Location via proxy:   [ UP ]  
[Report a bug]   [Manage cookies]                

Ebook Práxis em Psicologia Social

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 201

Coleção Coordenadores:

Encontros Maristela de Souza Pereira


em Psicologia Dolores Galindo
Social Emerson F. Rasera
Volume 4

PRÁXIS EM PSICOLOGIA SOCIAL


o enfrentamento a pautas autoritárias
e à lógica privativista
BRAPSO
Organizadores:
Deivis Perez
Eduardo Pinto e Silva
Maria Cristina Dancham Simões

AbRAPSO EdITORA
Coleção
Encontros em Psicologia Social
Coordenadores
Maristela de Souza Pereira
Dolores Galindo
Emerson F, Rasera
Volume IV

Práxis em Psicologia Social:


o enfrentamento a pautas
autoritárias e à lógica privatista
Organizadores
Deivis Perez
Eduardo Pinto e Silva
Maria Cristina Dancham Simões

Porto Alegre
2017
Sobre a ABRAPSO

A ABRAPSO é uma associação sem fins lucrativos, fundada durante


a 32a Reunião da SBPC, no Rio de Janeiro, em julho de 1980. Fruto
de um posicionamento crítico na Psicologia Social, desde a sua cria-
ção, a ABRAPSO tem sido importante espaço para o intercâmbio
entre estudantes de graduação e pós-graduação, profissionais, docen-
tes e pesquisadores. Os Encontros Nacionais e Regionais da entidade
têm atraído um número cada vez maior de profissionais da Psico-
logia e possibilitam visualizar os problemas sociais que a realidade
brasileira tem apresentado à Psicologia Social. A revista Psicologia &
Sociedade é o periódico de divulgação científica da entidade.
http://www.abrapso.org.br/

Diretoria Nacional da ABRAPSO 2016-2017


Presidente: Emerson Fernando Rasera - UFU
Primeira Secretária: Maristela de Souza Pereira - UFU
Segunda Secretária: Dolores Galindo - UFMT
Primeiro Tesoureiro: Marco Antônio Torres - UFOP
Segundo Tesoureiro: Marcos Ribeiro Mesquita - UFAL
Primeira Suplente: Marília dos Santos Amaral - CESUSC
Segunda Suplente: Flavia Cristina Silveira Lemos - UFPA
Primeira Presidenta: Silvia Tatiana Maurer Lane (gestão 1980-1983)
Editoras
Cleci Maraschin
Neuza Maria de Fatima Guareschi
Editora executiva: Ana Lídia Campos Brizola

Conselho Editorial

Ana Maria Jacó-Vilela - Universidade do Estado do Rio de Janeiro


Andrea Vieira Zanella - Universidade Federal de Santa Catarina
Benedito Medrado - Universidade Federal de Pernambuco
Conceição Nogueira - Universidade do Minho, Portugal
Francisco Portugal - Universidade Federal do Rio de Janeiro
Lupicinio Íñiguez-Rueda -Universidad Autonoma de Barcelona, España
Maria Lívia do Nascimento - Universidade Federal Fluminense
Pedrinho Guareschi - Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Peter Spink - Fundação Getúlio Vargas

Revisão: RTA Ponto final


Editoração: Spartaco Edições
Capa: Tamara Pereira de Souza

Esta obra está licenciada sob Licença Creative Commons BY 4.0


Esta licença permite que outros distribuam, remixem, adaptem e criem a partir da obra, mesmo para
fins comerciais, desde que lhe atribuam o devido crédito pela criação original.
Ficha Catalográfica elaborada por Juliana Frainer CRB 14/1172

P972

Práxis em psicologia social [recurso eletrônico]: o enfrentamento a


pautas autoritárias e à lógica privatista / Organização de Deivis Perez,
Eduardo Pinto e Silva e Maria Cristina Dancham Simões. – Porto Alegre:
Abrapso, 2017. – (Coleção Encontros em Psicologia Social / Coordenação
de Maristela de Souza Pereira, Dolores Galindo e Emerson Fernando
Rasera, Vol. 4).
196 p.
ISBN: 978-85-86472-39-8

1. Psicologia social. 2. Autoritarismo. 3. Democracia. I. Perez, Deivis. II.


Silva, Eduardo Pinto e. III. Simões, Maria Cristina Dancham. IV. Pereira,
Maristela de Souza. V. Galindo, Dolores. VI. Rasera, Emerson Fernando.
VII. Título.

CDU – 302
Coleção
Encontros em Psicologia Social

A Associação Brasileira de Psicologia Social (ABRAPSO) é uma


entidade científica fundada em 1980, composta por profissionais,
pesquisadores, docentes, militantes, estudantes de graduação e pós-
graduação, constituindo-se como um importante espaço de aná-
lises, intercâmbios e ações sobre o mundo acadêmico e social, em
uma perspectiva crítica às teorias e práticas que naturalizam e que
banalizam as desigualdades sociais, e à produção de conhecimen-
tos e formas de intervenção que não consideram os determinan-
tes históricos e que se pretendem neutros. A ABRAPSO surgiu no
momento de lutas pela democratização do país, e desde então tem
empunhado essa bandeira, com vistas a contribuir para as discus-
sões e intervenções pautadas no horizonte de uma sociedade mais
justa, equânime, igualitária e comprometida com o acolhimento
à diferença e com a construção de relações mais horizontais entre
sujeitos e instituições.
Essa associação possui grande inserção nacional e evidencia sua
capilaridade através da existência de nove Regionais, espalhadas pe-
las cinco regiões do país, as quais aglutinam 64 Núcleos, enquanto
unidades estabelecidas em localidades em diversos pontos do terri-
tório nacional, contabilizando em 2017 mais de três mil associadas/
os. A cada dois anos, as Regionais realizam encontros científico-aca-
dêmico-culturais, tradicionalmente sediados na localidade em que
se encontra a gestão atual. Tais encontros possibilitam o fortaleci-
mento da Psicologia Social no Brasil, marcadamente em seus con-
tornos sociológicos, críticos e libertários, e propiciam a difusão das
produções locais para outros territórios, configurando assim uma
forma de democratização também do conhecimento.
A coleção “Encontros em Psicologia Social” tem por objetivo dar
organicidade aos trabalhos apresentados nos diferentes Encontros
Regionais, respeitando a singularidade das produções locais. Sua pu-
blicação é fruto do esforço conjunto dos organizadores dos encon-
tros, da Diretoria Nacional da ABRAPSO e da editora da entidade,
que trabalharam de forma articulada para viabilizar aos leitores as
obras que ora são apresentadas. Trata-se de material inédito e inova-
dor, de interesse especial para psicólogos, profissionais das áreas de
ciências humanas e sociais, estudantes, especialistas, pesquisadores
e para o público em geral. Esperamos que a coleção possa contri-
buir para a efetivação de leituras mais críticas sobre a realidade social
e para a promoção de práticas de resistência a todas as formas de
opressão vigentes, e empoderadoras dos sujeitos e das coletividades.
Boa leitura!

Maristela de Souza Pereira


Dolores Galindo
Emerson F. Rasera
Coordenadores
Sobre os autores e autoras deste volume

Alessandro de Oliveira Campos - membro do Núcleo São Paulo


da ABRAPSO, doutor em Psicologia Social pela Pontifícia Univer-
sidade Católica de São Paulo/PUC-SP, professor de Psicologia So-
cial Comunitária do Centro Universitário São Camilo.
Contato: alessandro_campos@yahoo.com

Antonio Carlos Simonian dos Santos - psicólogo social, mestre em


Psicologia Social pela Universidade de São Paulo (USP), professor
universitário, membro do Núcleo Baixada Santista da ABRAPSO.
Contato: oi@rafaellima.org

Antonio Euzébios Filho - psicólogo, graduado e pós-graduado pela


PUC-Campinas. Tem experiência na área da Psicologia Social, Psi-
cologia Escolar e Educação, atuando, principalmente, em contextos
educativos e comunitários. Professor da Universidade Estadual Pau-
lista (UNESP campus Bauru) no curso de Psicologia.
Contato: auzebios@hotmail.com

Beatriz Borges Brambilla - membro da Coordenação do Núcleo


São Paulo da ABRAPSO – Gestão 2016-2017, mestre e doutoran-
da em Psicologia Social, docente do curso de Psicologia da Pontifí-
cia Universidade Católica de São Paulo/PUC-SP.
Contato: comafetividade@gmail.com

3
Sobre os autores e autoras

Cecilia Pescatore Alves – psicóloga, doutora em Psicologia Social


pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo/PUC-SP. Pro-
fessora da PUC-SP. Docente aposentada da Universidade de Tauba-
té (UNITAU). Núcleo Vale do Paraíba da ABRAPSO.
Contato: cpescatore@uol.com.br

Christiane Alves Abdala - psicóloga social comunitária, mestre


em Ensino em Ciências da Saúde pela Universidade Federal de São
Paulo (UNIFESP), trabalhadora no Sistema Único de Saúde, mem-
bro do Núcleo Baixada Santista da ABRAPSO.
Contato: chris_abdala@hotmail.com

Cinara Brito de Oliveira - membro da Coordenação do Núcleo


São Paulo da ABRAPSO – Gestão 2016-2017, mestra em Psicologia
Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo/PUC-SP e
membro da Comissão Gestora Metropolitana do Conselho Regional
de Psicologia da 6ª Região.
Contato: cibrito.psi@gmail.com

Cláudia Regina Campos Rodrigues - graduanda em Psico-


logia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).
Contato: claudiarcrodrigues@gmail.com

Clélia Rosane dos Santos Prestes - doutoranda e mestre em Psico-


logia Social pela Universidade de São Paulo (USP). Especialista em
Psicologia Clínica Psicanalítica pela Universidade Estadual de Lon-
drina (UEL). Pesquisadora do Núcleo de Estudos para a Prevenção
da Aids (NEPAIDS-USP) e psicóloga do Instituto AMMA Psique e
Negritude.
Contato: clelia.com@gmail.com

Cristiane Moreira Cobra - filósofa, doutora em Ciências Sociais


pela Pontifícia Universidade Católica/PUC-SP, auxiliar docente

4
Sobre os autores e autoras

da área das Humanidades na Universidade de Taubaté (UNITAU)


desde 2007, membro do Núcleo Vale do Paraíba da ABRAPSO.
Contato: cristiane_cobra@yahoo.com.br

Danielle Kepe de Souza Pinto - psicóloga social, mestranda em


Ensino em Ciências da Saúde pela Universidade Federal de São Pau-
lo – UNIFESP, trabalhadora no Sistema Único de Assistência So-
cial, membro do Núcleo Baixada Santista da ABRAPSO.
Contato: danny_kepe@hotmail.com

Débora Cristina Fonseca - psicóloga, mestre e doutora em Psicolo-


gia Social pela PUC-SP. Professora do Departamento de Educação
e do Programa de Pós-graduação em Educação da UNESP de Rio
Claro.
Contato: dcfon10@gmail.com

Deivis Perez - doutor em Educação pela Pontifícia Universidade


Católica de São Paulo/PUC-SP, líder do grupo “Pesquisa em Psico-
logia Sócio-Histórica-Cultural” e professor no Departamento de Psi-
cologia Social e Educacional e no Programa de Pós-graduação stricto
sensu em Psicologia da Universidade Estadual Paulista (UNESP).
Contato: prof.deivisperez2@hotmail.com

Eduardo Pinto e Silva - psicólogo, mestre e doutor em Educação


pela Universidade de Campinas (UNICAMP), com estágio ´pós-
doutoral pelo Programa de Políticas Públicas e Formação Huma-
na da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Professor
do Departamento e Programa de Pós-graduação em Educação da
Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).
Contato: dups02@gmail.com

Elisa Harumi Musha - mestranda em Psicologia Social pela Uni-


versidade Pontifícia Católica de São Paulo/PUC-SP. Integrante do

5
Sobre os autores e autoras

Núcleo de Estudos Psicossociais da Dialética Exclusão/Inclusão So-


cial (NEXIN/PUC-SP); especialista em Psicologia Hospitalar pelo
Instituto Central do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medici-
na da Universidade de São Paulo (USP).
Contato: elisa.hmusha@gmail.com

Elizangela André dos Santos - graduada em Psicologia pelas Fa-


culdades Integradas de Ciências Humanas, Saúde e Educação de
Guarulhos, e especialista na área de Ciências Sociais e Educação
Comunitária. Membro da Coordenação do Núcleo São Paulo
ABRAPSO – Gestão 2016-2017, mestra em Psicologia Social pela
PUC-SP.
Contato: elidra3@hotmail.com

Fernando Aparecido Figueira do Nascimento - psicólogo social,


mestre em História da Ciência pela Pontifícia Universidade Cató-
lica de São Paulo/PUC-SP, trabalhador no Sistema Único de Saú-
de, membro do Núcleo Baixada Santista da ABRAPSO.
Contato: fernandofigueira76@hotmail.com

Gil Gonçalves Júnior - membro do Conselho Diretor e vice-pre-


sidente da Regional São Paulo - Gestão 2016-2017 - da Associação
Nacional de Psicologia Social/ABRAPSO. Possui graduação em Psi-
cologia pela Universidade Metodista de São Paulo (1978), mestra-
do e doutorado em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo/PUC-SP. Professor na Faculdade Paulista de
Serviço Social de São Caetano do Sul/SP.
Contato: gilgoncalves14@yahoo.com.br

Gláucia Tais Purin - membro do Núcleo São Paulo da ABRAP-


SO, doutoranda em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade

6
Sobre os autores e autoras

Católica de São Paulo/PUC-SP, psicoterapeuta e membro do Nú-


cleo de Pesquisa da Dialética Exclusão/Inclusão Social (NEXIN).
Contato: glauciatp@hotmail.com
Guilherme Reis - psicólogo formado pela Universidade Paulista
(UNIP) e especializando em Psicologia Clínica. Atua como psi-
cólogo institucional no trabalho com autistas em organizações do
Terceiro Setor.
Contato: guilherme_reis94@hotmail.com

Ivani Francisco de Oliveira - mestranda pela Pontifícia Universi-


dade Católica de São Paulo/PUC-SP e Conselheira do Conselho
Regional de Psicologia da 6ª Região. Membro do Núcleo ABC da
Regional São Paulo da Associação Brasileira de Psicologia Social
(ABRAPSO).
Contato: ivani.oliveira.psi@gmail.com

Jean Fernando dos Santos - Coordenador-membro do Núcleo


São Paulo da ABRAPSO – Gestão 2016-2017, mestre em Psicolo-
gia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo/PU-
C-SP, psicólogo no Sistema Único de Assistência Social (SUS).
Contato: jean.fernando@yahoo.com.br

Jéssica Rodrigues Rosa - psicóloga, mestra em Saúde Coletiva pela


Universidade Estadual Paulista (UNESP campus Botucatu); atua no
Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da UNESP Botu-
catu (HCFMB).
Contato: jessicarrosa@gmail.com

José Fernando Andrade Costa - Mestre em Psicologia Social pelo


Instituto de Psicologia da USP, atualmente é docente dos cursos
de Psicologia e Serviço Social na Universidade de Santo Amaro

7
Sobre os autores e autoras

(Unisa). Atua principalmente com os seguintes temas: Psicologia


Comunitária, Teoria Crítica, Ação Pública, Assistência Social e Di-
reitos Humanos.
Contato: josefernando.ac@hotmail.com

José Leon Crochick - docente do Instituto de Psicologia da Uni-


versidade de São Paulo/USP, bolsista produtividade em pesqui-
sa do CNPq e editor da Revista Psicologia USP.
Contato: jlchna@usp.br

Juliana Lopes da Silva - psicóloga, mestranda pela Pontifícia Uni-


versidade Católica de Campinas/PUC-Campinas, membro do Nú-
cleo Campinas e região da ABRAPSO.
Contato: ls.julianalopes@gmail.com

Ladislau Dowbor - professor titular da PUC-SP, e consultor de vá-


rias agências das Nações Unidas. Autor, entre outros, de Democracia
Econômica, Editora Vozes. Seus textos estão disponíveis em http://
dowbor.org
Contato: ladislau@dowbor.org

Luciana Nogueira Fioroni - psicóloga, mestre em Saúde Mental e


doutora em Psicologia pela Universidade de São Paulo (USP), com
estágio pós-doutoral em Medicina Preventiva pela USP. Professo-
ra do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-gradua-
ção em Gestão da Clínica da Universidade Federal de São Carlos
(UFSCar).
Contato: lufioroni@ufscar.br

Luiz Carlos da Rocha - doutor em Psicologia Social pela Universi-


dade de São Paulo (USP), professor no Departamento de Psicologia
Social e Educacional da Universidade Estadual Paulista (UNESP)

8
Sobre os autores e autoras

e fundador do Núcleo Assis da Associação Brasileira de Psicologia


Social (ABRAPSO).
Contato: lcrocha@assis.unesp.br

Maria Cristina Dancham Simões - psicóloga, doutora em Edu-


cação pela Pontifícia Universidade Católica/PUC-SP, professora e
supervisora no Centro de Psicologia Aplicada da Universidade Pau-
lista (UNIP), membro do Núcleo Vale do Paraíba da ABRAPSO.
Contato: macris.simoes@gmail.com

Mariana Pereira da Silva - psicóloga, mestranda pela Pontifícia


Universidade Católica de Campinas/PUC-Campinas, membro do
Núcleo Campinas e região da ABRAPSO.
Contato: mariananox@gmail.com

Mariana Serafim Xavier Antunes - membro do Núcleo São Paulo


da ABRAPSO, do Núcleo de Estudos em Identidade-Metamorfose
(NEPIM) e Núcleo Inanna de Pesquisa em Sexualidades, Feminis-
mos, Gênero e Diferenças (NIP). Doutora em Psicologia Social pela
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Psicoterapeuta.
Contato: marianaserafim@hotmail.com

Márcia Hespanhol Bernardo – docente do Programa de Pós-gra-


duação stricto sensu em Psicologia da Pontifícia Universidade Católi-
ca de Campinas/PUC-Campinas.
Contato: marciahespanhol@hotmail.com

Mário Henrique da Mata Martins - doutorando em Psicologia


Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo/PUC-SP,
com estágio doutoral sanduíche na Universidade Autónoma de Bar-
celona (UAB). É mestre em Psicologia Social também pela PUC
-SP e graduado em Psicologia pela Universidade Federal de Alagoas
(UFAL).
Contato: martins.mariodamata@gmail.com

9
Sobre os autores e autoras

Nicelle Juliana de Paula Sartor - psicóloga especialista em Saúde da


Família e Comunidade pela Faculdade de Medicina de Marília (FA-
MEMA); mestranda em Saúde Coletiva na Universidade Estadual
Paulista (UNESP câmpus Botucatu). Atua no Hospital das Clíni-
cas da Faculdade de Medicina da UNESP Botucatu (HCFMB).
Contato: nicellejuliana@hotmail.com

Priscila Carla Cardoso - psicóloga pela Universidade Estadual Pau-


lista (UNESP câmpus Bauru), mestranda do Programa de Pós-Gra-
duação em Educação da UNESP de Rio Claro e psicóloga do Cen-
tro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS) em
Vinhedo-SP.
Contato: priscilacardoso@gmail.com

Rafael Lima - acadêmico de Psicologia na Universidade Federal


de São Paulo (UNIFESP), membro do Núcleo Baixada Santista da
ABRAPSO.
Contato: oi@rafaellima.org

Roberth Miniguine Tavanti - doutorando em Psicologia Social no


Programa de Estudos Pós-graduados em Psicologia Social da Ponti-
fícia Universidade Católica de São Paulo/PUC-SP; mestre em Psico-
logia Social pela PUC-SP e graduado em Psicologia pela Universida-
de Estadual de Londrina (UEL).
Contato: robertopsico@hotmail.com

Ruchelli Stanzani Ercolano - psicóloga e mestranda no Programa


de Pós-graduação stricto sensu em Psicologia da Universidade Esta-
dual Paulista (UNESP).
Contato: ruchelliercolano@hotmail.com

10
Sobre os autores e autoras

Stephanie Carolin Santos Almeida - graduada em Psicologia pela


Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).
Contato: stephanie_csa@hotmail.com

Sueli Terezinha Ferrero Martin - psicóloga. Doutora em Psicolo-


gia Social pela PUC-SP. Docente do Departamento de Neurologia,
Psicologia e Psiquiatria e do Programa de Pós-graduação em Saúde
Coletiva, FMB, UNESP-Botucatu. Núcleo Cuesta da ABRAPSO.
Contato: suelitfmartin@gmail.com

Virginia Junqueira - médica, mestre e doutora pelo Departamento


de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP, com
estágio pós-doutoral na área de Economia Política da Saúde pela
Faculdade de Saúde Pública da USP. Professora adjunta da Univer-
sidade Federal de São Paulo, campus Baixada Santista.
Contato: virginiaj@uol.com.br

William Joseph Gomes de Oliveira - psicólogo do Centro Edu-


cacional Municipal Terapêutico Especializado Madre Cecília
(CEMTE), da Prefeitura Municipal de Taubaté (SP), membro do
Núcleo Vale do Paraíba da ABRAPSO.
Contato: williamdeoliveira2006@gmail.com

11
Sumário

Coleção Encontros em Psicologia Social ........................................ 01


Maristela de Souza Pereira, Dolores Galindo e Emerson F. Rasera
Sobre os autores e autoras deste volume ........................................ 03

Apresentação ................................................................................... 15
Deivis Perez, Eduardo Pinto e Silva e Maria Cristina Dancham Simões
Prefácio ............................................................................................ 19
Gil Gonçalves Júnior

Seção I - Sobre o autoritarismo e seus enfrentamentos na


história da ABRAPSO e nas práticas sociais

O irracional em todos nós ................................................................ 23


Ladislau Dowbor
Pontos sobre o autoritarismo contemporâneo ................................ 42
José Leon Crochik
Notas sobre o enfrentamento do autoritarismo dentro e fora da 55
Psicologia .........................................................................................
Antonio Euzébios Filho
ABRAPSO: uma história de enfrentamentos e contradições ............ 65
Sueli Terezinha Ferrero Martin e Cecília Pescatore Alves
Enfrentamento da lógica privatista no SUS ..................................... 76
Virginia Junqueira
Seção II - Pesquisas e práticas em diálogo: Psicologia
Social no entendimento e enfrentamento de um inusitado
momento político

Psicologia Social contra o golpe ...................................................... 87


Luiz Carlos da Rocha, Deivis Perez e Ruchelli Stanzani Ercolano
Caminhos da Psicologia Social: perspectivas de ação diante da 93
privação de direitos .........................................................................
José Fernando Andrade Costa, Carlos Eduardo Mendes e Ivani Francisco
de Oliveira
Para uma Psicologia não fascista ..................................................... 101
Antonio Carlos Simonian dos Santos, Guilherme Reis, Fernando Aparecido
Figueira do Nascimento e Mário Henrique da Mata Martins
Movimentos sociais e autônomos no enfrentamento às pautas 108
autoritárias e à lógica privatista ......................................................
Christiane Alves Abdala, Fernando Aparecido Figueira do Nascimento,
Antonio Carlos Simonian dos Santos, Danielle Kepe de Souza Pinto e
Rafael Lima
Violência de Estado na democracia: opressões de raça, gênero e 116
orientação sexual ............................................................................
Ivani Francisco de Oliveira, Elizangela André dos Santos, Clélia Rosane
dos Santos Prestes
A lógica privatista na Educação e Saúde: enfrentamentos à 124
violência na escola, ao capitalismo acadêmico e ao desmonte do
SUS ...................................................................................................
Cláudia Regina Campos Rodrigues, Débora Cristina Fonseca, Eduardo
Pinto e Silva, Luciana Nogueira Fioroni, Priscila Carla Cardoso e
Stephanie Carolin Santos Almeida
Práxis da Psicologia Social na Saúde Coletiva e no contexto atual 134
do SUS: reflexões de uma roda de conversa ....................................
Jéssica Rodrigues Rosa e Nicelle Juliana de Paula Sartor
Juventudes: práticas culturais, políticas e participativas 141
Roberth Miniguine Tavanti e Elisa Harumi Musha
Políticas educacionais na contemporaneidade: reflexões e 150
enfrentamentos ...............................................................................
Maria Cristina Dancham Simões, William Joseph Gomes de Oliveira,
Cristiane Moreira Cobra e Cecília Pescatore Alves
O que fazer? Provocações para construção de práticas 163
emancipatórias ................................................................................
Jean Fernando dos Santos, Beatriz Borges Brambilla, Cinara Brito
de Oliveira, Mariana Serafim Xavier Antunes, Gláucia Tais Purin e
Alessandro de Oliveira Campos
Notas acerca da dialética como método e seu uso contemporâneo 172
na mediação da transmutação social ...............................................
Deivis Perez, Ruchelli Stanzani Ercolano e Luiz Carlos da Rocha
Psicologia Social do Trabalho: alguns desafios e compromissos na 183
atual conjuntura .........................................................................
Juliana Lopes da Silva, Mariana Pereira da Silva e Márcia Hespanhol
Bernardo
Carta de São Caetano do Sul ........................................................... 191
Apresentação: retomando
críticas à realidade social por
meio do compartilhamento
de reflexões e práticas em
Psicologia Social

Este livro é o resultado do trabalho conjunto dos membros da


Regional São Paulo da Associação Brasileira de Psicologia Social
(ABRAPSO) e compõe-se de contribuições espontâneas dos con-
vidados de mesas-redondas e dos coordenadores das rodas de con-
versa propostas em nosso XIII Encontro, que ocorreu entre os dias
11 e 14 de novembro de 2016, na Universidade Municipal de São
Caetano do Sul (USCS). Sob o tema “Práxis em Psicologia Social: o
enfrentamento a pautas autoritárias e à lógica privatista”, represen-
tantes dos núcleos paulistas e da coordenação regional engajaram-se
na reflexão de nossa práxis atual, tendo em vista a tendência con-
temporânea de inúmeros segmentos da nossa sociedade à simpatia
e adesão ao autoritarismo e, simultaneamente, a disposição para
apoiar a implantação de medidas políticas e socioeconômicas estru-
turadas sob égide do neoliberalismo. Tais medidas se dirigem para

15
Deivis Perez, Eduardo Pinto e Silva e Maria Cristina Dancham Simões

a retirada de direitos sociais e cívicos conquistados, para a flexibili-


zação e eliminação de leis dedicadas à defesa da classe trabalhadora,
para a redução dos espaços destinados à participação e tomada de
decisão acerca das políticas públicas e renúncia das responsabili-
dades sociais e científicas pelo Estado, esta manifestada por inter-
médio da severa redução dos investimentos em áreas fundamentais
como a saúde, a ciência e a educação.
Nesse Encontro da ABRAPSO São Paulo, seus integrantes as-
sumiram o desafio de produzir reflexões rigorosas sobre os rumos
do país e garantir o exercício dos recursos teóricos, metodológicos
e práticos que a Psicologia Social pode oferecer ao exame, contra-
posição e defrontamento das ideias e das ações dos grupos opostos
ao legítimo funcionamento da democracia brasileira, reativos ao
respeito à alteridade e ao convívio bonançoso com as manifesta-
ções da pluralidade ética e estética humanas. Em face do exposto, e
num cenário marcado por um recente golpe parlamentar-empresa-
rial-judiciário-midiático sofrido pelo povo brasileiro, que resultou
na deposição de uma presidenta eleita, a ABRAPSO reafirmou os
compromissos manifestados desde a sua criação, que remetem a
uma postura de compreensão crítica dos problemas sociais brasi-
leiros, contribuindo assim para o desenvolvimento da Psicologia
Social no país.
Esta obra está ordenada em duas seções articuladas e complemen-
tares entre si. A seção 1, com cinco capítulos, foi nomeada “Sobre o
autoritarismo e seus enfrentamentos na história da ABRAPSO e nas
práticas sociais” e traz registrados os resultados das mesas-redondas,
as quais abordaram questões como: a irracionalidade como dimen-
são constitutiva do humano, que precisa ser assumida e compreen-
dida; as características do autoritarismo na contemporaneidade e a
necessária confrontação deste fenômeno em nossa sociedade, sob o
enfoque da Psicologia Social e de outras áreas dos saberes acadêmi-
cos; a história da ABRAPSO e a sua tradição no engajamento em
lutas sociais; o avanço da lógica privatista sobre os serviços públicos

16
Apresentação

essenciais, com destaque para os riscos aos quais está exposto o Sis-
tema Único de Saúde.
A segunda seção, “Pesquisas e práticas em diálogo: Psicologia So-
cial no entendimento e enfrentamento de um inusitado momento
político” possui onze capítulos e foi reservada para a exposição das
contribuições dos organizadores das Rodas de Conversa, que coor-
denaram e mediaram os debates em torno dos trabalhos acadêmicos
e dos relatos de práticas profissionais que foram apresentados no
evento. Nesta parte, optamos por garantir aos Núcleos da ABRAP-
SO São Paulo a autonomia para uma anotação solta de amarras,
que permitisse emergir a riqueza dos saberes que circularam nas
Rodas de Conversa. Isso favoreceu o surgimento tanto de capítulos
que consignaram mais fielmente os relatos de investigações e de
experiências ocupacionais em Psicologia Social, quanto de produ-
ções textuais em que os autores optaram por nos trazer ensaios e
notas livremente inspiradas na dialogia e polifonia percebidas no
Encontro.
A seção 2 do livro principia com notas sobre as contribuições que
a Psicologia Social e a academia podem oferecer para o entendimen-
to do inusitado momento político vivido pelos brasileiros, seguidas
de considerações sobre as perspectivas de ação dos trabalhadores
da Psicologia Social no atual cenário sociopolítico e os papeis que
eles devem assumir no sentido de uma atuação comprometida com
a liberdade e emancipação humana. Temos ainda, capítulos desti-
nados a discussões impreteríveis na atualidade, como: a violência
de Estado, os seus nexos com as opressões e os seus liames com o
sofrimento de pessoas em função da raça, cor ou orientação sexual;
a racionalidade privatista aplicada à educação e à saúde; a práxis da
Psicologia Social no âmbito da saúde coletiva; as políticas públicas
educacionais hegemônicas no bojo de um tecido social excludente;
a dialética materialista como um instrumento para a compreensão
da realidade e capaz de estimular a metamorfose social; a Psicologia

17
Deivis Perez, Eduardo Pinto e Silva e Maria Cristina Dancham Simões

Social do Trabalho e sua função no apoio à resistência dos trabalha-


dores face às malvadezas do presente mundo laboral.
Dispomos, no final do livro, a Carta de São Caetano do Sul,
documento elaborado coletivamente pelos membros da ABRAP-
SO São Paulo, que (re)afirma o posicionamento ético e político
da associação em relação ao risco de recuo dos direitos humanos e
sociais em nosso país e solicita uma Psicologia comprometida com
a transformação da injusta realidade da população brasileira e com
a sua libertação.
Cumpre notar que no momento político, econômico, social e
histórico em que o Brasil se encontra, de gradual cerceamento de
direitos e retrocessos em diferentes âmbitos, este livro expressa, sob
diferentes olhares, uma mesma necessidade e, concomitantemente,
um convite: de retomar a crítica e o compartilhamento de reflexões
e práticas em Psicologia Social, com o objetivo de ampliar as possi-
bilidades de resistência.
São Paulo, julho de 2017.
Deivis Perez
Eduardo Pinto e Silva
Maria Cristina Dancham Simões
Organizadores

18
Prefácio

“Práxis em Psicologia Social: o enfrentamento a pautas autoritá-


rias e à lógica privatista” foi o tema definido para o XIII Encontro
da Regional São Paulo da Associação Brasileira de Psicologia So-
cial – ABRAPSO, que se realizou no período de 11 a 14 de novem-
bro de 2016, nas dependências da Universidade de São Caetano do
Sul/USCS, em São Caetano do Sul/SP.
O intento com a escolha desse tema foi estimular a reflexão a res-
peito da práxis em Psicologia Social quando, não apenas em nosso
país, mas também e intensamente nele, verifica-se o aumento da
manifestação de simpatia a pautas autoritárias e à lógica privatista,
ao mesmo tempo em que, contrariamente, percebe-se o surgimento
de novas formas de organização e atuação, adotadas por diversos
segmentos sociais, para enfrentar o retrocesso que essa ampliação do
conservadorismo representa.
Mais especificamente, e dando seguimento a uma diretriz desta
Regional, pretendeu-se estimular a reflexão de como, nesse contexto
de tendências díspares entre si, essa práxis pode expressar os compro-
missos sociais, éticos e políticos assumidos à época da fundação da
entidade, em julho de 1980, que permanecem atuais em sua essência,
conquanto, naquele momento, se entrelaçassem a outras exigências.

19
Gil Gonçalves Júnior

Os eixos temáticos buscaram contemplar dimensões que per-


mitissem estabelecer nexos mais gerais entre reflexões específicas a
respeito da práxis e, por extensão, favorecessem o agrupamento de
trabalhos que tratavam de expressões concretas das exigências com
que se entrelaçam os compromissos da Psicologia Social na atuali-
dade. Isso pode ser constatado pelos títulos desses eixos: Formação
e pesquisa na realidade brasileira; Trabalho no contexto da lógica
privatista; Prática profissional e compromisso social; Políticas pú-
blicas na conjuntura atual; As determinações sociais da adesão ao
autoritarismo e Formas de resistência: atores e práticas.
As modalidades de trabalho – Roda de Conversa, Pôster em De-
bate e Arte ABRAPSO – foram programadas tanto de maneira a
estimular e favorecer o debate dos conteúdos a serem apresentados,
quanto a possibilitar o diálogo entre pesquisadores, profissionais,
estudantes, militantes de movimentos sociais e demais pessoas inte-
ressadas nesses conteúdos.  Assim, limitou-se o número de trabalhos
a serem apresentados em cada uma das sessões dessas atividades, jus-
tamente para que o tempo dedicado ao debate fosse suficientemente
extenso, além do que procurou-se garantir nessas sessões, mediante
convites, a presença de pessoas que atuam em espaços diversos, no-
tadamente militantes de movimentos sociais. Tal prática foi adotada
até mesmo nas mesas redondas, cujos temas já eram indicados no
título do Encontro. Subjacente a isso, havia o objetivo de afastar-se
do academicismo estrito que usualmente permeia esse tipo de evento
e contrapor-se ao produtivismo que hoje caracteriza a academia.
O Encontro foi marcado pela divulgação de um manifesto em
sua abertura, no qual se presta apoio e solidariedade a movimentos
sociais, coletivos autônomos, artistas, estudantes, mulheres, lideran-
ças indígenas e povos latino-americanos que são atingidos pelas e
resistem às pautas autoritárias e à lógica privatista, e também por ter
elaborado e difundido a Carta de São Caetano do Sul, que repudia
a PEC 55 – manifestação concreta dessas pautas – e alerta para as

20
Prefácio

graves consequências sociais de sua aprovação. São documentos que


integram os Anais do Encontro.
Outra característica desse Encontro foi a de sua configuração ter
resultado de um amplo e intenso processo de reflexão, do qual par-
ticiparam todos os núcleos estruturados e ativos da Regional São
Paulo, que assim puderam contribuir para a definição dos vários
aspectos envolvidos: tema, objetivos, eixos, atividades, convidados,
programação etc. Destaca-se ser essa uma prática que tem sido usu-
al nesta Regional. Provavelmente em função disso, a realização do
Encontro transcorreu dentro do previsto naquilo que tange aos as-
pectos formais e funcionais, bem como de acordo com depoimen-
tos informais durante o evento e opiniões expressas em mensagens
enviadas por e-mail após a sua realização, tanto por participantes
quanto por coordenadores de atividades.
Dessa forma, atingiu-se um nível razoável de sucesso quanto aos
propósitos: (a) estimular a discussão e o debate, notadamente pela
destinação de tempo adequado para tanto, contrapondo-se ao pro-
dutivismo acadêmico; (b) favorecer o intercâmbio de pesquisadores
e profissionais da área com militantes e integrantes de movimentos
sociais e coletivos; (c) enfatizar as reflexões a respeito de possíveis
práticas emancipatórias em psicologia social e (d) extrapolar o acade-
micismo estrito que não raro caracteriza esse tipo de encontro.
Com esta publicação pretende-se, em alguma medida, porquanto
nem todos os convidados puderam oferecer suas contribuições, di-
fundir resultados desse Encontro, com a esperança, talvez um tanto
pretensiosa, de que possam ser de alguma valia para quem, inde-
pendentemente de como e onde atua, oponha-se a essas pautas e,
portanto, assuma o compromisso de contribuir para a emancipação
dos segmentos mais desfavorecidos.
Gil Gonçalves Júnior
Vice-presidente da Regional São Paulo da Associação Nacional
de Psicologia Social/ABRAPSO - Gestão 2016-2017

21
Seção I

Sobre o autoritarismo e seus


enfrentamentos na história da ABRAPSO
e nas práticas sociais

22
O IRRACIONAL EM TODOS NÓS

Ladislau Dowbor

Mentimos, trapaceamos e justificamos tão bem que


passamos a acreditar honestamente que somos honestos.
(Jonathan Haidt1, A mente moralista)

Temos razões de sobra para nos sentirmos ultrapassados pelos


acontecimentos. E não se trata de desgraças naturais, e sim de uma
catástrofe em câmara lenta que estamos construindo nós mesmos,
o chamado homo sapiens¸ que também definimos como animal
racional, esquecendo que nestas duas palavras a primeira é animal.
Somos, sem dúvida, muito capazes de inventar novas máquinas e
tecnologias sofisticadas. Mas somos analfabetos em termos de nos
administrarmos como sociedade civilizada. A presente nota consti-
tui uma reflexão sobre o irracional, pois para entendermos o nosso

1 Sobre Jonathan Haidt, The Righteous Mind (A mente moralista), confira re-
senha em: Dowbor, L. (2013). Esquerda e Direita frente à Ética. Ladislau Dowbor: dicas
de leitura. Recuperado de http://dowbor.org/2013/06/jonathan-haidt-the-righteous-min-
d-why-good-people-are-divided-by-politics-and-religion-a-mente-moralista-por-que-boas
-pessoas-sao-divididas-pela-politica-e-pela-religiao.html/

23
Ladislau Dowbor

mundo, temos justamente de assumir racionalmente a nossa dimen-


são irracional.
É difícil traduzir a expressão inglesa self-righteousness. Ela expres-
sa a profunda convicção de uma pessoa de que domina os outros
da altura da sua elevada postura ética. Em geral, leva a comporta-
mentos estreitamente moralistas e intolerantes. E frequentemente
vemos atos violentos justificados com fins altamente morais. Não
há barbárie que não se proteja com argumentos de elevada nobreza.
Sentimento que permite soltar as rédeas do ódio, aquele sentimento
agradável de odiar com boas razões. A Marcha da Família com Deus
pela Liberdade, na época do golpe de 1964, representou um marco
histórico da hipocrisia na defesa de privilégios. As classes médias que
se vestiram de verde-amarelo para travar o avanço social dos mais
pobres, com seus ridículos patos e panelas, seguem na mesma tradi-
ção. A hipocrisia tem pernas longas. As invasões de países se dão em
geral para proteger as populações de armas de destruição de massas,
as ditaduras para salvar a democracia, os ataques sexuais são feitos da
altura moral de quem usa o sexo como se deve.
Jonathan Haidt (2012), no seu livro The Righteous Mind, que
traduziremos aqui por “a mente moralizante”, para distinguir da
pessoa meramente ‘moral’, parte de um problema relativamente
simples: como é que a sociedade americana se divide, de maneira
razoavelmente equilibrada, em democratas e republicanos, cada um
acreditando piamente ocupar a esfera superior na batalha ética, e
considerando o adversário como hipócrita, mentiroso, enfim, des-
provido de qualquer sentimento de moralidade? O imoral é o outro.
No entanto, de cada lado há pessoas inteligentes, sensíveis, por vezes
brilhantes – mas profundamente divididas. Em nome da ética, o
ódio impera.
O tema, evidentemente, não é novo. Um dos livros de maior in-
fluência, até hoje, nos Estados Unidos, é O Dilema Americano, de
Gunnar Myrdal, dos anos 1940, que lhe valeu o prêmio Nobel. É
uma das análises mais finas, não dos Estados Unidos, mas do bom

24
O irracional em todos nós

americano médio, e de como cabem na mesma cabeça a atitude


compenetrada no serviço religioso da sua cidade, a profunda convic-
ção da importância da liberdade e dos direitos humanos, e práticas
como a perseguição e assassinato de negros. O livro é muito inteli-
gente e correto. Myrdal (1944) adverte que desautoriza qualquer uso
da sua análise para um antiamericanismo barato. O objetivo dele
não é defender ou atacar, é entender. Mas conclui que “o problema
negro” nos Estados Unidos “é um problema dos brancos”. A análi-
se, naturalmente, poderia ser estendida para muito além da mente
americana.
O campo de trabalho de Haidt (2012) é a disciplina chamada psi-
cologia moral, moral psychology. Estuda justamente como se articu-
lam, em termos psicológicos, as construções dos nossos valores, e em
particular os valores que podemos qualificar de políticos. Com que
base real passamos a achar que o que fazemos é moralmente certo ou
correto? Através de quais mecanismos o que era razão se transforma
em mera racionalização de emoções subjacentes?
Há as leis, naturalmente, mas estas definem o que é legal, e fre-
quentemente as leis foram elaboradas por quem as manipula, tor-
nando legal o que é moralmente indefensável. Os paraísos fiscais
permitem às corporações pagar poucos impostos, o que não é viável
para a pequena empresa, e muito menos para as famílias. Não é ilegal
uma empresa declarar a sua sede no paraíso fiscal, evitando assim
de pagar impostos no país onde funciona, enquanto os seus em-
pregados naturalmente pagam os impostos normalmente, inclusive
porque são deduzidos na folha de pagamento. Basta ser legal para ser
ético? Quando grupos, sem nenhum compromisso com a moralida-
de, assumem o controle do legislativo, onde fica a fronteira?
Snowden, ao revelar a amplitude da invasão da privacidade e do
uso invasivo das tecnologias de rastreamento da National Security
Agency (NSA) cometeu um ato ilegal, do ponto de vista da justi-
ça americana (ainda que com controvérsias), mas o fez, com risco
próprio, por razões éticas. Os que lutavam contra a escravidão eram

25
Ladislau Dowbor

presos e condenados. Mandela pagou 30 anos da sua vida por com-


bater um regime legal, mas medieval. Os republicanos qualificam
Snowden de traidor, como a Máfia considera traidor quem não se
solidariza com o grupo, ainda que seja para cometer crimes. A ética
pode ser muito elástica.
Há um referencial confiável, um valor absoluto? Durkheim (2008,
p. 338) escreveu que “... é moral tudo que é fonte de solidariedade,
tudo que leva o homem a regular as suas ações por algo mais do que
o seu próprio egoísmo.” Haidt (2012, p. 270) busca “os mecanismos
que contribuem para suprimir ou regular o auto interesse e tornam
as sociedades cooperativas.” Paulo Freire (2011), que era um homem
simples, mas não simplório, resumia a questão dizendo que queria
“uma sociedade menos malvada.” Com quais mecanismos psicológi-
cos os grupos sociais conseguem justificar, em termos éticos, o que
claramente traz danos aos outros, e vantagens para eles? Chamemos
isto de racionalizações, coisa que Haidt (2012) chama de raciocínio
motivado (motivated reasoning).
Haidt (2012) entra no coração das racionalizações. A visão é de
que buscamos mais parecer bons do que ser bons.
Mentimos, trapaceamos e dobramos regras éticas frequentemente
quando achamos que podemos sair impunes, e então usamos o
nosso raciocínio moral para gerir as nossas reputações e justificar-
nos junto aos outros. Acreditamos no nosso raciocínio a posteriori
tão profundamente que terminamos moralisticamente (self-righ-
teously) convencidos da nossa própria virtude. Somos tão bons
nisto, que conseguimos enganar até a nós mesmos. (Haidt, 2012,
p. 190)

A visão geral aqui é que o raciocínio serve essencialmente para


justificar o que já foi decidido por outros mecanismos intuitivos:
“É o primeiro princípio: as intuições chegam em primeiro lugar, o
raciocínio estratégico em segundo” (Haidt, 2012, p. XIV). O que re-
sulta é um raciocínio de confirmação, não de análise e compreensão:

26
O irracional em todos nós

“Que chance existe que as pessoas pensem de mente aberta, de for-


ma exploratória, quando o auto interesse, a identidade social e fortes
emoções as fazem querer ou até necessitar chegar a uma conclusão
preordenada?” (Haidt, 2012, p. 81).
Provavelmente o maior interesse do livro de Haidt (2012) é que
nos permite entender um pouco melhor este nosso poço escuro de
ódios e identificações políticas, ao detalhar, baseado em pesquisas, a
diversidade das motivações. Ele trabalha com uma “matriz moral” de
seis eixos, que estão por trás das nossas atitudes de solidariedade ou
de indignação, de aprovação ou de ódio.
O primeiro é o “cuidar” (care), que nos faz evitar causar danos
aos outros, querer reduzir sofrimentos. Está dentro de todos nós.
Ao ver um cachorrinho ser maltratado, ficamos indignados, mesmo
que não gostemos de cachorro. É um motor poderoso que exige,
inclusive, que as pessoas que massacram ou torturam outras pes-
soas precisem “desumanizar” a sua vítima, transformá-la em objeto
fictício: é um terrorista, um comunista, um marginal, um gay, uma
puta, qualquer coisa que a rebaixe do status de pessoa, permitindo o
tratamento desumano. O garotão de classe média que ateia fogo ao
mendigo se sente, inclusive, mais “pessoa”. Está “acima”. O mendigo
não é pessoa, é mendigo. Vai trabalhar, vagabundo!
A liberdade constitui outro vetor de valores, com o correspon-
dente repúdio à opressão. Naturalmente, para muitos, a liberdade
significa também a liberdade de oprimir, mas para isto precisam aqui
também reduzir a dimensão humana de quem oprimem. Os dou-
tores do direito canônico resolveram assim o dilema de se defender
a liberdade de ter e de caçar escravos: o negro não teria alma. Os
vietnamitas foram massacrados pelos americanos para proteger o seu
direito à liberdade. Assim, todo valor precisa criar as suas hipocri-
sias para ser violentado. Foi em nome da liberdade que nos Estados
Unidos e aqui no Brasil repelimos a limitação das armas de fogo
pessoais, ainda que se saiba que os donos são as primeiras vítimas.

27
Ladislau Dowbor

E, no entanto, reconhecemos, sim, a aspiração à liberdade como um


valor fundamental, que orienta as nossas opções éticas.
Um terceiro vetor de valores está no que consideramos tratamento
justo, ou não desigual. Em inglês, o conceito utilizado, fairness, fica
mais claro. Milhões de brasileiros ficam indignados em cada fim de
semana, quando o árbitro dá um cartão amarelo por uma falta, e
não dá o mesmo cartão em falta semelhante para o outro time. Se
o cartão foi merecido ou não, é até secundário, gera indignação o
tratamento desigual. Critério ético perfeitamente válido, e estão com
razão milhões de pessoas que vêm como escandaloso o tratamento
desigual na justiça, que ostenta no seu símbolo a balança, a impar-
cialidade. A não ser, naturalmente, que se trate de pessoas de um
partido que odiamos. Mas o sentimento é muito enraizado. Pesquisa
com macacos mostram que se um macaco recebe uma comida mais
gostosa, os outros que receberam a mesma comida de sempre se re-
cusam a comer. E até se recusam a comer uma guloseima se os outros
também não recebem.
Um quarto vetor é o da lealdade que nos faz buscar adotar os
valores do nosso grupo, considerando traidor quem não os adota.
Muito utilizado nas forças armadas, o esprit de corps faz com que,
por exemplo, militares jurem, com toda tranquilidade, que os seus
colegas não torturaram, ou não estupraram, porque se sentem leais
aos seus companheiros. Esta lealdade, superando a consideração éti-
ca sobre o crime cometido, gera inclusive um agradável sentimen-
to de pertencimento heróico ao grupo. Um filme famoso, com Al
Pacino, Perfume de Mulher (Brest, 1999), é centrado neste tema:
um jovem universitário, que constatou uma pequena bandidagem
dos seus colegas, recusa-se a denunciá-los, ainda que o ameacem de
prejudicar o seu futuro universitário. O sofrimento dele permeia
todo o filme justamente porque é um rapaz profundamente ético.
Um quinto conjunto de valores está centrado na autoridade,
que nos faz considerar ético o que os líderes decidem, e chamar de
subversivos os que se rebelam. Esta identificação a priori com a au-

28
O irracional em todos nós

toridade é profundamente escorregadia, em particular porque nos


permite fazer qualquer coisa com a justificativa que estávamos cum-
prindo ordens. Aqui, o maravilhoso texto de Hannah Arendt sobre o
julgamento de Adolf Eichmann2 nos ajuda muito, pois nos permite
entender que não se trata apenas de criminalizar quem se esconde
atrás do argumento de autoridade, trata-se de aprofundar como fun-
ciona a banalização do mal, e o tipo de ódio que muita gente tem
contra quem os priva do que consideram ódio legítimo.
Vá dizer a pessoas de direita que o Superior Tribunal Federal (STF)
foi preconceituoso: ficam apopléticos, estamos privando-os do gosto
do seu ódio, ainda que só cego não veja as distorções. Mas ver as
distorções exige o uso da razão, a capacidade de contestação objetiva.
Há uma experiência muito conhecida, com estudantes universitá-
rios, chamados a dar choques elétricos em pessoas desconhecidas a
pedido de funcionários com batas de médico, que justificavam que
se tratava de uma experiência científica. A maioria dos estudantes
não se fez de rogada.
O último vetor de justificativas éticas levantado por Haidt (2012)
é o do sagrado, argumento ligado a tradições ou razões religiosas, que
nos fazem condenar ao fogo do inferno quem não acredita em outras
visões de mundo. Aqui temos um prato cheio. Uma leitura básica é o
famoso manual de instruções da inquisição, O Martelo das Feiticeiras
(Kramer & Sprenger, 1486/2004), que ensinava por exemplo que
as mulheres suspeitas de bruxaria ou de serem possuídas deviam ser
torturadas nuas, pois as fragiliza, e de costas, pois as expressões de
dor e de desespero causados pela tortura, obra naturalmente do pró-
prio demônio, podiam ser fortes a ponto de amolecer o inquisidor.
Tudo em nome de Jesus, da caridade, do amor ao próximo. As muti-

2 Veja também o filme “Hannah Arendt”, de 2012, dirigido por Margarethe von
Trotta – Gmbh, H. (Produtor), & Trotta, M. (Diretor). (2012). Hannah Arendt [Filme].
Alemanha: Esfera Cultural. Sobre o qual fiz uma resenha, veja em: Dowbor, L. (2013).
Hannah Arendt: além do filme. Ladislau Dowbor: bons filmes. Recuperado de http://
dowbor.org/2013/08/hannah-arendt-alem-do-filme-agosto-2013-3p.html/

29
Ladislau Dowbor

lações de meninas, a quem se corta (sem anestesia) os lábios externos


da vagina (clisteroctomia), atingem milhões de crianças. Estamos no
século 21!
Ao comparar as visões em inúmeras entrevistas de pessoas no es-
pectro político completo, da esquerda até os mais conservadores,
Haidt (2012) constata que há uma graduação muito clara relativa-
mente a quais elementos da matriz se dá mais importância. Assim,
a esquerda dá muito mais importância aos três primeiros eixos, liga-
dos, portanto, a não fazer dano, não machucar, a reduzir o sofrimen-
to e assegurar o cuidado; à luta contra a opressão e pela liberdade; e
às regras limpas do jogo, com igualdade de tratamento, a chamada
justiça social. Inversamente, a direita dá menos valor aos primeiros,
e concentra as suas visões na lealdade de grupo (veja-se a Ku Klux
Klan, por exemplo), à autoridade e a correspondente obediência,
e ao respeito de valores considerados sagrados, no sentido em boa
parte religioso, onde muitas vezes o sagrado mistura o político e
o religioso, como no Gott mit Uns dos nazistas, acompanhado do
símbolo da swastika. O fato de milhões ficarem fanatizados, num
país que não poderia ser considerado de baixo nível educacional,
é significativo. Não se trata de educação, e sim de instituições, de
cultura política.
A conclusão interessante é que a direita usa argumentos e senti-
mentos que calam fundo nas pessoas, pois mais fortemente ancora-
das nas emoções, nos sentimentos de grupo, coesão, bandeira, reli-
giosidade, autoridade e obediência. São mensagens que ecoam mais
fortemente no emocional do que no raciocínio, que permitem dar
uma aparência de legitimidade ética ao ódio. A direita americana,
por exemplo, sempre agitou um demônio – externo naturalmente
– para justificar tudo e qualquer coisa: foram utilizados Khadafi,
Saddam Hussein, Osama Bin Laden, até Fidel Castro, e hoje o terro-
rismo em geral. No Brasil temos o ótimo exemplo da Veja, que vive
de agitar ódio contra demônios que explicariam todos os males. Não
resolve nada, pelo contrário, mas funciona.

30
O irracional em todos nós

Explicar o drama de pessoas que passam fome e as estatísticas de


mortalidade infantil apela muito mais para o raciocínio, que não
tem o mesmo efeito mobilizador do que os argumentos que atingem
o fundo emocional. Apelar para o emocional, inclusive quando se
utiliza os primeiros eixos que são mais característicos da esquerda –
por exemplo, nos movimentos antiaborto – dá à direita vantagens
de um discurso simplificado e que pega mais no fígado do que na
razão, como por exemplo a bandeira dos “marajás” de Collor, ou da
“vassourinha” de Jânio Quadros, ou ainda a cruzada moralista anti-
corrupção que usa mais a mídia e o espetáculo do que mecanismos
de geração da transparência. Catarse nacional, pegamos o culpado.
O sistema, baseado em formas ultrapassadas e opacas de gestão, na-
turalmente permanece.
Temos de buscar um mundo mais equilibrado. Não desaparece-
rão as motivações mais valorizadas na direita. O essencial é enten-
der melhor as raízes emocionais da razão, a facilidade com a qual
se constroem pseudo-razões e fanatismos. Ajuda-nos por exemplo
a entender como se constrói uma campanha contra a presença de
médicos cubanos em regiões onde médicos nossos não querem ir,
projeto inatacável do ponto de vista humanista. Inúmeras razões são
apresentadas, mal encobrindo um ódio ideológico que é a verdadeira
razão. O ódio, como fenômeno de massas, é contagioso. Explicar
racionalmente um projeto é muito menos contagiante.
Temos em particular de nos preocupar com o poder dos que sim-
plesmente não têm contas morais a prestar, o universo das grandes
corporações.
Se o passado serve para nos iluminar, as corporações crescerão
para se tornarem cada vez mais poderosas com a sua evolução,
e elas mudam os sistemas legais e políticos nos países onde se
instalam para gerar um ambiente mais favorável. A única força
que resta na terra para enfrentar as maiores corporações são os
governos nacionais, alguns dos quais ainda mantêm o poder de
cobrar impostos, regular, e dividir as corporações em segmentos

31
Ladislau Dowbor

menores quando se tornam demasiado poderosas. (Haidt, 2012,


p. 297)

É realista? Vem-nos à lembrança a frase de Milton Friedman, da


escola de Chicago, de que as empresas, como as paredes, não têm
sentimentos morais. Ou a visão proclamada em Wall Street: Greed is
Good, a ganância é boa. Parece que uma parte do universo escapa a
qualquer ética. O filme O Lobo de Wall Street (Scorsese, 2013) vem
naturalmente à memória. O personagem real da história deu entre-
vistas dizendo que o filme não exagerou nada. Chega o denomina-
dor comum que assegura a absolvição por atacado: todos fazem, não
fizemos nada, que toda Wall Street não faça.
Aqui a dimensão é outra, pois se trata da diluição das responsabili-
dades nas instituições. Joseph Stiglitz, ex-economista chefe do Banco
Mundial, “Nobel” de economia, e insuspeito de esquerdismo, resu-
mia a questão em pronunciamento na ONU sobre direitos humanos
e corporações:
Mas infelizmente, a ação coletiva que é central nas corporações
mina (undermines) a responsabilidade individual. Tem sido repe-
tidamente notado como nenhum dos que estavam encarregados
dos grandes bancos que trouxeram a economia mundial à borda
da ruína foi responsabilizado (held accountable) pelos seus malfei-
tos. Como pode ser que ninguém seja responsável? Especialmente
quando houve malfeitos (misdeeds) da magnitude dos que ocorre-
ram nos anos recentes? (Stiglitz, 2013, p. 1)

Quando somos uma massa, e que todos fazem mais ou menos o


mesmo, o que pode se ver no caso do linchamento de um rapaz na
favela, ou massacres numa guerra, mas muito mais prosaicamente
numa gigantesca corporação onde tudo se dilui – a ética se torna tão
diluída que desaparece.
Ninguém gosta de se achar pouco ético. E nossas defesas são for-
tes. Não posso deixar de citar aqui o texto genial de John Stuart Mill,
de 1861, escrevendo sobre a sujeição das mulheres na Grã Bretanha

32
O irracional em todos nós

da época, quando elas eram reduzidas a palhacinhas decorativas e


proibidas de qualquer participação adulta na sociedade e na cons-
trução dos seus destinos. Ao ver a dificuldade de penetrar na mente
preconceituosa, Mill (1861/1997) escreve:

Enquanto uma opinião estiver solidamente enraizada nos senti-


mentos (feelings), ela ganha mais do que perde estabilidade quan-
do encontra um peso preponderante de argumentos contra ela.
Pois se ela tivesse sido construída como resultado de uma argu-
mentação, a refutação do argumento poderia abalar a solidez da
convicção; mas quando repousa apenas em sentimentos, quanto
pior ela se encontra em termos de argumentos, mais persuadi-
dos ficam os seus defensores de que o que sentem deve ter uma
fundamentação mais profunda, que os argumentos não atingem;
e enquanto o sentimento persiste, estará sempre trazendo novas
barreiras de argumentação para consertar qualquer brecha feita
ao velho. (p. 3)

A mensagem aqui não é de passar a mão na cabeça da esquerda ou


da direita, e sim de sugerir que tentemos entender melhor como se
geram os agrupamentos políticos, as identificações com determina-
das bandeiras, os eventuais fanatismos e as formas primárias como
dividimos a sociedade em bons e maus. O maniqueísmo é perigoso.
Quando vemos que os mesmos homens podem ser autores tanto de
atos abomináveis como de comportamentos heróicos, o que inte-
ressa mesmo é construir instituições que permitam que se valorize
as nossas dimensões mais positivas. Nas palavras de Haidt (2012, p.
92), criar “os contextos e sistemas sociais que permitam às pessoas
pensar e agir bem.”
Casos extremos ajudam a entender os dilemas, ao permitir de cer-
ta maneira ver a realidade com uma lupa. Trata-se, tema central do
pensamento de Hannah Arendt (Dowbor, 2013), de refletir sobre
a natureza do mal. O pano de fundo é o nazismo, e o julgamento
de um dos grandes mal-feitores da época, Adolf Eichmann. Hannah
acompanhou o julgamento para o jornal New Yorker, esperando ver

33
Ladislau Dowbor

o monstro, a besta assassina. O que viu, e só ela viu, foi a banali-


dade do mal. Viu um burocrata preocupado em cumprir as ordens,
para quem as ordens substituiam a reflexão, qualquer pensamento
que não fosse o de bem cumprir as ordens. Pensamento técnico,
descasado da ética, banalidade que tanto facilita a vida, a facilidade
de cumprir ordens. A análise do julgamento, publicada pelo New
Yorker, causou escândalo, em particular entre a comunidade judai-
ca, como se ela estivesse absolvendo o réu, desculpando a monstru-
osidade.
A banalidade do mal, no entanto, é central. O meu pai foi tor-
turado durante a II Guerra Mundial, no sul da França. Não era
judeu. Aliás, de tanto falar em judeus no Holocausto, tragédia cuja
dimensão trágica ninguém vai negar, esquece-se que esta guerra vi-
timou 60 milhões de pessoas, entre os quais 6 milhões de judeus. A
perseguição atingiu as esquerdas em geral, sindicalistas ou ativistas
de qualquer nacionalidade, além de ciganos, homossexuais e tudo
que cheirasse a algo diferente. O fato é que a questão da tortura,
da violência extrema contra outro ser humano, me marcou desde a
infância, sem saber que eu mesmo viria a sofrê-la. Eram monstros
os que torturaram o meu pai? Poderia até haver um torturador
particularmente pervertido, tirando prazer do sofrimento, mas no
geral, eram homens como os outros, colocados em condições de
violência generalizada, de banalização do sofrimento, dentro de
um processo que abriu espaço para o pior que há em muitos de
nós.
Por que é tão importante isto, e por que a mensagem do filme é
autêntica e importante? Porque a monstruosidade não está na pes-
soa, está no sistema. Há sistemas que banalizam o mal. O que im-
plica que as soluções realmente significativas, as que nos protegem
do totalitarismo, do direito de um grupo no poder dispor da vida e
do sofrimento dos outros, estão na construção de processos legais,
de instituições e de uma cultura democrática que nos permita viver
em paz. O perigo e o mal maior não estão na existência de doen-

34
O irracional em todos nós

tes mentais que gozam com o sofrimento de outros – por exemplo


quem queima um pobre que dorme na rua, gratuitamente, pela di-
versão – mas na violência sistemática que é exercida por pessoas
banais.
Entre os que me interrogaram no Departamento de Ordem Po-
lítica e Social (DOPS) de São Paulo, em 1970, encontrei um de-
legado que tinha estudado no Colégio Loyola de Belo Horizonte,
colégio que eu mesmo tinha frequentado. Colégio de orientação
jesuíta, onde se ensinava a nos amar uns aos outros. Encontrei um
homem normal, que me explicava que arrancando mais informa-
ções seria promovido, ele me explicou os graus de promoções possí-
veis na época. Aparentemente queria progredir na vida. Outro que
conheci, violento ex-jagunço do Nordeste, claramente considerava
a tortura como coisa banal, coisa com a qual seguramente convi-
veu nas fazendas desde a sua infância. Monstros? Praticaram coisas
monstruosas, mas o monstruoso mesmo é a naturalidade com a
qual a violência se pratica.
Um torturador na OBAN (Operação Bandeirante) me passou
uma grande pasta A-Z onde estavam cópias dos depoimentos dos
meus companheiros que tinham sido torturados antes. O pedido
foi simples: por não querer se dar a demasiado trabalho, pediu que
eu visse os depoimentos dos outros, e fizesse o meu, confirmando
as verdades, bobagens ou mentiras que estavam lá escritas. Explicou
que eu escrevendo um depoimento que repetia o que já sabiam,
deixaria satisfeitos os coronéis que ficavam lendo depoimentos no
andar de cima (os coronéis evitavam sujar as mãos), pois veriam que
tudo se confirmava, ainda que fossem histórias absurdas. Segundo
ele, se houvesse discrepâncias, teriam de chamar os presos que já
estavam no presídio Tiradentes, voltar a interrogá-los, até que tudo
batesse. O torturador de plantão queria economizar trabalho. Não
era alemão. Burocracia do sistema. Nos campos de concentração,
era a IBM que fazia a gestão da triagem e classificação dos presos,
na época com máquinas de cartões perfurados. No documentário A

35
Ladislau Dowbor

Corporação (Achbar & Abbott, 2003), a IBM esclarece que apenas


prestava assistência técnica.
O mal não está nos torturadores, e sim nos homens de mãos
limpas que geram um sistema que permite que homens banais fa-
çam coisas como a tortura, numa pirâmide que vai desde o homem
que suja as mãos com sangue até um Rumsfeld que dirige uma nota
ao exército americano no Iraque, exigindo que os interrogatórios
sejam harsher, ou seja, mais violentos. Hannah Arendt (Dowbor,
2013; Gmbh & Trotta, 2012) não estava desculpando torturado-
res, estava apontando a dimensão real do problema, muito mais
grave.
A compreensão da dimensão sistêmica das deformações não
tem nada a ver com passar a mão na cabeça dos criminosos que
aceitaram fazer ou ordenar monstruosidades. Hannah Arendt
(Dowbor, 2013) aprovou plenamente e declaradamente o poste-
rior enforcamento de Eichmann. Eu estou convencido de que os
que ordenaram, organizaram, administraram e praticaram a tortu-
ra devem ser julgados e condenados.
O segundo argumento poderoso que surge no filme sobre Han-
nah Arendt (Gmbh & Trotta, 2012) vem das reações histéricas
de judeus pelo fato de ela não considerar Eichmann um monstro.
Aqui, a coisa é tão grave quanto a primeira. Ela estava privando
as massas do imenso prazer compensador do ódio acumulado, da
imensa catarse de ver o culpado enforcado. As pessoas tinham, e
têm hoje, direito a este ódio. Não se trata aqui de deslegitimar a
reação ao sofrimento imposto. Mas o fato é que ao tirar do algoz a
característica de monstro, Hannah estava tirando o gosto do ódio,
perturbando a dimensão de equilíbrio e de contrapeso que o ódio
representa para quem sofreu. O sentimento é compreensível, mas
perigoso. Inclusive, amplamente utilizado na política, com os pio-
res resultados. O ódio, conforme os objetivos, representa um cam-
po fértil para quem quer manipulá-lo.

36
O irracional em todos nós

Quando exilado na Argélia, durante a ditadura militar, conheci


Ali Zamoum, um dos importantes combatentes pela independência
do país. Torturado, condenado à morte pelos franceses, foi salvo
pela independência. Amigos da segurança do novo regime localiza-
ram um torturador seu, numa fazenda do interior. Levaram Ali até
a fazenda, onde encontrou um idiota banal, apavorado num canto.
Que iria ele fazer? Torturar um torturador? Largou ele ali para ser
trancado e julgado. Decepção geral. Perguntei um dia ao Ali como
enfrentavam os distúrbios mentais das vítimas de tortura. Na opi-
nião dele, os que se equilibravam melhor eram os que, depois da
independência, continuaram a luta, já não contra os franceses, mas
pela reconstrução do país, pois a continuidade da luta não apagava,
mas dava sentido e razão ao que tinham sofrido.
No 1984 de Orwell (1949/2005), os funcionários eram regular-
mente reunidos para uma sessão de ódio coletivo. Aparecia na tela a
figura do homem a odiar, e todos se sentiam fisicamente transporta-
dos e transtornados pela figura do Goldstein. Catarse geral. E odiar
coletivamente pega. Seremos cegos se não vermos o uso hoje dos
mesmos procedimentos, em espetáculos midiáticos.
O texto de Hannah (Dowbor, 2013), apontando um mal pior,
que são os sistemas que geram atividades monstruosas a partir de
homens banais, simplesmente não foi entendido. Que homens cul-
tos e inteligentes não consigam entender o argumento é em si mui-
to significativo, e socialmente poderoso. Como diz Jonathan Haidt
(2012), para justificar atitudes irracionais, inventam-se argumentos
racionais ou racionalizadores. No caso, Hannah (Dowbor, 2013)
seria contra os judeus, teria traído o seu povo, tinha namorado um
professor que se tornou nazista. Os argumentos não faltaram, con-
quanto o ódio fosse preservado, e com o ódio o sentimento agradá-
vel da sua legitimidade.
Este ponto precisa ser reforçado. Em vez de detestar e combater
o sistema, o que exige uma compreensão racional, é emocional-

37
Ladislau Dowbor

mente muito mais satisfatório equilibrar a fragilização emocional


que resulta do sofrimento, concentrando toda a carga emocional
no ódio personalizado. E nas reações histéricas e na deformação
flagrante, por parte de gente inteligente, do que Hannah (Dowbor,
2013) escreveu, encontramos a busca do equilíbrio emocional. Não
mexam no nosso ódio. Os grandes grupos econômicos que abriram
caminho para Hitler, como a Krupp, ou empresas que fizeram a
automação da gestão dos campos de concentração, como a IBM,
agradecem. Alimentar o ódio rende mais do que entender e explici-
tar o sistema que gera as deformações.
O caso de Hannah (Dowbor, 2013) pode ser visto como um es-
pelho que nos obriga a ver o presente pelo prisma do passado. Os
americanos se sentem plenamente justificados em manter um amplo
sistema de tortura - sempre fora do território americano, pois geraria
certos incômodos jurídico. Israel criou, através do Mossad e cone-
xos, a organização do sistema mais sofisticado de tortura da atualida-
de, estão sendo pesquisados instrumentos eletrônicos de tortura que
superam em dor infligida tudo o que se inventou até agora. O NSA
criou um sistema de penetração em todos os computadores, men-
sagens pessoais e conteúdo de comunicações telefônicas do planeta,
a legalidade que se lixe. Jovens americanos no Iraque filmaram nos
seus celulares a tortura praticada em Abu Ghraib (Kennedy, 2007),
são jovens, moças e rapazes saudáveis, bem formados nas escolas, que
até acham divertido o que fazem. Nas entrevistas posteriores, a bem
da verdade, numerosos foram os jovens que denunciaram a barbárie,
ou até que se recusaram a praticá-la. Mas foram minoria3.
O terceiro argumento, e central na visão de Hannah (Dowbor,
2013), é a desumanização do objeto de violência. Torturar um se-
melhante choca os valores herdados ou aprendidos. Portanto, é es-

3 Melhor do que qualquer comentário é ver o filme “O Fantasma de Abu Ghraib”.


Kennedy, R. (Diretor). (2007). O Fantasma de Abu Ghraib [Filme]. Estados Unidos da
América: HBO Documentary Films.

38
O irracional em todos nós

sencial que não se trate mais de um semelhante, pessoa que pensa,


chora, ama, sofre. É um judeu, um comunista, ou ainda, no jargão
moderno da polícia, um “elemento”. Na visão da Ku Klux Klan, um
negro. No plano internacional de hoje, o terrorista. Nos programas
de televisão, um marginal. Até nos divertimos, vendo as persegui-
ções. São seres humanos? O essencial, é que deixe de ser um ser
humano, um indivíduo, uma pessoa, e se torne uma categoria. Sufo-
caram 111 presos nas celas? Ora, eram marginais.
Sebastian Haffner, estudante de Direito na Alemanha, em 1930,
escreveu na época um livro – Defying Hitler: a memoir4 (Kramer &
Sprenger, 1486/2004) – manuscrito abandonado, resgatado recen-
temente por seu filho que o publicou com este título. O livro mostra
como um estudante de família simples vai aderindo ao partido nazis-
ta, simplesmente por influência dos amigos, da mídia, do contexto,
repetindo com as massas as mensagens. Na resenha do livro, que
fiz em 2002, escrevi que o que deve assustar no totalitarismo, no
fanatismo ideológico, não é o torturador doentio, é como pessoas
normais são puxadas para dentro de uma dinâmica social patológica,
vendo-a como um caminho normal. Na Alemanha da época, 50%
dos médicos aderiram ao partido nazista. O próximo fanatismo po-
lítico não usará bigode nem bota, nem gritará Heil como neonazistas
ou fascistas. Usará terno, gravata e multimídia. E seguramente pro-
curará impor o totalitarismo, mas em nome da democracia, ou até
dos direitos humanos.
Estamos vendo alguma coisa?

Referências
Achbar, M. & Abbott, J.  (Diretores). (2003). The Corporation [Filme]. S.l.:
Imagem Filmes, 2003. 

4 Sobre Defying Hitler, confira resenha em Dowbor, L. (2003). Defying Hitler:


a memoir. Ladislau Dowbor: bons filmes. Recuperado de http://dowbor.org/2003/08/de-
fying-hitler-a-memoir.html/

39
Ladislau Dowbor

Brest, M. (Produtor). (1999). Scent of a Woman [Filme]. Estados Unidos da


América: Universal Pictures.

Dowbor, L. (2003). Defying Hitler: a memoir. Ladislau Dowbor: bons


filmes. Recuperado de http://dowbor.org/2003/08/defying-hitler-a-memoir.html/

Dowbor, L. (2013). Esquerda e Direita frente à Ética. Ladislau Dowbor: dicas de


leitura. Recuperado de http://dowbor.org/2013/06/jonathan-haidt-the-righteous-
mind-why-good-people-are-divided-by-politics-and-religion-a-mente-moralista-
por-que-boas-pessoas-sao-divididas-pela-politica-e-pela-religiao.html/

Dowbor, L. (2013). Hannah Arendt: além do filme. Ladislau Dowbor: bons


filmes. Recuperado de http://dowbor.org/2013/08/hannah-arendt-alem-do-filme-
agosto-2013-3p.html/

Durkheim, E. (2008). Da divisão do trabalho social (E. Brandão, Trad.). São Paulo:
Martins Fontes.

Freire, P. (2011). A educação na cidade. São Paulo: Cortez.

Gmbh, H. (Produtor), & Trotta, M. (Diretor). (2012). Hannah Arendt [Filme].


Alemanha: Esfera Cultural.

Haidt, J. (2012). The righteous mind: why good people are divided by politics and
religion. New York: Pantheon Books.

Kennedy, R. (Diretor). (2007). O Fantasma de Abu Ghraib [Filme]. Estados


Unidos da América: HBO Documentary Films.

Kramer, H. & Sprenger, J. (2004). O martelo das feiticeiras (P. Fróes, Tard.). Rio
de Janeiro: Rosa dos Tempos. (Original publicado em 1486)

Mill, J. S. (1997). The Subjection of Women. New York: Dover Publications.


(Original publicado em 1861)

Myrdal, G. (1944). An American dilemma: the negro problem and modern democracy.
New York: Harper y Brothers Publishers.

Orwell, G. (2005). 1984 (29ª Ed). São Paulo: Companhia Editora Nacional.
(Original publicado em 1949)

Scorsese, M. (Diretor). (2013). O lobo de Wall Street [Filme]. Estados Unidos da


América: Paris Filmes.

40
O irracional em todos nós

Stiglitz, J. (2013). Joseph E. Stiglitz’s address to panel on Defending Human Rights.


Global Policy Forum. Recuperado de https://www.globalpolicy.org/component/
content/article/218-injustice-and-inequality/52556-joseph-e-stiglitzs-address-to-
panel-on-defending-human-rights.html

41
PONTOS SOBRE O
AUTORITARISMO
CONTEMPORÂNEO

José Leon Crochick

O intuito deste texto é apresentar questões relacionadas às formas


do autoritarismo contemporâneo e suas marcas. Como considera
que é um fenômeno objetivo expresso também por indivíduos, re-
porta a condições sociais e políticas e seus possíveis efeitos sobre a
constituição psíquica.
As divisões sociais atuais existentes, e percebidas em vários locais
do mundo - às vezes sob a forma de guerra civil, outras pela tentati-
va dos refugiados serem aceitos em outras pátrias, outras pelo confli-
to entre os interesses dos capitalistas e os dos trabalhadores, sendo os
desempregados considerados entre estes - remetem a posicionamen-
tos bem delimitados, fixos, mas com quase nenhuma possibilidade
de comunicação entre as partes divididas. Os conflitos próprios à
Guerra Fria parecem ter ressuscitado sob novas formas; mas a tensão

42
Pontos sobre o autoritarismo contemporâneo

existente e o temor pela destruição parecem retornar. A ameaça de


destruição atômica prossegue, a coexistência entre a riqueza abun-
dante e a pobreza excessiva também.
Se, por um lado, prega-se e defende-se a liberdade de manifesta-
ção de opiniões, por outro lado, elas são taxadas, tão logo são for-
muladas; assim, é difícil supor que sejam efetivamente livres. Uma
opinião não expressa conhecimento, a não ser parcial, sobre deter-
minado tema; caberia, assim, discuti-la, aprofundá-la, confrontá-la
com outras e, principalmente, com seu objeto para que se torne co-
nhecimento e possa guiar as ações. O impedimento da confrontação
de opiniões em relação ao tema que tratam impede a verdade. Se o
pensamento deve sua existência a condições objetivas, então é ob-
jetivo, ainda que não se reduza ou se restrinja àquelas condições.
Neste sentido, as opiniões trazem algo do objeto e são objetivas, e
não meras formulações sobre o objeto, o que torna imprescindível
entendê-las a partir da objetividade social.
Os embates atuais, no Brasil, sobre a Previdência Social, reforma
trabalhista, reforma política, reforma fiscal, não podem ser reduzi-
dos aos cálculos da lógica financeira; devem envolver a discussão
entre interesses distintos que estão em questão, e que só podem ser
resolvidos quando superadas as divergências de interesses. E isso só
é possível por meio de transformações das condições objetivas que
contrapõem classes entre si. Não é possível, assim, a não ser de for-
ma ideológica, que certamente expressa autoritarismo, pensar essas
reformas do ponto de vista lógico.
No Brasil de nossos dias, mostra-se que a estrutura de contribui-
ção e distribuição de benefícios está ultrapassada e que, em breve,
não dará conta do que se propõe, o que pode ser verdade ou não. Ao
mesmo tempo, análises indicam que há muita sonegação da contri-
buição à Previdência, assim como desvio e má administração dos re-
cursos arrecadados. Com essas análises, é difícil aceitar aquela lógica.
A difícil aceitação dessa lógica também se dá porque ela se estabelece
como se fosse abarcar todos os cidadãos, quando, em verdade, não

43
José Leon Crochick

atinge os que podem viver do lucro e de renda financeira. É uma


lógica que, por meio de cálculos, serve à ideologia que, conforme
Marx e Engels (1846/1987), tende a supor que os interesses dos
que possuem maior poder social – econômico e político – são os de
todos. A negação dos interesses sociais diversos e sua subsunção aos
cálculos aritméticos convertem-se em ideologia, sob a forma de sua
aparente neutralidade.
A neutralidade suposta da ciência, da lógica, da matemática é
parte do autoritarismo contemporâneo. Segundo Horkheimer e
Adorno (1947/1985), a técnica é tão democrática quanto a socie-
dade na qual se desenvolve. Como nossa sociedade, na melhor das
hipóteses, só é democrática em sua forma - o que também nega as
divergências sociais existentes que impedem a sua plena existência, e
a tornam também parte da ideologia - aquela suposta neutralidade,
que pela lógica formal representa os interesses do capital, torna-se
autoritária.
Comumente o autoritarismo é associado ao dogmatismo, e, de
fato, deixar-se guiar por dogmas ou impô-los impede o pensamento,
a decisão e, consequentemente, a autonomia. O aparente oposto,
expresso no relativismo, no ceticismo, não é menos avesso à autono-
mia de pensar, pois, se não pretende ser a única forma de pensar, não
permite a comunicação entre diversas concepções, tratando-as como
se não houvesse distinções de consequências políticas entre elas.
Neste sentido, o relativismo é tão autoritário quanto o dogmatismo,
e mais perigoso do que ele, pois, é falsa sua atribuição democrática
de que cada um decide conforme quiser.
A expressão ‘fé racional’, criada por Kant (1786/2004), propõe
um método para o conhecimento que tenta evitar o autoritarismo
nas duas formas descritas acima – o dogmatismo e o relativismo.
Devemos ter suposições – a ‘fé’ – de que algo existe e se constitui de
qual e tal forma, mas é a análise pelas categorias da razão que permi-
te verificar essa existência e constituição. O sujeito do conhecimento
não é negado e nem o objeto que é racionalmente examinado.

44
Pontos sobre o autoritarismo contemporâneo

A ciência, mesmo em sua versão positivista, permitiu o exame


indutivo, além do dedutivo, contido na expressão kantiana; a ‘fé’ é
substituída pela hipótese. De todo modo, a relação entre sujeito e
objeto se mantém. Quando ela é rompida, de acordo com Horkhei-
mer e Adorno (1947/1985), cada metade corresponde a uma falsa
percepção do objeto. O conhecimento, segundo esses autores, cons-
titui-se da projeção sobre o objeto do que o sujeito supõe que ele
seja e da experiência que corrige essa percepção. Se não há experiên-
cia, o objeto é subsumido às categorias e às necessidades – psíquicas
e de autoconservação - do sujeito; passa a ser o que o sujeito neces-
sita que ele seja, e não há conhecimento. Se não há projeção, o su-
jeito se anula e reproduz a aparência do que seus órgãos de sentido
ou instrumentos de mensuração detectam do objeto. Como estes
últimos, assim como o método científico, são construções históricas
dos sujeitos, o não reconhecimento dessa autoria conduz ao engano
de que o que é percebido, mensurado, independe do método, isto
é, do sujeito.
A consequência dessa ruptura não é somente o falso conheci-
mento, mas a formação danificada dos indivíduos. Essa formação
só pode ocorrer com a experiência, e esta não é plena se não houver
a participação do sujeito com suas projeções. A ausência de proje-
ções sobre o objeto implica a anulação das experiências passadas e,
assim, o acúmulo e a perenidade do que foi aprendido por meio
de diversas experiências. Cada nova experiência não parte de um
receptáculo vazio, que elimina todas as anteriores, mas de um ‘eu’
que se constitui por meio delas. Essa nova experiência permite que
as anteriores sejam modificadas e/ou confirmadas. Se a nova expe-
riência não permite modificar as anteriores, mesmo com seu for-
talecimento por meio de sua confirmação, não houve experiência,
mas, como assinalado antes, redução do objeto da experiência às
necessidades do sujeito. Se as experiências anteriores são negadas, a
possibilidade de expressar o que é o objeto e suas determinações é
empobrecida.

45
José Leon Crochick

O autoritarismo atual se expressa por uma forma de pensamento e


entendimento que são exteriores aos objetos e às pessoas a que tenta
se impor. Se a dominação social não tem de ser exercida por meio das
forças armadas, estas ficam de prontidão para agir quando os inte-
resses dos mais poderosos estiverem em risco e servem como ameaça
permanente para se realizar quando a ideologia falha. A ideologia,
nos tempos do capitalismo concorrencial, segundo Horkheimer e
Adorno (1956/1978), era simultaneamente falsa e verdadeira, mas
dizia respeito a conteúdos e a seu confronto com a possibilidade de
sua realização na sociedade à qual se propunha. Era verdadeira por
defender interesses universais, tais como a igualdade, a liberdade, a
justiça, a felicidade; e era falsa por não entender que as condições
objetivas próprias ao capitalismo não somente impedem a realiza-
ção desses interesses, como desenvolvem seu contrário: desigualdade,
opressão, injustiça, infelicidade. A ideologia contemporânea, confor-
me esses autores, é mentira manifesta; o confronto entre as ideias e a
realidade mostra o anacronismo, o conservadorismo do que propõe,
de forma que uma consequência do autoritarismo atual é o impedi-
mento do progresso social que, atrelado ao progresso técnico, permi-
tiria uma vida digna e plena, no que for possível, para todos.
O autoritarismo atual, conforme mencionado, é dado pela exte-
riorização da relação entre sujeito e objeto, entre conceito e objeto,
entre pensamento e o objeto que suscita esse pensamento. Dessa ma-
neira, a forma ocupa o lugar do que é pensado, independentemente
do objeto que é pensado; as contradições reais do objeto são atri-
buídas a falhas do pensamento formal e, assim, são desconhecidas
e desconsideradas. A formação atual, marcada pela exterioridade do
pensamento, da lógica, do método científico, em relação ao mundo,
impede de se relacionar o que foi separado: forma e conteúdo, e
a primeira se torna o conteúdo mais importante para a formação.
A percepção e o pensamento são doutrinados a serem repetitivos
e a não perceberem conflitos e contradições na realidade; o mun-
do percebido é o que pode ser percebido, apreendido, pelo método

46
Pontos sobre o autoritarismo contemporâneo

científico e pensado formalmente; não se pergunta mais pelo que


o determina e por suas tendências de desenvolvimento, como ne-
gação determinada, tal como Hegel (1807/1992) pôde propor. O
resultado de tal formação é o estreitamento da consciência quanto
ao tempo e ao espaço, categorias fundamentais para a constituição
do indivíduo.
O tempo e o espaço, categorias da estética delimitadas por Kant
(1781/1980), são produtos do entendimento humano, não são en-
contradas no mundo fenomenal; no entanto, são elas, em conjunto
com as categorias do entendimento, que permitem, segundo este
pensador, a experiência, o conhecimento. Kant define a experiência
pelo contato entre a forma, que representa o sujeito do conhecimen-
to, e o objeto a ser pensado; o que é o objeto em si mesmo não se
pode apreender, não porque não exista, mas porque não temos con-
dições para conhecer sua essência; dessa forma, o conhecimento é
possível por meio dessa experiência, e não pela negação do objeto ou
pela sobreposição da forma sobre o conteúdo. Em sua análise sobre
a ‘sociabilidade insociável’, Kant (1874/ 2004) indica o desenvol-
vimento histórico das relações humanas, defendendo a criação das
regras a se tornarem, com o tempo, cada vez mais universais. Assim,
pode considerar o tempo do objeto para além da categoria estética
do tempo: como história. De todo modo, a experiência ocorre pela
diferença entre o que é posto pelo sujeito e pelo objeto; com essa
distinção, o objeto não é reduzido às categorias do sujeito, e nem
este se anula em suas categorias.
No campo da razão prática, da moral, Kant (1785/1980) pode
delimitar o conceito de imperativo categórico, modo racional de so-
pesar a ação humana em conformidade com consequências para o
todo, caso se tornasse universal; dessa forma, nenhum conteúdo é
imposto como racional em si mesmo, mas sempre examinado pela
razão individual. Neste sentido, o imperativo categórico é demo-
crático, e deixa de sê-lo quando os conteúdos não são considerados
pela mesma razão como históricos. Se todos mentissem, ninguém

47
José Leon Crochick

acreditaria em ninguém, e a confiança é fundamental para a manu-


tenção da sociedade, para um projeto coletivo, humano. O mesmo
vale para o cumprimento de promessas, para o roubo, porém, esses
atos podem ter significados distintos de acordo com o momento his-
tórico: mentir, não cumprir promessas no fascismo, pode salvar vi-
das, e assim ser moral; cumprir ordens no fascismo pode ser imoral;
roubar quando se tem fome não é imoral. Mas, ao menos, ao tempo
de Kant, havia algo específico a ser examinado pela razão; hoje, só
restam os códigos que indicam o que se deve fazer, com a aparente
marca de livre escolha.
Para ilustrar: a atual exigência de que os projetos de pesquisa
científica obtenham a aprovação de comitês de Ética mostra a
contradição: a autonomia que deveria ser marca de todo pesquisador
é posta sob suspeita, e o desenvolvimento da pesquisa passa a ser
externamente monitorado, sobrepondo-se à ação do pesquisador
que deveria ser autônomo para realizar o que julgue adequado para
cumprir os objetivos científicos. O pensamento, a percepção e a
conduta moral não são somente monitorados, mas determinados
externamente. A formação atual é propícia a essa determinação ex-
terna, e não, como pretendia o Iluminismo, ao desenvolvimento de
discernimento individual. A ideologia não precisa mais exercer o
papel de convencimento ou de justificativa de dominação, a forma-
ção já limita a consciência, dificultando a percepção e o pensamen-
to; o autoritarismo já se apresenta na formação pela exterioridade
do mundo.
Tal exterioridade só é possível por ser a educação voltada à alie-
nação e não à consciência e à experiência que constitui essa cons-
ciência, possibilitando a diferenciação individual. A alienação se
refere ao desconhecimento que a sociedade é produto humano, ao
impedimento de nela se reconhecer. Freud (1930/2011) e Adorno
(1955/2015) argumentaram que, entre os objetivos principais da
civilização, a felicidade individual não encontra lugar, e que o in-
divíduo não somente não se reconhece na civilização no que tem

48
Pontos sobre o autoritarismo contemporâneo

de possibilidades de proporcionar uma vida livre e segura, como


é hostil a ela. Tal paradoxo se explica pelos objetivos distintos que
civilização e indivíduo têm: a primeira intenta se reproduzir; o úl-
timo, a felicidade.
Conforme Adorno (1967/1997) argumenta, citando Goethe e
Hegel, a formação dever-se-ia se dar pela experiência, pela estranhe-
za que o outro gera. O ‘estranho’, que conforme Freud (1919/1996),
é demasiado familiar, possibilita a identificação com o que é desco-
nhecido, e que, pela familiaridade do que se nega para viver em civi-
lização, ainda mais quando essa é repressiva e opressiva, possibilita a
experiência que sempre forma, e não simplesmente fortalece o exis-
tente. Pelo estranhamento, ao contrário da alienação, o indivíduo
pode se (re)apropriar do que teve de abandonar – sua própria huma-
nidade; abandono esse devido ao mandamento de o eu individual
ter de ser único a partir do nada, ao passo que tal unicidade só pode
ocorrer por meio de identificações. Cabe dizer, não identificação
cega a movimentos e a ideários coletivos, mas com pessoas, que claro
são formadas pela coletividade, mas que por isso mesmo deveriam
ser afirmadas, e não negadas, em favor de um pretenso interesse co-
letivo que, no mais das vezes, é o mesmo que se expressa por meio
da lógica que se coaduna ao capital, e não aos interesses de uma
humanidade pacificada.
Por mais que o conhecimento científico seja fundamental para a
liberdade e felicidade individuais e para a existência de uma socieda-
de verdadeiramente racional, a experiência, por meio da estranheza,
é mais próxima do fazer artístico ou da ciência quando a imagina-
ção não foi tolhida pelo método científico e não busca reafirmar
o conhecido. Se a ciência se caracteriza pela distância do objeto, a
arte tem na proximidade desse objeto sua possibilidade de ser. Uma
obra de arte leva ao estranhamento próprio à durabilidade que o
momento contemplativo contém, e enfrenta, dessa forma, a ruptura
ocasionada pela morte. Indica algo que insiste em se expressar; e
mesmo quando sua magia, uma vez que se aparenta com o fetiche da

49
José Leon Crochick

magia, se nomeia, mantém o encanto. Essa estranheza é a ‘aura’ que


Benjamin (1939/1989) delimita terem os objetos únicos; é o que
permite aos objetos ‘devolverem o olhar’, tal como ocorre nos so-
nhos, nos quais os objetos contemplam o sonhador. As pessoas, tais
como os objetos auráticos, deveriam ter unicidade e a possibilidade
de retribuir o olhar. Dessa forma, o objetivo de Baudelaire, segundo
Benjamin (1939/1989), de tornar eterno o efêmero, seria alcançado.
O ensaio de Poe (1845/2000) – Filosofia da Composição – demons-
tra como a exposição das técnicas utilizadas para a feitura do poema
‘O corvo’ não retira o encanto desse poema; assim, como uma flor
perfumada sempre nos contemplará com seu odor, a poesia de Poe
nos conduz à bela melancolia: saudades do que a vida poderia ser, se
não fosse interrompida com a perda de objetos, ideais, encanto. A
estranheza se remete ao que se perdeu e a memória não conservou;
a estranheza traz novamente o encanto do que se teve de abandonar
pela alienação.
A formação, a educação, pela e para a estranheza é feita pela crítica
à ideologia, que, nos dias que correm, traz como início a dúvida se a
vida, a sociedade, os indivíduos deveriam ser assim. E dada a única
resposta existente, procurar pelas outras tendências e possibilidades.
O autoritarismo se expressa pelo pensamento aderido ao existente e
incapaz de transcendê-lo pela crítica imanente.
O autoritarismo é, em geral, associado à hierarquia social; seus re-
presentantes são tidos como indivíduos que apreciam mandar a partir
das certezas que herdam dessa hierarquia. Se essa hierarquia social se
mantém atualmente, como desde a origem da civilização ocidental,
a partir da separação entre comando e trabalho, possibilitado pelo
surgimento da propriedade privada, conforme Horkheimer e Adorno
(1947/1985), o indivíduo ‘convicto’, preso a dogmas, é substituído
pelo que segue as convicções dos mais poderosos, sejam esses quem
forem, seja o que for que defendam. O autoritário contemporâneo
admira a força pela força, independentemente ao que essa força se
dirige. Se, em tempos do nazismo, a força da natureza, da raça, do

50
Pontos sobre o autoritarismo contemporâneo

sacrifício dos heróis era valorizada em detrimento da subjetividade,


do pensamento, quase que como uma resposta à suposta vantagem
do trabalho intelectual sobre o braçal, com a substituição cada vez
mais ampla do trabalho braçal pelas máquinas, este serve de mode-
lo para o trabalho intelectual, que se apresenta como produção em
série, sempre repetindo a mesma fórmula, independentemente do
objeto, tal como foi desenvolvido antes neste texto.
O trabalho intelectual atualmente é valorizado; os denominados
‘nerds’ são associados à possibilidade de obtenção da riqueza pela
criação de aparatos técnicos, sobretudo associados à inteligência ar-
tificial. Não é, no entanto, o mesmo trabalho intelectual de outrora,
que expressava a objetividade por meio da crítica e estranhamento
do que foi estabelecido, mas a sua redução às técnicas de pensar, o
que fortalece sua exterioridade em relação ao objeto. Se o pensamen-
to só ocorre na relação com o objeto, ele não é independente dele,
mas se constitui por ele.
Poder-se-ia dizer que a relação entre dois objetos, ou partes de um
mesmo objeto, é dialética, mas isso não expressa a relação mesma
entre esses objetos; essa relação se dá na expressão das contradições
e possíveis superações existentes. Assim, se a relação entre indivíduo
e sociedade e a relação entre sujeito e objeto são dialéticas, não são a
mesma e são expressões de relações próprias e não externas aos obje-
tos relacionados. Por ser lógica do objeto, a dialética, o próprio pen-
samento, o expressam; como lógica do sujeito, o pensamento formal
submete o objeto às suas categorias. A dificuldade da coexistência de
ambas as formas de pensamento – a lógica do sujeito e a lógica do
objeto – é marca do autoritarismo contemporâneo. Deve-se ressaltar
que a lógica do sujeito foi gerada a partir de necessidades objetivas, e
assim não é meramente subjetiva; e a lógica do objeto não prescinde
do sujeito, que somente como sujeito pode expressá-la.
Somente uma sociedade racional pode proteger o máximo pos-
sível a vida de seus membros e permitir que sejam felizes e livres,
mas tal razão não deveria ser externa a eles. A atual sociedade pos-

51
José Leon Crochick

sui racionalidade, mas é uma racionalidade adequada à técnica, é a


que é importante para ajustar meios a fins, nos termos de Habermas
(1968/1983): um agir racional com respeito a fins. Quanto mais a
sociedade avança nesses termos, mais é exercido o controle técnico
sobre a natureza humana, de forma a eliminar qualquer dúvida ou
ação que não seja prevista.
Retomando o exemplo inicial deste texto, no Brasil de hoje, não
deve haver dúvidas sobre a necessidade de que as reformas da Pre-
vidência, trabalhista, política, tributária devam ocorrer nos rumos
indicados; duvidar disso não é compreendido como possibilidade de
diálogo, mas como oposição ao poder estabelecido e/ou como igno-
rância. Diferentemente da época do Iluminismo, que apostava em
uma sociedade racional com indivíduos racionais, a atual traz uma
racionalidade que suscita a irracionalidade individual: o sacrifício
do pensamento que, por sua vez, leva à irritação com o pensamento
que duvida.
A relativização e a neutralização de todo conteúdo, deixado apa-
rentemente ‘ao gosto do freguês’, por possibilitarem uma formação
voltada à obediência de regras que podem prescindir de críticas - a
não ser as que permitem aperfeiçoá-las - permitem tornar equi-
valente a razão técnica e o pensamento mágico - lembrando que a
magia também se caracterizava por técnicas presentes nos rituais. Se
a subjetividade não pode se desenvolver por meio da experiência,
propiciada por uma razão que se perde em objeto distinto de si, para
compreender o incompreensível, apela-se para diversas possibilida-
des de resolver a vida por meios próprios à superstição. E não é casual
que a astrologia, o horóscopo, a Yoga tentam se valer de fórmulas
científicas ou filosóficas para aparentar racionalidade. O desespero
contido em tais tentativas indica que a racionalidade técnica não é
suficiente para a adaptação à vida contemporânea. Esse desespero
que mostra essa insuficiência não basta como ruptura com a repeti-
ção maquinal do pensamento lógico, pois pela superstição produz-se
algo que é tão ritualístico quanto este pensamento, mas pode levar à

52
Pontos sobre o autoritarismo contemporâneo

estranheza de si mesmo e ao que se opõe, como falsa oposição, posto


que na base do pensamento científico, técnico, repetitivo, também
se encontra a fé de que pode-se prescindir do pensamento que busca
expressar os objetos para se viver a vida, apesar das injustiças existen-
tes que cada vez mais tornam a vida prenhe de infelicidade.

Referências
Adorno, T. W. (1997). Educación para qué? In T. W. Adorno, Educación para la
emancipación (J. Muñoz, Trad., pp. 93-104). Madrid: Ediciones Morata. (Original
publicado em 1967)

Adorno, T. W. (2015). Sobre a relação entre sociologia e psicologia. In Ensaios sobre


psicologia social e psicanálise (V. Freitas, Trad., pp. 71-135). São Paulo: UNESP.
(Original publicado em 1955, com pós-escrito de 1966)

Benjamin, W. (1989). Sobre alguns temas em Baudelaire. In Charles Baudelaire:


um lírico no auge do capitalismo (J. M. Barbosa & H. A. Baptista, Trad., pp. 103-
149). São Paulo: Brasiliense. (Original publicado em 1939)

Freud, S. (1996). Lo siniestro (L. L.-B. Torres, Trad., Obras completas Tomo III,
pp. 2483-2505). Madrid: Editorial Biblioteca Nueva. (Original publicado em
1919)

Freud, S. (2011). O mal-estar na civilização (P. C. Souza, Trad.). São Paulo:


Penguin-Companhia das Letras. (Original publicado em 1930)

Habermas, J. (1983). Técnica e ciência enquanto ideologia. In B. Horkheimer &


A. Habermas, Textos escolhidos (Z. Loparic & A. M. A. Loparic, Trad., pp. 313-
343). São Paulo: Abril Cultural. (Original publicado em 1968)

Hegel, G. W. F. (1992). Fenomenologia do espírito (P. Menezes & K. H. Efken,


Trads.). Petrópolis, RJ: Vozes. (Original publicado em 1807)

Horkheimer, M. & Adorno, T. W. (1978). Temas básicos da sociologia (A. Cabral,


Trad.). São Paulo: Cultrix. (Original publicado em 1956)

Horkheimer, M. & Adorno, T. W. (1985). A dialética do esclarecimento (G.


Almeida, Trad.). Rio de Janeiro: Zahar. (Original publicado em 1947)

53
José Leon Crochick

Kant, I. (1980). Crítica da razão pura (V. Rohden & U. B. Moosburger, Trads.).
São Paulo: Abril Cultural. (Original publicado em 1781)

Kant, I. (1980). Fundamentação da metafísica dos costumes (P. Quintela, Trad.,


Coleção Os Pensadores). São Paulo: Abril Cultural. (Original publicado em 1785)

Kant, I. (2004). Que significa orientar-se no pensamento? In A paz perpétua e


outros opúsculos (A. Morão, Trad.). Lisboa: Edições 70. (Original publicado em
1786)

Kant, I. (2004). Ideia de uma história universal com um propósito cosmopolita. In


A paz perpétua e outros opúsculos (A. Morão, Trad.). Lisboa: Edições 70. (Original
publicado em 1784)

Marx, K. & Engels, F. (1987). A ideologia alemã (J. C. Bruni & M. A Nogueira,
Trads.). São Paulo: Hucitec. (Original publicado em 1846)

Poe, E. (2000). Filosofia da composição (D. Raphael, Trad.). São Paulo: Globo.
(Original publicado em 1845)

54
NOTAS SOBRE O
ENFRENTAMENTO DO
AUTORITARISMO DENTRO E
FORA DA PSICOLOGIA

Antonio Euzébios Filho

O texto é um convite para uma breve reflexão sobre o autori-


tarismo presente dentro e fora da Psicologia, pensando também
no enfrentamento deste fenômeno na sociedade e no campo da
ciência e profissão psicológicas. Considerando o curto espaço para
um tema tão complexo, trataremos de debates sucintos sobre te-
mas distintos, mas correlacionados. Primeiramente, procuramos
caracterizar o que entendemos por autoritarismo. Num segundo
momento, tentamos elucidar algumas questões que indicam ele-
mentos de autoritarismo dentro e fora da Psicologia. Por último,
esboçamos estratégias de enfrentamento do autoritarismo no cam-
po acadêmico e social, sob um olhar das psicologias críticas.

55
Antonio Euzébios Filho

Como introdução, procuramos elucidar algumas características


comuns às psicologias críticas (compreendidas no plural). Em pri-
meiro lugar, destacamos que a característica fundamental das psico-
logias críticas parte de um posicionamento por um dos “lados” da
nossa sociedade (Martín-Baró, 1983, 1996), descartando a fantasia
da neutralidade científica. Assim, partem do pressuposto de uma
sociedade dividida em classes sociais, que cumprem funções distintas
no processo de produção e reprodução do capital, ao mesmo tempo
em que tomam “para si” a perspectiva da classe dominada. Nesta
direção, destacamos a psicologia classista proposta por Martín-Baró
(1983, 1996), que explicita uma posição ético-política radical em
defesa de um projeto de sociedade oposto ao capitalismo.
Apesar de divergências teóricas que possam existir, as psicologias
críticas também se caracterizam pela ruptura com o psicologismo
e por estabelecer um diálogo constitutivo com outras ciências, es-
pecialmente, as ciências sociais críticas (aquelas que, igualmente,
não endossam o pragmatismo, adaptacionismo e segregacionismo).
Isso as afasta do individualismo metodológico, uma característica
marcante da psicologia dominante (Dazinger, 2002). Nesta direção,
consideramos que a Psicologia não deve perder a especificidade, mas
compreender que esta especificidade vai além da especialização de
uma ‘ciência do indivíduo’ (e da prática clínica tradicional, baseado
no modelo médico individualista).
Para Martín-Baró (1983, 1996), Parker (2007) e Yamamoto
(2007), a práxis psicológica crítica deve se caracterizar pelas con-
tribuições que elas podem dar aos processos de mudança social. As
psicologias críticas encontram-se num campo semelhante da crítica
social e, assim, unem-se numa prática de enfrentamento das desi-
gualdades sociais, considerando que este enfrentamento exige uma
superação da psicologia hegemônica (Yamamoto, 2007).
Se, como afirma Martín-Baró (1983, 1996), o projeto de socie-
dade determina o projeto de psicologia, as psicologias críticas pres-
supõem, dentre outros aspectos, o enfrentamento do autoritarismo

56
Notas sobre o enfrentamento do autoritarismo dentro e fora da Psicologia

na sociedade capitalista, mas também no interior da ciência e da


profissão.

Algumas linhas sobre o autoritarismo

O autoritarismo pode ser compreendido por diferentes óticas,


períodos históricos e concepções. A Psicologia Social se debruçou
sobre esta temática sob várias perspectivas teóricas. Historicamen-
te, foi dado destaque para questões relacionadas ao fascismo, por
exemplo, com Reich (1933/2001). Martín-Baró (1998), em outro
contexto histórico, observou os contornos psicossociais de regimes
ditatoriais presentes na América Latina. E assim temos outros tantos
exemplos...
Como não teremos tempo de nos aprofundar nos estudos que tra-
tam deste conceito no campo da Psicologia, e em sua complexidade,
no campo das Ciências Sociais, limitamo-nos a tratar do autorita-
rismo como materialização de uma prática essencialmente política,
geralmente empreendida a partir do Estado capitalista.
Assim, do ponto de vista da concepção marxista de sociedade, o
autoritarismo (e seus efeitos prescritos na violência, opressão e explo-
ração) pode ser considerado como consequência “natural” do modo
de sociabilidade capitalista (Urban, 2004). Ainda assim, o capitalis-
mo comporta vários tipos de autoritarismo. Temos o tipo do capi-
talismo clássico: aquele que de forma alguma prescinde do controle
policial e militar, mas quer evitar confrontos físicos para expandir
sua dominação. É o liberalismo clássico que encontra possibilidades
de desenvolvimento em momentos de “calmaria” ideológica, isto é,
de controle mais ou menos seguro das ideias da classe dominante.
Mas todo tipo de capitalismo é autoritário, militarizado e excludente
e faz uso do Estado para isso. Neste sentido Lênin (1918) afirmou
que o Estado, em última instância, caracteriza-se pela política ar-
mada. Ainda assim, o uso de classe do Estado aceita variações, por
exemplo, aceitando ou não tendências de nacionalização do capital

57
Antonio Euzébios Filho

privado (Urban, 2004), ou mesmo combinando liberalismo com o


velho fascismo.
O fascismo também é uma produção do capitalismo. Porém, sa-
bemos que ele é caracterizado como um fenômeno de massas, que
combina o liberalismo econômico com um conservadorismo social,
culminando com uma carga a mais de ideologia nacionalista e xeno-
fóbica (Urban, 2004). De todo modo, consideramos que há elemen-
tos de fascismo na conjuntura atual, no Brasil e no mundo, e isto
pode ser observado tanto nos resultados eleitorais quanto na atuação
política de determinados segmentos dentro e fora do Estado (Urban,
2004).
Fato que, no que vem sendo denominado de neoliberalismo, po-
demos encontrar uma soma de diferentes elementos do autoritaris-
mo: a combinação do uso da força policial com a ideologia domi-
nante. Vemos, assim, traços de totalitarismo econômico liberal, que
intensifica as formas de exploração e desigualdade social, podendo
combinar elementos fascistas e nacionalistas, mesmo sem questionar
o capital estrangeiro (desde que ele seja ocidental, como enfatizou
Urban, 2004).
Para que o neoliberalismo fosse posto em prática, a burguesia teve
de encontrar - após a queda do muro de Berlim e do êxito das expe-
riências neoliberais - um terreno fértil para disseminação ideológi-
ca do seu modo de vida. Os processos de fetichização presentes no
individualismo, o consumismo, a simplificação do conhecimento e
banalização das expressões culturais somaram-se à intensidade das
formas de exploração e extração de mais valia. Isso ocorre ao mes-
mo tempo em que se expandiram as campanhas do poder público e
privado, em parceria, que tratam de “sustentabilidade” e “cidadania”
(César, 2004), quando observamos uma progressiva destruição da
natureza e um aumento da distância entre ricos e pobres (Shorrocks,
Davies, & Lluberas, 2014). Deste modo, o capitalismo destrutivo,
como previa Meszáros (1996), tomou conta, definitivamente, de
todo o globo com mais ou menos intensidade.

58
Notas sobre o enfrentamento do autoritarismo dentro e fora da Psicologia

Do autoritarismo dentro e fora da psicologia


Parafraseando Marx, assim como a ideologia dominante é a ideo-
logia da classe dominante, o projeto de sociedade dominante é res-
ponsável por determinar as estruturas teóricas, a prática profissional
- e mais do isso, os compromissos políticos - da psicologia dominan-
te. Há, portanto, de se considerar como pressuposto uma relação
intrínseca entre ciência e ideologia.
Com efeito, a sociedade conservadora e autoritária criou uma psi-
cologia igualmente conservadora e permeada pelo autoritarismo. E
o desafio da psicologia crítica é entender, em primeiro lugar, a na-
tureza desta sociedade para pensar em superar a psicologia da classe
dominante.
A psicologia dominante é caracterizada por Martín-Baró (1983)
pelos princípios ético-políticos (ou pela falta deles). Ao reconheci-
do fato de que Wundt tenha moldado caminhos para uma ciên-
cia psicológica, Martín-Baró (1983) descreve a transição do eixo da
psicologia da Europa para os EUA como um dos principais fatos
históricos que remetem ao fortalecimento de uma ciência e profis-
são hegemônicas. Para o autor, este momento foi caracterizado pela
ascensão do positivismo, que passou a hegemonizar não apenas a
Psicologia, mas as Ciências Sociais.
A predominância do positivismo foi caracterizada por uma con-
versão da filosofia especulativa para um pragmatismo acrítico. Com
o positivismo também notamos, assim como Lukács (1967), uma
conversão de um humanismo para o individualismo no centro das
atenções da produção científica. A busca pela verdade em troca da
busca pela utilidade, a ausência de problemas substancialmente no-
vos, já que os temas estudados passaram a se limitar às necessidades
práticas do capital. Isto culmina em uma “mesquinha especialização”
e um “esquecimento” da ontologia (Lukács, 1967, p. 64).
No campo da Psicologia, segundo Vigotski (1926/1999, p. 58), o
positivismo transpôs o modelo das ciências naturais para a psicologia

59
Antonio Euzébios Filho

e, com isso, revela o autor: “apaga-se radicalmente toda a diferen-


ça entre o comportamento animal e do homem. A biologia traga a
sociologia e a fisiologia o faz com a psicologia.” Mas é importante
ressaltar que a psicologia dominante não apresenta apenas caracterís-
ticas epistemológicas específicas. Caracteriza-se, sobretudo, por um
projeto de sociedade e assim, trazem prescrições previstas na ideolo-
gia do adaptacionismo e da normatização social, como ressaltaram
Martín-Baró (1983) e Parker (2007). Isto ocorre pela aplicação ex-
plícita do biologicismo ou, de maneira mais sofisticada, por meio do
individualismo metodológico (Dazinger, 2002). Munido, então, de
técnicas específicas, centradas no sujeito isolado, consolida-se, assim,
o “giro cognitivo” da psicologia dominante, caminhando para o for-
talecimento da especialidade do psicólogo, especialmente nos EUA
(Dazinger, 2002).
Historicamente, a confluência de perspectivas gnosiológicas com
determinados compromissos políticos, sob a ordem do capital, mar-
ca uma psicologia hegemonicamente autoritária e coloca a necessi-
dade de um enfrentamento do autoritarismo também no interior da
ciência e da profissão.
Para Martín-Baró (1983), o autoritarismo na psicologia domi-
nante pode ser observado, por exemplo, nos primeiros projetos psi-
cométricos, com as teorias eugenistas ou simplesmente a partir da
construção de técnicas voltadas para normatização e classificação
baseadas no modelo médico hegemônico, ajudando, portanto, a pa-
tologizar, todas formas de resistência ao capitalismo - seja estética,
cultural, política ou propriamente econômica.
Sendo assim, Martín-Baró (1983, 1996) indica um outro cami-
nho para a Psicologia, ao elucidar o compromisso ético-político da
psicologia classista (que, como dissemos anteriormente, caracteriza-
se como uma psicologia crítica). Segundo o autor, a tarefa da psi-
cologia crítica é desideologizar a sociedade de classes a partir das
ferramentas que a psicologia oferece, com a finalidade de contribuir
para processos de decodificação e desnaturalização das relações de

60
Notas sobre o enfrentamento do autoritarismo dentro e fora da Psicologia

poder e do modo de vida burguês. Chegamos, pois, ao conceito de


conscientização.
Trata-se de um conceito que foi extraído de Paulo Freire (2001)
por Martín-Baró (1996) com o objetivo de pensar o compromis-
so ético-político de uma psicologia crítica. Em o papel do psicólogo,
Martín-Baró (1996) refere-se à conscientização como um caminho
teórico-prático para romper com o projeto de sociedade inscrito na
psicologia dominante e, ao mesmo tempo, busca contribuir para
construção de uma práxis psicológica gerada a partir das demandas e
necessidades sentidas pela classe trabalhadora. O conceito em ques-
tão revela o compromisso da Psicologia da Libertação em confluên-
cia com outras perspectivas críticas ao reconhecer que, consciente ou
inconscientemente, a ciência e a profissão têm um caráter de classe,
seja ele qual for. Portanto, a psicologia é produto da luta de classes e
dela não pode fugir. O conceito de conscientização caminha para o
enfrentamento da “questão social”, reagindo à suposta neutralidade
científica (que, sabemos bem, fortalece a perspectiva hegemônica da
normatização e do adaptacionismo social).

Conclusões finais: pensando a conjuntura atual a partir da


psicologia crítica...

A psicologia autoritária tem uma função eminentemente prática,


não apenas teórica. Por isto, combatê-la significa superar um modelo
de sociedade pragmático, excludente e destrutivo.
A função prática da hegemonia positivista no campo da Psico-
logia revela-se de diferentes maneiras e intensidades. Este modo de
fazer ciência e profissão, que contribui para uma sociedade desigual e
moralmente normatizadora, vale-se de diferentes ferramentas: a for-
mação, as práticas universitárias, a construção de técnicas e a atua-
ção política propriamente dita, com um nível de organização que
se volta, por exemplo, para disputa das entidades representativas da
profissão.

61
Antonio Euzébios Filho

As psicologias críticas também necessitam destas mesmas ferra-


mentas, utilizando-as, porém, numa direção totalmente oposta, con-
tribuindo para um processo de mudança social. Citamos algumas ta-
refas já empreendidas pelos movimentos críticos da psicologia, mas
que necessitam ser constantemente fortalecidas e revistas:
1. no nível da formação, citamos a construção de currículos pro-
blematizadores da realidade, que passam por uma reflexão crítica
sobre a história da Psicologia, mas também pela inserção de temas
transversais para uma análise da realidade brasileira, e que prevê uma
atuação profissional em diálogo com as políticas públicas e garantia
de direitos historicamente conquistados pela classe trabalhadora;
2. no nível das práticas universitárias de pesquisa e extensão, res-
saltamos a construção de projetos de ação e reflexão teórica que ca-
minham juntos, rompem com o modelo clínico tradicional e que
buscam se aproximar da realidade da maioria da população brasi-
leira. Tanto a construção de um currículo crítico, citado anterior-
mente, como de práticas universitárias transformadores e engajadas
socialmente visam superar aquilo que Chauí (2014) denominou de
universidade operacional;
3. no campo da atuação técnica, além dela ser referenciada pelas
diretrizes previstas em nossa legislação e no código de ética profissio-
nal, devem ser revistas constantemente buscando superar a classifica-
ção nosológica clássica, pautada pelo modelo médico individualista
(Dazinger, 2002), apontando também para saídas coletivas e para o
fortalecimento de vínculos comunitários (afetivos e políticos);
4. no campo da atuação nas entidades representativas da profis-
são e em associações científicas, é importante não perder de vista os
princípios ético-políticos que colocaram a “esquerda” nestes espaços
(Hur, 2005). Assim, sempre é fundamental se atentar à radicalidade
de um programa político para a categoria de psicólogos para não
cairmos nas teias do neoliberalismo e do gerenciamento do “social”
(César, 2004). É necessário continuar a fortalecer as entidades para

62
Notas sobre o enfrentamento do autoritarismo dentro e fora da Psicologia

que elas não sejam tomadas pelos setores autoritários e conserva-


dores (como aqueles, no Brasil, que vem empreendendo o projeto
da “Cura Gay” inclusive por meio da profissão). Diga-se que, para
enfrentamento de pautas conservadoras e autoritárias é necessário se
unir para além dos limites da institucionalidade e compor as lutas
também fora do campo psicológico.
Pois bem, concluímos por aqui certos de que tocamos superficial-
mente em questões complexas que envolvem o autoritarismo dentro
e fora da Psicologia. Seguimos, porém, refletindo sobre este tema co-
tidianamente: na sala de aula, nos encontros acadêmicos, na prática
profissional e na política do dia a dia. Seguimos em diante, procu-
rando aprender com a história de lutas sociais em nossa sociedade e
em nossa ciência e profissão.

Referências
Cesar, M. J. (2004). “Empresa cidadã”: uma estratégia de hegemonia. São Paulo:
Cortez.

Chauí, M. (2014). Contra a universidade operacional. A greve de 2014. Recuperado


de http://www.adusp.org.br/files/database/2014/tex_chaui.pdf

Dazinger, K. (2002). Constructing the subject: historical origins of psychological


research. Cambridge: University Press.

Freire, P (2001). Ação cultural para a liberdade e outros escritos (9a Ed). São Paulo:
Paz e Terra.

Hur, D. (2005). Políticas da psicologia de São Paulo: as entidades de classe durante


o período de redemocratização do país. Dissertação de Mestrado, Instituto de
Psicologia, Departamento de Psicologia Social e do Trabalho, Universidade de São
Paulo, São Paulo.

Lênin, V. I. (1918). Estado e revolução. Recuperado de https://www.marxists.org/


portugues/lenin/1917/08/estadoerevolucao/index.htm

Lukács, G. (1967). A crise da filosofia burguesa (J. C. Bruni, Trad.). São Paulo:
Senzala.

63
Antonio Euzébios Filho

Martín-Baró, I. (1998). Psicología de la liberación. Madrid: Trota.

Martín-Baró, I. (1996). O papel do psicólogo. Estudos de Psicologia, 2(1), 7-27.

Martín-Baró, I. (1983). Acción y ideología (10ª Ed.). San Salvador: UCA Editores.

Meszáros, I. (1996). Produção destrutiva e estado capitalista (G. Toscheff & M.


Cipolla, Trads.). São Paulo: Ensaio.

Parker, I. (2007). Revolution in psychology. London: Pluto Press.

Reich. W. (2001). Psicologia das massas e do fascismo (M. G. M. Macedo, Trad., 3ª


Ed.). São Paulo: Martins Fontes. (Original publicado em 1933)

Shorrocks, A., Davies, J., & Lluberas, R. (2014). Global Wealth report.
Recuperado de http://economics.uwo.ca/people/davies_docs/global-wealth-
databook-2014-v2.pdf

Urban, M (2004). El viejo y la nova derecha radical. Barcelona: Crítica Alternativa.

Vigotski, L. S. (1999). Teoria e método em psicologia (C. Berliner, Trad.). São


Paulo: Martins Fontes. (Original publicado em 1926)

Yamamoto, O. H. (2007). Políticas sociais, ‘terceiro setor’ e ‘compromisso social’:


perspectivas e limites do trabalho do psicólogo. Psicologia & Sociedade, 19(1), 30-
37.

64
ABRAPSO: UMA HISTÓRIA
DE ENFRENTAMENTOS E
CONTRADIÇÕES

Sueli Terezinha Ferrero Martin


Cecilia Pescatore Alves

O tema dessa mesa é fundante para as preocupações de todos que


se aproximam e atuam no campo da Psicologia Social, sejam aqueles
que estão chegando (jovens na idade ou no contato com a ABRAP-
SO), ou aqueles que puderam acompanhar e participar de parte mais
longa dessa história. “ABRAPSO: uma história de enfrentamentos
e contradições” nos remete a pensar esta Associação hoje, buscar as
conexões com o seu passado e com o que queremos para o futuro.
Ao olharmos para nossa Associação hoje, vemos que alcançamos
um vigor, uma amplitude de ação que não imaginávamos obter
quando iniciamos sua constituição. Ela está organizada e ativa em
todas as regiões brasileiras, com muitos núcleos em funcionamento.
Isso é um aspecto muito positivo do que a ABRAPSO tem conse-

65
Sueli Terezinha Ferrero Martin e Cecilia Pescatore Alves

guido nos últimos anos. Mas gostaríamos de trazer algumas reflexões


sobre o que pensamos ser o seu significado.
Silvia Lane (1984a), principal idealizadora da ABRAPSO, no final
da década de 1970, já nos alertava para o fato de que:
todo e qualquer grupo exerce uma função histórica de manter ou
transformar as relações sociais desenvolvidas em decorrência das
relações de produção e, sob este aspecto, o grupo, tanto na sua
forma de organização como nas suas ações, reproduz ideologia,
que, sem um enfoque histórico, não é captada. (pp. 81-82)

O que significa isso? A ideia de que como todo grupo, institui-


ção, entidade, a ABRAPSO, portanto, exerce uma função histórica
de manter ou transformar as relações sociais desenvolvidas em de-
corrência das relações de produção, reproduzindo ideologia. Assim,
em todos os níveis, estes estão intrinsecamente ligados ao modo de
produção e expressam, direta e indiretamente, as suas consequências.
E, ao fazer esse encontro, em momento histórico tão difícil e assus-
tador, precisamos olhar para a ABRAPSO e buscar captar as tensões
internas de diferentes modos de pensar a humanidade, desvelar as
contradições presentes em seu fazer, que deve nos ajudar a perceber
qual a função histórica que ela está cumprindo neste momento: con-
tribuir para manter, reformar ou transformar a sociedade?
Acreditamos que vivemos internamente a luta por todos esses ca-
minhos, numa disputa de sua direção ideológica, expressando o que
vemos acontecer no cenário de outras entidades, no cenário político
mais amplo, nos movimentos sociais, no mundo acadêmico, etc.
Esse processo de crítica e construção de diferentes espaços de pro-
dução da Psicologia Social se deu em um contexto e conjuntura po-
lítica ditatorial que, entre 1960 e 1980, em vários países latino-ame-
ricanos (Venezuela, Cuba, Chile, México, Brasil, El Salvador), levou
vários psicólogos a desencadear um movimento crítico, no sentido
de questionar a prática da psicologia em sua relação de dependên-
cia aos modelos dos países desenvolvidos. Essa crítica visava cons-

66
ABRAPSO: uma história de enfrentamentos e contradições

truir uma Psicologia que levasse em consideração as particularidades


nacionais e o momento histórico pelo qual passavam esses países.
Além disso, esse movimento questiona o distanciamento existente
entre teoria e prática.
Essa crítica, afirma Lane (1984b), culmina na França em 1968 –
(sobre os pressupostos ideológicos dominantes da Psicologia Social
norte-americana) que se estende para a Inglaterra como uma crítica
epistêmica ao positivismo que, em nome da objetividade, perde o
ser humano. Na América latina “a psicologia social oscila entre o
pragmatismo norte- americano e a visão abrangente de um homem
que só era compreendido filosófica e sociologicamente – ou seja,
um homem abstrato” (Lane, 1984b, p. 11). Segundo a autora, isso
se manifesta nos Congressos Interamericanos de Psicologia que, em
1976, em Miami, tiveram seu apogeu “com críticas mais sintetizadas
e novas propostas, principalmente pelo grupo da Venezuela, que se
organiza numa Associação Venezuelana de Psicologia Social (AVEP-
SO) coexistindo com a Associação Latino-Americana de Psicologia
Social (ALAPSO) (Lane, 1984a, p. 11).
Nesse período faziam também suas críticas os psicólogos brasilei-
ros e buscavam caminhos para a Psicologia Social que contemplas-
sem a nossa realidade. Em 1979 (SIP – Lima, Peru) esses movimen-
tos emanaram “propostas concretas em bases materialista-históricas
e voltadas para trabalhos comunitários, agora com participação de
psicólogos peruanos, mexicanos e outros” (Lane, 1984b, p.11).
Enfatiza ainda Lane (1984b, p. 13): “Caberia à Psicologia Social
recuperar o indivíduo na intersecção de sua história com a história
de sua sociedade – apenas este conhecimento nos permitiria com-
preender o homem enquanto produtor da história.”
Esse pressuposto epistemológico fundamentou a opção pelos se-
tores populares que ocuparam alguns espaços: creches comunitárias
ou públicas, associações de moradores, trabalho com mulheres da
periferia, sindicatos, movimentos populares, postos de saúde, cons-

67
Sueli Terezinha Ferrero Martin e Cecilia Pescatore Alves

tituindo-se, na década de 1970, como afirma Lane (1980a; 1984a),


numa vertente da Psicologia Comunitária, a Psicologia Social Co-
munitária.
É neste contexto que vimos surgir várias iniciativas no sentido de
responder aos questionamentos que se faziam à Psicologia Social e
aos psicólogos preocupados com a realidade das classes populares no
Brasil. Os questionamentos são retomados e explicitados durante
a 32ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da
Ciência (SBPC), cujo tema central foi “Ciência e Educação para
uma sociedade democrática”, com a realização da mesa redonda
“Psicologia Social como Ação Transformadora”, apresentada por Sil-
via Lane, Genaro Ieno Neto e Maria Lúcia Violante. Nesta ocasião
Lane questiona: “Como a Psicologia Social enquanto ciência pode
ser transformadora? Que conhecimentos ela oferece à prática educa-
tiva e, consequentemente, à saúde e ao trabalho, tornando as ações
transformadoras?” (Lane, 1980b, p. 67).
A partir desse período histórico, muito foi realizado para a cons-
trução da Psicologia Social que desse conta de pesquisar/atuar na
perspectiva apontada. Neste processo vimos muitas mudanças na
história da Psicologia Social brasileira: reestruturação do curso de
pós-graduação em Psicologia Social da PUC-SP; criação da Associa-
ção Brasileira de Psicologia Social (ABRAPSO); aumento considerá-
vel de publicações e eventos científicos na Área de Psicologia Social
no Brasil; desenvolvimento de inúmeros projetos de intervenção co-
munitária, em diferentes espaços sociais, consolidando a Psicologia
Social Comunitária.
Em 10 de julho de 1980, quando da formalização da ABRAPSO
durante a 32ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progres-
so da Ciência (SBPC), no Rio de Janeiro, na ata de sua fundação
consta que a ABRAPSO nasce da necessidade de se ter um espaço
em que fossem considerados: (a) o aspecto psicológico do homem
em relação a um contexto socioeconômico; (b) a existência da dico-
tomia entre o trabalho científico e a ação concreta transformadora;

68
ABRAPSO: uma história de enfrentamentos e contradições

(c) as deficiências da postura metodológica positivista que enquadra


os pesquisadores em esquemas simplificadores que não dão conta
dos fenômenos complexos (Associação Brasileira de Psicologia Social
[ABRAPSO], 1980; Lane, 1980b). Estando, portanto, no campo de
sua ação, a ruptura com essas formas de se pensar a produção cientí-
fica e a práxis na Psicologia Social.
Sua criação foi gestada no Seminário de Psicologia Social e Proble-
mas Urbanos, realizado em outubro de 1979, na PUC-SP. Foi nesse
seminário que, pela primeira vez, um grupo de psicólogos sociais
(aproximadamente cem participantes) discutiu e refletiu sobre o ob-
jeto de estudo e a atuação profissional dos cientistas sociais em geral
e, particularmente, dos psicólogos.
É importante ressaltar que a criação da ABRAPSO permitiu a
organização coletiva dos psicólogos sociais brasileiros, com a parti-
cipação de profissionais de outras áreas, e a sistematização e publi-
cização da sua produção científica. Com a ABRAPSO tivemos uma
disseminação de eventos científicos na área, com a participação cres-
cente de pesquisadores e profissionais, representando também a con-
solidação da Associação não apenas em nível nacional, mas também
nas diferentes regiões do país. Além disso, surge também a Revista
Psicologia & Sociedade1 que, de 1986 até a atualidade, tornou-se o
principal espaço de publicação na área.
Os desdobramentos das intensas atividades da ABRAPSO nas últi-
mas três décadas vão além da publicação da revista. Eles são também
visíveis nas publicações de anais dos encontros nacionais, regionais e
locais e de coletâneas que têm sido cada vez mais frequentes nos úl-
timos anos, garantindo a circulação dos trabalhos apresentados nos
eventos da ABRAPSO. Além disso, tem sido desde o princípio um
desdobramento de sua organização a manifestação pública política,

1 Antes da consolidação da revista, tivemos de 1982 a 1985 a circulação do Bole-


tim semestral da ABRAPSO “Psicologia e Sociedade”. Em 1986 o boletim foi transformado
em revista semestral.

69
Sueli Terezinha Ferrero Martin e Cecilia Pescatore Alves

com denúncias e apoios, tanto em lutas específicas quanto nas mais


abrangentes, em defesa de uma sociedade mais justa e ao respeito
aos direitos humanos. É claro que no decorrer de sua história há
variações políticas importantes quanto às bandeiras a se defender.
Como já citamos anteriormente, “o grupo, tanto na sua forma de
organização como nas suas ações, reproduz ideologia” (Lane, 1984a,
p. 82). As contradições se manifestam desde sempre, da sua pré-his-
tória, no Seminário sobre Psicologia Social e Problemas Urbanos, até
os dias atuais.
Para exemplificar de que modo os enfrentamentos e contradições
estiveram sempre presentes na nossa história, cabe lembrar que no
mesmo período em que foi realizado o Seminário (29 a 31 de ou-
tubro de 1979) ocorreu o assassinato, no dia 30, de Santo Dias da
Silva, operário metalúrgico e membro da Pastoral Operária, pela Po-
lícia Militar, durante um piquete de greve em frente à fábrica da
Sylvania, em Santo Amaro (SP)2. No dia 31 de outubro, último dia
do nosso evento, aproximadamente 30 mil pessoas saíram às ruas de
São Paulo para acompanhar o enterro e protestar contra a morte de
Santo, pelo direito de associação sindical e de greve e contra a dita-
dura. Acompanhar ou não o enterro e as manifestações naquele dia
foi, no nosso modo de ver, a primeira grande questão divergente na
ABRAPSO. Após defesas e argumentações, o grupo presente se divi-
diu: parte dele foi para a Praça da Sé, e outra parte ficou na PUC-SP,
dando continuidade às atividades do evento.
Tínhamos naquela época apenas quatro temáticas em foco: rela-
ções sociais e trabalho; abordagem psicossocial da saúde mental; a
família e a socialização da criança; participação na comunidade –
problemas da vida urbana e condições sociais de moradia e habitação

2 Cf: Portal Vermelho (2009). Momento Social: Santos Dias, operário morto du-
rante greve em 79, ganha memorial em São Paulo. Recuperado de http://www.contee.
org.br/noticias/msoc/nmsoc872.asp; Portal Memórias da Ditadura (2017). Santos Dias.
Recuperado de http://memoriasdaditadura.org.br/biografias-da-resistencia/santo-dias/

70
ABRAPSO: uma história de enfrentamentos e contradições

popular. Era um momento efervescente, em plena ditadura militar,


vários movimentos sindicais e populares surgindo. O intenso proces-
so de urbanização e a não priorização das questões urbanas fizeram
com que as grandes cidades não tivessem infraestrutura suficiente
para responder às necessidades da classe trabalhadora: creches, es-
colas, transporte público, saúde, etc. Essas eram as questões centrais
e não é à toa que o foco do nosso primeiro encontro e de alguns
seminários iniciais foi a questão urbana e a participação da popula-
ção. Hoje essas questões não estão resolvidas e atualmente corremos
o risco de muitos retrocessos, mas houve, nesse longo período, a
implementação pelo Estado do Sistema Único de Saúde (SUS) e do
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em 1990; do Estatuto
do Idoso, em 2003; do Sistema Único de Assistência Social (SUAS),
em 2005, creches, educação infantil, urbanização, etc. Todos esses
avanços só foram possíveis porque os movimentos sociais se mobili-
zaram e pressionaram o Estado a assumir as suas responsabilidades.
No entanto, nas últimas décadas, com a reestruturação do capi-
talismo e o projeto neoliberal, com a precarização do trabalho e,
portanto, da vida, nos vemos diante desses e de outros problemas
cruciais para a classe trabalhadora. Além disso, a conjuntura política
atual - que não é específica do Brasil, mas que aqui apresenta certas
particularidades, como a crise econômica, o avanço do conservado-
rismo, os impactos da reestruturação produtiva no mundo do traba-
lho e na perda de direitos trabalhistas e previdenciários - nos coloca
velhos e novos desafios. São expressões da luta de classes, no campo
da sociedade em geral e nas relações cotidianas.
Desde o período de seu projeto, em 1979, e de sua formalização,
em 1980, a ABRAPSO assumiu diferentes papéis no decorrer da
história: prevalência da militância no primeiro momento, preocupa-
da em promover práticas e manifestações que contribuíssem com a
transformação social; processo de institucionalização, com preocu-
pações mais acadêmicas e com menos diálogo com a sociedade, com
outros setores, com os movimentos sociais.

71
Sueli Terezinha Ferrero Martin e Cecilia Pescatore Alves

Vivemos um momento difícil, pós-impeachment da Presidente


Dilma Rousseff, ocorrido em 31 de agosto de 2016. Nesse período
pós-Golpe, vivemos uma agudização da luta de classes, com expres-
sões exacerbadas de ódio, preconceitos e violência contra os direitos
humanos e sociais e a todas as manifestações no espectro da esquerda
política.
Como estamos hoje em relação às preocupações fundantes da or-
ganização da ABRAPSO? Quanto o crescimento e o vigor de nos-
sa Associação têm contribuído para a superação desses problemas?
Quanto ela tem contribuído para potencializar esses problemas?
Que tipo de prática deve ser prevalente? O espaço, a discussão e pro-
dução acadêmica ou o papel político junto a outros coletivos onde
o movimento estiver? Será que não temos que revisitar e retomar
a importante discussão e desdobramentos práticos que a “Crise da
Relevância” da Psicologia nos trouxe? Ou retomar e repensar as preo-
cupações iniciais da ABRAPSO, de forma atualizada ao contexto em
que vivemos, que embora se assemelhe em alguns aspectos ao perío-
do da ditadura militar não pode ser comparado a ele?
Faz-se necessário enfatizar que a indignação de um grupo de psi-
cólogos e profissionais de áreas afins, brasileiros e latino-america-
nos, que teciam críticas à produção de conhecimento e à atuação da
Psicologia deslocada da realidade vivida possibilitou a fundação da
ABRAPSO. Não foi mais uma entidade de psicologia, mas sim uma
associação que congregou uma Psicologia Social - como bem nos
lembra Lane (1984b) - que assume a historicidade do conhecimento
e do homem, voltando seu foco teórico para a apreensão do indiví-
duo como um ser concreto, produto e produtor da história; enfim,
como manifestação de uma totalidade histórico–social e comprome-
tida com a realidade brasileira.
Assim, foi o caráter epistemológico - ético e político - que susten-
tou a fundação da ABRAPSO – ao propor um compromisso com
a realidade social, na busca do saber que orienta ações psicológicas.
A ABRAPSO tem reunido e incentivado a produção de um saber

72
ABRAPSO: uma história de enfrentamentos e contradições

sobre o homem que se dá a partir de uma relação interdisciplinar,


num suporte epistemológico associado a um componente político e
ético; sobretudo, de uma ética social fundamentada na noção de ci-
dadania plena para todos, cuja validade epistêmica ocorre a partir da
não neutralidade do conhecimento, da não adequação às condições
de vida, da não discriminação a qualquer diferença e da clareza dos
pressupostos da concepção de homem e de indivíduo que possibilite
a busca para a emancipação.
A construção de um conhecimento centrado no compromisso
pela emancipação exige, necessariamente, uma dimensão política.
Esses pressupostos, associados ao intercâmbio dos interessados na
Psicologia Social que a entidade reúne, desencadeou a concretude
de posicionamentos críticos diante de fatos ocorridos na realidade
brasileira que levam em seu contexto a marca da injustiça e da dis-
criminação social.
Embora críticas tenham sido produzidas ao lugar e às práticas tra-
dicionais da Psicologia, e tenha-se buscado a construção de teorias
e práticas visando um projeto e possibilidades de intervenção sig-
nificativa na realidade brasileira, estas não se instituíram, de forma
significativa, na medida em que o compromisso social, no próprio
interior da Psicologia e áreas afins, ainda é muitas vezes entendido
como posturas de solidariedade, ou mesmo de ações partidárias e/
ou religiosas.
Além disso, ressaltamos que não é porque se produz saber que
este é comprometido com a realidade, assim como não é porque se
trabalha com a realidade social que se busca a sua transformação em
uma sociedade justa e igualitária.
Pensando a produção da Psicologia Social e os objetivos e fina-
lidades da ABRAPSO, podemos elaborar uma revisão crítica refe-
rente à entidade no que se refere à constituição de uma ciência e de
uma atuação profissional que não fragmente seu objeto de estudo
(o ser humano), reduzindo-o ao uno em detrimento do múltiplo;
que preserve a preocupação com a pluralidade cultural e individual

73
Sueli Terezinha Ferrero Martin e Cecilia Pescatore Alves

como enfrentamento da homogeneização, da afirmação do mesmo


e da negação da diferença; que enfrente o distanciamento entre as
exigências de produção acadêmica e a produção do saber compro-
metido com os movimentos sociais; e que possibilite o desvelar das
contradições cotidianas vividas no interior das instituições sociais.
Contudo, vivemos atualmente uma realidade de alijados do es-
pírito criador e crítico. E é nesse contexto que estão se definindo
valores, perspectivas e saber. Ao mesmo tempo, a Psicologia, como
área de conhecimento e campo de ação, incorpora um significativo
potencial para contribuir com a busca de soluções para as muitas e
graves demandas que emergem em nossa realidade.
Portanto, mesmo sob a aparência de algo óbvio - o compromisso
da Psicologia Social com a realidade -, ao se examinar mais detida-
mente o quadro brasileiro, impõe-se uma tomada de posição que
envolve um avanço do que está posto. Esse avanço acarreta, neces-
sariamente, produções que contemplem dimensões ética, política e
epistêmica; ética que orienta a prática de profissionais comprome-
tidos com os ideais abrapsianos. A ideia de uma ação baseada nessa
ética implica em seu compromisso com a construção de uma socie-
dade justa e solidária, no sentido democrático. Essa talvez seja uma
das formas de possibilitar o confronto do absoluto transpassado pela
relação de poder na produção do saber.
Habermas (1983) afirma que a instituição é o lugar onde a uni-
dade e a multiplicidade se constroem mutuamente, mas que este
movimento tende a ser abafado na sociedade moderna e os papéis
tendem a se tornar complexos de comportamentos cristalizados e
estereotipados. Ao invés de permitirem o exercício profissional e re-
lacional, tornam-se marcas, estigmas, e as pessoas passam a ser não
para si e para o outro, mas para o seu papel e para sua instituição.
Estamos sendo: o aluno? O psicólogo? O pedagogo? O assistente
social? O cientista social? O professor da instituição pública? O
professor da instituição privada? O gestor? O pesquisador produ-

74
ABRAPSO: uma história de enfrentamentos e contradições

tividade? Enfim, a qual papel obedecemos? Ou, independente do


papel que desempenhamos, a interlocução tem caracterizado nossas
relações? Possibilitar atividades em que as pessoas, ao interagirem,
possam se transformar, em detrimento do encontro em que se esta-
belece a verdade, em função do grau hierárquico ocupado, deve ser
nossa meta.
Pensamos que é esse tipo de diálogo que é necessário ser cultua-
do, nos eventos e atividades da ABRAPSO, a fim de possibilitar a
produção interdisciplinar; e, sobretudo, o diálogo com a comunida-
de, com os coletivos, com a sociedade. Em tempos difíceis como os
vividos neste momento histórico, de contradições e enfrentamen-
tos, necessitamos nos alimentar das características de militância que
marcaram a fundação da ABRAPSO, a fim de que nossas atividades
sejam reinventadas para o enfrentamento vivido cotidianamente em
nome de uma sociedade justa e democrática.

Referências
Associação Brasileira de Psicologia Social [ABRAPSO] (1980). Ata de fundação
(pp. 2-9). Recuperado de http://www.ABRAPSO.org.br/conteudo/view?ID_
CONTEUDO=543

Habermas, J. (1983). Para a reconstrução do materialismo histórico. São Paulo:


Brasiliense.

Lane, S. T. M. (1980a). O que é psicologia social (Coleção Primeiros Passos). São


Paulo: Brasiliense.

Lane, S. T. M. (1980b). A psicologia social como ação transformadora. In


Associação Brasileira de Psicologia Social (Org.), Anais I Encontro Brasileiro de
Psicologia Social, 32ª Reunião Anual da SBPC (pp. 67-71). São Paulo: ABRAPSO.

Lane, S. T. M. (1984a). O processo grupal. In S. T. M. Lane & W. Codo (Orgs.),


Psicologia Social: o homem em movimento (pp. 78-98). São Paulo: Brasiliense.

Lane, S. T. M. (1984b). Psicologia Social e uma nova concepção do homem para


a Psicologia. In S. T. M. Lane & W. Codo (Orgs.), Psicologia social: o homem em
movimento (pp. 10-19). São Paulo: Brasiliense.

75
ENFRENTAMENTO DA LÓGICA
PRIVATISTA NO SUS

Virginia Junqueira

Este capítulo busca expor conexões entre o subfinanciamento crô-


nico do Sistema Único de Saúde (SUS) e o aprofundamento, desde
2007-2008, da crise econômica e financeira que se estende em escala
mundial, remontando à década de 1970. Inicialmente serão aborda-
das, em breves linhas, algumas das circunstâncias históricas em que a
crise emergiu e, em seguida, serão referidos os impactos provocados
sobre a sustentação financeira do SUS. Finalmente, serão arroladas
alternativas para fortalecimento financeiro do sistema público de
saúde.
A assim denominada Era de Ouro (os “trinta anos gloriosos”)
- período histórico que se estendeu dos anos pós-Segunda Guerra
Mundial ao início da década de 1970 - apesar de se constituir como
fenômeno planetário, disse respeito particularmente aos países capi-

76
Enfrentamento da lógica privatista no SUS

talistas desenvolvidos, e é evocada, hoje, em contraste às posteriores


décadas de crise (Hobsbawm, 1995).
O boom econômico, ancorado na disseminação do modelo for-
dista de produção, nas inovações e novidades tecnológicas, e na cha-
mada “revolução verde”, progressivamente fez com que a força de
trabalho fosse menos necessária e, por um momento, pareceu que
as economias cresceriam para sempre (Hobsbawm, 1995), sem que
se notassem, então, a deterioração e as perturbações provocadas nos
recursos naturais e no meio ambiente.
Para Hobsbawm (1995, p. 267), essa época foi marcada por “uma
espécie de casamento entre o liberalismo econômico e a democracia
social”, com algum recurso ao planejamento econômico empreen-
dido pela União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Esse
capitalismo “reformado” provocou a reação dos defensores do livre
mercado, que ganhou terreno a partir da década de 1970.
São apontados, entre outros fenômenos relevantes dos períodos
que se seguiram à década de 1970, o aumento do peso político eco-
nômico dos Estados Unidos, o desmoronamento da União Soviéti-
ca, o endividamento dos Estados nacionais frente aos grandes fun-
dos privados de aplicação financeira, a integração internacional dos
mercados financeiros (Chesnais, 1996) e a tendência de dominância
e imposição do capital financeiro em relação às economias dos países
(Mendes, 2012), além do crescimento do desemprego e do trabalho
sem vínculo formal (Harvey, 2011). O processo de expansão das
grandes empresas transnacionais redesenhou a divisão internacional
do trabalho, ao mesmo tempo em que deslocou a implantação das
plantas industriais dos países centrais (Chesnais, 2005).
Desde 1973 houve centenas de crises financeiras no mundo (Har-
vey, 2011) e, na maior parte dos países, as respostas têm sido hege-
monicamente a retração das funções anteriormente executadas pelos
Estados, sincronicamente a uma progressiva apropriação do fundo
público pelo setor privado (Mendes, 2012). Diversos autores apon-

77
Virginia Junqueira

tam para o aprofundamento das desigualdades em escala planetária,


ao mesmo tempo em que a riqueza cresce ( Stiglitz, 2012; Krugman,
2014; Piketty, 2014). A concentração da riqueza sobreveio em meio
a reformas de Estado e à reestruturação produtiva, que se constituem
como dois dos mais importantes fenômenos político-econômicos
que marcaram as mudanças na relação público/privado nas últimas
décadas.
Os sistemas de seguridade social da Europa Ocidental sofreram
considerável recuo com relação aos direitos sociais que haviam sido
conquistados na “Era de Ouro”. Os cortes orçamentários, particu-
larmente nas décadas de 1980 e 1990, comprometeram a qualidade
da prestação de serviços públicos e afetaram negativamente o acesso
a todos os níveis de assistência, sobretudo quando as taxas de desem-
prego aumentaram.
Mladovsky et al (2012), em trabalho patrocinado pela Organiza-
ção Mundial da Saúde (OMS), reconheceram que a crise financeira
que eclodiu em 2007 teve um amplo efeito negativo – um “choque”
– sobre a disponibilidade de recursos nos sistemas de saúde euro-
peus, concomitante a um incremento da demanda por serviços de
saúde. No entanto, bancos privados tiveram suas dívidas publiciza-
das com recursos dos fundos públicos, ao mesmo tempo em que os
governos europeus decretavam medidas de austeridade fiscal.
Segundo documento da Comissão Europeia, o setor financei-
ro desempenhou papel principal na eclosão da crise econômica de
2007-2008, enquanto os governos e os cidadãos europeus pagaram
amplamente o custo. Haveria um forte consenso na Europa, e tam-
bém internacionalmente, no sentido de que o setor financeiro deve-
ria contribuir de modo mais justo face aos custos de lidar com a crise
e dada a atual sub-taxação do setor (European Comission, 2011).
Cabe ressaltar que vários países europeus, como Alemanha, In-
glaterra, França, Itália e os países escandinavos - cujas redes físicas
dos serviços públicos de saúde estão bem estabelecidas por terem

78
Enfrentamento da lógica privatista no SUS

sido construídas e ampliadas durante décadas, e cujos quadros de


pessoal, apesar das crises e das restrições orçamentárias recentes, são
relativamente mais estáveis e adequados ao perfil demográfico e epi-
demiológico das populações - destinam mais de 70% dos recursos
totais da saúde ao setor público. Ao contrário, o gasto público no
setor saúde, no Brasil, é menor que o gasto privado, oscilando em
torno de 47% e 53% respectivamente.
Ao reconstituir a trajetória de financiamento do SUS, é possível
compreender como se chegou a esta inversão. Em outras palavras,
como um sistema nacional público de saúde - conquista do Movi-
mento da Reforma Sanitária (MRSB) - teve sua implantação mar-
cada, desde 1988, por sucessivos descumprimentos do disposto em
lei e também por forte resistência a forjar legislação que, de fato,
sustente, estavelmente, as ações e serviços públicos de saúde.
Assim é que, apesar das disposições constantes do artigo 55 da
Constituição Federal de 1988 determinarem que 30%, no míni-
mo, do orçamento da Seguridade Social seja destinado ao setor
público da saúde, o Ministério da Previdência e Assistência Social
repassou apenas 20,2%, em 1992 (Mendes, 2012). Em 1993, a Lei
de Diretrizes Orçamentárias dispunha que 15,5% do total das con-
tribuições deveriam ser destinadas ao SUS. No entanto, nenhum
recurso foi repassado, sob a alegação da crise na Previdência.
Naquele mesmo ano foi formulada a Proposta de Emenda Cons-
titucional n. 169 (PEC 169/1993), que buscava conferir estabi-
lidade ao financiamento da saúde, assegurando a reserva de 30%
do orçamento da Seguridade Social, acrescido de 10% das receitas
advindas de impostos, respeitadas as transferências constitucionais,
da União, estados e municípios. A lenta tramitação dessa PEC se
prolongou até 2000, quando foi finalmente aprovada, depois de
“depurada” da vinculação dos recursos da Seguridade.
Outro golpe no financiamento do SUS proveio da criação do
Fundo Social de Emergência, em 1994, dispositivo que perdura até

79
Virginia Junqueira

a atualidade sob a denominação de Desvinculação de Receitas da


União (DRU), que continua retirando recursos das contribuições
sociais da sua finalidade original. A DRU foi sucessivamente prorro-
gada e deve se estender até 2023, tendo seu percentual sido elevado
para 30%.
Ainda em 1994, foi proposta a criação do Imposto Provisório so-
bre Movimentação Financeira (IPMF), aprovado apenas em 1997,
como Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira
(CPMF). Até sua interrupção, em 2007, a CPMF compunha apro-
ximadamente apenas 30% do total das fontes de financiamento do
SUS, uma vez que, concomitantemente, houve redução de outras
fontes oriundas da renda e do lucro das empresas, como Contribui-
ção para financiamento da Seguridade Social (COFINS) e Contri-
buição sobre o lucro líquido (CSLL).
A Emenda Constitucional n. 29 de 13 de setembro de 2000, que
estabeleceu a participação mínima de cada ente federado no finan-
ciamento das ações e serviços públicos de saúde (Lei n. 29/2000), foi
finalmente regulamentada pela promulgação da Lei Complementar
n. 141 de 13 de janeiro de 2012, que definiu o piso constitucional
de aplicação na saúde e quais despesas podem ser qualificadas como
sendo da saúde. O governo federal adiou, mais uma vez, a definição
do percentual mínimo a ser investido na saúde, editando, com apoio
do Congresso, lei que fixou o gasto federal em saúde em 10 % das
receitas correntes líquidas, como meta a ser atingida em 2020 (Lei
Complementar n. 141/12).
No entanto, a medida mais dura ainda estava por vir e foi im-
plementada pelo governo que assumiu em seguida ao impeachment
da presidente Dilma Rousseff. A fixação, por 20 anos, de teto dos
gastos primários, entre os quais se incluem saúde, educação e as-
sistência social, foi imposta pela Emenda Constitucional n. 95 de
15 de dezembro de 2016, promulgada em dezembro de 2016, e só
terá eventual revisão dentro de 10 anos (Emenda Constitucional n.

80
Enfrentamento da lógica privatista no SUS

95/16). Já o pagamento dos juros da dívida pública não foi objeto


de congelamento. Vários estudos foram publicados mostrando a per-
da de recursos pelos setores da saúde, assistência social e educação
(Fundação Getúlio Vargas [FGV], 2016; Paiva, Mesquita, Jaccoud,
& Passos, 2016; Tornakia, 2016; Vieira & Benevides, 2016).
Ao mesmo tempo, a base governista no Congresso continua, no
ano de 2017, votando outros projetos de lei e de emendas constitu-
cionais que atacam, frontalmente, direitos previdenciários, sociais e
trabalhistas, em uma ofensiva de extrema agressividade contra os tra-
balhadores e a população pobre. Todas essas medidas que avançam
sobre os fundos públicos caminham no sentido de privilegiar os in-
teresses do capital, particularmente, na sua dimensão financeirizada.
Como já mencionado, diversos estudiosos afirmam que não há
o alegado “rombo” da Previdência, mas apenas o desvio de recursos
da área social para garantir os mais altos juros pagos aos títulos da
dívida pública (Gentil, 2017; Rezende, 2016). Os debates que le-
vantaram questionamento da proposta de reforma da Previdência
já apontaram várias alternativas no sentido de fortalecer o fundo
público da Seguridade Social. Algumas delas foram discutidas na
15ª Conferência Nacional de Saúde, realizada em 2015, e resumidas
em documento publicado pelo Centro Brasileiro Estudos de Saúde
(CEBES):
1. auditoria da dívida pública e aumento do investimento como
alavanca para o crescimento econômico, reduzindo juros e não ce-
dendo às pressões cambiais e de balanço de pagamentos;
2. reforma tributária reduzindo a tributação sobre o consumo e
concentrando no patrimônio e na renda. Redistribuição das alíquo-
tas do IR para pessoa física com faixas mais altas e aumento da faixa
de isenção; redução da tributação indireta sobre o consumo; aumen-
to da tributação sobre a acumulação; aumento do Imposto sobre a
Propriedade Territorial Rural (ITR) dos grandes latifúndios; redução
das taxas que incidem diretamente sobre o setor produtivo (Imposto

81
Virginia Junqueira

sobre Produtos Industrializados (IPI) e Imposto sobre Circulação


de Mercadorias e Serviços (ICMS); fim da isenção dos lucros e divi-
dendos e com a dedução dos juros sobre o capital próprio e alívio da
carga tributária dos trabalhadores com imposto progressivo;
3. fim dos subsídios dos planos privados de saúde por meio de
estratégia progressiva, instituindo um limite de valor de gastos com
saúde, que podem ser dedutíveis do IR como no caso da educação;
não financiar planos privados para servidores públicos com recursos
públicos; proibir anulação ou perdão das dívidas dos planos com o
Estado; proibir subsídios diretos aos planos e não promover incenti-
vos aos planos privados individuais;
4. taxação das grandes fortunas e aplicação dos recursos na saúde;
5. fim da Desoneração das Receitas da União (DRU);
6. flexibilização da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) para a
contratação de trabalhadores da saúde (investindo no quadro de ser-
vidores próprios da saúde e diminuindo a contratação de Organiza-
ções Sociais);
7. investimento de 10% da Receita Corrente Bruta da União na
saúde pública (Centro Brasileiro Estudos de Saúde [CEBES], 2015).
Em resumo, o que se procura demonstrar é que, mesmo em cir-
cunstâncias históricas muito desfavoráveis para os trabalhadores, há
alternativas que dariam sustentação financeira à Seguridade Social.
O combate à sonegação fiscal, a redução de desonerações, a cobrança
de grandes devedores que procrastinam o recolhimento de impostos,
entre outras medidas, aportariam recursos muito superiores ao alega-
do déficit da Previdência (Associação Nacional dos Auditores Fiscais
da Receita Federal [ANFIP] & Departamento Intersindical de Esta-
tística e Estudos Socioeconômicos [DIEESE], 2017).
No entanto, o capital busca saídas para sua própria crise retiran-
do direitos e se apropriando do fundo público, por meio de várias
estratégias, entre as quais, é preciso também ressaltar, a transferência
de gestão e recursos para o setor privado que explora a saúde sob a

82
Enfrentamento da lógica privatista no SUS

forma de organizações sociais (Contreiras, 2011). Medidas toma-


das a pretexto da assim denominada austeridade visam, na verdade,
priorizar a especulação financeira em detrimento do tão propalado
equilíbrio das contas públicas e da criação de empregos. Os princi-
pais beneficiários da remuneração dos títulos da dívida pública são
os bancos, os grandes investidores estrangeiros e nacionais, as segura-
doras, os fundos privados de pensão e Previdência. Portanto, trata-se
de desvendar os números da crise, para que a população tenha acesso
a informações que esclareçam o que está, de fato, em jogo.

Referências
Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal [ANFIP] &
Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos [DIEESE]
(2017). Previdência: reformar para excluir? Contribuição técnica ao debate sobre a
reforma da previdência social brasileira. Brasília: ANFIP/DIEESE. Recuperado de
https://www.dieese.org.br/livro/2017/previdenciaSintese.pdf

Centro Brasileiro de Estudos de Saúde [CEBES]. (2015). Tese do CEBES para a


XV Conferência Nacional de Saúde. Recuperado de http://cebes.org.br/2015/04/
tese-do-cebes-para-a-15a-conferencia-nacional-de-saude/

Chesnais, F. (1996). A mundialização do capital (S. Finzi, Trad.). São Paulo: Xamã.

Chesnais, F. (Org.) (2005). A finança mundializada: raízes sociais e políticas,


configuração, consequências (R. M. Marques & P. Nakatani, Trads.). São Paulo:
Boitempo.

Contreiras, H. (2011). Organizações Sociais e a gestão privada na rede municipal de


saúde da cidade de São Paulo. Mestrado profissional. Programa de Pós-graduação
em Educação e Saúde, Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Fundação
Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro.

Emenda Constitucional n. 169, 7 de julho de 1993. (1993). Altera o inciso IV do


artigo 167 e o artigo 198 da Constituição Federal e prevê recursos orçamentários
a nível da União, Estados e Municípios para a manutenção do Sistema Único
de Saúde com o financiamento das redes públicas, filantrópicas e conveniadas.
Brasília, DF: Câmara dos Deputados.

83
Virginia Junqueira

Emenda Constitucional n. 29, de 13 de setembro de 2000. (2000). Altera os arts.


34, 35, 156, 160, 167 e 198 da Constituição Federal e acrescenta artigo ao Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias, para assegurar os recursos mínimos para
o financiamento das ações e serviços públicos de saúde. Brasília, DF: Presidência
da República.

Emenda Constitucional n. 95, de 15 de dezembro de 2016. (2016). Altera o Ato


das Disposições Constitucionais Transitórias, para instituir o Novo Regime Fiscal,
e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República.

European Comission. (2011). Proposal for a Council Directive on a common system


of financial transaction tax. Recuperado de http://ec.europa.eu/taxation_customs/
taxation-financial-sector_en#fate

Fundação Getúlio Vargas [FGV]. (2016). FGV: salário mínimo seria de R$400 se
limite de gastos valesse desde 1998. Info Money. Recuperado de https://economia.
uol.com.br/noticias/infomoney/2016/10/11/salario-minimo-seria-de-r-400-
hoje-e-saude-pode-perder-r-743-bi-em-20-anos-2-estudos-polemicos-sobre-a-
pec-241.htm

Gentil, D. (2017). Debate: reforma da Previdência, Denise Gentil [YouTube].


Recuperado de https://www.youtube.com/watch?v=fIzKNjyU_5I

Harvey, D. (2011). O enigma do capital e as crises do capitalismo (J. A. Peschanki,


Trad.). São Paulo: Boitempo.

Hobsbawm, E. J. (1995). Era dos extremos: o breve século XX: 1914 -1991 (M.
Santarrita, Trad., 2ª Ed.), São Paulo: Companhia das Letras.

Krugman, P. (2014). The Rich, the Right and the facts: deconstructing the income
distribution debate. The American Prospect. Recuperado de http://prospect.org/
article/rich-right-and-facts-deconstructing-inequality-debate

Lei Complementar n. 141, de 13 de janeiro de 2012. (2012). Regulamenta o §


3o  do art. 198 da Constituição Federal para dispor sobre os valores mínimos a
serem aplicados anualmente pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios
em ações e serviços públicos de saúde; estabelece os critérios de rateio dos recursos
de transferências para a saúde e as normas de fiscalização, avaliação e controle das
despesas com saúde nas 3 (três) esferas de governo; revoga dispositivos das Leis
nos 8.080, de 19 de setembro de 1990, e 8.689, de 27 de julho de 1993; e dá outras
providências. Brasília, DF: Presidência da República.

84
Enfrentamento da lógica privatista no SUS

Mendes, A. N. (2012). Tempos turbulentos na saúde pública brasileira: impasses do


financiamento no capitalismo financeirizado. São Paulo: Hucitec.

Mladovsky, P., Srivastava, D., Cylus, J., Karanikolos, M., Evetovits, T., Thomson,
S., & McKee, M. (2012). Health policy responses to financial crisis in Europe.
In World Health Organization (WHO) & European Observatory on Health
Systems and Policies, (Eds.), Policy summary 5. Recuperado de http://www.euro.
who.int/__data/assets/pdf_file/0009/170865/e96643.pdf

Paiva, A. B., Mesquita, A. C. C. S., Jaccoud, L., & Passos, L. (2016). O novo
regime fiscal e suas implicações para a Política de Assistência Social no Brasil (Nota
Técnica n. 27). Brasília, DF: IPEA. Recuperado de https://www.abrasco.org.
br/site/wp-content/uploads/2016/09/nt_27_IPEA_regime_fiscal_assistencia_
social.pdf

Piketty, T. (2014) O capital no século XXI (M. B. Bolle, Trad.). Rio de Janeiro:
Intrínseca.

Rezende, F. (2016). Depoimento à Comissão de Assuntos Econômicos do Senado


[YouTube]. Recuperado de https://www.youtube.com/watch?v=hhQqwk2MFxM

Stiglitz, J. Desigualdade é raiz da crise, diz Stiglitz. Entrevista ao Instituto Humanitas


Unisinos. 2012. Recuperado de: http://www.ihu.unisinos.br/noticias/512298-
desigualdade-e-raiz-da-crise-diz-stiglitz

Tornakia, M. (2016). Educação perderá 24 bilhões por ano, com PEC 241,
aponta estudo da Câmara dos Deputados. Painel Acadêmico. Recuperado de
http://painelacademico.uol.com.br/painel-academico/7719-educacao-perdera-r-
24-bilhoes-por-ano-com-pec-241-aponta-estudo-da-camara-dos-deputados

Vieira, F. V. & Benevides, R. P. S. (2016). Os impactos do novo regime fiscal para o


financiamento do SUS e para a efetivação do direito à saúde no Brasil (Nota Técnica
n. 28). Brasília, DF: IPEA.

85
Seção II

Pesquisas e práticas em diálogo:


Psicologia Social no entendimento
e enfrentamento de um inusitado
momento político

86
PSICOLOGIA SOCIAL CONTRA O
GOLPE

Luiz Carlos da Rocha


Deivis Perez
Ruchelli Stanzani Ercolano

Em 2016 a democracia brasileira sofreu um golpe. Sob o olhar atô-


nito dos que consideravam impossível ocorrer por aqui um golpe ao
estilo paraguaio, um governo legitimamente eleito foi abruptamente
derrubado por uma manobra parlamentar. A deposição do governo
constitucional foi preparada por massacrante campanha midiática,
que levou às ruas, além de néscios, hipócritas e acumpliciados, um
sem número de pessoas de boa fé levadas a fazer da Presidente e de
seu partido o bode expiatório das mazelas da crise econômica e de
seculares vícios da política brasileira.
Porém, os que investiram alguma esperança de que a manobra re-
cuperasse a economia, sustasse o desemprego e moralizasse a política
não tardaram a ver baldadas as expectativas que a instrumentalização
política do judiciário e a manipulação midiática lhes inculcaram. Tão

87
Luiz Carlos da Rocha, Deivis Perez e Ruchelli Stanzani Ercolano

logo tomado o poder, uma enxurrada de medidas profundamente


antipopulares e lesivas aos interesses nacionais, acompanhada por
formidável recrudescimento da violência repressiva, veio mostrar
que as diferenças entre o governo legítimo e o empossado poder
golpista estavam na contramão de qualquer esperança respeitável.
Então, fazemos nossas as palavras de Raduan Nassar (Carta Capital,
2017), quando agraciado pelo Prêmio Camões de 2016: “O golpe
está dado e não há como ficar calado”.
Mas também nossa Associação Brasileira de Psicologia Social
(ABRAPSO) não permaneceu calada. Antes mesmo do desfecho
da operação golpista, a Associação reafirmara seu compromisso com
a democracia e a luta pela justiça social, e conclamara seus próxi-
mos ao debate esclarecedor e à resistência. Não poderia ser de outra
maneira. Quem se perdesse em achar que a Associação Brasileira
de Psicologia Social se renderia à censura covarde e à neutralidade
irresponsável por certo não lhe conhece a história.
Fundada entre os que lutavam contra a ditadura militar, a ABRAP-
SO sempre trabalhou por uma Psicologia Social comprometida com
os ideais de autonomia e empoderamento popular, absolutamente
avessos aos dos golpistas. E dela e dos que lhe dão vida nos mais
diversos movimentos sociais, nos organismos de implementação de
políticas públicas, nas universidades que queremos públicas e para
todos, e onde quer que a Psicologia Social esteja presente, corre
o incentivo à iniciativa e à resistência. Disso poderíamos citar o
testemunho de muitos, e agora mesmo nos passa pela lembrança as
palavras firmes e a imagem querida de tantos e de tantas. Mas é a
saudade e o carinho que nos leva a evocar, em nome de todos nós, a
memória seminal de Sílvia Lane (1933-2006), nossa fundadora, e de
Madre Cristina (1916-1997), nossa inspiradora.
De Silvia, lembramos sobretudo o firme espírito de iniciativa tan-
tas vezes por nós testemunhado, e registrado por Antonio Ciam-
pa (2007), em artigo em sua homenagem, quando evocou Hanna
Arendt (1906-1975) para lembrar que seu maior legado foi a sua

88
Psicologia Social contra o golpe

permanente disposição e coragem de tomar a iniciativa e de imple-


mentar movimento a algo que parecesse difícil ou mesmo impossí-
vel. De Madre Cristina, recorremos à nossa própria memória para
recordar que, em 1971, nos anos de chumbo da ditadura implantada
por outros golpistas, como os de hoje, quando o silêncio e a acomo-
dação eram impostos pelas armas, ela evocava Chico Buarque para
incentivar jovens estudantes de Psicologia, como nós, naqueles tem-
pos duros, como os de agora: “é preciso que a prepotência da força
seja vencida pela esperança, e quero muito que seja pela coragem de
vocês, e não apesar de vocês”.
É sob essa grande inspiração que oferecemos a pequena contribuição
deste artigo, cujo objetivo é exercitar recursos da Psicologia Social no
exame de um dos muitos episódios do golpe. E, sobretudo, apoiar
nossa práxis no entendimento crítico e no enfrentamento da dura
conjuntura que o golpe parlamentar-judiciário-midiático-civil de
2016 nos impõe. Movidos por essa esperança, passamos agora a
apresentar o referencial teórico-metodológico, o desenvolvimento
deste breve artigo.

Sobre o referencial teórico-metodológico


O referencial aqui adotado situa-se no âmbito geral da ênfase his-
tórico-social da Psicologia Social, em sua vertente foucaultiana. Mais
especificamente, tomaremos como ferramentas teóricas duas noções
apresentadas por Michel Foucault em seus estudos genealógicos. A
primeira tem sua síntese na inspirada inversão do célebre aforismo
de Clausewitz, e sugere que a política possa ser pensada como a con-
tinuação da guerra desenvolvida por outros meios:
se o poder é em si próprio ativação e desdobramento de uma rela-
ção de força, em vez de analisá-lo em termos de cessão, contrato,
alienação, ou em termos funcionais de reprodução das relações de
produção, não deveríamos analisá-lo acima de tudo em termos
de combate, de confronto e de guerra? (Foucault, 1979, p. 176)

89
Luiz Carlos da Rocha, Deivis Perez e Ruchelli Stanzani Ercolano

Essa proposta adverte que poder é uma relação de força que pode
impor regras e delas se utilizar, porém, por mais que pareça, nunca
se submete ou se limita a elas.
A segunda tem um caráter um tanto epistemológico e propõe
a instigante ideia de que a verdade, ingenuamente compreendida
como uma adequada representação do real, pode ser melhor enten-
dida como um efeito de discursos e de práticas sociais que mantêm
com o real uma relação fundamental de luta e estranhamento (Fou-
cault, 1996). Essa posição inovadora, e algo surpreendente, decorre
de premissas que o filósofo extrai do pensamento nietzschiano, as
quais lhe permitem contraditar Kant e, parodiando-o, postular en-
tre a experiência e o objeto de experiência uma relação de absoluta
heterogeneidade.
Em termos mais simples, a proposta é que se considere critica-
mente aquilo que chamamos de conhecimento como uma cons-
trução que pode se propor como verdade, pode mesmo circular e
cumprir funções (efeitos) de verdade, ainda que não a seja e nunca
tenha a menor condição de sê-la. Para a práxis, o convite é focar
criticamente, sobretudo, os domínios de saber que detêm o poder
de constituir a verdade sobre algo e resistir a tomar seus veredictos
como emanados da suposta natureza de seus objetos de saber e de
poder. Assim, como já sabemos, rotulações psiquiátricas revelam
mais sobre a Psiquiatria que sobre seus “pacientes”. E o desenvolvi-
mento desse impeachment revela mais acerca das forças golpistas que
sobre “pedaladas”.

Sobre os fiscais das pedaladas


Como se sabe, a caracterização das chamadas pedaladas fiscais
como crime de responsabilidade foi formalmente decisiva para o
processo de impeachment. O artifício contábil é comum a todos os
exercícios presidenciais, pelo menos desde FHC, e foi utilizado pelo
menos por uma dúzia de governadores recentes, entre eles o próprio

90
Psicologia Social contra o golpe

Anastasia que, no Senado, desempenhou o papel de relator do “cri-


me”.
Na sessão do Senado que perpetrou o impedimento de Dilma, a
acusação apresentou duas únicas testemunhas, um procurador do
Ministério Público (MP) e um auditor do Tribunal de Contas da
União (TCU). A importância dessas testemunhas consistia em ser,
o primeiro, o autor da representação que indagava sobre o possível
crime ao TCU, e o outro, um auditor do órgão, destacado especialis-
ta na questão. O procurador seria desqualificado como testemunha
por decisão do presidente do STF - e, no caso, da sessão - por seu
vínculo militante nas manifestações de rua e mídia social da causa
da rejeição das contas do governo pelo TCU. Mas, o interessante é
que, ouvidos separadamente, o auditor reconheceu que foi ele pró-
prio quem redigiu, em conjunto com o procurador, a representação
formalmente apresentada à apreciação do TCU pelo Ministério Pú-
blico: algo como se o promotor e o juiz trabalhassem juntos a peça
acusatória contra o réu, como inutilmente buscou destacar a defesa.
Desnecessário dizer que a petição do conluio foi acolhida e por ela
o governo foi questionado; entretanto, a tramoia não pararia aí. A
Presidência apresentara suas explicações e obtivera acolhimento de
dois auditores para seus argumentos, mas suas manifestações foram
consideradas inconclusivas pelo chefe da Secretaria de Recursos do
TCU (Serur) na qual a questão tramitava. Então, pasmem: o TCU
resolveu remeter as explicações do governo à apreciação do próprio
procurador, para indagar se elas esclareciam seus questionamentos.
O resultado é conhecido. Dias depois, o empossado “presidente”
nem tocaria na questão das pedaladas em seu pronunciamento a em-
presários e investidores na sede da American Society/Council of the
Americas, em Nova York, quando defendeu a rigorosa legalidade e
legitimidade do processo de impeachment:
Há muitíssimos meses atrás [sic], nós lançamos um documento
chamado ‘Ponte para o Futuro’ porque verificávamos que seria

91
Luiz Carlos da Rocha, Deivis Perez e Ruchelli Stanzani Ercolano

impossível o governo continuar naquele rumo e até sugerimos ao


governo que adotasse as teses que nós apontávamos naquele do-
cumento”, afirmou Temer. “Como isso não deu certo, não houve
a adoção, instaurou-se um processo que culminou, agora, com a
minha efetivação como presidente da República, concluiu. (Carta
Capital, 2016)

De resto, ofereceu a garantia de que tinha força no Congresso para


aprovar a reforma da Previdência, a flexibilização das leis trabalhis-
tas privilegiando o livre acordo entre empregados e empregadores,
e para realizar o ajuste das contas públicas. Agora sabemos o que
se deve esperar quando a ingenuidade de nossa boa fé no estado de
direito se depara com a violência, por vezes insuspeita, das condutas
de guerra e de produção de efeitos de verdade por uma conspiração
contra uma nação.

Referências
Carta Capital. (2016, 23 de setembro). Impeachment ocorreu porque Dilma
recusou “Ponte para o Futuro”. Recuperado de

https://www.cartacapital.com.br/politica/temer-impeachment-ocorreu-porque-
dilma-recusou-ponte-para-o-futuro

Carta Capital. (2017, 17 de fevereiro). “Não há como ficar calado”: a íntegra do


discurso de Raduan Nassar. Recuperado de

http://jornalggn.com.br/noticia/nao-ha-como-ficar-calado-a-integra-do-
discurso-de-raduan-nassar-no-premio-camoes.

Ciampa, A. C. (2007). Silvia Lane: o homem em movimento. Psicologia &


Sociedade, 19(n. spe. 2), 17-18.

Foucault, M. (1996). A verdade e as formas jurídicas (R. C. M. Machado & E. J.


Morais, Trads.). Rio de Janeiro: Nau.

Foucault, M. (1979). Microfísica do poder (R. Machado, Trad.). Rio de Janeiro:


Edições Graal.

92
CAMINHOS DA PSICOLOGIA
SOCIAL: PERSPECTIVAS DE
AÇÃO DIANTE DA PRIVAÇÃO DE
DIREITOS

José Fernando Andrade Costa


Carlos Eduardo Mendes
Ivani Francisco de Oliveira

A contribuição social da Psicologia para América Latina. Essa


foi a grande preocupação de José Ignácio Martín-Baró, psicólogo e
sacerdote jesuíta, brutalmente assassinado pelo exército de El Sal-
vador, em 1989. Sua análise arguta sobre a insuficiência da Psico-
logia em responder adequadamente aos problemas concretos dos
povos latino-americanos inspira, cada vez mais, a edificação de um
compromisso político dos profissionais de Psicologia com a efetiva
transformação da sociedade.

93
José Fernando Andrade Costa, Carlos Eduardo Mendes e Ivani Francisco de Oliveira

Aos passos da história recente, as discussões acerca dos trabalhos


realizados por psicólogas(os) envolvidos com os interesses das co-
munidades têm se expandido e, consequentemente, identificado
novas demandas e a necessidade de novos conhecimentos e novas
perspectivas de ação. Nesse sentido, o momento histórico atual en-
seja a reflexão crítica sobre os caminhos trilhados pela Psicologia,
em especial no que concerne à Psicologia Social.
Foi nesse sentido que propusemos e coordenamos a Roda de
Conversa intitulada “Caminhos da Psicologia Social: perspectivas
de ação diante da privação de direitos”, durante o XIII Encontro
Regional da Associação Brasileira de Psicologia Social (ABRAP-
SO), em São Paulo. Tal oportunidade possibilitou reunirmo-nos
com pesquisadoras(es) e estudantes interessadas(os) em apresentar
e discutir experiências de pesquisa e intervenção orientadas para a
construção de uma efetiva práxis, a partir de diferentes campos de
atuação (trabalho, comunidade, questão racial, sistema prisional,
políticas públicas, etc).
Este texto versa sobre a sistematização do diálogo resultante de
tal Roda de Conversa. Trata-se, portanto, de tentar reunir aqui
múltiplas vozes, fazendo um exercício de transformar uníssono em
polifonia, de fazer ressoar o aprendizado derivado de um rico e pro-
veitoso encontro. Reconhecemos que nossa síntese inevitavelmente
furta a riqueza do espaço compartilhado de troca de ideias, porém,
buscamos com este registro contribuir com o sentido histórico da
ABRAPSO em posicionar-se criticamente contra todas as formas de
opressão e autoritarismo persistentes em nossa sociedade.
Assim, resgatamos aqui, brevemente, os principais pontos levan-
tados e refletidos pelos autores e autoras em seus respectivos campos
de atuação que, de modo geral, versaram sobre diversas iniciativas
e formas de resistência e enfrentamento que se desenvolvem conec-
tadas ao seu fazer cotidiano, sempre em prol da defesa de direitos e
da valorização da vida.

94
Caminhos da Psicologia Social: perspectivas de ação diante da privação de direitos

Sobre os trabalhos apresentados e os temas discutidos


Em nossa Roda de Conversa foram inscritos seis trabalhos, entre
ensaios e relatos de pesquisa e intervenção, contando com a partici-
pação de onze autoras(es), além da participação de ouvintes-falantes,
em duas sessões de apresentações e debate.
Os trabalhos versaram sobre diferentes temas. O primeiro, de Le-
tícia Silva Santos (USJT/PUC-SP), sobre o “Significado do trabalho
para profissionais de áreas produtivas da indústria automotiva do
ABC paulista”, destacou a experiência da autora como psicóloga da
área de Recursos Humanos em uma montadora, onde tem percebido
que os trabalhadores do “chão de fábrica” vêm perdendo conquistas
trabalhistas históricas, o que lhes afeta diretamente em sua estabili-
dade empregatícia (e em sua carreira). Por isso, a autora propõe-se a
desenvolver uma pesquisa qualitativa participativa que considere o
protagonismo dos próprios trabalhadores nas (re)definições do sen-
tido do trabalho em tais circunstâncias.
Buscando dialogar metodologicamente, porém, com base na atua-
ção com comunidades, José Fernando Andrade Costa (USP) apre-
sentou algumas “Reflexões sobre a formação em Psicologia Social
Comunitária, a partir da luta de moradores da periferia de São Pau-
lo”. Neste trabalho, vimos uma experiência de pesquisa-ação partici-
pante na qual o pesquisador acompanha há seis anos a organização
de um grupo de moradores de um bairro de São Paulo, que luta
pela implantação de uma Unidade Básica de Saúde em sua região.
Nessa experiência, nota-se o processo de fortalecimento comuni-
tário (Montero, 2003) decorrente da ação dos moradores que, ao
buscarem transformar suas condições de vida, transformam-se a si
mesmos nesse processo. Além disso, foi enfatizado o impacto dessa
experiência de pesquisa-ação para a formação crítica do pesquisador,
reforçando a máxima de que “a luta é pedagógica”.
Luis Guilherme Galeão-Silva (USP) contribuiu com reflexões teó-
ricas relativas à “(Re)organização das formas de lutas por meio da

95
José Fernando Andrade Costa, Carlos Eduardo Mendes e Ivani Francisco de Oliveira

memória coletiva”. O principal destaque se refere ao potencial trans-


formador e de resistência contido nas narrativas. Quando o passado
não é elaborado, à força ou por alienação , suas marcas permanecem
e novas gerações padecem de males que desconhecem a origem. As-
sim, as narrativas, principalmente se estiverem articuladas aos es-
paços de ação política, podem propiciar a elaboração do passado e
proporcionar resistências e luta por reconhecimento. Nesse sentido,
entende que a elaboração do passado por meio da memória coletiva
é uma via promissora para a conscientização e para evidenciar lutas
por reconhecimento que visam garantir o respeito à dignidade de
todos(as).
O debate sobre esses três primeiros trabalhos fez emergir consi-
derações sobre um modo específico de fazer pesquisa e intervenção:
a pesquisa-ação participante. Além disso, trouxe a categoria memó-
ria para o centro das reflexões sobre o embasamento teórico-crítico
necessário ao desenvolvimento de uma efetiva práxis em Psicologia
Social.
No ciclo seguinte de apresentações, esses temas foram retomados
a partir de novas considerações. O quarto trabalho, coletivamente
apresentado por Bruno Fiuza Birman, Jonatas Santos Ferreira, Thais
Reis Santos e Thais Luana Michels Gimenez (Mackenzie), trouxe
os resultados da pesquisa intitulada: “Egressos do Sistema Prisio-
nal: histórias de vulnerabilidade social”. Aqui foi enfatizada as his-
tórias de vida de egressos do sistema prisional e a identificação tanto
dos elementos que parecem ter contribuído para o encarceramento,
quanto daqueles que podem ser considerados preventivos de situa-
ções de conflito com a Lei. A partir de entrevistas e análise de con-
teúdo, os pesquisadores(as) concluem que “as histórias de vida dos
sujeitos são marcadas pela presença da vulnerabilidade social” e que
ações profiláticas, nesses casos, passam pela formulação de políticas
públicas que ofertem, aos egressos, oportunidades de inserção, prin-
cipalmente pelo trabalho, sem com isso desconsiderar a importância
central do apoio familiar para a recuperação subjetiva desses sujeitos.

96
Caminhos da Psicologia Social: perspectivas de ação diante da privação de direitos

Ainda na perspectiva metodológica de trabalhar com histórias de


vida, Carlos Eduardo Mendes (USP) trouxe ao diálogo seu projeto
de doutoramento sobre “Perspectivas de futuro de jovens negras com
residência nas periferias brasileiras”. O autor ressaltou não apenas
a dimensão do direito à memória como modo de enfrentamento
da dominação, mas também o direito ao futuro, especialmente das
jovens negras nas periferias. Vítimas de diversas formas de violência,
raramente são consideradas como protagonistas das ações públicas.
Frequentemente esquecidas e subjugadas em situações de grande
vulnerabilidade, acabam tendo pouca ou nenhuma perspectiva de
futuro. Descortinar como opera a dominação e revelar as estratégias
de luta por reconhecimento é o diferencial desta pesquisa, que busca
fazer ressoar as vozes dessas mulheres.
Por fim, o último trabalho foi apresentado por Tiago Corbisier
Matheus (FGV), Roberth Tavanti (PUC-SP) e Lúcio Bittencourt
(UFABC), intitulado: “Pesquisa-ação e as vulnerabilidades em
M’Boi Mirim: juventudes, educação e cultura”. Os autores trou-
xeram suas reflexões sobre pesquisa-ação, enfatizando o caráter de
“estrangeiridade” dos pesquisadores, e consequente necessidade de
produção horizontal do conhecimento, além de indicarem a estra-
tégia metodológica de construção coletiva de mapas artesanais com
as pessoas da região onde se trabalha. Os pesquisadores ressaltaram a
heterogeneidade da categoria vulnerabilidade, estimulando a conti-
nuidade do debate na roda de conversa.

Resultado e conclusões: pesquisa-ação participante, memória


e vulnerabilidades

O resultado dessa Roda de Conversa foi um instigante debate,


durante as duas sessões, no qual puderam ser identificadas algumas
“perspectivas de ação” para a Psicologia Social, diante do atual ce-
nário de ameaça e privação de direitos. De modo geral, tais contri-
buições versaram principalmente sobre os seguintes temas: (a) de-

97
José Fernando Andrade Costa, Carlos Eduardo Mendes e Ivani Francisco de Oliveira

senvolvimento de metodologias participativas críticas em diferentes


contextos, em que a Pesquisa-Ação Participante se mostra um terre-
no fértil; (b) o resgate da memória enquanto um direito (direito ao
passado e ao futuro) e um método (de mobilização da consciência
política); (c) a formulação de uma noção crítica de vulnerabilidades,
no plural, capaz de abarcar a complexidade das situações de domina-
ção e apontar novos caminhos de ação.
Quando falamos em metodologias participativas em Psicologia
Social, o que exatamente estamos querendo dizer? Segundo Silvia
Lane (1984, p. 18) “pesquisa-ação é por excelência a práxis cientí-
fica”. Mas, será que estamos refletindo adequadamente, enquanto
comunidade científica, na Psicologia Social, sobre o que entendemos
por pesquisa-ação? Essa é uma pergunta muito pertinente e foi susci-
tada ao longo das conversas.
Diferentes contextos – como o empresarial, penitenciário, comu-
nitário – podem permitir ou dificultar modos de pesquisar mais ou
menos participativos. Além da circunscrição do ambiente, também
a dimensão da abertura para a participação do outro como agente
construtor da pesquisa deve ser refletida criticamente pelo pesquisa-
dor ou pesquisadora. Será que estamos de fato integrando as vozes
dos outros quando os convidamos a participar de nossas pesquisas?
Para saber, convém indagar sobre a relação estabelecida e refletir se
há reconhecimento recíproco entre “estrangeiros” e “autóctones”
quando iniciamos (e também quando publicamos!) nossas pesqui-
sas. Compartilhar, nesse caso, é um dever ético e também uma ação
política. E a pesquisa-ação participante é uma ferramenta de grande
utilidade para desenvolver ações transformadoras, desde que tenha-
mos sempre a consciência de refletir criticamente sobre seus princí-
pios e limites (Montero, 2006).
No caso da segunda categoria discutida, a memória, temos um
tema clássico para Psicologia em geral e da Psicologia Social em par-
ticular. A perspectiva de ação que encontramos ao refletir sobre a
memória remete ao que Martín-Baró (2011) afirmou ser uma das

98
Caminhos da Psicologia Social: perspectivas de ação diante da privação de direitos

tarefas urgentes da Psicologia Latino-americana, da Psicologia da Li-


bertação: recuperar a memória histórica dos povos oprimidos. Avan-
çando nesse caminho, percebemos que o combate ao esquecimento,
enquanto forma de dominação, exige a afirmação da memória histó-
rica e da memória coletiva (Schmidt & Mahfoud, 1993) como um
direito humano inalienável. Mais: memória enquanto mediadora da
ação e da consciência política não representa apenas um direito à
elaboração crítica do passado, mas também às condições para a ela-
boração de um futuro melhor, pelo qual vale a pena lutar.
Circulando a memória, aprofundamos a democracia. É neste sen-
tido que entendemos atualização da categoria “memória” no campo
da Psicologia Social enquanto uma perspectiva de ação diante da pri-
vação de direitos. Seu teor crítico se inscreve na própria enunciação
do direito à elaboração da história pelos povos oprimidos. Vivemos
um momento de pensar formas de resistência que aproximem a ela-
boração do passado com a experiência do presente, para que o futuro
não seja algo tenebroso, mas sim um caminho que devemos trilhar
em direção à nossa própria libertação.
Por fim, a última categoria-síntese de nossa roda de conversa foi
a noção plural de vulnerabilidades. Geralmente tomada no singu-
lar como “vulnerabilidade social”, acabamos tornando esvaziada de
sentido essa categoria, pois perdemos a relação dialética entre do-
minação e resistência nela contida. É preciso expandir seu signifi-
cado, aportando detalhes sobre o tipo específico de vulnerabilidade
e os fatores que permitem caracterizá-la enquanto tal. Por exem-
plo: a vulnerabilidade decorrente da ausência ou da ação direta do
Estado (vulnerabilidade institucional ou programática) difere de
vulnerabilidades decorrentes de condições ambientais específicas
(vulnerabilidade material) ou de situações de desproteção e risco
decorrentes das relações entre indivíduos e/ou grupos (vulnerabili-
dade social). Assim, convém identificar corretamente o que é con-
siderado vulnerabilidade em cada contexto e, consequentemente,
identificar as potencialidades que se contrapõem a tal situação. Este

99
José Fernando Andrade Costa, Carlos Eduardo Mendes e Ivani Francisco de Oliveira

é o indicativo de mais uma perspectiva de ação, diante da privação


de direitos.
Para encerrar este breve relato, gostaríamos de ressaltar que o ob-
jetivo dessa Roda de Conversa foi principalmente reunir pessoas
comprometidas com o desenvolvimento de uma efetiva práxis trans-
formadora. Reconhecemos os limites de tal empresa, porém sabemos
também que um caminho se trilha um passo de cada vez. E que todo
caminhar exige uma direção. Por isso, encerramos com as palavras de
Martín-Baró, que nos instiga a ir sempre mais adiante.
Há uma grande tarefa adiante se queremos que a Psicologia lati-
no-americana realize uma contribuição significativa para a Psico-
logia universal e, sobretudo, para a história de nossos povos. À luz
da situação atual de opressão e fé, de repressão e solidariedade, de
fatalismo e lutas, que caracteriza nossos povos, essa tarefa deve ser
a de uma Psicologia da Libertação. Mas uma Psicologia da Liber-
tação requer uma libertação prévia da Psicologia e essa libertação
chegará apenas por meio de uma práxis comprometida com os
sofrimentos e esperanças dos povos latino-americanos. (Martín
-Baró, 2011, p. 196)

Referências
Lane, S. T. M. (1984). A Psicologia Social e uma nova concepção de homem para
a Psicologia. In S. T. M. Lane & W. Codo (Orgs.), Psicologia Social: o homem em
movimento (pp. 10-19). São Paulo: Brasiliense.
Martín-Baró, I. (2011). Para uma Psicologia da Libertação. In R. S. L. Guzzo &
F. Lacerda (Orgs.), Psicologia Social para América Latina: o resgate da Psicologia da
Libertação (pp. 181-198). Campinas, SP: Alínea.
Montero, M. (2003). Teoría y práctica en la Psicología Comunitaria: la tensión entre
comunidad y sociedad. Buenos Aires: Paidós.
Montero, M. (2006). Hacer para transformar: el método en Psicología Comunitaria.
Buenos Aires: Paidós.
Schmidt, M. L. S. & Mahfoud, M. (1993). Halbwachs: memória coletiva e
experiência. Psicologia USP, 4(1/2), 285-298.

100
PARA UMA PSICOLOGIA NÃO
FASCISTA

Antonio Carlos Simonian dos Santos


Guilherme Reis
Fernando Aparecido Figueira do Nascimento
Mário Henrique da Mata Martins

Não é preciso ser triste para ser militante


(Foucault)

A proposição da Roda de Conversa “Para uma Psicologia não


fascista” tem uma relação direta com o desenvolvimento dos Gru-
pos de Estudos e Debates organizados pelo Núcleo Baixada Santista
– ABRAPSO. Não se trata somente de compreender a História da
Psicologia como um cenário em que se desenvolveram saberes pas-
sados. Trata-se de analisar a história do presente da Psicologia e da
Psicologia Social.

101
Antonio Carlos S. Santos, Guilherme Reis, Fernando A. F. Nascimento e Mário H. M. Martins

A leitura e a reflexão de diversos textos que problematizam o pa-


pel da Psicologia Social em nosso cotidiano, em especial os de Mar-
tin-Baró (1997), fazem emergir um conjunto de temas relacionado
com nossa práxis: o papel ético e político da ciência, a ideologia, a
emancipação e o processo de subjetivação em uma sociedade trans-
versalizada pela racionalidade de governo neoliberal.
Gergen (1973), ao propor a Psicologia Social como uma ciência
histórica, se afasta da noção que atravessa o saber científico des-
de o século XVIII: a construção de leis universais que possibilitam
prever e controlar o comportamento. O que implica, portanto, na
compreensão de que os princípios do comportamento e da intera-
ção humana estão relacionados com as condições históricas (Ger-
gen, 1973; Jacó-Vilela, Degani-Carneiro, & Oliveira, 2016). Não
há dúvida que aqui estamos no cerne de uma ampla discussão sobre
a ciência, seu método e seu papel na sociedade.
Durante todo o século XX, em seu movimento de autonomiza-
ção, a Psicologia recebeu críticas não somente quanto à falta de sua
unidade de campo, método e objeto, mas também como ciência
que, em sua proximidade com as classes dominantes, buscou es-
tratégias de normalização e a normatização dos indivíduos (Bock,
2009; Foucault, 2011; Prado-Filho, 2014).
Por sua vez, a possibilidade da constituição do sujeito psicológi-
co, além de um acontecimento na ordem do saber e a entrada do
homem como objeto das ciências, provoca ainda uma série de novas
questões no campo da psicopatologia. O que é o sujeito normal?
Como atribuir ao sujeito a sua verdade mais íntima? Na ordem
jurídica, como indicar aquele que é responsável por seus crimes?
Como classificar e identificar os fatores que predispõem o indivíduo
à doença mental?
Nestes movimentos de rupturas e continuidades, propomos a re-
flexão sobre a elaboração de uma ciência que produza seus saberes
assumindo, ou considerando, sua dimensão. Ainda que isso exija

102
Para uma Psicologia não fascista

reflexões não somente no campo metodológico, mas sobretudo em


sua interface com a ação política (Arendt, 2014) e a ética.

Apresentações e discussões
As apresentações sob dois diferentes enfoques teórico-metodoló-
gicos, o materialismo dialético e a análise do discurso, inspirada na
arqueologia de Foucault, abordaram trabalhos que colaboraram para
a formação da Psicologia e do sujeito psicológico no Brasil.
A respeito dos discursos sobre a doença e a saúde mental no Brasil
e a constituição do sujeito psicológico, nas décadas de 20 e 30 do
século passado, abordou-se a relação entre o desenvolvimento eco-
nômico da sociedade brasileira e o movimento higienista no país. A
Psicologia, considerada como ciência propedêutica ao saber psiquiá-
trico higienista, contribuiria, sobretudo, com o desenvolvimento
dos laboratórios e testes psicológicos e com as noções sobre o desen-
volvimento infantil, com o ideal de construção de uma sociedade
feliz, sadia e preparada para o trabalho. Em outras palavras, a prática
da Psicologia resultante da Psicometria, sobretudo quando inserida
na Liga Brasileira de Higiene Mental, teria como objetivo colocar
o homem certo no lugar certo, no trabalho e na sociedade, a partir
da revelação de sua verdade íntima. Ao mesmo tempo, esses saberes
colaboraram com o avanço dos processos de promoção e prevenção
das doenças mentais, conforme o higienismo mental da época. Nes-
te sentido, a leitura dos textos freudianos, entre outros, a teoria do
inconsciente e os textos sociais de Freud, também entraram no con-
junto de saberes apropriados pela psiquiatria e pela medicina social.
O zeitgeist daquele início de século - com o positivismo reinan-
te - possibilitou à elite influenciar a sociedade, desconsiderando a
ideologia e privilegiando a ideia de uma ciência neutra que conduz
a sociedade para o progresso, privilegiando a gestão: non ducor, duco!
Uma racionalidade de governo sobre os corpos que articulava duas
tecnologias: a disciplina e a biopolítica.

103
Antonio Carlos S. Santos, Guilherme Reis, Fernando A. F. Nascimento e Mário H. M. Martins

Pressionado pelo tempo, que somou o atraso no início da Roda, a


duração da primeira exposição e o debate decorrente, Thiago Bloss
de Araújo abordou a contribuição de Raul Briquet para a Psicologia
Social, objeto do seu profundo estudo de mestrado. O autor, par-
tindo de sua leitura marxista, evidencia o caráter da elite dos anos
30 do século passado, e endereça às angústias expressadas no deba-
te, decorrentes da exposição anterior, uma reflexão sobre o caráter
totalitário do capitalismo: o capital é o único sujeito, os indivíduos
são o predicado do capital. Nesse contexto, assinala que a democra-
cia ateniense era exercida pelos cidadãos; só eles participavam da
mediação social e política, configurando o caráter excludente dessa
democracia primitiva. Em seguida, abordou algumas características
do pensamento original de Raul Briquet, seu estudo e a desconstru-
ção do racismo reinante, sem, contudo, disfarçar seu próprio viés
racista, o que revelava, assim, as ambiguidades do pensamento deste
precursor da Psicologia Social.
Os aspectos relevados na apresentação conduziram às conside-
rações sobre o avanço do fascismo em nossa sociedade. Durante o
debate, os participantes da Roda evidenciaram o fascínio do fas-
cismo, constatado na circulação das ideias do deputado Bolsona-
ro; outras, na desconsideração que ocorre nos programas sociais de
inclusão (Bolsa Família), tanto em relação à pessoa atendida, que
tem desconsiderada a sua condição de sujeito e é percebida apenas
como usuária, quanto aos profissionais da área, que ficam limitados
à sua especialidade e impedidos de compreender o indivíduo em
perspectiva holística. Foram explicitados, ainda, a ampla interface
entre o positivismo, inclusive na compreensão da História, o mora-
lismo e o higienismo no Brasil, e como eles se manifestaram em um
racismo do Estado implícito na construção do sujeito psicológico,
bem como na construção de estratégias de promoção e prevenção
fundadas na terapia moral: “conquiste a confiança do paciente e o
induza a fazer o certo”.

104
Para uma Psicologia não fascista

A partir desse momento, a discussão abordou as possibilidades e


dificuldades de enfrentamento do saber psicológico frente às práticas
fascistas produzidas dentro do próprio campo de conhecimento. A
ojeriza ao positivismo nas vertentes críticas da psicologia brasilei-
ra produziu, como consequência, uma associação direta entre este
modelo de saber e o próprio fascismo. Essa associação trouxe como
decorrência grave a ilusão de que um posicionamento contrário ao
positivismo bastava para garantir que as práticas desenvolvidas pelos
pesquisadores e profissionais do campo da Psicologia fossem anti-
fascistas. Todavia, o fascismo pode se expressar em toda e qualquer
vertente do saber psicológico, o que implica um reposicionamento
dos profissionais do campo a respeito dessa condição.
Um exemplo claro foi o processo de classificação de pessoas fo-
mentado pela ciência psicológica. Por mais que uma determinada
pesquisa ou prática psicológica busque ser horizontal, há um abismo
que separa os psicólogos e pesquisadores da Psicologia e os seus in-
terlocutores. Quando psicólogos criam categorias nas quais as pes-
soas são classificadas, de acordo com critérios estabelecidos por eles
mesmos, determinam uma forma de exercício de poder autoritário
sobre o outro. A liberdade desses interlocutores lhes é tomada quan-
do a eles se atribuem classificadores como alienado, assujeitado, ou
mesmo empoderado. Embora pareçam formas válidas de denunciar
ou enaltecer determinada característica dos interlocutores, elas par-
tem de pressupostos e referenciais dos psicólogos para alcançar esse
objetivo. A dominação do outro permanece, mesmo nas vertentes
críticas da Psicologia, pela aplicação desse conhecimento à classifi-
cação do outro.
Frente a esse avanço sorrateiro (e por vezes gritante) do fascismo
na sociedade e dentro da própria ciência psicológica, resta-nos a per-
gunta: o que fazer? Os participantes da Roda apresentaram múltiplas
possibilidades de enfrentamento, sendo o questionamento da situa-
ção vigente e a discussão sobre a forma como têm se produzido o

105
Antonio Carlos S. Santos, Guilherme Reis, Fernando A. F. Nascimento e Mário H. M. Martins

conhecimento psicológico - mesmo que denominado crítico - ma-


neiras de reverter o fluxo de pensamento que se estruturou na lógica
de exercício de poder autoritário sobre o outro. É nesse sentido que
um embate cotidiano frente às manifestações fascistas dessa ciência
e um estudo contínuo da história do presente da Psicologia - uma
história de suas práticas sob este enfoque - se fazem urgentes.

Considerações finais
O número de trabalhos inscritos nesta Roda de Conversa foi, no
total, apenas três. Tal aspecto talvez tenha se dado em função da pro-
posição que objetivava não somente discutir o passado da Psicologia
e da Psicologia Social, mas, sobretudo, seu presente. No entanto, seu
título, inspirado no prefácio de Foucault para o livro Anti-Édipo,
não evidenciava de imediato esse objetivo.
Estudar a história da Psicologia e da Psicologia Social nos conduz
a refletir sobre o presente de nossas práticas e de nossa sociedade.
Que dominações do outro temos produzido em nosso cotidiano?
Quais práticas fascistas perpetuamos em nossa produção do conhe-
cimento psicológico? E, sobretudo, como fazer um movimento de
oposição a essas práticas que promova a liberdade das pessoas, e não
o seu aprisionamento dentro de nossos pressupostos psicossociais?
Os trabalhos apresentados nesta Roda remeteram diretamente a
reflexões sobre a atualidade e sobre nossa práxis. Afinal, o que po-
demos fazer em nosso cotidiano para promover ações antifascistas?
Como construir um modo de questionamento, não necessariamen-
te psicológico, mas sobretudo humanista, que considere o lugar do
outro como um lugar legítimo de saber e poder, nem acima e nem
abaixo do nosso?
Nas últimas intervenções, uma autocrítica: não estamos livres de
sermos autoritários, mesmo tentando construir uma posição críti-
ca sobre os saberes psicológicos. As exposições provocaram questões
nos participantes da Roda que assinalaram a importância do conhe-

106
Para uma Psicologia não fascista

cimento da história: é necessário conhecer a nossa história fascista na


Psicologia para compreendermos o nosso presente em busca de uma
psicologia não fascista.

Referências
Arendt, H. (2014). A condição humana. Rio de Janeiro: Forense.

Bock, A. M. B. A. (2009). Psicologia e sua ideologia: 40 anos de compromisso


com as elites. In Psicologia e compromisso social (pp. 15-28). São Paulo: Cortez.

Foucault, M. (2011). A Psicologia de 1850 a 1950. In Problematização do sujeito:


Psicologia, Psiquiatria e Psicanálise (Coleção Ditos e Escritos I, 3a ed., pp. 133-
161). Rio de Janeiro: Forense Universitária. (Original publicado em 1957)

Gergen, K. J. (1973). Social Psychology as History. Journal or Personality and


Social Psychology, 26(2), 309-320.

Jacó-Vilela, A. M., Degani-Carneiro, F., & Oliveira, D. M. (2016). A formação da


Psicologia Social como campo científico no Brasil. Psicologia & Sociedade, 28(3)
526-536.

Martin-Baró, I. (1997). Accion e Ideologia: Psicologia Social desde Centroamérica.


San Salvador: UCA.

Prado-Filho, K. (2014). Para uma arqueologia da Psicologia (ou para pensar uma
psicologia em outras bases). In N. M. F Guareschi & S. M. Huning (Orgs.),
Foucault e a Psicologia (pp. 81-102). Porto Alegre: EdiPUCRS.

107
MOVIMENTOS SOCIAIS
E AUTÔNOMOS NO
ENFRENTAMENTO ÀS PAUTAS
AUTORITÁRIAS E À LÓGICA
PRIVATISTA

Christiane Alves Abdala


Fernando Aparecido Figueira do Nascimento
Antonio Carlos Simonian dos Santos
Danielle Kepe de Souza Pinto
Rafael Lima

A ABRAPSO Regional São Paulo e seus vários núcleos têm ex-


pressado o objetivo e a necessidade de sua aproximação junto aos
movimentos sociais. Isso implica sobretudo, reconhecer a dimensão
política de nosso campo e a tarefa, como refere Martin-Baró (1996),
de construção do “que fazer” psicológico que se comprometa com a
emancipação dos povos. Como sabemos, tarefa nada simples.

108
Movimentos sociais e autônomos no enfrentamento às pautas autoritárias e à lógica
privatista

Essa Psicologia da Libertação, conforme afirma Lacerda Junior


(2016) ao apresentar a perspectiva de Martin-Baró sobre a práxis e a
produção dos saberes psicológicos, deve alicerçar-se nos problemas
reais dos povos, analisar o potencial crítico dos saberes produzidos
e, sobretudo, deve conduzir a uma práxis que busca a transformação
social das históricas condições de opressão.
Assim, a Roda de Conversa “Movimentos sociais e autônomos no
enfrentamento às pautas autoritárias e à lógica privatista”, realizada
no XIII Encontro da Regional São Paulo da ABRAPSO, objetivou
proporcionar um espaço de diálogo entre os movimentos sociais e/
ou autônomos, os pesquisadores, os(as) psicólogos(as), os psicólo-
gos(as) sociais e demais interessados na reflexão acerca das formas de
enfrentamento às pautas autoritárias e à lógica privatista.
O avanço dos projetos de um governo ilegítimo, que ataca a con-
solidação das políticas públicas, congelando seu financiamento, os
ataques aos direitos dos trabalhadores, e a participação cada vez
maior da iniciativa privada na administração pública tendem a apro-
fundar as desigualdades históricas de nosso país.
Mas, a lógica privatista encontra ainda braços largos no fascis-
mo cotidiano que de alguma forma o neoliberalismo fortalece: a
violência policial, como forma de controle das populações; o ex-
termínio da população negra e periférica; a ressonância cotidiana
do discurso conservador, que sustenta o racismo, a homofobia e a
misoginia. Os sujeitos, ainda mais endividados, guardam com ran-
cor o que lhes pertence e é na aquisição de objetos que encontram
parâmetros para avaliação de sua vida. Mas, para além da culpabi-
lização dos sujeitos, é importante lembrar que, em sua violência es-
trutural, trata-se de aspectos que sustentam os modos de produção
do capitalismo.
Nesse sentido, vale destacar dois aspectos relacionados à produ-
ção de subjetividade a partir desta racionalidade: “o sofrimento é a
dor mediada pelas injustiças sociais” (Sawaia, 2010, p. 104); e, “as

109
Christiane Alves Abdala et al.

vítimas podem tornar-se, por força contínua da exclusão, algozes de


uma sociedade que não as recebe, que não as contém, que não as res-
peita” (Mello, 2010, p. 142). Desta maneira, consideramos tratar-se
de um importante debate em nossa atualidade, à medida que visou
trazer a possibilidade de articular saberes e temáticas de diferentes
campos, atores de diferentes lugares, conhecimentos e práticas de
diferentes âmbitos.
Por sua vez, o Núcleo Baixada Santista da ABRAPSO vem siste-
maticamente se aproximando, participando, compondo e discutindo
junto aos movimentos sociais e/ou autônomos temas de relevância
social, na tentativa de concretizar aquilo que Arendt (1958/2014)
denominou “ação política”, destacando que tal ação precisa acon-
tecer no espaço público e entre cidadãos. Mais do que cidadania,
a emancipação dos povos se constrói na ação política cotidiana. Se
é impossível que o psicólogo social transforme as condições sociais
que enfrenta, sua compreensão sobre os processos de subjetivação,
dos processos de sofrimento ético-político, e sua práxis para desi-
deologização das injustiças sociais podem assumir importante papel.
Entretanto, precisamos aprender com os movimentos sociais que
cotidianamente estão na luta; precisamos, então, romper com com-
promissos históricos que a Psicologia assumiu em favor dos valores
dos opressores.
A atuação legítima de movimentos sociais e/ou autônomos traz
novas perspectivas e desafios ao cotidiano das populações e ao saber
acadêmico. Com a atual crise da democracia representativa, obser-
vamos coletivos novos surgindo a cada dia, com problematizações,
posicionamentos e atitudes diversas. A Psicologia Social, enquanto
ciência de dobra na díade indivíduo X sociedade, não pode se abster
desta realidade.
Sendo assim, para a concretização desta Roda de Conversa, além
de duas pesquisas acadêmicas inscritas, foram convidados três coleti-
vos: Mídia Ninja, Família Chegados e Coletivo Perifatividade, todos
com propostas e ações relacionadas a posicionamentos críticos que

110
Movimentos sociais e autônomos no enfrentamento às pautas autoritárias e à lógica
privatista

lutam contra a desigualdade social e a manipulação político-partidá-


ria, visando um real enfrentamento às pautas autoritárias e à lógica
privatista crescentes em nossa sociedade.

Entre a academia e a rua: é nóis!

Antes ainda de iniciarmos o relato sobre o desenvolvimento da


Roda de Conversa, vale esclarecer a posição metodológica para a
construção coletiva deste texto: optamos por reproduzir as anotações
dos participantes e autores. Obviamente, por questões de espaço,
muito não foi reproduzido.
A Roda se iniciou com a leitura da Carta de São Caetano, docu-
mento construído coletivamente pelos integrantes da ABRAPSO,
que frisou seu posicionamento sobre os contextos sociais da atuali-
dade brasileira (as ocupações, o fascismo, as Propostas de Emendas
Constitucionais/PECs ilegítimas, etc). A primeira exposição abor-
dou o conforto e os movimentos sociais, iniciando com uma propos-
ta de vivência de apresentação do grupo. De pé a orientação: rodar –
passos para o lado, para o outro, rodar, seguindo até o ponto inicial.
Resultado: todos descontraídos! Em seguida, o autor apresentou o
tema evidenciando a necessidade de pensar de forma diligente sobre
como as atitudes arraigadas estão na origem do desconforto e de-
mandam uma reflexão por parte dos movimentos sociais. Nos seus
trabalhos como arquiteto, nos estudos na área de enfermagem, o
conforto apareceu como o termo médio no contínuo que apresenta
nos extremos, os excessos. Quando estamos no desconforto é neces-
sário buscar o “conforto”.
O segundo tema abordou experiências de massa e o inconsciente
em Vygotsky, com o alerta de um teor acadêmico para construir uma
formulação teórica forte, voltada à realidade. O discurso amparou-
se em Freud, Le Bon, eventos do início do século passado, Primeira
Grande Guerra, Revolução de 1917, e as manifestações de massa,
em uma exposição acelerada pelo curto espaço de tempo, e encerra-

111
Christiane Alves Abdala et al.

da na ênfase da filogênese e a ontogênese, necessárias à internalização


das condições sociais.
O Núcleo Baixada Santista anunciou, na sequência, o coletivo
Perifatividade, que iniciou sua exposição com a leitura de uma poe-
sia “o fuzil de minha palavra precisa estar voltado para a verdadeira
revolução...”. A militante apresentou a proposta: trabalhar com as
escolas que abrem as suas portas para as propostas elaboradas pelos
integrantes do Perifatividade. Esse coletivo propõe saraus, círculos
de cultura, produção de livros, cineclube, em que a revolução se
inicia pela educação, mesmo na resistência de algumas instituições.
Perifatividade leva também a poesia para outros espaços: espaços
públicos, microfone na mão. Outro militante conta que foi abor-
dado por PMs num bar durante um sarau, “o bicho pegou!”. O PM
levou; o delegado liberou: esse delegado conhecia o trabalho do
coletivo! Alívio. A apresentação se encerrou com três dos militantes
cantando um rap: “crime organizado é o Estado brasileiro ..., lutar e
resistir”.
A quarta apresentação foi do “Mídia Ninja”, coletivo de jovens e
produtores culturais, que constituem a Rede Fora do Eixo, e que se
resumiu como: “somos de um movimento que surgiu da periferia do
Brasil, no Norte, no Centro, fora do eixo”. Enfrentando dificuldades,
afirmaram buscar alternativas, seja a partir da relação com novas
possibilidades de economias solidárias, seja na inovação e nas dinâ-
micas que envolvem aspectos da produção e circulação de música
independente. Como diferencial, veio a ideia de morar juntos, criar
casas coletivas, vinte a trinta pessoas convivendo, “tesão e confian-
ça”; e transcender a música, buscando novas formas de produção e
interação a partir de mídias e plataformas que visam a circulação de
artistas independentes pelo Brasil. Segundo este grupo, entre 2005
e 2011, cerca de 150 coletivos circulavam em São Paulo envolven-
do bandas, produzindo turnês, no formato do it yourself. Em 2013,
surgiu a Mídia Ninja, em um funcionamento que ninguém ganha
salário, o caixa é coletivo. São jovens saídos da classe média, que

112
Movimentos sociais e autônomos no enfrentamento às pautas autoritárias e à lógica
privatista

lidam com tecnologia, não vêm das quebradas, mas têm conexão.
São desiludidos com o que está aí: o discurso da “não política”,
os erros do “petismo”, a busca de diálogo com quem não tinha o
que falar. Em junho de 2013, consideram que cobriram a “parada”,
descentralizaram, subverteram, pois quem ia para a mobilização,
quando voltava para casa não via o que aconteceu: o encarceramento
em massa, a porrada que começou “a comer”; a estratégia de mobi-
lização mudou para ocupação. Uma nova forma de enfrentamento
se delineou, e a Mídia Ninja se consolida por aí.
A última apresentação foi da ‘Família Chegados’. O militante do
‘Chegados’ convidou os participantes da Roda para aquecer com um
grito repetido: “É NÓIS!”. Todos acompanharam. No relato: um
grupo de amigos da Vila Margarida (São Vicente-SP), que não tinha
carrinho, nem videogame, nada de escola, nem a importância dos
livros. Esse grupo enxergou tarde o conhecimento e resolveu ajudar
o pessoal das “quebradas” em uma procura: “falamos com os brothers:
surf, skate, que não é do nosso pesado, música na internet, o bagulho
é louco!”. Em 2014, com hip-hop, break; um sarau!!! Rádio-feira, bi-
blioteca comunitária, pipa – “a gente gosta de pipa!!” Tome: festival
de pipa poética. Mas “e para colocar o arroz-feijão em casa? “Morar
junto é legal, mas não ‘tamo’ nisso, mas a gente sempre teve junto”. Na
comunidade, as mães perguntam: “Onde vai? Para rua! Para a rua?
Onde? É para a rua. Para rua! Para a biblioteca. Biblioteca? Melhorou!”
Alguém do Perifatividade interveio: é sempre assim nas quebradas.
O do Chegados retrucou: “tem muito trabalho de vocês para ‘eles’ de-
fenderem, nós não!”. Perifatividade respondeu: “Vocês são da faculdade
da rua: ‘bundinha de almofada’, qual é a biografia? Qual é a referência
bibliográfica?” Chegados respondeu: “para ter uma noção do atraso:
nós não ‘ocupa’ a escola porque escola é nada pra ‘nóis’. Pra que escola?”
Perifatividade respondeu: “escola do jeito que está deforma. Minha es-
cola foi o rap, ter é melhor que não ter”.
O diálogo perdurou até a perda coletiva da noção do tempo, em
uma conclusão de que os movimentos sociais presentes “deram uma

113
Christiane Alves Abdala et al.

aula para “nóis”. Sem fronteiras nas diferenças apresentadas, consi-


derou-se consensualmente, a necessidade de uma desconstrução do
conservadorismo, por meio de trocas, compartilhamentos e apro-
fundamentos de diferentes saberes, advindos de diversos lugares. O
desconforto, de faceta de persistência e não comodismo se apresen-
tou como primordial para a conquista dos espaços, em que o en-
frentamento às pautas autoritárias e à lógica privatista teria como
sustento a luta coletiva de somatória das singularidades.

Considerações para não finalizar

Entendemos que as tensões fazem parte das discussões, princi-


palmente nesse compartilhamento de saberes vindos de lugares tão
distintos. As dificuldades na construção coletiva são evidentes e de-
nunciam as amarras do sistema socioeconômico-político ao qual
estamos submetidos, que privilegia uns em detrimento de muitos,
um sistema marcado por segregações, inclusive em distinção de va-
lor “mercadológico” de certos discursos, com pesos desiguais de for-
mas de conhecimentos. Entretanto, enfrentar faz parte, e essa tem
sido a palavra e a ação diferenciais da proposta para a transformação
social com intervenção e comprometimento ético-político, visando
uma sociedade mais justa.
Questões de gênero, violência policial nas periferias, ocupação
dos espaços públicos e criminalização dos movimentos sociais foram
alguns dos importantes pontos abordados pelos atores envolvidos
nesta Roda, além da difícil articulação entre a academia, os saberes
por ela produzidos e a sociedade em geral. As provocações, as ten-
sões do encontro, os estranhamentos e as aproximações marcaram
a necessidade de reflexões contínuas sobre o papel do psicólogo ou
psicóloga social, não só nos movimentos sociais. Os movimentos
sociais articularam-se sem a presença de profissionais da Psicologia e
da Psicologia Social. Possuem vida e seu enfrentamento é cotidiano.
Nas palavras da filósofa francesa “o alimento que uma coletividade

114
Movimentos sociais e autônomos no enfrentamento às pautas autoritárias e à lógica
privatista

fornece à alma dos seus membros não tem equivalente em todo o


universo” (Weil, 1949/2014, p. 15).
O encontro desta Roda de Conversa reforçou que não existem
barreiras quando se reconhece a potência que emerge da troca de sa-
beres; que a realidade social não exclui a academia, e que esta última
deve estar à serviço da primeira. A Psicologia Social vai ao encontro
dessa perspectiva, que se mostra substancial no enfrentamento das
pautas emergentes, em que prevalecem a constante violação de di-
reitos sociais.

Referências
Arendt, H. (2014). A condição humana. (R. Raposo, Trad.). Rio de Janeiro:
Forense Universitária. (Original publicado em 1958)

Lacerda, F. (2016). Insurgência, psicologia política e emancipação humana. In F.


Lacerda & D. U. Hur (Orgs.), Psicologia política crítica: insurgências na América
Latina (pp. 49-63). Campinas, SP: Alínea.

Martin-Baró, I. (1996). O papel do psicólogo. Estudos de Psicologia, 2(1), 7-27.

Mello, S. L. (2010). A violência urbana e a exclusão dos jovens. In B. Sawaia


(Org.), As artimanhas da exclusão: análise psicossocial e ética da desigualdade social
(pp. 131-142). Petrópolis, RJ: Vozes.

Sawaia, B. (2010). O sofrimento ético-político como categoria de análise da


dialética exclusão/inclusão. In As artimanhas da exclusão: análise psicossocial e ética
da desigualdade social (pp. 99-119). Petrópolis, RJ: Vozes.

Weil, S. (2016). O enraizamento: prelúdio para uma declaração dos deveres para com
o ser humano. (J. Ferreira & J. Claudio, Trads.). Lisboa: Relógio d’água. (Original
publicado em 1949)

115
VIOLÊNCIA DE ESTADO NA
DEMOCRACIA: OPRESSÕES DE
RAÇA, GÊNERO E ORIENTAÇÃO
SEXUAL

Ivani Francisco de Oliveira


Elizangela André dos Santos
Clélia Rosane dos Santos Prestes

Este capítulo relata o diálogo estabelecido em duas Rodas de


Conversa intituladas “Violência de Estado na Democracia: opres-
sões de raça, gênero e orientação sexual”, ocorridas no XIII Encon-
tro da Regional São Paulo da Associação Brasileira de Psicologia
Social (ABRAPSO-SP), que reuniu pesquisadores e estudantes in-
teressadas/os em discutir a violência organizada e sistemática que se
dirige a alvos definidos com base na raça, no gênero e na orientação
sexual.
O genocídio da juventude negra, o perverso sistema prisional e
socioeducativo, as violências racistas e/ou machistas, a tortura, a

116
Violência de Estado na democracia: opressões de raça, gênero e orientação sexual

violência policial e a violência de gênero são exemplos concretos


e atuais dessas violências, que vêm sendo exercidas e experimenta-
das sem serem reconhecidas como tais. Pois, devido ao seu caráter
estrutural, transformaram-se em algo normal, banal e até mesmo
socialmente aceito. São violências que se expressam, também, na
desigual distribuição do poder e, consequentemente, resultam em
oportunidades desiguais, na discriminação e na injustiça social. Os
trabalhos indicaram, por caminhos diferentes, a necessidade de am-
pliar a compreensão sobre a Violência do Estado na Democracia.
Os participantes das Rodas de Conversa trouxeram relatos de
atos e condutas violentas praticadas por profissionais das áreas pú-
blicas da saúde e da segurança, particularmente contra indivíduos
ou grupos desfavorecidos no que diz respeito às dimensões social e
econômica. As exposições realizadas evidenciaram os limites estatais
no sentido de controlar os seus agentes e impedir as agressões e dis-
criminações nos serviços ou processos operados pelo Estado contra
a pessoa ou contra coletividades, por motivo de raça ou gênero.
O Estado tem sido cada vez mais cobrado pelos movimentos so-
ciais e levado a reconhecer as especificidades dos grupos em situação
de risco. Ao mesmo tempo, os processos burocráticos têm operado
uma dinâmica que desqualifica, ao não registrar de forma adequada,
por exemplo, o quesito raça/cor, ou exige o ‘boletim de ocorrência’
como impedimento para não realizar o atendimento, inviabilizan-
do o acesso à proteção de grupos historicamente violentados. Os
procedimentos burocráticos mencionados impedem a possibilidade
de verbalização do sofrimento vivido pelas pessoas desses grupos, o
que, segundo Bento e Carone (2002), tem como desdobramentos o
silêncio, que contribui para aumentar a exclusão dos indivíduos, e o
descomprometimento do Estado e da sociedade com os segmentos
populacionais em tela. A autora chamou esse processo de ausência
de compromisso moral com os excluídos, que resulta na perpetua-
ção do sofrimento.

117
Ivani Francisco de Oliveira, Elizangela André dos Santos e Clélia Rosane dos Santos Prestes

As perspectivas de inserção no mercado de trabalho das mulheres


negras fizeram parte das discussões das Rodas de Conversa, que sina-
lizaram a inserção dessas mulheres em posições consideradas de me-
nor prestígio social em nosso país. Nesse sentido, a chamada análise
interseccional da problemática foi apontada como potencialmente
relevante, na medida em que oferece aportes teóricos e metodológi-
cos capazes de apoiar pesquisadores, trabalhadores e ativistas sociais
nos processos de identificação das desigualdade de gênero e de luta
contra as situações de dominação às quais estão submetidas as mu-
lheres negras.

Sobre os trabalhos apresentados e os temas discutidos


Nesta opção de Roda de Conversa foram inscritos doze trabalhos,
contando com a participação ativa de autoras(es) e de ouvintes, em
três sessões de apresentações e debate. Os trabalhos contemplaram
diferentes temáticas. O primeiro, de Flávia Roberta Eugênio, espe-
cialista em Psicologia Política pela Universidade de São Paulo (USP)
e mestranda em Psicologia Social pelo Programa de Pós-graduação da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (NUTAS/PUC-SP),
chamado “O atendimento aos casos de violência contra a mulher:
os desafios da rede em face da violência estrutural”, descreveu a sua
experiência como trabalhadora psicóloga na rede de atendimentos à
mulher em situação de violência, em que percebeu que a burocracia
e a exigência do boletim de ocorrência comprometem a qualidade da
acolhida dessas mulheres.
Orientada por uma perspectiva feminista, Tamiris da Silva Canta-
res relatou o estudo “Violência contra mulheres: diretrizes políticas da
Psicologia para o exercício profissional”, uma pesquisa documental
cujo objetivo foi identificar e problematizar as diretrizes políticas que
orientam o exercício profissional da Psicologia, referentes à violência
contra as mulheres. A autora analisou os cadernos do Congresso Na-
cional de Psicologia entre os anos 1994 a 2013. A metodologia, ins-

118
Violência de Estado na democracia: opressões de raça, gênero e orientação sexual

pirada pelo viés materialista histórico-dialético, configurou-se pela


produção interpretativa, de caráter quantitativo e qualitativo, por
meio da técnica de análise de conteúdo. A análise observa a ênfase
em políticas públicas e direitos humanos, apresentada nas referências
técnicas para a prática profissional; e incentiva a organização coletiva
para a garantia de direitos e compreensão das múltiplas dimensões
da violência, considerando o diálogo com os movimentos sociais e
populares e a participação política dos profissionais de Psicologia
nos órgãos de controle social. Estes são passos importantes rumo à
construção de uma Psicologia alinhada às demandas emergentes da
realidade brasileira e coerentes com o desejo de transformação social.
Ao analisar a atuação da rede de atendimento à mulher em situação
de violência na cidade de São Paulo, os procedimentos adotados, os
limites enfrentados e o potencial de resistência à violência contra a
mulher, a autora compreendeu que a rede de atendimento é parti-
cipante de uma estrutura patriarcal, que apesar de estar destinada a
proteger a mulher, potencializa a violência existente e produz novas
violências. A autora finalizou sua apresentação afirmando que é ne-
cessário um outro projeto de atendimento à mulher em situação de
violência, pois o modelo que temos é completamente ultrapassado.
Lázaro Edson de Souza, estagiário no sistema prisional, contri-
buiu com os debates por intermédio da apresentação da sua pesquisa
de iniciação científica, “A representação da mulher negra no merca-
do de trabalho: um estudo sobre a discriminação de gênero e raça”,
a qual investiga os modos como a exclusão racial e de gênero são
percebidos por mulheres economicamente ativas, buscando compre-
ender os mecanismos de exclusão e como essas mulheres vivenciam
a discriminação de gênero e raça. O debate sobre esses três primeiros
trabalhos suscitou reflexões acerca das desigualdades de gênero e raça
na sociedade brasileira e a importância da Psicologia enquanto cam-
po de produção científica e área da prática profissional engajada na
construção de sociedade justa para os homens e as mulheres.

119
Ivani Francisco de Oliveira, Elizangela André dos Santos e Clélia Rosane dos Santos Prestes

No segundo ciclo de apresentações, as reflexões sobre a violên-


cia de Estado foram retomadas, a partir de novas considerações. O
trabalho, apresentado pelo psicólogo Emiliano de Camargo David,
“Saúde mental e dimensão étnico racial: a atuação de um Centro
de Atenção Psicossocial II Infantil (CAPSi)” chama atenção para a
falta de qualidade na coleta e análise do quesito raça/cor na saúde
pública e para possibilidade do racismo reinventar o movimento
manicomial.
Na perspectiva metodológica de trabalhar com as interseccionali-
dades, as pesquisadoras Chinaira Raiazac Faria Santana e Cristiane
Maria da Silva apresentaram sua pesquisa sobre “Sistema prisional
brasileiro: interseccionalidades à luz da Psicologia Social Crítica”.
As autoras ressaltaram a importância e a necessidade do apoio ofe-
recido pelos familiares de pessoas que se encontram aprisionadas
durante a etapa de encarceramento e, de forma complementar, des-
tacaram as dificuldades enfrentadas por mulheres grávidas, aprisio-
nadas no sistema penitenciário nacional, particularmente no mo-
mento do parto, ocasião em que, segundo as autoras do estudo, são
praticadas inúmeras violências tanto contra a mulher presa quanto
contra o bebê.
Na terceira e última sessão da Roda de Conversa os trabalhos
apresentaram uma belíssima diversidade de olhares e contribuições
da Psicologia. A pesquisadora Flávia Roberta Busarello trouxe seu
estudo de caso “O xokleng/laklãnõ na cidade loira: uma análise da
migração forçada dos povos originários para a cidade de Blume-
nau a partir da Psicologia”, tendo a percepção de que a Psicologia
produz pouco sobre indígenas e, quando o faz, utiliza-se da ótica
da saúde mental, olhando para fenômenos como o suicídio e alco-
olismo. Já seu trabalho vislumbra compreender a movimentação e
interação desses sujeitos pela cidade de Blumenau/SC.
As autoras do trabalho “A visibilidade trans – travestis, transe-
xuais e transgêneros, luta, resistência, movimentos sociais e polí-

120
Violência de Estado na democracia: opressões de raça, gênero e orientação sexual

ticas públicas”, Chinaira Raiazac Faria Santana e Cristiane Maria


da Silva, afirmam perceber uma ‘genitalização’ das relações sociais,
por isso a importância da “desmistificação das palavras “travesti”,
“transexual”, e “transgênero” – que comumente são atreladas às óti-
cas fetichistas, sensacionalistas e sexuadas – passando a ressignificá
-las como categorias políticas de resistência e luta pelo exercício da
cidadania e reivindicação de espaços de conquista como políticas
públicas”.
Dialogando com a mesma perspectiva, o trabalho da autora Na-
thalia Sato “A construção social de gênero na trajetória de vida de
pessoas travestis e transexuais no município de Santos” destaca a
visão biológica da sociedade que prevê um alinhamento entre sexo,
gênero prática sexual e desejo, conferindo o status de normalidade
apenas às pessoas que possuem esse alinhamento.
Por fim, o último trabalho apresentado: “Tempestades secas: o
gênero vivido à margem” foi de autoria de Franklin Costa Marques
Filho, intrinsecamente comprometido com reflexões sobre as “es-
tampagens ético-políticas expressas nos corpos e nos processos de
subjetivação que o gênero é capaz de erigir na contemporaneidade”.
Segundo o autor, é possível pensar em um novo tipo de realidade
quando a natureza deseja outra natureza.

Resultados e conclusões
As Rodas de Conversa problematizaram o quadro desfavorável
quanto à expectativa de vida de mulheres negras, comparativamen-
te menor que a de mulheres brancas; e o reduzido acesso das pesso-
as negras, em particular as mulheres, às políticas públicas básicas,
como os serviços de saúde e o saneamento. Analisando as reflexões
desenvolvidas em torno das discussões realizadas, nota-se cada vez
mais uma apresentação de destaque político e social das questões
relacionadas à violência de Estado na Democracia e suas opressões
de raça, gênero e orientação sexual na sociedade brasileira.

121
Ivani Francisco de Oliveira, Elizangela André dos Santos e Clélia Rosane dos Santos Prestes

O contexto político no País indica que a discussão sobre as re-


lações raciais e de gênero, ou mesmo as políticas de Estado, antes
integradas ao Ministério das Mulheres e Igualdade Racial, foram
absorvidas pelo Ministério da Justiça no ano de 2016, conforme a
Medida Provisória nº 726/2016 do atual governo, e contam com
evidente desprestígio.
Os riscos da falta de visibilidade são o da continuidade ininterrup-
ta das desigualdades descrita por Lima, Rios e França (2013):
As mulheres, em seu conjunto, tiveram a maior taxa de cresci-
mento nas faixas superiores de escolaridade, sendo que as mu-
lheres negras acompanharam esse perfil de crescimento feminino.
Entretanto, ao se observar os valores atingidos pelas negras em
2009, nota-se que só agora estas atingiram, nas faixas mais ele-
vadas, valores próximos àqueles que as brancas tinham em 1995.
As desvantagens das mulheres negras em relação às brancas eram
tão elevadas no ponto de partida, que, mesmo tendo um bom
crescimento ao longo do período considerado, elas ainda se man-
tém bem longe de se assemelhar ao perfil das mulheres brancas
ocupadas e mais escolarizadas. (p. 62)

As rodas de conversas problematizaram o quadro desfavorável das


mulheres negras, desde a expectativa de vida ainda menor que as
mulheres brancas, sem acesso às políticas básicas, aos serviços de saú-
de, saneamento, entre outras. A abordagem interseccional foi perce-
bida como capaz de estimular estudos e/ou produções acadêmicas,
nas quais homens e mulheres sejam protagonistas, levando-se em
consideração as suas especificidades, sem ignorar a realidade vivida
por grande parte desta população com menos acesso a bens e redu-
zida garantia de acesso às melhores oportunidades de trabalho com
apropriada remuneração (Marcondes et al., 2013).

Referências
Bento, M. A. S. & Carone, I. (Orgs.). (2002). Psicologia Social do Racismo. Estudos
sobre Branquitude e Branqueamento no Brasil. Petrópolis, RJ: Vozes.   

122
Violência de Estado na democracia: opressões de raça, gênero e orientação sexual

Lima, M., Rios, F. & França, D. (2013). Articulando gênero e raça: a participação
das mulheres negras no mercado de trabalho (1995-2009). In M. M. Marcondes,
L. Pinheiro, C. Queiroz, A. C. Querino & D. Valverde (Orgs.), Dossiê mulheres
negras: retrato das condições de vida das mulheres negras no Brasil (pp. 53-80).
Brasília, DF: IPEA.

Marcondes, M. M., Pinheiro, L. Queiroz, C., Querino, A. C., & Valverde, D.


(Orgs.). (2013). Dossiê mulheres negras: retrato das condições de vida das mulheres
negras no Brasil. Brasília, DF: IPEA.

123
A LÓGICA PRIVATISTA NA EDUCAÇÃO
E SAÚDE: ENFRENTAMENTOS
À VIOLÊNCIA NA ESCOLA, AO
CAPITALISMO ACADÊMICO E AO
DESMONTE DO SUS

Cláudia Regina Campos Rodrigues


Débora Cristina Fonseca
Eduardo Pinto e Silva
Luciana Nogueira Fioroni
Priscila Carla Cardoso
Stephanie Carolin Santos Almeida

Discutimos, alicerçados nas sínteses de três Rodas de Conversa


coordenadas pelo Núcleo Nordeste Paulista, a lógica privatista na
Educação e Saúde. A perspectiva gerencialista constitui e reproduz
uma racionalidade voltada a metas e desempenhos, típica das insti-

124
A lógica privatista na educação e saúde: enfrentamentos à violência na escola, ao
capitalismo acadêmico e ao desmonte do SUS

tuições privadas. A perspectiva privatista intenta naturalizar sua ra-


cionalidade instrumental, sob a justificativa dos termos “eficiência”
e “eficácia” E se expande na educação pública e no Sistema Único de
Saúde, mas não sem embates e enfrentamentos.
Foram três as Rodas de Conversa que se articularam em torno
da crítica à lógica privatista: “Práticas e pesquisas com jovens em
situação de violência”, proposta por Débora Cristina Fonseca e Pris-
cila Carla Cardoso; “Adesão e resistência ao capitalismo acadêmico:
atores e práticas”, proposta por Eduardo Pinto e Silva e Stephanie
Carolin Santos Almeida; e “O SUS na berlinda: reações e resistências
ao desmonte”, proposta por Luciana Nogueira Fioroni e Cláudia
Regina Campos Rodrigues.
Consideramos os efeitos deletérios à formação humana nas insti-
tuições educacionais, à saúde do trabalhador e ao SUS. A perspectiva
privatista-gerencialista se objetiva no interjogo de distintos atores,
numa dialética entre apropriações e objetivações. Conforme apon-
tam Berger e Luckman (1978), processos de interiorização e exterio-
rização implicam em contradições entre identidades subjetivamente
apropriadas e socialmente atribuídas.
É na realidade social e nas situações do cotidiano institucional que
se engendram uma série de posições, contraposições e contradições.
E, inevitavelmente, enfrentamentos do ser social, ético e político.
Embates ocorrem fundamentalmente no plano das práticas sociais e
no plano das discussões teóricas de diferentes perspectivas epistemo-
lógicas (Sawaia, 1995).
Enfocamos enfrentamentos à violência na escola e ao capitalismo
acadêmico e tecemos breves considerações aos enfrentamentos exis-
tentes na saúde e desmonte do SUS.

As múltiplas formas da violência na educação


A violência apresenta diferentes facetas e formas de expressão:
institucional, econômica, cultural, social, ideológica, simbólica

125
Cláudia Regina Campos Rodrigues et al.

etc. Se faz presente no trabalho, na vida institucional e nos inters-


tícios do cotidiano. E também nas práticas sociais da Educação e
da Saúde.
Conforme aponta o clássico estudo de Arendt (1994), nas ori-
gens das diversas formas de violência está o totalitarismo, elemento
balizador das práticas autoritárias que se recrudesce em contextos
nos quais o valor mercantil sobrepuja o humano de forma mais
intensa. Ou seja, em contextos como o do Brasil atual, no qual a
perspectiva privada se intensifica, a violência se naturaliza e se apre-
senta como a única possível para lidar com a escassez dos recursos
públicos. A construção ideológica do ajuste e do contingenciamen-
to de recursos materializa-se na política que retira direitos e busca
se legitimar por meio do retorno a termos dos tempos de exce-
ção em que se designava adolescentes e jovens das camadas pobres
como “menores” e se concebia a universidade não como instituição
formadora, com função social, mas sim como instrumento de uma
política excludente e concentradora de riqueza.
A violência, portanto, é exercida historicamente na sociedade,
persiste, insiste. Ora se abranda, mais à frente se recrudesce. Num
ir e vir no qual se objetiva, no institucional e fora dele, a violência
extra e intramuros, como indicam Zaluar e Leal (2001).
A violência na universidade se expressa no institucional e no ser
social. No plano institucional, consolida-se no capitalismo acadê-
mico que forja a criação de acadêmicos que atuam como capitalis-
tas, em um processo no qual a política educacional superior se apre-
senta como sub-set (subproduto) da política econômica no contexto
da reprodução e mundialização do capital, sob hegemonia da esfera
financeira (Slaughter & Leslie, 2001). Já no plano do ser social,
observa-se no ambiente universitário o desgaste de si, da identida-
de intelectual e da saúde da pessoa (Bernardo, 2014). Nas escolas,
a violência assume dimensões concreto-punitivas, mescladas a as-
pectos ideológicos e a visões arraigadas e preconceituosas sobre a
pobreza (Sposito, 2001).

126
A lógica privatista na educação e saúde: enfrentamentos à violência na escola, ao
capitalismo acadêmico e ao desmonte do SUS

A Roda de Conversa “Práticas e pesquisa com jovens em situação


de violência” tratou diretamente da dimensão da violência e deba-
teu a questão das situações de vida e sociais de jovens do Ensino
Médio. Mas não seria exagero apontar que tal problemática se faz
presente na universidade e na Saúde, temas das outras rodas que fo-
caram o capitalismo acadêmico (Bernardo, 2014; Slaughter & Les-
lie, 2001) e o desmonte do SUS. Nas três situações há a ingerência
da perspectiva privatista e gerencialista que ameaça os preceitos éti-
cos, políticos e epistemológicos (Sawaia, 1995) pautados pelo ideal
de transformação social.

Juventude e violência: uma crítica à concepção menorista

A Roda de Conversa que teve como objetivo promover o debate


sobre práticas e pesquisas com jovens em situação de violência par-
tiu da compreensão da relevância do Estatuto da Criança e do Ado-
lescente (ECA) como elemento balizador das medidas socioeduca-
tivas dirigidas aos jovens. Abordou impasses e constrangimentos de
seus elementos basilares frente ao neoconservadorismo que ganha
corpo na sociedade brasileira. Apontou como necessária a defesa do
ECA e a contraposição aos agentes sociais conservadores que julgam
que os direitos humanos são, em verdade, privilégios oferecidos aos
bandidos e delinquentes, o que tende a estigmatizar a condição do
jovem vulnerável aos processos de exclusão e violência. Indicou a
urgência de debates com pesquisadores, profissionais, professores,
estudantes e instituições que analisem as políticas públicas voltadas
a este segmento da população brasileira. Temas como redução da
menoridade penal e medidas socioeducativas devem ser considera-
dos sob o mister da defesa dos direitos sociais e humanos, constitu-
ídos nos avanços e recuos na sociedade brasileira.
Foram debatidas pesquisas e práticas relacionadas à juventude em
situação de violência e/ou vulnerabilidade social. A diversidade dos
trabalhos apresentados enriqueceu a discussão. Os relatos de pesqui-

127
Cláudia Regina Campos Rodrigues et al.

sas abarcaram trajetórias escolares de adolescentes protagonistas de


violência e análise dos processos judiciais de adolescentes autores de
atos infracionais. Já os relatos de práticas versaram sobre experiên-
cias dentro de diversas instituições, como Fundação CASA, abrigos,
escolas e Centro de Referência Especializado de Assistência Social.
A pesquisa “Trajetória de Alunos Protagonistas de Violência”,
realizada pelo Grupo de Estudo e Pesquisas em Educação, Partici-
pação Democrática e Direitos Humanos (Fonseca, Silva, & Salles,
2014), abordou trajetórias escolares de adolescentes autores de atos
infracionais marcadas pelo dito “fracasso escolar”. Os registros de
processos judiciais aplicados aos adolescentes em conflito com a Lei
indicam violências presentes nas ações de proteção social do Estado,
especificamente no Sistema de Garantia de Direitos de crianças em
situação de violência intrafamiliar. Os trabalhos apresentaram pon-
tos em comum em relação à reprodução da concepção menorista em
detrimento à doutrina da Proteção Integral em ambientes diversifi-
cados (Poder Judiciário, escolas, equipamentos que fazem partem do
Sistema de Garantia de Direitos). Indicou-se a incipiência da conso-
lidação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) que, no seio
da lógica privatista - cuja faceta paradigmática pôde ser identificada
na discussão da Roda de Conversa sobre o capitalismo acadêmico -,
constitui um desafio para sociedade brasileira e para os atores sociais
pautados pela perspectiva ético-política.
As limitações em torno da proteção social da criança vítima de
violência e do adolescente autor de ato infracional foram aponta-
das pelos participantes do debate. Por extensão, foram pontuadas as
implicações nefastas da visão hegemônica na efetivação de políticas
públicas voltadas aos jovens advindos de segmentos mais vulnerá-
veis. Tais políticas, sob a influência do viés hegemônico, impedem o
que exigem, tal como se aponta na discussão da educação superior
(Machado, 2007). No caso dos jovens, há a manutenção de práticas
excludentes dentro de instituições (escola; poder judiciário) que de-
veriam trabalhar para sua superação.

128
A lógica privatista na educação e saúde: enfrentamentos à violência na escola, ao
capitalismo acadêmico e ao desmonte do SUS

Os relatos de experiências e pesquisas ainda incluíram: o debate


de um Programa de Atendimento Materno Infantil (PAMI), des-
tinado ao atendimento de adolescentes grávidas do Estado de São
Paulo; um processo musicoterápico com adolescentes residentes em
abrigo em São Paulo, que objetiva resgatar a autoestima e autono-
mia, trabalhar a integração e inter-relação grupal e proporcionar
formas saudáveis de lidar com conflitos; um projeto de educação
não-formal com adolescentes acompanhados pelo Centro de Re-
ferência Especializado em Assistência Social (CREAS); e, por fim,
pesquisa que teve por objetivo investigar os sentidos de educação
e de escola construídos por jovens e adolescentes que cumpriam
medida socioeducativa.
O foco do debate foi o desafio de construções de práticas que
contribuam para o caminho da plena implementação do ECA, do
Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE) e da
regulamentação do atendimento de adolescentes em cumprimento
de medidas socioeducativas. Na Roda foi apontado que, apesar da
adversidade do contexto político e das formas de gestão privatistas,
o compromisso ético-político da Psicologia Social, a ação concreta
dos atores e a avaliação crítica dos retrocessos presentes na atual
situação do país podem favorecer contrapontos ao recrudescimento
conservador. Além disso, que a lógica instrumental se expressa na
reprodução, ainda que sob contradições, da concepção menorista
de culpabilização da condição social de pobreza, assim como na
renitente criminalização da infância e juventude.

O capitalismo acadêmico e suas nefastas implicações

A violência na universidade, sob auspícios do poder, da ideolo-


gia gerencialista (Gaulejac, 2007), da naturalização do produtivismo
acadêmico e da transformação do conhecimento em saber com fun-
ção produtiva e valor mercantil (Slaughter & Leslie, 2001), possui
contornos tão mais sutís quanto insidiosos do que aqueles vivencia-

129
Cláudia Regina Campos Rodrigues et al.

dos pelos jovens e a violência do social e do institucional que sobre


eles recai - e também por meio deles se (re)produz - notadamente
sob a égide da visão menorista nas escolas e poder judiciário.
No debate da Roda de Conversa “Adesão e resistência ao capi-
talismo acadêmico: atores e práticas”, procurou-se compreender as
formas de adesão e resistência à mercantilização da universidade e
do conhecimento, e discutiu-se pesquisa e dados sobre pós-gradu-
ação e seus impactos em discentes. Concluiu-se que a universidade
pública no Brasil apresenta um processo de reconfiguração de sua
identidade e de suas práticas. Se, por um lado há jovens excluídos da
escola e da vida social digna, como os considerados na Roda ante-
riormente comentada, de outro, verificam-se novas formas de acesso
de jovens, antes alijados da Educação Superior, com ampliação de
cursos e matrículas. No entanto, também se materializam novas for-
mas de gestão e de avaliação do trabalho, produção e ensino; práticas
e valores gerencialistas adentram o espaço público e universitário e
nele se naturalizam (Gaulejac, 2007). A ideologia gerencialista, fun-
damentada numa perspectiva funcionalista e pragmática, implica na
mercantilização e privatização das práticas e saberes universitários,
e forja professores e alunos que se adaptam a uma insana busca por
metas e índices de produtividade como um fim em si mesmo.
A adesão aos valores da eficácia e eficiência implica em desgaste de
alunos e professores (Bernardo, 2014), reprodução da sociabilidade
produtiva e da política que, dada suas injunções paradoxais, quase
impede aquilo que exige (Machado, 2007), de forma a se distanciar
do ideal de transformação social e da constituição do conhecimento
como elemento de reflexão e crítica da realidade social e da própria
estrutura institucional universitária. Mas, essa adesão forjada pelo
produtivismo acadêmico, pela mercantilização da instituição públi-
ca ou pelo que podemos denominar como capitalismo acadêmico,
engendra também movimentos de resistência, como é exemplo no-
tório a própria discussão da Roda em pauta. Estudantes participan-

130
A lógica privatista na educação e saúde: enfrentamentos à violência na escola, ao
capitalismo acadêmico e ao desmonte do SUS

tes do debate apontaram a relevância do movimento estudantil que


protagoniza práticas e críticas ao capitalismo acadêmico. Portanto,
eis de novo o jovem, ora considerado não como objeto da violência,
mas sim como sujeito ativo e histórico.
A comunicação da pesquisa de Carolina Cássia Conceição Abílio,
relativa a Trabalho de Conclusão de Curso (Universidade Presbite-
riana Mackenzie)1, deu início ao debate. Nela se considerou as per-
cepções e vivências na pós-graduação e seus impactos psicológicos.
O crescimento de 2004 a 2009 de 35,9% de cursos de mestrado
e de 34,4% de cursos de doutorado engendrou uma realidade da
pós-graduação que é estressante para o aluno, por conta de diversos
fatores como: falta de tempo e remuneração; demandas do curso;
supervisão do professor orientador. Tais fatores estressantes têm im-
pacto na saúde e no desempenho desses alunos, comprometendo
sua formação pessoal e profissional. A baixa remuneração do estu-
dante, sob forma de bolsas de estudos, e o tempo curto para atender
várias demandas, assim como a dinâmica de public or perish, foram
considerados como os principais empecilhos do trajeto discente na
pós-graduação. Esses foram alguns dos impasses e contradições da
pós-graduação apontados na Roda.

O SUS na berlinda: reações e resistências ao desmonte


A proposta considerou a atual conjuntura política e econômica
condizente à lógica do capital e do mercado. O Sistema Único de
Saúde foi defendido, enquanto direito universal, e foram indicadas
formas de construção de alternativas justas de produção da vida em
sociedade. Os impasses e contradições desse processo foram abor-
dados nesta Roda de Conversa realizada, na ocasião do evento, jun-
tamente com a Roda de Conversa “Práxis da Psicologia Social na

1 Abílio, C. C. C. (mímeo). Percepções e vivências na pós-graduação: impactos


psicológicos. Trabalho de Conclusão de Curso, Graduação em Psicologia,
Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo.

131
Cláudia Regina Campos Rodrigues et al.

Saúde Coletiva e no contexto atual do SUS”, proposta pelo Nú-


cleo Cuesta (vide outro relato). Em contextos políticos adversos,
reiteram-se os desafios da promoção da saúde, do cuidado de base
territorial e do trabalho interdisciplinar em contraposição ao saber
biomédico hegemônico. Foram relatados sete trabalhos nas Rodas de
Conversa, sendo quatro pesquisas, três experiências, uma extensão e
duas vivências profissionais.

Considerações finais

Conclui-se que as discussões sobre a adesão e enfrentamento aos


ditames privatistas necessita ser realizada sob uma pluralidade de
perspectivas epistemológicas que preservem a diversidade da visão
dos atores e de suas respectivas posições e contraposições. A troca
de visões entre os campos acadêmico, da prática profissional e dos
movimentos sociais enriquece o debate. O formato Roda de Con-
versa supera a lógica persistente do academicismo que, cada vez mais
sujeito às influências da racionalidade instrumental e produtiva, pri-
vatista e gerencialista - cujo signo máximo é o capitalismo acadêmico
(Slaughter & Leslie, 2001), tende a arrefecer debates em prol de
exposições sedentas por certificações.
Consideramos necessário intensificar as possibilidades de enfren-
tamento da lógica privatista nos campos da Educação e da Saúde
pública. Esse enfrentamento deve se pautar pela defesa incólume da
necessidade da prevalência da formação humana (ética, política e
socialmente compromissada) e pela promoção e prevenção da saú-
de, em contraposição aos fundamentos ideológicos, pragmáticos e
funcionalistas da gestão. Caso não possamos compreender as con-
tradições entre a adesão de atores à lógica da gestão - como doença
social (Gaulejac, 2007) - e as críticas dos que a ela se contrapõem, os
princípios que regem a perspectiva privatista tenderão a criar impas-
ses à formação humana e à saúde do ser social. Psicólogos, docentes,
alunos e cidadãos de forma geral, ao se lançarem no debate plural

132
A lógica privatista na educação e saúde: enfrentamentos à violência na escola, ao
capitalismo acadêmico e ao desmonte do SUS

e democrático, podem refletir sobre o cotidiano e neles atuar num


sentido social e transformador, fundado na ética (Sawaia, 1995). E,
assim, lutar para que os princípios mercantis não se sobreponham
aos preceitos humanos e sociais, ameaçados de desefetivação.

Referências
Arendt, H. (1994). Sobre a violência. Rio de Janeiro: Relume Dumará.
Berger, P. L. & Luckmann, T. (1978). A construção da realidade social: tratado de
sociologia do conhecimento. Petrópolis, RJ: Vozes.
Bernardo, M. H. (2014). Produtivismo e precariedade subjetiva na universidade
pública: o desgaste mental dos docentes. Psicologia & Sociedade, 26(n. spe.), 129-
139.
Fonseca, D. C., Silva, J. M. A. P., & Salles, L. M. F. (2014). Contradições do
processo de disciplinamento escolar: os “Livros de Ocorrências” em análise.
Revista Psicologia Escolar e Educacional, 18(1), 35-43.
Gaulejac, V. (2007). A gestão como doença social: ideologia, poder gerencialista e
fragmentação social. Aparecida, SP: Idéias & Letras.
Machado, A. M. N. (2007). Políticas que impedem o que exigem: dimensões
controvertidas na avaliação da pós-graduação brasileira. Universidade e Sociedade,
39, 137-149.
Sawaia, B. B. (1995). Psicologia Social: aspectos epistemológicos e éticos. In S. T.
M. Lane & B. B. Sawaia (Orgs.), Novas veredas da Psicologia Social (pp. 45-53).
São Paulo: Brasiliense.
Slaughter, S. & Leslie, L. L. (2001). Expanding and elaborating the concept of
academic Capitalism. Organization, 8(2), 154-161.
Sposito, M. P. (2001). Um breve balanço da pesquisa sobre violência escolar no
Brasil. Educação e Pesquisa, 27(1), 87-103.
Zaluar, A. & Leal, M. C. (2001). Violência extra e intramuros. Revista Brasileira
de Ciências Sociais, 16(45), 89-107.

133
PRÁXIS DA PSICOLOGIA SOCIAL
NA SAÚDE COLETIVA E NO
CONTEXTO ATUAL DO SUS:
REFLEXÕES DE UMA RODA DE
CONVERSA

Jéssica Rodrigues Rosa


Nicelle Juliana de Paula Sartor

A consolidação do Sistema Único de Saúde (SUS) pela Consti-


tuição Federal de 1988, complementada pelas Leis Orgânicas n.
8.080/90 e n. 8.142/90 e diversas outras que as seguiram, é fruto
de intensa luta dos trabalhadores e de diversos outros segmentos
da sociedade que buscam a concretização de uma política de saúde
pública visando à universalização do acesso, integralidade da aten-
ção e equidade no cuidado. Junto com essa luta temos também
a Reforma Psiquiátrica, que conquistou avanços nas políticas pú-
blicas, nas práticas cotidianas e na garantia de direitos das pessoas
com transtornos mentais. A elaboração dessa política amparou-se

134
Práxis da psicologia social na saúde coletiva e no contexto atual do SUS: reflexões de uma
roda de conversa

em diversas experiências exitosas pelo mundo, pautadas por discus-


sões e princípios como, por exemplo, a Declaração de Caracas, que
determinou que “a atenção psiquiátrica convencional não permite
alcançar os objetivos compatíveis com uma atenção comunitária,
descentralizada, participativa, integral, contínua e preventiva” (Or-
ganização Mundial da Saúde [OMS], 1990, p. 1).
No Brasil das últimas décadas, tivemos uma ampliação da in-
serção de trabalhadores da Psicologia e de outras áreas na Saúde
Coletiva, principalmente na Atenção Básica e na Rede Psicossocial
de Saúde Mental, com atuação de equipes multiprofissionais. Fun-
damental para esta inserção foi a criação da Rede de Atenção Psi-
cossocial, por meio da Portaria n. 3.088/2011, cuja finalidade é a
articulação entre os serviços voltados ao atendimento de pessoas em
sofrimento psíquico, e que prevê a inserção de equipes multiprofis-
sionais no cuidado a essa população, dentre eles, o profissional de
psicologia (Portaria n. 3.088/2011).
No entanto, estamos atualmente em processo de desmonte das
políticas públicas brasileiras, em especial no campo da saúde. Com
frequência, as fragilidades atuais do Sistema Único de Saúde são
usadas como argumento para a proposição de políticas que rompem
com os princípios fundamentais do SUS e colocam em risco os mo-
delos democráticos e emancipatórios de cuidado.
Neste artigo, pretendemos discutir algumas destas questões, tra-
balhadas também na roda de conversa “Práxis da Psicologia Social
na Saúde Coletiva e no contexto atual do SUS”, realizada no XIII
Encontro da Regional São Paulo da ABRAPSO. A roda foi realiza-
da em duas sessões, no terceiro dia do encontro, e coordenada por
membros do núcleo Cuesta, juntamente com a roda “O SUS na
berlinda: reações e resistência ao desmonte”, coordenada por mem-
bros do núcleo Nordeste Paulista. Este trabalho tem como objetivo
retomar e ampliar algumas das discussões e reflexões realizadas nessa
ocasião.

135
Jéssica Rodrigues Rosa e Nicelle Juliana de Paula Sartor

Ao elaborarmos a proposta da roda, determinamos como seu prin-


cipal objetivo o compartilhamento de experiências teórico-práticas
desenvolvidas na Saúde Coletiva, de modo a possibilitar reflexões a
respeito dos rumos da Saúde Pública no Brasil e das contribuições
da Psicologia Social para esta temática. Concordamos com Feue-
rwerker (2005, p. 492) quando diz que é dentro da Saúde Coletiva
que são postas em movimento as ideias legadas pela reforma sanitá-
ria, “cabendo aos intelectuais e militantes desse campo a formulação
de proposições que ajudem o SUS a se aproximar de seus princípios,
num jogo complexo, em que existe uma tensão permanente entre
saúde como direito do cidadão e saúde como mercadoria”. Conside-
ramos também que a Psicologia deve se afastar de sua vocação histó-
rica de instrumento de manutenção das estruturas sociais desiguais,
papel que desconsiderou a realidade de grande parte da população
e que levou, e ainda leva, muitos psicólogos a “distorções teóricas,
a práticas descontextualizadas e etnocêntricas, e a uma psicologiza-
ção dos problemas sociais, na medida em que não são capacitados
para perceber as especificidades culturais dos sujeitos” (Dimenstein,
2001, p. 59).
Sete trabalhos foram apresentados nas sessões da roda de con-
versa: quatro relatos de pesquisas em andamento, três de experi-
ências, um relato associado a projeto de extensão e dois de vivên-
cias profissionais.
As discussões apontaram alguns elementos fundamentais para a
análise do contexto atual do SUS, tais como os parcos recursos fi-
nanceiros, sua distribuição e gerenciamento. Somente no ano 2000
foi aprovada a Emenda Constitucional n. 29, que prevê o repasse de
percentuais mínimos da receita para a saúde e vincula valores para
as três esferas governamentais, de extrema importância para garan-
tia de recursos do SUS (Emenda Constitucional n. 29/2000). En-
tretanto, no último ano tivemos a criação da Proposta de Emenda
Constitucional-PEC 241/16, que sugere o congelamento dos gastos
voltados à saúde e educação por 20 anos (Sindicato Nacional dos

136
Práxis da psicologia social na saúde coletiva e no contexto atual do SUS: reflexões de uma
roda de conversa

Docentes das Instituições de Ensino Superior [ANDES], 2016), o


que reduz drasticamente os recursos de custeio do SUS e afeta, pro-
gressivamente, todo o atendimento em saúde pública de milhões de
brasileiros. Contra essa propositura, tivemos diversas manifestações
que demonstraram a contrariedade da população em geral com a
possível aprovação desta PEC, que não tem como objetivo garantir a
melhoria da prestação dos serviços de saúde.
Outro momento importante das discussões foi relacionado à pre-
carização do trabalho, em relação às condições gerais e contratuais,
destacando-se diversas formas de terceirização da atividade laboral
que estão ocorrendo no Brasil com as propostas de emendas consti-
tucionais orientadas para o desmonte do sistema nacional segurida-
de social. Mais recentemente, vivenciamos a proposta de alteração
da Previdência Social e das leis trabalhistas que, além de ampliar o
tempo de contribuição dos trabalhadores, desvincular a aposenta-
doria do salário mínimo, facilitar terceirizações e outras propostas,
coloca todos os trabalhadores em vulnerabilidade na relação com
os empregadores, minando direitos e condenando os trabalhadores
a uma exploração ainda mais desumana perante o capital. Diante
dessa situação, tivemos no dia 28 de abril deste ano um chamado
das centrais sindicais para uma Greve Geral em repúdio a essas pro-
postas, ao qual obteve a adesão de diversos segmentos da sociedade,
com paralisação total ou parcial dos serviços e ocupação de espaços
públicos, em uma demonstração clara da insatisfação e mobilização
de luta para garantia dos direitos desta e das gerações futuras.
Por outro lado, apesar das dificuldades, vários relatos apresentados
nas sessões da roda mostraram a riqueza e potencialidade das polí-
ticas públicas desenvolvidas na Saúde. Como exemplo, apontamos
um dos trabalhos que examinou o cotidiano e as vivências de pes-
soas moradoras de Residências Terapêuticas. O Serviço Residencial
Terapêutico (SRT) é um equipamento previsto na Política Nacional
de Saúde Mental para pessoas com longo tempo de internação em
hospitais psiquiátricos que tenham perdido a vinculação familiar. A

137
Jéssica Rodrigues Rosa e Nicelle Juliana de Paula Sartor

criação das residências, junto a outros serviços, como o Programa de


Volta Para Casa, tem auxiliado na diminuição de leitos psiquiátricos
nas últimas décadas: entre os anos de 2003 a 2005, a estimativa é de
que foram reduzidos 6.227 leitos, e de que existam hoje cerca de 357
residências terapêuticas em funcionamento, com aproximadamente
2.850 moradores (Ministério da Saúde, 2005).
No entanto, muitos questionamentos têm sido feitos, nos últimos
anos, sobre o funcionamento das residências, suas possibilidades no
cuidado ao usuário e produção de subjetividade versus a reprodu-
ção de práticas asilares. Pesquisas com moradores dessas instituições
são valiosas na medida em que permitem um olhar mais qualificado
e uma melhor compreensão sobre o cotidiano desses indivíduos e,
consequentemente, sobre a função das residências terapêuticas na
assistência a esta população.
Apesar da grande heterogeneidade de temas, objetivos e métodos
de pesquisa dos trabalhos apresentados na Roda de Conversa, bus-
camos promover a interlocução entre as diferentes experiências apre-
sentadas pelos participantes. Outra pesquisa apresentada em nossa
roda, relacionada ao desenvolvimento de ações de Saúde Mental na
Estratégia de Saúde da Família, com busca ativa de pessoas em sofri-
mento psíquico, trouxe à tona uma discussão sobre as potencialida-
des da assistência no campo da Saúde Mental e de ações na extensão
universitária.
Ao mesmo tempo, alguns dos trabalhos trouxeram também a ne-
cessidade de de aprofundamento das reflexões no que se refere a as-
pectos ainda pouco discutidos na área da saúde pública, como o pro-
tagonismo de usuários do SUS, a violência obstétrica, entre outros.

Considerações finais
Como conclusão das discussões, destacamos a urgência de reações
contra o desmonte do SUS, principalmente por meio do fortaleci-
mento coletivo dos trabalhadores e dos seus usuários. Além disso,

138
Práxis da psicologia social na saúde coletiva e no contexto atual do SUS: reflexões de uma
roda de conversa

é preciso incentivar o controle social dessa política, por meio dos


conselhos municipais e outros, diante da gravidade dos reflexos do
sucateamento do SUS para a saúde da população e da importância
da memória das lutas pela construção do Sistema para os movimen-
tos de resistência.

Referências
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (1988). Brasília (DF):
Presidência da República.

Dimenstein, M. (2001). O psicólogo e o compromisso social no contexto da


saúde coletiva. Psicologia em Estudo, 6(2), 57-63. Recuperado de http://www.
scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-73722001000200008&lng=e
n&nrm=iso&tlng=pt

Emenda Constitucional – PEC n. 241, de 15 de junho de 2006. (2006). Altera o


ato das disposições constitucionais transitórias, para instituir o novo regime fiscal.
Brasília, DF: Câmara dos Deputados.

Emenda Constitucional n. 29, de 13 de setembro de 2000. (2000). Altera os arts.


34, 35, 156, 160, 167 e 198 da Constituição Federal e acrescenta artigo ao Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias, para assegurar os recursos mínimos para
o financiamento das ações e serviços públicos de saúde. Brasília, DF: Presidência
da República.

Feuerwerker, L. (2001). Modelos tecnoassistenciais, gestão e organização do


trabalho em saúde: nada é indiferente no processo de luta para a consolidação do
SUS. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, 9(18), 489-506. Recuperado de
http://www.scielosp.org/pdf/icse/v9n18/a03v9n18.pdf

Lei n. 8.080, de 19 de setembro de 1990. (1990). Dispõe sobre as condições para


a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento
dos serviços correspondentes e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência
da República.

Lei n. 8.142, de 28 de dezembro de 1990. (1990). Dispõe sobre a participação da


comunidade na gestão do Sistema Único de Saúde (SUS) e sobre as transferências
intergovernamentais de recursos financeiros na área da saúde e dá outras
providências. Brasília, DF: Presidência da República.

139
Jéssica Rodrigues Rosa e Nicelle Juliana de Paula Sartor

Ministério da Saúde. (2005). Reforma psiquiátrica e política de saúde mental no


Brasil. In Secretaria de Atenção à Saúde & Coordenação Geral de Saúde Mental
(Orgs.), Conferência regional de reforma dos serviços de saúde mental: 15 anos depois
de Caracas. Brasília, DF: OPAS.

Organização Mundial da Saúde [OMS]. (1990). Declaração de Caracas. Caracas:


Organização Panamericana de Saúde.

Portaria n. 3.088, de 23 de dezembro de 2011. (2011). Institui a Rede de Atenção


Psicossocial para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades
decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, no âmbito do Sistema Único
de Saúde (SUS). Brasília, DF: Ministério da Saúde.

Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior [ANDES].


(2016). PEC 241/16 congela gastos públicos por 20 anos para pagar dívida
pública. Recuperado de http://www.andes.org.br/andes/print-ultimas-noticias.
andes?id=8190

140
JUVENTUDES: PRÁTICAS
CULTURAIS, POLÍTICAS E
PARTICIPATIVAS

Roberth Miniguine Tavanti


Elisa Harumi Musha

Diferentes disciplinas no âmbito das Ciências Sociais e Humanas


como, por exemplo, a Sociologia, a Antropologia e as Ciências Polí-
ticas (Abramo, 1997; Sposito, 2009), a Educação (Dayrell & Carra-
no, 2002; Scheivar & Cordeiro, 2007) e a Psicologia Social (Takeiti,
2014; Zanella, Groff, Silva, Mattos, Furtado, & Assis, 2013) dedi-
cam-se aos estudos e pesquisas que tematizam as juventudes1 na con-
temporaneidade, assim como discutem articulações entre juventu-
des e políticas públicas (Abreu, 2010; Frezza, Maraschin, & Santos,

1 A pluralidade e circunstâncias que caracterizam a vida juvenil exigem que os


estudos incorporem o sentido da diversidade e das múltiplas possibilidades do sentido
de ser jovem. Enfatizamos aqui a noção de juventudes, no plural, privilegiando a diver-
sidade dos modos de ser jovem existentes, assim como enfatizando a necessidade de
articular a noção de juventude à de sujeito inserido em determinado contexto social e
histórico (Dayrell & Carrano, 2002, p. 4).

141
Roberth Miniguine Tavanti e Elisa Harumi Musha

2009), atividades artístico-culturais (Bin, 2009; Nascimento, 2006;


Weller, 2011), e trajetórias e/ou modos de vida de jovens nas cidades
(Maia, 2014; Takeuti, 2010; Tommasi, 2013).
A discussão da pesquisa, de autoria de Lívia de Tommasi (2013),
objetivou indagar as manifestações culturais que acontecem nas pe-
riferias de três regiões metropolitanas: Recife, Rio de Janeiro e São
Paulo. Neste caso, nos dedicamos aos seguintes aspectos: (a) quantos
dos grupos-coletivos identificados pela autora atuam nas periferias
da cidade de São Paulo? (b) quais deles contam com a participação
de jovens como protagonistas? e, (c) existem conexões entre as ma-
nifestações culturais e o seu entorno geográfico, simbólico e político?
Sobre as duas primeiras questões, a autora nos revelou um cami-
nho, em particular, ao destacar a Agenda Cultural da Periferia2 como
sendo, desde 2007, um dos principais instrumentos de visibilidade,
promoção e divulgação das mais diversas iniciativas associadas às
atividades artístico-culturais que estão localizadas nas periferias da
metrópole paulista. Levando em conta a terceira questão, optamos
por abordá-la de modo ilustrativo, por meio de um dos trechos do
artigo: “Culturas de periferia: entre o mercado, os dispositivos de
gestão e o agir político” (Tommasi, 2013, p. 29),
os artistas periféricos paulistas se contrapõem a esse padrão domi-
nante quando apelam para um reconhecimento territorial e polí-
tico (o “ser da periferia”) e não estético. Todo mundo tem direito
a se expressar, a pegar o microfone na frente de um público e de-
clamar sua poesia, não importa se “bela” ou “feia” ... Dessa forma,

2 A Agenda Cultural da Periferia é produzida pelo Espaço de Cultura e Mobili-


zação Social da ONG Ação Educativa; ela é organizada em cinco sessões: literatura, hip
hop, cinema e vídeo, samba, teatro. Necessário dizer que, além dela, existem outros fatores
que contribuem para a efervescência cultural da periferia da capital, uma delas é o VAI
(Programa para Valorização das Iniciativas Culturais), um fundo de apoio instituído por
uma lei municipal, e um terceiro fator estaria relacionado às iniciativas dos próprios artistas
periféricos – poetas e escritores – que produzem, colocam no mercado e vendem seus livros,
organizam saraus e outros eventos para difundir suas obras (Tommasi, 2013).

142
Juventudes: práticas culturais, políticas e participativas

os moradores das periferias afirmam seu direito a fazer arte, sair da


invisibilidade e da criminalização e se afirmar enquanto produto-
res de arte. A postura política se expressa no conteúdo veiculado
nas letras, na vontade de se expressar e falar da própria condição
de vida. Para alguns, sobretudo os mais jovens, é também a ex-
pressão da vontade de fugir ao destino: nem bandido nem mão de
obra barata, e sim artistas.

Interessante notar que, na maioria das vezes, as atividades de


caráter artístico-culturais identificadas na zona Sul da cidade de
São Paulo estão articuladas às ações coletivas ou às reivindicações
sociais. Isto é, “fugindo das formas tradicionais de participação
política (os partidos, os sindicatos, os movimentos estudantis), os
artistas da periferia - em sua maioria jovens - expressariam atra-
vés do corpo, da performance, da palavra, do traço, suas questões,
demandas, denúncias” (Tommasi, 2013, p. 13).

Metodologia
Neste item procuramos destacar a importância da “Roda de Con-
versa” como uma metodologia de trabalho que objetiva facilitar a
troca de conhecimentos e experiências entre os diferentes partici-
pantes - estudantes, pesquisadores, profissionais e militantes - das
sessões realizadas durante o evento. Em outras palavras, tal estratégia
de trabalho nos possibilitou construir um debate horizontalizado e
democrático sobre os temas em questão, o que por sua vez nos serviu
como um interessante recurso ético-político para o desenvolvimento
de reflexões compartilhadas.
De acordo com Bernardes, Santos e Silva (2015) e Spink (2004),
as rodas de conversa têm como objetivo subverter alguns ordena-
mentos da ciência hegemônica; funcionam, desse modo, como estra-
tégia metodológica apoiada na radicalização da construção de uma
ciência democrática, que busca desmistificar a falácia da neutrali-
dade; assumem, uma postura anti- essencialista e contextualizada –

143
Roberth Miniguine Tavanti e Elisa Harumi Musha

histórica e culturalmente localizada; e trazem para a roda as diversas


dimensões que circulam sobre as temáticas em foco no debate.
Em suma, assim como os Círculos de Cultura, propostos pelo
educador Paulo Freire no contexto da alfabetização de jovens e adul-
tos (Freire, 1967) como uma ação cultural para a libertação e auto-
nomia das pessoas, as “Rodas de Conversa” possibilitaram o estabe-
lecimento de relações afetivas, horizontais, cooperativas e solidárias
entre os diferentes integrantes – participantes – dos dois grupos que
acompanhamos nas sessões propostas neste evento.
Destacamos, na sequência, informações básicas dos trabalhos
apresentados nas duas sessões de Rodas de Conversa, pois tais conte-
údos nos serviram de suporte para o posterior debate coletivo:

1ª Sessão: dia 13 de novembro de 2016


Título: A voz dos muros: os sentidos da arte do grafite para o
jovem do Vale do Paraíba
Síntese: A partir dos dados obtidos no trabalho de pesquisa para
a conclusão de curso de graduação em Psicologia, percebeu-se que,
por meio da experiência do grafite, os jovens se reconhecem e são
reconhecidos, se engajam, resistem e criam espaços - como os de
lazer e de trabalho - revelando-se como uma prática essencialmente
contra-hegemônica.

2ª Sessão: dia 14 de novembro de 2016


Título: Juventude vulnerável: atividades com alunos de ensino
médio em uma escola pública
Síntese: A ação proposta para a diretoria e coordenadoria da E.E.
Herculano de Freitas, localizada no Jardim Nakamura - M’ Boi Mi-
rim, São Paulo, consiste em realizar seis atividades com alunos entre
15 e 18 anos, do período noturno, que são considerados “problemá-
ticos” pelos professores e pela direção, do ponto de vista da discipli-
na comportamental. É um trabalho que visa discutir ações em uma

144
Juventudes: práticas culturais, políticas e participativas

escola de ensino médio da rede pública estadual, tendo em vista o


combate à vulnerabilidade social na qual esse equipamento público
de educação se encontra localizado.
Título: O desenvolvimento da aprendizagem de jovens em priva-
ção de liberdade: o currículo em questão.
Síntese: O trabalho objetiva discutir a superação de uma concep-
ção de ensino-aprendizagem para a do desenvolvimento da apren-
dizagem sob a ótica da teoria de Vigotski (1996); coloca em pauta
a discussão sobre o currículo escolar ministrado na Fundação Casa,
bem como os projetos de apoio que visam garantir o acesso dos
alunos aos conteúdos escolares do ensino regular. É proposta nesta
pesquisa uma reflexão sobre até que ponto o sistema socioeducati-
vo tem se preocupado com a aprendizagem efetiva dos jovens em
privação de liberdade, levando em consideração possíveis defasagens
escolares, considerando-os como sujeitos de direitos e protagonistas
de suas trajetórias sócio- historicas.
Título: Produção de jovens de projetos sociais em Heliópolis – SP
Síntese: O presente trabalho refere-se a uma pesquisa de mestrado
em andamento com jovens moradores de Heliópolis-São Paulo, que
mais especificamente fazem parte da União de Núcleos, Associações e
Sociedade de Moradores de Heliópolis e São João Clímaco (UNAS).
Por meio de levantamento bibliográfico de obras da Psicologia Só-
cio-Histórica e entrevistas semi-estruturadas com os/as jovens, a pes-
quisa buscou analisar as afetações na configuração da subjetividade,
projeto de vida e cotidiano, promovidas pela participação de jovens
em projetos sociais financiados por empresas privadas.
Título: A leitura de jovens comuns como forma de resistência e
engajamento
Síntese: O fenômeno literário ocorre, como toda experiência es-
tética, no espaço potencial localizado no campo intermediário en-
tre mundo interno e mundo externo e parte das oscilações entre o
“eu” e o “objeto”, de forma que não é determinado nem apenas pela

145
Roberth Miniguine Tavanti e Elisa Harumi Musha

psicologia do sujeito, nem apenas pelo conteúdo da obra, mas pela


interação entre ambos. Assim, a pesquisa em andamento buscará
conhecer possíveis formas de apropriação da literatura de massa, que
contrariem seu potencial ideológico e abram caminho para a refle-
xão e construção de novos significados e sentidos na vida psíquica e
social dos indivíduos.

Reflexões e encaminhamentos

Ao longo das discussões foram desenvolvidas reflexões e aponta-


mentos sobre os distintos processos de segregação, marginalização,
vulnerabilização e estigmatização relacionados a determinados seg-
mentos da população como, por exemplo, adolescentes e/ou jovens
moradores das periferias dos grandes centros urbanos. No tocante
aos processos de vulnerabilização, destacam-se categorias ou nome-
ações distintas relacionadas às práticas de intervenção nos campos
educacional e socioassistencial, que ora tratam os contextos como
vulneráveis (contexto escolar e comunitário), ora acabam por ro-
tular, ou mesmo, estigmatizar segmentos específicos – adolescentes
vulneráveis ou jovens vulneráveis. Como exemplo desta rotulação ou
estigmatização, ressaltamos uns dos trabalhos que teve como objeti-
vo refletir sobre a categoria – “alunos problemáticos”. Neste ponto,
o grupo trouxe uma argumentação em direção aos efeitos de tal es-
tigma na produção cotidiana do contexto escolar e suas implicações
nas relações entre alunos e alunos, alunos e professores, alunos e
comunidade escolar, alunos e família.
A partir do trabalho “A voz dos muros: os sentidos da arte do
grafite para o jovem do Vale do Paraíba”, foi possível identificarmos
elementos para o desenvolvimento de um debate com foco na arte
como ação política, decorrentes, neste caso, das práticas culturais
protagonizadas por jovens envolvidos com a cultura hip hop. Refle-
timos ainda: (a) sobre os processos de criminalização e descriminali-
zação das expressões artísticas relacionadas à cultura hip hop; e, (b)

146
Juventudes: práticas culturais, políticas e participativas

sobre a importância das narrativas para os métodos de pesquisa em


Psicologia Social, especialmente, quando associadas à construção de
modos emancipatórios para os sujeitos envolvidos.
No segundo dia, contamos com a participação do movimento so-
cial formado pela militância da União de Núcleos, Associações dos
Moradores de Heliópolis e Região (UNAS), localizada em Heliópo-
lis. Entende-se por movimento social as ações coletivas de caráter
social, político e cultural, construídas por atores de diferentes classes
e camadas sociais. Historicamente, observa-se que eles têm contri-
buído para a organização e conscientização de indivíduos e grupos
da sociedade civil, pois apresentam um conjunto de demandas, via
práticas de pressão e mobilização, contínuas ao longo do tempo.
O debate nesta sessão girou em torno da explicitação dos dife-
rentes contextos em que estão envolvidos os jovens moradores da
região - projetos sociais, escolas, medidas socioeducativas em meio
aberto - com ênfase nas possibilidades de enfrentamento e resistên-
cia vinculadas às ações educativas e culturais. Vale notar que as ati-
vidades propostas não se espelham apenas nas grandes teorias (ou
pedagogias tradicionais), mas buscam estabelecer conexões entre as
teorias “acadêmicas” e os saberes populares disponíveis aos grupos e
organizações sociais com forte protagonismo dos jovens.
Refletimos que essa iniciativa, baseada no compartilhamento de
saberes e práticas educativas e culturais, em muito contribuiria para
uma melhor qualificação das pesquisas, estudos e trabalhos comu-
nitários desenvolvidos nos espaços acadêmicos tradicionais, em es-
pecial em Psicologia Social, compreendendo-se, desse modo, a im-
portância das lutas e o resgate da memória social presente nas ações
dos movimentos sociais, especialmente, nas regiões periféricas das
cidades.
Algumas das experiências relatadas pelos participantes da UNAS
nos oferecem exemplos de que os movimentos sociais se organizam
a partir da identificação de pautas comuns e construção de estra-

147
Roberth Miniguine Tavanti e Elisa Harumi Musha

tégias coletivas, tanto na questão das ações cotidianas, quanto nos


diferentes processos do pensar, educar e organização de formas de
mobilização, enfrentamento e resistência.
Por fim, identificamos dois encaminhamentos ao longo das ses-
sões em debate: (a) a importância do debate multidisciplinar sobre as
temáticas relacionadas às juventudes em suas práticas participativas,
culturais e políticas; e, (b) que devemos buscar, permanentemente,
conexões com os diferentes movimentos sociais nos eventos e ações
desenvolvidas pela ABRAPSO-SP. Isto porque verificamos um salto
de qualidade tanto no debate acadêmico acerca da práxis em Psico-
logia Social, quanto na construção de estratégias propositivas frente
aos problemas sociais e políticos contemporâneos.

Referências
Abramo, H. (1997). Considerações sobre a tematização social da juventude no
Brasil. Revista Brasileira de Educação, 5(6), 25-36.

Abreu, J. (2010). Cultura e política: o caso do Programa “VAI” em São Paulo (2004-
2008). Tese de Doutorado. Programa de Estudos Pós-graduados em Ciências
Sociais, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo.

Bernardes, C. E., Santos R. G. A., & Silva, L. B. (2015). A roda de conversa como
dispositivo ético-político na pesquisa social. In C. E. Lang, J. S. Bernardes, M.
T. A. Ribeiro, & S. V. Zanotti (Orgs.), Metodologias: pesquisas em saúde, clínica e
práticas psicológicas (pp. 13-34). Maceió, AL: EDUFAL.

Bin, M. A. (2009). As redes de escritura nas periferias de São Paulo: a palavra como
manifestação de cidadania. Tese de Doutorado, Programa de Pós-graduação em
Ciências Sociais, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo.

Dayrell, J. & Carrano, P. C. R. (2002). Jovens no Brasil: difíceis travessias de fim de


século e promessas de um outro mundo. Recuperado de http://www.emdialogo.uff.
br/sites/default/files/JOVENS_BRASIL_MEXICO.pdf

Freire, P. (1967). Educação como prática da liberdade. Rio de. Janeiro: Paz e Terra.

148
Juventudes: práticas culturais, políticas e participativas

Frezza, M., Maraschin, C., & Santos, N. S. (2009). Juventude como problema de
políticas públicas. Psicologia & Sociedade, 21(3), 313-323.
Maia, H. (2014). Grupos, redes e manifestações: a emergência dos agrupamentos
juvenis nas periferias de São Paulo. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-
graduação em Ciências Sociais, Pontifícia Universidade de São Paulo, São Paulo.
Nascimento, E. (2006). Literatura marginal: os escritos da periferia entram em
cena. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-graduação em Antropologia,
Universidade de São Paulo, São Paulo.
Scheivar, E. & Cordeiro, D. (2007). Juventude em “risco social”? Dilemas e
perspectivas por entre as pedras das políticas Públicas dirigidas aos jovens. In
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Anais de comunicações científicas, IV
Seminário Internacional as redes de conhecimentos e a tecnologia: práticas educativas,
cotidiano e cultura. Rio de Janeiro. Recuperado de http://www.infancia-juventude.
uerj.br/pdf/estela/juventudeemriscosocial.pdf
Spink, M. J. (Org.). (1999), Práticas discursivas e produção de sentidos no cotidiano:
aproximações teóricas e metodológicas. São Paulo: Cortez.
Sposito, M. P. (2009). Estado da arte sobre a juventude na pós-graduação brasileira:
educação, ciências sociais e serviço social (1999-2006). Belo Horizonte: Argvmentvm.
Takeiti, B. (2014). Juventudes, subjetivação e violências: inventando modos de
existência no contemporâneo. Tese de Doutorado, Programa de Pós-graduação em
Psicologia Social, Pontifícia Universidade de São Paulo, São Paulo.
Takeuti, N. (2010). Refazendo a margem pela arte e política. Nómadas, 32(1),
13-25.
Tommasi, L. (2013). Culturas de periferia: entre o mercado, os dispositivos de
gestão e o agir político. Política & Sociedade, 23(2), 11-34.
Vigotski, L. S. (1996). A formação social da mente. Rio de Janeiro: Martins Fontes.
Weller, W. (2011). Minha voz é tudo que tenho: manifestações juvenis em Berlim e
São Paulo. Belo Horizonte: Editora UFMG.
Zanella, A. V., Groff, A. R., Silva, D. O. B., Mattos, L. K., Furtado, J. R., & Assis, N.
(2013). Jovens, juventude e políticas públicas: Produção acadêmica em periódicos
científicos brasileiros (2002 a 2011). Estudos de Psicologia, 18(2), 327-333.

149
POLÍTICAS EDUCACIONAIS
NA CONTEMPORANEIDADE:
REFLEXÕES E
ENFRENTAMENTOS

Maria Cristina Dancham Simões


Cecília Pescatore Alves
Cristiane Moreira Cobra
William Joseph Gomes de Oliveira

A roda de conversa oferecida pelo Núcleo Vale do Paraíba da


Regional São Paulo da Associação Brasileira de Psicologia Social
(ABRAPSO), realizada sob o título “Políticas Educacionais na con-
temporaneidade: reflexões e enfrentamentos”, buscou refletir sobre
formas de enfrentamento às políticas educacionais hegemônicas e
naturalizadas, considerando-as não como direcionadas aos interesses
públicos, mas antes com características mercantis da cultura hege-
mônica e, especialmente, com mecanismos de segregação e exclusão.
A constituição da sequência de apresentação dos trabalhos encami-

150
Políticas educacionais na contemporaneidade: reflexões e enfrentamentos

nhados à roda foi pensada em dois encontros: o primeiro foi desti-


nado às reflexões acerca da escola enquanto instituição; no segundo,
o debate centrou-se na formação do professor.
Considerando a instituição escolar do ponto de vista histórico,
e compreendendo-a tanto como espaço físico quanto relacional de
constituição de subjetividades e expressão de conflitos, é possível re-
meter-se à ideia, tomada como ponto de partida da roda de conversa,
de que o projeto de educação, tecido ao longo da história brasileira,
tem sustentado as instituições educativas como mediadoras de polí-
ticas que priorizam a colonização em detrimento de possibilidades
emancipatórias.
Contemplou-se, a partir da exposição de Alves e Cobra (2016), a
reflexão sobre as políticas educacionais e as possibilidades de eman-
cipação, evidenciando o descaso por parte do poder público em tal
esfera. Recorrendo à trajetória histórica, retomada desde o período
jesuítico até os dias atuais, demonstra-se como as estratégias gover-
namentais de desenvolvimento, diretamente relacionadas aos meios
de comunicação de massa, às agências internacionais e ao merca-
do econômico alimentam fins extrínsecos à formação. As rupturas
e dificuldades da inserção e implementação das políticas nas escolas
abrem margem ao surgimento de outras propostas com vistas à lógi-
ca do capital, como por exemplo, a insistência na noção de desenvol-
vimento de habilidades e competências no processo de escolarização.
A historicidade explorada pelas autoras é entendida como um
dos elementos que constituem o posicionamento da ABRAPSO ao
longo de sua trajetória, o que permitiu reconhecer, a partir de uma
perspectiva crítica, que, no que diz respeito às considerações possí-
veis dentro da Psicologia Social sobre a Educação, apesar de alguns
avanços, as políticas brasileiras são ainda insuficientes e desarticula-
das, e não possibilitam identidades em emancipação.
Na continuidade da reflexão, na “roda de conversa” destaca-se,
na apresentação de Oliveira e Alves (2016), que a historicidade de
avanços e retrocessos da educação é expressa na escola atual a partir

151
Maria Cristina D. Simões, Cecília Pescatore Alves, Cristiane M. Cobra e William J. G. Oliveira

de elementos da ideologia ali materializada, por meio de práticas


de segregação sócio espacial. Mas também, nesse contexto, busca-se
compreender as práticas de apropriação espacial como possibilidades
de relações comunitárias.
Recorrendo a elementos constituintes da paisagem escolar, em
pesquisa realizada pelos autores, as grades constituíram signos da
contradição, ao mesmo tempo indicando elemento de proteção con-
tra a violência urbana externa e aprisionamento dos sujeitos, impe-
dindo a apropriação social do espaço. Na compreensão realizada,
destaca-se a funcionalidade pré-estabelecida do espaço, o que impe-
diria sua apropriação para práticas e relações comunitárias, reduzin-
do-o a um espaço de manutenção da ordem do sistema produtivo e
de construção de subjetividades submissas e passivas. Ainda assim, as
possibilidades de emancipação e de constituição de práticas comu-
nitárias emergiram no discurso, quase sob uma perspectiva onírica,
porém, apontam para a resistência dos indivíduos.
O segundo encontro foi dedicado à compreensão da formação de
professores, entendida tanto como expressão das referidas políticas,
mas também como possibilidade de emancipação. Terra e Novaes
(2016) apresentaram uma compreensão da representação de profes-
sores sobre estudantes de baixa renda. A discussão foi fundamentada
em pesquisa realizada pelas autoras sobre as representações que pro-
fessores de um curso de Serviço Social de uma faculdade privada do
centro de São Paulo construíram sobre os estudantes de baixa renda.
Adotando a perspectiva psicossocial da teoria das representações
sociais, a compreensão das representações de professores pode ofe-
recer elementos para a reflexão das práticas educativas no contexto
de cursos universitários. Esta proposição contribuiu para a roda de
conversa com um debate acerca das representações que professores
podem construir sobre os estudantes de baixa renda. As temáticas
identificadas pela pesquisa, e analisadas no evento, circulam, sobre-
tudo, em dois eixos de representação não excludentes: um concentra
discursos que rechaçam o termo “baixa renda” como qualificado-

152
Políticas educacionais na contemporaneidade: reflexões e enfrentamentos

ra dos estudantes; o outro identifica os estudantes como usuários


do serviço social. Essas representações guiam as práticas docentes e
podem ser compreendidas como alimentadoras de profecias autor-
realizadoras. A contribuição da proposição para a roda de conversa
estabeleceu-se na sua inclusão como elemento para a reflexão das
práticas educativas, no contexto de cursos universitários.
Dando continuidade à reflexão sobre a educação universitária e
formação de professores, Simões (2016a) introduz ao debate a pro-
blematização dos conteúdos de projetos pedagógicos de cursos de
licenciatura para atuação no ensino básico brasileiro. Ao examinar
aspectos da formação de professores pelo cotejamento dos projetos
pedagógicos e das diretrizes curriculares nacionais, orientou-se pela
teoria crítica, particularmente com fundamento nos conceitos de
formação e autonomia, conforme Adorno (2003). Identificou-se
possíveis tendências que levam ao abreviamento dos estudos pro-
postos e ao esvaziamento dos significados de conceitos e termos;
uma postura fetichizada em relação a um desempenho eficiente,
possivelmente alinhada às imposições e à adaptação da Indústria
Cultural, o que indica haver fins outros do que a promoção do su-
jeito vivo e da vida humana digna, não obstante sejam proclamados
constantemente em sua defesa. No material da pesquisa realizada
(Simões, 2016b), identificou-se que são raros os conteúdos que ma-
nifestam uma preocupação explícita e coerente com a consciência
crítica dos futuros professores.
O modelo educacional vigente na maior parte do mundo é uma
construção relativamente recente da história da humanidade, ten-
do surgido na Idade Moderna, por volta dos séculos XVII e XVIII.
A noção de uma instituição específica com o objetivo de fornecer
educação à população começou a ser difundida, e posteriormente
popularizada, a partir da revolução industrial. Como bem colo-
ca Michel Foucault (1987), a escola surgiu como um espaço de
poder disciplinar, que visava moldar e limitar a forma de agir do
educando.

153
Maria Cristina D. Simões, Cecília Pescatore Alves, Cristiane M. Cobra e William J. G. Oliveira

Os pensadores da chamada Escola de Frankfurt, dentre os quais


comumente se inclui Adorno, debruçaram-se sobre as consequên-
cias do processo cultural desencadeado pelo Iluminismo. De acordo
com essa análise, este período estimulou o desenvolvimento de uma
razão controladora e instrumental, que predomina até nossos dias.
Embora a razão iluminista visasse à emancipação dos indivíduos e
ao progresso social, terminou por levar a uma crescente dominação
do ser humano, processo no qual o desenvolvimento tecnológico
-industrial - a grande promessa de libertação do homem - se mos-
trou como instrumento de sua servidão voluntária.
Na análise althusseriana (Althusser, 1985), a escola constitui-se
como um Aparelho Ideológico do Estado. Com a função de con-
tribuir para a reprodução das relações de produção dominantes de
uma sociedade, qualifica a força de trabalho, por meio da reprodu-
ção do conhecimento técnico a ser aplicado a um tipo específico de
processo de produção. Assim, a escola reproduz regras de compor-
tamento, normas e crenças que disciplinam os trabalhadores. Nessa
concepção, a escola assegura formas silenciosas de submissão ideoló-
gica da classe trabalhadora, moldando a mentalidade dos jovens por
meio dos processos educativos no longo prazo.
Pierre Bourdieu (1982)1, importante sociólogo que empreendeu
análises sobre o poder simbólico da escola na sociedade, afirma que
no interior da escola moderna o poder simbólico está fortemente
presente e funciona como representação das relações sociais, re-
produzindo a cultura e a estrutura de classes, estratégicas para to-
das as sociedades. Para este autor, o sistema educacional assegura,
como escola reprodutivista, que o poder e os privilégios de classe
sejam transmitidos de pai para filho, com uma falsa aparência de
neutralidade que garante a reprodução das relações capitalistas de
produção.

1 Para uma introdução à análise e aos conceitos de Pierre Bourdieu, Cf.: Nogueira
e Nogueira (2002) e Saes (2007).

154
Políticas educacionais na contemporaneidade: reflexões e enfrentamentos

Conforme o Censo da Educação Básica (Ministério da Educa-


ção [MEC], 2015), em 2015, o país atingiu um total de mais de
50 milhões de matrículas nesse nível de ensino, a maior parte delas
concentrada nos anos iniciais, ocorrendo um afunilamento nos anos
posteriores. O mesmo Censo aponta também que, no Brasil, 81,6%
das matrículas encontram-se na rede pública de ensino e apenas
18,4% na rede privada, fato que reforça a importância do sistema
público no atendimento à população. Além disso, de acordo com o
Movimento Todos pela Educação2 (2017), os dados do IBGE/Pnad,
em 2015, revelam que 76% de jovens até 16 anos concluíram o en-
sino fundamental, e que apenas 62,7% estão matriculados no ensino
médio. “No Brasil, cerca de 2,5 milhões de crianças e jovens de 4 a
17 anos estão fora da escola. Desses, aproximadamente 1,5 milhão
são jovens de 15 a 17 anos que deveriam estar cursando o Ensino
Médio”.
A expansão da educação infantil no Brasil transparece nos dados
IBGE/Pnad 2015, com 90,5% de crianças entre 4-5 anos e 30,4%
de 0 a 3 anos matriculadas. Mas é importante lembrar que tanto cre-
ches como pré-escolas surgiram em decorrência das transformações
econômicas, políticas e sociais no país e dos processos de urbanização,
com crescimento descontrolado das cidades, problemas graves de sa-
neamento e elevados índices de mortalidade infantil. As instituições

2 Fundado em 2006, o movimento “Todos Pela Educação” é uma ação da socie-


dade brasileira que tem como missão engajar o poder público e a sociedade brasileira no
compromisso pela efetivação do direito das crianças e jovens a uma Educação Básica de
qualidade, de acordo com o próprio site da instituição. Define-se como apartidário, con-
grega representantes de diferentes setores da sociedade, comprometidos com a garantia do
direito a uma Educação de qualidade; o objetivo deste movimento é propiciar condições
de acesso, alfabetização e sucesso escolar. O movimento defende cinco metas, a serem al-
cançadas até 2022: toda criança e jovem de 4 a 17 anos na escola, toda criança plenamente
alfabetizada até os 8 anos, todo aluno com aprendizado adequado ao seu ano, todo jovem
com Ensino Médio concluído até os 19 anos e investimento em Educação ampliado e bem
gerido. Informações disponíveis em: Todos pela Educação (2017). O TPE. Recuperado de
https://www.todospelaeducacao.org.br/quem-somos/o-tpe/

155
Maria Cristina D. Simões, Cecília Pescatore Alves, Cristiane M. Cobra e William J. G. Oliveira

infantis não tiveram início somente como espaço de acolhimento da


criança, mas também como lócus de instrução às mães sobre hábitos
de higiene e cuidado. A educação infantil passa gradativamente a ser
alvo de políticas públicas que, inicialmente, não estavam associadas
aos processos de aprendizagem, mas sim às necessidades de sono,
higiene e alimentação. A ampliação das ações, bem como de vagas
públicas para a educação infantil relacionam-se diretamente à luta
das mulheres por direitos. Entretanto, o déficit ainda é elevado: “é
preciso ressaltar que os 9,5% restantes significam cerca de 500 mil
crianças e que as desigualdades regionais são marcantes. Além disso,
o foco não pode se restringir ao atendimento, sem um olhar especial
para a qualidade do ensino” (Todos pela Educação, 2017).
Nos últimos anos, o estabelecimento de metas para conclusão do
Ensino Fundamental na idade correta exigiu mudanças estruturais
nos anos finais do Ensino, bem como a implementação de políticas
públicas com foco no ensino de melhor qualidade, atreladas à dimi-
nuição de índices de reprovação e de evasão.
No caso do Ensino Médio, este necessita de reflexão e mudanças,
pois sofre de problemas estruturais e apresenta um modelo único
de formação que não oferece opções aos jovens que têm interesses e
níveis de formação distintos. O Ensino Médio tem currículo único
e inflexível para todos e é sobrecarregado por disciplinas obrigató-
rias que impõem a necessidade de uma alta carga horária. A escola
conta com práticas pedagógicas sem abordagem interdisciplinar, o
que desvincula a relação entre teoria e prática, e ainda prevalece o
modelo de avaliação única para todos. Nosso modelo de ensino é
enciclopédico e incentiva cópia e memorização de conteúdos em
detrimento da criatividade e resolução de problemas do cotidiano.
Além disso, nosso Ensino Médio está distante da vida do jovem, que
não se sente motivado a ir à escola e aprender.
Soluções que atendam aos interesses de mercado, como a adesão
imediata ao Ensino Médio Profissionalizante é outro capítulo, já es-
crito, da história da educação brasileira. Esse modelo foi implemen-

156
Políticas educacionais na contemporaneidade: reflexões e enfrentamentos

tado como formação voltada para classes operárias, num período de


crescimento da indústria, em que era necessário garantir a oferta de
mão de obra qualificada para trabalhar no chão de fábrica, e teve
como público alvo os filhos dos operários, caracterizando-se como
ensino voltado para classe pobre, enquanto as classes média e alta
deveriam acessar a universidade. A indústria recebeu estímulos para
criar escolas de aprendizagem (pelo Sistema S, como Senai, Senac
e outras) e investir no ensino profissionalizante, que se apresentou
como instrumento de reprodução da força de trabalho, sob a jus-
tificativa do desenvolvimento da economia nacional, e não como
uma possível forma de ascensão, desenvolvimento ou de mobilidade
social do trabalhador .
Na atualidade, a reforma do Ensino Médio apresenta novas ar-
ticulações com as propostas neoliberais de privatização, e repete-se
a política de uma escola para ricos e outra para pobres, sem que a
preocupação com uma educação para a emancipação humana ganhe
espaço em detrimento das determinações do mercado.
No caso do Ensino Superior, também é possível observar a evolu-
ção das matrículas na última década, quando houve um crescimento
evidente, mas apenas 17,7% dos 22.681.790 jovens com idade entre
18 a 24 anos estão no ensino superior no Brasil. Dados da publica-
ção Educationat a Glance (Organização para a Cooperação e Desen-
volvimento Econômico [OCDE], 2015), mostram que, nas últimas
décadas, o acesso ao ensino superior se expandiu notavelmente no
mundo: em 2013, cerca de um em cada três adultos nos países da
OCDE atingiu uma qualificação de nível superior; no Brasil, porém,
o percentual da população brasileira entre 25 e 64 anos que atingiu
o ensino superior é de 14%.
Ampliando a reflexão, é possível observar ainda que taxas de aban-
dono, distorção idade-série e reprovação revelam grande disparidade
entre as regiões do país, denunciando a falta de equidade e o hiato
de oportunidades para crianças e jovens que moram em regiões mais
pobres do país. A desigualdade de oportunidades educacionais bra-

157
Maria Cristina D. Simões, Cecília Pescatore Alves, Cristiane M. Cobra e William J. G. Oliveira

sileira encontra um de seus exemplos máximos na diferença de 35


pontos percentuais entre a taxa líquida de matrícula dos 25% mais
pobres e dos 25% mais ricos no Ensino Médio. Persiste no Brasil
ainda um elevado número de analfabetos: de acordo com a Pesquisa
Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) (IBGE, 2014), em
2014, eram 13 milhões, correspondendo a 8,3% da população brasi-
leira e, considerando o analfabetismo funcional, esse percentual sobe
ainda mais.
No Relatório Nacional PISA (OCDE, 2012), em relação à men-
suração do desempenho dos alunos brasileiros, desde a primeira
edição, nossos estudantes ocupam os últimos lugares nos rankings
de leitura, matemática e ciências; e também na avaliação sobre re-
solução criativa de problemas, realizada com 44 países da OCDE,
o Brasil ficou na 38ª posição. Nesta mesma avaliação, 47,3% dos
alunos brasileiros possuem baixa performance em resolução criativa
de problemas e apenas 1,8% alcançaram os níveis mais altos de pro-
ficiência.
Com relação à formação de professores, nos apropriamos aqui da
fala de Gatti (2013), ao considerar que, apesar de alguns avanços, as
políticas de formação docente são ainda insuficientes e desarticula-
das; ocorre fragmentação, encurtamento dos cursos e falta integração
da formação inicial e continuada, e mesmo os aspectos apontados no
manifesto de 19323 ainda são válidos, pois a sociedade mudou, mas

3 O Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova (1932) foi escrito durante o


governo de Getúlio Vargas e consolidava a visão de um segmento da elite intelectual que,
embora com diferentes posições ideológicas, vislumbrava a possibilidade de interferir na
organização da sociedade brasileira do ponto de vista da educação. Ao ser lançado, no meio
do processo de reordenação política resultante da Revolução de 1930, o documento tornou-
se o marco inaugural do projeto de renovação educacional do país. Além de constatar a
desorganização do aparelho escolar, propunha que o Estado organizasse um plano geral de
educação e defendia a bandeira de uma escola única, pública, laica, obrigatória e gratuita.
Informações disponíveis em: InFo Escola: navegando e aprendendo (2017). Manifesto
dos pioneiros da Educação Nova. Recuperado de: http://www.infoescola.com/educacao/
manifesto-dos-pioneiros-da-educacao-nova/

158
Políticas educacionais na contemporaneidade: reflexões e enfrentamentos

a estrutura curricular da formação não. Tal reflexão foi corroborada


nas apresentações de Simões (2016a) e Terra e Novaes (2016), no
segundo dia do encontro, ao identificarem, em suas pesquisas, por
meio do conteúdo de documentos e entrevistas circunscritas à temá-
tica da formação de professores, recursos, representações e discursos
que delineiam e expressa tal fragmentação.
O papel da escola é objeto de diversas pressões, posicionamentos
arrazoados propagados pela mídia, com total ausência de profundi-
dade reflexiva por parte da sociedade e pouca ou nenhuma autono-
mia das partes envolvidas (educadores e educandos), na tomada de
decisões sobre a práxis educativa; imperativos de preparação para
o mundo do trabalho, por parte da classe empresarial, para que a
escola ofereça melhores resultados em termos de qualificação dos
trabalhadores e aumento da produtividade; ansiedade da perspectiva
do jovem que se depara com taxas de desemprego muito acima da
média. A escola aprisionada tem expressão pelas apropriações sócio
-espaciais, mediadas por grades e muros, configurando o espaço de
relacionamento dos indivíduos e, também, de sua própria subjetivi-
dade.
A partir do debate realizado na roda de conversa foi possível iden-
tificar que a educação brasileira tem se posicionado em detrimento
da emancipação humana, ao ser mediadora de uma política de iden-
tidade que obedece aos ditames do capital e prioriza a colonização,
ao excluir um grande número de crianças do processo de escolariza-
ção e ao reproduzir, na dinâmica das instituições de ensino, práticas
em que estão em jogo concepções e valores alinhados às exigências
do mercado.
As atribuições de sucesso e fracasso ainda são destinadas às indivi-
dualidades dos integrantes da escola. Manipulam-se os mecanis-
mos simbólicos de naturalização das competências e incompetên-
cias. As preocupações têm se voltado muito mais para a resolução
das tensões intrínsecas à realidade atual da escola que procura um
bode expiatório: ora o aluno, ora o professor, ora a direção, ora a

159
Maria Cristina D. Simões, Cecília Pescatore Alves, Cristiane M. Cobra e William J. G. Oliveira

estrutura e ora a própria escola, que acaba por tornar-se um sujei-


to no processo. (Alves & Cobra, 2013, p. 148)

Assim, as reflexões sobre a realidade vivida na sociedade atual e so-


bre as condições das instituições educativas ressaltam a necessidade
de criação de novas formas de enfrentamento às políticas educacio-
nais, atualmente hegemônicas e naturalizadas. Tais políticas não se
direcionam aos interesses públicos, mas atendem às características
mercantis da cultura hegemônica que possuem mecanismos de se-
gregação e exclusão. Os enfrentamentos necessários vão desde pes-
quisas que adensem as questões em pauta até formas de denúncia so-
bre as ações sustentadas pelas políticas públicas que depõem contra
uma educação para a emancipação humana, exigindo, fundamental-
mente, uma postura de luta em sintonia com os ideais e finalidades
da ABRAPSO.

Referências

Adorno, T. W. (2003). Educação e emancipação (W. L. Maar, Trad.). São Paulo:


Paz e Terra.

Althusser, L. (1985). Aparelhos ideológicos de estado: nota sobre os aparelhos


ideológicos de estado (3ª Ed.). Rio de Janeiro: Graal.

Alves, C. P. & Cobra, C. M. (2016.). Políticas educacionais brasileiras: reflexões


[Resumo]. In Regional São Paulo da Associação Brasileira de Psicologia (Org.),
Anais de comunicações científicas, XIII Encontro da Regional São Paulo da ABRAPSO
(pp. 60-61). São Caetano do Sul, SP: ABRAPSO.

Alves, C. P. & Cobra, C. M. (2013). Políticas públicas de educação no Brasil:


possibilidades de emancipação? Revista Gestão & Políticas Públicas, 3(1), 132-151.

Bourdieu, P. & Passeron, J. C. (1982). A reprodução: elementos para uma teoria do


sistema de ensino (2ª Ed.). Rio de Janeiro, RJ: Francisco Alves.

Foucault, M. (1987). Vigiar e punir: nascimento da prisão (L. M. P. Vassalo, Trad.).


Petrópolis, RJ: Vozes.

160
Políticas educacionais na contemporaneidade: reflexões e enfrentamentos

Gatti, B. A. (2013). Educação, escola e formação de professores: políticas e


impasses. Educar em Revista, 50(4), 51-67.

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE]. (2014). Pesquisa Nacional


por Amostragem de Domicílio (PNAD): síntese de indicadores. Recuperado de http://
www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/imprensa/ppts/0000002405241110
2015241013178959.pdf

Ministério da Educação [MEC]. (2015). Censo da educação básica.


Recuperado de http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_
docman&vie w=download&alias=17044-dados-censo-2015-11-02-
materia&Itemid=30192

Nogueira, C. M. M. & Nogueira, M. A. (2002). A sociologia da educação de


Pierre Bourdieu: limites e contribuições. Educação &Sociedade, 23(78), 15-3.

Oliveira, W. J. G. & Alves, C. P. (2016) A escola aprisionada: práticas de segregação


socioespacial e possibilidades de participação na escola da periferia. [Resumo]. In
Regional São Paulo da Associação Brasileira de Psicologia (Org.), Anais de
comunicações científicas, XIII Encontro da Regional São Paulo da ABRAPSO (pp
30-31). São Caetano do Sul, SP: ABRAPSO.

Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). (2015).


Relatórios econômicos da OCDE Brasil. Recuperado de http://www.oecd.org/eco/
surveys/Brasil-2015-resumo.pdf

Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE)


(2012). Relatório nacional PISA 2012: resultados brasileiros. Recuperado de http://
download.inep.gov.br/acoes_internacionais/pisa/resultados/2014/relatorio_
nacional_pisa_2012_resultados_brasileiros.pdf

Saes, D. A. M. (2007). A ideologia docente em ‘A reprodução’, de Pierre Bourdieu


e Jean-Claude Passeron. Educação & Linguagem, 10(16), 106-125.

Simões, M. C. D. (2016a). As licenciaturas e as possibilidades à autonomia: análise


de documentos da formação de professores [Resumo]. In Regional São Paulo da
Associação Brasileira de Psicologia (Org.), Anais de comunicações científicas, XIII
Encontro da Regional São Paulo da ABRAPSO (pp. 40-41). São Caetano do Sul,
SP: ABRAPSO.

161
Maria Cristina D. Simões, Cecília Pescatore Alves, Cristiane M. Cobra e William J. G. Oliveira

Simões, M. C. D. (2016b). Formação do indivíduo, formação docente e educação


especial: o lugar do sujeito e o compromisso com a adaptação. Tese de Doutorado,
Programa de Estudos Pós-graduados em Educação: História, Política, Sociedade,
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo.

Terra, C. & Novaes, A. O. (2016). Quem está ocupando os bancos do ensino


superior privado? Representações de professores universitários sobre estudantes
de baixa renda [Resumo]. In Regional São Paulo da Associação Brasileira de
Psicologia (Org.), Anais de comunicações científicas, XIII Encontro da Regional São
Paulo da ABRAPSO (p. 65). São Caetano do Sul: ABRAPSO.

Todos pela Educação. (2017). O TPE. Recuperado de https://www.


todospelaeducacao.org.br/quem-somos/o-tpe/

162
O QUE FAZER? PROVOCAÇÕES
PARA CONSTRUÇÃO DE
PRÁTICAS EMANCIPATÓRIAS

Jean Fernando dos Santos


Beatriz Borges Brambilla
Cinara Brito de Oliveira
Mariana Serafim Xavier Antunes
Gláucia Tais Purin
Alessandro de Oliveira Campos

A formação social do Brasil e da América Latina, marcada por


processos de exploração e colonização, produziu e produz uma série
de desigualdades sociais. A temática social pouco foi tocada como
questão central dos Estados, no entanto, com a organização dos
movimentos populares e a inserção de pautas sociais nas agendas
políticas, vivemos nas últimas décadas algumas reformas no bojo da
promoção de políticas públicas e de direitos sociais. Por exemplo, no

163
Jean Fernando dos Santos et al.

Brasil, os governos do Partido dos Trabalhadores (PT) implementa-


ram programas democrático-populares que representaram a amplia-
ção de políticas públicas e debates em torno dos direitos humanos
e sociais. Porém, mais de uma década depois, uma série de con-
tradições emergiram, a partir das estratégias conciliatórias de classe,
postas como construção política de Brasil, produzindo um cenário
nacional desalentador.
Algumas conquistas políticas e sociais da sociedade brasileira ma-
terializam-se como condição essencial para a ruptura de processos
históricos cristalizados, considerando o abismo, desigual e combi-
nado, da realidade brasileira. Houve redução da pobreza e da desi-
gualdade social; o Instituto de Pesquisa e Estatística Aplicada (IPEA,
2012) publicou relatório demonstrando que, entre 2001 e 2011, a
renda per capita dos 10% mais ricos teve um aumento acumulado
de 16,6%, enquanto a dos mais pobres cresceu 91,2% no período.
Tal conjuntura se deu majoritariamente pelo investimento em
políticas sociais; segundo os Indicadores de Desenvolvimento Bra-
sileiro (Ministério do Planejamento, 2013) há relação direta com as
mudanças nas relações de trabalho e na política de salário mínimo,
Previdência Social, Bolsa Família e benefícios de prestação continua-
da. A redução dos níveis das desigualdades e de pobreza extrema re-
presenta uma ampliação de possibilidades reais de vida para grandes
parcelas populacionais.
No entanto, no Brasil assistimos hoje um extermínio dos direitos
sociais. Em 2016, o golpe de Estado, político-jurídico-administrati-
vo, institui e legitima a falência do Estado, que tem se apresentado
em seus três poderes como uma ameaça concreta à população, efe-
tivando-se como o grande violador de direitos humanos, especial-
mente no que tange a direitos individuais, coletivos e sociais. Há um
projeto instalado no País que explicita os entraves produzidos pela
ação e omissão do Estado ao colocar a dignidade da pessoa humana
em ameaça com a não efetivação dos direitos sociais mínimos.

164
O que fazer? Provocações para construção de práticas emancipatórias

É diante desta ameaça e ofensiva fascista de governos anti-progres-


sistas, no Brasil e na América Latina, que se retoma a clássica ques-
tão posta por Lênin em 1902, convocando movimentos populares,
instituições/entidades progressistas, trabalhadoras/es das políticas
públicas e militantes: “O que fazer?”.
Diante das preocupações que esse cenário suscita e das discussões
que têm se acumulado, o Núcleo SP ABRAPSO propôs uma Roda
de Conversa, no XIII Encontro Regional ABRAPSO SP, com o tí-
tulo “O que fazer? Provocações para construção de práticas eman-
cipatórias”. A atividade teve a participação de aproximadamente 30
pessoas, em duas sessões.
Este artigo tem como finalidade promover reflexões críticas a par-
tir da atividade proposta e de sua temática. Para tanto, será colo-
cada como questão central a Psicologia Social Crítica e sua práxis,
nos diversos contextos, no enfrentamento do avanço neoliberal e
na construção de espaços de luta. Como a Psicologia Social Crítica
pode contribuir?

Psicologia Social Crítica e práxis profissional

A Psicologia Social Crítica surge na década de 1960, diante da


ineficiência das teorias e práticas psicológicas, que dicotomizavam
a relação indivíduo-sociedade e concebiam o chamado objeto da
Psicologia como algo natural e interno ao sujeito. Com a intenção
de construção de leituras da realidade, esta Psicologia Social Crítica
oferece subsídios para responder e superar as situações de sofrimento
humano decorrentes das opressões e violações que significativa
parcela da população - não só do Brasil, mas de toda a América Lati-
na - estava exposta. As possibilidades de atuação da Psicologia Social,
que até então era restrita à academia, educação e à indústria, e que
tinha como objetivo o ajustamento do indivíduo ao contexto social
que se fizesse necessário, ampliou-se para as comunidades, a partir de

165
Jean Fernando dos Santos et al.

um debate sobre o compromisso da Psicologia com a transformação


da realidade (Silva, 2012).
No Brasil, temos Silvia Lane como pioneira nesse debate, que pas-
sou a orientar uma série de pesquisas com o objetivo de compreen-
der a relação do indivíduo com o meio histórico e social no qual
está inserido; a formação da concepção de mundo do indivíduo; o
papel das instituições no desenvolvimento da consciência social; a
atividade humana como geradora da consciência de classe e a ação
da Psicologia Comunitária como instrumento de conscientização/
transformação (Silva, 2012).
De acordo com Sawaia (2009), o conhecimento produzido desde
então - um saber militante - passou a orientar a práxis da psicologia
nos mais diferentes espaços dedicados à emancipação humana, esta
compreendida conceitualmente a partir das construções de Marx
(1843/2010), em Sobre a Questão Judaica, em que diferencia eman-
cipação humana de emancipação política. Afirmando que a emanci-
pação política surge no fato do Estado poder se libertar de um “cons-
trangimento”, sem que o homem encontre-se realmente liberto, ou
seja, o Estado consegue ser um Estado livre, mas o homem não. Im-
portante ressaltar que, para Marx, a emancipação política representa
um grande progresso, mas não alcança a emancipação real, prática,
que é a emancipação humana:

Mas a emancipação humana só estará plenamente realizada quan-


do o homem individual real tiver recuperado para si o cidadão
abstrato e se tornado ente genérico na qualidade de homem indi-
vidual na sua vida empírica, no seu trabalho individual, nas suas
relações individuais, quando o homem tiver reconhecido e orga-
nizado suas ‘forces propres’ [forças próprias] como forças sociais e,
em consequência, não mais separar de si mesmo a força social na
forma da força política. (Marx, 1843/2010, p. 54)

Nesse sentido, compreende-se emancipação como reunificação e


reintegração de posse, social e individual, de uma força que um dia

166
O que fazer? Provocações para construção de práticas emancipatórias

esteve alienada. Para o autor, força vista como produção e reprodu-


ção, sob a dialética indivíduo-comunidade, vivida através da única
forma que o homem conhece e é capaz de desenvolver: sua própria
atividade.
É a atividade humana libertadora que possibilitará a emancipação
humana. Nesse sentido, o presente projeto trata da investigação sobre
as formas de subjetivação da realidade. Para tanto, a subjetividade
humana possui lugar central nesta discussão. González Rey (2008)
afirma que a subjetividade é um fenômeno exclusivamente indivi-
dual, mas um importante aspecto dos fenômenos sociais. O autor
desenvolve a ideia de subjetividade social, em que a vida é integrada,
na medida em que o material simbólico e emocional, que consti-
tui os sentidos subjetivos que produzem a experiência humana, são
produtos da confrontação e interrelação entre as configurações sub-
jetivas individuais implicadas na atividade e no sentido da ação e do
processo de vida.
Face ao exposto, aponta-se como reflexão central do debate do
“O que fazer?” a atuação profissional no campo das políticas sociais
sobre o caráter emancipatório da práxis psi.

A Psicologia Social Crítica, práxis emancipatória e a


organização popular
Diante da emblemática questão: “O que fazer?” emergiram, fun-
damentalmente, debates em torno das táticas e estratégias de cons-
trução de um projeto societário alternativo, com enfrentamentos
contra a ordem instrumental da burocracia do Estado e do capital,
considerando a multiplicidade de formatos, com avanços e recuos
tanto no cenário nacional como mundial, compreendendo seus des-
dobramentos em tempo real dos modos e fazeres da política no co-
tidiano.
Considerando as contribuições postas pelos integrantes da Roda
de Conversa - que tangem uma relação com a estética, comunica-

167
Jean Fernando dos Santos et al.

ção, política, economia e organização social - apresentaremos uma


análise inspirada nas cinco dimensões fundamentais para o fazer
transformador comunitário, sendo elas: ontológica, epistemológica,
metodológica, ética e política (Montero, 2004).
Como construímos nossas relações com as pessoas com as quais
trabalhamos? Quais são os atravessadores? Como as vemos? Como
somos vistos? Como construímos espaços de diálogo? Quem dire-
ciona as demandas e ações (a/o psicóloga/o ou o sujeito)?
Essas são as questões que circundam o chamado debate ontoló-
gico do fazer transformador, materializado na práxis psicológica,
na emergência da compreensão de uma subjetividade ativa, social
e histórica, na desconstrução de relações de poder historicamente
cristalizadas que demandam à psicóloga e ao psicólogo uma posição
autoritária, impedindo a construção de novas alternativas de se cons-
truir caminhos independentes.
Para tanto, cabe à nossa atividade cotidiana uma horizontalidade
eminente ao fazer coletivo, a escuta compreensiva, o diálogo, a troca,
o reconhecimento dos sujeitos e grupos em sua totalidade. Tal con-
cepção nos leva à pergunta: nesta relação, todos aprenderam e ensi-
naram? Nesta conjuntura se materializa o debate sobre a dimensão
epistemológica. Qual a qualidade da troca, do compartilhamento?
Como construir conhecimento, troca, compartilhamento, diálogo e
transformação? A dimensão metodológica refere-se às escolhas pro-
duzidas quanto ao modo de estruturar o trabalho psicológico. Qual
a melhor maneira de se engendrar uma intervenção considerando o
movimento próprio da comunidade/instituição/grupo?
Por dimensão ética, retoma-se a ideia da relação com o sujeito,
produzindo reflexões sobre como o respeito, a justiça e a solidarieda-
de permeiam essas relações. A perspectiva da emancipação humana
reside nesta seara, pois a dimensão ética expressa-se nos processos
que implicam construir histórias da comunidade para superação das
relações de dependência e dominação.

168
O que fazer? Provocações para construção de práticas emancipatórias

Embora compreendamos que ética e política são indissolúveis,


Montero (2004) nos provoca para pensar na dimensão política,
evocando os “pra quês” da intervenção psicossocial, explicitando o
caráter político do fazer psicológico. Em benefício de quem? Onde
chegaremos com isso?
Diante destas provocações, apontamos algumas sínteses produzi-
das na Roda de Conversa como princípios da práxis psicológica:
• Emergência pela construção de estratégias metodológicas que
valorizem a expressão humana através da estética, com arte e
cultura no cerne das intervenções psicossociais;
• Fomento de espaços comunitários alternativos que facilitem o
encontro comunitário e a organização popular;
• Debater e enfrentar a mídia hegemônica, com comunicação
popular comunitária, mídias alternativas e democratização da
comunicação nas diversas esferas sociais e geográficas;
• Produção de práticas de enfrentamento aos processos de insti-
tucionalização de pessoas, afirmando o cuidado em liberdade
e o direito à convivência familiar e comunitária;
• Construção de práticas democráticas e dialética no fazer nas
políticas sociais, assegurando processos de escuta, ação e ga-
rantia de direitos no cotidiano profissional;
• Problematização da economia solidária como alternativa à
economia hegemônica, construindo novas estratégias de auto-
nomia econômica da população pobre;
• Facilitar a construção de estratégias autogestionárias de orga-
nização popular e de trabalhadores;
• Reconhecer a questão social como estruturante das desigualda-
des expressas na realidade brasileira, construindo intervenções
com vistas à ruptura das violências de classe, raça e gênero;
• Pautar a formação de psicólogas e psicólogos diante dos desa-
fios concretos apresentados na realidade brasileira.

169
Jean Fernando dos Santos et al.

As construções apresentadas pelo coletivo reafirmam a ideia de


Martin-Baró sobre o “que fazer” psicológico no campo da liberta-
ção, materializando-se como horizonte da atividade a mediação,
como instrumento de construção de uma nova realidade, produzin-
do formas de superação da identidade alienada, pessoal e social, ao
transformar as condições opressivas do contexto. Para Martin-Baró
(1996), aceitar a conscientização como horizonte não exige tanto
mudar o campo de trabalho, mas a perspectiva teórica e prática a
partir da qual se trabalha. Pressupõe que a(o) psicóloga(o) recoloque
seu conhecimento e sua práxis, assuma a perspectiva das maiorias
populares e opte por acompanhá-las no seu caminho histórico em
direção à libertação.
O que fazer? Afirmar a práxis humana, como uma práxis social
que produz realidade a partir do estranhamento, que possibilita a
aparição da subjetividade como individualidade, singularidade vistas
nas bases materiais da realidade. Fomentando o olhar, aproximar,
pertencer, compartilhar, fazer, transformar COM.
Construir, propositivamente, colocar-se de maneira militante jun-
to à organização popular, caminhando rumo a uma sociabilidade
alternativa, emergindo o improvável e o impossível. O impossível
aparece, então, nas ações políticas emancipatórias. O impossível
funciona como algo que está por vir, e aqueles que lutam por liber-
dade e emancipação já começam a se sentir felizes por lutarem por
isso (Arditi, 2011).
Pela emancipação como horizonte ético-político, como projeto de
profissão e projeto de sociedade!

Referências
Arditi, B. (2011). Agitado y revuelto: del “arte del imposible” a la política
emancipatoria. In E. Adamovsky, C. Albertani, B. Arditi, A. E. Ceceña et al.
(Orgs.), Pensar las autonomias (pp. 281-308). Mexico, DF: Sísifo; Bajo Tierra.

170
O que fazer? Provocações para construção de práticas emancipatórias

Instituto de Pesquisa e Estatística Aplicada [IPEA]. (2012). A década inclusiva


(2001-2011): desigualdade, pobreza e políticas de Renda. Brasília, DF: Autor.

Gonzalez-Rey, F. (2008). Subjetividad social, sujeto y representaciones sociales.


Diversitas, 4(2), 225-243.

Martin-Baró, I. (1996). O papel do psicólogo. Estudos de Psicologia, 2(1), 7-27.

Marx, K. (2010). A questão judaica. São Paulo, SP: Boitempo (Original publicado
em 1843)

Ministério do Planejamento. (2013). Indicadores de desenvolvimento brasileiro


(IDB)2001-2012. Brasília, DF: Autor.

Montero, M. (2004). Introducción a la Psicología Comunitaria: desarrollo, conceptos


y procesos. Paidós: Buenos Aires.

Sawaia, B. B. (2009). Psicologia e desigualdade social: uma reflexão sobre liberdade


e transformação social. Psicologia & Sociedade, 21(3), 364-372.

Silva, C. M. M. F. (2012). Por uma Psicologia Social Brasileira: Silvia Tatiana


Maurer Lane. Tese de Doutorado, Programa de Pós-graduação em Psicologia
Social, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo.

171
NOTAS ACERCA DA DIALÉTICA
COMO MÉTODO E SEU USO
CONTEMPORÂNEO NA
MEDIAÇÃO DA TRANSMUTAÇÃO
SOCIAL

Deivis Perez
Ruchelli Stanzani Ercolano
Luiz Carlos da Rocha

Estas notas apresentam uma discussão acerca da dialética como


método acadêmico-científico e de atuação da pessoa na sociedade,
concebida como um instrumento rigoroso para a compreensão da
realidade em sua complexidade e capaz de ensejar a ação humana.
Ademais, procuramos patentear uma leitura de um dispositivo me-
todológico, a instrução ao sósia, na qual defendemos que os seus
usos podem representar atualizações contemporâneas e possibilida-
des de aplicação da dialética materialista enquanto enfoque capaz
de garantir a apreensão da totalidade dos fenômenos; e, principal-

172
Notas acerca da dialética como método e seu uso contemporâneo na mediação da
transmutação social

mente, como estratégia de produção de saberes e potencialização das


movimentações e atividades de transmutação da concretude pelos
indivíduos em situação de trabalho, considerando que a atividade
laboral pode ser tomada como experiência humana privilegiada para
fazer emergir processos que permitem à pessoa desenvolver a si mes-
ma e, simultaneamente, alterar o seu meio em movimentações reali-
zadas em articulação e acordo com os seus pares.

Apontamentos acerca da dialética

Conforme Gadotti (1995), a dialética, compreendida como lógica


da natureza, forma de explicação da dinâmica e da modificação das
coisas e dos seres vivos, nasceu com Zenão de Eléia e teve desdobra-
mentos relevantes por intermédio de Heráclito de Éfeso. Segundo
este filósofo pre-socrático, a realidade sería definida como um deve-
nir perpétuo, caracterizada, portanto, como processo de transforma-
ção perene que alcança a tudo o que existe. Posteriormente, a dialé-
tica passou a ter outras representações alinhadas ao desenvolvimento
da filosofia e do conhecimento científico. Na concepção moderna,
era percebida como um modo de interpretação do real, que teria
em sua essência a contradição e a marca das constantes mudanças.
De acordo com Konder (2004), em seu texto introdutório sobre a
dialética, o filósofo Aristóteles contribuiu para a sua difusão identi-
ficando-a com o sentido de permanente movimento e modificação
da realidade. A despeito disso, em Aristóteles, a dialética se manteve
como uma arte dialógica e argumentativa, que demanda a mobiliza-
ção competente do uso da linguagem, da lógica e de saberes como
a filosofia.
Numa etapa ulterior das evoluções e desdobramentos dos usos e
delimitações da dialética, os renascentistas e iluministas a restringi-
ram ao exame dos fenômenos por meio da tríade movimento, con-
tradição e instabilidade. Por sua vez, ainda em sintonia com Konder
(2004), foi Hegel quem apontou o papel ativo exercido pelo homem

173
Deivis Perez, Ruchelli Stanzani Ercolano e Luiz Carlos da Rocha

na transformação do real e estabeleceu nexos entre a dialética e o


exame da concretude dos movimentos político e econômico. Esta-
vam lançadas as bases para um profundo questionamento tanto dos
métodos positivistas, que simplificavam o acesso e a construção dos
conhecimentos humanos, quanto dos métodos metafísicos, que não
focalizavam o mundo objetivo para garantir a compreensão do ser e
das coletividades humanas.
Cumpre observar, em acordo com Kopnin (1969/1978), que no
século XIX foi disseminada a visão de que tais métodos não colabo-
ravam para o desenvolvimento da ciência e que apenas uma teoria
filosófica crítica, complexa e com profundidade ontológica e episte-
mológica poderia dar conta do real, o que (re)conduziu à dialética.
Para Kopnin (1969/1978), foi a filosofia marxiana que logrou supe-
rar a partição entre ontologia, natureza fundamental da realidade, e a
gnosiologia, necessidade e capacidade humana de conhecer e validar
o objeto de conhecimento, recorrendo à compreensão da dialética
sobre as conexões entre o indivíduo e o objeto no curso sociopolí-
tico, histórico e econômico das práticas dos homens. Nesta abor-
dagem filosófica materialista, o sujeito e o objeto encontram-se em
(inter)relação, ao mesmo passo que o pensamento e o ser também se
acham nesta influência mútua, possibilitando a examinação da prá-
tica por meio do pensamento e do conhecimento teórico. Portanto,
a dialética, agora nomeada materialista, contrariamente à metafísica
e ao positivismo, não aparta o método de pensamento das transfor-
mações da realidade objetiva e, ainda, não considera possível o de-
senvolvimento de uma ciência separada, segregada ou desmembrada
do ser.
Em face do exposto, é possível afirmar com Kopnin (1969/1978),
que a dialética materialista se propôs a desvendar os princípios do
progresso do saber humano a partir dos seguintes pressupostos: (a)
o conhecimento é advindo da compreensão da realidade objetiva
pelo pensamento, ou seja, o saber teórico é, por assim dizer, consti-
tutivamente pleno de matéria empírica; (b) os resultados atuais ou

174
Notas acerca da dialética como método e seu uso contemporâneo na mediação da
transmutação social

conhecimentos existentes são oriundos do movimento de saberes,


que se vinculam e se contrapõem, numa constante exigência de esta-
belecimento de relações entre o sujeito e o objeto, e da representação
na consciência humana dos aspectos da realidade objetiva, que estão
fora do ser; e, (c) os saberes disponíveis são o resultado histórico e
social da própria dinâmica de construção do conhecimento, o qual
emerge do desconhecimento e segue em direção ao conhecimento
impreciso e incompleto até alcançar as suas formas mais precisas e
completas. Assim, nas palavras do autor:
a dialética marxiana não serve a si mesma nem é necessária à sua
autojustificação; ela é um método de aquisição da verdade obje-
tiva e está subordinada à tarefa de representar as leis da nature-
za e da vida social tais quais elas existem na realidade. (Kopnin,
1969/1978, pp. 98-99)

Ademais, o teórico considerou a dialética como um método po-


deroso em ciência, devido à sua ênfase especial ao movimento de
busca de resultados objetivos-verdadeiros de modo a ela própria mo-
dificar o seu formato e se desenvolver a partir dos novos conceitos
científicos. A dialética materialista marxiana possui três leis básicas,
as quais não representam de maneira integral toda a profundidade
da dialética, mas são suficientes para estabelecer veemente oposição
à metafísica. São elas: “1) lei da unidade e luta dos contrários; 2) lei
da transformação das mudanças quantitativas em qualitativas; 3) lei
da negação da negação” (Kopnin, 1969/1978, p. 103).
Em Konder (2004), encontramos a elucidação dessas leis funda-
mentais, sendo que a primeira diz respeito à compreensão da to-
talidade do objeto, uma vez que não é possível a sua apreciação e
interpretação isoladamente, de modo que é necessário estudá-lo em
meio ao quadro interrelacional ou sociointeracional em que ele está
inserido e que o constitui, já que os diversos aspectos da realidade
estão conectados ao objeto ou fenômeno e integram a sua natureza
própria. Já a segunda lei traz em seu bojo a questão da fluidez do

175
Deivis Perez, Ruchelli Stanzani Ercolano e Luiz Carlos da Rocha

objeto e indica que as mudanças nele ocorridas nem sempre se dão


na mesma frequência espaço-temporal e intensidade, sendo que ora
distinguem-se pequenas alterações quantitativas (processo lento),
ora notam-se grandes saltos qualitativos com metamorfoses radicais
(processo rápido). Por fim, a terceira lei, a negação da negação, que
manifesta, no âmbito da dialética materialista marxiana, a importân-
cia da contradição como aspecto constitutivo da força que conduz o
objeto ao movimento e às transformações da realidade. Esta última
lei se apresenta de maneira não linear e impregnada de conflitos,
teses e antíteses, afirmações e negações, prevalecendo a síntese deste
movimento, que traz em si a essência das formas anteriores do objeto
e, simultaneamente, a sua própria destruição e os seus novos feitios
de ser e estar no mundo.
É preciso citar que a noção de ‹categorias› é relevante para o
entendimento da dialética materialista. Estas são definidas como
reflexos do “... mundo objetivo, uma generalização dos fenômenos
independentemente da nossa consciência” (Kopnin, 1969/1978, p.
105) e, em última análise, as categorias são reduções da realidade,
cognoscíveis no processo de compreensão do objeto ou fenômeno e
que asseguram uma aproximação que busca contemplar, de alguma
forma, a multiplicidade e diversidade do real. As leis fundamentais
e as categorias, no quadro da dialética materialista, compõem um
método de decifração do universo objetivo localizado no exterior da
consciência humana, do pensamento do homem.
Foi considerando estas duas dimensões - leis da dialética e cate-
gorias - que Kopnin (1969/1978) definiu o pensamento como “o
reflexo da realidade sob a forma de abstrações (...) um modo de conhe-
cimento da realidade objetiva pelo homem” (p. 121, grifo do autor).
Contudo, o conhecimento não é uma cópia fiel da realidade, mas
uma releitura, um reflexo criativo que, ao mesmo tempo, se opõe e
se identifica com ela, pois é “... resultado da atividade subjetiva que
parte da fonte objetiva” (Kopnin, 1969/1978, p. 124). Portanto, a
dialética marxiana evidencia que o homem se coloca em atividade

176
Notas acerca da dialética como método e seu uso contemporâneo na mediação da
transmutação social

intelectual por meio do pensamento, para apreender a realidade e


produzir reflexos criativos e conhecimento sobre ela, os quais servem
de base para a prática verdadeira, a atividade criadora do homem que
resulta na fazedura de objetos necessários a ele.
Neste enfoque da dialética “o conhecimento é totalizante e a ati-
vidade humana, em geral, é um processo de totalização” (Konder,
2004, p. 36), tendo em vista que nunca atingirá seu esgotamento
e saturação. Nesse sentido, qualquer objeto apreendido ou criado
pelo homem é parte de um todo, sendo necessário reconhecer as
suas limitações quando examinado particularmente. É importante
destacar que a totalidade de um objeto não se constitui pela soma
das suas partes, mas pela integração delas, e que “a maior ou menor
abrangência de uma totalidade depende do nível de generalização do
pensamento e dos objetivos concretos dos homens em cada situação
dada” (Konder, 2004, p. 38). Assim, a totalidade é restrita a um
momento do movimento contínuo e perpétuo de totalização, já que
este nunca tem fim por não se consumar integralmente.
No que tange a essa totalidade, a perspectiva dialética tem como
centro o conteúdo de cada síntese, que é constituído pelas contradi-
ções e mediações concretas do real. Assim, o trabalho efetivado pela
via da dialética tem como centro a decifração dos relacionamentos,
desacordos e coincidências das partes do todo, as quais formam a uni-
dade, de sorte que não sejam desconsideradas as partes ao se estudar o
todo e nem ignorado o todo ao se investigar cada parte de um objeto.
Esta unidade, o todo e as partes do objeto, é em si contraditória, en-
tretanto, este caráter não denota a falha de raciocínio, mas o princípio
elementar do movimento característico da realidade e dos seres. Por
esta razão é que a dialética é, também, incessantemente colocada na
posição de objeto de análise, a fim de que seja modificada. Nesta pers-
pectiva, a dialética materialista não se torna um método estático, uma
vez que está em constante movimento auto-reflexivo e de transforma-
ção, o que a coloca em correspondência com o inelutável processo de
alteração da realidade, dos seres, das práticas e dos conceitos.

177
Deivis Perez, Ruchelli Stanzani Ercolano e Luiz Carlos da Rocha

Um caso contemporâneo de aplicação da dialética no campo


da Psicologia
Na seção anterior buscamos tecer considerações acerca dos prin-
cípios fundamentais da dialética e, neste tópico, nos dedicamos a
desenredar a leitura de enfoque dialético materialista de um ins-
trumento metodológico. O dispositivo ao qual fazemos referência
é nomeado “instrução ao sósia” e foi criado no âmbito da Psico-
logia do Trabalho por Ivar Oddone (1986). Nas últimas décadas,
tem sido apropriado e desenvolvido no quadro teórico da Clínica
da Atividade1 pela equipe do Laboratório de Psicologia do Trabalho
do Conservatoire National de Arts e Metiers de Paris (CNAM), sob
a coordenação de Yves Clot, que tem raízes epistemológicas na Psi-
cologia Histórico-Cultural ou Psicologia Sócio Histórica Cultural
de Lev Semenovich Vigotski. Vale notar que a instrução ao sósia é
um método indireto de acesso ao psiquismo humano, que pretende
contribuir para que um trabalhador ou um coletivo de trabalhado-
res, mediado por um analista ou pesquisador do trabalho, se torne
capaz de (re)conhecer, examinar e, hipoteticamente, ampliar a sua
capacidade de agir sobre a sua atividade laboral, potencializando a
reconfiguração ou transmutação do trabalho conduzida pelo próprio
indivíduo e por seus pares.
Notadamente, a instrução ao sósia consiste em criar as condições
para que um profissional ou coletivo de trabalhadores tome a si e a
sua ocupação como objetos de análises, desenvolvimentos e trans-
formações. Em resumo, a proposta feita ao voluntário num processo
aplicativo deste dispositivo é que ele realize a descrição das suas ati-
vidades laborais a um pesquisador ou analista do trabalho, supondo

1 Neste capítulo optamos por focalizar os nexos entre a dialética materialista e a


instrução ao sósia. Para conhecer a perspectiva dos pesquisadores da Clínica da Atividade
sobre o protocolo de aplicação deste dispositivo metodológico sugerimos a leitura de: Clot,
C. (2010). Trabalho e poder de agir (G. Teixeira & M. Vianna, Trad.). Belo Horizonte:
Fabrefactum.

178
Notas acerca da dialética como método e seu uso contemporâneo na mediação da
transmutação social

que este é um sósia que o substituirá em suas ocupações num dia. O


que se pretende é criar as condições para que o trabalhador converta
em linguagem o seu trabalho (Clot, 2010) e, gradualmente, reviva
as suas ações ocupacionais, sem que isto represente uma repetição
dos seus atos. A expectação é que seja possível ao profissional reexa-
minar e redescobrir o seu ofício, com vistas à tomada de consciência
dos aspectos constituintes, potencializadores e dificultadores da sua
laboralidade; em última instância, que sejam abertas zonas de desen-
volvimento, reordenamentos e metamorfoses do trabalho, do meio
e da coletividade profissional conduzidas pelos próprios trabalhado-
res. Complementarmente, mas não menos importante, é entender o
indivíduo como dispositivo para o desenvolvimento coletivo e vice-
versa, diga-se, visualizar a grupalidade humana como um instrumen-
to e uma ambiência privilegiada para o desenvolvimento individual.
O dispositivo visa ainda oferecer ao labutador, por meio da mo-
dificação da sua ação trabalhista, a possibilidade de ampliar a sua
potência de atuação sobre o ambiente, de desenvolver ou aprimorar
as suas capacidades cognitivas, afetivas e sociais, e de torná-lo sujeito
da sua atividade. Logo, a instrução ao sósia, percebida como um ins-
trumento metodológico dialético materialista, tem o seu centro no
movimento do trabalhador, que coloca a si e ao seu trabalho como
objetos de análise, a fim de refletir acerca das suas ações, afetos, con-
tradições, relações sociais, padecimentos e condições ocupacionais.
Todo o processo de contato com o vivido e as suas modificações
promovidas pela aplicação da instrução ao sósia, que consideramos
típicos da dialética materialista, devem acontecer de modo situado
institucionalmente e sócio-historicamente. Ainda, cumpre notar que
o curso dessa (re)entrada do trabalhador na sua própria atividade,
proporcionada pela técnica do sósia, não ocorre sem conflitos da pes-
soa consigo mesma e com o seu coletivo ou ausente da experimen-
tação de situações e afetos excruciantes. Trata-se, por assim dizer, de
enfrentar os desdobramentos e dificuldades que envolvem conhecer
e (re)criar, no decurso das movimentações dialéticas, a experiência

179
Deivis Perez, Ruchelli Stanzani Ercolano e Luiz Carlos da Rocha

vivida como um meio para a construção de uma vida presente ou


porvindoura diferente.
Além do mais, avaliamos que a instrução ao sósia pode ser com-
preendida e aplicada na direção de atender à demanda vigotskiana,
a qual prenunciava que a “ necessidade de sair de uma vez por todas
dos limites da experiência direta é assunto de vida ou morte” (Vigo-
tski 1927/1996, p. 283), por intermédio da produção de instrumen-
tos metodológicos e interventivos na realidade, capazes de favorecer
a aproximação, o exame, a compreensão e transmutação das diferen-
tes dimensões do psiquismo humano.
A instrução ao sósia pode ser aplicada, conforme defendemos,
visando (re)conectar o sujeito à sua realidade e, numa perspectiva
dialética materialista marxiana, permitir às pessoas e grupos pro-
moverem conscientemente metamorfoses da sua existência concreta
e subjetiva, sobretudo em contexto de trabalho, sempre tendo em
vista que se está na presença de uma história incessantemente ina-
cabada, na medida em que o “tomar consciência não consiste (...)
em reencontrar o passado intacto pelo pensamento, mas, sobretudo,
em revivê-lo e fazê-lo reviver na ação presente, para a ação presente”
(Clot, 2010, p. 222).
Ao focalizar o sujeito e seus movimentos e desenvolvimentos em
situação laboral, a instrução ao sósia permite que a tarefa do pes-
quisador do mundo do trabalho seja mediar a pessoa, no sentido da
ampliação do seu poder de agir sobre si e sobre o seu meio. É por
esse ângulo que a abordagem desenvolvimentista vigotskiana tem
orientado os estudiosos da Clínica da Atividade, de acordo com Clot
(2010, 2006), na compreensão do trabalho, definido como experiên-
cia tipicamente humana que permite à pessoa transformar, simulta-
neamente, o meio em que está inserida e desenvolver a si mesma,
em função do estímulo que o trabalho oferece à articulação entre a
ação individual e a atividade coletiva, o que faz emergir e consolidar
as capacidades de indivíduos e grupos. Esta perspectiva ampliada da
noção de trabalho reconhece a sua relevância para a efetiva realiza-

180
Notas acerca da dialética como método e seu uso contemporâneo na mediação da
transmutação social

ção das capacidades humanas, na mesma medida em que está atenta


para o fato de o trabalho se constituir, sob certas circunstâncias, em
dimensão que conduz à paralisia da ação, ao sofrimento da pessoa e
à doença (Perez, 2016).
A instrução ao sósia, visualizada como dispositivo metodológico
dialético materialista, se debruça sobre a atividade laboral do ho-
mem com o intuito de transformá-la em uma prática criativa, capaz
de desenvolver o sujeito e estimular as suas potencialidades. Para
tanto, é preciso compreender o trabalho de acordo com os princípios
dialéticos, em sua unidade contraditória, isto é, não o tomar isola-
damente, mas inserido e integrado a uma realidade objetiva, contex-
tualizado como uma atividade concreta e situada. Cumpre lembrar
Wisner (1993), que ressaltou a importância de apreender o trabalho
em seu contexto real de execução, de modo que fosse possível visua-
lizar a técnica, a instituição, a política, a cultura, a infraestrutura e o
sujeito de forma integral, a fim de ter uma percepção mais sensível
do homem, considerando-o como sujeito afetado que tanto trans-
mite essa afetação à sua atividade como também é tomado por ela
(Amantini, 2003).
Por fim, acreditamos que a instrução ao sósia, no caminho da
dialética marxiana, pode tencionar a socialização entre os pares de
trabalho das estilizações pessoais, dos modos de agir individuais e
da atividade grupal, para conservar a plasticidade, a fluidez e a li-
berdade do movimento humano em situação ocupacional, a fim de
tornar o trabalho e os processos de desenvolvimento individual e da
coletividade objetos de reflexividade, produção de movimentações,
transmutações e de potencialização da vida, desde que exista acordo
entre os trabalhadores.

Referências
Amantini, S. N. S. R. (2003). Desafio do ensino de design frente ao novo século:
um estudo da disciplina de ergonomia nas escolas paulistas de desenho industrial.

181
Deivis Perez, Ruchelli Stanzani Ercolano e Luiz Carlos da Rocha

Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-graduação em Desenho Industrial,


Universidade Estadual Paulista, Bauru, SP.

Clot, Y. (2006). A função psicológica do trabalho (A. Sobral, Trad.). Petrópolis, RJ:
Vozes.

Clot, C. (2010). Trabalho e poder de agir (G. Teixeira & M. Vianna, Trad.). Belo
Horizonte: Fabrefactum.

Gadotti, M. (1995). Concepção dialética da educação: um estudo introdutório (9ª


Ed.). São Paulo: Cortez.

Konder, L. (2004). O que é dialética. São Paulo: Brasiliense.

Kopnin, P. V. (1978). A dialética como lógica e teoria do conhecimento (P. Bezzerra,


Trad.). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. (Original publicado em 1969)

Oddone, I. (1986). Ambiente de trabalho: a luta dos trabalhadores pela saúde. São
Paulo: Hucitec.

Perez, D. (2016). Produzir saberes para o trabalho: um método em Psicologia.


Estudos de Psicologia, 21(3), 305-316.

Vigotski, L. S. (1996). O significado histórico da crise da Psicologia: uma


investigação metodológica (C. Berlinder, Trad.). In L. S. Vigotski, Teoria e método
em Psicologia (pp. 203-417). São Paulo: Martins Fontes. (Original publicado em
1927)

Wisner, A. (1993). A inteligência no trabalho: textos selecionados de ergonomia (L. F.


Ferreira, Trad.). São Paulo: Fundacentro.

182
PSICOLOGIA SOCIAL DO
TRABALHO: ALGUNS DESAFIOS
E COMPROMISSOS NA ATUAL
CONJUNTURA

Juliana Lopes da Silva


Mariana Pereira da Silva
Márcia Hespanhol Bernardo

Neste capítulo, busca-se discutir brevemente algumas característi-


cas do trabalho no contexto atual e os compromissos da Psicologia
com relação a ele, conforme discutido em roda de conversa durante
o XIII Encontro Regional da Abrapso Rio. Para que uma análise
apropriada desse tema seja possível, considera-se fundamental que
questões históricas e sociais sejam problematizadas e colocadas em
relevo. Seligmann-Silva (2011) elenca alguns pontos que avaliamos
serem fundamentais para realizar tal intento, como: a divisão social
do trabalho e a divisão internacional da riqueza e do poder; políticas
econômicas, sociais e direitos trabalhistas do país que interferem nas

183
Juliana Lopes da Silva, Mariana Pereira da Silva e Márcia Hespanhol Bernardo

relações sociais de trabalho; as políticas de gestão das empresas, seus


processos decisórios e, de modo especial, os parâmetros éticos que
determinam as relações de trabalho; as coletividades representadas
no ambiente de trabalho e a individualidade dos trabalhadores.
Sob tal perspectiva, se torna preponderante a consideração a res-
peito das mudanças trazidas pela lógica neoliberal iniciada pelos
capitalistas mundiais a partir da década de 1970 (Antunes, 2011).
O capitalismo, que passava por uma crise estrutural, buscou novas
estratégias para a continuidade da expansão do capital, sendo estas
focadas na ampla flexibilização. De acordo com Stecher (2014), essa
característica se apresenta em diversos níveis, tais como: flexibiliza-
ção do emprego, na qual ocorrem variados tipos de contratação de
mão-de-obra; flexibilização temporal, marcada por alterações na car-
ga horária e/ou jornada de trabalho; flexibilização produtiva, com
contratação de empresas para terceirização de parte do processo pro-
dutivo e estabelecimento de alianças estratégicas; e, por fim, flexibi-
lização do trabalho, ligada a mudanças no processo de trabalho no
interior das empresas, que variam desde o nível de atividades ao nível
de recompensas. Também é importante destacar que tal lógica im-
pregna a sociedade como ideologia por meio da divulgação massiva
do discurso empresarial (Boltanski & Chiapello, 2009) que, confor-
me reflexão apresentada por Oliveira (no prelo), parece normatizar
também a vida dos trabalhadores na atualidade.
O Brasil passou por grandes reformas a partir da década de 1990,
que oficializaram a flexibilização no cotidiano de trabalho. No atual
momento, essa política se apresenta ainda com mais força em nosso
país, com propostas que aniquilam as conquistas (ainda incipientes)
dos trabalhadores conseguidas ao longo do século XX. Tais reformas,
voltadas especialmente para a flexibilização dos contratos de traba-
lho, incluem a terceirização e quarteirização, o que é apontado por
Seligmann-Silva (2011) como um dos fatores que impacta na subje-
tividade dos trabalhadores. Alinhadas à lógica neoliberal, elas se tra-
duziram em políticas que favorecem a precarização social, conforme

184
Psicologia social do trabalho: alguns desafios e compromissos na atual conjuntura

nos aponta a autora. Conceitualmente, a precarização social se refere


à “fragilização do tecido social – das estruturas (instituições) que
regem a coesão e a proteção coletiva e dos laços que vinculam entre
si os seres humanos” (Seligmann-Silva, 2011, p. 460). De acordo
com Sennett (2006), o enfraquecimento dos vínculos contratuais se
reflete negativamente nos trabalhadores em diversos aspectos, dentre
os quais ressaltamos o planejamento de vida em longo prazo, que in-
clui também questões financeiras, de saúde e segurança, bem como
restringe as possibilidades de construção de vínculos sociais estáveis
entre os trabalhadores, interferindo na formação de coletivos. No
XIII Encontro ABRAPSO Regional São Paulo, esse tema foi abor-
dado por Barros (no prelo).
Seligmann-Silva (2011, p. 459) destaca que “a precarização se ins-
talou não apenas nas situações de trabalho, mas também no mundo
contemporâneo. Os vínculos e os relacionamentos humanos, nos
mais diversos âmbitos, foram atingidos”. Franco, Druck e Selig-
mann-Silva (2010), por sua vez, afirmam que a precarização é um
processo multidimensional, que atinge a vida dentro e fora do traba-
lho e envolve sentimentos de insegurança e de sujeição, assim como
o aumento da competição e do individualismo. Nesse contexto, os
trabalhadores são responsabilizados por seu fracasso ou sucesso, sem
que as condições materiais e as possibilidades de existência sejam
consideradas. Desse modo, não é difícil concluir que tal lógica inter-
fere diretamente na subjetividade e na forma com os indivíduos se
veem, veem o mundo e o seu trabalho.
Segundo Franco, Druck e Seligmann-Silva (2010), quanto mais
se expande a vulnerabilidade social, a desestabilização dos vínculos
de trabalho e a flexibilização, mais se promove a precarização social,
o adoecimento e até mesmo a destruição ambiental. Outra caracte-
rística das mudanças neoliberais, conforme aponta Antunes (2011),
é a intensificação na exploração do trabalhador. Nesse sentido, res-
saltamos que a presença de sobrecarga de trabalho, adoecimento e
aumento de índices de afastamento entre profissionais de diversas

185
Juliana Lopes da Silva, Mariana Pereira da Silva e Márcia Hespanhol Bernardo

áreas. Esse tema foi abordado por Reis (no prelo), focalizando o caso
de professores da educação fundamental. Segundo a autora, os pro-
fessores encontram-se cada dia mais sobrecarregados e desgastados
devido ao trabalho; 82% dos participantes da sua pesquisa afirma-
ram que o trabalho os adoece.
Seligmann-Silva, Bernardo, Maeno e Kato (2010) apresentam
dados da Previdência Social, no contexto brasileiro, que mostram o
crescimento dos afastamentos por problemas de saúde mental rela-
cionados ao trabalho, que haviam passado de 612, em 2006, para
12.882 em 2009. Ainda que se saiba da grande dificuldade no esta-
belecimento do nexo entre adoecimento e trabalho, bem como da
até então subnotificação dos casos de agravos à saúde em decorrên-
cia do trabalho (Cordeiro, Sakate, Clemente, Diniz, & Donalisio,
2005), tais dados mostram o quanto é alarmante a propagação da
lógica da flexibilidade em relação às condições de saúde do traba-
lhador.
Dada a importância das práticas de gestão no envolvimento dos
trabalhadores, consideramos relevante problematizar como, histori-
camente, vem se dando a participação dos psicólogos inseridos nos
contextos de trabalho que, por vezes, estão engendradas, na constru-
ção do discurso ideológico voltado para a flexibilização (Bernardo,
Oliveira, Souza, & Sousa, 2017). Com relação a esse tema, Pereira
(no prelo) discute o trabalho dos psicólogos na avaliação de riscos
psicossociais relacionados ao trabalho em altura e em espaços con-
finados, demonstrando que tal atuação pode legitimar práticas que
impõem a adaptação como obrigação do trabalhador em relação
às atividades de trabalho, postura favorável à ampliação do capital.
Vale ressaltar que a realização de uma análise crítica das práticas dos
psicólogos nesse contexto incluiria um questionamento sobre o uso
dos testes psicológicos, que se voltam à avaliação de aptidões indivi-
duais, sem qualquer reflexão acerca dos processos sociais presentes
no contexto no qual o trabalho será realizado. Ainda, tal postura

186
Psicologia social do trabalho: alguns desafios e compromissos na atual conjuntura

não inclui a necessária adaptação do trabalho ao trabalhador, e a


situação de trabalho na qual o trabalhador será incluído.
Frisamos que a Psicologia Social do Trabalho assume uma pos-
tura contra-hegemônica que pode ser adotada por profissionais da
Psicologia, tendo em vista seu compromisso social. Tal perspectiva
se pauta na compreensão do caráter desigual da relação capital-traba-
lho e na denúncia da realidade de opressão e superexploração à qual
os trabalhadores estão continuamente expostos. Segundo Bernardo,
Sousa, Pinzón e Souza (2015), a Psicologia Social do Trabalho surgiu
a partir de pesquisas em Psicologia Social e da aproximação de pro-
fissionais a movimentos sociais dos trabalhadores, que lutavam pela
saúde do trabalhador e por um olhar mais crítico frente às relações
de trabalho. As autoras afirmam que, nessa perspectiva, as relações
no mundo do trabalho são entendidas como assimétricas, permeadas
por aspectos históricos, sociais e subjetivos, que devem ser analisados
para a compreensão do trabalho enquanto fenômeno complexo.
Um exemplo de atuação da Psicologia, enquanto prática de resis-
tência, é a construção de espaços de reflexão acerca da vivência no
trabalho, como é o caso da pesquisa de Rigotti (no prelo) que, fo-
calizando trabalhadores da saúde, estudou a relação entre alienação
e autonomia, o sentido do trabalho para eles e o quanto o modelo
biomédico é ainda vigente, sendo que o apoio matricial1 é uma ati-
tude para enfrentar esse modelo, pois favorece a reflexão e a interdis-
ciplinaridade.
Desse modo, os temas debatidos demonstraram tanto a realidade
cruel a que os trabalhadores estão expostos, como as possibilidades
de resistência que estão presentes no seu cotidiano, além do com-

1 O apoio matricial, de acordo com Rigotti (2016), pode ser entendido como
uma estratégia para compartilhamento de conhecimentos, que visam à produção de proces-
sos de trabalho em saúde não alienantes. São espaços de diálogo entre profissionais distin-
tos, que compartilham conhecimentos acerca do trabalho para construir intervenções que
ampliem a comunicação e atuação entre todos os profissionais.

187
Juliana Lopes da Silva, Mariana Pereira da Silva e Márcia Hespanhol Bernardo

promisso dos psicólogos com esse contexto. É importante frisar a


presença, no evento, de um debate que demonstrou que o sofrimen-
to relacionado ao trabalho tem sido vivenciado individualmente.
Nesse sentido, discutiu-se a individualização da vida, do trabalho,
da carreira e suas consequências na desmobilização de coletivos e na
fragilidade dos vínculos pessoais vivenciados na sociedade contem-
porânea.
Foi consenso que a única forma de enfrentar tais pontos é por
meio de coletivos, embora os valores capitalistas promovam a de-
sunião e a competitividade. Além disso, a utilização de abordagens
integradoras para o contexto de trabalho foi incentivada, como
aquela proposta por Seligmann-Silva (2011) para a saúde mental re-
lacionada ao trabalho e a perspectiva crítica e reflexiva da Psicologia
Social do Trabalho (Bernardo et al., 2015).

Referências
Antunes, R. L. (2011). Adeus ao trabalho? Ensaio sobre asa metamorfoses e a
centralidade do mundo do trabalho (15ª ed.). São Paulo: Cortez.

Barros, S. P. (no prelo). Trabalhadores terceirizados na universidade pública:


contrastes entre o discurso neoliberal e a precarização das condições de trabalho
[Resumo]. In Associação Brasileira de Psicologia Social (Org.), Anais de
comunicações científicas, XIII Encontro da Regional São Paulo. São Caetano do Sul:
ABRAPSO.

Bernardo, M. H., Oliveira, F., Souza, H. A., & Sousa, C. C. (2017). Linhas
paralelas: as distintas aproximações da psicologia em relação ao trabalho. Estudos
de Psicologia, 34(1), 15-24.

Bernardo, M. H., Sousa, C. C., Pinzón, J. G., & Souza, H. A. (2015). A Práxis
da psicologia social do trabalho: reflexões sobre possibilidades de intervenção. In
M. C. Coutinho, O. Furtado & T. R. Raitz, Psicologia social e trabalho: perspectivas
críticas. Florianópolis: ABRAPSO.

Boltanski, L., & Chiapello, È. (2009). O novo espírito do capitalismo. São Paulo:
Martins Fontes.

188
Psicologia social do trabalho: alguns desafios e compromissos na atual conjuntura

Cordeiro, R., Sakate, M., Clemente, A. P. G., Diniz, C. S., & Donalisio, M. R.
(2005). Subnotificação de acidentes de trabalho não fatais em Botucatu, SP, 2002.
Saúde Pública, 39(2), 254-260.

Correa, P. R. L. & Assunção, A. A. (2003). A subnotificação de mortes por


acidentes de trabalho: estudo de três bancos de dados. Epidemiol. Serv. Saúde,
12(4), 203-212.

Franco, T., Druck, G., & Seligmann-Silva, E. (2010). As novas relações de


trabalho, o desgaste mental do trabalhador e os transtornos mentais no trabalho
precarizado. Revista. Brasileira de Saúde Ocupacional, 35(122), 229-248.

Oliveira, F. M. U. (no prelo). A ideia de empresa como norma geral de vida.


In Regional São Paulo da Associação Brasileira de Psicologia (Org.), Anais de
comunicações científicas, XIII Encontro ABRAPSO Regional São Paulo. São Caetano
do Sul: ABRAPSO.

Pereira, A. C. L. (no prelo). Fatores psicossociais de risco: reflexões e proposição


de uma nova práxis em psicologia. In Regional São Paulo da Associação Brasileira
de Psicologia (Org.), Anais de comunicações científicas, XIII Encontro ABRAPSO
Regional São Paulo. São Caetano do Sul: ABRAPSO.

Reis, G. G. (no prelo). Sofrimento e prazer no trabalho: um estudo sobre os


processos de saúde/doença de professores da educação fundamental. In Regional
São Paulo da Associação Brasileira de Psicologia (Org.), Anais de comunicações
científicas, XIII Encontro ABRAPSO Regional São Paulo. São Caetano do Sul:
ABRAPSO.

Rigotti, D. G. (no prelo). Apoio matricial como estratégia de promoção de maior


autonomia nos processos de trabalho em saúde do SUS – Campinas. In Regional
São Paulo da Associação Brasileira de Psicologia (Org.), Anais de comunicações
científicas, XIII Encontro da Regional São Paulo. São Caetano do Sul: ABRAPSO.

Rigotti, D. G. (2016). Matriciamento e coprodução de autonomia: percepções dos


apoiadores matriciais do SUS – Campinas. Dissertação de Mestrado, Faculdade de
Ciências Médicas, Universidade de Campinas, Campinas.

Seligmann-Silva, E. (2011). Trabalho e desgaste mental: o direito de ser dono de si


mesmo. São Paulo: Cortês.

189
Juliana Lopes da Silva, Mariana Pereira da Silva e Márcia Hespanhol Bernardo

Seligmann-Silva, E., Bernardo, M.H, Maeno, M., & Kato, M. (2010). O mundo
contemporâneo do trabalho e a saúde mental do trabalhador. Revista Brasileira de
Saúde Ocupacional, 35(122), 187-191.

Sennett, R. (2006). A Corrosão do caráter: consequências pessoais do trabalho no novo


capitalismo (11ª ed.). Rio de Janeiro: Record.

Stecher, A. (2014). El campo de investigación sobre transformaciones del trabajo,


identidades y subjetividad en la modernidad contemporánea. Apuntes desde
Chile y América Latina. In A. Stecher, & G. Lorena, Transformaciones del trabajo,
subjetividade e identidades: lecturas psicosociales desde Chile y America Latina.
Santiago: Ril Editores.

190
Carta de São Caetano do Sul

A Regional São Paulo da Associação Brasileira de Psicologia So-


cial/ABRAPSO, que no seu XIII Encontro realizado em novembro
de 2016, na cidade de São Caetano do Sul/SP, destacou a temática
“Práxis em Psicologia Social: o enfrentamento a pautas autoritárias e
à lógica privatista” vem, por meio deste documento, afirmar sua po-
sição ética e política em relação às ameaças de retrocesso dos direitos
humanos e sociais em nosso país.

Por uma Psicologia comprometida com os direitos humanos e


com a realidade brasileira
A ABRAPSO surge como desdobramento das críticas de um gru-
po de profissionais brasileiros e latino-americanos à produção de co-
nhecimento e atuação em psicologia deslocadas da realidade vivida,
propondo-se a edificar saberes capazes de romper com a lógica dis-
ciplinadora e normativa presente na ciência psicológica, mediante
a valorização das dimensões política, histórica, social e econômica
presentes na constituição humana.
Nosso compromisso é construir uma Psicologia Social que con-
tribua com o processo de transformação do país, na busca por uma
sociedade mais justa e menos desigual.
Almejamos uma sociedade capaz de superar formas de abuso his-
tóricas e estruturais que, para privilegiar as elites econômicas do país,
promovem a exploração dos trabalhadores, o racismo, a violência
do Estado, a precarização das políticas públicas de assistência e edu-
cação, a higienização do espaço urbano e o insuficiente direito à
cidade.

191
O neoliberalismo e o desmonte do Estado
O avanço da racionalidade tecnológica e das práticas neoliberais
tem levado a uma crescente redução dos direitos dos trabalhado-
res. Com a Proposta de Emenda Constitucional - PEC 55, nossos
direitos sociais, arduamente conquistados, se encontram em risco
por representarem um obstáculo aos interesses econômicos das elites
brasileiras e mundiais.
Nos últimos 20 anos, alcançamos o aumento de políticas públicas
essenciais à diminuição da população em situação de extrema pobre-
za, à ampliação do acesso à universidade, à proteção de populações
historicamente vulneráveis, e avançamos no debate sobre temas es-
truturantes de nossa sociedade – o racismo, a diversidade sexual, a
exploração do trabalho, os danos ambientais etc.
O atual governo se utiliza da farsa de que o rombo nas contas
públicas se dá em função das políticas de distribuição de renda e de
assistência à população, para retirar recursos de setores como saúde,
educação, assistência social, moradia, segurança etc.

Lucros exorbitantes e redução de direitos à população


Para compreender melhor a questão, vejamos os números: de
2009 a 2013 o Brasil apresentou um superávit nas contas públicas,
ou seja, gastou menos do que deveria gastar com as políticas públi-
cas. No ano de 2014 o déficit foi de 0,4%, e em 2015 de 2% do
nosso PIB (Produto Interno Bruto).
Esses valores, ao contrário do discurso governamental, encon-
tram-se dentro da normalidade. Na Europa, por exemplo, um déficit
de até 3% do PIB é considerado dentro do esperado. Isso porque é
incontestável o papel das políticas públicas na melhoria da vida da
população e no aumento do PIB.

192
Os verdadeiros rombos nas contas públicas vêm do sistema finan-
ceiro, que em 2015 representava um déficit de 6,7% do nosso PIB.
Esse sistema financeiro penaliza quem trabalha e investe na produ-
ção, aumentando os lucros daqueles que não produzem nada, como
banqueiros e investidores.

A PEC 55 fere a dignidade humana


A aprovação da PEC 55 congelará os investimentos públicos por
20 anos e levará a um desmonte dos já precários serviços públicos,
pois retira recursos de setores fundamentais para a população brasi-
leira, em especial a população mais pobre. Sua aprovação contraria os
anseios da população e é inconstitucional, pois fere uma cláusula pé-
trea (obrigatória) da nossa Constituição. Significa ainda o desmonte
de políticas públicas como Saúde, Educação e Assistência Social.
Com a crise econômica mundial, a resposta do governo é o corte
dos recursos em setores essenciais à valorização da vida, sem nenhu-
ma preocupação com os anseios da população, e os movimentos so-
ciais que buscam canais de diálogo têm sido duramente hostilizados.

Em defesa da saúde, educação, moradia e segurança


A PEC 55 trava os investimentos em saúde, educação, assistên-
cia social etc. (setores nos quais os gastos são menores e a utilidade
indiscutível), mas não limita os gastos da dívida pública, ou seja, a
“torneira” continuará escorrendo para o enriquecimento de banquei-
ros e investidores.
A Constituição Brasileira, no seu artigo 4º, inciso II, estabelece
os direitos humanos como princípio do Estado, cabendo aos nos-
sos governantes orientar sua atuação pela dignidade humana. Saúde,
educação, moradia, segurança, lazer são aspectos fundamentais para
alcançarmos esse ideal.

193
Em defesa da população vítima de extermínio
De acordo com o artigo 144 da nossa Constituição, a segurança
pública é dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, ca-
bendo aos governantes criar políticas para redução da violência.
No Brasil, mata-se mais do que nas principais zonas de guerra pelo
mundo. Segundo a Anistia Internacional, em 2012, 56 mil pessoas
foram assassinadas, das quais 30 mil são jovens e 77% negros.
Os dados apontam para uma política de criminalização da pobreza
e indiferença frente a essas mortes, pois somente 8% dos homicídios
no país tornam-se processos criminais, evidenciando-se um “genocí-
dio silenciado” da população pobre. Esse panorama será acentuado
com a diminuição de investimentos em políticas públicas.

Em defesa da democratização dos meios de informação


A comunicação – instrumento de poder e possibilidade de pro-
tagonismo, participação e exercício da cidadania – constitui-se um
bem público, devendo garantir qualidade e pluralidade em seu con-
teúdo e difusão.
Com esse poder (que é uma concessão do Estado) concentrado
nas mãos de pequenos grupos (famílias) e servindo exclusivamente a
fins comerciais, temos visto o silenciamento de boa parte da popula-
ção, a desinformação, a eleição de suposto(s) inimigo(s) e herói(s) da
nação, a promoção do medo e a difusão de narrativas contrárias aos
interesses da maioria da população brasileira.
Segundo nossa Constituição, artigo 220, § 5º, os meios de co-
municação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de
monopólio ou oligopólio, como observamos hoje. Assim, democra-
tizar os meios de comunicação é garantir que todas as vozes e versões
possam ser acessadas e as pessoas tenham condições de se posicionar
de forma crítica.

194
Mínimo nos investimentos e máximo na violação de direitos
A proposta do Estado mínimo tem significado a defesa do interes-
se privado pelos governantes e violência contra quem ousa contes-
tar. O autoritarismo governamental avança sem pudor. Aos que se
opõem ao avanço das políticas neoliberais, o Estado brasileiro tem
respondido com spray de pimenta e balas de borracha.
Assim, o Estado é mínimo na garantia dos direitos e máximo na
construção de condições que privilegiam o avanço do mercado e a
maximização dos lucros a poucos.
Este governo - representado por um presidente ilegítimo, um
Congresso e um Senado formados por uma maioria de parlamenta-
res investigados por corrupção - incentiva o avanço do capitalismo
selvagem e ataca sistematicamente os direitos da população.

Resistência e mobilização
Para a Regional São Paulo da ABRAPSO a pobreza e a ausência de
direitos e garantias fundamentais fere a dignidade humana e redu-
zir políticas públicas essenciais é um ato criminoso, pois aumenta o
abismo histórico entre a elite e a população em geral.
Diante do atual Estado de Exceção (ditadura), somente com a
mobilização social retomaremos um processo mais democrático e
plural de tomada de decisão, a fim de barrar os retrocessos e dar
continuidade aos avanços sociais.

São Caetano do Sul, novembro de 2016.

Regional São Paulo da Associação Brasileira de Psicologia


Social / ABRAPSO

195
Links para outras informações:
Auditoria Cidadã da Dívida: http://www.auditoriacidada.org.br

Instituto de Geografia e Estatística - IBGE: http://brasilemsintese.ibge.gov.br

Artigos pelo Professor Ladislau Dowbor que explicam sobre a conjuntura


econômica no contexto do avanço neoliberal http://dowbor.org/

Sobre o extermínio da população pobre e negra: https://anistia.org.br/imprensa/


na-midia/indiferenca-e-racismo/

196

Você também pode gostar