu digo sempre que entrar no 道 場 DŌJŌ é como
entrar no ataúde. Este é o mundo da paz eterna, o mundo do
悟 SATORI. Esta é a razão pela qual durante o 座禅 ZAZEN
não há Quatro Nobres Verdades, nem Oito Caminhos Justos.
Durante o 座禅 ZAZEN, faça somente 座禅 ZAZEN,
只 管 打 座 SHIKANTAZA, sentar-se somente. Quanto mais
importante é o ego, mais fortes são os desejos e os apegos,
mais profundo é o sofrimento, mais acidentado é o mundo de
色 SHIKI, o mundo fenomenal. Durante o 座禅 ZAZEN, a
consciência 非 思 量 HISHIRYŌ se manifesta, a quietude
investe o corpo e o espírito, o sofrimento desaparece. E se
não há sofrimento, não há necessidade de compreender as
Quatro Nobres Verdades, nem seguir o Caminho Óctuplo, da
mesma maneira que quando se está com boa saúde não há
por que seguir alguma terapia. Em 空 KŪ, não há
necessidade das Quatro Nobres Verdades, enquanto que no
mundo de 色 SHIKI, no mundo dos fenômenos, da vida
social, a prática do Caminho Óctuplo é necessária. Muitos
fenômenos aparecem quando se está indo para o trabalho ou
quando voltamos à nossas casas, e gostaríamos de escapar
destes fenômenos. O espírito o deseja, mas o corpo não o
segue. A harmonia perfeita não se constitui no mundo
fenomênico. A unidade, inclusive entre seres intimamente
ligados é um ideal. A comunhão de pensamento só pode
existir no não pensamento absoluto. Este é o domínio de
空 KŪ e não o de 色 SHIKI. Em 色 SHIKI cada um quer
200
sentir-se envolto por seu cosmos. Em 空 KŪ o Cosmos é
Uno, sem disparidade de consciência, sem diferenciação.
O Buda, depois de ter alcançado o 悟 SATORI, pregou
durante quarenta e cinco anos. O primeiro que ensinou foram
as Quatro Nobres Verdades; em continuação e devido que
estas são de árdua compreensão, explicou a lei das doze
causas interdependentes; e por ultimo pregou as seis
Paramitā, ou seis virtudes.
Dirigiu-se aos 聲聞 SHOMON (Shrāvaka). Os homens
ordinários. Todos se reuniam ao seu redor e escutavam
atentamente à suas palavras. O Buda utilizava palavras
especiais para eles, palavras que alcançavam suas
sensibilidades e que conseguiam despertá-los. Quando se
dirigia aos eruditos, ou aos sofistas de sua época, os
緣覺 ENGAKU (Pratyiekabuddha), utilizava sua lógica e lhes
demonstrava de maneira irrefutável a veracidade dos doze
因 縁 INNEN. Também instruía aos Bodhisattva. Estes já
haviam alcançado uma certa compreensão da Lei e um certo
grau de despertar. Exortava-os a praticar as 六道 ROKUDŌ,
as seis Paramitā. Diz-se que Buda passou quinze anos de
sua vida falando aos 聲聞 SHOMON (Shrāvaka), quinze anos
aos 緣覺 ENGAKU (Pratyiekabuddha) e outros quinze anos
aos Bodhisattva. Mas seu ensinamento mais elevado não era
expresso com palavras. Simplesmente se sentava e aqueles
que compreendiam a importância desta atitude o imitavam. A
assembléia dos praticantes submergia então no silêncio. O
ensinamento das Quatro Nobres Verdades, dos doze
因縁 INNEN e das seis virtudes operava em cada um, em seu
interior, de maneira imediata, sem os desvios da linguagem,
por imersão direta da consciência na verdade universal, em
空 KŪ.
A verdadeira Sabedoria se manifesta assim durante o
座 禅 ZAZEN, sem esforço, sem buscá-la, sem tentar
compreendê-la nem obtê-la. Quando o espírito não busca
nada, quando se despojou de tudo, na atitude
201
無 所 得 MUSHOTOKU, esta Sabedoria se realiza natural,
inconsciente e automaticamente. Isto é o 悟 SATORI, um
悟 SATORI cuja dimensão supera a do recinto do
道場 DŌJŌ, sem sair da postura do 座禅 ZAZEN. Através de
uma longa prática de 座禅 ZAZEN e de uma assiduidade
constante, o espírito 無 所 得 MUSHOTOKU, o espírito
desapegado, continua na vida cotidiana e permite não
somente vencer, mas também iluminar todos os fenômenos
do mundo, e transformá-lo em tributo ao Caminho.
以 無 所 得 I MUSHOTOKU: somente
無所得 MUSHOTOKU, a única realidade é que não há nada
que obter.
Neste momento do 般若 心経 HANNYA SHINGYŌ, a
noção de 無所得 MUSHOTOKU é a dobradiça que articula as
duas metades do Sūtra. Todas as teorias, todos os princípios
e as leis desembocam em 無所得 MUSHOTOKU, que se
converte assim no cume do Sūtra. A partir de
無 所 得 MUSHOTOKU elaboram-se todas as realizações
justas do corpo, da palavra e do pensamento. O
般若 心 経 HANNYA SHINGYŌ se alicerça sobre os
seguintes dois princípios fundamentais:
202
Todas as existências são 空 KŪ.
舎利子、是諸法空相、
不生不滅、不垢不浄、不増不減、
203
Todos os fenômenos cósmicos, todas as existências
constituem o potencial temporal existente, ou manifestado,
atualizado no instante. Cada um destes fenômenos depende
da lei de interdependência, na qual a multiplicidade de
fenômenos depende da multiplicidade das relações que os
sustentam. Por isso, apesar de que estes fenômenos
temporais tomem uma forma, transformando-se e se
desvanecendo, sua substancia não foi produzida nem
destruída, não aumentou nem diminuiu. Esta substancia é o
Poder Cósmico Fundamental, eternamente imutável. É o
potencial supremo de que procedem todas as
potencialidades fenomenais, impermanentes, em perpétua
mudança. Suas formas aparecem e desaparecem seguindo
as interferências cósmicas rigorosamente ordenadas. Ao
desintegrarem-se retornam à sua origem, à essência
cósmica, 空 KŪ.
204
Uma terceira etapa anuncia a doutrina de Vasubandhu
(世親 SESHIN)55:
是故空中無色無受想行識、
無眼耳鼻舌身意、無色声香味触法、
無眼界乃至無意識界、
55
Vasubandhu (世親 SESHIN ou 婆修盤頭 BASHUBANZU), nascido
no séc. IV d.C. juntamente com seu irmão Asanga (無著 MUJAKU ou
阿 僧 伽 ASŌGA) foram os fundadores da Escola
瑜 伽 行 派 YUGAGYŌ HA (Yogācāra). Compôs o influente
唯 識 三 十 論 頌 YUISHIKI SANJŪ RONSHŌ (Trimsikā-vijñapti-mātra
shāstra) Trinta Versos sobre a Mente Apenas, além de outras obras. É
também considerado o 22º dos 28 Patriarcas
(二十八祖 NIJŪHACHISO). (N.T.)
205
consciências correspondentes). Em último lugar, sujeito e
objeto se desvanecem em 空 KŪ, no não diferenciado.
Não obstante, o 般若 心経 HANNYA SHINGYŌ supera
a doutrina de Vasubandhu (世親 SESHIN), na medida em
que nega tanto a realidade dos fenômenos perceptíveis como
a realidade da consciência perceptiva. Enquanto que a
representação subjetiva constitui o fundo real da doutrina de
Vasubandhu ( 世 親 SESHIN), no 般 若 心 経 HANNYA
SHINGYŌ ambas representações, subjetiva e objetiva, são
consideradas irreais.
56
Expressão utilizada por Deshimaru Roshi para designar sua
peculiar maneira de falar inglês.
207
O ensinamento 天台 TENDAI sustenta que, graças à
sabedoria, podemos compreender que todos os fenômenos
são 空 KŪ: 皆 空 KAI KŪ. Tudo é 空 KŪ. Esta
compreensão se fundamenta no poder da sabedoria, cujos
méritos são obtidos através da prática autêntica.
O 般若 心経 HANNYA SHINGYŌ, antes mesmo de que
esta doutrina viesse à luz, rechaça de pronto tais afirmações.
Esta forma de antecipar-se a qualquer forma de doutrina e de
superar seus limites categóricos constitui a força e a
profundidade deste Sūtra. Utilizando a negação, transcende
qualquer afirmação, qualquer definição limitativa e aponta
diretamente até o absoluto, 空 KŪ. A grandeza deste Sūtra
nasce de uma experiência profunda, autêntica e inefável.
Continuamente nos remete à experiência vivida, à prática do
座 禅 ZAZEN que é a única verdadeiramente 空 KŪ. A
experiência do 座禅 ZAZEN corrói quaisquer definições: usa-
as, esvazia-as, arrebenta-as. Nada subsiste, apenas a
realidade absoluta da experiência vivida na qual este mesmo
空 KŪ não é contestado, na qual sua essência está fundida
na Essência. O mesmo 空 KŪ é negado.
A única afirmação do 般若 心経 HANNYA SHINGYŌ esta
implícita, mas transparece a cada frase: trata-se da afirmação
subjacente do 座禅 ZAZEN, a dimensão mais elevada que
submerge diretamente em 空 KŪ, através do espírito
無所得 MUSHOTOKU.
Muitos pensam que para se obter o 悟 SATORI temos
que cultivar a sabedoria, resolver os 公案 KOAN, possuir um
vasto saber filosófico ou teológico, etc.... E que desta
maneira, podemos nos comunicar com Deus e obtermos a
verdadeira experiência mística.
Mas a verdadeira consciência transcendental é
非思量 HISHIRYŌ. E a consciência 非思量 HISHIRYŌ não
necessita sabedoria nem mérito. É infinita.
208
以 無所得 故。
I MUSHOTOKU KO.
210
無
所
得
無所得 “MUSHOTOKU”: Nada que obter.
211
波
羅
僧
羯
諦
波羅僧羯諦 “HARASŌGYATEI”
Vamos juntos mais além.
212
VÁ MAIS ALÉM DO MAIS ALÉM
213
BO
DAI
SAT
TA
O Bodhisattva.
214
菩
提
蕯
埀
215
HAN
NYA
KO HA E
RA
MIT
TA
Graças a esta Sabedoria que conduz mais além.
216
般
若
故 波 依
羅
蜜
多
217
SHIN
MU MU
KO KEI KEI
GE GE
Alcança uma consciência (SHIN) sem (MU) apegos (KEI)
e obstáculos (GE) e sem (MU) causa (KO) de apegos (KEI)
e obstáculos (GE).
218
心
無 無
故 罣 罣
礙 礙
219
MU
U
KU
FU
Não há (MU) [em seu espírito] medo (U) nem (FU) temor (KU).
220
無
有
恐
怖
221
TEN ON
DŌ RI
MU IS
SŌ SAI
[Seu espírito] está livre (ON RI) de todas (IS-SAI)
perturbações (TEN DŌ) e ilusões (MU SŌ).
222
顚 遠
倒 離
夢 一
想 切
223
KU
GYŌ
NE
HAN
Finalmente chega ao (KU GYŌ) Nirvāna (NE HAN).
224
究
竟
涅
槃
225
SAN
ZE
SHO
BUTSU
Todos (SHO) os Budas (BUTSTU) dos três (SAN)
Mundos (ZE) [passado, presente e futuro].
226
三
世
諸
仏
227
HAN
NYA
KO HA E
RA
MIT
TA
Graças a esta ilimitada (HANYA) Sabedoria (HARAMITTA).
228
般
若
故 波 依
羅
蜜
多
229
SAN TOKU
MYAKU A
SAN NOKU
BO TA
DAI RA
Alcançam (TOKU) a Consciência mais elevada, a Suprema
Realização (A NOKU TA RA SAN MYAKU SAN BODAI).
230
三 得
藐 阿
三 耨
菩 多
提 羅
231
HAN
NYA
HA KO
RA CHI
MIT
TA
Portanto (KO CHI) HANNYA HARAMITTA.
232
般
若
波 故
羅 知
蜜
多
233
ZE ZE
DAI DAI
MYŌ JIN
SHU SHU
É (ZE) o grande (DAI) Mantra (SHU) Universal (JIN).
É (ZE) o grande (DAI) Mantra (SHU) resplandecente (MYŌ).
234
是 是
大 大
明 神
呪 呪
235
ZE ZE
MU MU
TŌ D Ō
D Ō SHU
SHU
É (ZE) o Mantra (SHU) inigualável (MU JŌ).
É (ZE) o Mantra (SHU) incomparável (MU TŌ DŌ).
236
是 是
無 無
等 上
等 呪
呪
237
NŌ
JO
IS
SAI
KU
Aquele que extingue (NŌ JO) todo o tipo (IS-SAI)
de sofrimento (KU).
238
能
除
一
切
苦
239
SHIN
JITSU
FU
KO
Isto é Verdade (SHIN JITSU) não (FU) é mentira (KO).
240
真
実
不
虚
241
HAN
NYA KO
SHU HA
RA SETSU
MIT
TA
Este (KO) Mantra (SHU) proclamado (SETSU)
por HANNYA HARAMITTA.
242
般
若 故
呪 波
羅 説
蜜
多
243
SOKU
SETSU
SHU
WATSU
Este (SOKU) Mantra (SHU) se diz (SETSU) assim (WATSU):
244
即
説
呪
日
245
HA HA GYA
RA RA TEI
SŌ GYA GYA
GYA TEI TEI
TEI
Vamos (GYA TEI), vamos (GYA TEI),
Vamos (GYA TEI) juntos (HA RA)
Vamos (GYA TEI) juntos (HA RA) mais além (SŌ).
246
波 波 羯
羅 羅 諦
僧 羯 羯
羯 諦 諦
諦
247
BŌ
JI
SO
WA
KA
Até a Realização Última da Vida (BŌ JI).
Que assim seja (WA KA).
248
菩
提
薩
婆
訶
249
HAN
NYA
SHIN
GYŌ
A essência (SHIN) do Sūtra (GYŌ) da Sabedoria (HANNYA).
250
般
若
心
経
251
COMENTÁRIOS
菩提蕯埀。
依般若波羅蜜多故。
心無罣礙無罣礙故。
無有恐怖。遠離一切顚倒夢想。
究竟涅槃。三世諸仏。
依般若波羅蜜多故。
得阿耨多羅三藐三菩提。
故知般若波羅蜜多。
是大神呪。是大明呪。
是無上呪。是無等等呪。
能除一切苦。真実不虚。
故説般若波羅蜜多呪。
即説呪日。
羯諦、羯諦、波羅羯諦、
波羅僧羯諦、菩提薩婆訶。
般若心経。
252
BODAI SATTA.
E HANNYA HARAMITTA KO.
SHIN MU KEI GE MU KEI GE KO.
MU U KU FU. ON RI IS-SAI TEN DŌ MU SŌ.
KU GYŌ NE HAN. SAN ZE SHO BUTSU.
E HANNYA HARAMITTA KO
TOKU A NOKU TARA SAN MYAKU SAN BODAI.
KO CHI HANNYA HARAMITTA.
ZE DAI JIN SHU. ZE DAI MYŌ SHU.
ZE MU JŌ SHU. ZE MU TŌ DŌ SHU.
NŌ JO IS-SAI KU. SHIN JITSU FU KO.
KO SETSU HANNYA HARAMITTA SHU.
SOKU SETSU SHU WATSU.
HANNYA SHINGYŌ.
253
A maioria das pessoas, quando dá algo, quando
convida alguém ou quando presta algum serviço, calcula
sempre suas ações, e espera uma recompensa, o
agradecimento.
菩提 蕯埀 無所得
57
Toda a realidade é composta de dois planos, duas verdades,
chamadas 二諦 NITAI (satya-dvaya), que são divdidas em:
254
蕯埀 SATTA é a dimensão do relativo: submergir no
mundo, trabalhar com todos os seres, para poder
compreendê-los, ajudá-los e guiá-los pela Via justa.
Fazer 座 禅 ZAZEN, recitar os Sūtra ou costurar o
袈 裟 KESA representam apenas Bodhi, o 悟 SATORI.
Separar-se do mundo. Mas o valor elevado do Budismo
Mahāyāna ( 大乗 仏教 DAIJŌ-BUKKYŌ), sua superioridade
sobre o Hīnayāna (小乗仏教 SHŌJŌ-BUKKYŌ), reside nesta
compaixão dirigida a todos os seres sofredores, compaixão
ativa, que trabalha no mundo e traça nele o Caminho. É o
contrário da vida de ermitão, vida de reclusão e voltada para
si mesmo. Todas as formas de Budismo Hīnayāna
(小乗仏教 SHŌJŌ-BUKKYŌ), assim como o 臨済 宗 RINZAI
SHŪ, exortam o praticante a isolar-se do mundo com o fim de
não sofrer suas tentações e poder eliminar os 煩悩 BONNŌ
para alcançar rapidamente o 悟 SATORI com a ajuda do
ascetismo e das mortificações. Esta atitude é puro egoísmo.
É praticar somente 菩提 BODAI. Mas o 悟 SATORI obtido
desta maneira não é o Supremo 悟 SATORI. Falta-lhe a
integridade do desapego, da falta de discriminação. Uma
atitude assim não pode conduzir à unidade perfeita. Esta é a
razão pela qual se diz que o Hīnayāna (小乗 SHŌJŌ) é uma
etapa intermediária na realização, e que o monge Hīnayāna (
小 乗 SHŌJŌ) deverá se converter ao Mahāyāna
(大乗 DAIJŌ) para realizar plenamente o Caminho.
255
依 般若 波羅蜜多 故。
256
無 知 亦 無 得。
以 無所得 故。
257
Esta é a conclusão do diálogo entre Avalokiteshvara e
Shāriputra. Finalmente, a sabedoria mais elevada, a
sabedoria transcendental é sem meta, manifesta-se mais
além da consciência pessoal. É 無所得 MUSHOTOKU. Não é
o resultado do pensamento discursivo, mas emana das
profundezas inconscientes do espírito e do corpo,
profundidades que são da mesma natureza que a supra-
consciência cósmica.
258
以 無所得 故。
菩提 蕯埀。依 般若 波羅蜜多 故。
心無罣礙無罣礙故。
無有恐怖。遠離一切顚倒夢想。
究竟涅槃。
I MUSHOTOKU KO.
BODAI SATTA. E HANNYA HARAMITTA KO.
SHIN MU KEI GE MU KEI GE KO.
MU U KU FU. ON RI IS-SAI TEN DŌ MU SŌ.
KU GYŌ NE HAN.
無 所 得 MUSHOTOKU é a conclusão da primeira
metade do 般若 心経 HANNYA SHINGYŌ e se converte no
tema da segunda parte.
O Bodhisattva, graças a 般若 波羅蜜多 HANNYA
HARAMITTA, a sabedoria suprema, explica os méritos de
無所得 MUSHOTOKU.
心無罣礙無罣礙故。
260
Se não se tem ego, não se teme nada. Quando não se
possui nada, não se tem medo de perder. Os obstáculos e as
dificuldades se convertem em modestos contratempos
surgidos em nosso caminho com a finalidade de manter
nosso espírito vigilante, e podem ser utilizados como um
treinamento contínuo e sem relaxamento de nosso não ego.
Tal é sabedoria nascida de 無所得 MUSHOTOKU, e que o
Bodhisattva atualiza no não medo.
261
grande número de mortos vivos, já que o egoísmo é a morte
mais escura, a morte da verdadeira vida cósmica, um estado
de torpeza tenebrosa. Não obstante, a maioria o ignora!
Todo mundo se inquieta por seu corpo, por sua beleza
e por sua saúde. Esta inquietude é exagerada. As
enfermidades são produzidas pelo ego. O câncer é uma
manifestação do egoísmo. O que é preciso fazer então é
começar por curar o ego.
Abrir-se, abandonar o ego, significa neutralizar as
enfermidades. Seguir a Ordem Cósmica é a terapia mais
saudável para o corpo e para o espírito. E esta cura nos
conduz à alegria suprema da vitória sobre a vida e a morte. A
grande sabedoria 般若 波羅蜜多 HANNYA HARAMITTA
emana da paz que sucede a este combate ao ego. A
verdadeira morte, a morte de si mesmo, transforma-se em
alegria infinita, estado de profunda serenidade.
心無罣礙無罣礙故。
無有恐怖。
遠離一切顚倒夢想。
262
Uma noite, enquanto passeava, uma jovem viu uma
serpente atravessada no caminho e saiu dali correndo, já que
tinha muito medo. No dia seguinte, voltou a passar no mesmo
lugar e viu uma corda no chão.
Assim é 顚倒夢想 TEN DŌ MU SŌ: o engano ligado às
formações mentais subconscientes que surgem à menor
estimulação, ou quando a vida é deixada livre, como durante
o sonho, por exemplo.
264
菩提 蕯埀。依 般若 波羅蜜多 故。
心無罣礙無罣礙故。
無有恐怖。遠離一切顚倒夢想。
究竟涅槃。
BODAI SATTA. E HANNYA HARAMITTA KO.
SHIN MU KEI GE MU KEI GE KO.
MU U KU FU. ON RI IS-SAI TEN DŌ MU SŌ.
KU GYŌ NE HAN.
“A sabedoria perfeita elimina qualquer obstáculo no
espírito do verdadeiro Bodhisattva. Não resta medo nem
temor. As miragens e os pontos de vista falsos desaparecem
naturalmente, e por último, o Bodhisattva alcança o
verdadeiro Nirvāna”.
266
徳山 TOKUSAN lhe pediu três bolinhos. Seu ar fanfarrão
despertou a curiosidade da anciã:
“O que você leva sobre os ombros?”, perguntou-lhe.
“É um texto altamente precioso e demasiado profundo
para que você possa compreendê-lo. É o
金剛 経 KONGO KYŌ, mas isso não significa nada para você.
Dê-me os bolinhos de arroz!”
“Sou ignorante, é verdade, mas curiosa”, respondeu a
anciã.
“Quero fazer-lhe uma pergunta. Se você me respondê-
la lhe darei os bolinhos. Não é neste precioso e profundo
texto onde está escrito que o espírito do passado não pode
ser alcançado, inalcançável é o espírito do presente, e
igualmente inalcançável é o espírito do futuro? 58 Diga-me
então: com que espírito você vai comer meus bolinhos de
arroz? Com o espírito do passado, do presente ou do futuro?”
徳 山 TOKUSAN ficou estupefato.... E não pôde
conseguir seus bolinhos de arroz, que dessa forma se
tornaram também inalcançáveis. Perplexo, pensou que o
Mestre 龍潭 RYUTAN devia ser mesmo um grande Mestre
para que uma simples velhota, guardiã do templo, simples e
sem cultura, tivesse um espírito tão hábil. Atravessou
imediatamente o grande portal de entrada e foi ver Mestre
龍潭 RYUTAN.
Este o acolheu singelamente. Mostrou-lhe sua cama e
pediu para que se recolhesse até o dia seguinte. Como
trabalho, encarregou-o de varrer todos os dias o pátio do
templo, carpir o jardim e limpar os corredores. Depois do
trabalho deveria ir meditar com seus irmãos monges. E assim
passaram-se vários dias...
“Vim aqui porque havia ouvido que Mestre
龍潭 RYUTAN é o grande dragão do lago, mas neste lago
58
三 世 心 不 可 得 SANZESHIN FUKATOKU, o espírito dos três
tempos não pode ser alcançado. (N.T.)
267
não vejo nenhum dragão!”, gritou um dia, cansado e
exasperado. O Mestre 龍潭 RYUTAN então resolveu aceitar
o 問答 MONDO. O diálogo se prolongou até alta madrugada.
Cansado de falar, o Mestre 龍潭 RYUTAN pediu-lhe que se
retirasse. Uma vez passada a soleira da porta de seu
aposento, 徳山 TOKUSAN deparou-se com a escuridão, que
era total. O Mestre 龍 潭 RYUTAN foi então buscar uma
lamparina de óleo para 徳山 TOKUSAN. Mas no mesmo
instante em que a oferecia a 徳山 TOKUSAN, assoprou a
chama. A escuridão se fez de novo, mais densa que antes
Neste instante, 徳山 TOKUSAN obteve o 悟 SATORI.
三世諸仏。
依般若波羅蜜多故。
得阿耨多羅三藐三菩提。
268
No Budismo, consideram que os monges, depois de
sua morte, alcançam o perfeito Nirvāna, e portanto são
considerados como Budas.
Às vezes, quando se pergunta no Japão: O que é
Buda?, algumas pessoas respondem: “a morte.”
No espírito de muita gente, em nossos dias, a palavra
Buda significa “morte”. Esqueceram o verdadeiro sentido
desta palavra.
As frases:
三 世 諸 仏。SAN ZE SHO BUTSU. 依 般若 波羅蜜
多 故。E HANNYA HARAMITTA KO. 得 阿 耨 多羅 三 藐 三
菩 提 。 TOKU A NOKU TARA SAN MYAKU SAN BODAI,
expressam o verdadeiro sentido da palavra “Buda”, isto é, o
ser que obteve “阿 耨 多羅 三 藐 三 菩提。A NOKU TARA
SAN MYAKU SAN BODAI”, o ser que despertou para a
verdade suprema.
阿 A tem o mesmo sentido de 空 KŪ, é um prefixo
negativo.
耨 多羅 NOKU TARA: por cima.
三 SAN: o justo, o verdadeiro.
藐 MYAKU: idêntico.
三 菩提 SAN BODAI: o 悟 SATORI, o despertar.
269
CHI 59 : o maior, o mais justo, a sabedoria suprema, a
Sabedoria Cósmica.
A sabedoria 阿 耨 多羅 三 藐 三 菩提 A NOKU
TARA SAN MYAKU SAN BODAI é a sabedoria universal.
Todos os Budas obtiveram o 悟 SATORI graças a ela e
despertaram para a verdade cósmica.
仏 HOTOKE, em japonês, designa o Buda assim como
a noção de “passar”. Às vezes emprega-se também o termo
安泰 ANTAI, que significa perder, deixar um pacote aberto.
Isto significa ser livre, estar liberado dos laços complicados
dos 煩悩 BONNŌ, das ilusões. Tal como já expliquei, no
Budismo Mahāyāna (大乗仏教 DAIJŌ-BUKKYŌ), o Buda não
obtém o 悟 SATORI somente para ele mesmo. Formado em
seu ensinamento e instruído na verdade, ajuda todos os
seres a chegar no Nirvāna. Mestre 道元 DŌGEN escreveu no
傘松道詠 SANSHŌDŌEI um poema sobre este aspecto:
“Eu sou demasiado estúpido para ser Buda.
O único que deseja é ser um verdadeiro monge
(um verdadeiro Bodhisattva)
que ajude todos os seres a passar para a outra
margem.”
59
No original, SHO HEN TO SHO. (N.T.)
270
故知般若波羅蜜多。
是大神呪。是大明呪。
是無上呪。是無等等呪。
能除一切苦。真実不虚。
故説般若波羅蜜多呪。
即説呪日。
羯諦、羯諦、波羅羯諦、
波羅僧羯諦、菩提薩婆訶。
275
pela segunda vez, fugiu de casa. Terminou por se
estabelecer em uma metrópole longínqua, no Leste, e para
ganhar a vida voltou a seu primeiro ofício, o comércio de seu
corpo. Sua grande beleza lhe ocasionou novamente fama e
despertou o desejo nos homens... Por esta época, um
personagem forte, jovem e distinto, de traços refinados vinha
dos arredores da cidade. Nela pregava regularmente,
prodigalizando os ensinamentos de seu Mestre, o Buda
Shākyamuni. Chamava-se 目 連 MOKUREN
(Maudgalvalāyana).
目 連 MOKUREN (Maudgalvalāyana) converteu-se
rapidamente no objeto da inveja dos brahmanes, cujos
ouvintes, em sua maioria mulheres, escapavam deles e iam
engrossar as fileiras dos novos fiéis convertidos por suas
palavras. Estes brahmanes se sentiam humilhados e
preparavam um complô contra o intruso que lhes arrebatava
suas fiéis e portanto, seu poder. De pronto, não podiam
matá-lo, pois isto levantaria a opinião pública e provocaria
desconfiança contra eles.
Tinham que tentar então derrubar a imagem de pureza
que 目連 MOKUREN (Maudgalvalāyana) despertava na fé
popular. 蓮華色 RENGESHIKI (Utpalavarna) era a mais
indicada para acabar com o mito. Uma vez seduzido, 目連
MOKUREN (Maudgalvalāyana) perderia a alta estima de
enviado divino que detinha no coração de suas fiéis.
目 連 MOKUREN (Maudgalvalāyana) comprometido
com 蓮華色 RENGESHIKI (Utpalavarna)! Que escândalo!
Assim pensavam os brahmanes, que foram então visitar
蓮華色 RENGESHIKI (Utpalavarna). Quando esta se inteirou
de sua missão, ciente de seu poder de sedução exclamou:
“Não há nada mais fácil! Todos os homens são
parecidos! Todos terminam por se inclinar ante minha beleza!
目 連 MOKUREN (Maudgalvalāyana) não será exceção!
Duvido muito que sua virtude seja incorruptível!
“Mas 目 連 MOKUREN (Maudgalvalāyana) é, sem
embargo, um homem que só poderá ser pego através de
276
uma armadilha”, pensou 蓮華色 RENGESHIKI (Utpalavarna).
“Segundo o que disseram os brahmanes, sua vida
disciplinada é um obstáculo e uma insinuação demasiado
direta seria imediatamente rechaçada. Tenho de encontrar
uma saída astuciosa.”
No dia seguinte, ao entardecer, 蓮華色 RENGESHIKI
(Utpalavarna)deteve-se no caminho que normalmente
tomava 目連 MOKUREN (Maudgalvalāyana) quando voltava
ao templo. Estendida sobre o caminho, gemendo, fingia estar
ferida ou enferma, pensando que assim 目 連 MOKUREN
(Maudgalvalāyana) não poderia permanecer insensível.
“Então, será fácil seduzi-lo!”, pensou. Ouviu passos que se
aproximavam e acreditou que havia chegado o momento de
intensificar seus lamentos. 目 連 MOKUREN
(Maudgalvalāyana) chegava... Mas 目 連 MOKUREN
(Maudgalvalāyana) passou sem prestar a menor atenção à
mulher. Sua intiução superava o poder dos sortilégios!
“ 目 連 MOKUREN (Maudgalvalāyana)! 目 連 MOKUREN
(Maudgalvalāyana)! Ajude-me, estou enferma!” Dizendo isto,
蓮華色 RENGESHIKI (Utpalavarna)se levantou brutalmente e
correu até 目 連 MOKUREN (Maudgalvalāyana). Este ato
dissipou qualquer dúvida sobre as intenções de 蓮 華 色
RENGESHIKI (Utpalavarna). Imperturbável, continuou seu
caminho com 蓮華色 RENGESHIKI (Utpalavarna) em seus
calcanhares, gesticulando e maldizendo, suplicando,
sussurrando palavras sem sentido. Quando por fim se
tranqüilizou, desarmada, todo o caminho havia sido
percorrido e o 道場 DŌJŌ do Buda se apresentava a sua
vista. Buda a esperava:
“Você chegará a ser uma grande monja”, disse-lhe.
Pousou sua mão sobre a cabeça de
蓮華色 RENGESHIKI (Utpalavarna) e seus cabelos caíram
imediatamente. Suas vestimentas vulgares se transformaram
em 袈裟 KESA, sua atitude foi dignificada. Todo seu mau
karma desapareceu de uma vez. A partir deste momento,
277
蓮 華 色 RENGESHIKI (Utpalavarna) já não era mais
蓮華色 RENGESHIKI (Utpalavarna), mas uma grande monja
que durante toda sua vida consagrou-se ao Buda.
Por aquela época tinha uns quarenta anos. Seguiu o
Buda por todas as partes, prodigalizando-lhe sua ajuda,
assistindo-o em tudo. Não obstante, morreu prematuramente,
assassinada por um tal Daiva. Este ato marcou a
consumação final de seu mal karma. Esta foi uma das
primeiras 60 monjas da história do Budismo. Buda sempre
falava dela em termos elogiosos e a estimou ainda mais que
a 目 連 MOKUREN (Maudgalvalāyana). Ele a havia
compreendido profundamente. A fé profunda que nela se
despertou em direção à 袈裟 KESA e ao Buda a elevou e a
glorificou. Sabia que renasceria ainda para construir o
Grande Caminho do Mahāyāna (大乗 DAIJŌ). Esta grande
monja ajudou e ajudará à humanidade, mais do que
poderiam fazê-lo dez grandes Bodhisattvas.”
60
No original “a primeira”. Existe consenso em se estabelecer
Mahāprajāpatī ( 大 生 主 DAISHŌSHU ou
摩訶波闍婆提 MAKAHAJABADAI) como a primeira monja histórica.
(N.T.)
278
Cada frase do 般若 心経 HANNYA SHINGYŌ é um
mantra.
Mas o mantra final:
羯諦、羯諦、波羅羯諦、 波羅僧羯諦、菩提薩婆訶。
279
薩 婆訶 SO WAKA: o fim, a realização total, a
consumação final.61
Cada um destes termos do mantra é um universo
infinito. Não se pode captá-los enquanto conceitos. Esta é a
razão pela qual são intraduzíveis. É melhor conservar todo
seu alcance e sua potência integral, limitando-se a expressar
os sons puros. Um mestre 真言 SHINGON, o Mestre 弘法大
師 KŌBŌ-DAISHI, dizia que um 漢 字 KANJI inclui mil
sentidos. Ao serem traduzidos perdem sua veracidade. O 般
若 心 経 HANNYA SHINGYŌ é conhecido por seu poder
misterioso, por seu poder intrínseco, independentemente do
poder ligado à recitação de qualquer Sūtra. Numerosas
histórias ilustram este poder sobrenatural que sempre lhe foi
atribuído.
61
O seguinte comentário da Lama Anagarika Govinda complementa
o significado de svāhā:
280
Depois da derrota do clã 平家 HEIKE, há setecentos
anos, acontecida durante uma batalha naval, todos os
soldados e toda a família 平家 HEIKE foram engolidos pelo
mar, no fundo de 壇ノ浦 DAN NO URA, no estreito de
下関市 SHIMONOSEKI (関門海峡 KANMON KAIKYŌ). Nesta
província, muito tempo depois, estranhas lendas de
fantasmas apareceram. Há aproximadamente trezentos anos,
vivia perto de 壇 ノ 浦 DAN NO URA um muito célebre
interprete de 琵 琶 BIWA 63 , conhecido pelo nome de
芳一 HŌICHI.
Era cego. Não se sabe se por causa de sua
enfermidade, mas o fato é que sabia extrair de seu
instrumento tonalidades de uma tal pureza que arrancavam
lágrimas de todos os que o ouviam.
Por aquela região se encontrava o templo
阿弥陀 寺 AMIDA JI. O superior, um mestre ancião, amava-o
muito. E como 芳 一 HŌICHI era muito pobre, havia lhe
oferecido hospitalidade em um quarto de seu templo. Uma
noite de verão, 芳一 HŌICHI estava sentado na borda da
galeria circular, perdido na contemplação das estrelas 64 ,
esperando o retorno do mestre, que havia saído para fazer
umas cerimônias na casa de uns fiéis. De repente, um som
de passos que não lhe eram familiares o tirou de seu silêncio.
Era um samurai (武士 BUSHI) com sua armadura.
Aproximou-se e disse a 芳一 HŌICHI:
“Não tenha medo. Sou um mensageiro que veio te
buscar, da parte de uma família aristocrática, grandes
personagens de alta nobreza. Quiseram ver o campo de
batalha de 壇ノ浦 DAN NO URA, e em segredo vieram a
esta província, acompanhados de uma comitiva importante.
Ouviram falar de seu célebre 琵琶 BIWA e desejam ouvi-lo
tocar.”
63
琵琶 BIWA: espécie de alaúde japonês.
64
Sic. (N.T.)
281
芳一 HŌICHI não tinha intenção de mover-se, mas o
poderoso samurai segurou sua mão e o arrastou. Deixou-se
guiar e rapidamente se encontrou diante de um grande
palácio. Um pórtico elevado se abria. Muitas pessoas o
esperavam: altos dignatários, oficiais importantes, senhoras
vestidas elegantemente. No centro desta grande assembléia,
num lugar elevado, reinava uma mulher excepcionalmente
formosa. Pediu-lhe que tocasse seu 琵 琶 BIWA. Suas
melodias, como sempre, provocaram suspiros de admiração
e de entusiasmo.
“Minha muito respeitosa senhora ficou muito satisfeita
com sua interpretação, você a encantou. Volte todas as
noites. Depois de cada recital haverá uma recepção e você
receberá uma recompensa. Uma jovem mulher da alta
nobreza deseja ser sua esposa. Não fale com ninguém a este
respeito. Guarde segredo absoluto.”
芳 一 HŌICHI sentiu um pouco de medo, mas sua
curiosidade havia sido despertada.
O samurai voltou a acompanhá-lo até o templo
阿弥陀 寺 AMIDA JI.
Na noite seguinte e na outra produziu-se a mesma
aventura. Ao cabo de uma semana, o superior do templo
começou a inquietar-se cada vez mais com estas errâncias
noturnas, sobretudo porque 芳一 HŌICHI apresentava um
aspecto estranho, ensimesmado e absorto.
“Por que não tem dormido aqui esta noite e as
anteriores?”, perguntou a 芳一 HŌICHI. “Aonde vai? Você
tem uma amante?”
“Não, não, é um segredo!”, respondeu vagamente
芳一 HŌICHI .
O Mestre decidiu então enviar dois monges para segui-
lo, mas o caminho que 芳 一 HŌICHI tomava desafiava
qualquer um. Era praticamente impossível segui-lo. Os dois
discípulos perderam totalmente seu rastro e se puseram a
procurá-lo. Tudo em vão. Encontrar 芳 一 HŌICHI nesta
região selvagem, durante a noite, só por um milagre.
282
Tomaram portanto o caminho de volta. Ao passarem
diante do cemitério do templo 阿弥陀 寺 AMIDA JI, ouviram,
pasmados, o som do 琵琶 BIWA. Correram até ali e viram
芳一 HŌICHI sentado diante das tumbas do clã 平家 HEIKE.
A chuva havia empapado suas roupas, mas estava
demasiado absorto tocando seu instrumento para sentir algo,
fosse o que fosse.
Seus amigos o chamaram:
“芳一 HŌICHI, 芳一 HŌICHI!” Mas ele parecia nada
ouvir. Tocaram-no nas costas. Chamaram-no de novo,
sacudiram-no e ele finalmente se deu conta de sua presença.
Ao voltar ao templo, contaram tudo ao superior, que ficou
estupefato.
“ 芳 一 HŌICHI caiu enfermo. Os espíritos dos
平家 HEIKE devem tê-lo possuído. Se continuar mais uma
semana assim, morrerá”, disseram os discípulos.
“De jeito nenhum!”, respondeu o Mestre. “Conheço um
método para salvá-lo. Temos que fazer um 祈禱 KITŌ o mais
rapidamente possível.”
Ordenou a seus discípulos que trouxessem seu
material de caligrafia: tinta, pincel, pedra, etc... E lentamente,
começou a pintar sobre a superfície do corpo de 芳一 HŌICHI
o Sūtra da Grande Sabedoria, o 般 若 心 経 HANNYA
SHINGYŌ. Todo o seu corpo foi coberto, desde o topo da
cabeça até a planta dos pés. Depois disso, o Mestre lhe fez a
seguinte advertência:
“Sem dúvida alguma o samurai voltará esta noite, mas
não lhe responda. Continue fazendo 座禅 ZAZEN, somente
座禅 ZAZEN, 只管打座 SHIKANTAZA. Não se mova. Cante o
般若 心経 HANNYA SHINGYŌ em voz baixa. Desta maneira,
poderá escapar deste samurai e do feitiço.”
Ao cair da noite, o samurai chegou, mas não pôde ver
芳 一 HŌICHI. Seu 琵 琶 BIWA estava pousado contra a
parede, sozinho.
283
O samurai olhou ao redor e viu duas orelhas suspensas
no ar. Reconheceu-as: era as orelhas de 芳一 HŌICHI! Ele
havia se transformado num fantasma! Segurou-as, esticou-as
e por fim arrancou-as, levando-as consigo. 芳一 HŌICHI não
sentiu dor alguma, mas um grande frio tomou conta de seu
corpo. Seu sangue começou a fluir. Na manhã seguinte, o
Superior do templo foi vê-lo:
“Maldição!” exclamou, “você perdeu suas orelhas!
Esqueci de escrever o 般若 心経 HANNYA SHINGYŌ sobre
elas. Que esquecimento o meu!”
O mestre estava muito comovido. Mas 芳一 HŌICHI se
recuperou rapidamente. A partir de então se fez célebre com
o nome de “芳一 HŌICHI sem orelhas” (耳なし芳一 MIMI
NASHI KŌICHI). Sua arte de tocar o 琵琶 BIWA não se
alterou pela perda das orelhas. Pelo contrário, à medida em
que passava o tempo, não cessava de superar-se, para
grande prazer de todos os amantes do 琵琶 BIWA, de todos
os poetas e dos músicos, de todos os artistas, de todos os
monges e mendigos, das mulheres e das crianças. Nem
sequer o maior rústico podia permanecer insensível.
Converteu-se assim de maneira incontestável no maior
mestre do 琵琶 BIWA.
284
preceitos, 持戒 JI KAI (shīla), a paciência 忍辱 NINNIKU
(kshānti) e o esforço, 精進 SHŌ JIN (vīrya). Mas finalmente,
a simples prática do 座禅 ZAZEN inclui todas as demais
Paramitā. Isto é o que expressa implicitamente o
般若 心経 HANNYA SHINGYŌ. A realização de 空 KŪ, do
Nirvāna, é a consumação da prática autêntica do
座禅 ZAZEN.
285
são as palavras amáveis, afáveis. 離行 RIGYŌ consiste em
prestar serviço. Finalmente, há que se dar aos demais um
sentimento de segurança, de confiança e de paz através do
corpo pela expressão do rosto, com o olhar, com as palavras.
Tal é o verdadeiro 布施 無所得 FUSE MUSHOTOKU, que não
espera nada em compensação. Também no
正法眼蔵 SHŌBŌGENZŌ, o termo 同事 DŌJI expressa a
identidade entre o ego e os demais. Este é o último
布施 FUSE, a profunda compaixão.
Os Sūtra falam freqüentemente do 布 施 FUSE da
hospitalidade. Este 布 施 FUSE tinha uma importância
particular para os viajantes e os monges errantes da
antiguidade. Numerosos contos ilustram as virtudes desta
prática.65 Aquele do pescador e do monge, por exemplo:
A condição de um pescador desgraçado se agravava a
cada dia porque sua pesca, havia meses, era muito má. Uma
noite de inverno, um monge o chamou à sua porta e lhe
pediu hospitalidade. O pescador ofereceu-lhe imediatamente
sua modesta morada. Deu-lhe sua cama e a única manta que
possuía. Saiu a buscar galhos de pinheiro e fez um fogo
(segundo outras versões, queimou os próprios tamancos de
madeira). Como nada tinha para comer, foi pedir para seu
vizinho um pouco de arroz, que cozinhou e deu ao monge
ancião. No dia seguinte, saudou-o, disse-lhe adeus, e depois
65
Na própria cultura Ocidental, esta prática também é relatada desde
seus primórdios. Na Ilíada de Homero temos relatado o episódio em
que o troiano Glauco encontra-se frente a frente com Diomedes, que
lutava pelo lado grego. Ao se desafiarem para um duelo singular,
como era hábito nestes tempos, em meio às respectivas
apresentações, ambos reconhecem que suas famílias estão ligadas
por laços de hospitalidade desde tempos antigos. Em virtude disso,
deixam de se enfrentar e renovam estes laços, trocando as
respectivas armaduras. Diomedes ofereceu a Glauco as suas armas,
que eram de bronze, e recebeu deste as suas, que eram de ouro.
Este episódio gerou um dito popular: “Trocar bronze por ouro”. (N.T.)
286
disso resolveu voltar ao lago, tal qual fazia todos os dias,
incansavelmente.
O monge então lhe disse:
“Espere, vou com você. Apanhe a salmoura que você
tem ali.”
Uma vez na borda do lago, o monge apanhou a
salmoura e a jogou na água dizendo:
“Pegue seu barco e saia a pescar, depois volte para me
ver.”
O pescador saiu e após algum tempo voltou, com as
redes cheias de peixes. E a partir de então, não passou uma
só manhã sem que, tendo ido pescar no lugar em que o
monge havia lançado a salmoura, não voltasse com as redes
repletas.
287
corpo e alma, há que se chegar a ser como o outro para
compreendê-lo intimamente se isso for necessário.
De todas as maneiras, há que se evitar dar por obrigação,
por necessidade, por despeito ou por medo de ser castigado.
O 布 施 FUSE não deve ser praticado com vistas a
recompensas kármicas, já que estas não se manifestarão se
o espírito não for 無所得 MUSHOTOKU.
O fato de se chegar a ser Bodhisattva ou monge, ou
verdadeiramente religioso, deve conjugar-se com a prática da
doação, que pode ser realizada todos os dias, em todos os
momentos, sob qualquer forma possível.
Como chegar a ser Buda ou Deus? Como alcançar a
outra margem a partir desta margem? Como obter o
悟 SATORI?
Fazendo 座禅 ZAZEN.
A postura de 座禅 ZAZEN nela mesma é Deus ou
Buda, ou o 悟 SATORI.
Mas na vida cotidiana, as seis Paramitā são
necessárias. Se a vida cotidiana não está em harmonia com
a Ordem Cósmica, se não segue o Dharma, a prática diária
do 座禅 ZAZEN perderá grande parte de seu valor. Ser Buda
ou Bodhisattva somente durante o 座禅 ZAZEN não é o
suficiente. Há que tentar sê-lo durante a vida de todos os dias.
Para tanto, há que treinar em se manter o espírito sereno,
desprovido de apego, deixando passar os desejos e
pensamentos. A prática do Caminho consiste em tender cada
vez mais ao espírito 無 所 得 MUSHOTOKU, o espírito
desinteressado, generoso, voltado para os demais.
Sabedoria e compaixão formam os dois pilares sobre os
quais se apóiam toda a religião verdadeira, e os dois se
articulam ao redor do eixo da meditação.
A doação, na acepção ampla do termo, é uma
exigência do espírito religioso. A doação pode ser praticada
muito simplesmente, muito modestamente, sem o que não
lhe resta valor. Por exemplo, não pegar um alimento que
desejamos vivamente. Este ato é um 布施 FUSE para o
288
mundo inteiro. Ademais, este tipo de ação é o mais difícil de
realizar. São os pequenos apetites que mantém a
persistência do ego, que perpetuam a indulgência e a
complacência. Há que se acostumar a rechaçá-los, e com o
tempo, desaparecerão automaticamente. Esta ação será
então um beneficio infinito para todos os seres.
Mas em nossos dias vivemos exatamente ao contrário
deste comportamento. A avidez é o motor de nossa
sociedade materialista. As religiões, debilitadas, não podem
lutar contra esta corrente. São inaptas para dar um novo
impulso aos valores mais nobres do ser humano.
O labirinto sem saída em que se encontra nossa
civilização repousa sobre uma falta de sabedoria.
289
Seja como for, os preceitos são sinônimos de
moderação nos sentimentos, de veracidade nas palavras e
de tolerância nos pensamentos. Devem expressar o Caminho
do Meio.
290
Mestre 道林 DŌRIN respondeu-lhe:
“Sim, inclusive uma criança pode compreendê-lo, o que
não impede de ser difícil de praticar um comportamento justo
e deter as más tendências. Inclusive aos oitenta anos é
difícil.”
291
“Sim, sim, sim!”
Devemos compreender o significado deste rito.
Devemos deter as más ações e seguir a moral. Mas isto não
é uma regra. Há que se compreender a situação com a
consciência lúcida. Cada situação é diferente para cada um.
O que significa deter as más ações? Significa não
beber whisky? Às vezes sim, às vezes não.
攝 善法 戒 SHŌ ZENHŌ KAI. Respeitar a ordem natural,
as maneiras de atuar, ajudar para o bem com compaixão e
sabedoria.
No Budismo japonês, os 戒 KAI estão limitados a três:
292
são os que serão recebidos durante a ordenação e se
resumem em dez princípios fundamentais:
66
Não consta do original. (N.T.)
293
67
7. 自 讚 毁 他 戒 JISAN KITA KAI :
Não se elevar e rebaixar os outros.
8. 慳 惜 加 毀 戒 KENSHAKU KEKI KAI:
[Ser parcimonioso](*). Não desejar demasiado. Não
ser ávido.
9. 瞋 心 不 受 悔 戒 SHINSHIN FUJUKE KAI.
Não se encolerizar.
10. 謗 三寶 戒 HŌ SANBŌ KAI: [Não falar mal dos Três
Tesouros]68. Não se equivocar quando falar. Não emitir
opiniões e juízos errôneos.
67
Não consta do original. (N.T.)
68
Idem. (N.T.)
294
“.... Podemos definir portanto os desejos ou a maneira
sã de vivê-los como a escolha de desejos controláveis que,
por isso, já começaram por ser controlados e avaliados
lucidamente. Agimos de maneira desarmoniosa com atos
automáticos porque estamos contrariados e porque não
aprendemos a arte de ter atitudes corretas. Pelo contrário, os
gestos profissionais são muito harmônicos e precisos e, mais
ainda, se são executados maquinalmente e não se pensa
neles. Precisamente, os gestos profissionais são aprendidos
com cuidado. Convertem-se em bons hábitos e não
necessitam ser controlados. Se queremos realizá-los
conscientemente os perturbamos, já que desejamos que a
vontade atue forçosamente em um automatismo, que assim
se encontra perturbado. Mas de vez em quando há que
controlá-los e, para isto, o melhor é tomar consciência de
toda a sucessão de gestos. Acreditamos que para querer
precisamos agir antes, entretanto primeiramente temos que
sentir para que a ação possa ser inserida corretamente no
estado do corpo.”
“.... Os desejos são essencialmente centros afetivos
inconscientes da base do cérebro, cujo desencadeamento
sofremos. A vontade não está relacionada diretamente.
Portanto, não devemos tentar lutar voluntariamente contra
um desejo, temos que conhecê-lo indiretamente.”
“.... Aquele que cria a calma em si, controlando sua
respiração, relaxando, tomando uma atitude pacífica,
tomando consciência de seu corpo e de suas sensações,
desvia sua atenção do desejo e o diminui, mas ao mesmo
tempo reforça sua vigilância, que o faz capaz de resistir
melhor com o fim de orientar melhor seu desejo.”
“.... É o psiquismo superior, o cérebro, o que controla,
mas o fato de tranqüilizar o corpo através dos simples meios
precedentes, pelo fato de que os centros da harmonia do
69
Ex-diretor de pesquisa do Departamento de Neurofisiologia da
Sorbonne. (N.T. Ed. Esp.)
295
corpo são também os centros de harmonia do cérebro, tem
como resultado um aumento de nossa vigilância cerebral, de
nossa possibilidade de atenção. A paz do corpo é a fonte de
paz interior.”
“.... Os maus desejos, as más maneiras de viver os
desejos, são tais que, se desejamos ou se deploramos,
acreditamos que nos animalizamos (o que é impossível: só
podemos nos desumanizar uma vez que não podemos
encontrar os bons instintos perdidos que já não estão em
nossa natureza liberada), e que tentamos ser um anjo em
contínua luta com um animal, em lugar de ser simplesmente
um homem.”
“... O homem civilizado, presa dos desejos inúteis ou
maus, é menos livre que o primitivo, simplesmente porque
sua liberação das estreitezas moralistas o acorrentam às
estreitezas dos costumes e da publicidade. Mais que o
homem primitivo, o homem civilizado necessita aprender,
necessita ser liberado. Ou que ninguém lhe ensine ou lhe
explique. O paradoxo é que devemos tomar por exemplo os
membros da civilização que ela julga “inferiores” e que não
obstante são mais equilibrados, já que respeitam muito mais
a natureza. Não se encontram no Oriente, com o Yoga e o
Budismo Zen, os mestres do auto controle? Também
podemos encontrar equivalentes em nossas tradições:
nossos antepassados conheceram este auto controle, antes
de se converterem em puros intelectuais e em técnicos,
discípulos sem sabê-lo de Descartes. É certo que isto
permitiu um progresso real da civilização, mas também na
degeneração do homem, associação que de maneira alguma
era obrigatória, e da qual temos que nos desembaraçar
agora, se não queremos perecer.”
“...Como conclusão ... A colméia é boa para a abelha
enquanto que nossa sociedade é cada vez mais nociva para
o homem, e não só pela poluição do meio ambiente, mas
mais ainda pela degradação das relações humanas. A
solução não está na volta ao passado, nem na anarquia, nem
em uma destruição revolucionária sistemática, mas na
296
referência ao sentido da história, desenvolvimento cultural de
nossa natureza. Não se trata de se opor ao progresso mas
de fazer que este seja um VERDADEIRO PROGRESSO
PARA O HOMEM. Trata-se de reconhecer que nada é mau,
com a condição que esteja bem orientado, em relação ao
progresso da pessoa sob seus aspectos individual e social.”
70
No original, “TON, JIN e KIM”. Tratam-se dos “três venenos”,
三毒 SANDOKU (tri-visa):
297
Ainda que nos comportemos bem durante todos os dias
de nossa vida cotidiana, basta que um dia nos ponhamos em
cólera, para que esta destrua todos os bons méritos obtidos.
Esta é a razão para se ter paciência e praticar a resistência,
atitudes fundamentais que temos de respeitar para obter o
Caminho. O conceito de paciência é muito importante, já que
permite regular a conduta da existência. Ser objeto de críticas
é freqüentemente muito mal aceito. Mas neste caso
específico, no qual a força da paciência é posta a prova, se
esta é mantida, o mais saudável para o Caminho é o
abandono do ego. A crítica é um método que normalmente
empregam os mestres 禅 ZEN, com este objetivo.
Progressivamente, o apego ao ego diminui, e os sarcasmos,
as zombarias, as reprimendas passam através do discípulo
sem que este se veja afetado. A educação do discípulo passa
a uma dimensão mais elevada: as críticas e apreciações do
Mestre já não são sentidas como um ataque à personalidade
(ego), mas como uma verdadeira instrução que edifica
imediatamente o discípulo.
71
“Aceita as críticas e sujeita-te às calunias dos outros.
Eles acabam se cansando por quererem
incendiar o céu com uma tocha.
Quando tu o escutas, é como um doce néctar.
Ele se dissolve instantaneamente e ingressa no mistério.”
298
Não se encolerizar. Ainda que alguém se incomode,
não conteste, não lute. Há que praticar a paciência, 忍 NIN.
Existem três tipos de paciência: 生 忍 SHŌNIN,
法忍 HŌNIN e 信忍 SHINNIN72
生忍 SHŌNIN: se nos criticam, se nos tocaram de
alguma forma nas profundezas de nosso ego, não devemos
polemizar. Tenha sempre presente em seu espírito o valor
que realmente temos: nem tão bom como dizem, nem tão
mau como acreditamos. Permanecendo sempre lúcidos e
vigilantes, não cairemos nas armadilhas da honra. Mantenha
o espírito sereno, imperturbável.
Algumas vezes sou muito diplomático, outras vezes
sou cortante.
法忍 HŌNIN: este termo é freqüentemente repetido no
證道歌 SHŌDŌKA. Significa o não apego. O espírito interior
deve permanecer sempre apaziguado e lúcido.
Se nascem 煩悩 BONNŌ no espírito, deixe-os passar.
Se for criticado, tenha paciência. Daqui nasce o poder
material e a verdadeira sabedoria.
72
No original, “SHEININ”. (N.T.)
73
大 般涅槃 經 DAI NEHAN KYŌ, Mahāparinirvāna-sūtra. (N.T.)
299
seis grandes 悟 SATORI de Buda, insistindo sobre a virtude
de 忍 NIN, os méritos da paciência.
Na vida social, para conseguirmos criar uma grande
obra, a paciência, 忍辱 NINNIKU, é igualmente importante.
300
A quarta Paramitā é 精進 SHŌ JIN (vīrya), o esforço, a
resistência. Praticá-lo, como a moralidade, é difícil. Todo
mundo sabe agir de palavra, mas o comportamento na vida
cotidiana não reflete estas palavras. A ação não segue o
pensamento, o ideal não coincide com a realidade, o
comportamento não é justo nem exato. Não corresponde de
nenhuma maneira a 摩訶 般若 波羅蜜多 MAKA HANNYA
HARAMITTA (Mahā Prajñā Paramitā), a Grande Sabedoria.
Como passamos nossa vida? Como nos comportamos desde
o nascimento até a morte? O 般若 心経 HANNYA SHINGYŌ
nos dá o segredo das seis Paramitā. Seguir os preceitos, a
moral, levar uma vida regrada, praticar boas ações,
respeitar os cinco 戒 KAI fundamentais 74 , tudo isto nos
aproxima da verdadeira sabedoria. A sabedoria profunda do
座禅 ZAZEN nos permite discernir o justo do falso. Daí a
importância de 精進 SHŌ JIN: o esforço, a perseverança, a
quarta Paramitā, a concentração sobre uma só coisa, aqui e
agora. Quando se pratica 座禅 ZAZEN há que se concentrar
somente sobre 座 禅 ZAZEN e continuar assim. Tomar a
postura uma vez só não basta! Alguns vêm fazer
座 禅 ZAZEN um dia, uma semana, um mês, um ano, e
depois já não voltam mais.
301
O Sūtra sobre o testamento de Buda diz:
“Se nos concentrarmos plenamente sobre uma coisa,
consegui-la-emos.”
Tudo é possível, mas no interior dos limites do justo e
do verdadeiro, e de qualquer forma sem infringir os preceitos.
Há que se concentrar sobre os Paramitā: os 布施 FUSE, os
戒 KAI, etc... Existem dois tipos de esforços: o esforço do
corpo e o do espírito. Por exemplo, fazer um 布施 FUSE ou
respeitar um 戒 KAI refletem o 精 進 SHŌ JIN do corpo.
Praticar a paciência ou o 座禅 ZAZEN requer um esforço do
corpo e do espírito. Isto é criar sabedoria, o 精進 SHŌ JIN do
espírito.
75
No original, “IKKO SHIKIN”. (N.T.)
302
2. 攝 善法 精進 SHŌ ZENHŌ SHŌ JIN76: o esforço que
consiste em praticar ações justas e úteis aos demais. Para
lográ-lo, há que conquistar todos os 煩悩 BONNŌ do corpo e
do espírito, todos os desejos e todos os dogmatismos, todo o
mau karma. Não se trata de conduzir-se desta maneira por
um ano, por exemplo, e depois parar. Há que continuar todos
os dias.
Repetir. Repetir uma e outra vez é 道觀 DŌKAN, o
círculo do Caminho.
As pessoas da época moderna não gostam de repetir.
Automaticamente crêem que já aprenderam. E tão
rapidamente como aprendem, esquecem! Vêm fazer
座禅 ZAZEN durante algum tempo, depois deixam de vir e
dizem: “Oh, eu já compreendi! Já compreendi o 座禅 ZAZEN
e o 禅 ZEN.”
Esta atitude é completamente equivocada. Há que
continuar. Sem esforço só há debilidade e regressão.
76
No original, “SHOJEN BO SHOJIN”. (N.T.)
303
compreender rapidamente o estado de espírito da pessoa
que vive nela.
306
descobriu dentro de uma delas sem que eu me desse conta,
já que estava absorto na leitura. Cobriu então rapidamente a
banheira e a manteve fechada durante alguns instantes. Eu
então já não podia ler e menos ainda respirar.
78
No original, “JOJYO”, “KIAKU” e “CHICHU”, respectivamente.
(N.T.)
307
定 JŌ, a fixação ou o samādhi, a concentração do
espírito sobre uma só coisa. Eu digo sempre: “Não devemos
pensar em outra coisa, salvo nesta que nos ocupa agora. No
座禅 ZAZEN, estar somente concentrado sobre a postura e a
respiração. O subconsciente surgirá como borbulhas na água.
Quando nossos pensamentos aparecem, não há que se
distrair, mas voltar à concentração sobre a postura, observar
se os ombros não estão demasiadamente elevados, ou se o
queixo está recolhido, a coluna vertebral bem alinhada... e o
espírito permanece assim fixo e tranqüilo.”
座禅 ZAZEN significa às vezes “o pensamento tranqüilo,
justo”, e também “a concentração”.
Ainda que pratiquemos a concentração, o
subconsciente surge. Não há nada que querer escapar dele,
mas deixá-lo passar naturalmente. Como se fossem nuvens
no céu... Muitos fenômenos mentais da vida cotidiana se
manifestam durante o 座 禅 ZAZEN: as ansiedades, as
alegrias, as preocupações... Mas não há que se deter neles.
Desta maneira podemos nos dar conta de que na realidade
tudo isso não é tão importante.
O 禅 ZEN significa abandonar os pensamentos
parasitas. Durante o 座禅 ZAZEN podemos abandonar tudo.
Nada parece tão importante. Há que se concentrar somente
sobre a postura, sobre a respiração e sobre a consciência.
座禅 ZAZEN significa também criar a sabedoria.
Nāgārjuna (龍樹 RYŪJU), em seus comentários sobre
o 摩訶 般若 波羅蜜多 MAKA HANNYA HARAMITTA, conta
um 問答 MONDO entre um Mestre e um monge:
“O Bodhisattva do Budismo Mahāyāna
(大乗仏教 DAIJŌ-BUKKYŌ) deve ajudar a todos os seres.
Como não se dar conta da contradição que há entre este
preceito fundamental e o ato de fugir para a montanha, de
isolar-se no bosque?”, perguntou o monge.
“Ainda que o Bodhisattva se separe de todos os seres
e continue o 座禅 ZAZEN na montanha, seu espírito não
308
deixa de ajudar os demais. Não está somente concentrado
sobre si mesmo. Sua consciência infinita de 座禅 ZAZEN
abarca todo o cosmos. Pouco importa o lugar em que ele
medita. Sua sabedoria profunda aclara toda a humanidade”,
respondeu o Mestre.
A verdadeira sabedoria se cria natural, automática e
inconscientemente através do 座禅 ZAZEN. É inútil buscá-la
conscientemente.
Para um monge ou para um Bodhisattva, o mais
importante é deixar que se manifeste através de seu corpo e
de seu espírito, com o fim de realizar o seu voto. Da mesma
maneira que, às vezes, é conveniente descansar e cuidar-se
para restabelecer o equilíbrio da energia, o Bodhisattva
experimenta eventualmente a necessidade de retirar-se para
o bosque ou para a montanha para fazer 座禅 ZAZEN. Este
retiro atua como um ungüento que renova sua sabedoria. E
depois, quando volta a emergir para o mundo, pode ajudar a
todos os seres e estender os meios para socorrê-los.
座 禅 ZAZEN não significa fugir da nossa vida, nem fugir
deste mundo. Esta prática contribui no mais alto grau para a
salvação de toda a humanidade.
Se queremos chegar a ser autênticos e plenamente
realizados, necessitamos nos retirar do mundo com o fim de
retornar a ele com mais profundidade e mais eficácia. Dito
com a linguagem da medicina: este duplo movimento permite
que nos “imunizemos” contra as enfermidades do mundo e
desta forma adquirimos a força necessária para poder
socorrer aos demais.
Quando você vem a este 道場 DŌJŌ, pela manhã ou à
noite, você se desliga do mundo social. Aqui encontra,
naturalmente, muitos amigos, mas suas relações não são
diplomáticas, nem profissionais, nem amorosas...
Durante o 座 禅 ZAZEN nos separamos da vida
cotidiana, da nossa vida familiar por exemplo, isolamo-nos.
Nosso espírito experimenta uma revolução radical. Podemos
observar através do 座禅 ZAZEN, podemos refletir sobre nós
309
mesmos e desta maneira criar uma verdadeira sabedoria
profunda. Depois de uma hora de 座禅 ZAZEN, ao sair do
道 場 DŌJŌ, voltamos ao mundo e voltamos a encontrar
nossa vida cotidiana. Estes dois aspectos são muito
importantes. A maioria das pessoas está concentrada sobre a
vida cotidiana, sobre os fenômenos de todos os dias. Esta é
a razão pela qual são presa do movimento, da efervescência
que os afasta irremediavelmente do que, não obstante, todo
mundo busca mais ou menos conscientemente: a felicidade e
a paz.
A tempestade está em seus espíritos e nela eles se
perdem.
Fazendo 座 禅 ZAZEN uma ou duas vezes ao dia,
podemos voltar à verdadeira solidão, que é nossa condição
original, infinitamente pacificada.
Durante um 攝心 SESSHIN, cem pessoas podem estar
sentadas juntas num mesmo 道場 DŌJŌ, entretanto cada
uma delas está sozinha, frente a si mesma. Mas o conjunto
todo cria uma atmosfera que age sobre o 座禅 ZAZEN de
todos e de cada um, como se tratasse de um fogo alimentado
por muitos troncos.
色即是空。SHIKI SOKU ZE KŪ.
空即是色。KŪ SOKU ZE SHIKI.
Estes dois aspectos são necessários e devem ser sempre
repetidos. A partir dos fenômenos de nossa vida cotidiana,
色 SHIKI, devemos voltar a 空 KŪ, ao 座禅 ZAZEN. E de
空 KŪ, voltar a 色 SHIKI para ajudar todos ao seres e para
nos harmonizarmos com eles. É inútil buscar a solidão
corporal e se retirar a uma ermida distante. A verdadeira
solidão se cria aqui, agora, no mundo, graças à postura do
座禅 ZAZEN. Depois, podemos voltar a submergir no mundo,
nos fenômenos e difundir nossa sabedoria na vida corrente.
O 座禅 ZAZEN se converte assim no timão dos impulsos
vitais.
310
Em todas as vertentes do Budismo Mahāyāna
(大乗仏教 DAIJŌ-BUKKYŌ), 禅定 ZEN JŌ, a concentração, é
o pivô central ao redor do qual se articulam todas as
atividades. Numerosos ramos do Budismo sustentam que a
prática da observação, durante o período de meditação, deve
ser mais importante que o estado de concentração. Todas
estas escolas produziram um estado de debilidade e
degeneração graves. O ensinamento do 禅 ZEN é
fundamentalmente a concentração em 空 KŪ, nada. Todos os
países nos quais o 禅 ZEN foi implantado passaram por um
período de impulso cultural e de fortalecimento muito
importantes.
311
五
智
五 智 “GO CHI” – As Cinco Sabedorias.
312
AS CINCO SABEDORIAS
313
O ESPIRITO DO ZEN
1. 成 所 作 智 JŌSHISACHI 79 (krtya-anusthāna-jñāna).
Representa os meios de ação, o método para socorrer os
seres para ajudá-los a passar para a outra margem. Esta
sabedoria nasce a partir dos cinco órgãos dos sentidos,
眼 耳 鼻 舌 身 GEN NI BI ZE SHIN.
2. 妙 觀 察 智 MYŌKANZACCHI80 (pratyaveksa-jñāna).
Esta sabedoria parte da sexta consciência que, na psicologia
budista é 明 MYŌ, o despertar.
妙 觀 MYŌ KAN é a sabedoria que, graças a uma
maravilhosa e profunda observação, penetra o espírito do
discípulo e o guia e o instrui no caminho justo. Esta sabedoria
dissipa todas as dúvidas.
79
No original, “JO SHO SAT CHI”. (N.T.)
80
No original, “MYO KAN SAT CHI”. (N.T.)
314
Estas três primeiras sabedorias surgem da consciência
pessoal. As duas seguintes são relativas ao 座禅 ZAZEN.
4. 大 圓 鏡 智 DAIENKYŌCHI (ādarsha-jñāna).
O subconsciente surge durante o 座禅 ZAZEN, as imagens
passam e a reflexão se sobrepõe. O pensamento que nasce
do subconsciente só pode ser produzido a partir do estado de
concentração.
Eu digo sempre: “Concentre-se. O espírito se
converterá assim num espelho puro e a intuição aparecerá.
箇の不思量底を思量せよ。
KONO FUSHIRYŌTEI O SHIRYŌ SEYO.
PENSAR EM NÃO PENSAR.
不思量底如何が思量せん。
FUSHIRYŌTEI IKANGA SHIRYŌSEN.
COMO PENSAR EM NÃO PENSAR ?
非思量。
HISHIRYŌ.
PENSANDO DESDE O FUNDO DO NÃO PENSAMENTO.81
81
No original, “HISHIRYO TE FUSHIRYO”. Reproduzi a famosa
seqüência do 普勸坐禪儀 FUKANZAZENGI, ”Regras Universais do
Zazen” de 道元 DŌGEN.(N.T.)
315
A partir do 座 禅 ZAZEN aparecem estas cinco
sabedorias, inconsciente, natural e automaticamente, desde
a consciência 非 思 量 HISHIRYŌ, a consciência absoluta.
Não é necessário querer realizar estas cinco sabedorias. O
espírito deve permanecer 無 所 得 MUSHOTOKU. Estas
sabedorias aparecerão espontaneamente, graças ao poder
de 空 KŪ.
316
Se a garrafa está semi cheia, só se poderá acrescentar
a metade de outro líquido. Ademais, uma garrafa semi cheia
é ruidosa, da mesma maneira daqueles que possuem um
saber pequeno, mas crêem possuir o segredo dos deuses e
querem ensiná-lo a todos. Estes são volúveis e ruidosos.
Mas quando a garrafa está completamente cheia ou
vazia e a sacudimos, nenhum ruído emana dela. Assim
sucede com o conhecimento infinito, ou com a sabedoria
absoluta. Para que essa sabedoria apareça há que se fazer o
vazio total. Ambos, sabedoria e vacuidade, 非思量 HISHIRYŌ
e supra consciência, formarão uma equação perfeita. Os
intelectuais não estão cheios nem vazios. Sabem o suficiente
para fazer bastante barulho... Eu mesmo recebi uma
educação de estilo europeu, primeiro no bacharelato e depois
na universidade. Eu acreditava que sabia muito e que era
invencível em vários aspectos, mas quando tive que entrar
para os negócios e enfrentar a rapacidade dos ambiciosos e
demonstrar mais sutileza que eles, os anos que havia
passado me instruindo não me serviram absolutamente de
nada. Meus estudos de economia eram demasiado teóricos e
inadequados para criar uma solução oportuna. Nesta época,
à época de minha iniciação na vida social, fui visitar
興道 沢木 KŌDŌ SAWAKI, que momentaneamente havia se
estabelecido em 總持 寺 SŌJI JI82. Ele era a encarnação
do monge errante. Sua expressão era profunda, mas não
tinha aspecto de intelectual. Sem embargo, quando visitei
seu quarto encontrei-o submerso em livros, Sūtra e obras
múltiplas, as quais em sua maioria eu nem sequer
compreendia o título.
“Você leu todos estes livros?”, perguntei-lhe
desconcertado.
82
Um dos monastérios 曹 洞 宗 SŌTŌ SHU mais importantes do
Japão. Foi fundado por 瑩山 紹瑾 KEIZAN JŌKIN no século XIII. O
outro é 永平 寺 EIHEI JI, fundado por 道元 禅師 DŌGEN ZENJI.
(N. T. Esp.)
317
Eu também quis então me instruir na riqueza que
deveria encerrar estes textos tão importantes. Pedi-lhe que
me emprestasse alguns, mas ele me respondeu
imediatamente que isso não servia para nada, que meu
desejo só correspondia a um capricho infantil. Creio que
neste momento obtive o 悟 SATORI. Encontrei-me tão
perplexo com estas observações que tive que emprestar um
livro que ele julgava interessante. Tratava-se de “A vida do
mendigo 桃 水 TOSUI”. ( 桃 水 TOSUI significa água de
pêssego).
Depois, pouco a pouco, encheu-me os braços de obras
e textos. Vinte ensaios sobre o 禅 ZEN e as Artes Marciais.
Mas o que mais prazer me causou foi uma parte de suas
notas pessoais. As que me entregou levavam na capa o título
caligrafado em grandes traços por ele mesmo: “As orelhas do
asno”. Li-as de uma só vez. Este foi provavelmente meu
segundo 悟 SATORI.
Todo meu pensamento sofreu uma revolução total. A
educação européia, armazenada durante mais de dezessete
anos, foi vomitada como um alimento indigesto desde as
profundezas de meu corpo. Foi a destruição repentina da
ilusão que eu próprio fazia sobre meu saber. Tudo se
precipitou. A comoção foi total. Todo meu ser assentiu em
bloco ao ensinamento de 興 道 沢 木 KŌDŌ SAWAKI. Foi
então que decidi não deixar jamais este homem em que se
manifestava uma tal força do 禅 ZEN, capaz de transfigurar
em alguns segundos meu espírito.
Todos os pensadores, professores, universitários
buscavam o ensinamento europeu que representava para
eles o ápice da cultura. Esta é a razão pela qual se
precipitavam a assimilar tudo. Mas 興道 沢木 KŌDŌ SAWAKI
considerava esta afetação como avidez de falsos pensadores
arrivistas que, numa sociedade transtornada pela
ocidentalização, sofriam do complexo de inferioridade,
daquele que se sabe ignorante, mas que quer medir-se com
seus professores. Para 興道 沢木 KŌDŌ SAWAKI, o cume do
318
conhecimento intelectual não era mais que uma gota d’água
no Oceano: “O conhecimento deve estar isento de qualquer
conhecimento, deve ser sem limites, sem categorias, nem
filosófico, nem científico, mas verdadeiro conhecimento
transcendental”. Esta é a compreensão do 禅 ZEN que quero
continuar difundindo aqui na Europa, convencido que existem
seres suficientemente inteligentes e abertos para
compreender. Desde logo, o 禅 ZEN já havia sido introduzido
anteriormente graças aos trabalhos de certos professores.
Mas 興道沢木 KŌDŌ SAWAKI, muito tempo antes de mim,
dizia deles que eram só intelectuais que nunca haviam tido a
experiência do 座禅 ZAZEN. Por esta razão, o único que
podiam fazer era filosofar sobre o 禅 ZEN, sem compreendê-
lo, sem conhecer sua autêntica dimensão.
Eu trouxe a prática do 座禅 ZAZEN para a Europa. No
dia de minha chegada à Paris dei uma conferencia diante de
uma assembléia composta em sua maioria por intelectuais.
Eu era apenas um monge errante que unicamente possuía
como bagagem o 衣 KOLOMO negro e o 坐蒲 ZAFU de
興道 沢木 KŌDŌ SAWAKI. Na primeira fila, justo à minha
frente, estava sentada uma pessoa de olhar inteligente, mas
tão sombria... Dada sua expressão congelada, representava
a meus olhos o Shāriputra europeu. Perguntei-me então de
que maneira podia abordar estes intelectuais graves e
carrancudos. Ensinei a postura de 座禅 ZAZEN e os méritos
do 袈裟 KESA. Desde este dia, essa pessoa não deixou de
seguir os meus passos. Seus muxoxos céticos
desapareceram, seu olhar se aprofundou. Agora leva em sua
expressão o amor universal, transformou-se numa verdadeira
観音 KANNON. Agora é uma garrafa cheia, não vazia. Com o
tempo tive a oportunidade de conhecer outros rostos
avinagrados. Alguns compreenderam meu ensinamento e
seguiram meus passos. Outros não puderam suportar minhas
observações, perderam a paciência e se converteram nos
primeiros detratores de meu ensinamento.
319
Então descobri até que ponto era importante o
intelectualismo na Europa. Este intelectualismo especulativo
que discute sobre conceitos vazios e carentes de vida, e
estabelece sistemas muito bem estruturados, mas tão
abstratos que apenas refletem a corrente vital de nosso
mundo.
No Oriente, a sabedoria está imersa na essência, está
enraizada em 無所得 MUSHOTOKU, em 非思量 HISHIRYŌ,
procede da intuição e do não pensamento, surge das
camadas cerebrais primitivas. Transcende qualquer limite
mental. Está mais além do espaço-tempo, eterna, imutável.
Estamos tão distanciados da especulação! Esta é a razão
pela qual Avalokiteshvara fala de 無 知 亦 無 得 MU CHI
YAKU MU TOKU e de 以 無所得 故 I MUSHOTOKU KO, da
não sabedoria, do não proveito. Somente existe o abandono
de si mesmo e, graças a ele, a sabedoria desinteressada.
Esta é a resposta incondicional de Avalokiteshvara, o
Bodhisattva da Grande Compaixão, a Shāriputra, o intelectual.
O beco sem saída em que se encontra nossa
civilização é o resultado do desenvolvimento, levado até o
absurdo, do racionalismo materialista. Ciência, técnica e
pensamentos devem mudar necessariamente de direção.
Neste momento encontram-se no limite: se rebaixarem estes
limites precipitarão toda a civilização a uma rápida destruição.
O equilíbrio já é muito precário. Mas se desde o ponto em
que nos encontramos agora, reconsiderarmos o mundo
desde um ponto de vista global, com o equilíbrio que lhe é
necessário, poderemos conduzir a humanidade à harmonia.
Para isso, é necessária uma pausa, um descanso, deixando
para a natureza um tempo de regeneração, reparando os
desastres que tenham sido causados, com o fim de poder
empreender de novo o caminho a partir de seus frutos sadios.
Mas a sabedoria é necessária, a verdadeira sabedoria
pura e desinteressada. Eu acredito no
般若 波羅蜜多 心経 HANNYA HARAMITTA SHINGYŌ, nesta
sabedoria perfeita, ilimitada, não sujeita aos limites dos
320
“ismos”. Creio que o espírito deste Sūtra pode transmutar a
esclerose atual de nosso mundo e sua precária sobrevivência
numa dinâmica evolutiva, harmoniosa e justa.
321