Suicidio Usp
Suicidio Usp
Suicidio Usp
Suicídio
Alexandrina Maria Augusto da Silva Meleiro
Chei Tung Teng
Sumário
Introdução
Complexidade multidimensional no processo suicida
Fatores de vulnerabilidade para a ideação suicida
Como abordar o paciente com risco de suicídio
Níveis de risco de suicídio e a conduta
Conduta médica após tentativa
Posvenção para os sobreviventes do suicídio
Estratégias preventivas propostas
Considerações finais
Para aprofundamento
Referências bibliográficas
INTRODUÇÃO
Frente a uma situação difícil, em algum momento da vida, as pessoas podem experimentar o desejo de
morrer. A complicação começa quando o desejo de morrer associase ao desejo de se matar e o suicídio passa
a ser visto como um assassinato em 180 graus, voltado para si mesmo. Tratase do maior de todos os
desastres ecológicos, uma silenciosa epidemia de dor e sofrimento que castiga a sociedade e culmina no
autoextermínio1. É preciso romper esse silêncio e despertar a sociedade para a urgência de um movimento em
defesa da vida. A vasta literatura sobre suicídio revela que apesar de ser um tema muito estudado, ainda há
pontos obscuros que continuam mobilizando os pesquisadores sobre o determinismo multifatorial do
suicídio2. O leitor encontrará a elucidação científica e clínica de seus mecanismos, as estratégias de
abordagem e de prevenção existentes na atualidade no decorrer deste capítulo.
O suicídio é um grande problema de saúde pública evitável, e a tentativa de suicídio está associada a uma
redução considerável na expectativa de vida em comparação com a população em geral. Segundo estimativas
da Organização Mundial da Saúde (OMS), quase um milhão de mortes por suicídio ocorreram em 2016, e as
estimativas sugerem que 10 a 20 vezes mais pessoas tentaram suicídio3.
Pontoschave
Vencer barreiras do tabu, do estigma, do sigilo e do conhecimento acerca do comportamento suicida.
Conhecer os principais sintomas e sinais de risco de suicídio.
Identificar e tratar os transtornos mentais como forma de reduzir o risco de suicídio.
Existência de tentativas prévias de suicídio como fator preditor mais potente do risco.
Traços de impulsividade, perfeccionismo e abuso de álcool e outras drogas.
Indagar sobre ideação suicida não induz o paciente ao ato.
Intervenções entre os sobreviventes enlutados por suicídio com objetivo de prevenir o suicídio, isto é, realizar a
posvenção.
Diversos fatores podem ser barreiras para impedir a detecção e consequentemente a prevenção do
suicídio3: estigma e sigilo; dificuldade em buscar ajuda; falta de conhecimento e atenção sobre o suicídio por
parte dos profissionais de saúde; informações conflituosas por parte dos familiares; baixa qualidade das
informações provenientes de prontuários médicos e atestados de óbitos; dificuldades em determinar se
realmente ocorreu com intencionalidade suicida ou se foi acidental ou ainda um homicídio; falta de serviços
de referências para o esclarecimento de mortes por causas externas; falta de envio das informações ao
Ministério da Saúde, por meio do sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN)4.
A avaliação sistemática do risco de suicídio em quadros que chegam à emergência médica deve fazer
parte da prática clínica rotineira, em todas as especialidades médicas, para que os casos potencialmente fatais
possam ser devidamente diagnosticados, tratados e encaminhados1.
Em uma revisão entre 1959 e 2001, englobando 15.629 suicídios ocorridos na população geral,
demonstrouse que em 97% dos casos havia um diagnóstico de transtorno mental à época do ato fatal. Tal
estudo registrou um elo consistente entre os dois grupos de fenômeno: comportamento suicida e doença
mental5.
Entretanto, não se trata de afirmar que todo suicídio se relaciona a uma doença mental, nem que toda
pessoa com transtorno mental irá se suicidar. A existência de transtorno mental não contempla plenamente o
porquê de o paciente tentar suicídio. Diversos indivíduos têm o transtorno mental e não pensam em terminar
com a própria vida, embora a doença aumente a vulnerabilidade e esteja presente em quase todos os casos de
suicídio6. Transtorno mental é condição necessária, mas não suficiente para o comportamento suicida. Fazem
parte do que habitualmente chamamos de comportamento suicida as ideações suicidas, os planos de suicídio,
a tentativa de suicídio e o suicídio em si. Esse último pode ser definido como um ato deliberado, executado
pelo próprio indivíduo, cuja intenção seja a morte, de modo consciente, intencional, mesmo que ambivalente,
usando um meio que ele acredita ser letal1.
COMPLEXIDADE MULTIDIMENSIONAL NO PROCESSO SUICIDA
O comportamento suicida tem sido estudado como resultado da interação de fatores biológicos,
sociológicos, epidemiológicos, filosóficos, psicológicos e culturais, tanto intrapsíquicos quanto interpessoais.
Caracterizar esse comportamento em poucos elementos conduz a um grave reducionismo que, de modo
algum, reflete a complexidade multidimensional do ato de tirar a própria vida7.
A universalidade da experiência suicida sugere que esse comportamento não pode ser atribuído apenas à
presença ou à ausência de um transtorno mental. Entretanto, o suicídio certamente é maior em uma série de
doenças mentais, em especial depressão, esquizofrenia, transtorno por uso de substância psicoativa (álcool e
outras drogas) e transtorno de personalidade. Os comportamentos suicidas têm etiologia multifatorial e são
considerados dois principais pontos8:
Fatores de riscos distais ou predisponentes: são como as adversidades da vida precoce (estresse
intrauterino, trauma no momento do parto, acontecimentos estressantes da infância e na adolescência
etc.) que, por meio de modificações epigenéticas, podem alterar o desenvolvimento e levar à
desregulação de características emocionais e comportamentais.
Fatores de riscos proximais ou precipitantes ou gatilhos: como os eventos graves de vida e o uso abusivo
de substâncias psicoativas.
Então, que informação adicional é necessária para se ter a compreensão estrutural, a fim de elaborar a
construção de um programa de tratamento completo para os pacientes?
Quadro 1 Fatores que aumentam o risco de suicídio
Predisponentes
Transtornos psiquiátricos
Tentativa prévia de suicídio
Suicídio na família
Abuso sexual na infância
Impulsividade/agressividade
Isolamento social
Doenças incapacitantes/incuráveis
Alta recente de internação psiquiátrica
Precipitantes (“gatilhos”)
Desilusão amorosa
Conflitos relacionais
Desonra/vergonha
Separação conjugal
Derrocada financeira
Perda de emprego
Embriaguez
Fácil acesso a meio letal
Fonte: adaptado de Meleiro e Correa, 20181.
O suicídio não é um ato aleatório, sem finalidade. Vivenciase como a melhor saída disponível, pela qual
o propósito é encontrar uma solução para um sofrimento intenso, insuportável e interminável. Assim, o alvo
é interromper, ou seja, cessar o fluxo doloroso, deter o sofrimento invasor de desesperança que deixa o
indivíduo derrotado e sem saída para a vida9. A isso chamamos de função instrumental, que significa usar o
comportamento suicida com a intenção de resolver um problema: matar a si mesmo seria um instrumento de
solução para o sofrimento emocional incalculável de dor emocional. Cessa o sofrimento para o indivíduo
suicida, pois morto não tem sentimento10.
Entretanto, a atitude interna é de ambivalência, pois quase sempre o indivíduo quer, ao mesmo tempo,
alcançar a morte, mas deseja uma intervenção de ajuda e socorro. Emite, em suas relações interpessoais,
sinais verbais e comportamentais, em que comunica sua intenção letal. Isso é chamado de função expressiva
e significa que há um valor de comunicação para o ato de tentativa suicida ou de falar para outros sobre
suicídio (Figura 1).
Geralmente, a expressão tem um propósito: a tentativa para receber ajuda lícita, para receber a
compreensão de outros ou para ativar o suporte familiar e social. Uma das maiores dificuldades para o
entendimento da comunicação suicida é realizar a distinção entre função instrumental e função expressiva. O
estado perceptivo do indivíduo é de constrição, estreitamento afetivo e intelectual de opções disponíveis em
sua consciência. Circunstancialmente, a única ação possível é a saída intencional do sofrimento. Um erro do
profissional de saúde pode marcar um rótulo negativo para o paciente suicida, especialmente para quem
verbaliza a intenção10.
Figura 1 Comunicação no comportamento suicida. Fonte: Meleiro et al., 200510 .
O senso clínico do profissional pode julgar precipitadamente que a comunicação é manipulativa,
deliberadamente confusa, irracional e hostil. De fato, o paciente pode expressar um senso de desespero, não
claro. Sem essa espécie de apreciação apurada, é muito provável que o profissional de ajuda e o paciente
possam proceder em diferentes sintonias, e o desfecho ser trágico11.
A compreensão do suicídio é inalcançável. O suicídio não é um evento que ocorre em um vácuo. É a
consequência final de um processo. Os fatos ocultos por trás do suicídio são múltiplos e multifacetados e
envolvem uma interação única de fatores biológicos, psicossociais e culturais para cada indivíduo12. A
elucidação científica e clínica de seus mecanismos e a elaboração de estratégias terapêuticas e preventivas
continuam a ser desafios a serem alcançados.
FATORES DE VULNERABILIDADE PARA A IDEAÇÃO SUICIDA
Observamse quatro grandes categorias de variáveis relevantes para o comportamento suicida:
demográficas, diagnósticas, de histórico psiquiátrico e psicológicas. Existem muitas características que
distinguem aqueles que se engajam daqueles que não se engajam em atos suicidas. Nenhuma das inúmeras
variáveis sozinha é suficiente para desencadear um ato suicida. Na verdade, tais fatores acumulamse e
interagem para aumentar a vulnerabilidade de uma pessoa ao comportamento suicida1315.
As variáveis demográficas associadas aos atos suicidas são as de menor interesse para o clínico, pois
muitos desses fatores não podem ser modificados em tratamento, como idade e gênero, entretanto devem
ser considerados. Os homens são 75% mais propensos a morrer em razão de suicídio que as mulheres. As
mortes por suicídio ocorrem em adolescentes e adultos de todas as idades, entretanto, aumentaram muito
na população mais jovem (Figura 2).
Quanto à orientação sexual, não existem estatísticas nacionais ou internacionais para a morte por suicídio,
pois ela não é identificada nas certidões de óbito, entretanto, sabemos que constituem uma população de alto
risco. A taxa de suicídio com relação à raça e à etnia varia bastante, de acordo com o país e a região.
Algumas variáveis demográficas podem mudar ao longo da vida: estado civil, desemprego e situação
socioeconômica, e estas podem ser fatores de risco presente.
Figura 2 Mortes por suicídio global por idade e sexo. Adaptada de WHO, 20183 .
Nas variáveis diagnósticas, a existência de doenças físicas ou mentais não aumenta o risco de suicídio por
si só. Elas, muitas vezes, aumentam a vulnerabilidade ao suicídio por meio da ativação da desesperança,
da falta de sentido percebido para a vida e da perda de importantes papéis sociais16. Entretanto, a
existência de um ou mais tipos de perturbações psiquiátricas é a variável central na etiologia de atos
suicidas; 97% dos indivíduos que morrem por suicídio são diagnosticados com um ou mais transtornos
psiquiátricos17. O risco de um indivíduo depressivo morrer por suicídio é 20 vezes maior do que para o
não depressivo18.
Nas variáveis do histórico psiquiátrico, talvez o mais potente preditor do suicídio seja a existência de
tentativas prévias, especialmente no primeiro ano após a alta do hospital por aquele intento19. Estimase
que os indivíduos que já tentaram suicídio são mais propensos a morrer por suicídio. Uma pesquisa de
Rudd et al.20 mostrou que as pessoas que fizeram várias tentativas estão particularmente em risco, pois
elas têm perturbações psiquiátricas mais graves do que os que relatam apenas ideação, mas nunca
chegaram a tentar suicídio20,21. O histórico familiar de suicídio também está associado à tentativa de
suicídio22.
As variáveis psicológicas são, de fato, passíveis de ser modificadas por meio de intervenções
psicoterapêuticas focadas, em contraste com as variáveis demográficas e de histórico psiquiátrico. Essas
variáveis têm o potencial de responder pelo mecanismo com que os atos suicidas se manifestam em uma
pessoa em particular: desesperança, cognições relacionadas com o suicídio, maior impulsividade, déficits
na resolução de problemas e perfeccionismo. Wenzel et al.23 determinaram que níveis altos de
desesperança, independentemente do nível dos sintomas depressivos, estavam associados a altos níveis
de intenção suicida. As cognições relacionadas com o suicídio restringem durante a crise e a longo prazo
a maneira como buscam opção de solução24. A impulsividade é considerada por alguns autores um traço
de personalidade, com ênfase no presente, na rápida tomada de decisão, na falha em considerar as
consequências de suas ações, nas desorganizações e na incapacidade de planejar25. Outros consideramna
um estilo comportamental de reações a situações específicas, com inabilidade de inibir respostas. Existem
muitas facetas do que é impulsividade26,27. Por isso, ela é um fator de vulnerabilidade que opera em
alguns, não em todos, pacientes suicidas e que exacerba o estresse, as perturbações psiquiátricas e os
processos cognitivos associados ao suicídio. Inabilidade de gerar soluções para problemas, foco negativo
para soluções propostas e prevenção de tentativas de solucionar problemas estão ligados à baixa
confiança na própria habilidade. Muitos foram criados em ambientes onde se aprende que o suicídio é
uma solução aceitável para seus problemas frente à desesperança23.
Entre os fatores de vulnerabilidade para a ideação suicida, não se pode deixar de enfatizar o
perfeccionismo. Entre as muitas facetas do perfeccionismo, a que é mais associada à desesperança e à
ideação suicida consiste no perfeccionismo socialmente prescrito. É definido como uma dimensão
interpessoal envolvendo percepções da própria necessidade e habilidade de atender aos padrões e
expectativas impostos pelos outros28. O perfeccionismo socialmente prescrito prediz a ideação suicida
independentemente da depressão e da desesperança.
Em outra dimensão, temse o perfeccionismo voltado para si: fortes motivações próprias de ser perfeito,
manter expectativas irrealistas para si mesmo, lógica do “tudo ou nada” e foco nos próprios defeitos. O
perfeccionismo coloca a pessoa em risco de suicídio, provoca estresse, acentua a aversão ao próprio estresse,
ameaça ou focaliza a atenção da pessoa em falhas e fracassos, em vez de atentar a capacidades e sucessos. O
perfeccionismo é inerentemente um conjunto de cognições distorcidas sobre as expectativas de outros e as
consequências de não alcançar esses padrões23. Portanto, as estratégias de terapia cognitiva projetada para
modificar distorções cognitivas são efetivas na redução de pensamentos perfeccionistas e do potencial de
ideações suicidas.
As tentativas de suicídio mostram taxas mais altas de agressividade e impulsividade ao longo da vida,
transtorno de personalidade borderline comórbido, transtorno por uso de álcool e outras substâncias,
histórico familiar de atos suicidas, traumatismo craniano, tabagismo e histórico de abuso na infância25. O
risco de atos suicidas é determinado não apenas por um transtorno psiquiátrico (o estressor), mas também por
uma diátese refletida por tendências a experimentar mais ideação suicida e ser mais impulsiva e, portanto,
mais propensa a agir com sentimentos suicidas.
De um lado, como diátese, há impulsividade, agressividade, pessimismo, inflexibilidade cognitiva, baixa
de serotonina e uso abusivo de substâncias. De outro, fatores ambientais (ex.: fácil acesso a meios letais e
falta de tratamento adequado) como gatilhos estressores de vida, além de episódios de transtornos
psiquiátricos, o que leva a mudanças neurobiológicas no organismo, conforme a Figura 3.
Com repetidos estresses ou traumas, as pessoas ficam mais suscetíveis, o que prejudica suas habilidades
para enfrentar os eventos negativos de vida. A literatura aponta os abusos físico e sexual como potentes
causas de comportamento suicida23.
A extensão do dano psicológico na vítima dependerá de: ausência de figuras protetoras; grau de
relacionamento; idade que a vítima tinha no momento do ato do abuso; tipo de ato violento a que foi sujeita
(se foi despida, tocada, sexo oral e/ou anal, masturbação e penetração com traumatismo ou não); apoio que
lhe foi dado na época dos fatos; acreditar na pessoa ou não (principalmente se for criança); tempo de
duração; se foi vítima por longo período; e o grau de segredo10.
O estresse ocasiona diversos sentimentos, como ansiedade, raiva, tristeza e desesperança, além da perda
de sono e reações fisiológicas. A pessoa pode ser acometida de uma vivência de impotência, desamparo,
pessimismo, fracasso, baixa autoestima, insegurança, sentimento de culpa e autoacusação. A consciência dos
limites e da fragilidade pode levar a impulsos agressivos contra si mesmo24.
Figura 3 Modelo de neurobiologia do suicídio.
COMO ABORDAR O PACIENTE COM RISCO DE SUICÍDIO
Nem sempre é tarefa fácil para o não especialista abordar questões como a doença mental e avaliar a
“suicidabilidade”. Para a abordagem segura do paciente em risco de suicídio, algumas regras gerais devem
ser respeitadas. Muitas vezes, os pacientes com possível risco de suicídio chegam ao profissional de saúde da
atenção primária com queixas diferentes daquelas com que se apresentariam ao psiquiatra. O que os leva a
buscar a consulta são, geralmente, queixas somáticas. É importante saber ouvir o indivíduo e entender suas
motivações subjacentes25.
Todo paciente que fala sobre suicídio tem risco em potencial e merece investigação e atenção especial.
São fundamentais a escuta e o bom julgamento clínico. Não é verdade que “quem fala que vai se matar não
se mata”; por impulsividade ou por erro de cálculo da tentativa, a fatalidade acontece24.
O manejo iniciase durante a investigação do risco, e a abordagem verbal pode ser tão ou mais importante
que a medicação. Isso porque proporciona alívio, acolhimento e valor ao paciente, fortalecendo a aliança
terapêutica. Dessa maneira, é fundamental para o médico não especialista saber investigar e abordar o
comportamento suicida. É preciso, ainda, fazer identificação e tratamento prévio de transtornos psiquiátricos
existentes, como: depressão, transtorno afetivo bipolar e por uso/abuso de álcool e outras substâncias
psicoativas, entre outros27.
O profissional de saúde não deve ficar receoso de investigar se o paciente tem risco de suicídio.
Evidentemente, o tema deve ser abordado com cautela, de maneira gradual. As perguntas devem ser feitas
em dois blocos: o primeiro para todos os pacientes; e o segundo apenas para aqueles indivíduos que
responderem às três perguntas iniciais que sugerem, pelas respostas, um risco de suicídio. São seis perguntas
fundamentais, três delas para todos os pacientes em cada consulta (Quadro 2).
Quadro 2 Perguntas fundamentais para investigação de risco de suicídio
Você tem planos para o futuro? A resposta do paciente com risco de suicídio é não.
A vida vale a pena ser vivida? A resposta do paciente com risco de suicídio,
novamente, é não.
Se a morte viesse, ela seria bemvinda? Desta vez, a resposta será sim para aqueles
que querem morrer.
Se o paciente der as respostas anteriores, o profissional de saúde deverá fazer as
seguintes perguntas:
Você está pensando em se machucar/se ferir/fazer mal a si mesmo/morrer?
Você tem algum plano específico para morrer/se matar/tirar sua vida?
Você fez alguma tentativa de suicídio recentemente?
Fonte: Meleiro e Correa, 20181.
O processo não termina com a confirmação das ideias suicidas. Ele continua com questões adicionais
para avaliar a frequência e a gravidade da ideação, bem como a possibilidade real de suicídio. É importante
saber se o paciente tem algum plano suicida, além dos meios para praticálo. Para o raciocínio clínico, ainda
é importante que os seguintes itens sejam esclarecidos (Quadro 3).
Quadro 3 Pontos a serem esclarecidos em caso de paciente com risco de suicídio
1. Há meios acessíveis para cometer suicídio (armas, andar de casa/prédio onde mora,
remédios ou inseticidas)?
2. Qual é a letalidade do plano e qual é a concepção da letalidade pelo paciente? Qual
é a probabilidade de resgate ou como foi o resgate?
3. Alguma preparação foi feita (carta, testamento ou acúmulo de comprimidos)?
4. Quão próximo o paciente esteve de completar o suicídio? O paciente praticou
anteriormente o ato suicida?
5. O paciente tem habilidade de controlar seus impulsos?
6. Há fatores estressantes recentes que tenham piorado as habilidades de lidar com as
dificuldades ou de participar no plano de tratamento?
7. Há fatores protetores? Quais são os motivos para o paciente se manter vivo? Qual é
a visão do paciente sobre o futuro?
Fonte: Neves et al., 20142.
Ainda não existem classificações precisas e objetivas do risco de suicídio, pois, diante da complexidade
do comportamento humano, as previsões de certeza são impossíveis. A avaliação é clínica e leva em conta
todo o conhecimento que o profissional deve ter sobre o comportamento suicida2. Após uma avaliação do
risco detalhada e da história do indivíduo, inclusive suicidabilidade e doença mental, são estabelecidos o
nível do risco e a conduta a ser seguida para reduzilo. A Figura 4 apresenta o modelo explicativo para os
dois subtipos de comportamento, segundo proposta do grupo da suicidóloga Maria Oquendo29.
NÍVEIS DE RISCO DE SUICÍDIO E A CONDUTA1
O risco baixo caracterizase pela pessoa que teve alguns pensamentos suicidas, mas não fez nenhum
plano. Convém manejar este risco com escuta acolhedora para compreensão e amenização de sofrimento;
facilitar a vinculação do sujeito ao suporte e à ajuda possível a seu redor – social e institucional; e iniciar o
tratamento de possível transtorno psiquiátrico. Realizase encaminhamento, caso não haja melhora, para
profissional especializado1. Devese esclarecer ao paciente os motivos do encaminhamento; certificarse do
atendimento e agilizálo ao máximo – tendo em vista a excepcionalidade do caso; e tentar obter uma
contratransferência do atendimento.
O risco médio caracterizase pela pessoa que tem pensamentos e planos, mas não pretende cometer
suicídio imediatamente. A conduta inclui total cuidado com possíveis meios de cometer suicídio que possam
estar no próprio espaço de atendimento; escuta terapêutica que possibilite ao paciente falar e esclarecer para
si sua situação de crise e sofrimento; realização de contrato terapêutico de “não suicídio” (embora não haja
garantia de ser cumprido); investimento nos possíveis fatores protetivos do suicídio; e família e amigos do
paciente como parceiros no acompanhamento do indivíduo. Convém encaminhar o paciente para o serviço de
psiquiatria para avaliação e conduta ou agendar uma consulta o mais brevemente possível1. Devese pedir
autorização para entrar em contato com a família, os amigos e/ou colegas e explicar a situação sem alarde,
informando o necessário e preservando o sigilo de outras informações sobre particularidades do indivíduo.
Orientase sobre medidas de prevenção, como esconder armas, facas e cordas; deixar medicamentos em local
a que a pessoa não tenha acesso etc.
Figura 4 Delineando diferentes fenótipos suicidas com distintas bioassinaturas. Fonte: Oquendo et al., 201430 .
O risco alto caracterizase pela pessoa que tem um plano definido, com meios para fazêlo, e planeja
fazêlo prontamente. O paciente encontrase em um cenário em que tentou suicídio recentemente e mantém
firme a ideia quanto a uma nova tentativa ou tentou várias vezes em um curto espaço de tempo. O manejo é
difícil; por isso, devese estar junto da pessoa e nunca a deixar sozinha. Convém ter total cuidado com
possíveis meios de cometer suicídio que estejam no próprio espaço de atendimento; realizar contrato de “não
suicídio”; e informar a família, da maneira já sugerida1. Encaminhase para o serviço de psiquiatria para
avaliação, conduta e, se necessário, internação. Caso não seja possível, considerase o caso como emergência
e entrase em contato com um profissional da saúde mental ou do serviço de emergência mais próximo.
Providenciase uma ambulância e encaminhase a pessoa ao prontosocorro psiquiátrico, de preferência.
O manejo do paciente na urgência/emergência tem três objetivos:
Redução do risco imediato.
Manejo dos fatores predisponentes.
Acompanhamento.
A vigilância 24 horas deve ser estruturada, seja por alguém da equipe de saúde ou por um cuidador; se for
avaliado como capacitado, até a reavaliação médica. Itens que podem causar danos (facas, instrumentos
pontiagudos, remédios, cintos, cordas) devem ser retirados do acesso do indivíduo. A bolsa do paciente
também deve ser revistada para avaliar a existência destes31. Portas, inclusive do banheiro, não devem ser
trancadas. Sugerese que a transferência de pacientes entre instituições seja feita de ambulância e não por
familiares. Os pacientes com alto risco de suicídio e frágil suporte social devem ser internados em instituição
especializada.
A Portaria n. 1.271, de 6 de junho de 2014, que define a Lista Nacional de Notificação Compulsória de
doenças, agravos e eventos de saúde pública nos serviços de saúde públicos e privados em todo o território
nacional inclui a tentativa de suicídio como notificação compulsória imediata que deverá ser realizada em até
24 horas, a partir do conhecimento da ocorrência. Apenas a notificação compulsória não basta. Há de se
garantir que essa pessoa que acabou de fazer uma tentativa de suicídio seja imediatamente colocada em
tratamento para reduzir o risco de nova tentativa e de suicídio4.
A chance de suicídio aumenta, proporcionalmente, quanto mais fatores de risco estiverem presentes.
Entretanto, muitos indivíduos podem ter um ou mais fatores de risco e não apresentar intenção suicida. O que
faz a diferença entre decisão de vida e morte não é só a presença de fatores de risco, mas o acesso a fatores
protetores, que fortalecem as estratégias de enfrentamento10.
O nível particularmente aumenta quando um ou mais fatores de proteção são eliminados. Nos últimos
anos, os fatores de proteção têm sido enfatizados. A capacidade de recuperarse frente a adversidades da vida
é chamada de resiliência (como as fibras de um tapete que, mesmo após ser pisado, têm a capacidade de
retornar ao natural). A resiliência pode ser inerente e/ou adquirida durante a vida antenatal e da educação
infantil até a vida adulta, conforme Figura 5. Podese observála em: estilo cognitivo e personalidade, fatores
sociais e culturais, padrão familiar e fatores ambientais.
CONDUTA MÉDICA APÓS TENTATIVA
Algumas decisões são necessárias para prosseguir os cuidados após tentativa: se o paciente irá
permanecer internado (médico/cirúrgico/UTI), se ele será encaminhado ao ambulatório de saúde mental ou se
deve ser transferido para uma unidade psiquiátrica pelo risco ou de transtorno psiquiátrico que necessite de
tratamento especializado32.
Figura 5 Fatores que influenciam a resposta ao estresse psicossocial.
Todo cuidado é pouco na enfermaria, pois é um local no qual há disponibilidade de itens como
anestésicos, cloreto de potássio, psicofármacos, bisturi, tesouras, escadas, janelas e lençóis, entre outros. É
importante observar e anotar os comportamentos não verbais suspeitos ou significativos de comportamento
suicida10.
Há relatos de pacientes de UTI que desligaram seus próprios aparelhos como gesto suicida, ou de
indivíduos que se enforcaram dentro de hospitais psiquiátricos. A inclusão de amigos e membros solidários
da família pode ser útil nas enfermarias nas quais o recurso humano para vigilância é escasso. Qualquer
paciente com doença psiquiátrica deve ser avaliado quanto à tendência suicida periodicamente durante o
curso da doença, independentemente de sua situação clínica12.
As opções após a avaliação dependerão do sistema de saúde em que o paciente está sendo atendido. Na
prática diária no Brasil, sabese da dificuldade de se obter uma vaga em unidade psiquiátrica.
Para uma avaliação clínica do risco, a tentativa de suicídio pode ser classificada como apresentado
na Tabela 1.
Tabela 1 Classificações das tentativas de suicídio
Quanto à gravidade ou à
Quanto ao método
letalidade
Violento: enforcamento, queda de alturas, mutilações, Quanto à gravidade ou à
Grau de impulsividade
Quanto ao método
disparos, arma branca letalidade
Planejamento
Não violento: intoxicação voluntária de substâncias, Danos médicos
inalação de gases tóxicos Possibilidades de escape da
tentativa
Considerase grave o ato que necessitou de uma hospitalização ou de suporte clínicocirúrgico para evitar
Violento: enforcamento, queda de alturas, mutilações, Grau de impulsividade
sequelas. Estimase que 10% das tentativas precisarão de hospitalização. A gravidade da tentativa é um forte
disparos, arma branca Planejamento
Não violento: intoxicação voluntária de substâncias,
fator de risco para repetição. Entretanto, a avaliação Danos médicos
da gravidade da lesão deve ser cuidadosa, pois uma
inalação de gases tóxicos Possibilidades de escape da
lesão pouco grave pode simplesmente traduzir o desconhecimento
tentativa
da letalidade do método utilizado pelo
paciente com intenção suicida real. Nesses casos, negligenciar a intenção pode subestimar o risco futuro33.
POSVENÇÃO PARA OS SOBREVIVENTES DO SUICÍDIO
O termo postvention, que significa intervenção após, foi criado por Edwin Shneidman em 196734. Ele
também relacionou com o trabalho de prevenção, o manejo e as intervenções para o luto por suicídio.
Posvenção referese, então, somente ao luto por suicídio, para lidar com as especificidades deste luto e
prevenir o suicídio entre os sobreviventes enlutados. Isso não inclui sobreviventes de tentativas ou suicide
attempter; estes continuam a ser assistidos pela prevenção do suicídio, confusão que tem acontecido com o
uso errôneo do termo, mas que necessita de abordagens diferentes. Para Shneidman34, a posvenção é
“qualquer ato apropriado e de ajuda que aconteça após o suicídio com o objetivo de auxiliar os sobreviventes
a viver mais, com mais produtividade e menos estresse do que viveriam se não houvesse esse auxílio”35.
Desde o início do tratamento, familiares devem ser acompanhados ou encaminhados para terapia.
Podemos identificar dois tipos de família:
Família suicidogênica: favorece o gatilho.
Família desestruturada pela patologia do suicida. Ambas necessitam de ajuda. Cerca de 750.000
pessoas/ano ficam de luto por suicídio na família. Além da sensação de perda, fica uma herança de
vergonha, de medo, de rejeição, com um misto de raiva e de culpa. Familiares são responsabilizados, são
evitados e rejeitados pelas pessoas à volta. Há um nível elevado de vergonha, que aumenta isolamento e
autoculpa, dificuldade de falar sobre o assunto, carregado de estigma e preconceitos. As reações
psicológicas (TEPT) de quem perdeu alguém por suicídio é comparável a quem vivenciou estupro, guerra
ou crime.
As acusações surgem de diferentes formas, não é direcionada apenas a si mesmo, e sim, p. ex., a
familiares que não viram o que estava acontecendo ou ao médico que talvez não tenha dado o tratamento
correto. Qualquer um pode ser alvo desse sentimento destrutivo e inútil e deve enfrentar o julgamento dos
outros (“ninguém fez nada”) e a resistência em lidar com as próprias fragilidades.
Quadro 4 Cicatrização da dor da morte por suicídio
Sentimento de alívio faz parte do processo natural
Dar continuidade à vida e aos planos
A dor pode imobilizar por anos a pessoa, que se consome em tristeza presa no passado
Conscientizarse de que o único responsável foi o próprio
Conscientizarse de que foi uma escolha pessoal e voluntária
Trabalhar emoções para livrarse da culpa
Buscar respostas que nunca virão
É imprescindível vivenciar o luto
Enterrar o suicida
Fonte: Scavacini e Meleiro, 201836.
ESTRATÉGIAS PREVENTIVAS PROPOSTAS
Mrazek e Haggerty37 propuseram um modelo conceitual de prevenção primária de transtornos mentais,
definido como “intervenções que ocorrem antes do início de um transtorno”, composto por três tipos de ação
preventiva, diferentes entre si conforme o grupoalvo. Esse modelo adquire uma importância especial no
campo da saúde pública por se dirigir diretamente a grupos populacionais, embora cubra também casos
individuais. São eles37:
Intervenções universais: dirigidas ao público em geral ou a toda população que não tenha sido
identificada com base em riscos individuais;
Intervenções seletivas: dirigidas a indivíduos ou subgrupos da população com risco mais elevado que a
média de desenvolver uma dada condição. O risco pode ser iminente ou persistente ao longo da vida e
pode ter natureza biológica, psicológica ou social;
Intervenções indicadas: dirigidas a indivíduos de alto risco, já com sinais e sintomas ou indicadores
biológicos, precursores da condição que se quer prevenir.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nem todos os casos de suicídio poderão ser prevenidos. Contudo, a habilidade em lidar com suicídio faz
diferença, pois milhares de vidas podem ser salvas todos os anos se as pessoas que tentaram suicídio forem
adequadamente abordadas e tratadas. Essa perspectiva é de particular importância para a suicidologia, uma
vez que a diminuição de morbidade (ideação suicida e tentativa de suicídio) leva à diminuição da
mortalidade. Os esforços de prevenção ao suicídio, muitas vezes, dirigemse à melhora da assistência clínica
ao indivíduo que já luta contra ideias suicidas ou àquele que precise de atendimento médico por tentativa de
suicídio. A prevenção ao suicídio também exige abordagens que possam reduzir a probabilidade do suicídio
antes que indivíduos vulneráveis alcancem o ponto de risco.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Os autores abordam amplamente as questões do comportamento suicida: epidemiologia, aspectos
históricos e culturais, crise suicida, relação com o sofrimento, processo suicida e o modelo estresse
vulnerabilidade e avaliação médica psiquiátrica do risco de suicídio.
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Compulsória de doenças, agravos e eventos de saúde pública nos serviços de saúde públicos e privados em todo o
território nacional, nos termos do anexo, e dá outras providências. Disponível
em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2014/prt1271_06_06_2014.html.
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North Am. 2008;31(2):179203. Review.
Revisão dos estudos de associação genética de fenótipos suicidas publicados até o momento. Os
autores concluem que pesquisas futuras podem se beneficiar do uso de uma seleção mais sistemática e
abrangente de genes e variantes candidatas, examinando interações geneambiente e genegene e
investigando moderadores de ordem superior.