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Contrafissura e Plasticidade Psíquica Livro

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HUCITEC EDITORA

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PARA VOCÊ LER E RELER
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A contrafissura é u m sintoma social contemporâneo que
opera na mídia, na pol ítica, na clínica - na subjetividade
m contrafissu ra e
contemporânea.
Plasticidade psíquica refere as mutações subjetivas dos plasticidade psíquica
cuidadores que protagonizam experiências promissoras
e as transformações que ocorrem nos usuários da Rede
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de Atenção Psicossocial Brasileira.

Com este lançamento atingimos o número 50 da coleção


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ISBN: 978-85-8404-054-4

Capa: Arnaldo de Melo i



ull!tlllt!!R

© Direitos autorais, 2015,


de Antonio Lancetti.
Direitos de publicação reservados por
Hucitec Editora,
Rua Águas Virtuosas, 323
02532-000 São Paulo, SP.
Te!.: 55 11 2373-6411 Para Heidi,
www.huciteceditora.com.br com quem aprendi que o amor é subversivo.
lerereler@huciteceditora.com. br

Depósito Legal efetuado.

Coordenação editorial
MARIANA NADA
Assessoria editorial
MARIANGELA G!ANNELLA
Circulação
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Te!.: 55 11 3892-7772 - Fax: 55 11 3892-7776

CIP-Brasil. Catalogação na Publicação


Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ
L238c
Lancetti, Antonio, 1949-
Contrafissura e plasticidade psíquica/ Antonio Lancetti. - 1. ed.
- São Paulo: Hucitec, 2015.
134 p.; 18 cm. (Saúde loucura, 50; Políticas do desejo, 5)
ISBN 978-85-8404-054-4
1. Saúde pública -Brasil. 2. Política de saúde mental. 3. Serviços
de saúde mental. 4. Psiquiatria. I. Título. II. Série.
15-26626 CDD: 362.2
CDU: 364.269
LISTA DE ABREVIATURAS E EXPRESSÕES

Biqueira ou bocada: nome dado às zonas de venda e uso de dro­


gas proibidas.
Caps 1: Centro de Atenção Psicossocial que funciona em muni­
cípio de 20.000 a 70.000 habitantes. É o menor e conta com
pelo menos nove funcionários. Funciona das 8 às 18 horas, de
segunda a sexta -feira.
Caps II: Centro de Atenção Psicossocial que funciona em municí­
pios de acima de 200.000 habitantes. Tem pelo menos doze
funcionários. Em municípios maiores há Caps II que funcio­
nam com horário ampliado, também aos sábados, com maior
número de funcionários.
Caps III: Centro de Atenção Psicossocial com funcionamento
24 horas, conta com camas para hospitalidade. Dependendo
do Caps há seis ou oito camas para hospitalidade noturna (HN).
Caps AD: Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas.
Caps ADi: Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas des­
tinado a adolescentes.
Caps i: Centro de Atenção Psicossocial lnfantojunvenil.
Centro Legal: nome dado ao Programa de Agentes de Saúde e
11
Enfermeiras que atuava desde 2009 na região da cracolândia. mésticas. Essas repetições estão sempre ligadas a territórios e
Posteriormente foram transformados em Consultórios na Rua. são fundamentais para constituição dos territórios existenciais.
Drogas enteogênicas: Drog as que substituíram o sacrifício de Pa ra aprofundamento do conceito ver: Félix Guattari: "Da
sere s humanos para conectar- se com Deus. Na atualidade se
subjetivida de". ln: Cosmose - um novo paradigma estético, São
usam em rituais religiosos como o Daime e a lbogaína. Paulo: Ed. 34, l.ª edição, 1992. E Gilles Deleuze & Félix
ESF: Estratégia de Saúde da Fa mília. Essa denominação substi­ Guatta ri: Mil platôs - capitalismo e esq uizofrenia, vol. 4, São
tui a anterior que era PSF (Programa de Saúde da Família). Paulo: Ed. 34, 2002.
Fluxo: Nome dado a zona de uso do bairro da Luz de São Paulo, SRT: Os Serviços Residenciais Terapêuticos são moradias ocupa­
é um agrupamento de centenas de pessoas. das por egressos de hospitais psiquiátricos, com longa perma­
Naps: Núcleo de Atenção Psico ssocial. Equivalente a Caps. Fo­ nência instituciona l e dificuldade de retorno à família.
ram assim chamados em Santos e noutras cidades brasileiras. SRTE: As Unidades de Acolhimento, foram assim chamadas na
Nasf: Núcleo de Apoio à Saúde da F amília. Criados pelo Minis­ cidade de São Paulo até 2013.
tério da Saúde em 2006, são grupos multiprofissionais com­ UA: As Unidades de Acolhimento são casa s lig adas aos Caps
po sto s por médico s de várias e s pecia lida des , psicólogo s , AD onde, aproximadamente, uma dezena de pessoas moram
terapeutas ocupacionais. . . destinados a potencializa r a ação durante um tempo para reorganizarem suas vidas. Existem
da ESF. unidades destina das à mor adia de a dolescentes e a jovens adul­
Noias: nome dado a frequentadores de zonas de uso de crack tos. Em São Bernardo do Campo se cham am Repúblicas.
pelas baforadas paranoicas que produz o uso da pedra fumada.
Rapas: operação de limpeza urbana realizada por policiais ou
gua rdas municipais mediante as quais retiram os pertences
das pessoas em situação de rua.
Ritornelo: Inspirado em Mikhail Bakhtin (Questões de literatura
e de estética - a teoria do romance, São Paulo: Hucitec, 1988).
Guattari e Deleuze criaram o conceito que refere a repetições
de sons, como por exemplo o canto de ninar da mãe para o
bebê, ou a TV ou o rádio ligados enquanto se faz tarefas do-

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PREFÁCIO

ANTONIO NERY FILHO

Confesso minha surpresa quando Lancetti, com seu so­


taque inconfundível, me perguntou, clara e diretamente: "você
quer escrever o prefácio para o livro que estou concluindo?". A ra­
zão do convite talvez estivesse no Jato que, desde 1985, não ces­
sei de alardear meu desinteresse pelas drogas e meu extremo inte­
resse pelos humanos - homens, mulheres, adolescentes e crianças
de rua - usuários de psicoativos legais e ilegais, em geral como
solução para suas vidas miseráveis e, só muito raramente, como
causa, em que pese a luta constante para conseguir uma droga ou
outra, a violência, as doenças físicas e da alma, a violência do
tr4fico, a falta de sensibilidade ou o interesse disfarçado do poder
público, mediado pela mão pesada da polícia. Talvez o convite
tenha sido motivado pela experiência que denominei em 1989,
de "Banco de Rua", em parceria com alguns colegas do Centro de
Estudos e Terapia do Abuso de Drogas (Cetad), Serviço Especia­
lizado da Faculdade de Medicina da UFBA, dez anos mais tar­
de transformada no Consultório de Rua, que tinha como norte o
encontro e o cruzamento de olhares entre os que chegavam e os
r;ue há muito experimentavam as possibilidades de vida e de morte
nas ruas de Salvador da Bahia.
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iL11

Ultrapassada a surpresa, os textos que pouco a pouco foram 111otlo simplificado, problemas complexos, voltados, todos, para as
ocupando minha alma, me remeteram à recente experiência do drogas e não para as pessoas". Como "plasticidade psíquica", o autor
''Ponto de Encontro", no Pelourinho, quando os invisíveis ocupa­ //(IS propõe a capacidade técnica de responder de outro modo, à
ram a cena na Casa Rosa e puderam viver as alegrias da convi­ r'lfj>(/ridade nascida na Reforma Psiquiátrica e consolidada nos
vência sem medo e "dormir com os dois olhos fechados", por pouco ( .'1'11tros de Atenção Psicossocial (Caps), dando origem aos Caps
tempo, é verdade, porque a intolerância e a hipocrisia se impuse­ // ), como "primeira resposta da saúde mental, na substituição dos
ram na lógica do "tudo bem, desde que seja longe de mim". O lon­ //'//lamentos morais e reducionistas centrados na abstinência, na
ge nos levou à implantação dos "Pontos de Cidadania", espaços listío da subjetividade dos corpos e da cidadania das pessoas usuá­
mínimos de acolhimento construídos para servir de chegada àqueles ' iN.1' de crack"; as práticas redutoras de danos, tão combatidas ini-
destinados a representarem a parte lixo da sociedade, o "lixo hu­ 1 tl//111ente e paradigmaticamente representadas pela proibição da

mano", conduzidos por jovens trabalhadores da saúde, inconfor­ lt ()((f de seringas, inicialmente em Santos (SP), conduziram os
mados e dispostos a transformar. Encontrei neste novo texto de tt'l'11iros "ao encontro dos usuários, sem censurar o uso de drogas e a
Antonio Lancetti, a continuidade de sua "Clínica Peripatética", ,,,.,,itar essas pessoas do modo como elas eram". Isto exigiu adapta­
de 2006, cartográfica, "praticada em movimento, fora dos espaços i n1•s extraordinárias, que denominei, tratando dos Consultórios
de reclusão convencionais, com o que se inauguram outras formas d,· Rua, de "destituição de olhares e lugares, para instituição de
de engate terapêutico, bem como outras possibilidades de conexão 111/mspossibilidades". Lancetti reconhece, tratando das experiên­ "
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com os fluxos da cidade e da cultura". Sob o título Contrafissura , 111.1· de "baixa exigência" (Low Threshold Service), também re-
e Plasticidade Psíquica, Lancetti convida-nos a continuar por 11111/.Jf'cidas como "tecnologias leves", caracterizadas por práticas
uma clínica em movimento. Para tanto, coloca-nos diante do fu­ 11111• induzam a novas subjetividades, longe das propostas que des-
ror proibicionista dos anos setenta que se prolonga até 2012, com 1111/l'ideram o saber e a experiência de cada um, sobretudo, longe
a ocupação militar da "Cracolândia Paulista", prisão de cente­ ,l,1 ro11trajissura, cujo propósito é a abstinência e o retorno a uma
nas de pessoas, ou as internações compulsórias, para desespero dos ,,,,/11 em geral impossível, porque não implica permanentes tro-

técnicos da saúde, envolvidos na aproximação e cuidado destes ho­ 1 ,, 1 ,. /ransjõrmações de uns e de outros, pacientes, familiares e pes-

mens e mulheres, usuários de drogas, em situação de rua. Se 'Jis­ 111,,/ rir, saúde. Práticas como acolhimento em momentos de crise,
sura" tem sido compreendido como "impulso incoercível para con­ ,1/t'llrlimento sem preconceito na unidade de saúde, entrada e per-
sumir drogas", a contrafissura, que nomeia o livro, quer se referir 1,1111 111ria em um local provisório para dar tempo a uma reorga-
às tentativas desesperadas de tantos - governos, políticos, igre­ 11 ,11(r10, passeios esportivos e culturais, projetos de moradia, ali-

jas - "apoiados por uma mídia sensacionalista, para resolver de 11·11tnrão e trabalho constituem o que o autor chama de "primeiro

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disparo", reservando o "segundo disparo" àquelas circunstâncias dores de São Paulo, dirigindo-se ao amigo David Capistrano Fi­
inusitadas, enigmáticas, e inexplicáveis que impelem alguns a "fu­ lho, em memória, não sem antes nos deixar com a alma suspensa
girem do circuito: zona de uso, cadeia, clínica de recuperação, abri­ ('das reflexões escritas em parceria com Gabriel Donizete Batis­
go, Caps". Como exemplo destas novas possibilidade plásticas, em /11, o Gabriel, que começa com a enigmática afirmação: "hoje nos

que o pessoal da saúde "se carrega" ou "recarrega" como pilhas, nes­ 1•11rontramos com o amanhã de ontem e com o ontem de amanhã
tas práticas que "operam em superfície não submetidas à moral e 11111• nos é dado em forma de presente. Presente que não pedimos e
à contrafissura", somos convidados a transitar pelo ''Projeto Axé 11111ito menos merecemos", para concluir: "você não entende. Só
e sua Pedagogia do Desejo", desejo de mudança construída com 1/i•pois vim a entender por que fiquei dois anos na cadeia. É que
meninos e meninas de Salvador, reafirmando - como para ter a 1011 anjo mas não estou podendo sair do corpo".
certeza de que não nos esqueceremos - da importância do "Pro­ lfqui, valho-me de Rubem Alves, quando em uma de suas crô-
grama Terapêutico Singular", "flecha propulsora mas para ser cer­ 11ims aconselhou que os professores dessem notas aos seus alunos de­
teira, precisa contar com o conhecimento e a participação dos usuá­ /toi.,·, muito depois de concluídos os estudos; após verificarem o que
rios. Só pode ser construído com eles"; ou ainda, pelo Projeto "De 111/1ro1t numa espécie de escorredor de conhecimento. Gostaria de
Braços Abertos" da Prefeitura de São Paulo, ousada e contra-he­ 1'1(1'1•·ver este Prefácio, muito tempo depois de ter lido e relido os
gemônica proposta para cuidar dos desassistidos e sempre destituí­ /1',\'IO.I', de ter começado pelo final, de misturar Gabriel e Benetti,
dos de tudo, moradores da Cracolândia do centro da Cidade de ./1'jJoi.1· de retornar aos lugares por onde já andei. Aí, talvez, escre-
São Paulo, cujo norte é dado pelo "pacote de direitos": moradia, 1'1'11·1' 111n verdadeiro texto, que desse conta do longo trabalho de

alimentação, trabalho e cuidados de saúde; ou ser espectador do l ,111/'l'!ti, de suas ''aventuras e desventuras" no mundo da saúde
interessante diálogo com Davi Benetti sobre a recente proposta ,·, l(J/1rl'ludo, de sua imensa capacidade de compreender a diferen-
do "Consultório na Rua", do Ministério da Saúde, apoiado na 1,,, 1· os diferentes, e de seu reconhecimento pelo acolhimento que
Atenção Básica, confrontada à antiga experiência do "Consultório //1,· 1/1·rr1m e que ele não cessa de nos dar.
de Rua", inseridafundamentalmente no campo da saúde mental.
Contudo, se este Prefácio parece linear, o livro não o é. Não é S11!11r1do1; setembro de 2015.
ortodoxo. É um relato topológico: os capítulos dão, por vezes, a
impressão de deixar algo em suspensão ou nos puxam para o campo
do afeto, do compartilhamento, como no último capítulo quando
somos testemunhas da declaração de saudade através do texto sen­
sível que Antonio Lancetti leu em 2002, na Câmara de Verea-

18 19
AGRADECIMENTOS

José Ruben de Alcântara Bonfim


Gastão Wagner de Sousa Campos
Heidi Tabacof
Leon Garcia
Myres Cavalcanti
Danilo Fernandes Costa
Roberta Melão
Matías Lancetti
Mariana Monteiro
Alejandro Viviani
Cibele Neder

21

INTRODUÇÃO

"La terapia, per Freud e per Basaglia e la stessa


cosa - e l'incontro del amare con la libertà"
- ANGELO RIGHETTI, em conversa com
Antonio Lancetti e Franco Rotelli

Os últimos anos de minha vida me encontraram


transitando pelo Brasil apoiando e participando de experiên­
cias complexas e preciosas.
Estas páginas nascem da imperiosa necessidade de trans­
mitir os conceitos e as ideias-força traçadas nessas trajetórias
com valiosos trabalhadores de saúde, de saúde mental e de
outras áreas sociais como assistência social e trabalho.
E especialmente do encontro com usuários, pacientes e ami­
gos que não param de nos questionar e nos levar ao limite do
pensamento clínico, ético e político.
Muito se tem falado do proibicionismo e de seu fracasso,
mas aqui entramos no seu funcionamento, na sua eficácia e
num sintoma social que chamamos contrafissura.
Os capítulos foram provocados pela urgência de apreciar e
tornar visíveis as valiosas experiências desenvolvidas nos Caps

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que atendem pessoas que usam drogas de forma suicida, muitas


em condições existenciais e sociais dramáticas.
Buscamos também dialogar com as práxis dos consultórios
de rua e na rua e com práticas de nova geração como a "De
Braços Abertos".
Por respeito aos trabalhadores que operam na ponta e aos 1.
gestores de todas as experiências citadas, buscamos praticar a A CONTRAFISSURA
heterogênese e a franqueza, tentando ser ao mesmo tempo
crítico e construtivo. Por exemplo, na droga haveria alguma coisa de
muito particular, é que o desejo investiria direta­
Mas ultrapassar os planos da moral e da judicialização da mente o sistema-percepção.
clínica e da vida exige uma constante revisão de nossas concep­ [ ...]
Sim, de que modo o desejo entra diretamente
ções e de práticas ditadas pelo senso comum e pelo bom senso. na percepção, investe diretamente a percepção
O último capítulo, datado de 2002, transcreve as palavras (daí o fenômeno de dessexualização da droga).
Um tal ponto de vista permitiria encontrar a li­
que proferi por ocasião de entrega do título de cidadão pau­ gação com as causalidades exteriores mais gerais,
listano pela Câmara Municipal de São Paulo a David Capis­ sem no entanto se perder: assim, o papel da per­
cepção, a solicitação de percepção nos sistemas
trano Filho e é incluído neste livro por três razões: foi David sociais atuais, que faz Phil Glass dizer que, de
quem me aproximou desta editora; porque por sua iniciativa qualquer maneira, a droga mudou o problema
da percepção, mesmo para os não drogados.
e liderança se instituiu, em Santos, o primeiro programa de
- GrLLES DELEUZE1
Redução de Danos do Brasil e finalmente porque, enquanto
líamos as provas do livro, Flávio George Aderaldo, o editor, Uma corrente entorpecedora em favor do enfrenta­
disse: o David tinha tanta força interior que se estivesse vivo o mento da chamada epidemia do crack ensombrece a socieda­
Brasil não estaria claudicante como está. de brasileira. Essa corrente predominantemente midiática foi
Nestas páginas pretendemos contribuir para uma corrente intensificada a partir de 2010 e desapareceu dos meios de co­
em estado emergente no Brasil e no mundo que pensa que o municação durante a recente ocupação das ruas pelas multi­
contrário da droga e da miséria não são a abstinência nem a dões monstruosas.
pena, mas a ampliação da vida, a liberdade, o direito, o co­
mum, o perdão e a fuga. 1 Gilles Deleuze. "Duas questões". ln: Herbert Daniel et ai. SaúdeLoucu­
ra 3. São Paulo: Hucitec, 1991, p. 64.
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25
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O tema, depois das jornadas de junho de 2013 e da Copa, que se tornaram consumidores compulsivos de crack, com seus
reapareceu com força durante o período eleitoral e, dada a agravos à saúde, como os dependentes de álcool, por exemplo,
conjuntura política e a composição do Congresso Nacional servem para desmontar o exagero da mídia e de governantes,
deverá oferecer muita matéria para vigência da contrafissura. mas não para desconstruir essa ideia da epidemia.
Mas a disseminação do crack pode ser considerada uma
epidemia? Simulacro de epidemia
Os americanos que resistiram à política da guerra contra as
drogas nos primeiros tempos perguntavam atônitos: como pode É impressionante que em tão pouco tempo tenham se na­
ser epidemia se a substância é inerte?2 turalizado a proibição e a demonização das drogas.
A palavra epidemia (bti significa sobre e Õf\µoç; povo) já se Em 1970, nos EUA, em pleno furor proibicionista, as pri­
encontra em textos hipocráticos, há dois mil e quinhentos meiras pesquisas mostravam que 53% da população adulta
anos, e significa o aumento de determinadas doenças num consumia álcool, 16% maconha, 10% ansiolíticos, 3% cocaína
determinado lugar e num determinado tempo cronológico. e 1 % heroína. 3
O conceito foi utilizado para doenças transmissivas gera­ O Congresso Americano promoveu uma comissão de fa­
das por vírus ou bactérias que se transmitem de um ser para macêuticos e cientistas de prestígio, a National Commission
outro. Desse ponto de vista, o crack não pode ser considerado on Marihuana and Drug Abuse, que não concordava com a
epidemia já que não se transmite por si mesmo. proibição das drogas.
Mas do ponto de vista da epidemiologia dos séculos XIX e O governo Nixon, na contramão, criou a Special Action
XX, o conceito se estendeu a outras doenças. Poderiam existir Office for Drug Abuse Prevention liderada pelo psiquiatra
epidemias causadas por doenças transmissivas e por doenças Jerome Jaffe conhecido na mídia como o "czar das drogas",
não transmissivas, desde que haja aumento do número de atin­ cujas ideias funcionam tão deletéria como eficazmente até hoje.
gidos num determinado lugar e num determinado período de A utopia de um mundo sem drogas era tão fundamentalista
tempo. que achavam que não se deveria administrar morfina mesmo
Os argumentos que comparam a quantidade de pessoas em pessoas sofrendo dores como produto de câncer ou outros
sofrimentos às vezes em estado terminal.
2 Craig Reinarman & Harry G. Levine (eds.). Crack in America. Demon
Drugs and Social Justice. Berkeley-Los Angeles-Londres: University of Califor­ 3 Antonio Escohotado. Historia general de las drogas. Madri: Espasa Calpe,
nia Press, 1997, p. 9. 1998, pp. 944-5.

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De modo que comparar o número de usuários de drogas dia mais do que duplicou no final de semana seguinte.
legais e seus agravos com as ilegais não muda a situação nem Poucos dias depois adolescentes frequentadores de zonas
acalma a fissura. Também o enfrentamento desse sintoma so­ de uso de Vitória, Espírito Santo, perguntaram aos técnicos
cial não se resolve mudando de problema de segurança para do Consultório de Rua: "Tia, quando vai chegar o oxi a
problema de saúde porque uma das raízes do proibicionismo Vitória?"
foi precisamente a autoridade médica moral. As campanhas alarmistas fazem parte da guerra às drogas,
Friedrich Engels, num livro clássico A situação da classe tra­ produzem o efeito contrário ao supostamente desejado e têm
balhadora na Inglaterra publicado em 1845, foi precursor da contribuído para expandir o mercado negro, o mercado bran­
moderna epidemiologia ao descrever as condições de trabalho co e o consumo de drogas ilícitas e lícitas.
e de vida dos operários ingleses como causadoras de muitas de A Oficina das Nações Unidas contra as Drogas organizou
suas doenças. A descoberta do primeiro micróbio, do car­ um programa preventivo de uso problemático que permitiu
búnculo, deu-se em 1881 por Louis Pasteur. reduzir de vinte a vinte e cinco por cento o consumo proble­
No século XX outro clássico da epidemiologia, John Eve­ mático de drogas. O programa4 é de corte predominante­
rett Gordon, lavrou um conceito de epidemiologia fundamen­ mente educativo e busca por diversos meios atrair os jovens
tado na tríade agente, hospedeiro e meio ambiente. que se relacionam com drogas para a comunidade e para a
Depois de Gordon, o conceito de epidemia foi expandido família em vez de expulsá-los delas ou segregá-los.
para doenças psicossociais e doenças da nutrição. Desse ponto As campanhas preventivas baseadas em palestras moralizan­
de vista é possível incluir como epidêmicas doenças não trans­ tes proferidas por policiais mostraram-se ineficazes. Os depoi­
missivas como as doenças degenerativas e as doenças crônicas, mentos de arrependidos que contam que ficaram por anos
e também as doenças psicossociais. submetidos à droga, mas que hoje estão com "Deus no coração
Mas o certo é que foi veiculada a noção de epidemia como trabalhando de monitor em clínica de recuperação de drogados"
uma peste que se alastra por todos os cantos do País, nas cida­ se mostraram iatrogênicos, provocando aumento do consumo.
des e no campo. Em 2012, a polícia ocupou militarmente a cracolândia pau­
Oliando Dráusio Varela mostrou no "Fantástico" a diferença listana, prendeu e coagiu centenas de pessoas a se internarem
entre o crack e o oxi, disse quanto custava, onde era vendida e voluntariamente e, o que foi mais patético, obrigou grandes
que a droga é tão poderosa que se a experimentarmos uma vez
4 Educaci6n de base escolarpara la prevenci6n dei uso indebido de drogas. Oficina
não é possível se livrar dela, a população da chamada cracolân- contra la droga y el delito Viena. Nova York: Nações Unidas, 2004.

28 29
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grupos de pessoas maltrapilhas a andar em procissão e sem A epidemia de crack, ou o simulacro de epidemia como bom
rumo pelas obscuras ruas do bairro paulistano da Luz e hu­ simulacro, independente de sua veracidade, existe e funciona.
milhou os funcionários das equipes de Saúde da Família fa­ É tentador considerar o agente o crack, hospedeiro o usuá­
zendo-os desfilar pelas ruas, fora de seus territórios de atua­ rio e meio ambiente o território onde esse sujeito vive.
ção, para mostrar serviço. Essa ação teve mais de noventa por A contrafissura também se manifesta em cada cuidador e
cento de aprovação popular. terapeuta que imagina salvar a vida das pessoas, que pelas ra­
Esse fenômeno de desespero, de fissura por resolver ime­ zões mais complexas está habitando as bocadas e zonas de uso
diatamente, se manifesta na prática de internações forçadas ou simplesmente de pessoas que procuram ajuda.
muitas vezes de adolescentes que tiveram seu primeiro conta­ O consumo de crack pode ou não ser considerado uma epi­
to com alguma droga ilegal. demia, mas o problema central que focalizamos neste capítu­
A esse afã por resolver imediatamente e de modo simpli­ lo é o modo como essa noção de epidemia atua, a sua eficácia
ficado problemas de tamanha complexidade chamamos con­ imediata e os riscos que acarreta.
trafissura. Considerar simplesmente o crack uma doença crônica e
Como diz o samba: "nós é que bebemos e eles é que ficam recidivante que age no cérebro produzindo tolerância é um
tontos" ( Turma dofunil, marcha de carnaval de 1956 de auto­ reducionismo perigoso que, aliado às políticas proibicionistas,
ria de Mirabeau, M. de Oliveira e Urgel de Castro). demagógicas e midiáticas, alimentam a contrafissura por toda
Noias queimam pedra, e autoridades, políticos e editores a superficie expressiva social inserindo-se nos processos de sub­
de jornais escritos e televisionados ficam alterados. jetivação dos drogados e dos não drogados.
Mas a contrafissura não se manifesta somente em matérias A Reforma Psiquiátrica brasileira já foi considerada exem­
sensacionalistas de jornais, revistas e televisão, ela orienta tam­ plar por haver desativado aproximadamente 60.000 leitos e
bém programas de governo como o Programa Recomeço que por ter substituído grande parte dos velhos hospícios por uma
se inicia com internação para estabilização e continua com rede de atenção territorial.
internação em comunidade terapêutica para aprender a viver A Reforma Psiquiátrica desenvolveu uma poiésis, isto é,
em sociedade. produziu uma obra e se consolidou como política de Esta­
O programa é tão eficaz do ponto de vista da propaganda do. Com mobilização social, participação de usuários e fa­
política como fracassado na prática, porque é focado na droga miliares fundada na utopia de uma sociedade sem manicô­
e não na pessoa. mios, hoje se vê acuada e confrontada a utopia de uma
30 31
sociedade sem drogas. vente e água gelada, a laborterapia, os choques insulínicos, as
A contrafissura é uma das causas da criação de numerosas celas fortes, etc.
chácaras e outros locais mais ou menos isolados que se auto­ Algumas comunidades terapêuticas praticam corretivos
denominam comunidades terapêuticas. como carregar pedras e outros procedimentos repetitivos, cas­
A expressão Comunidade Terapêutica foi lavrada pela expe­ tigos e penitências.
riência inglesa e depois americana de Maxwell Jones, Bion e Em 201 1 uma Comissão de Direitos Humanos do Conse­
outros que buscavam, por meio de assembleias, grupos, psico­ lho Federal de Psicologia realizou uma inspeção em sessenta e
dramas, modificar as estruturas rígidas dos hospitais psiquiá­ oito locais onde havia internação de usuários de drogas e cons­
tricos com o objetivo de transformar uma instituição fechada tatou diversas formas de desrespeito aos direitos humanos. 5
e iatrogênica numa instituição aberta e terapêutica. Depois de a lei de saúde mental outorgar direitos às pes­
Por comunidade terapêutica entendemos um conjunto de soas com existências transtornadas ou consideradas loucas, es­
pessoas consideradas doentes e outro conjunto de pessoas con­ sas práticas acontecem cada vez menos. Há também abusos,
sideradas terapeutas desses doentes. abandono, moradores crônicos de hospícios, mas o controle
Dadas a iatrogenia e a institucionalização produzidas pelas social não se exerce mais por meio de instituições que Fou­
instituições psiquiátricas, o objetivo fundamental das comu­ cault chamou de disciplinares, mas ao ar livre; os velhos hos­
nidades terapêuticas inglesas e americanas era a desconstrução pícios não são mais rentáveis nem funcionais como outrora.
dos espaços-tempos institucionais com o objetivo de reverter Vivemos hoje sob a égide da sociedade de controle. 6
as relações de poder vigentes. Hoje, a prática de exceção acontece majoritariamente com
Nas assembleias praticadas em algumas dessas comunidades, usuários e pequenos traficantes de drogas ilegais, e muitas prá­
profissionais e pacientes tinham o mesmo poder de voto. ticas profissionais a justificam.
A contrafissura também se manifesta na tergiversação dos Essa corrente dos que entram no mundo da droga como
termos. Se a comunidade terapêutica inglesa buscou descons­ uma cruzada de salvadores ou corretores de almas une-se às
truir a psiquiatria objetivando tornar terapêuticas instituições correntes cientificistas que fazem uma leitura contrafissurada
iatrogênicas, as comunidades terapêuticas atuais as reificam.
De base moral, retornam às velhas concepções psiquiátricas 5 < http:// site. cfp. org.br/publicacao/relatorio-da -4a-inspecao-n acional-de­
direitos-humanos-locais-de-in ternacao-para-usuarios-de-drogas-2a-edicao/ >.
que entendiam a doença mental como desvio da razão, daí os 6 Gilles Deleuze. "Controle e devir (entrevista a Toni Negri) " - p. 209 e
"Post-scriptum sobre as sociedades de controle" - p. 219. ln: Conversações.
tratamentos corretivos aplicados, como banhos de água fer- Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.

32 33
das neurociências que propõem o tratamento do doente ba­ companheiros da luta antimanicomial. Elas são criadas por
seado n um sistema reducionista de castigo e recompen sa. grupos comu nitários oriundos de uma larga faixa d a socieda­
A esse par epistêmico vem somar-se o da psicologia com­ de que vai de grupos de ex- us uários, de grupos religiosos a
portamentalista. uma certa elite acadêmica.
Ess a agrupação epistemológica alia-se a uma psiquiatria au­ A criação e expansão das comunidades terapêuticas, espe­
toproclamad a científica e moderna que reencontra com a pro­ cialmente as administradas de maneira mais violenta, repre­
d ução de senso comum midiático sua velha morada - a ins­ sentam uma ameaç a para a Reforma Psiquiátrica Brasileira
tituição total. mas fazem p arte do co njunto-droga: produção-comercializa­
O drogado ora é um afastado de Deus, um ser poss uído ção-j udici alização-repressão-cuidado-terapêuticas-exposição
por satanases, ora uma vítima de um cérebro doente que per­ mediática. Fazem p arte do mesmo sintoma.
deu toda possibilidade de autodeterminação. Um sujeito sem Gregory B ateson, 8 em págin as in citantes sobre a teologia
subjetividade qu e precisa ser sequestrado, reprogramado se­ do alcoolista, mostrou como o orgulho do alcoólatra faz parte
gundo procedimentos b aseados na abstinência prolongada e de um sistema que chamou de prova invertida e consiste em vi­
na reengenharia d a vida. venciar uma interminável abstinência: bebo porque essa é a pro­
Segundo reza o Programa Recomeço,7 o tratamento se or­ va cabal que posso p arar. O drogado, diz Deleuze no texto epi­
ganiza em fases: a primeira, de estabilização, a segun da, da grafado, é o etern o abstinente, aquele que nunca p ara de parar.
reabilitação em comunidades terapêuticas onde supostamen ­ Daí a eficácia sempre relativa do primeiro dos doze passos:
te o sujeito se prepara para seu retorno à sociedade. Diante da demanda de abstinência o representante do AA
As informações sobre as s ucessivas internações e o retorno dirá: "você não vai conseguir. . . precisa se entregar a um po­
às zonas de uso nad a importam ante a fissura generalizada der superior". O u da filosofia da Redução de Danos. Diante
por intern ar quem us a drogas ilegais. É por isso que muitas da mesma demanda, ele dirá: "Você não vai conseguir, é me­
adolescentes de catorze ou quinze anos são internadas nesses lhor você experimentar u m pequeno triunfo que um grande
locais de sequestro, depois de terem sido surpreendidas fumando fracasso; é melhor tentar outra droga menos nociva. . . ou usar
maconha. Já se pode imaginar o que aprendem nesses locais . . . de outra maneira".
Porém, as comunidades terapê uticas não são o simples re­
torno dos manicômios, como bradam muitos dos queridos 8 Gregory Bateson. "Orgullo o prueva invertida". ln: Pasos bacia una ecologia
de la mente - una aproximación revolucionaria a la autocomprensión dei hombre.
7 <http://programarecomeco.sp.gov. br/ > Buenos Aires: Planeta, 1991, p. 356.

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Nos dois casos, o que funci ona é um deslo camento episte­ perda da liberdade é uma medida so cioeducativa que deveria
mológi co . De maneira que a abstinência pode ser uma redução ser prescrita por juiz.
de danos em caso de risco extremo, mas faz parte do sintoma A experiência não foi somente uma ilustração da práxis do
d o alcoolista, dos drogados em geral e de toda a série de re­ estado de exceção. Como outras, teve efeito midiático rápido,
pressores e terapeutas e outros salvadores. pois a opinião pública já doutrinada a aprovou; no entanto ,
A abstinência como contrário da droga, bebo não bebo , foi prejudicial porque os meninos e meninas não so mente es­
uso não uso , faz parte da dialéti ca e da teologia do drogado. caparam de abrig os infernais mas voltaram às cenas de uso
As internações e as prisões fazem parte da circulação dos mais arredios e muito mais difíceis de tratar.
territórios drogados: cena de uso , internação, prisão. São com­ Além de autoritário e grotesco, o empreendimento mos­
ponentes d os territórios existenciais dessas pessoas. trou-se prejudi cial e ineficaz e, graças à resistência de organi­
As comunidades terapêuticas fazem parte desse si ntoma zações de direitos humanos e de trabalhadores da saúde, as
contemporâneo que pretendemos alcançar em parte com o ações pararam e estão sendo substituídas pelo Projeto Casa
conceito de contrafissura. Viva, que parece promissor.
Mas assim com o exi stem comunidades terapêuticas que 01iantos deputados e senadores não pautaram suas campa­
ferem direitos humanos, há outras que trabalham em parceria nhas políticas com o mote de co mbate às drogas asso ciado à
com os Caps. Elas são um fenômeno complexo que convém proposta da redução da idade penal!?
enfrentar de modo não fissurado . Esta ideia de focar o tratamento numa substância não é
Outra das maneiras da expressão da contrafissura é a vio­ somente equivocada. Ela opera como álibi para criação de novos
lentação d o Direito; no Rio de Janeiro , por exemplo, a Assis­ territórios de estado de exceção.
tência So cial, sob comando d o ex-secretário muni cipal Ro­ Agamben cunhou o conceito de Estado de Exceção inspi­
drigo Bethlem, em nome de medidas de proteçã o, apli co u rado na experiência de um tip o de subjetividade produzida
medidas de i nternação . Na prática, foram caçadas crianças e nos campos de concentração.
adolescentes. Transportadas para abrigos lo nge do centro da Prisioneiros conhecidos por muçulmanos eram assim cha­
cidade, acabaram p or gerar aí conflitos insustentáveis. mados, não por sua orientação religiosa, mas por se curvarem
Essa ação foi uma tergiversação do Estatuto da Criança e às botas dos opressores em posição de reza.
do Adolescente (ECA), pois os adolescentes foram caçados 9 Giorgio Agamben. "O muçulmano". ln: O que resta de Auschwitz. O testigo
invo cando -se a aplicação de medida protetiva; o corre que a e a testemunha. São Paulo: Boitempo Editorial, 2014, p. 49.

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O livro precursor de Agamben ao Estado de exceção se que foi considerado um problema de saúde, isto é, depois é
chama O que resta de Auschwitz9 que descreve esses sujeitos que foi proibida.
desprezados pelos presos e pelos alemães, sujeitos sem palavra, Foi exatamente o agenciamento das corporações médicas
sem vontade. com a pressão dos meios de comunicação que deu consistên­
É obra da contrafissura a flagrante diferença que se verifica cia à política triunfante da guerra às drogas.
nas zonas de uso como a de São Paulo e outras regiões do País Se do ponto de vista de seus resultados foi um fracasso pois
onde não houve repressão sistemática. Em Recife,João Pessoa, o mercado negro, a violência, o encarceramento cresceram, para
Aracaju e outras capitais sem ações de repressão como houve o senso comum e o bom senso são políticas exitosas do ponto
em São Paulo ou no Rio de Janeiro, as pessoas se escondem de vista eleitoral e, consequentemente, comercial.
para fumar, e o diálogo com elas é muito mais fácil e fluido. Em outros períodos da história houve proibição por moti­
Na cracolândia paulistana, por exemplo, as pessoas fumam vos religiosos de drogas enteogênicas, e até de café.
na cara de qualquer um e a vinculação com os profissionais Ou por motivos econômicos como a guerra do ópio; 10 se­
dos Consultórios na Rua é muito mais difícil. gundo Escohotado, diante do desnível da balança comercial,
Os noias das cracolândias, maltrapilhos e confundidos com pois o ópio consumido era proveniente da Índia e levado à
o asfalto e suas extravagâncias, como os muçulmanos dos cam­ China por navios ingleses e portugueses.
pos de concentração, ocupam o lugar de sujeito sem voz; sem O uso e a comercialização do ópio foram penalizados com
direito e sem desejo, eles são uma porta para a constituição de enforcamento, mas tais medidas só fizeram aumentar o merca­
campos de exceção. do negro e o consumo. Somente depois de permitido o cultivo
Mas os noias de nossas cracolândias, diferentemente dos em território nacional, o consumo e a violência diminuíram.
muçulmanos dos campos de concentração, não obedecem. Porém, na nossa história mais recente o proibicionismo está
Por isso, esses sujeitos sem subjetividade, que devem ser intimamente ligado à incisividade do poder psiquiátrico, ao
salvos pela ciência que estuda o cérebro, logo viram inimigos, oportunismo político e à própria subjetividade contemporâ­
como dizia Basaglia a respeito dos pacientes da época da psi­ nea francamente compulsiva, como o demonstram a hiperco­
quiatria asilar. municação por celulares, computadores, tablets e aplicativos
Por exemplo, quando dizemos que a drogadicção não é um de relacionamento sexual. O uso abusivo dessas telas talvez
problema de segurança mas um problema de saúde, devemos seja a maior expressão de compulsividade.
lembrar que ela só se tornou um problema de segurança por- 10 Antonio Escohotado, op . cit., p . 534.

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A contrafissura é uma paixão propriamente capitalística. nambuco tornou-se o único estado do Nordeste brasileiro onde
Como uma alma, atravessa todos os territórios da existência e houve diminuição da violência.
não se manifesta exclusivamente nos proibicionistas. Todos No interstício dessas experiências se expressa também a con­
estamos nela como habitantes e habitados pela sociedade de trafissura, ela habita as subjetividades neuróticas, os limites
controle. impostos pelo senso comum e o bom senso ao longo de todas
No nosso entender, a contrafissura é a primeira barreira a as práticas bem-sucedidas.
ser enfrentada por gestores e cuidadores. A contrafissura é o primeiro obstáculo a ser vencido para
Embora minoritárias, existem políticas não fascistas como poder se relacionar com pessoas, biografias, corpos e também
as desenvolvidas no Uruguai, com a legalização da cannabis, para elaborar políticas inteligentes e eficazes.
na Holanda com instalação das salas de uso seguro, ou pro­ Mas quando os programas assistenciais começam a funcio­
tegidas, nos Estados Unidos e no Canadá com as experiên­ nar os egos crescem paralelamente aos drogados que assistem,
cias de Housing First, em São Paulo com o Programa "De Bra­ e a contrafissura, metamorfoseada, reaparece. Nunca nos li­
ços Abertos", em São Bernardo do Campo com a Rede de vramos dela.
Saúde Mental e a incorporação e reinvenção da Redução de
Danos.
Destaque especial merece a experiência do Programa Ati­
tude do Governo de Pernambuco que durante a gestão do ex­
-governador Eduardo Campos reunia todas as polícias, orga­
nismos de Direitos Humanos e outros atores com o objetivo
de diminuir a mortalidade e o encarceramento de pessoas en­
volvidas com drogas.
Atitude com seu trabalho de rua, e seus equipamentos de
funcionamento durante vinte e quatro horas, mais a ação de
valorização da vida pelas forças de segurança, conseguiram re­
duzir em torno de cinquenta por cento o encarceramento e a
mortalidade dos usuários de crack.
O resultado dessa ação integrada no estado foi que Per-
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mocrata radical, 1 narra o momento em que restavam apenas


duas crianças deficientes para fechar um orfanato. Tommasi­
ni convocou as velhas partisans (combatentes comunistas contra
os nazistas) e conseguiu que elas levassem essas crianças para
morar com elas. Dessa forma, tanto as velhas senhoras como as
2.
crianças melhoraram significativamente suas vidas.
A FORMAÇÃO DO CARÁTER
Mario Tommasini entendeu logo, com Basaglia, que o pro­
DO TRABALHADOR DE CAPS AD
cesso terapêutico era inerente ao processo de desinstituciona­
lização.
Em 1965 Mario Tommasini, operário comunista, Em Santos, durante a gestão do prefeito David Capistrano
tornou-se secretário de saúde da cidade de Parma (Itália) e aí Filho, tivemos a sorte de conhecer Tommasini, homem que
protagonizou uma série de experiências libertárias que embe­ inundava os ambientes de alegria e dignidade.
lezam a história das revoluções psiquiátricas. No livro que publicamos com prólogo de David Capistra­
Tommasini foi um dos precursores na expansão dos prin­ no Filho e Aldaiza Sposati, Franca Ongaro Basaglia narra a
cípios e da pragmática de Psiquiatria Democrática para o cui­ experiência de uma ocupação com jovens marginalizados de
dado e a desinstitucionalização de velhos, crianças, deficientes um espaço abandonado da cidade. Nesse local e numa expe­
e jovens drogados. riência de confronto e de profunda escuta dos desejos e ma­
Por essa época ele conheceu Franco Basaglia e o encontro neiras de entender o mundo dos jovens, liderou a criação de
foi decisivo para a história de desconstrução manicomial que uma cooperativa à revelia da burocracia de esquerda, dispu­
Tommasini liderava na cidade de Parma. tando palmo a palmo a opinião pública.
Durante o período em que Mario Tommasini foi secretá­ Como diz no prefácio Franca Ongaro Basaglia, nas expe­
rio de saúde e ocupou outros cargos, foram desativados mi­ riências lideradas porTommasini e seu amigo inspirador Franco
lhares de leitos psiquiátricos, todos os asilos para velhos, os Basaglia, se constatou que tudo é possível no auge da partici­
orfanatos, e uma vetusta edificação foi transformada em Caste­ pação e da solidariedade.
lo dos Direitos, onde foi criada uma prisão de portas abertas. Porém, quando ele tomou contato com jovens usuários de
Uma das passagens mais emocionantes do livro de Franca
1 Franca Ongaro Basaglia. Mario Tommasini vida e feitos de um democrata
Ongaro Basaglia, Mario Tommasini - vida eflitos de um de- radical. São Paulo: Hucitec, 1993.
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heroína, a experiência se complicou a tal ponto, que ele che­ Danos ao ir ao encontro dos usuários sem censurar o uso de
gou a afirmar: "estou convencido que não se pode administrar drogas e por aceitar essas pessoas da maneira como elas eram.
a toxicodependência". Ele discordou da posição conservadora do governo italiano
Esse enunciado tem uma potência paradoxal: de uma par­ de esquerda que não conseguiu resistir à tentação repressiva
te, afirma a dificuldade de conviver com pessoas que traem, que levou ao fracasso tantas experiências.
enganam, desafiam. . . que sofrem e gozam de maneira inu- Dessa forma criaram um antecedente que pode ser enun­
sual. "Com relação ao problema dos toxicodependentes, creio ciado assim: a dupla postura de reprimir e cuidar ao mesmo
que seja um dos setores mais difíceis, mais difíceis que a psi­ tempo está fadada ao fracasso.
quiatria, que os deficientes". Makarenko queimava os prontuários dos jovens em pleno
Mas esses enunciados, para quem acompanhou a experiên­ governo bolchevique, pois acreditava como poucos no futuro.
cia de Maria Tommasini, só expressam intensidades e a verti­ François Tosquelles, além de comparar os hospitais psiquiá­
gem de levar as relações a limiares inesperados. tricos a campos de concentração, e protagonizar a revolução
Também Anton Semionovitch Makarenko na ex-União psiquiátrica levada a cabo em Saint-Alban (França), também
Soviética, arriscou a vida no confronto com os jovens da Colô­ se insurgiu contra o stalinismo a ponto de enviar uma carta de
nia Górki, ele que era um homem frágil, acompanhado so­ discordância ao próprio Stálin. As experiências fundadoras
mente de duas pedagogas. foram marcadas por alta intensidade e transitaram transbor­
Num momento, narrado no Poema pedagógico,2 a impli­ dando os limiares da clínica, da pedagogia e da política.
cação e o desepero foram tais que Makarenko chegou a tentar De modo similar à Reforma Psiquiátrica de Parma, mas
suicídio mas foi surpreendido por um jovem que o instou a em escala sumamente maior, o advento da epidemia de crack
não tirar a vida. obrigou a Saúde Mental a dar respostas para as quais não
Acredito que seja difícil, na história da humanidade, veri­ estava preparada.
ficar outra experiência com tamanha transformação de jovens Os trabalhadores de saúde mental aprenderam a tratar de
delinquentes em médicos, engenheiros, jornalistas, militares e pessoas graves como, por exemplo, esquizofrênicos, mas se vi­
revolucionários. ram e se veem atropelados pela pressão política, midiática, pelos
Maria Tommasini foi um dos precursores da Redução de setores da psiquiatria refratária aos avanços da Reforma Psi­
quiátrica Brasileira e por grupos de pessoas bem-intenciona­
2 Anton Semionovtch Makarenko. Poema pedagógico. São Paulo: Editora
34, 2012. das por "resolverem" o problema dos "drogados".

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As políticas não fascistas que se iniciaram com a práxis da pacientes mais graves e a modificar a dinâmica institucional.
Redução de Danos resistiram e resistem bravamente às tenta­ Em 1 999 começou a ser construído o Caps DQ(Dependên­
tivas de reinstituir a internação e as soluções simplificadoras e cia Qyímica) que, em 2002, virou Naps AD III.
punitivas. Em 1989, na cidade de Vitória, Espírito Santo, na gestão
As políticas do governo brasileiro desenvolvidas depois de do prefeito Victor Buaiz foi criado o CPTT - Centro de
2002, ao mesmo tempo que resistiram à onda por internação Prevenção e Tratamento de Toxicômanos.
compulsória, empenharam-se na construção de uma rede de Esse serviço foi um dos primeiros do Brasil e se inspirou
Caps denominados de Álcool e Drogas, articulados a outros no Centro Mineiro de Toxicomania (Fhemig).
serviços e que têm por fundamento a atuação em rede com Criado em 1983 pela Secretaria de Segurança Pública do
base no trabalho de território. Estado de Minas Gerais com o nome de Unidade de Interna­
ção Social, esse serviço passou a ser administrado pela Secre­
O nascimento dos Caps AD taria de Estado da Saúde e chamar-se CMT. Pouco conheço
desse serviço e de suas transformações.
Identificamos cinco experiências - pode haver outras - O CPTT de Vitória também sofreu influência do Cetad
que originaram os primeiros Caps AD. - Centro de Estudos e Terapia de Abuso de Drogas da Uni­
Em 1989, em Santo André, dentro de um Ambulatório versidade Federal da Bahia, cujo diretor, professor Antonio
de Saúde Mental, foi criado um serviço para servidores de­ Nery Filho, foi quem idealizou os Consultórios de Rua.
pendentes de drogas, basicamente para alcoolistas. Com um pé na abstinência e outro na Redução de Danos,
O serviço era frequentado majoritariamente por funcionários foi transformado em Caps AD II e também foi criado sob
da prefeitura usuários de álcool. À diferença dos Caps tinham forte controversa.
enorme adesão ou, melhor dizendo, dependência institucional. Durante a gestão da coordenadora de saúde mental, An­
Sob a coordenação do psicólogo Décio de Castro Alves o drea Romagnoli e sua equipe (2003 a 2011), Vitória desen­
serviço entrou em crise pois os pacientes mais graves, como volveu a construção de uma rede consistente de saúde mentaP
por exemplo os meninos em situação de rua, não eram atendi­ entremeada na Atenção Básica e dialogando com a Assistência
dos pelo serviço.
Por assim dizer, o Caps de Santo André foi fundado diante 3 Luiza Helena de Castro Victal e Bastos & Andrea Campos Romagnoli.
"Saúde Mental na Cidade de Vitória, a Rede Tensionada". ln: SaúdeLoucura 9,
de uma crise institucional que o levou a dar prioridade aos Hucitec, São Paulo, 2010, p. 193.

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Social e outras políticas públicas. O Caps AD de Vitória, as­ Fomos processados e vilipendiados pela mídia local pois,
sim como os outros dispositivos de saúde mental, ampliou segundo eles, estávamos pondo em prática o método Capis­
suas ações atuando em parceria com outros serviços da rede de trano baseado no erotismo.
saúde, além do funcionamento de diversos grupos terapêuti­ Sem dúvida, foi uma experiência baseada no encontro do
cos; de lá surgiu o Consultório de Rua de Vitória. Em 201 1 amor com a liberdade, como a maior parte das acontecidas
veio a s e constituir em Caps A D III. Uma parte se desmem­ sob a direção do grande revolucionário que foi David Capis­
brou num Caps ADI III inaugurado em 2012. trano Filho.
Outro serviço precursor, criado em 1998, foi o Espaço Fer­ Em Santos funcionou também um serviço para atender
nando Ramos da Silva, assim chamado em homenagem ao meninos e meninas usuários de cola de sapateiro e crack, no
protagonista do filme Pixote, a lei do mais fraco, de Héctor último período da Casa de Saúde Anchieta, mas que não per­
Babenco. Foi um centro de convivência para jovens com vidas durou.
difíceis. Em 2008 transformou-se em Caps III. Durante a minha gestão de secretário da Assistência Social
Em Santos não sentimos necessidade de criar Naps para de Santos, mantivemos relações estreitas com meninos em si­
usuários de drogas. tuação de rua e meninas prostituídas.4
Antes da criação dos abrigos para adolescentes, fizemos a A intensidade e abrangência do Projeto Meninos e Meni­
experiência de produzir agenciamentos entre meninos e me­ nas de Santos tornou desnecessários dispositivos médico-psi­
ninas em situação de rua e pacientes crônicos do hospital. Não cológicos especializados para usuários abusivos de drogas; eles
havia então um lugar de convivência nem abrigos, que logo eram atendidos nas redes de assistência social, saúde e saúde
após foram criados. mental locais.
A experiência foi fantástica, os moradores do hospital psi­ Em Santos foi criada uma casa para pessoas infectadas pelo
quiátrico em processo de desinstitucionalização ativaram seus vírus da aids5 que funcionava com uma metodologia gru­
interesses vitais, os meninos respeitavam-lhes o espaço e cui­ pal. Nessa casa moravam muitos usuários de cocaína injetá­
davam dos velhos internos. vel. Na época eles se picavam em roda, quem pagava mais
A ideia era promover a convivência entre uma população
4 Antonio Lancetti ( org. ) . Assistência social & cidadania. São Paulo: Hucitec,
nômade e outra sedentária, para ver o que se produzia entre 1 99 6 .
essas séries aparalelas que se inspiravam no conceito de agen­ 5 Lúcia Frigério Paulo & Tânia Maria Santos Vieira. "Convivência com
portadores de aids e dependentes de drogas: uma clínica de solidariedade". ln:
ciamento de desejo de Félix Guattari e Gilles Deleuze. Sa1ídeLoucura 3. São Paulo: Hucitec, 1991, p. 55.

48 49
1 tomava primeiro e quem pagava menos tomava a picada com As ideias que proporemos a seguir foram inspiradas pelas
o sangue de todos os participantes da roda. experiências citadas e principalmente pelas minhas atividades
Recordo ter ouvido de vários membros do grupo relatos de em São Bernardo do Campo onde venho acompanhando a
sonhos com cocaína e em conversas mais reservadas que o fato formação da rede de Saúde e de Saúde Mental e particular­
de saber que alguém da roda estava contaminado com o vírus mente os serviços de atenção de Álcool e Drogas: Caps AD,
da aids dava mais vontade. ADi, as Repúblicas de Adulto e de adolescentes e a equipe do
Mesmo assim, a distribuição de seringas e de insumos para Consultório de Rua que se transformou em Consultório na
Redução de Danos foi proibida por ação do Ministério Pú­ Rua, e também pela supervisão de trabalhadores dos Caps
blico. Como era de se esperar, a lei e seus administradores AD situados no centro de São Paulo, minha experiência mais
sempre andam de contramão com a vida. recente.
Aquele serviço não era focado na droga, mas na subjetivi­ Enquanto os leitos de hospital psiquiátrico se desativavam,
dade e nas condições de vida das pessoas para as quais ainda não a rede nacional de Caps se expandia pelo Brasil.
havia tratamento. Mas assim que foi possível, apesar dos tantos Os Caps e Naps da primeira hora, e muitos da atualidade,
impedimentos, a Secretaria de Saúde de Santos iniciou a dis­ nasceram como instituições que vieram substituir os velhos
tribuição dos antivirais pelo SUS e, por isso e por tantas ou­ manicômios e serviram de modelo para criação de outros ser­
tras ações, é que se reverteu a epidemia de aids na cidade com viços denominados Caps Álcool e Drogas. Perante a avalan­
a maior incidência de infecção por HIV do Brasil. che da contrafissura, os Caps AD foram a primeira resposta
Fui supervisor por pouco tempo em Santo André durante dada pela Saúde Mental, convocada para substituir os trata­
o período de transformação do Ambulatório em Naps e acom­ mentos morais e as estratégias reducionistas centradas na abs­
panhei o início da crise que o levou à construção do Naps AD tinência e na elisão da subjetividade, dos corpos e da cidada­
III. Também fui supervisor da Rede de Saúde Mental de nia das pessoas que usam sistematicamente crack.
Vitória, e supervisionei ainda o CPTT/Caps AD; aí conheci Porém, enquanto a rede de Caps AD era instalada, as Co­
pessoas muito resistentes a mudança e outras criativas que munidades Terapêuticas intensificaram a sua expansão. Elas
sustentavam coletivos e uma clínica da Redução de Danos. As começaram a existir nos anos 70 e embora em muitas delas se
equipes dos Caps de Vitória estavam em contato com todos pratiquem crueldades e desrespeito aos direitos humanos, não
os territórios da ilha e da parte continental de Vitória e sua são a mesma coisa que os manicômios. Muitas foram criadas
violência. por ex-usuários, como já foi dito, outras trabalham em parceria
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com Caps AD que não funcionam em regime de vinte e quatro • gerenciar projetos terapêuticos oferecendo cuidado clíni­
horas e participam dos Projetos Terapêuticos Singulares (PTS). co eficiente e personalizado para o paciente e sua família;
Em momento de pressão proibicionista e de aumento • promover a inserção social dos usuários mediante ações
(muito menor do que é propagandeado largamente) do con­ intersetoriais que envolvam educação, trabalho, esporte, cul­
sumo de crack, de judicialização da saúde, da política e da tura e lazer, montando estratégias conjuntas de enfrentamen­
vida, o Ministério de Saúde promoveu uma rede de atenção; to dos problemas.
um dos pontos estratégicos dessa política de Estado são os É como se o Governo falasse - não podemos, nem preten­
Caps AD. demos eliminar as drogas nem os drogados, mas podemos ofe­
As portarias que regulamentam o funcionamento rezam que recer uma rede de cuidados.
Caps é um "Serviço Ambulatorial de atenção diária que funciona Mas como se operam essas práticas nos Caps AD?
segundo a lógica do território". Atende prioritariamente pa­ Como um trabalhador de saúde, por exemplo, um enfer­
cientes com transtornos mentais severos e persistentes em que meiro ou auxiliar de enfermagem treinado para operar pro­
o comprometimento requer monitoramento intensivo, se­ tocolos aprende a cuidar das crises existenciais às vezes ex­
mi-intensivo e não intensivo. Deve ser indicado para a fase de plosivas?
reabilitação visando a reinserção social do cidadão. Auxilia Como um psicólogo capacitado para atender em consultó­
na recomposição da estrutura interna e social da pessoa como rio desenvolve sua clínica nas ruas, nas parcerias com profissio­
um todo. nais da estratégia de Saúde da Família e outros coletivos que
As funções do Caps são as seguintes: operam no território?
• regular a rede de atenção à saúde mental; Como pessoas treinadas para operar individualmente con­
• organizar a rede de serviços de saúde mental em seu ter­ seguem coordenar grupos?
ritório; Como os médicos psiquiatras produzidos na instituição
• coordenar as atividades de supervisão de unidades hospi­ hospitalar e nas consultas psiquiátricas tradicionais se trans­
'
1, talares psiquiátricas; mutam para operar nos mais complexos territórios violentos,
• supervisionar e capacitar as equipes de atenção básica, ou inesperados?
serviços e programas de saúde mental; Como se atende a crise em Rede diferenciada da urgência
• realizar e manter atualizado o cadastro de pacientes que médica?
utilizam medicamentos especializados; Como os Acompanhantes Terapêuticos das Unidades de

52 53
.......-.............-.....,,..,,.,___,..,,.,ummnrnn,mtn'f11fl1'11N Jffl!l!l'ftlflnlfflº"----·-·

Acolhimento (UAs) conseguem conviver em casas e comuni­ Doentes graves encontraram diversos modos de vida depois
dades se eles foram produzidos subjetivamente sob o senso de muitos anos de cronificação institucional.
comum e o bom senso social? Mas os Caps AD não são simples substitutos dos manicô­
Certa oportunidade, num grupo de uns trinta Agentes de mios e comunidades terapêuticas. Os casos bem-sucedidos são
Saúde e enfermeiros que operavam no centro da cidade de aqueles que escapam do circuito - zona de uso, internação
São Paulo, uma espécie de Pacs de rua (Programa de Agentes em comunidades terapêuticas e outras instituições, prisão,
Comunitários que atuavam inicialmente no Norte e Nordes­ etc. . .
te do Brasil), se discutiu a questão da internação compulsória Os territórios geográfico e existencial dos usuários com­
e da redução legal da idade penal. pulsivos de crack, cocaína e álcool são zonas de uso, cadeia,
A absoluta maioria desses profissionais que trabalhavam na comunidades terapêuticas. Os territórios existenciais se cons­
dita cracolândia paulistana era contra a internação compul­ tituem no ethos e nos ritornellos craquianos que organizam
sória e a lei atual de drogas, mas na hora de discutir a redu­ vidas escapadas da miséria da sociedade.
ção da maioridade penal a maioria se manifestou a favor até Como é possível introduzir mudanças nesses fluxos?
que a voz dissonante de uma mulher negra disse: "essa lei só Os Caps AD são, por definição e método de trabalho, ins­
vai prender adolescente, preto e pobre", e se estabeleceu uma tituições abertas.
polêmica. Esta é a primeira tensão que se cria no dia a dia dos Caps
A primeira tese é que somente com alta tensão antimani­ AD. Diferentemente de instituições que exigem abstinência,
comial é possível produzir uma rede de atenção que não su - os Caps AD estão de portas abertas. Eles priorizam as situações
cumba à pressão dos políticos, das forças de segurança e dos de maior risco, às vezes à custa de mobilizar o serviço inteiro.
agentes do Poder Judiciário. Como é possível para uma pessoa não formada ou não su­
Um exemplo dessa tensão é a Saúde Mental de São Ber­ ficientemente deformada que visa supostamente a diminui­
nardo do Campo coordenada por Suzana Campos Robortella ção do uso de drogas aceitar pessoas que chegam nas mais
" e depois por Stellamaris Pinheiro. variadas condições, muitas vezes machucadas, ébrias, depri­
Mas assim como os processos terapêuticos e as transforma­ midas ou exaltadas pela diminuição do uso e condições exis­
ções subjetivas são inerentes ao processo de desinstitucionali­ tenciais tétricas?
ção, da mesma forma, os Caps são serviços substitutivos dos Pessoas que retornam depois de abandonar o processo te­
manicômios e produtores de novos territórios existenciais. rapêutico ou que demandam benefícios secundários, como
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laudos médicos, ou que levam drogas para dentro da insti­ Essas demandas judiciais, muitas vezes, não ouvem o inte­
tuição? ressado e são prescritas a pedido de familiares que expressam
os mais variados conflitos, às vezes de interesse financeiro.
Os casos de ofício Em São Bernardo do Campo, onde há diálogo com o Po­
der Judiciário e funcionamento do atendimento em rede, a
Joana Pagliarini, psicóloga que trabalha no Caps AD Pra­ tensão é permanente.
tes do centro de São Paulo, queixava-se de os atendimentos se Em recente encontro organizado pela Defensoria Pública
tornarem "fabris". A população Caps desse é majoritariamen­ de São Paulo, uma técnica do Judiciário perguntou inocente­
te composta por homens e mulheres com história de situação mente por que no hospital Jacques Lacan, situado no muni­
de rua, encarceramento, internações e principalmente abriga­ cípio de São Bernardo do Campo, não havia pacientes oriun­
das. Pessoas institucionalizadas. dos dessa cidade.
Com a expressão fabril queria mostrar a mecanização do É porque todos os pacientes desse município foram resga­
atendimento. tados do manicômio e estão morando nos SRTs - serviços
Mas, em contraposição, nos Caps AD como o de São Ber­ residenciais terapêuticos - criados pela administração muni­
nardo do Campo e mesmo nos citados de São Paulo, o cipal. Os SRTs são moradias situadas nas comunidades.
atendimento éfebril, dada a enorme demanda e intensidade do Funcionários dos Caps AD de São Bernardo afirmam que
dia a dia. na maioria das vezes esses casos de oficio são menos graves que
Não bastasse a tensão permanente dos inúmeros acolhi­ os j á atendidos no Caps.
mentos realizados diariamente, as intervenções em territórios Enfim, além das crises familiares, das tensões das ruas, do
para atender em parceria com profissionais da Atenção Bási­ acompanhamento de pessoas que estão em regime de Hospi­
ca, que descobrem situações de violência e de crise, procura­ tal Noite em cuidado intensivo, dos egressos de comunidades
dores e juízes prescrevem condutas como internações com­ terapêuticas, atendem também a ansiedade contrafissural de
pulsórias ou busca ativa pela demanda dos familiares de juízes e promotores.
usuários de drogas sem ouvir o próprio usuário nem os profis­ As equipes dos Caps se esforçam para atender essas famí­
sionais que lidam com eles. Eles nunca se meteriam na pres­ lias e esses pacientes, sendo fiéis à metodologia, à ética e à
crição de um cardiologista indicando uma cirurgia em campo melhor opção clínica encontrada.
aberto ou um tratamento medicamentoso. Um exemplo dessa situação foi o de um paciente com
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cento e quarenta internações. O juiz decretou-lhe a interna­ o Projeto Terapêutico Singular passava pelo casamento dos
ção compulsória depois de uma briga com o pai e a morte da enamorados, entretanto ele estava interditado j udicialmente.
mãe por parada cardíaca, enquanto assistia à cena. Um dia, um ator fazendo as vezes de padre, fez-se o casa­
Os técnicos foram até a casa do homem e lhe explicaram a mento dos noivos com festa e participação do coletivo de usuá­
situação. Depois de bastante conversa ele aceitou ir para o rios e profissionais.
Caps. Tempo depois soubemos por um enfermeiro que tra­ Faz tempo que, depois do casamento, moram numa casa
balhou no hospital psiquiátrico Jacques Lacan, que o pacien­ alugada num bairro próximo ao Caps, e levaram para morar
te em questão era o terror do hospital, protagonizara várias no seu bairro a líder dos moradores de rua de uma praça cen­
rebeliões e por várias vezes era-lhe dada alta, pelo medo do tral da cidade.
caos que ele promovia no hospício. Há muito trabalha como pintor e em outras empreitadas,
Durante mais de dois anos o sujeito foi mantido no Caps parou de usar drogas de modo compulsivo, cuida de sua mu­
com a força dos vínculos construídos. Várias vezes o levaram lher e o juiz revogou a interdição. Virou um cidadão.
para o Pronto Atendimento por estar em pleno furor. Esse caso é um verdadeiro exemplo de PTS: desobediência
Em 2012, quando o governo do estado deflagrou a campa­ às determinações judiciais, ou resposta à demanda j udicial de­
nha da internação compulsória, o movimento antimanicomial pois de analisá-la, intervenção fundada na Estratégia da Re­
de São Bernardo criou o "Carnaval da Internação Compulsó­ dução de Danos, muito suporte e sustentação da posição de
ria". A equipe do Consultório de Rua fez um molde de gesso terapeutas e, fundamentalmente, criatividade.
com o corpo do paciente e o colocou numa jaula com rodas, e Lembram-se do filme O filho da noiva dirigido por Juan
o homem foi no bloco pelas ruas do centro da cidade carre­ José Campanella e protagonizado por Ricardo Darín, Norma
gando a si mesmo. Aleandro, Héctor Alterio e Eduardo Blanco?
Tempos depois de a equipe suportar várias crises, entrada
de drogas na instituição, falsos homicídios . . . um dia chegou Plasticidade psíquica e atletismo afetivo
com uma faca ensanguentada dentro da mochila, dizendo que
havia matado alguém, mas a equipe, tarimbada, descobriu que Em várias obras de sua extensa literatura psicanalítica, Freud
era sangue de boi. se preocupa com os limites da terapia psicanalítica. 6 Nas Novas
Ele acabou se apaixonando por uma usuária do Caps
6 Sigmund Freud. Tres ensayos sobre una teoría sexual [1905]. Obras comple­
III que se situa próximo do Caps AD. A equipe percebeu que tas, vol. I. Madri: Editorial Biblioteca Nueva, 1967.

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conferências de 1915 confronta o conceito de Carl Jung de Uma acompanhante terapêutica disse numa supervisão que
inércia psíquica, que era para Jung a causa fundamental do quando chegava em casa continuava sentindo os pacientes no
fracasso dos neuróticos. Ele confronta o conceito de inércia corpo dela. O grupo partilhou com ela a implicação de cada
psíquica, inspirado na aptidão para fixação psíquica enunciada um. Mas as pessoas consideraram que também se curavam
por Freud nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, de 1905. com os pacientes. "Eu me tornei uma pessoa muito melhor do
Ele diz que a rigidez psíquica aumenta com a idade, mas que era, aqui aprendi a mudar e entrar e sair de situações
que há pessoas que conservam a plasticidade psíquica por difíceis", disse Geneide de Barros, psicóloga que lidera a ma­
muitos anos. 7 nutenção de um tônus vital.
Essa plasticidade ou rigidez psíquica não é privativa dos Cada vez que aparece uma situação tanática ela faz algum
neuróticos, é uma espécie de traço único, "uma espécie de comentário erótico ou humorístico (não é a única) e por isso
número primo, impossível de ser dividido", uma pura sin­ batizamos essas intervenções de "efeito Geneide".
gularidade. No texto acima citado, Freud afirma que a rigidez psíqui­
No Caps AD de São Bernardo que também começou como ca não somente involuciona, impede o desmanche das forma­
um ambulatório de Saúde Mental, transformado em Caps ções neuróticas, e está ligada também a processos de entropia
III em 2010, reina um clima de erotismo, de bom humor psíquica.
e de inventividade permanente. No entanto, muitos funcio­ O trabalho dos terapeutas, ou seja, de todos os membros da
nários não suportam o dia a dia, notadamente os que acredi­ equipe de Caps AD exige uma plasticidade psíquica extraor­
tam que drogado é safado ou que encarna algum mal especial, dinária, daí a importância de artistas na equipe; no Caps AD
produto da própria formação familiar, comunitária e midiática. de São Bernardo há um músico, Luciano Galhardo, que co­
Tanto no Caps AD como no Caps ADi de São Bernardo nhece profundamente as pessoas que frequentam o Caps e
que acompanho mais de perto, como em outros, há pessoas tem mais tino clínico que muitos especialistas. No Caps ADi
com as mais variadas formações familiares, religiosas e profis­ há um professor de educação física, Ricardo Augusto da Cos­
sionais com plasticidade psíquica imprescindível para lidar ta, que lidera o Projeto Remando Pela Vida que opera uma
com a angústia diante da repetição das mal chamadas recaídas verdadeira clínica peripatética.
ou das manipulações, roubos, traições e sofrimento. Adolescentes e jovens, inicialmente, e também adultos re­
mam na represa Billings, desterritorializam as pessoas das bi­
7 Sigmund Freud. Historia de una neurosis infantil [1905]. Obras comple­
tas, vol. II. Madri: Editorial Biblioteca Nueva, 1967, p. 838. queiras das famílias expulsivas e dos próprios Caps, aumentam
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a presença dos educadores e desenvolvem, no sentido spinozia­ musculatura afetiva que corresponde a localizações físicas dos
no, bons encontros ou encontros que aumentam a potência vital. sentidos.
Mas a constante mudança de situações, ora repetitivas, ora "O ator é como um verdadeiro atleta físico, mas com a ressal­
explosivas, as diversas crises que os profissionais acolhem, o va surpreendente de que ao organismo do atleta corresponde
encontro com histórias de vida terrificantes ou situações de um organismo afetivo análogo, e que é paralelo ao outro, que
horror tornadas habituais ou banalizadas, exigem plasticida­ é como o duplo do outro embora não aja no mesmo plano.
de psíquica e outro olhar. "O ator é um atleta do coração."
Um usuário chegou ao Caps acolhido pela equipe do Con­ O conceito de atletismo afetivo de Artaud refere a potên­
sultório na Rua com um buraco na parte posterior da cabeça, cia do corpo do ator: por meio de vários tipos de respiração e
infeccionado e com a massa encefálica exposta. "Estava reci­ vários tipos de gritos o ator vai ao corpo orgânico para produ­
clando cobre", disse o homem para se referir a sua tentativa de zir um corpo sem órgãos que lhe permita sair da representa­
pegar fios de alta-tensão. ção e alcançar o interlocutor. "Não basta que essa magia do
Ou uma moça forte e desafiadora, uma espécie de mulher espetáculo prenda o espectador, ela não o aprisionará se não
bomba que chegava aos serviço desafiando a todos e destruindo souber onde pegá-lo."9
o que lhe estava ao alcance das mãos. Era tanto o ódio que sen­ "Alcançar as paixões através de suas forças em vez de consi­
tia pela sua profissional de referência que uma segunda tera- derá-las puras abstrações confere ao ator um domínio que o
peuta pedia para falar para ela e ela lhe transmitia o que que­ iguala a um verdadeiro curandeiro."10
ria expressar, um trabalho de tansferência em rede que permite O conceito de atletismo afetivo nos remete ao corpo do
introduzir modos de expressão substitutivos da violência. terapeuta. Ele, em primeiro lugar, busca curiosamente o cor­
Para suportar paixões violentas como essas ou mergulhar po de seu interlocutor, se aproxima, escuta, olha, toca. . . e
na biografia de pessoas silenciadas carcerariamente, além de uma vez iniciada essa relação se dispõe às mais diferentes rea­
plasticidade psíquica, os terapeutas de Caps AD exercitam ções: de desconfiança, de amor, de ódio ou busca de uso, de
uma espécie de atletismo afetivo. dependência e de autonomia.
Antonin Artaud enunciou o conceito em O teatro e seu du­ O terapeuta ou o redutor de danos não dá sermões, olha o
plo.8 Diz ele: "É preciso admitir, no ator, uma espécie de corpo, escuta suas expressões, se interessa pela biografia. Aí

8 Artaud Antonin. "Um atletismo afetivo". ln: O teatro e seu duplo. São 9 Ibidem, p. 1 60 (itálico de A. Artaud) .
Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 1 5 1 . 10 Ibidem, p. 154.

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onde os outros veem uma droga ele enxerga uma pessoa. Des­ das pessoas que usam drogas destrutivamente e a dos que su­
sa maneira ele se dispõe a bancar repetições de vidas às vezes postamente curariam os drogados.
violentas, institucionalizadas, desgarradas por injustiças e aplai­ É comum que os usuários que mais defendem a abstinência
nadas pela ordem social. sejam os primeiros a recair. Como observou Gregory Bateson,12
Os terapeutas do Caps AD de São Bernardo do Campo re­ o drogado é um eterno abstinente, o que bebe ou usa porque
ferem-se a alguns usuários como sujeitos de pouca vida e ao essa é a prova cabal que vai parar.
mesmo tempo sete vidas, ou, como disse a psicóloga Deise De maneira que a escuta do terapeuta de Caps AD se orien­
Kuroiwa, setenta vidas. ta para aquém dos discursos dos drogados e dos não drogados.
Antonio Nery Filho11 diz que o Redutor de Danos deve E é exatamente no plano dos corpos.
ter inteligência emocional. Acreditamos que ele se refira à E os corpos não são abjetos, apesar da afirmação de Taniele
mobilidade e processamento permanente dos afetos, das de­ Rui,13 abjeta é a sociedade da qual os craqueiros escapam. Abjeta
positações, dos roubos (nos Caps AD os técnicos andam com é a prática de acertar noias, isto é, pessoas que ficam no fluxo,
seus pertences bem guardados). Eles aprendem a ser mais es­ com estilingue como contam usuários referindo-se a policiais.
pertos que os que têm cultura de bocada, de cadeia ou de Abjeta é a atitude de desenhar cruzes suásticas no parietal
Comunidade Terapêutica. de um homem gay e negro na madrugada de São Paulo.
Eles buscam alcançá-lo onde o usuário menos espera. Ele Abjeta, como disse Deleuze, é a dependência onde cada
se coloca nas linhas de mudança, mesmo as mais aparente­ drogado tem seu próprio buraco negro. É quando a droga
mente insignificantes, as raras, inesperadas. para de fazer novas conexões e tudo rebate sobre si. O mo­
É o corpo do usuário que o terapeuta busca encontrar e mento de meu papel, meu pino, minha pedra, minha dose, é o
esses encontros vão formando uma musculatura afetiva e uma próprio narc1S1smo.
velocidade; como diz Davi Benetti, o Consultório na Rua opera Abjetos são os presídios nos quais são trancafiados tan­
tecnologias leves. tos negros, jovens e mulheres pobres, a maioria das vezes por
A denominada baixa exigência opera com alta exigência dos adicção punitiva14 de juízes, policiais e políticos produzindo
redutores de danos e trabalhadores de saúde mental. violência e infindável injustiça.
É preciso atravessar a superficie discursiva sobre as drogas, a 12 Gregory Bateson, op. cit., p. 1 56.
13 Taniele Cristina Rui. Corpos abjetos: etnografia em cenários de uso e comércio
11 Antonio Nery Filho, Andréa Leite Ribeiro Valério & Luiz Felipe Mon­ de crack. Doutorado. Campinas: Unicamp, 2012.
teiro. Guia do Projeto Consu/t6rio de Rua: <http://www.obid. senad.gov.br>. 14 Expressão cunhada pelo politólogo colombiano Juan Carlos Garzón Vergara.

64 65
Por mais estropiadas que estejam as pessoas que são atendi­ Bernardo do Campo discutiram-se abertamente os problemas
das no serviço público, é de seus corpos que partirá alguma de relação entre a república de jovens onde moram vários ado­
mudança. lescentes e o Caps que em tese devem operar conjuntamente.
Esse tipo de manifestação narcísica é confrontada na con­ Uma das operadoras, também música, disse: "a culpa toda é
vivência dos Caps AD, e o terapeuta precisa ser um atleta do PTS, esse, esse, esse, abaixo o PTS!" e disparou um jogo
afetivo para suportar relações que só manifestarão mudanças dramático onde abolimos o PTS, o acolhimento, o vínculo, a
com o tempo. escuta e o trabalho em Rede. Escrevemos todos esses nomes,
Encontro de corpos terapeutas-usuários mas também en­ que são ferramentas de trabalho, em papéis e os destruímos.
contro de corpos em situações grupais. Os coletivos que se - E agora? - perguntei.
produzem nos Caps, nas Unidades de Acolhimento (UAs) - Agora vamos fazer tudo de novo! - disse o grupo.
que são moradias onde habitam até doze pessoas, são expe­ A convivência com essa coleção de meninos e meninas aban­
riências contrárias à droga. donados pelos pais, devolvidos pelos pais adotivos, é uma ex­
Um exemplo interessante é o já citado Projeto Remando periência de verdadeiros atletas afetivos.
Pela Vida do Caps ADi de São Bernardo do Campo que se Numa supervisão uma menina irrompeu gritando:
desenvolve na Represa Billings e os tantos grupos desenvolvi­ - Não adianta vocês fazerem o que fizerem, eu quero ir
dos nos Caps AD. pra rua, quero usar pó e crack. Vender, transar.
Nesses coletivos, nos Caps AD de São Bernardo funcio­ Um dos educadores lhe respondeu com a mais doce e firme
nam mais de quarenta grupos e nos Caps do centro de São das calmas:
Paulo também operam dezenas de grupos semanais. - Não adianta, Clara, 14 nós gostamos de você e nós vamos
Nesses grupos se produzem novas sociabilidades e o co­ continuar cuidando de você.
mum gerado é o único dispositivo antidroga. Pela presença terapêutica e pedagógica, 15 as pessoas se mis­
Ou seja, a equipe é o grupo fundamental, ela precisa ser turam como água e azeite mas uma hora, como dizia o mestre
operante, forte e flexível e a coordenação precisa ser como a Cláudio Ulpiano, 16 passa-se o dedo e se separam, como a acom­
exercida pela psicóloga Leila Vituzzo no Caps AD de São panhante terapêutica que sentia no corpo os pacientes quan-
Bernardo, firme e sempre favorecendo o desenvolvimento e as 14 Nome fictício.
potencialidades de cada membro da equipe técnica. 15 Antônio Carlos Gomes da Costa. Pedagogia da presença: da solidão ao
encontro. Belo Horizonte: Modus Faciendi, 1999.
Durante uma supervisão institucional no Caps ADi de São 16 <www.claudioulpiano.org.br>.

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do chegava em casa. Mas no trabalho coletivo da supervisão mente criticado o Projeto "De Braços Abertos" da Prefeitura
conseguiu se sentir bem e saiu fortalecida e alegre. de São Paulo por ficar no território e disse que era como pôr
O trabalhador de Caps é como uma pilha, se for uma pi­ alcoolistas a trabalhar em bar. Acontece que no Caps AD de
lha tradicional aguenta até determinado momento mas uma São Bernardo do Campo há seis pacientes que trabalham em
hora se torna descartável. Por isso, a pilha precisa ser auto­ bar. O que há mais tempo está sem usar já computa seis anos
carregável. e o que há menos tempo está sem se embriagar desastrosa­
E existem muitas maneiras de se recarregar. Supervisões, mente já computa seis meses; e ainda cuidam dos bêbados
discusões de caso, estudo, festas, grupos de WhatsApp, etc. que frequentam o bar e os encaminham ao Caps.
Porém, o mais importante é operar em superfícies não sub­ Em meio a um clima adverso, de retrocesso, vemos emergir
metidas à moral e à contrafissura não só para não perder de um novo tipo de profissional que está lavrando novos sulcos
vista os pacientes e suas imperceptíveis mudanças mas para da Reforma Psiquiátrica Brasileira.
não se separar do que cada um pode. Essa reinvenção constante da saúde mental é obra desses
Nos Caps e noutras experiências como a "De Braços Aber­ preciosos trabalhadores de saúde.
tos" vemos emergir experiências de potencialização de usuá­
rios e operadores.
Mas para isso é preciso transitar por caminhos cheios de
arapucas; além das já citadas, uma das mais complexas é a
denominada empoderamento de usuários e funcionários. O
empoderamento se expressa em modo de reivindicação, recla­
mação e benefícios secundários como remédios, certidões mé­
dicas, dependência, pequenos ressentimentos e instituciona­
lização ao ar livre.
A maior parte das vezes é preciso passar por isso, sustentar
a posição de cuidador até que um dia emerja o segundo dis­
paro, o segundo threshold do qual trataremos mais à frente,
mas que consiste nas mudanças inesperadas.
Exemplo: o psiquiatra Ronaldo Laranjeira tem insistente-
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68
auxiliar de enfermagem que estava saindo de seu plantão de
um hospital privado e outras pessoas moradoras da comuni­
dade que se aproximaram e se prontificaram a ajudar.
Uma viatura de polícia que tinha ido embora voltou para
oferecer ajuda.
3.
- ()gerem que chamemos o Samu?
CONVERSAÇÕES COM
- Não precisa, já chamamos, muito obrigado.
DAVI ABDO BENETTI SOBRE
CONSULTÓRIOS DE E NA RUA O Samu chegou logo a seguir. E enquanto essa cena acon­
tecia passava uma camionete com um cartaz em favor da não
legalização da maconha. As pessoas que estavam no automó­
vel viram a situação mas escafederam-se.
ANTONIO LANCETTI
A outra coisa que me impressionou foi o trabalho sistemá­
Eu já acompanhei muitos campos no Nordeste e no Sul do tico de desterritorialização que operam quando fazem pique­
Brasil, também na cracolândia paulistana, mas o que mais me nique ou passeios, fortalecendo os vínculos com os usuários,
impressionou quando saí com vocês foi o fato de chegar ao além do samba das sextas-feiras e o preparo de comidas. . .
território, estacionar a van e logo os usuários começarem a E por último o trabalho que fazem com a rede, talvez po­
procurar a equipe do consultório. deríamos começar por aí. . .
Lembro que naquela noite um usuário tentava convencer
vocês sobre o malefício das drogas e vocês relativizavam, al­ DAVI B ENETTI
guém falou até na etimologia da palavra. A Redução de Danos, em seus primórdios, quando era mal­
O homem acabou pedindo atendimento e depois foi ao dita, não aceita pelos governos, no início de sua existência como
Caps AD; antes de ir embora foi falar com alguém que estava Programa, teve as ações vinculadas à questão educativa, à es­
em uso a uns sessenta metros da equipe e disse a ele: "quando cuta, conversar com usuário, fazer o vínculo. . . Essa é a estra­
passar a noia vai falar com eles". tégia da Redução de Danos.
De repente um homem alcoolizado caiu na nossa frente; Essa é a base principal da Estratégia da Redução de Danos.
ele bateu no meio-fio e estava desacordado com a garrafa de O conteúdo do Consultório de Rua.
pinga quebrada. E enquanto vocês o atendiam, chegou um O Consultório de Rua, quando não era aceito pelas esferas
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71
'I

f
de governo, começou a desenvolver ações de vinculação e de da Estratégia de Redução de Danos. . . com essa normatiza­ 1:

educação, agora é diferente. ção o Redutor pode vir a ter futuramente outra posição como
classe. Mas hoje está dentro da Saúde como um todo, fazendo
ANTONIO LANCETTI parte do Sistema Único de Saúde.
Isso tem que ver com a mudança de Consultório de Rua
para Consultório na Rua? ANTONIO LANCETTI
Você acha que essa evolução, por assim dizer, tem que ver
DAVI B E N ETTI com a passagem de Consultório de Rua para Consultório na Rua?
Consultório de Rua é a invenção de Antonio Nery, na Rua
é a marca do Ministério da Saúde. DAVI B EN ETTI
Depende. Depende da vontade política dos governos e da
ANTONIO LANCETTI potencialidade das equipes. . .
Acho que Antonio Nery enunciou os conceitos fundamen­
tais do Consultório de Rua e na rua; ele levantou a questão do ANTONIO LANCETTI
desejo do usuário de maneira mais radical que o Cesare de Vamos falar mais desses modelos diferentes e das diferentes
Florio La Roca do Projeto Axé (de educação na rua e não só maneiras de operar dos diferentes Consultórios de Rua e na Rua.
na rua), que se autodenominou pedagogia do desejo. Ele disse
que as pessoas não se drogam para morrer mas para viver. Ele D AVI B EN ETTI
também estabeleceu bases para a metodologia do consultório Hoje nós damos acesso à rede de saúde aos usuários e cir­
de e na rua. Ele disse que o operador precisa ter inteligência culamos pelas zonas de uso, pelas redes de saúde, pelos zonas
emocional e criatividade. de prostituição e pelas baladas de adolescentes.
Mas também temos uma ação mais incisiva em situações
DAVI B EN ETTI de crise. Por exemplo, outro dia nós fomos requisitados para
Sim essas são as bases, o conteúdo do consultório. Mas ho­ intervir com uma mulher em situação de rua que estava jo­
je em dia o Consultório na Rua ganhou toda a potência den­ gando pedras nos carros e havia agredido uma mãe com seu
tro da Saúde ao se tornar um dispositivo do SUS. O Consul­ bebê. O caso já estava nos jornais, mas ainda não havia chega­
tório na Rua é o veículo. Ele é o veículo e o principal difusor do ao juiz.
72 73
,- De maneira que o consultório primeiro foi até o local para manter a família. Ligamos para este irmão e o encontramos,
uma avaliação. Identificando a mulher debaixo de três guar­ aproximando-o da equipe para criar uma estratégia de acolhi­
da-chuvas, tentamos uma abordagem, a mulher falou que não mento.
queria ajuda nenhuma e que ela não sairia dali e não sabia que Qyando nós voltamos pela quinta vez, com o Samu, técni­
a prefeitura de SBC agora não permitia as pessoas dormirem cos do Caps III, a mãe e o irmão, foi só abrir a ambulância
nas ruas. que ela entrou, agora está no Pronto Atendimento sendo me­
Qyando saímos do local notamos que a mulher nos obser­ dicada. Agora estamos pensando com as outras pessoas da rede
vava como quem esperava uma reação da equipe. de saúde mental como continuar o atendimento, o irmão está
Reuni a equipe e pactuamos não tentar insistir no acolhi­ em Santos, pois o pai que mora lá infartou.
mento dela naquele momento, porém quando observamos no
entorno, alguns vizinhos moradores vieram discretamente e re­ ANTONIO LANCETTI
lataram que a mãe também não aceitava ajuda e parecia estar Há várias inversões nesse caso. Em vez de tirar a pessoa da
também enlouquecida, ficando com ela na praça, o irmão a ex­ rua vocês provocaram o pedido de ajuda da mulher, e de saída
pulsara de casa, acrescentando que o irmão era usuário de crack. pensaram na família.
No dia seguinte levamos o caso para discutir com o Caps De certa forma, não obedeceram à demanda, ou melhor
III Centro e voltamos com as equipes ao local, uma casa apa­ dizendo, analisaram a demanda de todos os implicados e atua­
rentando família de classe média que mora numa boa casa de ram segundo a própria metodologia.
esquina. Encontramos o irmão que a expulsou de casa. O craqueiro que é sempre o expulsado de casa, neste caso
Declarou que já havia sido internada duas vezes: na Uni­ foi o que expulsou. Mas o que é eficaz é o trabalho em Rede.
camp e no Caism (Centro de Atenção Integrada à Saúde Com a Rede de Saúde Mental e com a Rede de Saúde, mas
Mental) da Vila Mariana e não havia adiantado nada; ela sem­ também operam em parceria com a assistência social e com a
pre fugia e que também a irmã o havia denunciado por estupro. guarda municipal que cada vez mais faz menos "rapas".
Então disse: como vou estuprar a minha irmã? Eu sou gay, O que é mais difícil no consultório?
não gosto de mulher. Para mim o que vocês podem fazer é
levar ela, isso já fará bem à minha saúde mental. . . DAVI B EN ETTI
Perguntamos se haveria outro familiar para contatar, ele Pensando em tantos casos que a gente acolheu, pergunto­
nos forneceu o nome e endereço do irmão que ajudava a -me: quantos continuaram o tratamento no Caps AD? Não é
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que tenha essa expectativa . . . Nós tivemos discussões no
começo sobre luta antimanicomial e Redução de Danos, todo DAVI B EN ETTI
dia as coisas vão mudando. Acho que o mais difícil é o contato Eu diria que nós operamos tecnologias leves. Suave . . .
com os adolescentes, mas hoje o consultório atende um grupo
de vinte e cinco adolescentes que começaram a frequentar o ANTONIO LANCETTI
samba, a oficina de capoeira. . . Eles moram num dos bairros Félix Guattari falava em novas suavidades. C2!,ie não são
mais problemáticos da cidade, nenhum deles faz uso, pode menos intensas mas sem dúvida são mais velozes. É isso. Vo­
ser uma maconha, mas não fazem uso problemático. Nós infor­ cês são as novas suavidades transitando pela dureza, legalista e
mamos a respeito de drogas, antes que eles usem. Nós infor­ brutal de uma parte de nossa sociedade que outra parte da
mamos a respeito do sexo com e sem camisinha. Eles fazem sociedade não quer ver.
uso do espaço do Caps e fizeram até mesmo um refrão sobre
o Caps. Eu chamo isso de Redução de Danos Preventiva.

ANTONIO LANCETTI
Vocês têm também trabalho com travestis . . .

DAVI B EN ETTI
É o nosso campo de madrugada, a dos profissionais do sexo.

ANTONIO LANC ETTI


Você sabe que eu não gosto muito do nome Redução de
Danos. Na Clínica peripatética falamos em ampliação da vida.
Antonio Nery ao dizer que a função do Consultório de
Rua é tornar visíveis as pessoas que estão em situação de rua,
propõe um enunciado que é preciso sopesar. Visível é mais
forte que reduzir danos.
Se você tivesse de dar um nome ao modo de operar, à meto­
dologia?
76 77
Cesare era um homem entregue autenticamente, como pou­
cos, à causa dos meninos e meninas com vidas difíceis.
Nós éramos influenciados pela Pedagogia da Presença de
Antônio Carlos Gomes da Costa. Numa das preciosas con­
versas que tive com ele ouvi histórias sobre a generosidade
4. daquele homem, generosidade que não era só de pensamento.
MAIS DUAS Q!JESTÕES SOBRE Mas os educadores do Projeto Axé adotaram uma versão
OS CONSULTÓRIOS NA RUA lacaniana do desejo dos meninos e meninas, uma espécie de
ampliação e transposição da prática psicanalítica de consultó­
rios para a rua.
Nos anos 90 experimentamos uma tensão metodo­
Em Santos, quando o crack chegou à cidade, iniciamos ati­
lógica entre o Projeto Meninos e Meninas de Santos1 que
vidades de presença nas ruas de madrugada; quando os meni­
comandávamos com o poder local, na Prefeitura de Santos e o
nos estavam dormindo, os acordávamos pelo nome e os leváva­
Projeto Axé, de Salvador, Bahia.
mos para uma jornada de convivência.2 Nessa experiência vimos
Para nós, o Projeto Axé era considerado o irmão mais ve­
como esses encontros provocavam nos meninos desejos de
lho. Além da paixão pedagógica que exalava o seu condutor,
mudança e de engajamento numa infinidade de oportunida­
sabíamos muito pouco a respeito de Cesare de Florio La Roc­
des que as redes e o forte trabalho do território ofereciam.
ca. O nome completo é Projeto Axé: Pedagogia do Desejo.
Porém, se o desejo é provocado pela falta ou pela presença a
Os educadores do Projeto Axé adotaram uma versão laca­
questão é a mesma - como provocar no outro desejos e afec­
niana de desejo que consistia numa ideia-força: o menino só
ções vitais e enriquecedoras.
vai sair da rua quando desejar.
Com o passar dos anos observamos que o Projeto Axé pe­
Nós tínhamos uma posição de exercício do poder público
netrou na cultura baiana e tratou com luxo (educação, arte,
ancorada na potência de nossos operadores. Éramos muito sim­
moda. . . ) o que é produzido e tratado como lixo.
páticos à paixão que respirava aquele homem quando narrava
O Projeto Axé foi desenvolvido em território complexo e
a sua Pedagogia dei Desiderio.
violento - só para se ter ideia, vi há pouco tempo meninos
1 Antonio Lancetti. "Como construímos o Projeto Meninos e Meninas de
Santos" (p. 1 7) e Alexandro De Brito Zuffo. "O mundo da rua" (p. 37 ) . ln: 2 Antonio Lancetti. "Crack, endurecer sem perder a ternura". In: Assistên­
Assistência social e cidadania. São Paulo: Hucitec, 1996. cia social e cidadania. São Paulo: Hucitec, 1996, p. 31.

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com marcas de queimaduras provocadas por ácido no centro A detestavelmente chamada cracolândia paulistana, junto
de Salvador, mas o Projeto Axé é um projeto vencedor, entre com a invisibilidade das pessoas e suas vidas e histórias criou
outras coisas, porque expôs a questão do desejo dessas crian­ uma hipervisibilidade. Uma espécie de Reality Show. Há uma
ças e Jovens. hiperabundância de holofotes e câmeras. E há também tensão
Desde a criação dos primeiros Consultórios de Rua até ho­ constante, tensão entre traficantes, usuários, polícia, projetos
je, muitas experiências foram desenvolvidas no Brasil, e o ad­ antagônicos, mídias.
vento do Programa "De Braços Abertos" traz muitas questões Esse, como outros territórios, coloca as equipes dos consul­
ao debate dos Consultórios de Rua e dos Consultórios na Rua. tórios na rua na defensiva. A aproximação torna-se mais difí­
Como afirmou Davi Benetti no capítulo anterior, o con­ cil, o que exige repensar a cada dia a metodologia dos Consul­
teúdo, o fundamento dos consultórios de rua ou na rua de­ tórios na Rua.
vena ser o mesmo. Os Consultórios na Rua hoje contam com mais recursos
A questão do desejo está ligada imediatamente à questão onde se adotaram os conceitos de casa primeiro (Housing First),
ética. como em São Paulo, nos locais em que funcionam os pontos
Nos Princípios Éticos enunciados no Guia do Projeto Con­ de apoio e maior acesso às Redes de Saúde e Assistência.
sultório de Rua,3 Antonio Nery e sua equipe afirmam: Diante dessas transformações seria importante sempre re­
1. "toda conduta humana é portadora de significação pes- visitar os três enunciados éticos antes citados, não só para não
soal"; perder os princípios, mas para potencializar a clínica.
.
2. deve-se "respeito ao sofnmento
' e ao eth os humano" ;
3. ter "responsabilidade dos atos", ou conduzir o cuidado
dos danos associados ao álcool e outras drogas de modo não
assistencialista.
Os territórios conhecidos como zonas de uso são muito
diferentes. Nos locais onde os governos trabalham juntos e
não houve repressão sistemática, como em São Paulo e no Rio,
os usuários são muito mais fáceis de se relacionar.

3 Guia do Projeto Consultório de Rua: <http://www.obid.senad.gov.br> .

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de abrigos permanentes. Enfim, com a mudança de gestão os


abrigos continuaram abrigos.
O Boraceia, que era um centro de cidadania, com diversos
dispositivos de autonomização e proteção (havia um canil para
os recicladores de materiais com carroças e cães, que são compa­
5. nheiros e protetores), com a mudança de gestão perdeu todo o
"DE BRAÇOS ABERTOS", brilho, se transformou numa espécie de depósito de pessoas.
PROJETO DE UMA NOVA Anos depois, em 2008 foi inauguarada a UBS Boraceia com
POLÍTICA PÚBLICA estratégia de Saúde da Família que cobriu vários territórios do
centro de São Paulo como a Favela do Moinho (útima grande
Minhas primeiras lembranças de homens fumando favela encravada no centro de São Paulo).
pedra no bairro de Santa Ifigênia, no centro de São Paulo, Durante a gestão do prefeito Serra os meninos e meninas
devem ser de 1 997. Depois de ter sido secretário de Ação foram se tornando mais agressivos em razão do trato repressivo
Comunitária em Santos, ver essas pessoas fumando na aveni­ da guarda municipal e da tradicional ação higienista da polí­
da Duque de Caxias me chocou porque em Santos ninguém cia militar. E a zona de uso chamada cracolândia ia crescendo.
fumava na frente de todo mundo e muito menos na cara de Em 2009, na gestão do prefeito Kassab, foram criadas equi­
um educador ou de um assistente social. pes de agentes de saúde e enfermeiras, uma espécie de Pacs
Em Santos conhecíamos todos os meninos e meninas e a (Programa de Agentes Comunitários) de rua. Foram contra­
grande maioria de homens e mulheres em situação de rua. tados também alguns médicos1 e uma parte do projeto se
Durante a gestão da prefeita Marta Suplicy foi desenvolvi­ transformou em PSF de rua.
do um trabalho com bases de política pública e princípios de As equipes de PSF de rua eram recebidas com reticências,
cidadania, e alguns abrigos melhoraram. quando não com maus modos pelas profissionais de saúde
Na época fui chamado para organizar uma intervenção com que trabalhavam na região.
inclusão que focava na população com uso problemático de Os transeuntes paravam para desqualificá-las. O que esta-
álcool e outras drogas, mas não foi possível criar um grupo
intersecretarial e também, com outras pessoas da saúde men­ 1 Antonio Lancetti & Leon Garcia. "Cuidado, território e crack: notas
sobre os enxugadores de gelo ou caçadores de noias". ln: SaúdeLoucura 9. São
tal, com horror à institucionalização, éramos contra a criação Paulo: Hucitec, 2010, p. 243.

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vam fazendo esses profissionais de saúde? Cuidando de vaga­ da Luz e do Centro que fumavam crack a se internarem nes­
bundos? Gastando dinheiro público com essa gente? Houve sas comunidades.
casos de policiais que pediram emprestado o jaleco de agente Muitos usuários se internaram confiando nos agentes de
de saúde para prender traficantes. saúde que, salvo exceções, não conseguiam visitá-los depois.
Muitas vezes esses profissionais de saúde foram agredidos Houve casos de médicos psiquiatras do Nasf que não conse­
por guardas municipais e policiais. guiram visitar seus pacientes. A prefeitura descredenciou al­
Essas equipes cumpriam a dupla função de atravessar o gumas comunidades terapêuticas depois de denúncias de
muro que existia e existe entre essas pessoas e a sociedade e de maus-tratos, com choques elétricos e outros tipos de tortura,
enfrentar a refração dos profissionais de saúde, assistência e até mesmo de mortes.
segurança. É oportuno lembrar que durante esse período foram cria­
Os profissionais contratados pela Associação Saúde da Fa­ dos vários Caps e vários Caps AD na cidade de São Paulo
mília, organização social que administrava e administra as unida­ depois de processo instaurado pelo Ministério Público e aco­
des de saúde do SUS, UBS Sé, UBS República, Caps AD, lhido pelo Judiciário, com base em análise e planejamen­
Caps geral e Caps I situados próximos à praça da Sé além do to elaborado na gestão da prefeita Marta Suplicy quando
grupo de agentes de saúde e enfermeiros do chamado Centro Roberto Tykanori foi coordenador de Saúde Mental do mu­
Legal. nicípio.
Sob a direção de Leon Garcia formaram uma rede de Saúde Nessa época também foram criados vários Serviços Resi­
entre os Caps e equipes de Saúde da Família; contribuí com denciais Terapêuticos e Serviços Residenciais Terapêuticos
ela, dirigindo vários sociodramas de integração. Especiais (SRTE), assim batizados para não usar a mesma
Essa integração, e as capacitações ocorridas na época, foram nomenclatura do Ministério da Saúde que é Unidade de Aco­
importantes para a resistência exercida pelos trabalhadores de lhimento (UA).
saúde que atuavam na cracolândia comandados pela enfer­ A discordância não era só de nome. A Secretaria municipal
meira Isabel Campos. também idealizou um fluxo que era do PSF de rua para as
Na gestão Kassab foram contratadas várias comunidades comunidades terapêuticas e destas aos SRTEs, ao passo que a
terapêuticas, e os dirigentes da Atenção Básica da Secretaria indicação da Coordenação Nacional de Saúde Mental era li­
de Saúde demandavam aos agentes de saúde e enfermeiros gar as casas onde as pessoas podem reorganizar-se por um
que atuavam nas ruas que convencessem os moradores do bairro tempo aos Caps AD.
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Praticamente todos os egressos de comunidades terapêuti­ De um lado a rejeição dos outros profissionais de saúde,
cas saíram dos SRTE em poucos dias ou horas. Muitos fala­ de outro, o homem ou a mulher que têm uma relação com o
vam "já paguei, fiquei nove meses rezando" e voltavam para a tempo diferente das pessoas que moram em casa e trabalham
zona de uso. ou estudam.
Os poucos egressos de comunidades terapêuticas que fica­ As pessoas em situação de rua vivem em outra temporali­
ram nos SRTE tinham alguma vinculação com os Caps AD. dade: em vez de olhar para o relógio ou para o calendário, eles
As unidades de acolhimento foram programadas para fun­ dizem "ainda não almocei. . . " e, basicamente, desconfiados,
cionar junto dos Caps AD, tanto é que em muitos locais o não suportam esperar, às vezes mesmo com dor.
Caps AD e a UA têm um único coordenador. As equipes de saúde entravam nas chamadas movucas, ca­
A cracolândia paulistana foi constituindo-se como um ter­ sas abandonadas ou em ruínas ocupadas por dezenas de pessoas.
ritório controverso - de um lado, um exército de trabalhadores Nessa batalha vários combatentes se perderam. Alguns por­
de saúde se implicaram no cuidado, de outro, a repressão. que deprimiram, outros passaram para o outro lado, e outros
Houve noites em que não havia um morador ou frequen­ ainda morreram, como o doutor Marcelo dos Santos Clemente,
tador da cracolândia depois de grandes operações policiais. um jovem médico de vinte e sete anos, brilhante. Formou-se
No dia seguinte os que não tinham sido presos ou internados na USP depois de ter estudado em escola pública da periferia
em comunidades terapêuticas ou clínicas conveniadas volta­ de São Paulo. Muito comprometido com o trabalho, dedicou­
vam à zona de uso. -se intensamente ao cuidado clínico e ao conhecimento das
Os trabalhadores de saúde, além de cuidar das feridas pro­ vidas dessas pessoas. Testemunhei a preocupação dos compa­
duzidas por funcionários da mesma empresa pública, Guarda nheiros de equipe com sua hiperimplicação e as tentativas de
Civil Metropolitana (GCM) ou por policiais, tiveram de su­ ajudá-lo.
portar serem passados para trás em filas de prontos-socorros, e O encontro dos agentes de saúde, médicos e enfermeiros
de serem mal recebidos em cada instituição aonde fossem. após o falecimento de Marcelo foi um dos acontecimentos
Nas reuniões de discussão de casos falávamos da síndrome mais emocionantes desses trabalhadores unidos pela persis­
da muquirana, pelo horror que provocam pessoas que há me­ tência por tornar a população da cracolândia visível, mas que
ses não tomam banho. E muquirana (piolho que pula) é ao se tornou invisível e não reconhecida.
mesmo tempo sinônimo de irritante, estorvo e de mão fecha­ Uma das cenas mais humilhantes foi ter de andar pela cra­
da, avareza, sovinice. colândia ao léu, debaixo do sol, depois das operações policiais,
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saindo de sua área de trabalho, abandonando provisoriamente pais ou policiais retiravam as mochilas ou pacotes com tudo
os usuários aos quais estavam ligados. dentro e lá se iam os documentos, os antivirais ou antibióticos
Essa situação aconteceu na mesma época em que a polícia e quando não a última foto da família ou de qualquer amor.
militar realizava as procissões nas quais os usuários andavam Isso contribuiu para o desânimo dos trabalhadores de saúde
tocados como gado pelas noites da cidade de São Paulo. A que precisavam se recarregar nas poucas supervisões, em dis­
estratégia partia do princípio de que essas pessoas estavam cussões de casos ou em festas e encontros.
doentes neurologicamente e que não tinham mais domínio Seria difícil listar todos os grupos que frequentaram e
de si. Só a crueldade e o sofrimento provocariam a demanda frequentam a cracolândia paulistana: religiosos dos mais di­
de internação. versos tipos, ONGs, etnógrafos, jornalistas, cinegrafistas, am­
Essas procissões foram suspensas depois de ação impetrada bulâncias particulares para caçar noias de maior poder aquisi­
pela Defensoria Pública de São Paulo que teve presença pre­ tivo, o Projeto Qyixote que cuida de adolescentes e que
ciosa de defesa dessas pessoas sem direitos. continua como ponto de apoio e um Caps para jovens - o
Na época foram divulgadas centenas de internações "vo­ Projeto É de Lei - um dos precursores na práxis da Redução
luntárias", ou seja, muitos optaram por internar-se em vez de de Danos em São Paulo. . .
serem presos como traficantes. Em 2012, em plena campanha do governo do estado pela
Foi nobre o papel das equipes de Saúde da Família de rua, internação compulsória, um grupo liderado pela assistente so­
mas a atividade da polícia e da Guarda Civil Metropolitana cial Tina - Maria Albertina França - lançou a Terapia do
contrariava a ação do cuidado. A Guarda Civil Metropolita­ Abraço que consistia em andar pelas noites quando ninguém,
na, baseada numa lei municipal criada na época, acordava as por assim dizer, se aventura a adentrar-se nofluxo, abraçando
pessoas dormindo na rua. as pessoas. Andei algumas noites pelo meio daquele amon­
Essas ações e os encarceramentos de usuários que vendiam toado de pessoas com Tina e seu grupo de artistas; fomos re­
para usar, foi minando a relação desses trabalhadores de saúde cebidos calorosamente até mesmo por alguns que estavam em
com seus usuários. Eles desconfiavam que os prontuários de uso. Tina faleceu em 13 de maio de 2015, e deixou saudade.
saúde fossem usados para prendê-los. E vários trabalhadores Um enfermeiro do PSF disse numa supervisão que a cra­
de saúde também. colândia era o lugar mais democrático da cidade: qualquer
Já era difícil a adesão a tratamentos de tuberculose, sífilis um pode entrar, pobre, negro, loiro, ex-presidiário, prostituta,
ou outras doenças, e nos constantes "rapas", guardas munici- religioso, estrangeiros de qualquer índole. . .

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E ela oferece atrativos difíceis de investigar. Por que nos Se as equipes de Saúde da Família se tornaram invisíveis,
fascina tanto? mais invisíveis se tornaram as centenas e até milhares de en­
Na manhã seguinte a uma das operações policiais mais vio­ carcerados, internados em clínicas especializadas ou em co­
lentas acontecidas na região, perguntei a uma mulher que se munidades terapêuticas.
achava na rua Dino Bueno o que eram os enormes hemato­ Mas existe outro número também não mensurado de pes­
mas que tinha nas pernas e nos braços. Ela disse que não era soas que desapareceram para fugir do circuito cracolândia­
nada, mas quando o agente de saúde que estava comigo e que -prisão-comunidades terapêuticas. Num dos dias posteriores
a conhecia a interpelou, ela contou que estava numa das casas à mesma operação policial apareceu um homem bem-apessoa­
abandonadas, posteriormente fechadas e emparedadas pela do (não foi o único), bem-vestido, irreconhecível para quem
prefeitura, quando que lá soltaram bombas de gás e que "os o acompanhava no fluxo, para avisar a equipe de saúde que
homes bateram em mim", etc . . . não estava preso nem internado e que tinha optado por outra
- E por que você voltou? - perguntei. vida junto de seus seres queridos e já estava encaminhado num
- Eu já estive quatro anos na Febem, dez anos presa. . . trabalho.
estou acostumada. . . A cracolândia paulistana foi crescendo e chegou a ser a maior
O outro elemento fundamental da composição desse terri­ cena de uso do Brasil. Diferentemente de outras existentes no
tório chamado cracolândia é a mídia. Jornais, revistas e televi­ País onde há menos repressão e os usuários se escondem para
sões fazem parte do cotidiano. Estão lá, na maioria das vezes, fumar, na cracolândia paulistana passaram a usar na frente de
para produzir medo social ou criticar as iniciativas que não qualquer pessoa.
fossem repressivas. Com exceções, é claro. Como em outras cenas de uso de grande porte que optaram
Como já falamos no Capítulo 4, a invisibilidade dessas pela dupla ação de reprimir de um lado, cuidar do outro, ela foi
pessoas contrasta com a hipervisibilidade das câmeras, holo­ aumentando.
fotes e matérias de jornais. Recentemente recebemos a visita de Juan Carlos Garzón
Olianto mais alarmistas eram as matérias mais aumentava Vergara, um dos maiores especialistas no combate ao crime orga­
o número de frequentadores. Se uma droga é tão poderosa nizado e ao fim da guerra às drogas; ele afirmou que a maior
que usada uma vez dá dependência, custa cinco ou dez reais e, zona de uso de Bogotá (Colômbia) chamada El Bronx tem cer­
além do mais, a matéria fornecendo também o endereço onde ca de cinco mil pessoas, e que estão com dificuldade de entrar
pode ser achada, dá vontade de usar. nela depois de anos de dura repressão e cuidado ao mesmo tempo.

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Como já afirmamos, muitos dos trabalhadores não supor­ A ação provocou protestos do movimento antimanicomial
taram a intensidade e desistiram e outros foram se confor­ e de defensores históricos da população em situação de rua
mando, depois de tanta controvérsia e insegurança a respeito como o padre Julio Lancellotti.
também de sua situação empregatícia. Era mais uma investida contrafissural com apelo de mídia.
Esses trabalhadores, muitos deles com plasticidade psíqui­ As primeiras intervenções de "limpeza" urbana gozaram de
ca extraordinária, conseguiram manter o entusiasmo e inicia­ mais de oitenta por cento de aprovação, segundo pesquisas
tiva terapêutica, mas sem dúvida as tantas tensões e ações con­ divulgadas na época.
traditórias minguaram sua potência de cuidadores. Mas. . . a cracolândia continuou a crescer chegando a reu­
Em 3 de janeiro de 2013 foi lançada outra operação pelo nir em torno de mil e quinhentas pessoas, cada vez mais arre­
governo do estado, com base no Cratod (Centro de Recupera­ dias e difíceis de se relacionar para as equipes de saúde.
ção de Álcool, Tabaco e outras drogas). Esse serviço estadual Com a invisibilidade a respeito das vidas, dos motivos que
funcionava como um ambulatório com grupos e outros disposi­ levaram essas pessoas a habitar ou transitar pelofluxo convive
tivos e, depois dessa iniciativa, o serviço sofreu grandes alterações. uma hipervisibilidade de câmeras e holofotes. A cracolândia
Foram ofertadas vagas em comunidades terapêuticas no paulistana chegou às novelas de televisão!
molde do que seria o Programa Recomeço que prevê interna­ Nesse território controverso foi criado o Projeto "De Bra­
ção para estabilização e ida para comunidades terapêuticas ços Abertos" da Prefeitura de São Paulo.
para ressocialização.
Se, segundo a descentralização do Sistema Único de Saúde, O início do Programa "De Braços Abertos"
a responsabilidade é do município, por que o estado defla­
grou essa campanha há três dias do início da gestão municipal No início da gestão municipal, em 2013, em sintonia com
de Fernando Haddad? o Programa do Governo Federal Crack é Possível Vencer, foi
Com grande apelo midiático, a iniciativa provocou demanda criado o GEM (Grupo Executivo Municipal) composto por
de familiares que solicitaram internação por razões variadas, a treze secretarias municipais e de representantes de centros de
maioria das vezes sem consentimento do usuário, alterando a estudos e pesquisas.
dinâmica do local que foi ocupado por promotores de justiça, Esse grupo, além de discutir e planejar a Política Munici­
juízes e defensores públicos. A maior parte dessas demandas pal para Crack, Álcool e Outras Drogas, manteve diversos
não deram em nada. encontros com representantes de movimentos da população

92 93
em situação de rua, promotores e defensores públicos, traba­
lhadores dos órgãos envolvidos e outros representantes da so­ Cada tauba que caía "não" doía no coração
ciedade civil. Estava tudo preparado para ocorrer no dia 15 de janeiro de
Em 22 de julho de 2013 foi criado um Ponto de Apoio na 2013, o prefeito Fernando Haddad tinha conversado com lí­
rua Helvétia, 64, encravado na cracolândia. Um lugar que os deres locais e tinha sido pactuada a desmontagem da favela e
moradores e frequentadores da região podem frequentar para a ida para hotéis alugados pela prefeitura, três refeições por
uso do banheiro, atividades culturais, práticas de cuidado do dia e trabalho de varrição das ruas do centro da cidade.
corpo, como acupuntura, ou simplesmente para descansar. Na última reunião com o prefeito defendi que a operação
Nesse espaço, construído com os usuários, que inicialmen­ deveria ser deflagrada um dia antes pois o efeito-surpresa era
te era uma extensão da rua, foram realizadas várias assembleias fundamental e deveria ocorrer antes da chegada das câmeras e
para decidir com os moradores da região o nome do local e dos repórteres, o que poderia pôr o plano a perder ou iria di­
outras questões. ficultá-lo.
Durante as primeiras assembleias uma viatura policial es­ E assim aconteceu, no dia 14 de janeiro um homem disse:
tacionava na entrada, o que dificultava a participação das pes­
"eu fiz meu barraco eu é que vou desmontá-lo" e muitos bar­
soas e manifestava o modus operandi local. Mas com o decorrer
racos foram desmontados pelos seus moradores ou em parce­
do tempo a participação foi aumentando e foi numa assem­ ria com os funcionários municipais.
bleia que ficou decidido o nome "De Braços Abertos" para
"Cada tauba que caía doía no coração", disse Adoniran Bar­
designar o local e posteriormente o próprio Programa.
bosa, mas naquele 14 de janeiro não só não doía como essa in­
Esse Ponto de Apoio intensificou e ampliou o vínculo de tervenção operada com autoridade e sem autoritarismo mar­
confiança entre os moradores da região e agentes de saúde, cou um ponto de inflexão a respeito de como essas pessoas são
médicos, enfermeiros e outros técnicos dos dois Consultórios
tratadas.
na Rua e os assistentes sociais.
A pesquisa nacional sobre uso de crack realizada durante o
Mais de trezentas pessoas ocupavam uma via pública na
ano de 2012 e publicada em 20142 mostrou em primeiro
denominada "Favelinha da Rua Helvétia" situada no coração
2 Francisco Inácio Bastos & Neilane Bertoni ( orgs ) . Pesquisa nacional sobre
da cracolândia paulistana e focalizada por jornais e televisões. o uso de crack - Quem são os usuários de crack e/ou similares do Brasil? Quantos são
Elas foram cadastradas e convidadas para um diálogo com os nas capitais brasileiras? Rio de Janeiro: lcict/Fiocruz, 2014: <http://www. icict.
fiocruz. br/sites/www.icict. fio cruz. br/files/Pesquisao/o 20N acional o/o 20sobreo/o
funcionários da prefeitura. 20o%20U so%20de%20Crack. pdf> .

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lugar que a média de tempo de uso dos frequentadores das Ainda durante o ano de 2013, a Secretaria Municipal de
zonas de uso das capitais brasileiras é de aproximadamente Saúde, sob a coordenação de saúde mental da médica Myres
oito anos, o que desmente o alarmismo divulgado a respeito Cavalcanti, optou pela integração, fortalecimento e ampliação
da mortalidade por uso de crack. da Rede de Atenção Psicossocial com seus 80 Caps, 31 para
Em segundo lugar que oitenta por cento são homens, não adultos e 25 Caps AD, 24 Caps I, 24 Residências Terapêuti­
brancos, de baixíssima escolaridade, cinquenta por cento já cas (SRT) para pacientes cronificados em hospitais psiquiá­
estiveram encarcerados. tricos, 16 Unidades de Acolhimento (UAs) e o Samu, que
A grande maioria dessas pessoas são integrantes de uma recebeu uma capacitação para operar em casos de urgência e
parte da sociedade que Jessé Souza3 chamou de ralé brasileira: emergência para atender essa população.
sujeitos não produzidos para fazer parte da sociedade nem Da intervenção participaram funcionários e dirigentes da
como exército de reserva. Criados pela brutalidade e tratados Saúde, Segurança Urbana, Assistência Social, Direitos Hu­
com má-fé. manos, Trabalho, o próprio prefeito, pessoas da comunidade
C29em se conecta com a vida e as biografias dessas pessoas local e entidades da sociedade civil.
confirma imediatamente a tese. A cada dia quem se relaciona
com esses corpos regulados pelo uso e fissura penetra o campo Os conceitos inspiradores
da insuportabilidade da existência.
E quando perguntados se queriam algum tipo de ajuda res­ As ideias-força que norteiam o Projeto "De Braços Aber­
ponderam que além de curativos queriam moradia e trabalho. tos" são: Baixa exigência, Pacote de direitos, Ação integrada
"De Braços Abertos", em vez de focar na droga vai direta­ dos dirigentes e trabalhadores da prefeitura e relacionamento
mente ao problema, ao oferecer o que Tykanori, Garcia & a uma rede de saúde, de assistência e a iniciativas de trabalho
Vitore4 chamaram de pacote de direitos: moradia, alimenta­ fundamentadas na metodologia da economia solidária e ou­
ção, trabalho e cuidados de saúde. Uma revolução a respeito tras estratégias.
do que tinha sido feito até então. Um dos conceitos inspiradores foi o de Housing First. No
3 Jessé Souza. A ralé brasileira - quem é como vive. Belo Horizonte: Editora Canadá, nos Estados Unidos e em outras partes do mundo foi
UFMG, 2011.
4 Roberto Tykanori Kinoshita, Leon Garcia & Vitore Maximiano. "Uma testado e avaliado um programa que consiste na oferta de casa
perspectiva social para o problema do crack no Brasil: implicações para as para pessoas que se encontram em situação de rua há muito
políticas públicas". ln: <http://www.icict.fiocruz.br/sites/www.icict.fiocruz.br/
files/Pesquisa%20Nacional%20sobre%20o%20Uso%20de%20Crack.pdf>. tempo e usuários crônicos de álcool (pelo menos há seis anos
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em alguns casos) e outras drogas (algumas similares às consu­ Nós preferimos denominar esse ponto de partida de pri­
midas nas nossas cidades) e que não aderem a tratamentos de meiro disparo. Em capítulo próximo nos referiremos ao se­
saúde, nem aceitam ir para abrigos convencionais, ou não são gundo disparo. Fundamental, difícil de compreender e mais
aceitos nessas instituições. difícil de praticar e de perceber seus efeitos.
A experiência demonstrou que pessoas que foram morar nes­ O primeiro exemplo de efeito da baixa exigência e dispa­
sas casas, onde não se exigia abstinência, aderiam a programas ro pode ser aferido no relato de um usuário: "antes eu dor­
de saúde em proporção sumamente maior dos que estavam mia com um olho só fechado, agora eu durmo com os dois
sendo atendidas por equipes ambulantes, e também dimi­ fechados".
nuíram significativamente o consumo de álcool e outras dro­ Outro aspecto importante é o que podemos qualificar como
gas se comparadas com as que continuaram morando nas ruas. feitos de contratualidade. O contrato operou introduzindo
Outro resultado da pesquisa do Housing First 5 foi a dimi­ uma nova dimensão temporal; eles recebem pagamento, pelo
nuição da violência, as intercorrências de chamada de ambu­ trabalho de varrição, uma vez por semana.
lâncias e a desordem urbana. A perspectiva de pagamento opera introduzindo uma du­
Housing First é um programa de baixa exigência e, pela ração diferente ao imediatismo: uma cunha no tempo repeti­
narrativa de Liz Evans, enfermeira líder da experiência pio­ tivo da droga e da fissura.
neira de Vancouver, se baseou no aluguel de hotéis e em salas Na primeira semana foram injetados R$3 6.000,00 que
de uso protegido de heroína e numa intensa sociabilidade. movimentaram o comércio local. Os seja, essas pessoas que
"De Braços Abertos" acrescentou à moradia e aos cuidados estavam à margem da dinâmica das trocas locais - diferente
de saúde trabalho e alimentação. Esse ponto de partida é o da dinâmica das trocas ocorridas nofluxo - passaram a parti­
chamado disparo ou lançamento de uma nova experiência cipar da circulação de mercadorias e de trocas afetivas com a
subjetiva. comunidade local. Segundo uma usuária, "antes não me da­
A expressão em inglês low threshold service significa literal­ vam um copo d' águ a agora me oferecem até café". É de co­
mente baixo limiar de entrada, ou de exigência e disparo. nhecimento público que eles gastaram o dinheiro com pro­
dutos de limpeza, higiene pessoal, roupas, etc.
5 Jesse B. Milby et al. To house or not to house: the effects of providing hous­
ing to homeless substance abusers in treatment. American ]ournal ofPublic Health, Durante os primeiros dias de DBA, pela primeira vez, es­
July 2005, vol. 95, n.º 7, pp. 1259-65. E Sam Tsemberis, et al. Housing first, ses usuários apareceram como pessoas nas páginas dos jornais.
consumer choice, and harm reduction for homeless individuais with a dual diag­
nosis. American ]ournal of Public Health, April 2004, vol. 94, n. 0 4, pp. 651-6. De diversas formas se produziu uma capacidade de poupar,
98 9
de fazer projeções, gerando perspectiva de futuro. O DBA Os técnicos dos Caps do Centro fazem intervenções no
introduziu um fluxo no fluxo. território para facilitar a vinculação com usuários que não pro­
Enquanto vou avançando nestes escritos o Programa está curam nenhum serviço. Muitos dos numerosos pacientes que
passando por uma reorganização no modo de mensurar as suas atendem os Caps AD da Sé e Caps AD Prates têm o perfil
ações e os seus efeitos, mas já podem ser observados impor­ dos usuários do território da Luz ou são conduzidos até os
tantes passos: Caps pelos consultórios na rua.
1. O primeiro foi ter conseguido operar de maneira inte­ Alguns adolescentes e jovens, a maioria, no momento em
grada: saúde, trabalho, assistência e direitos humanos. Diri­ que começou o DBA, foram morar nas duas UAs de adoles­
gentes de todas essas áreas coordenam o Projeto e operam con­ centes e de jovens adultos, e outros homens e mulheres tam­
juntamente. Os usuários do DBA que participam de várias bém foram acolhidos em outras UAs (Unidades de Acolhi­
frentes de trabalho estão acompanhados por pessoas de diversas mento).
secretarias e organizações parceiras. É a única maneira de su­ As grávidas são acompanhadas passo a passo pelas equipes
perar o empurra-empurra dos encaminhamentos burocráticos. de saúde lideradas por ginecologista.
Uma das metodologias adotadas é a dos trios. Compostos Merece destaque a mudança da práxis da saúde bucal:
por um trabalhador da saúde, outro da assistência e outro do antes os usuários não iam às consultas e alguns preferiam
trabalho, esses trios acompanham de vinte a vinte e cinco arrancar os dentes com alicate na rua. Desde que adotaram
usuários. a filosofia da Redução de Danos e organizaram um acolhi­
2. Já nos primeiros dias de iniciação do DBA muitos fami­ mento dentário sem agendas, a adesão aumentou considera­
liares apareceram e dezenas de pessoas deixaram o local para velmente.
reunir-se com seus seres queridos. Foram várias as surpresas: 4. Há oficinas ambulantes ligadas aos direitos humanos
pessoas que nunca esperaríamos que saíssem do território tra­ que mantêm uma tensão constante com as ações de seguran­
çaram uma linha de fuga e saíram do circuito. ça, o que mostra a heterogênese do projeto.
3. A adesão aos tratamentos de doenças sexualmente trans­ As atividades culturais não estão suficientemente sistema­
missíveis aumentou significativamente. Há uma iniciativa cha­ tizadas mas mostraram sua eficácia; a música no ponto de
mada Caminhos da Prevenção que capacitou monitores entre apoio, as diversas oficinas e acontecimentos conseguem con­
os usuários que, com triciclos, distribuem 33.000 camisinhas tribuir com a construção de coletivos que são o contrário que
por mês nas casas noturnas do centro da cidade de São Paulo. o narcisismo do uso.

100 101
5. Outro êxito do DBA foi anunciado pela Folha de S.Paulo de rua de maneira assistencialista e até hostil, embora com
com uma manchete que afirmava que depois de mais de um resistência a mudança, agora as acolhem e as ouvem.
ano de trabalho quarenta por cento dos usuários tinham aban­ No início do DBA havia grupos de capacitação de usuários;
donado o Projeto. Ou seja sessenta por cento continuavam mas foram esses, na prática, que acabaram capacitando os tra­
nele. Como se sabe, os melhores tratamentos de usuários de balhadores da assistência e outros profissionais.
drogas não passam de vinte por cento. Na atualidade, dos apro­ A assistência social também está implementando projetos
ximadamente quinhentos usuários, cem não conseguem acom­ de moradia e geração de renda que visam a autonomia dos
panhar a rotina de trabalho. O que é um sucesso, pois mesmo usuários. Um deles se chama Autonomia em Foco. A secretária
os que ainda não conseguem se organizar estão dormindo "com da Assistência Social da cidade de São Paulo, Luciana Temer,
os dois olhos", e isso já é uma mudança subjetiva. Sem contar exerce liderança construtiva e ousada defendendo diante de
os que saíram do circuito e foram morar em outras localidades. juízes e promotores a necessidade das salas de uso protegido.
6. O trabalho de varrição tem um forte simbolismo: os su­ Bem que o Programa DBA mereceria ter essa chance, para
jos estão limpando a cidade e são cada dia mais simpáticos à cortar de vez a relação traficante/usuário!
comunidade local. Existem várias modalidades de trabalho, a O Programa "De Braços Abertos" está mostrando sua pro­
saber: a Fábrica Verde que produz plantas para embelezar a dutividade mas, como afirmamos anteriormente, se desenvol­
cidade; núcleos de cooperativas de reciclagem, de carroceiros; ve em terreno controverso.
pessoas trabalhando em serviços de saúde acompanhados por Um dos principais obstáculos é a insidiosa pressão da mídia.
um responsável cuidador; por conta da descentralização, um Há poucos dias constatou-se que estava se formando uma nova
grupo de usuários moradores de um hotel na Freguesia do Ó feira de venda de pedras de crack. Guardas municipais e ou­
(zona norte da cidade) está organizando ações de cuidado de tros membros do DBA disseram que não podiam permitir
praças da região; emprego formal em empresas de limpeza. esses guarda-chuvas e guarda-sóis. Os moradores do fluxo
Existem inúmeras iniciativas de produção coletiva, no entan­ concordaram e retiraram os guarda-chuvas. Numa noite cho­
to, a toda hora é preciso perguntar se as pessoas não aderem veu, uma das poucas noites de chuva nestes tempos de seca de
porque não têm condições ou se a exigência foi excessiva. São Paulo, e no dia seguinte saiu na capa do jornal Folha de
7. A transformação do trabalho de assistentes sociais não só S.Paulo a foto das pessoas embaixo de guarda-chuvas e lonas
para que operar de maneira integrada; as mesmas pessoas que com a chamada ''A favela da cracolândia voltou". Além de
num passado próximo eram orientadas para tratar a população muitas matérias francamente sensacionalistas.
102 103
Outra dificuldade é a oposição permanente do Programa Todos os integrantes da prefeitura operaram em muti­
da prefeitura e do estado de São Paulo. Para quem não conhece rão bem-sucedido até que um desconhecido de roupa clara
a região, exatamente em frente do Ponto de Apoio do DBA começou a filmar com uma espécie de iPad ou celular grande,
acha-se a sede do Programa Recomeço, do estado. e quando os usuários foram pedir explicações e exigir que
Pouco tempo depois de iniciado o Projeto DBA foi reali­ interrompesse a filmagem, o sujeito pegou sua arma e atirou.
zada uma reunião com autoridades municipais e estaduais, Era novamente um policial à paisana.
com a presença do ex-ministro da Saúde, Alexandre Padilha. Por sorte só houve feridos e como sempre operando na con­
Todos os trabalhadores dos dois programas estavam na Sala trariedade.
São Paulo, para supostamente operarem de maneira coorde­ As pactuações que tinham sido um dos pontos de partida
nada. Naquele dia participei de um debate com o Dr. Ronal­ do DBA começaram a não funcionar, tanto com os represen­
do Laranjeira, tudo de acordo com os preceitos do Programa tantes do estado como com os líderes dos habitantes dofluxo.
Crack é Possível Vencer do Governo Federal que prevê a atua­ Um dos maiores impasses do DBA é que, se não há presen­
ção conjunta de estados e municípios. ça das forças municipais de segurança, os traficantes do penúl­
Poucas horas depois policiais civis estavam soltando bom­ timo escalão tomam o território e isso repercute no Programa.
bas de efeito moral no fluxo. E cada vez que há repressão e enquadramentos na região, os
Mas logo a seguir a polícia militar desapareceu do território. usuários ficam mais arredios, e o trabalho de aproximação e
No pacto que deu início ao DBA tinha ficado acordado de produção de novas sociabilidades se torna mais difícil.
que eles não iriam montar mais barracas, mas por descuido das Adverso mas não impossível. Recentemente num dia de
autoridades municipais as barracas foram sendo montadas até muita tensão, até com uma morte acontecida num hotel da
formar um núcleo fechado ao qual se acessava por uma espé­ região não pertencente ao DBA, por iniciativa do secretário
cie de labirinto. Ao centro uma espécie de feira organizada no de Direitos Humanos, Eduardo Matarazzo Suplicy, durante
corredor central do fluxo. Com mesinhas, pratos e oferta de a noite foi passado o filme Sabotage ao lado dofluxo. O evento
pedras de tamanho bem maior que o habitual, atrás das mesas aconteceu com muita participação e harmonia.
estavam sentadas pessoas que evidentemente não usavam. Na última festa junina houve cooperação dos funcionários
O coordenador do DBA liderou um acordo com os ocupan­ do Projeto Recomeço e parece promissor que de baixo para
tes dessa segunda favela. Eles se retirariam de lá pacificamen­ cima comece a haver integração com os funcionários do Proje­
te, pois no local seria construída uma praça. to Recomeço que têm simpatia pelo DBA e seus integrantes.
104 105
Es-pecialmente os que trabalham no Ponto de Apoio liderados Como os trios e os Consultórios na Rua podem contribuir
pela assistente social Zelia Pagliarde, uma das almas do para a produção de coletivos e sociabilidades que operem na
Programa. contramão do retraimento autocentrado?
O Projeto é promissor e, mesmo com todas as adversidades, A denominada busca ativa, se burocratizada, pode promo­
está demonstrando sua eficácia, apesar das dificuldades meto­ ver resultado contrário do esperado.
dológicas que tem de enfrentar. Como entender as dificuldades que muitos usuários mani­
Como entender a situação dos que não querem trabalhar à festam para cumprir os horários e atividades combinadas?
luz do conceito de baixa exigência? O que promoveram os cuidadores, como escutaram, que
Numa assembleia de usuários e membros dos trios que os inventaram, para gerar vontades vitais e de mudança?
acompanham, Maria Angélica Comis, psicóloga dos direitos Como avaliar as relações produzidas peripateticamente no
humanos, perguntou: - O que sentiram quando colocaram trânsito pelas ruas da cidade na varrição ou nos trajetos provo­
o uniforme do DBA? cados pelos vários empreendimentos?
- Medo, respondeu uma jovem mulher. Na área do trabalho começam a ser criados coletivos ope­
- E os outros? - perguntei. rantes com trabalhadores que reciclam materiais e outros em­
- Medo. Não entendo por que eu que estava há tanto preendimentos orientados pela metodologia da economia so­
tempo na rua, sem tomar banho por dias, tinha medo de pôr lidária. Como multiplicar esses processos produtivos?
o uniforme. Mas eu pensei: minha mãe era cozinheira e vestia Como foi afirmado a respeito da formação do caráter do
uniforme, então eu também vou vestir e tomei coragem. trabalhador de Caps, as pessoas não podem trabalhar no au­
A entrada no DBA e sua permanência implica uma mu­ tomático sob risco de perder a paciência que precisam para
dança de identidade, ou induz a produção de subjetividade compreender subjetividades estragadas, às vezes violentas e
ou de mudanças subjetivas difíceis de perceber. muitas vezes violentadas. Exemplo dessa insuportabilidade e
E ao mesmo tempo é preciso avaliar a persistência da iden­ angústia é o que vivenciam os guardas civis metropolitanos.
tidade e a toda hora devemos lembrar que entre homens, Os dois consultórios na rua que operam na região foram
mulheres, jovens e crianças em situação de rua há algo do que montados com outra metodologia e outros propósitos que os
Guattari chamou de não garantido, ou aquele que não quer do DBA. Com o número de pessoas numa mesma zona de
cartão de crédito, nem CPF, nem RG, nem família, nem uso, a dinâmica é diferente da de outros consultórios de rua.
horários. Há ocasiões em que rejeitam o contato de maneira expressa e

106 107
só pedem interve nção e m momentos de urgênci a, quando Acreditamos que o êxito do DBA depende da m aior inte­
algué m convulsiona ou passa mal e pre cisa da presença do gração que está acontecendo sob a coordenação do sociólogo
Samu. Benedito Mariano:
As ações de desterritorialização como passe ios ou e mpre­ - com a adoção de primazia da autoridade e não do auto­
endimentos culturais ficam prejudicados por velhas concep­ ritarismo que ocorrerá com a integração da GCM ao grupo
ções e pela pressão do conflito polícia/tráfico. Evide nte mente condutor do DBA;
a dinâmica dos consultórios de rua precisa ser revisad a e p ar a - com a sistematização e m e nsuração do Programa;
essa revisão é preciso escutar quem está n a ponta. - com a cap acitação desses funcionários;
Mas a maior dificuldade interna é a desintegração da Guarda - com a sistematização d a produção de novas sociabilida-
Civil Metropolitana que ora atu a integrad a com o DBA ora des e promoção real de autonomia.
de ,
reedita velhas práticas repressivas. Este é , no nosso modo de DBA e Recomeço deveriam le mbrar do Program a Atitu
­
ver, o m aior dos perigos: a te ntação repressiva ante a imens a comandado pelo falecido governador Eduardo Campos. Repre
cre­
pressão política e midiática que a experiência suporta. sentantes das polícias, dos direitos humanos e de todas as se
amen­
Sempre que ap arecem matéri as n egativas, os responsáveis tarias da área social se empenharam em reduzir o encarcer
e foi o único
pela comunicação respondem com o número de usuários e de to e a mort alidade e m cinquenta por cento. Recif
e st a do do Nord este br a sileir o
que regis trou redu ção de
ate ndimentos e com a diminuição de uso de pedr as de cr ack.

Mas redução de danos não é redução de pedras, é um a das violência.


consequências d a Re dução de Danos. O DBA mereceria ser acompanhado por um a intervenção
ório
Qy ando vemos os usuários varrendo ruas, alegres e conver­ urbana mais incisiva que ocupe civilizadamente esse territ
sando, podemos im aginar que não usaram p edra pelo m enos do centro da cidade .
a
em qu antid ade p ar a achar em-se assim, mas é pre ciso mostr ar Já há usuários do DBA h abitando em hotel situado na zon
o. M a s
p ar a a sociedade que, indepe ndentemente da redução do con­ norte, e os próprios usuários quere m se afastar do centr
al
sumo, o importante é a elevação d a vida e d a dignidade dessas o Programa precisaria do apoio de uma política habitacion
em de
pessoas. E su as alegrias. baseada no aluguel social, isto é , que as pessoas pagu
a cordo com o que ganham e não por
v alore s de mercado.
Te mos visto enorme vontade política do atual prefeito e
dos secretários municipais na busca constante de erros a se­ Sem a de cisiva e persistente liderança do prefeito Fernando
er
rem reparados, ou de prátic as a serem revisadas. H addad, o Programa não existiria, ele pode não se reeleg
109
108
mas é importante que conserve os princípios de cidadania que
o fundamentaram.
O DBA precisa ser mensurado para mostrar sua eficácia,
para mostrar aos operadores seus êxitos mesmo porque quan­
do um usuário experimenta uma transformação subjetiva sai
do campo de visão dos trabalhadores do território; para au­ 6.
mentar sua consistência, pois ele tem eficácia contundente e GABRIEL E O MUNDO
práticas dignas de transformar-se numa nova e promissora DO SUBMUNDO
política pública. ANTONIO LANCETTI E GALILEU*

Hoje nos encontramos com o amanhã de ontem e


com o ontem de amanhã que nos é dado em forma de presen­
te. Presente esse que não pedimos e muito menos merecemos.
E por que não merecemos?
Não merecemos porque não sabemos o significado de nos­
sa existência. E se soubéssemos não daríamos valor, pois ainda
que tudo seja submisso ao poder supremo do criador, toda
criação um dia se revolta.
Acho esse papo de criação um pouco careta, papo de clí­
nica . . .
Negócio é o seguinte: você nunca vai ser dono do que não é
seu, por isso você vai ter tudo que você precisa e nada do que
você deseja porque quem não sabe o que faz, não sabe o que
quer.
Esse amanhã de ontem e ontem de manhã tem alguma
coisa a ver com algum estado existencial?
* Escrito em parceria com Gabriel Donizete Batista (autodenominado Galileu).
110 111
.J
!�

Sim. O estado existencial em que a própria existência sen­


te-se inexistente, como se nada do que fizermos vá fazer alguma
diferença. Isso é triste. Mas não precisa ser porque cada gota
de lágrima que a chuva derrama na terra faz brotar uma se­
mente de esperança. Eu prefiro viver sem esperança porque
muita esperança dá fissura. Por que queres ir ao Bairral? Mes­ 7.
mo depois de ter estado preso fumando somente maconha e O SEGUNDO DISPARO*
cheirando às vezes pó, por que o Bairral? Porque no Bairral
está minha Branquinha. Ela está também aqui escrita na pele Como se produz um usuário persistente de crack?
do meu pulso. Uns acham que é uma enfermidade puramente cerebral e
Não vamos continuar contando história de vida, é chato e que esses sujeitos perderam a capacidade de autodetermina­
olha como é bonita essa moça que passa célere. Só gosto da ção. Outros que é obra do demônio.
minha Branquinha que está lá na recuperação. Olieria tanto Há um paralelismo entre as teorias etiológicas monocau­
vê-la. . . sais focadas na droga e na abstinência; entre as teorias do de­
Na verdade estou aqui porque não posso sair do corpo e mônio e do neurônio. As duas são morais e para a moral a vida
quando fui preso na Luz vim a descobrir que fui para salvar é indigna de autorregulação, a vida é corrupta para a moral,
aquele homem que estava sendo eletrocutado. como diz o filósofo Luiz Fuganti, da Escola Nômade de Fi­
Você não entende, só depois vim a entender por que fiquei losofia ( <escolanomade.org> ).
dois anos na cadeia. É que sou anjo mas não estou podendo Outros acham que são condições sociais as que levaram
sair do corpo. . . essas pessoas, que, na tentativa de fugir da insuportabilidade
da existência, foram parar numa zona de uso e aí conviver.
Outros, como Claude Olievenstein,1 afirmaram que o ver­
dadeiro toxicômano foi gerado por narcisismos mal consti­
tuídos a que denominou de espelho quebrado.
Nós preferimos desacreditar de qualquer causalidade úni-

1 Claude Olievenstein e colaboradores: A clínica do toxicómano - a falta da


falta. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990.

112 113

ca. Esse enunciado foi produzido por Deleuze2 em 1979. Mas Na Clínica peripatética tínhamos falado nos mimados ou
a observação de territórios existenciais, geográficos, biografias sujeitos criados sem pulso e sem afeto ou com afetos duvido­
propiciatórias e a própria subjetividade capitalística ou pro­ sos, relações ao mesmo tempo simbióticas e abandonadoras. E
dução de ritornellos de falta-consumo nos levam a reforçar a essas relações não são privativas de classe social. Existem os
tese de que não existe uma causalidade única. mimados pobres que chegam com a moto roubada em casa
A Pesquisa Nacional Sobre Uso de Crack, realizada em aos quinze anos e a mãe não percebe (e depois se desespera)
todas as capitais brasileiras mostrou o caráter determinante da que o filho chegou chapado. Existe a mãe de classe alta que
situação social dos usuários pesquisados - maioria absoluta não percebe quando o filho lhe toma dinheiro ou cartão de
de não brancos, com baixa educação e com alto índice de en­ crédito da carteira e também depois se desespera.
carceramento, aproximadamente a metade era egressa do sis­ Outra evidência que depõe contra a teoria e prática da cau­
tema prisional. salidade única é o fato de tantos pacientes atendidos em Caps,
Não é por acaso que na Historia general de las drogas, 3 ou os usuários do DBA, que aderem à programação, são aco­
Antonio Escohotado se refira ao crack como a cocaína do lhidos, exercem direitos e mudam rapidamente.
pobre. Ao lado desses que mudam com poucas intervenções gru­
O neurocientista Carl Hardt afirma ainda, baseado nas suas pais há os persistentes. Às vezes a Redução de Danos consis­
experiências, que "muito antes da introdução do crack, diver­ te em cuidado continuado para que o usuário continue vivo
sas famílias já eram dilaceradas pelo racismo institucionaliza­ mesmo sabendo ou supondo que nunca desistirá de sua
do, a pobreza e outras forças". 4 adicção.
Parece evidente que subjetividades mais estragadas e vio­ Os componentes sociais e raciais são tão gritantes na popu­
lentadas na família, na escola, nos interstícios da trama social, lação que habita ou transita pelas zonas de uso que os trata­
sejam mais aptas para se internarem em territórios marginais mentos baseados em direitos como DBA e Atitude têm eficá­
que incluem as drogas e todo o conjunto que ela implica - cia surpreendente.
comercialização, circulação, repressão, tratamento. Eles vão direto ao ponto e isso indica uma fonte de pesqui­
2 Obra citada no Capítulo 1: Gilles Deleuze. "Duas questões". ln: Herbert
sa para resposta da pergunta inicial, isto é - como se produz
Daniel et ai. SaúdeLoucura 3. São Paulo: Hucitec, 1991. um usuário de crack?
3 Antonio Escohotado. "La cocaína dei pobre". ln: Historia general de las
drogas, cit., p. 1 0 1 1 . Optamos por este recorte (crack) para não complicar de­
4 Carl Hart. Um preço muito alto - a jornada de u m neurocientista que desafia
nossa visão sobre as drogas. Rio de Janeiro: Zahar, 2014, p. 33.
mais a questão.

1 14 1 15
• .�

A Pesquisa Nacional de Uso de Crack e as experiências Assim o fez e ninguém a culpou.


desenvolvidas pela corrente nacional que adotou a filosofia e Ela separou-se de um companheiro com quem tinha uma
a práxis da Redução de Danos tornam flagrante que a produ­ relação patológica, estudou e hoje é uma técnica de saúde,
ção social de subjetividade é decisiva para entender as pessoas. uma cuidadora.
Porém, quando entramos na singularidade e na história de Muitas histórias como essa se entrelaçam nessa dura con­
cada pessoa a complexidade aumenta sobremaneira. temporaneidade da práxis da Reforma Psiquiátrica, mas não é
Se é difícil dar conta da produção de um dependente, muito só por perdão que se produzem mudanças.
mais difícil é entender por que uma pessoa parou de usar Antes da existência do "De Braços Abertos" qualquer con­
compulsivamente ou fez uma mudança radical na sua vida. flito era mediado por vários líderes que se diziam do tráfico.
O que cura não é a pena, é o perdão. Moradores de longa data no território.
Embora o senso comum e os ideologemas proibicionistas Um deles que vamos chamar de João, nos primeiros dias da
suponham que a droga é um mal e que a pessoa deve pagar desmontagem da favela e da ida das pessoas para os hotéis
por isso, o que a clínica mostra é exatamente o contrário. encontrou a família e voltou com ela. Leva agora vida de cida­
Uma paciente atendida num Caps situado em algum lugar dão com casa e trabalho.
do Brasil foi estuprada e ameaçada de morte dos doze aos Diferentemente de outros que manifestam vontade de pa­
dezessete anos. Um dia a moça montou uma arapuca, foi to­ rar de fumar pedra, João nunca falou em parar. Lembro-me
mar banho de rio com outra moça e quando o homem estava de ter ouvido dele uma noite: "o que nós precisamos é de
voltando do banho descarregou nele todas as balas do revólver serviço de saúde e de banheiros limpos, o resto nós já temos
do próprio homem. Esconderam o cadáver que nunca mais aqui. . . ".
foi achado. Como entender essas mudanças e a produção dessas subje­
A moça se transformou numa justiceira que dava um trato tividades livres ou com altos índices de liberdade e autonomia
em maridos violentos de uma comunidade. Com o tempo co­ à luz da experiência da Redução de Danos?
meçou a cheirar cocaína e, após intenso uso e depressão, ten­ A expressão que fundamenta os denominados low thres­
tou suicídio. hold treatment programs condensa várias ideias fundamentais
Chegou assim àquele Caps e depois de tempo de tratamento para organizar, orientar e monitorar experiências contempo­
contou a história para sua terapeuta de referência. A terapeu­ râneas.
ta sugeriu que narrasse a história no grupo de mulheres. A primeira ideia-força é a de baixa exigência. Para iniciar a
116 117

compreensão do conceito de baixa exigência o confrontamos cisismo que gera a repetição suicidária de algumas experiên-
com o conceito e a prática da alta exigência. Programas fim­ cias drogadas.
damentados na abstinência exigem um limiar mais alto, um Ou seja, a baixa exigência dispara processos de transforma­
ponto de partida radicalmente diferente do ponto de partida ção subjetiva que funcionam de modo diferente em cada pessoa
dos programas de baixa exigência. mas que estão ancorados nos dispositivos criados e recriados
A palavra inglesa threshold significa patamar, soleira, ponto dos programas da geração da Redução de Danos.
inicial, ponto de partida. A baixa exigência está relacionada a Mas às vezes, pelas razões mais inesperadas, pessoas como
um ponto de partida ou disparo: as duas citadas anteriormente fogem do circuito: zona de uso,
há disparo ou ponto de partida no acolhimento ativo do cadeia, clínica de recuperação, abrigo, caps, etc.
consultório de rua ou na rua; A esses acontecimentos chamamos segundo disparo. Esses
no acolhimento do Caps em momentos de crise; traçados de linhas de fuga são tão enigmáticos quanto poten­
no atendimento sem preconceitos nas unidades de saúde; tes porque emergem do corpo dos seus protagonistas.
na entrada numa casa para se organizar por um tempo e Essas experiências são surpreendentes mas em muitas oca­
participar de uma intensa vida coletiva como nas UAs; siões, e isso verificamos na clínica, elas ocorrem depois de
na ida à Represa para participar do Programa Remando longos investimentos nos quais os terapeutas persistiram na
para a Vida de São Bernado do Campo; posição de nunca sucumbir. Depois de sobreviver a investi­
e mais claramente no DBA com o pacote inicial de direitos das transferenciais negativas, à cultura carcerária, à cultura de
- moradia, alimentação e trabalho. comunidade terapêutica, à institucionalização sob diversas
Em todas essas experiências se dispara um processo. formas e a outras repetições de histórias familiares e institu­
A esse processo de indução de novas subjetividades deno­ cionais inseguras, traumáticas ou violentas, acontece o segun­
minamos primeiro disparo. do disparo.
Dormir com os dois olhos propicia mudanças na psique. O segundo disparo, ou disparo de segunda ordem, nos sur­
Tomar banho diariamente e vestir uniforme de trabalha­ preende, mas na maioria das vezes fica fora do campo de visão
dor propicia novas identidades alimentadas pelos olhares dos dos profissionais de saúde, de saúde mental e de outros seto­
transeuntes que não os enxergam mais como noias. res afins que trabalham em parceria.
Participação de novos coletivos gera em ato uma experiên­ Acreditamos que a observação mais detalhada dessas ex­
cia subjetiva antidroga ou diferente do retraimento e do nar- periências é importante para avaliar e medir os programas de
118 119

Redução de Danos mas são fundamentais para os cuidadores


protagonistas não se relacionarem exclusivamente com as di­
ficuldades e as crises do dia a dia.
Para avaliar seu trabalho pelos frutos obtidos e para abrir
campos de investigação promissores.
8.
ALGUMAS QUESTÕES SOBRE
O PROGRAMA TERAPÊUTICO
SINGULAR
Nessa concepção de análise, o tempo deixa de
ser vivido passivamente; ele é agido, orientado,
objeto de mutações qualitativas. A análise não
é mais interpretação transferencial de sintomas
em função de um conteúdo latente preexisten­
te, mas invenção de novos focos catalíticos sus­
cetíveis de fazer bifurcar a existência. Uma sin­
gularidade, uma ruptura de sentido, um corte,
uma fragmentação, a separação de um conteú­
do semiótico - por exemplo, à moda dadaísta
ou surrealista - podem originar focos mutan­
tes de subjetivação.
- FÉLIX GUATTARI 1

O denominado Programa Terapêutico Singular ou


PTS é uma das ferramentas consagradas como fundamentais
para a práxis da saúde mental proposta pela Reforma Psiquiá­
trica Brasileira.
Nas últimas décadas, com a desativação de sessenta mil lei­
tos manicomiais e a criação de instituições e práticas substitu­
tivas da prática asilar - Caps STRS, C de R e na R, UAs -
1 Félix Guattari. Caosmose: um novo paradigma estético. São Paulo: Editora
34, 1992, p. 30.

120 121
e!:\

leitos em hospitais gerais, serviços de urgência e emergência Muitos dos casos mais graves permanecem escondidos na
que atendem a crises e aos matriciamentos ocorridos na Aten­ comunidade por efeito do silêncio imperante no território, ou
ção Básica tornaram-se dispositivos de uma política pública e porque a situação é tão gritante ou desgarradora, a exemplo
de Estado. de pessoas que estão trancafiadas em casa em situação de pri­
Em todas essas práticas acha-se presente o conceito de PTS são domiciliar. Porém, um dia explodem no corpo da agente
como um organizador do cuidado. comunitária de saúde.
O PTS é um organizador do cuidado que inclui a famí­ Nem todos os Caps atendem pessoas embriagadas ou em
lia, a biografia, o território geográfico onde a pessoa habita, intensa crise. Já o Caps I de Santa Gertrudes, sob coorde­
os recursos desse território e - o que é mais difícil de conside­ nação da psicóloga Fernanda Aguiar Giovanni, situado no in­
rar - o território existencial2 do usuário e seu contexto. E, terior de São Paulo próximo ao maior parque manicomial do
por fim, a potencialidade do sujeito individual e coletivo em estado, desde 2007 até hoje não internou nenhum paciente
questão. em hospital psiquiátrico. As dez pessoas que aí trabalham se
Consideramos a elaboração de um PTS uma das produções revezam para cuidar das situações mais críticas e acompanham
mais complexas da prática clínica que acontece na Raps. os usuários às emergências psiquiátricas e nos seus domicílios.
Muitas vezes o PTS se reduz a uma agenda: "O PTS de Qyando se priorizam as situações mais graves ou de maior
fulano é duas vezes por semana no Caps e consulta psiquiá- risco parte-se de outro patamar. Para menor exigência maior
trica uma vez por mês". . . complexidade e maior intensidade. E, consequentemente,
A organização do PTS depende, em primeiro lugar, da maior chance de inaugurar uma vinculação consistente.
prioridade adotada: tanto na Atenção Básica como nos Caps, Um dos critérios de funcionamento da saúde mental na
quando se opta por dar prioridade às pessoas em situação de atenção básica é a participação dos profissionais da equipe de
maior gravidade, parte-se de condições diferentes que as dos ESF, especialmente o médico, nas reuniões de discussão de
serviços que exigem inicialmente por exemplo abstinência de caso e de elaboração e monitoramento de PTSs. Essa é uma
drogas ou as ações de saúde mental na Atenção Básica que das vias para conquistar essa adesão é intervir nas situações de
encaminham os casos de maior gravidade e vão transforman­ maior dificuldade para dar curso ao processo do cuidado.
do a prática dos Nasfs em atendimento ambulatorial. Daí que é fundamental intervir no território e mais in­
cisivamente no domicílio, também em locais de difícil
2 Félix Guattari. Caosmose: um novo paradigma estético. São Paulo: Editora
34, 1992, p. 30. acesso.

122 123
,)

As intervenções no domicílio precisam ser planej adas com des e descobrir as potencialidades que muitas vezes não são
a equipe de ESF e outros profissionais que trabalham nas evidentes e em outras dependem de longo processo de cui­
UBSs para procurar o melhor horário, para encontrar o maior dado.
número de familiares em casa e operar de saída a parceria saú­ O PTS é como uma flecha propulsora, mas para ser certei­
de mental/saúde da família. ra precisa contar com o conhecimento e a participação dos
As intervenções familiares provocam um duplo efeito-sur­ usuários. Só pode ser construído com eles. Roberto Tykanori
presa.3 O primeiro consiste no fato de alguém se interessar em texto recente4 fala em considerar demandas, necessidades
por conhecer o grupo familiar; as pessoas são demandadas de e projetos potenciadores.
diversas formas por alguém que quer convertê-las a uma reli­ Daí a importância de elaborar uma cartografia para cada
gião, que quer vender alguma coisa. grupo familiar ou cada usuário. Essa cartografia visa ampliar o
A dupla de profissionais de saúde mental e de saúde da mundo das pessoas, produzir repetições que provoquem pe­
família, da Atenção Básica e da Saúde Mental ou do Nasf, quenas diferenças. A cartografia é um mapa em movimento e
está aí para escutar e inaugurar empatias ou antipatias, isto é, opera em plano inconsciente ou com vários componentes da
estabelecer relações de afeto ou de força. subjetividade e nos orienta na avaliação passo a passo de cada
A primeira surpresa consiste no acolhimento ativo que os sujeito singular.
trabalhadores de saúde oferecem quando reúnem no domicí­ Singular não é oposto de coletivo nem é sinônimo de indi­
lio o grupo familiar, e enunciam que estão aí para conhecer a vidual. Daí a importância dos grupos e das atividades coleti­
família e ver de que maneira podem ajudar. vas e comunitárias. Como afirmou Jean Oury5 nos seminários
A segunda surpresa pode ou não pode acontecer e consis­ realizados sobre sua experiência com psicóticos graves - o
te nas insólitas maneiras de aderir ao PTS quando ele fun­ coletivo é uma máquina de produzir singularidades.
ciona. Às vezes um PTS pode ser enunciado no início do proces­
Mas como elaborar e, principalmente, enunciar PTSs? so de cuidado; em outras é preciso de muito tempo.
Para o PTS não ser reduzido a um procedimento buro­ As pessoas se vinculam afetivamente mas depois repetem
crático é preciso analisar as demandas, avaliar as necessida- transferencialmente relações vividas anteriormente e as equi-

3 Antonio Lancetti. O Programa Terapêutico Singular e o trabalho de matri­ 4 Roberto Tykanori Kinoshita. ln: < https://unasusufc.br/alcooleoutras­
ciamento. ln: Curso de Aperfeiçoamento em Saúde Mental da Unasus-Unifesp. drogas//, .
Em breve no endereço virtual da Unasus-Unifesp. 5 Jean Oury. O coletivo. São Paulo: Hucitec, 2009.

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pes as suportam até que essa repetição produza pequenas di­


ferenças que irão dar curso a mudanças insólitas.
Mas as pessoas não mudam só porque ressignificam as suas
histórias numa clínica puramente memorial, os de focos mu­
tantes de subjetividade se inserem no PTS com agenciamen­
tos de desejo, isto é, experiências que acontecem entre a clíni­ 9.
ca e a vida cultural, laboral ou artística na aquisição de novas DAVID AMIGO
identidades ou na ruptura de repetições autocentradas ou
quando da produção de novas sociabilidades. Sou favorável a uma estratégia de confronto, de con­
Mas essas mudanças são quase que imperceptíveis e na cons­ flito; se não fizermos confronto, conflito, não va­
trução e desenvolvimento dos PTSs é preciso desenvolver uma mos avançar nem mudar nada. Uma das piores ver­
curiosidade e um gosto pelo diverso. tentes da tradição brasileira é o horror ao conflito, a
Uma alegria do diverso. busca do consenso, a valorização do consenso que
gerou um tipo humano especial, que é chamado de
"homem cordial brasileiro". Essa ideia de consenso,
de mascarar o conflito, só serve à conservação das
coisas como estão.

- DAVID CAPI STRANO FILHO


126 127
.

O texto do anverso reproduz a última fala de David Ca­ Boa noite a todos os presentes. Tenho feito um luto muito
pistrano Filho proferida no 6.º Congresso Brasileiro de Saúde
Coletiva, promovido pela Abrasco (Associação Brasileira silencioso. Dentre os amigos sou um dos poucos que não fa­
de Saúde Coletiva), em Salvador, BA, em agosto de 2000. lou nem escreveu nada até hoje sobre David. Sei que posso ter
dificuldades para falar, mas me tocou e aceitei. Vamos lá.
Começo, então, cumprimentando Eduardo Cardozo, Adria­
no Diogo, Carlos Neder, Arselino Tatto, José Mentor, An­
tônio Goulart e todos os vereadores presentes, Ruy Falcão e
Eduardo Jorge, secretários municipais e a todos os membros
da Mesa.
<2!,iero congratular-me com a iniciativa de Celso Jatene de
propor o título de cidadão paulistano a David Capistrano Fi­
lho. Acabei de conhecer Celso por intermédio de Carmo, seu
irmão, que coordena o Projeto <2!,ialis, procurando manter vi­
vas as ideias de David.
Mas a iniciativa de Celso é precisa, certeira, se lembrarmos
o conceito de cidadão. Os gregos, que o inventaram, diziam
que a cidadania se adquiria pelo exercício do 1tóÀ.Eµoç, que

129
era uma prática que acontecia na 1tóÀtÇ, na cidade, mas por mágoas. Todo mundo sabe da briga com Telma de Souza. Eu
meio do diálogo. A cidadania, então não se adquire pelo fato sou testemunha que, da UTI do Hospital Sírio-Libanês, onde
e ter nascido na cidade mas praticado a polêmica. estava internado, com toda alegria ajudou-a na campanha.
E David protagonizou extraordinárias polêmicas nesta ci­ Guerreiro que era, muitos o achavam autoritário, mas nunca
dade, quando diretor da Unidade de Saúde da Vila Prudente, desfavoreceu ninguém porque discordasse dele.
experiência que o professor Adib Jatene conhece mais que 4.a) A generosidade. David achava que fazer política era pas­
todos, como membro da Associação Paulista dos Sanitaristas, sar. Ele andava sempre com textos na pasta para passar e com
e do Centro Brasileiro de Estudos da Saúde (Cebes), como presentes para dar. Presentear era uma de suas paixões. Um
militante comunista e como diretor do Projeto Qyalis. lema seria: primeiro dê e depois dê. Ele não hesitou em cola­
Por isso é que quero, em primeiro lugar, expressar a sauda­ borar com pessoas de outras correntes políticas como, por
de política do David, ressaltando sete características: exemplo, o ministro Serra, se sua ação acarretasse, como ele
1.ª) Ele não tinha a caretice da maioria dos políticos que pen­ dizia, numa real diminuição do sofrimento de nosso povo.
sam em termos de espaço, de terreno, de lote. Seu lema pode­ 5.a) O David antimanicomial. Foi um dos que mais fez
ria ser enunciado assim: as ideias primeiro, depois os acordos. pela Reforma e pela Revolução Psiquiátrica no Brasil e no
Ideias claras, ideias para transformar, nítidas, eletrizantes. Mundo. Preso político prematuro, conheceu os internatos para
2.') A velocidade. Ele via antes que os outros, era o homem menores na adolescência e viu, muito criança, seu pai na ca­
do tempo político. Não somente saber o que fazer mas quan­ deia. Ele adorava desmontar hospícios, e um dos seus sonhos
do fazer. É sabido que ele foi precursor, e a experiência de era fazer o mesmo com a Febem [atual Fundação Casa]. Da­
Santos foi mais do que eloquente: primeiro programa de in­ vid era disruptivo e nos ensinou que para avançar neste país
ternação domiciliar, primeira cidade brasileira sem manicô­ de quatrocentos anos de escravidão é preciso romper. Por isso
mios, o primeiro município a comprometer recursos substan­ ele dizia: primeiro faça e depois pense. E assim você era obri­
ciais de contrapartida, transformando a capital brasileira da gado a pensar e a inventar.
aids no principal modelo brasileiro de prevenção e assistência. 6.a) Cabe recordar o sonho de David para São Paulo, expresso
Enfim no seu governo se inovou em todas as áreas: educação, em parte no Projeto Qyalis. A ideia de David não era um
assistência, meio ambiente, etc. nomefantasia, como dizem ou escrevem alguns, mas realizar a
3 .') A sua irifinita capacidade de esquecimento. Embora fos­ fantasia de construir, com urgência, um sistema de saúde inte­
se dotado de memória prodigiosa, era incapaz de guardar gral, rico, original. Foi ele quem trouxe ao PSF de São Paulo
130 131
os ambulatórios de especialidade, os programas de saúde bu­ A última vez que conversei com ele foi no dia 17 de outu­
cal, mental, de prevenção da aids, do deficiente, etc. Nas inau­ bro de 2000. Com dificuldade me disse: Lancetti, hoje é o
gurações de unidades de saúde ele destacava o zelo, a beleza e dia da Lealdade Justicialista.
gostava de cantar um samba que diz: a vida não é só isso que E, por lealdade, devo finalmente destacar o humor de Da­
se vê, é um pouco mais, é um pouco mais. Como Lênin, acha­ vid, seu gosto pela vida, pelas boas comidas e pelos bons vi­
va que é preciso acreditar nos sonhos. nhos. Gargalhamos muito com ele.
7.ª) Por último a coragem. Destemido, sempre destemido, Uma vez em Santos um juiz o processou por iniciar o Pro­
para ele não havia obstáculos em nenhuma tarefa. Venceu um grama de Redução de Danos, e ele disse: "sua excelência, o
câncer e muitas batalhas políticas. Mas também lhe infringi­ senhor está me processando por incitar ao uso de drogas, justa­
ram derrotas e é por isso que, apesar de ser tão honesto, seu mente a mim um sujeito careta que não fuma nem cigarros?"
inventário está cheio de dívidas. David não gostava de drogas mas não era careta, era muito
Filho do combatente internacionalista David pai, que lu­ divertido, como todos os homens que vivem metidos na vida.
tou na guerra civil espanhola, na resistência francesa, etc. e de Talvez ele não gostasse do que vou dizer, mas havia na sua
Maria Augusta, paraibana que há mais de sessenta anos já paixão um profundo vitalismo. O lema seria: primeiro a vida
conhecia e lutava pelos direitos da mulher e pela liberdade. depois a burocracia. Primeiro a vida e depois as leis.
Em segundo lugar quero in memoriam parabenizar David Para terminar, vou ler um texto de Cícero* sobre a amizade
por ter tido a companheira que teve - Haidé Benetti de que acredito expresse como os amigos nos sentíamos e nos
Paula. Grandiosa! Pela infinita paciência de aguentá-lo, pois sentimos com ele. O texto diz:
David era um paciente muito difícil. Pela nobreza e altura e "01ianto à amizade, ela contém uma série de possibilida­
pelo pique e amor com que sustentou seu posto de parceira des. Em qualquer direção que a gente se volte, ela está lá,
até o último minuto. prestativa, jamais excluída de alguma situação, jamais impor­
Em terceiro lugar, quero contar que fiquei devendo a Da­ tuna, jamais embaraçosa. Por isso, nem água nemfago, como se
vid uma conversa sobre peronismo. Desde que o conheci, e até diz, nos são mais prestimosos que a amizade. E aqui não se trata
numa viagem que fizemos a Buenos Aires, ele dizia: temos da amizade comum ou medíocre, que no entanto proporcio­
que conversar mais sobre peronismo. David, como todos os na igualmente satisfação e utilidade, mas da verdadeira, da
verdadeiros revolucionários, pensava o mundo e era profun­ perfeita, à qual me refiro, tal como existiu entre poucos. Pois
damente cosmopolita. * Marco Túlio Cícero. Da amizade. Porto Alegre: LPM, 1997.

132 133
a amizade torna mais maravilhosos os favores da vida, e mais
leves, porque comunicados e partilhados, seus golpes duros.
"Ora, se a amizade encerra todas as vantagens, e a valer, ela
as ultrapassa todas é porque aureola o futuro de otimismo e
não admite nem a desmoralização dos espíritos nem sua capi­
tulação. De fato, observar um verdadeiro amigo equivale a
observar uma versão exemplar de si mesmo: os ausentes são
então presentes, os indigentes são ricos, os fracos, cheios de
força e, o que é mais difícil de explicar, os mortos são vivos, na
medida em que o respeito, a lembrança, o pesar de seus ami­
gos continuam ligados a ele."

São Paulo, 28 de fevereiro de 2002

Nota: Foram incorporadas neste pronunciamento sugestões de Maria Eu­


gênia Lemos Fernandes, Isamara Gouvêa e Sérgio Gomes. Ubiratan de Paula
Santos, Elci Pimenta, Lídia Tobias, Socorro Matos, Cenise Monte Vicente
e Breno Altman tiveram também influência nele, de uma ou de outra forma.

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