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SŪTRA DA SABEDORIA ABSOLUTA

(SŪTRA DO CORAÇÃO
DA GRANDE
SABEDORIA COMPLETA)

摩訶 般若 波羅蜜多 心経
MAKA HANNYA HARAMITTA SHINGYŌ

Mahā Prajñā Paramitā Hridaya Sūtra

Comentários do Mestre

泰仙 弟子丸 老師
TAISEN DESHIMARU RŌSHI

Tradução e Apresentação da edição em


castelhano de Dokusho Villalba

Tradução da Edição Espanhola


Miraguano Ediciones – Madri – 1987
1
2
APRESENTAÇÃO1

O 般若 心経 HANNYA SHINGYŌ é a quinta-essência do


Budismo e, particularmente, do Zen Budismo
( 禅 宗 ZEN-SHU). É o cerne da realização do Buda
Shākiamuni, transmitida de Buda em Buda, de Patriarca em
Patriarca, geração após geração.
Este Sūtra não é um texto escolástico nem filosófico. Não
é fruto de elucubração mental e não aspira a converter-se em
fundamento dogmático de uma escola de pensamento.
É simplesmente a límpida manifestação na linguagem de
uma profunda experiência interior expressada em palavras
simples, em frases curtas, esmagadoramente curtas e
densas. Esta experiência não é outra que a da verdadeira
natureza do mundo fenomenal.
Aproximar-se do 般若 心経 HANNYA SHINGYŌ através
do estudo filosófico, ou simplesmente através de um estudo
objetivo, é algo sem dúvida interessante e muito atraente,
entretanto não nos permitirá de maneira nenhuma penetrar
seu sentido profundo nem realizar a experiência vital
subjacente à suas afirmações e negações. É impossível
aproximar-se da Vacuidade ou do Vazio do
般 若 心 経 HANNYA SHINGYŌ através do pensamento
conceitual. A prática e o ensinamento do Zen Budismo
(禅宗 ZEN-SHU), cujo eixo fundamental é o 座禅 ZAZEN,
conduz-nos imperceptivelmente a esta experiência essencial
graças a qual despertamos para nossa natureza original.
É uma grande sorte que a partir de agora possamos
contar com a tradução em castelhano deste Sūtra e com os
comentários do Mestre 泰仙 弟子丸 TAISEN DESHIMARU,
sem os quais não poderíamos vislumbrar o alcance ilimitado
da sabedoria exposta no 般若 心経 HANNYA SHINGYŌ.

1
Da edição em castelhano. (N.T.)

3
Para a compreensão justa desta sabedoria, a leitura do
般 若 心 経 HANNYA SHINGYŌ deve ser sempre
acompanhada por uma prática assídua da meditação em
座 禅 ZAZEN, ao lado de um verdadeiro Mestre Zen da
Transmissão. Somente a partir deste estado justo de
consciência durante o 座禅 ZAZEN podemos compreender o
般若 心経 HANNYA SHINGYŌ. Durante o 座禅 ZAZEN, as
frases do Sūtra se abrem por elas mesmas, como formosas
flores de cujo perfume se impregna cada célula de nosso
corpo e cada ato de nossa vida cotidiana.
Isto é o que eu desejo, querido leitor, agora que você vai
submergir na leitura de uma obra prima da Humanidade, na
qual a consciência humana desperta para a realidade
substancial da existência, convertendo-se na Consciência de
um Buda.

Dokusho Villalba

4
INTRODUÇÃO

O Sūtra da Grande Sabedoria é o quinto texto


sagrado do Tch’an e do 禅 ZEN comentado pelo mestre 泰
仙 弟子丸 TAISEN DESHIMARU2. Esta obra que agora se
apresenta tem, por duas razões, um valor histórico. É a
primeira vez que este texto raiz do Budismo, se encontra
explicado no Ocidente 3 : O 摩訶 般 若 波 羅蜜 多 心 経
MAKA HANNYA HARAMITTA SHINGYŌ é um Sūtra que
condensa de maneira muito concisa a essência da literatura
Prajñā Paramitā, transcrição em 600 volumes dos
ensinamentos do Buda. Escrito originalmente em sânscrito,
foi amplamente estendido por Nāgārjuna (龍樹 RYŪJU), e
introduzido na China por Kumārajīva (鳩摩羅什 KUMARAJU)
(402-403) 4 e traduzido integralmente para o chinês antigo (漢
文 KANBUN). Texto fundamental de todo o Budismo, e
especialmente do ramo Mahāyāna (大乗 DAIJŌ), converteu-
se no Sūtra 禅 ZEN por excelência, já que a amplitude de
seus enunciados supera qualquer concepção.

2
Os quatro textos do Zen publicados anteriormente (em castelhano,
N.T.) são: “Hokyu Zan Mai”, “El Samadhi del Espejo Precioso”; “San
Do Kai”, “La Esencia y los Fenômenos se interpenetran”, ambos
publicados por Editorial Kairós, dentro da obra: La Práctica Del Zen,
1982: “Shodoka”, “El canto Del Inmediato Satori”. Vision Libros, 1981,
e Shin Jin Mei, “El poema de la Fe em el Espíritu”, Miraguano
Ediciones, 1988. (N. Ed.. Esp.)
Em português, temos “Shodoka – O canto do Satori Imediato”,
Editora Pensamento, 2ª Ed., 1997. (N.T.)
3
Em castelhano. (N.T.)
4
Ver os nomes próprios e os termos essenciais explicados no léxico,
ao final do volume. (N.Ed.Esp.)

5
Por outro lado, as 23 caligrafias que o ilustram 5 seguindo
exatamente o corpo do texto, foram realizadas em escrita
tradicional.
Este Sūtra também se encontra caligrafado assim em
apenas uma página. Mestre 弟子丸 DESHIMARU, por sua
parte, quis que o texto original seguisse seus comentários,
percorrendo o Sūtra tema por tema e destacando as palavras
chave mais importantes. A escolha definitiva destes
magníficos ideogramas foi feita entre mais de 300
documentos, que ele mesmo traçou durante o
攝 心 SESSHIN de Verão de 1979, voltando a recomeçar
incansavelmente até que cada caligrafia fosse a própria
imagem do gesto justo.
Com a ajuda dos “quatro tesouros do estudo de arte”,
com os diversos pincéis de pelos delicados, com o papel 6,
com o bastãozinho de tinta e a pedra tinteiro 7 , retomava
estes gestos milenares, entretanto sempre novos, que
convertem esta escrita em pintura da linguagem e que
expressam o essencial.
Na China antiga, a caligrafia era a forma de
expressão mais elevada, a arte mais consumada. A pintura
vinha apenas em segundo lugar. O ideograma é, com efeito,
“a única arte abstrata em que a forma e o conteúdo se unem
e se complementam reciprocamente: cada ideograma tem
um significado bem definido, um som único, uma história.
Independentemente de sua beleza simbólica, estes signos

5
Que não fazem parte desta tradução, tendo sido substituídas por
seus equivalentes em 漢字 KANJI, gerados por um editor eletrônico de
japonês. (N.T.)
6
Cuja invenção, recordemos, ocorreu na China. (N. Ed. Esp.)
7
Bloco de pedra cortado especialmente sobre o qual se esfrega o
bastão de tinta (feito de cola e fuligem) com um pouco de água.
(N. Ed. Esp.)

6
têm uma virtude esotérica, iniciática, cujo vigor não perde em
nada para o da álgebra ou da geometria”.8
Na caligrafia chinesa e japonesa “a força de cada
traço deve penetrar o papel e o espírito da construção gráfica
deve desprender-se ... do papel: desta profundidade nasce a
terceira dimensão que ... é uma arte de quatro dimensões”.9
Um espelho da alma do artista, que se põe em
unidade com a energia cósmica do momento e traça sem
retoques, estas formas feitas de matizes de tinta negra e de
cor branca do papel. Tal é a caligrafia, reflexo da vida.
Esta arte sempre foi apreciada pelos mestres 禅 ZEN
que encontraram nela os três pilares do 座 禅 ZAZEN, a
meditação 禅 ZEN:
- A postura, direita e equilibrada;
- A atitude do espírito, concentrado sobre o aqui e o
agora;
- A respiração, de expiração larga e profunda. Graças
a esta expiração um traço está vivo ou não.
No Ocidente se diz que um artista tem inspiração.
Esta palavra nos faz pensar também no ato respiratório que
consiste em tomar o ar, o alento, a energia. No Oriente, o ato
criador realizado no momento da expiração equivale a
devolver esta energia adquirida, a criar uma nova vida pela
transmutação do alento no corpo, na consciência e no gesto
do artista.
Henri Michaux disse maravilhosamente desta arte
praticada desde há 3800 anos: “caligrafia ao lado da qual
cada um se mantém como que ao lado de uma árvore, de
uma rocha, de um manancial”.

8
P. Jaquillard e Ung No Lee, “Calligrafie, peinture chiniose et art
abstrait”, Ed. Ides Et Calendes. (N. Ed. Esp.)
9
“La caligraphie chinoise”, Leon L. Chang, CFL. (N. Ed. Esp.)

7



谷の夢 “TANI NO YUME”

O SONHO DO VALE

8
O SONHO DO VALE

(ESTRUTURA E ESSÊNCIA DO
般若 心経 HANNYA SHINGYŌ)

O 摩 訶 般 若 波 羅 蜜 多 心 経 MAKA HANNYA
HARAMITTA SHINGYŌ se compõe de cinco partes:

Primeira parte: Do começo,


観 自 在 菩 薩 KANJIZAI BOSATSU, até
度 一切 苦 厄 DO ISSAI KU YAKU;

Segunda parte: Desde 舎 利 子 SHARISHI até


以 無所得 故 I MUSHOTOKU KO;

Terceira parte: Desde 菩提 蕯埀 BODAI SATTA até


得 阿 耨 多羅 三 藐 三 菩提 TOKU A NOKU
TARA SAN MYAKU SAN BODAI;

Quarta parte: Desde


故 知 般若 波羅蜜多 KO CHI HANNYA HARAMITTA
até 故 説 般 若 波 羅 蜜 多 呪 KO SETSU HANNYA
HARAMITTA SHU;

Quinta parte: Desde 即 説 呪 日 SOKU SETSU


SHU WATSU até 菩提薩婆訶 BŌJISOWAKA.

O 般若心経 HANNYA SHINGYŌ é um dos raros Sūtra


que não segue a estrutura que se encontra normalmente na
maioria deles. Os Sūtra se compõem geralmente de uma
introdução, o corpo do texto e um epílogo que expõe o
método prático para aplicar o texto. No 般若 心経 HANNYA
SHINGYŌ o corpo do texto constitui a totalidade. Seu tema
9
principal é a filosofia de 空 KU. 摩訶 般若 MAKA HANNYA
é a sabedoria infinita que procede de 空 KŪ.
Qual o método para acessar esta sabedoria infinita,
para aceder ao 空 KŪ original e último? Disto fala o
般若心経 HANNYA SHINGYŌ, de sua força e de seu poder
quando se recorre a ele para exorcizar o mal e engendrar o
bem.
Como prólogo gostaria de contar um sonho que tive há
algum tempo10, durante o 攝心 SESSHIN de verão que dirigi
no Val D’Isère. Ei-lo aqui:
Passeava por um vale profundamente encaixotado, tão
encaixotado que as paredes impediam parcialmente a
penetração do sol.
Caminhava assim já há algum tempo, só, sem
preocupação, quando me encontrei com um homem. Tinha
um aspecto de comerciante, ao menos isso era o que se
podia pensar em vista da diversidade de produtos que exibia.
Sentei-me ao seu lado e ele me apresentou sua mercadoria.
“Tenho todo o tipo de elixires e de remédios
maravilhosos para lhe fazer a vida leve e agradável”,
disse.”Você é monge, não?”
“Realmente! Isto logo se vê!” Naquele tempo eu era um
jovem monge de uns trinta anos, e pelo hábito tradicional que
levava, era fácil compreender minha ocupação.
“Se você não quer morrer, tenho aqui um remédio de
longevidade que lhe permitirá viver eternamente.”
“Isto é uma estupidez”, respondi. ”Você não deveria
transportar estes produtos diabólicos. Pessoalmente, prefiro
morrer como deve ser, uma vez que minha vida tenha
transcorrido seu tempo regulamentar.”
Naturalmente, eu não queria este medicamento.
Pusemo-nos a conversar, mas ele repetidamente voltava a
conversa para suas preocupações sexuais, como uma
obsessão que não o deixava.
10
A riqueza mítica deste sonho é particularmente surpreendente.
(N. Ed. Esp.)
10
Finalmente o deixei... O caminho se dividia. Ele tomou
um caminho e eu o outro. Caminhei e caminhei e meus
passos me levaram aos limites de um bosque opaco, difícil
de penetrar. Ao cabo de uma hora, cansado, voltei sobre
meus passos e decidi seguir o outro caminho. O mercador
havia seguramente tomado a dianteira. Mas este caminho
também ia se estreitando, a medida em que o bosque ia
ficando espesso e escurecia. De repente, enquanto eu
avançava, vi uma enorme serpente atravessada na estrada a
uns poucos metros de distância. Não tinha nada à mão para
me ajudar, nem sequer um bastão. Depois de muitas
tentativas, e não sem dar muitas voltas, consegui passar.
Já começavam a habitar-me algumas reticências em
prosseguir meu caminho, mas ainda não havia visto tudo.
Com efeito, a alguns passos de distância, jazia o corpo de
outra serpente cortado em dois, não menos grossa que a
precedente. Sua vida havia sido arrebatada pouco tempo
antes, já que sua cauda ainda se movia e de sua ferida
continuava fluindo um líquido amarelado. Dei alguns passos
e a serpente moveu a cabeça... Cantei o 般若心経 HANNYA
SHINGYŌ... Neste momento, o sol penetrou e a serpente
desapareceu como se não tivesse sido mais que uma
miragem. Fiquei intrigado, mas continuei avançando.
Atravessei um ninho de caranguejos sem problemas, mas
tudo isto redobrava minha inquietação. O bosque foi ficando
de novo mais espesso, e subitamente uma visão de pesadelo
apareceu diante de meus olhos. Uma grande multidão de
aranhas corria em todos os sentidos, algumas desciam dos
galhos até meu chapéu de monge, outras me assaltavam,
subindo por minhas pernas até meus ombros. Só tive tempo
de sair correndo a toda pressa para escapar do que poderia
ter sido minha morte. Saí coberto de irritações e picadas. O
bosque se aclarava e logo alcancei o outro lado, o que me
aliviou profundamente. O vale se alargava diante de mim,
mas continuava havendo um só caminho. Provavelmente
poderia alcançar o mercador, caso ele tivesse podido
atravessar este bosque infernal. O vale era claro e acolhedor.

11
O único som era o murmúrio puro da água de um regato. Não
parecia haver pegadas de habitantes. O sol se ocultava,
lançando seus últimos raios. Senti o desejo de banhar-me na
onda de frescura que corria a meus pés. Depois de caminhar
por algum tempo, apareceu, como por encanto, uma
minúscula morada, – de algum ermitão – pensei. Cavada no
oco de uma rocha e rodeada de árvores, não havia podido
vê-la antes. Aproximei-me e distingui a silhueta de um jovem.
Não obstante, por suas respostas evasivas e seu
comportamento estranho, me dei conta que estava um pouco
transtornado. Um cavalo relinchou ao longe, a porta da
ermida se abriu e de repente apareceu a silhueta de uma
mulher jovem. Seu aspecto era agradável.
“O que você quer?”, perguntou.
Apetecia-me ficar ali, sem mover-me, sem desejo de
continuar meu caminho, nem de voltar sobre meus passos.
Sentia-me infinitamente distante...
“Você não viu passar um mercador?”
Sua resposta foi negativa. Era muito bela. A cor límpida
de seus olhos se fundia com a brancura de sua pele e
ressaltava seus lábios vermelhos, delicados e finos. Devido
ao cansaço do dia decidi pedir-lhe refúgio durante a noite.
“Mesmo que seja no estábulo”, disse-lhe.
“Aceito dar-lhe abrigo, mas não no estábulo, de jeito
nenhum. Meus cavalos são indomáveis. Eles o pisoteariam
num instante. Eu compartilharei minha cabana com você.
Mas minha morada é pobre e para tomar um banho ou para
saciar sua sede, o único recurso é o rio. Sua água é pura e
boa.”
A noite caia. Ela mesma me acompanhou pelo caminho
que conduzia até a cascata na qual tinha costume de se
banhar, como ela mesma me explicou. Um velho passou e
gritou:
“Senhorita, tenha cuidado de não cair no rio com este
jovem monge!”
Este velho tinha um ar sábio que não compreendi, mas
que me incitou a dizer à jovem para que não me

12
acompanhasse. Sua recusa foi-me de grande ajuda já que o
caminho era sinuoso e a noite estava escura. De repente
surgiu uma rã que se pôs a segui-la dando uns saltos tão
grandes que pareciam impossíveis para uma rã. Devo dizer
que era de um tamanho gigantesco.
“Suplico que não me incomode”, disse dirigindo-se ao
animal, “não vê que esta noite estou ocupada, com uma visita
importante? Mais tarde, mais tarde!”
E a rã desapareceu num salto na vegetação. Ao longo
do caminho cruzamos com algumas cabanas, choças podres,
sem dúvida desabitadas e de aspecto fantasmagórico. O
lugar a que chegamos estava deserto e estranhamente
selvagem. Somente o som da cascata turvava o silêncio e a
solidão. O lugar era muito belo. O burburinho do rio
contrastava com a vegetação tenebrosa dos arredores.
“Este é o rio mais belo de toda a região“, disse-me
minha acompanhante, como para confirmar meu sentimento.
Já me dispunha a introduzir meu braço no regato, quando ela
me deteve e me ordenou para que me desnudasse
completamente e como se eu não o estivesse fazendo rápido
suficiente, disse-me:
“Vou ajudá-lo”. E partiu para a ação. Livrou-me de meu
hábito negro e depois do branco. Minha nudez deixou à
mostra as marcas vermelhas devidas às picadas de aranha.
À jovem causou estranheza ver estas marcas sobre meu
corpo, a ponto de não levantar o olhar delas. Depois de
explicar-lhe a razão, ela relaxou e me disse:
“Você deve se sentir feliz e dar graças aos deuses que
te ajudaram tanto! São raros os que logram atravessar esta
selva, a maioria perde sua vida nela!”
Começou então a friccionar-me, com energia a
princípio, depois suas mãos foram ficando mais suaves; com
ternas carícias percorreu todo meu corpo com a água fresca
do rio.
Os cuidados que minha benfeitora me prodigalizava me
causaram uma doce sensação de bem estar, cujas causas
eram a doçura de suas mãos e a magia de suas carícias.

13
Meu corpo parecia flutuar numa nuvem de pétalas de flores.
Não sei por quanto tempo este doce êxtase se prolongou.
Quando voltei deste estado, ela se mantinha à minha frente,
com a beleza de seu corpo nu, cujas formas suaves e
voluptuosas iam se revelando sob a claridade da lua.
Satisfeito plenamente, saciado de frescor e com o corpo leve,
perdi-me durante alguns minutos nesta contemplação, depois
voltei a me vestir. Ao recolocar meu hábito negro, ela de
imediato se sentiu intimidada e retornou a me encarar.
Neste momento, sua cintura foi rodeada por um animal,
um cachorro talvez, que acabara de saltar de uma árvore
próxima, o qual a colocou num estado de grande cólera. Ela
golpeou com raiva o animal na cabeça, murmurando palavras
que me pareceram as mesmas que havia dirigido à rã gigante.
O pobre animal fugiu lançando uns ganidos e saltando
agilmente pelos galhos. Deduzi por isto que era um macaco.
No caminho de volta, o velho se apresentou de novo e
disse à jovem com um ar entendido e com um sorriso
sarcástico:
“Nosso jovem monge retorna com o mesmo corpo?”
Estranha pergunta cujo sentido me escapava...
Com certeza me sentia numa condição infinitamente
melhor do que por ocasião da dura jornada que havia
empreendido. Mas por que deveria ter mudado de corpo? E o
olhar deste velho, seu aspecto desalentador... E esta jovem
que parecia surda a todas as minhas perguntas! Mas me
sentia demasiado bem para me preocupar com perguntas
que se deviam certamente à decrepitude senil desse velho.
O jovem se encontrava no mesmo lugar, na soleira da
cabana, com o mesmo olhar vazio, encolhido em seu
desvario.
Finalmente me recostei sobre a cama que me estava
destinada, confiante de dormir o sono dos justos. Não foi este
o caso! Uns relinchos romperam brutalmente o silêncio
profundo da noite. Vi então, próximo da porta, o velho
tentando sem sucesso fazer avançar um cavalo.

14
“De todo jeito tenho de ir vender este maldito animal!”,
praguejava ao mesmo tempo em que esticava a corda.
“Deves ir, realmente”, disse uma voz zombeteira, “e
sabes que o caminho é comprido! Deverás apressar teu
passo se queres chegar no mercado ao amanhecer. Vamos!
Ponha-te a caminho e ande rápido!”
A voz que eu acabava de ouvir não era outra de não a
da jovem. Dizendo isto, aproximou-se do costado do animal e
se pôs a acariciá-lo de forma lasciva.
Apesar de minha incredulidade, constatei as
surpreendentes relações que uniam o cavalo à mulher. O
cavalo se excitou, relinchou, escoiceou algumas vezes,
enquanto que uma verga de carne rosada, parecida com um
tumor volumoso, crescia de maneira desmesurada.
Neste último momento de excitação, o velho puxou
violentamente o animal que, surpreendido, segui-o e ambos
desapareceram.
A jovem veio ao meu lado algum tempo depois e me
perguntou com um ar preocupado e perplexo: “Você não viu
alguém no caminho que traçou até aqui?” Respondi que
havia cruzado com um mercador que seguiu pelo mesmo
caminho uma hora antes de mim, mas que não o havia visto
novamente.
“Ah, bom!” Contentou-se em dizer, visivelmente
satisfeita. Depois não pronunciou mais nenhuma palavra e
me convidou a compartilhar a comida que, às suas ordens,
era servida pelo jovem idiota. A refeição era escassa, mas o
vinho era abundante. Ordenou ao jovem que se aproximasse
e sentasse junto a si. Durante a refeição, fez com que
bebesse diversas e copiosas vezes. Ele, um tanto ingênuo e
idiota, aproveitava da atenção que ela lhe proporcionava, e
cada copo era aceito com um amplo sorriso, com seus olhos
ávidos exageradamente abertos. Confesso que não
compreendia esta mania de sedução, desta vez com o jovem.
Pensei que, depois do cavalo e das demais criaturas
estranhas que pareciam todas encantadas, por que não um
rapaz jovem, por estúpido e feio que fosse?

15
Sua estreita cumplicidade acabou por me incomodar e
decidi voltar à minha cama no aposento contíguo. Ouvi-los rir
durante algum tempo, depois se impôs o silêncio, um silêncio
de curta duração que nem me deu tempo de pensar numa
trégua. Decididamente persistiam em me incomodar. Os
gemidos amorosos da jovem chegavam a meus ouvidos e
atormentavam a quietude em que acreditava estar instalado.
A medida em que os gemidos se intensificavam, um enorme
alvoroço crescia no exterior: mugidos, relinchos, grasnidos,
tudo misturado com golpes na porta, com pancadas no solo,
fazendo-me acreditar na iminência de uma invasão, de um
inferno animal surgido de não sei que abismos tenebrosos. A
visão da cena me atemorizou ainda mais: monstros, semi-
homens, semi-animais e animais tão gigantescos quanto
aterradores, todos gritando em uma histeria desenfreada.
Todos se encontravam em um estado de excitação extremo.
As delgadas paredes da choça, de construção precária,
pareciam a ponto de desmoronar.
Foi então que em meu espírito surgiu de repente o
canto do 般若 心経 HANNYA SHINGYŌ e me pus a recitá-lo
freneticamente. Esta era para mim a única esperança
evidente, a única alternativa para este inferno indomável:
minha fé aumentava a cada sílaba, atiçando a força com que
sentia que poderia exorcizar o mal. Minhas esperanças se
confirmaram, a agitação diminuiu ao mesmo tempo em que o
alvoroço, depois parou completamente quando a jovem
deixou de gemer.
Um novo dia começava e a luz suave dos primeiros
raios de sol, que se expandia difusa por cima dos montes,
trazia nela toda a frescura de um manancial virgem e
vivificante, toda a alegria de um nascimento de um novo
mundo.
Uma página havia sido virada e sobre a página em
branco do dia nascendo aparecia com um caractere luminoso
a palavra 攝心 SESSHIN.
Levantei-me pronto para me despedir. No momento da
partida, a jovem me dirigiu estas palavras, que para mim
16
tiveram o acento trágico e inevitável do destino que segue
seu curso: “Sem dúvida, não voltaremos a nos ver. Quando,
em seu regresso, você vir pétalas de flores de pessegueiro
flutuando sobre a corrente, pense em mim, já que meu corpo
terá sido tragado pelas ondas deste rio”.
Lamentei não ser um monge errante e ter que voltar ao
lugar do 攝心 SESSHIN. Contra a minha vontade, dei a meia
volta e me fui dali. Cada passo que dava era uma luta contra
uma corrente que me retinha ao destino da jovem.
Todos os meus 煩 悩 BONNŌ me impediam de
progredir tão rapidamente quanto havia querido. Sem cessar
me devolviam a ela e queriam que passasse com ela pelo
menos o lapso de tempo suficiente para envolver-nos em
pétalas de flores perfumadas. Quando cheguei à cascata na
qual havia me banhado no dia anterior, parei e meu olhar se
perdeu na queda da água. Ontem, gritos de alegria a vida
voltava a encontrar, hoje essa mesma vida não era mais que
uma grande queixa desesperada. Então senti, francamente, o
tom de reprovação que o salpicar glacial da água me jogava
na cara. No lugar onde a queda d’água abria caminho com
estrondo, no mesmo lugar onde no dia anterior havia gozado,
abandonando-me de corpo e alma aos cuidados conjugados
da água e da mulher, no momento em que, tenazes e
inefáveis, surgiam em minha lembrança estas imagens de
felicidade total, uma pétala branca se desprendeu de uma
gota d’água, e em minha visão se impôs a imagem lúgubre
da jovem agonizando. A rebelião que já fervia secretamente
em mim explodiu de uma vez e, a não ser por uma mão que
me segurou por trás do ombro, uma segunda pétala haveria
sido arrastada pela água da corrente, determinando que meu
corpo fosse abandonado às ondas.
O velho estava atrás de mim. Fazia muito tempo que se
encontrava ali ou acabava de chegar? Eu não sabia. O
estado ensimesmado de meu espírito nesta dolorosa
contemplação me havia privado de toda a consciência do que
me rodeava.

17
Vi nele a mão salvadora que me liberava de uma morte
suicida e, entretanto não pude reprimir um calafrio ao ver o
esgar sinistro que desenhava seu sorriso, o qual não
agourava nada de bom.
“Volto do mercado, a venda foi boa. Veja o que trago!”
disse lastimando-se num tom monocórdio. E estendeu para
que eu visse melhor o cadáver sangrento de um cordeiro que
arrastava atrás dele. E acrescentou:
“O que vai fazer agora, jovem monge? Não se canse
em sua cegueira de mongezinho sob este calor que não tarda
em ser tórrido. A distância daqui até a aldeia não é tão longa,
mas você não deve se distrair demasiadamente. Sem dúvida,
devem ter sido despertados em você terríveis sentimentos
sob o encanto daquela mulher. Compreendo bem, mas saiba
no entanto que é um milagre que você conserve ainda a sua
aparência humana. Aqueles que se aventuraram até aqui a
perderam devido ao efeito de seus poderes maléficos quando
“curava” seus corpos na água desta torrente.
O cavalo que você viu excitar-se noite passada e que
eu acabo de vender, era o homem que você viu, aquele
mercador de elixires que você não pode reencontrar. Com o
dinheiro da venda comprei este cordeiro, que será a comida
de hoje da jovem... Devo apressar-me em voltar e te convido
a que faça o mesmo antes que seja demasiado tarde.”
“Compreendo, compreendo”, balbuciei. Entretanto,
permanecia perplexo sob o choque de suas revelações.
Minha curiosidade estava atiçada, queria saber mais. “Como
pode ter acontecido isto a uma jovem tão bela e de aparência
tão amável? Por que? Explique-me”.
O velho me observou durante um longo momento,
desconfiado, não sabendo se devia responder-me ou
continuar seu caminho. Parecia aterrorizado e aparentava
que o fato de continuar seu relato lhe era tão penoso quanto
a dor provocada por uma chaga recém aberta.
“Ela é a filha do médico da aldeia”, terminou por dizer.
“Ao nascer, recebeu poderes misteriosos e a medida em que
crescia aprendeu a cultivá-los. Quando alcançou uma idade

18
razoável, decidiu pôr seus dons de cura a serviço dos
enfermos e dos desgraçados. Durante muitos anos foi muito
querida e muito respeitada. Vinham de todos os povoados e
aldeias da região para lhe implorar uma cura. Com paciência,
ela se ocupava de todos, um atrás do outro, exercendo sobre
eles a imposição de mãos. A maioria recuperava a saúde, até
que um dia sobreveio o acidente. Aconteceu com meu filho,
esse jovem que você tomou muito justamente por um louco.”
“Já sofria desde algum tempo, mas uma manhã
despertou com uma verdadeira anomalia física: tinha um
testículo a mais. Eu o acompanhei com esperanças a casa
desta jovem. Mas, qual não seria a minha pena quando, ao
terminar a consulta, vi que meu filho não podia levantar-se
nem dar um passo! Com a morte na alma, terminei a me
acostumar a essa sorte, e decidi voltar à minha casa com
meu filho nas costas.”
“Mas minha desgraça não se deteve aí. Meu filho se
negava energicamente a me seguir, suplicando-me que o
deixasse ali, com a jovem, de quem havia se apaixonado
perdidamente. Seu semblante pareceu que se transformava,
ficando inquieto, selvagem e ameaçador... Eu não nada
entendia desta convulsão brutal dos acontecimentos. Não
obstante, ousei acariciar a vaga esperança de que a situação
podia se restabelecer. Afinal de contas, isto não era mais que
um acidente e a jovem havia demonstrado o valor de seu
dom em solucionar as situações mais desastrosas.”
De todas as maneiras, não podia deixar meu filho
sozinho a mercê de sua vontade enlouquecida. Pedi então à
jovem que nos acompanhasse até nossa humilde morada,
esta mesmo na qual você passou a noite.
Ainda me pergunto porque ela aceitou. Agora penso
que, sem dúvida, havia perdido o controle de seus poderes e
que estava possuída pelas forças do mal, que se
desencadeavam anarquicamente através dela.
Mas naquele momento eu não compreendia e não
podia supor o futuro desastroso que nos esperava. Maldição!

19
Apenas havíamos entrado no vale e se armou uma
tempestade terrível, arrasando toda a região. Os bosques
foram arrastados pelas torrentes transbordadas, os vales
inundados, afogando pessoas e bens, todas as aldeias do
vale foram tragadas pelas águas. Em vários quilômetros em
volta não restou nada com vida. Só restamos meu filho, a
jovem e eu. Isto já há muito tempo.
Tenha cuidado de ter algum sentimento de piedade por
ela ou será rapidamente transformado em um vil animal
sedento de seus encantos.
Entretanto, com certeza que isto já não lhe poderá
acontecer. Você já passou pelas provas mais duras e até
agora só tem alguns arranhões. Nenhum dos poderes dela
poderá a partir de agora lhe fazer qualquer dano.
Ademais, se você a visse com seu apetite carnívoro,
devorando estas carnes ensangüentadas, com o ar feroz de
uma leoa que defende sua presa, vomitaria todos os
sentimentos que acalenta por ela, e terminaria fugindo o mais
rapidamente possível.”
Dizendo isto, afastou-se sem se despedir, sem que
sequer eu tivesse tempo de verificar o peso da esmagadora
verdade que acabava de me desvelar.
Permaneci imóvel, como um idiota, sem pensar em me
mover, sem pensar em lhe perguntar por que ele continuava
seguindo com ela.
Sua partida havia me deixado a impressão de alguém
que cumpre seu dever, ou melhor, que assume sua função,
sem motivo, simplesmente por que o haviam determinado a
fazê-lo. Dava-me a impressão que havia superado qualquer
forma de sentimento, como os seres que sofreram em
demasia, e que estava desde então habitado pela fria
indiferença do cinismo, que reconforta as almas azedadas...
De volta ao povoado, sentia-me impaciente durante o
攝 心 SESSHIN e esperava que logo terminasse. Quando
terminou, juntei comigo alguns de meus discípulos mais
fortes, preveni-os do que nos esperava, e decidi voltar com
um novo estado de espírito àqueles lugares maléficos.

20
O 般若 心経 HANNYA SHINGYŌ não deixou nossos
lábios nem um instante. Tomamos o mesmo, o único
caminho que nos conduziu até a espessa selva. O fervor do
canto do sūtra afastou todos os obstáculos encontrados
durante minha primeira viagem.
Quando avistamos a choça, detivemo-nos a curta
distância. Entoamos então com um fervor ainda maior uma
série ininterrupta de 般若 心経 HANNYA SHINGYŌ, decididos
a não nos determos até que todas as coisas se realizassem
segundo a Lei.
Um momento mais tarde, o velho se aproximou de nós
com as mãos juntas em 合 掌 GASSHŌ, e nos expôs a
situação no interior:
“A jovem tem uma ‘febre de cavalo’ e sofre um grande
martírio. Acaba de se levantar e não obstante, iniciou uma
dança louca, sacudindo a cabeça em todas as direções,
como se quisesse se libertar de seus males para sempre.”
“Meu pobre filho, sentindo a altura do transe, tentou
unir-se a ela com pantomimas mórbidas, mas não pode mais
fazer o menor movimento, já que está mais entorpecido do
que nunca. Creio que sua anomalia tenha aumentado, agora
deve ter cinco testículos.”
Cantamos o 般若 心経 HANNYA SHINGYŌ cada vez
mais forte e cada vez mais rapidamente. Ao voltar a cabeça,
vi um espetáculo horrível: corpos de crianças com cabeças
de animais, de pássaros, de rãs, de macacos... Era apenas a
fase mutante destes seres que voltavam lentamente à sua
própria natureza humana. Entramos na sórdida cabana, sem
deixar de cantar. A jovem parou sua dança imediatamente e
desmoronou inconsciente sobre o solo de terra batida.
O 般 若 心 経 HANNYA SHINGYŌ animava ainda
nossos lábios, quando sua cara marcada pelo sofrimento
iluminou-se com um sorriso tingido de serenidade. Por fim, a
morte a liberou de seu destino, de seu karma...
Meu sonho terminou aqui e despertei. O rumor do Isère
entrava por minha janela aberta: a voz do vale.

21
Tal foi o meu sonho. Eu fui ajustando a estória a
medida em que a ia contando. Entretanto, em meu
ensinamento, tudo é 公案 KŌAN e tudo deve ser matéria de
reflexão para vocês, inclusive o erotismo que baliza esta
narração. Esta estória constitui o númeno11 de Val D’Isère e
seu 公案 KŌAN forma a trama dos numerosos méritos do
般若 心経 HANNYA SHINGYŌ. Apesar de que é apenas um
sonho, a veracidade deste conto é total, já que estabelece a
fé no 般若 心経 HANNYA SHINGYŌ.

Em minha infância, quando me dirigia à escola de


bicicleta, nunca me esquecia de recitar este sūtra que me
acompanhava ao largo de todo o caminho. O qual não me
liberou, por outro lado, de todas as turbulências devidas ao
meu caráter impulsivo. Mas tudo teria sido mais penoso se
não tivesse tido fé no 般若 心経 HANNYA SHINGYŌ.
Mais tarde, quando entrei para a vida social e minhas
ocupações não me deixavam tempo para fazer todo o
座 禅 ZAZEN que eu desejava, o 般 若 心 経 HANNYA
SHINGYŌ fluía inconscientemente de meus lábios,
incessante, enchendo-me de alívio. Tenham fé no
般若 心経 HANNYA SHINGYŌ e recitem-no nos momentos
difíceis, ou contentem-se em recitar somente o mantra final:
羯諦、 羯諦 、 波羅羯諦、 波羅僧羯諦 、菩提薩婆。GYATEI,
GYATEI, HARAGYATEI, HARASŌGYATEI, BŌJISOWAKA.
(gate, gate, pāragate, pārasamgate, bodhi svāhā)... e tenham
fé em sua eficácia. Não obstante, não esqueçam que devem
recitá-lo sem meta! Não busquem a obtenção de algo, seja o
que for. Cantem simplesmente com fé e deixem acontecer.

11
O autor utilizará recorrentemente esta expressão ao longo de todo
o comentário. Na acepção utilizada nesta passagem tem a conotação
de “essência” ou de “a coisa em si” em oposição ao “fenômeno ou às
coisas tais como aparecem e são conhecidas”. (N.T.)

22
Em meu sonho, todo mundo cantava ao final,
羯諦、 羯諦 GYATEI, GYATEI...

“Vamos, vamos, vamos mais além do mais além,


Até a verdadeira felicidade,
Até a verdadeira liberdade,
Vamos, juntos,
Pela borda do infinito 悟 SATORI!”

Existe uma quantidade inumerável de histórias


referentes aos méritos ilimitados do 般 若 心 経 HANNYA
SHINGYŌ.
Estes méritos se realizam muito precisamente, e muito
exatamente, se conservamos o espírito
無所得 MUSHOTOKU, sem objetivo, nem idéia de mérito,
只管 SHI KAN: sem meta.
A história do Budismo Japonês conta numerosos casos
de fervorosos crentes que recitaram o 般若 心経 HANNYA
SHINGYŌ dia após dia e ano após ano, sem descanso,
simplesmente movidos por sua fé. A história do Mestre
塙保己一 HANAWA HO KIICHI (1726-1821) é uma das que
passou à posteridade.
O Mestre 塙保己一 HANAWA HO KIICHI nasceu na
província de 埼玉 SAITAMA, próximo a 東京 TŌKYŌ. Ficou
cego aos cinco anos de idade.
Aos doze anos, sua mãe morreu e ele se pôs a estudar
medicina, acupuntura e a arte das massagens, entretanto
não logrou triunfar já que não era muito hábil.
Depois deste fracasso decidiu estudar literatura. Era
incapaz de ler, mas sua enfermidade havia desenvolvido, em
contrapartida, suas faculdades mentais, e muito
especialmente a memória, de maneira que podia repetir
quase textualmente toda uma obra, depois de a ter ouvido
uma só vez. Pouco a pouco sua memória se transformou
numa grande enciclopédia, especializada especialmente em
obras literárias chinesas, até o ponto em que, aos vinte e
23
cinco ou vinte e seis anos, sua cultura nesta matéria
superava a de seus preceptores.
Como já não podia esperar nada em sua província,
dirigiu-se a 東 京 TŌKYŌ, ao muito famoso santuário
天 満 宮 TENMANGŪ, onde fez a promessa de entoar o
般若 心経 HANYA SHINGYŌ ao menos uma vez ao dia. Sua
promessa era recitá-lo pelo menos dez mil vezes, com a
esperança de recordar-se, depois das cinco mil primeiras
recitações, de todos os livros que havia lido e depois das
cinco mil últimas, de poder comentá-los e publicá-los.
Começou neste mesmo dia. Cada vez que recitava dez
vezes, sua mulher colocava numa caixa um pedaço de papel
para facilitar assim o cômputo, que ele efetuava a cada noite,
antes de ir dormir. Às vezes superava uma centena de
recitações ao dia. Nos dias em que seu fervor era
especialmente grande chegava a duzentas, trezentas
recitações.
Assim continuou até sua morte, durante quarenta e três
anos. Não passou um só dia sem que cumprisse sua tarefa.
Aqui no 道場 DŌJŌ, apenas recitamos três vezes e
alguns, cansados, se detêm antes do final sem emitir nenhum
som, por medo de perder sua energia.
塙保己一 HANAWA HO KIICHI cantava-o até trezentas
vezes ao dia sem por isto deixar de fazer 座 禅 ZAZEN.
座禅 ZAZEN é, desde logo, mais eficaz que a recitação do
般 若 心 経 HANNYA SHINGYŌ. Não obstante, se vocês
caírem enfermos e tiverem que ficar acamados, poderão
tentar recitá-lo cem, duzentas ou trezentas vezes. Não é tão
fácil assim!
Mestre 己一 KIICHI realizou sua promessa: escreveu
quinhentos e trinta livros e publicou mais de mil. Sua mulher
os lia, ele os comentava enquanto sua mulher escrevia seu
ditado.
Uma noite, enquanto ele comentava um texto, as velas
se apagaram, já que se haviam consumido. Sua mulher e
seus parentes que escreviam à luz das velas lhe disseram
24
que não podiam continuar, pois estas haviam se extinguido.
Sua resposta foi:
“Que desgraçados sois ao possuir a visão! Que as
velas se apaguem ou não, para mim dá na mesma! Posso
seguir meus comentários de qualquer maneira!”
Com efeito, se não fosse por sua cegueira, talvez não
tivesse podido concentrar-se desta maneira, nem tivesse feito
tantos esforços para realizar sua obra. A historia diz que
recitou o 般若 心経 HANNYA SHINGYŌ de um a dois
milhões de vezes e que devido a isto pôde levar a bom termo
seu trabalho.
Hoje em dia, a maioria de suas obras pode ser
encontrada na importante Biblioteca Nacional de Tōkyō.
O Mestre 玄奘 GENJŌ é também muito famoso por
haver recitado um grande numero de vezes, mas
塙保己一 HANAWA HO KIICHI o superou amplamente.
Pessoalmente, antes da Guerra fiz a promessa de
escrever o 般若 心経 HANNYA SHINGYŌ um milhar de vezes.
Cheguei a copiá-lo até seiscentas vezes, mas as folhas
se perderam durante a Guerra, só me restou uma, que trouxe
comigo para a França. Esta pendurada aqui, no muro deste
道場 DŌJŌ. Tinha o costume de escrevê-lo depois de cada
座禅 ZAZEN. Copiei-o umas seiscentas vezes, mas depois
pensei que, se tinha tempo para escrever o
般 若 心 経 HANNYA SHINGYŌ, era melhor utilizá-lo para
fazer 座禅 ZAZEN. Esta é a razão pela qual detive o trabalho.
Muitos fervorosos crentes se entregam ainda hoje em
dia a esta tarefa que constitui em escrevê-lo ou então em
recitá-lo.

25




漢字 “KANJI” e 漢文 “KANBUN”.

26
TEXTO EM 漢字 KANJI,

TRANSCRIÇÃO FONÉTICA E

TRADUÇÃO DO

般若 心経 HANNYA SHINGYŌ

27
羯 是 得 菩
諦 大 阿 無 提
羯 神 耨 有 蕯
諦 故 呪 多 三 恐 埀
波 説 羅 世 怖
羅 般 能 是 三 諸 依
羯 若 除 大 藐 仏 遠 般
般 諦 波 一 明 三 離 若
羅 切 呪 菩 依 一 波
若 波 蜜 苦 提 般 切 羅
羅 多 是 若 顚 蜜
僧 呪 真 無 故 波 倒 多
心 羯 実 上 知 羅 薨 故
諦 即 不 呪 般 蜜 想
経 説 虚 若 多 心
菩 呪 是 波 故 究 無
提 日 無 羅 竟 罣
薩 等 蜜 涅 礙
婆 等 多 槃 無
訶 呪 罣


28

眼 舎 観
耳 利 自

無 鼻 子 色 度 在
無 舌 即 一 菩

明 身 是 是 切 薩
亦 意 是 諸 空 苦
無 無 故 法 厄 行

苦 無 無 空 空 空 深
集 明 色 中 相 即 舎 般

以 滅 尽 声 是 利 若
無 道 香 無 不 色 子 波
所 乃 味 色 生 羅

得 無 至 触 無 不 受 色 蜜
故 知 無 法 受 滅 想 不 多

亦 老 想 行 異 時
無 死 無 行 不 識 空

得 亦 眼 識 垢 亦 照
無 界 不 復 空 見

老 乃 浄 如 不 五
死 至 是 異 薀
尽 無 不 色 皆

意 増 空
識 不

29
界 減
GYA ZE BO
TEI DAI TOKU DAI
GYA JIN A MU SAT

TEI KO SHU NOKU U TA


HA SETSU TA SAN KU
RA HAN NŌ ZE RA ZE FU E
HAN GYA NYA JO DAI SAN SHO HAN
TEI HA IS MYŌ MYAKU BUTSU ON NYA
NYA RA SAI SHU SAN RI HA
HA MIT KU BO E IS RA
RA TA ZE DAI HAN SAI MIT
SŌ SHU SHIN MU NYA TEN TA
SHIN
GYA JITSU JŌ KO HA DŌ KO
SOKU SHU CHI
GYŌ TEI FU RA MU
SETSU KO HAN MIT SŌ SHIN
BŌ SHU ZE NYA TA MU
JI WATSU MU HA KO KU KE
SO TŌ RA GYŌ GE
WA DŌ MIT NE MU
KA SHU TA HAN KE
GE
KO

30
MU
GEN SHA KAN MA
NI RI JI
MU BI SHI SHIKI DO ZAI KA
MU ZES SOKU IS BO
MYŌ SHIN ZE ZE SAI SATSU
YAKU I ZE SHO KŪ KU HAN
MU MU KO HŌ YAKU GYŌ
KU MU MU KŪ KŪ KŪ JIN NYA
SHŪ MYŌ SHIKI CHŪ SŌ SOKU SHA HAN
I METSU JIN SHŌ ZE RI NYA
MU DŌ KŌ MU FU SHIKI SHI HA HA
SHO NAI MI SHIKI SHŌ RA
TOKU MU SHI SOKU MU FU JU SHIKI MIT RA
KO CHI MU HŌ JU METSU SŌ FU TA
YAKU RŌ SŌ GYŌ I JI MIT
MU SHI MU GYŌ FU SHIKI KŪ
TOKU YAKU GEN SHIKI KU YAKU SHO TA
MU KAI FU BU KŪ KEN
RŌ NAI JŌ NYO FU GO
SHI SHI ZE I UN SHIN
JIN MU FU SHIKI KAI
I ZŌ KŪ GYŌ
SHIKI FU
KAI GEN

31
MAKA HANNYA HARAMIT-TA SHINGYŌ
KANJIZAI BO-SATSU. GYŌ JIN HANNYA HARAMIT-TA JI.
SHO KEN GO-UN KAI KŪ. DO IS-SAI KU YAKU.
SHA-RI-SHI, SHIKI FU I KŪ, KŪ FU I SHIKI,
SHIKI SOKU ZE KŪ, KŪ SOKU ZE SHIKI,
JU SŌ GYŌ SHIKI YAKU BU NYO ZE.

SHA-RI-SHI, ZE SHO HŌ KŪ SŌ,


FU SHŌ FU METSU, FU KU FU JŌ, FU ZŌ FU GEN,
ZE KO KŪ CHŪ MU SHIKI MU JU SŌ GYŌ SHIKI,
MU GEN NI BI ZES-SHIN I, MU SHIKI SHŌ KŌ MI SOKU
HŌ,
MU GEN KAI NAI SHI MU I SHIKI KAI,
MU MU-MYŌ YAKU MU MU-MYŌ JIN,
NAI SHI MU RŌSHI YAKU MU RŌSHI JIN,
MU KU SHŪ METSU DŌ, MU CHI YAKU MU TOKU,

I MUSHOTOKU KO.

BODAI SAT-TA. E HANNYA HARAMIT-TA KO.


SHIN MU KEIGE MU KEIGE KO. MU U KU FU.
ON RI IS-SAI TEN DŌ MU SŌ. KU GYŌ NE HAN.
SAN ZE SHO BUTSU. E HANNYA HARAMIT-TA KO.
TOKU A NOKU TARA SAN MYAKU SAN BODAI.
KO CHI HANNYA HARAMIT-TA.
ZE DAI JIN SHU. ZE DAI MYŌ SHU.
ZE MU JŌ SHU. ZE MU TŌ DŌ SHU.
NŌ JO IS-SAI KU. SHIN JITSU FU KO.
KO SETSU HANNYA HARAMIT-TA SHU.
SOKU SETSU SHU WATSU.

GYATEI, GYATEI, HARAGYATEI.


HARASŌGYATEI, BŌJISOWAKA.

HANNYA SHINGYŌ.

32
33
TRADUÇÃO DO MAKA HANNYA HARAMITTA SHINGYŌ

ESSÊNCIA DO SŪTRA DA GRANDE PERFEIÇÃO


QUE PERMITE IR MAIS ALÉM

Avalokiteshvara, o Bodhisattva da Verdadeira


Liberdade, através da prática profunda da Grande Sabedoria,
compreende que os cinco agregados (corpo-matéria-forma,
percepção-sensação, pensamento, atividade e consciência)
não são mais do que Vacuidade e, graças a esta
compreensão, ajuda a todos os seres que sofrem.
Oh, Shāriputra! Os fenômenos não são diferentes da
Vacuidade.
A Vacuidade não é diferente dos fenômenos.
Os fenômenos são Vacuidade. A Vacuidade é
fenômeno.
O corpo-matéria-forma, a percepção-sensação, o
pensamento, a atividade e a consciência são igualmente
Vacuidade.
Oh, Shāriputra! Todas as existências são igualmente
Vacuidade.
Não há nascimento nem morte. Não há pureza nem
impureza. Não há crescimento nem diminuição.

Na Vacuidade não há corpo-matéria-forma, nem


percepção-sensação, nem pensamento, nem atividade, nem
consciência.
Não há olhos, nem ouvidos, nem nariz, nem língua,
nem corpo, nem mente.
Não há consciência visual, nem consciência auditiva,
nem consciência olfativa, nem consciência gustativa, nem
consciência tátil, nem consciência da consciência.
Não há ignorância nem extinção da ignorância.
Não há envelhecimento nem morte, nem extinção do
envelhecimento e da morte.

34
Não há sofrimento, nem causa do sofrimento, nem
liberação do sofrimento, nem caminho que conduza à
extinção do sofrimento.
Não há sabedoria nem o que se conquistar.
O único que há é 無所得 MUSHOTOKU: Nada que
obter.
Esta é a razão pela qual no espírito do Bodhisattva,
graças a esta Ilimitada Sabedoria, não existem redes de
obstáculos, nem causas de obstáculos.
Não existe medo nem temor, nem causa de medo e
temor.
Desta maneira, o Bodhisattva se liberta das ilusões,
das perturbações e dos apegos e chega à etapa ultima da
vida, o Nirvana.
Todos os Buddha do passado, do presente e do futuro
obtiveram a Suprema Libertação graças a esta Grande e
Ilimitada Sabedoria.
Portanto, Hannya Shingyō é o Mantra Universal, o
Grande Mantra Resplandecente, o Mantra mais Elevado, o
Incomparável Mantra, aquele que extingue todo o tipo de
sofrimento. É a verdade autêntica sem erro.
Este Mantra proclamado por Hannya Shingyō se diz
assim:

羯諦、羯諦、波羅羯諦、GYATEI, GYATEI, HARAGYATEI,


波羅僧羯諦、 HARASŌGYATEI,
菩 提薩 婆訶。 BŌJISOWAKA.

GATE GATE PĀRAGATE Vamos, vamos, vamos juntos!


PĀRASAMGATE Vamos juntos mais além do além,
BODHI SVĀHĀ até a realização última!

“O SUTRA DA ESSÊNCIA DA SABEDORIA”

35




般若 心経 ”HANNYA SHINGYŌ”

“O SŪTRA DA ESSÊNCIA DA SABEDORIA”

36
37
摩訶 般若 波羅蜜多 心経

MAKA HANNYA HARAMITTA SHINGYŌ

38
HA MA
SHIN RA KA
GYŌ MIT HAN
TA NYA

39
波 摩
心 羅 訶
経 蜜 般
多 若
40
41
COMENTÁRIOS SOBRE O TÍTULO

O Termo 摩 訶 MAKA, primeira palavra do título,


significa “mais além”, “absoluto”. Mais além de todo o limite,
mais além do tempo e do espaço. 摩訶 MAKA define o que
está em tudo, o princípio inerente a todas as coisas, no
interior e no exterior do ego, em qualquer época, em todas e
em cada uma das coisas. É sinônimo do Poder Cósmico
Fundamental que está em todas as partes, sem cessar em
movimento, propagando-se como o ar e adaptando-se como
a água. É o invisível sem forma.

O segundo termo, 般若 HANNYA, define a sabedoria.


Esta sabedoria nasce de 空 KŪ, do nada, do vazio. 般若
HANNYA é a emanação direta de 空 KŪ, seu outro aspecto,
o manifesto e fenomenal.
Portanto 摩 訶 般 若 MAKA HANNYA (Mahā Prajñā)
significa a sabedoria infinita que procede de [般若 HANNYA]
12
ou de 空 KŪ, que não se fixa em nenhum lugar. É a
verdadeira e total liberdade, o não apego absoluto. É a
condição normal do espírito durante o 座禅 ZAZEN. No 座禅

12
No original, “procede de 摩訶 MAKA”. (N.T.)

42
ZAZEN, os estímulos exteriores são percebidos com um grau
de agudeza mais elevado que em tempo normal; mas seus
efeitos sobre a consciência não se prolongam, desvanecem-
se rapidamente. O mesmo ocorre com os sentimentos, as
emoções, os pensamentos que surgem do subconsciente. As
recordações aparecem e passam, expulsos pela consciência
非思量 HISHIRYŌ, que é a condição normal do espírito.

A consciência 非思量 HISHIRYŌ vê tudo, mas não se


detém em nada, é fluida como a corrente de água.

“As ondas se formam incansavelmente


na superfície da corrente.
Mas não podem apagar
O reflexo da Lua que mora nela.”

(Mestre 道元 DŌGEN)

As ondas dos 煩惱 BONNŌ (ilusões, pensamentos e


reminiscências) se formam, surgem, passam e morrem, sem
afetar a consciência 非思量 HISHIRYŌ que permanece mais
além.
As ondas, longe de serem perturbadoras, são a
condição do equilíbrio psicofísico, como a dor, por exemplo,
que deve manifestar-se na consciência, que deve ser
controlada e compreendida lucidamente, e de nenhuma
maneira rechaçada de forma incontrolada às profundezas
anárquicas do subconsciente.
Evidentemente não podemos cortar definitivamente os
煩惱 BONNŌ, as ilusões: isto significaria a morte. A própria
vida está feita de ilusões. Não obstante, podemos controlá-
las através da vigilância da consciência que observa e
compreende, e as faz diminuir. Por esta razão, não há

43
necessidade de se orgulhar das boas ações, nem se
aborrecer com as más. Devemos nos sentir cheios de
compaixão por aquelas pessoas dominadas por seus 煩惱
BONNŌ, seja por falta de lucidez, seja por debilidade.

摩訶 般若 MAKA HANNYA, esta sabedoria infinita sem


apego, traduz-se, em seu último grau, pela atitude do espírito
frente à vida e à morte: atitude sem apego, atitude de
superação da vida e da morte, atitude de concentração sobre
a vida, posto que estamos vivos, e sobre a morte, quando
esta chegue, atitude de abandono ao Poder Cósmico
Fundamental posto que tudo existe graças a ele,

atitude portanto sem ego (nem temor nem medo), sem


númeno 13 . O sofrimento nasce desta dualidade, deste
rompimento: Poder Cósmico versus consciência pessoal,
Deus versus ego.
Cada pessoa crê estar possuída de um espírito que lhe
é próprio; pensamos então que este espírito nos faz sofrer,
nos sacia ou nos faz gozar. Esta visão está mais próxima da
verdade que aquela outra que consiste em odiar o mundo,
crendo que ele é a causa de nossas atribulações. Não
obstante, desde a dor física até a dor moral, a causa de
nossos sofrimentos é, em qualquer caso, criada pelo apego
ao ego, que se define como a crença errônea em uma
entidade pessoal; erro de fixação e de crença na
permanência do ego que nos conduz à ignorância.

Bodhidharma ( 菩 提 達 磨 BODAIDARUMA) estava


sentado em 座 禅 ZAZEN frente a um muro. O segundo
Patriarca, 慧可 EKA, que estava do lado de fora, na neve,
esperava um sinal do Mestre para que se dignasse a aceitá-

13
O autor em seus comentários voltará inúmeras vezes a utilizar esta
palavra cujo significado se refere “a coisa em si”, por oposição ao
fenômeno ou às coisas tais como aparecem e são conhecidas. (N.T.)

44
lo como discípulo. Mas Bodhidharma ( 菩 提 達 磨
BODAIDARUMA) permanecia imperturbável, e, diz-se, 慧可
EKA acabou por cortar seu próprio braço para expressar sua
determinação. Dirigindo-se a Bodhidharma (菩 提
達 磨 BODAIDARUMA), disse:
“O espírito de seu discípulo não está em paz! Mestre,
rogo-lhe que o pacifique!”
Bodhidharma (菩提達磨 BODAIDARUMA) respondeu:
“Traga-me seu espírito e eu o pacificarei.”
“Eu o tenho procurado por todas as partes”, respondeu
慧可 EKA, “mas não o pude encontrar. Não há como agarrá-
lo.”
“Isto significa que ele já está pacificado”, disse
Bodhidharma (菩提達磨 BODAIDARUMA)...
Um monge tropeçou em uma pedra e sentiu uma
grande dor no pé.
“Qual é a origem de minha dor?”, perguntou-se.
Neste mesmo momento obteve o 悟 SATORI.

O terceiro termo 波羅蜜多 HARAMITTA (Paramitā)


significa o mais além, o ideal, o último, a totalidade plena. É a
prática excelente.
摩訶 般若 波羅蜜多 MAKA HANNYA HARAMITTA: a
Grande Sabedoria que conduz mais além.
E por último, o final: 心経 SHINGYŌ (Hridaya Sūtra)
significa Sūtra do espírito.
O que é o espírito? Espírito sem entidade, sem númeno.
Assim fala o Budismo do espírito.

Eu falo sempre de Poder Cósmico Fundamental.


Também se pode chamá-lo Espírito Único, ou Espírito
Onipresente, que se estende por todo o cosmos e governa os
fenômenos e a consciência do homem. Por outro lado, a

45
palavra espírito, 心 SHIN pode ser traduzida também como
“essência”, “centro” ou “medula”.
心経 SHINGYŌ se refere assim a “essência dos Sūtra”,
ou ao “Sūtra essencial”. A primeira pessoa que traduziu o
Sūtra do sânscrito ao chinês 漢文 KANBUN foi o mestre 玄奘
GENJŌ, que nasceu por volta do ano 600 d.C.. A lenda conta
que, depois de ter decidido ir à Índia, tomou a firme
disposição de trazer deste país todos os Sūtra budistas que
encontrasse, para poder então propagá-los por toda a China.
Acabava de passar pelas regiões fronteiriças da China com a
Índia quando, repentinamente, caiu a noite. Dirigiu-se então a
um pobre templo isolado. Apenas havia entrado e notou
alguém falando. A voz era de um monge ancião, a ponto de
morrer, que disse a 玄奘 GENJŌ imediatamente após vê-lo:
“Sei o que é que você está à procura em nosso país. Escute-
me atentamente”. E leu o Sūtra do 般 若 心 経 HANNYA
SHINGYŌ. 玄 奘 GENJŌ ficou profundamente comovido,
pleno de alegria. Continuando sua viagem através da Índia
não parou de cantá-lo, com medo de esquecê-lo,
aumentando seu ardor quando sentia que sua vida estava em
perigo.
Uma noite, quando sua peregrinação já o havia levado
ao centro da Índia, aquele monge ancião lhe apareceu
novamente em seu leito, à noite. 玄奘 GENJŌ ficou muito
surpreendido:
- “Como pôde você ter chegado aqui?” – perguntou.
-“Sou Avalokiteshvara, o bodhisattva 観音 KANNON”,
respondeu a aparição. “Queria ensinar-lhe o maravilhoso
Sūtra do 般若 心経 HANNYA SHINGYŌ . Esta é a razão pela
qual eu vim até você”.
Ditas estas palavras a aparição se desvaneceu
novamente, deixando 玄 奘 GENJŌ novamente a sós no
aposento, de posse do esplêndido tesouro do 般 若 心 経
HANNYA SHINGYŌ, que a partir de então compreendeu

46
perfeitamente, tanto em sânscrito como em 漢文 KAMBUN.
心 SHIN – hridaya em sânscrito, significa “a essência”.
A seita 真言 SHINGON omite o qualificativo “Grande”;
para eles, o 般若 心経 HANNYA SHINGYŌ intitula-se “O
Sūtra da Essência da Sabedoria”. 經 KYŌ (ou 経 GYŌ)
corresponde a palavra sânscrita Sūtra. Os Sūtra são o
conjunto de escrituras que transmitem os ensinamentos do
Buda.
O ideograma 經 KYŌ se decompõe em dois elementos:
o elemento da esquerda simboliza “o fio”; o elemento da
direita, “a corrente viva”. Assim Sūtra, ou 經 KYŌ significa o
fio transmissor, a corrente da vida, o Caminho. 経 GYŌ
significa também “ir, caminhar direto”, como a marcha de 経
行 KIN HIN (caminhar lentamente segundo o método
transmitido, depois do 座禅 ZAZEN). Depois da morte de
Shākyamuni Buda, seus ensinamentos foram transcritos em
folhas da planta Baitara (com 8 cm de largura por 60 cm de
comprimento, aproximadamente) sobre as quais figura o
traçado de uma corrente, definindo assim a natureza do texto.
O título 摩訶 般若 波羅蜜多 心経 MAKA HANNYA
HARAMITTA SHINGYŌ pode ser traduzido então assim: O
Sūtra do Espírito da Grande Sabedoria que permite ir mais
além.

47


心空 ”SHINKŪ” – A Mente que alcança todas as coisas.

48
49
O ESPÍRITO DO VAZIO

50
KAN
JI
ZAI
BO
SATSU
Avalokiteshvara (KANJIZAI), o Bodhisattva (BOSATSU)
da Verdadeira Liberdade

51





52
HAN
NYA GYŌ
JI HA
RA
MIT JIN
TA
Através (JI) da prática profunda (GYŌ JIN)
da Grande Sabedoria (HANNYA HARAMITTA).

53

若 行
時 波

蜜 深

54
SHO
KEN
GO
UN
KAI

Compreende (SHO KEN) que os cinco Skandhas (GO-UN)
(corpo-matéria-forma, percepção e sensação, pensamento,
atividade e consciência) são (KAI) Vacuidade (KŪ).

55





56
DO
IS
SAI
KU
YAKU
Ajuda (DO) a todas as existências (ISSAI)
que sofrem (KU) e se afligem (YAKU)

57





58
A estrutura do 般若 心経 HANNYA SHINGYŌ é de
fato muito simples. O tema central é 空 KŪ e o ponto chave
無所得 MUSHOTOKU.
Poderíamos resumir assim a tradução do Sūtra:
Quando o Bodhisattva Avalokiteshvara pratica
profundamente a Grande Sabedoria
般 若 波 羅蜜 多 HANNYA HARAMITTA, vê que os cinco
agregados são 空 KŪ (Vacuidade) e desta maneira ajuda a
todos os que sofrem.
Por isso, 舎利子 SHARISHI (Shariputra), 色 SHIKI (os
fenômenos) não são diferentes de 空 KŪ (Vacuidade). 空 KŪ
não é diferente de 色 SHIKI. 色 SHIKI é 空 KŪ. 空 KŪ é
色 SHIKI. O mesmo acontece com a percepção, o
pensamento, a ação e a consciência.
舎利子 SHARISHI, todas as existências são 空 KŪ. São
não nascidas e não extintas, não manchadas e não puras,
não aumentam nem diminuem.
Assim, em 空 KŪ, não há cinco elementos, nem seis
órgãos da percepção, nem seis objetos da percepção, nem
seis consciências, nem ignorância, nem extinção da
ignorância, nem velhice, nem fim da velhice, nem morte, nem
fim da morte, nem Quatro Nobres Verdades, nem sabedoria,
nem proveito, somente há 無所得 MUSHOTOKU.
Esta é a razão pela qual o Bhodhisattva, graças a esta
Grande Sabedoria 般若 波羅蜜多 HANNYA HARAMITTA,
tem o espírito tranqüilo e não conhece o medo. Separa-se de
toda perturbação e de toda a ilusão e alcança o Nirvana. E os
Patriarcas dos três mundos, graças à
般若 波羅蜜多 HANNYA HARAMITTA, chegam ao mais alto
dos 悟 SATORI.
Devemos compreender então que
般若 波羅蜜多 HANNYA HARAMITTA é por excelência, o

59
Sūtra universal, o grande Sūtra luminoso, o mais alto e
incomparável Sūtra graças ao qual se pode cortar todo o tipo
de sofrimento. Na verdade autêntica não pode haver erro. Eu
declaro portanto que o Sūtra
般若 波羅蜜多 HANNYA HARAMITTA proclama este mantra:

“Vamos, vamos mais além,


Vamos todos juntos mais além,
Pela borda do 悟 SATORI”

O 般若 心経 HANNYA SHINGYŌ explica, por outro


lado, que a sabedoria mais elevada é 空 KŪ, noção
fundamental do Budismo. Por outro lado, o
般若 心経 HANNYA SHINGYŌ preserva o segredo do
método para acessar esta sabedoria: trata-se de
無 所 得 MUSHOTOKU, a não busca da obtenção, a não
persecução de uma meta. O paradoxo aparece: para obtê-la
inteiramente, é preciso abandoná-la completamente; para
obter a infinita sabedoria temos que nos libertar da busca da
obtenção. Tem que ser 無所得 MUSHOTOKU.
Mas para chegar a esta grande libertação, para nos
desatar destes laços que nos atam à uma meta e à busca de
um proveito, temos que compreender profundamente,
intimamente, através do corpo e do espírito, o que é 空 KŪ. E
para compreender 空 KŪ, o único método é a prática da
concentração sem pensamento, mais além de qualquer
pensamento: a consciência 非 思 量 HISHIRYŌ do
座禅 ZAZEN. Assim, o 般若 心経 HANNYA SHINGYŌ vai
parar finalmente no 座禅 ZAZEN, e o 座禅 ZAZEN conduz à
compreensão do 般若 心経 HANNYA SHINGYŌ, a Grande
Sabedoria.

60
SOBRE A NOÇÃO DE 空 KŪ

Este 漢 字 KANJI reaparece ao longo de todo o


般若 心経 HANNYA SHINGYŌ. O 漢字 KANJI 空 KŪ é a
tradução da palavra sânscrita shūnya ou shūnyatā, que tem
sido traduzida no Ocidente como “vazio”; entretanto, esta
tradução é imprópria.
“Vazio” é somente um dos múltiplos significados de
空 KŪ. O sentido original de shūnyatā é suvi, que designa a
expansão, o movimento centrífugo; shūnyatā não é uma
negação do conceito de existência enquanto tal, mas encerra
a idéia de que toda a existência e seus elementos são
dependentes do princípio de causalidade. Dado que estes
fatores causais estão em perpétua mudança, dizemos que
não pode haver existência por si própria. Shūnyatā nega
portanto de maneira categórica a possibilidade de qualquer
forma de existência fenomenal estática. Todos os fenômenos
são relativos e interdependentes.
Outro sentido de shūnya é zero, conceito que os
hindus conheceram muito cedo, muito antes que no Ocidente.
O zero não tem valor por ele mesmo, mas ocupa o lugar dos
valores ausentes nos números. Simboliza por tanto todas as
possibilidades, como um ovo cósmico que engendra e
desintegra indefinidamente, em uma alternância rítmica de
movimentos centrífugos e centrípetos. 空 KŪ não significa
exclusivamente vazio. É ao mesmo tempo o alfa e o ômega,
o receptáculo e o conteúdo de todos os fenômenos, os quais
existem em função da não-existência e pelo princípio da
interdependência.
空 KŪ é portanto “a existência sem númeno”, “a
existência desprovida de substancia própria”. Ou também “a
não-existência do subjetivo e do objetivo”, ou “a existência da

61
não-existência”. Pode ser também “a plenitude do vazio”, ou
a plenitude potencial”.
Existem duas noções importantes relativas a 空 KŪ:
人空 NINKŪ e 法空 HOKKŪ. 人空 NINKŪ designa o 空 KŪ do
ego, o não-númeno do ego. 法空 HOKKŪ corresponde ao
空 KŪ do dharma, ao não-númeno de todas as existências.
Todas as coisas, todos os fenômenos e todas as
existências somente são o que são pelo princípio da
interdependência e porque estão submetidas à lei da
impermanência.
No Budismo Hīnayāna (小乗仏教 SHŌJŌ-BUKKYŌ),
o conhecimento se estabelece através do método analítico.
Tudo é analisado, desde a matéria até o espiritual, para
chegar a noção final do NADA.
O mesmo ocorre no processo da ciência moderna, que
em suas últimas investigações tem chegado igualmente ao
conceito do NADA.
Mas no Budismo Mahāyāna ( 大 乗 仏 教 DAIJŌ-
BUKKYŌ), a maneira de se aproximar da realidade é
diametralmente oposta: a compreensão não nasce dos
resultados de uma análise meticulosa, mas se estabelece de
maneira sintética, a partir da intuição de 空 KŪ. A
compreensão intuitiva e imediata de 空 KŪ se converte assim
na base de todo o conhecimento. Esta intuição permite o
conhecimento e a compreensão das quatro verdades sobre a
impermanência, a interdependência, os fenômenos e a
essência.

I. 無常 MUJŌ: A IMPERMANÊNCIA

Todas as existências estão em perpétua mudança.


Todas estão destinadas à vida e à morte. Todos os seres
sensíveis e todos os objetos inanimados estão submetidos à

62
mesma lei universal: nascimento, desenvolvimento e
crescimento, degeneração e morte, extinção.
Nascemos, vivemos e entramos no ataúde. A mera
compreensão desta lei deveria ser suficiente para cortarmos
todos os apegos: apego à beleza, apego à juventude, ao
amor... Mas queremos permanecer cegos e continuar a nos
apegar. Tudo no cosmos sofre a lei da impermanência desde
o átomo até as galáxias. Nosso nascimento nos conduz
inexoravelmente até a morte. Por que ter medo? Por que
rechaçá-la? Podemos morrer a qualquer instante, aqui e
agora. Não há nada mais normal. Nós não podemos decidir a
duração de nossa vida, nem o momento de nossa morte.
Nosso corpo muda, evolui, transforma-se, da mesma
forma que nosso espírito. Não há númeno permanente, não
há entidade no ego. A ciência atual ainda não conseguiu
determinar a natureza da substância vital. Atualmente, suas
investigações a levaram a falar de energia fundamental, de
força vital; mas estas não podem ser definidas precisamente.
O fim da atividade vital significa a morte. No Budismo
esta força é chamada 氣 KI. É o constituinte fundamental de
todo o cosmos, e nisto, é equivalente a 空 KŪ.
Compreender o 空 KŪ de que fala o
般若 心経 HANNYA SHINGYŌ e obter a verdadeira
Sabedoria é compreender que o sofrimento nasce da ilusão
que consiste em dar ao ego uma substância própria e durável,
origem do apego.
A compreensão desta verdade é acessível durante o
座禅 ZAZEN. E seu conhecimento não é entristecedor, mas
ao contrário, proporciona a alegria suprema e a autêntica
coragem.

II. 縁 EN: A INTERDEPENDÊNCIA

Esta é uma noção da maior importância. Todas as


existências são movidas pela lei da interdependência.

63
O termo dharma tem vários significados:
Designa a multiplicidade de existências e de
fenômenos, mas também, segundo a etimologia sânscrita,
indica a ação de dirigir, de governar, de suportar; por último,
seu sentido mais geral é o de ordem, lei.
Só o jogo da interdependência de fatores diversos
constitui a realidade impermanente das existências.
A aglomeração momentânea de um certo número de
elementos diversos e necessários, mantidos juntos pela força
energética em movimento, permite a existência da estrutura
fenomenal; a perda do movimento origina a redução dos
elementos, sua fixação num estado de inércia e a morte.
A lei da interdependência permite a manutenção, em
um estado de perfeito equilíbrio, de todas as relações e
interações do mundo fenomenal. Desde a água, o ar,
passando pelo corpo humano até os sistemas planetários,
tudo é regido por esta lei na perfeita harmonia das inter-
relações.

III. 色 SHIKI E 空 KŪ:


OS FENÔMENOS E A ESSÊNCIA

Os fenômenos são a causa direta do karma. O termo


karma designa a ação, o movimento. Todo o fenômeno nasce
da ação. O movimento procede de 空 KŪ, é seu aspecto
fenomenal. Por isso, todos os fenômenos são as sombras de
空 KŪ, a sombra do espírito original. 空 KŪ transcende os
extremos, as polaridades. É o Caminho do Meio do Budismo,
situado mais além dos contrários.
Nosso mundo fenomenal é um mundo dualista, mas em
sua essência, surge de 空 KŪ e desemboca em 空 KŪ,
realizando-se através de 空 KŪ. Compreender esta lei, não
intelectualmente, mas tornando-a presente no corpo e no
espírito, é realizar o 悟 SATORI. Isto pode ser compreendido

64
inconscientemente, naturalmente, automaticamente, através
do 座禅 ZAZEN. Todas as questões podem ser resolvidas
assim, todos os sofrimentos podem ser superados. Isto é
realizar o 空 KŪ do 般若 心経 HANNYA SHINGYŌ, a
autêntica e imanente verdade, é obter a liberdade suprema.
色 SHIKI representa os aspectos ou as estruturas
provisórias, temporais, momentâneas e efêmeras. 色 SHIKI
é a estrutura sem cessar em movimento do Poder Cósmico
manifesto. 空 KŪ é o potencial cósmico não manifesto, infinito
e eterno, presente na infinidade de coisas e imutável em sua
natureza. É transcendente e imanente ao mesmo tempo, está
além dos limites de qualquer coisa, mas está compreendido
na própria essência de tudo.

65
COMENTÁRIOS

観自在 菩薩 。 行 深 般若 波羅蜜多 時。
照 見 五薀 皆 空。 度一切苦厄。
KANJIZAI BOSATSU. GYŌ JIN HANNYA HARAMITTA JI.
SHO KEN GO-UN KAI KŪ. DO IS-SAI KU YAKU.

“Quando o Bodhisattva Avaloktehsvara


(観自在 菩薩 KANJIZAI BOSATSU) pratica a Prajñā Paramitā,
a Grande Sabedoria, observa e vê que os cinco skandhas
( 五薀 GO-UN: sensação, percepção, pensamento, ação e
consciência) não são mais que Vacuidade, 空 KŪ.
Por esta compreensão ajuda e salva todos os seres
sofredores, desafortunados ou desgraçados.”

Esta primeira frase é como um prólogo. Em sânscrito, o


sūtra original não tem título. Começa diretamente por: “Ārya-
avalokiteshvaro bodhisattvo gambhīrām prajñā-
pāramitācayām caramāno vyavalokayati sma: pañca-
skandhās tāms ca svabhāva-shūnyān pashyati sma.”

O termo skandhās significa os cinco agregados, os


五 薀 GO-UN em japonês. Quando o
般若 心経 HANNYA SHINGYŌ foi traduzido do sânscrito
para o chinês por 鳩 摩 羅 什 KUMARAJU (Kumārajīva),
depois por 玄奘 GENJŌ, seu sentido ficou mais profundo
com a transcrição em 漢字 KANJI. O mesmo sucedeu ao
金剛 経 KONGO KYŌ, Vajracchedikā em sânscrito, o “Sūtra
66
do Diamante Cortador”. A tradução em ideogramas
acrescenta sempre mais profundidade ao texto original
sânscrito. Ademais, na China, o Budismo Mahāyāna
( 大 乗 仏 教 DAIJŌ-BUKKYŌ), o ensinamento do Grande
Veículo, alcançou uma alta dimensão filosófica e prática, e se
converteu em um pensamento mais acessível que o
ensinamento do Budismo Hīnayāna
(小乗仏教 SHŌJŌ-BUKKYŌ), reservado a um número restrito
de ascetas e de praticantes, separados do mundo social.
As frases originais do 般若 心経 HANNYA SHINGYŌ
são muito simples. Não obstante, seu significado é muito
profundo e necessita de extensos comentários. Os
ideogramas 観自在 菩薩 KANJIZAI BOSATSU não traduzem
somente o nome do Bodhisattva Avalokiteshvara, mas
encerram em si um significado próprio. 玄奘 GENJŌ dava
muitas outras possibilidades de tradução: 観世音 KANZEON,
ou 観 自 在 KANJIZAI. 観 KAN significa observar, olhar;
自在 JIZAI: a liberdade; 菩薩 BOSATSU. O Buda vivo, a
pessoa do 悟 SATORI. 観自在 菩薩 KANJIZAI BOSATSU: o
ser vivo, aquele que alcançou o 悟 SATORI e a verdadeira
liberdade.
Segundo a tradição de 鳩 摩 羅 什 KUMARAJU
(Kumārajīva), 観 世 音 KANZEON é homônimo de
観音 KANNON, aquele que observa o mundo dos sentidos, o
mundo fenomenal, e experimenta uma grande compaixão.
Na China e no Japão, 観自在 KANJIZAI só existe na
forma de 観音 KANNON, o Bodhisattva da Compaixão; o
culto que lhe dedicam está destinado a implorar e dar graças
por sua compaixão.
O conceito de 観 音 KANNON nunca foi conhecido
como tal na Índia. A idéia se desenvolveu na China, onde
muitos santuários foram dedicados à efígie do Bodhisattva;
mas foi no Japão onde se fez verdadeiramente popular, e
onde foi representado segundo múltiplas formas dependendo

67
das crenças, dos votos e dos poderes que lhe eram
atribuídos.
A 14 観 音 KANNON original é
千手観音 SENJŪ KANNON (Sahasra-bhuja), a 観音 KANNON
de mil braços que simbolizam os múltiplos poderes de sua
compaixão utilizados para socorrer à infinidade de formas de
existência.

Mas também se pode encontrar a


馬頭 観音 BATO KANNON (Hayagrīva), ou a 観音 KANNON
cabeça de cavalo, e a 竜 観 音 RYŪ KANNON, a
観 音 KANNON cabeça de dragão, que personificam os
poderes atribuídos respectivamente a estes animais.
Também se pode ver 十 一 面 観 音 JŪICHIMEN
KANNON (Ekadashmukha), a 観音 KANNON de onze caras,
ou a 観 音 KANNON da liberdade, e a
六 観音 ROKU KANNON, ou a 観音 KANNON de seis
corpos. Entretanto, a 観音 KANNON da água e da lua, ou a
観音 KANNON da rede sem dúvida se tratam da criação de
algum poeta.
Quando eu era jovem me dirigia aos santuários para
contemplar sua face e a encontrava muito bela nesta época.

Um dia, um grupo de turistas americanos ria


desmesuradamente enquanto contemplavam uma
観 音 KANNON de múltiplos braços. O jovem monge que
guiava a visita interpelou uma americana do grupo e lhe
perguntou:
“A senhora tem filhos?”
“Sim, tenho um.”

14
Da mesma forma em que não discutimos o “sexo dos anjos”, os
Bodhisattvas apresentam-se muitas vezes com atributos ora
femininos, ora masculinos, sendo transcendentes em matéria de
gênero. (N.T.)
68
“Gostaria que me dissesse qual é seu método de
educação.”
“Depende”, respondeu ela. “Algumas vezes devo ser
amável, outras vezes severa, algumas vezes tolerante, outras
vezes intransigente, depende.”
O jovem monge replicou então:
“Quando uma mãe educa, ainda que seja um filho
apenas, tem que usar diferentes métodos. Não estranhe
então que o Buda necessite de mil, ou dez mil braços para
salvar à infinidade de seres.”
A senhora ficou muito impressionada...

Cada uma das aparências tomadas por 観音 KANNON


tem um significado profundo. Cada uma dela personifica uma
categoria de seres que 観音 KANNON deve salvar e conduzir
até a Verdadeira Liberdade. Este é o sentido de
観自在 菩薩 KANJIZAI BOSATSU.

行 深 般若 波羅蜜多 時。

GYŌ JIN HANNYA HARAMITTA.

行 GYŌ: a prática, praticar. 行 GYŌ é difícil de traduzir.


Não tem o sentido de prática voluntária, traduzindo melhor a
idéia de prática total, profunda, nascida do corpo e do espírito,
naturalmente.
深 JIN significa profundo, intenso.
般 若 波 羅 蜜 多 HANNYA HARAMITTA é a
transliteração japonesa da expressão sânscrita prajñā-
pāramitā, a grande sabedoria surgida do 悟 SATORI.
波羅蜜多 HARAMITTA é a sabedoria que permite alcançar o
ideal mais elevado, a partir da realidade fenomenal.
Distinguem-se cinco tipos de práticas para se chegar a este
ideal:

69
自 慳 布 施 JI KEN FUSE ( 布 施 FUSE, a doação)
significando: abandonar os desejos pessoais, ter compaixão
pelos demais. É dar o melhor de si com espírito
無所得 MUSHOTOKU, altruísta e despojado de todo o apego
a si mesmo.
持 戒 JI KAI, é observar os preceitos, o respeito da
moral. Aqui também não há de se respeitar os preceitos para
proveito próprio, pelos benefícios que se possa conseguir
com isso, mas para ajudar os demais, com um espírito
無所得 MUSHOTOKU.
忍辱 NINNIKU: a paciência. Deve ser exercida com um
espírito 無所得 MUSHOTOKU. É difícil de praticar.
精進 SHŌ JIN: o esforço, a perseverança, a prática
assídua de 座 禅 ZAZEN. Praticar 座 禅 ZAZEN para os
demais e para o cosmos inteiro, e não para si mesmo, com
uma meta egoísta, nem para se mostrar.
禅定 ZEN JŌ: 座禅 ZAZEN, o estado de serenidade.
Esta atitude corresponde ao espírito de concentração que
engendra a verdadeira atitude 無所得 MUSHOTOKU.
A doação e a compaixão constituem a base e o
resultado último destas cinco práticas.
A sexta 15 prática é a última sabedoria, o poder de
conhecer todas as coisas expresso no termo 波羅 HARA: o
fundo do mar, os abismos, e aqui no sentido de penetração
profunda.
O seguinte conto japonês ironiza a maneira corrente de
aprender a vida, com uma grande falta de sabedoria:
“Um coelho, um cavalo e um elefante decidiram um dia
atravessar correndo um rio. O coelho chapinhou na superfície
da água. O cavalo nadou e o elefante caminhou pelo fundo
do rio.”

15
Apesar de anteriormente ter falado em cinco, há uma sexta,
般若波羅蜜, HANNYA HARAMITSU. (N.T.)

70
O elefante chegou em primeiro, o cavalo em segundo e
o coelho em terceiro. No 證 道 歌 SHŌDŌKA, de
永嘉大師 YOKA DAISHI 16 está escrito; “O grande elefante
não brinca no atalho dos coelhos pequenos”. Como praticar
般 若 HANNYA, a grande sabedoria? É um grande
公案 KŌAN. O 般若 心経 HANNYA SHINGYŌ dá a resposta.
時 JI: quando, no momento em que.
Quando 観 自 在 菩 薩 KANJIZAI BOSATSU, o
bodhisattva da verdadeira liberdade, pratica
般若 波羅蜜多 HANNYA HARAMITTA, a suprema sabedoria.

照 見 五薀 皆 空。
SHO KEN GO-UN KAI KŪ.

照 SHO significa brilhar, aclarar.


見 KEN traduz a idéia de observar em direção ao
interior de si mesmo, observação de si mesmo que deve
conduzir ao conhecimento de si.
照 見 SHO KEN significa assim a luz, o despertar
interior, abrir o olho do espírito.

GO-UN: Os panca-skandhās, em sânscrito, são os


termos que designam os cinco agregados fundamentais de
onde surgem todos os elementos físicos e mentais que
constituem o mundo fenomenal. A filosofia Budista distingue
cinco tipos de agregados:
O primeiro é 色 SHIKI (rūpa em sânscrito), termo
genérico que designa toda a forma material e abarca em seu
conceito todo o mundo visível e fenomenal.

16
Yoka Daishi –“Shodoka – O canto do Satori imediato”. Tradução e
comentários do Mestre Taisen Deshimaru Roshi, Ed. Pensamento,
São Paulo, 1997. pág. 249. (N.T)

71
O segundo skandha, 受 JU (vedanā em sânscrito) se
refere à percepção. O 漢字 KANJI 受 JU significa “receber”
através dos cinco órgãos dos sentidos. Percebemos assim as
cores, os sons, os cheiros, [os sabores] 17 , os contatos e
experimentamos sofrimento ou alegria. Esta percepção é
sempre compreendida segundo as três sensações: agradável,
desagradável e indiferente.
O 漢字 KANJI 想 SŌ (samjñā em sânscrito) designa a
ação da consciência, as concepções mentais e as idéias.
Através do segundo skandha, a percepção, e por meio da
ação da consciência, nasce 行 GYŌ, o quarto skandha
(samskāra em sânscrito) que é o skandha da volição. Depois
da percepção, das concepções mentais e das idéias, aparece
a vontade. Deseja-se agir. O 般若 心経 HANNYA SHINGYŌ
insiste amplamente sobre os elementos que estão na origem
da ação, e sem os quais não apareceria nenhum aspecto do
mundo fenomenal. Trata-se de 眼 耳 鼻 舌 身 意 GEN NI BI
ZE SHIN I.
眼 GEN: o órgão da visão; 耳 NI: o órgão auditivo;
鼻 BI: o órgão olfativo; 舌 ZE: o órgão gustativo; 身 SHIN: o
órgão tátil; 意 I: o instrumento da vontade, a consciência. A
discriminação, o juízo e o erro nascem deste cinco órgãos da
consciência.

Em um Sūtra se conta a seguinte história:


O rei 波 斯 匿 HASHINOKU (Prasenajit) fala com a
rainha:
“O mundo é vasto, mas amas a alguém mais do que a
mim?”
“Gostaria de dizer-te que te amo mais que a mim
mesma, mas na verdade creio que me amo mais”, respondeu
ela.
E o rei replicou:

17
Não consta do original. (N.T.)
72
“É verdade, eu também me considero diante de meus
olhos mais importante que qualquer pessoa.”
Suas palavras eram justas: cada homem ama mais a si
mesmo e cai no egoísmo e no narcisismo.
O que é o egoísmo? É um grande 公 案 KŌAN.
Abandonar o ego é muito difícil.
O quinto skandha, 識 SHIKI18 corresponde a vijñāna em
sânscrito.
Vi significa analisar e jñāna, compreender. Vijñāna ou
識 SHIKI significa a consciência do espírito. Em kanji é
意 識 I SHIKI, a consciência do espírito. O conceito de vijñāna
representa a totalidade da vida do espírito, enquanto que os
quatro skandhas restantes constituem assim a vida do corpo
e do espírito de todos os seres sensíveis assumidos pelo
mundo fenomenal e as forças do desejo. Formam o ego e
todos os aspectos do mundo fenomenal.
Sem embargo, o ser senciente não tem natureza
essencial que lhe seja própria. Tudo está submetido à
impermanência e à mudança perpétua. Os cinco agregados
não tem substância própria.
Isto é o que significa 五薀 皆 空 GO-UN KAI KŪ: os
cinco skandhās são 空 KŪ.
O ser senciente e temporal é sem substância. Existe e
pode ser observado com os olhos de nossa consciência, mas
sua condição está sempre em evolução. Sua substância é a
vacuidade.
Todos os juízos e todas as apreciações pessoais são
fruto do egoísmo. Nada existe em si nem por si. Tudo é
produto da interdependência. As interferências diversas criam
karma diversos e individualizados. Não há ego estável. A
existência é sem númeno.

18
Este 識 SHIKI (vijñāna) é em japonês homófono do primeiro
skandha, 色 SHIKI (rūpa). (N.T.)

73
Compreender isto é obter o 悟 SATORI. Durante o
座 禅 ZAZEN podemos realizá-lo. Como alcançar esta
compreensão, como obter esta sabedoria última, este poder
infinito, esta felicidade suprema?
A existência de todos os seres sencientes é 空 KŪ.
Tudo é 空 KŪ, sem númeno, tudo se modifica. E é em 空 KŪ,
no nada infinito, no abandono total do “eu”, onde se encontra
a mais alta realização do ser.

度一切苦厄。
DO IS-SAI KU YAKU.

度 DO significa ajudar, salvar. 一切 IS-SAI: todas as


coisas. 苦 KU: o sofrimento. 厄 YAKU: a desgraça.

Conta-se que na antiga Pérsia havia um rei chamado


Zemir. Coroado ainda muito jovem reuniu ao seu redor
numerosos eruditos procedentes de todos os rincões do
mundo. Desejava conhecer a história da humanidade e pediu
a estes eruditos que a escrevessem. Todos se puseram
imediatamente a trabalhar consenciosamente, tencionando
juntar o maior número de detalhes conhecidos. A tarefa não
durou menos que trinta anos. Ao cabo deste tempo, dirigiram-
se até o palácio com mais de quinhentos volumes
transportados por doze camelos.
O rei Zemir já havia então superado os cinqüenta anos.
“Já sou velho, não terei tempo de ler tudo isso antes de
minha morte. Façam-me uma edição abreviada, eu suplico”.
Os sábios empreenderam de novo a tarefa e
trabalharam mais dez anos. Depois voltaram ao palácio com
três camelos apenas. Mas o rei havia envelhecido muito
durante estes dez anos. Quase nem tinha a coragem de se
por a estudar, nem sequer a centena de volumes extraída da
versão original.
74
“Necessito de uma edição ainda mais abreviada”, disse
aos sábios.
Dez anos passaram novamente antes que voltassem a
ver o rei com um elefante carregado com dez obras. O rei -
septuagenário e meio cego - já não mais podia
verdadeiramente ler. Zemir pediu então uma edição de um só
volume. Os eruditos também haviam envelhecido. Por isso,
demoraram mais cinco anos para terminar seu trabalho.
Voltaram a ver o rei com um só volume, mas o rei estava
muito doente, agonizando.
“Devo morrer sem conhecer a história da
humanidade?”
O mais velho dos sábios, sentado em sua cabeceira,
sussurrou-lhe ao ouvido:
“Vou explicar em três palavras a história do homem: o
ser humano nasce, sofre e morre.”
Neste mesmo instante o rei expirou.

Buda alcançou o 悟 SATORI no mundo onde havia


sofrido. Os sofrimentos e as dificuldades são o avesso do
mundo da felicidade e das satisfações. As pessoas que
desejam a felicidade devem sofrer. Se soubermos nos
contentar com uma felicidade simples, o sofrimento
desaparece: isto é o 悟 SATORI. A história do ser humano é
a história do sofrimento: nasce, sofre e morre.
Mas graças a 度一切苦厄 DO IS-SAI KU YAKU existe
o meio para salvar todos os seres do sofrimento e da
desgraça. Todos os seres nascidos podem ser felizes e gozar
a vida eterna, se seu espírito é 無所得 MUSHOTOKU, se
está desprovido de toda a busca de proveito. Mas o homem
busca a felicidade de maneira errada. Precipita-se sem
cessar na satisfação de seus desejos, crendo obter assim a
felicidade. Não obstante, a felicidade não nasce do que se
recebe, mas do que se dá. Quanto mais se recebe, mais se
exige. Os desejos são insaciáveis, e a insatisfação, perpétua.
Desprender-se dos desejos, esquecer a busca da felicidade,

75
abandonar a via errônea, todas estas atitudes que nos
afastam do egoísmo e nos aproximam do espírito 無所得
MUSHOTOKU, aproximam-nos tanto mais da felicidade
autêntica. A doação total de si, o abandono do ego,
transporta o ser à felicidade suprema. Compreender isto é ter
a sabedoria 般若 心経 HANNYA SHINGYŌ.

76


苦諦 “KU TAI” – A Nobre Verdade sobre o Sofrimento.

77

空 空

色 即 是 空 SHIKI SOKU ZE KŪ
“Os Fenômenos são Vacuidade.”
空 即 是 色 KŪ SOKU ZE SHIKI
“A Vacuidade é Fenômeno.”
色 即 是 色 SHIKI SOKU ZE SHIKI
“Fenômenos são Fenômenos”
空 即 是 空 KŪ SOKU ZE KŪ.
“Vacuidade é Vacuidade.

78
OS FENÔMENOS SÃO VACUIDADE

A VACUIDADE É FENÔMENO

79
80
KŪ SHIKI SHA
FU FU RI
I
I SHI
SHIKI KŪ

Oh, Shariputra! (SHARISHI),


Os fenômenos (SHIKI) não (FU) são diferentes (I) da Vacuidade
(KŪ). A Vacuidade (KŪ) não (FU) é diferente (I) dos fenômenos
(SHIKI).

81
空 色 舎
不 不 利
異 異 子
色 空

82
KŪ SHIKI
SOKU SOKU
ZE ZE
SHIKI KŪ
Os fenômenos (SHIKI) são Vacuidade (KŪ).
A Vacuidade (KŪ) é fenômeno (SHIKI).

83
空 色
即 即
是 是
色 空
84
YAKU JU
BU SŌ
NYO GYŌ
ZE SHIKI
A percepção-sensação (JU), o pensamento (SŌ),
a atividade (GYŌ) e a consciência (SHIKI)
são igualmente (YAKU BU NYO ZE) [Vacuidade].

85
亦 受
復 想
如 行
是 識
86
COMENTÁRIOS

舎利子、色不異空、空不異色、
色即是空、空即是色、
受想行識、亦復如是。
SHARISHI, SHIKI FU I KŪ, KŪ FU I SHIKI,
SHIKI SOKU ZE KŪ, KŪ SOKU ZE SHIKI,
JU SŌ GYŌ SHIKI, YAKU BU NYO ZE.
A partir daqui começam as palavras de Buda dirigidas a
舎利子 SHARISHI. O Buda Shākyamuni ordenou dois mil e
quinhentos discípulos, entre os quais selecionou dez para
entregar a transmissão.
O primeiro é o mencionado no 般若 心経 HANNYA
SHINGYŌ, 舎利子 Sharishi ( Shāriputra em sânscrito). Era
famoso por sua grande inteligência.
O segundo é 目連 MOKUREN ou 目犍連 MOKKENREN
(Maudgalvalāyana em sânscrito), também chamado Kolita
( 拘栗 KURI). Nasceu de pai brahman na cidade de Kolita,
perto de Rājagriha (王舍城 ŌSHA JŌ). Sob a influência de
seu amigo Shāriputra fez-se discípulo de Buda Shākyamuni.
Maudgalvāyana era conhecido por sua habilidade com os
poderes mágicos.
O terceiro, 摩訶迦葉 MAKA KASHŌ (Mahākāshyapa
em sânscrito) nasceu igualmente de uma família de
brahmanes chamada Pippalayana e se tornou discípulo de
Buda três anos depois de obter o 悟 SATORI. Depois de
apenas oito dias de permanência ao lado de Buda,
converteu-se em um sábio, em um liberado. Entregou-se à

87
prática do 頭陀行 ZUDAGYŌ 19, da qual foi um dos principais
praticantes. Um dia em Benares, o Buda Shākiamuni, à
maneira de sermão, tomou uma flor em seus dedos e a fez
girar. Apenas Mahākāshyapa compreendeu o sentido deste
gesto e sorriu. Buda lhe entregou a flor e lhe transmitiu o
Dharma.
Foi ele quem primeiro recebeu o 嗣 法 SHIHŌ, a
transmissão. Antes de sua morte, ele a transmitiu por sua vez
a Ānanda, o qual obteve o mandato da ordem
頭 陀 行 ZUDAGYŌ. Sua profunda virtude lhe valeu ser
conhecido com o nome de “discípulo da pele de ouro”.
O quarto é 阿那律 ANARITSU ( Anurudha em páli,
Anirudha em sânscrito). Era primo de Buda. Sempre
adormecia durante os sermões de Buda, e por isso fez a
promessa de nunca mais dormir. Perdeu a visão em
conseqüência, mas adquiriu o olho maravilhoso que faz parte
dos seis poderes e que permite ver intuitivamente todas as
coisas.
Segundo a tradição birmanesa, Anirudha expôs o
Abhidharma-Pitaka 20 no primeiro concílio de Rājagriha
(王舍城 ŌSHA JŌ). Este concílio havia reunido, pouco menos
de um mês depois da morte de Buda, uns quinhentos
monges, de santidade reconhecida, com a tarefa de reunir e
transcrever as palavras de Buda. Desta forma, foram fixados
e transcritos os textos canônicos.

19
頭陀行 ZUDAGYŌ: Práticas ascéticas destinadas à purificação do
corpo e da consciência, e ao desapego à vestimenta, aos alimentos e
à uma moradia fixa.
20
Abhidharma-Pitaka ( 阿 毘 達 磨 ABIDATSUMA) Uma das três
divisões do cânone Budista. É formado por comentários e tratados
sobre a filosofia Budista e atribuídos aos primeiros discípulos de
Buda. Segundo o cânone Páli, este Pitaka (compilação) é composto
por sete obras principais.

88
O quinto é 須菩提 SHUBODAI (Subhūti em sânscrito).
Obteve o 悟 SATORI realizando 空 KŪ através do Sūtra do
Diamante.
O sexto é 富 楼 那 FURUNA ou Purna (Purna-
Maitrāyani-Putra). Filho de um professor de Shuddhodana
( 浄飯王 JOBONNO), rei de Kapilavastu ( 毘羅衛国 KABIRAE
KOKU), da mesma idade de Buda, nascido no mesmo mês.
Foi o pregador mais eloqüente de todos os discípulos.
O sétimo: 旃延 KASENNEN (Kātyāyana em sânscrito).
Também procedia de uma família de brahmanes do sul da
Índia. Foi um hábil orador que amava os debates.
O oitavo 優婆離 UPARI ou UBARI (Upāli em sânscrito).
Nasceu escravo. Fez-se o propagador da moral através dos
preceitos, que ele mesmo respeitava escrupulosamente.
O nono 羅 喉 羅 RAGORA ou RAUN (Rāhula em
sânscrito). Filho de Buda, nasceu antes que Shākyamuni
renunciasse ao mundo. Ele também respeitava
profundamente os preceitos.
O décimo: 阿難 ANAN (Ānanda em sânscrito). Também
era primo de Buda. Esteve a seu lado por mais de vinte anos,
ajudando-o como criado. Era de uma delicadeza e de uma
distinção notáveis. Sua beleza atraia todas as mulheres que
o viam. Esta foi a razão pela qual foi para Buda um dos
discípulos mais difíceis. Buda teve de admoestá-lo às vezes.
Mas, por outro lado, há que se reconhecer nele grandes
qualidades intelectuais e uma memória excelente. Assim
como seu condiscípulo 阿 那 律 ANARITSU, expôs seus
comentários sobre o Tripitaka ( 三 蔵 SANZO), durante o
primeiro concilio de Rājagriha (王舍城 ŌSHA JŌ).

Cada um dos discípulos de Buda tinha faculdades e


qualidades muito diferentes. Sua educação foi conduzida
segundo suas particularidades, que Buda descobriu e
desenvolveu. De qualquer maneira, Shāriputra (ou
舎 利 子 SHARISHI) a quem Buda se dirige no

89
般若 心経 HANNYA SHINGYŌ, era conhecido por sua
grande inteligência. É interessante saber este detalhe para
poder compreender a continuação do 般若 心経 HANNYA
SHINGYŌ. 舎利子 SHARISHI: Oh, Shāriputra...!
Nos Sūtra, as palavras sempre são dirigidas a um
discípulo em especial. Na maioria dos casos, a data e o lugar
em que se deu o ensinamento também estão indicados.
Freqüentemente se encontra também o termo 如是 NYO ZE
que significa: “Assim eu ouvi”21.

Fala-se a um discípulo em particular, depois são


citados os nomes dos discípulos presentes, o nome dos dez
principais discípulos e ainda mais nomes em seguida,
dependendo das circunstâncias. Nos sūtras amidistas, a
palavra é sempre dirigida especialmente a 舎利子 SHARISHI,
o primeiro discípulo de Buda.
Mas o 般若 心経 HANNYA SHINGYŌ é um Sūtra que
não tem introdução. Por isso não se conhece nem o lugar
nem a época em que este ensinamento foi transmitido. A
palavra é dirigida diretamente a 舎利子 SHARISHI22.

21
A forma canônica completa é 如 是 我 聞 NYOZEGABUN, que
corresponde ao sânscrito evam mayā shrutam, “assim eu ouvi”. Após
a morte de Buda, seus discípulos se reuniram e codificaram seus
ensinamentos. 阿難 ANAN (Ānanda), conhecido por sua prodigiosa
memória, recitava-os iniciando por esta fórmula. (N.T.)
22
O cânone tibetano conservou, em sua versão do Mahā Prajñā
Paramitā Hridaya Sūtra, (bCom Idam’das ma shes rab kyi pha tu phyin
p’ai snying po – Chom dän dä ma she rab kyi pa rol tu jin pai nying
po), aquilo que corresponderia a introdução:

“Assim eu escutei. Certa época, o Abençoado estava em


Rajagriha, na Montanha dos Abutres, em companhia de um grande
número de monges e Bodhisattvas. Naquela ocasião, o Abençoado
estava absorto na concentração dos inúmeros aspectos dos
fenômenos, denominada Profunda Iluminação.”
90
舎利 子 SHARISHI nasceu de uma maneira especial
que o predestinava a ser discípulo de Buda. Esta é a história:
“Próximo ao lugar onde nasceu Buda, e alguns anos
antes de seu nascimento, vivia um brahman que tinha uma
filha chamada Shāri, de uma grande beleza. Shāri é o nome
de um magnífico pássaro, uma espécie de fênix indiana de
mirada penetrante. Esta era a razão pela qual o brahman
escolheu este nome para sua filha Shāri, que também tinha
um olhar profundo e penetrante. Shāri se casou com um
jovem chamado Decha. Uma noite, Shāri teve um sonho
onde viu um homem jovem que a impressionou por seu
poder: estava vestido com um chapéu de aba larga e em sua
mão direita tinha um cetro de diamante 23. Quando brandia o
diamante, as montanhas se fendiam, desintegravam-se e
desapareciam. Várias vezes elevou seu cetro e seu gesto
provocou cada vez mais desmoronamentos. Continuou assim
seu jogo até que, alçando a marca de seu poder, fazendo-o
girar ao redor de sua cabeça, encontrou resistência em uma
modesta montanha. Shāri despertou neste momento. Nesta
mesma noite engravidou. Nove meses depois deu à luz um
menino que chamaria Shāriputra.
Desde a mais tenra idade, este menino demonstrou
possuir uma inteligência destacada. Já adolescente, seu
pensamento atingia tamanha profundidade que nem sequer
os adultos dos arredores conseguiam sustentar a
conversação com ele.
De vez em quando, saia a dar longos passeios pelas
altas montanhas dos arredores. Passeando assim um dia

Extraído de “Coração da Sabedoria” – Um comentário ao Sutra


Coração - Geshe Kelsang Gyatso - Ed. Tharpa Brasil, 2000. pág.161.
(N.T.)
23
Vajra em sânscrito, 金剛杵 KONGŌ-SHO em japonês. Este cetro
de diamante simboliza a natureza do Despertar (bodhi ou
菩提 BODAI), que corta todas as ilusões (klesha ou 煩悩 BONNŌ).

91
com seu amigo 目連 MOKUREN, perceberam no fundo do
vale ruídos de festa e alvoroço que os tiravam de sua
melancolia.
“Vamos nos divertir com eles”, decidiram de comum
acordo.
Beberam, riram e dançaram durante toda a noite. O dia
se levantava e depositava sua luz sobre os últimos atrasados,
bêbados sempre sedentos, jovens desavergonhados, sempre
insaciáveis em sua desmesura, jovens sem ocupação,
embrutecidos, desenganados. Então verificaram a
precariedade da vida, o redemoinho que arrasta as pessoas
de um lado para o outro em menos tempo que o necessário
para verificarmos que estamos atravessando o rio da vida,
em menos tempo que o necessário para compreender a
maneira de escapar ao naufrágio.
“Vamos buscar a eternidade, vamos nos saciar da
imortalidade”, disse Shāriputra, “vamos encontrar a fonte
inesgotável que alimenta todo este movimento. Com certeza
um grande mestre nos indicará o bom caminho”.
Ficaram a procurar um verdadeiro mestre e se fizeram
discípulos de um brahman chamado Sandyana. Pouco tempo
depois, como os dois eram muito inteligentes, o mestre lhes
disse:
“Vocês também podem ser mestres. Tenho duzentos e
cinqüenta discípulos. A partir de agora vocês se ocuparão de
sua educação.” Uma semana mais tarde, converteram-se nos
representantes do mestre.
Entretanto 舎利子 SHARISHI e 目連 MOKUREN não
estavam satisfeitos. Uma manhã, durante o passeio de
mendicância (托鉢 TAKUHATSU), cruzaram com um monge
muito jovem. Este se deteve frente a eles do outro lado do
caminho.
“Que serenidade e que nobreza! Que dignidade!”
Não podiam desviar o olhar do semblante tão puro e
agradável daquele jovem monge. 舎 利 子 SHARISHI e
目連 MOKUREN estavam absortos.

92
“Certamente é mais jovem do que nós, mas sua
atitude, entretanto, é tão perfeita! Quem o dotou de tão belas
qualidades? Que sábio o guia? Sem dúvida é um mestre!”
O jovem monge respondeu:
“Meu Mestre é Shākiamuni Buda”.
舎利子 SHARISHI e 目連 MOKUREN não esperaram
mais nada para dirigirem-se a este mestre. Shākiamuni Buda
dedicou toda sua atenção à sua educação e rapidamente
converteram-se em seus melhores discípulos.
舎 利 子 SHARISHI era as vezes enviado por Buda para
pregar em seu lugar.
O poeta Pengissa, depois de ter escutado um de seus
sermões, escreveu este poema:

“Grande inteligência, grande sabedoria,


muito profundas são as de Shāriputra.
Muito hábil é para diferenciar o Caminho
daquilo que não é.”

Seus sermões eram freqüentemente simples e curtos,


mas sempre de uma grande profundidade. Sua voz justa e
forte vibrava como a do pássaro Shāri. Suas palavras fluíam
como uma fonte viva. Doce como o mel, sua voz transmitia
alegria a todo o auditório. Sempre muito digno, Shāriputra era
muito respeitado e admirado. Foi um grande pregador, um
orador natural.”
O Bodhisattva 観自在 KANJIZAI, ou Avalokiteshvara é
uma figura simbólica, o símbolo do amor universal. É a
imagem de um atributo do Buda: sua compaixão. Pelo
contrário, 舎利子 SHARISHI existiu
realmente e foi o primeiro discípulo de Buda. No
般 若 心経 HANNYA SHINGYŌ, Buda, por meio de seu
representante Avalokiteshvara, dirigiu-se então a
舎利子 SHARISHI.
Por que esta conversação? Por que pôr em cena estas
duas figuras?

93
舎 利 子 SHARISHI é o símbolo da sabedoria, da
inteligência. Por isso, o 般若 心経 HANNYA SHINGYŌ é
essencialmente um discurso que a compaixão faz à razão.

舎利子、色不異空、空不異色、
色即是空、空即是色、
受想行識亦復如是。

SHARISHI, SHIKI FU I KŪ, KŪ FU I SHIKI,


SHIKI SOKU ZE KŪ, KŪ SOKU ZE SHIKI,
JU SŌ GYŌ SHIKI YAKU BU NYO ZE.

Estas frases formam o pilar central do


般若 心経 HANNYA SHINGYŌ, sua espinha dorsal. Depois
do nome de 舎 利 子 SHARISHI vêm quatro frases
compostas cada uma por quatro ideogramas:

色 SHIKI não é diferente de 空 KŪ: 色 不 異 空。


空 KŪ não é diferente de 色 SHIKI: 空 不 異 色。
色 SHIKI é 空 KŪ: 色 即 是 空。
空 KŪ é 色 SHIKI: 空 即 是 色。

94
E depois, 受 想 行 識 JU SŌ GYŌ SHIKI (este
識 SHIKI não é o mesmo que o anterior). Estes são os
五薀 GO-UN, os cinco agregados que tínhamos estudado
anteriormente. Cada um destes cinco agregados é por sua
vez 空 KŪ e 空 KŪ se transforma sucessivamente em cada
um destes agregados.
色 SHIKI significa: os fenômenos, o visível, o universo
material, a forma, o corporal. 空 KŪ é a Vacuidade, shūnya
em sânscrito, a existência absoluta, sem númeno, a não-
discriminação absoluta, a essência una e não
conceitualizável.
色 不 異 空 SHIKI FU I KŪ: 色 SHIKI não é diferente de
空 KŪ, os fenômenos não são diferentes da essência.
空 不 異 色 KŪ FU I SHIKI: 空 KŪ não é diferente de
色 SHIKI, a essência não é diferente dos fenômenos.
色 即 是 空 SHIKI SOKU ZE KŪ: 色 SHIKI é 空 KŪ, os
fenômenos em si são 空 KŪ, a Vacuidade.
空 即 是 色 KŪ SOKU ZE SHIKI: 空 KŪ em si é
色 SHIKI, a essência, a vacuidade mesma é fenômeno.

受 想 行 識 JU SŌ GYŌ SHIKI: como vimos


anteriormente e com algum detalhe, 色 受 想 行 識 SHIKI JU
SŌ GYŌ SHIKI são os cinco skandhās, os cinco agregados
fundamentais: as formas e fenômenos, as sensações e
percepções, as concepções mentais, a volição e a
consciência. 色 SHIKI, o fenômeno (e primeiro agregado) é
em si 空 KŪ, vacuidade; e 空 KŪ, a vacuidade, é em si,
色 SHIKI, fenômeno.
受 想 行 識 亦 復 如 是 JU SŌ GYŌ SHIKI YAKU BU
NYO ZE: assim é para 受 想 行 識 JU SŌ GYŌ SHIKI, os
quatro outros agregados. Os cinco agregados fundamentais
não são nada mais que 空 KŪ, Vacuidade. Assim, pode-se
dizer 受 不 異 空 JU FU I KŪ, e 空 不 異 受 KŪ FU I JU: as

95
percepções não são diferentes de 空 KŪ, 空 KU não é
diferente das percepções. 受 即 是 空 JU SOKU ZE KŪ,
空 即 是 受 KŪ SOKU ZE JU: as percepções em si são 空 KŪ,
Vacuidade e a Vacuidade em si é percepção. Podemos
assim estabelecer as mesmas equações para 想 SŌ, as
concepções mentais, para 行 GYŌ, a volição, e para
識 SHIKI, a consciência. Os cinco agregados são 空 KŪ, e
空 KŪ não é outra coisa que os cinco agregados. Esta
passagem é uma das mais importantes do
般若 心経 HANNYA SHINGYŌ: define a filosofia essencial
do Mahāyāna ( 大 乗 DAIJŌ), e muito particularmente do
Budismo Zen (禅宗 ZEN-SHŪ), onde é seu pilar central.

Em último lugar, os cinco agregados (dos quais


emanam, por aglomeração e interferências múltiplas, a
variedade infinita de estruturas do mundo fenomenal)
manifestam sua presença relativamente à rapidez do
movimento que lhes é intrínseco. Sua “materialidade” – sua
atualidade – está em função do movimento, e encerrada nas
coordenadas do tempo e do espaço. Assim, os cinco
agregados constituintes dos fenômenos estão providos de
um aspecto único: o da impermanência, o da mudança.
Devido ao movimento que carregam dentro de si, eles
mesmos são o tempo, portanto em perpétua evolução,
desprovidos de toda estabilidade e de toda a fixação, e sem
substância que lhes seja própria. Constituem nosso universo
visível, mas sem existência real.
受 想 行 識 JU SŌ GYŌ SHIKI: sensações parecidas
com borbulhas na água, aparecem e desaparecem, não
podem ser apanhadas.
想 SŌ: pensamento conceitual parecido com a bruma
de verão que emana da terra durante os dias de grande calor,
como uma miragem. Não existe, entretanto pode ser vista
como uma ligeira turbulência no ar ardente.

96
行 GYŌ: a vontade, parecida com uma cebola. Pode-se
descascá-la até a total desaparição do bulbo. Não se pode
agarrar sua essência, assim é a vontade.
識 SHIKI; consciência sem númeno, ilusória. Não se
pode pegar a consciência; o estado de consciência presente
já passou, o seguinte chega, depois passa, passa.

Corpo e espírito são 空 KŪ, existência sem númeno. As


coisas apenas existem enquanto categorias mediadoras
entre acontecimentos diversos e interferentes, em perpétuo
movimento, que por sua vez são posições intermediárias
entre outros pontos espaço temporais. Tudo é movimento
interdependente, estrutura cambiante constituída por
posições instáveis. Repito sem cessar:
色 即 是 空 SHIKI SOKU ZE KŪ, o fenômeno é 空 KŪ.

Outro dia, vi um desenho humorístico japonês em que


representavam a Monalisa, la Gioconda, em forma de
esqueleto. Essa mulher, exteriormente, parece bela.
Interiormente, não é mais do que um punhado de ossos.
Tudo é mudança, 無常 MUJŌ: impermanência.

Sempre é necessário considerar dois aspectos de um


fenômeno. Uma atitude assim reflete compaixão. 空 KŪ é a
totalidade, e inversamente, tudo é 空 KŪ, Vacuidade. O nada
inclui o infinito. Cada coisa é criada, composta, reunida por
um encadeamento de causas interdependentes e efeitos
interferentes. Todo fenômeno material é 色 SHIKI, e não tem
nenhuma substância, nenhum númeno. Não existe
isoladamente, senão criado por 縁 EN: o princípio da
interdependência. Tal é o sentido de 色 即 是 空 SHIKI SOKU
ZE KŪ. 色 SHIKI é 空 KŪ.
Mas considerar as coisas unicamente desta maneira é
uma compreensão errônea, já que existe também o segundo
termo: 空 即 是 色 KŪ SOKU ZE SHIKI.

97
Dizer: “色 SHIKI em si não é nada”, expressa uma
visão parcial, com tendência ao niilismo ontológico, atitude
perigosa porque é simplesmente destrutiva.
Segundo o sentido comum, o fenômeno não é outra
coisa senão fenômeno: 色 即 是 色 SHIKI SOKU ZE SHIKI, e
o nada é o nada: 空 即 是 空 KŪ SOKU ZE KŪ.
Este modo de apresentação tem também sua parcela
de verdade. Entretanto, 色 即 是 空 SHIKI SOKU ZE KŪ e
空 即 是 色 KŪ SOKU ZE SHIKI são seu aspecto
complementar, o pólo oposto e necessário.
Tal é a filosofia do Budismo.
O movimento segue sem cessar de um pólo ao outro;
inclusive com 空 KŪ, o nada, o pobre pode chegar a ser rico,
o negativo contém potencialmente o positivo e o atualiza
quando as condições requeridas se reúnem; o negativo se
aniquila assim liberando o positivo. Este mesmo processo se
estende a todas as formas e a todos os fenômenos do mundo
manifesto. A vida surge da morte, o nascimento nos conduz
inevitavelmente à morte. O belo se transforma em feio, o feio
em belo, o jovem contém potencialmente a velhice, e a
velhice contém a juventude. Todas as coisas são
potencialmente, todas as coisas têm um contrário, e este
mundo temporal só existe em relação a ele. Todas as coisas
podem se converter em seu contrário. O nada e o todo não
se rechaçam, e mais, só podem existir um em função do
outro, em unidade.
Se você vê 空 KŪ, vê também 色 SHIKI. Se vê 色 SHIKI,
vê igualmente 空 KŪ. Esta atitude constitui um feito
fundamental de sabedoria.
Todo o 般若 心経 HANNYA SHINGYŌ repousa sobre a
formulação desta lei. Compreender esta lei (não
intelectualmente, mas interiormente, conhecendo-a na
totalidade de nosso corpo-espírito), aplaina todos os
obstáculos, suprime as pseudo dificuldades. É possuir a
Grande Sabedoria que suprime qualquer oposição.

98
千利休 SEN NO RIKYŪ (1522-1591), o fundador da
Cerimônia do Chá (茶の湯 CHA NO YU), recebeu um dia um
ramo de flores muito bonitas 椿 TSUBAKI,24 que o Superior
do grande templo 大徳寺 DAITOKU-JI de 京都 KYŌTO lhe
havia enviado. Um jovem monge devia entregá-las.
Precisamente diante da sala de chá, tropeçou e deixou
cair no chão as delicadas flores. Todas as pétalas se
desprenderam miseravelmente, sobrando apenas os talos
despidos nas mãos do monge. Muito confuso, o jovem se
desculpou ante 千利休 SEN NO RIKYŪ, que respondeu:
“Entre na sala de chá”.
No 床の間 TOKONOMA 25 , 千利休 SEN NO RIKYŪ
depositou uma vasilha vazia. Introduziu os talos nela e
depois as
pétalas sobre o 畳 TATAMI (esteira de palha de arroz),
harmoniosamente ao redor da vasilha. O conjunto ficou muito
belo, muito natural e simples. 千利休 SEN NO RIKYŪ disse
então ao jovem monge:
“Estas flores trazidas por você eram 色 SHIKI:
色 即 是 色 SHIKI SOKU ZE SHIKI: o fenômeno é o
fenômeno. Ao cair, converteram-se em 空 KŪ, já não havia
mais flores. 色 即 是 空 SHIKI SOKU ZE KŪ: o fenômeno é
空 KŪ, nada. Com este nada, esta sala foi embelezada muito
mais que se tivéssemos colocado múltiplos artigos de
decoração. Apenas com algumas pétalas dispostas pelo
畳 TATAMI ao redor de uma vasilha sem flores no
床の間 TOKONOMA”.

24
No original, “TSUBA KIDES”.椿 TSUBAKI em japonês é camélia.
(N.T.)
25
床 の 間 TOKONOMA: nicho ou alcova nas casas japonesas
destinado à apresentação de arranjo floral (生花 IKEBANA), caligrafia
( 掛物 KAKEMONO), ou outras peças de arte. (N.T.)

99
Esta história reflete o espírito do 禅 ZEN do qual surgiu
o Caminho do Chá, 茶道 CHADŌ.

Uma famosa máxima japonesa ilustra este espírito da


união dos fenômenos e da essência. “Tenha cuidado com o
morto-vivo; nunca será um verdadeiro morto”. Atuando
livremente tal e qual deseje, depois da morte terá uma vida
maravilhosa. Ao morrer em si mesmo, verdadeiramente
abandonando totalmente o ego, aqui e agora, pode-se
encontrar a verdadeira vida e a suprema liberdade. É um
problema espiritual. Se abandonarmos tudo, não há nada que
perder ou que ganhar.

Ser 無所得 MUSHOTOKU, ter o espírito livre de todo o


apego (apego às sensações, aos sentimentos, aos
pensamentos e às opiniões, aos desejos e às vontades), sem
pensamento discriminatório, e permanecer na livre
vacuidade: então se pode receber todo o universo. A intuição
e sabedoria aparecem, a alegria pura e simples se manifesta.
Mas se nos estancamos no complexo labirinto de nosso
egocentrismo, se tergiversamos sem cessar, e assim
enchemos nosso espírito de dúvidas, de cismas, de desejos
e de opiniões contraditórias, nenhum destes maravilhosos
benefícios poderá se manifestar. Não se pode colocar vinho
em uma garrafa que já está cheia. Mas a possibilidade é total
se a garrafa está vazia.

Existe uma similaridade entre o tema do 般若


心経 HANNYA SHINGYŌ, fundado sobre a lei de 空 KŪ e
de 色 SHIKI, e a teoria dos 五位 GO-I (五 GO: cinco; 位 I:
etapas) cinco graus, os quais constituem os fundamentos da “lógica
禅 ZEN”. A teoria dos 五位 GO-I foi desenvolvida pelo Mestre 洞
山 TOZAN (807-869) e, mais profundamente ainda, por seu
discípulo 曹 山 SŌSAN. Esta filosofia está exposta em forma
poética em um compêndio intitulado 宝鏡 三昧 HŌKYŌ ZANMAI

100
26
, escrito pelo autor desta teoria, mestre 洞 山 TŌZAN. Este
compêndio de poemas é considerado como a flor desta filosofia
profunda, a qual não é uma análise racional nem um sistema
edificado – o qual seria contrário ao espírito 禅 ZEN – mas uma
aproximação intuitiva das relações que sustentam o mundo
fenomenal e o mundo do absoluto. A essência desta filosofia é
formulada em cinco enunciados, deduzidos uns dos outros:

I. 正中偏 SHŌ CHŪ HEN.


II. 偏中正 HEN CHŪ SHŌ.
III. 正中來 SHŌ CHŪ RAI.
IV. 兼中至 HEN CHŪ RAI.
V. 兼中到 HEN CHŪ TŌ.

正 SHŌ significa substância do cosmos, o Poder


Cósmico fundamental, o reto, o justo, a essência.
Corresponde a 空 KŪ. 偏 HEN designa os fenômenos, o
curvo, o oblíquo, o parcial. É 色 SHIKI.

26
宝鏡 三昧 HOKYŌ ZAN MAI: Ver nota nº 2.
101
Podem ser estabelecidas assim as seguintes
similaridades:

偏 HEN 中 CHŪ 正 SHŌ


O oblíquo, a diferença entra em o reto, a igualdade.
色 SHIKI. 即 是 SOKU ZE 空 KŪ
Os fenômenos são em si a essência.
正 SHŌ 中 CHŪ 偏 HEN
O reto, a igualdade entra em o oblíquo, a diferença.
空 KŪ 即 是 SOKU ZE 色 SHIKI.
A essência é em si o fenômeno.
兼 HEN 中 CHŪ 至 RAI
O oblíquo, a diferença entra em (é) o oblíquo, a diferença.
色 SHIKI. 即 是 SOKU ZE 色 SHIKI.
Os fenômenos são os fenômenos.
正 SHŌ 中 CHŪ 來 RAI
O reto, a igualdade entra em (é) o reto, a igualdade.
空 KŪ 即 是 SOKU ZE 空 KŪ
A essência é a essência.

兼 HEN 中 CHŪ 到 TŌ

Este quinto princípio resume, sintetiza e supera os


quatro anteriores.

Os cinco skandhās (as sensações, as percepções, as


concepções mentais, a vontade e a consciência) são 空 KŪ.
空 KŪ não é diferente deles. Estes cinco agregados e sua
aglomeração representam o corpo e o espírito, o ego.

102
Em 正 中 偏 SHŌ CHU HEN, ou em
空 即 是 色 KŪ SOKU ZE SHIKI, 空 KŪ se transforma no ego.
O Poder Cósmico fundamental entra no ego, nascido ele
mesmo do cosmos através da fecundação. Isto é 空 即 是 色
KU SOKU ZE SHIKI ou 正中偏 SHŌ CHŪ HEN: Deus entra
no ego.
O ego se transforma em 空 KŪ, volta ao Poder
Cósmico fundamental. Quando se morre, o ego retorna ao
cosmos. 色 SHIKI retorna a 空 KŪ, 偏 HEN entra em 正 SHŌ.
Isto é 色 即 是 空 SHIKI SOKU ZE KŪ ou
偏 中 正 HEN CHŪ SHŌ. A maioria dos homens crê
(principalmente no Ocidente) que a diferença entre os
fenômenos e o absoluto é total e irredutível. Por um lado
estão os fenômenos, nada mais que os fenômenos, o mundo
material, movido mecanicamente e diretamente observável.
Por outro lado existe a crença num mundo ideal, absoluto,
totalmente transcendente a este mundo fenomenal. Os
Orientais nunca fizeram tais discriminações, que são
consideradas por eles como um contra senso, como
absurdos totais. Eles sabem que:
色 即 是 空 SHIKI SOKU ZE KŪ ,
偏中正 HEN CHŪ SHŌ, os fenômenos são a essência.
空 即 是 色 KŪ SOKU ZE SHIKI,
正中偏 SHŌ CHŪ HEN, 空 KŪ em si é fenômeno.
兼中到 HEN CHŪ TŌ: 空 KŪ e 色 SHIKI estão em
unidade total, o cosmos e o ego se interpenetram.

Mestre 道 元 DŌGEN 27 , no segundo capítulo do


正 法 眼 蔵 SHŌBŌGENZŌ,
摩訶 般若 波羅蜜多 MAKA HANNYA HARAMITSU, comenta
a realização da Grande Sabedoria de Buda, e a expressa
assim:
27
Mestre 道元 DŌGEN introduziu o 曹洞宗 SŌTŌ-SHU no Japão no
século XIII.

103
“Quando o Bodhisattva Avalokiteshvara (o Bodhisattva
da Compaixão) teve a experiência e compreendeu a verdade
através da Prajñā-Pāramitā, deu-se conta de que as
existências são formadas pelos cinco skandha:
色 受 想 行 識 SHIKI JU SŌ GYŌ SHIKI (matéria-sensação,
percepção, pensamento, vontade e consciência).
Quando os cinco skandhās são observados através de
Prajñā se vê 空 KŪ. A origem de cada um destes skandhās é
Prajñā.
Quando se compreende isto, pode-se compreender
que:

色 即 是 空 SHIKI SOKU ZE KŪ - 空 即 是 色 KŪ SOKU ZE SHIKI


e
色 即 是 色 SHIKI SOKU ZE SHIKI - 空 即 是 空 KŪ SOKU ZE KŪ.

“Prajñā Pāramitā pode ser compreendida quando se


compreende a importância do desapego em relação aos doze
ou dezoito elementos geradores da consciência egóica.”
Estes dezoito elementos estão repartidos em três domínios:
O domínio dos seis órgãos dos sentidos (ou seis
raízes): os olhos, os ouvidos, o nariz, a língua e o paladar, o
corpo (enquanto órgão do tato) e a parte do sistema nervoso
que condiciona a aparição dos desejos e das formações
mentais28.
O domínio dos seus objetos dos sentidos: as formas e
as cores, os sons, os odores, as texturas (que determinam o
tato), e os pensamentos e as conceituações29.

28
六根 ROKUKON (sad indriyāni): 眼 GEN, 耳 NI, 鼻 BI, 舌 ZE,
身 SHIN e 意 I, (caksuh, shrotra, ghrāna, jihvā, kāya e manāmsi,
respectivamente). (N.T.)

29
六境 ROKKYŌ (sad visayāh): 色 SHIKI, 声 SHŌ, 香 KŌ, 味 MI,
触 SOKU e 法 HŌ (rūpa, shabda, gandha, rasa, sprastavya e dharmah,
respectivamente) (N.T.)

104
O domínio das seis consciências subjetivas, domínio
que nasce da união dos precedentes: consciências visual,
auditiva, olfativa, gustativa, tátil e consciência voluntária30.
A grande sabedoria da Prajñā Pāramitā pode nascer
igualmente, como no caso do Buda Shākiamuni, da
observação e da compreensão das Quatro Nobres Verdades
四諦 SHI TAI (catur-vidham satyam), que constituem a Via
privilegiada da realização. Estas Quatro Nobres Verdades
são:
1. A Nobre Verdade sobre o sofrimento, 苦 KU (duhka): o
mundo está cheio de sofrimentos – nascimento,
velhice, enfermidade, morte. Amar é sofrimento,
odiar é sofrimento.

2. 集 JŪ (ou SHŪ) (samudaya), a Nobre Verdade


sobre a origem do sofrimento: a raiz do sofrimento
são os desejos intensos com os quais se vem ao
mundo, desejos fundados sobre uma imperiosa
necessidade de viver.

3. 滅 METSU (nirodha), a Nobre Verdade sobre a


supressão do sofrimento: quando o homem logra
desenraizar suas paixões e consegue libertar-se de
todos os seus apegos, põe fim a seus sofrimentos.

4. A Nobre Verdade sobre o Caminho, 道 DŌ (mārga),


que conduz à supressão do sofrimento. Esta Via é o
Caminho Óctuplo (八正道 HASSHŌDŌ): visão justa,
pensamento justo, palavra justa, conduta justa,

30
六識 ROKUSHIKI (sad vijñānāni): 眼識 GENSHIKI, 耳識 NISHIKI,
鼻識 BISHIKI, 舌識 ZESSHIKI, 身識 SHINSHIKI e 意識 ISHIKI (caksur-
vijñāna, shrota-vijñāna, ghrāna-vijñāna, jihvā-vijñāna, kāya-vijñāna e
mano-vijñāna, respectivamente). (N.T.)

105
modo de vida justo, esforço justo, atenção justa e
concentração justa31.

Por outro lado, há seis maneiras


(六波羅蜜多 ROPPAHARAMITSU) de alcançar o despertar
e de obter Prajñā Pāramitā, a grande sabedoria:

1. A doação, o oferenda. [布施 FUSE (dāna)]


2. O respeito aos preceitos. [持戒 JI KAI (shīla)]
3. A perseverança, a paciência. [ 忍 辱 NINNIKU
(kshānti)]
4. O esforço, a assiduidade. [精進 SHŌ JIN (vīrya)]
5. A contemplação. [禅定 ZEN JŌ (dhyāna)]
6. A sabedoria. [智慧 CHI-E (prajñā)]

“Prajñā Pāramitā inclui toda a sabedoria dos três


mundos: do mundo passado, do mundo presente e do mundo
futuro. Engendra as três formas de compreensão: temporal,
espiritual e física, fundadas sobre a terra, a água e o fogo, o
ar e o espírito, e as quatro formas de compreensão das
ações da vida cotidiana: caminhar, permanecer de pé, sentar-
se e deitar-se. Cada uma destas Prajñā Pāramitā é
atualizada no eterno presente, no 悟 SATORI supremo e
perfeito.”
Este texto do Mestre 道元 DŌGEN é muito célebre.
興道沢木 KŌDŌ SAWAKI freqüentemente o lia. 道元 DŌGEN
conclui assim:

31
正見 SHŌ KEN (samyag drshti), 正思惟 SHŌ SHI YUI (samyag
samkalpa), 正語 SHŌ GO (samyag vāc), 正業 SHŌ GYŌ (samyak
karmānta), 正命 SHŌ MYŌ (samyag ājīva), 正精進 SHŌ SHŌ JIN
(samiag vyāyāma) 正念 SHŌ NEN (samiak smrti) e 正定 SHŌ JŌ
(samyak samādhi) respectivamente. (N.T.)

106
“Devemos saber que receber, ler e cantar todos os
sūtra juntos, tendo um conhecimento pleno e total deles, é
preservar Prajñā Pāramitā e o Dharma. Meu falecido Mestre
如浄 NYOJŌ leu um dia este poema:

“O corpo inteiro é um sino32 suspenso no vazio.


Pouco importa a direção do vento
- norte, sul, leste ou oeste –
o sino emite sempre o som de Prajñā:
tilim, tilim, tilim.”

Tal é o som de Prajñā na transmissão de geração em


geração de Budas e de Patriarcas, no nosso corpo e no dos
demais, no norte, no sul, no leste e no oeste.”

O pensamento de 道元 DŌGEN é 非思量 HISHIRYŌ,


infinito, mais além de todo o pensamento.
Shākiamuni Buda disse um dia a seu discípulo Subhuti:
“Todos os seres sencientes deveriam proteger e
venerar Prajñā Pāramitā da mesma maneira que fizeram
todos os Budas”.
A última frase deste capítulo do
正 法 眼 蔵 SHŌBŌGENZŌ diz: “Todos os Budas não são
outra coisa que Prajñā Pāramitā, totalidade do Dharma
búdico. E este Dharma é 空 KŪ, sem nascimento nem
extinção, sem pureza nem impureza, sem aumento nem
diminuição.
A manifestação de Prajñā Pāramitā é a manifestação
de Buda. Se você busca a verdade, aprenderá que honrar a
Prajñā Pāramitā é encontrar o Buda, e que não se pode dizer
que se encontrou o Buda a menos que o tenha servido”.

32
風鈴 FURIN: 風 FU: vento; 鈴 RIN: campainha, guizo. Este tipo de
guizo está suspenso nas portas dos templos, tilintando ao menor
sopro do vento.

107
Existe outra escritura que apresenta outro aspecto do
摩訶 般若 波羅蜜多 MAKA HANNYA HARAMITTA: trata-se
do 理 趣 經 RISHUKYŌ, também chamado de
般 若 理 趣 經 HANNYA RISHUKYŌ. É o sūtra do Prajñā
Pāramitā em cento e cinqüenta shlokah33, que descreve a
verdade de Prajñā Pāramitā ou da sabedoria perfeita de
que falava o Buda Vairoccana ( 大 日 如 来 DAINICHI
NYORAI) em benefício de Vajrasattva
(金剛薩埵 KONGŌSATTA). O sūtra começa com um convite
ao amor: “Voar sobre a flecha do amor, assim é também o
espírito puro do Bodhisattva”. Na continuação, voltarei a
estes comentários.

33
Shlokah: métrica de versificação dos textos sânscritos, composta
usualmente de duas linhas de dezesseis sílabas. (N.T.)

108
無 ”MU”.

109
NEM NASCIMENTO, NEM MORTE

NEM CRESCIMENTO, NEM DIMINUIÇÃO

110
ZE
SHO SHA
HŌ RI
KŪ SHI

111
Oh, Shariputra! (SHARISHI). Todas (SHO) as existências (HŌ)
são (ZE) Vacuidade (KŪ).


諸 舎
法 利
空 子

112
FU FU FU
ZŌ KU SHŌ
FU FU FU
GEN JŌ METSU

113
Não (FU) há nascimento (SHŌ), nem (FU) morte (METSU).
Não (FU) há impureza (KU), nem pureza (JŌ).
Não (FU) há crescimento (ZŌ), nem (FU) diminuição (GEN).

不 不 不
増 垢 生
不 不 不
減 浄 滅
114
SŌ MU ZE
GYŌ SHIKI KO
SHIKI MU KŪ
JU CHŪ

Da mesma forma (ZE KO), na Vacuidade (KŪ CHŪ),


115
não (MU) há corpo-matéria-forma (SHIKI), nem (MU)
percepção-sensação (JU), nem pensamento (SŌ), nem atividade
(GYŌ) e nem há consciência (SHIKI).

想 無 是
行 色 故
識 無 空
受 中

116
ZES MU
SHIN GEN
I NI
BI
Não (MU) há olhos (GEN), nem ouvidos (NI),
117
nem nariz (BI), nem língua (ZE), nem corpo (SHIN)
e nem mente (I).

舌 無
身 眼
意 耳

118
MI MU
SOKU SHIKI
HŌ SHŌ

Não (MU) há cor-forma (SHIKI), nem som (SHŌ),

119
nem cheiro (KŌ),nem sabor (MI), nem texturas (SOKU),
nem pensamento (HŌ).

味 無
触 色
法 声

120
I NAI MU
SHIKI SHI GEN
KAI MU KAI

Não (MU) há consciência visual (GEN KAI) e assim por diante


(NAI SHI) nem consciência auditiva, nem consciência olfativa,
nem consciência gustativa, nem consciência tátil, nem
consciência da consciência]. Não (MU) há consciências
sensoriais (I SHIKI KAI).

121
意 乃 無
識 至 眼
界 無 界

122
MU MU
MU MU
MYŌ MYŌ
JIN YAKU
123
Não (MU) há ignorância (MU MYŌ) e (YAKU) nem (MU) extinção
(JIN) da ignorância (MU MYŌ).

無 無
無 無
明 明
尽 亦
124
YAKU NAI
MU SHI
RŌ MU
SHI RŌ
JIN SHI
125
E assim sucessivamente (NAI SHI) até não (MU) há velhice
(RŌ) e morte (SHI), e (YAKU) nem (MU) extinção (JIN) da velhice
(RŌ) e morte (SHI).

亦 乃
無 至
老 無
死 老
尽 死
126
MU MU
CHI KU
YAKU SHŪ
MU METSU
TOKU DŌ
Não (MU) há sofrimento (KU), nem causa de sofrimento (SHŪ),
nem libertação do sofrimento (METSU), nem caminho (DŌ)
que conduza à liberação do sofrimento.
127
Não (MU) há sabedoria (CHI) e (YAKU) não (MU) há
o que obter (TOKU).

無 無
知 苦
亦 集
無 滅
得 道
128
MU
KO SHO I
TOKU
129
A única coisa que há é: Nada que obter.


故所以

130
131
COMENTÁRIOS

舎利子、是諸法空相、
不生不滅、不垢不浄、不増不減、
是故空中無色無受想行識、
無眼耳鼻舌身意、
無色声香味触法、
無眼界乃至無意識界、
無無明亦無無明尽、
乃至無老死亦無老死尽、
無苦集滅道。無知亦無得、
以無所得故。

SHARISHI, ZE SHO HŌ KŪ SŌ,


FU SHŌ FU METSU, FU KU FU JŌ, FU ZŌ FU GEN,
ZE KO KŪ CHŪ MU SHIKI MU JU SŌ GYŌ SHIKI,
MU GEN NI BI ZES-SHIN I,
MU SHIKI SHŌ KŌ MI SOKU HŌ,
MU GEN KAI NAI SHI MU I SHIKI KAI,
MU MUMYŌ YAKU MU MUMYŌ JIN,
NAI SHI MU RŌSHI YAKU MU RŌSHI JIN,

132
MU KU SHŪ METSU DŌ. MU CHI YAKU MU TOKU,
I MUSHOTOKU KO.

Toda esta parte se compõe de uma só frase, formada


por uma série de negações que tentam dar uma idéia da
noção de 空 KŪ. De certa forma, Avalokiteshvara, o grande
Bodhisattva da Compaixão, parece dizer a 舎利子 SHARISHI,
a inteligência encarnada: “Podemos encontrar a verdadeira
eternidade, 舎利子 SHARISHI. Vou ensiná-la. Você é forte,
inteligente, e possui um grande saber, mas isto não é
suficiente.”

舎利子、是諸法空相、
不生不滅、不垢不浄、不増不減、

SHARISHI, ZE SHO HŌ KŪ SŌ,


FU SHŌ FU METSU, FU KU FU JŌ, FU ZŌ FU GEN,
“Oh, Shāriputra! Todas as existências são Vacuidade.
Não há nascimento nem morte. Não há pureza nem impureza.
Não há crescimento nem diminuição.”

No começo tudo é 空 KŪ, toda a existência é 空 KŪ. No


Budismo encontra-se sempre o termo 人空 NINKŪ: não ego,
sem ātman, sem substância, existência sem númeno, e o
termo 法空 HŌKKŪ: todas as existências do cosmos são
sem númeno e sem substância, 空 KŪ.
No budismo Hīnayāna, encontra-se freqüentemente a
noção de 無我 MUGA: não ego; o pensamento, o corpo e o
espírito são 空 KŪ.

133
No Mahāyanā, 法 空 HŌKKŪ designa todas as
existências, 空 KŪ. 空 KŪ se manifesta através da lei de
interdependência e do principio de impermanência. Tudo é
não nascido, sem começo nem fim, 不生不滅 FU SHŌ FU
METSU, tudo é eternamente.
O que é 空 KŪ? 色 即 是 空 SHIKI SOKU ZE KŪ.
空 即 是 色 KŪ SOKU ZE SHIKI. Fenômeno e vacuidade não
são diferentes. Mas de nada serve compreender isso
intelectualmente. O importante é sentir a experiência, vivê-la
com o corpo e o espírito, realizar plenamente a absoluta
verdade. Esta experiência é 座禅 ZAZEN: a atitude do corpo
e do espírito justa.
諸 法 SHO-HŌ: 諸 SHO: tudo, todos. 法 HŌ: tem
numerosos significados. É o Dharma ensinado pelo Buda, a
lei do cosmos; mas também as existências infinitas dos
dharmas. Aqui, aplicado junto a 諸 SHO, tudo, todos, trata-se
do segundo significado.
Todos os fenômenos são formados pelos cinco
agregados, os 五薀 GO-UN. Todos os fenômenos (色 SHIKI)
são 空相 KŪSŌ ( 相 SŌ; o aspecto): aspectos de 空 KŪ.
Todas as existências são 不 生 FU SHŌ ( 不 FU:
negação, não. 生 SHŌ: nascido, produzido) não nascidas,
não produzidas; 不 滅 FU METSU: não extintas, não
desintegradas. 不 垢 FU KU: não são manchadas;
不 浄 FU JŌ: não puras. 不 増 FU ZŌ: não crescem; 不 減 FU
GEN: não diminuem, não involucionam.

134
是故空中無色無受想行識、
無眼耳鼻舌身意、

ZE KO KŪ CHŪ MU SHIKI MU JU SŌ GYŌ SHIKI,


MU GEN NI BI ZE SHIN I,

是 故 ZE KO: pois; 空 中 KŪ CHŪ: na Vacuidade;


無 色 MU SHIKI: 無 MU: negação. 色 SHIKI: visível, material.
無 眼 耳鼻 舌 身 意 MU GEN NI BI ZE SHIN I: 無 MU está
subentendido para cada um dos dez termos 34.

無 眼 MU GEN, 無 耳 MU NI, 無 鼻 MU BI, etc...;


眼 耳鼻 舌 身 意 GEN NI BI ZE SHIN I são os seis órgãos
dos sentidos (os olhos, os ouvidos, o nariz, a língua, o tecido
epidérmico e o sistema nervoso).
Todas as existências são 空 KŪ: 諸法 因 縁 SHO-HŌ
INNEN.
因縁 INNEN: 因 IN, a causa; 縁 EN; a interdependência.
Todas as existências são a manifestação da lei da
interdependência.
Qual é a essência da vida, do ego, da consciência, do
espírito?

34
Os quatro skandhās restantes, depois de 色 SHIKI, ou seja,
受 想 行 識 JU SŌ GYŌ SHIKI, mais os seis órgãos dos sentidos,
眼 耳鼻 舌 身 意 GEN NI BI ZE SHIN I. (N.T.)

135
A ciência não tem conseguido responder até agora.
Onde situar nossa essência? Em que parte do corpo? Ou
fora do corpo?
Não se pode encontrar uma verdadeira raiz da
substância.
Finalmente, chegamos à energia cósmica. Quando esta
se encontra em um estado potencial, pode-se dizer que se
tem uma aproximação objetiva da natureza de 空 KŪ; mas
para compreender a natureza desta energia potencial, é
necessária a dimensão da experiência, subjetiva, vivida com
o corpo e o espírito. Esta experiência é inefável,
inexpressável. Se esta experiência se situa mais além da
consciência, como poderia ser traduzida em conceitos, em
palavras estreitas? Seu conhecimento requer uma ruptura
dos limites do ego.
Qual é a origem da luz?
Em que se baseia o Poder Cósmico fundamental?
O que sustenta esta manifestação?
A doutrina de Nāgārjuna (龍樹 RYŪJU), estipula a lei
de interdependência, 縁起 ENGI, dizendo que esta é a trama
da construção e da organização do universo. Em sânscrito se
diz Pratītya-samutpāda, a lei de coordenação sem substância
própria, sem númeno, 空 KŪ.
A interação é a lei de manifestação do Poder Cósmico
fundamental; dito de outra maneira, o potencial cósmico
fundamental, ao manifestar-se, se dispersa e materializa esta
energia cósmica; esta se divide e trabalha segundo uma
ordem regida pela lei de interdependência. Somente esta lei
dá à energia sua aparência fenomenal. 空 KŪ não tem como
único significado vacuidade; seu sentido é muito mais
profundo; as vezes se traduz por “a totalidade do cosmos, o
todo”. O 漢字 KANJI 空 KŪ significa as vezes “vazio”, as
vezes “céu”. É também o círculo que inclui tudo. Nāgārjuna
龍樹 RYŪJU, a partir da noção de 縁起 ENGI, extrai a de
無 自性 MU JI SHŌ, sendo uma corolário da outra.

136
無 自 性 MU JI SHŌ: a existência sem existência
própria, sem númeno, 空 KŪ. A doutrina de Nāgārjuna
(龍樹 RYŪJU) é definida como a doutrina do”空 KŪ ativo”, por
oposição à doutrina do “空 KŪ passivo”, ou 但空 TANKŪ,
ensinada por alguns ramos do Budismo, sobretudo pelo
Budismo Sthāvira 35 , cuja doutrina, depois de uma análise
formal de todas as formas de existência, desemboca
simplesmente na não substancialidade das existências;
inversamente, a doutrina de 不 但空 FU TANKŪ, ou “空 KŪ
ativo”, expressa o Caminho do Meio 36 . Este não se
fundamenta unicamente sobre o aspecto negativo de 空 KŪ,
mas realiza que a verdadeira natureza de 空 KŪ não é nem
existência, nem não existência, mas as duas ao mesmo
tempo.
A noção de 空 KŪ é tão vasta que, segundo a aplicação
que se tenha querido dar, em função da tendência doutrinária
dos numerosos ramos do Budismo, conduziu a doutrinas
muito variadas. Fala-se assim em 析空 SHAKUKŪ, a “não
substancialidade analítica”, estudo que procede , como seu
nome indica, da análise e que se opõe a 體 空 TAIKŪ,
aproximação interior procedente da meditação que deve
conduzir a realização da “não substancialidade de toda forma
de existência”. Nāgārjuna (龍樹 RYŪJU) em uma de suas
obras 37 , empreendeu o estudo dos múltiplos aspectos de

35
Sthāvira: ou Sthavira-vāda uma das vinte escolas do Hīnayāna. (上
座部 JŌZA BU em japonês). Também conhecida como Theravāda
(N.T.)
36
Caminho do Meio, 中道 CHŪDŌ, madhyama-pratipad. (N.T.)
37
O grande mestre Nāgārjuna (龍樹 RYŪJU) parece ter composto um
dos primeiros comentários do Prajñāparamitā, o extenso
Mahāprajñāparamitāshastra (大智度論 DAICHIDO-RON), preservado
apenas na tradição chinesa. Na tradição tibetana, as seis principais
obras de Nāgārjuna (龍樹 RYŪJU), que explicam o ensinamento de
137
空 KŪ, tal e como estavam expostos nos textos doutrinários:
mais de vinte aspectos são analisados.
O mestre 永嘉大師 YOKA DAISHI, mais tarde, em sua
obra, o 證道歌 SHŌDŌKA, 38 fará menção a isto e falará de
“a porta dos vinte 空 KŪ”.
Seja como for, a análise de 空 KŪ pode levar mesmo à
negação de 空 KŪ: 空 KŪ não é 空 KŪ, e esta negação tem
em certa maneira mais valor do que uma idéia dogmática de
空 KŪ, que pode conduzir aos extravios do niilismo.
Esta é a razão pela qual o 般 若 心 経 HANNYA
SHINGYŌ nos coloca em guarda e diz que devemos
encontrar em 空 KŪ o infinito e o eterno. Portanto, não há por
que criar conceitos, não há por que sustentar nenhuma
opinião. Somente praticar até a extinção absoluta do ego,
extinção que conduz à absorção no infinito e no eterno. Isto é
alcançar o nirvāna.

A lei de 縁起 ENGI enquanto lei de interdependência


produtora de fenômenos, pode ser formulada em quatro
princípios muito simples:
shūnyatā, são consideradas conjuntamente um dos mais importantes
comentários do Prajñāparamitā. Estas são: Mūlamadhyamakakārikā
( 中 論 頌 CHŪRON-JU), o Yuktisāstika, o Vaidalyasūtra, o
Shūnyatāsaptati, o Vigrahavyāvartanī, e também o Vyavahāsiddhi
(não mais existente) ou o Ratnāvalī. Destes seis, o
Mūlamadhyamakakārikā ( 中 論 頌 CHŪRON-JU), ou Versos
Fundamentais do Caminho do Meio, é o mais conhecido e o mais
fundamental. (N.T.)
38
”As vinte portas de 空 KŪ não têm existência.
A natureza única do Tathāgatha é originalmente idêntica para
todas as existências.”

Yoka Daishi –“Shodoka – O canto do Satori imediato”.


Tradução e comentários do Mestre Taisen Deshimaru Roshi,
Ed. Pensamento, São Paulo, 1997, 2ª Edição. pág. 198. (N.T)

138
- Quando isto existe, aquilo existe.
- Quando isto aparece, aquilo aparece.
- Quando isto não existe, aquilo não existe.
- Quando isto desaparece, aquilo desaparece.
Tudo existe apenas por inter-relação. Todo fenômeno
está ligado a um antecedente (ou a vários antecedentes). A
lei de 縁 起 ENGI é uma negação da criação
espontânea. A filosofia Ocidental sempre tentou, de forma
analítica, aproximar-se da natureza do absoluto, peneirar a
natureza da essência. Sempre quis atribuir à essência a
consciência de númeno. A ciência atual continua este
caminho através da experimentação objetiva.

Tudo é 無常 MUJŌ: a perpétua mudança, sem começo


nem fim.
Nossa vida não começa com nosso nascimento, e não
termina com nossa morte. Somos o fruto do karma que se
encarna e se desencarna, que vem do cosmos e volta a ele,
como as borbulhas que se formam na água, que explodem e
que voltam a ser absorvidas. Devemos compreender a vida
eterna.
Deus ou Buda, o Poder Cósmico Fundamental, 空 KŪ...,
tantos termos que nosso espírito interpreta a seu modo. No
Cristianismo, o conceito de Deus é o pilar central de toda a
teologia, mas como acontece com outros conceitos, cada um
o interpreta à sua maneira. A imaginação atua num papel
fundamental. No Budismo é completamente diferente. As
faculdades conceituais e de imaginação são consideradas
como 煩悩 BONNŌ, uma ilusão. Ademais, Deus é substituído
pela noção central de 空 KŪ, noção das mais indeterminadas,
que não pode converter-se em objeto de nenhuma
especulação.

Eis aqui uma história japonesa extraída das crônicas do


曹洞 禅 SŌTŌ ZEN. Esta história põe em relevo o grande

139
valor do ensinamento do Mestre 良寛 RYŌKAN 39 , assim
como a profunda sabedoria que manifestava com os seres
sofredores e seus ofuscantes desejos:
Um dia, um homem velho visitou o Mestre
良寛 RYŌKAN e lhe disse:
“Gostaria de lhe pedir que faça um 祈禱 KITŌ40 para
mim. Muitos de meus parentes morreram e eu mesmo não
tardarei a desaparecer. Rogo que faça um 祈禱 KITŌ para
que eu possa viver muito tempo.”
“Fazer um 祈禱 KITŌ para obter uma vida longa não é
difícil. Diga-me, que idade você tem?”, perguntou
良寛 RYŌKAN.
“Oitenta anos.”
“Mas você é ainda muito jovem! Um provérbio japonês
diz que até os quarenta ou cinqüenta anos, ainda se é um
bebê e que entre os sessenta e os oitenta, deve-se amar.
Até que idade você quer viver?”
“Conformo-me em viver até os cem anos.”
“Apenas cem anos! Seu desejo não é especialmente
grande. Até os cem anos! Então, só lhe restam mais vinte
anos de vida! Não é muito tempo, vinte anos! Meus
祈 禱 KITŌ são conhecidos porque permitem às pessoas
realizar seus desejos. Você morrerá portanto aos cem anos,
exatamente.”
O ancião sentiu medo e expressou seu desejo de viver
até os cento e cinqüenta anos.

39
Mestre 良 寛 RYŌKAN (1757-1831). Monge da escola
曹洞 宗 SŌTŌ SHU. Entrou para a ordem com a idade de dezoito
anos. É muito conhecido por suas obras poéticas e por suas
caligrafias, assim como por sua natureza excêntrica.
40
祈禱 KITŌ: prece às divindades para obter uma meta precisa. Os
祈禱 KITŌ não são muito praticados no 禅 ZEN, mas são hábito
corrente no Budismo esotérico.

140
“Vejamos”, replicou 良 寛 RYŌKAN, “você já tem
oitenta anos. Já viveu então metade de sua vida.... Escalar
uma montanha exige muito tempo na ida, mas na volta é bem
rápido. A partir de agora, seus últimos setenta anos vão
passar como um sonho!”
“Espere, espere! Dê-me então trezentos anos!”
“Você sabia que o grou vive até os mil anos e as
tartarugas até os dez mil?”, replicou 良寛 RYŌKAN. “Estes
animais podem viver todo este tempo e você, que é um ser
humano, só deseja viver trezentos anos!”
“Tudo isto me deixa perplexo!”, disse o ancião. “Até
quantos anos de vida você pode me dar?”.
“Percebo assim que você não quer morrer. Saiba ao
menos que sua atitude é a mais egoísta de todas!”.
“Eu sei”, respondeu o ancião.
“Então, é melhor fazer um 祈禱 KITŌ para não morrer!”
“É possível?”
“Sim, mas é muito, muito caro e requer muito tempo.”
“Tudo bem”, disse o homem, “prefiro este 祈禱 KITŌ!”
良寛 RYŌKAN disse-lhe então:
“Hoje vamos começar recitando o 般若 心経 HANNYA
SHINGYŌ apenas, depois você terá que vir todos os dias
fazer 座禅 ZAZEN no templo. E eu lhe darei sermões.”
Desta maneira, o Mestre 良寛 RYŌKAN conduziu o
ancião à fé justa e exata. 不生不滅 FU SHŌ FU METSU: nem
nascido, nem morto, a vida eterna.

Nossa vida não começa com nosso nascimento, não


termina com nossa morte. Comunicando-nos com o Poder
Cósmico fundamental durante o 座 禅 ZAZEN, podemos
receber a vida eterna. “Aqui e agora” nossa vida é muito
importante.
Uma respiração, uma expiração, uma inspiração,
concentrar-se... Cada momento é único. O instante deve ser
um ponto forte. Unido aos demais pontos de nossa vida, esta
será uma linha reta e profunda perpetuando-se na eternidade.

141
不生不滅 FU SHŌ FU METSU: sem nascimento nem
morte.
不 垢 不 浄 FU KU FU JŌ: nem manchado, nem
imaculado. Tal é a natureza de 空 KŪ e de todas as
existências. A maioria das pessoas busca a pureza e rechaça
as manchas. Originalmente, sem embargo, todos os
fenômenos, todas as existências do cosmos não são puras
nem impuras. Sua essência é idêntica. Mas devido à suas
ações e pensamentos, o homem as vai maculando e cria tais
discriminações. A terra, as montanhas, os rios, os bosques,
os oceanos... Nada é puro nem manchado. É a natureza.
Quando o espírito do homem “se purificar”, ou seja, quando
alcançar a condição mais além de qualquer conceito de puro
e de impuro, os fenômenos se lhe aparecerão em sua
verdadeira natureza, tal qual são.
É verdade que a civilização materialista produz um
grande numero de manchas. A contaminação é o símbolo da
crise atual da civilização. Mas é o mesmo problema.
Originalmente, tudo depende do espírito do homem.
A Terra Pura 41 não existe num país longínquo, nem
mais além da morte. Se nossa consciência é justa e nossa
palavra exata, nosso comportamento reto, se as três ações

41
Terra Pura: 浄土宗 JŌDOSHŪ. A Terra Pura é uma vertente do
Budismo que oferece a hipótese de fugir ao ciclo do renascimento
samsárico através da fé num Buda deificado. Nos séculos I e II d. C.,
a especulação Mahāyāna desenvolveu uma cosmologia que era muito
mais extensa do que qualquer outro tema discutido nos primeiros
tempos do Budismo. Os Mahāyanistas propunham a existência de
mundos sem fim, cada um dos quais albergava Budas e Bodhisattvas.
Estes “territórios de Buda” são reinos paradisíacos e cada um deles é
presidido por um Buda, sendo o mais célebre o paraíso ocidental
conhecido por Sukhavati (極楽 GOKURAKU), a terra “feliz” ou “pura”.
Esta é a morada do Buda Amitabha 阿 弥 陀 仏 AMIDA-BUTSU ou
無量光仏 MURYŌKŌBUTSU. Trata-se de um paraíso onde “não há
dores físicas nem mentais, cheio de deuses e de homens que nunca
renascem exceto como Bodhisattvas.”(N.T.)

142
da palavra, do corpo e do espírito são justas, tudo o que
existe ao redor fica também justo.
Esta perfeição da atitude é praticada durante o
座禅 ZAZEN: a boca permanece em silêncio, (o silêncio é
melhor que a eloqüência), o corpo se encontra na atitude
justa, e o espírito em sua condição mais autêntica,
submergindo suas raízes na consciência original. Esta é a
razão pela qual os asiáticos veneram tanto a postura de Buda
sentado em 座禅 ZAZEN. Desde pronto, eu respeito
profundamente a Cristo crucificado. Este é o símbolo mais
puro da doação de si, do sacrifício de si para a salvação do
homem. Cristo pertence às mais altas esferas da religião. O
abandono do ego é o ato mais importante, e o mais difícil
também, de toda nossa vida. Durante o 座禅 ZAZEN pode-se
abandonar o ego inconscientemente, naturalmente,
automaticamente, pode-se esquecer de si mesmo, totalmente,
e entrar em união profunda com Deus ou com o Poder
Cósmico fundamental. Nosso karma evolui sem cessar, e o
karma daqui e de agora, criado por nossas ações, influencia
de maneira dominante o futuro.
Com a boca em sua dignidade silenciosa, o corpo em
sua postura mais nobre, durante o 座 禅 ZAZEN nossa
consciência se absorve na consciência suprema, universal e
eterna, a consciência 非思量 HISHIRYŌ.
No 普 観 座 禅 儀 FUKANZAZENGI, 道 元 DŌGEN
escreve:

“Pensar sem pensar, não pensar pensando.


“Pensar desde o fundo do não pensamento, isto é
非思量 HISHIRYŌ, mais além do pensamento,
o segredo do 禅 ZEN”.

Como pensar desde o fundo do não pensamento?


Como não pensar desde o fundo do pensamento? Este é o
segredo do 座禅 ZAZEN.
不思量 FUSHIRYŌ: não pensar.
143
思量 SHIRYŌ: o pensamento.
非 思 量 HISHIRYŌ: mais além do pensamento, o
pensamento infinito.
不垢不浄 FU KU FU JŌ: nem puro nem impuro.
A percepção e a consciência dão às sensações e às
impressões, às opiniões e às idéias infinitos matizes sempre
em mudança. As formas e os fenômenos às vezes se
revestem de pureza e às vezes estão manchados e
recobertos de fealdade. Não se pode decidir nada de maneira
categórica. A boca das pessoas é freqüentemente
repugnante. Mas para os seres que se amam, isto é belo e
sedutor. Nosso ego decide, elege, impulsionado por seus
desejos.
O bem e o mal, a desgraça e a felicidade não estão em
dualidade. Não são estados fixos e em oposição, mas
períodos, movimentos cíclicos sobre uma espiral em que o
homem evolui.
A felicidade se transforma em desgraça, a desgraça em
felicidade segundo a posição do homem, segundo sua
percepção momentânea.
Como ter a consciência justa, aqui e agora, a
consciência que influenciará o karma futuro? Bom karma,
mau karma.... a lei da causalidade rege o karma.
Aqui e agora, como pensar e como agir para ir no bom
caminho e influenciar justamente o futuro? Como criar a vida
eterna?
A consciência 非 思 量 HISHIRYŌ, infinita, do
座禅 ZAZEN possui o poder penetrante e a sabedoria sem
limite de engendrar o karma humano mais elevado.
不垢不浄 FU KU FU JŌ.
Prazer e aversão, atração e repulsão são o resultado
da atividade mental que emite juízos e apreciações em
função do karma passado. O homem e a civilização a que
pertence refletem-se mutuamente como os produtos que
ambos criam. Se a humanidade cria uma civilização cada vez
mais complicada e sofisticada, esta criará por sua vez seres

144
cada vez mais complicados. Este é o caso de nossa
civilização atual, na qual o homem perdeu o senso da
apreensão direta e intuitiva e na qual, em contrapartida, os
valores já não são criados pelo bom senso mas sim pela
cortante frieza da análise. A atividade mental é um grande
perigo; em seu aspecto negativo pode construir sistemas de
uma lógica fria e implacável, e atrofiar assim o sentido inato
do justo. A atividade mental julga e aprecia segundo critérios
do indivíduo.
Não obstante, nosso espírito original é sem pureza e
sem mancha, como o cosmos infinito que é tal e qual deve
ser segundo o autêntico Dharma, segundo a Lei. Ao nascer,
o bebê ignora as noções de pureza e de mácula. Depois, a
consciência “desperta”. Mas desperta seguindo os trilhos que
foram forjados pelos pais, o meio ambiente, o entorno, a
educação. Os trilhos conduzem a um lugar determinado e
desta maneira se perde a dimensão do infinito.
O karma ignora o resultado, o efeito e a retribuição, e o
resultado ignora a causa. Onde está a falta? Onde está o
mérito? Somente a consciência humana decide se o vento
deixa cair uma flor e a empurra até o altar de Buda ou de
Deus, este vento ignora os méritos desta ação. Da mesma
forma que a flor... Tudo provém da ordem Cósmica. Não há
milagres. Só o espírito do homem cria os milagres.
Apegar-se ou fugir, buscar sempre algo ou escapar de
algo é origem de sofrimento. A maioria das pessoas ignora
que os fenômenos carecem de realidade e se apegam a eles,
esquecendo que tudo é 無常 MUJŌ e 空 KŪ.
Por isto sofrem. Esta consciência errônea é a raiz do
sofrimento e da ignorância.
Uma de minhas discípulas queria sempre que seu
corpo, que todo seu ser estivessem puros.... puros... E de
manhã até a noite se lavava continuamente. Sempre
carregava consigo uma bacia, que se converteu em sua
companheira inseparável. Eu acabei muito surpreendido e lhe
disse que sua atitude não era muito normal. Com o tempo,
esta mulher ficou verdadeiramente louca...

145
不増不減 FU ZŌ FU GEN.
不 FU: negação. 不増不減 FU ZŌ FU GEN: não cresce
nem diminui. Não há dualidade: sem começo nem fim, sem
mancha nem pureza. Nada aumenta, nada diminui. A água
se evapora e se converte em nuvem, depois volta a cair em
forma de chuva. O ser que morre subtrai uma pessoa à
humanidade, mas devolve aos quatro elementos os
componentes que o formavam. No cosmos nada aumenta
nem diminui. Obtendo-se algo, perde-se algo. Tal é a fé
perfeita, o equilíbrio cósmico. Tal é a filosofia 禅 ZEN.
Mestre 道元 DŌGEN dizia:
“Não se apegue aos benefícios nem às honras. Se
ganhar dinheiro, se receber honras, desejará que estes
aumentem durante sua vida. Será prisioneiro do conforto e da
fama”.

Um dia, o Buda Shākiamuni estava em meditação em


uma pequena ermida. Estes pensamentos surgiram em seu
espírito: “A boa, a verdadeira política de um governante
consiste em não matar e em não ser morto, em não
conquistar e não ser conquistado, em não provocar a
desgraça nem sofrê-la. Pode ou não a política seguir a
Ordem Cósmica?”
Assim pensava quando de repente apareceu um
demônio diante dele. Este demônio lhe disse ao ouvido:
“Buda, era você quem deveria fazer política. Se você
se dedicasse a isso seguramente chegaria a governar o país
inteiro. Ninguém será morto nem matará. Ninguém
conquistará nem será conquistado. Ninguém sofrerá nem
será origem de dor.”
Buda Shākiamuni disse então ao demônio:
“Demônio, por que me diz que devo fazer política?”
O demônio respondeu:
“Buda, você tem grandes poderes mágicos, você pode
conseguir qualquer coisa que se proponha. Se quisesse
transformar todo o Himalaia em ouro, conseguiria.”

146
Buda então compôs um poema:

“Ainda que o Himalaia se convertesse em ouro,


ainda que esta quantidade de ouro fosse duplicada,
todo este ouro não poderia satisfazer sequer a uma só
pessoa”.

Buda Shākiamuni tinha o espírito totalmente


無所得 MUSHOTOKU, não buscava nada, nenhuma meta,
nenhum proveito, não desejava fama nem ouro. Os desejos
do homem são ilimitados. Satisfazer todos estes desejos
significa perturbar os demais homens. As fronteiras se
movem, avançam e retrocedem, mas a terra continua a
mesma.
Não vivemos sozinhos, nem para nós mesmos.
Vivemos graças ao Poder Cósmico fundamental.
Compreender intimamente que o “eu” e todas as demais
existências são uma unidade, é ter o 悟 SATORI. Eu e os
demais temos as mesmas raízes. Todas as existências e eu
somos idênticos. Por isso, os verdadeiros seres do
悟 SATORI esquecem o ego, inconscientemente,
naturalmente, automaticamente e todas as coisas, todo o
universo se transforma em ego, o ego infinito e cósmico.
Durante o 座禅 ZAZEN, nosso cérebro frontal repousa,
como durante os sonhos. Mas o cérebro interno, central,
desperta e se ativa intensamente. Nosso poder vital se
fortalece. A postura do 座禅 ZAZEN é Deus ou Buda,
座禅 ZAZEN é 悟 SATORI. Compreender isto através do
corpo e não através do intelecto é o grande 悟 SATORI.

147
舎利子、是諸法空相、
不生不滅、不垢不浄、不増不減、
SHARISHI, ZE SHO HŌ KŪ SŌ,
FU SHŌ FU METSU, FU KU FU JŌ, FU ZŌ FU GEN,

“Shāriputra, o aspecto de 空 KŪ de todas as


existências não nasceu nem se extinguirá, não é puro nem
impuro, não aumenta nem diminui”.

是故空中無色無受想行識、
無眼耳鼻舌身意、
無色声香味触法、
無眼界乃至無意識界、
ZE KO KŪ CHŪ MU SHIKI MU JU SŌ GYŌ SHIKI,
MU GEN NI BI ZES-SHI I,
MU SHIKI SHŌ KŌ MI SOKU HŌ,
MU GEN KAI NAI SHI MU I SHIKI KAI,
Por isto, em 空 KŪ, não há nem 色 SHIKI, nem 受 JU,
[nem 想 SŌ] 42 , nem 行 GYŌ, nem 識 SHIKI (os cinco
42
Não consta no original. (N.T.)

148
agregados). Não há nem olhos, nem ouvidos, nem nariz, nem
língua, nem corpo, nem faculdades mentais. Não há nem cor,
nem som, nem cheiro, nem sabor, nem tato, nem
pensamento.
Em 空 KŪ não existe o domínio dos sentidos.

無眼界乃至無意識界 MU GEN KAI NAI SHI MU I SHIKI KAI.


Em 空 KŪ não existe o mundo das seis consciências
sensoriais.
Não há nem nascimento, nem extinção, nem pureza,
nem impureza, nem aumento nem diminuição.
Por isso Shāriputra, em 空 KŪ, não há cinco skandhās
(色 SHIKI, 受 JU, 想 SŌ, 行 GYŌ e 識 SHIKI), nem seis
órgãos dos sentidos (眼 GEN, 耳 NI, 鼻 BI, 舌 ZE, 身 SHIN e
意 I), nem os seis objetos da percepção (色 SHIKI, 声 SHŌ,
香 KŌ, 味 MI, 触 SOKU, 法 HŌ). Tão pouco há seis
consciências, domínios de percepção: visual (眼界 GEN KAI),
auditiva ( 耳 界 NI KAI), olfativa ( 鼻 界 BI KAI), gustativa
( 舌 界 ZE KAI), tátil ( 身 界 SHIN KAI) e consciência da
consciência (意 識 界 I SHIKI KAI).
Em 空 KŪ não há fim dos doze 因 緣 INNEN:
因 IN: causa. 緣 EN: interdependência.
Em 空 KŪ não há Quatro Nobres Verdades, não há
nem compreensão nem proveito.
Tudo é 無所得 MUSHOTOKU.
O Bodhisattva, graças a sabedoria
般 若 波 羅 蜜 多 HANNYA HARAMITTA, se separa de
顚倒薨想 TEN DŌ MU SŌ (as ilusões e os erros) e alcança o
verdadeiro Nirvāna. Todos os patriarcas, igualmente, graças
a esta completa sabedoria, obtém
得 阿 耨 多羅 三 藐 三 菩提 A NOKU TARA SAN
MYAKU SAN BODAI, o verdadeiro 悟 SATORI, o mais
elevado.

149
Em 般若 波羅蜜多 HANNYA HARAMITTA se encontra
o grande mantra:

羯諦、 羯諦、 GYATEI, GYATEI,


波羅羯諦、 HARAGYATEI,
波羅僧羯諦、 HARASŌGYATEI,
菩提薩婆訶。 BŌJISOWAKA.
Através da consciência 非 思 量 HISHIRYŌ do
座禅 ZAZEN podemos compreender que não há objeto dos
sentidos, que não há nada que ver, nada que ouvir, nada que
cheirar, nada que saborear, nada que tocar nem nada que
pensar. Quando eu falo durante o 座禅 ZAZEN não faz
mal não prestar atenção ao que eu digo. É melhor ouvir
naturalmente, sem escutar. Às vezes pergunto a meus
discípulos o que acharam do 口宣 KUSEN que acabaram de
ouvir. Freqüentemente me respondem que não se lembram.
Mas se eu volto a repeti-lo, então se recordam totalmente. O
口宣 KUSEN não é um ensinamento do mesmo tipo que uma
conferência universitária. Durante o 座禅 ZAZEN, o cérebro
frontal está em um estado de repouso. Mas a informação
recebida através do cérebro central fica impressa e
permanece, indelével, registrada para sempre.
Tive um encontro com Karl Jaspers 43 , alguns meses
antes de sua morte, na Universidade de Heidelberg.
Explicou-me que a filosofia européia se encontrava num beco
sem saída, que era incapaz de resolver suas contradições
intrínsecas e que por isso estava destinada a uma eterna
revisão, já que não possuía o meio de superar a dialética
evolutiva, o meio que a fizesse acessar ao princípio imutável.
Este meio é o não pensamento. Jaspers me disse que a
43
Karl Jaspers (1883-1969): psicopatologista, filósofo e teólogo
alemão, fundou o moderno existencialismo, concentrando-se na
análise das reações humanas às situações extremas. Suas obras
principais são “Man and the Modern Age” (1931) e “Philosophy” (1932).
(N.T.)

150
filosofia ocidental deve compreender o “nicht denken”, o não
pensamento. Eu lhe respondi que o não pensamento era uma
premissa do 禅 ZEN, que em certa medida constituía o que o
jardim da infância é para a vida humana; que este não
pensamento do 禅 ZEN era o ponto de partida que permite
acessar a verdade mais elevada; que era a condição
primordial e fundamental sem a qual nenhuma busca
verdadeira podia triunfar.
Jaspers, ao final de sua vida, estudou o Budismo e nele
encontrou o alívio que lhe havia faltado durante toda sua
vida: a resposta a suas perguntas metafísicas.
Quando lhe falei do texto de 道元 DŌGEN intitulado “O
SER E O TEMPO”44, mostrou-se maravilhado e lamentou não
tê-lo conhecido antes.

Todas as filosofias têm tentado dar uma definição da


noção de substância. Platão falava do mundo das Idéias.
Demócrito, do átomo. Apesar de que todos falassem com
uma intuição clara sobre as múltiplas possibilidades, esta
intuição se fixa e se solidifica ao erigir um sistema lógico e
fechado, posto que dualista e exclusivo, já que não aceita a
simultaneidade dos contrários.
A ciência está na mesma situação. Chega um momento
em que surge necessariamente o beco sem saída criado pelo
dilema dos contrários, o qual enfrenta nosso entendimento,
fundado na razão: nosso cérebro tem a faculdade de emitir
todo o tipo de formulações que superam o entendimento,
como o infinito e o eterno, o não espaço e o não tempo, etc.
Sem embargo, a compreensão de tais formulações não será
nunca possível. A formulação se produz a nível abstrato, por
um órgão cerebral que pode conceber muitas coisas, mas
que não pode compreendê-las todas, caso se considere que
a autêntica compreensão é a vivida interiormente, a que foi

44
有時 UJI (SER-TEMPO) é um capítulo do 正法眼蔵 SHŌBŌGENZŌ
do mestre 道元 DŌGEN.

151
experimentada e conhecida. Por isso, pode-se dizer que a
ciência (nossa busca fundamental) e a filosofia são como a
flecha de Zenon de Eléia 45 , que se aproxima do alvo sem
acertá-lo nunca, já que lhe falta a compreensão da
experiência vivida, ou seja, a dimensão da participação no
infinito (ou no eterno). Esta compreensão se situa além das
vias ordinárias da consciência, na via do conhecimento
investida pela infinitude do tempo e pela onipresença do
espaço ilimitado. Esta via é a via do fim da charlatanice, a via
do silêncio profundo e insondável, a via do não pensamento e
do pensamento absoluto, 非思量 HISHIRYŌ, mais além de
qualquer forma de pensamento.
Ao não saber observar, o homem se perdeu em um vão
palavrório impedido e rechaçado sem cessar por seus limites.
Palavras vãs já que fracassaram em sua missão: a de
encontrar a verdade imutável que era o objeto de sua busca.
A simples observação de uma chama pode conduzir à
identificação das leis e grandes princípios que regem o
cosmos e que se resumem nas noções de:
- A impermanência. A mudança perpétua de todas as
coisas, portanto a não entidade, a existência sem substância
própria.
- A chama morre no momento em que nasce. A chama
que arde neste instante não tem nada a ver com a que ardia
no instante precedente. A chama é a representação vívida da
não substancialidade.
- A interdependência: interdependência dos fenômenos
que são eles mesmos forças determinantes, cujas múltiplas
combinações engendram miríades de fenômenos. Por
exemplo, para que exista uma chama são requeridos alguns
elementos:
- A matéria, como a madeira.
- O ar, o oxigênio.
45
Filósofo grego, (495? - 430 a.C.) formulou numerosos paradoxos
que desafiavam as idéias de pluralismo e a existência do movimento e
da mudança.

152
- A faísca surgida ao esfregar um sílex,
por exemplo.

Estes três elementos são fenômenos em si, que


quando se encontram, engendram um novo fenômeno. E se
convertem em forças determinantes, tanto que são tributários
uns dos outros. Se faltar um destes elementos, a mágica não
poderá acontecer. Todos os fenômenos, sejam quais forem,
são impermanentes, estão destinados a uma perpétua
mudança de constituição e de estado.
Todos os fenômenos são dependentes uns dos outros.
Portanto, a conclusão que devemos tirar deste princípio
é que o único valor imutável é o potencial contido em cada
fenômeno e que contém todos os fenômenos. Dito de outra
forma, o potencial é a única coisa permanente e
independente de cada forma manifestada (já que esta é
impermanente e fruto da interdependência). É permanente já
que tem sido desde toda a eternidade em tudo o que é e em
tudo o que não é. É independente, já que é a causa e a
condição de tudo o que existe. É o motor que produz e faz
progredir as coisas manifestadas. O potencial existe em cada
forma-força e em todas as relações que unem estas formas-
força, desde o infinitamente pequeno até o infinitamente
grande.
Em toda a manifestação permanece a plenitude da
potencialidade a qual contém por sua vez a totalidade da
manifestação. Esta potencialidade é o Poder Cósmico
Fundamental, é 空 KŪ, o Nada, o não manifesto e o Grande
Tudo, o manifesto. Neste sentido, 空 KŪ contém o não
manifesto e a manifestação em potencial, em sua perpétua
evolução (da mesma maneira que a semente é o não
manifesto da árvore e contém em potencial a árvore).
Todas as existências são 空 KŪ, sem númeno. Tudo
existe sem existir. Tudo existe somente em mudança e pela
mudança, já que o que sustenta a mudança é o potencial.
Quando chega nossa morte, nosso cosmos subjetivo,
nossa visão subjetiva se acaba, mas nada se perde.
153
Nosso corpo e nosso espírito se perpetuam sofrendo
grandes mudanças. O karma do corpo e do espírito, depois
de nossa morte, continua, “se altera”. Alguns elementos
voltam a terra, outros ao espaço.
No transcorrer de um 問答 MONDO, alguém me pediu
que desse uma explicação da alma. Este é um grande
problema. O problema de todos os tempos, de todas as
filosofias e de todas as religiões, o problema do corpo e do
espírito. O Mestre 道元 DŌGEN, para falar da união do
corpo e do espírito, dizia:
神人一如 SHIN JIN ICHI NYO.
神 人 SHIN JIN: corpo espírito. 一 如 ICHI NYO: uma
mesma coisa, parecido, unidade.
A psicofisiologia, a psicossomática, a neurobiologia
tendem hoje a restituir a unidade corpo-espírito.

Há aqui uma anedota do mestre 臨 済 RINZAI


一休 IKKYŪ, que viveu há aproximadamente quatrocentos
anos. Naquela época, ele ainda era um jovem monge que
vivia em um templo 禅 ZEN, no qual também estava seu
irmão. Um dia, seu irmão deixou cair um bule de chá no chão,
que se partiu em vários pedaços. Este bule era de grande
valor, já que havia sido oferecido pelo Imperador. O superior
do templo o advertiu severamente, causando-lhe tanta pena
que o fez chorar. Mas 一休 IKKYŪ lhe disse para não se
preocupar:
“Possuo uma grande sabedoria. Vou encontrar a
solução deste problema.”
Recolheu os cacos de porcelana e os colocou na
manga de seu 衣 KOLOMO. Foi então descansar no jardim
do templo, esperando que o Mestre passasse por ali. Ao vê-
lo, foi até ele e lhe propôs um 問答 MONDO:
“Mestre, os homens nascidos neste mundo morrem ou
não morrem?”
“Sem dúvida nenhuma morrem”, respondeu o Mestre.
“até mesmo Buda morreu”.
154
“Compreendo”, disse 一 休 IKKYŪ, “mas as demais
existências, os minerais e todos os objetos estão também
destinados a morrer?”
“Certamente”, respondeu o Mestre. “Tudo que tenha
uma forma deve necessariamente desaparecer quando
chegue o momento.”
“Compreendo”, disse 一休 IKKYŪ. “Em suma, como
tudo é perecível, não deveríamos chorar nem lamentar o que
não existe, nem se aborrecer contra o destino”.
“Não, realmente”, respondeu o Mestre sorrindo.
Neste instante, 一休 IKKYŪ tirou da manga de seu
衣 KOLOMO os restos do bule e os apresentou ao Mestre.
Este ficou boquiaberto!

Devemos compreender que 無常 MUJO, a mudança, é


a eternidade.
Esta é a sabedoria profunda que professa o
般若 心経 HANNYA SHINGYŌ.

155
是故空中無色無受想行識、
無眼耳鼻舌身意、
無色声香味触法、
無眼界乃至無意識界、

ZE KO KŪ CHŪ MU SHIKI MU JU SŌ GYŌ SHIKI,


MU GEN NI BI ZE SHIN I,
MU SHIKI SHŌ KŌ MI SOKU HŌ,
MU GEN KAI NAI SHI MU I SHIKI KAI,

是故 ZE KO: assim.
空中 KŪ CHŪ: em 空 KŪ.

空 KŪ e 無 MU são dois conceitos diferentes.


空 KŪ significa existência sem númeno, a existência
mais além das formas, a existência absoluta.
無 MU é o contrário de 空 KŪ, a existência. É a não
existência, a extinção da existência.
無色 MU SHIKI: não há 色 SHIKI, não há forma, não há
existência formal e relativa, não há matéria.
無 受 想 行 識 MU JU SŌ GYŌ SHIKI: tão pouco há
受 想 行 識 JU SŌ GYŌ SHIKI: em 空 KŪ, se desvanecem os
五薀 GO-UN, os cinco agregados.
色 SHIKI: a existência. Há dois tipos de existência:
- a existência “subjetiva”, o ego;

156
- a existência “objetiva”, o mundo que nos rodeia.
色 SHIKI é um termo geral que designa a totalidade do
mundo fenomenal, espírito e matéria em unidade.
Por 色 SHIKI, união da matéria e do espírito, aparecem
as percepções: 受 JU. As percepções criam as concepções
mentais, a faculdade de conceituar: 想 SŌ. Com a
conceituação nasce o ato voluntário: 行 GYŌ.
Por último, 識 SHIKI (é a mesma fonética, mas seu
sentido é distinto) designa o saber acumulado, a memória, a
consciência e o subconsciente.
無 眼 耳 鼻 舌 身 意 MU GEN NI BI ZE SHIN I: não há
seis órgãos dos sentidos.
無 色 声 香 味 触 法 MU SHIKI SHŌ KŌ MI SOKU HŌ:
não há seis objetos dos sentidos.
色 SHIKI: as cores, as formas. 声 SHŌ: os sons. 香 KŌ:
os odores. 味 MI: os sabores. 触 SOKU: as sensações táteis.
法 HŌ: o pensamento.
無 眼 界 MU GEN KAI.
無 MU: não há. 眼 GEN: visuais. 界 KAI: mundo,
percepções.
Não há domínio (mundo) das seis percepções, o
campo das seis percepções: visuais, auditivas, olfativas,
gustativas, táteis e o domínio das percepções mentais.
Assim, por não haver seis órgãos dos sentidos,
無 眼 耳 鼻 舌 身 意 MU GEN NI BI ZE SHIN I, não
aparecem os seis tipos de percepções.
Durante o 座 禅 ZAZEN, vocês podem ter esta
experiência. Quando um ruído se manifesta, sua consciência
auditiva se manifesta ao mesmo tempo, e sua consciência
mental cria pensamentos, rememora lembranças, imagina a
origem do ruído, e sua consciência pura se distrai assim.
Isto é 色受 SHIKI JU: pela matéria 色 SHIKI, aparece a
sensação 受 JU, e se manifestam as concepções mentais, 想
SŌ.

157
Quando o responsável pelo 警 策 KYOSAKU faz ruído
com seus passos, desperta a consciência auditiva: 受 JU. O
pensamento nasce (decisão de receber o 警策 KYOSAKU):
想 SŌ. O pensamento cria a ação: 行 GYŌ.
Os três fatores reunidos (objeto exterior, órgãos dos
sentidos e consciência) conduzem à ação.
Estes três fatores devem se manifestar juntos. Se
apenas um deles falta, a ação não pode se produzir. Esta
ação manifesta as ações passadas (lembranças), e deposita
as sementes das ações futuras. Este é o fenômeno de
memorização do corpo e do espírito. Sem embargo, este
processo carece de númeno e é criado a partir da
interdependência dos elementos. Nasce da interação do
potencial manifestado:

Seis 根 KON (raízes) Seis 境 KYŌ (objetos ou


estados)

受 JU PERCEPÇÃO

Seis 識 SHIKI (Seis consciências subjetivas)

RECONHECIMENTO
想 SŌ 行 GYŌ 識 SHIKI

158
CONCEPÇÕES AÇÃO MEMÓRIA
MENTAIS

DOMÍNIO DE FORMAÇÃO DA CONSCIÊNCIA COGNITIVA

Os seis órgãos dos Os seis objetos


sentidos ou seis raízes da percepção
六 根 ROKU KON: 六 境 ROKU KYŌ:

眼 GEN 色 SHIKI
耳 NI 声 SHŌ
鼻 BI 香 KŌ
舌 ZE 味 MI
身 SHIN 触 SOKU
意 I 法 HŌ

Seis Campos de percepção 六塵 ROKU JIN


CAMPO DE PERCEPÇÃO

As seis consciências subjetivas,


六 識 ROKU SHIKI (sad vijñanāni),

159
os 五薀 GO-UN e o reconhecimento- memória.

- Dos órgãos dos sentidos: 根 KON: a raiz;


- Da matéria, objetos da percepção: 境 KYŌ;
- Da consciência subjetiva: 識 SHIKI.

Os fenômenos aparecem graças a 根境識 KON KYŌ SHIKI.


Os seis órgãos dos sentidos (根 KON) e os seis objetos
dos sentidos (境 KYŌ) determinam o campo de percepção, o
qual engendra a consciência subjetiva 識 SHIKI.
No Budismo foi proposta às vezes a questão de saber
o que é anterior, o subjetivo ou o objetivo. A resposta varia
segundo se trate do Mahāyāna (大乗 DAIJŌ) ou do Hīnayāna
(小乗 SHŌJŌ).
No Mahāyāna, (大乗 DAIJŌ) os três são simultâneos:
根 境 識 KON KYŌ SHIKI combinados juntos engendram os
fenômenos.
Mas o Hīnayāna (小乗 SHŌJŌ) expõe o problema da
anterioridade e considera o material como causa primeira.
Mas para o Mahāyāna ( 大 乗 DAIJŌ), este é um falso
problema, desprovido de sentido. No Mahāyāna
(大乗 DAIJŌ), não há ruptura entre o material e o espiritual.
Toda impressão é por sua vez material e espiritual, e
permanece registrada em forma de informação atualizável
em qualquer momento.
Isto descreve o processo do karma que nasce da ação.
A ação procede por sua vez do material e do espiritual.
Durante o 座禅 ZAZEN, depois de um período mais ou
menos longo, a concentração aparece e nossos sentidos se
calam. Isto é 無 眼耳鼻舌身意 MU GEN NI BI ZE SHIN I, a
concentração em 空 KŪ, na qual tudo pouco a pouco é
esquecido, o corpo e o espírito, o passado e o futuro...
A calma se instaura e se pode alcançar o completo samādhi.
Alguns estão às vezes adormecidos (estado de
昏沈 KONCHIN. Isto não é o samādhi, que supõe a calma
160
total e ao mesmo tempo a vigilância. Concentração e
observação se sucedem. Depois de um período de
無 眼 耳 鼻 舌 身 意 MU GEN NI BI ZE SHIN I (ausência das
seis percepções) aparece o período
受 想 行 識 JU SŌ GYŌ SHIKI, as percepções e concepções
mentais, a imaginação, os desejos e a volição...
Este é o estado de 散亂 SANRAN, estado de agitação.
A concentração perfeita é samādhi ou 空 KŪ.
Esta alternativa corresponde a 空 即 是 色 KŪ SOKU
ZE SHIKI, 空 KŪ se transforma em 色 SHIKI, e a
色 即 是 空 SHIKI SOKU ZE KŪ, 色 SHIKI se transforma em
空 KŪ. A observação sucede à concentração e vice-versa. O
espírito não tem começo nem fim. Ao mesmo tempo em que
se forma a primeira célula do corpo aparece o espírito, que
insufla vida à célula e retorna à energia do cosmos quando o
corpo volta à terra.
O corpo se debilita com a velhice e, na maioria dos
casos, cria-se um desequilíbrio entre o ancião e seu entorno.
O mundo dos desejos e da ação adquire menos importância,
mas paradoxalmente, o egoísmo cresce com o estado de
debilidade, criando um estado de desarmonia interior.
Esta desarmonia interior é portadora de
受 想 行 識 JU SŌ GYŌ SHIKI, que se perpetua depois da
morte, originando a transmigração.
As “sementes” de karma perpetuam-se na consciência
depois da morte. Deverão manifestar-se necessariamente em
função da lei universal segundo a qual toda a semente deve
germinar ou perecer (transformar-se) quando chegar o
momento requerido. Formarão então os fatores hereditários
de um recém nascido. Estes fatores hereditários são
recebidos no mesmo momento da ovulação e seu potencial
está contido no esperma do pai e no óvulo da mãe.
Se a semente não germina, ao menos deve se
transformar. Isto é o que sucede durante o 座禅 ZAZEN. O
mau karma aparece e se libera do subconsciente; mas, pela
ação da consciência durante o 座禅 ZAZEN, desprovida de
161
seis percepções e de ignorância, este mau karma pode se
extinguir, ou seja, pode ser transmutado, sublimado e
regenerado na consciência pura e original.
O espírito esvaziado assim das sementes do karma,
abre-se para o eterno, funde-se com o infinito potencial
cósmico, não submetido à impermanência nem à
interdependência, não nascido, não criado, sem começo nem
fim, realidade eterna de 空 KŪ. Por isso se diz: “Em 空 KŪ
não existem os cinco agregados, nem os seis órgãos dos
sentidos, nem os seis objetos dos sentidos, nem as seis
percepções nascidas da ignorância e portadoras de
ignorância.” Em 空 KŪ não existem o entorno nem nossos
próprios órgãos subjetivos. Em 空 KŪ, tudo o que pertence ao
domínio visual, auditivo, olfativo, gustativo e tátil, não aparece.
Em não havendo entorno, não há observação objetiva,
nem subjetiva, nem consciência. É o fim total, a extinção, a
absorção completa no Nada, no 空 KŪ totalmente 空 KŪ, zero
absoluto.
Esta é a passagem mais difícil do 般若 心経 HANNYA
SHINGYŌ. É composta por apenas vinte e cinco
46
漢字 KANJI , mas seu significado é muito profundo. Entre
Deus ou Buda e o homem não existe nenhuma separação.
Eu digo sempre: a postura de 座禅 ZAZEN é, ela mesma,
Deus ou Buda.
Aproximar-se de Deus, para a maioria das religiões,
significa superar a condição humana. Pelo contrário, alguns
precisam do humanismo. Mas a via ensinada toma
freqüentemente caminhos muito sinuosos, já que esta
superação da condição humana é o resultado de esforços, de
proezas físicas e psíquicas consideráveis (tais como as
práticas ascéticas, ou mortificações) que originam estados de

46
是故空中無色無受想行識、無眼耳鼻舌身意、無色声香味触法、
ZE KO KŪ CHŪ MU SHIKI MU JU SŌ GYŌ SHIKI, MU GEN NI BI ZE
SHIN I, MU SHIKI SHŌ KŌ MI SOKU HŌ, (N.T.)

162
consciência especiais, mas sem nenhuma relação com a
autêntica realização.
No 禅 ZEN, a simples postura sentada e a respiração
profunda determinam o estado de consciência justo, a
consciência 非思量 HISHIRYŌ, infinita, que inclui todas as
contradições e submerge o ser no pensamento ilimitado.
Toda visualização, toda a visão, toda a sensação é
rechaçada como ilusão. O fato de que apareça Deus ou o
Demônio não é tão importante. Não é necessário prestar a
menor atenção a isso. São fenômenos e apenas fenômenos,
ilusões mentais. Na postura justa do 座禅 ZAZEN e graças à
consciência 非思量 HISHIRYŌ, resolvem-se imediatamente
todas as contradições, todas as oposições e todas as
dualidades. Não há que procurar a “união divina”, nem a
comunhão ou a fusão. A consciência 非思量 HISHIRYŌ nos
submerge na raiz do divino. A consciência 非思量 HISHIRYŌ
é a realidade divina, a unidade suprema e a sabedoria
般 若 波 羅 蜜 多 HANNYA HARAMITTA é sua emanação
brilhante, que governa e conhece todo o cosmos.

163
無眼界乃至無意識界、
無無明亦無無明尽、
乃至無老死亦無老死尽、
無苦集滅道、
MU GEN KAI NAI SHI MU I SHIKI KAI,
MU MUMYŌ YAKU MU MUMYŌ JIN,
NAI SHI MU RŌSHI YAKU MU RŌSHI JIN,
MU KU SHŪ METSU DŌ,

無眼界 MU GEN KAI: o domínio sensorial não existe.

Já falei de 十 二 處 JUNISHO, os doze domínios


sensoriais (dvādashāyatanāni em sânscrito). Tratam-se das
doze portas de acesso à consciência, que se abrem sobre as
faculdades cognitivas destinadas a captar os fenômenos da
existência.
Há seis faculdades cognitivas e seis categorias de
objetos correspondentes. Desta forma, constituem os doze
domínios sensoriais e formam a base do conhecimento.
Segundo este sistema da filosofia Budista, a consciência não
existe como entidade isolada: os órgãos dos sentidos e os
objetos correspondentes.

164
No Budismo, buscar o Caminho significa desprender-se
das ilusões, ter uma sólida confiança em si e uma fé profunda
na busca da Verdade. Mantendo a consciência lúcida e o
espírito de devoção, sejam quais forem os obstáculos
encontrados, devemos permanecer sempre livres. Ainda que
encontremos honras e benefícios em nosso caminho, não
devemos ser influenciados por eles. Assim, através deste
ensinamento pode-se obter a verdadeira felicidade do
Dharma, a verdadeira atualização do 禅 ZEN, a verdadeira
compaixão e a profunda sabedoria 般若 波羅蜜多 HANNYA
HARAMITTA. Desta maneira pode-se conseguir ajudar aos
demais, sendo verdadeiramente um só graças a um equilíbrio
harmonioso com o cosmos.
Seja como for, a consciência apresenta o problema da
maneira de pensar. A consciência é o determinante maior
das ações, do comportamento e das atitudes. Traduz-se
igualmente na expressão da cara, no olhar, e determina não
somente a fisionomia, mas também a atitude.
Aqui e agora: como pensar?
É perigoso estar demasiado apegado ao ego, à forma
física, às faculdades mentais, à inteligência.
Em um Sūtra47 se conta que na época de Buda vivia na
Índia uma mulher orgulhosa e altaneira, que nunca obedecia
à seu marido e continuamente se levantava contra ele. Seus
pais pediram a Buda que a educasse. Mas ela não respeitava
seu ensinamento e fugia, escondendo-se em sua casa. Buda
ordenou um dia que abrissem todas as portas e janelas e
assim 玉耶 GYO KUYA não pode assim se ocultar mais. A
face de Buda lhe apareceu e ele lhe disse:
“Não fique tão orgulhosa de sua beleza, já que ela é
impermanente e passará mais rapidamente do que você
imagina. Existem sete tipos de esposas:”

47
Trata-se do 玉耶經 GYOKUYA KYŌ. (N.T.)

165
- “A que se comporta como uma mãe com seu filho,
socorre-o, mima-o, cobrindo seu marido de ternura como
uma mãe faz com seu filho.”
- “A esposa irmã que respeita seu marido, escuta-o
com atenção e segue seus conselhos como se fosse seu
irmão mais velho.”
- “A esposa educadora que sempre com muito amor
quer educar a seu marido, corrige seus erros, dando-lhe
lições de moral, ou admirando-o quando seu comportamento
é justo.”
- “A quarta esposa é a clássica, que se fecha em seu
lar, mulher fiel, honra seu marido com leais serviços e belos
filhos. Cuida sempre de manter a harmonia entre todos os
membros da família.”
- “A quinta é a esposa serva, sempre muito devotada,
nunca protesta por qualquer motivo.”
- “E por último”, disse Buda, “está a mulher que odeia
seu marido, despreza-o, só pensa em separar-se dele e a
esposa malvada e infiel, que procura por todos os meios
arruinar seu marido e sempre vai com outros homens. Esta
mulher é muito perigosa, é uma força negativa e destruidora.”
“Minha querida 玉耶 GYO KUYA”, acrescentou Buda,
“em que tipo de esposa você se reconhece?”
“Quero me entregar a meu marido”, disse ela
arrependendo-se, “quero ser sua servidora, um apoio que
possa ajudá-lo sempre. Quero estar próxima de minha família,
de meus pais e faço a promessa de não voltar a ser
orgulhosa até o momento de minha morte!”

Entretanto, é tão perigoso apegar-se às suas próprias


qualidades como às das dos demais!
O que é permanente em nossa vida? Nada. Tudo é
無常 MUJŌ. Portanto atravesse para mais além da montanha
da impermanência! Antes da revolução 明治 MEIJI no Japão,
durante a era 徳川 TOKUGAWA, o tratamento dispensado
aos criminosos era simples e expedito: eram decapitados

166
sem demora e sem distinção de caso. As crônicas desta
época contam a história de uma célebre prostituta chamada
お伝 高橋 ODEN TAKAHASHI, conhecida por sua beleza e
por sua audácia. Um carrasco, chamado 浅 右 衛 門
ASAEMON, recitava sempre ao executar os prisioneiros, um
poema do grande Mestre 弘法大師 KŌBŌ DAISHI, da seita
真 言 SHINGON: “As flores desabrocham, mas um dia
morrem.” Depois de dizer isso, levantava sua espada e, com
um golpe certeiro, cortava a cabeça do condenado, para
terminar dizendo: “Não se iluda, não tenha sonhos maus, não
se embriague.” E depois de uma respeitosa reverência,
guardava sua espada na bainha. Este era seu 祈禱 KITŌ
silencioso, sua forma de exorcismo, sua maneira de ajudar o
morto a se desgarrar do véu da ilusão.
Um dia, no momento em que 浅右衛門 ASAEMON ia
cortar a cabeça da bela 芸 者 GEISHA, quando estava
recitando o terceiro verso de seu poema, a mulher se voltou
para ele, mirou-o sem medo e lhe sorriu com todo o seu
encanto. Neste momento, sua beleza poderia seduzir ao mais
feroz dos demônios. O braço de 浅 右 衛 門 ASAEMON
desviou-se e golpeou outro lugar.

167
無無明亦無無明尽、
乃至無老死亦無老死尽、
無苦集滅道、
MU MUMYŌ YAKU MU MUMYŌ JIN,
NAI SHI MU RŌSHI YAKU MU RŌSHI JIN,
MU KU SHŪ METSU DŌ,
Em 空 KŪ, 無 無明 MU MUMYŌ, não há ignorância,
無 無明尽 MU MUMYŌ JIN, nem extinção da ignorância.
乃至 NAI SHI: e assim sucessivamente.
無老死亦無老死尽 MU RŌSHI YAKU MU RŌSHI JIN:
não há degeneração e morte, nem extinção da degeneração
e da morte.
O Sūtra do 般若 心経 HANNYA SHINGYŌ contém a
essência do ensinamento de Buda. Nele se encontra a
essência do Budismo Hīnayāna e Mahāyāna.

Quais foram os princípios fundamentais do


ensinamento de Buda?

168
Em primeiro lugar o princípio de 三法印 SANBŌIN: “o
Selo das Três Leis” (tri-drsti-namitta-mudrā). Estas três leis
são:

a) 諸行 無常 SHOGYŌ MUJŌ (anityābatasamskārāh):


tudo muda sem cessar, tudo é impermanente.
b) 諸 法 無 我 SHOHŌ MUGA (nirātmānah sarva-
dharmāh): não númeno, não ego. O ego é sem
substancia. Tudo é 無常 MUJŌ e 無我 MUGA.
c) 諸法 皆空 SHOHŌ KAI KŪ (sarva-dharma-shūnyatā):
tudo é 空 KŪ.
Esta idéia se encontra desde o começo do 般若 心経
HANNYA SHINGYŌ:
観自在 菩薩 。
行 深 般若 波羅蜜多 時。
照 見 五薀 皆 空。

KANJIZAI BOSATSU.
GYŌ JIN HANNYA HARAMITTA JI.
SHO KEN GO-UN KAI KŪ.

O Selo das Três Leis distingue o Budismo das demais


religiões. Estas três leis representam o nirvāna, a serenidade
perfeita do corpo e do espírito.
Às vezes se diferencia 空 KŪ do nirvāna, e nirvāna se
converte em uma Quarta Lei, 涅槃 寂靜 NEHAN JAKUJŌ
(shāntamnirvānam).

O segundo ensinamento de Buda é 十二縁起 JUNI


ENGI (dvādasha-pratītya-samutpāda): os doze 縁起 ENGI, o
principio da interdependência.
縁 起 ENGI ou 因 縁 INNEN são dois termos que
definem o mesmo principio. Cada ação se produz na
harmonia de 因 IN e de 縁 EN: a causa e a interdependência.

169
O fenômeno é produzido pela união de causas e
circunstâncias múltiplas. Esta doutrina é essencialmente uma
negação da geração espontânea.

Terceiro princípio: 四諦 SHI TAI (catur-vidham satyam),


as Quatro Nobres Verdades:

苦 集 滅 道 KU SHŪ METSU DŌ.

苦 KU (duhka): o sofrimento. Todas as existências


sofrem.
集 SHŪ (samudaya): a causa do sofrimento. A ilusão e
o desejo.
滅 METSU (nirodha): a extinção do sofrimento, o
nirvāna, o reino livre de sofrimento.
道 DŌ (mārga): a Via, o método.

O método para alcançar o nirvāna é a prática de


八正道 HASSHŌDŌ, o Nobre Caminho Óctuplo, o quarto
princípio. Suas oito divisões são:

正見 SHŌ KEN (samyag drshti): os pontos de vista


justos. Refere-se à compreensão correta de 四諦 SHI TAI, as
Quatro Nobres Verdades.
正 思 惟 SHŌ SHI YUI (samyag samkalpa): o
pensamento justo, que é a faculdade de refletir
corretamente sobre 四諦 SHI TAI.
正 語 SHŌ GO (samyag vāc): a palavra justa.
正 業 SHŌ GYŌ (samyak karmānta): a ação justa.
正 命 SHŌ MYŌ (samyag ājīva): meios de existência
justos.
正 精 進 SHŌ SHŌ JIN (samiak vyāyāma): o esforço
justo.
正 念 SHŌ NEN (samiak smrti): a memória justa.
正 定 SHŌ JŌ (samyak samādhi): a meditação justa,
170
座禅 ZAZEN.

No Budismo Hīnayāna (“Pequeno Veiculo”) encontram-


se também estes quatro princípios. Mas com o Mahāyāna
aparece a noção de Bodhisattva e outro quatro princípios
vêm complementar os primeiros.

Quinto princípio: 六 波 羅 蜜 多 ROPPARAMITSU


(sat-pāramitā): as seis Paramitā, ou “virtudes”48. São os seis
tipos de prática através das quais os Bodhisattvas podem
alcançar o nirvana:

布施 FUSE (dāna): a doação, a oferenda.


戒 KAI (shīla): os preceitos.
忍辱 NINNIKU (kshānti): a paciência, a perseverança.
精進 SHŌ JIN (vīrya): o esforço, a assiduidade.
禅定 ZEN JŌ (dhyāna): a meditação, 座禅 ZAZEN, e
智慧 CHI-E (prajñā): a sabedoria.

Sexto princípio: 佛 性 BUSSHŌ (buddha-dhātu): a


natureza de Buda.
O que é a natureza de Buda? É o espírito universal, o
悟 SATORI. E é o 禅 ZEN, 座 禅 ZAZEN,
只管打座 SHIKANTAZA, 非思量 HISHIRYŌ, somente sentar-
se e submergir na fonte original, no pensamento absoluto.

Sétimo princípio: 発 菩 提 心 HOTSU BODAI SHIN


(bodhicitta) – produzir o espírito do despertar. O Mestre
道元 DŌGEN desenvolveu amplamente este sétimo principio,
no primeiro capitulo de sua obra intitulada

48
Também conhecidas como “Perfeições”. (N.T.)

171
学道 用心 集 GAKUDŌ YŌJIN SHŪ, “Recompilação da
aplicação do espírito ao estudo da Via”. O Mestre
道元 DŌGEN disse o seguinte a propósito do espírito do
despertar:
“Na verdade, quando se medita sobre a impermanência,
o espírito do EU e do MEU não se produz, nem tão pouco
surgem pensamentos de querer ser famoso e de ganância.
Por se estar aterrorizado com a rapidez do tempo, pratica-se
a Via com a mesma urgência de uma pessoa que deve
apagar um fogo em seus cabelos... Aquele que esquece por
um instante o EU e o MEU e pratica em seu retiro, retorna
familiarizado com o espírito do despertar.”

Oitavo princípio: a prática do ensinamento de Buda.


Este princípio diz respeito a todos os problemas gerados pela
prática. Sua essência é o 座禅 ZAZEN. Ao largo de todo o 般
若 心 経 HANNYA SHINGYŌ, voltamos a encontrar a
presença destes princípios.

172
無無明亦無無明尽、
乃至無老死亦無老死尽、

MU MUMYŌ YAKU MU MUMYŌ JIN,


NAI SHI MU RŌSHI YAKU MU RŌSHI JIN,

Esta passagem é muito importante. Subentende o


segundo princípio do Budismo, o princípio dos doze
縁起 ENGI ou 因縁 INNEN, ou também 因縁果 INNENKA. O
que significa este princípio?
É o conteúdo do 悟 SATORI de Buda, sentado
serenamente na postura de 座禅 ZAZEN, embaixo da árvore
Bodhi. Depois de abandonar os exercícios de mortificação e
de ascese que o haviam ensinado os yogis e que só o
haviam levado a um esgotamento total do corpo e do espírito,
Shākiamuni decidiu simplesmente sentar-se na postura justa
de concentração e de atenção. No amanhecer do nono dia,
ao ver o primeiro resplandecer da Estrela da Manhã49, obteve
o 悟 SATORI e realizou a impermanência de todas as coisas.
Esta realização foi chamada mais tarde por seus discípulos
“doze elos da interdependência”, em sânscrito “Dvādasha-
pratītya-samutpāda”, 十 二 因 縁 JŪNI INNEN,
49
O planeta Vênus. (N.T.)

173
因縁果 INNENKA ou 因果 INGA em japonês. Estes doze elos
são os doze fatores cujas interações determinam o processo
vital, a existência fenomenal50. 因縁果 INNENKA é composto
pelos 漢字 KANJI 因 IN, que significa a causa, 縁 EN, a
dependência, as ações determinantes, e 果 KA, o efeito, o
resultado.
因縁 果 INNENKA define portanto as interações que
unem a causa com o efeito por meio de condições dadas.
(No Ocidente se tende a crer que esta lei é o simples
princípio de causalidade. No capítulo consagrado ao karma
se verá que é completamente diferente, devido a um
elemento importante que o princípio mecanicista da
causalidade não leva em conta: a liberdade de escolha, a
existência de múltiplas possibilidades). Estamos também
diante dos termos 縁起 ENGI ou 依他起性 ETAKISHO que
têm significados similares. 依 他 起 性 ETAKISHO define a
produção que nasce em função de sua dependência com
elementos exteriores, ou fatores baseados em eventos51. 縁
起 ENGI se traduz literalmente por aparição dependente, ou
seja, as condições de aparição de um fenômeno.
縁 起 ENGI, entendido através dos três mundos
(passado, presente e futuro) determina o seguinte processo:
- Temos 煩悩 BONNŌ (klesha).
- Estes 煩悩 BONNŌ (klesha) determinam a produção
de karma.
- O sofrimento produz de novo 煩悩 BONNŌ (klesha).
Este ciclo se repete sem fim. É constituído pelo
conjunto 煩悩 業 苦 BONNŌ GYŌ KU (klesha-karma-duhka)
50
Ver “La práctica de la concentracion” de T. Deshimaru. Vision
Libros. Barcelona, 1982.

51
“Baseado em evento” é a tradução da curiosa expressão
“evenemencial” que consta no original e que não freqüenta a maioria
dos dicionários.(N.T.)

174
ILUSÃO-AÇÃO-SOFRIMENTO, que é o pano de fundo da
vida fenomenal normalmente observável. A análise da lei dos
doze 因 縁 INNEN (ou causas interdependentes e
determinantes) explica a aparição das existências
fenomenais e de seu corolário, os 煩悩 BONNŌ.
Esta lei fundamental da filosofia Budista é estudada em
função de dois sentidos inversos, um que segue o processo
evolutivo no sentido cronológico, do passado para o futuro, e
outro que volta até a origem do processo evolutivo. Aqui só
descreveremos o primeiro, chamado 流 轉 RU-TEN em
japonês.

Tem como ponto de partida 無明 MUMYŌ, a ignorância,


causa original da qual depende toda a existência, e que nos
conduz até 老死 RŌSHI, a degeneração e a morte:

1) 無 明 MUMYŌ (avidyā), a ignorância, primeiro


因 縁 INNEN, é o fator comum a todas as formas de
existência fenomenal. É a sua causa primeira e determinante
e condiciona o mundo fenomenal, que só existe por ela. O
homem, antes de seu nascimento, é 無 明 MUMYŌ,
ignorância. Seu nascimento é a atualização na matéria (ou
encarnação) de sua consciência ignorante que, durante a
transmigração, permanecia na consciência cósmica eterna,
unida a ela: 無明 MUMYŌ é o agente produtor da ação.

2) Esta ignorância é a fonte original dos 煩悩 BONNŌ


(klesha), e determina 行 GYŌ (samskāra), a ação. Este é o
segundo 因 縁 INNEN. A ação é karma, produto da
ignorância. No plano humano, este fator primordial, a
ignorância, é produzido, em parte, pela ignorância dos pais, a
qual engendra o ato sexual e kármico e provoca a
fecundação. Por outro lado, se encontra a ignorância kármica
de um defunto que quer encarnar e influencia a união dos
pais.

175
As duas causas interdependentes conduzem à
formação embrionária. A consciência do defunto encarna no
mesmo instante da fecundação, a qual é uma manifestação
da energia cósmica.
Os três elementos que determinam a aparição do feto -
pai, mãe e consciência do defunto - são igualmente
“responsáveis”, e não somente os pais, tal como se acredita
ordinariamente, já que o antigo karma do defunto quer se
realizar e deve encontrar suporte material para manifestar-se.

As duas causas do passado, 無明 MUMYŌ e 行 GYŌ,


ignorância e ação, engendram os efeitos do presente, que
são:

3) 識 SHIKI (vijñāna): a consciência, o terceiro


因縁 INNEN.

4) Esta consciência determina 名色 MYŌ-SHIKI (nāma-


rūpa), o nome e a forma, ou o espírito e o corpo, ou as
funções mentais e a matéria, quarto 因縁 INNEN.

5) Depois se forma 六入 ROKU NYU (salāyatana): os


seis órgãos dos sentidos (olhos, ouvidos, nariz, língua, corpo
e espírito). Este é o quinto 因縁 INNEN. Durante os nove
meses da gestação, o feto vive todos os estados da evolução
e da mutação das espécies, desde o estado unicelular até o
organismo infinitamente elaborado e complexo que constituiu
o feto no momento de seu nascimento, passando do estado
invertebrado até o vertebrado, mamífero.
Depois do nascimento se desenvolvem as faculdades
latentes do recém nascido, em função de seu entorno.

6) Com o nascimento e pela ação da consciência, do


corpo e do espírito e dos seis órgãos da consciência, aparece
o contato com o mundo exterior, 觸 SHOKU (sparsha),
(sexto 因縁 INNEN).

176
7) Pelo contato se engendra 受 JU (vedanā), a
percepção (sétimo 因縁 INNEN).

Neste momento aparecem os 煩 悩 BONNŌ do


presente, que são:
8) 愛 AI (trsnā), os desejos (oitavo 因 縁 INNEN),
criados pela percepção.

9) 取 SHU (upādāna), o ato de se aferrar, o apego


(nono 因縁 INNEN), produto dos desejos.

10) 有 U (bhava), o apego, a possessão, o “querer


viver” (décimo 因 縁 INNEN), produzido pela vontade de
aferrar. A existência foge da não existência, rechaça a morte.

Dos efeitos futuros aparecerão:

11) 生 SHO (jāti), o vir a ser (décimo primeiro


因縁 INNEN), engendrado pelo querer viver.

12) E 老死 RŌSHI (jarāmarana), a degeneração e a


morte, (décimo segundo 因縁 INNEN), conseqüência do vir a
ser.

Depois da morte, o karma da consciência passada,


feita de ignorância, engendrará de novo a ação, que por sua
vez produzirá as condições de desenvolvimento do novo
organismo vivo. Assim se forma o ciclo da transmigração e
das reencarnações.
O segundo sentido se faz ao contrário: parte de
老死 RŌSHI, a morte e chega em 無明 MUMYŌ, a ignorância.
Este segundo sentido corresponde ao método de observação
a partir do 悟 SATORI, chamado 還滅 門 GENMETSU MON:
“a porta que conduz a extinção mediante o retorno a 空 KŪ,

177
ao nada”; e também 空觀 KŪ GAN: a absorção que retorna a
空 KŪ. Este foi o sentido seguido por Buda quando obteve o
悟 SATORI embaixo da árvore Bodhi. Através desta
observação compreendeu o processo da transmigração.
Buda decidiu deixar seu estado de príncipe e se fez
monge quando realizou que a vida era sofrimento e
impermanência. Ante seus olhos apareceram as imagens da
degeneração humana, do sofrimento e da morte. 無常 MUJŌ,
a impermanência, submergiu-o no tormento, e durante seis
anos de ascetismo e de mortificações que viveu depois de
sua fuga do palácio, em seu aprendizado com os yoguis,
planejou resolver apenas este enigma torturante. Sua
reflexão conduziu-o de 死 SHI, a morte, à 無明 MUMYŌ, a
ignorância, causa primordial de todo o sofrimento.
O 悟 SATORI que Buda obteve sentado em profundo
nirvāna embaixo da árvore Bodhi, investiu-o da sabedoria
que lhe fez compreender o encadeamento sem fim da vida e
da morte. O círculo começa em 無明 MUMYŌ, a ignorância e
termina em 無明 MUMYŌ. Nós podemos nos emancipar de
無明 MUMYŌ, a ignorância fundamental do mundo manifesto,
retornando à nossa natureza original, verdadeira e absoluta.
Todos os sofrimentos terminam com a extinção de
無明 MUMYŌ e o perfeito nirvāna pode ser realizado assim.
No 禅 ZEN, 無 明 MUMYŌ corresponde a
昏 沈 KONCHIN (a sonolência) e a 散 亂 SANRAN
(a dispersão). 無明 MUMYŌ aparece quando se está em um
destes dois estados, ou seja, quando nosso espírito está
dissociado da consciência universal, cósmica, quando se
estabelece em dualidade com a Ordem Cósmica. A
ignorância individual é seu reflexo exato, sua outra face. O
Mestre 塋山 KEIZAN , no 座禅 用心 記 ZAZEN YOJIN KI,
escreve: “Todos os sofrimentos, todos os 煩悩 BONNŌ, as
ilusões, as paixões nascem de 無 明 MUMYŌ. Durante o
座 禅 ZAZEN podemos clarificar nosso ego, que é sem

178
númeno. O egoísmo é o único produto de 無明 MUMYŌ. Sem
embargo, aquele que cortou todos os 煩 悩 BONNŌ sem
haver cortado 無明 MUMYŌ, não pode ser considerado como
um autêntico Buda nem como um verdadeiro patriarca. O
método mais elevado, o único e secreto para cortar
無明 MUMYŌ é a prática de 座禅 ZAZEN, que é a Via real
que nos conduz à extinção desta ignorância”.
O 般若 心経 HANNYA SHINGYŌ apenas menciona o
primeiro e o último 因 縁 INNEN, subentendendo os
intermediários com o termo 乃至 NAI SHI que significa “e
assim sucessivamente”.
O 般 若 心 経 HANNYA SHINGYŌ fala dos doze
因縁 INNEN, negando-os: “Em 空 KŪ não há nem ignorância
( 無 無 明 MU MUMYŌ), nem extinção da ignorância
(無 無明 尽 MU MUMYŌ JIN), o mesmo ocorrendo com os
demais 因 縁 INNEN. Não há velhice nem morte
(無 老死 MU RŌSHI), nem extinção da velhice e da morte
(無 老死 尽 MU RŌSHI JIN)”.
Em 空 KŪ, pois, nega-se tanto a existência como a não
existência (extinção) das doze causas interdependentes:
無 無明 亦 無 無明 尽 MU MUMYŌ YAKU MU
MUMYŌ JIN: não há ignorância nem não ignorância.
無 行 亦 無 行 尽 MU GYŌ YAKU MU GYŌ JIN: não
há ação nem não ação.
無 識 亦 無 識 尽 MU SHIKI YAKU MU SHIKI JIN:
não há consciência nem não consciência.
無 名色 亦 無 名色 尽 MU MYŌ-SHIKI YAKU MU MYŌ-
SHIKI JIN: não há nome-e-forma nem não nome-e-forma.
無 六 入 亦 無 六 入 尽 MU ROKU-NYU YAKU MU
ROKU-NYU JIN: não há seis órgãos dos sentidos nem
extinção dos seis órgãos dos sentidos.
無 觸 亦 無 觸 尽 MU SHOKU YAKU MU SHOKU JIN:
não há contato nem não contato.

179
無 受 亦 無 受 尽 MU JU YAKU MU JU JIN: não há
percepção nem não percepção.
無 愛 亦 無 愛 尽 MU AI YAKU MU AI JIN: não há
desejo nem não desejo.
無 取 亦 無 取 尽 MU SHU YAKU MU SHU JIN: não
há apego nem não apego.
無 有 亦 無 有 尽 MU U YAKU MU U JIN: não há posse
nem não posse.
無 生 亦 無 生 尽 MU SHO YAKU MU SHO JIN: não
há vir-a-ser nem não vir-a-ser.
無 老死 亦 無 老死 尽 MU RŌSHI YAKU MU RŌSHI
JIN: não há velhice e morte nem não velhice e morte.
Desta maneira apareceu ao Buda a verdade sobre a
impermanência do mundo fenomenal. Sentado em
座禅 ZAZEN, sua meditação não tinha sujeito nem objeto. A
verdade surgiu por ela mesma, a partir da consciência
非 思 量 HISHIRYŌ, a consciência ilimitada, mais além do
espaço e do tempo, mais além dos limites da consciência
humana. Vivenciou a verdade, vivenciou-a com todo o seu
ser desprovido de ego, com todo seu ser dissolvido no
cosmos. Desta experiência nasceu a sabedoria infinita que
permite compreender o princípio indiferenciado da
multiplicidade e da unidade, e que lhe permitiu formular o
principio dos doze 因縁 INNEN. Compreender esta verdade
intimamente, desde o mais profundo do ser unido ao Ser
Cósmico, é obter o 悟 SATORI.
座禅 ZAZEN é 只管打座 SHIKANTAZA, apenas sentar-
se. As funções cerebrais estão em repouso. Não há nada. Os
pensamentos subconscientes surgem, manifestam-se na
consciência, depois se desvanecem. Mas nada os retém,
simplesmente passam, naturalmente. O subconsciente se
esgota, a obscuridade se aclara, a ignorância desaparece. E
quando a ignorância desaparece tudo desaparece, tudo o
que fundamentava nosso ego ilusório. Tudo se extingue.
Tudo volta ao espírito original indiferenciado.

180
Durante o 座 禅 ZAZEN, em 空 KŪ, não há
無明 MUMYŌ, ignorância, nem extinção da ignorância. Isto é
algo contraditório, mas verdadeiro. A aparente contradição se
desvanece com a absorção da dualidade no Uno original.
Durante o 座禅 ZAZEN, muitas visões de Deus ou do
Buda podem nascer procedentes do subconsciente. Podem
surgir estados especiais de consciência. De toda a forma,
continuando assiduamente a prática, todas estas condições
fenomenais acabam por desaparecer. Em tais casos, há que
levar rapidamente a atenção à manutenção da postura justa,
há que recolher o maxilar, receber o 警 策 KYOSAKU. O
espírito muda assim, desperta. E 無明 MUMYŌ desaparece.

乃至無老死亦無老死尽、

NAI SHI MU RŌSHI YAKU MU RŌSHI JIN,

Durante os seis anos de mortificações que Buda


passou ao lado dos yogis, teve a experiência de numerosos
fenômenos da consciência. Numerosas questões e dúvidas
se lhe apareceram: por que devo sofrer? Porque devo viver,
envelhecer e morrer? Por que nasci? O que é a existência?
O subconsciente se expressa com suas dúvidas, seus
tormentos. Seis anos de vida errante haviam quebrado sua
convicção. Havia deixado sua família para levar uma vida
ascética, vestido com farrapos, mendigando sua comida,
resguardando-se do sol e da chuva com as folhas das
árvores.
O objeto principal da suas meditações foi a busca do
remédio para desmascarar o sofrimento e extirpá-lo. Sentado
em 座 禅 ZAZEN embaixo da árvore Bodhi, à força de
concentração e de observação, resolveu este problema e
alcançou o perfeito 悟 SATORI. Compreendeu a verdade
sobre o sofrimento e resolveu o problema da vida e da morte,

181
da impermanência dos fenômenos, retornando à essência
primordial, voltando a 空 KŪ e convertendo-se em 空 KŪ.

Os poemas de 参 同 契 SAN DO KAI tomam


freqüentemente o termo 霊源 REIGEN, a fonte pura. Não se
trata de 無明 MUMYŌ... A fonte original do espírito não é
ignorância nem obscuridade. É perfeitamente pura, branca.
Sem nada. É nada.

Ānanda52 era um jovem forte e belo, discípulo de Buda.


Num dia de grande calor, ao voltar de sua ronda de
mendicância (托鉢 TAKUHATSU), dirigiu-se até um poço em
que pensava poder descansar. Ao chegar, viu uma jovem
retirando água do poço. Ānanda pediu-lhe um pouco de
água, mas a moça respondeu:
“Sou uma sudaran (intocável). Você não pode beber
água de minhas mãos”. E escondeu o rosto, cheia de
vergonha.
“Não!”, disse Ānanda, “o ensinamento de Buda está
além das castas! A humanidade é uma só! Nenhuma casta
pode dividi-la!”
A moça então lhe ofereceu um pouco de água na
concha de sua mão. Depois disso, dando-lhe as costas,
Ānanda continuou seu caminho. A moça viu-o afastar-se. Sua
silhueta era nobre e delicada! E sua face irradiava tanta
beleza!
Não lhe faltou mais nada para enamorar-se
perdidamente por ele.
Ao voltar à sua casa informou sua mãe deste encontro,
confidenciou-lhe seus sentimentos e sua determinação

52
Ver “El Cuenco y el Bastón: 120 cuentos zen”. Vision
Libros.Barcelona.
Em português: “A Tigela e o Bastão – 120 Contos Zen narrados
pelo Mestre Taisen Deshimaru”. Ed. Pensamento. São Paulo, 1990. 2ª
Edição. (N.T.)

182
inquebrantável de voltar a ver Ānanda e de casar-se com ele.
A mãe não podia crer na louca resolução de sua filha:
“Você bem sabe que Ānanda é um grande discípulo de
Shākiamuni Buda e que nunca consentirá em se casar
contigo!”.
“Mãe, sua grandeza de alma lhe permitiu sem embargo
beber água na concha de minha mão; ademais, disse-me que
eles não dão importância às castas, quaisquer que sejam.
Não tenho razão em manter a esperança? Mãe, você possui
poderes mágicos, suplico que os use por mim uma só vez.
Faça com que Ānanda fique a meu lado!”.
“Tua estupidez não tem limites, minha filha, você bem
sabe que meus poderes não têm nenhum efeito com as
pessoas 無所得 MUSHOTOKU, que já não desejam nada,
nem têm nenhum apego, menos que os mortos. Ānanda é
um destes seres. Bom discípulo de Buda, é completamente
sem desejo e respeita os preceitos. Renuncie portanto a este
amor!”
“Antes a morte!”, respondeu a jovem.
Ante estas palavras, a bruxa, que também era mãe,
aceitou a proposta de sua filha e, convencida, decidiu apelar
a Ānanda.
O ritual mágico supunha uma longa preparação. Teve
que besuntar os muros da casa com esterco de vaca,
amontoou uma boa quantidade de galhos verdes e por último
encheu oito jarras com flores raras que havia tido o trabalho
de pegar nos altos prados da montanha. Tudo estava por fim
preparado. Ateou fogo aos galhos e a fumaça invadiu
rapidamente a casa.
Sacudindo a cabeça em todos os sentidos, sua longa
cabeleira prolongando os movimentos, girava e girava com
um passo entrecortado ao redor do fogo. O transe se
intensificava e, como que possuída, gritou:
“Demônios e deuses do fogo, deuses da terra e do
paraíso! Ouvi meu tormento! Respondei às minhas
imprecações! Concedei-me estes pedidos!”. Neste momento
esvaziou no fogo o conteúdo das jarras.

183
O poder que se desprendeu do ritual surpreendeu a
juventude inexperiente e inocente de Ānanda e o perturbou.
Semi-consciente, despertou na casa da moça.
“Aceite-me como sua esposa”, murmurou ela, “não
posso conhecer a felicidade se não for contigo.”
A beleza provocante de seu corpo se oferecia a
Ānanda.
A certa distancia dali, Shākiamuni Buda estava
oficiando uma cerimônia em um palácio. De repente, recebeu
cruamente a visão do abraço amoroso de Ānanda e da jovem.
“Ānanda, Ānanda, volte. Isso é perigoso!”, disse Buda
gritando. A força de seu pensamento conduziu Ānanda ao
palácio. A moça o seguiu, mas por ser intocável, sua entrada
foi negada e teve então de esperar no portal até o fim da
cerimônia. Buda enfim saiu, seguido por seus discípulos. A
jovem se dirigiu até ele e o deteve.
“O que deseja? Aonde vai?”, perguntou –lhe Buda.
“Você me separou de Ānanda. Quero vê-lo e me
converter em sua esposa, pois o amo”, confessou.
“Por que você ama Ānanda? Pode me dizer o que é
que você ama nele?”, perguntou Buda. Depois acrescentou:
“Nos olhos de Ānanda há lágrimas. Seu nariz está
cheio de muco. Sua boca exala odores putrefatos. Seu corpo
está repleto de imundícies. Seus intestinos estão cheios de
excrementos e por seu sexo a urina se esvai! Ainda assim
pode amar a seu belo Ānanda? Convença-se então de que
seu espírito não é tão puro! Agora o encontra doce e amável!
Saiba, no entanto, que sua amabilidade não é mais que
egoísmo, sua ternura deste momento não é mais do que um
véu que dissimula seus sórdidos desejos. Quando se sentir
satisfeito, vai descartá-la como a um objeto usado. A
juventude de seus sentidos o debilita. Não caia em sua
armadilha, não permita que ele a seduza. Tenha cuidado! A
velhice vai te surpreender antes que tenha tempo de pensar
nela. Seus sentimentos então não terão tanta importância.
Quando você estiver enrugada já não será tão sedutora nem

184
tão seduzível. Da morte é a única coisa da qual não poderá
se esconder”.
Buda então pregou mais algum tempo com calma e
paciência.
Quando parou, julgando que seu ensinamento era
suficiente, os cabelos da jovem, que ela mesmo havia
adornado com flores, caíram suavemente. Suas vestes
adornadas desvaneceram, transformando-se em um
袈裟 KESA que a recobriu completamente.
Buda disse então:
“Seu corpo é efêmero. Sua beleza só dura o tempo de
sua paixão. Deixe de criar apegos e entra no Verdadeiro
Caminho! Agora permito que você veja Ānanda, seja então
sua esposa e sejam felizes.”
Entre lágrimas e soluços de remorso, a recém
ordenada monja confessou os extravios que seu coração
apaixonado a haviam conduzido.
“Até hoje, enganada por meus sentidos, extraviei-me
pelos caminhos do sofrimento. Graças à este amor, meu
espírito de apego acaba de desvanecer. Peço que me aceite
como discípula!”.
Desta maneira, converteu-se em uma verdadeira monja
discípula de Buda, a quem se devotou durante toda a sua
vida.
Esta aventura obrigou Ānanda a se desculpar ante
Buda. Confessou longamente, reconhecendo que havia sido
induzido ao erro por seus sentidos, pela atração que a moça
exercia sobre ele. Buda lhe disse:
“Você amou esta mulher. Seu espírito foi manchado por
esta paixão. Se o apego que normalmente resulta disso
houvesse se perpetuado, criaria sementes de karma para a
posteridade. Mas em seu espírito atormentado surgiu a
reflexão e o remorso o levou a confessar. Desta maneira,
lavou estas manchas, já que este espírito que venceu suas
paixões é o espírito puro e invisível, e que possui o brilho e a
solidez do diamante. Como ele, às vezes desaparece na

185
capa lamacenta das ilusões opacas. Mas quando o véu é
removido, brilha instantaneamente com todo o seu
esplendor.”
Toda a vida se realiza em função destes dois espíritos.
Às vezes um predomina. Quando nos deixamos levar pela
corrente das circunstâncias que fazem brilhar os objetos e
exacerbam os sentidos, o vagalhão das paixões se levanta,
desenraizando o bom senso e destruindo a sabedoria.
Uma vez que a tempestade tenha terminado, o outro
espírito aparece, tranqüilo e apaziguado, parecido com um
grande rio majestoso e pacífico. Os dois travam
freqüentemente um combate encarniçado. Se às vezes o
primeiro se mostra superior, o segundo permanece sempre
imutável e indestrutível, nas profundezas solitárias do
inacessível. Nada pode perturbá-lo. O fogo não pode queimá-
lo, nem a água molhá-lo. Imbuído de uma paciência infinita e
equilibrando as paixões exaltadas, age apenas com sua
presença. Um momento de calma basta para que apareça.
Este é o verdadeiro espírito, puro e eterno.”
Shākiamuni Buda perguntou então:
“Diga-me, Ānanda, onde está seu espírito de amante?”
“Sem dúvida em meu corpo”, respondeu Ānanda.
“Certo, o espírito tem a faculdade da reflexão e da
introspecção e desta maneira pode conhecer inclusive ao ser
que o habita. Mas, pode me dizer, Ānanda, mais
precisamente em que parte do corpo o situa?”
Ānanda ficou perplexo, mas respondeu:
“Talvez exista também fora de meu corpo!”
“Certo”, concordou Buda, “seu espírito tem a faculdade
de sentir a atmosfera exterior de seu corpo. Não obstante, já
que você disse que seu espírito existe fora de seu corpo,
você acredita que sentirá dor se eu quebrar este
sustentáculo?”
Ānanda foi incapaz de responder.
“O espírito abarca todo o cosmos!”, disse finalmente
Buda. “O espírito de amante existia inclusive antes que você
viesse a este mundo. Um amálgama de circunstâncias

186
fizeram-no despertar em você. Você não tem sido mais que o
joguete, a possessão deste espírito. E apesar de que você
tenha se desfeito dele, sua existência continuará!”

Em numerosas religiões, a meditação deve se basear


em um objeto de fé, Deus, Buda, uma divindade. Muitas
ilusões nascem disso. Tudo isso é ignorância.
A partir de 無明 MUMYŌ e através de 無明 MUMYŌ se
perpetua o ciclo de reencarnação e da transmigração.
無 明 MUMYŌ representa a edificação gigante das
ilusões.
無明 MUMYŌ é o ego, o enorme engodo egóigo. Toda
a ação e todo o fenômeno nascem de 無 明 MUMYŌ.
Compreendam o que o Buda compreendeu embaixo da
árvore Bodhi.
O que é 悟 SATORI?
O 悟 SATORI é 座禅 ZAZEN.
“Para cortar 無明 MUMYŌ, o mais elevado e secreto
método é a prática do 座禅 ZAZEN”, escreveu o Mestre
塋 山 KEIZAN no 座 禅 用 心 記 ZAZEN YOGIN KI,
“Recompilação sobre a atenção do espírito durante o
座禅 ZAZEN”.
A expressão 無 無明 亦 無 無明 尽 MU MUMYŌ YAKU
MU MUMYŌ JIN é, a priori, ambivalente. “Em 空 KŪ não há
ignorância, nem extinção da ignorância”. Mas esta
ambivalência só é tal para o espírito dualista que propõe a
questão. Para compreender o sentido profundo e verdadeiro
do 般若 心経 HANNYA SHINGYŌ só há uma atitude correta:
superar o marco dualista do espírito, submergir as raízes da
consciência na consciência 非 思 量 HISHIRYŌ do
座禅 ZAZEN.
無明 MUMYŌ e 明 MYŌ, ignorância e despertar, não
são diferentes. Não são entidades separadas, senão o duplo
aspecto de um princípio único, fundamental, não discriminado.

187
Esta dualidade nasce apenas devido aos limites de nossa
inteligência.
O estado de 散亂 SANRAN que aparece durante o
座禅 ZAZEN designa o estado de dispersão e de hipertensão.
Os pensamentos afluem. Se alguém se detém sobre eles,
estes pensamentos se desenvolvem e terminam por
açambarcar tudo.
No estado de 昏沈 KONCHIN, a sonolência invade o
espírito.
Os pensamentos e as imagens desfilam pouco a pouco,
passam sem parar. A verdadeira concentração nos faz voltar
ao 空 KŪ original, à consciência universal, sem limites e
atemporal. Esta concentração em 空 KŪ contém virtualmente
a expansão em 色 SHIKI. A expansão fenomenal 色 SHIKI
contém virtualmente o retorno a 空 KŪ. 色 SHIKI virtual se
manifesta por todas as partes, mas sempre tanto como
aparência sem existência própria, quanto produto de nossa
consciência. 空 KŪ virtual está por todas as partes em
色 SHIKI, é imanente53, apesar de não estar manifesto.
Nossa essência original é 空 KŪ, unidade, pureza.
Esta pureza pode se manifestar ao contato de um elemento,
de um fenômeno que, nele mesmo, não tem realidade
própria.
空 KŪ, o Nada, não é diferente de 色 SHIKI, os
fenômenos ilusórios.
Em japonês, o termo “ilusão” é designado às vezes
pela palavra 客塵 KAKUJIN: “a poeira que entra na casa”.
Os 煩 悩 BONNŌ são visitantes. Potencialmente
possuímos todos os 煩 悩 BONNŌ, mas apenas se
manifestam os que entram em contato com um fator externo
que desempenha um papel de catalisador. Os 煩悩 BONNŌ
são como as ondas que só se manifestam quando sopra o
vento. A ignorância, a cólera, o medo, a ansiedade, as
53
Está compreendido na própria essência do todo. (N.T.)

188
paixões e os desejos são fruto do karma passado, sementes
que florescem através da ação de estímulos externos. A capa
de sensibilidade do ego é excitada. A reação emerge. Mas
sem o oceano não pode haver ondas. Abandonando o ego
nos desfazemos ao mesmo tempo de sua textura básica: a
ignorância, os 煩 悩 BONNŌ, as ilusões, os desejos. Ao
abandonar o ego, a consciência abre-se à dimensão do
infinito. A onipresente sabedoria se atualiza.
Originalmente não há 煩悩 BONNŌ. Originalmente flui
a fonte pura de 空 KŪ. Os 煩悩 BONNŌ nascem com o ego.
Tal é a natureza de todo o cosmos e das miríades de
existências. 空 KŪ, Nada. Este Nada é inerente a tudo, está
contido em tudo e contém todas as coisas, já que é a fonte
infinita de potencialidade.
Os fenômenos emanam de 空 KŪ. Os 煩悩 BONNŌ
nascem do ego. A natureza profunda, essencial do ego é
空 KŪ; mas o ego, como tal, só deve sua existência aos
煩悩 BONNŌ. Só existe porque é um 煩悩 BONNŌ.
Cortar os 煩悩 BONNŌ é portanto abandonar o ego,
voltar a 空 KŪ. 色 SHIKI não é diferente de 空 KŪ.
Os fenômenos ilusórios são 空 KŪ, Nada. E a
ignorância produtora de fenômenos ilusórios é igualmente
空 KŪ, Nada. No 般若 心経 HANNYA SHINGYŌ se diz que
não há ignorância nem extinção da ignorância.
O 悟 SATORI só existe em função de 無明 MUMYŌ
(a ignorância) e dos 煩悩 BONNŌ (ilusões). 無明 MUMYŌ e
煩 悩 BONNŌ são portanto condição necessária para a
existência do 悟 SATORI.

Esta é a razão pela qual se diz:


煩悩 即 菩提 BONNŌ SOKU BODAI: os 煩悩 BONNO,
as ilusões são o 悟 SATORI.
Portanto, não há que querer cortar 無明 MUMYŌ, posto
que 無明 MUMYŌ não tem existência real e nossa existência

189
não tem númeno. Para superar 無明 MUMYŌ, para se libertar
da ignorância de que é feito nosso ego, basta concentrar-se
sobre 空 KŪ e esquecer totalmente o ego.
Nossa existência tem a consciência de 無明 MUMYŌ.
Observar-nos e compreender a nós mesmos é observar e
compreender 無明 MUMYŌ. Não é necessário buscar 空 KŪ,
é inútil. Tão pouco há de se tentar resolver o problema de
nossa existência ou de nossa não existência. Somente há
que compreender 無明 MUMYŌ.
Nāgārjuna (龍樹 RYŪJU), em seus comentários sobre
o 般若 經 HANNYA KYŌ diz que “o Bodhisattva que quer
compreender sua verdadeira natureza deve compreender a
natureza de sua própria ignorância”.
Originalmente, os 煩悩 BONNŌ, as ilusões são 空 KŪ.
Desta maneira ainda que tenhamos 煩悩 BONNŌ, não há por
que se deter neles nem tentar extirpá-los, ou cortá-los. A
sabedoria consiste em sublimá-los, em transformá-los. Os
煩悩 BONNŌ seguirão naturalmente a direção de nossas
intenções. Sem voluntarismo, mas através da concentração e
da atenção centrados sobre cada uma de nossas ações, as
ilusões diminuem e os desejos são sublimados até uma nova
dimensão, mais elevada, mais próxima do essencial.
A doutrina do mais além da morte no Budismo é muito
simples. As condições do mais além da morte são as
seguintes segundo o 禅 ZEN:
- Os elementos constituintes do corpo voltam aos
elementos do cosmos: terra, água, ar e fogo.
- 識 SHIKI, a consciência, desprendida do ego, volta à
consciência Alaya ( 阿 賴 耶 識 ARAYA SHIKI); num dado
momento, em que as condições requeridas apareçam, estas
sementes se manifestarão de novo, materializando-se em
uma estrutura que se desenvolverá e se realizará em um
novo indivíduo. Esta é a razão pela qual a stupa (a tumba
Budista) é formada pelos seguintes elementos: na base se
encontra o elemento cúbico que corresponde à terra, à cor

190
amarela, aos joelhos. Sobre ele há um elemento esférico que
corresponde à água, à cor branca, aos intestinos. Em
seguida o elemento triangular corresponde ao fogo, à cor
vermelha, ao coração. Sobre o triângulo uma forma de meia
lua, correspondente ao vento, à cor negra, aos pulmões e às
mãos (a ação). Por último está o derradeiro elemento, uma
esfera prolongada em seu pólo superior por uma
protuberância, que corresponde ao éter, à cor azul e ao
pensamento. A stupa simboliza os elementos em mutação, o
aspecto fenomênico do cosmos. No muro posterior está
sempre inscrito o termo 識 SHIKI, que designa a essência da
consciência Alaya (阿賴耶 識 ARAYA SHIKI), que depois da
morte se confunde com a consciência Amala (無垢識 MUKU
SHIKI), ou 空 KŪ. Este é o aspecto eterno e imutável do
cosmos.
Esta consciência Amala ( 無 垢 識 MUKU SHIKI)
universal e tranqüila, é o estado da consciência durante o
座禅 ZAZEN. A autêntica e pura sabedoria emana dela, ao
mesmo tempo que 無 明 MUMYŌ desaparece. Todos os
fenômenos, todas as perguntas, todas as dúvidas podem ser
resolvidas. Uma compreensão clara e penetrante, uma visão
universal alarga o campo da consciência até o infinito. A
consciência se torna infinita, o ideal e a realidade convivem
em perfeita harmonia, em unidade. Todos os aspectos
ambivalentes se fundem. Esta é a realização de
般若 波羅蜜多 HANNYA HARAMITTA, a sabedoria suprema,
o ponto que une o mundo fenomenal com o mundo da
essência eterna. 座 禅 ZAZEN significa retornar à fonte
original, encontrar a condição normal, a natureza cósmica,
voltar à essência. O homem acorrentado a sua condição
fenomênica é anormal.
Em nossos dias uma grande parte da humanidade é
anormal. A crise atual repousa única e totalmente sobre a
anormalidade do espírito do homem, que se extraviou e
perdeu a noção do essencial, perdeu seu lugar no seio do
cosmos, esqueceu seu verdadeiro valor. Ao se fechar em seu
191
egocentrismo, ele mesmo construiu com suas próprias mãos
os muros que agora o sufocam. Como um louco que sofre
por sua loucura, mas que não sabe que está louco.

心 不可得 SHIN FUKATOKU: o espírito não pode ser


apanhado.
慧 可 EKA, primeiro discípulo de Bodhidharma
(菩提達磨 BODAIDARUMA), era um discípulo sincero que
buscava o Caminho com um espírito firme e decidido. Isto
não o impediu de ter algumas dúvidas. Ele acreditava que a
origem de seus tormentos era seu espírito, e que se
conseguisse chegar até sua origem, poderia resolver suas
dúvidas. Mas, quanto mais buscava a origem, tanto mais
invisível esta se fazia, tanto mais espessa se fazia a
obscuridade, mais se complicava o labirinto de seus
pensamentos. Por isso, quando admitiu sua incapacidade e
confessou a Bodhidharma (菩提達磨 BODAIDARUMA) que
havia fracassado em sua busca, Bodhidharma
( 菩 提 達 磨 BODAIDARUMA) compreendeu que havia
chegado o momento de despertar mais profundamente seu
discípulo: a aceitação de 慧 可 EKA de sua própria
incapacidade, este princípio de renuncia é o sinal de que
agora pode compreender. Não há que se apegar a querer
fugir dos 煩悩 BONNŌ, nem conduzir o espírito até uma
busca ideal, ainda que se trate de lhe imprimir a paz. Buscar
ou fugir são 煩悩 BONNŌ universais. Não há que procurar
nada nem fugir de nada, já que não há nada que buscar nem
nada de que fugir. Há somente que esquecer, abandonar-se
na natureza cósmica. O espírito não pode ser apanhado, é
universal, infinito. Não se pode fixá-lo em lugar algum, não se
pode atribuir a ele nenhuma forma, não se pode
compreender nenhum de seus aspectos. Como 慧可 EKA
poderia chegar até a fonte do espírito? Se aqui encontramos
um aspecto, ali aparece outro, e assim, a busca pode
continuar indefinidamente. Esta é a origem dos tormentos: o
apego a querer prender, ou compreender. Mas se
192
abandonamos um de seus aspectos, todos os demais
desaparecem também. Tal é o sentido da resposta de
Bodhidharma (菩提達磨 BODAIDARUMA) :
“Seu espírito já está pacificado. Se você compreendeu
que não pode prender, segurar ou apreender este espírito,
que não pode limitá-lo, nem curvá-lo à suas conveniências,
desta maneira você se entrega à Ordem Cósmica, abre-se
para ele, abandona-se, neste momento se manifesta a
verdadeira paz cósmica dignificando seu corpo e seu
espírito.”
Tal é o ensinamento fundamental de Buda, transmitido
por todos os Mestres e Patriarcas. Buda compreendeu as
Quatro Nobres Verdades e resolveu os doze 因縁 INNEN, os
doze elos da interdependência. Esqueceu tudo e obteve o
悟 SATORI embaixo da árvore Bodhi. Depois continuou a
prática de 座禅 ZAZEN por quarenta e nove anos. Seu corpo
e seu espírito viviam em serenidade perfeita. Compreendeu o
Caminho do Meio. Compreendeu que não havia sentido em
se entregar à mortificação, tal qual ele havia feito durante
seis anos, nem dar livre curso aos desejos de satisfação dos
煩悩 BONNŌ, tal qual ele mesmo havia feito antes, quando
vivia na corte de seu pai. Ambas as atitudes produziram
sofrimento e tristeza. Nem correr atrás de nada, nem fugir de
nada. Depois de ter alcançado o 悟 SATORI, Buda deu seu
primeiro sermão sobre as 四 諦 SHI TAI (catur-vidham
satyam), as Quatro Nobres Verdades. E com o tempo isto se
converteu no fundamento do Budismo. Volto a repeti-las aqui
já que nunca insistirei o suficiente sobre sua importância:

1) 苦 諦 KU TAI: a verdade sobre o mundo fenomenal:


escuro, ignorante, infestado de sofrimentos;

2) 集 諦 SHŪ TAI: a verdade sobre a causa deste


mundo de sofrimento: a avidez, os desejos
engendrados pela ignorância;

193
3) 滅 諦 METSU TAI: a verdade sobre o mundo do
absoluto, tal e como é vivido no Despertar: felicidade
pura e serenidade;
4) 道 諦 DŌ TAI: verdade sobre o Caminho que se
deve percorrer para alcançar esta condição elevada
de paz e alegria. Esta Via é o caminho óctuplo que
tomam os homens justos.

O homem vive em perpétua insatisfação. Esta é a


verdade 苦 諦 KU TAI, a qual é uma reprimenda. A
insatisfação origina a busca. O homem, de erro em erro, de
satisfação em insatisfação, terminará por descobrir, quando
chegar o momento, seu caráter efêmero. Sua busca
desembocará na única orientação que na realidade deve ter.
Entretanto, entre sua avidez insaciável e sua busca de paz e
de verdade suprema, quanto tempo tem que passar antes
que descubra a clareza das Quatro Nobres Verdades! Não
obstante, desde já, desde este presente momento, pode-se
acabar com os sofrimentos. Tal é a força do ensinamento de
Buda, cuja máxima expressão é a postura serena do
座禅 ZAZEN e a quarta Nobre Verdade, 道 DŌ, o Caminho, a
Senda Óctupla. Finalmente, basta abandonar o ego,
esquecer de si mesmo. Todos os sofrimentos do mundo vão
se dissipar desta maneira. Comece sentando tranqüilamente,
com as pernas cruzadas e a cabeça alinhada e se deixe levar
pela consciência, sem intervir, sem medo, sem fugir de toda a
dolorosa história da humanidade. Tal e como fez o Buda
quando compreendeu no nono dia de meditação a lei
humana do encadeamento kármico, a lei dos doze
因縁 INNEN. Realizar a íntima compreensão desta lei é a
certificação do verdadeiro 悟 SATORI. Naquele momento,
tudo o que Buda quis foi ensinar a verdade que havia
compreendido, e pregou os oito caminhos da salvação:

1) 正 見 SHŌ KEN (samyag drshti).

194
正 SHŌ significa justo.
見 KEN, a visão, a compreensão.
Este primeiro caminho conduz à faculdade de ver, de
discernir e de observar corretamente. É o contrário de
無明 MUMYŌ, a ignorância.
O estudo do Caminho significa fazer florescer a
verdadeira Sabedoria. Todos os tormentos do mundo provêm
da falta de discernimento. Os ideais, incluindo as intenções,
são construídos freqüentemente sobre premissas errôneas,
já que a inteligência penetrante é confundida com a
acumulação de saber. Há que saber observar e descobrir os
erros.

2) 正 思 惟 SHŌ SHI YUI (samyag samkalpa).

思 惟 SHI YUI: o pensamento, a reflexão sem pré-


julgamentos.

Da reflexão justa nasce o comportamento exato, os


gestos corretos, as ações e as palavras justas.

3) 正 語 SHŌ GO (samyag vāc).

語 GO: as palavras.
Seguindo este terceiro caminho, podem ser produzidas
as palavras justas.
A linguagem exata deve ser a mensageira do Dharma.
Neste caso, a linguagem é criadora de bom karma. Se nosso
espírito está perturbado, se está imerso em terror, nossas
palavras seguem o mesmo curso: palavras veementes,
apaixonadas, falsas. Esta atitude é semente de mau karma.

4) 正 業 SHŌ GYŌ (samyak karmānta).

業 GYŌ: o karma, as ações.

195
Os pontos de vista justos, os pensamentos e as
palavras corretas originam um bom comportamento na vida
cotidiana.
Quando as grandes linhas da moral fundamental são
transgredidas, quando, por exemplo, mata-se, rouba-se, leva-
se uma vida licenciosa, nossa vida se converte na expressão
de um karma poderoso, incontrolado. Mas não existe nada
absoluta e definitivamente predestinado. Todo karma pode
ser corrigido a partir do momento em que se canaliza a
energia para uma direção mais propícia, para o Caminho.
Fazer 三 拝 SANPAI (prostrações), por exemplo, ou ler e
cantar os Sūtra, costurar o 袈裟 KESA (hábito de monge),
são as ações que mais eficazmente ajudam a cortar o mau
karma, ou ao menos a atenuar sua força. 座禅 ZAZEN, de
qualquer forma, é a ação mais elevada. A vida monástica é
regida de tal maneira que as múltiplas tarefas a realizar
devem conduzir o monge à paz de espírito e de corpo. A vida
em sociedade não favorece o florescimento desta serenidade.
Mas qualquer ação realizada com um espírito de
concentração profunda conduz necessariamente a um estado
de quietude. E esta quietude é produtora de bom e
destruidora de mau karma.

5) 正 命 SHŌ MYŌ (samyag ājīva).

命 MYŌ significa o modo de vida e os meios de


existência.
A prática justa do Caminho necessita uma vida regular,
ordenada, respeitosa do dever e ponderada. Seguir
道觀 DŌKAN, a prática cotidiana (o círculo do Caminho):
fazer 座禅 ZAZEN pela manhã, recitar o Sūtra das comidas
antes da refeição matinal. Depois, se necessário, dizer boas
palavras ( 真 言 SHINGON: as palavras verdadeiras, as
palavras do Dharma, sementes de bom karma).

196
Continuando, há que se concentrar sobre as tarefas
atribuídas a cada um, com espírito 無所得 MUSHOTOKU e
altruísta. E deitar, dormir, lavar-se, comer, passear às vezes,
descansar ou praticar esportes, saber distrair-se, mas não se
concentrar exclusivamente sobre as diversões: esta é a vida
justa. Uma vida simples e ordenada não é sinônimo de rotina.
O ensinamento 禅 ZEN dá sempre muito valor à criatividade.
No ciclo da vida cotidiana, nas tarefas repetidas a cada dia –
cada dia é diferente – deve soprar um vento de frescor,
frescura que nasce da descoberta, da compreensão profunda
que aquilo que é considerado excessivo freqüentemente é
dado como algo adquirido ou apreendido.

6) 正 精 進 SHŌ SHŌ JIN (samiak vyāyāma).

精進 SHŌ JIN: o esforço, a perseverança justa.


O esforço é muito importante. A facilidade avilta o
homem. O estudo do Caminho não é fácil; abandonar o ego
não é fácil. Fazer 座 禅 ZAZEN requer um esforço
perseverante, mas muitos fogem da prática por preguiça.
Vão-se a estudar outras disciplinas que consideram mais ao
seu alcance. O homem demonstra muita indulgência e
complacência consigo mesmo!

7) 正 念 SHŌ NEN (samiak smrti).

念 NEN: a atenção.
A falta de atenção é causa de todas as atribulações
que limitam nossa vida moral e física. Estar concentrado não
significa estar tenso, mas simplesmente atento, vigilante.
Progressivamente, através do 座 禅 ZAZEN, a
concentração passa a ser um hábito. Inconscientemente,
natural e automaticamente, será possível se concentrar
perfeitamente, no 道場 DŌJŌ e fora do 道場 DŌJŌ, em
todas as ações da vida cotidiana.

197
Quando o espírito é sereno, a atenção se instaura
naturalmente. Não se esqueçam que a vida muda sem
cessar, que não tem númeno, que é 空 KŪ. Conhecendo isto,
os tormentos se acalmam, os apegos se desvanecem, o
medo desaparece.
É inútil temer pela própria vida. Esta não tem realidade
própria. Nosso pensamento deve expressar esta
compreensão. 正 念 SHŌ NEN também significa
非 思 量 HISHIRYŌ, o pensamento justo, o pensamento
absoluto, mais além dos conceitos, mais além das categorias.
É inútil atormentar-se.

8) 正 定 SHŌ JŌ (samyak samādhi)

定 JŌ: a concentração, a concentração 禅 ZEN, o


禅 ZEN.
Quando se alcança este nível profundo e sereno de
profunda concentração nosso espírito, tranqüilo e sereno,
não se move mais. Imobiliza-se na dimensão sem espaço
nem tempo. O campo de consciência funde-se com o infinito.
Seu poder e sua força tomam os valores do infinito. Assim
nasce a intuição, o poder onisciente.
Mas é inútil concentrar-se sobre a obtenção destes
poderes, chamados “mágicos” pela maioria dos homens. Não
se tendo meta alguma, estes poderes aparecem de maneira
natural, automática e inconscientemente. O 座 禅 ZAZEN
desenvolve simplesmente nossas faculdades de perfeição e
de ação. Seja como for, a ciência infinita e suprema emana
da concentração profunda (samādhi). o homem sai do
ordinário graças à prática do 座 禅 ZAZEN. Volta a ser
“normal”, e de nenhuma maneira especial ou para-normal,
como o homem comum tem a tendência de defini-lo, devido à
ignorância de suas verdadeiras qualidades espirituais. O
oitavo nobre caminho aparece quando os sete primeiros
foram percorridos em nosso corpo e em nosso espírito,

198
quando já se teve um conhecimento e uma compreensão
totais. Realizar estes oito caminhos é sinônimo de perfeição.
Mas a vida, o mundo relativo e fenomênico nos ensina
a modéstia. No mundo da impermanência devemos nos
acercar da perfeição, devemos tender até ela, mas através
de um esforço natural, através do 座禅 ZAZEN, sem turvar o
pensamento com a vontade ou com a busca da obtenção dos
oito caminhos. Neste caso, uma vez que a obsessão tenha
se instalado, poderia produzir o efeito contrário.
A perfeição mais elevada do Caminho é a dimensão da
liberdade, da libertação do espírito: 無 MU, Nada, ou
非思量 HISHIRYŌ.
Esta suprema obtenção nasce do despojamento total,
graças à ação natural do 座禅 ZAZEN, sem apego, sem meta,
arrastando corpo e espírito.
正 SHŌ tem dois significados: santo e justo. Mas o
般若 心経 HANNYA SHINGYŌ diz que em 空 KŪ não há
苦 集 滅 道 KU SHŪ METSU DŌ, não há Quatro Nobres
Verdades. Também 是 故 空 中 無 色 無 受 想 行 識 ZE KO
KŪ CHŪ MU SHIKI MU JU SŌ GYŌ SHIKI, na vacuidade
inexistem os cinco agregados54.
Desta forma, 無 眼 耳 鼻 舌 身 意 MU GEN NI BI ZE
SHIN I, inexistem os cinco órgãos dos sentidos e a
consciência; 無 眼 界 乃 至 無 意 識 界 MU GEN KAI NAI
SHI MU I SHIKI KAI, inexiste o mundo da percepção; tão
pouco há 無明 亦 無 無明 尽 MUMYŌ YAKU MU MUMYŌ
JIN, ignorância e a extinção da ignorância e
老死 亦 無 老死 尽 RŌSHI YAKU MU RŌSHI JIN velhice e
morte e extinção da velhice e da morte.
無 苦 集 滅 道 MU KU SHŪ METSU DŌ, não há Quatro
Nobres Verdades. 無 知 亦 無 得 MU CHI YAKU MU TOKU,
não há sabedoria e nem obtenção.
以 無 所 得 故 I MUSHOTOKU KO: há apenas 無 所 得
MUSHOTOKU.
54
No original, “os seis objetos dos sentidos.” (N.T.)
199
Durante o 座禅 ZAZEN submergimo-nos no universo de
空 KŪ.
No 道 場 DŌJŌ, o estado de espírito muda
completamente, já que nos encontramos em um mundo
essencial, profundamente interior. O 道場 DŌJŌ é um lugar
sagrado, 空 KŪ. Ao sairmos do 道 場 DŌJŌ voltamos a
submergir em 色 SHIKI, nos fenômenos. Fora do 道場 DŌJŌ
tudo muda rapidamente. É possível beijar, falar, rir, beber
whisky... Os 煩悩 BONNŌ surgem muito rapidamente.
Eu digo sempre que entrar no 道 場 DŌJŌ é como
entrar no ataúde. Este é o mundo da paz eterna, o mundo do
悟 SATORI. Esta é a razão pela qual durante o 座禅 ZAZEN
não há Quatro Nobres Verdades, nem Oito Caminhos Justos.
Durante o 座禅 ZAZEN, faça somente 座禅 ZAZEN,
只 管 打 座 SHIKANTAZA, sentar-se somente. Quanto mais
importante é o ego, mais fortes são os desejos e os apegos,
mais profundo é o sofrimento, mais acidentado é o mundo de
色 SHIKI, o mundo fenomenal. Durante o 座禅 ZAZEN, a
consciência 非 思 量 HISHIRYŌ se manifesta, a quietude
investe o corpo e o espírito, o sofrimento desaparece. E se
não há sofrimento, não há necessidade de compreender as
Quatro Nobres Verdades, nem seguir o Caminho Óctuplo, da
mesma maneira que quando se está com boa saúde não há
por que seguir alguma terapia. Em 空 KŪ, não há
necessidade das Quatro Nobres Verdades, enquanto que no
mundo de 色 SHIKI, no mundo dos fenômenos, da vida
social, a prática do Caminho Óctuplo é necessária. Muitos
fenômenos aparecem quando se está indo para o trabalho ou
quando voltamos à nossas casas, e gostaríamos de escapar
destes fenômenos. O espírito o deseja, mas o corpo não o
segue. A harmonia perfeita não se constitui no mundo
fenomênico. A unidade, inclusive entre seres intimamente
ligados é um ideal. A comunhão de pensamento só pode
existir no não pensamento absoluto. Este é o domínio de
空 KŪ e não o de 色 SHIKI. Em 色 SHIKI cada um quer

200
sentir-se envolto por seu cosmos. Em 空 KŪ o Cosmos é
Uno, sem disparidade de consciência, sem diferenciação.
O Buda, depois de ter alcançado o 悟 SATORI, pregou
durante quarenta e cinco anos. O primeiro que ensinou foram
as Quatro Nobres Verdades; em continuação e devido que
estas são de árdua compreensão, explicou a lei das doze
causas interdependentes; e por ultimo pregou as seis
Paramitā, ou seis virtudes.
Dirigiu-se aos 聲聞 SHOMON (Shrāvaka). Os homens
ordinários. Todos se reuniam ao seu redor e escutavam
atentamente à suas palavras. O Buda utilizava palavras
especiais para eles, palavras que alcançavam suas
sensibilidades e que conseguiam despertá-los. Quando se
dirigia aos eruditos, ou aos sofistas de sua época, os
緣覺 ENGAKU (Pratyiekabuddha), utilizava sua lógica e lhes
demonstrava de maneira irrefutável a veracidade dos doze
因 縁 INNEN. Também instruía aos Bodhisattva. Estes já
haviam alcançado uma certa compreensão da Lei e um certo
grau de despertar. Exortava-os a praticar as 六道 ROKUDŌ,
as seis Paramitā. Diz-se que Buda passou quinze anos de
sua vida falando aos 聲聞 SHOMON (Shrāvaka), quinze anos
aos 緣覺 ENGAKU (Pratyiekabuddha) e outros quinze anos
aos Bodhisattva. Mas seu ensinamento mais elevado não era
expresso com palavras. Simplesmente se sentava e aqueles
que compreendiam a importância desta atitude o imitavam. A
assembléia dos praticantes submergia então no silêncio. O
ensinamento das Quatro Nobres Verdades, dos doze
因縁 INNEN e das seis virtudes operava em cada um, em seu
interior, de maneira imediata, sem os desvios da linguagem,
por imersão direta da consciência na verdade universal, em
空 KŪ.
A verdadeira Sabedoria se manifesta assim durante o
座 禅 ZAZEN, sem esforço, sem buscá-la, sem tentar
compreendê-la nem obtê-la. Quando o espírito não busca
nada, quando se despojou de tudo, na atitude

201
無 所 得 MUSHOTOKU, esta Sabedoria se realiza natural,
inconsciente e automaticamente. Isto é o 悟 SATORI, um
悟 SATORI cuja dimensão supera a do recinto do
道場 DŌJŌ, sem sair da postura do 座禅 ZAZEN. Através de
uma longa prática de 座禅 ZAZEN e de uma assiduidade
constante, o espírito 無 所 得 MUSHOTOKU, o espírito
desapegado, continua na vida cotidiana e permite não
somente vencer, mas também iluminar todos os fenômenos
do mundo, e transformá-lo em tributo ao Caminho.

無所得 MUSHOTOKU: é a segundo noção chave do


般若 心経 HANNYA SHINGYŌ. A primeira, como já vimos
é 諸 法 皆 空 SHO HŌ KAI KŪ: tudo é 空 KŪ, Nada.
Não há entidade. O segundo princípio, 無所得 MUSHOTOKU
depreende-se diretamente deste rico ensinamento: posto que
tudo é 空 KŪ, vacuidade, não há nada que obter, não há
nada que buscar. Nossa atitude de espírito deve ser 無所得
MUSHOTOKU, sem busca de obtenção, sem meta, nada que
alcançar.

以 無 所 得 I MUSHOTOKU: somente
無所得 MUSHOTOKU, a única realidade é que não há nada
que obter.
Neste momento do 般若 心経 HANNYA SHINGYŌ, a
noção de 無所得 MUSHOTOKU é a dobradiça que articula as
duas metades do Sūtra. Todas as teorias, todos os princípios
e as leis desembocam em 無所得 MUSHOTOKU, que se
converte assim no cume do Sūtra. A partir de
無 所 得 MUSHOTOKU elaboram-se todas as realizações
justas do corpo, da palavra e do pensamento. O
般若 心 経 HANNYA SHINGYŌ se alicerça sobre os
seguintes dois princípios fundamentais:

諸法 皆 空 SHO HŌ KAI KŪ:

202
Todas as existências são 空 KŪ.

五薀 皆 空 GO-UN KAI KŪ:


Os cinco agregados são 空 KŪ.

O corpo e o espírito são 空 KŪ, não têm númeno, não


têm entidade própria nem existência particular.

Sobre estes fundamentos se erguem as seguintes leis:

Em primeiro lugar: 色 即 是 空 SHIKI SOKU ZE KŪ.


O mundo fenomenal não é diferente de 空 KŪ. 色 SHIKI
é 空 KŪ. Todas as formas e todas as forças, visíveis ou
invisíveis, todos os fenômenos e todas as existências são
空 KŪ.

Em segundo lugar, o texto se refere à doutrina de


Nāgārjuna (龍樹 RYŪJU):

舎利子、是諸法空相、
不生不滅、不垢不浄、不増不減、

SHARISHI, ZE SHO HŌ KŪ SŌ,


FU SHŌ FU METSU, FU KU FU JŌ, FU ZŌ FU GEN

Estas frases tem sido explicadas na doutrina do


Caminho do Meio 中 論 CHŪRON de Nāgārjuna
(龍樹 RYŪJU).

203
Todos os fenômenos cósmicos, todas as existências
constituem o potencial temporal existente, ou manifestado,
atualizado no instante. Cada um destes fenômenos depende
da lei de interdependência, na qual a multiplicidade de
fenômenos depende da multiplicidade das relações que os
sustentam. Por isso, apesar de que estes fenômenos
temporais tomem uma forma, transformando-se e se
desvanecendo, sua substancia não foi produzida nem
destruída, não aumentou nem diminuiu. Esta substancia é o
Poder Cósmico Fundamental, eternamente imutável. É o
potencial supremo de que procedem todas as
potencialidades fenomenais, impermanentes, em perpétua
mudança. Suas formas aparecem e desaparecem seguindo
as interferências cósmicas rigorosamente ordenadas. Ao
desintegrarem-se retornam à sua origem, à essência
cósmica, 空 KŪ.

204
Uma terceira etapa anuncia a doutrina de Vasubandhu
(世親 SESHIN)55:

是故空中無色無受想行識、
無眼耳鼻舌身意、無色声香味触法、
無眼界乃至無意識界、

ZE KO KŪ CHŪ MU SHIKI MU JU SŌ GYŌ SHIKI,


MU GEN NI BI ZES-SHI I,
MU SHIKI SHŌ KŌ MI SOKU HŌ,
MU GEN KAI NAI SHI MU I SHIKI KAI,
Vasubandhu (世親 SESHIN) desenvolveu amplamente
este tema em sua 唯 識 YUISHIKI (citta-mātra), doutrina
segundo a qual todos os fenômenos são a expressão
(projeção) de nossa consciência. Todos os fenômenos estão
contidos em sua forma residual (ou latente) na consciência
profunda Alaya (阿賴耶 識 ARAYA SHIKI). Os fenômenos se
manifestam em uma infinita diversidade através da ação dos
五 薀 GO-UN (os cinco agregados ou os cinco grupos
fundamentais) e dos dezoito mundos (as seis faculdades
cognitivas: os órgãos dos sentidos, os seis objetos e as seis

55
Vasubandhu (世親 SESHIN ou 婆修盤頭 BASHUBANZU), nascido
no séc. IV d.C. juntamente com seu irmão Asanga (無著 MUJAKU ou
阿 僧 伽 ASŌGA) foram os fundadores da Escola
瑜 伽 行 派 YUGAGYŌ HA (Yogācāra). Compôs o influente
唯 識 三 十 論 頌 YUISHIKI SANJŪ RONSHŌ (Trimsikā-vijñapti-mātra
shāstra) Trinta Versos sobre a Mente Apenas, além de outras obras. É
também considerado o 22º dos 28 Patriarcas
(二十八祖 NIJŪHACHISO). (N.T.)

205
consciências correspondentes). Em último lugar, sujeito e
objeto se desvanecem em 空 KŪ, no não diferenciado.
Não obstante, o 般若 心経 HANNYA SHINGYŌ supera
a doutrina de Vasubandhu (世親 SESHIN), na medida em
que nega tanto a realidade dos fenômenos perceptíveis como
a realidade da consciência perceptiva. Enquanto que a
representação subjetiva constitui o fundo real da doutrina de
Vasubandhu ( 世 親 SESHIN), no 般 若 心 経 HANNYA
SHINGYŌ ambas representações, subjetiva e objetiva, são
consideradas irreais.

A quarta etapa explica o método de observação com a


ajuda dos doze 因 縁 INNEN e da Lei do karma que se
depreende deles. A lei do karma é negada no
般若 心経 HANNYA SHINGYŌ, assim como a teoria dos doze
elos da interdependência. Em 空 KŪ não há nenhum vestígio
de karma nem de 縁起 ENGI (ou 因縁 INNEN). O karma
desaparece durante o 座禅 ZAZEN. Não resta nada.
Shakiamuni Buda compreendeu o mundo através da
intuição que teve sobre a cadeia da interdependência, a qual
parte da ignorância ( 無 明 MUMYŌ) e desemboca na
ignorância. Ao compreender isto despertou, e seu despertar
foi o final da ignorância. Desta maneira, os doze 縁起 ENGI e
o Universo inteiro se desvaneceram com a extinção da
ignorância. 無 明 MUMYŌ – a ignorância – sucede a
無 無明 MU MUMYŌ – a não ignorância. As duas coexistem
e se complementam necessariamente. Este é o paradoxo, a
ambivalência da verdade. Esta verdade é mais evidente
ainda durante o 座禅 ZAZEN, durante o qual o estado de
perfeita concentração (samādhi) é 無 無明 MU MUMYŌ, e
durante o qual o estado de observação permite compreender
e perceber 無 明 MUMYŌ. Para algumas pessoas, meu
口宣 KUSEN pode ser 無明 MUMYŌ, parecido com uma
música que as tocam em sua sonolência. Estas pessoas se
obscurecem em 昏沈 KONCHIN, a ignorância. Para outros,
206
minhas palavras são um “ZENGLISH” 56 incompreensível,
sons murmurados, pronunciados com uma voz rouca. Outros
nada ouvem, mas interceptam algumas palavras que se
transformam num bom motivo para sonhar. A ignorância se
propaga desta maneira e estas pessoas erram pelo
散亂 SANRAN. Eu falo continuamente de 昏沈 KONCHIN e
散亂 SANRAN. Ambos estados se alternam, mas quando
nem um nem outro predomina, aparece 非思量 HISHIRYŌ.

A quinta etapa se refere à observação das Quatro


Nobres Verdades: 苦 集 滅 道 KU SHŪ METSU DŌ ou 四
諦 SHI TAI.
As duas primeiras [苦 KU (duhka): o sofrimento e 集 JŪ
(samudaya): a causa do sofrimento] e as duas últimas [滅
METSU (nirodha): a extinção do sofrimento e 道 DŌ (mārga):
o Caminho para acabar com o sofrimento] constituem o
método para alcançar o Nirvāna. Particularmente,
representam o ponto de vista religioso dos budistas Hīnayāna
(小乗仏教 SHŌJŌ-BUKKYŌ) (“Pequeno Veículo).
O 般 若 心 経 HANNYA SHINGYŌ nega tanto a
existência destas Quatro Nobres Verdades como a do
Nirvāna, enquanto objetos de obtenção. As 四諦 SHI TAI
emitidas por Buda são verdadeiras à nível da observação
fenomenal, mas desaparecem quando entramos no mundo
de 空 KŪ, do 座禅 ZAZEN.

A sexta etapa desenvolve o tema oposto ao que a


doutrina 天台 TENDAI pregará mais tarde.
O 般若 心経 HANNYA SHINGYŌ diz:
無 知 亦 無 得 MU CHI YAKU MU TOKU.
Não há sabedoria, não há nada que obter.

56
Expressão utilizada por Deshimaru Roshi para designar sua
peculiar maneira de falar inglês.

207
O ensinamento 天台 TENDAI sustenta que, graças à
sabedoria, podemos compreender que todos os fenômenos
são 空 KŪ: 皆 空 KAI KŪ. Tudo é 空 KŪ. Esta
compreensão se fundamenta no poder da sabedoria, cujos
méritos são obtidos através da prática autêntica.
O 般若 心経 HANNYA SHINGYŌ, antes mesmo de que
esta doutrina viesse à luz, rechaça de pronto tais afirmações.
Esta forma de antecipar-se a qualquer forma de doutrina e de
superar seus limites categóricos constitui a força e a
profundidade deste Sūtra. Utilizando a negação, transcende
qualquer afirmação, qualquer definição limitativa e aponta
diretamente até o absoluto, 空 KŪ. A grandeza deste Sūtra
nasce de uma experiência profunda, autêntica e inefável.
Continuamente nos remete à experiência vivida, à prática do
座 禅 ZAZEN que é a única verdadeiramente 空 KŪ. A
experiência do 座禅 ZAZEN corrói quaisquer definições: usa-
as, esvazia-as, arrebenta-as. Nada subsiste, apenas a
realidade absoluta da experiência vivida na qual este mesmo
空 KŪ não é contestado, na qual sua essência está fundida
na Essência. O mesmo 空 KŪ é negado.
A única afirmação do 般若 心経 HANNYA SHINGYŌ esta
implícita, mas transparece a cada frase: trata-se da afirmação
subjacente do 座禅 ZAZEN, a dimensão mais elevada que
submerge diretamente em 空 KŪ, através do espírito
無所得 MUSHOTOKU.
Muitos pensam que para se obter o 悟 SATORI temos
que cultivar a sabedoria, resolver os 公案 KOAN, possuir um
vasto saber filosófico ou teológico, etc.... E que desta
maneira, podemos nos comunicar com Deus e obtermos a
verdadeira experiência mística.
Mas a verdadeira consciência transcendental é
非思量 HISHIRYŌ. E a consciência 非思量 HISHIRYŌ não
necessita sabedoria nem mérito. É infinita.

208
以 無所得 故。

I MUSHOTOKU KO.

Esta expressão constitui o ponto culminante do


般若 心経 HANNYA SHINGYŌ. Não há um dia desde que
cheguei na França que não tenha pronunciado este
無所得 MUSHOTOKU. Esta é a essência do 座禅 ZAZEN, a
essência do 般若 心経 HANNYA SHINGYŌ.
Tudo é negado com este simples termo: qualquer
doutrina, qualquer idéia, qualquer conceito, todo o Budismo e
todos os teólogos. Fixar-se sobre um só objetivo, suportar o
menor prejuízo, ou o pensamento mais ínfimo, afasta-nos
inelutavelmente do verdadeiro 座禅 ZAZEN. Se em nossa
prática persiste o menor objeto, a menor busca de resultado,
ainda que acreditemos praticar o Budismo, fazendo-nos
monges, respeitando os preceitos, seguindo uma prática
rigorosa, cairemos no engano, vamos nos precipitar em uma
atitude mortificadora e egoísta, seremos presas do
dogmatismo.
O 悟 SATORI não é outra coisa que compreender e
chegar a ser intima e profundamente 無所得 MUSHOTOKU.
興道沢木 KŌDŌ SAWAKI dizia que o 悟 SATORI era
um “dano” total, uma “perda” absoluta. Em outros termos, o
悟 SATORI é um despojamento, a morte do ego, a extinção
dos desejos egoístas e de qualquer busca.

Eis aqui um conto:


Em um pequeno templo na montanha vivia um monge
jovem com seu mestre. Este jovem monge não deixava de
fazer 座禅 ZAZEN e acreditava ter obtido o 悟 SATORI.
“Sou Buda e não necessito dos Sūtra”, pensava.
Amontoou todos os Sūtra que pôde encontrar no
templo, destacou-os folha por folha e colocou-os no banheiro,
para serem utilizados como papel higiênico.
209
Ao ver isto, o Mestre ficou colérico:
“馬鹿野郎!BAKAYARŌ!”, gritou. “Cretino!”
Mas o jovem monge respondeu impassível:
“Estes Sūtra explicam o método para obter o 悟
SATORI. Antes de obter o 悟 SATORI são úteis, mas depois
não são mais valiosos que o papel higiênico.”
Mas o Mestre não via as coisas desta forma e aos
berros, completou:
“Cretino, mil vezes cretino! Se seu traseiro é o traseiro
de um Buda, não o limpe com esse papel velho e amarelado.
Seu traseiro é digno de um papel branco, virgem e
imaculado! Como você pode utilizar esse velhos papeis de
Sūtra?”

Aniquilar o espírito de apego, não aderir a nada, não


esperar nada, não perseguir nada, não querer nada para si,
isto é 無所得 MUSHOTOKU.

210



無所得 “MUSHOTOKU”: Nada que obter.

211





波羅僧羯諦 “HARASŌGYATEI”
Vamos juntos mais além.
212
VÁ MAIS ALÉM DO MAIS ALÉM

213
BO
DAI
SAT
TA
O Bodhisattva.

214




215
HAN
NYA
KO HA E
RA
MIT
TA
Graças a esta Sabedoria que conduz mais além.

216


故 波 依


217
SHIN
MU MU
KO KEI KEI
GE GE
Alcança uma consciência (SHIN) sem (MU) apegos (KEI)
e obstáculos (GE) e sem (MU) causa (KO) de apegos (KEI)
e obstáculos (GE).

218

無 無
故 罣 罣
礙 礙

219
MU
U
KU
FU
Não há (MU) [em seu espírito] medo (U) nem (FU) temor (KU).

220




221
TEN ON
DŌ RI
MU IS
SŌ SAI
[Seu espírito] está livre (ON RI) de todas (IS-SAI)
perturbações (TEN DŌ) e ilusões (MU SŌ).

222
顚 遠
倒 離
夢 一
想 切
223
KU
GYŌ
NE
HAN
Finalmente chega ao (KU GYŌ) Nirvāna (NE HAN).

224




225
SAN
ZE
SHO
BUTSU
Todos (SHO) os Budas (BUTSTU) dos três (SAN)
Mundos (ZE) [passado, presente e futuro].

226




227
HAN
NYA
KO HA E
RA
MIT
TA
Graças a esta ilimitada (HANYA) Sabedoria (HARAMITTA).

228


故 波 依


229
SAN TOKU
MYAKU A
SAN NOKU
BO TA
DAI RA
Alcançam (TOKU) a Consciência mais elevada, a Suprema
Realização (A NOKU TA RA SAN MYAKU SAN BODAI).

230
三 得
藐 阿
三 耨
菩 多
提 羅
231
HAN
NYA
HA KO
RA CHI
MIT
TA
Portanto (KO CHI) HANNYA HARAMITTA.

232


波 故
羅 知

233
ZE ZE
DAI DAI
MYŌ JIN
SHU SHU
É (ZE) o grande (DAI) Mantra (SHU) Universal (JIN).
É (ZE) o grande (DAI) Mantra (SHU) resplandecente (MYŌ).

234
是 是
大 大
明 神
呪 呪
235
ZE ZE
MU MU
TŌ D Ō
D Ō SHU
SHU
É (ZE) o Mantra (SHU) inigualável (MU JŌ).
É (ZE) o Mantra (SHU) incomparável (MU TŌ DŌ).

236
是 是
無 無
等 上
等 呪

237

JO
IS
SAI
KU
Aquele que extingue (NŌ JO) todo o tipo (IS-SAI)
de sofrimento (KU).

238





239
SHIN
JITSU
FU
KO
Isto é Verdade (SHIN JITSU) não (FU) é mentira (KO).

240




241
HAN
NYA KO
SHU HA
RA SETSU
MIT
TA
Este (KO) Mantra (SHU) proclamado (SETSU)
por HANNYA HARAMITTA.

242

若 故
呪 波
羅 説

243
SOKU
SETSU
SHU
WATSU
Este (SOKU) Mantra (SHU) se diz (SETSU) assim (WATSU):

244




245
HA HA GYA
RA RA TEI
SŌ GYA GYA
GYA TEI TEI
TEI
Vamos (GYA TEI), vamos (GYA TEI),
Vamos (GYA TEI) juntos (HA RA)
Vamos (GYA TEI) juntos (HA RA) mais além (SŌ).

246
波 波 羯
羅 羅 諦
僧 羯 羯
羯 諦 諦

247

JI
SO
WA
KA
Até a Realização Última da Vida (BŌ JI).
Que assim seja (WA KA).

248





249
HAN
NYA
SHIN
GYŌ
A essência (SHIN) do Sūtra (GYŌ) da Sabedoria (HANNYA).

250




251
COMENTÁRIOS

菩提蕯埀。
依般若波羅蜜多故。
心無罣礙無罣礙故。
無有恐怖。遠離一切顚倒夢想。
究竟涅槃。三世諸仏。
依般若波羅蜜多故。
得阿耨多羅三藐三菩提。
故知般若波羅蜜多。
是大神呪。是大明呪。
是無上呪。是無等等呪。
能除一切苦。真実不虚。
故説般若波羅蜜多呪。
即説呪日。

羯諦、羯諦、波羅羯諦、
波羅僧羯諦、菩提薩婆訶。

般若心経。

252
BODAI SATTA.
E HANNYA HARAMITTA KO.
SHIN MU KEI GE MU KEI GE KO.
MU U KU FU. ON RI IS-SAI TEN DŌ MU SŌ.
KU GYŌ NE HAN. SAN ZE SHO BUTSU.
E HANNYA HARAMITTA KO
TOKU A NOKU TARA SAN MYAKU SAN BODAI.
KO CHI HANNYA HARAMITTA.
ZE DAI JIN SHU. ZE DAI MYŌ SHU.
ZE MU JŌ SHU. ZE MU TŌ DŌ SHU.
NŌ JO IS-SAI KU. SHIN JITSU FU KO.
KO SETSU HANNYA HARAMITTA SHU.
SOKU SETSU SHU WATSU.

GYATEI, GYATEI, HARAGYATEI,


HARASŌGYATEI, BŌJISOWAKA.

HANNYA SHINGYŌ.

As pessoas calculam sempre: mais-menos, lucro-


prejuízo. Mas a educação dos Mestres 禅 ZEN repousa
fundamentalmente sobre a noção de 無所得 MUSHOTOKU.
Ensinam sobre a oferenda ( 布施 FUSE, doação) gratuita.
Pode ser uma doação de trabalho, de bens materiais, etc. A
atitude justa é praticar 無所得 MUSHOTOKU .
Há que se esquecer a quem se dá, quem está doando
e o que está sendo doado. A ação não deve ter nenhuma
meta. Este é a verdadeira doação 無所得 MUSHOTOKU.

253
A maioria das pessoas, quando dá algo, quando
convida alguém ou quando presta algum serviço, calcula
sempre suas ações, e espera uma recompensa, o
agradecimento.

菩提 蕯埀 無所得

BODAI SATTA MUSHOTOKU.


O que é 菩提 蕯埀 BODAI SATTA?
菩提 BODAI: Bodhi, 悟 SATORI, ir sobre o Caminho.
蕯埀 SATTA: (sattva, em sânscrito), vivente, voltar aos
seres viventes.
菩提 蕯埀 BODAI SATTA (ou Bodhisattva) é uma noção
fundamental do Budismo Mahāyāna ( 大 乗 仏 教 DAIJŌ-
BUKKYŌ), já que abarca os dois planos, relativo e
absoluto 57 . É o ponto que une a ambos os mundos. O
Bodhisattva é assim o ser do 悟 SATORI que se
compromete no mundo para salvar os seres viventes.
菩 提 BODAI: é a dimensão do absoluto, fazer
座禅 ZAZEN, estar em unidade com 空 KŪ.

57
Toda a realidade é composta de dois planos, duas verdades,
chamadas 二諦 NITAI (satya-dvaya), que são divdidas em:

- 勝義諦 SHŌGITAI (paramârtha-satyatā), verdades absolutas,


aquelas que são experienciadas pelos seres iluminados. Sendo
transcendentes à quaisquer construções dualísticas, não podem ser
exatamente expressas lingüisticamente.
- 世俗諦 SEIZOKUTAI (samvrti-satya), verdades relativas ou
convencionais, que são as experimentadas pelos seres não
iluminados e que são ordinariamente expressas em construções
linguísticas dualistas. (N.T.)

254
蕯埀 SATTA é a dimensão do relativo: submergir no
mundo, trabalhar com todos os seres, para poder
compreendê-los, ajudá-los e guiá-los pela Via justa.
Fazer 座 禅 ZAZEN, recitar os Sūtra ou costurar o
袈 裟 KESA representam apenas Bodhi, o 悟 SATORI.
Separar-se do mundo. Mas o valor elevado do Budismo
Mahāyāna ( 大乗 仏教 DAIJŌ-BUKKYŌ), sua superioridade
sobre o Hīnayāna (小乗仏教 SHŌJŌ-BUKKYŌ), reside nesta
compaixão dirigida a todos os seres sofredores, compaixão
ativa, que trabalha no mundo e traça nele o Caminho. É o
contrário da vida de ermitão, vida de reclusão e voltada para
si mesmo. Todas as formas de Budismo Hīnayāna
(小乗仏教 SHŌJŌ-BUKKYŌ), assim como o 臨済 宗 RINZAI
SHŪ, exortam o praticante a isolar-se do mundo com o fim de
não sofrer suas tentações e poder eliminar os 煩悩 BONNŌ
para alcançar rapidamente o 悟 SATORI com a ajuda do
ascetismo e das mortificações. Esta atitude é puro egoísmo.
É praticar somente 菩提 BODAI. Mas o 悟 SATORI obtido
desta maneira não é o Supremo 悟 SATORI. Falta-lhe a
integridade do desapego, da falta de discriminação. Uma
atitude assim não pode conduzir à unidade perfeita. Esta é a
razão pela qual se diz que o Hīnayāna (小乗 SHŌJŌ) é uma
etapa intermediária na realização, e que o monge Hīnayāna (
小 乗 SHŌJŌ) deverá se converter ao Mahāyāna
(大乗 DAIJŌ) para realizar plenamente o Caminho.

255
依 般若 波羅蜜多 故。

E HANNYA HARAMITTA KO.

Se a observação justa é praticada com o espírito


無 所 得 MUSHOTOKU aparece a sabedoria
般若 波羅蜜多 HANNYA HARAMITTA. Esta sabedoria não
surge da consciência pessoal, mas da consciência cósmica,
ilimitada. Quando nossos pensamentos e nossas ações são
justos, quando não buscamos nada para nós mesmos, o
espírito alcança a mais alta liberdade.
心無罣礙 SHIN MU KEI GE: o espírito sem obstáculos.
A verdadeira liberdade se obtém através do sacrifício
do ego. Dar uma grande importância à sua própria pessoa
não é a verdadeira liberdade. Muitos sofrimentos e problemas
surgem de uma atitude assim.
Se o espírito está em total harmonia com a Ordem
Cósmica, quando é 無所得 MUSHOTOKU, já não há nada
que temer por nossa própria pessoa. O homem moderno
evolui no medo e na ansiedade, devido a um apego
excessivo ao seu ego, desenvolvido pelo meio em que vive.
Suas relações consigo mesmo e com os demais são
uma trama frágil de laços neuróticos. Vive-se sempre no
medo de perder, no desejo de obter. Mas tudo isto é
無 常 MUJŌ: 諸 行 無 常 SHOGYŌ MUJŌ, tudo é
impermanente, relativo, sem realidade. Tudo nasce, vive e
desaparece. Não há nada que obter. O homem nasce e se
encaminha inexoravelmente para a morte. O que é que se
pode conservar?

256
無 知 亦 無 得。
以 無所得 故。

MU CHI YAKU MU TOKU.


I MUSHOTOKU KO.

Volto a esta passagem. Existem dois comentários


interessantes desta frase:
以 無所得 故 I MUSHOTOKU KO marca a conclusão da
primeira parte do 般 若 心 経 HANNYA SHINGYŌ, e
corresponde ao final do diálogo ( 問 答 MONDO) entre
Avalokiteshvara ( 観 自 在 KANJIZAI) e Shāriputra
(舎利子 SHARISHI).
O Bodhisattva Avalokiteshvara é o símbolo da
compaixão do Buda. Ensina a Shāriputra a verdadeira
sabedoria. Para isso, nega a utilidade das funções mentais,
dos conhecimentos, da filosofia e das doutrinas
( 十 二 縁 起 JŪNI ENGI, os doze elos da cadeia da
interdependência, 四諦 SHI TAI, as Quatro Nobres Verdades,
八正道 HASSHŌDŌ, os oito caminhos justos).
O 般若 心経 HANNYA SHINGYŌ é particularmente o
Sūtra da negação.
Avalokiteshvara se dirige nele a Shāriputra, o
representante por excelência dos intelectuais e filósofos. Este
último sabe tudo, compreende tudo, possui um vasto saber,
mas lhe falta a dimensão da compaixão, primordial sem
embargo, para se querer penetrar no Caminho, tal e qual o
ensina Avalokiteshvara.
無 所 得 MUSHOTOKU: o abandono total de si, dos
pensamentos próprios, das metas próprias, dos desejos e de
toda a atividade mental. O esquecimento de tudo o que
constitui a tela de fundo do ego. A verdadeira compaixão
consiste neste abandono, começa por ele e termina nele.

257
Esta é a conclusão do diálogo entre Avalokiteshvara e
Shāriputra. Finalmente, a sabedoria mais elevada, a
sabedoria transcendental é sem meta, manifesta-se mais
além da consciência pessoal. É 無所得 MUSHOTOKU. Não é
o resultado do pensamento discursivo, mas emana das
profundezas inconscientes do espírito e do corpo,
profundidades que são da mesma natureza que a supra-
consciência cósmica.

258
以 無所得 故。
菩提 蕯埀。依 般若 波羅蜜多 故。
心無罣礙無罣礙故。
無有恐怖。遠離一切顚倒夢想。
究竟涅槃。
I MUSHOTOKU KO.
BODAI SATTA. E HANNYA HARAMITTA KO.
SHIN MU KEI GE MU KEI GE KO.
MU U KU FU. ON RI IS-SAI TEN DŌ MU SŌ.
KU GYŌ NE HAN.
無 所 得 MUSHOTOKU é a conclusão da primeira
metade do 般若 心経 HANNYA SHINGYŌ e se converte no
tema da segunda parte.
O Bodhisattva, graças a 般若 波羅蜜多 HANNYA
HARAMITTA, a sabedoria suprema, explica os méritos de
無所得 MUSHOTOKU.

心無罣礙無罣礙故。

SHIN MU KEI GE MU KEI GE KO.


罣 KEI significa rede e 礙 GE: obstáculo.
Quanto mais o homem deseja ser livre, menos o é, já
que sua aspiração de liberdade provém da busca da
satisfação de seus desejos. A liberdade buscada neste caso
é a expressão de um apego reforçado ao ego. É a expressão
de uma fuga que vai contra a Ordem Cósmica e que aperta
as malhas da rede em que se encontra prisioneiro: seu
próprio ego. Quanto mais forte é o ego, mais se fecha a rede.
O Bodhisattva tem o espírito livre, sem ego. É livre
universalmente. Mas a prática desta autêntica liberdade vai
259
de encontro a “liberdade” buscada pelo mundo. A prática do
Bodhisattva consiste em abandonar o ego, sem esquecê-lo,
seguindo as regras comuns – durante um 攝心 SESSHIN, por
exemplo – aceitando as admoestações do mestre,
conformando-se à sua educação, etc. Tudo isto ajuda a
perder o ego, e não a exaltá-lo.
Combater pelas vaidades do mundo materialista e
concupiscente, lutar por pretensões honoríficas, tudo isto é
apego vulgar à ninharias. Mas este apego é tão grosseiro que
cedo ou tarde o homem desperta desta estupidez e torpeza.
O ponto perigoso aparece quando este apego é
sinuosamente dissimulado atrás de um ar de falsa liberação,
tal como, repito, o caso dos ermitões, que se separam do
mundo e buscam, em seu egoísmo, a obtenção do Caminho
para eles mesmos, indiferentes ou pior ainda, desprezando a
dor do mundo. Sua necessidade de solidão, seu retiro, cuja
meta é se elevar - eles apenas e apenas para eles, até a
realização do Caminho – está na direção diametralmente
oposta da verdadeira liberdade. Também neste caso a rede
se fecha, devido à estreiteza de sua intenção.
A autêntica liberdade pode ser realizada apenas
quando o ego se conforma à Ordem Cósmica. Conformar-se
à Ordem Cósmica é rechaçar totalmente o corpo e o espírito,
e não guardar o menor rastro de complacência. A melhor
maneira é fazer 座 禅 ZAZEN, sem dúvida, mas para a
salvação de toda a humanidade.
Isto significa virar criança quando ajudar uma criança,
transformar-se em ancião quando ajudar um ancião. Significa
ser malandro quando ajudar um malandro, ou santo quando
ajudar um santo.
Tal é o voto que realiza o Bodhisattva quando se
compromete com o mundo. Seu 悟 SATORI é amplo, nobre
e poderoso. Sua influência resplandece no mundo. E o
mundo, longe de ser um obstáculo, é a via na qual se atualiza
seu 悟 SATORI.

260
Se não se tem ego, não se teme nada. Quando não se
possui nada, não se tem medo de perder. Os obstáculos e as
dificuldades se convertem em modestos contratempos
surgidos em nosso caminho com a finalidade de manter
nosso espírito vigilante, e podem ser utilizados como um
treinamento contínuo e sem relaxamento de nosso não ego.
Tal é sabedoria nascida de 無所得 MUSHOTOKU, e que o
Bodhisattva atualiza no não medo.

Embaixo de uma ponte vivia uma família de mendigos,


um homem, sua mulher e seu filho. Um dia, ao voltar de sua
mendicância, a mulher disse ao marido:
“Hoje nada me deram. Passaram uns ladrões e fizeram
um arrastão pelas casas. As pessoas não me abriam as
portas porque tinham medo.”
Ao ouvir estas palavras, o filho, que ainda era uma
criança, disse:
“Papai, temos sorte! Os ladrões nunca entram em
nossa casa!”
“Realmente”, disse o pai. “Devemos agradecer nossa
pobreza. Este é o mérito de seus pais. Ninguém vem roubar-
nos nesta ponte!”

O homem moderno perdeu o sentido dos valores,


perdeu o essencial. Descentrado, extraviado, precipita-se
sobre as satisfações materiais com uma avidez de
esfomeado. Avidez de bens, avidez de reputação, de
eloqüência, de “saber”, e sobre tudo, como pano de fundo,
avidez de superioridade.
Não ter “mais e mais” é perder esta superioridade
sobre os demais. E esta perda é aterradora. A exaltação do
ego, o orgulho, alcançam em nossos dias cotas perigosas.
A morte aterroriza. Todo mundo conhece a conclusão
de nossa viagem terrestre, ainda que ninguém a admita para
si mesmo. Todo mundo se angustia por um mistério, que não
é mistério mas ignorância. O maior mistério reside nesta vida,
na vida moribunda dos seres vivos, ou melhor, na vida deste

261
grande número de mortos vivos, já que o egoísmo é a morte
mais escura, a morte da verdadeira vida cósmica, um estado
de torpeza tenebrosa. Não obstante, a maioria o ignora!
Todo mundo se inquieta por seu corpo, por sua beleza
e por sua saúde. Esta inquietude é exagerada. As
enfermidades são produzidas pelo ego. O câncer é uma
manifestação do egoísmo. O que é preciso fazer então é
começar por curar o ego.
Abrir-se, abandonar o ego, significa neutralizar as
enfermidades. Seguir a Ordem Cósmica é a terapia mais
saudável para o corpo e para o espírito. E esta cura nos
conduz à alegria suprema da vitória sobre a vida e a morte. A
grande sabedoria 般若 波羅蜜多 HANNYA HARAMITTA
emana da paz que sucede a este combate ao ego. A
verdadeira morte, a morte de si mesmo, transforma-se em
alegria infinita, estado de profunda serenidade.

顚 倒 夢 想 TEN DŌ MU SŌ: oposições e perturbações


desaparecem, absorvidas no Nirvāna.

心無罣礙無罣礙故。
無有恐怖。
遠離一切顚倒夢想。

SHIN MU KEI GE MU KEI GE KO.


MU U KU FU.
ON RI IS-SAI TEN DŌ MU SŌ.
遠離 ON RI significa separação. 一切 IS-SAI: todo.
顚 倒 TEN DŌ: perturbações. 夢 MU: o sonho. 想 SŌ: a
imaginação, o engano.

262
Uma noite, enquanto passeava, uma jovem viu uma
serpente atravessada no caminho e saiu dali correndo, já que
tinha muito medo. No dia seguinte, voltou a passar no mesmo
lugar e viu uma corda no chão.
Assim é 顚倒夢想 TEN DŌ MU SŌ: o engano ligado às
formações mentais subconscientes que surgem à menor
estimulação, ou quando a vida é deixada livre, como durante
o sonho, por exemplo.

Numa noite da Natal, um homem se dirigiu à igreja e


invocou esta súplica:
“Meu Deus, meu Deus, eu te rogo, faça com que eu
encontre dinheiro!”
No caminho de volta para sua casa, viu brilhar sob o
luar uma bolsa, e gritou entusiasmado:
“Uma bolsa cheia de ouro! Encontrei uma bolsa cheia
de ouro!”
Quis pegá-la, mas o caminho estava congelado e a
bolsa estava presa sob o gelo.
“Tenho que encontrar uma pedra para quebrar o gelo”,
pensou. Mas alguém se aproximava e ele temeu ter de
repartir seu achado.
“Vou urinar sobre ela e o gelo se derreterá assim”,
pensou.
Feito isto, agarrou a bolsa e tentou abri-la, tentou,
tentou com mais força, mas .... nada!
Neste momento sentiu uma grande dor. Seu olhar
estava voltado para o céu, mas não via céu nem estrelas.
Então se deu conta que acabara de ter um sonho e que a dor
que sentia vinha de seus testículos, os quais ainda estava
agarrando firmemente. A cama molhada era sua única
realidade.

顚倒夢想 TEN DŌ MU SŌ: o sonho, as quimeras, as


miragens, as alucinações.
O 般 若 心 経 HANNYA SHINGYŌ as distingue em
quatro tipos:
263
- O primeiro erro de percepção é relativo a 無常 MUJŌ
e consiste em crer em entidades invariáveis, na perenidade
da existência. É um erro. Tudo muda sem cessar. Todas as
existências estão destinadas à extinção. Nada é estático.
Tudo evolui e se transforma.
- O segundo erro concerne à natureza da felicidade.
Este erro repousa sobre a crença na felicidade através das
satisfações deste mundo: relações de amor, de amizade,
alegria procedente do trabalho, das viagens, das diversas
atividades, das diversões. Alegrias fugazes, felicidade
efêmera. Este mundo só pode dar pálidos reflexos da
verdadeira felicidade, aquela que é vivida na dimensão do
absoluto, mais além dos gozos do mundo fenomenal.
As 攝心 SESSHIN permitem fazer esta feliz viagem até
outro mundo, a outra dimensão, ao mundo da plenitude.
- O terceiro erro nasce do apego ao ego. Da
complacência que se tem por si mesmo nascem muitos erros
e sofrimentos.
O ego não tem númeno. Não temos por que confortá-lo,
satisfazê-lo, já que esta atitude cria um encadeamento sem
fim. As satisfações dos desejos criam novos desejos e
insatisfações.
Compreender que se sofre deste apego é o começo da
sabedoria. Depois do que há que praticar o esquecimento do
ego, para que o grande reino da liberdade se abra.
- O quarto erro consiste em acreditar ser superior e de
maior valor que os demais. Temos muito freqüentemente
uma percepção refinada para detectar os defeitos dos outros,
mas na hora de ver os nossos próprios, nossa visão está
velada.

264
菩提 蕯埀。依 般若 波羅蜜多 故。
心無罣礙無罣礙故。
無有恐怖。遠離一切顚倒夢想。
究竟涅槃。
BODAI SATTA. E HANNYA HARAMITTA KO.
SHIN MU KEI GE MU KEI GE KO.
MU U KU FU. ON RI IS-SAI TEN DŌ MU SŌ.
KU GYŌ NE HAN.
“A sabedoria perfeita elimina qualquer obstáculo no
espírito do verdadeiro Bodhisattva. Não resta medo nem
temor. As miragens e os pontos de vista falsos desaparecem
naturalmente, e por último, o Bodhisattva alcança o
verdadeiro Nirvāna”.

A maneira de pensar durante o 座禅 ZAZEN e durante


a vida cotidiana são fundamentalmente diferentes.
Durante o 座禅 ZAZEN, o pensamento nasce de 空 KŪ,
o nada, o absoluto. Na vida, nasce de 色 SHIKI, dos
fenômenos. O ego cria 無明 MUMYŌ, a ignorância.
O ego em si é 無明 MUMYŌ, ignorância, origem de
todos os 煩悩 BONNŌ. Tudo é 顚 倒 夢 想 TEN DŌ MU SŌ.
As ilusões nascem do desejo, o qual por sua vez engendra a
enfermidade do corpo e do espírito (muitas neuroses são a
expressão de uma ruptura entre o desejo e sua satisfação).
Mas se nos concentrarmos aqui e agora, os desejos
desaparecem rapidamente. Um desejo nasce, depois morre.
Passa por nossa consciência sem nos afetar, sem deixar
vestígios. A memória e os projetos devem ser o motor da
ação presente. Estes dois elementos são tão necessários
para a vida como o ar que respiramos. Mas nossa boa saúde
depende da dinâmica que lhes infundimos. Tudo muda, tudo
265
passa e se transforma. A vida é não fixação. Toda
recordação fixada como desejo obsessivo é uma célula
cancerígena da vida. Atrofia a vida, obstaculiza a circulação
da corrente da energia cósmica.
O espírito sereno que não se ata fundamentalmente a
nada, deixa aparecer a autêntica sabedoria. A paz é origem
profunda de alegria. Seguir a Ordem Cósmica é levar uma
vida bem aventurada, é alcançar o grande Nirvāna: 究 竟 涅
槃 KU GYŌ NE HAN.
究 竟 KU GYŌ: chegar a última etapa.
涅 槃 NE HAN: Nirvāna; literalmente: soprar (da mesma
maneira que se assopra uma vela), apagar. Trata-se da
extinção da chama de 顚 倒 夢 想 TEN DŌ MU SŌ, a
consumação última do ser.
Os conhecimentos afogam o ser quando se convertem
em barreiras que o impedem de ir mais além deles. Há que
se desfazer dos conhecimentos, há que superá-los, há que
saber utilizá-los com moderação e manter o espírito aberto.
Concomitante à sabedoria adquirida, deve se manifestar a
sabedoria intuitiva. Esta última só aparece quando o espírito
é livre.

徳 山 TOKUSAN era um famoso erudito.


Particularmente havia estudado o “Sūtra do Diamante”, o 金
剛 経 KONGO KYŌ (Vajracchedika Sūtra). Um dia ouviu falar
de um mestre que todo mundo considerava de grande
sabedoria. Tratava-se do Mestre 龍潭 RYUTAN (literalmente
“o dragão do lago”). 徳山 TOKUSAN acreditava-se imbatível
em seu conhecimento do 金剛 経 KONGO KYŌ e por esta
razão tomava-se por alguém de grande valor. Assim nasceu
o desejo de se encontrar com este mestre que estimavam
tanto, mais que a ele mesmo, e desejou ardentemente uma
oportunidade de debater com ele. Ao chegar à porta do
templo, viu um pequeno quiosque atrás do qual se
encontrava uma velhinha. Nele vendia bolinhos de arroz.

266
徳山 TOKUSAN lhe pediu três bolinhos. Seu ar fanfarrão
despertou a curiosidade da anciã:
“O que você leva sobre os ombros?”, perguntou-lhe.
“É um texto altamente precioso e demasiado profundo
para que você possa compreendê-lo. É o
金剛 経 KONGO KYŌ, mas isso não significa nada para você.
Dê-me os bolinhos de arroz!”
“Sou ignorante, é verdade, mas curiosa”, respondeu a
anciã.
“Quero fazer-lhe uma pergunta. Se você me respondê-
la lhe darei os bolinhos. Não é neste precioso e profundo
texto onde está escrito que o espírito do passado não pode
ser alcançado, inalcançável é o espírito do presente, e
igualmente inalcançável é o espírito do futuro? 58 Diga-me
então: com que espírito você vai comer meus bolinhos de
arroz? Com o espírito do passado, do presente ou do futuro?”
徳 山 TOKUSAN ficou estupefato.... E não pôde
conseguir seus bolinhos de arroz, que dessa forma se
tornaram também inalcançáveis. Perplexo, pensou que o
Mestre 龍潭 RYUTAN devia ser mesmo um grande Mestre
para que uma simples velhota, guardiã do templo, simples e
sem cultura, tivesse um espírito tão hábil. Atravessou
imediatamente o grande portal de entrada e foi ver Mestre
龍潭 RYUTAN.
Este o acolheu singelamente. Mostrou-lhe sua cama e
pediu para que se recolhesse até o dia seguinte. Como
trabalho, encarregou-o de varrer todos os dias o pátio do
templo, carpir o jardim e limpar os corredores. Depois do
trabalho deveria ir meditar com seus irmãos monges. E assim
passaram-se vários dias...
“Vim aqui porque havia ouvido que Mestre
龍潭 RYUTAN é o grande dragão do lago, mas neste lago

58
三 世 心 不 可 得 SANZESHIN FUKATOKU, o espírito dos três
tempos não pode ser alcançado. (N.T.)

267
não vejo nenhum dragão!”, gritou um dia, cansado e
exasperado. O Mestre 龍潭 RYUTAN então resolveu aceitar
o 問答 MONDO. O diálogo se prolongou até alta madrugada.
Cansado de falar, o Mestre 龍潭 RYUTAN pediu-lhe que se
retirasse. Uma vez passada a soleira da porta de seu
aposento, 徳山 TOKUSAN deparou-se com a escuridão, que
era total. O Mestre 龍 潭 RYUTAN foi então buscar uma
lamparina de óleo para 徳山 TOKUSAN. Mas no mesmo
instante em que a oferecia a 徳山 TOKUSAN, assoprou a
chama. A escuridão se fez de novo, mais densa que antes
Neste instante, 徳山 TOKUSAN obteve o 悟 SATORI.

O espírito do Bodhisattva que se estabelece na Prajñā


Paramitā não é detido por nenhum obstáculo, transcende
qualquer ponto de vista falso e, por último chega ao Nirvāna.

三世諸仏。
依般若波羅蜜多故。
得阿耨多羅三藐三菩提。

SAN ZE SHO BUTSU.


E HANNYA HARAMITTA KO
TOKU A NOKU TARA SAN MYAKU SAN BODAI.
“Todos os Budas do passado, do presente e do futuro
dependem de Prajñā Paramitā, e repousam sobre ela. Por
último alcançam Bodhi, a sabedoria perfeita e o 悟 SATORI
infinito.”
諸 仏 SHO BUTSU significa: todos os Budas, um
número incalculável de Budas. Este termo designa todos os
seres que realizam o budado. Trata-se de todos os Patriarcas
e Mestres da Transmissão.

268
No Budismo, consideram que os monges, depois de
sua morte, alcançam o perfeito Nirvāna, e portanto são
considerados como Budas.
Às vezes, quando se pergunta no Japão: O que é
Buda?, algumas pessoas respondem: “a morte.”
No espírito de muita gente, em nossos dias, a palavra
Buda significa “morte”. Esqueceram o verdadeiro sentido
desta palavra.
As frases:
三 世 諸 仏。SAN ZE SHO BUTSU. 依 般若 波羅蜜
多 故。E HANNYA HARAMITTA KO. 得 阿 耨 多羅 三 藐 三
菩 提 。 TOKU A NOKU TARA SAN MYAKU SAN BODAI,
expressam o verdadeiro sentido da palavra “Buda”, isto é, o
ser que obteve “阿 耨 多羅 三 藐 三 菩提。A NOKU TARA
SAN MYAKU SAN BODAI”, o ser que despertou para a
verdade suprema.
阿 A tem o mesmo sentido de 空 KŪ, é um prefixo
negativo.
耨 多羅 NOKU TARA: por cima.
三 SAN: o justo, o verdadeiro.
藐 MYAKU: idêntico.
三 菩提 SAN BODAI: o 悟 SATORI, o despertar.

無 上 MUJŌ: o mais elevado, o que não pode ser


superado por nada.
正 SHŌ: justo.
徧 HEN: reto, justo.
正徧 SHŌ HEN: o sumo do justo, do autêntico.
菩提 BODAI: a sabedoria, o despertar, o 悟 SATORI.

三 藐 三 菩提 SAN MYAKU SAN BODAI, ao passá-lo a


ideogramas, converte-se em 無上 正 徧 智 MUJŌ SHŌ HEN

269
CHI 59 : o maior, o mais justo, a sabedoria suprema, a
Sabedoria Cósmica.
A sabedoria 阿 耨 多羅 三 藐 三 菩提 A NOKU
TARA SAN MYAKU SAN BODAI é a sabedoria universal.
Todos os Budas obtiveram o 悟 SATORI graças a ela e
despertaram para a verdade cósmica.
仏 HOTOKE, em japonês, designa o Buda assim como
a noção de “passar”. Às vezes emprega-se também o termo
安泰 ANTAI, que significa perder, deixar um pacote aberto.
Isto significa ser livre, estar liberado dos laços complicados
dos 煩悩 BONNŌ, das ilusões. Tal como já expliquei, no
Budismo Mahāyāna (大乗仏教 DAIJŌ-BUKKYŌ), o Buda não
obtém o 悟 SATORI somente para ele mesmo. Formado em
seu ensinamento e instruído na verdade, ajuda todos os
seres a chegar no Nirvāna. Mestre 道元 DŌGEN escreveu no
傘松道詠 SANSHŌDŌEI um poema sobre este aspecto:
“Eu sou demasiado estúpido para ser Buda.
O único que deseja é ser um verdadeiro monge
(um verdadeiro Bodhisattva)
que ajude todos os seres a passar para a outra
margem.”

Tal é o significado de “Buda” no Budismo Mahāyāna


(大乗仏教 DAIJŌ-BUKKYŌ).
道元 DŌGEN nunca pensou: “Devo obter o 悟 SATORI,
tenho que converter-me em um Buda.” Apenas disse: “Quero
ser monge para ajudar a todos as seres, para conduzi-los até
o Nirvāna, até o despertar.

59
No original, SHO HEN TO SHO. (N.T.)

270
故知般若波羅蜜多。
是大神呪。是大明呪。
是無上呪。是無等等呪。

能除一切苦。真実不虚。
故説般若波羅蜜多呪。
即説呪日。

KO CHI HANNYA HARAMITTA.


ZE DAI JIN SHU. ZE DAI MYŌ SHU.
ZE MU JŌ SHU. ZE MU TŌ DŌ SHU.

NŌ JO IS-SAI KU. SHIN JITSU FU KO.


KO SETSU HANNYA HARAMITTA SHU.
SOKU SETSU SHU WATSU.

呪 SHU ou 咒JU significa mantra. Empregam-se os


dois termos indistintamente. Um mantra é uma palavra ou
uma frase sagrada. Os mantra se desenvolveram sobretudo
no hinduismo (o célebre OM) e no taoísmo. No Japão, cantar
um mantra equivale a recitar um 祈禱 KITŌ. Existem de todos
os tipos, compridos ou curtos, poderosos e adocicados e
pertencem a todos os ramos do Budismo.
O 禅 ZEN também possui seus mantra.

羯諦、羯諦、波羅羯諦、
波羅僧羯諦、菩提薩婆訶。

GYATEI, GYATEI, HARAGYATEI,


HARASŌGYATEI, BŌJISOWAKA.
271
É o mantra do 般若 心経 HANNYA SHINGYŌ.
Ao contrário do conjunto do 般 若 心 経 HANNYA
SHINGYŌ, a fonética do mantra final foi preservada em
sânscrito, e a transcrição em 漢 字 KANJI é um simples
suporte de leitura do original: gate gate pāragate
pārasamgate bodhi svāhā.
As frases que o precedem recordam que no Budismo,
Prajñā Paramitā é o grande mantra, o mantra da Grande
Sabedoria, o mantra supremo, o mantra precioso capaz de
aliviar qualquer sofrimento. Foi proclamado na literatura
Prajñā Paramitā, que o 般若 心経 HANNYA SHINGYŌ
resume e que este mantra conclui.
“Vamos, vamos juntos mais além do mais além, até a
realização última.”
故知 KO CHI: então, pois.
Devemos compreender que 般若 波羅蜜多 HANNYA
HARAMITTA é o maior (大 DAI) dos 神呪 JIN SHU.
神 JIN ou 神 SHIN: Deus.
呪 SHU: mantra, a verdade pura, expressa pela
essência da linguagem. A fé em seu poder deve ser total, já
que graças a ela podemos acessar a verdadeira sabedoria.
神呪 JIN SHU: mantra divino.
“Este é o grande mantra brilhante e luminoso. Sua
força é tal que pode cortar todos os sofrimentos. É verdadeiro
e sem mentiras. É o verdadeiro Sūtra divino. Graças a ele é
possível alcançar a essência de qualquer verdade.”
Um mantra não é nada misterioso. Tem um sentido
profundo que não é compreensível por nossa consciência
humana. Os termos são apenas um suporte, mas sua
fonética encerra nela mesma uma poderosa força em que se
tem de acreditar. E convém recitá-lo sem duvidar de sua
eficácia.
Crer é muito importante.
O Mestre 道元 DŌGEN escreveu:
“O problema da religião se resolva com a fé.”
272
Nāgārjuna ( 龍 樹 RYŪJU) escreveu em seus
comentários sobre o “Sūtra do 摩訶 般若 波羅蜜多 MAKA
HANNYA HARAMITTA”, 大 智 度 論 DAICHIDO-RON
(Mahāprajñāparamitāshastra):
“Os homens que têm fé e recebem ordenação, ainda
que infrinjam os preceitos ( 戒 KAI) e cometam pecados,
podem alcançar o 悟 SATORI.”
Para ilustrar seu pensamento, conta a história de
蓮華色 RENGESHIKI (Utpalavarna), história que constitui o
tronco central do “Sūtra da Flor”. É a história de uma monja
muito bela – a monja de seis poderes – que viveu à época de
Buda Shākyamuni. Buda fez dela uma grande monja e
discípula. Por aquela época, 蓮 華 色 RENGESHIKI
(Utpalavarna) ia pregar nas casa aristocráticas e se dirigia
especialmente às jovens e as exortava a fazerem-se monjas.
Quase sempre encontrava sua resistência:
“Somos jovens e formosas”, diziam estas mulheres,
“nunca poderemos respeitar os preceitos”.
Mas 蓮 華 色 RENGESHIKI (Utpalavarna) insistia
dizendo-lhes que a observação dos preceitos era de menor
importância. Receber a ordenação era o essencial. Não
deveriam ter medo de cair no inferno por infringir as regras
ditadas pelos preceitos. Entretanto, a incredulidade que
encontrava na audiência obrigava 蓮 華 色 RENGESHIKI
(Utpalavarna) a narrar sua própria historia:
“Quão longe devo remontar em meu karma para
convencê-las?”, dizia ela. “Em minha vida anterior fui uma
prostituta de grande fama. Vinham de todas as partes para
me ver dançar, adornada com os melhores vestidos. Minha
beleza era suficiente para produzir o êxtase dos homens.
Todos me desejavam e desta maneira pude reunir uma
grande fortuna, dando-lhes um pouco de mim mesma.”
“Um dia, tomei secretamente o hábito, 袈裟 KESA, de
uma monja budista que passava por ali e continuei dançando
assim, coberta com este hábito... Minha vida inteira havia
sido governada pelas forças do sexo e da luxúria e, depois da
273
minha morte, tive que cair nas errâncias infernais da
transmigração. No entanto, o poder do 袈 裟 KESA se
perpetuava. O karma que eu havia engendrado pelo simples
ato de havê-lo vestido uma vez manifestou-se em minha vida
seguinte. Esta é a razão pela qual agora tenho a grande
felicidade de ser monja.”
Nāgārjuna (龍樹 RYŪJU), em seus comentários sobre
o 般若 波羅蜜多 HANNYA HARAMITTA acrescenta à
história de 蓮華色 RENGESHIKI (Utpalavarna)as seguintes
minúcias sobre seu karma: 蓮 華 色 RENGESHIKI
(Utpalavarna) era incomparavelmente bela. Teve a sorte de
tocar uma vez um 袈裟 KESA, o qual a procurou em sua vida
seguinte produzindo o bom karma que a fez monja.
Entretanto, teve que errar durante muito tempo pelos escuros
corredores da transmigração, já que sua vida anterior havia
sido muito conturbada. Sua mãe era ainda mais bela, para
desgraça de 蓮華色 RENGESHIKI (Utpalavarna), já que seu
marido não pôde resistir à sedução que sua mãe exercia
sobre ele. Sogra e genro passavam juntos as noites, e
蓮華色 RENGESHIKI (Utpalavarna) resolveu fugir. Em suas
andanças, encontrou um dia um filho de ricos comerciantes
que se enamorou dela e a fez sua esposa. A felicidade
conjugal era total. Mas um dia, a pedido de seu pai, o jovem
esposo teve que partir: tinha a missão de conduzir uma
caravana através do deserto até uma região longínqua na
qual poderia vender mercadorias de seu país. A viagem foi
longa. Cada cidade deixada para trás marcava no coração
deste nômade a amargura do descanso, do conforto e dos
prazeres perdidos. O que mais lhe fazia falta eram as
mulheres. Um dia, o marido de 蓮 華 色 RENGESHIKI
(Utpalavarna) se emocionou imediatamente ao ver a beleza
fresca de uma jovem. Era a estação das chuvas. Quando o
comércio do dia havia acabado, todo mundo corria para suas
respectivas casas. E este jovem esposo, na solidão da
separação, começou a visitar aquela formosa jovem. Às
vezes o assaltava o remorso, mas pensava para si “sou rico e
274
posso manter estes dois lugares! Esta jovem é tão
encantadora!”
O que mais o impressionava era a semelhança que
havia entre esta jovem e sua própria esposa.
As semanas se passavam e a estação de inverno já
estava bem avançada quando 蓮 華 色 RENGESHIKI
(Utpalavarna) acolheu a volta de seu esposo. Este silenciou
sobre sua aventura. Preferia deixar passar um pouco de
tempo antes de contá-la a sua mulher. Mas esta havia tido
em sua vida anterior a experiência da prostituição, e sua
intuição era muito desenvolvida. Ante a falta de paixão de
seu marido, ela compreendeu rapidamente o que se passava.
Ele então lhe revelou o que acontecera. As explicações foram
simples e ela compreendeu rapidamente. Ele lhe revelou a
semelhança de traços e a beleza comum que as ligava.
Justificou-se com a duração da viagem e a dureza da vida.
Queria desculpar-se mais, mas 蓮 華 色 RENGESHIKI
(Utpalavarna) compreendia, 蓮 華 色 RENGESHIKI
(Utpalavarna) perdoava e aceitava.
“Que ela venha morar em nossa casa!”, foi sua
conclusão.
A beleza da jovem concubina impressionou também
蓮 華 色 RENGESHIKI (Utpalavarna), quando a viu pela
primeira vez. Um dia, 蓮華色 RENGESHIKI (Utpalavarna) se
encontrava atrás dela, observando como se penteava diante
do espelho. Olhando a cara refletida da jovem e a sua própria,
ligeiramente atrás, estranhou a semelhança e a interrogou
sobre sua origem. Esta lhe falou sobre sua cidade natal, de
sua infância na casa de seu pai, e lhe disse que não havia
conhecido sua mãe, já que esta havia fugido de casa quando
ela era ainda uma criança. Com uma profunda tristeza,
蓮華色 RENGESHIKI (Utpalavarna) compreendeu então que
tinha diante dela sua própria filha, nascida de seu primeiro
matrimônio. Seu primeiro marido havia sido seduzido por sua
mãe, e o segundo por sua filha. 蓮 華 色 RENGESHIKI
(Utpalavarna) se afligiu profundamente de seu mau karma. E

275
pela segunda vez, fugiu de casa. Terminou por se
estabelecer em uma metrópole longínqua, no Leste, e para
ganhar a vida voltou a seu primeiro ofício, o comércio de seu
corpo. Sua grande beleza lhe ocasionou novamente fama e
despertou o desejo nos homens... Por esta época, um
personagem forte, jovem e distinto, de traços refinados vinha
dos arredores da cidade. Nela pregava regularmente,
prodigalizando os ensinamentos de seu Mestre, o Buda
Shākyamuni. Chamava-se 目 連 MOKUREN
(Maudgalvalāyana).
目 連 MOKUREN (Maudgalvalāyana) converteu-se
rapidamente no objeto da inveja dos brahmanes, cujos
ouvintes, em sua maioria mulheres, escapavam deles e iam
engrossar as fileiras dos novos fiéis convertidos por suas
palavras. Estes brahmanes se sentiam humilhados e
preparavam um complô contra o intruso que lhes arrebatava
suas fiéis e portanto, seu poder. De pronto, não podiam
matá-lo, pois isto levantaria a opinião pública e provocaria
desconfiança contra eles.
Tinham que tentar então derrubar a imagem de pureza
que 目連 MOKUREN (Maudgalvalāyana) despertava na fé
popular. 蓮華色 RENGESHIKI (Utpalavarna) era a mais
indicada para acabar com o mito. Uma vez seduzido, 目連
MOKUREN (Maudgalvalāyana) perderia a alta estima de
enviado divino que detinha no coração de suas fiéis.
目 連 MOKUREN (Maudgalvalāyana) comprometido
com 蓮華色 RENGESHIKI (Utpalavarna)! Que escândalo!
Assim pensavam os brahmanes, que foram então visitar
蓮華色 RENGESHIKI (Utpalavarna). Quando esta se inteirou
de sua missão, ciente de seu poder de sedução exclamou:
“Não há nada mais fácil! Todos os homens são
parecidos! Todos terminam por se inclinar ante minha beleza!
目 連 MOKUREN (Maudgalvalāyana) não será exceção!
Duvido muito que sua virtude seja incorruptível!
“Mas 目 連 MOKUREN (Maudgalvalāyana) é, sem
embargo, um homem que só poderá ser pego através de
276
uma armadilha”, pensou 蓮華色 RENGESHIKI (Utpalavarna).
“Segundo o que disseram os brahmanes, sua vida
disciplinada é um obstáculo e uma insinuação demasiado
direta seria imediatamente rechaçada. Tenho de encontrar
uma saída astuciosa.”
No dia seguinte, ao entardecer, 蓮華色 RENGESHIKI
(Utpalavarna)deteve-se no caminho que normalmente
tomava 目連 MOKUREN (Maudgalvalāyana) quando voltava
ao templo. Estendida sobre o caminho, gemendo, fingia estar
ferida ou enferma, pensando que assim 目 連 MOKUREN
(Maudgalvalāyana) não poderia permanecer insensível.
“Então, será fácil seduzi-lo!”, pensou. Ouviu passos que se
aproximavam e acreditou que havia chegado o momento de
intensificar seus lamentos. 目 連 MOKUREN
(Maudgalvalāyana) chegava... Mas 目 連 MOKUREN
(Maudgalvalāyana) passou sem prestar a menor atenção à
mulher. Sua intiução superava o poder dos sortilégios!
“ 目 連 MOKUREN (Maudgalvalāyana)! 目 連 MOKUREN
(Maudgalvalāyana)! Ajude-me, estou enferma!” Dizendo isto,
蓮華色 RENGESHIKI (Utpalavarna)se levantou brutalmente e
correu até 目 連 MOKUREN (Maudgalvalāyana). Este ato
dissipou qualquer dúvida sobre as intenções de 蓮 華 色
RENGESHIKI (Utpalavarna). Imperturbável, continuou seu
caminho com 蓮華色 RENGESHIKI (Utpalavarna) em seus
calcanhares, gesticulando e maldizendo, suplicando,
sussurrando palavras sem sentido. Quando por fim se
tranqüilizou, desarmada, todo o caminho havia sido
percorrido e o 道場 DŌJŌ do Buda se apresentava a sua
vista. Buda a esperava:
“Você chegará a ser uma grande monja”, disse-lhe.
Pousou sua mão sobre a cabeça de
蓮華色 RENGESHIKI (Utpalavarna) e seus cabelos caíram
imediatamente. Suas vestimentas vulgares se transformaram
em 袈裟 KESA, sua atitude foi dignificada. Todo seu mau
karma desapareceu de uma vez. A partir deste momento,

277
蓮 華 色 RENGESHIKI (Utpalavarna) já não era mais
蓮華色 RENGESHIKI (Utpalavarna), mas uma grande monja
que durante toda sua vida consagrou-se ao Buda.
Por aquela época tinha uns quarenta anos. Seguiu o
Buda por todas as partes, prodigalizando-lhe sua ajuda,
assistindo-o em tudo. Não obstante, morreu prematuramente,
assassinada por um tal Daiva. Este ato marcou a
consumação final de seu mal karma. Esta foi uma das
primeiras 60 monjas da história do Budismo. Buda sempre
falava dela em termos elogiosos e a estimou ainda mais que
a 目 連 MOKUREN (Maudgalvalāyana). Ele a havia
compreendido profundamente. A fé profunda que nela se
despertou em direção à 袈裟 KESA e ao Buda a elevou e a
glorificou. Sabia que renasceria ainda para construir o
Grande Caminho do Mahāyāna (大乗 DAIJŌ). Esta grande
monja ajudou e ajudará à humanidade, mais do que
poderiam fazê-lo dez grandes Bodhisattvas.”

É assim que Nāgārjuna (龍樹 RYŪJU) conta a história


sobre os méritos da fé em 袈裟 KESA, e que 道元 DŌGEN,
em continuidade, retomou em todo o seu profundo valor.
O mesmo sucede para com os mantra. Seu valor não
reside no significado que se possa dar para as palavras,
assim como tão pouco na compreensão intelectual que se
tem dele. Seu valor está ligado a fé que se deposita nele. É
melhor recitar o 般若 心経 HANNYA SHINGYŌ sem conhecer
seu significado, o qual seria compreendido através de nossas
categorias pessoais e limitadas. É melhor recitá-lo
naturalmente. Desta maneira, pode-se conservar toda sua
profundidade.

60
No original “a primeira”. Existe consenso em se estabelecer
Mahāprajāpatī ( 大 生 主 DAISHŌSHU ou
摩訶波闍婆提 MAKAHAJABADAI) como a primeira monja histórica.
(N.T.)

278
Cada frase do 般若 心経 HANNYA SHINGYŌ é um
mantra.
Mas o mantra final:

羯諦、羯諦、波羅羯諦、 波羅僧羯諦、菩提薩婆訶。

GYATEI, GYATEI, HARAGYATEI, HARASŌGYATEI, BŌJISOWAKA.

Gate, gate, pāragate, pārasamgate, bodhi svāhā!

é a essência do 般 若 心 経 HANNYA SHINGYŌ. Se for


traduzido perde sua profundidade. Só sua pronunciação e o
som que emana dela são essenciais. Este mantra foi
traduzido e recitado em todas as línguas. Os termos variam
ligeiramente. 羯諦 GYATEI é traduzido às vezes por “passar”,
outras por “alcançar”, outras por “ir”. Mas todas traduzem a
mesma idéia fundamental. Estas palavras são dirigidas
especialmente aos 聲 聞 SHOMON (Shrāvaka) e aos
縁覺 ENGAKU (Pratyiekabuddha), os santos e os sábios,
dogmáticos e individualistas, que buscam o 悟 SATORI para
eles mesmos. Enquanto que para os Bodhisattvas e os
Budas, a recitação destes mantra reforça-os em seus votos.
波 羅 羯 諦 HARAGYATEI significa alcançar a outra
margem com os demais, juntos, de maneira absoluta e
universal. Este é o voto do Bodhisattva, o princípio do
Budismo Mahāyāna (大乗仏教 DAIJŌ-BUKKYŌ).
波 羅 僧 羯 諦 HARASŌGYATEI reforça a idéia
precedente: completamente, até o Nirvāna supremo.
羯 諦 GYATEI: partir desta margem e ir, passar,
alcançar a margem do Nirvāna. Partindo da realidade deste
mundo, alcançar o mundo supra real do grande 悟 SATORI.
波羅僧 HARASŌ: ir com, harmonizar-se. Não ir só, mas
todos juntos até o mundo do Nirvāna.
菩提薩婆訶 BŌJISOWAKA
菩提 BŌJI: o Caminho, o Nirvāna, o 悟 SATORI.

279
薩 婆訶 SO WAKA: o fim, a realização total, a
consumação final.61
Cada um destes termos do mantra é um universo
infinito. Não se pode captá-los enquanto conceitos. Esta é a
razão pela qual são intraduzíveis. É melhor conservar todo
seu alcance e sua potência integral, limitando-se a expressar
os sons puros. Um mestre 真言 SHINGON, o Mestre 弘法大
師 KŌBŌ-DAISHI, dizia que um 漢 字 KANJI inclui mil
sentidos. Ao serem traduzidos perdem sua veracidade. O 般
若 心 経 HANNYA SHINGYŌ é conhecido por seu poder
misterioso, por seu poder intrínseco, independentemente do
poder ligado à recitação de qualquer Sūtra. Numerosas
histórias ilustram este poder sobrenatural que sempre lhe foi
atribuído.

Lenda ou história verídica, ninguém poderá dizê-lo


nunca, mas a história de 芳一 HŌICHI, o “sem orelhas” (耳な
し芳一 MIMI NASHI KŌICHI), é uma bela ilustração disso.
Foi contada por Lafcadio Hearn, escritor de língua inglesa,
que contribuiu enormemente na introdução da cultura
Japonesa na Europa. Esta história é em certa medida uma
continuação da célebre e dramática história dos
平家 HEIKE (平家 物語 HEIKE MONOGATARI), na qual se
inspirou Lafcadio Hearn62.

61
O seguinte comentário da Lama Anagarika Govinda complementa
o significado de svāhā:

“Svāhā é uma expressão de boa vontade e de auspiciosidade,


como “salve”, “possa ser para o bem”, “possa ser abençoado”, “possa
ser auspicioso.”

Extraído de “Fundamentos do Misticismo Tibetano”, Lama


Anagarika Govinda, Ed. Pensamento, 3ª Ed. , 1996, Pág. 212.(N.T.)
62
Ver “Kokoro: Ecos e nociones de la vida interior japonesa”.
Lafcadio Hearn. Miraguano Ediciones, 1986.

280
Depois da derrota do clã 平家 HEIKE, há setecentos
anos, acontecida durante uma batalha naval, todos os
soldados e toda a família 平家 HEIKE foram engolidos pelo
mar, no fundo de 壇ノ浦 DAN NO URA, no estreito de
下関市 SHIMONOSEKI (関門海峡 KANMON KAIKYŌ). Nesta
província, muito tempo depois, estranhas lendas de
fantasmas apareceram. Há aproximadamente trezentos anos,
vivia perto de 壇 ノ 浦 DAN NO URA um muito célebre
interprete de 琵 琶 BIWA 63 , conhecido pelo nome de
芳一 HŌICHI.
Era cego. Não se sabe se por causa de sua
enfermidade, mas o fato é que sabia extrair de seu
instrumento tonalidades de uma tal pureza que arrancavam
lágrimas de todos os que o ouviam.
Por aquela região se encontrava o templo
阿弥陀 寺 AMIDA JI. O superior, um mestre ancião, amava-o
muito. E como 芳 一 HŌICHI era muito pobre, havia lhe
oferecido hospitalidade em um quarto de seu templo. Uma
noite de verão, 芳一 HŌICHI estava sentado na borda da
galeria circular, perdido na contemplação das estrelas 64 ,
esperando o retorno do mestre, que havia saído para fazer
umas cerimônias na casa de uns fiéis. De repente, um som
de passos que não lhe eram familiares o tirou de seu silêncio.
Era um samurai (武士 BUSHI) com sua armadura.
Aproximou-se e disse a 芳一 HŌICHI:
“Não tenha medo. Sou um mensageiro que veio te
buscar, da parte de uma família aristocrática, grandes
personagens de alta nobreza. Quiseram ver o campo de
batalha de 壇ノ浦 DAN NO URA, e em segredo vieram a
esta província, acompanhados de uma comitiva importante.
Ouviram falar de seu célebre 琵琶 BIWA e desejam ouvi-lo
tocar.”
63
琵琶 BIWA: espécie de alaúde japonês.
64
Sic. (N.T.)
281
芳一 HŌICHI não tinha intenção de mover-se, mas o
poderoso samurai segurou sua mão e o arrastou. Deixou-se
guiar e rapidamente se encontrou diante de um grande
palácio. Um pórtico elevado se abria. Muitas pessoas o
esperavam: altos dignatários, oficiais importantes, senhoras
vestidas elegantemente. No centro desta grande assembléia,
num lugar elevado, reinava uma mulher excepcionalmente
formosa. Pediu-lhe que tocasse seu 琵 琶 BIWA. Suas
melodias, como sempre, provocaram suspiros de admiração
e de entusiasmo.
“Minha muito respeitosa senhora ficou muito satisfeita
com sua interpretação, você a encantou. Volte todas as
noites. Depois de cada recital haverá uma recepção e você
receberá uma recompensa. Uma jovem mulher da alta
nobreza deseja ser sua esposa. Não fale com ninguém a este
respeito. Guarde segredo absoluto.”
芳 一 HŌICHI sentiu um pouco de medo, mas sua
curiosidade havia sido despertada.
O samurai voltou a acompanhá-lo até o templo
阿弥陀 寺 AMIDA JI.
Na noite seguinte e na outra produziu-se a mesma
aventura. Ao cabo de uma semana, o superior do templo
começou a inquietar-se cada vez mais com estas errâncias
noturnas, sobretudo porque 芳一 HŌICHI apresentava um
aspecto estranho, ensimesmado e absorto.
“Por que não tem dormido aqui esta noite e as
anteriores?”, perguntou a 芳一 HŌICHI. “Aonde vai? Você
tem uma amante?”
“Não, não, é um segredo!”, respondeu vagamente
芳一 HŌICHI .
O Mestre decidiu então enviar dois monges para segui-
lo, mas o caminho que 芳 一 HŌICHI tomava desafiava
qualquer um. Era praticamente impossível segui-lo. Os dois
discípulos perderam totalmente seu rastro e se puseram a
procurá-lo. Tudo em vão. Encontrar 芳 一 HŌICHI nesta
região selvagem, durante a noite, só por um milagre.
282
Tomaram portanto o caminho de volta. Ao passarem
diante do cemitério do templo 阿弥陀 寺 AMIDA JI, ouviram,
pasmados, o som do 琵琶 BIWA. Correram até ali e viram
芳一 HŌICHI sentado diante das tumbas do clã 平家 HEIKE.
A chuva havia empapado suas roupas, mas estava
demasiado absorto tocando seu instrumento para sentir algo,
fosse o que fosse.
Seus amigos o chamaram:
“芳一 HŌICHI, 芳一 HŌICHI!” Mas ele parecia nada
ouvir. Tocaram-no nas costas. Chamaram-no de novo,
sacudiram-no e ele finalmente se deu conta de sua presença.
Ao voltar ao templo, contaram tudo ao superior, que ficou
estupefato.
“ 芳 一 HŌICHI caiu enfermo. Os espíritos dos
平家 HEIKE devem tê-lo possuído. Se continuar mais uma
semana assim, morrerá”, disseram os discípulos.
“De jeito nenhum!”, respondeu o Mestre. “Conheço um
método para salvá-lo. Temos que fazer um 祈禱 KITŌ o mais
rapidamente possível.”
Ordenou a seus discípulos que trouxessem seu
material de caligrafia: tinta, pincel, pedra, etc... E lentamente,
começou a pintar sobre a superfície do corpo de 芳一 HŌICHI
o Sūtra da Grande Sabedoria, o 般 若 心 経 HANNYA
SHINGYŌ. Todo o seu corpo foi coberto, desde o topo da
cabeça até a planta dos pés. Depois disso, o Mestre lhe fez a
seguinte advertência:
“Sem dúvida alguma o samurai voltará esta noite, mas
não lhe responda. Continue fazendo 座禅 ZAZEN, somente
座禅 ZAZEN, 只管打座 SHIKANTAZA. Não se mova. Cante o
般若 心経 HANNYA SHINGYŌ em voz baixa. Desta maneira,
poderá escapar deste samurai e do feitiço.”
Ao cair da noite, o samurai chegou, mas não pôde ver
芳 一 HŌICHI. Seu 琵 琶 BIWA estava pousado contra a
parede, sozinho.

283
O samurai olhou ao redor e viu duas orelhas suspensas
no ar. Reconheceu-as: era as orelhas de 芳一 HŌICHI! Ele
havia se transformado num fantasma! Segurou-as, esticou-as
e por fim arrancou-as, levando-as consigo. 芳一 HŌICHI não
sentiu dor alguma, mas um grande frio tomou conta de seu
corpo. Seu sangue começou a fluir. Na manhã seguinte, o
Superior do templo foi vê-lo:
“Maldição!” exclamou, “você perdeu suas orelhas!
Esqueci de escrever o 般若 心経 HANNYA SHINGYŌ sobre
elas. Que esquecimento o meu!”
O mestre estava muito comovido. Mas 芳一 HŌICHI se
recuperou rapidamente. A partir de então se fez célebre com
o nome de “芳一 HŌICHI sem orelhas” (耳なし芳一 MIMI
NASHI KŌICHI). Sua arte de tocar o 琵琶 BIWA não se
alterou pela perda das orelhas. Pelo contrário, à medida em
que passava o tempo, não cessava de superar-se, para
grande prazer de todos os amantes do 琵琶 BIWA, de todos
os poetas e dos músicos, de todos os artistas, de todos os
monges e mendigos, das mulheres e das crianças. Nem
sequer o maior rústico podia permanecer insensível.
Converteu-se assim de maneira incontestável no maior
mestre do 琵琶 BIWA.

“Vamos, vamos mais além do mais além,


vamos todos juntos para a margem do 悟 SATORI.”

Toda a razão de ser do 般若 心経 HANNYA SHINGYŌ


esta contida nesta frase: fazer com que todos os seres
acessem a margem do 悟 SATORI. O meio para isso é
explicado pelas seis Paramitā
(六 波羅蜜多 ROPPARAMITSU), ou seis práticas, as quais já
falei anteriormente.
A primeira destas práticas é 座禅 ZAZEN [禅定 ZEN JŌ
(dhyāna)]; depois vem a sabedoria, 慧 E [ 智 慧 CHI-E
(prajñā)], a doação, 布施 FUSE (dāna), a observação dos

284
preceitos, 持戒 JI KAI (shīla), a paciência 忍辱 NINNIKU
(kshānti) e o esforço, 精進 SHŌ JIN (vīrya). Mas finalmente,
a simples prática do 座禅 ZAZEN inclui todas as demais
Paramitā. Isto é o que expressa implicitamente o
般若 心経 HANNYA SHINGYŌ. A realização de 空 KŪ, do
Nirvāna, é a consumação da prática autêntica do
座禅 ZAZEN.

As outras cinco Paramitā podem ser compreendidas e


realizadas profundamente graças à prática do 座禅 ZAZEN.
Por exemplo, 布施 FUSE (dāna).

No Mahāyāna (大乗 DAIJŌ) se distinguem três classes


de 布施 FUSE (dāna):
- As oferendas materiais;
- As oferendas de Dharma;
- As oferendas de paz, de não medo, de confiança.
Nas oferendas materiais não estão compreendidas
somente as oferendas de bens, mas também tudo o que
provém do corpo: o trabalho, o serviço, um olhar, um sorriso,
uma palavra, um gesto.
Que olhar oferecer aos demais? Um olhar não apegado
aos sentimentos, um olhar objetivo, um olhar que não julga,
que não seduz, que não deseja nem ambiciona, nem rechaça.
Qual é o verdadeiro olhar do Buda ou do Bodhisattva?
O olhar fica profundamente transformado depois do
座 禅 ZAZEN. Toda a mudança da personalidade fica
traduzida nele. O importante é conservar um estado de
espírito pacífico. O olhar, as feições do rosto, o sorriso o
refletem e o comunicam. O silêncio é mais freqüentemente
preferível, mas quando devemos falar, falaremos sem paixão,
sem orgulho e sem medo. Não digamos besteiras,
expressemos palavras de compaixão, palavras verdadeiras
inspiradas pelo Dharma. O Mestre 道 元 DŌGEN, no
正法眼蔵 SHŌBŌGENZŌ fala deste 布施 FUSE: 愛語 AIGO

285
são as palavras amáveis, afáveis. 離行 RIGYŌ consiste em
prestar serviço. Finalmente, há que se dar aos demais um
sentimento de segurança, de confiança e de paz através do
corpo pela expressão do rosto, com o olhar, com as palavras.
Tal é o verdadeiro 布施 無所得 FUSE MUSHOTOKU, que não
espera nada em compensação. Também no
正法眼蔵 SHŌBŌGENZŌ, o termo 同事 DŌJI expressa a
identidade entre o ego e os demais. Este é o último
布施 FUSE, a profunda compaixão.
Os Sūtra falam freqüentemente do 布 施 FUSE da
hospitalidade. Este 布 施 FUSE tinha uma importância
particular para os viajantes e os monges errantes da
antiguidade. Numerosos contos ilustram as virtudes desta
prática.65 Aquele do pescador e do monge, por exemplo:
A condição de um pescador desgraçado se agravava a
cada dia porque sua pesca, havia meses, era muito má. Uma
noite de inverno, um monge o chamou à sua porta e lhe
pediu hospitalidade. O pescador ofereceu-lhe imediatamente
sua modesta morada. Deu-lhe sua cama e a única manta que
possuía. Saiu a buscar galhos de pinheiro e fez um fogo
(segundo outras versões, queimou os próprios tamancos de
madeira). Como nada tinha para comer, foi pedir para seu
vizinho um pouco de arroz, que cozinhou e deu ao monge
ancião. No dia seguinte, saudou-o, disse-lhe adeus, e depois

65
Na própria cultura Ocidental, esta prática também é relatada desde
seus primórdios. Na Ilíada de Homero temos relatado o episódio em
que o troiano Glauco encontra-se frente a frente com Diomedes, que
lutava pelo lado grego. Ao se desafiarem para um duelo singular,
como era hábito nestes tempos, em meio às respectivas
apresentações, ambos reconhecem que suas famílias estão ligadas
por laços de hospitalidade desde tempos antigos. Em virtude disso,
deixam de se enfrentar e renovam estes laços, trocando as
respectivas armaduras. Diomedes ofereceu a Glauco as suas armas,
que eram de bronze, e recebeu deste as suas, que eram de ouro.
Este episódio gerou um dito popular: “Trocar bronze por ouro”. (N.T.)

286
disso resolveu voltar ao lago, tal qual fazia todos os dias,
incansavelmente.
O monge então lhe disse:
“Espere, vou com você. Apanhe a salmoura que você
tem ali.”
Uma vez na borda do lago, o monge apanhou a
salmoura e a jogou na água dizendo:
“Pegue seu barco e saia a pescar, depois volte para me
ver.”
O pescador saiu e após algum tempo voltou, com as
redes cheias de peixes. E a partir de então, não passou uma
só manhã sem que, tendo ido pescar no lugar em que o
monge havia lançado a salmoura, não voltasse com as redes
repletas.

Eis aqui uma outra história, dirigida desta vez aos


avarentos.
Um monge errante tinha sede. Viu uma pereira em um
pomar e pediu a anciã proprietária permissão para tomar uma
das frutas. Ela se negou secamente. O monge não insistiu e
seguiu seu caminho. A partir deste dia, a velha não obteve
mais uma só pêra de sua pereira, que ficou dura como pedra.
Ainda em nossos dias pode-se ver esta pereira ressecada
nesta aldeia.

Seja como for, a sabedoria é necessária para praticar a


doação. Os sorrisos devem se transformar em golpes de
警策 KYOSAKU. A doação, sem compaixão e sabedoria, não
é uma doação. A educação 禅 ZEN é um grande 布施 FUSE,
judiciosamente dosado em doçura e severidade.
法施 HŌSE, o dom do Dharma, é o 布施 FUSE mais
elevado que se pode fazer a um monge. Esta é a doação que
faz o mestre quando ensina o Caminho. Esta é a doação
suprema que busca no homem o conhecimento de si, a porta
aberta para o 悟 SATORI. Há que se dar o alívio, a
confiança, a calma, a paz. E para isso há que se dar – de

287
corpo e alma, há que se chegar a ser como o outro para
compreendê-lo intimamente se isso for necessário.
De todas as maneiras, há que se evitar dar por obrigação,
por necessidade, por despeito ou por medo de ser castigado.
O 布 施 FUSE não deve ser praticado com vistas a
recompensas kármicas, já que estas não se manifestarão se
o espírito não for 無所得 MUSHOTOKU.
O fato de se chegar a ser Bodhisattva ou monge, ou
verdadeiramente religioso, deve conjugar-se com a prática da
doação, que pode ser realizada todos os dias, em todos os
momentos, sob qualquer forma possível.
Como chegar a ser Buda ou Deus? Como alcançar a
outra margem a partir desta margem? Como obter o
悟 SATORI?
Fazendo 座禅 ZAZEN.
A postura de 座禅 ZAZEN nela mesma é Deus ou
Buda, ou o 悟 SATORI.
Mas na vida cotidiana, as seis Paramitā são
necessárias. Se a vida cotidiana não está em harmonia com
a Ordem Cósmica, se não segue o Dharma, a prática diária
do 座禅 ZAZEN perderá grande parte de seu valor. Ser Buda
ou Bodhisattva somente durante o 座禅 ZAZEN não é o
suficiente. Há que tentar sê-lo durante a vida de todos os dias.
Para tanto, há que treinar em se manter o espírito sereno,
desprovido de apego, deixando passar os desejos e
pensamentos. A prática do Caminho consiste em tender cada
vez mais ao espírito 無 所 得 MUSHOTOKU, o espírito
desinteressado, generoso, voltado para os demais.
Sabedoria e compaixão formam os dois pilares sobre os
quais se apóiam toda a religião verdadeira, e os dois se
articulam ao redor do eixo da meditação.
A doação, na acepção ampla do termo, é uma
exigência do espírito religioso. A doação pode ser praticada
muito simplesmente, muito modestamente, sem o que não
lhe resta valor. Por exemplo, não pegar um alimento que
desejamos vivamente. Este ato é um 布施 FUSE para o
288
mundo inteiro. Ademais, este tipo de ação é o mais difícil de
realizar. São os pequenos apetites que mantém a
persistência do ego, que perpetuam a indulgência e a
complacência. Há que se acostumar a rechaçá-los, e com o
tempo, desaparecerão automaticamente. Esta ação será
então um beneficio infinito para todos os seres.
Mas em nossos dias vivemos exatamente ao contrário
deste comportamento. A avidez é o motor de nossa
sociedade materialista. As religiões, debilitadas, não podem
lutar contra esta corrente. São inaptas para dar um novo
impulso aos valores mais nobres do ser humano.
O labirinto sem saída em que se encontra nossa
civilização repousa sobre uma falta de sabedoria.

Os shīla ou os 戒 KAI, os preceitos, constituem outra


Paramitā importante. Muito mais no Budismo Hīnayāna
(小乗仏教 SHŌJŌ-BUKKYŌ) do que no Budismo Mahāyāna
(大乗仏教 DAIJŌ-BUKKYŌ). O respeito aos preceitos nos
conduz à serenidade do corpo e do espírito. Todos os
煩 悩 BONNŌ se acalmam. Seguir exatamente todos os
preceitos equivale a converter-se em Buda. Nossa atitude
tem desta maneira uma grande importância sobre o mundo
inteiro. É possível acessar a verdadeira felicidade neste
mundo. Proteger e respeitar os preceitos é o Caminho que
conduz à felicidade autêntica.
Os 戒 KAI representam as etapas, o comportamento, a
ação. Não são unicamente preceitos, nem mandamentos,
mas definem o melhor modo de comportamento, a moral
mais elevada, o respeito universal.
Quando se recebe a ordenação de Bodhisattva ou de
monge, recebe-se os dez 戒 KAI. Pelo simples fato de
recebermos a ordenação nos transformamos em pessoas
diferentes, situamo-nos mais além das pessoas comuns. Os
煩 悩 BONNŌ diminuem pouco a pouco graças ao poder
intrínseco dos 戒 KAI. O mau karma da palavra, do corpo e
da consciência diminue naturalmente, inconscientemente.

289
Seja como for, os preceitos são sinônimos de
moderação nos sentimentos, de veracidade nas palavras e
de tolerância nos pensamentos. Devem expressar o Caminho
do Meio.

O Mestre 道林 DŌRIN, mestre 禅 ZEN chinês, fazia


座 禅 ZAZEN sobre um pinheiro. Por isso o apelidaram
“Mestre Ninho de Pássaro” (CHOUKA ZENJI 鳥か 禅師). 白
楽天 HAKU RAKUTEN, um poeta romântico muito célebre,
fez-lhe uma visita e, ao vê-lo fazer 座禅 ZAZEN sobre o
pinheiro, disse-lhe:
“Tenha cuidado, é perigoso, você pode cair do
pinheiro!”
“De maneira alguma”, respondeu Mestre 道林 DŌRIN.
“É você que está em perigo. Aqui e agora, faço 座禅 ZAZEN.
Meu espírito esta totalmente tranqüilo, bem fixo em 空 KŪ.
Você não faz 座禅 ZAZEN e seu espírito dá cambalhotas
perigosamente de paixão em paixão. Seus sentimentos o
arrastam num movimento incessante. Sua sensibilidade lhe
dá vertigens. Você não tardará a cair já que está dominado
pelo pânico.”
白 楽天 HAKU RAKUTEN refletiu.
“Sim. Estou sempre dominado por minhas paixões e
por meus tormentos. Não vivo em paz. Vocifero contra todo o
mundo e freqüentemente provoco perturbações e crio
sofrimentos. Você pode me dar um conselho, você pode me
ensinar o Caminho do apaziguamento?”
Mestre 道林 DŌRIN respondeu:
“Seja modesto e tolerante. Não faça coisas más.
Realize coisas boas, é suficiente. Nenhuma ação nefasta
poderá nascer desta atitude. Afaste o mal, faça o bem. É
muito simples. Esta é a essência do Budismo.”
O poeta sorriu:
“Todo mundo pode compreender isto, inclusive uma
criança.”

290
Mestre 道林 DŌRIN respondeu-lhe:
“Sim, inclusive uma criança pode compreendê-lo, o que
não impede de ser difícil de praticar um comportamento justo
e deter as más tendências. Inclusive aos oitenta anos é
difícil.”

Nosso mau karma diminui quando fazemos 座 禅


ZAZEN. Inconscientemente, natural e automaticamente se
pode praticar o caminho justo, o bem.
Em sânscrito, shīla (戒 KAI), tem duas traduções: saber
deter com a vontade e criar o espírito que purifica a
consciência. Não fazer coisas más. Ter sempre um espírito
tranqüilo e apaziguado. O mau karma não se realizará. Mas,
na vida cotidiana, a maior parte das pessoas não o
consegue. Influenciados pelo entorno, queremos deter as
más ações, mas é impossível. O karma original aparece, a
herança genética, o sangue exerce sua influência.
No Budismo há dez 戒 KAI principais, mas no tempo de
Buda, havia duzentos e cinqüenta para os monges e
trezentos e cinqüenta para as monjas. A razão desta
diferença pode se dever ao fato de que o homem tem oito
orifícios e a mulher tem nove, e que a mulher tem uma
fisiologia mais delicada. Buda não chegou a formular nenhum
戒 KAI. Educava as pessoas que encontrava em seu caminho
suavemente, como eu. Punha em resguardo aqueles que
tinham uma vida sexual demasiado intensa ou aqueles que
tomavam drogas ou que levavam uma vida dissoluta ou
desonesta. Seus discípulos reuniram depois seus
ensinamentos e criaram as regras. Mas Buda nunca proibiu
algo. O formalismo dos 戒 KAI não é bom. É necessário atuar
com sabedoria segundo cada caso particular. Da mesma
maneira que para os europeus é difícil não comer carne, os
japoneses não podem passar sem comer 刺 身 SASHIMI
(peixe cru). As características de cada um são diferentes.
Durante as ordenações, leio os 戒 KAI e os novos
monges me respondem:

291
“Sim, sim, sim!”
Devemos compreender o significado deste rito.
Devemos deter as más ações e seguir a moral. Mas isto não
é uma regra. Há que se compreender a situação com a
consciência lúcida. Cada situação é diferente para cada um.
O que significa deter as más ações? Significa não
beber whisky? Às vezes sim, às vezes não.
攝 善法 戒 SHŌ ZENHŌ KAI. Respeitar a ordem natural,
as maneiras de atuar, ajudar para o bem com compaixão e
sabedoria.
No Budismo japonês, os 戒 KAI estão limitados a três:

1. 攝 律儀 戒 SHŌ RITSUGI KAI (samvara-shīla), o


preceito que recomenda evitar as más ações;

2. 攝 善法 戒 SHŌ ZENHŌ KAI (kushala-dharma-


samgrāhaka-shīla): praticar as boas ações;

3. 攝 衆生 戒 SHŌ SHUJŌ KAI (sattvârtha-kriyā-shīla):


ajudar aos demais.

Em seguida vêm os dez preceitos fundamentais da


ordenação. Mas somos nós que devemos julgar e decidir se
nossa ação é boa ou má.
Por exemplo, pode-se dizer: não se conformar à lei ou
molestar os demais é mau. Mas o que é o bem e o que é o
mal? Devemos decidir com nossa própria sabedoria. Não
obstante, a norma é necessária, há que se seguir a moral, a
ordem social, a Ordem Cósmica. A sabedoria é igualmente
necessária para ajudar aos demais.
Todos os preceitos estão incluídos nos três 戒 KAI de
base do Budismo Zen (禅宗 ZEN-SHU). No 禅 ZEN não há
regras como nas demais religiões. Os outros dez preceitos

292
são os que serão recebidos durante a ordenação e se
resumem em dez princípios fundamentais:

1. 不 殺 生 戒 FU SESSHŌ KAI (prānātipātād


vairamanī): Não matar. Não somente os homens, mas
na medida do possível os animais e tudo o que vive, as
árvores, as flores... Todos os seres sencientes.
2. 不 偸盜 戒 FU CHŪTŌ KAI (adinnādāna-veramanī):
Não roubar. Este preceito é muito importante. Roubar é
absolutamente mau. Isto faz parte da moral universal.
3. 不 邪淫 戒 FU JAIN KAI (kāma-mithyācārādviratih):
Não levar uma vida de luxúria. No Budismo Hīnayāna
(小乗仏教 SHŌJŌ-BUKKYŌ) é proibido fazer amor e
inclusive olhar a cara de uma mulher. No Mahāyāna
(大乗 DAIJŌ) é possível, o único que se recomenda é
não ter uma má prática sexual. É proibido fazer amor
com a mulher ou com o marido de outra pessoa. Mas
na França, não sei.... Pelo que vejo, creio que não é
tão mau..., nem é proibido. A sabedoria é necessária.
4. 不 妄語 戒 FU MŌGO KAI (musāvādā-veramanī):
Não mentir. Às vezes é possível mentir, como um meio.
Tão pouco se deve contar estórias de maneira
exagerada, nem utilizar palavras cômicas ou cheias de
adulação. Os 戒 KAI se modificam segundo o país e a
época. Há trezentos ou quinhentos anos, a vida era
diferente da atual.
5.不 酤酒 戒 FU KOSHU KAI 66:
Não negociar intoxicantes.
6. 不 說 四衆 過罪 戒 FU SETSU SHISHU KAZAI KAI:
Não criticar. Não falar com uma língua bífida, pérfida.
Não julgar segundo as categorias pessoais.

66
Não consta do original. (N.T.)
293
67
7. 自 讚 毁 他 戒 JISAN KITA KAI :
Não se elevar e rebaixar os outros.
8. 慳 惜 加 毀 戒 KENSHAKU KEKI KAI:
[Ser parcimonioso](*). Não desejar demasiado. Não
ser ávido.
9. 瞋 心 不 受 悔 戒 SHINSHIN FUJUKE KAI.
Não se encolerizar.
10. 謗 三寶 戒 HŌ SANBŌ KAI: [Não falar mal dos Três
Tesouros]68. Não se equivocar quando falar. Não emitir
opiniões e juízos errôneos.

Devemos decidir nosso comportamento com nossa


sabedoria e em função destes 戒 KAI.

Uma história tradicional diz o seguinte:


Uma pessoa se embriaga com álcool. Depois tem
fome. Rouba uma galinha da vizinha. Mata-a e a come. A
vizinha chega e lhe pergunta se viu a sua galinha. Esta
pessoa lhe responde que não sabe de nada. E depois
violenta a vizinha.
Ao beber álcool se infringe assim cinco preceitos. Mas
apenas beber álcool não é tão mau como roubar a galinha,
matá-la, mentir e violentar a vizinha...
Na medida do possível é melhor não beber álcool
quando não se sabe se controlar. Com respeito aos
preceitos, há que se agir com muita sabedoria, com muito
discernimento. Devemos ter cuidado, estarmos atentos e
vigilantes.

O Dr. Paul Chauchard 69 escreveu um livro sobre os


desejos. Nele fala da moral do desejo na época moderna e
se fundamenta em fatos científicos:

67
Não consta do original. (N.T.)
68
Idem. (N.T.)
294
“.... Podemos definir portanto os desejos ou a maneira
sã de vivê-los como a escolha de desejos controláveis que,
por isso, já começaram por ser controlados e avaliados
lucidamente. Agimos de maneira desarmoniosa com atos
automáticos porque estamos contrariados e porque não
aprendemos a arte de ter atitudes corretas. Pelo contrário, os
gestos profissionais são muito harmônicos e precisos e, mais
ainda, se são executados maquinalmente e não se pensa
neles. Precisamente, os gestos profissionais são aprendidos
com cuidado. Convertem-se em bons hábitos e não
necessitam ser controlados. Se queremos realizá-los
conscientemente os perturbamos, já que desejamos que a
vontade atue forçosamente em um automatismo, que assim
se encontra perturbado. Mas de vez em quando há que
controlá-los e, para isto, o melhor é tomar consciência de
toda a sucessão de gestos. Acreditamos que para querer
precisamos agir antes, entretanto primeiramente temos que
sentir para que a ação possa ser inserida corretamente no
estado do corpo.”
“.... Os desejos são essencialmente centros afetivos
inconscientes da base do cérebro, cujo desencadeamento
sofremos. A vontade não está relacionada diretamente.
Portanto, não devemos tentar lutar voluntariamente contra
um desejo, temos que conhecê-lo indiretamente.”
“.... Aquele que cria a calma em si, controlando sua
respiração, relaxando, tomando uma atitude pacífica,
tomando consciência de seu corpo e de suas sensações,
desvia sua atenção do desejo e o diminui, mas ao mesmo
tempo reforça sua vigilância, que o faz capaz de resistir
melhor com o fim de orientar melhor seu desejo.”
“.... É o psiquismo superior, o cérebro, o que controla,
mas o fato de tranqüilizar o corpo através dos simples meios
precedentes, pelo fato de que os centros da harmonia do
69
Ex-diretor de pesquisa do Departamento de Neurofisiologia da
Sorbonne. (N.T. Ed. Esp.)

295
corpo são também os centros de harmonia do cérebro, tem
como resultado um aumento de nossa vigilância cerebral, de
nossa possibilidade de atenção. A paz do corpo é a fonte de
paz interior.”
“.... Os maus desejos, as más maneiras de viver os
desejos, são tais que, se desejamos ou se deploramos,
acreditamos que nos animalizamos (o que é impossível: só
podemos nos desumanizar uma vez que não podemos
encontrar os bons instintos perdidos que já não estão em
nossa natureza liberada), e que tentamos ser um anjo em
contínua luta com um animal, em lugar de ser simplesmente
um homem.”
“... O homem civilizado, presa dos desejos inúteis ou
maus, é menos livre que o primitivo, simplesmente porque
sua liberação das estreitezas moralistas o acorrentam às
estreitezas dos costumes e da publicidade. Mais que o
homem primitivo, o homem civilizado necessita aprender,
necessita ser liberado. Ou que ninguém lhe ensine ou lhe
explique. O paradoxo é que devemos tomar por exemplo os
membros da civilização que ela julga “inferiores” e que não
obstante são mais equilibrados, já que respeitam muito mais
a natureza. Não se encontram no Oriente, com o Yoga e o
Budismo Zen, os mestres do auto controle? Também
podemos encontrar equivalentes em nossas tradições:
nossos antepassados conheceram este auto controle, antes
de se converterem em puros intelectuais e em técnicos,
discípulos sem sabê-lo de Descartes. É certo que isto
permitiu um progresso real da civilização, mas também na
degeneração do homem, associação que de maneira alguma
era obrigatória, e da qual temos que nos desembaraçar
agora, se não queremos perecer.”
“...Como conclusão ... A colméia é boa para a abelha
enquanto que nossa sociedade é cada vez mais nociva para
o homem, e não só pela poluição do meio ambiente, mas
mais ainda pela degradação das relações humanas. A
solução não está na volta ao passado, nem na anarquia, nem
em uma destruição revolucionária sistemática, mas na

296
referência ao sentido da história, desenvolvimento cultural de
nossa natureza. Não se trata de se opor ao progresso mas
de fazer que este seja um VERDADEIRO PROGRESSO
PARA O HOMEM. Trata-se de reconhecer que nada é mau,
com a condição que esteja bem orientado, em relação ao
progresso da pessoa sob seus aspectos individual e social.”

Seja como for, devemos controlar nossos desejos. Isto


é muito importante. E na medida do possível, devemos fazer
com que nossos maus desejos diminuam, maus desejos que
são fonte de tristeza, devemos superá-los para alcançar o
desejo espiritual, de dimensão elevada. Devemos fazer com
que nossos desejos espirituais aumentem e que diminuam os
desejos corporais e materiais. Desenvolvendo a sabedoria
pode-se compreender e decidir quando um desejo é mau.
Graças à sabedoria, cortando os apegos, nossos desejos
diminuem. Desta maneira chegamos a ser verdadeiramente
livres em nosso próprio espírito e alcançar o 悟 SATORI.
座禅 ZAZEN é o melhor método para escolher o caminho a
seguir, o comportamento a adotar. A verdadeira sabedoria
pode ser encontrada graças ao 座禅 ZAZEN.

忍辱 NINNIKU: a paciência. Como exercer a paciência


em relação aos desejos, à cólera, à loucura? É importante
que em nossa vida cotidiana cortemos os seguintes
煩悩 BONNŌ, ou ao menos que os façamos diminuir:
- 貪 TON (rāga): o desejo, a avidez, a ambição;
- 瞋 SHIN (dvesa): a cólera, o orgulho;
- 痴 CHI (moha): a estupidez, a ignorância.70

70
No original, “TON, JIN e KIM”. Tratam-se dos “três venenos”,
三毒 SANDOKU (tri-visa):

- 貪欲 TONYOKU (kāma-rāga): o apego aos desejos;

297
Ainda que nos comportemos bem durante todos os dias
de nossa vida cotidiana, basta que um dia nos ponhamos em
cólera, para que esta destrua todos os bons méritos obtidos.
Esta é a razão para se ter paciência e praticar a resistência,
atitudes fundamentais que temos de respeitar para obter o
Caminho. O conceito de paciência é muito importante, já que
permite regular a conduta da existência. Ser objeto de críticas
é freqüentemente muito mal aceito. Mas neste caso
específico, no qual a força da paciência é posta a prova, se
esta é mantida, o mais saudável para o Caminho é o
abandono do ego. A crítica é um método que normalmente
empregam os mestres 禅 ZEN, com este objetivo.
Progressivamente, o apego ao ego diminui, e os sarcasmos,
as zombarias, as reprimendas passam através do discípulo
sem que este se veja afetado. A educação do discípulo passa
a uma dimensão mais elevada: as críticas e apreciações do
Mestre já não são sentidas como um ataque à personalidade
(ego), mas como uma verdadeira instrução que edifica
imediatamente o discípulo.

Isto é o que diz o 證道歌 SHŌDŌKA:


“Suportar as críticas ajuda enormemente a progredir no
Caminho”.71

- 瞋恚 SHINI (dvesa): raiva;

- 愚癡 GUCHI (sammoha): ignorância. (N.T.)

71
“Aceita as críticas e sujeita-te às calunias dos outros.
Eles acabam se cansando por quererem
incendiar o céu com uma tocha.
Quando tu o escutas, é como um doce néctar.
Ele se dissolve instantaneamente e ingressa no mistério.”

Yoka Daishi - “Shodoka - O canto do Satori imediato”.


Tradução e comentários do Mestre Taisen Deshimaru Roshi, Ed.
Pensamento, São Paulo, 1997. Pág. 86. (N.T.)

298
Não se encolerizar. Ainda que alguém se incomode,
não conteste, não lute. Há que praticar a paciência, 忍 NIN.
Existem três tipos de paciência: 生 忍 SHŌNIN,
法忍 HŌNIN e 信忍 SHINNIN72
生忍 SHŌNIN: se nos criticam, se nos tocaram de
alguma forma nas profundezas de nosso ego, não devemos
polemizar. Tenha sempre presente em seu espírito o valor
que realmente temos: nem tão bom como dizem, nem tão
mau como acreditamos. Permanecendo sempre lúcidos e
vigilantes, não cairemos nas armadilhas da honra. Mantenha
o espírito sereno, imperturbável.
Algumas vezes sou muito diplomático, outras vezes
sou cortante.
法忍 HŌNIN: este termo é freqüentemente repetido no
證道歌 SHŌDŌKA. Significa o não apego. O espírito interior
deve permanecer sempre apaziguado e lúcido.
Se nascem 煩悩 BONNŌ no espírito, deixe-os passar.
Se for criticado, tenha paciência. Daqui nasce o poder
material e a verdadeira sabedoria.

信 忍 SHINNIN: é outra forma da Paramitā kshānti


(忍辱 NINNIKU). Trata-se desta vez da paciência corporal.
Por exemplo, durante o 座 禅 ZAZEN, se as pernas, os
joelhos, os tornozelos, os ombros doem, não os mova. Tenha
paciência.

No 正法眼蔵 SHŌBŌGENZŌ, o Mestre 道元 DŌGEN


comentou o Sūtra que relata a morte do Buda73. Nele fala dos

72
No original, “SHEININ”. (N.T.)
73
大 般涅槃 經 DAI NEHAN KYŌ, Mahāparinirvāna-sūtra. (N.T.)

299
seis grandes 悟 SATORI de Buda, insistindo sobre a virtude
de 忍 NIN, os méritos da paciência.
Na vida social, para conseguirmos criar uma grande
obra, a paciência, 忍辱 NINNIKU, é igualmente importante.

Em um Sūtra, conta-se a história de um certo brahman


que se encolerizou contra Buda e o criticou:
O Buda Shākiamuni olhou-o pacientemente sem
responder e depois lhe disse:
“Já terminou, brahmam?”
“Sim”, respondeu o brahmam.
“Alguma vez você recebeu uma visita em casa?”,
perguntou Buda.
“Sim, é natural.”
“Ofereceu-lhe chá e bolinhos?”
“Naturalmente.”
“E o que você faz caso a visita não queira aceitá-los?”
“Pouco se me importa”, respondeu o brahmam. “Se a
visita não os quer, eu mesmo os como.”
“O Buda então replicou:
“Brahmam, você me convidou hoje com suas críticas,
serviu-me uma porção de bolinhos de crítica. Eu não os
aceito. Peço-lhe por tanto que você mesmo os coma. Se eu
aceitasse responder a seus argumentos, isso significaria que
quero compartilhar os bolinhos com você, mas não os quero
comer. Fica tudo para você. Por favor, pegue-os e leve-os
consigo.”
Este diálogo expressa um ensinamento muito profundo.

O Mestre 興 道 沢 木 KŌDŌ SAWAKI recebia


freqüentemente jovens estudantes que sempre queriam falar
e discutir com ele. Mas como suas palavras lhes entravam
por uma orelha e saiam pela outra, assim lhes dizia:
“Não vale a pena discutir, assim não chegarão a nada
fundamental. O silêncio é melhor, caso desejem encontrar o
essencial. O silêncio é muito mais profundo.”

300
A quarta Paramitā é 精進 SHŌ JIN (vīrya), o esforço, a
resistência. Praticá-lo, como a moralidade, é difícil. Todo
mundo sabe agir de palavra, mas o comportamento na vida
cotidiana não reflete estas palavras. A ação não segue o
pensamento, o ideal não coincide com a realidade, o
comportamento não é justo nem exato. Não corresponde de
nenhuma maneira a 摩訶 般若 波羅蜜多 MAKA HANNYA
HARAMITTA (Mahā Prajñā Paramitā), a Grande Sabedoria.
Como passamos nossa vida? Como nos comportamos desde
o nascimento até a morte? O 般若 心経 HANNYA SHINGYŌ
nos dá o segredo das seis Paramitā. Seguir os preceitos, a
moral, levar uma vida regrada, praticar boas ações,
respeitar os cinco 戒 KAI fundamentais 74 , tudo isto nos
aproxima da verdadeira sabedoria. A sabedoria profunda do
座禅 ZAZEN nos permite discernir o justo do falso. Daí a
importância de 精進 SHŌ JIN: o esforço, a perseverança, a
quarta Paramitā, a concentração sobre uma só coisa, aqui e
agora. Quando se pratica 座禅 ZAZEN há que se concentrar
somente sobre 座 禅 ZAZEN e continuar assim. Tomar a
postura uma vez só não basta! Alguns vêm fazer
座 禅 ZAZEN um dia, uma semana, um mês, um ano, e
depois já não voltam mais.

Quando cheguei na França muitas pessoas me


seguiram, mas delas só umas poucas ainda continuam.
Ensinei a milhares de pessoas, mas poucos
continuam...
Entretanto há que se praticar até a morte.
74
五 戒 GOKAI: os cinco preceitos fundamentais, que compõe o
conjunto mínimo de restrições morais a serem seguidas por um
praticante leigo: não matar ( 不 殺 生 FU SESSHŌ), não roubar
( 不 偸 盜 FU CHŪTŌ), não manter relações sexuais impróprias
(不 邪婬 FU JAIN), não mentir(不 妄語 FU MŌGO) e não negociar
intoxicantes (不 酤酒 FU KOSHU). (N.T.)

301
O Sūtra sobre o testamento de Buda diz:
“Se nos concentrarmos plenamente sobre uma coisa,
consegui-la-emos.”
Tudo é possível, mas no interior dos limites do justo e
do verdadeiro, e de qualquer forma sem infringir os preceitos.
Há que se concentrar sobre os Paramitā: os 布施 FUSE, os
戒 KAI, etc... Existem dois tipos de esforços: o esforço do
corpo e o do espírito. Por exemplo, fazer um 布施 FUSE ou
respeitar um 戒 KAI refletem o 精 進 SHŌ JIN do corpo.
Praticar a paciência ou o 座禅 ZAZEN requer um esforço do
corpo e do espírito. Isto é criar sabedoria, o 精進 SHŌ JIN do
espírito.

O Sūtra do testamento de Buda disse:


Perseverar é muito importante. Há que praticar
座禅 ZAZEN da mesma maneira que se fricciona dois sílex
para fazer saltar a faísca.
道 元 DŌGEN escreve no primeiro volume do
正法眼蔵 SHŌBŌGENZŌ:
“Continue o 座 禅 ZAZEN e os méritos infinitos, os
méritos maiores chegarão sem sombra de dúvida. Mas não
tenha como meta a obtenção de tais méritos. Vosso espírito
deve ser 無所得 MUSHOTOKU, sem meta, sem busca de
beneficio. Concentre-se apenas sobre o esforço.”
Alguns Sūtra falam de três formas de esforço:

1. 精進 弓 SHŌJIN KYŪ75: 弓 KYŪ significa “arco”. É o


esforço que serve de arma (simbólica). Uma pessoa armada
não tem medo. Nosso espírito deve ser uma espada que
corta o medo, que não teme as dificuldades e que combate o
mal. Um combate que nosso espírito deve fazer primeiro
contra ele mesmo. Tal é o esforço de um espírito armado.

75
No original, “IKKO SHIKIN”. (N.T.)
302
2. 攝 善法 精進 SHŌ ZENHŌ SHŌ JIN76: o esforço que
consiste em praticar ações justas e úteis aos demais. Para
lográ-lo, há que conquistar todos os 煩悩 BONNŌ do corpo e
do espírito, todos os desejos e todos os dogmatismos, todo o
mau karma. Não se trata de conduzir-se desta maneira por
um ano, por exemplo, e depois parar. Há que continuar todos
os dias.
Repetir. Repetir uma e outra vez é 道觀 DŌKAN, o
círculo do Caminho.
As pessoas da época moderna não gostam de repetir.
Automaticamente crêem que já aprenderam. E tão
rapidamente como aprendem, esquecem! Vêm fazer
座禅 ZAZEN durante algum tempo, depois deixam de vir e
dizem: “Oh, eu já compreendi! Já compreendi o 座禅 ZAZEN
e o 禅 ZEN.”
Esta atitude é completamente equivocada. Há que
continuar. Sem esforço só há debilidade e regressão.

3. O ESFORÇO PARA AJUDAR A TODOS OS SERES


SENCIENTES. Por isso se necessita todo um leque de meios
e de métodos. Não devemos ter dúvidas em nos precipitar
para ajudar à humanidade, para corrigir e ajudar o mundo
social, sem economizar energias. Desta maneira pratica o
verdadeiro Bodhisattva.
Seja como for, o esforço não deve ser praticado
unicamente para si mesmo, mas deve se estender aos
demais. E o método mais eficaz e o mais benéfico é fazer
座禅 ZAZEN. Os méritos do 座禅 ZAZEN brotam ao redor
daquele que o pratica, no trabalho, na família, etc...
座禅 ZAZEN contribui para fazer progredir as existências no
Dharma.
Nossa atitude no mundo é o reflexo exato do grau de
profundidade e de concentração de 座 禅 ZAZEN e da
sabedoria que se realizou. Ao entrar em uma casa, pode-se

76
No original, “SHOJEN BO SHOJIN”. (N.T.)
303
compreender rapidamente o estado de espírito da pessoa
que vive nela.

O Sūtra 正法念經 SHŌHŌ NEN KYŌ77 diz:

“Apenas os estúpidos se comprazem na preguiça e no


egoísmo, esta é a razão pela qual sempre encontram
dificuldades na vida e sofrem numerosas atribulações.
Fazendo o esforço de combater a preguiça e o egoísmo,
obtém-se a alegria e paz profunda.”
Todos os sofrimentos vêm da preguiça, do desleixo
interior, mental e físico.
No ensinamento do Caminho coexistem numerosos
métodos, assim como códigos morais diversos.
Mas 精進 SHŌ JIN, o esforço, é a fonte de toda a moral
e a raiz de todo o ensinamento autêntico.
“Meus queridos discípulos, eu o rogo, pratiquem os oito
caminhos simples e realizem-nos, já que a visão justa, o
pensamento justo, a linguagem justa, a maneira de viver
justa, a ação (comportamento) justo, o esforço justo, a
atenção justa e a concentração justa estão ao vosso alcance
e sua realização depende unicamente de vocês mesmos.”
Os ensinamentos são numerosos e os caminhos,
múltiplos.
Mas o esforço irradia universalmente como o sol. E o
esforço consagrado à prática do 座 禅 ZAZEN é o mais
radiante, o que mais aquece toda a terra. Por que é
necessário o esforço?
“Realizar o sentido último da vida é a obra prima do
homem, a última. Aqueles que ignoram 無 常 MUJŌ, a
impermanência, tornam-se preguiçosos. Acreditam possuir a
77
No original SHŌBŌ NEN GYŌ. Em se tratando do
正法念經 SHŌHŌ NEN KYŌ, este é a forma abreviada do
正 法 念 處 經 SHŌBŌ NENSHO KYŌ, Saddharma-smrity-upasthāna-
sūtra. (N.T.)
304
eternidade para realizar sua obra, crêem que podem salvar
sua vida com o egoísmo. Quanto se equivocam!”
Assim se dirigiu Buda a seus discípulos, momentos
antes de morrer.

Um Mestre disse um dia:


“Um homem valente, nobre e honrado, visitou um dia
quatro grandes mestres de 弓道 KYŪDŌ (tiro com arco) que
viviam juntos em um lugar retirado. O homem lhes falou
assim:
“Vocês são quatro. Que cada um caminhe em uma das
quatro direções e depois se volte para mim. Disparem vossas
flechas ao mesmo tempo. Eu as deterei antes que me
alcancem.”
“Não podemos acreditar!”, exclamaram.
“Que rápido deve ser!”, acrescentaram os alunos. Já é
difícil deter uma flecha lançada por um mestre: quatro ao
mesmo tempo deve ser impossível! Deve ser um mago.”
O mestre mais idoso argumentou:
“Há ainda algo mais rápido que este homem nobre e
valente: o raio de sol e o relâmpago. E há ainda algo mais
rápido que o raio de sol e o relâmpago... o que é?”
“A rapidez da mudança, a impermanência de nossa
vida é mais fugaz que a aparição do relâmpago!”

Mas vocês se esquecem muito rápido e quase não se


importam com isto. O sol e a lua têm uma vida eterna
comparada à fugacidade da nossa. O tempo passa como
uma flecha, mas 無常 MUJŌ é mais rápida que a flecha.
Quando se tem ciência disso, pratica-se o esforço.
Os fenômenos da natureza se sucedem rapidamente:
as flores murcham, as folhas caem. O inverno passa, a
primavera, o verão, depois de novo o outono, o inverno.
Por isso devemos ter constantemente no espírito a
realidade de 無 常 MUJŌ. Há que compreendê-la
intimamente, desde o fundo de nossa consciência, e o
sentimento que se desprende desta compreensão nos
305
conduz ao esforço. Inclusive os gatos e as pombas devem
fazer continuamente esforços. Eu freqüentemente os observo
desde a janela de meu quarto. Desde a manhã se põem a
buscar alimentos. Espiam, olham, abrem seus grandes olhos
e quando identificam um grão de arroz ou uma migalha de
pão, precipitam-se para engoli-los. 興道 沢木 KŌDŌ SAWAKI
nos repetia sempre que o esforço é muito importante. Eu faço
esforço, desde a minha juventude, para continuar a prática
até o dia de hoje. Nos templos, quando eu era jovem, era
muito difícil acessar a leitura dos Sūtra. A primeira razão era
a severidade do Mestre que proibia qualquer leitura.
座禅 ZAZEN, cerimônia e 作務 SAMU (trabalho manual) eram
as únicas atividades permitidas. A segunda dificuldade era a
debilidade da iluminação. Para falar francamente,
simplesmente não havia iluminação. Tinha que ser muito
astuto e sobretudo, ter uma firme determinação de ler os
Sūtra. No inverno, graças à reverberação da luz produzida
pela neve. No verão, vaga-lumes capturados se convertiam
em fonte de luz. Às vezes, correndo o risco de sermos
descobertos e de sofrer severo castigo, amparávamos-nos
em grossos bastõezinhos de incenso, cuja extremidade
incandescente posta a alguns milímetros das páginas,
proporcionavam luz suficiente para delimitar os traços e
adivinhar os 漢字 KANJI. Desta maneira passei longas noites
decifrando os textos subtraídos durante o dia da sala de
leitura dos monges mais velhos; depois, durante o dia,
meditava sobre o sentido do que havia lido. Uma vez, o
Mestre me descobriu lendo e ficou encolerizado (ou fingiu
ficar):
“É inútil ler”, gritou-me, “faça 座 禅 ZAZEN e não
desperdice seu tempo.”
Às vezes me escondia no banheiro para poder
continuar tranqüilamente minhas leituras. As banheiras
japonesas são muito profundas. Quando não são utilizadas,
são cobertas por uma tampa de madeira, para evitar a perda
de calor da água. Um dia, 興道 沢木 KŌDŌ SAWAKI me

306
descobriu dentro de uma delas sem que eu me desse conta,
já que estava absorto na leitura. Cobriu então rapidamente a
banheira e a manteve fechada durante alguns instantes. Eu
então já não podia ler e menos ainda respirar.

A quinta Paramitā, 禅 定 ZEN JŌ (dhyāna), a


concentração durante o 座禅 ZAZEN, é muito importante no
Budismo Mahāyāna (大乗仏教 DAIJŌ-BUKKYŌ).
O Mestre 道元 DŌGEN dizia:
“座禅 ZAZEN está mais além das Paramitā.”
座禅 ZAZEN é o ápice de todas elas.
Nos demais ramos do Budismo, 真 言 SHINGON,
天台 TENDAI, 日蓮 NICHIREN, 念佛 NENBUTSU... também
encontramos 禅定 ZEN JŌ.
座 禅 ZAZEN, dhyāna em sânscrito, é a base
fundamental de todas as Paramitā e de todas as ações do
budismo 禅 ZEN.

Em forma de 漢字 KANJI, às vezes também se pode


escrever assim:
- 定 JŌ: a fixação;
- 常靜 JŌJŌ: tranqüila;
- 却 KYAKU: abandonar as coisas más;
- 智楫 CHISHU78: a prática da atenção;
- 功 徳 叢 林 KU DOKU SŌRIN: os méritos do
道場 DŌJŌ.

Existem muitas traduções desta palavra 禅 ZEN.


No 曹洞 SŌTŌ, o 禅 ZEN é somente 座禅 ZAZEN,
禅定 ZEN JŌ.

78
No original, “JOJYO”, “KIAKU” e “CHICHU”, respectivamente.
(N.T.)

307
定 JŌ, a fixação ou o samādhi, a concentração do
espírito sobre uma só coisa. Eu digo sempre: “Não devemos
pensar em outra coisa, salvo nesta que nos ocupa agora. No
座禅 ZAZEN, estar somente concentrado sobre a postura e a
respiração. O subconsciente surgirá como borbulhas na água.
Quando nossos pensamentos aparecem, não há que se
distrair, mas voltar à concentração sobre a postura, observar
se os ombros não estão demasiadamente elevados, ou se o
queixo está recolhido, a coluna vertebral bem alinhada... e o
espírito permanece assim fixo e tranqüilo.”
座禅 ZAZEN significa às vezes “o pensamento tranqüilo,
justo”, e também “a concentração”.
Ainda que pratiquemos a concentração, o
subconsciente surge. Não há nada que querer escapar dele,
mas deixá-lo passar naturalmente. Como se fossem nuvens
no céu... Muitos fenômenos mentais da vida cotidiana se
manifestam durante o 座 禅 ZAZEN: as ansiedades, as
alegrias, as preocupações... Mas não há que se deter neles.
Desta maneira podemos nos dar conta de que na realidade
tudo isso não é tão importante.
O 禅 ZEN significa abandonar os pensamentos
parasitas. Durante o 座禅 ZAZEN podemos abandonar tudo.
Nada parece tão importante. Há que se concentrar somente
sobre a postura, sobre a respiração e sobre a consciência.
座禅 ZAZEN significa também criar a sabedoria.
Nāgārjuna (龍樹 RYŪJU), em seus comentários sobre
o 摩訶 般若 波羅蜜多 MAKA HANNYA HARAMITTA, conta
um 問答 MONDO entre um Mestre e um monge:
“O Bodhisattva do Budismo Mahāyāna
(大乗仏教 DAIJŌ-BUKKYŌ) deve ajudar a todos os seres.
Como não se dar conta da contradição que há entre este
preceito fundamental e o ato de fugir para a montanha, de
isolar-se no bosque?”, perguntou o monge.
“Ainda que o Bodhisattva se separe de todos os seres
e continue o 座禅 ZAZEN na montanha, seu espírito não

308
deixa de ajudar os demais. Não está somente concentrado
sobre si mesmo. Sua consciência infinita de 座禅 ZAZEN
abarca todo o cosmos. Pouco importa o lugar em que ele
medita. Sua sabedoria profunda aclara toda a humanidade”,
respondeu o Mestre.
A verdadeira sabedoria se cria natural, automática e
inconscientemente através do 座禅 ZAZEN. É inútil buscá-la
conscientemente.
Para um monge ou para um Bodhisattva, o mais
importante é deixar que se manifeste através de seu corpo e
de seu espírito, com o fim de realizar o seu voto. Da mesma
maneira que, às vezes, é conveniente descansar e cuidar-se
para restabelecer o equilíbrio da energia, o Bodhisattva
experimenta eventualmente a necessidade de retirar-se para
o bosque ou para a montanha para fazer 座禅 ZAZEN. Este
retiro atua como um ungüento que renova sua sabedoria. E
depois, quando volta a emergir para o mundo, pode ajudar a
todos os seres e estender os meios para socorrê-los.
座 禅 ZAZEN não significa fugir da nossa vida, nem fugir
deste mundo. Esta prática contribui no mais alto grau para a
salvação de toda a humanidade.
Se queremos chegar a ser autênticos e plenamente
realizados, necessitamos nos retirar do mundo com o fim de
retornar a ele com mais profundidade e mais eficácia. Dito
com a linguagem da medicina: este duplo movimento permite
que nos “imunizemos” contra as enfermidades do mundo e
desta forma adquirimos a força necessária para poder
socorrer aos demais.
Quando você vem a este 道場 DŌJŌ, pela manhã ou à
noite, você se desliga do mundo social. Aqui encontra,
naturalmente, muitos amigos, mas suas relações não são
diplomáticas, nem profissionais, nem amorosas...
Durante o 座 禅 ZAZEN nos separamos da vida
cotidiana, da nossa vida familiar por exemplo, isolamo-nos.
Nosso espírito experimenta uma revolução radical. Podemos
observar através do 座禅 ZAZEN, podemos refletir sobre nós

309
mesmos e desta maneira criar uma verdadeira sabedoria
profunda. Depois de uma hora de 座禅 ZAZEN, ao sair do
道 場 DŌJŌ, voltamos ao mundo e voltamos a encontrar
nossa vida cotidiana. Estes dois aspectos são muito
importantes. A maioria das pessoas está concentrada sobre a
vida cotidiana, sobre os fenômenos de todos os dias. Esta é
a razão pela qual são presa do movimento, da efervescência
que os afasta irremediavelmente do que, não obstante, todo
mundo busca mais ou menos conscientemente: a felicidade e
a paz.
A tempestade está em seus espíritos e nela eles se
perdem.
Fazendo 座 禅 ZAZEN uma ou duas vezes ao dia,
podemos voltar à verdadeira solidão, que é nossa condição
original, infinitamente pacificada.
Durante um 攝心 SESSHIN, cem pessoas podem estar
sentadas juntas num mesmo 道場 DŌJŌ, entretanto cada
uma delas está sozinha, frente a si mesma. Mas o conjunto
todo cria uma atmosfera que age sobre o 座禅 ZAZEN de
todos e de cada um, como se tratasse de um fogo alimentado
por muitos troncos.
色即是空。SHIKI SOKU ZE KŪ.
空即是色。KŪ SOKU ZE SHIKI.
Estes dois aspectos são necessários e devem ser sempre
repetidos. A partir dos fenômenos de nossa vida cotidiana,
色 SHIKI, devemos voltar a 空 KŪ, ao 座禅 ZAZEN. E de
空 KŪ, voltar a 色 SHIKI para ajudar todos ao seres e para
nos harmonizarmos com eles. É inútil buscar a solidão
corporal e se retirar a uma ermida distante. A verdadeira
solidão se cria aqui, agora, no mundo, graças à postura do
座禅 ZAZEN. Depois, podemos voltar a submergir no mundo,
nos fenômenos e difundir nossa sabedoria na vida corrente.
O 座禅 ZAZEN se converte assim no timão dos impulsos
vitais.

310
Em todas as vertentes do Budismo Mahāyāna
(大乗仏教 DAIJŌ-BUKKYŌ), 禅定 ZEN JŌ, a concentração, é
o pivô central ao redor do qual se articulam todas as
atividades. Numerosos ramos do Budismo sustentam que a
prática da observação, durante o período de meditação, deve
ser mais importante que o estado de concentração. Todas
estas escolas produziram um estado de debilidade e
degeneração graves. O ensinamento do 禅 ZEN é
fundamentalmente a concentração em 空 KŪ, nada. Todos os
países nos quais o 禅 ZEN foi implantado passaram por um
período de impulso cultural e de fortalecimento muito
importantes.

311


五 智 “GO CHI” – As Cinco Sabedorias.
312
AS CINCO SABEDORIAS

313
O ESPIRITO DO ZEN

No Budismo existem cinco sabedorias, 五 智 GO CHI


(pañca-jñānāni em sânscrito):

1. 成 所 作 智 JŌSHISACHI 79 (krtya-anusthāna-jñāna).
Representa os meios de ação, o método para socorrer os
seres para ajudá-los a passar para a outra margem. Esta
sabedoria nasce a partir dos cinco órgãos dos sentidos,
眼 耳 鼻 舌 身 GEN NI BI ZE SHIN.

2. 妙 觀 察 智 MYŌKANZACCHI80 (pratyaveksa-jñāna).
Esta sabedoria parte da sexta consciência que, na psicologia
budista é 明 MYŌ, o despertar.
妙 觀 MYŌ KAN é a sabedoria que, graças a uma
maravilhosa e profunda observação, penetra o espírito do
discípulo e o guia e o instrui no caminho justo. Esta sabedoria
dissipa todas as dúvidas.

3. 平 等 性 智 BYŌDŌSHŌ CHI (samatājñāna).


O 漢字 KANJI 平等 BYŌDŌ significa “igual, idêntico”. Esta
sabedoria se eleva inconscientemente, natural e
automaticamente a partir do 座 禅 ZAZEN. Permite
compreender a identidade de todos os seres, de todas as
existências e ajudá-los universalmente, sem discriminação.
Esta sabedoria nasce da sétima consciência,
末那識 MANASHIKI (manas-vijñāna), a consciência pessoal
que filtra o subconsciente.

79
No original, “JO SHO SAT CHI”. (N.T.)
80
No original, “MYO KAN SAT CHI”. (N.T.)

314
Estas três primeiras sabedorias surgem da consciência
pessoal. As duas seguintes são relativas ao 座禅 ZAZEN.

4. 大 圓 鏡 智 DAIENKYŌCHI (ādarsha-jñāna).
O subconsciente surge durante o 座禅 ZAZEN, as imagens
passam e a reflexão se sobrepõe. O pensamento que nasce
do subconsciente só pode ser produzido a partir do estado de
concentração.
Eu digo sempre: “Concentre-se. O espírito se
converterá assim num espelho puro e a intuição aparecerá.

箇の不思量底を思量せよ。
KONO FUSHIRYŌTEI O SHIRYŌ SEYO.
PENSAR EM NÃO PENSAR.

不思量底如何が思量せん。
FUSHIRYŌTEI IKANGA SHIRYŌSEN.
COMO PENSAR EM NÃO PENSAR ?

非思量。
HISHIRYŌ.
PENSANDO DESDE O FUNDO DO NÃO PENSAMENTO.81

5. 法界體性 智 HOKKAI TAISHŌ CHI (dharmadhātu-


prakrti-jñāna). Esta sabedoria nasce da consciência Amala
(無垢識 MUKU SHIKI), a nona consciência. É a sabedoria
mais elevada, a consciência 非思量 HISHIRYŌ.
Esta quinta sabedoria, 般 若 波 羅 蜜 多 HANNYA
HARAMITTA (Prajñā Paramitā) é a sabedoria cósmica,
universal, que reconhece o valor de cada existência.

81
No original, “HISHIRYO TE FUSHIRYO”. Reproduzi a famosa
seqüência do 普勸坐禪儀 FUKANZAZENGI, ”Regras Universais do
Zazen” de 道元 DŌGEN.(N.T.)

315
A partir do 座 禅 ZAZEN aparecem estas cinco
sabedorias, inconsciente, natural e automaticamente, desde
a consciência 非 思 量 HISHIRYŌ, a consciência absoluta.
Não é necessário querer realizar estas cinco sabedorias. O
espírito deve permanecer 無 所 得 MUSHOTOKU. Estas
sabedorias aparecerão espontaneamente, graças ao poder
de 空 KŪ.

Faço aqui um esquema do processo evolutivo da


consciência através do 座禅 ZAZEN e da realização psico-
fisiológica do sistema:
Tudo parte de 無明 MUMYŌ, a ignorância, que passa
pelo hipotálamo, o tálamo e os seis órgãos dos sentidos.
A consciência do cérebro frontal – o reconhecimento e
o raciocínio (a volição) – constitui a consciência pessoal:
末那 MANA.
A sétima consciência é a mente, o pensamento:
思量 SHIRYŌ.
Depois alcançamos 阿 賴 耶 識 ARAYA SHIKI
(Ālayavijñāna), a oitava consciência, o não consciente.
Acima destes oito níveis de consciência encontra-se
Amala (無垢識 MUKU SHIKI), a consciência
非 思 量 HISHIRYŌ, sabedoria cósmica, verdadeira
般若 波羅蜜多 HANNYA HARAMITTA.

A grande lição do 般 若 波 羅 蜜 多 心 経 HANNYA


HARAMITTA SHINGYŌ é que a verdadeira sabedoria é em si
無 所 得 MUSHOTOKU. E que só pode se manifestar
inconsciente, natural e automaticamente, quando nosso
espírito está em total harmonia com a Ordem Cósmica. Uma
garrafa vazia pode ser preenchida. Da mesma forma, da
vacuidade total emerge a sabedoria.

316
Se a garrafa está semi cheia, só se poderá acrescentar
a metade de outro líquido. Ademais, uma garrafa semi cheia
é ruidosa, da mesma maneira daqueles que possuem um
saber pequeno, mas crêem possuir o segredo dos deuses e
querem ensiná-lo a todos. Estes são volúveis e ruidosos.
Mas quando a garrafa está completamente cheia ou
vazia e a sacudimos, nenhum ruído emana dela. Assim
sucede com o conhecimento infinito, ou com a sabedoria
absoluta. Para que essa sabedoria apareça há que se fazer o
vazio total. Ambos, sabedoria e vacuidade, 非思量 HISHIRYŌ
e supra consciência, formarão uma equação perfeita. Os
intelectuais não estão cheios nem vazios. Sabem o suficiente
para fazer bastante barulho... Eu mesmo recebi uma
educação de estilo europeu, primeiro no bacharelato e depois
na universidade. Eu acreditava que sabia muito e que era
invencível em vários aspectos, mas quando tive que entrar
para os negócios e enfrentar a rapacidade dos ambiciosos e
demonstrar mais sutileza que eles, os anos que havia
passado me instruindo não me serviram absolutamente de
nada. Meus estudos de economia eram demasiado teóricos e
inadequados para criar uma solução oportuna. Nesta época,
à época de minha iniciação na vida social, fui visitar
興道 沢木 KŌDŌ SAWAKI, que momentaneamente havia se
estabelecido em 總持 寺 SŌJI JI82. Ele era a encarnação
do monge errante. Sua expressão era profunda, mas não
tinha aspecto de intelectual. Sem embargo, quando visitei
seu quarto encontrei-o submerso em livros, Sūtra e obras
múltiplas, as quais em sua maioria eu nem sequer
compreendia o título.
“Você leu todos estes livros?”, perguntei-lhe
desconcertado.

82
Um dos monastérios 曹 洞 宗 SŌTŌ SHU mais importantes do
Japão. Foi fundado por 瑩山 紹瑾 KEIZAN JŌKIN no século XIII. O
outro é 永平 寺 EIHEI JI, fundado por 道元 禅師 DŌGEN ZENJI.
(N. T. Esp.)
317
Eu também quis então me instruir na riqueza que
deveria encerrar estes textos tão importantes. Pedi-lhe que
me emprestasse alguns, mas ele me respondeu
imediatamente que isso não servia para nada, que meu
desejo só correspondia a um capricho infantil. Creio que
neste momento obtive o 悟 SATORI. Encontrei-me tão
perplexo com estas observações que tive que emprestar um
livro que ele julgava interessante. Tratava-se de “A vida do
mendigo 桃 水 TOSUI”. ( 桃 水 TOSUI significa água de
pêssego).
Depois, pouco a pouco, encheu-me os braços de obras
e textos. Vinte ensaios sobre o 禅 ZEN e as Artes Marciais.
Mas o que mais prazer me causou foi uma parte de suas
notas pessoais. As que me entregou levavam na capa o título
caligrafado em grandes traços por ele mesmo: “As orelhas do
asno”. Li-as de uma só vez. Este foi provavelmente meu
segundo 悟 SATORI.
Todo meu pensamento sofreu uma revolução total. A
educação européia, armazenada durante mais de dezessete
anos, foi vomitada como um alimento indigesto desde as
profundezas de meu corpo. Foi a destruição repentina da
ilusão que eu próprio fazia sobre meu saber. Tudo se
precipitou. A comoção foi total. Todo meu ser assentiu em
bloco ao ensinamento de 興 道 沢 木 KŌDŌ SAWAKI. Foi
então que decidi não deixar jamais este homem em que se
manifestava uma tal força do 禅 ZEN, capaz de transfigurar
em alguns segundos meu espírito.
Todos os pensadores, professores, universitários
buscavam o ensinamento europeu que representava para
eles o ápice da cultura. Esta é a razão pela qual se
precipitavam a assimilar tudo. Mas 興道 沢木 KŌDŌ SAWAKI
considerava esta afetação como avidez de falsos pensadores
arrivistas que, numa sociedade transtornada pela
ocidentalização, sofriam do complexo de inferioridade,
daquele que se sabe ignorante, mas que quer medir-se com
seus professores. Para 興道 沢木 KŌDŌ SAWAKI, o cume do

318
conhecimento intelectual não era mais que uma gota d’água
no Oceano: “O conhecimento deve estar isento de qualquer
conhecimento, deve ser sem limites, sem categorias, nem
filosófico, nem científico, mas verdadeiro conhecimento
transcendental”. Esta é a compreensão do 禅 ZEN que quero
continuar difundindo aqui na Europa, convencido que existem
seres suficientemente inteligentes e abertos para
compreender. Desde logo, o 禅 ZEN já havia sido introduzido
anteriormente graças aos trabalhos de certos professores.
Mas 興道沢木 KŌDŌ SAWAKI, muito tempo antes de mim,
dizia deles que eram só intelectuais que nunca haviam tido a
experiência do 座禅 ZAZEN. Por esta razão, o único que
podiam fazer era filosofar sobre o 禅 ZEN, sem compreendê-
lo, sem conhecer sua autêntica dimensão.
Eu trouxe a prática do 座禅 ZAZEN para a Europa. No
dia de minha chegada à Paris dei uma conferencia diante de
uma assembléia composta em sua maioria por intelectuais.
Eu era apenas um monge errante que unicamente possuía
como bagagem o 衣 KOLOMO negro e o 坐蒲 ZAFU de
興道 沢木 KŌDŌ SAWAKI. Na primeira fila, justo à minha
frente, estava sentada uma pessoa de olhar inteligente, mas
tão sombria... Dada sua expressão congelada, representava
a meus olhos o Shāriputra europeu. Perguntei-me então de
que maneira podia abordar estes intelectuais graves e
carrancudos. Ensinei a postura de 座禅 ZAZEN e os méritos
do 袈裟 KESA. Desde este dia, essa pessoa não deixou de
seguir os meus passos. Seus muxoxos céticos
desapareceram, seu olhar se aprofundou. Agora leva em sua
expressão o amor universal, transformou-se numa verdadeira
観音 KANNON. Agora é uma garrafa cheia, não vazia. Com o
tempo tive a oportunidade de conhecer outros rostos
avinagrados. Alguns compreenderam meu ensinamento e
seguiram meus passos. Outros não puderam suportar minhas
observações, perderam a paciência e se converteram nos
primeiros detratores de meu ensinamento.

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Então descobri até que ponto era importante o
intelectualismo na Europa. Este intelectualismo especulativo
que discute sobre conceitos vazios e carentes de vida, e
estabelece sistemas muito bem estruturados, mas tão
abstratos que apenas refletem a corrente vital de nosso
mundo.
No Oriente, a sabedoria está imersa na essência, está
enraizada em 無所得 MUSHOTOKU, em 非思量 HISHIRYŌ,
procede da intuição e do não pensamento, surge das
camadas cerebrais primitivas. Transcende qualquer limite
mental. Está mais além do espaço-tempo, eterna, imutável.
Estamos tão distanciados da especulação! Esta é a razão
pela qual Avalokiteshvara fala de 無 知 亦 無 得 MU CHI
YAKU MU TOKU e de 以 無所得 故 I MUSHOTOKU KO, da
não sabedoria, do não proveito. Somente existe o abandono
de si mesmo e, graças a ele, a sabedoria desinteressada.
Esta é a resposta incondicional de Avalokiteshvara, o
Bodhisattva da Grande Compaixão, a Shāriputra, o intelectual.
O beco sem saída em que se encontra nossa
civilização é o resultado do desenvolvimento, levado até o
absurdo, do racionalismo materialista. Ciência, técnica e
pensamentos devem mudar necessariamente de direção.
Neste momento encontram-se no limite: se rebaixarem estes
limites precipitarão toda a civilização a uma rápida destruição.
O equilíbrio já é muito precário. Mas se desde o ponto em
que nos encontramos agora, reconsiderarmos o mundo
desde um ponto de vista global, com o equilíbrio que lhe é
necessário, poderemos conduzir a humanidade à harmonia.
Para isso, é necessária uma pausa, um descanso, deixando
para a natureza um tempo de regeneração, reparando os
desastres que tenham sido causados, com o fim de poder
empreender de novo o caminho a partir de seus frutos sadios.
Mas a sabedoria é necessária, a verdadeira sabedoria
pura e desinteressada. Eu acredito no
般若 波羅蜜多 心経 HANNYA HARAMITTA SHINGYŌ, nesta
sabedoria perfeita, ilimitada, não sujeita aos limites dos

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“ismos”. Creio que o espírito deste Sūtra pode transmutar a
esclerose atual de nosso mundo e sua precária sobrevivência
numa dinâmica evolutiva, harmoniosa e justa.

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