O Perigo Da Cultura Única
O Perigo Da Cultura Única
O Perigo Da Cultura Única
CULTURA
RESUMO
O artigo objetiva debater o conceito de cultura, como proposto por Williams (1983, 2015)
aproximando as discussões desse autor àquelas propostas pelo intelectual negro brasileiro
Abdias do Nascimento (1978) sobre o processo de embranquecimento da cultura, a
folclorização e fossilização da cultura africana como formas de genocídio. Para isto, este
trabalho percorre uma breve incursão histórico e cultural do termo cultura comum. Discute
ainda o que vem a ser cultura popular e elitista dialogando com a contraposição conceitual e
as consequências subsidiando-se em Abdias do Nascimento (1978). O trabalho é de caráter
bibliográfico por estabelecer o diálogo entre obras relevantes para articular discussões que
visam contribuir com uma perspectiva do perigo da cultura única. Concluiu-se que a história e
a cultura única são um perigo a serem combatidos e evitados dialogando com a intelectual
nigeriana Adichie (2019). Concluímos que as histórias/culturas plurais são importantes no
combate ao genocídio dos povos negros e indígenas, pois são elas que permitem a análise
dinâmica das estruturas interacionais.
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Mestrando Interdisciplinar em História e Letras pela FECLESC/UECE. Professor na rede básica Municipal de
Fortaleza. Email:eric.santos@aluno.uece.br.
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Mestrando do Mestrado Interdisciplinar em História e Letras pela FECLESC/UECE. Graduado em Filosofia
pelo UFC. Email: francisco.erik@aluno.uece.br.
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Introdução
Este artigo é uma breve discussão sobre o conceito de cultura comum elaborada pelo
intelectual inglês Raymond Williams nas suas obras A cultura é algo comum. In: Recursos da
esperança Cultura, Democracia, Socialismo (tradução de 2015) e Keywords (1983) por meio
da exposição de seus conceitos formular a contraposição e as consequências terminológicas e
sociais desses conceitos através do intelectual negro Abdias do Nascimento, que na sua obra
O Genocídio do Negro Brasileiro: processo de um racismo mascarado (1978) demonstra o
embranquecimento cultural, a fossilização e folclorização da cultura africana como estratégias
de genocídio – nos detemos apenas aos capítulos da obra que tratam sobre esses conceitos.
A discussão que Abdias tece é algo ainda pouco comentado e escrito, e nosso objetivo
é resgatar a contribuição tão importante que esse intelectual fez para a denúncia de toda forma
de opressão, e no caso, da inferiorização da cultura africana. Trazer Raymond Williams para o
debate com Abdias é relevante porque o autor foi um dos expoentes da noção de cultura
comum/ordinária em contraposição a cultura hegemônica instigando assim a contestação entre
cultura popular e cultura elitizada, que de forma breve damos uma pincelada para que assim
fosse possível entender as complicações do cotidiano em que essa cultura comum/ordinária é
produzida.
Cultura é uma das duas ou três palavras mais complicadas do idioma inglês.
Isso ocorre em parte por causa de seu intrincado desenvolvimento histórico,
em várias línguas europeias, mas principalmente porque passou a ser usado
para conceitos importantes em várias disciplinas intelectuais distintas e em
vários sistemas de pensamento distintos e incompatíveis. 3(WILLIAMS,
1983, p. 225, grifo do original)
A partir daí o autor empreende um percurso etimológico do termo culture em
inglês, e apresenta alguns desdobramentos e implicações desse termo ao longo do texto.
Segundo Williams (1983) o termo é oriundo do latim cultura que é desdobramento do termo
latino colere que tem vários significados, dentre eles: habitar, cultivar, proteger e honrar com
adoração. O autor ainda nos alerta que alguns desses sentidos foram deslocados para outros
vocábulos. Logo, “[...]‘habitar' se desenvolveu através do colonus, L para colony. 'Honra com
adoração' se desenvolveu através do cultus, L para cult. Cultura assumiu o significado
principal de cultivo”.4 (WILLIAMS, 1983, p. 87, grifo do original). O autor continua “As
formas francesas de cultura era coutura, do francês antigo, que desde então desenvolveu seu
próprio significado especializado, e a cultura posterior, que é do final do século 15 havia
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Tradução nossa. Do original: Culture is one of the two or three most complicated words in the English
language. This is so partly because of its intricate historical development, in several European languages, but
mainly because it has now come to be used for important concepts in several distinct intellectual disciplines and
in several distinct and incompatible systems of thought.
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Tradução minha. Do original: ‘inhabit’ developed through colonus, L to colony. ‘Honour with worship’
developed through cultus, L to cult. Cultura took on the main meaning of cultivation
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passado para o inglês. O significado primário estava então na criação, a tendência de
crescimento natural.”5 (WILLIAMS, 1983, p. 87, grifo do original).
A cultura negra e indígena seria então expressões da cultura comum? Não poderia
apenas ser Cultura Negra e Indígena, sem recorrer a formulações que descaracterizam essas
culturas? Pois formular grupos, coletivos e afins que seriam mais do cotidiano como comum é
esvaziar os mundos culturais desse cotidiano. Por que não culturas? Um autor brasileiro que
discutiu de forma exímia tal esvaziamento é o político, artista e intelectual negro Abdias do
Nascimento, que na sua obra O Genocídio do Negro Brasileiro: processo de um racismo
mascarado elabora uma das formas de genocídio do negro brasileiro como o
“Embranquecimento da Cultura Africana” que no caso é assimilação cultural e o processo
“foclorização” da cultura negra. Nas palavras de Abdias: “A assimilação cultural é tão efetiva
que a herança da cultura africana existe em estado de permanente confrontação com o sistema
dominante, concebido precisamente para negar suas fundações e fundamentos, destruir ou
degradar suas estruturas. ” (NASCIMENTO, 1978, p. 94)
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Para Abdias existe uma perseguição constante a cultura africana por causa do seu
modo de existir e viver nitidamente diferente da cultura europeia portuguesa:
Desde cedo esse foi o tratamento que os colonizadores deram a cultura africana, que
na realidade não era reconhecida enquanto cultura, mas como superstição ou dita “magia
negra”. A sociedade dominante no Brasil praticamente destruiu as populações indígenas que
um dia foram majoritárias no país e essa mesma sociedade está às vésperas de completar o
esmagamento dos descendentes africanos. As técnicas usadas têm sido diversas, conforme as
circunstâncias, variando desde o mero uso das armas, às manipulações indiretas e sutis que
uma hora se chama assimilação, outra hora aculturação ou miscigenação; outras vezes é o
apelo à unidade nacional, à ação civilizadora (NASCIMENTO, 1978).
Esse tratamento à cultura africana e afro-brasileira nos faz refletir sobre como a
cultura comum ou popular sofre um procedimento de foclorização, ou seja, suas
manifestações culturais são vistas enquanto manifestações de folclore (lendas e mitos). Para
Abdias do Nascimento a cultura africana e afro-brasileira :
Ela só seria reconhecida como cultura ou arte se seguir os moldes brancos, se não, ela
é simplesmente um conjunto de lendas e mitos sem valor cultural de civilização. Numa
análise mais profunda e detalhada observaremos que o grosso do folclore brasileiro são
histórias que tem raiz africana e indígena, raramente encontremos algum folclore de raiz
europeia. Por que tal artimanha? O próprio Abdias nos diz nessa citação acima “o artista
negro teria de esvaziar sua arte e conteúdo africano” (IBIDEM), isto é, tal artimanha faz parte
daquilo que o autor denuncia em todo seu texto; do extermínio do negro e do indígena e por
esse motivo críticos formados sob os critérios estranhos da sociedade branca dominante,
necessitam preliminarmente esvaziá-los de seu valor intrínseco, conseguindo perceber neles
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somente aquelas características recomendadas pelo etnocentrismo original que os inspira e
guia na classificação do que seria "primitivo", "cru", "tosco" ou "arcáico" (IBIDI).
Mas alguns ainda dirão; mas folclore também cultura. Com certeza é, não há como
negar isso, no entanto, é uma cultura fossizilada, ou seja, morta/do passado. Segundo Abdias,
“a cultura africana posta de lado como simples folclore se torna em instrumento mortal no
esquema de imobilização e fossilização dos seus elementos vitais. Uma sutil forma de
etnocídio” (NASCIMENTO, 1978, p. 119). Um modo de etnocídio que até hoje prevalece e é
pouco notado. Tudo isso faz parte de uma estratégia que também tem seus fins capitalistas e
genocidas:
É por meio de sua biografia, experenciada no lugar de uma cultura africana, que é
múltipla, dinâmica, que Adichie experencia, em diversas instâncias, aquilo que ela nomeia
como sendo uma “história única”. Para Adichie (2019)
É impossível falar sobre história única sem falar de poder. Existe uma palavra em
igbo na qual sempre penso quando penso as estruturas de poder no mundo: nkali. É
um substantivo que em tradução livre quer dizer “ ser maior do que o outro”. Assim
como o mundo econômico e político, as histórias também são definidas pelo
princípio de nkali: como elas são contadas, quem as conta, quando são contadas e
quantas são contadas depende muito do poder. O poder é a habilidade não de apenas
de contar a história de outra pessoa, mas de fazer que ela seja sua história definitiva.
(p. 22-23)
O perigo da história única é uma grande esquemática que invisibiliza outras histórias e
culturas que não são contadas e que não tem espaço para isso e quando tem são taxadas como
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folclore. O que Adichie nos adverte já era também o que Abdias vinha denunciando: o
extermínio de outras histórias e culturas é o extermínio de povos. Deste modo, segundo a
intelectual, se começarmos
“a história com as flechas dos nativos americanos, e não com a chegada dos
britânicos, e você tem uma história totalmente diferente. Comece a história com o
fracasso do estado africano e não com a criação colonial do estado africano e você
tem uma história totalmente diferente” (ADICHIE, 2019, p. 23).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O texto discutiu, numa breve incursão histórica o conceito de cultura comum
postulado por Raymond Williams (1985, 2015) apresentando avanços aos debates sobre
estudos da cultura acrescentadas a partir das argumentações críticas de Abdias do Nascimento
(1978) sobre embranquecimento cultural, fossilização e folclorização e os perigos da própria
terminologia utilizada por Williams como sendo fórmulas de esvaziamento cultural.
Propusemos o diálogo entre Williams (1983, 2015) e Abdias (1978) com o intuito
de elaborar uma sucinta discussão sobre cultura e algumas problemáticas com os termos
utilizados por Williams. A escolha de Raymond Williams é por seu reconhecimento na
discussão sobre cultura comum e de Abdias do Nascimento por sua assídua argumentação
sobre esvaziamento cultural do povo africano no Brasil e as complicações e contribuições de
noções como cultura comum e popular para esse esvaziamento.
“As histórias importam. Muitas histórias importam. As histórias foram usadas para
espoliar e caluniar, mas também podem ser usadas para empoderar e humanizar. Ela
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podem despedaçar a dignidade de um povo, mas também podem reparar essa
dignidade despedaçada.” (ADICHIE, 2018, p. 32)
Para Chimmanda, assim como Abdias, contar apenas um lado da história tem
consequências que até hoje ainda passamos por elas; desumanização e estereotipização de
povos que são exterminados por povos que acreditam apenas em um lado da história e por
conseguinte, da cultura. Assim como as histórias e muitas histórias importam, as culturas e
muitas culturas importam. Entender a necessidade do respeito da diversidade cultural é um
grande passo e trata-las de acordo com o devido reconhecimento e contribuição para a história
também, assim como foi a cultura africana para o Brasil, não é um folclore, é história,
civilização, memória e contribuição. É como a grande escritora negra Conceição Evaristo nos
diz numa entrevista8 dada à TV Brasil: “Nós não escrevemos para adormecer os da casa-
grande, pelo contrário, é para acordá-los dos seus sonos injustos".
REFERÊNCIAS
ADICHIE, C. N. O perigo de uma história única. Trad. Julia Romeu, Companhia das
Letras: São Paulo, 2019.
COSTA, LAM. Antonio Carlos Nóbrega em acordes e textos armoriais [online]. Campina
Grande: EDUEPB, 2011. Movimento armorial: do erudito ao popular. Disponível em:
http://books.scielo.org/id/h4dh8/pdf/costa-9788578791865-05.pdf. Acessado em 02 de
Janeiro de 2021.
ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Brasiliense, 1994
KUPER, Adam. 2002. Cultura, a visão dos antropólogos. Bauru, SP: EDUSC.
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Entrevista dada para a Tv Brasil em 09/06/2017. Disponível em: https://tvbrasil.ebc.com.br/estacao-
plural/2017/06/nao-escrevemos-para-adormecer-os-da-casa-grande-pelo-contrario-diz conceicao#:~:text=N
%C3%B3s%20n%C3%A3o%20escrevemos%20para%20adormecer,%C3%A0s%2023h30%2C%20na%20TV
%20Brasil. Acessado em 03/01/2021.
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WILLIAMS, R. A cultura é algo comum. In: Recursos da esperança Cultura, Democracia,
Socialismo. Editora UNESP: São Paulo, 2015.
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