Uma Introducao A Biblia Vol 8
Uma Introducao A Biblia Vol 8
Uma Introducao A Biblia Vol 8
SEGUNDO TESTAMENTO
A serviço da leitura libertadora da
Bíblia
V olume 8
PAULUS
2005
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Reimpressão: 2010
Tiragem: 1.000
liBM : 85-89000-75-3
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índice
Apresentação........................................................................................................5
Parte I: As com unidades da segunda geração c ristã......................... 7
Introdução............................................................................................................ 7
A guerra judaico-romana e as comunidades........................................ 12
Evangelho segundo Marcos .................................................................... 13
Um pouco mais de história...................................................................... 21
Herança das comunidades paulinas........................................................ 28
1. Segunda Carta aos Tessalonicenses.............................................. 29
2. Evangelho segundo Lucas e a questão sinótica.......................... 31
3. Livro dos Atos dos Apóstolos...................................................... 44
4. As cartas aos Colossenses eaos Efésios....................................... 47
4.1. Carta aos Colossenses .............................................................. 56
4.2. Carta aos Efésios....................................................................... 58
5. Primeira Carta de Pedro.................................................................. 60
LIerança das comunidades de Tiago....................................................... 63
1. Evangelho segundo Mateus............................................................ 63
2. Carta de Tiago................................................................................... 73
3. Carta de Judas ................................................................................... 77
Conclusão da Ia parte............................................................................... 80
Para orar e aprofundar.............................................................................. 82
Sugestões de leitura.................................................................................... 82
Parte II: As com unidades da terceira geração c ristã................. 85
Introdução.................................................................................................... 85
Um pouco de história................................................................................ 88
Herança das comunidades do Discípulo Am ado................................ 97
1. Livro do Apocalipse.......................................................................... 98
2. Evangelho segundo Jo ão ................................................................. 115
V Plimeira Car oão..............
■I. Segunda Car. oão..............
S. Terceira Cari ,oão..............
I lerança das comvu ides paulinas..
1. Carta aos Hei” _ i s ...................
2. Cartas Pastorai ........................
2.1. Primeira Carta a Timóteo
2.2. Segunda Carta a Timóteo
2.3. Carta a Tito..............
3. Segunda Carta de Pedro
Conclusão da 2a parte...........
Para orar e aprofundar..........
Sugestões de leitura................
Apresentação
Com este livro, Uma introdução à Bíblia chega ao seu último volu
me, que está dividido em duas partes.
A primeira é uma introdução à vida de comunidades primitivas
da segunda geração cristã, especialmente à literatura do Segundo Testa
mento que produziram nesse período.
A segunda parte deste volume trata da vida de comunidades da
terceira geração cristã, bem como da literatura bíblica que escreveram.
5
Parte I:
As comunidades da
segunda geração cristã
Introdução
7
r<importamento moral dos cristãos. Vimo.-. que ele propõe relações dc
reciprocidade quanto ao gênero, de prudência diante de um poder tira
no, de superação das relações de escravidão e de uma ética do discerni
mento.
Por fim, propusemos uma chave de leitura para cada uma das
sete cartas autênticas de Paulo (lTs, ICor, 2Cor, Gl, Fl, Fm c Rm)
Se no volume anterior nos ocupamos da primeira geração cristã,
que corresponde à época apostólica (30-67), nesta parte dedicar-nos-emos
à vida e aos escritos das comunidades no período conhecido como
subapostólico. E a segunda geração. São as pessoas que se converteram a
partir do trabalho pastoral desenvolvido pelas testemunhas dc jesus.
Nas con^unidades da primeira geração, participavam quase exclusivamen
te ‘pessoas’ que aderiam ao Evangelho de jesus de Nazaré, já nas igre
jas da segunda geração, faziam parte ‘famílias’ inteiras, uma vez que já
havia cristãos que nasceram em famílias que aderiram ás comunidades
cristãs.
Para início dessa época, optamos pelo ano 67, uma vez que deve
ser essa a data aproximada em que já não estão mais vivas as testemu
nhas que haviam convivido com Jesus. Para data final desse período,
decidimos pelo ano 97, quando já nos encontramos na terceira geração
cristã, o período pós-apostólico.
N a época subapostólica, as comunidades passaram a viver um pe
ríodo de crise. Primeiro, por causa do desaparecimento da primeiragera-
(ão de discípulos e discípulas. Depois, como conseqüência da persegui
ção pelos líderes das sinagogas, quando reorganizaram o Judaísmo após
a destruição do templo e de Jerusalém. Por fim, também por causa da
repressão por parte do Império Romano na época dos imperadores
Vcspasiano (69-79), Tito (79-81) e sobretudo Domiciano (81-96).
Foi para ajudar as comunidades a sobreviver a essa crise que nas
ceram os escritos do Segundo Testamento durante as épocas subapostólica
e pós-apostólica. A literatura que produziram quis ser um apoio, uma luz
num período em que já não havia mais a orientação da primeira geração
de discípulos e discípulas de Jesus de Nazaré e diante da perseguição,
tanto por autoridades judaicas quanto romanas.
O primeiro escrito desse período foi o Evangelho segundo Mar
cos em torno do ano 70. Mais do que apresentar discursos de Jesus,
esse Evangelho descreve sua prática em defesa e promoção da vida de
quem estava mais à margem da sociedade de então.
Como vimos no volume anterior sobre as primeiras comunida
des, entre os apóstolos mais influentes nas igrejas nascentes encontra
vam-se o Discípulo Amado, os apóstolos Paulo, Pedro e, muito próxi
mo deste, João e Tiago, o irmão do Senhor. Vimos também que cada
um desses apóstolos estava por trás de uma forma peculiar de viver a fé
na presença de Jesus ressuscitado na vida das comunidades da primeira
geração. Foi o caso das igrejas do Discípulo Amado, das comunidades
helenistas e das igrejas da Judéia. Além dessas grandes correntes do
Cristianismo primitivo, certamente ainda houve outras tendências das
quais, no entanto, não temos registros escritos na Bíblia.
As comunidades da segunda e terceira gerações entenderam-se como
herdeiras desses grandes missionários da era apostólica. Para dar autori
dade aos seus escritos, atribuíam sua autoria a testemunhas da primeira
geração. É por isso que temos escritos desses períodos atribuídos a Pe
dro (IPd, 2Pd), a Paulo (2Ts, Cl, Ef, lTm, 2Tm, Tt), a Judas (Jd) e a
Tiago (Tg).
Além desses livros que trazem o nome de seus patronos como
autores dos textos, temos ainda outros que pertencem à herança pauli-
na, das igrejas de Jerusalém ou do Discípulo Amado, mesmo que não
tragam o nome de seu fundador. E o caso do Evangelho segundo Lu
cas e do Livro de Atos dos Apóstolos que pertencem também às comu
nidades de herança paulina. E também o caso do Evangelho segundo
Mateus que nasceu em comunidades que têm sua origem na Igreja de
Jerusalém e têm em Pedro um de seus protagonistas. Os escritos das
comunidades do Discípulo Amado (Jo, ljo , 2Jo, 3Jo) foram atribuídos
ao apóstolo João ainda no segundo século.
Como os escritos das comunidades do Discípulo Amado são da
terceira geração cristã, objeto de estudo da segunda parte deste volume,
limitamo-nos agora a algumas informações a respeito dessas igrejas no
período subapostólico. E provável que, com a guerra judaico-romana, mem
bros das comunidades joaninas, como também de outras tendências do
Cristianismo primitivo, tenham se mudado da região da Palestina em
9
direção ã região ao norte e leste do Lago da Galiléia, em direção à Síria
ou a outros lugares. Essa migração se intensificou com a perseguição
sofrida por parte de lideranças das sinagogas nos anos 80 e 90. Como
ainda veremos, começou a progressiva ruptura entre os judeu-cristãos c
as sinagogas nessa época.
Depois de situarmos o primeiro escrito da era subapostólica, isto é,
o Evangelho segundo Marcos, agruparemos os livros da segunda geração
cristã dc acordo com sua pertença a uma ou outra herança apostólica.
Como deixaremos o estudo da literatura produzida pelas comunidades
do Discípulo Amado para a segunda parte, restam especialmente dois
grandes blocos de escritos.
O primeiro está sob a influência das comunidades paulinas. En
tre os textos de herança dessas igrejas, situamos a Segunda Carta aos
Tcssaloniccnses pelo ano 80, Lucas-Atos pelos anos 85 a 90 e Colos-
senscs-Efésios em torno de 95. Embora a Primeira Carta dc Pedro seja
atribuída a este apóstolo, ela faz parte da herança paulina, como ainda
veremos. O ano de sua redação deve ser 96. Como certamente as Car
tas Pastorais (lTm, 2Tm e Tt) pertencem à terceira geração, também fica
rão para a segunda parte.
O segundo bloco de escritos da época subapostólica está sob a influ
ência das comunidade fundadas pelos apóstolos, especialmente as da
judéia, onde Pedro, ]oão e Tiago, o irmão do Senhor, foram os maiores
líderes. São as igrejas formadas, na sua origem, por pessoas judias de
nascimento. Entre os escritos deixados pelas igrejas de herança de Tia
go, datamos o Evangelho segundo Mateus pelos anos 85 a 90 e as Car
tas de Tiago c de Judas cm torno de 95.
A diversidade eclesiológica presente nos escritos do Segundo Tes
tamento nos ajuda a hoje relativizar tudo o que nos divide, não só den
tro das diferentes confissões cristãs, mas também entre elas. Desafia-
nos a conviver no respeito às diferenças. Impulsiona-nos a buscar
também a unidade em torno do essencial, deixando-nos questionar
permanentemente pela proposta de fraternidade e de vida anunciada
por (esus.
Além das Cartas Pastorais (lTm, 2Tm e Tt) e dos escritos de
herança do Discípulo Amado (Jo, ljo , 2Jo e 3Jo), ainda ficarão para a
10
segunda parte deste volume a Carta aos Hebreus, a Segunda Carta de
Pedro e o Livro do Apocalipse.
Há uma clara diferença entre as grandes linhas das cartas autên
ticas de Paulo e os escritos da época subapostólica. Paulo, acima de tudo,
queria ajudar as comunidades a superar crises internas no que diz res
peito, por exemplo, às relações de gênero, de classe, de culturas, de
carismas, de lideranças, bem como às ameaças de cristãos judaizantes.
Também essas questões estão presentes nos escritos da segunda
geração. Mas há um dado novo. Os escritos das eras subapostólica e pós-
apostólica querem ajudar as comunidades a sobreviver à crise gerada com
a morte das primeiras testemunhas de Jesus e com a perseguição por
parte de líderes das sinagogas e das autoridades romanas. Além de esta
rem voltados para questões internas, estão também interessados no
fortalecimento da estrutura das comunidades para sua sobrevivência
em um novo momento histórico.
Como eram comunidades pequenas e fracas, não tiveram força
suficiente para resistir a perseguição. Em boa medida, sua lenta institu
cionalização é conseqüência dessa fragilidade estrutural diante das for
ças de opressão. O patriarcado, que possivelmente nunca fora vencido
na sua totalidade, foi sendo reforçado aos poucos, enquanto o projeto
de comunidades de iguais foi se perdendo. A perseguição romana, além
das questões naturais de identidade de qualquer grupo humano, terá
sido uma das razões fundamentais para a hierarquização, a patriarcali-
zação, a uniformidade e a unificação da doutrina. No entanto, lembra
mos que a perseguição romana não adngiu a todas as comunidades
com a mesma violência. Aquelas cuja prática e cuja estrutura eram mais
democráticas e diferentes do império, certamente foram mais forte
mente atingidas. Comunidades menos conflitantes com as estruturas
imperiais foram menos abaladas.
Esperamos que o estudo e a meditação da literatura que a segunda
geração nos legou renove nossa esperança e nosso compromisso com os
mais pobres, a fim de que as estruturas de nossas instituições não nos
impeçam de nos manter firmes na caminhada em busca da transforma
ção da sociedade, vivenciando novas relações com todas as criaturas e
seu Criador.
11
A Guerra judaico-romana e as comunidades
No volume anterior (p. 100-105), você já leu sobre o governo
ilo imperador Nero (54-68) e sobre a guerra judaico-romana nos anos
66-73.
No entanto, convém recordar aqui vários acontecimentos que
abalaram a vida das comunidades judaicas e cristãs nos anos 60.
Um deles foi a perseguição de Nero aos cristãos de Roma a parti i
de 64. Outro foi o massacre de judeus que se rebelaram em várias par
tcs do império, sobretudo no Egito em 66. Um terceiro acontecimento
foi a guerra judaico-romana (66-73) que teve como ponto alto a des
truição de Jerusalém e do santuário. Com a destruição da cidade santa c
do templo, os judeus perderam suas principais referências visíveis. Isso
não foi somente algo exterior, atingiu também a essência do Judaísmo.
A principal conseqüência religiosa para a comunidade judaica foi
que o culto não podia mais ser oferecido, uma vez que o altar e o tem
plo jaziam em ruínas.
Também a casta sacerdotal havia sido morta durante a guerra, ou
pelos zelotas ou pelos romanos. Conseqüentemente, desapareceu o gru
po dos saduceus. Eles haviam permanecido ao lado dos romanos du
rante a guerra. Com a tomada do templo pelos zelotas em 66, no início
do conflito com Roma, eles foram praticamente eliminados pelos re
voltosos que saquearam suas propriedades e queimaram todos os regis
tros de terras e de dívidas guardados no templo.
A conseqüência política imediata dessa catástrofe para os judeus
foi a transformação da Judéia em província diretamente vinculada a
Roma e não mais aos legados romanos da Síria. Cesaréia passou a ser a
sede dos procuradores romanos, enquanto Jerusalém aquartelava a dé
cima legião de soldados.
Também as primeiras comunidades de Jerusalém foram direta
mente atingidas. Sua história durou somente um pouco menos de 40
12
anos. Em 70, muitos cristãos devem ter morrido na guerra ou então
fugiram para outros lugares, como o norte da Galiléia, o sul da Síria e a
Transjordânia. E possível que, depois da guerra, algumas comunidades
tenham se reorganizado, mas a Igreja de Jerusalém havia perdido total
mente sua importância no contexto das demais comunidades. Com seu
fim, também o Cristianismo, ainda muito cedo, perdeu uma importante
referência. Outras cidades do império passaram a adquirir maior rele
vância, como foi o caso de Antioquia, de Efeso e de Roma.
Um quarto fator que agravou a crise das comunidades foi a mor
te dos apóstolos e dos missionários da primeira geração cristã.
Tudo isso contribuiu para que as igrejas entrassem numa nova
fase. Nesse momento, já estamos na segunda geração, que vai desde a guerra
judaico-romana até 97, final do governo do imperador Domiciano.
Depois da queda de Jerusalém, a marca mais forte dessa fase é a trágica
separação entre cristãos e judeus, como veremos adiante.
14
anônimos. No entanto, uma tradição do segundo século o atribuiu a
Marcos. Seria o João Marcos em cuja casa se reunia uma igreja doméstica
na cidade de Jerusalém (At 12,12-13). Segundo Cl 4,10, era primo de
Barnabé e foi com ele a Antioquia (At 12,25). Integrou a primeira equipe
missionária de Paulo, abandonando em seguida a missão (At 13,5.13).
Segundo At 15,36-40, esse teria sido o motivo da separação de Paulo
e Barnabé, quando cada um organizou sua própria equipe missioná
ria. Mais tarde, podemos encontrá-lo novamente em companhia de
Paulo (Cl 4,10 e Fm 24) e dos autores da Primeira Carta de Pedro
(lP d 5,13).
Os autores de Marcos foram pessoas de liderança nas comunida
des, homens e mulheres que ajudaram a recolher as tradições orais e as
coletâneas escritas. Por fim, uma ou mais pessoas fizeram a redação,
deixando, a seu modo, também o seu estilo, as suas marcas.
Fontes de Marcos
Quando, alguns anos depois, foram editados os evangelhos se
gundo Mateus e Lucas, seus redatores já tinham à sua frente o texto de
Marcos. Porém, os autores de Marcos tiveram que ser mais criativos,
uma vez que não dispunham de muita coisa escrita além de pequenas
coletâneas e da tradição oral.
De um lado, portanto, suas fontes de consulta foram as coleções
que certamente já existiam e circulavam nas comunidades. Eram cole
tâneas sobre a paixão, morte e ressurreição de Jesus, sobre suas parábo
las e sobre sua atividade terapêutica. E provável que, como vimos no
volume anterior, também tenham conhecido o documento da fonte
“Q”. Porém, como estavam mais interessados em sua prática do que
em seus discursos, devem ter omitido intencionalmente os ditos dessa
fonte. Já Mateus e Lucas usaram o documento “Q” como fonte de
consulta, o que ainda veremos.
Além dessas coletâneas, outra fonte importante foi a tradição oral
que se mantinha viva nas igrejas desde o início dos anos 40. Haviam,
pois, passado 40 anos desde o final da vida pública de Jesus até que se
escrevesse o primeiro Evangelho a seu respeito.
15
Objetivos de Marcos
Como os demais evangelhos, também o de Marcos descreve a
vida de Jesus intimamente ligada à vida de suas comunidades. Por isso,
não informa somente sobre a mensagem e os gestos do Nazareno, ma>
mistura a mensagem, a prática e os conflitos de Jesus com a pregação, a
prática e os conflitos das comunidades dos anos 60. Portanto, atualiza
para um novo contexto a Boa-Nova do Messias. E um escrito que tem
um forte compromisso com a militância em favor do Reino. Isso tam
bém nos motiva a atualizar permanentemente o Evangelho aos novos
tempos em que vivemos hoje. É mais ou menos o que nós também
fazemos quando, a partir dos evangelhos, buscamos compreender o
que Jesus faria se estivesse hoje aqui em nosso lugar.
Dois são os principais objetivos do Evangelho segundo Marcos
Um deles é mostrar quem é Jesus de Nazaré para as comunidades. Ou
tro objetivo é mostrar o que é ser discípulo de Jesus de Nazaré nos dias
em que este Evangelho foi escrito.
17
Por fim, mais do que apresentar o Nazareno fazendo muitos dis
cursos, Marcos descreve especialmente sua prática libertadora. Ele veio
perdoar os pecados (2,5-10). Assim, libertava as pessoas do poder reli
gioso de sua época, da exploração que o templo fazia ao exigir o ofere
cimento de sacrifícios para alcançar o perdão divino. Além disso, ele
ajuda as pessoas a fazerem uma nova experiência de Deus. Para fazer
comunhão com Deus, os sacerdotes e os sacrifícios não são mais a
única mediação. Em Jesus, Deus misericordioso oferece gratuitamente
seu perdão, mesmo longe de Jerusalém.
Jesus também liberta as pessoas de doenças e de todas as forças
malignas que impedem a manifestação do Reino. E o faz, estimulando-
as a terem novamente auto-estima e a liberarem em seu interior as suas
energias, agora potencializadas pela força divina. Jesus chama de fé essa
confiança na plena comunhão com Deus, isto é, nossa capacidade re
forçada com a ação do Espírito. Capacidade que leva as pessoas a per
ceberem que Deus age em Jesus, e a terem coragem de romper qual
quer obstáculo para d’Ele se aproximarem. Veja, nos seguintes textos,
como ele valoriza a importância da fé no ato da cura: 2,5; 5,34; 9,23-24;
10,52! Ao curar, Jesus resgata a dignidade das pessoas doentes que eram
discriminadas como pecadoras e castigadas por Deus, como se pensa
va. Liberta-as também da tradição legalista, que impedia o acesso à vida
digna.
Resgata igualmente outros grupos excluídos da cidadania, como
mulheres, leprosos, deficientes e pobres. Jesus concretizava seu anún
cio do Reino de Deus como Boa-Nova para as pessoas pobres, margi
nalizadas e excluídas, principalmente convidando-as para comerem junto
com ele. E deve ter feito isso com uma relativa freqüência, pois os
evangelhos nos mostram Jesus muitas vezes em torno de uma mesa,
(Mc 1,29-31; 2,15-16; 14,3.17-25;
"Segui-me e eu vos tornarei 16,14), falando de pão (Mc 2,23-26;
pescadores de ho m ens." 8,14-21), de comida (Mc 2,18-19;
(Mc 1,17) 7,1-23; 8,27-28), repartindo o pão
(Mc 6,30-44; 8,1-9). Tanto que isso
lhe rendeu o apelido de comilão e beberrão (Mt 11,19; Lc 7,34). Tam
bém terá sido por isso que o pão e o vinho partilhados ao redor de uma
18
mesa são o sacramento principal do Cristianismo. Sobre a prática liber
tadora de Jesus junto aos pobres, você já leu nas páginas 176-187 do
volume seis desta Introdução.
19
8,22-26: Processo de cura da cegueira.
8,27-30: Início do reconhecimento de que Jesus é o Messias.
8,31-32a: Primeiro anúncio de que ele passará pela cruz-ressur
reição.
8,32b-33: Cegueira ou incompreensão de Pedro.
8,34-9,1: Instruções sobre as atitudes de quem quer segui-lo pelo
caminho.
9,2-29: Complementos.
9,30-31: Segundo anúncio da cruz-ressurreição.
9,32-34: Cegueira ou incompreensão dos Doze.
9,35-37: Instruções sobre as atitudes de quem quer segui-lo
pelo caminho.
9,38-10,31: Complementos e novas exigências para o segui
mento.
10,32-34: Terceiro anúncio da cruz-ressurreição.
10,35-40: Cegueira ou incompreensão dos discípulos Tiago ejoão.
10,41-45: Instruções sobre as atitudes de quem quer segui-lo pelo
caminho.
10,46-52: Bartimeu: de cego a discípulo.
Ao ler esses textos, você pôde perceber que somente sendo no
vas mulheres e novos homens, somente vivendo novas relações, pode-
se ser discípulo e discípula de Jesus de Nazaré, o Filho de Deus. Por
isso, a segunda cena, a cura do cego Bartimeu (10,25-52) representa a
maturidade na fé, a clareza quanto às exigências do seguimento. De
modo especial, representa a compreensão de que Jesus é o Messias-
Servo. Ao doar sua vida livremente e por amor, passa pelo sofrimento
que o sistema imperial, com o apoio de autoridades religiosas, lhe
impõe. Tendo tudo isso claro, então se está pronto para “segui-lo pelo
caminho” (10,52). Em três verbos, Marcos nos dá uma síntese do que é
ser discípula e discípulo do Nazareno. São eles: seguir, servir, subir (Mc
15,40-41).
E hoje, para o seguimento de Jesus em nosso dia-a-dia, que atitu
des ele nos exige? Que novas exigências faria em nossa realidade, dois
mil anos depois? Segundo Mc 1,1, este relato é apenas o “começo daBoa-
20
Nova de Jesus, o Messias, o Filho de Deus”. Ao iniciar assim a sua obra, os
autores de Marcos certamente estão nos convidando a levar adiante o
anúncio e a vivência do Reino de Deus em nossos dias, promovendo a
vida e a dignidade, especialmente de quem é excluído desses direitos
básicos.
Estrutura de Marcos
Propomos uma estrutura simplificada para o Evangelho segun
do Marcos.
1,1-15: Introdução: início da Boa-Nova e apresentação do Messias, que
anuncia a proximidade do Reino e a necessidade de conversão.
1,16-20: Chamamento para o seguimento.
1.21-8,21: Ministério na Galiléia e arredores. Jesus ensina com autorida
de e promove ações libertadoras em favor das pessoas mais
discriminadas, revelando o poder de Deus. No entanto, fami
liares (3,20-21) e compatriotas (6,1-6), autoridades religiosas
e políticas (2,1-3,6), bem como os discípulos (6,49-52; 7,17
18; 8,14-21) são cegos e não o compreendem.
8.22-10,52: Cura da cegueira de quem o segue no caminho para Jerusalém.
11-13: Atividade de Jesus em Jerusalém, lugar do conflito e da rejeição.
14-16: Paixão, morte e ressurreição. A cruz revela a cegueira das autori
dades e é luz para a comunidade de Marcos.
21
71-72: Lucílio Basso, legado romano da província imperial da Ju-
déia.
73: Derrota da última resistência dos zelotas em Massada. Flávio
Silva, legado da Judéia.
74-132: Vigência do sinédrio emjâmnia. A academia de Jâmnia foi
fundada pelo rabino Johanan ben Zakai. Acirram-se os con
flitos que levarão à separação progressiva entre as comuni
dades cristãs de origem judaica e as sinagogas.
79-81: Tito, imperador.
Pelo ano 80: Segunda Carta aos Tessalonicenses.
81-96: Imperador Domiciano, irmão de Tito.
85-90: No sínodo de Jâmnia, o Judaísmo rabínico estabelece o
cânon dos livros sagrados para os judeus e a exclusão defini
tiva dos judeu-cristãos das sinagogas.
Início da progressiva separação entre as comunidades cris
tãs e as sinagogas judaicas.
Em torno de 90: Evangelho segundo Mateus, Evangelho segundo
Lucas e Atos dos Apóstolos.
Pelo ano 95: Cartas aos Colossenses e aos Efésios, Primeira Car
ta de Pedro e Cartas de Tiago e de Judas.
96-98: Nerva, imperador.
98-117: Trajano, imperador.
22
fortalecidos da catástrofe. Nunca tinham apoiado de forma irrestrita o
movimento revolucionário dos zelotas. Por isso, tornaram-se, através
do sinédrio de Jâmnia, o novo canal legítimo para fazer a mediação
entre o império e os judeus. Foram, inclusive, encarregados dc recolher
os impostos romanos através das sinagogas.
Ainda antes da queda dejerusalém em 70, o rabino Johanan ben
Zakai retirou-se da cidade e declarou publicamente que era contra a
insurreição. Dessa forma, conseguiu permissão romana para construir
uma casa de estudo da Lei emjâmnia, a 19 km ao sul de Jope (Jafa), na
planície litorânea. Apesar da revolta, os romanos continuaram conce
dendo aos judeus o privilégio de não precisar prestar culto ao impera
dor. Antes da queda dejerusalém, era-lhes exigido o oferecimento de
um sacrifício diário no altar pelo imperador. Depois da destruição do
templo, Roma exigiu que a didrácma fosse paga a Júpiter, o pai das
divindades romanas. A didrácma, antes da queda do templo, era o im
posto anual e pessoal pago ao santuário de Jerusalém para cobrir suas
despesas (Mt 17,24).
Como o antigo sinédrio já havia sucumbido, os rabinos de orien
tação farisaica estabeleceram um novo sinédrio na cidade de Jâmnia em
torno do ano 74.
Jâmnia foi o centro de referência para reorganizar o Judaísmo. A
liderança de ben Zakai foi até o ano 80, quando assumiu em seu lugar
Gamaliel II (80-120). Ali, nasce o farisaísmo rabínico, isto é, o Judaís
mo sem templo, tendo como principal ponto de referência a Bíblia e a
tradição oral dos escribas. Os fariseus e seus escribas tomaram a lide
rança dessa forma de o Judaísmo continuar sobrevivendo. Rearticula-
ram-no em torno da sinagoga, da Palavra, do livro da Lei, e não mais
em função do sacrifício no templo. Assim, o farisaísmo tornou-se o
único guardião da tradição judaica, dando-lhe as feições que hoje co
nhecemos.
O Judaísmo rabínico, na verdade, deu uma nova identidade
israelitas dispersos nas grandes cidades do mundo greco-romano. Ser
judeu é pertencer a um povo que vive de acordo com as mesmas tradi
ções, com a mesma Lei. No lugar dos sacerdotes do templo de Jerusa
lém, os rabinos passam a ser as novas lideranças do Judaísmo. Interpre-
23
Iam a Torá para que esta servisse como norma de vida para todas as
comunidades que se reúnem nas sinagogas espalhadas pelo mundo da
quela época e até os nossos dias.
Se antes o tribunal funcionava no sinédrio junto ao templo, ago
ra funciona junto às sinagogas. Ali, se decidiam processos como a pena
de flagelação (Mt 10,17; 23,34; Mc 13,9) e a expulsão de judeu-cristãos
(Lc 6,22; Jo 9,22.35; 12,42; 16,2). Veja como Jo 16,2 dá a entender que
até se decidia o apedrejamento de cristãos (cf. At 7,59).
Jâmnia tornou-se o lugar de formação de rabinos, de especialis
tas da Lei. Mas não só. O novo sinédrio tinha a função de jurisdição
religiosa. Em torno de 85, além de decidir a expulsão dos judeu-cris
tãos, estabeleceu também o cânon definitivo da Bíblia hebraica, exclu
indo os textos que só se conhecia em grego. Foram considerados como
livros sagrados somente aqueles que foram escritos na Palestina, em he
braico ou aramaico, até a época de Esdras e que, além disso, não permitis
sem às igrejas cristãs fazer uma releitura cristológica desses escritos.
Os componentes desse novo sinédrio excluíram das sinagogas
os judeus que haviam aderido a Jesus como o Messias esperado por
Israel. Na oração sinagogal, introduziram também uma prece, pedindo
a Deus que amaldiçoasse os judeu-cristãos. Entre os evangelhos, quem
mais deixa transparecer o conflito entre os judeu-cristãos e esse novo
jeito de ser do farisaísmo judaico são João e Mateus.
24
Domiciano reina de 81 a 96. Era filho de Vespasiano e irmão de
Tito. Conseguindo o apoio do exército, consolidou seu domínio sobre
as províncias ocidentais do império (Germânia, Grã-Bretanha e Escó
cia) e ampliou as do Oriente. ,
Foi um dos mais cruéis imperadores de Roma, mandando matar
qualquer pessoa que lhe causasse problemas. Como seu primo e cônsul
Flávio Clemente se negou a reconhecê-lo como Deus, mandou execu
tá-lo. Pelo mesmo motivo, exilou para longe sua esposa Domitila. Na
turalmente, essa forma de exercer o poder aumentou a aversão popular
contra ele.
Domiciano atribuiu a si mesmo títulos divinos, exigindo culto à
sua pessoa. Fazia-se chamar de “Senhor” e “Deus”. Seus documentos
oficiais começavam com essas palavras: “Nosso Senhor e Deus ordena que se
faça o seguinte. ” Cada vez mais, o imperador era divinizado e não podia
ser considerado como simples mortal. Além de mandar colocar ima
gens suas em todas as províncias do império, patrocinou a construção
de um templo em Efeso, mandando colocar uma enorme imagem sua.
Parece que Ap 13,15 se refere a essas ima
gens do imperador. "O Cordeiro é o
Para as comunidades cristãs, que são Senhor dos senhores
uma pequena minoria sem maior influência e o Rei dos re is."
política no grande império, não era possível (cf. Ap 17,14)
reconhecer Deus no imperador, uma vez que
para elas somente podia ser venerado um único Senhor.
As perseguições aos cristãos foram desencadeadas especialmen
te porque estes se negavam a prestar culto ao imperador (Ap 6,9; 7,14;
12,11; 13,15; 20,4). Tudo piorou, quando Domiciano emitiu um decre
to contra as comunidades cristãs, considerando sua religião ilícita. Isso
aconteceu no momento em que os judeu-cristãos foram expulsos do
Judaísmo na segunda metade dos anos 80. Até ali, o Cristianismo ainda
não era visto pelos romanos como uma nova religião, uma vez que
tinha estreitas ligações com o Judaísmo. Este era uma religião aceita
como lícita por Roma, permitindo, inclusive, que vivesse sua fé em
YHWH sem cultuar as divindades do império.
Essa divinização do imperador fazia parte de sua estratégia poli-
25
tica de dominação. Por um lado, é mais fácil dominar um povo quando
alguém se apresenta em nome de Deus ou como se fosse o próprio
Deus. E só observar, em nossos dias, como há governantes no mundo
que sabem aproveitar-se da religião para impor seus interesses ou para
legitimar guerras. Por outro lado, venerar o soberano como divino era
também sinal dc submissão ao seu poderio.
Já falamos dessa estratégia do poder de se apresentar como re
presentante das divindades e intermediário entre estas e o povo, ao
mostrarmos como os monarcas no Antigo Israel também adotaram
essa ideologia da filiação divina do rei. Em relação a Davi, você leu no
SI 2,7-8. Quanto a Salomão, você conferiu 2Sm 7,14.
Temos, no Segundo Testamento, vários reflexos dessa diviniza-
ção do poder no Império Romano. Veja alguns exemplos!
1. As comunidades da Ásia Menor são chamadas, como “eleitas”
por Deus, para, acima de tudo, “obedeceraJesus Cristo”e não aos poderes
deste mundo (lPd 1,1-2). São também convidadas a não divinizar o
imperador. Em lPd 2,13, o autor da carta convida seus destinatários a
considerar o imperador uma “criatura humana”e não divina. Deixa claro,
ao mesmo tempo, que Jesus é o “Senhor”. Isso nos mostra que as comu
nidades cristãs se negaram a prestar culto ao imperador, o que lhes
custou violenta perseguição.
2. |á vimos no volume seis (p. 119-121) como Jesus de Nazaré
retoma o projeto tribal, ao anunciar o Reino de Deus como centro de
seu Evangelho. Dessa forma, recupera a teologia do reinado de YHWH.
Conforme essa teologia, só YHWH é rei (Jz 8,23). Ter essa fé é consi
derar todas as suas criaturas como suas filhas e não somente o rei como
Filho de Deus. Se todos somos filhos e filhas do Criador, então nossa
missão é viver em fraternidade, superando todas as relações opressivas.
Na medida em que crescia a divinização do imperador, as comunidades
cristãs também afirmavam com maior ênfase que Jesus era o Rei dos
reis e Senhor dos senhores. E são justamente os escritos que surgem na
virada do primeiro século que mais fazem menção a Jesus como Rei.
Veja, por exemplo, lTm 6,15; Ap 1,5; 17,14 ; 19,16! Será por acaso que
o maior testemunho de fé no Evangelho de João, que está na boca do
26
incrédulo Tomé, apresente Jesus como “meu Senhor e meu Deus” (Jo 20,28),
em oposição a Domiciano que se apresentava como “Senhor e Deus”?
3. Ap 13,11-18 desmascara o culto ao imperador divinizado, com
veremos adiante.
Ainda quanto ã questão da devoção a divindades, convém lem
brar aqui que os romanos identificavam seus deuses com as divindades
veneradas pelos gregos. Estavam intimamente ligadas às forças da na
tureza. Júpiter (Zeus dos gregos; cf. At 14,12-13), o senhor do céu e da
terra, lançava raios e trovões. Netuno (Posêidon grego), deus dos ma
res, enviava e acalmava tempestades. Apoio, deus sol e protetor das
artes, enviava e curava doenças. Vênus (Alrodite grega), deusa da bele
za, do amor e da fertilidade. Mercúrio (Hermes grego; cf. At 14,12),
deus da eloqüência e dos comerciantes. Diana (Artemis grega - cf. At
19,24-28), deusa da caça, dos ciclos da vida e da mãe terra. -
Voltando ao imperador romano, mais uma vez, as intrigas palacia
nas levaram ao assassinato de um rei. Domiciano foi morto em 96.
Assim, chegou ao fim a dinastia dos Flávios que iniciara com Tito Flá-
vio Vespasiano em 69.
Inicia-se, então, uma nova era no Império Romano. Desta vez,
foi o senado quem elegeu um novo imperador. Escolheu Nerva (96
98), dando início a uma seqüência de imperadores que seguiam a filoso
fia grega de que o soberano deveria exercer seu poder como servidor
do bem comum para os “cidadãos”.
Passemos, agora, a estudar o restante dos textos do Segundo Tes
tamento que a segunda geração cristã nos legou. Classificaremos essa lite
ratura de acordo com a tradição eclesiológica a que pertence. Em pri
meiro lugar, veremos os livros que se inserem na herança das igrejas
fundadas por Paulo e sua equipe. São eles: a Segunda Carta aos Tessalo-
nicenses, o Evangelho segundo Lucas, o Livro de Atos dos Apóstolos,
a Carta aos Colossenses, a Carta aos Efésios e a Primeira Carta de Pe
dro. Depois, olharemos os livros que pertencem à herança das comuni
dades dos apóstolos e de Tiago. São eles: o Evangelho segundo Mateus,
a Carta de Tiago e a Carta de Judas.
27
Herança das comunidades paulinas
Na segunda geração cristã, os discípulos de Paulo levaram adiante o
projeto missionário do apóstolo. O primeiro objetivo deles foi levar em
I rente seu projeto missionário. Naturalmente, o fizeram com as devidas
íidaptações. Dessa forma, davam respostas a novas perguntas e dificul
dades que iam aparecendo na caminhada. Assim, a missão que Paulo e
sua equipe realizaram não perdia sua atualidade. Para isso, redigiram
vários textos cm forma de cartas e um em forma de evangelho. A pri
meira parte deste evangelho apresenta a vida de Jesus (Lc) e sua segun
da parte, a vida das primeiras comunidades (At).
Outro objetivo da escola paulina foi colecionar as cartas autênti
cas de Paulo que ainda não haviam sido extraviadas. Conseguiram, in
clusive, que seus escritos fossem integrados na lista de livros reconheci
dos por igrejas de tradições diferentes, como é o caso das comunidades
do Discípulo Amado ou aquelas que tinham Pedro e Tiago como seus
fundadores. Dessa forma, evitaram que as igrejas helenistas, fundadas
por Paulo, fossem discriminadas pelas outras correntes cristãs. Fizeram
com que o jeito paulino de seguir Jesus de Nazaré passasse a fazer parte
integrante de toda a Igreja. Assim, suas cartas passaram a ser lidas tam
bém por comunidades não fundadas pelo Apóstolo das Nações.
Certamente, a Segunda Carta aos Tessalonicenses é o primeiro
escrito da escola paulina durante a era subapostólica e está intimamente
ligada à primeira carta às igrejas de Tessalônica e que já estudamos no
volume anterior.
Além da Segunda Carta aos Tessalonicenses, podemos ainda clas
sificar outros três grupos de escritos do Segundo Testamento como
sendo de herança paulina. No primeiro, estão os escritos atribuídos a
I .ucas, isto é, o Evangelho que traz seu nome e o Livro dos Atos dos
Apóstolos. É uma obra só em dois volumes. Lucas-Atos não homena
geiam Paulo, um de seus protagonistas. Não lhe atribuem a autoria,
como no caso da Segunda Carta aos Tessalonicenses. No entanto, fica
evidente que uma de suas finalidades é fazer a defesa de Paulo, como
ainda veremos.
28
No segundo grupo estão as Cartas aos Colossenses e aos Efési
os. A autoria de ambas é atribuída a Paulo, e Colossenses ainda acres
centa Timóteo como um de seus autores (Cl 1,1). Os dois escritos têm
muita afinidade entre si. Incluímos aqui a Primeira Carta de Pedro, uma
vez que ela tem muita semelhança com as Cartas aos Colossenses e aos
Efésios. Embora seja atribuída ao apóstolo Pedro, ela também deve ser
de herança paulina.
E no terceiro grupo estão as Cartas Pastorais. Elas também ho
menageiam Paulo e, valendo-se de sua autoridade, o citam como autor
das duas Cartas a Timóteo e da Carta a Tito. Devemos incluir aqui
também a Segunda Carta de Pedro. Como essas epístolas devem ser do
início do segundo século, deixaremos seu estudo para a segunda parte
que tratará das comunidades da terceira geração cristã.
29
abandono da fé, e a vinda do Anticristo.
2. O vocabulário, o estilo e a estrutura das duas cartas têm muit
semelhanças. Frases inteiras da Primeira Carta aos Tessalonicenses são
reiomadas na Segunda. Compare, por exemplo, lTs 1,1-3 com 2Ts 1,1
3! Neste caso, a Segunda teria sido escrita vários anos depois da Primei-
ni com o objetivo de completar os ensinamentos desta sobre os aconte
cimentos dos últimos tempos.
Onde? O possível local de redação pode ser tanto a Ásia Menor
como a Macedônia.
Quando? A partir do ano 80.
O quê? Seja qual for o autor, não resta dúvida de que a segunda
carta foi escrita principalmente para apresentar o cenário apocalíptico
dc 2,1-12. Seu autor quis responder às interrogações e às preocupações
das comunidades que estranhavam que o dia do Senhor não chegasse
tão depressa como se esperava quando lTs foi escrita. 2Ts 2,2 refere-se
a lTs 4,13-5,11, como você pode perceber ao comparar os dois textos.
() autor da segunda carta discorda de Paulo, redefinindo o prazo para a
vinda do Senhor.
A carta recomenda que não se espere de braços cruzados a paru-
sia de Jesus. A fé deve ser ativa e a esperança não dispensa a luta. A
segunda carta caracteriza-se pela resistência teimosa daqueles que não
se conformam com o “mistério da impiedade” (2Ts 2,7) presente e atuante
no meio de nós. Longe de especular sobre o final da história, ela esti
mula à resistência, na certeza de que o “homem ímpio” (2Ts 2,3) acabará
sendo destruído pelo sopro da boca de Jesus. Não há esperança sem
resistência, como não há resistência sem fé na vitória final da justiça e
da verdade.
Como?
Convidamos você a ler toda a carta, seguindo a proposta de es
trutura que segue.
1.1-2: Saudações.
1,3-12: O justo juízo que vem do Senhor.
2.1-3,15: Ensinamentos sobre a vinda do Senhor e conseqüências para
a vida cristã:
2,1-12: A vinda do Senhor e o combate final;
30
2,13-17: A comunidade não deve temer: firmeza na fé;
3,1-5: Solidariedade através da oração;
3,6-15: Quem não quer trabalhar, que não coma.
3,16-18: Saudações finais.
Contexto:
O contexto da Segunda Carta aos Tessalonicenses reflete uma
situação posterior à primeira, principalmente no que se refere à expec
tativa da parusia. Os primeiros cristãos acreditavam na vinda iminente
de Cristo, inclusive Paulo (ICor 7,29; lTs 4,15-18). Nos anos 80, todos
os apóstolos já haviam morrido. E nada da volta de Jesus. É para escla
recer dúvidas sobre a demora da parusia que se escreve essa segunda
carta. Seus autores querem ajudar as comunidades a sobreviver e a se
manter firmes na esperança.
31
Icções escritas em suas mãos. Eram coletâneas de parábolas, de curas e
sobretudo a respeito da paixão, morte e ressurreição. Além disso, co
nheciam a tradição oral sobre Jesus.
Mais de quinze anos depois do ano 70, quando os evangelhos
que homenageiam Lucas e Mateus tiveram sua redação final, as comu
nidades já tinham diante de seus olhos o texto de Marcos. Chegaram a
copiar boa parte dele para dentro de suas obras. Aqui e acolá, introdu
ziam modificações. Portanto, Marcos terá sido a fonte principal que
lhes serviu como base, por ocasião da redação de seus evangelhos.
Além dessa fonte, Lucas e Mateus usaram um segundo texto, do
qual também copiaram muitas coisas. Já falamos disso nas páginas 52-53
do volume anterior, que trata da fonte “Q”. Por isso, convém que você
leia novamente aquelas páginas, antes de continuar seu estudo neste
volume. A fonte “Q” são os textos comuns a Mateus e Lucas, porém
ausentes em Marcos.
Além de copiar boa parte de Marcos e da fonte “Q”, Lucas e
Mateus ainda contêm material que lhes é exclusivo, isto é, narrativas
que somente se encontram ou em Mateus ou em Lucas. Como exem
plo, citemos os relatos sobre a infância de Jesus (Mt 1-2; Lc 1-2). Ao
comparar as duas narrativas, você perceberá que não estão em Marcos
e provavelmente nem na fonte “Q”. Além do mais, são totalmente dife
rentes entre si. Cada evangelista elaborou os relatos sobre o menino
|esus a partir da situação pós-pascal de suas comunidades e, ao mesmo
tempo, em função da sua vida nos anos 80.
E, de modo especial, nesse material exclusivo (ME) de cada evan
gelho, além das modificações introduzidas naquilo que copiaram de Mar
cos e da fonte “Q”, que podemos perceber as características próprias das
comunidades que estão por trás dos evangelhos de Mateus e de Lucas.
Apresentando em forma de esquema, poderíamos resumir da
seguinte maneira o que acabamos de dizer:
Mc “Q”
ME Lc Mt A ------- ME
32
Outro esquema, com os números aproximados dos versículos,
pode-nos ajudar a compreender a relação que há entre os evangelhos
sinóticos, isto é, Marcos, Mateus e Lucas. São chamados assim, uma vez
que, devido às suas grandes semelhanças, nos dão uma “visão de con
junto” sobre a vida de Jesus.
33
Mc 1,21-3,6 com Lc 4,31-6,11; Mc 10,13-52 com Lc 18,15-43;
Mc 4,1-25 com Lc 8,4-9,50; Mc 11,1-13,37 com Lc 19,29-21,38.
34
Os dois filhos 21,28-32
As bodas 2 2 ,1-14 14,16-24
O homem sem a roupa nupcial 2 2 ,11-1 4
O ladrão noturno 24,43-44 12,39-40
O m ordom o fiel 24,45-51 12,42-46
As dez virgens 25 ,1-13
Os talentos 25,14-30 19,12-27
O grande julgamento 25,31-40
Os dois devedores 7,41-43
O bom samaritano 10,30-37
O amigo importuno 11,5-8
O rico insensato 12,16-21
A figueira estéril 13,6-9
A porta estreita 13,24-30
A escolha dos lugares 14,7-11
Dupla paráb. sobre a torre e a guerra 14,28-32
A dracma perdida 15,8-10
O filho pródigo 15 ,11-32
O administrador prudente 16,1-8
O mau rico e o pobre I.ázaro 16,19-31
O servo humilde 17,7-10
O juiz iníquo c a viúva importuna 18,1-8
O tariseu e o publicano 18 ,9-14
O bom pastor 10,1-5
35
Atividade em Jerusalém, última ceia
ecrucificação 11,1-15,47 21,1-27,56 19,28-23,56
Ressurreição c aparições 16,1-8
(16,9-20 é 28 24
apêndice)
36
Seguimento d e j e sus 9,57-62 8,18-22
Instruções para a missão 10,2-11 9,37-38
10,7-8.16
Ameaças contra a Galiléia 10 ,12-15 11,20-24
“Q uem vos ouve/recebe a mim ouve/recebe... ” 10,16 10,40
Oração de agradecimento e grito de alegria de Jesus 10,21-24 11,25-27
13 ,16-17
O Pai-Nosso 11,2-4 6,9-13
Kxortação à oração 11,9 -13 7,7-11
Bnfrcntamento do poder demoníaco 11,14 -23 12,22-30
9,32-34
O retorno de espírito impuro 11,24-26 12,43-45
O sinal de Jonas 11,29-32 12,38-42
11,16 16,1-4
Luzes e trevas 11,33-35 6,22-23
Discursos contra os fariseus 11,39-52 23,4-36
Coragem dc confessar a fé 12,2-9 10,26-33
12,24 6,26
Pecados contra o Espírito Santo 12 ,10 12,31-32
Assistência do líspírito Santo 1 2 ,11 -12 10,19-20
12 ,14-15
A busca fundamental 12,22-32 6,25-34
O tesouro no céu 12,33-34 6,19-21
Vigilância e fé 12,35-48 24,42-51
Sinal de contradição 12,51-53 10,34-36
Sinais do tempo 12,54-56 16,2-3
Reconciliação 12,57-59 5,25-26
Parábola do fermento 13,20-21 13,33
Kxclusão do Reino dos Céus 13,22-30 7 ,13-14
7,22-23
8 ,11-12
19,30
Palavra sobre Jerusalém 13,34-35 23,37-39
“Todo aquele que se exalta será humilhado, e ...” 14 ,11 23,12
Parábola do grande jantar 14,15-24 22 ,1-14
Condições para ser discípulo 14,25-33 10,37-38
Parábola da ovelha perdida 15,4-7 18 ,12-14
37
1 )cus ou o dinheiro 16,13 6,24
<) Reino sofre violência 16 ,16-18 11,12 -13
( ) escândalo 17 ,1 -3a 18,6-7
() perdão 17,3b-4 18,5
18,21-22
A te 17,5-6 17,19-21
A vinda do filh o do Homem 17,22-37 24,23
24,26-27
24,37-39
24,17-18
10,39
24,40-41
24,28
Parábola dos talentos 19 ,11-27 25,14-30
Recompensa prometida aos apóstolos 22,28-30 19,28
38
‘Eu vim trazerfogo à terra... ”.................................................. 12,49-50
Morte de galileus e trabalhadores na torre...................... 13,1-5
Parábola da figueira estéril..................................................13,6-9
Cura da mulher encurvada..................................................13,10-17
Parábola da porta estreita....................................................13,24-30
Jesus e Herodes......................................................................13,31-33
Cura do hidrópico................................................................ 14,1-6
Parábola da escolha dos lugares........................................ 14,7-14
Dupla parábola da torre e da guerra................................ 14,28-33
Parábola da dracma perdida................................................15,8-10
Parábola do filho pródigo...................................................15,11-32
Parábola do administrador prudente................................ 16,1-8
Fariseus, amigos do dinheiro..............................................16,14-15
Parábola do rico e do pobre Lázaro................................. 16,19-31
Parábola do servo hum ilde.................................................17,7-10
Cura dos dez leprosos ......................................................... 17,11-19
A vinda do Reino de D eus..................................................17,20-21
Parábola do juiz injusto e da viúva importuna.............. 18,1-8
Parábola do fariseu e do publicano.................................. 18,9-14
Zaqueu, o chefe dos publicanos....................................... 19,1-10
Lamentação sobre jerusalém ..............................................19,41-44.47-48
Exortação à vigilância.......................................................... 21,34-38
O combate decisivo.............................................................. 22,35-38
Cura da orelha do servo do sumo sacerdote................. 22,50-51
Jesus diante de H erodes...................................................... 23,6-12
Mulheres choram no caminho do Calvário....................23,27-32
O bom ladrão.........................................................................23,39-43
“Pai, em tuas mãos entrego meu espírito.” ................................ 23,46
Os discípulos de Em aús...................................................... 24,13-35
Ultimas instruções aos apóstolos e ascensão de Jesus ..24,44-53
39
apresentar a vida de Jesus, espelham também a vida das diferentes co
munidades onde nasceram, bem como sua compreensão peculiar a res
peito do evento Jesus de Nazaré.
Data e local
Lucas-Atos foi redigido no final dos anos 80. E possível que o
local de redação seja Antioquia ou Efeso, uma vez que Atos guarda
memória dessas igrejas (At 11,19-26; 13,1-3; 14,24-15,2; 19-20). No
entanto, também pode ser a Grécia. E que tanto a Primeira Carta aos
40
Coríntios (cf. 1,26-29; 11,17-34) como o Evangelho de Lucas revelam
uma sociedade altamente estratificada. Lucas tem uma forte preocupa
ção com os pobres, apelando para a solidariedade (Lc 1,52-53; 4,18-19;
6,20-26; 12,13-21; 12,33-34; 16,19-31; 19,1-10).
Destinatários
Os destinatários são as comunidades paulinas da segunda geração,
espalhadas especialmente pela Grécia, Macedônia c Ásia Menor. Os
dois volumes da obra de Lucas as chamam pelo nome Teófilo (Lc 1,3;
At 1,1). Dedicar essa obra a Teófilo talvez seja um reconhecimento a
quem pode ter financiado sua publicação. No entanto, é provável que
Teófilo seja uma referência a todos os leitores do Evangelho e de Atos,
pois significa ‘amigo de Deus’ ou ‘amado de Deus’. Hoje, você é esse
Teófilo e está recebendo essa obra para descobrir a misericórdia de
Deus no caminho de seguimento ao projeto libertador do Reino.
Um dos elementos que nos fazem ver as comunidades helenistas
como as destinatárias é o fato de Lucas insistir no universalismo da mis
são de Jesus. Além de não copiar Mc 7,24-30, texto que mostra Jesus
priorizando o povo judeu, Lucas faz questão de dizer que Cristo é luz
das nações (2,32). Diferentemente de Mateus que coloca o Messias como
sendo judeu, descendente de Abraão (Mt 1,1-2), Lucas estende sua ge
nealogia até Adão, para mostrar que ele veio para toda a humanidade
(3,38). Além disso, lembra pessoas estrangeiras que foram agraciadas
por Deus no Antigo Israel. E o caso da viúva de Sarepta (Lc 4,25-26;
1 Rs 17) e do sírio Naamã (Lc 4,27; 2Rs 5). Além disso, Lucas é o único
Evangelho que fala do envio dos setenta e dois discípulos (10,1-16).
Segundo a Septuaginta, são setenta e dois os povos citados em Gn 10.
Isso, portanto, significa que a missão dos discípulos é levar a Boa-Nova
do Reino a todos os povos. Esse universalismo se confirma mais ainda
no Livro de Atos.
Outro aspecto é a insistência em falar da cidade. Cerca de 40 vezes
Lucas faz referência a ela (1,26.39; 2,3.4.11.39; 4,29.31.43; etc.). Os des
tinatários, portanto, são comunidades urbanas, onde há ricos e pobres
de várias culturas. O Evangelho quer trazer luzes sobre dois problemas
fundamentais, conseqüência dessa diversidade de classe e de cultura.
41
Por um lado, quer confirmar a abertura da Boa-Nova a todos os povos.
Quer confirmar a prática da equipe de Paulo. Por outro lado, quer ques
tionar as comunidades que reproduzem as relações de opressão da so
ciedade escravocrata que legitimava a divisão entre ricos e pobres.
42
com a lógica da oferenda de carnes sobre o altar, substituindo-as peli£|
vinho e pelo pão partilhados. Você pode conferir os seguintes textos
em sua Bíblia:
• 5,29-32: Jesus come com publicanos, pecadores e impuros na casa de
Levi.
• 7,36-50: Jesus está à mesa na casa do fariseu e ali defende a mulher
pecadora.
• 9,10-17: Jesus promove a partilha do pão, um verdadeiro milagre.
• 10,38-42: Na casa de Marta e Maria, o Mestre indica o caminho do
seguimento.
• 11,37-54: Na mesa do fariseu, Jesus desmascara sua hipocrisia, seu
legalismo.
• 14,1-6: Estando à mesa com um fariseu, Jesus cura um hidrópico no
sábado.
• 15,11-32: Deus misericordioso oferece um banquete ao pecador con
vertido.
• 16,19-31: Quem come o pão não partilhado, come sua própria conde
nação.
• 19,1-10: Na casa de Zaqueu, a presença de Jesus promove partilha.
• 22,14-20: Comer o pão repartido é fazer comunhão com o próprio
Deus.
• 22,28-30: A mesa do Reino de Deus pertence a quem for fiel ao pro
jeto de Jesus.
• 24,13-35: Na casa e no pão partilhados, Deus mesmo se revela em
Emaús.
• 24,41-43: Ressuscitado, Jesus continua participando da partilha na mesa
com seus discípulos de ontem e de hoje.
Estrutura
No plano dos autores deste Evangelho, Jerusalém é o ponto de
chegada do caminho percorrido por Jesus de Nazaré (Lc). E é também
o ponto de partida do caminho da Igreja (At).
Acima, no item “Estrutura básica dos evangelhos sinóticos”, você
pode conferir a estrutura deste Evangelho.
43
3. Livro dos Atos dos Apóstolos
“Mas o Espírito Santo descerá sobre vós e dele
recebereis força. Sereis, então, minhas testemunhas
em Jerusalém, em toda a Judéia e Samaria,
e até os confins da terra. ” (At 1,8)
44
a comunhão de mesa entre pessoas de origem judaica e de outras cultu
ras. Insistem em dizer que Deus não faz acepção de pessoas (At 10,34
35). Esse objetivo tem em vista ajudar especialmente pessoas judias a não
mais considerar impuras outras culturas. Desse modo, podiam participar
tranqüilamente e lado a lado com pessoas estrangeiras nas comunidades.
Superam a Lei de pureza e impureza da tradição de seu povo.
2. Querem ajudar também os judeus em conflito com suas sina
gogas a entenderem que não foram eles que se afastaram da tradição de
Israel. Mas foram as autoridades que se distanciaram da religião de seus
pais. Por isso, ao mesmo tempo em que valorizam, por exemplo, o tem
plo (At 2,46), também o relativizam (At 6,8-7,53). E, aos poucos, a casa
vai substituindo o santuário. Para Atos, as comunidades cristãs são a
parte de Israel que é fiel aos profetas. Segundo Atos, também as autori
dades são infiéis à Lei, enquanto os cristãos e Paulo têm fama de obser-
vantes da Lei (At 21,20; 25,8).
3. Um terceiro objetivo dessa obra é ajudar as pessoas que eram
funcionárias do Império Romano a compreenderem que podiam tam
bém participar das comunidades cristãs. Não é incompatível ser cristão
e, ao mesmo tempo, trabalhar na estrutura imperial. E mais. Num mo
mento em que a perseguição do império aumentava durante o governo
de Domiciano (81-96), a obra de Lucas quer apresentar, de forma não
tão contundente, o conflito de Jesus e das primeiras comunidades com
as autoridades romanas. Nesse sentido, os autores de Atos amenizam o
conflito entre cristãos e o império, acusando somente as autoridades
judaicas como responsáveis pela morte de Jesus (Lc 22,1-6.66-71). Da
mesma forma, como também os demais evangelhos, inocentam os ro
manos (Lc 23,13-25). Atos apresenta as autoridades romanas de forma
simpática e favoráveis aos cristãos. Confira algumas dessas citações:
13,12; 16,19-40; 17,6-9; 18,12-17; 19,35-40; 21,31-40; 22,24-29; 23,10;
23,25-30; 25,25-27; 27,3.43! Embora os autores de Atos soubessem que
Paulo e Pedro foram mortos a mando de Roma, eles concluem sua obra
antes que fossem martirizados. Assim, não precisavam fazer referência
a esses atos de violência do império contra as lideranças cristãs.
4. Por fim, como Lucas-Atos se dirige a comunidades em que há
45
pessoas pobres e ricas, seus autores advertem e exortam os ricos a parti
lharem seus bens com os pobres. Aliás, esta parece ser a condição para os
ricos poderem ser cristãos e participarem da comunidade. Veja alguns dos
seguintes textos: Lc 12,16-21; 16,19-31; 19,1-10; At 4,32-5,11! Veja tam
bém como o testemunho de várias mulheres é apresentado como incenti
vo à partilha: Lc 8,1-3; At 9,36; 17,12!
As comunidades de Lucas-Atos querem substituir as práticas do
clientelismo e da hierarquização social (Lc 14,7-11), que só criavam sub
missão e dependência (Lc 22,25), por práticas novas de solidariedade e
partilha. Como ao redor da mesa cristã quebravam-se todas as hierar
quias (G13,28; Rm 10,12; ICor 12,13; Cl 3,11), todas as pessoas tinham
a mesma dignidade, comiam da mesma comida e eram tratadas da mes
ma maneira. Esperava-se que o auxílio dos mais ricos aos mais pobres
gerasse novas relações e não mais reforçasse relações clientelistas de
dominação e reprodução do poder político e econômico. Uma das mais
características ênfases de Lucas é o dar sem esperar nada em troca e dar
a quem não pode retribuir (Lc 6,33-36; 10,29-37; 11,41; 14,12-14.21).
Estrutura de Atos
Entre as várias possibilidades de estrutura de Atos, propomos a
que segue.
1-7: As igrejas de Jerusalém testem u n h a m Jesu s:
1-5: As comunidades-modelo lideradas pelos apóstolos;
6-7: Conflitos de mesa e de coordenação: helenistas X Jerusalém.
8-14: O testemunho do Messias nas igrejas helenistas de Antioquia:
8-12: D ejerusalém a Andoquia: Deus não exclui nenhuma pessoa;
13-14: Andoquia inaugura a mesa aberta a todos na Ásia Menor.
15,1-35: A Igreja de Jerusalém avaliza a missão para além dos judeus.
15,36-21,14: O testemunho da equipe de Paulo, o apóstolo modelo:
15,36-18,22: A segunda viagem missionária chega até a Europa;
18,23-21,14: Terceira viagem missionária.
21,15-28,31: O testemunho sobre Cristo é levado por Paulo até os con
fins da terra:
21,15-26,32: Paulo preso em Jerusalém e Cesaréia;
27,1-28,31: Paulo é levado a Roma, onde anuncia o Reino de Deus.
46
4. As Cartas aos Colossenses e aos Efésios
“.. porque o marido é a cabeça da mulher,
como também Cristo é a cabeça da Igreja
e o salvador do corpo. ”
(Ef 5,23)
A patriarcalização da Igreja
Um dos pontos que as duas epístolas têm em comum são as
listas dos deveres dos membros da família. São os códigos familiares
que estabelecem as obrigações de esposas e maridos, de filhos e pais, de
escravos e seus senhores.
Por isso, paralelo ao processo da lenta hierarquização das comu
nidades vai também a sua patriarcalização.
Por patriarcalização entendemos o processo como as igrejas fo
ram retomando, aos poucos, a forma de vida das famílias patriarcais
tanto da cultura dos gregos e dos romanos, como dos judeus. Especial
mente para a cultura greco-romana, a família era uma representação
menor das relações sociais, em que o poder estava centralizado nas
mãos de homens adultos e senhores de escravos. Para manter esse sis
tema, nada fhelhor que reproduzir em cada família essas relações. Ali,
cada segmento tem seu papel bem definido. A posição das crianças, das
mulheres e das pessoas escravas é de submissão em relação ao pai de
família. Das decisões deste dependem os demais membros da casa.
È possível que já houvesse algumas igrejas vivendo essas rela
ções discriminatórias ainda na primeira geração cristã. Mas, como já vi
mos no volume anterior, não foi assim com a maioria das comunidades.
No entanto, a partir da era subapostólica, cada vez mais igrejas vão assu
mindo os códigos domésticos da cultura patriarcal.
49
Você pode ler a respeito da submissão das mulheres aos seus
maridos, das filhas e dos filhos a seus pais, bem como dos escravos e
das escravas a seus senhores em Cl 3,18-4,1 e Ef 5,21-6,9. Veja também
lPd 2,18-3,7!
Podemos entender esse processo em duas direções. Primeiro,
sabemos que as comunidades cristãs, por viverem relações alternati
vas como conseqüência de sua fidelidade à Boa-Nova do Nazareno,
começam a chamar a atenção dos vizinhos e das autoridades. As fa
mílias não-cristãs, que moravam perto dos locais em que as igrejas se
reuniam para o culto e a celebração da Ceia do Senhor, certamente
estranhavam o comportamento diferente de quem participava dessas
reuniões. Diferentemente das relações no mundo greco-romano, ali
conviviam em pé de igualdade pessoas de classes, gêneros, culturas e
gerações diferentes. As reuniões iam até altas horas da noite. Ouvi
am-se cantos de louvor na vizinhança. Motivos para desconfiança não
faltavam.
Diante disso, é possível que as orientações para as comunidades
fossem de que seus membros seguissem as normas de comportamento
comuns da sociedade de então. Tudo isso para que não se chamasse
muito a atenção, provocando, dessa forma, denúncias e perseguições.
Nesse caso, a insistência no fato de filhos, mulheres e escravos assumi
rem um comportamento de acordo com os costumes greco-romanos,
seria uma forma de proteger as igrejas contra a acusação de estarem
desestabilizando aquela sociedade, fundada hierarquicamente em rela
ções de opressão de senhores sobre escravos, bem como de pais de
família sobre suas mulheres e filhos.
Uma segunda possibilidade é que, na medida em que cada vez
mais aderiam às comunidades pessoas de cultura greco-romana, iam
infiltrando nas igrejas a sua mentalidade e formas de se relacionar. Aos
poucos, foram minando as relações de fraternidade e reproduzindo,
com adaptações, é verdade, o jeito hierárquico de se relacionar nas co
munidades, no que diz respeito às classes sociais, ao gênero e às dife
rentes gerações.
Os códigos familiares
No Antigo Israel, a família era um espaço importante de afirma
ção da identidade de seus membros. Fazer parte de uma família era
pertencer a uma comunidade religiosa e política. Era pertencer a um
povo.
No Pós-Exílio, reforçou-se essa mentalidade ao insistir, por exem
plo, nas genealogias e na pureza étnica, como vimos nas páginas 127
129 do volume cinco desta Introdução. Nesse sentido, também a família
israelita pós-exílica, isto é, no período conhecido como a formação do
Judaísmo, recebe um fortalecimento na sua estruturação patriarcal. So
bre a formação do judaísmo você pode reler as páginas 131-133 do
volume acima citado.
Nas casas, as mulheres tinham mais espaço do que na vida públi
ca como, por exemplo, na religião oficial dirigida somente por homens.
Em seus lares, elas não estavam diretamente sob o controle do estado
ou da religião controlada pelo templo. Tinham, portanto, mais liberda
de e tinham mais participação no culto popular ali realizado. Por isso, a
rigidez da moral familiar imposta pela reforma de Esdras e Neemias
certamente também era uma tentativa de controle sobre as mulheres.
Ao estudarmos os livros de Rute, Cantares, Ester e Judite, já vi
mos como as mulheres resistiram contra essa tentativa de controle por
parte da religião oficial de Jerusalém.
No entanto, para além dessa estrutura familiar patriarcal em Isra
el, os códigos familiares, que você leu em Colossenses e em Efésios, são
uma adaptação de textos patriarcais e classistas que existiam na literatu
ra grega como, por exemplo, nos capítulos 1, 2 e 5 do livro primeiro de
Política, obra do filósofo Aristóteles (384-322 a.C.). É o mesmo filósofo
para quem “a fêmea é fêmea em virtude de certa falta de qualidade”.
Para ele, quem transmite o princípio ativo é o macho, enquanto a mu
lher colabora apenas com a matéria. Se o esperma, no qual está o prin
cípio ativo, é de boa qualidade, então nasce um menino. No entanto, se
for defeituoso, então nascerá uma menina.
Na cultura da maioria dos filósofos gregos, a família tem priori
dade sobre as pessoas. Por isso, era tão importante defender a estrutura
da família. As pessoas deviam submeter-se, isto é, sacrificar-se em favor
51
da preservação da família patriarcal, da sua unidade em torno do pai de
família. É o contrário da ideologia neoliberal hoje, em que o indivíduo
tem prioridade sobre a família. O que constatamos em nossos dias é
que a família está, aos poucos, desaparecendo para dar lugar a pessoas
individualistas e consumidoras. E, como sabemos, é o próprio sistema
que ajuda a produzir esses indivíduos, uma vez que precisa deles para se
perpetuar.
Diante do fato de que as comunidades iam se espalhando sem
pre mais no Império Romano e diante da entrada sempre mais intensa
da mentalidade patriarcal tanto judaica como greco-romana nas igrejas,
a segunda geração cristã estava diante de um problema sério. Como ser fiel
à Boa-Nova da igualdade anunciada e vivida por Jesus, numa estrutura
que escraviza, que discrimina mulheres e crianças, numa sociedade que
não é cristã?
Como historicamente não tinham o poder para mudar o sistema
escravocrata do império e da cultura patriarcal vigente na época, e tal
vez muitos de seus novos membros nem tivessem interesse em mudar
essas coisas, muitas comunidades seguiram outro caminho. Por um lado,
passaram a cristianizar as estruturas da sociedade de então. Por outro,
patriarcalizaram também o Crisdanismo. Dito de outra forma, adapta
ram a Boa-Nova às relações de poder da família patriarcal, amenizando
a dureza de sua opressão.
Quanto aos deveres das esposas, dos filhos e de escravos, nada
ou pouco mudou. Confira!
• “Vós, mulheres, submetei-vos aos vossos maridos como convém no Senhor. ”
(Cl 3,18; Não deixe de ler também E f 5,21-24 e lP d 3,1-6!).
• “Filhos, obedecei aos vossos pais em tudo, pois isso é agradável ao Senhor. ”
(Cl 3,20; Confira ainda Ef 6,1-3!).
• “Escravos, obedecei em tudo aos senhores desta vida, não quando vigiados,
para agradar a homens, mas na simplicidade do coração, no temor do Senhor. Em
tudo o que fi^erdes ponde a vossa alma, como para o Senhor e não para homens,
sabendo que o Senhor vos recompensará como a seus herdeiros: é Cristo o Senhor a
quem servis. Quem fa %injustiça receberá de volta a injustiça, e nisso não há acepção
de pessoas. ” (C1 3,22-25; Veja também E f 6,5-8 e lP d 2,18-20!).
52
No entanto, introduziram uma novidade nos códigos domésti
cos patriarcais. Além de manter os direitos dos pais de família sobre
esposas, filhos e escravos, acrescentaram alguns deveres para eles. Não
eliminaram seu poder, mas suavizaram sua opressão na família tradicio
nal. Os deveres introduzidos pelas comunidades cristãs e que não cons
tavam na literatura grega foram os seguintes:
• “Maridos, amai as vossas mulheres e não as trateis com mau humor. ” (Cl
3,19; Não deixe de ver também E f 5,25-33 e lP d 3,7!)
• “Pais, não irriteis vossos filhos para que eles não desanimem. ” (Cl 3,21;
Confira ainda Ef 6,4!)
• “Senhores, dai aos vossos servos ojusto e eqüitativo, sabendo que vós tendes
um Senhor no céu. ” (Cl 4,1; Veja também Ef 6,9!)
Pelo que você leu, pôde perceber que aos fracos no sistema patri
arcal, isto é, esposas, filhos e escravos, cabia a submissão, a sujeição, a
obediência, a disciplina e a servidão. E assim devia também continuar
nas comunidades de herança paulina na segunda geração cristã. No entan
to, as comunidades amenizaram a dureza do patriarcado, sugerindo aos
fortes, isto é, aos maridos, pais e senhores, o amor, o bom humor, a boa
vontade, o tratamento justo, mais tolerância e menos ameaças.
Nunca é demais lembrar que o apóstolo Paulo, fiel a Jesus, tinha
uma prática diferente e defendia a igualdade em Cristo e em seu Espírito
(G1 3,28; ICor 12,13). Diferentemente, nas igrejas paulinas da segunda
geração, pede-se a sujeição no Senhor (Ef 5,22) e a obediência em Cristo (Ef
6,1.5).
Se foi necessário estabelecer essas orientações em direção à sub
missão e à obediência, é porque havia mulheres e escravos ensaiando
um novo tipo de relações nas comunidades, alternativas aos padrões
oficiais da cultura dominante. Por isso, embora a insistência na sujeição
possa ser uma estratégia para proteger comunidades fracas e minoritá
rias de serem massacradas pelas sociedades em que elas viviam, ela tam
bém representa uma volta, pelo menos momentânea, aos costumes fa
miliares patriarcais que as comunidades haviam abandonado, ao se com
prometer com o projeto igualitário de Jesus de Nazaré.
Outro aspecto é que as Cartas aos Colossenses e aos Efésios
53
rc terem-se às mulheres em relação somente com a família. Diferente
mente, Paulo se referia a elas especialmente no contexto da comunida
de, onde elas exerciam a missão como apóstolas, discípulas, diáconas e
pregadoras. Se na segunda geração já não se fala mais desse espaço para as
mulheres, será que isso não significa que estes papéis estavam sendo
questionados e que elas já estavam sendo, aos poucos, excluídas? Na
segunda parte, veremos como as Cartas Pastorais restringem ainda mais
o papel das mulheres nas comunidades (lTm 2,9-15; Tt 2,3-5).
Já não se fala mais em emancipação de escravos, como defendia
Paulo. Agora, a presença de escravos já parece normal. Aceita-se a socie
dade tal como estabelecia a cultura greco-romana. Procura-se apenas
tornar mais suave a dureza do poder dos pais de família. Para torná-lo
mais suportável, sugere-se que os escravos imaginem estar servindo a
Cristo (Cl 3,22-25; E f 6,5-8). De qualquer modo, continuavam escra
vos. No entanto, preservavam, pelo menos, a liberdade interior. E ver
dade que consideravam injusto o sofrimento nas mãos dos senhores
(lPd 2,19). Mas para amenizá-lo, recomendava-se que lembrassem dos
sofrimentos de Cristo (lPd 2,21-25). Será que ainda hoje a teologia do
sofrimento de Jesus não contribui para que multidões se resignem dian
te da opressão, quando o Nazareno justamente sofreu porque lutou
para que não houvesse mais nenhuma forma de opressão?
Essa cristianização dos códigos domésdcos já foi chamada de
“patriarcalismo do amor”. Porém, as mulheres, que estão engajadas na
luta pela vivência de relações de parceria na questão de gênero, de gera
ção, de classe e de etnia, têm alertado de que ainda há mais patriarcado
do que amor nesses códigos familiares crisdanizados. Justificam sua
crítica com o fato de o pedido aos maridos de amarem as suas esposas,
bem como de os senhores tratarem os escravos com eqüidade, na ver
dade, não altera as relações desiguais, mantendo as mulheres subordi
nadas aos homens e os escravos a seus senhores. Você também percebe
dessa forma?
Ao lermos esses textos, de um lado, importa valorizar os avanços
que houve no acréscimo dos deveres dos pais de família que as comuni
dades fizeram, uma vez que nos códigos familiares greco-romanos so
mente constavam seus direitos. E mais. E f 5,21 nos convida a sermos
54
submissos uns aos outros no temor de Cristo. Cl 3,9-11 afirma a igual
dade. Se partirmos desse princípio, torna-se relatiya a submissão so
mente das mulheres, dos filhos e dos escravos, sugerindo relações de
parceria.
Além disso, é solicitado aos maridos que tenham a mesma atitu
de de Cristo em relação ã Igreja (Ef 5,25). Ora, bem sabemos que Cris
to não exerceu uma relação de dominação sobre sua comunidade. Ao
contrário, envolveu-se afetivamente numa relação de serviço.e entrega.
É bom também lembrar que as igrejas cristãs cresceram muito
nessa época, apesar das perseguições romanas ameaçarem concreta-
mente a vida das pessoas nessas comunidades. Nem tudo era igual e
talvez a diferença com a vida no império não fosse tão pequena. Havia
algo que atraía as mulheres e os escravos para as igrejas. Certamente era
a mesa partilhada e a experiência de ser sujeito livre, digno, com valor
igual aos demais membros da comunidade. Nas igrejas domésticas,
embora com muitos limites e problemas, experimentavam uma cidada
nia que não podiam alcançar no império. Algo deve explicar o fato de
que pessoas, que já tinham uma vida bastante sofrida, se filiassem a
uma comunidade que era mal falada, caluniada e, às vezes, perseguida
de forma violenta. Portanto, deve-se ter em conta que o pedido para se
comportar conforme os costumes da época pode ser uma estratégia de
proteção à comunidade. Se seus membros, que eram poucos e fracos,
saíssem após a experiência de igualdade realizada em torno da partilha
na mesa a subverter todas as relações na sociedade, eles corriam o risco
de ser perseguidos e destruídos. Apesar de tudo, se juntavam às igrejas
principalmente pessoas pobres, escravas e muitas mulheres.
De outro lado, importa sempre considerar a proposta de Jesus
quando resgatou plenamente a dignidade de mulheres, de crianças e de
todas as pessoas que viviam em situação de discriminação. Além de nos
espelharmos na prática de Jesus para reler esses códigos domésticos,
convém sempre lembrar que muitas comunidades cristãs primitivas tam
bém experimentaram um novo jeito de se relacionar. Como exemplo,
citemos a experiência das igrejas do Discípulo Amado, conforme vi
mos nas páginas 42 a 50 do volume anterior. Não convém também que
esqueçamos o esforço do próprio Paulo em propor, nas comunidades
55
(jiu: fundou, relações de parceria entre homens e mulheres, bem como
:t superação das relações de escravidão. Você já leu sobre isso nas pági
nas 134 a 141 e 145 a 147 do volume anterior.
Com essa reflexão, estamos dizendo mais uma vez que há um
critério básico para interpretarmos as Escrituras na ótica cristã. Esse
critério é jamais perdermos de vista a Boa-Nova de Jesus de Nazaré.
Sua mensagem e sua prática libertadoras são a medida para relermos
qualquer outro texto.
56
escrita em Éfeso pelo ano 95, antes da Carta aos Efésios, pois esta
depende daquela.
O quê? Quanto ao conteúdo, tal como Efésios, mais do que ser
uma carta, Colossenses também é um tratado de teologia pastoral so
bre a Igreja universal e apostólica. As comunidades de Colossos e de
Laodicéia (Cl 4,16) estavam ameaçadas por heresias que misturavam
elementos de várias religiões e filosofias com o Cristianismo (Cl 2,4.8.16
23). Davam importância às forças cósmicas, aos seres angélicos e a cer
tas leis que garantiam bênção. Contra essas filosofias, a carta mostra
que Cristo é a única ligação entre Deus e o mundo. Ele é a imagem do
Deus invisível, sabedoria de Deus, cabeça do corpo que é a Igreja, pri
mogênito entre os mortos, o único caminho de liberdade e salvação.
Ele é tudo em todos (Cl 3,11). O hino de 1,15-20 é para a carta o que é
o coração para o corpo. O objetivo principal da carta é levar as comuni
dades a reconstruir sua esperança em Cristo, a glória esperada.
Como?
Entre as muitas possibilidades de divisão da carta, propomos a
estrutura que segue.
1,1-14: Saudação (w. 1-2), ação de graças (w. 3-8) e pedido de
discernimento (w. 9-14).
1,15-20: Jesus Cristo, único mediador, soberano e imagem do Deus
invisível.
1,21-2,5: Jesus Cristo em nossa vida.
2.6-3,4: Iluminando os conflitos, advertindo contra as falsas dou
trinas.
3,5-4,6: Conselhos práticos para a vivência nas comunidades.
4.7-18: Notícias, saudações e bênção.
Contexto:
Colossos era uma cidade da Frigia, na margem do rio Licos, na
grande estrada comercial que começava em Éfeso e levava a Tarso e à
Síria. Devia sua prosperidade principalmente à criação de ovelhas. Seus
produtos eram industrializados e negociados especialmente na própria
cidade.
O fundador da comunidade cristã de Colossos foi Epafras (1,4-8;
57
4,12), discípulo de Paulo. Cl 2,1 informa-nos que Paulo nunca visitou
essa igreja. A maioria dos membros dessa comunidade parece ter ori
gem não-judaica (Cl 1,21.27; 2,13). Houve dificuldades por causa de
doutrinas errôneas, como erros baseados no Judaísmo e na filosofia
grega, na corrente que vai tomar corpo posteriormente no chamado
gnosticismo (Cl 2,6-3,4). Os gnósticos dos primeiros séculos de nossa
era faziam parte de correntes filosóficas e religiosas na cultura grega.
Procuravam conciliar as diversas religiões, explicando seu sentido mais
profundo através da gnose, isto é, do conhecimento. O autor da carta
refuta essas doutrinas, afirmando a supremacia de Cristo sobre o mun
do dos espíritos e mostrando sua mediação única e universal entre Deus
c o mundo.
Por trás dessas questões doutrinárias, certamente temos ques
tões de poder, de riqueza e de conflitos em torno da partilha na mesa.
58
tade dos versículos de Efésios tem paralelo em Colossenses. Compare,
por exemplo,
Ef 1,7 com Cl 1,13-14; Ef 5,19-20 com Cl 3,16-17;
Ef 3,2-13 com Cl 1,24-29; Ef 5,21-6,9 com Cl 3,18-4,1;
Ef 4,1-6 com Cl 3,12-15; Ef 6,21-22 com Cl 4,7-8!
Ef 4,22-24 com Cl 3,9-10;
59
4,1-6,20: Exortações para viver o mistério de Cristo.
6,21-24: Saudações finais.
Contexto:
Grande cidade portuária da Ásia Menor. Era capital da província
n unana da Ásia, com toda a estrutura do império. O solo fértil favore
cia a agricultura e a pecuária. Havia um porto com comércio intenso e
muito artesanato. Cultura em destaque: filosofia, artes, letras e teatro.
Além de cultuar o imperador como divino, Éfeso era também a sede da
1)cusa Ártemis (At 19,23-34). Como já vimos no Livro de Atos, Paulo
i rabalhou em Éfeso por três anos.
60
rem a Roma, usando esse nome falso (Ap 14,8; 16,19; 17,5; 18,2ss). Era
uma estratégia em momentos de grande perseguição, como veremos na
segunda parte.
Quando? A carta deve ser de 95 ou 96, nos últimos anos da
dominação de Domiciano.
O quê? Diante das dificuldades dessas comunidades, a carta, que
é uma espécie de catequese batismal, quer dar razões para a fé e a espe
rança (3,15). Quer transmitir coragem e consolo para comunidades per
seguidas (5,9). Lembra a graça do batismo (3,21) e a esperança na mani
festação do Messias (5,4). Quer ser um estímulo na resistência. Encora
ja a suportar o sofrimento e as perseguições que o império lhes impu
nha. Motiva também a resistir diante da hostilidade que sofrem por
parte dos vizinhos e que não participam nas comunidades (2,11-12;
3,16). Lembra que o sofrimento deve ter um motivo justo. Ao ler 2,20;
3,13-17 e 4,12-19, você perceberá que o sofrimento faz sentido ser for
por causa de Jesus, do projeto de Deus e da prática do bem. Em 2,18
19, os autores da carta deixam claro que não é justo o sofrimento de
pessoas escravas. E recomendam a resistência no sofrimento, pois tam
bém Cristo sofreu injustamente (2,20-25). A escravidão, portanto, não
faz parte do plano de Deus (3,13-17; 4,3-4.12-19; 5,9-11).
A carta também tem como finalidade incentivar a comunidade
para que ela seja uma casa acolhedora para os peregrinos (2,5; 4,9.17),
de modo que possam reconstruir sua identidade, suas raízes.
Para reforçar a identidade dos forasteiros, trabalha o conceito de
“eleitos” (1,1; 2,9-10; 5,13) e participantes de um “povo” (2,9-10). São
conceitos que reforçam a coesão e a identidade das pessoas.
Quanto aos códigos familiares (2,18-3,7), já refletimos acima, ao
estudar as Cartas aos Colossenses e aos Efésios.
No entanto, convém lembrar que, como Rm 13,1-7 (volume sete,
p. 141-145), os autores da Primeira Carta de Pedro também chamam as
comunidades a se submeterem aos romanos. Ao ler lP d 2,13-17, você
logo perceberá como o texto deslegitima a divinização do imperador.
Ele é “humano” e não divino (2,13). Sua função como autoridade é
promover o bem e punir os que fazem o mal (2,14). E convidam a viver
como pessoas livres, como servos de Deus (2,16). Os cristãos são con
61
vidados a temer somente a Deus e a não honrar apenas ao rei, mas a
iodos igualmente (2,17). Diante da forte opressão dos romanos, convi
dam, como Paulo, a ter uma atitude de prudência frente à tirania do
império.
Como? Propomos que você faça uma leitura dessa carta, seguin
do a proposta de divisão que segue.
1,1-2: Saudação e bênção.
1,3-12: A nova criação.
1.13-2,10: O novo Êxodo.
2.11-3,12: A nova organização.
3.13-4,11: O novo caminho.
4.12-5,11: A nova utopia.
5.12-14: Saudação final e bênção.
62
Herança das comunidades de Tiago
Chamamos de comunidades de Tiago aquelas que foram fun
dadas por apóstolos como Pedro, ou que atribuem sua origem a eles.
Um dos líderes importantes dessas igrejas foi Tiago, irmão do Senhor
(G1 1,18-19; 2,9; At 15,6-21). Quando ele foi martirizado em 62, seu
irmão Judas o substituiu na direção das igrejas dejerusalém.
Diferentemente das comunidades de herança paulina, eram igre
jas em que as pessoas vindas do Judaísmo eram a grande maioria. A
tradição judaica ainda ocupava um lugar central. Estavam ainda muito
ligadas à observância da Lei.
Podemos classificar como de herança das igrejas dos apóstolos e
de Tiago o Evangelho segundo Mateus, a Carta de Tiago e a Carta de
Judas. Tanto Tiago como Judas eram familiares de Jesus (Mc 6,3), além
de dirigirem as comunidades dejerusalém.
63
Com a guerra judaico-romana, muitos membros dessas comuni
dades da Judéia mudaram-se em direção da GaJiléia, da Síria ou ainda
dc outros lugares. Essa migração se intensificou com a perseguição so
frida da parte de lideranças das sinagogas nos anos 80 e 90. Como
vimos, os judeu-cristãos foram expulsos das sinagogas nessa época pe
los rabinos fariseus que passaram a liderar o Judaísmo a partir de 70.
Muitos cristãos da Judéia devem ter se estabelecido na Galiléia e na
Síria.
O conflito dos judeu-cristãos com as sinagogas judaicas deve ser
a razão por que Mateus insiste em dizer que os maiores adversários de
|csus foram os fariseus. Entre os evangelhos, é ele quem mais cita a
palavra “fariseu”, em torno de 30 vezes.
De um lado, Mateus revela esse conflito entre as comunidades
cristãs e as sinagogas nos anos 80 e 90. De outro, reflete também a
tensão entre os cristãos vindos do Judaísmo e os cristãos vindos de
outras culturas. E o que se pode perceber na sua insistência quanto à
observância da Lei, isto é, a justiça ou vontade de Deus (5,17-48). Com
isso, este Evangelho está polemizando com outras tendências cristãs,
de modo especial, com as comunidades de herança paulina, que defen
diam uma nova justiça divina, dada gratuitamente por Deus a quem crê
cm Jesus, como já vimos.
64
naturalmente eram profundos conhecedores das Escrituras judaicas. O
texto que usaram para fazer transcrições para o seu escrito é da versão
grega das Escrituras, a Septuaginta. Veja, por exemplo, Mt 1,23; 2,6.15.18!
É interessante também que aqui tenhamos presente tanto Jâm
nia como as comunidades mateanas. Em jâm nia, os rabinos judeus de
linha farisaica tentam reconstruir o Judaísmo depois da tragédia de 70.
A partir dos anos 80, para garantir a autenticidade da tradição de Israel,
chegaram a expulsar das sinagogas os judeus que haviam aderido à Boa-
Nova de Jesus.
Em paralelo e em oposição a essa tentativa de Jâmnia, os rabinos
cristãos, que lideram as comunidades cristãs que estão por trás de Ma
teus, tentam reconstruir a tradição de Israel a partir da fé em Jesus de
Nazaré como o Messias e Filho de Deus. Ele deu novos rumos a Israel.
O Evangelho que elaboraram quis dar identidade ao novo Israel, isto é,
às comunidades cristãs hegemonicamente de origem judaica. Mateus é
fruto desse conflito com o farisaísmo rabínico de Jâmnia. Não é por
acaso que é nele que podemos encontrar as críticas mais duras aos fari
seus e escribas. Não deixe de ler Mt 23,1-32! Veja também como nele
se substitui os escribas pelos fariseus em alguns versículos que são
copiados de Marcos, comparando Mt 12,24 com Mc 3,22, Mt 22,34
com Mc 12,28 e Mc 12,35 com Mt 22,41.
Quanto às fontes, além da Septuaginta a que já nos referimos, os
autores de Mateus também usaram, como os de Lucas, o Evangelho se
gundo Marcos como texto-base. Aqui, precisamos voltar ao esquema sobre
as fontes de Lucas e à questão sinótica, que apresentamos acima. Ali,
você pode ver que os rabinos mateanos copiaram ao redor de 510 versí
culos de Marcos, o que representa mais de 75% daquele Evangelho. Como
você percebeu, Mateus copiou de Marcos mais versículos que Lucas.
Porém, é Lucas quem tem um maior volume de material exclusivo.
Como Lucas, também os autores de Mateus usaram a fonte “Q”,
inserindo 230 versículos em sua obra.
Além disso, usaram material próprio das tradições que circula
vam nas suas comunidades. Quanto à matéria exclusiva das comunida
des mateanas, totaliza em torno de 330 versículos. Confira, abaixo, os
principais textos exclusivos de Mateus!
65
A infância d e je s u s ............................................................... 1-2
A nova Lei dada por Je su s..................................................5,17-48
A esmola em segredo........................................................... 6,1-4
A oração em segredo........................................................... 6,5-6
O jejum em segredo............................................................. 6,16-18
Cura de dois cego s................................................................9,27-31
Cura do mudo possesso...................................................... 9,32-34
Cura do cego e mudo possesso..........................................12,22-24
Parábola do trigo e do jo io .................................................13,24-30.36-43
Dupla parábola do tesouro e da pérola........................... 13,44-46
Parábola da rede do pescador.............................................13,47-48
A bem-aventurança para Pedro..........................................16,17-19
Tributo para o tem plo..........................................................17,24-27
A correção fraterna...............................................................18,15-18
A oração em com um ............................................................18,19-20
Parábola do devedor implacável........................................18,23-35
Eunucos pelo Reino..............................................................19,10-12
Parábola do patrão generoso.............................................. 20,1-16
Parábola dos dois filhos .......................................................21,28-32
Parábola do homem sem a roupa nupcial....................... 22,11-14
Parábola das dez virgens......................................................25,1-13
Parábola do grande julgamento......................................... 25,31-46
A morte de Ju das................................................................... 27,3-10
Os guardas no túmulo..........................................................27,62-66
Aparição dejesus às m ulheres........................................... 28,9-10
Astúcia dos chefes judeus ....................................................28,11-15
Aparição dejesus na Galiléia e missão universal...........28,16-20
D estinatários
Os destinatários são comunidades judeu-cristãs nascidas na Pa
lestina e espalhadas pela Galiléia e Síria. Espalharam-se nessas regiões,
depois da destruição de Jerusalém em 70 e depois da expulsão das sina
gogas a partir dos anos 80.
Leia, agora, alguns dos textos abaixo, que são memória ainda
66
muito viva do sofrimento desses judeu-cristãos, quando se viram ex
pulsos de sua própria religião!
6.1-6.16-18; 21,33-46;
10,17-18.21; 22,1-14;
13,10-16; 23,1-39.
16.1-12;
Confira ainda algumas das seguintes citações e perceba como as
comunidades destinatárias de Mateus são formadas por pessoas sem
terra (5,1-5), desempregadas (20,1-16), migrantes (2,13-23; 4,13-16.24
25; 19,1), perseguidas (5,10-12; 23,13-32) e pobres (11,25-26; 6,25-34;
15,32; 25,31-46).
Conteúdo central
Há vários títulos cristológicos em Mateus, como Messias
(1,1.16.17), Filho de Deus (3,17; 14,33; 16,16; 27,54), Emanuel (1,23),
Rei (2,2; 21,5; 27,11.37), Füho de Davi (1,1; 12,23; 21,15), Füho do
Homem (8,20; 9,6; 10,23) e Servo de Deus (8,16-17; 12,18).
Mas acima de tudo, Mateus quer apresentar Jesus como o Mestre
daJustiça. Ele é o único mestre (9,11; 17,24; 19,16; 23,8; 26,18) que veio
para “cumprirtodajustiça”(3,15). Para a comunidade de Mateus, cumprir
a justiça é realizar a vontade do Pai que se expressa na sua Lei.
Mateus é o único Evangelho que insiste muito na realização da
justiçae no cumprimento da vontadedeDeus.
Quanto àjustiça, confira os textos que seguem!
• 3,15: O batismo de Jesus é um compromisso com o cumpri
mento de toda justiça.
• 5,6: Na bem-aventurança “Felizesosquetêmfome... ”, que Lucas e
Mateus copiaram da fonte “Q” , Mateus acrescenta “esededejustiça”.
Compare com Lc 6,21!
• 5,10: E material exclusivo de Mateus a bem-aventurança “Feli-
%esosquesãoperseguidosporcausadajustiça,porquedeleséoReinodosCéus”.
• 5,20: Também só está neste Evangelho a exigência de que, para
entrar no Reino, a justiça dos discípulos deve exceder a dos escribas e
dos fariseus. Os seguidores de Jesus são chamados a “seremtãoíntegros
quantooPai celesteéíntegro” (5,48).
67
• 6,1: São também convidados a não praticar sua justiça diante
dos homens para serem vistos por eles.
• 6,33: No convite “buscaioReino...”, que Lucas e Mateus copiaram
da fonte Q, Mateus acrescenta “esuajustiça”.Compare com Lc 12,31!
• 20,1-16: A parábola do patrão generoso e justosó está em Ma
teus e revela o Reino como justiça e dom gratuito.
• 21,32: Ao falar de João Batista aos sumos sacerdotes e anciãos,
|esus diz que “ Joãoveioavósnocaminhodajustiça”,isto é, em conformida
de com a vontade de Deus.
• 23,23: Por fim, ao censurar escribas e fariseus, ele os acusa de
“omitiremascoisasmaisimportantesdalei:ajustiça, amisericórdiaeafidelidade”.
Compare com Lc 11,42!
68
Em primeiro lugar, convém destacar que um dos objetivos de
Mateus é deixar claro que oEvangelhoéparatodosospovos, na medida em
que o centro dessa universalidade seja o Judaísmo. Os demais povos
devem “virdoorienteedoocidenteeseassentaràmesadoReinodos Céus com
Abraão, IsaaceJacó”(Mt 8,11).
As igrejas mateanas estão abertas a pessoas de outras culturas,
contanto que assumam a tradição judaica. Admitem estrangeiros nas
comunidades desde que estes se convertam ao Judaísmo e aceitem Je
sus como o Messias “filho de Davi”.
Como certamente havia pessoas cristãs de origem helenista nes
sas igrejas, o Evangelho segundo Mateus quer ajudar os judeu-cristãos
a compreenderem que o Messias veio também para eles. Mateus tem
em vista ajudar suas comunidades a superar especialmente duas dificul
dades. De um lado, quer convencê-las a aceitar jesus como o Messias
esperado. De outro, quer ajudá-las a acolher pessoas não-judias em suas
igrejas.
Embora, o Jesus histórico tenha restringido sua missão aos ju
deus, as comunidades mateanas foram compreendendo, aos poucos,
que sua missão era universal. Por um lado, ainda há elementos em Ma
teus que nos remetem ao Jesus que entende sua missão limitada ao
povo de Israel. Veja alguns exemplos!
• A insistência na observância da Lei de Moisés (Mt 5,17-19).
• Manter proibições alimentares (compare Mc 7,15.19 com Mt
15,11.20).
• O fato de considerar os estrangeiros como porcos e cães (Mt
7,6; 15,26-27).
• A limitação da ação de Jesus e dos discípulos somente entre os
judeus (Mt 10,5-6; 15,24). Diferentemente de Mc 7,24-31, Mt 15,21-29
dá a entender que não foi Jesus quem saiu da Galiléia, mas foi a mulher
estrangeira que veio até ele (Mt 15,22).
• De aceitar um tratamento de exclusão dos “gentios e publica
nos” (Mt 18,17; ver também Mt 5,47; 6,7.32; 10,5.11).
69
• Quanto à etnia, a genealogia dejesus em Mateus (Mt 1,1-17) o
situa em relação ao povo de Israel, uma vez que ela começa com Abraão
(v. 2). No entanto, já é nesta genealogia que podemos perceber que
]csus não tem pureza étnica. Ele pertence a todas as nações. Na árvore
genealógica, quatro mulheres estrangeiras representam todas as cultu
ras, inclusive a nossa. Mais do que ser um Messias de “raça pura” e
masculino, o messianismo de Jesus, embora davídico, é universal. Ta-
mar é cananéia (Mt 1,3; Gn 38). Raab é prostituta de Jericó e não é
hebréia (Mt 1,5; Js 2; 6,22-25). Rute, a bisavó de Davi, é moabita (Mt 1,5;
Rt 1,4) e Betsabéia, a mulher de Urias, o heteu, que fora abusada sexual
mente por Davi, tornou-se a mãe de Salomão (Mt 1,6; 2Sm 11; 12,24-25).
Além disso, também é importante ressaltar que o messianismo dejesus é
subversivo e passa pelo corpo de mulheres pobres, prostitutas e transgres
soras. Como Maria, estas mulheres tiveram uma gravidez fora dos pa
drões “normais”.
• Tal como as mulheres da genealogia, os magos do Oriente tam
bém representam todas as pessoas de todos os povos que aderem ao
projeto libertador dejesus, diferentemente dos reis, representados por
Herodes, que querem sua morte (Mt 2,1-12).
• Na mesma perspectiva do messianismo marginal dejesus, cite
mos ainda:
—sua prática terapêutica junto aos mais excluídos, como os le
prosos (8,2-4) e o servo de um centurião romano estrangeiro (8,5-13);
—a acolhida em seu Reino de quem praticar, independente da
nação que for, a solidariedade para com os que têm fome e sede, os sem
teto, os que não têm com o que se vestir e os doentes ou presos (Mt
25,31-45);
—a missão deixada por Jesus para as comunidades mateanas é
universal: “Ide,portanto, efa^eique ‘todasasnações’setornemdiscípulos.” (Mt
28,19).
70
genealogia real de Israel (Mt 1,1-17). Na seqüência, o apresenta como o
novo Moisés. Da mesma forma como o grande líder do Exodo, salva-
se do massacre de crianças (2,1-12), vem do Egito (Mt 2,15), proclama
solenemente a Lei na montanha (Mt 5) e pronuncia cinco discursos
como os cinco livros da Lei de Moisés, isto é, o Pentateuco (Mt 5-7; 10;
13; 18; 24-25). Como novo Moisés, corrige e aperfeiçoa a Lei (Mt 5,17
47). Ao destacar Doze entre os muitos discípulos, simbolicamente Je
sus estava formando o novo povo de Israel. Para Mateus, as comunida
des cristãs são o verdadeiro Israel (8,11). O Evangelho quer ajudar a
devolver a identidade aos judeu-cristãos em crise por terem sido expul
sos de seu próprio povo.
Nesse sentido, é interessante notar o quanto Mateus cita a Septu
aginta. São cerca de 40 citações. Vinte delas são exclusivas deste Evan
gelho. Confira algumas das citações que seguem: 1,22-23; 2,5-6.15.17
18.23; 3,3; 4,4.6-7.10.14-16; 8,17; 11,10; 12,17-21; 13,14-15.35; 15,7-9;
17,1-9; 21,4-5; 27,9!
Por fim, não podemos deixar de lado a intenção dos autores des
te Evangelho de apresentar Jesus comooEmanuel. Como os demais te
mas, também esse perpassa todo o Evangelho. Logo no início, afirma-
se com todas as letras que o menino que vai nascer é o Emanuel\que
quer dizer: “Deus estáconosco.” (Mt 1,23). A prática libertadora de Jesus
vai revelando que ele é o Messias esperado e que o seu Reino já está
entre nós (Mt 11,2-6). Ao descrever Pedro confessando para Jesus ‘Tu
ésoMessias, oFilho deDeus vivo”(Mt 16,16), a comunidade de Mateus
reconhece que ele é o Emanuel. Por fim, no envio para a missão univer
sal, estão na sua boca as seguintes palavras: ‘E eisqueeu ‘estouconvosco’
todososdiasatéaconsumaçãodosséculos.” (Mt 28,20).
Eclesiologia em Mateus
Dentre os evangelhos, o de Mateus é aquele que mais destaca a
questão eclesiológica, que mais ênfase dá às relações na comunidade
eclesial.
E o único Evangelho que cita a palavra ekkksia(grego) que quer
dizer assembléia, comunidade, igreja (16,18; 18,17). Em Mateus, ekkle-
siarefere-se às comunidades locais e também à Igreja universal. O capí-
71
i tilo 18 é o ponto alto dessa eclesiologia. Mais da metade desse capítulo
é material exclusivo de Mateus, especialmente a partir do v. 15. Confira!
Mateus insiste na vivência fraterna (5-7; 18). A palavra “irmão”
aparece cerca de 40 vezes. A reconciliação (5,23-24; 6,12-15; 18,15-18.21
35) e a solidariedade (5,7; 9,13; 12,7; 23,23; 25,31-46) são fundamentais
para as relações entre novas mulheres e novos homens na comunidade.
Melhor do que nos demais evangelhos, pode-se perceber com
facilidade em Mateus como se misturam o relato sobre Jesus, o Cristo,
com as narrativas sobre a vida das comunidades no final dos anos 80. O
Evangelho é uma mistura de relatos da vida das comunidades com nar
rativas sobre a vida de Jesus a partir da fé. Inclui, ao mesmo tempo, a
prática de Jesus e a prática de seus discípulos. Em cada página, pode
mos perceber a presença da memória do Jesus histórico e, ao mesmo
tempo, como essa memória se concretiza na vida das igrejas.
Estrutura
Diferentemente de Marcos, Mateus não está tão interessado em
descrever a prática de Jesus. E verdade que copia a maior parte do texto
de Marcos. No entanto, quase todo o material exclusivo e o que copia
da fonte “Q” são ditos, discursos, parábolas ou sentenças dejesus.
Os autores de Mateus organizam o ensino do Mestre da Justiça
cm cinco grandes discursos. Cada um deles termina com a fórmula “ao
terminar Jesus estas palavras”. E o que você pode conferir em 7,28; 11,1;
13,53; 19,1; 26,1.
Em cada um desses discursos, Jesus apresenta, sucessivamente,
questões relacionadas ao Reino, como você pode conferir abaixo. Cada
discurso vem precedido por uma parte narrativa. Dessa forma, juntan
do a narrações sobre o agir do Mestre com as partes discursivas, os
autores tinham em vista organizar a obra em cinco livros, tal como os
cinco livros da Lei de Moisés. Considerando as narrativas sobre a infân
cia de Jesus e os relatos a respeito da cruz-ressurreição, o Evangelho
segundo Mateus pode ser dividido em sete partes, como segue.
72
2a Parte (Io livro): A justiça do Reino (3-7):
3-4: Parte narrativa: João Batista, o batismo e as tentações de Jesus,
chegada do Reino.
5-7: Discurso: A nova justiça do Reino no sermão da montanha.
3a Parte (2o livro): A justiça do Reino liberta os pobres (8-10):
8-9: Parte narrativa: Libertação das doenças e da opressão (dez mila
gres).
10: Discurso: Envio dos missionários do Reino.
4a Parte (3o livro): A justiça do Reino produz conflitos (11,1-13,52):
11-12: Parte narrativa: Os mistérios do Reino geram conflitos.
13,1-52: Discurso: As parábolas sobre a justiça do Reino que vencerá.
5a Parte (4o livro): Comunidade, sinal do Reino (13,53-18,35):
13,53-17,27: Parte narrativa: A Igreja como seguidora do Mestre da
justiça.
18: Discurso: Relacionamento entre os filhos do Reino na comunidade.
6a Parte (5o livro): A parusia próxima do Reino (19-25):
19-23: Parte narrativa: No Reino tem lugar para todos.
24-25: Discurso escatológico: A vinda definitiva do Reino vence as
injustiças.
7a Parte (26-28): Narrativas sobre a paixão e ressurreição de Jesus. Lu
tar pela justiça leva à morte, mas também gera vida e justiça plenas.
2. Carta de Tiago
‘Tornai-vospraticantesdaPalavrae
nãosimplesouvintes, enganando-vosavósmesmos.”
(Tg 1,22)
73
Pelo que foi dito, você já pôde perceber que a Carta de Tiago
teve seu berço nas mesmas comunidades que o Evangelho segundo
Mateus. Veja como há muitas semelhanças com Mateus, de modo espe
cial com o sermão da montanha (Mt 5-7), comparando os seguintes
textos:
T ia g o ......... ...... Mateus Tiago...... ..... Mateus
1,2-4........... ........5,11-12 3,1-2 .......... ....... 23,8
1,4............... ....... 5,48 3,8-12........ ....... 12,33-37
1,5-6 ........... ....... 7,7-8; 21,21 4,3 ................ ....... 7,7.9
1,7 ................. ........ 7,11 4 ,4 ................ ........ 6,24
1,22-23 ........ ........ 7,24-26 4,10 .............. ....... 23,12
1,25 ............... ........ 5,19 4,11-12 ............... 7,1-5
2,5-6 ........... ....... 4,17; 5,3 4,13............. ....... 6,30-34
2,12-13....... ....... 5,7 5,7-9 .......... ....... 21,34
2,14ss......... ....... 7,21; 25,41-45 5,19-20...... ....... 18,12.15-16
74
mo: “A f é sem obras é morta. ” (Tg 2,26). Com quem Tiago estaria em
debate? Certamente com as comunidades helenistas. O fato é que Tia
go defende um Cristianismo bem dentro da realidade, a partir de obras
concretas.
Tiago insiste na prática. Entre outras obras, recomenda que não
se deixe de dar de comer ao faminto e de vestir quem está nu (Tg 2,15
16). Nisso se assemelha a Mt 25,35-36.
Veja ainda Rm 4,1-25 e G1 3,6-14 e compare com Tg 2,21-26!
Ao ler esses textos, você pôde perceber que Paulo afirma que
Abraão foi justificado, não pelas obras da Lei, mas pela fé (Gn 15,6),
antes mesmo de surgir, mais tarde, a Lei, dada através de Moisés. Com
isso, Paulo quis abrir a porta do Evangelho aos não-judeus sem que
tivessem que passar pela Lei judaica.
No entanto, Tiago, referindo-se ao mesmo Abraão, tira conclu
sões contrárias às de Paulo, afirmando que ele foi justificado, isto é,
estava de bem ou em comunhão com Deus, justamente por suas obras
(Tg 2,21-22).
Como entender essa polêmica? Essa diferença entre Paulo e Tia
go se deve, de modo especial, ao fato de Paulo estar preocupado em
conseguir a adesão também de não-judeus à Boa-Nova de Jesus sem
que precisassem cumprir as obras da Lei judaica. Enquanto Tiago está
preocupado com a adesão de judeus ao projeto do Messias, insistindo
em que foi a prática de Abraão que comprovou a sua fé.
Podemos também supor que muitas pessoas interpretaram mal a
Boa-Nova de Jesus Cristo
segundo Paulo, não dando o "A religião pura e sem m ácula
devido valor à prática dos diante de Deus, nosso Pai,
valores do Reino. De tanto consiste nisto: em assistir os órfãos
insistir na nova justiça de e as viúvas em suas tribulações
Deus que vem pela fé, os dis e guardar-se livre da
cípulos de Paulo na segunda corrupção do m undo."
geração corriam o perigo de (Tg 1 , 2 7 )
esquecer a ação concreta, a
prática do amor. No entanto, também Paulo queria obras baseadas na
justificação pela fé, tendo o amor como critério central (G1 5,6). Mesmo
75
assim, havia o perigo de um Cristianismo de liturgia desligada da vida.
Tiago se insurge contra esse perigo e lembra continuamente que o gran
de desafio dos cristãos, inclusive de hoje, consiste na sua prática diante
da pobreza reinante na sociedade. Não há contradição entre as duas
perspectivas.
Nas igrejas destinatárias da Carta de Tiago, espalhadas pela Pa
lestina e Síria, já há desigualdades sociais. Há ricos comerciantes e pro
prietários de grandes extensões de terra (Tg 1,9-11; 2,1-9; 4,13-5,6). Daí
a insistência no respeito aos pobres e na igualdade.
Há também quem quer ser mestre e abusa da palavra. Por isso, a
carta insiste no controle da língua. Confira Tg 1,19.26; 3,1-12!
Diante dessa realidade, o autor de Tiago propõe a vivência da Lei
da liberdade, reduzindo-a ao amor (Tg 1,25; 2,8.12). Suas exigências são a
prática da palavra (1,22), a superação de uma espiritualidade individualista
(1,26-27), a igualdade (2,1-4), o respeito pelos pobres (2,5-7), a solidarie
dade (2,14-17), a fé ativa (2,20-26) e a exclusão da exploração, numa forte
admoestação aos ricos (5,1-6).
Tiago toma Dt 15,4 ( “Não haverá pobres entre vocês!’) ao pé da letra,
defendendo que as relações na comunidade devem superar qualquer
forma de desigualdade social.
Como? Propomos que você leia agora a Carta de Tiago, seguin
do a divisão a seguir.
1,1: Endereço e saudação.
1,2-27: Temas relevantes: paciência, oração, provação e fé prática.
2.1-13: Desenvolvimento sobre a prática da fé: evitar a acepção
de pessoas.
2,14-26: Frutificar em obras.
3.1-5,6: Advertências:
—aos que querem ser mestres (3,1-12);
—contra a rivalidade (3,13-18);
—contra a cobiça (4,1-10);
—contra a maledicência (4,11-12);
—contra a ganância (4,13-17);
—contra a injustiça dos ricos (5,1-6).
5,7-20: Exortações finais, retomando os temas iniciais.
76
Contexto: A Carta de Tiago desdna-se às dozes tribos da disper
são (1,1), isto é, aos cristãos de origem judaica dispersos no mundo
greco-romano, de modo especial aos da Palestina e da Síria.
Tal como o Evangelho segundo Mateus, os destinatários de Tia
go são herança das comunidades da Judéia, profundamente ligadas à
observância da Lei.
3. Carta de Judas
“Defato, infiltraram-seentrevósalgtmshomensjá hámuito
marcadosparaestasentença, unsímpios, queconvertem
agraçadenossoDeus numpretextoparaalibertinageme
negamJesusCristo, nossoúnicomestreeSenhor. ” (Jd 4)
Quem? Esta carta é atribuída ajudas, “servodeJesusCristoeirmão
deTiago”(v. 1). É o Judas que aparece na lista dos familiares dejesus em
Mc 6,3. Quando Tiago foi martirizado em 62, seu irmão o substituiu na
liderança das comunidades da Judéia. Pessoas do clã dejesus lideraram
as comunidades de Jerusalém até 135, quando os romanos derrotaram
definitivamente a resistência dos judeus e destruíram novamente a cida
de de Jerusalém.
Atribuir a Carta ajudas revela a autoridade exercida pelas comu
nidades judeu-cristãs de Jerusalém ainda no final do primeiro século de
nossa era. Atribuí-la a uma liderança importante, pelo menos para os
destinatários da carta, e ainda mais sendo dos familiares de Jesus, con
fere autoridade especial ao texto.
Onde? Como Judas se destina a comunidades profundamente
enraizadas no Judaísmo, não só pelas referências ao Primeiro Testa
mento, mas também por citar livros apócrifos, a carta deve ter sido
escrita em algum lugar da Síria ou até da Ásia Menor, uma vez que os
autores dessa carta usam um grego culto.
Quando? A época mais provável de redação são os anos 90,
uma vez que o surgimento de falsos doutores nas comunidades se inten
sifica nesse período. Além do mais, a carta nos informa que já não temos
mais apóstolos vivos, pois sua pregação já é algo do passado (Jd 17-18).
77
O quê? Na verdade, a Carta de Judas é apenas um bilhete de 25
versículos. Seu objetivo é alertar as comunidades contra o perigo trazi
do por falsos doutores que geram divisões. Colocam em risco a unida
de das igrejas em torno da fé, do amor e da esperança.
O autor é duro contra esses doutores, ameaçando-os com seve
ros castigos. E cita exemplos da caminhada libertadora do Êxodo, quan
do foram punidos exemplarmente aqueles que dividiam o povo em
marcha. Com liberdade, fazem também uso de livros piedosos usados
pelo povo judeu. Eram apocalipses bem populares. Hoje, chamamos
esses livros de apócrifos, de ocultos, uma vez que não passaram a fazer
parte do cânon oficial, nem do Judaísmo, nem da Bíblia cristã. São cita
dos os livros de Henoc (Jd 6.12-16), da Assunção de Moisés (Jd 9) e o
Testamento dos Doze Patriarcas (Jd 6-7).
Como? Convidamos você a ler esse bilhete seguindo a proposta
de divisão abaixo.
1-2: Endereço e saudação.
3-4: A finalidade: combater os falsos doutores.
5-23: Argumentos para combater os falsos doutores:
5-7: Três castigos exemplares do Primeiro Testamento;
8-16: Os falsos doutores merecem os mesmos castigos;
17-23: Exortações às comunidades.
24-25: Oração de glória a Deus mediante Jesus.
78
sas doutrinas estavam provocando divisões nas igrejas e enfraquecendo
a fé em Cristo.
Em nossos dias, Judas é um dos textos menos conhecidos do
Segundo Testamento. E que seu assunto parece não dizer muita coisa
para nós.
No entanto, será que hoje também não há falsos doutores —cui
demos para não estar entre eles —que dividem as comunidades, na luta
por cargos, centralização de poder e imposição de suas opiniões? Será
que não há doutores nas nossas igrejas que estão demais preocupados
com dogmas, engessando a Boa-Nova dejesus e reduzindo a experiên
cia da fé a um plano racional, teórico? Será que não insistem demais na
pureza de doutrinas, amarrando em uma camisa de força a mensagem e
a prática libertadoras do Mestre? Ou será que estão demais dedicados à
perfeição dos ritos, impedindo celebrações vivas da fé, do amor e da
esperança? O que divide nossas comunidades hoje?
79
Conclusão da Ia parte
81
Para orar e aprofundar
Mt 6,9-13 Lc 1,68-79 Ef 1,20-23
Mt 11,25-27 At 4,24-30 Ef 2,14-18
Lc 1,46-55 Ef 1,3-14 Cl 1,15-20
Sugestões de leitura
1. Sobre o Evangelho segundo Mateus
ROTEIROS PARA REFLEXÃO VII. Introdução geral aos Evange
lhos. Evangelhos de Marcos e Mateus. São Paulo: Paulus, São Leopol
do: CEBI.
MESTERS, Carlos; OROFINO, Francisco. Travessia: Quero miseri
córdia e não sacrifícios. Círculos Bíblicos sobre o Evangelho de Ma
teus. A Palavrana Vida. São Leopoldo: CEBI, n. 135/136.
MOSCONI, Luís. O Evangelho segundo Mateus. A Palavra na Vida.
São Leopoldo: CEBI, n. 29/30.
STORNIOLO, Ivo. Como ler o Evangelho de Mateus. ComoleraBíblia.
São Paulo: Paulus.
VASCONCELOS, Pedro L.; SILVA, Rafael R. A Boa Notícia segun
do a comunidade de Mateus. A PalavranaVida. São Leopoldo: CEBI,
n. 134.
84
Parte II:
As comunidades da
terceira geração cristã
Introdução
Na primeira parte, estudamos os escritos do Segundo Testamen
to que foram elaborados pelas comunidades cristãs da segunda geração.
Essa época, que vai desde o início da guerra judaico-romana (66-73) até
o final do governo de Domiciano (81-96), também é conhecida como
era subapostólica. Nesse período, não vivem mais as testemunhas oculares
do tempo dejesus de Nazaré. Ou já morreram ou foram mártires por
causa do testemunho de Jesus.
Primeiro, vimos o Evangelho segundo Marcos que surgiu na pas
sagem da década de 60 para 70. Os autores dessa obra querem animar
seus destinatários a perseverar na fé em Jesus libertador como o Messi
as, o Filho de Deus que passa pela cruz. Insistem também nas exigências
para seguir o Nazareno naquele novo contexto.
Depois, estudamos os textos que as comunidades de herança
paulina produziram nesse período. Escrita pelo ano 80, a Segunda Car
ta aos Tessalonicenses quer, entre outras questões, alertar as comunida
des a respeito da equivocada esperança apocalíptica na iminente vinda
gloriosa do Messias.
Lucas e Atos refletem, a partir da fé, sobre a vida de Jesus e a
caminhada das igrejas. Em torno de 90, seus autores querem mostrar
que Jesus veio concretizar o projeto misericordioso de Deus, anuncia
do pela profecia no Antigo Israel como o Salvador de todos os povos.
A prática libertadora do Nazareno revela a força do Espírito. Em Atos,
85
o mesmo Espírito gera comunidades e está por trás da caminhada da
Palavra até os confins da terra.
Colossenses e Efésios são tratados teológico-pastorais que apro
fundam a reflexão sobre a missão universal de Cristo e de sua Igreja,
bem como sobre o significado do ministério do apóstolo Paulo. Vi
mos como, em meados dos anos 90, as comunidades de herança pau-
lina já caminhavam na direção de estruturas hierarquizadas e patriar
cais.
A Primeira Carta de Pedro espelha os últimos anos de governo
dc Domiciano, quando as igrejas sofrem muito por causa de persegui
ções, tanto por parte do império quanto de vizinhos não-cristãos. Seus
destinatários são igrejas formadas por pessoas migrantes à procura de
um lar para morar.
Por fim, vimos os três escritos (Mt; Tg; Jd) que as comunidades
de Tiago, também conhecidas como igrejas apostólicas ou petrinas,
produziram durante a segunda geração cristã.
O Evangelho segundo Mateus quer ajudar seus destinatários a
compreender que, apesar de expulsos das sinagogas judaicas, são eles a
continuidade do verdadeiro Israel. Mateus apresenta Jesus como o Mestre
da Justiça, o Emanuel anunciado pelas Escrituras. Sua missão é univer
sal. Por isso, os judeu-cristãos devem estar abertos a conviver com pes
soas dc outras etnias em suas comunidades.
A Carta de Tiago reflete especialmente sobre a necessidade de a
té e a prática de justiça andarem de mãos dadas. E o bilhete de Judas é
uma repreensão a grupos dissidentes que dividem as comunidades.
O assunto desta parte são os escritos da terceira geração das comu
nidades primidvas conhecida como erapós-apostólica. Essa época vai des
de o final do reinado do imperador Domiciano (81-96) até os anos 130,
quando terá sido escrito o último livro do Segundo Testamento.
E verdade que inúmeras igrejas cristãs existiam e cresciam em
todas as direções. Assim foi na Africa, na Síria, no Oriente e na Europa.
Mas somente duas tradições desse período nos deixaram escritos
que encontramos na Bíblia. De um lado, são as igrejas de herança do
Discípulo Amado, que passaremos a chamar também de comunidades
joaninas, uma vez que seus escritos foram atribuídos pela tradição pos
86
terior ao apóstolo João. De outro, são as igrejas helenistas ou de heran
ça paulina.
Os escritos das comunidades herdeiras do Discípulo Amado são
o Evangelho segundo João, escrito em torno do ano 100, mais as três
Cartas também a ele atribuídas e redigidas pelo ano 110. Não é tão
simples incluir o Livro do Apocalipse em uma ou outra tradição. No
entanto, devido a algumas semelhanças, o situamos na herança joanina.
Sua redação final terá sido em torno do ano 100.
Os escritos de lideranças da erapós-apostólica sob a influência das
comunidades fundadas por Paulo são a Carta aos Hebreus, escrita em
torno do ano 100, as Cartas Pastorais (l-2Tm ;Tt), elaboradas ao redor
de 115, além da Segunda Carta de Pedro, o último escrito do Segundo
Testamento, redigida pelo ano 130.
Tanto uma quanto outra tradição tinham seu centro geográfico
em Éfeso. Já no tempo de Paulo, esta cidade havia sido uma referência
para as igrejas helenistas. Nas décadas posteriores, terá sido Éfeso o
lugar em que as cartas paulinas foram colecionadas.
Depois da destruição de Jerusalém cm 70, Éfeso também se tor
nou referência para as comunidades de herança do Discípulo Amado.
Certamente, suas principais lideranças, e até comunidades inteiras, mi
graram para lá. De um lado, foi para fugir da guerra judaico-romana
(66-73). De outro, foi para fugir da perseguição e da dominação ideoló
gica promovidas por autoridades das sinagogas judaicas, a partir dos
anos 80. Dos escritos desse período, Éfeso é citada em lTm 1,3; 2Tm
1,18; 4,12; Ap 1,11; 2,1-7.
87
Um pouco de história
89
Inácio de Antioquia
Inácio foi supervisor das igrejas de Antioquia em torno do ano
100. Em seus escritos, dá a entender que teve contatos pessoais
com os apóstolos Paulo e João.
Nas diversas cartas que escreveu, enquanto já se encontrava
preso por causa do Evangelho, Inácio revela uma profunda espiri
tualidade. Reflete sobre a possibilidade de ser martirizado, vendo
nisso um meio de tornar-se um seguidor perfeito dejesus.
Para Inácio, Jesus de Nazaré, o Deus encarnado, é o único mestre
que nos liberta de todas as formas de escravidão.
E em suas cartas que aparece, pela primeira vez, a expressão
“igreja católica” para referir-se ao conjunto das comunidades cris
tãs espalhadas por todo o mundo conhecido (oikumene).
Em seus escritos, pode-se perceber facilmente a influência da
herança das comunidades paulinas e do Discípulo Amado.
91
A insurreição liderada por Bar Kochba (132-135)
Apesar da derrota arrasadora na guerra de 66-73, como já vimos,
o movimento de resistência continuava vivo. Não havia sido extinto
totalmente. O sonho de liberdade dos zelotas não havia morrido. Exem
plos disso são os tumultos que houve no Egito e na ilha de Creta ainda
nos anos 72 a 74 e, mais tarde, em 117. Estes foram rápida e duramente
reprimidos.
O imperador Adriano não tinha muita simpatia pelos judeus.
Chegou a tomar algumas medidas que esquentaram ainda mais os âni
mos. Primeiro, emitiu um decreto que proibia a circuncisão em todo o
império. No entender dos judeus, esse decreto era um ataque frontal ao
coração de sua Lei, de sua religião.
A segunda medida, que foi causa imediata de uma nova insurrei
ção, é a decisão do imperador de construir uma cidade romana em
Jerusalém, que ainda permanecia parcialmente em ruínas. Nesse proje
to, estava prevista a construção de um templo ao Deus Júpiter, justa
mente no lugar do antigo templo de YHWH. Júpiter, senhor do céu e
da terra e pai dos Deuses para os romanos, era chamado de Zeus pelos
gregos. Essa pretensão de Roma punha fim à esperança judaica na re
construção de seu templo. Em 131, começa a fundação da nova cidade,
desencadeando uma tempestade de fúria por parte dos judeus. Quem
liderou a resistência foi um homem chamado Simeão Ben Kosiba. A
insurreição explode em 132 e se espalha rapidamente por todo o país,
empolgando toda a nação.
Inicialmente, o rabino Akiba tentou aplacar a revolta. No entan
to, foi convencido pelos rebeldes a apoiar o levante, tornando-se o prin
cipal assessor de Simeão. Por fim, suge
"Uma estrela procedente riu que Simeão fosse chamado de Bar
de Jacó se torna chefe, Kochba (“filho da estrela”). Com isso, lhe
um c e f r o s e levanta, atribuía dignidade messiânica. Ele seria
procedente de Israel." o Messias que salvaria a Palestina das
( Nm 2 4 , 1 7 ) mãos dos romanos.
As comunidades cristãs da Pales
tina não aceitavam a pretensão messiânica de Bar Kochba e não apoi
aram a luta contra o império. Para elas, Jesus é o Messias. Por isso,
foram violentamente perseguidas pelos seguidores do líder da resistên
cia judaica.
Como os romanos foram pegos desprevenidos, os rebeldes tive
ram um razoável sucesso inicial, expulsando os colonizadores e decla
rando o país independente. Nesse mesmo ano e no lugar do antigo
templo de Jerusalém, foi retomado o serviço do culto de sacrifícios.
Chegaram, inclusive, a estabelecer um novo sumo sacerdote.
Imediatamente, Bar Kochba iniciou uma reforma agrária, que
foi um dos eixos de seu projeto. Restabeleceu também a Lei Judaica.
Essa independência deve ter durado pelo menos dois anos, uma
vez que há moedas cunhadas daquele tempo e que se referem aos dois
primeiros anos de Simeão, o libertador de Israel.
Como as legiões romanas estacionadas na Síria não foram sufi
cientes para conter a resistência judaica, Adriano encarregou a repres
são dos rebelados ao general Júlio Severo, governador da Bretanha,
atual Inglaterra. Sua estratégia foi evitar combates em campo aberto,
optando pela tática do cerco às cidades e às fortalezas, a fim de levar
fome e sede a seus habitantes. Com isso, foi vencendo lentamente os
rebeldes e sem muitas baixas entre os soldados de suas tropas. As
fortalezas foram conquistadas aos poucos. Em meados de 135, Seve
ro apodera-se de Beter, próximo de Jerusalém, e mata o líder Bar
Kochba. Era o fim da rebelião.
Assim, o poder estava novamente consolidado nas mãos imperiais.
Essa derrota foi mais uma tragédia para a comunidade judaica. Foram
destruídas 50 fortificações e centenas de vilarejos. Milhares de judeus
foram mortos nas batalhas. Muitos também morreram pela fome, sede
e doenças. Inúmeras pessoas foram vendidas como escravas. A Palesti
na encontrava-se devastada. Essa catástrofe levou os judeus à perda
total de sua pátria. Os romanos já vinham chamando a Judéia de Pales
tina. Porém, a partir de agora, esse passou a ser o nome oficial.
Os judeus foram proibidos, sob pena de morte, de entrar na ci
dade de Jerusalém, que foi povoada exclusivamente por pessoas não-
judias. A cidade foi ampliada e transformada em colônia romana com
estilo helenístico. Passou a ser chamada de Aelia Capitolina, em honra
ao imperador Adriano. No lugar do antigo santuário, foi erguido um
93
templo a Júpiter. Ali, prestava-se culto não somente a Júpiter, como,
também a sua consorte Juno (a Hera grega), Deusa do casamento, e a
Minerva (a Atenas grega), Deusa da sabedoria. Também Afrodite, Deusa
grega do amor, recebeu um templo em Jerusalém, no lugar que os cris
tãos reverenciavam como sendo o sepulcro de Cristo. Em torno da
gruta de Belém, construíram também um templo a Adônis, Deus fení-
cio da juventude e da beleza, também cultuado pelos gregos.
Desde 135 até 1948, quando a ONU determinou a reconstrução
do estado de Israel depois da Segunda Guerra Mundial (1940-1945), as
comunidades judaicas permaneceram vivas, em várias partes do mun
do, na diáspora globalizada, graças à força de sua religião.
O movimento gnóstico
Para bem entender os escritos pós-apostólicos, convém conhecer
mos alguns pontos centrais do gnosticismo.
A palavra gnóstico vem de “gnose”, que em grego significa co
nhecimento. O gnosticismo é um movimento religioso e filosófico que
já existia no mundo greco-romano quando surgiram as primeiras co
munidades cristãs e que teve seu auge no segundo século.
A doutrina desse movimento tem sua origem na filosofia grega e
em diversas religiões e correntes espirituais. Era uma mistura de idéias
desde a cultura do Irã, da Babilônia, do Judaísmo e do Egito, incluindo
o pensamento grego.
Diferentemente do Judaísmo, que propunha a Lei como cami
nho de redenção, os gnósticos apresentavam o conhecimento divino
como caminho para a verdadeira salvação. Conhecimento que não se
alcançava somente por esforço humano, mas era recebido por meio de
uma revelação divina vinculada à faísca de Deus adormecida nas pesso
as, transformando-as inteiramente e conduzindo-as à vida verdadeira.
Os adeptos do gnosticismo consideravam seu conhecimento superior
ao das pessoas que não seguiam seu movimento.
O pensamento gnóstico é fortemente dualista. Por um lado, vê o
mundo, a matéria de forma muito negativa, sob o domínio das forças
do mal, das trevas. O corpo humano está nessa esfera. Como todo o
cosmos, incluindo o corpo humano, encontra-se nas trevas, governado
94
por forças inimigas, entregue à perdição, às paixões. A matéria é enten
dida como prisão das centelhas divinas.
Por outro lado, está a luz divina, lugar de onde se originam as
almas das pessoas, que estão adormecidas e presas nos corpos, na ma
téria. Adquirir conhecimento capacita as pessoas para percorrer o ca
minho de volta à dimensão divina.
Nesse sentido, os gnósticos entendem a alma como um núcleo
divino que se encontra prisioneiro no corpo das pessoas. Para vencer
seus prazeres, seu egoísmo e seus desejos carnais, o corpo devia ser des
prezado e castigado, além de ser afastado de todas as coisas materiais, o
mundo. Para se libertar, a alma precisa alcançar a sabedoria, o conheci
mento. Uma vez liberta, ela volta a fazer parte da esfera divina.
Esse pensamento também encontrou adeptos nas comunidades
cristãs. Os gnósticos cristãos entendiam Jesus como o salvador que re
vela o conhecimento de Deus à humanidade. Ele teria descido em for
ma humana. No entanto, não era verdadeiramente homem. Não teria
passado pelo sofrimento e pela morte. Propunham também um des
prezo por tudo que tem a ver, segundo seu pensar, com as coisas terre
nas como, por exemplo, o casamento (lTm 4,3).
Os gnósticos cristãos estavam preocupados com a busca da re
velação do conhecimento divino e com o distanciamento de tudo que
estava ligado às coisas materiais. Afastavam-se de um Cristo encarnado
na condição humana (ljo 4,2-3; 2Jo 7) e envolvido na promoção da
vida de quem estava à margem da cidadania, tendo que enfrentar, con
seqüentemente, sérios conflitos com quem detinha o poder político,
econômico e religioso. Dessa forma, os gnósticos cristãos promoviam
um Cristianismo voltado à busca da sabedoria. Transformavam o Evan
gelho do Reino em uma religião que não representava nenhum perigo
às estruturas deste mundo, limitando-se demasiadamente à libertação
interior, uma religião de elite, letrada e economicamente superior.
E possível que o mago Simão de At 8,9-24 seja um gnóstico que
se dizia ser portador da revelação divina.
Nos livros que estudaremos nesta parte, veremos vários enfren-
tamentos com as pessoas que difundiam esse modo de pensar nas co
munidades, especialmente no Apocalipse, na literatura joanina e nas
95
Cartas Pastorais. Já vimos algo a respeito na primeira parte, ao estudar
a Carta aos Colossenses.
96
Herança das comunidades do Discípulo Amado
“Jesus, então, vendoasuamãee,
pertodela, odiscípuloaqtiemamava,
disseãsuamãe: ‘Mulher, eisoteufilho!’”
G° 19,26)
97
1. Livro do Apocalipse
“Eis queeufaçonovastodasascoisas.”
(Ap 21,5)
98
Fazia irreverências mil
Pra noite do Brasil.
Meu Brasil,
Que sonha
Com a volta do irmão do Flenfil,
Com tanta gente que partiu
Num rabo de foguete.
Chora
A nossa pátria, mãe gentil,
Choram Marias e Clarisses
No solo do Brasil.
Mas sei
Que uma dor assim pungente
Não há de ser inutilmente.
A esperança dança
Na corda-bamba de sombrinha,
E, em cada passo dessa linha,
Pode se machucar.
Azar! A esperança equilibrista
Sabe que o show de todo artista
Tem que continuar.
99
Naquele contexto, o Apocalipse é fruto de igrejas da área de Éfe
so na Ásia Menor (caps. 2-3), com influência da teologia paulina, mas
de modo especial da teologia das comunidades do Discípulo Amado.
Vejamos algumas diferenças e semelhanças na literatura atribuída a João.
Por um lado, há diferenças entre o 4oEvangelho, as três Cartas e
o Apocalipse, livros atribuídos ao apóstolo João. A principal diferença é
quanto à linguagem. No 4o Evangelho e nas Cartas joaninas, não se
usam os mesmos códigos ou figuras como no Livro do Apocalipse.
No Evangelho, a presença dejesus é uma realidade nas comuni
dades. Quem a ele adere, já está ressuscitado, já passou da morte para a
vida (Jo 5,24-25). Não se espera pelo retorno iminente de Jesus. No
Apocalipse e nas Cartas de João, entretanto, a esperança pelo julgamen
to da história é muito enfatizada. Espera-se a parusia de Cristo para
alterar substancialmente as relações de opressão, inaugurando os novos
céus e a nova terra (Ap 1,7; 3,11; 22,10.12.20; IJo 2,18.28; 3,2; 4,17).
Isso nos revela que, embora esses textos possam ser todos eles de igre
jas de herança do Discípulo Amado, os autores desses livros devem ser
de comunidades distintas e de contextos diferenciados.
Por outro lado, há semelhanças entre o Apocalipse e os demais
escritos atribuídos a João. Vejamos alguns exemplos.
O título mais freqüente dejesus no Apocalipse é Cordeiro c apa
rece 29 vezes. Veja algumas dessas citações: Ap 5,6.8.12.13; 6,1.16;
7,9.10.14.17; 21,9.14.22.23.27! Além do Apocalipse, esse título somen
te se encontra no 4° Evangelho na boca de João Batista, quando vê
Jesus se aproximando (Jo 1,29.36).
Outra semelhança entre o 4" Evangelho e o Apocalipse é que
ambos fazem referência à perseguição do império deste mundo (Jo 15,18
16,4; Ap 12-13).
Quanto às divisões internas das comunidades provocadas pelas
tendências gnósticas, tanto o Apocalipse como as Cartas atribuídas a
João fazem referência a elas (Ap 2-3; IJo 4,1-6).
Antes de você continuar aqui a sua leitura, sugerimos que reveja
a introdução à teologia apocalíptica que fizemos nas p. 59-64 do volu
me seis, como introdução ao Livro de Daniel (p. 64-68). Aliás, é na
100
literatura apocalíptica judaica, especialmente em Daniel, que os autores
do Livro do Apocalipse buscam a maioria das figuras simbólicas.
101
sofrimento e morte. Em seu lugar, propõe uma sociedade cidadã, um
novo céu e uma nova terra. Este é seu projeto de vida.
Tudo isso é expresso através de linguagem apocalíptica, muito co
mum noJudaísmo desde a resistência dos macabeus contra o Império Grego
por volta de 200 a.C. e que se prolongou até em torno do ano 200 d.C.
O gênero literário apocalíptico tem como característica principal
o uso de linguagem codificada. Comunica-se através de códigos com
preensíveis somente às pessoas que pertencem ao grupo de resistência.
Desvela-lhes a realidade, gerando consciência crítica e esperança para
não desanimar na caminhada. Como estimula a perseverança na luta
contra os opressores, é texto subversivo, clandestino. E mesmo que
caísse nas mãos do império, dificilmente este compreenderia sua lin
guagem codificada, expressa através de símbolos, figuras, sonhos, vi
sões, animais, números e cores.
Autores do Apocalipse
Além do Livro de Daniel que se encontra na Bíblia, os principais
apocalipses apócrifos judaicos daquela época são: o Primeiro e o Se
gundo Livros de Henoc, os Testamentos dos Doze Patriarcas, o Apo
calipse de Esdras e o Apocalipse siríaco de Baruc. Como você pôde
perceber, todos esses apocalipses foram atribuídos a personagens im
portantes da história de Israel.
Com os apocalipses cristãos não era diferente. Por isso, é inútil
procurar quem, de fato, são os autores. Atribuindo o livro ao profeta
João (1,1.4.9; 22,8), é provável que os redatores dessa obra quisessem
homenagear o apóstolo João. Há uma tradição antiga do historiador
eclesiástico Eusébio de Cesaréia, falecido em 339, que afirma serem
pessoas distintas o João Presbítero e o João Evangelista.
Certo é que o redator final dessa obra, escrita em diferentes épo
cas e contextos, encontrava-se entre os exilados. Era um prisioneiro
político por se rebelar contra a dominação romana, por testemunhar a
Boa-Nova dejesus Cristo (1,1-2.9). Por isso, encontrava-se na ilha de
Patmos (1,9), transformada pelos romanos em um grande presídio para
todas as lideranças que resistiam ao culto imperial e à opressão.
102
Temas principais do Apocalipse
1. Por um lado, o grande tema desse livro é a denúncia profética (1,3
10,11; 22,10.18) contra o Império Romano. O Apocalipse critica a violên
cia imperial e a exigência feita aos povos
conquistados para que prestassem culto "E foi dado a ela (a Besta)
ao imperador, a Besta cujo número é 666 poder para guerrear
(cap. 13), e a Roma, chamada de Prosti contra os santos
tuta e Babilônia (caps. 17-18). e vencê-los."
Ao revelar a opressão e a idola (Ap 13,7)
tria do império, o Apocalipse quer
conscientizar as comunidades para que não desanimem, mas perseve-
rem na resistência até conseguir implodir com as relações opressivas do
sistema do império. Desse modo, propõe reconstruir as relações com
Deus, com as pessoas e com a própria natureza, conforme descreve seu
projeto de sociedade no relato da nova Jerusalém (21,1-22,5). E um
projeto de felicidade plena, sem fim. Não é por acaso que o redator
fmal distribuiu, ao longo do texto, sete bem-aventuranças como pro
postas de felicidade (1,3; 14,13; 16,15; 19,9; 20,6; 22,7.14).
O Apocalipse quer também animar a mística das comunidades
para que continuem dando testemunho (martyria) do Evangelho de
Jesus (1,2.5; 2,13; 6,9-11), mesmo que tenham que sofrer o martírio. O
livro todo é uma imensa liturgia, que celebra o poder do Cordeiro vito
rioso por sua ressurreição (12,5) e que ajuda as comunidades a vencer
também a opressão do império que encarna o poder de Satanás, o Dra
gão. Espalhados por todo o texto, há vários hinos e elementos litúrgi-
cos no Apocalipse (1,3.12-13.20; 4,8.11; 5,9-10.12-13; etc.). Eram can
ções provavelmente cantadas nas comunidades e posteriormente reco
lhidas pelos autores do livro.
O poder do mal persegue e mata. Por isso, o livro insiste na ur
gência da transformação (1,3; 10,6; 16,17). Anuncia o julgamento do
império, o fim da opressão, de modo que ninguém mais precise morrer,
mas todos tenham vida digna na nova Jerusalém.
O Apocalipse não tem em vista a transformação da história so
mente num futuro longínquo. A libertação que anuncia é atual, é para
nossa história. E se faz na luta contra as forças de morte, perseverando
103
na resistência e na fidelidade ao projeto do Cordeiro (12,11). Todo o
livro é como que uma celebração antecipada da vitória final contra o
Império Romano, contra qualquer império. Celebra-se a derrota de
Roma, simbolizada pela Prostituta e pela Babilônia, embriagadas em
suas imundícies, luxúrias e opressões (caps. 17-18). Celebra-se o fim
dos imperadores e dos seus defensores, simbolizados pelas Bestas. Jun
to com eles, desaparecem também todos os seus seguidores (19,11-21).
Por fim, celebra-se a derrota
"Exultai por sua causa, ó céu, e final das forças do mal, do
vós, santos, apóstolos e profetas, poder do demônio (cap. 20).
pois julgando-a (a Babilônia) O
Deus vos fez justiça." de forças abstratas. Refere-se
(Ap 18,20) a pessoas bem concretas que
encarnam o poder do Dragão.
Chama-lhes de Bestas (cap. 13). A primeira delas (13,1-10) é o próprio
imperador e toda a estrutura imperial que ele representa. Segundo o
alfabeto hebraico, o número 666 é o resultado da soma do valor numé
rico das letras que compõem o nome “César Nero”. Durante a história,
tcz-sc muita polêmica em torno do número da Besta. Ora, além do
significado desse código que acabamos de ver, convém lembrar ainda
que, sendo o número sete sinônimo de perfeição e plenitude, o número
seis significa imperfeição, pois ainda não chegou à plenitude. Repetir
três vezes o número seis (666) quer dizer que a Besta é o grau máximo
da imperfeição. Portanto, por mais que assuste, o poder dos impérios
será vencido pelo bem, que é perfeito. O número da Besta também
pode ser uma referência àqueles que oprimem os povos, acumulando as
riquezas deles, como fez o rei Salomão. Não deixe de ler lR s 10,14, que
se refere a “666 talentos de ouro”, equivalentes a 23.300 quilos de ouro!
Veja ainda como os imperadores e os impérios de todos os tempos têm
a mesma prática: Davi (2Sm 8,1-14), faraó Necao (2Rs 23,31-35), assíri
os (Is 8,4), babilônios (2Rs 24,13), persas (Ne 9,36-37), gregos (lMc
1,16-24) e romanos (Mc 10,42; Ap 17-18).
Além disso, o próprio Livro do Apocalipse nos convida a usar
mos sabedoria para descobrir quem são as sete cabeças dessa Besta
(13,1.18). Pouco adiante (17,9-11), ele mesmo esclarece que são as sete
104
colinas de Roma sobre as quais os reis (Prostituta) construíram seus
palácios. São também os imperadores do primeiro século, cinco dos
quais já caíram (Augusto César, Tibério César, Calígula, Cláudio e César
Nero), um existe (Vespasiano) e o outro não vai durar muito (Tito).
Chega-se, assim, ao sétimo imperador que é Domiciano. Na verdade,
ele encarna a crueldade de Nero (17,11; 13,3.14). E contra Domiciano
(81-96) que as comunidades estão bravamente resistindo no momento
em que esta parte do Apocalipse é escrita (caps. 12-22). E já sonham com
a vitória contra ele e todo seu império opressor, por isso, diabólico.
Vencidas todas as forças da opressão, segue, então, a celebração
da vitória do Cordeiro e de suas testemunhas (19,1-10), iniciando uma
nova era, novos céus e nova terra, a nova Jerusalém (21,1-22,5).
2. Por outro lado, o Apocalipse também quer manter a unida
interna das comunidades. E que havia doutrinas que dividiam as igrejas.
Provavelmente, eram grupos cristãos que assimilaram elementos do
movimento gnóstico. As sete cartas às sete igrejas (caps. 2-3) revelam o
desânimo diante da imposição da ideologia do império e das persegui
ções. E as divisões nas comunidades fragmentavam ainda mais a unida
de, enfraquecendo a perseverança na resistência. Possivelmente, os ni-
colaítas (2,6.15-16) e a Jezabel (2,20-23), que seguem a doutrina de Ba-
laão (2,14) e que estavam convencidos de possuir o conhecimento das
profundezas de Satanás (Ap 2,24), eram cristãos gnósticos que provo
cavam divisões nas igrejas. Desse modo, enfraqueciam a fé de mem
bros das comunidades, a tal ponto de prestarem culto ao imperador,
prostituindo-se com as carnes a ele sacrificadas (2,14.20). Havia tam
bém judeus da “sinagoga de Satanás” que criavam problemas para as
comunidades (3,9).
Nas sete cartas (caps. 2-3), Jesus exorta as comunidades para que
retomem o primeiro amor (2,4; 3,19), não tenham medo (2,10), conver
tam-se (2,16) e perseverem (2,25; 3,11). Pede também que voltem nova
mente a viver em intimidade com ele, vivendo unidas e na fraternidade.
Deixar Jesus entrar em nossas casas e comer com ele é fazer comunhão
de vida, é deixar-se guiar por seu Espírito. Por isso, ainda hoje, Jesus
nos diz: “Eis queestoujuntoàportaebato. Sealguémouviraminhavoz?eabrir
aporta, entãoentrarei emsua casaecearei comele, eele, comigo.” (Ap 3,20).
105
Tudo depende de nossa decisão para convidar Jesus a entrar. Ele ape
nas bate e fala. Onde e como podemos sentir o seu toque e sua voz?
106
7 E a composição de 3 + 4. Indica plenitude, perfeição, totali
dade (Ap 1,4). Metade de 7 é 3,5 (Ap 11,9). Às vezes se diz
“um tempo, dois tempos, meio tempo” (Ap 12,14; Dn 7,25),
isto é, três anos e meio. E a duração limitada das perseguições.
E o tempo controlado por Deus.
10 “Dez dias de provação” (Ap 2,10) (cf. Dn 1,12.14), tempo de
curta duração.
12 E uma composição de 3 x 4. Número de perfeição e de totali
dade (Ap 21,12-14).
24 E uma composição de 2 x 12. Os 24 anciãos (Ap 4,4), isto é,
representantes do povo do AT (12 tribos) e do povo do NT
(12 apóstolos), ou seja, a totalidade do povo de Deus.
42 Quarenta e dois meses (Ap 11,2) é igual a três anos e meio, é
igual a 1.260 dias (cf. Ap 12,6), isto é, a metade de sete anos.
Indica o tempo limitado por Deus.
144 E uma composição de 12 x 12 (Ap 21,17). Sinal de grande
perfeição e totalidade.
666 E o número da besta (Ap 13,18). Em grego e em hebraico
cada letra dnha um valor numérico. O número de um nome
era o total do valor numérico de suas letras. O número 666 é
do nome César-Neron conforme o valor das letras hebraicas
ou César-Deus conforme o valor das letras gregas. E também
o número de maior imperfeição: seis não alcança sete, é só a
metade de do%e, e isto por três vezes! O número 666 é o
cúmulo da imperfeição!
1.000 Designa um prazo de tempo comprido e completo. Reino
de mil anos (Ap 20,2). As combinações: 7 x 1.000 = 7.000
(Ap 11,13), 12 x 1.000 = 12.000 (Ap 7,5-8), 144 x 1.000 =
144.000 (Ap 7,4).
3. Elementos da natureza
Entre nós, alguns elementos da natureza têm um significado sim
bólico. Por exemplo: “Fulana tem uma boa estrelaV’, “João tem saúde de
ferroT , “Aquela menina é uma p érold”. Na Bíblia, os elementos da natu
reza têm variados significados simbólicos:
107
4 soleluer. “vestida com o sol, a lua debaixo dos pés” (Ap 12,1): criação
servindo ao povo de Deus.
* estrela(Ap 1,16): anjo ou coordenador da comunidade (Ap 1,20).
* estreladamanhã(Ap 2,28): Jesus, fonte de esperança (Ap 22,16).
* arco-íris(Ap 10,1): símbolo da onipotência e da graça de Deus. Evoca
a aliança de Deus com Noé (Gn 9,12-17).
' mar (Ap 13,1): caos primitivo (Gn 1,1-2), lugar de onde sai a besta-
tera, símbolo do mal.
' abismo(Ap 9,2): lugar debaixo da terra, onde os espíritos maus ficam
presos.
' águadabocadaserpente, o vômito (Ap 12,15): Império Romano.
f iiufrates(Ap 9,14): região de onde costumavam vir os invasores; aqui
os partos.
' cristal (Ap 4,6; 22,1): clareza, esplendor, transparência, ausência do
mal.
* pedraspreciosas(Ap 21,19-20): raridade, beleza, valor.
*pedrabranca(Ap 2,17): usada no tribunal pelo juiz para declarar alguém
inocente.
1 ouro(Ap 1,13): riqueza.
* ferro, cetrodeferro(Ap 2,27): poder.
1 barro, vasosdebarro(Ap 2,27): fragilidade. Evoca Is 64,7 ou Jr 18,6.
' palma(Ap 7,9): triunfo.
' duasoliveiras(Ap 11,4): personagens importantes. Evocam a visão do
AT (Zc 4,3-14).
4. Mundo animal
A convivência com os animais produz significados simbólicos.
Por exemplo, o povo diz: “Não ser papagaio”, “Escutar como corujd\
“Meter o bicoem tudo”, “Fulano é um cavaloY’. No Apocalipse, os bi
chos ou partes do bicho têm vários significados simbólicos:
+dragão(Ap 12,3) ou “antiga serpente” (Ap 12,9): poder do mal hostil a
Deus e a seu povo.
* besta-feraquesobedoabismo(Ap 11,7) ou do mar (Ap 13,1): Nero ou o
Império Romano.
* besta-feraquesaidaterra(Ap 13,11): o falso profeta que propaga o culto
108
ao imperador. O dragão, a besta-fera do mar e a besta-fera da terra
são uma caricatura da Trindade. O antideus, o anticristo e o antiespí-
rito (falso profeta).
* pantera, leão eurso (Ap 13,2): crueldade, sem misericórdia. Evoca a
visão de Daniel (Dn 7,4-6).
* cavalos(Ap 6,2-7): poder, exército que arrasa. Evocam a visão de Zaca
rias (Zc 1,8-10).
* cordeiro (Ap 5,6): indica Jesus. Evoca o cordeiro pascal imolado no
Êxodo (Ex 12,1-14). '
* leão, touro, homem, águia, os “quatro seres vivos”, literalmente: “ani
mais”, (Ap 4,6-7): indicam os quatro seres mais fortes que presidem o
governo do mundo físico. Indicam também os quatro elementos que
formam o ser humano: touro (instinto), leão (sentimento), águia (in
telecto), homem (rosto). Os quatro juntos formavam o ser mitológi
co da Babilônia, chamado karibuou Querubim, e a Esfinge do Antigo
Egito. Evocam as visões de Isaías (Is 6,2) e sobretudo de Ezequiel (Ez
10,14 e 1,10).
* ágiáa(Ap 12,14): evoca a proteção do Êxodo (Ex 19,4; Dt 32,11).
* gafanhotos(Ap 9,3): invasores estrangeiros, os partos. Evocam as pra
gas do Egito (Ex 10,1-20) e a visão de Joel que fala de gafanhotos
com aspecto de cavalos (J1 2,4; Ap 9,7).
* escorpião(Ap 9,3): perfídia, traição. Evoca o Exodo conforme o Livro
da Sabedoria (Sb 16,9).
* cobra, serpente(Ap 9,19): poder mortífero.
* sapo(Ap 16,13): animal impuro (Lv 11,10-12); símbolo persa da divin
dade das trevas. Evoca a praga das rãs (Ex 7,26 a 8,11).
* chifre(Ap 5,6): poder, particularmente o poder do rei.
* asas(Ap 4,8): mobilidade; velocidade em executar a vontade de Deus.
Evocam Ez 1,6-12.
109
' linhopuro (Ap 15,6): a conduta justa dos cristãos (Ap 19,8).
4 alfaeômega(Ap 1,8): primeiro e último, princípio e fim (Ap 21,6; 22,13).
4 chave(Ap 3,7): poder.
1 livro (Ap 5,1): o plano de Deus para a história humana.
1 livro da vida (Ap 3,5; 20,12): contém os nomes dos que vão viver sempre.
' selo (Ap 5,1): segredo.
' ladrão (Ap 3,3): Deus vem como ladrão, isto é, de maneira inesperada,
imprevisível.
' foice(Ap 14,14): imagem de julgamento divino.
* trombeta(Ap 8,2): voz sobre-humana que anuncia os acontecimentos
do fim dos tempos.
* carimbo,sinal,marca(Ap 7,2; 13,16-17): marca de propriedade e proteção.
t: balança(Ap 6,5): escassez de comida, custo de vida.
110
* templo (Ap
3,12): coração de Jerusalém, cidade santa, representa o
povo de Deus.
* MonteSião (Ap 14,1): lugar do templo; trono de Deus.
* NovaJerusalém(Ap 3,12; 21,2): o povo de Deus, finalmente reconci
liado.
4. O Império Romano
* trono(Ap 1,4): majestade, domínio. Evoca o julgamento, anunciado no
AT (Dn 7,9-14).
* tronodeSatanás(Ap 2,13): altar do templo de Zeus no alto da monta
nha em Pérgamo.
* espadaafiada(Ap 1,16): palavra de Deus que julga e castiga (Ap 19,15).
Evoca a imagem usada por Isaías (Is 49,2) e, sobretudo, pelo Livro da
Sabedoria (Sb 18,15).
* arco(Ap 6,2): arma característica dos partos; terror.
* cintodeouro(Ap 1,13): símbolo de realeza.
* coroa(Ap 4,4): poder de rei.
* reidosreis,senhordossenhores(Ap 19,16; 1,5): título do imperador roma
no dado a Jesus.
111
* o maná (Ap 2,17)...........................................................................Ex 16,1-36
* a caminhada pelo deserto (Ap 7,16-17; 12,6.14).................Nm 10,11-14,45
*' as 12 tribos (Ap 21,12) e o seu recenseamento (Ap 7,1-8)....Nm 1,1-4,49
* a conclusão da Aliança ao pé do Sinai (Ap 21,3.7)............. Ex 19,1-24,18
* a Arca da Aliança (Ap 11,19).....................................................Ex 25,10-22
f a revelação do nome de Deus (Ap 4,8).......................................... Ex 3,1-20
* o objetivo do Exodo: fazer do povo uma realeza e sacerdotes
(Ap 5,10)......................................................................................Ex 19,6
+as atividades de Balaão (Ap 2,14)......................................Nm 22,1-24,25
* Moisés e Elias (Ap 11,3.6)......................................... Ex 7,14-25; lRs 17,1
* Leão da tribo de Judá (Ap 5,5)...................................................Gn 49,9-12
Rebento de Davi (Ap 5,5)..............................................................Is 11,1.10
a nova Jerusalém (Ap 3,12; 21,9-23)...Is 60,1-2; 66,5-17; Ez 48,30-35
o Monte Sião (Ap 14,1)................................................Is 2,3-5; 2Rs 19,31
a rainha Jezabel (Ap 2,20)................................................lR s 16,31; 21,4-7
os sete Espíritos (Ap 1,4; 4,5; 5,6)..............................................Is 11,1-2
o templo (Ap 3,12; 7,15; 11,1.19; 21,22)........................... em todo o AT
* as grandes promessas dos servos, os profetas (Ap 10,7)...........Am 3,7
+a visão do Filho do homem (Ap 1,13; 14,14)......................Dn 7,13-14
^ Gogue e Magogue (Ap 20,8)..................................................Ez 38,1-39,29
* Armagedon, a montanha de Megido (Ap 16,16)............... 2Rs 23,29-30
* a queda da Babilônia (Ap 14,8; 18,2.10).......................................... Is 21,9
* a saída do cativeiro (Ap 18,4).....................................................Is 48,20-22
* o nascimento do Messias (Ap 12,5)................................... Is 66,7; SI 2,7-9
+o dia dejavé (Ap 6,17)...................................................J1 2,11; Am 5,18-20
+a nova criação (Ap 21,2).............................................................. Is 65,17-25
O plano do livro
Propomos a seguinte divisão para o Livro do Apocalipse, que
passou por um longo processo de redação:
1-3: Prim eira parte. Junto com a quarta parte (22,6-21), estes
primeiros capítulos devem ser obra dos redatores finais no início do
segundo século.
• 1,1-3: Título e resumo do Apocalipse.
112
• 1,4-8'. Saudação inicial: Jesus é o centro da história.
• 1,9-20: Visão inaugural: Jesus vivo em meio às comunidades.
• 2-3: As sete cartas às igrejas exortam-nas a buscar a unidade em
torno de Cristo, diante dos falsos cristãos que produzem
sua divisão e seu enfraquecimento.
113
• 14,6-20,15: O futuro: julgamento e condenação dos opressores:
—14,6-13: Três anjos anunciam o que vai acontecer:
* 14,14-20: Chegada do julgamento, anunciada pelo l°anjo;
* 15,1-19,10: Queda de Roma, anunciada pelo 2o anjo;
* 19,11-20,15: Derrota final do mal, anunciada pelo 3o
anjo.
• 21,1-22,5: Novos céus, nova terra e a nova Jerusalém.
Riscos da apocalíptica
Quando não fazemos uma interpretação da linguagem codifica
da e simbólica do Apocalipse, corremos o risco de cometer injustiças
com a intenção dos seus autores. Além disso, podemos reforçar atitu
des já muito presentes diante desse livro, como o medo e o fatalismo.
Chamamos de leitura fundamentalista aquela que nem chega a
interpretar o texto. Simplesmente pretende entendê-lo tal como está
escrito, ao pé da letra. Ora, nem se pode dizer que se “entende ao pé da
letra”, pois todo escrito (letra) só se entende quando se tem em conta o
contexto de vida que está por trás do relatado. Não existe texto sem contex
to. Por isso, é bom você reler 2Cor 3, onde o apóstolo Paulo explica isso,
chegando mesmo a dizer que a “letra” isolada pode até matar (v. 6).
A tendência do fundamentalismo é querer impor essa leitura equi
vocada como a única verdadeira, absolutizando-a. Dessa forma, facil
mente gera fanatismo que, por sua vez, leva à intolerância. Já conhece
mos as conseqüências disso: guerras, a Inquisição, suicídios coletivos,
etc. Além disso, é necessário compreender que os símbolos falam da
realidade, mas através de imagens e figuras. Por isso, precisam ser inter
pretados. Imaginar que sejam descrições da realidade é um erro de in
terpretação e só produz medo nas pessoas.
Outra atitude equivocada a partir da leitura do Apocalipse é o
fatalismo ou determinismo. Quando não compreendemos bem a teolo
114
gia e a linguagem apocalípticas, corremos o risco de pensar que tudo na
história já está determinado por Deus e que nossa ação não consegue
alterar seus rumos. Essa incompreensão pode nos conduzir a um imo
bilismo, pensando que não é a resistência militante e o engajamento
social que transformam a vida e a história. Se assim nos acomodamos,
esperando uma intervenção mágica de Deus, as Bestas apocalípticas de
hoje continuarão globalizando cada vez mais a miséria, enquanto priva-
tizam as riquezas que Deus criou para todos os seus filhos e suas filhas.
Por fim, lembramos ainda que outra atitude diante do Apocalip
se pode ser a falta de ecumenismo, isolando-nos como o único grupo
que presta, que é “santo”, enquanto todos os outros não prestam.
115
mas “estar no mundo” é, na verdade, viver relações alternativas, dife
rentes das que o sistema dominante impõe.
116
9), etc.; dos números, como o 6 (2,6 = imperfeição), o 5 (4,18 = os cinco
maridos simbolizam as cinco divindades dos cinco povos forçados a mi
grar para a Samaria no oitavo século a.C. - 2Rs 17,24-41; 5,2 = os cinco
pórticos simbolizam os cinco livros da Lei, incapazes de promover a cura),
o 38 (5,5 = 38 anos eqüivalem a uma geração, de acordo com Dt 2,14), o
7 (5+2=7; 6,9 = totalidade, perfeição), etc.; de palavras como bodas, ta
lhas, vinho, templo, poço, maná, pão, pastor, ovelhas, mundo, videira,
escravo, jardim, dormir, acordar, noite, trevas, luz, água, caminho, etc.
O 4o Evangelho e os Sinóticos
Comparemos, agora, João com os Sinóticos.
Marcos começa seu Evangelho, apresentando Jesus no início de
sua vida pública. Situa-o, de imediato, nas comunidades da Galiléia.
Alguns anos mais tarde, Mateus e Lucas já incluem as narrativas da
infância, inclusive a genealogia de Jesus. Mateus o situa em relação ao
povo israelita, uma vez que sua árvore genealógica começa com Abraão,
o pai da fé em Israel (Mt 1,2). Por sua vez, Lucas universaliza Jesus,
situando-o na história universal, fazendo-o descender de Adão, pai de
toda a humanidade (Lc 3,38). Já para as comunidades joaninas, Jesus é
princípio e fim de todas as coisas. Mesmo antes de Adão, ele já estava
presente na criação e se encarnou para revelar a vontade do Pai, seu
projeto de amor, de vida e de liberdade (Jo 1,1-4).
João retoma os títulos cristológicos de Jesus que já se encontram
nos Sinóticos. No entanto, considera-os insuficientes. Por isso, insiste
em dizer que Jesus de Nazaré é o Filho de Deus, a presença do próprio
Deus entre nós. Jesus assume inclusive o nome de YHWH (‘E sou envia-
me a vocês”—Ex 3,14; Jo 8,24.28.58; 13,19; 6,20; 18,5-6.8). Diz que é um
com o Pai (10,30), que é sua própria encarnação (1,14).
A maior parte do 4o Evangelho é material exclusivo dessas co
munidades. Há poucos textos comuns aos Sinóticos. Veja os principais
deles: o testemunho de João Batista e o batismo de Jesus (1,19-34), a
expulsão dos idólatras do templo (2,13-16), a partilha dos pães (6,1-13),
Jesus caminhando sobre as águas (6,16-21), a unção em Betânia (12,1
8), a entrada triunfal em Jerusalém (12,12-19), o anúncio da traição (13,21
30) e a paixão-ressurreição (18-20).
117
Todo o resto é material próprio onde, mais do que descrever a
prática de Jesus, realça-se o significado de sua vida.
Há diferenças entre João e os Sinóticos que chamam a atenção.
• Diferentemente dos Sinóticos, a expulsão dos ladrões do tem
plo está no início da vida pública (2,13-16), por inspiração de Ml 3,1-5.
• Faltam em João os exorcimos que estão tão bem testemunha
dos nos Sinóticos. No entanto, também as comunidades joaninas en-
lendem a prática dejesus e das igrejas como enfrentamento e supera
ção das forças do demônio, das estruturas injustas da sociedade, movi
das pelo príncipe deste mundo, o pai da mentira. E a luta da luz contra
as trevas (8,12). Não deixe de conferir 8,41.44; 12,31-32; 14,30; 16,11!
Quem trai o projeto de Deus, na verdade, encarna o diabo (6,70-71;
13,2.27). Para desacreditar Jesus, as lideranças judaicas diziam que ele
linha o demônio em si (7,20; 8,48-49.52; 10,20-21), como se vê também
cm Mc 3,22-30.
• Também é interessante percebermos que a maior parte de sua
missão se desenrola em Jerusalém e não na Galiléia, como nos Sinóti
cos. João se estrutura aludindo às grandes festas judaicas.
• Se temos nos Sinóticos em torno de 35 milagres, em João te
mos somente sete sinais. João não usa a palavra milagres, mas sinais. Dos
sete sinais em João, cinco são exclusivos: as bodas de Caná (2,1-12), a
cura do filho de um funcionário do rei (4,46-54), a cura do paralítico na
piscina de Betesda (5,1-18), a cura do cego de nascença (cap. 9) e a
ressurreição de Lázaro (cap. 11). A partilha dos pães (6,1-15) e o andar
dejesus sobre o mar (6,16-21) também estão nos Sinóticos.
• Se temos mais de 40 parábolas nos Sinóticos, em João, nenhu
ma delas aparece. E as duas que normalmente chamamos de parábolas
são, na verdade, alegorias exclusivas do 4" Evangelho: a do Bom Pastor
(10,1-18) e a da videira (15,1-17).
• Se nos Sinóticos há referência a somente uma Páscoa, João cita
três (2,13; 6,4; 11,55), além da festa das Tendas (7,2), da Dedicação
(10,22) e outra não identificada (5,1).
• Em vez de subir, enquanto adulto, uma vez a Jerusalém como
nos Sinóticos, em João, Jesus viaja 4 vezes ao centro religioso dos ju
deus (2,13; 5,1; 7,10.14; 12,12).
118
• Nos Sinóticos, a expressão preferida de Jesus para se referir à
sua missão é o anúncio do Reino de Deus ou Reino dos Céus. Em João, a
expressão preferida é vida eterna ou simplesmente vida.
• Por fim, não poderíamos esquecer que o Evangelho do Discí
pulo Amado omite o título de apóstolo, justamente porque polemiza
com comunidades hierarquizadas, como você já leu no volume anterior.
A palavra apóstolo (enviado) somente aparece em Jo 13,16 no sentido
de mensageiro e não como título, justamente no texto em que se discu
te a forma de exercer a autoridade, isto é, no lava-pés (13,1-17). Já o
verbo enviar aparece mais vezes (9,7; 17,3.18; 20,21). Nas comunidades
joaninas, ninguém está acima de ninguém, a não ser o Espírito Santo.
Por isso, os autores do 4o Evangelho preferem a palavra discípulos para
se referir aos membros das igrejas de iguais (1,37; 2,11; 3,25; 4,1; 6,66;
8,31; 9,28; 13,23.35; etc.).
119
lc repreendidos por Jesus. Além disso, o apóstolo João fa2 Ía parte do
comando das igrejas da Judéia, uma vez que aparece junto com Pedro
naquelas comunidades e é chamado por Paulo de “coluna”, isto é, de
líder (At 3,1-4.11; 4,13; 8,14; G1 2,6.9). E mais. João, como parte das
“colunas” de Jerusalém, tinha dificuldades em admitir que houvesse
outras igrejas cristãs que não estivessem sob seu comando (Mc 9,38-40).
Na mesma linha, pode-se situar sua postura, junto com seu irmão Tiago,
contra uma aldeia samaritana (Lc 9,51-56). Diante do exposto, fica difícil
sustentar a tese de que o apóstolo João seja o autor do 4o Evangelho.
Como nos Sinóticos, também os autores do 4o Evangelho são
pessoas anônimas para nós. Certamente, são lideranças das comunida
des do Discípulo Amado na terceira geração, cujo estilo grego é fortemen
te influenciado pela cultura judaica. A edição final terá sido pelo ano
110. O local onde foi elaborado o 4o Evangelho pode tanto ser a Síria
como a Asia Menor, talvez Éfeso.
120
As igrejas joaninas estão fortemente vinculadas a Jesus. Ele é o
poço e o rio onde está a fonte de água viva (4,10-15; 7,37-39). E ele o
vinho que dá força e coragem na caminhada (2,9-10). Ele é o verdadei
ro pastor que guia seu rebanho na busca de vida em plenitude (10,1-18).
E também a verdadeira videira que fornece a seiva do amor a quem
permanece unido a ela (15,1-17).
Desde cedo, essas comunidades pobres e solidárias eram abertas
a todas as culturas. Seu objetivo era apresentar Jesus como o Messias e
Filho de Deus não só para Israel, mas para o mundo inteiro. O univer
salismo é uma marca forte dessas igrejas. João é o único Evangelho que
diz que o letreiro colocado na cruz estava escrito em hebraico, latim e
grego. Com isso, quer dizer que Jesus de Nazaré é rei universal (Jo 19,19
20). Ele é a luz de todas as pessoas, de todo o mundo (1,4.9; 8,12; 9,5).
Como seguidores do Mestre (pescadores), somos enviados ao mundo
(mar) para evangelizar todos os povos (153 peixes). Esse é o convite
que nos é feito em jo 21,4-14.
Na primeira parte, vimos que as comunidades que se expressam
no Evangelho segundo Mateus propõem a unidade entre as diferentes
culturas em torno de Cristo, através da adesão das pessoas de origem
não-judaica às tradições de Isra
el, à sua Lei. Ao contrário dessa "As ovelhas ouvem a sua voz
forma de ser igreja, as comuni e ele cham a cad a uma de suas
dades do Discípulo Amado, que ovelhas pelo próprio nome e as
também querem a unidade em conduz para fora. Tendo feito
um mesmo rebanho (10,16), con sair todas as que são suas,
vidam os membros cristãos de cam inha à frente delas e estas
origem judaica a deixarem as suas o seguem , porque conhecem
antigas instituições, a saírem do a sua voz." (Jo 1 0 ,3 - 4 )
antigo redil (10,3-4), e integrar-
se nas igrejas domésticas onde só há uma única Lei, isto é, o amor.
Mesmo que as igrejas joaninas tenham migrado para a Síria ou
para a Ásia Menor a partir da guerra judaico-romana (66-73), seu teste
munho sobre Jesus e suas comunidades vem fortemente carregado por
elementos da tradição de Israel. E que seu berço de origem é palesti-
nense. Usam, inclusive, termos aramaicos, como Rabi (1,38), Messias
121
(1,41), Cefas (1,42), Betesda (5,2), Siloé (9,6), Gábata (19,13) e Gólgota
(19,17). No entanto, como o Evangelho é escrito para comunidades
espalhadas no mundo greco-romano, esses termos são traduzidos para
o grego. Confira as citações! O uso freqüente de paralelismos também
mostra as raízes semíticas deste escrito (1,11; 3,18; 6,53-54; 16,16).
Além disso, vários outros elementos nos levam a perceber esse
forte enraizamento na tradição bíblica. Transparece no texto uma pos
tura ainda muito judaica. A tradição israelita é o pano de fundo para
todo o Evangelho. Ainda no Prólogo, já se afirma que a Palavra veio
para o que cra seu (1,11). Insiste-se em mostrar Jesus como o Messias de
Israel (1,29-51; 19,19). A maior parte de sua vida pública, segundo João, se
desenrola em Jerusalém. Jesus mesmo diz à samaritana que a salvação, isto é,
o caminho para Deus, vem dosjudeus (4,22). Diversas vezes cita as Escrituras
(1,23; 2,17; 6,31.45; 7,40-44; 12,13.15.38-40; 13,18; 15,25; 18,9; 19,24.28.36
37). Faz também referência às festasjudaicas, como veremos adiante.
Por volta do ano 90, terá havido uma primeira redação. Com alguns
acréscimos posteriores, seria Jo 1,19 a 14,31 e 18 a 20. Você pode perce
ber como a seqüência natural de 14,31 é 18,1. Confira!
Nesses capítulos, os maiores adversários de Jesus e das comuni
dades são “judeus”, isto é, lideranças do Judaísmo. No tempo de jesus,
eram principalmente os saduceus, ou seja, os grandes sacerdotes e os
anciãos, que controlavam o sistema do templo. No tempo das comuni
dades em torno de 90, eram fariseus e escribas, que lideravam o Judaís
mo a partir das sinagogas e que haviam expulsado os judeus que tam
bém participavam das igrejas cristãs. Não é por acaso que três vezes
este Evangelho faça referência a tentativas de apedrejamento, a pena
capital judaica. Em Jo 8,5, fariseus e escribas estão com suas mãos chei
as de pedras para atirar na mulher adúltera (8,1-11). E m jo 10,31-33 (cf.
11,8), judeus querem apedrejar Jesus. Querem também matar Lázaro
()o 12,10). E perseguem não só a Jesus, mas também as comunidades
(15,20), expulsando das sinagogas (9,22.34-35; 12,42; 16,2).
Alguns anos depois, já mais para o final da década de 90, mem
bros das comunidades joaninas fizeram uma nova edição, incluindo os
caps. 15 a 17, que são, na verdade, uma repetição aprofundada de Jo 13
14. Há, aqui, uma novidade importante. Quase a metade das vezes em
122
que, neste Evangelho, aparece a palavra “mundo”, ela se encontra nos
caps. 15-17. Na maioria dos casos, mundo é uma referência às autorida
des romanas sem, no entanto, deixar de se referir também aos dirigen
tes das sinagogas. Por isso, esse acréscimo reflete a perseguição desen
cadeada por Domiciano.
Quando, por fim, foram escritas as cartas atribuídas a João, seus
autores fizeram também a edição fin al do 4o Evangelho. Pelo ano 110,
acrescentaram a ele o prólogo (1,1-18) e os textos que reconhecem a
autoridade das igrejas petrinas, como 6,67-71 e o epílogo (cap. 21). Como
se pode ver em Jo 21, nesse momento, as comunidades do Discípulo
Amado já não conseguem mais manter a experiência do discipulado de
iguais. São levadas a aceitar uma articulação mais estreita com as igrejas
petrinas, reconhecendo sua autoridade e assumindo seu modelo hierár
quico. Adiante, quando estudarmos as Cartas de João, voltaremos a
essa questão.
O episódio da mulher adúltera (Jo 8,1-11) deve ser acréscimo
ainda mais tardio, uma vez que esse texto não se encontra em vários
manuscritos antigos. Em alguns manuscritos de Lucas, essa passagem
se encontra depois de Lc 21,38.
123
vimento gnóstico e, talvez, com cristãos de herança paulina que inter
pretavam mal a tese da salvação pela fé.
As comunidades joaninas estavam passando por muitas dificul
dades. Por um lado, como você já leu no volume anterior, havia perse
guições vindas de fora da Igreja, isto é, das autoridades romanas e ju
daicas. Além disso, havia também a infiltração do modo de pensar dos
im ós ticos nas comunidades. Por outro lado, a comunhão fraterna dos
seguidores do Discípulo Amado estava ameaçada pela pressão que vi
nha de outras igrejas cristãs, cuja estrutura era hierárquica, conforme os
padrões da sociedade patriarcal.
Diante disso tudo, as igrejas joaninas corriam o risco de se dividir
e de abandonar a experiência iguali
"Permanecei em mim, tária. O 4o Evangelho quer fortale
como eu em vós. cer a adesão, o acreditar em Jesus
Com o o ramo não pode Cristo, para resistir frente a todas
dar fruto, por si mesmo, se essas perseguições e pressões, man
não perm anece na videira, tendo a fidelidade ao seu projeto de
assim também vós, vida, e vida em abundância. Por isso,
se não perm anecerdes insiste tanto em permanecer no amor
em m im ." (Jo 1 5 ,4 )
dejesus (Jo 15,1-17).
Esse fortalecimento da adesão
a |esus se destina a pessoas da terceira geração e que não o viram pessoal
mente, mas nele creram. Por isso, a cena do incrédulo Tomé (20,24-29)
quer mostrar que Cristo não está ausente da comunidade. Mas que ele
continua presente, ressuscitado. Diferentemente do imperador divini-
zado que impõe com armas a paz romana, Jesus doa a verdadeira pa%
(14,27; 20,19.21) e é reconhecido por seu discipulado como Senhor e.
Deus (20,28). Confira!
125
sc haver vida, a primeira obra criada pela Palavra de Deus ( ”e Deus dis
se’), segundo esta narrativa, foi a luz (Gn 1,3-5). Será que foi por acaso
que os autores do 4" Evangelho logo apresentam Jesus como sendo
esta luz de vida para a humanidade (Jo 1,4)?
Sabemos que a palavra-chave da Teologia da Criação é vida.
Deus é o criador da vida. Será por acaso que as comunidades joani
nas compreendem Jesus como aquele que vem trazer vida em abun
dância (Jo 10,10)? A palavra vida aparece 47 vezes neste Evangelho, mais
do que nos Sinóticos juntos. Leia algumas das citações que seguem: 1,4;
3,15.16.36; 4,14.36; 5,24.26.29.39.40; 6,27.40.47.54.68; etc.
Ela vem acompanhada 17 vezes pela expressão eterna (3,15.16.36;
4,14.36; 5,24.39; 6,27.40.47.54.68; etc.). No 4o Evangelho, vida eterna
não é somente a vida após a morte (Jo 12,25). Hoje, usa-se essa expres
são com o sentido de vida após a morte, inclusive nas liturgias e doutrinas
de nossas igrejas. Infelizmente, essa compreensão difundida pela teolo
gia tradicional tem ajudado a fazer uma interpretação espiritualista do
Evangelho joanino, uma leitura desligada da vida.
"Eu vim para que Quando, na verdade, vida eterna quer dizer vida
tenham a vida divina, vida com Deus, vida de acordo com o
e a tenham em projeto de Deus, vida em abundância, vida ple
ab un dân cia." na. E conhecer o Deus único e verdadeiro, bem
(Jo 10,10) como o seu enviado, Jesus Cristo. Não deixe de
ler Jo 17,3! Conhecer, verbo que aparece 56 ve
zes no 4° Evangelho, é muito mais que uma questão mental, intelectual.
É fazer a experiência com Deus, é aderir a Jesus, é aceitar o seu projeto
de vida digna. E essa é nossa vocação já aqui nesta terra. Vida eterna,
portanto, é "participar da natureza divina” já nesta vida, como diriam, mais
tarde, os autores da Segunda Carta de Pedro (2Pd 1,4). Além disso,
podemos ver que, na maioria dos casos, a expressão vida eterna vem
acompanhada pelo verbo ter, conjugado no tempo presente e não no
futuro. A vida etern a deve, portanto, já ser vivida nesta terra. Depois da
morte, tornar-se-á plena.
Além dessa centralidade da vida e de apresentar Jesus como a luz
da vida, do mundo (1,4; 8,12; 9,5), lembramos ainda que o 4o Evange
lho também apresenta Jesus recriando a vida, criando pessoas novas. E,
126
por exemplo, o caso em que, tal como Deus criara a humanidade do
barro, da lama (Gn 2,7), tambémjesus recria o homem cego de nascen
ça, concedendo-lhe vida plena (9,6.11.14-15). Da mesma forma como
Deus colocara as pessoas no jardim das delícias (Gn 2,8), é do jardim
que vem a vida nova em Jesus ressuscitado (Jo 19,41; 20,15). Por últi
mo, Jesus sopra o Espírito Santo sobre a comunidade do Discípulo
Amado, de forma semelhante como Deus havia soprado o sopro da
vida sobre a humanidade que criara (Gn 2,7; Jo 20,22).
seis (p. 128-131), convidamos você a reler, an vos libertar, sereis
realmente livres."
tes de continuar seu estudo neste volume, os
(Jo 8,36)
itens 1 e 3 naquelas páginas.
No 4o Evangelho, a ênfase maior é em relação à Páscoa. Nela,
Jesus vem substituir o templo de Jerusalém e se declara o verdadeiro
templo, isto é, a presença de Deus entre nós, o Emanuel, Deus conosco
(2,13-22). E a forma como João descreve o mesmo significado do ras
gar do véu nos Sinóticos (Mc 15,38). Em outra festa da Páscoa (6,4), a
comunidade joanina descreve Jesus se apresentando como o pão da
vida (6,34-35.48.51), ressignificando os pães ázimos (Ex 13,3-10). Du
rante uma terceira Páscoa (11,55), Jesus declara a Marta: ‘Eu sou a ressur
reição e a vida. "(11,25). Por fim, os capítulos 13 a 20 descrevem o grande
sinal dejesus, a sua hora, a sua glória, a sua Páscoa.
Além de aplicar a si mesmo o nome de YHWH, como vimos
127
acima, Jesus se apresenta como água viva (4,10; 7,38), como o enviado
do Pai (3,13-17; 6,57), como o pão da vida (6,41.48.51), como a luz do
mundo e a luz da vida (1,4; 8,12; 9,5), como porta do redil (10,7), como
o bom pastor (10,11), um com o Pai (10,30), como filho de Deus (10,36),
como a ressurreição e a vida (11,25), como mestre e senhor que serve
(13,13), como o caminho, a verdade e a vida (14,6), como a verdadeira
videira (15,1) e como rei (18,37).
Por fim, como Moisés foi o grande líder no processo de liberta
ção, os cristãos joaninos também apresentam Jesus como o novo Moi
sés que vem trazer a nova liberdade (1,17.45; 5,46; 6,32; 7,19).
Que lugar a pessoa de Jesus ocupa em nossas vidas? Como per
manecemos unidos a ele, tal como os ramos à videira (15,1-17)? Até
que ponto podemos dizer com Paulo que j“á não sou eu que vivo mas é
Cristo que vive em mim” (G12,20)? Como podemos dar-lhe mais lugar em
nossos corações, para que possa transformar-nos sempre mais e nos
guiar como ovelhas suas para a solidariedade, a partilha e o amor? Es
cutamos sua voz? De que pão nos alimentamos? Com que luz ilumina
mos nossa caminhada?
128
partir de agora, a base das novas relações entre Deus e seu povo, bem
como nas comunidades é o amor (vinho), que não precisa mais do ritu-
alismo imposto por leis da tradição.
Sobre a Lei, gostaríamos de dizer ainda que as comunidades joa
ninas tiveram a mesma postura como em relação às festas judaicas. Uma
vez expulsas das sinagogas, diziam que a Lei também não lhes pertence
mais. Era a Lei deles (Jo 8,17; 10,34; 15,25). E Jesus vai ocupando o seu
lugar. No Judaísmo, a Lei era o caminho (SI 119,1.3), a verdade (SI
119,30.138.160), a vida (SI 119,37.40.50; Ne 9,29) e a luz (SI 119,105;
19,9). Para as igrejas joaninas, é Jesus de Nazaré quem é “o caminho, a
verdade e a vida. "(Jo 14,6). Ele é a “lutada vida”, a “lu^do mundo” {8,12; 9,5).
Na comunidade do Discípulo Amado, o Espírito Santo é a pre
sença continuada de Jesus fisicamente ausente (IJo 2,1; Jo 14,16.26;
16,7; 20,22-23). Ele é a força da comunidade (14,12), é o paráclito, isto
é, o advogado que defende (14,16), é o Espírito da verdade (14,17; 15,26;
16,13), que ensina e recorda (14,26), sustenta os fiéis na perseguição
(15,20.25-27), testemunha Jesus (15,26), desmascara e censura o mun
do (16,8), conduz à verdade plena (16,13), anuncia coisas futuras (16,13
15) e transforma tristeza em alegria (16,16-24).
A m oré a palavra-chave da Teologia da Aliança. E impressionante
como o 4oEvangelho insiste em falar do amor de Deus, de Jesus (3,16.35;
5,20.42; 10,17; 11,3.36; 13,1.23.34; 14,21; 15,9.12; 16,27; 17,23-24.26),
no amor ajesus (8,42; 14,15.21; 16,27; 21,15-16) e na prática do amor
fraterno (13,34-35; 15,12.17). Chega a dizer que
“ninguém tem maior amor do que aquele que dá sua "Dou-vos um novo
vida p or seus amigos” (15,13). O verbo amar apa mandam ento: que
rece 36 vezes no 4o Evangelho.. p. diferente vos am eis uns aos
outros. Com o eu
mente dos Sinóticos, que ainda separam o mai
vos am ei, am ai-
or dos mandamentos em amar a Deus em pri
vos também uns
meiro lugar e, em segundo lugar, ao próximo
aos outros."
como a si mesmo (Mc 12,29-31), a comunida (Jo 13,34)
de do Discípulo Amado formula um manda
mento único (Jo 13,34-35). Mais tarde, outras lideranças dessas igrejas
escreveriam que “se alguém disser que ama a Deus, mas odeia seu irmão, é um
mentiroso, pois quem não ama seu irmão que vê, não poderá amar a Deus que
129
não vê” (\)o 4,20). João concentra toda a ética no mandamento do amor.
Além de reler as Teologias da Criação, do Êxodo e da Aliança, os
cristãos joaninos ainda rcssigniiicam a festa da Dedicação, como você
pode reler no volume seis (p. 131). Fazem o mesmo com as alegorias do
Bom Pastor (10,1-18) e da videira (15,1-17). Não são mais os reis e
sumos sacerdotes os pastores do povo, “pois ele está como ovelhas sem
pastor” (Mc 6,34). Porém, Jesus é o Pastor que conhece as suas ove
lhas, chama-as pelo nome e elas o escutam. Ele dá a sua vida por elas.
Ele também é a videira, e seus discípulos e suas discípulas são os
ramos. Diferentemente de Israel cuja vinha não produziu frutos de
justiça (Is 5,1-7), as comunidades de ontem e de hoje produzirão mui
tos frutos de amor e de jusdça se permanecermos unidos à videira para
dela receber a seiva do amor de Deus. O verbo permanecer, que se encon
tra 40 vezes em João, expressa a unidade íntima com o amor de Deus.
O 4o Evangelho e os gnósticos
João contesta a compreensão dos gnósticos a respeito do mundo
e de (csus. Eles não entendiam o cosmos como criação divina, mas
dominado pelas forças do mal. Por isso, João insiste em dizer que tudo
foi criado por Deus (1,1-3).
Os gnósticos cristãos negavam a condição humana do Messias,
sua encarnação, uma vez que desprezavam o mundo. Por isso, João
insiste em afirmar sua humanidade (1,14; 6,52.54-57; cf. ljo 1,1-3; 2,22;
4,2-3; 2Jo 7). Não aceitavam vincular Cristo ao que é carnal. Ele não
teria sido realmente homem, mas apenas teria surgido em um disfarce
humano. Ele não teria morrido na cruz, mas apenas aparentado o seu
sofrimento e a sua dor. Separavam, portanto, o “homemjesus” do “Fi
lho de Deus”. Em resposta a essa tendência gnóstica, o 4° Evangelho
insiste em dizer que Jesus é humano, que morreu como qualquer pes
soa, mas também é o Filho de Deus, é um com o Pai, como já vimos.
Ele é o intermediário, o caminho entre o mundo divino e a terra. Ele
mesmo é a Palavra salvadora descida da esfera divina.
No entanto, convém ressaltar que o 4o Evangelho, nesse diálogo
que estabelece com os gnósticos, não só rejeita certas categorias. Aceita
outras, como sua visão dualista que está fortemente presente em João.
Encontramos nele muitas oposições como, por exemplo, luz e trevas
(1,4-5), alto e baixo (8,23), vida e morte (5,24).
E possível que eles também tiveram influência na compreensão do
Cristo pré-existente. Essa maneira como as comunidades joaninas enten
dem a divindade dejesus de Nazaré é conhecida como “alta cristologia”.
A principal característica dessa cristologia é a pré-existência dc
Cristo. Porém, diferentemente da compreensão dos gnósticos, ele já
participou ativamente da criação no princípio (Jo 1,1-3; IJo 1,1-2; 2,13).
Este entendimento a respeito da pré-existência do Messias tam
bém está presente em Cl 1,15-20 e Hb 1,1-3. Provavelmente, já esteja
pressuposta em F1 2,6-11.
O 4HEvangelho é que mais insiste em afirmar a filiação divina de
Jesus, destacando a total unidade entre ele e o Pai. Confira alguns dos
textos que seguem: Jo 1,18.34.49; 5,25; 8,19; 10,30.36.38; 11,4.27; 14,9
11; 17,11.21-23; 19,7; 20,31!
Além disso, sua divindade é tal que ele já sabe tudo de antemão.
Veja, por exemplo, Jo 1,48; 2,24-25; 6,5-6.64.70-71; 10,17-18; 11,14.41
42; 12,27!
Estrutura do 4o Evangelho
Adotamos a seguinte divisão para o 4o Evangelho:
• 1,1-18: Prólogo.
• 1,19-11,54: “Livro dos Sinais”. Os sinais, que manifestam o amor de
Deus, quase sempre são seguidos por discursos dejesus que querem
levar à adesão ao projeto do Pai. Nesse Livro, a hora de Jesus, a sua
glorificação na cruz, ainda não chegou (2,4; 7,6.8.30; 8,20).
—1,19-6,71: Jesus anuncia a vida;
—7,1-11,54: Jesus defende a vida e crescem as ameaças dc morte.
• 11,55-12,50: Transição entre o Livro dos Sinais e o Livro da
Exaltação. Aproxima-se a hora dejesus (11,55; 12,23).
• 13-20: “Livro da Exaltação” ou Glorificação. E o grande sinal ao
qual conduzem os sete sinais realizados por Jesus. A partir de
agora, Jesus revela o amor do Pai ao seu discipulado, entregando
sua vida livremente (10,15.17-18). E a chegada de sua hora (13,1;
16,32; 17,1). Podemos dividir o Livro da Exaltação em três partes:
131
—13-17: O Livro da Comunidade —é o testamento de Jesus;
—18-19: A paixão —hora da glorificação na cruz;
—20: A ressurreição.
• 21: Epílogo.
132
em nossa mente. Quem escreveu as Cartas joaninas? Onde e quando
foram elaboradas? Qual seu conteúdo central? Como se organizam?
Qual a realidade que transparece nos textos?
133
ções. Por isso e por seu conteúdo, a Carta reflete um estágio posterior.
Terá sido escrita pelo ano 110.
O quê? A Primeira Carta de João não tem forma de epístola.
Faltam emissor e destinatários. E um escrito que, como o 4" Evangelho,
exorta as comunidades cristãs a permanecerem unidas no amor de Cristo.
Parece um comentário ao 4° Evangelho, uma espécie de Carta pastoral
a várias igrejas em forma de instrução, de homilia.
Há profundas divisões nas igrejas destinatárias dessa Carta (2,18
19.26; 3,7). Os grupos dissidentes pretendem ter um conhecimento e
um amor especiais de Deus (2,4; 4,8.20), a quem pretendiam ver (3,6;
3Jo 11). Além disso, parece que se consideram sem pecado, permane
cendo em comunhão com Cristo (1,8.10; 2,6), embora não praticassem
o mandamento do amor fraterno (2,4.9). Influenciados pelo movimen
to gnóstico, negavam que Jesus de Nazaré fosse a encarnação de Cristo,
que fosse filho de Deus (1,1-3; 2,22-23; 4,2-3.15; 5,5.10-11; cf. 2Jo 7;Jo
1,14). Para os gnósticos cristãos, a Palavra divina teria descido sobre o
homem Jesus no momento do batismo. E, antes de sua paixão, ela o
teria abandonado, voltando para a esfera divina, sem passar pelo sofri
mento humano.
Diante disso, os autores dessa Carta afirmam que não se pode
separar Cristo do homem Jesus. Para eles Jesus Cristo passou não so
mente pela água, isto é, pelo batismo, mas também pelo sangue, isto é,
pela morte na cruz (5,6; cf. 1,7; 2,2; 4,10). Jesus de Nazaré é plenamente
divino (2,22) e Cristo é plenamente humano (4,2).
Diante dessa crise nas comunidades, os autores querem fortale
cer a fé de seus membros, insistindo na comunhão com Deus, perma
necendo nele e na comunhão com os irmãos. A comunhão com Deus
somente é possível no amor ao próximo (1,3.6-7; 2,9-10; 3,10-11.14.23;
4,20). A verdadeira vida está na comunhão com Cristo (5,20), que é luz
(1,5-2,28), justiça (2,29-4,6) e amor (4,7-5,12). A Carta quer ajudar seus
destinatários a distinguirem os verdadeiros dos falsos cristãos (2,4-5.29;
3,10). Quer confirmar a consciência de que são eles, e não os dissidentes,
os verdadeiros fiéis ao Evangelho.
Pode-se dizer, ainda, que a preocupação central da Carta é esta
134
belecer o critério para distinguir quem é ou não é de Cristo. Não basta
professar a doutrina e pertencer à comunidade, mas é a prática do amor
e da justiça que indica quem “nasceu de Deus”.
Como? Do início ao fim, a Carta gira em torno dos mesmos
temas. No entanto, pode-se estruturá-la nas seguinte partes:
• 1,1-4: Prólogo: anuncia o tema central da Carta.
• 1,5-2,28: Três critérios para estar em comunhão com Deus que
é luz:
—libertar-se do pecado, andando na luz (1,5-2,2);
—viver o mandamento do amor (2,3-11);
—preservar-se do mundo e dos anticristos (2,12-28).
• 2,29-4,6: Três critérios para estar em comunhão com Deus que
é justo, vivendo na justiça como filhos de Deus:
—libertar-se do pecado, praticando a justiça (2,29-3,10);
—viver o mandamento do amor a exemplo de Jesus (3,11-24);
—preservar-se do mundo e dos anticristos, discernindo os es
píritos (4,1-6).
• 4,7-5,12: Dois critérios para estar em comunhão com Deus que
é amor:
—O amor vem de Deus e se enraíza na fé (4,7-21);
—A fé emjesus como Filho de Deus é a raiz do amor (5,1-12).
• 5,13: Conclusão da Carta.
• 5,14-21: Epílogo.
135
Onde? Possivelmente em Éfeso.
Quando? Pelo ano 110.
O quê? O problema parece ser o mesmo das comunidades des
tinatárias de IJo. Há sedutores na comunidade que não aceitam a encar
nação de Cristo em Jesus de Nazaré (v. 7). Dessa forma, não permane
cem no ensinamento de Cristo (v. 9). E possível que seja o mesmo
grupo de Diótrefes de 3Jo 9-11.
A intenção do autor é prevenir a comunidade contra essa doutri
na (w. 8.10-11). Retoma temas desenvolvidos na primeira Carta, exor
tando seus destinatários a andarem na verdade (w. 1.4) e a viverem o
mandamento do amor (w. 4-6).
Como?
• 1-3: Endereço e saudação.
• 4-11: Corpo da Carta:
—4-6: Viver na verdade e no amor;
—7: Confessar que Jesus é o Cristo encarnado;
—8-11: Permanecer fiel à doutrina.
• 12-13: Conclusão e votos finais.
136
primeiro lugar na comunidade, não aceitando a autoridade do Ancião,
nem de seus enviados, expulsando daquela igreja quem recebe missio
nários que vêm de fora. E ainda fala mal do Presbítero (w. 9-10). Pode
mos supor que, nessa comunidade, Diótrefes era líder importante que
aderiu aos dissidentes, tão criticados nas duas primeiras Cartas. Como
insistisse em desencaminhar toda aquela igreja, o Ancião se dirige a
Gaio, uma vez que ele continua reconhecendo sua autoridade, enquan
to Diótrefes o rejeita.
Por fim, elogia Demétrio, recomendando-o a Gaio. E possível
que ele seja o portador da Carta.
Como?
• 1-4: Endereço.
• 5-12: Corpo da Carta:
—5-8: Elogia a Gaio;
—9-10: Crítica a Diótrefes;
—11-12: Exortação e elogio a Demétrio.
• 13-15: Conclusão e votos finais.
137
as comunidades do Discípulo Amado se acham num processo de rein-
tcrpretação e reformulação do modelo de autoridade. Antes, tudo indi
ca que eram comunidades carismáticas, mais de tipo “congregacional”,
baseadas nos dons do Espírito (1 jo 2,20.27) e em relações de igualdade
fraterna, inclusive com forte presença da liderança feminina. Esta era
simbolizada em Maria Madalena, em Marta e Maria de Betânia. Agora,
110 entanto, as comunidades joaninas são levadas a adotar o modelo
mais patriarcal, forte nas igrejas petrinas.
No tempo cm que essas igrejas do Discípulo Amado ainda man-
linham sua autonomia, Jesus era seu Bom Pastor. E o Espírito Santo,
seu Paráclito, isto é, defensor. No entanto, a partir do momento cm que
sua sobrevivência é integrar-se em comunidades com hierarquia já esta
belecida, rendem-se a aceitar a autoridade de pastores humanos. Con-
ludo, não deixam de cutucar os que detém o poder. Sua autoridade
deve estar baseada no amor de jesus (Jo 21,15-17).
Os escritos, que as comunidades do Discípulo Amado nos lega
ram, são testemunhas de que, ainda no início do segundo século, havia
comunidades cristãs que teimavam cm ser fiéis ao projeto de jesus de
Nazaré, vivendo a partilha fraterna em comunidades, onde não havia
discriminação nas relações de gênero, nem dc etnia ou dc elasse. O
poder cra um serviço participativo. Sua base eram o amor e a força do
Iispírito.
Na história da Igreja, as experiências das comunidades de heran
ça petrina e paulina foram sobrevalorizadas. Foram colocadas acima da
experiência do Discípulo Amado. No entanto, seu exemplo continua,
ainda hoje, a gritar bem alto que não podemos fechar nossos ouvidos à
voz do Espírito que passa. Nenhuma autoridade pode substituir o pa
pel único dejesus dc Nazaré e do seu Paráclito. Se vivemos em nossas
comunidades do jeito como viveram as comunidades fundadas por Maria
Madalena, certamente seremos discípulas e discípulos dejesus, na cons-
Iruçào de um mundo em que estejam em primeiro lugar a dignidade da
vida, o amor e a liberdade.
138
H erança das com unidades paulinas
141
comunidades (13,20-22). As igrejas destinatárias necessitam de uma
palavra de encorajamento, de alento diante do desânimo que toma con
ta delas (12,3.12). Vivem atemorizadas, perseguidas. Por isso, é preciso
animá-las em sua caminhada como testemunhas dejesus de Nazaré, o
verdadeiro sumo sacerdote, isto é, mediador e caminho entre Deus e
suas criaturas.
Além da perseguição, há outras razões que levam essas igrejas a
perder a fé em Jesus como caminho de vida, de salvação. Por um lado,
há quem considere a mediação dos anjos superior à de Cristo. Por isso,
os autores de Hebreus insistem na superioridade dejesus sobre os an
jos (1,5-2,18). Mais tarde, no entanto, como veremos adiante, os auto
res da Segunda Carta de Pedro fazem fortes críticas aos que não dão
muita importância aos anjos e blasfemam contra eles (2Pd 2,10b-12),
da mesma forma como já haviam feito os autores da Carta de Judas (cf.
Jd 8-9).
Por outro lado, por causa da perseguição ao Cristianismo, que
não era uma religião lícita no Império Romano, membros das igrejas
eram tentados a voltar a suas antigas crenças, diante da demora da vin
da de Jesus (9,28; 10,25.37). Lá não sofriam perseguições. Inclusive cris
tãos helenistas voltavam ao Judaísmo, religião aceita pelo império, sub
metendo-se novamente às observâncias da Lei, a fim de não serem per
seguidos. Hb 13,13 convida essas pessoas a saírem do acampamento,
do recinto sagrado, isto é, das sinagogas, mesmo que tenham que sofrer
as mesmas humilhações dejesus, como conseqüência de sua participa
ção nas igrejas cristãs.
A maior parte de Hebreus pretende ser uma resposta a essa ten
tação de voltar às antigas religiões, inclusive o Judaísmo. Daí por que,
de um lado, insiste tanto em dizer que a mediação dejesus é superior à
de Moisés, a quem está intimamente vinculada a Lei. E superior tam
bém à mediação de Josué que liderou o processo de libertação da terra
na época da formação do povo de Israel (3,1-4,13).
Por outro lado, e esse é o assunto central do texto, Hebreus afir
ma que o sumo sacerdócio de Jesus é superior ao dos sacerdotes da
tribo de Levi (4,14-10,39). Ao defender essa tese, os autores de He
breus querem fortalecer as comunidades cristãs em sua adesão a Jesus,
de modo que permaneçam firmes no amor, na fé e na esperança, para
que não voltem atrás, aderindo a uma mediação fundada em laços car
nais (da genealogia levítica) e com base na observância da Lei.
E por isso que insiste na superioridade do sacerdócio de Jesus
segundo a ordem de Melquisedec. Não deixe de ler Gn 14,17-20; SI
110,4; Hb 5,6.10; 6,20; 7,1-28!
Ao afirmar que o sacerdócio de Jesus é segundo a ordem de
Melquisedec, os autores de Hebreus querem dizer que Jesus é superior
ao pai Abraão, uma vez que este pagou tributos a Melquisedec e foi
abençoado por ele (Hb 7,1-3).
Como os levitas são descendentes deAbraão, osacerdócio de
Jesus segundo a ordem de Melquisedec também é superior aosacerdó
cio da tribo de Levi que se apóia na Lei (Hb 7,4-14).
Além disso, seu sacerdócio é eterno (7,3), imutável (7,20-25), efi
caz e completo (7,26-28).
Voltar até Melquisedec é também "M elquisedec significa,
reportar-se à experiência de Israel quan em primeiro lugar,
do ainda não era um estado monárquico. 'rei da justiça' e, depois,
E situar a mediação de Jesus com vistas 'rei de Shalém ', o que
à reconstrução de uma sociedade justa, quer dizer 'rei da p az'."
como na época das Tribos, quando nin (cf. Hb 7,1-2)
guém podia ser um rei mediador do po
der de Deus. Só ele era autoridade (Jz 8,23). A palavra Melquisedec
significa “rei da justiça” (7,2a). O reino, do qualjesus é o sumo sacerdo
te, tem como fundamento a justiça, a vontade de Deus (cf. Mt 6,33) e
não a Lei, apoio do sacerdócio levítico (7,11), que legitima relações
hierárquicas e de exclusão com base na lei de impureza. Convém lem
brar aqui que, depois do Exílio, época do segundo templo, quando não
havia mais reis em Israel, também os sumos sacerdotes assumiram a fun
ção real. Por isso, substituindo a mediação deles entre a divindade e o
povo, Jesus é apresentado, pelos autores de Hebreus, como o único sumo
sacerdote e rei.
Melquisedec é rei de Shalém, o que quer dizer, “rei da paz” (7,2b).
A elite sacerdotal legitimava a “paz romana”, conseqüência da violência
do império e geradora de submissão, pobreza e morte. Diferentemente,
143
Jesus propunha outra paz (Jo 14,27; cf. Hb 11,31; 12,14; 13,20), baseada
na justiça e geradora de bem-estar, de plenitude, de comunhão de vida,
de misericórdia e de perdão em permanente conversão.
Hebreus apresenta Jesus como o único sumo sacerdote e único
rei da justiça e da paz. Ao assim negar qualquer mediador além dejesus,
seja rei ou sacerdote, os autores desse texto sugerem que o poder polí
tico e religioso não pode estar concentrado nas mãos de uma única
pessoa. A centralização e a hierarquização de qualquer autoridade facil
mente levam a um poder despótico e opressor. Hebreus, portanto, pro
põe um exercício coletivo da autoridade. Segundo lP d 2,5.9 e Ap 1,6;
5,10; 20,6, esse poder mediador participativo chama-se “sacerdócio santo
e real” ou “reino de sacerdotes”. E o poder mediador da comunidade
(cf. Mt 18,15-18). E o sacerdócio de todas as pessoas batizadas. Dessa
forma, atualizam a Aliança de YHWH com os hebreus libertos da opres
são do faraó (Ex 19,4), passando a ser, como eles, “um reino de sacerdotes
e uma nação santa ” (Ex 19,5-6).
Esse novo sacerdócio é superior ao antigo templo feito de pe
dras, junto com todos os sacrifícios que ali se ofereciam sobre o altar.
Jesus é sacerdote de um novo santuário. Como mediador de uma Nova
Aliança, ele está presente na nova tenda, a comunidade reunida que faz
o bem e promove a partilha. Assim, a comunidade presta um culto ao
Deus vivo. Tudo isso você pode conferir em Hb 8 a 10.
Por fim, depois de apresentar os modelos de fé da tradição de
Israel (cap. 11), os autores de Hebreus convidam à firmeza e à perseve
rança na adesão a Jesus, a seu projeto de um outro mundo possível
(12,1-13,16).
Como? Entre várias possibilidades, pensamos ser a seguinte uma
divisão adequada:
• 1,1-4: Prólogo.
• 1,5-2,18: A mediação dejesus é superior à dos anjos.
• 3,1-4,13: A mediação dejesus, como sumo sacerdote fiel, é su
perior à de Moisés e de Josué.
• 4,14-10,39: A mediação dejesus, como sumo sacerdote segun
do a ordem de Melquisedec, é superior à dos sumos sacerdotes
da tribo de Levi.
144
• 11,1-13,16: A fé exemplar dos antigos (cap. 11) estimula a per
severança no presente (12,1-13,16).
• 13,17-25: Conclusão: recados finais.
Contexto:
As comunidades destinatárias sofriam perseguições. Diante das
estruturas de opressão deste mundo, elas viviam novas relações, provo
cando a reação repressiva dos sistemas que se viam ameaçados pelo
projeto alternativo.
Leia Hb 10,32-39 e veja como o texto se refere a zombarias, injú
rias, humilhações, tribulações, prisões, confisco dos bens. Hb 13,3 con
vida à solidariedade para com prisioneiros torturados. E 13,23 lembra
que Timóteo também havia estado preso. São todas situações sofridas
por quem aderia ao projeto dejesus. Os perseguidores defendiam uma
sociedade que se via ameaçada pela novidade vivida com a força do
Espírito.
Diante do desânimo provocado pela perseguição, Hebreus lem
bra a resistência nos primórdios das igrejas, bem como sua solidariedade
na perseguição (10,32-34), chamando para a perseverança (10,35-38;
12,3-4).
Além das perseguições que vinham das estruturas sociais, ainda
estava muito forte nas comunidades a mentalidade judaica quanto às
leis do puro e do impuro. Hb 13,9 se refere à observância das leis de
pureza alimentar como doutrina estranha. E provável que esse texto
critique judeu-cristãos helenizados que, diante da perseguição romana
ao Cristianismo, voltavam novamente ao judaísmo.
Em 10,25.39 e 6,6, os autores de Hebreus se referem a pessoas
que, não suportando a perseguição, desistiam da caminhada.
2. Cartas Pastorais
O grupo de epístolas que conhecemos como “Pastorais” são as
duas Cartas a Timóteo e a Carta a Tito. São assim chamadas por serem
dirigidas a “pastores” ou missionários importantes da equipe de Paulo.
No entanto, convém que tenhamos claro que todas as cartas são “pas-
145
Iorais” no sentido de se referirem à prática da Boa-Nova de Jesus nas
comunidades. Igualmente, precisamos perceber que essas Cartas, na
verdade, não têm destinatários pessoais, mas são dirigidas a igrejas, uma
vi z que são um discurso exortativo para diferentes categorias, como
viúvas, escravos, diáconos, epíscopos e presbíteros.
Antes de nos ocuparmos de cada uma dessas Cartas, veremos algumas
questões fundamentais para a compreensão de sua eclesiologia.
147
maridos, a fim de evitar que as comunidades fossem perseguidas pela
sociedade machista que via nas relações de parceria uma denúncia do
sistema patriarcal (Tt 2,5).
Igualmente, pedem que as comunidades se submetam aos magis
trados (Tt 3,1) e orem pelos que exercem o poder político (lTm 2,1-2a),
a fim de não serem molestadas pelas autoridades (v. 2b). Portanto, os
autores das Pastorais querem, diante da repressão imperial, garantir a
sobrevivência das igrejas domésticas, que viviam na clandestinidade. Não
podemos negar, é verdade, que os autores dessas Cartas buscam essa
saída a partir de sua visão mais conservadora e patriarcal. Por isso, nós
não podemos ler essas Cartas fora de contexto e aplicá-las a outro con
texto em que vivemos sob condições muito diferentes daquela época.
2. O motivo central, no entanto, é a defesa da união interna
te das ameaças das doutrinas divergentes defendidas por grupos dissi
dentes nas comunidades, provocando divisões. Leia lTm 1,3-11; 4,1-3;
6,3-10; 2Tm 3,6.13; 4,3-4 e Tt 1,10-16 e perceba como as Cartas, por
um lado, alertam as lideranças contra os mestres judaizantes, isto é, os
da circuncisão (Tt 1,10), da abstinência de certos alimentos (lTm 4,3;
Tt l,14s), das genealogias e das fábulas (lTm 1,4; 2Tm 4,4;Tt 1,14), que
buscam seu próprio enriquecimento (lTm 6,3-10; Tt 1,11).
Por outro lado, alertam contra os gnósticos que proibiam o casa
mento (lTm 4,1-3), tinham dificuldade de aceitar a crença na ressurrei
ção (2Tm 2,16-18) e anunciavam um falso conhecimento (lTm 6,20;
2Tm 3,6-7). Acima, você já leu a respeito do movimento gnóstico.
Daí a necessidade de instituir, naquele momento, autoridades para
garantir uma doutrina correta e bem constituída, a fim de impedir a
desintegração das igrejas. Nesse sentido, as Pastorais podem ser inter
pretadas como a primeira constituição da Igreja, instituindo uma or
dem eclesiástica ideal.
Nessas Cartas, no entanto, não há mais a preocupação missioná
ria de expansão do Evangelho, tão característica em Paulo e em sua
equipe décadas antes. Também existe uma profunda desconfiança com
o que é novo. Nas Pastorais, o novo dentro das igrejas é definido como
“falso” pelo fato de ser diferente (cf. lTm 1,3-7).
Hierarquização das relações de poder
No volume sete (p. 82-86, 118-124 e 134-149), já v im o s que, na
primeira geração, as comunidades paulinas experimentaram novas rela
ções nas igrejas domésticas. Ali, reuniam-se para a partilha em torno da
mesa e para celebrar a presença de Jesus em seu meio.
Do ponto de vista da organização, o destaque foi o trabalho em
equipe, tanto nas viagens missionárias como na coordenação das pe
quenas comunidades.
Do ponto de vista das relações de gênero, vimos que Paulo de
fendia a vivência da reciprocidade no relacionamento. Defendia ainda a
superação da discriminação entre culturas diferentes, bem como das
relações de escravidão.
No entanto, a segunda geração das igrejas helenistas, como vimos
acima (p. 47-56), já caminhou em direção a estruturas hierarquizadas.
Foi adotando, aos poucos, os códigos familiares patriarcais vigentes na
época. Ao mesmo tempo em que chamava mulheres, servos e crianças
à submissão, recomendava aos maridos, senhores e pais que não fos
sem cruéis no exercício do seu poder.
E a terceira geração das comunidades de herança paulina, assunto
que estamos abordando neste capítulo, assimilou ainda mais a moral do
patriarcado. Como veremos nos próximos itens, confirmou as relações
de submissão das comunidades ao poder político, das mulheres aos
maridos e aos dirigentes das igrejas, dos filhos aos pais e dos servos a
seus senhores.
149
Âs comunidades cristãs de Roma, Paulo pede que evitem provo
cações contra as autoridades imperiais. E uma atitude prudente diante
de um poder despótico. No entanto, deixa bem claro que o imperador
não é divino e que o poder do império não vem de Deus, uma vez que
não promove o bem, nem castiga os que fazem o mal (Rm 13,1-7; cf.
volume sete, p. 141-145).
Seguindo a trilha de Paulo, as comunidades helenistas da segunda
geração assumem, diante da perseguição de Domiciano, a mesma pru
dência que seu fundador solicitava às comunidades de Roma diante de
Nero. E, como ele, afirmam que o império é uma instituição humana e
não divina. Ao mesmo tempo, dizem que o dever da autoridade é pro
mover o bem do povo e punir seus malfeitores (lPd 2,13-17).
Acima, ao estudarmos o Livro do Apocalipse, vimos a posição
muito crítica às “Bestas” do império. Seu poder é de opressão e não de
promoção do bem e da vida. Por isso, ele não vem de Deus, mas do
demônio, simbolizado pelo Dragão (Ap 13).
As Pastorais nos revelam que, na terceira geração, já havia comu
nidades que não desmascaravam mais o poder divinizado do impera
dor. Nem afirmavam que sua missão é promover o bem. Simples
mente convidavam as igrejas a se submeterem e a obedecerem às au
toridades (Tt 3,1).
Ao pedir que os cristãos orem “pelos reis e todos os que detêm a auto
ridade” (lTm 2,l-2a), os autores das Pastorais também nos informam
que a intenção dessas orações é para que as comunidades "levem uma
vida calma e serena” (v. 2b). Isso confirma que o império, de fato, perse
guia as igrejas cristãs, como vimos acima. Nesse sentido, o pedido de
submissão certamente é uma atitude prudente. Contudo, a terceira gera
ção já não parece mais tão crítica aos que oprimem e tiranizam os povos.
151
reterem-se aos autores, chamando-lhes de presbítero. Tanto em lTm
5,2 como em Tt 2,3, aparecem presbíteras (anciãs). Mas em nenhum
dos casos parece referir-se a al
"Todo Escritura é inspirada gum cargo que essas mulheres
por Deus e útil p ara instruir, tenham ocupado. Antes, refere-
para refutar, para corrigir se a mulheres idosas ou senho
e para ed ucar na justiça, ras e aparecem ao lado de ho
a fim de que as pessoas de Deus mens idosos (lTm 5,1; Tt 2,2).
sejam perfeitas, qualificadas Ao comparar lTm 3,1-7
para toda boa ob ra." com Tt 1,5-9, você perceberá que
(2Tm 3,16-17) as palavras epíscopos, cuja ori
gem está na administração gre
ga, e presbíteros/anciãos, como eram chamadas as lideranças nas sina
gogas judaicas, devem ser uma referência ao mesmo grupo de lideran
ças, tal como em At 20,17.28, conforme vimos acima. Sua missão não é
estar acima das Escrituras, a fim de algemá-las (cf. 2Tm 2,9), mas é estar
a seu serviço (2Tm 3,14-17).
No que diz respeito aos diáconos, leia lTm 3,8-13!
Como você pôde perceber, também nesse caso, a preocupação
maior dos autores é listar as qualidades do agente de pastoral. Ao falar
tias qualidades das mulheres (v. 11), mais do que se referir às esposas
dos diáconos, o texto parece referir-se a mulheres diáconas. Como o
texto não especifica as tarefas dos diáconos e das diáconas, e como
lTm 2,11-12 proíbe que as mulheres ensinem nas comunidades, man
tendo-se caladas, é provável que a diaconia desse ministério tenha
sido reduzido ao serviço às mesas, à partilha do pão aos mais pobres,
tal como dá a entender At 6,1-6. No entanto, já vimos no volume sete
(p. 68) que os diáconos helenistas também evangelizavam (At 6,10; 8,4
5 .12.35; 11,19-21), ajudavam as pessoas doentes a recuperarem sua saú
de (At 6,8; 8,6-7.13), batizavam (At 8,12.38) e organizavam comunida
des (At 11,19ss). Isso, pelo menos, nas comunidades helenistas da pri
meira geração cristã.
Por fim, parece que havia também casa de acolhida para viúvas
(lTm 5,3-16). O texto não informa quem tinha o cargo de direção des
sas associações de proteção às viúvas idosas. No entanto, é bonito ver
como as comunidades se importavam com quem era um dos setores
mais fracos da sociedade da época. As recomendações insistem em que
nenhuma família abandone as viúvas de sua casa, de modo que somen
te aquelas que não tinham nenhuma proteção pudessem ser acolhidas
nas comunidades.
O papel das autoridades nas Pastorais é o mesmo que, nas comu
nidades joaninas, é atribuído ao Espírito Santo. Nesse sentido, as lide
ranças são convidadas a se deixarem guiar pela força do Espírito que
nelas habita (2Tm 1,14; Tt 3,5). Vejamos algumas dessas tarefas!
• Defender (Paráclito quer dizer advogado, defensor) as comuni
dades diante de ameaças (compare Jo 14,16-17 com ITm 3,5 e Tt 1,9).
• Ensinar e recordar (compare Jo 14,26 com ITm 3,2; 4,11.13;
5,17; 6,2b; 2Tm 2,2.14 e 3,10).
• Testemunhar Jesus (compare Jo 15,26 com 2Tm 1,8).
• Censurar e desmascarar o mundo por seus pecados, sua incre
dulidade, sua rejeição do projeto de vida revelado por Jesus (compare
Jo 16,8 com ITm 1,3; 5,20; 2Tm 4,2 e Tt 1,13).
• Conduzir à verdade (compare Jo 16,13 com ITm 2,4; 2Tm 2,25;
Tt 1,1 e 2,7).
153
Um dos desafios para nossas igrejas hoje é confiar mais na auto
ridade do Espírito que age em nosso meio. E sua ação, mais do que ser
decidida por lideranças que se impõem sobre a comunidade, é fruto de
decisões coletivas em que a participação cidadã prolonga o próprio agir
divino.
Outro desafio que fica para nós é estabelecer estruturas suficien
tes que garantam a fidelidade à prática libertadora de Jesus de Nazaré,
sempre atualizada em novos contextos e realidades diversificadas, de
modo que seu Evangelho esteja sempre a serviço da promoção da vida
digna, do amor, da paz e da liberdade. Será que nossas igrejas não estão
demais preocupadas com a manutenção do poder, com os dogmas, com
o status qito? Será que, para manter as estruturas eclesiais constituídas
através de séculos, não amordaçamos vozes proféticas que propõem
uma volta às fontes evangélicas? Será que nossos cursos teológicos não
dão demais ênfase às áreas sistemáticas, doutrinárias em detrimento da
reflexão da Bíblia, principal fonte para nossa fé e missão? Será que não
colocamos em segundo plano a graça e o amor de Deus para priorizar
a lei, o pecado e as proibições?
A questão de gênero
As Cartas Pastorais revelam que, na erapás-apostálica, as restrições
às mulheres nas famílias e nas comunidades são ainda mais excludentes
que nas comunidades cristãs da segunda geração. lTm 2,9-15 refere-se a
seu comportamento submisso nas igrejas, e Tt 2,4-5 à sua submissão
aos maridos.
E possível que houvesse uma preocupação em manter as rela
ções nas comunidades e nas famílias segundo previam os códigos fami
liares da cultura dominante da época, a fim de que as igrejas não se
tornassem suspeitas e não fossem denunciadas e perseguidas pelo im
pério. Tt 2,5b, por exemplo, sinaliza nesse sentido: “...afim de que a pala
vra de Deus não seja difamada”.
No entanto, temos o direito de perguntar: será que não estavam
em jogo os interesses de homens que impediam as mulheres de con
quistarem sua dignidade, que Jesus havia resgatado? Se homens fazem
restrições a mulheres é porque, certamente, elas estavam defendendo o
espaço a que tinham direito e que já haviam conquistado nas comuni
dades durante as gerações anteriores.
Diante da submissão das esposas a seus maridos perguntamos:
será que, para “salvar” a palavra de Deus (Tt 2,5b), era necessário que
as mulheres reduzissem sua vida à rotina da submissão aos maridos, do
cuidado de seus filhos e dos afazeres da casa, confinadas à intimidade
dos lares (cf. Tt 2,4-5)? Repare ainda que as lideranças masculinas ori
entam as mães a domesticarem suas filhas, de modo que se enquadrem
direidnho nessa moral conservadora (Tt 2,3-5). Não lhe parece que,
ainda hoje, muitas mães preparam, desde cedo, as suas filhas para serem
delicadas e dedicadas servidoras de seus futuros maridos?
No que diz respeito à participação da mulher nas igrejas, ao ler
ITm 2,9-15, você percebeu como
se exige modéstia para as mulheres A cada gesto que promove
ricas. Assim, de fato, convém a pes a libertação da mulher
soas chamadas a viver na simplici há também um reencontro
dade, de modo que não haja discri do homem com sua liberdade.
minação por causa da forma de se
vesür (ITm 2,9-10).
A outra ordem é quanto ao silêncio total das mulheres nas comu
nidades (ITm 2,11-12). Segundo essa restrição, as mulheres bem vistas
pelas lideranças masculinas são as que permanecem caladas e submis
sas na assembléia comunitária.
Você não acha que essa prádca deixou de lado os avanços con
quistados nas comunidades de Paulo que, fiel a Jesus, permitia que as
mulheres orassem e ensinassem nas igrejas (ICor 11,5)? E mais. Nas
155
igrejas paulinas da primeira geração, elas exerciam a liderança como cola-
boradoras na fundação e organização de comunidades, como diáconas
e, inclusive, como apóstolas (Rm 16,1-16). Será que não foi justamente
pela forte liderança delas nas igrejas, que autoridades masculinas da
terceira geração, decretaram essas leis de exclusão?
Você não acha também que a fundamentação teológica de lTm
2,13-14 deixa a desejar, conforme você já leu a respeito da interpreta
ção de Gn 3,1-7 nas p. 87-93 do volume três desta Introdução à Bíblia?
Será que é condição que as mulheres, para se salvarem, têm que
gerar filhos, além de viverem modestamente na fé, no amor e na santi
dade (lTm 2,15)? E como ficam as mulheres que não são mães? No
entanto, a recomendação para que tenham filhos pode também ser uma
crítica àquelas mulheres que aderiam aos dissidentes que proibiam o
casamento (cf. lTm 4,3).
Para nós, fica a tarefa urgente de superar as relações patriarcais
no nosso cotidiano. E que o patriarcado é, na verdade, o maior respon
sável pela violência cometida desde o ambiente doméstico. Também é
um dos principais responsáveis das relações desiguais na economia, na
política, seja em nível local, nacional e internacional. Da mesma forma,
ele também está entre os maiores causadores da violência contra a na
tureza. Por fim, e de modo especial, o patriarcado é responsável pela
discriminação das mulheres, metade da população. Junto com elas, co
loca em segundo plano valores como a solidariedade e a cooperação, o
cuidado da vida e a ternura. São características atribuídas, de forma
errônea, quase exclusivamente às mulheres por esse sistema discrimina
tório. Portanto, é urgente a superação das relações patriarcais de opres
são. Sabemos que a cada gesto que promove a libertação da mulher há
também um reencontro do homem com sua liberdade, uma vez que
nem oprimidos nem opressores sãos pessoas verdadeiramente livres.
A questão de geração
Você pode conferir os textos que fazem referência à submissão e
obediência dos filhos aos seus pais em lTm 3,4.12 e Tt 1,6.
Em Tito, os candidatos ao presbitério não podem permitir que
seus filhos sejam dissolutos e insubordinados. Os anciãos, portanto,
devem manter seus filhos no seguimento dos bons costumes e na
submissão.
Na Primeira Carta a Timóteo, essa orientação a respeito da pos
tura de pais que devem manter seus filhos submissos, governando so
bre eles, está entre as qualidades requeridas de quem aspira ao episco-
pado e ao diaconato.
O desafio para nós hoje é saber educar sem repressão e, ao mes
mo tempo, saber colocar limites, evitando, dessa forma, a libertinagem.
A arte de educar para a liberdade está na nossa capacidade de ajudar
filhos e filhas a desenvolverem seu discernimento, de modo que sejam
capazes de optar entre o que c o n v é m e aquilo que prejudica a sua pró
pria vida, a vida das demais pessoas, bem como a da natureza.
Timóteo é de Listra. Seu pai é grego e sua mãe, judia (At 16,1-3).
Sua mãe chamava-se Eunice e sua avó, Lóide (2Tm 1,5). Na segunda
viagem, Paulo o convida para integrar sua equipe missionária, tornan
do-se um de seus auxiliares de confiança (At 17,14ss; 19,22; 20,4). É co-
autor de várias epístolas (2Cor; Fl; Fm; Cl; l-2Ts), além de estar entre
os que enviam saudações finais em Rm 16,21. Foi enviado para forta
lecer a fé dos tessalonicenses (lTs 3,2ss), bem como dos coríntios
(ICor 4,17; 16,10s). Também foi em missão às comunidades de Fili-
pos (Fl 2,19-23). Acompanhou Paulo na viagem a Jerusalém, quando
levaram a coleta solidária (At 20,4). Segundo Hb 13,23, também estava
preso por causa do Evangelho. A Carta lhe é dirigida quando se encon
tra na direção da comunidade de Éfeso (ITm 1,3). No entanto, Timó
teo representa as comunidades destinatárias, como já vimos.
Quem? O autor deve ser um discípulo ou admirador de Paulo.
Onde? Escreveu possivelmente em Éfeso, pois este se tornou o
centro de difusão mais importante da herança paulina.
159
Quando? Pelo ano 115.
O quê? A Carta contém instruções, conselhos práticos sobre o
desempenho do ministério “pastoral” de Timóteo que está no governo
da comunidade de Éfeso (1,3). Por um lado, a Carta é uma reflexão
Icológico-pastoral sobre a organização das igrejas. Por outro, está preo
cupada com os desvios da sã doutrina (1,3.6.10.20; 4,1-3.6.16; 6,1.3),
com a ortodoxia e com a coesão das comunidades, sugerindo que os
dissidentes sejam repreendidos.
Como? A Carta pode ser assim dividida:
• 1,1-2: Saudação inicial.
• 1,3-11: Conflito com os grupos dissidentes.
• 1,12-17: Aprofundamento teológico.
• 1,18-20: Retrato do agente ou obreiro pastoral.
• 2,1-3,13: Organização das comunidades:
- 2,1-8: Os homens nas orações comunitárias;
- 2,9-15: As mulheres no culto;
- 3,1-7: Orientações para os epíscopos;
- 3,8-13: Orientações para os diáconos.
• 3,14-16: Aprofundamento teológico.
• 4,1-5: Conflito com os dissidentes.
• 4,6-16: Retrato do obreiro ou agente pastoral.
• 5,1-6,2a: Organização das comunidades:
- 5,1-2: Orientações a várias gerações;
- 5,3-16: Orientações para as viúvas;
- 5,17-25: Orientações para os presbíteros;
- 6,1-2: Orientações para os escravos.
• 6,2b-10: Conflito com os grupos dissidentes.
• 6,11-16: Retrato do agente ou obreiro pastoral.
• 6,17-19: Orientações para os ricos.
• 6,20-21: Admoestação e saudação final.
160
2.2. Segunda Carta a Timóteo
“Combati o bom combate, terminei
a minha carreira, guardei a f é . ”
(2Tm 4,7)
161
2.3. Carta a Tito
“Eu te deixei em Creta para cuidares da organização
e, ao mesmo tempo, para que constituas presbíteros
em cada cidade. ”
(Tt 1,5)
Tito está ausente no Livro de Atos. Ele não tem parentesco com
judeus. Foi com Paulo ao Concilio de Jerusalém. Fiel à liberdade diante
da Lei, Paulo não o circuncidou (G12,1). Tito reconciliou Paulo com as
comunidades de Corinto (2Cor 2,12s; 7,5-15), onde também coorde
nou a coleta em favor das igrejas pobres da Judéia (2Cor 8,6.16.23).
Exerceu a missão na Dalmácia, atual Iugoslávia (2Tm 4,10). Segundo
Tt 1,5, Paulo o deixa em Creta, uma ilha a sudeste da Grécia, para orga
nizar as comunidades de lá. No entanto, também Tito representa as
comunidades a quem é dirigida esta Carta.
Quem? Um discípulo ou admirador de Paulo.
Onde? Escreveu possivelmente em Éfeso, centro de difusão da
herança paulina.
Quando? Pelo ano 115.
O quê? A Carta a Tito e a Primeira Carta a Timóteo tratam de
problemas idênticos. Tito também se ocupa da organização das comu
nidades. No entanto, seu tema central é a sã doutrina, isto é, a vontade
salvadora de Deus e a salvação gratuita trazida por Jesus Cristo (1,9;
2,1.10). A insistência na defesa do depósito da fé se deve às doutrinas e
aos costumes provenientes das crenças do mundo greco-romano e do
Judaísmo legalista (1,10-11), estranhos à proposta cristã. A Carta faz uma
profissão de fé explícita na divindade de Jesus (2,13). Como lTm, sua
moral é conservadora, seguindo o modelo patriarcal (1,6; 2,4-5.9-10;
3,1-2).
Como?
• 1,1-4: Saudação inicial.
• 1,5-9: Organização das comunidades: instituição de presbíteros
e epíscopos.
162
• 1,10-16: Conflito com os dissidentes.
• 2,1-10: Organização das comunidades: orientações para pessoas
idosas, jovens casadas, moços e escravos.
• 2,11-15: Fundamentação teológica.
• 3,1-2: Organização das comunidades: submissão às autoridades.
• 3,3-7: Catequese batismal.
• 3,8-14: Conselhos e recomendações práticas a Tito.
• 3,15: Saudações finais.
163
gem é de cultura greco-romana. Além disso, ele mesmo afirma não
pertencer aos apóstolos (3,2), nem ser da primeira geração cristã (3,4). E
ainda. No momento em que a Carta é escrita, há uma tensão na comu
nidade por causa do atraso da parusia, da vinda gloriosa de Jesus (3,8
10). Isso supõe um período mais tardio. Igualmente já existe uma cole
ção das cartas de Paulo, de quem o autor se declara próximo (3,15-16).
Tudo isso, nos leva a concluir que seus autores devem ser membros das
comunidades de herança paulina que atribuíram a Carta a Pedro.
Onde? Escreveram em algum lugar da Ásia Menor, talvez em
Éfeso, onde provavelmente foram colecionadas as cartas paulinas.
Quando? Pelo ano 130. Seguramente, este é o escrito mais jo
vem do Segundo Testamento.
O quê? O texto é uma exortação escrita em forma de carta e, à
semelhança da Segunda Carta a Timóteo, é redigido em forma de testa
mento de um velho apóstolo antes de sua morte, dando instruções a
seus discípulos.
Depois da saudação inicial (1,1-2), a Carta diz que Deus nos deu
"as condições necessárias para a vida, afim de que nos tornássemos participantes da
natureza divina, libertos de toda corrupção que prevalece no mundo como resultado
da cobiça” (cf. 1,3-4). Participamos da natureza divina na medida em que
nos humanizamos sempre mais. Tornar nossas relações mais livres, mais
amorosas e geradoras de mais vida é participar da mesma condição de
Deus, pois ele é vida, amor e liberdade.
Para alcançar a participação na “natureza divina”, os autores da
Carta propõem sete obras de piedade. Confira em 1,5-11!
O exemplo dos apóstolos e a força do Espírito na Palavra profé
tica são alimento para manter-se firme na verdade dejesus. Ele é o filho
amado com quem o Pai se agrada, não permitindo que nos deixemos
levar pelas fábulas de grupos dissidentes (1,12-21).
Como podemos nós hoje superar todas as formas de corrupção
deste mundo, a tal ponto de tornar as nossas vidas, todas as formas de
manifestação da vida, participantes da natureza divina, da vida nova em
Cristo, vida cidadã, vida plena?
Um primeiro problema que o autor procura resolver é enfrentar
164
seus adversários na comunidade, que ele chama de falsos protetas (cap.
2). Possivelmente, são cristãos que seguem radicalmente a tese de Pau
lo, cujo centro é a fé emjesus como único caminho de salvação (cf. Rm
1,16-17).
E provável que os autores da Carta aos Hebreus estejam entre
esses grupos dissidentes. Estes colocam a mediação dos anjos em se
gundo plano e consideram Jesus o único intermediário entre Deus e a
humanidade, como vimos acima (Hb 1,5-2,18). A Segunda Carta de
Pedro faz crítica forte a essa radicalidade, afirmando que seria melhor
não terem conhecido o “caminho ciajustiça” (cf. 2,21). Acusa os adversá
rios de “blasfemarem contra seres celestes”, isto é, os anjos enquanto minis
tros a serviço de Deus, de acordo com a mentalidade apocalíptica da
época (cf. 2,10).
Outra acusação que faz aos adversários é serem liberais demais
em seus costumes, “entregando-se a paixões imundas” (cf. 2,10ss). Encoraja
os que desanimam diante da doutrina dos dissidentes, apresentando
Noé e Ló como exemplos de pessoas a quem a vida foi preservada por
serem “ju stos” e “mensageiros da justiça”, isto é, por terem sido fiéis (cf.
2,4-9).
Uma segunda dificuldade central é o atraso da parusia, conforme
se esperava com base na mentalidade apocalíptica da época. Como o
tempo ia passando, aumentava a demora da vinda gloriosa de Cristo.
Diante disso, grupos dissidentes radicalizavam a interpretação das car
tas de Paulo, afirmando que a salvação através da fé já era uma realidade
presente, dc modo que não se precisava mais esperar por uma parusia
futura (3,15-16). Defendendo essa tese, estavam conseguindo desani
mar muitos membros das comunidades (cap. 3). Diante disso, os auto
res da Carta reafirmam a vinda do dia de Deus, o dia do juízo. Estimu
lam seus leitores a continuar perseverando na fé e na espera por “novos
céus e nova terra, onde habitará a ju stiça ” (cf. 3,13), uma vez que “para o
Senhor; um dia é como m il anos e mil anos são como um dia” (3,8).
Essa espera pela iminente vinda do dia do Senhor nos leva a
refletir sobre o último momento da nossa vida, a hora de nossa morte.
Um dia, talvez quando menos esperamos, ela chegará. E importa estar
preparados para entrar nesse caminho que nos conduz à misteriosa
165
esfera divina. A esperança apocalíptica na parusia de Cristo nos ensina
estarmos sempre vigilantes para viver dignamente todas as relações
que estabelecemos em nosso cotidiano. Ensina-nos a viver intensamente
cada momento como se fosse o último de nossa vida.
Como?
• 1,1-2: Saudação.
• 1,3-11: Participação na natureza divina.
• 1,12-18: Testemunho apostólico.
• 1,19-21: A profecia movida pela força do Espírito.
• 2,1-22: Críticas aos dissidentes.
• 3,1-10: Atraso da parusia.
• 3,11-13: Esperança no novo céu e na nova terra.
• 3,14-18: Conclusão.
Conclusão da 2a parte
Nesta parte, vimos os escritos da terceira geração cristã, também
conhecida como era pós-apostólica, que vai desde o final do reinado do
imperador Domiciano (81-96) até em torno do ano 130.
Durante este período, duas tradições nos deixaram textos que
encontramos na Bíblia. São as igrejas de herança do Discípulo Amado
e as comunidades de tradição paulina.
Vimos que os livros de tradição joanina são o Evangelho segun
do João e as três Cartas também atribuídas a ele. Apesar de suas carac
terísticas próprias, incluímos o Livro do Apocalipse nessa tradição.
Os escritos de tradição paulina são a Carta aos Hebreus, as Car
tas Pastorais (l-2Tm; Tt), além da Segunda Carta de Pedro, o texto mais
jovem do Segundo Testamento.
Ao concluir o estudo desta Introdução à Bíblia, tal como o casal de
discípulos de Emaús, você fez uma longa caminhada pelas Escrituras
na redescoberta daquela luz divina que aquece corações. Não só aque
ceu no passado. A presença de Deus, que é vida, amor e liberdade, é tão
atual entre nós, quanto o foi
"Temos, também, por mais firme
para o povo de Israel e para
a palavra profética, à qual fazeis
as comunidades cristãs primi
bem em recorrer com o a uma
tivas. A revelação de Deus
luz que brilha em lugar e s c u r o ,
continua. E está em suas, em
a t é que raie o dia e surja a estrela
nossas mãos a possibilidade d'alva em nossos co raçõ es."
de deixá-la manifestar-se em (2 Pd 1 , 1 9 )
nossos corpos e de revelar ao
mundo o seu projeto de vida cidadã para todas as criaturas.
O coração, energizado pela força do Espírito, impulsiona-nos a
recriar permanentemente nossas relações, tornando-as parecidas com
Deus, dando sabor à vida, gerando luz para quem não tem esperança,
encorajando na caminhada rumo a uma sociedade mais solidária e par
ticipativa.
167
Certamente, você continuará aprofundando o estudo bíblico
como formação e crescimento permanentes de sua fé. Desse modo,
buscará nas Escrituras uma luz que ilumine a vida e faça brilhar a estrela
d’alva em nossos corações. Na leitura e reflexão das Escrituras que fize
mos, vimos que foi o Espírito libertador de YHWH quem animou he
breus e hebréias na defesa do projeto igualitário das Tribos (Jz 3,10;
6,34), quem estimulou a resistência profética durante o Reinado, o Exí
lio e o Pós-Exílio (lRs 18,12; Is 42,1; 61,1; Mq 3,8), quem conduziu
Jesus de Nazaré (Lc 3,22; 4,1.18-19) e quem encorajou as comunidades
cristãs primitivas no anúncio da Boa-Nova de Jesus (Lc 24,49; At 1,8;
2,1-13).
Assim, sob o impulso do mesmo Espírito, possamos também
nós, como instrumentos nas mãos divinas e “participantes da sua natureza”
(2Pd 1,4), colaborar na construção de novas relações, de “novos céus e nova
terra, onde habitará ajustiça” (2Pd 3,13; cf. Is 65,17; Ap 21,1)!
Que a bênção de YHWH sempre nos fortaleça e conduza nossos
passos.
“YHWH abençoe e guarde vocês.
YHWHfaça brilhar sobre vocês a suaface e se compadeça de vocês.
YHWH volte para vocês o seu rosto e lhes dê a pa%!” (Nm 6,24-26)
168
Para orar e aprofundar
Jo 15,1-17
Jo 17,1-26
ljo 4,7-5,4
Ap 21,1-22,5
2Tm 2,1-13
2Pd 1,19-21
2Pd 3,11-13
Sugestões de leitura
1. Sobre o Evangelho segundo João
BORTOLINI, José. Como ler o Evangelho de João. São Paulo: Paulus.
COTHENET, E. Os escritos de São João e a Epístola aos Hebreus. São Paulo:
Paulus.
KONINGS, J. Evangelho segundo João: amor efidelidade. Petrópolis: Vozes, Sào
Leopoldo: Sinodal.
MESTERS, Carlos. “Senhor, dá-me desta água!” —O diálogo da samari-
tana com Jesus. A Palavra na Vida. Sào Leopoldo: CEBI, n. 113.
MESTERS, Carlos; LOPES, Mercedes; OROFINO, Francisco. Raio-X
da Vida —Círculos bíblicos do Evangelho de João. A Palavra na Vida,
São Leopoldo: CEBI, n. 147/148.
RODRIGUES, Maria de Paula; VASCONCELOS, Pedro Lima; SIL*
VA, Rafael Rodrigues da. Fé em Deus, fé na vida: a Boa Notícia segun
do a comunidade de João na periferia do mundo. A Palavra na Vida. Sâo
Leopoldo: CEBI, n. 143/144.
ROTEIROS PARA REFLEXÃO IX. Evangelho de João e Apocalipse,
São Leopoldo: CEBI, São Paulo: Paulus.
RUBEAUX, Francisco. Mostra-nos o Pai —uma leitura do quarto Evan»
gelho. A Palavra na Vida. São Leopoldo: CEBI, n. 20.
169
2. Sobre as Cartas Pastorais
BORTOLINI, José. Como ler a Primeira Carta a Timóteo. São Paulo: Pau
lus.
BORTOLINI, José. Como ler a Segunda Carta a Timóteo. São Paulo: Pau
lus.
BORTOLINI, José. Como ler a Carta a Tito. São Paulo: Paulus.
ROTEIROS PARA REFLEXÃO XI. Cartas Pastorais e Cartas Gerais.
São Leopoldo: CEBI, São Paulo: Paulus.
171