Revista Aceno Ago 2020
Revista Aceno Ago 2020
Revista Aceno Ago 2020
Catalogação na Fonte. Elaborada por Igor Yure Ramos Matos. Bibliotecário CRB1-2819.
Semestral.
Início: jan./jul. 2014.
Editores: Prof. Dr. Marcos Aurélio da Silva
Prof. Dr. Moisés Alessandro de Souza Lopes
ISSN: 2358-5587.
CDU: 39(05)
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO
Reitor: Evandro Aparecido Soares da Silva
DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA
Chefe: Aloir Pacini
EDITORES
Marcos Aurélio da Silva
Moisés Alessandro de Souza Lopes
COMITÊ EDITORIAL
ACENO, 7 (14), maio a agosto de 2020. ISSN: 2358-5587
CONSELHO CIENTÍFICO
Aloir Pacini – UFMT
Andréa de Souza Lobo – UnB
Carla Costa Teixeira – UnB
Carlos Emanuel Sautchuk – UnB
Expediente
PROJETO GRÁFICO
Marcos Aurélio da Silva – UFMT
José Sarmento – UCDB
Moisés Alessandro de Souza Lopes – UFMT
Sonia Regina Lourenço – UFMT
ISSN: 2358-5587.
4
14
Sumário
Table of Contents
Tabla de Contenido
Editorial 9
Conferência
Conference
Conferencia
Artigos Livres
Free Articles
Artículos Libres
6
Nem tão longe, nem tão perto! Notas de um antropólogo
brasileiro sobre igualdade e hierarquia em Portugal
Neither so far nor so close! Notes from a Brazilian anthropologist on
equality and hierarchy in Portugal
!Ni tan lejos ni tan cerca¡ Notas de un antropólogo brasilero sobre
igualdad y jerarquía en Portugal
Maelison Silva Neves, Wanderlei Pignati, Marta Pignatti, Marcia M. Corrêa 231
Ensaios
Ensaios Fotográficos
Photo Essays
Ensayos Fotográficos
8
Editorial
Aceno, 7 (14), maio/ago. 2020
A
décima quarta edição da Aceno – Revista de Antropologia do
O dossiê temático desta edição tem como título O que carrega o san-
gue?, organizado por Juliana Caruso, Marisol Marini, Sandra Carolina Por-
tela García, com trabalhos oriundos de um GT de mesmo nome, da Reunião
de Antropologia do Mercosul, que aconteceu em Porto Alegre em julho de
2019. Os trabalhos versam sobre os muitos significados e cosmologias pro-
duzidas em torno do sangue, seja a partir das etnografias realizadas com
comunidades tradicionais, seja no âmbito das ciências biomédicas.
Na sessão de Artigos Livres, quatro textos apontam para distintos cam-
pos das ciências humanas, como a educação, a saúde, o turismo e a própria
etnografia. Girlaine Weber e Débora Breder, em “Exercitando o olhar, apu-
rando o ouvir: notas etnográficas sobre relações de gênero em uma escola
pública de Petrópolis (RJ)”, trazem um importante relato sobre relações de
gênero no ambiente escolar, mostrando a escola como uma verdadeira tec-
nologia de produção de sujeitos generificados. Já Edilson Silva, em “Nem
tão longe, nem tão perto! Notas de um antropólogo brasileiro sobre igual-
dade e hierarquia em Portugal”, traz um experimento etnográfico sobre sua
estadia em Portugal, para pensar em diferenças e aproximações entre os
dois países. Já o artigo “Motivações para a prática do dark tourism”, de Tér-
cio Pereira, também parte de experiências pessoais para pensar em formas
de turismo que se voltam para temas pesados como a morte. Por fim, com o
artigo “Determinação social do processo saúde-adoecimento mental de tra-
balhadores rurais no Brasil”, de Maelison Neves et al. voltamos às questões
da saúde mental, mas agora em relação a trabalhadores rurais que lidam
diariamente com agrotóxicos.
A novidade deste número da Aceno é a estreia da sessão Ensaios, onde
passamos a publicar trabalhos dos integrantes do PPGAS/UFMT, uma
oportunidade para que se conheça mais da atuação de nossos docentes e
discentes. “Visibilidade lésbica: inteligibilidade em saúde e existência como
resistência”, de Moisés Lopes e Kamylla dos Reis, é uma parceria professor-
aluna como as muitas que esperamos repetir nesta sessão.
Voltamos com a sessão Memória: Série Antropologia, com a reedição
de mais um artigo publicado, ainda na década, pelo Departamento de An-
tropologia da UFMT. Dessa vez, trazemos um trabalho de uma das mais des-
tacadas professoras que já passaram pela UFMT, Maria Fátima Roberto Ma-
chado que nos pergunta “Que história é essa? Que barulho é esse? Uma in-
trodução ao debate sobre a Antropologia Histórica e a História Cultural”.
A sessão de Ensaios Fotográficos traz uma sequência de imagens, de
autoria de Marisol Marini, que podem ou mesmo devem ser lidas em conti-
nuidade com o dossiê que compõe esta edição, do qual sua autora é também
organizadora. O ensaio “Os porcos sentem medo diante da morte?” traz o
interessante universo dos corações artificiais que coloca em rede humanos
e animais.
ACENO, 7 (14), maio a agosto de 2020. ISSN: 2358-5587
Os Editores
10
“O pharmakon e a vida ou
a vida pharmakon?”:
algumas reflexões sobre narrativas de
consumo de psicofármacos no contexto universitário1
1 Agradeço aos docentes e discentes do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de
Mato Grosso (PPGAS/UFMT) pelo convite para proferir a conferência que deu origem a esta versão. Os inúmeros ques-
tionamentos que se seguiram foram fundamentais para meu retorno ao texto e para o desdobramento de questões antes
não vislumbradas e/ou não amadurecidas. Agradeço ainda a colega Ceres Víctora pelas inúmeras trocas ao longo do pós-
doutorado e pelos intensos e fecundos diálogos oportunizados junto aos pesquisadores e às pesquisadoras do Núcleo de
Pesquisa em Antropologia do Corpo e da Saúde (NUPACS), vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia
Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGAS/UFRGS).
2 Professor adjunto, do curso de Ciências Sociais, do Programa de Pós-Graduação em Antropologia (PPGAnt) da Facul-
dade de Ciências Humanas da Universidade Federal da Grande Dourados (FCH/UFGD) e do Programa de Pós-
Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (PPGAS/UFMS). Doutor em Antro-
pologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC, 2014), com pós-doutorado junto ao Núcleo de Pes-
quisa em Antropologia do Corpo e da Saúde (NUPACS/UFRGS, 2018).
“Pharmakon and life or
the pharmakon life?”:
some thoughts on narratives about the use of
psychopharmacological drugs in higher education
12
A contribuição da antropologia para a compreensão desta
problemática consiste em mostrar como existem n maneiras de
utilizar as substâncias, em função de variáveis culturais sociológicas.
Estas não só se somam, como complexificam as distinções que
possam ser registradas ao nível de análise bioquímica
(Gilberto Velho, 1980)
E
sse artigo é resultado de uma pesquisa de pós-doutorado realizada junto
ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (PPGAS/UFRGS) e vinculada ao Núcleo de
Pesquisa em Antropologia do Corpo e da Saúde (Nupacs). Ao tomar como base a
narrativa de professores universitários e estudantes de pós-graduação de algu-
mas universidades públicas que faziam uso de ansiolíticos e/ou antidepressivos,
OLIVEIRA, Esmael Alves da.
Diante de um cenário:
uma vida medicalizada ou um contexto medicalizante?
Até o momento, não existem dados sistematizados em escala nacional que
apresentem um panorama dos níveis de adoecimento envolvendo docentes e
discentes no ensino superior brasileiro. Os existentes ainda são escassos e frag-
mentados.
Com relação aos discentes, em pesquisa realizada em janeiro de 2018 pela
Associação Nacional de Pós-Graduando (ANPG)3 junto a estudantes de pós-
graduação da Universidade de Brasília, constatou-se um alto índice de sofri-
Conferência
Saúde: “no Brasil existe uma farmácia (ou drogaria) para cada 3.300 habitantes
e o país está entre os dez que mais consomem medicamentos no mundo, segun-
do dados do Conselho Federal de Farmácia”.6
Acreditamos que esses dados, tanto os que se referem aos altos índices de
adoecimento de docentes e discentes das universidades brasileiras quanto ao
aumento do consumo de psicofármacos, bem como à expansão do que tem sido
chamado como Big Pharma, revelam a face de uma cultura da medicalização
(AZIZE, 2002; PETRYNA, 2009). Esta precisa ser desnaturalizada e compreen-
dida a partir de processos sociais, políticos, econômicos e ideológicos mais am-
4Disponível em: http://portal.andes.org.br/imprensa/noticias/imp-ult-492400535.pdf. Acesso em: 01 mar. 2019.
5 Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/saude/rivotril-a-droga-da-paz-quimica-3659/. Acesso em: 01 jun. 15
2018.
6 Disponível em: http://www.conselho.saude.gov.br/ultimas_noticias/2005/medicamentos.htm. Acesso em: 01 jun.
2018.
plos que buscam, por meio da psiquiatrização da vida, o estabelecimento de es-
tratégias que resultem tanto na responsabilização individual dos sujeitos, igno-
rando arbitrariamente os dispositivos biopolíticos, quanto em sua exclusão soci-
al – gerando verdadeiras zonas de abandono (BIEHL, 2005; OLIVEIRA; MAR-
TINS, 2020).
Portanto, entendemos o fenômeno da medicalização como um processo em
que as dimensões da vida social e tudo aquilo que a atravessa e a constitui é re-
duzido à lógica biomédica, vinculando aquilo que não está adequado às normas
sociais a uma suposta organicidade, que se expressaria na ideia de adoecimento
psíquico do indivíduo, mas que é da ordem de uma produção social do sofri-
mento (VÍCTORA, 2011).
7 Por preocupações de ordem ética, combinei com os colaboradores e colaboradoras que suas identidades pessoais,
16 institucionais e regionais seriam devidamente preservadas.
8 Pelo compromisso ético de não exposição, optei por não fazer referência a nenhuma informação pessoal dos interlocu-
tores e interlocutoras de pesquisa. Além disso, interessava-me não a ideia de representatividade, mas a dimensão dis-
cursiva, suas redes de articulação e significação (GEERTZ, 2008).
uma trajetória. Tanto é verdade que quando nossos mestres saíam para o doutora-
do, voltavam e permaneciam pouco tempo – logo depois se aposentavam. Quando
olho para o que se tornou a universidade hoje, com todo seu carreirismo meritocrá-
tico, é algo insano.
Ingressei no mestrado em 2016. Nossa, que loucura! Na verdade, quando via meus
professores lamentando em sala de aula ou pelos corredores sobre a sobrecarga de
trabalho, não fazia ideia de como era verdadeiro. Enquanto aluno de graduação,
posso dizer que aproveitei muito: as festas, os namoros, as redes de amizade. Con-
fesso que nem sempre estava no curso de corpo inteiro. Se você pegar meu histórico
vai perceber que eu fui um aluno displicente. Mas não me arrependo. No mestrado
quis sair da minha cidade onde fiz faculdade e ir para outra. A ideia era ter mais
autonomia. Meus pais (ambos do mundo do Direito) queriam me controlar e dizer o
que eu deveria fazer. Não queria que os planos deles se tornassem os meus. Quando
passei na seleção, num primeiro momento, não acreditei, embora tivesse me dedi-
cado muito. Queria muito ser aprovado. Eu só não sabia o que estava desejando.
Como já lhe disse: estar nesse lugar de professora universitária não é simples. Já
pensei várias vezes em mudar de profissão. Atualmente recebo uma bolsa produti-
vidade que, entre outras coisas, me “premiou” com o uso de ansiolítico e antidepres-
sivo. Tudo começou com uma crise de insônia, aos poucos foi piorando. Já não con-
seguia dormir. No outro dia, estava na sala de aula ou em alguma reunião como
um zumbi. Sempre fui muito resiste a medicamentos, mas não tive como não recor-
rer. Logo depois tive uma crise de pânico, não conseguia nem mais sair de casa. De
repente o sonho de ser professora universitária se tornou um pesadelo. Estava do-
ente. E onde ficam os projetos? Os sonhos? Os risos? Aos poucos o que era sonho vi-
ra pesadelo.
Sempre fui muito ansioso, desde criança. Mas era uma época em que nem se falava
de ansiedade. Me chamavam de pica pau, pois eu não parava quieto. Não tenho dú-
vida que se crescesse hoje seria diagnosticado de hiperativo. Mas, enfim, nunca sig-
nificou um problema pra mim. Foi meu ingresso no magistério superior que repre-
sentou uma guinada. Uma rotina que posso dizer por experiência própria: enlou-
quecedora. Projetos de pesquisa, orientar estudantes de graduação e pós-
Sou egressa do curso de Psicologia e minha experiência de graduação não foi dife-
rente da experiência que tenho como aluna da pós. Lembro que desde o primeiro
semestre do curso prevalecia entre nós uma dada competitividade que era concreti-
zada no IDA (Índice de Desempenho Acadêmico). Acho até que era uma política do
OLIVEIRA, Esmael Alves da.
curso porque, pelo que me lembro, a escolha pelos estágios específicos era baseada
no IDA, ou seja, os alunos com o melhor desempenho tinham as maiores chances de
realizar o estágio do seu interesse – que em geral eram os mais concorridos. Parti-
cularmente, não sei se isso mudou quando ingressei na pós. Talvez a roupagem te-
nha mudado, mas o conteúdo permanece o mesmo. Aqui prevalece uma política de
concorrência entre os mestrandos de quem consegue publicar mais e uma dada vai-
dade quando você é orientado por um professor que tem um curriculum lattes “in-
flado”. Os relatos de adoecimentos não são incomuns. Eu mesma faço terapia e te-
nho consumido antidepressivos desde que entrei na universidade. Durante a gradu-
ação não era incomum saber de tentativas de suicídio dentro do próprio curso de
Psicologia. Isso me inquietava: o que está acontecendo? Será que não tem alguma
coisa errada? Como assim um curso que vai cuidar de pessoas adoecidas e que tem
produzido adoecimento? Hoje na pós eu já não sei se isso é uma exclusividade da
graduação e nem mesmo só da Psicologia.
19
marco a Política Nacional de Saúde Mental (BRASIL, 2001), apontam que, com
relação ao movimento de reforma psiquiátrica no Brasil, podemos pensar em
avanços e conquistas em termos de desistinsticionalização, mas, ao mesmo
tempo, na pouca atenção que tem sido dada aos usuários dos serviços de saúde
mental como agentes ativos do processo. Assim, as autoras, a partir de trabalho
10Alerto para o caráter analítico da categoria “vida pharmakon”. Nesse sentido, não ignoro as possibilidades e contradi-
20 ções que os interlocutores e interlocutoras apresentam em relação ao consumo de psicofármacos. O termo é aqui utiliza-
do no sentido de um conjunto de crenças, valores, estilos de vida e visões de mundo socialmente compartilhadas (VE-
LHO, 1999, 2008) e ao mesmo tempo aponta para o fato de que mesmo atitudes que nos são comunicadas como deci-
sões individuais podem ter sido construídas coletivamente (FLEISCHER, 2012).
de campo realizado junto a usuários dos serviços de saúde mental, questionam a
categoria universalizante e homogeneizante de “usuário”.
Em meu entender, é esse mesmo processo de ontologização da experiência
que pode ser constatado na categoria “sujeitos medicalizados” e que, no entanto,
não é capaz de dar conta dessas experiências e trajetórias múltiplas. Ou seja,
docentes e discentes, ainda que atravessados por trajetórias, experiências e ex-
pectativas distintas em seus percursos acadêmicos, são “facilmente” encapsula-
dos em categorias psiquiatrizantes que pouco ou nada dizem sobre o conjunto
mais amplo das relações que se produzem no interior da universidade.
Do mesmo modo que a Antropologia da saúde tem destacado o fato de que a
doença não é uma essência (o doente), mas uma experiência (estar doente)
(LANGDON, 1994, 2005; SARTI, 2010), o desafio é o de pensarmos que uma
possível identidade atrelada ao sujeito adoecido e que aponte para uma condi-
ção ontológica (p. e. o doente, o medicalizado) acaba por obscurecer a dimensão
contextual (portanto social, simbólica, política, econômica) que o enreda. Por-
tanto, do mesmo modo que na pesquisa de Velho (2008) a categoria “viciado” e,
na pesquisa de Andrade e Maluf (2016), a noção de “usuário” pouco davam con-
ta dos múltiplos sentidos acionados e agenciados pelos diferentes sujeitos, a ca-
tegoria “medicalizado” também resulta redutora.
Assim, as narrativas elaboradas pelos sujeitos em cena falam de uma condi-
ção de irredutibilidade dos fenômenos e experiências humanas à lógica taxonô-
mica medicalizadora. A partir da constatação da precariedade das categorias
ontologizantes, ponderam Andrade e Maluf (2016: 255):
Tal precariedade apareceu com vigor nos dados de campo, o que nos fez pensar tais
categorias como variáveis, uma vez que reconhecemos uma circularidade de posições
ocupadas pelo mesmo sujeito. Aquele/a que era familiar também poderia ser alguém
com diagnóstico, usuário/a do sistema de atenção à saúde; aquele/a que era diagnos-
ticado e usuário poderia ser também familiar e, algumas vezes, aquele/a que era tra-
balhador/a poderia ter recebido um diagnóstico como ser também familiar. Várias
combinações acabaram aparecendo, o que nos alertava para a intercambialidade de
posições.
22
Algumas (in)conclusões
A partir do exposto, ficou evidente que os mecanismos de apagamento das
condições sociais mais amplas que produzem os processos de adoecimento são
perversos. Eles, como uma engrenagem de produção de sujeitos adoecidos, ti-
ram de cena a “peça estragada”, sem alterar ou comprometer o funcionamento
da lógica produtivista.
Portanto, pensar em termos de uma vida pharmakon não significa naturali-
zar a experiência da medicalização contemporânea. Antes, implica compreender
que os sujeitos buscam diferentes estratégias e acionam distintos recursos para
lidar com as situações-limite histórica e socialmente produzidas. Nesse sentido,
ao longo do desenvolvimento da pesquisa, ficou evidente que há, por parte dos
sujeitos11, o reconhecimento das condições que produzem seu(s) adoecimen-
to(s). Talvez seja por isso que o medicamento apareça como último recurso e
nunca como um fim em si mesmo.
Os medicamentos entram em cena quando se percebe que o reconhecimento
das condições de existência já não é suficiente para evitar a insônia, a depressão,
as crises de pânico, os pensamentos suicidas etc. (FLEISCHER, 2012). Apesar
disso, o aparente “rendimento”, “captura”, é vivenciado como uma fase de tran-
sição (“não pretendo ficar dependente”), como uma oportunidade de avaliação
do estilo de vida (“que vida era essa que eu estava levando e que quase me jogou
no fundo do poço?”) e, mais do que isso, como a manifestação do desejo de que
é possível atuar sobre as condições de sofrimento socialmente produzidas e im-
postas (“quando for professor não quero fazer o que meus professores fizeram
comigo”; “hoje vejo minha atuação na universidade de outra forma. Quando
você chega no fundo do poço e retorna, volta com uma pergunta: o que vale a
pena e o que não vale?; “O que é mesmo ser produtiva? Quem vai dizer de mi-
nhas capacidades? Um sistema de registro de informações chamado Lattes?”).
Assim, por mais que tais experiências se deem a partir de um conjunto con-
creto de situações e relações mais amplas, as produções de sentidos e os agenci-
amentos em torno da medicalização falam de caminhos possíveis e nunca previ-
11 Não podemos desconsiderar, contudo, a importância do elemento classe na trajetória desses docentes e discentes.
Todos/as eles/as, além de terem consciência das condições que os/as conduziram ao adoecimento, conseguiam (em 23
decorrência do lugar privilegiado que ocupam), para além da medicação, recorrer a outros meios, como o psicoterapêu-
tico, relativizando assim a medicalização como um fim em si mesmo. Pesquisas futuras podem contribuir com o fim de
apontar como os marcadores sociais também influenciam os processos de medicalização da vida.
Por fim, cabe mencionar que pensar em um processo de subjetivação con-
temporânea que passa pelo consumo de medicamentos implica reconhecer que
estamos inseridos em uma sociedade (portanto, em um conjunto complexo de
relações) em que predomina um esvaziamento de significados, cuja medicaliza-
ção da vida aparece como um recurso incontornável.
Ao mesmo tempo, esse caráter de obviedade aos poucos mostra-se frágil e
precário se consideramos que estamos diante de experiências relacionalmente
produzidas e negociadas. Parafreasendo Vargas (2006), mais do que perguntar
“por que as pessoas usam psicofármacos?” e “qual o significado do de seu con-
sumo?”, o objetivo do presente trabalho foi o de estar atento à(s) experiência(s)
que os/as usuários/as produzem e realizam.
Nesse enquadre em que interagem contextos, relações, subjetividades e psi-
cofármacos, emerge a produção de sujeitos que demonstram uma agência muito
criativa no trato dos corpos individuais, sociais e políticos (FLEISCHER, 2012,
2018).
Referências
ANDRADE, Ana Paula Müller de; MALUF, Sônia Weidner. Sujeitos e(m) expe-
riências: estratégias micropolíticas no contexto da reforma psiquiátrica no Bra-
sil. Physis – Revista de Saúde Coletiva, 26 (1): 251-270, 2016.
AZIZE, Rogerio Lopes. A química da qualidade de vida: um olhar antropológi-
co sobre o uso de medicamentos e saúde em classes médias urbanas brasilei-
ACENO, 7 (14): 11-26, maio a agosto de 2020. ISSN: 2358-5587
26
Dossiê Temático
O que carrega o sangue?
CARUSO, Juliana; MARINI, Marisol; PORTELA GARCÍA, Sandra C. O que carrega o sangue? –
Introdução ao dossiê. Aceno – Revista de Antropologia do Centro-Oeste, 7 (14): 27-30, maio a
.
1 Doutora em Antropologia pela EPHE - École Pratiques des Hautes Études, menção RSP (Religions et Systèmes de Pen-
sée), é Mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e Bacharel em Ciências Sociais
pela mesma universidade. É membro associada do Laboratório de Estudos Pós-Disciplinares (LAPOD). Também é mem-
bro externo do Hybris (Grupos de estudo e pesquisa sobre relações de poder, conflito e socialidades) da USP.
2 Doutora em Antropologia Social pela USP. Atualmente desenvolve pesquisa de pós-doutorado na Unicamp. Integra os
grupos de pesquisa NUMAS, LAPOD e GEICT. Integrou o grupo de pesquisa Mind the Body, sediado na Holanda.
3 Docente e pesquisadora do Programa de Antropología da Universidad Externado de Colombia, pesquisadora associada
S
ubstância, metáfora, líquido essencialmente vinculado à vida, associado à
movimentação, ao veículo de coisas das mais diversas, como identidades. O
sangue, vital para humanos e não-humanos, possui muitas existências, sig-
nificações e interpretações, das quais a Antropologia desde os seus primórdios
soube se valer. Ainda em1871, Morgan publicava Systems of Consanguinity and
Affinity of the Human Family e desde então, as questões em torno do sangue
nunca deixaram de interessar aos antropólogos. Nos estudos de parentesco,
campo em que a temática se demonstrou especialmente frutífera, as abordagens
sobre o sangue foram desenvolvidas e ampliadas, deslocando e movimentando as
próprias compreensões sobre parentesco. No desenvolvimento da disciplina, os
horizontes de análise se ampliaram: do sangue enquanto analogia para heredita-
riedade ao sangue enquanto substância que compõe pessoas e vínculos. Com isso,
sua fluidez permitiu movimentar outras substâncias, criando circulações, siste-
mas, corpos.
ACENO, 7 (14): 27-30, maio a agosto de 2020. ISSN: 2358-5587
29
ACENO, 7 (14): 27-30, maio a agosto de 2020. ISSN: 2358-5587
30
Dossiê Temático: O que carrega o sangue?
Matéria profusa
Apresentação do dossiê O que carrega o sangue?
35
ACENO, 7 (14): 31-36, maio a agosto de 2020. ISSN: 2358-5587
36
Dossiê Temático: O que carrega o sangue?
Sangue e suas partículas:
sobre a não homogeneidade fluídica
do sangue no parentesco1
sangue no parentesco. Aceno – Revista de Antropologia do Centro-Oeste, 7 (14): 37-54, maio a agosto
Lapod/Hybris/USP
CARUSO, Juliana P. Lima. Sangue e suas partículas: sobre a não homogeneidade fluídica do
Resumo: Neste artigo, a partir das teorias do parentesco pretendo propor algumas
questões sobre sangue, substâncias e relações de parentesco, comparando duas pes-
quisas distintas. Com isto, pretendo abordar algumas das principais questões que a
categoria substância – em especial, o sangue – suscita nos estudos antropológicos e
de parentesco. Parte da reflexão inclui pensar a categoria sangue de maneira mais
ampla, considerando tanto a sua representação enquanto um elemento quanto a
soma de múltiplos componentes. Estes diversos elementos e fragmentos, pensados
na categoria sangue, alimentam a discussão sobre a não homogeneidade das/nas
substâncias que compõe o parentesco, que circulam ou fazem parte do sangue.
Trata-se de um debate inicial que, através do sangue, permite colocar em diálogo
autoras como Carsten (2011) e Héritier (1996) proporcionando uma discussão que
compreenda diferentes visões no parentesco
de 2020. ISSN: 2358-5587
1 Gostaria de agradecer as leituras e debates das primeiras ideias deste artigo, que foram apresentadas nos seminários do
Hybris (2019), discutido pela Natacha Leal e durante o GT82 RAM, que originou este dossiê que pude contar com Flavio
Tarnowski como debatedor. Agradeço também as leituras de Tiago Hyra, Miriam Hartung e Marisol Marini.
2 Doutora em Antropologia pela EPHE -École Pratiques des Hautes Études, menção RSP (Religions et Systèmes de Pen-
sée), é Mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e Bacharel em Ciências Sociais
pela mesma universidade. É membro associada do Laboratório de Estudos Pós-Disciplinares (LAPOD). Também é mem-
bro externo do Hybris (Grupos de estudo e pesquisa sobre relações de poder, conflito e socialidades) da USP.
Blood and its particles:
about the fluidic non-homogeneity of blood in kinship
Abstract: In this article, within the theories of kinship framework, I intend to pro-
pose some questions about blood, substances and kinship relations, comparing two
different researches. In doing so, I intend to address some of the main issues the
substance category - in particular, blood - raises in anthropological and kinship stud-
ies. Part of this reflection includes thinking about the blood category more broadly,
considering both its representation as an element and as the sum of multiple com-
ponents. These various elements and fragments, thought of within the blood cate-
gory, feed into the discussion about the non-homogeneity of/in the substances that
make up kinship relations, which circulate or are part of the blood. It is an initial
debate that, through blood, allows to put in dialogue authors like Carsten (2011) and
Héritier (1996), providing a discussion that comprehends different views on kinship.
38
A
ntes do advento da genômica, da genética molecular e da epigenética, entre
as expressões mais vernaculares para se referir às relações de parentesco e
de filiação estavam – e ainda se fazem presentes em muitos lugares - frases
como “ela/ele é sangue do meu sangue/corre o mesmo sangue em nossas veias”.
Como Howell (2009) notou, em seu estudo sobre imigrantes e crianças imigran-
tes adotadas na Noruega, as expressões relacionando sangue e parentesco são en-
contradas em muitos países europeus. Para a autora, tais sentenças estão atrela-
das ao “parentesco euro-americano” – seguindo a definição de Schneider
(1968/2016) - que “é bem conhecido pelo lugar essencial que ele reserva à metá-
fora do sangue”3. Talvez hoje, pouco a pouco, expressões como “herdou meus ge-
nes”, “parecem clones” ou “temos o mesmo DNA’” comecem a ganhar mais o es-
paço que precedentemente pertencia apenas ao “sangue como a dimensão bioló-
gica da filiação” (NICOLAS et al., 2007: 5). Esta dimensão biológica da filiação
tem o sangue como metáfora e idioma. Uma metáfora que em parte não é, e talvez
não será totalmente, substituída pela alusão às novas tecnologias biomédicas
para as relações de filiação e parentesco, mas que pode inspirar metáforas e alu-
sões trazidas pela genética. Idioma este que também se aplica nas relações e ter-
minologias de parentesco, através do sangue e de suas relações bastante atreladas
às concepções ditas ocidentais, judaico-cristãs que aparecem desde o início nos
estudos de parentesco4, como em Systems of Consangunity and Affinity of the
Humain Family, de Morgan (1871).
Parte substancial da análise de Schneider (2016) sobre as representações eu-
roamericanas do parentesco toca nesta base “ocidental” e “biológica” imputada
às relações de parentesco. Tendo o sangue como um dos principais expoentes, o
autor nos chama a atenção, através das terminologias do parentesco americano,
para a proeminência do sangue e da noção de consanguinidade no vocabulário e
nas formas de classificação das relações de parentesco.
Para o autor, o sangue é um divisor dentro do parentesco americano: “A regra
é muito simples. Uma pessoa é um parente se ela for relacionada por sangue ou
por casamento, e se essa relação for próxima o suficiente (ou não for distante de-
mais) (SCHNEIDER, 2016: 74)”. Assim, as relações são separadas entre aquelas
por afinidade, criadas a partir do casamento e aquelas resultantes do comparti-
lhamento do sangue, que contam com supostos vínculos biológicos. Sendo a “voz
do sangue” uma maneira de designar e compreender as relações de parentesco,
Sangue e suas partículas
esta relação também designa outro aspecto: “relação de sangue é, portanto, uma
CARUSO, Juliana P. Lima.
3 Tradução do autor: «La parenté euro-américaine est bien connue pour la place essentielle qu’elle accorde à la métaphore
du sang» (HOWELL, 2009: 331)
4 Importante sublinhar, como bem nos lembra Eideiman (2007) que os “fundadores” da disciplina e dos estudos de pa-
rentesco sustentavam importantes discussões sobre o caráter biológico ou social do parentesco: “ Se todos os fundadores
da antropologia do parentesco concordam em fazer desta área um domínio social a parte, a oposição é forte entre aqueles
que pretendem cortar radicalmente o caráter biológico da reprodução humana (como Émile Durkheim ou William Ri-
vers), aqueles que a entendem como expressão direta do reconhecimento dos laços de sangue (como Lewis Morgan), ou
ainda, aqueles que a consideram como interpretação cultural dos fatos biológicos (como Bronislaw Malinoski). [Tradução
do autor]«Si tous les fondateurs de l’anthropologie de la parenté s’accordent à faire de cette dernière un domaine social
à part, l’opposition est forte entre ceux qui entendent la couper radicalement du caractère biologique de la reproduction 39
humaine (comme Émile Durkheim ou William Rivers), ceux qui en font l’expression directe de la reconnaissance des
liens du sang (comme Lewis Morgan), ou encore ceux qui la considèrent comme l’interprétation culturelle de faits
biologiques (comme Bronislaw Malinowski).» (EIDEIMAN, 2007: 11)
de substância e código de conduta que aqueles que compartilham a coisa verme-
lha, os parentes de sangue, devem ter” (SCHNEIDER, 2016: 123). Se o sangue
tem seu lado metafórico, enquanto substância, para Schneider ele também pode
ser uma “coisa material”, sendo, por consequência, uma “entidade natural”. Nos
estudos de parentesco, os autores pós-schneiderianos passam a reservar uma
atenção especial a substâncias, ampliando tanto a discussão sobre as relações que
elas atravessam, assim como as que elas criam e transformam.
Diversas abordagens que relacionam substâncias e parentesco afloraram nas
últimas décadas, sendo que nem todas estavam diretamente inspiradas pelo pen-
samento de Schneider. Em 2015, a partir de algumas questões encontradas numa
pesquisa realizada durante 2013-2014, iniciei5 uma reflexão sobre a questão das
substâncias no parentesco e alguns diálogos possíveis entre diferentes autores.
Entre estes, Françoise Héritier (1996), e sua proposta de um incesto de segundo
tipo, cuja principal característica, em oposição ao de primeiro tipo6 – além do fato
deste não ser universal-, seria “a circulação de fluídos de um corpo a outro”7. Im-
porta neste caso o fluído e o corpo. Os corpos que contenham o idêntico8 quando
entram em contato, ou quando são colocados em conexão através de um terceiro,
como no exemplo duas irmãs que compartilham um mesmo parceiro, são mais
propensos aos perigos do incesto de segundo tipo. Este incesto vai além de uma
proibição que recaí apenas sobre uma posição genealógica específica que impedi-
ria relações sexuais e matrimoniais com determinados parentes e engloba os “hu-
mores” dos corpos. Dos fluídos elencados pela autora, a partir de exemplos reti-
rados da Bíblia, do Corão e da Talmud, assim como da sua etnografia entre os
Samo, destacam-se o sangue, o leite e o esperma como possíveis causadores “do
acúmulo de idênticos” justificando assim, as interdições matrimoniais que visam
evitar essas e outras consequências (HÉRITIER, 1996: 276).
Na pesquisa mencionada, eu estava particularmente interessada na tríade
“leite, sangue e esperma”, que figuram como substâncias frequentemente citadas
ACENO, 7 (14): 37-54, maio a agosto de 2020. ISSN: 2358-5587
5 Ver Caruso (2015), “Consubstancialidade, sangue e parentesco: algumas reflexões sobre as substâncias”. Congresso XI
RAM (Reunion de Antropologia del Mercosur), Montevideo-Uruguai.
6 Para Héritier, o incesto de primeiro tipo seria aquele definido por Claude Lévi-Strauss (2009/1949). Ver As Estruturas
elementares do parentesco.
7 Héritier: “A existência de um incesto de segundo tipo nos leva a conceber a proibição do incesto como um problema de
circulação de fluídos de um corpo a outro. O critério fundamental do incesto é colocar em contato humores idênti-
cos”. (“L´existence d´un inceste de deuxième type nous conduit à concevoir la prohibition de l´inceste comme un
problème de circulation de fluides d´un corps à l´autre. Le critère fondamental de l´inceste c´est la mise en contact
d´humeurs identiques”.) (HÉRITIER, 1994: 11, tradução do autor)
8 Fine (2013) sintetiza o incesto de segundo tipo de Françose Heritier como: « A proibição do incesto se torna então um
problema de circulação de fluídos entres os corpos, seu critério fundamental sendo o contato entre humores idênticos. Ter
relações sexuais com a irmã da esposa é colocar em contato duas irmãs ao transportar os humores sexuais de uma ao útero
da outra. Esta teoria afirma a primazia do simbólico. Simbólico ancorado naquilo que existe de mais físico na humanidade,
à saber a diferença anatômica dos sexos”. (« La prohibition de l’inceste devient alors un problème de circulation des
40 fluides entre les corps, son critère fondamental étant la mise en contact d’humeurs identiques. Avoir des relations
sexuelles avec la sœur de sa femme, c’est mettre en contact les deux sœurs en transportant les humeurs sexuelles de l’une
dans la matrice de l’autre. Cette théorie affirme le primat du symbolique, « symbolique ancré dans ce qu’il y a de plus
physique dans l’humanité, à savoir la différence anatomique des sexes».) (FINE, 2013: 99, tradução do autor).
and Relationality: blood in contexts, Carsten (2011b) nos convida a imaginar
que, a priori, as substâncias podem ser todos os fluídos e tecidos corporais,
abrindo um espaço para considerar ossos, unhas e cabelo como possíveis subs-
tâncias apesar de que, como a autora explica mais adiante em seu artigo, a mate-
rialidade das substâncias no parentesco está de certa maneira atrelada às noções
de fluxo, transferência e da capa cidade de atravessar corpos, assim como os fan-
tasmas. Isso significa uma guinada na abordagem das substâncias, já que a am-
pliação da materialidade e do que pode ser considerado substância permite até
certo ponto repensar tanto como essas substâncias constroem e fazem parte das
relações de parentesco. Ao mesmo tempo, nos alertam para os eventuais etnocen-
trismos realizados em nome delas. Como Olivier Allard (2006) aponta através da
oposição entre o pensamento de Carsten e Godelier, existem diversas abordagens
sobre as substâncias nos estudos de parentesco. Analisando os trabalhos de Cars-
ten e Godelier, Allard comenta:
Janet Carsten escolheu consagrar um capítulo de sua obra à noção de “substância” e
aos papéis que ela desempenha no estudo do parentesco (pp.109-135), diferente de
Maurice Godelier que não considera essa noção como problemática. Ela ressalta com
fineza a diversidade de sentidos do termo na linguagem cotidiana, mas, igualmente nos
trabalhos antropológicos – da “substância biogenética”, fixa e permanente de David
Schneider (1980) até a substância “fluida” e “maleável” da qual E. Valentine Daniel
(1984) fala sobre a Índia. Observando os perigos que podem advir de tal variedade de
significados, Janet Carsten considera que é precisamente a fonte da utilidade do termo,
que desempenhou um papel fundamental na “ transformação de características adqui-
ridas em características dadas, e vice-versa” (p. 131), e que permitiu desestabilizar a
oposição entre o biológico e o social (p. 133). (ALLARD, 2006: 13, tradução do autor)9
Pode-se dizer que há certos riscos no emprego de forma engessada das subs-
tâncias – assim como de outras categorias - nos estudos parentesco. Isto é parte
da crítica de Olivier Allard (2006) sobre a forma como alguns autores tratam as
substâncias, sem um exame mais aprofundado da categoria e do lugar que ela
ocupa nas relações de parentesco. Torna-se imperativo neste ponto pensar os ca-
minhos e os possíveis equívocos que as abordagens e os usos da categoria subs-
tância podem levar e, ao mesmo tempo, as possibilidades que uma abordagem
mais ampla poderia oferecer aos estudos de parentesco.
Longe de estar próxima de sair desse labirinto no qual as substâncias e, em
especial, o sangue nos colocam, gostaria de refletir neste artigo sobre a homoge-
neidade e não homogeneidade fluídica das substâncias, em especial do sangue.
Através do sangue, pretendo observar as relações que fragmentos e partículas que
o compõe ou veiculam nesta substância poderiam contribuir para ampliar os de-
bates no campo do parentesco. Esta ampliação da substância a partir de seus múl-
Sangue e suas partículas
9 “Janet Carsten choisit de consacrer un chapitre de son ouvrage à la notion de « substance » et aux rôles qu’elle a joués
dans l’étude de la parenté (pp. 109-135), contrairement à Maurice Godelier qui ne considère pas cette notion comme
problématique. Elle souligne avec finesse la diversité des acceptions du terme dans la langue courante, mais également
dans les travaux anthropologiques – de la « substance biogénétique », fixe et permanente, de David Schneider (1980),
jusqu’à la substance « fluide » et « malléable » dont parle E. Valentine Daniel (1984) à propos de l’Inde. Tout en relevant 41
les dangers qui peuvent venir d’une telle variété de significations, Janet Carsten juge que c’est précisément la source de
l’utilité du terme, qui a tenu un rôle clé dans la « transformation de caractéristiques acquises en caractéristiques
données, et vice-versa » (p. 131), et qui a permis de déstabiliser l’opposition entre le biologique et le social (p. 133). »
doutorado10, foi realizada em sete comunidades tradicionais caiçaras e tratou das
relações de parentesco e identidade, problematizando sobre o sangue e as subs-
tâncias que o compõe e que o utilizam como veículo. Já na segunda pesquisa, em
curso, trata das relações de parentesco e de ancestralidade entre os moradores do
sul e do sudeste brasileiro, portadores de uma variante genética patogênica espe-
cífica, que podem desenvolver a síndrome de Li-Fraumeni. Deste projeto, pre-
tendo relacionar a ideia de partículas, fragmentos e transmissão como compo-
nente ou como inter-relação com as substâncias, ampliando suas possibilidades
de composição e decomposição do/no parentesco. Busco com isso, abrir espaço
nas reflexões futuras para dialogar a partir dessa partição de substâncias com o
parentesco e a ancestralidade.
A escolha do entrelaçamento desses dois exemplos foi de certa maneira ins-
pirada nos trabalhos de Carsten, mais especificamente no artigo intitulado “La
vie sociale du sang”. Janet Carsten (2011a), neste texto, traz reflexões e exemplos
etnográficos com os quais pretendo dialogar e que permitem pensar o sangue de
maneira mais ampliada, suas possibilidades, homogeneidade e heterogeneidade,
considerando as pequenas coisas que ele carrega.
10 A pesquisa de doutorado foi realizada dentro do programa de doutorado pleno no exterior da CAPES (Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de nível Superior), a qual eu agradeço por ter possibilitado a realização do doutorado na
EPHE-École Pratique des Hautes Études, assim como do trabalho de campo para a tese intitulada : “ De l´autre côté de
l´île: parenté et identité dans sept communautés caiçaras du sud-est brésilien.”.
11 “A questão de saber se pacientes muçulmanos podem ou não receber sangue de doadores não muçulmanos é particular-
mente sensível. Uma técnica de laboratório me disse que os malaios- que doam mais frequência nos hospitais públicos do
que nos hospitais particulares- pediam muitas vezes serem transfundidos do sangue doado por malaios, por causa da
proibição do consumo da carne de porco por muçulmanos. [Tradução do autor]. (Carsten, 2011:15) « La question de
42 savoir si les patients musulmans peuvent ou non recevoir du sang de la part de non-musulmans est particulièrement
sensible (Peletz 2002). Une laborantine me dit que les Malais – qui donnent plus souvent dans les hôpitaux publics que
dans les hôpitaux privés – demandaient souvent à être transfusés avec du sang donné par des Malais, à cause de la
prohibition de consommation du porc pour les musulmans ».
familiar?
Durante a minha primeira pesquisa (CARUSO ,2017), encontrei uma situação
que remetia aos questionamentos de Carsten sobre o sangue e na qual a presença
do porco e de outros alimentos no sangue era importante. Esta primeira circuns-
tância deu origem a reflexões sobre a não homogeneidade fluídica do sangue as-
sim como o entendimento dessas pessoas sobre a fragmentação e a presença de
outros componentes das/nas substâncias.
Ao longo do levantamento genealógico, algumas mulheres falavam sobre seus
partos, comentando se eles tinham acontecido na localidade em que habitavam
com o auxílio de alguma parteira12 (na época, apenas duas parteiras estavam vivas
e, devido à idade avançada, já não faziam mais partos) ou se os partos ocorreram
em hospitais de forma natural ou cesariana. Interessada nestas experiências e na
relação das interlocutoras com a biomedicina, comecei a perguntar mais sistema-
ticamente sobre os partos e a conversar com as parteiras de duas comunidades.
Foi durante a fala de Joaquina que outro aspecto ligado ao nascimento me cha-
mou atenção. Joaquina, com seus quase 50 anos, contou-me que o parto dos pri-
meiros filhos aconteceu em casa, com ajuda das parentes, mas que no último,
devido a algumas complicações, teve que ir ao hospital. Além das violências obs-
tétricas, Joaquina estava incomodada com o impedimento, ao longo de sua per-
manência no hospital de seguir a “dieta”, leia-se as prescrições e restrições de ali-
mentos classificados como “mansos” ou “fracos”, que podem ser consumidos em
todas as ocasiões, e os “carregados” ou “fortes” que, de maneira oposta, devem
ser evitados em algumas circunstâncias.
É possível encontrar diversos trabalhos na Antropologia sobre interdi-
ções/tabus alimentares, principalmente sobre alimentos ditos “reimosos”. São
geralmente referenciados como práticas mais encontradas nas regiões norte, nor-
deste e central do Brasil, cujas interdições são indicadas tanto para o período do
puerpério, ou “resguardo”, como em outras situações de convalescença em ho-
mens, mulheres e crianças (MOTTA-MAUÉS e MAUÉS, 1978; CANESQUI, 1988;
PEIRANO, 1975; SILVA, 2007; WOORTMAN, 2008). Seguindo esses autores, os
alimentos reimosos estão em oposição aos mansos, e quando ingeridos nos perí-
odos de doença e pós-parto podem causar efeitos nefastos diversos. Apesar da
proximidade da noção de alimentos ditos reimosos, nas localidades estudadas en-
contrei algumas singularidades importantes. Além desses alimentos serem clas-
sificados principalmente como mansos/carregados, eles devem ser evitados de
forma diferente entre o puerpério e outras situações de convalescença13.
Para mulheres, homens e crianças feridos ou enfermos, deve-se evitar a in-
gestão dos alimentos carregados pois podem agravar o quadro, infeccionar as fe-
Sangue e suas partículas
12 Algumas mulheres relataram terem recebido o auxílio de uma parente (consanguínea ou por aliança) ou contaram com
a ajuda de uma vizinha. Em alguns desses casos, isso aconteceu pelo fato de suas comunidades não possuírem uma par-
teira e, em outros, foi uma escolha pessoal. 43
13 É importante ressaltar que, com a regularidade das visitas de esquipes de saúde e do contato com biomédicos, as mu-
lheres mais jovens que optam pelo parto em ambiente biomédico estão cada vez menos seguindo a dieta, transmitida pela
mãe ou sogra, assim como outras restrições relacionadas ao período gestacional.
onde ela anotava o que comeu para cada um dos 4 filhos. Sobre isso, propus que
esse consumo alimentar no puerpério, obedecendo a mesma sequência para to-
dos os filhos, poderia ser entendido como uma forma de reforçar substancial-
mente a construção da germanidade. Para outras mulheres, o importante era in-
gerir a carne de frango no primeiro dia, contando que, na hora em que entravam
em trabalho de parto, alguém já se preparava para “matar a galinha” e que após,
no segundo dia, comeriam um “peixinho manso”. Somente depois de algumas se-
manas que os alimentos classificados como “carregados”14 poderiam ser reintro-
duzidos gradualmente, de forma segura. Esta mesma reintrodução alimentar foi
notada de maneira análoga por Mariza Peirano (1975) em seus estudos em uma
comunidade de pescadores em Icaraí, no Ceará e por Raquel Scopel (2014), entre
os Munduruku no estado do Amazonas.
Cada uma das sete comunidades estudadas apresentava divergências sobre
quais peixes ou alimentos eram mais ou menos “carregados”, diferenças que tam-
bém podem se manifestar no interior de uma mesma localidade, variando de fa-
mílias para família. No entanto, a “lista” do que deve ser evitado era em geral
uníssona. Os alimentos “carregados” são: carne de porco, peixes com dentes, pei-
xes cuja carne tivesse muito sangue e alguns peixes com escamas, sendo os peixes
espada, bonito, enchova e cação os mais citados. Frutos do mar, como camarão e
lula, também são elencados como carregados, ao lado dos ovos (de galinha e pata)
e da carne de pato. Quando questionados sobre o que seria o que o “carregado”
em si, alguns interlocutores responderam que é uma espécie de óleo que entra no
corpo e permanece no sangue, misturando-se a ele. Os efeitos adversos da pre-
sença do carregado no sangue das pessoas podem ser vistos através do próprio
sangue15, como por exemplo o “desmando” que, nas mulheres, é descrito como
uma hemorragia mortal.
Os peixes e as carnes consideradas carregadas possuem um traço em comum:
são carnes descritas como contendo muito sangue, carnes “escuras” ou de ani-
ACENO, 7 (14): 37-54, maio a agosto de 2020. ISSN: 2358-5587
mais cujos hábitos alimentares são carnívoros. Pode-se evitar o “desmando”, fa-
zendo uso de antídotos contidos no próprio alimento portador do “carregado”: no
caso dos peixes carregados, os ossos deles e outras partes sólidas devem ser tor-
rados, transformados em pó e ingeridos. O mesmo se aplica para os ovos, cuja
Dossiê Temático: O que carrega o sangue?
casca também passa por trituração após ser assada para ser consumida. As partes
duras do ser devem ser fragmentadas e sofrerem fusão para adentrarem o corpo,
podendo equilibrar ou neutralizar as porções moles e líquidas antes consumidas
do mesmo e que se tornam perigosas à vida.
À primeira vista, não cabe olhar neste caso para os efeitos nefastos do contato
e transmissão de substâncias a partir da perspectiva formulada por Françoise Hé-
ritier (1994) como a “mecânica dos fluídos” – como no problema do “acúmulo do
idêntico” - apoiada em Aristóteles (HÉRITIER, 1994: 286-303). Não pelo es-
quema em si, mas por não contribuir a escapar do modelo da escola “hipocrática
dos fluídos e dos humores”16, que fundamentou e, de acordo com Rezende
14 Batistoni (2006), em sua pesquisa de Ecologia Humana realizada dez anos antes e em uma das comunidades por mim
estudadas, também encontrou uma regularidade na lista dos alimentos considerados carregados.
15 Como Carsten (2011a: 24) nos lembra, o sangue tem “três características que favorecem sua extensão metafórica”: 1-
“ele é visualmente impressionante”; 2-pode estar dentro e fora do corpo; 3- “pode ser associado à vida e a cessação dela”.
Além disso, em outro artigo, Carsten (2011b) atribuí ao sangue a possibilidade de que “algumas metáforas são mais meta-
fóricas que outras”. Dessa consideração, parte que o sangue tem uma “extensão metafórica por algumas características”,
tais como: sua “relação com a vitalidade”; um “papel multifacetado na capacidade de ser metáfora e metonímia” além de
que, ele também pode ser um “veículo para a elaboração de ideias sobre o parentesco”.
44 16 A partir de um modelo quaternário, a escola hipocrática levava em consideração o equilíbrio dos quatro humores. “O
conceito de humor (khymós, em grego), na escola hipocrática, era de uma substância existente no organismo, necessária
à manutenção da vida e da saúde” (REZENDE, 2009: 50). Estes humores eram divididos em quatro substâncias: sangue,
fleuma, bile amarela e a bile negra.
(2009), ainda tem seus ecos na biomedicina moderna ocidental. De certa forma,
esse esquema dos humores e fluídos, inspirado nos filósofos gregos, com maior
ou menor intensidade transpassa muitas das teorias e interpretações das subs-
tâncias no parentesco17. Meu esforço tem sido o de considerar uma ampliação das
possibilidades, acatando, como Carsten (2011b) sugere, a fungibilidade e trans-
missibilidade das substâncias, assim como elementos diferentes que uma subs-
tância pode conter, singularizando-a contextualizando-a. Um sangue pode conter
o carregado, a reima, partículas de LDL, HDL, ancestralidade, memória e perso-
nalidade (MARQUES, 2002) além de outras substâncias e partículas cujas possi-
bilidades combinatórias são ainda mais decisivas. Isso permite considerar os os-
sos, as unhas e o cabelo, assim como as partes duras, os tecidos e não apenas os
fluídos como parte do rol das substâncias, como sugere Janet Carsten. Mas, será
que nanopartículas, como variações patogênicas no DNA, também podem ser
consideradas como uma espécie de substância? São partículas que o sangue tam-
bém carrega?
tes uma variação patogênica que predispõe a uma síndrome rara conhecida como
a síndrome Li- Fraumeni.
Esta síndrome, de Li-Fraumeni, foi descoberta no final da década de sessenta
pelos médicos Frederick Li e Joseph Fraumeni que identificaram esta variação
patogênica no gene TP53. Sendo este gene “o maior supressor de tumores” em
17 Esta questão também faz um paralelo com a comensalidade, sistema de residência e outros aspectos do parentesco que
foram trabalhados conjuntamente no quinto e sexto capítulo da minha tese, onde discuti este problema de forma mais
exaustiva. 45
18 Original: “Like a sort of life-force transmitted from one person to another, DNA sequences are the ancestral traces of
connections between the generations, material evidence of the fact that features exist only as the outcome of relation-
ships.”
não-humanos e em humanos, “a principal característica da síndrome está no de-
senvolvimento de múltiplos tumores19 nos portadores ao longo da vida”, “com
estimativas de que até 90% dos portadores desenvolverão algum câncer”
(ACHATZ et al, 2009; GIBBON, 2013). A Li-Fraumeni não é uma síndrome ex-
clusiva do Brasil, sendo encontrada em outros países, com sua ocorrência nas po-
pulações atingidas, de acordo com Achatz (2007) de 1:5000. Já no caso brasileiro,
como a autora ressalta, a Li-Fraumeni apresenta uma particularidade: sua preva-
lência é de 1:300 especialmente nos estados do sul e do sudeste brasileiros. No
Brasil,esta síndrome também está relacionada a outra especificidade, que é a exis-
tência de uma variante patogênica singular que tem sido atribuída a um mesmo
ancestral apical20, ou seja, o ancestral mais remoto que as pessoas com a mesma
variante patogênica compartilham. A hipótese dos geneticistas e dos oncogeneti-
cistas21, é a de que um tropeiro teria sido este ancestral apical, explicando assim
a distribuição geográfica dos casos nas regiões sul e sudeste, principalmente nas
cidades que faziam parte do percurso realizado pelos tropeiros (ACHATZ, et al
2007; GARRITANO et al 2009).
Um dos meus interesses principais com a atual pesquisa é pensar as relações
de parentesco, de solidariedade e de amizade que se estabelecem entre os porta-
dores através da descoberta desta síndrome, com uma atenção especial para essa
variação patogênica específica. Um primeiro lugar de encontro entre eles é atra-
vés da Associação, que está ligada às outras associações da mesma Síndrome pelo
mundo. A associação tem como objetivo reunir, amparar e informar os portado-
res e familiares sobre a síndrome, assim como promover as reuniões, que acon-
tecem no mínimo uma vez por ano na cidade de São Paulo. Ela integra pacientes,
familiares, biomédicos, pesquisadores e profissionais da saúde visando o diálogo
e fomentando novas pesquisas. Na antropologia, há uma importante trajetória de
estudos com associações e coletivos de pacientes e familiares (RABEHARISOA e
CALLON, 2002; ROSE, 2013; GRUNDZENSKI, 2013; AURELIANO, 2018;
ACENO, 7 (14): 37-54, maio a agosto de 2020. ISSN: 2358-5587
GIBBON, 2011; GIBBON et al., 2012; VALLE, 2013) mostrando que as associa-
ções, além de oferecerem uma rede de apoio e ativismo, possibilitam também a
“socialização do paciente e da doença” (RABEHARISOA, 2006: 567-8).
No caso da síndrome de Li-Fraumeni, não é apenas a Associação que estabe-
Dossiê Temático: O que carrega o sangue?
19 Segundo Birch et al (1994), os tumores incluem nos casos das crianças, câncer adrenal e no cérebro; para os adolescentes
e jovens adultos são comumente observados sarcomas ósseos e nos tecidos moles e nos adultos, câncer de seio, fígado e
pulmão.
20 De acordo com o glossário de parentesco publicado pela revista l´Homme (2000), a definição de ancestral apical, “l´an-
cêtre apical” é o “ancestral da geração mais antiga que um ou mais indivíduos têm em comum; o ancestral de referência.”
[Tradução do autor] (L´HOMME, 2000: 722). (Original)“Ancêtre de la génération la plus ancienne qu’ont en commun
deux ou plusieurs individus ; l’ancêtre de référence.”
21 Gibbon (2013) chama atenção para o nascimento e fortalecimento do campo da oncogenética no Brasil, especialmente
vinculado aos grupos de pesquisa estrangeiros interessados nas “particularidades” que a população brasileira, em razão
46 de sua composição oferece.
22 Gibbon e Novas (2008) sublinham, sobre o conceito de biossocialidade, que existem “três principais frentes”, sendo elas
“o reenquadramento da discussão natureza/cultura; emergência das práticas identitárias e abordagem heurística para
examinar os novos desdobramentos da investigação científica” (GIBBON e NOVAS, 2008:12)
Seguindo o autor:
É o que eu compreendo por biossocialidade. Eu não discuto a hipótese de um gene da
agressão ou do altruísmo. Mas, não é difícil imaginar um grupo formado em torno do
cromossomo 17, com uma variante de alelo no lugar 16 256 ao invés do 654 376 e uma
substituição de guanina. (RABINOW, 2010: 19, tradução do autor)23
Para Monteiro (2007), essas noções fazem parte das “traduções do corpo
para termos moleculares e genéticos”. Tais fragmentações, que surgem dos avan-
ços da biologia molecular, como os testes genéticos e os biomarcadores, influen-
ciam nas formas de compreender identidades, corpo, risco, predisposição. Além
disso, e mais importante para essa discussão, a genética moderna não afeta so-
mente o indivíduo, sendo um exemplo as novas abordagens sobre o parentesco,
identidade e as relações com os ancestrais. Kaja Finkler (2001) mostra que o pa-
rentesco americano – ou euroamericano –, por tratar-se de um sistema de des-
cendência bilinear, aceitou bem as noções de transmissão e hereditariedade pre-
conizadas pela biomedicina e genética moderna. Para autora, a bilinearidade teria
um papel facilitador na “medicalização das famílias”, que passam, a partir do
pressuposto do parentesco biológico e da transmissão, a considerar “históricos
médicos familiares” e variantes patogênicas transmissíveis nas consultas. Mas,
igualmente, na busca por contato e informações, as famílias passam a reunir seus
membros em torno da ideia de risco e predisposição genéticas à doenças.
Esta habilidade que o DNA possui para reagrupar e socializar pessoas com
Sangue e suas partículas
CARUSO, Juliana P. Lima.
23 Original: « (…). C’est ce que j’entends par biosocialité. Je ne discute pas l’hypothèse d’un gène de l’agression ou de 47
l’altruisme. Mais il n’est pas difficile d’imaginer un groupe formé autour du chromosome 17, avec une variante d’allèle
au lieu 16 256, site 654 376 et une substitution de guanine.»
nética e, especialmente, concordo que o DNA pode ser uma partícula aglutina-
dora de parentesco, de biosocialidade e de fragmentos de memória e história fa-
miliar, tal como outros autores, como Rabinow, já aventaram. Contudo, neste
atual exercício de considerar o conteúdo genético (genes, variações patogênicas,
DNA) enquanto substância, diferentemente de Finkler, eu avento aqui a hipótese
que ele não teria um esvaziamento, sendo seu conteúdo mutável e maleável den-
tro do parentesco. Seriam partículas que transbordam em substância, que as
compõe e que são mutáveis segundo as possibilidades de relacionalidade com ou-
tras substâncias, comensalidade, emoções e imaginação, por exemplo. Não se se-
param do sangue e outros fluídos, nem como substância biogenética ou metáfora.
Algumas pistas nesta direção podem ser encontradas em um trabalho de Sarah
Gibbon (2013) sobre câncer hereditário no Brasil. Neste artigo, contemplando
tanto interlocutores com casos na família ou mesmo portadores de Li-Fraumeni
e de outras variantes que predispõe ao câncer, como BRCA1 e BRCA2, Gibbon
observa que a noção de risco e de predisposição ao desenvolvimento da doença
ou de herdar a variante passam por outras variáveis. Alguns interlocutores liga-
ram, por exemplo, o risco genético com um trauma que ancestrais teriam pas-
sado. Outros, consideraram importantes fatores como somatização, ansiedade e,
até mesmo, figuram alimentação e outras práticas que interfeririam na transmis-
são e herança de tais genes.
Estes conceitos me levam a pensar que as relações de parentesco no caso da
síndrome de Li- Fraumeni no Brasil podem ser um espaço privilegiado para apro-
fundar mais os estudos sobre transmissão (hereditariedade, características e va-
riantes), memória genealógica e genética, além da noção de substância. Uma das
hipóteses que permeia a reflexão sobre o parentesco nesta síndrome é que, dife-
rentemente de outras variantes patogênicas hereditárias já estudadas, igual-
mente responsáveis pelo câncer genético, como por exemplo BRCA1 e BRCA2, no
caso brasileiro, há a presença de um ancestral apical comum para os portadores.
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Considerações finais
É possível considerar que muitas coisas transitem e sejam incorporadas ao
sangue, sejam elas substâncias que remetem ao parentesco – que vão além da-
quelas biogenéticas –, ou nas plurais materialidades e metáforas que ele pode
carregar. Esta tem sido minha busca, em que o “carregado” no sangue e as vari-
antes patogênicas se entrelaçam embasando meus questionamentos sobre o pa-
rentesco sem uma homogeneidade fluídica do sangue. A forma como ele “corre”
e como transmite; as formas e elementos que transitam dentro podem ser subs-
tâncias e componentes dessas substâncias. Talvez neste ponto, deva considerar a
presença da variante patogênica de forma próxima da polissemia do sangue e do
DNA que Leal (2014) nos mostra, em que o sangue ocupa um lugar “equivalente
da genética, tratado como substância corporal, uma fonte biomédica e também
metáfora” (LEAL, 2014: 231-2). Sangue e DNA, enquanto substâncias que podem
conter frações e componentes e, ao mesmo tempo, serem frações e componentes,
nesta ambivalência permitem, de certo modo, através desta retro-interação, múl-
tiplas formas de elaborar e pensar o parentesco.
Para alguns autores, o sangue vai ceder lugar ao discurso da biologia molecu-
lar moderna e da biomedicalização do parentesco. Esta é a posição de Howell
(2009), que aposta na substituição gradativa dos saberes biogenéticos sobre as
metáforas e alusões à filiação. Finkler (2001), falando da diferença da substância
biogenética e do DNA mostra que se trata de uma passagem do “visível para o
invisível”. No entanto, como mencionado anteriormente sobre as características
do sangue para Carsten, o DNA não é vermelho, nem impressionante e nem de
fácil visibilidade – ao menos a olho nu – tal como o sangue é. Se de certo modo
ele escapa – ao menos até o momento – de ser associado com sendo composto ou
interagindo com outros pares, como o sangue dos peixes ou da carne do porco
que pode participar do sangue das pessoas, por outro, ele permite tal como o san-
gue a possibilidade de ser imaginado em partes e componentes. É importante
lembrar que ambos – sangue e DNA – têm a mesma potência de ligar o presente
com o passado, sendo metáforas e materialidades para a ascendência, identidade
e pertencimento. Possivelmente, podem ser compostos e fragmentários enquanto
substâncias.
Este artigo, buscou realizar um exercício de imaginação que está longe de ser
conclusivo. Ainda falta muita etnografia para saber se as partículas e outros pe-
daços de materiais e imateriais no sangue – do carregado às variantes patogêni-
cas- somam-se às substâncias no parentesco. Gosto de pensar que estou procu-
rando um parentesco “particular” em substâncias não-homogêneas, em que nano
Sangue e suas partículas
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Dossiê Temático: O que carrega o sangue?
Desafios em torno do sangue
na produção de corações artificiais
Marisol Marini1
Universidade de Campinas
1Doutora em Antropologia Social pela USP. Atualmente desenvolve pesquisa de pós-doutorado na Unicamp. Integra os
grupos de pesquisa: NUMAS – Núcleo de Estudos dos Marcadores Sociais da Diferença, LAPOD - Laboratório de Estudos
Pós-Disciplinares e GEICT – Grupo de Estudos Interdisciplinares em Ciência e Tecnologia.
Desafíos relacionados con la sangre en la
producción de corazones artificiales
Resumen: Mantener la sangre en circulación es vital para los cuerpos. Sin embargo,
existen situaciones en las que la circulación se ve comprometida, como es el caso de
la insuficiencia cardíaca avanzada, una condición patológica asociada a una alta tasa
de mortalidad. En este caso, es necesario reemplazar el órgano enfermo o utilizar
dispositivos de asistencia circulatoria, conocidos como corazones artificiales. Uno
de los mayores desafíos en el desarrollo de tecnologías auxiliares, que promueven la
circulación mecánica, está asociado con la perfusión y distribución de la sangre por
todo el organismo de manera armónica, cuyo objetivo es la preservación de las célu-
las sanguíneas. En este sentido, algunas de las preguntas que surgen en el escenario
actual de desarrollo de corazones artificiales son: ¿Cómo reemplazar “artificial-
mente” la función de bombeo cardíaco de manera efectiva sin actuar como un “li-
cuadora de células”? ¿Cómo realizar mecánicamente la perfusión de células, imi-
tando mejor la fisiología nativa/ideal? Son entonces los desafíos que se presentan
para obtener una buena circulación mecánica, que se relaciona con las formas de
entender la sangre y el cuerpo como un sistema, y /o como una máquina, los que
abordará ese artículo. De igual manera, los riesgos asociados a la extrapolación del
borde cutáneo, tan ficticio e igualmente real, y los desafíos de mantener la circula-
ción (auto)contenida, en situaciones donde la sangre se escapa de las disciplinas, los
que aquí serán explorados. Estos temas serán investigados a la luz de teorías y enfo-
ques interesados en la materialidad y centralidad de las prácticas socio-materiales,
de laboratorio y clínicas a través de las cuales emergen tales dispositivos/cuerpos.
with a high mortality rate nowadays, it is necessary to replace the diseased organ, or
add circulatory assistant devices, known as artificial hearts. One of the biggest chal-
lenges in the development of auxiliary technologies, which promote mechanical cir-
culation, is associated with the perfusion and distribution of blood throughout the
body in a harmonic way, in order to preserve blood cells. Some of the questions that
arise in the current scenario of developing artificial hearts are: how effectively and
artificially replace the function of cardiac pumping without acting as a “cell
blender”? How to mechanically perform the perfusion of cells to better mimic the
native/ideal physiology? It is the challenges about good mechanical blood distribu-
tion – which relates to ways of understanding blood and the body as a system, a
machine – that the article will address. It is the risks associated with the extrapola-
tion of the skin border, so fictitious and at the same time so real, and the challenges
of maintaining the (self)contained circulation, in situations where blood escapes
from disciplining, which will be explored here. Such problems will be investigated in
the light of theories and approaches interested in the materiality and centrality of
socio-material, laboratory and clinical practices through which such devices/bodies
emerge.
2 A presente reflexão é decorrente do paper apresentado no GT “O que carrega o sangue? Elaborações em torno do sangue
e seus potenciais produtivos”, do qual resulta o dossiê. Agradeço às pessoas presentes naquela ocasião pelo diálogo, so-
bretudo à Juliana Caruso e Carolina Portela pela parceria e por todas as trocas e fluxos. Agradeço também aos dois ótimos
pareceres que o artigo recebeu no processo de avaliação para a publicação, assim como a leitura cuidadosa da Joana Cabral
de Oliveira, que motivaram ótimas reflexões.
3 Joana Cabral de Oliveira me provocou a pensar se a multiplicidade do sangue que corre dentro das veias é constitutiva,
que não podem de saída serem aprisionados nos polos da natureza ou da cultura.
Interessa-me pensar aqui a concepção de atividade distribuída, defendendo
a redistribuição da capacidade de (inter)ação entre humanos e não-humanos. Se
no experimento “Pasteur age para que a levedura aja sozinha” (LATOUR, 2001:
Dossiê Temático: O que carrega o sangue?
151), é porque o foco da atenção está na atividade laboratorial disparada pelo ci-
entista. Para Latour, “um experimento é um ato realizado pelo cientista para que
o não-humano apareça por si mesmo”. E quanto mais o cientista desenvolve o
procedimento, quanto mais Pasteur trabalha, sugere Latour, mais independente
se torna a substância que ele manipula.
É claro que a potência de ação que tem como ponto de partida a atuação de
cientistas se deve à observação de atividades laboratoriais entendidas como dis-
4 É preciso também questionar a compreensão de certa preeminência da visão entre os sentidos humanos. Ingold (2008)
destaca que para indagações próprias de uma ciência positivista, a visão pode ser tomada como um sentido superior. Em
contraste com a audição, que personifica, à visão é atribuída capacidade de objetificar. Entretanto, o caminho visual para
a verdade objetiva é pavimentado de ilusões, como ele sugere. Além disso, ao tentar lidar com a questão de como as pessoas
percebem o mundo à sua volta Ingold problematiza as concepções de Descartes sobre os sentidos, vistos por ele como uma
faculdade puramente cognitiva. Para Descartes o ato da percepção se divide em dois estágios, o primeiro que leva de um
encontro físico com um objeto a um padrão de estímulo nervoso no cérebro e o segundo que leva desses impulsos nervosos
a uma consciência mental do objeto na linha de visão do perceptor. Assim, a essência da visão residiria não no funciona-
mento dos olhos, mas antes nas operações da mente sobre o que é levado a ela pelos sentidos. No entanto, para Ingold, o
processo de visão não consiste em uma radiação incidente que termina como uma imagem mental, mas sim em um pro-
cesso interminável de engajamento exploratório dialógico entre o perceptor e seu ambiente. Ingold considera que deverí-
amos deixar de pensar na percepção como a atividade computacional de uma mente dentro de um corpo e vê-la como uma
58 atividade exploradora do organismo dentro de seu ambiente, superando, desse modo, uma lógica que opõe representação
mental à sensação corporal que, em sua opinião, reifica os sentidos como aspectos de uma natureza humana universal. Ao
dissolver a fronteira entre o eu e o mundo, interior e exterior, Ingold pretende superar o dualismo cartesiano e dissolver
o “grande divisor” entre sociedades ocidentais e não-ocidentais.
paradas por humanos. Essas podem ser situações em que os não-humanos rea-
gem às atuações humanas, às vezes de maneira inesperada e imprevista, impondo
desafios aos pesquisadores que disponibilizam seus corpos e habilidades. Mas
nem sempre há humanos participando das relações. Os não-humanos podem
também exercer sua identidade, ainda que não permanecendo nela, como toda e
qualquer existência, como sugere Merleau-Ponty (2000). Em sua elaboração,
trata-se de uma exigência ontológica ultrapassar a oposição abstrata entre o “ser”
e o “nada”. Nesse sentido, “ser” não significa permanecer na identidade, mas criar
e abrir espaço para sua própria "espessura” e “profundidade” (MARTINS, 2010)5.
Desse modo, “ser” não é um atributo de humanos, que se caracterizam como um
dos sujeitos com os quais é possível associar-se, mas não os únicos.
O protagonismo e atenção dada ao sangue é decorrente da abordagem teó-
rico-metodológica que informou o desenvolvimento da pesquisa, interessada nas
práticas e na materialidade emergente nas relações. Desse modo, o foco nas prá-
ticas por meio das quais os corpos emergem permitiu avançar na compreensão
das relações instituídas na e para a produção de corações artificiais. Em linhas
gerais, o intuito da pesquisa foi descrever e analisar os aspectos práticos, materi-
ais, os eventos por meio dos quais as cardiopatias, os dispositivos mecânicos, as
soluções para a insuficiência cardíaca e os corpos tornam-se parte do que é feito
na prática laboratorial, cirúrgica e clínica. Atentar para as práticas por meio dais
quais emergem os objetos/fenômenos, permite destacar que a ontologia não é
dada na ordem das coisas, mas ontologias são trazidas à existência (Mol, 2002) e
são sustentadas por práticas sociomateriais, de modo que a materialidade ocupa
um aspecto central na análise.
Alio-me às teóricas que propõe um feminismo orientado por objetos. A partir
de suas investigações a respeito de doenças cardíacas, por exemplo, Anne Pollock
5É preciso destacar que espessura e profundidade não correspondem a ideias sobre a matéria atribuídas a Descartes, como
substância corpórea constituída de comprimento, largura e espessura; extensa, uniforme e inerte – modelos que fornece-
ram a base para ideias modernas da natureza como quantificáveis, que estão presentes na geometria euclidiana e na física 59
newtoniana (COOLE e FROST, 2010). Não se trata desse modelo em que os objetos são discretos, se movem apenas no
encontro com agentes ou forças externas, numa lógica linear de causa e efeito. Mais do que possuir espessura e profundi-
dade, o que está em questão é a atuação, a (inter)ação, a habilidade de criar e ocupar espaço.
produtiva ao escopo da análise feminista. A metáfora de uma espécie de atividade
passiva do coração proposta por Pollock, ou seja, a atuação do órgão como sua
receptividade, como sua capacidade de se abrir, de abrir espaço para que a im-
pulsão do sangue ocorra, se articula à proposta de um feminismo centrado no
coração, como uma estratégia de resistência à redução do humano a um sujeito
cerebral, um contraponto a determinada neurociência e outros saberes que bus-
cam no cérebro explicações simplistas para o que/quem somos. Algo semelhante
se passa na argumentação de Jenny Slatman (MARINI, 2018), em sua sugestão
de pensar uma filosofia do corpo, cujo intuito é problematizar e confrontar a pro-
posição de uma filosofia da mente.
Além do enfrentamento ao reducionismo cerebral/mental, à dicotomia entre
corpo e mente, e os distintos dualismos6 sustentados na e pela modernidade, a
atenção à materialidade intenta recolocar o corpo nas cosmologias modernas. En-
quanto há quem anuncie seu fim7 ou obsolescência, apoio-me nas teóricas femi-
nistas interessadas na materialidade e em pensadoras associadas à fenomenolo-
gia, para reivindicar a dignidade do corpo (Serres, 2004). Nesse sentido, sugiro
que compreender o desenvolvimento de uma tecnologia cardíaca e as transfor-
mações promovidas no funcionamento do coração e do sistema circulatório per-
mite outras articulações do sentido do humano.
À abordagem do feminismo orientado por objetos (POLLOCK, 2015), à per-
formatividade pós-humanista (BARAD, 2003), à semiótica material (LAW,
2015), aos novos materialismos (COOLE e FROST, 2010) articula-se a perspec-
tiva da praxiografia (MOL, 2002) e da virada para a prática nos Estudos Sociais
de Ciência e Tecnologia, como, por exemplo, os desenvolvimentos da filósofa ho-
landesa Annemarie Mol. Em sua proposta de filosofia empírica, Mol (2002) pro-
põe colocar a prática em primeiro plano, descrevendo os processos por meio dos
quais os objetos são feitos.
Iluminar os processos de emergência de novos corpos, de tecnologias e seu
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6 Donna Haraway (2000), a partir do ciborgue procura problematizar os diversos dualismos, como as dicotomias entre
animal e humano, organismo e máquina, público e privado, natureza e cultura, homens e mulheres, primitivo e civilizado,
que, em sua opinião, estariam sendo “canibalizados” ou “tecnodigeridos” (nos termos de Zoe Sofia Sofoulis, citada por
Haraway). A ideia de ciborgue é um importante conceito que nos permite escapar de divisões ontológicas precipitadas.
7 Emily Martin destaca que o foco das análises no corpo pode ser explicado pelo fenômeno já evidenciado por Lévi-Strauss,
em Tristes Tópicos, a respeito do interesse na academia por objetos/sujeitos em vias de desaparecer. Nesse sentido, ela se
pergunta se uma das razões para o interesse em estudar o corpo não seria o diagnóstico de que vivemos mudanças funda-
mentais no modo como organizamos e experimentamos os corpos: “Some have claimed that the body as a bounded entity
is in fact ending under the impact of commodification, fragmentation, and the proliferation of images of body parts”
60 (MARTIN, 1992). Em seu diagnóstico vivemos o fim de um corpo e o início de um novo, por isso seu interesse é investigar
mudanças dramáticas e a transição de corpos adequados e concebidos nos termos da era Fordista de produção de massa
– corpos disciplinados e organizados para a eficiência – para uma era de acumulação flexível, de um corpo que colapsa o
espaço e o tempo, cujas respostas tornam-se cada vez mais flexíveis.
aqui prenunciados recorrerei a conteúdos diversos, aproximações inusitadas e até
fantasiosas.
dos músculos.
Trago os cnidários não para afirmar a existência de um parentesco evolutivo
entre as suas células musculares e a estrutura celular cardíaca humana. Os pró-
prios cientistas engajados em investigar as origens e linhas evolutivas das células
8A William Harvey é atribuída a descoberta da circulação sanguínea e a consequente centralidade do coração na anatomia
dos animais. Harvey formulou a circulação sanguínea seguindo a teoria desenvolvida por Cesalpino, médico e filósofo do
século XVI, que foi o primeiro a afirmar o movimento do sangue em direção centrípeta num circuito fechado, referindo-
se pela primeira vez ao termo circulação, porém no sentido de circulação química, e não física (mecânica). Desde a emer-
gência da concepção da circulação sanguínea, atribuída à William Harvey (1578-1657), o caráter receptivo do coração foi 61
obscurecido por seu argumento a respeito da atuação do sangue para a circulação, impulsionado pelo coração, visto, por-
tanto, como ativo, mas não no sentido que quer atribuir Pollock: ativo em sua passividade, cujo impulso seria possibilitado
pela abertura de espaço.
musculares e proteínas especializadas na contração ressaltam a dificuldade de
afirmar esse vínculo, dado que o processo evolutivo é bastante complexo e a se-
melhança estrutural não é uma relação forte o bastante para afirmar a origem
comum. São complexas as linhas que nos trazem até os nossos atuais corações,
músculos pulsantes pelos quais percorrem correntes elétricas capazes de gerar
impulsos que propagam o movimento do órgão e a circulação do sangue pelo
corpo. Não se trata de afirmar a pulsatilidade como um dado, e muito menos su-
gerir que a interrupção do fluxo pode representar uma transformação na espécie.
Inspirada nos Cnidários, o ponto é destacar a relação entre vida e movimento nas
ciências da vida, assim como problematizar a excepcionalidade humana en-
quanto espécie fechada, reconhecendo possíveis contribuições de outras espécies.
Segundo Apolo, pesquisador da bioengenharia a quem conheci no âmbito da
pesquisa de doutorado, fazer as coisas movimentarem é relativamente compli-
cado, tanto que os organismos humanos possuem dispositivos específicos para
essa tarefa – em referência aos neurônios motores, que tiveram que se especiali-
zar, porque criar movimento não é simplesmente trocar informação, mas trans-
formá-la em movimento. Em sua leitura de trechos da tese 9, Apolo relacionou o
movimento ao calor, sugerindo que: “O cérebro é frio, não pulsa, não se movi-
menta, não poderia nele encerrar as emoções humanas, que são tão ricas em
aquecer sensações no corpo e fora dele, que digam os amantes”. Se por um lado
cérebro e coração se assemelham por serem ambos órgãos elétricos, por outro
lado a geração de movimento, para além de troca de informação química e elé-
trica, é uma especificidade do coração. Não pretendo com essa descrição reforçar
a contraposição entre cérebro e coração, mas aproveitar o insight do Apolo sobre
os sentidos (inclusive poéticos) do movimento. Essas aproximações e distancia-
mentos entre cérebro e coração sugerem certa transitividade de gêneros presente
na manutenção e problematização da divisão binária entre eles, o que se espelha
nos binarismos razão e sentimento, informação e ação. Retornarei à transitivi-
ACENO, 7 (14): 55-76, maio a agosto de 2020. ISSN: 2358-5587
dade que os saberes biomédicos que operam nessa chave de ordenação dos siste-
mas os isolam e procuram apartá-los na tentativa de controlar a complexidade do
corpo, tornando possível sua manipulação. Não só há uma dependência entre os
sistemas, no entanto, como é preciso considerar que a atuação do sistema circu-
latório é condicionada no/pelo ambiente. O impulso gerado no coração, elétrico
e mecânico, se dissipa para o sangue, que percorre os vasos sanguíneos, até a
fronteira da pele, constituindo um sistema semiaberto (ou semifechado). Carac-
terizados como um sistema composto por um conjunto de subsistemas encerra-
dos em uma fronteira porosa e relacional, o corpo e a fisiologia nativa estão sujei-
tos às condições ambientais. Uma evidência é a convenção relativa à pressão san-
guínea considerada padrão, que é uma medida que varia em relação à pressão
atmosférica.
As patologias são também evidências do modo como o coração se constitui
no e pelo ambiente. Se um órgão tiver demandas maiores do que aquelas para as
quais as suas estruturas nativas foram moldadas, ele responderá, adequando-se
às condições. Se a necessidade e disponibilidade de sangue for maior do que a que
62
9Meses antes de entregar a tese, eu submeti capítulos preliminares a alguns interlocutores. Apolo leu e devolveu o arquivo
de PDF comentado. O trecho aqui reproduzido é parte de um comentário feito por ele, que se assemelhava a uma poesia.
o coração pode bombear, ele se tornará maior (“inchado”) em resposta ao pro-
cesso de adequação à demanda. Ao trabalhar acima da sua capacidade (nativa), o
que possivelmente alterará também seu ritmo, o coração terá suas estruturas mo-
dificadas.
Da perspectiva do órgão, portanto, os sistemas que compõem o organismo,
ou seja, os outros órgãos, a circulação sanguínea, o sangue, assim como a atmos-
fera e o espaço/tempo para além da pele são os ambientes com os quais ele está
em relação. O espaço, o tempo e suas variações dentro do sistema (parcialmente)
limitado pela pele, portanto, estão sempre em relação às medidas e padrões para
além da pele.
De acordo com compreensões que informam a biomedicina a respeito da fi-
siologia, humanos podem ter distintos “ritmo sinusais”10, ou seja, o ritmo fisioló-
gico do órgão, ou o ritmo nativo11 mais adaptado às próprias necessidades de cada
organismo. Mas há uma faixa de batimentos por minuto (bpm) considerada apro-
priada para a manutenção do organismo, que varia entre 50 e 100 bpm.
A instituição de uma taxa de normalidade é uma convenção determinada a
partir de dados estatísticos populacionais12. Uma frequência cardíaca alta, ou
seja, acima dessa faixa, indica que o coração está fazendo mais esforço para levar
sangue para o corpo. O ideal é que a distribuição do sangue seja realizada com a
frequência cardíaca mais baixa, sem, no entanto, comprometer a distribuição re-
gular e igualitária, que permita que o sangue atinja todas as partes e órgãos.
Atentar-se para o sangue implica considerar os ritmos, assim como a relação
com a velocidade. Situações de velocidade muito alta ou muito lenta – não neces-
sariamente provocada pelo aumento da frequência cardíaca, mas também pela
modificação na conformação dos tubos por onde passa o sangue, como em situa-
ções de estreitamento dos vasos, por exemplo – podem causar alterações no fluxo
10 O ritmo sinusal é descrito como o ritmo normal. Nó sinusal é o nome de uma estrutura, um emaranhado de células
cardíacas especializadas, também conhecido como “marca-passo cardíaco”. Responsável por emitir estímulos para que o
coração pulse, o nó sinusal (ou sinoatrial) é o local da gênese da atividade elétrica cardíaca. Assim, o nó sinusal envia os
sinais elétricos que se estendem para a musculatura ventricular, formando uma extensa rede de condução intraventricular
– as fibras de Purkinje. Tal transmissão é possível graças aos receptores presentes no sarcolema – que é uma camada de
tecido conjuntivo que envolve a fibra muscular – que interagem com as moléculas que atuam na passagem do impulso
nervoso dos neurônios para as células musculares (a acetilcolina). Trata-se de um neurotransmissor do sistema nervoso
parassimpático que inerva o coração. A interação entre o neurotransmissor e o receptor ativa um canal de potássio que
provoca o aumento no potencial de repouso (hiperpolarização), bem como um encurtamento dos potenciais de ação atrial
e nodais, favorecendo e acelerando a repolarização (AIRES, 2008).
11 Utilizo o termo nativo, tal qual é possível encontrar algumas vezes na literatura biomédica, para me referir ao órgão,
MARINI, Marisol.
corpo, fisiologia e suas funções originais. Escapar do termo “natural” é conveniente porque é preciso qualificar a natura-
lidade do que é entendido como orgânico ou fisiológico, e questioná-los enquanto termos opostos à produção suposta-
mente artificial. O esforço ao longo de todo o artigo é justamente explicitar a inexistência de órgãos ou funções naturais,
que se sustentam fora de práticas sociomateriais, dos desenvolvimentos biomédicos e ou resultantes de práticas imanentes
da bioengenharia.
12 A instituição de um parâmetro remete a uma certa normalidade fisiológica, um cálculo produzido a partir da média
populacional. De acordo com Georges Canguilhem (1990), a partir do século XIX a definição das fronteiras entre o normal
e o patológico é orientada pela qualificação do patológico como uma variação quantitativa do normal, ou seja, semantica-
mente, o patológico é designado a partir do normal, não tanto como a ou dis mas como hiper ou hipo. Interessa destacar
em seu argumento que toda instituição de uma proposição de normalidade é, necessariamente, uma intervenção valora-
tiva e, portanto, normativa.
13 O fluxo laminar está associado aos vasos, que são cilíndricos. Caracteriza-se como uma série de lâminas fixas, com
velocidades diversas, que tendem a diminuir sua velocidade ao se aproximarem da parede. O fluxo turbulento é associado
à perda da qualidade linear das lâminas, produzindo alterações de velocidade e direção. É característico de certas estru- 63
turas do órgão, como o ventrículo, as câmaras cardíacas, mas também em ramificações onde o sangue obrigatoriamente
sofre mudanças em sua direção. O fluxo turbulento também pode ser resultante de condições patológicas, como na ate-
rosclerose (AIRES, 2008).
em relação ao espaço e ao tempo. Abordar o movimento do coração no âmbito da
produção e utilização de órgão artificiais nos leva a explorar as transformações
produzidas pelo arranjo entre o órgão nativo e o dispositivo mecânico, ilumi-
nando as convenções sobre fluxo, velocidade e ritmo que marcam a circulação
sanguínea, bem como as transformações em tais padrões.
E por quê afinal interessa abordar o movimento produzido pelo coração, re-
tornando à criação do movimento pelos Cnidários? Porque considerar o que car-
rega o sangue, do ponto de vista do coração e dos desafios postos às tentativas de
sua substituição ou solução de suas possíveis falhas remete à sua movimentação,
à produção da circulação, à compreensão de seus fluxos, velocidades e ritmos –
que podem ser alterados com o uso de tecnologias cardíacas.
O trabalho do órgão nativo e seu movimento, que apresenta um caráter flu-
tuante cíclico, é representado graficamente nas figuras 1 e 2. Na primeira vemos
a curva produzida pela variação de pressão no ventrículo esquerdo nos momentos
de enchimento e relaxamento da câmara cardíaca. Na figura seguinte é possível
observar a variação de pressão relacionada à abertura ou fechamento da válvula
aórtica da qual decorre a entrada de sangue, o enchimento ou relaxamento isovo-
lumétrico. Não são representações facilmente compreensíveis, sobretudo para
pessoas pouco afeitas a demonstrações gráficas. O propósito, no entanto, é justa-
mente demonstrar a complexidade das representações, assim como os fatores
considerados na variação de pressão e fluxo sanguíneo. A frequência cardíaca é
calculada/modulada a partir das contrações do órgão por minuto. Ela indica a
variação rítmica do órgão num dado espaço de tempo, constituindo um ciclo car-
díaco.
ACENO, 7 (14): 55-76, maio a agosto de 2020. ISSN: 2358-5587
Dossiê Temático: O que carrega o sangue?
Figura 1 – Demonstração gráfica das quatro fases de variações da pressão e do volume intraventricular esquerdo durante
um ciclo cardíaco. Fonte: AIRES, 2008
64
Figura 2 – Ciclo cardíaco. Relação temporal entre as pressões atrial, ventricular e aórtica, o volume ventricular, o
eletrocardiograma e o fonocardiograma. Fonte: AIRES, 2008
mentos (ou não deve haver). Segundo ele, o sangue é contido nos vasos sanguí-
neos por conta da viscosidade do líquido e da pressão, que é equivalente à pressão
atmosférica, ocorrendo um equilíbrio de pressão. Se a pressão interna for maior
ou menor do que a atmosférica, o sangue pode vazar. Além disso, se o líquido
sofrer alterações em sua viscosidade (pelo efeito do uso de anticoagulantes, por
exemplo), pode haver vazamento. Os vasos, a viscosidade do sangue e a pressão
se relacionam em condições específicas, adaptados uns aos outros.
Houve uma situação na pesquisa etnográfica em que, ao preparar o campo
para um procedimento in vivo – ou seja, transformar o corpo de um porco em 65
campo, o que significa naturalizá-lo, isolar o órgão a ser operado, cobrindo o res-
tante do animal e abrindo uma nova fronteira14 – o cirurgião auxiliar que abria as
costelas para acessar o órgão deixou escapar o bisturi, cortando um vaso, o que
fez jorrar sangue para o alto intensamente. Nessa situação, o sangue não se com-
portou exatamente como um ator. Ela pode ser tomada como um imponderável
que adicionou dramaticidade à cena cirúrgica, mas sem grandes consequências
para o procedimento. Apesar de inesperada, o sangue não atuou de maneira im-
previsível. Além disso, a participação do sangue impulsionado para cima expli-
cita, a um só tempo, a existência da pressão sanguínea e a contenção do sangue
pelos vasos.
Para além de vasos rompidos acidentalmente em procedimentos cirúrgicos,
há um desdobramento do uso de corações artificiais que atualmente é reconhe-
cida como uma das principais causas de morte de pessoas cujos órgãos são aco-
plados a esses dispositivos, e que está diretamente associada à atuação do sangue
e seu entrelaçamento a outros actantes. Trata-se da ocorrência de hemorragias
no interior do corpo, ou seja, o vazamento de sangue decorrente da mudança de
sua viscosidade por conta do uso de anticoagulantes.
Nona, um paciente que foi interlocutor da pesquisa, e que viveu mais de dois
anos e meio com um Dispositivo de Assistência Ventricular (DAV), um modelo
específico dentro da classe de dispositivos mecânicos conhecidos como corações
artificiais, assumiu posição de prioridade na fila de transplantes de órgãos, em
março de 2017, quando apresentou sangramentos internos (no estômago). A di-
ficuldade em controlar a hemorragia foi decisiva para a equipe responsável pelo
caso decidir pleitear a posição de prioridade.
Os transplantes de coração instituem um corpo imunológico, cuja identidade
é ameaçada pela presença de intrusos, o que requer a "intrusão" de imunossu-
pressores – alterando e enfraquecendo a identidade do sistema, tornando-o vul-
nerável. Em contraposição, o corpo performado com o acoplamento aos corações
ACENO, 7 (14): 55-76, maio a agosto de 2020. ISSN: 2358-5587
relação aos medicamentos. Para ele, socialização remete à construção de um conjunto complexo de mediações entre hu-
66 manos e não-humanos para que um encontro potencialmente disruptivo seja menos conflituoso. Essa foi uma lembrança
de um dos pareceres que o artigo recebeu, no qual a/o autor/a destaca que Pignarre sugere que os experimentos prévios
à comercialização dos medicamentos são uma espécie de domesticação dos fármacos, implicada justamente por seu pro-
cesso de socialização durante os experimentos.
do sangue, ou mesmo atuar como um “triturador” de células, ampliando as chan-
ces de produção de coágulos. Grande parte dos esforços de aprimoramento das
hélices da bomba diz respeito ao desenvolvimento do melhor desenho, capaz de
reduzir danos às células e o menor índice de formação de coágulos, o que é cer-
cado e avaliado em testes de bancada, ou seja, os testes in vitro aos quais são
primeiramente submetidos os corações artificiais.
Nesses testes, o sangue humano é traduzido em termos de sua viscosidade,
ou seja, é substituído por um preparado de álcool e glicerina em concentrações
que mimetizam a viscosidade do sangue para que se possa avaliar o desempenho
das bombas em situações mais próximas possíveis àquelas a que estarão expostas
quando implantados junto aos órgãos de pacientes humanos. Nesse caso suas cé-
lulas, ou seja, a miríade de seres que compõe o sangue vivo não importa. Trata-se
de um momento em que o que está em questão é a performance hidrodinâmica
(ou melhor, hemodinâmica, pois embora não seja sangue nativo, sua viscosidade,
que é o ponto em questão, é mimetizada).
Há testes em que a taxa de hemólise, o que é denominado determinação do
índice normalizado de hemólise (INH), que é a medida de destruição das células
em decorrência da interação inadequada entre o dispositivo e o organismo, é cal-
culada. Nesses casos, assim como nos testes de biocompatibilidade dos materiais,
nos quais também está em questão a condição das células do sangue, ao invés do
composto de glicerina utiliza-se sangue de animais não-humanos – que é natura-
lizado para performar o sangue humano.17 Se nos estudos de parentesco a potên-
cia do sangue pode ser expressa, em partes, por sua competência em produzir
parentes, nos testes laboratoriais, experimentais e clínicos para a produção de
corações artificiais, guardadas as diferenças, o sangue e suas traduções também
produzem relações. Os porcos, seu sangue e o preparado que mimetiza o sangue
dem ser motivados por variações na viscosidade do fluido – são todos fatores que
falam sobre os caminhos percorridos pelo sangue. Simultaneamente, os desafios
em torno da produção de dispositivos auxiliares à circulação sanguínea são de
várias ordens, relacionando-se sobretudo à problemática da variação de pressão
sanguínea, à resistência dos materiais dado o contínuo bombeamento, à ocorrên-
cia de áreas de estagnação e aumento do risco de aglutinação de células – dinâ-
micas relacionadas à circulação dos fluídos, que se desdobram na problemática
da preservação das células.
67
Para uma explanação a respeito do que processo de naturalização de animais não-humanos que atuam como substitutos
17
19 O modelo hidráulico remete aos conceitos de psique do pensamento pré-Socrático. A escola hipócrita de medicina de-
fendia um modelo inicial da mente, segundo Daugman (2001), relacionado à teoria dos quatro humores corporais: sangue, 69
fleuma, bílis amarela e bílis negra, que em desequilíbrio poderia decorrer em disposições mentais/emocionais – respecti-
vamente sanguíneo, fleumático, colérico e melancólico. Tal teoria desencadeou, no século II, a teoria dos espíritos vitais
de Galeno.
incansáveis são, inclusive, barreiras ao desenvolvimento de dispositivos artifici-
ais, uma vez que o bombeamento contínuo implica desgaste de materiais a longo
prazo – preocupação que surge no desenvolvimento de dispositivos projetados
para serem usados por períodos mais prolongados, como na terapia de destino,
em que os dispositivos são implantados como alternativa ao transplante de ór-
gãos.
20 Refiro-me ao artigo “Reflexões sobre a clínica dos sangramentos provocados”, publicado em francês, mas também sua
tradução para o português no livro “Psicanálise dos Transtornos Alimentares”, organizado por duas psicanalistas brasilei-
ras especializadas em Anorexia e Bulimia Nervosas, Ana Paula Gonzaga e Cybelle Weinberg. O livro é uma coletânea que
contou com artigos e análises de outras psicanalistas brasileiras, também especializadas nesses transtornos ou sintomas,
para falar com a psicanálise e seu modo de elaboração dos quadros. O artigo abre a coletânea, buscando revisar teorias
sobre “práticas de sangramento provocado” – sintoma que do ponto de vista psicanalítico estaria relacionado aos trans-
70 tornos alimentares, segundo a lógica dessas especialistas no assunto, o que se evidencia pela sua presença no livro. Para a
compreensão das especificidades e o modo distinto como a psicanálise pensa os sintomas em contraposição/relação à
biomedicina, e para a investigação mais ampla a respeito da prática psicanalítica especializada em transtornos alimentares
ver Marini, 2016.
E se tal relação fosse elaborada na chave de uma solidariedade? Essas são ques-
tões retóricas, para nos lembrar que boa parte das explicações psicanalíticas (so-
bretudo as originárias) foram elaboradas por homens.
As principais elaborações psicanalíticas em torno dos transtornos alimenta-
res encontradas no livro supracitado questionam, em linhas gerais, a possibili-
dade de instituição de pensamento simbólico mais elaborado, ou seja, a capaci-
dade de simbolizar, de elaborar os conflitos e as relações, de modo que o que as
pesquisas contidas no livro iluminam diz respeito à incapacidade de se expressar
de maneira menos concreta, o que é caracterizado como “sintoma do agir”. Na
leitura das psicanalistas, a precariedade do pensamento simbólico está relacio-
nada ao surgimento de falhas primárias que ocorrem em estágios muito precoces
do desenvolvimento. Em linhas gerais, há um momento (lógico) de constituição
pré-edípica, na qual a triangulação da resolução do complexo de Édipo deve se
efetuar, de modo que a “lei paterna” se faça presente para a instituição de um
“corte”, necessário para que a filha desenvolva um psiquismo independente do
psiquismo materno. Tais compreensões se referem ao mesmo tipo de associação
recíproca descrita por Bidaud como vampirismo.
No caso da automutilação (sintoma também presente nos quadros de trans-
tornos alimentares), soma-se às falhas de constituição do aparelho psíquico as
problemáticas em torno do tabu da virgindade que, na teoria freudiana, está re-
lacionado à proximidade entre o sangue da defloração e o sangue menstrual, que
estão “na base de um temor essencial em relação às mulheres” (BIDAUD, 2010:
28), instituindo para os homens uma “alteridade inconciliável”.
As inferências seguintes dizem respeito à sugestão de que o sangue deve per-
manecer oculto, de modo que as jovens que se automutilam, expondo sua carne
e seu sangue, estão transgredindo esse disciplinamento. O autossangramento,
Desse modo, uma nova abordagem materialista permite deslocar estruturas dua-
listas, permitindo a conceitualização da passagem dos fluxos da natureza e cul-
tura, matéria e mente (BARAD, 2017). Levar à sério as abordagens não-antropo-
cêntricas, voltadas para a prática e para a materialidade, conferindo ênfase ao
Dossiê Temático: O que carrega o sangue?
Referências
MOL, Annemarie; LAW, John. Regions, Networks and Fluids: Anemia and Social
Topology. Social Studies of Science, 24 (4): 641-671, 1994.
MOL, Annemarie; LAW, John. Embodied action, enacted bodies: the example of
hypoglycemia. Body & Society, 10 (2-3): 43-62, 2004.
Dossiê Temático: O que carrega o sangue?
76
Jwa: notas sobre a oscilação do sangue
no corpo e no território dos Iku da Colômbia
HORTA, Ana Milena. Jwa: notas sobre a oscilação do sangue no corpo e no território dos Iku
da Colômbia. Aceno – Revista de Antropologia do Centro-Oeste, 7 (14): 77-96, maio a agosto de 2020.
Resumo: A partir do trabalho etnográfico realizado com o povo Iku, da Colômbia,
exploro a dinâmica do sangue, jwa, argumentando que é necessário abordar, além
dos processos da construção do corpo, as manifestações desta potência vital no ter-
ritório, que é o corpo da Mãe universal. O sangue circula conectando opostos, ao
mesmo tempo em que é composto por forças opostas. Dessa forma, ele deve ser en-
tendido a partir de movimentos oscilatórios e não de atributos estáticos. O sangue
menstrual tem uma potência que deve ser mediada pelo mamo, a mulher, e potên-
cias do território.
1Possui graduação em antropologia pela Universidad de Los Andes, Colômbia (2003). Mestre em Antropologia Social pela
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, UFRGS (2015). Atualmente cursa o doutorado em Antropologia Social na
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, UFRGS.
Jwa: notes on oscillation of blood
on the body and territory of Colombia’s Iku
Abstract: From an ethnographic work conducted with the Iku people of Colombia,
I explore the dynamics of blood, jwa, arguing that it is necessary to approach, be-
sides the processes of body construction, to the manifestations of that vital force in
the territory, which is the body of the Universal Mother. Blood, which is made by
opposite forces, circulates around connecting the opposites in the same way. This
conception allows us to understand it as oscillatory movements, rather than as static
attributes. Menstruation’s vital force must be mediated by the mamo, the woman
and the territory forces.
78
Glossário
A´buru: “material” que carrega pensamentos e intenções. É en-
tregue nos trabalhos tradicionais para alimentar e estabelecer
uma relação com seres do território.
Anugwe: potência vital relacionada com pensamento, conheci-
mento, habilidade, capacidade e afetos.
Anugwe jina: Conjunto dos seres vitais que têm anugwe
Butisinu: ameaça causada por, e que gera derramamento de san-
gue, dor e pode provocar a morte.
Chundwa: Pai principal, Pai do conhecimento. Também é o bico
nevado mais alto da SNSM, chamado pelos não indígenas de bico
Colón.
Duna: força “positiva”. Relacionada com terras altas, sol, ho-
mem, lado direito.
Gansigna: força “negativa”. Potência muito poderosa que gera a
vida, mas que precisa ser regulada para não virar um obstáculo
que impeça ela. Relacionada com a terra, a lua, terras baixas, mu-
lher, lado esquerdo.
Goraba: semente de terras quentes usada nos rituais das mulhe-
res.
Gunseymake: primeira fase do ciclo vital, inclui a concepção, o
parto e o ritual do Jwa Unkusi.
Jwa: notas sobre a oscilação do sangue no corpo e no território dos Iku da Colômbia
Je: agua
Jwa: Sangue. Tabaco.
Jwa Unkusi: ritual da primeira fase do ciclo vital. Em esse ritual,
são harmonizadas as relações com todos os seres do cosmos, para
o ingresso do novo ser no tecido de trocas coletivas. Nesse ritual,
a pessoa recebe seu nome.
Jwa vica: coração.
Kankurwa: casa cerimonial
Kunsamu: Conhecimentos ancestrais.
Mamo: Autoridade tradicional. Sabedores dos conhecimentos
ancestrais.
Murumsama: materialização da existência oculta da pessoa, do
seu anugwe. Outro corpo.
Munseymake: Fase do ciclo vital relacionado com o desenvolvi-
mento da semente. É o ritual da menarca.
Sein zare: pensamento da mãe universal. Existência potencial do
cosmos.
Tikun: existência de um ser no pensamento da Mãe, no Sein zare.
Tina: manifestação no mundo da existência em tikun.
Tutu: mochila tecida de algodão ou fique.
O
HORTA, Ana Milena.
Jwa: notas sobre a oscilação do sangue no corpo e no território dos Iku da Colômbia
povos indígenas, os quais defendem seu território (RODRIGUEZ, 2014). Esses
conflitos também têm motivado processos de organização política dos povos, de
forma tanto independente, como conjunta. Os Iku tem mais de 100 anos intera-
gindo com o Estado nacional 3.
Em fevereiro de 2016, fui convidada pela Confederación Indígena Tayrona
CIT, a organização indígena do povo Arhuaco ou Iku, para focar minha pesquisa
de doutorado em antropologia social no conflito da ocupação do morro Inarwa
pelo exército colombiano. O convite respondeu a relações de confiança e respeito
mútuo com algumas lideranças Iku iniciadas no ano de 2011, quando comecei a
trabalhar na SNSM, sobre temas de conservação e ordenamento do território4.
A CIT tinha estabelecido uma ação de Tutela5 que teve como resultado a sen-
tença da Corte Constitucional T- 005 de 2016. Nessa sentença, a Corte reconhe-
ceu que a ocupação do exército e a instalação de antenas de comunicações no
Inarwa, tinha causado um “impacto cultural de dano imaterial”, e ordenou ini-
ciar um processo de diálogo entre demandados e demandantes para caracterizar
a afetação e concertar medidas de reparação e compensação. Minha pesquisa se
desenvolveria paralela ao processo jurídico. Em um acordo, que chamamos de
“apoio mútuo”, combinamos com a diretiva da CIT que minha pesquisa se focaria
no “sentido cultural” do Inarwa e nas práticas relacionadas com ele. Na experi-
ência da CIT, investigações acadêmicas, principalmente de pós-graduação, têm
HORTA, Ana Milena.
aportado recursos importantes que são considerados pelas cortes nos processos
2 O Ikun, a língua dos Iku, não tem uma escrita unificada. É possível encontrar referências aos sabedores dos povos da
Serra escritas como mama, mamu, mamu, mamë, mamo. Usarei a palavra mamo, que é a mais comum nos escritos indí-
genas. As outras palavras em ikun estão escritas seguindo sugestões feitas pelo professor Iku Faustino Torres, a quem
agradeço o apoio.
3 Sobre os processos organizativos da SNSM, consultar ULLOA, 2004. Sobre as particularidades do processo organizativo
conservação no Caribe, o Parque Nacional Natural Sierra Nevada de Santa Marta, para conciliar com as autoridades 81
indígenas o ordenamento e a conservação em territórios indígenas sobrepostos com áreas de conservação ambiental. En-
tre os anos 2013 e 2015, trabalhei com os Kogui, para minha dissertação de mestrado em Antropologia social.
5 Mecanismo especial de proteção de direitos, criado na Constituição Nacional de 1991.
jurídicos6. Com o apoio da CIT, a autorização das autoridades locais e a aprova-
ção dos Iku em assembleia em Nabusímake, a capital do território Iku, fiz traba-
lho de campo durante 13 meses, distribuídos nos anos 2016, 2017 e 2018, princi-
palmente em Nabusímake. Comecei participando em reuniões de debates sobre a
sentença, com lideranças e mamos. Nessas reuniões, os mamos argumentaram
que Inarwa estava fraco e doente, pois não tinha sido “alimentado” com os “tra-
balhos tradicionais” desde a ocupação do exército em 1962. Sua debilidade afe-
tava a circulação de anugwe, potência vital entendida como pensamento, conhe-
cimento e habilidade que deve circular entre os seres do cosmos para existir e
permitir a existência do universo. Assim, a fraqueza de Inarwa afetava todo o
território, o que, para os povos da SNSM, é um tecido de relações entre seres
(OGT, 2012). Para os mamos, as relações com Inarwa deviam ser reestabelecidas
por meio dos “trabalhos tradicionais”, trocas de elementos e substâncias, e mani-
festações das forças vitais, anugwes, que compõem as pessoas e o território
(FERRO, 2012, ARENAS, 2016, HORTA, 2020). São essas relações de trocas as
que “tecem” o território, relações nas quais é possível a existência comum.
Segundo os mamos, o Inarwa é um anugwe jina, um ser vital de pensamento
e conhecimento. A vitalidade e a função de cada ser no mundo dependem do seu
anugwe, dos conhecimentos, pensamentos e habilidades. Em ikun, In significa
milho, e rwa é morro; Inarwa é o morro do milho, seu anugwe está relacionado
com o cuidado e a regulação do milho, das sementes e dos alimentos. Para os Iku,
as pessoas são milho; o milho é uma réplica das pessoas (TAYLER, 1997). Nesse
sentido, o anugwe do Inarwa está relacionado com a regulação da existência, da
sexualidade e das relações entre os seres do cosmos. Inarwa é o ser “dono” do
conhecimento das etapas da existência de todo ser (HORTA, 2020). Quando en-
tendi essa relação, comecei a indagar pelas fases do ciclo vital com as mulheres
com as quais já tinha amizade. No texto da tese, foquei-me na primeira fase, o
gunsyemake. Neste trabalho pretendo abordar o momento da menarca, o mun-
ACENO, 7 (14): 77-96, maio a agosto de 2020. ISSN: 2358-5587
seymake.
Com o intuito de responder ao desafio de entender ao Inarwa como um anu-
gwe jina, um ser vital de pensamento, dialogo com reflexões pós-estruturalistas
que fazem parte da chamada “virada ontológica”. A análise que aqui apresento
Dossiê Temático: O que carrega o sangue?
continua situada nesse campo teórico. Conforme vários autores têm sugerido, por
exemplo, Dos Santos e Tola (2016), a virada ontológica constitui um campo hete-
rogêneo de enfoques diversos que questionam a universalização dos traços domi-
nantes da racionalidade moderna eurocêntrica, que se fundamenta na separação
entre natureza e cultura, e procuram reconhecer outras configurações da existên-
cia, enfatizando o caráter relacional, composto e processual da sociabilidade.
Considero que, antes que modelos teóricos ou tipologias ontológicas, tratam-se
de ferramentas reflexivas e teóricas que podem ajudar no entendimento de rela-
ções entre seres de mundos diversos. Nesse sentido, De la Cadena (DE LA CA-
DENA; RISØR; FELDMAN, 2018) usa o termo “abertura ontológica” para essas
reflexões teóricas que permitem abrir conceitos e ir além das limitações das dico-
tomias modernas derivadas do binômio natureza/cultura. Por exemplo, é possí-
vel romper a dicotomia sujeito-objeto e questionar o entendimento do território
como um objeto nessa divisão e, inclusive, como outro ser em uma relação. O
território, argumenta De la Cadena (2015), a partir do caso dos Andes peruanos,
pode ser pensado como um evento que é construído nas relações, que parece ser
o caso também da Serra Nevada de Santa Marta. Tratam-se de contextos nos
82
6 Por exemplo, as teses de Duque Cañas (2009) y Vargas (2004), aportaram argumentos sobre o território indígena, que
foram incorporados na sentença da Corte Constitucional T-849 de 2014.
quais existe uma continuidade ontológica entre seres interdependentes que se
afetam e se constituem mutuamente.
É o caso dos Iku, no qual o território é definido por eles mesmos como um
tecido de relações, um sistema em que fluem potências vitais, circulação da qual
depende a vida no território, um ser vital composto por outros seres vitais (OGT,
2012). Quer dizer que tanto o território quanto os seres que o compõem são pos-
síveis nas relações que estabelecem.
Por outro lado, o trabalho de Seeger, da Matta e Viveiros de Castro (1979)
chamou a atenção sobre a centralidade do corpo em vários contextos etnográficos
da América do Sul. Os autores argumentaram que o entendimento do corpo,
como um substrato biológico no qual são projetadas identidades e papéis sociais,
não é universal. A evidência etnográfica sugeria que o corpo é uma matriz simbó-
lica que articula questões sociais e cosmológicas. Assim, a corporalidade e os pro-
cessos de construção de pessoas seriam os eixos organizadores dos universos in-
dígenas sul-americanos. Neste contexto, é possível pensar o corpo não como algo
dado, senão em constante construção, incentivada pelo intercâmbio de proprie-
dades com outros seres do cosmos, fazendo parte de campos relacionais (SAN-
TOS GRANERO, 2012). Alguns autores que trabalharam neste campo de análise,
são Taylor (1996), McCallum (1998), Belaunde (2005), Vilaça (2005) e Tola
(2012), entre outros.
Jwa: notas sobre a oscilação do sangue no corpo e no território dos Iku da Colômbia
No caso Iku, os corpos têm uma estrutura que é replicada na casa cerimonial,
a Kankurwa, nas montanhas, na Serra, e no cosmos, estabelecendo uma “cadeia
de relações” entre diferentes níveis que se contêm mutuamente (REICHEL-DOL-
MATOFF, 1975, 1978, 1985, 1987, 1991; OROZCO, 1990; PATERNINA, 1999;
TAYLER, 1997; URIBE, 1998; CAYÓN, 2003; ARENAS, 2016). Trata-se de uma
estrutura atravessada por uma divisão horizontal que separa a parte superior, re-
lacionada com a potência duna “positiva”, da parte inferior, relacionada com a
potência gansigna, “negativa”. O mais importante é que cada um destes níveis
(corpo, kankurwa, serra, cosmos) é entendido como um útero que contém os co-
nhecimentos e princípios vitais que geram a existência; é nesse sentido potencial
que cada nível contém tudo o que existe no mundo. Nessa lógica, é razoável pen-
sar que o corpo, a serra e o cosmos têm relações fractais, ou integrais (WAGNER,
1991), nas quais não é possível estabelecer limites entre cada uma das entidades
relacionadas, pois se gestam e se compõem entre si. Seriam segmentos de uma
estrutura que pode se replicar ao infinito, respondendo assim ao princípio de au-
tossimilitude dos fractais (BRAUN, 2003). Cada entidade mencionada poderia
ser pensada como um agrupamento de relações vitais em escalas diferentes, mas
interligadas. Importante salientar que a estrutura que é replicada, vincula forças
opostas: duna e gansigna, assim sendo, o padrão autossimilar não implica ho-
mogeneidade, dado que refere uma unidade múltipla (HORTA, 2020).
HORTA, Ana Milena.
A dualidade da existência
A Lei de Sé ou Lei da Origem, não é um agrupamento de normas e regras. A
Lei de Sé refere-se ao pensamento da Mãe universal, o Sein Zare, como potencial
de existência, conforme me foi dito pelo antropólogo e professor Iku, Faustino
Torres. A Lei de Sé faz alusão aos princípios cosmológicos que explicam a origem
do universo, e a regulação dos seres existentes. Está relacionada com os conheci-
mentos ancestrais, kunsamu, que permitem “ler” no território a Lei de Sé. Ne-
nhum mamo pode aceder à totalidade do Sein zare, ou da Lei de Sé. Cada mamo 83
tem conhecimentos específicos, conforme sua própria experiência, que aportam
para o entendimento da complexidade (TAYLER, 1997); é por isso que as decisões
são tomadas por grupos de mamos que trazem seus conhecimentos, o que implica
uma atualização epistemológica constante (ARENAS, 2016).
Embora, em princípio, os kunsamu sejam conhecimentos especializados dos
mamos, as relações com os seres do cosmos fazem parte da experiência cotidiana
com o território; por conseguinte, e como me foi dito por Jeremias Torres, reco-
nhecido líder Iku, todas as pessoas têm algo de mamos. A lei de Sé e os Kunsamu,
até certo ponto, são conhecimentos compartilhados que estruturam as diversas
práticas das pessoas. É importante salientar que a Lei de Sé, não é estática, pois
os princípios cosmológicos são atualizados nas dinâmicas de relacionamento
(HORTA, 2014, 2020). Como foi referido por Sahlins (1997), as questões cosmo-
lógicas podem se relacionar com os contextos pragmáticos atualizando os senti-
dos tradicionais.
Segundo as narrativas da origem, tudo o que existe, já existia como gente,
mas sem forma, na escuridão do Sein Zare o pensamento da Mãe. O termo Sein
Zare, vem de Sey, que se refere à escuridão, a cor preta, a potência gansigna que
tem a força para gerar vida. O universo foi gerado com a ajuda de pais e mães
ancestrais, criados pela Mãe universal, sendo que os primeiros foram Serankwa
e Seynekun, responsáveis pela materialização do universo. Conforme as narrati-
vas, míticas coletadas por Mora y Villafaña (2018):
La unión de Serankwa e Seynekun, de lo masculino y lo femenino, de lo positivo y lo
negativo, del dia y la noche, del sol y de la luna, dio origen a todas las autoridades
espirituales que gobiernan el mundo material. (MORA e VILLAFAÑA, 2018: 38)
como “positiva” e “negativa”, as quais estruturam uma série de opostos tais como
sol/lua, acima/abaixo, frio/quente, esquerda/direita etc. Essas potências, no caso
Iku, estabelecem uma relação de complementariedade e continuidade. Ao falar
de potência, refiro-me a uma força que é capaz de gerar algo, de produzir um
Dossiê Temático: O que carrega o sangue?
efeito. A tradução que os mesmos Iku fazem das potências duna e gansigna como
“positivo” e “negativo”, é problemática, porque nos situa em categorias de valor
absolutas e excludentes, que se afastam do sentido complementário que elas têm
no universo Iku. Assim, Jeremias Torres, me explicou que nada é absolutamente
gansigna nem absolutamente duna. Tudo está composto por uma parte duna e
outra gansigna que, ao ser abordadas de perto, apresentarão a mesma bifurca-
ção. Quer dizer que é um padrão dual, que é repetido em diferente escala, à ma-
neira de um fractal que replica-se ao infinito. Segundo Jeremías, o feminino se
relaciona com a força gansigna, a lua, a terra, as partes baixas do território, e a
parte baixa do corpo, espaços relacionados por sua vez, com o calor e a potência
sexual. Isso não quer dizer que essas cadeias de relações sejam “negativas”, no
sentido de “ruins”. Trata-se de forças muito poderosas que devem ser reguladas,
já que se comandar o movimento da existência, podem virar um obstáculo para
ela. A sexualidade, por exemplo, é a força da que depende a existência, mas se a
semente vital é dispersada sem controle, pode fertilizar forças negativas. Segundo
Reichel-Dolmatoff, grande parte das práticas dos povos da SNSM, têm a ver com
a regulação da sexualidade (1947, 1985, 1991). Ángel e Emilio Izquierdo, filhos do
84 mamo Gregorio Izquierdo, me comentaram que o duna e o gansigna, fazem parte
da unidade, mas o gansigna deve ser regulado para que sua força apoie o movi-
mento para cima, para o duna, respondendo ao ideal dos Iku que é avançar em
direção a Chundwa, o pai do conhecimento, como explica Tayler (1997). Caso
contrário, a existência mesma estará em risco. No mundo escuro, relacionado
com a origem, o pensamento da Mãe, é onde surge a possibilidade de existência,
mas sendo levada para a luz, para cima. Assim, a regulação da força gansigna é
realizada por médio do vínculo com seu oposto complementar, vinculo que per-
mite a circulação de potências vitais, e a construção do tecido vital que é o terri-
tório.
Os seres que compõem o território, devem se relacionar com seus opostos
complementares, por exemplo, terras altas com as terras baixas, homem com mu-
lher, etc. Os vínculos entre os seres se estabelecem através de trocas de elementos
que materializam potências vitais, que são entendidas como alimentos ou a´bu-
rus. Esses elementos podem ser comida, conhecimentos, palavras, sentimentos,
etc. As trocas devem ser recíprocas e podem acontecer de várias formas: pelos
ciclos da natureza, por exemplo, pela água dos nevados que desce pelas lagoas e
rios até chegar no mar e, a partir daí, volta nas nuvens e na chuva nas partes altas.
Também acontecem nos intercâmbios recíprocos cotidianos, conhecidos como
makruma, trocas que ocorrem nas visitas, nos cumprimentos, nas conversas, nas
quais circula o que cada pessoa pode produzir, a sua própria vitalidade (FERRO,
2012). As conexões também são feitas pelos “trabalhos tradicionais”, nos quais se
faz um intercâmbio de anugwe, dando a cada ser o que ele precisa, seu comple-
Jwa: notas sobre a oscilação do sangue no corpo e no território dos Iku da Colômbia
mento. Os “trabalhos tradicionais” também são chamados de “pagamentos”, pois
são uma retribuição aos “donos” pelo usufruto da sua criação, sendo sempre uma
questão de mão dupla. Nos processos de trocas, os seres do cosmos são afetados
e construídos. O fundamento da existência Iku é a interdependência, para existir
é preciso estabelecer relações recíprocas, intercambiar sustento, anugwe (ARE-
NAS, 2016; HORTA, 2020). Porém, as relações entre os seres do cosmos propen-
dem ao caos, e podem ser perigosas, é por isso que devem ser mediadas pelos
mamos, no sentido de Latour (2012). Isso quer dizer que os mamos intervêm nas
trocas com seus próprios anugwes, a fim de equilibrar o a´buru entregado e a
relação estabelecida na transação, sendo que eles também são afetados pelas for-
ças reguladas.
O anugwe, como já foi dito, é potência vital relacionada com conhecimentos,
habilidades e pensamentos. O anugwe é construído e corporificado nas relações
com os seres do cosmos, nos trabalhos tradicionais, nos processos específicos de
educação dos mamos, nos rituais do ciclo vital, e na experiência do território, a
partir das relações estabelecidas com os donos dos conhecimentos e pensamen-
tos, mediados pelos mamos. O anugwe é alimento, pois é uma potência vital que
é corporizada, sustentando o corpo. Assim, a existência da pessoa é construída
nas relações que estabelece com outros seres. Nesse sentido é possível estabelecer
um vínculo com as reflexões de M. Strathern sobre a noção de pessoa na Melané-
HORTA, Ana Milena.
Jwa: notas sobre a oscilação do sangue no corpo e no território dos Iku da Colômbia
Stengers (2008), conectar é reconhecer a existência do outro.
As lagoas são mães, e a água é relacionada com a força gansigna, elas surgem
nas terras altas, na parte duna do território, no frio. Existem águas positivas, je
duna, são as águas que correm, que estão saudáveis e levam alimento. A chuva
jewvi, pode ser positiva, se não é muito forte e não prejudicar os cultivos. As águas
gansigna não são prejudiciais per se. O mamo David Villafaña, narra no docu-
mentário Naboba. Visión ancestral del agua del pueblo Arhuaco (YOSOKWI,
2015), que as águas gansigna, “negativas”, afugentam as doenças, por meio do
banho do corpo, pois levam a sujeira junto. Essas águas não podem ser bebidas,
nesse caso, podem sim fazer dano. A mediação do mamo é seu anugwe, é impor-
tante para que essas águas possam limpar os corpos. Da mesma forma, o anguwe
do mamo deve ser forte, adverte mamo David, caso contrário, ele será afetado
negativamente pela água. A água do mar, conforme contou-me mamo Miguel é a
união da potência sexual masculina e feminina, é por isso que a vida vem do mar.
Tudo o que existe no mundo, existe também no corpo: “temos a lei no corpo”,
falou para mim Mamo Miguel.
A vitalidade do corpo-território da SNSM, depende da circulação continua e
fluida das diferentes águas, sendo que o represamento implica doença. As águas
devem percorrer o corpo-território, conectando-o, cumprindo sua função e regu-
lando suas forças. A interdependência dos seres, e a integralidade da SNSM, cons-
HORTA, Ana Milena.
truída na fluidez de potências vitais, têm sido argumentos centrais dos povos in-
dígenas na defesa da SNSM contra megaprojetos como represas e portos, que afe-
tam a circulação no tecido vital (ZHIGONESHI, 2011; RODRIGUEZ, 2014;
HORTA, 2015)
O Munseymake
A vida tem quatro fases, nas quais o ser troca com outros seres do cosmos
potências vitais, fluidos e anugwe, correspondentes com cada fase. É assim que
87
se estabelecem as redes de afetação e construção de corpos e pessoas neste cole-
tivo (LATOUR, 2007), anugwe jina, formado por seres humanos e extra-huma-
nos. Usualmente se diz que a primeira etapa da vida é o Gunseymake, que inclui
a concepção, o nascimento e o ritual de entrega do nome. Mas, para algumas pes-
soas, a vida começa com o cuidado do jwa feminino para a reprodução. Vou me
referir a algumas questões do ritual dessa etapa da vida das mulheres, o munsey-
make.
A menstruação das mulheres da SNSM não tem sido muito comentada na et-
nologia indígena. Reichel-Dolmatoff (1985) faz algumas referências à menarca,
no marco dos ciclos de vida dos Kogui. Menciona que o sangue é recolhido e en-
tregue a Heisei, entidade da morte para os Kogui. Segundo o autor (1985: 197), a
vida das meninas continua sem mudanças e sem aprendizado nenhum. Possivel-
mente essa afirmação corresponde à centralidade das atividades dos mamos e
dos homens para o trabalho do Reichel-Dolmatoff, bem como sua pouca proxi-
midade com as atividades femininas. Sobre os Iku, Reichel-Dolmatoff menciona
que o sangue da menarca deve ser recolhido e entregue como oferenda aos que
ele chama de “deuses”. O autor traz o testemunho de uma mulher que não reco-
lheu seu primeiro sangue, o que para ela foi a causa das mortes de três filhos nos
partos (1991: 68). Em suma, o que refere Reichel-Dolmatoff a respeito do sangue
menstrual é sua relação com a morte. Por sua parte, Arenas (2016) comenta al-
gumas questões gerais do ritual da primeira menstruação, o “banho” feminino e
a importância do sangue como potência vital, estabelecendo bases relevantes para
aprofundar as caraterísticas e capacidades do jwa.
A etapa da primeira menstruação nas meninas é chamada de Munseymake.
Segundo o professor Faustino, Mun significa doce, que é atraente, mas também
aquilo que é muito perigoso, pois pode “manchar”. Seymake, por sua vez, se re-
fere à inocência, que ainda não teve relações sexuais. Quer dizer que é a etapa em
que a mulher tem o seu corpo tanto a potência para dar vida como para destruí-
la, em estado puro, em virtude da ausência de contato sexual e das potências que
ACENO, 7 (14): 77-96, maio a agosto de 2020. ISSN: 2358-5587
ele implica. A potência vital é composta por duas forças que devem ser equilibra-
das. Para explicar essa fase, o professor Faustino diz que é como uma flor que se
abre, linda, atraente, cheirosa, mas muito perigosa. O sangue menstrual tem a
força duna e a força gansigna. As mulheres menstruadas levam essas potências
Dossiê Temático: O que carrega o sangue?
no corpo e, por isso, não devem entrar nas hortas, pois podem murchar as plan-
tas. O potencial gansigna deve ser limpo e equilibrado, mas não pode ser elimi-
nado, pois a vida é gerada no equilíbrio dessas duas forças complementares.
Para esse equilíbrio, é realizado o ritual do “banho da menstruação”, que in-
clui 9 dias de isolamento antes do banho. A menina, nas suas primeiras quatro
menstruações, precisa ficar isolada, sem tomar banho, sem pegar sol e sem con-
versar com homens. Em alguns casos, o isolamento e o banho são feitos só na
primeira menstruação. A menina só deve conversar com as mulheres da sua fa-
mília, fiar algodão, tecer mochila, chamada de tutu7 e cultivar pensamentos posi-
tivos sobre a vida que vai experimentar como mulher. Foi assim na experiência
de Seykúmake8, uma amiga Iku de 38 anos que cresceu em um assentamento
perto de Nabusímake. Ela lembra que teve que ficar com as mesmas roupas du-
rante esses dias e que foi muito difícil para ela ter pensamentos positivos, pois
não se sentia confortável. Por isso, quando sua filha teve seu “banho de menstru-
ação”, Seykúmake pediu permissão do mamo para que a filha trocasse as roupas,
que deviam ser lavadas longe do rio.
88 7 Tecer mochila é uma atividade exclusiva das mulheres. A mochila iku ou arhuaca tem relação com a origem cosmológica,
como será comentado mais adiante. A mochila se tornou um artesanato reconhecido e valorizado no território nacional.
Ver por exemplo: https://www.lamochilaarhuaca.com.
8 Seykúmake é o nome que ela escolheu para ser nomeada nos meus trabalhos. Ela prefere resguardar sua identidade.
Durante esses dias, é preciso manter uma dieta sem sal e, em alguns casos,
há outras restrições: por exemplo, na experiência de Plácida, se a menina quer
cuidar e criar animais, deve evitar comer carne nesses dias para que os animais
não fiquem magoados e não fujam dela. As restrições do sal e dos raios de sol
estão relacionadas com as potências tikun desses elementos concernentes à ferti-
lidade: os raios de sol são a potência que fertiliza a terra, enquanto o sal possui a
potência fertilizadora do sêmen, presente também na água do mar. A menina terá
de evitar elementos com potências fortes que possam entrar em conflito com a
força de afetação que traz o sangue, que é inerente à capacidade de “manchar”,
impregnar de cor, sendo que as cores implicam forças e capacidades, como argu-
mentarei posteriormente.
A menina, com ajuda de um mamo, precisa aprender como equilibrar essa
força, para evitar que ela afete negativamente aos seres que entrem em contato
com a menina. O conceito de butisinu é central nesse momento da vida. O buti-
sinu, conforme me explicaram mamo Tobias Torres, mamo Miguel Niño e o pro-
fessor Faustino, é uma força violenta que pode ser, ao mesmo tempo causa e con-
sequência de derramamento de sangue, agressão, dor e morte. O butisinu está
presente nas mortes violentas ou quando os morros, mamos poderosos, são des-
truídos, por exemplo, pela mineração. Essas situações que violentam o corpo-ter-
ritório da Mãe universal geram morte, doenças e acidentes violentos no território.
Jwa: notas sobre a oscilação do sangue no corpo e no território dos Iku da Colômbia
Quando uma mulher está menstruada, ela leva no seu corpo essa potência do bu-
tisinu, que pode causar ou intensificar uma situação de violência. Por exemplo,
se alguém é mordido por uma cobra e a mulher se aproximar para olhar, a situa-
ção da vítima poderia piorar até morrer. A força negativa do sangue afeta o anu-
gwe dos seres que entram em contato com a mulher menstruada, ficando vulne-
ráveis frente ao butisinu. É por isso que as mulheres menstruadas não devem en-
trar nas hortas, nem ter relações sexuais. O butisinu é o potencial perigoso do
sangue da menstruação, do parto e da morte. As restrições do sal, dos raios do sol
e das relações sexuais, já mencionadas, sendo forças da fertilidade, podem fecun-
dar ou fortalecer à energia dominante, que no momento da menstruação, é o bu-
tisinu. Essas restrições, salvo à relacionada aos raios do sol, devem ser cumpridas
também quando uma pessoa está doente ou quando tem alguma ameaça ou con-
flito no território. As potências relacionadas com a fertilidade afetam os corpos e
o corpo-território como segmentos de um mesmo tecido vital.
Segundo as narrativas míticas, Serankwa pegou um fio desde Chundwa e a
partir dele, começou a tecer movendo o fio em uma espiral que desce conectando
os morros, lagoas e pedras, pais e mães mais antigos e poderosos. Assim formou-
se a SNSM, o corpo da Mãe universal (REICHEL-DOLMATOFF, 1978; OROZCO,
1990; GIRALDO JARAMILLO, 2010; MORA e VILLAFAÑA, 2018). O tecido da
mochila recria essa espiral geradora de vida, mas no sentido contrário, de baixo
HORTA, Ana Milena.
Tudo o que existe passa por ciclos de quatro etapas para se concretizar. A vida
tem quatro etapas, a fertilidade da terra e do sangue menstrual também. É por
isso que alguns mamos recomendam que o processo de limpeza seja feito nas
quatro primeiras menstruações. Para outros mamos, é suficiente limpar as qua-
tro etapas na primeira menstruação. Conforme me explicou Seykúmake, as eta-
pas e cores da criação da terra são as mesmas etapas e cores dos fluidos corporais
na menstruação, sendo que cada cor carrega potências diferentes, que devem ser
recolhidas e guardadas no primeiro ciclo menstrual, quando são mais fortes. Os
primeiros fluidos, relacionados com as cores branca e amarela, são forças duna
positivas, que têm o potencial de gerar vida, mas ainda não têm esta capacidade.
É por isso que as meninas aprendem a tecer usando só essas cores, a saber, as
cores que têm nos seus corpos. Com a menstruação vem as cores vermelha e
preta, forças gansigna, capazes de causar butisinu, mas que também têm o poder
da fertilidade. O sangue menstrual tem todas as cores, todas as potências do uni-
verso.
Durante os nove dias de isolamento da menina durante sua primeira mens-
truação, ela prepara os “materiais” ou a´burus para o trabalho tradicional, ou
seja, os elementos que vai oferecer de alimento para os seres do cosmos, bem
como os elementos que vão fazer parte de seu murumsama, seu outro corpo, uma
das manifestações em tina de sua existência em tikun. Para isso, conforme me foi
dito por minhas interlocutoras, a menina fia algodão de diferentes cores, tingido
por homens9, e recolhe em algodão selvagem seus pensamentos, segundo indica-
ções do mamo, e um pouco dos seus fluidos. Esses “materiais” são mediados pelo
anugwe do mamo, que pode regular o potencial butisinu do sangue e fortalecer
sua capacidade de gerar vida. O mamo sabe como atualizar a criação do universo
ACENO, 7 (14): 77-96, maio a agosto de 2020. ISSN: 2358-5587
para que todos os seres, na ordem em que foram criados, sejam limpos e alimen-
tados pela menina, aceitando sua nova condição como mulher “que mancha”.
Essa nova condição pressupõe a nova responsabilidade e a capacidade de ter re-
lações sexuais, juntar-se com outro sangue e gerar vida. O reconhecimento do
Dossiê Temático: O que carrega o sangue?
novo status da menina, por parte dos seres do cosmos, implica harmonia, no sen-
tido que a ordem cosmológica é atualizada a partir de sua nova função, do seu
anugwe atualizado, e da nova configuração de seu corpo, que ganhou o equilíbrio
recebendo anugwe e alimentando com ele aos seres primigênios.
Os algodões com sangue e fluidos anteriores, depois de serem mediados pelo
mamo, são repartidos. Um pouco deles será entregue a algum ser do território
que precise ser alimentado pela força dessa menina. Outra parte ficará com o
mamo e outra com a menina, sendo que essa é a mais forte proteção e fonte de
defesa contra doenças e qualquer tipo de ameaça. A força da menina é incorpo-
rada pelo mamo, que é fortalecido pela potência desse sangue e pode utilizar essa
força para se proteger e curar aos seres do território. A menina recebe uma nova
capacidade e em troca, entrega seu sangue limpo e mediado pelo mamo, estabe-
lecendo uma consubstancialidade entre ela, o mamo e o corpo-território. Como
já foi dito, a substância carrega anugwe, que depois do rito é alimento, proteção
e cura que circula entre alguns corpos. Seykúmake, descreve assim a força do seu
primeiro sangue menstrual:
90
9Conforme me foi explicado, como as mulheres já mancham, tingem com seus corpos, essa capacidade deve ser equili-
brada, motivo pelo qual tingir o algodão é uma atividade masculina.
(…) eso es una defensa propia que uno tiene en su mismo cuerpo, eso es para uno. Es
un tesoro que te atranca inmediatamente cualquier problema: te vayan a matar, a se-
cuestrar. O un familiar que esté en peligro de muerte, lo que fuese, ¿no? ese te ayuda a
salvar, uno le puede ayudar a otra persona también.
Jwa: notas sobre a oscilação do sangue no corpo e no território dos Iku da Colômbia
Seykúmake, a semente de terras quentes chamada goraba, que ela tinha rece-
bido, passaria a ser envolvida completamente nos fios de algodão tingidos de fo-
lhas e raízes das terras altas e frias, cores relacionados com potências duna, como
chana (amarelo), uru (roxo claro) e kuguinu (vermelho claro). A menina também
recebe uma concha de mar chamada muchuru. Quando tiver relações sexuais, es-
ses objetos serão modificados novamente: a semente terá um pequeno buraco no
centro, que será atravessado pelos fios de cores, tecendo e envolvendo a semente.
Seu muchuru será trocado por outro que esteja mais aberto. Importante salientar
que a semente e a concha provêm das partes baixas do corpo-território, relacio-
nadas com a fertilidade e a potência gansigna. Assim como nos objetos do mu-
rumsama, o outro corpo composto por objetos do corpo-território que materiali-
zam pensamentos e potência, a força gansigna é regulada, uma vez que é conec-
tada com objetos que carregam forças duna. A mediação do mamo é central, pois
a agência dos objetos não parece ser um atributo fixo, mas, sim, uma capacidade
potencial que é ativada no campo relacional entre o mamo e seu anugwe, os ob-
jetos, o sangue, a mulher e seu anugwe.
A última parte do Munseymake é o banho. No final dos nove dias de isola-
mento, depois de ter acumulado os fluidos no seu corpo e neles, suas potências
vitais, a menina vai com o mamo em uma pedra indicada por ele para lavar seu
corpo e suas roupas. A água que vai lavar seu corpo é trazida por sua família de
HORTA, Ana Milena.
res diversos. Como foi mencionado por Belaunde (2005), é um traço comum em
vários contextos etnográficos que o sangue seja pensamento corporificado que
deve circular entre as pessoas para manter sua vitalidade.
Por sua parte, as águas dos rios, como o sangue do corpo da Mãe universal,
Dossiê Temático: O que carrega o sangue?
percorrem o território vinculando as partes altas com as partes baixas, como in-
diquei anteriormente. No corpo, como no corpo-território, o sangue deve circular
conectando opostos. Quando desce, vai entregando alimento e limpando; antes
de subir, deve se limpar para não levar forças quentes para cima. Essa regulação,
segundo Mamo Miguel, é feita pelo coração jwa vica, indicando que é a mesma
função de limpeza e regulação que cumpre a SNSM no mundo. É por isso que a
Serra é conhecida como o “coração do mundo”, dando conta mais uma vez das
relações fractais entre o corpo, o corpo-território e o cosmos.
A vitalidade dos corpos, como agrupamentos de relações vitais em diferentes
escalas, depende da possibilidade de circulação das potências que permitem sua
existência. A circulação se apresenta como um movimento oscilatório vertical, no
qual se estabelecem vínculos, se regulam e se limpam as forças opostas comple-
mentárias, mediadas pelos anugwes do mamo e dos seres envolvidos. O movi-
mento e a dinâmica de circulação parecem derivar da potência gansigna, que, ao
afetar de uma maneira mais forte na sua necessária regulação, gera o movimento.
Aparentemente, o sangue menstrual é outro tipo de sangue. No caso de vários
povos amazônicos, Belaunde (2005, 2006 apud ROSAS, 2019: 84) diferencia o
92 sangue que circula do sangue derramado, este último relacionado com a morte, o
parto e a menstruação, como uma substância que ativa presenças perigosas. Essa
diferença está presente até certo ponto no caso Iku. Já comentei o potencial buti-
sinu desse tipo de sangue, que pode ser associado ao perigo argumentado por
Douglas ([1966] 2007) e Lévi-Strauss, (1981). No entanto, o butisinu não é um
atributo fixo do sangue, é um potencial cuja agência depende do campo relacional
no qual se inscreve. Em determinado sentido, o anugwe da dor que carrega o
sangue menstrual, pode fazer mal a plantas e animais. Por outro lado, o risco im-
plicado no butisinu está relacionado com sua potência de fertilização, capaz de
intensificar eventos ou forças prejudiciais. Quer dizer que a potencialidade da
morte e da fertilidade estão juntas no butisinu, de uma maneira incontrolada,
motivo pelo qual é necessária sua regulação ritual. É interessante no caso Iku que
o potencial butisinu não impede a circulação do sangue, mas implica uma circu-
lação restrita. Como referiu Reichel-dolmatoff (1947, 1985, 1991), as práticas ri-
tuais da SNSM dão muita importância à regulação da potência sexual. Sugiro que
esses cuidados envolvem restrições da circulação do sangue menstrual, e não que
ele pare de circular. Os vínculos estabelecidos com esse sangue têm lugar no ritual
(entre o mamo, a mulher e o território), nos processos de cura do território e de
outras pessoas, e para gerar vida. Essa possibilidade de circulação, mesmo res-
trita, implica a mediação do mamo como condição para a regulação desse sangue
e sua associação com efeitos positivos e valores benignos, como manifestou Sey-
kúmake. Esse sangue conecta o corpo com o corpo-território enquanto é entregue
Jwa: notas sobre a oscilação do sangue no corpo e no território dos Iku da Colômbia
para curá-lo. Da mesma forma, o sangue pode curar graças à incorporação medi-
ada de potências do território, materializadas nos objetos que compõem o mu-
rumsama.
As relações nas quais flui o sangue, não são restritas aos Iku. O universo da
SNSM inclui aos não indígenas como “irmãos mais novos”, também filhos da Mãe
(Uribe, 1998). As relações com os não indígenas, da mesma forma que o sangue
menstrual, implicam um risco e devem ser mediadas, dado que podem tanto ali-
mentar como destruir sua existência. A análise da mediação do sangue dos “ir-
mãos mais novos”, materialização de um anugwe diferente, merece ser aprofun-
dada em um trabalho posterior. Espero que as reflexões aqui apresentadas cons-
tituam um ponto de partida para futuras pesquisas que abordem essa questão.
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ACENO, 7 (14): 77-96, maio a agosto de 2020. ISSN: 2358-5587
96
“Azúcar en la sangre”:
consideraciones sobre sustancias, potencias,
tradición y conflicto interétnico a través de experiencias de
indígenas Kaingang de la TIX, diagnosticados con
diabetes mellitus
“Blood sugar”:
considerations on substances, potencies, tradition and inter-ethnic
ACENO, 7 (14): 97-118, maio a agosto de 2020. ISSN: 2358-5587
Abstract: From an ethnographic approach, the article seeks to analyze the experi-
Dossiê Temático: O que carrega o sangue?
ences of some Kaingang of the TIX, who explain diabetes, as an excess of sugar on
blood associated to the introduction of eating patterns that are understood as re-
ceiving a "Poisoned gift" by “White people”, and that is fought with the use of other
substances "foreign" or "traditional". This "struggle" of substances loaded with par-
ticular powers, stresses the notion of tradition, evidences the cosmological update of
the world and the contexts of intermedicality existing in the region, and shows how
blood, now impregnated with sugar, carries senses that express and denote the his-
tory of conflict and inter-ethnic contact in the region, outside of the biomedical dis-
course that individually holds the patient responsible for their illness.
98
D
esde un enfoque etnográfico, el artículo busca analizar, a partir de las ex-
periencias de algunos Kaingang de la Tierra Indígena Xapecó, el modo
como la diabetes mellitus -entendida como exceso de azúcar en la sangre-
es asociada a la introducción de patrones alimenticios que se leen como el recibi-
miento de un don negativo, en la medida que en vez de alimentar y fortalecer,
debilita los cuerpos y la salud. Observaremos, a partir de allí, una serie de asocia-
ciones relacionadas a la enfermedad con el consumo de alimentos industrializa-
dos y, muy especialmente, de bebidas como el café instantáneo y el alcohol (en
particular, el vino y la cachaza). Estas substancias que provienen del mundo de
los “blancos”, generalmente, tienden a ser asociadas como parte de la comida
“fraca”, cuyo consumo excesivo debilita los cuerpos y lleva a adolecerlos. Esta
primera asociación pone en juego las nociones de comida “tradicional”, comida
“fuerte” y comida “fraca”, develando sus efectos sobre los cuerpos Kaingang, que
se componen de la dialéctica cuerpo - espíritu, generando no solamente efectos
en la salud de las personas sino, también, en el bienestar social y, por tanto, en el
cuerpo colectivo.
Esta enfermedad también se combate a través de la potencia de los espíritus
guía o, incluso, del Espíritu Santo, propio de la imaginería cristiana, cuya impor-
tancia se ha arraigado con la presencia de las iglesias pentecostales en la locali-
dad. Así, el artículo propone, atendiendo a la pregunta del dossier, que el azúcar
en la sangre, en este contexto, carga consigo sentidos que se expresan en la inten-
ción de restablecer la salud de las personas –o más específicamente a fortalecer
los cuerpos kaingang – a la vez que denotan la historia del conflicto y del contacto
interétnico en la región, así como la tradición, los contextos de intermedicalidad
y la violencia de la colonización biomédica.
Para articular analíticamente la discusión propuesta, se torna fundamental
establecer que en el desarrollo de este trabajo hemos entendido la Tierra Indígena
Xapecó (TIX) como una zona de contacto, es decir un espacio de encuentros “co-
loniales” donde personas “separadas geográfica e históricamente establecen rela-
ciones duraderas, que por lo general implican coerción, inequidad radical y con-
flicto intolerable” (PRATT, 2010: 33). El uso de esta categoría analítica permite
aproximarnos al contexto de interactividad constante e histórica que se da entre
los Kaingang de la TIX y no indígenas, que efectivamente genera situaciones de
encuentro, intercambio y conflicto en la localidad, a partir de las cuales surgen,
PORTELA GARCÍA, Sandra Carolina.
99
2 Interesante anotar que el estudio en conjunto de la diabetes y la HTA se debe a la existencia de “una cantidad conside-
rable de pacientes que presentan ambas enfermedades, lo cual ha llegado a plantear a los investigadores la posibilidad de
un nexo fisiopatológico que las ligue entre sí” (véase Orozco, 2004).
fermedades en varias regiones del país y entre varias etnias (CARDOSO, MAT-
TOSY KOIFMAN, 2003; GIMENO et al., 2007; SALVO et al., 2009; OLIVEIRA
et al., 2011; ROCHA et al., 2011; BRESAN, BASTOS y LEITE, 2015)3, lo que re-
afirma la importancia de este problema de salud para los pueblos indígenas bra-
sileños. Como mencionan Bresan, Bastos y Leite (2015), los datos arrojados por
esos estudios aún son insuficientes para conocer de forma amplia la distribución
y ocurrencia de estas enfermedades en el país.
Dichas investigaciones y sus resultados hacen hincapié en el contacto con la
sociedad nacional como uno de los factores fundamentales que estimula la pre-
sencia de estas enfermedades entre los pueblos indígenas a los que se aproximan:
cambios en la alimentación y dinámicas de trabajo, entre otros, tendrían un papel
esencial en el aumento de la HTA y la diabetes en estos contextos, perspectiva que
no es ajena a la trazada por ellos mismos, aunque esta se complejiza cuando se
entrecruzan con los procesos cosmológicos, históricos, la tradición y sus actuali-
zaciones.
El reconocimiento que generan este tipo de trabajos en lo que refiere a la exis-
tencia de las enfermedades aquí citadas es necesario y pertinente en la medida en
que pone en evidencia la importancia de los procesos históricos, sociales y cultu-
rales que influyen en la salud de los pueblos indígenas (COIMBRA y SANTOS,
2000), así como los cambios producidos por el contacto con la sociedad nacional
en diferentes momentos históricos (LANGDON y ROJAS, 1991). Sin embargo,
aunque estos factores se enuncian, no siempre se establece una correlación con
el contexto particular del que se habla, debido a que los datos que componen estos
estudios son principalmente fisiológicos y antropométricos. En el caso específico
de los indígenas kaingang, la literatura sobre HTA y diabetes no es muy diferente.
En 2015, un estudio epidemiológico reveló un 35% de prevalencia de dicha enfer-
medad en la región, lo que muestra que este es un problema de salud relevante
en la localidad (BRESAN, BASTOS y LEITE, 2015).
ACENO, 7 (14): 97-118, maio a agosto de 2020. ISSN: 2358-5587
Modos de indagación
Es importante mencionar que este artículo surge a partir de una trayectoria
de investigación que comenzó en el año de 2009 con los indígenas Kaingang de
la TIX5, ubicada al oeste del estado de Santa Catarina (sur del Brasil). La inten-
ción fue la de describir las prácticas de auto atención (MENÉNDEZ, 2003) que
estos realizaban para controlar y tratar la diabetes y la HTA, dando origen a mi
tesis de maestría en antropología social (PORTELA, 2010). A partir de este pro-
ceso y de la experiencia en investigación con este pueblo, que se extendió por ocho
años más, han surgido una serie de inquietudes y comprensiones que me llevan a
profundizar y elaborar cuestiones como las que nos ocupan en este artículo, a sa-
ber, la necesidad de comprender a profundidad lo que implican las narraciones
por ellos realizadas sobre el origen que se le atribuye a la diabetes y lo que estas
dicen del contexto histórico y contemporáneo en el que se desenvuelven.
Durante el trabajo de campo, cuyo producto se materializó en la tesis citada,
se sembraron las inquietudes que se han ido desarrollando a lo largo del tiempo
PORTELA GARCÍA, Sandra Carolina.
y alrededor del tema. Por eso, es importante mencionar que, a pesar de que se
establecieron frecuentes conversaciones y diálogos con el Equipo Multiprofesio-
nal de Salud (EMSI), las “remedieras” (especialistas en salud Kaingang) y algunos
“ Azúcar en la sangre”
Según Almeida (2004), los primeros contactos oficiales con los grupos iden-
tificados como Kaingang, de los que se tiene registro, remiten a los campos de
Guarapuava (SC), en el año de 1771, a partir de la expedición del teniente coronel
Alfonso Botelho Sampaio e Souza. Antes de esa fecha, existen también datos so-
Dossiê Temático: O que carrega o sangue?
bre la presencia de una serie de misiones jesuitas donde estos fueron catequiza-
dos. Con ello, sabemos que los guaraní y kaingang fueron catequizados en 5 de
las 14 misiones establecidas en la región de Guairá (ALMEIDA, 2004).
Es importante puntualizar aquí que, así como lo menciona Greene (1998), las
reducciones establecidas por medio de las órdenes reales en América del Sur con
la intención de contener, controlar y “convertir” a los pueblos indígenas, incluían,
además de la instrucción religiosa y la intervención militar, la intervención mé-
dica occidental. De esta manera, la empresa colonizadora habría dado un paso
importante para la “conquista médica”, usando el término propuesto por Kay
(1987).
Esta conquista no puede ser leída como la simple introducción de una nueva
alternativa terapéutica en un nuevo contexto, sino que evidencia la dificultad de
los indígenas americanos para controlar, tratar y curar, a partir de sus sistemas
médicos, las enfermedades traídas por los europeos desde el contacto, dolencias
para las que no tenían inmunidad y que fueron la razón principal para la reduc-
ción de la población indígena en América. En el caso de Brasil, según Langdon y
Rojas (1989), esta disminución fue dramática, pues la población indígena, esti-
102 mada en dos o tres millones de personas en la época de la Conquista, pasó a contar
con aproximadamente 250.000 personas en la década de los 80´s.
Moreira Neto (1972) nos indica que después de la expulsión definitiva de los
jesuitas en el Brasil hubo una discontinuidad en la presencia de instituciones
como la iglesia católica y las colonias militares y que estas solo volvieron a hacer
presencia en la región en el año de 1843, cuando los monjes capuchinos quedaron
a cargo de la catequización de los indígenas del sur. Es importante destacar que
de manera paralela a los intentos de catequización que se daban por parte de los
gobiernos provinciales, existió la práctica de un catolicismo de monjes peregrinos
errantes que compartían con diversas comunidades indígenas. Entre los kaingang
se destacó la figura de São João Maria D’Agostini (ALMEIDA, 2004: 27), quien
hasta hoy es conmemorado en el calendario religioso de este grupo. La llegada de
esta nueva serie de misiones en mediados del siglo XVII es también sintomática
de un proceso más ambicioso: la ampliación de las líneas de colonización de los
territorios del sur del país, donde tradicionalmente se han asentado indígenas
Kaingang, Guaraní y Xokleng.
Además de las misiones religiosas, se estableció entonces un “pelotón” de sol-
dados en el campo de Palmas, para promover la explotación de recursos naturales
y se crearon dos colonias militares: “Chapécó” y “Chopim”. La primera, localizada
en el actual municipio de Xanxerê (ubicado a 25 kilómetros de la actual TIX).
Esas colonias tuvieron como objetivo la protección de los nuevos colonos frente a
las posibles ofensivas realizadas por los indígenas, además de la civilización de
los nativos a través de la catequización y el aumento de la frontera agrícola
(BLOEMER y NACKE, 2008).
En este proceso de búsqueda estatal por el progreso a partir de la coloniza-
ción, surge otro antecedente importante en la historia del contacto de los pueblos
indígenas de la región con el estado. Según datos de Bloemer y Nacke (2008), con
la concesión de la línea férrea en el estado de Río Grande del Sur (1889), varias
empresas colonizadoras desplazaron de sus territorios a indígenas y “mestizos”
de la región. Ante la presión ejercida por esta obra y sus consecuencias, el estado
de Paraná creó dos reservas, mediante Decreto No. 7, de 18.06.1902 (Governo do
Paraná), actualmente conocidas como Tierra Indígena Xapecó (donde se realizó
este trabajo) y Tierra Indígena Palmas, donde algunos indígenas kaingang y gua-
raní se refugiaron. Sin embargo, no todos los indígenas se adscribieron a las re-
servas manteniéndose dispersos y manteniendo su identidad y cultura. En el año
de 1980, estos grupos se reorganizaron con la intención de reivindicar sus terri-
torios, siendo la lucha por la tierra una constante histórica que se teje hasta hoy,
debida especialmente a la reducción de áreas indígenas dada en años posteriores
PORTELA GARCÍA, Sandra Carolina.
cina y al monocultivo de soya han limitado las posibilidades de mantener las di-
námicas económicas tradicionales del pueblo kaingang. Así, desde los años se-
tenta, se mantiene una relación de dependencia laboral y mercantil con los no
indígenas, en una dinámica de trabajo asalariado y brazal, que afecta también la
salud de aquellos individuos que trabajan en frigoríficos y cultivos (ya sea por el
desgaste físico o la exposición a diferentes tipos de agrotóxicos) y a la comunidad,
por el deterioro ecosistémico de los territorios. Esto, sumado al cambio en los
patrones alimenticios, que se han modificado grandemente ante la imposibilidad
de obtener del medio ambiente los alimentos “propios” de la tradición asociados
a la caza, la pesca y el cultivo de huertas.
103
de Sarón, o Rei da Glória, Brasil para Cristo y Noiva de Jesus. Algunas de estas
iglesias permanecen en el tiempo, otras son reemplazadas, pero su disponibilidad
es siempre variada.
La década de los 90’s es también una década en la que se da un proceso sis-
Dossiê Temático: O que carrega o sangue?
104
Los indígenas kaingang se localizan en la región Sur del Brasil, en los estados
de São Paulo, Santa Catarina, Rio Grande do Sul y Paraná. Pertenecen a la familia
lingüística Jê (MAYBURY, 1979). En la actualidad, constituyen el grupo Jê más
numeroso del país, con cerca de 37400 individuos (IBGE, 2010). La organización
social kaingang se asocia con la existencia de mitades clánicas patriarcales, kaimé
y kairu (OLIVEIRA, 1996; ALMEIDA, 1998; DIEHL, 2001). Esta organización se
basa en la uroxilocalidad y la patrilinealidad. Los seres de la naturaleza también
ser clasifican de acuerdo con el dualismo kaingang (HAVERROTH, 1997).
El cuerpo kaingang se entiende como la extensión del dominio cosmológico
de la naturaleza. Así, la persona se constituye por el cuerpo y, más en específico,
por la relación cuerpo-espíritu, kuprig o kumbã9. El espíritu puede salir del
cuerpo —hã—; entonces, éste se debilita y enferma (CARVALHO, 2008). El
cuerpo y el espíritu deben recibir cuidados y, ante la presencia de enfermedad, el
tratamiento debe encaminarse a la restitución de la fortaleza corporal.
Según Carvalho (2008), entre los kaingang y otros pueblos indígenas brasi-
leños, el cuerpo no es una totalidad y el uso del concepto de corporalidad se ade-
cua en la medida en que en esas sociedades se revela una dialéctica para la com-
prensión de un sujeto social, ya que, como mencionan Seeger, Da Matta y Viveiros
de Castro (1979), al mismo tiempo que se tiene una matriz de cuño individual —
semen, sangre, espacio en la aldea, casa— se tiene un colectivo social —alma,
nombre, papel o rol social—. Es importante tener en cuenta que, como nos men-
cionan estos autores, la socio-lógica indígena se apoya en una fisio-lógica y que
el cuerpo físico no constituye la totalidad de la persona. Turner afirma que el
cuerpo kaingang debe entenderse como un conjunto de sentidos que congrega los
aspectos sociales, biológicos y culturales, y constituye una identidad social, la cual
es producto y productora de la estructura social y la cosmología (CARVALHO,
2008).
Esta investigación atiende a este llamado y comprende al cuerpo kaingang en
esa multidimensionalidad. En lo relativo al tratamiento de la salud y la enferme-
dad, en la medicina tradicional10 kaingang, existe una serie de especialistas nati-
vos cuyos saberes estarían encaminados al restablecimiento de la salud. Se des-
tacan el kujá —hombre sabio—, los curanderos, las “remedieras”11 y los(as) “ben-
zedeiros” o “benzedeiras”12. Según Crépeau (2002), los kujá distinguen entre dos
tipos de saberes: guiados y no guiados. Los saberes guiados corresponden a las
PORTELA GARCÍA, Sandra Carolina.
prácticas asistidas por auxiliares no humanos, tales como monos, serpientes, aves
y jaguares. Los animales auxiliares asisten al kujá en el tratamiento de los enfer-
“ Azúcar en la sangre”
9 Carvalho (2008) se refiere al espíritu con la palabra kaingang kuprig; Veiga (2000) denomina al espíritu con la palabra
kaingang kumbã.
10 Así denominada por los kaingang, la medicina tradicional hace referencia a todos los conocimientos que, aunque no le
sean propios, reconocen como suyos. En este artículo se entiende que la tradición está en continuo movimiento, es diná-
mica y se nutre de momentos históricos y saberes, se actualiza y se modifica. 105
11 Por lo general, mujeres especialistas en el conocimiento de las plantas medicinales.
12 Benzedeiros viene del verbo portugués benzer y se traduce como bendecir o persignar. Los benzedeiros tienen entre sus
funciones bendecir el remedio. Algunos sabedores pueden tener conocimientos referentes a varios tipos de especialidades.
En la cosmología kaingang, según registros de Vega (2000) y también de mi
experiencia de campo, el hombre es quien fabrica los hijos a partir de la potencia
de su semen; sin embargo, a pesar de este aparente control en la producción del
cuerpo de los(as) niños(as), su control es parcial, ya que son las mujeres quienes
tienen dominio del proceso de fecundación y dan a luz, son ellas quienes los nu-
tren y los cuidan (ROCHA, 2005). La alimentación juega un papel fundamental
en la construcción de los lazos sociales y de familia consanguínea establecidos,
pues tal y como registra Veiga (2000), “si una mujer amamanta su propio hijo y
al hijo de otra, estos se tornan hermanos de leche y así se reconocen entre ellos”13
(VEIGA, 2000: 100).
Compartir el alimento fabrica los cuerpos en la medida que se comparte subs-
tancia y sociabilidad, activando el circuito de intercambio y reciprocidad que nos
propone Mauss ([1924] 2009). Es importante compartir el alimento, brindarlo y
recibirlo en las visitas, pues a través de él se fortalecen los lazos de sociabilidad y
se construyen cuerpos. Por ejemplo, durante mi primera experiencia de campo
entre los Kaingang, mi hija, que me acompañó en el proceso, era entendida como
“india”, en la medida en que se alimentaba con gusto de la misma comida que se
ofrecía a todos los demás niños de la casa; ella llegó, incluso, a ganar un nombre
indígena, dado por parte de la mujer que nos hospedaba y que fue usado para
llamarla en los círculos más próximos de nuestra socialización. Obviamente, esto
también se debía a la manera en que ella atendía las orientaciones de las mujeres
de la casa, sabiendo que ellas son las encargadas de transmitir los valores que
construyen al sujeto kaingang en este contexto. Esta asociación también se enun-
ció cuando, en el proceso de campo, yo misma comencé a ganar peso; para las
mujeres, esto indicaba que, poco a poco, yo iba ganando “cuerpo de india”, lo que
se asociaba también a mi aprendizaje de ciertos aspectos domésticos y de la
crianza, así como de la lógica de las relaciones en ese contexto, lo que me posibi-
litaba un horizonte fortalecimiento de aquellas relaciones que inicialmente no era
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posible establecer.
Aún sobre el aspecto de la alimentación, vale la pena resaltar que los kaingang
categorizan los alimentos como “fuertes” o “fracos”14, asociándolos directamente
a la capacidad de fortalecer o debilitar el cuerpo a partir de su consumo ocasional
Dossiê Temático: O que carrega o sangue?
o permanente15.
En el trabajo de Diehl (2001), Rocha (2005), Oliveira (2009), Portela (2010),
tanto como entre otros autores, es posible observar una asociación directa entre
los alimentos venidos del mundo de los “blancos” con la noción de alimentos “fra-
cos”, “finos” o “mojados” y con el hecho de que su consumo constante es el que
ha debilitado la salud de este pueblo. Los cambios en las dinámicas económicas
de la alimentación llevan a las personas a consumir en mayor volumen los ali-
mentos procesados y cultivados con agrotóxicos, perdiendo la tradición gastro-
nómica que garantizaba la fortaleza corporal, en algunos casos a través del argu-
mento de que los cuerpos kaingang no están hechos para ser alimentados con
comidas extranjeras y si, con las propias, las de la tradición.
Los citados autores evidencian en diferentes formas y experiencias el hecho
de que, para los kaingang, los “antiguos” no se enfermaban, “no les caía ni la
gripa”, no sufrían de enfermedades como el cáncer y otras que se asocian direc-
tamente a la introducción masiva de nuevos patrones de alimentación relaciona-
dos a los contextos de interacción con los no indígenas. Esta clasificación, como
hacerla salir de allí para poder estar mejor, “pero es difícil sacarla, eso es un mal
que es difícil que se vaya, uno intenta muchas cosas, pero uno sigue enfermo y los
“ Azúcar en la sangre”
exámenes del puesto dicen que seguimos así, entupidos de azúcar y por eso nos
tenemos que cuidar”.
Cuando les consultamos sobre el porqué de la enfermedad, ellos nos dicen
que se debe a que en su juventud ambos gustaban mucho de consumir bebidas
alcohólicas, destacándose el vino, el “vino colonial”, es decir, aquel producido por
los colonos de la región y que se asocia a la tradición europea de los descendientes
Para Ana, dejar el vino fue un gran sacrificio. El médico le pidió que lo hiciera
y ella confiesa que, de vez en cuando, bebe un sorbito para matar las ganas. Para
Pedro, es difícil, porque, además, cuando trabaja en la roza circula el vino y la
cachaza con cierta frecuencia, “es difícil vencer la tentación”, señala. En los con-
textos rituales de sociabilidad y de cuño religioso siempre cuentan con la presen-
cia de la bebida:
en las fiestas, uno hace o va a un churrasco y hay bebida. Yo no puedo tomar e intento
cuidarme, pero es que la bebida está siempre allí. Yo, de pronto, acepto una copita o
dos, pero no más y eso es complicado, porque eso de rechazar lo que a uno le ofrecen
es feo, uno no quiere ofender a nadie. También, que usted sabe que, aquí, cuando se
dice a beber, es a beber. Indio que es indio, bebe hasta caer.
Comenzar a inyectarse insulina fue algo muy difícil para Pedro. Las mujeres
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carlas, pues confiesa que no es capaz de hacerse “eso” a sí mismo tres veces al día.
Pedro manifiesta que las inyecciones le causan tremendo dolor y explica que sólo
se aplica dos dosis diarias, pues en su experiencia con eso es suficiente, se siente
bien y se ahorra un dolor al día. Esto se debe, además, a que, para Pedro, tomar
tanto remedio no puede ser bueno:
uno sabe que esos remedios de farmacia le hacen daño a uno. Yo no digo que en algo
no ayudan, pero es que esos remedios son malos, lo ponen a uno débil, lo arreglan de
un lado, pero lo dañan de otro, entonces hay que moderarlo, ¿no? Tres inyecciones
por día son demasiado.
Y es que, además de las inyecciones que toma Pedro, la pareja guarda entre
sus haberes una voluminosa bolsa de plástico con varias pastillas que deben usar
durante el día. Ana dice que algunos de los remedios que debe tomar no la dejan
dormir, le causan ardor en el estómago y no vale tomarlos antes o después de
comer. Por eso, reduce o elimina la dosis anterior al sueño nocturno, para des-
cansar. Reclama que el médico no le ha resuelto el problema y se pregunta si no
habrá un remedio mejor, que no le cause esos efectos adversos, reafirmando que
108 su consumo le genera también malestar: “yo sé que no puedo dejar de tomarlos,
porque me pongo mal, pero me los tomo e igual sigo con esta maluquera, en-
ferma; tanto remedio es difícil tomar, no hace del todo bien”.
Aprovecho el tema y pregunto a Ana por las botellas llenas de hojas, por las
ramas que cuelgan en una pared de la cocina y también por el remedio del que,
incluso, me comparte. Ella me responde que María, antigua auxiliar de salud de
la aldea “Pinhalzinho” y remediera, las ha rezado para ellos y que forman parte
de sus remedios para controlar la hipertensión y así lidiar con la diabetes:
este es remedio del monte, remedio de los kaingang, esto es lo que nos ayuda a estar
mejor; como los medicamentos lo debilitan a uno tanto, hay que tomar “remedio”;
entonces, aquí no nos falta, esto es lo que le da a uno fuerza. El día que no tomamos,
ahí sí que es cierto, yo no me puedo ni parar de la cama. Si solo me tomo el remedio
del médico, seguro me muero.
Dice Pedro:
“yo siempre voy y los busco (los remedios preparados contenidos en botellas). Eso es
bendito. Y aquí tenemos los remedios [refiriéndose a las ramas que cuelgan de la pa-
red] para poder prepararlos con el mate; así, si nos falta remedio [el rezado], por lo
menos tenemos de este otro para poder sanarnos, ¿no?”
Entre las bolsas llenas de medicamentos, las hojas, ramas y botellas que cuel-
gan de la pared, destaca en el espacio de la cocina una mesa en la que Nuestra
Señora Aparecida, san João Maria, velas, estampas de santos y rosarios y otros
objetos se organizan en un altar. Ana y Pedro, fieles devotos católicos, comentan
también que encomiendan su salud a estos santos: “gracias a Dios estamos vivos,
uno tiene sus achaques, pero uno se encomienda y eso ayuda a pasar estas difi-
cultades y a sentirse mejor”, dice Pedro.
Rafael
El Nescafé® consumido por Rafael era además preparado con una generosa
PORTELA GARCÍA, Sandra Carolina.
cantidad de azúcar:
claro, porque es que sin azúcar eso es muy amargo, entonces sabe muy feo, ¿cierto?
Y yo qué iba a saber que eso era una bomba… a mí me gustaba era el Nescafé® y eso
“ Azúcar en la sangre”
es café de mentira, vaya usted a saber eso con que lo hacen, y yo tomando de eso, uno
que sabe qué porquería es que se está tomando… pero yo empecé a comprar ese por-
que mi patrón también tomaba era de ese ahí y a mí me sabía muy rico y empecé a
comprar… y eso que era bien caro, mi mujer me reclamaba por gastar los centavos
en eso, pero yo me daba mi gusto... ahí, con el tiempo, es que uno se da cuenta que
esas cosas hacen mal, que esas cosas empacadas son tan dañinas, lo enferman a uno,
más me habría valido tomarme mi cafecito colado, sin tanto químico, aunque, bueno,
¡ahora todo está lleno de veneno!
Insatisfecho con la poca mejoría que sintió usando los remedios que le ofre-
cieron en el puesto de salud y convencido de la importancia de los remedios tra-
dicionales en la salud kaingang, buscó una remediera que le ayudara a hacer el
remedio, pues él no tenía el conocimiento. Comenzó a beberlo con los medica-
109
mentos que le recetaron en el puesto de salud. Poco a poco, Rafael se sintió forta-
lecido y recuperado, por lo que se aventuró a dejar el medicamento, sin consenti-
miento médico, y se quedó sólo con el té que la remediera preparaba para él:
ahí uno nota la diferencia, ¿no?, ya empecé a sentirme mejor, se me acabaron los
dolores de cabeza, la debilidad, la “tontura”, ahí fui viendo que me convenía más el
remedio del monte y seguí con él. Yo para qué me iba a seguir tomando ese veneno
que me daban en el puesto de salud, yo eso lo dejé y ya ve… ahora estoy curado.
Su experiencia con los remedios tradicionales, como nos deja entrever su na-
rración, fue satisfactoria: Según nos cuenta, siguió el tratamiento con remedios
tradicionales kaingang durante dos años más. Al sentirse restablecido por com-
pleto, suspendió también el tratamiento de la remediera y volvió a su vida normal.
En la actualidad, don Rafael se reconoce como una persona sana, vital, llena de la
fortaleza necesaria para cumplir con sus labores diarias y entiende que gracias al
remedio tradicional superó la diabetes. Eso sí, se siente incómodo con la cons-
tante intervención de los profesionales del puesto de salud, quienes le insisten en
que retome el tratamiento. Cuenta que se ha vuelto un problema ir al puesto de
salud para conseguir una pastilla para el dolor de cabeza o cualquier otro males-
tar; por lo tanto, lo evita, pues no sabe por qué los profesionales insisten en que
es diabético y que debe cuidar de esa enfermedad, ignorando su premisa funda-
mental: “¡No estoy enfermo! ¡Ni, aunque el médico diga que sí!”.
20 A pesar de no evidenciarse directamente en estas narrativas, también es posible atender esta enfermedad a través de
110 prácticas asociadas al pentecostalismo. Para un mayor análisis ver Portela (2018).
21 Lo que evidentemente no niega su consumo en contextos donde prevalece la sociabilidad entre indígenas tales como los
bailes, los juegos de fútbol, las festividades religiosas y culturales, entre otros eventos.
22 Dependiendo si vienen de la tradición o del uso de la potencia del espíritu santo en el caso de protestantes o evangélicos.
“tradiciones” médicas que a priori pueden ser consideradas como incompatibles
unas con otras23 (entre las que se destacan la biomedicina, la “tradición” y las
propias de la religiosidad), pero que en la práctica pueden venir a dialogar y a ser
usadas complementariamente como parte de una serie de estrategias que buscan
el restablecimiento de la salud, y de manera específica, del fortalecimiento de los
cuerpos kaingang.
En este sentido, las prácticas de auto atención contenidas en dichas experien-
cias permiten aproximarnos a la existencia de un contexto de intermedicalidad
(GREENE, 1998; FOLLÉR, 2004) en la región, es decir, un lugar en el que a lo
largo de la historia se han desarrollado contactos o relaciones, que permiten la
coexistencia de varias tradiciones médicas, entre las que hay oposiciones y con-
flictos, así como reapropiación y resignificación de elementos, técnicas de aten-
ción y tratamiento a la salud que se reflejan particularmente en las prácticas de
autoatención realizadas por los kaingang.
Ahora, como se mencionaba al comienzo de este artículo, entre los kaingang,
la corporalidad obedece a nociones asociadas a cuerpo y espíritu que son dialógi-
cas y cuyas fronteras son porosas, razón por la cual se afectan mutuamente. Fa-
bricar un cuerpo kaingang implica un proceso en el que sustancias como el semen
y la sangre son constituyentes de los cuerpos, ya que los hacen física y simbólica-
mente, y que traen consigo y transmiten la herencia de sus predecesores. Es sig-
nificativo, entonces, que enfermedades como la diabetes se materialicen en la
sangre que ahora “está entupida de azúcar” y que por tanto hay que “limpiar”,
pues, a principio, podemos entender que estas afectan al individuo en su salud
física, pero que esta afecta la dimensión colectiva de la corporalidad y del grupo
en la medida que lo que hay en la sangre se transmite y afecta la descendencia;
también, porque la enfermedad es causa y síntoma de una serie de relaciones asi-
métricas y desiguales con una serie de actores sociales presentes en la localidad y
de los que ya hemos intentado aproximar al lector previamente.
En este panorama, observamos que consumir alimentos “fracos”24 debilita los
cuerpos y es por esto que se reconoce entre los kaingang que las nuevas genera-
ciones son más “fracas” (OLIVEIRA, 2009) y que sus cuerpos son menos recios y
se encuentran más expuestos a la enfermedad de manera general, si comparados
con los “antiguos”, quienes según mencionan mis interlocutores y otros pesqui-
sadores que han trabajado con este grupo indígena, destacaban por su buena sa-
lud.
Sin embargo, el sujeto kaingang se constituye también a través de la educa-
PORTELA GARCÍA, Sandra Carolina.
ción en la “cultura” que está asociada al papel de las mujeres – madres, al ámbito
doméstico del aprendizaje y de la alimentación. En la tradición, los alimentos
“fuertes” serían necesarios para mantener la vitalidad no solo del cuerpo indivi-
“ Azúcar en la sangre”
dual sino del cuerpo social: el alimento no sólo es entendido en sus características
nutricionales, o como medio de satisfacción de la necesidad básica de “espantar”
el hambre. El alimento ingerido, compartido y ofrecido al otro, genera y fortalece
23 Contextualmente, es importante decir que entiendo las prácticas de auto atención en esta investigación según la defini-
ción de Menéndez (2003), es decir, aquellas prácticas que buscan prevenir, dar tratamiento, controlar, aliviar o curar una
enfermedad o padecimiento determinados, sin perder de vista que la auto atención se relaciona con las condiciones téc-
nicas y científicas tanto como con las religiosas, étnicas y políticas de una sociedad. La ventaja de este concepto es que
contempla el contexto del que provienen las prácticas escogidas por los pacientes, mientras permite observar los usos
articulados que surgen entre ellas (MENÉNDEZ, 2003; GARNELO y WRIGHT, 2001) y ver la relativa autonomía del
paciente en relación con la escogencia de prácticas que realiza en función de la atención a la salud.
24 Que se encuentran en todos los escenarios de sociabilidad, tales como fiestas, bailes, juegos de fútbol, etcétera, y que no
111
sólo se limitan a los espacios extraordinarios o rituales, sino que permean los espacios cotidianos y domésticos, ya sea a
través del consumo de bebida alcohólica en la jornada de trabajo en el campo, o en el consumo constante de alimentos
azucarados, embutidos y bebidas gaseosas, entre otros, en la dieta.
importantes vínculos, incluso los de parentesco (que no necesariamente debe es-
tar mediado por la consanguinidad), por lo que, así como nos menciona Pedro,
rechazar el alimento o la bebida ofrecida en contextos sociales es “feo”, niega la
relación, o si lo ponemos en términos del don, corta la reciprocidad generando
malestar y rupturas en la relación social (MAUSS, 1924 [2009]), por lo que el
consumo de alimentos y bebidas en contextos intra e inter étnicos son fundamen-
tales.
Buscando la comprensión del argumento que propongo, es necesario traer a
colación la noción de “don” empleado por Mauss, 1924 [2009]), quien, en su En-
sayo sobre el don, que hace explícito el principio común que regula el intercam-
bio, esto es, la noción de dar, retribuir y devolver, nos propone que es en esta
dinámica que se materializa la vida social. Como el autor indica, es necesario en-
tender que, en el intercambio, no circulan solo objetos, sino también amabilida-
des, sociabilidades y personas. Estos, además, no pueden ser entendidos sola-
mente como objetos, por lo que las cosas que circulan en la dinámica social están
dotadas de agencia e intencionalidades y, al transitar, movilizan también un in-
tercambio de materia espiritual o, como él mismo denomina, de hau (MAUSS,
1924 [2009]); es decir, los objetos se impregnan del espíritu, del mana25 de quien
lo posee y aunque el “donante” abandone la cosa, la cosa sigue conteniendo algo
de él.
En las nociones de comida “fuerte” y de comida “fraca” observamos también
que, como nos sugiere Mauss (1924 [2009]), en estas dinámicas de reciprocidad
y sociabilidad circula mucho más que el objeto-alimento/ bebida que se consume.
Además de impactar en las relaciones sociales, lo que se ingiere está cargado con
potencias: la capacidad de fortalecer, enfermar y sanar puede contenerse en ellas.
Es por eso que, por ejemplo, en relación con la diabetes, nuestros interlocutores
nos presentan una serie de usos articulados de prácticas de auto atención que
están destinados a controlarla: tanto el remedio de “farmacia” como el del
ACENO, 7 (14): 97-118, maio a agosto de 2020. ISSN: 2358-5587
“monte” tienen la posibilidad de curar, pero en el caso del primero, siempre existe
la posibilidad de que aquello que podría sanar se convierta en “veneno”. El límite
entre estas dos potencias parece establecerse en las dosis: mucho remedio daña,
nos dicen. O “cura una cosa, mientras daña otra”.
Dossiê Temático: O que carrega o sangue?
112
25La fuerza mística que abarca a todas las cosas y seres del universo. El mana, nos dice Mauss (1924 [2009]), es verbo,
substantivo y adjetivo, localizable y omnipresente, subjetivo, objetivo, maléfico y benéfico.
tido estricto, asociado al uso de agrotóxicos, fertilizantes y demás productos quí-
micos en su composición); por otra parte, proviene del hecho de que contiene la
potencia de la cultura que adhiere a él a través de los rezos que él o la especialista
que los prepara les imprime. La tradición y la cultura fortalecen y se expresan
materialmente en el remedio, que es consumido y que circula también en los cuer-
pos kaingang constituyéndolos, contribuyendo en sus procesos de sanación y re-
sistencia a la enfermedad.
Observamos que en las experiencias aquí presentadas, los kaingang que se
auto reconocen como diabéticos entienden el origen de su enfermedad causado
por el consumo de vino, cachaza y Nescafe®, alimentos que, en principio, no se
entienden como propios de la “tradición”, esto es, las bebidas alcohólicas enten-
didas como propias de los “antiguos” se desprendían del maíz y se preparaban a
través de procesos de fermentación, diferente de la cachaza o el vino, que en su
proceso de destilado e industrialización cargan la potencia de lo “fino”, lo “mo-
jado”, lo “fraco”, que debilita. Si bien no podemos entender que el consumo de
estas bebidas se da exclusivamente en el contacto con los no indígenas ya que en
la vida cotidiana, como se enuncia en los comentarios de don Pedro (cuando dice
que es difícil resistirse a la tentación de un trago en medio de un evento social o
fiesta religiosa), o como presenta en su investigación Gigghi (2010), se hace evi-
dente que el consumo de bebidas alcohólicas se ha tornado también un aspecto
de sociabilidad fundamental entre los kaingang. Lo que sí es posible, es entender
que la implementación del uso de estas se da en el proceso de relación e inter-
cambio con la sociedad nacional. Asociada al trabajo y al comercio, a la dinámica
de circulación en las ciudades, en lugares de ocio y entretenimiento; estas bebidas
se tornan disponibles y necesarias para poner a rodar el don inclusive en las di-
námicas interétnicas de sociabilidad (GIGGHI, 2010).
Así es como el alimento-comida, el alimento-bebida, hace parte del proceso
de compartir y generar lazo social en la comunidad; es por eso que está presente
en fiestas, juegos de fútbol, rituales, bailes y en la cotidianidad tanto en relación
con indígenas como no indígenas. Al respecto, Langdon (2001) nos indica la ne-
cesidad de entender qué se bebe, cómo se bebe y cuándo se bebe entre las dife-
rentes poblaciones indígenas para la identificación y comprensión de los contex-
tos en los que la bebida alcohólica se torna objeto de sociabilidad. Sobre el asunto,
Gigghi (2010) propone un acercamiento a estas dinámicas entre los kaingang, que
allí pueden ser observadas con profundidad. El trabajo del autor nos muestra que
las poblaciones locales sometidas a un contexto amplio de dominación y contacto
PORTELA GARCÍA, Sandra Carolina.
acaban reproduciendo modos de beber muy parecidos con la sociedad que los
cerca (GIGGHI, 2010: 30) y que las prácticas de consumo de alcohol en comuni-
dades indígenas deben ser pensadas como un fenómeno construido a través del
“ Azúcar en la sangre”
das.
La práctica del consumo del remedio tradicional kaingang (y de manera ge-
neral de alimentos “fuertes” y del fortalecimiento de la “cultura propia” en dife-
rentes escenarios”) buscan entonces neutralizar y resolver – o al menos, lo inten-
tan- en la praxis, la asimetría que existe en el contexto histórico y social que viven
en relación a los no indígenas: Los medicamentos, la insulina, los remedios del
monte y otras sustancias que entran en el proceso de atención y cura de la enfer-
medad no son meros objetos o sustancias con composiciones físico químicas va-
rias, ellas están impregnadas de intencionalidad, mana, fuerza y potencia, que
deviene de ambos mundos; al ser usadas, se tornan en la posibilidad de restable-
cer la continuidad de las relaciones sociales quebradas al impactar en los cuerpos,
en la salud individual y colectiva.
La tradición y la cultura toman aquí el papel de reorganizar la experiencia de
dolencia y de colectividad que compone la noción de corporalidad. La sangre se
torna también el escenario de disputa donde se busca restablecer la salud o la
fortaleza corporal a través de la cultura, la identidad, la potencia del remedio, la
lucha por sanar la sangre y sanar la vida en lo individual y lo colectivo, de devolver
114
26El papel del consumo de alcohol en comunidades indígenas se muestra como una práctica sumamente problemática en
Latinoamérica, siendo también posible pensar en una colonización de estas poblaciones a partir de su consumo.
o contrarrestar el don recibido y poner a circular la reciprocidad en pro de rela-
ciones más simétricas con el mundo no indígena.
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“ Azúcar en la sangre”
118
Relações e substâncias:
apontamentos sobre corporalidade e
concepção Mbya-Guarani
Luna Mendes1
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Relaciones y sustancias:
apuntes sobre corporalidad y concepción Mbya-Guaraní
120
N
este artigo realizo uma revisão bibliográfica parcial sobre a corporalidade
Mbya-Guarani enfatizando aspectos que ajudem a pensar e entender o
modo como gênero aparece e é ativado nas relações. As formulações indí-
genas sobre corpo e pessoa constituem um potente caminho para dar visibilidade
às relações de gênero ao informar sobre aspectos das relações sociais ameríndias
a partir das diferenças nos modos como domínios da vida social envolvem ho-
mens e mulheres, nas agências em torno das práticas cotidianas. Procurei perce-
ber nessa revisão o modo como as substâncias aparecem nas descrições etnográ-
ficas, a produção do corpo envolve uma série de práticas que atravessam diferen-
tes domínios da vida cotidiana e que remetem à constante instabilidade dos cor-
pos; consiste em uma manutenção de distâncias e proximidades fundamentais
entre seres, e passa por vinculações de gênero. Em síntese, procuro agregar aqui
descrições que apontam para como falar em substâncias implica falar em rela-
ções.
Realizar uma revisão bibliográfica deste povo, sobre o qual páginas e páginas
já foram escritas, é tarefa difícil, qualquer critério adotado para uma revisão deixa
de lado muitas etnografias e questões importantes. Para tanto, optei por três re-
cortes principais: trabalhos que tratam da temática corpo e pessoa e que apresen-
tam questões relativas a gênero ou a aspectos do cotidiano; trabalhos formulados
a partir de interlocuções com mulheres mbya; e materiais que procuram inserir a
descrição etnográfica dos Guarani em um debate mais amplo no campo da etno-
logia indígena sul-americana (VIVEIROS DE CASTRO, 1996; LIMA, 1996). As-
sim, as etnografias de Suzana de Jesus (2015), Maria Paula Prates (2013) e Flavia
Mello (2006) entraram neste corpus porque além de passar pelos temas de corpo
e pessoa, o fazem a partir de um recorte de gênero. Os trabalhos de Elizabeth
Pissolato (2007), Valéria Assis (2006) e Martin Tempass (2005) porque trazem
questões relativas às produções cotidianas mbya. Compõem ainda essa revisão
uma série de outras etnografias que auxiliaram a elucidar determinados pontos:
Benites (2018), Lewkowicz (2016), Mendes (2016), Affonso (2014), Pierri (2013),
Heurich (2011), Ciccarone (2001).
ção de um corpo específico para tal, processo que está vinculado às relações man-
tidas, eclipsadas, estimuladas e evitadas por cada um. Valéria Assis (2006) relata
um episódio que exemplifica bem essa complexidade: um homem mbya, por ter
MENDES, Luna.
2Pierri (2013: 159) ressalta que em determinados casos porã pode ser traduzido por uma noção aproximada de imperecí- 121
vel, qualidade associada aos elementos que existiriam no mundo divino. Porã costuma ser traduzido por belo, bom, bo-
nito. O teko porã opõe-se ao teko axy, o primeiro emula o modo de vida das divindades, o segundo remete ao polo da
humanidade (PIERRI, 2013).
cessos de produção de corpo e pessoa remetem, principalmente, aos agenciamen-
tos dificultados ou facilitados pelas relações entre seres, através de um cuidado
entre quais vínculos serão estimulados ou eclipsados através dos usos de subs-
tâncias, objetos, alimentos, etc. Cabe destacar aqui a centralidade da noção de
nhe’e3 (alma-palavra) para pensar esse tema, de acordo com Suzana de Jesus:
"corpos guarani são assim constituídos por substâncias (seja sangue, leite ou co-
mida) e palavras" (Jesus, 2015:128). Alguns autores (MELLO, 2006; PISSO-
LATO, 2007; HEURICH, 2011) apontam para a impossibilidade de compreensão
da nhe’e sem pensar o corpo.
Entre os Mbya, tete é usado para se referir às partes físicas visíveis de um corpo, dos
pés à cabeça, mas também para partes internas como o sangue. É a palavra usada tam-
bém para designar “uma pessoa”: peteĩ tete. A alma-divina (ñe’e) também é uma pes-
soa, mas distinta de tete: a forma com que os Mbya se referiam a ñe’e indicava que
tratavam de outra pessoa: era como se estivessem falando de Pedro ou Paulo, de outro
alguém: os desejos de ñe’e, os cuidados com ñe’e e as ações que se devem evitar – e
realizar – para que ñe’e não se afaste de tete. (HEURICH, 2011: 48)
Acerca desse tema cabe realizar uma aproximação com o trabalho de Viveiros
de Castro, para quem o corpo não deve ser lido apenas a partir de diferenças fisi-
ológicas, mas como “um conjunto de maneiras ou modos de ser que constituem
um habitus” (VIVEIROS DE CASTRO, 2011: 380). Ou seja, depende mais das re-
lações e práticas em que se está engajado do que de características substanciais.
Para os Mbya, a nhe’e é incorporada e impõe sua perspectiva, no entanto o corpo
precisa continuar a ser estabilizado via fabricação porque segue sendo alvo de
disputas de perspectivas que podem ser incorporadas ao longo da vida e com isso
implicar mudanças até o limite das transformações.
Nesses processos, as relações ganham centralidade. Manter ou não relações
com pessoas e seres também tem a ver com alimentação, uso de objetos, emoções;
no modo como se ativam ou eclipsam relações. Nesse sentido, a produção corpo-
ACENO, 7 (14): 119-136, maio a agosto de 2020. ISSN: 2358-5587
ral não remeteria a uma domesticação do corpo pela cultura, o corpo é a expres-
são do sujeito, é aquilo que se mostra aos outros. E é por aquilo que se mostra aos
outros em períodos de vulnerabilidade que a incorporação de outras perspectivas
seria facilitada o que, portanto, aumenta a suscetibilidade à transformação cor-
Dossiê Temático: O que carrega o sangue?
poral. Assim, o corpo figura como local de disputa de perspectivas: a porção espi-
ritual divina, nhe’e; a sombra, alma telúrica, angue; os estados afetivos que favo-
recem a incorporação de determinados ja (donos); os estados corporais alcança-
dos através dos alimentos que vão deixar um corpo quente, frio ou brando; etc. É
preciso ressaltar que os diversos componentes da pessoa mbya implicam dimen-
sões verticais e horizontais nessa fabricação, Hélène Clastres apontou para essa
ambivalência dos habitantes da terra: "dotados de uma alma-palavra, ligada ao
esqueleto, também possuem uma 'alma' ou 'natureza' animal, vinculada ao san-
gue e à carne: teko achy kue é o produto da existência má, aquilo pelo que parti-
cipam da animalidade" (CLASTRES, 1978: 94). É importante ressaltar que essas
dimensões não constituem categorias taxônomicas fixas, mas se atualizam nas
relações que são estabelecidas com os diferentes seres que povoam o cosmo.
Mendes (2016) percebe a pessoa guarani como dividual, cuja produção se dá
por contraste com outras categorias de seres. O autor define linhas que conectam
os Guarani a categorias de seres; o deslocamento em direção a cada um desses
polos ativa ou eclipsa determinados aspectos da pessoa mbya. Comer carne crua,
122 3A pessoa mbya seria formada, no mínimo, por uma parte divina nhe'e – um conceito central na etnografia guarani que
costuma ser traduzido como ‘alma-palavra’ – que é enviada pelos deuses e está vinculada ao que a pessoa é, seu nome, as
palavras que profere; e uma parte telúrica angue traduzida como sombra e vinculada aos demais seres que habitam o
mundo mbya.
por exemplo, aguça o aspecto animal; carne cozida, o humano. O que a pessoa
mbya é dependeria das relações que são estabelecidas e também das relações que
são eclipsadas, mas que permanecem nesse “feixe de afecções”; enquanto possi-
bilidades de ativação, no sentido de que remetem a perspectivas passíveis de in-
corporação.
Assim, quando se trata de corpo e pessoa, a instabilidade é constituinte dos
diferentes modos de ser e estar no mundo, no sentido de que tanto corpo como
humanidade são uma perspectiva (definidos por relações). O que conta como
corpo para os ameríndios não envolveria somente um corpo “natureza”, fisioló-
gico e substancialista; mas algo mais próximo de um corpo que figura como cen-
tro de uma série de relações possíveis; esse corpo produzido por afecções (VIVEI-
ROS DE CASTRO, 2011).
Sangue e substâncias
Para os Mbya a diferença nas relações reside principalmente nos corpos, seus
corpos não são os mesmos dos outros seres, suas substâncias diferem. Nesta di-
reção, um tópico recorrente nas etnografias guarani é o risco da mistura de san-
gue através de relações sexuais (PIERRI, 2013; PRATES, 2013; ASSIS, 2006;
TEMPASS, 2005). Diz-se dos jurua (não-indígenas) que por terem o sangue di-
ferente podem tornar doente o guarani, porque o sangue mbya é mais fino e mais
fraco que o dos jurua: "nossos corpos, nossos fluidos não são os mesmos ou, no
mínimo, não com a mesma potência" (PRATES, 2013: 31). Como vimos, filhos de
casamentos interétnicos não teriam corpos estritamente mbya e correriam o risco
de não serem aceitos na morada dos deuses mesmo seguindo uma vida inteira de
cuidados e rituais (ASSIS, 2006). Cabe ressaltar que o sangue não é entendido
aqui em seu aspecto estritamente biológico, mas envolve dimensões afetivas,
mentais e espirituais. A administração dos fluxos de sangue não se restringe ao
âmbito corporal, mas reverbera na saúde, no teko porã, nas comunicações com
os deuses, nas relações. Misturar o sangue provoca desequilíbrios: "o sangue ju-
ruá entra por via genital e ao circular pelo corpo mbya enfraquece até mesmo o
pensamento do guarani" (PRATES, 2013:31). Nesse ponto, as mulheres por san-
grarem com mais frequência seriam menos expostas aos riscos de contaminação,
pois junto com a menstruação sai o sangue que provoca desequilibrio; para ate-
nuar os mesmos riscos os homens precisariam passar por intervenções, é preciso:
"se arranhar fortemente com galhos de árvores nas pernas e braços a fim de fazer
seu corpo sangrar e assim cessar a contaminação" (PRATES, 2013: 31).
O compartilhamento de substâncias transforma marido e mulher em paren-
tes de sangue (yguyretarã), a troca de constantes fluidos corporais (apyndjy)
Relações e substâncias
os mais velhos dizem que dormir com brancos leva à morte, porque o sangue se
mistura também no corpo daqueles que o fazem" (PIERRI, 2013: 177). Prates
(2013) observa as mesmas elaborações referentes ao sangue com relação ao leite
materno. Naturezas diferentes envolvem corpos e substâncias específicas que
produzem efeitos nos corpos com os quais entram em contato, seja através da
relação sexual, da amamentação ou outros compartilhamentos. Por esse motivo
bebês mbya são diferentes de bebês jurua, não possuem os mesmos corpos, não
podem ser submetidos às mesmas substâncias. Sobre uma família mbya cujo bebê
após o parto precisou ficar internado em um hospital, Ferreira descreve: “A famí- 123
lia indígena ficou assustada diante da possibilidade do neném estar sendo ali-
mentado com leite de mulher branca, porque isso lhe causaria outras doenças
futuramente” (FERREIRA, 2013: 1156).
O sangue aproxima-se dos elementos associados aos aspectos telúricos da
existência, e pode ser associado ao tupichua (“princípio vital da carne crua”, Clas-
tres, 1978:96): "Proveniente da carne crua, mas também do sangue, de uma forma
geral, tupichua pode aproximar-se da pessoa e transforma-la em jaguar: o caça-
dor mesquinho e solitário, comendo sozinho na floresta, atrai inevitavelmente tu-
pichua" (HEURICH, 2011:113). Da mesma forma a mulher menstruada precisa
evitar rios e matas porque seu corpo nessa condição atrai seres que devem ser
evitados. O tupichua teria se originado da desavença mítica com os jaguares, por-
tanto tudo que não é guarani não corre o risco de ter tupichua (carnes compradas
em mercado, animais domésticos) (TEMPASS, 2005).
Prates (2013) relaciona o tupichua com os ja (donos), como uma ação decor-
rente da mediação que os ja fazem entre relações humanas e não humanas: “o
tapichua enquanto princípio vital é a ação decorrente dessa troca, uma vez que
ao alocar-se na carne e no sangue da pessoa tende a enfraquecer sua ñe’e e, por
consequência, desestabilizar e viabilizar o -jepota” (PRATES, 2013: 211). Senti-
mentos como a raiva e o ciúme provocam o nhemboaxy – sentir pena de si
mesmo, ser digno de pena (PRATES, 2013), enfraquecem o pensamento, e con-
sequentemente o corpo, tornando a pessoa vulnerável a transformações corpo-
rais. Conforme Benites: “os cuidados com o corpo feminino são muito importan-
tes para a construção do ser mulher guarani e evitar o estado de poxy, de vulne-
rabilidade, dos efeitos do sangue, tuguy” (BENITES, 2018: 11). Esses estados pro-
piciam o risco de incorporar o tupichua e outros ja que circulam no corpo en-
quanto substâncias competindo por uma apropriação da perspectiva de nhe'e
(PRATES, 2013) e incitando desejos específicos que se aproximam dos aspectos
atribuídos à antissocialidade mbya (comer carne crua, andar sozinho e à noite).
ACENO, 7 (14): 119-136, maio a agosto de 2020. ISSN: 2358-5587
(Belaunde, 2008: 54). McCallum (2001) observa que o sangue menstrual, assim
como outras substâncias corpóreas, conecta humanos e espíritos porque quebra
a separação entre domínios. Seu cheiro conecta e torna visível o que normalmente
MENDES, Luna.
é invisível.
A força do sangue e as potências que ele é capaz de acionar tornam a mulher
menstruada um canal de comunicação que se estende para seus parentes; o útero
minina teria sido ocasionada por Jaxy. É referência comum nas narrativas ame-
ríndias a relação incestuosa e sem consentimento de Lua com uma parente do
sexo feminino que, para o identificar, marca seu rosto com alguma substância,
restando a ele subir aos céus enquanto refúgio e lembrança que faz recordar a
Dossiê Temático: O que carrega o sangue?
todos dessa relação – estar com Lua é sinônimo de estar menstruada para diver-
sos povos ameríndios (BELAUNDE, 2008). Outra leitura possível das relações de
Lua com o universo feminino é sugerida por Belaunde (2008) que vê nas narra-
tivas míticas uma relação com o parto.
A menstruação se origina em uma relação cruzada, isto é, as mulheres mens-
truam por causa da agência masculina mítica. Como registra Ana Affonso: "Diz
Kerexu que, quando criança, morria de medo de Jaxy, pois lhe diziam, constan-
temente, que estava chegando a hora em que deveria se casar com um homem
muito, muito velho, cujo pênis, de tão grande, a faria sangrar sem parar" (AF-
FONSO, 2014: 106). Para a autora, essa narrativa possibilita pensar a menstrua-
ção não apenas como o anúncio da sexualidade, mas das relações de afinidade.
Conforme Mello, Jaxy seria o primeiro marido das mulheres:
Contrariado por ter que partir deste mundo e aqui deixar suas namoradas humanas,
Djatchi exige ao irmão e aos outros deuses, seus parentes que chamavam sua presença,
6 São poucas as etnografias que descrevem ou mencionam a noção de útero, Pissolato (2007) registra útero como memby
ryru, Mello (2006) traduz útero por memby. Pierri (2013) e Lewkowicz (2016) mencionam memby como fazendo refe-
126 rência ao parto.
7 Em algumas narrativas Jaxy é criado a partir da semente do milho (Assis, 2006); em outras a partir dos ossos de Nhan-
desy (MELLO, 2006; PRATES, 2013; BENITES, 2018) e em outras ele teria sido criado a partir da folha de Kurupica'y
(HEURICH, 2011; PIERRI, 2013). Para narrativa completa de Nhandesy ver Benites (2018).
que em troca de sua partida, todas as mulheres deveriam ser suas esposas, antes de
terem seu primeiro marido. Daquele dia até hoje, as mulheres menstruam porque Djat-
chi “mexe” com as moças quando elas estão se tornando mulher. O sangramento men-
sal que as mulheres têm é um reflexo, um sinal da ação sobrenatural de Djatchi, o “pri-
meiro marido” das mulheres. Djatchi ire é um dos termos para designar a menstrua-
ção. Quando uma mulher queixa-se de dores, fica brava, ou recusa ter relações sexuais,
seu marido zomba, rindo e comentando em público que ela está djatchi ire (“na lua”) e
que seu primeiro marido voltou para ela. (MELLO, 2006: 171)
para que as palavras inspiradas entrem no ser Mbyá através da coronilha (região
superior da cabeça)" (ASSIS, 2006: 89).
Entre os Macuna – povo de língua tucano oriental –, o banco também é refe-
rido enquanto instrumento que propicia a postura corporal adequada para escu-
Dossiê Temático: O que carrega o sangue?
128
8Guapya pode ser traduzido como lugar onde se senta, a palavra não faz referência direta à diferença entre uso cotidiano
e ritual.
envolve uma afecção corporal que reforça o canal de comunicação humano e ex-
tra-humano e está vinculado a uma agência masculina. Benites (2018) destaca o
sentar-se como um estado de espírito importante para a corporalidade feminina:
“sem estar no estado de guapy – 'sentadas', calmas, tranquilas, em silêncio – fa-
cilmente a mulher se descontrola, o 'sangue sobe à cabeça'” (Benites, 2018:10).
As práticas que se sucedem após o 'tomar assento', que envolvem a fabricação
do corpo da criança durante a gravidez, implicam tanto a agência masculina
quanto a agência feminina através dos alimentos e das relações. Daí em diante
uma série de prescrições são evidenciadas de modo a selecionar conjuntos de
afecções a serem ou não transferidos ao feto; práticas que abarcam os mais diver-
sos episódios da vida cotidiana: "é comum dizer que é preciso que os pais e mães
mantenham o pátio de suas casas limpos durante o período da gestação de um
filho. A não observação desse cuidado é o que explica o nascimento de crianças
que têm o corpo coberto com muitos pelos" (PIERRI, 2013: 182).
As práticas alimentares centralizam o conjunto de cuidados que pai e mãe
devem ter ao longo da gravidez. Nesse período, a mulher é a que mais deve tomar
cuidado com aquilo que ingere, uma vez que ela produz o corpo do bebê através
daquilo que come, enquanto o homem produziria o corpo do bebê através de su-
cessivas contribuições de sêmen (MELLO, 2006). O trabalho de Tempass reforça
a colocação de que durante a gravidez as principais restrições envolveriam a mãe,
seus interlocutores: "negaram firmemente que os homens tenham que manter
qualquer controle alimentar durante a gravidez de sua mulher. Todos responde-
ram a minha pergunta dando boas gargalhadas, me informando que os homens
não ficam grávidos" (TEMPASS, 2005: 116). A principal restrição para a mulher
são os alimentos geminados, pois o contato com esses alimentos poderia provocar
o nascimento de gêmeos, algo abominado entre os Mbya: "de uma maneira geral,
a gestante deve manter-se afastada de qualquer coisa que se apresente em dupli-
cidade. Pois que as coisas também possuem agência e podem afetar e influenciar
na gestação" (ASSIS, 2006: 97). Entende-se que ao nascerem gêmeos, um daque-
les inevitavelmente seria desprovido de nhe'e, provocando assim um perigoso de-
sequilíbrio cosmológico9.
Existem pontos de vista distintos com relação à participação das substâncias
corpóreas femininas e masculinas10 na produção do feto. Para Prates (2013): "É
o sêmen do homem que dá forma ao sangue e à carne da criança, enquanto os
ossos estariam relacionados com a sua alimentação e conduta" (PRATES, 2013:
234). No entanto, Mello entende que é o sêmen que faz crescer o bebê: "Durante
o ato sexual (djapirá) o homem introduz no corpo da mulher tcherendyrai (subs-
tância que alimenta o mintãim), o faz crescer, indicando que esta substância age
diretamente nos ossos (tchedjopy) do feto" (MELLO, 2006: 156). A ausência de
Relações e substâncias
9 De acordo com Assis (2006: 97), "o nascimento de gêmeos significa que uma alma ruim (ñe’ĕ vai, ãngue ou mbogua) 129
'pegou carona'. Ou seja, um dos gêmeos é uma alma mandada pelas divindades, mas a outra não, pois as divindades nunca
mandam duas almas de uma vez só".
10 Há uma relação de quase equivalência entre sêmen e sangue, como apontam Prates (2013) e Pierri (2013).
corporal do bebê através da ingestão de alimentos e dos cuidados com as relações
que estabelece, por estar em um estado de vulnerabilidade em que o acesso a ou-
tros mundos se torna facilitado. Mello descreve as mulheres grávidas como xamãs
em potencial: “por ter, através do feto que carrega, a faculdade de falar em sonhos
com Tupãcy, a mãe dos trovões e dos caminhos” (MELLO, 2001: 53). Os cuida-
dos com o feto são referidos na narrativa mítica acerca de Kuaray11; é através das
comunicações estabelecidas via feto que Nhandecy (mulher e grávida) percorre
os caminhos em busca de Nhanderu; por tratar mal o feto – que irritado inter-
rompe a comunicação com a mãe –, Nhandecy escolhe caminhos errados e acaba
por se encontrar com as onças e ser devorada por elas. A mulher grávida deve
atentar para aspectos de suas relações: "é preciso redobrar os cuidados com os
lugares e companhias. A mulher grávida, em especial, deve evitar estar só, prin-
cipalmente ao realizar incursões na mata" (ASSIS, 2006: 99). As prescrições res-
saltam aquilo que é entendido enquanto comportamento social, já que as relações
que podem se estabelecer na mata são de outra ordem: a mulher grávida opera
enquanto agente de relações extra-humanas, correndo riscos maiores por seu es-
tado corporal. A agência masculina entra como contrapeso a esses riscos: “Es-
tando com a criança em seu ventre, a mulher também está próxima da esfera di-
vina, em uma situação que lhe oferece perigo. O homem tem a função de vigiar o
perigo e de ajudá-la a proteger-se dos seres que podem lhe afetar de modo nega-
tivo nesta terra” (JESUS, 2015: 128).
Além de uma atenção às relações extra-humanas, cabe principalmente à mu-
lher o cuidado com as relações sexuais com outros homens. Mello aponta para o
quão relevante é a conduta dos pais, mas principalmente a da mãe que “durante
um nhangarekó (namoro, paquera, envolvimento físico) é determinante na cons-
tituição do nhe’e da mintãim (criança) que virá a nascer” (MELLO, 2006: 144). A
autora faz uma observação interessante acerca de relações com irmãos do pai; o
perigo da relação sexual com outros homens teria a ver com diferentes sêmens
ACENO, 7 (14): 119-136, maio a agosto de 2020. ISSN: 2358-5587
produzirem gêmeos, o que não aconteceria caso os homens fossem irmãos, pois
teriam o mesmo sêmen:
A noção de equivalência nas essências reprodutoras de dois irmã/os paralelos aparece
em várias esferas do pensamento Guarani. Na terminologia, os sobrinhos paralelos são
Dossiê Temático: O que carrega o sangue?
chamados de filhos, o que não acontece com os cruzados (memby kurin para mulheres
e radjy e ray kurin para homens, literalmente filhos menores em todos os casos). Em
casos concretos de casamentos sororais, por muitas vezes as pessoas me afirmam que
os filhos de mesma mãe e pais irmãos são tão irmã/os quanto os filha/os de mesmo pai
e mesma mãe. O mesmo não acontece com irmã/os filha/os de pais diferentes, que
pertencem à categoria de irmã/os, mas ocupam uma categoria mais distante. Essas
nuances entre a proximidade do/as irmã/os do mesmo sibling têm vários graus, o que
interfere na consideração sobre o incesto. Os filha/os de mesmo pai e mães diferentes
estão um pouco mais distantes, principalmente porque em geral não vivem juntos, não
compartilhando o parentesco por consubstancialização. (MELLO, 2006: 146)
Prates descreve uma conversa tida com uma mbya que compartilhava o ma-
rido com sua irmã: “Enquanto conversávamos sobre as crianças que brincavam
ao nosso redor, ela não diferenciou seus filhos dos de Para Kerechu e quando in-
sisti a respeito, por observá-la chamar a todos de che memby/ meu filho, ela disse:
‘são vários da barriga de minha irmã, outros da minha’” (PRATES, 2013: 135).
Mello observa o vínculo visceral existente entre mãe e bebê: “Quando vou dizer
em guarani 'nasceu o filho de fulana', eu digo: 'Djerá ae memby', literalmente, o
útero de fulana floresceu, frutificou, germinou” (MELLO, 2006: 155). Segundo
Benites (2018: 12):
130
11 Para narrativa completa ver a compilação feita por Pierri (2013: 35-39).
memby, falando na língua guarani e traduzindo, é uma coisa que nasce do mesmo
corpo e sempre fica ali grudada. As espigas de milho, por exemplo, são awati memby
porque surgem do tronco, 'pé' do milho. [...] A estrutura do nosso corpo está ligada
diretamente aos nossos filhos(as), mantendo uma relação próxima com eles, a exemplo
da árvore e seus galhos, diferentente dos homens que têm formas distintas de nomear,
entender e se relacionar com os filhos e as filhas.
Mãe e avó da gestante acompanham o parto e é comum que uma delas seja a
parteira [mbodja'úa]. Dentre as mulheres jovens, apenas podem acompanhar
aquelas que sejam aprendizes de kunhã karaí. “É desejável que o pai participe do
parto e ajude com a placenta, pois o bebê ao nascer procurará o pai, especialmente
se for um menino, e não o encontrando, se aproximará de outro parente mascu-
lino, e pode se ligar definitivamente a ele e perder-se do pai” (MELLO, 2006:
148).
Imediatamente após o parto sucedem-se alguns cuidados com a placenta que
deve ser enterrada: "Não pode ser jogada no rio nem sobre a terra, para que seres
da água ou urubus não tenham contato com ela. Mesmo enterrada, deve-se cuidar
para que não seja comida por ratos. Crianças que nascem em hospitais, onde a
placenta é jogada no lixo, são mais frágeis, pois o nhe’é fica perdido da família"
(MELLO, 2006: 149). Ana Affonso (2014) relata a surpresa de um de seus inter-
locutores ao saber que nos hospitais as placentas eram jogadas no lixo: "Ele achou
a idéia bem sinistra. Disse que desse jeito qualquer animal poderia comer um pe-
daço de placenta – urubu, cachorro, minhoca –, e sendo assim 'comprar' (ojogua)
o nhe’ë da criança" (AFFONSO, 2014: 94).
O sangue é um canal de sobrenatureza, durante a gravidez, o sangue que nor-
malmente escorre concentra-se no corpo da mulher, acumula-se na placenta e
potencializa as possibilidades de comunicações sobrenaturais, expelida quando o
bebê nasce [e por isso tamanho cuidado em enterrá-la]. A placenta poderia ser
Relações e substâncias
Em sua tese Assis (2006), aponta para o aspecto inventivo desses usos como
parte da criação de cada mbya; por esse motivo não seria possível realizar um
inventário de objetos e usos. Em geral, tais produções evocam as características
que se quer desenvolver nas crianças, como coragem, tranquilidade, força, equi-
líbrio, leveza. Grande parte deles voltam-se para um fortalecimento ósseo, para
ACENO, 7 (14): 119-136, maio a agosto de 2020. ISSN: 2358-5587
atividades leves. A mãe deve permanecer por cerca de dois meses sem ingerir ali-
mentos com sal. [...] o pai não pode se cansar, pois a criança sente" (ASSIS, 2006:
99). Nessa etapa, os cuidados teriam por foco principal os ossos do bebê, susten-
táculos da palavra-alma (nhe'e):
Desde o nascimento, os bebês são frequentemente submetidos à defumação da cabeça,
especificamente a região da coronilha, com o uso do petyngua/cachimbo. A razão para
este procedimento está na concepção de que a fumaça do petyngua possui proprieda-
des estimulantes (princípio vital) e de que a coronilha é a parte da cabeça onde a pessoa
recebe inspiração divina para falar e falar com sabedoria. No caso das crianças com
menos de um ano, esta região da cabeça ainda está aberta, ou seja, ainda há a fontanela.
Isso significa que ela precisa ser ao mesmo tempo protegida e estimulada pelo princípio
vital do tatachina/fumaça do tabaco. Trata-se de outro importante cuidado para um
elemento considerado fundamental na formação da pessoa Mbyá que consiste na lin-
guagem oral. (ASSIS, 2006: 102)
Tais cuidados devem ser mantidos até que a criança passe a dar os primeiros
passos. Quando as crianças passam a caminhar, portanto erguem-se, considera-
se que a nhe'e assentou-se no corpo. As palavras fluem a partir do alinhamento
da coluna vertebral. Tal processo pode ser entendido como uma via de mão dupla,
132 ao mesmo tempo em que é o erguer-se que garante que a criança está com seu
nhe'e assentado, há uma produção corporal para que o nhe'e assente-se sobre o
corpo:
A verticalidade contrapõe-se à animalidade - estes, os animais, não andam de forma
erguida - e indica que a condição humana, ou humanidade mbyá em especial, advém
do erguer-se, firmar-se e assim andar. Coincide com o tempo de manter-se firme, ereto
e também das primeiras palavras a nominação de crianças mbyá/ ritual do ñemonga-
raí. É ao tornar-se ereto e firme que as palavras fluem. Os ossos, em geral, e a coluna
vertebral no caso são representativos de uma ideologia de construção corporal, a qual
é constituída ao longo da vida mbyá por intervenções alimentares e pela predação de
qualidades de outros seres. É o poder da fala que confere aos Mbyá uma ligação ima-
nente com as divindades e por isso o apreço pela oratória e o cuidado com o que se
pronuncia. (PRATES, 2013: 186)
Prates indica a relação entre milho, ossos e nhe'e. Parte do nhemongarai en-
volve animar o princípio vital do milho e consumir o mbojapé (pão feito do milho)
na quantidade de crianças que foram nomeadas (ASSIS, 2006). "A importância
do avati/ milho para os Mbya constitui ponto central para discutirmos a imanên-
cia entre subsistência e dimensão simbólica" (PRATES, 2013: 148). Na narrativa
mítica, é ao alimentar uma coruja (Nhanderu) com mbojapé que Nhandecy des-
cobre estar grávida e é convidada a ir viver na morada celeste (relato que depois
se desdobra em suas comunicações com o feto, Kuaray). Prates destaca a impor-
tância do milho (avati) no processo de produção corporal das crianças:
O ritual do ñemongarai/ nominação coincide com a colheita do milho e, assim como o
alto da cabeça das crianças, também tem suas sementes enfumaçadas pelo petynguá.
O avati, antes de alimento para o corpo, constitui alimento espiritual e pertence à
classe dos prescritos nos tabus alimentares. Sua forma de cultivo e cocção conta com
intervenções no plano das divindades. (PRATES, 2013: 148)
Da couvade até a nominação das crianças, seria o período em que o pai teria
uma participação maior nos cuidados com a produção do corpo do bebê (JESUS,
2015). Durante os primeiros anos de vida, a nhe'e da criança acompanha princi-
palmente o pai (PIERRI, 2013), motivo pelo qual este precisaria conversar com a
nhe'e da criança, falar sobre suas viagens, indicar os caminhos que vai seguir.
Precisa estar atento, pois de certa forma seria como se a nhe'e estivesse sempre
presente. Benites descreve: " Para o pai, as crianças tem ligação mais próxima
com o umbigo, como se fosse uma corda que liga a criança ao pai” (BENITES,
2018:12). Além de acompanhar o pai, a nhe'e do bebê sofreria as ações em que
este se engaja, receberia as afecções dos alimentos ingeridos, dos objetos utiliza-
dos, aquilo que o pai faz replicaria no bebê.
Para Assis (2006), a produção da pessoa Mbya passa pelo nascimento e pela
criação de filha/os. A autora narra o caso de uma liderança que pretendia ser o
Relações e substâncias
Considerações finais
A composição da pessoa mbya é atravessada por substâncias e relações, subs-
tâncias que operam como veículos que conectam seres, que ativam parentescos,
enfraquecem e fortalecem corpos. O modo como a corporalidade é pensada aqui
se distancia de uma perspectiva que suporia uma universalidade dos corpos e
uma multiplicidade dos sentidos. Seria possível sugerir uma aproximação dessa
abordagem com a perspectiva mbya pensando que uma pessoa feminina ou mas-
ACENO, 7 (14): 119-136, maio a agosto de 2020. ISSN: 2358-5587
Referências
McCALLUM, Cecília. Gender and Sociality in Amazonia: How Real People are
Made. New York: Oxford, 2001.
MENDES, Luna.
136
Sangue e honra:
fluidos femininos entre os calons mineiros
CAMPOS, Juliana Miranda Soares. Sangue e honra: fluidos femininos entre os calons
mineiros. Aceno – Revista de Antropologia do Centro-Oeste, 7 (14): 137-156, maio a agosto
Resumo: O artigo pretende discutir o lugar de dois fluidos corporais entre ciganos
calons em Minas Gerais: o sangue menstrual, fluido que deve ser evitado, pois está
ligado a noções de perigo, sujeira e contaminação; e a “honra”, nome dado a uma
substância liberada após o primeiro ato sexual da mulher, comprovação de sua pu-
reza. Ambos são líquidos corporais femininos, mas possuem significações em dire-
ções opostas e agenciam importantes aspectos das diferenciações de gênero e da re-
de 2020. ISSN: 2358-5587
1Doutora e mestre em antropologia pela Universidade Federal de Minas Gerais. Bacharel em Ciências Sociais pela UFMG.
Licenciada em Sociologia pela Universidade do Norte do Paraná. Pesquisadora do Núcleo de Estudos sobre Populações
Quilombolas, Indígenas e Tradicionais da FAFICH-UFMG.
Blood and Honor:
feminine fluids among Calon Romanies
Abstract: This paper reflects on two bodily fluids that are particularly meaningful
to Calon Romanies of Minas Gerais (Brazil). Menstrual blood is linked to conceptu-
alizations of danger, dirt and contamination and is a fluid that must be avoided.
'Honor' [honra] is a name given to a substance that is released by a woman's body
after her first sexual act and becomes the proof of its purity. Both are feminine bodily
fluids, but their meanings go in opposite directions. They are central to the dynamics
of gender differentia and to the management of relationships between men and
women. As such they are the protagonists in the construction of sexed bodies and of
Calon morality.
Sangre y honra:
fluidos femeninos entre gitanos calons
ACENO, 7 (14): 137-156, maio a agosto de 2020. ISSN: 2358-5587
Resumen: Este artículo busca discutir los significados que los gitanos calon en Mi-
nas Gerais (Brasil) les dan a dos fluidos corporales: la sangre menstrual, fluido que
debe evitarse por sus relaciones con la idea de peligro, suciedad y contaminación; y
‘honra’, el nombre dado a una sustancia liberada después del primer acto sexual de
la mujer, prueba de su pureza. Ambos son fluidos corporales femeninos, pero tienen
Dossiê Temático: O que carrega o sangue?
138
D
uas mulheres ciganas2 – ou calins, como costumam ser chamadas – fala-
vam sobre assuntos mais íntimos quando tentei puxar conversa sobre o
sangue menstrual, ao que uma delas imediatamente me repreendeu: “não
fala disso perto de homem não, hein!” Eu então, curiosa em saber o porquê, ques-
tione-a, e ela respondeu: “não falamos disso na frente de cigano. É vergonha!” Em
outra situação, um jovem calon comentava com suas parentes sobre a desconfi-
ança de que sua mulher pudesse estar grávida. Uma “gajin” (não cigana) presente
na conversa, ingenuamente perguntou-lhe há quanto tempo “não descia” (refe-
rindo-se à menstruação). Ele respondeu que não tinha ideia, pois não conversava
sobre esse assunto com a mulher: “tenho nojo”. Mesmo entre mulheres, este
tema, de fato, não costuma ser assim mencionado diretamente, colocado no cen-
tro das atenções como eu o fiz, o que lhes causou certo espanto. Um primeiro
indicativo da centralidade do sangue para a construção da moralidade3 e do corpo
da mulher entre os calons pode ser depreendido daí, já que se evita o que é te-
mido, e só se teme o que é, em algum sentido, importante.
O sangue menstrual visto como um tabu, como algo que traz algum tipo de
malefício e que deve ser evitado, aparece de maneira frequente nas mais diversas
socialidades – as ocidentais, fortemente incluídas aí – com significações sujeitas
a uma série de variações, mas trazendo uma constante conotação negativa e
acompanhadas de regulações e restrições das mulheres durante este período
(SARDENBERG 1994; GUILLO 2013; BELAUNDE 2005; ENGEBRIGTSEN
2007; HOUPPERT, 2000; SANTIBÁÑEZ e GUTIÉRREZ, 2017). Não à toa, con-
forme mostra o livro de Élise Thiébaut (2017), que faz um apanhado sobre as ima-
gens da menstruação em diversos tempos e contextos, o termo “regra” aparece
recorrentemente como sinônimo metonímico do período menstrual. Entre as ca-
lins, “regra” também é o termo mais usado para designar a menstruação. Ou se
não, falam dela de maneira indireta e através de eufemismos, usando expressões
como “estar naqueles dias”, “este mês não desceu”, “estou daquele jeito”. Nomi-
nar o sangue menstrual, no entanto, nunca é uma opção. Este artigo parte da
constatação de que, para os ciganos calons mineiros, o sangue menstrual aparece
como um importante fluido ligado ao corpo da mulher, agenciador de uma série
de interditos e práticas de evitação. Na tentativa de organizar os significados sin-
gulares que os calons dão a ele, me deparei com outro fluido importante, a deno-
minada “honra”, cujos sentidos podem ser postos em relação ao sangue, apon-
CAMPOS, Juliana Miranda Soares.
tado aqui o sentido latouriano, no qual mediadores são toda sorte de actantes,
2 Este artigo é resultado de uma discussão iniciada no GT: O que carrega o sangue? Elaborações em torno do sangue e
seus potenciais produtivos, ocorrido na RAM 2019, no qual apresentei o esboço das ideias contidas aqui. Agradeço às
coordenadoras e aos colegas presentes pelas contribuições, em especial os valiosos comentários de Marisol Marini e Flávio
Tarnovski, cruciais para o amadurecimento do texto.
3 Uso aqui “moralidade”, seguindo outros ciganólogos, como Gay y Blasco (1999), mas inspirando-me na renovação do
termo por Roy Wagner (2010). Wagner não deixa de fazer menção à Durkheim, autor que acaba colado ao termo, mas
consegue ressignificá-lo, afastando-se da ideia de uma totalidade integradora, quando o designa como “significados con-
vencionais, coletivos, do homem e de sua socialidade”, mas que ao mesmo tempo “relacionam construções expressivas e
são eles próprios construções expressivas, criando uma imagem e uma impressão de um absoluto em um mundo que não 139
tem absolutos” (WAGNER, 2010: 82). Entre os calons, a moralidade, como essa produção de significados convencionais,
se constrói a partir dos modos de controle dos corpos e comportamentos, sobretudo das mulheres.
humanos ou não humanos, que produzem algum tipo de efeito e transformação
por onde passam (LATOUR, 2012: 65).
Tais reflexões resultam da minha pesquisa entre ciganos de etnia calon que
vivem em diversos “acampamentos” espalhados em Minas Gerais4. Cada acam-
pamento – ou “pouso”, como também costumam chamá-los – está conectado a
vários outros através de vínculos de parentesco, de trocas matrimoniais e econô-
micas, formando assim, um circuito interdependente de socialidade em unidades
territoriais distintas. Estes pousos são relativamente fixos em comparação à cons-
tante itinerância de tempos anteriores, estando a maioria deles no mesmo local
há pelo menos uma década, em alguns casos, há mais de três. O que ocorre recor-
rentemente são andanças de famílias ou “turmas”5 por entre eles, em razão de
negócios, alianças ou brigas. Os calons que compõem este circuito se compreen-
dem como “calons mineiros” ou “ciganos mineiros”, em referência à sua identifi-
cação com Minas Gerais, contrapondo-se aos calons de outros estados (“os calons
baianos”, “calons cariocas” e outros). Os acampamentos que compõem minha
pesquisa estão localizados nas cidades de Belo Horizonte, Nova Lima, Conse-
lheiro Lafaiete, Barbacena e Ibirité, pedaço deste circuito que, por sua vez, é com-
posto por vários outros.
Vergonha
Para os ciganos calon mineiros, a “honra” é, em seu sentido primeiro, um flu-
ido corporal. Para compreender os significados e a importância desta noção, é
importante antes localizar o sentido de outro termo, a “vergonha”, que nomina
um valor central para os calons. A dupla conceitual “honra e vergonha” já é um
tema conhecido na antropologia, com destaque nos estudos de sociedades medi-
terrâneas inaugurados por Pitt-Rivers (1988) – que acabou responsável por des-
ACENO, 7 (14): 137-156, maio a agosto de 2020. ISSN: 2358-5587
4 Minha relação com os ciganos calon em Minas Gerais iniciou-se em 2013 e realizei 3 trabalhos de campo intensivos entre
7 acampamentos mineiros distribuídos em 5 municípios, em que intercalava visitas diárias com períodos em que pernoi-
tava na barraca de interlocutoras. O primeiro campo, feito em 2013 durante meu mestrado, teve duração de 7 meses. O
segundo e o terceiro, realizados entre 2017 e 2019 para meu doutoramento, tiveram duração de 9 meses e 6 meses, res-
pectivamente. Além dos fortes vínculos criados com algumas famílias a partir do convívio cotidiano, meu campo entre os
ciganos também foi marcado pela minha atuação como antropóloga nos processos de regularização fundiária dos acam-
pamentos em questão e meu engajamento na militância por direitos ciganos, em parceira com as lideranças locais. Minha
relação com meus interlocutores, portanto, foi durante todos esses anos - e ainda é – contínua, extrapolando os períodos
140 de trabalho de campo intensivo.
5 Os calons denominam “turma” um agrupamento familiar formado em torno de um grupo de irmãos do gênero masculino.
Cada núcleo familiar formado por marido, esposa e filhos solteiros vive em sua barraca (ou casa), ao lado das barracas dos
irmãos.
costumam incluir códigos de conduta altamente diferenciados de acordo com o
gênero, produzindo, nos termos de Gay y Blasco (1999), uma “moralidade gende-
rizada”.
Entre os calon mineiros, “vergonha” ou laje (em chibi6) é um termo polissê-
mico, falado em distintas situações. A palavra é utilizada para indicar um cons-
trangimento, como quando chego para comer na barraca de alguém, dizem: “que
laje, nossa comida é humildezinha...”. Também se usa “vergonha” para indicar
uma conduta moralmente inadequada, o que coloca em risco uma reputação: que
laje, dae! [que vergonha, mãe!], disse um filho à mãe quando a flagrou ingerindo
bebida alcóolica fora de ambientes festivos. Mas há ainda os sentidos positivos da
vergonha, quando ela é entendida como uma virtude, como um valor que os ciga-
nos possuem, por conhecerem e respeitarem um código moral, em contraposição
aos “gajons” (não ciganos) que não os seguem. A formulação de que existe uma
espécie de código de conduta a ser seguido é assim posta pelos próprios calons,
que empregam a expressão “lei cigana”7 para imprimir o caráter obrigatório dos
princípios que a regem, enfatizando que eles levam a sério seus códigos morais –
ao contrário dos gajons – e para deixar claro que existem sanções e punições para
quem os quebra. A moralidade baseada na noção de “vergonha” – composta pelo
agenciamento cruzado destes sentidos positivos e negativos do termo – é o que
organiza a lei cigana.
A “vergonha” está intimamente relacionada à diferenciação de gênero e ao
controle do corpo e do desejo feminino. No caso do calons mineiros, a aplicação
dessa acepção de “vergonha” como um valor que os ciganos têm (mas que é pas-
sível de ser perdido) vale para homens e mulheres, mas de maneira desequili-
brada, uma vez que é na mulher e no controle de seu corpo pelos homens que está
a principal garantia da manutenção da “vergonha”. Dirão das calins que traem o
marido, ou daquelas solteiras que se oferecem para algum homem casado, que
são “sem-vergonha”. Tal manipulação deste valor pela mulher impacta necessa-
riamente sua contraparte masculina, que pode ser o marido ou o pai (ou ainda o
irmão), caso ela seja solteira. Do marido que foi traído, ou de um pai cuja filha
cometeu algum ato moralmente condenável, dirão que eles foram “envergonha-
dos”, perdendo estes também a “vergonha”8.
Possuir “vergonha” está relacionado à ideia de decência das calins, no sentido
de contenção sexual, o que as contrapõe de maneira contundente às não ciganas.
É comum escutar que as calins são “decentes”, “têm vergonha”, em oposição às
gajins, que “transam antes de casar”, “andam de shortinho”, “saem sozinhas”,
“trabalham fora”, são “dadas”, são “sem-vergonha”. Essa decência, no entanto,
CAMPOS, Juliana Miranda Soares.
não é um atributo nato das calins. De forma semelhante a que propõe Gay y
Blasco (1997, 1999) para os Gitanos de Madri9, os calons veem o desejo sexual
como algo que faz parte da pessoa, seja ela homem ou mulher e como algo difícil
de se frear. O que os diferencia do não cigano é justamente uma moralidade que
Sangue e honra
6 “Chibi” ou “linguagem cigana” é o repertório lexical utilizado pelos calons de todo Brasil, com vocábulos que derivam do
romani e do caló falados na Península Ibérica nos séculos XVII e XVIII (FERRARI, 2010: 194).
7 O termo lei cigana, usado pelos próprios ciganos, aparece em outras etnografias como em Shimura (2017) entre calons
nheiro para oferecer uma festa de casamento para a filha ou para comprar novos vestidos para a esposa e filhas, por
exemplo. Ou seja, as condutas masculinas passíveis de fazê-los perder esse valor estão em sua maioria relacionadas à
excessos no comportamento (muita bebida, violência) ou à falta de dinheiro. A formulação, nesses casos, também costuma
ser: “é vergonha pra ele beber demais”.
9 “Central para a percepção dos gitanos deles mesmos como um grupo frente aos payos [não ciganos] é a ideia de que,
enquanto a maioria dos gitanos busca dominar seus impulsos sexuais pelo menos a um grau mínimo, os payos – e parti- 141
cularmente as mulheres payas – falham em massa. Por consequência, a obrigação de uma moral sexual mais pesada é
colocada sob as mulheres: elas recebem a maior parte da responsabilidade de demonstrar a decência sexual dos gitanos
como um todo” (GAY Y BLASCO, 1999: 68, tradução minha).
enfatiza o controle destes desejos por parte de suas mulheres. Diferentes das ga-
jins, portanto, as calins são aquelas que se portam de maneira a controlar seus
desejos. Controlá-los, no entanto, não significa que as mulheres não podem rea-
lizá-los. Eles serão sanados através dos atos sexuais dentro de uma união com um
calon, seja ela um casamento ou “juntamento”10. Casar virgem, não trair o marido
e não fazer sexo estando solteira são as três principais premissas para uma calin
manter sua vergonha11, além da necessidade de manter um comportamento que
não dê margens para provocações sexuais masculinas: distanciar-se dos homens
de outras turmas e vestir-se tampando toda a parte inferior do corpo, da cintura
para baixo12.
Honra
loniais está sendo feita na tese de doutorado, a ser defendida em breve. Assumirei ali uma posição de que construir um
142 conhecimento simétrico com minhas interlocutoras calins presume um não julgamento de sua visão de mundo a partir
dos meus próprios construtos, o que, aliás, costuma ser feito por críticas feministas brancas ao mundo cigano. Na tese
dedico um capítulo para mostrar como críticas partindo de mulheres não ciganas ao modo de vida das ciganas reverberam
um discurso salvacionista com ranços colonialistas.
quando parte de seus pais, os filhos podem se recusar, caso não lhes agrade o/a
pretendente. Ao mesmo tempo, um casamento não se dá só pela vontade destes,
os pais devem dar a palavra final. Os calons se casam preferencialmente dentro
deste circuito de acampamentos interligados. Seguindo uma tendência virilocal,
quando um pai casa uma filha, ele a entrega a outra turma, da qual ela passa a
fazer parte, por isso essa escolha pressupõe confiança, implica atualizar boas re-
lações já existentes anteriormente13.
Durante uma negociação de casamento envolvendo duas famílias, cada parte
tenta provar o “valor” de seu filho ou filha. No caso do noivo, seu valor está asso-
ciado sobretudo ao “nome” de seu pai, ou seja, ao conjunto de atributos que con-
fere prestígio a um homem calon, ligados à sua capacidade de fazer circular seu
dinheiro e influência (cf. FOTTA, 2018). O “nome” do sogro interessa ao pai da
calin, pois lhe dá segurança de que ele está entregando a filha para uma turma
que irá dar a ela uma boa vida. Já o valor da noiva está associado à sua “vergo-
nha”, que no caso do primeiro casamento de uma jovem é intimamente ligado à
sua virgindade. Casar uma filha virgem é provar que não somente ela, mas toda
sua turma de origem possui vergonha. A festa de casamento é erigida, assim,
como uma prova e celebração da virgindade da calin. Casamento e virgindade an-
dam juntos, por isso mesmo o nome dado às uniões posteriores de uma calin
muda, passa a ser “juntamento”14. Após o primeiro casamento, é possível e muito
recorrente acontecerem separações15, mesmo assim, a mulher pode manter sua
vergonha, desde que não tenha traído o marido e que trate logo de arranjar outro
pretendente e só poderá voltar a ter relações sexuais quando se casar novamente.
A atualização da “vergonha” é um processo constante durante toda a vida de uma
calin ou de um calon, mas o casamento, ligado a virgindade, constitui um mo-
mento auge, ele é crucial para determinar a “boa fama” de uma mulher.
Um ciclo ritual de casamento entre os calons mineiros é composto por um
conjunto de celebrações: se inicia com um grande festejo no interior de um acam-
pamento, que pode durar vários dias e noites; no penúltimo dia acontece o casa-
mento na igreja católica e é encerrado no dia seguinte com a cerimônia de “en-
trega da noiva”. Esta última consiste em um rito no qual os parentes mais próxi-
mos dos noivos dão conselhos ao casal, no interior da nova barraca onde irão mo-
rar. Somente a partir desta noite o casal estará liberado para ter relações sexuais.
Depois que a calin foi “entregue” ao marido, ela deve mostrar seu valor, provar
que possui “vergonha” através da comprovação de sua virgindade. Após o pri-
meiro ato sexual do casal, a esposa mostra (ou mostrava) aos parentes do marido
o lençol ou o tecido interno do vestido, manchado com a “honra” da calin16. O
CAMPOS, Juliana Miranda Soares.
13 Essa política de trocas que inclui a negociação dos noivos e a circulação principalmente de mulheres, não deve ser en-
carada no sentido de objetificar as pessoas, na medida em que não se pressupõe, nesse contexto, uma ideia de troca como
aquisição de propriedade, na esteira do que já mostrou Strathern (1992, 2006) para os Hagen. Para os calons, dar uma
Sangue e honra
filha equivale a doar parte de si mesmo, pressuposto ligado tanto à noção de pessoa calon – entendida como um composto
de relações entre parentes, não existindo fora dessas relações (STRATHERN, 2006; LEENHARDT, 1997; FERRARI, 2010)
– quanto à construção do parentesco como “mutualidade do ser” (SAHLINS, 2011), ou seja, como uma continuidade exis-
tencial entre o eu e aqueles que compõe sua família.
14 A mesma expressão aparece em Gay y Blasco, entre os Gitanos de Madrid: “se há juntado con” (GAY Y BLASCO, 1999:
77) e a autora observa a mesma relação entre a mudança do termo e a inseparabilidade das noções de casamento e virgin-
dade.
15 Os calons contam que nos tempos mais antigos, quando andavam em tropas, a separação era quase impossível, vista
como um escândalo moral dentro das famílias. Essa mudança atual é nítida nos acampamentos. Enquanto os casais acima
de 40 anos estão juntos há décadas, a maioria dos casais mais jovens já passaram por dois, três, quatro ou mais juntamen-
tos.
16 Algumas calins afirmam que a prática de se provar a honra ficou no passado e hoje não se mostra mais. Outras dizem
que o que mudou nos últimos tempos foi a obrigatoriedade de mostrar o lençol para uma ampla gama de parentes. Os
homens não querem vê-lo, “têm vergonha”, ou as mulheres “acham vergonha” ter que mostrar aos homens, sendo objeto 143
de conferência apenas da sogra ou de mulheres mais próximas, que, depois, transmitem aos homens a sua confirmação.
E ainda há outras que me descreveram a prática como extremamente atual, contando orgulhosas que inclusive guardavam
o lençol com a sua “honra”.
termo aparece assim para designar o fluido decorrente do defloramento da mu-
lher. Todas as descrições que obtive do que elas denominam “honra” nesse sen-
tido foram muito próximas: “é uma mancha de cor amarelada”; outra me disse
“possui três cores diferentes, que vai do amarelo ao marrom”; ou ainda “é uma
mancha de uma cor meio amarela, meio bege, meio escura, parece café com leite”.
Minhas interlocutoras também destacaram o fato de a “honra” ganhar um for-
mato de flor no lençol em que ela foi derramada. Diferentemente do que se pode
aferir em outros contextos, em que o defloramento está relacionado ao rompi-
mento do hímen e o fluido corporal relacionado a este processo é o sangue, as
próprias calins me advertiram de que não é disso que se trata, quando as questi-
onei. A “honra” não é o sangue. O sangue pode vir após a “honra”, mas esta última
é distinta, é outro fluido, tem outro aspecto, outra coloração e só é derramada
pela mulher uma única vez.
Os gitanos de Jarana, na Espanha, costumam dizer que “a mulher leva a
honra dentro de seu corpo” (GAY Y BLASCO, 1999: 93). Paloma Gay y Blasco
descreve em seu trabalho sobre os ciganos madrilenos uma concepção de “honra”
muito semelhante à dos calons mineiros:
Os Gitanos de Jarana acreditam que dentro do corpo de uma mulher virgem há uma
uva, uma espécie de grão duro branco ou acinzentado, do tamanho de um pequeno
grão-de-bico, que contém sua honra. Essa seria um fluido amarelo que é derramado,
e, portanto, perdido, quando uma mulher é penetrada por um homem pela primeira
vez ou quando ela é deflorada por uma mulher profissional (a ajuntadora) durante a
cerimônia de casamento. (GAY Y BLASCO, 1999:91, tradução minha)
Nos relatos das calins mineiras, a “honra” também aparece como um ele-
mento corporal feminino, uma das singularidades que constitui a mulher cigana.
A “honra” é claramente descrita pelas calins como um atributo do corpo da mu-
lher virgem, como uma propriedade física. A relação aqui é de correspondência
direta e literal: a “honra” é o nome dado ao líquido amarelado derramado pela
menina virgem. Assim que a calin ou o marido mostra para seus parentes o tecido
manchado com a “honra”, a família dos noivos trata de espalhar que a menina e
sua família “possuem vergonha”. Ao mesmo tempo, o nome escolhido para o lí-
quido advindo do defloramento vem de uma relação metonímica com a honra em
seu sentido moral. A palavra “honra” aparece, portanto, sempre com um duplo
sentido embutido, primeiro indicando literalmente este líquido do corpo da mu-
lher, cuja presença no lençol comprova sua decência – e aqui está o segundo sen-
tido da honra, semelhante à vergonha. A “honra” para os calons, portanto, ao con-
trário da conclusão de Pitt-Rivers para o caso de Andaluzia, não está mais inti-
CAMPOS, Juliana Miranda Soares.
Sangue
Custaram-me alguns anos de convivência entre as calins para que eu escu-
tasse tal descrição corpórea da “honra”. Até então, eu acreditava que a prova da
virgindade de uma cigana se dava através do sangue. Florência Ferrari, em sua
tese sobre calons que vivem em São Paulo, descreve um fenômeno semelhante, 145
também nominado pelas calins como “prova da honra”:
(...) em contraste com a menstruação, o sangue de uma moça virgem durante a noite
de núpcias é sinal de “pureza”. Dias após o casamento, a noiva deve “apresentar a
honra”, a “prova”, um pano que deve ser mostrado manchado, e que depois é “guar-
dado a vida toda” (FERRARI, 2010: 142).
Outra conclusão que pode ser depreendida da equivalência feita por Ferrari
entre “honra” e sangue, seria que o sangue possui duas dimensões, uma relacio-
nada à pureza – quando se trata do sangue do defloramento – e outra impura, no
caso do sangue menstrual. O que se apresenta entre os calons mineiros, em con-
traponto, é que existem diferenças significativas entres os termos “honra” e “ver-
ACENO, 7 (14): 137-156, maio a agosto de 2020. ISSN: 2358-5587
gonha”. Tanto a “honra” como o sangue menstrual são fluidos que colocam o
corpo da mulher no centro do seu sistema moral, atuando como importantes me-
diadores entre o interior e o exterior do corpo, entre corpo inferior e superior,
entre as relações homem/mulher. Seus efeitos, no entanto, são bem distintos, es-
tando cada um destes fluidos localizados pelos calons em lados opostos das no-
Dossiê Temático: O que carrega o sangue?
146
17Usarei aqui os termos “alto ventre” e “baixo ventre”, em continuidade com a literatura especializada, para designar as
partes superiores e inferiores, tendo a cintura como marco da divisão.
nos Estados Unidos18, contudo, as noções de honra e/ou vergonha se associam a
ideias acerca do potencial poluidor/contaminador da parte inferior do corpo fe-
minino, dando sustentação para a obrigatoriedade do cobrimento do baixo ventre
(OKELY, 1983; GROOPER, 1975; SUTHERLAND, 1986; STEWART, 1997; EN-
GEBRIGSTEN, 2007). Variações em torno do termo “marime” na língua romani
(na maioria das vezes traduzido como “poluição”) aparecem em várias delas.
Um dos primeiros trabalhos a tratar do tema foi a dissertação de Carol Miller
(1968) sobre os Rom Machwaya americanos. Miller argumentou que entre os
rom, “marime” é usado em dois sentidos: primeiro, como a condição de impu-
reza/contaminação [defilement] da parte inferior do corpo, sobretudo das áreas
genitais e anais femininas; e também como uma condição de mácula pública da
pessoa, de sua rejeição social, quando desrespeitam as regras morais, os rituais
de limpeza rom e a separação entre alto e baixo ventre19. “Marime” é ao mesmo
tempo uma impureza corpórea e moral. Na obra de Anne Sutherland (1986) sobre
um povo rom em Barvale (California), também aparece o termo nativo “marime”,
explicado por ela seguindo a mesma linha de Miller. Segundo a autora, a mulher
em relação ao homem, estaria no polo potencialmente poluidor, evitando-se o
contato ou a visão de suas partes baixas. O termo lashav, traduzido por ela como
vergonha [shame], aparece articulado com o idioma da poluição (SUTHERLAND
1986: 258)20. Entre os rom húngaros etnografados por Michael Stewart, os valo-
res morais que separam rom e gázos (não rom) são organizados a partir de ideias
sobre sujeira/limpeza e impureza/pureza: “eles se consideram ‘puros’, ‘respeitá-
veis, contrapondo-se aos gázos ´sujos´” (STEWART, 1997: 204), ainda que “seu
discurso foque mais a noção de vergonha do que a de impureza” (idem: 210, tra-
dução minha). Segundo o autor, os não ciganos são sujos justamente por desco-
nhecerem as regras de separação entre a parte superior (pura) e inferior (polui-
dora) do corpo. Estas regras incluem principalmente práticas de lavagem (nunca
misturar a água usada para lavar utensílios de cozinha – que são ligados à boca,
parte mais pura do corpo – com a água usada para lavar roupa, contaminada pelo
baixo ventre) e também a maneira de se vestir: é considerado vergonhoso para
mulheres usar casacos longos ou vestidos de peça única, que desconsideram a
divisão dual do corpo. Elas tampouco usam calças (idem: 208). Já Cătălina Tesăr,
ao escrever sobre os rom cortorari da Romênia, argumenta sobre uma fusão de
significações dadas por eles para a divisão do corpo: por um lado, segundo ela, a
necessidade de se tampar o baixo ventre está baseada no controle dos desejos
masculinos, seguindo a trilha de Gay y Blasco; por outro, mostra que os cortorari
“consideram a parte inferior do corpo feminino mais suja [unclean] e potencial-
CAMPOS, Juliana Miranda Soares.
mente poluidora [defiling] (TESĂR, 2012: 135, tradução minha), realizando tam-
bém rituais de separação de objetos limpos dos contaminados pelo corpo da mu-
lher21.
Sangue e honra
18 Enquanto no Brasil o termo “cigano” é usado para englobar diversos povos e famílias que assim se identificam (pos-
suindo também seus etnônimos próprios, como calon, rom, sinti, entre outros), na Europa e Estados Unidos, convencio-
nou-se a partir dos próprios movimentos roma, o uso do termo “roma” ou “rom” para aglutinar essas multiplicidades, sob
o argumento principal de que o termo “gypsy” é historicamente carregado de discriminação.
19 Miller esclarece que essa divisão do “marime” em dois sentidos é puramente analítica, não se apresentando assim para
grande dívida à teoria de Mary Douglas (2014) sobre a função dos rituais de limpeza como ordenadores e sistematizadores
da desordem da experiência, responsáveis por criar, assim, as separações entre interior e exterior, e, no fim das contas,
definindo a unidade do grupo. No meu caso, me afasto destas explicações de tipo funcionalista, admitindo apenas a coin-
cidência entre os termos calon “impureza”, “sujeira” também usados por Douglas. 147
21 Esses rituais no caso cortorari pressupõem o não contato da parte inferior do corpo feminino e de suas roupas com
utensílios domésticos, roupas masculinas e recipientes e objetos ligados aos animais, que também são passíveis de polui-
ção (por exemplo, não lavar roupas femininas no recipiente dos cavalos, não sentar menstruada na caixa onde se guarda
O tema no Brasil, em suas primeiras aparições em escritos acadêmicos, con-
forme já chamou atenção Ferrari (2010), é tratado de maneira solta e subesti-
mada, como no livro de Moacir A. Locatelli (1981) sobre ciganos do Rio Grande
do Sul, resultado de sua dissertação de mestrado. Ele enumera práticas rebaixa-
das por ele a “crenças” e “superstições”, dentre elas: “uma mulher é considerada
impura da cintura para baixo, e, no caso de um cigano tocar a saia da mulher
depois de comer, sem antes lavar as mãos, ele se torna marimay (impuro)”. Ou
ainda: “se um cigano lavar as mãos numa pia destinada à lavagem de roupa ou
panela, é marimay” (LOCATELLI, 1981: 82). Na etnografia de Maria Lourdes
Sant´Ana (1983) sobre ciganos rom de Campinas (sobretudo entre os Kalderash),
ela afirma: “a criança e a mãe deixam de ser impuras no momento do batismo
cigano. O pai não pode tocá-las, senão se tornará um ‘marimé’ (impuro) e isto lhe
dará azar na vida (...)” (SANT´ANA, 1983: 97). Segundo esta autora, ainda: “a
impureza está intimamente relacionada com o sangue” (idem: 97). Já a tese de
Florência Ferrari (2010) sobre calons de São Paulo é o primeiro trabalho brasi-
leiro preocupado com um análise antropológica refinada sobre a centralidade da
separação entre a parte inferior e superior do corpo e das concepções de polui-
ção/sujeira/impureza que acometem o baixo ventre da mulher, bem como o pri-
meiro esforço de uma comparação com outros contextos etnográficos: “ embora
o termo marime esteja ausente do vocabulário calon, a noção de poluição, como
uma dimensão do sagrado, parece em pleno funcionamento” (FERRARI, 2010:
83).
Entre os calons mineiros se observa, em continuação a essa série de outros
exemplos ciganos, um modo de pensar a construção do corpo como dividido em
alto e baixo ventre. Os vestidos das calins acompanham essa divisão: da cintura
para cima podem ter grandes decotes e fendas nas costas, na barriga, nos seios.
Da cintura para baixo, nada pode ser mostrado e a saia é sempre longa e rodada,
para nem mesmo marcar as curvas da mulher. Na explicação dos calons e calins,
ACENO, 7 (14): 137-156, maio a agosto de 2020. ISSN: 2358-5587
a zona que incita o apetite sexual está localizada na parte inferior do corpo, nas
curvas arredondadas dos glúteos, no formato das pernas, enquanto a parte supe-
rior do corpo feminino não é vista como fonte libidinal. Os seios, por exemplo,
para os calons é uma parte do corpo que não desperta volúpia, estando estrita-
Dossiê Temático: O que carrega o sangue?
mente ligada ao ato de amamentar. Por isso, uma calin não se constrange em sa-
car a parte de cima do vestido que cobre os mamilos e amamentar uma criança
na frente de qualquer um. Enquanto a parte superior pode ser mostrada, tapar o
baixo ventre é uma atitude crucial para a manutenção da vergonha feminina, já
que contribui para o controle dos desejos masculinos. É comum escutar que “as
calins tem vergonha, pois se vestem com pudor, enquanto as gajins são sem ver-
gonha, andam de shortinho, com as pernas à mostra”.
Em uma primeira camada da análise, os calons separam o alto e baixo ventre
da mulher partindo de um discurso que opõe uma parte do corpo inocente, ima-
culada – que pode ser vista – a outra que estimula o erotismo e a libido e que por
isso deve ser tapada, similar ao que propõe Gay y Blasco (1999) para os ciganos
de Madri. Mas há ainda no baixo ventre um sentido negativo que se soma ao de-
sejo, ligado a ideia de sujeira e de contaminação, tendo o sangue um papel impor-
tante. Neste caso, não é a visão o principal sentido a ser reprimido pelo vestido,
mas sim o contato. O sangue menstrual é considerado sujo, uma impureza que
148
o milho dos animais, etc.) No entanto, o potencial de contaminação do baixo ventre feminino é, segundo a autora, flexi-
bilizável, sendo os rituais de separação transgredidos pelas mulheres quando não estão na presença dos maridos ou da
sogra (TESĂR, 2012: 136).
sai do corpo da mulher. Conforme me explicou a calin Luzia22: “quando a gente
está menstruada, está em um momento impuro, daquela sujeira saindo do corpo”.
E completou: “em nosso corpo circulam muitas coisas. Tudo que é bom fica, tudo
que sai é impureza. Se o sangue fosse puro, ficava no corpo”. Essa foi uma das
poucas vezes em que recebi uma explicação mais detalhada sobre o caráter im-
puro do sangue menstrual. Das outras tentativas de perguntar diretamente sobre
esse assunto para as calins, elas sempre se esquivavam, de modo que, o restante
das informações que obtive sobre este tema foi a partir de conversas espontâneas,
motivadas por algum acontecimento. As calins e os calons não gostam de falar
sobre menstruação, pois consideram um assunto repugnante e motivo de vergo-
nha. Quando uma calin está próxima da menarca, a mãe lhe chamará para uma
breve conversa, explicando apenas aspectos práticos de como usar absorventes.
Nada mais profundo que isso deve ser falado. Alguns relatos sobre os motivos de
tirarem as meninas da escola ainda com pouca idade giram em torno do fato de
algumas disciplinas ensinarem detalhes sobre o funcionamento do corpo, dos ór-
gãos sexuais e dos fluidos relacionados a eles, o que, do ponto de vista calon, “é
vergonha”.
Na relação entre os gêneros, o sangue menstrual é um tema proibido. Uma
mulher nunca deve falar sobre menstruação com seu marido, uma filha não men-
ciona o assunto perto do pai e um casal não cogita ter relações sexuais enquanto
a calin estiver em seu período menstrual. Nas situações em que fiz a pergunta a
diferentes amigas sobre o porquê não se pode fazer sexo estando menstruada,
elas me responderam ruborizadas e um tanto chocadas pelo fato de minha ques-
tão considerar essa possibilidade: “que nojo!”, “não pode, faz mal!”, “isso é ver-
gonha!”. É preciso manter os homens e seus objetos pessoais longe da sujeira pro-
piciada pelo sangue. Em uma conversa, algumas calins comentavam sobre outra
que tinha dificuldades de arrumar um bom marido, pois tinha “fama de porca”:
“ela deixa calcinha suja de menstruação misturada com as roupas e os homens
veem. Cigano não aceita ver essas coisas”, disse uma delas. Quando nasce uma
criança na família, uma cigana mais experiente é designada para curar seu um-
bigo; esta, entretanto, não poderá fazê-lo se estiver menstruada. Alguns ritos re-
ligiosos preconizados por igrejas pentecostais frequentadas por algumas calins,
também não são feitos por elas caso estejam no período menstrual.
Os exemplos ilustram a concepção calon do sangue menstrual como um flu-
ido “sujo”, “impuro”, que traz malefícios àqueles com os quais ele entra em con-
tato, e, portanto, deve ser mantido longe das partes superiores dos corpos, afas-
tado dos bebês, dos homens, das práticas religiosas23. Tais preceitos geram rituais
CAMPOS, Juliana Miranda Soares.
22 Optei por mudar o nome de todas as interlocutoras no presente artigo para preservá-las, já que trato de assuntos bas-
tante íntimos.
23 Luisa Elvira Belaunde mostra a recorrência de concepções sobre o potencial perigoso e muitas vezes poluidor do sangue
em contextos indígenas. Entre os Bororo, segundo ela, todo o sangue que sai do corpo, incluindo o menstrual “é conside-
rado sujo e perigoso para todos que não sejam seu dono. (...) também é necessário se proteger da contaminação do sangue
e dos fluidos expulsos dos corpos dos outros. As mulheres menstruadas e parturientes se mantêm em reclusão, evitam
comer carne de animais que possuem muito sangue, para não afetar o equilíbrio do fluxo de sangue dos demais e para
controlar o próprio fluxo de sangue” (BELAUNDE, 2005: 65, tradução nossa). Em outro momento da mesma obra ela
afirma: “a ideia de que o contato com o sangue menstrual malogra os artefatos é comum na Amazônia. As cerâmicas
recém-feitas se quebram ao serem queimadas por uma mulher menstruada. As armadilhas de caça e de pesca dos homens
perdem sua eficácia (...) (idem: 134). Marina Vanzolini, em seu trabalho entre os Aweti no Xingu, comenta sobre os perigos 149
do sangue e suas gradações de acordo com gênero e papel social: “o sangue menstrual é perigoso sobretudo para os xamãs,
é mesmo letal para eles; os meninos da casa, se consumirem uma comida feita por mulher menstruada, terão no máximo
dor no peito (pozy`a aty), e as mulheres não são normalmente contamináveis ” (VANZOLINI, 2010: 138).
que envolvem o corpo masculino. Assim, os vestidos são em geral lavados sepa-
radamente das roupas masculinas; quando uma mulher está menstruada, ela
deve fazer almoço antes de tomar banho para evitar que toque em suas partes
íntimas e logo depois encoste as mãos contaminadas na comida que o marido irá
consumir; não misturam bacia usada para lavar roupa com vasilhas de alimentos.
Ou ainda, se por acaso um utensílio de cozinha cair no chão da barraca e a calin
passar com a barra de seu vestido por cima, o primeiro deve ser imediatamente
descartado, pois “fica sujo” e o homem não poderá usá-lo para comer. A perma-
nência da sujeira causada pelo contato de superfícies com as partes contaminadas
pelo sangue feminino parece ter relação com uma ideia calon de continuidade
substancial entre coisas e pessoas, e possui consequências ligadas ao azar, traz
infortúnios, principalmente relacionados a destruições amorosas. As explicações
sobre o que aconteceria a um calon que entra em contato com estes objetos con-
taminados são dadas nos seguintes termos: “traz má sorte”, “a vida dele não vai
pra frente”, “o casal separa”, “ traz infelicidade pra vida dele”, “ o homem pode
ficar impotente” e variações em torno disso.
Um dos riscos que envolvem o contato com o sangue menstrual parece estar
intimamente relacionado à noção calon de “feitiçaria”. Diferente de outros con-
textos, como o afro-brasileiro no qual a feitiçaria aparece como interna à religião,
como “seu outro lado”, sendo indissociável a ela, como sugere Barbosa Neto
(2012: 315), entre os ciganos o “feitiço” ocupa um lugar difuso e descodificado,
que atravessa as diversas escolhas religiosas que compõem os acampamentos mi-
neiros. Observa-se tanto nas famílias que se consideram católicas quanto nas que
frequentam alguma igreja pentecostal nas suas diversas variáveis, um comparti-
lhamento das noções sobre o modo de funcionamento, a eficácia e as consequên-
cias do sistema de feitiçaria, intimamente ligado à noção de “vergonha”. A palavra
“feitiço” é comum no vocabulário dos calons, que às vezes também a substituem
por “trabalho” ou “amarração”.
ACENO, 7 (14): 137-156, maio a agosto de 2020. ISSN: 2358-5587
Em certa ocasião, acompanhei a calin Leda e sua filha Camila em uma visita
à barraca de sua irmã, Tânia, que vivia em outro acampamento. Esses encontros
costumam acompanhar carinhosas trocas de dádivas entre as parentes e, neste
dia, enquanto a anfitriã mexia em seus baús para presentear a irmã e a sobrinha
Dossiê Temático: O que carrega o sangue?
151
24 Para mais detalhes sobre o feitiço ligado às fotografias, consultar futuramente minha tese, em andamento.
25 Princípios similares de magia por contiguidade atravessam a história da antropologia, desde Frazer (1982), depois
Mauss (2003), retomados por Gell (2018), Vanzolini (2010) e muitos outros.
uma pessoa que trouxe a outra alguma desilusão amorosa. Neste último caso, o
efeito do feitiço é ocasionar à vítima algum problema sexual, como a impotência
masculina. O uso exclusivo nos feitiços dos tecidos ligados à parte inferior dos
corpos reforça separação entre alto e baixo ventre e os perigos deste último: as
calins afirmam que o pedaço do vestido sujeito ao roubo é sempre a saia ou a
barra do vestido, nunca o corpinho. As roupas inferiores de um homem também
são objeto de extremo cuidado: nunca são compartilhadas; um calon jamais em-
presta, doa ou “breganha” suas calças, enquanto as camisas podem circular livre-
mente de um homem para outro. Calças e cuecas, quando descartadas, devem ser
queimadas, assim como os vestidos das calins.
Segundo as calins, mais grave e eficaz do que fazer feitiço com a barra da saia,
é fazê-lo com as roupas íntimas da pessoa, por isso, ter acesso a elas é extrema-
mente difícil. Calons e calins tem verdadeiro pavor de que alguém roube suas pe-
ças íntimas. É comum na paisagem de um acampamento, ver os vestidos colori-
dos ou calças masculinas secando em um varal disposto ao ar livre ao lado das
barracas, mas as calcinhas e cuecas nunca estarão à vista: são sempre colocadas
na parte menos acessível do interior das barracas, bem ao fundo. O aumento do
temor dos calons em relação ao uso de suas roupas íntimas como veículo para a
feitiçaria traz indícios de que ela se relaciona às regiões genitais e bem provavel-
mente, ao sangue menstrual. Como já mostrei, os calons têm uma grande aversão
ao tema do sangue e o consideram sujo, uma impureza que sai do corpo da mu-
lher. Já mencionei relatos sobre a inutilização de vasilhas e panelas (objetos liga-
dos ao ato de comer, relacionados à parte superior do corpo) quando elas aciden-
talmente encostam na barra do vestido de uma calin, ligada à parte inferior do
corpo, aquela onde se localiza a sujeira e a impureza do sangue. O feitiço com o
tecido para funcionar a partir dessa lógica: no caso, as roupas de baixo das calins,
aquelas que têm contato com o sangue e que deveriam se manter separadas das
roupas de cima e afastadas das roupas dos homens, são propositalmente mani-
ACENO, 7 (14): 137-156, maio a agosto de 2020. ISSN: 2358-5587
Palavras finais
O significado do sangue para os calons não se resume ao sangue menstrual.
O termo é também frequentemente usado para designar um dos sentidos do pa-
rentesco: os “parentes de sangue” são aqueles cujos vínculos passam pelo com-
partilhamento dessa substância. Ao mesmo tempo, o sangue não basta para ser
parente, é preciso atualizar outros vínculos, como os de convivialidade, e, muitas
vezes, compartilhar outras substâncias – o leite materno, por exemplo. O ato em-
preendido por uma mulher ao amamentar uma criança que é “filha de sangue” de
outra calin produz um elo de parentesco da criança com a primeira, de modo que
ela passa a ser considerada sua “filha de leite”. Esta criança será, por consequên-
cia, “irmã de leite” dos filhos de sangue da mulher que a amamentou. Irmãos de
leite criam um forte vínculo de consanguinidade, sendo vetada a possibilidade de
casamento entre eles, considerado um evento incestuoso.
Sem a pretensão de desenvolver esta discussão, o objetivo de mencioná-la
aqui é apenas o de pontuar a relevância de outros fluidos na cosmologia calon,
152 também agentes na produção do parentesco e da pessoa. Mas estes outros, inclu-
indo o sangue como fluido que faz parentesco, encontram-se em um plano dis-
tinto da dupla “honra” e sangue menstrual, focos deste artigo. Tentei demonstrar
que ambos se conectam, por um lado, por serem fluidos genderizados, mediado-
res de relações a partir de seus efeitos ao saírem do corpo feminino. Tendo isso
em comum, por outro lado, sangue e “honra” tomam direções opostas como agen-
ciadores da noção de “vergonha”: a “honra”, como o fluido que prova a pureza da
mulher, sua decência (ligada à sua virgindade) é liberada apenas uma vez. Após
isso, seu baixo-ventre só libera impureza, sujeira, o sangue menstrual. Este úl-
timo mobiliza todas as práticas de separação e distanciamento que devem ser
constantemente empreendidas pelos calons: entre homem e mulher, entre alto e
baixo ventre, entre ciganos e não ciganos; estes últimos considerados “sujos” e
“sem-vergonha” por não se preocuparem com tais separações.
Referências
155
ACENO, 7 (14): 137-156, maio a agosto de 2020. ISSN: 2358-5587
Dossiê Temático: O que carrega o sangue?
156
Entre sangue e a afinidade:
dilemas de parentesco em casos de abuso sexual
intrafamiliar no Amazonas, Brasil1
1Uma prévia deste artigo foi apresentada no Grupo de Trabalho “O que carrega o sangue? Elaborações em torno do sangue
e seus potenciais produtivos”, em 2019, durante a XIII Reunião de Antropologia do Mercosul, em Porto Alegre, RS. Agra-
decemos os debates provocados pela leitura de Juliana Caruso, Flávio Tarnovski, Carolina Portela e Marisol Marini.
2 Doutorando no Programa de Pós-graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Amazonas (PPGAS/
UFAM). Pesquisador do Azulilás – Núcleo de Estudos em Gênero, Famílias, Conflitos e Sexualidades (PPGAS/DAN/
UFAM)
3 Professora do Programa de Pós-graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Amazonas (PPGAS/
UFAM). Coordenadora do Azulilás – Núcleo de Estudos em Gênero, Famílias, Conflitos e Sexualidades (PPGAS/DAN/
UFAM)
Between blood and affinity:
kinship dilemmas in cases of intrafamily
sexual abuse in Amazonas, Brazil
Abstract: From emblematic cases that occurred in Amazonas, in families with flow
rural and the urban, understand a recurring tension between consanguinity and af-
finity, from sexual acts between adults and children with kinship ties, classified in
contexts of punishment as “sexual abuse”, in the “grandfather-grandson” and “step-
father-stepson” relationship axes. From this ethnographic context, we propose to
analyze fluid exchanges (blood, semen) between adults and children, based on the
difference of kinship, of the victims in relation to the aggressors, reflecting on (1)
what approximates and distances parents and (2) how such acts produce a new sta-
tus in kinship.
158
A
violência sexual é uma categoria elaborada historicamente como pro-
blema social, que inclui diferentes tipos de violação, atravessadas por gê-
nero, geração, raça e classe social. O abuso sexual é a violência sexual con-
tra crianças e adolescentes, tendo, geralmente um adulto como agressor. Essa ca-
tegoria é subdividida entre “abuso sexual extrafamiliar”, quando a violação não
envolve parentes ou pessoas com relação de moradia, e “abuso sexual intrafami-
liar”, quando a violação ocorre entre parentes.
O “abuso sexual intrafamiliar” é o tipo de violência sexual mais recorrente no
Brasil, segundo dados do Ministério da Saúde (2018) e Ministério da Mulher, Fa-
mília e Direitos Humanos (2020), representando 80% das denúncias de casos
totais, e tendo como agressores, primordialmente, padrastos, pais e avôs. Dados
do Serviço de Atendimento às Vítimas de Violência Sexual do Amazonas
(SAVVIS), dos últimos seis anos, apontam a recorrência de 90% dos casos de vi-
olência sexual, cometidos entre parentes. Contudo, as violências sexuais em fa-
mília, têm baixa resolução judicial o que significaria a punição dos agressores,
propiciando o afastamento das relações familiares e de moradia.
Além dos muitos problemas na ação estatal, ponderamos que a ineficiência
da ação do Estado em prevenir, punir e combater aquilo que define como “violên-
cia sexual”, é atravessada pelo modo de como se estruturam as relações de paren-
tesco. Nesse sentido, nossa hipótese é de que, em relação às violências sexuais
intrafamiliares, o Estado e seus agentes operam não apenas com normas legais,
mas compartilham com as famílias que protegem seus parentes agressores, no-
ções sobre a manutenção da família, principalmente, dos vínculos de consangui-
nidade.
O distanciamento das relações familiares, seja por meio da punição na justiça
ou afastamento do parente agressor, parece ser o caminho mais óbvio após um
abuso sexual intrafamiliar. Porém esse é um crime difícil de ser investigado e pu-
nido. Quando há vínculo de parentesco entre agressor e vítima, essas dificuldades
são maiores, pois há uma tendência de aglutinamento dos parentes em torno da
proteção do sujeito agressor. Proteção, nesse caso, significa gerir coações em fa-
LIMA, Natã Souza; WIGGERS, Raquel.
mília para a retirada dos processos, faltar audiências, driblar laudos, entre outras
estratégias que dificultam a elaboração de provas materiais que comprovem as
violências.
Entre sangue e a afinidade
Lopes Leitão (2016) é categórica ao afirmar que “a pena legal para quem pra-
tica abuso sexual ou participa da exploração sexual contra crianças e adolescen-
tes, no Brasil, é a reclusão. Isso [o risco da reclusão] traz um impacto nos com-
portamentos dos integrantes da família”.
No Amazonas, desde 2012, o Azulilás – Núcleo de Estudos em Gênero, Famí-
lias, Conflitos e Sexualidades (PPGAS/DAN/UFAM) tem se dedicado a pesquisas
sobre padrões de conflito e resolução familiar em casos de violência sexual, bus-
cando compreender, por diferentes perspectivas as cenas de “abuso sexual” no
Amazonas, através de documentos e casos empíricos obtidos em órgãos de Jus-
tiça e Assistência Social. Com pesquisadores em diferentes níveis de formação,
concentrados em etnografar distintos pontos de vista – a partir da exploração se-
xual, da violência intrafamiliar, de mães de vítimas, de profissionais encarregados 159
do atendimento às vítimas e dos autores da violência – temos buscado pensar
sobre motivações, conflitos, poderes, desejos, e modelos de organização que são
mobilizados em torno da violência sexual.
Os dados de referência para a discussão proposta neste texto, estão situados
nesse contexto de pesquisa, e foram obtidos entre 2012 e 2016 através da pesquisa
de Lima (2018), que compôs o “Observatório da Violência Sexual no Amazonas”4.
Os relatos foram obtidos a partir das reuniões do “Grupo de Autores”, um serviço
de atendimento psicossocial para homens acusados de abuso sexual contra crian-
ças e adolescentes. Esse grupo não tinha vínculo direto com a justiça (como pena
alternativa), mas era realizado voluntariamente no Centro de Referência Especi-
alizado em Assistência Social de Manaus (CREAS). Todos os interlocutores eram
voluntários no serviço, que funcionava no formato de um grupo de apoio mútuo,
com participação de uma psicóloga voluntária.
A pesquisa envolveu acordos com os interlocutores sobre manter a identidade
e características pessoais em sigilo. Os dados aqui narrados partem do consenti-
mento dos participantes, mesmo que algumas falas sejam explicitamente violen-
tas. As genealogias foram elaboradas a partir de rascunhos feitos junto com os
participantes do “Grupo de Autores”, e a partir de fichas preenchidas num mo-
mento de “triagem”5. Algumas adaptações foram feitas para fins da análise antro-
pológica aqui proposta, mas sem uso de programas específicos, uma vez que era
necessário manter ao máximo a integridade da elaboração conjunta e evidenciar
os eixos onde ocorreram abusos sexuais intrafamiliares. Em todas as genealogias
o ego será sempre o agressor.
Todos os homens ouvidos no âmbito do “Grupo de Autores”, tiveram seus
processos arquivados, principalmente porque os familiares que lhes acusavam,
deixaram de comparecer às audiências.
Desses casos, classificados como “abusos sexuais intrafamiliares” no Amazo-
nas, notamos que existe uma tensão, permeada de ambiguidades, entre relações
de parentesco por consanguinidade e por afinidade, e a consideramos basilar para
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distanciar parentes; e (2) como produz novos status na família, para vítimas e
agressores. A diferença a qual nos referimos, não é apenas entre vítima e agressor,
mas ao lugar de ambos na família, antes e após o abuso. Nesse sentido, a análise
dos casos de “abuso sexual intrafamiliar”, nos parece um caminho possível para
compreender padrões de organização familiar no Amazonas6.
Os dois casos aqui relatados foram construídos como paradigmáticos de
abuso sexual intrafamiliar, e a partir de sujeitos em trânsito do norte ao centro
4 Projeto aprovado no Comitê de Ética em Pesquisa, Limites e Possibilidades: Uma aproximação da realidade de crianças
e adolescentes em situação de violência sexual, CAAE 02463212.8.0000.5020.
5 A triagem era a primeira abordagem do serviço de atendimento feito pelo “Grupo de Autores”, com levantamento da
ser discutidas aqui. A violência sexual, em suas múltiplas formas, é um crime que cruza diferentes matrizes explicativas.
A desigualdade de poder nas relações de gênero é um fator preponderante para as taxas altas de violência sexual no Brasil,
mas não é autoexplicativo. Essa desigualdade nas relações de força e poder (WIGGERS, 2000) é sustentada por modelos
de organização familiar com especificidades regionais do Brasil, por lógicas de Estado e de seus agentes (LIMA, 2018), e
160 uma série de problemas na efetivação de políticas públicas, como a escassez de abrigos para vítimas, falta de atendimento
especializado em delegacias para escuta de mulheres e crianças vítimas de violência sexual, e os horários de funciona-
mento dos organismos de justiça e assistência social. Aqui, fazemos um esforço de traçar moralidades em torno de padrões
familiares nos contextos de violência sexual no Amazonas, como uma perspectiva importante sobre esse tema.
do Amazonas7, em Manaus, estamos destacando dois eixos: “padrastro-enteada”
e “avô-neto/a”.
O caso Chefe
Um homem cuja idade variava entre 50 e 60 anos, o tipo caboclo do Amazo-
nas, pele morena, queimada pela vida de trabalho exposto ao Sol, cabelos negros
lisos, estrutura muscular forte. Sempre usava calça de algodão, as vezes um jeans,
com sapatos de couro e camisa de botão em cores neutras, variava no máximo
entre verde ou azul escuro. Cordial, mas nada expansivo, um homem reconhecido
socialmente como “sério”.
Chefe era casado e tinha cinco filhos, e todos moravam em sua casa. Três fi-
lhas adultas, um filho adulto, uma filha adolescente.
Ele descrevia sua casa como seu local de moradia, com sua esposa e filhos.
Sua casa agregava tanto suas filhas e filho, quanto cônjuges e netos. Era sem dú-
vida uma casa grande, da qual ele se orgulhava de ter construído. Duas de suas
filhas adultas eram casadas e tinham filhos pequenos. Seu filho também era ca-
sado, policial militar, e não tinha filhos. Chefe tinha uma filha solteira com uma
filha, que em alguns momentos ele nomeava como “filha de criação” e “neta de
criação”. Entre as ocupações profissionais da casa, mencionava apenas a do filho,
policial militar.
Quando casou com sua esposa, ela já tinha uma filha, e ambos acordaram que
a menina seria criada como filha de Chefe. Depois foram nascendo os outros qua-
tro filhos de Chefe. Ele não falava muito das filhas adultas, mencionava com mais
recorrência a filha adolescente, para quem pagava cursos, sobre quem relatava
ter conflitos decorrentes de sua “rebeldia” e das preocupações com o vestibular.
Na medida que os filhos iam casando, Chefe aumentava a casa. Chegou a com-
prar dois terrenos vizinhos para dar conta da expansão. Algumas vezes ele expli-
cou-nos a estrutura física da casa: haviam dois cômodos grandes e de uso comum,
a cozinha, com uma mesa central grande onde havia cadeira para cada um dos
moradores, duas geladeiras que abrigavam a comida e os sucos que causavam
brigas com as filhas, porque alguns consumiam todo o suco da família. Essa era
uma fala recorrente de Chefe, os conflitos pelo consumo do suco.
A sala era o outro cômodo comum, onde havia uma escada que dava para a
parte superior onde ficavam os quartos de todos os filhos e netos. O quarto do
LIMA, Natã Souza; WIGGERS, Raquel.
Chefe e sua esposa era na parte superior da casa. No andar debaixo, ainda havia
os quartos menos “nobres”. Um deles era ocupado pela “filha de criação”, junto
Entre sangue e a afinidade
7 Ocorre um fluxo de parentes entre Manaus e as cidades do interior do Amazonas, que inclui o compartilhamento de
moradias entre membros da mesma família – consanguíneos. Esse fluxo geralmente se dá por motivos de saúde, quando
algum familiar precisa de cuidados na capital do estado, ou por problemas de “comportamento”, quando algum parente 161
se envolve em “problemas” na sua cidade de origem.
8 Não podemos afirmar ainda que há um recorte de classe específico para esse padrão, uma vez que tem sido notado, a por
meio de outras pesquisas do Azulilás, em famílias de classe média/ alta de Manaus e entorno.
Contudo, uma das filhas casadas de Chefe estava com objetivo de sair da casa
e se organizava para ir viver em outra residência com sua família nuclear. Quando
os outros filhos casados souberam disso, começaram a tentar fazer o mesmo. O
ideal de Chefe da casa grande abrigando-o a esposa, todos os filhos, filhas, netos,
genros e noras começou a ser posto em risco. Nesse contexto, Chefe começou a
praticar abusos sexuais contra a “neta de criação” filha da filha da esposa anterior
ao casamento com Chefe, e que foi acordado que seria criada como sendo filha
dele. Segundo ele, eram masturbações e toques, sem penetração, por um período
de tempo que durou cerca de um ano.
O estopim da ameaça de desconfiguração daquela família tal como foi conce-
bida por Chefe ocorreu no momento em que o filho, o policial militar, anunciou
que também iria sair da casa. Sob o que considerou uma ameaça do filho, Chefe
ao chegar em casa após o trabalho na madrugada, e depois de passar no bar, como
era de costume, entrou no quarto ocupado pela filha e pela neta de criação, na
época com sete anos de idade, estuprando-a com uma violência brutal. Após co-
meter a violência, Chefe dorme por um tempo impreciso, e ao acordar, liga para
o filho, policial militar, avisando que havia estuprado a “neta de criação” e estava
indo à delegacia para “se entregar”.
Para compreendermos o contexto da violência sexual cometida por Chefe e os
eixos de relação de parentesco, examinemos a genealogia que segue:
eCH CH
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VIOLÊNCIA SEXUAL
162
A partir da genealogia de Chefe percebemos que a violência sexual ocorreu no
eixo de relação de parentesco mais “distante” entre os membros da casa. Mesmo
que Chefe tivesse outras netas e outras filhas, não foi contra nenhuma delas, suas
consanguíneas, que perpetrou a violência, mas contra a filha da filha de sua es-
posa, chamada por ele de “neta de criação”, mas que não tem com ela relação de
consanguinidade.
O filho para impedir que o pai fosse preso acionou todas as irmãs, filhas de
Chefe para que contivessem a revolta da mãe da criança violentada. Assim, sob
pressão familiar ela demorou dias para denunciar o abuso sexual sofrido por sua
filha, entre outras coisas porque ela foi trancada em casa. Porém, ninguém con-
segue impedir o Chefe de efetivar a denúncia contra si mesmo. No entanto, o que
seriam as provas, o exame de corpo delito, a narrativa da criança, foram contidas
por um tempo, corroborando para que a denúncia dele ficasse sem comprovação
empírica; trabalho exercido principalmente pela esposa de Chefe, convencendo a
mãe da criança a não legitimar a denúncia do marido.
Porém, dias depois a “filha de criação” conseguiu sair da casa, levou a criança
para os órgãos da rede de proteção e formalizaou o processo contra o autor da
violência, mesmo sem o apoio da mãe e dos irmãos. Depois dessa ocorrência dra-
mática, os filhos de Chefe não falaram mais em sair de casa, ao invés disso, se
concentraram em torno do pai, a fim de protegê-lo, com discursos relativos à sua
perda, possível prisão e “estupro na cadeia”.
Já a “filha de criação” sofre a primeira derrota no processo contra Chefe. Os
laudos do IML e do Serviço de Atendimento às Vítimas de Violência Sexual não
são equivalentes9. Assim, a violência cometida por Chefe é mais uma das caracte-
rizadas como “sem materialidade” e a primeira audiência na justiça é marcada
um ano após a denúncia.
O período de audiências é marcado por muita tensão familiar, com muito
medo de Chefe seja condenado e preso. Mas a “filha de criação” de Chefe decide
não comparecer e abandonar o processo, que acaba sendo arquivado. Pouco de-
pois do período das audiências, filha e neta “de criação” de Chefe, fazem “as pa-
zes” e voltam à casa da família10.
9 Há um embate em torno da produção dos laudos de violência sexual no Amazonas. A equipe do SAVVIS – Serviço de
Atendimento à Vítima de Violência Sexual –, acusa o IML de não ter equipe técnica e material especializado para o aten-
dimento às vítimas de violência sexual. Além disso, a justiça aceita apenas o laudo do IML como prova de materialidade
da violência, sendo o SAVVIS um espaço para acolhimento e primeiros socorros em saúde às vítimas.
10 Para que uma denúncia de violência sexual seja levada à justiça, ela precisa tramitar em diferentes órgãos. No caso das
violências sexuais contra crianças e adolescentes, a denúncia tramita pela Rede de Proteção à criança e ao adolescente.
Em algum ponto dessa tramitação, muitas vezes a denúncia para ou é retirada – e as causas são burocráticas, por impedi-
mentos socioeconômicos de as vítimas e a familiares em ir aos órgãos, ou porque a família decidiu não continuar os pro-
cessos. Nessa saga pelos órgãos de justiça, ocorrem agravamentos como, atendimento de agentes (principalmente da po-
lícia) que não são capacitados para colher depoimentos das vítimas, promovendo revitimizações ou duvidando da palavra
das vítimas durante as denúncias; problemas nos laudos que atestam a “materialidade do crime” (ver LOWENKRON,
2012) – uma coisa que se diz bastante nas redes de proteção é que “você precisa pegar o autor da violência no ato”, pois
isso facilita uma denúncia com provas materiais mais consistentes e caracteriza um flagrante. Essas são dificuldades de 163
primeira ordem, no acesso à proteção e garantia de direitos, que colaboram para que as famílias construam suas próprias
alternativas de resolução, que são “mais fáceis”, do que o percurso nas instâncias do Estado (ver LOPES LEITÃO, 2016;
WIGGERS e LIMA, 2014).
pouco mais afastadas do centro da cidade. Contou-nos que andou um tempo, im-
preciso, por Santarém, junto com a família, mas retornou à Parintins ainda du-
rante sua infância.
Aos 14 anos de idade, quando estava trabalhando na roça do tio, passou a ser
acompanhado no trabalho por uma moça da região, que na época tinha 22 anos
de idade. Certo dia, após chegar em casa e contar para o tio sobre a moça, este lhe
perguntou “e o que tu fez com ela? Tu não fez nada? ”, rindo do adolescente. No
dia seguinte, o tio lhe entregou uma revista pornográfica e disse “mostra isso aqui
pra ela quanto tu chegar lá [na roça]”.
Rei Salomão contou que seguiu o conselho do tio, mostrou a revista ao que a
moça reagiu com um “Olha já!” animado, típico do Amazonas. Em suas palavras,
foi a partir disso que num “roça daqui, roça dali” teve sua primeira relação sexual.
Foi pra casa “radiante”, contou ao tio sobre o ocorrido e ambos celebraram sua
“primeira vez”. Depois de sua primeira relação sexual e vendo a história do Rei
Salomão da Bíblia, com muitas mulheres e filhos, o rapazinho decidiu que “queria
ser que nem esse Rei Salomão ali”.
A moça com quem Rei Salomão teve sua primeira relação sexual engravidou
dele, e diante do caso, houve “rebuliço” na comunidade11. Rei Salomão estava dis-
posto a casar e assumir a criança, mas a família da moça não apoiou a união, por-
que ele era muito jovem. A família do rapaz acionou a justiça para resolver o
impasse, mas um juiz interpretou que, por ser menor de idade Rei Salomão não
precisaria casar. Ele pediu para casar com a moça e chegaram a ficar juntos alguns
meses após o nascimento da criança, mas logo ela o deixou, mudando-se para
outra cidade.
Anos mais tarde, depois de vários romances, ele se casou formalmente e con-
tinuou morando na casa do pai. Essa casa tinha o formato da casa do Chefe, com
o pai sendo o sujeito aglutinador da família, e os irmãos e cônjuges morando
junto. Com sua primeira esposa, Rei Salomão teve três filhos, mas após o terceiro
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filho, a mulher, a quem sempre chama de “a mãe dos meus filhos”, deixou a casa
do sogro, e os filhos com o pai.
Após a partida da “mãe de seus filhos”, Rei Salomão também decide ir em-
bora, levando consigo apenas dois dos três filhos, para cuidar de uma terra12, em
Dossiê Temático: O que carrega o sangue?
164 11 Esse “rebuliço” é comum até hoje nas comunidades quando uma menina ou moça engravida. Pais, parentes e vizinhos
opinam sobre o destino do casal e da criança.
12 Um acordo informal para cuidar de uma propriedade rural. Uma atividade próxima do que faria um “caseiro”, mas
diferente por conta das formas de organização dessa propriedade e da relação com a terra.
conta pelo menos 17 filhos ao todo “espalhados pelo mundo”, de relações com
cerca de 22 mulheres.
Em certa altura, deixando os filhos com o pai, em Parintins, veio morar em
Manaus. Chegou sem emprego, mas conseguiu um trabalho no porto, logo depois
alugou uma casa e foi organizando a vida. Num dos dias de trabalho no porto de
Manaus, conheceu uma mulher grávida, e lhe chamou pra morar consigo, com-
prometendo-se em assumir a criança que viria a nascer, como seu filho. Ela acei-
tou e os dois passaram a morar juntos, sob o acordo de que ela deveria “cuidar
dele como homem”, e ele deveria mantê-la:
Ela cuidava da casa, deixava tudo arrumado, fazia minha comida, mas quando che-
gava na hora de comparecer ela escapava. Todo dia eu chegava e era a mesma his-
tória, a comida ótima, ela botava no prato, café da manhã sempre bem feito, tudo
bonitinho, mas e cuidar de mim com homem? Nada. Até que um dia eu cansei disso e
falei pra ela ‘olha você tem que comparecer. Que negócio é esse de não me querer? Já
faz seis mês isso! Seis mês! Eu lhe dei teto, vou assumir sua criança, mas você tem
que...né, comparecer. Não tá certo isso não!’”. Aí ela disse que não queria mesmo as-
sim. E eu disse ‘pois eu vou fazer’, e ela atrevida ainda falou ‘se você fizer eu vou em-
bora’. Aí eu duvidei e fui pra cima dela e fiz. Quando acordei, tinha só o café da manhã
na mesa. Ela foi embora mesmo. Nunca mais apareceu.
No tempo seguinte, Rei Salomão contava que ficou “sem mulher”, até que
encontrou, também no porto, uma mulher com quem já havia tentado namorar
na juventude, moradora de Manaus, mas que estava vindo de Parintins: “Agora
vai, eu vou conseguir conquistar ela”. Ela era evangélica, por isso, ele acabou en-
trando para a igreja também e mais tarde, com sua insistência, casaram.
Ela já tinha uma casa, e Rei Salomão, que antes morava de aluguel, e já havia
“perdido” um terreno, num conflito em uma ocupação em Manaus, assim, foi mo-
rar com a nova esposa.
Ele continuou trabalhando no porto de Manaus até conseguir se aposentar.
Ela era lavadeira e também fazia faxina. Eles tentaram ter filhos três vezes, mas
em todas ela abortou. Ela já tinha um filho adulto, e assim como ele, era uma
mulher de meia idade na época.
O filho da esposa de Rei Salomão tinha um filho, um menino de 6 anos, com
quem frequentava cotidianamente a casa da mãe. Rei Salomão dizia não gostar
do menino, pois era muito traquino. Certo dia, a criança foi deixada com a avó,
esposa do Rei Salomão. Enquanto isso, ela recebeu um telefonema para ir fazer
uma faxina, e deixou o neto sob os cuidados de Rei Salomão, que abusou sexual-
LIMA, Natã Souza; WIGGERS, Raquel.
165
Figura 2 – Genealogia de Rei Salomão
PRS MRS
mRS mRS mRS mRS mRS mRS mRS mRS mRS mRS RS mRS mRS eRS
...
fRS fRS fRS fRS fRS fRS fRS FRS0 FRS1 FRS2 FRS3 eRSf
fRS
eRSff
VIOLÊNCIA SEXUAL
RS: Rei Salomão RS2: Filho 2 de Rei Salomão : eixo da violência sexual
PRS: Pai de Rei Salomão RS3: Filho 3 de Rei Salomão : ruptura no vínculo de parentesco
MRS: Mãe de Rei Salomão fRS: Filhx de Rei Salomão : abortos
eRS: Esposa de Rei Salomão eRSf: Filho da esposa de Rei Salomão
RS0: Filho de Rei Salomão eCHff: Filho do Filho da Esposa de Rei Salomão
RS1: Filho 1 de Rei Salomão mRS: mulher de Rei Salomão
Rei Salomão nos contava que sempre acontecia alguma emergência familiar
e esposa abortava. Da última vez, foi por causa de um evento, envolvendo o filho
mais novo de Rei Salomão:
Ele veio morar um tempo comigo em Manaus. Era um menino novo. Menino bom.
Não devia ter vindo, mas ele vivia pedindo pra vir e eu deixei, porque o do meio veio
antes e casou. Aí ele quis vir também. Ficou morando com a gente. Um dia ele foi
numa festa, tava a fim de uma mocinha e foi atrás. Mas a menina tinha namorado e
o cara era um bandidão desses que arrumou confusão com ele na festa e meu filho
decidiu vir pra casa. O problema é que o cara seguiu ele e quando foi perto de casa, o
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bandido deu uma facada no bucho do meu filho que rasgou. Aí ele conseguiu puxar o
celular pra me ligar. Quando ele falou comigo eu fui atrás com o carro do meu cu-
nhado. Mas o menino era forte, era brabo. Foi andando pra casa. Aí quando ele che-
gou lá, minha mulher abriu a porta e viu as tripa dele tudo pra fora. Aí ela não aguen-
tou e abortou. Depois disso ela não engravidou mais. E ele virou um menino mau. Ele
era um menino bom, mas depois disso parece que deu alguma coisa nele. Se meteu
Dossiê Temático: O que carrega o sangue?
com tudo que não prestava. Não sei nem o que é dele. Sumiu. Tavam procurando ele
pra prender, mas ele sumiu. Tomara que não esteja morto por aí.
Não sabemos ao certo até onde, de fato, Rei Salomão realmente desconhecia
o paradeiro do filho. Geralmente as famílias de camadas populares que residem
em Manaus, têm alguma rede de parentes no interior. Rei Salomão relata essas
redes, esses intercursos por diferentes cidades entre Parintins e Manaus, circuito
que é compartilhado também por seus filhos.
Dos outros dois filhos, dizia confiar mais no filho mais velho, que morava na
casa de seu pai, em Parintins. Já o filho do meio, em certo momento, durante a
participação de Rei Salomão no Grupo de Autores, começou a “arranjar proble-
mas”, aparentando que estava “de caso com outra mulher”. Algum tempo depois,
Rei Salomão nos contou que o filho foi posto pra fora de casa pela esposa, e está
abrigado em sua casa. Além disso esse filho começou a ser descrito como “alcoó-
latra”.
Acordei, fui na padaria pra comprar pão, tava ele lá na frente de casa, estirado no
meio da calçada. Uma vergonha. Aí eu pensei ‘eu vou fotografar pra mostrar pra ele’.
Entrei, peguei a câmera e tirei um monte de foto dele naquela situação. Quando ele
acordou peguei a câmera e mostrei pra ele, “olha aqui tua situação rapaz! Tu acha
166
isso bonito?! Vai criar vergonha, se arrumar com Deus!”
Mais tarde, ainda no tempo do “Grupo de Autores”, Rei Salomão contou que
o filho do meio já estava “melhorando do vício”, que conseguiu um emprego e
estava frequentando a igreja. Nesse ínterim, o pai de Rei Salomão foi trazido por
ele à Manaus, para realizar alguns exames. Por se negar a fazer uma depilação no
púbis para realizar os exames, o pai de Rei Salomão perdeu todas as consultas
marcadas e também passou a morar em sua casa, em Manaus, até a realização do
próximo exame.
Assim, é possível notar que, após o afastamento do filho da esposa, através
do abuso sexual contra o filho do filho da esposa, Rei Salomão, aglutina seu pai e
seus filhos para morarem consigo na casa de Manaus.
Fox (1986) aponta que há uma confusão comum nos estudos de parentesco
sobre a diferença entre “sexo” e “casamento”, principalmente no que concerne a
classificação do incesto. O autor indica que é necessário distinguir incesto e exo-
gamia: “onde o incesto diz respeito às relações sexuais e a exogamia diz respeito
às relações conjugais.” (FOX, 1986). Sexo e casamento são pensados como intrín-
secos, mas não são a mesma coisa. O casamento pressupõe que hajam relações
sexuais entre o casal, portanto, as relações sexuais tabu, ou incestuosas, classifi-
cam de antemão aqueles sujeitos com quem não se pode casar.
A discussão sobre abuso sexual intrafamiliar, além de versar sobre um crime
sexual, tipificado no código penal brasileiro através da Lei 13.718/2018, também
passa por um debate moral sobre sexo e casamento. Até meados de 2010 o termo
mais utilizado para o abuso sexual cometido em família era “abuso sexual inces-
tuoso”, tendo sido amplamente discutido nos estudos de gênero e violência (ver
SAFIOTTI, 2001, 2004)
O “abuso sexual incestuoso” equivale ao “abuso sexual intrafamiliar”, e clas-
sifica violações sexuais entre parentes. Na legislação brasileira existem dois ca-
minhos possíveis para a proibição do sexo entre parentes. Um, a já comentada lei
de crimes sexuais, que tipificará no código penal, as violências sexuais contra cri-
anças e adolescentes. Essa lei pressupõe a incapacidade de consentimento de cri-
anças e adolescentes, menores de 14 anos, para qualquer relação sexual (LO-
WENKRON, 2012). Outro percurso se dá no código civil, Lei 10.406/2002, por
LIMA, Natã Souza; WIGGERS, Raquel.
meio das regras de casamento e filiação. Nenhuma dessas leis fará qualquer clas-
sificação sobre “incesto”, mas indiretamente, ambas dispõem de regras que inter-
ditam relações sexuais e casamento.
Entre sangue e a afinidade
de vínculo na rede de parentesco, um afim cognato próximo do ego pode ser clas-
sificado como uma espécie de “subconsanguíneo”. Do mesmo modo, um consan-
guíneo muito distante pode se tornar um afim potencial. Viveiros de Castro
Entre sangue e a afinidade
(2002) conclui que “afinidade e consanguinidade são duas classes que se definem
por negação. De modo que um afim sempre será igual à um não consanguíneo,
ou ao contrário, um consanguíneo sempre será um não-afim”.
Ainda que o contexto do dravidianato amazônico seja específico para os sis-
temas de parentesco no Noroeste Amazônico e Guianas, a pendulação entre afi-
nidade e consaguinidade, por meio dos parentes por cognação, pode nos ajudar,
como um esquema sociológico que possibilite refletir sobre os casos de “abuso
sexual intrafamiliar”, aqui analisados. Nesses casos, há tendência de um parente
por afinidade, ser incluído no grupo de consanguíneos a partir da troca de fluidos.
A partir do conjunto de nossas pesquisas com famílias de grupos populares
no Amazonas, temos notado a recorrência em torno do modo de como as mulhe-
res tecem família, importante para pensar formas de organização familiar e con- 169
flito específicos da região.
Nesses casos a primeira gravidez ocorre, geralmente, na adolescência, provo-
cando a saída da casa dos parentes, ou a criação de um núcleo familiar com o pai
da criança gestada. Isso configura um primeiro casamento, que tende a ser dis-
solvido pouco após o nascimento da criança. Tanto os casos de Chefe e Rei Salo-
mão, quanto observações preliminares de outros contextos em grupos populares
no Amazonas, tem nos mostrado que a mulher sai da casa de origem, ou da pri-
meira casa, e associa-se, no segundo casamento, para a criação de uma nova casa,
com o segundo (ou mais) parceiro, após o primeiro casamento.
A mulher pode ou não levar o primeiro filho para o segundo casamento. Essa
variável ainda não teve uma delimitação precisa nas nossas pesquisas, mas já po-
demos apontar que o filho do primeiro casamento tende a circular por mais pa-
rentes, pois representa um risco ao novo casamento da mulher. Pode ocorrer de
uma mulher circular fora da casa, mas ter um “marido de referência”, que será o
pai de todos os seus filhos.
Os casos em que o primeiro filho da mulher é incluído (por ela) na nova fa-
mília, têm recorrência de “abuso sexual intrafamiliar” no eixo “padrasto-ente-
ado/a”.
Um consanguíneo de outro homem representa o cerne do conflito intrafami-
liar, com duas variáveis que os casos de Chefe e Rei Salomão, ilustram bem: (1)
um casamento sem filhos, fragiliza o vínculo entre afins; (2) consanguíneos ape-
nas da linha feminina, em convívio com consanguíneos do casal, arriscam a frag-
mentação da família.
O abuso sexual intrafamiliar, ou incestuoso, radicaliza as tensões entre afini-
dade e consanguinidade; os agressores atuam com propósito de homogeneizar
todos os sujeitos da família sob uma mesma classificação, dissolvendo a pendu-
lação dos “mais ou menos consanguíneos”, ou cognatos.
Uma conferência dada em 2003 por Françoise Herítier, no Musee d’el Ho-
mme, em homenagem a Marcel Mauss, pode auxiliar na compreensão da tensão
entre consanguinidade e afinidade, sobretudo, na circulação dos fluidos corporais
Dossiê Temático: O que carrega o sangue?
Apenas quando ele tem o caso arquivado na justiça, porque a representação legal
da vítima (mãe da criança) decide não ir às audiências, Chefe exprime com alívio
que houve perdão entre os membros da família, que suas, agora “neta” e “filha”,
Entre sangue e a afinidade
eCH CH
VIOLÊNCIA SEXUAL
PRS MRS
mRS mRS mRS mRS mRS mRS mRS mRS mRS mRS RS mRS mRS eRS
...
fRS fRS fRS fRS fRS fRS fRS FRS0 FRS1 FRS2 FRS3 eRSf
fRS
eRSff
VIOLÊNCIA SEXUAL
RS: Rei Salomão RS2: Filho 2 de Rei Salomão : eixo da violência sexual
PRS: Pai de Rei Salomão RS3: Filho 3 de Rei Salomão : ruptura no vínculo de parentesco
MRS: Mãe de Rei Salomão fRS: Filhx de Rei Salomão : abortos
eRS: Esposa de Rei Salomão eRSf: Filho da esposa de Rei Salomão
RS0: Filho de Rei Salomão eCHff: Filho do Filho da Esposa de Rei Salomão
RS1: Filho 1 de Rei Salomão mRS: mulher de Rei Salomão
172
Ao polarizarmos as relações das genealogias, vemos os eixos de tensão, e
como cada lado se posiciona em prol de seus interesses. A seta que aponta o eixo
de violência sexual, passa a atravessar polos opostos, indicando a intervenção (a
violência sexual) de um lado sobre outro.
Essa intervenção, pode modificar o ponto da polarização. No caso de Rei Sa-
lomão, a polarização permanece estática após a violência contra o filho do filho
da esposa, pois gera a ruptura nos vínculos de consanguinidade da esposa e for-
talece o vínculo oposto, entre afins.
No caso de Chefe, após a violência nota-se a tensão dos consanguíneos em
relação aos afins, inclusive no processo de constrangimento das filhas de Chefe
sobre a filha da esposa do ego, para que ela não consiga realizar a denúncia a
tempo14. Contudo, no caso de Chefe, após o esgotamento do conflito familiar, e
retorno das afins à casa, há um deslocamento no eixo de polarização, e engloba-
mento das afins à consanguinidade, como vemos na genealogia a seguir:
eCH CH
VIOLÊNCIA SEXUAL
Considerações Finais
Os atos de violência sexual intrafamiliar, por se tratar principalmente de
agressões contra crianças e adolescentes, tendem a ser objeto de repulsa e mobi-
lizam nosso desejo por justiça e punição dos agressores. Contudo, não é isso que
ocorre na maioria das relações familiares em contexto de abuso sexual.
Pode-se imaginar, como talvez creia a maioria das pessoas, que agressores
sexuais de crianças e adolescentes, são todos sujeitos com patologias psiquiátri-
cas – pedófilos – imagem abjeta que elaboramos acerca desses crimes. Mas, como
173
14Algo semelhante ocorre num exemplo apontado por Lévi-Strauss (1989) sobre as irmãs terem tendência a uma relação
negativa, enquanto a relação entre marido e mulher, tende a ser positiva.
apontam os dados do Ministério da Saúde e Ministério da Mulher, Família e Di-
reitos Humanos, são pais, avôs, tios, homens comuns, com diferentes status so-
ciais, e sem qualquer indício de parafilia, os autores desses crimes. Como já men-
cionamos anteriormente, os casos de “abuso sexual intrafamiliar”, mesmo com
densa subnotificação, correspondem a 80% dos casos totais de violência sexual
no Brasil e no Amazonas.
Apesar de os estudos clássicos de parentesco não terem uma preocupação
com a violência sexual, é de interesse dos estudos de parentesco a compreensão
de sentidos e padrões de organização familiar. Como argumenta Adam Kuper
(2018), ao refletir sobre “o que ainda pode ser dito na Antropologia sobre o pa-
rentesco”, o parentesco não é uma coisa em si:
Não se trata apenas do formalismo teórico, mas de refletir o que deve ser levado em
consideração para explicar um contexto: “Bourdieu invocou as escolhas estratégicas e
laços emocionais que precisavam ser levados em consideração, para explicar o casa-
mento com primos paternos entre os Kabyle, bem como os casamentos móveis ascen-
dentes que foram incentivados em sua própria aldeia familiar no Béarn. (KUPER,
2018, tradução nossa)
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ACENO, 7 (14): 157-176, maio a agosto de 2020. ISSN: 2358-5587
Dossiê Temático: O que carrega o sangue?
176
Exercitando o olhar,
apurando o ouvir:
notas etnográficas sobre relações de gênero
em uma escola pública de Petrópolis (RJ)
WEBER, Girlaine; BREDER, Débora. Exercitando o olhar, apurando o ouvir: notas etnográficas
Girlaine Weber1
sobre relações de gênero em uma escola pública de Petrópolis (RJ). Aceno – Revista de
Débora Breder2
Universidade Católica de Petrópolis
Resumo: Este artigo apresenta resultados parciais de pesquisa realizada em uma Antropologia do Centro-Oeste, 7 (14): 177-198, maio a agosto de 2020. ISSN: 2358-5587
escola pública da Rede Municipal de Petrópolis, estado do Rio de Janeiro, sobre re-
lações de gênero. A partir de um olhar etnográfico – ou seja, teoricamente informado
e que compreende a etnografia como uma ‘descrição densa’ de relações sociais e sim-
bólicas –, buscamos analisar os mecanismos invisíveis da construção hierárquica da
diferença masculino/feminino, visando entender de que forma a escola (re) produz
socialmente, em sua organização espaço/temporal e em suas práticas pedagógicas,
os construtos de gênero.
1 Mestreem Educação pela Universidade Católica de Petrópolis e pesquisadora do Grupo de Estudos em Educação, Cultura
e Contemporaneidade (GRECCA/UCP).
2 Doutora em Antropologia pela Universidade Federal Fluminense com estágio doutoral na École des Hautes Études en
Sciences Sociales. Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Católica de Petrópolis e pes-
quisadora do Grupo de Estudos em Educação, Cultura e Contemporaneidade (GRECCA/ UCP), do Grupo de Reconheci-
mento de Universos Audiovisuais (UFRJ) e do Grupo de Análises de políticas e Poéticas Audiovisuais (GRAPPA/UERJ).
Exercising the look, clearing the hear:
ethnographic notes on gender relations
in a public school in Petrópolis (RJ)
Abstract: This article presents partial results of a research carried out in a munici-
pal public school of Petrópolis, state of Rio de Janeiro, on gender relations. From an
ethnographic view, that is, theoretically informed and which understands ethnogra-
phy as a 'dense description' of social and symbolic relations, we seek to analyze the
invisible mechanisms of the hierarchical construction of male/female difference, in
order to understand how the school socially (re)produces, in its space/temporal or-
ganization and in its pedagogical practices, the constructs of gender.
178
(...) je pense qu’aujourd’hui beaucoup de di-
visions qui, chez les Kabyles, étaient repro-
duites par l’ordre masculin, la division de
l’espace, etc., sont reproduites par l’intermé-
diaire du système scolaire qui est un des lieux
de reproduction des catégories de construc-
tion de la différence entre les sexes (...).
E
m sua belíssima descrição da casa kabyle, Pierre Bourdieu (1999) nos mos-
tra o quanto a simbólica sexual é estruturante na constituição tanto de seus
espaços internos e externos, quanto de seus usos sociais. A construção hi-
erárquica da diferença masculino/feminino que, na cosmologia das sociedades
mediterrâneas, opera a partir de uma série de oposições homólogas, como cul-
tura/natureza, quente/frio, seco/úmido, duro/mole, fora/dentro, claro/escuro,
alto/baixo, manifesta-se desde a parte alta da casa – luminosa, lugar dos huma-
nos, do fogo, do tear, de todas as atividades propriamente culturais; espaço por
excelência do masculino – até a parte baixa – escura, úmida, lugar dos animais e
das atividades naturais, como o sexo, o parto e a morte; espaço eminentemente
feminino.
Mas isso não é tudo: estruturando a divisão do espaço da casa e de seus usos
sociais, a simbólica sexual estrutura também a divisão das atividades entre ho-
mens e mulheres, do que é permitido e proscrito a eles e elas segundo uma lógica
simbólica cuja evidência proviria da estreita correspondência entre as estruturas
objetivas e as estruturas mentais. Como nota o autor, quando apreendemos o
mundo estruturado de determinado modo, estando as estruturas subjetivas em
consonância com as estruturas objetivas, nós o percebemos como algo evidente,
absolutamente “natural” (BOURDIEU, 2002).
O que o autor chama de a “dominação masculina” constituiria, justamente,
parte dessa ordem assentada na construção simbólica da diferença masculino/fe-
minino, que não obstante o caráter singular que apresenta nas mais diversas cul-
turas, como a dos berberes da Cabília, por exemplo, manifestar-se-ia, invariavel- Exercitando o olhar, apurando o ouvir
cial”, procurando exercer a “escuta ativa” (BOURDIEU, 2012: 693-701), que aos
poucos fomos apreendendo os sentidos atribuídos pelos nossos interlocutores a
suas práticas sociais. Foi um trabalho paciente e contínuo, de vários meses, per-
manecendo por semanas a fio em cada espaço da escola: salas de aula, refeitório,
cozinha, sala dos professores, pátio. Foi justamente essa repetição que nos per-
mitiu perceber os mecanismos invisíveis de construção da diferença mascu-
lino/feminino na escola.
Como pondera Rose Mary Gerber (2013), é na repetição da observação e do
convívio com nossos interlocutores que vamos apreendendo o sentido das ações
180 mais corriqueiras – e o inesperado acontece:
Considero que a etnografia se dá pela repetição. É repetir a observação, repetir a con-
vivência, repetir momentos como se nada fosse acontecer e, de repente, tudo acontece.
Fazer etnografia é estar presente de forma intensiva e repetitiva. É a repetição que per-
mite viver a experiência densa que inclui o inesperado. (GERBER, 2013: 55)
Exercitando o olhar:
a escola, seus espaços e ritos
Sete horas da manhã. Crianças e jovens, a maioria uniformizados, descem dos
ônibus escolares parados na calçada da escola3. Alguns chegam caminhando so-
zinhos ou acompanhados por parentes, de carro, moto ou bicicleta.
O acesso ao prédio escolar não é o mesmo para todos: os alunos entram pelo
portão lateral da escola, passam por um corredor, concentrando-se no pátio. Já
os professores entram pela porta central – estilo neoclássico, almofadada, ban-
deira envidraçada com pequena grade de proteção e coloração azul – e os funcio-
nários de apoio pela entrada de serviço.
Se o acesso à escola não é o mesmo para todos, tampouco seus espaços inter-
nos: na entrada de serviço, local onde fica armazenado o lixo da escola, há um
espaço revitalizado – o solário, ambiente claro e decorado com cores alegres –
para os funcionários almoçarem, realizarem pequenos lanches e descansarem no
Exercitando o olhar, apurando o ouvir
quentam esse espaço: ficam na área interna, na sala dos professores que, diferen-
temente do solário, é um espaço pequeno, pouco iluminado, com paredes encar-
didas pelo tempo e o assoalho gasto. A sala também é frequentada pelos inspeto-
res de disciplina e zeladoras em desvio de função – funcionários cujas tarefas es-
tão diretamente relacionadas à disciplinarização dos alunos. O fato, contudo, in-
comoda visivelmente os docentes, que não raro alegam falta de liberdade para
tratar determinados assuntos devido ao compartilhamento da sala, que lhes é
destinada, com outros funcionários. Questão abordada, inclusive, em um conse-
lho de classe.
Da entrada de serviço à sala de professores, o espaço escolar revela hierar-
quias sociais. Mesmo que não haja placas informando “proibido a entrada ou a
circulação de pessoas”, esses espaços possuem, simbolicamente, um acesso res-
trito segundo as diferentes posições dos sujeitos, evidenciando relações de poder
181
3Por meio da LDB nº 9394/96, em seu artigo 208, VII, foi garantido aos alunos residentes em área rural o transporte
escolar gratuito, regulamentado pela Lei nº 10.880/04.
geralmente pouco percebidas na escola. Dentre as quais, as relações de gênero.
Ao tocar a sirene, os alunos começam a formar as filas que vão separando-os
por segmento, ano de escolaridade e sexo: meninos para um lado, meninas para
o outro. O objetivo da divisão é a “organização da escola”, segundo a diretora.
Por determinação legal, as escolas da rede pública são obrigadas a tocar o
hino nacional4. Quando, por esquecimento, não se toca o hino, os alunos logo
percebem, interrogando: “e o hino?!” Alguns se recusam a ficar na fila e cantar,
iniciando os primeiros conflitos do dia entre a disciplina escolar e os corpos in-
dóceis das crianças e jovens – que resistem, pulsam, insistem em existir segundo
seu próprio ritmo. Depois de cantar o hino, são encaminhados por uma funcio-
nária para as salas de aula.
As salas de aulas, amplas, com pé direito alto, assoalho em estado precário,
têm enormes janelas que, entretanto, não são abertas porque “abrir demais as
janelas dispersa os alunos e não se consegue manter a disciplina”, explica uma
professora. As carteiras são enfileiradas e organizadas em dupla e cada aluno tem
seu lugar marcado na sala. “Cada indivíduo no seu lugar; e em cada lugar, um
indivíduo”, como diria Michel Foucault (2014: 140) referindo-se ao quadricula-
mento do espaço nas instituições disciplinares. Não há recursos tecnológicos ou
jogos; apenas livros didáticos e alguns de literatura infanto-juvenil. Em quase to-
das as salas há cartazes cujo objetivo é controlar o comportamento dos alunos por
meio de vários recursos, como o uso das cores verde/vermelho em uma espécie
de “semáforo do comportamento” (verde: “muito bom”; vermelho: “preciso me-
lhorar”) e “estrelinhas” (indicando a pontuação das crianças), hierarquizando-os
em uma escala disciplinar. Os meninos lideram o ranking dos alunos classificados
como aqueles que possuem “mau comportamento” – um dado também observado
em outras pesquisas, como nota Carvalho (2004: 13), referindo-se a estudos rea-
lizadas tanto no Brasil quanto no exterior.
ACENO, 7 (14): 177-198, maio a agosto de 2020. ISSN: 2358-5587
182
4 Lei Federal n. 12.031, de 2009, que determina que as escolas públicas e privadas incluirão obrigatoriamente em sua
rotina, pelo menos uma vez por semana, a execução do Hino Nacional.
o grupo do turno da manhã. Manoel, 17 anos, não consegue expressar-se oral-
mente com desenvoltura e recebe de outros alunos o apelido de “cheiroso”, o que
gera diversos conflitos entre ele e os que assim o chamam 5. João, 17 anos, quase
não conversa com os professores e funcionários da escola; quando questionado
permanece de cabeça baixa e é monossilábico em suas respostas – sua mãe,
quando chamada na escola age do mesmo modo. Saul, 16 anos, também se ex-
pressa de forma monossilábica – assim como o pai, quando fala com a equipe
gestora. Rodrigo, 16 anos, quando precisa falar, diminui o tom de voz e abaixa a
cabeça. E Rafael, 16 anos, só interage com este grupo. No turno da tarde, Julia, 16
anos, é vista como “histérica” pelos funcionários por se descontrolar com facili-
dade durante os conflitos com os meninos. Em uma heteroatribuição de cor/raça,
segundo os critérios de IBGE, a maioria desses “excluídos do interior”, para usar
uma expressão de Bourdieu (2015: 243), seria composta por negros e pardos.
O capital linguístico é privilegiado na escola: expressar-se com desenvoltura
e riqueza de vocabulário é considerado quase como um “dom natural”. Aquele
que não o possui, que utiliza dialetos locais que traem sua origem de classe ou,
como a fonoaudióloga que atende Manoel descreveu em seu laudo, tem “dislalia
ambiental”, é excluído do sistema escolar. Exclusão esta que prescinde da expul-
são tout court, materializando-se por meio da violência simbólica – violência
tanto mais eficaz quanto mais invisível se mostra. “Ele não sabe falar, como vai
aprender?”, pergunta repetidamente uma professora, sem dar-se conta que é jus-
tamente a reiteração da frase que a torna uma sentença praticamente fatídica.
Como nota Bourdieu (2002), referindo-se à dificuldade de expressão em si-
tuações de tensão social, comumente experimentada por indivíduos com certo
habitus de classe:
(...) os dominantes culturalmente exercem também uma forma de dominação simbó-
lica. Penso, por exemplo, na timidez. Todos os sócio-linguistas que, como Labov, estu-
daram a linguagem das classes populares em situação de tensão oficial, “formal”, como
dizem os anglo-saxões, observaram que essa linguagem se quebra de certa forma. Não
se deve concluir que eles não sabem falar, mas que há situações nas quais eles “perdem
seus meios”, seu capital linguístico. (BOURDIEU, 2002: 232)
Mas se a voz não sai, os corpos falam: quando esses alunos são abordados
pelos funcionários da escola e questionados, em voz alta, de forma autoritária –
“aonde vão?!”, “porque estão fora de sala?!”, “Vieram fazer o que na escola?!” –
Exercitando o olhar, apurando o ouvir
A escola e seus ritos: fila, sineta, hino, sala de aula, recreio, almoço, uso de
crachá para ir ao banheiro...
Os banheiros da escola possuem pictogramas na porta que sinalizam, na di-
visão masculino/feminino, os construtos de gênero: mictório para os meninos e
compartimentos fechados com portas e trincos para as meninas. Essa arquitetura
dos banheiros – na qual homens urinam em pé, publicamente, ao lado de outros
homens, e a mulher sentada, em um espaço fechado e privado – funciona como
uma “tecnologia de gênero”, segundo Paul B. Preciado (2002), reafirmando soci-
almente modelos hegemônicos de masculinidade e feminilidade:
Os mictórios não são enclausurados em cabines fechadas, mas em espaços abertos ao
olhar coletivo, uma vez que urinar em pé é uma atividade cultural que gera laços de
sociabilidade compartilhados por todos aqueles que, ao fazê-lo publicamente, são re-
conhecidos como homens. (PRECIADO, 2002: 16, tradução nossa)6
6 No original: “Por ello, los urinarios no están enclaustrados en cabinas opacas, sino en espacios abiertos a la mirada
colectiva, puesto que mear-de-pie-entre-tíos es una actividad cultural que genera vínculos de sociabilidad compartidos 185
por todos aquellos, que al hacerlo públicamente, son reconocidos como hombres”.
7 No original: “Al salir de la cabina reservada a la excreción, el espejo, reverberación del ojo público, invita al retoque
de seu cargo e as funções que ela de fato exercia – ela nos abordou com a seguinte
questão: “não é que eu fui pra casa e fiquei pensando que dou um duro danado
olhando as crianças enquanto poderia estar lá, tranquila, dando umas marte-
ladas com o prego na parede?!”, fazendo o gesto de martelar o ar. Na sequência,
disse que iria retornar para as funções do cargo.
Os inspetores de disciplina – dois homens e duas mulheres, responsáveis pela
entrada e saída dos alunos, do cumprimento dos horários e das normas discipli-
nares da escola, assim como do trânsito de alunos fora da sala de aula – são divi-
didos pela diretora da seguinte forma: um do sexo masculino e um do sexo femi-
nino para cada segmento, com a função de atender as salas e acompanhar os alu-
nos no pátio. No entanto, as atividades realizadas por eles diariamente revelam
que estas também são definidas pelas relações de gênero: por exemplo, nos even-
tos de entretenimento esportivo da escola, é sempre o inspetor que acompanha
Artigos Livres
bastante precisos regem suas aparições assim como as de tal ou qual parte de seu corpo.
Os cabelos, por exemplo, condensam sua sedução. (PERROT, 2005: 49)
WEBER, Girlaine; BREDER, Débora.
Em suma, pode-se dizer que a percepção de mundo das crianças com relação
a divisão sexual do trabalho tem início na infância, durante o processo de sociali-
zação, e a escola reproduz essa divisão. Na escola, as relações de gênero geral-
mente são determinantes para que alunos e alunas, funcionários e funcionárias,
realizem algumas atividades e utilizem determinados espaços. Mesmo que cons-
truída de forma invisível, a partir de relações simbólicas, a escola possui atribui-
ACENO, 7 (14): 177-198, maio a agosto de 2020. ISSN: 2358-5587
ções específicas para homens e mulheres, como, por exemplo, o preparo da ali-
mentação, destinado às mulheres, e os de zeladoria, destinado aos homens.
Como nota Guacira Lopes Louro (1997: 58), pela sua arquitetura, regulamen-
tos, organização, avaliações, vigilância e ritos o “prédio escolar informa a to-
dos/as sua razão de existir. Suas marcas, seus símbolos e arranjos arquitetônicos
“fazem sentido”, instituem múltiplos sentidos, constituem distintos sujeitos”.
Tudo contribui para a produção e a hierarquização das diferenças entre os indi-
víduos.
Como ficam as crianças e os profissionais que não se reconhecem, não se
identificam ou não se encaixam nesse espaço?
Apurando o ouvir:
“O caderno está muito caprichado”,
Artigos Livres
mens”.
De fato, espera-se comportamentos diferentes de alunos e alunas, como de-
monstra a fala da professora Suzi:
As meninas aprendem muito mais rápido, porque elas prestam atenção, os meninos
não têm sossego. Eles são até mais espertos, mas são preguiçosos, se recusam a fazer
os deveres que chamam de “chatos”, que as meninas fazem.
boram suas produções de forma mais sucinta e menos cuidada, sem muito capri-
cho.
Para Bourdieu (2003: 16), a simbólica sexual é tematizada através de um con-
junto de oposições homólogas que são simultaneamente concordes – “para se
sustentarem mutuamente, no jogo e pelo jogo inesgotável de transferências prá-
ticas e metáforas” – e divergentes – “para conferir, a cada uma, uma espécie de
espessura semântica, nascida da sobredeterminação pelas harmonias, conotações
e correspondências”. Assim, a consonância entre as estruturas incorporadas e as
estruturas objetivas faz com que a construção simbólica da diferença mascu-
lino/feminino aparente ser algo natural: “parece estar na ordem das coisas”
(idem: 17).
Na escola, esses esquemas de pensamento parecem assentados em uma série
de outras oposições que vão construindo a diferença masculino/feminino: desor-
ganização (masculino)/organização (feminino); feio (masculino)/bonito (femi- 191
nino); sujo (masculino)/limpo (feminino); amassado (masculino)/desamassado
(feminino); bagunçado (masculino)/caprichado (feminino). E quando um aluno
ou aluna fogem a essa percepção – a esses “vastos esquemas de pensamentos im-
pensados”, segundo expressão do autor (ibidem) – questiona-se implicitamente
sua masculinidade e/ou feminilidade.
Em suma, a (re) produção das relações de gênero na escola incide nas traje-
tórias escolares de meninos e meninas, acarretando, para os primeiros – que ne-
cessitam corresponder ao modelo hegemônico de masculinidade – um elevado
número de reprovação por indisciplina; e para as segundas – cobradas para cor-
responder ao modelo hegemônico de feminilidade –, um comportamento mais
dócil e submisso. Conforme observa Carvalho (2012), se os construtos de gênero
levam um maior número de meninos ao fracasso escolar, as meninas, em virtude
do capricho, organização e bom comportamento são aprovadas em maior nú-
mero, ainda que apresentem dificuldades de aprendizagem. Como ilustra a fala
da professora Lena, “só dou ponto para quem merece”.
Assim, “trabalhos amassados” e “cadernos caprichados” revelam percep-
ções diferenciadas e classificatórias de gênero: e, caso haja “desvios” comporta-
mentais, “ainda dá tempo de corrigir”.
Focos de resistência
Se a (re) produção das relações de gênero na escola constitui um processo
constante que transcorre mediante os ritos escolares, os usos sociais do espaço, a
divisão sexual do trabalho e as práticas pedagógicas, entre outras práticas sociais,
os focos de resistência a essas relações de poder também se manifestam, pois,
como dizia Foucault (1988: 106), é inerente às relações de poder a possibilidade
de resistência:
As resistências não se reduzem a uns poucos princípios heterogêneos; mas não é por
isso que sejam ilusão, ou promessa necessariamente desrespeitada. Elas são o outro
ACENO, 7 (14): 177-198, maio a agosto de 2020. ISSN: 2358-5587
termo das relações de poder; inscrevem-se nessas relações como o interlocutor irredu-
tível.
Procuramos, na escola, por esses focos de resistência que animam os corpos in-
dóceis das crianças e jovens. Corpos que resistem, pulsam, insistem...
Como o de Miriam. Um dia a jovem passa a utilizar o sobrenome de um ter-
rorista norte-americano ao assinar suas provas, trabalhos e outras atividades.
Apologia ao terrorismo? Ameaças nas entrelinhas? Do nosso ponto de vista essa
atitude constitui uma forma de resistência ao julgamento efetuado pelos profes-
sores acerca do seu modo de vestir, incômodo evidenciado no comentário de uma
professora em um Conselho de Classe ao se referir à aluna: “ela não sabe o que é,
cada dia vem de um jeito, psicopata!” O incômodo: o fato de a aluna alternar seu
modo de vestir-se, indo à escola um dia com trajes considerados masculinos –
cabelos presos por debaixo do boné, calça jeans larga e sem bijuterias; e, noutros,
Artigos Livres
indo com trajes considerados femininos – cabelos soltos, saia e batom. Os alunos
resistem... e a forma que Miriam encontrou foi justamente condensar simbolica-
mente, ao assinar suas atividades, a identidade que lhe havia sido conferida pela
escola: “psicopata”.
Outro caso: nos corredores da escola, a professora Beth se depara com Joyce
e diz em voz alta: “Olha ela! Hoje resolveu ser outra coisa!” Ao observar a aluna,
percebemos que ela também estava vestida com trajes considerados masculinos
– calça jeans, boné, chuteira e cabelo preso. Na reunião pedagógica, Joyce foi des-
192 crita pela professora como uma menina que não era “caprichosa” com seu mate-
rial escolar. Uma chuteira faz toda a diferença...
Na escola, os trajes reafirmam modelos hegemônicos de masculinidade e fe-
minilidade, como indica a fala da professora, que classifica as meninas segundo
suas roupas como “patricinhas”, “meninas normais” e “meninas que se vestem
como meninos”:
As patricinhas têm brilho diferente, usam acessórios, brincos, colares, unhas pinta-
das, roupas sempre limpas e sapatos que combinam com a roupa, as meninas nor-
mais usam o uniforme sem acessórios ou com poucos, tem algumas que se vestem
como menino.
Conforme explicaria, a pesquisa versava sobre a “sexualidade na espécie hu- Exercitando o olhar, apurando o ouvir
forma de pesquisa, buscando conhecer e entender, é que vamos criar cidadãos que se
respeitem, buscando não se ter aquela mentalidade homofóbica, pois o mundo hoje
em dia traz para as crianças esse assunto, mesmo que a escola não forneça esse tipo
de realidade para ela. Mas elas têm acesso pelas ruas, pela TV, novelas, onde assis-
tem essas questões. Então, às vezes, eu posso ter um aluno com indecisões de gênero
ali dentro da sala e, a partir do momento em que eu só fale homem e mulher, eu bato
na tecla que só há essa possibilidade, que a sociedade só vai aceitar se você for homem
se casar com uma mulher, se você for mulher se casar com um homem. Que tipo de
cidadão eu vou estar formando? O dever da escola é informar ao aluno e formar esse
cidadão para um futuro. Por isso, eu não concordei.
Sônia nos explicaria que a preocupação com essas questões teria surgido a
partir da realização de um curso sobre diversidade sexual e gênero na escola: “É
baseada nessa formação que eu procuro trazer para os meus alunos essas ques-
tões de gênero”. Ao indagarmos se o episódio com o Conselho a faria desistir de
abordar essas questões com seus alunos, ela foi enfática:
Artigos Livres
A princípio não pretendo mudar minha prática pedagógica. Pretendo sim, aperfei-
çoar a maneira como eu posso me dirigir aos alunos, os termos, uma forma mais
correta de abordar esses temas. Acho que fiquei um pouco frustrada pelo fato de ter
sido repreendida por uma coisa que as crianças vivenciam na realidade (...). Eu não
estou induzindo meus alunos à homossexualidade, mas sim buscando que eles conhe-
çam e entendam, para se respeitarem. Por isso não penso em mudar e pretendo de-
fender essa ideia, essa prática minha, levando, se for necessário, ao Conselho Escolar
para conseguir uma forma de propagar a informação e o conhecimento aos meus
alunos.
De certa forma foi o que Sônia fez: ao não concordar com a decisão do Con-
selho, debatendo com seus membros, Sônia demonstra que é preciso resistir con-
tra o que nos oprime. Como afirma:
É importante hoje em dia tratar dessa diversidade de gênero na escola, não só abor-
dar como a gente vinha fazendo, porque o mundo desses pais, dos professores, desses
membros do Conselho, na idade deles, era um outro mundo diferente, uma realidade
diferente da que nossos alunos vivem hoje. Então, eu acredito que a prática pedagó-
gica deve se adequar a realidade dos dias de hoje para ser levada aos nossos alunos.
Considerações finais
Em sua descrição da casa kabyle, Bourdieu (1999) desvelou os mecanismos
invisíveis da construção hierárquica da diferença masculino/feminino na consti-
tuição de seus espaços e nos seus usos sociais.
No entanto, como alerta o autor, dizer que há “construção” – construção sim-
bólica, social, cultural e histórica de corpos, gêneros e sexualidades – não basta
para compreender e, principalmente, combater os mecanismos invisíveis da do-
minação. É preciso analisar as condições sociais da construção hierárquica da di-
ferença; em suas palavras, “as condições da construção das categorias de cons-
trução” (BOURDIEU, 2002: 231). Mas por outro lado e não menos importante,
como ele mesmo enfatiza, dizer que há construção significa dizer, também, que
haverá sempre lutas cognitivas a respeito do sentido das coisas e da “ordem” do
mundo.
Defendemos nesse artigo a necessidade de descrever e analisar esses meca-
nismos de construção da diferença masculino/feminino na escola – nos usos so-
ciais que fazemos de seus espaços, na divisão do trabalho e no modo como atri- Exercitando o olhar, apurando o ouvir
Referências
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Artigos Livres
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ACENO, 7 (14): 177-198, maio a agosto de 2020. ISSN: 2358-5587
Artigos Livres
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Nem tão longe, nem tão perto!
Notas de um antropólogo brasileiro sobre
igualdade e hierarquia em Portugal
ALMEIDA SILVA Edilson Márcio. Nem tão longe, nem tão perto! Notas de um antropólogo
brasileiro sobre igualdade e hierarquia em Portugal. Aceno – Revista de Antropologia do
Edilson Márcio Almeida Silva1
Universidade Federal Fluminense
Resumo: Este paper tem por objetivo discutir as representações que acompanham
determinados cursos de ação observados pelo autor durante a realização de um es-
tágio pós-doutoral em Portugal. Com base no relato de experiências pessoais e no
iálogo com trabalhos que se ocupam etnograficamente do binômio igualdade/hie-
rarquia, o artigo se propõe a analisar situações que, no plano das ideias e valores,
ora aproximam, ora distanciam portugueses e brasileiros.
Abstract: This paper aims to discuss the representations that follow determined
action courses as seen by the author during a period of postdoctorate in Portugal.
Based on personal experience reports and in dialogue with works that explore ethno-
graphically the pair equality/hierarchy, this paper also aims to analyse situations
that, in terms of ideas and values, sometimes brings Brazilians and Portuguese clo-
ser and sometimes distances them.
Resumen: Este paper tiene por objetivo discutir las representaciones que acompa-
ñan determinados cursos de acción observados por el autor durante la realización
de una pasantía posdoctoral en Portugal. Con base en el relato de experiencias per-
sonales y en el diálogo con trabajos que se ocupan etnográficamente del binomio
igualdad/jerarquía, el artículo se propone analizar situaciones que, en términos de
las ideas y los valores, ora aproximan, ora distancian a portugueses y a brasileros.
200
E
ntre os anos de 2011 e 2012, realizei um estágio pós-doutoral em Portugal,
no âmbito de um convênio firmado entre a Universidade Federal Flumi-
nense (UFF) e a Universidade Nova de Lisboa (UNL)2. Àquela altura, pre-
tendia compreender como a mídia portuguesa, mais especificamente a grande
imprensa de Lisboa, participava do processo de construção social da(s) ‘violên-
cia(s)’, a fim de estabelecer uma perspectiva comparativa com o que, a esse res-
peito, se observava no Rio de Janeiro. Partindo do pressuposto de que os jorna-
listas não são meros informantes do que se passa no mundo, mas também seus
intérpretes (que, como tais, têm interesses, ocupam posições, fazem escolhas, de-
finem prioridades e produzem enquadramentos do real), busquei entender como
a temática da(s) ‘violência(s)’ vinha sendo abordada no noticiário português e
como era selecionado, em seu interior, o que se considerava mais relevante e,
portanto, digno de visibilidade social. Nesse sentido, me interessava, em primeiro
lugar, mapear os fenômenos classificados pelos jornalistas sob a denominação de
‘violência’ ou ‘violento(s)’. De forma complementar, buscava identificar que agen-
tes ou atores sociais eram apontados como responsáveis por sua objetivação.
Para dar conta dessas questões, durante pouco mais de três meses, acompa-
nhei o noticiário de dois conhecidos diários portugueses3. Além disso, ao longo
de todo o estágio pós-doutoral, realizei entrevistas com jornalistas de diferentes
órgãos de comunicação, além de pesquisadores, profissionais das agências de se-
gurança pública e representantes de Organizações Não-Governamentais dedica-
das à defesa dos direitos de mulheres, imigrantes, estudantes, professores, ido-
sos, membros da comunidade LGBT, entre outros. Para desenvolver a pesquisa,
tive que estabelecer alguns contatos estratégicos e me familiarizar com variados
aspectos da cultura local, o que, evidentemente, não se deu de imediato. É, pois,
sobre situações envolvendo esse período inicial de adaptação ao modo de vida
lusitano que pretendo me ocupar aqui. Com base no relato de experiências pes-
soais anteriores à realização da pesquisa propriamente dita, assim como no diá-
logo com trabalhos que se ocupam etnograficamente do binômio igualdade/hie-
rarquia, procuro analisar as representações que acompanham determinados cur-
Nem tão longe, nem tão perto!
ALMEIDA SILVA Edilson Márcio.
sos de ação que, no plano das ideias e valores, ora denotam similitudes, ora dife-
renciam portugueses e brasileiros. Para isso, na primeira parte do artigo, des-
crevo algumas situações que me impactaram positiva ou negativamente tão logo
cheguei a Portugal. Em seguida, apoiado na teoria da hierarquia, de Louis Du-
mont, contrasto analiticamente certos aspectos da ideologia local com práticas e
representações que, em circunstâncias equivalentes, costumam ser acionadas no
Brasil.
2 O convênio CAPES/FCT CGCI 0010/2009 foi coordenado pelos professores Roberto Kant de Lima (UFF) e José Manuel
Resende (UNL), a quem sou grato pela valorosa experiência. Agradeço, também, ao estímulo do professor Fábio Reis Mota
(UFF), um dos responsáveis diretos pela consecução do convênio. 201
3 Os jornais escolhidos como base empírica para a pesquisa foram o Diário de Notícias e o Correio da Manhã, dois dos
mais importantes generalistas de Portugal. Os periódicos adotam políticas editoriais notadamente distintas, haja vista que
estão voltados para segmentos de classe e públicos-alvo diferentes.
Em Portugal com os portugueses
Conforme o previsto, por volta das 23h30 do dia 25 de novembro de 2011,
desembarquei no Aeroporto de Lisboa4. A bordo de um taxi, de lá me dirigi para
o local em que viria a residir durante os próximos seis meses, tempo que duraria
o meu estágio pós-doutoral. Pouco depois da meia-noite já me encontrava na
aprazível Rua da Bica de Duarte Belo, popularmente conhecida como Rua da
Bica5. Da sacada do apartamento avistava praticamente toda a sua extensão ao
passo que, durante alguns minutos, me entretinha com a música e o alarido das
centenas de pessoas que, em clima de intensa sociabilidade, ali se reuniam. Em-
bora o cenário se mostrasse convidativo, após dez extenuantes horas de viagem,
optei por me recolher, tomar um banho e assistir um pouco de TV. Chegava a
Portugal um dia depois de uma greve geral deflagrada em protesto contra o con-
junto de medidas de austeridade recentemente anunciadas pelo governo6. A
exemplo de outros países europeus, como Grécia, Espanha e Irlanda, Portugal
atravessava uma grave crise econômica e esse era um dos temas mais frequentes
na programação televisiva.
Ao ligar a TV me defrontei com um acalorado debate que tinha, de um lado,
membros da Igreja Católica e, de outro, representantes da sociedade civil organi-
zada, tais como a Associação Cívica República e Laicidade. Eles discutiam quais,
dentre os 14 feriados nacionais, deveriam ser cancelados em prol do combate à
crise7. Zapeando em busca de outras atrações uma curiosidade reteve, por alguns
instantes, a minha atenção: o horário de exibição dos programas. Ao percorrer a
grade de horários da emissora que assistia, me dei conta de que um de seus tele-
jornais estava programado para começar às 18h03, uma telenovela, às 19h17, um
talk show, às 20h41 e assim por diante. Raras eram as atrações que tinham início
em horários “cheios”, isto é, às 8h, 9h, 10h etc. E isso, conforme pude averiguar,
ACENO, 7 (14): 199-214, maio a agosto de 2020. ISSN: 2358-5587
não ocorria apenas com aquela emissora. Pelo contrário, a programação dos con-
correntes seguia o mesmo padrão, organizando-se, também, com base em horá-
rios “quebrados”. Mas, o que realmente chamou a minha atenção foi o fato de que
tais horários costumavam ser rigorosamente respeitados. Assim, caso um pro-
grama estivesse previsto para começar às 19h17, o seu início ocorreria, imprete-
rivelmente, às 19h17, algo bastante diferente do que ocorre no Brasil, sobretudo
nos canais da chamada TV aberta.
Se os horários quebrados e o seu estrito cumprimento já haviam chamado a
minha atenção, ainda mais impactado fiquei ao me dar conta de que tal caracte-
rística não dizia respeito unicamente à programação da TV. Conforme pude ates-
tar, essa forma peculiar de lidar com o tempo perpassava diferentes domínios da
vida social portuguesa, fazendo-se notar, inclusive, na dinâmica de funciona-
mento dos transportes públicos. Durante o tempo que permaneci em Lisboa, ob-
Artigos Livres
servei que, em alguns bairros (como o de Belém, por exemplo), os pontos de ôni-
bus ou, como dizem por lá, as paragens dos autocarros, dispunham de painéis
4 Também conhecido como Aeroporto da Portela, o Aeroporto de Lisboa passou a ser oficialmente denominado, a partir
de 2016, de Aeroporto Humberto Delgado.
5 A Rua da Bica de Duarte Belo situa-se nas proximidades do Bairro Alto Lisboa, sendo conhecida por seus inúmeros bares,
suas casas e prédios com estendais nas varandas, assim como pelo seu famoso ascensor (o Elevador da Bica) que, desde
1892, liga a Travessa do Cabral ao Largo do Calhariz.
6 A greve ocorreu alguns dias antes da votação do orçamento de 2012 pelo Parlamento português que, entre outras medi-
das, previa a supressão temporária dos pagamentos extras para funcionários públicos e pensionistas com rendas superi-
ores aos 1.000 euros e o aumento da jornada de trabalho no setor privado.
202 7 O resultado dessa controvérsia pública foi o cancelamento de quatro feriados, dois civis e dois religiosos: Proclamação
da República (5 de outubro), restauração da independência (1º de dezembro), Dia de Todos os Santos (1º de novembro) e
Corpus Christi, celebrado 60 dias depois do domingo de Páscoa.
informando a hora em que estes passariam. E tudo segundo o mesmo padrão da
TV, isto é, com horários quebrados e uma irrepreensível pontualidade. É claro
que, eventualmente, podia haver um ligeiro atraso, mas nada além disso.
Um aspecto interessante em relação à gestão e organização do tempo entre
os portugueses é que, em se tratando de uma cidade turística como Lisboa, o fluxo
de passageiros nos transportes públicos coletivos tende a ser intenso, o que, não
raro, obriga os autocarros a permanecerem estacionados nas paragens por perío-
dos relativamente longos, de modo que todos os passageiros possam embarcar
e/ou desembarcar com tranquilidade. O curioso, no caso, é que independente-
mente do tempo que um veículo permaneça estacionado, ele de modo algum é
ultrapassado pelos que veem em seguida. Observando rigorosamente a ordem de
chegada ao ponto, cada veículo aguarda o da frente concluir o embarque/desem-
barque de passageiros para só então realizar tais procedimentos. Não me preocu-
pei à época em me informar se isso era uma prática formalmente regulada pelas
empresas ou se havia alguma legislação sobre o assunto, mas, em se tratando de
um olhar impressionista (como, de resto, é o que orienta toda a primeira parte
deste trabalho), não tive como deixar de estabelecer uma perspectiva contrastiva
com o que a esse respeito se verifica em capitais brasileiras, como o Rio de Ja-
neiro. Nesta cidade, as ultrapassagens são relativamente frequentes (inclusive,
quando envolvem veículos da mesma linha) e, muitas vezes, estão associadas a
relações jocosas nas quais, estimulados pelos cobradores, motoristas estabelecem
verdadeiras disputas com seus colegas para ver quem chega primeiro ao ponto
final ou à garagem da empresa.
Conforme notei em um sem-número de oportunidades, o respeito à ordem de
chegada permeia, também, outros domínios do espaço público português, como
deixa ver o episódio que se segue. Certa noite, a exemplo do que fazia eventual-
mente, me dirigi a um shopping center para assistir uma sessão de cinema. Che-
gando lá, me defrontei com uma fila relativamente longa que se formava diante
do único guichê de atendimento em operação. Alguns minutos após a minha che-
gada, me dei conta de que uma funcionária se dirigia à caixa ao lado, dando a
entender que, dentro em breve, o guichê entraria em funcionamento. Uma se-
nhora que se encontrava atrás mim parece ter também atentado para a movimen-
tação da atendente, razão pela qual, disfarçadamente, foi se deslocando para
perto do local. Assim que a funcionária pôs a caixa em funcionamento, ela se co-
locou diante do guichê, preparando-se para assumir aquele que seria o primeiro
lugar da fila. De forma educada, mas taxativa, a atendente explicou que a fila ao
Nem tão longe, nem tão perto!
lado seria desmembrada em duas, de modo a que, com isso, se respeitasse a or-
ALMEIDA SILVA Edilson Márcio.
beu uma resposta rápida, pouco interessada e negativa à sua solicitação. Isto
posto, devo dizer que, embora tenha lido e ouvido comentários elogiosos ao aten-
dimento prestado nas Lojas do Cidadão, definitivamente, não foi essa a impressão
8 Dentre os inúmeros serviços fornecidos nas Lojas do Cidadão estão a emissão de passaportes, registros de veículos,
certidões de nascimento, casamento e comerciais etc. Além disso, é possível efetuar aí pagamentos de contas de luz, tele-
fone, televisão e internet, além de enviar cartas e encomendas.
9 Em linhas muito gerais, pode-se dizer que o Número de Contribuinte equivale ao Cadastro de Pessoas Físicas (CPF) no
Brasil.
10 A unidade foi fechada em 2013. Segundo reportagem do jornal Expresso, de 30 de dezembro de 2013, os motivos alega-
dos pelo Governo foram os altos custos de manutenção (“mais de 600 mil euros/ano") e o fato de ser, à época, a loja com
204 "mais queixas dos cidadãos quanto à aferição dos serviços prestados".
11 Me recordo de, ainda recém-chegado a Portugal, ter ido a uma padaria e perguntado se havia pão francês, recebendo,
então, a seguinte resposta: “não, só português”. Pouco tempo depois, dessa vez numa mercearia, consultei um funcionário
se tinha batata inglesa, ao que ele respondeu: “não, só portuguesa”.
deixada pela unidade dos Restauradores. A julgar pela frieza do tratamento des-
tinado a mim e à referida pesquisadora, não tive como deixar de imaginar o que
se passava com imigrantes que, àquela altura, chegavam a Portugal em busca de
emprego ou de uma nova pátria para se estabelecer (o que, felizmente, não era o
nosso caso!).
Com a negativa à minha demanda, me vi obrigado a buscar uma forma alter-
nativa de solucionar o problema. Foi então que, por meio de contatos com colegas
portugueses, vim a saber que, além das Lojas do Cidadão, o Número do Contri-
buinte também poderia ser obtido numa das lojas de serviço das Finanças da Au-
toridade Tributária e Aduaneira do Governo de Portugal. Para tanto, bastava que
eu me dirigisse a uma de suas unidades acompanhado de um representante fiscal,
isto é, de alguém com residência comprovada em território nacional português e
que estivesse disposto a subscrever a solicitação. Tendo encontrado quem aten-
desse a tais exigências, procurei a loja do serviço das Finanças mais próxima. Che-
gando lá, mais uma vez me deparei com inúmeras pessoas à espera de atendi-
mento, ainda que numa escala menor do que a verificada na Loja do Cidadão.
Retirei uma senha e aguardei. Como, a princípio, as cadeiras estavam todas ocu-
padas, permaneci de pé até que o painel luminoso chamasse o meu número, in-
dicando o guichê em que seria atendido. Uma vez lá, apresentei a minha solicita-
ção e a documentação correspondente. Para a minha satisfação, diferentemente
do que havia ocorrido na Loja do Cidadão, a atendente do serviço de Finanças leu
com atenção todos os papéis que entreguei, demonstrando não só ter entendido
a minha demanda como estar, de fato, interessada em atendê-la. Após passar em
revista cada um dos documentos, a profissional emitiu um protocolo que me per-
mitiria retirar, dentro de alguns dias, o Título de Residência no qual constava o
almejado Número do Contribuinte.
Até aí, nada demais. Afinal, o serviço foi prestado com eficiência e correção,
dentro, portanto, do esperado. Mas, o desfecho inusitado ainda estava por vir. Ao
entregar o protocolo, a atendente, num gesto inesperado, solicitou que me apro-
ximasse do guichê e, praticamente sussurrando, disse que, na próxima vez, eu não
precisaria pegar senha ou enfrentar fila. Segundo ela, isso tinha a ver com uma
informação contida no documento que acabara de me entregar e que, conforme
verifiquei, constaria também no meu Título de Residência. Inscrita no campo
“OBSERVAÇÕES”, a informação era a seguinte: “ACT. INVESTIGAÇÃO/ALTAM.
QUAL. ART.90, N. 1 DA LEI N. 2372007”. Pelo que entendi, a anotação dizia que
eu estava em Portugal para fazer pesquisa ou, como dizem por lá, para desenvol-
Nem tão longe, nem tão perto!
inclusive por lei, como altamente qualificado. Por conta dessa anotação, num pe-
ríodo de poucos dias (a contar da minha ida à Loja do Cidadão), me vi subita-
mente erigido da condição de cidadão de segunda classe à de primeira.
Uma outra situação envolvendo formas hierárquicas de tratamento interpes-
soal ocorreu quando eu ainda tentava estabelecer o primeiro contato para a rea-
lização da pesquisa relativa ao estágio pós-doutoral. Conforme mencionado, a
pesquisa tinha por objetivo compreender a participação da mídia portuguesa no
processo de construção social da(s) ‘violência(s)’, razão pela qual o meu supervi-
sor me colocou em contato com um jornalista que, àquela altura, cursava o dou-
torado em Sociologia na Universidade Nova de Lisboa. Por meio de uma mensa-
gem de e-mail, fui apresentado ao periodista que, atendendo à solicitação do co-
lega, gentilmente se colocou à disposição para participar da pesquisa. Feita a me-
diação, demos início a uma troca de mensagens, nas quais sempre procurei adotar 205
uma postura respeitosa e formal. Depois de algumas semanas de comunicação à
distância, finalmente marcamos uma reunião no Café da Universidade. Ao nos
encontrarmos, discorri em linhas gerais sobre o meu objeto de estudo e a expec-
tativa de constituir uma rede de contatos com profissionais da imprensa local.
Após brevíssima troca de ideias, o meu interlocutor me convidou a conhecer uma
livraria situada no interior do campus. Lá chegando, fomos recebidos por um sim-
pático funcionário que a ele se dirigia como um velho conhecido. Uma vez apre-
sentados, entabulamos, os três, uma conversa de cerca de vinte minutos sobre os
títulos disponíveis que, de algum modo, poderiam contribuir para os meus pro-
pósitos. Em meio a sugestões bibliográficas e uma prosa que beirava à informali-
dade, acabei por cometer um lapso ao me referir ao jornalista, que se chamava
João Sousa Pinto12, empregando somente os seus primeiro e último nomes, isto
é, tratando-o apenas por João Pinto.
Mal havíamos saído do local e, ato contínuo, recebi uma primeira repri-
menda: “O meu nome é João Sousa Pinto”, disse o periodista. Ainda tentava en-
tender o que acontecia quando fui confrontado com uma segunda colocação,
igualmente ríspida: “E a propósito, vocês no Brasil costumam se reportar às pes-
soas chamando-as de Senhor...”. Intrigado, perguntei, então, como ele achava que
deveria ser tratado, ao que recebi a seguinte resposta: “Ora, pois, como Dê Erre
[D.R.]”. Dado o imponderável da situação, me vi obrigado a decidir, em poucos
segundos, como reagir. Se me calasse, talvez pudesse contar com os préstimos do
jornalista para estabelecer a rede de contatos de que precisava para realizar a pes-
quisa. Mas, para isso, teria que assentir com uma postura autoritária que, a prin-
cípio, não me parecia ter qualquer justificativa. Por outro lado, se respondesse à
altura, talvez ficasse mais aliviado, mas correria o risco de inviabilizar o trabalho
que pretendia desenvolver. Sem tempo para maiores reflexões, me virei para o
jornalista e, no mesmo tom empregado por ele, afirmei que o meu nome era Edil-
son Márcio Almeida da Silva e não apenas Edilson Silva, como costumava ser
ACENO, 7 (14): 199-214, maio a agosto de 2020. ISSN: 2358-5587
12 Por razões de ordem diversa, inclusive ética, o nome utilizado para fazer referência ao meu interlocutor é fictício.
encontraram inspiração para os seus trabalhos.
Em linhas gerais, o arcabouço teórico dumontiano se define a partir da con-
traposição entre o holismo – tido como uma ideologia13 própria de sociedades
tradicionais, nas quais a hierarquia se apresenta como o mais importante traço
distintivo – e o individualismo – caracterizado como a ideologia dominante nas
sociedades modernas, em que a noção de igualdade se apresenta como elemento
primordial. Segundo tal perspectiva, o pressuposto básico do holismo é o de que
há na totalidade social algo mais do que nas suas partes constitutivas ou na soma
destas, de modo que, nesse caso, a sociedade é representada como hierarquica-
mente superior aos indivíduos que a compõem. Já a representação valorizada no
individualismo é a de que, por trazer dentro de si a essência da humanidade, o
“indivíduo é quase sagrado, absoluto; não possui nada acima de suas exigências
legítimas; seus direitos só são limitados pelos direitos idênticos dos outros indi-
víduos” (DUMONT, 1992: 52-3). Mas, se ater à construção da oposição, nestes
termos, implica em considerar tal modelo analítico de forma simplista e esque-
mática, deixando de lado os seus potenciais desdobramentos. Senão, vejamos.
Historicamente, a emergência do individualismo e sua transformação na ide-
ologia dominante nas sociedades ocidentais modernas estão associadas a impor-
tantes transformações sociais, políticas e econômicas ocorridas na Europa a par-
tir do século XV. Tendo se expandido por diversos países ao longo do tempo, a
ideologia individualista jamais se apresentou, porém, como uma realidade “uni-
forme para todos os sujeitos submetidos a sua influência, em cada período de sua
história e em cada formação nacional ou regional” (DUARTE, 2017: 741). Tanto
em termos teóricos quanto práticos, a sua difusão se processou consoante à pre-
missa de que toda configuração ideológica é sui generis, dado que, em cada uma,
“ideias e valores são hierarquizados de um modo particular” (DUMONT, 1985:
259). Nesse sentido, enquanto “variante nacional” da ideologia moderna, o indi-
vidualismo português se apresenta como especialmente favorável ao estabeleci-
mento de um olhar contrastivo com o universo ideológico brasileiro no qual, con-
forme assinala Da Matta (1990), o individualismo igualitário e o holismo hierár-
quico convivem lado a lado, simultaneamente e de forma complementar.
Tal qual mencionado, a importância conferida à concepção de indivíduo
como valor moral atravessa diferentes domínios da vida social portuguesa, o que,
cabe ressaltar, chamou a minha atenção nas mais variadas circunstâncias. Inici-
almente, uma das que me soaram mais inabituais dizia respeito ao funciona-
mento dos transportes públicos coletivos. Pelo que pude observar, em Portugal,
Nem tão longe, nem tão perto!
usuários (que o utilizam apenas eventualmente) e utentes14 (que dele fazem uso
rotineiro, logo, necessário, constante e interessado), o que produz um efeito digno
de nota no contexto em tela, qual seja: o rigoroso cumprimento dos horários. Tal
cumprimento permite a quem vive ou, por qualquer razão, se encontra em Portu-
gal dispor de certa previsibilidade no que tange aos fluxos urbanos, de modo a,
com isso, planejar as suas atividades cotidianas e, portanto, otimizar a organiza-
ção do próprio tempo, o que, salvo melhor juízo, constitui inequívoca expressão
de respeito aos direitos individuais.
A exemplo do que se passa no Brasil (embora não da mesma forma, nem na
mesma ordem de grandeza), o transporte público português se concentra no setor
13 Dumont (2000: 29) chama de ideologia “o conjunto de ideias e valores – ou representações – comuns em uma sociedade
ou correntes em dado meio social”. 207
14 Utilizo a distinção entre utente e usuário conforme proposto em MELLO, Marco Antônio da Silva; VOGEL, Arno. Lições
da rua (ou quando a rua vira casa): algumas considerações sobre habito e diligo no meio urbano, 1981. Disponível em:
<http://lemetro.ifcs.ufrj.br/licoes_da_rua.pdf>.
rodoviário. Entretanto, dadas a qualidade e a eficiência do setor em Portugal,
pode-se dizer que essa talvez seja uma das poucas coincidências existentes na re-
alidade dos dois países. Os atributos do transporte de massas em Portugal, que
noutras circunstâncias seriam naturalizados, chamam a atenção exatamente pelo
contraste com o quadro vivido por milhões de pessoas nas mais diversas locali-
dades do Brasil. Ao contrário do que se passa com os portugueses, de um modo
geral, o transporte público brasileiro é considerado ruim e ineficiente. As passa-
gens são caras, os veículos apresentam condições precárias, circulam frequente-
mente lotados e impõem um grande tempo de espera aos passageiros. Isso sem
mencionar a falta de pontualidade e as inumeráveis horas de trabalho perdidas
no trânsito15, o que leva muitos especialistas a tratarem a questão a partir da opo-
sição massa X elite.
Em capitais brasileiras como o Rio de Janeiro, por exemplo, tal oposição
tende a assumir grande relevo, uma vez que, enquanto os ônibus e trens circulam
por praticamente toda a parte (inclusive, pelas regiões mais pobres da cidade), as
linhas de metrô cobrem apenas as chamadas “áreas nobres”. Para além da ênfase
histórica conferida ao rodoviarismo, não há como deixar de reconhecer que o al-
cance dos diferentes modais de transporte reflete um corte de classes que se faz
sentir, inclusive, territorialmente. Longe de se tratar de um caso isolado, o que se
verifica no Rio de Janeiro acontece, também, em outras regiões metropolitanas
do Brasil, nas quais o transporte público coletivo não é destinado aos indivíduos
em geral, mas a um segmento populacional específico: a grande massa de traba-
lhadores que dele precisam para se deslocar diariamente. Como coloca Da Matta
(1993: 194-5), nas grandes cidades brasileiras, a necessidade de viajar de ônibus
e/ou de trens representa “um dos mais acabados sinais de um estilo de vida su-
balterno, inferior ou pobre”, razão pela qual “ser usuário de transporte público é,
no caso do Brasil, o ponto final de uma massificação que todos tentam evitar”.
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Pode-se dizer que, por aqui, além de atentarem contra a dignidade de amplos
segmentos de trabalhadores, as condições da oferta desse tipo de serviço concor-
rem para a expropriação do seu tempo livre, sendo que “o tempo livre, para essas
massas, diz respeito ao seu próprio corpo e ao seu uso como instrumento de so-
brevivência na cidade”. Outrossim, não chega a haver propriamente exagero em
se afirmar que, aliada às múltiplas mazelas com que se defronta no dia a dia, “a
deficiência dos meios de transporte urbano constitui uma sobre-exploração do
usuário deste sistema”.
A exemplo do que se passa nos transportes públicos coletivos, o individua-
lismo português se faz notar, também, no respeito às filas, que estão espalhadas
por toda a parte: nas paragens dos autocarros, nas bilheterias do metrô, nas cai-
xas dos bares, teatros, supermercados etc. Certa feita, ao adentrar uma farmácia
no bairro do Chiado, em Lisboa, me dirigi a um funcionário para consultá-lo so-
Artigos Livres
bre o preço de determinado produto, sendo informado que deveria aguardar, uma
vez que ele estava atendendo uma outra cliente. Como não tinha avistado nin-
guém diante do balcão, sequer me dei conta da presença de uma senhora que
transitava calmamente pelo interior da farmácia, observando e manipulando pro-
dutos diversos. Aparentemente, ela ainda não havia solicitado nada ao funcioná-
rio e, a bem da verdade, nem sei se esboçou qualquer ação nesse sentido. Mas,
pelo que entendi, isso era algo desnecessário. Embora não houvesse uma fila ob-
jetivamente formada (ou, ao menos, não numa forma reconhecível para mim),
208
15É evidente que, no Brasil, a qualidade dos transportes públicos coletivos varia sensivelmente de região para região.
Embora seja uma exceção à regra geral, há que se mencionar que cidades como Curitiba, por exemplo, dispõem de uma
rede de transporte de massas comparativamente superior ao de outras capitais.
tudo dava a entender que, segundo os códigos locais, o simples fato de a senhora
ter entrado primeiro no estabelecimento seria condição suficiente para que a fila
viesse a se constituir.
Embora a banalização cotidiana da fila contribua para que a sua importância
sociológica seja ignorada, há que se reconhecer que ela constitui um indelével
instrumento de ocupação igualitária do espaço público. Por definição, sua razão
de ser repousa sobre um princípio de ordem ética segundo o qual quem chega
antes tem o direito legítimo de ficar na frente. É isso o que nos mostra, não só o
episódio da farmácia, como o da fila do cinema, em que uma atendente repreen-
deu uma senhora que pretendia furar a fila dos ingressos, mandando-a de volta
ao seu lugar. Entre outras razões, este episódio parece emblemático por afirmar
a preeminência da igualdade tanto entre os integrantes da fila, como entre as par-
tes envolvidas na querela, quais sejam: a que atendia e a que era atendida. Con-
trariando uma ideia corrente no Brasil – a de que o cliente tem sempre razão –, a
funcionária do cinema adotou uma postura refratária à pretensa superioridade
da sua interlocutora, demonstrando, assim, ter absoluta clareza de que estava ali
para trabalhar, não para servir (o que, diga-se de passagem, é bem diferente16).
Se, como mencionado, a fila corresponde a uma forma de ocupação igualitá-
ria do espaço público, dependendo dos usos que se lhe impõem, ela também pode
servir para demarcar fronteiras, reforçando, assim, a existência de distâncias so-
ciais. Quero dizer com isso que do mesmo modo que o respeito à fila iguala os
indivíduos, o seu descumprimento os hierarquiza e, consequentemente, desi-
guala. Essa inversão pode ser verificada, por exemplo, no episódio envolvendo o
serviço das Finanças, quando fui dispensado de enfrentar uma fila, o que me co-
locou diante de uma forma de classificação social que não condizia com as habi-
tuais manifestações igualitárias dos portugueses. Naquele contexto, eu me encon-
trava diante de uma inequívoca situação de privilégio que, como bem sabemos,
constitui um traço característico do holismo hierárquico. Sendo assim, como se
falar, então, de um individualismo à portuguesa? De acordo com Dumont (2000:
35), isso seria possível porque, em princípio, toda ideologia constitui “uma uni-
dade que não exclui, todavia, a contradição ou o conflito”. Noutras palavras, isso
quer dizer que assim como a igualdade plena corresponde a uma espécie de ide-
alização, não há como uma relação de superior com inferior se estabelecer de
forma absoluta de uma ponta à outra da experiência, já que “aquilo que era supe-
rior num nível superior pode se tornar inferior num nível inferior” (DUMONT,
1992: 373-4).
Nem tão longe, nem tão perto!
É evidente que a discriminação positiva de pessoas que, por conta da sua po-
ALMEIDA SILVA Edilson Márcio.
sição social, são dispensadas de enfrentar filas também faz parte da realidade bra-
sileira. Mas, por aqui, isso não se dá necessariamente da forma acanhada que ob-
servei em Portugal. No Brasil, somos cotidianamente confrontados com filas e
com formas de excepcionalização da sua natureza igualitária. Veja-se, nesse sen-
tido, o caso dos bancos que disponibilizam salas, gerentes e caixas à parte para os
clientes que rendem mais e são, portanto, classificados como “especiais”. Em ca-
sos como esse, as filas até continuam a existir, mas definitivamente não são as
mesmas para todos. Desse modo, ao invés de igualar, elas acabam por reforçar
concepções seletivas, diferenciadas e excludentes de relações sociais.
Pesquisadores como Kant de Lima (2000) e Oliveira (2011) têm apontado a
coexistência, no Brasil, de duas diferentes formas de lidar com a igualdade: uma
209
16Reconheço, aqui, a inspiração do trabalho de O´Donnel (1986), em que ele contrasta a solicitude, simpatia e distancia-
mento social característicos de profissionais como garçons, empregados de lojas e motoristas de táxi no Rio de Janeiro e
a postura distinta adotada por seus equivalentes em Buenos Aires.
baseada nas diferenças e outra, nas semelhanças. O primeiro sentido (o da igual-
dade na diferença) corresponde àquele que empregamos formalmente quando,
apoiados no Artigo 5º da Constituição Federal Brasileira de 1988, afirmamos que
todos somos iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza. Nesse caso,
temos em mente o mundo cívico moderno, idealmente concebido, no qual todos
os indivíduos, a despeito das suas diferenças substantivas, são entendidos como
destinatários dos mesmos direitos, ou seja, de um tratamento uniforme e sem
discriminações por parte das instituições jurídico-políticas. Já o segundo sentido
(o da igualdade na semelhança) tem como referência a célebre frase do jurista Rui
Barbosa, extraída da obra “Oração aos moços”, na qual se afirma que a verdadeira
igualdade consiste em tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais
na medida em que estes se desigualam. Diferentemente da primeira, essa concep-
ção implica na adoção de tratamentos diferenciados aos indivíduos conforme
suas semelhanças substantivas (de classe, étnico-racial, de origem, etc.), o que
leva, entre outras consequências, à justificação de privilégios. Como exemplos da
concepção de igualdade na semelhança, no Brasil, pode-se mencionar o instituto
da prisão especial e o foro por prerrogativa de função (também chamado de foro
privilegiado), que concede a determinadas pessoas o direito de serem julgadas
por Órgãos Superiores da Jurisdição em virtude dos cargos que ocupam ou das
funções que exercem.
Analiticamente, a possibilidade de se conferir tratamentos privilegiados a in-
divíduos e/ou grupos, mesmo em contextos igualitários, está relacionada ao fato
de que a hierarquia das ideias tem na inversão uma de suas propriedades funda-
mentais. Tal inversão ocorre à medida em que “uma ideia que cresce em impor-
tância e em status, adquire a propriedade de englobar o seu contrário” (DU-
MONT, 1985: 259). Sem sombra de dúvidas, esse constitui o aspecto mais rico e
dinâmico do modelo analítico desenvolvido por Dumont. Por seu intermédio
ACENO, 7 (14): 199-214, maio a agosto de 2020. ISSN: 2358-5587
sidade Nova de Lisboa, ficou visivelmente contrariado ao ser tratado como Se-
nhor e não como Dê Erre [D.R.], razão pela qual se arvorou o direito de demandar
um tratamento condizente com o seu suposto status superior. O que chama a
atenção, nesse caso, é que a postura por ele adotada parecia dizer respeito não só
a um temperamento, humor ou traço pessoal, mas à existência de certos valores
e ideias que ocupam um importante lugar no universo ideológico português.
Numa sociedade em que os títulos nobiliárquicos foram abolidos há pouco mais
de cem anos17 e em cujos espaços universitários vigem pronomes de tratamento
como “Senhor Professor Doutor”, posturas como a adotada por meu interlocutor
210
17Por força de lei, os títulos nobiliárquicos foram extintos em Portugal com a implantação da República em 5 de outubro
de 1910.
sinalizam, com clareza cristalina, a significativa valorização localmente atribuída
aos títulos acadêmicos enquanto marcadores da estima social relativa ao prestí-
gio.
Se, por um lado, o episódio a que acabo de me referir evidencia a valorização
(inclusive pronominal) da hierarquia, cabe ressaltar que tal valorização coexiste
com posturas notadamente diversas, tais quais a adotada pelo supervisor do meu
estágio pós-doutoral. Indo de encontro às convenções locais, ele evitava ser cha-
mado de senhor ou professor, solicitando, inclusive aos estudantes de graduação,
que o tratassem simplesmente por “Zé”. Pode-se objetar que talvez essa constitua
uma situação excepcional, no mínimo rara. Em todo caso, entendo que, de algum
modo, ela corresponde à contraparte dos princípios ideológicos acionados pelo
jornalista. Nesse sentido, considero que as posturas respectivamente adotadas
apontam para a necessidade de se ir além da “reificação tipologizante” (DUARTE,
2017) que concebe, de forma rígida e estática, a oposição formal entre holismo
hierárquico e individualismo igualitário. Como assinala o próprio Dumont
(1997), “o homem não apenas pensa, ele age. Ele não tem só ideias, mas valores”
(DUMONT, 1997: 66) e estes constituem “algo mais do que sistemas normativos
cristalizados e estáveis (...), sendo reconstruíveis, mesmo que apenas parcial-
mente, a partir de constelações de atitudes” (SILVA e MENDES, 2009: 175). A
inevitável descontinuidade entre os planos das práticas e representações impede
que a antinomia formal entre holismo e individualismo encontre um correspon-
dente empírico pleno, uma vez que, para além de tal oposição, o que há, de fato,
é uma espécie de gradiente no interior do qual os indivíduos se movem conforme
as circunstâncias e os atores envolvidos. É precisamente aí, creio eu, que reside o
caráter, a um só tempo, complexo, dinâmico e contextual das relações envolvendo
formas hierárquicas e igualitárias de convivência social.
Considerações finais
Concomitantemente à pesquisa sobre a construção social da(s) violência(s)
na imprensa lusitana, um dos objetivos da realização do estágio pós-doutoral em
Portugal foi a consolidação da rede de pesquisadores associados ao convênio CA-
PES/FCT e o estabelecimento de novas parcerias institucionais junto aos pesqui-
sadores do Centro de Estudos de Sociologia da Universidade Nova de Lisboa (Ces-
nova), bem como de outras instituições de ensino e pesquisa. Um importante mo-
vimento nesse sentido se deu a partir da minha participação no III Encontro de
Nem tão longe, nem tão perto!
cerne aos ônibus e trens, os traslados podem chegar a se confundir com o trans-
porte de cargas, haja vista a má qualidade do atendimento conferido aos segmen-
tos que deles necessitam em diferentes capitais do país. A esse respeito, devo con-
fessar que, após o período passado no Exterior, o que mais me impactou no re-
torno ao Brasil foi o reencontro com o trânsito caótico do Rio de Janeiro, no qual
se combinam, de um modo peculiar, a desigualdade típica de sociedades hierár-
quicas e a mais perversa resultante da ideologia individualista: o egoísmo. Igual-
mente impactante e reveladora dos princípios que estruturam o universo ideoló-
gico brasileiro foi a releitura de uma reportagem publicada alguns anos atrás com
a qual, por acaso, voltei a ter contato tão logo desembarquei no Brasil. O texto
noticiava o caso de um juiz que, sentindo-se ofendido por ter sido chamado de
“você” pelo porteiro do condomínio em que residia, entrou com uma ação na Jus-
tiça para reivindicar que, sob pena de multa diária, todos os funcionários passas-
Artigos Livres
Referência
DA MATTA, Roberto. “Sabe com quem está falando? Um ensaio sobre a distinção
entre indivíduo e pessoa no Brasil”. In: Carnavais, malandros e heróis: para uma
sociologia do dilema brasileiro (4ª ed.). Rio de Janeiro: Guanabara, 1990. pp. 179-
248.
DA MATTA, Roberto. Os discursos da violência no Brasil. Conta de mentiroso:
sete ensaios de antropologia brasileira. Rio de Janeiro: Rocco, 1993. pp. 175-197.
DUARTE, Luiz Fernando Dias. O valor dos valores: Louis Dumont na antropolo-
gia contemporânea. Sociologia & Antropologia, 7 (3): 735-772, 2017.
DUMONT, Louis. O individualismo: uma perspectiva antropológica da ideolo-
gia moderna. Rio de Janeiro: Rocco, 1985.
DUMONT, Louis. Homo hierarchicus: o sistema de castas e suas implicações.
São Paulo: EDUSP, 1992.
DUMONT, Louis. Homo aequalis: gênese e plenitude da ideologia econômica.
Bauru: EDUSC, 2000.
KANT DE LIMA, Roberto. “Carnavais, malandros e heróis: o dilema brasileiro do
espaço público”. In: GOMES, Laura Graziela; BARBOSA, Lívia; DRUMOND, José
Augusto (orgs.). O Brasil não é para principiantes: Carnavais, malandros e he-
róis, 20 anos depois. Rio de Janeiro: FGV, 2000. pp. 105-124.
MELLO, Marco Antônio da Silva; VOGEL, Arno. Lições da rua (ou quando a rua
vira casa): algumas considerações sobre habito e diligo no meio urbano. Rio de
Janeiro: LeMetro, 1981. pp. 1-15.
O’DONNELL, Guillermo. “E eu com isso? Notas sobre sociabilidade e política na
Argentina e no Brasil”. In: Contrapontos: autoritarismo e democratização. São
Paulo: Vértice, 1986. pp.121-155.
Nem tão longe, nem tão perto!
ALMEIDA SILVA Edilson Márcio.
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Artigos Livres
214
Motivações para a prática
do dark tourism
PEREIRA, Tércio. Motivações para prática do dark tourism. Aceno – Revista de Antropologia do
Tércio Pereira1
Universidade do Vale do Itajaí
1Bacharel em Administração (Univali), com MBA em Gestão Estratégica em Vendas e Varejo (Univali), especialista em
Marketing Criativo (Univali), mestre em Turismo e Hotelaria e doutorando em Turismo e Hotelaria (Univali) com bolsa
CAPES.
Motivations for dark tourism practice
Resumen: Los lugares asociados con desastres naturales o provocados por el hom-
bre o atrocidades se han convertido no solo en lugares de memoria sino también en
atracciones turísticas. De esta situación surge el propósito de esta investigación, que
es presentar una discusión sobre la motivación al visitar lugares caracterizados como
turismo oscuro. Esta es una revisión bibliográfica de naturaleza integradora. La bús-
queda se realizó mediante revisión bibliográfica en bases de datos: Science Direct,
Ebsco, Scielo. Se utilizaron instrumentos etnográficos combinando la información
de la colección bibliográfica con el conocimiento del investigador sobre el turismo
oscuro. Un total de 48 bibliografías seleccionadas. Los resultados generalmente su-
gieren que los turistas tienen la motivación de visitar lugares de turismo oscuro, vo-
yeurismo y la intención de adquirir conocimiento y comprender algo que no se sabía,
teniendo las emociones como un fuerte factor interpretativo del lugar. Esta investi-
Artigos Livres
216
E
ste trabalho tem como tema central de pesquisa, o dark tourism. O tema,
vem chamando atenção da mídia de uma forma diferenciada em relação a
outros segmentos turísticos e tem sido um assunto regular e relevante para
artigos de jornais, revistas e programas de televisão (LENNON, 2010; SEATON e
LENNON, 2004). Denota-se que o dark tourism desfruta de uma presença subs-
tancial na Internet: a exemplo, pontua-se que uma pesquisa no Google por "dark
tourism" em dezembro de 2016 produziu quase quatro milhões de acessos a sites
(LIGHT, 2017).
Dentre os resultados das pesquisas, incluem-se entradas de enciclopédia,
guias para lugares e destinos dark do turismo, blogs e comentários sobre o dark
tourism em geral (ou sobre sites específicos) e feriados temáticos em torno de
atrações e experiências sombrias. Mais amplamente, dark tourism também tem
sido o foco de um trabalho de escrita de viagens populares (JOLY, 2011). En-
quanto o próprio setor do turismo tem sido mais lento para abraçar o termo, al-
gumas atrações e destinos começaram a usá-lo em sua promoção (LENNON,
2010).
O dark tourism tem como atrativos os locais associados a desastres ou atro-
cidades naturais ou provocadas por humanos e que se tornaram ao longo do
tempo, mais do que locais de memória, mas também atrações turísticas em si
(KANG et al., 2012). O dark tourism é definido por Stone (2006: 146) como “o
ato de viajar para locais associados à morte, ao sofrimento e ao aparentemente
macabro”. Tarlow (2005: 48) acrescenta na definição do conceito “visitas a luga-
res onde ocorreram tragédias ou mortes historicamente dignas de notoriedade,
que continuam a impactar nossas vidas”. Já Kang (2012) alega que tais lugares
abrangem locais tão variados como os de assassinato e morte em massa, campos
de batalha, cemitérios, mausoléus e antigos lares de celebridades mortas. Para
lidar com essas questões e tratá-las, esta pesquisa foca na perspectiva da “moti- Motivações para prática do dark tourism
vação” quando se trata de provedores de experiência turística dark e os próprios
consumidores de locais de turismo.
Na concepção de Kang et al. (2012), o dark tourism é um fenômeno turístico
de relevância contemporânea e tem atraído diversos pesquisadores a se dedica-
rem mais ao estudo desse fenômeno. Segundo o autor, muitos desses estudos des-
tacam que o dark tourism pode, de fato, proporcionar uma experiência significa-
tiva de turismo e que, ao mesmo tempo em que suscita novas ansiedades e dile-
PEREIRA, Tércio.
Percurso metodológico
O artigo se constrói com instrumentos etnográficos unindo o conhecimento
pessoal e acadêmico durante dez anos de experiência entre pesquisa e viagens.
Buscamos a aproximação com o tema do dark tourism. Essas viagens foram sis-
tematizadas buscando imergir no tema e que ao longo do período buscou escrever
sobre o assunto. Ao longo desses dez anos fui produzindo conhecimento científi-
cos seja em evento, artigos, capítulos de livro. Sendo assim, fui amadurecendo
sobre o tema para dar base a esse artigo.
Esta pesquisa ocorreu via revisão bibliográfica integrativa acerca da temática
do dark tourism, tendo como foco os segmentos estabelecidos pela literatura de
Stone (2006). Para tanto se optou como recurso à aplicação dos conhecimentos
do autor provenientes de suas experiências com base em viagens a 33 países. Essa
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Rojek 1993 Apresentou o conceito de destinos escuros com o conceito de "Block Spot" ou "os
PEREIRA, Tércio.
219
Seaton 1996 Discute que o dark tourism tem uma longa história, emergindo do que ele se refere
como um turismo acrobático que remonta à Idade Média, mas que se intensificou
durante o final do século XVIII e início do século XX com visitas, por exemplo, ao
campo de batalha de Waterloo. Ele argumenta que o dark tourism é a dimensão de
viagem de thanatopsis, que define o viajar para um local total ou parcialmente
motivado pelo desejo de encontros reais ou simbólicos com a morte, particularmente,
mas não exclusivamente morte violenta
Bloom 2000 Trata-se do turismo mórbido, como, por um lado, o turismo que se concentra em morte
súbita e que atrai rapidamente um grande número de pessoas e, por outro lado, um
turismo relacionado à morbidade artificial voltado para a atração.
Tarlow 2005 Identifica o dark tourism como visitas a lugares onde ocorreram tragédias ou mortes
historicamente dignas de nota e que continuam a impactar nossas vidas.
Tabela 1: Conceitos associados ao dark tourism. Fonte: Adaptado de Stone (2006, 2008).
Segmentos
Como pode-se observar todas essas definições levam a morte como centro do
conceito. Porém o setor do turismo tem se apropriado dessa tipologia e ofertados
novos “produtos”, ou seja, construindo (propositalmente) produtos ou serviços
para recriar eventos sombrios/macabros. Por esse motivo, Stone (2006), em seu
estudo, categorizou sete tipos diferentes de segmentos relacionadas ao dark tou-
rism.
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utilizada para abrigar leprosos. Anos depois, ela foi transformada em presídio de
segurança máxima durante o regime do Apartheid. Durante a visita, é possível
conhecer o canil (onde eram treinados) igreja, escola e um pequeno vilarejo com
diversas lojas. Em seguida conheci a pedreira onde os presos costumavam traba-
lhar e articular estratégias a favor dos direitos humanos (mesmo sob vigilância).
Também foi possível conhecer um ex-presidiário e escutar seu relato. O guia local
me apresentou as camas que foram colocadas após uma visita da ONU ao local.
Em um local determinado para os presos colocarem seus objetos pessoais, acima,
tem uma caixa onde os policiais escutavam as conversas dos presos. No local onde 221
era possível tomar o banho de sol, pude observar algumas flores, que segundo o
guia, foram plantadas por Nelson Mandela. O ex-presidente da África do sul, fi-
cou preso por 18 anos na Ala B (reservada a líderes políticos). Foi nessa ala, que
ele rascunhou seu primeiro livro, conhecido por “longa Caminhada até a liber-
dade”. O local está bem preservado desde sua saída.
cobrimos que um dos principais motivos da visita do turista a esse cemitério es-
tavar relacionado a busca de conhecimento sobre seus antepassados. Os visitan-
tes buscavam entender mais sobre suas raízes de origem germânica e ao mesmo
tempo estar próximo dos “desbravadores” (LEOTI et al., 2019).
disso, esses tipos de eventos dominam a agenda da mídia por períodos relativa-
mente curtos de tempo, portanto, atribuindo um nível mais alto de consciência
política e influência a um local específico durante o "período da mídia".
A maioria desses Santuários não foram construídos propositadamente para o
turismo, portanto muitos deles possuem pouca infraestrutura devido à sua natu-
reza temporal. Como exemplo, Stone (2006) traz o Santuário construído ao redor
do Palácio de Kensington, onde Diana, princesa de Gales, faleceu em 1997. O local
se tornou um ponto de visita para milhões de pessoas. Logo depois esse santuário
foi desmontado e reconstruído em outro lugar, em Althorp House, onde foi o en-
222 terro de Diana. Curiosamente, o negócio está indo bem com a infraestrutura evo-
luindo com exposições premiadas que ilustram a morte de Diana e homenagens
subsequentes.
Sobre essa temática, fizemos uma pesquisa, sobre o memorial do surfista, em
Barra Velha (SC). Por meio de uma revisão bibliográfica integrativa, buscamos
relacionar o dark tourism com o conceito de lugar de memória de Nora (1981).
Para isso, visitamos o local, coletamos imagens em mídias sociais e entrevistamos
a artista plástica que fez a estátua. A estátua foi idealizada com o intuito de ho-
menagear Ivan Roberto Marquardt, surfista, que sofreu um acidente automobi-
lístico em 1985. Os resultados assinalaram que o Monumento ao Surf foi arquite-
tado como memorial, e enquanto lugar de memória, promove publicações que
remetem a morte e ao luto, característica primordial do dark tourism. Porém foi
ressignificado pelos turistas. A aparente invisibilidade é causada pela manuten-
ção da memória do jovem surfista associada às características naturais e turísticas
da Praia do Sol, que ao se distanciar da dor, produz uma celebração a vida. Além
de rememorar a vida, a estátua de localização privilegiada (frente ao mar) tam-
bém foi interpretada como culto ao corpo e à saúde, celebrações de casamento e
laços familiares (BORBOREMA e PEREIRA, 2020).
esse ato abominável. Ao adentrar nos túneis, eu, com 1,84m de altura, mal con-
segui me mexer. Os tuneis são bem estreitos e baixos propositalmente, pois difi-
cultava a vida dos americanos. Os túneis funcionavam quase que como uma ci-
dade. Tinha cozinha, escola, hospitais e até local para fabricação de arma. Em
um segundo momento da experiência, no mesmo local, é disponibilizado rifles
para atirar em alvos. Nesse local, percebi um acúmulo de turistas americanos
brincando de tiro ao alvo. Particularmente, soou um tanto desrespeitoso com os
que ali lutaram. Esse tipo de atração necessita de mais estudos (de preferência
com os residentes) e reflexões sobre a utilização desses espaços como “parque de 223
diversão de turista”.
Dark Camps of Genocide (campos de genocídios): Esta última cate-
goria representa a mais escura na escala de tons dark. Esses lugares não são
muito comuns, mas existem em países como Ruanda, Camboja e Kosovo. A visi-
tação aos Dark Camps of Genocide são fornece uma experiência emocional, já que
proporciona visitar as “mansões dos mortos”, analogia a uma grande casa com
inúmeros moradores (KEIL, 2005).
Stone (2006) explica que, com um design de produto girando em torno de
educação e comemoração e, ao contrário de Dark Exhibitions, estão localizados
no local real do evento da morte. Dark Camps of Genocide contam os terríveis
contos do sofrimento humano e têm um alto grau de ideologia política ligada a
eles. Como exemplo, o autor traz o caso de Auschwitz-Birkenau, onde representa
a maior parte das atrocidades cometidas durante o Holocausto. Consequente-
mente, a maneira pela qual o Holocausto se manifesta em termos de produto, é
através do rótulo arrogante e desrespeitoso do "turismo do Holocausto", que mui-
tas vezes domina a agenda mais ampla do dark tourism - especialmente dentro
da mídia. Corraboro com o autor ao trazer o exemplo que vivenciei ao visitar a
Praça da Paz Celestial (Pequim), principal área pública da cidade, cujo ficou mar-
cada pela repressão a um protesto que ocasionou um genocídio (em torno de 800
estudantes assassinados). Nas ruas que rodeiam a praça é facilmente encontrado
muitos militares. Essa praça tem uma dualidade em seu significado. De um lado,
representa poder, já que é possível encontrar o Mausoléu de Mao Tsé Tung, do
outro representa luto pelo massacre. Até hoje a praça é utilizada como formas de
protestos ideológicos e comoção por parte daqueles que a visitam.
morte, tem sido referido como dark tourism (FOLEY e LENNON, 1996; LEN-
NON e FOLEY, 2000), sobrenatural (DUNKLEY, MORGAN e WESTWOOD,
2011; SHARPLEY, 2009) ou macabro (BEECH, 2000). Os seres humanos foram
propositadamente atraídos para atrações, locais e eventos ligados à morte e de-
sastre (SHARPLEY, 2009; STONE, 2005; STONE e SHARPLEY, 2008), por
exemplo, lugares de assassinato (FOLEY e LENNON, 1996), campos de concen-
tração (PODOSHEN e HUNT, 2011) e lugares de terrorismo (STURKEN, 2007).
Nos últimos anos, tem havido uma quantidade significativa de pesquisas re-
lacionadas a locais de dark tourism, no entanto, pouco estudo se concentra em
224 motivações turísticas e elementos temáticos que tentam explicar a visita e até
mesmo a revisita (PODOSHEN e HUNT, 2011; TARLOW, 2005; WIGHT, 2006).
Diversos estudos têm repetidos pedidos de pesquisas para compreender melhor
quais fatores motivam esse tipo de turismo (BIRAN, PORIA e OREN, 2011; SEA-
TON e LENNON, 2004; STONE, 2005, 2006; STONE e SHARPLEY, 2008).
Os estudos realizados por Stone (2005) e Tarlow (2005) verificaram que a
dinâmica de consumo desta atividade está relacionada a aspectos socioculturais,
emocionais e psicológicos. Esses elementos se expressam muitas vezes na duali-
dade de conceitos antagônicos, divergentes e contraditórios.
Essa dualidade pode ser encontrada no estudo de Stone e Sharpley (2008)
que identificam morte/vida. Podemos citar a ida ao cemitério da Recoleta, na Ar-
gentina. A motivação maior foi de estar perto de pessoas que tiveram uma repre-
sentatividade importante como foi o caso da Evita Perón. A sensação de estar ao
lado dos restos mortais dela não é uma sensação ruim, muito menos macabra,
como citou Beech (2000), e sim celebrar a vida. Outra dualidade foi citada por
Buda (2015), o medo/diversão, como citamos acima o trem fantasma do parque
Beto Carrero. A ideia central é se divertir tendo o medo como fator maior na ex-
periência, causando até um sentimento de frustração para aqueles que não o ti-
veram. Winter (2011) também traz uma dualidade em sua pesquisa, que se trata
em esquecer/lembrar. A ideia de ir visitar o museu da guerra do Vietnã está exa-
tamente nessa dualidade. Ele está lá para não deixar as pessoas esquecerem e
lembrar, através de fotos marcantes e até mesmo chocantes o quanto a humani-
dade pode ser cruel. Além dessas, outras dualidades foram encontradas por Qian
(2009), escapar/enfrentar, e Stone e Sharpley (2013), prática de lazer/cultura
desviante.
Como citado nos exemplos acima, Stone (2009) conclui que o termo “dark
tourism” implica um foco na morte e nos mortos. Portanto, desenvolver uma
compreensão do dark tourism do ponto de vista turístico pode realmente nos di-
zer mais sobre os vivos. Stone (2006) afirma que lugares associados à morte, de-
sastres, guerra e atrocidades, estão se tornando cada vez mais procurados pelos
turistas contemporâneo e resultando, gradativamente, viagens espirituais para o
turista que deseja contemplar a morte real e/ou recriar experiências relacionadas
a ela.
Embora a maioria dos estudos do dark tourism tenha sido focado no lado da
oferta e em sua gestão e interpretação, alguns trabalhos já nos trazem uma dire-
Motivações para prática do dark tourism
ção sobre a motivação para a visita desses lugares. Seaton (1996) postula que um
interesse na morte é geral, não específico da pessoa. Isto significa que há poten-
cialmente uma grande variedade de manifestações relacionadas ao consumo ao
dark tourism.
Alguns estudiosos examinaram ou teorizaram sobre as motivações no dark
tourism. Rojek (1997) acredita que a busca de sensações pode levar os turistas a
locais de desastre. Cole (1999) sugere que o voyeurismo pode atuar como um mo-
tivador. Segundo Birna, Buda e McIntosh (2013), o voyeurismo é entendido como
PEREIRA, Tércio.
Considerações finais
capacidade de interpretação pessoal com o local de visita tem papel vital para a
experiência. A experiência pessoal em lugares que são considerados do segmento
de dark tourism, vai ao encontro da ideia do voyeurismo como fator motivacio-
nal. O olhar que faz rememorar um acontecimento que terminou de forma trágica
causa curiosidade e intenção de visita.
Apesar de ter avançado no debate sobre a motivação em lugares de dark tou-
rism percebo que cabem mais pesquisas para entender as motivações que levam
um turista a visitar um local que remete ou exalta a morte, a dor e o luto. Embora
a literatura apresentada sobre o dark tourism tenha características educacionais,
226
políticas e de voyeurismo, os resultados que encontrei enquanto pesquisador es-
tão relacionados a reunião de outros elementos induz ao distanciamento do as-
pecto de morbidez e aproxima do que considera ser uma exaltação e celebração à
vida. Nesse sentido, é possível que a motivação para visitar lugares de dark tou-
rism vão além dos citados e possam incluir comportamentos, práticas desporti-
vas, comemorações e até mesmo momentos de lazer.
Ressalta-se que apesar de ser criticado por determinados grupos (LIGHT,
2017), o desenvolvimento do dark tourism pode estar contribuindo para o desen-
volvimento de comunidades ao redor desses lugares. Dessa forma, cabe o desen-
volvimento de estratégias turísticas para motivar o turista a “consumir” esse tipo
de turismo. Essa revisão integrativa pode auxiliar nesse aspecto já que traz a re-
visão da literatura e experiências de um viajante profissional.
A pesquisa também destacou uma série de importantes questões contextuais
relacionadas ao tema do dark tourism e as motivações para a visita. Por fim, vale
mencionar que a pesquisa apresentou limitações do ponto de vista metodológico,
ao se concentrar apenas na análise de um pesquisador em turismo.
Em termos de pesquisas futuras, recomenda-se que os pesquisadores possam
empregar experiências observacionais participativas e entrevistas para coletar
dados. Isso fornecerá informações adicionais que tornarão as descobertas mais
rigorosas. Além disso, essa abordagem ajudará a traçar implicações mais práticas
sobre as motivações para o turismo em lugares caracterizados como dark tou-
rism. Também, investigações envolvendo sentimento como a satisfação ou bene-
fícios para o turista na visita a esses lugares têm o potencial de fornecer outros
resultados. Estudos futuros também podem investigar como a experiência no
dark tourism e informar as intenções de revisitar. Da mesma forma, os pesquisa-
dores devem explorar como a comunidade onde o local está localizado molda a
experiência do turista.
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230
Determinação social do
processo saúde-adoecimento mental de
trabalhadores rurais no Brasil
Brasil. Aceno – Revista de Antropologia do Centro-Oeste, 7 (14): 231-248, maio a agosto de 2020. ISSN: 2358-5587
NEVES, Maelison Silva; PIGNATI; Wanderlei Antônio; PIGNATTI; Marta Gislene; MONTANARI CORRÊA, Marcia
Leopoldina. Determinação social do processo saúde-adoecimento mental de trabalhadores rurais no
Maelison Silva Neves1
Wanderlei Antônio Pignati2
Marta Gislene Pignatti3
Marcia Leopoldina Montanari Corrêa4
Universidade Federal de Mato Grosso
Resumo: Pesquisas sobre saúde mental de trabalhadores rurais no Brasil são rele-
vantes pela expressividade do setor agropecuário na economia nacional. Supõe-se
que os impactos do agronegócio sobre o meio ambiente, o processo de trabalho e
modos de vida no meio rural têm repercussões sobre as condições de saúde mental.
Assim, discute-se a determinação social da saúde mental de trabalhadores rurais
brasileiros, a partir de revisão narrativa da literatura. Os resultados indicaram ocor-
rência frequente de sofrimento psicológico, transtornos mentais comuns, acome-
tendo principalmente mulheres e trabalhadores temporários e maior prevalência de
suicídio em contextos rurais. Conclui-se que as pesquisas indicam a relação da into-
xicação por agrotóxicos com o surgimento de agravos à saúde mental dos trabalha-
dores rurais cujo sofrimento é intensificado pela precariedade das condições de vida,
trabalho, ausência de políticas públicas e violência no campo e contra as mulheres.
1 Psicólogo, mestre em Educação (Unemat, 2014), doutorando do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da
UFMT. Professor Assistente do Departamento de Psicologia (UFMT).
2 Médico, mestre em Saúde e Ambiente (UFMT) e doutor em Saúde Pública pela Escola Nacional de Saúde Pública da
Fundação Oswaldo Cruz. Professor titular aposentado do Instituto de Saúde Coletiva da UFMT.
3 Graduada em Ecologia pela (Unesp), mestre e doutora em Saúde Coletiva (Unicamp). Professora titular aposentada do
Abstract: Research on the mental health of rural workers in Brazil is relevant for
the expressiveness of the agricultural sector in the national economy. It is assumed
that the impacts of agribusiness on the environment, the work process and ways of
life in rural areas have repercussions on the mental health conditions. Thus, the so-
cial determination of the mental health of Brazilian rural workers is discussed, based
on a narrative review of the literature. The results indicated a frequent occurrence
of psychological suffering, common mental disorders, affecting mainly women and
temporary workers and a higher prevalence of suicide in rural contexts. It is con-
cluded that the researches indicate the relationship between pesticide poisoning and
the appearance of aggravations to the mental health of rural workers whose suffering
is intensified by the precarious conditions of life, work, absence of public policies
and violence in the countryside and against women.
rurales brasileños
232
A
s relações entre saúde mental e trabalho têm sido bastante discutidas na
literatura científica, em múltiplas abordagens. No setor agropecuário, os
estudos que abordam o adoecimento mental dos trabalhadores investigam
a relação entre sintomas, psicopatologias e seus determinantes sociais. Os resul-
tados dessas investigações indicam a urgência de as políticas públicas voltadas
para saúde, trabalho, ambiente e assistência social levarem em consideração tais
determinantes como forma de reduzir os indicadores de adoecimento psíquico,
sobretudo as altas taxas de suicídio (CASTRO, 2013; CASTEL, 2007; ARAÚJO,
GREGGIO, PINHEIRO, 2013).
Assim, este ensaio pretende discutir a determinação 5 social do processo sa-
úde/adoecimento mental de trabalhadores rurais brasileiros, identificando os
principais processos críticos 6relacionados ao adoecimento. Busca-se responder
à questão: que elementos permitem sustentar que o adoecimento psíquico, visto
Metodologia
Para discutir a determinação social da saúde mental de trabalhadores rurais
brasileiros, a partir da caracterização dos principais processos críticos, foi reali-
zada uma revisão narrativa de literatura (RHOTER, 2007). A busca bibliográ-
fica foi feita nas bases do MEDLINE, Scopus, Literatura de Ciências da Saúde da
América Latina e Caribe, Biblioteca Virtual da Saúde e Catálogo de Teses e Dis-
sertações da CAPES. Foram utilizados os descritores “farm workers”, “rural wor-
kers”, “mental health” e “mental disorders”), tornando elegíveis estudos publica-
dos entre 2007 e 2017, que descrevessem agravos à saúde mental de trabalhado-
res rurais e fatores relacionados, sendo excluídos artigos de revisão ou que não
permitissem distinguir o tipo de atividade produtiva e/ou categoria profissional.
Após triagem com aplicação dos critérios de inclusão/exclusão, totalizou-se 36
trabalhos selecionados.
A apresentação dos resultados e discussão se divide em três seções: inicial-
mente, apresentamos uma caracterização das pesquisas e os principais resultados
relacionados ao adoecimento psicológico dos trabalhadores rurais. Nas seções se-
NEVES, Maelison Silva et al.
guintes, esses resultados são discutidos a partir das relações dialéticas entre os
processos globais de estruturação da sociabilidade capitalista, os processos par-
ticulares dos modos de vida e suas expressões singulares de adoecimento, finali-
zando com considerações que apontam uma síntese das conclusões e indicações
para futuras pesquisas.
5 Na Saúde Coletiva, há uma diferença entre os conceitos de determinantes sociais da saúde e determinação social da
saúde, sendo a primeira de um viés socialdemocrata e a segunda baseada em uma perspectiva anticapitalista e marxista.
6 Segundo Breilh (2015: 535-536): “trabalhamos processos[críticos] que combinam a estrutura, os modos de vida dos
233
grupos e as condições individuais de vida, e também os efeitos finais nas pessoas, mas articulando sempre as três dimen-
sões [geral, particular, singular], compreendendo que essa unidade em movimento é a realizada, sem atomizá-la, mas
mostrando os vínculos”.
Adoecimento psicológico de
trabalhadores rurais brasileiros
Abordar o sofrimento/adoecimento psicológico é falar da experiência de ou-
tras pessoas com o mundo físico e social mediada pela corporalidade e pela lin-
guagem. Em geral, as descrições das pesquisas sobre sofrimento psíquico ba-
seiam-se nos relatos sobre sentimentos, emoções, visões de si, do mundo, banha-
dos por representações do passado, presente e expectativas em relação ao futuro.
Ao ficarem presas a essa descrição fenomênica dos sentidos pessoais, tais pesqui-
sas podem ser induzidas a explicar tais estados como produções individuais do
funcionamento psíquico, mesmo considerando o pano de fundo do mundo social.
Em contraposição, numa perspectiva materialista histórico-dialética, o adoe-
cimento mental é visto numa perspectiva complexa em que os eventos individuais
(história de vida, pré-disposição genética, idiossincrasias) são determinados dia-
leticamente pelo lugar social ocupado por esse indivíduo nas relações de produ-
ção e reprodução social da vida humana. Ou seja, apesar de ser uma experiência
subjetiva, o sofrimento psicológico e os transtornos mentais têm determinações
econômicas, culturais e políticas que não devem ser ignoradas pelas pesquisas e
intervenções na área (BREILH, 2006, 2015).
As pesquisas abrangeram as principais regiões produtoras agropecuárias do
país, com exceção da região Norte, envolvendo trabalhadores das culturas agrí-
colas mais representativas em termos de produtos para exportação e área plan-
tada (PIGNATI et al., 2017): soja, cana-de-açúcar, fumo, entre outros, envolvendo
tanto trabalhadores assalariados quanto agricultores familiares. Além desses, fo-
ram encontradas pesquisas dos setores de café, feijão, hortifrutigranjeiros e poli-
cultura, conforme Quadro 1.
Os principais agravos à saúde mental dos trabalhadores rurais foram estresse
ACENO, 7 (14): 231-248, maio a agosto de 2020. ISSN: 2358-5587
234
Quadro 1 - Caracterização dos estudos quanto ao tipo de cultivo, estados, categoria de trabalhadores temas e
metodologia
Cultivo/
Estudos7 Estudos e Eixos temáticos
Estados
1. ALMUSSA (2011) • Saúde, trabalho, qualidade de vida, condições de
2. COSTA (2015) vida e transtornos mentais comuns: 1, 3, 4, 9
3. DUARTE (2010) • Trabalho rural, migrações e saúde: 2, 7
4. FAKER (2009) • Trabalho rural no período de safra, estresse e sa-
Cana (AL, GO,
5. FARIA (2012) úde: 8
MG, MS, SP)
6. FRANCO-BENATTI (2016) • Reestruturação produtiva no setor rural e saúde
7. GALIANO (2010) mental: 5
8. PRIULI et al. (2014) • Implicações dos acidentes de trabalho para saúde
9. VERÇOSA (2016) mental: 6
10. CHRISMAN (2012) • Suicídio entre trabalhadores rurais: 10
Grãos
11. CONTI et al. (2017) • Trabalho rural, Qualidade de vida e saúde/adoeci-
PR, SC, RS
235
7As numerações supraescritas nas referências da coluna “Estudos” são para facilitar a localização das mesmas nas colunas
seguintes.
Acumulação capitalista e modernização conservadora no
campo como dimensão estruturante do adoecimento
mental de trabalhadores rurais
O processo de produção no setor agropecuário brasileiro que caracteriza as
últimas décadas sofreu profundas transformações oriundas da reestruturação
produtiva, principalmente nos “elementos técnicos e sociais da estrutura agrária,
sobretudo na base técnica de produção, nas relações sociais de produção e na es-
trutura fundiária” (ELIAS, 2015: 26). No âmbito da agricultura, esse processo se
expressa pela forma do agronegócio globalizado, no qual a produção agropecuária
passa a responder às demandas do mercado internacional e não às necessidades
locais, tornando os alimentos em commodities, nos quais as regiões produtivas
tornam-se apenas regiões do fazer, sem nenhum controle ou soberania sobre o
processo produtivo (ELIAS, 2015; MONTANARI CORRÊA, 2019).
Segundo Bühler, Guibert e Oliveira (2016), na América do Sul, esse processo
foi intensificado a partir dos anos 2000 pela incorporação de investidores estran-
geiros e especulação financeira, expansão rápida das áreas produtivas, aumento
de demandas e conflitos por recursos naturais (terra e água), além de intensifica-
ção da incorporação de recursos tecnológicos para incrementar o processo pro-
dutivo (mecanização, utilização de agrotóxicos e outros produtos químicos, se-
mentes e mudas transgênicas), o que ocasiona profundas mudanças no processo
de trabalho, meio ambiente e modos de vida das populações.
Desse modo, as transformações ocorridas no processo produtivo do campo,
sob a forma de acumulação dos monopólios internacionais, caracterizam-se por
pressões para substituição da agricultura campesina e formas tradicionais de
agricultura pela penetração agressiva da agroindústria e seus pacotes tecnológi-
cos de mecanização, uso intensivo de agrotóxicos e sementes transgênicas, ge-
ACENO, 7 (14): 231-248, maio a agosto de 2020. ISSN: 2358-5587
239
8Marx (2011) discute a matriz histórica desse processo no âmbito da formação social capitalista, denominado por ele como
acumulação primitiva. Os processos descritos por ele ainda se assemelham bastante com o modo como se expressa a
questão agrária no Brasil contemporâneo e suas bases históricas podem ser aprofundadas em Fernandes (1975).
escolha de gestão da própria vida, visto que acumulam o trabalho na lavoura, o
trabalho doméstico e o cuidado dos filhos, sem participação nas decisões sobre a
produção ou sobre os rumos políticos da comunidade, e sem reconhecimento
nem remuneração correspondente (COSTA, 2014). A situação não é diferente
para aquelas que vendem sua força de trabalho: resta-lhes o trabalho mais precá-
rio, desgastante, temporário e mal remunerado, acumulando a mesma sobre-
carga e violência no contexto da vida doméstica, com intensificação de exigências
físicas e mentais (LIMA, 2009; ARAÚJO; GREGGIO; PINHEIRO, 2013).
A precarização da relação de trabalho, baseada no trabalho informal e sazo-
nal, envolvendo remuneração por diárias (fruticultura) ou por produção (cana,
café), realizado predominantemente por mulheres, sendo intensificado em perí-
odo de colheita demonstraram relação com maior frequência de quadros de de-
pressão, distúrbios do sono, estresse em fase de exaustão e ocorrência de trans-
tornos mentais comuns (LIMA et al., 2010; PRIULLI et al., 2014).
Desde a “abolição da escravatura”, aos negros foi negada a possibilidade de
sobreviver com o cultivo da terra por conta da promulgação da Lei de Terras. Tal
lei determinava que somente poderia receber terras do Estado os cidadãos afor-
tunados, o que impedia que os negros brasileiros pudessem tirar da terra a pos-
sibilidade de garantir sua própria sobrevivência, sendo empurrados para formas
de trabalho precário e degradante e vivendo nos bolsões de miséria que darão
origem às favelas das grandes cidades.
Assim, na formação social brasileira escravista, os negros foram considerados
sujeitos de segunda classe, sub-humanidade subalternizada e impedida de desen-
volvimento pleno de suas potencialidades (ALVES, JESUS e SCHOLZ, 2015). Tal
processo social de segregação continua sob a forma disfarçada de preconceito
contra o nordestino nas regiões produtoras do agronegócio, onde são considera-
dos “cidadãos” de segunda classe, preguiçosos, apesar de serem eles os grandes
ACENO, 7 (14): 231-248, maio a agosto de 2020. ISSN: 2358-5587
Considerações finais
Os dados das pesquisas apontam para alta prevalência de agravos à saúde
mental dos trabalhadores rurais, sendo maiores que entre a população urbana,
mostrando a importância de se considerar tal dimensão nas ações de atenção à
saúde no campo. Os agravos pesquisados nos estudos foram suicídio, transtornos
mentais comuns (TMC), depressão, ansiedade, estresse e sofrimento difuso, além
de doenças orgânicas resultantes do intenso desgaste físico e psicológico relacio-
nados ao trabalho.
As condições precárias de vida, trabalho e seus efeitos sobre as relações soci-
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ACENO, 7 (14): 231-248, maio a agosto de 2020. ISSN: 2358-5587
Artigos Livres
248
Visibilidade lésbica:
existência como resistência
resistência. Aceno – Revista de Antropologia do Centro-Oeste, 7 (14): 249-264, maio a agosto de 2020.
Universidade Federal de Mato Grosso
REIS, Kamylla Cavalcante Taques dos; LOPES, Moisés. Visibilidade lésbica: existência como
Resumo: Este artigo tem por objetivo desenvolver uma análise sobre a construção
da saúde e políticas públicas para mulheres lésbicas, explorando a vulnerabilidade
em saúde por compreender sua situação de invisibilidade social que resulta na im-
percepção de suas demandas junto aos serviços de saúde. Para tanto, utilizamos te-
orias de gênero e sexualidade como subsídio teórico às proposições realizadas, bem
como dados de campo provenientes de observação participante em um Serviço Es-
pecializado em IST/HIV/Aids de Cuiabá. Retomar a discussão sobre visibilidade e
existência lésbica, está além da área acadêmica, envolvendo os movimentos sociais
LGBTI+ e o feminismo em si, aspirando contemplar a gama de diversidade que as
mulheres apresentam, levando em consideração seu contexto histórico-social e sua
agência enquanto sujeito de direitos, refletindo sobre a temática e questionando o
efeito das produções acadêmicas nas mudanças sociais.
ISSN: 2358-5587
Abstract: This article aims to develop an analysis on the construction of health and
public policies for lesbian women, exploring the vulnerability in health by under-
standing their situation of social invisibility that results in the imperceptibility of
their demands with health services. For that, we used theories of gender and sexual-
ity as a theoretical subsidy to the proposals made, as well as field data from partici-
pant observation in a Specialized Service on STI/HIV/AIDS in Cuiabá. Resuming
the discussion on lesbian visibility and existence, is beyond the academic area, in-
volving LGBTI + social movements and feminism itself, aiming to contemplate the
range of diversity that women present, taking into account their historical-social
context and their agency as a subject rights, reflecting on the theme and questioning
the effect of academic productions on social changes.
Visibilidad lesbiana:
existencia como resistência
ACENO, 7 (14): 249-264, maio a agosto de 2020. ISSN: 2358-5587
Resumen: Este artículo tiene como objetivo desarrollar un análisis sobre la cons-
trucción de políticas públicas y de salud para mujeres lesbianas, explorando la vul-
nerabilidad en salud al comprender su situación de invisibilidad social que resulta
en la imperceptibilidad de sus demandas con los servicios de salud. Para ello, utili-
zamos teorías de género y sexualidad como subsidio teórico a las propuestas reali-
zadas, así como datos de campo de observación participante en un Servicio Especia-
lizado en ITS / VIH / SIDA en Cuiabá. Reanudar la discusión sobre la visibilidad y
existencia lesbiana, va más allá del ámbito académico, involucrando a los movimien-
tos sociales LGBTI + y al propio feminismo, con el objetivo de contemplar el abanico
de diversidad que presentan las mujeres, teniendo en cuenta su contexto histórico-
social y su agencia como sujeto. derechos, reflexionando sobre el tema y cuestio-
nando el efecto de las producciones académicas en los cambios sociales.
250
objetivo deste texto é desenvolver uma análise sobre a construção da sa-
Para percorrer este caminho, trilharemos uma análise que enfocará, a partir
de uma perspectiva feminista e antropológica, o campo das políticas e da produ-
ção científica, problematizando como os discursos e a produção da saúde para
mulheres lésbicas vem sendo efetivado. Partiremos também de nossas experiên-
cias de trabalho, pesquisa e de observação, tanto no Conselho Municipal de Aten-
ção a Diversidade Sexual de Cuiabá onde um de nós – Moisés Lopes – representa
a UFMT, bem como da experiência deste pesquisador desenvolvendo investiga-
ção sobre o Movimento LGBTI+ de Mato Grosso desde 2011. Outrossim, toma-
mos como central a experiência da outra coautora – Kamylla Reis –, que vem
trabalhando com a temática da saúde LGBTI+ desde 2017, a partir de sua experi-
ência como enfermeira assistencial em serviços especializados em IST/HIV/Aids
e hepatites virais em Cuiabá.
Neste sentido, antes de iniciarmos a discussão é de fundamental importância
se a negação dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, por meio do revés
em que se encontram os profissionais de saúde em relação a invisibilidade das
questões de saúde sexual nesse universo, este é um dos fatores determinantes
para a vulnerabilidade às IST/HIV para essa população. (BRASIL, 2007; SILVA,
COSTA e MULLER, 2018; CARVALHO et al., 2013; BARBOSA e FACCHINI,
2009).
Para compreender este cenário de vulnerabilidade em saúde sexual que as
mulheres lésbicas se encontram, é necessário retomar marcos históricos para as
IST e sua relação com as sexualidades dissidentes. Para tanto, cito o início da epi-
demia de Aids na década de 1980, que permitiu o reforço da norma heterossexual
no discurso preventivo e biomédico, não apenas no que se refere à Aids.
O controle sexual inserido nas políticas públicas de saúde é um marco do bi-
opoder, conceito elaborado por Foucault, relacionado à prática de regulação dos
sujeitos pelo estado por meio da subjugação dos corpos. Atrelado a esse movi-
mento está a biopolítica, outro conceito de Foucault, que se refere a uma tecnolo-
gia de poder em que a população é tanto alvo quanto instrumento, estabelecendo
Ensaio
e GOMES, 2011).
A perpetuação da violência seria uma das formas de silenciamento e apaga-
mento da mulher lésbica, que por medo da violência não revela sua orientação
sexual e/ou não desenvolve sua voz social. Tomamos como foco a violência sim-
bólica, que pode ser entendida como aquela que é branda ou invisível, porém,
ressaltamos que o uso do conceito de violência simbólica não busca minimizar ou
esquecer o papel da violência física, nem com a intenção de colocá-las em oposi-
ção (BOURDIEU, 1999; BOURDIEU, 2003).
Observando a invisibilidade da lesbianidade, identificamos o estabeleci-
mento da opressão como reflexo da negação da existência pública legitimada, so-
frendo estigmatização que só é perceptível quando o movimento social reivindica
seus direitos, buscando atingir a visibilidade (VALADÃO e GOMES, 2011).
Partindo das reflexões de Orlandi (2007), o silenciamento das mulheres é
produção da opressão masculina, uma forma de violência simbólica, pois no dis-
curso o sujeito e o sentido se constituem simultaneamente, ao silenciar as mulhe-
res a sociedade proíbe que ela ocupe lugares e posições do sujeito, a sua identi-
Ensaio
Considerações finais
Este trabalho se propôs a explorar a vulnerabilidade em saúde de mulheres
Ensaio
lésbicas por compreender sua situação de não inteligibilidade social que resulta
na invisibilidade de suas demandas junto aos serviços de saúde e à sociedade
como um todo.
Para tanto, percorremos teorias de gênero e sexualidade que deram subsídio
teórico às proposições realizadas aqui. Além disso, foi pontuada a necessidade em
se trabalhar as categorias de articulação para pôr em prática a perspectiva da in-
260 terseccionalidade, considerando os eixos de gênero, raça e classe social. Eviden-
temente, a garantia de direitos sexuais e reprodutivos das mulheres é tema essen-
cial a ser debatido, tendo em vista a vulnerabilidade dessa população, que se apro-
funda ainda mais ao considerar os eixos supracitados.
Neste contexto, retomar a discussão sobre visibilidade e existência lésbica,
surge como papel da área acadêmica, mas também dos movimentos sociais
LGBTI+, das mulheres, do feminismo em si, para que a luta por garantia de di-
reitos não se limite às mulheres não negras, heterossexuais de classe média, mas
sim contemplando a gama de diversidade que as mulheres apresentam, levando
em consideração seu contexto histórico-social e sua agência enquanto sujeito de
direitos.
O corpo da mulher tem sido qualificado (ao se tratar do ideal romântico, re-
produtivo, monogâmico e biológico) e desqualificado (quando se trata de sua livre
expressão sexual, a partir de uma concepção libertadora de não obrigatoriedade
inata da heterossexualidade) em um processo histórico de manutenção da hierar-
quia sexual e supremacia masculina. Para além de refletir sobre as relações que
garantem a perpetuação da subordinação da mulher, é fundamental questionar
para quem estes estudos são feitos, em quais espaços ele é discutido e que mu-
danças sociais eles produzem.
Referências
263
ACENO, 7 (14): 249-264, maio a agosto de 2020. ISSN: 2358-5587
Ensaio
264
Que história é essa? Que barulho é esse?
Uma introdução ao debate sobre a
Antropologia Histórica e a História Cultural
MACHADO, Maria Fátima Roberto. Que história é essa? Que barulho é esse? Uma introdução ao
debate sobre a Antropologia Histórica e a História Cultural. Aceno – Revista de Antropologia
Universidade Federal de Mato Grosso
Abstract: This paper assesses the current debates about the relationship between
Historical Anthropology and Cultural History as co-related disciplines. Based on
Pierre Bourdieu’s perspective of scientific field, it is an introduction to the disputes
and alliances between both disciplines, in general and particularly boundaring con-
temporary French Cultural History, also offering a basic view of some studies pro-
duced at our University, the UFMT, through the research of a pioneer anthropologist
Denise Maldi, about the Indians of the Brazilian West frontier in the XVIII century.
266
Prólogo: introdução ao dossiê
Mato Grosso português – Ensaios de
Antropologia Histórica2
Os trabalhos que tenho aqui o prazer de apresentar foram produzidos para o
primeiro curso de especialização em Antropologia da UFMT (1999-2000) e reú-
nem um grupo de estudantes interessados em uma abordagem etnográfica da his-
tória de Mato Grosso e do Amazonas, em especial relacionada ao universo de re-
presentações dos portugueses colonizadores do século XVIII, buscando enfocar
de modo renovado velhos objetos, tais como o alargamento das fronteiras com a
Espanha, o povoamento, a exploração econômica colonial e o relacionamento
com os povos indígenas.
Trata-se, bem ao sabor dos novos tempos, de experimentos. São olhares lan-
çados sobre uma história que até as últimas décadas contentou se em ser “regio-
nal”, factual, alvo quase exclusivo de uma historiografia comprometida com as
metanarrativas da história econômica, onde Mato Grosso era só um território
longínquo e desconhecido, rico em ouro e infestado de índios. Foi preciso que a
chamada crise dos paradigmas atingisse também os nossos pesquisadores, para
que uma nova geração de estudantes demandasse os cursos de pós-graduação e
começasse a produzir o que se convencionou chamar de “nova” História, mais
aberta ao diálogo com a Antropologia, facilitando a que este experimento encon-
trasse seu caminho.
Caminhos, trajetos, trajetórias que acabaram por agregar esse grupo de pes-
soas, de pesquisadores, para pensar Mato Grosso em uma perspectiva renovada,
interessada não tanto no resgate da importância da mão-de-obra indígena para a
manutenção do sistema colonial brasileiro, e mais em interpretar as representa-
ções portuguesas que foram frutos de embates e confrontos culturais. Cultura e
história entrecruzam-se, emaranham-se nas relações étnicas, resultando em ali-
anças e conflitos, esses sim vitais para a manutenção do empreendimento portu-
guês na fronteira, pós-tratado de Santo Ildefonso. A este respeito, as fontes privi-
legiadas são as coleções de relatos escritos pelos portugueses - exploradores, ad-
ministradores, demarcadores de limites, militares – que aqui estiveram tempo-
rariamente a mando da Coroa, e que se envolveram com os índios por dever de Que história é essa? Que barulho é esse?
ofício, por empatia ou até mesmo profunda curiosidade.
Os relatos portugueses coloniais fornecem aos pesquisadores abundantes re-
cursos etnográficos para a abordagem e desenvolvimento de uma multiplicidade
MACHADO, Maria Fátima Roberto.
de temas e objetos, que hoje são reconhecidos como pertinentes tanto ao campo
da “nova” Antropologia quanto da “nova” História. No interior da colônia, nas
águas do outrora pestilento Guaporé, portugueses iluministas construíram fortes
e plantaram cidades em territórios até então unicamente indígenas. Guiados pela
política pombalina, esses portugueses foram bastante empenhados na construção
de aldeamentos – como o de Albuquerque, para os índios Guaná, que deu origem
à cidade de Corumbá, um dos mais importantes polos urbanos de Mato Grosso
2O artigo da professora Maria Fátima Roberto Machado, “Que história é essa? Que barulho é esse? Uma introdução ao
debate sobre a Antropologia Histórica e a História Cultural”, é parte integrante do dossiê Mato Grosso Português: ensaios
de Antropologia Histórica, publicado originalmente pela Editora da UFMT, em 2002, no volume 6 da Série Antropologia,
publicação do Departamento de Antropologia, que a Aceno tem reeditado em suas últimas edições. Como Maria Fátima é
organizadora do dossiê e autora do primeiro artigo do referido volume, optamos por publicar nesta reedição a introdução
ao dossiê, em que ela apresenta os seis artigos que o compõem. Os outros cinco artigos do dossiê Mato Grosso Português: 267
ensaios de Antropologia Histórica serão publicados nas edições seguintes da Aceno, na ordem em que estão publicados
na primeira publicação. Toda essa reedição de artigos da Série Antropologia está sendo realizada com autorização da
Editora da UFMT, detentora dos direitos autorais.
do Sul – no estabelecimento de relações “pacíficas” com os grupos indígenas que
dificultavam a árdua missão de expandir e consolidar a fronteira Oeste do Brasil.
A lei do Diretório dos Índios era o documento que regulamentava as suas re-
lações com o colonizador, vigente entre os anos de 1757 e 1798, voltada para a
domesticação e disciplinarização dos “habitantes naturais” da terra, através da
sedentarização e da evangelização – pós-jesuítica – na busca de soluções para os
graves problemas de definição dos limites do território lusitano e do seu povoa-
mento. Era um instrumento jurídico de política colonial, que propunha uma nova
ordem social, regulamentada pela exclusividade do uso da língua portuguesa, de-
sautorizando definitivamente a língua geral falada em toda a colônia, pelo conví-
vio das populações em povoações e aldeamentos e incentivo ao casamento inte-
rétnico, submetendo todos às leis civis que faziam sentido para as populações ur-
banas de Portugal. O propósito, especialmente na fronteira Oeste, era desenca-
dear a nacionalização das terras e dos “naturais”, não mais excluídos, mas sim
abrangidos, assimilados pelo plano colonial.
Os relatos dos engenheiros demarcadores, naturalistas, capitães, em particu-
lar em Mato Grosso na segunda metade do século XVIII, contém todo um uni-
verso de representações passíveis de serem interpretadas enquanto fontes de ma-
nifestação dos planos e da cultura colonial, assim como das respostas pertinentes
às mais diferentes etnias naia na tumultuada faixa de fronteira.
A perspectiva antropológica pode, por exemplo, iluminar as relações entre os
portugueses e os índios habitantes tradicionais do Pantanal. Através dos relatos
de Ricardo Franco de Almeida Serra e do governador Montenegro, é possível
constatar que também os Guaicuru buscavam obstinadamente “pacificar” os por-
tugueses. Seus relatos apontam para a complexidade daquelas relações, marcadas
pelos confrontos étnico-culturais.
Uma das grandes dificuldades dos portugueses, na sua incansável tarefa de
ACENO, 7 (14): 265-288, maio a agosto de 2020. ISSN: 2358-5587
entação do Dr. Carlos Alberto Rosa. Os dois primeiros já foram professores subs-
titutos do Departamento de Antropologia. Luiz Vicente da Silva Campos Filho é
um etnoecólogo, mestre pelo Instituto de Biociências, e Marina Azem é médica.
O historiador Gilberto Brizola dos Santos, como já foi referido, estuda a visão
dos portugueses colonizadores acerca dos Guaicuru, revelando novas possibilida-
des interpretativas. Os historiadores Suelme Evangelista Fernandes e Ana Paula
de Oliveira Lopes interessam-se pela questão da dominação e da cultura portu-
guesa, na construção do território lusitano da região de fronteira. Luiz Vicente da
Silva Campos Filho e Marina Azem exploram os registros de Alexandre Rodrigues
Memória: Série Antropologia
*****
271
U
ma das principais mudanças no comportamento dos novos historiadores
é a sua recusa à posição de detentores da palavra final acerca da verdade
histórica, contida nos grandes temas consagrados da historiografia oci-
dental, ensinada nas salas de aulas por universos heterogêneos de professores.
Recorrer a Pierre Bourdieu tem sido sempre de grande utilidade para desven-
dar o emaranhado de relações sociais que se processa no interior de um determi-
nado campo científico, no sentido da competição pela hegemonia na definição das
verdades. O interesse que os temas e objetos de pesquisa despertam nos jovens
estudantes e pesquisadores também é resultado da avaliação da possibilidade de
acumular prestígio e distinção, pois aquilo que é percebido como “importante e
interessante” na produção científica é, nos termos de Bourdieu (1983: 125), o que
tem chance de ser reconhecido como importante e interessante aos olhos dos ou-
tros. Ao deslocar a discussão dos sistemas epistemológicos para uma sociologia
do campo científico, ele mostra que o mundo da ciência não é “puro”, mas existe
como um campo social, como outro qualquer, com seus interesses, estratégias,
lucros, sendo bem definido como um espaço de relações concorrenciais, onde o
que está em jogo é o monopólio da autoridade.
A crise na hegemonia da história econômica obrigou os historiadores a rever
seus paradigmas, especialmente a partir dos anos 80, provocando a recente e
forte ascensão dos estudos sobre as culturas, terreno palmilhado pelos antropó-
logos, que são reconhecidos pelo capital científico acumulado desde o século XIX,
no estudo das sociedades não-ocidentais.
ACENO, 7 (14): 265-288, maio a agosto de 2020. ISSN: 2358-5587
A própria Antropologia vê-se às voltas com o seu passado e convive hoje com
os questionamentos provocados pelo movimento dos chamados “pós-modernos”,
ciosos da importância estratégica de não empurrar para baixo do tapete algumas
novas “verdades” (e consolidar outras). Cardoso de Oliveira, em seu ensaio sobre
as matrizes históricas da disciplina (1998), identifica heranças da hermenêutica 3
na “desordem” operada pela nova Antropologia, que inovou na negação radical
do discurso cientificista hegemônico do passado. Libertada da coerção da objeti-
vidade, dos paradigmas da “ordem”, tomou sua forma socializada, “assumindo-
se como intersubjetividade”; o indivíduo, “igualmente liberado das tentações do
Memória: Série Antropologia
3 “O que se verifica é uma verdadeira dispersão de influências nessa Antropologia que se pretende nova. Nem a “herme-
nêutica ontológica” de Heidegger e Gadamer, nem a “hermenêutica metódica” de Betti ou de Hirsch, nem a “hermenêutica
272 fenomenológica” de Ricoeur (e muito menos a “hermenêutica clássica” de Schleiermacher e Dilthey) dominam aquilo que
prefiro chamar de “consciência hermenêutica” na Antropologia “pós-moderna”. Não obstante, não se está afirmando com
isso que essa subjetivação na Antropologia não envolva em si mesmo uma certa controvérsia. Prefiro, por hora, retê-la
como uma expressão nativa, originária no interior da comunidade” (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1998: 97).
um, observaremos que enquanto o paradigma racionalista, pelo menos em sua pri-
meira fase (pré-estruturalista) passa relativamente incólume pela ameaça de ser per-
turbado pelo tempo, praticamente ignorado em quanto tempo histórico, o paradigma
estrutural-funcionalista reage primeiramente por uma crítica à questão da causalidade
e secundariamente, como consequência pela exclusão da história do horizonte da dis-
ciplina (...) História que passa a ser um marcador da desordem e cuja erupção no inte-
rior da estrutura social só poderia ser um complicador na capacidade explicativa da
Antropologia, especialmente quando investida da missão de vir a ser uma verdadeira
“ciência natural da sociedade”. (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1998: 94)
273
antropologia identifica-se não como sendo ciência experimental, em busca de
leis, mas uma ciência interpretativa, em busca do significado4.
O historiador Robert Darnton, em uma entrevista a pesquisadores brasileiros
(SCHWARCZ, 1996), assim relatou o encontro da sua História das Mentalidades
com a Antropologia Interpretativa de Clifford Geertz, o que sugere que coincidên-
cias mais do que embates têm produzido as multidisciplinariedades, desde os
anos 60, na Universidade de Princeton:
Logo que conheci Geertz, o que nos uniu foi a simpatia, como no caso de [Michel] Vo-
velle e [Philippe] Ariès. A palavra simpatia é estranha, mas explica nossa relação. Na
verdade, Geertz é um sujeito difícil: fala mal, se coça o tempo todo, tem uma barba
imensa e uma inteligência notável. Conhece profundamente matemática, jazz: gosta de
esportes sem ser esportista; sabe tudo sobre o Corão (e lê em árabe); sobre linguística
e tem uma formação literária impressionante. Isso sem falar dos seus conhecimentos
sobre a Indonésia e a África do Sul, seus campos de pesquisa. É o homem mais culto e
inteligente que causa medo aos outros. Quando falamos com ele temos a impressão de
sermos imbecis! E eu, porém, apesar de “imbecis”, sinto-me bem com ele e entre nós
desenvolveu-se uma grande amizade. Falamos como irmão. Ele é meu irmão mais ve-
lho – já que completou setenta anos – e somos muito ligados.
Em 1970, Geertz perguntou-me o que eu fazia em História. Contei a ele sobre minha
ligação com a história das mentalidades e ele me disse: “Isso parece antropologia!!!
Nós dois fazemos a mesma coisa.” Eu contei então, que queria estudar a vida intelec-
tual, mas não a dos não intelectuais, e ele me disse que isso também era antropologia.
4 Na Antropologia, faz-se etnografia, diz Geertz (1989). Compreender o que é a prática da etnografia é começar a entender
o que representa a análise antropológica como forma de conhecimento. O que define o empreendimento não é o método
(não é como dizem os livros, os manuais, onde fazer etnografia é estabelecer relações, selecionar informantes, transcrever
textos, levantar genealogias, mapear campos, manter um diário...) mas sim o esforço intelectual de fazer uma descrição
“densa”. Nossos fatos, nossos dados, são na verdade nossa construção das construções de outras pessoas, explicamos ex-
274 plicações...O etnógrafo tem diante de si uma multiplicidade de estruturas conceituais, complexas, que se sobrepõem,
amarradas entre si, simultaneamente estranhas, irregulares, implícitas, que ele tem que apreender e apresentar. É como
ler um manuscrito estranho, desbotado, cheio de subentendidos. Incoerências... mas “exemplos transitórios de compor-
tamentos modelados”.
Dessa maneira, o antropólogo parece ser mais importante do que o seu próprio objeto.
Trata-se de uma postura tão complicada, que acaba inviabilizando a possibilidade de
entendermos outros mundos simbólicos que não o nosso. Chegamos a uma fase, para
utilizar uma expressão que gosto muito, de “epistemological glitters”, em que todos
estão sendo consumidos por esta angústia: ficam debatendo apenas entre si e acabam
concluindo que seu trabalho com o “outro” não é mais possível. Sahlins e Geertz não
aceitam a postura dessa nova geração que, por sua vez, os colocou um pouco à margem.
(SCHWARCZ, 1996)
Darnton teve aí uma ocasião especial para exibir clivagens tanto entre os his-
toriadores quanto entre os antropólogos, abrigados por esse enorme guarda-
chuva que são os estudos das culturas. Geertz poderia bem ser definido como uma
espécie de personagem mítico fundador, um pai, um herói mítico original, criti-
cado e enaltecido pelos seus herdeiros.
A importância da sua influência e o incômodo que ela ainda causa só não su-
peram a inquietante e “rejuvenescedora” Antropologia Histórica de Marshall
Sahlins, tanto entre os antropólogos como entre os novos historiadores.
Sendo a história a realização, na sociedade, dos recursos que um povo põe em
jogo para sua sobrevivência, para Marshall Sahlins, o grande desafio da Antropo-
logia Histórica não é meramente saber como a cultura ordena os eventos históri-
cos, mas saber como, nesse processo, a cultura é reordenação, ou seja: “como é a
reprodução de uma estrutura se torna a sua transformação?”
Embora reconheça a importância da herança de Saussure, ele questiona a no-
ção de linguagem como estrutura autônoma, argumento fatal da Antropologia Es-
trutural. Na perspectiva do sistema de signos, as mudanças são fortuitas, e a no-
ção de sistema consiste no modo como esses materiais históricos são inter-rela-
cionados, em qualquer tempo ou qualquer estado da linguagem. Nessa perspec-
tiva (na perspectiva dos “paradigmas da ordem” discutidos por Roberto Cardoso
de Oliveira) a história é excluída da análise estrutural, uma vez que ela é feita na
sala. Aplicada ao campo da Antropologia, o que se perde aí não é meramente a
história, a mudança, mas a prática, a ação humana no mundo, e Sahlins rejeita
esse estruturalismo, pois o que se perde aí é o que a Antropologia tem de mais
valioso. Trazido para ela com essas limitações teóricas, o estruturalismo mantém
à história a distância, eu medo é o de colocar o sistema em risco.
Em seu consagrado Historical Metaphors and Mithical Realities (1981) o que Que história é essa? Que barulho é esse?
Sahlins busca é a explicação teórica para determinadas ocorrências históricas.
Suas ideias sobre a história são construídas através de acontecimentos concretos,
demonstrativos, que tem a ver com a reação cultural dos índios havaianos para
MACHADO, Maria Fátima Roberto.
5 Recebido como um deus, que chegava do além-mar, da morada espiritual dos chefes e deuses havaianos, o capitão Cook
foi “vítima da interação de categorias culturais – suas e dos próprios nativos – que o levou a perigosos “riscos de referên-
cia”, até encontrar o seu trágico fim. Cook transgrediu, sem compreender, o status ritual que lhe fora concedido; foi nas
palavras de Sahlins (1990:1 1), um “impacto fatal” produzido pela teoria havaiana de soberania divina com a prática bri- 275
tânica do imperialismo. O retorno de Cook pela segunda vez às ilhas coincidiu com o retorno anual do deus Lono e o
tratamento recebido correspondeu à sequência ritual do festival de Makahiki, onde o deus retorna para fertilizar e reivin-
dicar a terra, sendo morto por um chefe poderoso, no culto sacrificial de Ku. A fatalidade da morte de Cook foi a “imagem
Apoiado na concepção de que as diferentes ordens culturais têm os seus mo-
delos próprios de ação, de consciência, de determinação histórica – as suas pró-
prias práticas históricas – Sahlins voltou-se também para o exemplo dos fiji, no
século XIX, em suas relações com os missionários metodistas. Ele mostra que a
conversão para a religião de Jeová podia não ser apenas uma simples expressão
da convicção dos convertidos.
Depois de mais de um século de conversão pelos missionários metodistas, os
fiji ainda chamavam o cristianismo de “religião de Thakombau”, o chefe da fede-
ração de Mbau, o poder dominante em Fiji no século XIX. Thakombau significou
a conversão de mais de oito mil “fiéis regulares” e até mesmo os deuses, através
dos seus sacerdotes, preparavam-se para o cristianismo, admitindo a verdade do
deus estrangeiro. Para os fiji, “verdade é mana”, indica “poder de fazer com que
algo venha a existir, da mesma maneira que uma ação fracassada por falta de
mana é uma mentira. Do chefe fiji para o missionário: “Verdade, tudo o que vem
do país do homem branco é verdade; (...) mosquetes e a pólvora são verdade,
sua religião também tem de ser verdade”. A extraordinária presença do europeu
era, para os fiji, um fato social total, ao mesmo tempo religioso, político e econô-
mico (SAHLINS, 1990: 65).
O que está em questão na “revigorante” Antropologia Histórica (ou História
Antropológica) se Marshall Sahlins é o incômodo problema da relação entre es-
trutura e evento. Evento não só como um acontecimento característico de um fe-
nômeno, mas como aquilo que “é dado como interpretação”. Sua significância
histórica só é adquirida quando ele é apropriado através de um esquema cultural.
As categorias culturais que se realizam praticamente em um contexto histórico
compõem a “estrutura da conjuntura”, a estrutura tem uma diacronia interna.
São essas as razões do estímulo que seus estudos fornecem aos novos histo-
riadores, que lutam para se contrapor a tradicional história econômica e social.
ACENO, 7 (14): 265-288, maio a agosto de 2020. ISSN: 2358-5587
276
histórica de uma teoria mítica, mediada pela correlação entre os rituais práticos britânicos para se relacionar com os
nativos e as práticas rituais havaianas para lidar com os deuses (1990: 17). Metáforas históricas de uma realidade mítica.
os mortos”, e voltam desse mundo como “missionários que partiram para con-
quistar culturas estrangeiras e agora retornam convertidos, rendidos à alteridade
dos outros”.
Um dos principais expoentes dessa história da “classe baixa” é Thompson,
um precursor notável entre os historiadores de influência marxista – com o seu
famoso The Making the English Working Class – na construção de um modelo
de referência em como escrever uma história social e cultural, seu livro mais re-
cente, Customs in Common (1991), continua voltado para o estudo da cultura dos
trabalhadores, discutindo como os costumes se manifestaram ao longo do século
XVIII e parte do XIX.
Em um de seus ensaios, A Venda de Esposas, Thompson afirma que a história
dessa prática “tão bárbara”, na Inglaterra poderia ser descrita como amnésia,
mais do que memória, e folcloristas do passado preferiram pensar em “resíduos
pagãos”, ignorância “apatetada” e brutal da população rural , sendo a venda con-
siderada não mais do que uma transação comercial, a mulher inglesa leiloada
como um animal, Ele questiona esse estereótipo, depois de dedicar- se por muitos
à coleta de dados sobre as “vendas rituais”, desde o final da década de 60 e du-
rante toda a década de 70.
Ele já tinha uns 300 casos em que suas fichas e adiava a publicação das con-
clusões, quando foi surpreendido por um novo estudo etnográfico sobre o mesmo
tema, tornando sua pesquisa, segundo suas palavras (1998: 307), “ultrapassada”
pelo trabalho de um antropólogo:
O Estudo etnográfico do sr. Manefee foi realizado como dissertação junto ao Departa-
mento de Antropologia Social da Universidade de Oxford, e o assunto talvez tenha che-
gado ao conhecimento desse departamento quando dei uma palestra sobre o tema num
de seus seminários. Não podia reivindicar direitos autorais(...)minha primeira inten-
ção era despertar interesse histórico e antropológico. Ainda assim, minha primeira re-
ação foi considerar que meu trabalho se torna redundante pela ação de terceiros. O sr.
Manefee investigara o tema com grande diligência; pesquisara em muitas bibliotecas e
repartições de registros civis; reunira material muito curioso e às vezes relevante; e
ultrapassara minhas próprias contas, com um apêndice de 387 casos. Além disso, ele
partilhava minha definição do ritual (...). Com um pouco de tristeza ...deixei meu en-
saio de lado.
Se ele retomou os estudos, apresentando seu ensaio tão tarde para o público,
foi porque não achou depois que ambos tivessem se repetido as que as investiga- Que história é essa? Que barulho é esse?
com a ajuda das “disciplinas irmãs’, a História religiosa, das artes medieval e mo-
derna. É verdadeiramente, ele diz, uma historiografia filha do seu tempo, relaci-
onada às mudanças de perspectiva presentes no final do século.
Rioux Acredita que hoje as confluências estão mais fortes, as contribuições
muito ponderadas, e as experiências são suficientemente convincentes para a
proposição de um “acordo’ acerca De uma definição programática e operacional
entre seus pares. Tal definição privilegia a História Cultural como o estudo das
“representações” geradas, expressas e transmitidas por grupos humanos. Nas pa-
lavras de Jean-Francois Sirinelli (RIOUX, 1998: 20):
Memória: Série Antropologia
sam ter, de tempos a tempos, valor de explicação” (AGULHON, 1998: 112). Seu
ensaio acerca das representações culturais em torno de Mariana, a deusa símbolo
da República francesa, inscreveu- se nessa nova busca de conhecimento, quando
ele ainda via – se às voltas com a história das “mentalidades”. Nas suas palavras:
“foi sob a rubrica mentalidades que me recrutaram quando um princípio de no-
toriedade me permitiu ser recrutável” (AGULHON, 1997: 112).
A deusa Mariana é uma singularidade essencialmente francesa, explicável no
passado quando a França era uma ilha republicana na Europa monárquica. Não
nem havendo reis nem imperadores, a figuração do Estado com abstração faz-se
através de uma alegoria feminina, emprestada da tradição greco-latina. E Agu-
lhon (já sob influência dos novos ares culturais) deu-se conta de que Mariana não
teve “irmãs” além-fronteiras! Os americanos,” tão bons republicanos” quanto os
franceses, não conheceram nenhum símbolo equivalente a Mariana e não fizeram
tantas estátuas e retratos do Estado republicano como eles. 279
Com historiador, ele explica essa diferença através da história, acreditando
que “está nela uma grande parte da verdade”:
O civismo americano exprime-se mais pela veneração dos “país fundadores” (Washing-
ton, Franklin, Jefferson, etc) ligada com a que se ligada com a que se tem pelos presen-
tes mais notáveis (Lincoln). É que a República americana tem “país fundadores” apre-
sentáveis! A nossa República francesa não tem: os heróis da nossa revolução ou se sal-
taram contra ela (Mirabeau La Fayette), ou bateram- se contra eles (Danton, Robespi-
erre), ou então voltaram à monarquia (Napoleão). Como venerá-los? (AGULHON,
1998: 119)
Não seria então, por isso que, na falta de pais fundadores honrados, tem os
franceses que honrar a República em sua abstração anônima? – pergunta-se Agu-
lhon. Mariana teria sido uma resposta (tipicamente) francesa não só como uma
reação aos reis, mas também por causa dos heróis, contra eles. A República ame-
ricana nasceu com a própria nação americana, sendo essa uma razão plausível
para que a imagem da República na França seja “colorida”, apaixonada, enquanto
que “lá, além-mar, calma na serenidade da evidência”. A “análise dos símbolos” é
uma das vias existentes para entender e explicar a contraditória República fran-
cesa, sua sociedade “complexa, talvez mais que outras”.
A História Cultural francesa parece passar incólume a todo o conflito que
atinge a Antropologia interpretativa contemporânea, “pós-moderna”, acerca da
representatividade da escrita etnográfica, onde o pesquisador não estranho ape-
nas o “Outro”, mas também a si mesmo, questionando o estatuto da sua verdade.
Ao reconhecer a Antropologia como sua “vizinha”, apropria-se de seus objetivos
tradicionais e fazer uma incorporação ritualística (uma espécie de canibalismo
simbólico...) dos seus conceitos e noções. A História Cultural é um “assunto do-
méstico”, pertinente à história intelectual de França, que o mundo “de fora” só
tem a espreitar, a aprender.
ACENO, 7 (14): 265-288, maio a agosto de 2020. ISSN: 2358-5587
contrar: na selva!
A Universidade Federal de Mato Grosso nasceu em 1970, sob a orientação do
regime militar, dedicada a ser um centro de produção cientificar sob o signo da
“Universidade da Selva”. Nada mais paradoxal, se considerarmos que a selva, ao
menos no imaginário europeu, evoca a ideia de um lugar absolutamente vazio de
ciências, a confirmação cabal da sua total impossibilidade, distante imensamente
do seu nicho civilizado, pois ali o homem primitivo impera, na solidão da floresta.
Como toda a natureza, um homem objetivo da curiosidade e do interesse de via-
jantes e cronistas, os precursores dos homens de ciência que historicamente fize-
ram de Mato Grosso o seu campo de estudo.
Dois ambientes abrigaram, desde o início, os estudos dos antropólogos e his-
toriadores em Mato Grosso, na UFMT: o Departamento de História e o Museu
Rondon. Nos anos 80, os antropólogos compunham circunstancialmente uma
280 área dentro do Departamento de História e desenvolviam suas pesquisas etnoló-
gicas no Museu Rondon, que passaram a dirigir em 1981, quando ainda era um
órgão suplementar da Coordenação de Cultura. Em 1990, a criação do Departa-
mento de Antropologia desvinculou os antropólogos do Departamento de Histó-
ria, consolidando sua área de conhecimento, com uma produção diversificada em
termos de metodologia e unificada em torno de seus objetos, voltados para o es-
tudo das culturas e sociedades indígenas.
Foi na área de Antropologia que os estudos de Etnohistória encontraram seus
primeiros desdobramentos, através da participação de pesquisadores visitantes
no Museu Rondon, financiados pelo CNPq. Nos anos 80, a antropóloga Denise
Maldi, que faleceu precocemente em 1996, foi sem dúvida a sua grande precur-
sora, interessada especificamente em fazer reflexões históricas em uma perspec-
tiva etnográfica, quando ainda os historiadores recusavam- se a faze- lá, abar-
cando o seu universo infindável de dados sobre os índios de Brasília, estudando
a sociedade dos índios Pakaas-Novos, ela iniciou o seu diálogo com a área de His-
tória em 1983, com seu trabalho de conclusão de especialização (“Mato Grosso:
História e Historiografia”, coordenado pelo historiador Luiz Rios Volpato), com
o título Populações indígenas e a ocupação histórica de Rondônia.
É de 1987 o seu principal trabalho de reflexão teórica acerca da proposta de
construção de uma Etnohistória do Vale do Guaporé, apresentado em um semi-
nário na UFMT. Publicado em 1993, com o título A teia da memória, o trabalho
inaugurou a Série Antropologia, a publicação do Departamento de Antropologia,
quando ela havia assumido a sua chefia. Em 1989, publicou pela Vozes o seu livro
Guardiães da Fronteira – Rio Guaporé, século XVIII, marcando sua contribui-
ção substancial em termos de metodologia. Depois de sua morte foi publicado,
em 1997, pela Revista de Antropologia da USP um de seus principais artigos: “De
confederados a bárbaros: a representação da territorialidade e das fronteiras in-
dígenas nos séculos XVIII e XIX”.
Em A Teia da memória, ela discutiu a construção de uma Etnohistória a par-
tir dos problemas teóricos próprios do campo da Antropologia, que assumia como
sendo a sua disciplina de formação. Uma discussão nunca esgotada, um cenário,
que ela colocava para a localização de alguns temas, voltados para a historiografia
em uma perspectiva antropológica. Traçou um panorama sobre os problemas teó-
ricos concernentes à Etnohistória, abordando as propostas metodológicas, as ten-
dências e as dificuldades de alguns trabalhos para, finalmente, fazer uma reflexão
Que história é essa? Que barulho é esse?
sobre o instrumento, o recurso imprescindível das “histórias de vida”, apontando
para o seu propósito maior, que estava voltado para os índios do vale do Guaporé.
Ela considerou que a História e a Etnologia guardam em comum uma seme-
MACHADO, Maria Fátima Roberto.
legiada de pensar, pode sem dúvida ser utilizado como modelo. (MALDI, 1993: 14)
282
6Onde apresentou seu trabalho Território, Movimento e Fronteira: Dinâmica e estratégica Culturais entre os Pakkas-
Novos, publicado pela EdUFMT em 1998.
No seu último trabalho público, “De confederados a bárbaros: a representa-
ção da territorialidade e da fronteira indígenas nos séculos XVIII e XIX”, na Re-
vista de Antropologia da USP (vol. 40, n. 2) em 1997, ela assim apresentou os seus
propósitos:
Este trabalho é um ensaio etnohistórico sobre a representação europeia da territoriali-
dade e da fronteira indígena nos séculos XVIII e XIX. Orientada por uma preocupação
com o diálogo entre a Antropologia e a História, procurei construir uma abordagem da
territorialidade e da fronteira enquanto categorias culturais que refletem historicida-
des próprias, discutindo o funcionamento conceitual da representação a partir da sua
formulação na “história cultural”. Esta fundamentação implica uma ressonância básica
entre o objeto e a forma como é percebido, já que têm que ser entendidos, em primeiro
lugar, a partir da representação que a sociedade faz de si mesma e do outro, ou seja,
como define a territorialidade e com quem define as suas fronteiras. (MALDI, 1987:
184)
7 MACHADO, Maria Fátima Roberto. Proposta de estudo para reconhecimento étnico dos índios Migueleños, de Porto
Martinho (Rondônia). Funai- Brasília, nov. 2001.
8 MACHADO, Maria Fátima Roberto. Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional (UFRJ).
9 João Pacheco de Oliveira (1988) já discutiu como as relações étnicas se articulam em um regime tutelar, através do
enfoque das relações entre os índios Ticuna e o SPI no Amazonas, dando conta de que certas figuras, certas formas de
ação do indigenismo oficial são pensadas pelos índios segundo seus próprios códigos, adquirindo uma dimensão que é
metodológica, e que é ,ela mesma, expressão dos modelos, das teorias tradicionais de mudança social. Na interação, cada
evento, cada ação é resultado da combinação de diferentes referenciais, havendo sempre um jogo de possibilidades, uma
diversidade de código em operação, condicionados tanto por, fatores quantos cultural. Ao falar em situação histórica, se
refere ao conjunto de relações entre atores sociais, cuja unidade não é um pressuposto teórico que explique todos os fatos,
mas algo a ser pesquisado, buscando no processo concreto de interação e de percepção dos diferentes atores. Ele se recusa
a valorizar os modelos estruturais na sua construção metodológica, para enfatizar a noção de processo, ‘onde normas,
crenças e expectativas devem ser abordadas em uma análise genético, que as trate como fatos em constituição, e não como
atualização simples de códigos anteriores” (PACHECO DE OLIVEIRA, 1999: 113). 283
10 EdUFMT, Cuiabá, 1998.
11 EdUFMT, Cuiabá, 1994. Ver também: MACHADO, Maria Fátima Roberto. “Ponte de Pedra: Mito, Histórias e Arqueo-
mas sim como Moutinho que, ao viver quase duas décadas em Cuiabá, casar-se e
enviuvar-se, permaneceu no limiar entre próximo e distante, entre indiferente e
envolvido, ao mesmo tempo pertencendo e confrontando a sociedade cuiabana.
Foi a partir da sua condição privilegiada – comerciante, genro de um major e co-
letor de impostos – que ele contribuiu a sua suposta “objetividade”. O foco do
trabalho está centrado no seu olhar sobre nativos, o que interessa não é só o que
ele diz, mas também como e de onde ele diz, revelando a sua própria perspectiva
na compreensão dos fatos.13
12MACHADO, Maria Fátima Roberto. Ministério da Educação (ISBN 972-8186-66-5), Lisboa, outubro de 2000. Vol. II.
13A história mato-grossense contemporânea, não contemplada aqui neste ensaio, apresenta novas perspectivas no diálogo
com a Antropologia, mas, como já discuti anteriormente (MACHADO, 2000), historiadores tradicionais mato-grossenses
apresentam em suas produções uma visão empobrecedora na utilização dos dados históricos disponíveis sobre as popu-
lações indígenas, tanto nos arquivos quanto nas memorias. Em estudos sobre o século XVIII, seus olhares estão compro-
metidos com o interesse em focalizar a inserção do índio como mão- de-obra da economia “interna” da colônia, diante da
284 sua “invisibilidade” nos enquadramentos mais amplos de Mato Grosso no sistema colonial português, que privilegiam o
enfoque do trabalho escravo africano. Os povos, as sociedades indígenas são também estranhas massas humanas, que
vagam ao longo dos trabalhos, aparecendo ora como bravos guerreiros (por bravamente,” selvagemente “resistirem ao
invasor), ora como índios “civilizados”, os “trabalhadores livres”. Em seu estudo enfocando o século XIX. Aleixo (1984)
A história da vida é um recurso empregado na construção de etnohistórias,
como também já lembrou Denise Maldi no mesmo ensaio “A teia de memória”. É
sempre um relato, uma construção narrativa, que serve a diferentes interesses,
havendo a necessidade de formação de uma consciência reflexiva, fazendo emer-
gir a internação entre o eu e o mundo. O enfoque biográfico e as histórias de vida
são instrumentos para o conhecimento do universo social, considerando que elas
são construções feitas a partir de circunstâncias provocadas pelo pesquisador. Em
suas palavras (MALDI, 1993:24), “pela memória não somente é possível ter a
oportunidade de recordar o passado, mas, de certa forma, revivê-lo. Este processo
envolve sensações, sentimentos e consciência crítica. O relembrar é em si mesmo
um momento de interpretação e, exatamente por isso, nenhum relato de vida
pode ser como pertencendo apenas ao indivíduo. As possibilidades são imensas”.
Referências
estou a mão- de- obra “livre da providencia como uma alternativa viabilizadora da economia mercantil e forneceu dados 285
coletados nos arquivos históricos de Cuiabá sobre o trabalho remunerado dos indígenas e dos mestiços, que estão longe
do quadro pintado por Moutinho e pelo seu prefaciador, sobre a “plebe” preguiçosa e violenta, contaminada pela “promis-
cuidade” com os escravos; “promiscuidade” que contaminava também a própria elite, herdeira de toda aquela “selvageria”.
GOFFMAN, E. A representação do eu na vida cotidiana. Rio de Janeiro: Vozes,
1985.
HUNT, L. “História, Cultura e Texto. Apresentação”. In: HUNT, L. (org.). A Nova
História Cultural. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
LARAIA, R. de B. Cultura: Um conceito antropológico. 10 ed. Rio de Janeiro:
Zahar, 1995.
MACHADO, M. F. R. Índios de Rondon. Rondon e as Linhas Telegráficas na vi-
são dos sobreviventes Waimare e Caxíniti, grupos Paresi. Tese de doutorado
apresentada ao PPGAS do Museu Nacional, UFRJ, Rio de Janeiro, 1994.
MACHADO, M. F. R. “Identificação e Delimitação da Área Indígena Estação Pa-
recis”. In: MALDI, D. (org.). Direitos Indígenas é Antropologia: Laudos Periciais
em Mato Grosso. Cuiabá: EdUFMT, 1994.
MACHADO, M. F. R. “Rondon e os Paresi: as representações indígenas sobre o
amure etnógrafo”. In: PINA de BARROS, E. (org.). Modelos e Processos: Ensaios
de Etnologia Indígena. Cuiabá: EdUFMT, 1998.
MACHADO, M. F. R. “Memórias portuguesas sobre os selvagens: cultura e histó-
ria nas relações étnicas em Mato Grosso no século XIX”. In: Actas do Congresso
Luso-Brasileiro “Portugal: Memórias e Imaginários”. v. II. Lisboa, 2000.
MALDI, D. Populações indígenas e a ocupação histórica de Rondônia. Cui-
abá: EDUFMT, 1984.
MALDI, D. Guardiães da Fronteira. Rio Guaporé, século XVIII. Rio de Janeiro:
Vozes, 1989.
MALDI, D. A Teia da Memória. Proposta teórica para a construção de uma et-
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Memória: Série Antropologia
288
ENSAIO FOTOGRÁFICO
O medo dos porcos
MARINI, Marisol. O medo dos porcos (Ensaio fotográfico). Aceno – Revista de Antropologia do
Marisol Marini1
Universidade de Campinas
1
Doutora em Antropologia Social pela USP. Atualmente desenvolve pesquisa de pós-doutorado na Unicamp. Integra os
grupos de pesquisa: NUMAS – Núcleo de Estudos dos Marcadores Sociais da Diferença, LAPOD - Laboratório de Estudos
Pós-Disciplinares e GEICT – Grupo de Estudos Interdisciplinares em Ciência e Tecnologia. Integrou o grupo de pesquisa
Mind the Body, sediado na Holanda. Realizou um projeto audiovisual sobre a pesquisa de doutorado intitulado “Corpos
Instáveis” (Link: https://www.youtube.com/watch?v=R0L4AhYYYFo&feature=youtu.be)
O
ensaio fotográfico foi realizado no âmbito da pesquisa etnográfica sobre a
produção de dispositivos de assistência circulatória também conhecidos
como corações artificiais, que transformou-se na tese intitulada Corpos
Biônicos e Órgãos Intercambiáveis – a produção de saberes e práticas sobre
corações não-humanos. O desenvolvimento de tais dispositivos cardíacos ocorre
em três distintos momentos: os testes in vitro, também conhecidos como testes
de bancada; os testes in vivo, que são cirurgias experimentais performadas em
animais; e as avaliações em humanos. Apresento aqui imagens do segundo mo-
mento, das cirurgias agudas realizadas em porcos, que se caracteriza como um
processo de validação dos dispositivos, de avaliação de sua adequação, além do
treinamento da técnica cirúrgica que poderá ser realizada em humanos no futuro.
As imagens explicitam a participação e entrelaçamento de inúmeros atores,
humanos e não-humanos, para a emergência de uma nova entidade, composta
pelo órgão do animal associado a um dispositivo de assistência ventricular. Dadas
as semelhanças anatômicas, nas cirurgias experimentais os porcos mimetizam os
órgãos e corpos humanos. Os procedimentos são ritualizados e as relações ali ins-
tituídas operam “como se” o porco fosse um humano, revelando as transforma-
ções transespecíficas emergidas. Assim, as relações entre animais humanos e
não-humanos não operam apenas como interespecíficas nos testes in vivo. Com-
parativamente, a naturalização e transformação dos corpos nos procedimentos
cirúrgicos operam como esforços simétricos inversos de humanização dos porcos
e desumanização dos humanos.
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cirúrgico, atribuindo uma função a uma espectadora não prevista na cena – co-
mumente ocupada por inúmeros profissionais que participam de uma verdadeira
coreografia através das quais técnicas ritualizadas são performadas.
****
Todas as imagens foram realizadas num centro cirúrgico experimental de
uma instituição médica de São Paulo, em 2014.
290
Foto 1 – Enlace
As cirurgias experimentais consistem na implantação de um dispositivo mecânico que tem por
objetivo auxiliar o órgão nativo. Eis o que sobrevive às intervenções cirúrgicas: o arranjo entre o
dispositivo e o órgão. A carne e o aço são posteriormente analisados, em busca de rastros que
permitam compreender a relação instituída ao longo do procedimento. Como tornar esta relação
mais harmônica?
O medo dos porcos
MARINI, Marisol.
291
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Foto 2 – Cavidade
Um órgão descontextualizado, extraído de um corpo, de um sistema no qual integra e para o
qual dá coerência e mantém oxigenado. Aqui órgão exposto, mutilado, cuja carne começa a
ganhar novas tonalidades. Corpo que flui e se esparra para além da organização, cavidade
aberta, na qual uma cânula que performa o ventrículo é inserida.
Ensaios fotográficos
292
Foto 3 – Rasgo
É difícil a tarefa de contenção do sangue. Ele ensopa os tecidos, jorra, vaza. Há também os
tecidos corporais, que se rompem, se esgarçam, ficam machucados. O pericárdio se rompe,
atribuindo dramaticidade à cena. É difícil também a tarefa de registrá-la. O movimento é
incessante. O coração insiste em bater.
O medo dos porcos
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Foto 4 – Deslize
Há momentos em que a pessoa escapa ao disciplinamento do campo cirúrgico. Um mamilo nos
lembra que tem alguém embaixo do campo que transforma o corpo em bancada. A semelhança
dos corpos, o que permite naturalizar os porcos, convocando-os para performar a fisiologia
Ensaios fotográficos
294
Foto 5 – Composição
Há poucos minutos o cirurgião principal havia se incomodado com a realização das fotografias,
num momento tenso, cujo registro parecia ser inapropriado. Finalmente com o dispositivo
devidamente implantado, ele organizou o entorno para que o procedimento saísse bem na foto.
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Foto 6 – Reanimar
Depois de formada a nova entidade composta pelo órgão nativo e o dispositivo de assistência
circulatória é preciso colocá-la em movimento. O coração paralisado para ser manipulado, agora
conectado ao mecanismo, precisa ser reanimado. Os fluxos e movimentos levam um tempo para
se sincronizar e estabilizar.
Ensaios fotográficos
296
Foto 7 – Coreografia
Há uma coreografia bastante ensaiada, de modo que cada ator sabe como se comportar. Mas há
também sempre elementos surpresas. Um registro da ciência em ação, do dispositivo e sua
forma se impondo, demandando transformações. A dificuldade de realizar o encaixe levou a
adequações do dispositivo posteriormente. É comum que os testes in vivo façam os engenheiros
retornarem para as bancadas.
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Foto 9 – Estancar o sangue
Somar forças para estancar o sangue, ou um ato de cuidado e carinho? Nessa cena os gestos
técnicos e distanciado parece se confundir com um ato carinhoso.
O medo dos porcos
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RESENHA
Sopa de Wuhan:
pensamiento contemporáneo en tiempos de pandemias
COÊLHO, Gleisson Roger de Paula; LARA, Marina Garcia. Resenha – Sopa de Wuhan:
1 Possui graduação em Ciências Jurídicas pela Universidade do Estado de Mato Grosso (2005), especialização em Direito
do Trabalho e Previdenciário na Atualidade pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (2017), especialização
em Direito Civil Contemporâneo pela UFMT (2017) e especialização em Direitos Humanos e Questão Social pela Pontifícia
Universidade Católica do Paraná (2020). Atualmente é mestrando do PPGAS/UFMT.
2 Possui graduação em Administração pelo Instituto Cuiabá de Ensino e Cultura (ICEC) e é mestranda do PPGAS/UFMT.
P
ublicado em espanhol, o livro digital Sopa de Wuhan: Pensamiento Con-
temporáneo en Tiempos de Pandemia reúne reflexões sobre o contexto da
pandemia no período de um mês – entre 26 de fevereiro e 28 de março de
2020 – sobre as novas realidades vividas em decorrência do coronavírus, e tam-
bém com reflexões sobre o futuro pós-pandemia a partir de diálogos de 15 auto-
res: Giorgio Agamben, Slavoj Žižek, Jean Luc Nancy, Franco “Bifo” Berardi, San-
tiago López Petit, Judith Butler, Alain Badiou, David Harvey, Byung-Chul Han,
Raúl Zibechi, María Galindo, Markus Gabriel, Gustavo Yañez González, Patricia
Manrique e Paul B. Preciado.
O italiano Giorgio Agamben, único autor com três textos no livro, é quem ini-
cia as discussões em 26 de fevereiro em “La invención de una epidemia”. O filó-
sofo italiano afirma que o coronavírus seria apenas uma forma diferente de gripe
e evidencia o papel dos meios de comunicação e dos governos na disseminação
do clima de pânico e descreve o ciclo vicioso ao assegurar que: “la limitación de
la libertad impuesta por los gobiernos es aceptada en nombre de un deseo de se-
guridad que ha sido inducido por los mismos gobiernos que ahora intervienen
para satisfacerla3” (p. 19). Em “Contagio” o autor parece ainda não acreditar na
gravidade da pandemia e reitera que o governo cria um ambiente de pânico para
adotar medidas excepcionais, criticando a necessidade do isolamento social e o
fechamento de escolas e universidades. O francês Jean-Luc Nancy, por sua vez,
tece comentários sobre as afirmações de Agamben e reitera que uma gripe “nor-
mal” é capaz de matar diversas pessoas e que o caronavírus pode vitimar ainda
mais pessoas. De outra maneira o Nancy destaca que o estado de exceção de con-
verteu na realidade, pois há uma espécie de exceção viral que nos “pandemiza”.
ACENO, 7 (14): 301-305, agosto a dezembro de 2019. ISSN: 2358-5587
Slavoi Žižek, filósofo esloveno, cogita a ideia de que outras epidemias de vírus
ideológicos foram evidenciadas em decorrência do coronavírus: notícias falsas,
teorias de conspiração e explosões de racismo – tudo aquilo que estava latente
em nossa sociedade, apenas esperando para emergir. O filósofo esloveno acredita
que, ao contrário do que se imagina, a pandemia não sugere o fim do comunismo
chinês e assemelha a catástrofe da pandemia a um golpe a la Tarantino: a epide-
mia do coronavírus é uma espécie de ataque contra o sistema capitalista global,
um sinal de que não podemos seguir o caminho sem que uma mudança radical
aconteça.
Com escritos em formato de diário, Franco Berardi relata, a partir do dia 21
de fevereiro, quando retornou de Lisboa para Bolonha, sua vivência no período
de pandemia, inclusive pintando telas para manter a calma. Para o filósofo ita-
liano: “Lo que provoca pánico es que el virus escapa a nuestro saber: no lo conoce
la medicina, no lo conoce el sistema inmunitario 4” (p. 37). Em 12 de março, des-
creve o início da quarentena em toda a Itália, haja vista que o vírus é mais rápido
que as medidas de contenção. No fim de seus relatos, em 13 de março, afirma que
Resenhas
302 3 Tradução livre: “a limitação da liberdade imposta pelos governos é aceita em nome de um desejo de segurança que tem
sido induzido pelos mesmos governos que agora interveem para satisfazê-la”
4 Tradução livre: “O que causa pânico é que o vírus está além do nosso conhecimento: não é conhecido pela medicina, não
controle da pandemia por parte dos países asiáticos em relação aos europeus/oci-
dentais, especialmente através de uma vida cotidiana organizada, vigilância digi-
tal e um bom comportamento por parte da população. O filósofo sul-coreano lem-
bra que o fato de estar se vivendo sem inimigos desde a guerra fria e se estar vi-
vendo em “la sociedad del cansancio” (sociedade da fadiga) fez com que se per-
desse a vigilância e o paradigma imunológico, lembrando que “La globalización
suprime todos estos umbrales inmunitarios para dar vía libre al capital8” (p. 107).
5 Tradução livre: “O isolamento obrigatório coincide com um novo reconhecimento de nossa interdependência global
durante o novo tempo e espaço que impõe a pandemia”.
6 Tradução livre: “a atual pandemia está atingindo o mundo ocidental dessa vez em grande escala”.
303
7 Tradução livre: “modelo neoliberal depende cada vez mais do capital fictício e de uma expansão da oferta monetária e
criação de dívidas”.
8 Tradução livre: “A globalização suprime todas as barreiras imunológicas para dar via livre ao capital”.
Raúl Zibechi, por sua vez, afirma o caos do sistema-mundo acrescido do de-
clínio da hegemonia estadunidense e da contínua ascensão como potência global
da China. A pandemia, que afetou em maior intensidade tanto os Estados Unidos,
a União Europeia e os países latino-americanos não atingiu com a mesma inten-
sidade os países asiáticos. O pensador uruguaio afirma “la pandemia es la tumba
de la globalización neoliberal, em tanto la del futuro será una globalización más
“amable”, centrada em China y Asia Pacífico9”.
María Galindo relata as diversas faces do coronavírus que de uma enfermi-
dade, se transforma em ordem de confinamento, uma permissão para serem ex-
tintas as liberdades, uma forma de se eliminar os espaços sociais, bem como uma
arma de destruição e proibição aparentemente legitima. A feminista boliviana
destaca que devido as condições dos hospitais que foram construídos em sua mai-
oria no início do século XX, os parentes dos doentes se organizam para que não
sejam hospitalizados, devido ao medo, e chama atenção sobre as medidas copia-
das de economias, que nada se relacionam com as da Bolívia: não os protegem do
contágio e muitas vezes podem privar de sua forma de subsistência.
Markus Gabriel descreve, com exatidão, aquilo que temos vivido desde a pu-
blicação de seu texto: trata-se de um vírus cuja magnitude desconhecemos, que
não se sabe ao certo quantas pessoas estão infectadas, quantas morrerão e em
quanto tempo haverá uma vacina. Um ponto relevante é a ineficácia da ideia de
fechamento das fronteiras entre os Estados pois “todos estamos unidos por un
cordón invisible, nuestra condición de seres humanos10” (p. 130). Para o profes-
sor e filósofo alemão, o coronavírus revela as fraquezas da ideologia dominante
do século XXI, tendo em vista que existe uma crença equivocada de que o pro-
gresso científico e tecnológico seria suficiente para incentivar o progresso hu-
mano.
ACENO, 7 (14): 301-305, agosto a dezembro de 2019. ISSN: 2358-5587
Agamben em sua última contribuição fala sobre a reação das pessoas diante
da pandemia, de como a sociedade “aceitou” ter suspensa sua condição normal
de vida. Destaca que talvez como ponto positivo traga a reflexão sobre se a forma
que vivíamos era a correta. Ademais, apresenta uma reflexão sobre a fé e de como
as religiões se contradizem sobre a gravidade da pandemia, e que talvez as pes-
soas que continuam mantendo o mínimo de clareza consigam voltar a viver como
antes.
Gustavo Yañez González relata que, apesar de outros eventos fatídicos terem
acontecido no último século, nada se compara ao Covid-19. O vírus evidencia duas
características comuns aos seres humanos: a animalidade constituinte e a fragili-
dade imunológica frente ao desconhecido. O chileno sugere uma hospitalidade
diante de um hóspede que não desejamos e que a fragilidade é a condição e a
causa dos nossos sentimentos de medo, solidão e incredulidade. Ademais, re-
corda Agamben e concorda que a instalação de restrições de liberdades reforça o
sentimento de medo e apatia, já que qualquer um pode portar o vírus.
Patricia Manrique assevera que para compreender o que está acontecendo
Resenhas
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9 Tradução livre: “A pandemia é o túmulo da globalização neoliberal, e no futuro existirá uma globalização mais
“amigável”, centrada na China e nos países asiáticos do Pacífico”.
10 Tradução livre: “todos estamos unidos por um laço invisível, nossa condição de seres humanos”.
O artigo de Paul Preciado, filósofo espanhol, finaliza a coletânea e retoma al-
gumas noções de Foucault para pensar em epidemia tendo em vista que o corpo
humano é o objeto central de toda a política (biopolítica) e o poder regula a vida
e a morte das populações. Neste sentido, evidencia que estamos diante de formas
de controle do corpo e sugere mudanças: “en primer lugar, es imperativo cambiar
la relación de nuestros cuerpos con las máquinas de biovigilancia y biocontrol:
estos no son simplemente dispositivos de comunicación”11 (p. 185).
Sopa de Wuhan visa descrever, compreender e problematizar o comporta-
mento dos indivíduos em diversos países do mundo em relação a pandemia. No
cenário brasileiro, percebemos a falta de confiança da população e os governantes
que minimizam a pandemia à uma gripezinha. Sopa de Wuhan é um convite ao
conhecimento, ao debate de ideias e à noção do bom senso – que deveria ser co-
mum a todos nesses árduos tempos em que vivemos. Por fim, reiteramos a ideia
proposta por Preciado (p. 160): “cambiar la mirada abre puertas a nuevas solu-
ciones”.12
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11 Tradução livre: “Em primeiro lugar, é necessário mudar a relação dos nossos corpos com as máquinas de biovigilância
e biocontrole: não são simplesmente dispositivos de comunicação.”
12 Tradução livre: “Mudar a maneira de olhar abre portas à novas soluções.”