Ficha Famílias Desavindas
Ficha Famílias Desavindas
Ficha Famílias Desavindas
1
Durante anos e anos o bom do Ramon pedalou e comutou. Por alturas da Segunda Grande
Guerra foi substituído pelo seu filho Ximenez, pouco depois da revolução de Abril pelo neto
Asdrúbal, e, um dia destes, pelo bisneto Paco. A administração continua a pagar um venci-
mento modesto, equivalente ao de jardineiro. Mas não é pelo ordenado que aquela família dá
5 ao pedal. É pelo amor à profissão. Altas horas da madrugada, avô, neto e bisneto foram vistos
de ferramenta em riste a afeiçoar pormenores. Fizeram questão de preservar a roda de trás e
opuseram-se quase com selvajaria a um jovem engenheiro que considerou a roda dispensável,
sugerindo que o carreto1 bastasse.
Os transeuntes e motoristas do Porto apreciam estes semáforos manuais, porque é sempre
possível personalizar a relação com o sinal. Diz-se, por exemplo, “Ó Paco, dá lá um jeitinho!”
1
0
e o Paco, se estiver bem-disposto, comuta, facilita.
Acontece que, mesmo à esquina, um primeiro andar vem sendo habitado por uma família
de médicos que dali faz consultório. Pouco antes da instalação dos semáforos a pedal, veio
morar o doutor João Pedro Bekett, pai de filhos e médico singular. Chegou de Coimbra com
boa fama mas transbordava de espírito de missão. Andava pelas ruas a interpelar os transeun-
tes: “Está doente? Não? Tem a certeza? E essas olheiras, hã? Venha daí que eu trato-o.” E nesta
1 ânsia de convencer atravessava muitas vezes a rua. O semáforo complicava. Aproximou-se do
5 Ramon e bradou, severo: “A mim, ninguém me diz quando devo atravessar uma rua. Sou um
cidadão livre e desimpedido.” Ramon entristeceu. Não gostava que interferissem com o seu
trabalho e, daí por diante, passou a dificultar a passagem ao doutor. Era caso para inimizade.
E eis duas famílias desavindas. Felizmente, nunca coincidiram descendentes casadoiros. Piora
sempre os resultados.
2 CARVALHO, Mário de, 2014. “Famílias desavindas”. In Contos Vagabundos. Porto: Porto Editora (pp. 73-74)
0