O Fim Do Mundo - Camille Flammarion
O Fim Do Mundo - Camille Flammarion
O Fim Do Mundo - Camille Flammarion
Camille Flammarion
Título do original em francês
La Fin Du Monde
1893
Conteúdo resumido
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Vi depois um novo céu e uma terra nova, pois o
primeiro céu e a primeira terra haviam passado.
Apocalipse, XXI, 1.
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Sumário
Primeira Parte
No século XXV – As teorias..........................................................5
I
A ameaça celeste...............................................................5
II
O cometa.........................................................................16
III
A sessão do Instituto.......................................................26
IV
Como acabará o mundo..................................................44
V
O Concílio do Vaticano..................................................73
VI
A crença no fim do mundo através dos tempos..............82
VII
O choque.......................................................................102
Segunda Parte
Dentro de dez milhões de anos.................................................116
I
As etapas futuras...........................................................116
II
As metamorfoses...........................................................132
III
O apogeu.......................................................................140
IV
Vanitas vanitatum.........................................................154
V
Omégar..........................................................................160
VI
Eva.................................................................................167
VII
O último dia..................................................................173
Epílogo
Dissertação filosófica.................................................................184
Primeira Parte
No século XXV – As teorias
I
A ameaça celeste
–0–
Segunda Parte
Dentro de dez milhões de anos
I
As etapas futuras
Bela coisa a vida... o amor vale por tudo e faz tudo esquecer.
Música inefável dos corações, tua divina melodia envolve o ser em
êxtase de voluptuosidades infinitas! Quantos historiadores ilustres
têm celebrado os pioneiros do progresso, a glória das armas, as
conquistas da inteligência e as ciências da alma? Depois de tantos
séculos de trabalho e lutas, nada mais restava na Terra que o arfar
de dois corações, os beijos de duas almas, nada mais que o amor. E
o amor afirmava-se e ficava como o sumo sentimento a dominar,
qual farol inextinguível, o imenso oceano das idades mortas.
Morrer? Como imaginá-lo? Pois, então, ali não estavam um pelo
outro reciprocamente se bastando? A invasão do frio trespassava-os
até à medula, mas, não tinham eles no peito calor bastante para
vencer a Natureza? Não continuava o Sol a fulgurar sempre, mais
radioso? Quem diria não fosse a condenação final retardada por
longo tempo ainda?
Omégar excogitava de como poderia entreter ainda todo aquele
sistema de há muito organizado para extrair automaticamente os
princípios alimentares do ar, das águas, e das plantas. E esperava
consegui-lo. Assim, outrora, depois da queda do império romano,
viram-se bárbaros utilizarem os aquedutos, os banhos, as fontes
termais e todas as realizações dos tempos cesareanos, extraindo de
indústrias desaparecidas os elementos de sua vitalidade.
Um dia eles viram ali chegar, ao último palácio da última cidade
terrena, um bando de míseras criaturas envilecidas, descarnadas,
meio selvagens, quase nada humanas, e que pareciam haver
regredido ao primitivismo das espécies simiescas, já de há muito
desaparecidas. Tratava-se de uma família errante – destroços de
uma raça degenerada, que vinha procurando fugir à morte. Em
virtude do secular pauperismo das condições de vida planetária, a
Humanidade que, por milhões de anos, dominara soberanamente a
natureza, atingindo a unidade tão longamente esperada,
constituindo uma única espécie em que se fundiram todas as
variedades, essa humanidade superior, homogênea, perdera pouco a
pouco o vigor e a grandeza.
As influências de climas e meios não tardaram a deslocar a
unidade conquistada, originando novas variedades e novas raças. E
não foi senão com grande custo que as duas civilizações mais
sólidas e mais enérgicas resistiram e se mantiveram nos pináculos
da intelectualidade. Todo o resto da humanidade sofrera o peso dos
evos, enfraquecera, modificara-se à mercê das influências
preponderantes. À antiga lei de progresso tinha sucedido uma como
lei degradativa. A matéria, dir-se-ia, retomara os seus direitos,
regredindo o homem à animalidade. Mas todas as raças desse
mundo senecto, caducárias e desagregadas, haviam sucessivamente
sucumbido.
Apenas alguns raros grupos erravam como espectros, por entre
as ruínas do passado.
Omégar procurou utilizar aqueles servos de nova espécie, na
manutenção dos aparelhos culinários que ainda funcionassem e,
sobretudo, na conservação e aproveitamento do calor solar.
A esperança raiou naquela estância do Amor, com a beleza do
arco-íris através de uma nuvem. O jovem par esqueceu o passado,
mais cioso do futuro e todo entregue ao presente venturoso.
Assim viveram alguns meses na ebriedade do amor que os
prendia. Houve já quem dissesse que o amor é a poesia dos sentidos
e o beijo perene de duas almas. Disseram, também, que a glória, a
ciência, o talento, a beleza e a fortuna são incapazes de dar a
felicidade, sem a consagração do amor.
Nós poderíamos acrescentar que nesses extremos dias terrenos
só esse amor brilhava, qual uma estrela em meio à noite universal.
Aqueles dois amantes não se advertiam de que se abraçavam dentro
de um sepulcro.
Por vezes, à tarde, quando o Sol se punha atrás das ruínas, Eva
sentia-se angustiada na contemplação do imenso deserto que os
rodeava e, abraçando-se ao bem-amado, não podia reter as lágrimas
que lhe toldavam o olhar. Sim. Ela ainda confiava no futuro... Mas,
quanta solitude, silêncio, desolação! Que estranho espólio de uma
radiosa humanidade! As recordações ali estavam... Os livros,
naquela biblioteca, contavam as glórias todas do passado; as
gravuras como que as reviviam ante os seus olhos maravilhados; os
aparelhos fotográficos repetiam, à vontade, a voz dos mortos
ilustres e até a própria imagem deles, na tela das projeções
telefúticas. Nos velhos cofres metálicos, enormes, podiam as mãos
mergulhar num oceano de moedas de ouro, de todos os timbres e
valores – legado estéril de riquezas inutilmente acumuladas... Os
instrumentos de física e de astronomia, que haviam transformado o
mundo, jaziam no pó.
Senhores do mundo, de todos os seus valores e mobiliários, tudo
possuindo, ei-los ambos mais pobres que os mais pobres mendigos
do passado!
De que serviu tudo isso? – dizia ela passeando os olhos por
todas aquelas conquistas da humanidade extinta –. Sim! para que
todo esse esforço, conquistas, descobertas, crimes e virtudes?
Sucessivamente, cada povo havia crescido e desaparecido.
Alternadamente, cada cidade brilhara na glória e no prazer, para
acabar em pó. Ei-las, ali, patentes naquelas ruínas que cobriam o
solo, amontoadas, superpostas, ruínas de ruínas, sobre ruínas. E as
últimas teriam a mesma sorte. Dos bilhões de homens que aqui
viveram, que resta? Nada.
– Dize-me pois, meu bem-amado, tu que tudo sabes, porque, e
para que teria Deus criado a Terra? E por que a Humanidade? Não
achas, meu querido, que esse Deus é um tanto louco? Todos esses
bilhões de criaturas que vieram pulular e disputar sobre esta
pequenina bola girante, de que e para que serviram, uma vez que
nada resta? Dar-se-á não estejam agora, precisamente, como se
nada houvera existido? Eu bem sei que os habitantes de Marte
tiveram a mesma sorte e que os de Vênus, quando se comunicavam
conosco, há alguns séculos, também, não se consideravam votados
ao aniquilamento. Agora, aí temos os jupterianos que começam
ainda incapazes de compreender nossas mensagens. Terão o mesmo
destino... Dize-me: comédia ou drama, a criação? Diverte-se o
Criador com os seus bonecos, ou apraz-lhe fazê-los sofrer? É
idiota? Que me dizes, meu amor?
– Para que indagar, oh! minha Eva? Que teus olhos não se
turvem assim... Assenta-te aqui, nos meus joelhos, vem repousar a
bela cabecinha junto do meu coração. Deus, crê, só fez o mundo
para o amor. Esquece, pois, tudo o mais.
– Mas, como esquecer, fechar os olhos, abafar a razão e o
coração nestas horas tão solenes? Sim, nosso amor é tudo,
absolutamente tudo. Mas, meu querido, como não pensar ainda que
todos os casais que nos precederam, desde o princípio do mundo,
desapareceram, também eles, e que todos esses amores que
aureolaram de esperanças os votos humanos; todos esses ósculos
divinais, de lábios nos quais dir-se-ia reascender um gozo eterno;
todos esses arroubos se perderam, se diluíram em fumo; – sim, em
fumo – e que de tudo não resta mais que nada, nada... Oh! meu
Omégar, a verdade é que a Humanidade viveu dez milhões de anos
para acabar nada sabendo! A Ciência entre todas maravilhosa, a
ciência do universo, a Astronomia, tudo nos ensinou, deu-nos a
verdadeira religião, mas, não nos demonstrou a lógica de Deus!
– Queres muito saber, Eva. Contudo, não ignoras que a
humanidade terrestre flutuou no incognoscível e nós não podemos
conhecer o incognoscível. Sabe o ponteiro do relógio porque foi
feito e porque gira? Precisamos resignar-nos com a circunstância de
não havermos passado de ponteiros. Somos seres finitos e Deus é
infinito. Não há estalão de medida entre o finito e o infinito.
Estamos na situação de uma rodinha de relógio, que, metida na sua
caixa, raciocinasse sobre a indústria relojoeira. Seguramente, ela
poderia também raciocinar durante dez milhões de anos, sem
concluir que o mecanismo em que se integra tem por fim
corresponder ao movimento diurno do nosso planeta. Minha
querida: a rodinha do relógio só tem uma função, que é rodar.
Todas as doutrinas filosóficas e religiosas resultaram vãs na
indagação do absoluto.
“Entretanto, a Ciência não é totalmente ilusória. Sabemos que o
mundo visível, atingível, perceptível aos nossos sentidos, não existe
sob as formas aparentes que nos impressionam e não passam de um
véu do mundo real e invisível. Sabemos que o átomo é intangível,
que a luz, o calor e o som não existem, bem como a solidez
aparente dos corpos. Nossos sentidos, nossos meios de percepção
apenas nos dão uma falsa imagem da realidade. Saber que assim é
já é alguma coisa, bem como que a realidade reside no invisível,
que a alma é uma força psíquica indestrutível, que se torna
pessoalmente imortal, isto é, consciente de sua imortalidade, desde
que começou a viver intelectualmente, desprendida da espessa
ganga material. Sobre os bilhões de seres humanos que povoam a
Terra, a proporção dos conscientes de sua imortalidade,
conservando a lembrança de existências anteriores, é fraca, mesmo
em Júpiter, sua estância atual. Mas, o progresso é a lei da Natureza
e todos deverão atingir esse valor consciencial. Essa é a força
psíquica que movimenta o mundo. O Universo é um dinamismo. O
visível aos olhos do corpo é composto de elementos invisíveis. O
que vemos é feito de coisas que se não vêem. As classificações
científicas que, durante tantos milhões de anos, constituíram a
ciência humana, foram baseadas em sensações superficiais. A
Humanidade, porém, pela análise mesma das sensações, pela
observação e pela experimentação, aprendeu que o Universo é
regido por forças imateriais, que as almas são realidades, seres
indestrutíveis, que podem comunicar-se, manifestar-se à distância;
que o espaço não é barreira de separação, antes laço de união entre
os mundos; que a pequenina Terra, ora moribunda, é um astro
celeste como os seus vizinhos e que a sua Humanidade não teria
passado de uma diminuta fração das muitas que existem no
Universo. E, como se perpetuou por tanto tempo essa humanidade?
Certo, pela suprema lei do amor. Foi ele, o amor, quem lançou as
almas no cadinho universal. É o amor que deve pairar acima do
tempo, como se verifica na história da Humanidade. Ele, o criador
perpétuo, universal; a imagem sensível e deslumbrante do Poder
invisível e incognoscível, que irradia eternamente no mistério
insondável.”
Eis como, naqueles últimos dias do mundo, os dois últimos
exemplares da Humanidade ainda conversavam sobre os grandes
problemas que, de todos os tempos, desafiaram a curiosidade dos
homens. Eles tinham-se apoiado na esperança do além e, naquele
momento, essa esperança lhes irradiava no coração como um fanal
inextinguível.
Ali estava, realmente, o verdadeiro sol. O outro, o do planeta,
continuava a brilhar e aquecer, sempre. Nossas personagens tinham
a impressão de que viveriam muito tempo ainda. O sistema
circulatório das águas e a extração dos princípios alimentares
funcionavam, graças ao esforço dos servos infatigáveis, parecendo
que a última hora não soaria tão cedo no quadrante circular dos
destinos.
Mas, um dia, por mais perfeito que fosse, esse sistema deveria
parar. As águas subterrâneas cessaram de correr. O solo congelou-
se a grandes profundidades. Os raios solares prosseguiam
aquecendo as habitações de tetos envidraçados, mas planta alguma
poderia resistir à falta da água.
Todos os esforços combinados da ciência e da indústria não
lograram dar à atmosfera os elementos nutritivos, peculiares à
atmosfera de uns tantos mundos, e o organismo humano reclamava
sempre os reconstituintes que aqueles esforços tinham obtido, qual
vimos, do ar, das águas e das plantas. Secas as fontes, decretada
estava à condenação.
Depois de haver enfrentado todos os óbices e reconhecida a
inutilidade da luta, o último casal humano não se resignou a esperar
a morte. Outrora, antes de se conhecerem, cada qual de per si a
esperava sem temor. Agora, porém, cada qual queria seqüestrar o
ser amado ao destino impiedoso. À só idéia de ver o seu Omégar
inanimado junto dela, Eva experimentava uma sensação tão
dolorosa que nem sabia como lhe pudesse resistir. E ele, por sua
vez, desesperava-se de não poder arrebatá-la deste mundo
condenado a perecer, voando para aquele radioso Júpiter, sem
deixar na Terra o belo corpo que adorava.
Imaginou que ainda poderia existir alguma região que retivesse
um pouco daquela água preciosa, à mingua da qual a vida se esvaía.
Posto que já debilitado, tomou a suprema resolução de partir, de
investigar. O avião elétrico ainda funcionava. Deixando a última
cidade humana, que já não era mais que um cemitério, os dois
últimos descendentes da extinta humanidade esqueceram as regiões
inóspitas, em busca de qualquer oásis desconhecido.
Todos os antigos reinos deslizaram a seus pés. Reconheceram
vestígios das últimas metrópoles focos de civilização, que agora
pontilhavam de ruínas toda a extensa zona equatorial. Tudo
acabado, tudo morto! Em pouco, tornaram a ver a cidade que
haviam deixado e onde, sabiam, faltava, como alhures, todo e
qualquer elemento de vida. Não desceram e assim prosseguiram
percorrendo, naquele vôo solitário, todas as regiões que animaram
as últimas etapas históricas. Por toda parte, contudo, nada mais que
ruínas, silêncio, desolação! Um deserto de gelo. Nem mais relva,
nem plantas, mesmo polares.
Os últimos cursos d’água desenhavam-se como em mapa
geográfico e via-se que, junto deles, a vida humana se prolongara.
Estavam agora, porém, exauridos, esgotados para sempre, e,
quando por vezes se lhes patenteava o fundo de um lago, era um
lago de pedra. O Sol, mesmo no equador, já não fundia os gelos
eternos. Os animais, espécie de ursos de longo pêlo, que ainda
resistiam, mal encontrariam, em geladas furnas, exígua alimentação
vegetal. Viam-se também, de vez em quando, uma espécie de
morsas e pingüins caminhando sobre o gelo, e grandes aves
cinzentas voando rasteira, melancolicamente.
Os míseros condenados não encontraram em parte alguma o
desejado oásis. A noite caía. No céu, nem uma nuvem. Um vento
menos frio, soprando do sul, havia-os levado a planar sobre a antiga
África, transformada em região glacial. O mecanismo do avião
paralisara. O frio, mais que a fome, estarrecia-os no fundo da sua
nacele forrada de peles.
Pareceu-lhes perceber uma ruína e tomaram pé. Era um grande
tabuleiro quadrangular, mostrando os fundamentos assentes em
grandes massas graníticas. Nem mais nem menos que vestígios de
uma pirâmide egípcia. Construção milenar, destinada à eternidade,
ela sobrevivera, primeiramente, em pleno deserto, à civilização da
qual era símbolo; mais tarde, descera abaixo do nível oceânico,
com os territórios do Egito, da Núbia e da Abissínia; depois,
tornara a emergir e fora pomposamente restaurada no seio de uma
nova capital e de uma civilização mais opulenta que as de Tebas e
Mênfis, até que, finalmente, acabou em abandono nas solidões
desérticas; único monumento das primeiras idades que ainda
subsistia, graças à sua conformação geométrica.
– Descansemos aqui – disse Eva – sorridente e melancólica.
Pois que estamos condenados à morte e, ao demais, quem o não
foi? Quero morrer tranqüilamente em teus braços.
Procuraram uma anfractuosidade nas ruínas e ali se assentaram
conchegados, à face da solidão tumular. Ela encolhia-se toda,
febrilmente, abraçando-se ao companheiro e procurando reagir ao
frio implacável que a invadia. Ele a atraía e apertava de encontro ao
coração, como se quisesse reaquecê-la com o fogo dos seus beijos.
– Amo-te e ...morro – disse; mas, logo emendou: – Não, tu
disseste que nós não morremos ... Vês a estrela que nos chama?
Nesse instante, ouviram atrás deles, saindo do túmulo de
Khéops, um leve ruído semelhante ao farfalhar de uma ramagem
agitada pelas brisas. Trêmulos, voltaram-se num movimento único
e entreviram uma sombra, que lhes parecia autoluminosa – visto
que a noite se fechava e não havia luar – deslizando, antes que
marchando, e célere se lhes aproximando, até que estacou diante de
seus olhos aterrados, estupefatos.
– Nada temais – disse –, venho receber-vos. Não morrereis...
Ninguém morre, ninguém jamais morreu. O tempo rola na
eternidade e a eternidade fica. Fui Khéops, eu que vos falo e aqui
reinei, nos prístinos tempos deste mundo. Depois, aqui expiei meus
crimes em sucessivas existências servis; e quando fiz jus à
imortalidade, fui habitar Netuno, Ganímedes, Reia, Titã, Saturno,
Marte e outros mundos de vós desconhecidos. Atualmente, moro
em Júpiter. Nos tempos áureos da Terra, esse planeta era ainda
inabitável para seres inteligentes e percorria estágios preparatórios.
Agora, é esse mundo colossal que recebe o patrimônio dos
progressos terrenos. Os mundos se sucedem no tempo, como no
espaço. Tudo é eterno, tudo se funde no divino. Confiai em mim,
vinde comigo.
Enquanto falava o velho Faraó, sentiram delicioso fluido
penetrar-lhes na mente, como sói acontecer quando ouvimos uma
doce melodia. Uma sensação de felicidade transcendente e calma os
invadiu inteiramente. Nunca um sonho, um êxtase, lhes produzira
tal gozo.
Eva ainda estreitou mais fortemente o companheiro... “Amo-te,
amo-te!” repetia. Omégar depôs-lhe nos lábios já frios um terno
beijo, e ouviu que ela ainda lhe dizia num frêmito: “oh! quanto o
teria amado!..”
Júpiter lá estava a cintilar no céu.
Eva abriu os olhos, fitou o planeta gigantesco e pareceu que se
abismava no seu fulgor, como fascinada por alguma visão. De
repente, o semblante iluminou-se-lhe num êxtase radiante. Muita
vez, com o derradeiro suspiro do moribundo, vê-se um halo de
tranqüilidade estender-se, banhar-lhe a fronte e nela imprimir o selo
de um sonho inefável. Assim, e porventura mais radiosamente,
numa iluminação divina, transfigurou-se o semblante da última
mulher.
Ainda tentou falar, estendeu os braços para o astro e, reanimada
por uma energia nova, ei-la a exclamar, admirada:
“Sim, é verdade, lá está ela, a Verdade que me fizeste pressentir.
Como são belos! Espíritos imortais, eis-me convosco. Ah! que bem
o disseste – nada morre. Estou consolada, Omégar está comigo,
vivemos, continuamos a viver sempre, sempre!”
Exaltava-se ainda. Fixou em Omégar os olhos fulgurantes de
entusiasmo e, contudo, não o viu. “Sim – disse ela – ele está
comigo. Nós vivemos, sentimos, vemos... A felicidade está na vida,
na vida... eterna.”
Levada por uma força sobrenatural, erguera-se como se quisesse
alçar-se à imensidão do céu, mas, logo, rodando nos calcanhares,
recaiu nos braços de Omégar, que se apressara em ampará-la.
Estava. morta. Beijou-a ainda nos lábios gélidos, trespassado de um
frio glacial e sentiu, ele próprio, que a vida lhe fugia. O coração
bateu-lhe precipite e, de repente, parou.
Seus olhos se apagaram confundidos na luz de Júpiter, fechando
as pálpebras suavemente.
A sombra de Khéops elevou-se, desapareceu no espaço. A quem
pudesse ver, não com os olhos do corpo, que só apreendem as
vibrações físicas, mas, com os olhos da alma, que captam as
vibrações psíquicas, deparar-se-ia então, levadas por aquela
sombra, duas minúsculas flamas conchegadas, conjugadas na
mesma atração, ascendendo ao céu.
Daí por diante, nada mais restava na Terra, a não ser alguns
míseros grupos de criaturas a morrerem de fome e de frio – assim
uma espécie de esquimós selvagens, revestidos de peles e buscando
nas cavernas rupestres um derradeiro abrigo. A raça intelectual,
essa estava definitivamente extinta. Algumas espécies animais,
degeneradas, ainda sobreviveram alguns milhares de anos. Depois,
insensível, gradualmente, toda a vida planetária se extinguiu.
***
Estes sucessos ocorreram, como vimos, dez milhões de anos
após a época que estamos vivendo. O Sol continuou a brilhar ainda
por uns vinte milhões de anos e Júpiter e Saturno foram, então, a
sede de gerações florescentes. Ela, a Terra, continuou a girar no
espaço, qual desolada necrópole, na qual não se ouviria, jamais, o
pipilar de um pássaro. Eterno silêncio amortalhou as ruínas da
Humanidade morta. Toda a história humana se esvaíra qual nuvem
de fumo.
E no abismo celeste, na amplidão infinita dos céus, nenhuma
lápide, uma só lembrança assinalou o ponto em que o nosso mísero
planeta exalara o derradeiro suspiro.
Epílogo
Dissertação filosófica
Apocalipse, X 6.
FIM
Notas:
1
Havia mais de 300 anos que o Observatório de Paris se tornara
apenas o núcleo administrativo da astronomia francesa. De
preferência às cidades baixas, populosas e poeirentas, as
observações se faziam agora nas montanhas mais altas,
emergentes de atmosferas puras e afastadas de tumultos e
distrações mundanas. O telefone mantinha os observadores em
comunicação permanente com a sede administrativa. Os
aparelhos, aí conservados, não se destinavam senão a satisfazer a
curiosidade de alguns sábios residentes em Paris, ou para
verificação de algumas descobertas.
2
Escusado dizer que a linguagem do século XXV vai aqui
traduzida na do XIX.
3
Antiga física do globo.
4
I, 7-8; III, 13; IV, 5; VI, 2-3; XI, 26; XV.
5
Porque o mesmo Senhor do céu descerá com algazarras, e com
voz de Arcanjo, e com a trombeta de Deus: e os que em Cristo
morreram, primeiro ressuscitarão: – Depois nós outros, que
ficarmos vivos, seremos com eles juntamente arrebatados, saindo
ao encontro do Senhor em o ar: e assim estaremos sempre com o
Senhor. – Assim que uns aos outros consolai-vos com estas
palavras.
6
No ano de 1033, ano da grande fome, os condes de Tusculum
fizeram papa a uma criança de doze anos – Benedito IX, assaz
desenvolvido para a sua idade, tanto que libertino, ladrão e
homicida. Antes que completasse os dezesseis anos, os seus
escândalos chegaram a tal ponto que os capitães romanos se
conjuraram para trucidá-lo no altar, no momento exato de elevar
a hóstia. Salvou-o o eclipse a que nos referimos. Os conjurados
estarrecidos não ousaram tocar-lhe. Todavia, teve de fugir e
refugiar-se em Cremona, junto do imperador Conrado. Henrique
III o reentronizou em 1038 e ele ainda reinou por seis anos, como
verdadeiro sultão do seu harém. Houve quem acreditasse que ele
ia abdicar para esposar a filha de um barão romano, mas o fato é
que reteve a tiara até 1044, quando foi expulso de Roma pelo
povo, que elegeu um pontífice mais sério, Silvestre III. Quarenta
e nove dias depois, Benedito regressava à testa de um bando de
salteadores. Finalmente, no ano seguinte abdicou, com a
condição de receber a renda de São Pedro, prometida pelos
ingleses ao seu sucessor Gregório VI. Em 1045 havia três papas:
Benedito IX, reconhecido pelo partido feudal, que não havia
desarmado; Silvestre III, que pontificava num castelo-forte, nos
montes da Sabina, e Gregório VI, vigário de Roma, no Vaticano.
O imperador Henrique III, de um só golpe, mediante um concílio,
conseguiu depor e enclausurar Gregório e Silvestre, nomeando
um quarto papa – Clemente II –, consagrado na noite de Natal de
1046.
Mas, Benedito não dormia. No ano seguinte, atirou-se para
Roma, qual um abutre, conseguiu envenenar o papa alemão e
reinou ainda oito meses no trono de São Pedro. O exército do
conde de Toscana chegou a Roma com um novo papa e o
suprimiu, então, definitivamente, quando contava 26 anos de
idade. Tal o fim de um papa dessa época. O monge Raul Glaber
não entra em minudências e contenta-se em dizer que seria coisa
horrível o relatar as infâmias de tal vida.
7
O dia imediato ao 4 de Novembro, passou a ser 15.
8
Mal se publicava a 1ª edição desta obra (1º de Dezembro de
1893), um novo profeta, um sábio vienense, Rodolfo Falb,
anunciava um novo fim do mundo, desta vez para 13 de
Novembro de 1899, por força de um encontro cometário. Ora, o
que nós esperamos nessa data não é um cometa, mas inofensiva
chuva de estrelas cadentes.
9
Desde 1893, diversos Estados europeus apresentavam uma dívida
de 121 bilhões. Somente na França, a dívida pública atingia a 32
bilhões.
Todo cidadão francês, ao nascer, vinha tributado em 987 fs. Os
americanos do norte, em compensação, não tinham ônus superior
a 18 dólares, ou 90 francos. O imposto per capita elevava-se a
104 fs. O aumento da dívida pública, só em França, saltou de
13.414 milhões, em 1869, para 31.660 milhões, em 1891.
A França faz a si mesma, atualmente, 600 milhões de novas
dívidas em cada ano. É verdade que até hábitos muito elegantes
são especialmente destinados a reforçar o orçamento. Só o tabaco
faculta ao Estado um milhão de francos por dia. Que coisa
maravilhosa a organização social do mundo!
As despesas exclusivamente militares aferem-se, para a Europa,
na proporção seguinte (em bilhões de francos): 1865 - 2,715;
1870 - 2,478; 1880 - 3,918; 1893 - 4,758.
A Europa mantém atualmente 3.300.000 homens em armas. Cada
militar custa, em média, 1.442 fs. e poderia produzir trabalho útil,
no mínimo, equivalente a 1.000 fs. por ano.
A barbaria européia contemporânea representa, portanto, uma
perda bruta de oito bilhões anuais, ou seja, de vinte e dois
milhões por dia. A essa cifra deve-se adicionar ainda o capital
imobilizado e improdutivo do material bélico, calculável em 30
bilhões.
10
A partir do século XIX os estudos históricos da Natureza tinham
descoberto as oscilações verticais, seculares, da crosta terrestre,
variando segundo as regiões, e constatara, assim, a lenta
depressão do solo ocidental e setentrional da França e a invasão
progressiva do mar, até onde chegavam às tradições históricas.
Viram como, pouco a pouco, o mar destacara do continente as
ilhas de Tersey, as Minquiers, Chausey, Cezembre, Monte São
Miguel, engolindo as cidades de Is. Helion, Tommem, Harbour,
São Luís, Monny, Bourgneuf, Feillette, Paluel, Nazado e a
península armoricana a recuar lentamente diante da invasão
oceânica. De século em século a hora diluviana fora soando para
Herbavilla, a oeste de Nantes, para Saint-Denis-Chef-de-Caux, ao
norte do Havre, para Saint-Etienne-de-Paluel e Gardoine ao norte
de Dol, para Tolente, a oeste de Brest, para Porspican, vizinha de
Cancale. Mais de oitenta localidades da Holanda tinham sido
tragadas no qüinquagésimo século. Noutras regiões as
modificações se verificaram em sentido inverso, o mar havia
recuado. Ao norte e oeste de Paris, porém, a dupla ação do
abaixamento do solo e erosão das costas produziram em 8.000
anos um lençol líquido navegável para navios de alto porte.
11
Mais de um leitor há de julgar muito suportável este clima, visto
podermos ao presente citar regiões de temperaturas médias
inferiores a essa e que, nem por isso, deixam de ser habitadas.
Temos por exemplo, Verchnolansk, cuja temperatura média anual
é de 19,3 graus. Mas, nessas regiões, há um estio durante o qual o
gelo se funde e, se em Janeiro sofrem um frio de 60 graus e até
mais, gozam em Julho de 15 ou 20 acima de zero. Ao limite em
que chegamos na história do mundo, dava-se o contrário, a
temperatura média da zona equatorial era constante e, mais do
que nunca, o gelo poderia fundir-se.