Obra Unicamp Bons Dias! Machado de Assis
Obra Unicamp Bons Dias! Machado de Assis
Obra Unicamp Bons Dias! Machado de Assis
AS OBRAS DA UNICAMP
BONS DIAS!
1. BIOGRAFIA 1874 – Entra para a Secretaria da Agricultura,
solidificando sua carreira no funcionalismo
público e sua ascensão social.
1839 – Em 21 de junho, no Morro do Livramento, no Rio
de Janeiro (RJ), nasce Joaquim Maria Machado de 1878 – Estabelece uma polêmica famosa ao criticar O
Assis. Seu pai, Francisco José de Assis, afrodes- Primo Basílio, de Eça de Queirós, apontando-lhe
cendente, era pintor de paredes; sua mãe, Maria a falha de, em nome da defesa de uma ideia, ser
Leopoldina da Câmara Machado, portuguesa e falto de qualidade estética.
branca, era lavadeira.
1881 – Com a publicação de Memórias Póstumas de Brás
1849 – Fica órfão de mãe. Muda-se para São Cristóvão. Cubas, inicia não só sua fase literária mais
madura, mas também o Realismo no Brasil.
1854 – Seu pai casa-se com Maria Inês da Silva. Essa
madrasta é que vai cuidar de Machado de Assis 1897 – Participa da criação da Academia Brasileira de
após a morte de Francisco José de Assis, ocorrida Letras, para a qual é eleito, com unanimidade,
pouco tempo depois. Nesse mesmo ano publica presidente.
sua primeira obra, um soneto no Periódico dos
1899 – Publica Dom Casmurro.
Pobres.
1904 – Morre Carolina, o que deixa marcas profundas em
1856 – É contratado como aprendiz de tipógrafo na
Machado de Assis.
Imprensa Nacional, tornando-se depois revisor. Lá
conhece Manuel Antônio de Almeida (autor de 1908 – Em 29 de setembro, falece em sua casa, na rua
Memórias de um Sargento de Milícias), que o Cosme Velho, no Rio de Janeiro.
incentivou a continuar na carreira literária.
1858 – Torna-se revisor e cronista do jornal Correio 2. OBRAS
Mercantil.
Romances
1859 – Pipelet, ópera cujo libreto é de sua autoria, estreia.
Ressureição (1872)
1860 – Inicia seu trabalho como repórter e jornalista no A Mão e a Luva (1874)
Diário do Rio de Janeiro. Helena (1876)
1864 – Publica Crisálidas, livro de poesia. Iaiá Garcia (1878)
Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881)
1865 – Funda a Arcádia Fluminense, uma sociedade
Casa Velha (1885)
artístico-literária.
Quincas Borba (1891)
1867 – Nomeado diretor-assistente do Diário Oficial. Dom Casmurro (1899)
1869 – Casa-se com Carolina Augusta Xavier de Novais, Esaú e Jacó (1904)
que se tornará durante 35 anos sua grande Memorial de Aires (1908)
companheira tanto no campo afetivo quanto no
intelectual. Contos
Contos Fluminenses (1870)
1872 – Publica Ressurreição, seu primeiro romance, Histórias da Meia-Noite (1873)
inaugurando a sua fase dita “romântica”. Papéis Avulsos (1882)
–1
Histórias sem Data (1884) Um leitor desavisado – e pouco amadurecido –
Várias Histórias (1896) condenaria o jeito ziguezagueante de contar história. Na
Páginas Recolhidas (1899) verdade, tal censura é injustificável, pois coloca como
Relíquias de Casa Velha (1906) quesito principal o que Machado de Assis deixa para
segundo plano: a narrativa em si, a trama. Esse
Poesia componente é mero pretexto para que o autor atinja outros
Crisálidas (1864) objetivos, como a análise psicológica e a crítica social,
Falenas (1870) terrenos em que se torna imbatível.
Americanas (1875)
Ocidentais (1880) 4. A OBRA
2–
dizendo o que me parecesse; depois ia-me pância; desde que discrepam, fica-se sem saber
embora, para voltar na outra semana. Mas, não nada, porque tão certo pode ser o meu relógio,
senhor; chego à porta, e o meu primeiro cuidado como o do meu barbeiro1.
é dar-lhe os bons dias. Agora, se o leitor não me
disser a mesma coisa, em resposta, é porque é Da leitura do texto, percebe-se que se trata da
um grande malcriado, um grosseirão de borla e inauguração da seção “Bons Dias!”, do jornal Gazeta de
capelo; ficando, todavia, entendido que há leitor Notícias. Nota-se que o enunciador é bastante
e leitor, e que eu, explicando-me com tão nobre
espirituoso, engraçado até, além de um tanto arrogante e
franqueza, não me refiro ao leitor, que está agora
com este papel na mão, mas ao seu vizinho. Ora
agressivo no relacionamento com seu leitor. Nota-se
bem! também que ele vai saltando de um assunto para o outro.
Feito esse cumprimento, que não é do Percebe-se, ainda, que passeia entre a preterição e a
estilo, mas é honesto, declaro que não apresento ironia, pois desvaloriza a preocupação com a divulgação
programa. Depois de um recente discurso de programa (condena o que foi feito no Beethoven –
proferido no Beethoven, acho perigoso que uma anunciar o que está para acontecer – e elogia o que era
pessoa diga claramente o que é que vai fazer; o feito pelo príncipe de Bismarck – não anunciar o que está
melhor é fazer calado. Nisto pareço-me com o para acontecer), coisa que ele próprio está fazendo no
príncipe (sempre é bom parecer-se a gente com presente texto. Notam-se, por fim, a erudição (no uso de
príncipes, em alguma coisa, dá certa dignidade, expressão em francês: “pour étonner le bourgeois”, ou
e faz lembrar um sujeito muito alto e louro seja, “para surpreender o burguês”) e a metalinguagem
parecidíssimo com o imperador, que há cerca de
(ao anunciar como vai funcionar a seção que está sendo
trinta anos ia a todas as festas da Capela
Imperial, pour étonner le bourgeois; os fiéis
inaugurada, o autor faz com que a linguagem discorra
levavam a olhar para um e para outro, e a sobre ela mesma). Quando o leitor sente todos esses
compará-los, admirados, e ele teso, grave, ingredientes, é impossível não descobrir que se trata de
movendo a cabeça à maneira de Sua Majestade. uma produção de Machado de Assis2.
São gostos.) de Bismark. O príncipe de Bismark No entanto, tudo o que foi detectado diz pouco sobre
tem feito tudo sem programa público; a única o texto, principalmente porque, como era de se esperar de
orelha que o ouviu, foi a do finado imperador, uma crônica, sua referência está baseada em uma notícia,
— e talvez só a direita, com ordem de o não nesse caso perdida há mais de 130 anos, mais
repetir à esquerda. O parlamento e o país viram precisamente no noticiário de 05 de abril de 1888. Hoje,
só o resto. em pleno século XXI, o leitor desavisado, diante do texto,
Deus fez programa, é verdade (E Deus ficaria cheio de indagações. Que discurso foi proferido no
disse: Façamos o homem, à nossa imagem e
Beethoven? O que é Beethoven? É o músico? Torna-se
semelhança, para que presida etc. Gênese, I, 26);
mas é preciso ler esse programa com muita
necessário um esforço historiográfico para recuperar o
cautela. Rigorosamente, era um modo de contexto que deu origem à crônica. Por sorte, tal trabalho
persuadir ao homem a alta linhagem de seu foi empreendido pelo historiador inglês John Gledson,
nariz. Sem aquele texto, nunca o homem especialista em Machado de Assis.
atribuiria ao Criador nem a sua gaforinha, nem De acordo com informações do estudioso britânico, o
a sua fraude. É certo que a fraude, e, a rigor, a Ministro Ferreira Viana fizera, em 25 de março de 1888,
gaforinha são obra do diabo, segundo as um discurso no Beethoven (clube frequentado por
melhores interpretações; mas não é menos certo Machado de Assis), em que anunciara que a Abolição
que essa opinião é só dos homens bons; os maus estava por acontecer. Esse era um tema bastante debatido
creem-se filhos do céu — tudo por causa do na época, ainda mais porque o Brasil era dos últimos
versículo da Escritura. países ainda a manter o regime servil. De fato, o fim da
Portanto, bico calado. No mais é o que se
escravidão fazia parte do clamor de vários setores da
está vendo; cá virei uma vez por semana, com o
meu chapéu na mão, e os bons dias na boca. Se
sociedade brasileira, principalmente por estar demorando
lhes disser desde já, que não tenho papas na a se realizar, o que gerava inúmeros desgastes, como a
língua, não me tomem por homem despachado, situação caótica em que se encontrava São Paulo, com a
que vem dizer coisas amargas aos outros. Não, constante fuga em massa de cativos. A conjuntura se
senhor; não tenho papas na língua, e é para vir a tornava mais complexa pelo fato de o gabinete que estava
tê-las que escrevo. Se as tivesse, engolia-as e no poder na época ser conservador, justamente o que
estava acabado. Mas aqui está o que é, eu sou tradicionalmente fora contrário às teses abolicionistas. É
um pobre relojoeiro que, cansado de ver que os 1 MACHADO DE ASSIS, J. M. Bons Dias!. São Paulo: Hucitec-Editora da UNICAMP,
relógios deste mundo não marcam a mesma 1990, p. 35-36.
hora, descri do ofício. A única explicação dos 2 Curiosidade: essas crônicas saíram de forma anônima no Gazeta de Notícias. Anos
relógios era serem iguaizinhos, sem discre- depois, os estudiosos conseguiram garantir que seu autor era Machado de Assis.
–3
de se imaginar, portanto, o impacto que foi o discurso do a serem lembradas e comemoradas. Prova disso é que nem
representante desse governo, anunciando o que já se sabia o 13 ou 14 de maio de 1888, tampouco o 15 ou 16 de
como inevitável, mas frustrantemente delongado. novembro de 1889 aparecem em Bons Dias!. Machado de
Quando se tem consciência desse contexto histórico, Assis não vai mostrar um olhar meramente cívico ou festivo.
compreende-se melhor o conteúdo da crônica de 05 de Sua visão seguirá um caminho oposto, e a crônica de 20-21
abril de 1888, que, por ser inauguradora, anuncia o tom a de maio de 1888 é exemplo desse aspecto:
ser assumido na seção “Bons Dias!”. Em uma inflexão
informal, como se estivesse em um bate-papo, o 20-21 de maio de 1888
enunciador abordará uma variedade de assuntos baseados (Imprensa Fluminense)
na diversidade de notícias veiculadas na Gazeta de
Notícias. Aliás, essa multiplicidade de temas vai se BONS DIAS
manifestar não só entre as crônicas, mas dentro de um
mesmo texto, como comprova o excerto anterior: Algumas pessoas pediram-me a tradução do
inicialmente, o cronista anuncia a postura polida que evangelho que se leu na grande missa campal do
adotará em seus textos; depois, fala sobre o discurso dia 17. Estes meus escritos não admitem
proferido no Beethoven; após, relata o comportamento do traduções, menos ainda serviços particulares; são
príncipe de Bismarck; a partir daí, comenta um trecho do palestras com os leitores e especialmente com os
primeiro capítulo do primeiro livro da Bíblia; por fim, leitores que não têm que fazer. Não obstante, em
volta a falar sobre a escolha da postura educada do vista do momento, e por exceção, darei aqui o
cronista. No entanto, esse caráter saltitante e digressivo é evangelho, que é assim:
apenas um subterfúgio para o escritor vazar suas opiniões. 1. No princípio era Cotejipe, e Cotejipe
Todos esses temas, portanto, serão mero pretexto para o estava com a Regente, e Cotejipe era a Regente.
2. Nele estava a vida, com ele viviam a
autor discorrer a respeito das mesmas opiniões, o que é
Câmara e o Senado.
bem machadiano: suas considerações sobre o homem e a 3. Houve então um homem de São Paulo,
sociedade em que está inserido. chamado Antônio Prado, o qual veio por
Ainda assim, não se deve entender que o papel de testemunha do que tinha de ser enviado no ano
Machado de Assis como cronista se restrinja ao de ser um seguinte.
simples espelho de sua realidade. A força das crônicas de 4. E disse Antônio Prado: O que há de vir
Bons Dias! está na forma como o autor interpreta seu depois de mim é o preferido, porque era antes de
contexto social, justamente uma época de extrema mim3.
importância para a história do Brasil: a da Abolição da
Escravatura (primeiro pressentida e depois efetivada) e suas Essa é a única crônica que não foi publicada na
duas consequências (apenas pressentidas), a falência do Gazeta de Notícias, mas na Imprensa Fluminense, uma
império e a ascensão da república. O autor lançará sobre edição especial que teve a participação de vários jornais
essa conjuntura uma análise pessimista e desencantada. para comemorar a Abolição da Escravatura. No entanto,
Quando se fala em desencanto, não se deve pensar Machado de Assis, com seu refinamento e ironia típicos,
que o olhar machadiano sobre as mudanças de grande em vez de compor um texto laudatório, vazou de maneira
importância por que passava o Brasil estavam sendo ao mesmo tempo sutil e corrosiva uma crítica ao processo
rejeitadas. Machado não era contra a Abolição, por histórico que se efetivava. Ao dizer que “Cotejipe estava
exemplo. Na realidade, a questão é bem mais complexa. com a Regente, e Cotejipe era a Regente”, ele fundiu as
Por meio da linguagem conotativa das várias crônicas de figuras do Barão de Cotejipe, antiabolicionista ferrenho, e
Bons Dias!, entende-se que os defensores do da Princesa Isabel, beatificada por ter assinado a Lei Áurea.
Abolicionismo daquela época não estavam focados no Machado de Assis expunha o paradoxo de a Regente estar
elemento humano, que era o negro escravizado, mas na unida, em nome das conveniências políticas, a uma prática
questão política e econômica. Compreende-se também que ela própria, assim como seu pai, abominavam.
que o fim da escravidão não traria justiça social, mas Compromete-se aqui a imagem bastante difundida até hoje
apenas a troca de um sistema opressor de trabalho, o da libertadora dos escravos como uma governante tomada
regime servil, por outro igualmente opressor, a mão de pela bondade – se o fosse, por que toleraria que um
obra assalariada mal paga. antiabolicionista assumisse a presidência do gabinete
Todo bom conhecedor da história do nosso país tem ministerial por tanto tempo (1885-1888)? O pior é que essa
noção de que o fim da escravidão fragilizou as bases que figura abominável, além de sustentar o regime (“nele
sustentavam o regime monárquico, o que teve como estava a vida”), também mantinha sua influência poderosa
consequência o advento da república. Ter consciência dessa
3 MACHADO DE ASSIS, J. M. Bons Dias!. São Paulo: Hucitec-Editora da UNICAMP,
conexão é entender que a História é muito mais do que datas
1990, p. 65.
4–
sobre os demais setores políticos, como se afirma no panhando as ideias pregadas por Cristo, há
versículo 2: “Nele estava a vida, com ele viviam a Câmara dezoito séculos restituía liberdade ao meu
e o Senado”. escravo Pancrácio; que entendia que a nação
No entanto, como já informado, a Abolição tornava-se inteira devia acompanhar as mesmas ideias e
inevitável, pois a escravidão já estava saindo do controle, imitar o meu exemplo; finalmente, que a
liberdade era um dom de Deus, que os homens
provocando uma situação caótica, como comprovava a
não podiam roubar sem pecado.
fuga em massa de escravos, principalmente em São Paulo. Pancrácio, que estava à espreita, entrou na
Não é à toa que o versículo 3 cita Antônio Prado, político sala, como um furacão, e veio abraçar-me os pés.
paulista que, antes feroz defensor da escravidão, vendo a Um dos meus amigos (creio que é ainda meu
necessidade de se aceitar o Abolicionismo (detalhe: sobrinho), pegou de outra taça, e pediu à ilustre
necessidade econômica, tendo em vista os proprietários assembleia que correspondesse ao ato que
rurais, e não humanitária, visando aos escravizados), acabava de publicar, brindando ao primeiro dos
muda sua posição política, contribuindo para a queda do cariocas. Ouvi cabisbaixo; fiz outro discurso
Barão de Cotejipe em março de 1888, o que abriu agradecendo, e entreguei a carta ao molecote.
caminho para a Lei Áurea. Todos os lenços comovidos apanharam as
Ter em mente esse jogo de conveniências políticas lágrimas de admiração. Caí na cadeira e não vi
ajuda a entender o enigmático versículo 4: “O que há de mais nada. De noite, recebi muitos cartões. Creio
que estão pintando o meu retrato, e suponho que
vir depois de mim é o preferido, porque era antes de
a óleo.
mim”. O que há de vir pode ser entendido como a No dia seguinte, chamei o Pancrácio e
preocupação com as questões econômicas. Elas são o disse-lhe com rara franqueza:
preferido, tanto antes, com a mão de obra escravizada, — Tu és livre, podes ir para onde quiseres.
quanto depois, com a mão de obra assalariada. Ambas são Aqui tens casa amiga, já conhecida e tens mais
formas de exploração e opressão para obtenção de lucro. um ordenado, um ordenado que...
Outro sentido possível é que o gabinete que caiu, o de — Oh! meu senhô! fico.
Cotejipe, era conservador, assim como o que o sucedeu, — ... Um ordenado pequeno, mas que há de
de João Alfredo. crescer. Tudo cresce neste mundo; tu cresceste
Nota-se então que o que fica como mensagem imensamente. Quando nasceste, eras um pirralho
sutilmente gritante é que se muda tudo para se continuar deste tamanho; hoje estás mais alto que eu. Deixa
na mesma. Em outras palavras: as classes dominantes ver; olha, és mais alto quatro dedos...
— Artura não qué dizê nada, não, senhô...
brasileiras fazem com que a mudança se dê para que elas
— Pequeno ordenado, repito, uns seis mil-
se mantenham no poder. Esse comportamento se vê em réis: mas é de grão em grão que a galinha enche
outra crônica, a de 19 de maio de 1888: o seu papo. Tu vales muito mais que uma galinha.
— Eu vaio um galo, sim, senhô.
19 de maio de 1888 — Justamente. Pois seis mil-réis. No fim de
um ano, se andares bem, conta com oito. Oito ou
BONS DIAS! sete.
Pancrácio aceitou tudo; aceitou até um
Eu pertenço a uma família de profetas après peteleco que lhe dei no dia seguinte, por me não
coup, post facto, depois do gato morto, ou como escovar bem as botas; efeitos da liberdade. Mas
melhor nome tenha em holandês. Por isso digo, e eu expliquei-lhe que o peteleco, sendo um
juro se necessário for, que toda a história desta lei impulso natural, não podia anular o direito civil
de 13 de maio estava por mim prevista, tanto que adquirido por um título que lhe dei. Ele
na segunda-feira, antes mesmo dos debates, tratei continuava livre, eu de mau humor; eram dois
de alforriar um molecote que tinha, pessoa de estados naturais, quase divinos.
seus dezoito anos, mais ou menos. Alforriá-lo era Tudo compreendeu o meu bom Pancrácio;
nada; entendi que, perdido por mil, perdido por daí para cá, tenho-lhe despedido alguns pontapés,
mil e quinhentos, e dei um jantar. um ou outro puxão de orelhas, e chamo-lhe besta
Neste jantar, a que meus amigos deram o quando lhe não chamo filho do diabo; cousas
nome de banquete, em falta de outro melhor, todas que ele recebe humildemente, e (Deus me
reuni umas cinco pessoas, conquanto as notícias perdoe!) creio que até alegre.
dissessem trinta e três (anos de Cristo), no intuito O meu plano está feito; quero ser deputado,
de lhe dar um aspecto simbólico. e, na circular que mandarei aos meus eleitores,
No golpe do meio (coupe du milieu, mas eu direi que, antes, muito antes de abolição legal, já
prefiro falar a minha língua) levantei-me eu com eu, em casa, na modéstia da família, libertava um
a taça de champanha e declarei que, acom- escravo, ato que comoveu a toda a gente que dele
teve notícia; que esse escravo tendo aprendido a
–5
ler, escrever e contar (simples suposição) é então Por fim, outros temas também se mostram
professor de filosofia no Rio das Cobras; que os recorrentes, ainda que em segunda importância. Machado
homens puros, grandes e verdadeiramente de Assis destila uma crítica a vários alvos: à mania de
políticos, não são os que obedecem à lei, mas os copiar os costumes estrangeiros, principalmente os
que se antecipam a ela, dizendo ao escravo: és ingleses; às constantes novidades científicas, vistas como
livre, antes que o digam os poderes públicos,
modismos; à doutrina espírita, que é englobada pelo autor
sempre retardatários, trôpegos e incapazes de
restaurar a justiça na terra, para satisfação do céu.
no grupo das manifestações de charlatanismo e
curandeirismo; à linguagem empolada e vazia de
BOAS NOITES4. determinados políticos; ao purismo linguístico e à sua
contraparte, o apego a estrangeirismos desnecessários; à
Nessa que é uma das mais saborosas crônicas de hipocrisia de se defenderem princípios, quando na verdade
Machado de Assis, o narrador se apresenta como um a preocupação é aproveitar-se das conveniências do
membro da elite escravagista que se preocupa em passar momento (daí, por exemplo, a condenação, apontada em
uma imagem de homem moderno, à frente de seu tempo. uma das crônicas, a um candidato a deputado ser apoiado
Prova disso, de acordo com seu relato, é ter dado a pelos partidos conservador, liberal e republicano).
liberdade a seu escravizado antes mesmo da Lei Áurea.
No entanto, a narração é cheia de ironias. Basta notar que
5. BIBLIOGRAFIA
a alforria não se dera com o objetivo primeiro de
beneficiar Pancrácio, mas o seu ex-dono. Corrobora esse
ARRICUCCI JR, Davi. Fragmentos sobre a Crônica. In:
aspecto o jantar em comemoração a esse evento não ter a
Enigma e Comentário. São Paulo: Companhia das Letras,
presença do molecote, conforme atesta o início do quarto
1987, p. 51-62.
parágrafo: “Pancrácio, que estava à espreita, entrou na
CANDIDO, Antonio. A Vida ao Rés-do-Chão. In:
sala”. Além disso, o enunciador colhe as glórias do ato: é
ANDRADE, Carlos Drummond de et alii. Para Gostar de
chamado de o primeiro dos cariocas, recebe muitos
Ler: Volume 5. 10. ed., São Paulo: Ática, 1995, p. 5-13.
cartões e até pode ter um retrato a óleo em sua
FACIOLI, Valentim. A Crônica. In: BOSI, Alfredo et alii.
homenagem, o que era um dos sinais máximos de glória
Machado de Assis. São Paulo: Ática, 1982, p. 86, 87 e
naquela época. E no final da crônica o narrador confessa
108.
obter mais benefícios com essa ação de “boa vontade”:
GLEDSON, John. Introdução. Trad. de. Lourdes Dias. In:
impulsionar sua candidatura a deputado.
MACHADO DE ASSIS. Joaquim Maria. Bons Dias! São
Entretanto, outro aspecto não deve ser deixado de
Paulo: Hucitec/Ed. da UNICAMP, 1990, p. 11-27.
lado, e tal se alinha ao humor amargo machadiano:
______________. Machado de Assis: Ficção e História.
Pancrácio continua oprimido. Sofre rebaixamento ao ser
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986, p. 114-160.
comparado a animal (“Tu vales muito mais que uma
MACHADO DE ASSIS. Joaquim Maria. Bons Dias! São
galinha”), depreciação que a própria vítima assume (“Eu
Paulo: Hucitec/Ed. da UNICAMP, 1990.
vaio um galo, sim, senhô”). E chega a apanhar por causa
SÁ, Jorge de. A Crônica. São Paulo: Ática, 1985.
dos caprichos do mau humor do protagonista, que
naturaliza seu caráter opressor, tornando incompatível o
seu discurso abolicionista. Enfim, toda essa mudança,
repita-se, viera, pois, não para beneficiar o até então
escravizado, mas para engrandecer o membro da elite.
No entanto, Bons Dias! não é feito só de crítica à
forma como o Abolicionismo se manifestou no Brasil. As
consequências desse evento histórico (a falência do
regime monárquico e a ascensão da República) também
formam a matéria que alimenta o livro. A ascensão
iminente do novo sistema político é vista com
desapontamento por Machado de Assis, pois o autor
percebe que essa mudança será lesiva, já que abrirá
caminho para o federalismo, entendido como forma de
fortalecimento de oligarquias locais em detrimento das
condições do povo e da manutenção do bom
funcionamento da coisa pública (res publica, em latim).
4 MACHADO DE ASSIS, J. M. Bons Dias!. São Paulo: Hucitec-Editora da UNICAMP,
1990, p. 62-64.
6–
Exercícios
Texto para as questões 1 e 2. 3. As crônicas de Bons Dias! comprovam a visão
apontada na questão anterior a respeito da Abolição
Princesa Dona Isabel da Escravatura por apresentarem
Mamãe disse que a Senhora a) o espiritismo e o curandeirismo associados a formas
Perdeu seu trono na terra, de enganação e prestidigitação contra o povo
Mas tem um mais lindo agora. brasileiro, inclusive o escravizado.
No céu está esse trono b) a importação gratuita e alienada de costumes ingleses
Que agora a senhora tem
e franceses, entre eles o Abolicionismo, como prova
Que além de ser mais bonito
de falta de senso crítico de nosso povo.
Ninguém lho tira, ninguém.
c) o perfil traçado pelo cronista a respeito do político
(Apud DAIBERT JÚNIOR, Robert.
César Zama, que repete, em seu autoritarismo, o
“O Reinado de Isabel”. In: FIGUEIREDO, Luciano.
padrão universal do governante alheio à população.
História do Brasil para Ocupados.
d) a relação entre Pancrácio e seu patrão, em que a
Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2013, p. 153 – Adaptado.)
opressão do sistema escravista continuará sendo
praticada no sistema de mão de obra assalariada.
1. O texto acima é reprodução de uma quadrinha que
costumava ser cantada entre as crianças brasileiras. De
maneira ao mesmo tempo singela e poética, faz
Leia o trecho inicial da crônica de Machado de Assis
referência a um contexto histórico também vislumbrado
para responder às questões de números 4 a 8.
por Machado de Assis em Bons Dias!, que é
a) a gratidão dos negros e afrodescendentes diante da
[19 maio de 1888]
ação benemérita praticada pela Regente.
b) a abolição da escravatura e sua relação com o
Bons dias! Eu pertenço a uma família de profetas
comprometimento do regime monárquico.
après coup1, post factum2, depois do gato morto, ou
c) a intromissão das questões religiosas nos mecanismos
como melhor nome tenha em holandês. Por isso digo,
de funcionamento da dinâmica política nacional.
juro se necessário for, que toda a história desta lei de
d) a interpretação afetiva feita pelo brasileiro, célebre
13 de maio estava por mim prevista, tanto que na
homem cordial, sobre os grandes eventos brasileiros.
segunda-feira, antes mesmo dos debates, tratei de
alforriar um molecote que tinha, pessoa de seus
dezoito anos, mais ou menos. Alforriá-lo era nada;
entendi que, perdido por mil, perdido por mil e
2. Machado de Assis, autor das crônicas de Bons Dias!, é
quinhentos, e dei um jantar.
o maior nome do Realismo no Brasil. Dessa forma, é
Levantei-me eu com a taça de champanha e
natural que assuma nessa obra, diante da visão em que
declarei que, acompanhando as ideias pregadas por
está inserida a trova reproduzida anteriormente, uma
Cristo, há dezoito séculos, restituía a liberdade ao meu
postura
escravo Pancrácio; que entendia que a nação inteira
a) divergente, pois estabelece um contraste entre religião
devia acompanhar as mesmas ideias e imitar o meu
e economia.
exemplo; finalmente, que a liberdade era um dom de
b) irônica, pois satiriza os empenhos do movimento
Deus que os homens não podiam roubar sem pecado.
negro brasileiro.
Pancrácio, que estava à espreita, entrou na sala,
c) discordante, pois desmonta a perspectiva idealizada
como um furacão, e veio abraçar-me os pés. Todos os
sobre a Abolição.
lenços comovidos apanharam as lágrimas de
d) parodística, pois transforma o material poético em
admiração. Caí na cadeira e não vi mais nada. De
texto em prosa.
noite, recebi muitos cartões. Creio que estão pintando
o meu retrato, e suponho que a óleo.
–7
No dia seguinte, chamei o Pancrácio e disse-lhe 5. (VUNESP) – Assinale a alternativa que apresenta,
com rara franqueza: respectivamente, um qualificativo coerente com o
– Tu és livre, podes ir para onde quiseres. Aqui perfil do narrador em primeira pessoa e outro coerente
tens casa amiga, já conhecida e tens mais um com o perfil do escravo Pancrácio.
ordenado, um ordenado que... a) vaidoso ... perspicaz
– Oh! meu senhô! fico... b) generoso ... submisso
– Um ordenado pequeno, mas que há de crescer. c) oportunista ... crédulo
Tudo cresce neste mundo: tu cresceste imensamente. d) cruel ... rebelde
Quando nasceste eras um pirralho deste tamanho; hoje e) idealista ... grato
estás mais alto que eu. Deixa ver; olha, és mais alto
quatro dedos...
– Artura não qué dizê nada, não, senhô...
– Pequeno ordenado, repito, uns seis mil-réis: mas 6. (VUNESP) – Uma marca do estilo de Machado de
é de grão em grão que a galinha enche o seu papo. Tu Assis verificada no texto é
vales muito mais que uma galinha. a) o vocabulário preciosista e arcaico, característico de
– Justamente. Pois seis mil-réis. No fim de um uma obra vinculada à mais alta tradição literária, a
ano, se andares bem, conta com oito. Oito ou sete. qual fazia da exaltação dos clássicos seu principal
Pancrácio aceitou tudo: aceitou até um peteleco que objetivo.
lhe dei no dia seguinte, por me não escovar bem as b) o discurso espontâneo e emotivo, voltado para a
botas; efeitos da liberdade. Mas eu expliquei-lhe que expressão de uma subjetividade rebelde, que via na
o peteleco, sendo um impulso natural, não podia valorização do passado um modo de fugir à realidade
anular o direito civil adquirido por um título que lhe imediata.
dei. Ele continuava livre, eu de mau humor; eram dois c) o tom inflamado e grandiloquente, próprio de uma
estados naturais, quase divinos. retórica a favor de causas libertárias, que buscava a
Tudo compreendeu o meu bom Pancrácio: daí para adesão do leitor por meio do melodrama.
cá, tenho-lhe despedido alguns pontapés, um ou outro d) a linguagem irônica e bem-humorada, comprometida
puxão de orelhas. E chamo-lhe besta quando lhe não com a reflexão sobre o comportamento humano e
chamo filho do diabo; coisas todas que ele recebe sobre as relações de poder estabelecidas socialmente.
humildemente, e (Deus me perdoe!) creio que até alegre. e) a narração de ritmo acelerado e cheia de peripécias,
(Machado de Assis. Bons dias. condizente com a prosa de costumes do século XIX,
www.dominiopublico.gov.br. Adaptado.) voltada especialmente ao entretenimento.
1 après coup: [francês] pós-golpe.
2 post factum: [latim] depois do fato.
4. (VUNESP) – Nessa crônica, Machado de Assis 7. (VUNESP) – Alinhado com a escrita realista do século
tematiza a abolição da escravatura, recém-ocorrida por XIX, o texto caracteriza-se
ocasião de sua escrita, expressando a opinião de que a) pelo ponto de vista imparcial do autor ao denunciar
a) os antigos escravos só teriam a ganhar conservando as mazelas da aristocracia.
seus velhos postos de trabalho. b) pelo emprego do português culto para expressar uma
b) os ex-escravos continuariam sujeitados ao domínio de visão crítica da sociedade.
seus ex-senhores. c) como prosa regionalista, com o intuito de exaltar a
c) a economia não se beneficiaria com escravos diversidade cultural.
transformados em assalariados. d) pelo formalismo na defesa entusiasmada dos valores
d) os prejuízos dos senhores de escravos seriam liberais e capitalistas.
superados apenas a longo prazo. e) como prosa intimista, dedicada à defesa de teses do
e) os escravos recém-libertos seriam facilmente subs- positivismo.
tituídos por trabalhadores mais bem preparados.
8–
8. (VUNESP) – Considere os vocábulos destacados e
enumerados na seguinte passagem do texto:
–9
GABARITO
PORTUGUÊS
AS OBRAS DA UNICAMP
BONS DIAS!
1) A trova popular fala sobre a Princesa Isabel, que 5) O narrador vai se apresentar, no seu ponto de vista
perdeu o seu trono. Trata-se de uma alusão à (em primeira pessoa), como um homem à frente de
queda do regime monárquico, que teve como uma seu tempo ao libertar seu escravizado antes da
das causas a abolição da escravatura, instituída Abolição. Dessa forma, pretende construir uma
pela própria regente por meio da Lei Áurea, em imagem positiva de si mesmo que o favoreça a tal
13 de maio de 1889. Essa é a conjuntura que ponto que o ajude até na sua candidatura a depu-
sustenta muitas das crônicas de Bons Dias!, de tado. Essa atitude é, pois, oportunista. Por sua vez,
Machado de Assis. Pancrácio mostra-se extremamente grato ao ser
Resposta: B emancipado, acreditando que esse ato fora baseado
na bondade e no desprendimento de seu ex-proprie-
2) A trova apresenta a Abolição da Escravatura como tário – não vê as disposições interesseiras do nar-
algo tão positivo que beatificou sua protagonista, a rador. Assume, portanto, um comportamento crédulo.
Princesa Isabel, chegando a compensar a perda de Resposta: C
seu trono com uma benesse no plano celestial.
Machado de Assis se opõe a essa visão idealizada 6) Machado de Assis tornou-se consagrado pela ironia
em várias das crônicas de Bons Dias!, pois mostra e pelo humor amargo, que, coerentemente com os
que, além de esse evento não ter como prioridade ditames do Realismo, permite que faça uma análise
os interesses do escravizado, mas as preocupações crítica tanto do comportamento do homem quanto
econômicas e políticas da elite, configurou-se da sociedade em que ele está inserido.
Resposta: D
apenas como uma mudança de um regime de
escravidão pelo de mão de obra mal assalariada.
7) A alternativa que pode dar um pouco de trabalho é
Resposta: C
a a, que menciona uma das características mais
famosas tanto do Realismo, quanto de Machado de
3) A crônica de 19 de maio de 1888, a primeira após a
Assis: denúncia de mazelas. Entretanto, a ironia,
Abolição da Escravatura, apresenta um narrador
marca consagrada do estilo machadiano, invalida a
que quer passar a imagem de benevolente ao
tese de que tenha sido adotado no texto um ponto de
libertar seu escravizado, Pancrácio. No entanto, vista imparcial. As alternativas c, d e e são desca-
paga-lhe um salário miserável, desmerece-o em sua bidas: Machado de Assis não é regionalista, nem
integridade humana comparando-o com animal e entusiasmado, tampouco intimista. Portanto, a
ainda o submete a violência física. Por meio dessa afirmação correta dá conta de que o autor utiliza a
narração, Machado de Assis expõe seu ponto de norma culta (os desvios do português padrão restri-
vista com relação à Abolição da Escravatura, que, ngem-se ao discurso direto de Pancrácio) para
no seu entender, não traria mudança substancial expressar uma visão crítica da sociedade: o Aboli-
para o outrora cativo. cionismo se configurará apenas na mudança de uma
Resposta: D mão de obra escravizada para a assalariada, man-
tendo-se a opressão social nas relações de trabalho.
4) Na crônica em análise, Pancrácio, liberto, continua Resposta: B
sendo menosprezado por seu ex-dono e atual
patrão, pois é rebaixado ao ser comparado a animal, 8) O quinto que assume a função de pronome relativo,
recebe um salário irrisório e continua apanhando retomando a expressão “dom de Deus”. Os demais
daquele que se utiliza de sua mão de obra. Enfim, são conjunções subordinativas integrantes que
continua sujeito ao domínio de seu ex-senhor. introduzem orações subordinadas substantivas.
Resposta: B Resposta: E
10 –