Guerras Do Brasil
Guerras Do Brasil
Guerras Do Brasil
O ESTADO DE S. PAULO
Guerras
desconhecidas
do Brasil
Rugas.
Jacob Silva,
garimpeiro que
participou da
Guerra de
Perdidos, no
Pará, entre
1976 e 1980
7 8 9 10 11 12
%HermesFileInfo:H-2:20101219:
1979 GOIANÉSIA
DO PARÁ
Guerra
Guerra de Guerra dos
da Água* PARÁ 11 São Pedro de Fardados do
1910 JACUNDÁ Água Branca CEARÁ Mestre Silvino
Guerra de IMPERATRIZ
1960 a 1980
AMAZONAS 9 São Bonifácio
MARABÁ
MOMBAÇA 1937
(não ocorreram
1987 SAMPAIO
MARANHÃO mortes)
SÃO GERALDO
Pág. H20 e H21 DO ARAGUAIA
Guerra de
PIÇARRA 4 CRATO Guerra do
Sampaio PIAUÍ 85 Caldeirão
1979
Guerra dos DOM 1936
40 Perdidos INOCÊNCIO
JARAGUÁ VERDELÂNDIA
JANUÁRIA
PONTES E LACERDA
GOIANÉSIA
Guerra de
2
Guerra de 11 Santa Dica Guerra Guerra de
Pontes e GOIÁS 5 70 Cachoeirinha
1925 de Vargem
Lacerda
1977 Bonita 1967
Pág. H4 e H5 1913
ECOPORANGA
2
PATO BRANCO
556
1957 Guerra do
11 Quebra Milho
1943 e 1951 Arranca Capim União
Pág. H8 e H9 1959 2 de Jeová mortos em 32 revoltas
Pág. H14 e H15 (não ocorreram 1952 a 1953 desconhecidas no século 20**
Guerra dos mortes)
6 Barbudos
SOLEDADE ENCANTADO
JACUIZINHO
1935 a 1938 SOBRADINHO ARROIO DO TIGRE
Pág. H3
RIO GRANDE DO SUL
Guerra dos Guerra do
5 Frigoríficos
SANTANA DO
LIVRAMENTO 24 Pinheirinho **NÃO ESTÃO INCLUÍDOS OS 40 MORTOS NA GUERRA DOS
PERDIDOS, VÍTIMAS DAS ARMAS DOS PISTOLEIROS
1917 1902 CONTRATADOS POR FAZENDEIROS. TAMBÉM NÃO FORAM
INCLUÍDOS OS 200 MORTOS EM CALDEIRÃO CITADOS PELO
GENERAL CORDEIRO NETO
INFOGRÁFICO/AE
T
ram a morte de pelo menos 556 anos 1960. O levantamento das revoltas se ba- MERGULHO NA HISTÓRIA DO PAÍS
civis e tiveram 100 baixas ao re- seou ainda nos dados dos Departamentos de
primir 32 revoltas desconheci- Ordem Política e Social (Dops) dos Estados e
das ou simplesmente esqueci- das atas do Conselho de Segurança Nacional ● Para revelar conflitos desconhecidos ou sim-
das no Brasil ao longo do século (CSN)edosrelatóriosdoextintoServiçoNacio- plesmente obter novos dados de revoltas que
20.OsepisódiosmostramaparanoiadoEstado nal de Informações (SNI), relativos aos anos se perderam na memória do País, o repórter
brasileiro em usar seu poder de fogo para con- 1970 e 1980, guardados no Arquivo Nacional. Leonencio Nossa (à esq. na foto) e o repórter
ter beatos barbudos, rezadeiras, descontentes Pesquisascomplementaresforamfeitasemcen- fotográfico Celso Júnior, ambos da Sucursal
coma política econômica ou pequenos agricul- tros culturais e cartórios criminais e cíveis. de Brasília do Estado, percorreram 13,5 mil
toresem busca de terra, e tomar partido de lati- quilômetros nos últimos 17 meses e entrevista-
fundiários e grileiros nas brigas com posseiros. Investigação. Foram consultados ainda diá- ram 335 pessoas em 41 cidades de 10 Esta-
Foram revoltas populares sem ideologia ou rios de famílias, cartas, atas de compra e venda dos. Eles descobriram que é sempre de terra,
tuteladepartidospolíticoseinstituiçõesmilita- deterras,livretosmimeografados, papéisdepa- lama, poeira e com buracos o caminho que
res ou religiosas. Neste caderno, essas revoltas róquias,telegramas,cartõespostais,boletinspo- leva a um lugar onde ocorreu uma revolta po-
não são chamadas de guerras pelo grau do con- liciais,denúnciasdecomarcas,bilhetesderebel- pular. Outra constatação é que a viagem para
fronto de forças e sim pelo poderio de fogo da des, dados de hospitais e cemitérios, documen- entender guerras do passado ajuda a explicar
repressão e pelas marcas deixadas nos lugares tosdeprefeituras,gravações,recortesdejornais problemas sociais e econômicos do presente.
onde ocorreram. O que ficou são traumas de regionais,álbunsparticulares defotos, arquivos
guerra – e é assim que, do Norte ao Sul do País, privadosdeagentespoliciaisedasForçasArma-
testemunhaseprotagonistasreferem-seaoepi- das. Para localizar testemunhas e participantes confiança em beatos messiânicos são caracte- pelo Movimento dos Sem-Terra – , além de ou-
sódio do qual participaram. A máquina policial dosconflitos, recorreu-se até a cadastros defre- rísticas de boa parte das revoltas e elos com tros mais antigos, como a Guerra do Contesta-
do Estado nunca olhou o tempo histórico para gueses de compra a fiado no comércio. movimentos como Canudos e Pedra do Reino, do,emSantaCatarina(1912-1916)eRevoltasda
tratar revoltosos dos sertões. A fúria da repres- Uma viagem aos cenários das revoltas genuí- no Nordeste. E em cada revolta o Estado via Vacina(1904) e da Chibata (1910), no Rio. Fica-
são foi igual em momentos de exceção ou de nasdaterrapõeemdebateaversãodequeapopu- Antônio Conselheiro, líder de Canudos. ram ainda de fora mortes causadas por repres-
democracia. laçãocivildossertõesassistiucaladaaduasditadu- A pesquisa não contabilizou mortes em con- são em greves nas grandes cidades.
A elaboração do mapa das revoltas e as repor- ras do período republicano – os regimes Vargas e flitos que ganharam destaque nacional e são
tagens deste caderno tiveram como ponto de militar. Embora sem conexão, esses conflitos re- semprelembradosporentidadesnão-governa- estadão.com.br
partida a consulta a coleções de inquéritos cri- velam,emsuasoma,afacedeinconformismodos mentais, como o que resultou no assassinato
minais,dasSecretariasdeSegurançaPúblicado brasileiros, que vivem em rincões tão distantes e dolíderseringueiroChicoMendes,em1988,no No site. Documentários fotográficos,
Rio Grande do Sul, Paraná, Pará, Pernambuco e isolados que parecem integrar outra nação. Acre, o de Corumbiara, em Rondônia (1995), e vídeos, áudios e registros das revoltas
MinasGerais–Estadossemprecitadosnosestu- A pobreza, a falta de alternativas de renda e a Eldoradodo Carajás, no Pará (1996) – apoiados estadão.com.br/e/h1
EDIÇÃO JOSÉ EDUARDO BARELLA / COORDENAÇÃO RUI NOGUEIRA, BEATRIZ ABREU E LUIZ WEBER / REVISÃO DE TEXTO NEEMIAS FREIRE / PROJETO GRÁFICO FÁBIO SALES/ DIAGRAMAÇÃO MARCOS AZEVEDO / ILUSTRAÇÕES FARRELL /
INFOGRAFIA GLAUCO LARA / EDIÇÃO DE FOTOGRAFIA CLAYTON DE SOUZA / PESQUISA FOTOGRÁFICA DALMO SENA / TRATAMENTO DE IMAGEM EQUIPE DE FOTOGRAFIA DA AGÊNCIA ESTADO
O ESTADO DE S. PAULO SÃO PAULO, 19 DE DEZEMBRO DE 2010 Especial ● Guerras desconhecidas do Brasil
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Encantado (RS)
✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚
1902 ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ 24 mortos
Terror contra o fanatismo. No alto de uma montanha
no município gaúcho de Encantado, uma brigada de policiais mi-
litares de Porto Alegre e de cidades da região eliminou a bala e
decapitou caboclos, imigrantes, plantadores de erva-mate e tra-
balhadores sem emprego, muitos deles veteranos da Revolução
Federalista, que vagavam pela região e eram conhecidos por seu
fanatismo religioso. Os “monges” e “monjas” do Pinheirinho,
como ficaram conhecidos, causavam preocupações em comer-
ciantes e autoridades. O Estado aderiu à paranoia da elite local.
Guerra
refeituras, igrejas e cartórios da Outro testemunho inédito é o do inten-
P
região centro-oriental do Rio dente Francisco Oscar Karnal, que está nos
Grande do Sul possuem docu- arquivos da Prefeitura de Lajeado. Num ofí-
mentos que contribuem para ti- cio de 1902 ao presidente do Estado, Borges
rar a Guerra do Pinheirinho da de Medeiros, ele reclama que o líder do mo-
lista de lendas gaúchas. Papéis vimento se intitulava “deus” e tinha conse-
espalhados nas repartições públicas, anexa- guido arregimentar número “considerável”
dos em processos de terra, casos policiais e de adeptos. “A ordem pública manteve-se
inventários de família revelam que a repres- sempre inalterável, havendo somente a
são aos monges contou com logística de guer-
ra e trabalho de inteligência.
A repressão usou infiltrados – “bombeiros”, do mencionar um ajuntamento de fanáticos,
nas matas de Encantado, município de La-
jeado, imediatamente dispersos por forças
na linguagem da época – para controlar o foco
rebelde. Em carta de 18 de julho de 1902, o
delegado de Lajeado, José Lucca Non, infor-
ma ao intendente (prefeito) Francisco Oscar
Karnal que a população pretendia vingar a
morte de três moradores que tinham partici-
pado de um ataque aos monges. “Os morado-
Pinheirinho
fazendeiros que expandiam seus negócios e
da Brigada Militar”, escreve.
Contexto. Para Gino Ferri, 87 anos, autor de um livro sobre o conflito, a repressão brutal não causou surpresa: ‘Foi um massacre visto com bons olhos pela população do período’
Especial ● Guerras desconhecidas do Brasil SÃO PAULO, 19 DE DEZEMBRO DE 2010 O ESTADO DE S. PAULO
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Pirenópolis (GO)
1925 ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ 11 mortos
Cerco à ‘República dos Anjos’. Os homens liderados por Benedicta Cypriano Gomes, a
Dica, uma jovem goiana de 19 anos, não sabiam diferenciar os sentidos esquerda e direita. Para ensi-
ná-los a marchar, ela mandou amarrar palha em um dos pés deles. À frente do Exército dos Anjos,
como chamava o grupo, Dica ditava a marcha: “Pé de paia, pé sem paia.” Ela era criança quando se
espalhou a notícia de que tinha morrido e logo depois ressuscitado. Mais tarde, sua casa no povoado
da Lagoa, distrito de Pirenópolis, virou centro de romaria. A influência popular da ‘Santa do Rio do
Peixe’ assustou coronéis e padres de Goiás. A 14 de outubro de 1925, 79 homens da Polícia Militar,
apoiados por jagunços, cercaram a sede da República dos Anjos. Era o Dia do Fogo, como o episódio
ficou conhecido no sertão goiano. Dica sobreviveu e tornou-se líder religiosa e política na região.
C
uma série de depoimentos, vi-
viam ao redor da Casa da Cura,
ondeDicavivia,naLagoa,povoa-
do às margens do Rio do Peixe,
rebatizado por ela de Rio Jor-
dão. Era o centro das festas do Divino e de São
João, tradições do período colonial nos sertões
goianos, promovidas por Dica, que inovava
com ritos e símbolos de uma nova religião. Au-
toridadescomeçaramaquestionarosriscossa-
nitários de um lugar sem condições para aten-
der a população que chegava para as festas.
Diante das reações contrárias de padres e
coronéis da região, Dica colocou seu exército
à disposição da oligarquia estadual de Totó
Caiado, aliado do Palácio do Catete desde
1912, para engrossar, em 1924, a resistência à
ColunaPrestesna cidadede Goiás,a167 quilô-
metros de Pirenópolis. O Exército dos Anjos
não chegou a enfrentar os tenentistas, mas
voltou para o vilarejo da Lagoa mais influente.
Em reação, a Igreja Católica publicou em
seusjornais queDica era“prostituta”,“histéri-
ca” e “tresloucada”. As romarias de sertanejos
para vê-la tinham reduzido o número dedevo-
tos da Festa do Divino Pai Eterno, promovida
pelos padres em Trindade.
O jornal Santuário de Trindade defendeu a
destruição do reduto de Dica. “Já se viu tama-
nha asneira! É o caso para a polícia intervir se
não quiser uma repetição de Canudos.” Outro
periódico, O Democrata, bancado pelos coro-
néis,chamou Dicade “Leninedosexo diferen-
te” e “Antônio Conselheiro de saias”, acusan-
do-ade charlatanismoeprática ilegal damedi-
cina. “Canudos é de ontem, e nós sabemos o
que foi Canudos!”, advertiu.
4 Dica foi
perseguida
pela Igreja
e temida por
coronéis
Os textos dos jornais foram recuperados pe-
la historiadora da Universidade de Brasília
Eleonora Zicari Costa de Brito, autora da tese
“A construção de uma marginalidade através
do discurso e da imagem: Santa Dica e a corte
dosanjos”.Eleonorarecuperou umdepoimen-
to da líder sertaneja durante o processo do Dia
do Fogo. A historiadora observa que, à época,
era“reservado àmulher osilêncioemtodos os
campos discursivos”. “(Ela) arrisca-se na ten-
tativa de se fazer ouvir nesse campo onde os
ouvidosevozes são masculinos. Sobreseu dis-
curso todos silenciam, até seu advogado.” Na
declaração, Dica nega, por exemplo, que te-
nha rebatizado o Rio do Peixe de Rio Jordão.
Um dos raros documentos sobre a chegada
dos militares para atacar o povoado de Dica
está no cartório de Pirenópolis. Carta do pri-
meiro-tenente Benedicto Monteiro ao chefe
de polícia do Estado, Celso Calmon, de 21 de
outubro de 1925, anexada ao processo-crime
de Dica, cita as mortes por “fogo”, isto é, à
bala, dos “fanáticos” José Gomes Cypriano
(tio de Dica), Manuel dos Anjos, José Bellos,
Manuel Rosa de Oliveira, Cordeiro de Faria e
JacinthoPiresNovato.Odocumentocitatam-
bém cinco mortos na “água” – seguidores de
Dica que tentaram atravessar o Rio do Peixe:
AmbrosinaRocha,umamulherchamada Pero- do de Dica. Trata-se de Manoel Sebastião de moradora de Lagolândia, dá mais detalhes da ceu às 3 da tarde. Foi chorar só as 8 da noite.
lucia, um homem conhecido por Jacob, Ma- Souza, o Manoel Malaquias. Um documento históriadosMalaquias.NolivroSantaDica:His- Nasceu de novo”, conta. “Mais tarde, vi minha
nuel Sant’Ana e Adelino Borges. de identidade recente indica que ele tem 80 tória e Encantamentos, publicado no ano pas- irmã morta muitas vezes. Ela podia ser jogada
anos. Os vizinhos afirmam que ele tem mais de sado, ela conta que, em 1950, Dica recebeu no fogo, mas não queimava”, ressalta. “Pode
Trabalho servil. À época, Goiás era um Esta- 95 anos. “Do fogo eu não sei contar nada. Eu ameaçasdocomercianteJoséMendonçaSobri- ser divino, pode ser diabólico, pode ser da luz,
do pouco povoado e com uma das receitas não me implico com essas coisas, não”, diz. O nho, o Zezinho. Ao ser informada da chegada pode ser das trevas, mas ela tinha mesmo po-
mais baixas do País. A capital não chegava a ter medo da polícia ainda é vivo na comunidade. de um grupo de jagunços para matá-la, ela con- deres.”
10 mil habitantes. O tempo do ouro era um “NãovoudizerqueoManoelMalaquiaspartici- vocou Benedito e outros homens para esperar O processo-crime do Dia do Fogo inclui um
capítulodopassado.Famílias queconstruíram pou ou não porque não quero incriminar nin- os inimigos na beira de uma estrada. Benedito depoimento atribuído a Dica em que ela diz
casarões ainda nos anos da mineração manti- guém”,dizo vizinhoFranciscoAraújo, 84anos. atirou e matou Zezinho. Dica foi presa. A famí- ter sido “desonestada” – violentada sexual-
● Romaria nhamsuainfluênciacomoapoioaosparlamen- A moradora Durvina de Oliveira, a dona Vi- lia de Zezinho mandou 20 jagunços matar Pe- mente enquanto dormia – por um seguidor
A casa de tares aliados do governo federal e à custa de ta, 85 anos, diz que, com certeza, um irmão de dro, filho de Dica. conhecido por Cocheado. Nos depoimentos
taipa e chão trabalhoservilem suas propriedades decaden- Malaquias, Benedito, estava no Dia do Fogo. obtidos pelo Estado em Pirenópolis, Cochea-
batido de tes. Doenças de chagas e beri-béri atingiam as Benedito, morto nos anos 1990, era casado Ataque. “Não sei se era de Deus ou do demô- do aparece como “apaixonado pela madri-
Lagolândia cabanas de palhas e casas de pau-a-pique das com uma irmã dela. Vita diz se lembrar do dia nio, eu sei que ela tinha o dom do profeta”, nha”. Foi ele quem teria salvo Dica, ajudan-
onde Dica vivia beirasderiosecórregos.Ossoldadosdoexérci- em que “Madrinha Dica”, depois de sobrevi- afirma Bernarda Cypriano Gomes, 82 anos. A do-a a atravessar o Rio do Peixe quando ela era
ainda recebe to de Dica vieram da pobreza, da fome e do ver ao ataque policial, ser condenada e liberta, única irmã viva de Dica frequenta uma das atacada e caçada pelos policiais. “Quatorze
devotos; hoje, trabalho quase escravo das fazendas. resolveu atender a outro pedido do governo muitas igrejas evangélicas que proliferaram balas bateram na barra do vestido de minha
ali são Nãoépossívelafirmarque existealgum par- estadual para reforçar uma tropa enviada a emPirenópolis nasúltimasdécadas, novasad- irmã, mas voltaram sem causar ferimentos”,
realizadas ticipante do Dia do Fogo ainda vivo. Na histó- São Paulo para combater os revoltosos de versárias do culto à Santa do Rio do Peixe. diz Benedita.
cirurgias ria oral do antigo povoado da Lagoa, porém, 1932. “Eu era menina. Lembro que não ficou Bernarda diz que o movimento religioso em Amoradora Floripa Araújo da Silva,82 anos,
espirituais um morador recluso e de pouca conversa é homem aqui.” Lagolândia começou com o nascimento da ir- construiu em homenagem a Dica uma capela
apontado como ex-integrante do grupo arma- A professora Waldetes Aparecida Rezende, mã, em 1906, na fazenda Mozondó. “Ela nas- noaltode umdos morrosemvolta de Lagolân-
O ESTADO DE S. PAULO SÃO PAULO, 19 DE DEZEMBRO DE 2010 Especial ● Guerras desconhecidas do Brasil
%HermesFileInfo:H-5:20101219:
‘‘
Guerra
QUATORZE
BALAS
BATERAM NA
BARRA DO
VESTIDO DE
MINHA IRMÃ,
MAS
VOLTARAM
SEM CAUSAR
da Santa
FERIMENTOS”
Bernarda
Cypriano
Gomes,
irmã de Dona
Dica, sobre o
Dica
ataque da
polícia no
Dia do Fogo
Mistério.
A irmã
Bernarda:
‘Pode ser
divino, pode
ser diabólico,
mas ela
tinha mesmo
poderes’
1925 não acabaria com a crença no mito de O corpo de Dica foi enterrado na sombra de
Santa Dica. Por mais de 50 anos, ela recebeu uma gameleira plantada em frente à casa de
em sua casa no centro de Lagolândia devotos Lagolândia, com a cabeça voltada para a igreja
vindos dos mais distantes sítios e povoados do povoado. A casa de taipa e chão batido ain-
dossertõesdeGoiás. Ali, fazia cirurgias espiri- da recebe devotos de Santa Dica, que tem à
tuais,pediaaos anjosacuradedoentesedistri- disposição dois grandes quartos com oito ca-
buía um óleo considerado milagroso pelos mas cada.Os pacientes não pagam pelas cirur-
fiéis, feito com essências do Cerrado. gias espirituais. “Hoje, operam aqui os mes-
A fama chegou aos grandes centros. A mu- mosanjos daépocada madrinha”,afirma Divi-
lher acusada de se opor à civilização, nas pala- na Soares da Silva, 60 anos, responsável há 24
vras dos adversários, teve os traços do rosto anos pela casa.
desenhados pela pintora modernista Tarsila Divina é tratada por devotos que ainda bus-
do Amaral e os feitos descritos em poema por cam milagres em Lagolândia como sucessora
Jorge de Lima. deSanta Dica.Divinadiz queo trabalhodesen-
dia, Dica desfez seu exército de homens arma- volvido na casa não pode ser confundido com
onde em 1925 os poli- dos, mas não abandonou a política. Ela elegeu espiritismokardecistaoucandomblé.“Aspes-
ciaismontaramtrincheira. Aliexistiadé- o marido, o jornalista Mário Mendes, prefeito soas daqui são as mesmas da Igreja Católica.
cadas antes uma outra capela frequentada por de Pirenópolis, nomeou aliados para cargos As duas coisas combinam muito bem”, afir-
seguidores de Dica. Floripa conta que um dia fictícios de subdelegado de Lagolândia e ma. “Tudo o que aconteceu aqui eu sei, mas
apareceuumcírculonocerradofeitopela“ser- apoiou e se opôs a candidatos nas eleições não gosto de falar”, diz, num clima de misté-
Retrato. Desenho de Dona Dica feito pente enganadora do mundo”. “Dica juntou municipais e estaduais. rio. Ela critica os evangélicos: “Estão se asse-
por Tarsila do Amaral em 1938 (acima); 12 homens e foi lá”, diz. Ela morreu em 1970, em consequência da nhoreando de um povoado que foi criado pela
ao lado, gravura retrata Dia do Fogo A repressão ao povoado naquele outubro de doença de Chagas, num hospital de Goiânia. madrinha Dica com orientação dos anjos.”
Especial ● Guerras desconhecidas do Brasil SÃO PAULO, 19 DE DEZEMBRO DE 2010 O ESTADO DE S. PAULO
%HermesFileInfo:H-6:20101219:
6
Guerra
do Caldeirão
● Ofensiva
Decisão de
atacar o
Caldeirão foi
tomada na
sede do
governo
estadual, em
Fortaleza, e
contou com a
participação
do bispo do
Crato
O ESTADO DE S. PAULO SÃO PAULO, 19 DE DEZEMBRO DE 2010 Especial ● Guerras desconhecidas do Brasil
%HermesFileInfo:H-7:20101219:
s estrondos dos aviões que co de Juazeiro, mandou prender o beato e ma- volta do templo. A comunidade plantava pe- A igreja ainda não estava concluída quando
O
bombardearam os maltrapi- tou o boi. O sítio acabou sendo vendido e as quenasroçasduranteodiae,ànoite,participa- chegaram as primeiras tropas para reprimir o
lhos nas montanhas da serra famílias, depois de 32 anos na área, expulsas. va de longas orações. Antônio guarda uma fo- movimento, a 11 de setembro de 1936. “Eles
ficaram na memória do agri- Cícero novamente deu proteção ao grupo de to antiga do beato. “Ele (José Lourenço) era prenderam gente, mas soltaram. Não acha-
cultor Antônio Inácio da Sil- José Lourenço, entregando o sítio Caldeirão forte, mais alto do que eu. Dava conselhos a ram o que o povo dizia. Saímos de lá, fomos
va, hoje com 82 anos. “O dos Jesuítas, de 500 hectares, sua propriedade, todos. A casa dele ficava a 50 metros da igreja. para Engenho da Serra e de lá para cá”, conta.
avião passava por cima, jogava bomba”, lem- para o beato. Em sistema de mutirão, as famí- Ele morava com uma irmã, a Inácia”, lembra Avisado, José Lourenço conseguiu escapar.
bra. “Muitos de nós ficavam embaixo, sob um liasplantavamroçasparasealimentar,criavam Antônio. As casas foram incendiadas. O beato e uma
cortina de fumaça.” animais e faziam os trabalhos comunitários. O agricultor diz que no sítio “o negócio era parte dos seguidores passaram a viver como
Antônio vive hoje com a mulher Antônia, trabalhar e rezar”. As condições de saúde nômades na Serra do Araripe, fugindo da re-
com quem teve 13 filhos, num sítio do interior Roça e orações. Durante a seca de 1932, eram precárias. Um dos irmãos de Antônio, pressão. Depois de destruir as casas e levar as
do Crato, a cerca de 40 quilômetros do local uma das mais fortes do Nordeste, o Caldeirão Luiz, de 8 anos, morreu de sarampo. portas da igreja, a polícia espalhou a versão de ● Liderança
da tragédia. Ele relata que era menino quando teria abrigado 18 mil pessoas, segundo histo- Grupos políticos do Cariri acusavam José que o beato vivia num verdadeiro harém, com Uma das
o pai, João Inácio da Silva, de Campina Gran- riadores. As vítimas da seca preferiam o sítio Lourenço de ter vínculos com o comunismo. 16 mulheres. poucas
de, Paraíba, foi a Juazeiro do Norte, Ceará, se aos “currais” montados pelo governo na beira Diziam que o beato era um risco para a ordem imagens do
aconselhar com Padre Cícero. O religioso das estradas, que serviam como verdadeiros pública da região, pois tinha o controle de mi- Emboscada na mata. Em maio do ano se- beato José
orientou o devoto a levar a família para o sítio campos de concentração de flagelados. lhares de “fanáticos”. guinte, o capitão José Bezerra foi atraído a um Lourenço:
do beato José Lourenço. Ali, era o refúgio de O beato José Lourenço e os fiéis de Padre Obeato sevaliadaamizadecomPadreCíce- suposto esconderijo do beato por um grupo durante a
retirantes das secas e devotos miseráveis de CíceroconstruíramumaigrejadedicadaaSan- ro para não ser importunado pela polícia. liderado por Severino Tavares, aliado de José seca de 1932,
Cícero.João InáciovoltouparaaParaíba, ven- to Inácio de Loyo- la. As palhoças Coma morte do padre, em1934, surgiaa chan- Lourenço. Num lugar chamado Mata dos Ca- uma das
deu o que tinha e levou a mulher, Maria de dos devotos ficavam em ce dos adversários do beato de acabar com o valos, próximo à Vila Conceição, na Serra do mais fortes do
Jesus, e cinco filhos para o sítio. Caldeirão.Notestamento,Cícerohavia deixa- Araripe, Bezerra e seis subordinados sofre- Nordeste,
Natural da Paraíba, José Lourenço Gomes do o sítio para a ordem dos salesianos, que ram uma emboscada de mais de cem homens. Lourenço
da Silva chegou a Juazeiro em 1890. A partir logo passou a cobrar aluguel e a pedir a reinte- O capitão não chegou a tirar a arma. Levou deu abrigo no
daí, aproximou-se de Padre Cícero. No Ceará, gração de posse do terreno. cacetadas no crânio. Ainda morreram cinco sítio do
Lourenço integrou seitas de penitentes, gru- O governo cearense, os salesia- policiais e três “fanáticos”, chamados de San- Caldeirão a
pos de autoflagelação que rezavam na Sema- nos, a polícia política e a militar to Antônio, Santo Onofre e São Pedro. 18 mil pessoas
na Santa em cemitérios do Cariri. O beato se estavam determinados a acabar com a Aliados de José Lourenço passariam a vida
instalou no sítio Baixa Dantas, onde passou a comunidade. Argumentavam que o redu- negando que o beato tivesse participação no
produzir pequenas roças. Cícero passou a to poderia se transformar num foco de resis- episódio. Severino Tavares e Sebastião Mari-
mandar para o sítio de José Lourenço os reti- tência comunista. Antes de um ataque, o capi- nho,outrohomem ligadoaele,teriamplaneja-
rantesquechegavamdetodapartedoNordes- tão José Bezerra, veterano nas pelejas contra do o ataque como vingança pela destruição da
te, fugindo das estiagens e de maus-tratos cangaceiros, esteve no sítio num trabalho de comunidadedoCaldeirão.Era guerradeguer-
de coronéis. inteligência. Passando-se por comprador de rilha nas matas do Araripe.
Em 1921, José Lourenço foi acusado A reação veio rápida. De Juazeiro, o tenente
de promover a adoração do Boi Pinta- AssisPereiracomandouumgrupode30solda-
dinho, um presente de Padre Cícero,
queganhouoanimaldocoronelDel-
miro Gouveia. Devotos di-
Políticos dos da polícia para vingar a morte de Bezerra.
O governo cearense decidiu enviar apoio. In-
suflado por prefeitos da região, a 11 de maio de
ziam queaurina do animal
acusaram 1937os aviões bombardearam acaatinga onde
era benta. Para conter o
“fanatismo”, o coro-
nel Floro Bartolo-
meu,chefepolíti-
beato de
os “fanáticos” se refugiavam. A operação era
apenasparaamedrontar,argumentouCordei-
ro Neto.
O chefe de polícia resolveu comandar pes-
7
ligações com soalmente a ação para liquidar a comunidade
de fanáticos. Dois grupos de 45 homens cada
Pesadelo. Antonio
Inácio da Silva,
sobrevivente do
Caldeirão: ‘Os aviões
soltavam bombas’
Especial ● Guerras desconhecidas do Brasil SÃO PAULO, 19 DE DEZEMBRO DE 2010 O ESTADO DE S. PAULO
%HermesFileInfo:H-8:20101219:
1937 ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ 6 mortes
Barbas cortadas à força pela ditadura. Plantadores de fumo se recusaram a fazer negó-
cios com atravessadores e comerciantes. Não andavam armados, usavam barbas espessas, eram reli-
giosos e, por isso, tratados como fanáticos de uma seita messiânica. Duzentos policiais foram envia-
dos para a região. Em um campo de concentração, instalado numa ‘mangueira’ (curral), os agentes
aplicaram veneno e cortaram cabelo e barba dos rebeldes. Agentes infiltrados caçaram nas matas
da região o principal líder do movimento, André França, o Deca França, executado após se render.
Estácio Fiúza, o Tácio, outro líder, também foi fuzilado. A loucura da ditadura Vargas enxergava
ligações dos barbudos com rebeldes de um movimento ocorrido seis anos antes na região contra o
seu governo, que aderira aos paulistas na Revolução Constitucionalista de 1932.
● Luta inútil
O fumo,
amaldiçoado
pelos
barbudos, é o
principal
produto
agrícola dos
moradores do
vilarejo. O
povoado está
cercado por
plantações de
soja.
Guerra
dos Barbudos
preciso enfrentar um labirinto se do fanatismo defendida pelo padre Valde- queriam dar entrevistas. Vizinhos dizem que,
É
de estradas de terra, despenha- mar Cirilo Verdi no livro Soledade dos 72 anos depois do massacre dos barbudos, os
deiros e pinguelas quebradas Monges Barbudos e das Pedras Preciosas Costa não perdoaram as autoridades e a polí-
para se chegar à casa da única não explica sozinho o movimento. Seus cia. Após um dia de negociação, Lori aceitou
barbuda viva. A agricultora Do- líderes também não têm o perfil dos he- conversar. Explicou que a família ainda guarda
nária Duarte, 82 anos, mora róis de organizações políticas que com- mágoa pelo tratamento recebido pelos ances-
num sítio do município de Arroio do Tigre, no bateram os regimes de exceção. Eles são trais no campo de concentração. Ao ver a foto-
Fundão, uma região de terrenos áridos, cheios os excluídos da história dos excluídos. grafia com os rebeldes ajoelhados, Lori aponta
de pedra e pouco valorizados no centro do Rio TácioeAndréFrança, oDeca,eram“co- para o primeiro, da direita para a esquerda. “É
Grande do Sul. lonos fortes”, como chamam por aqui meu avô, Alípio Costa”, diz, emocionado.
Pelo caminho, carcaças de animais substi- agricultores com certa posição social, do- Lori revela que seu pai, Orlandino Costa, o
tuem placas de sinalização. As famílias costu- nos de terra, animais e plantações de fu- avô Alípio, Tácio Fiúza, Crescêncio, Antônio,
mam fincar cabeças de boi nas cercas como mo. Assim também eram Alípio Costa, Al- Gregório Rodrigues e Alfredinho, integrantes
homenagem aanimais “amigos”, que por anos fredo e tantos outros que decidiram não da Revolta dos Barbudos, foram enterrados
transportaram as folhas amarelas de fumo
dos morros para as prensas e galpões de seca-
gem, na terra baixa – aqui, o carro de boi conti-
‘Os barbudos cortar mais as barbas e substituir os plantios
de fumo por roças de alimentos. Alípio tinha
200 hectares de terra. Em pouco tempo, le-
no sítio. “Os troncos velhos estão todos ali no
quintal”, diz o agricultor, apontando para um
pequeno cemitério ao lado de sua casa.
nua a ser o principal meio de transporte nos
sítios.Cadafamíliapintacomumacordiferen-
queriam a giões de sem-terra se juntaram a eles, num
movimento pacífico que tinha como um dos ‘Bandidos e comunistas’. As terras onde vi-
te as cabeças dos animais.
A princípio, Donária evitafalar sobre a revol-
ta. Depois, faz críticas aos “fanáticos”, como se
paz, mas era seus pilares a religiosidade.
Uma rara fotografia dos rebeldes está no Ar-
quivo Público de Porto Alegre. Na imagem, cin-
vem Lori e seus irmãos começaram a ser culti-
vadas por Pedro Gonçalves da Costa, o Pedro
Barnabé, no final do século 19. Ele era pai de
tivesse vergonha de ter participado do movi-
mento. Era uma criança quando começou a se-
uma paz co barbudos estão ajoelhados. Atrás, militares
sorridentes.Depoisdeumasemanadecoletade
Alípio e avô de Orlandino, daí o nome de Rin-
cão dos Barnabés. A família plantava fumo e
guir o tio, Estácio Fiúza, o Tácio, líder dos bar-
budos. “É como se estivesse vendo tudo ago-
ra”, diz a agricultora. “Minha mãe deu o que
estranha’ depoimentos nos municípios de Arroio do Ti-
gre,Soledade,Sobradinho,EspumosoeJacuizi-
nho, o Estado conseguiu identificar um dos re-
criava ovelhas. “Era gente bem de vida”, conta
Lori. “Diziam que os barbudos eram bandidos
e comunistas. Bandidos foram eles que sa-
fazer para tirar essa religião da minha cabeça, tratados.AfamíliadelemoranoRincãodosBar- quearam tudo, levaram 180 pelegões (pele pa-
desvirei”, relata. “As pessoas sofreram muito.” do (1912-1916). Ele é descrito como um movi- nabésouRincãodosCostas,a13quilômetrosde ra montaria) e joias das gurias.”
Como outras rebeliões populares das dita- mento que arregimentou homens miseráveis estradadeterraapartirdocentrodeJacuizinho. Baleado e perto da morte, Tácio pediu para
duras do século 20, a Revolta dos Barbudos e sem-terra influenciados pela figura mítica Num sítio vivem em regime de comunidade ser enterrado na mangueira (curral) da pro-
passouaolargo doslivrosdehistória,desquali- do monge João Maria, um andarilho que atra- trêsnetosdorebeldeAlípioCosta,barbudotor- priedade de “tio” Pedro, morto anos antes.
ficada como um movimento meramente mes- vessou rincões do Paraná, Santa Catarina e turado pela polícia. Um dos principais focos da Pediu que não chamassem o lugar de cemité-
siânico. As poucas obras publicadas no Rio Rio Grande do Sul. revolta, o Rincão dos Barnabés foi cenário do rio, mas de jardim. No túmulo dele, embaixo
Grande do Sul sobre o assunto jogam o episó- Depoimentos obtidos pelo Estado mos- segundoataque dastropaslegaisaos barbudos. deum pé de cinamomo, foi escrito: “Jardim de
dio na lista de grupos que tinham ligação com tram, porém, que o movimento dos barbudos Os agricultores Lori, Luiz Adalberto e Tere- Maria Santíssima”. Num gramado entre o ce-
outros conflitos, como a Guerra do Contesta- tinha causas econômicas bem definidas. A te- za – filhos de Orlandino e netos de Alípio – não mitério e a casa, os Costas ergueram uma pe-
O ESTADO DE S. PAULO SÃO PAULO, 19 DE DEZEMBRO DE 2010 Especial ● Guerras desconhecidas do Brasil
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O CORPO
DELE FOI
PICADO,
ANTES
DE SER
ENTERRADO.
AINDA
JOGARAM
PEDRAS
POR CIMA”
Gilmar
Rogério
Wendel,
sobre
o líder
barbudo
Deca França
Tradição.
Lori, neto de Alípio
Costa: ‘Os ricos
ficaram loucos,
pois os barbudos
defendiam
terra para todos’
quena igreja e colocaram a imagem do anjo da res do vilarejo. O povoado está cercado por da Brigada Militar até o local onde os barbu-
guarda. Era despistepara nãohaverrepresálias plantações de soja. Grandes produtores pres- dosse refugiavam. Na época, ele tinha 23 anos.
Repressão minou apoio a de bispos e autoridades. O templo é dedicado a sionaram para a família vender as terras. Os Pelas contas de Carniel, cerca de 1.500 pes-
Tácio, que no movimento dos barbudos era Costas resistem. “Meu pai, Orlandino, dizia soas se reuniam na capela de Santa Catarina.
Getúlio Vargas na região considerado um anjo. “Foi um santo”, diz Lori. que não venderia isto aqui nem por uma bola “Foram tantos tiros que furaram com balas de
de ouro”, relata Luiz Adalberto. “Tentaram fuzil o galpão atrás da igreja. Uma bala acertou
● De sandálias de dedo, o agricultor Gilmar Fanatismo. O agricultor diz que passou a in- até tirar a igreja do Tácio, mas fui ao bispo de o peito de uma criança de colo. O coração apa-
Rogério Wendel, 35 anos, divide o tempo en- fânciaouvindohistóriasdeAlfredinhoedeAlí- Cruz Alta dizer que ninguém ia acabar com o receu”, diz. O líder dos barbudos, conta Car-
tre a colheita e a prensa de folhas de fumo e pio. “Eles pregavam que a pessoa tinha de ter sagrado nem com o jardim onde estão os tron- niel, saía da igreja quando foi abordado por
as pesquisas sobre a história dos barbudos. uma família digna e trabalhar. Suor no rosto é cos velhos. Aqui ninguém planta soja.” Júlio da Silva Teles, fazendeiro influente em
Morador de Coloninha, povoado de Arroio do sagrado. Muita gente confundiu, mas tinha fa- Numasegundaviagemàregião,oEstadovol- BoaVistaquehaviachamadoabrigada.“Quan-
Tigre, um dos palcos da revolta, ele juntou natismo sim”, reconhece. “Os ricos ficaram tou a encon- trar Lori. Mais aberto, diz que do o Tácio ia passando pelo portão, o velho
amigos e parentes e filmou o curta “O Grito de loucos, pois os barbudos defendiam terra para passou a orientar parentes a falar Júlio atirou”, completa. “Tácio foi levado na
Bamo”, uma alusão ao “Bamo” (Vamos!) dos todos”, completa. “Todo o ser humano tem sobre a guerra: “Eu man- padiola. Acenou para o pessoal e morreu.”
líderes do movimento. Os 15 minutos do filme direito de ser dono da terra que é de Deus.” tenho a doutrina do meu Moradores de Boa Vista não gostam de falar
dividiram os moradores. Muitos não gostaram Lorilembraqueoslíderesdosbarbudoseram pai e do meu avô. É uma do combate na capela de madeira, que anos
da visão positiva dos barbudos. O diretor do contra o plantio de fumo, o que preocupou os história linda.” depois foi substituída por um templo de alve-
curta interpretou Deca França. donosdasbodegas,quecontrolavamaven- O aposentado Nilo naria. Reclamam que os agricultores dos vila-
“Pelo que pesquisei, o corpo dele foi pica- dadealimentosemantinhamexclusivi- Lucílio Moura, de Boa rejos da região, simpáticos aos barbudos, pas-
do, esquartejado, antes de ser enterrado. Ain- dade na compra de fumo. “Os gran- Vista, cedeu ao Estado saram a enxergá-los como cúmplices dos as-
da jogaram pedras por cima.” Além dos líde- des se revoltaram, os militares umamalademanuscri- sassinos dos líderes do movimento.
res Tácio e Deca, foram mortos pela repres- se revoltaram.” tosdeantigosmorado- O comerciante João Pedro Trevisan diz que
são os barbudos Benjamim, Antônio Vital e Após o massacre, os bar- res do povoado. Um os barbudos causaram revolta porque que-
Júlio Cabeça e uma criança durante o ataque budosperderamterras.Hu- dos documentos é um riam levar a imagem de Santa Catarina. “Eles
a Boa Vista. "A História passa o rodo nessa milhado, Alípio Costa foi romance, como cha- (policiais) se afobaram e fizeram a coisa erra-
história que brota do povo", reclama. preso, teve a barba cortada mam histórias rima- da. Ocorreu o tiroteio. Vai julgar como? Foi
A cúpula dos barbudos foi dizimada, mas a e a cabeça raspada e ainda das, escrito nos anos tudo confuso”, diz.
revolta deixou consequências: fontes de jogaram veneno na cabeça 1940 por um anôni- Era na mercearia de Pedro Trevisan, pai de
água e matas consideradas sagradas foram dele. O homem nunca mais mo sobre a revolta João Pedro, que os barbudos recebiam apoio.
preservadas pelos descendentes dos rebel- serecuperou.Atéasuamor- dos barbudos. O tra- A mercearia, um velho galpão de madeira, ain-
des, a figura do bodegueiro desapareceu e te, em 1960, enfrentou ton- balho, datilografado em cinco daestádepé.JoãoPedrodizqueumadashistó-
os agricultores passaram a negociar direto teirasetremedeiras.Conse- folhas, dá o cronograma do conflito, aponta riasrelatadaspelopaifoiadaviolênciapratica-
com as indústrias de cigarro. A repressão guiu, porém, que o Rincão locais dos confrontos e nomes de represso- da contra Andressa Carvalho, considerada a
também minou o mito em torno de Getúlio dosBarnabésnãofosseocupadopelosbode- res e rebeldes. reencarnação de Santa Catarina pelo grupo.
Vargas nos povoados da região gaúcha de gueiros e grandes proprietários de terra. Um dos personagens citados no roman- “Soldados a levaram para a parte de trás do
Centro Serra. O fumo, amaldiçoado pelos barbudos, é ceaindaestávivo.OagricultorRodolfoCar- altaretiraramahonradela”,diz.“Os barbudos
o principal produto agrícola dos morado- niel, de 96 anos, foi quem levou os agentes queriam paz, mas era uma paz estranha.”
Especial ● Guerras desconhecidas do Brasil SÃO PAULO, 19 DE DEZEMBRO DE 2010 O ESTADO DE S. PAULO
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1937-1938 ✚✚ ✚✚ ✚✚ ✚✚ ✚✚ ✚✚ ✚✚ ✚✚ ✚✚ ✚✚ ✚✚ ✚✚ ✚✚ ✚✚ ✚✚ ✚✚ ✚✚ ✚✚ ✚✚ ✚✚ ✚✚ ✚✚ ✚✚ ✚✚ ✚✚ ✚✚ ✚✚ ✚✚ ✚✚ ✚✚ ✚✚ ✚✚ ✚✚ ✚✚ ✚✚ ✚✚ ✚✚ ✚✚
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Mar de sangue no sertão. Documentos do Arquivo Histórico de Pernambuco revelam que a
ditadura Vargas mobilizou o Exército e policiais de quatro Estados para massacrar mil sertanejos co-
mandados por Quinzeiro, líder messiânico do arraial de Pau de Colher (BA). A ofensiva rendeu a mais
sangrenta chacina do Estado Novo e uma das maiores violações de direitos humanos por forças legais
do Brasil no século 20. As crianças sobreviventes foram entregues a famílias abastadas de Salvador.
estemunhasdaofensivalança- presençada equipeepediraminformaçõespa- ram. Eles me levaram”, diz. “Quem foi, mor- co. Na outra, meia dúzia de religiosos primiti-
T
da em dezembro de 1937 con- ra localizar testemunhas da revolta que vivem reu; mas meu pai escapou e passou seis meses vos e pequenos agricultores armados com ca-
tam que as mulheres do ar- na vasta região que abrange partes do Piauí, da presoem Salvador. Morreu em1979. Depois da cetes de marmeleiro – árvore típica da caatin-
raial corriam em direção aos Bahia e de Pernambuco. Foi assim que se che- guerra, fui para São José, morar com a madri- ga, como o arbusto pau-de-colher, que deu
canos dos fuzis dos soldados gou a Ana Rita. nha Nenzinha.” nome ao povoado. Os caceteiros, como os pe-
na tentativa de impedir com Rodeada de filhos, netos e bisnetos, a serta- NumadastrincheirasdePaude Colheresta- quenos agricultores foram descritos nos rela-
lençóis e anáguas a visão dos atiradores, que neja de olhos castanhos e cabelos compridos vam fazendeiros piauienses e baianos, a Igreja tóriosoficiais,estavam agrupadosemumvila-
disparavam com as armas um pouco inclina- lembra de Norberto, o pistoleiro que a salvou, Católica, o governo de Getúlio Vargas, os in- rejo, uma espécie de Canudos do Estado No-
das.Era paranão acertarascrianças, mas, em um “matador” que andava com bornal de bala terventores da Bahia, do Piauí e de Pernambu- vo, acusados de assaltar propriedades e impe-
meio ao fogo cruzado, ninguém foi poupado. dir o transporte de gado e cabras pelas estra-
Horas depois do tiroteio, sob a fumaceira das da região.
dos tiros que cobria a caatinga, o pistoleiro Um dos relatórios analisados foi escrito por
Guerra
Norberto Pereira, guia da polícia, retirou Optato Gueiros, capitão da Polícia Militar de
dos braços de uma mulher ensanguentada a Pernambucoque chefiou,entre19e21dejanei-
menina Ana Rita Pereira Neta da Silva, de 3 ro de 1938, um total de 97 homens da brigada
anos. A mãe da criança morreu. O pai, José pernambucana, integrante da terceira e últi-
Rodrigues de Souza, o Zé Caboclo, foi preso ma campanha contra os caceteiros.Ele entrou
e torturado. no povoado antes da hora combinada com o
A menina não entrou em uma das “carro- comando central da operação, chefiado pelo
ças salvadoras” que levaram os órfãos da tenente-coronel Augusto Maynard Gomes,
de
guerra para o porto de Casa Nova, na divisa homem de confiança de Vargas que tinha sido
com o Piauí. Dali, embarcariam de vapor pa-
ra Juazeiro e depois um trem até Salvador –
onde seriam entregues a famílias abastadas
como empregados domésticos e, em muitos
Pau de interventorde Sergipe,de1930a1935.A opera-
ção contava ainda com efetivos de batalhões
do Exército em Salvador e Aracaju e das polí-
cias da Bahia e do Piauí.
Colher
casos, escravos. A sobrevivente de Pau de
Colher foi escondida por Norberto para não Resistência. O documento comprova que a
ser levada. brutalidade da ditadura Vargas não se limitou
Hoje com 76 anos, Ana Rita vive num sítio àrepressãodefocos daclassemédia,organiza-
em Riacho do Meio, no sopé da Serra Verme- dos por partidos políticos nas grandes cida-
lha, no semiárido piauiense. Para se chegar des. Por meio de sua rede de polícias esta-
até lá, a pouco mais de 100 quilômetros do duais,Vargasrecorreu àviolênciapara contro-
municípiode SãoRaimundoNonato, épreci- lar focos de resistência também na área rural.
so enfrentar uma estrada de terra quase in- No relatório, Gueiros aponta 157 mortos no
transitável. É o caminho que liga a civiliza- pendurado no peito. Da mãe, Maria Inácia Pe- centro de Pau de Colher e 40 rebeldes ataca-
ção ao remotolugar, isolado pela serra toma- reira, ouviu dizer que era “bonita”, “fortona”, dos por uma patrulha do Piauí. Há ainda a lista
da de angicos e canafístulas. Ali percebe-se “branca e de olhos azuis”. de 20 mortos na fazenda do Janjão, em São
uma diferença de fuso histórico. O sertão de “Pelejei nestes anos todos para me lembrar RaimundoNonato,numsupostoataque àpro-
hoje está distante da realidade nos grandes da minha mãe. Não consegui. Dizem que que- priedade. Um livro esgotado escrito pelo ex-
centros e parece acordar e dormir num tem- braram as pernas dela. O Norberto entrou no prefeito de Casa Nova Raimundo Estrela, Pau
● Repressão
Os relatórios
preparados
pela polícia do
Estado Novo
acusam os
líderes do
arraial de
assaltar
propriedades e
impedir o
transporte de
gado e cabras
pelas estradas
da região
O ESTADO DE S. PAULO SÃO PAULO, 19 DE DEZEMBRO DE 2010 Especial ● Guerras desconhecidas do Brasil
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coletiva, as casas dos líderes dos caceteiros e ços de telhas. Depois, Gregório leva ao local CONTINUA
➻
os pontos onde chefes rebeldes mataram e ondeSenhorinho eÂngelo Cabaçoforamen- NA PRÓXIMA
foram mortos. terrados. “Depois da guerra de 38, o pessoal PÁGINA
Quando é informado que os visitantes são veio aqui arrancar os ossos, que foram quei-
deumjornaldeSãoPaulo,Gregórioseemocio- mados para os dois não virarem bicho”, diz.
na. Corre para debaixo de um umbuzeiro e “A coisa que eu mais queria era fazer uma
chora.Ésurpreenden- estátua do Senhorinho. Ninguém sabe o que
te encontrar no ele pensava, porque reuniu tanta gente e en-
meio do nada al- frentou a polícia. É um filho daqui. Eu queria
guém preocupa- olhar para a estátua e entender o que ele
do com a memó- pensava”, diz. “Ninguém sabeo que Se-
ria do País. nhorinho queria.”
“Eu sabia O juazeiro onde os caceteiros su-
que alguém biam para ficar mais perto do céu não existe
viria para cá mais. Um outro, frondoso, onde havia a fei-
contar a história do radoarraial,maisabaixodoacampamen-
Resgate. Ana Rita foi salva por pistoleiro durante ataque ao arraial de Pau de Colher Pau de Colher. Isso to, serve de proteção para carneiros e
foi tudo escondido, bodes contra o sol abrasador do
do fazendeiro Janjão, diz se lembrar da chega- gente! Ninguém sabe meio-dia. A caatinga está verde
da dos caceteiros à propriedade. “Gente da disso”, diz, gritando. “Te- neste mês de fevereiro. Asas
fazenda chegou gritando: ‘Lá vem o pessoal
doscaceteiros...’ Nesse dia,Janjãotinhamata-
do uma vaca. Os caceteiros mataram dez ca-
Os confrontos nho fé em Deus que essa histó-
ria vai ficar conhecida.”
Gregório guarda fragmen-
brancas e juritis dão voos ra-
santesporcimadosxique-xi-
ques, favelas, muçambês e
pangas. Tocaram fogo em tudo. Quem podia,
correu. Rodei oito dias no mato, chupando
se estenderam tos de ossos, que diz terem
sido encontrados durante
umbuzeiros.
Gregório reclama que as
água de caroá, comendo umbu”, conta. “De-
pois, veio a polícia atrás deles. Quando foi à
noite, no alto da serra, vi o fogão. Morreu mui-
por um a capinação, balas de fu-
zis, cachimbos, pedaços
decerâmica,garfoseanti-
autoridades do município
de Casa Nova tentam es-
conder a história de Pau de
ta gente.”
território de gas garrafas. Ele leva a
equipe por uma trilha
Colher.Oagricultordemar-
couaáreadoantigoacampa-
Isolamento. Santa mora numa casa de tijolo
e telha sem energia elétrica com o irmão Ru-
bem, de 87 anos (outra testemunha do confli-
400 km2 até um pé de faveira, ar-
busto muito comum
em Canudos. Embai-
mento para evitar que al-
gum vizinho ocupe o lugar.
Ele fez questão de colocar
to), o sobrinho Leonardo, 37 anos, a mulher xo da árvore há uma limitesnoprópriosítio,on-
dele, Ana Maria, 38, e duas crianças. A família deu por um raio de 400 quilômetros quadra- cruz de aroeira. de cultiva milho e mandio-
vive do plantio de milho e feijão e da aplicação dos, envolvendo os povoados vizinhos de São “Aqui morreu Ânge- ca. No povoado vivem ao
de agrotóxico nas lavouras dos vizinhos. Ana José, Proeza, Minadouro, Cachoeirinha e loCabaço, umdos lí- todo 28 famílias de sitian-
Maria reclama que a escola municipal em que Olho D’Água – que pertenciam a São Raimun- deres dos cacetei- tes.
os dois filhos menores, Gilmara e Amilton, do Nonato, no Piauí –, e Lagoa do Alegre, São ros”, informa o agri- O filho de Gregório, Dir-
estudavam, a 6 quilômetros, fechou. A prefei- Bento e Ouricuri, distritos de Casa Nova, na cultor. ceu Nunes Rodrigues, 31
tura de Dom Damasceno não deu explicação.
Estãoisolados eesquecidos peloEstado brasi-
leiro, como na época dos caceteiros.
Ao longo do tempo, representantes dos
Bahia.
Guardião. Gregório
Rodrigues, que
preserva as marcas
do conflito, no local
onde os caceteiros
foram enterrados
‘‘
A POLÍCIA
TERMINOU
DE MATAR
QUEM
FICOU
VIVO”
Ana Rita
Pereira Neta
da Silva,
sobrevivente
que foi resgatada
por um pistoleiro
durante o ataque
ao arraial pelas
tropas do
Exército
Especial ● Guerras desconhecidas do Brasil SÃO PAULO, 19 DE DEZEMBRO DE 2010 O ESTADO DE S. PAULO
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Sobrevivente
perdeu
5 irmãos,
a mãe e a avó;
o pai foi preso
A casa tem três quartos, uma sala onde os
visitantes amarram as redes, uma cozinha e
um banheiro. A família conseguiu entrar num
programa de uma ONG e instalou uma placa
de energia solar. Maria Aparecida, o marido
Waldemar, 48, e três filhos menores podem
assistir à televisão até as 20 horas. Depois, a
energia é desligada. Waldemar é neto de João
Damasceno, um dos fazendeiros que ajuda-
ram a combater os caceteiros.
Hospitaleiros, os Rodrigues oferecem bo-
de, cuscuz e tapioca de jantar. Na mesa, Wal-
demar conta que trabalhou em uma metalúr-
gica e em um supermercado em São Paulo nos
anos 1980. Foi lá que, em 1982, votou pela
O ESTADO DE S. PAULO SÃO PAULO, 19 DE DEZEMBRO DE 2010 Especial ● Guerras desconhecidas do Brasil
Testemunha. PARA LEMBRAR
Dona Santa, de 84 anos, que
estava numa fazenda atacada
pelos caceteiros: oito dias
escondida no meio do mato
Líderes religiosos va chapéu de palha, túnica de algodão e sal-
gabundas – sandálias de couro cru que, na
dor Marcos Damasceno, um estudioso dos
conflitos na região. “Ele se entregou.”
participaram de mais pisada, jogava areia nas costas. Ele ficou pou- Com a morte de Senhorinho e Cabaço,
de um conflito co tempo na região, mas o suficiente para
formar um grupo de seguidores capaz de
Quinzeiro unificou os poderes militar e polí-
tico que já possuía com a chefia religiosa. As
repetir a experiência do Caldeirão. crianças e mulheres passaram a pedir a sua
A história dos conflitos de fundo messiâni- Pau de Colher é uma história também de bênção e os homens consultavam-no para
co da primeira metade do século 20 no Nor- traições e complôs. O primeiro líder do re- abrir novas trincheiras, definir escalas de
deste costuma misturar lideranças e revol- duto, José Senhorinho, teve seu poder mina- sentinelas e definir grupos de defesa. Foi na
tas. Veio do sítio Caldeirão, no Crato – pal- do por homens que estavam abaixo da hie- chefia única de Quinzeiro que Pau de Co-
co de uma sangrenta repressão do Estado rarquia do lugar. Senhorinho exercia mais o lher foi atacada na terceira e definitiva expe-
Novo, em 1937 – o homem que incentivou a poder religioso, deixando vagos os coman- dição militar.
formação do arraial de Pau de Colher. dos militar e político. Não há registro da morte do último chefe
O beato Severino Tavares, aliado do líder Joaquim Bezerra, o Quinzeiro, e Ângelo de Pau de Colher. Moradores da região on-
sertanejo José Lourenço, peregrinou pelos Cabaço passaram a comandar ações nos sí- de ocorreu o conflito dizem que o líder con-
sítios e povoados da divisa da Bahia com o tios e fazendas próximas sem autorização seguiu escapar do cerco montado pelo capi-
Piauí, no começo dos anos 1930, quando o de Senhorinho. tão Optato Gueiros, da Polícia Militar.
movimento de Lourenço no Ceará ainda Pau de Colher só caiu após três campa- Em seu relatório, Gueiros tenta incrimi-
não tinha sido disperso e atacado pela polí- nhas militares. Senhorinho e Cabaço morre- nar os beatos José Lourenço e Severino Ta-
cia. ram na segunda. “Senhorinho estava desilu- vares, que nessa época estavam escondidos
Nas andanças pela caatinga, Tavares usa- dido, deprimido, sem poder”, diz o pesquisa- na Serra do Araripe.
O silêncio do bispo
amigo do ditador Franco
● Os padres de São Raimundo Nonato, princi-
pal cidade do sudoeste piauiense e um dos pal-
cos dos conflitos entre a polícia de Getúlio Var-
gas e os agricultores de Pau de Colher, estão
em busca de um milagre atribuído a dom Ino-
cêncio López Santamaría, espanhol da ordem
dos mercedários que comandou a diocese de
1931 a 1958.
A biografia do religioso que a Igreja do Piauí
quer transformar em santo esconde, porém,
um capítulo polêmico. Inocêncio se omitiu du-
rante os ataques ao arraial de Pau de Colher
em 1938, formado principalmente por agricul-
tores pobres dos povoados piauienses. Não há
nos arquivos da diocese documentos que mos-
trem o envolvimento do bispo para impedir ou Comenda.
denunciar o massacre. D. Inocêncio
Num álbum de fotografias da casa paroquial com Franco,
de São Raimundo Nonato, o Estado encontrou espanhola, a comenda em 1947:
um retrato do religioso numa animada conver- da Ordem de Isabel, a Católica, em 1947. diocese quer
sa em Madri com o ditador Francisco Franco Manuscritos da Igreja em São Raimundo Bom Jesus do Gurgueia, Piauí, em canonizar
(1892-1975), que comandou o sanguinário regi- informam que Inocêncio nasceu em Sotovella- 1930. Em São Raimundo Nonato, ele manteve bispo que
me autoritário espanhol. O generalíssimo Fran- nos em 1874. Trabalhou em Madri e Roma an- uma forte relação com fazendeiros e políticos. foi conivente
co deu a Inocêncio, numa audiência na capital tes de ser nomeado pelo papa Pio XI bispo de O religioso morreu em Salvador, em 1958. com matança
DEPOIMENTO
Maria da Conceição Andreza Pinto, SOBREVIVENTE DO ATAQUE AO ARRAIAL, LEVADA COMO ESCRAVA A SALVADOR
13
‘Fiquei 3 dias num buraco Outro irmão, Bernardino, o Dino, levou
tiro na cabeça. Meu irmão Neuzinho tam-
bém morreu de tiro. Minha irmã Madalena,
Especial ● Guerras desconhecidas do Brasil SÃO PAULO, 19 DE DEZEMBRO DE 2010 O ESTADO DE S. PAULO
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1946-1951 ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ 11 mortes
O berço caboclo da luta armada. A guerrilha moderna no Brasil teve origens caboclas.
Na região entre os Rios Paranapanema e Centenário, no norte do Paraná, divisa com São Paulo,
eclodiu um movimento de posseiros ou “posseantes” que usava práticas da guerrilha no conceito
que se popularizou durante a Guerra Fria – as mesmas que constavam de manuais produzidos no
Leste Europeu, na China e na Rússia, adotados mais tarde por partidos de esquerda. A Guerra da
Coreia Paranaense, como os militares batizaram o episódio, ou do Quebra-Milho, como preferiam
os revoltosos, foi um movimento de migrantes paulistas e nordestinos que pegaram em armas para
permanecer em terras que o governo estadual havia liberado, mas prometidas a fazendeiros. Na fa-
se final, o Partido Comunista Brasileiro (PCB) usou o conflito como laboratório da luta armada.
“N Guerra
dobra o pé de milho lembra. Foi na mesma época em que morreu
para arrancar a espi- Chico Quiabo, um dos líderes dos posseiros.
ga, arranca, põe para Também morreram Hilário, Lazão, Queijo,
secar e depois debu- Zé Elias. “Era tudo terra devoluta. Ospoliciais
lha. As espigas eram chegaram para matar gente”, diz. “Teve tiro-
os rebeldes”, diz o mecânico José Jiménez, teio, voava bala.”
para explicar a violência e o nome dado pelos A família dela foi expulsa pelas tropas do
agricultores ao movimento armado popular sítio que ocupava. O governo colocou os Cha-
no Vale do Paranapanema. legre e outras famílias em caminhões e man-
A revolta do Quebra-Milho ficou marcada
namemóriadeJiménez.Eletinha9anosquan-
do “quebradores de milho”, como chamavam
os jagunços e policiais, entraram afobados na
oficina mecânica da família. “Queriam que
do Quebra- dou para Campo Mourão e Tuneiras do Oes-
te, região de mata fechada. Após os combates,
Lindalva acabou casando com um inimigo.
Waldemar Dal Bem, 81 anos, é filho de fazen-
deiros que estavam interessados nas terras
meu pai emprestasse o caminhão para trans- dos posseiros.
Milho
portar soldados e corpos de posseantes”, rela- A revolta do
ta. O pai dele, Sebastião, retirou uma peça do
veículosemqueossoldadosvissemedisseque
o carro não funcionava. Dias depois, o mesmo
grupo apareceu no centro de Porecatu trans-
portando quatro corpos. “O negócio foi feio.”
A partir de 1942, o interventor do Paraná,
Manuel Ribas, incentivou a migração de pau-
listas e nordestinos para a região norte do Es-
tado, uma área coberta pela Mata Atlântica. nezes, o Luizinho. O jagunço e cinco soldados nas faziam muito estrago.”
Ribas,no poder desde1932, nãoregularizou as morreram. Do lado dos posseiros caiu o agri- O processo que corria na Vara Cível de
terras ocupadas pelos posseiros. Em 1947, cultor Benedito dos Santos. Porecatu desapareceu. A professora
após o fim do Estado Novo e a redemocratiza- O jagunço José Celestino virou símbolo da Nair de Oliveira Félix da Silva, que toma
ção, assume o governo Moysés Lupion. O no- violência. Sua especialidade era atear fogo contado museuda cidade, relata que,há
vo governador, do PSD, passa a entregar as nas casas de peroba com telhado de tabui- poucos anos, um grupo de estudantes
terras sem títulos para fazendeiros com quem nhas. Passou a ser seguido dia e noite pelos foi proibido de apresentar na escola um
mantinha relações. informantes da revolta. Estava a caminho da trabalho sobre a guerra. “Ficou o ran-
OsirmãosRicardo,UrbanoeGeremiLunar- casa de uma amante na companhia de um me- ço,o medo, a covardia. Até hoje pou-
delli estavam na lista de beneficiados por Lu- nino quando foi surpreendido por um grupo cos admitem o que ocorreu.”
pion.Assimque chegaramà regiãopara tomar deposseiros.Ogarotofoi liberado.JoséCeles- Mora na cidade vizinha de
posse de 17 mil alqueires repassados pelo go- tinofoifuziladonaentrada daFazenda Prima- Centenário do Sul uma das últi-
verno estadual, os Lunardelli contrataram o vera. O corpo dele foi levado para o cemitério mas sobreviventes do grupo
pistoleiro José Celestino para comandar sua da Vila Progresso. Por temer os posseiros, o dos posseiros. A cearense Lin-
milícia.Lupionfezvistasgrossasparaaforma- governo mandou cem policiais acompanha- dalva Chalegre dos Anjos, 76
O ESTADO DE S. PAULO SÃO PAULO, 19 DE DEZEMBRO DE 2010 Especial ● Guerras desconhecidas do Brasil
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Quebra-Milho divide, ainda hoje, a família de presarial Atala comprou a Usina Central do festas. Gosto assim, de ser livre”, assegura. serviço no canavial, eu já vou indo.”
LindalvaeWaldemar.“Fizerampormerecer”, Paranáetodaaplantaçãodecana.Descenden- Comorostotomadoporsuorecinzas,Tere- Um capataz da usina chega para saber o que ● Novo
afirma Waldemar. Ele diz que o movimento tes dos posseantes trabalham na lavoura. za enfrenta o sol, a fumaça da queima e os está acontecendo. Trata-se de José Carlos Ri- cenário
era dominado pelos comunistas – na verdade, É época de queima e corte de cana. O cheiro bichos que fogem do fogo. Ela não tem filhos. beiro, 58 anos, um senhor de óculos escuros e Após o
ativistas do Partido Comunista Brasileiro forte do vinhoto impressiona quem trafega Vive para o trabalho. Só folga aos domingos. muita conversa. Foi aposentado pela usina de- conflito, os
(PCB) chegaram à região só no último ano do pelas estradas da região. Logo de madrugada, Tira cerca de R$ 7 por dia. Um acordo entre pois de 41 anos de trabalho. Diz que a usina posseiros
movimentoarmado.“Oscomunistas queriam porvolta de6 horas,ônibuslevamtrabalhado- sindicalistas e canavieiros prevê pagamento conta com 4 mil empregados. E está em fase de perderam
um campo de concentração aqui”, diz. “Eles res das cidades próximas para o campo. Com de pelo menos um salário mínimo mensal. modernização. “É um problema. Cada máqui- seus sítios. A
induziram os posseantes a irem contra os do- pano enrolado no pescoço e na cabeça, um napodesubstituircemtrabalhadores”, afirma. família
nos de terra.” Waldemar e um irmão chega- chapéu e blusa e calça rasgadas, Tereza Cor- Pesadelo. A trabalhadora diz que não gosta Ribeiro ouve desde criança histórias da Lunardelli
ram a trocar tiros com um grupo de posseiros. reia Oliveira, de 42 anos, é uma das dezenas de do Movimento dos Sem-Terra (MST). “Meu Quebra de Milho. Fala dos posseiros com en- estendeu seus
Líderes de posseiros reclamaram que o PCB mulheres que enfrentam o sol já forte da ma- Deus do céu, o MST quer acabar com nosso tusiasmo, mas se apressa em fazer associa- domínios na
exigiu,apenasporinteressedopartido,umacor- nhã para cortar cana. emprego”, reclama. No ano passado, um gru- ções com grupos sem-terra atuais. “Esse po- região.
do com o governo que estabelecia entre seus 12 Perdeu a conta de picadas de cobras, ata- po,ligadoàConfederaçãoNacional dosTraba- vo da bandeira verde e branca (Contag) quer Investiu na
pontos a punição dos “assassinos” e “mandan- ques de marimbondos e cortes no pé por fa- lhadores na Agricultura (Contag), ocupou implantar um outro sistema. Se não tivesse a montagem de
tesdemassacre”LupioneosirmãosLunardelli. cão. “Qualquer descuido, o facão corta a boti- umaáreadausina.Osproprietáriosculparama lei, esse povo até mataria gente”, diz. uma usina de
O acordo era feito por quem não queria nego- na”, diz. Moradora da VilaSanta Margarida, há Contag por uma redução no número de vagas “Hoje, está um pouquinho mais civilizado. cana e no
ciar, avaliaram os posseiros, que reivindicavam 20 anos ela tem a mesma rotina: acorda às 3h na lavoura. “Eles (sem-terra) são ferozes”, diz Mas é igual àquele tempo. Antigamente, ha- plantio de
apenas a permanência na terra. “Se o governo e para preparar a marmita: arroz, carne e feijão. Tereza. via mais crueldade.” Segundo ele, um bom canaviais. As
os fazendeiros não cumprirem esses 12 pontos, Às 7h já está na plantação. Almoça por volta de Atualmente,oquemaistiraoseusonosãoas trabalhador consegue ganhar até R$ 22 por pequenas
não cessaremos a luta armada”, diz comunica- 13hdebaixodesol.Oúnicobanheiroéumbura- máquinas colheitadeiras. Já são oito na usina. dianocorte dacana. “Mas,se formuito fraqui- propriedades e
dodopartido, de23deabrilde1951,encontrado co cercado por lona plástica bem no meio do “Não gosto dessa história de máquina. Colher nho, fica mais difícil. É complicado atingir o trechos
no Arquivo Público do Paraná. canavial. O trabalho termina às 16h. “Faço cana é melhor do que capinar”, diz. “Não tem piso e a empresa não pode ficar arcando com remanescentes
Após o conflito, os posseiros perderam meu serviço, caio na cama e durmo. Não vou a outro lugar para a gente trabalhar; quando tem esse prejuízo.” da Mata
seus sítios. A família Lunardelli estendeu Atlântica
seus domínios na região. Investiu na mon- desapareceram
tagem de uma usina de cana e no plantio REPRODUÇÃO - 1957
de canaviais. As pequenas proprieda-
des e trechos remanescentes da Ma-
ta Atlântica desapareceram.
PCB participou
O canavial ocupa toda a área
onde se desenrolou o teatro de
da fase final
operaçõesda GuerradoQue-
bra-Milho. Os Lunardelli do conflito e
foram à bancarrota nos
anos 1970. O grupo em- colecionou erros
A revolta do Quebra-Milho já era conhecida
quando lá chegaram representantes do Parti-
do Comunista Brasileiro (PCB) para coman-
dar o movimento. O partido, no entanto, in-
vestiu mais na guerra midiática, distribuindo
panfletos e declarações nos jornais. Até se-
Laboratório. O técnico de futebol e militante do PCB João Saldanha: fiasco no Paraná
15
tembro de 1951, quando os comunistas se reti- com os posseiros. O apelido João Sem Medo, ta da famosa Coluna Prestes, não tinha expe-
raram da área, não foram registradas mais dado pelo cronista Nelson Rodrigues, não tem riência de usar civis num conflito armado.
mortes. Mais tarde, a cúpula do PCB avaliou relação com o jagunço odiado pelos possean- A nova postura do partido, de repúdio à luta
que a luta armada não era o melhor caminho tes, também chamado de José Sem Medo. armada, levou dirigentes da sigla a jogarem na
de poder e apagou de sua história o envolvi- lata de lixo a experiência no Paraná. Em 1962,
mento com a guerrilha dos posseiros para- Delação. O partido deixou o campo de opera- com o racha no PCB e a criação do PC do B, a
naenses. A revolta ocorreu num período em ções no Paranapanema em setembro de 1951, experiência de guerrilha no Paraná voltava a
queasinstituiçõesestavam emfuncionamen- nove meses depois de entrar, quando Celso Ca- alimentarossonhosdoscomunistasagoradis-
to. Os comunistas foram chamados de traido- bral de Mello, um dos seus representantes, foi sidentes. Foi o PCdoB quem montou a guerri-
res pelos líderes caboclos, por terem revelado capturado pela polícia. Posseiros acusaram lhadoAraguaia,temposdepois,noSuldoPará.
táticas e números do movimento armado em Mello de entregar as estratégias guerrilheiras, o Um dos organizadores da guerrilha no Ara-
sessões de tortura. queteriapermitidoo desmantelamentodogru- guaia foi Pedro Pomar, dirigente comunista
Sob o sol. Um dos homens do PCB que fizeram a liga- po. Quando Moisés Lupion deixou o governo morto pelo regime militar em 1976. Pomar é o
Descendente ção entre o partido e os posseantes (possei- estadual,seusucessor,BentoMunhozdaRocha elo entre a guerrilha paranaense e a do Ara-
dos posseantes, ros)entrouparaahistóriabrasileirapelocami- Neto, passou a adotar uma política menos re- guaia, atuando ao lado de João Saldanha na
Tereza recebe nho do futebol. O jornalista e técnico João pressora contra os posseiros. montagem da logística do grupo armado no
R$ 7 por Saldanha–quechegaria àseleçãobrasileira –já A realidade da guerra de guerrilha foi dura Paraná. Anos depois, Saldanha e Prestes ava-
dia para tinha sido campeão carioca pelo Botafogo, em demais para um partido que, embora fosse liaram que o Quebra-Milho foi marcado por
cortar cana 1948, quando organizou a parceria do PCB dirigido por Luiz Carlos Prestes, protagonis- erros.
‘‘
FICOU O
RANÇO, O
MEDO, A
COVARDIA.
ATÉ HOJE
POUCOS
ADMITEM
O QUE
OCORREU”
Nair de
Oliveira Félix
da Silva,
professora
Especial ● Guerras desconhecidas do Brasil SÃO PAULO, 19 DE DEZEMBRO DE 2010 O ESTADO DE S. PAULO
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Piçarra (PA)
✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚
1976-1980 ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ 40 mortes
● Abuso
Documento do
extinto SNI diz
que o Exército
reconhecia a
truculência da
PM paraense e
era acusado
de atuar em
parceria com
policiais
corruptos
16
Homônima.
Edna de Souza, a
Dina, mesmo apelido
da guerrilheira
famosa: boatos de
que eram irmãs
D
tado no Arquivo Nacional, mento e avisaram à polícia do plano de ataque, DEPOIMENTO
em Brasília, revelam que a di- quecomeçariapelamanhã.Osposseirosmuda-
tadura se assustou com a no- ram a estratégia: se dividiram em três grupos
va guerrilha no Araguaia e ad- de 12 e ficaram afastados do local previsto para Edna Rodrigues de Souza, A DINA DOS PERDIDOS
mitiu que o movimento tinha o ataque. Lá, camuflados e agachados na mata,
causas justas. Os mesmos moradores que ser-
viramdeapoioàguerrilhadoPCdoB organiza-
ram uma revolta contra o Incra, que, inflama-
contaram 26 policiais e 8 pistoleiros.
Às cinco da manhã, a polícia percebeu movi-
mentos no mato e fez os primeiros disparos.
‘Eu queria morrer logo’
dopor grileiros, decidiu refazer aocupação na Quandocessaramostiros,osposseirosselevan- ● “Eles me derrubaram. Eu corri para o ma- co na cabeça e mãos para trás, fui levada
área, deslocando posseiros. Por trás de ações tarameatacaram.Umpolicialcaiumorto. “Um to e os policiais militares foram atrás. Quan- para Marabá, onde fiquei 15 dias. Escarra-
de despejo estava o grileiro Luiz Erland, o Ca- deleslevou umtironopé deouvidodeuma‘por do cheguei à minha casa, não tinha mais na- vam na comida e me davam para comer. Eu
reca, que chegou aos Caianos após o extermí- fora’ (espingarda), que a gente carrega pela bo- da. Só porcos mortos, livros destruídos. Fui queria morrer logo. O capitão Cleto disse
nio da guerrilha. ca, aquela venenosa”, relata Davi. “Morreram para a beira do rio com um sobrinho, Paulo, que eu não podia morrer ainda, tinha de con-
O agricultor João de Deus, que tinha sido quatro. Outros saíram correndo, mais à frente de 3 anos. Andamos a cavalo até Santa Lu- versar com eles. Me levaram presa para Be-
peão de um sítio de guerrilheiros, relata que a umcaiu”,diz.“Aturmafoidevagarinho;eleesta- zia dos Perdidos, distante oito quilômetros. lém. Passei 85 dias no total na prisão. Imagi-
primeira reunião dos rebeldes dos Perdidos va para se levantar quando tiramos o infeliz do Lá, me derrubaram do cavalo e me empurra- no que aqueles homens não eram policiais.
ocorreu na casa de Sebastião da Serra. Os sofrimento, como faziam com a gente, né? O ram com aquela arma com faca na ponta. Eram pistoleiros de farda. Só diziam que éra-
cunhados de João de Deus, Davi e Joel dos carapegava um pedaço depau e batia na cabeça Seguraram o menino. Só me chamavam de mos ‘o resto dos terroristas’. Sou de Pastos
Perdidos,assumiram aliderançadomovimen- dos caídos, para sair do sofrimento. Morreu terrorista. Me amarraram. Vi outros policiais Bons, Maranhão. Tenho 46 anos de Pará. Só
to, que brotava onde existiu um dos destaca- muito pistoleiro na picada”, acrescenta Davi. tirarem as roupas da minha amiga Helena. estou viva porque fiquei calada. Quem mata,
mentos da guerrilha. Relatório militar confirma as mortes dos Amarraram o marido dela, o Antônio, no ca- eu não sei. Tenha cuidado nessa pesquisa.
Osposseirossereuniramdepoisnumacaba- soldadosClaudiomiroRodriguese Ezio Araú- bresto de um jegue. O Antônio virou as cos- Na prisão, inventava histórias. Era pecado
na de palha que abrigou a escolinha da guerri- jo. O documento “Incidente em São Geraldo tas, a mulher dele pedindo socorro. Foi vio- mentir, mas não tinha outro jeito para sofrer
lheira Áurea Valadão, executada em 1974 pelo do Araguaia”, do extinto Serviço Nacional de lentada. Eu disse para um policial que prefe- menos. Não tinha jeito de morrer logo. João
Exército.PelascontasdeDavi,173homenspar- Informações,destacaque oExércitoreconhe- ria morrer a sofrer aquilo. ‘Uma mulher não viu que não foi o meu querer. Não existe um
ticiparam do encontro. Eles decidiram inter- cia a truculência da PM e foi acusado de atuar tem força para enfrentar homem’, respon- texto sem personagem, um teatro sem per-
romper o trabalho de remarcação de lotes. À em parceria com policiais corruptos. deu. Eu disse: ‘Para homem não, para covar- sonagem. Eu evito contar sobre os outros,
meia-noitede26deoutubrode1976,horacom- Apósoconfronto,policiaiscercarampovoa- de. Vocês não respeitam a farda do gover- mas tenho de contar essa história, a história
binada para o início da marcha até a picada dosembuscadosrevoltosos,retirandofamílias no’. Fui violentada também. Depois, com sa- que é minha.”
ondeestavamosfuncionáriosdoIncra,apenas à força. Um vizinho de Davi, Deusdeth Dantas,
O ESTADO DE S. PAULO SÃO PAULO, 19 DE DEZEMBRO DE 2010 Especial ● Guerras desconhecidas do Brasil
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● Orgulho
Posseiro
relembra
movimento:
‘Foi a
primeira vez
que gente
Guerra
pobre brigou
com gente
rica e
ganhou’
dos
Perdidos
17
o Deti, e dois filhos foram amarrados dentro de res, mas até hoje nenhu- semcolarno corpodela.Fazsuces-
casa. Os policiais bateram na mulher dele e vio- ma igual a mim.” so por aqui o cabelo moicano, no estilo do
lentaram duas filhas menores, de 12 e 13 anos.
Davi foi preso. “Fiquei um mês trancado nu-
macela.Mederamchoquesnalíngua,botavam
Posseiros que Se Dina do Araguaia éhoje um mito, a ponto
de agricultores acreditarem que ela não mor-
reu, a homônima dos Perdidos está bem viva.
jogador Neymar, e roupas justas e coloridas.
Os jovens ouvem CDs piratas das bandas Ra-
veli, Vetron, Tupinambá, Rubi e Águia e aces-
fio elétrico na orelha e no cotovelo, você cai
morto, não vê nada. Meus dentes quebraram
deram apoio à Dina dos Perdidos mora numa casa de tábua
coberta de palha à beira da BR-153, na Vila
sam blogs e sites para ver ofertas de emprego.
O sonho é conseguir vaga numa mina da Vale.
tudo”,lembra. “Me perguntaram de coisas que
eu não sabia que existia no mundo.” Diz que
valeu a pena. “Foi a primeira vez que gente po-
guerrilha se Bandinha, em São Geraldo do Araguaia. Com
o atual marido, Carlos, vive da venda de pico-
lés e bebidas. A renda é de R$ 400 por mês.
A qualificação é o empecilho. Parte da garota-
da se esforça para ser aceita como recruta nos
quartéis construídos pelo Exército no tempo
bre brigou com gente rica e ganhou. Antes não
tinha MST, era só a gente. Foi uma guerrilha
levantaram Quando o Estado chegou à Vila Bandinha,
Edna ou Dina dos Perdidos não estava. Tinha
da guerrilha.
Não há mais guerrilha. O mundo dos Perdi-
sofrida, mas vitoriosa. Naquele momento não
morreuposseiro.Balançouogoverno.Elesnão
tinham ordem para me prender. Tinham or-
contra o Incra ido a São Geraldo para um ritual que faz há
anos: tentar convencer o INSS de que tem di-
reito à aposentadoria. Depois de desembarcar
dos é outro. As procissões luminosas deram
espaço para rodeios e vaquejadas, o boi to-
moucontadafloresta,oscarros daValeacaba-
dem para me matar.” de um pau de arara, ela mostrou a carteira de ram com a monotonia nas estradas de chão e
Veterano de dez garimpos, o cearense Jacob passoupelatorturaem1976,comoaguerrilhei- trabalho,marcadaporum“cancelado”emver- barracos foram construídos nos barrancos do
Silva,80anos,nascidonosertãodosInhamuns, ra Dinalva Teixeira, do Araguaia, dois anos an- melho. O envolvimento na revolta foi o sufi- rioparaabrigarmigrantesquecontinuamche-
chegouaosPerdidosem1963.Viuaguerrilhado tes. Militares espalharam que elas eram irmãs. cienteparaperderoempregonumaescolamu- gandodoMaranhão acada anúnciode investi-
Araguaia ser eliminada e garimpos serem aber- nicipal, onde dava aulas para 115 crianças. mentos da companhia.
tos e entrarem em decadência. Jacob lembra Tortura. Em três ocasiões, Edna sofreu cho- Ela escreve as memórias dos Perdidos. Não Mesmo com as mudanças e influências ex-
que a revolta nos Perdidoscomeçou com a che- ques elétricos e abuso sexual de agentes enca- permite imagens dos cadernos preenchidos ternas, a Amazônia aqui continua tendo ape-
gadadegrileiros.Ogovernoabriuumaestradae puzados. A primeira foi na beira do Araguaia, com letra arredondada. O advogado Paulo nas duas estações: verão e inverno. O verão
deu início a uma nova redistribuição de lotes, onde foi presa. Após quatro meses, foi solta. Fonteles, que a defendeu, assassinado em aindaéassociadoaotempodebonança,embo-
que não contemplaria as famílias que estavam Estava grávida. O marido, João de Deus, aju- 1986, terá destaque no livro. “Ele será o anjo, o ra o Araguaia, o Tocantins e o Itacaiúnas não
na área. “Foi um confusãozinha até boa; a gente dou a criar a filha dela, Eva. A relação entre ser que queria só paz na terra de pistoleiros, garantam peixes como no passado. A forma-
gosta é de um fuá”, diz rindo. Edna e João acabou. “Ele não chorou. Eu não guerrilheiros e posseiros”, adianta. ção das praias e o movimento dos jovens com
A principal personagem feminina dos Perdi- chorei, já esperava por aquele dia”, conta. Nos cabarés e bodegas, o forró perde espa- suas caixasdeisopor e rádios para tocar melo-
dos tem o mesmo apelido da mais famosa inte- “Mas ele podia ter me perdoado, porque tam- ço para o pop melody e o melody. São ritmos dy mantêm o clima alegre na estação. O inver-
grante da guerrilha do Araguaia. Dina, como é bém foi algemado. João sabe que não foi o mais rápidos que o brega da banda Calypso. no continua sendo visto como o tempo som-
chamadaEdnaRodriguesdeSouza,de60anos, meu querer. Arrumou um montão de mulhe- Agora, o rapaz apenas segura a mão da moça, brio, de rio cheio, sem festa.
Especial ● Guerras desconhecidas do Brasil SÃO PAULO, 19 DE DEZEMBRO DE 2010 O ESTADO DE S. PAULO
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Bragança, Capanema, Capitão Poço, Ourém, Santa Luzia, São José do Piriá e Viseu (PA)
1983-1985 ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ 15 mortos
Um corpo carregado pela multidão pelas trilhas da floresta. Fuzilamentos e
torturas, marcas da repressão à Cabanagem, revolta do século 19 que agitou as cidades históricas
paraenses de Bragança, Ourém e Viseu, se repetiram, quase 150 anos depois, nesses municípios. Pos-
seiros combateram uma milícia da Companhia de Desenvolvimento Agropecuário, Industrial e Mi-
neral do Pará (Cidapar). A empresa, privada, queria se instalar nas terras ocupadas por eles e conta-
va com apoio do governo estadual. O chefe militar dos posseiros, Quintino da Silva Lira, 38 anos, foi
executado numa operação de 500 policiais. Quintino, um pistoleiro, preferia ser chamado de ‘gati-
lheiro’, que no seu vocabulário era um contratado por ‘pobres sem coragem’. Foi um Garibaldi da
Amazônia – entrou no conflito por sua habilidade no gatilho, e não por defender a causa.
Guerra
do
Gatilheiro
Quintino gatilheiro Quintino foi o ho- leiros Luizão e Changatô, contratados pela
O
memmaisidolatradoda histó- viúva de Paraná para vingar a morte do mari-
ria recente do Guamá, territó- do. Quintino poupou a viúva e deu início à
rio encravado no nordeste pa- construção do mito de justiceiro.
raense de 28 mil quilômetros “UmdiaapareceuoQuintino.Elemepergun-
quadrados,dotamanhodeAla- tou:‘Vocêestádesconfiadodemim?’Eurespon-
goas, que apresenta os piores índices de desen- diquenão.‘EusouQuintino,mateiumcaraque
volvimentohumanodaAmazônia.Ofusohistó- tomou minha terra. Este revólver era dele, este
rico aqui é o mesmo da época do gatilheiro. E o chapéu era dele. Mas defunto não adianta ficar
tempo de Quintino, que também se apresenta- com essas coisas’”, relembra Bené. Ele estava
va como Armando Oliveira da Silva, está próxi- diante do homem que o Alegre precisava co-
mo do período de barbárie da repressão aos mo chefe militar. “Eu nunca tive coragem”,
cabanos, entre 1835 e 1840. diz Bené. “Ninguém tinha disposição de mor-
A morte do gatilheiro produziu imagens de rer pelo povo”, relata. “Com a chegada do
O ESTADO DE S. PAULO SÃO PAULO, 19 DE DEZEMBRO DE 2010 Especial ● Guerras desconhecidas do Brasil
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Premonição. ● Teimosia
Raimundo, o Bené Duzentos
irmão de mostra a foto
Quintino: do gatilheiro:
‘Ele sabia que amigo bolou
ia morrer’ plano de fuga
que Quintino
ignorou no dia
que foi morto.
‘Ele se achava
melhor que
Lampião’,
lamenta outro
posseiro que
enfrentou a
milícia de
mineradora
área”, completa. “Foi um herói que não teve BR-316), tem muita polícia atrás de você’. Ele
paciência para esperar a Justiça.” não me ouviu.” Mesmo com a área tomada, o
Começara também a guerra de versões. gatilheiro aceitou um convite para uma festa
Quintino foi acusado de mandar bilhetes, há- em uma casa de Vila Nova. A tropa comandada
bito comum no Cangaço nordestino, para pe- pelo capitão Cordovil cercou o local. Quintino
dir propinas a fazendeiros. Aliados dele di- tentou escapar pelos fundos, mas foi atingido
zem que chefes de grupo assinavam esses bi- porumpolicial. “Éo Quintinoquevocês busca-
lhetes sem seu consentimento. vam?Ele está aí, morto”,teria dito, resignado, o
donodafesta,RaimundoDentista, quearranca-
va dentes em Japim e ganhou fama de ter sido o
delator.
Especial ● Guerras desconhecidas do Brasil SÃO PAULO, 19 DE DEZEMBRO DE 2010 O ESTADO DE S. PAULO
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Marabá (PA)
1987 ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ 9 mortos
É democracia, mas os militares continuam caçando fantasmas. Por 15 minu-
tos, 500 policiais encurralaram garimpeiros de Serra Pelada e abriram fogo para desobstruir a pas-
sagem de uma estrada. A descrição pode ser usada para o episódio do massacre dos sem-terra em
Eldorado do Carajás, em 1996. Mas essa cena já ocorrera, dez anos antes, na ponte sobre o Rio To-
cantins, caminho dos trens que transportam minério de Carajás para Itaqui, no Maranhão. Era a
Guerra de São Bonifácio, por ter ocorrido no dia do santo, ou Guerra da Ponte. Os garimpeiros que-
riam a reabertura do garimpo e enfrentaram a PM paraense, com retaguarda do Exército. Seus líde-
res não tinham vínculos com organizações políticas ou religiosas nacionais. À frente do protesto
estavam uma mulher, Jane Resende, e um homossexual assumido, Victor Hugo Rosa.
estemunhas do massacre ouvi- tros, eles interditaram a ponte sobre o Tocan- zembro, policiais avançaram pelas duas pon- grávida morreu. O número total de mortos
T
das pelo Estado incluem um tins,trecho da PA-150– a mesmaestradaonde tas da ponte, atirando na multidão.O governo iria variar de acordo com a fonte. Nas contas
novoagentenesse massacreig- ocorreu mais tarde o massacre de Eldorado informou que duas pessoas morreram. O nú- do governador, três pessoas morreram. Na
norado pelo resto do País. O do Carajás. Na serra, sob o comando de outro mero pode ter passado de dez. contabilidade do movimento, mais de 70. O
Exército também participou líder, Victor Hugo Rosa, permaneceram dez Arevolta começounoanoanterior,quandoo número de mortes chegou a dez, segundo tes-
darepressão,comapoio elogís- mil “formigas” (garimpeiros) em assembleia, garimpeiro João Edson Borges foi espancado e temunhas.
tica, no dia de São Bonifácio. Até hoje, só a acompanhando os passos dos colegas e reco- morto por um policial. Em reação, um policial
Polícia Militar do Pará era responsabilizada lhendo comida para os revoltosos. foi morto e a PM acabou expulsa de Serra Pela- ‘Turba envenenada’. À época, Hélio Guei-
pelo massacre. “O Exército acampou do lado da. Dali em diante, os garimpeiros receberam ros disseque, como Jesus Cristo, estava sendo
direito de quem sai de Nova Marabá. A polícia Bloqueio. Na tarde do dia 29, Victor Hugo ameaças de vingança. injustiçado por uma “turba envenenada e en-
ficou do outro lado, em São Félix”, relata o soube por telefone que o governador Hélio Porvoltade19horas,otenente-coronel Rei- sandecida”. O tenente-coronel Pessoa lamen-
mecânico Luiz Pereira do Nascimento, de 67 Gueiros havia dado ordem para a PM desobs- naldo Pessoa, do 4.º Batalhão da PM de Mara- touasmortes.Depoisdedizerquesentiapelas
anos. “Agora, faço questão de ir fotografar on- truir a ponte. Passou a informação para Jane bá, ordenou que a tropa de 500 homens avan- “duas mortes”, ressaltou que apenas recebeu
de a gente cantou o hino.” Resende – primeira líder feminina de um ga- çasse. Os policiais cercaram os manifestan- uma “missão” para desobstruir a ponte. Um
Localizado em Novo Horizonte, bairro de rimpo –, que comandava o bloqueio da ponte. tes. Das duas cabeceiras da ponte, os policiais relatórioescritopelodelegadodaPolíciaFede-
Marabá, ele mostra o local exato onde estava Os manifestantes colocaram uma carcaça atiraramdurante15minutoscommetralhado- ralWilsonPerpétuo,guardadonaCasadeCul-
naquele 29 de dezembro. “Isto aqui ficou pre- de caminhonete e um monte de britas nos ras e fuzis calibre .765. Muitos garimpeiros se tura de Marabá, cita 3 mortos e 73 desapareci-
to de soldados”, lembra, na cabeceira da pon- trilhos da ponte. Às 19 horas do dia 29 de de- jogaram do vão de 76 metros. Uma mulher dos num primeiro momento. O documento
te. Nascimento conta que Alzira – casada com foi dirigido ao diretor-geral da PF, Romeu Tu-
Luizão, um dos líderes do garimpeiros – suge- ma.“Foium verdadeiromassacre”,escreveu o
Guerra
riu: “Vamos cantar o Hino Nacional que eles delegado.
não vão mexer com a gente”. Um garimpeiro de prenome Francisco, que
Mas,segundo ele, não teve cantoria de hino. disseter vistooito cadáveres,foiassassinadoa
Os policiais rodearam. “Um policial à paisana, pauladas por um grupo desconhecido, no cen-
o Sebastião, filho de Cristino Araújo, que eu tro de Marabá, um dia depois de dar entrevista
conhecia desde menino, me alertou: ‘Olha, sai à TV Liberal. A morte de Francisco amedron-
daí porque o negócio vai esquentar.’ Só deu tou outras testemunhas do conflito. Era o iní-
tempo de eu correr... e eles correram de lá e de cio de um silêncio que já dura mais de 20 anos.
cá da ponte”, diz Nascimento. “Jogaram gás Até hoje, poucos comentam sobre a tragédia.
de pimenta. Aí a gente ficou tudo de olho ver-
melho. Vi muitos caídos. Passei por cima dos
corpos, não davapara ver de quem era, se esta-
vam vivos ou mortos, os meus olhos ardiam.
de São
Folhear a carteira de trabalho de Luiz Perei-
ra do Nascimento, piauiense de Floriano, filho
de Terto Pereira do Nascimento e Raimunda
MariaPereira,élerumasíntesedecapítulosda
Bonifácio
Aí os policiais tomaram a ponte e não deu para história recente do Brasil, em especial da ocu-
ver quem lá ficou ou se jogou.” pação e do desenvolvimento da Amazônia.
Os garimpeiros haviam deixado Serra Pela- De 12 de julho a 14 de agosto de 1972, ele foi
da na madrugada do dia anterior. Queriam o operador de máquinas da Construtora Tra-
rebaixamento da cava do garimpo. Após per- tex, que pavimentava um trecho da Belém-
correremdeônibusecaminhões160quilôme- Brasília. De lá para cá, Luiz esteve em uma
20
● Pioneira
Bloqueio de
ponte foi
comandado
por Jane
Rezende, a
primeira
líder feminina
de garimpo,
em Serra
Pelada
O ESTADO DE S. PAULO SÃO PAULO, 19 DE DEZEMBRO DE 2010 Especial ● Guerras desconhecidas do Brasil
%HermesFileInfo:H-21:20101219:
● Documento
Relatório de
delegado da
Polícia Federal
endereçado
ao então
diretor-geral
Romeu Tuma
cita 3 mortos
e 73
desaparecidos.
‘Foi um
massacre.’
Especial ● Guerras desconhecidas do Brasil SÃO PAULO, 19 DE DEZEMBRO DE 2010 O ESTADO DE S. PAULO
%HermesFileInfo:H-22:20101219:
Brasil, 2010
Escritores e ‘jagunços’ brigam contra a ditadura e o esquecimento. Uma
guerra no sertão nordestino, no final do século 19, palco de um dos maiores massacres da história
do País, sempre desafiou o rigor que move os historiadores. Um outro conflito, também ocorrido
no semiárido, nas quatro décadas seguintes, se manteve forte no imaginário popular. As narrativas
da academia ou da rua sobre a Guerra de Canudos, descrita por Euclides da Cunha, e sobre o Canga-
ço, lembradas nos relatos orais como se tivessem ocorrido há pouco, ilustram a batalha de historia-
dores, pesquisadores e brasileiros de diversos níveis escolares, muitos deles testemunhas e protago-
nistas, para preservar a memória de lutas sangrentas que, bem ou mal, são capítulos da história
brasileira que raramente coincidem com as versões oficiais.
Guerras
da Memória e do
Tempo esde Os Sertões, deEuclides da
D
Cunha,publicadoem1902,in-
contáveis romances, peças
teatrais, estudos universitá-
rios, músicas e filmes foram
feitos aqui e no exterior sobre
o massacre de Canudos, em 1897. Teses socio-
lógicas, antropológicas e geológicas defendi-
das por Euclides caíram ao longo do tempo,
masaversãodoescritorsobreabarbáriecome-
tida pelos militares contra os seguidores do
líder sertanejo Antônio Conselheiro prevale-
ceu nas novas obras de acadêmicos e artistas.
O poder da palavra do intelectual, somado à
liação dele, esses documentos e os papéis do tre as forças legais e os jagunços de Antônio
Novo decidiu recontar a história do massacre, Exércitogarantiriamuma“obranotável,inédi- Conselheiro, respondeu que assistiu de longe
para derrubar a versão mais conhecida do epi- ta e incomparável”. a todo o combate. Verificou também a fuga
sódio. Euclides escreveu que a atuação do Aopassoemqueseenfurnavanosdocumen- dasforçasdogovernoearesistênciadosjagun-
Exército na Bahia foi criminosa e campanhas tos que lhe eram enviados, o tenente foi per- ços,ficando nocampograndenúmero demor-
militares apresentaram uma série de estraté- dendo o entusiasmo. Em anotações posterio- tos e feridos de ambas as partes. Disse mais:
gias e táticas erradas de guerra. O escritor afir- res, ele demonstrou ter perdido a crença em Conselheiro só mandava enterrar os seus
mou que Canudos foi um refluxo no tempo. poder cumprir a missão de apresentar uma adeptos, deixando insepultos todos os milita-
A ditadura Vargas encarregou o tenente José nova história. res, que foram devorados pelos urubus.”
deMacedoBraga,doRiodeJaneiro,entãocapi- A visão de Euclides da guerra – a repressão
tal federal, de revirar arquivos do Exército e Versão. Um documento de 1.º de março de desmedida a brasileiros com poucas armas e
buscar informações no Nordeste para mostrar 1941 expõe o desânimo e a surpresa do militar muita fé – foi usada por historiadores e poetas
umahistóriadiferentedanarradaporEuclides. com testemunhos que coincidem com a ver- regionais para contar histórias de muitos con-
O tenente tinha por missão revelar que os che- são de Euclides. Trata-se de relatório com de- flitos,comoos descritosnestecaderno:Caldei-
fes militares não foram humilhados e os jagun- poimentos das “jagunças” Maria Lina e Maria rão, uma pequena Canudos; Barbudos, uma Ca-
ços de Conselheiro eram meros bandidos. do Carmo. O tenente faz uma observação na nudos no Sul; Encantado, a volta de Canudos;
O Estado encontrou nos arquivos do Exér- aberturadodocumento datilografado: “Étris- Santa Dica, um Conselheiro de saias; e outros
cito anotações do tenente Braga no decorrer te, mas é verdade, o coronel Antonio Moreira capítulos apagados da história.
da missão de reescrever a história. Ninguém Cesar, depois de morto, foi devorado pelos
pode acusar o tenente de não ter se esforçado urubus!!!” Euclides já tinha deixado claro o Guerra contra Lampião. Os nomes de Lam-
na empreitada. Ele recolheu documentos, leu fimdocomandantedaterceiracampanha:Mo- pião, Maria Bonita e Corisco estão nas placas
relatóriosedatilografou depoimentosmanus- reira Cesar, ao se aproximar do arraial, disse doscibercafés, pizzarias e serviços de mototá-
critos de testemunhas. que pretendia almoçar em Canudos. O coro- xi abertos no atual momento de euforia no
A17 de fevereiro de 1941, Braga escreveu um nel virou comida das aves. comércio popular do Nordeste. Setenta anos
roteiro de arquivos para quem dispusesse fa- O depoimento de Maria Lina é um retrato depois de erguerem bacamartes e punhais, os
zer novos livros. “A campanha deCanudos, no da guerra. “Perguntada se assistiu aos últimos sobreviventes do Cangaço, no limite do esgo-
ano de 1897, (...) infelizmente ainda não foi combates e se sabe responder alguma coisa tamento físico, travam agora, juntamente
escrita como devia ser”, destacou. “É preciso em relação àquele desastre, inclusive à morte com pesquisadores e artistas conhecidos ou
dizer a verdade. ‘Os Sertões’, de Euclides da do coronel Moreira Cesar, respondeu que as- desconhecidos,umalutaparamanternahistó-
Cunha, e a ‘Guerra de Canudos’, de Macedo sistiu todo o combate travado em Canudos. ria as marcas da barbárie. É na luta para se
Soares, são obras-primas da literatura, po- Morreu muita gente nessa ocasião de parte a manter em pé que os cangaceiros e mesmo
rém, sem os dados oficiais, como deve ser es- parte, sendo, porém, enterrados somente os seus algozes se assemelham a outros mortais.
crita uma história militar.” adeptosdeAntônio Conselheiro,ficandoinse- Em uma casa coberta de telha, em Delmiro
O tenente escreveu que era preciso pedir pultos, no meio do campo, os soldados das Gouveia, sertão alagoano, vive a agricultora
autos de processos das comarcas de Queima- forças legais.” AristéiaSoaresdeLima,87anos,possivelmen-
das, Juazeiro, Monte Santo e Bonfim, listas de A “jagunça” Maria do Carmo confirma as te a última cangaceira. Com vestido longo ro-
médicos, documentos do 6.º Batalhão de Arti- palavras de Maria Lina. “Perguntada o que sa- xo, usado sempre durante as visitas, a mulher
lhariaeaté domanicômio de Salvador.Naava- be em relação ao último combate travado en- miúdaseesforçaparaconversar.Elaserecupe-
ra de um problema nas articulações, que a le-
vou ficar internada por uma semana.
● Algoz A ex-cangaceira busca uma posição na cama
O PM em que consiga conversar sem sofrer. Numa
aposentado trégua do corpo, começa a falar da prisão, em
Antonio Vieira, Delmiro Gouveia. Foi pouco antes da volante
de 97 anos, (tropa) do tenente João Bezerra chegar à cida-
mostra sua de carregando a cabeça de Lampião, morto no
arma: ‘Não massacre de Angicos, em 1938. Conta que a
posso dizer qualquermovimentonaruatentavaenxergaro
que matei que passava do lado de fora por uma pequena
Lampião. abertura na parede. Mas, naquele dia, preferiu
Ninguém pode ficar agachada na cela, em silêncio. “Eu não
dizer isso, era quisver”,dizAristéia,comdificuldades.Sóviu,
muita gente depois, a euforia dos “macacos” – como eram
atirando’ chamados as volantes – e a surpresa dos mora-
dores com o feito do tenente João Bezerra.
Aristéia intercala uma frase com um movi-
mento de mãos ou de rosto expressando dor. Lembranças.
Elademonstravontadedefalar sobreo Canga- Aristéia, a última
ço. Sobreviveu porque se entregou à polícia. cangaceira: ‘Os
Foilogodepois dofuzilamentodomarido, Ca- policiais eram
tingueira. Antes de morrer, ele pediu a More- todos frouxos’
no, chefe do grupo, que tirasse a mulher do
O ESTADO DE S. PAULO SÃO PAULO, 19 DE DEZEMBRO DE 2010 Especial ● Guerras desconhecidas do Brasil
%HermesFileInfo:H-23:20101219:
Ex-aliado de
Lampião diz que
Maria Bonita
tinha ciúme e
fazia intriga
Do outro lado do município mora Antônio
Vieira, 97 anos, sargento da reserva da Polícia
Militar de Alagoas. A farda está impecável, co-
mo se tivesse de ser usada a qualquer hora. Na
roupa está o registro do tipo sanguíneo: A+.
Antes de começar a entrevista, Vieira de-
monstra incômodo, como se sentisse falta de
algo. A filha Edileuza vai até o quarto do pai e
volta com um revólver 38. Ela explica que o pai
sódormeeconversacomaarmaaolado.Agora,
sim, com a arma na mão, ele fala do combate do
extermíniode Lampião, em 28 de julhode 1938.
Segurandofirme a arma, Vieira olha compe-
netradopara acâmera.Parece miraruminimi-
goque agora não passa deuma criatura apenas
desuamemória. “Lampiãorecebeu umtiro no
peito e caiu. Maria Bonita caiu pertinho dele”,
conta. “Não posso dizer que matei Lampião.
Ninguém pode dizer. Não dava para saber, era
muita gente atirando.”
Especial ● Guerras desconhecidas do Brasil SÃO PAULO, 19 DE DEZEMBRO DE 2010 O ESTADO DE S. PAULO
%HermesFileInfo:H-24:20101219:
Guerra
do
Lembrança.
Antonio
Pinheirinho
Guerra
Inácio e a
mulher: ele
tinha 8 anos
quando foi
Documento. expulso do
Carta ao
intendente
de Lajeado
do Caldeirão
Caldeirão
relatando o
conflito a
autoridades
estaduais
Guerra
dos Barbudos
Guerra
de
‘Barbuda’. Carteira de trabalho da
gaúcha Donária Duarte, plantadora
de fumo e sobrevivente do conflito
Pau de Guerra
Colher Destino. Foto de família
de Ana Rita (à dir.), que
de Santa
Dica
Fé.
foi salva por um pistoleiro Bernarda
de ser entregue a família Cypriano
abastada de Salvador; à Gomes,
esquerda, documento de irmã de
Maria da Conceição, Santa Dica:
levada para a capital certeza de
dom de
cura da
líder
religiosa
Despedida.
Professora
primária,
Edna
perdeu a
carteira de União.
trabalho, Documento
Guerra
cancelada de Lindalva
por dos Anjos:
participar sobrevivente
da revolta do conflito
Guerra
casou-se com
fazendeiro
cuja família
Guerra Milho
do
Gatilheiro Guerra
Quintino de São
Bonifácio
Selva de Ouro. Carteira de garimpeiro de
Joel de Almeida, que escapou de massacre
Guerras
da Memória e do Volante.
Carteira
do PM
Tempo
Antonio
Vieira; ele
fez parte do
comando
Reação. Documento de Bené, que matou
que contratou o gatilheiro Lampião
O ESTADO DE S. PAULO SÃO PAULO, 19 DE DEZEMBRO DE 2010 Especial ● Guerras desconhecidas do Brasil