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O Desenvolvimento Moral

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O DESENVOLVIMENTO MORAL

Orly Zucatto Mantovani de Assis

As pesquisas de Piaget sobre o desenvolvimento moral (Piaget, 1932) demonstraram que, assim
como a inteligência, a moralidade também resulta de um processo construtivo. Piaget se contrapõe à ideia
empirista segundo a qual o desenvolvimento moral o desenvolvimento moral consiste na "interiorização" de
valores e regras sociais exteriores à criança. Ele acredita que o desenvolvimento moral é também um
processo de construção que resulta das trocas entre o indivíduo e o meio social. O tipo de relações que se
estabelecem entre a criança e o adulto tem influência no desenvolvimento moral. Piaget admite que as
relações de constrangimento (controle exterior) não favorecem o desenvolvimento moral, porque impedem
o desenvolvimento da autonomia (controle interno). Em geral, os adultos exercem o controle sobre as
crianças recompensando o comportamento que consideram aceitável e punindo aquele que lhes parece
indesejável. Agindo desta maneira, fazem com que a criança aprenda, por obediência, as regras sociais e
morais. Segundo Kamii (1997, pp. 28-29)
(...)a obediência não favorece o desenvolvimento da criança. Enquanto ser
biológico capaz de se adaptar, a criança normal reage habitualmente às pressões do meio
que se exercem sobre ela, deixando-as orientar o seu comportamento. A razão de se
comportar assim pode ser o desejo de receber um elogio ou evitar uma punição. Pelo
contrário, quando regula o seu próprio comportamento de maneira voluntária, sem
pressão coerciva, ela partilha um brinquedo, diz a verdade ou mantém as suas
promessas, por exemplo, por variadas razões. Diz a verdade porque quer obter benefícios
(estabelecer uma relação de confiança mútua) que vão mais além do que um benefício
imediato (evitar um castigo, mentindo). Quando a criança "quer" sacrificar benefícios
imediatos em proveito de uma relação com um adulto ou com outras crianças, constrói a
sua própria regra moral, mais do que "interioriza" simplesmente uma regra adulta
estabelecida.
Kamii (ibid, idem) explica que o indivíduo que coopera de modo autônomo com os outros, sente
uma necessidade interior de ser leal, porque sabe que a deslealdade destrói a confiança mútua. Nesse
caso, a sua lealdade é motivada, não pelo constrangimento, nem mesmo pelo desejo de ser aprovado pelos
outros, mas mais por uma convicção íntima de que uma tal cooperação é útil, desejável e satisfatória em
si. Ela crê realmente que o seu interesse pessoal se identifica com o interesse superior das relações sociais
de cooperação. Compreende que é melhor tratar os outros como ela gostaria de ser tratada. Por
consequência, sacrificar esta espécie de interesse pessoal que, a curto prazo, prejudicaria as relações de
reciprocidade.
Esse nível de compreensão exige muito de descentração e de cooperação interindividual, sendo,
portanto, inatingível pela criança pré-operatória que ainda é muito egocêntrica. Embora a criança pequena
esteja bem longe de poder construir um sistema moral, os adultos, com quem tem relações, podem
contribuir de um modo importante no sentido de aí chegar. Se não forem coercivas poderão favorecer a
descentração e a coordenação interindividual, facilitando a superação do egocentrismo. Quando
egocêntrica a criança não entende que os outros têm ideias, desejos, intenções e sentimentos diferentes
dos seus. Isto é, para ela não existe outra perspectiva a não ser a sua. Mais tarde ela começa a perceber
que seu ponto de vista não é o único, mas ainda ela não consegue renunciar um desejo imediato. Isso se
torna evidente uma criança reconhece que uma outra quer precisamente o brinquedo com o qual brinca.
Entretanto, não pode coordenar o seu próprio desejo com o da outra criança. Numa tal situação, quando o
adulto insiste para que ela empreste o brinquedo, a criança não compreende este pedido em termos de
uma regra exterior imposta pelo adulto. Se "conseguir emprestar" o brinquedo, faz isso por obediência ao
adulto.
Por outro lado, quando empresta o seu brinquedo voluntariamente sua atitude é muito diferente.
O desejo que criança tem de manter uma boa relação com seu parceiro, vence o desejo de guardar o
brinquedo só para si. Trata-se então de um empréstimo autônomo, resultado de uma decisão pessoal e não
de uma imposição exterior.
Em geral, a autonomia desenvolve-se a partir de relações não coercivas, de reciprocidade e de
cooperação. Nesse tipo de relação, a cooperação fundamenta-se no respeito mútuo entre iguais. Pelo
contrário, numa relação coerciva, o que ocorre é obediência àquele que detém a autoridade. Esse tipo de
relação caracteriza-se pela desigualdade na qual a pessoa menos forte cede aos desejos da mais forte.
Para que a criança possa desenvolver sua autonomia é preciso que o poder do adulto seja reduzido ao
mínimo. A importância das relações cooperativas para o desenvolvimento autonomia fica evidente nas
palavras de Piaget (1932):

____________________________Mucio Camargo de Assis e Orly Z. Mantovani de Assis (Orgs)


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Para se descobrir, enquanto indivíduo particular, é uma cooperação contínua,


produto de oposições, de discussões e de controle mútuo, que é necessário
...somente o conhecimento da nossa própria natureza, com suas limitações, com
os seus recursos, nos torna capazes de sair de nós próprios para colaborar com cada um.
A consciência do eu individual é, pois, por um lado, um produto e uma condição da
cooperação (pp.318-9). A autonomia é um poder que não se conquista senão de dentro e
que não se exerce senão no seio da cooperação (p.299).
Quando a pessoa pode escolher e decidir, tem a possibilidade de cooperar voluntariamente com
outros e de construir o seu próprio sistema convicções morais. Por outro lado, quando não tem oportunidade
de escolher e decidir, o que faz é deixar-se conduzir pela vontade dos outros. Piaget insiste, assim, na
importância de dar à criança a liberdade de escolher e decidir. Isso não quer dizer que as crianças devem
ter uma liberdade absoluta. Piaget (ibid) reconhece que é impossível evitar-se totalmente a coerção dos
adultos. Nas suas próprias palavras: Mas no dia a dia da vida não é possível evitar certas instruções cujo
conteúdo não contém imediatamente sentido, do ponto de vista da criança: deitar-se e comer a tais horas,
não estragar os objetos, não tocar nos aparelhos, nem na mesa do seu pai, etc.… (pp.139-140).
Para que as crianças respeitem regras inevitáveis, os adultos usam sanções que indicam se eles
aprovam ou desaprovam o comportamento da criança. Há dois tipos de sanções utilizadas pelos adultos:
as sanções expiatórias e as sanções por reciprocidade. As sanções expiatórias ou punitivas são
caracterizadas pela coerção e por uma relação arbitrária entre a sanção e o ato sancionado. Privar a criança
de ver televisão por ter quebrado um objeto da casa e fazê-la copiar cem vezes "não devo brigar com meus
colegas" são exemplos de sanções expiatórias. Não há qualquer relação "lógica" entre quebrar objetos e
ser privado de ver televisão. É devido ao fato dessa relação ser arbitrária que a criança sente a necessidade
de mudar o seu comportamento apenas para evitar a punição. Para que a criança se convença de que não
deve fazer o que fez a dor da punição deve ser bastante forte. Quando uma punição não tem o efeito
desejado, para garantir que serão obedecidos, os adultos tendem a procurar os meios de aumentar a dor
provocada pela punição. É como se a criança tivesse que sofrer para remediar o seu erro. As sanções por
reciprocidade, por outro lado, são caracterizadas por uma coerção mínima e têm uma relação "natural" ou
"lógica" com o comportamento desaprovado. Se uma criança quebra um vaso, por exemplo, o adulto pode
dizer, "não teremos mais vasos bonitos se os quebrar; não posso deixar você pegá-los se não tiver cuidado”.
– “Quando você prestar atenção e tiver cuidado, poderá pegá-los”. Além desta relação lógica, as sanções
por reciprocidade têm uma outra característica: a de não exigir comportamentos que sejam completamente
arbitrários para a criança. Quando os adultos dizem, "não temos mais vasos bonitos se os destruíres", a
razão de exigência corresponde a uma coisa que a criança pode compreender. Nesta situação, é mais
provável que a criança aceite, de boa vontade, a exigência que lhe faz o adulto do que quando estes lhe
pedem para fazer coisas que não têm sentido para ela. É evidente que, nesse caso, o adulto utiliza o seu
poder, quando insiste para que a criança seja cuidadosa; todavia, não utiliza senão uma pequena parte do
poder que poderia utilizar. A criança, nesta situação, pode "escolher" manipular os objetos cuidadosamente,
porque a exigência parece razoável. Esse modo de sancionar o comportamento infantil garante que a
criança tenha a possibilidade de agir voluntariamente, construindo, por si mesma, as suas próprias regras
gerais.
Entre as sanções por reciprocidade, Piaget (1932) distingue os tipos seguintes (que não são
necessariamente e mutuamente exclusivos), deixando claro, todavia, que qualquer dentre elas pode
facilmente se degenerar em sanção expiatória, se o adulto tem uma atitude permissiva. O elemento
importante é a atitude de cooperação entre o adulto e a criança.
a- Excluir a criança do grupo social. À hora do planejamento do dia, a criança que não prestar
atenção e fica perturbando o andamento dos trabalhos, pode ser convidada a ir descansar e acalmar-se no
canto da leitura, até que tenha vontade de participar. As próprias crianças praticam esta sanção entre elas,
por exemplo, quando recusam continuar a brincar com alguém que faz bagunça.
b- Deixar o dano engendrar as suas consequências materiais, naturais ou lógicas. Um exemplo
deste tipo de sanção é fazer com que a criança experimente as consequências da destruição de um objeto
com o qual gostava de brincar, é. É importante ressaltar que somente haverá sanção, quando a criança
lamentar a perda. Esta sanção não tem resultado quando as crianças não se importam de perder aquilo
que possuíam anteriormente.
c- Privar a criança de uma coisa que tenha estragado. Um exemplo seria propor à criança que
propositalmente destruiu a construção de seu colega que a reconstrua novamente, ou então lhe dizer: -
“Você não gostaria que o João destruísse sua construção... Quando você prestar atenção e não destruir
mais nada poderá voltar a trabalhar no ”cantinho de construção”.
d- Fazer à criança o que ela fez. Piaget (ibid), assim se expressa a propósito desta sanção:
(...) é necessário fazer instar que este gênero de sanção, perfeitamente legítima
quando se trata de fazer compreender à criança a importância de seu ato, torna-se
vexatório e absurdo, quando não passa de pagar o mal com o mal e de responder a uma
destruição irreparável por outra destruição irreparável (p.166).

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e- Encorajar a criança a reparar. Se uma criança destrói algum objeto ou danifica qualquer coisa,
o adulto pode pedir simplesmente à criança para ajudá-lo a consertar ou então se a criança suja algo que
não poderia sujar o adulto pede-lhe que limpe.
f- Repreender a criança sem outra punição. Uma repreensão é muitas vezes suficiente para que
a criança compreenda que fez alguma coisa que desagradou os outros. Se a criança respeita o adulto que
desaprovou o seu comportamento e a reprimiu isto, geralmente, basta para que ela passe a evitar o
comportamento indesejável.
Segundo Kamii (1991, p.32)
Piaget descreveu estas sanções por reciprocidade, mas não as prescreveu de
fato. Demos a lista atrás, não como receitas sugeridas por Piaget, mas como instrumentos
que podem ser úteis ao educador que quer pensar no modo de proceder para reduzir o
seu poder, sem que o caos reine na sala.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

KAMII, Constance e DEVRIES, Rheta. Piaget para a educação pré-escolar. Porto Alegre: Artes Médicas,
1997.
PIAGET, Jean.(1932) O Julgamento Moral da Criança. Trad. por Elzon Lenardon, São Paulo : Editora
Mestre Jou. 1977.

____________________________Mucio Camargo de Assis e Orly Z. Mantovani de Assis (Orgs)

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