A Oficina Da Canção - José Mário Branco
A Oficina Da Canção - José Mário Branco
A Oficina Da Canção - José Mário Branco
Enquanto autor e intérprete de canções, os problemas práticos que me foram sendo levantados por
essa actividade – aparentemente tão simples: inventar canções e cantá-las… – tiveram implicações
artísticas, políticas e filosóficas que me obrigaram a, progressivamente, organizar as ideias sobre o
que é a arte e qual a sua relação com o compromisso político.
Por isso pensei escrever uma série de artigos, a que darei o título genérico de “A oficina da canção”,
em que tentarei explicar quais foram, ao longo de mais de 40 anos, esses problemas práticos e quais
as soluções procuradas, enquadrando tudo isso no contexto particular da minha geração.
(excerto de “A cantiga é uma arma”, canção feita por J. M. Branco em 1973, gravada em
1975 pelo GAC Vozes Na Luta)
Com o seu formato simples e a sua executabilidade imediata, as canções têm natural propensão
para, mais do que outros objectos artísticos mais complexos, representarem um papel social. Em
todos os países e em todas as épocas, os cantores-autores, mesmo que historicamente anónimos,
tiveram uma grande importância na representação e na expressão dos povos e dos grupos sociais. As
canções e os seus cantores acompanham quase a par e passo os movimentos sociais.
A minha geração, nascida e crescida no regime fascista de Salazar, confrontada na juventude com a
explosão ideológica dos anos 60, com a guerra colonial, a prisão e os longos exílios, teve nas
canções uma forma de resistir e combater. Mas não se reduza esta afirmação ao aspecto mais
evidente da canção política; numa situação de profunda opressão e de constante “risco de vida”,
escrever e cantar sobre o amor, a vida quotidiana ou outro tema qualquer torna-se sempre “político”.
A simples sinceridade é subversiva.
Em Portugal, nos anos 50 e 60, os jovens foram beber o seu interesse pelas canções a duas fontes
diferentes, mas contemporâneas. Por um lado, surgiu do movimento estudantil (das suas tradições e
da sua convivialidade) aquele que seria o grande mestre da canção portuguesa do século XX, José
Afonso, “o Zeca”, que influenciou decisivamente várias gerações. Aliando excepcionais qualidades
de compositor (sobretudo nos planos da melodia e do ritmo) e de intérprete (uma voz tensa e
cristalina como é raro em qualquer parte do mundo), foi sempre um exemplo do homem livre, ou do
poeta inteiro, se preferirem.
Os seus 22 álbuns de canções, desde o início dos anos 60 até à sua morte prematura em 1987, são
um manancial inesgotável de prazer musical, de emoção profunda – e de aprendizagem.
zeca1Por outro lado, nascia, do movimento artístico neo-realista, ele próprio ancorado nos
movimentos sociais do século XX, um compositor – Fernando Lopes Graça – que, para além da sua
obra erudita de pendor modernista, promoveu a recolha e a adaptação de canções tradicionais,
trabalho reforçado, a partir dos finais dos anos 50, com a colaboração decisiva do etnomusicólogo
corso Michel Giacometti. A música tradicional de raiz rural, que em Portugal é muito rica e variada,
tornou-se também um referencial obrigatório para os jovens que despertavam para a consciência
cívica e política.
Com alguma formação musical anterior, de escola, foi neste caldo de cultura que, a partir de 1965,
já exilado em França, comecei a sentir a necessidade de me exprimir inventando e cantando canções
e convivi com outros jovens cantautores exilados (1). A funcionalidade política das nossas canções
foi imediata e para todos evidente, tanto nos círculos emigrados ou exilados em toda a Europa (só
em França havia 600 mil portugueses, e a região de Paris, com 300 mil, era “a segunda cidade de
Portugal”), como na repercussão que o nosso trabalho teve, a partir de 1969, no interior de Portugal,
onde ao mesmo tempo se desenvolvia, liderada por José Afonso e ancorada no movimento
estudantil, uma forte corrente de cantautores contra a ditadura e a guerra colonial.
Quando se começou a colocar a questão de gravar as canções em disco, um sem número de decisões
implicaram outras tantas questões de fundo, que a própria prática e as condições historico-sociais
nos foram obrigando a pensar e a resolver. Umas diziam directamente respeito ao processo de
produção e distribuição da música gravada; outras referiam-se a questões estéticas levantadas pela
forma da canção (seus limites formais, interpenetração dos discursos poético e musical) e pelas
condições da sua interpretação ao vivo, perante um público.
A forma como fui tentando encontrar soluções para esses problemas práticos resultou, em grande
parte, de ter tido contacto directo com dois campos não musicais: a rádio, que foi, aos 16 anos de
idade, o meu primeiro emprego remunerado e o teatro, de que sempre fora espectador assíduo e com
o qual tivera algum contacto nos curtos anos de frequência da universidade.
Para partilhar esta experiência de mais de 40 anos e ajudar os leitores a compreenderem o caminho
percorrido, organizarei a informação numa série de artigos, cada um com um tema principal, em
torno da questão geral da “oficina da canção”.
1º – “criação não partilhada” – sozinhos ou em grupo, inventamos as canções sem a presença física
dessa entidade concreta mas anónima a que chamamos público;
2º – “criação partilhada” – a interpretação ao vivo, em presença do público e que, por motivos que
explicarei, considero ser uma recriação de dupla autoria, cantor e público;
Também abordarei outras questões muito importantes que se levantam em outros momentos do
processo produtivo das canções: a relação entre o mercado e a marginalidade, ou a clandestinidade;
as alterações trazidas pelas inovações tecnológicas na música gravada (passagem do som analógico
ao digital e respectivas consequências) e na comunicação (alteração dos suportes e dos modos de
distribuição).
O 3º nível de criação acima referido levantou-me problemas que, a posteriori, se reflectiram nos
dois outros níveis. A busca de soluções para a questão prática de gravar as canções em disco acabou
por influenciar todo o meu comportamento como autor e como intérprete ao vivo. Até que, bastante
mais tarde, me levou mesmo a pôr em causa os moldes da minha militância política.
Por isso, o próximo artigo desta série será “A oficina da canção (II): criação partilhada em diferido”.
(1) A designação cantautor refere os cantores que, tipicamente, interpretam canções feitas por eles próprios (letra e
música) e que, por terem um reportório pessoal, se tornam personalidades mais identificadas do que os simples
intérpretes. Diz-se que esse termo apareceu em Itália, sendo depois adoptado em Espanha e em Portugal. Corresponde à
classificação usada em França auteur-compositeur-interprète.
Começar a fazer canções, e a cantá-las, como uma necessidade profunda de exprimir a vida e de lhe
buscar um sentido – eis como me tornei “cantautor”. Nunca pegara numa guitarra [violão]; estudara
um pouco outros instrumentos, mas não esse. Um dia alguém esqueceu uma velha guitarra na minha
casa, em Paris; a urgência de cantar trouxe a urgência de aprender, e aprendi de ouvido; comprei
livros, estudei acordes, pratiquei muito, sozinho. Situação comum dada a portabilidade e a grande
eficácia harmónico-rítmica de uma guitarra.
A estreita relação entre as canções e os problemas da sociedade teve um efeito decisivo quando se
tratou de registá-las em disco.
Uma coisa é estar em casa, de viola na mão com uma folha de papel à frente, a “ouvir” uma melodia
com umas palavras na cabeça, a experimentá-la, cantando-a sozinho – uma criação não partilhada,
em que a obra parece “acontecer”, nascer e produzir-se como se já existisse desde o fundo dos
tempos, mas que não existe senão como um projecto de que somos portadores. Depois, o primeiro
teste que é cantá-la para os amigos e em que sempre canto mal… “Aqui não é bem assim”, a voz
foge, não se afirma, os dedos não acertam nas cordas.
Outra coisa é ir para um palco e cantar uma canção com o público na sala. Nova ou antiga, nesse
momento, inicia-se um processo. Dependendo do tema e do género de canção, das condições
espaciais, técnicas e sociais da actuação, após um tempo de maturação (minha e do público), é
palpável o processo de vai-vem de emoções, de olhares e de não sei mais o quê que vai fazendo
crescer (ou mirrar) uma canção. Há uma apropriação do lado de lá e uma reapropriação do lado de
cá. Se cantei bem, o retorno da sala diz-me que cantei bem e a canção cresce. Se cantei menos bem,
o retorno da sala manda o sinal e em poucos segundos – às vezes fracções de segundo – a canção
perde-se no vazio de uma exibição. No teatro chamamos “companheiro seguro”, a esse plano
mental autonomizado com que o intérprete vai controlando e (auto-)criticando a sua interpretação.
Essa auto-observação da minha interpretação, que não pode ser impeditiva de uma entrega total, é a
condição para que a canção possa acontecer. Só assim a obra é recriada – e não é recriada só por
mim. Se o público não estivesse ali, nada acontecia. O intérprete nunca “acontece” sozinho. Por isso
digo que este tipo de criação – a que geralmente chamamos interpretação – é uma criação
partilhada.
Andava eu a cantar por toda a Europa onde havia portugueses emigrados ou exilados, até que, pela
mão de José Afonso, alguém telefona e diz: “Queres gravar um disco?”. “Sim!”. O convite é de
Lisboa; eu estou em Paris, com 1.800 km e uma península fascista pelo meio; não posso ir a Lisboa.
Tenho de gravar em França – com estúdios cinco ou seis vezes mais caros que os portugueses, e os
músicos-instrumentistas também. As condições materiais da produção implicam que tenho de
preparar tudo ao pormenor para gravar em poucas horas e com poucos músicos. Quando se estava
em estúdio (falo no pretérito porque os processos técnicos mudaram muito) a gravar com a
responsabilidade simultânea da produção executiva quase se ouviam os números a pingar na
factura!
Como resolver este problema? Nada tem a ver com as histórias dos Beatles e do George Martin, que
ocupavam os melhores estúdios do mundo durante um ano e gravavam quando gravavam,
divertiam-se, iam passear e voltavam. Eu, músico marginal que acabava de ser convidado a
desmarginalizar-se, antes de entrar em estúdio, tinha de pensar em tudo, planificar tudo, organizar
tudo ao mais ínfimo pormenor. Mapas de controlo, esquemas, minutagem de takes, aproveitamento
do flautista para tocar numa só sessão tudo o que escrevi para a flauta, tabelas de ocupação das
pistas (o álbum de José Afonso, Cantigas do Maio [1971], foi gravado em seis dias com oito pistas
analógicas e sem os ainda inexistentes automatismos de mistura). Saber antecipadamente as
características dos microfones e das máquinas, visitar o estúdio para “ouvir” e “cheirar” o espaço,
conhecer o técnico. Tenho de o conquistar para o meu lado – porque são os técnicos que fazem o
som, não sou eu; o que as pessoas ouvem foi ele que o fez – e habituei-me a que a primeira sessão
(paga) de três horas seja só para conversar com o técnico, explicar-lhe o projecto, em França
traduzir as letras, em suma, torná-lo meu cúmplice.
Se tenho de levar tudo pensado, tudo previsto, tudo escrito nas partituras que eles vão tocar e
gravar, tenho de ser capaz de ouvir o disco antes de ele existir… (Haendel dizia: “o compositor é
aquele que ouve a música antes dos outros”.) Só assim vou poder dizer exactamente aos técnicos e
aos músicos o que quero que eles façam. Como um encenador de teatro que, durante os ensaios, é o
representante do público que vai haver um dia; ou como um realizador de cinema que tem de “ver”
todas as cenas do filme antes de as filmar – eu tenho de ser o ouvinte que vai haver um dia.
Que escrevo na partitura para o pianista tocar? Será mesmo um piano que eu quero ouvir aqui?
Tantas decisões em representação do futuro público ouvinte! Como escolher? como decidir? como
quero ouvir esta canção, e aquela, e aquela? Com alguma prática de rádio e de teatro, percebi que
não conseguia resolver esta questão com meios puramente musicais. Um amigo disse-me, há mais
de 20 anos: “Já não se faz música, faz-se som.” Então a noção de “orquestração” ou “arranjo” está
ultrapassada. Para o meu primeiro álbum, em 1970, percebi que estava a fazer encenações sonoras,
a partir de conceitos de teatro (arte da presença) e de sonoplastia (estética do sinal acústico). E que
são os músicos, afinal, senão sonoplastas? A base desse trabalho é musical: os mil e um
instrumentos possíveis, a paleta dos timbres, as máquinas periféricas que permitem tratar o sinal,
colori-lo, redimensioná-lo, fundi-lo ou destacá-lo. No fim do Cantigas do Maio, o editor de José
Afonso telefonou-me do Porto para Paris: “Ó JMB, francamente! O álbum tem nove ou dez
canções. A maior parte tem vários instrumentos. Mas há três, pelo menos, que quase só têm a voz do
José Afonso! E você leva-me o mesmo cachet por todas as canções?” Respondi: “Há milhares de
instrumentos. Tive de escolher. Você não paga os instrumentos que eu ponho, você paga os que eu
tiro! Essas três canções deviam ser muito mais caras do que as outras.”
Trata-se pois de conseguir ouvir antes dos futuros ouvintes. Mas como posso defini-los?! Não sei
quem eles são, onde estão, como vão ouvir, se ouvem em casa ou na rua ou no táxi, se ouvem
sozinhos ou acompanhados, se o aparelho leitor é bom ou é mau, se estão doentes ou de saúde, se
estão tristes ou alegres. O teatro e a rádio. Voltemos atrás.
Quando canto uma cantiga no palco, para as pessoas que estão ali olhando para mim, o que é que eu
faço? Dou-lhes emoções, exponho emoções – estéticas, poéticas, dramáticas, sensuais, pessoais… E
elas devolvem-me emoções. Como posso fazer isso em um registo, num disco, se elas não estão
aqui ouvindo e se todo o processo de apresentação é desconstruído (por necessidade material de
rentabilizar o tempo de ocupação do estúdio)? A média do ser humano a que me dirijo… quem é? O
teatro diz: se fores verdadeiro para ti, sê-lo-ás para toda a humanidade. E mostra, como nenhuma
outra arte, que há uma oposição insanável entre exprimir-se e exibir-se. O que tenho de fazer – ao
ouvir as canções em disco antes dos outros – é ser verdadeiro, ser pessoanamente verdadeiro,
implacavelmente verdadeiro. As emoções gravadas só atingirão esses outros todos se o resultado
sonoro do que eu gravar me atingir a mim. Fecho os olhos e ouço; o que me emociona? – aqui é um
quarteto de cordas, ali é um coral heróico, além é apenas uma voz, ou um tambor. Ouço na minha
cabeça e escrevo no papel. E corrijo, e opto por outro instrumento, altero a pulsação, experimento
outro registo; e recomeço a ouvir; trabalho aturadamente na minha oficina.
Deste modo, as canções gravadas são como garrafas de náufragos atiradas ao mar… Ou como filhos
que crescem e saem de casa para irem viver a sua vida. Quem as vai ouvir? não sei. Quem vai sentir
o que eu senti? não faço a mínima ideia. As canções passam a existir fora de mim. Deixa de haver
coincidência entre sujeito e objecto. Tal como no palco, elas também são apropriadas e recriadas do
lado de lá – só que, no caso da canção gravada, eu não sei por quem. As canções não são “minhas”.
Não há pertença, só há origem. Foi assim no distanciamento insuperável do exílio. Presumi que as
pessoas que ouviriam a Ronda do Soldadinho ou a Queixa das Almas Jovens Censuradas ou os
Perfilados de Medo, lá nesse Portugal longínquo, cinzento e sofredor de uma ditadura jesuítica,
provavelmente sentiriam o que eu senti, que era o que eu queria que elas sentissem.
E, porque atinge coisas tão fundas e essenciais, teve de continuar sendo assim até hoje, ao longo de
quarenta anos. Nos meus discos e nos discos dos outros que dirijo.
Cheguei à conclusão de que, apesar da solidão das quatro paredes do estúdio, apesar da tecnicidade
quase cinematográfica do processo de produção, este é – também – um processo de criação
partilhada. Partilhada com uma comunidade de pessoas que não conheço, mas que existe. Partilhada
em diferido.
Esta partilha em diferido que teve origem num choque de estatutos sociais opostos – a
marginalidade e a inserção no sistema –, tem muitas consequências, e não apenas teóricas. Uma
consequência prática é a necessidade que senti, ao longo dos anos, de gravar de novo – reinterpretar
– certas canções, uma segunda vez, uma terceira até. Porque nós evoluímos, a sociedade e o mundo
também, e as canções revivescem em diferentes contextos. Outra consequência prática é uma linha
de trabalho que venho procurando ao longo dos anos, quanto às canções gravadas. Ouvindo muita
música, a minha e sobretudo a dos outros, percebe-se que não há, no fluxo de uma canção ou de
uma peça musical registada, qualquer espaço-tempo para a neutralidade emocional. Ao gravar, o
criador-intérprete tem de se assegurar de que conduz as emoções do criador-ouvinte na direcção
desejada. Não existe um milissegundo de neutralidade, de “tempo morto”, de indiferença – porque
tempo-morto e indiferença são também factores emocionais. Então o que procuro – e ainda não
consegui – é definir e controlar esse fluxo emocional à micro-escala, segundo a segundo, nota a
nota, pausa a pausa. A partir do conceito de aproximação à realidade a que os fotógrafos chamam
“definição” (resolution), eu gostaria de conseguir apurar o que – agora – chamo definição
emocional de uma peça musical gravada.
Na introdução do artigo precedente desta série, referi o “tripé” em que assenta o trabalho de criação
artística, seja esta não-partilhada, partilhada ou partilhada em diferido. Isso eu aprendi com o teatro,
tal como se pratica (ou praticava) nos grupos de teatro que, a partir dos anos 1960/1970, por todo o
mundo, assumiram uma posição radical de ruptura com o sistema político-social dominante. O que
o artista transmite ao público, nos limites do seu talento e dos meios práticos de que pode dispor, é o
resultado de uma tripla escolha – ética, estética e técnica. Como disse, na falta de um qualquer
destes pés, o tripé “cai”. O mais frequente é vermos um destes “pés” ser desvalorizado em favor dos
outros dois.
Nas últimas décadas, na música como em outras artes, por acção da ideologia pós-modernista (1),
tem sido sistematicamente desvalorizado o compromisso ético, com a correspondente
sobrevalorização das soluções técnicas e dos efeitos estéticos. A comunicação artística pós-
modernista, tendencialmente acrítica quanto ao sistema em que se insere, foi reduzida aos seus
aspectos não subversivos: assume o efeito ou a inovação formal como fundamento da legitimidade
da sua presença no espaço comunitário e reivindica a despersonalização e o descompromisso do
artista quanto ao efeito real da sua obra na comunidade.
Esse intervalo aparece inúmeras vezes nas melodias heróicas e de incitamento, quase sempre em
posição de ataque ou de destaque; é como se esse intervalo, usado em ritmo rápido e com palavras
fortes, tivesse uma objectividade surpreendente no contexto subjectivo da música (Nietzsche dizia
que a música é a mais subjectiva de todas as artes). A quarta ascendente tem lugar quase garantido
nas canções heróicas e/ou de luta. Vários exemplos, entre milhares possíveis:
– na Internacional (aparece três vezes na primeira frase: “De pé, ó vítimas da fome! De pé,
famélicos da terra! ”) (ouvir exemplo);
– no hino nacional brasileiro (igualmente as duas primeiras notas: “Ouviram do Ipiranga as margens
plácidas / De um povo heróico o brado retumbante”) (ouvir exemplo);
– no hino nacional português (as duas primeiras notas do refrão “Às armas! às armas!” (ouvir
exemplo),
– no hino francês A Marselhesa (terceira e quarta notas, e de novo no clímax agudo da frase “Allons
en-fants de la pa-tri-e”) (ouvir exemplo),
– e no hino dos EUA, na conclusão da sua primeira frase (“O-oh say, can you see…”) (ouvir
exemplo).
Como se pode perceber, esta é uma vasta matéria de estudo e de investigação. O seu principal
interesse, a meu ver, é o de contradizer – ou resolver – a referida opinião de Nietzsche e conseguir,
apesar da infinidade de combinações possíveis (tal como na objectivação de sentidos de qualquer
linguagem oral de palavras e frases), chegar a um razoável grau de objectivação do discurso
musical.
O resultado mais frequente deste tipo de limitação expressiva é o império dos clichés. A música
popular de mercado está cheia disso (a erudita também, mas a gente não a ouve…). Se a mente
(neste caso a memória musical) não fôr diariamente alimentada com a escuta da grande música, dos
grandes autores, e de uma forma geral no contacto com o património de criação artística que foi
sendo filtrado pelos tempos, não pode haver milagres: o tal léxico será bem reduzido e a sua
expressão estará à mercê do que está mais à mão: o cliché – como, na fala, a frase feita e o estilo
convencional.
Há que fazer aqui uma ressalva. A força social dos clichés, sobretudo nas músicas mais tipificadas,
é tão grande, tão avassaladora, que um criador que queira estar junto da sua comunidade não pode
ignorar a sua existência, sob pena de ficar isolado na sua torre de marfim. A instrumentalidade
social das canções levanta esse problema: como é que as pessoas podem receber as minhas canções
se eu usar formas que, fugindo aos clichés dominantes, elas não podem perceber? Seria como
escrever uma carta a um amigo no estilo de Aquilino Ribeiro ou Guimarães Rosa, com os seus
super-léxicos de uma variedade e de uma precisão estonteante! Nos vários géneros de canções
tipificadas – as marchas heróicas, as marchas populares, o fado, etc. – eu sempre fui obrigado a
praticar o que chamo “esgrimir com o cliché”; consiste, afinal, em adoptar os sinais formais
característicos desses géneros de canção, preservando o seu carácter tímbrico e (em parte) o carácter
rítmico, mas introduzindo um gosto mais elaborado, por vezes até heterodoxo, nas vertentes
melódica e harmónica. Constatei, ao longo do tempo, não só como autor mas também enquanto
director musical e orquestrador de outros artistas, que isso tem o efeito de um íman que puxa o
ouvinte para cima, para a compreensão e a aceitação de uma qualidade superior à do cliché – o qual
é, desse modo, posto em causa e (parcial e temporariamente) vencido.
Esse tem sido o papel, mesmo que involuntário, de grandes autores contemporâneos de canções, de
que destaco Kurt Weil, Gershwin, Léo Ferré, José Afonso, a dupla MacCartney-Lennon, Atahualpa
Yupanqui, e os brasileiros João Gilberto, Jobim e Chico Buarque. Em todos eles está presente essa
mestria de espadachins da música popular, como se tivessem ouvido mil vezes os madrigais de
Gesualdo, as canções eruditas de Schubert e de Copland e os improvisos de Charlie Parker e Billie
Holiday – e se calhar ouviram mesmo.
Os grandes artistas – pelo menos nas canções – revelam-se com uma espécie de despojamento
extremamente eficaz, como acontece com os grandes poetas e a sua inigualável capacidade de
sintetizar o que é complexo e multiforme.
Essas virtudes da expressão musical existem, em elevado grau de concentração, nas músicas
tradicionais dos povos. Enquanto no mundo capitalista, urbanizado, estandardizado e atomizado,
proliferam os clichés, o vazio de sentidos e a desresponsabilização ética dos pós-modernistas,
existem ainda – enterrados e conservados no gelo dos tempos, como aqueles mamutes da Sibéria –
inúmeros tesouros da música popular das eras pré-capitalistas, que são de uma riqueza e de um bom
gosto indescritíveis quanto às melodias, aos ritmos, à variedade tímbrica e tonal, às técnicas de
execução e à força concreta das palavras, quando as há. Desde há muitas gerações, naturalmente,
nós perdemos o contacto com essa riqueza que apenas nos foi chegando (1) através do quanto, aqui
e ali, inspiraram Bach, Mozart, Beethoven, Grieg, Rimsky-Korsakov, Bartók ou Kodály; (2) através
das suas formas corrompidas que a nova classe dominante ciclicamente pretendeu impingir-nos; e
(3) como objecto de estudo através das recolhas e da divulgação do trabalho de inúmeros
etnomusicólogos. Milhões de temas e atitudes musicais diversas, que exprimem o trabalho, a luta,
os amores, a relação com a natureza, a religiosidade, em suma, a condição humana.
Quase seria matéria de outro artigo: o que nos mostra uma escuta atenta das músicas tradicionais
dos povos é, além do já dito, que elas podem ser objecto de um estudo comparado – a
etnomusicologia comparada. Em condições materiais – geográficas e sociais – semelhantes, o
resultado musical da expressão popular ganha semelhanças que não são pura coincidência. Um dia,
numa aula de etnomusicologia, o meu Mestre Luís Monteiro deu-nos a ouvir um canto que, de
imediato, todos identificámos como uma “moda” das imensas planícies do Baixo Alentejo [sul
interior de Portugal], com o coro masculino grave e poderoso, o “ponto” que canta a antífona, o
“alto” que faz a ponte para o coral uníssono e sustenta o dramatismo na terceira ou quarta superior,
o ritmo lento, triste e compassado; até o timbre ligeiramente palhetado das vozes alentejanas e
aquele típico destemperamento entre terceira maior e menor lá estavam. Só que nenhum de nós
conseguia perceber a letra daquela “moda”. “Pois não”, disse ele, “é que isto canta-se nas planícies
da Ucrânia”. O celeiro da Europa Oriental, tal como o Baixo Alentejo é o celeiro de Portugal –
exemplos: canto do Alentejoe canto da Ucrânia.
E podia contar outras histórias como esta. Luís Monteiro interessava-se, entre muitas coisas, pela
possibilidade de a música dos povos ajudar a perceber a genealogia e os percursos histórico-
geográficos das línguas. Assim nos chamava a atenção, mesmo sem o explicitar, para a
especificidade da música como linguagem e para o facto de os seus elementos estruturais serem
uma espécie de gramática, com óbvia funcionalidade social.
Depois de várias décadas de pós-modernismo, em que todos fomos massacrados com aquele “tum-
tum-tum” em compasso de 1-por-4 característico do disco sound (exemplo aqui), nunca
agradeceremos bastante a companheiros como Peter Gabriel, Paul Simon, Sting e outros o facto de,
na segunda metade dos anos 1990, terem começado a libertar esses tesouros antiquíssimos, com a
vaga da world music, para benefício de várias gerações musicalmente oprimidas. E tudo começou a
mudar-de-novo quando, por essa altura, Tracy Chapman começou a encher estádios californianos
apenas com a sua voz, as suas palavras e a sua guitarra semi-acústica. Como Luis Llach no Nou
Camp de Barcelona, apenas com o seu piano.
Porém, o grande estrago não está recuperado, nada que se pareça. Os seus efeitos são duradouros
em várias gerações, que atingem tanto os jovens, como os respectivos pais, educadores,
governantes, etc. Porquê? não iremos aqui desenvolver, porque é outra história, mais recente e bem
complicada, que se relaciona com alterações profundas nos meios de comunicação e nas formas de
produção musical. E há outro estrago, que não sei como se irá resolver: a perda de sensibilidade
auditiva. Os tímpanos de um ser humano médio identificam os sons numa banda do espectro sonoro
que vai, mais ou menos, dos 16 (muito grave) aos 16 mil (muito agudo) Hertz (Hz) ou ciclos por
segundo. Vários estudos e inquéritos, nos anos 1980 e 1990, mostram que uma parte considerável
da juventude urbana e suburbana portuguesa, devido ao uso e abuso de headphones, à instalação de
aparelhagens potentes em automóveis e à frequência de locais noturnos com música, perdeu em
média 30% da sensibilidade auditiva, nas extremidades do espectro. E, quanto mais sensibilidade
auditiva se perde, mais pressão acústica é necessária para ter a ilusão de ouvir o que está gravado. O
capitalismo não está somente a separar-nos uns dos outros no trabalho, na cidade, em casa, não está
a empobrecer apenas as nossas paisagens, espaços e linguagens, não está a insensibilizar-nos apenas
o olfacto, o paladar e o tacto – está também a tornar-nos surdos. E surdez física significa mais
solidão sensorial e social.
Por isso, nada é neutro no campo da comunicação artística. A qualidade de uma melodia – o seu real
discurso – é muito importante e tem consequências reais na sociedade quando nela se espalha.
Como a qualidade das palavras com que ela possa ter-se casado. Como a qualidade de tudo o que
usamos para mobilar os nossos dias.
Aflige ver gente com tanto talento – técnico e estético – a falar de “projectos giros”, de “ideias bem
produzidas”, de “eventos” e de empresas artísticas, sem a mínima noção dessa impossível
neutralidade. Não é leviandade, nem é egoísmo. É que não lhes passam pela cabeça as implicações
sociais de se ser um artista, de se ter essa possibilidade de ocupar – muito ou pouco – o espaço
público e de ser, por momentos, a voz de muitas vozes, portadora de sentidos e emoções universais.
A minha experiência como jovem cantautor obrigou-me a não passar ao lado desse compromisso.
Mais recentemente, foi o exemplo de vários companheiros rappers do movimento hip-hop dos
bairros suburbanos que me veio confirmar estas ideias e que me levou a radicalizá-las ainda mais:
eles só têm duas alternativas e é em função delas que, como eu fui outrora, eles são obrigados pela
própria vida a definirem-se: ou te integras no sistema, sejam quais forem os subterfúgios que vás
arranjar para dormires bem de noite, ou combates o sistema em nome dos teus irmãos humanos.
Esta vertente ética, que a própria vida se encarrega de trazer ao de cima ciclicamente, é decisiva –
mas não é a única! Ao lado da ilusão da neutralidade, pode aparecer uma outra ilusão igualmente
devastadora: a ilusão de que as formas de expressão musical estão fechadas e, sendo fechadas, são
melhor recebidas pelos outros. A ilusão de que as questões formais não fazem parte do discurso
musical e poderão ser, apenas, um “veículo” do discurso musical. A ilusão de que, se o conteúdo de
uma obra for “correcto”, as questões formais são menores e secundárias. Essa ilusão tem um preço
bem alto, desde a música erudita mais laboratorial à música de spoken word dos bairros periféricos.
E um preço bem alto, também, na relação dos artistas com a esquerda revolucionária para quem
sempre foram sendo meros instrumentos de agitação e propaganda, em particular nas situações em
que essa esquerda teve algum poder político. Será esse o assunto do próximo episódio: “A Oficina
da Canção (IV): O sofisma da oposição forma-conteúdo”.
(1) O pós-modernismo começou por ser um movimento artístico, primeiro explicitado pelo arquitecto estadunidense
Charles Jencks num manifesto de 1977. Ao contrário do grande mestre Le Corbusier (1887-1965) que, ao projectar os
seus edifícios, questionava as relações sociais e o próprio carácter de classe do habitat, os pós-modernistas defendiam,
não a inovação, mas a reutilização sistemática de elementos estéticos do passado, em associação livre e irresponsável:
ironia kitch, pastiche, caricatura, falso classicismo, a aproximação entre arte e publicidade – linha estética que, em
Portugal, atingiu o auge do mau gosto e da pretensão com Tomás Taveira. Só mais tarde, em 1979, Lyotard lançaria o
correspondente debate filosófico em A condição pós-moderna: relatório sobre o saber. Na música, a principal vertente
do pós-modernismo foi a escola minimalista, que se extasiou na repetição exaustiva e angustiada de pequenas estruturas
sonoras em contexto tonal ou semi-tonal, num corte total com qualquer das grandes escolas musicais do século XX: o
serialismo dodecafónico de Schönberg, o modernismo da escola francesa pós-impressionista, o modalismo de Messiaen,
a música electro-acústica desenvolvida pelos dois Pierre, Boulez e Shaeffer, e outras músicas experimentais, como a de
John Cage.
(2) Esquematicamente, pode dizer-se que um trecho musical tem uma estrutura “a quatro dimensões”. A primeira, linear
horizontal, é a melodia: uma sucessão de sons (“notas”) com diversas alturas (agudo-grave) e durações, e de silêncios
(“pausas”); corresponderia ao que, na linguagem falada-escrita chamamos “frase” – exemplos: refrão de “Est-ce ainsi
que les hommes vivent”, de Léo Ferré, cantado por Marc Ogeret e “Desafinado”, de e por João Gilberto.
A segunda, linear vertical, é a harmonia: uma sucessão de “acordes”, ou grupos de notas simultâneas, sobre os quais a
melodia se desenvolve; como se fosse um conjunto de vozes que se desenvolvem em simultâneo na horizontal, lidas
verticalmente. A terceira dimensão é o ritmo, que organiza a pulsação dos sons (beat) e o valor relativo entre eles
(tempos fortes, tempos fracos). A quarta, por fim, é a dimensão do(s) timbre(s) que é o jogo de colorações dos sons em
função das fontes sonoras (instrumentos) que os produzem: um piano, uma voz infantil, um trombone, etc. Esta última
dimensão, o timbre, resulta das características físicas da fonte sonora (a matéria que vibra, “o instrumento”).
Há outras formas de assimetria entre os três “pés” do tripé referido na introdução do segundo artigo
desta série. Em meados dos anos 1960, entre os cantores portugueses, tanto em Portugal como
exilados em França, houve um aceso debate sobre a forma da canção porque muitos deles
consideravam que, numa canção, o essencial era a qualidade do discurso poético – as palavras – e
que o “suporte” musical da canção era secundário. Eu, ao contrário, defendi, e defendo, que uma
canção não é uma sobreposição de dois discursos, palavras e música, mas sim um novo discurso
resultante da união dos outros dois. A poesia não precisa de muletas musicais, como a música não
precisa de muletas poéticas. São duas diferentes linguagens que se fundem numa nova matéria
plástica (uma nova linguagem) que é uma canção.
Embora não nestes exactos termos, essa questão estava presente nessas nossas discussões dos anos
1960. Por exemplo: um cantautor, à época bem conhecido, e que teve um papel importante na
denúncia do Estado Novo e da guerra colonial, “musicou” (era assim que se dizia) um poema de
João Apolinário, um poeta neorealista português, que começava “É preciso avisar toda a gente…”
[1] e, com um discurso poético denunciatório, vigoroso e empolgante, acabava “É preciso,
imperioso e urgente / mais flores, mais flores, mais flores!”. Pois esse cantautor, pondo agora de
parte outras questões de gosto e de qualidade composicional ou interpretativa, terminava a canção-
poema com uma triste linha melódica descendente, uma aterragem quase forçada na tónica, ainda
por cima em rallentando e quase lavado em lágrimas: “mais flores… mais flores… maaaiiis
flooooores”, com um requebro choroso no primeiro “mais flores”. Quando ouvi isso cometi um erro
diplomático que me custou um corte de relações: “Mas os fascistas, quando ouvirem isso, vão
adorar! É uma proclamação de impotência da esquerda!” E este era um caso entre muitos. O grande
actor e humorista Raúl Solnado, que era um democrata e um homem progressista, chegou mesmo a
fazer um entremez televisivo intitulado “O baladeiro” em que ridicularizava essa proliferação de
cantautores-estudantes que, em nome das melhores causas, colavam poemas à força em suportes
melódicos medíocres e sempre iguais.
Hoje, esta distorção da criação artística continua a ser predominante na arte que é usada como um
mero meio de agit-prop pelas organizações e movimentos políticos, para quem a “justeza” dos
conteúdos continua a ser justificação suficiente para canções, actos teatrais, poesias ou pinturas de
uma confrangedora [aflitiva] pobreza estética e técnica [2]. Associada a esta distorção, aparece com
frequência a justificação populista de que “todos somos poetas, músicos, actores, pintores”, como se
o objectivo de aperfeiçoar os aspectos técnicos e estéticos da expressão artística fosse já, em si
mesmo, um pecado de elitismo classista, e não uma condição de aperfeiçoamento da expressão do
espírito humano.
De facto, toda a minha prática na oficina das canções me levou a concluir que, na criação artística,
não há questões de forma, entendidas como separadas do discurso ou dos significados. A forma é a
concretização material de um discurso, é a expressão gramatical de um discurso. A minha oposição
ao pós-modernismo resulta disso: de verificar que, no pós-modernismo, como já expliquei em
artigos anteriores, as questões formais são autonomizadas do discurso e, por isso mesmo, ganham
uma vida própria e acabam por se sobrepor à expressão artística [3]. A arte passa a ser uma forma de
exibição formal. O criador artístico deixa de se tornar universal através da criação e legitima a
ocupação do espaço comunitário através de práticas puramente formais, assentes numa exibição do
indivíduo que as propõe.
Interessa agora perceber de que maneira este formalismo pós-modernista acaba por se identificar
com o que parece ser o seu “oposto”: a prevalência do “conteúdo” sobre a “forma”, ou seja, a
concepção de que, numa obra, o que interessa é a evidência e a imediatez dos sinais discursivos –
concepção esta que foi teorizada por Jdanov no “realismo socialista”, ou seja, a concepção da arte
como uma mera ferramenta de agit-prop. É que a universalização que o criador consegue – ao
corporizar um discurso uno numa linguagem una –, tornando-se assim numa espécie de mensageiro
exterior e muito maior do que ele próprio, é de facto uma forma de se “desapropriar” da obra, de a
transformar em património de todos, de a tornar inteiramente apropriável por cada ser humano.
Porquê? Porque a forma observada pelo espectador-observador, ao ser por ele identificada e
apropriada, é objecto de uma renovação do seu sentido e, por isso, de uma recriação – por isso
referimos, em artigo anterior, que a criação partilhada é, sempre que há público, uma recriação. Mas
se a forma for o próprio sentido da obra criada, se a sua essência for um “aspecto” e não um
discurso, aí o discurso limita-se ao aspecto (como no pós-modernismo), não havendo inovação
técnica, nem discurso estético, nem uma razão ética – a “grande razão” de que falava Fernando
Pessoa. A separação entre forma e conteúdo será, pois, uma espécie de discurso da irrelevância e da
convenção, o inverso da criação artística: uma forma de apropriação, de não-partilha, de
propriedade privada.
Seja pela utilização (sistemática e sistematizada) de jogos formais, de efeitos, de private jokes, de
quaisquer formas de exibicionismo onde o autor não se expõe a si mesmo, seja (na aparente inversa)
pela cristalização em clichés ideológicos e políticos propostos de modo acrítico, seja ainda pela
tentativa da impossível separação entre um suposto “conteúdo” e um suposto “suporte formal” – o
que sempre subjaz a essa objectiva recusa da partilha é a impossibilidade de apropriação efectiva da
obra pelos que dela possam usufruir e a proposta da sua percepção como algo exterior à
humanidade.
O autor e professor teatral Gordon Craig escreveu: “Só depois de varrida dos lábios a palavra
‘efeito’, eles estarão prontos para pronunciar essoutra palavra Beleza” [4]. As consequências deste
princípio são facilmente constatáveis no trabalho dos actores, no teatro, no cinema e na televisão.
Mas também no mundo das canções ele é perfeitamente aplicável, ainda mais claramente nas
situações de interpretação ao vivo. A consciência dessa oposição entre exibir-se eexprimir-se
permite-nos discernir “em directo” o império dos efeitos formais como roupagem do vazio de
emoções e do descompromisso. Mas, como já tentei demonstrar em artigos anteriores, o vazio de
emoções e o descompromisso não são neutrais, são escolhas, são modos de compromisso com a
não-expressão e o não-compromisso.
A primeira aconteceu em 1974, quando regressei a Portugal após 11 anos de exílio em França.
Perante a convulsão social e política que se desencadeou em Portugal na Revolução dos Cravos, os
cantautores que se vinham opondo ao regime fascista logo se reuniram e, no dia 1 de Maio,
fundaram o primeiro colectivo de cantautores para “se colocarem ao serviço do povo e da
revolução” (naturalmente esse colectivo viria a cindir-se em vários mais pequenos, em função das
respectivas pertenças políticas, ideológicas ou partidárias). Muitos dos cantores, e a quase totalidade
dos quadros políticos locais que os solicitavam, tinham o maior desprezo pelo apuramento das
condições técnicas em que decorriam os “cantos livres”, as intervenções no terreno das lutas – em
suma a qualidade do som que chegava aos ouvidos do público presente. Era o regime do “qualquer
coisa serve” e do “o que é preciso é agitar a malta [a galera]”. Lembro-me de que foi essa a primeira
grande discussão: eu defendia – influenciado pelas questões que me vinha levantando em anos
recentes e também pela leitura de McLuhan (“o meio é a mensagem”) – que era importantíssimo
cuidar da qualidade do som das nossas sessões de cantigas, que o próprio resultado, a utilidade e o
“respeito pelo povo” exigiam que o som recebido pelo público permitisse perceber o melhor
possível o que era dito ou cantado em cima de um palco, de um estrado, de um tractor agrícola, no
meio da rua. Por isso, no grupo a que pertencia (o Grupo de Acção Cultural “Vozes na Luta”),
decidimos que a nossa primeira tarefa importante era encontrar o dinheiro necessário para comprar
uma boa aparelhagem, com bons microfones, bons amplificadores e boas colunas de som, e uma
carrinha de 9 lugares com espaço para a aparelhagem e os instrumentos de forma a termos
autonomia e rapidez de intervenção. A segunda medida interna adoptada foi a obrigatoriedade dos
ensaios, isto é, da preparação técnica musical – partes corais, estudo colectivo das percussões, das
guitarras e outros instrumentos tradicionais e transportáveis (flautas rústicas, gaitas de foles, etc.).
A segunda história é mais recente. Em 2007 fui convidado a fazer um concerto na Casa da Música,
na cidade do Porto, sob o lema “Música e Revolução”, no dia 1º de Maio. A Casa da Música é um
notável edifício recentemente construído, com um orçamento gigantesco, da autoria de um grande
arquitecto holandês (Rem Koolhaas). Sendo essa a encomenda, compus um concerto na base do
meu reportório mais politizado e, além dos 14 instrumentistas em palco, convidei um grupo de 18
percussionistas que têm vindo a desenvolver uma escola de percussões tradicionais portuguesas
(bombos, timbalões e caixas), chamado Tocà Rufar. A minha ideia era que esses 18 percussionistas
se mantivessem todo o concerto nas duas coxias [corredores] laterais do anfiteatro de 1000 lugares
e, ao longo do concerto, fossem “dialogando comigo” com uma partitura muito precisa de
intervenções, como que representando a “voz telúrica” das massas populares. Mas o ensaio do
concerto foi um desastre, os técnicos (dos melhores que temos em Portugal) não conseguiam
resolver a confusão sonora que resultava das intervenções das percussões a partir da plateia, os
atrasos do som, os batimentos e ecos nas paredes; em consequência disso, os próprios
percussionistas não se conseguiam ouvir uns aos outros, resultando uma cacofonia assíncrona de
barulhos. Por fim, depois de o técnico me dizer: “Agora decide quais os 300 espectadores que vão
conseguir ouvir o concerto”, acabámos por decidir tirar os percussionistas da plateia e colocá-los no
palco, atrás dos outros músicos e de frente para o público. Eu tinha ido com a ideia, muito falada, de
que aquela era a melhor sala do país para se fazer música. Com este incidente, percebi que o que
presidiu àquela arquitectura foi um determinado conceito de música: não a música popular
amplificada, com um certo tipo de pressão acústica e de dinâmicas, mas a música erudita não
amplificada e feita no palco, na disposição frontal burguesa definida para os teatros a partir do séc.
XVIII. Com todos os músicos, e eu próprio, bastante indispostos e preocupados, cheguei junto do
líder dos percussionistas e disse-lhe: “Rui, agora já percebes o que é uma arquitectura de classe?”
Os construtores da Casa da Música – supor-se-ia de “todas as músicas” – desenharam tecnicamente
aquela sala para uma música específica: a música erudita (sinfónica, de câmara, coral ou operática)
não amplificada. Por ironia do destino, e certamente com os programadores preocupados em “puxar
público” para o novo espaço, a inauguração oficial da sala foi um concerto de música pop-rock.
Mas para o arquitecto a opção incorporada nas paredes – uma sala para elites com o gosto educado
para a “grande música” – não era, a meu ver, apenas uma opção técnica. Foi uma opção de classe:
um grande investimento público foi destinado a uma específica e privilegiada camada social.
Aliás, a questão das técnicas na expressão artística tem muito que se lhe diga, nomeadamente na
música e, dentro dela, na oficina das canções. Tentarei desenvolver este assunto em próximo artigo.
[3] Como referi em nota de artigo anterior, o pós-modernismo nasceu na arquitectura (Charles Jencks, 1977). João
Bernardo fez-me notar o seguinte: “O modernismo surgido no começo do século passado não inaugurou apenas a nova
estética funcionalista mas, ao mesmo tempo, prosseguiu a remodelação das técnicas de construção. Quando os
modernistas diziam que a forma estética devia revelar a função técnica eles estavam ao mesmo tempo a criar funções
técnicas novas. Por isso os seus inimigos diziam depreciativamente que se tratava de uma «arte de engenheiros». Agora,
passeias pela cidade e vês um prédio em construção. Pela técnica não consegues adivinhar se o edifício vai ser ou não
pós-modernista. Os pós-modernistas mantiveram inteiramente a técnica de construção desenvolvida pelos modernistas e
no fim é que acrescentam coisinhas, para iludir essa técnica. Daí o tal carácter, como tu dizes, de exibição formal”.
[4] No original: Once let the word effective be wiped off our lips, and they will be ready to speak this word Beauty –
Craig, E. Gordon [1911]. On the Art of the Theatre. London: Theatre Arts Books. 1980, pág. 37.