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História Medieval

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História Medieval

Prof. Fabiano Dauwe


Prof. Thiago Juliano Sayão
Prof. Itamar Siebert

2013
Copyright © UNIASSELVI 2013

Elaboração:
Prof. Fabiano Dauwe
Prof. Thiago Juliano Sayão
Prof. Itamar Siebert

Revisão, Diagramação e Produção:


Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI

Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri


UNIASSELVI – Indaial.

930
D244h Dauwe, Fabiano
História medieval / Fabiano Dauwe; Thiago Juliano Sayão;
Itamar Siebert. Indaial : Uniasselvi, 2013.

284 p. : il

ISBN 978-85-7830- 717-2

1. História do mundo antigo. 2. História medieval.


I. Centro Universitário Leonardo da Vinci.
Apresentação
Prezado(a) acadêmico(a)!

Nesta disciplina, vamos estudar a Idade Média. É um período histórico


fascinante, que nos “transporta” facilmente a um mundo fantástico, repleto
de guerreiros bárbaros, servos feudais, cavaleiros em armaduras, cruzados
e sarracenos. Esse parece ser um mundo tão distante do nosso e, ao mesmo
tempo, tão familiar que mexe profundamente com a nossa imaginação,
como comprova a enorme quantidade de livros, seriados, contos de fadas
e filmes que existem sobre a Idade Média; para completar, o período parece
(especialmente há alguns anos) “estar na moda”.

O objetivo deste Caderno de Estudos, além de transmitir a você alguns


conhecimentos sobre os acontecimentos que são tradicionalmente estudados
nesse período - e que realmente são importantes -, é quebrar em parte a visão
tradicional e limitada sobre esse período de mil anos. Ao contrário do que
acredita o senso comum, a Idade Média foi um período repleto de inovações
tecnológicas, mudanças sociais, econômicas e demográficas profundas e
constantes, intensas trocas culturais e uma economia comercial fortemente
globalizada, em que a cultura letrada foi preservada e, em determinadas
partes do mundo, floresceu como nunca havia acontecido antes.

Se toda essa imagem nova parece estranha, considerando o que


sabemos sobre a Idade Média na Europa, isso ficará claro quando observarmos
esse período a partir de uma perspectiva diferente. Não apenas vamos repensar
o que ocorreu na própria Europa (e como isso ocorreu), mas também veremos
a história de outras regiões muito mais dinâmicas, naquela época, do que a
sociedade agrária, fechada e beligerante que surgiu com o fim do Império
Romano do Ocidente. Há muito mais na Idade Média do que a Europa, e
desfazer essa imagem eurocêntrica é fundamental para entendermos não
apenas o período que desejamos estudar como o próprio período histórico em
que vivemos. Hoje, não é mais possível olharmos para o mundo simplesmente a
partir de um predomínio dos países tradicionalmente poderosos: o mundo está
fragmentado demais, geopoliticamente falando, para que isso seja suficiente.

O caderno que você tem em mãos é uma reformulação da edição


original. Nesta versão, algumas discussões foram ampliadas, outras foram
inseridas. A estrutura do caderno foi ligeiramente alterada, mas manteve-se
uma organização baseada, na medida do possível, em critérios cronológicos.

A primeira unidade deste caderno trata dos primórdios da Idade


Média; inicialmente, uma discussão teórica e historiográfica sobre o seu
significado, seguida dos eventos fundantes desse período: a queda do Império
III
Romano, a política e a religião nos primeiros séculos, tanto na Europa quanto
no novo mundo muçulmano.

A segunda unidade concentra-se nas grandes civilizações da época e


suas realizações: Império Romano do Oriente (Bizantino), mundo islâmico e
Europa feudal.

A terceira unidade trata dos eventos que transformaram a sociedade


feudal e deram origem ao mundo moderno que será objeto de estudos futuros:
as Cruzadas, o avanço mongólico e a chamada Baixa Idade Média.

A intenção deste caderno não é esgotar o tema, mas dar a você uma
visão muito resumida do que um professor de História precisa saber para
ensinar Idade Média aos seus alunos em sala de aula.

Alguns dos temas aqui abordados talvez não estejam no currículo


tradicional das escolas. No entanto, é fundamental que você tenha em mente,
o tempo todo, que, se deseja ser um bom professor, terá que conhecer muito
bem o assunto que ensinará, o que significa, no mínimo, conhecer mais do que
o material que utilizará em sala de aula. Este caderno não pode, nem pretende
apresentar tudo: em vez disso, o objetivo é trazer uma visão diferente sobre
aquela história contada, para que você possa observar os livros de História
com um olhar mais crítico.

Portanto, não cometa o erro de ler pouco sobre algum tema ou de


achar que algumas páginas (ou alguns tópicos resumidos) dirão tudo o que
você precisa saber sobre um assunto.

Não pare e tenha sempre em mente as razões que levaram você a


desejar saber o suficiente sobre isso para ser capaz de ensinar outras pessoas.

Bons estudos!

Fabiano Dauwe
Thiago Juliano Sayão
Itamar Siebert

IV
UNI

Você já me conhece das outras disciplinas? Não? É calouro? Enfim, tanto para
você que está chegando agora à UNIASSELVI quanto para você que já é veterano,
há novidades em nosso material.

Na Educação a Distância, o livro impresso, entregue a todos os acadêmicos desde 2005, é o


material base da disciplina. A partir de 2017, nossos livros estão de visual novo, com um formato
mais prático, que cabe na bolsa e facilita a leitura.

O conteúdo continua na íntegra, mas a estrutura interna foi aperfeiçoada com nova diagramação
no texto, aproveitando ao máximo o espaço da página, o que também contribui para diminuir
a extração de árvores para produção de folhas de papel, por exemplo.

Assim, a UNIASSELVI, preocupando-se com o impacto de nossas ações sobre o ambiente,


apresenta também este livro no formato digital. Assim, você, acadêmico, tem a possibilidade
de estudá-lo com versatilidade nas telas do celular, tablet ou computador.
 
Eu mesmo, UNI, ganhei um novo layout, você me verá frequentemente e surgirei para
apresentar dicas de vídeos e outras fontes de conhecimento que complementam o assunto
em questão.

Todos esses ajustes foram pensados a partir de relatos que recebemos nas pesquisas
institucionais sobre os materiais impressos, para que você, nossa maior prioridade, possa
continuar seus estudos com um material de qualidade.

Aproveito o momento para convidá-lo para um bate-papo sobre o Exame Nacional de


Desempenho de Estudantes – ENADE.
 
Bons estudos!

UNI

Olá acadêmico! Para melhorar a qualidade dos


materiais ofertados a você e dinamizar ainda mais
os seus estudos, a Uniasselvi disponibiliza materiais
que possuem o código QR Code, que é um código
que permite que você acesse um conteúdo interativo
relacionado ao tema que você está estudando. Para
utilizar essa ferramenta, acesse as lojas de aplicativos
e baixe um leitor de QR Code. Depois, é só aproveitar
mais essa facilidade para aprimorar seus estudos!

V
VI
Sumário
UNIDADE 1 - AS ORIGENS DA IDADE MÉDIA ............................................................................ 1

TÓPICO 1 - INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS SOBRE A IDADE MÉDIA .................................. 3


1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 3
2 SOBRE O CONCEITO DE IDADE MÉDIA .................................................................................... 4
2.1 A IDADE MÉDIA E O SENSO COMUM ..................................................................................... 4
2.2 OS SIGNIFICADOS DA IDADE MÉDIA ..................................................................................... 6
2.2.1 Imaginando . ............................................................................................................................... 6
2.2.2 O problema em julgar o passado . ........................................................................................... 6
2.2.3 Evitando o anacronismo ........................................................................................................... 7
2.2.4 O conceito de “idade média” é anacrônico! ........................................................................... 8
3 O CONCEITO DE IDADE MÉDIA APÓS O RENASCIMENTO ............................................... 9
3.1 NA REFORMA RELIGIOSA .......................................................................................................... 9
3.2 NO ILUMINISMO ........................................................................................................................... 9
3.3 O ROMANTISMO E A IDADE MÉDIA ...................................................................................... 10
3.4 A PERSPECTIVA LIBERAL . .......................................................................................................... 11
3.5 A PERSPECTIVA MARXISTA . ...................................................................................................... 12
4 CONCEITOS MODERNOS ................................................................................................................ 12
5 FAZ SENTIDO FALAR EM “UMA” IDADE MÉDIA? .................................................................. 13
LEITURA COMPLEMENTAR ............................................................................................................... 15
RESUMO DO TÓPICO 1 ....................................................................................................................... 17
AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 18

TÓPICO 2 - A IDADE MÉDIA NA HISTORIOGRAFIA ............................................................... 19


1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 19
2 TEORIAS SOBRE O INÍCIO DA IDADE MÉDIA ........................................................................ 20
2.1 A IDADE MÉDIA E A QUEDA DO IMPÉRIO ROMANO . ...................................................... 20
2.1.1 Os contemporâneos: Vegécio e Salviano ................................................................................ 20
2.1.2 Uma visão Iluminista: Gibbon e a “decadência moral” ....................................................... 21
2.1.3 Os grandes sistemas civilizadores: Toynbee ......................................................................... 22
2.2 A TEORIA DOS MÚLTIPLOS FATORES ..................................................................................... 22
2.3 TEORIAS DO COLAPSO AMBIENTAL . ..................................................................................... 24
2.4 TEORIAS DA TRANSFORMAÇÃO ............................................................................................. 25
3 TEORIAS SOBRE O FINAL DA IDADE MÉDIA .......................................................................... 27
3.1 A TEORIA CLÁSSICA .................................................................................................................... 27
3.2 A EXPLICAÇÃO A PARTIR DAS PERIODIZAÇÕES ............................................................... 28
3.3 JACQUES LE GOFF E A “LONGUÍSSIMA IDADE MÉDIA” . ................................................. 29
3.4 QUAL PERIODIZAÇÃO ADOTAR? ........................................................................................... 30
LEITURA COMPLEMENTAR ............................................................................................................... 31
RESUMO DO TÓPICO 2 ....................................................................................................................... 34
AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 35

TÓPICO 3 - ANTECEDENTES: A ANTIGUIDADE TARDIA ........................................................ 37


1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 37

VII
2 O AUGE E A DECADÊNCIA DO IMPÉRIO ROMANO .............................................................. 37
2.1 POR QUE A DECADÊNCIA? ........................................................................................................ 39
2.1.1 O fim das conquistas militares . ............................................................................................... 39
2.1.2 A crise do século III ................................................................................................................... 40
2.2 OS REFORMADORES: DIOCLECIANO E CONSTANTINO . ................................................. 43
2.3 AS ORIGENS REMOTAS DO FEUDALISMO . ........................................................................... 45
3 OS BÁRBAROS NO IMPÉRIO DO OCIDENTE ........................................................................... 47
3.1 OS HUNOS ....................................................................................................................................... 48
3.2 A QUEDA DE ROMA ..................................................................................................................... 50
LEITURA COMPLEMENTAR ............................................................................................................... 51
RESUMO DO TÓPICO 3 ....................................................................................................................... 54
AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 55

TÓPICO 4 - O ESTADO E A IGREJA NA IDADE MÉDIA ............................................................. 57


1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 57
2 OS REINOS BÁRBAROS .................................................................................................................... 57
3 O REINO FRANCO .............................................................................................................................. 60
3.1 O REINADO DE CARLOS MAGNO . .......................................................................................... 62
3.1.1 O Renascimento Carolíngio ..................................................................................................... 63
3.1.2 A divisão do Império . ............................................................................................................... 63
3.2 NOVOS INVASORES ...................................................................................................................... 64
4 A IGREJA NA ALTA IDADE MÉDIA .............................................................................................. 65
4.1 SANTO AGOSTINHO ................................................................................................................... 65
4.2 O ARIANISMO ................................................................................................................................ 66
4.3 OS BÁRBAROS E A IGREJA .......................................................................................................... 67
4.4 A REGRA DE SÃO BENTO . .......................................................................................................... 68
LEITURA COMPLEMENTAR ............................................................................................................... 70
RESUMO DO TÓPICO 4 ....................................................................................................................... 73
AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 74

TÓPICO 5 - AS ORIGENS DO ISLAMISMO .................................................................................... 75


1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 75
2 UMA NOVA FÉ: O ISLAMISMO ...................................................................................................... 76
2.1 OS PRIMÓRDIOS: A ARÁBIA DO SÉCULO VII ........................................................................ 77
2.2 MAOMÉ E A CRIAÇÃO DO ISLAMISMO ................................................................................. 78
2.3 MORTE E SUCESSÃO DE MAOMÉ . ........................................................................................... 79
3 OS PRINCÍPIOS BÁSICOS DO ISLAMISMO .............................................................................. 80
3.1 OS CINCO PILARES DO ISLÃ . .................................................................................................... 82
3.2 O ALCORÃO .................................................................................................................................... 83
3.3 O DIREITO ISLÂMICO: OS HADITHS, AS SUNAS E A SHARIA . ........................................ 85
3.3.1 As escolas de interpretação da lei . .......................................................................................... 86
3.4 O MODELO DE CONDUTA DO PROFETA ............................................................................... 87
3.5 O MISTICISMO ISLÂMICO: O SUFISMO ................................................................................... 87
LEITURA COMPLEMENTAR ............................................................................................................... 89
RESUMO DO TÓPICO 5 ....................................................................................................................... 92
AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 93

UNIDADE 2 - O MUNDO DAS SOCIEDADES TEOCRÁTICAS ................................................ 95

TÓPICO 1 - A FORMAÇÃO DO IMPÉRIO ROMANO ORIENTAL ............................................ 97


1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 97
2 AS ORIGENS DO IMPÉRIO ROMANO DO ORIENTE .............................................................. 98
2.1 A QUEDA DO IMPÉRIO ROMANO NA PERSPECTIVA ORIENTAL ................................... 98

VIII
2.2 A PERIODIZAÇÃO DA HISTÓRIA BIZANTINA ..................................................................... 99
2.3 O REINADO DE JUSTINIANO ..................................................................................................... 100
2.3.1 A revolta de Nika . ..................................................................................................................... 101
2.3.2 As reformas de Justiniano ........................................................................................................ 102
2.4 A TRANSFORMAÇÃO DO IMPÉRIO ......................................................................................... 103
2.5 AS PERDAS BIZANTINAS NA ÁFRICA .................................................................................... 104
3 CONSTANTINOPLA ........................................................................................................................... 105
3.1 A CIDADE ........................................................................................................................................ 107
3.2 MÉSIA, A PRINCIPAL AVENIDA DE CONSTANTINOPLA .................................................. 108
3.3 O HIPÓDROMO .............................................................................................................................. 111
LEITURA COMPLEMENTAR ............................................................................................................... 113
RESUMO DO TÓPICO 1 ....................................................................................................................... 115
AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 116

TÓPICO 2 - RELIGIÃO E OPULÊNCIA NO IMPÉRIO ROMANO ORIENTAL ....................... 117


1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 117
2 AS CONTROVÉRSIAS RELIGIOSAS BIZANTINAS .................................................................. 117
2.1 O NESTORIANISMO ...................................................................................................................... 117
2.2 A ICONOCLASTIA ......................................................................................................................... 118
2.2.1 A justificativa teológica do conflito ......................................................................................... 119
2.2.2 As motivações sociais do conflito ............................................................................................ 121
2.3 O GRANDE CISMA ........................................................................................................................ 122
3 O AUGE DO IMPÉRIO DO ORIENTE: A DINASTIA MACEDÔNICA .................................. 125
3.1 A CRISTIANIZAÇÃO DA RÚSSIA .............................................................................................. 126
4 A DECADÊNCIA .................................................................................................................................. 128
4.1 MOTIVOS ECONÔMICOS E POLÍTICOS DO DECLÍNIO DE
CONSTANTINOPLA . .................................................................................................................... 128
LEITURA COMPLEMENTAR ............................................................................................................... 132
RESUMO DO TÓPICO 2 ....................................................................................................................... 135
AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 136

TÓPICO 3 - A EXPANSÃO MUÇULMANA E A “ERA DE OURO” DO


ISLAMISMO ...................................................................................................................... 137
1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 137
2 O AVANÇO MUÇULMANO .............................................................................................................. 137
2.1 O CALIFADO RASHIDUN ............................................................................................................ 139
2.2 O CALIFADO OMÍADA ................................................................................................................ 140
2.3 O CALIFADO ABÁSSIDA .............................................................................................................. 142
2.4 A PAX ISLAMICA E A QUEBRA DA UNIDADE ....................................................................... 143
3 MAIS POVOS SE UNEM AO ISLÃ .................................................................................................. 144
3.1 A CONQUISTA DO MAGREBE E DE AL- ANDALUS ............................................................. 144
3.2 OS TURCOS E OS MONGÓIS ....................................................................................................... 146
3.3 A AMPLITUDE DOS DOMÍNIOS MUÇULMANOS: DA ÁFRICA À CHINA ..................... 147
4 A CULTURA MUÇULMANA ............................................................................................................ 148
4.1 AS ARTES . ....................................................................................................................................... 148
4.1.1 Os arabescos ............................................................................................................................... 148
4.1.2 A caligrafia .................................................................................................................................. 149
4.1.3 A arquitetura .............................................................................................................................. 150
4.1.4 Literatura .................................................................................................................................... 151
4.1.5 Outras artes . ............................................................................................................................... 152
4.2 A FILOSOFIA E AS CIÊNCIAS ..................................................................................................... 152
4.2.1 A Educação ................................................................................................................................. 152

IX
4.2.2 A Filosofia ................................................................................................................................... 152
4.2.3 As ciências . ................................................................................................................................ 153
4.3 AS MULHERES E O ISLAMISMO ................................................................................................ 154
4.4 O ISLÃ E OS “INFIÉIS” .................................................................................................................. 156
LEITURA COMPLEMENTAR ............................................................................................................... 157
RESUMO DO TÓPICO 3 ....................................................................................................................... 159
AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 160

TÓPICO 4 - O FEUDALISMO ............................................................................................................... 161


1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 161
2 SOBRE O CONCEITO DE FEUDALISMO ..................................................................................... 161
2.1 AS ORIGENS DO CONCEITO DE FEUDALISMO .................................................................... 162
2.2 CRÍTICAS AO CONCEITO DE FEUDALISMO . ........................................................................ 163
2.3 OS FEUDALISMOS: LOMBARDIA, GRÃ-BRETANHA E OUTROS
LUGARES ......................................................................................................................................... 164
3 OS MODELOS DE FEUDALISMO ................................................................................................... 165
3.1 O MODELO CLÁSSICO DE FEUDALISMO ............................................................................... 165
3.1.1 A homenagem ............................................................................................................................ 165
3.1.2 O feudo . ...................................................................................................................................... 166
3.1.3 As obrigações servis .................................................................................................................. 167
3.2 A PERSPECTIVA MARXISTA . ...................................................................................................... 167
4 AS ORIGENS DO FEUDALISMO .................................................................................................... 169
4.1 A FRAGMENTAÇÃO DO IMPÉRIO CAROLÍNGIO ................................................................ 169
4.2 OUTROS FATORES ......................................................................................................................... 169
4.3 EM RESUMO .................................................................................................................................... 171
5 FUGINDO AO ESQUEMA ................................................................................................................. 171
5.1 REVENDO CONCEITOS . .............................................................................................................. 172
5.2 AS COMUNICAÇÕES .................................................................................................................... 172
5.3 A ECONOMIA ................................................................................................................................. 173
5.4 A NATUREZA E O TEMPO MEDIEVAIS . .................................................................................. 174
6 O AUGE DO FEUDALISMO .............................................................................................................. 174
6.1 O FIM DAS INVASÕES BÁRBARAS . .......................................................................................... 176
6.2 A PRIMOGENITURA ..................................................................................................................... 176
6.3 A PRESSÃO ECONÔMICA ........................................................................................................... 178
6.4 A EXPANSÃO INTERNA DA SOCIEDADE . ............................................................................. 178
LEITURA COMPLEMENTAR ............................................................................................................... 180
RESUMO DO TÓPICO 4 ....................................................................................................................... 182
AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 184

UNIDADE 3 - A ERA DAS GRANDES TRANSFORMAÇÕES ..................................................... 185

TÓPICO 1 - AS TRANSFORMAÇÕES DO SÉCULO XI E AS CRUZADAS ............................... 187


1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 187
2 AS ORIGENS HISTÓRICAS DAS CRUZADAS ........................................................................... 187
2.1 O SÉCULO XI, PERÍODO DE CONQUISTAS ............................................................................. 187
2.1.1 Os turcos seljúcidas ................................................................................................................... 187
2.1.2 Os primeiros tempos da reconquista ibérica ......................................................................... 188
2.1.3 As conquistas normandas . ....................................................................................................... 189
2.2 A CRISE NA IGREJA NO SÉCULO XI ......................................................................................... 190
2.3 A ECONOMIA EUROPEIA NO SÉCULO XI .............................................................................. 191
2.4 O CONCÍLIO DE CLERMONT ..................................................................................................... 191
3 AS MOTIVAÇÕES PARA AS CRUZADAS .................................................................................... 191

X
3.1 MOTIVAÇÕES ECONÔMICAS .................................................................................................... 191
3.2 MOTIVAÇÕES RELIGIOSAS . ....................................................................................................... 192
3.3 MOTIVAÇÕES POLÍTICAS ........................................................................................................... 192
4 AS CRUZADAS ..................................................................................................................................... 193
4.1 OUTRAS CRUZADAS .................................................................................................................... 195
4.2 O FIM DAS CRUZADAS . .............................................................................................................. 195
4.3 AS CRUZADAS VISTAS PELOS ÁRABES .................................................................................. 196
4.4 AS PERSEGUIÇÕES AOS JUDEUS NAS CRUZADAS ............................................................. 200
RESUMO DO TÓPICO 1 ....................................................................................................................... 201
AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 203

TÓPICO 2 - AS CONQUISTAS MONGÓLICAS .............................................................................. 205


1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 205
2 A ÁSIA CENTRAL ANTES DE GENGIS KHAN ........................................................................... 206
2.1 A CHINA DA DINASTIA TANG . ................................................................................................ 206
2.2 A ROTA DA SEDA .......................................................................................................................... 208
3 GENGIS KHAN E AS CONQUISTAS MONGÓLICAS ............................................................... 210
3.1 A EXPANSÃO MONGOL .............................................................................................................. 211
3.2 SOB DOMÍNIO MONGÓLICO .................................................................................................... 212
3.3 A PAX MONGOLICA ..................................................................................................................... 213
4 CONSEQUÊNCIAS DAS INVASÕES MONGÓLICAS ............................................................... 214
4.1 NA CHINA ....................................................................................................................................... 214
4.2 NO MUNDO MUÇULMANO . ..................................................................................................... 215
4.3 NA EUROPA .................................................................................................................................... 216
RESUMO DO TÓPICO 2 ....................................................................................................................... 218
AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 219

TÓPICO 3 - A IGREJA E A CULTURA NA IDADE MÉDIA .......................................................... 221


1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 221
2 A REFORMA ECLESIÁSTICA DO SÉCULO XI ............................................................................ 221
2.1 O QUE SIGNIFICAVAM “REFORMA” E “IGREJA”? ................................................................ 222
2.2 A IGREJA NO SÉCULO XI . ........................................................................................................... 222
2.3 O MOVIMENTO REFORMISTA ................................................................................................... 223
2.3.1 O celibato clerical . ..................................................................................................................... 223
2.3.2 O Monasticismo ......................................................................................................................... 224
2.3.3 Os cátaros e a Inquisição . ......................................................................................................... 226
3 AS UNIVERSIDADES ......................................................................................................................... 227
4 O RENASCIMENTO DO SÉCULO XII ............................................................................................ 231
4.1 A CONTRIBUIÇÃO GRECO-ÁRABE .......................................................................................... 231
4.2 A REDESCOBERTA DOS CLÁSSICOS NOS ÁRABES .............................................................. 232
4.3 A ESCOLÁSTICA ............................................................................................................................ 234
LEITURA COMPLEMENTAR 1 ............................................................................................................ 236
LEITURA COMPLEMENTAR 2 ............................................................................................................ 237
LEITURA COMPLEMENTAR 3 ............................................................................................................ 237
RESUMO DO TÓPICO 3 ....................................................................................................................... 239
AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 240

TÓPICO 4 - O RENASCIMENTO COMERCIAL E URBANO ....................................................... 241


1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 241
2 A ERA DO PREDOMÍNIO ISLÂMICO DO COMÉRCIO ........................................................... 241
2.1 O EFEITO DAS CONQUISTAS MONGÓLICAS ........................................................................ 243
3 O COMÉRCIO NA EUROPA ............................................................................................................. 244

XI
3.1 AS FEIRAS MEDIEVAIS ................................................................................................................. 245
3.2 A FORMAÇÃO DOS BURGOS ..................................................................................................... 246
4 A VIDA URBANA NA BAIXA IDADE MÉDIA ............................................................................. 247
4.1 DEMOGRAFIA E URBANISMO ................................................................................................... 247
4.2 O SISTEMA CORPORATIVO ........................................................................................................ 249
4.3 A FORMAÇÃO DA BURGUESIA . ............................................................................................... 251
5 O MOVIMENTO COMUNAL E AS CIDADES LIVRES ............................................................. 253
LEITURA COMPLEMENTAR 1 ............................................................................................................ 256
LEITURA COMPLEMENTAR 2 ............................................................................................................ 257
RESUMO DO TÓPICO 4 ....................................................................................................................... 259
AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 261

TÓPICO 5 - AS CORTES MEDIEVAIS ............................................................................................... 263


1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 263
2 AS PRIMEIRAS FORMAS DE REINTEGRAÇÃO POLÍTICA ................................................... 263
2.1 OS EFEITOS DO COMÉRCIO ....................................................................................................... 264
2.2 OS TIPOS DE NOBREZA FEUDAL .............................................................................................. 264
3 AS DISPUTAS ENTRE PODERES PARTICULARES E UNIVERSAIS ..................................... 266
4 A GUERRA DOS CEM ANOS E O NASCIMENTO DA MONARQUIA
ABSOLUTISTA ..................................................................................................................................... 268
5 AS MULHERES E A SOCIEDADE .................................................................................................... 270
LEITURA COMPLEMENTAR ............................................................................................................... 271
RESUMO DO TÓPICO 5 ....................................................................................................................... 272
AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................. 273
REFERÊNCIAS ......................................................................................................................................... 275

XII
UNIDADE 1

AS ORIGENS DA IDADE MÉDIA

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
Esta unidade tem por objetivos:

• compreender os conceitos de Idade Média formulados por historiadores


ao longo dos tempos;

• identificar os principais fatores que levaram à queda do Império Romano


do Ocidente;

• conhecer o processo de formação dos reinos bárbaros;

• perceber o papel que a religião desempenhou na constituição do mundo


feudal;

• caracterizar a religião e a sociedade muçulmanas, compreendendo sua


formação histórica.

PLANO DE ESTUDOS
Esta unidade está dividida em cinco tópicos. Ao final de cada um deles você
encontrará atividades que o(a) ajudarão a refletir e fixar os conhecimentos
abordados.

TÓPICO 1 – INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS SOBRE A IDADE MÉDIA

TÓPICO 2 – A IDADE MÉDIA NA HISTORIOGRAFIA

TÓPICO 3 – ANTECEDENTES: A ANTIGUIDADE TARDIA

TÓPICO 4 – O ESTADO E A IGREJA NA IDADE MÉDIA

TÓPICO 5 – AS ORIGENS DO ISLAMISMO

Assista ao vídeo
desta unidade.

1
2
UNIDADE 1
TÓPICO 1

INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS SOBRE A


IDADE MÉDIA

1 INTRODUÇÃO

Prezado(a) acadêmico(a), estamos iniciando nossos estudos sobre a Idade


Média. É um período que você certamente já viu, muitas vezes, representado no
cinema, em livros, na televisão e na imaginação das pessoas. Os contos de fadas,
as histórias do Rei Arthur, os filmes e seriados sobre cavaleiros, todos parecem
representar uma época com características muito particulares e sobre a qual
pensamos que sabemos muito.

No entanto, essa é uma sensação perigosa. Estamos tão acostumados a ver


uma certa representação da Idade Média e tão acostumados a pensar o período
como a era do feudalismo, do predomínio da Igreja e dos cavaleiros, que nem nos
damos conta de que pode haver muito mais para observar.

Até mesmo em nossos estudos no colégio, quando estudamos alguma coisa


sobre as invasões bárbaras, o feudalismo, as Cruzadas e o renascimento urbano,
acreditamos que isso dá conta de explicar o início, o desenvolvimento e o final
da Idade Média. Isso, claro, para não falar do rótulo “medieval” que as piores
coisas recebem: fala-se em “condições de tratamento medievais”, “instrumentos
de tortura medievais”, “mentalidades medievais” e “técnicas de produção
medievais”. Nesses casos, a palavra medieval significa, respectivamente: “atroz”,
“cruéis”, “retrógradas” e “rudimentares”. Essas descrições, além de historicamente
incorretas, traduzem uma falta de cuidado tremenda com as palavras e reforçam
estereótipos absurdos.

Ao mesmo tempo, existe outra questão fundamental que precisa ser levada
em consideração. A história da Idade Média, como a estudamos, padece de um vício
muito grave de eurocentrismo. Ou seja, está completamente focada na história da
Europa,- mais especificamente da Europa Ocidental: França, Alemanha, Inglaterra
-, e ignora completamente outras regiões, como o mundo muçulmano, onde uma
cultura, muito distinta, estava em seu auge.

Este Caderno de Estudos tem uma dupla finalidade: ao mesmo tempo


pretende transmitir a você informações essenciais sobre essas características da
Idade Média e provocar em você o questionamento dessa visão tão unilateral e
eurocêntrica.

3
UNIDADE 1 | AS ORIGENS DA IDADE MÉDIA

Quando isso acontecer, você verá uma época completamente diferente:


dinâmica, inovadora e vibrante, simplesmente o oposto da tradicional e injusta
imagem de “Idade das Trevas”.

2 SOBRE O CONCEITO DE IDADE MÉDIA


Antes de iniciarmos os estudos sobre a Idade Média, é importante discutir
os significados desse conceito. Como você vai perceber, não falaremos ainda neste
tópico o que a Idade Média foi, nem como surgiu, caracterizou-se ou terminou.
Teremos muito tempo para isso neste caderno. Este tópico servirá para discutirmos
o próprio sentido do termo Idade Média e os cuidados que devemos ter ao analisá-
lo.

Vamos, por enquanto, apenas supor que você tem uma noção do que
signifique Idade Média, que você aprendeu no Ensino Médio e talvez tenha
complementado com algumas leituras próprias. É exatamente essa visão que nos
interessa por enquanto, porque essa é, provavelmente, a visão que seus futuros
alunos terão quando começarem a ter aulas sobre o assunto.

2.1 A IDADE MÉDIA E O SENSO COMUM


Dificilmente vamos encontrar algum período histórico tão carregado de
imagens errôneas e caricaturais quanto a Idade Média. Você conhece muito bem
várias delas: encontra essas imagens com frequência na televisão, no cinema e em
outros meios de comunicação e na fala das pessoas. É muito provável que você
mesmo carregue vários desses preconceitos e nem saiba. Mas, para estudarmos
adequadamente a Idade Média, precisamos antes tomar consciência disso.

AUTOATIVIDADE

Prezado(a) acadêmico(a), vamos fazer uma pesquisa? Entreviste dez ou


mais pessoas que você conhece, de preferência de diferentes idades e origens
sociais, fazendo-lhes as seguintes perguntas: “O que você sabe sobre a Idade
Média?” e “Como você sabe disso?” Ah! Não se esqueça de também responder
às perguntas VOCÊ MESMO, de preferência ANTES de seguir adiante em suas
leituras e de entrevistar os seus conhecidos!

4
TÓPICO 1 | INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS SOBRE A IDADE MÉDIA

As respostas provavelmente vão girar em torno de diversas ideias


preconcebidas e clichês, como o cavaleiro andante salvando uma donzela presa
na torre do castelo, matando dragões ou derrubando os adversários com sua
lança nos torneios; a Inquisição e seus cruéis métodos de tortura, Rei Arthur e
os cavaleiros da Távola Redonda, os servos explorados pelos senhores feudais e
pela Igreja; bárbaros saqueando tudo o que viam pela frente, nobres vestidos em
roupas de couro rudimentar e armaduras de metal prestando homenagens uns aos
outros e forjando alianças militares, padres obesos e beberrões e dezenas de outros
estereótipos.

Provavelmente, ninguém (a menos que você entreviste um estudioso do


assunto) descreverá a Idade Média como uma época de inovações tecnológicas e
filosóficas; do surgimento de culturas inovadoras, da invenção do amor cortês e de
alguns dos nossos costumes de higiene mais básicos.

No entanto, a Idade Média real geralmente está mais próxima disso do que
dos clichês do senso comum, que, às vezes, são pura ficção, como no caso do Rei
Arthur e seus cavaleiros, dos dragões e, também, das donzelas nas torres.

UNI

Prezado(a) acadêmico(a), se você já é, ou quando se tornar professor, que tal


solicitar aos alunos uma pesquisa sobre algum evento histórico da época ocorrido fora da
Europa durante esse período.

Mas, provavelmente, o clichê (ou, antes, o chavão) mais comum será o apelido
de Idade das Trevas, que esse período histórico ganhou há muito tempo e do qual
ainda não foi possível livrá-lo.

Cabe a nós, como historiadores e professores de História, tentar mudar a ideia


que as pessoas têm sobre a Idade Média, criticando as imagens que são difundidas
por nossa cultura e demonstrando a importância crucial desses mil anos, para que
nos tornássemos o que somos hoje.

DICAS

SUGESTÃO DE LEITURAS
Caro(a) acadêmico(a), veja aqui uma lista de livros dedicados a desmistificar a Idade Média:

PERNOUD, Régine. O Mito da Idade Média. Lisboa: Europa-América, 1977.

DUBY, Georges. A Europa e a Idade Média. São Paulo: Martins Fontes, 1988.

LE GOFF, Jacques. Para um novo conceito de Idade Média: tempo, trabalho e cultura no
Ocidente. Lisboa: Estampa, 1980.

5
UNIDADE 1 | AS ORIGENS DA IDADE MÉDIA

2.2 OS SIGNIFICADOS DA IDADE MÉDIA


Agora que já tomamos consciência do nosso desconhecimento sobre a
Idade Média, trataremos de entender o seu significado.

2.2.1 Imaginando

UNI

IMAGINE!
Prezado(a) acadêmco(a)! Antes de começar, vamos fazer um exercício de ficção!

Vamos imaginar que, por algum fenômeno misterioso, chegasse às nossas


mãos um livro de História escrito daqui a mil anos. Esse livro contaria toda a
história do III Milênio, desde o ano 2000 até o final do século XXX. E vamos
imaginar que o mundo em que ele foi escrito fosse completamente diferente do
nosso.

Talvez uma grande crise, uma catástrofe ambiental ou mesmo uma


transformação gradual do mundo que conhecemos criasse uma sociedade
completamente diferente da atual. Imaginemos que a maioria das coisas que hoje
nos parecem importantes não exista mais daqui a mil anos, ou não sejam mais
úteis, ou tenham mudado completamente de sentido.

Neste nosso exercício de ficção, vamos imaginar, também, que os estudiosos


do século XXXI considerem que nós vivemos hoje o momento em que a sociedade
anterior, que eles entenderiam como organizada, começou a entrar em decadência,
e que muita coisa ruim teria acontecido nos séculos seguintes por causa dos nossos
preconceitos, nossos defeitos morais, das nossas escolhas erradas, ou da nossa
inexperiência. Para completar, vamos imaginar que muitas invenções essenciais à vida
nesse futuro só teriam sido inventadas lá pela metade do III Milênio.

2.2.2 O problema em julgar o passado


Agora, pense sobre o que você acharia de um historiador do futuro que
descrevesse a época em que vivemos como uma era de ignorância, porque
acreditávamos em coisas que ele considerava absurdas, fazíamos coisas que
ele considerava ridículas, submetíamos-nos a autoridades que ele considera
inaceitáveis, não conhecíamos muitas coisas essenciais à vida no ano 3000 e
nos preocupávamos com coisas que, na opinião dele, eram erradas ou pouco
importantes. E que isso tudo, para ele, é prova de que os homens do início do
século XXI eram primitivos, ignorantes e supersticiosos, estúpidos, e que vivíamos
em uma época de decadência. Que a época em que ele estivesse escrevendo deixou
6
TÓPICO 1 | INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS SOBRE A IDADE MÉDIA

para trás. E que, por isso, ele resolvesse chamar a nossa época de Idade das Trevas,
um longo período de ignorância, superstição, estupidez generalizada e decadência.

A principal queixa que poderíamos fazer seria:

Ei, não é justo você nos julgar por coisas que nós não podemos saber como serão
um dia! Nós vivemos agora, não no futuro, e nossas preocupações são as que fazem sentido
para nós hoje. Se você se preocupasse em entender como vivemos, compreenderia por que
pensamos dessa forma e por que fazemos essas coisas. Você não está nos estudando, está só
nos chamando de ignorantes por não sermos como você!

AUTOATIVIDADE

ANÁLISE
Tente pensar em outras argumentações que poderíamos fazer para discordar
de uma visão tão parcial e tão inadequada sobre nós e nosso tempo. Em sua
opinião, esse tipo de perspectiva revela mais sobre o período que está sendo
discutido ou sobre quem está criticando? O que levaria alguém a tratar dessa
forma uma cultura passada?

Foi exatamente isso o que fizeram os primeiros estudiosos que se


preocuparam em descrever o período que hoje conhecemos por Idade Média!
Entusiasmados por um enorme otimismo em relação ao mundo em que viviam,
olharam para o milênio anterior e só conseguiram ver ignorância, superstição,
decadência. Não que esse período que estudavam de fato fosse assim; simplesmente
foi assim que esses estudiosos o entenderam. Tratando com desprezo essa “longa
noite de mil anos”, chamaram-na de Idade das Trevas ou de Idade Média, um
longo hiato entre a Idade Antiga (a época de glória de uma cultura que eles
consideravam superior) e a sua própria, que chamaram de Renascimento, quando
aqueles valores antigos, supostamente perdidos na ignorância anterior, foram
recuperados

2.2.3 Evitando o anacronismo


De volta ao nosso historiador do futuro: se você fosse descrever a nossa
época, você diria que nós vivemos hoje em um período de decadência e ignorância?

Pode ser até que você discorde de muita coisa que existe hoje, mas
provavelmente não chamaria o século XXI de Idade das Trevas. Muito menos diria
que esse período é simplesmente uma preparação para um tempo no futuro em
que as pessoas serão realmente felizes, por pensarem de uma maneira que nós nem
sabemos ainda qual é, ou por terem tecnologias que ainda nem foram inventadas.
Como você poderia saber o que vai acontecer no futuro?

7
UNIDADE 1 | AS ORIGENS DA IDADE MÉDIA

É como imaginar alguém reclamando, lá por 1820: “Puxa vida! Seria


muito mais fácil descobrir informações se já tivessem inventado o computador!”
Antes de alguma coisa como essa ter sido inventada, dá para imaginar alguém se
lamentando que ela não existisse?

NOTA

Prezado(a) acadêmico(a)! Esse tipo de atitude é um anacronismo: é atribuir a uma


certa época características de outra diferente. Nesse caso, uma retroprojeção: supor que o
passado tem, ou deveria ter, características parecidas com o presente. Isso é uma característica
das histórias ou das ficções históricas mal escritas, e é muito mais comum do que se imagina.
Tente perceber alguns exemplos disso em livros de História, filmes e no senso comum! Quem
sabe, até em frases que você mesmo já tenha ouvido ou dito...
Essa retroprojeção traz, ainda, um esnobismo cronológico: achar que, uma vez que no
passado não existiam algumas coisas que consideramos óbvias (porque são soluções que hoje
nós conhecemos), as pessoas que viviam naquela época seriam estúpidas. Por esse motivo,
fizemos a brincadeira com uma era que veria a nossa época como de ignorância...

2.2.4 O conceito de “idade média” é anacrônico!


É claro que as pessoas que viveram na Idade Média não se referiam ao seu
próprio tempo como “Idade Média”, muito menos como “Idade das Trevas”!

Acredita-se que o termo Idade das Trevas tenha sido criado por Francesco
Petrarca (1304-1374) por volta da década de 1330, ou seja, nos primeiros instantes
da renovação cultural renascentista. Por ser da região da Toscana, na atual Itália, e
um representante do período florentino do Renascimento, Petrarca entendia que a
queda de Roma teria trazido a decadência da cultura clássica, com o surgimento de
uma nova raça de homens violentos, analfabetos e incultos: os bárbaros.

Assim, do ponto de vista da cultura, um véu de escuridão teria se colocado


sobre o mundo neste período, o que justificaria entender o período anterior como
uma Idade das Trevas.

UNI

Perceba que Petrarca viveu no século XIV – durante, portanto, o período histórico
tradicionalmente considerado como Idade Média, que só se encerraria em 1453. De acordo
com as periodizações históricas mais comuns, portanto, Petrarca era um ‘homem medieval’.
Ora, se um “homem medieval” critica os “tempos medievais” anteriores e louva a sua própria
época como diferente disso, não lhe parece que a divisão tradicional é, pelo menos, uma
simplificação exagerada?

8
TÓPICO 1 | INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS SOBRE A IDADE MÉDIA

NOTA

Prezado(a) acadêmico(a), ficou claro por que não devemos julgar o passado?
Mesmo quando dispomos de muitas fontes, sabemos tão pouco sobre o passado que não
somos capazes de compreendê-lo razoavelmente. E mesmo se pudéssemos, que direito
teríamos de supor que somos melhores do que os que vieram antes de nós?
Lembre-se sempre disso, pois é tentador criticar os hábitos e as decisões das pessoas do
passado. Os historiadores não têm o direito de fazer isso e têm o dever de chamar a atenção
de quem faz.

3 O CONCEITO DE IDADE MÉDIA APÓS O RENASCIMENTO

3.1 NA REFORMA RELIGIOSA


Durante a Reforma Religiosa (século XVI), a Idade Média foi vista como
um momento de corrupção da Igreja Católica, quando a Igreja detinha um poder
político e econômico enorme e os padres eram pecadores. Sendo assim, os
reformadores podiam se apresentar como restauradores da moralidade na religião,
como representantes de uma fé mais pura e mais simples, mais semelhante à Igreja
primitiva. Inversamente, a Reforma Católica difundiu uma imagem da Idade
Média como um período de harmonia religiosa, como seria de se esperar em um
momento em que a Europa inteira seguia a “única verdadeira fé”.

E
IMPORTANT

Não lhe parece que a visão de Idade Média que os reformadores protestantes e
católicos criaram dizia muito mais sobre o que eles próprios pensavam a respeito da Igreja
Católica da época em que viviam do que sobre a Idade Média em si?

3.2 NO ILUMINISMO
Durante o Iluminismo (século XVIII), a Razão passou a ser entendida como
a única forma de se alcançar um conhecimento verdadeiro. A Fé, nesse momento,
passou a ser entendida como um sinal de tudo o que era atrasado e que deveria
ser destruído, o que incluía o poder político da Igreja. Entendendo a Idade Média
como a Idade da Fé, os iluministas tinham uma visão bastante negativa do período,
reforçando as visões anteriores de decadência.

O historiador inglês Edward Gibbon, um dos grandes representantes dessa


perspectiva, foi categórico em atribuir o “declínio e queda do Império Romano”
(título de sua grande obra) ao “triunfo da barbárie e da religião”.
9
UNIDADE 1 | AS ORIGENS DA IDADE MÉDIA

3.3 O ROMANTISMO E A IDADE MÉDIA


O Romantismo surgiu no final do século XVIII e ganhou força no século
seguinte como um movimento ideologicamente oposto ao Iluminismo.

Os românticos inverteram o sentido que os iluministas haviam dado


para a Idade Média. Passaram a vê-la como um momento idílico, do auge da
religiosidade, de grandes feitos de cavalaria e de exaltação dos sentimentos mais
puros da humanidade, em oposição ao frio racionalismo e anticlericalismo dos
iluministas e dos excessos da Revolução Francesa.

Os nacionalistas foram buscar na Idade Média, especialmente nos últimos


séculos, a origem de seus países, e os burgueses viam no período as origens de seu
poder.

Ao fazerem isso, criaram “ficções históricas” perigosas, como a ideia


de que os países europeus foram formados por grupos étnicos coesos e que
habitavam aquelas regiões havia muitos séculos: ideia que, no início do século XX,
descambaria para a ideologia nazifascista. Dentre os principais “ideólogos” dessa
verdadeira “Era de Ouro Medieval” encontram-se: o francês Jules Michelet e o
holandês Jacob Burckhardt.

E
IMPORTANT

Perceba como, em todas as visões da Idade Média, do Renascimento ao


Romantismo, o período foi analisado a partir de preconceitos dos estudiosos, motivados
pelo momento histórico em que viviam, com isso servindo a propósitos políticos muito bem
determinados. Ou seja, os estudiosos ‘usaram’ a Idade Média como arma política ou ideológica
para demonstrar que seus próprios objetivos mereciam ser perseguidos.

DICAS

LEITURA!
Caro(a) acadêmico(a), para saber mais sobre a evolução do conceito de Idade Média, leia o
texto “A Idade Média de Jacques Le Goff”, publicado em: LE GOFF, Jacques. Uma longa Idade
Média. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.

10
TÓPICO 1 | INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS SOBRE A IDADE MÉDIA

3.4 A PERSPECTIVA LIBERAL


Há uma corrente historiográfica bastante influente, de caráter liberal, que
pautou grande parte das interpretações sobre a Idade Média que surgiram no
século XIX e século XX.

Essa historiografia, surgida entre os intelectuais ligados ao partido Whig


(Liberal) inglês, entende a História como a narrativa dos eventos e circunstâncias
que levaram a sociedade a atingir, na época atual, o que se considera o ponto
culminante da civilização.

Essa visão histórica extremamente otimista tem, contudo, graves problemas


metodológicos:

 É teleológica: considera que existe um “caminho” a ser percorrido pela


“civilização”, e cada cultura está em um ponto determinado dele e deverá seguir
atingindo os demais um por um.

 É unívoca: considera que o caminho que foi percorrido pela civilização ocidental
é o único possível e que todas as “civilizações” um dia trilharão esse mesmo
caminho. Portanto, despreza tudo o que não tiver perdurado até hoje como
sendo uma “relíquia” sem utilidade.

 É naturalizante: considera que existem noções inquestionáveis, como se surgidas


da natureza – “progresso”, “civilização” etc.

 É eurocêntrica – ou, antes, anglocêntrica ou francocêntrica: considera que a


Europa é o grande centro de civilização e, como tal, a única região digna de ser
estudada, ou concentra-se ainda mais, conforme o estudioso, na Idade Média
inglesa ou francesa.

 É personalista: considera que os “grandes homens”, e muito raramente


grandes mulheres, são os responsáveis, com sua iniciativa e habilidade, pela
movimentação da História, sempre na direção “correta”, a do “progresso”. Isto
é, para eles, o triunfo do liberalismo, ou então, com sua resiliência, tentam barrar
esse avanço.

 É maniqueísta: identifica com o “lado certo” os “grandes homens” que


contribuíram para tornar a civilização o que ela é hoje, e com o “lado errado”
aqueles que supostamente tentaram opor-se a essa “torrente irresistível”.

Uma análise liberal da Idade Média perceberia, então, as mudanças


ocorrendo pela iniciativa de pessoas como: Constantino, Justiniano, Carlos Magno,
as Cruzadas, o Rei Ricardo Coração de Leão, dentre outros. E, sobretudo, pelos
“burgueses”, que promoveram, com seus interesses particulares, a quebra do
sistema feudal e sua substituição pelo sistema capitalista.

11
UNIDADE 1 | AS ORIGENS DA IDADE MÉDIA

Em oposição a essas mudanças estariam perfilados os sarracenos, os


senhores feudais resistentes ao capitalismo e a Igreja Católica, entre outros.

NOTA

Prezado(a) acadêmico(a), essa perspectiva liberal não lhe parece, ao mesmo


tempo, excessivamente simplista (além de preconceituosa) e perturbadoramente familiar?
Esta é, a grosso modo, a interpretação da história que se apresenta em grande parte dos
livros de História de nível escolar! Fora dessa perspectiva, os livros costumam trazer apenas
breves descrições sobre os modos de produção feudal e capitalista, baseadas no pensamento
marxista (ver a seguir), sem, contudo, tecer qualquer consideração sobre os aspectos críticos
do marxismo.

3.5 A PERSPECTIVA MARXISTA


O marxismo entende a luta de classes como sendo a força que movimenta
a História. Para esta perspectiva, é - a partir da tomada de consciência das classes
sociais desfavorecidas que as revoluções acontecem e que os modos de produção
são transformados.

Os estudos marxistas sobre a Idade Média concentram-se, geralmente, na


análise do feudalismo como modo de produção com características específicas e,
em certa medida, opostas às do capitalismo que o sucedeu.

A análise marxista tradicional não se aprofunda nas origens do feudalismo,


tomando-o como uma realidade unívoca. Estudos marxistas mais recentes fogem
a essa simplificação.

4 CONCEITOS MODERNOS
Você se lembra do nosso historiador do futuro, aquele que falou tão mal
da época em que vivemos? Já reclamamos de sua parcialidade. Outra objeção a
ele poderia ser: Além do mais, nós e você não somos assim tão diferentes. Somos todos
seres humanos e temos as mesmas necessidades. O que muda é a forma de satisfazer essas
necessidades e as complicações que nós inventamos para satisfazê-las ou impedir que isso
aconteça. Sem falar que você é nosso descendente, o seu mundo surgiu a partir do nosso, e
tudo o que você considera importante apareceu, um dia, a partir do que nós tínhamos em
nossa época.

É em uma linha de argumentação mais próxima a essa que a historiografia


entende a Idade Média atualmente: em vez de tentarem fazer juízos de valor ou
“romantizar” o período, colocando os seus preconceitos e a sua visão de mundo
nos estudos sobre a época, os historiadores preferem, hoje em dia, entender a Idade
Média a partir do que ela realmente teria sido.

12
TÓPICO 1 | INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS SOBRE A IDADE MÉDIA

Ou, então, do que podemos descobrir a partir das fontes disponíveis,


desvendando as práticas, as mentalidades e a visão de mundo dos homens e
mulheres medievais. Isso permite um entendimento mais adequado e mais fiel
sobre o período, em vez de simplesmente ‘usar-se’ a Idade Média para finalidades
indevidas, como uma propaganda política ou ideológica.

Ao fazerem isso, os historiadores vêm descobrindo uma Idade Média


extremamente complexa, original e carregada de inovações tecnológicas e culturais,
em uma imagem muito diferente daquela que a maioria das pessoas tem como
verdadeira. Cabe a nós, historiadores e professores de História, a transmissão dessa
nova ideia e, aos poucos, a mudança do senso comum a respeito deste período tão
longo, tão importante e tão fascinante da história do Ocidente.

NOTA

Jacques Le Goff é um historiador filiado à chamada Ecole des Annales, movimento


historiográfico francês surgido no início do século XX a partir das obras de Marc Bloch e Lucien
Febvre, que contou com os trabalhos de historiadores como Fernand Braudel, Georges Duby e
outros. Na perspectiva dos Annales, o historiador deve buscar fazer uma “história total”. Ou seja,
compreender a história da forma mais ampla possível, levando em consideração muito mais
do que a economia ou a política: categorias como mentalidades, imaginário e representações
tornam-se importantes. A perspectiva de Le Goff sobre a Idade Média é tributária dessa
abordagem.

DICAS

A Idade Média foi uma época de inúmeras inovações tecnológicas. Para saber
mais a respeito, sugerimos a leitura de:
BARK, William Carroll. Origens da Idade Média. Riao de Janeiro: Zahar, 1979, p. 125-140, ou o
artigo de Ênio José Toniolo, “O progresso técnico na Idade Média”, disponível em:<http://www.
lepanto.com.br/EstPrgIdM.html>.

5 FAZ SENTIDO FALAR EM “UMA” IDADE MÉDIA?


A imagem simplista que temos da Idade Média não consegue dar conta de
descrever praticamente nada desse período. Na verdade, a imagem de cavaleiros
andantes e senhores feudais, além de ser uma ficção que simplifica exageradamente
essa época - só corresponderia ao período final da Idade Média da Europa Ocidental,
e, mesmo assim, representa melhor algumas regiões europeias do que outras. Todo
o período inicial, entre a queda de Roma e a consolidação do feudalismo – que é o
período tratado nesta Unidade 1 –, exige uma descrição muito diferente dessa. Da
mesma forma, o sistema feudal que vai existir nessa região (e só entre os séculos

13
UNIDADE 1 | AS ORIGENS DA IDADE MÉDIA

X a XIII, aproximadamente) é muito diferente do formato muito mais brando,


que vigorou no Império Bizantino, e absolutamente distinto do modo de vida dos
muçulmanos nos primeiros séculos do Islã – que serão vistos na Unidade 2.

Além disso, o feudalismo da Europa Ocidental muito diferente em cada


região. Foi mais “típico”, digamos assim, na França e na Alemanha do que na Itália
e em Portugal. E como teria sido na Rússia? Na Suécia? No norte da Espanha? Na
Polônia? E isso para nem mencionarmos o Egito, a África ao sul do Saara, a China,
as estepes da Mongólia, o Sudeste Asiático, o Japão... Muito menos o continente
americano!

UNI

Como você pôde perceber, o conceito de Idade Média foi criado por estudiosos
europeus para explicar a história de suas regiões de origem – sem levar em consideração se
as características de outras regiões, como o mundo islâmico ou o Império Bizantino, eram
ou não semelhantes a essas. Ou seja, o conceito de Idade Média é eurocêntrico! Precisamos
questionar esse eurocentrismo e buscar interpretações sobre o mundo mais globais. Por que
é que nós, no Brasil do século XXI, contamos a história da forma como os europeus a viam no
século XIX e esquecemos que existia muita coisa no mundo fora de lá?

Em resumo, temos que ter cuidado ao estudar a Idade Média, para não
cairmos numa simplificação exagerada, que termina por prejudicar a nossa
compreensão sobre o período. Pior ainda, se generalizarmos as características
da Idade Média, transformando-a em uma “idade do feudalismo”, estaremos
falseando a verdade, ignorando aspectos essenciais dessa própria história ou,
mesmo, apresentando os elementos “externos” a ela (como os muçulmanos) sob um
ponto de vista maniqueísta, como as grandes ameaças (felizmente malsucedidas)
à “nossa” cultura. Ou seja, estaremos recaindo nos mesmos preconceitos e
supersimplificações que desejamos e precisamos combater.

NOTA

Maniqueísmo é quando se pressupõe que existem apenas dois lados possíveis em


uma determinada questão, um deles identificado com o “bem” e o outro com o “mal”.

Caro(a) acadêmico(a)! Régine Pernoud (1909-1998), historiadora e


arquivista francesa, foi uma grande especialista em Idade Média, e deu muito
destaque à presença feminina nesse período. Apresentamos aqui um trecho de seu
livro Pour en finir avec le Moyen Age (traduzido em Portugal como “O mito da Idade

14
TÓPICO 1 | INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS SOBRE A IDADE MÉDIA

Média”), no qual ela se dedica a atacar os preconceitos comuns sobre o tema. Neste
trecho, Pernoud fala sobre as origens do feudalismo e sobre o choque de culturas
na época.

LEITURA COMPLEMENTAR

Um poder centralizado ao último ponto, o do Império Romano, desmorona-


se no decurso do século V. Na confusão que se segue, os poderes locais manifestam-
se; é por vezes um chefe de grupo que reúne à sua volta os seus companheiros de
aventuras; outras vezes, também o senhor dum domínio que tenta assegurar à sua
sociedade e a si próprio uma segurança que o Estado já não garante.

Com efeito, as trocas tornam-se difíceis, pois o exército já lá não está para
conservar nem fiscalizar as estradas; por isso, mais do que nunca, a terra é a única
fonte de riqueza. Essa terra é preciso protegê-la. Não se vê nascer hoje em alguns
países, onde os pacíficos habitantes se consideram ameaçados pelo aumento da
delinquência, polícias semelhantes? Isso pode fazer compreender o que se produziu
então; um pequeno cultivador, impotente para assegurar sozinho a sua segurança
e a da sua família, dirige-se a um vizinho poderoso que tem a possibilidade de
manter homens armados, este consente em defendê-lo, em troca do que este lhe
dará uma parte das suas colheitas.

Um beneficiará duma garantia, o outro, o senhor, senior, o ancião, o patrão


ao qual se dirigiu, achar-se-á mais rico, mais poderoso e, portanto, mais capaz
de exercer a proteção que se espera dele. Finalmente, mesmo que se trate da pior
das hipóteses, imposta pelas circunstâncias difíceis, em princípio, o mercado
aproveitará tanto de um como de outro. É um acto de homem para homem, um
contrato mútuo que a autoridade superior não sanciona, e não sem motivo, mas
que se conclui sob juramento, numa altura em que o juramento, sacramentum, acto
sagrado, tem um valor religioso.

Tal é, em geral, o esquema das relações que se criam nos séculos V e VI;
certamente que as modalidades são muito diversas, segundo as circunstâncias
de tempo e de lugar; elas conduzem, em definitivo, a esse estado que se chama,
muito justamente, feudal. Baseia-se, com efeito, no fief, feodum. O termo, de
origem germânica ou celta, designa o direito que se desfruta sobre qualquer bem,
geralmente uma terra: não se trata duma propriedade, mas dum usufruto, dum
direito de uso.

A evolução precipita-se devido à mistura de populações que se faz na


época. O movimento de migração, que se chama as grandes invasões, nos séculos
V e VI, nem sempre teve o aspecto de conquista violenta que lhe supõem; muitos
povos — pensemos, por exemplo, no dos Burgúndios — instalaram-se nas terras
na qualidade de trabalhadores agrícolas.

15
UNIDADE 1 | AS ORIGENS DA IDADE MÉDIA

Dentro de um milhar de anos, com o recuo do tempo, o historiador que


estudar o século XX não deixará de estabelecer comparações com a Alta Idade
Média. Não conhece o nosso século movimentos de migração que fazem que,
em França, por exemplo, mais de três milhões e meio de trabalhadores sejam
algerianos, marroquinos, espanhóis e portugueses, que se encontrem na Holanda
e na Alemanha turcos, jugoslavos?... A única diferença está nas facilidades de
transporte, que a Alta Idade Média não conheceu. Em consequência disso, uma
vez fixado, era, em princípio, para toda a vida que o trabalhador estrangeiro se
estabelecia com a mulher e os filhos na quinta que o proprietário, que se chamava
«galo-romano», não queria trabalhar.

O movimento não se processava sem trazer problemas, que foram


resolvidos de forma muito mais liberal da que se seria levado a crer. Assim, a
primeira pergunta a fazer àquele que, perseguido por um delito, comparecia
perante um tribunal é: «Qual é a tua lei?» Com efeito, ele é julgado segundo a sua
lei, e não sob a da região em que se encontra. Daí a extrema complexidade desse
Estado feudal e a diversidade dos costumes que aí se instauram.

Aos historiadores instruídos no direito romano, com as suas bases


uniformes e uniformemente aplicáveis, isso pode parecer o cúmulo do arbitrário;
na época as distorções são certamente muito grandes duma região para a outra,
mas, aí ainda, nós aproximamo-nos dessas concepções, pois hoje compreendemos
melhor que a justiça, a verdade, consiste em julgar cada um segundo a sua lei.

FONTE: PERNOUD, Régine. O mito da Idade Média. Lisboa: Europa-América, 1979, p. 58-60.

16
RESUMO DO TÓPICO 1
Neste tópico, você viu que:

 O conceito de Idade Média continua sujeito a uma série de preconceitos e


simplificações que nos impedem de compreender a importância deste período.

 Durante muito tempo, as interpretações que se fizeram sobre a Idade Média


eram parciais e serviam de arma política ou ideológica para os seus criadores.
Foi assim, no Renascimento e no Iluminismo, que a viam como uma Idade das
Trevas, e no Romantismo, que inverteu essa visão.

 O termo “Idade Média” é uma simplificação exagerada, que esconde as variações


regionais e as transformações sociais ao longo de todo esse tempo.

 Para estudar a Idade Média ou qualquer outro período histórico, devemos evitar
os perigos do julgamento do passado, do anacronismo e do eurocentrismo.

 Atualmente, a preocupação dos historiadores é compreender a Idade Média a


partir dos registros da própria época, que revelam uma Idade Média muito rica
e muito complexa, totalmente afastada da ideia de “Idade das Trevas”.

17
AUTOATIVIDADE

1 Identifique, em um livro didático qualquer de Ensino Médio, no capítulo (ou


capítulos) correspondente(s) à Idade Média:

a) Qual é a perspectiva, dentre as que analisamos nos itens 3 e 4 deste tópico,


que melhor descreve a forma como a Idade Média é tratada pelo(s) autor(es)
do livro?

b) Qual o nível de profundidade com que civilizações como a bizantina e a


muçulmana são tratados?

c) Pelo que você pôde perceber, o tema da Idade Média foi tratado de forma
adequada? Que complementações você sente que precisaria fazer em sala de
aula para melhorá-lo?

18
UNIDADE 1
TÓPICO 2

A IDADE MÉDIA NA HISTORIOGRAFIA

1 INTRODUÇÃO
Se desejarmos estudar e ensinar Idade Média de forma adequada,
precisaremos ir além do que o senso comum fala a respeito desse período e estudar
as interpretações feitas pelos historiadores do assunto. Mas isso não significa,
apenas, conhecer os “fatos” que contribuíram para a transição da Antiguidade
para o mundo medieval. Estudar História é interpretar, é questionar a validade
das teorias, dos conceitos e das interpretações, tentando sempre compreender
como surgiram, ou seja, situá-las em um contexto histórico.

Para um historiador, esse procedimento é ainda mais importante do que


o conhecimento dos “fatos” ou “eventos” históricos. Afinal, fatos e eventos não
existem soltos por aí. Só existem quando um historiador estabelece a sua validade.

Por isso, antes de determinarmos que “acontecimentos” levaram à


dissolução do Império Romano e ao surgimento do período medieval, precisamos
saber o que foi essa transição, se houve efetivamente uma transição (até mesmo,
em alguns casos, o que se entende por “transição”) e que características teve.

Só assim seremos capazes de selecionar adequadamente os “fatos” que


compõem a história que vamos contar. É por esse motivo que discutiremos as
interpretações dos estudiosos (a historiografia) neste tópico. Antes, portanto,
dos “fatos” que são tradicionalmente considerados como explicativos da crise do
mundo antigo.

No tópico anterior discutimos algumas questões teóricas relevantes quando


se tenta compreender um período histórico tão complexo como a Idade Média.
Este tópico aprofundará algumas questões, discutindo-as mais diretamente do
ponto de vista da produção dos historiadores sobre o período. Em resumo, no
tópico anterior aprendemos a questionar as “verdades recebidas” sobre a Idade
Média. Neste tópico vamos aprender como fazer isso!

19
UNIDADE 1 | AS ORIGENS DA IDADE MÉDIA

2 TEORIAS SOBRE O INÍCIO DA IDADE MÉDIA


Diversas teorias foram propostas por estudiosos, ao longo do tempo,
para explicar as origens desse período histórico que se denomina Idade Média.
Alguns estudiosos formularam teorias elaboradas a respeito, de caráter moral ou
econômico, e outros procuraram manter-se mais atentos à enorme complexidade
do processo. É importante conhecermos algumas delas, sempre considerando que
essas teorias carregam elementos da época em que foram criadas.

Inicialmente, porém, é interessante nos questionarmos até que ponto existe


uma vinculação automática entre os fenômenos históricos que denominamos a
“queda do Império Romano” e o “surgimento da Idade Média”. Essa vinculação
nos parece óbvia, por estarmos habituados a ela.

Aliás, tradicionalmente, a própria definição de Idade Média é o período


posterior à queda. No entanto, como veremos a seguir, não são todos os estudiosos
(Henri Pirenne é uma exceção) que atribuem uma relação tão forte de causa e efeito
entre os dois fenômenos.

2.1 A IDADE MÉDIA E A QUEDA DO IMPÉRIO ROMANO

NOTA

HISTORIOGRAFIA
Prezado(a) acadêmico(a), discutiremos a seguir algumas das teorias ou interpretações que
foram feitas ao longo do tempo sobre o declínio do Império Romano e o surgimento da Idade
Média.
Preste atenção não apenas ao conteúdo das teorias, mas tente observar a época em que a
teoria foi criada, o local em que o seu formulador viveu e sua origem social ou cultural, pois
isso é fundamental para compreender o seu sentido.

2.1.1 Os contemporâneos: Vegécio e Salviano


As explicações mais antigas para a queda do Império Romano foram
elaboradas por cronistas que viveram no período, tais como Publius Flavius
Vegetius (Vegécio) e Salviano. Pouco se sabe sobre esses autores.

Vegécio viveu por volta do ano 450 e escreveu sobre a tecnologia militar do
Império Romano tardio e início da Idade Média. Salviano vinha de uma família
abastada, possivelmente nobre, e foi sacerdote cristão no início do século V. Eram,
portanto, contemporâneos (ou seja, viveram na mesma época) do processo de
queda do Império. Eram também romanos, cristãos e letrados, o que demarca uma
posição sociocultural muito específica e privilegiada.

20
TÓPICO 2 | A IDADE MÉDIA NA HISTORIOGRAFIA

Para Vegécio, a entrada de germânicos (“bárbaros”) no exército teria


enfraquecido militarmente o Império, pois o novo exército carecia do treinamento
e da lealdade do antigo e a noção de cidadania da população.

Salviano descreve o processo de ruína e de perda da liberdade dos


pequenos camponeses, constrangidos pelos impostos e pelas difíceis condições em
que estavam, com os saques e destruições de cidades pelos bárbaros. Confrontado
com a incômoda questão de “como um império que adotou a verdadeira religião
foi capaz de se dissolver?”, explicou as invasões como um castigo de Deus aos
romanos, por sua infinita corrupção.

AUTOATIVIDADE

Quais são as características em comum entre as visões de Vegécio e Salviano?


Eles percebiam a “transição” como uma queda de um mundo antigo ou o
surgimento de um novo? A que fatores eles atribuíam essa mudança? Percebiam
isso como decadência ou como progresso? Por que você acha que eles pensavam
dessa forma?

2.1.2 Uma visão Iluminista: Gibbon e a “decadência moral”


O historiador inglês Edward Gibbon (1737-1794) é considerado um dos
primeiros grandes estudiosos a analisar a queda do Império Romano a partir de
fontes documentais.

Em seu monumental “Declínio e queda do Império Romano”, Gibbon


atribuiu a queda de Roma a uma perda da virtude cívica de seus cidadãos. Para
ele, a grandeza e o poder do Império teriam causado a “decadência moral” de seus
habitantes, que teriam perdido o interesse ou a habilidade de adotar um modo de
vida viril.

Gibbon (2005) entendia que o Cristianismo teria tido um impacto devastador


sobre o Império Romano, pois introduzia uma nova ética que privilegiava a busca
da salvação e de uma vida melhor após a morte. Essa nova forma de pensar
teria facilitado as invasões bárbaras, ao atrofiar o tradicional espírito marcial dos
romanos e diminuir o seu desejo de se sacrificarem pelo Império.

21
UNIDADE 1 | AS ORIGENS DA IDADE MÉDIA

AUTOATIVIDADE

Perceba que a visão de Gibbon guarda algumas semelhanças, mas muitas


diferenças em relação à de Vegécio e Salviano. Quais são as principais? A que
fatores se pode atribuir essa diferença, se o objeto de estudo era, supostamente,
o mesmo? Justifique.

DICAS

SUGESTÃO DE LEITURA
O livro “Declínio e queda do Império Romano”, de Edward Gibbon, é uma leitura obrigatória
para quem desejar entender a fundo o processo de surgimento da Idade Média. Além de
detalhado e muitíssimo bem redigido, o livro, escrito no século XVIII, é hoje um documento
histórico importantíssimo, pois mostra como um estudioso viu esse processo há mais de
200 anos e por ser um dos grandes exemplos de como se escrevia História antes da grande
transformação do século XIX.

2.1.3 Os grandes sistemas civilizadores: Toynbee


O historiador britânico Arnold J. Toynbee, baseado na ideia do apogeu e
declínio das civilizações, explicou a decadência do Império Romano a partir de
características econômicas e sociais da própria sociedade romana.

Para ele, o Império Romano já continha, desde a sua formação, os elementos


que o tornariam inviável posteriormente. A economia romana não era baseada
no comércio com outros povos ou na inovação tecnológica, mas unicamente na
exploração das terras conquistadas e na escravização das populações. No momento
em que as conquistas cessaram, a autoridade política do imperador lentamente
declinou, até finalmente entrar em colapso. No século V, o poder do imperador
era meramente simbólico, a ponto de Odoacro, o líder dos hérulos que conquistou
Roma em 476, nem o desejar para si.

2.2 A TEORIA DOS MÚLTIPLOS FATORES


Algumas explicações sobre a queda do Império Romano não se concentram
em um aspecto específico, seja ele moral, político ou econômico. Ao contrário,
entendem que um movimento tão longo e tão dramático como este não pode ser
atribuído a algumas causas fortuitas nem teria acontecido continuamente, sem
qualquer tentativa de se revertê-lo. Três estudos são especialmente característicos
dessa linha de pensamento.

22
TÓPICO 2 | A IDADE MÉDIA NA HISTORIOGRAFIA

John B. Bury, nos anos 1920, atribuiu a queda do Império a uma série
de fatores e dedicou-se a derrubar a teoria da “queda moral” de Gibbon,
considerando-a “simplista”. Para ele, o que ocorreu foi uma série de ocorrências
infelizes em sequência, de crise econômica e uma crescente dependência dos povos
germânicos para o exército a uma perda de vigor moral que gerou uma falta de
lideranças firmes.

O historiador russo radicado nos EUA Mikhail Rostovtzeff entendeu a


queda de Roma a partir das dificuldades econômicas que o Império sofreu a partir
do século III, e das quais não foi possível recuperar-se completamente. A moeda,
que antes baseava seu valor na quantidade de ouro, prata ou bronze que continha,
passou a ser cunhada com ligas de metais sem valor, gerando uma grande inflação.
No entanto, Rostovtzeff continuava a perceber, como fazia Gibbon, o surgimento
da Idade Média como uma falência do mundo clássico, o que ainda guardaria, em
sua perspectiva, uma visão de decadência.

William Carroll Bark elaborou uma abordagem diferente para a questão,


preferindo entender o fim do Império não como uma época de trevas. Ao contrário,
Bark (1979, p. 48) afirma que “o início da Idade Média foi uma época de inovações
e descobertas, e que a regressão da civilização no Ocidente, partindo do nível
romano, foi uma ocorrência feliz”.

Para Bark, o Império Romano do Ocidente caiu apesar das tentativas


de mantê-lo inteiro, ou mesmo por causa delas. As reformas de Diocleciano
e Constantino, mais do que conter as mudanças, terminariam por acelerá-las.
Para Bark (1979, p. 141), “um ponto decisivo da evolução da tradição ocidental
foi atingido no período entre 300 e 600 de nossa era, quando a velha civilização
clássica pagã chegou a um ponto morto no Ocidente”.

Essa mudança se caracterizou por uma transformação completa na forma


de se ver o mundo, ditada pelas necessidades da nova sociedade em gestação, que
era essencialmente diferente do mundo clássico romano.

Nas palavras de Bark:

Foram muitos os outros, orientais, gregos, celtas e alemães, que inventaram


ou adaptaram formas de arte, conhecimento e ciência estrangeiras, que se
fizeram necessárias e que existiam no novo mundo ocidental, constantemente
modificado.

Muitos de seus trabalhos, especialmente parte de sua produção literária,


parecem extremamente ingênuos e inúteis a nossos olhos, e é essa a principal
razão pela qual sua época foi chamada de Idade das Trevas.

Repetimos, essa denominação se baseia num raciocínio falaz. Poderíamos


concluir igualmente, após um estudo comparativo da Grécia clássica e das
realizações da engenharia moderna norte-americana, que a Grécia dificilmente
merece ser chamada de civilizada. Está muito mais próximo da verdade dizer

23
UNIDADE 1 | AS ORIGENS DA IDADE MÉDIA

que o gênio criador dos primeiros homens medievais não estava, ou não se
exercia, no conhecimento literário do velho modelo clássico.

Seu objetivo era expressar-se de outras formas e operar sob a égide de


finalidades e valores diferentes. Se temos de fazer comparação, essas novas
formas devem participar delas. Não foi apenas por acaso, no final das contas,
que as cidades, sociedades, artes e artesanatos de uma Europa posterior e mais
adiantada se diferenciaram tanto dos gregos e romanos. Isso ocorreu porque se
orientaram numa direção decididamente diferente, desde a época de sua origem
na longa idade do desmoronamento e lenta regeneração da Europa Ocidental.
(BARK, 1979, p. 108).

Em uma linha relativamente semelhante, o antropólogo Joseph Tainter


(1990) argumentou que a queda do Império Romano não foi desastrosa para todos.
O sistema agrícola romano, baseado em grandes propriedades exploradas por
colonos ricos e em grande parte ociosas, deu lugar a uma forma de produção mais
eficiente.

A quebra do Estado liberou os cidadãos menos abastados de uma enorme


carga de obrigações tributárias e civis, o que significaria, em parte, uma melhoria
nas condições de vida. A análise de ossadas anteriores e posteriores ao século V
permite verificar que a nutrição melhorou após a queda.

2.3 TEORIAS DO COLAPSO AMBIENTAL


Algumas teorias recentes vinculam a queda do Império Romano a um
colapso ambiental da sociedade. O sistema agrícola ineficiente e a devastação das
florestas teriam gerado erosão e, em regiões do norte da África, salinização do solo.

O êxodo rural decorrente dessa degradação teria agravado, por sua vez, as
condições de saúde nas cidades, predispondo as populações a epidemias de varíola,
cólera e outras doenças.

Também os processos de produção de gêneros e transporte de água


encanada levaram a uma contaminação da população urbana com metais pesados.

O chumbo, especialmente, é extremamente danoso ao organismo humano,


atacando os sistemas nervoso, renal, cardiovascular e reprodutivo. Em longo
prazo, essa contaminação e os desastres ambientais e sanitários prejudicariam o
crescimento populacional, o que ajudaria a explicar o decréscimo populacional no
império a partir de meados do século III.

24
TÓPICO 2 | A IDADE MÉDIA NA HISTORIOGRAFIA

NOTA

Prezado(a) acadêmico(a), perceba como as interpretações sobre a queda do


Império Romano acompanham de perto as preocupações da época dos seus autores. Gibbon
(2005) pensa em termos morais no Iluminismo.
Toynbee (1986) fala em crise de civilizações, e algumas teorias atuais falam em crise ambiental.
Não é coincidência: os estudiosos sempre estão sujeitos, em suas interpretações, aos dilemas
e problemas de suas próprias épocas.

2.4 TEORIAS DA TRANSFORMAÇÃO


Alguns estudiosos questionaram a vinculação tradicional entre a queda de
Roma e o surgimento da Idade Média, argumentando que a civilização romana
não foi destruída: apenas transformou-se, lentamente, para gerar o que seria a
futura Idade Média.

Uma teoria que segue essa linha foi criada por Henri Pirenne, no início do
século XX. Pirenne discordava do marco tradicional da queda do Império Romano,
estabelecido por Gibbon como a queda de Roma em 476 sob os exércitos de Odoacro.
Para ele, os reinos germânicos não representaram o fim do Império Romano, mas
uma continuidade deste, apenas em um formato ligeiramente diferente.

NOTA

HISTORIOGRAFIA
As teses de Henri Pirenne tiveram influência muito grande sobre alguns de seus conterrâneos,
que viriam a elaborar os pressupostos da escola historiográfica dos Annales – especialmente
Marc Bloch, Lucien Febvre e Fernand Braudel. Bloch rejeitava a história dos eventos e advogava
estudos baseados na interpretação de fenômenos sociais. Febvre trabalhou com a noção de
rupturas e permanências na história. Braudel desenvolveu a teoria do mundo mediterrâneo,
ao redor do qual as trocas culturais permitiriam uma homogeneização da civilização. Busque
mais informações sobre esses autores e tente relacionar a teoria de Pirenne com essas ideias.

De acordo com Pirenne (2010), a estrutura econômica dos reinos germânicos


pôde manter-se baseada nas rotas comerciais do Mar Mediterrâneo, como havia
acontecido sob Roma, por causa da capacidade do Império Bizantino de manter a
paz e a liberdade comercial sobre a região, entre os séculos V e VI.

25
UNIDADE 1 | AS ORIGENS DA IDADE MÉDIA

Foi somente no momento em que os muçulmanos ocuparam o entorno do


Mar Mediterrâneo que esses reinos foram forçados a abandonar a estrutura econômica
mediterrânea e a se interiorizar.

Desta maneira, teria sido o domínio muçulmano do Mar Mediterrâneo,


no século VII, muito mais do que as invasões germânicas, o principal fator de
desagregação do modo de vida romano e o gerador da sociedade medieval.

Essencialmente, a tese de Pirenne considera os fatores econômicos e


produtivos como mais importantes, para a descrição do mundo medieval como
sendo distinto da Antiguidade, do que os fatores étnicos ou políticos. Mesmo que
a unidade do Império Romano ou sua “latinidade” não fossem mais tão sólidas
quanto antes, o mundo dos séculos IV a VIII guardaria enormes semelhanças
com o período anterior, por ainda se basear na mesma forma de produção e de
circulação de mercadorias.

Antes da mudança do eixo de forças no Mediterrâneo, com o avanço


muçulmano, as modificações eram importantes, mas não decisivas. Os povos
germânicos romanizavam-se e cristianizavam-se aos poucos, o que não configurava
uma ruptura cultural.

A tese de Pirenne é controversa, por se basear essencialmente em uma análise


economicista da História e por considerar o reino franco como continuador do Império
Romano, em uma forma adequada à nova sociedade românico-germânica europeia, e
em resposta ao avanço do Islã.

Diversos historiadores já tentaram demonstrar que o comércio mediterrâneo,


embora de fato continuasse a existir entre a queda do Império do Ocidente e a
conquista muçulmana, não seria suficiente para explicar uma continuidade entre o
mundo antigo e os reinos romano-germânicos até o século VII.

DICAS

SUGESTÃO DE LEITURA!
Prezado(a) acadêmico(a), se você tiver interesse nas teorias de Henri Pirenne, procure seu
clássico sobre o assunto:
PIRENNE, Henri. Maomé e Carlos Magno. O impacto do Islã sobre a civilização europeia. Rio
de Janeiro: PUC-RIO/Contraponto, 2010.

Obs.: O livro foi publicado na França logo após a morte de Pirenne, em 1835.
Muitos foram os críticos da tese de Pirenne. Citamos alguns:
BARK, William Carroll. Origens da Idade Média. Rio de Janeiro: Zahar, 1979, p. 16-48.

HODGETT, Gerald A.J. História social e econômica da Idade Média. Rio de Janeiro: Zahar,
1975, p. 55-60.

LOPEZ, Robert S. Mohammad and Charlemagne: a Revision. Speculum, XVIII (1943), p. 14-38.

26
TÓPICO 2 | A IDADE MÉDIA NA HISTORIOGRAFIA

AUTOATIVIDADE

REFLETINDO...
Quando Pirenne estabelece como marco inicial da Idade Média o avanço do
Islamismo, que sentidos para a história ele está, implícita ou explicitamente,
atribuindo? Quais os significados que ele dá para os marcos tradicionais e
para o marco que ele próprio estabelece? Perceba que um dos “marcos” dessa
controvérsia é o papel que os povos germânicos teriam entre a tomada do
Império (século V) e o confronto com o Islã (século VII). Perceba também que
a coroação de Carlos Magno se torna, na análise de Pirenne, um símbolo que
demarca uma transformação significativa. O que você pensa a respeito disso?

3 TEORIAS SOBRE O FINAL DA IDADE MÉDIA


Além das controvérsias sobre o período e as causas do início da Idade
Média, há divergência entre os historiadores sobre as causas e o momento do final
do período. Essas divergências refletem, como você pode imaginar, perspectivas
particulares de cada estudioso sobre os significados da Idade Média e, também, da
Idade Moderna.

Não nos estenderemos, agora, nesse ponto. Veremos apenas algumas das
perspectivas mais comuns sobre o tema.

3.1 A TEORIA CLÁSSICA


A maioria das interpretações sobre o final da Idade Média está baseada na
ideia do renascimento comercial, que teria levado, de um lado, ao fortalecimento
da burguesia e, de outro lado, ao enfraquecimento do feudalismo. Esses dois
fenômenos costumam vir relacionados, como se se tratasse de uma “troca de
guarda” nas relações de domínio social e dos modos de produção: o fortalecimento
do comércio e da burguesia levaria necessariamente ao enfraquecimento do poder
dos senhores feudais.

Esta relação não é totalmente absurda. Existe, de fato, uma vinculação


entre a perda do poder senhorial, baseado na posse da terra, com a formação da
burguesia, que acontece no momento em que o dinheiro volta a circular na Europa
Ocidental.

No entanto, precisamos apontar que essa explicação não é, em si mesma,


satisfatória:

1. A transformação da sociedade medieval na sociedade moderna não se deu


apenas por motivações econômicas. Há uma série de transformações culturais

27
UNIDADE 1 | AS ORIGENS DA IDADE MÉDIA

envolvidas nesse processo e elas não podem ser explicadas simplesmente pelo
retorno do comércio.

2. A transformação não aconteceu de forma homogênea: cada região fez a


“transição” de sua versão local de “Idade Média” para sua versão local de
“Idade Moderna” em seu próprio período histórico, à sua própria maneira e
com suas próprias características.

3. A transformação não foi completa: estudiosos como Mikhail Bakhtin, Robert


Darnton e outros mostram que a cultura popular na Idade Moderna guardava
muitos elementos medievais, e as estruturas políticas feudais só foram extintas
após as Revoluções: Gloriosa (na Inglaterra), Industrial, Francesa e Russa.

Talvez, em parte, o argumento possa ser resumido da seguinte forma: a


Idade Média, se é que é possível resumir com esse termo um período tão longo e
tão complexo, é complexa demais para caber em qualquer tentativa de definição,
explicação e conceitualização.

A única forma de compreendermos esse período é analisá-lo em detalhes,


relacionando a maior quantidade de fatores possíveis e levando sempre em conta
a influência global nos casos locais.

3.2 A EXPLICAÇÃO A PARTIR DAS PERIODIZAÇÕES


Estabelecer marcos para o início e o fim de um determinado período é
uma ferramenta útil e, ao mesmo tempo, perigosa. Seria ingênuo acreditar que
um determinado acontecimento, por mais relevante que seja, vai alterar sozinho
toda a percepção de mundo das pessoas, a ponto de precisar ser considerado como
originador de uma nova “era”. Eras são conceitos criados pelos historiadores, e
as periodizações, além de demarcarem os limites iniciais e finais desses períodos,
servem para simbolizar e sintetizar as explicações que esses historiadores trazem
para o período.

Vários momentos já foram propostos para demarcar o final da Idade Média.


O marco tradicional adotado na historiografia francesa é o ano de 1453, em que
ocorreram tanto a tomada de Constantinopla pelos turcos como o final da Guerra
dos Cem Anos.

Na historiografia alemã costuma-se delimitar o início da Idade Moderna


com a publicação das 95 Teses de Martinho Lutero, que marcou a Reforma
Religiosa, em 1517.

Há também quem defina a descoberta da América, em 1492, como o marco


fundamental do início da Era Moderna. Cada uma dessas datas, como você pode
imaginar, já traz em si uma explicação do que seria a Idade Média e o período que
a sucedeu. O historiador dá pistas muito importantes sobre a interpretação que
deseja para a história que está contando ao determinar onde ela termina.

28
TÓPICO 2 | A IDADE MÉDIA NA HISTORIOGRAFIA

Mas mais importante, talvez, do que definir um “ponto de virada”, é


perceber que qualquer periodização é arbitrária e reducionista e que a história é
muito mais complexa do que pode ser expresso por uma datação. As datações têm
finalidades sobretudo didáticas, ainda que, ao serem estabelecidas, determinem
uma teoria explicativa sobre os períodos históricos que tem também finalidades
políticas e ideológicas.

AUTOATIVIDADE

Prezado(a) acadêmico(a), você consegue imaginar quais seriam as


“explicações” para o surgimento e para o final da Idade Média que são
apresentadas por historiadores que usam os marcos que já vimos até agora?
Queda de Roma/tomada do Mediterrâneo pelos árabes, para o início;
tomada de Constantinopla/descoberta da América/Reforma Religiosa, para o
final? Você consegue imaginar outras possíveis periodizações? Conseguiria
sintetizá-las entre dois eventos? Consegue perceber que essas sintetizações são
completamente arbitrárias?

3.3 JACQUES LE GOFF E A “LONGUÍSSIMA IDADE MÉDIA”


Jacques Le Goff, um dos mais renomados medievalistas (estudiosos da
Idade Média) franceses, caracteriza o período medieval a partir de uma perspectiva
mais ampla do que a maioria dos historiadores. Do ponto de vista econômico e
social, especialmente entre os segmentos populares, Le Goff (2008) considera que
as características da Idade Média mantiveram-se muito fortemente em meio à
cultura popular até muito além do século XVI.

Do ponto de vista cultural e das mentalidades, especialmente entre as classes


populares, a Idade Média teria se estendido, com poucas alterações fundamentais,
até a Revolução Industrial.

De acordo com Le Goff, o Renascimento não se constituiu numa ruptura


assim tão grande com a Idade Média, como Petrarca e outros pretendiam que ele
fosse. Houve, aliás, outros renascimentos antes do ocorrido entre os séculos XIV e
XVI: o Renascimento Carolíngio nos séculos VIII-IX, a Escolástica nos séculos XII-
XIII, para não mencionar os períodos de florescimento cultural em outras culturas,
como a islâmica e a bizantina.

“Renascimentos”, portanto, são relativamente comuns, e ocorreram


também em épocas consideradas “atrasadas”.

Le Goff (2008) explica essa tese a partir de algumas constatações. A perspectiva


humanista formulada pela Igreja durante a Idade Média - especialmente após a
Escolástica – baseou até mesmo a Declaração dos Direitos do Homem surgida na

29
UNIDADE 1 | AS ORIGENS DA IDADE MÉDIA

Revolução Francesa. As noções medievais de trabalho e a organização do tempo


medieval prevaleceram na Europa até o advento da Revolução Industrial. Claro
que houve mudanças profundas entre 1450 e 1850, mas para Le Goff é possível
perceber continuidades importantes.

3.4 QUAL PERIODIZAÇÃO ADOTAR?


O período conhecido como “Baixa Idade Média” é, como praticamente
todos os conceitos históricos (e você nos verá criticando muitos deles), sujeito a
muitas controvérsias, seja na determinação de seus marcos inicial e final, como na
descrição de suas características.

A historiografia francesa costuma dividir a Idade Média em Alta Idade


Média, Idade Média Central e Idade Média Tardia. A britânica, em Idade Média
Inicial (Early Middle Ages), Alta (High M.A.) e Tardia (Late M.A.). Nas línguas
latinas, os historiadores preferem falar em Alta e Baixa Idade Média ou outros
termos. Como se pode ver, a periodização varia imensamente e o mesmo termo
pode se referir a períodos muito diferentes.

Neste Caderno de Estudos utilizamos, tanto quanto possível, todos esses


conceitos: consideramos a “Baixa Idade Média” o período posterior ao ano 1000 –
do século XI até o século XV, aproximadamente. Falaremos, no entanto, também
em Idade Média Tardia, correspondendo ao final da Baixa Idade Média, a partir
de 1200, aproximadamente.

Essas divisões, é claro, são completamente arbitrárias e, como você já deve


ter percebido, não correspondem a divisões precisas nas sociedades: têm uma
finalidade sobretudo didática. Entendemos, porém, que essa divisão da Baixa
Idade Média em duas partes é útil, por razões que ficarão mais claras na Unidade
3.

Em nossa definição, portanto, a Baixa Idade Média “propriamente dita”


(1000-1200) marca, grosso modo, o auge do sistema feudal, e a Idade Média Tardia
corresponde justamente ao “desmonte” desse sistema.

Prezado(a) acadêmico(a), apresentamos a você um trecho de um livro de


Gerald Hodgett intitulado “História social e econômica da Idade Média”. Nesse
trecho, o autor faz uma discussão historiográfica sobre o tema do comércio na
Alta Idade Média, colocando diversos pontos de vista. É interessante para você
perceber como esse tipo de discussão costuma ser conduzido pelo historiador e
como, apesar de parecer à primeira vista uma discussão árida, ela pode conter
elementos interessantes. Boa leitura!

30
TÓPICO 2 | A IDADE MÉDIA NA HISTORIOGRAFIA

LEITURA COMPLEMENTAR

Prezado(a) acadêmico(a), apresentamos a você um trecho de um livro de


Gerald Hodgett intitulado “História social e econômica da Idade Média”. Nesse
trecho, o autor faz uma discussão historiográfica sobre o tema do comércio na Alta
Idade Média, colocando diversos pontos de vista. É interessante para você perceber
como esse tipo de discussão costuma ser conduzido pelo historiador e como,
apesar de parecer à primeira vista uma discussão árida, ela pode conter elementos
interessantes. Boa leitura!

HISTÓRIA SOCIAL E ECONÔMICA DA IDADE MÉDIA

Gerald Hodgett

[...] A tese de Pirenne foi que após 570, aproximadamente, o comércio através
do Mediterrâneo começou mesmo a expandir-se até o princípio do século VIII.

Em seu famoso livro Mahomet et Charlemagne, ele expressou a opinião de


que o comércio mediterrâneo, “le grand commerce”, foi desfeito não pelas invasões
germânicas do século V, mas pelos avanços islamíticos em fins do século VII. Isso
foi o que causou o declínio da economia da Europa durante o período carolíngio,
e Pirenne acreditava que, a partir de 700, aproximadamente, teve início uma era
de estagnação. Julgou que, como resultado direto dessa estagnação econômica, os
governantes carolíngios foram forçados a adotar uma economia dominial onde a
produção se concentrava nas grandes villae, uma economia que estava muito pouco
distante de uma economia de troca direta – “um período sombrio de estagnação e
retrocesso na vida econômica”.

Essa interrupção no comércio resultou da descontinuidade daquilo


que o vinha mantendo em movimento, a saber, abundantes ofertas de ouro de
Constantinopla, que era obtido nas minas da Núbia. Após a conquista do Egito pelos
islamitas em 641, o Império viu-se privado dessa fonte de oferta de metais preciosos.

Alguns papiros ainda conseguiam atravessar, como demonstra o privilégio


concedido a Corbie em 718, mas, de modo geral, após meados do século VII, o ouro
bizantino não mais chegava ao Ocidente e os mercadores bizantinos passaram a
compensar a perda do comércio ocidental voltando-se para a Ucrânia. Ao redor de
700, portanto, o foco do comércio bizantino voltou-se para o Oriente, como havia
ocorrido no final do século IV e século V.

O esvaziamento do comércio através do Mediterrâneo fez que os carolíngios


se voltassem para o Norte, onde havia uma atividade comercial centralizada ao
redor da foz do Reno em Duurstede e em Quentovic, nas proximidades de Etaples
no Passo de Calais. A prata tomou o lugar do ouro e espalhou-se no Sul da Frância
como sendo a moeda corrente para o comércio que lá prosperava.

31
UNIDADE 1 | AS ORIGENS DA IDADE MÉDIA

No julgamento de Pirenne, o abandono do ouro era um indício seguro do


declínio de “le grand commerce”. O Império Carolíngio foi assolado pelas incursões
de sarracenos e de nórdicos, os quais não pôde impedir. Dopsch discordou da tese
de Pirenne acerca de uma economia em estagnação e insistiu em que não houve
interrupção brusca entre o comércio merovíngio e o carolíngio.

Certos aspectos das opiniões de Pirenne não são mais aceitáveis pelos
estudiosos. Baynes julgou que suas alusões aos mercadores sírios mencionados por
Gregório de Tours não provavam a continuidade do comércio1. Lopez, apesar de
concordar que, culturalmente, o avanço islamítico foi mais disruptivo do mundo
romano do que haviam sido as ocupações germânicas, discorda em muitos detalhes
econômicos2. Argumenta particularmente que muitos dos “desaparecimentos” na
Europa ocidental, que, para Pirenne, coincidiram com o controle da Europa ocidental
pelos muçulmanos, não foram contemporâneos, quer em relação ao avanço árabe,
quer um em relação ao outro. [...] Como Lopez demonstrou, a oferta de papiro
não cessou com a conquista do Egito; pelo contrário, as fábricas, que contavam em
grande parte com o trabalho de cristãos, continuaram a produzi-lo e os muçulmanos
a exportá-lo para Constantinopla, onde o Código de Justiniano, ainda em vigor,
exigia que certos documentos fossem redigidos em papiro. [...]

Portanto, é incorreto dizer que o avanço muçulmano causou o término do


comércio mediterrâneo. A ruptura ocorreu cerca de cinquenta anos mais tarde e foi
o resultado das hostilidades entre o Império e o Islã. Essas hostilidades provocaram
a interrupção da circulação das moedas de ouro bizantino nos territórios islamíticos
e na área do Mediterrâneo em geral.

O papiro desapareceu por completo somente no século X, quando os


egípcios pararam de fabricá-lo, pois o papel havia assumido seu lugar nos domínios
islamíticos. O imperador em Constantinopla, e gradualmente toda a Europa
ocidental, passaram a utilizar o pergaminho, sendo que apenas o Papado resistiu à
mudança até, aproximadamente, o fim do século X.

Dessa forma, os argumentos de Pirenne sobre o papiro são fracos e sua tese
de que houve um súbito abandono por parte dos carolíngios da cunhagem em ouro
merovíngia não pode ser mantida, pois, tanto Carlos Magno como Luís, o Piedoso,
cunharam moedas de ouro. Como disse Renouard, ele não conseguiu substanciar
sua tese de que a vida econômica na Europa ocidental se manteve com a mesma
intensidade até o século VIII3.

Entretanto, como escreveu Vercauteren, nem todas as teorias de Pirenne


podem ser derrubadas4. O conhecimento mais moderno e bem informado registra
uma flutuação no comércio entre o início do século IV e o fim do século IX. Na
bacia do Mediterrâneo, o comércio declinou no século IV e o princípio do século V,
sendo revitalizado no século VI e princípio do VII e novamente reduzido no fim
do século VII e princípio do VIII, permanecendo, provavelmente, em baixo nível
durante todo o século IX.

32
TÓPICO 2 | A IDADE MÉDIA NA HISTORIOGRAFIA

Nem as invasões germânicas nem o avanço muçulmano mataram-no


completamente, e havia a compensação de vínculos comerciais em outros lugares.
No Norte, o comércio floresceu no século VI, em fins do século VIII e no século IX,
estando relacionado a um grande renascimento do comércio efetuado pelos vikings,
que estabeleceram vínculos comerciais da Escandinávia até Constantinopla através
da Rússia.

É indubitável que as trocas comerciais como um todo, entre a Europa


ocidental e a oriental, declinaram devido à diminuição do poder de compra (ouro)
no Ocidente5, mas se esse declínio foi catastrófico, é uma questão em aberto. Parece
que a procura efetiva potencial de artigos orientais teria sido satisfeita, pois, em fins
do século X, os grandes senhores eclesiásticos e leigos dispunham de muita riqueza
acumulada em barras de ouro e joias que foram fundidas e utilizadas quando, ao
aproximar-se o fim daquele século e durante o seguinte, o comércio começou a
revitalizar-se. Lopes julga que a oferta de ouro pode ter sido insuficiente e que isso
pode ter refreado o crescimento econômico do século XI, mas o comércio do século
V ao IX não foi limitado seriamente pela falta de metal precioso. Seja como for,
parece que seria razoável admitir-se a possibilidade de um declínio em relação ao
florescente comércio da Roma imperial que prevaleceu durante os primeiros 250
anos da era cristã.

Deve-se atentar constantemente para um fato: para escrever a história do


comércio europeu durante esses seis ou sete séculos, dispomos de pouco mais
que referências ocasionais em crônicas e alguns dados arqueológicos em forma de
descoberta de moedas.

NOTAS [conforme o original]

1
N.H. Baynes, “Pirenne and the unity of the Mediterranean world”, J. Rom. Studies,
XIX (1929), 230-5.
2
R. S. Lopez, “Mohammed and Charlemagne: a Revision”.
3
Y. Renouard, Hommes d’Affaires Italiens (Paris, Colin, 1949), p. 8.
4
F. Vercauteren, “Monnaie et circulation monétaire en Belgique e dans le Nord de
la France du Ve au XIe siècle”, Settimane di studio... di studi sull’alto medioevo,
Spoleto, VIII (1961), 279-311.
5
No que concerne às razões monetárias que levaram à substituição do ouro pela
prata no Ocidente, ver P. Grierson: “The monetary reforms of ’Abd al-Malik”, J. of
the Economic and Social History of the Orient, III, 3 (1960), 241 e ss.

FONTE: HODGETT, Gerald A.J. História social e econômica da Idade Média. Rio de Janeiro:
Zahar, 1975, p. 56-60.

33
RESUMO DO TÓPICO 2
Neste tópico você viu que:

 O início da Idade Média costuma ser associado à queda do Império Romano,


embora nem todos os estudiosos concordem com essa perspectiva.

 Edward Gibbon, no século XVIII, entendia a queda do Império Romano como


uma perda da virtude moral, e que o advento do Cristianismo teria favorecido
as invasões bárbaras.

 Toynbee considerava que o Império Romano já continha em si os elementos que


levariam à sua derrocada.

 Henri Pirenne, divergindo da maioria dos estudiosos, considera que a queda


do Império Romano não foi o momento fundante da Idade Média; a grande
transformação teria sido posterior, quando do fechamento do comércio
mediterrâneo em consequência do avanço muçulmano.

 A teoria clássica sobre o final da Idade Média vincula o enfraquecimento do


feudalismo ao ressurgimento do comércio.

 Jacques Le Goff considera que a Idade Média se estende, de alguns pontos de


vista econômicos e sociais, até o século XVIII.

34
AUTOATIVIDADE

1 Que relações podem ser estabelecidas entre a ideia de Gibbon e o contexto


histórico em que ele vivia, de difusão dos ideais iluministas?

2 Baseado nas teorias apresentadas nesta seção, tente elaborar uma explicação
abrangente para a decadência do Império Romano do Ocidente e o surgimento
do mundo medieval.

Assista ao vídeo de
resolução da questão 2

35
36
UNIDADE 1
TÓPICO 3

ANTECEDENTES: A ANTIGUIDADE TARDIA

1 INTRODUÇÃO
No tópico anterior tratamos da forma como os estudiosos interpretaram a
transformação do mundo antigo na sociedade medieval. Agora, conheceremos os
eventos que levaram a essa transformação, para podermos, nós mesmos, avaliar
o processo. Isso ocorreu no período que se costuma chamar, atualmente, de
Antiguidade Tardia: um período situado, de forma imprecisa, entre os primórdios
da era Cristã e a quebra do poder político romano, seja com as invasões germânicas,
seja com o avanço muçulmano.

Você perceberá, à medida que for tomando conhecimento de detalhes


dessa transformação, que vários dos preconceitos mais comuns sobre a Idade
Média, especialmente no que se refere aos povos germânicos, estão vinculados a
esse período, mas não têm razão de ser.

No final do tópico, as leituras complementares escolhidas reforçarão mais


ainda essa nossa afirmação e trarão um panorama mais amplo sobre o quotidiano
dos homens do início do período medieval. Boa leitura!

2 O AUGE E A DECADÊNCIA DO IMPÉRIO ROMANO

UNI

Prezado(a) acadêmico(a)!
Vamos falar sobre o processo de transformação do Império Romano na cultura
medieval. Repare, ao longo do texto, que várias das características medievais estão surgindo
nesse momento.

As conquistas militares sempre estiveram no centro da estrutura do


Estado romano e foram elas que possibilitaram a grandeza e a glória do Império.
A conquista de territórios possibilitava a ampliação das áreas sob o comando de
Roma, garantindo a paz ao livrar as fronteiras da presença dos povos bárbaros.
Com as conquistas, eram transformados em escravos (e, geralmente, transferidos
para outras partes do Império). Foi essa quantidade enorme de escravos que

37
UNIDADE 1 | AS ORIGENS DA IDADE MÉDIA

pôde manter o modo de vida luxuoso dos patrícios romanos. No entanto, como a
escravidão era baseada essencialmente nos prisioneiros de guerra, era necessário
conquistar terras sem parar, sob risco de o sistema econômico entrar em colapso.

No entanto, muitas conquistas significavam muitos problemas. Havia a


necessidade de ocupar essas regiões, fundar e manter cidades e garantir o bem-
estar dos romanos que lá vivessem. Regiões muito distantes eram de difícil
controle e os transportes terrestres não eram tão bons quanto os marítimos. Por
esse motivo, o Império Romano pôde desenvolver-se com facilidade ao redor do
Mar Mediterrâneo, ao passo que enormes regiões na Europa, ao norte dos rios Reno
e Danúbio, permaneceram de fora, servindo de lar a dezenas de povos nômades
e externos à cultura romana (chamados ‘bárbaros’ por eles). Com o tempo, a
administração dessa máquina militar e administrativa tornou-se excessivamente
cara, especialmente pela necessidade de se manter um exército muito grande e
muito poderoso, e as conquistas se tornaram inviáveis.

O reinado de Trajano assistiu à máxima expansão do Império, com a


breve conquista da Armênia e da Mesopotâmia, em 116-177 d.C. A partir desse
momento, as conquistas praticamente cessaram e a estrutura econômica baseada
no escravismo lentamente entrou em decadência.

FIGURA 1 – IMPÉRIO ROMANO EM SUA MÁXIMA EXTENSÃO, SOB TRAJANO (177 D.C.)

FONTE: Disponível em: <http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/0/00/


Roman_Empire_Trajan_117AD.png/800px-Roman_Empire_Trajan_117AD.png>. Acesso
em: 15 fev. 2013.

38
TÓPICO 3 | ANTECEDENTES: A ANTIGUIDADE TARDIA

2.1 POR QUE A DECADÊNCIA?


Provavelmente, você vai se perguntar: como é possível que um império tão
extenso e poderoso como o romano entrasse em decadência? A resposta é complexa
e envolve diversos fatores: sociais, culturais, políticos e religiosos. A própria
preocupação que temos com a “decadência” de Roma já é, em si só, significativa:
desde Gibbon, pelo menos, essa é uma questão que assombra os estudiosos.

NOTA

Como vimos no tópico anterior, os estudiosos sempre analisam a História a partir


de questões com que se deparam em sua própria época. Seria a preocupação com a queda do
Império Romano um reflexo do temor de decadência da nossa própria sociedade?

Ocorre que o Império Romano era mais frágil do que parecia. Mesmo
hoje, as modernas estratégias de administração e as tecnologias avançadas de
comunicações e transportes nem sempre são suficientes para garantir a eficiência
do governo de um território tão extenso como era o do Império Romano, que dirá
há mais de 1.500 anos!

A aparente pujança do Império era ilusória ou no mínimo uma memória de


um passado distante. Toynbee (1986) considerava, como vimos no tópico anterior,
que o Império já havia sido criado em um formato politicamente disfuncional
e que a autoridade do imperador foi mantida à custa de muito sangue, pois do
contrário seria insustentável.

Não havia um sistema eficiente e seguro de arrecadação de tributos,


por isso o Império não dispunha de recursos suficientes para manter uma
burocracia funcional. O resultado era uma concentração exagerada de poder e
riqueza nas mãos do imperador. No entanto, dependia da força do exército e de
conspirações palacianas para manter-se no poder.

No momento em que os imperadores decidiram (ou precisaram) interromper


as conquistas, cessou o crescimento, cessaram os recursos para o Exército (que já
eram mal geridos) e lentamente declinou a autoridade imperial.

2.1.1 O fim das conquistas militares


As conquistas não poderiam mesmo prosseguir indefinidamente. Apesar
de sua finalidade ser a exploração dos recursos e a escravização das populações,
conquistar uma determinada região implicava trazê-la para o mundo romano,
e, consequentemente, colonizá-la. Isso significava a concessão de terras para
colonos ricos, a construção de estradas, a transferência de população para o local,

39
UNIDADE 1 | AS ORIGENS DA IDADE MÉDIA

o estabelecimento de uma burocracia e uma estrutura urbana em alguns lugares


e a manutenção de tropas legionárias enquanto a região ainda oferecesse riscos
de insurreição ou estivesse na fronteira do Império. Por vezes, as legiões ficavam
muitas décadas estacionadas na mesma região.

Avançar, às vezes, era arriscado. Rios largos como o Reno e o Danúbio


eram fronteiras naturais relativamente fáceis de manter, mas conquistar a margem
oposta deixaria as novas regiões vulneráveis. A menos que toda a nova região de
vastas planícies fosse ocupada até o próximo rio, o custo de manter legiões voltadas
para regiões abertas poderia ser proibitivo. Na Bretanha, a solução encontrada foi
construir a Muralha de Adriano, para isolar os povos gaélicos do norte. Em outras
regiões, como a Germânia, os conflitos eram inevitáveis.

A conquista da Dácia (atual Romênia), em 105-106 d.C., demonstrou com


clareza essa dificuldade. A região, localizada além-Danúbio, era a única do Império
que não tinha uma barreira natural em sua fronteira exterior, e sua colonização foi
tarefa complexa e que em poucos anos malogrou. A grande diminuição populacional
(os dácios foram escravizados e movidos para outras regiões do império) não foi
compensada pelo afluxo de imigrantes de outras regiões do Império, de modo que
a região ficou bastante despovoada. A instabilidade militar e o despovoamento
das províncias limítrofes levaram ao seu abandono pelo Imperador Aureliano em
271.

2.1.2 A crise do século III


No início do século III, o império estava enfraquecido e ameaçado por
dois inimigos poderosos: os diversos povos germânicos ao norte, e o Império
Sassânida (de origem persa) a leste. A necessidade de garantir a segurança das
duas fronteiras gerava gastos extraordinários e uma tensão permanente entre os
comandantes militares e o imperador. As dificuldades fariam o Império mergulhar
em uma profunda crise econômica durante pelo menos metade do século III (235-
285).

O final das conquistas militares gerou, como vimos, uma diminuição da


oferta de escravos no Império. Apesar de a condição escrava ser hereditária, os
escravos conseguiam, aos poucos, libertar-se e a seus descendentes dessa situação,
e não havia mais como repor esse tipo de trabalho.

Por outro lado, não havia na Roma imperial uma situação econômica que
favorecesse o trabalho livre, muito menos o assalariado, em grande escala, de
modo que os escravos pudessem simplesmente ser absorvidos em uma economia
urbana de mercado. Muito ao contrário, a crise e a concentração de legiões nas
fronteiras enfraqueceram as rotas comerciais entre as províncias.

O resultado foi uma diminuição do poderio econômico das cidades e um


verdadeiro êxodo urbano. Preocupados em garantir sua sobrevivência, muitos
romanos buscaram seu sustento no campo, onde poderiam produzir seu próprio

40
TÓPICO 3 | ANTECEDENTES: A ANTIGUIDADE TARDIA

alimento, mas deviam oferecer alguma compensação para o chefe local, único
capaz de garantir efetivamente sua segurança.

Mas, e o Estado? Como vimos, o Estado romano não era forte o bastante
para garantir a segurança da população, e os imperadores viviam assolados por
conspirações.

Em parte, a crise do período entre 235 e 285 foi gerada pela fórmula da
sucessão imperial. Como não havia um sucessor direto, a disputa era intensa, e
quase todos os imperadores desse meio século (dos 25 imperadores, houve apenas
duas exceções) foram mortos em combate ou assassinados.

Junte-se a isso e às dificuldades econômicas uma série de epidemias de


peste, e torna-se fácil compreender de que forma o império mergulhou em uma
crise tão profunda.

FIGURA 2 - O IMPÉRIO PERSA DA DINASTIA SASSÂNIDA (226-651)

FONTE: Disponível em: <http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/f/f0/Sassanid_


Empire_226_-_651_%28AD%29.GIF/769px-Sassanid_Empire_226_-_651_%28AD%29.
GIF>. Acesso em: 15 fev. 2013.

41
UNIDADE 1 | AS ORIGENS DA IDADE MÉDIA

NOTA

OS SASSÂNIDAS
Os Sassânidas foram uma dinastia persa que reinou no chamado Segundo Império Persa, entre
226 e 651 d.C. Seu primeiro período de apogeu, entre 309-379, coincidiu em grande parte
com o período de queda do Império Romano. Seus territórios iam, em sua máxima extensão,
da Líbia à Índia, do Iêmen ao lago Baikal (Rússia), chegando a incluir toda a Ásia Menor (atual
Turquia). Sua religião era o Zoroastrismo. O Império Persa durou até o momento da grande
expansão árabe do século VII, quando, enfraquecido pelos conflitos com o Império Bizantino,
não resistiu ao avanço fulminante do Islã.

FIGURA 3 - MÁSCARA DE OURO REPRESENTANDO O REI SASSÂNIDA


YAZDGIRD III

FONTE: Disponível em: <http://iranpoliticsclub.net/library/english-


library/222-years1/images/Yazdgird%20III%20
Sassanid%202.jpg>. Acesso em: 14 nov. 2012.

No Oriente, o antigo Império Persa se reorganizava sob os Sassânidas


e assustava os imperadores romanos. No norte, os germânicos (chamados de
“bárbaros” pelos romanos) começavam a entrar no Império. Mesmo nas províncias
africanas havia pressão de povos vizinhos, como os garamantes.

42
TÓPICO 3 | ANTECEDENTES: A ANTIGUIDADE TARDIA

ATENCAO

O termo “bárbaros” significava, originalmente, estrangeiros – para os gregos, eram


os que não falavam seu idioma. Os romanos do final do Império viam os bárbaros germânicos
com temor, e depreciavam a sua cultura por não terem uma organização social tão sofisticada
quanto a do Império. Com o tempo, o termo “bárbaro” ganhou o sentido de violento ou
ignorante, de modo que precisamos tomar cuidado com o seu uso.

UNI

Prezado(a) acadêmico(a), você consegue perceber como é tendenciosa a


denominação “invasões bárbaras”? E como é fácil perceber ‘de que lado estava’ quem criou
essa denominação? O termo em alemão, para as ‘invasões bárbaras’, pode ser traduzido como
“migração dos povos”. (Como você pode imaginar, os alemães, que são descendentes dos
povos ‘invasores’, não iriam referir-se como “bárbaros” a seus próprios ancestrais)!

2.2 OS REFORMADORES: DIOCLECIANO E CONSTANTINO


Diocleciano (284-305) pôs fim à maior parte dos conflitos ao iniciar
reformas profundas, que teriam consequências muito importantes para o
futuro do Império. Fortaleceu o exército, permitindo o recrutamento dos
bárbaros, neutralizou o Senado e, em 286, dividiu o império em uma parte
ocidental, entregue ao seu grande amigo Maximiano, e uma parte oriental –
que daria origem ao Império Bizantino –, que conservou para si. Essa divisão
marcava uma profunda distinção que já havia entre as metades do Império e
que se acentuariam muito nos séculos seguintes.

FONTE: Disponível em: <http://go.hrw.com/venus_images/0304MC05.gif>. Acesso em: 20 maio


2012.

43
UNIDADE 1 | AS ORIGENS DA IDADE MÉDIA

FIGURA 4 - A DIVISÃO DO IMPÉRIO ROMANO POR DIOCLECIANO, 395 D.C.

FONTE: Disponível em: <http://go.hrw.com/venus_images/0304MC05.gif>. Acesso


em: 15 fev. 2013.

TUROS
ESTUDOS FU

O Império Bizantino será estudado na Unidade 2 deste Caderno de Estudos.

Além disso, nomeou dois césares, para auxiliar os imperadores: Constâncio


foi o César de Maximiano e Galério, o de Diocleciano. Este sistema, conhecido
como tetrarquia, só foi eficiente durante o reinado de Diocleciano, devido em
parte às relações de amizade entre os governantes. A partir de 305, com a renúncia
dos imperadores em favor dos césares, o sistema entrou em crise. No ano seguinte,
Constantino, filho de Constâncio, foi proclamado imperador por suas tropas.

Dentre suas realizações, fundou a cidade de Constantinopla e tornou-a


capital do Império. Constantino também é conhecido por suas ações em relação
ao Cristianismo: em 313, liberou o culto e, anos mais tarde, tornou-se ele próprio
um cristão.

TUROS
ESTUDOS FU

Com a conversão de Constantino, a Igreja passou a desfrutar de uma posição


bastante poderosa na política romana, como veremos no Tópico 4 desta unidade.

44
TÓPICO 3 | ANTECEDENTES: A ANTIGUIDADE TARDIA

2.3 AS ORIGENS REMOTAS DO FEUDALISMO


Como dissemos anteriormente, a divisão do Império consolidava uma cisão
que já existia entre as partes ocidental e oriental. Essa divisão não era simplesmente
geográfica: havia muitas diferenças entre as duas partes do Império.

Uma das principais diferenças era econômica. A parte oriental era muito mais
rica do que a ocidental, por ter ocupação muito mais antiga e intensa, um comércio
mais vigoroso e cidades mais populosas. Por mais que tentassem preservar o seu
ouro, os imperadores do Ocidente, ao contrário de seus equivalentes orientais, não
conseguiam conter a fuga ou a estocagem de recursos, e o resultado foi uma séria
crise inflacionária. Com o dinheiro perdendo praticamente todo o seu valor, cada
vez mais a economia monetária, baseada no ouro e em outros metais, foi sendo
substituída por uma economia natural no Império ocidental.

NOTA

Economia natural: é o nome que se dá a uma forma de produção que não envolve
o uso do dinheiro. Nesse tipo de produção, as pessoas em geral se dedicam à subsistência, e os
poucos produtos restantes são trocados por mercadorias de valor equivalente.

AUTOATIVIDADE

Tente imaginar a vida moderna baseando-se nas trocas de produtos e


em pagamentos in natura. Seria possível? Se o dinheiro não circulasse entre nós,
seria viável vivermos em cidades? Como as pessoas fariam para sobreviver?

Isso gerou tremendas consequências para o Império. Os impostos e salários


começaram a ser pagos in natura, o que era muito vantajoso para os soldados e os
funcionários civis. O desperdício na cobrança de impostos que a cobrança in natura
causava forçou o Imperador Diocleciano a reforçar o exército com os bárbaros, que
eram pagos em terras. Os colonos mais pobres ficavam arruinados com a exigência
de pagamento dos impostos e ameaçavam abandonar suas fazendas, pondo em
risco a produção agrícola.

45
UNIDADE 1 | AS ORIGENS DA IDADE MÉDIA

UNI

Antes de continuar a leitura, imagine que atitudes os imperadores romanos


poderiam tomar para tentar conter esse abandono das fazendas.

A solução encontrada foi obrigar os trabalhadores a permanecerem para


sempre em suas atividades e, mais tarde, tornar hereditária essa condição. Dessa
forma, os colonos pobres, tanto os pequenos proprietários como os arrendatários,
se tornavam cada vez mais dependentes de um senhor poderoso e presos à terra
em que viviam: começavam a tornar-se servos.

E
IMPORTANT

Servo é um termo que vem do latim servus, ‘escravo’. Apesar disso, os servos
não eram escravos: estavam presos não a um senhor, mas à terra em que viviam. Mesmo
assim, ao contrário do que se costuma pensar, a escravidão continuou existindo na Europa
durante a Idade Média; apenas era mais rara. Geralmente, os escravos eram capturados de
povos estrangeiros, especialmente muçulmanos, e havia muitos cristãos escravizados em
terras islâmicas.

No final do século IV, a situação havia melhorado um pouco. A tendência à


economia natural e à feudalização pôde ser revertida no Oriente, onde o dinheiro
voltou a ser utilizado para pagar os impostos e salários, mas isso não foi possível
no império ocidental. Em parte, isso pode ser explicado pela capacidade que o
Império oriental tinha de resistir à pressão dos povos bárbaros. Como dispunha
de muito dinheiro, o imperador de Constantinopla podia pagar aos invasores para
que fossem embora, coisa que o imperador do Ocidente não conseguia fazer.

UNI

Observe que, até esse momento, as explicações para o colapso do Império


Romano praticamente não fizeram menção aos bárbaros. Isso mostra que a ideia, muito
comum, de que o Império teria caído simplesmente por causa das invasões bárbaras não é
totalmente correta. O Império Romano do Ocidente já estava em franca decadência quando
as invasões do século V ocorreram.

46
TÓPICO 3 | ANTECEDENTES: A ANTIGUIDADE TARDIA

3 OS BÁRBAROS NO IMPÉRIO DO OCIDENTE


Desde o final do século II, os povos bárbaros vizinhos ao Império Romano
estavam sendo progressivamente assentados como colonos em terras imperiais, na
condição de foederati (federados), uma estratégia diplomática romana para conter
os invasores, ao garantir a sua submissão (em latim, foedus).

Esses povos federados ganhavam o direito a ter um governo próprio e


estavam isentos dos impostos romanos, mas deviam fornecer soldados ao exército
quando necessário. Os romanos que vivessem em regiões dos foederati continuavam
sujeitos às leis romanas. Dentre os povos federados nos séculos III e IV estão os
francos, os godos (divididos em dois ramos, os ostrogodos e os visigodos), os
alamanos, os saxões, os vândalos e vários outros.

ATENCAO

Perceba que não estamos falando de pequenos bandos, mas de tribos inteiras, às
vezes, milhares de pessoas, assentadas em terras romanas e mantendo sua autonomia e sua
cultura no interior do Império!

AUTOATIVIDADE

De que formas as alianças com os foederati representavam um indício


de fraqueza do Império Romano? Tente pensar em todas as razões que puder.

Havia problemas, porém, nessa aliança, para os romanos: os germânicos


entendiam a condição de foederati como um contrato assinado entre líderes, não
entre estados. Portanto, a aliança vencia, no seu entendimento, quando da morte
do imperador romano. Isso se tornou problemático, especialmente nos séculos IV
e V, quando os povos federados começaram a sofrer uma pressão intensa de um
novo e terrível inimigo: os hunos.

O terror inspirado por esse povo nômade levou diversos povos a


atravessarem as fronteiras do Império e lá se fixarem, inicialmente com a
concordância dos romanos. Os godos, que tiveram seus dois reinos nas estepes
ao norte do Mar Negro destruídos pela presença dos hunos, foram os primeiros,
em 376. Dois anos depois, eles entraram em confronto com as legiões romanas na
Batalha de Adrianópolis. A vitória dos godos, atribuída à força de sua cavalaria e
aos sérios erros estratégicos do exército imperial, é considerada um dos grandes
marcos da decadência final do poderio romano. A partir deste momento, diversos
povos germânicos se estabeleceriam dentro do Império e começariam a constituir
seus domínios.
47
UNIDADE 1 | AS ORIGENS DA IDADE MÉDIA

ATENCAO

Como você provavelmente já sabia ou já percebeu, o que chamamos de reinos


bárbaros (que serão vistos com mais detalhe no próximo tópico) surgiram dos domínios que os
germânicos passaram a conquistar. O grande sentido de lealdade dos germânicos a seus líderes
lhes deu o status de reis, e as leis próprias que eles podiam seguir lhes davam autonomia como
reinos. Posteriormente, a associação desses reis com a Igreja consolidou a aura de divindade
que estava associada à nobreza.

Uma tentativa de invasão da Itália foi rechaçada pelo general Estilicão (que
era de origem vândalo-romana). Após a morte de Estilicão, o chefe godo Alarico
comandou um cerco a Roma e, em 410, tomou a cidade e saqueou-a durante três
dias.

São Jerônimo descreveria o saque de Roma em tom de lamentação, da


seguinte forma:

Quem acreditaria que Roma, edificada pelas vitórias sobre todo o


universo, viesse a cair; que tivesse sido simultaneamente a mãe das
nações e o seu sepulcro; que as costas do Oriente, do Egito e da África,
outrora pertencentes à cidade dominadora, fossem ocupadas pelas
hostes dos seus servos e servas; que em cada dia a santa Belém recebesse
como mendigos pessoas de um e outro sexo que haviam sido nobres e
possuidoras de grandes riquezas? (apud ESPINOSA, 1981, p. 9).

À medida que os povos germânicos invadiam com mais intensidade o


Império, os hunos começaram a se tornar cada vez mais ameaçadores ao próprio
Império Romano.

3.1 OS HUNOS
Há muitas controvérsias sobre a unidade étnica e linguística desse povo
– como, de resto, também entre os povos germânicos. Os hunos eram uma
confederação de povos nômades, provavelmente originários das estepes da
Ásia Central (região entre o Mar de Aral e a Mongólia), que falavam uma língua
provavelmente aparentada ao turco.

O historiador de origem grega Amiano faz uma descrição dos hunos que
dá uma demonstração clara do terror que esses homens infundiam nos romanos:

Todos eles têm membros compactos e firmes, pescoços grossos, e são


tão prodigiosamente disformes e feios que os poderíamos tomar por
animais bípedes ou por toros desbastados em figuras que se usam nos
lados das pontes.

48
TÓPICO 3 | ANTECEDENTES: A ANTIGUIDADE TARDIA

Tendo, porém, o aspecto de homens, embora desagradáveis, são rudes


no seu modo de vida, de tal maneira que não têm necessidade nem de
fogo nem de comida saborosa; comem as raízes das plantas selvagens
e a carne semicrua de qualquer espécie de animal que colocam entre as
suas coxas e os dorsos dos cavalos para as aquecer um pouco.

Vestem-se com tecidos de linho ou com as peles de ratos silvestres


cosidas umas às outras, e esta veste serve tanto para uso doméstico como
de fora. Mas uma vez que meteram o pescoço numa túnica desbotada,
não a tiram ou mudam até que pelo uso quotidiano se faça em tiras e
caia aos pedaços. (apud ESPINOSA, 1981, p. 4-5).

FIGURA 5 - COMPARAÇÃO ENTRE UM SOLDADO GERMÂNICO (ESQUERDA), UM


OFICIAL HUNO (CENTRO) E UM GUERREIRO HUNO (DIREITA)

FONTE: Disponível em: <http://www.ernak-horde.com/huns.jpg>. Acesso em: 18 out.


2012.

Além de assustadores em sua aparência e seus modos, os hunos


amedrontavam os romanos por serem extraordinários guerreiros: sob o comando
de Átila (406-453), ameaçaram a unidade do Império do Oriente, chegaram às
portas de Constantinopla e de Roma (embora não tenham saqueado nenhuma das
duas cidades) e, entre os dois eventos, chegaram a colaborar com o Império do
Ocidente na luta contra os visigodos.

Os hunos chegaram a criar um império nômade que se estendia da atual


Alemanha até os montes Urais (na Rússia, no limite tradicional entre a Europa e a
Ásia), e do Mar Negro e rio Danúbio até o Mar Báltico, ao norte. Com a morte de
Átila, os hunos foram rapidamente dominados e seu império desmoronou.

49
UNIDADE 1 | AS ORIGENS DA IDADE MÉDIA

FIGURA 6 - OS DOMÍNIOS HUNOS EM 450 D.C.

FONTE: Disponível em: <http://www.emersonkent.com/images/maps/roman_


hunnic_empire_450.jpg>. Acesso em: 18 out. 2012.

UNI

Os domínios dos hunos, em sua máxima extensão, estendiam-se do rio Reno (na
fronteira da Alemanha) até as proximidades do mar Cáspio, e da atual Estônia até o rio Danúbio.

3.2 A QUEDA DE ROMA


O colapso do império huno coincidiu com um enfraquecimento cada vez
maior do Império Romano, que não conseguia mais honrar os acordos ou pagar
os tributos que devia aos foederati. Em 476 d.C., Odoacro, líder dos hérulos, depôs
Rômulo Augusto (ou Augústulo, como foi muitas vezes chamado, em alusão ao seu
caráter fraco, o último imperador romano) e abriu caminho para a desagregação
completa do império do Ocidente. A partir daí, consolidam-se os vários reinos
comandados por germânicos, e novas ondas de imigração tornariam irreversível o
processo de feudalização da Europa.

Prezado(a) acadêmico(a), apresentamos na Leitura Complementar a seguir


o início do 4º Capítulo do livro Origens da Idade Média, de William C. Bark,
onde o autor discute em linguagem informal as modificações pelas quais o mundo
romano passou nos primeiros cinco ou seis séculos da nossa Era. Repare que, em
um certo trecho do texto, o autor se dedica a atacar a teoria de Henri Pirenne sobre
a permanência do mundo romano com os germânicos. Você consegue identificar
onde? Releia o trecho correspondente no Tópico 2, se for necessário.

50
TÓPICO 3 | ANTECEDENTES: A ANTIGUIDADE TARDIA

LEITURA COMPLEMENTAR

ORIGENS DA IDADE MÉDIA


William C. Bark

Se Júlio César ou Adriano, que muito viajaram pelo mundo civilizado


de suas respectivas épocas, tivessem podido visitar a Europa do século V ou VI,
teriam encontrado muitas alterações intrigantes na aparência externa do mundo
que conheceram. Essas modificações, bastante acentuadas no Oriente, no Ocidente
teriam sido ainda mais evidentes, especialmente no estado das cidades, grandes e
pequenas, na composição e disposição dos exércitos, o caráter do transporte e do
comércio, as ocupações quotidianas e mesmo a roupa do povo.

Ambos teriam sem dúvida considerado o Ocidente romano como


inteiramente decadente. Mesmo assim, o teriam reconhecido. Embora César sem
dúvida se pudesse aborrecer com o estado das armas romanas e Adriano entristecer-
se com a sorte de suas grandes cidades, a “deterioração” que teriam encontrado seria
pelo menos a deterioração de um ambiente, mais ou menos familiar, de criações e
costumes romanos.

Muito mais surpreendente teria sido a descoberta, se lhes fosse possível fazê-
la, de que por maiores que parecessem as modificações externas, eram pequenas se
comparadas a certas alterações mais sutis da perspectiva, dos valores, dos modos de
pensar e das aspirações. A evolução política, econômica e social [...] foi um movimento
de repulsão às velhas práticas romanas, mas no qual ainda se identificavam as antigas
instituições que haviam provocado. As demais modificações representavam um
movimento no sentido de alguma coisa nova e inteiramente estranha à experiência
de um César ou um Adriano, e dentro em breve se expressariam no comportamento
externo, bem como no pensamento e no sentimento.

Os edifícios, ruas, teatros, obras de engenharia de uma grande cidade, nem


sempre desaparecem quando os que foram capazes de planejá-los e executá-los
já não existem. O túmulo de um imperador pode durar vários séculos, servindo
posteriormente como palácio papal, e um palazzo pode continuar existindo como
casa de cômodos. Mesmo assim, ainda há modificações: a roupa lavada é pendurada
nas janelas da casa de cômodos, minaretes são acrescidos à Santa Sofia.

As modificações no reino do pensamento são mais difíceis de perceber. O


sentido verdadeiro de uma instituição como o exército, ou o sistema de administração
política, pode sofrer uma transformação vital sem se revelar em ajustes de nomes e
aspectos. Nessas circunstâncias, uma organização social aparentemente vigorosa,
uma religião, por exemplo, ou um sistema fiscal, pode tornar-se mera casca que não
denuncia externamente a profunda alteração que sofreu.

A função do estudo histórico é interpretar a modificação como um todo,


manter especificamente os sentidos internos que não se mostram na aparência
externa. Não é necessário dizer que isso nem sempre é fácil. Como já vimos, o

51
UNIDADE 1 | AS ORIGENS DA IDADE MÉDIA

vinho sírio era transportado para a França no século II, e também no século VI. O
produto era o mesmo, o meio de transporte o mesmo, a fonte e o destino os mesmos:
nada mais provável, portanto, que as condições continuassem as mesmas, que as
circunstâncias predominantes no Mediterrâneo perdurassem.

A história não pode ser escrita sem analogias semelhantes, baseadas nesse
tipo de fatos. Não obstante, nessa interpretação o historiador pode deixar de
identificar novas evoluções de aspecto não familiar, pode passar sobre o trigo para
ir ocupar-se do joio. Pode estar descrevendo o lado de fora de uma casca, deixando
a impressão de que se trata mais do que de uma simples casca.

O objetivo deste capítulo é examinar quatro aspectos diferentes do novo


mundo que se formava atrás da casca do velho, e era parcialmente obscurecido por
ela. A modificação que marcou época, ou a série de modificações, ocorridas entre os
séculos IV-V e IX-X, foram tanto internas como externas: 1) na forma pela qual os
homens pensavam e nos objetos de seus pensamentos; 2) na forma pela qual viviam
e se expressavam; 3) naquilo que julgavam compensador fazer; e 4) na forma pela
qual o faziam. O que estava realmente ocorrendo nesse período — isto é, o que os
homens faziam e os pensamentos que os levavam a tal ação — era muito diverso
do que ocorrera na época do poderio romano. [...]

A tese primordial [...] deste trabalho como um todo é a de que algo novo,
distinto e essencialmente original começou na parte europeia ocidental do Império
Romano, que seus elementos são identificáveis a partir do século IV, e alguns até
mesmo antes. Esse “algo de novo” talvez se compreenda melhor como uma nova
atitude para com a vida. Nos séculos de sua formação, ela é parcialmente obscurecida
pelas aparências externas dos remanescentes romanos, mais familiares e mais
evidentes, pela turbulência da época e pela escassez de nossas fontes.

Grande parte das informações que mais gostaríamos de ter não pareceu aos
contemporâneos como merecedora de ser preservada, sob qualquer forma; outra
parte perdeu-se para nós em incêndios, guerras, mau trato. Talvez a pior ameaça
de todas tenham sido certas ideias fixas poderosas: a preocupação com a imensa
epopeia do declínio e queda, a opinião “autorizada” de que o princípio da Idade
Média foi uma época de ignorância supersticiosa e letargia geral, animada apenas
por instantes de violência e crueldade bárbaras. [...]

Sabemos agora que a Idade das Trevas não foi de trevas. Ignorância, letargia,
desordem, existiram então como hoje, e longe estiveram de predominar numa
época ansiosa de conhecimento, vigorosa em seu modo de viver e de se expressar,
e idealista nas suas construções.

Talvez não seja demais dizer que a sociedade medieval tinha formas
funcionais com que a idade antiga nem sonhara, formas essas que levaram a fins
jamais imaginados em épocas anteriores. Por “funcional” entendo que era uma
sociedade ativa, trabalhadora, experimentadora, cometendo erros frequentemente,
mas também utilizando a energia de seu povo muito mais integralmente que suas

52
TÓPICO 3 | ANTECEDENTES: A ANTIGUIDADE TARDIA

predecessoras, e finalmente permitindo a esse povo um desenvolvimento muito


mais amplo e mais livre.

O fato de que as condições, acontecimentos e povos se tivessem reunido


de tal forma no princípio da Idade Média foi extremamente feliz para os atuais
herdeiros da tradição ocidental.

FONTE: BARK, William C. Origens da Idade Média. Rio de Janeiro: Zahar, 1979, p. 97-101.

53
RESUMO DO TÓPICO 3
Neste tópico você viu que:

 O Império Romano estava desgastado com o fim das conquistas militares no


século II, e iniciou um longo processo de decadência. Apesar de revertido
parcialmente em alguns momentos, esse processo levou a uma ruralização
progressiva da sociedade romana.

 Os imperadores Diocleciano e Constantino fizeram reformas profundas na


tentativa de salvar o Império da decadência. Dentre elas, a divisão do Império
em Oriental e Ocidental e a aceitação de bárbaros no exército.

 Os bárbaros passaram a ser assentados no interior do Império na condição de


federados, tendo direito a seguir suas próprias leis e com grande autonomia em
relação a Roma.

 Os hunos foram um povo especialmente temido por bárbaros e romanos, e a


pressão que eles faziam acelerou a queda do Império.

54
AUTOATIVIDADE

1 Explique a relação entre a crise do escravismo e a decadência do Império


Romano.

2 Estabeleça uma relação entre a pressão dos bárbaros e as crises políticas do


Império.

3 Como foi dito no tópico anterior, William C. Bark acredita que o Império
Romano caiu por causa das tentativas de mantê-lo. Encontre neste tópico
elementos que permitam confirmar essa teoria.

55
56
UNIDADE 1
TÓPICO 4

O ESTADO E A IGREJA NA IDADE MÉDIA

1 INTRODUÇÃO
O período compreendido entre os séculos V e X, aproximadamente, costuma
ser denominado pelos historiadores de Alta Idade Média. Foi um período marcado
pela criação de reinos que, em um lento processo, promoveriam a integração entre
as culturas tão diferentes dos romanos e dos germânicos, por meio da religião
cristã. Esses reinos, no entanto, não tinham a unidade e a estabilidade que havia
tido o Império Romano, de modo que, por volta do ano 1000, a ordem política da
Europa era claramente fragmentada.

A única instituição que se manteve unida, nesse momento de


fragmentação, foi a Igreja. De fato, a única noção de unidade que havia entre
os homens medievais era a Cristandade. Neste tópico vamos estudar esse
duplo processo de desagregação política e a unidade religiosa.

UNI

SUGESTÃO DE LEITURA
Prezado(a) acadêmico(a), uma boa obra de referência para aprofundar seus conhecimentos
acerca dos temas abordados neste tópico é: LE GOFF, Jacques. A Civilização do Ocidente
Medieval. Bauru: Edusc, 2005.

2 OS REINOS BÁRBAROS
Como vimos no tópico anterior, a presença dos bárbaros completou o
processo de desagregação do Império Romano do Ocidente. Até o século V, diversos
povos haviam invadido o Império, e começaram a criar domínios relativamente
independentes (inicialmente na condição de foederati), que se tornariam os
chamados reinos germânicos.

57
UNIDADE 1 | AS ORIGENS DA IDADE MÉDIA

UNI

Quem eram os POVOS BÁRBAROS?


Constituíam os povos de origem germânica que habitavam as regiões ao norte, ao nordeste
da Europa e noroeste da Ásia, na época do Império Romano. Os romanos se utilizavam da
expressão "bárbaros" para designar todos aqueles que residiam nas regiões situadas além das
fronteiras do Império Romano, e em especial que não falavam o latim, a língua oficial do
Império.

Os reinos germânicos enfrentaram grandes dificuldades e dependiam da


cooperação entre romanos e germânicos. Sem tradição de governos centralizados,
os bárbaros confiavam muito mais na autoridade pessoal do líder e na sua
capacidade de manter as tribos unidas do que nos preceitos do Direito Romano. A
assimilação era dificultada pelas leis romanas, que não permitiam a realização de
casamentos entre romanos e estrangeiros. Sendo assim, em muitas regiões levou
mais de um século para que um processo de miscigenação realmente pudesse se
iniciar.

Outro problema enfrentado pela maioria dos reinos bárbaros era religioso:
no processo de migração, os bárbaros haviam sido, em sua maioria, cristianizados
pela corrente ariana do Cristianismo. Para os católicos romanos, o arianismo era
uma heresia, e os povos germânicos que a adotavam eram vistos, muitas vezes,
como inimigos.

TUROS
ESTUDOS FU

Arianismo é o nome que se dá a uma dissidência – ou heresia, na terminologia


usada pelo Catolicismo romano – do Cristianismo que surgiu no início do século IV. A
controvérsia gerada pelo arianismo será estudada em breve.

58
TÓPICO 4 | O ESTADO E A IGREJA NA IDADE MÉDIA

FIGURA 7 - OS REINOS BÁRBAROS

FONTE: Disponível em: <http://www.igm.mat.br/homepage/joao_afonso/J.A/figuras_inhumas/


reinos%20barbaros.jpg>. Acesso em: 20 fev. 2013.

Os principais povos germânicos a estabelecer reinos foram:

 Anglo-Saxões: anglos, saxões, jutos, frísios e outros povos instalaram-se na foz


do rio Reno. Alguns grupos migraram para a ilha da Grã-Bretanha no século V,
dominaram as populações celtas originais e criaram reinos que durariam até a
invasão dos normandos (vikings) em 1066.

 Burgúndios: fundaram um reino no início do século V, destruído pelos hunos.


Em 443, criam novo reino que seria destruído pelos francos cerca de um século
depois.

 Francos:criaram o mais poderoso e mais importante reino bárbaro, que será


estudado em detalhes a seguir.

 Ostrogodos: o maior dos reis ostrogodos, Teodorico, foi educado em


Constantinopla e criou na Itália o primeiro reino que reuniu pacificamente
romanos e germânicos. Com a sua morte, o reino começou a decair e em 553 foi
conquistado pelo Império Bizantino.

 Suevos: em 410, estabeleceram um reino na Galícia (norte de Portugal e costa


atlântica da Espanha), destruído em 585 pelos visigodos.

 Vândalos: após invadirem a Península Ibérica entre 407 e 409, foram expulsos
de lá pelos romanos e visigodos. Invadiram a África do Norte em 429, onde
fundaram um reino poderoso. (Santo Agostinho morreu durante essa invasão
59
UNIDADE 1 | AS ORIGENS DA IDADE MÉDIA

em Hipona, a segunda maior cidade do novo reino). De lá, em 455, comandaram


uma expedição que saqueou Roma. A violência do saque deu ao termo vândalo
o sentido de arruaceiro e violento.

 Visigodos: estabelecidos na Península Ibérica a partir de 418, seu reino duraria


até a conquista dos muçulmanos, no século VII. Após a invasão, muitos
atravessaram os Pirineus e se tornaram colaboradores dos francos.

ATENCAO

A imagem que se tem dos povos bárbaros como incapazes de criar um reino
organizado, por não conhecerem as tradições e as leis romanas, não é correta. Observe-se,
por exemplo, o caso de Teodorico, rei ostrogodo. Essa imagem é preconceituosa porque parte
da ideia de que os germânicos eram ignorantes e incapazes de elaborar governos sofisticados,
coisa que só os civilizados romanos teriam condições de fazer.

3 O REINO FRANCO
No entanto, de todos os povos bárbaros, o que teve mais sucesso em criar e
consolidar um reino foram os francos. As razões para isso têm a ver, entre outros
fatores, com a conversão dos francos ao cristianismo católico, que facilitou a sua
aceitação pelas populações galo-romanas.

Os francos eram uma confederação de tribos, nem todas etnicamente


aparentadas, que viviam nos limites do Império Romano pelo menos desde o
século III. No final do século V, Clóvis, o primeiro rei franco, adotou o cristianismo
católico e tornou os francos aliados naturais da Igreja de Roma. Clóvis ampliou os
domínios francos e, após sua morte, os domínios foram divididos em dois reinos,
Nêustria e Austrásia. O costume franco de dividir o reino entre todos os herdeiros
enfraqueceu aos poucos os reinos e permitiu o fortalecimento político dos prefeitos
do palácio (ou mordomos, do latim major domus).

De meros administradores do palácio, com o tempo passaram a cobrar os


impostos, administrar o exército e nomear os condes e duques; eram inclusive os
tutores dos herdeiros do trono. O cargo terminou por se tornar hereditário. Os reis
merovíngios dessa época, sem poder, ficaram conhecidos como os reis indolentes.

Em 732, o prefeito do palácio Carlos Martel derrotou os muçulmanos que,


após destruírem o reino visigodo e ocuparem quase toda a Península Ibérica,
avançaram sobre os francos. A vitória em Poitiers deu a Martel um enorme
prestígio, que lhe permitiu centralizar o poder sobre todos os reinos francos. Seu
filho, Pepino, o Breve, venceu os lombardos e doou terras à Igreja, que viriam a
se tornar os Estados Pontifícios. Em 751, ele destronou Childerico III, o último rei
merovíngio, e criou a nova dinastia Carolíngia.

60
TÓPICO 4 | O ESTADO E A IGREJA NA IDADE MÉDIA

Com a morte de Pepino, o Breve, seu filho Carlos assumiu o trono. Seu
reinado foi caracterizado por uma grande ampliação nos domínios francos (ver
mapa a seguir) e por uma valorização da cultura. Carlos Magno, como ficou
conhecido, consolidou a aliança entre os francos e a Igreja e, como um prêmio à
sua lealdade e às suas conquistas e forma de garantir a predominância do papado
sobre o governante mais poderoso do Ocidente na época, o Papa Leão III coroou-o
“imperador romano” no Natal de 800.

FIGURA 8 – O REINO FRANCO DE CLÓVIS A CARLOS MAGNO

FONTE: Disponível em: <http://fr.wikipedia.org/wiki/Image:Frankish_empire.jpg>. Acesso em: 20


fev. 2013.

A coroação foi controversa, porque o papa ignorou a existência do Império


Bizantino, formalmente era o legítimo continuador do Império Romano. No
entanto, o papa alegou que o trono bizantino encontrava-se vago (pois era ocupado
por uma mulher), para consolidar seu poder no Ocidente.

É claro que a explicação para a atitude do papa vai muito além do


“machismo” e da “prepotência ocidental”. A coroação de Carlos Magno que
atendia a um duplo propósito: o desejo dos governantes francos de expandir seu
poder e a intenção dos papas de consolidar sua versão de religiosidade cristã como
hegemônica.

E os adversários eram os mesmos: internamente, os povos bárbaros


com seus reinos rivais e seu cristianismo ariano, e externamente, muçulmanos.
Depois, os próprios bizantinos, com seu desejo de expandir seus domínios e
61
UNIDADE 1 | AS ORIGENS DA IDADE MÉDIA

suas divergências político-religiosas com Roma. A coroação de Carlos Magno


consolidou uma vinculação muito próxima entre a autoridade papal e o poder no
Ocidente e separou irreversivelmente os domínios e os rituais religiosos de cristãos
católicos e ortodoxos.

3.1 O REINADO DE CARLOS MAGNO


Para melhor administrar seu reinado, Carlos Magno dividiu-o em condados
e, nas fronteiras, as marcas, que delegou a nobres de sua confiança (os condes e
marqueses, respectivamente), com amplos poderes em suas regiões. O rei tentou
criar um sistema imperial organizado, com uma reforma monetária e funcionários
que fiscalizavam a atuação dos nobres, os missi dominici.

No entanto, essa estrutura não conseguiu centralizar o poder em suas mãos:


aos poucos, os vínculos de doação e vassalagem se tornaram mais importantes
do que a lealdade ao rei e o poder na Europa Ocidental tornou-se cada vez mais
fragmentado.

FIGURA 9 - MAPA: REINO FRANCO EM 814, MOSTRANDO SUAS DIVISÕES TRADICIONAIS E AS


CIDADES QUE SERVIAM DE PARADA AO REI

FONTE: Disponível em: <http://www.moneymuseum.com/imgs/ximages/image/


2010/8/I_EN_63655_8.jpg>. Acesso em: 20 out. 2012.

62
TÓPICO 4 | O ESTADO E A IGREJA NA IDADE MÉDIA

3.1.1 O Renascimento Carolíngio


Durante os reinados de Carlos Magno e de seu filho, Luís, o Piedoso, surgiu
um movimento de renascimento cultural e intelectual que ficou conhecido como
Renascimento Carolíngio. Carlos Magno trouxe estudiosos (em sua maioria
religiosos) para sua corte em Aachen (Aix-la-Chapelle, em francês) e copiou
muitos manuscritos antigos usando a recém-criada caligrafia carolíngia. Quase
toda a herança greco-romana que era conhecida durante a Idade Média se deve
a essa iniciativa. Os livros ganharam um cuidado especial, com encadernações
riquíssimas e muito elaboradas.

Carlos Magno, ele próprio analfabeto até a idade adulta, entendeu bem
a importância da educação. Seus estudiosos, comandados por Alcuíno de York,
instituíram os currículos do trivium (gramática, lógica e retórica) e do quadrivium
(aritmética, geometria, música e astronomia) e criaram obras literárias originais em
latim medieval.

FIGURA 10 – MANUSCRITO DO SÉCULO X. EXEMPLO DA CALIGRAFIA CAROLÍNGIA

FONTE: Disponível em: <http://upload.wikimedia.org/wikipedia/en/7/72/


CarolingianMinuscule.jpeg>. Acesso em: 14 fev. 2013.

3.1.2 A divisão do Império


Após a morte de Luís, o Piedoso, em 840, seus filhos lutaram para organizar
a sucessão. Pelo Tratado de Verdun (843), a parte ocidental ficou com Carlos, o
Calvo; a oriental com Luís, o Germânico; e a região central com Lotário. Após
a morte de Lotário, em 855, as lutas entre seus herdeiros fragmentaram todo o
Império, garantindo ainda mais poder para a nobreza rural. No leste, o reino de
Luís deu origem ao Reino da Alemanha, mais tarde o Sacro Império Romano-
Germânico.

63
UNIDADE 1 | AS ORIGENS DA IDADE MÉDIA

FIGURA 11 – DIVISÃO DO IMPÉRIO CAROLÍNGIO APÓS OS TRATADOS DE VERDUN


(843) E MEERSEN (870)

FONTE: Disponível em: <http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/d/d7/843-


870_Europe.jpg>. Acesso em: 15 fev. 2013.

NOTA

O Sacro Império Romano-Germânico surgiu como uma tentativa de manter


a vinculação entre o poder temporal (do rei) e o poder da Igreja. Apesar do nome, era
politicamente fragmentado, aproximando-se muito mais de uma confederação de domínios
feudais do que de um reino. O governante recebia o título de imperador romano, e o posto não
era hereditário: o imperador era eleito pelos principais nobres. O império sobreviveu ao fim da
Idade Média e foi desfeito apenas em 1806, durante as conquistas napoleônicas.

3.2 NOVOS INVASORES


No final do século IX, nova onda de invasões aterrorizou a Europa. Do
Oriente vieram os magiares, que se fixariam mais tarde na Hungria. Do norte, os
temíveis vikings (ou normandos, os “homens do norte”) atingiram toda a região da
Inglaterra e França até serem cristianizados e se assentarem na região conhecida
como Normandia (na França). Sua presença, como piratas ou comerciantes,
estendeu-se por toda a região do Báltico, Mar Mediterrâneo e mesmo o Oriente
Médio: os vikings estabeleceram contatos comerciais com os muçulmanos e estão
ligados à formação da Rússia de Kiev e da Liga Hanseática.

64
TÓPICO 4 | O ESTADO E A IGREJA NA IDADE MÉDIA

4 A IGREJA NA ALTA IDADE MÉDIA


O Cristianismo surgiu na Palestina, no início do Império Romano, e aos
poucos começou a se tornar uma força significativa dentro da sociedade romana.
As ideias de salvação da alma, igualdade entre os homens e caridade tinham
muita repercussão entre as camadas mais pobres da sociedade, especialmente
entre os escravos. As perseguições feitas pelos imperadores romanos, pela
recusa dos cristãos a venerarem os deuses imperiais, aumentavam a simpatia ao
movimento que, no século IV, já era majoritário entre a população do Império.

Em vista disso, o Imperador Constantino proibiu as perseguições aos cristãos


e, mais tarde, converteu-se ele próprio à religião. A conversão de Constantino
pode ou não ter sido uma jogada política, mas o fato é que ele conseguiu, dessa
forma, manter um controle sobre a religião, associando-a aos interesses do Estado
romano. Em meados do século VIII, essa relação seria invocada e invertida, e a
coroação de Carlos Magno simbolizava o domínio da Igreja sobre a Monarquia.

4.1 SANTO AGOSTINHO


Uma das figuras mais importantes para o desenvolvimento da Cristandade
medieval foi Santo Agostinho de Hipona (354-430), que elaborou grande parte dos
fundamentos religiosos do Cristianismo. Para elaborar sua teologia, Agostinho
baseou-se, principalmente, na filosofia de Platão e dos neoplatônicos, adaptando-
as às preocupações religiosas.

FIGURA 12 - REPRESENTAÇÃO TRADICIONAL DE SANTO


AGOSTINHO DE HIPONA

FONTE: Disponível em: <http://lifeondoverbeach.files.wordpress.


com/2011/06/augustine-of-hippo.jpg>. Acesso em: 23 out.
2012.

65
UNIDADE 1 | AS ORIGENS DA IDADE MÉDIA

NOTA

Essa “cristianização de Platão” pode ser entendida como um símbolo da adaptação


que fizeram os homens da Antiguidade Tardia e da Alta Idade Média do pensamento clássico,
embora há quem veja nisso um sinal inequívoco de decadência. A Leitura Complementar, no
final deste tópico, ajudará você a refletir melhor sobre o assunto.

4.2 O ARIANISMO
A Igreja, criada como uma analogia do Império, tinha uma estrutura
rígida, que se fundou cada vez mais na primazia do bispo de Roma, considerado
o sucessor de São Pedro (desde Leão I, em meados do século V), sobre os demais.
Isso significava a necessidade de se manter uma única autoridade suprema na
Terra, assim como havia uma única divindade no Céu.

Isso levou a Igreja a se defrontar com algumas questões bastante delicadas,


não só pela necessidade de explicá-las de um ponto de vista teológico, como
pelas implicações políticas que elas traziam. Na época, não havia a separação,
nem política nem filosófica, entre religião e poder, e as ameaças à doutrina eram
também ameaças ao poder do papa. Era necessário combater as dissidências – em
grego, heresias – a fim de preservar a unidade da religião.

ATENCAO

Não estamos querendo dizer, com isso, que a motivação para combater as
heresias fosse simplesmente política, ou seja, que os papas estivessem preocupados apenas
em manter o seu poder diante das ameaças. Entender o combate às heresias apenas do ponto
de vista político é tão incorreto quanto entendê-lo apenas do ponto de vista teológico. Como
dissemos, não havia uma separação clara entre as duas categorias.

Uma das heresias mais importantes da Idade Média foi o já mencionado


arianismo, nome dado em razão de seu fundador, Ário de Alexandria (c. 250–336).
O ponto mais controverso da teologia de Ário era a sua ideia de que Jesus Cristo
tinha sido criado por Deus, não igual a Ele. Da mesma forma, o Espírito Santo
seria uma criação de Deus, e estaria subordinado a Cristo, como Cristo a Deus.
Em outras palavras, o arianismo negava a ideia da Santíssima Trindade, o que era
potencialmente destrutivo para a Igreja Católica.

Para tentar solucionar a controvérsia gerada pelo arianismo, o Imperador


Constantino convocou o primeiro Concílio Ecumênico da história do Cristianismo,
em Niceia (325), na atual Turquia. O resultado do Concílio foi avassalador: dos 250

66
TÓPICO 4 | O ESTADO E A IGREJA NA IDADE MÉDIA

a 318 bispos que se estima que compareceram (de acordo com as várias contagens),
apenas dois apoiaram Ário. O Concílio estabeleceu o chamado Credo Nicênico,
que reafirmava toda a doutrina católica e que, com modificações, é recitado até
hoje, em praticamente todas as denominações religiosas do Cristianismo.

Caro(a) acadêmico(a), veja a seguir uma tradução do conteúdo original do


Credo Nicênico (em itálico, os trechos que hoje não fazem parte do Credo regular,
mas que eram, como se verá, os pontos centrais):

Creio em um Deus, Pai Todo-poderoso, Criador do céu e da terra, e de


todas as coisas visíveis e invisíveis; e em um Senhor Jesus Cristo, o unigênito Filho
de Deus, gerado pelo Pai antes de todos os séculos, Deus de Deus, Luz da Luz, verdadeiro
Deus de verdadeiro Deus, gerado não feito, de uma só substância com o Pai; pelo qual
todas as coisas foram feitas; o qual por nós homens e por nossa salvação, desceu
dos céus, foi feito carne pelo Espírito Santo da Virgem Maria, e foi feito homem; e foi
crucificado por nós sob o poder de Pôncio Pilatos. Ele padeceu e foi sepultado;
e no terceiro dia ressuscitou conforme as Escrituras; e subiu ao céu e assentou-se
à direita do Pai, e de novo há de vir com glória para julgar os vivos e os mortos,
e seu reino não terá fim. E no Espírito Santo, Senhor e Vivificador, que procede do
Pai e do Filho, que com o Pai e o Filho conjuntamente é adorado e glorificado, que falou
através dos profetas. Creio na Igreja una, universal e apostólica, reconheço um só
batismo para remissão dos pecados; e aguardo a ressurreição dos mortos e da
vida do mundo vindouro.

FONTE: Extraído de ANGLADA, Paulo. Sola Scriptura: A Doutrina Reformada das Escrituras. São
Paulo: Os Puritanos, 1998, p. 179-80.

4.3 OS BÁRBAROS E A IGREJA


O rei, entre os bárbaros, tinha um papel sagrado: visto como de origem
divina, era o chefe dos ofícios religiosos, muito mais do que um simples líder
militar. Por isso, a conversão dos povos bárbaros era uma tarefa relativamente
simples: bastava converter o líder, e o seu povo se converteria com ele. Isso tornava
o trabalho dos missionários mais fácil, em um primeiro momento, mas exigia um
longo trabalho de catequização para que a nova tradição religiosa fosse assimilada
adequadamente, sem alterações ou deturpações.

O arianismo teve um papel especialmente importante na Idade Média,


porque a maioria dos povos bárbaros que entravam no Império foi cristianizada
sob essa forma. Quando os reinos germânicos foram formados, no século V, alguns
de seus criadores eram arianos havia mais de um século. Os romanos, no entanto,
eram majoritariamente trinitários (católicos), e isso gerou sérias dificuldades de
adaptação com os recém-chegados.

67
UNIDADE 1 | AS ORIGENS DA IDADE MÉDIA

4.4 A REGRA DE SÃO BENTO


Como dissemos, o trabalho de cristianização dos povos germânicos não se
resumia à conversão do rei. Após esse processo, que era antes uma formalidade,
era preciso ensinar a religião a todo o povo, o que levou décadas ou até mesmo
séculos, em alguns casos.

A conversão dos povos germânicos implicava, mais do que o ensinamento


de preceitos religiosos, a introdução de uma cultura completamente diferente, que
terminou por ser mesclada às culturas locais, criando-se uma forma híbrida de
cultura e de práticas religiosas, que passou a ser o modo de vida medieval.

FIGURA 13 - SÃO BENTO DE NÚRCIA, AUTOR DA REGRA QUE


ORGANIZAVA A VIDA DOS MOSTEIROS MEDIEVAIS. A
PINTURA É DE FRA ANGÉLICO

FONTE: Disponível em: <http://upload.wikimedia.org/wikipedia/


commons/thumb/7/73/Fra_Angelico_031.jpg/220px-Fra_
Angelico_031.jpg>. Acesso em: 23 out. 2012.

Para essa tarefa, foi muito importante a constituição de um clero regular,


ou seja, submetido a regras, a uma rígida disciplina. Em 534, São Bento de Núrcia
(480-547) elaborou a sua Regra, baseando-se em algumas já existentes, mas com
muito mais clareza e simplicidade.

Hilário Franco Júnior (2004, p. 70) faz a seguinte reflexão sobre a Regra:

Por ela, a vida do monge beneditino transcorre em função do preceito do


ora et labora. Oração e trabalho num duplo sentido, numa dupla forma
de alcançar Deus: rezar é combater as forças maléficas, contribuindo

68
TÓPICO 4 | O ESTADO E A IGREJA NA IDADE MÉDIA

para a salvação não apenas da alma do próprio monge, mas também


de toda a sociedade; trabalhar é afastar a alma de seus inimigos, a
ociosidade e o tédio, é alcançar por meio dessa forma de ascese uma
fonte de alegria. Tanto quanto o trabalho manual, o intelectual, a leitura
de textos sagrados, prepara a alma para a oração. Enfim, orar é uma
forma de trabalhar, trabalhar é uma forma de orar.

NOTA

VOCÊ SABIA?
Quando o Papa Bento XVI explicou, dias após a sua eleição, em 2006, a razão para escolher
seu nome, mencionou o trabalho importantíssimo de São Bento na evangelização da Europa.

Os centros monásticos constituídos dessa forma passaram a ser, então, os


locais onde os monges pudessem conviver com os pagãos (ou com os arianos) e
trazer auxílio e soluções para os seus problemas quotidianos. Assim, os religiosos
ganhavam reputação entre os bárbaros e, de quebra, promoviam a fusão das
culturas de uma forma mais intensa e duradoura.

Os monges que atuavam nessa verdadeira frente de batalha foram muito


mais do que simples transmissores de uma mensagem religiosa, verdadeiros
agentes de transformação cultural. Buscavam completá-la com uma atuação direta
e constante nas comunidades, de modo a demonstrar a superioridade do modo de
vida cristão sobre as antigas práticas pagãs.

UNI

Perceba que esses monges serviram como o elo de ligação entre essas duas
culturas tão diferentes, o que explica, em parte, o caráter central que a religião teve durante a
Idade Média.

Caro(a) acadêmico(a), apresentamos um trecho de William C. Bark sobre


Santo Agostinho e a difícil tarefa de adaptar a cultura clássica às necessidades
medievais.

69
UNIDADE 1 | AS ORIGENS DA IDADE MÉDIA

LEITURA COMPLEMENTAR

A vida intelectual do novo mundo na Idade Média teve um molde


inteiramente diverso da antiguidade clássica — principalmente helênica. Um dos
pontos cruciais da história do pensamento foi o momento em que os gregos não só
começaram a adquirir conhecimento, como ocorrera até então, mas a especular sobre
ele, a unir a ciência e a filosofia. O legado dessa união não se exauriu nunca, embora
os romanos não o pudessem apreciar devidamente e embora desde o início da Idade
Média os europeus ocidentais o tivessem por vezes utilizado de uma forma que
sem dúvida pareceria estranha aos que originalmente recolheram aquela fortuna.

No Último Império, o fogo grego ardeu muito obscuramente. A ciência


perdeu a vitalidade e a velha união com a filosofia se dissolveu. Houve novas
necessidades a serem satisfeitas: para os intelectuais, a recordação das glórias da
Academia não tinha mais utilidade do que para os fazendeiros desapropriados de
Salviano a lembrança da grandeza do nome romano e da liberdade de seus ancestrais.

A filosofia contraiu nova aliança, dessa vez com a teologia. A partir de


então, durante alguns séculos, a vida intelectual se processaria sob a orientação da
Igreja. O conhecimento do passado foi em parte mantido e transformado, em parte
virtualmente ignorado.

Os líderes cristãos, acima de todos Santo Agostinho, lutaram com energia


e êxito para reorganizar os padrões do pensamento e adaptar o conhecimento
clássico e as realizações intelectuais que se conservaram aos novos objetivos da
vida humana. Uma vida na qual a salvação se havia tornado a principal finalidade
do homem educado.

Santo Agostinho tem, merecidamente, um lugar de destaque. De todas as


tarefas impostas ao intelecto humano, talvez a mais difícil seja a de perceber, em
período de enormes modificações fundamentais, o que está morto e destituído de
sentido, e então conceber, aperfeiçoar e propagar valores mais adequados à nova era.

A maioria dos homens, em todas as épocas, e muito mais em épocas de


agitação do que nas de estabilidade, se apega firme e cegamente àquilo que lhe é
familiar e aceito, evitando o frio desconforto do reajustamento mental e espiritual. Ao
reconhecer o que estava morto, ou agonizante, e ao dar sentido ao que estava vivo e
nascia, Santo Agostinho teve poucos pares. As Confissões e a Cidade de Deus bastam
para nos mostrar como lhe era poderosa a atração do passado. Sua superioridade
está no reconhecimento de que, para a sua geração e para as gerações futuras, nas
condições de vida que deviam imperar, as vozes de Platão e do resto eram apenas
ecos de um túmulo. Não repudiou a inspiração de Platão, utilizou-a. Mas escolheu
apenas aquilo que considerava de valor, adaptou-o às novas condições e fez dele
parte da estrutura intelectual que teria sido incompreensível à Academia.

É cabível indagar da história se há alguma razão válida para supor que o


gênio humano chamejou com menos brilho quando os homens, por boas razões

70
TÓPICO 4 | O ESTADO E A IGREJA NA IDADE MÉDIA

pessoais e da época, transferiram o pensamento especulativo da ciência-filosofia


para a teologia-filosofia. Presumivelmente, os homens do Último Império e do
princípio da Idade Média nasceram com a mesma capacidade de pensar, inquirir e
evoluir intelectualmente que os homens de qualquer outra época. A questão, então,
não é se tinham capacidade, mas se podiam ou desejavam usá-la, e como a usavam.
Devemos fazer aqui uma distinção entre a atitude de fins do período clássico e início
do medieval, tal como mencionada na discussão das opiniões de Pirenne sobre a
decadência da cultura clássica.

É perceptível, antes do século IV, um declínio não universal, mas generalizado,


da qualidade das obras intelectuais e literárias pertencentes à tradição clássica. Essa
tradição perdera muita vitalidade e seus adeptos já não pareciam convictos de que
os assuntos de que tratavam tivessem muito sentido.

Os pensadores e autores da tradição patrística, ao contrário, estavam


imbuídos de uma completa fé na força daquilo que para eles era vital -, e sobre
isso escreveram com energia e segurança, na apologética, na exegese, na homilética,
em obras sobre a organização eclesiástica, sobre ascetismo e hagiografia, sobre
controvérsias doutrinárias.

Nossa época supõe geralmente que essa produção, particularmente na última


forma, representa uma perda de tempo. Tal não é, porém, a opinião daqueles que
conhecem tais obras bem e reconhecem o lugar que lhes cabe no desenvolvimento
dos processos de pensamento do homem ocidental. Muitas das controvérsias
versaram assuntos fúteis e áridos, muitas foram inspiradas por motivos econômicos
e políticos, ou por interesses pessoais, e seu estilo se reveste mais de paixões do
que de inteligência.

Não obstante, é certo que as polêmicas teológicas frequentemente se ocuparam


de assuntos de imorredouro interesse para a humanidade, que frequentemente
eram cheias de sinceridade e brilhantismo e que deram um estímulo grande ao
desenvolvimento de um método de pensamento que é agudo, inquisitivo e lógico.
Sua contribuição para a formação, nos séculos posteriores, da filosofia escolástica
— um dos pontos altos na evolução do pensamento ocidental — é bastante bem
conhecida para ser descrita aqui.

Devemos, portanto, ser extremamente cautelosos no julgamento das


realizações intelectuais da Idade Patrística, em comparação com as da antiguidade
clássica. Devemos reconhecer as divergências dos antigos padrões, a simplificação
e mesmo o abandono de certas áreas do conhecimento.

Formular, porém, uma condenação geral da vida intelectual da época como


decadente, retrogressiva e obscura é simplesmente abrir caminho para a deformação
da realidade histórica e tornar sua compreensão impossível. Não há como negar
que certos males como pobreza, instabilidade e violência se tornaram piores após
a época de São Jerônimo e Santo Agostinho, antes que melhorassem, e que os
empreendimentos intelectuais sofreram, como todas as outras manifestações vitais.

71
UNIDADE 1 | AS ORIGENS DA IDADE MÉDIA

O essencial é que pelo século IV uma nova atitude intelectual para com o
mundo já se firmara, e que essa atitude não era necessariamente superior ou inferior
à da antiguidade clássica, mas simplesmente diferente, e que as circunstâncias
e natureza de seu desenvolvimento eram da maior importância. É de duvidar
que qualquer atitude mental e espiritual menos consistente, agressiva e menos
convencida de sua missão pudesse ter preparado as tempestades que iam envolver
a Europa ocidental nos séculos futuros.

FONTE: Bark (1979, p. 102-105)

72
RESUMO DO TÓPICO 4
Neste tópico você viu que:

 Os reinos bárbaros que se formaram com o fim do Império Romano do Ocidente


tiveram grandes dificuldades por causa do choque cultural com os romanos, das
tradições políticas germânicas e dos conflitos religiosos.

 O reino bárbaro mais poderoso foi o dos francos, que conseguiu o apoio da
Igreja e consolidou o seu domínio sobre grande parte do Ocidente.

 O maior dos reis francos, Carlos Magno, promoveu um movimento de


recuperação cultural chamado Renascimento Carolíngio.

 A Igreja medieval, preocupada em fortalecer seu poder e afirmar-se como a


única via de salvação, teve que enfrentar diversas heresias; a mais importante
delas foi o arianismo, que questionava a divindade de Jesus Cristo.

 Os grandes responsáveis pela evangelização da Europa foram os monges,


especialmente os beneditinos. Nesse processo, eles ajudaram a desenvolver uma
cultura totalmente nova, fundindo os elementos cristãos, romanos e germânicos.

73
AUTOATIVIDADE

1 Quais as razões da forte aliança celebrada entre a Igreja e os reis francos?

2 Discorra sobre o papel da Igreja na organização da sociedade medieval.

Assista ao vídeo de
resolução da questão 1

74
UNIDADE 1
TÓPICO 5

AS ORIGENS DO ISLAMISMO

1 INTRODUÇÃO
Desde o início do século XXI, o Islamismo parece estar o tempo todo em
evidência. Os atentados de 11 de setembro de 2001, a crise no Oriente Médio, as
polêmicas sobre símbolos religiosos na Europa, tudo parece apontar para uma
tensão entre Ocidente e Oriente, entre cristãos e muçulmanos. A ideia de um
“choque de civilizações” é controversa e exagerada, mas não temos como negar
que existe pelo menos um estranhamento entre o mundo ocidental e os valores do
Islamismo.

NOTA

A polêmica tese do “choque de civilizações”, elaborada pelo cientista político


Samuel Huntington, diz que os conflitos mundiais, neste período pós-Guerra Fria, serão travados
entre civilizações, não entre ideologias. Huntington aponta principalmente a tensão entre o
mundo ocidental (europeu e norte-americano), com seus valores democráticos, seculares e
racionalistas, e o mundo islâmico, entendido por ele como detentor de valores opostos a esses.

Esse estranhamento não é recente; pelo contrário, vem desde a época do


surgimento do Islã. Além das questões religiosas, que tanto aproximam como
afastam cristãos e muçulmanos, os seguidores dessas religiões entraram em guerra
incontáveis vezes na História e, de certa forma, esse confronto ajudou a criar o
mundo que conhecemos hoje.

No entanto, não é apenas pelos conflitos com o Ocidente que devemos


compreender o Islamismo. O surgimento dessa religião, a cultura que ela criou e
as relações dos muçulmanos com os outros povos são eventos extraordinários por
si sós.

Nas grandes cidades muçulmanas, abastecidas com sistemas de esgoto,


iluminação noturna, universidades e bibliotecas públicas, viviam mercadores de
todas as partes do mundo conhecido, de Portugal à China, das estepes da Rússia à
África ao sul do Saara, que abasteciam os bazares com todos os tipos imagináveis
de produtos e de experiências culturais.

75
UNIDADE 1 | AS ORIGENS DA IDADE MÉDIA

Poetas, filósofos e cientistas tinham à sua disposição, em árabe ou persa,


obras gregas de Aristóteles há muito esquecidas no Ocidente. Judeus, muçulmanos
e cristãos conviviam em harmonia, sem perseguições religiosas nem discriminações
por causa de etnia ou religião.

Se na chamada Antiguidade Clássica o mundo “civilizado” falava grego e


latim, um viajante do século VIII ou do XII não teria dúvidas: o auge da civilização
humana naquela época parecia ser um povo que falava árabe e rezava voltando-se
para Meca.

UNI

SUGESTÕES DE LEITURA
Prezado(a) acadêmico(a), existem diversos livros que podem nos dar uma visão mais precisa
sobre o mundo muçulmano, dos pontos de vista político e cultural. Quatro obras, facilmente
acessíveis no mercado editorial brasileiro, podem servir de referência mais imediata:
Para uma visão mais factual do mundo islâmico, ver o livro de:
● GIORDANI, Mário Curtis. História do mundo árabe medieval. Petrópolis: Vozes, 1997.
O livro é parte de uma série de títulos que o autor escreveu sobre História Geral, em um estilo
bastante descritivo e detalhado, mas como costuma ocorrer em obras dessa magnitude, sem
o compromisso com uma reflexão teórico-metodológica mais aprofundada. É um bom ponto
de partida, mas vale a pena complementá-lo com obras posteriores.
Para discussões mais recentes e mais críticas sobre o mundo islâmico, ver:
● HOURANI, Albert. Uma história dos povos árabes. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
● MAALOUF, Amin. As Cruzadas vistas pelos Árabes. São Paulo: Brasiliense, 1988.
● SAID, Edward. Orientalismo. O Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia
das Letras, 2008.

2 UMA NOVA FÉ: O ISLAMISMO


O Islamismo é, hoje, a segunda maior religião do mundo em número de
seguidores, e a que cresce mais rapidamente, de acordo com o U.S. Center for
World Mission. Em todo o mundo, são cerca de 1,5 a 1,8 bilhão de muçulmanos,
e esse número vem aumentando consistentemente, não apenas pelo crescimento
demográfico nas regiões de população muçulmana, mas por conversões em países
em que o Islã não é a religião original.

Ao mesmo tempo, o imaginário ocidental atribui um papel muito negativo


ao Islã. Estamos habituados a associar os muçulmanos à imagem de guerra
e fanatismo religioso, para não mencionar a suposta intolerância em relação às
mulheres, que são constantemente noticiadas pela mídia televisiva e jornalística.

No entanto, é importante termos em mente que essa visão ocidental


pejorativa sobre os árabes é um estereótipo reducionista e, muitas vezes, mentiroso,
criado em parte por ignorância e em parte intencionalmente, como propaganda

76
TÓPICO 5 | AS ORIGENS DO ISLAMISMO

política de guerra. Reduzir o Islã ao terrorismo fundamentalista é tão errado


quanto seria considerar todos os cristãos como fanáticos religiosos dispostos a
passar no fio da espada qualquer um que duvide de sua fé.

É claro que existem, nas duas religiões, pessoas dispostas a isso, mas é
claro, também, que essas pessoas são uma ínfima minoria em populações que são,
em sua quase totalidade, pacíficas.

Como estudiosos de História, não nos cabe julgar o Islã e, muito menos,
aceitar sem questionamento as visões preconceituosas criadas sobre ele. Por isso,
precisamos conhecer o que é o Islã, como surgiu e por que tem obtido esse sucesso
extraordinário.

2.1 OS PRIMÓRDIOS: A ARÁBIA DO SÉCULO VII


O Islamismo surgiu na Península Arábica, uma região desértica localizada
entre a África e o Oriente Médio, ao sul da Palestina. A proximidade com culturas
muito antigas, como as do Egito, da Etiópia, do Levante (Síria, Líbano e Jordânia),
do Iêmen e do Irã (terra dos impérios de Ciro e Xerxes, e dos impérios Parto e
Sassânida), fez dessa região uma zona de convergência cultural e religiosa
privilegiada desde tempos muito remotos. A população da península organizava-
se, essencialmente, entre os beduínos – tribos nômades de língua árabe que viviam
no deserto – e os moradores das cidades, como Meca.

Não devemos, contudo, entender os nômades do deserto da Arábia como


povos isolados. Segundo o historiador Ciro Flamarion Cardoso (1994), os beduínos
mantinham estreitas relações com os povos sedentários dos centros urbanos da
península e do Oriente Próximo, através do comércio e como soldados dos exércitos
imperiais bizantinos ou sassânidas.

As relações com os sedentários, marcadas por uma complementaridade


ecológica e econômica, variaram muito no plano político. Hoje se sabe que
as acusações de banditismo, de barbárie, de pilhagens, de invasões feitas aos
nômades, muitas vezes, se originam, de fato, na propaganda dos Estados urbanos
desejosos de impor tributos ou outras obrigações às tribos das estepes, desertos ou
montanhas (CARDOSO, 1994, p. 40).

Os beduínos estavam organizados, desde cerca de 1500 a.C., em comunidades


formadas a partir de famílias patriarcais. Os líderes dessas comunidades eram
chamados de xeques (literalmente, “anciãos”).

As diversas tribos nômades que viviam na região central da Arábia


(desértica) estavam em constantes disputas pelos oásis ­– os raros locais onde
existia água e pastagem para os animais (carneiros, ovelhas e camelos). No entanto,
a Arábia não é composta apenas de desertos: no litoral do Mar Vermelho e do
Oceano Índico, um intenso comércio mercantil floresceu com as regiões próximas
ao Mar Vermelho, no Golfo Pérsico e no Oceano Índico. As caravanas cameleiras

77
UNIDADE 1 | AS ORIGENS DA IDADE MÉDIA

atravessavam o deserto rumo ao norte, onde as regiões vassalas do Império


Sassânida ofereciam enormes oportunidades comerciais. Além disso, o clima
ameno do sul da Arábia permitia o desenvolvimento da agricultura e da pecuária.

Essas populações eram, em sua maioria, politeístas, embora alguns


indivíduos, que tinham contato com as regiões próximas, adotassem alguma das
religiões dos povos vizinhos, como: Judaísmo, Cristianismo ou Zoroastrismo.
Certamente, essas religiões eram conhecidas dos primeiros muçulmanos, como se
pode verificar pela grande vinculação dos episódios narrados no Alcorão com a
tradição religiosa judaico-cristã.

Com tudo isso, como podemos verificar, a Arábia, embora


predominantemente desértica, estava plenamente inserida no contexto econômico
e social das regiões próximas.

2.2 MAOMÉ E A CRIAÇÃO DO ISLAMISMO


A religião muçulmana viria a unificar todas essas populações, diversificadas
e politeístas, em torno da crença em um único deus. Até o advento do Islamismo,
os árabes cultuavam os astros e as manifestações da natureza e tinham como um
de seus objetos de veneração a “pedra negra”, guardada na Caaba, em Meca.
Segundo a tradição, ela teria sido enviada por Deus a Adão e seria originalmente
branca: teria se tornada negra devido aos pecados dos homens.

A cidade de Meca foi construída sobre um oásis, e tornou-se desde muito


cedo um importante centro religioso e comercial. Na época do nascimento de
Maomé (ca. 570 d.C.), a cidade era governada pela tribo dos coraixitas, grupo que
enriqueceu com as transações comerciais e as peregrinações dos que se dirigiam à
cidade para fazer votos aos deuses na Caaba.

UNI

“ca.” (em itálico) é uma abreviatura consagrada do latim circa, que quer dizer
“cerca de”; na dúvida, substituir o “ca.” por “cerca de”,

Maomé (ou Muhammad, na grafia árabe) nasceu entre os coraixitas, embora


não fizesse parte dos segmentos mais abastados da tribo. Órfão desde cedo, foi
criado pelo tio Abu Talib e tornou-se mercador e pastor.

Aos 25 anos, casou-se com Khadija, uma rica viúva comerciante. Aos
40 anos, Maomé começou a ter visões em que um anjo o incitava a proclamar a
existência de um deus único. Embora logo tenha arregimentado seguidores, a
pregação de Maomé trouxe-lhe a ira dos comerciantes da cidade, que temiam
perder os negócios voltados aos cultos politeístas.
78
TÓPICO 5 | AS ORIGENS DO ISLAMISMO

Perseguidos em Meca, Maomé e seus seguidores refugiaram-se em 622


na cidade de Yathrib (que passou a se chamar Medina), onde os preceitos do
Islamismo começaram a ser organizados e sistematizados. Aos poucos, os cidadãos
de Medina foram se convertendo à nova fé e Maomé passou a dispor de um
efetivo de guerreiros capaz de vencer o conflito entre as duas cidades. Finalmente,
conquistaram Meca em 630.

E
IMPORTANT

A ida de Maomé e seus seguidores para Medina, chamada Hégira, é considerada


pelos muçulmanos como o momento fundamental da sua religião. Os muçulmanos não
entendem a Hégira como uma fuga, mas como uma migração. A partir desse momento, o
Islamismo se organizou como sistema político e religioso.

NOTA

O CALENDÁRIO ISLÂMICO
O calendário islâmico é contado a partir da migração de Maomé a Medina. Portanto, o ano 1
AH (Ano da Hégira) inicia-se em 622 d.C. O calendário islâmico não segue uma contagem solar
(ou seja, o ano não tem 365,25 dias), mas puramente lunar. O ano é composto de 12 meses de
28 ou 29 dias, que se iniciam sempre quando a Lua crescente é avistada ao pôr do Sol. Dessa
forma, o ano tem cerca de 11 dias a menos do que o do nosso calendário. Portanto, embora
tenham decorrido 1390 anos entre a Hégira e o ano de 2012, o ano islâmico que se iniciou em
15 de novembro de 2012 foi 1434 AH.

2.3 MORTE E SUCESSÃO DE MAOMÉ


Após a conquista de Meca, a população local converteu-se rapidamente
ao Islã e Maomé dispôs de uma grande força militar para lançar conquistas por
toda a Península Arábica. Recomendando a prática do jihad – termo normalmente
(mas de forma inapropriada, conforme interpretações islâmicas) traduzido como
“guerra santa”, Maomé contou com a ajuda dos fiéis para conquistar toda a
Península Arábica em dois anos.

Nos últimos meses de sua vida, Maomé promoveu o último evento


fundamental da religião islâmica: a peregrinação à Caaba, que passou a ser
obrigatória aos fiéis uma vez na vida, da forma como Maomé a fez.

Após a morte do Profeta, em 632 d.C. (ano 10 d.H.), o poder político passou
a ser disputado entre o genro de Maomé, Ali, e seu grande amigo Abu Bakr, que
foi escolhido pela comunidade como novo líder. A disputa gerou uma cisão
religiosa entre os muçulmanos, que passaram a se dividir entre xiitas e sunitas,
respectivamente, conforme o reconhecimento da autoridade de Ali e de Abu Bakr.
79
UNIDADE 1 | AS ORIGENS DA IDADE MÉDIA

E
IMPORTANT

Prezado(a) acadêmico(a), é muito importante desfazermos algumas concepções


equivocadas e, muitas vezes, mal-intencionadas que se tem, na nossa cultura, sobre alguns
termos do Islamismo. Em particular, os termos jihad e xiita precisam ser bem compreendidos.
Jihad não é sinônimo de guerra santa, mas, de acordo com algumas interpretações, é uma
atitude de defesa da fé, em todas as suas formas. Xiita, igualmente, não é sinônimo de fanático,
mas é o nome de uma das divisões religiosas do Islamismo. Os xiitas não são mais nem menos
“fanáticos” (nunca use esse termo!) do que os sunitas, os católicos, os protestantes, os bahá’i
ou os membros de qualquer outra facção religiosa.
O termo xiita significando fanático (e, portanto, “perigoso”) foi popularizado no Ocidente por
grupos políticos ultraconservadores, no contexto da rivalidade política entre EUA e Irã que se
seguiu à Revolução Islâmica promovida pelo Aiatolá Khomeini, em 1979. Traduz, portanto, um
discurso político reacionário, calculado para despertar o pânico na opinião pública e justificar
intervenções militares. Perceba que, hoje, apenas veículos de comunicação ultraconservadores
utilizam o termo xiita com esse sentido. Pelo bem da atitude crítica que um professor de
História deve ter, elimine essa expressão de seu vocabulário (inclusive no famigerado “ecoxiita”)
e, sempre que necessário, chame a atenção das pessoas para isso.

3 OS PRINCÍPIOS BÁSICOS DO ISLAMISMO

O Islamismo é uma religião monoteísta, ou seja, o muçulmano acredita na


existência de um único deus – chamado, em árabe, de Allah. Este é o mesmo deus dos
judeus e dos cristãos, e também é este o nome que os cristãos que falam árabe utilizam
para se referir a Deus. O Islamismo, além disso, é uma religião abraâmica, ou seja,
baseia-se na tradição religiosa judaica, que via em Abraão o patriarca fundamental.
Por isso, o Islã aceita essa tradição religiosa, contida na Torá judaica e na Bíblia cristã,
apesar de dar interpretações distintas a muitas das passagens que ali estão.

Pela tradição muçulmana, o Islã representa a mensagem verdadeira de


Deus, que havia sido corrompida por interpretações anteriores, mas que teria sido
revelada em toda a sua pureza a Maomé. O propósito da vida, para os muçulmanos,
é louvar e servir a Deus. O termo islã vem da palavra árabe para “submissão”.

80
TÓPICO 5 | AS ORIGENS DO ISLAMISMO

ATENCAO

ÁRABE OU MUÇULMANO?
Costuma haver grande confusão entre os termos “árabe” e “muçulmano”. Árabe é a designação
de uma etnia, formada por pessoas que nasceram, ou cujos ancestrais vieram da Península
Arábica e que falam a língua árabe, de origem semita. Nesse sentido, é árabe a maioria dos
habitantes da atual Arábia Saudita, mas também dos Emirados Árabes Unidos, Egito, Iraque e
outros países, mas não a maioria dos iranianos, turcos, afegãos ou nigerianos.
Em um sentido mais restrito, árabe pode designar uma nacionalidade, aplicada aos moradores
dos Emirados Árabes Unidos.
Muçulmano é a designação dos fiéis de uma religião, de pessoas que reconhecem em Maomé
o profeta, e que seguem seus preceitos.Pessoas de qualquer etnia podem ser muçulmanas
e, curiosamente, os árabes são, há muitos séculos, minoria no Islã: dos dez países islâmicos
mais populosos hoje, apenas o Egito é etnicamente árabe. Há, também, árabes que não são
muçulmanos, como é o caso da maioria dos libaneses (cristãos).

A principal diferença entre essas três religiões é, essencialmente, a seguinte:

● Os judeus esperam a vinda de um Messias, enviado por Deus para libertá-los.


● Os cristãos identificam esse Messias com a figura de Jesus Cristo.
● Os muçulmanos consideram que não existe um Messias divino; há apenas
profetas, dos quais Maomé é o último e mais perfeito. Jesus Cristo (a quem os
muçulmanos denominam Issa) não é, para eles, o filho de Deus. É apenas um
profeta anterior a Maomé.

ATENCAO

Prezado(a) acadêmico(a), o que estamos falando aqui sobre o Islamismo não tem,
de nenhuma forma, a intenção de “confundir suas crenças”, nem de “doutrinar” ou “converter”
você. Os próprios autores, aliás, nem muçulmanos são... Mas o Islamismo é uma das maiores
religiões do mundo e o seu surgimento influenciou enormemente a história mundial, e é
por esse motivo que precisamos, como historiadores, conhecê-lo de forma relativamente
detalhada, independente de convicções religiosas. Se isso faz ou não sentido para você, é
questão inteiramente pessoal. O mesmo valerá, no futuro, para qualquer outra religião ou
perspectiva filosófica que você estudar.
Lembre-se: para ser um bom estudioso ou professor de História, é preciso manter a cabeça
aberta a várias perspectivas, buscar conhecer os diversos lados possíveis de uma questão e não
julgar as atitudes ou as crenças de ninguém. Por isso, não leia sobre o Islamismo (ou qualquer
outra religião) pensando “isso não é verdade, porque eu sei/o padre disse/ não tem lógica/ na
Bíblia fala que...”; essa atitude é inadequada para quem deseja estudar História.
No fim das contas, para os historiadores, pouco importa se uma coisa é ou não “verdadeira”,
ou se existe ou não uma “Verdade”. O que importa é como as pessoas entenderam e lidaram
com isso.
E quando você mesmo(a) for professor(a), incite seus alunos a fazerem a mesma coisa.

81
UNIDADE 1 | AS ORIGENS DA IDADE MÉDIA

3.1 OS CINCO PILARES DO ISLÃ


Os preceitos básicos do Islamismo podem ser resumidos nos cinco pilares,
que são:

1. O testemunho: o fiel deve repetir a fórmula “só há um Deus e Maomé é o


seu profeta”. Deus é único, onipotente, onisciente, senhor absoluto da Terra
e da vontade dos homens. Sabe e controla tudo o que acontece, aconteceu e
acontecerá. Maomé é, para o muçulmano, o último profeta que existirá, pois sua
mensagem é perfeita.

2. As preces: o fiel tem a obrigação de rezar cinco vezes ao dia. A prece é feita
recitando-se versos do Alcorão em língua árabe, com o corpo voltado na direção
de Meca (se o fiel não conseguir descobrir qual o lado correto, basta supor).
Pode ser feita em uma mesquita ou em qualquer outro lugar onde o fiel esteja

FIGURA 14 - MUÇULMANOS REALIZANDO AS PRECES, VOLTADOS PARA A CAABA


EM MECA

FONTE: Disponível em: <http://www.neurosoup.com/mosque_prayer.jpg>. Acesso


em: 17 out. 2012.

3. Os tributos: o fiel tem a obrigação de dar parte dos seus rendimentos para
auxiliar aos pobres ou necessitados. Essa contribuição, chamada zakat, é
diferente da esmola, que é opcional: o zakat é uma obrigação religiosa.

4. O jejum: o fiel é obrigado a guardar jejum de comida e bebida, enquanto


houver luz natural, no mês do Ramadã. Essa obrigatoriedade pode ser
dispensada para crianças ou pessoas enfermas. Além do jejum, nesse período
o fiel está proibido de manter relações sexuais.

82
TÓPICO 5 | AS ORIGENS DO ISLAMISMO

5. A peregrinação: o fiel deve viajar a Meca, em peregrinação, pelo menos uma vez
na vida, se suas condições econômicas assim lhe permitirem. Uma vez em Meca,
deverá cumprir uma série de rituais ao redor da Caaba e em outros pontos na
cidade.

Segundo Maria Yedda Leite Linhares (1989), “o Islã não é apenas o


conjunto dos dogmas teológicos e normas sociais [...], é, antes de tudo, um tipo de
comunidade civil guiada pelas leis do Corão e por uma herança cultural comum”.
(LINHARES, 1989, p. 20).

FIGURA 15 - O SANTUÁRIO DA CAABA EM 2008, DURANTE A ÉPOCA DA


PEREGRINAÇÃO DOS MUÇULMANOS (HAJJ)

FONTE: Disponível em: <http://upload.wikimedia.org/wikipedia/


commons/9/92/Al-Haram_mosque_-_Flickr_-_Al_Jazeera_English.
jpg>. Acesso em: 19 jul. 2012.

3.2 O ALCORÃO
O Alcorão é o livro sagrado dos muçulmanos. De acordo com a tradição
islâmica, o Alcorão representa com perfeição a palavra de Deus e existe desde
sempre. Por esse motivo, é chamado de “O Livro Incriado”. Ele teria sido
simplesmente revelado a Maomé em 114 capítulos, ou suras, das quais 92 ditadas
em Meca e as outras 22 suras em Medina.

O conteúdo do Alcorão vai muito além das questões estritamente religiosas:


traz preceitos morais, interpretações islâmicas de episódios da tradição religiosa
judaica, legislação e situações do quotidiano. Por isso é frequentemente utilizado
como referência básica para os sistemas legais dos países que adotam o Islamismo
como religião oficial.

83
UNIDADE 1 | AS ORIGENS DA IDADE MÉDIA

E
IMPORTANT

Prezado(a) acadêmico(a), você já viu algumas vezes, neste tópico, falar em “tradição
islâmica”. Com esse termo estamos nos referindo a pontos centrais da crença muçulmana,
que não constam diretamente do Alcorão (ou mesmo das Sunas ou dos Hadiths), mas que
foram interpretados dessa forma pelos estudiosos da religião. Algumas dessas tradições podem
parecer absurdas ou totalmente contrárias à razão. Mas lembre-se: o compromisso da tradição
islâmica não é com a razão e sim com a interpretação do Livro Sagrado. Toda religião parte de
pressupostos que parecem absurdos aos não crentes, mas não cabe ao historiador julgar se
esses preceitos têm alguma validade racional, teológica ou metafísica.

De acordo com a tradição sunita, o Alcorão não foi escrito por Maomé. Ele
teria recebido a revelação das suras diretamente de Allah, e estas eram anotadas
por pessoas próximas a ele. Temendo que o conteúdo do livro se perdesse, o
primeiro califa, Abu Bakr, ordenou a transcrição do livro pouco tempo após a
morte de Maomé.

Foi apenas no reinado do terceiro califa, Uthman Ibn Affan (às vezes,
traduzido em português como Osman ou Omã), que o texto final, como é conhecido
hoje, foi consolidado a partir das diferentes versões que já existiam. O texto final
foi copiado e difundido para toda a ummah (mundo islâmico) que, àquela altura,
como veremos, já era bastante extensa.

Já os xiitas, talvez por não reconhecerem a autoridade de Abu Bakr, em


função dos conflitos que surgiram na sucessão de Maomé, atribuem ao próprio
profeta essa tarefa. Os estudiosos do assunto consideram em sua maioria que os
sunitas estão corretos. Independentemente das desavenças, o conteúdo do Alcorão,
para ambos os ramos do Islã, é idêntico.

FIGURA 16 - PÁGINAS DO ALCORÃO RICAMENTE TRABALHADAS

FONTE: Disponível em: <http://www.alquranacademy.co.uk/images/quran22.


jpg>. Acesso em: 17 out. 2012.

84
TÓPICO 5 | AS ORIGENS DO ISLAMISMO

NOTA

“CORÃO” OU “ALCORÃO”?
O termo “Alcorão”, utilizado, frequentemente, para descrever o nome do livro sagrado dos
muçulmanos, popularizou-se em Portugal durante a ocupação islâmica, na Idade Média. O
prefixo “al” representa, na língua árabe, o artigo definido “o”; em português, passou a ser utilizado
em centenas de palavras de origem árabe que foram incorporadas ao idioma: algodão, alface,
alcaide, aldrava, algibeira, almoxarifado, almanaque, e muitas outras. O termo “Alcorão” segue a
mesma regra. “Alcorão” significa “a recitação”.
Recentemente, temos visto na imprensa o termo “Corão”. É a tradução direta do termo utilizado
em francês (Coran) e inglês (Koran ou, como tem sido comum hoje, Qur’an), entre outras
línguas, para designar o livro. Lembre-se de que a França e a Inglaterra não foram ocupadas pelos
árabes, então não fizeram essa incorporação do “al”. Termos de origem árabe que em português
incorporam o artigo (arroz, açúcar, algodão), não o fazem em francês (riz, sucre, coton) nem em
inglês (rice, sugar, cotton). Em português, os dois termos são corretos, mas é preferível o termo
clássico “Alcorão”.

Os muçulmanos tratam o Alcorão como uma revelação divina diretamente


recebida por Maomé. Por esse motivo, consideram heresia atribuir-lhe a autoria
do livro; segundo eles, o autor do Alcorão é o próprio Deus.

Apenas para você ter uma ideia do estilo e do conteúdo do Alcorão,


apresentamos os primeiros versículos da sura 96, chamada Al-Alaq (“O Coágulo”).
Este trecho é considerado, por quase todos os intérpretes do Alcorão, como os
primeiros versos revelados a Maomé. À direita, também para você ter uma ideia
do estilo de escrita árabe, o texto original (que é lido da direita para a esquerda).

Em nome de Deus, o Clemente, o Misericordioso. ‫ِميِحَّرلا ِنَمْحَّرلا ِهَّللا ِمْسِب‬


1
Recita em nome de teu Senhor que criou, ‫بَر ِمْساِب ْ‌َأرْقا‬ ‌ ِّ‫َقَلَخ يِذَّلا َك‬
2
Criou o homem de sangue coagulado. ‫ٍقَلَع ْنِم َناَسنِإْلا َقَلَخ‬
3
Recita. E teu senhor é o mais generoso, ‫ُم‌َرْكَأْلا َكُّب‌َرَو ْ‌َأرْقا‬
4
Que ensinou com a pena, ‫ِمَلَقْلاِب َمَّلَع يِذَّلا‬
5
Ensinou ao homem o que ele não sabia. ‫ْمَلْعَي ْمَل اَم َناَسنِإْلا َمَّلَع‬
FONTE: O Alcorão. Tradução de Mansour Chalitta. Rio de Janeiro: Best Bolso, 2011, p. 479.

3.3 O DIREITO ISLÂMICO: OS HADITHS, AS SUNAS E A SHARIA


Além dos preceitos do Alcorão, os muçulmanos baseiam-se também em
outros textos, que geralmente vêm para confirmar os ditos de Maomé ou garantir
a aprovação ou desaprovação de uma determinada prática e que constituem,
juntamente com o Alcorão, a base da jurisprudência islâmica.

Dentre esses textos encontramos três fontes principais:

85
UNIDADE 1 | AS ORIGENS DA IDADE MÉDIA

 os Hadiths, que são extensas compilações das tradições e das declarações


de Maomé sobre os mais variados assuntos ou de interpretações feitas sobre
essas declarações por doutores da lei, das quais as mais respeitadas são as de
Muhammad al-Bukhari;

 as Sunas, descrição daquilo que Maomé fazia, acreditava ou aprovava. Alguns


estudiosos consideram as sunas e os hadiths equivalentes. Ao contrário dos
sunitas, que baseiam sua conduta nas sunas (daí o nome), os muçulmanos xiitas
não aceitam a maior parte das sunas e têm suas próprias compilações; e

 a Sharia, o código moral e religioso do Islã, que trata dos mais variados aspectos da
legislação e da vida quotidiana dos muçulmanos: alimentação, higiene, conduta,
vestimenta, comércio etc.

3.3.1 As escolas de interpretação da lei


Durante os primeiros 200 anos do Islamismo, surgiram quatro escolas
de interpretação da lei islâmica. As três primeiras escolas (Hanafita, Malikita e
Shafiita) guardam diversas semelhanças entre si, mas a quarta escola, Hanbalita, é
mais tradicionalista e conservadora.

As três primeiras escolas consideram todas as quatro como igualmente


ortodoxas, mas os hanbalitas não retribuem a reverência. Os hanbalitas eram
pouco expressivos até o início do século XVII, quando a corrente wah habi tornou-
se mais poderosa.

Atualmente, os wahabitas são a doutrina religiosa dominante na Arábia


Saudita e sua associação com os hanbalitas explica a interpretação severa que se dá
à sharia na Arábia Saudita atual e que nas últimas décadas tornou-se mais popular
entre grupos fundamentalistas islâmicos em diversas outras regiões.

Mesmo entre os muçulmanos, são severas as críticas ao fundamentalismo


da interpretação da sharia naquele país.

86
TÓPICO 5 | AS ORIGENS DO ISLAMISMO

FIGURA 17 - Mapa: A distribuição das escolas de interpretação da lei (Fiqh) pelo mundo
islâmico. Nos tons mais escuros, os locais de predominância xiita

FONTE: Disponível em: <http://ayshawazwaz.files.wordpress.com/2010/02/


muslimdistribution3b.jpg>. Acesso em: 25 nov. 2012.

3.4 O MODELO DE CONDUTA DO PROFETA


Por fim, outro guia para a conduta dos muçulmanos é o exemplo do Profeta.
Os muçulmanos consideram Maomé um modelo de conduta a ser imitado, e por
isso vários de seus hábitos foram incorporados pelos muçulmanos. Alguns críticos
do Islã (mesmo críticos “de dentro”) condenam o recurso exagerado a isso, pois,
em última análise, isso tenderia a perpetuar práticas da Arábia do século VIII –
anacrônicas, portanto.

3.5 O MISTICISMO ISLÂMICO: O SUFISMO


Outro elemento muito importante para a constituição da cultura e
da sociedade islâmica foi o misticismo muçulmano, denominado sufismo. O
misticismo sufi parece ter sido influenciado por práticas oriundas de outras
culturas, talvez mesmo do Cristianismo bizantino, mas tem suas características
profundamente vinculadas à cultura onde se originou.

Uma mescla de tradições árabes, persas, levantinas (ou seja, do Levante,


região da Síria e Palestina) e, posteriormente, das outras culturas incorporadas ao
Islã, como a turca.

O sufismo desenvolveu-se ao longo dos primeiros séculos do Islã,


primeiramente como um modelo de conduta interior, que buscava respostas
para como o fiel deveria proceder diante de Deus. Com o tempo, tornou-se uma
doutrina do amor divino e, posteriormente, uma busca de Deus interna e pessoal,
o que colocou o sufismo em conflito com a autoridade dos ulemás (doutores da Lei)
e, na visão desses, até mesmo com o Alcorão.
87
UNIDADE 1 | AS ORIGENS DA IDADE MÉDIA

Controvérsias políticas à parte, o sufismo continha, efetivamente, uma


ameaça em potencial à autoridade da sharia. Seu objetivo era a busca de Deus pela
verdade interior, não pelas determinações legais. Por volta de 1500, quase todos os
muçulmanos eram sufis. Como se pode ver, o Islamismo tem “formatos” que não
condizem em nada com a ideia de fundamentalismo que se faz dele, assim como
tem doutrinas intransigentes que não aceitam nenhuma perspectiva diferente da
sua (é o caso dos wahabitas – ver item 3.3.1).

O sufismo guarda uma notável semelhança, mantidas as devidas proporções,


com o misticismo das ordens monásticas cristãs. Centenas de ordens sufis surgiram
ao longo dos quase 1500 anos de Islã, e elas mantinham entre si grandes diferenças,
muitas delas exigindo uma postura ascética dos seus seguidores.

O sufismo foi muito importante como mecanismo difusor de cultura, pois


tem como um de seus fundamentos a transmissão de seus preceitos, e também
como agente estabilizador da sociedade, ao tomar para si a responsabilidade de
manutenção de escolas, orfanatos, bibliotecas, hospitais e mesquitas.

Por tudo isso, foi um dos elementos fundamentais de difusão do Islã entre
os povos conquistados, do estabelecimento de uma certa homogeneidade cultural
no mundo muçulmano, e do notável florescimento cultural ocorrido entre os
séculos VIII – XIII, aproximadamente, que ficou conhecido como “A Era de Ouro
do Islã”.

TUROS
ESTUDOS FU

A “Era de Ouro” do Islamismo será estudada na Unidade 2 deste caderno.

Caro(a) acadêmico(a), apresentamos agora alguns trechos do livro


Introdução ao Islã, de Muhammad Hamidullah (Rio de Janeiro: Sociedade
Beneficente Muçulmana do Rio de Janeiro, 1993), que traz descrições sobre o
quotidiano dos muçulmanos. Para os que têm interesse, vale a pena uma leitura
mais abrangente do texto. Boa leitura!

88
TÓPICO 5 | AS ORIGENS DO ISLAMISMO

LEITURA COMPLEMENTAR

INTRODUÇÃO AO ISLAM

Muhammad Hamidullah

521. Em seguida, vem o nascimento involuntário, quando nasce uma criança


numa família muçulmana. Imediatamente após a parteira terminar o seu trabalho,
pronuncia-se o adan no ouvido direito da criança, e a icáma no seu ouvido esquerdo,
de modo a fazer com que a primeira coisa que o recém-nascido escute seja o
testemunho da fé, o chamado ao louvor do Criador e o pedido de graças pelo seu
bem-estar. O adan, ou “Chamado à Oração”, é o seguinte: “Deus é o Maior”, (quatro
vezes), “Eu testemunho que não há outra divindade, além de Deus” (duas vezes).
“Testemunho que Mohammad é o Mensageiro de Deus” (duas vezes). “Vinde para
a oração” (duas vezes). “Vinde para a salvação” (duas vezes). “Deus é o Maior”
(duas vezes). “Não há outra divindade, além de Deus”. A icáma ou a preparação
para a oração, é formulada nos seguintes termos: “Deus é Maior! Deus é Maior!
Testemunho que não há outra divindade além de Deus; testemunho que Mohammad
é o Mensageiro de Deus! Vinde para a oração; vinde para a salvação; a oração está
prestes a começar; a oração está prestes a começar; Deus é Maior; Deus é Maior.
Não há outra divindade além de Deus”.

Os Primeiros Anos de Vida

522. Quando se cortam, pela primeira vez, os cabelos da criança, costuma-se


distribuir o equivalente ao peso destes em prata ou o valor correspondente em
dinheiro, entre os pobres. Se se dispõe de meios para tanto, abate-se uma cabra ou
uma ovelha, para festejar a ocasião com os pobres e com os amigos.

523. Não há uma idade específica, mas a circuncisão é feita, no menino, quando


ainda em tenra idade. Para os adultos convertidos isto não é obrigatório.

524. Quando a criança chega à idade adequada para iniciar os seus estudos, logo
após os primeiros quatro anos, organiza-se uma festa em família, ocasião em que
a criança recebe a sua primeira lição. Para promover um augúrio, lê-se, diante da
criança, os primeiros cinco versículos da 96ª Surata do Alcorão, que consistem
da primeira revelação que sobreveio ao iletrado Profeta do Islã, e que se refere à
leitura e à escrita. Faz-se a criança repetir palavra por palavra esse texto. Eis uma
tradução [...]: “Em nome de Deus, o Clemente, o Misericordioso. 1. Lê, em nome
do teu Senhor, que criou; 2. Criou o homem de um coágulo. 3. Lê, que teu Senhor é
Generosíssimo, 4. Que ensinou através do cálamo, 5. Ensinou ao homem o que este
não sabia. (96ª Surata, versículos 1-5). [...]
89
UNIDADE 1 | AS ORIGENS DA IDADE MÉDIA

Morte

535. O muçulmano moribundo, em seu leito de morte, deve procurar pronunciar


a seguinte profissão de fé: “Não há outra divindade além de Deus, Mohammad é o
Mensageiro de Deus.” As pessoas que estiverem ao redor do moribundo poderão
ajudar, repetindo essa fórmula, para a pessoa que está nos estertores da morte.

537. É proibido gastar com fausto em sepulcros, que devem ser os mais simples
possíveis; devemos, ao invés disso, gastar tais valores com os pobres e com aqueles
que merecem e rogar a Deus para que a recompensa dessa caridade seja dada ao
falecido.

Hábitos Gerais

538. Além das horas dedicadas diariamente às orações e o jejum anual, certos
hábitos são recomendados aos muçulmanos. O mais importante é o de estudar
continuamente o texto e a tradução do Alcorão, meditar sobre o seu conteúdo, para
assimilar as suas diretrizes na vida quotidiana. O que pode causar mais felicidade
do que a invocação da Palavra de Deus?

539. Devemos dizer Bismil-lah (i.é, em nome de Deus) quando estivermos para
começar qualquer ato, e alhamdulil-lah (i.é, louvado seja Deus) ao terminar o mesmo.
Quando se pretende ou se promete algo para o futuro, deve-se dizer imediatamente
inchaal-lah (i.é., se Deus quiser).

540. Quando dois muçulmanos se encontram, saúdam-se, dizendo: As-salamu


‘alaikum (que a paz esteja convosco). Pode se responder do mesmo modo, ou dizer
Wa’alaiht-mus-salaam (que a paz esteja convosco).

541. Devemos nos habituar a glorificar Deus, ao nos deitarmos e levantarmos:


Subhanallah (glorificado seja Deus) é a fórmula mais simples. Devemos, também,
invocar a misericórdia de Deus para com o Profeta, usando, por exemplo, a seguinte
fórmula: Al-lá-humma sal-li’ala Mohammad wa baarik wa sal-lim (i.e., que Deus abençoe
Mohammad e lhe dê paz).

542. O Profeta preferia o lado direito. Quando calçava as sandálias, calçava primeiro
o pé direito, e depois o esquerdo, e exatamente o contrário quando as tirava; quando
vestia uma camisa, vestia primeiro o braço direito, depois o esquerdo; quando
penteava o cabelo, penteava-o primeiro do lado direito, e depois do esquerdo; ao
entrar numa casa, ou na mesquita, fazia-o primeiro com o pé direito, depois com o

90
TÓPICO 5 | AS ORIGENS DO ISLAMISMO

esquerdo; mas quando entrava no banheiro, fazia-o primeiro com o pé esquerdo,


e, ao sair, com o pé direito na frente. Quando tirava a roupa, calçados, etc., despia
primeiro o braço, perna ou pé esquerdo. Quando distribuía algo, ele começava
sempre pelos que estavam à sua direita e terminava com os que estavam à esquerda.

FONTE: HAMIDULLAH, Muhammad. Introdução ao Islam. Rio de Janeiro: Sociedade Beneficente


Muçulmana do Rio de Janeiro, 1993.

91
RESUMO DO TÓPICO 5
Neste tópico você viu que:

 O Islamismo é uma religião monoteísta fundada por Maomé, na região da


Arábia, no século VII.

 O marco inicial do Islamismo acontece com a migração de Maomé e seus


seguidores (a Hégira), da cidade de Meca para Medina, em 622 d.C.

 Os princípios básicos do Islamismo são a crença em um único deus (chamado


Allah), nas profecias de Maomé, na palavra divina (o Alcorão) e nos cinco
pilares.

 Os cinco pilares do Islã são o testemunho, as cinco preces diárias, o pagamento


dos tributos, o jejum no mês do Ramadã e a peregrinação a Meca, ao menos uma
vez na vida.

 O Alcorão, livro sagrado dos muçulmanos, contém, além da palavra de Deus,


na visão dos muçulmanos, também preceitos morais e legais detalhados, que
serviram para organizar o direito islâmico (a sharia).

 Além do Alcorão, a sharia retira seus preceitos dos hadiths e das sunas, que
reúnem declarações e práticas de Maomé.

 Existem diversas correntes dentro do Islã. As mais importantes são os sunitas e


os xiitas.

 Também o misticismo islâmico (sufismo) teve papel importante na difusão e


aperfeiçoamento do Islamismo.

92
AUTOATIVIDADE
1 Elabore uma síntese explicativa sobre o Islamismo.

Assista ao vídeo de
resolução da questão 1

93
94
UNIDADE 2

O MUNDO DAS SOCIEDADES


TEOCRÁTICAS
OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
A partir desta unidade você será capaz de:

• identificar as principais características dos períodos áureos das civiliza-


ções bizantina e muçulmana;

• refletir sobre a importância das civilizações do Oriente Médio para a pre-


servação e ampliação do conhecimento da Antiguidade Clássica;

• compreender o caráter global do comércio e das trocas culturais entre o


mundo muçulmano e as demais regiões da Europa, Ásia e África entre os
séculos VIII – XII d.C.;

• perceber a influência islâmica e bizantina na formação da identidade e da


cultura da Europa Ocidental na Era Moderna;

• estabelecer a vinculação entre as civilizações construídas por bizantinos,


muçulmanos e cristãos ocidentais com suas tradições religiosas: ortodoxa,
islâmica e católica, respectivamente;

• apontar as características e as limitações conceituais do feudalismo e das


sociedades feudais;

• observar a era feudal a partir de uma perspectiva mais ampla e mais com-
plexa do que a tradicional redução simplista da Europa medieval ao feu-
dalismo e à “Idade das Trevas”.

PLANO DE ESTUDOS
Esta unidade está dividida em quatro tópicos. No decorrer e no final de cada
um deles você encontrará atividades que contribuirão para sua reflexão e
análise dos conteúdos adquiridos.

TÓPICO 1 – A FORMAÇÃO DO IMPÉRIO ROMANO ORIENTAL

TÓPICO 2 – RELIGIÃO E OPULÊNCIA NO IMPÉRIO ROMANO


ORIENTAL

TÓPICO 3 – A EXPANSÃO MUÇULMANA E A “ERA DE OURO” DO


ISLAMISMO

TÓPICO 4 – O FEUDALISMO

Assista ao vídeo
desta unidade.
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96
UNIDADE 2
TÓPICO 1

A FORMAÇÃO DO IMPÉRIO ROMANO


ORIENTAL

1 INTRODUÇÃO
Houve um tempo em que arte, religião, cultura e política se fundiram a
tal ponto que era impossível distinguir uma da outra. Nessa época, a fé movia
os exércitos e era por eles transportada para novas regiões. As concepções sobre
Deus moldavam não apenas a conduta das pessoas, mas a sua lealdade para com
o Estado. Debates acalorados aconteciam a respeito de minúcias religiosas, e de
seus desfechos dependiam reis, exércitos, estados e a vida dos camponeses. A
arte refletia tudo isso, ora retratando imperadores, com a autoridade divina,
ora escapando completamente à representação humana de Deus ou do Profeta,
considerada blasfêmia.

Foi uma época contraditória. De um lado, como se pode ver, quase todos
os aspectos da vida cotidiana ficavam sujeitos à religião; de outro, diversas regiões
do mundo, em contato, sobretudo pela guerra e, novamente, pela diferença de
crenças, prosperaram, cada uma a seu modo. Nesse longo período, as sociedades
dividiam-se localmente por querelas religiosas ou por dificuldades de controle de
vastos territórios por governantes fracos, mas permaneceram coesas por séculos.

Tudo isto aconteceu numa ampla região do mundo, do Oceano Atlântico


até a Índia, durante um período de cerca de 500 anos. O período compreendido
entre os séculos VIII e XIII, aproximadamente, foi o momento em que o Império
Romano recuperou-se do traumático período de divisão e de esfacelamento de sua
porção ocidental e constituiu duas unidades culturais coesas, mas radicalmente
diferentes entre si. Ao mesmo tempo, mais ao sul, na Península Arábica, um profeta
transformava os nômades que viviam em uma região desértica e esquecida do
mundo em uma comunidade poderosa e agressiva, que com seu fervor religioso
criou em pouco tempo o império mais vasto de que se tinha tido notícia.

Nesta unidade, estudaremos três regiões do mundo que, durante cerca


de 500 anos, constituíram unidades culturais distintas, mas com características
importantes em comum: com a religião ocupando parte importante da vida das
pessoas, criaram-se em cada uma delas amálgamas sociais que perdurariam por
muito tempo.

Falaremos do Império Romano do Oriente (também chamado Império


Bizantino), dos reinos cristãos romano-germânicos e do mundo islâmico. Você

97
UNIDADE 2 | O MUNDO DAS SOCIEDADES TEOCRÁTICAS

perceberá que, em todas essas sociedades, o período entre os séculos VIII e XIII foi
de intensas transformações culturais, que moldaram o mundo de hoje de forma
irreversível.

2 AS ORIGENS DO IMPÉRIO ROMANO DO ORIENTE

NOTA

Caros acadêmicos!
A partir de agora iniciaremos uma leitura sobre o Império Romano do Oriente, na qual
procuraremos destacar suas características marcantes. Você encontrará, ao longo do texto,
referências bibliográficas, caso queira se aprofundar no assunto. Recomendamos a consulta
em mapas, se houver dúvida acerca de alguma localização geográfica. Boa leitura!

2.1 A QUEDA DO IMPÉRIO ROMANO NA PERSPECTIVA


ORIENTAL
Como já vimos, a divisão do Império Romano em quatro partes (Oriente,
Itália, Danúbio e Reno) pelo imperador Diocleciano, em 284, introduziu a separação
entre Ocidente e Oriente. Mas foi em 395, sob o governo de Teodósio, que o Império
Romano foi cindido entre Império Romano do Ocidente, com capital em Milão, e
Império Romano do Oriente, com capital em Constantinopla (atual Istambul, na
Turquia).

A queda do Império Romano do Ocidente não afetou a parte oriental.


Muito ao contrário, o Império Romano do Oriente - chamado pelos historiadores
do século XIX de Império Bizantino - conheceu, a partir do século VI, um período
de opulência.

Constantinopla, na condição de capital do império e importante porto


comercial do Oriente, centralizou o poder político e econômico durante toda a
existência do Império Bizantino.

Perry Anderson explica, em seu livro “Passagens da antiguidade ao


feudalismo” (2004), que o motivo determinante para a queda do império
Ocidental está relacionado ao regime de trabalho escravo, praticado amplamente
nas colônias romanas. Segundo Anderson (1985), a grande propriedade rural e a
escravidão agrícola, no Império Romano do Ocidente, fizeram enfraquecer e “ruir
todo o edifício imperial”. Por outro lado, no Oriente romano, a economia estava
fundada no regime produtivo em pequenas propriedades e no comércio.

98
TÓPICO 1 | A FORMAÇÃO DO IMPÉRIO ROMANO ORIENTAL

O poder de Bizâncio (Império Bizantino) estava baseado em sua produção


agrícola e na transação comercial entre Europa e Ásia. Segundo Perry Anderson
(2004, p. 256-257), a ocupação romana encontrou na região dos Bálcãs “um meio
ambiente costeiro e marítimo que já havia sido densamente povoado com cidades
comerciais pela grande onda da expansão grega no período helenístico”. Portanto,
a escravidão jamais se tornou um sistema econômico predominante no Império
Romano Oriental, o que contribuiu com sua estabilidade econômica no século V.

NOTA

A região dos Bálcãs corresponde ao Leste Europeu, onde se localizam os seguintes


países: Turquia, Bulgária, Romênia, Sérvia, Croácia, Macedônia, Albânia e Grécia.

E
IMPORTANT

Prezado(a) acadêmico(a), é importante destacar que o termo “Império Bizantino”


nunca foi utilizado na própria época. O termo é uma criação de historiadores do século XIX.
Os próprios “bizantinos” referiam-se ao seu império como “Império Romano”, do qual se
consideravam legítimos continuadores –, à sua capital como Constantinopla e a si mesmos
como “romanos”, mesmo depois que a cultura tornou-se cada vez mais grega e a religião
separou-se da católica romana.

2.2 A PERIODIZAÇÃO DA HISTÓRIA BIZANTINA


As fases da história do Império Romano Oriental, segundo Hilário Franco
Júnior (1987), são as seguintes:

 Primeira fase: Alto Império (330-610)

 Segunda fase: Médio Império (610-1261)

 Terceira fase: Baixo Império (1261-1453)

O Alto Império foi marcado pelo reinado de Justiniano, conforme veremos


a seguir, mas também pela revolta popular conhecida como Sedição de Nika, em
532. Neste episódio, o povo se revoltou contra a alta dos impostos, destinados a
financiar as expedições militares no Ocidente.

O Médio Império, por sua vez, representou o mais longo dos períodos.
Nos primeiros momentos, os bizantinos sofreram com as invasões persas em

99
UNIDADE 2 | O MUNDO DAS SOCIEDADES TEOCRÁTICAS

Jerusalém e árabes na Síria e no Egito. Porém, nesta mesma fase o império viveu,
sob a dinastia dos Macedônicos, a segunda época de ouro.

Já o Baixo Império foi marcado pelo relativo reerguimento de


Constantinopla, que havia sido saqueada pelos mercadores venezianos durante
a Quarta Cruzada (1204). Após 1261, o Império Bizantino passou a depender dos
grandes proprietários rurais e dos comerciantes de Veneza e Gênova, até a tomada
definitiva da capital bizantina pelos muçulmanos em 1453. Portanto, estes últimos
192 anos correspondem ao período de reclínio, no plano político e econômico, do
Império Bizantino.

NOTA

As Cruzadas eram expedições militares de caráter religioso, conduzidas,


principalmente, por nobres cristãos na Idade Média, entre os anos de 1095 a 1270, com o fim de
fazer a guerra denominada “santa” contra os muçulmanos. Buscavam reconquistar Jerusalém,
a Terra Santa, e o túmulo de Cristo. As Cruzadas foram convocadas pelo Papa Urbano II, em
nome de um projeto de união da Cristandade contra os “infiéis” – entenda-se “muçulmanos”.
Este assunto será debatido no final desta unidade.

Assim, a tomada de Constantinopla pelos cruzados em 1204 contribuiu, de


forma decisiva, para o declínio do Império Bizantino e da Igreja Ortodoxa.

TUROS
ESTUDOS FU

No próximo tópico estudaremos a disputa religiosa que motivou a separação da


Igreja Católica. Como veremos, dividiu-se entre Igreja Católica Apostólica Romana (Ocidental)
e Igreja Católica Ortodoxa (Oriental).

2.3 O REINADO DE JUSTINIANO


O Império Romano do Oriente durou cerca de mil anos e, atravessou,
de acordo com a perspectiva de historiadores, pelo menos duas eras de grande
prosperidade. Em seu primeiro período áureo, sob o comando do Imperador
Justiniano (527-565), uma grande extensão territorial foi reincorporada ao império
do Oriente. A intenção de Justiniano era, declaradamente, conquistar os reinos
germânicos para reunificar todas as regiões do antigo Império Romano.

Justiniano atingiu boa parte de seus objetivos. Os bizantinos reconquistaram


os territórios que o Império Romano do Ocidente havia perdido, conquistando o

100
TÓPICO 1 | A FORMAÇÃO DO IMPÉRIO ROMANO ORIENTAL

norte da África, a Itália e o sul da Espanha. Expulsaram os vândalos do norte da


África e os ostrogodos da Península Ibérica (Portugal e Espanha).

A campanha, no entanto, enfraqueceu o Estado bizantino e abriu espaço


para revoltas que, juntamente com a peste, mergulharam o Império no caos
político, após a morte do imperador. Os reis que sucederam Justiniano, o Grande,
não puderam manter os territórios ocidentais do Império, em razão das invasões
dos lombardos, persas, árabes, eslavos e búlgaros. O Império Bizantino passou
então a concentrar suas forças no Oriente, na defesa de suas fronteiras, no próprio
território balcânico.
FIGURA 18 – DIMENSÕES DO IMPÉRIO BIZANTINO NA ÉPOCA DE JUSTINIANO

FONTE: Disponível em: <www.igm.mat.br/homepage/joao_afonso/J.A/figuras_inhumas/


imp._bizantino.jpg>. Acesso em: 1 ago. 2012.

2.3.1 A revolta de Nika


Mas a política expansionista de Justiniano cobrou seu preço. As grandes
despesas com o exército e o aumento do custo de vida, aliados a uma política
impopular do imperador, levaram a uma grande revolta popular em Constantinopla,
no ano de 532.

A revolta iniciou-se no Hipódromo, de onde os manifestantes saíram no


fim da tarde gritando “Níka” (em grego: “Vitória!”), e tomaram de assalto a cidade
inteira. Nos dias seguintes, os manifestantes sitiaram o palácio do imperador e
incendiaram alguns edifícios. O fogo se espalhou por toda a cidade e calcula-se
que pelo menos um terço de Constantinopla tenha sido queimada, incluindo a
catedral de Santa Sofia.

101
UNIDADE 2 | O MUNDO DAS SOCIEDADES TEOCRÁTICAS

2.3.2 As reformas de Justiniano


Após o fim da revolta, Justiniano aproveitou a oportunidade para reformar
a cidade de Constantinopla a partir das cinzas e tornou-a ainda mais magnífica.
A catedral de Hagia Sophia foi reconstruída, na forma como existe ainda hoje.
A catedral (também chamada de basílica, devido ao seu formato arquitetônico)
representou o desejo de unificação das igrejas existentes em Bizâncio (Ortodoxa,
Nestoriana e Monofisista).

FIGURA 19 - HAGIA SOPHIA, CONSTRUÍDA COMO BASÍLICA POR JUSTINIANO. OS TURCOS,


POSTERIORMENTE, TRANSFORMARAM-NA EM MESQUITA E ERGUERAM AS
TORRES (MINARETES) AO REDOR. ATUALMENTE É UM MUSEU

FONTE: Disponível em: <http://istanbulvisions.com/images/hagia_sophia_1.jpg>. Acesso em:


17 nov. 2012.

Durante o governo de Justiniano foram reorganizadas também as


estruturas jurídicas do Império. O Corpus Juris Civilis (Corpo do Direito Civil) foi
elaborado a partir de uma revisão e sistematização do Direito Romano. O Código
de Justiniano, como ficou conhecido, era formado pelas Novelas (constituições
elaboradas pelos imperadores depois de 534), o Digesto (síntese da jurisdição
romana) e as Institutas (manual aos estudantes).

O Corpus Juris Civilis é um exemplo significativo da transformação cultural


da herança romana (por meio dos códigos de leis) sob a perspectiva bizantina. Foi
este Código que serviu de base para a elaboração dos sistemas jurídicos das nações
modernas.

Assim, através do direito, da língua (latina) e da religião (cristã) foi


consolidada a unidade do Império Bizantino sobre as bases da cultura herdada
do Ocidente. Posteriormente, no entanto, essa cultura foi sendo transformada, aos
poucos, até assumir um caráter especificamente grego, como veremos a seguir.

102
TÓPICO 1 | A FORMAÇÃO DO IMPÉRIO ROMANO ORIENTAL

Outra característica fundamental da era de Justiniano foi a integração da


Igreja no Estado. A partir desta união o imperador passou a ser ao mesmo tempo
representante da Igreja (papa) e do Estado (césar). Édouard Perroy denominou esta
concepção de governo de “cesaropapismo”.

NOTA

A representação do imperador enquanto personalidade sagrada pode ser percebida


na arte bizantina, onde os mosaicos apresentam Justiniano com uma auréola em torno de sua
cabeça. Essa representação é reservada exclusivamente para Cristo e os santos.

FIGURA 20 – REPRESENTAÇÃO EM MOSAICO DO IMPERADOR


JUSTINIANO

FONTE: Disponível em: <www.portal planetasedna.com.ar/edad_


media_media07.jpg>. Acesso em: 4 ago. 2012.

2.4 A TRANSFORMAÇÃO DO IMPÉRIO


No início do século VII, o Império Romano do Oriente estava em
calamidade. A crise econômica e o avanço dos monarcas sassânidas favoreciam
as revoltas de povos integrantes do Império, como os ávaros e os eslavos. Muitos
territórios conquistados por Justiniano haviam sido perdidos. O Império enfrentava
dificuldades econômicas e políticas muito sérias.

Sob o Imperador Heráclio (575-641), Constantinopla conseguiu recuperar


grande parte de seu poder militar e econômico, mas passou a ser acossada
(perseguida), também, pelos muçulmanos.
103
UNIDADE 2 | O MUNDO DAS SOCIEDADES TEOCRÁTICAS

Heráclio tomou o poder em 610, após o assassinato do odiado Imperador


Fócias, e começou um lento processo de substituição de parte da herança deixada
pelos romanos. Heráclio decretou o grego como língua oficial do Império e
adotou o título de Basileus, tradução grega para o Imperator romano. A partir desse
momento, a cultura do Império tornou-se cada vez mais helênica e afastou-se,
inclusive do ponto de vista religioso, de Roma.

Vejamos o que Édouard Perroy fala sobre o soberano de Constantinopla:

Soberano absoluto, o imperador, o Basileus, sejam quais forem sua


origem, a fonte militar e, muitas vezes, não hereditária de seu poder, é
agora uma personalidade sagrada. Isto é comprovado pela etiqueta que,
no seu palácio, verdadeira cidade interior fechada, o isola do comum
dos homens e mesmo de seus cortesãos: imitação, em certos pontos,
das tradições das monarquias orientais, mas fruto, também, de uma
evolução interna. (PERROY, 1964, p. 40).

Portanto, o Império Bizantino era um Estado autocrata, onde o poder


político estava concentrado nas mãos do imperador. Ele era considerado por seu
povo como um Deus vivo. O Basileus dispunha de poderes absolutos.

A hereditariedade não era garantia de continuidade. Os golpes de Estado


eram comuns em Bizâncio e resultavam, em último caso, no assassinato dos
governantes. Segundo Hilário Franco Júnior, dos 107 imperadores que governaram,
apenas 34 tiveram morte natural. Os demais foram mutilados ou assassinados.
Por isso, a história de Bizâncio foi marcada pela alternância constante entre
imperadores.

NOTA

Os bizantinos entendiam o imperador como um representante de Deus na Terra


(teocracia). Por isso, uma das características políticas mais curiosas do Império era o fato de os
golpes de Estado serem facilmente legitimados pela população. Acreditava-se que a deposição
de um imperador era a vontade de Deus, e o golpista, caso tivesse sucesso, teria sido escolhido
por Ele para aquela tarefa.

2.5 AS PERDAS BIZANTINAS NA ÁFRICA


Na época da divisão do Império Romano, parte das terras do Império
Oriental estava em continente africano. Essas terras foram rapidamente perdidas
para os árabes, assim que a expansão muçulmana se iniciou. Além do poderio
militar e do fervor religioso dos árabes, outros elementos mais específicos da
política e da religião bizantinas ajudam a explicar esse fenômeno, como nos explica
o historiador tcheco Ivan Hrbek:

104
TÓPICO 1 | A FORMAÇÃO DO IMPÉRIO ROMANO ORIENTAL

O Império Bizantino cessou de exercer qualquer verdadeira influência


na África no curso do século VII. O Egito foi rapidamente perdido e as tentativas
esporádicas realizadas para reconquistá‑lo pelo mar fracassaram; algumas
porções do litoral norte africano permaneceram, todavia, sob controle bizantino
até o final do século, e guerras intestinas interromperam as ofensivas árabes por
várias décadas.

A Igreja Ortodoxa bizantina jamais fora muito poderosa nas províncias


africanas: os egípcios permaneciam fortemente ligados à doutrina monofisista
e as populações urbanas da África do Norte à Igreja Romana. As conquistas
muçulmanas privaram em definitivo a Igreja Ortodoxa da fraca influência da
qual ela gozara nos séculos precedentes. Embora a Núbia não tenha jamais
pertencido ao Império Bizantino, as influências culturais e religiosas deste
império ali permaneceram relativamente fortes, mesmo após a conquista do
Egito pelos árabes, particularmente na Makuria, o mais central dentre os três
Estados cristãos da Núbia que, contrariamente aos dois outros, adotaram o
culto ortodoxo (melkita).

A administração era calcada no modelo bizantino, as classes superiores


vestiam‑se à moda bizantina e falavam grego. Porém, estes laços com a cultura
e a religião bizantinas paulatinamente enfraqueceram‑se e, ao final do século
VII, o rei de Makuria introduziu o monofisismo em seu Estado, desde então
unido à Nobádia do Norte. Esta evolução teve como efeito a reaproximação
deste reino com o Egito copta e, parcialmente, com a Síria e a Palestina, onde
alguns cristãos da Núbia encontravam eco para as suas convicções monofisistas.

Em sua luta contra a Pérsia, os bizantinos haviam buscado aliar-se à


Etiópia- cristã, embora monofisista. A expansão árabe barrou‑lhe o acesso ao
Mar Vermelho e impôs um termo aos seus intercâmbios comerciais com a Índia,
tornando tal aliança, pela mesma ocasião, impossível e vã. Identificando‑se
de mais em mais com o Estado e o povo etíopes, o cristianismo monofisista,
hostil às outras crenças cristãs tanto quanto ao Islã, encontrou a sua própria
identidade, que, nem no plano teológico ou no plano da expressão artística ou
literária, nada devia aos modelos bizantinos. (HRBEK, 2010, p. 13-14).

3 CONSTANTINOPLA
Quando um estrangeiro em embaixada, ou mais simplesmente um humilde
súdito do império, que a sorte não favoreceu, contempla Constantinopla do alto
das colinas que a cercam, sua fama, levada de cidade em cidade e de aldeia em
aldeia, torna-se uma esplendorosa realidade. No cruzamento das vias terrestres da
Europa e da Ásia, Constantinopla está construída sobre o estreito canal marítimo,
o Bósforo, que abre caminho ao Mar Negro e às terras da Ásia Central para o
Mediterrâneo. A cidade prospera em uma situação natural privilegiada. No fim do
século V de nossa era, Constantinopla conta com cerca de um milhão de habitantes;
é a maior metrópole do império. (FÈVRE, 1991).

105
UNIDADE 2 | O MUNDO DAS SOCIEDADES TEOCRÁTICAS

A fundação de Constantinopla remonta ao período de decadência do


Império Romano. Após o século III, a unidade política e territorial do Ocidente
romano foi ameaçada pelas lutas internas dos exércitos romanos das províncias
(“anarquia militar”; 235-268) e pelas revoltas dos escravos.

Diante da fragmentação do Império Ocidental, Constantino (272-337),


sucessor de Diocleciano, empreendeu uma luta pelo restabelecimento da unidade
imperial.

A capital de seu império reunificado passou a se localizar na antiga colônia


grega de Bizâncio, no Estreito de Bósforo, limite entre Europa e Ásia, que ele
rebatizou como Nova Roma. O termo não caiu no gosto popular e a cidade logo
passou a ser chamada Constantinopla (Cidade de Constantino).

Segundo Edward Gibbon, Constantino teria obedecido às “ordens de


Deus” ao plantar “as perenes fundações de Constantinopla”. Tais “ordens” lhe
teriam sido transmitidas em um sonho, quando ele dormia entre as muralhas de
Bizâncio.

O gênio tutelar da cidade, uma venerável matrona curvada ao peso dos


anos e das enfermidades, subitamente, se transformara numa florescente
donzela, adornada por suas próprias mãos com todos os símbolos da
grandeza imperial. O monarca despertou, interpretou o auspicioso
presságio e obedeceu sem hesitação à vontade do céu. (GIBBON, 2005,
p. 295).

Portanto, o ato de fundação de Constantinopla esteve envolto por uma


mentalidade sobrenatural, comum para a época. Ou seja, o mito de fundação
da cidade de Constantino estava ligado à relação religiosa (espiritual) que os
bizantinos mantinham com o ambiente mundano. Podemos dizer que “o mundo se
dava pela fé”. Um exemplo disso está no valor atribuído aos sonhos, considerados
como presságios, pois continham sinais que antecipavam o futuro. A interpretação
dos sonhos fazia parte das práticas culturais bizantinas, herdadas dos gregos e
romanos. A interpretação dos sonhos ou ciência dos sonhos foi reunida em textos
por Achmet, entre 813 e o final do século XI, sob o título de a “Chave dos Sonhos”.

NOTA

Mentalidade: é definida por Hilário Franco Júnior como “o plano mais profundo da
psicologia coletiva, no qual estão os anseios, esperanças, medos, angústias e desejos assimilados
e transmitidos inconscientemente, e exteriorizados de forma automática e espontânea pela
linguagem cultural de cada momento histórico em que se dá essa manifestação”. (FRANCO
Júnior, 2004, p. 184).

106
TÓPICO 1 | A FORMAÇÃO DO IMPÉRIO ROMANO ORIENTAL

3.1 A CIDADE
A cidade de Constantinopla, abençoada por Deus, conseguiu sobreviver
aos ataques dos povos bárbaros no século V. A razão para isso, é claro, tem menos
a ver com a proteção divina do que com as reforçadas defesas da cidade e a grande
disponibilidade de recursos (ouro) que podiam ser usados para subornar os
invasores. Ambas as características deviam-se, em parte, à posição estratégica da
cidade e à necessidade de garantir sua segurança.

Localizada na antiga região da Trácia, no continente europeu, na costa do


pequenino Mar de Mármara e bem de frente para a Anatólia na Ásia, Constantinopla
estava no lugar perfeito para compor uma ponte entre dois mundos.

A cidade foi construída em uma ponta, delimitada pelo Mar de Mármara e


por um canal chamado Chifre de Ouro. Com isso, havia um único lado acessível por
terra, no qual foi construída uma série de muralhas praticamente indevassáveis.
Em toda a história do Império Bizantino, as muralhas de Constantinopla foram
invadidas apenas duas vezes: durante a Quarta Cruzada, em 1204, quando a cidade
foi saqueada, e sob o ataque otomano em 1453, quando o Império foi derrubado.

FIGURA 21 - DETALHE DAS MURALHAS EXTERNAS DE CONSTANTINOPLA, CONSTRUÍDAS


POR TEODÓSIO. A MAIOR PARTE DAS MURALHAS FOI PRESERVADA NA
MODERNA CIDADE TURCA DE ISTAMBUL

FONTE: Disponível em: <http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/1/1c/


Walls_of_Constantinople.JPG/800px-Walls_of_Constantinople.JPG>. Acesso em:
23 set. 2012.

107
UNIDADE 2 | O MUNDO DAS SOCIEDADES TEOCRÁTICAS

3.2 MÉSIA, A PRINCIPAL AVENIDA DE CONSTANTINOPLA


Agora, o convidamos a percorrer a Mésia, a principal avenida de
Constantinopla e descobrir como em um passeio turístico a paisagem urbana da
grande cidade do Oriente. Em nosso passeio virtual, podemos sentir de perto a
pobreza e o luxo, experiência que encontramos apenas ao transitar pelas cidades-
capitais do mundo.

Em Constantinopla, o povo vive comprimido em pequenos bairros,


conjuntos de ruelas sombrias, pouco arejadas, onde se encontram as pobres
moradas de um povo orgulhoso e arrogante, consciente de pertencer à mais
civilizada das comunidades.

As vielas serpenteiam entre as pequenas tabernas, casas construídas


com tijolos e materiais baratos. Algumas casas grandes de encontros, as ínsulas,
contrastam com esta desordem de tijolos e madeira, de telhas mal ajustadas.
Dessa massa compacta emergem levas de crianças, nela vão e vêm as famílias.

No centro desse bairro improvisado, de construção anárquica, uma


pequena praça reúne a atividade econômica e acolhe os funcionários, os
estrangeiros perdidos na grande cidade. Ali é distribuído, diariamente, o pão da
anona, feito por ordem imperial com o precioso trigo do Egito, de acordo com a
tradição romana que determina que o poder deve sustentar a plebe.

Em troca de um tablete, a téssera, o cidadão de Constantinopla recebe o


pão, marca tangível de sua vinculação à cidade imperial. Duas ou três escadas
permitem ao visitante ou ao representante da autoridade que veio distribuir o
pão deixar esse mundo sombrio, anônimo entre centenas de outros, para chegar
ao topo da colina onde o luxo imperial impõe seu esplendor.

Os muros avermelhados das casas pobres vão se espaçando e cedem


lugar às altas casas de pedra que comunicam com o exterior por grandes janelas.
As ruas alargam-se e um rumor crescente anuncia a proximidade da artéria vital
da cidade, a Mésia.

A capital do grande Império Romano do Oriente encarna-se inteira


nessa bela avenida, cujos pórticos em dois andares formam arcadas cobertas. A
multidão barulhenta acotovela-se diante das lojas de luxo. Os ourives fascinam
os estrangeiros, os ofícios ligados ao ouro e à prata, às peles, ocupam os melhores
pontos da avenida transbordante de vida.

O segundo andar, ornado de estátuas, serve de passeio, é o lugar em


que toda a cidade se encontra. As livrarias atraem em seu santuário da cultura
latina e grega os retóricos, sempre prontos a uma discussão inflamada sobre a
natureza de Cristo ou sobre os escritos dos Pais da Igreja.

A multidão colorida percorre sem cessar a parte central de Mésia, pois


o eixo de Constantinopla atravessa a cidade, partindo das portas da cidade até

108
TÓPICO 1 | A FORMAÇÃO DO IMPÉRIO ROMANO ORIENTAL

o Palácio Sagrado à beira do mar. A Mésia conduz o estrangeiro ou o mercador


que percorreu as estradas da Europa da Porta de Ouro, aberta na gigantesca
muralha teodosiana com sua dupla fortificação, até o centro do Império, o
Palácio Sagrado.

Outros caminhos retilíneos vêm ter à Mésia, de onde saem cavaleiros


e passantes, carros carregados com as mercadorias comercializadas em todo o
império. Toda riqueza de Constantinopla é oferecida ao egípcio, ao godo dos
vales selvagens que cruzam os diversos fóruns ligados pela Mésia. Ao fórum de
Arcadius, situado a oeste da cidade, sucede o fórum Bovis, do boi, onde uma
gigantesca cabeça de boi esculpida em bronze serve para incinerar os resíduos.

Trazido de Pérgamo, este objeto estranho é apenas a primeira maravilha


que encontram o provinciano e o bárbaro, de quem zombam os vaidosos
habitantes da capital do império. De olhos presos aos pórticos, à multidão, às
estátuas e às cruzes de prata erigidas no alto dos fóruns, o estrangeiro entra na
parte mais imponente na Mésia cercado por uma multidão cada vez maior. A
diversidade da população aparece sob os traços de um godo ou de um sírio, ao
lado de um grego, este representando a maioria autóctone.

Mais além do fórum Tauri, situado em pleno coração do promontório


que forma a cidade, aumenta rapidamente a densidade de edifícios luxuosos.
Banhos públicos, igrejas e mosteiros erguem-se nas belas ruas adjacentes. O
palácio do Imperador Leão I está ao lado da Basílica de Teodósio, a estátua
equestre do Imperador Arcádio domina o fórum.

Ninguém pode deixar de ver a suposta grandeza desses herdeiros de


Roma; a selvagem tutela dos bárbaros não é visível nos mármores e nos baixos-
relevos gravados em honra do Império de Constantino. O fórum de Constantino,
distante do Palácio Sagrado algumas centenas de metros, ultrapassa todos os
outros em luxo de edificação. É necessário impressionar a multidão; quando das
festas religiosas ou imperiais, ou os desfiles de condenados, o povo pode entrar
no magnífico fórum através de dois magníficos arcos de mármore branco.

Os bárbaros vindos das estepes áridas extasiam-se e perdem-se na


contemplação das estátuas de animais fabulosos. Mas a cruz de Constantino
lembra que esta beleza profana não pode eclipsar o domínio de Cristo sobre a
cidade, farol do cristianismo em meio à heresia e ao paganismo bárbaros.

A parte mais atraente da Mésia conduz o passante até as proximidades


do Palácio Sagrado, escondido por trás de suas fortificações, universo enigmático
de onde saem, por vezes, grandiosos cortejos imperiais.

O povo, ávido de luxo e esplendor, une seus farrapos aos mantos reais
debruados de ouro dos aristocratas para ver o cortejo. Nessas ocasiões, a praça
do Augusteon, ponto terminal da Mésia, abriga uma multidão efervescente,
recolhida ou hostil segundo a cerimônia e o humor da cidade.

109
UNIDADE 2 | O MUNDO DAS SOCIEDADES TEOCRÁTICAS

O palácio, a Basílica de Santa Sofia e os serviços das grandes corporações


do império concentram-se no Milhare de ouro, ponto central onde um arco do
triunfo é o ponto de partida de todas as estradas do império.

Aqui, às portas do palácio imperial, culminam a grandeza e a efervescência


de Constantinopla. As procissões religiosas, ao sair da basílica, cruzam-se
com os desfiles dos generais vitoriosos. Os desfiles unem o povo a seu senhor
imperial, o basileu, sucessor dos soberanos romanos por escolha divina e, mais
frequentemente, pelo poder das armas. (FÈVRE, 1991, p.15-17).

FIGURA 22 - RECONSTITUIÇÃO DE VISTA AÉREA DE CONSTANTINOPLA DURANTE O IMPÉRIO


ROMANO DO ORIENTE. À ESQUERDA E ABAIXO, O MAR DE MÁRMARA. O CANAL À
DIREITA É O CHIFRE DE OURO

FONTE: Disponível em: <http://en.wikipedia.org/wiki/File:Bizansist_touchup.jpg>. Acesso em: 23


set. 2012.

NOTA

Mésia, Mese ou Mesê se referem à mesma rua, a Rua do Meio, a principal de


Constantinopla. Agora procure localizá-la no mapa que segue. Localize-a também na vista
aérea da cidade, na figura anterior.

110
TÓPICO 1 | A FORMAÇÃO DO IMPÉRIO ROMANO ORIENTAL

FIGURA 23 - MAPA DE CONSTANTINOPLA, ONDE APARECE A AVENIDA MÉSIA (MESE),


LIGANDO UM DOS PÓRTICOS À CATEDRAL DE SANTA SOFIA (ESTRELA MAIS
ESCURA). AO SUL DA CATEDRAL, O HIPÓDROMO (O EDIFÍCIO ALONGADO)

FONTE: Disponível em: <http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Byzantine_Constantinople.


png>. Acesso em: 15 fev. 2013.

3.3 O HIPÓDROMO
As corridas de cavalos eram muito populares entre os romanos da
Antiguidade, e mantiveram-se como o “esporte nacional” dos bizantinos. Em
Constantinopla, o Hipódromo (do grego hippos = cavalo; drómos = corrida) era
mais do que uma simples pista de corrida. Era o local onde as discussões políticas
aconteciam, onde os negócios eram fechados. As altas apostas feitas nos vencedores
eram capazes de criar e destruir fortunas do dia para a noite.

O Hipódromo havia sido construído ainda na época da Bizâncio grega


e foi reformado por Constantino. Desde a época pré-bizantina, as torcidas se
organizavam ao redor de quatro equipes (Demes), identificadas pelas cores: verdes,
azuis, brancos e vermelhos.

As equipes eram mais do que agremiações esportivas: na época bizantina,


as duas únicas equipes que se mantiveram – azul e verde – formavam verdadeiros
partidos políticos. Os grupos serviam como válvula de escape para as inquietações
populares, disputas religiosas, pretendentes ao trono etc. Isso explica o motivo de
a revolta de Nika ter se iniciado no Hipódromo.

111
UNIDADE 2 | O MUNDO DAS SOCIEDADES TEOCRÁTICAS

FIGURA 24 - CONCEPÇÃO ARTÍSTICA DO HIPÓDROMO DE CONSTANTINOPLA,


EXIBIDA NO MUSEU TOPKAPI SARAYI, EM ISTAMBUL

FONTE: Disponível em: <http://phdiva.blogspot.com.br/2011/08/hippodrome-in-


constantinople.html>. Acesso em: 14 out. 2012.

Apresentamos aqui um trecho do clássico de Steven Runciman “A


civilização bizantina”. Steven Runciman é um dos mais destacados historiadores
ingleses que trataram do Império Romano do Oriente e das Cruzadas.

Neste trecho, o autor discorre sobre a marcante influência bizantina na


cultura e na religiosidade russa. Boa leitura.

112
TÓPICO 1 | A FORMAÇÃO DO IMPÉRIO ROMANO ORIENTAL

LEITURA COMPLEMENTAR

BIZÂNCIO E OS POVOS ESLAVOS

Steven Runciman

Um dos mais belos capítulos do Legado Bizantino é a profunda influência


de Constantinopla na formação cultural dos eslavos e de outros povos (como os
búlgaros), que na região balcânica se colocaram ao alcance da ação civilizadora de
Bizâncio. Tatakis observa que os eslavos se deixaram impregnar tão profundamente
pela influência bizantina que ainda hoje é difícil separar na civilização daqueles
povos o que é propriamente eslavo do que é bizantino.

Quem pretender estudar a fundo a formação e a evolução da alma eslava


terá que partir do estudo da própria civilização bizantina. O grande veículo da
penetração bizantina foi naturalmente a Igreja Ortodoxa. Graças à religião é que
se conservou através dos séculos de dominação turca o espírito de patriotismo dos
povos balcânicos. «Durante quatro séculos, no Oriente balcânico, a Igreja Ortodoxa
manteve o patriotismo cristão, e à sua sombra se preparou, no curso do século
XVIII, o grande movimento donde, ao raiar do século XIX, saíram o despertar das
nacionalidades oprimidas e sua independência». Não podemos evidentemente
estudar em todos os seus aspectos o legado bizantino aos povos eslavos.

Tal estudo resultaria provavelmente em substanciosos volumes. Limitar-


nos-emos aqui apenas a citar como exemplo dessa marcante influência a civilização
russa. Com efeito, a Rússia dos Czares permaneceu, «até a aurora do século XX, em
todas as manifestações de sua vida, a mais fiel imagem de Bizâncio desaparecida».

Durante séculos os russos haviam sentido o influxo da civilização bizantina,


sobretudo através da atuação da Igreja. Quando Constantinopla caiu em poder
dos turcos, numerosos emigrados gregos procuraram a Rússia, provocando aí um
movimento de renovação cultural paralelo ao Renascimento Ocidental. O casamento
(1472) de Ivan III, grande príncipe de Moscou, com Sofia, a última dos Paleólogos,
selou a convicção de que a capital russa deveria ser considerada a sucessora
política de Bizâncio. Com a criação do patriarcado de Moscou em 1589, os russos
reivindicaram também a sucessão religiosa de Bizâncio.

«Nunca, daí por diante, a Rússia dos czares esqueceu as ambições que lhe
impunha essa herança, nem deixou modificar-se o espírito que lhe havia instilado
sua educação bizantina. Ainda recentemente, se se quisesse fazer ideia do que foi o
mundo bizantino, seria para a corte de São Petersburgo e para o Kremlin de Moscou
que valeria a pena dirigir os olhos. Em nenhuma parte, mais que na Rússia czarista,
se havia conservado a imagem fiel de Bizâncio desaparecida».

Essa imagem era bem visível na concepção russa do poder imperial (o czar
era o lugar-tenente de Deus na Terra), na etiqueta, no luxo da corte, na íntima ligação
existente entre a Igreja e o Estado, no esplendor das cerimônias litúrgicas, no grande

113
UNIDADE 2 | O MUNDO DAS SOCIEDADES TEOCRÁTICAS

número de mosteiros e no prestígio enorme desfrutado pelos monges. Os exemplos


da influência bizantina na Rússia poderiam ser multiplicados indefinidamente.

A consciência de serem sucessores e continuadores dos Basileus levou os


czares a orientarem a política externa russa no sentido de Constantinopla. Santa
Sofia foi o sonho constante de várias gerações russas: «Substituir na cúpula da
grande Igreja o crescente pela cruz de ouro, tal foi o fim ideal que, desde séculos,
a Rússia se propôs, ao mesmo tempo em que sonhou libertar os povos cristãos do
jugo otomano e apossar-se de Tsaringrad, «indissoluvelmente ligada à ideia do
czarismo cristão». «O dia em que Moscou se fez herdeira de Bizâncio fixou para
séculos a política do império dos czares».

A espiritualidade bizantina imprimiu-se de tal modo no povo russo que a


encontramos nas obras de romancistas como Dostoievsky (que pinta magistralmente
a alma atormentada pelo vivo sentimento do pecado e pela consciência da
imperfeição humana em sedenta busca da perfeição) e de pensadores como Berdiaeff
(cuja síntese filosófica pretende focalizar o homem em toda a sua espiritualidade).

FONTE: RUNCIMAN, Steven. A civilização bizantina. Tradução de Waltensir Dutra. Rio de Janeiro:
Zahar, 1977, p. 286-287.

114
RESUMO DO TÓPICO 1
Neste tópico você viu que:

 A queda do Império Romano do Ocidente não afetou diretamente o lado oriental,


que se manteve estável e organizado pelos próximos mil anos.

 O Império Romano do Oriente, chamado pelos historiadores de Império


Bizantino, foi a estrutura política mais estável da Europa durante a Idade Média.

 O reinado mais significativo da primeira etapa da história bizantina foi o de


Justiniano. Ele expandiu as fronteiras do império, editou o Codex Juris Civilis,
código de leis, e promoveu reformas em Constantinopla.

 Aos poucos, o Império Romano do Oriente assumiu características próprias,


seja na língua – o grego –, seja na religião.

 Constantinopla situava-se no Estreito de Bósforo, entre a Europa e a Ásia, e


tornou-se uma grande metrópole durante o período bizantino.

 As muralhas de Constantinopla eram praticamente indevassáveis, e a cidade só


foi ocupada duas vezes: na 4ª Cruzada (1204) e na tomada pelos turcos otomanos
(1453).

115
AUTOATIVIDADE

1 Como vimos, os habitantes do Império Romano do Oriente consideravam-


se herdeiros diretos e legítimos do Império Romano, e assim intitulavam-se.
A partir de um certo momento, contudo, é possível perceber alguma ruptura
entre os costumes e a organização social oriental em relação à dos romanos,
o que de fato nos permite falar em uma cultura especificamente “bizantina”.
Quando isso ocorre e devido a que fatores?

2 Que relação simbólica é possível traçar entre o fim das conquistas militares
e essa “helenização” do Império Romano do Oriente?

116
UNIDADE 2 TÓPICO 2

RELIGIÃO E OPULÊNCIA NO IMPÉRIO


ROMANO ORIENTAL

1 INTRODUÇÃO
O Império Romano do Oriente, conhecido pelos historiadores desde o
século XIX como Império Bizantino, como o continuador do Império Romano da
Antiguidade, foi uma entidade política muito particular. Durou mais de mil anos –
a rigor, os marcos temporais tradicionais da Idade Média delimitam a sua duração
e abarcou uma grande quantidade de populações de diferentes origens e religiões.
Como é de se imaginar, em um império tão duradouro, houve períodos de grande
prosperidade econômica e outros de crise.

Neste tópico, vamos complementar nossos estudos sobre o Império Romano


do Oriente, analisando dois aspectos importantes de sua história: as disputas
religiosas, tanto internas quanto externas, e o período de maior prosperidade,
durante a dinastia Macedônica.

2 AS CONTROVÉRSIAS RELIGIOSAS BIZANTINAS


O Império Bizantino foi palco de uma série de controvérsias religiosas ao
longo de sua história. Muitas delas ocorreram em função de disputas religiosas e
políticas no início da história do Cristianismo. Vejamos brevemente algumas das
mais relevantes.

2.1 O NESTORIANISMO
Em 428, Nestório, patriarca de Constantinopla, propôs a ideia de que Jesus
Cristo, ao contrário do que dizia a doutrina oficial da Igreja, tinha duas naturezas
distintas: divina e humana. Isso era entendido por seus opositores como rebaixando
a condição de Cristo e da Virgem Maria, e foi condenado pelos Concílios de Éfeso
(431) e de Calcedônia (451).

As motivações para a disputa eram tanto religiosas quanto políticas.


Nestório era de Antioquia, cidade que, na época, rivalizava em importância com
Alexandria e onde as influências de teólogos como Diodoro de Tarso e Teodoro de
Mopsuestia, que divergiam consideravelmente da doutrina ortodoxa, eram mais
fortes. O triunfo de uma das perspectivas teológicas significaria, também, o triunfo
de seu defensor e da região de onde ele provinha.

117
UNIDADE 2 | O MUNDO DAS SOCIEDADES TEOCRÁTICAS

Nestório foi excomungado, mas seus seguidores fugiram para terras do


Império Sassânida e estabeleceram a Igreja Persa, apesar da perseguição dos
zoroastrianos. Os nestorianos deram origem a vários ramos da igreja cristã oriental,
que prosperaram mesmo em terras islâmicas, e chegaram até à China.

2.2 A ICONOCLASTIA
As desavenças quanto ao uso de certos elementos no culto católico eram
antigas. A “Querela das Imagens” (728-842) foi um dos significativos conflitos
envolvendo imagens (de Cristo, de Maria, dos santos etc.) nos cultos religiosos.

Naquele importante episódio da história, os imperadores bizantinos


proibiram que os fiéis cultuassem imagens. Os partidários das ideias desses
imperadores ficaram conhecidos como iconoclastas.Por isso, a iconoclastia se
transformou em uma doutrina bizantina, nos séculos VIII e IX, que repudiava a
representação e veneração de imagens (estátuas, pinturas ou qualquer outro objeto
utilizado em cerimônias religiosas).

Iconoclastia significa, literalmente, “a destruição dos ícones”. Esse


movimento gerou um conflito que durou mais de um século (728 a 842, com uma
“trégua” entre 787 e 814). Novamente, assim como no nestorianismo, a controvérsia
surgiu por motivações religiosas e políticas, embora diversos aspectos relativos
ao confronto não sejam muito bem entendidos. Isso se dá, em parte, porque os
iconoclastas, ao serem derrotados ao final, tiveram sua perspectiva silenciada
pelos vencedores.

FIGURA 25 - KRYSTÓS PANTOKRÁTOR (CRISTO TODO-PODEROSO),


ÍCONE BIZANTINO DO SÉCULO XIII. MOSAICO
LOCALIZADO NA BASÍLICA DE SANTA SOFIA

FONTE: Disponível em: <http://www.iconsexplained.com/iec/


pics/058_christ_pantocrator_205x250.jpg>. Acesso em: 14
out. 2012.

118
TÓPICO 2 | RELIGIÃO E OPULÊNCIA NO IMPÉRIO ROMANO ORIENTAL

Dentre os motivos para o confronto, historiadores (como Toynbee)


apontam a influência do avanço muçulmano – com sua proibição de representar
a figura humana ou a tensão entre os povos periféricos do império, defensores da
iconoclastia, e os moradores mais abastados de Constantinopla, de origem grega,
contrários a ela. Essa última interpretação carrega em si características de conflito
de classe e é corrente, como se pode imaginar, na historiografia marxista.

Ao final, a posição iconoclasta foi derrotada, ao custo de um grande desgaste


político e econômico. Além do mais, as soluções que foram encontradas para a
questão em diversos concílios afastaram ainda mais a Igreja de Constantinopla da
de Roma.

2.2.1 A justificativa teológica do conflito


Como vimos, não é fácil saber as justificativas e motivações dos iconoclastas,
porque seus oponentes, como acontece com frequência, ao vencerem o conflito,
ganharam o direito de contar a história a seu modo. Podemos, no entanto, tentar
vislumbrar nas entrelinhas da história dos vencedores, alguns elementos que
expliquem o conflito.

No texto que segue podemos ver a sanção (documento com força de lei)
da Igreja Bizantina, condenando o uso das imagens em cerimônias religiosas.
Este documento foi publicado no ano de 754, no Palácio de Hiereia, que ficava às
margens do Estreito de Bósforo. O documento foi retirado do livro de Fernando
Espinosa intitulado “Antologia de textos históricos medievais”.

Sob a inspiração do Espírito Santo, julgamos que a arte ilegítima de


pintar criaturas vivas é uma blasfêmia contra a doutrina fundamental da nossa
salvação – nomeadamente a encarnação de Cristo. Para que serve a loucura
do pintor que com as suas mãos maculadas tenta modelar aquilo que poderá
apenas ser entendido no coração e confessado com a boca?

Faz uma imagem e chama-lhe Cristo. O nome Cristo significa Deus


e homem. Consequentemente, pintou a natureza divina que não pode ser
representada. Refugiam-se na desculpa: “Representamos apenas o corpo de
Cristo”. Mas como é que esses loucos ousam separar o corpo da natureza divina?
Caem no abismo da impiedade, porque atribuem ao corpo uma subsistência
em si próprio, e isto introduz uma quarta pessoa na Trindade.

Mas, se alguém disser: podemos ter razão no que respeita às imagens


de Cristo, mas não está certo para nós proibir também as imagens da
simultaneamente imaculada e sempre gloriosa Mãe de Deus, replicaremos que
a Cristandade rejeitou a totalidade do paganismo. Se alguém pensar trazer
de novo para a vida os santos por meio de uma arte morta descoberta pelos
pagãos, torna-se culpado de blasfêmia. Quem ousará com uma arte gentílica
pintar a Mãe de Deus? A escritura diz: “Deus é um espírito”, e também: “Não
farás nenhuma imagem esculpida”. (ESPINOSA, 1981, p. 63).

119
UNIDADE 2 | O MUNDO DAS SOCIEDADES TEOCRÁTICAS

Prezado(a) acadêmico(a), gostaríamos de destacar duas questões levantadas


neste texto. A primeira diz respeito ao significado atribuído à Cristandade. Como
vimos, a religião cristã ocupava um lugar de destaque na sociedade bizantina. Nesse
sentido, a sociedade bizantina era permeada pela concepção sagrada do mundo.
Isto quer dizer que o mundo ganhava sentido através da relação sobrenatural - os
acontecimentos cotidianos eram entendidos de acordo com determinadas crenças.

Assim, Cristandade é entendida como o sentimento coletivo que unia os


bizantinos à comunidade cristã. Entretanto, esse sentimento só pode ser entendido
nos contextos de lutas contra outras sociedades, sejam eles povos politeístas ou
monoteístas (que acreditam em um único deus).

Nesse sentido, a batalha contra os povos muçulmanos, a partir do século


VII, foi decisiva para reforçar o sentimento de Cristandade. Segundo Hilário Franco
Jr. (1987, p. 41), os bizantinos “passaram a se ver como um povo eleito, destinado
a defender toda a Cristandade” [...], e “se tornaram um instrumento de Deus face
aos infiéis” (muçulmanos).

FIGURA 26 - EXEMPLO DE IGREJA OBEDIENTE AO ESPÍRITO


ICONOCLASTA BIZANTINO: IGREJA DE HAGIA IRENE,
EM ISTAMBUL

FONTE: Disponível em: <http://upload.wikimedia.org/wikipedia/


commons/thumb/6/6b/Irenekirken.jpg/250px-Irenekirken.
jpg>. Acesso em: 14 out. 2012.

120
TÓPICO 2 | RELIGIÃO E OPULÊNCIA NO IMPÉRIO ROMANO ORIENTAL

2.2.2 As motivações sociais do conflito


O texto a seguir nos ajuda a entender tanto a origem da idolatria, o culto
das imagens religiosas, quanto as implicações sociais ligadas à “Querela das
Imagens”. Neste sentido, vemos que os imperadores iconoclastas, chefes militares,
estavam interessados na dominação dos territórios da Anatólia (Ásia Menor; sul da
Turquia, nas proximidades dos Montes Taurus) administrados por determinados
mosteiros, os quais asseguravam seu prestígio sobre o povo através do culto aos
ícones.

O texto pode ser encontrado no livro: “História Medieval”, de Jacques


Heers:

As imagens, ícones, dos personagens divinos, aceitas inicialmente para


instruir os fiéis nos mistérios da fé cristã, tornaram-se tão numerosas que
suscitaram estranhos fervores, práticas religiosas particulares, verdadeiras
devoções populares. Eram encontradas em toda a parte: afrescos ou mosaicos
nas cúpulas e nas paredes das igrejas, relevos de marfim ou madeira pintados,
placas de bronze douradas ou esmaltadas expostas no dia de festa do santo e
associadas diretamente ao ritual dos ofícios.

Os sacerdotes usavam pequenos ícones e cada lugar os possuía também,


alvos de minuciosas atenções. Essas imagens representavam o Cristo, a Virgem e
todos os santos protetores e curandeiros. O povo atribuía-lhes um poder divino
certo e via neles muito mais do que simples representações figuradas. Venerava-
os, prestava-lhes homenagem, suplicava-lhes, esperando os milagres.

Alguns ícones eram reputados como sobrenaturais e seus poderes


sobrepujavam os de todos os outros. As massas populares corriam em
peregrinação aos mosteiros que expunham os mais insignes e abandonavam-se a
devoções extravagantes, práticas idólatras que lembravam ainda as superstições,
encantamentos e ritos mágicos do paganismo.

Esses excessos provocavam, em alguns meios mais rigoristas, uma viva


reação. Leigos, sacerdotes lembram as condenações ou as admoestações dos
primeiros doutores da Igreja e invocam a abolição do culto das imagens. Assim,
chocam-se claramente: os iconólatras favoráveis às imagens e os iconoclastas,
hostis; estes dois partidos, no século VIII, dividem todo o Império.

Do ponto de vista social, os partidários de uma religião sensível, ligada


a algumas crenças primitivas, de maneira geral o povo, as mulheres, os monges,
opõem-se aos que são capazes de manter na prática religiosa uma espiritualidade
mais elevada, o verdadeiro sentido do cristianismo; estes se encontram nos
meios do imperador, da nobreza e do alto clero.

De fato, não se trata somente da veneração das imagens sagradas, mas


do direito mesmo de representar Deus e suas criaturas.

121
UNIDADE 2 | O MUNDO DAS SOCIEDADES TEOCRÁTICAS

Mas a querela traduz também o cisma entre as províncias orientais, fiéis


a um certo rigor espiritual, influenciadas talvez pelas proibições lançadas pelo
Islã ou pelo judaísmo sobre a representação da pessoa humana e, por outro lado,
a Grécia e a capital, ferozmente fiéis ao culto das imagens.

Alguns historiadores pensam também que a atitude dos cristãos da Ásia


foi ditada pela esperança de converter mais facilmente muçulmanos e judeus, no
Império ou nas fronteiras. Leão, o Isauro, e todos os imperadores iconoclastas
são de origem oriental, ao passo que duas mulheres, ambas gregas, Irene e depois
Teodora, restabelecem os ícones assim que podem. O exército, decididamente
iconoclasta, é formado principalmente por soldados da Ásia ou da Armênia.
(HEERS, 1985, p. 258-259).

Diante disso, prezado(a) acadêmico(a), podemos ver que a luta em torno


do culto das imagens estava relacionada aos desejos do Império em expandir seus
domínios. Dessa forma, quanto maior o número de pessoas convertidas à religião
oficial, maior a extensão e o poder de Bizâncio. Nesse sentido, as propriedades
dos conventos, tomadas pelos imperadores iconoclastas, eram repartidas entre os
soldados-camponeses como forma de garantir a posse da terra pelo Império.

Por outro lado, a Querela significou o combate sistematizado contra os


cultos pagãos, ligados às religiões politeístas (as crenças que cultuam mais de um
deus), como veremos no documento histórico que será apresentado a seguir.

2.3 O GRANDE CISMA


As divergências a respeito do dogma, da liturgia e das práticas religiosas, as
questões de precedência, envenenadas pelos conflitos políticos, explicam os cismas
que separam as igrejas do Oriente e do Ocidente. O patriarca de Constantinopla,
que permanece após as invasões árabes, o único chefe dos cristãos no Oriente,
suporta mal a supremacia romana e tenta libertar-se; rejeita toda a ingerência do
papa. (HEERS, 1985).

Desde o início do Cristianismo, havia divergências doutrinárias. Às vezes,


elas apareciam na forma de uma contestação direta à doutrina ortodoxa, que era
rechaçada (heresias); em outras, as divergências ganhavam dimensões maiores
(como na iconoclastia). Com a divisão do Império Romano, as divergências
políticas foram acompanhadas de divergências religiosas, e aos poucos, as igrejas
de Roma e das demais dioceses afastaram-se.

Segundo Waldir Freitas Oliveira (1987), o final da Antiguidade foi marcado


pelas disputas religiosas, uma vez que a doutrina cristã ainda não estava definida.
Igualmente, os cismas, ou desacordos religiosos, giravam em torno das questões
doutrinárias (conjunto de ideias) entre as diferentes igrejas cristãs da Idade Média.

122
TÓPICO 2 | RELIGIÃO E OPULÊNCIA NO IMPÉRIO ROMANO ORIENTAL

Contudo, o Grande Cisma ou Cisma do Oriente representou a separação


definitiva entre os ramos do catolicismo grego e romano, e a vitória dos ortodoxos
sobre os demais credos.

Já vimos que o Imperador Honório aproximou o Império Bizantino da


cultura grega e que os patriarcados (sedes religiosas, equivalentes à de Roma)
de Antioquia e Alexandria rivalizavam em importância. Ao mesmo tempo, no
Ocidente, os papas sentiam a necessidade de sustentar sua proeminência religiosa
em bases políticas, o que levou à aliança da Santa Sé com os imperadores francos
(como vimos na Unidade 1).

Os conflitos e divergências (cismas) acerca da natureza de Cristo e das


liturgias fizeram parte do cotidiano de Bizâncio. Segundo Hilário Franco Júnior
(1987), a religião ocupava um lugar de destaque na vida da população do Império,
problemas políticos e sociais acabavam por tomar aspectos religiosos. A luta
por emancipação e autonomia de Constantinopla, na última década da dinastia
Macedônica (867-1059), foi acompanhada pela luta da Igreja Ortodoxa em se
autogovernar, pois até então ela estava sujeita às determinações do papado romano.

NOTA

A liturgia consiste no conjunto de elementos e de práticas relacionadas aos cultos


religiosos de uma igreja ou seita religiosa: missa, orações, cerimônias, sacramentos, objetos de
cultos.

Podemos perceber, então, que uma série de divergências políticas, culturais


e religiosas contribuiu para afastar, progressivamente, os patriarcas de Roma (o
papa) e de Constantinopla.

Em 1054, o Papa Leão IX escreveu ao patriarca de Constantinopla, Miguel


Cerularius, exigindo que este reconhecesse que Roma tinha a primazia (privilégio)
em assuntos religiosos.

Vamos ler um trecho da carta:

Sois acusado de ter condenado publicamente a Igreja Apostólica e


Latina sem um julgamento ou uma prova. E a razão principal desta
condenação, a qual demonstra uma presunção sem exemplo e uma
impudência inacreditável, é que a Igreja Latina ousa celebrar a
comemoração da paixão do Senhor com pão ázimo. Como é bem vossa
uma acusação tão gratuita, um tão pernicioso exemplo de arrogância!
“Colocais a vossa boca no céu, enquanto a vossa língua, caminhando
através do mundo” (Salmo LXXIII, 9) procura por meio de argumentos
humanos e conjecturas arruinar e subverter a antiga fé. (ESPINOSA,
1981, p. 66).

123
UNIDADE 2 | O MUNDO DAS SOCIEDADES TEOCRÁTICAS

NOTA

Vocabulário
Pão ázimo: pão sem fermento, utilizado nos rituais da Páscoa judaica e para a fabricação da
hóstia.
Pernicioso: nocivo.
Conjecturas: suposições, afirmações baseadas em dados não comprovados.

O que podemos apreender de imediato da carta? O descontentamento do


Papa em relação ao fechamento das “Igrejas Latinas” sob a acusação de se utilizar
a hóstia durante a comemoração “da paixão do Senhor”. Leão IX se baseava na
suposta Doação de Constantino, em que o antigo imperador daria a Roma esse
privilégio. Mas, como muitos já desconfiavam, o documento é uma falsificação.

NOTA

Caro(a) acadêmico(a), a intenção aqui não é aprofundar um debate teológico


(discussão sobre doutrinas religiosas), apenas apresentar, por meio de um
documento de época, um dos motivos que levou à separação definitiva dos católicos: a
discórdia em relação aos ritos. Resumidamente, as disputas entre as igrejas (nestoriana,
monofisista, ortodoxa) representaram verdadeiras lutas pelo poder.

A recusa do patriarca, aliada a algumas controvérsias religiosas, levou


ambos a excomungarem-se mutuamente e declararem a outra igreja como herética.
O Grande Cisma (palavra que significa “separação”), como ficou conhecido,
selou definitivamente a separação entre as igrejas do Ocidente e do Oriente – que
passaram a ser conhecidas, respectivamente, como “Católica” e “Ortodoxa”. A
separação mantém-se até hoje, apesar de tentativas recentes de aproximação.

O Grande Cisma gerou uma considerável tensão entre Leste e Oeste


e teve influência direta na iniciativa dos guerreiros da IV Cruzada em saquear
Constantinopla.

UNI

REMISSÃO À LEITURA
No site: <http://www.fosja.com.br/curiosidades.htm#003>, você encontrará informações
sobre as diferenças entre os rituais das Igrejas: Ocidental e Oriental.

124
TÓPICO 2 | RELIGIÃO E OPULÊNCIA NO IMPÉRIO ROMANO ORIENTAL

3 O AUGE DO IMPÉRIO DO ORIENTE: A DINASTIA MACEDÔNICA


As decisões políticas dos imperadores partiam de Constantinopla, capital
do Império e principal porto. Ali, também governaram Basileus descendentes de
uma mesma família; estes, por sua vez, compunham dinastias que comandaram
o Estado por longos períodos. Um exemplo foi a dinastia dos Macedônicos, que
governou o Império por 192 anos (867-1059). Foi durante o governo dos Macedônios
que as fronteiras do Império alargaram-se novamente para dar lugar à segunda
Idade de Ouro bizantina.

NOTA

Como vimos, o governo de Justiniano (527-565) foi o primeiro período áureo


do Império Bizantino, caracterizado pela retomada de parte dos territórios tomados pelos
bárbaros. A segunda idade de ouro veio no século X, com o avanço das tropas de Bizâncio
sobre as possessões islâmicas.

O período de domínio da dinastia macedônica foi de constantes guerras


contra os muçulmanos, ao sul, e contra os eslavos, ao norte; os triunfos militares
garantiram a prosperidade econômica, pois Constantinopla conquistou novamente
a supremacia marítima sobre o Mediterrâneo oriental.

FIGURA 27 - IMPÉRIO ROMANO DO ORIENTE (MAIS CLARO) EM SEU AUGE, SOB A DINASTIA
MACEDÔNICA (1025 D.C.).

FONTE: Disponível em: <http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/


archive/a/a7/20120813164218%21Map_Byzantine_Empire_1025-en.svg>. Acesso em: 23
set. 2012.

125
UNIDADE 2 | O MUNDO DAS SOCIEDADES TEOCRÁTICAS

NOTA

Embora fosse menor do que sob Justiniano, o império da dinastia Macedônica,


em parte justamente por isso, era mais forte. A região pontilhada no mapa foi alternadamente
dominada por bizantinos e muçulmanos.

O domínio da marinha bizantina no Mar Mediterrâneo foi de extrema


importância para a manutenção do comércio medieval e da prosperidade bizantina.
As cidades italianas de Veneza e Gênova puderam, dessa maneira, adquirir artigos
de luxo e especiarias: tecidos de seda e linho, perfumes, joias, porcelana, tapetes,
objetos de marfim, pimenta, cravo, canela – da Índia e da China. As trocas mercantis
só foram interrompidas, definitivamente, com a tomada de Constantinopla pelos
turcos otomanos (muçulmanos) em 1453.

FIGURA 28 - MOEDA RETRATANDO O IMPERADOR BASÍLIO I, FUNDADOR DA


DINASTIA MACEDÔNICA

FONTE: Disponível em: <http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/6/66/


Solidus-Basil_I_with_Constantine_
and_Eudoxia-sb1703.jpg>. Acesso em: 14 out. 2012.

3.1 A CRISTIANIZAÇÃO DA RÚSSIA


Muito importante para a história posterior foi o contato, que se iniciou
durante a dinastia macedônica, entre o Império Bizantino e os povos russos. Esses
povos, de origem eslava, estavam sendo organizados politicamente por uma
elite comercial de varegues (povos de origem viking “russificados”), que havia
estabelecido rotas comerciais na grande planície russa a partir do Mar Báltico.

A partir da planície, os varegues (chamados de Rus) expandiram seus


domínios e entraram em conflito com magiares (húngaros), cazares (do atual
Cazaquistão), búlgaros e bizantinos.

126
TÓPICO 2 | RELIGIÃO E OPULÊNCIA NO IMPÉRIO ROMANO ORIENTAL

NOTA

Os cazares são um povo aparentado aos turcos (assim como os hunos e os


mongóis) que ocupam, até hoje, as vastas planícies do Cazaquistão. Durante a Idade Média, sua
organização militar e seu domínio sobre enormes extensões de terra os tornavam fundamentais
como “fiéis da balança” do poder entre bizantinos, sassânidas e árabes. No século IX, os líderes
cazares converteram-se ao judaísmo.

Logo, os bizantinos perceberam que, se deixassem de ser oponentes, os


eslavos seriam excelentes aliados, e assim procuraram cristianizá-los. Foram
auxiliados nisso pelo trabalho missionário dos irmãos Cirilo e Metódio (ca. 680),
que introduziram a religião cristã entre os russos e traduziram a Bíblia para o
idioma local (chamado de eslavônico).

A aliança militar, celebrada entre o Rei Vladimir I e o Imperador Basílio


II, levou à cristianização da Rússia pelos ortodoxos, e abriu caminho para uma
aliança que permitiu o desenvolvimento de ambas as regiões.

Quando Constantinopla entrou em decadência, a Rússia manteve-se como


o grande centro do cristianismo ortodoxo, ainda que seguindo uma liturgia própria
e em língua local.

FIGURA 29 - CATEDRAL DE SÃO BASÍLIO, EM MOSCOU, A MAIS CONHECIDA


IGREJA ORTODOXA RUSSA

FONTE: Disponível em: <http://www.destination360.com/europe/russia/images/s/


churches.jpg>. Acesso em: 14 out. 2012.

127
UNIDADE 2 | O MUNDO DAS SOCIEDADES TEOCRÁTICAS

4 A DECADÊNCIA
A Cruzada de 1204 foi financiada pela cidade comercial de Veneza, que
disputava com Gênova o monopólio comercial na Europa. Portanto, a guerra posta
em prática pelos cruzados ultrapassou a dimensão religiosa, vindo a funcionar
fundamentalmente como uma luta pelo domínio das principais rotas comerciais
controladas por Constantinopla. As cruzadas favoreceram o enriquecimento dos
comerciantes que, aproveitando-se das viagens, foram criando novas oportunidades
de comércio. Governar Constantinopla significou, acima de tudo, ter o controle
sobre o comércio entre Ocidente e Oriente, entre Europa e Ásia.

4.1 MOTIVOS ECONÔMICOS E POLÍTICOS DO DECLÍNIO


DE CONSTANTINOPLA
No texto que segue, retirado do livro “O Império Bizantino”, de Hilário
Franco Jr. (1987, p. 55-57), são apresentados os principais motivos do declínio
econômico e político de Constantinopla. Com a paulatina supremacia comercial dos
venezianos e da tomada de poder da aristocracia rural, deu-se início à decadência
de Bizâncio.

Já em 922, os venezianos recebiam de Basílio I liberdade de comércio no


porto de Constantinopla, pagando uma taxa inferior à de outros estrangeiros. A
verdadeira penetração latina, porém, começou mais tarde, quando, precisando
de ajuda contra os normandos, Bizâncio chamou os venezianos, também
temerosos de um crescente poder por parte daqueles.

Assim, em 1082, Veneza recebia isenção total de taxas alfandegárias,


um bairro de Constantinopla e liberdade de trânsito em todo o império, com
exceção do Mar Negro. Mas, para contrabalançar a crescente influência dos
venezianos, Bizâncio precisou, no começo do século XII, conceder privilégios
comerciais a Pisa. Como isso não se revelou suficiente, também os genoveses
receberam vantagens para fazer frente ao poderio veneziano. Mas tudo o que
Bizâncio conseguiu com essa política foi transferir para seu próprio território a
rivalidade e as guerras que opunham Veneza e Gênova. O império tornava-se “o
teatro e a vítima” (Diehl) daquelas disputas comerciais.

De fato, foi procurando apossar-se definitivamente e com exclusividade


do comércio bizantino que Veneza soube explorar as divergências político-
religiosas entre Ocidente e Bizâncio, de forma a fazer a Quarta Cruzada trabalhar
a seu favor.

Desta maneira é que se estabeleceu o Império Latino de Constantinopla


(1204-1261), que beneficiou fundamentalmente os interesses mercantis
venezianos. Por causa disso, Gênova ajudou a reconstituição do Império
Bizantino, que em troca lhe entregava praticamente o domínio sobre seu
comércio. Chegou-se mesmo a cobrar uma taxa de todos os navios não genoveses

128
TÓPICO 2 | RELIGIÃO E OPULÊNCIA NO IMPÉRIO ROMANO ORIENTAL

– inclusive bizantinos – que se dirigissem ao Mar Negro. Bizâncio perdera o


controle sobre seus próprios territórios. Portanto, à hegemonia econômica
veneziana no Império Bizantino seguia-se a hegemonia genovesa.

Um cronista bizantino lamentava-se dizendo que “os latinos aumentavam


continuamente seus benefícios e seu poderio no mar. Os gregos se debilitavam
progressivamente, e cada dia somava uma desgraça a mais à calamidade dos
dias anteriores”.

Paralelo ao declínio do comércio exterior e consequente à economia


urbana, o triunfo da grande propriedade não só rompia o equilíbrio entre
cidade e campo, como levava a aristocracia a cobrar sua decisiva participação
nas estruturas do Império. Os grupos sociais intermediários, que nas cidades e
no campo permitiram durante bom tempo uma fonte de ingressos essencial para
a fazenda do império e possibilitaram a estabilidade do Estado, estavam agora
esfacelados.

Os grandes proprietários que sempre se opuseram ao rígido centralismo


e intervencionismo estatal, em sua luta pelo poder, acabaram – juntamente
com o declínio comercial e financeiro – comprometendo de forma irreversível a
capacidade de sobrevivência do Império.

AUTOATIVIDADE

A partir do que foi exposto no texto anterior, procure responder à seguinte


questão:
Por que os grandes proprietários rurais representaram uma ameaça ao poder
do Basileus e, consequentemente, do Império Bizantino?

Prezado(a) acadêmico(a), para que possamos entender melhor o declínio


de Bizâncio, devemos retornar até o período em que Heráclio governou o Império
Bizantino, entre 610 e 641.

Foi durante o século VII que aquele imperador criou o regime denominado
themas, que consistiu na divisão do território controlado pelos bizantinos. Os themas
eram províncias controladas por um estratego, um chefe que reunia os poderes
militar e civil e devia obediência ao imperador. As tropas por ele comandadas
eram formadas por soldados-camponeses, soldados que se tornaram pequenos
proprietários rurais. Este sistema teve um grande sucesso militar, pois cada soldado
lutava pela proteção de sua família e pela manutenção de suas próprias terras.

Até o século IX, havia sete de themas, número que passou a 25 e, no século
X, saltou para 31. Este sistema político foi criado a fim de proteger as terras do
império dos ataques estrangeiros e, ao mesmo tempo, criar obstáculos para o

129
UNIDADE 2 | O MUNDO DAS SOCIEDADES TEOCRÁTICAS

surgimento de grandes extensões de terra. Com isso, Heráclio buscou assegurar


as defesas imperiais dos agentes externos e impedir a formação de latifundiários
que pudessem ameaçar a soberania do Basileus. Assim, o poder ficou centralizado
em Constantinopla, diferente da sociedade feudal do Ocidente, que permaneceu
fragmentada por diferentes reinos.

Segundo Perry Anderson (2004, p. 261):


A concentração de terras em mãos de oligarquias locais recebeu violenta
resistência do Estado, porque ameaçava destruir suas reservas de
abastecimento e o recolhimento de impostos, subtraindo a população
agrária ao domínio da administração pública.

UNI

Podemos considerar, observando a atitude do Imperador Heráclio, o quanto a


oligarquia (grupo de grandes proprietários de terra) ameaçava o sistema imperial bizantino,
pois ela poderia desviar os recursos econômicos que o Estado arrecadava.
Esperamos, caro(a) acadêmico(a), que estas informações possam complementar a resposta da
questão que foi levantada anteriormente.

FIGURA 30 - CRUZADOS SAQUEIAM OS TESOUROS DE CONSTANTINOPLA NA 4ª


CRUZADA (1204). FOI UM DURO GOLPE, DO QUAL A CIDADE NÃO
CONSEGUIU SE RECUPERAR PLENAMENTE

FONTE: Disponível em: <http://western-civilisation.com/Images/uploaded/1204_


crusade%20and%20sack1.jpg>. Acesso em: 14 out. 2012.

A partir do que foi exposto, podemos deduzir o que aconteceu no século XII
para resultar no colapso do Império do Oriente. Se você pensou que o imperador
começou a perder o poder e o prestígio a partir do momento em que a aristocracia,
grupo formado por militares de alta patente, passou a dominar grandes extensões
de terra, acertou. A combinação de latifúndio e privilégios políticos aos militares

130
TÓPICO 2 | RELIGIÃO E OPULÊNCIA NO IMPÉRIO ROMANO ORIENTAL

fez ruir por dentro a estrutura do grande Império Bizantino, que tinha se reerguido,
nos séculos X e XI, sob a dinastia dos Macedônicos.

Os campesinos endividados acabaram vendendo ou alienando suas terras


para ficar sob a proteção dos chefes militares senhores dos castelos. Portanto, o
fortalecimento desses senhores resultou no enfraquecimento do Império e no
consequente estabelecimento de uma espécie de “feudalismo” nos domínios
bizantinos.

NOTA

Este é um bom momento para refletirmos sobre a definição de Império: “Unidade


política que abarca vasto território ou numerosos territórios ou povos, sob uma única
autoridade soberana”. (HOUAISS, 2001, p. 1580) (grifo nosso).

A descentralização política, em função do fortalecimento da aristocracia,


foi seguida pelo domínio ocidental (italiano) sobre a cidade-capital do Oriente,
Constantinopla. Portanto, durante o Baixo Império (1261-1453), Bizâncio não pôde
se sobrepor ao poder dos latifundiários e comerciantes de Gênova e Veneza. A
divisão do Império de Constantino foi determinante para o triunfo militar dos
árabes no Estreito de Bósforo.

AUTOATIVIDADE

Agora, sugerimos que você elabore uma pesquisa. Procure identificar


em que momento da história ocidental o conflito em torno do uso litúrgico das
imagens reapareceu. A seguir, elabore um texto relacionando a “Querela das
Imagens” em Bizâncio e as disputas do uso das imagens nesse outro período
histórico (aquele que você identificou). O texto deve ter no mínimo uma lauda
(uma página).

Agora, sugerimos que você elabore uma pesquisa. Procure identificar em


que momento da história ocidental o conflito em torno do uso litúrgico das imagens
reapareceu. A seguir, elabore um texto relacionando a “Querela das Imagens” em
Bizâncio e as disputas do uso das imagens nesse outro período histórico (aquele
que você identificou). O texto deve ter no mínimo uma lauda (uma página).

131
UNIDADE 2 | O MUNDO DAS SOCIEDADES TEOCRÁTICAS

LEITURA COMPLEMENTAR

HISTÓRIA DO IMPÉRIO BIZANTINO

Mário Curtis Giordani

Se Bizâncio devia sua força e segurança à eficiência dos seus serviços públicos,
era o comércio que lhe permitia pagá-los. Sua história é fundamentalmente a história
de sua política financeira e a do comércio da Idade Média.

Poucas cidades gozavam de uma localização comercial tão privilegiada


quanto Constantinopla, situada que estava à margem do canal marítimo entre o
Norte e o Sul e a ponte peninsular entre o Leste e o Oeste. E poucas raças foram tão
aptas para o comércio quanto os gregos e armênios, que constituíam seus cidadãos.
Não é surpresa o fato de ter sido Constantinopla, durante séculos, sinônimo de
riqueza, uma cidade cujo tesouro “não tinha fim nem medida”. Mas esse tesouro
não fora adquirido por acidente. Os desvelos e as circunstâncias é que enriqueceram
a cidade.

Até Colombo e Vasco da Gama abrirem uma nova era, o principal comércio do
mundo realizava-se do Extremo Oriente para o Mediterrâneo. A esfera mediterrânea
podia abastecer-se de alimentos e suprir as próprias necessidades. Mas, sempre que
se tornava próspera, punha-se a desejar os artigos de luxo que só o Oriente podia
fornecer.

Nos primeiros séculos da era cristã, o comércio oriental era muito florescente.
Roma importava largamente especiarias, ervas e madeira de sândalo das Índias e,
acima de tudo, seda bruta da China. Tudo isso custava bom preço e as exportações
de vidro, esmalte e artigos manufaturados do Mediterrâneo não eram suficientes
para pagá-lo. Uma soma enorme de ouro ia anualmente para o Leste e essa drenagem
conduziu à depressão que gradualmente envolveu o mundo romano. Mas a procura
da seda continuava e a busca de uma rota menos dispendiosa para importá-la passou
a constituir a preocupação das autoridades.

Várias rotas eram utilizadas pelo comércio oriental. Podiam seguir através
do Turquestão até o Cáspio e daí, quer pelo norte até o Volga e o Mar Negro, no
Quersoneso, quer pelo sul, através da Pérsia Setentrional até Nisibin, na fronteira
imperial, ou através da Armênia, para Trebizonda. Podiam atravessar a Índia e o
Afeganistão e o centro da Pérsia, até Nisbin ou a Síria; ou podiam seguir por mar
até o Golfo Pérsico e então atravessar para a Síria; ou ainda, fazer todo o trajeto
marítimo, Mar Vermelho acima até o Egito.

Apenas duas rotas evitavam a Pérsia, a do extremo norte, que dependia


da rara estabilidade dos povos das Estepes, ou a do extremo sul, a rota marítima,
que exigia uma frota mercante a leste de Suez. A Pérsia constituía uma ameaça ao
comércio. Levantava altas barreiras tarifárias e, em tempo de guerra, cortava todo

132
TÓPICO 2 | RELIGIÃO E OPULÊNCIA NO IMPÉRIO ROMANO ORIENTAL

o abastecimento. Na realidade, restrições forçadas periódicas não eram más para


o equilíbrio comercial do Império, mas provocavam o desemprego nas fábricas de
seda.

A diplomacia imperial, durante todo o século V e especialmente o VI,


procurou salvaguardar as duas rotas livres, negociando com os reinos dos hunos
e turcos, nas Estepes, ou com os abissínios, cujo reino de Axum comandava o Mar
Vermelho.

O século VI foi uma grande era do comércio oriental. O império, sob Anastásio
e nos primeiros anos da casa de Justino, encontrava-se num estado de renovada
prosperidade e o caminho para o Leste atravessava povos ordeiros. A seda ainda
viajava principalmente por terra, através da Pérsia, para os postos alfandegários
de Nisbin e Dara. Daí partia para as fábricas de Constantinopla ou de Tiro e Bérito.
Mas alguns viajavam com todas as especiarias das Índias pela rota marítima. Um
marítimo aposentado, Cosme, apelidado Indicopleustes, o Marinheiro das Índias,
escreveu um livro para provar, com base na sua larga experiência, que a Terra era
plana; e nele descreve o comércio com a Índia.

O centro distribuidor, ou empório, do Oriente, era o Ceilão. Ali, as


mercadorias orientais – seda da China, seda, aloés, cravo e sândalo da Indochina,
pimenta de Malabar, cobre da Caliana (perto de Bombaim) e almíscar e rícino de
Sindu – eram reunidas, as joias de Ceilão. A seda era em geral adquirida pelos
mercadores persas, que a levavam Golfo Pérsico acima.

As outras mercadorias eram transportadas principalmente por embarcações


abissínias para Adulis, no Mar Vermelho, a capital do Axum, e daí, mais exclusivamente
por navios imperiais, até o ponto alfandegário de Jotabe, na extremidade da península
do Sinai e daí para Clisma, perto de Suez, onde residia um funcionário imperial, o
Logóteta, que visitava anualmente a Índia.

Os navios imperiais não iam com frequência ao Ceilão, embora ali houvesse
colônias cristãs nestorianas, e em Caliana, Malabar e Socotra muitos habitantes
falassem o grego. Mas a moeda preferida pelos mercadores orientais de todas as
raças era a imperial, o que constituía grande vantagem para o comércio imperial.

Os abissínios também mantinham relações comerciais com a África Central,


muitas vezes acompanhados por mercadores imperiais. Cada dois anos, velejavam
para o sul, depois marchavam a pé para o interior e, em troca de diversos artigos
manufaturados, voltavam carregados de lingotes de ouro. O próprio Cosme, numa
viagem para o sul, viu uma vez albatrozes. Através do mundo mediterrâneo, as
mercadorias orientais eram distribuídas por mercadores sírios, que possuíam estações
em cada porto e agiam incidentalmente como portadores de notícias. Um mercador
sírio contou a São Simeão, o Estilita, a história de Santa Genoveva.

Durante o reinado de Justiniano, a situação começou a se alterar. As guerras


persas interferiam no abastecimento da seda e a tentativa de manter baixo o preço
desse produto serviu apenas para arruinar os fabricantes particulares, cujas fábricas
133
UNIDADE 2 | O MUNDO DAS SOCIEDADES TEOCRÁTICAS

então compraram, tornando assim a seda, quase incidentalmente, um monopólio


imperial.

Justino II, encontrando o império ainda esfomeado por seda, devido às


guerras pérsicas, tentou abrir, de maneira adequada, o caminho através das Estepes,
mas a tarefa foi superior à diplomacia imperial. Nesse ínterim, porém, dois monges
nestorianos tinham chegado a Constantinopla com o segredo do bicho-da-seda e
alguns ovos em seus bordões ocos. Passou-se algum tempo antes que a criação do
bicho-da-seda se espalhasse pelo império. Mas, daí por diante, a importação do
Oriente começou a declinar.

FONTE: GIORDANI, Mário Curtis. História do Império Bizantino. Petrópolis: Vozes, 1968, p. 128-
130.

134
RESUMO DO TÓPICO 2
Neste tópico você viu que:

 O Império Bizantino foi palco de inúmeras controvérsias religiosas. As mais


importantes foram: o Nestorianismo, a Iconoclastia e o Grande Cisma (1054).

 A Iconoclastia era a destruição das imagens dos santos, consideradas blasfemas


por alguns grupos religiosos. Apesar do fundo religioso, o movimento teve
justificativas políticas e sociais.

 O Grande Cisma separou a igreja cristã em ocidental (Católica) e oriental


(Ortodoxa) e aprofundou definitivamente a divisão entre Ocidente e Oriente.

 A dinastia Macedônica (867-1059) foi uma das eras de mais prosperidade da


história do Império Romano do Oriente.

 Durante a dinastia Macedônica, os contatos com a Rússia se intensificaram e a


região foi cristianizada.

 O declínio de Constantinopla e do Império Romano do Oriente aconteceu


motivado, entre outros fatores, pela concorrência com as cidades italianas,
especialmente após o saque da cidade na 4ª Cruzada (1204).

135
AUTOATIVIDADE

1 Por que as controvérsias religiosas bizantinas constituíam uma ameaça tão


séria à autoridade do Basileus?

2 Quais eram as motivações políticas do movimento iconoclasta?

Assista ao vídeo de
resolução da questão 1

136
UNIDADE 2
TÓPICO 3

A EXPANSÃO MUÇULMANA E A “ERA DE


OURO” DO ISLAMISMO

1 INTRODUÇÃO
O surgimento do Islã foi uma poderosa força social, política e religiosa, que
transformou radicalmente a região atualmente conhecida como Oriente Médio
e, a longo prazo, o mundo todo. Logo após a morte de Maomé, em 632 d.C. (10
AH pela contagem islâmica), seus seguidores expandiram as fronteiras do mundo
muçulmano com uma rapidez espantosa. Cem anos após a morte do profeta,
territórios sob o domínio do Islã iam do Oceano Atlântico (Marrocos e Portugal)
até a Índia, e nos séculos seguintes esses limites se expandiriam ainda mais.

Juntamente com a expansão militar, a nova fé foi sendo incorporada às


sociedades que conquistava e influenciada por elas, o que possibilitou uma riqueza
e uma diversidade cultural impressionante para o mundo muçulmano. Essa imensa
variedade, aliada à facilidade de comunicação e de comércio entre as regiões, gerou
uma enorme prosperidade econômica e cultural, que ficou conhecida como a “Era
de Ouro Islâmica”. Neste tópico, observaremos esse período em detalhes.

2 O AVANÇO MUÇULMANO
Impulsionados pela palavra de Deus revelada pelo profeta, e pela jihad,
que pregava a propagação da fé, os muçulmanos deram início imediatamente a
uma estratégia de conquista dos territórios vizinhos à Península Arábica.

A expansão militar muçulmana iniciou-se ainda durante a vida de Maomé.


O avanço da religião foi impressionante. A partir da Hégira, em 622 d.C., o Islã
começou a conquistar territórios (o primeiro alvo foi Meca) e a arregimentar
fiéis em outras regiões ainda não sob seu domínio direto. Dez anos depois, o
Islã controlava praticamente toda a vasta Península Arábica, desde os limites da
Palestina até a Arábia Feliz (Yêmen).

E não parou por aí: da morte de Maomé, em 632, até cerca de 750, os
domínios do Islã passaram do deserto da Arábia a todo o território entre o Oceano
Atlântico, no Marrocos, ao vale do rio Indo, no atual Paquistão.

Nos séculos seguintes, a expansão seria ainda maior, mas o rápido avanço
sobre um território tão extenso (muito superior ao território do Império Bizantino,
e consideravelmente superior aos impérios anteriores já surgidos naquela parte
137
UNIDADE 2 | O MUNDO DAS SOCIEDADES TEOCRÁTICAS

do mundo) faz do primeiro século do Islamismo um período de extraordinário


sucesso militar.

Maomé erguera as bases do Império Arábico ao assumir os poderes de líder


religioso e de legislador (poder teocrático). Após sua morte, esse papel passou a
ser desempenhado pelos califas. O califa, sucessor do profeta, exercia um poder
político supremo e tinha ingerência sobre os assuntos religiosos.

Após a morte de Maomé, em 632, três grupos disputaram a liderança da


ummah (comunidade islâmica):

● o primeiro era constituído por seus seguidores iniciais (unidos por endogamia),
que haviam participado da Hégira;

● o segundo, por homens importantes de Medina; e

● o terceiro, por membros das principais famílias de Meca. Nesta disputa, como
já vimos, venceu Abu Bakr, integrante do primeiro grupo e um dos genros de
Maomé.

A expansão do mundo muçulmano criou uma civilização própria, híbrida,


que se formou da mescla de elementos árabes, persas, gregos, romanos e africanos.

Basta analisarmos o mapa que segue para termos uma ideia da expansão
dos árabes sob o Islamismo.

FIGURA 31 – MAPA: A EXPANSÃO MUÇULMANA ENTRE 622 E 750 D.C.

FONTE: Disponível em: <http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/7/72/Map_of_


expansion_of_Caliphate.svg>. Acesso em: 15 fev. 2012.

138
TÓPICO 3 | A EXPANSÃO MUÇULMANA E A “ERA DE OURO” DO ISLAMISMO

UNI

No tom mais escuro (Península Arábica), a expansão sob Maomé (622-632); em


tom escuro (da Líbia ao Afeganistão), as conquistas do Califado Rashidun (ou ortodoxo, 632-
661); em tom intermediário (de Portugal ao Paquistão), as conquistas do Califado Umayyad
(ou omíada, 661-750). Outras regiões (algumas das que estão em tom mais claro) se tornariam
muçulmanas depois de 750: sul da Itália, Bálcãs, África ao sul do Saara, Turquia e Ásia Central
(no extremo leste do mapa).

NOTA

A expansão do Império Islâmico ultrapassou, a partir do século VII, as fronteiras do


Império Bizantino. Os muçulmanos migraram para oeste, Maghreb (norte da África), criando
o mundo árabe do Ocidente, e para o leste, Machrek, fundando o mundo árabe do Oriente.

2.1 O CALIFADO RASHIDUN


Como já vimos, após a morte de Maomé a sucessão ao poder foi objeto de
disputas, que chegaram inclusive a dividir os fiéis entre xiitas e sunitas. Parte da
dificuldade de se escolher o sucessor de Maomé vinha do fato de ele não ter tido
filhos homens para sucedê-lo, nem ter deixado regras claras de sucessão.

A tradição árabe previa que o líder fosse escolhido por consenso entre os
comandados e todos os primeiros califas (sucessores) foram escolhidos dessa forma.
Mesmo após a escolha de Abu Bakr, seu genro, que tinha justificações militares e
também familiares, o título de califa continuou a ser eletivo não hereditário.

Por esse motivo, os primeiros califas, embora não sejam diretamente


aparentados, são reunidos conjuntamente em um califado, que ficou conhecido
como Rashidun – os “califas bem guiados”. Foram quatro: Abu Bakr, Omar ibn al-
Khattab, Othman ibn Affan e Ali ibn Abi Talib ­­– ou, para facilitar, Abu Bakr, Omar,
Omã (ou Osman) e Ali. Sob eles, o Islã avançou até a Líbia (na atual fronteira com
a Tunísia) e a Bactriana (Afeganistão). Algumas tradições islâmicas reconhecem
apenas os dois primeiros como bem guiados, outras incluem o quinto califa,
Mu'awiya – que daria origem ao califado omíada.

O período dos califas Rashidun foi de organização política, social, militar


e religiosa do Islã. Além da expansão das fronteiras e da organização político-
administrativa dos novos territórios, os califas tinham diante de si um problema
ainda maior e mais importante: organizar e sistematizar a própria religião.

139
UNIDADE 2 | O MUNDO DAS SOCIEDADES TEOCRÁTICAS

Como vimos no tópico anterior, Maomé não escreveu o Alcorão; apenas


recitou-o para seus discípulos, que o memorizaram. Temendo que o conteúdo do
livro se perdesse, Abu Bakr ordenou a transcrição do livro pouco tempo após a
morte de Maomé, e o conteúdo final foi posteriormente compilado sob o califa
Omã.

Os califas Rashidun deram início também à expansão islâmica, conquistando


inicialmente a Arábia e, logo em seguida, as regiões do Império Sassânida, a
começar pela rica região da Mesopotâmia, renomeada Iraque.

Com uma estrutura militar bem organizada, os muçulmanos souberam


aproveitar-se do desgaste militar, social e político dos impérios Bizantino e
Sassânida, causado pela longa guerra que travavam entre si. Por conta das
sucessivas vitórias contra os bizantinos e da relativa facilidade de conquista da
vastidão do norte africano, os muçulmanos conseguiram expandir seus domínios
com uma rapidez e uma facilidade impressionantes.

Os conflitos entre os árabes chegaram a um ponto crítico em 656, quando


uma guerra civil levou ao poder Ali para um breve califado, do qual saiu, como
seu antecessor, assassinado. Isso levou a uma guerra civil (Fitna) que deixou aberto
o caminho para o surgimento do novo califado Omíada (Ummayad).

2.2 O CALIFADO OMÍADA


O quinto califa, Mu‘awiya (661-680), deu origem a uma nova forma de
governo. Os omíadas continuaram a expandir o Islã, e consolidaram seus domínios.
A sucessão passou a ser praticamente hereditária, e a capital do califado mudou de
Medina para Damasco – cidade maior e mais bem situada, em um entroncamento
muito antigo de rotas e no novo centro de gravidade do mundo islâmico: Egito,
Levante, Mesopotâmia e Pérsia.

Naquela época, a Síria era a região mais importante do Império Islâmico,


por estar localizada numa área mais próxima do lado oriental do Mediterrâneo
(o Levante). Além de consolidar suas conquistas nessas regiões, os omíadas
expandiram seus domínios para o Magrebe (região ocidental da costa mediterrânea
africana) e a Península Ibérica, que foi quase inteiramente conquistada. O avanço
árabe só foi barrado pelos soldados francos em Poitiers, em 732. Foi um período
de intensa reorganização do mundo muçulmano e de aculturação das populações
conquistadas.

A partir da década de 690, o mundo islâmico começou a passar por


profundas transformações. A forma de administração de um império tão vasto
também precisou passar por grandes modificações; para isso, foram muito úteis as
seculares técnicas bizantinas e persas de burocracia.

Inicialmente, desprovidos de funcionários muçulmanos em quantidade


suficiente, os califas omíadas utilizaram funcionários estrangeiros, e inicialmente

140
TÓPICO 3 | A EXPANSÃO MUÇULMANA E A “ERA DE OURO” DO ISLAMISMO

os documentos eram redigidos em grego ou persa. Com o tempo, a administração


da burocracia passou a ser toda em árabe.

Como veremos mais adiante, os não muçulmanos tinham um papel social


relativamente destacado – inferior, porém, ao dos muçulmanos, especialmente
os árabes. As moedas passaram a ser cunhadas sem a figura humana, como
determinava o Alcorão.

A população local adotava aos poucos a religião, a língua e os costumes


árabes, e os próprios árabes começaram a migrar para as novas regiões. O mundo
islâmico deixava de ser apenas um território e passava a desenvolver alguma
identidade cultural.

Sob a dinastia omíada, o Islã expandiu-se em três frentes: Norte, em direção


a Constantinopla e à Ásia Menor; Oeste, pelo norte da África (Ifriqia e Magrebe) e
Península Ibérica (Al-Andalus); Leste, pela Ásia Central e Índia.

Podemos dizer que foi sob o governo omíada que a sociedade muçulmana
ganhou contornos verdadeiramente multiculturais, alastrando-se pela Espanha,
Ásia Central e norte da África e vindo a mesclar-se com outras civilizações.

Os omíadas talvez pareçam ter se assemelhado aos reis bárbaros do


Império Romano do Ocidente, colonos nervosos num mundo estranho,
cuja vida prosseguiu como antes, agora sob a proteção de seu poder.
Mas há uma diferença. Os governantes do Ocidente tinham trazido
pouco de seu que pudesse fazer frente à força da civilização latina cristã
à qual eram atraídos. O grupo governante árabe trouxe uma coisa que
ia reter em meio à alta cultura do Oriente Próximo, e que, modificada
e desenvolvida por essa cultura, iria proporcionar um idioma por meio
do qual pôde expressar-se daí em diante: a crença numa revelação
enviada por Deus, em língua árabe, ao Profeta Maomé. (HOURANI,
2006, p. 50-51).

O califado omíada enfrentou grandes dificuldades para manter seu


poder, principalmente em relação às suas políticas de arrecadação de impostos
(entendidas como injustas e contrárias ao Alcorão). Pela lei islâmica, os povos de
outras religiões sob o domínio muçulmano, embora sejam tolerados e, em certos
casos, autorizados a manter suas crenças, devem pagar um imposto especial, do
qual os muçulmanos estão isentos: a jizya.

Como você pode imaginar, esse imposto encorajava a conversão de muitas


pessoas, mas era malvisto pelas populações árabes, que temiam justamente, por
isso, perder seus privilégios e sua proeminência política.

Em um império que conquistava novos territórios em grande velocidade,


isso logo se tornou um problema sério. A tensão levou a uma série de revoltas: a
segunda Fitna (680-692), a revolta berbere (povo islamizado do norte da África)
de 740-743, a terceira Fitna (744-747) e, finalmente, a revolução abássida (750), que
colocou no poder a dinastia de mesmo nome.

141
UNIDADE 2 | O MUNDO DAS SOCIEDADES TEOCRÁTICAS

NOTA

A sociedade muçulmana das primeiras décadas estava organizada


hierarquicamente: a classe mais alta era a dos árabes, seguidos dos não árabes muçulmanos,
depois dos não muçulmanos. Como é de se imaginar, essa estrutura ficava cada vez mais
difícil de se sustentar em uma sociedade em que a terceira dessas classes e, depois, a segunda,
tornavam-se cada dia mais numerosas.

2.3 O CALIFADO ABÁSSIDA


O domínio dos califas abássidas marcou o período de maior florescimento
econômico, político e social dos muçulmanos, que ficou conhecido como “A Era
de Ouro islâmica”. Embora tenham dominado por um período bastante longo
(750-1258), os abássidas não tiveram, como seus antecessores, o controle de todo
o mundo islâmico durante seus domínios. O período abássida marcou a época em
que a unidade política deu lugar a diversos califados e sultanatos.

Uma das primeiras medidas dos abássidas foi transferir novamente a


capital, de Damasco para Bagdá. A mudança trazia, como era de se imaginar,
um sentido simbólico muito forte. Bagdá fica situada às margens dos rios Tigre
e Eufrates, próxima à cidade bizantina e sassânida de Selêucia-Ctesifonte e não
muito longe do local onde se situava a antiga Babilônia.

Portanto, era uma região de ocupação muito antiga e muito diversificada,


entroncamento de rotas comerciais para o Levante, o Oriente e o Norte. A cidade
representava com perfeição a dominação muçulmana sobre o mundo conhecido; o
papel político e simbólico de Bagdá para os muçulmanos guarda semelhanças com
o de Roma para os cristãos da época.

Em função dessa condição de entroncamento comercial de Bagdá, a cidade


tornou-se um centro inigualável de cultura e riqueza, mas também de luxo e
requinte. Uma das acusações mais frequentes aos abássidas era o abandono do
modo de vida dos beduínos em favor de uma vida cortesã. Vêm dessa época as
imagens, tão presentes no imaginário ocidental, das cortes dos xeques e sultões,
rodeados de odaliscas e pajens eunucos em seus haréns. As odaliscas e os
eunucos eram geralmente escravos, adquiridos das terras distantes com quem os
muçulmanos passavam a ter contato - muitas vezes, até mesmo da África ao sul
do Saara.

Essa não era, como já vimos, a única interferência estrangeira na corte.


Muitos administradores, especialmente nos primeiros tempos, eram bizantinos
ou persas e a influência desses últimos cresceu, compreensivamente, pela maior
proximidade da capital com os antigos domínios sassânidas.

142
TÓPICO 3 | A EXPANSÃO MUÇULMANA E A “ERA DE OURO” DO ISLAMISMO

Por outro lado, os abássidas tiveram que gerenciar províncias distantes,


que, muitas vezes, sob dinastias e poderes locais, insubordinavam-se contra o califa.
Durante o governo abássida, o império se expandiu, mas encontrou dificuldades
para se manter unido. Sendo assim, o grande desafio dos califas abássidas era a
unificação e a islamização dos povos conquistados; embora tenham falhado no
primeiro objetivo, conseguiram êxito no segundo (e mais importante).

2.4 A PAX ISLAMICA E A QUEBRA DA UNIDADE


O Islã, sob a dinastia dos abássidas, passou por um momento de relativa
paz. As fronteiras do império foram definidas e o comércio prosperou. As cidades
se desenvolveram e se transformaram em verdadeiras metrópoles. Entre elas:
Bagdá, Cairo, Damasco e Córdoba.

Segundo Fernand Braudel (1989), o Islã, no auge do império (entre os


séculos VIII e XII), foi “a civilização mais brilhante de todo mundo velho”. Lá
se desenvolveram, de modo espetacular, a arquitetura, a literatura, as ciências e a
filosofia.

NOTA

Prezado(a) acadêmico(a), você provavelmente já percebeu que esse conceito de


Pax, assim como o conceito de “Era de Ouro”, são ficções criadas pelos historiadores. Então,
não se deixe iludir pelo caráter fantasioso dos termos. Havia conflitos durante a Pax Islamica,
como em qualquer outra, e esse não era um período de paz, fartura e felicidade para todos. O
termo é uma simplificação adotada para finalidades didáticas.

Contudo, a unidade do Império do Islã foi ameaçada pelas dinastias


provincianas, que, com o passar do tempo, fortaleceram-se e ficaram independentes
do califado de Bagdá. Foi o que aconteceu, por exemplo, no Egito, com a dinastia
dos fatímidas. Os fatímidas eram adeptos das ideias religiosas xiitas.

Nesse sentido, ao mesmo tempo em que se assentava a civilização árabe


sob a dinastia dos abássidas, a unidade política imperial foi sendo rompida. Dentre
as disputas travadas no interior do Islã, não podemos deixar de mencionar as
querelas entre xiitas e sunitas, que, invariavelmente, ganharam contornos políticos
separatistas.

143
UNIDADE 2 | O MUNDO DAS SOCIEDADES TEOCRÁTICAS

UNI

Dentre as poderosas dinastias do Islã no século XI, destacaram-se a dos


Almodávidas, na Península Ibérica, e a dos fatímidas, no Egito.

3 MAIS POVOS SE UNEM AO ISLÃ

3.1 A CONQUISTA DO MAGREBE E DE AL- ANDALUS


Mais importante para a história do mundo muçulmano como um todo foi
o caminho separado, tomado pela Espanha, ou Andalus, para dar-lhe seu nome
árabe. (HOURANI, 2006).

A ascensão dos abássidas está intimamente vinculada à quebra da unidade


política do império árabe. É que na Península Ibérica instala-se um novo estado que
não reconheceria a autoridade dos califas de Bagdá e cujos descendentes viriam a
adotar também o título de califas. Este foi o primeiro passo para a desagregação
do império árabe ocorrida ainda durante o período de expansão e conquista –
desagregação que finalizaria séculos mais tarde com uma multiplicidade de
dinastias e de capitais até o século XVI. (GIORDANI, 1985).

A história da Espanha muçulmana é, por sua vez, um capítulo à parte


na própria história do Império Islâmico. Nesse sentido, o estudo do Islã em al-
Andalus (nome árabe para se referir à Espanha), ajuda-nos a entender tanto as
disputas internas do império, entre os governos de Bagdá e das províncias, quanto
os conflitos externos, de fronteira, entre muçulmanos e povos germânicos.

Os muçulmanos criaram governos seculares na Península Ibérica, estados


que perduraram por oito séculos. O Islã esteve presente no território espanhol
entre o século VIII e o XV. Para ter o domínio da península, os árabes se uniram aos
soldados berberes, do norte da África, e com as forças militares da Síria.

O primeiro governo islâmico espanhol surgiu em 710, com membros da


família omíada, que lá se refugiaram. Os omíadas governaram por quase 300 anos,
mas foi no século X que Abd al-Rahman III (912-961) fundou o califado, com capital
em Córdoba, cidade abastecida pelo rio Guadalquivir. O governo de Rahman
significou o apogeu do domínio muçulmano na Espanha, e a independência
política em relação a Bagdá.

Segundo Giordani:

Abd al-Rahman embelezou a cidade de Córdoba, cujo esplendor os


cronistas não se cansam de elogiar e descrever. Alguns calculam sua

144
TÓPICO 3 | A EXPANSÃO MUÇULMANA E A “ERA DE OURO” DO ISLAMISMO

população em cerca de quinhentos mil habitantes. O número de suas


mesquitas teria atingido, segundo uns, a casa dos três mil. Havia
centenas de banhos públicos e setenta bibliotecas. (GIORDANI, 1985,
p. 109).

UNI

Você se lembra de que os abássidas tomaram o poder no século VIII? Pois é, este
fato fez com que a antiga dinastia, omíada, se retirasse de cena. E foi na longínqua província de
Andalus que a família omíada encontrou refúgio e proteção.

A Espanha muçulmana foi um mundo de fronteiras entre a África islâmica


e o Ocidente cristão. O domínio do Estreito de Gibraltar, entre o Mar Mediterrâneo
e o Oceano Atlântico, proporcionou aos omíadas o monopólio comercial com a
África através de Ceuta, no Marrocos. Incentivada pelo comércio, a mistura cultural
entre árabes, espanhóis e africanos foi significativa. Esta mistura, por sua vez, só
foi possível graças à tolerância dos muçulmanos em relação a outras religiões e
culturas.

Segundo Albert Hourani, com o tempo:

Parte da população nativa converteu-se ao Islã, e no fim do século X


é possível que a maioria do povo de Andalus fosse muçulmana. Mas
ao lado deles viviam aqueles que não se converteram, cristãos e uma
considerável população judia de artesãos e comerciantes. Os diferentes
grupos mantiveram-se juntos graças à tolerância dos omíadas para
com judeus e cristãos, e também à disseminação da língua árabe, que
se tornara a da maioria, tanto para judeus e cristãos quanto para os
muçulmanos, no século XI. A tolerância, uma língua comum e uma
longa tradição de governo separado ajudaram a criar uma consciência e
sociedade andaluzas distintas. (HOURANI, 2006, p. 70-71).

Como resultado desta sociedade híbrida (composta de diferentes elementos


culturais), surgiram os “moçárabes”, que eram cristãos arabizadoso, ou seja,
pessoas que adotaram o cristianismo como religião, mas por conviver em um
mundo governado por muçulmanos, acabaram incorporando elementos da língua
e dos costumes dos árabes, primeiros adeptos do Islã.

Contudo, os conflitos entre berberes e árabes foram constantes. Como


ilustração destes conflitos, podemos destacar a formação do Império dos
Almorávidas. Foi no século XI quando os almorávidas (al-murabitun), originários
de Marrocos, tomaram o poder e passaram a dominar as regiões do Magreb e de
Andalus. Assim, sob o domínio marroquino, a arte da Espanha foi levada para a
África e se estreitaram os laços entre as civilizações andaluzas e berberes.

Para finalizar, prezado(a) acadêmico(a), podemos concluir que as lutas


políticas, que se revestiam de caráter religioso na Espanha muçulmana, chegaram
a seu auge no século XV, com a expulsão dos muçulmanos da Europa. Em 1492,
145
UNIDADE 2 | O MUNDO DAS SOCIEDADES TEOCRÁTICAS

caía a última cidade sob jurisdição do Islã, Granada. Porém, a cultura islâmica
permaneceria por mais tempo naquelas paragens europeias. O fim do domínio
político muçulmano na Espanha representa, para nós, “fazedores de história”, um
dos principais marcos do início da Idade Moderna.

Uma característica interessante do califado omíada de Al-Andalus foi


sua integração com as regiões não apenas do Magrebe como da própria África
ocidental ao sul do deserto do Saara. A proximidade da região e as intensas trocas
comerciais levaram não apenas à islamização das casas reais da região do Sahel (ao
sul do deserto), como a constantes interações culturais entre as regiões.

Os mouros - povos muçulmanos que viviam no norte da África - costumam


ser retratados como negros, como no caso de Otelo, “o mouro de Veneza” da peça
de William Shakespeare, e essa descrição pode ser mais próxima da realidade do
que acreditamos.

O historiador tunisiano Mohamed Talbi descreve a cultura do Magrebe da


seguinte forma:

A Espanha conquistou duplamente seus rudes conquistadores berberes


– Almorávidas ou Almóadas – e, oferecendo‑lhes os tesouros seculares de suas
tradições artísticas e culturais, fê‑los construtores de uma civilização. Também
a civilização do Ocidente muçulmano foi, a partir do século XII, mais do que no
passado, uma civilização ibero‑magrebina.

Em proporções difíceis de precisar, os negros originários de regiões


situadas ao sul do Saara colaboraram para a formação dessa civilização. Havia
grande número deles no Marrocos e em todo o Magreb. A mestiçagem, contra a
qual não existia preconceito, era frequente e teve naturalmente alguma influência
biocultural, difícil, no entanto, de se indicar com exatidão.

Também havia negros na Espanha, principalmente em Sevilha e


Granada. Como escravos por um tempo, ou homens livres, tiveram participação
considerável no exército e na vida econômica, introduzindo alguns costumes de
seus países de origem.

Alguns deles, como João Latino, professor universitário na Espanha,


atingiram o nível mais elevado da vida intelectual e deram à civilização
ibero‑magrebina um sentido mais amplamente africano. (TALBI, 2010, p. 65-66).

3.2 OS TURCOS E OS MONGÓIS


Os povos turcos e mongóis são originários das estepes da Ásia Central, e
eram constituídos originalmente de tribos nômades. Turcos e mongóis partilham,
além de uma origem próxima, outra característica curiosa. Inicialmente ferrenhos

146
TÓPICO 3 | A EXPANSÃO MUÇULMANA E A “ERA DE OURO” DO ISLAMISMO

adversários do Islã, terminaram por ser convertidos e transformaram-se, cada um


a seu tempo, em poderosas forças militares e inovadoras da religião.

Por volta do ano 650, os turcos dominavam várias regiões próximas ao


Curasão, na fronteira oriental do Império Sassânida. Com a invasão do império
pelos árabes, os turcos passaram a combater os muçulmanos.

A luta estendeu-se por quatro séculos, até o momento em que a dinastia


turca dos seljúcidas converteu-se e tornou-se uma das mais ferrenhas defensoras da
jihad. A hostilidade dos turcos seljúcidas contra os não muçulmanos, especialmente
os peregrinos cristãos da Palestina, é considerada um dos estopins das cruzadas.

TUROS
ESTUDOS FU

O impacto dos turcos e dos mongóis ficará mais claro na Unidade 3, quando
estudarmos as Cruzadas e as Invasões Mongólicas.

3.3 A AMPLITUDE DOS DOMÍNIOS MUÇULMANOS: DA


ÁFRICA À CHINA
As conquistas muçulmanas foram expressivas nos dois primeiros séculos,
mas não cessaram após esse período. Ao longo dos séculos, os muçulmanos
gradualmente incorporaram novas regiões aos seus domínios, a ponto de chegarem
à África ao sul do Saara, ao Himalaia e à Indonésia.

Na África, o reino de Gana, às margens do rio Níger, recebia influência


indireta do Islã, e mercadores muçulmanos atravessavam o deserto em
caravanas cameleiras para adquirir a noz de cola (fruto refrescante) e escravos.
Seu sucessor no domínio político do Sahel, o Império do Mali, era ainda mais
fortemente influenciado pelo Islamismo. Seus reis, chamados Mansa, eram
muçulmanos, ainda que a população mantivesse as crenças tradicionais.

No subcontinente indiano, a presença islâmica data da época da expansão


sobre a Pérsia. Posteriormente, os imperadores mongóis (muçulmanos de
origem mongólica) espalharam ainda mais o Islã pela região, que hoje conta com
uma expressiva maioria ao longo dos grandes rios Indo (Paquistão) e Ganges
(Bangladesh).

Na China, o Islã também chegou muito cedo, levado pelos comerciantes


e pelo contato com expedições militares; a influência dos mongóis sobre a China
levaria a fé a uma quantidade expressiva de pessoas.

147
UNIDADE 2 | O MUNDO DAS SOCIEDADES TEOCRÁTICAS

A expansão da fé muçulmana chegou até a Indonésia, que hoje é o país


com a maior população muçulmana em todo o mundo. A religião chegou pelos
comerciantes e espalhou-se progressivamente a partir do século XIII. Por volta
de 1550, quando os europeus chegaram à região e estabeleceram entrepostos
comerciais lucrativos, o Islã já dominava a região nas proporções de hoje.

4 A CULTURA MUÇULMANA
Toda essa diversidade étnica, aliada às características próprias da religião,
permitiu que as regiões muçulmanas produzissem uma riqueza cultural de valor
inestimável.

Veremos a seguir algumas de suas características principais.

4.1 AS ARTES
A percepção artística dos povos islâmicos está fortemente condicionada
aos preceitos religiosos. Um dos mais importantes, nesse contexto, é a proibição
da reprodução da figura humana, decretada no Alcorão. Com isso, algumas artes
que se desenvolveram fortemente na Europa, como a pintura e a escultura, são
muito menos expressivas entre os países muçulmanos. Por outro lado, algumas
artes encontraram uma expressividade que não tem paralelo no Ocidente.

UNI

SUGESTÃO DE LEITURA!
Prezado(a) acadêmico(a), se você tiver interesse em saber mais sobre a arte islâmica, ou se
desejar encontrar imagens para ilustrar as aulas que ministrará sobre o assunto, sugerimos
buscar com cuidado pela internet. É um repositório de informações riquíssimo. No entanto,
é sempre bom verificar as informações antes de selecionar as imagens, especialmente para
saber se elas são acuradas e não violam direitos autorais.
Uma boa fonte de informação sobre a arte islâmica é a recente obra de:
● MANDEL, Gabriele. Como reconhecer a arte islâmica. Lisboa: Edições 70, 2010.

4.1.1 Os arabescos
Em parte para compensar a proibição de representar a figura humana, os
povos muçulmanos desenvolveram uma técnica de entrelaçar símbolos, imagens e
letras do flexível alfabeto árabe em figuras denominadas arabescos. Os arabescos
podem ser pintados, gravados ou esculpidos, e são um elemento central da estética
islâmica desde o início da religião.

148
TÓPICO 3 | A EXPANSÃO MUÇULMANA E A “ERA DE OURO” DO ISLAMISMO

FIGURA 32 - DETALHE DOS ARABESCOS DE UM ARCO NO PALÁCIO DA


ALHAMBRA, EM GRANADA (ESPANHA). AUTOR: YVES REMEDIOS

FONTE: Licença: Creative Commons Attribution 2.0 Generic Disponível em:


<http://en.wikipedia.org/wiki/File:Atauriques.jpg#filelinks>. Acesso
em: 15 fev. 2013.

FIGURA 33 - ARABESCOS NO PÓRTICO DO FORTE AGRA, CONSTRUÍDO


DURANTE O IMPÉRIO MUGHAL NA ÍNDIA. AUTOR: HANS A.
ROSBACH

FONTE: Licença: Creative Commons Attribution-Share Alike 3.0 Unported.


Disponível em: <http://en.wikipedia.org/wiki/File:RedFortAgra-
Musamman-Burj-20080211-2.jpg>. Acesso em: 15 fev. 2013.

4.1.2 A caligrafia
Tirando proveito da beleza e flexibilidade do alfabeto árabe, os calígrafos
refinaram a sua arte ao extremo. A caligrafia está presente em praticamente todos
os lugares e situações. Os textos, muitas vezes, são dispostos de formas elegantes e
engenhosas, formando figuras, arabescos ou belas imagens abstratas.

149
UNIDADE 2 | O MUNDO DAS SOCIEDADES TEOCRÁTICAS

FIGURA 34 - A FÓRMULA RELIGIOSA “BISMILLAH” (“EM NOME DE DEUS”), ESCRITA EM


DIFERENTES FORMATOS

FONTE: Disponível em: <bit.ly/11sg2TZ>. Acesso em: 15 fev. 2013.

UNI

Sugestão de site. Para ver centenas de versões como essas, acesse: <bit.
ly/11sg2TZ>.

4.1.3 A arquitetura
A arquitetura islâmica é bastante diversificada, refletindo as inúmeras
culturas que fazem parte do mundo muçulmano. Embora grande parte dos
monumentos arquitetônicos tenha finalidade religiosa (mesquitas e minaretes),
as construções civis (palácios e edifícios em geral) também produziram obras de
inestimável valor cultural.

Dada a facilidade com que os muçulmanos incorporavam as influências


locais, muitas construções têm notável influência bizantina, persa, indiana ou
berbere, conforme a região ou a época em que foram edificadas.

FIGURA 35 - DOMO DA MESQUITA DE KAIROUAN (TUNÍSIA, 670)

FONTE: Disponível em: <http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Kairouan_


Mosque_Cupola.jpg>. Acesso em: 15 fev. 2012.

150
TÓPICO 3 | A EXPANSÃO MUÇULMANA E A “ERA DE OURO” DO ISLAMISMO

FIGURA 36 - INTERIOR DA MESQUITA DO SHAH (1629), EM ISFAHAN (IRÃ

FONTE: Disponível em: <http://en.wikipedia.org/wiki/Imam_Mosque_


Isfahan>. Acesso em: 15 fev. 2013.

FIGURA 37 - O TAJ MAHAL, EM AGRA (ÍNDIA)

FONTE: Disponível em: <http://hr. wikipedia.org/wiki


Datoteka:TajMahalbyAmalMongia.jpg>. Acesso em: 15 fev. 2013.

4.1.4 Literatura
Uma das mais conhecidas (no Ocidente) obras literárias da cultura islâmica
é a famosa “As mil e uma noites”. A obra, escrita em árabe, é uma compilação
de histórias populares de várias regiões do mundo islâmico, especialmente do
Irã, Arábia e Índia. A obra, embora tenha fornecido uma grande quantidade de
elementos para o imaginário ocidental sobre o Islã, não é uma das mais populares
na região; curiosamente, é mais popular em outras regiões do mundo.

151
UNIDADE 2 | O MUNDO DAS SOCIEDADES TEOCRÁTICAS

A literatura muçulmana durante a Idade Média, geralmente, não estava


desvinculada das ciências; diversos autores eram, simultaneamente, poetas,
filósofos e/ou cientistas. Exemplos incluem Avicena, Omar Khayyam, Al-Farabi,
Abubácer, Averróis, Ibn Khaldun e muitos outros. O mundo islâmico medieval
foi pródigo em autores que são considerados polímatas, ou seja, que se dedicam
a diversos assuntos; muitos deles influenciaram diretamente os pensadores do
Renascimento europeu.

4.1.5 Outras artes


Outros belos exemplares da arte islâmica incluem a dança, a música, a
cerâmica, a tapeçaria, a marchetaria (revestimento de superfícies com lascas de
madeira), o entalhe em metais, marfim e outras substâncias. É importante observar
que, assim como as demais artes, essas sofrem uma grande influência da região
do mundo islâmico em que são cultivadas. O mundo muçulmano é muito vasto e
diversificado, e isso se reflete claramente nas artes.

4.2 A FILOSOFIA E AS CIÊNCIAS

4.2.1 A Educação
O Alcorão e os Hadiths estão repletos de referências positivas à educação:
“busque a educação do berço até o túmulo”; “a tinta do estudioso é mais sagrada
do que o sangue do guerreiro”- estes são apenas dois exemplos da atitude islâmica
em relação à educação. Os califas, seguindo o que ditava o profeta, foram grandes
incentivadores da cultura e da instrução pública.

Em todas as grandes cidades, cópias dos livros islâmicos e de tratados


científicos ou filosóficos antigos foram preservadas, traduzidas e recopiadas
com frequência. O ambiente nas cidades e nas madrassas (escolas religiosas) era
propício ao desenvolvimento da educação – e, com ela, da filosofia e das ciências.

4.2.2 A Filosofia
A Filosofia e as ciências foram áreas de conhecimento que atingiram um
alto grau de desenvolvimento e sofisticação no mundo islâmico medieval. A
expansão muçulmana atingiu, em poucas décadas, algumas regiões do mundo
em que essas áreas de conhecimento eram muito refinadas: o mundo helênico, a
Pérsia, a Palestina, o Egito (já sob influência greco-romana) e a Índia.

As relações comerciais colocavam os árabes, ainda, em estreito contato com


a Europa, a China e a África ao sul do Saara. As obras científicas e filosóficas dessas
regiões foram traduzidas para o árabe e difundidas por escolas espalhadas por todo
o mundo muçulmano, onde foram objeto de acurados estudos e comentários. Essa

152
TÓPICO 3 | A EXPANSÃO MUÇULMANA E A “ERA DE OURO” DO ISLAMISMO

preservação, difusão e interpretação propiciaram um extraordinário florescimento


cultural no mundo islâmico e forneceram elementos para o Renascimento europeu
posterior.

A separação entre ciência e filosofia, e entre os diversos campos da ciência,


tal como a entendemos atualmente, não era bem definida entre os estudiosos do
Islamismo medieval. As ciências eram entendidas de uma forma abrangente e
os diversos campos em que as dividimos, hoje, eram vistos como temas a serem
pesquisados. Isso levou ao surgimento de uma grande quantidade de polímatas
entre os estudiosos muçulmanos, como mencionamos há pouco.

4.2.3 As ciências
Dentre os campos da ciência mais estudados no mundo islâmico medieval,
destacam-se: a Matemática, a Astronomia, a Medicina, a Física, a Alquimia, a
Geografia, a História e a Psicologia.

Toda a base da Matemática Moderna foi desenvolvida pelos muçulmanos:


os algarismos como os conhecemos (o termo vem do nome do matemático Al-
Khwārizmī); a Álgebra (do árabe al-jebr, “reunião das partes separadas”); também
foram eles responsáveis pela difusão de outros elementos fundamentais da
matemática, como os próprios algarismos que utilizamos, originados da Índia (e
por isso chamados indo-arábicos), e obras como a do matemático indiano Bhaskara
(1114-1185), que descobriu a fórmula para a solução de equações de segundo grau
que leva seu nome.

Também em Astronomia, Física e Química (Alquimia), os muçulmanos


fizeram grandes progressos. As técnicas de navegação em alto-mar, tão louvadas
nos livros escolares como conquistas portuguesas, há séculos já eram conhecidas
dos árabes – que dominavam amplamente o comércio marítimo desde a costa da
África (Zanzibar) até o Extremo Oriente (Indonésia).

Os instrumentos que possibilitavam essa navegação, como a bússola,


haviam sido criados originalmente para ajudar o peregrino a localizar, no deserto,
a direção de Meca. Práticas que, hoje, não têm status científico entre nós eram
muito cultivadas e valorizadas pelos muçulmanos: alquimia e astrologia são dois
exemplos.

Os conhecimentos de Geografia, História, Medicina e Psicologia dos


muçulmanos não eram menos impressionantes. Em uma região pacificada e
relativamente unificada pela religião, percorrida diariamente por comerciantes
e peregrinos, não surpreende que muitos viajantes tenham deixado relatos de
viagem detalhados.

Dois, especialmente – Ibn Khaldun e Ibn Battuta – nos permitem vislumbres


bastante completos do mundo islâmico. A importância dada ao Alcorão para a

153
UNIDADE 2 | O MUNDO DAS SOCIEDADES TEOCRÁTICAS

higiene pessoal favoreceu, ainda, a difusão dos conhecimentos de medicina que,


como os de psicologia, reuniam o que de mais avançado havia se criado no mundo
antigo.

E
IMPORTANT

Prezado(a) acadêmico(a), você percebeu a quantidade de vezes a que fazemos


referências ao Alcorão quando falamos da cultura e da sociedade islâmica? Isso pode parecer
exagerado, mas é proposital, e inevitável. A sociedade islâmica está tão atrelada ao que diz o
Alcorão e o livro tem uma importância tão fundamental na vida do fiel, que é impossível não
mencioná-lo como base para a sociedade. Lembre-se: o significado de Islam é submissão (a
Deus). Como você pode perceber, os fiéis levam isso extremamente a sério.

4.3 AS MULHERES E O ISLAMISMO


O texto a seguir, retirado do livro “Uma história dos povos árabes”, de
Albert Hourani (2006, p. 166-169), nos apresenta a condição da mulher no mundo
árabe. Veremos que, apesar das diferenças de poder entre marido e esposa, a
mulher tinha seus direitos assegurados pela sharia, o sistema legal muçulmano
extraído do Alcorão e dos Hadiths.

Até onde vai nossa informação, as mulheres desempenhavam um papel


limitado na vida econômica da cidade. Eram empregadas domésticas, algumas
podem ter ajudado aos maridos em seus negócios e ofícios e havia mulheres
artistas de palco, dançarinas e cantoras. Em geral, porém, não participavam
das atividades centrais das grandes cidades, da produção de bens de valor em
larga escala para exportação. As francamente ativas eram mulheres de famílias
pobres. Na medida em que uma família era rica, poderosa e respeitada, isolava
as mulheres numa parte especial da casa, o harém, e atrás de um véu quando
elas se aventuravam a sair de casa para as ruas e lugares públicos. [...].

A reclusão do harém não significava que a mulher era totalmente excluída


da vida. Dentro dos aposentos femininos das grandes famílias, em visitas umas
às outras, nas casas de banho públicas, que eram reservadas às mulheres em
momentos especiais e nas celebrações de casamentos ou nascimentos de filhos,
as mulheres encontravam-se e mantinham uma cultura própria.

Algumas delas tomavam parte ativa na administração de suas


propriedades, através de intermediários, e há casos registrados de mulheres
que recorreram ao tribunal do cádi para reivindicar seus direitos. Como no
campo, quando uma mulher envelhecia, e se houvesse tido filhos homens, podia
adquirir grande poder na família.

154
TÓPICO 3 | A EXPANSÃO MUÇULMANA E A “ERA DE OURO” DO ISLAMISMO

Apesar disso, a ordem social baseava-se no poder superior e nos direitos


dos homens. O véu e o harém eram sinais visíveis disso. Uma opinião das
relações entre homens e mulheres profundamente enraizada na cultura do
Oriente Médio, que existia muitos anos antes do advento do Islã e preservada
no campo por costume imemorial, foi fortalecida, mas também modificada na
cidade pelo desenvolvimento da charia (lei islâmica).

O Corão afirmava em termos claros a igualdade essencial de homens


e mulheres: “O justo, homem ou mulher, sendo um dos crentes, entrará no
Jardim”. Também ordenava justiça e bondade no trato entre muçulmanos. Parece
provável que suas cláusulas em relação ao casamento e à herança dessem às
mulheres uma posição melhor que a que tinham na Arábia pré-islâmica (embora
não necessariamente nas terras conquistadas pelos muçulmanos). O sistema de
lei e moralidade social ideal, a charia, dava expressão formal aos direitos das
mulheres, mas também estabelecia seus limites.

Segundo a charia, toda mulher devia ter um guardião homem – o pai,


irmão ou algum membro da família. O casamento da mulher era um contrato
social entre o noivo e o guardião dela. O pai, como guardião, podia dar a filha
em casamento sem o consentimento dela, se ela não tivesse ainda alcançado a
idade da puberdade. Se tivesse, seu consentimento era necessário, mas, se não
tivesse sido casada anteriormente, o consentimento podia ser dado pelo silêncio.
O contrato de casamento previa um dote (mahr) dado pelo noivo à noiva; isso era
propriedade dela, e qualquer coisa que tivesse ou herdasse também continuava
sendo sua propriedade. A esposa devia ao marido obediência, mas em troca
tinha direito a roupas adequadas, casa e manutenção e a intercurso sexual com
ele. Embora os autores legais aceitassem que a contracepção era permissível em
certas circunstâncias, o marido não devia praticá-la sem o consentimento da
esposa.

Havia, porém, várias maneiras em que as relações entre marido e mulher


não eram de igual para igual. Embora a esposa só pudesse divorciar-se do
marido por um bom motivo (impotência, loucura, negação dos direitos dela),
e só recorrendo ao cádi, ou então por consentimento mútuo, o marido podia
repudiar a esposa sem dar qualquer motivo, e por uma simples fórmula verbal
na presença de testemunhas. [...].

O contrato de casamento podia oferecer alguma proteção contra isso, se


estipulasse que parte do dote, a chamada parte “adiada” (mu'ajjal), seria paga
pelo marido só e quando ele repudiasse a esposa. A esposa podia esperar o
apoio e a defesa de seus parentes homens; se repudiada, podia voltar com seus
bens para a casa da família paterna. Teria a custódia dos filhos do casamento e
o dever de criá-los, até atingirem uma certa idade, definida diferentemente nos
vários códigos legais; após isso, o pai ou a família dele ficariam com a custódia.

155
UNIDADE 2 | O MUNDO DAS SOCIEDADES TEOCRÁTICAS

A charia, baseando-se no Corão e no exemplo do Profeta, permitia ao


homem ter mais de uma esposa, até um limite de quatro, contanto que pudesse
tratá-las todas com justiça e não negligenciasse seu dever conjugal com nenhuma
delas. Também podia ter concubinas escravas em qualquer número, sem que elas
tivessem qualquer direito sobre ele. O contrato de casamento podia, no entanto,
estipular que ele não tomaria nem outras esposas nem concubinas.

UNI

GLOSSÁRIO!
cádi: s. m. Magistrado muçulmano, com funções civis e religiosas.
FONTE: Disponível em: <www.priberam.pt/dlpo/Default.aspx?pal=cádi>. Acesso em:
23 mar. 2013 haria, chariá, xaria ou xariá (em árabe ‫;ةعيرش‬ transl.: sharīʿah, "legis-
lação"), também grafada sharia, shariah, shari'a ou syariah: é o nome que se dá ao
código de leis do Islamismo. Em várias sociedades islâmicas, ao contrário da maioria
das sociedades ocidentais dos nossos tempos, não há separação entre a religião e
o direito, todas as leis sendo religiosas e baseadas ou nas escrituras sagradas ou nas
opiniões de líderes religiosos.
FONTE: Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Dicion%C3%A1rio_Aur%C3%A-
9lio>. Acesso em: 23 mar. 2013.

4.4 O ISLÃ E OS “INFIÉIS”


Contrariamente ao que crê o senso comum ocidental a respeito do
Islamismo, e diferentemente também ao que foi estabelecido em alguns países
islâmicos atualmente, os que não seguem o Islamismo gozaram, durante a maior
parte da história do Islã, de um tratamento bastante generoso.

Os muçulmanos dividem os infiéis em dois grupos: os dhimmis ou “povos


do Livro” - judeus, cristãos e zoroastrianos – e os pagãos, politeístas. Os dhimmis
eram aceitos nas regiões sob o domínio islâmico e tinham seus direitos assegurados
de forma praticamente total: tinham direito a manter suas crenças e seus templos,
receber julgamento, segundo suas leis (exceto no que ela conflitasse com o Alcorão)
e, às vezes, eram designados mesmo para os cargos do funcionalismo. Não eram
obrigados a se converterem, mas se desejassem manter sua fé, deveriam pagar um
imposto especial, chamado jizya, do qual os muçulmanos são isentos.

Em diversos momentos da história islâmica, os governantes dedicaram


especial atenção a dar um bom tratamento aos dhimmis, e algumas regiões se
tornaram exemplos de tolerância religiosa em níveis raramente vistos.

A Espanha muçulmana (Al-Andalus) é um dos exemplos mais citados


pelos historiadores: cristãos, muçulmanos e judeus (como o filósofo Maimônedes)

156
TÓPICO 3 | A EXPANSÃO MUÇULMANA E A “ERA DE OURO” DO ISLAMISMO

conviviam ali de forma bastante harmoniosa, sobretudo se comparada à perseguição


contra os demais, promovida séculos depois pelos reis católicos Fernando de
Aragão e Isabel de Castela.

E
IMPORTANT

Prezado(a) acadêmico(a), a partir do que você pôde vislumbrar sobre a cultura


islâmica, é possível imaginar como seriam suas cidades? Que tipos de atividades se desenvolviam,
que tipo de pessoas as habitavam, que importância se dava, nelas, à educação, saneamento e
segurança? A comparação com a sociedade feudal não fica sem nenhum sentido? Em primeiro
lugar, na Idade Média europeia mal havia cidades, nessa época; quanto mais cidades limpas,
organizadas e com bibliotecas e universidades, como as islâmicas. Até mesmo a comparação
com épocas posteriores torna-se vantajosa aos muçulmanos. A tolerância religiosa que
havia nessa época destoava muito da perseguição a judeus e muçulmanos na Espanha da
Reconquista (Idade Moderna).

O mundo muçulmano dos primeiros séculos sofreu uma influência muito


grande da cultura persa, cuja tradição literária já remontava a mais de mil anos.
O poeta Omar Khayámm (1048-1131) foi um dos mais destacados poetas de sua
época e soube tirar proveito como poucos da sonoridade da língua persa. Alguns
de seus mais belos poemas foram reunidos por Edward Fitzgerald em 1859 em
uma coletânea que ele denominou Rubaiyát.

Transcrevemos aqui alguns dos versos dessa obra:

LEITURA COMPLEMENTAR

5
Busca a felicidade agora, não sabes de amanhã.
Apanha um grande copo cheio de vinho,
senta-te ao luar, e pensa:
Talvez amanhã a lua me procure em vão.
10
Hoje os meus anos reflorescem.
Quero o vinho que me dá calor.
Dizes que é amargo? Vinho!
Que seja amargo, como a vida.
11
É inútil a tua aflição;
nada podes sobre o teu destino.
Se és prudente, toma o que tens à mão.
Amanhã... que sabes do amanhã?

157
UNIDADE 2 | O MUNDO DAS SOCIEDADES TEOCRÁTICAS

12
Além da Terra, pelo Infinito,
procurei, em vão, o Céu e o Inferno.
Depois uma voz me disse:
Céu e Inferno estão em ti.
13
Não vamos falar agora, dá-me vinho. Nesta noite
a tua boca é a mais linda rosa, e me basta.
Dá-me vinho, e que seja vermelho como os teus lábios;
o meu remorso será leve como os teus cabelos.

FONTE: KHAYYAM, Omar. Os Rubayat. Versão em português de Alfredo Braga. 2003. Versão para
eBook: eBooksBrasil. Disponível em: <http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/rubayat.html>.
Acesso em: 15 fev. 2013.

158
RESUMO DO TÓPICO 3
Neste tópico, você viu que:

 Logo após a morte de Maomé, o Estado muçulmano começou a expandir-se e


atingiu, em menos de cem anos, enormes proporções.

 Os primeiros califas (sucessores de Maomé) foram eleitos e ficaram conhecidos


como califas bem guiados (Rashidun).

 Após os califas bem guiados, assumiu o poder o califado omíada.

 Após uma revolta que depôs os omíadas, sucedeu-lhes o califado abássida.


Embora tenha sido um longo califado (mais de 500 anos), o mundo muçulmano
não teve mais, sob os abássidas, a unidade política de antes.

 O período do califado abássida ficou conhecido como a Era de Ouro islâmica.

 Os centros culturais do mundo islâmico sob os abássidas eram Bagdá (Iraque),


Cairo (Egito), Damasco (Síria) e Córdoba (Al-Andalus ­– Espanha).

 Nas grandes cidades, o conhecimento antigo foi preservado, sob a forma de


traduções das obras antigas e comentários originais feitos a elas por filósofos e
cientistas muçulmanos.

 Nos domínios islâmicos, as artes, a ciência e a filosofia alcançaram patamares


elevadíssimos, adaptadas às condições e características locais, e chegavam a um
nível de sofisticação que não tinha paralelo no continente europeu da época.

159
AUTOATIVIDADE

1 Qual a relação que se pode estabelecer entre religião e Estado para entender
a expansão do Islã?

2 Selecione algum filósofo ou cientista do mundo muçulmano no período em


questão e escreva uma biografia e uma breve descrição de seu pensamento
ou descobertas.

3 De acordo com o texto “As mulheres na cidade”, quais os direitos e deveres


da mulher muçulmana, segundo a charia?

Assista ao vídeo de
resolução da questão 1

160
UNIDADE 2
TÓPICO 4

O FEUDALISMO

1 INTRODUÇÃO
Prezado(a) acadêmico(a), estudaremos agora o que costuma ser entendido
como o “carro-chefe” dos estudos sobre Idade Média: o feudalismo. Mas vamos
fazer isso de uma forma como você provavelmente nunca viu antes.

Normalmente, as pessoas estão tão habituadas a pensar as duas coisas


juntas que chegam a chamar a Idade Média de “era feudal”. Mas como você
poderá perceber, os autores deste Caderno de Estudos consideram não apenas um
reducionismo exagerado tomar esse aspecto importante, mas limitado da Idade
Média e transformá-lo no foco central dos estudos, como também consideram um
erro tomar esse conceito sem criticar sua validade.

Nossa forma simbólica de “recolher o feudalismo ao seu devido lugar”


foi inseri-lo no final do contexto do “mundo das sociedades fragmentadas”, por
ter sido esta a estrutura social que demorou mais para se consolidar. Realmente,
a “sociedade feudal”, se é que tal coisa efetivamente existiu, tomou forma por
volta do ano 1000, embora suas características já fossem prenunciadas havia pelo
menos duzentos anos. Mesmo assim, isso é muito depois da formação do Império
Bizantino e do mundo muçulmano. Além do mais, o próprio período de “auge”
do feudalismo já corresponde, como veremos, ao momento em que ele começa,
lentamente, a desfazer-se, pois as forças sociais que levariam à sua superação já
estavam agindo silenciosamente.

Neste tópico, apresentaremos, ao mesmo tempo, uma descrição das


origens, características e razões para o final do feudalismo e as críticas que se fazem
atualmente a essa categoria. Consideramos importante que o futuro professor de
História tenha acesso a todas as linhas de pensamento possíveis.

2 SOBRE O CONCEITO DE FEUDALISMO


Como você já percebeu, uma das tarefas fundamentais do historiador é
questionar os conceitos, especialmente os conceitos que os próprios historiadores
criaram. Não significa abandonar todos os conceitos, pura e simplesmente.
Significa, isso sim, questionar-se para saber o que o conceito significa, quando foi
criado, por que, por quem, e, se ainda tem validade para nós atualmente – e, se for
o caso, quais alterações na sua formulação são necessárias. Já fizemos isso com o
conceito de Idade Média; agora é a vez de criticarmos o conceito de feudalismo.
161
UNIDADE 2 | O MUNDO DAS SOCIEDADES TEOCRÁTICAS

2.1 AS ORIGENS DO CONCEITO DE FEUDALISMO


O termo “feudalismo” não parece ter sido utilizado durante a Idade Média: o
Libri feodorum, o mais importante documento sobre o feudalismo, menciona apenas
“feudal” e “feudo”, mas não transforma esses termos em uma categoria política.
“Feudalismo” como conceito é, portanto, da lavra de historiadores posteriores,
principalmente Jacques Cujas e François Hotman, em meados do século XVI, e,
como já dissemos, tem sido repetido acriticamente (ou quase) por séculos a fio.

O grande foco de interesse, na época de Cujas e Hotman, era o direito feudal


e uma definição de feudo que pudesse ser aplicada, com algumas variações, a
toda a Europa. Outro tema de interesse na época era a determinação da origem do
sistema feudal: romana, germânica ou híbrida - uma discussão que tem implicações
importantes no estudo do Direito Civil e do Direito Romano.

FIGURA 38 - A PERSPECTIVA POPULAR SOBRE O FEUDALISMO REDUZ ESSE FENÔMENO AO


TRABALHO RURAL E À RELIGIOSIDADE

FONTE: Disponível em: <http://bit.ly/14NMiCH>. Acesso em: 14 out. 2012.

Do século XVIII ao XIX, o conceito foi amplamente utilizado para explicar a


Idade Média, pois era simples o bastante para permitir ao historiador compreendê-
la sob os pontos de vista econômico, jurídico e social.

Foi apenas com Karl Marx que uma perspectiva totalmente nova sobre o
feudalismo foi elaborada, embora Marx tenha sido influenciado pela obra de outros
economistas clássicos de sua época e não questionasse a validade do conceito.

Marx entendia o feudalismo como um sistema de organização social


baseado em um modo de produção específico, em que a descentralização do
Estado e a ruralização da economia eram ao mesmo tempo causa e consequência
da baixa circulação de mercadorias e de dinheiro.

162
TÓPICO 4 | O FEUDALISMO

O feudalismo, porém, carregaria em sua estrutura, como todos os


demais modos de produção, as sementes de sua própria derrocada: crescimento
populacional e a demanda por mercadorias que surgiu a partir do século XII
geraram uma pressão dos comerciantes por liberdade de trânsito e de comércio
que levaria ao fortalecimento da classe burguesa e enfraqueceria os senhores até
destruir o sistema feudal.

Mesmo assim, Marx não questionou a validade do conceito de feudalismo


do ponto de vista jurídico ou social; ao contrário, sua perspectiva teórica entendia
que as características jurídicas, políticas, sociais, religiosas etc. do feudalismo (como
de qualquer outro meio de produção) ficavam subordinadas aos seus pressupostos
econômicos, e por eles eram justificadas. Ou seja, Marx consolidou a validade do
conceito de feudalismo como categoria histórico-social.

2.2 CRÍTICAS AO CONCEITO DE FEUDALISMO


O termo foi utilizado sem maior critério até 1974, quando a historiadora
britânica Elizabeth A.R. Brown demonstrou que o conceito não descrevia
adequadamente a estrutura política, jurídica, econômica e social da Idade Média.
Desde então, a crítica se difundiu aos poucos entre os medievalistas, mas ainda
prevalece a visão tradicional nos livros de História. Vinte anos depois, Susan
Reynolds propôs que o termo fosse simplesmente abandonado, uma vez que todas
as características que ele descrevia estavam sujeitas a uma reinterpretação radical.

UNI

O que você pensa disso? Será que os “problemas epistemológicos” do termo


“feudalismo” devem fazer os estudiosos abandonarem completamente o seu uso? Ou será
possível utilizá-lo com reservas, para descrever um modo de produção, ou de organização social,
ou de outra maneira, ressalvando, porém, que ele é uma aproximação e uma generalização
que não podem ser levadas a extremos?

O conceito de feudalismo foi muito centrado nas relações de poder entre


suseranos e vassalos e entre senhores e servos feudais. Grande parte da descrição
do “sistema feudal” baseia-se em definições econômicas e jurídicas, e isso traz pelo
menos três grandes limitações.

● de um lado, são perspectivas que se restringem a poucos aspectos da sociedade;

● de outro, é impossível abarcar mesmo nesses dois aspectos toda a Europa; e,

● por fim, definições precisas tendem a desconsiderar as transformações ao longo


do tempo. Ou seja, o conceito de feudalismo é, pelo menos, muito limitado,
e qualquer descrição que se faça desse sistema será parcial do ponto de vista
metodológico, espacial e temporal.

163
UNIDADE 2 | O MUNDO DAS SOCIEDADES TEOCRÁTICAS

2.3 OS FEUDALISMOS: LOMBARDIA, GRÃ-BRETANHA E


OUTROS LUGARES
O conceito de feudalismo que temos em mente corresponde, no máximo,
a um período curto da Idade Média, e com um alcance conceitual e geográfico
bastante limitado. Em outras palavras, muito do que se apresenta aos estudantes
de História como sendo “feudalismo”, mesmo hoje em dia, é uma simplificação da
forma de organização social, política, econômica e jurídica que existia na Lombardia
(região do sul da França e norte da Itália), por volta do século XII. Ou para ser
ainda mais preciso: “feudalismo” refere-se ao que chegou até nós sobre a forma
como aquela sociedade se organizava, especialmente a partir de uma fonte em
especial: os Libri feodorum, compilação de documentos e regulamentações daquela
sociedade, obra que passou a ser tomada, generalizadamente, como representativa
de um sistema feudal homogêneo e universal.

Outra vertente bem conhecida do feudalismo é britânica e a razão para isso


é, igualmente, a disponibilidade de fontes: compilações de documentos análogas
aos Libri feodorum existem na Grã-Bretanha. Porém, naquele país, as circunstâncias
são bastante diferentes: a partir do século XIII, a Common Law começou a tomar
forma, e isso certamente influenciou as características do feudalismo britânico.

A Common Law como sistema jurídico formou-se em um contexto de


oposição direta entre os barões e o rei, no qual os primeiros conseguiram colocar
no papel garantias de autonomia que nunca foram previstas em outras regiões.
Isso não significa que eles tivessem soberania absoluta; significa apenas que sua
maior autonomia permitia-lhes solucionar os conflitos a partir das noções de
direito locais. Alguns preexistentes, outros criados por eles próprios, mas sujeitos
ao crivo da população – o que os obrigava a conformar-se, em parte, à sociedade
local.

E
IMPORTANT

Precisamos levar em conta que fontes jurídicas não necessariamente descrevem


a sociedade tal como ela é, mas talvez tentem, recorrendo à autoridade do texto escrito,
transformá-la ou conformá-la a determinados objetivos. Por exemplo: qualquer um que leia os
primeiros artigos da Constituição Brasileira de 1988 sabe que ali está descrita uma sociedade
que se deseja construir, não a que temos na realidade. Seria um equívoco muito grande
descrever o Brasil do final século XX acreditando que aquelas intenções são o Brasil real.

164
TÓPICO 4 | O FEUDALISMO

Mas, é claro que um sistema tão frouxamente descrito sofria tremendas


variações de uma região para outra, e é questionável mesmo se ele tenha, em algum
lugar, chegado perto do que entendemos como “feudalismo típico”.

Em alguns lugares, a diferença para o feudalismo lombardo ou britânico


era tão marcante que nem deveria ser usado o mesmo termo para descrever suas
estruturas sociais. É o caso da Península Ibérica, onde os reis tinham uma grande
importância, por centralizarem o poder e concederem, como desejassem, domínios
aos cavaleiros. Isso contraria frontalmente a ideia de descentralização política do
mundo feudal – uma ideia, aliás, que, como já vimos, era provavelmente mais
equivocada do que parece.

3 OS MODELOS DE FEUDALISMO
O que é feudalismo? É a característica central da Idade Média? O crítico social
estadunidense H.L. Mencken dizia, com ironia, que: “há sempre uma solução bem
conhecida para cada problema – elegante, plausível, e errada”. Como veremos, a frase
aplica-se como uma luva ao conceito de feudalismo. Ou, mais ainda, à tentativa de
explicar a Idade Média ocidental a partir desse conceito.

Mesmo assim, precisamos compreender com clareza o que entendemos


por feudalismo, se desejamos criticar a validade desse conceito. É o que vamos
fazer nesta seção.

3.1 O MODELO CLÁSSICO DE FEUDALISMO


Já vimos que o termo feudalismo não existia durante a Idade Média: foi
criado no século XIX para descrever as relações de poder e lealdade existentes
entre os nobres: doador e donatário – dos feudos (esse termo já existia).

O historiador francês Marc Bloch (1982), em “A sociedade feudal”, estendeu


o conceito para abarcar todas as relações de poder dentro daquela sociedade, o que
implicava reconhecer que entre suseranos e seus servos as relações também seguiam
essa lógica. Em outras palavras, a relação de servidão seria, também, regida por
pressupostos feudais de lealdade mútua.

3.1.1 A homenagem
A definição clássica de feudalismo, em linhas gerais, implica uma relação de
obrigações militares e legais mútuas entre duas pessoas. Em termos simples, existia
um senhor (chamado suserano) que delegava a outra pessoa (o vassalo) uma porção
de terra de seus domínios em troca de algum tipo de benefício: obrigações militares,
trabalho, serviços etc. Portanto, era uma relação que beneficiava mutuamente os
dois contratantes, e obrigava-os a respeitar determinadas obrigações. O suserano
era de origem nobre, o vassalo não necessariamente.

165
UNIDADE 2 | O MUNDO DAS SOCIEDADES TEOCRÁTICAS

FIGURA 39 - VASSALO PRESTA HOMENAGEM A SEU SUSERANO E, EM TROCA DE


SUA LEALDADE E DA PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS, PODE RECEBER
FAVORES COMO TERRAS

FONTE: Disponível em: <http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/e/e5/


Hommage_au_Moyen_Age_-_miniature.jpg>. Acesso em: 12 out. 2012.

UNI

A imagem está nos Archives Départamentales de Perpignan (França)

Tornar alguém um vassalo (homenagem) e delegar-lhe terras eram dois


processos distintos, e precisavam acontecer nessa ordem. A lealdade que ambos
deviam um ao outro tinha efeitos legais, e o vassalo poderia perder as terras que
recebera, caso se insurgisse contra o suserano ou se recusasse a auxiliá-lo em caso
de necessidade ou de obrigação.

3.1.2 O feudo
O feudo, como é tradicionalmente entendido, seria uma estrutura agrária
autossuficiente, sob posse de um nobre (senhor). O terreno costumava ser dividido
entre manso senhorial (terras de usufruto do senhor), manso servil (terras de
usufruto do servo) e terras comunais (o terreno do castelo, da vila, mais os bosques,
lagos, pântanos etc., que eram improdutivos ou de uso comum).

Os servos que ali trabalhavam diferenciavam-se dos escravos da


Antiguidade por estarem presos à terra, em vez de serem considerados propriedade
do senhor. Caso outro senhor conquistasse as terras em que o servo vivia, sua
lealdade passaria ao novo senhor, pois era a ele que o servo passaria a dever sua
proteção.

166
TÓPICO 4 | O FEUDALISMO

3.1.3 As obrigações servis


Em troca da proteção oferecida, o servo devia obrigações em forma de
trabalho. Havia dezenas de obrigações, e as mais comuns incluíam:

● Corveia: trabalho compulsório do servo nas terras do senhor durante um certo


número de dias da semana.

● Banalidades: taxas devidas pelo servo pelo uso de algum tipo de facilidade do
feudo – o moinho, o lagar, o forno etc., geralmente pagas com o produto final.

● Talha: valor pago pelo servo para o custeio das defesas do feudo. A talha era
paga com uma porcentagem da produção do manso servil.

● Mão morta: taxa paga pela família de um servo falecido, para reafirmar a
proteção.

● Dízimo: dez por cento da produção do manso servil, em tributo à Igreja.

3.2 A PERSPECTIVA MARXISTA


A visão tradicional sobre o feudalismo, fundado, como vimos, na lealdade
entre iguais ou entre protetores e protegidos, foi contrabalançada pelos estudos de
orientação marxista, que se preocuparam em denunciar as precaríssimas condições
de vida a que estavam submetidos os servos feudais, causadas pela enorme carga
de obrigações a que estavam sujeitos em troca da proteção senhorial.

Leo Huberman descreveu da seguinte forma a situação dos servos


medievais:

O camponês vivia numa choça do tipo mais miserável. Trabalhando


longa e arduamente em suas faixas de terra espalhadas (todas juntas tinham,
em média, uma extensão de 6 a 12 hectares, na Inglaterra, e 15 a 20, na França),
conseguia arrancar do solo apenas o suficiente para uma vida miserável.

Teria vivido melhor, não fora o fato de que, dois ou três dias por semana,
tinha que trabalhar a terra do senhor, sem pagamento. Tampouco era esse o
único trabalho a que estava obrigado. Quando havia pressa, como em época de
colheita, tinha primeiro que segar o grão nas terras do senhor.

Esses "dias de dádiva" não faziam parte do trabalho normal. Mas isso
ainda não era tudo. Jamais houve dúvida quanto à terra mais importante. A
propriedade do senhor tinha que ser arada primeiro, semeada primeiro e
ceifada primeiro. Uma tempestade ameaçava fazer perder a colheita? Então, era
a plantação do senhor a primeira que deveria ser salva.

167
UNIDADE 2 | O MUNDO DAS SOCIEDADES TEOCRÁTICAS

Chegava o tempo da colheita, quando a ceifa tinha que ser rapidamente


concluída? Então, o camponês deveria deixar seus campos e segar o campo do
senhor. Havia qualquer produto posto de lado para ser vendido no pequeno
mercado local? Então, deveriam ser o grão e vinho do senhor os que o camponês
conduzia ao mercado e vendia - primeiro.

Uma estrada ou uma ponte necessitavam reparos? Então, o camponês


deveria deixar seu trabalho e atender à nova tarefa. O camponês desejava que
seu trigo fosse moído ou suas uvas esmagadas na prensa de lagar? Poderia fazê-
lo - mas tratava-se do moinho ou prensa do senhor e exigia-se pagamento para
sua utilização.

Eram quase ilimitadas as imposições do senhor feudal ao camponês. De


acordo com um observador do século XII, o camponês "nunca bebe o produto
de suas vinhas, nem prova uma migalha do bom alimento; muito feliz será se
puder ter seu pão preto e um pouco de sua manteiga e queijo...” (HUBERMAN,
1986, p. 5-6).

A perspectiva marxista não questionou o conceito clássico de feudalismo,


mas passou a observá-lo como um modo de produção, ou seja, um conjunto
de estruturas materiais (base) e ideológicas (superestrutura) que permitiam a
produção econômica de uma forma em particular.

A teoria marxista estabelece que cada modo de produção contém em si


próprio os elementos que viriam a causar sua derrocada. No caso do modo de
produção feudal, esses elementos seriam a baixa circulação de dinheiro, compatível
apenas com sociedades pequenas e fechadas - ou, como no caso feudal, milhares de
sociedades fragmentadas, todas independentes entre si. Isso seria possível apenas
em contextos conturbados, em que a população não é elevada. As transformações
sociais e o crescimento populacional dos séculos XII-XIV gerariam uma crise no
sistema, por não ser mais possível manter-se a estrutura política.

A luta de classes (conceito central do marxismo) entre senhores feudais


e burgueses levaria, com a vitória desses últimos, à substituição do modo de
produção feudal pelo capitalista.

TUROS
ESTUDOS FU

Prezado(a) acadêmico(a), veremos a crise do feudalismo em mais detalhes na


próxima unidade.

168
TÓPICO 4 | O FEUDALISMO

4 AS ORIGENS DO FEUDALISMO
Existe uma grande polêmica entre os historiadores sobre quais fatores
seriam responsáveis pelo aparecimento do feudalismo na Europa. Quase todos
concordam, porém, que um dos principais destes fatores seria o fato de que entre
os germanos invasores o Estado era entendido como propriedade privada do
governante e não uma República, como entre os romanos.

Enquanto no sistema republicano a lei comum está acima de todos -


inclusive os governantes - e o poder emana da soberania popular que delega poder
aos magistrados eleitos para um mandato temporário, sempre renovado pelo voto,
nos reinos estabelecidos pelos germanos - conhecidos como reinos bárbaros - o
poder emana do rei e só por seu intermédio pode ser exercido.

Como o rei considera o Estado sua propriedade, a tendência, em longo


prazo, é a fragmentação política, pois, com sua morte, o Estado é dividido entre
seus filhos. Por mais que um rei amplie o território do Estado, com sua morte, a
partilha é inevitável, se houver mais de um herdeiro.

4.1 A FRAGMENTAÇÃO DO IMPÉRIO CAROLÍNGIO


Foi o que aconteceu com o Império Carolíngio. Um imenso território que
reunia as atuais França, Bélgica, Holanda, Alemanha, Áustria e Itália foi dividido
– com a morte de Carlos Magno – entre os três herdeiros no Tratado de Verdun.
Embora a tendência fragmentária tenha sido anulada pela adoção da primogenitura
no século XI, o Estado continuou sendo propriedade do governante, na Europa
continental, até a Revolução Francesa.

4.2 OUTROS FATORES


Evidentemente, outros fatores contribuíram para a fragmentação total do
Estado a partir da implosão do Império Carolíngio no século IX. Numa análise
bastante pertinente, Hilário Franco Jr. (2004, p. 55-56) apontou ainda mais quatro
fatores para este profundo processo de fragmentação:

Em primeiro lugar, o fato de o Império [Carolíngio] não ter unidade


orgânica, assentando-se sobre dois princípios contraditórios: o universalismo
das tradições romanas e cristãs e o particularismo tribal germânico. A
diversidade étnica era insuficientemente soldada pela autoridade real, muito
sujeita a flutuações conforme a personalidade do soberano. Mais eficaz era a
unidade espiritual, com o Império num certo sentido sendo tão somente “a
expressão política de uma unidade religiosa”. No entanto, isso não bastou para
garantir seu sucesso, pois levantou a questão que se estenderia por séculos: a
Igreja deveria tutelar o Império ou vice-versa.

169
UNIDADE 2 | O MUNDO DAS SOCIEDADES TEOCRÁTICAS

Um segundo fator foi a difusão da vassalagem, por meio da qual


Carlos Magno pretendeu unir a si todos os súditos importantes, num vínculo
que manteria o predomínio imperial. A relação vassálica implicava, porém, a
entrega por parte do soberano de terras e privilégios políticos que na verdade
o enfraqueciam. Naquela economia essencialmente agrária, ao ceder terras
para os nobres, o imperador precisava conquistar novas terras, mas para tanto
dependia do serviço militar daqueles mesmos elementos. Surgia um círculo
vicioso difícil de ser rompido. Ora, ao estabelecer novos laços de vassalagem
para poder manter os já estabelecidos, debilitava-se o princípio monárquico, e o
poder do soberano colocava-as noutras bases, contratuais.

Em terceiro lugar, revelou-se problemática a fusão entre o poder temporal


e o poder espiritual na pessoa do Imperador. No seu papel militar, pela tradição
germânica, ele deveria ser um chefe guerreiro e obtentor de pilhagens, e no seu
papel religioso, pela tradição cristã, ele deveria ser o mantenedor da paz e da
justiça. Frágil equilíbrio. Com Carlos Magno, rendeu-se mais para a primeira
função; com seu filho Luís, o Pio, para a segunda. Esse Imperador fez, com sua
opção, com que a expansão cristã fosse realizada por intermédio de missões
religiosas e não mais de conquistas militares. O soberano ficou assim privado
dos proventos de pilhagem, de forma que precisava remunerar os vassalos com
suas próprias terras, esgotando a fortuna fundiária carolíngia, base inicial de seu
poder.

Por fim, as novas invasões dos séculos IX e X contribuíram para mostrar


a debilidade do sistema imperial. A rapidez dos vikings, que, descendo da
Escandinávia penetravam pelos rios com seus barcos leves e ágeis, não permitia a
defesa por parte daquele exército difícil de ser convocado e pesado nas manobras
militares. A cavalaria dos magiares, sem as pesadas couraças ocidentais e
aproveitando as planícies da Europa central, de onde saíam, causava pânico, e
antes de qualquer contra-ataque retirava-se rapidamente para suas bases.

Os muçulmanos e eslavos, ainda que menos perigosos, também


contribuíam para aumentar o sentimento generalizado de insegurança. Ficava
patente a impotência dos soberanos, e cada região organizava sua própria
defesa, em torno da nobreza local. Era a região, portanto, que passava a definir
seu próprio destino. A Europa cobria-se de castelos. O poder se fragmentava.

A Importância deste processo de fragmentação foi assim sintetizada nas


palavras de Roberto Lopez (apud FRANCO Júnior, 2004, p. 60):

Foi, sobretudo, devido à sua desorganização e à sua pobreza de raiz que


a Europa invertebrada do século X pôde resistir melhor às invasões do
que o Império Romano do século V. Em parte nenhuma havia centros
vitais, artérias principais ou núcleos econômicos cuja perda pudesse
levar ao desmoronamento de toda uma província. Para destruir uma
a uma tantas células minúsculas, fora preciso um plano de ação e uma
continuidade de desígnio que os agressores não possuíam.

170
TÓPICO 4 | O FEUDALISMO

Assim, na visão de Hilário Franco Jr. (2004, p. 62), “o feudalismo, do ponto


de vista político, representava uma pulverização do poder que respondia melhor
às necessidades de uma sociedade saída do fracasso de uma tentativa unitária
(Império Carolíngio) e pressionada por inimigos externos (vikings e magiares)”.

4.3 EM RESUMO
Em resumo, as explicações mais tradicionais atribuem sua origem a, pelo
menos, três causas:

1. Durante a crise do Império Romano, o modelo de distribuição de terras aos


colonos favorecia a concentração de terras nas mãos de poucos e forçava os
despossuídos a buscarem a proteção deles para garantir sua segurança.

2. Os povos germânicos invasores recebiam terras dentro do Império Romano


e dividiam-nas entre os descendentes quando da morte do chefe. Isso teria
favorecido a desagregação dos territórios. Isso teria sido ligeiramente revertido
nos reinados de Carlos Magno e de seus netos, mas, após suas mortes, o reino
franco começou lentamente a se desagregar, também pelo costume de dividir as
terras.

3. Novas invasões nos séculos VIII a X, especialmente dos normandos (vikings),


aterrorizaram novamente os europeus, como havia acontecido no final do
Império Romano, tanto pelo rastro de destruição que deixavam como pela
necessidade de buscar proteção contra eles. Qualquer possível movimento de
retorno às cidades teria sido revertido nesse momento, enquanto durassem as
ameaças.

5 FUGINDO AO ESQUEMA
O modelo clássico de feudalismo usado para se pensar a Idade Média,
juntamente com os complementos trazidos pela perspectiva marxista, ainda é o
mais comum nos manuais escolares, especialmente no Brasil. Isso é lamentável,
porque essa perspectiva tem sido contestada há muitas décadas na Europa, pelo
menos desde Marc Bloch.

A contribuição dos historiadores da Escola dos Annales tem sido muito


importante na criação de uma perspectiva inovadora sobre a Idade Média, um dos
temas mais caros à historiografia francesa do século XX. Mas, se de um lado, esse
“revisionismo histórico” tem progredido bastante nas últimas décadas, a ponto
de se chegar, como já observamos, a questionar a própria validade do conceito
de feudalismo, essas “novas” interpretações ainda precisam ser incorporadas
pelos nossos sistemas de ensino. Infelizmente, não há motivos para crer que no
centésimo aniversário do livro de Bloch a perspectiva sobre o feudalismo que ele
desmonta seja já, em nossas escolas, coisa do passado.

171
UNIDADE 2 | O MUNDO DAS SOCIEDADES TEOCRÁTICAS

UNI

SUGESTÃO DE LEITURA
A literatura sobre a Idade Média é vastíssima. Citamos aqui algumas das obras mais clássicas
sobre o tema:

● ANDERSON, Perry. Passagens da Antiguidade ao Feudalismo. São Paulo: Brasiliense, 1985.

● DUBY, Georges. A Europa na Idade Média. São Paulo: Martins Fontes, 1988.

● LE GOFF, Jacques. Para um novo conceito de Idade Média: tempo, trabalho e cultura no
Ocidente. São Paulo: Estampa, 1993.

● PERNOUD, Régine. O Mito da Idade Média. Lisboa: Europa-América, 1990.

● WOLFF, Philippe. Outono da Idade Média ou Primavera dos Tempos Modernos? São Paulo:
Martins Fontes, 1988.

Todos os autores relacionados são medievalistas, ou seja, fizeram suas carreiras acadêmicas
estudando a Idade Média. Portanto, praticamente todas as suas obras são relacionadas ao tema,
e são excepcionais fontes de consulta.

5.1 REVENDO CONCEITOS


A região que viu surgir o feudalismo era herdeira dos reinos germânicos
que pulverizaram a autoridade do Estado após a queda do Império Romano do
Ocidente. Não era uma sociedade de fartura, embora não fosse necessariamente
inferior, em termos econômicos e sociais, à do final da Antiguidade.

A produção agrícola era ineficiente; as rudimentares técnicas de cultivo


do campo disponíveis na época não permitiam uma produção em escala
grande o suficiente. Uma das técnicas modernas mais eficientes para garantir a
manutenção da fertilidade do solo – a rotação de culturas – limitava-se, na época,
a deixar-se parte do terreno em abandono por um ano, e não havia uma rotação
sistemática. Os campos eram deixados livres (em pousio) aleatoriamente, o que
favorecia muito mais o crescimento das ervas daninhas do que dos alimentos.

5.2 AS COMUNICAÇÕES
“As comunicações também eram precárias: as estradas romanas – que
não eram tão bem construídas como se costuma imaginar” (BLOCH, 1982, p.
61) careciam de manutenção há séculos e estavam interrompidas por trechos
destruídos, pontes que se desfizeram e bandos de salteadores em todos os lugares.

Eram rotas lentas – até a criação do trem, no século XIX, o transporte


aquático era várias vezes mais rápido – e inseguras, mas mantinham-se abertas

172
TÓPICO 4 | O FEUDALISMO

e eram constantemente usadas. Reis, príncipes e outros líderes políticos eram


forçados a utilizá-las para visitar seus domínios: comerciantes precisavam delas
para transportar suas mercadorias antes que estragassem, cavaleiros passavam por
elas em busca de um senhor para honrar, um feudo vago para comandar ou atos
de bravura que pudessem ser executados para elevar sua reputação. Peregrinos
visitavam os lugares sagrados, correndo sérios riscos de serem mortos no caminho,
e miseráveis fugiam da fome, das guerras ou das doenças migrando de uma região
a outra.

AUTOATIVIDADE

Prezado(a) acadêmico(a), você não acha que fica bem mais fácil perceber,
a partir dessa “visualização de dentro” da sociedade do início da Idade Média,
as razões pelas quais o Estado era descentralizado e o comércio era fraco na
Europa? A que você pode atribuir a diferença entre essa situação e os períodos
posteriores (Idade Moderna) e, principalmente, anteriores (Idade Antiga)?

5.3 A ECONOMIA
É equivocado dizer que “não existia dinheiro na Europa feudal”; havia uma
relativa quantidade, que era importante para manter o comércio irregular que existia
por toda a parte. A ideia da autossuficiência dos feudos é ilusória; não era possível
produzir, em todos os lugares, os cereais, vinho, laticínios e outros produtos em
quantidade e qualidade suficiente para alimentar a todos.

Sal e ferro precisavam ser trazidos de fora na maior parte das regiões. Tudo
isso requeria dinheiro ou trocas em espécie quando possível – o que não era tão
frequente quanto se acredita.

Mas é justamente essa irregularidade o que impedia a formação de um


mercado dinâmico e com trocas significativas, como o que temos hoje; não havia
motivação e, consequentemente, não se desenvolviam as condições técnicas - para
produção em grande escala de produtos que pudessem ser vendidos.

Por esse motivo, mesmo os mais ricos não tinham recursos suficientes para
conseguir planejar seus negócios e garantir sua segurança por longo tempo, e
viviam pouco melhor do que os camponeses. Boa parte do ouro que existia escoava
lentamente para os domínios bizantinos e muçulmanos, levados por comerciantes
que traziam aos senhores alguns poucos luxos ou produtos necessários.

173
UNIDADE 2 | O MUNDO DAS SOCIEDADES TEOCRÁTICAS

UNI

REFLETINDO...
- Quer dizer, então, que tudo o que estudamos sobre Idade Média está errado? Que essa não
era uma época em que o comércio desapareceu, em que senhores ricos e poderosos só se
preocupavam em fazer guerra e explorar seus servos, em que as pessoas nunca na vida saíam de
seu pequeno feudo autossuficiente?
- Sim e não. Digamos que essa visão é exagerada e esquemática. Havia comércio, transportes,
comunicações, desenvolvimento técnico, poder real etc.; mas em escala dramaticamente menor
do que temos hoje. Essa diferença de escala é fundamental: ao contrário do dinamismo econômico
da Idade Moderna, a economia medieval era estagnada e irregular – o que é diferente de dizer que
não existia nada.

5.4 A NATUREZA E O TEMPO MEDIEVAIS


As populações medievais tinham um contato mais direto com a natureza,
em comparação a seus herdeiros modernos. Animais selvagens rondavam os
feudos e, muitas vezes, circulavam em meio a eles. Eram, inclusive, fonte de
alimento com frequência. Os abrigos e construções precárias tornavam as pessoas
muito mais vulneráveis em caso de intempéries: sofria-se muito mais com a chuva,
o calor e a neve. As noites, é claro, dependiam da fraca luminosidade da Lua; era
certamente mais perigoso do que hoje enfrentar o ambiente em qualquer situação.

Em vista da elevada mortalidade infantil, das frequentes doenças, da


limitada noção de higiene e das duras condições de vida em geral, 40 ou 50 anos
era já uma idade avançada – e os raros afortunados que chegavam até lá certamente
pareciam, inclusive fisicamente, respeitáveis anciãos.

Não que, na maioria dos casos, as pessoas fossem capazes de comemorar


os próprios aniversários. O ritmo lento da Idade Média levava a uma imprecisão
na contagem do tempo. Mesmo diante da necessidade de manter alguns registros,
como a duração dos reinados, muitas vezes não era possível chegar-se a valores
muito exatos.

O fato é que os equipamentos de medição precisa do tempo eram caros e,


para uma sociedade que não se pautava pela produtividade industrial (mas pelos
ciclos das estações), desnecessários em praticamente qualquer situação.

6 O AUGE DO FEUDALISMO
Apesar dos esforços de reis e papas para constituir domínios políticos,
como o Império Carolíngio e o Sacro Império Romano-Germânico, a tendência era
muito mais à desagregação política do que à unidade territorial. Os chefes locais,
sustentados pela lealdade de seus vassalos, sentiam-se fortes o suficiente para recusar
a autoridade real, e mantinham seus próprios domínios da forma como podiam.

174
TÓPICO 4 | O FEUDALISMO

O comércio, embora existente em pequena escala, não era expressivo a


ponto de se constituir em uma das atividades econômicas mais relevantes. Os
servos não podiam esperar de seus senhores uma segurança muito efetiva contra
os ataques de bárbaros e outros senhores, ainda que os laços feudais obrigassem
os senhores a tal.

Se levarmos em consideração, ainda, as precaríssimas condições de vida de


todos, servos em especial, podemos concluir que a vida no início da Idade Média
era muito difícil.

Tudo isso começou a mudar por volta do ano 1000, ainda que lentamente
e de forma desigual. A Europa ocidental do início do II Milênio era, certamente,
uma sociedade em transformação. Após séculos de desordem política e econômica
– causada, como já vimos, pela crise do escravismo e da produção agrícola no
período pós-romano e pela interminável sucessão de invasões de povos nômades
(“bárbaros”) –, a sociedade recuperava agora sua estabilidade e retomava o
crescimento demográfico e econômico. Por volta do ano 1000, a Europa lentamente
despertava suas forças vitais, após séculos de insegurança social, precariedade
técnica e dogmatismo intelectual.

FIGURA 40 – CRESCIMENTO DA POPULAÇÃO DA EUROPA OCIDENTAL, 1000-1500.

FONTE: Adaptado de Franco Jr., Hilário (2004, p. 56)

O primeiro passo neste processo de reintegração político-econômica


e sociocultural foi a recuperação demográfica do continente após a migração
dos povos “bárbaros”. O fim das invasões dos vikings e de outros povos e sua
incorporação ao próprio mundo feudal trouxe de volta segurança, mesmo que
apenas contra invasores externos: internamente, o mundo feudal continuava
assolado por conflitos intermináveis entre os senhores. Aos poucos, essa
recuperação trouxe consequências sociais e econômicas profundas para toda a
sociedade europeia ocidental, como veremos neste tópico.

175
UNIDADE 2 | O MUNDO DAS SOCIEDADES TEOCRÁTICAS

6.1 O FIM DAS INVASÕES BÁRBARAS


O que se chama, geralmente, de “invasões bárbaras” foi um longo processo
de migração dos povos germânicos e eslavos em direção ao Oeste, que se iniciou no
século III (ou talvez ainda antes) e só terminou no século IX-X, com a sedentarização
e cristianização dos últimos desses grupos “invasores”: os vikings e os magiares
(húngaros).

Com o fim das invasões, as tensões do sistema feudal se estabilizaram. A


guerra mudou de característica: já não envolvia grandes grupos de combatentes
anônimos, mas sim pequenos grupos de guerreiros de elite.

Prevaleciam as ações individuais dos guerreiros, e não uma ação coletiva


coordenada. Apesar dos laços de vassalagem e de parentesco, uma luta entre dois
grupos de nobres feudais envolvia, geralmente, poucas dezenas de guerreiros,
raramente algumas centenas, pois como lembra Hilário Franco Júnior (2004, p.
18.), “o objetivo deste tipo de confronto não era a aniquilação do adversário, mas
sim a sua captura para cobrança de um resgate cujo rendimento era proporcional
à importância do prisioneiro”.

Este processo de estabilização e pacificação funcionou também como


diluidor e amenizador do deslocamento de bactérias, contribuindo assim para um
considerável recuo das epidemias e pestes. Estes fatores combinados contribuíram
para um paulatino, mas constante, aumento da população da Europa Ocidental a
partir do século X.

As inovações agrícolas fizeram a população da Europa, que havia


diminuído nos séculos de calamidade, voltar a crescer; isso gerou uma pressão
populacional e social muito grande nos feudos. Já não era mais possível, em alguns
casos, distribuir partes do feudo a cada filho; o mais velho passou a herdar sozinho
a propriedade.

6.2 A PRIMOGENITURA
A pressão exercida por este aumento de população sobre a estrutura
fundiária, já excessivamente fragmentada, levou alguns clãs senhoriais a adotar
uma medida extrema para evitar uma descendênciamiserável: a escolha de
apenas um dos filhos varões para herdar a propriedade. Adotada por todos os
clãs em situação de análoga perda de prestígio, esta prática paulatinamente se
generalizou, transformando-se por força do costume, na Lei Consuetudinária da
primogenitura. A partir de então, os filhos não herdeiros dos diversos clãs que
adotaram a primogenitura vieram a constituir-se num excesso social de população
não absorvida por aquela estrutura fundiária.

176
TÓPICO 4 | O FEUDALISMO

NOTA

Direito de primogenitura significa que: apenas o primeiro filho herdaria a


propriedade como um todo e seus irmãos não teriam direito a nada ou estariam submetidos
ao mais velho. Essa prática contrariava a tradição germânica que, como você talvez se
lembre, dividia os territórios entre todos os filhos. Foi, como você pode imaginar, uma medida
desesperada que os senhores feudais tomaram para evitar que suas propriedades, já pequenas
depois de séculos de fragmentação, se tornassem diminutas demais para sustentar até mesmo
uma família senhorial e seus servos.

Com isso, surgiu uma enorme quantidade de nobres sem terra (ou seja,
sem vassalos e, logo, sem poder nem meios de sustento), que tentavam encontrar
alguma forma de se inserirem na sociedade, como: religiosos, vassalos de algum
senhor mais poderoso ou pretendentes a ocupar algum feudo sem senhor. Isso
gerou uma transformação radical na sociedade, pois colocou os nobres em posições
sociais muito distintas. É por causa disso que surgiram os códigos de cavalaria, de
comportamento (etiqueta), de amor cortês etc.

Estes nobres sem terra – filhos “segundogênitos” dos clãs mais empobrecidos
– deviam permanecer celibatários, uma vez que, sem terras e sem vassalos, não
podiam legar aos filhos uma descendência digna. Esta situação devia lhes parecer
desonrosa, pois, como nobres herdeiros de uma longa genealogia, não podiam
legar o nome da família aos filhos. A condição que lhes faltava era a terra.

A mesma pressão foi exercida sobre a população servil dos camponeses,


que se viam sem condições de manter o crescente número de filhos com a pequena
porção de terras que possuíam dentro dos velhos feudos. E como, entre os servos,
a primogenitura não era adotada, a miséria e a fome eram uma ameaça sempre
presente a empurrá-los em busca de novas oportunidades. Em vista disso, estes
homens vão se constituir num exército de reserva, ávidos por conquistar para si
novas glebas de terra onde pudessem dar continuidade às tradições familiares.

TUROS
ESTUDOS FU

Caro(a) acadêmico(a), mais adiante você verá como estes nobres sem terra serão
importantes para o processo conhecido como CRUZADAS. Você também verá como eles,
constituindo-se em cavaleiros, serão imprescindíveis para a formação das CORTES MEDIEVAIS,
após o término do período cruzadista.

177
UNIDADE 2 | O MUNDO DAS SOCIEDADES TEOCRÁTICAS

6.3 A PRESSÃO ECONÔMICA


O aumento populacional gerava, também, uma maior oferta de produtos
agrícolas e também uma maior demanda por produtos vindos de fora. Você se
lembra de que dissemos que eram raros os feudos em que se podia obter sal e
ferro? Embora a grande maioria dos equipamentos agrícolas fosse mais rudimentar
(os arados eram de madeira) e a comida não costumasse ser temperada, todos
poderiam precisar, em maior ou menor medida, dessas substâncias. Isso abria
a possibilidade do ressurgimento do comércio de larga escala, que exigia rotas
seguras e alguma centralização política para prosperar. Por isso, os comerciantes
financiavam os senhores mais poderosos e, em troca, recebiam as condições que
desejavam para realizarem suas atividades.

6.4 A EXPANSÃO INTERNA DA SOCIEDADE


Este aumento da população provocou, entre outros fatores, um acentuado
movimento migratório para o desbravamento de novas áreas de cultivo em terras
antes improdutivas, florestas e pântanos. Já se observou que - por questão de
logística - desde a antiguidade, fazendas, vilas e cidades fundadas por romanos
margeavam rios, lagos ou mares. Esta tendência manteve-se na Idade Média.
Contudo, com a interiorização verificada na sociedade medieval a partir do século
X, uma pressão cada vez mais acentuada passou a ser exercida sobre a necessidade
de transporte terrestre e outras formas de força motriz.

Por volta do século XI, já havia sido introduzido um sistema de atrelagem


que permitiu um melhor aproveitamento da tração animal, aumentando o
rendimento do trabalho. Tal inovação, que compreendia novos sistemas de arreios
e a atrelagem de vários animais em linha, tornou possível também a utilização do
cavalo, mais veloz que o boi, como animal de tração, para o transporte e atividades
agrícolas.

Foi neste momento que surgiram a ferradura, a carroça, o arado com rodas,
as estradas de cascalho e, finalmente, os moinhos (d’água e de vento) assumem a
importância que não tinham na Antiguidade. Além disso, ao Ocidente medieval
deve-se ainda a difusão e o aperfeiçoamento de uma série de mecanismos, tais
como o parafuso, a roda, a catraca, a engrenagem e a polia. Por outro lado, a
construção de igrejas e castelos levou ao desenvolvimento de roldanas e guindastes
rudimentares.

Estes melhoramentos técnicos foram acompanhados de uma verdadeira


revolução na agricultura: a introdução do sistema trienal de rotação de culturas.
Esse sistema consistia, essencialmente, em dividir o terreno em três ou mais partes
e cultivar cada parte com um produto diferente, deixando-se sempre uma das
áreas em repouso.

178
TÓPICO 4 | O FEUDALISMO

No ano seguinte, as culturas seriam alternadas. A parte que ficara em


repouso seria novamente cultivada e uma área que havia sido cultivada por alguns
anos seria agora deixada “em pousio”. Tal sistema permitia ultrapassar o rápido
esgotamento do solo, com considerável aumento da produtividade, pois, “ao se
dividir a área cultivável em três partes, não só se ampliava a extensão efetivamente
produtiva (66% contra 50% do sistema bienal), como ainda se tinha a segurança de
duas colheitas anuais”. (FRANCO JÚNIOR, 2004, p. 34).

DICAS

Recomendações de filmes
Caro(a) acadêmico(a)! Sobre os assuntos tratados neste tópico, existem alguns bons filmes
onde você poderá encontrar, além de diversão, conhecimento.
● EL CID, de 1961, dirigido por Anthonny Mann, com Charlton Heston e Sophia Loren.
● O Incrível Exército de Brancaleone, de 1966, dirigido por Mário Monicelli, com Vittorio
Gassman.
● Cruzada, de 2004, dirigido por Ridley Scott com Orlando Bloom, Jeremy Irons e Liam Neeson.

Em uma série de diálogos com o historiador Jean-Maurice de Montrémy,


Jacques Le Goff descreveu, em linguagem informal, diversos aspectos de sua
concepção sobre Idade Média. Transcrevemos, aqui, o trecho em que ele fala sobre
o feudalismo e a “feudalidade”.

179
UNIDADE 2 | O MUNDO DAS SOCIEDADES TEOCRÁTICAS

LEITURA COMPLEMENTAR

EM BUSCA DA IDADE MÉDIA

Jacques Le Goff

Entre as “redes que se vão constituindo”, o senhor citou a das senhorias. Raramente
o senhor emprega a palavra feudal, entretanto tão comum.

Como você já viu, muitas palavras de que nos utilizamos para qualificar
a Idade Média são de criação recente. Religião, no sentido em que a entendemos,
aparece no século XIV, Feudalidade aparece no século XVII e Cruzada no século XVIII...
Isso não me impede de usar essas palavras e de introduzir outras nesse contexto,
também elas “anacrônicas”, como intelectuais, Senhoria, mais perto das concepções
e da linguagem da época.

A Idade Média – Georges Duby o lembrou de modo magnífico – repousa


sobre a terra. A Idade Média é rural. É sobre essa ruralidade que se articula o
conjunto das outras redes.

No início, existia um conjunto de domínios romanos: as villae (vejam-se


todos os nomes em ville da toponímia francesa). Por volta do ano mil, essas villae
se estruturam de modo diferente. Fica clara a existência de duas entidades. Muitas
casas de agricultores ou de artesãos ligados aos consertos e aos fornecimentos
constituem, por um lado, uma cidade. Por outro lado, um lugar forte se especializa
na proteção e nas pequenas formas de arbitragem: a senhoria.

A aldeia no século XI tem um centro: a igreja. Anexo a ela, o cemitério, uma


vez que os mortos devem ficar o mais perto possível do ou dos santos padroeiros.
Na aldeia, nem todos os habitantes são agricultores. Os artesãos nela representam
uma força social importante. São os “galos da aldeia” ou, se preferir, os notáveis
entre as pessoas menores, que deixaram sua marca nos nomes de família. Assim
é em relação aos moleiros: Meunier, Müller, Miller... Ou quanto aos ferreiros: Le
Faivre, Lefèvre, Faber, Smith, Schmidt, etc., ou Le Goff, no dialeto bretão!

Durante o século XI também se desenvolve um fenômeno a que Pierre


Toubert denominou incastellamento (o encastelamento, se assim podemos dizer),
tendo como referência a Itália, e que Robert Frossier descreve como o enclausuramento.
A falência do modelo imperial, a ausência de poderes centralizadores fortes (as
monarquias ainda são uma incerteza) favorecem o recurso aos superiores, sejam
os que residem na cidade, como na Itália, sejam os que vivem no campo, como na
França ou na Inglaterra.

180
TÓPICO 4 | O FEUDALISMO

É em volta deles que se reúnem, em caso de necessidade, homens, animais,


colheitas e instrumentos de trabalho. As cidades se fortificam. Os campos assistem
ao aparecimento de pequenos outeiros naturais ou artificiais fortificados, depois
torreões ou castelos fortes. Assim se firma a senhoria que exprime bem a função
exercida: dominação, autoridade.

O senhor inferior, em contrapartida a serviços prestados a um superior,


recebe um benefício, um feudo. Essa palavra, de origem germânica, designa a doação
ou a contradoação que as partes trocam no termo de um conflito. Estão implícitos,
portanto, pontos de troca. Sendo própria dos senhores a tendência, como entre os
modernos chefes de empresa, de transmitir o feudo a seus filhos, o feudo se torna,
progressivamente, sinônimo de domínio territorial ou de cobrança hereditária de
foros. Os feudos se transformam em objeto de absorção ou partilha entre os senhores,
o que supõe conflitos, eventualmente conflitos armados. Desenvolve-se a seguir
em torno desses lugares sociais uma perfeita ideologia, até uma mística cavaleirosa
entre os senhores e seus súditos, ou entre os senhores e os outros senhores vassalos.

Observemos apenas que o sistema de feudos, a feudalidade, não é, como se tem


dito frequentemente, um fermento de destruição do poder. A feudalidade surge, ao
contrário, para responder aos poderes vacantes. Forma a unidade de base de uma
profunda reorganização dos sistemas de autoridade, o quadro indispensável ao
aparecimento dos Estados. A feudalidade conhece seu grande período do século X
ao século XIII. Ao contrário da senhoria – que a precede e que persiste depois dela –,
a feudalidade, em sentido estrito, não se identifica com o conjunto da Idade Média.

FONTE: LE GOFF, Jacques. Em busca da Idade Média. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011,
p. 156-159.

181
RESUMO DO TÓPICO 4
Neste tópico você viu que:

 O conceito de “feudalismo”, como sistema político, econômico e social, não


existia na Idade Média; foi construído pelos historiadores, especialmente a
partir do século XVI.

 A interpretação clássica sobre o feudalismo foi mantida, com poucas


modificações, até o século XX.

 O marxismo ampliou a perspectiva sobre o feudalismo, ao percebê-lo como um


modo de produção específico, mas não questionou o conceito em si.

 Na década de 1970 surgiram críticas ao conceito, considerado então inadequado,


para descrever a estrutura política, jurídica, social e econômica da Idade Média.

 Na descrição do modelo clássico de feudalismo, os elementos mais importantes


são a homenagem, a vassalagem, a servidão, as obrigações servis e a economia
natural.

 O feudalismo teria surgido a partir de elementos romanos e germânicos, e se


consolidado após o esfacelamento do Império Carolíngio.

 Ao estudarmos a Idade Média e o feudalismo, em particular, precisamos ter em


mente que o conceito é uma simplificação, e que ele não dá conta de descrever
adequadamente, por si só, o que foi esse período.

 Depois do longo processo de invasões bárbaras (do século III ao século IX), as
tensões do sistema feudal se estabilizaram.

 Os níveis de violência diminuíram, a pacificação contribuiu para a diminuição da


circulação de doenças e epidemias e a população começou a crescer rapidamente
a partir do ano 1000.

 O aumento da população exerceu pressão sobre a estrutura fundiária e a


excessiva fragmentação das propriedades fez com que os clãs mais empobrecidos
adotassem o costume da primogenitura.

 A paulatina adoção da primogenitura lançou no desamparo os filhos


“segundogênitos” de muitos clãs que, junto com o excesso de população servil,
promoveram uma expansão interna da sociedade, em direção ao interior da
Europa.

182
 Este processo de expansão criou novas necessidades que revolucionaram os
métodos de trabalho e aumentaram a produtividade da economia medieval,
sustentando, assim, o crescimento demográfico.

183
AUTOATIVIDADE

Prezado(a) acadêmico(a)! Após você ter lido todo esse tópico,


elaboramos algumas questões que servirão como uma espécie de roteiro para
que você possa rever as principais ideias sobre o feudalismo e a expansão
demográfica na Europa.

1 Explique o papel dos francos na formação do feudalismo.

2 Quais as causas da recuperação demográfica da Europa Ocidental a partir


do século X?

3 Por que a primogenitura, como critério de sucessão, passou a ser adotada


na Europa medieval?

4 O que foi a expansão interna da sociedade, e quais as suas consequências?

Assista ao vídeo de
resolução da questão 3

184
UNIDADE 3

A ERA DAS GRANDES


TRANSFORMAÇÕES
OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
A partir desta unidade você será capaz de:

• caracterizar o século XI como o início de um processo de profundas trans-


formações na sociedade europeia, dos pontos de vista cultural, político e
religioso;

• reconhecer a importância de eventos externos à Europa, como as invasões


mongólicas, na transformação da sociedade europeia do final da Idade
Média;

• identificar, na dinâmica do processo de feudalização e de seu refluxo, os


fatores que levaram à expansão interna e externa da sociedade europeia a
partir do século XI;

• compreender como ocorreu o renascimento comercial e urbano do final


da Idade Média e sua importância como elemento transformador das rela-
ções sociais e econômicas;

• entender o renascimento cultural do século XII e os fatores que propicia-


ram seu surgimento e identificar a importância desse movimento para os
períodos seguintes;

• perceber, nos conflitos entre as cortes medievais e os senhores feudais,


entre o papado e o Sacro Império, e entre os estados nacionais e o poder
da Igreja, os elementos de disputa política em curso na Europa do final da
Idade Média.

PLANO DE ESTUDOS
Esta unidade está dividida em cinco tópicos. No decorrer e no final de cada
um deles você encontrará atividades que contribuirão para sua reflexão e
análise dos conteúdos adquiridos.

TÓPICO 1 – AS TRANSFORMAÇÕES DO SÉCULO XI E AS CRUZADAS

TÓPICO 2 – AS CONQUISTAS MONGÓLICAS

TÓPICO 3 – A IGREJA E A CULTURA NA BAIXA IDADE MÉDIA

TÓPICO 4 – O RENASCIMENTO COMERCIAL E URBANO

TÓPICO 5 – AS CORTES MEDIEVAIS

Assista ao vídeo
desta unidade.

185
186
UNIDADE 3
TÓPICO 1

AS TRANSFORMAÇÕES DO SÉCULO XI E AS
CRUZADAS

1 INTRODUÇÃO

Como vimos, quando terminaram as invasões, a Europa foi envolvida por


um período de relativa tranquilidade militar, e a pouca mobilidade serviu como
inibidor da propagação de epidemias. Nestas circunstâncias, houve um grande
aumento populacional no continente. Como a estrutura do sistema feudal não
incorporava essa nova população, houve uma expansão interna da sociedade em
direção a áreas antes improdutivas, como pântanos e florestas.

Mas a pressão populacional e social ameaçava tornar-se insuportável.


Ao mesmo tempo, um misto de controvérsias religiosas, “demagogia” política,
oportunismo comercial e fervor religioso da população concorreram para dar
origem a um dos movimentos mais intrigantes da história: as Cruzadas.

2 AS ORIGENS HISTÓRICAS DAS CRUZADAS

2.1 O SÉCULO XI, PERÍODO DE CONQUISTAS


O período correspondente ao século XI foi de grande movimento
expansionista, na Europa e na Ásia. Conquistas territoriais no ocidente e novas
migrações de povos no oriente modificaram mais uma vez o panorama político
mundial e opuseram diversas vezes cristãos e muçulmanos. Enquanto a sociedade
medieval se interiorizava, outros processos paralelos faziam com que aquele
excesso social de população se movesse em direção à conquista de terras além das
fronteiras da Cristandade Latina. Embora as terras ocupadas pelo Islã na Europa
fossem o alvo principal, este processo expansionista também atingiu a Inglaterra e
as terras ocupadas por eslavos ortodoxos, a leste do Elba.

2.1.1 Os turcos seljúcidas


O primeiro dos grandes movimentos de conquista ocorreu na região da
Anatólia (atual Turquia asiática), aonde os turcos chegaram após atravessarem
o Irã. Em 1040, os turcos seljúcidas se estabelecem na Pérsia como mercenários
a serviço do Califado Abássida de Bagdá. Assimilaram a religião muçulmana e
conquistaram a hegemonia política quando, em 1058, reduziram as atribuições do
Califa à liderança religiosa enquanto que o governo efetivo passou para as mãos
do Sultão – título do monarca turco.
187
UNIDADE 3 | A ERA DAS GRANDES TRANSFORMAÇÕES

FIGURA 41 - MAPA MOSTRANDO A EXTENSÃO DOS DOMÍNIOS DO CALIFADO FATÍMIDA (MAIS


ESCURO), DOS TURCOS SELJÚCIDAS (TOM INTERMEDIÁRIO) E DO IMPÉRIO
BIZANTINO (MAIS CLARO) EM 1100

FONTE: Disponível em: <http://www.ucalgary.ca/HIST/tutor/imageislam/seljuk1100.gif> Acesso


em: 22 de out. 2012.

Com o fervor de povos recém-convertidos, os turcos lançaram uma ofensiva


contra o Império Bizantino e, em 1071, conseguiram conquistar a Ásia Menor. A
seguir, atacaram o Califado Fatímida do Cairo e se apoderaram dos Emirados
da Síria e Alepo. Capturaram Jerusalém em 1078. Se os antigos Califas e Emires
árabes mantinham a antiga tradição muçulmana de tolerância aos povos do Livro
– Judeus e Cristãos – os neófilos turcos mostraram-se mais intransigentes na defesa
da fé, proibiram as peregrinações cristãs em seu território recém-conquistado.

2.1.2 Os primeiros tempos da reconquista ibérica


Na Península Ibérica, desde o início da ocupação árabe, a resistência cristã
buscava retomar o controle da região. As campanhas vitoriosas eram seguidas de
um processo de colonização por cristãos, estendendo aos poucos os reinos ibéricos
para o Sul. O Califado de Córdoba, sob a dinastia omíada, caiu com a morte do
califa Al-Mansur em 1002, e deu lugar a dezenas de pequenos reinos (Taifas), cuja
desunião facilitava o avanço cristão sobre Al-Andalus. Os cavaleiros cristãos, sob o
comando de Alfonso VI, reconquistaram Toledo em 1085.

188
TÓPICO 1 | AS TRANSFORMAÇÕES DO SÉCULO XI E AS CRUZADAS

FIGURA 42 – A RECONQUISTA DA PENÍNSULA IBÉRICA

FONTE: Disponível em: <https://historia-no-vestibular.wikispaces.com/1.2+-+Forma%C3%A7%C3


%A3o+dos+Estados+Nacionais>. Acesso em: 14 mar. 2013.

Para barrar o avanço cristão e unificar as taifas, a dinastia berbere dos


Almorávidas, estabelecida no Marrocos, invadiu a região e ocupou o sul da
península. Seus exércitos foram vitoriosos até 1094, quando os cristãos, sob o
comando de El Cid, conquistaram Valência. No ano seguinte, o conde Henrique de
Borgonha toma posse do condado de Portucale, na costa do Mar Oceano (Oceano
Atlântico), e seus domínios darão origem a Portugal.

2.1.3 As conquistas normandas


Os normandos (palavra de origem escandinava que significa “homens do
norte”) surgiram a partir das invasões dos temíveis vikings às regiões da França,
onde se sedentarizaram e estabeleceram o ducado da Normandia (912). De lá,

189
UNIDADE 3 | A ERA DAS GRANDES TRANSFORMAÇÕES

os normandos espalharam-se por diversas regiões da Europa com um ímpeto


avassalador. Em 1066, o duque William II (Guilherme, o Conquistador) derrotou o
rei anglo-saxão Harold e foi coroado rei da Inglaterra; iniciou-se assim a influência
normanda da Grã-Bretanha. Na Itália, os normandos auxiliaram a reconquista das
regiões da Sicília e do sul da península Itálica, então sob o comando muçulmano –
Palermo finalmente caiu em 1072.

NOTA

Repare você, caro(a) acadêmico(a), que todos estes eventos são anteriores à data
oficial que tradicionalmente marca o início das Cruzadas no Concílio de Clermont-Ferrand em
1095. Na Europa, apenas o avanço a Leste dos cavaleiros teutônicos sobre os eslavos ortodoxos
das planícies polonesas e das margens do Báltico pode ser considerado posterior, uma vez que
apenas em 1193, a cruzada do Báltico foi legitimada pelo Papa Celestino III.

2.2 A CRISE NA IGREJA NO SÉCULO XI


Em fins do século XI, a Igreja Católica tinha atravessado um difícil momento.
O Grande cisma de 1054 havia separado definitivamente o Culto Católico Latino
do Ortodoxo Grego. Reagindo a esta tendência desagregadora, o Papa Gregório
VII (1020-1085) procurou diminuir a autonomia dos bispos, centralizando em
Roma todas as questões importantes da Igreja. Propôs a reforma do calendário,
atacou a simonia (compra de cargos eclesiásticos) e o nicolaísmo (concubinato ou
casamento dos padres). Na sua luta por reformar a cristandade latina e consolidar
a supremacia papal sobre os poderes temporais, envolveu-se na questão das
investiduras com Henrique IV – Imperador do Sacro Império. Embora tenha
vencido moralmente Henrique IV, atraiu muitos inimigos na aristocracia romana
e teve de fugir de Roma, morrendo no exílio em 1085. O trono papal permaneceu
vago por quase três anos.

TUROS
ESTUDOS FU

Analisaremos melhor a crise e as reformas da Igreja do século XI no Tópico 3 desta


unidade.

190
TÓPICO 1 | AS TRANSFORMAÇÕES DO SÉCULO XI E AS CRUZADAS

2.3 A ECONOMIA EUROPEIA NO SÉCULO XI


O período por volta do ano 1000, como já vimos, marcou uma transformação
econômica e social em boa parte da Europa ocidental. O fim das invasões e
o desenvolvimento de tecnologias agrícolas mais eficientes permitiram uma
melhoria da produtividade e um consequente aumento populacional. Os europeus
do século XI desfrutavam, em geral, de condições de vida muito mais favoráveis
do que seus ancestrais de duzentos anos antes.

Mas essa prosperidade continha, em si mesma, uma armadilha perigosa,


que poderia abalar a própria estrutura feudal. A prática de dividir os bens entre
todos os herdeiros geraria, a longo prazo, um de dois problemas sérios: ou as
terras ficariam pequenas demais para poderem manter uma propriedade digna
de um senhor feudal, ou as leis de sucessão deveriam ser alteradas para não mais
dividirem-se os feudos, o que também geraria senhores sem terra. No século XI,
esse dilema estava próximo de ser enfrentado.

2.4 O CONCÍLIO DE CLERMONT


Foi neste contexto de amplo processo expansionista da Europa Latina,
que o Papa Urbano II, no concílio de Clermont em 1095, convocou os cavaleiros
cristãos – que já estavam em movimento - para libertar a Terra Santa do domínio
islâmico. Foi somente a partir deste momento que mundanas expedições militares
e de conquistas de terras ganharam a aura de beatissima penitentia. Portanto, se a
luta específica pela Terra Santa foi, sem dúvida, orientação da Igreja Romana, as
Cruzadas – enquanto amplo movimento de expansão – não podem ser entendidas
sem levarmos em consideração a pressão do excesso social de população na Europa
Ocidental que analisamos neste tópico.

3 AS MOTIVAÇÕES PARA AS CRUZADAS


Além deste excesso social de população, outras motivações levaram os
cristãos à Palestina para combater os muçulmanos.

3.1 MOTIVAÇÕES ECONÔMICAS


Como já vimos anteriormente, as regalias especiais do primogênito em
matéria de herança (Lei da Primogenitura), deixavam os filhos mais moços dos
senhores feudais no desamparo. Mesmo com a expansão interna e externa da
sociedade, então em curso, não era nada fácil obter novos feudos ou conseguir altos
cargos eclesiásticos – vendidos a custo por demais elevado para o empobrecido
clã paterno. Esta multidão de nobres, desprovidos de fortuna, tendia a constituir-
se numa súcia de desordeiros atentos a qualquer oportunidade de conquistar
propriedades alheias. Não por acaso, ficaram na história da primeira cruzada
nomes como Gautier Sans-Avoir (Gautier sem posses) e Walter Habenichts (Walter

191
UNIDADE 3 | A ERA DAS GRANDES TRANSFORMAÇÕES

que nada tem). Eis porque, humilhados com esses problemas, estes nobres sem
terra da Europa estavam dispostos a responder o apelo do Papa Urbano II.

3.2 MOTIVAÇÕES RELIGIOSAS


Uma das principais características da religiosidade medieval era a de fazer
peregrinações, principalmente aos lugares em que – pela tradição – acreditava-
se que estivesse depositada alguma relíquia de santos e mártires da Igreja.
Logicamente, a Palestina estava entre esses locais. As peregrinações iniciaram-se
no século IV, mas se intensificaram no século XI. Em 1065, o Bispo de Bamberg
conduziu aproximadamente 7 mil devotos bávaros até a Palestina, a fim de
visitarem os lugares santos de Jerusalém e seus arredores.

Porém, a situação no Oriente Médio não era nada favorável aos cristãos no
século XI. Em 1071, os turcos seljúcidas derrotaram o exército bizantino na batalha
de Manzikert e conquistaram parte considerável do império. Dois anos depois,
conquistaram a Palestina e, de acordo com as queixas dos cristãos, passaram a
atacar os peregrinos e a dificultar a vida dos cristãos na região.

3.3 MOTIVAÇÕES POLÍTICAS


Quando assumiu o trono, em 1088, Urbano II afirmou-se como fiel
seguidor das ideias de seu antecessor: “tudo o que ele rejeitava, eu o rejeito, o que
ele condenava, eu o condeno, o que ele amava, eu o abraço, o que ele considerava
como verdadeiro, eu o confirmo e aprovo”. Contudo, o triste fim de Gregório VII
deve ter alertado Urbano II para o perigo que significava, ante as intenções de
supremacia do papado, a belicosa aristocracia europeia. Neste sentido, uma Sacra
Bellum(“Guerra Santa”) contra os infiéis seria uma excelente oportunidade de
concretizar a união de toda nobreza europeia, desviando sua ardente belicosidade
de seus planos de supremacia. Em seu apelo à Primeira Cruzada, Urbano II
prometia que “a todos aqueles que partirem para as Cruzadas e perecerem no
caminho, seja por terra, seja por mar, ou que perderem a vida combatendo os
pagãos, será concedida a remissão de seus pecados” (apud CINEECO, 2005, p.
190). Era a versão cristã da Jihad islâmica.

Com o objetivo de motivar os nobres europeus a se lançarem na temerária


aventura de conquistar a Terra Santa, o Papa Urbano II proferiu as seguintes
palavras no Concílio de Clermont:

Já que a terra que vós habitais, fechada de todos os lados pelo mar e
circundada pelos picos das montanhas, é demasiadamente pequena para a vossa
grande população e como a sua riqueza também não é abundante, uma vez que
ela fornece apenas o alimento suficiente para seus cultivadores [...]. Entrai no
caminho do Santo Sepulcro; arrebatai a terra da raça maldita e submetei-a a vós.

192
TÓPICO 1 | AS TRANSFORMAÇÕES DO SÉCULO XI E AS CRUZADAS

Essa terra em que, como diz a escritura, ‘jorra leite e mel’, foi dada por Deus aos
filhos de Israel. Jerusalém é o coração do Mundo; a terra é, mais do que todas,
frutífera como um novo paraíso de prazeres (apud ESPINOSA, 1981, p. 17).

E
IMPORTANT

Quando olhamos um mapa, pode nos parecer ridículo ou até mesmo cínico o
papa convocar os guerreiros europeus, que não tinham terras em seu continente de origem,
para lutarem pela Palestina, que é semiárida e minúscula na comparação com a Europa. As
terras lá seriam escassas e não resolveriam a pressão feudal. Isso pode nos fazer desconfiar
de oportunismo e de manipulação, mas será que não podemos também considerar outra
possibilidade? Não havia mapas precisos no século XI, e era bem possível que houvesse a ideia
de que a “Terra Santa”, justamente por ser santa, fosse vastíssima e muito fértil.

Para os padrões da época, o Concílio de Clermont-Ferrand foi monumental:


além dos nobres, 14 arcebispos, 200 bispos, 400 abades e uma multidão de fiéis.
Empregando todos os requintes da eloquência para despertar a fúria e a cobiça dos
seus ouvintes, Urbano II salientou particularmente as “horríveis atrocidades” que,
segundo ele declarava, os turcos tinham cometido contra os cristãos. Ao terminar
seu discurso, todos os presentes, numa frenética exaltação começaram a gritar:
“Deus vult!” (Deus o quer!), ajoelhando-se para prestar o juramento do cruzado.

4 AS CRUZADAS
As Cruzadas são tradicionalmente classificadas da seguinte forma:

● Primeira Cruzada (1095-1101). Conclamada no Concílio de Clerment-Ferrand,


pelo Papa Urbano II, em 1095. Foi liderada por Godofredo de Bulhões, Raimundo
de Toulouse, Roberto de Flandres e Hugo de Vermandois, foi a chamada Cruzada
Senhorial. Depois de três anos de lutas e sofrimentos, a Cruzada conseguiu
tomar Jerusalém. Criou-se então o Reino Latino de Jerusalém, sob comando de
Godofredo de Bulhões, que não aceitou o título de Rei, substituindo-o pelo de
Defensor do Santo Sepulcro.

193
UNIDADE 3 | A ERA DAS GRANDES TRANSFORMAÇÕES

FIGURA 43 - KRAK DES CHEVALIERS, CASTELO CONSTRUÍDO PELOS CRUZADOS NA SÍRIA

FONTE: Disponível em: <http://www.doinitonline.com/images/krack.jpg>. Acesso em 2 nov.


2012.

● Segunda Cruzada (1145-1147). Tropas francesas comandadas por Luís VII


e alemãs comandadas por Conrado III partiram em apoio ao Reino latino de
Jerusalém. Os dois exércitos lutaram em separado e foram facilmente derrotados
pelos turcos na Ásia Menor.

● Terceira Cruzada (1188-1192). Os muçulmanos, sob o comando de Saladino,


sultão do Egito, tinham-se apoderado de Jerusalém (1187). A chamada Cruzada
dos Reis foi comandada por Felipe Augusto (rei Felipe II da França), Frederico
Barba-Ruiva (imperador alemão do Sacro-Império Romano Germânico) e
Ricardo Coração de Leão (rei da Inglaterra). O Rei alemão morreu afogado,
antes de chegar à Síria, Felipe Augusto regressou à França e Ricardo I “Coração
de Leão”, sozinho, não conseguiu retomar Jerusalém. Após obter de Saladino
o livre acesso dos peregrinos cristãos aos Lugares Santos, Ricardo também
retornou à Inglaterra.

● Quarta Cruzada (1202-1204). Instigada pelos comerciantes da cidade de Veneza,


os exércitos de nobres franceses por eles transportados atacaram Constantinopla.
Saquearam a Capital do Império Bizantino e fundaram o Império Latino de
Constantinopla (1204-1261), sob liderança de Balduíno de Flandres. A conquista
custaria muito caro ao Império do Oriente: após a restauração bizantina, o Império
recuperou-se apenas parcialmente e não conseguiu mais evitar a ascensão
econômica e a concorrência das cidades marítimas italianas (Gênova e Veneza),
nem o avanço muçulmano que culminaria na conquista de Constantinopla pelos
turcos em 1453.

● Quinta Cruzada (1217-1221). Comandada por André II de Hungria e João de


Briena contra o Egito. Conquistou a cidadela de Damieta, mas o resultado
estratégico de tal feito foi praticamente nulo.

194
TÓPICO 1 | AS TRANSFORMAÇÕES DO SÉCULO XI E AS CRUZADAS

● Sexta Cruzada (1228-1244). Dirigida por Frederico II de Hohenstauffen, que se


achava excomungado. Em lugar de atacar os muçulmanos, negociou com eles.
Embora tenha obtido algumas concessões, estas não foram duradouras.

● Sétima Cruzada (1248-1254). Liderada por São Luís (rei Luís XI da França), tinha
por objetivo o Egito. Mas o rei e seus soldados foram feitos prisioneiros, tendo
de pagar enorme resgate, a fim de obterem a liberdade.

● Oitava Cruzada (1270). Também liderada por São Luís. Durante o cerco a Túnis,
Luís morreu vitimado pela peste. Esta foi a última cruzada.

4.1 OUTRAS CRUZADAS


Além destas oito cruzadas “oficiais”, também houve pelo menos duas
outras dignas de menção, inclusive pelo fim melancólico que tiveram.

A “Cruzada Popular” dirigida por Pedro, o Eremita, e o cavaleiro Gauthier-


Sans-Avoir, teve lamentável fim. Nela, uma caótica multidão de aproximadamente
50 mil pessoas – na maioria pobres camponeses: homens, mulheres, velhos e
crianças – sem plano nem organização, conseguiram chegar a Constantinopla em
agosto de 1096 – saqueando pelo caminho campos, aldeias e cidades para poderem
se alimentar. O Imperador Bizantino Aleixo mandou-lhes emissários tentando
dissuadi-los, com o argumento de que seriam dizimados pela força militar dos
turcos seljúcidas. Mas ao verificar que os peregrinos começaram a depredar a própria
Bizâncio, o Imperador ordenou que os transladassem para as costas da Ásia Menor,
onde foram massacrados.

Houve ainda a “Cruzada das Crianças”, em 1212. Nela tomaram parte um


variado e numeroso grupo proveniente da Alemanha e da França, arregimentado
por um jovem pastor de nome Stephen de Cloyes. Na esperança de que o mar se
abrisse para sua passagem, chegaram à Cidade de Genova e Marselha onde foram
vendidos como escravos.

4.2 O FIM DAS CRUZADAS


Antes do fim do século XIII, estavam extintos todos os pequenos estados
que os cruzados haviam fundado no Oriente Próximo. O Reino Latino de Jerusalém
durou menos de um século (1099-1187). A razão deste fracasso deve-se a diversos
fatores. As expedições eram geralmente muito mal organizadas, raramente tinham
comando único e os comandantes rivais acabavam brigando entre si. Os exércitos,
mesmo quando vitoriosos, achavam-se sempre cercados por enorme população
estranha e hostil, o que aumentava a dificuldade em conservar os territórios
conquistados. Além disso, à medida que, com o suceder das expedições, ficava
cada vez mais claro o quão difícil era a conquista e manutenção de terras na
Palestina, mais crescia o interesse comercial das cidades italianas em disputar o

195
UNIDADE 3 | A ERA DAS GRANDES TRANSFORMAÇÕES

controle de Constantinopla e seu rico, mas frágil, Império. Nas últimas, ardorosas
e desesperadas expedições, mais resistência encontraram não só dos muçulmanos,
mas também de cristãos ortodoxos desiludidos com a truculência dos latinos.

TUROS
ESTUDOS FU

Caro(a) acadêmico(a)! Você deve ter notado que as cruzadas tiveram múltiplas
motivações e implicações e que elas, sendo algo inteiramente inédito, marcam uma ruptura
com o passado feudal. Nos próximos tópicos, você estudará o mundo novo que começou a se
instaurar na Europa a partir deste movimento.

4.3 AS CRUZADAS VISTAS PELOS ÁRABES


As Cruzadas costumam ser louvadas no Ocidente, especialmente a partir
do século XIX, como um dos momentos fundantes da civilização ocidental, não
apenas pelas consequências políticas e econômicas que trouxeram ao continente,
mas nos discursos mais beligerantes, como o momento de triunfo militar dos
europeus sobre os “infiéis”. O presidente dos EUA George W. Bush, ao dar início
à sua “Guerra ao Terror” após os atentados de 11 de setembro de 2001, referiu-
se à ofensiva (e foi muito criticado por isso) sobre o Oriente Médio como uma
“Cruzada”.

Por mais que possamos, hoje, estabelecer motivações internas europeias -


ou mesmo externas, como o tratamento dado pelos turcos aos peregrinos - para as
Cruzadas, é certo que o ataque cristão às regiões da Palestina foi completamente
inesperado. Essa foi, aliás, uma das razões de seu sucesso inicial: valendo-se do
elemento surpresa, os cristãos conseguiram avançar rapidamente e com muito
vigor.

No entanto, os relatos feitos pelos muçulmanos sobre as Cruzadas são


assustadores: notícias de massacres sem precedentes, violações e muita crueldade
eram comuns, e assustaram uma população que não tinha a menor ideia do que
motivava esse tipo de agressão gratuita.

O escritor libanês Amin Maalouf nos traz um retrato vivo desses ataques a
partir de uma biografia fictícia, mas baseada em histórias reais, em: “As Cruzadas
vistas pelos árabes”. A seguir, um trecho do Prólogo da obra:

196
TÓPICO 1 | AS TRANSFORMAÇÕES DO SÉCULO XI E AS CRUZADAS

Foi, de fato, na sexta-feira 22 do tempo de Chaaban, do ano de 492 da


Hégira, que os franj*  se apossaram da Cidade Santa, após um sítio de quarenta
dias. Os exilados ainda tremem cada vez que falam nisso. Seu olhar se esfria, como
se eles ainda tivessem diante dos olhos aqueles guerreiros louros, protegidos
de armaduras, que espalham pelas ruas o sabre cortante, desembainhado,
degolando homens, mulheres e crianças, pilhando as casas, saqueando as
mesquitas.

Dois dias depois de cessada a chacina não havia mais um só muçulmano


do lado de dentro das cidades. Alguns se aproveitaram da confusão para fugir,
pelas portas que os invasores haviam arrombado. Outros jaziam, aos milhares,
em poças de sangue na soleira de suas casas ou nas proximidades das mesquitas.
Entre eles, um grande número de imãs, ulemás e ascetas sufis que haviam
deixado sua terra para viver um retiro piedoso, nesses santos lugares.

Os últimos sobreviventes forçados a cumprir a pior das tarefas:


transportar os cadáveres dos seus, amontoando-os, sem sepultura, nos terrenos
baldios para em seguida queimá-los. Os sobreviventes, por sua vez, deveriam
proteger-se para não serem massacrados ou vendidos como escravos.

O destino dos judeus de Jerusalém foi igualmente atroz. Durante as


primeiras horas da batalha, vários deles participaram da defesa de seu bairro,
a Judiaria, situada no norte da cidade. Mas, quando a parte da muralha que
delimitava suas casas desmoronou, os judeus se apavoraram, vendo que os
louros cavaleiros começavam a invadir as ruas da cidade. A comunidade inteira,
reproduzindo um gesto ancestral, reuniu-se na sinagoga principal para rezar.
Os franj então bloquearam todos os acessos. Depois, empilhando feixes de lenha
em torno, atearam fogo. Os que tentavam sair eram mortos nos becos vizinhos,
os outros, queimados vivos.
FONTE: Maalouf (1988, p. 12)

UNI

SUGESTÃO DE LEITURA!

Para visões diferentes sobre as Cruzadas, do ponto de vista das maiores vítimas, recomendamos
dois livros:
● FALBEL, Nachman. Kidush Hashem: Crônicas hebraicas sobre as Cruzadas. São Paulo:
Edusp/Imprensa Oficial de São Paulo, 2001.
● MAALOUF, Amin. As Cruzadas vistas pelos árabes. São Paulo: Brasiliense, 1988.

Para que não reste nenhuma dúvida de que o termo Cruzada deve ser
abolido do seu vocabulário quando se referir a uma ofensiva militar e/ou religiosa,
transcrevemos aqui outro trecho da obra de Maalouf, que descreve atitudes ainda
mais cruéis e truculentas dos cruzados sobre as populações locais.
197
UNIDADE 3 | A ERA DAS GRANDES TRANSFORMAÇÕES

ATENCAO

Prezado(a) acadêmico(a), as imagens descritas no último parágrafo do trecho a


seguir são muito fortes, e podem ferir algumas sensibilidades. Use o seu discernimento para
avaliar se é adequado ler esse trecho. Lembre-se, porém, de que a História está repleta de
passagens como essa...

OS CANIBAIS DE MAARA

“Eu não sei se o domicílio onde nasci se trata de um pasto de bestas


selvagens ou de minha casa!”

Esse grito de aflição de um poeta anônimo de Maara não é um simples


recurso retórico. Temos, infelizmente, que tomar suas palavras ao pé da letra e
perguntar-nos com ele: o que aconteceu de tão monstruoso na cidade síria de
Maara nos finais do ano de 1098?

Até a chegada dos franj, os habitantes viviam pacificamente no abrigo de


sua muralha circular. Seus vinhedos, bem como seus campos de oliveiras e pés
de figos, forneciam-lhes uma modesta prosperidade. Quanto aos negócios de
sua cidade, eram geridos por honrados notáveis sem ambição desmedida, sob a
soberania nominal de Redwan, de Alepo. O orgulho de Maara era ser berço de
uma das maiores figuras da literatura árabe, Abul-Ala al-Maari, morto em 1057.

Esse poeta cego, livre pensador, ousara atacar os costumes de sua época,
sem se preocupar com as proibições estabelecidas. Era preciso audácia para
escrever:

“Os habitantes da terra dividem-se em dois grupos,


Os que têm cérebro, mas não tem religião,
E aqueles que têm religião, mas não têm cérebro”.

Quarenta anos após sua morte, um fanatismo vindo de longe viria,


aparentemente, dar razão ao poeta de Maara, tanto à sua irreligião, quanto ao
seu pessimismo legendário:

“O destino nos destrói como se fôssemos de vidro,


E nossos cacos jamais se soldarão.”

Sua cidade será, com efeito, reduzida a um amontoado de ruínas e essa


desconfiança, que o poeta expressa repetidas vezes, a respeito de seus semelhantes,
encontrará ali sua cruel ilustração.

198
TÓPICO 1 | AS TRANSFORMAÇÕES DO SÉCULO XI E AS CRUZADAS

Nos primeiros meses de 1098, os habitantes de Maara acompanharam com


preocupação a batalha de Antioquia que se desenrolava a três dias de caminhada
a noroeste de sua cidade. Após sua vitória, os franj vieram saquear alguns vilarejos
vizinhos e Maara fora poupada, mas algumas famílias preferiram trocá-la por lugares
mais seguros como Alepo, Homs ou Hama.

Seus temores foram justificados quando, perto do final de novembro,


milhares de guerreiros francos cercaram a cidade. Se alguns cidadãos ainda
conseguem safar-se, a maioria não tem escapatória. Maara não possui exército,
tem apenas uma simples milícia urbana à qual se juntam rapidamente centenas de
jovens sem experiência militar. Durante duas semanas, eles resistem corajosamente
aos temíveis cavaleiros, chegando a jogar sobre os sitiantes, de cima da muralha,
colmeias cheias de abelhas.

Ao vê-los tão tenazes, contará Ibn-al-Athir, os franj construíram uma torre


de madeira que atingia a altura da muralha. Alguns muçulmanos, tomados de
pavor e desmoralizados, pensaram que poderiam se defender melhor protegendo-
se nos edifícios mais altos da cidade. Deixaram então os muros, desguarnecendo
assim seus postos. Outros seguiram seu exemplo e um outro ponto da muralha
foi abandonado. Logo, a muralha toda ficou sem defensores. Os franj subiram
por meio de escadas, e quando os muçulmanos os viram no topo da muralha,
perderam toda sua coragem.

Chega a noite de 11 de dezembro. Está muito escuro e os franj ainda


não ousam penetrar na cidade. Os notáveis de Maara entram em contato com
Bohémod, o novo senhor de Antioquia, que se encontra à frente dos atacantes.
O chefe franco promete garantias, se cessarem o combate, deixando para trás
algumas construções. Agarrando-se desesperadamente à sua palavra, as famílias
reúnem-se nas casas e porões da cidade e, a noite toda, esperam tremendo.

Na alvorada, chegam os franj. É uma carnificina. Durante três dias, eles


matam mais de cem mil pessoas pela espada e fazem muitos prisioneiros. Os
números de Ibn-al-Athir são evidentemente fantasiosos, pois a população da
cidade, na véspera de sua queda, era provavelmente inferior a dez mil habitantes.
Mas o horror está menos presente no número de vítimas do que no destino quase
inimaginável que lhes foi reservado.

“Em Maara, os nossos faziam ferver os pagãos adultos em caldeira,


fincavam as crianças em espetos e as devoravam grelhadas.” Essa confissão
do cronista franco Raoul de Caen não foi lida pelos habitantes das localidades
próximas a Maara, mas até o fim de suas vidas eles se lembrarão do que viram e
ouviram. Pois, a lembrança dessas atrocidades propagadas pelos poetas locais,
assim como pela tradição oral, fixará nos espíritos uma imagem dos franj difícil
de ser apagada. [...] (MAALOUF, 1988, p. 45-47).

199
UNIDADE 3 | A ERA DAS GRANDES TRANSFORMAÇÕES

NOTA

Por causa de episódios como esse, as Cruzadas aparecem, aos olhos dos
muçulmanos, como um movimento de selvageria injustificada contra sua religião e seus
povos. Mas é importante que se diga que, durante muito tempo, as Cruzadas não eram parte
do imaginário muçulmano; essa visão tem sido incentivada atualmente por grupos políticos
específicos, que desejam incitar os muçulmanos ao confronto direto com o Ocidente; mas,
declarações como a de Bush (2001) e do Papa Bento XVI (2006) não ajudam em nada a
melhorar a imagem ocidental.

4.4 AS PERSEGUIÇÕES AOS JUDEUS NAS CRUZADAS


Como nos relata Amin Maalouf no trecho do Prólogo citado há pouco,
também os judeus sofreram com as hordas de cruzados. Mas a perseguição aos
judeus não se iniciou ali: desde o momento em que saíram da Europa, os cruzados
já atacavam os judeus por onde passassem.

Salomão Bar Sansão foi um dos cronistas que narrou o ocorrido, desse
ponto de vista:

Naquele ano, caiu o Pessach na quinta-feira do mês de Yar [10 de abril]


e na sexta-feira, véspera de sábado. E no oitavo dia de Yar [3 de maio], no dia
de sábado, levantaram-se os inimigos contra a comunidade de Spira e mataram
onze pessoas santas que haviam santificado o nome de seu Criador no sábado
santo e não quiseram batizar-se.

Lá se encontrava uma mulher importante e piedosa e imolou a si mesma


em seu Santo Nome. Ela foi a primeira dos que se sacrificaram e dos que foram
sacrificados em todas as comunidades e os restantes foram salvos pelo bispo
sem serem convertidos, como o descrevemos acima [é a fonte inicial que está
faltando].

E em 23 de Yar [18 de maio], levantaram-se contra a comunidade de


Worms e ela dividiu-se em duas partes. Um grupo permaneceu em suas casas
e o outro foi refugiar-se no palácio do bispo. Porém, levantaram-se os lobos das
estepes (Jr. 5:6) para atacar aqueles que ficaram em suas casas e assaltaram:
homens, mulheres e crianças, jovens e velhos, derrubando os degraus que se
encontravam defronte às casas, destruindo suas casas, pilhando e saqueando.
Tomaram a Torá, jogaram-na no barro do chão e queimaram-na, e atacaram
Israel como animais esfaimados (Is. 9:11). (FALBEL, 2001, p. 75).

200
RESUMO DO TÓPICO 1

Neste tópico você viu que:

● Depois do longo processo de invasões bárbaras (do século III ao século IX), as
tensões do sistema feudal se estabilizaram.

● Os níveis de violência diminuíram, a pacificação contribuiu para a diminuição da


circulação de doenças e epidemias e a população começou a crescer rapidamente
a partir do ano 1000.

● O aumento da população exerceu pressão sobre a estrutura fundiária e a


excessiva fragmentação das propriedades fez com que os clãs mais empobrecidos
adotassem o costume da primogenitura.

● A paulatina adoção da primogenitura lançou no desamparo os filhos


segundogênitos de muitos clãs que, junto com o excesso de população servil,
promoveram uma expansão interna da sociedade, em direção ao interior da
Europa.

● Este processo de expansão criou novas necessidades que revolucionaram os


métodos de trabalho e aumentaram a produtividade da economia medieval,
sustentando, assim, o crescimento demográfico.

Quanto ao movimento conhecido como Cruzadas (1095-1291), você também viu


que:

● Resultou da carência de terras por parte da nobreza feudal que, num amplo
movimento militar, expandiu-se em todas as direções.

● A partir de 1095, este processo expansionista ganhou o aval da Igreja, que


orientou o movimento para a Palestina, com o objetivo de “libertar” os lugares
santos do cristianismo do jugo islâmico.

● Apesar da ampla aceitação popular, o papado tinha interesses políticos no


movimento.

● A partir da quarta cruzada (1202-1204), o interesse comercial passou a ser


determinante ao destino do movimento.

201
● Apesar dos êxitos passageiros, enquanto expedições de conquista de terras na
Palestina, as cruzadas fracassaram; no entanto, foram importantíssimas para
abrir, ao ocidente latino, as rotas do comércio oriental.

202
AUTOATIVIDADE

1 Quais foram as origens sociais e as motivações econômicas e religiosas das


Cruzadas?

2 Por que as Cruzadas podem ser consideradas um momento de ruptura que


fez nascer um novo mundo para a cristandade ocidental?

3 Após ler o texto “Os canibais de Maara”, responda: Quem eram os franj? De
que forma eles foram representados pelos habitantes de Maara?

Assista ao vídeo de
resolução da questão 2

203
204
UNIDADE 3
TÓPICO 2

AS CONQUISTAS MONGÓLICAS

1 INTRODUÇÃO

Prezado(a) acadêmico(a), iniciamos agora os estudos sobre o período final


da Idade Média. Nesta unidade estudaremos o período do século XIII em diante,
uma época fundamental para compreendermos como o mundo chegou a ser o que
é hoje.

Alguns estudiosos, como Norbert Elias, consideram que o século XIII já


contém características do que chamamos hoje modernidade. Esse é um conceito e
uma discussão que deixaremos para outra oportunidade. O que importa, agora, é
entendermos que o período em destaque foi de profundas transformações sociais,
políticas e econômicas. A sociedade de 1400 pareceria irreconhecível a alguém que
tivesse vivido no ano 1000.

Neste primeiro tópico estudaremos um assunto pouco explorado, mas que


é fundamental para compreendermos a história da Europa e do mundo como um
todo: uma parte da História da Ásia, especialmente as conquistas mongólicas e
suas consequências.

UNI

SUGESTÃO DE LEITURA
Prezado(a) acadêmico(a), este é o tópico em que discutiremos com mais intensidade uma
história global, fugindo ao esquematismo da história medieval europeia fechada em si mesma.
Há um livro muito interessante que observa a história dessa forma:

● WOLFF, Eric. Europa e os povos sem história. São Paulo: EDUSP, 2009.
Se você souber inglês, há uma ótima coleção ainda não traduzida, que foge da tradicional
visão da História “a partir de cá”, e percebe que nada do que existe hoje era uma “necessidade
histórica”:
● TIGNOR, Robert (ed.) Worlds together, worlds apart: A History of the Modern World (1300 to
the Present). New York: Norton, 2002.

205
UNIDADE 3 | A ERA DAS GRANDES TRANSFORMAÇÕES

2 A ÁSIA CENTRAL ANTES DE GENGIS KHAN


O continente asiático foi o palco dos maiores impérios que a história
humana já testemunhou. O maior de todos foi o Império Mongólico, mas algumas
dinastias chinesas dominaram regiões quase tão vastas e muito mais populosas.
Os impérios chineses tinham, além de uma grande extensão territorial sob seu
domínio, uma população extremamente numerosa e culturalmente homogênea.

2.1 A CHINA DA DINASTIA TANG


Por volta do ano 1000, toda a região que hoje corresponde à China e
algumas das regiões adjacentes estavam politicamente unificadas sob a dinastia
Tang. Nessa época, a China já estava unida havia muitos séculos e era um país
muito estável e homogêneo etnicamente.

A enorme população, praticamente toda da mesma etnia (Han) e


falante de uma forma antiga do mandarim, vivia pacificamente, e a atividade
comercial e produtiva era intensa. Algumas das inovações surgidas no período
Tang incluem a invenção da pólvora, da xilogravura (entalhe em madeira de
imagens ou texto) e o aperfeiçoamento da porcelana. A China Tang dominava
o comércio marítimo no Pacífico e controlava a riquíssima rota da seda. Alguns
estudiosos consideram o período Tang como a “Era de Ouro” da civilização
chinesa.

NOTA

No século IX, o império chinês da dinastia Tang tinha mais de 80 milhões de


habitantes!

206
TÓPICO 2 | AS CONQUISTAS MONGÓLICAS

FIGURA 44 - O IMPÉRIO TANG

FONTE: Disponível em: <http://totallyhistory.com/wp-content/uploads/2011/11/Map-of-Tang-


Dynasty-in-663-AD.jpg>. Acesso em: 20 nov. 2012.

UNI

Explicação do mapa acima.


Em tom mais escuro, o Império Tang em sua maior extensão (ca. 663 d.C.). As regiões mais
ao norte do império (Mongólia), nordeste (Manchúria) e oeste (atual Uzbequistão e regiões
próximas) fariam parte, nos séculos seguintes, do Império Mongólico. A sudoeste, mais claro, o
Império Tibetano. No detalhe embaixo, o Império Tang no século IX. Pela região mais estreita
passava a rota da seda.

A partir do século X, com a queda da dinastia Tang, a região ficou dividida


em três reinos distintos: o reino Song, da fronteira sul chinesa até Beijing; o reino
Xia, ao sul da Mongólia (na região chamada Mongólia Interior) e o reino Liao, ao
norte de Beijing, ocupando regiões da Manchúria e Mongólia. Ao sul, o Império
Tibetano em declínio e o subcontinente indiano politicamente fragmentado não
ofereciam risco aos governantes e à população. A Oeste, diversas tribos nômades
de etnia túrquica e mongólica espalhavam-se e representavam perigo constante à
unidade dos reinos, mesmo com a barreira da Grande Muralha.

A antiga dinastia Tang, especialmente, buscava conter o ímpeto agressivo


mongol, incitando as tribos a lutarem entre si. Os governantes Liao e seus sucessores
Jin, apesar de terem origem mongólica, faziam o mesmo.
207
UNIDADE 3 | A ERA DAS GRANDES TRANSFORMAÇÕES

2.2 A ROTA DA SEDA


A rota da seda desempenhou um papel fundamental no desenvolvimento
de impérios na Ásia, Europa e África. Ligando a China, por diversos caminhos
diferentes, à Europa, a rota proporcionou um enorme intercâmbio econômico,
cultural e microbiano entre essas vastas regiões.

Como você pode imaginar, uma rota comercial de tamanha extensão tinha
valor inestimável. Era muito difícil e perigoso viajar por longas distâncias, e por
isso a grande maioria das pessoas não conhecia nada que não tivesse surgido
no local onde viviam. Os comerciantes, por isso, desempenhavam um papel
fundamental de difusão cultural, ao trazer novos produtos, novas línguas, novas
doenças e novas ideias.

FIGURA 45 - A ROTA DA SEDA NO SÉCULO I D.C., MOSTRANDO OS CAMINHOS MARÍTIMOS E


TERRESTRES

FONTE: Disponível em: <http://www.portogente.com.br/texto.php?cod=50245>. Acesso em: 20


dez. 2012.

O comércio da seda iniciou-se por volta de 200 a.C., mas as relações


comerciais entre as regiões abrangidas pela rota são ainda mais antigas. A rota foi
interrompida apenas por breves períodos desde seu estabelecimento, geralmente
por causa de guerras de conquista. Mas os conquistadores logo perceberam a
grande vantagem de manterem a rota em funcionamento.

208
TÓPICO 2 | AS CONQUISTAS MONGÓLICAS

FIGURA 46- AS LARVAS DA MARIPOSA BOMBYX MORI (À ESQUERDA) ALIMENTAM-SE DE


FOLHAS DE AMOREIRA E, QUANDO SE ENCASULAM, PRODUZEM O FINÍSSIMO
TECIDO CONHECIDO COMO SEDA (À DIREITA). A DIFICULDADE DE SUA
PRODUÇÃO E A ALTA QUALIDADE FAZEM DA SEDA UM PRODUTO MUITO
VALORIZADO. HÁ EVIDÊNCIAS DE QUE O BICHO-DA-SEDA SEJA CRIADO PARA A
PRODUÇÃO DE SEDA HÁ MAIS DE CINCO MIL ANOS

FONTE: Disponível em: <http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/c/cc/Bombyx_


mori_001.JPG>; <http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/d/df/Bombyx_mori_
Cocon_02.jpg>. Acesso em: 23 nov. 2012.

Além da seda, eram transportados pela rota: tapetes persas, armas, tecidos,
pedras preciosas, prata, especiarias do Oriente (canela, cravo, noz moscada,
pimenta), produtos trazidos do sul do Saara pelas caravanas cameleiras etc. Em
suma, tudo o que tivesse valor comercial era levado de uma ponta à outra do
mundo conhecido. Como você pode perceber, falamos aqui de um verdadeiro
comércio global, em pleno século XIII!

NOTA

Prezado(a) acadêmico(a), você se lembra das primeiras aulas de História do Brasil,


em que aprendemos que os portugueses buscavam especiarias na Índia? Agora você já sabe
como eles sabiam da existência das especiarias antes de haverem chegado lá, e por que era tão
interessante para eles procurarem um caminho para as Índias. Eles buscavam, essencialmente,
controlar o comércio que antes era feito pela rota da seda!

As enormes distâncias e os perigos das viagens forçavam os comerciantes


a recorrerem a redes de contatos, e fazerem acordos com os chefes locais mais
poderosos. Em troca da segurança para a travessia da rota, os comerciantes
pagavam tributos e pedágios, ou davam aos chefes locais a prioridade no comércio.
Mas o mais vantajoso, para os comerciantes, era a existência de impérios vastos
e centralizados, dentro dos quais fosse possível transitar sem precisar pagar
tributos a dezenas ou centenas de chefes locais. Em parte por isso, a rota da seda
desempenhou um papel muito importante na formação dos vastos impérios que
existiram na Ásia.
209
UNIDADE 3 | A ERA DAS GRANDES TRANSFORMAÇÕES

A maior parte dos impérios do Oriente Médio desenvolveu-se ao longo


dessa rota, e foi por causa dela que eles puderam prosperar. Muitos dos povos
que viviam no caminho da rota da seda, como os de origem persa, túrquica e
mongólica, eram originalmente grupos tribais nômades que, em função do contato
com os comerciantes, tornavam-se salteadores ou mercenários.

Essas habilidades possibilitaram a vários desses povos, eventualmente,


a conquista de seus próprios domínios e a formação de impérios. É o caso dos
impérios de origem persa, do mundo islâmico, do império cazar (ao norte do
Cáucaso) e dos canatos túrquicos e mongólicos.

NOTA

Canato é o nome que se dá ao território administrado por um khan – líder político


e militar dos povos turcos, mongóis ou de algumas regiões da Ásia Central. Também se escreve
às vezes khanato ou canado (especialmente em Portugal).

UNI

SUGESTÃO DE SITE
Prezado(a) acadêmico(a), uma das melhores fontes de pesquisa de mapas históricos disponíveis
hoje na internet é a extensa coleção de mapas produzidos e divulgados por Thomas Lessmann,
em seu website:
<http://www.worldhistorymaps.info/>.

3 GENGIS KHAN E AS CONQUISTAS MONGÓLICAS


Os mongóis ocupam as estepes e desertos da Ásia Central desde tempos
imemoriais e durante séculos mantiveram-se frouxamente unidos em torno
de líderes tribais. Alguns estudiosos apontam uma proximidade étnica entre
mongóis e os povos túrquicos (turcos, uzbeques, cazaques, turcomenos e outros)
e, possivelmente, também os hunos, mas essa proximidade é controversa. Sua
religião tradicional era animista, mas eles tinham contato com diversas religiões:
Cristianismo nestoriano, Zoroastrismo, Budismo, Islamismo, entre outras.

Como você pode ver, ao contrário do que costumamos imaginar, os mongóis


não estavam isolados nos confins do mundo nem ignoravam o que acontecia ao
seu redor; ao contrário, estavam muito bem inseridos na geopolítica asiática da
época. As terras que ocupavam, nas estepes da Mongólia e nos desertos de Gobi
e Ordos, eram atravessadas pela rota da seda e percorridas por comerciantes de
todas as origens.

210
TÓPICO 2 | AS CONQUISTAS MONGÓLICAS

A falta de unidade entre as tribos era, como já vimos, incentivada pelas


potências regionais. No início do século XIII, a região da Mongólia estava cercada
pelo reino Jin, no norte da China, e pelo Canato Kara-Khitan a oeste. Ambos
os domínios provinham do antigo reino Liao, e ambos temiam uma possível
organização política dos mongóis.

3.1 A EXPANSÃO MONGOL


Em 1206, Gengis Khan fez o que os reinos vizinhos temiam: unificou as
tribos mongólicas nômades e deu início à conquista de uma região tão vasta que
seus domínios, até hoje, jamais foram superados por nenhum outro império na
história. Em menos de um século, seus exércitos espalharam-se por quase toda a
Ásia e chegaram à Europa, demonstrando um poder militar impressionante.

FIGURA 47 - GENGIS KHAN, LÍDER MONGOL E CRIADOR DO MAIS


EXTENSO IMPÉRIO DA HISTÓRIA

FONTE: Disponível em: <http://lobusdaestepe.files.wordpress.


com/2012/04/genghis_khan.jpg?w=500&h=475>. Acesso em: 17
nov. 2012.

Aonde iam, os exércitos mongóis arrasavam os povos que resistissem


(geralmente as cidades) com uma violência implacável. Quando derrotados,
sempre retornavam para buscar revanche. Eram especialistas não apenas em táticas
de guerrilha e intimidação, mas também em sitiar cidades. Estima-se que cerca de
30 milhões de pessoas possam ter morrido vítimas das conquistas mongólicas.

211
UNIDADE 3 | A ERA DAS GRANDES TRANSFORMAÇÕES

FIGURA 48 - DOMÍNIOS MONGÓLICOS NO PERÍODO DE MÁXIMA EXPANSÃO (1279)

FONTE: Disponível em: <http://es.wikipedia.org/wiki/Archivo:Mongol_


Empireaccuratefinal.png>. Acesso em: 14 mar; 2013.

3.2 SOB DOMÍNIO MONGÓLICO


Após a conquista de uma região, porém, os mongóis costumavam governar
com justiça e equidade. Eram indiferentes às crenças dos povos conquistados,
e por isso havia plena tolerância religiosa - exceto nos casos em que a religião
entrasse em conflito com os interesses militares, como aconteceu com vários grupos
muçulmanos. Apesar disso, em todas as suas campanhas militares, a destruição
dos locais religiosos era parte das estratégias de intimidação psicológica.

FIGURA 49 - EXEMPLO DE ESCRITA MONGÓLICA, CONFORME FOI


ESTABELECIDA DURANTE O REINADO DE GENGIS KHAN. A
LEITURA É FEITA DE CIMA PARA BAIXO E DA ESQUERDA PARA A
DIREITA

FONTE: Disponível em: <http://ministryoftype.co.uk/images/files/mongolian-


bible-2.png>. Acesso em: 18 nov. 2012.

212
TÓPICO 2 | AS CONQUISTAS MONGÓLICAS

A personalidade e o legado de Gengis Khan são muito controversos,


especialmente porque as fontes disponíveis costumam vir dos povos que foram
conquistados por seus exércitos. Ao mesmo tempo que foi um conquistador
implacável e violento, Gengis Khan elaborou um código de leis unificado, civil
e militar, que foi aplicado a todos os seus domínios. Analfabeto, percebeu a
importância da educação e encomendou a criação de um alfabeto para a língua
mongólica. Seus domínios, que incluíam uma vastíssima diversidade étnica e
cultural, previam acesso aos postos mais altos por mérito, não por origem – exceção
feita ao título de Khan, exclusivo de seus descendentes.

3.3 A PAX MONGOLICA


As conquistas mongólicas iniciaram-se com o domínio sobre as regiões
chinesas mais próximas. Assim que unificou as tribos, Gengis Khan aproveitou-
se do temor despertado por sua liderança para investir contra o reino Xia. Após a
conquista, desviou seus exércitos para o Ocidente, capturou o canato Kara-Khitan
(no atual Cazaquistão) e destruiu o poder dos governantes mamelucos do Irã.

Após sua morte (1227), seus filhos e netos deram continuidade à expansão
e conquistaram vastos territórios em terras chinesas, islâmicas e russas (ver mapa).
Mas as disputas entre eles levaram à fragmentação do império, que ficou dividido
em canatos independentes.

A unidade militar e legal das regiões sob domínio mongólico trouxe


grandes benefícios para o comércio. A rota da seda voltou a ser muito lucrativa
e as comunicações entre as diversas regiões, fundamentais para a administração
de um império desse tamanho, eram eficientes. Pelo código de Gengis Khan, era
crime ferir um mensageiro. A unificação política de tantas regiões e o consequente
incentivo econômico costumam ser referidos pelos estudiosos como Pax Mongolica.

A Pax Mongolica encerrou-se no final do século XIV, em parte pelas


mudanças estruturais nos domínios mongólicos durante o século. As disputas
entre os herdeiros de Gengis Khan e a adaptação dos mongóis às condições locais
de cada região levaram à criação de canatos independentes. Muitos deles adotaram
a religião e a cultura locais, de modo que em poucas décadas não havia nada mais
a uni-los, exceto a herança mongólica.

Outro motivo apontado para o fim do período de paz foi a Grande Peste. A
peste surgiu em algum lugar do Império Mongol e foi rapidamente transportada
para regiões que antes tinham pouca comunicação. A peste foi noticiada na China
em 1331 e na Crimeia (no Mar Negro) em 1346, de onde se espalhou rapidamente
pela Europa. A peste causou uma reviravolta demográfica e política em toda a
Eurásia: enfraqueceu os mongóis e, na Europa, o sistema feudal.

213
UNIDADE 3 | A ERA DAS GRANDES TRANSFORMAÇÕES

4 CONSEQUÊNCIAS DAS INVASÕES MONGÓLICAS


Por onde passaram, os mongóis deixaram um legado ambíguo, ao mesmo
tempo de destruição e de reconstrução. Se, de um lado, arrasaram várias das
terras e das populações conquistadas, por outro a Pax Mongolica possibilitou o
florescimento do comércio em uma vasta região. Se, de um lado, Gengis Khan e
seus sucessores incentivaram a cultura, de outro a destruição da Grande Biblioteca
de Bagdá (1258) trouxe um prejuízo cultural incalculável e é considerada um dos
marcos do final da Era de Ouro islâmica.

As transformações causadas pelas conquistas mongólicas podem ser


resumidas, para cada região, da seguinte forma:

4.1 NA CHINA
Os mongóis unificaram toda a China e regiões adjacentes (mapa a seguir)
sob a dinastia Yuan. Seu fundador foi Kublai Khan, neto de Gengis Khan. Após
conquistar o poder (1260), conteve as revoltas dos antigos grupos dominantes
e iniciou um período de paz e tolerância religiosa. Kublai era um entusiasta
da cultura chinesa e um grande incentivador das artes e da cultura. Durante
seu reinado, a China abriu-se para o mundo, favorecida pela rota da seda, e
mercadores europeus, como Marco Polo, visitaram o reino, possibilitando o
intercâmbio cultural.

Os sucessores de Kublai Khan, porém, consideravam-no demasiadamente


adaptado à cultura chinesa e foram mais hostis à cultura local. As tentativas
posteriores de isolar-se da cultura e da população chinesa e transformar os
mongóis em elite política chinesa levaram a uma série de revoltas que derrubaram
a dinastia Yuang em 1368 e deram início à dinastia Ming. Os governantes Ming
iniciaram uma política xenofóbica, que manteria a China isolada até o século XVII.

214
TÓPICO 2 | AS CONQUISTAS MONGÓLICAS

FIGURA 50 - DINASTIA YUAN, SOB O COMANDO DE KUBLAI KHAN (1294)

FONTE: Disponível em: <http://upload.wikimedia.org/wikipedia/


commons/7/7d/Yuen_Dynasty_1294.png>. Acesso em: 14 mar.
2013.

4.2 NO MUNDO MUÇULMANO


As regiões persas do Irã, Cazaquistão e Afeganistão (que formavam na
época um império chamado Khwarezmia ou Corásmia) foram, logo após a China,
as primeiras a serem conquistadas pelos mongóis. Entre 1219 e 1221, os mongóis
ocuparam toda a região e criaram o Ilcanato, que se estendia da Anatólia (Turquia)
até o atual Afeganistão. O Ilcanato era herdeiro de toda a tradição e cultura persa,
e os contatos com a China (o governante do reino, Hulagu Khan, era irmão de
Kublai Khan) favoreciam enormemente o comércio de ambos os países.

A conquista da região foi, como era costume entre os mongóis, brutal. A


cidade de Bagdá foi sitiada e saqueada em 1258, e a Grande Biblioteca, a maior do
mundo na época, foi destruída. O impacto do prejuízo cultural causado por essa
destruição foi tão grande que os estudiosos utilizam esse episódio como referência
para o final da Era de Ouro islâmica.

Os governantes do Ilcanato inicialmente adotaram uma política de


tolerância religiosa que favorecia a presença de cristãos nestorianos e budistas.
Isso, na realidade, destoava da realidade da população, quase toda muçulmana.
Esse aparente descompasso entre os governantes e a população era visto com
interesse pelos reis da Europa Ocidental, que consideravam uma aliança com os
mongóis para combaterem o Islã nas regiões da Palestina e, assim, reavivarem as
Cruzadas. Mas a aliança nunca se efetivou.

Após a morte de Hulagu Khan, seus herdeiros começaram progressivamente


a adotar o modo de vida, a cultura e a religião locais. Com isso, o Islamismo

215
UNIDADE 3 | A ERA DAS GRANDES TRANSFORMAÇÕES

manteve-se poderoso em seus domínios anteriores e incorporou uma força militar


temível.

No século XIV, Timur (conhecido no Ocidente como Tamerlão) tentou


recriar o império de Gengis Khan. Atacou o Império Otomano e envolveu-se em
enfrentamentos e negociações com os reinos cristãos, que o consideravam o mais
ferrenho adversário muçulmano desde Saladino. Morreu em 1405, durante sua
tentativa de invadir a China Ming.

4.3 NA EUROPA
A expansão pelas estepes da Rússia não era a prioridade dos mongóis;
muito mais importante era a conquista da China e do Oriente Médio, regiões muito
mais ricas. Mesmo assim, os mongóis invadiram as estepes russas e destruíram as
grandes cidades da região: Kiev, Moscou, Rostov e outras.

Na região, fundaram o Canato da Horda Dourada, que pressionou os


estados do Leste Europeu, especialmente o Principado de Novgorod, e favoreceu
o surgimento de outros estados, como o Grão-Ducado de Moscou, ancestral da
Rússia czarista e o canato da Crimeia.

Em seguida, os mongóis invadiram a Polônia e os Bálcãs, onde provocaram


nova devastação. A combinação de cavalaria leve e ágil com a pólvora trazida da
China provou-se devastadora.

FIGURA 51 - O CANATO DA HORDA DOURADA, UMA DAS DIVISÕES DO IMPÉRIO


MONGÓLICO, EM 1389

FONTE: Disponível em: <http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/d/d5/


Golden_Horde_1389.svg>. Acesso em: 17 nov. 2012.

216
TÓPICO 2 | AS CONQUISTAS MONGÓLICAS

Como se pode ver, a presença mongólica teve grande importância para


a história dos povos eslavos: está na origem da divisão entre Rússia, Ucrânia
e Belarus, e interferiu em toda a organização política da região pelos séculos
seguintes.

Indiretamente, também, teve influência na história da Europa Ocidental,


não apenas como veículo difusor da Peste Negra, como pelo reativamento das rotas
comerciais transcontinentais. Esses dois eventos, como veremos, foram cruciais
para a dissolução do feudalismo e para o renascimento comercial europeu. Junte-
se a isso o impacto sobre o imaginário europeu das descrições do Oriente, feitas
por Marco Polo em seu “Descrição do Mundo”, e estão dadas as condições básicas
para a criação do expansionismo mercantil do século XV em diante.

217
RESUMO DO TÓPICO 2

Neste tópico você viu que:

● A Dinastia Tang, que governou a China entre os séculos VIII e IX, foi uma
das mais poderosas da história do país. Nessa época foram desenvolvidas
tecnologias como: a pólvora, a xilogravura e a porcelana.

● A rota da seda foi um longo caminho que ia da China até o Mar Mediterrâneo e
pelo qual eram transportados todos os tipos de produtos de uma região a outra
da Ásia.

● A enorme importância econômica da rota da seda propiciou a formação de


diversos impérios ao longo de seus caminhos, em todas as épocas.

● No início do século XIII, as tribos mongólicas do interior da Ásia foram unificadas


sob o comando de Gengis Khan.

● Gengis Khan, liderando seu poderoso exército, iniciou um século de conquistas


mongólicas, que criaria o mais extenso império jamais surgido na História.

● A expansão mongólica favoreceu o comércio pela rota da seda e trouxe paz para
vastas regiões da Ásia. O período ficou conhecido com Pax Mongolica.

● As invasões mongólicas trouxeram enormes consequências políticas para todas


as regiões afetadas, desde a China, com a instalação de uma dinastia mongol sob
o comando de Kublai Khan, até a Rússia.

● Uma das consequências mais drásticas das conquistas mongólicas foi a invasão
do mundo muçulmano, encerrando a Era de Ouro Islâmica.

218
AUTOATIVIDADE

1 Relacione alguns dos impérios que prosperaram ao longo da rota da seda,


desde o século I d.C. até o século XV.

2 Alguns estudiosos afirmam que as invasões mongólicas teriam originado


ou, pelo menos, acelerado o surgimento da Era Moderna. Que elementos
podem ser encontrados para corroborar essa ideia?

Assista ao vídeo de
resolução da questão 2

219
220
UNIDADE 3
TÓPICO 3

A IGREJA E A CULTURA NA IDADE MÉDIA

1 INTRODUÇÃO
As transformações econômicas, sociais e políticas analisadas nos tópicos
anteriores nos ajudarão a entender, agora, a grande revolução intelectual que
alterou a mentalidade e o espírito do Ocidente e preparou o caminho para o
Renascimento.

Como considerar obscura uma época que construiu as catedrais góticas,


com sua nova e luminosa arte de vitrais, que reintroduziu os afrescos, que inventou
a música polifônica, que transformou a investigação da natureza num caminho
para o conhecimento de Deus?

A partir do século XII, as cidades buscaram e conquistaram a autonomia


comunal e as cortes concentraram o poder territorial e político, imprimindo um
novo padrão de comportamento cortês. A Igreja encontrou, em terras islâmicas e
bizantinas, a antiga sabedoria há muito esquecida. Então, a religião pôde libertar-
se dos dogmas e construiu uma ética baseada na filosofia. Nas cidades, fundaram-
se universidades, nas cortes, produziram-se os primeiros exemplares do que seria
mais tarde a moderna literatura ocidental.

Neste tópico procuramos fazer uma análise de como surgiram e quais foram
as características mais marcantes deste novo mundo da religião, da cultura, das artes
e do pensamento.

Boa leitura!

2 A REFORMA ECLESIÁSTICA DO SÉCULO XI


O período por volta do ano 1000, como já vimos, marcou uma transformação
econômica e social em boa parte da Europa Ocidental. O fim das invasões e
o desenvolvimento de tecnologias agrícolas mais eficientes permitiram uma
melhoria da produtividade e um consequente aumento populacional. Os europeus
do século XI desfrutavam, em geral, de condições de vida muito mais favoráveis
do que seus ancestrais de duzentos anos antes.

Não era apenas do ponto de vista econômico que as mudanças se faziam


sentir. Inquietações e insatisfações com os rumos da Igreja entre os membros
do clero levaram a profundas modificações na própria estrutura eclesiástica
e na relação da Igreja com os fiéis e os próprios religiosos. A busca por uma

221
UNIDADE 3 | A ERA DAS GRANDES TRANSFORMAÇÕES

espiritualidade mais pura levou muitas pessoas a adotarem uma vida monástica,
ou a auxiliarem, com seu sacerdócio, os mais pobres. A religiosidade estava
trilhando novos caminhos, e eles seriam decisivos para o futuro da Igreja.

2.1 O QUE SIGNIFICAVAM “REFORMA” E “IGREJA”?


Antes de prosseguirmos, vamos estabelecer rapidamente o que se
entenderia, na época, por “reforma da Igreja”. Essa conceituação não será feita
por um “vício” de se delimitar todos os conceitos de que se fala (embora seja uma
atitude saudável para um historiador), mas porque os próprios sentidos atuais
desses dois termos dependem, em certa medida, dessa reforma em especial.

O termo “reforma” se utiliza hoje como referência a qualquer mudança


estrutural, embora, supostamente, para melhor. Tem, portanto, um sentido de
melhoria. Até o século XI, o termo não existia ou era muito pouco utilizado; foi
justamente nesse momento que ele se tornou popular. No entanto, o foco principal
dos “reformadores” da Igreja do século XI não era a melhoria: era o retorno ao
que eles entendiam como sendo a pureza original do Cristianismo, que os séculos
teriam corrompido. “Reforma” era, portanto, um “retorno à forma original”. Foi
a partir daí que esse termo ganhou o sentido adicional de “transformação para
melhor” que utilizamos hoje.

Do mesmo modo, o termo “Igreja” tinha uma definição bastante ampla,


que ainda prevalece na liturgia, mas que se perdeu um pouco no senso comum.
“Igreja” era, ao mesmo tempo, o edifício onde se realizavam as missas, os religiosos
e os fiéis associados a ela ou toda a comunidade cristã espalhada pelo mundo.

Dessa forma, a “reforma da Igreja” era uma tentativa de recriar a religião


católica, com base nos ensinamentos originais do Cristianismo, de modo que isso
transformasse o clero, os fiéis e a relação entre ambos.

2.2 A IGREJA NO SÉCULO XI


Mas reformar o quê? Quais eram os problemas que a Igreja do século
XI enfrentava e que era tão necessário combater? A principal queixa dentro do
alto clero era a interferência exagerada dos leigos nos assuntos eclesiásticos. A
interferência mundana era apontada como a causa da simonia, do casamento
clerical e da dissipação do patrimônio da Igreja.

Vejamos em detalhes:

● Simonia: significa a compra de cargos eclesiásticos. O termo vem do personagem


bíblico Simão Mago, que teria tentado subornar os apóstolos para conseguir seus
poderes de cura e de salvação (Atos 8:18-20). Era simonia comprar diretamente
os cargos ou usar de influência para consegui-los.

222
TÓPICO 3 | A IGREJA E A CULTURA NA BAIXA IDADE MÉDIA

● Casamento clerical: até o século V, os religiosos, embora pudessem se casar,


deveriam viver castos após a ordenação. No período Carolíngio, no entanto,
já era impossível controlar. O casamento de religiosos era problemático para a
Igreja por dois motivos: por profanar a santidade da vocação e por acarretar a
divisão das terras da Igreja entre os descendentes dos padres.

● Patrimônio da Igreja: não devemos pensar que “a Igreja”, como instituição,


tivesse muitas propriedades; no século XI não havia base legal para isso. Mas
cada paróquia tinha seus domínios eclesiásticos e territoriais, e esses domínios
estariam ameaçados se fossem divididos entre os herdeiros de um membro do
clero, mesmo se fossem transferidos a um herdeiro de cada vez. Com o tempo,
esse herdeiro poderia vir a considerar-se o dono do território.

AUTOATIVIDADE

Prezado (a) acadêmico(a), todos esses problemas eram atribuídos à


interferência leiga na Igreja. Mas, será que era realmente assim? Você consegue
perceber o quanto há de questões internas da Igreja em todas essas questões?
Dentre esses três problemas (simonia, casamento clerical e possível divisão do
patrimônio), qual lhe parece o que mais preocupava os líderes da Igreja da
época? E por qual motivo? Algum deles lhe parece pouco importante, do ponto
de vista político ou doutrinário? Explique.

2.3 O MOVIMENTO REFORMISTA


De todo modo, observar essas questões e apontá-las como problemas a
serem resolvidos era um indicativo de que elas incomodavam os membros do clero
e que eles entendiam que seria necessário removê-las do pensamento cristão para
aproximar os fiéis de Deus. Em todas as partes da cristandade, as reivindicações
eram semelhantes, e geralmente envolviam os seguintes pontos:

2.3.1 O celibato clerical


O religioso deveria ser casto e eximir-se de qualquer atividade sexual por
toda a sua vida. O argumento religioso para isso dizia que o pecado capital da
luxúria corrompia a missão evangelizadora. Estudiosos apontaram o celibato
clerical como uma forma de preservar intacta a propriedade da Igreja e de defendê-
la contra a sanha conquistadora dos reis, senhores feudais e imperadores. Mas o
reverso também é verdadeiro: o celibato clerical servia aos propósitos da Igreja ao
permitir o acúmulo cada vez maior de propriedades. Estima-se que a Igreja, como
um todo, fosse proprietária de um terço da metade das terras europeias.

223
UNIDADE 3 | A ERA DAS GRANDES TRANSFORMAÇÕES

2.3.2 O Monasticismo
Os movimentos que desejavam um retorno à pureza original da Igreja
eram comuns na Europa desde o século IX. O objetivo dos reformadores era
retornar a uma vida de simplicidade, cultivando as artes, o silêncio e a devoção
aos mais pobres. Os movimentos reformistas tornaram-se muito prestigiados a
partir de 950, e durante todo o século XI. Inicialmente, a reforma monástica estava
concentrada na Abadia de Cluny (atual França) e baseava-se no retorno a uma
obediência estrita da Regra de São Bento.

FIGURA 52 - DETALHE DA ABADIA DE CLUNY, NA FRANÇA, ONDE SE ORIGINOU O


MONASTICISMO CIRTERCENSE

FONTE: Disponível em: <http://theredlist.fr/media/database/architecture/history/architecture-


europeene/art-roman/abbaye-de-cluny/011_abbaye-de-cluny_theredlist.jpg>. Acesso
em: 19 dez. 2012.

O principal líder da Abadia de Cluny foi o monge cisterciano Bernardo de


Clairvaux (1090-1153). Clairvaux aplicou os princípios cistercianos até mesmo à
arquitetura das igrejas, que passaram a ser desprovidas de ornamentos supérfluos,
que atrapalhassem sua verdadeira função – a devoção a Deus. O estilo arquitetônico
que melhor se prestou a essa finalidade previa igrejas com naves amplas, janelas
largas e arcos ogivais. Esse estilo daria origem, posteriormente, ao gótico.

Outra figura muito relevante no processo de reforma monástica foi São


Francisco de Assis (1181-1226). Francisco era membro de uma família abastada da
cidade italiana de Assis e abandonou tudo para viver na pobreza. Em 1210, o Papa
224
TÓPICO 3 | A IGREJA E A CULTURA NA BAIXA IDADE MÉDIA

Inocêncio III autorizou a criação de sua ordem religiosa, que ficaria conhecida
como Franciscana. Os franciscanos têm por objetivo viver da forma mais simples
possível e seguir os passos de Jesus Cristo.

FIGURA 53 - SÃO FRANCISCO DE ASSIS TERIA SIDO A PRIMEIRA PESSOA


DE QUE SE TEM NOTÍCIA A MANIFESTAR AS CHAGAS DE
CRISTO (STIGMATA). FALECEU EM 1226 E FOI CANONIZADO
DOIS ANOS DEPOIS

FONTE: Disponível em: <http://1.bp.blogspot.com/_a4Viwbn0HoY/


SOY8FG3ITfI/AAAAAAAABpY/0X29jQZpMmA/s400/dia-de-sao-
francisco-de-assis-25.jpg>. Acesso em: 18 dez. 2012.

NOTA

Stigmata é um termo latino de origem grega que significa marcas corporais ou


manchas. No vocabulário cristão, refere-se a uma manifestação de ferimentos no corpo,
similares às Chagas de Cristo (cf. Jo 19,34; Jo 20, 24-27) e, portanto, entendidas como sinal de
santidade e de extrema devoção. Muitas vezes vêm acompanhadas de êxtase religioso.

Os franciscanos teriam muita importância no desenvolvimento das


universidades. Embora seu objetivo original não fosse a busca do conhecimento,
logo havia mais franciscanos nas universidades europeias do que membros de
outras congregações.

225
UNIDADE 3 | A ERA DAS GRANDES TRANSFORMAÇÕES

2.3.3 Os cátaros e a Inquisição


No sul do atual território francês, na região chamada Languedoc, surgiu no
final do século XII um movimento religioso que buscava uma religiosidade mais
simples, mais de acordo com o que seus seguidores acreditavam ser o cristianismo
original. Intitulavam-se cátaros (puros, em grego), e ficaram conhecidos também
por albigenses – referência à proximidade com a cidade de Albi. Embora sua
religiosidade se aproximasse em muitos pontos da busca por uma simplicidade
religiosa tão frequente na época, suas ideias eram fundamentalmente diferentes
dos dogmas da Igreja Católica. Eram dualistas, ou seja, acreditavam que havia um
princípio do Bem e um princípio do Mal.

O mundo que conhecemos teria sido criação não de Deus, mas do Demônio,
pois é instável, corrupto e decadente. Jesus Cristo teria sido enviado por Deus para
a salvação, mas não como homem: seria apenas um anjo que assumiu a aparência
humana.

Essa doutrina era potencialmente destrutiva para a Igreja, pois questionava


os principais fundamentos do cristianismo: a criação do mundo, a natureza
humana de Cristo, a Trindade e, segundo determinada interpretação, o próprio
monoteísmo.

Havia pontos de convergência entre o pensamento dos cátaros e doutrinas


orientais, como: o maniqueísmo, o zoroastrismo, o budismo e outras. Os cátaros
adotavam uma vida simples, abstinham-se dos prazeres carnais e recusavam-se
a comer carne - exceto peixes. Graças à sua postura moral rígida, os seguidores
do movimento passaram a gozar de grande respeito em suas comunidades,
especialmente nas cidades de Toulouse, Montpelier, Perpignan e Montségur.

A doutrina dos cátaros foi duramente combatida pela Igreja Católica


com o apoio dos reis franceses, entre 1209 e 1244, em um movimento que ficou
conhecido como Cruzada Albigense. Inquirido sobre como diferenciar os
cátaros dos católicos, já que eles estavam plenamente integrados à sociedade
local, o legado papal encarregado de sufocar o movimento teria ordenado,
segundo relatos, que se matassem a todos: “Deus se encarregará dos seus”.

O massacre dos cátaros (e dos não cátaros) não foi suficiente para destruir
o movimento. No século seguinte, a Igreja Católica procurou nova abordagem
para o problema e instituiu uma forma de investigação baseada na observação,
inquérito e determinação de responsabilidades. Estava instituída a Inquisição,
que tinha poderes para confiscar bens e condenar os hereges, assim que fossem
identificados.

226
TÓPICO 3 | A IGREJA E A CULTURA NA BAIXA IDADE MÉDIA

NOTA

A Inquisição, como você pode perceber, é a forma de investigação que deu origem
aos nossos tribunais.

3 AS UNIVERSIDADES
As universidades se desenvolveram a partir das escolas das catedrais
que ensinavam os candidatos ao clero regular. Nascidas no meio urbano, seus
integrantes - professores e alunos - formavam uma corporação destinada ao ensino
e à aprendizagem e cuja mercadoria era o conhecimento.

Dependendo da catedral, que também era parte integrante das cidades


medievais, as escolas eram mais acessíveis aos leigos. E, quanto mais as cidades se
desenvolviam e mais catedrais eram construídas, mais proliferavam essas escolas
através da Europa. Quem eram os alunos? Uma imensa e variada fauna urbana,
proveniente de todas as camadas da sociedade: baixo clero, nobres sem terra,
burgueses, artesãos, aprendizes e servos.

FIGURA 54 - A UNIVERSIDADE DE BOLONHA, FUNDADA EM 1088, É A MAIS ANTIGA DO


MUNDO OCIDENTAL

FONTE: Disponível em: <http://www.inbologna.it/guida_i00006c.jpg>. Acesso em: 19 dez.


2012.

227
UNIDADE 3 | A ERA DAS GRANDES TRANSFORMAÇÕES

E
IMPORTANT

DEBATE EM SALA

— Professor, como assim? As universidades nasciam nas cidades, no século XI? Esse não era o
período do auge do feudalismo e as cidades não surgiram alguns séculos mais tarde?
— As coisas não são tão esquemáticas e estanques como estamos acostumados a pensar.
Primeiro que o “feudalismo” é um conceito problemático, como já discutimos. Depois, não
é porque havia feudalismo que não podia haver cidades. Muito ao contrário: as cidades e os
comerciantes eram fundamentais para garantir aos feudos alguns tipos de produtos. Ainda,
as universidades iniciaram seu funcionamento no século XI, o que não quer dizer que elas
já fossem muito fortes. Algumas das maiores universidades europeias foram criadas lá pelos
séculos XIII ou XIV. Mas as condições para seu surgimento apareceram com a reforma religiosa
do século XI.

Nas escolas das catedrais ensinavam-se as sete artes liberais, divididas


em Trivium – gramática, retórica e dialética (lógica) - e o Quadrivium – aritmética,
geometria, astronomia e música. O conteúdo das matérias era mais amplo do que
pareciam indicar os seus nomes.

A gramática incluía noções de latim e de literatura; a aritmética abrangia


o estudo da teoria dos números; a geometria acrescentava o estudo da geografia
e da história natural; na astronomia, incluíam-se noções de química e de física. O
trivium estudava-se por quatro ou cinco anos e dava o título de bacharel em Artes,
que pelas leis corporativas correspondia ao oficial e não conferia a seu portador
habilitação alguma. O Quadrivium requeria mais três ou quatro anos de estudo,
após os quais se obtinha o título de “Mestre em Artes”.

FIGURA 55 - O QUADRIVIUM ERA PARTE DO CURRÍCULO DE FORMAÇÃO DO


ESTUDANTE MEDIEVAL

FONTE: Disponível em: <http://www.lisakaborycha.com/drupal/sites/default/files/


quadrivium_0.jpg>. Acesso em: 19 dez. 2012.

228
TÓPICO 3 | A IGREJA E A CULTURA NA BAIXA IDADE MÉDIA

Poucos eram os autores estudados e a maioria tinha vivido no começo da


Idade Média.

● Cassiodoro (490-581 d.C.), “Manual do Ensino Sagrado e Secular”.

● Boécio (480-525 d.C.), “Consolação da Filosofia”.

● Isidoro de Sevilha (560-636 d.C.), “Etimologiae”.

Estes autores, ao lado de Santo Agostinho (354-430 d.C.) – autor da “Cidade


de Deus”, do Papa Gregório Magno (540-604 d.C.) e de outros padres da Igreja,
eram conhecidos como auctores ou “autoridades”, cujas palavras o estudante
deveria decorar e jamais atrever-se a contradizer.

Tal era a situação até que começaram a ser introduzidos os livros


traduzidos do árabe e do grego nas fronteiras da cristandade. Aos professores e
alunos cristãos eram apresentados os tesouros da ciência e filosofia greco-romanas
e os saberes de árabes e judeus. A paixão que despertaram estas novas obras
levou muitos professores e estudantes aos locais das traduções (Sicília, Espanha
e Constantinopla), a fim de se aprofundarem nas obras em sua língua original.
Enfim, as escolas das catedrais passaram a ter alimento para o espírito.

Este espírito frutificou e produziu grandes professores. Gerberto di Aurillac


(950-1003 d.C.), que antes de se tornar o Papa Silvestre II era mestre da escola da
Catedral de Rheims e viajou à Espanha para estudar com os mouros os segredos
de sua matemática, de lá voltou anunciando que não mais bastava a compilação
dos auctores reconhecidos pela Igreja. Seus alunos tinham que estudar os clássicos
latinos no original. E, para isso, iniciou uma importante biblioteca.

Fulberto de Chartres (960-1028 d.C.), na qualidade de bispo da catedral de


Chartres e professor da escola, inspirou, em seus alunos, o grande amor à dialética,
ensinando-os a criar raciocínio através de argumentos. A partir de então, o espírito
das escolas em geral, e de Chartres em particular, era animado não somente pelo
fornecimento de informações à inteligência dos alunos. Além disso, pretendia-se
que exprimissem as suas ideias com suas próprias palavras.

Neste ambiente de debates, de torneio de ideias, surgiu o mais importante


professor do século XII: o famoso mestre Pedro Abelardo (1079-1142). Um espírito
inquieto e arguto, conhecido mais popularmente por seu trágico amor por Heloísa.
Em sua obra de lógica “Sic et Non”, Abelardo propôs 158 questões relativas aos
dogmas cristãos e as respondeu mediante conflitantes citações das Escrituras, dos
Padres da Igreja e dos clássicos pagãos. Dizia ele que: “a primeira chave para a
sabedoria é uma assídua e frequente indagação [...], pois que da dúvida nós
chegamos à procura, e da procura à verdade”.

229
UNIDADE 3 | A ERA DAS GRANDES TRANSFORMAÇÕES

FIGURA 56 - PEDRO ABELARDO (1079-1142), UM DOS REPRESENTANTES


DA CORRENTE DE INTELECTUAIS CHAMADOS GOLIARDOS,
FICOU CÉLEBRE PELAS IDEIAS TRANSFORMADORAS E POR
SEU ENVOLVIMENTO COM HELOÍSA, SUA PUPILA

FONTE: Disponível em: <http://www.schillerinstitute.org/graphics/photos/


hist_other/abelard.jpg>. Acesso em: 15 dez. 2012.

Condenado ao silêncio pelo Concílio de Soissons em 1121, Abelardo


não se calou. Voltou a lecionar, enfrentou debates calorosos, assistidos por uma
multidão de alunos, com o Abade Bernardo de Clairvaux, a quem humilhou
intelectualmente. Abelardo defendia que o pecado não era inerente à natureza
humana, mas sim uma opção negativa. Pecamos contra nossa consciência, quando
fizemos algo que sabemos que é errado ou quando não fizemos quando deveria ser
feito. Abelardo foi condenado por heresia no Concílio de Sens em 1140. Suas obras
foram queimadas e ele viveu em reclusão pelos dois últimos anos de sua vida.

FIGURA 57 - BERNARDO DE CLAIRVAUX, QUE TRAVOU


DISPUTAS TEOLÓGICAS COM PEDRO
ABELARDO

FONTE: Disponível em: <http://upload.wikimedia.org/


wikipedia/commons/e/e6/Bernard_of_Clairvaux_-_
Gutenburg_-_13206.jpg>. Acesso em: 15 dez. 2012.

230
TÓPICO 3 | A IGREJA E A CULTURA NA BAIXA IDADE MÉDIA

Foi reunindo as contribuições de todos estes professores versados no saber


greco-árabe que, no século XIII, São Tomás de Aquino escreveu a sua “Summa
Theologica”, que você teve oportunidade de conhecer anteriormente. Enfim, o livre-
arbítrio, uma ideia tão comum aos gregos, mas odiada pela hierarquia da Igreja,
voltou a soprar no Ocidente cristão.

4 O RENASCIMENTO DO SÉCULO XII


Religião e filosofia sempre estiveram ligadas. De certa forma, a religião é,
antes de tudo, um sistema filosófico e, muitas vezes, filósofos escreveram sobre
religião. Na Idade Média, especialmente, tanto no Ocidente como no mundo
muçulmano, a filosofia estava muito vinculada à religião. A partir do final do
século XI, e especialmente no século XII, essa vinculação levou a uma notável
transformação da forma de se pensar filosoficamente a religião cristã, com o
desenvolvimento de ferramentas teóricas que dariam, também, origem ao método
científico moderno.

Esse movimento foi, curiosamente, consequência de todas as grandes


transformações pelas quais a sociedade europeia passava naquele período: as
conquistas de regiões sob o domínio islâmico, a reforma religiosa do século XI, o
surgimento das universidades, tudo contribuiu para essa mudança de perspectiva.
Vejamos como isso aconteceu.

4.1 A CONTRIBUIÇÃO GRECO-ÁRABE


O cristianismo dogmático do início da Idade Média considerava o mundo
terreno um lugar de pecados e tentações, onde reinavam a confusão, a desordem,
onde a maior parte dos fenômenos físicos era interpretada como intervenção
das forças transcendentes do Bem ou do Mal. Disso resultou que, por quase
mil anos, os estudiosos cristãos deixaram de lado a observação da natureza e as
experimentações científicas. Preferiam ocupar-se com a vida além-túmulo e aterem-
se ao conhecimento das Sagradas Escrituras, às quais atribuíam uma autoridade
infalível.

O grande precursor desse dogmatismo, Santo Agostinho (354-430), autor


de “A Cidade de Deus”, considerava que “discutir a natureza e a posição da
Terra no universo em nada nos auxilia na esperança de vida eterna” e que “os
seguidores de Eratóstenes [matemático, geógrafo e astrônomo grego, 276 a.C.-
194 a.C.] perderam de vista o céu enquanto tentavam medir a circunferência da
Terra”. E, assim, o mundo cristão latino passou a desprezar a ciência e a filosofia
dos antigos.

Enquanto permaneceram disponíveis, os livros dos autores gregos e


romanos eram aceitos como grande autoridade em teoria científica, tendo essa
aceitação permanecido até o século VI, quando - por força da ortodoxia agostiniana
que se impunha - estas obras deixaram de ser lidas ou se perderam, e apenas
abreviados comentários citados por outros autores sobreviveram.
231
UNIDADE 3 | A ERA DAS GRANDES TRANSFORMAÇÕES

Desde Santo Agostinho, grande parcela do conhecimento produzido ou


traduzido para o latim – filosofia, astronomia, astrologia, geometria, matemática,
química, medicina, enfim, tudo o que os antigos consideravam ciência – foi
relegado a segundo plano e esquecido, pois não era considerado importante para
a formação do fiel e para a salvação de sua alma.

Costuma-se pensar o latim eclesiástico da Idade Média como uma evolução


da língua da antiga Roma. Em parte, isto é verdade. Porém, o desprezo do antigo
cristianismo pela arte, ciência e pensamento pagãos empobreceu o latim e criou
um ambiente desfavorável às inquietudes intelectuais.

E
IMPORTANT

Prezado(a) acadêmico(a), você consegue perceber que na Alta Idade Média,


especialmente após Santo Agostinho, havia uma disputa ideológica entre ciência e religião?
Que essa disputa era vista como impossível de se conciliar, porque os objetivos das duas,
as formas de perceberem o mundo, as respostas que davam às próprias perguntas eram
completamente diferentes?
Não será possível perceber, hoje em dia, uma rivalidade semelhante? Não vivemos hoje em
uma sociedade em que ciência e religião parecem estar em dois lados opostos, prontos para
se enfrentarem? Na Idade Média, a religião parecia estar vencendo a batalha. Como estamos
hoje?

4.2 A REDESCOBERTA DOS CLÁSSICOS NOS ÁRABES


Curiosamente, por uma dessas ironias da história, quando este dogmatismo
cristão mostrava sua face mais terrível promovendo as Cruzadas, o Ocidente
redescobriu os clássicos. A centelha vital da explosão cultural do Ocidente se deu
em meio à reconquista de terras islâmicas das penínsulas Ibérica e Itálica pelos
guerreiros cristãos. Quando entraram nas grandes cidades muçulmanas, como
Toledo ou Palermo, os cristãos depararam-se com muitas maravilhas: saneamento,
iluminação noturna, banhos públicos, mercados com produtos requintados.
Contudo, nada superou o impacto de suas grandes bibliotecas.

O que fazer com tal patrimônio? Foi aí, em meio à cruel guerra religiosa que
foram as Cruzadas, que os cristãos decidiram não destruir aqueles livros mantidos
pelos “infiéis”, mas decifrá-los. Em parte para melhor compreenderem o inimigo,
a fim de derrotá-lo mais facilmente, em parte por reverência àqueles acervos, em
parte por curiosidade, os estudiosos cristãos puseram-se a ler aquelas obras. Ao
fazerem isso, a grande surpresa: perceberam que nelas estavam preservadas a
antiga ciência e a filosofia de gregos e romanos, inclusive obras há séculos perdidas
no Ocidente e que se julgavam perdidas para sempre, enriquecidas por séculos de
reflexões muçulmanas e judaicas.

232
TÓPICO 3 | A IGREJA E A CULTURA NA BAIXA IDADE MÉDIA

FIGURA 58 - POR SUA CONTRIBUIÇÃO PARA A DIFUSÃO DA


FILOSOFIA CLÁSSICA E SUA INTERPRETAÇÃO ORIGINAL
DE ARISTÓTELES, O FILÓSOFO MUÇULMANO AVERRÓIS
(IBN RUSHD - 1126-1198) FIGURA NA CÉLEBRE PINTURA
A ESCOLA DE ATENAS, DE RAFAELLO SANZIO

FONTE: Disponível em: <http://gabrielbcn.files.wordpress.


com/2007/07/ibn_rushd.jpg?w=455>. Acesso em: 17 dez.
2012.

Através das traduções que se realizaram, a partir do século XII, o Ocidente


(re)encontrou-se com obras da Antiguidade, como os tratados filosóficos e
científicos de Plotino, Próclo, Eratóstenes, Ptolomeu, Euclides, Arquimedes e
Galeno. Como já vimos, a civilização islâmica havia assimilado sistematicamente
conhecimentos científicos das civilizações que viviam sob seu império.

Algumas cidades importantes, como Alexandria e Antioquia, contavam com


grandes bibliotecas, em grego, siríaco ou aramaico, que foram sistematicamente
traduzidas para o árabe, copiadas e multiplicadas para bibliotecas espalhadas pelo
mundo islâmico - Córdoba e Bagdá eram duas das cidades que abrigaram grandes
bibliotecas na chamada Era de Ouro Islâmica.

Também havia ali tratados escritos originalmente em árabe ou persa,


com contribuições especificamente islâmicas à ciência e à filosofia, como os de al-
Kindi, al-Farabi, al-Ghazali, Ibn Khaldun – ou judaicas, como os de Maimônides.
O matemático, filósofo e poeta persa al-Kwarizmi (ca. 780- ca. 850) introduziu o
conceito de “zero” na notação decimal posicional dos algarismos (termo criado em
referência a ele) em uso no Islã.

Seus textos, vertidos para o latim, trouxeram ao Ocidente seu sistema


numérico decimal posicional, em uso até nossos dias. Nesse contexto, merecem
destaque também os textos do médico e filósofo árabe Avicena (Ibn Sina, 979-1037),
cujo tratado de medicina tornou-se referência para a medicina ocidental. Contudo,

233
UNIDADE 3 | A ERA DAS GRANDES TRANSFORMAÇÕES

nada parece ter sido tão significativo para o pensamento do Ocidente do que as
traduções da obra de Aristóteles feitas e enriquecidas com comentários próprios
pelo filósofo Averróis (Ibn Rushd, 1126-1198).

4.3 A ESCOLÁSTICA
Quando estes novos conhecimentos, advindos das traduções que se faziam
nas fronteiras da cristandade, começaram a ser absorvidos pelos intelectuais da
época, provocaram uma verdadeira revolução na Teologia (conhecimento de Deus
e da religião) e na Filosofia (conhecimento do mundo e dos homens) ocidentais.

O conhecimento dos antigos, de natureza racional, parecia ameaçar e até


mesmo negar as verdades da religião cristã. A partir de então, uma série de filósofos,
dentre os quais se destacam Santo Anselmo, Pedro Abelardo, São Alberto Magno,
Robert Grosseteste e, principalmente, São Tomás de Aquino, propuseram-se uma
árdua tarefa: demonstrar que existia a possibilidade de conciliar os postulados da
fé cristã com as normas da razão humana, conciliar a teologia cristã e a filosofia
antiga, harmonizar a fé e a razão, duas tendências que, até então, pareciam
irreconciliáveis.

Em comum, tinham esses estudiosos o fato de serem sacerdotes e estarem


vinculados a universidades ou a centros de estudo mantidos pela Igreja. Por esse
motivo, seu movimento filosófico tornou-se conhecido como “Escolástica”.

UNI

Prezado(a) acadêmico(a), perceba que, apesar de a filosofia recém-descoberta


ameaçar os conhecimentos teológicos há séculos arraigados na Europa, havia uma tentativa,
nesse período, de conciliar as duas áreas de conhecimento. Os estudiosos talvez pudessem
ter simplesmente rejeitado essa filosofia como sendo “blasfêmia de pagãos e infiéis”, mas não
fizeram isso.
Perceba, também, que o esforço para conciliar religião e razão talvez fosse, principalmente,
uma preocupação dos religiosos, que eram provavelmente os únicos naquela sociedade que
sabiam ler, sabiam latim e grego e tinham tempo e recursos suficientes para dedicarem-se
a estudos tão abstratos. Talvez, a preocupação com os fundamentos da religião não fosse
tão grande entre os demais membros da sociedade; mas, como a grande maioria das fontes
disponíveis para nós foi deixada pelos religiosos, temos muita dificuldade de saber o quanto a
população da época era, de fato, sensível a tais questões.

Recolhendo os esforços de seus antecessores, o grande nome dessa época


foi São Tomás de Aquino (1225-1274), que escreveu a “Summa Theologica”, onde
expôs racionalmente sua interpretação dos dogmas cristãos. Aquino desenvolveu
631 problemas teológicos diferentes e respondeu a exatas 10.000 possíveis objeções.
Reconhecia duas fontes de conhecimento: a fé cristã, transmitida pelas Escrituras
e pela tradição da Igreja, e as verdades adquiridas pela razão e pelos sentidos
humanos, tais como apresentadas por Platão, Aristóteles e os demais filósofos.
234
TÓPICO 3 | A IGREJA E A CULTURA NA BAIXA IDADE MÉDIA

Para São Tomás, as duas fontes tinham necessariamente que concordar, pois
ambas provinham da mesma fonte: Deus. Sendo assim, os objetivos primordiais
de sua filosofia eram demonstrar que a razão teria sempre preferência e que o
Universo era racionalmente constituído.

Baseado na ciência antiga, afirmava que o mundo era um todo ordenado,


dirigido por uma finalidade inteligente. E, se o universo possuía leis naturais,
regularidades dadas por Deus no momento da Criação, o mesmo Deus dotara o
homem da capacidade racional de compreender essas leis e intervir no mundo
terreno. Isto significou uma verdadeira revolução, pois praticamente eliminou a
dicotomia entre o mundo espiritual e o mundo físico.

Dentre os vários pensadores do período, outro nome merece ser citado: o


franciscano inglês Roger Bacon (1214-1294). Bacon preconizava a experimentação
e a observação criteriosa como os únicos meios de conhecer a verdade. Tendo
redigido uma gramática grega, Bacon afirmava que o desconhecimento das
línguas originais causava os erros dos filósofos e teólogos. Criticava os sábios que
se amparavam em autoridades falíveis ou no valor da tradição “e que dissimulam
sua ignorância com argumentos verbosos”. Matemático, inventor, precursor de
Leonardo da Vinci como projetista de máquinas engenhosas, químico, óptico,
geógrafo, astrônomo, Roger Bacon foi o primeiro a observar a inexatidão do
Calendário Juliano e a pedir sua revisão ao Papa Clemente IV.

ATENCAO

Não confunda o franciscano Roger Bacon com o filósofo Francis Bacon, que
nasceu no século XVI e também trouxe contribuições fundamentais para a filosofia e a ciência.

FIGURA 59 - ROGER BACON FOI UM DOS PRECURSORES DO MÉTODO


CIENTÍFICO MODERNO

FONTE: Disponível em: <http://3.bp.blogspot.com/-fUqjJxooHoQ/


UO2cqfL6XDI/AAAAAAAABa0/QESBPBy0ca8/s1600/frases-do-
filosofo-roger-bacon.jpg>. Acesso em: 14 dez. 2012.

235
UNIDADE 3 | A ERA DAS GRANDES TRANSFORMAÇÕES

Outros filósofos importantes dessa época incluem o judeu Moisés


Maimônides (1138-1204) e os franciscanos ingleses Duns Scotus (1265–1308)
e Guilherme de Occam (1288-1348). Todos desenvolveram uma ideia central
no método científico: o Princípio da Parcimônia. A menos que algum elemento
interfira na interpretação de um fenômeno, a explicação mais simples deve ser
considerada a mais correta. Assim, não há necessidade de introduzir elementos
estranhos na explicação. Esse princípio é conhecido, desde o século XVIII, como
Navalha de Occam.

LEITURA COMPLEMENTAR 1

AS ESCOLAS DE TOLEDO NO SÉCULO XII

Jacques Le Goff

Entre as cidades que no século XII se distinguiram pela atividade


das suas escolas, contava-se Toledo, graças ao concurso de sábios e
tradutores árabes e judeus. Aí se desenvolveram, sobretudo, as ciências
e a filosofia, esta conhecida através de manuscritos gregos trazidos pelos
muçulmanos. Um curioso relato feito por um erudito inglês, Daniel de
Morley (século XII), mostra-nos como Toledo atraía então estudantes
vindos de todos os pontos.

A paixão do estudo tinha-me levado a deixar a Inglaterra. Fiquei algum


tempo em Paris. Só aí vi selvagens instalados com uma grave autoridade nos seus
bancos escolares, com dois ou três escabelos à frente carregados de enormes obras,
reproduzindo as lições de Ulpiano em letras de ouro, com penas de chumbo na
mão pintando gravemente nos livros asteriscos e óbelos. A ignorância obrigava-os
a manterem-se numa atitude de estátua, mas pretendiam mostrar sabedoria pelo
próprio silêncio. Logo que tentavam abrir a boca não se ouvia senão um balbuciar
infantil.

Tendo compreendido a situação, refleti sobre a maneira de escapar a estes


riscos e de aprender as “artes” que iluminam as Escrituras, de preferência a saudá-
las de passagem ou evitá-las por meio de resumos. Por isso, como nos nossos dias é
em Toledo que o ensino dos árabes, o qual consiste quase inteiramente nas artes do
quadrivium, é transmitido às massas, apressei-me em ir para lá para ouvir as lições
dos filósofos mais sábios do mundo.

Tendo-me alguns amigos chamado e convidado a deixar a Espanha, voltei


para Inglaterra com uma preciosa quantidade de livros. Dizem-me que nestas regiões
o ensino das artes liberais era desconhecido de Aristóteles e de Platão, voltados ao
mais profundo esquecimento em proveito de Tito e Seio. A minha dor foi grande
e, para não ser o único grego entre os romanos, pus-me a caminho para encontrar
um sítio onde ensinar a fazer florescer este gênero de estudos [...].

FONTE: Adaptado de: LE GOFF, Jacques. Os Intelectuais na Idade Média. Lisboa: Estúdios Cor,
1973, p. 92.

236
TÓPICO 3 | A IGREJA E A CULTURA NA BAIXA IDADE MÉDIA

LEITURA COMPLEMENTAR 2

INTELIGÊNCIA E GRAÇA (SÉCULO XIII)

São Tomás de Aquino

Perante o problema da origem e possibilidade do conhecimento, S.


Tomás (1225-1274) seguiu o intelectualismo realista de Aristóteles. No
entanto, admitiu que utilizando as suas capacidades naturais o homem
nunca poderia atingir o grau de conhecimento a que chegaria com o
auxílio da graça divina. Deste modo, conciliou o aristotelismo e o
pensamento cristão, a razão e a fé.

O objeto da faculdade de conhecer é aquilo que é. [...] Muitas coisas até as


quais o intelecto do homem deverá penetrar permanecem escondidas. Por trás do
acidente está escondida a natureza substancial da coisa; por trás das palavras estão
os seus significados; por trás dos símiles e figuras está a verdade figurada, porque
as coisas inteligíveis estão, como se estivessem, dentro das coisas sensíveis; e nas
causas estão ocultos os efeitos, e inversamente.

Portanto, visto que o conhecimento humano começa com os sentidos e a


partir de fora, é claro que quanto mais forte for a luz do intelecto, tanto mais longe
penetrará no interior das coisas. Mas a luz do nosso intelecto natural é de virtude
finita e pode alcançar apenas o que é limitado. Por esta razão, o homem precisa da
luz sobrenatural a fim de atingir o conhecimento que não pode conhecer por meio
da luz natural; e essa luz sobrenatural dada ao homem é chamada donun intelectus.

FONTE: Adaptado de: AQUINO, São Tomás de. Summa Theologiae, q. VIII, art. I.

LEITURA COMPLEMENTAR 3

DAS VANTAGENS DA CIÊNCIA EXPERIMENTAL (SÉCULO XIII)

Rogério Bacon

Roger Bacon (1214-1294), franciscano professor em Oxford,


profundamente marcado pelo pensamento judaico e árabe, foi um dos
primeiros espíritos “modernos” na maneira como considerou o valor da
experiência e do conhecimento em geral. Mal compreendido pelos seus
superiores, morreu na prisão.

Desejo agora esclarecer os princípios da ciência experimental, visto que sem


experiência nada pode ser suficientemente conhecido. Porque há duas maneiras de
adquirir conhecimento, nomeadamente, pelo raciocínio e pela experiência.

O raciocínio arrasta consigo uma conclusão e faz-nos aceitar a conclusão,


mas não torna a conclusão certa, nem afasta a dúvida de maneira a que o espírito
possa descansar na intuição da verdade enquanto o mesmo espírito não a descobrir
237
UNIDADE 3 | A ERA DAS GRANDES TRANSFORMAÇÕES

pelo caminho da experiência; como tal, muitos têm argumentos dizendo respeito
ao que pode ser conhecido, mas porque têm falta de experiência, desprezam os
argumentos e nunca evitam o que é prejudicial, nem seguem o que é bom. Porque, se
um homem que nunca tivesse visto fogo quisesse provar por raciocínios adequados
que o fogo queima, injuria e destrói as coisas, o seu espírito não se daria por satisfeito
desta maneira, nem ele evitaria o fogo até que nele colocasse a mão ou qualquer
substância combustível, de forma a provar pela experiência o que o raciocínio
tinha ensinado. Mas quando tivesse feito a presente experiência da combustão, o
seu espírito adquiriria uma certeza e descansaria na plena luz da verdade. Por esta
razão, o raciocínio não é suficiente, mas o é a experiência.

FONTE: BACON, Rogério. Opus Majus. In: ROSS, J. Bruce; MCLAUGHLIN, M. Martins. The
Portable Medieval Reader. 8. ed. New York, 1958, p. 626.

238
RESUMO DO TÓPICO 3
Neste tópico você viu que:

● Por considerar a salvação da alma como missão prioritária, o cristianismo da


Alta Idade Média desprezou a filosofia e a ciência da antiguidade, que caíram
no esquecimento por vários séculos.

● A partir das Cruzadas, o Ocidente voltou a se encontrar com a cultura antiga,


através dos árabes contra os quais lutava.

● Os muçulmanos preservaram, em suas bibliotecas, grande parcela da cultura


antiga e seus filósofos. Além de comentar as obras, fizeram importantes
contribuições em todas as áreas do conhecimento.

● A tradução destes textos, para o latim medieval, significou uma verdadeira


revolução no pensamento ocidental.

● Conciliar a teologia cristã e a filosofia antiga, a fé e a razão, foi a grande tarefa


dos pensadores cristãos a partir do século XII.

● Na Summa Theologica, de São Tomás de Aquino, reconciliam-se as duas fontes de


conhecimento: a fé cristã, transmitida pelas escrituras e pela Igreja, e as verdades
adquiridas pela razão e pelos sentidos humanos.

● A partir de então, o mundo terreno deixou de ser desprezado, pois com a ciência
antiga e árabe, os pensadores ocidentais puderam ver que o universo possuía
leis naturais, regularidades dadas por Deus no momento da criação. O mesmo
Deus dotará o homem de capacidade racional para compreender estas leis e
intervir no mundo terreno.

● Esse racionalismo, aliado a um empirismo cada vez mais metódico, possibilitou


o renascimento intelectual do Ocidente.

239
AUTOATIVIDADE

1 São Francisco de Assis foi recebido pelo Papa Inocêncio III em Roma e dele
recebeu autorização para a criação de suas ordens religiosas. O mesmo
Inocêncio III ordenou a “cruzada” contra os cátaros albigenses do sul da
França. É possível traçar uma relação entre os dois eventos? De que forma
eles se vinculam ao movimento reformista da Igreja que estava em curso
desde o século XI?

2 Sintetize os principais embates religiosos e sociais do período entre os séculos


XI a XIII na Europa ocidental.

3 A partir do que você pôde apreender da leitura deste tópico, qual lhe parece
ter sido o alcance das transformações na Igreja e na sociedade europeias
a partir do século XI? Foram profundas, consideráveis, superficiais ou
ilusórias? Justifique seu ponto de vista.

4 Escreva um pequeno texto no qual você, caro(a) acadêmico(a), estabeleça


relações entre algum dos textos das leituras complementares e o conteúdo
tratado ao longo do tópico

Assista ao vídeo de
resolução da questão 1

240
UNIDADE 3
TÓPICO 4

O RENASCIMENTO COMERCIAL E URBANO

1 INTRODUÇÃO

A partir das cruzadas, depois de séculos de isolamento, a sociedade cristã


ocidental finalmente voltou a se integrar às grandes rotas do comércio mundial.
Tal fato propiciou um renascimento do comércio local no interior da Europa,
fomentando o aparecimento e crescimento do mundo urbano. Neste tópico
veremos como se deu este processo de renascimento comercial e urbano e como
este processo alterou o jogo de forças dentro do mundo feudal. Veremos também
como se estruturou a vida urbana na Baixa Idade Média e como as cidades se
constituíram em um elemento dinâmico que criou as condições para o grande
despertar econômico, social, cultural e político que culminou no Estado Nacional
Absolutista e no capitalismo comercial da era moderna.

Então, boa leitura!

2 A ERA DO PREDOMÍNIO ISLÂMICO DO COMÉRCIO


O mundo islâmico do século XII que os cruzados encontraram era, além
de sofisticado social e culturalmente, muito vasto e muito rico. Ao contrário do
cristianismo latino, que menosprezava o apego às coisas materiais e às práticas
mercantis, a religião do mercador Maomé valorizava a atividade comercial e o
conforto relacionado à sua prática. Quando conquistaram seu vasto império, as
trocas comerciais conheceram um desenvolvimento considerável. Desde o fim
do século VIII, Bagdá se tornou uma das principais praças do comércio mundial,
para onde convergiam os principais itinerários. Por terra, a rota da seda a ligava
à distante China e, por mar, através do Golfo Pérsico, afluíam os produtos da
Índia e do sudoeste asiático. Desde a Península Ibérica até o Extremo Oriente, os
mercadores muçulmanos sulcavam seu imenso império controlando as rotas das
especiarias, da porcelana e da seda.

241
UNIDADE 3 | A ERA DAS GRANDES TRANSFORMAÇÕES

E
IMPORTANT

Caro(a) acadêmico(a), você já deve ter percebido que a língua portuguesa tem
dezenas de palavras de origem árabe. Certamente, esta contribuição foi fruto da dominação
muçulmana na Península Ibérica. Mas um dado interessante é que muitas destas palavras
designam mercadorias ou prazeres relacionados à vida econômica. Vejamos alguns exemplos:
açúcar, açougue, aduana, alambique, álcool, alfândega, almoxarifado, cheque, cifra, café, elixir,
garrafa, laranja, limão, safra etc.

FIGURA 60 - NAVIO NO GOLFO PÉRSICO

Composta de indianos e
negros, a tripulação deste
barco no Golfo Pérsico
enfrenta alguma agitação
no convés, enquanto os
passageiros assistem
pelas portinholas. Pelo
Mediterrâneo, pelo Mar
Vermelho e pelo Golfo
Pérsico, os itinerários
marítimos uniam África,
Índia e China à Europa.

FONTE: Disponível em: <http://www.superluminal.com/cookbook/images/boat_large.jpg>.


Acesso em: 15 fev. 2013.

No século X, com o estabelecimento dos Fatímidas no Egito e sua dominação


sobre a Síria, o Cairo passou a disputar a posição predominante de Bagdá, através
da rota do Mar Vermelho. A posição privilegiada da capital egípcia favorecia os
contatos com todo o mundo islâmico: pelo Mar Vermelho havia o acesso à Arábia,
Pérsia, Índia e sudeste asiático; pelo Mar Mediterrâneo era possível chegar à
Turquia, Constantinopla e Al-Andalus (Península Ibérica); pelo deserto do Saara,
caravanas cameleiras traziam produtos exóticos (pimenta, noz de cola), escravos e
ouro. O Cairo e Bagdá eram, dessa forma, os dois maiores pilares que sustentavam
a riqueza do mundo islâmico.

242
TÓPICO 4 | O RENASCIMENTO COMERCIAL E URBANO

E
IMPORTANT

É importante, porém, observar que essa escravidão tinha muito pouca semelhança
com a escravidão que os europeus estabeleceriam, na Idade Moderna, no Continente
Americano. Não apenas o tipo de trabalho executado era muito diferente, mas a dependência
econômica que a sociedade tinha dele era muito menor. Além do mais, o escravo era tratado
de forma muito distinta e tinha acesso muito mais facilitado à libertação.

2.1 O EFEITO DAS CONQUISTAS MONGÓLICAS


Mas a hegemonia econômica e comercial do mundo islâmico estava com
os dias contados. No século XIII, uma nova força militar surgida do Leste atacou
com força avassaladora: sob o comando de Gengis Khan, os mongóis invadiram
o mundo islâmico e promoveram uma total reorganização do mundo conhecido.
Quando a fúria conquistadora mongólica refreou, e os mongóis foram incorporados
às regiões que conquistaram, o saldo foi um mundo transformado.

Nas primeiras décadas de dominação mongólica, o Islã perdeu um pouco


da força política na Ásia, por não ser esta, inicialmente, a religião dos mongóis.
Muito ao contrário, os mongóis eram, como já vimos, indiferentes às crenças locais
e abriam espaço, muitas vezes, a grupos religiosos minoritários, como era o caso
dos cristãos nestorianos ou dos zoroastrianos. A política mongólica de tolerância
religiosa favoreceu, assim, o trânsito de mercadores de diversas religiões e etnias
ao longo das rotas comerciais do Leste, enfraquecendo o predomínio islâmico
na rota da seda. Após a morte de Gengis Khan, com a fragmentação do Império
mongol, o trânsito de comerciantes entre regiões muito distantes tornou-se mais
difícil.

Mas no final do século XIII, os mongóis já estavam, em sua quase totalidade,


convertidos ao Islã, e o predomínio muçulmano poderia ser retomado. No entanto,
o rastro de destruição que haviam deixado (a Grande Biblioteca de Bagdá é um
exemplo concreto disso) abalara profundamente a estabilidade política e econômica
do mundo islâmico. Especialistas apontam esse período como o final da Era de
Ouro Islâmica.

Do ponto de vista comercial, a relativa perda de poder foi compensada pela


entrada em cena de comerciantes de outras origens. A dinastia chinesa Yuan, de
origem mongol, assumiu a hegemonia comercial no Oceano Índico após uma série
de expedições que chegaram até o Chifre da África (Somália). Os comerciantes do
subcontinente indiano e da Indonésia – região que se convertia naquela época ao
Islã – eram por vezes seus parceiros, por vezes seus rivais. Na África, o comércio
transaariano mantinha-se sob o controle muçulmano, embora cada vez mais
comandado pelos reinos do Sahel, como o do Mali.

243
UNIDADE 3 | A ERA DAS GRANDES TRANSFORMAÇÕES

No entorno do Mar Mediterrâneo, a transformação não foi menos


dramática, ainda que os mongóis não tenham atingido a região diretamente. Com
o refluxo militar do Islã, na Europa e ilhas mediterrânicas, somado à submissão
de Constantinopla – a partir da Quarta Cruzada –, as cidades portuárias italianas
de Veneza, Pisa e Gênova se impuseram progressivamente no comércio oriental.
Instalando-se em feitorias nas ilhas e margens do Mediterrâneo e Mar Negro, as
cidades italianas entraram definitivamente na disputa com os muçulmanos no
comércio de cerâmicas, tecidos, especiarias e temperos aromáticos.

3 O COMÉRCIO NA EUROPA
No momento em que as cidades italianas começaram a fazer concorrência
aos comerciantes muçulmanos no Mediterrâneo, os produtos adquiridos passaram
a ser negociados no continente europeu. Mercadores italianos e de outras origens
transportavam esses produtos continente adentro, por rotas fluviais ou terrestres,
e favoreciam a troca comercial com produtos das próprias regiões atravessadas.

Assim, entre as cidades do sul da Europa e os mares do Norte, constituiu-


se uma rede de rotas terrestres e fluviais. E, enquanto as cidades italianas traziam
sedas e especiarias do Oriente e exportavam seus tecidos e vidrarias, as cidades
do Norte prosperavam, comercializando couros e madeiras da Rússia, cereais e
peixes do Báltico, têxteis de Flandres, lã da Inglaterra, sal da Polônia, ferro da
Alemanha, vinhos, mel e caviar, além de uma infinidade de outros produtos.

Mercadores escandinavos e eslavos encontravam, ali, a competição da Liga


Hanseática – que agrupava centenas de cidades alemãs – e controlava, a partir de
Veneza, a distribuição no Báltico e no Mar do Norte, além de possuir entrepostos
em Lisboa, Londres, Kiev e Novgorod. Mas a competição representava, em muitos
casos, oportunidades de trocas comerciais vantajosas aos dois lados e, do ponto de
vista do incentivo ao comércio, era sempre vantajosa.

FIGURA 61 - MAPA SOBRE O COMÉRCIO EUROPEU

FONTE: Disponível em: <http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/e/e1/


Late_Medieval_Trade_Routes.jpg>. Acesso em: 14 mar. 2013.

244
TÓPICO 4 | O RENASCIMENTO COMERCIAL E URBANO

3.1 AS FEIRAS MEDIEVAIS


Além das ligas, a penetração da economia monetária pelo interior feudal se
fez através da realização de feiras periódicas, entre as quais ficaram famosas as de
Champagne, Flandres e Lyon. Uma grande feira francesa durava várias semanas
e atraía mercadores da Escócia, Inglaterra, Alemanha, Espanha, Constantinopla,
Síria, Egito e até da distante Armênia. A variedade de produtos correspondia a
uma igual variedade de moedas: marcos ingleses, angevinos da Normandia,
escudos saboianos, groats da Vestfália, florins de Florença, ducados venezianos,
hyperperos de ouro de Constantinopla, dinares muçulmanos.

Todas essas moedas passavam pelas mãos ágeis dos cambistas, que as
pesavam, tocavam e lhes determinavam o valor. Da bancada onde eles realizavam
esse ritual proveio o banco moderno e até mesmo as práticas bancárias como
a carta de crédito, a letra de câmbio, o penhor mercantil e o seguro marítimo.
Enfim, caro(a) acadêmico(a), apesar das restrições do Direito Canônico, com
o maior encontro entre os povos, com as crescentes necessidades econômicas,
desenvolveu-se um importante setor monetarizado no interior feudal da Europa.

Neste processo de multiplicação de trocas, os viajantes aprenderam a se


conhecer uns aos outros. Descobriam não apenas os gêneros que poderiam adquirir,
mas também os processos de produção ou fabricação destes gêneros. Do Oriente
vinham os métodos da fabricação de vidros e dos tecidos de seda, os segredos da
tinturaria, da metalurgia, da química; vinham também o trigo sarraceno, o arroz,
a cana-de-açúcar, além de uma infinidade de novas espécies vegetais de alto valor
artesanal e comercial. Com a multiplicação de produtos e técnicas, aperfeiçoaram-
se a agricultura, o artesanato e a manufatura europeias, e a região se tornou menos
dependente do comércio transcontinental.
FIGURA 62 - AS FEIRAS MEDIEVAIS ERAM O PONTO DE ENCONTRO
DE CULTURAS E PRODUTOS DE TODO O MUNDO, E
REPRESENTAVAM O RESSURGIMENTO DO COMÉRCIO EM
LARGA ESCALA NA EUROPA

FONTE: Disponível em: <http://2.bp.blogspot.com/-I9w7GVnMXPY/


UGm3293pCQI/AAAAAAAAAes/Nl1LkIE1JKM/s320/medieval+fair.
jpg>. Acesso em: 3 dez. 2012.

245
UNIDADE 3 | A ERA DAS GRANDES TRANSFORMAÇÕES

Como locais de comércio, as feiras apresentavam condições especialíssimas.


Os senhores feudais, que as protegiam e cobravam impostos sobre as vendas,
garantiam o salvo-conduto dos mercadores através de seus domínios com a
imposição de uma “paz da feira”. No mesmo sentido, e com o mesmo objetivo,
proclamava-se a “paz de Deus” nos territórios da Igreja. Apesar destas solenes
ordenações, viajar pelo interior feudal da Europa – ainda mais carregando
produtos de alto valor comercial – ainda era muito perigoso. O ataque armado
e pilhagem de caravanas era uma das únicas oportunidades que estavam abertas
à imensa maioria dos senhores feudais que ainda dependiam da corveia de seus
próprios campos para sobreviver. E, quanto mais miseravelmente viviam, mais
dependentes se tornavam da rapinagem como fonte de receita complementar.

3.2 A FORMAÇÃO DOS BURGOS


A necessidade prática impunha que as feiras se situassem onde fossem
convenientes ao comércio – quer na orla de uma via fluvial ou marítima, quer no
cruzamento de grandes rotas comerciais. Mas devido ao banditismo e às constantes
guerras feudais, uma feira deveria ser também confortavelmente protegida por
fortificações, tais como um castelo, um mosteiro ou uma sede episcopal. Onde
quer que se reunissem essas condições, os mercadores se enraizavam. Aos poucos,
juntavam-se a eles outras pessoas deslocadas ou marginalizadas nos quadros da
estrutura feudal: servos que fugiam da gleba familiar demasiada exígua, filhos
da nobreza que não tinham esperança de herdar patrimônio por primogenitura,
artífices que procuravam um melhor mercado para seu artesanato, judeus e
ciganos que não se enraizavam em parte nenhuma, preferindo considerar suas
comunidades, espalhadas pela Europa, como sua pátria. Esta nova classe urbana
– diferenciada pela sua libertação da dependência da gleba – começou então a
depender cada dia menos do antigo castelo senhorial fortificado, que inicialmente
lhe dera proteção.

FIGURA 63 - CENTRO HISTÓRICO DE DUBROVNIK, NA CROÁCIA


(RAGUSA, EM ITALIANO), IMPORTANTE CENTRO DA
REPÚBLICA DE VENEZA. A CIDADE GUARDA OS TRAÇOS
MEDIEVAIS PLENAMENTE PRESERVADOS

FONTE: Disponível em: <http://olharcurioso.com/wp-content/


uploads/2011/12/dubrovnik.jpg>. Acesso em: 2 dez. 2012.

246
TÓPICO 4 | O RENASCIMENTO COMERCIAL E URBANO

Nas cidades do sul da Europa, nomeadamente na Itália, já havia, desde


os tempos romanos, uma tradição urbana, que fazia com que nobres, artífices e
comerciantes vivessem por trás dos mesmos muros. Já no interior do continente
e mais ao norte, as muralhas, quando existiam, não eram tão amplas quanto as
das cidades mediterrâneas. Nesses locais, essa massa de desenraizados criou o
“burgo de fora” (Forisburgus) que, na maioria das vezes – pagando-se os impostos
ao senhorio feudal – se rodeou de novas muralhas. Assim, ao longo das rotas
comerciais, formaram-se, no interior da Europa feudal, dois novos polos de atração
para o excesso social de população: as cortes e as cidades.

TUROS
ESTUDOS FU

Caro(a) acadêmico(a), no próximo tópico estudaremos as cortes medievais e sua


importância para a desagregação do mundo feudal. Agora, vejamos as cidades.

4 A VIDA URBANA NA BAIXA IDADE MÉDIA


A seguir, apresentamos algumas características da vida urbana na Baixa
Idade Média.

4.1 DEMOGRAFIA E URBANISMO


A maioria das cidades medievais estava rodeada por muralhas servidas de
grandes portas que se fechavam ao anoitecer. Com o crescimento vertiginoso da
população urbana, o espaço dentro das muralhas – que inicialmente parecia amplo
– tornou-se exíguo. Quando havia condições, outros muros de maior extensão eram
construídos – às vezes, mantendo-se os anteriores. E, assim, a cidade crescia em
anéis concêntricos, tal qual o tronco de uma árvore. Comprimida pelas muralhas,
a cidade crescia para o alto. Algumas estabeleceram limites a esta tendência de
verticalização. Em Rheims, por exemplo, nenhum edifício poderia exceder a altura
das goteiras da catedral. A partir de uma janela situada na mesma altura da beira
do telhado, verificava-se que nenhuma construção em andamento ultrapassasse o
nível do olhar.

247
UNIDADE 3 | A ERA DAS GRANDES TRANSFORMAÇÕES

FIGURA 64 - A CIDADE DE CARCASSONE, NA FRANÇA, COM SUAS MURALHAS

FONTE: Disponível em: <http://www.viajenodetalhe.com.br/wp-content/uploads/2011/09/


carcassonne-1_fran%C3%A7a.jpg>. Acesso em: 2 dez. 2012.

As cidades mais antigas da Europa foram fundadas ainda nos tempos do


Império Romano. Algumas desapareceram, e as que sobreviveram sofreram um
refluxo populacional considerável no decorrer da Alta Idade Média. Contudo,
entre os anos de 1100 e 1250, o mundo urbano ganhou vida nova. Muitas cidades
importantes da Europa, tais como Hamburgo, Frankfurt, Innsbruck, Bruges, Gand,
Oxford e Cambridge, começaram do nada a partir do século XII, enquanto cidades
já existentes, como Londres, Paris, Colônia, Veneza, Gênova, Milão e Florença,
cresceram numa proporção espantosa. Uma cidade comum deveria ter uns 2.500
habitantes, uma cidade importante 20 mil. Londres e Gênova gabavam-se de ter 50
mil cada; Paris, Veneza e Milão, mais de 100 mil habitantes.

Crescimento tão vertiginoso causou uma urbanização caótica. Eram casas de


dois a quatro andares, geralmente de madeira sem tratamento especial, espremidas
umas contra as outras em vielas estreitas e sinuosas, que tinham muito pouco do
encanto que nos fascina atualmente. As vias públicas eram simples travessas, de
até três metros de largura. Tal aglomeração representava uma caixa de lenha em
potencial para incêndios, que destruíam periodicamente cidades inteiras. Não
havia esgotos, nem depósitos de lixo. Todos os resíduos eram atirados na rua,
onde as chuvas e os porcos, ratos e baratas se encarregavam da limpeza. O uso de
calçamento iniciou-se na Itália em fins do século XI, difundindo-se gradativamente
para as cidades do norte dos Alpes. Mesmo assim, numa cidade importante, como
Paris, nenhuma rua tinha calçamento até 1183, quando Felipe Augusto mandou
pavimentar a Estrada Real, diante do Louvre.

Com a falta de espaço dentro dos muros, os terrenos atingiam preços


astronômicos e os poucos que tinham condições de comprá-los construíam para
locação a uma multidão que mal podia arcar com o aluguel. A superpopulação e
os altos preços dos aluguéis faziam com que, muitas vezes, cinco ou mais pessoas

248
TÓPICO 4 | O RENASCIMENTO COMERCIAL E URBANO

tivessem que dividir o mesmo quarto. Tal concentração de pessoas – em contato


com animais pestilentos que se alimentavam da sujeira geral – teve consequências
nefastas quando, a partir de 1347, a Peste Negra dizimou um terço da população
da Europa.

4.2 O SISTEMA CORPORATIVO


Podemos definir a corporação medieval como um conjunto de indivíduos
da mesma profissão, reunidos em corpo institucional, com seus regulamentos
próprios, seus privilégios. Nas cidades medievais, todos os artesãos, comerciantes
e mercadores agrupavam-se em Guildas ou Corporações de Ofício. As guildas
originaram-se dos mercadores que empreendiam longas jornadas reunidos em
caravanas, a fim de se garantirem contra os perigos do caminho. Viajando em
conjunto, podiam não apenas manter longe os bandoleiros, como obter redução
nos impostos de trânsito cobrados pelos nobres proprietários das terras por eles
atravessadas. Essas vantagens palpáveis da ação coletiva eram mantidas no local
de residência dos mercadores, pois, através das guildas, detinham o monopólio do
mercado local e garantiam um sistema econômico estável, fixo, sem concorrência.
Estabeleciam preços uniformes e puniam severamente os que sonegavam
mercadorias ou abusavam dos preços.

Com o tempo, enquanto os ofícios especializados se multiplicavam, as


guildas de mercadores foram sendo suplantadas pelas guildas de ofício (também
denominadas Corporações de ofício). Cada ofício mantinha, orgulhosamente, sua
própria guilda. Só o ramo têxtil, por exemplo, comportava as guildas dos mercadores
de lã, dos mercadores de linho, de cânhamo, cardadores, fiadores, duas espécies
de fiadores de seda, sete espécies de tecelões, tintureiros, tosquiadores e alfaiates.
Suas práticas também visavam à proteção de mercado. Nenhum habitante da
cidade poderia praticar um ofício se não pertencesse à respectiva guilda. Somente
os produtos de seus membros poderiam ser vendidos no mercado. Por outro lado,
em troca desta proteção, deveria o artesão submeter-se ao rigoroso regulamento
que regia os diversos graus do artesanato.

Em cada guilda ou corporação de ofício havia três graus ou classes:


aprendizes, oficiais e mestres. Por seu trabalho, o aprendiz não recebia, do Mestre
que o instruía, nenhuma remuneração, apenas alojamento, alimentação e vestuário.
Após um período de aprendizado, que variava de dois a 10 anos, tornava-se Oficial
Diarista e podia alugar seu trabalho por jornada. Mas, ainda assim, só podia
trabalhar com seu Mestre, a quem devia obediência incondicional. Para atingir
a cúpula – o mestrado – tinha o Oficial que se submeter a um exame perante a
direção da guilda. Em geral, exigiam-lhe que produzisse a sua “obra de mestre” -
um produto que fosse a prova visível de sua capacidade no ofício. O novo mestre
podia então confeccionar seus produtos e ter seus próprios aprendizes. Mas não era
ainda um profissional autônomo. Era preciso esperar uma vaga de artesão-mestre,
pagar determinada quantia à corporação para, aí sim, ter sua própria oficina. Até
que isso acontecesse, continuaria a expor seus produtos na loja do antigo Mestre.

249
UNIDADE 3 | A ERA DAS GRANDES TRANSFORMAÇÕES

Essencial na sociedade medieval, a oficina do artesão-alfaiate trabalha tanto


sob medida para as classes altas, como em “prêt-à-porter” para as pessoas comuns.
Com a ajuda do mestre-alfaiate, o cliente experimenta a nova roupa na oficina
aberta para a rua. Ao fundo, um oficial e um aprendiz trabalham numa nova peça.

FIGURA - 65 OFICINA DO ARTESÃO-ALFAIATE

Essencial na sociedade medieval,


a oficina do artesão-alfaiate
trabalha tanto sob medida para
as classes altas, como em “prêt-à-
porter” para as pessoas comuns.
Com a ajuda do mestre-alfaiate,
o cliente experimenta a nova
roupa na oficina aberta para a
rua. Ao fundo, um oficial e um
aprendiz trabalham numa nova
peça.

FONTE: Disponível em: <http://classes.bnf.fr/ema/images/3/040.jpg>. Acesso em: 15 fev. 2013.

A excelência da mão de obra do artesanato medieval - visível ainda hoje


nos edifícios, vitrais e iluminuras daquela época – em parte se deve a estas severas
restrições comentadas anteriormente. O selo de “boa qualidade” - hallmark – era
uma exigência e os inspetores da guilda estavam sempre à cata de contraventores
e maus profissionais, os quais eram multados ou expulsos. O ideal da corporação
era proporcionar oportunidades iguais a todos os seus membros, a competição
entre eles era inadmissível. A jornada de trabalho, o número de aprendizes e os
salários pagos aos oficiais eram rigorosamente os mesmos para todos os mestres.
Esta necessidade de vigilância mútua fazia com que os mestres de um mesmo
ofício quase sempre se congregassem num mesmo local: na rua dos mercadores,
no beco dos ferreiros, dos padeiros, dos açougueiros etc.

Embora tivessem como propósito básico a proteção econômica, as guildas


criaram uma forte união entre os seus membros, que excedia de muito o interesse
econômico. Eram também uma irmandade de ajuda mútua. Se um homem
adoecia, irmãos da guilda eram designados para tratá-lo. Se caía em necessidade
ou invalidez, a irmandade mandava visitá-lo regularmente, levando-lhe alimentos

250
TÓPICO 4 | O RENASCIMENTO COMERCIAL E URBANO

e roupas comprados com recursos do fundo comum. Quando preso, pagavam-


lhe a fiança ou resgate. Quando morria, todos os companheiros tinham que rezar
por sua alma e os fundos comuns financiavam-lhe os funerais, sustentavam-lhe a
viúva, saldavam-lhe as dívidas, dotavam-lhe a filha. Claro que todos os membros
contribuíam com quotas para este fundo comum, o que, em certos aspectos, lembra
os nossos atuais institutos de previdência privada. Além de sociedade beneficente,
a guilda era também associação religiosa e clube social que lhe proporcionava vida
social: banquetes na sala da associação, festas de santos, cortejos de procissões.

4.3 A FORMAÇÃO DA BURGUESIA


Com base nas informações obtidas até agora, podemos dizer que as
guildas eram instituições rigidamente estratificadas. Limitando-se a admissão
de aprendizes, estabeleceu-se o número mínimo daqueles que poderiam chegar
a oficiais e, em seguida, a mestres. Os mestres transformaram-se, assim, numa
casta superior aos demais trabalhadores. Contudo, com o passar do tempo, alguns
mestres mais empreendedores começaram a infringir os regulamentos das guildas.
Empregavam tantos aprendizes quantos achassem necessários, determinavam seu
próprio ritmo e horário de trabalho e, desrespeitando o “preço justo” (tabelamento
fixado pela guilda), cobravam os preços mais altos que podiam obter. Adquirindo
assim reservas de capital, tornaram-se banqueiros e financiadores de empresas
alheias. E, com o crescimento das fortunas, esta classe rica se apossou do título de
burgueses, que antes era aplicado a todos os habitantes do burgo.

A partir de então, uma nova realidade se estabeleceu: o moderno ideal de


riqueza e de conforto material. Um ideal que era o oposto daquele pregado pela
Igreja, de desapego às coisas materiais. Esta contradição ficava mais visível na
necessidade dos comerciantes e artesãos de fazerem empréstimos para financiar
seus empreendimentos e, naturalmente, a aceitação de se pagar juros por este
empréstimo. Atualmente, a palavra usura designa juros exorbitantes, mas na Idade
Média chamava-se usura a cobrança de juros de qualquer espécie. Prática esta que
a Igreja considerava como pecado mortal. Naturalmente, o tráfico de dinheiro entre
credores e devedores cristãos também existia, mas exigia uma série de estratégias
para camuflar a atividade. Os únicos que estavam livres de qualquer interdição da
lei eclesiástica eram os judeus, que, se podiam praticar a usura, estavam impedidos
de ingressar nas guildas e praticar qualquer ofício. Contudo, a partir do século
XIII, a disseminação da prática também entre os cristãos levou a Igreja a aceitar
a prática como inevitável, embora a condenação moral tenha permanecido até a
reforma protestante do século XVI.

251
UNIDADE 3 | A ERA DAS GRANDES TRANSFORMAÇÕES

FIGURA 66 - A MORTE E O AVARENTO

Neste quadro de Hieronymus


Bosch podemos vislumbrar
os perigos transcendentais
das práticas burguesas. Tendo
passado a vida preocupado em
acumular capital – primeiro
plano –, o burguês acamado
enfrenta a morte inevitável. Em
vão um anjo tenta lhe mostrar
a luz proveniente do crucifixo
preso na elevada janela.
Dentro do confortável quarto
com ampla cama de dossel,
o moribundo agarra-se a um
saco de dinheiro enquanto
diversos diabos aguardam o
momento decisivo.

FONTE: Disponível em: <http://1.bp.blogspot.com/-_ANDKqx0D6c/TlgTTSTNzTI/


AAAAAAAAATA/EL8qneLJCa4/s1600/bosch_a_morte_
e_o_avarento.jpg>. Acesso em: 15 fev. 2013.

Aos poucos, a força desta nova classe burguesa foi se tornando cada vez
mais considerável, a ponto de rivalizar com os dois outros estados privilegiados do
mundo feudal: a nobreza e o clero. O burguês desprezava o ócio do cavaleiro e do
monge e fazia do trabalho e do acúmulo de riquezas seu próprio ideal de vida. Não
por acaso, desde a literatura cavalheiresca da nobreza – os romances de cavalaria
–, a palavra “vilão” (habitante da cidade) passou a carregar todos os estigmas da
mesquinharia e da avareza, da “falta de nobreza” de sentimentos. Independente
de detalhes pitorescos, a força econômica destes burgueses transformou-se em
força política. Dependentes de financiamento, os senhores de território davam
aos burgueses voz em seus conselhos. Por sua vez, os comerciantes apoiavam os
senhores de território na sua luta pela monopolização do poder contra os senhores
feudais, estimulando assim o nascimento dos estados nacionais absolutistas.

252
TÓPICO 4 | O RENASCIMENTO COMERCIAL E URBANO

TUROS
ESTUDOS FU

Caro(a) acadêmico(a), como você já sabe, no próximo tópico veremos o papel das
Cortes medievais no surgimento dos Estados Absolutistas.

5 O MOVIMENTO COMUNAL E AS CIDADES LIVRES


Como vimos, no início do renascimento urbano na Europa, as cidades
estavam sujeitas ao poder do senhor feudal, que administrava a justiça e impunha
toda uma série de tributos, multas e condenações. Para sujeitar a cidade à sua
autoridade, muitos senhores construíam castelos no meio urbano, que eram mais
um local de poder militar, de controle, do que residência. Contudo, ainda no século
XI, algumas cidades começaram uma luta, sempre renovada, para conseguir cartas
e forais de seus senhores locais. Estes documentos garantiam oficialmente certa
autonomia da cidade em relação ao castelo que controlava a região; autonomia
configurada em alguns direitos, tais como: governo próprio, promulgação de
suas próprias leis e lançamentos de impostos. Os elementos urbanos desejavam
libertar-se da participação compulsória nas aventuras militares do senhor feudal.
Queriam ter os seus próprios tribunais e as suas próprias leis. O ordálio pelo fogo
ou pela água, ou o julgamento em combate singular, pareciam-lhes inadequados
para resolver questões comerciais.

Nascida das aspirações dos mercadores e artesãos pela liberdade econômica,


esta luta recebeu o nome de movimento comunal. Muitas vezes esta luta fez-se de
modo bastante violento, como em Lâon, no norte da França, onde a cidade rebelada
esquartejou o senhor. Compreende-se assim a função das muralhas nestas lutas
pela autonomia política. Outras vezes, o processo se fez de modo mais pacífico. Em
todo caso, quando uma cidade arrancava do senhor feudal uma carta de liberdade,
ela se transformava numa comuna, uma forma inédita de organização coletiva.

FIGURA 67 - CIDADE DE LUCIGNANO D’ASSO, NA TOSCANA (ITÁLIA)

FONTE: Disponível em: <http://www.borgolucignanello.com/images/borgo-lucignanello.jpg>


Acesso em: 17 out. 2012.

253
UNIDADE 3 | A ERA DAS GRANDES TRANSFORMAÇÕES

Uma vez conquistada esta autonomia, a cidade medieval transformou-se


num campo propício para experiências sociais e políticas. A forma de governo da
maioria das cidades era uma espécie de República oligárquica. Geralmente, cada
guilda da cidade escolhia seus representantes para um Conselho Urbano. Este
Conselho lançava taxas e impostos que cuidavam dos reparos nas muralhas e nas
ruas, fundava serviços de caridade, fiscalizava os mercados, mantinha uma milícia
urbana, além de legislar sobre questões de urbanismo e higiene pública. O ideal
do “bom governo”, tema fundamental da ideologia política medieval, tinha duas
grandes palavras de ordem: Paz e Justiça. A paz consistia em evitar discórdias,
evitar que se formassem grupos hegemônicos de famílias que podiam tomar a
dimensão de gangues aristocráticas urbanas, e também fazer reinar a segurança.
A justiça era fundamentalmente a ordenação de uma tributação justa, que pesava
de modo proporcional aos recursos dos citadinos e não muito severa com os
pobres. Enfim, o bom governo deveria fazer funcionar instituições relativamente
democráticas, relativamente igualitárias, impedindo, assim, que qualquer pessoa
ou família confiscasse os poderes e se tornasse um tirano urbano.

FIGURA 68 – OS EFEITOS DO BOM GOVERNO NA CIDADE

Trabalhos e diversão, riqueza e beleza, harmonia e bem-estar da comunidade é o


ideal do bom governo urbano.
FONTE: Disponível em:http://www.ricardocosta.com/sites/default/files/ambrogio/ambrogio1.jpg>.
Acesso em: 15 fev. 2013.

254
TÓPICO 4 | O RENASCIMENTO COMERCIAL E URBANO

UNI

SUGESTÃO DE LEITURA
Se você quiser obter uma boa análise desta obra, leia o artigo:
COSTA, Ricardo da. “Um espelho de príncipes artístico e profano: a representação das virtudes
do Bom Governo e os vícios do Mau Governo nos afrescos de Ambrogio Lorenzetti (c.1290-
1348) - análise iconográfica”. Utopía y Praxis Latinoamericana. Revista Internacional de
Filosofìa Iberoamericana y Teoría Social. Maracaibo (Venezuela): Universidad del Zulia, v. 8,
n. 23, octubre de 2003, p. 55-71. O artigo pode ser encontrado nesta página: <http://www.
ricardocosta.com/pub/lorenzetti.htm>.

Apesar do ideal de bom governo, o nivelamento social conseguido por


detrás das muralhas da cidade com o movimento comunal não durou muito
tempo. Os dirigentes das mais ricas corporações de ofício e os grandes mercadores
monopolizaram o governo comunal, constituindo-se numa classe privilegiada,
protegida por um sistema oligárquico fechado, contra o qual se levantaram os
menos favorecidos, ou seja, a sempre crescente população urbana não representada
pelas guildas. O século XIV, em particular, foi um período de revoltas urbanas
em toda a cristandade. Elas aconteceram em Castela, na Inglaterra, na Itália,
na Alemanha e na França. Destas revoltas urbanas ganharam notoriedade a de
Etienne Marcel, em Paris, a de Cola di Rienzi, em Roma, e a de Savonarola, em
Florença. Apesar do fim trágico de todas estas revoltas, cruelmente esmagadas,
elas demonstraram que foi nas cidades medievais que se esboçou pela primeira
vez a ideia igualitária. Coincidentemente, o fracasso das revoltas “democráticas”
situa-se no limiar da centralização monárquica que, por fim, com uso de infantaria
e de canhões, engoliu a independência das cidades, assaltando e derrubando suas
muralhas.

A partir de então, a cidade e seu governo republicano sucumbem à forte


hierarquia, aos privilégios do Estado Absolutista. Somente a partir das revoluções
burguesas do século XVII, na Inglaterra, e do século XVIII, na França, as cidades
voltariam à cena política, desta vez, definitivamente.

255
UNIDADE 3 | A ERA DAS GRANDES TRANSFORMAÇÕES

LEITURA COMPLEMENTAR 1

A FORMAÇÃO DE UM MERCADOR

Godric de Finchale, que veio a ser santificado, começou a sua vida como
mercador. Nasceu de pais lavradores, no Lincolnshire, em fins do século XI. A
narrativa de sua primeira atividade ajuda-nos a entender como se deu o aparecimento
de um novo tipo de mentalidade e profissão.

Quando rapaz, depois de ter passado os anos da infância sossegadamente


em casa, chegou à idade varonil, principiou a seguir meios de vida mais prudentes
e a aprender com cuidado e persistência o que ensina a experiência do mundo. Para
isso, decidiu não seguir a vida de lavrador, mas antes estudar, aprender e exercer
os rudimentos de concepções mais sutis. Por essa razão, aspirando à profissão de
mercador, começou a seguir o modo de vida do vendedor ambulante, aprendendo
primeiro como ganhar em pequenos negócios e coisas de preço insignificante e então,
sendo ainda um jovem, o seu espírito ousou a pouco e pouco comprar, vender e
ganhar com coisas de maior preço. [...].

Primeiro viveu como um mercador ambulante por quatro anos no


Lincolnshire, andando a pé e carregando fardos muito pequenos; depois viajou para
longe, primeiramente até Saint Andrews, na Escócia, e depois pela primeira vez até
Roma. No retorno, tendo feito uma amizade familiar com certos outros jovens que
ambicionavam mercadejar, começou a lançar-se em viagens mais atrevidas e a ir por
mar, junto à costa, até as terras estrangeiras que ficavam à volta. Assim, navegando
muitas vezes entre a Escócia e a Bretanha, negociou em mercadorias variadas e
no meio destas ocupações aprendeu muito da sabedoria do mundo. [...] Porque
trabalhava não apenas como mercador, mas também como marinheiro [...] para a
Dinamarca, a Flandres e a Escócia; nas terras onde encontrava certas mercadorias
raras e por isso mais preciosas, transportava-as para outras partes onde sabia que
eram menos familiares e cobiçadas pelos habitantes a preço de ouro. Fez desta
maneira muitos lucros com todas as suas vendas e reuniu avultados bens com o suor
do seu rosto, visto que vendia caro num lugar as mercadorias que tinha comprado
noutro por um preço inferior.

FONTE: Adaptado de: Reginald of Durham, Libellus de Vita et Miraculis S. Godrici, Heremitae de
Finchale, Ed. Stewenson, Londres, 1847. In: ESPINOSA, Fernanda. Antologia de textos
medievais. Lisboa: Sá da Costa, 1981, p. 198.

256
TÓPICO 4 | O RENASCIMENTO COMERCIAL E URBANO

LEITURA COMPLEMENTAR 2

AS FEIRAS DA CHAMPAGNE

As feiras da Champagne foram essencialmente o ponto de encontro do


artesanato europeu – principalmente flamengo – e do comércio italiano. Daí os
tecidos nórdicos demandavam as terras mediterrânicas, enquanto as especiarias
entradas pelo sul se encaminhavam para os portos dos mares do Norte e Báltico.
Tendo-se desenvolvido sobretudo no século XII, estas feiras atingiram seu auge no
século XIII. O fato de nelas se encontrarem mercadores de toda a Europa permitiu
que aí se realizassem grandes operações de câmbio e se desenvolvessem as técnicas
de crédito, como se vê nesta carta a um importante mercador da cidade de Siena:

Troyes, 29 de novembro de 1265.

A Messer Tolomeu e aos outros sócios:

Andrea envia-vos saudações. E deveis saber que os sieneses que aqui estão
despacharam [as suas cartas] por um mensageiro comum depois da última feira
de Saint-Ayoul, como habitualmente. Envio-vos um rolo de cartas por Balza, um
correio de Siena. Se as não receberdes, tentai alcançá-las [...].

Aqui as mercadorias vendem-se tão mal que parece mesmo impossível


vender alguma coisa; e há imensa quantidade delas. A pimenta vale aqui [...] libras
a carga e não se vende bem. O gengibre, de 22 a 23 dinheiros, dependendo da
qualidade. O açafrão tem sido muito procurado, vendendo-se a 25 soldos a libra e
já não há nenhum no mercado. A cera de Veneza, a 23 dinheiros a libra. A cera de
Túnis a 21 dinheiros e meio. O sócio de Scotto tem uma quantidade de mercadorias
e não consegue transformá-las em dinheiro; está tentando enviá-las para a Inglaterra
a fim de aí as vender. O câmbio do esterlino faz-se a 59 soldos o marco. A boa moeda
de Freiburg a 57 soldos e 6 dinheiros o marco. [...].

Se não haveis pago 10 libras pequenas sienesas a mulher de Giacomino


del Carnaiuolo, como vos comuniquei da passada feira de Saint-Ayoul, pagai-as,
porque são pelas 3 libras provinesas que recebi do dito Giacomino. E lançai-as no

257
UNIDADE 3 | A ERA DAS GRANDES TRANSFORMAÇÕES

meu débito em relação à passada feira de Saint-Ayoul, pois assentei-as em relação à


dita feira e esqueci-me de o escrever na carta que vos enviei da dita Saint-Ayoul. [...].

FONTE: Adaptado de: Paolo e Piecolomini, carta comum cit. Em Louis Gothier et Albert Trous,
Recueills. De textes d’ histoire pour l’ ensseignement secondaire. In: ESPINOSA,
Fernanda. Antologia de textos medievais. Lisboa: Sá da Costa, 1981. p. 206.

258
RESUMO DO TÓPICO 4
Neste tópico você viu que:

● Com as cruzadas, a Europa voltou a se integrar às rotas de comércio a longa


distância. A dispersão do comércio, pelo interior da Europa, desenvolveu um
sistema de trocas locais que interagiam com o comércio a longa distância.

● O aumento do sistema de trocas fez aumentar a produção e o consumo de


produtos entre a população. Criou-se, assim, um local permanente de venda
e compra de produtos: as feiras. Estes locais eram determinados por duas
variantes: proteção e facilidades de comunicação.

● O estabelecimento das rotas e feiras comerciais alterou o equilíbrio de forças


no mundo feudal em favor dos senhores ligados ao setor monetarizado e em
detrimento dos senhores que dependiam apenas da economia natural para
sobreviver.

● A atração exercida pelos locais de feira sobre o excesso social de população


fez com que elas se transformassem no forisburgo, que também se cercou de
muralhas de proteção, fazendo nascer a cidade medieval.

E, sobre a vida urbana, você também viu que:

● Por força da pressão demográfica e da necessidade de proteção, as cidades


medievais tinham um urbanismo caótico, sendo a verticalização uma tendência
arquitetônica, devido à falta de espaço entre as muralhas.

● Com muitas pessoas vivendo no mesmo espaço, aumentavam os preços dos


imóveis e dos aluguéis, os riscos de incêndio e de contágio de doenças.

● A economia urbana era corporativa. As guildas de comerciantes e artesãos


tinham por objetivo garantir o monopólio do comércio e controlar os preços das
mercadorias. As guildas de artesãos tinham a função de controlar a produção,
juntamente com a qualidade dos produtos comercializados nas cidades, e
garantir o monopólio das atividades profissionais.

● Havia uma forte estratificação hierárquica na produção artesanal em três estágios.


Na base, o aprendiz trabalhava sem remuneração para aprender o ofício. Após
alguns anos, o aprendiz transformava-se em Oficial diarista, recebendo então
um salário por jornada de trabalho. No topo da escala estava o mestre artesão
ou mestre de ofício. Este era o proprietário de tudo: ferramentas, matéria-prima
e o produto final. Ele tinha o conhecimento de todo o processo da produção.

259
● A partir do século XI, o aumento da riqueza e do prestígio das cidades fez nascer
o chamado movimento comunal, que buscava, por todos os meios, conquistar a
autonomia política e administrativa, em relação ao senhor de território.

● Conquistada a autonomia, as cidades livres, ou comunas, começaram a planejar


uma forma de governo - geralmente uma república oligárquica comandada
por um conselho de representantes eleitos por todas as guildas da cidade. O
Conselho encarregava-se de administrar e defender a cidade.

● Ao fim do medievo, os estatutos e laços comunais desagregaram-se por força de


um duplo movimento: por um lado, os burgueses de maior riqueza e poder, na
busca de maior lucratividade, passaram a burlar o sistema do justo preço; e por
outro, a maioria da população excluída do sistema de guildas tentou tomar o
poder através de inúmeras revoltas urbanas.

● Neste mesmo período, a força das monarquias, em vias de centralização, fez-


se sentir sobre as cidades, através da infantaria e da artilharia, e as comunas
perderam a sua liberdade.

260
AUTOATIVIDADE

As perguntas que motivaram o desenvolvimento deste tópico agora


servirão para que você organize uma síntese deste conteúdo.

1 Como se deu e qual o significado do renascimento comercial da Europa


Cristã?

2 Quais os fatores que levaram a Europa Cristã a ter um incremento dos centros
urbanos a partir do século XII?

3 O que eram as guildas ou corporações de ofício?

4 Como era a forma de governo mais característica das cidades medievais?

5 O que foi o movimento comunal?

6 Por que as cidades perderam sua liberdade em fins da Idade Média?

261
262
UNIDADE 3
TÓPICO 5

AS CORTES MEDIEVAIS

1 INTRODUÇÃO
Quando lançamos uma visão panorâmica nos mil anos de Idade Média,
podemos perceber um duplo movimento, a saber: 1) Na Alta Idade Média, um
processo de desintegração total da autoridade, dos direitos, das oportunidades
de governar, culminou num sistema de posições fechadas, conhecido como
Feudalismo. 2) Na Baixa Idade Média, com a reintrodução da economia monetária,
verificam-se as primeiras formas de reintegração política, econômica, social e
cultural, culminando num processo de monopolização do poder, conhecido como
Estado Nacional Absolutista.

Estas primeiras formas de reorganização do Estado são conhecidas como


Cortes Medievais. E elas são o tema deste tópico.

2 AS PRIMEIRAS FORMAS DE REINTEGRAÇÃO POLÍTICA


Como já vimos, o aumento da população havia criado um excesso social
de população e – com a lei da primogenitura - grande parcela da população nobre
ficou sem propriedades. Estes nobres sem terra promoveram então uma expansão
interna da sociedade – desmatamento de florestas e drenagem de pântanos – e,
também, uma expansão externa sobre as áreas dominadas pelo Islã e eslavos
na Europa oriental. A partir de 1095, convocados pelo Papado, essa massa de
cavaleiros, que já estava em movimento de conquista de novas terras, foi orientada
para a conquista da Terra Santa. Vimos também que as Cruzadas haviam fracassado
enquanto empreendimento militar de conquista, mas haviam reintroduzido a
Europa no comércio internacional.

Findas as Cruzadas, as oportunidades novamente se fecharam para esta


crescente classe de nobres sem terra. Muitos procuraram comprar cargos na Igreja,
outros se dirigiram às nascentes cidades, mas a maioria foi absorvida pelas Cortes
Medievais. A partir de agora, vamos tentar entender qual a importância destas
instituições para a consolidação do processo de monopolização territorial que
culminou no Estado Nacional Absolutista.

263
UNIDADE 3 | A ERA DAS GRANDES TRANSFORMAÇÕES

2.1 OS EFEITOS DO COMÉRCIO


Você já sabe que o crescimento do comércio e da circulação de riquezas
provocou profundas mudanças nas relações de vassalagem no interior da sociedade
feudal. Este setor monetário beneficiou alguns poucos senhores, que tinham suas
terras por onde passavam as rotas comerciais ou onde se localizavam as feiras, em
detrimento da imensa maioria de senhores secundários que ainda permaneciam
ligados à economia natural. Isto provocou um desequilíbrio nas antigas relações
feudais.

Enquanto aos clãs menores faltavam terras para permitir que todos os filhos
fossem herdeiros, aqueles grandes senhores podiam agora absorver esse excesso
de população de nobres sem terra, que encontravam abrigo, vestuário e alimento
nos castelos dos grandes senhores pela prestação de algum serviço. Já estes grandes
senhores – servidos agora por este novo exército de vassalos – puderam impor
sua autoridade a todos os outros senhores menores. Como contavam agora com
uma fonte de renda quase inesgotável – o comércio e as cidades situadas em seu
território –, estes senhores conseguiam escapar do círculo perpétuo de distribuição
de terra em troca de serviços e da subsequente apropriação da terra pelos vassalos,
constituindo-se, assim, numa nova força detentora de poder territorial e político.

2.2 OS TIPOS DE NOBREZA FEUDAL


Então, podemos dizer que a partir do século XII distinguem-se claramente
três formas de existência na nobreza feudal:

1) As grandes e médias cortes – senhores de territórios – ligadas ao setor


monetarizado das rotas comerciais, que exerciam um controle militar e fiscal
sobre terras que se espalhavam por diferentes regiões, obtidas por conquista,
herança, doação ou casamento.

2) Os senhores feudais propriamente ditos, que continuavam ligados à economia


natural, sobrevivendo da corveia de seus próprios campos e que, quanto mais
miseravelmente viviam, mais eram atraídos para a esfera de influência das
grandes cortes.

3) Os cavaleiros menores que, em consequência da excessiva fragmentação do


feudo paterno e da lei da primogenitura, não dispunham de terra e, assim,
permaneciam celibatários, pois não podiam legar aos filhos uma descendência
andrajosa. Para poder sobreviver, estes últimos geralmente se colocavam a
serviço das grandes cortes, armando-se como cavaleiros.

Através de uma grande cavalaria, estes grandes senhores tornaram-se


hegemônicos sobre territórios cada vez mais amplos, que se espalhavam por
diferentes regiões (obtidas por conquista, herança, doação ou casamento), nas
quais exerciam um controle militar e fiscal. Convertendo-se em centros políticos,
estas cortes transformam-se também em centros potenciais de patrocínio literário

264
TÓPICO 5 | AS CORTES MEDIEVAIS

e historiográfico, em locais para exibir o poder e a riqueza dos senhores. Na


concorrência com outras cortes e na busca de prestígio, estes senhores de território
tinham também a seu serviço artistas e intelectuais, músicos, cantores, ourives,
pintores, bufões, palhaços, trovadores, cronistas e poetas. Um ditado da época
ilustra bem esta busca de prestígio. “Quanto mais importante é o Senhor, mais
inspirado é o poeta”.

FIGURA 69 - O CÓDIGO DE CAVALARIA EXIGIA QUE O CAVALEIRO FOSSE


LEAL E DEFENDESSE A TODOS

FONTE: Disponível em: <http://www.gregology.net/library/images/


Gregsguidetochivalry/index.1.jpg>. Acesso em: 6 nov. 2012.

UNI

Na imagem, a perspectiva romântica da cavalaria, por Sir Frank Dicksee.

Na França, por exemplo, o clã dos Capetos (987-1328) tinha seu núcleo
original na região de Île-de-France. Mas soube bem utilizar os recursos advindos
do controle do rio Sena – importantíssimo para as redes de rotas comerciais que
cruzavam a Europa –, assim como seu controle sobre as cidades de Paris e Orléans.
Por confisco, casamento, doação e, principalmente, pela força de sua cavalaria,

265
UNIDADE 3 | A ERA DAS GRANDES TRANSFORMAÇÕES

os reis dessa dinastia estenderam seus domínios sobre um território que ia do


Canal da Mancha até os Pirineus. Na Inglaterra, a monarquia foi fundada por
Guilherme (William), Duque da Normandia, que, em 1066, conquistou o país
aos anglo-saxões. Começou Guilherme por exigir de cada nobre senhor anglo-
saxão um juramento de vassalagem, confiscando as propriedades de todos que
lhe recusavam esse juramento. Os descendentes de Guilherme continuaram o
processo de centralização, transformando as terras conquistadas em domínio real
e estabelecendo, através da Curia Regis (Conselho do Rei), uma regulamentação
jurídica e um aparato administrativo que obrigava seus vassalos a cumprirem as
suas ordens.

3 AS DISPUTAS ENTRE PODERES PARTICULARES E


UNIVERSAIS
Se a constituição das Cortes Medievais significava a vitória dos senhores de
território sobre os poderes locais dos senhores feudais isolados, para Hilário Franco
Jr. (2004) estas cortes medievais e os Estados-Nações delas advindos foram também
resultado da vitória dos poderes particularistas (nação, língua vulgar, laços tribais
germanos) sobre os poderes universalistas (o Papado e o Sacro Império). Sabemos
que os poderes universalistas estavam em choque constante, porque pela própria
natureza do que reivindicavam – a herança do Império Romano – somente um
deles poderia ter sucesso. É exemplo desta disputa, em primeiro lugar, a questão
das Investiduras, que envolveu o Papado e o Imperador do Sacro Império, para
definir quem tinha a supremacia: se o poder temporal ou o poder espiritual (o
imperador ou o papa). A Concordata de Worms definiu a vitória do Papado, mas
o episódio do Cativeiro do Papado, em Avignon, por ordem de Felipe IV – Rei da
França, demonstrou que tanto o Império como o Papado tinham sucumbido a uma
nova força: o Estado nacional absolutista.

A questão das Investiduras foi um conflito entre a Igreja Católica e o


Sacro Império Romano pela hegemonia política e religiosa na Europa Medieval.
Começou quando Hildebrando da Toscania, um dos primeiros papas eleitos pelo
Colégio de Cardeais, tornou-se chefe da Igreja no ano de 1073 com o nome de
Gregório VII. Gregório empreendeu uma série de reformas, condenando a simonia
e o nicolaísmo, sendo que uma das mais importantes foi a que retirou do Imperador
do Sacro Império Romano Germânico o direito de nomear bispos e outros clérigos
em seu território. Henrique IV, da Germânia, então imperador do Sacro Império,
continuou a exercer a investidura leiga e, por isso, foi excomungado pelo papa.
Com a excomunhão, seu posto correu perigo, pois seus vassalos não mais se
sentiam obrigados a lhe dever obediência. Diante disso, Henrique pediu perdão
ao papa. Após uma série de reviravoltas, a Concordata de Worms (1122) pôs fim à
questão, marcando o início da sobreposição da autoridade papal sobre a imperial.

O cativeiro de Avignon (1305-1377), conflito entre Filipe IV e o Papa


Bonifácio VIII, que buscavam afirmar seu direito sobre o reino. Filipe IV expulsou
os coletores de impostos papais e transferiu a sede do papado para a cidade de
Avignon, submetendo o papa à monarquia francesa. O Cisma do Ocidente (1378-
266
TÓPICO 5 | AS CORTES MEDIEVAIS

1415) ocorreu quando constituíram dois papados na Europa Ocidental: um em


Roma (apoiado pelos italianos) e outro em Avignon (sustentado pelo rei da França).
A restauração do papado na Itália se deu com o Concílio de Constança, quando a
autoridade papal já não representava uma ameaça ao poder nacional.

FIGURA 70 - O PALÁCIO PAPAL EM AVIGNON, LOCAL DA SEDE DO PAPADO DURANTE O CISMA


DO OCIDENTE

FONTE: Disponível em: <http://soa111.files.wordpress.com/2011/02/avignonpapalpalace1.jpg>.


Acesso em: 5 dez. 2012.

A vitória dos Estados-Nação sobre os poderes universalistas teve profundas


consequências para o futuro político da Europa. A Inglaterra e a França – exemplos
típicos de modernas Monarquias Nacionais Absolutistas – centralizaram-se e,
ao longo de toda a Idade Moderna, disputaram entre si a supremacia política e
econômica, - que só foi vencida, finalmente, pela Inglaterra, quando da queda
de Napoleão (Waterloo,1815). Alemanha e Itália, com suas – bases nacionais
debilitadas pelas lutas entre o Império (Alemanha) e o Papado (Itália) – perderam
a oportunidade histórica de se organizar como Estados centralizados. Desta forma,
por muito tempo, Alemanha e Itália permaneceram apenas realidades geográficas
e não realidades políticas.

Hilário Franco Jr. (2004, p. 65) faz a seguinte afirmação sobre o fracasso do
nacionalismo alemão e italiano:

Perdidas as chances de obter colônias no Novo Mundo dos séculos


XVI-XVII, atrasadas na industrialização dos séculos XVIII-XIX,
secundarizadas na partilha da África e da Ásia no século XIX, aquelas
nacionalidades sentiam cada vez mais a necessidade de se corporificar
politicamente. Tal ocorreu em 1870-1871, mas como o atraso relativo
já existia, aqueles novos Estados precisaram adotar uma política
agressiva, que esteve nas raízes das duas Grandes Guerras do século

267
UNIDADE 3 | A ERA DAS GRANDES TRANSFORMAÇÕES

XX. O fracasso do nacionalismo alemão e italiano na Idade Média foi


fator essencial para explicar sua virulência nas últimas décadas do
século XIX e primeiras do século XX.

4 A GUERRA DOS CEM ANOS E O NASCIMENTO DA MONARQUIA


ABSOLUTISTA
Curiosamente, e não por acaso, as duas monarquias mais importantes
da Europa Moderna (França e Inglaterra) se consolidaram a partir de uma
guerra dinástica que durou cem anos. Já falamos que as Cortes Medievais foram
mecanismo de monopolização de poder político e territorial. Neste processo, elas
foram eliminando ou absorvendo os adversários menores até que, em um dado
momento, elas próprias tiveram que se enfrentar. O ápice deste processo ocorreu
quando os dois últimos concorrentes se enfrentaram na Guerra dos Cem Anos: os
Capetos e os Plantagenetas.

Enquanto os Capetos, a partir de Paris, consolidavam seu poder no norte


da França, Godofredo - o Plantageneta -, conde de Anjou, consolidava seu poder no
sul da França. Em 1128, Godofredo casou-se com Matilde I, bisneta de Guilherme,
o Conquistador, e herdeira do trono da Inglaterra. O filho nascido deste casamento,
Henrique II, tornou-se rei da Inglaterra e, como se casou com Leonor da Aquitânia,
tornou-se também senhor deste território do sul da França. Henrique II era,
portanto, Rei da Inglaterra, Duque da Normandia, Conde de Anjou e Conde da
Aquitânia e Gasconha. E a disposição destes territórios cercava os domínios dos
Capetos por todos os lados, impedindo sua futura expansão.

Desde então, as relações entre os clãs Capeto e Plantageneta foram marcadas


por conflitos políticos e militares. Isto culminou na questão da soberania da
Gasconha. Pelo Tratado de Paris (1259), Henrique II da Inglaterra abandonara suas
pretensões sobre a Normandia, Maine, Anjou, Touraine e Pointou, conservando
apenas a Gasconha. Os constantes conflitos resultavam do fato de o rei inglês, que
era Duque da Gasconha, ressentir-se de ter de pagar tributo pela região aos reis
franceses e de os vassalos gascões frequentemente apelarem ao soberano Capeto
contra as decisões tomadas pelas autoridades inglesas na região. Além desses
litígios no Norte e no Sul, as influências de Capetos e Plantagenetas eram também
opostas na região de Flandres (atuais Bélgica e Holanda).

A nobreza destes territórios era formada por vassalos dos Capetos e devia-
lhes lealdade; por sua vez, a burguesia desta importante região manufatureira
estava ligada economicamente à Inglaterra.

268
TÓPICO 5 | AS CORTES MEDIEVAIS

Além do intenso comércio estabelecido na região, Flandres era


importante centro manufatureiro de tecidos, e dependia enormemente da lã
produzida na Inglaterra. Essa camada urbana vinculada à produção de tecidos
e ao comércio posicionava-se a favor dos interesses ingleses e, portanto, contra
os interesses políticos dos Capetos na região. Resolveram, flamengos e ingleses,
estabelecer uma aliança, que irritou profundamente o rei da França, também
interessado na região.
FONTE: Disponível em: <http://www.portalsaofrancisco.com.br/alfa/guerra-dos-cem-anos/guerra-
dos-cem-anos-4.php>. Acesso em: 3 mar. 2013.

FIGURA 71- JOANA D’ARC, UMA JOVEM DA LORENA, GUIADA POR UMA
VISÃO DIVINA, COMANDOU OS EXÉRCITOS FRANCESES NA
DERROTA DOS BRITÂNICOS. CAPTURADA, FOI ACUSADA DE
HERESIA PELOS INGLESES E QUEIMADA NA FOGUEIRA

FONTE: Disponível em: <http://upload.wikimedia.org/wikipedia/


commons/thumb/9/96/Joan_of_arc_burning_at_stake.
jpg/220px-Joan_of_arc_burning_at_stake.jpg>. Acesso em: 13
dez. 2012.

O estopim dos conflitos se deu com o problema sucessório resultante da


morte de Carlos IV – terceiro e último filho de Filipe IV, em 1328. Coincidentemente,
entre os possíveis sucessores do último Capeto estava o Plantageneta Eduardo III,
que, na qualidade de sobrinho do falecido monarca Capeto, era detentor dos títulos
de Duque de Guyenne e Conde de Pontieu. Embora o Plantageneta apresentasse
melhores credenciais ao trono vago do que Filipe de Valois – membro de um ramo
secundário da familia real –, uma assembleia de nobres franceses aclamou como
Rei Felipe de Valois.

269
UNIDADE 3 | A ERA DAS GRANDES TRANSFORMAÇÕES

Ao assumir o trono, Felipe VI estava ciente do perigo que representava a


política expansionista dos Plantagenetas e da grave ameaça que representava para
seus domínios a existência de um ducado leal àquela casa. Assim, em 24 de maio
de 1337, Felipe VI invadiu o Ducado de Guyenne, pertencente aos Plantagenetas,
que revidaram desembarcando um exército inglês na região de Flandres. Estava
iniciada uma guerra que duraria mais de cem anos e que, terminando com a
vitória dos Valois franceses, marcou o fim da Idade Média, com a consolidação dos
Estados Nacionais Absolutistas da França e da Inglaterra.

5 AS MULHERES E A SOCIEDADE
Foram as mulheres que viviam nas cortes as primeiras a serem liberadas
para o desenvolvimento intelectual, para a leitura. As riquezas das grandes cortesãs
davam às mulheres a possibilidade de preencher seu tempo de ócio e dedicar-se a
interesses de luxo e lúdicos passatempos.

Claro que a dominação masculina não foi quebrada, mas as mulheres da


fina camada da elite cortês ganharam importância destacada a partir do século XII.
Não por acaso, alguns autores destacam que foi nessa mesma época que o culto da
Virgem Maria ganhou importância e adeptos. Além do mais, em todas as grandes
civilizações, as pressões sobre a vida sexual das mulheres foram consideravelmente
mais fortes do que as exercidas sobre homens de igual nascimento. Apenas
na sociedade cristã ocidental elas conseguiram ter liberdades que chocavam
muçulmanos e chocariam hindus e chineses contemporâneos.

O que tornou possível esta liberdade foram as relações estabelecidas nas


cortes medievais, pois nelas acontecia o relacionamento de um homem socialmente
inferior e dependente com uma mulher de classe mais alta. Era isso que dava
origem à contenção dos impulsos dos machos, a renúncia ao assalto sexual e a
consequente transformação do comportamento. Foi exatamente isso que aconteceu
nas cortes medievais. As mulheres que as frequentam eram superiores aos homens.
Elas, ou são membros do clã senhorial ou são herdeiras e estão ali aos cuidados
destes mesmos senhores. Já os Juniores (cavaleiros) não recebem esta denominação
porque são necessariamente jovens, mas sim, porque, não tendo terras, não podem
se casar e, portanto, não podem ser sênior.

Assim, da forma como as cortes se organizaram socialmente, surgiram


contatos entre homens e mulheres que tornaram impossível o homem simplesmente
tomar a mulher quando ela lhe agradasse. O que tornava a mulher inacessível ou
acessível apenas após duras provações e, talvez porque ela fosse de classe mais alta
e difícil de conquistar, especialmente desejável. Tal foi a situação, o evento social,
no qual se originou a poesia lírica dos trovadores. Da mesma forma, foi através
dessa poesia que se produziu uma forma de prazer sublimada, uma nuança de
emoções, um refinamento de sentimentos que chamamos de Amor Cortês.

270
TÓPICO 5 | AS CORTES MEDIEVAIS

NOTA

No texto que segue temos um exemplo da disputa entre as casas dos Plantagenetas
e dos Capetos pela centralização política. João, rei plantageneta da Inglaterra, era também
conde de Anjou e duque da Aquitânia. Estes últimos territórios também eram cobiçados por
Felipe Augusto, rei Capeto da França, que, aproveitando o descontentamento dos nobres
destas regiões, confiscou estes territórios. Apenas mais um incidente que levaria à Guerra dos
Cem Anos entre as duas casas reais.

LEITURA COMPLEMENTAR

O rei Filipe tinha ordenado muitas vezes ao rei da Inglaterra que terminasse
o ataque aos condes franceses e fizesse a paz com os seus homens. Mas quando o
rei de Inglaterra se recusou a dar ouvidos às alegações e ordens do rei de França,
foi intimado pelos barões do reino da França, na qualidade de Conde de Anjou e
Duque da Aquitânia, a vir à corte do seu senhor, o rei de França, em Paris, e aceitar
o julgamento da corte. [...].

O rei de Inglaterra, todavia, replicou que, como duque da Normandia, não


era obrigado a vir a Paris [...]. O rei Filipe, em resposta, disse que era de justiça que
ele perdesse os seus direitos sobre a Aquitânia, porque o duque da Normandia e o
duque da Aquitânia eram a mesma pessoa. [...] Finalmente, a corte do rei de França
decidiu que o rei de Inglaterra perdesse todas as terras que tinha recebido do rei
de França, visto que por um longo período havia deixado quase por completo de
prestar os serviços devidos por estas terras e porque não obedecia a quaisquer
ordens de seu senhor. [...].

FONTE: Adaptado de: Ralph of Coggeshall. Chronicon Anglicanun. In: ESPINOSA, Fernanda.
Antologia de textos medievais. Lisboa: Sá da Costa, 1981, p. 319-320.

271
RESUMO DO TÓPICO 5
Neste tópico você viu que:

● As forças descentralizadoras que levaram à fragmentação política da Alta Idade


Média, que culminou no feudalismo, foram: a patrimonialidade do Reino; a
vassalagem; a fusão do poder temporal e espiritual; a falta de unidade política
do Império Carolíngio e, finalmente, as invasões dos séculos IX e X.

● Foi devido à profunda fragmentação feudal que a Europa cristã pôde resistir às
invasões dos séculos IX e X.

● A reintrodução da economia monetária, na Baixa Idade Média, produziu as


primeiras formas de organização política e territorial.

● As cortes medievais foram os agentes deste processo de centralização política,


pois:

- atraíam e absorviam o excesso social de população através da instituição da


cavalaria de Juniores;
- contavam com uma fonte de receita que tornava possível a construção de
uma organização estatal sem a distribuição de terras aos colaboradores;
- na competição entre elas, a busca por prestígio fazia com que fossem centros
de patrocínio literário e artístico.

● A Guerra dos Cem Anos foi o duelo final entre os dois últimos competidores deste
processo de centralização: os Capetos e os Plantagenetas; a definição desta guerra
consolidou as duas monarquias absolutas mais importantes da era moderna:
Inglaterra e França.

● A constituição de Monarquias Nacionais Absolutistas significou a vitória dos


elementos particularistas (nação, língua vernácula, laços tribais e regionais) sobre
os elementos universalistas da Idade Média (Igreja e Império).

● A derrota do Império e da Igreja significou um atraso considerável para as suas


bases nacionais (Alemanha e Itália), e suas consequências foram sentidas em
pleno século XX.

● Nas cortes medievais, pelo aumento da interdependência entre as pessoas de


diferentes clãs numa ordem hierárquica, forjaram-se as primeiras normas de
conduta ditas corteses. Através destas normas, refinou-se o comportamento dos
homens e elevou-se a condição social das mulheres.

272
AUTOATIVIDADE

Prezado(a) acadêmico(a)! Após ler e estudar este tópico, responda às


seguintes questões:

1 Que fatores contribuíram para a constituição das cortes medievais a partir do


século XII?

2 Por que as cortes medievais podem ser consideradas como mecanismos


monopolistas de poder político e por que se atribui à competição entre elas o
aparecimento do Estado Nacional Absolutista?

3 Por que a emergência dos Estados Nacionais Absolutistas significou


uma derrota dos elementos universalistas da Europa Medieval? Qual a
consequência, em longo prazo, desta derrota?

4 Por que e em que medida as cortes medievais contribuíram para refinar o


comportamento dos machos e promover a condição feminina na Baixa Idade
Média?

273
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281
ANOTAÇÕES

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