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Túlio Eugênio Dos Santos - A Codificação Administrativa

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Editora luMEN JuriS

rio dE JaNEiro
2019
Copyright © 2019 by Túlio Eugênio dos Santos

Categoria: Direito Administrativo

Produção Editorial
Livraria e Editora Lumen Juris Ltda.

Diagramação: Bianca Callado

A LIVRARIA E EDITORA LUMEN JURIS LTDA.


não se responsabiliza pelas opiniões
emitidas nesta obra por seu Autor.

É proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer


meio ou processo, inclusive quanto às características
gráficas e/ou editoriais. A violação de direitos autorais
constitui crime (Código Penal, art. 184 e §§, e Lei nº 6.895,
de 17/12/1980), sujeitando-se a busca e apreensão e
indenizações diversas (Lei nº 9.610/98).

Todos os direitos desta edição reservados à


Livraria e Editora Lumen Juris Ltda.

Impresso no Brasil
Printed in Brazil

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE

SA237c
Santos, Túlio Eugênio dos.
A codificação administrativa / Túlio Eugênio dos Santos. –
Rio de Janeiro : Lumen Juris, 2019.
208 p. ; 21 cm.

Bibliografia : p. 183-198.

ISBN 978-85-519-1316-1

1. Acesso à justiça. 2. Administração pública. 3. Corrupção.


4. Estruturação. I. Título.

CDD 342

Ficha catalográfica elaborada por Ellen Tuzi CRB-7: 6927


Agradecimentos

Dedico esta dissertação a Deus, a minha esposa, a minha baby


e ao restante da minha família, bem como aos meus colegas de ser-
viço, amigos de mestrado, a minha orientadora Profª Dra. Fayga
Bedê e a todas as pessoas que marcaram positivamente a minha
vida até aqui e colaboraram para a manufatura dessa dissertação.
Sumário

1 Introdução............................................................................ 1

2 Notas Preliminares sobre a Realidade Posta e a


sua Mudança........................................................................... 11
2.1 Os arquétipos do atraso, codificação e desenvolvimento.
A desconstrução linguística de mitos e a codificação de
uma nova estrutura de valores éticos e seus reflexos na
administração pública........................................................... 11
2.1.1 Breve escorço do panorama geral............................... 11
2.1.2 Apontamentos introdutórios sobre os principais
arquétipos do atraso........................................................... 18
2.1.3 O mito edênico e demais arquétipos advindos da
submissão secular ao colonialismo de exploração.............. 22
2.1.4 O mito da procrastinação.......................................... 27
2.1.5 O arquétipo do patrimonialismo................................ 29
2.1.6 A corrupção e o mito da corrupção........................... 32
2.2 A crise e o processo de desconstrução dos arquétipos
do atraso com a subsequente ressignificação dialética
de valores............................................................................... 37
2.3 O processo de assimilação empírica dos novos valores
éticos no plano normativo .................................................... 45

3 A Codificação em Si........................................................... 51
3.1 Breve escorço histórico da codificação............................ 51
3.2 Conceito de codificação, diferenciações e as tentativas
prévias de uma codificação administrativa brasileira............ 54
3.3 Obstáculos e razões jurídicas de sustentabilidade
da codificação......................................................................... 58

VII
3.3.1 Escorço geral.............................................................. 58
3.3.2 Problematização. Óbices comumente elencados
como entraves à codificação.............................................. 61
3.3.2.1 Considerações preliminares................................. 61
3.3.2.2 Primeiro obstáculo: o excesso de leis
administrativas e a variedade de matérias reguladas...... 61
3.3.2.3 Segundo obstáculo: a multiplicidade de
competências como empecilho à codificação....................66
3.3.2.4 Terceiro obstáculo: o risco de engessamento
do direito erigido por savigny e a desconstrução
dessa crença.................................................................... 78
3.3.2.5 Razões jurídicas de sustentabilidade
da codificação................................................................. 80
3.3.2.5.1 Introdução, lacunas, vícios e a teoria do
feixe de relações........................................................... 80
3.3.2.5.2 A primeira razão: a percepção das relações
institucionais em si....................................................... 85
3.3.2.5.3 Segunda razão de sustentabilidade da
codificação: codificação como instrumento
democrático de conhecimento da norma por
parte do jurisdicionado................................................ 101
3.3.2.5.4 Terceira razão de sustentabilidade
da codificação: codificação como corolário da
segurança jurídica........................................................ 102
3.4 Os alicerces principiológicos. A entronização
dos novos valores éticos como base filosófica da
codificação administrativa.................................................... 104
3.4.1 O princípio do desenvolvimento humano.................. 104
3.4.2 Introdução ao princípio da produtividade
(eficiência) como um dos alicerces da estrutura
da codificação administrativa............................................ 108

VIII
3.4.3 O terceiro alicerce principiológico da codificação
administrativa: a moralidade administrativa e o
combate à corrupção.......................................................... 115

4 Considerações sobre a Estrutura e Linguagem da


Codificação Administrativa................................................... 121
4.1 Breve apanhado geral sobre o tema................................. 121
4.2 A análise estrutural. O reforço da integração sistêmica,
a coesão interna e o modelo de aproveitamento racional
de soluções de outros códigos................................................ 123
4.2.1 Escorço preliminar .................................................... 123
4.2.2 Compreensão e utilização de soluções análogas
em temas já tratados em outras codificações..................... 124
4.2.3 Solução pela adoção de modelos de redação já
utilizados em dispositivos chave......................................... 130
4.2.4 A abordagem de temas incipientes, cujo início de
solução já tenha aflorado em legislação esparsa anterior... 132
4.2.4.1 O Decreto-lei nº 200/67....................................... 133
4.2.4.2 A pretensão de um sistema administrativo
constitucional (artigo 37 e ss, da CF/88)......................... 135
4.2.4.3 A EC nº 19.......................................................... 137
4.2.4.4 A Lei 9.784/99...................................................... 139
4.2.4.5 Outras normas aproveitáveis (a Resolução
nº 21 do CNJ e a recente Lei 13. 726/18)........................ 142
4.2.5 A absorção racional de Projetos de Lei...................... 144
4.2.6 Compreensão e aproveitamento das lógicas e
estratégias de estruturação já utilizadas por
outros códigos.................................................................... 147
4.3 A análise da linguagem. Considerações quanto à
linguística e aspectos normativos correlatos. Sugestão
de design estrutural da codificação....................................... 151

IX
4.3.1 A inteligibilidade e a eficiência normativa
do Código........................................................................... 151
4.3.2 A necessidade de sintonia fina entre a intenção
epistemológica da codificação e da concretude da
realidade, de modo a facilitar a sua aplicação.................... 157
4.3.3 O item da reflexividade considerado ainda
durante a fase de elaboração do Código............................. 159
4.4 Sugestão de design estrutural do código administrativo... 166

5 Conclusão............................................................................. 179

Referências.............................................................................. 183

X
1 Introdução

A pesquisa científica é essencial para o processo de construção


do conhecimento. E o conhecimento, por sua vez, é a chave mes-
tra para a edificação do destino da humanidade. O conhecimento
produz-se e reproduz-se por meio da educação. A educação, assim,
não passa de um instrumento do conhecimento (SEVERINO,
2016). É a usar da educação que o conhecimento também sistema-
tiza-se, organiza-se, transmite-se, universaliza-se e funciona como
meio de transformação. A ciência e a consciência passam a andar
de mãos dadas com a cultura e a ética. Catalisam o aparecimento
de novas mudanças, novas realidades. A educação, assim, é um
instrumento de replicação crítica do conhecimento. Mas a repro-
dução do conhecimento, por ora, não nos interessa. Interessa-nos,
neste momento, produzir esse conhecimento. Essa função de gerar
o conhecimento não cabe à educação. É incumbência da pesqui-
sa. A pesquisa científica, essencial, é a responsável por gerar esse
conhecimento multiplicável. Pesquisar é, assim, construir o co-
nhecimento em torno de um objeto, revestindo-o de ciência. Essa
concepção vai além do mero constatar ou interpretar o objeto de
estudo. A pesquisa em si é um processo vivo, dinâmico. Ultrapassa
a esfera do estático, do conhecimento estanque.
Construir conhecimento, reproduzí-lo e possibilitar o alcance
de novos patamares a partir desta construção contínua e dialética.
Esses são os objetivos da pesquisa e da educação. E, tal e qual a
inteligência, o conhecimento não é relevante pela sua posse em si,
mas sim pelo modo como ele é utilizado ao ler e mudar a realidade.
Aqui este item adquire valor concreto. Eis o ponto onde iniciamos
a nossa busca científica. Começamos por constatar uma lacuna

1
Túlio Eugênio dos Santos

normativa. A ausência de um código administrativo brasileiro ecoa


como um desafio a ser superado. Falta significativa, com repercus-
sões concretas na realidade jurídica cotidiana. Essa lacuna, além
de permitir a subsistência da balbúrdia de normas editadas sobre
direito administrativo traduz-se, no fundo, como retrato fiel da
nossa própria desorganização administrativa. Revela também a
procrastinação do legislador brasileiro, incapaz de enfrentar di-
retamente a questão. Seja pela falta de tato ou sensibilidade para
lidar com problemas como a competência normativa em sede de
legislação administrativa, seja pela insistente vontade de limitar-se
a atender demandas de modo casuístico, superficial. Essa inflação
normativa, desacompanhada da consideração de elementos éticos,
sociais, culturais, de políticas públicas, etc, repercute numa legisla-
ção cada vez mais obscura, dispersa, desvinculada da concretude
da realidade, cada vez mais contraditória, a aumentar o grau de
insegurança jurídica.
Apesar da detecção deste fenômeno, constatamos, em contra-
partida, um movimento em sentido contrário. Este movimento,
o qual iniciou-se tímido, ainda na Constituição de 1988, abriu
caminho para a consolidação legislativa de uma mudança a qual
já se ensaiava no processo histórico brasileiro. A inclusão do prin-
cípio da moralidade administrativa, a universalização dos concursos
públicos, dentre outros, foram o germe dessa mudança ética. Essa
evolução continuou com a edição da Lei nº 8.429/92 (BRASIL,
1992), com a edição da Emenda Constitucional nº 19 (a qual in-
cutiu o princípio da eficiência), dentre várias outras normatizações,
consoante veremos na exposição da pesquisa. Cuida-se esse fe-
nômeno, da assimilação normativa de novos valores éticos. Esse
estofo ético e filosófico é que fornece base de sustentação para
uma codificação administrativa.
A multiplicação das normas dispersas, no entanto, impede
uma efetividade maior dessas iniciativas benéficas. A otimização

2
A Codificação Administrativa

sobressai cada vez mais como uma necessidade premente e não


como uma mera evolução legislativa. Convém assinalar encon-
trarmo-nos num ponto de maturação o qual já admite inclusive
pensar, de modo concreto, numa codificação administrativa. A
codificação surge até como inescapável desdobramento lógico des-
se contexto de mudança epistemológica.1 Existe uma tendência de
absorção dos citados novos valores éticos, baseados não apenas
nesse poder assimilador da lei mas também a dar ênfase ao seu
poder transformador ou de catalisação da transformação. Eis, aliás
a estrutura filosófica sobre a qual deve assentar-se uma codifica-
ção desse porte. Uma empreitada dessa magnitude deve, asssim,
não apenas estar solidamente encaixada no contexto axiológico
ou histórico, mas deve assumir um caráter filosófico o qual sirva
como um paradigma de normatização e atuação. Não descuramos
desta perspectiva e por isso embrenhamo-nos numa área onde o
estudo de história mescla-se com o da sociologia, filosofia, episte-
mologia, história, cultura, administração, etc. O breve exame das
mais diversas intersecções da área jurídica com esses outros ramos
do conhecimento corroboram a assertiva de que a edificação de
um novo código afigura-se como um desafio complexo. Desafio, o
qual, implica inclusive saber como podemos assimilar esses novos

1 Constatamos em nossa pesquisa um cenário de ruptura epistemológica, onde valores


retrógrados derivados dos séculos de submissão ao colonialismo de exploração
(patrimonialismo, clientelismo, corrupção, etc) ainda perpetuam-se na cultura
nacional entram em conflito com o clamor de novos valores éticos os quais afloram
no seio da sociedade. Valores como transparência, probidade, boa fé, a ética do
trabalho, o solidarismo e colaboracionismo, dentre outros, entram em conflito com
os valores éticos ultrapassados, surgindo daí a crise e a superação. Defendemos que
a ruptura epistemológica provocada pelo advento desses novos valores éticos irá,
invariavelmente, catalisar a absorção destes valores emergentes pelo ordenamento
jurídico. Tais valores passarão a ser, com o tempo, a nova estrutura filosófica deste
ordenamento. Encaramos a codificação administrativa como uma boa oportunidade
de assimilar, confirmar, catalisar e legitimar tais novos valores éticos.

3
Túlio Eugênio dos Santos

valores éticos da probidade, a moralidade, a eficiência, o desenvolvi-


mento, etc., já acentuados.
Todavia, constatamos no decorrer da pesquisa, ser ingenuidade
tratar do assunto da codificação administrativa, restringindo-se
apenas ao plano normativo. Carecia ir além, identificar as raí-
zes dos problemas no plano epistemológico, cultural, etc. Deter-
minante neste sentido foi a leitura de um trecho de um livro de
Raymundo Faoro, citado adiante, o qual fala na necessidade de
desmistificação do mito edênico. Ampliamos o leque de alcance
desse argumento e identificamos pelo menos de quinze a vinte ou-
tros mitos, incrustados na identidade cultural brasileira, os quais
travariam o desenvolvimento.
Eis o nosso objeto de pesquisa e um motivo. Começamos essa
dissertação a analisar estes aspectos preliminares. Encarar o pro-
blema da codificação administrativa sob a perspectiva de uma
abordagem múltipla forçou-nos a refletir sobre as várias questões
de fundo e mitos retrógrados que, infelizmente, até hoje interfe-
rem e contaminam a seara do direito administrativo brasileiro e a
burocracia nacional. A agregação desta abordagem filosófica, so-
ciológica e cultural aliada à análise jurídica elevou o patamar de
cognição e compreensão da matéria, situando-a, como dissemos,
num plano anterior ao próprio direito. A identificação dos arqué-
tipos do atraso2, a visualização dos conflitos de valores inerente à

2 “[...] O conceito de arquétipo, que constitui um correlato indispensável da ideia do


inconsciente coletivo, indica a existência de determinadas formas na psique, que
estão presentes em todo tempo e em todo lugar. A pesquisa mitológica denomina-as
‘motivos’ ou ‘temas’; na psicologia dos primitivos elas correspondem ao conceito das
représentation collectives de LEVY-BRÜLL e no campo das religiões comparadas
foram definidas como ‘categorias da imaginação’ por HUBERT e MAUSS. ADOLF
BASTIAN designou-as bem antes como ‘pensamentos elementares’ ou ‘primordiais’.
A partir dessas referências torna-se claro que a minha representação do arquétipo
– literalmente uma forma preexistente- não é exclusivamente um conceito meu,
mas também é reconhecido em outros campos da ciência.”(JUNG, 2002, p. 53-54).

4
A Codificação Administrativa

ruptura epistemológica, o processo de absorção desses novos va-


lores éticos emergentes e a superação dos entraves do desenvolvi-
mento inclusive no plano simbólico são temas relevantes para a
futura codificação administrativa. Esse sincretismo metodológico
é importante. A um, porque muitos desses arquétipos do atraso
estão enraizados em nossa burocracia e, a dois, porque a própria
codificação pode funcionar como instrumento de mudança.A pre-
missa básica para essa transformação, no entanto, continua a ser
esse ambiente cultural de fundo. É ele que nos permitirá um exa-
me mais incisivo, sob o foco da psicologia arquetípica junguiana.
Essa leitura, somada ao encaixe da teoria habermasiana do agir
comunicativo é que possibilitará, ao nosso compreender, proceder
a uma tentativa de reconstruir a identidade cultural brasileira e
corrigir erros históricos.
A consolidação de uma nova ética a qual já está há décadas
em gestação passa, assim, necessariamente, pela desconstrução
de crenças arraigadas, pela correção desses erros históricos e
pela construção de novos valores os quais funcionem como base
cultural de uma nova legislação. Esses valores, uma vez entro-
nizados na cultura e até nas normas, resultantes do consenso

E continua, Jung, a explicitar o âmago de sua tese: “[...] Minha tese é a seguinte:
à diferença da natureza pessoal da psique consciente, existe um segundo sistema
psíquico, de caracter coletivo, não pessoal, ao lado do nosso consciente, que por sua
vez é de natureza inteiramente pessoal e que – mesmo quando lhe acrescentamos
como apêndice o inconsciente pessoal – consideramos a única psique passível de
experiência. O inconsciente coletivo não se desenvolve individualmente, mas é
herdado. Ele consiste de formas preexistentes, arquétipos, que só secundariamente
podem tornar-se conscientes, conferindo uma forma definida aos conteúdos da
consciência.” (JUNG, 2002, p. 54). Adotamos essa nomenclatura junguiana a
traçar uma ponte, um elo de ligação entre o direito, a cultura e a psicologia coletiva,
de modo a identificar os arquétipos impeditivos do desenvolvimento. Cunhamos,
sobre tal termo, a expressão arquétipos do atraso para referimo-nos à ética avessa
ainda remanescente na cultura brasileira, como óbice à implementação do
desenvolvimento.

5
Túlio Eugênio dos Santos

democrático e da maturidade institucional, constituiriam os


pilares de uma codificação vindoura. É natural que, num pri-
meiro momento, esses novos valores entrem em conflito com os
retrógrados valores do passado. É possível observar esse fenôme-
no atualmente, ao analisar o desdobrar do processo histórico.
Como veremos, a herança maldita dos séculos de colonização
por exploração perpetuou-se até agora por via do que batizamos
de arquétipos do atraso. O sistema colonial em si cessou há tem-
pos, mas perpetuou-se sob novas facetas e atravessam geração a
geração, sem serem, de fato, encarados de frente. Tais arquétipos
do atraso revelam-se como o patrimonialismo, o clientelismo, o ne-
potismo, a corrupção, a troca de favores, etc.
Lopes Filho reconhece neles tradições nocivas as quais até hoje
repercutem em nossa realidade. Embora anteveja neles uma causa
diretorial mais imediata, sobressai a verdade de que esses motivos,
como falamos, são anteriores, remontando à época do império. O
seu diagnóstico, no entanto, é preciso. Ou, como abaixo colacionado:

Se isso é verdade nos países centrais do liberalismo ca-


pitalista em que se originou o Direito Administrativo,
com maior ênfase é o Brasil. Nossa tradição autoritária,
patrimonialista e patriarcal recrudesceu essas relações
hierarquizadas da Administração Pública, repercutindo
até os dias atuais de estabilidade democrática, seja no
âmbito interno, seja no externo (LOPES FILHO, 2010,
p. 191, grifo nosso).

Tais arquétipos do atraso, por si sós, encarados em sua con-


cretude constituem empecilhos incontestes ao desenvolvimento, à
boa normatização, à administração digna, influindo diretamente
na gestão da coisa publica e no desgaste dos poucos conceitos ain-
da benéficos. Mas, além dessa concreta sintomatologia hodierna,
não podem restar menosprezadas as causas culturais e históricas de

6
A Codificação Administrativa

onde originam-se tais condutas viciosas. É aí que esconde-se o mal


maior, a explicação pela qual não consegue o país desvencilhar-se
de hábitos culturais nocivos e enraizados. É bem verdade que os
óbices ao desenvolvimento encerram um estudo complexo, o qual,
consoante, afirmamos, envolve, por exemplo, fatores econômicos,
históricos, éticos, culturais, arquetípicos, sociais, políticos, etc. En-
tretanto, de um modo mais específico, essa perspectiva ética e cul-
tural, por estar mais diretamente conectada ao direito e à norma,
não pode ser desprezada.
Ela é necessária inclusive se formos falar num desenvolvimento
sustentável, concebido para as presentes e futuras gerações, emba-
sada num sólido estofo cultural o qual garanta essa perpetuidade.
Eis porque é relevante o estudo acurado do tema. Vícios culturais
impregnados nas mais diversas esferas de poder e relações sociais
estão, gradativamente, a ser desmistificados pelo emergir dos novos
valores do desenvolvimento, da participação democrática, da eficiên-
cia, da moralidade e da própria concepção contemporânea de Estado,
voltado agora para atender ao cidadão. Apresentada aqui, de modo
perfunctório, a nova estrutura sobre a qual deve restar alicerçada a
futura codificação. Codificação a qual sedimente de modo trans-
parente esses valores e vetores, redigida numa linguagem simples e
sintética, inteligível e acessível, cuja concepção seja reflexo de sua
eficiência, inclusive como norma. Codificação a qual pode tornar-
-se instrumento catalisador e orientador dessa transformação. Daí
a importância do tema.
Eis a razão da importância da promulgação de um novo código
administrativo. Eis uma ausência a qual, face às novas circuns-
tâncias históricas e culturais de mudança, ecoa como incabível,
inaceitável. Existirão dificuldades, claro, mas nenhuma delas in-
vencível. A inflação normativa, consoante dizíamos, é uma delas.
Vislumbraremos no decorrer da pesquisa, por exemplo, o excesso
de leis editadas sobre serviços públicos, contratos administrativos,

7
Túlio Eugênio dos Santos

servidores públicos, etc. Uma balbúrdia de normas as quais regem


a relação entre a administração pública e o ordenamento. Essa
multiplicidade normativa deixa a legislação cada vez mais prolixa,
cada vez mais opaca, difusa e até contraditória. Apesar da inflação
legislativa normativa detectada na seara orgânica e processual, so-
bressai outro problema paralelo até agora não detectado. Conso-
ante verificaremos, a problematização da problematização iden-
tificou não apenas a alegada inflação de normas, mas constatou
também os vazios legislativos referentes à determinadas relações da
administração pública. Essa concepção relacional da instituição
pública, que deixa de considerar o ente estatal restrito a si e colo-
ca-o “no mundo” afigura-se como uma nova concepção até então
inexistente. Esse dasein do ente estatal situaria-o adequando ele
com maior precisão às exigências da complexidade. Assim, esses
vácuos normativos, sejam nas relações do governo com o estado
administração, sejam nas relações do estado com as instituições
e corporações privadas, têm possibilitado o aparecimento de ver-
dadeiras estruturas paralelas de poder. São elas, juntamente com os
ranços históricos de antanho, a principal causa da promiscuidade
entre o público e o privado. Socorremo-nos à aplicação da teoria
das instituições como feixe de relações de Coase, para tentar inserir
essa perspectiva relacional do Estado, numa tentativa de suprir tais
espaços de modo consciente e eficiente.
É sob o escoro dessa concepção que forneceremos também
sugestões de como essa codificação, uma vez estruturada inteira-
mente sobre os novos valores éticos já mencionados, poderia ser
sistematizada. Lançaremos mão de estratégias de aproveitamento
racional de exemplos análogos de leis ou códigos exitosos, no sen-
tido de tentar obter uma estruturação codificativa a mais eficien-
te o possível. Atentaremos também para os detalhes linguísticos
inerentes à codificação. Detalhes estes que transcendem os meros
requisitos formais gramaticais ou sintáticos expostos na LC nº 95,

8
A Codificação Administrativa

adicionando a questão da semântica, da representação simbóli-


ca das expressões e valores inseridos no Código. Consideraremos,
ao final, sobre os possíveis efeitos de uma codificação deste jaez,
sempre a tentar solucionar eventuais crises de reflexividade surgidas
após o contato da norma abstrata com a concretude da realidade.
Procedemos, dessa forma, não munidos de um ímpeto salvacionis-
ta como os pensadores de outrora, mas sim com o espírito de co-
laboração e de participação cívica. Exercício da cota de cidadania
que nos cabe e reflete esta nova ética da democracia participativa
à qual aludimos. Realçamos, por amor à ciência, estar a presente
pesquisa despida de quaisquer roupagens ideológicas. Foca-se ela,
de modo imparcial, na sugestão de ideias as quais contribuam ao
menos para a reflexão ou amadurecimento de uma codificação
administrativa. Codificação cônscia a qual, se feita com o êxito
visado, refletirá de modo benéfico sobre a realidade brasileira. Ca-
lha especificar, por fim, ter sido esta pesquisa efetuada pela via
hipotético-indutiva, por meio de bibliografia e de observação.

9
2 Notas Preliminares sobre a
Realidade Posta e a sua Mudança

2.1 Os arquétipos do atraso, codificação e


desenvolvimento. A desconstrução linguística
de mitos e a codificação de uma nova
estrutura de valores éticos e seus reflexos na
administração pública

2.1.1 Breve escorço do panorama geral


Precede o exame da codificação em si a análise sobre os valores
os quais fundarão os alicerces dessa mesma codificação. Entretan-
to, para estudar estes novos valores basais convém antes retroceder
um pouco mais e desatar outro nó. Antes de codificar uma nova
semântica de valores, convém efetuar a desconstrução linguística
dos denominados arquétipos do atraso. Somente a partir dessa des-
mistificação de tais entraves é que será viável uma re significação
efetiva e subsequente. Consoante alinhavamos alhures, o desen-
volvimento é um fenômeno complexo. Inclui fatores econômicos,
sociais, históricos, culturais, éticos e até arquetípicos. Partimos da
premissa que essa estrutura linguística construída ao longo do pro-
cesso de formação da identidade brasileira consolidou-se de forma
equivocada em alguns pontos nodais. Amalgamou-se no cerne da
cultura burocrática uma principiologia avessa, a qual perpetuou-se
até agora de modo indevido.

11
Túlio Eugênio dos Santos

Sustentamos nestas linhas a imprescindibilidade de uma rup-


tura desse paradigma deformado e deficitário, cujos efeitos até
hoje reverberam em filosofias retrógradas as quais favorecem o
subdesenvolvimento. Esse arcabouço de valores pervertidos reper-
cute também, direta e indiretamente, sobre a máquina pública,
recrudescendo-lhe a ineficiência, viabilizando o ilegal aparelha-
mento ideológico, contaminando-a com práticas indevidas, etc.
É bem verdade que o Brasil empenhou-se durante todo o sécu-
lo XX na tentativa de implantar planos de desenvolvimento dos
mais variados tipos e naturezas, sob as mais diversas justificativas
políticas. E dos planos de Getúlio Vargas ao Plano de Metas de
Juscelino Kubitschek a passar pelos PND´s do período diretorial
ou pelos PAC´s dos recentes governos esquerdistas, cogitamos que
tais estratégias fracassaram por um motivo principal: a falta de
uma sólida estrutura filosófico cultural a qual servisse de apoio
ao desenvolvimento. Claro, existem outros fatores concomitantes,
como veremos a seguir. Todavia, a ausência de uma ética desenvol-
vimentista entranhada na cultura sobressai como uma dessas causas
omissivas das quais não se pode escapar. Déficit primordial.
É bem verdade, se formos olhar para trás e revisar a história
de modo crítico, enxergaremos alguns eventos pontuais os quais
constituem avanços significativos. A industrialização promovida
por Vargas, por exemplo, ainda que tardia, constituiu um grande
passo no desenvolvimento nacional. Os programas de estrutura-
ção física e logística implantados pelos governos de exceção, ainda
que incompletos, tomaram parte importante no desenvolvimento.
Esse desenvolvimento, entretanto, não vingou de forma consisten-
te. Sustentado por uma base precária de populismo econômico,
a euforia inicial logo restou substituída por ciclos de frustrações
e recessões. Havia um entusiasmo superficial o qual em muito
distingue-se de uma sólida ética desenvolvimentista, apta a servir
como anteparo cultural às situações de crise. Daí o fracasso. Tanto

12
A Codificação Administrativa

para resistir às crises como para os momentos de incremento do


desenvolvimento, esse suporte revela-se imprescindível. Assim, a
falta de uma solução de continuidade no plano empírico e axiológi-
co aos programas econômicos e jurídicos levou-nos a rotular tais
tentativas institucionais como surtos artificiais de desenvolvimento.
A expressão surto artificial de desenvolvimento foi cunhada por
nós de maneira proposital e explicamos ela em minúcias. A expres-
são artificial revela que as propostas vigentes no século XX e início
do século XXI apoiavam-se todas numa concepção de progresso
e não de desenvolvimento. Erravam por levar em conta somente
o elemento quantitativo e não conjugar este ao fator qualitativo,
como exsurge da própria definição atual de desenvolvimento. Ob-
servamos então um programa de desenvolvimento quantitativo
artificial porque desvinculado da realidade concreta, apoiado em
fórmulas econômicas herméticas, as quais vinculavam-se muito
mais aos índices numéricos do antigo IDE do que ao IDH atual
(SEN, 2010). Eis aqui o pecado capital de planos os quais erraram
inclusive pela abordagem, pois visavam adequar a realidade aos
programas e não o plano à realidade.
O termo surto, complementar à expressão artificial de desenvol-
vimento também não foi utilizado à toa. E quando nos referimos a
ele, acentuamos o caráter episódico e provisório de tais planos go-
vernamentais no que tange a sua eficiência. Quase sempre aban-
donados pela metade e caracterizados por ciclos e mais ciclos de
obras faraônicas capitaneadas por salvadores da pátria, restaram
tais planos vencidos pela sobredita falta de uma solução de conti-
nuidade adequada. Daí o uso do termo surto, o qual serve também
para descrever o arrebatamento eufórico dos cidadãos, imersos no
populismo cego. O resultado desses planos desenvolvimentistas os
quais transformaram o povo em cobaia de aventuras resultou em
endividamento estatal, bancarrota econômica, recessão, hiperin-
flação e a quase decretação de uma moratória. Foi necessária a

13
Túlio Eugênio dos Santos

década de 80 inteira – a década perdida – para que pudéssemos


curar a ressaca financeira do período setentista. E, mais uma vez,
após um ciclo de entusiasmo e aventuras, iniciava-se um novo ci-
clo de austeridade, com cortes de gastos e tentativas sucessivas de
estabilização monetária.
Mas não ficamos por aí. Hoje identificamos outros erros
cometidos à época. Um deles é o próprio sistema de decisão
instaurado. O modo autocrático como as decisões eram toma-
das, descoladas não apenas da realidade econômica mas tam-
bém da realidade empírica e cultural, deu vazão a programas
concebidos de forma unilateral e abstrata. Visavam, consoante
dito, a tentar moldar a realidade ao programa e não adequar o
planejamento à realidade do que era possível. Aqui, dois peca-
dos concomitantes. O primeiro o pecado do platonismo legalista,
qual seja, o de crer piamente que a lei ou planos de governos
poderiam, por si sós, modificar a realidade. O segundo, o peca-
do da unilateralidade impositiva, derivada de uma concepção
autocrática de estado, a qual solenemente menosprezou o fator
cultural e a possibilidade de amadurecimento de concepções.
Ignorou a variável que as políticas iam e vinham e o povo fica.
Fica o povo e a sua cultura. E vícios seculares representados
pelos arquétipos do atraso continuavam a ser transmitidos de
geração a geração.
A falta de uma ruptura paradigmática a qual implicasse na
desconstrução definitiva desses arquétipos do atraso, que resul-
tasse na reformulação dos valores éticos e refundasse uma sóli-
da estrutura de base, também impediu a implementação de um
desenvolvimento consistente e duradouro. Um desenvolvimento
o qual perdurasse de modo intergeracional. Assim, seja por fal-
ta de soluções de continuidade adequadas no plano econômico
ou pela ausência de um estrutura filosófica atrelada a uma ética
desenvolvimentista devidamente cultivada no âmbito cultural,

14
A Codificação Administrativa

testemunhamos os tristes ciclos de fracasso das várias tentativas


superficiais de implantação do desenvolvimento.
Os governos recentes decidiram investir pesado em programas
estruturais como o PAC, sem descurar do lado social, por via de
implantação de programas como o bolsa família. A falta de um
projeto de estado, no entanto, conduziu à submissão de projetos de
governo. Essa preponderância indevida mitigou o revezamento de
poder. E a perpetuidade de um mesmo grupo, por mais de uma dé-
cada, no comando do país, repercutiu em abusos os mais variados.
Os PAC´s, de nítida inspiração nos PND´s degeneraram-se numa
espécie de corrupção solapamento. As operações levadas à ensejo
para apurar tais delitos revelaram uma estrutura paralela de poder a
qual fez-nos questionar inclusive como uma codificação poderia suprir
tais espaços vazios, ainda desregulamentados. A corrupção, entra-
nhada no âmago de um sistema o qual não mais se bastava, quase
fez ruir a estrutura estatal. Diga-se que, do lado dos programas
sociais, instalados inicialmente com um otimismo e esperança ím-
pares, houve também a posterior frustração destes. Essa decepção
só encontra eco na derrocada do próprio plano estruturante.
O bolsa família, iniciativa cuja continuidade afigura-se como
necessária sob o risco de um colapso social, também acabou por
perverter-se, distorcer-se. Desvirtuou-se do seu intento original de
produzir a emancipação do cidadão e tornou-o dependente, escra-
vo de uma assistência governamental. As razões desse fracasso são
inúmeras e vão das fraudes no sistema de benefícios até o anafal-
betismo contábil vigente entre os cidadãos de baixa renda, o qual
conduziu ao endividamento massivo das classes menos abastadas. Foi
com grande entusiasmo que muitos testemunharam a evolução
social das classes C, D e E, mas, a médio prazo, essa evolução
revelou-se também ilusória, na medida em que a crise, a falta de
educação financeira, os juros extorsivos incidentes sobre o crédito
concedido no varejo, a falta de emancipação cultural e de outras

15
Túlio Eugênio dos Santos

soluções de continuidade, bem como a ausência do culto de uma


ética desenvolvimentista não foram devidamente supridas. Obser-
vamos, a partir daí, a produção do efeito reverso. E ao invés do
empoderamento econômico promover empoderamento cultural e
viabilizar o acesso do proletariado a trabalhos mais qualificados
e rentáveis, o que testemunhamos foi o aumento da dependência
do auxílio estatal. O tiro saiu pela culatra, como se diz no jargão
popular. O imprescindível programa de resgate social de miserá-
veis perverteu-se e, repetimos, ao invés de resultar na objetivada
emancipação do indivíduo inseriu-o em verdadeiros currais eleito-
rais, consoante já expusemos.
Após esse giro explicativo, convém realçar, de novo, o erro.
O populismo econômico sustentado pela frágil euforia momen-
tânea dos surtos artificiais de desenvolvimento não pode e não
deve funcionar como anteparo de planos de desenvolvimento.
Demasiadamente precária e volátil tal estrutura de sustentabili-
dade. Daí a necessidade de construção de alternativas mais viá-
veis, focadas na perenidade. Sobressai, além das já mencionadas
educação massiva, campanhas de esclarecimento financeiro e
das sobreditas soluções de continuidade (as quais visem agregar
valor cultural às conquistas econômicas do cidadão), outra medi-
da a qual julgamos ser primordial. Ela consiste na transformação
cultural. Uma metamorfose que substitua o populismo por uma
ética desenvolvimentista efetiva e que produza uma consistente
reformulação axiológia e cultural. Antes, porém, de dar esse pas-
so decisivo no rumo na construção de uma nova ordem de coisas
é necessário, no entanto, identificar quais são os arquétipos do
atraso os quais servem de ambiente e fundamento desse popu-
lismo e de outros vícios os quais obstam o desenvolvimento. A
identificação, desconstrução e superação dialética de tais arquétipos
nocivos somados, agora sim, à reformulação cultural é que viabi-
lizarão a realização fática e normativa dos novos princípios éticos

16
A Codificação Administrativa

já contidos no ordenamento, possibilitando inclusive a sua metódica


organização num código.
Sobressai novamente a indagação sobre quais são e como
manifestam-se os arquétipos do atraso. Consoante já expuse-
mos, tais arquétipos apresentam-se como mitos impregnados
na formação da identidade cultural brasileira. Funcionam como
um sistema de crenças os quais obstaculizam o desenvolvimen-
to. E, ao nosso compreender, a superação desses obstáculos
começaria pela reprogramação do pensamento. O pensamento
que dá ensejo à posterior ação. Tudo principia-se pela fundação
de novos valores cuja mudança já começa a ser notada no plano
empírico. Efetuaremos, nas páginas vindouras, uma breve sín-
tese. Consignaremos aqui seis ou sete dos principais arquétipos
do atraso os quais guardam pertinência temática direta com a
questão da burocracia.
Aliás, resta óbvia, de igual modo, a vinculação da codificação
administrativa ao tema desenvolvimento, acima abordado. Esses
laços são intrínsecos, imbricados. A necessidade de aprimorar o
conceito de estado, de cortar gastos por via da implementação
de eficiência, de tornar o ente estatal mais presente por meio da
prestação de serviços públicos efetivos e estruturá-lo de modo a
suportar uma perspectiva desenvolvimentista afigura-se como
um nexo lógico o qual é ressaltado nestas linhas. Vemos também,
além disso, a codificação como a oportunidade de proceder-se
à incorporação desses novos princípios éticos desenvolvimentis-
tas e ainda de preencher espaços vazios onde atualmente vige a
promiscuidade entre o público e privado. Sobressai também a be-
nesse de reforço de legitimação estatal após essa reconfiguração
institucional, mais efetiva, próxima à realidade cognoscível, mais
democrática e aberta à participação do cidadão. Apresenta-se tal
codificação também como a chance de superar, inclusive no pla-
no simbólico da lei, mitos como o patrimonialismo, corrupção,

17
Túlio Eugênio dos Santos

clientelismo, etc, encarando a administração pública sob um novo


prisma relacional.
Apesar do ânimo que enceta uma pesquisa deste gênero, care-
ce conter as expectativas. É neste sentido que aderimos à posição
de Lopes Filho, pela qual não podemos resvalar no fetichismo insti-
tucional. Constituiria erro ingênuo cair num idealismo utópico que
emana da crença de que bastam instituições moldadas sob ide-
ais iluministas para solucionar déficits estatais (LOPES FILHO,
2010). Tomamos essa crítica como válida. E, na justa medida que
o código, por si só, não se afigura como uma solução única e ex-
clusiva, tampouco a entronização desses princípios na codificação
poderia ser encarada como uma resposta unitária ou definitiva.
Na verdade, ambas as medidas, somadas a uma abordagem múl-
tipla constituem um início de solução para o problema aventado.
Revelam-se como um primeiro passo, uma fração de muito que
ainda pode ser feito.

2.1.2 Apontamentos introdutórios sobre os


principais arquétipos do atraso
Vale a pena efetuar uma rápida digressão sobre os estudos dos
mitos nocivos enraizados em nossa memória cultural atávica, para
que possamos contextualizar com satisfatoriedade essa abordagem
inicial mais ampla. O diagnóstico do problema e de suas causas
num patamar de cognição mais profundo revela-se como estratégia
crítica a qual não pode ser descartada. Existem vários estereótipos
vigentes os quais ainda funcionam como verdadeiras cortinas de
fumaça, as quais impedem a identificação das raízes reais do pro-
blema. Tais mitos embaçam a visão, dificultam o encarar de frente
de nossas mazelas mais profundas e impedem a sua exorcização
e correção. Tais representações simbólicas, é bom que se esclare-

18
A Codificação Administrativa

ça, não surgiram por geração espontânea. Elas foram construídas


ao longo dos séculos e consolidaram com uma estrutura de fal-
sas crenças as quais ainda, infelizmente, ainda encontram eco no
Brasil contemporâneo. Detectamos tais influências em costumes
errôneos incorporados à cultura ou em hábitos repetidos meca-
nicamente por parte da população. Identificamos tais influências
até em lapsos normativos incabíveis. Atos falhos os quais explicam
muito sobre como funcionam os meandros do inconsciente coletivo
brasileiro. E não carece ir muito longe para constatar tais mitos,
pois a realidade é prenhe de exemplos. Pululam mitos como o este-
reótipo da felicidade brasileira, o falso arquétipo da miscigenação
democrática das raças, o forte mito da culpa católica, o arquétipo
do herói sem caráter, o mito de que o Brasil não é um país sério ou
de que a seca é a causa da pobreza na região da caatinga, dentre
inúmeros outros.
Ora, soa óbvia a impossibilidade de felicidade em meio à mi-
séria e nem mesmo a concepção mais romântica ou carnavales-
camente alienada seria capaz de negar essa realidade áspera. Ne-
cessário colocar os pingos nos is. Mire-se, de igual modo, merecer
ser desmistificado o mito da miscigenação democrática das raças.
Negar a violência da escravidão, fechar os olhos aos estupros co-
letivos reiterados e não reconhecer a enorme dívida social e his-
tórica para com o povo negro é render-se à hipocrisia. Essa falsa
crença, forjada outrora por conciliadores postiços já foi identifica-
da e começa a ceder por via de políticas públicas, normas e ações
positivas de inclusão. Eis um dos vários avanços os quais atestam
estarmos em meio a um processo de ruptura epistemológica.
A culpa cristã,3 eterna vilã do desenvolvimento, também pos-
sui raízes profundas. Esse mito é alicerçado na interpretação literal

3 Eis um Arquétipo bíblico enraizado o qual traduz-se como uma crítica expressa à
soberba, à cobiça desenfreada e à vaidade. Não se refere propriamente à acumulação

19
Túlio Eugênio dos Santos

de Lucas (BÍBLIA, Lucas, 18, 24-25). Estes versículos sentenciam


ser mais fácil entrar um camelo pelo fundo de uma agulha do que
entrar um rico no reino de Deus. O desvencilhar cultural da inter-
pretação literal do texto sagrado passa por considerar o versículo
um ensinamento metafórico.
É dessa nova hermenêutica crivada pela teologia da prospe-
ridade e do trabalho que se extrairá a conclusão de que a po-
breza material é um mal em si. Um mal o qual não conduz à
purificação. A verdadeira redenção, neste sentido, residiria na
humildade espiritual e não na maléfica humildade material. Essa
nova concepção livraria os latinos de uma culpa tão enraizada
quanto castradora, no que tange aos atos de poupar ou acumular
riquezas. Essa postura, mais coerente e lúcida, afastaria de plano
a possibilidade de qualquer dogma religioso interferir nas bases
da ética desenvolvimentista. Esta última, aliás, seria promovida
de maneira mais humanizada.
Quanto ao mito do herói sem caráter, observamos em persona-
gens como os Macunaímas da vida (verdadeiros tricksters) o retra-
to de uma indolência a qual, além de preconceituosa, não condiz
com a nova imagem do batalhador brasileiro, detectada por cientis-
tas como Jessé Souza (SOUZA, 2009). O arquétipo de que o Brasil
não é um país sério, por sua vez, filia-se a uma longa tradição de

de riquezas materiais mas à soberba que via de regra atinge pessoas despreparadas as
quais enriquecem (BÍBLIA,1999). Essa linha interpretativa de valorizar a pobreza e
a humildade de espírito ao invés de prender-se à maléfica pobreza material é fruto de
uma hermenêutica cada vez mais pragmática efetuada hoje em dia principalmente
por comunidades protestantes. As comunidades católicas, preponderantes em nossa
sociedade, deveriam atentar para a revisão de tais valores. A caridade não pode
reverberar em assistencialismo e o indivíduo deve ser incentivado a ajudar a si
próprio mais do que ser apenas ajudado. Evidente que o instituto da bondade não
pode ser relegado a segundo plano, mas carece moldar essa revisão de valores de
acordo com princípios éticos mais adequados à valorização da ética do trabalho e
do desenvolvimento.

20
A Codificação Administrativa

autodepreciação e falta de auto-estima a qual permeia a alma do


brasileiro desde as mais priscas eras. Ela é relatada explicitamen-
te no livro Lanterna na Popa, de Roberto Campos (CAMPOS,
1994). A emblemática frase foi atribuída equivocadamente à De
Gaulle, quando da deflagração da polêmica guerra da lagosta. Essa
anedótica expressão impregnou-se de imediato ao inconsciente
popular. Somou-se, com o tempo, a outras imagens distorcidas e
deturpadas. Exemplo disso é a identificação feita pelo dramatur-
go Nelson Rodrigues ao dissertar em sua famosa crônica sobre o
fatídico complexo de vira latas (SANTOS, 2007). O mito da indús-
tria da seca é outra falsa crença que pode ser desconstruída pelo
reconhecimento de polos de desenvolvimento situados em meio a
desertos bem mais áridos que a caatinga nordestina (vide Chile
ou a parte americana do deserto de Sonora). Aliás, a situação do
deserto de Sonora - desenvolvido na parte ianque e subdesenvol-
vido na fração mexicana - denota a verdade de serem problemas
como o do polígono da seca nordestino muito mais uma questão
humana e política do que propriamente um revés metereológico
ou geomorfológico. Imbróglio, pois, contornável.
Acabamos de exemplificar algumas das inúmeras represen-
tações simbólicas falsas as quais estão profundamente entro-
nizadas no sistema de crenças dos brasileiros. Eis apenas um
aperitivo o qual demonstra quão complexo e relevante são tais
obstáculos invisíveis. Pouco ou nada adiantam planos econô-
micos ousados ou estratégias arrojadas se esses mitos de fun-
do, essas crenças limitadoras, não forem desconstruídas antes e
acompanhadas da devida reformulação consciente de valores.
Veremos, mais adiante, que alguns desses arquétipos do atraso,
pasmem os estudiosos, encontraram guarida em alguns trechos
de nossa constituição e até de nosso hino nacional. Esses lapsos,
os quais ecoam como manifestações explícitas e involuntárias
do mais profundo inconsciente coletivo e cultural, refletiram

21
Túlio Eugênio dos Santos

no próprio legislador. Serão elas estudadas mais adiante. Cabe-


-nos, assim, avançar rumo à análise dos arquétipos nocivos os
quais guardem uma relação mais estreita com o ramo jurídico
e com a defasada burocracia nacional. São eles o mito edênico
e demais arquétipos advindos do colonialismo de exploração
português, o mito da procrastinação ou do país do futuro, o
mito do patrimonialismo e o arquétipo da corrupção. Eviden-
te que muitos dos arquétipos tratados adiante não revelam-se
apenas como meros mitos e constituem-se sim realidades atuais
e intragáveis. Apesar disso, é justamente o caráter arquetípico
impregnado a tais fenômenos que, infelizemente, possibilita a
sua perpetuação através dos tempos. Daí a necessidade de ado-
ção dessa perspectiva descontrutivista.

2.1.3 O mito edênico e demais arquétipos


advindos da submissão secular ao colonialismo
de exploração
Soaria pueril esquivarmo-nos de nossa própria culpa enquan-
to povo e apontar o colonizador como o único e exclusivo culpa-
do pelas mazelas brasileiras. Carece ter a maturidade de efetuar
a autocrítica e discernir a nossa parcela de culpa na justa medida
em que até agora pouco ou nada fizemos para tentar identificar
ou reverter essa situação. Esses mitos atávicos, invisíveis a olho
nu e concomitantemente onipresentes, clamam por desconstru-
ção e uma revaloração ética exsurge como uma medida urgente.
Lógico que, paralelamente a esse contexto de comportamento
coletivo existe a fração pertinente à conduta do indivíduo que
incide em maus hábitos. Soaria desarrazoado pensar ser a forma-
ção histórica cultural a única responsável por tais desvios. Isso
consistiria numa falácia descriminalizante de condutas passíveis

22
A Codificação Administrativa

de punição. Entretanto, apesar de não revelar-se como fator deter-


minante, quando determinados comportamentos deixam de ser
individualmente significantes para tornarem-se uma patologia
social generalizada pode-se afirmar sim que tais ranços históri-
cos culturais constituem um ambiente fértil para a proliferação
exponencial dos desvios de conduta. A conduta ilícita isolada do
agente soma-se à circunstância social e faz aflorar o que há de
pior em termos de ranços históricos e culturais. São esses mitos,
ainda arraigados no inconsciente coletivo e na cultura, os quais
constituem o ambiente favorável ao aparecimento de vícios so-
ciais. Situações de crises econômicas, de degeneração do sistema
e de relativização moral apenas facilitam o aflorar desses valores
avessos os quais já estão incubados e incrustados na formação
identitária brasileira.
É sob essa perspectiva que os mitos e a sua desconstrução de-
vem ser encarados. O mito edênico ao qual nos referimos no título
desse subtópico é difundido de modo equivocado no próprio en-
sino básico. As aulas de história prendem-se ao descritivismo de
Caminha, o qual, nada mais faz senão reproduzir o bíblico mito
edênico, já entronizado no próprio inconsciente coletivo ibérico.
Vem daí a impressão primeira do país, repassada à posteridade de
uma terra paradisíaca onde plantando tudo dá. Sim, estamos dian-
te da fertilidade, um fato objetivo que, a priori, não admite distor-
ções concretas. Entretanto, a maneira utópica como essa verdade
estereotipada foi-nos retransmitida ao longo dos séculos auxiliou
sobremaneira à construção de um paraíso perfeito, onde imperam
o conforto e, claro, a letargia. Em verdade, um país onde o culto à
lassidão prevalece à ética do trabalho. É contra este mito seminal
que ergue-se Faoro (2012), em sua obra Os Donos do Poder. Atenta
o intelectual para a necessidade da desconstrução desta fantasia
cravada no imaginário do brasileiro, há gerações. Ou, conforme
abaixo transcrito:

23
Túlio Eugênio dos Santos

Mundo Idílico, voltado para o pobre homem filho da mi-


séria, primeiro capítulo da invenção da América, durou
pouco e desapareceu como um sonho. Ele desempenharia
seu papel, mensagem cifrada das camadas dominantes aos
desamparados na hora da colonização. A América não
seria um exílio, nem o degredo: seria o reino da aventura,
do salto da fome à ostentação senhorial. Ainda aí, nes-
ta mágica transformação, há subterraneamente, o fio da
rede mercantil que devora o mundo. O império da utopia
não nega combate ou se opõe à realidade: ele a substi-
tui, colocando, em lugar do ouro e da prata, a fantasia,
para chegar onde o ouro e a prata levam. Ninguém foge
ao tempo e à história. Esta máscara, máscara tecida de
sonho e de imaginação, cairá, devorada, primeiro pela
atividade mercantil, depois pela colonização, que a visão
edênica, ajudará a promover. Quando a Europa impõe à
América suas trocas, seu estilo comercial, seu sistema de
exploração, o encantamento se retrai, e o duro dia-a-dia,
amargo e sem perspectivas, falará sua linguagem (FAO-
RO, 2012, p. 124).

Vale assinalar, esse mito edênico tem sido perpetuado de modo


institucional, pela própria educação básica fornecida aos infan-
tes. O “começo” de nossa história enquanto povo já inicia-se do
avesso, a partir do que não deveria ser. Justifica o comodismo e a
indolência, atenta contra a ética do trabalho e do desenvolvimen-
to, impregna-se na alma do cidadão valores contrários a indepen-
dência pessoal, a livre iniciativa e à busca da felicidade. Traduz a
preguiça de séculos. Essa idéia inscrita na Carta de Caminha é um
signo tão poderoso e insidioso que incorporou-se à letra de nosso
hino nacional. O refrão do deitado eternamente em berço esplêndi-
do nada mais é senão a representação máxima desse imobilismo
débil, vigente no paraíso tropical. Evidente que uma reformulação
ética desta magnitude requer não apenas a desconstrução em si,

24
A Codificação Administrativa

mas a sobreposição de filtros críticos, com vistas a despoluir a cul-


tura desses arquétipos nocivos. Imbuído neste trabalho de higieni-
zação axiológica é que identificamos os desdobramentos lógicos da
inauguração de um novo sistema de valores.
Ora, conforme constatamos, hercúlea é a missão de corrigir
os erros de formação identitária nacional. Eis uma tarefa árdua
de desconstrução de mitos há séculos incrustados. Essa trans-
formação, logicamente, não se dá do dia para a noite. Trata-se,
consoante afirmamos, de um processo. Um processo o qual en-
contra-se em curso. A implantação de uma colonização de ex-
ploração culminou com a instalação e consolidação de práticas
nocivas como o patrimonialismo,o nepotismo, a perpetuação do
sistema espoliativo, o patriarcalismo, o clientelismo, o favore-
cimento pessoal, a corrupção, etc, as quais funcionavam como
estrutura de apoio cultural a esse sistema avesso. Vícios culturais
de fundo, replicados nas mais diversas camadas sociais e, conso-
ante dissemos, aflorados de modo mais enfático em situações de
crises e de degeneração de valores.
A aristocracia indolente, a oligarquia e a plutocracia, her-
deiras incontestes desses modos monárquicos acabaram por re-
produzir nos coronelismos e na exploração exacerbada do pro-
letariado os mesmos mecanismos de submissão da colonização
de exploração. Bendizer, tais fenômenos, sob novas vestes, não
passam da perpetuação do clientelismo e de um regime de apar-
theid racial metamorfoseado em apartheid social. Cumulam-seos
vícios e nem mesmo a ascensão do proletariado ao poder, traves-
tido de peleguismo, livrou as novas elites de esquerda de aderir
à corrupção, agora fisiológica e sistêmica. Também não as livrou
de adotar expedientes totalitários como o aparelhamento ideo-
lógico do estado, a tentativa de controle da comunicação social
e imprensa, a politização de projetos de estado, a incorporação
explícita da cegueira ideológica, etc.

25
Túlio Eugênio dos Santos

Claro, os excessos devem ser repelidos. Mas, ao nosso compre-


ender, a sublimação desse mito marxista da divisão entre explo-
rador e explorado, tão denso entre a percepção latina e ao mesmo
tempo tão caro, afigura-se como uma saída possível. Longe de
uma solução de atrito, o que se busca é a superação desse antigo
antagonismo maniqueista. A luta de classes parte de uma premis-
sa insolúvel para chegar a lugar algum. Naufraga numa promessa
irrealizável. Consolida a letargia, favorece o imobilismo, turbina
o dizer ou criticar em detrimento do fazer, reverbera em distopia.
Anula as perspectivas de crescimento individual e social, justo por
fundar-se na discórdia. Fracassa por completo em seus intentos. A
ética desenvolvimentista, por sua vez, revela-se superior por des-
conhecer tais limites ou óbices. E nela tudo é possível, desde que
haja criatividade e a adesão à ética do trabalho. Esses são os ingre-
dientes para o upgrade social dos menos abastados, fórmula que o
antagonismo estéril da luta de classes desconhece.
E para além das ações positivas de inclusão racial, outra pro-
va inconteste de que encontramo-nos em meio a uma ruptura
epistemológica inclusive no quesito de superação do colonialis-
mo de exploração, pode ser constatado pela expansão das fron-
teiras agrícolas brasileiras. Identificamos esse movimento com
o propósito de nos situarmos com relação à ele, coordenarmos
e potencializá-los de modo consciente. A expansão agroindus-
trial brasileira, a apoiar-se numa ética desenvolvimentista tam-
bém secular, herdada de italianos, eslavos e alemães, rivalizou
naturalmente com o arquétipo do atraso herdado da coloniza-
ção por exploração. Essa nova ética do trabalho, tão presente na
colonização por povoamento, bem mais pragmática, instalou-se e
propagou-se juntamente com o novo movimento de ocupação
territorial do país durante o século XX.
Necessário realçar que os valores do empreendedorismo, do
trabalho livre, da livre iniciativa, do cooperativismo, do solida-

26
A Codificação Administrativa

rismo, do colaboracionismo e do aumento de oportunidades ine-


rente a essa ética desenvolvimentista adapta-se de modo aceitável
às mais diversas culturas. Mire-se que o economista Muhammad
Yunus no afã de proceder a inclusão do povo bengali ao desenvol-
vimento, conseguiu instrumentalizar meios de fomentar o desen-
volvimento nas mais diversas culturas, sem descaracterizá-las, a
viabilizar a sua sobrevivência em um mundo cada vez mais com-
plexo (YUNUS, 2010). Rister, com outras palavras, endossa essa
mesma perspectiva. Acentua que a ética do trabalho dos sulistas
viabilizou a abolição da escravatura, antecipou a adesão ao repu-
blicanismo e permitiu uma proteção maior aos direitos humanos
(RISTER, 2007). É esta visão de mundo, enraizada numa cultura
emergente, cada vez mais latente e visível, que surge gradativa-
mente como superação do imobilismo herdado do colonialismo de
exploração. Reforça-se a metáfora pela qual, a cultura, assim como
a terra, não existe para ser explorada e subsiste para que possa ser
trabalhada e cultivada. Aliás, este é o significado etimológico da
palavra cultura, cultivar. Necessário, por isso, semear o que há de
melhor para que nós e as próximas gerações possamos colher os
frutos desse esforço.

2.1.4 O mito da procrastinação


O mito da procrastinação ou a síndrome do país do futuro é outro
dos arquétipos do atraso, o qual compõe o arcabouço de falsas
crenças a serem desmistificadas. A alusão à expressão país do futu-
ro, como é sabido, originou-se de um livro intitulado Brasilien: Ein
land der Zukunft, de autoria de Stefan Zweig (2018). A tradução
literal desse título Brasil: o país do futuro, fixou-se no inconsciente
coletivo. Infiltrou-se, impregnando como a promessa de um desen-
volvimento irrealizado. E, tal e qual o mito do imobilismo letár-
gico, o arquétipo da procrastinação também pode ser constatado

27
Túlio Eugênio dos Santos

no plano empírico. Revela-se inclusive por meio de inaceitável ato


falho do legislador. A falha, imperceptível para muitos, desnuda-
-se como reveladora. Expõe um modo de pensar o qual, nos dias
atuais, afigura-se inadmissível.
O equívoco é tamanho que descamba para a localização topo-
lógica do dispositivo constitucional. O desenvolvimento, conceito
sempre ligado a um futuro sempre a ser alcançado, encontra-se ju-
ridicamente inserido sob o título dos objetivos fundamentais da re-
pública do artigo 3º. Deveria, na verdade, estar insculpido entre os
fundamentos da república do artigo 1º. Ora, colocar o desenvolvi-
mento como um objetivo fundamental é sacramentar a procrastina-
ção. É render-se a uma promessa normativa sempre por se alcançar.
É permitir-se enganar por uma esperança a qual jamais se realiza.
A norma constitucional nada mais fez senão assimilar um conceito
cultural construído de forma equivocada. Explicamos. Observamos
aqui um entrave filosófico. O desenvolvimento não pode ser enca-
rado como uma meta ainda não alcançada pois deve ele constituir
sim a premissa básica da existência da república. A estrutura filo-
sófica da constituição e do país devem assentar-se sobre uma ética
de desenvolvimento humano, a qual revela-se como um princípio
estruturante tão relevante quanto a própria democracia.
A tão só mudança dessa abordagem teria o condão de revelar-
-se como um passo inicial. Falamos isso não apenas no sentido
não apenas de prever, por exemplo, o desenvolvimento como um
direito futuro, mas sim de realizá-lo já com base nessa filosofia.
Uma filosofia a qual lhe forneça base de sustentação e que resol-
va-se como uma premissa básica e não como uma promessa im-
praticável. Essa desconstrução mítica será a principal força mo-
triz na implantação da nova ética desenvolvimentista. Ela é que
espraiar-se-á pelo resto do ordenamento, abrindo espaço para a
estruturação de novos valores, os quais serão também densifica-
dos no código administrativo.

28
A Codificação Administrativa

2.1.5 O arquétipo do patrimonialismo


O patrimonialismo, como é de conhecimento comezinho, é
método de administração o qual encontra as suas raízes nos re-
gimes monárquicos. Nestes, o patrimônio estatal costumava a
confundir-se com o patrimônio do rei. O advento da república (res
publica) acabou por delimitar essa separação na esfera patrimonial.
Apesar disso, persistiu a cultura nociva do governante eleito que,
mesmo não sendo dono do aparato estatal, governava como se a
coisa pública sua fosse. Não se comportava como funcionário públi-
co número um do país ou empregado da nação. Atuava sim como
dono dos bens públicos, mesmo sem sê-lo. Ou, como a perspicaz
definição entabulada por Faoro, abaixo transcrita:

A comunidade política conduz, comanda, supervisiona os


negócios, como negócios privados seus, na origem, como
negócios públicos depois, em linhas que se demarcam
gradualmente. O súdito, a sociedade, se compreendem no
âmbito de um aparelhamento a explorar, a manipular, a
tosquiar nos casos extremos. Dessa realidade se projeta,
em florescimento natural, a forma de poder, institucio-
nalizadas num tipo de domínio: o patrimonialismo [...]
(FAORO, 2012, p. 890).

O estudo mais aprofundado da matéria levou-nos a conclusão


de que esta dominação patriarcal existente na formatação da ad-
ministração monárquica, restou substituída pela dominação buro-
crática weberiana, igualmente centralizadora, embasada na nor-
ma estatuída, legitimada pelo detentor do poder (WEBER, 2004).
Houve, grosso modo, a troca de uma espécie de dominação por
outra, sem maiores questionamentos. Embora a burocracia webe-
riana representasse uma nítida evolução relativamente ao modelo
anterior, muitos dos ranços monárquicos ainda subsistiram. Esse

29
Túlio Eugênio dos Santos

modelo patrimonialista, adaptado ao republicanismo, coligou-se


ao parasitismo, à arbitrariedade, ao abuso e ao excesso de poder,
em todas as esferas da administração pública. Ready tece críticas
ao subsistema administrativo francês, o qual padece de problemas
semelhantes, guardadas as devidas proporções. Ou, consoante o
trecho abaixo transcrito:

Although suited to the basic requirements of a stalema-


te society, the French administrative subsystem suffers,
according to Crozier, from inherent dysfunctions. One
is that the decision is inadequate because those making
decisions are too far removed from those affected by the
decisions. A second is that coordination is difficult. Fears
of conflict and face-to-face relationships lead to organi-
zational self-restraint to avoid overlapping, about which
French higher civil servants have “a sort of panicky fear.”
This is caused, Crozier suggests, “by their conceptions of
authority as an absolute that can not be shared, discussed
ou compromised. [...]” (READY, 1979, p. 177).

Poderíamos traduzir o texto a enfatizar que o autor coloca que:

Apesar de adequado aos requisitos básicos para resolver os


impasses sociais, o subsistema administrativo francês so-
fre, de acordo com Crozier, de disfunções inerentes. Uma
delas é a de que as decisões são inadequadas porque aque-
les que produzem as decisões estão muito distantes daque-
les atingidos pelas decisões. Um segundo ponto é que a
coordenação é difícil. O receio do encarar as relações face
a face conduz a uma organização de auto contenção para
evitar a sobreposição, sobre a qual os servidores franceses
de alto escalão tem “uma espécie de pânico” de lidar di-
retamente com o administrado. Isto é causado, segundo
Crozier “pela concepção de autoridade como um absoluto

30
A Codificação Administrativa

que não pode ser compartilhado, discutido ou compro-


missado [...] (READY, 1979, p. 177, tradução nossa).

Extrai-se do trecho acima transcrito e traduzido a noção de


que a percepção da gestão pública evoluiu nos últimos tempos.
Inadmite ela tais falhas desses subsistemas. Defeitos advindos do
arquétipo patrimonialista incorporados são retratados pelo autor.
A distância exagerada entre quem decide e os destinatários das
decisões, as dificuldades de coordenação ou ainda o temor irra-
cional das autoridades dos altos escalões de lidarem diretamente
com o administrado são alguns desses equívocos sistêmicos oriun-
dos do arquétipo patrimonialista. As duras críticas, neste último
ponto, dirigem-se ao tradicional conceito patrimonialista da au-
toridade absoluta e intocável. Autoridade a qual não admite o
compartilhamento, sob pena de restar comprometida. Os novos
modelos de gestão, de natureza gerencial, já não contemplam essa
visão retrógrada, e fundam-se num sistema de colaboracionismo
ou de cooperação.
Esclarecemos, em brevíssimas linhas, serem estas as concep-
ções arquetípicas patrimonialistas merecedoras de desconstrução.
E, tal e qual a vassalagem e o clientelismo que se perpetuaram na
república sob a roupagem do coronelismo, muito do ranço centra-
lizador e autocrático do patrimonialismo subsistiu por via da hoje
ultrapassada burocracia weberiana. Novos modelos fulcrados na
administração gerencial aparecem num momento em que a pró-
pria concepção do Estado começa metamorfosear-se. A burocra-
cia cada vez mais deixa de voltar-se para si própria para virar-se
em direção ao cidadão, com a finalidade de atender os seus an-
seios. Vislumbra-se no panorama vindouro um estado concebido
de modo mais plúrimo e horizontal. Um estado descentralizado, o
qual não abre mão de sua autoridade primordial, mas que admite,
por outro lado, a participação democrática como um elemento de

31
Túlio Eugênio dos Santos

sua própria estrutura e modo de ser. Eis o início da superação do


arquétipo do patrimonialismo.

2.1.6 A corrupção e o mito da corrupção


A corrupção é outro desses fenômenos os quais reverberam tan-
to na esfera da concretude da realidade como também no âmbito
arquetípico. É um dos mitos nocivos4, o qual destaca-se das raízes
do colonialismo de exploração para entronizar-se na cultura de
forma autônoma. Necessário reiterar que esse comportamento ge-
ralmente é individual mas pode evoluir para uma patologia social,
a depender da sociedade e das circunstâncias. Esse desvio de con-
duta encontra no ambiente dos arquétipos do atraso, nas crises e
nas relativizações morais campo fértil para a sua proliferação.
A corrupção, assim, é um fenômeno concreto o qual se mani-
festa em todas as camadas sociais e cujo alcance vai dos milioná-
rios propinodutos existentes nos altos escalões até as corriqueiras
corruptelas do cotidiano como o furar uma fila ou estacionar em
local proibido. Tanto as infrações maiores como as menores, apa-

4 Assim como não é um fenômeno exclusivamente individual por poder assumir a


forma de patologia social, a corrupção também não se reduz a sua feição empírica,
materialmente visível. A corrupção, ao nosso compreender é, antes de mais nada,
uma ideia deletéria, um valor negativo. Essa mitificação do instituto da corrupção é
que permitiu até agora, a perpetuação de determinados hábitos na cultura nacional.
E, das pequenas corruptelas como o jeitinho brasileiro aos grandes assaltos ao
civismo e aos propinodutos, o que testemunhamos é a replicação de tais condutas
nocivas em seus variados formatos, em todas as classes sociais. O fenômeno, no
entanto, encontrou na própria sociedade um movimento no sentido contrário,
o qual tende à superação desses arquétipos do atraso. Essa situação de conflito,
típica das crises, caracteriza a ruptura epistemológica em curso. Encaixa-se ela no
processo histórico e traduz uma nova perspectiva que já vem sendo assimilada há
algumas décadas pelo nosso ordenamento. Mudança gradativa, que pode edificar
o ambiente favorável a uma codificação administrativa a qual agasalhe tais novos
valores e princípios.

32
A Codificação Administrativa

rentemente inofensivas, são frutos de uma deturpação cultural, a


qual simboliza falta de civilidade. A corrupção, desta feita, surge
da cruza da lei da vantagem com o princípio da desconfiança e
do jeitinho brasileiro (outro arquétipo) e evolui à medida que se
aprofundam a opacidade e as situações de crise. Kiltgaard discorre
sobre culturas que favorecem a corrupção:

Em algumas culturas, as pessoas (ou talvez os membros


de governo) têm valores tão diferentes que a corrupção
é menos perseguida, mais aceita, e até mesmo “parte dos
mores”. Assim, por uma variedade de razões culturais e
históricas as sociedades diferem em seus mores, costumes
e padrões de comportamento. Essas diferenças, por sua
vez, podem explicar diferentes graus e gêneros de corrup-
ção encontrados em diversos países (KLITGAARD, 1994
apud BRÜNNING, 1997, p. 61).

Pagotto, por sua vez, assevera existirem vários graus de corrup-


ção. Eles vão da corrupção isolada à corrupção sistêmica, podendo
alcançar a corrupção solapamento (PAGOTTO, 2010). A corrup-
ção sistêmica é aquele grau na qual a corrupção entranha-se no
sistema, firmando-se como um sistema paralelo de poder o qual
começa a corroer as instituições. A corrupção solapamento, de
sua feita, situa-se num estágio mais avançado de deterioração. Tes-
temunhamos nela a ruína completa das instituições e a degenera-
ção do próprio estado de direito (PAGOTTO, 2010). A corrupção
solapamento identifica-se hoje com a situação de países como a
Venezuela ou a áfrica subsaariana.
O tema corrupção, assim, importa-nos tanto sob o aspecto con-
creto e deletério como pela sua qualidade arquetípica. Esse hábito
arraigado em determinadas culturas carece ser corrigido. Longe
de estarmos a proceder a revisionismos históricos ou axiológicos, o
que se pretende aqui é enfrentar o problema de frente e exorcizá-lo

33
Túlio Eugênio dos Santos

onde ele se perpetua, na cultura. A corrupção constitui fato tão


grave e alarmante que, após os ataques de 11 de Setembro de 2001
as próprias autoridades internacionais começaram a pressionar en-
tidades financeiras, com vistas a descobrir a origem do dinheiro
sujo que financiava o terrorismo. As investigações revelaram que
os montantes vultosos os quais bancavam o terrorismo estavam
também vinculados ao tráfico de drogas, ao tráfico de armas e,
claro, à corrupção.
O combate à corrupção, a partir daí, passou a ser uma priori-
dade mundial. Organizações como a International Transparency
seguem à risca os postulados amartynianos, pelos quais o desen-
volvimento assenta-se sobre o tripé da democracia, da transpa-
rência e do combate à corrupção. Tamanha a importância desse
problema global que, somente nos países em desenvolvimento,
avalia-se a perda de US$ 1,26 trilhões esvaídos pelos ralos da
corrupção. A corrupção, de uma maneira geral, compromete o
desenvolvimento, reduz investimentos e deteriora a qualidade
dos serviços essenciais. Quanto à correlação entre corrupção e
desenvolvimento, observamos o relatório da sobredita organiza-
ção, onde expõe-se o seguinte:

[...] CORRUPTION AND DEVELOPMENT. Corrup-


tion hinders development around the world. Developing
countries lose roughly US$ 1.26 trilion to corruption,
bribery, theft and tax evasion each year. This slows eco-
nomic growth, reduces investiment and divert its fun-
ds for essential services. Corruption also undermines
trust in government and excludes already disadvantaged
communities, increasing instability and inequality […].
[…] Substantially reducing corruption is a key commit-
ment of the United Nations` Sustainnable Development
Goals (SDGs), which aim to end poverty, protect the
planet and ensure good health for all by 2030. The goals

34
A Codificação Administrativa

have been adopted by 193 nations and reviewing each


nation´s progress against these goals is the focus of the
HLFP in New York. Acknowledging that poor gover-
nance and corruption can cripple sustaintable develop-
ment initiatives, the international community chose to
include a number of targets related to corruption in Goal
16 on peace, justice and strong institutions […] (COR-
RUPTION…, 2018, on-line).

Numa tradução livre, o texto traz que:

A corrupção dificulta o desenvolvimento ao redor do


mundo. Países em desenvolvimento perdem mais ou me-
nos US$ 1.26 trilhões de dólares para a corrupção, subor-
no, roubo e evasão de impostos a cada ano. Isso prejudica
o crescimento econômico, reduz investimento e desvia
fundos destinados a serviços essenciais. Corrupção tam-
bém mina a confiança no governoe exclui comunidades
prejudicadas, aumentando instabilidade e desigualdade
[…]. Reduzir substancialmente a corrupção é o compromis-
so chave dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável
das Nações Unidas, o qual pretende por fim à pobreza,
proteger o planeta e assegurar boa saúde para todos até
2030. Os objetivos tem sido adotados por 193 países e
acompanhar o progresso de cada nação nestes objetivos
é o foco do HLFP em Nova Iorque. Reconhecer que uma
governança deficitária e corrupção podem prejudicar ini-
ciativas de desenvolvimento sustentável, a comunidade
internacional escolheu incluir um número de alvos rela-
cionados à corrupção no Objetivo 16 sobre a paz, justiça
e instituições fortes […] (CORRUPTION…, 2018, on-line,
tradução nossa).

Assim, a evocação da corrupção como uma fonte de prejuízos


e de obstaculização do desenvolvimento ecoa como argumento

35
Túlio Eugênio dos Santos

plausível. O combate à patologia social da corrupção tem sido ala-


vancado como uma das premissas do fomento ao desenvolvimento,
acompanhado do investimento na democracia, na transparência
e no aperfeiçoamento das instituições. Sustentamos nesta toada
argumentativa a necessidade de definir com maior clareza os ins-
trumentos capazes de aprimorar o combate à corrupção. Existem
várias teses a respeito e a codificação administrativa apresenta-se
como uma boa oportunidade para materializar tais meios. A ques-
tão da percepção cultural do problema com a desconstrução de
arquétipos nocivos revela-se como a premissa básica e soa, de igual
modo, de visceral importância incutir tais novos elementos éticos
e culturais no corpo do código vindouro, incutindo-lhe inclusive
os anticorpos contra o mal da corrupção.
Combater a corrupção, promover a eficiência, incrementar
o desenvolvimento autossustentável. Alguns desses pensamen-
tos e reflexões podem ser coletados na extensa tese de douto-
rado, de autoria de Leopoldo Ubiratan Carreiro Pagotto. Este
doutrinador, já citado em momentos anteriores, vislumbra a
possibilidade de colmatação institucional de desincentivos à
corrupção (PAGOTTO, 2010). Pode-se, por exemplo, enrije-
cer o trato relativo às infrações de maior porte, atreladas, via
de regra, aos white collar crimes. Ou, ainda, pode-se importar
conceitos da lei dos juizados especiais para a devida aplicação
em processos administrativos os quais versem sobre infrações
de menor potencial ofensivo enfatizando-lhes o caráter pedagó-
gico e ressocializador. Além disso, fomentar o princípio da boa
administração - calcado sobre os princípios da probidade admi-
nistrativa, do combate à corrupção e dos princípios da mora-
lidade, desenvolvimento, eficiência, eficácia e outros – merece
ser destacado. Sua valorização e incorporação como princípio
administrativo estruturante deve receber tratamento especial
numa eventual codificação.

36
A Codificação Administrativa

2.2 A crise e o processo de desconstrução


dos arquétipos do atraso com a subsequente
ressignificação dialética de valores
Quando versamos sobre crise não estamos a falar especifica-
mente das crises econômicas ou políticas as quais podem virar
crises institucionais ou até constitucionais. Soa lógico que exis-
tem pedras de toque entre uma área e outra, mas, quando fala-
mos em crise no presente contexto de decodificação linguística,
estamos a falar de rupturas epistemológicas as quais reverberam
no âmbito da realidade. A teoria habermasiana utilizou a pró-
pria ciência do direito para traduzir e recodificar valores laten-
tes, introduzindo-os no mundo jurídico. Justo por lidar com o
campo da linguagem, encarando-a sob a perspectiva estrutural,
vislumbramos ser esse o caminho mais adequado à desconstru-
ção arquetípica pretendida, com a subsequente re significação
de valores éticos. Habermas, no entanto, ao nosso compreender,
limita-se à superficialidade do campo cultural. Não se aprofunda
no exame da memória atávica de um povo sobre a qual se assenta
essa mesma cultura. Não tenta definir ou perquirir sobre os ele-
mentos dessa construção identitária. E é por isso que socorremo-
-nos ao apoio da psicologia para dar um arremate final à aplica-
ção prática do movimento de absorção jurídica de valores como
o desenvolvimento humano à seara jurídica.
Consoante afirmamos logo ao início deste tópico, estamos a
falar de rupturas epistemológicas. Estas rupturas, entretanto, não
ocorrem de um modo exato ou matemático, com uma delimitação
estanque. Retratam um processo. Um processo de dessacralização
gradual o qual, diga-se, não é linear e tampouco progressivo carac-
terizando-se por marchas e contramarchas. Detecta-se a vontade
de mudança ao mesmo tempo em que identifica-se a resistência à

37
Túlio Eugênio dos Santos

própria mudança. Eis a dinâmica das crises. Essas, uma vez con-
troladas, servem como elemento de aperfeiçoamento e amadu-
recimento do sistema. Tais crises axiológicas, acompanhadas da
ruptura do simbólico, do abandono das carcaças vazias dos velhos
costumes e condutas obsoletas com a subsequente substituição por
um novo arcabouço de valores e legitimidades, reverbera como um
novo capital cultural simbólico. Este patrimônio imaterial deve
ser devidamente aproveitado. Consoante enfatizado, tais intera-
ções dialógicas entre o processo de reconstrução identitária e a
realidade guardam conexões com outros ramos e encaixam-se no
contexto de um processo histórico mais amplo e complexo. Sob
esse viés de contextualização, interessante notar como determi-
nados autores diagnosticam certas espécies de crises ou conflitos
como inerentes a um tipo de síndrome do desenvolvimento, ex-
perimentada por alguns países nessa condição. Ou, consoante o
texto abaixo transcrito:

Five of these crisis-type issues are suggested, and then


analyzed in the light of three components of the deve-
lopment syndrome. The five are crises of identity, legiti-
macy, participation, penetration, and distribution. Since
not all are self-explanatory, some brief commentary is
needed. The identity crisis refers to the subjective basis of
membership in a political community, to the tension be-
tween the culturally and psichologically determined sense
of personal-group identity and political definition of the
comunity. In the modern polity, subjective identity and
objective political identifications need to coincide. The
identity crisis is not the crisis of any country necessarily,
but it is a crisis of our era. The crisis of legitimacy has to
do with the change of the nature of the ultimate authority
to which political obligation is owed, essentially a shift
from the transcendental to the imanent,a decline of the

38
A Codificação Administrativa

sacred character of political legitimacy and the spread of


a nation state claims to legitimacy. Participation repre-
sents the most apparent and ubiquitous form in which
contem porary political change has ocurred. […] Mass
participation, when citizens have a limited capacity to
participate knowledgeably, may reduce the effectiveness
of governmental operations. In addition to methods of
direct representation, a supplemental method of meeting
participation needs is through encouraging the activity
of secondary interest associations, which may be helpful
by diffusing what would otherwise be detrimental effects
of direct participation. The problem of penetration con-
cerns the relations between the political community and
its environment, characterized by growth in recent times
in the depht and extent of political control, reaching into
social structures that were previously insulated and into
geographical areas previously inaccessible. The crisis of
distribution is linked to the so-called revolution rising
expectations, and to demand for governmental interven-
tion to accomplish increases in the standard of living […]
Allocative responsability of this sort, obviously place se-
vere requirements on the planning skills and structures
of distribution of the political system [...] (READY, 1979,
p. 177).5

5 Serem cinco os tipos de crise sugeridos, que serão então analisados sob a luz
dos três componentes da síndrome do desenvolvimento. Os cinco tipos de crise
são a crise de identidade, legitimação, participação, penetração, e distribuição.
Posto que nem todos são auto explicativos, faz-se necessário tecer alguns breves
comentários. A crise de identidade refere-se à base subjetiva de filiação a uma
comunidade política e diz respeito a tensão existente entre o senso de identidade
de grupo cultural e psicologicamente determinado e as definições políticas da
comunidade. Na política moderna, identidade subjetiva e identificações políticas
objetivas precisam coincidir. A crise de identidade não é necessariamente a crise de
qualquer país, mas uma crise de nossa era. A crise de legitimidade deve provocar a
mudança da natureza da autoridade final para a qual a obrigação política é devida,
uma mudança do transcendental para o imanente, um declinar do caráter sagrado

39
Túlio Eugênio dos Santos

Conforme observamos no texto original e na sua livre tradu-


ção, é natural que o entrechoque de concepções provoque uma
situação de crise. Essa crise revela-se como a síndrome do desenvol-
vimento, conforme dissemos. E as cinco feições básicas caracteri-
zadoras dessa crise são a crise de identidade, a crise de legitimidade,
de participação, de penetração e distribuição. A crise de identidade
sobressai com a tensão cultural e psicológica que passa a existir
entre a identidade de um grupo e a política definida para este
grupo. Deve existir uma coincidência entre a identidade subjetiva
e a identidade do objetivo político. Se inexistir essa coincidência,
emerge o ruído comunicativo e faz-se a crise. Cabe aqui asseverar
o antagonismo entre os valores éticos cultivados no passado e os
vigentes hoje. A superação desse conflito sedimentará o caminho
do futuro. Repetimos, essas confrontações, com inovações e resis-
tências às inovações integram a dialética da crise e perfazem a mu-
dança. A crise de legitimidade envereda pela mesma trajetória. E,
se em linhas anteriores destacamos a falha da figura da autoridade
absoluta e intocável, agora notamos o aflorar de uma legitimidade

da legitimação política e o espalhar do clamor de legitimidade pela nação. A


participação representa o mais aparente e onipresente forma na qual essa mudança
política tem ocorrido […] participação massiva, quando os cidadãos tem capacidade
limitada de participar com conhecimento de causa, talvez reduza a efetividade
das operações governamentais. Assim, em adição aos métodos de representação
direta, métodos suplementares de participação precisam ser encorajados através das
atividades de associações secundárias, as quais talvez sejam úteis ao difundir, de
outra forma, os eventuais efeitos negativos de uma participação direta. O problema
da penetração concerne às relações entre a comunidade política e seu ambiente,
caracterizado pelo crescimento nos tempos recentes da profundidade e extensão
do controle político, alcançando estruturas sociais que antes encontravam-se
isoladas e em áreas geográficas previamente inacessíveis. A crise de distribuição
é ligada na assim chamada expectativa crescente de revolução e demanda por
intervenção governamental para realizar o aumento do padrão de vida […]. Uma
responsabilização alocativa deste tipo, coloca evidentemente requisitos severos
sobre as habilidades de planejamento e estruturas de distribuição do sistema político
[...]. (READY, 1979, p. 177, tradução nossa).

40
A Codificação Administrativa

dessacralizada, compartilhada, muito mais ligada à colaboração do


que propriamente ao poder inalcançável.
A crise de participação revela-se, ao nosso compreender, como
a absorção de uma nova postura filosófica. Esta atitude açambar-
ca conceitos como sociedade aberta, democracia participativa,
consultas públicas, etc. Desenha-se um modelo moderno, pelo
qual, quanto maior a capacidade de participação consciente dos
administrados, tanto maior será a efetividade da atuação estatal.
Essa participação de conteúdo – quase simbiótica – supriria a
lacuna deixada pelos métodos de representatividade direta e re-
forçaria, ao nosso compreender, inclusive a legitimidade. A crise
de penetração, por sua vez, concerne às relações entre a comu-
nidade política e o ambiente social. É a tensão pela qual se visa
penetrar e alcançar estruturas sociais ou áreas geográficas antes
insuladas ou inacessíveis. Observamos a necessidade de aprofun-
damento do exame deste sub tópico. Uma leitura sobre a ques-
tão da penetração do Estado diria respeito ao direito do cidadão
hoje excluído a ter acesso à segurança, saúde e demais serviços
e garantias prestadas pelo Estado. Eis a versão administrativa do
princípio do acesso à justiça, o princípio de ampliação não ape-
nas da participação democrática mas do acesso democrático aos
serviços públicos. Essa percepção inclui a exigência da presença
mesma do Estado em determinadas áreas.
A crise de distribuição envolve o estudo de como a intervenção
estatal pode auxiliar a manter ou melhorar a qualidade de vida
do indivíduo. Engloba tópicos como o planejamento, a estrutura
de distribuição de determinado sistema político, a aplicação do
princípio da vedação do retrocesso, etc. A crise de distribuição é
fenômeno o qual visa implantar o desenvolvimento qualitativo.
Identifica e evita que o progresso seja meramente quantitativo.
Objetiva o crescente atendimento às demandas e expectativas da

41
Túlio Eugênio dos Santos

sociedade. Grosso modo, essas são as ideias propaladas por Ready


(1979), traduzidas e adaptadas ao contexto desta pesquisa.
O substrato das mudanças estruturais, filosóficas e até episte-
mológicas trazidas pelas situações de crise podem e serão aprovei-
tados quando da necessária reformulação ética, burocrática e da
própria codificação administrativa. Ainda estamos a versar sobre
os alicerces estruturais dessa nova codificação. Ela se concatena
com uma transformação já em curso e que revela-se não apenas
no processo histórico mas mostra-se também na própria evolução
normativa. Sustentamos ser possível a consumação da inversão da
posição internacional, por via dessa reformulação ética. O cultivo
desses novos valores éticos estimularão a formação de novos pa-
drões culturais e os novos padrões culturais, por sua vez, sedimen-
tarão a transformação da sociedade e até das instituições. Hélio
Jaguaribe, em outras palavras, afilia-se a esta mesma corrente:

O fator isolado mais importante na determinação do destino


de vários países que desempenharam um papel relevante
no século XVII foi possivelmente a sua evolução cultural e
institucional. Sem excluir outros fatores de peso […] fato-
res institucionais e culturais explicam a inversão da posi-
ção internacional da França e da Inglaterra, da supremacia
da primeira, até os últimos anos do século XVII, para a
hegemonia da segunda, depois do Tratado de Utrecht […]
(JAGUARIBE, 2001, p. 520, grifo nosso).

Desenha-se neste sentido também o resumo inserido pelo gru-


po de estudos de Direito e Economia do Largo de São Francisco
– USP. A breve pesquisa sobre as relações entre direito, econo-
mia e cultura efetuada por este grupo, sintetiza a tese de Oliver
Williamson. Este último autor, especifica quatro níveis de relações
entre as organizações e instituições. A análise sobre as relações e
respectivas transformações são estratificadas em 04 (quatro) ní-

42
A Codificação Administrativa

veis, os quais vão do exame das situações mais superficiais até as


metamorfoses mais profundas, as quais demoram mais tempo para
acontecer. Didaticamente falando, as mudanças mais superficiais
sucedem no nível 4, no patamar da alocação de recursos. Logo após
vem o nível 3, da governança. O nível 2, mais elevado e comple-
xo, versa sobre a absorção de determinadas relações no ambiente
institucional. O ápice dessa evolução dá-se com a transformação
cultural, ou seja, com o enraizamento social de novos valores. Ou,
conforme exposto no próprio texto elaborado pelo grupo, o qual
resume, didaticamente, a perspectiva de Williamson, a qual con-
firma todo o dito até o presente momento:

Nível 4- ALOCAÇÃO DE RECURSOS: São decisões


rápidas, do tipo de mudança de preços, quantidade, ali-
nhamento de incentivos, etc. Muda bastante a toda hora.
Nível 3- GOVERNANÇA – As relações, as regras do
jogo. São os contratos, as relações com os fornecedores,
revendedores, etc. Muda, mas não pode mudar muito toda
hora. Frequência da mudança (ideal) deve ser de 01 a 10
anos. Boa parte dos estudos de Williamson está concen-
trada neste nível. Nível 2- AMBIENTE INSTITUCIO-
NAL – Passamos para um nível mais legislativo. São as
regras formais do jogo, a burocracia, a política, o judici-
ário, etc Essas regras também mudam muito, ambiente
institucional instável). Frequência de mudança: de 10 a
100 anos. Nível 1- ENRAIZAMENTO SOCIAL – Con-
junto de regras mais difícil de serem mudadas. Está preso
nas pessoas, nas empresas, nas religiões, nas tradições e
costumes. Frequência da mudança é muito mais ampla, de
100 a 1000 anos. (WILLIAMSON, 2000 apud YEUNG,
2016, on-line).

Apesar do linguajar prosaico, a síntese levada à cabo pelo gru-


po de estudos da USP é bastante elucidativa. Confirma sob o viés

43
Túlio Eugênio dos Santos

de uma teoria econômica toda a linha de raciocínio exposta até


aqui. Embora os prazos para as transformações pareçam dema-
siadamente dilatados, no nosso sentir, eles aceleraram-se bastante
após o advento da globalização. Evidente, ainda estamos a falar
de um processo e não de uma revolução instantânea de valores.
Apesar disso, a evolução dos meios de comunicação assumiu o
papel de imprimir maior velocidade a este processo. Mire-se que a
tese de Williamson é da década de 90 do século passado, época em
que esse fator ainda não se revelava como uma variável relevante.
Assim, quer histórica ou institucionalmente, o novo valor ético
emerge como a força motriz da evolução cultural e institucional.
Desempenha um papel crucial no desenvolvimento dos países, su-
pera a sobredita síndrome do desenvolvimento e viabiliza a inver-
são da posição internacional. Tais valores, consoante observado,
entronizam-se de modo superficial na sociedade e avançam nas ins-
tituições até produzirem a ruptura epistemológica definitiva. Esta,
mais profunda, entroniza-se dialeticamente no plano cultural e ar-
quetípico, a desconstruir e superar os mitos do atraso. Estamos a
falar dos novos valores éticos os quais compõem esse processo de ruptura
epistemológica que já encontra-se em curso. Sugerimos a teoria haber-
masiana (HABERMAS, 1997) para efetuar uma leitura adequada
desse fenômeno e dar ensejo a essa desconstrução arquetípica de
fundo, aliada à subsequente tradução dos novos valores éticos para
uma linguagem jurídica. O uso da linguagem jurídica como um me-
dium para a reestruturação de uma nova filosofia exsurge como uma
alternativa viável. E o é justo por transcender ao superficial plano
jurídico e inserir-se no contexto da linguagem mais profunda da
cultura. O pré direito, a base do direito. Carece realçar, do nosso
lado, o acréscimo de pitadas de psicologia aos sofisticados instru-
mentos propostos tanto por Habermas em seus estudos linguísticos
como por Williamson, em sua análise econômica do direito. O uso
adequado de tais instrumentais possibilitará uma percepção mais

44
A Codificação Administrativa

elevada do fenômeno e possibilitará a almejada transformação.


Coloca-la-á em definitivo no plano da validade institucional, se-
dimentando novas tendências principiológicas, colaborando com a
reformulação do modelo de gestão e da estrutura do Estado e, claro,
orientando a futura codificação administrativa.

2.3 O processo de assimilação empírica dos


novos valores éticos no plano normativo
Consoante alinhavado, se fôssemos situar o estágio atual
numa das etapas propostas por Williamson (2000 apud YEUNG,
2016, on-line), o encaixe da entronização de valores ocorreria
no nível 2 de sua escala. Atravessamos uma fase na qual avan-
çamos rumo à incorporação normativa desses novos valores éti-
cos. Esses são espontaneamente absorvidos pelo ordenamento.
Apesar da detecção, constatamos ser essa assimilação, num pri-
meiro momento, um fenômeno espontâneo, natural. E, a partir
do momento que este processo inicia a avolumar-se, cresce, na
mesma proporção, a necessidade de uma sistematização. Essa
sistematização é que induzirá as transformações estruturais na
burocracia, inserindo novos valores éticos em meio à desconstru-
ção dos arquétipos do atraso. A densificação jurídica de tais ele-
mentos axiológicos gera um efeito reflexo. E das transformações
empreendidas pela lei surgirão novas demandas normativas as
quais permitirão amalgamar ainda mais essa ruptura no âmbito
cultural, social e burocrático. A sistematização promovida pela
codificação vem na etapa atual e será esta uma das forças mo-
trizes da transformação das instituições. Os novos valores éticos
do desenvolvimento humano e do pluralismo, da eficiência, da
probidade e outros elevam-se à medida que aumenta o grau do
patamar civilizatório de um país. Após a estabilização parcial

45
Túlio Eugênio dos Santos

destes valores no plano dos costumes, observamos que o consen-


so e o pacto advindos da escolha social, acabarão por viabilizar a
densificação de tais valores em sede normativa.
A densificação normativa entronizar-se-á nas instituições e,
bem mais à frente, provocará a ruptura epistemológica e arquetípi-
ca definitiva, pela substituição completa de valores e construções
identitárias no cerne da psique coletiva. Esse processo, no entan-
to, como vimos, não é linear. É dinâmico, fluído, contraditório.
Daí não ser instantâneo e sim gradativo. Insere-se no contexto
da hipercomplexidade. Destarte tal assertiva, encontramos provas
dessa tendência evolutiva de assimilação de novos valores ao exa-
minar o conteúdo e a finalidade das leis editadas nas últimas dé-
cadas. Notamos, a partir dessa análise, que, em meio aos conflitos
inerentes a esse processo, uma nova filosofia se instala.
É nesse sentido que o artigo 37 da Constituição da República
(BRASIL, 2013) revela-se como um marco divisor de águas em
sede de direito administrativo. Relatamos a existência de avan-
ços substanciais em termos de burocracia, tais como a inclusão
do princípio da moralidade, a universalização do concurso pú-
blico, a priorização da transparência, legalidade, etc. Entretanto
esses avanços não foram suficientes para funcionar como base
de sustentação para a institucionalização de um sistema admi-
nistrativo nacional. Inexistia à época da promulgação da Carta
Magna, um grau de maturação, tal e qual houve, por exemplo,
com os artigos 145 e ss (sistema constitucional tributário). Daí
extrairmos como justificável, à época, a ausência de um sistema
constitucional de um sistema administrativo (CF/88). Apesar
dessa insuficiência normativa, o saldo geral desta captação de
novos valores é favorável. Isso porque resultou numa evolução
filosófica, conceitual e principiológica no concernente ao direito
administrativo. A reconciliação do direito com a moral, expressa
pela absorção do princípio da moralidade como norma positiva-

46
A Codificação Administrativa

da traduz a força desse novo arcabouço ético. Arcabouço ético o


qual representa a nova forma de enxergar e pensar a administra-
ção pública. A positivação de princípios, feita na medida certa,
trouxe inúmeros benefícios à Carta Magna, ao direito adminis-
trativo e à várias outras codificações as quais trazem normas de
ordem pública, como, por exemplo, o código do consumidor. Este
aliás, neste quesito, constitui um modelo bem sucedido neste e
em vários outros aspectos, merecedor estudos mais aprofundados
(BRASIL, 1990a).
Retomando a linha de raciocínio, a implementação do prin-
cípio da moralidade na CF/88, foi e ainda é importante para a
repressão de condutas desviadas dos agentes públicos. Tão re-
levante como o princípio da publicidade, destacado após déca-
das da opacidade diretorial. A renovação democrática exigia
transparência como sua premissa básica e daí a relevância deste
princípio. A universalização do concurso público, por sua vez,
solidificou a concepção meritocrática e rompeu, em definitivo,
com décadas de atraso. Muitas leis seguiram esta mesma estei-
ra de raciocínio, a fulcrar-se na mesma filosofia. Normas infra
constitucionais de apoio. E além da constituição, foram promul-
gadas inúmeras normas infraconstitucionais de apoio. Surgiram
leis ordinárias e leis complementares como a Lei nº 8.666/93
(BRASIL, 1993a), Lei nº 8.429/92 (BRASIL, 1992), lei 9.784/00,
LC 105 (BRASIL, 2001) e até a EC nº 19. A EC nº 19 de autoria
de Bresser Pereira (2007), tentou consolidar o novo padrão ético
inaugurado pela CF/88. A adoção do princípio da eficiência e a
tomada de uma série de outras medidas otimizaram a atuação
estatal e remodelaram o modo de gestão (BRESSER PEREIRA,
2007). O princípio da eficiência, conforme veremos nas páginas
posteriores, foi importado da economia e transplantado à seara
jurídica como outra semente de uma nova transformação a qual
estava também por vir nesse ramo jurídico.

47
Túlio Eugênio dos Santos

Embora doutrinadores de escol como Canotilho (1997) desta-


quem o risco de uma contaminação autocrática e autoritária do
sistema constitucional com a elaboração de normas de conteúdo
moral, afigura-nos que soaria a equívoco sem tamanho encarar o
problema sob tal perspectiva estrita. Melhor ligar a absorção do
princípio da moralidade administrativa e o seu incremento como
o reflexo ético desses novos valores. Melhor colocar esse princípio
da moralidade no patamar de importância que a boa fé ocupa no
direito civil ou do consumidor. Melhor situá-lo como efeito, como
reação à realidade da corrupção sistêmica posta e imposta. A cor-
rupção sistêmica e a inversão de valores éticos adquiriram relevân-
cia estrutural e a degradação completa do sistema restou contido
pelo próprio sistema, inserido no processo histórico ora vivencia-
do. A dimensão adquirida por uma operação comum como a Lava
Jato adquire contornos de válvula de escape a essa insatisfação
vigente, revela-se, em verdade, como instrumento catalisador da
mencionada ruptura epistemológica. Desta feita, diversamente do
que raciocinam os constitucionalistas, o clamor do administrado
não demanda a edição de normas arbitrárias mas sim de leis as
quais condensem e confirmem novos valores éticos, capazes de
desconstruir o atual estado de coisas. Valores mais sólidos, menos
difusos ou relativizados. Atestamos essa inclinação institucional
do sistema ao notar o movimento de edição da LRF (LC 101/00),
da Lei Complementar 105 (quebra de sigilo bancário) (BRASIL,
2001), da Lei de lavagem de dinheiro (Lei nº 9.613/98) (BRASIL,
1998b), Lei da delação premiada (Lei nº 12.850/13), etc. Outros
projetos de lei ainda estão pendentes de aprovação, tais como o PL
nº 6665/16 (BRASIL, 2016a), o qual torna hediondo delitos como
peculato, corrupção e similares quando o impacto financeiro de
tais condutas for gravoso à sociedade.
Detectamos, assim, uma tendência manifesta de transmuta-
ção de valores éticos ao longo das últimas décadas, no sentido de

48
A Codificação Administrativa

abrigar novos eixos axiológicos no plano normativo. Embora haja


esse movimento convergente no sentido de incorporar esse novo
padrão ético, essa positivação, conforme evidenciamos, ocorre de
modo assistemático. Converge de forma natural, mas ainda é bas-
tante dispersa em termos de legislação administrativa. Exsurge daí
a necessidade de racionalização dessa nova concepção epistemo-
lógica numa legislação sistematizada, ou seja, numa codificação. O
cabedal de normas editadas sustentam a tese de que já atingimos
o ponto ideal de maturação normativa apto a qualificar uma codi-
ficação. Metodização mais do que necessária.

49
3 A Codificação em Si

3.1 Breve escorço histórico da codificação


A desorganização da legislação administrativa chega a ser sim-
bólica, como dissemos logo ao início dessa pesquisa. Constitui o
retrato fiel da desorganização burocrática brasileira. Embora exista
o bem intencionado movimento de convergência delineado no
tópico anterior, o fato é que, no geral, a edição de normas admi-
nistrativas ainda é bastante dispersa. Essa qualidade difusa, além
de provocar insegurança jurídica, alimenta possíveis contradições.
Daí a imprescindibilidade de estabelecer uma codificação estru-
turada sobre um eixo principiológico consistente e assentada sob
um prisma relacional apresenta-se como um desafio ainda maior.
Todos sabemos ser uma das funções precípuas da codificação
a sua atuação como uma superestrutura legitimadora.6 Eis a codifi-
cação – e o próprio direito – a funcionarem como instrumentos
de consolidação de valores e preservação da segurança jurídica.
Essa utilidade da codificação foi sentida de modo intuitivo desde
os primórdios da civilização. O Direito em si nasceu quando a

6 Utilizamos o termo superestrutura legitimadora numa alusão ao conhecido


termo cunhado por Marx, em seus estudos filosóficos. Embora Marx visualize a
superestrutura como a estrutura jurídico- política e ideológica (Estado, religião,
artes, meios de comunicação, etc.) utilizados pelos grupos dominantes para a
perpetuação e consolidação do seu domínio, incrementamos tal perspectiva.
Acentuamos que, para além da ótica estreita da dicotomia da divisão entre grupos
dominantes e dominados, pode uma codificação funcionar não apenas como
instrumento de absorção de novos valores éticos já vigentes na esfera da concretude
da realidade, mas também pode servir como superestrutura legitimadora destes
novos valores.

51
Túlio Eugênio dos Santos

humanidade ainda dava os seus primeiros passos. E tão logo o ser


humano percebeu a si próprio como indivíduo dotado de existên-
cia e começou a organizar-se em sociedade, surgiram as primeiras
regras da regulamentação da vida em comunidade. É bem verdade
que as normas originárias eram orais, advinham dos costumes e
estavam umbilicalmente ligadas à religião. Eram normas morais,
antes de mais nada.
E à medida que a civilização evoluiu apareceram as primeiras
leis escritas, realmente jurídicas. A compilação grosseira dessas
normatizações deu origem as primeiras “codificações”. Exemplo
histórico é o Código de Hamurábi (Suméria, 2000 a.C.), Código
de Manú (Índia, sec. II a.C.), a legislação mosaica (Pentateuco),
etc. Esse movimento de codificação da idade antiga progrediu
muito durante o período do Império Romano. Salto visível. É
neste época que surgem, por exemplo, a Lex Duodecimum Tabu-
larum (Lei das Doze Tábuas), o Código Justiniano, dentre outros
(OLIVEIRA, 2002).
Embora muitas dessas regulamentações trouxessem o rótulo de
códigos, a verdade é que a ausência de uma sistematização racio-
nal ou de uma estrutura principiológica de fundo fez delas nada
mais que um amontoado disforme de dispositivos legais. Estáva-
mos numa fase embrionária, nas quais os códigos, as pandectas
ou digestas não passavam de compilações. Tais iniciativas ainda
distanciavam-se muito da metodologia científica utilizada na codi-
ficação do século XIX. Necessário proceder a uma breve digressão
antes de prosseguir no estudo do tema. É bem verdade que os con-
ceitos de democracia e república existem desde a antiguidade. Esses
conceitos, todavia, eram ainda bastante incipientes e precários,
assim como a já exposta definição de codificação.
A fazer um paralelo da evolução do movimento de codifica-
ção com a própria evolução da civilização, podemos afirmar que
só após o renascimento iluminista a humanidade superou o lon-

52
A Codificação Administrativa

go período de trevas medieval, no qual, por quase um milênio, o


conhecimento ficou restrito aos doutos da igreja. Os pensadores
iluministas esforçaram-se por contribuir com teorias as quais ser-
vissem de base de sustentação às suas teses. E floresceram muitas
ideias, à medida que os antigos feudos agregavam-se e as corpo-
rações de ofício reuniam-se no sentido de organizar os primórdios
do Estado Moderno. Hobbes acabou por conceber este em seu
Leviatã (HOBBES, 1983) como um monstro cujos tentáculos al-
cançavam a todos. Em seu Segundo Tratado sobre o Governo Civil,
Locke (2018) acrescentaria a soberania a esse ente estatal superior,
delineando seus alicerces básicos. Neste mesmo sentido procede-
ria Jean Bodin. Charles Louis de Secondat, Barão de La Brède e
de Montesquieu, por sua vez, conceberia no seu L´Espirit de lois
a divisão tripartite do poder desse ente estatal, o qual guardaria
em si, um equilíbrio interno de freios e contrapesos (MONTES-
QUIEU, 2000) . Pouco a pouco, o Estado Moderno, a lançar mão
de concepções bem mais elaboradas que as arcaicas definições da
antiguidade, organizou-se. Evoluiu. E se de um lado essa concep-
ção estatal nasceu com força, de outro lado, fundou-se também o
regime das liberdades. Este nasceu como fruto da resistência à pró-
pria atuação estatal. Obra seminal referente a este tema é O Con-
trato Social, de Rousseau, onde deparamo-nos com o aflorar dessas
liberdades, colorário maior dos direitos humanos (ROUSSEAU,
2011). É nesta obra que aperfeiçoam-se as noções de diversos ou-
tros institutos, como o próprio sentido da democracia.
Essa evolução incrementou-se ainda mais com o surgimento
dos movimentos cientificistas e enciclopedistas. A revolução fran-
cesa de 1789 foi um marco histórico, político e intelectual neste
sentido. Napoleão Bonaparte, a seguir os postulados de Diderot,
agasalhou essa tendência geral a padronização e organização do
conhecimento humano e materializou-o também com relação às
leis. Já chefe de governo, vislumbrou a necessidade da manufatura

53
Túlio Eugênio dos Santos

de uma codificação a qual funcionou como uma superestrutura de


legitimação do sistema inaugurado. Nomeou uma comissão a qual
redigiu a primeira codificação moderna, o Code Civil des Français
(ou Code Napoleón, 1804). É bem verdade, alguns doutrinadores
citam esforços anteriores como o Codex Maximilianeus Bavaricus
Civillis (Baviera, 1756) ou ainda o Allgemeines Landretch (Rei-
no da Prússia, 1792) (GILISSEN, 2016). Apesar dessa ressalva, a
principal referência quando se trata de codificação, até pela sua
magnitude, continua a ser o Code Napoleón. O movimento de co-
dificação subsequente foi primordial no sentido de legitimar e pro-
mover a consolidação jurídica do estado. Até hoje o é e justo neste
sentido de estudarmos o passado que acentuamos a importância
de conceber hoje uma codificação administrativa a qual possa al-
bergar inclusive as evoluções futuras do ente estatal.

3.2 Conceito de codificação, diferenciações


e as tentativas prévias de uma codificação
administrativa brasileira
Analisamos um escorço histórico do movimento de codifica-
ção. Cabe-nos, agora, dissertar sobre o conceito do que seja uma
codificação. Antes porém, de definir o instituto, convém especi-
ficar o que não é uma codificação. A codificação não se confun-
de com a compilação ou com a consolidação. Etimologicamente, o
termo compilação vem de pileu, que significar empilhar (empilhar
normas, no caso). Inexiste qualquer fâmulo de ordenação. Já a con-
solidação, apresenta-se mais como uma uniformização de um di-
reito preexistente, disperso e fragmentário. A CLT é um exemplo
clássico de consolidação (OLIVEIRA, 2002). Não há nesta agre-
gação uniforme de leis um critério de unidade sistêmica profundo

54
A Codificação Administrativa

ou um eixo principiológico comum e bem definido. Interessante


também distinguir a expressão Estatuto. Estatuto não se confun-
de com o Código porque o Código é aplicável indistintamente a
todos os cidadãos, ao passo que o Estatuto tem um espectro de
abrangência menor. O Estatuto é setorizado e direcionado a desti-
natários específicos, como os menores, os idosos, etc.
Efetuados tais esclarecimentos preliminares, adentramos, fi-
nalmente, no exame do conceito de Código. Novamente apelamos
ao significado etimológico do vocábulo para extrair o seu sentido
mais profundo. Retomamos aqui a concepção habermasiana de
encarar o direito em si como uma linguagem. Código, em sua con-
cepção vernacular, é um símbolo cifrado ou um conjunto de símbolos
utilizados para representar informações e instruções. Codificar, por
sua vez, significa converter informações em padrão de representa-
ção de maneira que a forma original possa ser recuperada (FER-
REIRA, 2004). O resgate do sentido essencial do termo serve
para estabelecer a codificação como um instrumento de catálise dos
anseios dos novos padrões éticos vigentes numa sociedade. Recuando
um pouco e colocando o tema sob a estrita perspectiva jurídica e
funcional, temos também a conceituação entabulada por Oliveira,
abaixo colacionada: “Códigos pretendem representar um sistema
homogêneo, unitário, racional, a aspirar ser uma construção lógi-
ca completa, erigida sobre o alicerce de princípios que se supõem
aplicáveis a toda a realidade que o direito deve disciplinar.” (OLI-
VEIRA, 2002, on-line).
Existem outras conceituações, igualmente válidas, como a de
Guillermo Cabanellas. Este autor define codificação como a reu-
nião de leis de um Estado, relativas a um ramo jurídico determina-
do em um campo orgânico, sistemático e com unidade científica
(AMORA, 1962). Outras definições alienígenas também atrelam-
-se à mesma esteira de raciocínio, consoante conferimos: “CODE
vient de codex, qui signifie livre, tablette, collection de lois. Codex déri-

55
Túlio Eugênio dos Santos

ve lui-même de conder, réunir, fonder” (Hortensius Saint - Albin, no


Dictionnaire Politique). (GARNIER- PAGÈS, 1860 apud AMO-
RA, 1962, p. 117).
A tradução livre do trecho acima assinalado poderia vislum-
brar que o termo “Código vem de códice, que significa livro, table-
te, coleção de leis. Codificar deriva do impulso de coordenar, reunir,
fundar.” (GARNIER- PAGÈS, 1860 apud AMORA, 1962, p. 117,
tradução nossa). O conceito de código e de codificação, portan-
to, é bem mais complexo que o de compilações, consolidações ou
estatutos. Seja pela maior complexidade, pela sistematização ra-
cional, unidade principiológica ou pela universalidade de destina-
tários, este afigura-se como um dos instrumentos mais eficientes
no que tange à densificação de valores e organização normativa.
Mais especificamente com relação à codificação administrativa, o
Direito Comparado apresenta-nos variada gama de sintetizações
do gênero como países como Portugal, Bélgica, etc.
A ideia de uma codificação administrativa não é de todo nova.
A roupagem sob a qual defendemos essa postulação pendente, en-
tretanto, o é. Essa vontade encontra-se incubada há mais de meio
século e autores como Hely Lopes Meirelles já apontavam, naquela
época, para a viabilidade de tal desiderato (MEIRELLES, 1997). A
intenção, no entanto, caiu na vala do esquecimento da história e
vislumbramos hoje o resultado concreto desse descaso.
A falta de uma codificação administrativa brasileira apresenta-
-se como uma lacuna inaceitável no ordenamento jurídico atual.
Essa ausência torna-se ainda mais visível quando nos defrontarmos
com os demais ramos precípuos do Direito, os quais já são codifi-
cados. Direito civil, Direito Processual Civil, Direito do Consumi-
dor, Direito Penal e Processual Penal possuem os seus respectivos
códigos. Até o complexo Direito Tributário, após esforço jurídi-
co hercúleo, também restou sistematizado no Código Tributário
Nacional (CTN). Como conferiremos adiante, inexistem motivos

56
A Codificação Administrativa

suficientes para persistir no pecado da procrastinação. O Direito


Administrativo é muito mais relevante do que se imagina e este
ramo não pode ser relegado a um segundo plano, como se fosse um
sub direito. Está mais do que na hora de afugentar esse fantasma da
protelação o qual há tantos anos assombra o legislador.
Existiram, claro, umas poucas tentativas anteriores de editar
uma codificação administrativa. Entretanto, elas não lograram
êxito. Os Decretos-Leis nº 1.202/39, o Decreto-Lei 5.511/43 e o
Decreto-Lei nº 7.518/45 foram muito mais uma tentativa de pro-
ceder a uma intervenção diretorial de natureza totalitarista do que
propriamente uma codificação (GUANDALINI JR.; CODATO,
2016). Mencione-se que, a esta época, Themístocles Brandão Ca-
valcanti (CAVALCANTI, 1936) já havia falhado no seu objetivo
de publicar o seu Anteprojeto de Código Administrativo. Esta,
aliás, foi a primeira e única tentativa explícita de implantar especi-
ficamente um Código de Processo Administrativo (MONTEIRO,
2012). Necessário advertir que analisaremos no devido momento,
outra iniciativa tendente à codificação, consistente no Decreto-
lei nº 200/67.
Uma vez evidenciados o histórico do movimento de codifica-
ção, as diversas conceituações e demonstrados os insucessos das
tentativas de proceder uma codificação administrativa brasileira,
retomamos a linha de raciocínio deixada tópicos atrás, quando
versávamos sobre o processo histórico e a evolução normativa.
Rebatemos as falhas das iniciativas anteriores sob o argumento
justo da inexistência de um grau de maturação normativa sufi-
ciente para sustentar uma empreitada dessa envergadura. Apesar
da confusa dispersão atual da normatização administrativa, evi-
denciamos a existência de um forte campo gravitacional princi-
piológico o qual converge para uma sistematização. Some essa
força gravitacional de convergência principiológica à maturação
do ordenamento e à flagrante necessidade de uma organização ur-

57
Túlio Eugênio dos Santos

gente e estaremos diante de um ambiente favorável à codificação.


Qualquer procrastinação ou negligência nesse sentido repercutiria
como uma inadmissível omissão por parte do legislador nacional.
Soa evidente que, para além dos óbices já esposados, existem inú-
meros obstáculos catalogados como entraves à codificação. Antes,
assim, de analisar a codificação em si e suas principais vantagens,
problematizaremos a expor um a um o estudo de tais empecilhos.

3.3 Obstáculos e razões jurídicas de


sustentabilidade da codificação

3.3.1 Escorço geral


Adotamos nesta pesquisa uma abordagem pela qual devem
existir critérios éticos e políticos os quais tornem a codificação
administrativa uma empreitada útil. Critérios os quais derivem
de uma opção cônscia e que entronizem tais preceitos na con-
cretude da realidade. Averiguaremos, num primeiro momento,
os fatos comumente aduzidos como obstáculos à Codificação
Administrativa. Somente então constataremos as razões jurí-
dicas de sustentabilidade de uma eventual codificação. Cabe-
-nos, a partir deste exato ponto, perquirir não apenas como a
codificação pode funcionar como elemento de organização da
balbúrdia legislativa atual, mas também destiná-la a uma missão
superior, qual seja, a de servir como instrumento da consolida-
ção da reformulação ética aventada e da própria remodelação do
ente estatal. Compreender e posicionar-se diante dessa interação
dialógica do direito com a realidade revela-se como um passo
imprescindível nesta tarefa de codificação.
Acentuamos que a concepção de um Estado mais efetivo,
eficiente, justo e aberto passa pela reconstrução da concepção

58
A Codificação Administrativa

e da própria finalidade do ente estatal. Adotar essa estratégia


inclui também incorporar essa base principiológica como a base
filosófica sobre a qual assentar-se-á essa reestruturação. Alguns
dos desafios mais pertinentes será estruturar uma codificação e um
modelo estatal voltados para o desenvolvimento humano sem resva-
lar no paternalismo, conceber um estado cada vez mais presente nos
mais diversos extratos sociais sem oprimir e, por fim, romper com o
absolutismo autocrático e inaugurar um sistema de colaboração par-
ticipativa sem perder a sua autoridade. A convergência balanceada
desses novos valores éticos advindas de um avanço civilizató-
rio servirá não apenas para superar os arquétipos do atraso, mas
também contribuirá para tornar real esse processo de desmono-
polização do poder. Os signos são importantes e inúmeros termos
materializarão essa nova perspectiva na codificação vindoura.
Antecipamos expressões como constitucionalismo de resultado,
descentralização e participação de conteúdo, por exemplo, tão for-
tes quanto relevantes. Apenas a título de informação, a partici-
pação de conteúdo não é aquela participação pífia ou passiva, a
qual limita-se à reivindicação de direitos. É uma participação
efetiva, propositiva, esculpida na proatividade. O cidadão opina,
fornece ideias, sugestões e soluções concretas para problemas do
Estado e para a melhora na vida na sua comunidade. Não se li-
mita apenas em ser um indivíduo componente de uma sociedade
e sim de enxerga-se e sente-se como indivíduo pertencente a ela,
munido de uma cultura cívica, exercendo a cidadania em sua ple-
nitude (MOREIRA NETO, 2003). Além disso, acreditamos que
a nova leitura do Estado sob o prisma das relações institucionais
de Coase, Williamson e outros ajudará também a preencher es-
paços normativos vazios, os quais carecem ser preenchidos. Essa
nova visão aplicada às instituições públicas segundo uma análise
econômica do direito traz soluções as quais merecerão estudos
posteriores mais aprofundados.

59
Túlio Eugênio dos Santos

A codificação administrativa pode incluir no seu bojo todos


esses múltiplos elementos. Assim, desde a nova perspectiva rela-
cional à incorporação de valores éticos e principiológicos, a siste-
matização racional das leis administrativas pode funcionar como
fator real de mudança. Mas não interrompemos, neste ponto, a nos-
sa pesquisa. E é ainda sob esta perspectiva do útil que desceremos
aos meandros e dissertaremos sobre a importância de considerar,
por exemplo, a eficiência e efetividade da norma em si, quando da
elaboração dos dispositivos do futuro código administrativo. De-
clinaremos sugestões sobre a linguagem a ser utilizada e como essa
deve refletir de modo transparente e lúcida a vontade do legisla-
dor. Além das inconfutáveis vantagens de aderir a uma linguagem
eficiente e inteligível, estudaremos também modelos e estrutura-
ções bem sucedidos e já vigentes no nosso ordenamento jurídico.
Esses exemplos talvez possam servir, sob determinados aspectos,
como base para a codificação administrativa. Defendemos uma
codificação moderna, voltada não apenas aos destinatários da
norma, mas que também dialogue com outros ramos jurídicos e
interaja de modo eficiente e efetivo com a realidade.
Não nos limitamos, assim, apenas a salvaguardar a intenção de
uma codificação administrativa. Também sugerimos, ao final des-
ta pesquisa, uma estruturação adequada apta a servir como esbo-
ço a tal empreendimento. Atrevemo-nos a lançar as bases de um
esqueleto geral do que poderia ser uma sintetização desse gênero.
Arremataremos, ao final, para os prováveis efeitos dessa codifica-
ção administrativas. O cuidado desse estudo prospectivo ecoa como
crucial e deve ser efetuado ainda durante a fase de elaboração do
Código, com vistas a antecipar ruídos ou eventuais desajustes. Essa
preocupação com a reflexividade prevenirá erros e concomitante-
mente reforçará a normatividade da legislação. Observamos, nesta
breve introdução ao tema em si, a linha de pesquisa dessa disserta-
ção, a qual, a partir de agora, encorpa as suas feições jurídicas.

60
A Codificação Administrativa

3.3.2 Problematização. Óbices comumente


elencados como entraves à codificação

3.3.2.1 Considerações preliminares


A procrastinação normativa brasileira no que tange à codificação
administrativa não é de todo infundada. Existem razões plausíveis e
exporemos aqui alguns dos principais motivos comumente arrolados
como empecilhos a tal intuito. Esse estudo servirá como problemati-
zação ao objetivo de codificação defendido por nós. Enumeramos vá-
rias causas pontuais as quais perfazem um contexto de obstáculos tido
por intransponível por muitos, mas que ousamos enfrentar. O pri-
meiro contratempo surgido a quem tente defender uma codificação
administrativa assenta-se sobre o excesso de leis administrativas e a
dificuldade de agregá-las de forma racional e sistematizada num único
corpo normativo coerente e consistente. Outro entrave que se impõe
é a multiplicidade de competências e o desnível hierárquico entre as
leis. Esse óbice dificultaria bastante a concepção de um sistema admi-
nistrativo nacional o qual regesse simultaneamente tanto a burocracia
federal quanto estadual e municipal. Aventaremos nesta breve inves-
tigação, estratégias para superar esse problema, a lançar mão de mo-
delos já existentes. Adicione-se a isto o risco de engessamento jurídico
arguido por muitos e obteremos então três dos principais obstáculos os
quais impediram a codificação até aqui. Esmiuçamos de modo mais
preciso, cada um desses entraves.

3.3.2.2 Primeiro obstáculo: o excesso de leis


administrativas e a variedade de matérias reguladas
Consoante observamos nos tópicos anteriores, a necessidade
de agregar leis em compilações ou códigos é tão antiga quanto

61
Túlio Eugênio dos Santos

a própria civilização. Justiniano, de modo intuitivo, identificara


essa imprescindibilidade ainda na Roma antiga. Há mais de dois
milênios o referido imperador ordenou a reunião das leis espar-
sas em “códigos”. Nomeou uma comissão de dezesseis membros
os quais, ao longo de dez anos, procederam ao exame de mais
de três milhões de linhas, distribuídas por cerca de vinte mil
volumes. Vem desse empenho extraordinário a condensação da
legislação vigente à vigésima parte. Essa medida, evidente, ra-
cionalizou e emprestou mais agilidade e coerência às normas da
época (OLIVEIRA, 2002).
É bem verdade que a modernidade e o excesso de demandas
de uma sociedade cada vez mais complexa repercute hoje com um
volume muito maior de normas editadas pelos países, a cada ano.
Apenas no Brasil, para ter-se uma ideia, editaram-se 5,4 milhões
de normas nos últimos 28 anos (BAETA, 2017). Somente em 2016
foram 363.779 normas publicadas em todas as esferas de poder,
sobre as mais diversas matérias. Leis cujos conteúdos vão desde
modificações substanciais na Constituição Federal até regulamen-
tos tributários e leis editadas para homenagear temas ou pessoas
(BAETA, 2017).
É verdade também que embora haja essa abundância de leis,
o universo das normas administrativas restringe-se a um nicho
bem mais reduzido. Aliás, esse nicho é bem menor que os pró-
prios vinte mil leis sintetizadas num único Código, por Justinia-
no. Embora em número avantajado o desafio de uma codifica-
ção administrativa ainda parece muito menor que o enfrentado
na Roma Antiga. Se levarmos em consideração a diferença dos
instrumentos colocados à disposição, constatamos então a gran-
diosidade do feito da antiguidade. Qualquer comparação com o
desafio atual chega a ser covarde e soa incabível. A persistên-
cia nessa situação de procrastinação na codificação ecoa ainda
como uma falha indesculpável.

62
A Codificação Administrativa

Difícil, mas longe de ser impossível. Os principais temas já


estão positivados e alguns formam até micro sistemas jurídi-
cos, os quais devem ser repaginados e harmonizados uns com
os outros. E, dentre as múltiplas normas vigentes, destacamos,
por exemplo: a) Lei nº 8.666/93 (lei de licitações) (BRASIL,
1993a); b) Lei nº 10.520/02 (licitação por pregão); c) Lei n
º8.429/92 (lei de improbidade administrativa) (BRASIL, 1992);
d) Lei nº 8.987/95 (lei dos contratos administrativos, conces-
sões) (BRASIL, 1995); e) Lei nº 13.303/16 (estatuto jurídico
das empresas estatais) (BRASIL, 2016b); f) Lei nº 12.846/2013
(consórcios públicos); g) Lei nº 13.019/14 (lei das parcerias vo-
luntárias); h) Lei nº 8112/90 (estatuto dos servidores públicos);
i) Lei nº 8.745/93 (servidores públicos temporários) (BRASIL,
1993b); j) Lei nº 9.784/99 (lei do processo administrativo); l)
Decreto nº 20.910/32 (prescrição administrativa) (BRASIL,
1932); m) Lei nº 11.079/04 (parceria público-privada) (BRA-
SIL, 2004), Lei 13.460/17(serviços públicos); n) Decreto-Lei nº
3.365/41 (BRASIL, 1941), Lei nº 4.132/62 e legislação correlata
(Desapropriação); o) Decreto-Lei nº 200/67 (Organização Ad-
ministrativa); p) Lei nº 12.016/09 (Mandado de Segurança),
Lei nº 9507/97 (Habeas Data), Lei nº 4.717/65 (Ação Popular)
(BRASIL, 1974), Decreto nº 5.687/06 (BRASIL, 2006), Lei nº
1079, Decreto -Lei nº 271, Decreto nº 70.235, Lei nº 9637 (Or-
ganizações Sociais), Lei nº 9649, Lei nº 12.462, Lei 9034, den-
tre outras os quais veremos à frente.
Gustavo Binenbojm também detecta essa inflação legislativa e
cataloga-a como uma das causas da crise da lei, juntamente com
o esvaziamento do sentido da legalidade e outros. Evidencia que
a proliferação excessiva de leis, realidade inconteste em todas as
nações civilizadas, decorre de uma visão liberal idealista e mitifi-
cadora, que, gradualmente, vem sendo superada. O autor expõe a
sua posição de modo mais enfático, no trecho abaixo transcrito:

63
Túlio Eugênio dos Santos

Foi exatamente essa visão liberal idealista e mitificadora


que sucumbiu. De fato, a lei não foi capaz de atender
às demandas de que ela própria pretendia tratar no Es-
tado liberal, sendo, ainda mais, inábil a responder aos
anseios do Estado providência. Em um esforço didático,
é possível enumerar cinco razões básicas da crise da lei
em geral e da legalidade administrativa, em particular. A
primeira dessas razões, de ordem fática, é a proliferação
ou inflação legislativa. O excesso de leis é uma realidade
em todas as nações civilizadas, notadamente nos países
de tradição romano-germânica. O mito positivista de
completude do ordenamento jurídico, aliado ao aumen-
to significativo das funções do Estado Social, inspirou
os parlamentos a tratarem de qualquer assunto, sendo
corolário deste movimento a noção (muito evidente no
senso comum) de que a lei seria apta a resolver todos os
problemas sociais. Banalizou-se a lei, o que fez com que
se esvaziasse o sentido de respeito que se lhe nutriu no
período iluminista. Com a inflação legislativa, a norma
do parlamento, inevitavelmente, “perde a sua majesta-
de”. É impossível o conhecimento pleno da legislação,
sendo certo, também, que a complexidade das leis, con-
sequência da complexidade das questões que regula, tor-
na ainda mais difícil a sua compreensão. Conforme Eros
Roberto Grau, a inflação normativa “coloca os ideais de
segurança e certeza jurídica sob comprometimento”, o
que faz naufragar, de uma vez por todas, a esperança de
estabilidade das relações sociais prometida pelo discurso
legalista (BINENBOJM, 2014, p. 133-134).

Concordamos ser a adesão ao legalismo exacerbado um proble-


ma, nos termos propostos. A inflação normativa, consoante vere-
mos também adiante, revela-se como fator de insegurança. O com-
bate a este estado de coisas, ao nosso compreender não passa pela

64
A Codificação Administrativa

eliminação ou substituição da atividade normativa pela adoção de


outra fonte principal. Ecoa absurdo evidente, ainda em época de ju-
dicialização, falar em eliminação ou substituição da atividade legife-
rante pois esta constitui uma das funções essenciais do Estado. Soa
muito mais razoável defender o resgate da legalidade do que cair no
legalismo puro e simples. Esse resgate, superação inequívoca da crise
da lei, pode-se dar inclusive por meio de uma sistematização a qual
ponha um fim a atual balbúrdia normativa. A abreviação racional
de todos esses institutos, sem desnaturar-lhes ou descaracterizá-los
e sem exceder na edição de normas, afigura-se como uma das alter-
nativas à sobredita inflação normativa.
Agregar as normas em torno de um eixo principiológico sólido
e sustentável, como dissemos, é tarefa árdua, mas não impossível.
Esse desafio já foi vencido outrora, por sociedades outras, em si-
tuações bem mais precárias. A quantidade exacerbada de normas
administrativas esparsas, reiteramos, é o retrato fiel da balbúrdia
da própria administração pública brasileira. Desordem simbólica,
vigente no plano normativo e transferida ao plano empírico da
administração pública. Contamina-a, deturpa, provoca confusão,
gera interpretações ambíguas, contradições e contribui para o
aumento da insegurança jurídica. Confeccionar uma tessitura de
fundo, sólida e homogênea, apta a reforçar o sentido da existência
do poder público e da unidade nacional é desafio o qual mas que
deve ser enfrentado o quanto antes.
Antecipamos desde já dois pontos fundamentais que também
não podem ser menosprezados. O primeiro é a concatenação do
direito administrativo material com o direito administrativo pro-
cessual, na codificação vindoura. Conciliação plausível, possível.
O CDC atesta a possibilidade dessa mescla. Este código estabele-
ceu, em seus dispositivos finais, um sistema de processo coletivo
inspirado nas class actions, o qual viabilizou a aplicação prática
de suas normas materiais. O segundo ponto crucial, além dessa

65
Túlio Eugênio dos Santos

junção na codificação, é o de perceber a administração pública


como um feixe de relações institucionais numa futura codificação
administrativa, a seguir os postulados do Teorema de Coase e da
Escola Institucionalista (Williamson e outros). Veremos adiante
quão relevante essa concepção será para preencher espaços nor-
mativos vazios. Antes, porém, passemos à análise do segundo
óbice à Codificação.

3.3.2.3 Segundo obstáculo: a multiplicidade de


competências como empecilho à codificação
A multiplicidade de competências como empecilho à codifi-
cação revelou-se como um obstáculo quase intransponível. Isso,
na medida em que exige maior esforço de integração quando da
elaboração da norma. É sabido que a competência normativa para
legislar sobre direito administrativo pulveriza-se ao dividir-se em
competências federais, estaduais e municipais. Conforme o sen-
so comum corrente essa multiplicidade de competências um dos
principais óbices a uma codificação coesa e homogênea. Claro,
todos sabemos das diferenciações básicas referentes às competên-
cias legislativas. A União tem a sua competência normativa regida
expressa e exaustivamente pela Carta Magna. Os municípios, por
sua vez, regem-se pelo interesse local do artigo 30, I, da CF/88
(BRASIL, 2013). E, claro, aos Estados-Membros é assegurada
a competência residual, enquanto a competência legislativa da
União é realçada de forma expressa e exaustiva (LOPES FILHO,
2014). Apesar desses conceitos e diferenciações básicas efetuados
no próprio corpo da Carta Magna, persiste o problema da compe-
tência como empecilho à codificação.
Alguns autores simplesmente sublimam essas distinções for-
mais. Apenas a título de exemplificativo, podemos citar o insti-

66
A Codificação Administrativa

tuto da licitação e contratos administrativos. Apesar da Carta


Magna afirmar ser privativa a competência da União para editar
normas gerais sobre o tema, a doutrina majoritária inclina-se por
reconhecer a competência concorrente (MAZZA, 2018). E, real-
mente, não é de se duvidar a existência de lei de licitações pró-
prias escoradas na Lei nº 8666/93 e outras normas federais, a re-
gulamentar desapropriações feitas pelos Estados Membros. Mas,
ao invés de apenas negar essa dificuldade ou de simplesmente
transpô-la de maneira superficial, convém enfrentar o problema
sem tergiversações ou análises precipitadas e incompletas. Antes
de mais nada, necessário evidenciar que a competência norma-
tiva em sede de direito administrativo encontra-se decomposta.
Parece-nos que essa desagregação foi proposital, na justa medida
em que pretendeu que determinadas matérias mais sensíveis e
relevantes ficassem sob regência privativa da União e as demais
restassem como competência normativa comum entre União,
Estados- Membros, DF e Municípios.
Constatamos então a existência de uma multiplicidade de com-
petências administrativas. Por exemplo, a competência é privativa
da União para legislar sobre desapropriação (art. 22, II, CF/88), re-
quisições civis e militares (art. 22, III), processo (art.22, I), águas e
energia (bens públicos, art. 22, IV), Normas Gerais de Licitação e
Contratos (art. 22, XXVII) (BRASIL, 2013). Mire-se que quanto à
última competência sobre licitações e contratos administrativos o
legislador faz questão de realçar além da competência privativa da
União para legislar sobre o tema a qualidade de lei nacional dessa
regulamentação (aplicável concomitantemente à União, Estados
Membros, DF e Municípios). Podemos dizer, assim, já existir uma
lei nacional em termos administrativos, formalmente reconhecida
como tal pelo próprio legislador constitucional. Destarte esta últi-
ma assertiva, algumas matérias tipicamente administrativas, con-
tinuam a ser de competência legislativa comum ou concorrente. É

67
Túlio Eugênio dos Santos

o que depreende-se da leitura do artigo 24 da |CF/88, que também


versa sobre tópicos tipicamente administrativos como Tombamen-
to (artigo 24, VII) e Procedimento Administrativo (art. 24, XI)
(BRASIL, 2013).
Constatamos, desta feita, que a competência legislativa acerca
de muitas das matérias de direito administrativo encontram-se
pulverizadas pelo ordenamento jurídico constitucional. Embora
essa organização pareça ter sido proposital, a intenção inicial do
legislador de preservar determinadas competências e generali-
zar outras reverbera hoje como uma dificuldade real, que está,
gradativamente, a ser superada. Sem anteciparmo-nos demais, a
solução ideal, ao nosso compreender, passa pelo conceber de um
sistema administrativo nacional onde hoje existe o artigo 37 da
CF/88 o qual sirva de base de sustentação da codificação admi-
nistrativa. Além disso, a adoção da metodologia do dispositivo
referente à lei de licitações e contratações soa como uma alterna-
tiva viável. A competência privativa da União materializada por
via de lei nacional de caráter geral a qual vincule concomitan-
temente União, Estados- Membros, DF e Municípios ecoa como
solução elegante para o imbróglio.
Todavia, para além dessa questão da multiplicidade de com-
petência sob o aspecto formal, esbarramos no obstáculo conse-
quencial de uma modificação deste jaez. Muitos questionam até
que ponto não restaria violado o princípio federativo (princípio
constitucional sensível) com a edição de uma codificação desta
natureza. Existem autores os quais encaram de frente a fantasma-
goria da eventual violação do princípio federativo que uma codi-
ficação desta natureza poderia causar. Monteiro (2012), em artigo
intitulado “O Desafio à Codificação do Processo Administrativo no
Ordenamento Brasileiro: a forma federativa de Estado” supera esse
dogma há muito incrustado na doutrina brasileira. Cita, por exem-
plo, a Lei nº 2.834, de 07/12/2001 do Distrito Federal (2001), a qual

68
A Codificação Administrativa

nada mais fez senão chancelar de forma integral a aplicação da Lei


nº 9.784/99 à administração pública estadual vigora como exem-
plo maior deste postulado. O único artigo desta norma minúscula
bastou para homologar o conteúdo da lei federal (MONTEIRO,
2012). Esse exemplo de padronização foi seguido por muitos entes
federativos, até com o fim de evitar incongruências internas. Não
seria demasiado afirmar ser esta uma representação da menciona-
da força de convergência vigente nesta seara.
Outro modelo bem sucedido de superação desse suposto en-
trave federativo foi a concepção contida no Código Tributário
Nacional. Aqui nos encontramos diante de normatizações bem
mais complexas as quais restaram superadas com eficácia ímpar.
Mire-se que os eventuais conflitos federativos no campo do CTN
deflagraram-se tanto no plano vertical como no plano horizontal.
Ambos foram solucionados com êxito à época da promulgação do
código. Se fôssemos transpor tais dificuldades à esfera da codifi-
cação administrativa, os problemas cingir-se-iam basicamente ao
plano vertical. Ou seja, uma legislação una e nacional deve ser
consistente sem permitir a interferência demasiada da União nos
Estados- Membros e Municípios.
Andou bem, neste sentido, o modelo inaugurado pelo CTN. O
modelo da codificação tributária, usado aqui como paradigma, par-
tiu da engenhosa premissa de formulação de um código instituído
como uma lei nacional. Isto não significa afirmar ser simplesmen-
te uma lei federal, vinculativa à União, autarquias federais, etc.
Trata-se de uma lei nacional, aplicada a todos os entes federativos
indistintamente (vide Lei nº 5.172/66) (BRASIL, 1966). Lei na-
cional tal e qual a prevista para a lei administrativa das licita-
ções e contratos, apenas com a diferença de conter um código
inteiro em seu interior. O Código Tributário Nacional, enfatize-se,
perpetuou-se por um bom tempo, sem desbotar-se pelo gosto da
efemeridade (BRASIL, 1966). E além de trazer o esqueleto geral

69
Túlio Eugênio dos Santos

dos institutos aplicáveis, ainda escorava-se num sistema tributário


nacional constitucionalmente estruturado. Este sistema, previsto
na Carta Magna, fornece sólida base de sustentação constitucio-
nal ao código (CF/88).
Aliás, forçoso evidenciar que a Lei nº 5.172/66 (BRASIL, 1966)
foi recepcionada pelo atual ordenamento jurídico constitucional
como uma lei complementar. Falamos isso apenas a suplementar
a noção de lei nacional. Trata-se, pois, de uma lei nacional a qual
vincula todos os entes federativos e que assumiu a natureza de lei
complementar. Esse posicionamento já pacificado deriva da pró-
pria leitura do dispositivo do artigo 146 da CF/88. Este entabula
que só lei complementar poderá dispor sobre conflito de compe-
tência em matéria tributária e estabelecer normas gerais em maté-
rias de legislação tributária, seja sobre definição de tributos e suas
espécies, obrigação, lançamento, crédito tributário, etc. Isso se dá
porque o direito brasileiro inadmite a inconstitucionalidade for-
mal superveniente. Assim, promulgada sob uma forma válida à sua
época, como foi o caso do CTN (decreto-lei), esse acabou por ser
recepcionado pelo ordenamento constitucional atual. A exigência
de lei complementar para tratar de tais assuntos surge ainda com
a CF/69 (EC nº 01/1969) e desde então o originário decreto-lei
foi recepcionado com o status de lei complementar (vide AI no AG
1.037.765-SP – STJ e RE 377.457/PR – STF).
Uma lei complementar, consoante dizíamos, de âmbito nacio-
nal, que institui os principais impostos e tipos de tributos, mi-
nudencia os principais conceitos sem, no entanto, ocupar espa-
ços indevidos ou asfixiar o sistema. Esse é um dos segredos dessa
fórmula. Ater-se a uma normatização conceitual clara e geral,
reduzida ao essencial e que deixe os devidos espaços de confor-
mação e adaptação às normatizações estaduais e municipais. É do
equilíbrio dessa intrincada equação jurídica que nascerá o respeito
ao princípio federativo. Essa refinada solução pode ser absorvida

70
A Codificação Administrativa

por um código administrativo instituído também sob o formato de


uma lei nacional. Lei nacional a qual traga em seu bojo a previsão
dos principais conceitos e estruturas e que possa ser replicado, por
simetria, nos âmbitos estaduais e locais, sem a interferência inde-
vida da União. Realçamos que, ao invés de atuar como elemento
desagregador, um Código Administrativo pode sim reforçar por via
de lei o senso de unidade nacional na medida em que uma única
norma nacional padronizadora de conceitos e estruturas, simpli-
fique procedimentos e torne o aparato estatal mais ágil. Tudo de
acordo com a eficiência da racionalização sistematizada de uma
legislação antes dispersa e casuística. Essa homogeneidade não é
só bem vinda como também é necessária, rememorando que um
nivelamento entre os entes federativos deve dar-se como uma con-
formidade aos padrões mais altos e elevados. Deve refletir, pois,
um padrão de excelência para a área.
Vale a pena, para desconstruir em definitivo quaisquer sombra
de dúvidas que pairem sobre o falso empecilho da multiplicidade
de competências legislativas, efetuar um resgate histórico. É no
sentido de avaliar a linha de raciocínio a qual deu ensejo à re-
solução desse imbróglio no plano tributário que procedemos ao
presente levantamento jurídico - arqueológico. Isso para examinar
como esse problema foi encarado e solucionado à época. Transcre-
vemos, por isso, a íntegra da exposição de motivos do anteprojeto
do código tributário nacional brasileiro, cuja comissão de estudos,
capitaneada por Rubens Gomes de Sousa, procurou enfrentar o
problema. Este bom exemplo merece o devido resgate histórico.
Ou, como transcrito nas páginas 4 e ss, da Exposição nº 1250 de
21/7/1954, do Projeto de Código Tributário Nacional:

Reservando para si a competência da Comissão, quis o


Ministro do Estado dos Negócios da Fazenda demonstrar,
de maneira concreta, o interesse do governo pelo empre-

71
Túlio Eugênio dos Santos

endimento da codificação das normas gerais de direito


tributário e a sua consciência da magnitude dos impera-
tivos de ordem nacional a serem atendidos pela sua pro-
mulgação definitiva. 5. O primeiro problema substancial
com que teve de se defrontar a Comissão foi o relativo
ao alcance da expressão “normas gerais” consignada no
artigo 5º, XV, letra “b”, da Constituição, dispositivo invo-
cado como fundamento constitucional para o Código. A
questão se revestia de inegável gravidade, principalmente
à vista de suas repercussões jurídicas e políticas no tocan-
te à preservação de autonomia legislativa dos Estados e
dos Municípios. Todavia, o que se depreende do estudo
cuidadoso dos precedentes parlamentares e da elaboração
doutrinária em matéria de normas gerais, sem embargo do
seu inegável valor como subsídio para o balizamento do
terreno em vista de ulteriores estudos, é a impossibilidade,
e mesmo a inutilidade ou inconveniência práticas de uma
delimitação apriorística do alcance do conceito, a ser por
isso utilizado com o caráter de um standard jurídico na
análise das hipóteses individuais de sua aplicação, antes
que como um preceito suscetível de definição vinculati-
va. Em consequência, a Comissão absteve-se de procurar
um conceito predeterminado de “normas gerais” e adotou
como regra de trabalho proceder à análise individual de
cada situação concreta para verificar a possibilidade de
sua regulamentação através de uma norma simultanea-
mente aplicável aos três níveis de governo e à generali-
dade das situações ou institutos jurídicos de uma mesma
condição ou espécie, salvo em se tratando de situações ou
institutos peculiares a determinada entidade tributária.
Finalmente, visou-se, em cada caso, na formulação da
norma, a sua referência a aspectos fundamentais ou bási-
cos, com abstração de pormenores ou detalhes. Ainda as-
sim, entretanto, a Comissão manteve ou formulou regras

72
A Codificação Administrativa

de natureza antes de regulamentar, sempre que isso lhe


pareceu essencial à atuação do princípio tido como fun-
damental ou básico. 6. Embora enquadrado no problema
genérico do alcance do conceito de normas gerais, merece
referência especial o aspecto da inclusão, no Projeto, de
definições de institutos jurídicos e particularmente dos
impostos privativos federais, estaduais e municipais. Mes-
mo sem negar a impropriedade da inclusão de conceitos
doutrinários no texto da lei, todavia, é forçoso reconhecer
que, na fase atual da elaboração do direito tributário entre
nós, a fixação de determinados conceitos básicos é essen-
cial para assegurar ao Código a plenitude de sua eficácia.
Finalmente, no que se refere à conceituação específica
de cada um dos impostos privativos federais, estaduais e
municipais, aspectos em que mais agudo se apresenta o
problema das autonomias legislativas, a Comissão, sem
desconhecer a dificuldade de sua delimitação rigorosa
reputou-a entretanto indispensável à atuação do próprio
sistema constitucional de distribuição de rendas. Não será
exagero afirmar, com efeito, que o Código ficaria priva-
do do sentido normativo e de alcance prático, se omitis-
se tais conceituações. O critério nominalista observado
pela Constituição evidentemente não pode ser entendido
como significado, em cada caso, a atribuição à entidade
tributante, de um simples nomen juris, mas sim de uma fi-
gura tributária específica e conceitualmente diferenciada.
Ao traçar definição de cada imposto, a Comissão den-
tro do seu critério geral, atentou em primeiro lugar, para
o direito positivo vigente, com as adequações rigorosa-
mente indispensáveis do ponto de vista constitucional; e
somente em caráter supletivo ou complementar recorreu
ao subsídio da doutrina. 7. Uma peculiaridade do Código
Tributário brasileiro, que o distinguirá de todos os demais
da mesma natureza, é justamente o caráter nacional de-

73
Túlio Eugênio dos Santos

corrente de sua aplicabilidade simultânea aos três níveis


de governo integrantes da Federação. Essa característica
é fundamental, portanto a sua influência não se restringe
aos aspectos imediatamente decorrentes da implantação
constitucional no que se refere à competência legislati-
va, mas evidentemente se estende a toda a sistemática do
direito tributário substantivo regulado no Código. Por ou-
tras palavras, a Comissão teve presente que o Código, em-
bora atribuído à competência federal por uma razão óbvia
de hierarquia legislativa, não será lei “federal” mas “nacio-
nal”; e ainda, que as suas disposições constituirão antes
regras informativas endereçadas ao legislador tributário,
afetando o contribuinte, na maioria dos casos, apenas in-
diretamente, através de sua aplicação por parte daquele.
Dentro desse critério, a Comissão procurou subordinar
om Projeto a uma orientação geral compatível com o que
se poderia chamar de o “clima tributário do país”, eviden-
ciado pelo direito positivo, encarado como expressão da
realidade nacional no tríplice plano econômico, político e
jurídico. Com êsse objetivo, o Anteprojeto, as sugestões a
êle oferecidas e os demais subsídios utilizados pela Comis-
são foram confrontados com a legislação vigente, e muito
especialmente, com a legislação tributária, tanto federal
como dos Estados e dos principais Municípios. Visou-se
ainda, com essa análise do confronto, um objetivo inverso
do apontado, mas que com ele se coaduna, e que é o de re-
duzir o impacto do próprio Código sobre o direito tributá-
rio vigente ao mínimo exigido pelo respeito aos preceitos
constitucionais e às decorrências jurídicas necessárias de
tais preceitos, tais como entendeu a Comissão. Nem seria
necessário assinalar de modo expresso, neste particular,
que a Comissão adotou como regra invariável abster-se
de qualquer proposição que pudesse implicar em reforma
constitucional, interpretando suas atribuições como limi-
tadas à elaboração de um Projeto que representasse uma

74
A Codificação Administrativa

decorrência natural e um aperfeiçoamento, mas não de


uma reforma, do sistema tributário vigente. Exposição nº
1250 de 21/7/1954, do Projeto de Código Tributário Na-
cional (SOUSA, 1954, p. 6-9).

Escarafunchando as origens jurídicas, eis, acima, em breves


linhas, o âmago da Exposição de Motivos de onde surgiu a cria-
tiva solução do instituto da lei nacional. Um código sob a forma
de lei nacional. Consoante já observamos, existe uma lei admi-
nistrativa de licitações e contratos que revela-se como uma lei
nacional e que pode servir de base a uma eventual codificação.
Além das mencionadas controvérsias com relação ao tema da
competência legislativa, sobressai uma dificuldade até agora não
demonstrada. A viabilidade de uma codificação administrativa
dá-se com a promulgação de um microcosmo administrativo, como
o é o microcosmo do direito do consumidor. Tais microcosmos
preveem a junção de normas materiais e processuais numa mes-
ma sistematização. Retomando a questão da competência legisla-
tiva assinalada páginas atrás, podemos debruçar-nos sobre outro
tópico que revelou-se como empecilho: o procedimento adminis-
trativo: o procedimento administrativo.
O procedimento administrativo é, como o próprio nome diz,
um procedimento. Como tal, seria de competência normativa co-
mum, consoante estipulado no artigo 24 da CF/88. Fazer dessa
competência uma competência da União suscitaria a arguição de
inconstitucionalidade por violação do princípio federativo e sub-
tração de competência legislativa dos demais entes da federação.
Esse óbice, no entanto, revela-se ilusório. E o é na justa medida
em que em nada interfere em tal princípio federativo. Poderíamos
espancar de vez as dúvidas sobre esse assunto específico a apresen-
tar a tese de doutorado do professor Cintra, que expõe a natureza
real de processo do que hoje comumente é denominado procedi-

75
Túlio Eugênio dos Santos

mento administrativo (CINTRA, 2005). A mudança do conceito


acarreta o reposicionamento da competência legislativa sem ferir
o sobredito princípio. O tão só fato de colocar o procedimento
administrativo como um processo desloca a competência normativa
comum do artigo 24, XI, para a competência privativa da União do
artigo 22, I, da CF/88. Após essa adequação conceitual seria uma
questão de considerar a norma processual administrativa uma lei
de amplitude nacional.
Desta forma, talvez nem seja necessário efetuar essa leitura
mais técnica do instituto. Isto porque a doutrina administrativa
mais abalizada já tende a movimentar-se nessa direção. É o que
extraímos, por exemplo, da doutrina de Carolina Caiado Lima, a
qual aponta o abaixo transcrito:

[…] embora haja entendimentos contrários, entendemos


que é possível inserir o processo administrativo no “di-
reito processual” a que se refere o artigo 22, I, da Consti-
tuição Federal de 1988, o permitira a existência de uma
lei geral de processo administrativo, aplicável a todos os
entes da federação, e veiculadores das principais diretri-
zes regedoras do processo administrativo. A existência de
uma lei geral não violaria o princípio federativo e tampou-
co impediria a existência de leis específicas sobre processo
administrativo, como é o caso da lei federal 8.666/1993
que trata de processos licitatórios […]. (LIMA, 2010 apud
CUNHA, 2011, p. 221).

Di Pietro (2012) ratifica esse posicionamento, a dissertar tam-


bém sobre o alcance maior da lei federal 9.784/99, já a considerando
uma lei nacional. Ou, como notamos no texto abaixo colacionado:

Surgiram alguns posicionamentos dando maior amplitu-


de e alguns dispositivos que tem sido aplicados em âmbi-
to nacional. Tal entendimento merece ser acatado. No-

76
A Codificação Administrativa

te-se que a lei não estabeleceu procedimento específico


a ser adotado pelos órgãos administrativos. Ela estabe-
leceu normas básicas sobre os processos administrativos
em geral. O objetivo poderia ser considerado de âmbito
federal apenas. Ocorre que ela não se limitou a isso. Ela
foi além. O seu principal objetivo foi o de dar aplicação a
princípios constitucionais pertinentes aos direitos do ci-
dadão, entra-se na esfera de temas de interesse nacional
e, portanto, de competência da União. (CUNHA, 2011,
p. 222, grifo nosso).

A solução de adotar uma lei nacional sobressai como a mais


adequada, após a inauguração de uma sistema administrativo na-
cional em sede constitucional. Todavia, o leitor poderia indagar-se
sobre que modelo de codificação adotar. Apresentam-se, sob esta
ótica, três perspectivas: 1) a formulação de um código nacional
único; 2) a edição de vários códigos administrativos estaduais,
para não ferir a autonomia legislativa dos estados; 3) a adoção de
um sistema de uma codificação nacional concomitante à codifica-
ções estaduais e municipais, pelo já comentado princípio da sime-
tria. A exemplo da estratégia acolhida pelo CTN, uma codificação
nacional geral seguida de codificações estaduais e municipais soa
como a solução mais plausível ao caso em questão. Evidencie-se,
por exemplo, a concomitância da vigência do CTN com códigos
tributários municipais como o de Fortaleza ou João Pessoa ou com
outros códigos tributários estaduais. Nada impede que a codifica-
ção administrativa persiga essa mesma lógica de codificação com
respeito à autonomia normativa das demais entidades federadas.
Além de resolver um problema há décadas pendente, tal solução
teria o condão, como já demonstramos, de harmonizar, sistemati-
zar e padronizar as múltiplas normas administrativas esparramadas
por nosso desorganizado ordenamento. A adoção desse modelo é
tarefa a qual não pode ser adiada. Urge efetuar uma codificação a

77
Túlio Eugênio dos Santos

qual seja simultaneamente reflexo e base de um sistema adminis-


trativo nacional consistente e sistematizado. Reiteremos, sob tal
perspectiva que a manufatura de um código administrativo não se
faz apenas plausível ou possível, mas necessária.

3.3.2.4 Terceiro obstáculo: o risco de engessamento


do direito erigido por savigny e a desconstrução
dessa crença
Embora Frederico Carlos von Savigny fosse favorável à normati-
zação, o autor era contrário à codificação em específico. Essa po-
sição resta explicitada no livro “Da Vocação do Nosso Século para a
Legislação e Ciência do Direito”. Segundo ele, a codificação tolheria
a liberdade de evolução da ciência jurídica (AMORA, 1962). A
petrificação jurídica temida pelo autor, no entanto, jamais ocorre-
ria. Prova inconteste disso é a subsistência de diversos códigos os
quais não impedem a mencionada evolução.
A necessidade de codificação transita num limbo de tensão
o qual oscila entre o máximo de segurança possível advindo de
uma sistematização racional e o risco de engessamento. Os códi-
gos já promulgados não imobilizaram os sistemas jurídicos jus-
to por deixarem espaços de conformação, para atualizações e
eventuais evoluções. Essa observação, por si só, basta para evi-
tar que o legislador caia na tentadora armadilha da legislação
exaustiva, de modo a transformar o código num monstruoso e
disforme amontoado de normas. Uma iniciativa desta natureza,
além de desastrosa, revelar-se-ia inútil. Isto porque acabaria re-
almente por engessar o ordenamento, sufocando-o por falta de
espaços normativos. Consoante já advertimos anteriormente,
não é a mera reunião aleatória e cumulativa de leis que viabili-
zará uma codificação.

78
A Codificação Administrativa

Deve, pois, existir um esqueleto essencial, um eixo em torno


do qual agregam-se os princípios norteadores do sistema adminis-
trativo. Se desrespeitados os critérios basais aqui expostos, confi-
gura-se sim o risco real de engessamento do sistema. Razão pela
qual esse receio não chega a retratar um mito ou falácia. Cuida-se
de um perigo real, efetivo. É nesse sentido também que, além de
uma estrutura a qual revele esse eixo precípuo de regras básicas
atreladas às bases principiológicas, carece deixar determinados
espaços vazios. Não podemos confundir esses espaços propositais
da legislação com as verdadeiras lacunas existentes no âmbito das
relações institucionais, os quais devem ser cobertos. Também não
podemos misturar esses espaços os quais, além de propositais são
estratégicos, com as lacunas normativas em si. As lacunas são
lapsos, omissões involuntárias do legislador, via de regra materia-
lizadas como influências maléficas e causadoras de insegurança
jurídica. Os espaços estratégicos deixados no código, ao contrário,
são conscientes e destinam-se a formar um espaço de conforma-
ção onde a norma possa adaptar-se e evoluir.7
O limite entre a lacuna involuntária e nociva e o espaço estra-
tégico destinado à evolução normativa é a prudência do legislador.
A sensibilidade deste, ao analisar normativamente cada tema é
que indicará a amplitude e o alcance necessário da densificação
normativa. É essa sensibilidade, aplicada ao caso concreto, que
evitará o indesejável engessamento do ordenamento jurídico, tão
temido por Savigny. Não se pode, claro, só a complementar, elabo-
rar uma legislação utópica. Incabível o descolamento da realidade

7 O esclarecimento dessas imbricadas relações são necessárias. Mas convém


também deixar espaços. Diversamente das sobreditas lacunas omissivas, que
são involuntárias e representam um efetivo vazio normativo não querido pelo
legislador, aqui encontramos os espaços estratégicos os quais servem como zonas de
conformação e evolução da codificação. Canotilho (1997) fala, em outros termos,
em espaços de conformação normativa.

79
Túlio Eugênio dos Santos

e a codificação deve munir-se, também da maior normatividade e


efetividade possível. Além disso, não se deve fiar-se à concretude
estrita. Sua abordagem deve ser múltipla, a catalisar a transfor-
mação axiológica hoje almejada e, consoante enfatizamos, deixar
espaços de conformação para evoluções futuras.

3.3.2.5 Razões jurídicas de sustentabilidade


da codificação
3.3.2.5.1 Introdução, lacunas, vícios e a teoria do feixe
de relações
Um dos problemas cruciais detectados hoje na legislação admi-
nistrativa refere-se às lacunas normativas existentes nas relações
inter institucionais. Essa lacuna tem sido encarada como empeci-
lho porque é justo em meio a esse vácuo legislativo onde identifica-
mos a promiscuidade vigente entre o público e o privado. Poderíamos
avançar logo para simplesmente indicar soluções imediatas e sanar
a questão. Todavia, por escrúpulo científico, convém antes com-
preender o problema em todas as suas facetas e profundidades,
para somente então retomarmos com maior discernimento, o es-
tudo das soluções possíveis.
Uma vez detectada essa lacuna normativa, constatamos tam-
bém que a sobredita promiscuidade faz proliferar uma estrutura
paralela de poder a qual pode comprometer inclusive o estado de
direito. O problema nodal quando nos deparamos com esse imbró-
glio versa, na verdade, sobre o modo de percepção do direito ad-
ministrativo atual. Eis o detalhe o qual carece mudar. Enxergamos
o Estado hoje sob um prisma meramente orgânico, destituído de
toda a fluidez de suas relações. Essa consciência limitada do apa-
rato estatal, assim, permite-nos visualizá-lo somente em sua estática

80
A Codificação Administrativa

relação do ordenamento jurídico. Observamos a sua composição in-


trínseca ao dissecar tópicos como servidores públicos ou serviços
públicos e, quando abordamos diretamente algum tema sempre
o fazemos sob o estrito ângulo estatal, sem atentar para as outras
perspectivas concomitantes, as quais devem compor um sistema
harmônico. Nem a doutrina e a lei administrativa podem restar
subtraídas dessa consciência. E a adoção desse foco, como é intui-
tivo, reforça o próprio sentido de coesão e integração do ordena-
mento jurídico. Principiamos a encará-lo como uma completude
equilibrada, coerente e inter relacionada.
A partir do momento que deixamos de analisar a administra-
ção pública como um corpo estático, o próprio direito administra-
tivo deixa de servir apenas como uma regulação do ente estatal e
vai além. Avança no sentido cognitivo. Entrever a administração
pública como um feixe de relações expande essa perspectiva limi-
tada e evolui a ponto de açambarcar relações as quais antes não
eram alcançadas pelas normas. É exatamente nestas regiões onde
impera a anomia o local onde brotam as relações de promiscuidade
entre o público e o privado, onde a corrupção encontra espaço e,
como dissemos, instalam-se as estruturas do poder paralelo. Reite-
ramos a lição de Pagotto. Principalmente o seu alerta sobre a pos-
sibilidade da patologia da corrupção sistêmica reverberar em cor-
rupção solapamento. Esta última sim revelar-se-ia como o estágio
último de degradação do estado de direito, no qual esfacelam-se
as instituições, relativiza-se a moral e a sensação de insegurança
resta recrudescida (PAGOTTO, 2010).
Perceber o ente estatal não como um corpo meramente orgâni-
co mas como um feixe complexo de relações altera completamente
o modo como o direito administrativo vinha sendo estudado até
aqui. Essa nova compreensão torna também visível regiões as quais
antes eram obscuras, onde desdobravam-se tais práticas sistêmicas
indesejáveis. Clareiam-se os ambientes e começamos a enxergar

81
Túlio Eugênio dos Santos

as formas, antes ocultas sob as penumbras do vácuo legislativo.


Esse novo ângulo de abordagem permite-nos, assim, visualizar não
apenas o ente estatal na dinamicidade de suas relações com outras
instituições. Possibilita também enxergar até que ponto essas rela-
ções estão corrompidas, deterioradas, comprometidas.
Cabe-nos indagar, neste momento, de onde e como surgiram
os estudos iniciais, capitaneados por pensadores como Coase ou
Williamson. Esses economistas inovaram ao encarar o direito pri-
vado sob a ótica da análise econômica do direito. E foi ao lançar
mão desse instrumento de pesquisa tais cientistas começaram a
contemplar a empresa não mais como uma reles pessoa jurídica ti-
tular de direitos no plano jurídico. Iniciaram a enxergar a empresa
sob uma perspectiva nova, decompondo as relações formadoras
das instituições, identificamos os seus feixes atomizados de susten-
tação e visualizando-as em seu aspecto dinâmico e até quântico.
Viam-na não como um ente mas sim como a somatória de todos
os contratos entabulados pela empresa. Essas relações dinâmicas e
múltiplas é que definiam a empresa e não mais os seus atos cons-
titutivos. Essa era a nova ótica, sob a visão da análise econômica
do direito. Esses cientistas estudaram como coordenavam-se esses
feixes de relações e como o ambiente institucional limitava-os ou
continha os seus objetivos estratégicos. O estudo permitiu forne-
cer maior dinamicidade e eficiência às empresas. Ou, como cita-
mos nas linhas abaixo, em trecho elucidativo sobre o tema:

Conceito econômico de contrato. […] A partir do tra-


balho de Coase, abriu-se caminho para o tratamento
mais realista do fenômeno que denominamos firma vista
como um feixe particular de contratos cuja coordenação
reflete nas limitações impostas pelo ambiente institucio-
nal e os objetivos estratégicos. Formas alternativas de
coordenação (governança) e ambientes institucionais
distintos trarão resultados diferentes para as organiza-

82
A Codificação Administrativa

ções, daí a importância do tema para o estudo das es-


tratégias. […]. Sob a ótica relacional são os contratos
as promessas baseadas nas salvaguardas ditadas pelos
diferentes incentivos à continuidade, pelos mecanismos
reputacionais e pelas sanções sociais informais, entre
outros. Barzel esclarece que existem direitos de proprie-
dade econômicos e direitos de propriedades jurídicos.
Os últimos são salvaguardados pelos contratos, poden-
do contar com o aparato da justiça para sua garantia.
Os primeiros são caracterizados por acordos informais,
garantidos por mecanismos sociais. Sob a ótica da Eco-
nomia das Organizações, um contrato significa uma ma-
neira de coordenar as transações, provendo incentivos
para os agentes atuarem de maneira coordenada na pro-
dução, o que permite planejamento de longo prazo e, em
especial, permitindo que agentes independentes tenham
incentivos para se engajarem em esforços conjuntos de
produção. A teoria da escolha contratual prevê que os
contratos poderão variar em termos de eficiência, con-
forme o seu desenho defina incentivos para os agentes
atingirem objetivos predefinidos. Os arranjos institucio-
nais (contratos) somados ao ambiente institucional defi-
nirão diferentes mecanismos de incentivos, assim como
os remédios para o não cumprimento das promessas. [...].
(ZYLBERSZTAJN; SZTAJN, 2005, grifo nosso).

Essa teoria já existe e resta comprovada e consolidada no


ambiente acadêmico há anos. A sua transposição à seara públi-
ca não se afigura impossível, na justa medida em que a gestão
estatal é cada vez mais gerencial e focada na busca por desem-
penhos eficientes. Acaso fôssemos transpor essa teoria para o âm-
bito estatal teríamos uma surpresa. Constataríamos quão rica e
complexa podem ser tais relações. A relação do Estado com o
indivíduo, por exemplo, encerra a mais primordial de todas as

83
Túlio Eugênio dos Santos

relações. Esta relação em si também é um contrato, o contra-


to social. Cabe esmiuçar, por via de tais análises, até que pon-
to essas relações têm sido deturpadas e em que medida podem
ser reforçadas. A relação entre o ente estatal e as instituições
privadas e corporações sequer é objeto de regulamentação sob
essa perspectiva específica e a relação entre a administração e
as demais instituições públicas carece de bastante refinamento,
encontrando-se bastante defasada. Bem, para ter-se uma vaga
ideia quanto ao atraso dessa última, basta evidenciar que ainda
continuamos presos ao já mencionado arquétipo do clientelismo.
Podemos citar a possibilidade de licenças de membros do le-
gislativo para ocupar cargos do primeiro escalão do legislativo
como uma das deturpações do sistema de freios e contrapesos ou
da harmonia entre os poderes. Tais cargos passam a ser motivo de
barganha e o poder executivo vira um verdadeiro balcão de ne-
gócios. Medidas simples e eficazes como a substituição do critério
político pelo técnico constituiria um duro golpe contra práticas
enraizadas, as quais devem ser desconstruídas. Levamos essa pers-
pectiva tão à sério que cogitamos a possibilidade da concepção
de uma codificação administrativa baseada sob tais premissas. A
estruturação do Código Administrativo, além de solucionar em defi-
nitivo questões de competência e incutir uma nova principiologia,
fulcrar-se-ia na regulação de tais relações. A ocupação de vácuo
legislativo soaria como a solução mais adequada ao combate dos
vícios nele surgidos, bem como funcionaria como aprimoramento
dessas relações, acrescidas, claro, do benefício de contribuir para o
aumento da transparência.
Poderíamos classificar essas relações como sendo: 1) as relações
entre o Estado Administração e o Governo; 2) as relações entre
o Estado administração e o administrado; 3) as relações entre o
Estado Administração e as instituições privadas, as corporações e
demais instituições públicas; 4) as relações do Estado administra-

84
A Codificação Administrativa

ção com o domínio econômico; 5) as relações do Estado Adminis-


tração com o ordenamento jurídico material e processual; 6) as re-
lações internacionais do Estado administração. Desenvolveremos
nos próximos tópicos cada uma dessas relações e constataremos
em que medida podem elas contribuir para o aprimoramento dos
institutos e para a codificação em si.

3.3.2.5.2 A primeira razão: a percepção das relações


institucionais em si
Aprofundamos a análise quanto às relações institucionais, de
modo a delinear com maior clareza os intuitos da presente abor-
dagem. A opção por decompor o ente estatal em Estado – Adminis-
tração e Estado Governo obedece a um critério de há muito esta-
belecido pela doutrina. Esta perspectiva distingue a burocracia
técnica dos cargos políticos. Essa diferenciação, todavia, nunca
foi levada muito à sério pela lei e essa região sempre permaneceu
sob a penumbra de uma indefinição inviável ao direito público.
Nebulosidade inconteste. Ora, a própria Constituição, segundo
o nosso sistema, atribui poderes concomitantemente técnicos e
políticos ao chefe do executivo. Não criticamos aqui a existência
da reunião de tais atributos numa única figura. Esse é um traço
característico já constitucionalmente definido. Opomo-nos sim
à ausência de definições e delimitações mais claras, viabilizado-
ras do amadurecimento do modelo. As trevas que pairam sobre
tais relações geram situações de ambiguidade institucional, onde
atos eminentemente técnicos podem confundir-se com atos polí-
ticos e vice versa. Eis um pantanoso terreno de dubiedade o qual
carece ser encarado de frente.
Imergindo em tais meandros, detectamos a necessidade dos
governos atrelarem-se a um projeto de estado e não o contrário.

85
Túlio Eugênio dos Santos

A submissão do ente estatal a um projeto ideológico evita o reve-


zamento de poder, asfixia a democracia e conduz a deturpações
institucionais. Daí a imprescindibilidade de oxigenar-se o pro-
cesso democrático e dar-lhe o devido espaço sem, no entanto,
desviar-se das diretrizes gerais de um projeto de estado que seja
fruto do consenso. Um projeto neutro, suprapartidário e perene.
Numa frase, o Estado não deve servir a governos e sim os gover-
nos que devem moldar-se ao Estado instituído. O Estado, por
sua vez, deve manter sempre fiel ao seu objetivo último o qual
é e sempre será o cidadão. Aqui começamos a esclarecer a na-
tureza dessas relações entre burocracia e governo, os seus limites
e facetas. Ainda neste mesmo tópico, outro discernimento vital
constitui a definição exata do âmbito do que é uma decisão téc-
nica e a sua confrontação com o que seja uma decisão política.
A solidez dessa distinção delimitará como deve ser usado o espa-
ço de discricionariedade deixado à disposição do administrador.
Efetuar essa dosagem é um dos maiores desafios dos administra-
tivistas. Encontrar o ponto ótimo para evitar o excesso de poder
ou o sufocamento da atuação do gestor é questão a qual não
pode ser menosprezada numa futura codificação administrativa.
E ela será tratada justo neste tópico, o qual distingue a fronteira
onde começa a política e termina a burocracia.
O sistema da dupla justificação o qual envolve a motivação
interna da decisão administrativa em si e o do porquê optou-se
pelo uso dessa discricionariedade soa como uma saída segura à
resolução desse imbróglio. Erigir um novo sistema de responsa-
bilidades a administradores os quais violem esses limites entre as
decisões políticas e técnicas soa como um freio a eventuais abusos
do gestor. Existem leis privadas como as aplicadas às sociedades
anônimas as quais podem servir de inspiração para edificar esse
novo paradigma. Um gestor, sob essa ótica, ficaria impossibilitado,
pois, de tomar uma decisão técnica sob uma premissa puramente

86
A Codificação Administrativa

político-ideológica e vice versa. Repetimos, esse contrapeso deve


tender a um ponto ótimo, a fim de não permitir o asfixiamento
dessa liberdade do gestor.
Convém, no mais, evidenciar a importância que determinados
documentos como o Plano de Integridade da Controladoria-Geral
da União (CGU) possuem para esclarecer as relações entre a alta
administração política e a burocracia. Estabelece este plano a no-
ção básica da estrutura de governança, expõe os fundamentos do
programa de integridade, estabelece o comprometimento e apoio
da alta administração, prevê a instalação de unidades responsáveis
pela manutenção da integridade, preceitua gerenciamento dos ris-
cos a integridade, vislumbra estratégias de monitoramento contí-
nuo, etc. (BRASIL, 2018a). Este plano concebe toda essa estrutu-
ra lógica, que busca essa integridade institucional sob a égide dos
valores da Transparência, da Ética, Imparcialidade, da Excelência,
do Foco do cidadão e da Idoneidade e demais medidas as quais
aumentem o nível dessa integridade das instituições. Como obser-
vamos, já existem no âmbito da realidade concreta iniciativas as
quais entronizam juridicamente os novos valores éticos vigentes
na sociedade. Esse instrumental pode e deve ser absorvido numa
eventual codificação administrativa, com a finalidade de esclare-
cer as relações institucionais entre a face política do governo e a
face técnica da burocracia, assentando-as em bases sólidas. Mais
especificamente sobre o controle externo de gastos pela CGU,
controle interno e controle social, há também o PLP 295/2016,
que estabelece o Código de Controle Fiscal. Obedecidas as limita-
ções constitucionais, esse projeto também pode ser aproveitado
(BRASIL, 2016c).
As relações entre o Estado Administração e o ordenamento ju-
rídico, consoante afirmamos alhures, é a já aventada relação do
ente estatal com a lei. Compõe essa perspectiva o quadro atual
do direito administrativo, o qual encara a administração pública

87
Túlio Eugênio dos Santos

em sua posição estática. Fôssemos usar de uma analogia com a


medicina, poderíamos dizer que o direito administrativo atual
possui um estudo de anatomia do Estado em seu aspecto orgâ-
nico. Entretanto, não dispõe ainda de um estudo da fisiologia da
complexidade do Estado em suas relações, ou seja, uma análise
sobre o funcionamento sistêmico desse mesmo ente estatal. A
doutrina atual restringe-se à claustrofóbica concepção orgânica.
Essa abordagem estática já existe e precisa ser apenas acrescida
dessa pesquisa sobre o funcionamento dinâmico das instituições
e suas relações.
Evidente, sob o aspecto orgânico a doutrina encontra-se num
patamar relativamente avançado, posto que nesta relação do ente
estatal muitos dos seus componentes como servidores públicos
e serviços públicos já foram dissecados e normatizados. Apesar
disso, ainda sobram, mesmo sob essa perspectiva orgânica, alguns
pontos cuja reformulação faz-se assaz necessária. A adaptação de
tais pontos estáticos ao surgimento dessa nova concepção dinâmi-
ca pode vir a aperfeiçoar mesmo estas relações em si e auxiliar na
aparação das arestas jurídicas. A superação da clássica concepção
da burocracia weberiana pelo new public management, surge como
exemplo de problemas passíveis de resolução, a partir dessa nova
abordagem. Outros temas de interesse são também o novo papel
relativizado das cláusulas exorbitantes, a inclusão da eficiência na
base do sistema como um dos requisitos do ato administrativo, a
entronização de novos valores éticos sob a forma de princípios,
a regulação da discricionariedade sob critérios lúcidos, a siste-
matização racional da tumultuada legislação administrativa, a já
mencionada cobertura dos espaços vazios da normatização, dentre
outros. Tais evoluções podem repercutir de modo benéfico em ter-
mos, digamos, fisiológicos.
Vale especificar algumas breves linhas sobre o significado do
new public management, também conhecida como administração

88
A Codificação Administrativa

gerencial da coisa pública. Esta percepção deve ser assimilada pela


nova codificação. O new public management é a superação não
apenas da clássica burocracia weberiana mas também do velho
ranço do patrimonialismo arquetípico. Ela caracteriza-se por di-
versos fatores, dentre eles:

a) a maior discricionariedade para as autoridades ad-


ministrativas; b) a substituição do controle formal pelo
controle de resultados; c) autonomia administrativa, fi-
nanceira e orçamentária para entes descentralizados ou
em colaboração com o poder público; d) descentraliza-
ção do ponto de vista político, transferindo-se recursos
e atribuições para os níveis políticos regionais e locais; e)
descentralização administrativa, através da delegação de
autoridade aos administradores públicos, transformados
em gerentes cada vez mais autônomos; f) organizações
com poucos níveis hierárquicos, ao invés de piramidais; g)
pressuposto de confiança limitada e não de desconfiança
total; h) controle a posteriori, ao invés de controle rígido,
passo a passo, dos processos administrativos; i) adminis-
tração voltada para o atendimento ao cidadão, ao invés de
autorreferida (BRESSER PEREIRA, 2012)

Após a absorção normativa dessa nova concepção de gestão


pública a qual se entranha cada vez mais em nosso sistema e erige-
-se como uma nova forma de pensar o próprio Estado, convém
examinar a relação do Estado Administração com o Administra-
do. A intenção precípua de uma codificação a qual trate dessa re-
lação ecoa como óbvia: visa equilibrar essa relação, encontrar um
ponto ideal otimizado. Antever essa conexão sob o prisma de uma
duplicidade biunívoca afigura-se como imperativo fundamental.
Entabulam-se, por via de tal perspectiva, a reciprocidade de di-
reitos e deveres. Devem existir regras as quais incidam das mais
simples situações (solucionáveis por via de mera subsunção) até

89
Túlio Eugênio dos Santos

as situações mais complexas, cuja resolução faz -se por meio da


ponderação administrativa. Essa ponderação, administrativa ou
judicial, deve ser fundada na aplicação razoável dos mencionados
princípios. Mais que isso. O entrever de um código administrati-
vo munido dessa perspectiva de reciprocidade, permite inclusive
a concepção de um estatuto do administrado. Sim, um cabedal de
garantias mínimas instituídas em favor do administrado sem esbo-
roar a autoridade estatal e sem suprimir o princípio da supremacia
do poder público.
Uma formatação desta natureza soa plausível principalmente
tocamos no delicado assunto de preservação dessas garantias bá-
sicas. A estruturação de direitos fundamentais do administrado
contrapõem-se e funcionam de escudo contra abusos e desvios
de poder. Viabilizam a cristalização concomitante de vários di-
reitos cruciais como a obtenção de serviços públicos contínuos e
de qualidade. Permite até erguer-se em desfavor de omissões ad-
ministrativas ou legislativas. Tais fatores afiguram-se como pri-
mordiais à compreensão desse novo sistema. Acresçam-se a estes,
direitos outros como o direito de colaborar e cooperar com o ente
público e a garantia de dispor dos remédios constitucionais para
fazer valer tais direitos fundamentais. Esta colocação fornece uma
ideia inicial do quanto essa perspectiva ainda pode se desenvolver.
Catalogue-se ainda o direito de não ser subtraído dos seus bens ou
direitos sem o devido processo legal, o direito de não ser tratado
com desigualdade pelo ente estatal, de ter acesso a informações
que lhe digam respeito, de não ser vilipendiado em sua intimidade
por órgãos de vigilância ou informação estatais (salvo se existirem
motivos legais idôneos para isso), o direito de não ser tolhido em
sua liberdade e o direito de ter mantida a sua integridade psicoló-
gica face a atuação do ente estatal. Encerra este espectro, de igual
modo, o direito básico de ser governado por quem esteja no exercí-
cio legítimo do poder, o direito de participar ativamente da gestão

90
A Codificação Administrativa

pública segundo o já mencionado civismo inerente à democracia


participativa. Merece também destaque, por outro lado, o estudo
desse feixe de relações da Administração com o Administrado, a
análise dos deveres correlatos dos administrados. Como dizíamos,
a relação é biunívoca. E a cada direito corresponde, em igual in-
tensidade, um dever no sentido contrário. Deveres gerais como
obedecer às leis e a constituição, respeitar governos legitimamente
eleitos, o dever de contribuir direta e indiretamente para o custeio
da coisa pública, o dever de colaborar com o Estado quando soli-
citado e, por fim, o dever de tolerar a atuação estatal (quando esta
for efetivada de acordo com a lei e com a carta magna) são deveres
os quais também emanam desta conexão recíproca.
Vislumbramos, assim, uma relação dúplice, composta de dois
ramos, um de direitos e outro de deveres, os quais equilibram-se
sem se excluir. Projeto algum de código pode eximir-se de açam-
barcar tal perspectiva, sob pena de restar omisso em ponto cru-
cial da sistematização. E, por falar no estatuto do administrado, a
gama de direitos nele prevista seria interpretado à vista do princí-
pio da prioridade do administrado, quando o cidadão está a obter ou
exercer um direito que é seu. O princípio da supremacia do interesse
público incidiria, desta feita, como método de interpretação aplicá-
vel aos deveres do administrado, sempre a lembrar que o exercício
excessivo de determinada prerrogativa estatal pode reverberar em
abuso ou ilegalidade. Mas, voltando ao princípio da prioridade do
administrado, quando este estiver a obter ou exercer direitos, deve
este prevalecer. Observamos esse direito fundamental bem expli-
citado em Montaner, o qual argui:

[...] PÉREZ LUNO, ha destacado la fuerza expansiva de los


derechos y libertades que la consagra, que rompen el marco
puramente individualista del “principio in dubio pro liber-
tate” para pasar a la afirmación más plena del “principio

91
Túlio Eugênio dos Santos

favor libertatis” lo que implica reemplazar la interpretación


estática e defensiva de aquel principio por outra positiva y
dinâmica tendente a maximizar la fuerza expansiva y la efi-
cacia real de los derechos fundamentales [...]. (MONTA-
NER, 2003, p. 457).

Segundo o autor, Perez Luno destacou a força expansiva dos


direitos e liberdades que a consagram, que quebram o quadro
puramente individualista do in dubio pro libertatis para mover-se
a mais plena agitação do princípio favor libertatis o que implica
substituir a interpretação estática e defensiva daquele princípio
por um outro objetivo e dinâmico, que visa maximizar a força ex-
pansiva e a eficácia real dos direitos fundamentais.
Bem, do exame da posição doutrinária acima colocada apre-
endemos os rumos gerais e os desdobramentos deste movimento
de maximização expansiva das liberdades. Esse movimento é ain-
da mais incisivo quando confrontado com o princípio da supre-
macia do interesse público. Esta leitura, cada vez mais efetiva e
dinâmica, alavanca a melhoria do sistema de liberdades, direitos
e garantias. Aprimoram-nas, na justa medida em que não preju-
diquem a eficiência administrativa e sejam devidamente sopesada
com esta. Apenas a citar um exemplo prosaico, basta lembrar do
direito básico do cidadão ao serviço público, já previsto no artigo
22 da lei 8.078/90. O Código do Consumidor, estruturado de an-
temão sob essa perspectiva sistêmica, traz embutido essa norma
administrativa. E engata o prenúncio do que seria a incorporação
de tal direito no código administrativo. Uma eventual codificação
poderia acolher e desdobrar tal direito, sob essa perspectiva. Eis o
tipo de dispositivo o qual pode ser objeto de aproveitamento no re-
tromencionado estatuto do administrado. A codificação vindoura
traria, desta feita, a noção de serviço público eficiente, gratuito e
de qualidade. Mas, podemos ir além. Não bastaria, por assim dizer,

92
A Codificação Administrativa

o serviço possuir todos esses atributos. Precisa-se acolher, também


por via de norma, o propósito de expansão desses serviços. Estamos
a falar aqui do novo princípio da ampliação do acesso ao serviço
público. Ou seja, a prestação de serviços públicos deve inclinar-se
sempre a alcançar novos serviços os quais ainda não estejam in-
cluídos no rol dos serviços prestados (ampliação horizontal), bem
como deve tender sempre a imiscuir-se na sociedade e beneficiar es-
tratos mais carentes e ainda desassistidos (ampliação vertical). A
visão do serviço público como um modo de aumentar a inclusão
social e garantir o exercício da cidadania é abordagem que não
atende apenas o princípio da eficiência, elencado no parágrafo ante-
rior. É sim desdobramento do princípio do desenvolvimento humano,
na acepção da palavra. O aumento da eficiência não passa apenas
pelos cortes dos serviços não essenciais e no foco na melhoria dos
essenciais. Passa também pela otimização desses últimos, pelo in-
cremento de sua acessibilidade, efetividade, eficiência e qualidade.
O máximo de serviço essencial ao custo mínimo ainda é preferível
ao não serviço. Este talvez seja um dos exemplos mais ilustrativos
e didáticos de como a nova codificação deve ser estruturada, apli-
cada e interpretada. Quanto à normatização de como poderiam
figurar os deveres do administrado em tal estatuto, um bom pa-
râmetro é o artigo 78 do CTN. A redação desse dispositivo que
fundamenta o princípio da supremacia do poder público (poder de
polícia) serviria como uma inspiração, um ponto de partida. Aqui
outro exemplo de interdisciplinariedade, qual seja, uma outra nor-
ma de direito administrativo situada desta vez no seio do código
tributário. Esta, claro, também não pode ser desprezada.
Quanto às relações entre o Estado Administração e as Institui-
ções Privadas, Corporações e Instituições Públicas, encontramos
aqui o desafio o qual, por si só, já justificaria a aplicação da teoria de
firma ou do feixe das relações contratuais, sob o aspecto institucio-
nal. Como acentuamos alhures, a normatização das relações entre

93
Túlio Eugênio dos Santos

as instituições públicas clamam por um aperfeiçoamento urgente.


E, no que se refere às relações entre o ente estatal e as instituições
privadas a regulamentação simplesmente inexiste. Quando muito,
limita-se a determinados impedimentos superficiais ou ao desli-
gamento de cargos privados para ocupar posições estratégicas no
governo ou ainda à denominada quarentena, aplicável após o exer-
cício de tais cargos. A abordagem da questão é tangencial, isolada
e ocasional. Não há um enfrentamento estrutural de tais interli-
gações. Pouco ou nada atentam para fatores de influência de ou-
tras ordens ou naturezas as quais evitem a formação de estruturas
paralelas de poder. Tais elementos remanescem ainda invisíveis
aos olhos de muitos. O objetivo maior da regulamentação desses
espaços vazios é clarear tais relações, torná-las mais transparentes
e impedir a promiscuidade entre o público e privado.
Algumas soluções há tempos são objeto de estudos. E, dentre
esses estudos, pinçamos propostas como: 1) a adoção da procura-
ção para relações governamentais (lobby); 2) a desconstrução do
clientelismo em sua raiz arquetípica, com a institucionalização de
métodos inibidores de barganhas políticas relativamente a cargos
governamentais (ex: Impedimento de licenciamento de membros
do legislativo assumirem cargos no executivo); 3) o aumento do
alcance da responsabilização administrativa e criminal do corrup-
tor; 4) a adoção de políticas públicas de desestímulos a desvios
funcionais; 5) campanhas massivas de educação, etc. As mudan-
ças, consoante assinalamos, iniciam-se pela melhoria da prática
cotidiana e a edição de leis austeras e incremento de políticas pú-
blicas reforçam esse sentido. Longe de configurar o politicamente
correto, a boa ética indica uma postura de honestidade e clareza.
Esta nova conduta, semeada na lei e no hábito, acaba por enraizar-
-se na cultura. A abolição da conduta do toma lá da cá, tão típica
da troca de favores do arcaico clientelismo, começa a ceder na
mão de governantes recém-eleitos, os quais zelam pelos novos va-

94
A Codificação Administrativa

lores éticos e por critérios mais isentos. Essa prática representa a


materialização de valores éticos os quais começam a condensar-se
em nossa sociedade e surgem como resposta natural à relativização
moral vivenciada até aqui.
Outro instrumento útil à ruptura epistemológica, é a insti-
tucionalização do lobby. Já adotado em nações cujo grau civili-
zatório é mais avançado, a procuração para relações governamen-
tais é ferramenta inserida na base do sistema de relações. Atua,
tornando-o mais sólido e transparente. A transparência estatal,
como se sabe, é vital para a democracia e para a própria efici-
ência estatal. Pode parecer preciosismo ou excesso de escrúpulo,
mas até os efeitos semióticos da inserção de determinados termos
devem ser considerados. Expressões carregadas de valor negati-
vo como lobby, por exemplo, devem ser evitados. O significado
deturpado e pejorativo do termo, já entronizado no imaginário
coletivo como um signo, deve ser substituído pela expressão téc-
nica da procuração para relações governamentais. Não compensa
investir na desconstrução de uma nomenclatura já desgastada.
Afora esse detalhe, grosso modo, a procuração para relações go-
vernamentais seria o sucedâneo da procuração judicial perante
o Judiciário.A diferença básica residiria no fato de aplicar-se a
procuração à defesa de interesses junto aos poderes executivo
e legislativo. A premissa básica, como se sabe, seria a formação
jurídica para atuar como procurador de determinados grupos ou
interesses. A defesa dessa ferramenta faz parte da democracia e,
acaso não desvirtuada, pode revelar-se um enorme benefício a
este setor das relações institucionais. O conceito encontra-se há
anos em gestação, resta consignado em projeto de lei ainda pen-
dente de aprovação e, uma vez alcançado o patamar civilizatório
mínimo para a sua implantação, pode e deve ser instituído. Vale
a pena, neste sentido, transcrever um trecho da exposição de
motivos do PL 1202/07, abaixo colacionado:

95
Túlio Eugênio dos Santos

[...] No mérito, concordamos com a necessidade de regu-


lamentar a prática do “lobby”no âmbito do Poder Legis-
lativo e da Administração Pública dos Três Poderes da
União. As proposições em análise procuram tratara ativi-
dade de “lobby” como relações governamentais, em nome
de clientes identificáveis, dentro da lei e da ética, o que
poderá contribuir para a atuação mais transparente desses
grupos de pressão ou interesse e a fiscalização mais fácil
dessas atividades por parte do Poder Público. [...] Além
disso, de modo a esclarecer o intuito de regulamentação
da atividade de representação de interesse, norteando sua
prática segundo os valores do Estado de Direito brasileiro,
foram trazidos ao presente PL os princípios éticos e morais
que devem se submeter os representantes de interesse [...].
(BRASIL, 2007, on-line, grifo nosso).

Tanto a desconstrução do vicioso arquétipo do clientelismo


como a adoção da procuração para relações governamentais fun-
cionariam como início de preenchimento desses vazios normati-
vos existentes entre as relações institucionais. O albergamento de
medidas de apoio como os já mencionados aumento do alcance
da responsabilização administrativa e criminal do corruptor, a
adoção de políticas públicas de desestímulos a desvios funcionais,
campanhas massivas de educação, atuação reforçada das correge-
dorias e controladorias, integração entre os diversos sistemas de
inteligência e investigação e inovações jurídicas como a extensão
da delação premiada em processos administrativos ou até a des-
personalização de pessoas jurídicas de direito privado e público
envolvidas na macro delinquência funcionariam como instrumen-
tos de fixação dos princípios da probidade e combate à corrupção
nestas espécies de relações institucionais. Tais quesitos claro, não
podem ser relegados a segundo plano numa eventual codificação.

96
A Codificação Administrativa

Quanto às relações do Estado com o Domínio Econômico, estas


também devem ser objeto de normatização inserida no Código.
Não pode haver omissão neste sentido. Independente da adesão
à posturas teóricas intervencionistas keynesianas ou ao atrela-
mento às doutrinas econômicas mais liberais, defendemos uma
regulamentação mínima no condizente a esse assunto. Ainda
que para corroborar a independência técnica do Banco Central
num único dispositivo, deixar ao administrador a discriciona-
riedade da intervenção no domínio econômico ou simplesmente
para adequar-se aos padrões internacionais e estruturar o Estado
como garantidor do desenvolvimento humano, essa regulamen-
tação afigura-se imprescindível. Deve existir essa previsão nor-
mativa, ainda que mínima. Eventuais fomentos por via de auxí-
lios indiretos (renúncias fiscais, isenções, anistias, etc.), auxílios
diretos (desembolso efetivo de quantias pelo estado, subvenções,
antecipações, subsídios), dentre outros, devem ficar a cargo da
discricionariedade do gestor ou do legislador, conforme o caso.
Isso, óbvio, se não ofenderem princípios constitucionais. Outras
decisões, como, por exemplo, as referentes à estímulos do setor
produtivo, taxação de atividades econômicas efetuadas por ins-
tituições religiosas, instituição de imunidades tributárias sobre
todo o processo de edição de livros (com o fito de incrementar
a cultura) ou ainda a isenção de IRPF a professores, pesquisado-
res e autores, dentre outros, estas são decisões políticas as quais
também devem ser votadas pelo poder legislativo.
Apesar de não caber precipuamente ao legislador do Código
Administrativo interferir em tais assuntos específicos, posto se-
rem esses temas os quais supostamente escapam ao seu alcance,
existem exemplos, no âmbito tributário, que exemplificam esse
intervencionismo em situações específicas. Podemos citar, nesta
esteira argumentativa, o artigo 146-A da CF/88. Este dispositivo
prevê a possibilidade da União intervir, por via de Lei Comple-

97
Túlio Eugênio dos Santos

mentar, com o objetivo de prevenir desequilíbrios da concorrên-


cia. Enfatizamos que, de forma análoga, poderiam existir previ-
são na codificação administrativa destinada a prevenir eventuais
promiscuidades entre o público e o privado no âmbito das rela-
ções institucionais entre o ente estatal e o domínio econômico.
Tal serviria também para precaver-se contra ingerências indevi-
das de um subsistema no outro, proceder a uma regulamentação
mínima, etc. O esclarecimento dessas imbricadas relações são
necessárias. Mas convém também deixar espaços. Diversamente
das sobreditas lacunas omissivas, que são involuntárias e repre-
sentam um efetivo vazio normativo não querido pelo legislador,
aqui encontramos os espaços estratégicos os quais servem como
zonas de conformação e evolução da codificação. Canotilho
fala, em outros termos, em espaços de conformação normativa
(CANOTILHO, 1997). Estes espaços, propositadamente deixa-
dos em alguns títulos ou capítulos, podem ser gradativamente
preenchidos com leis as quais sejam fruto do consenso coletivo.
Qualquer descuido pode ser fatal neste flanco, ante ao iminente
risco de engessamento não apenas do sistema jurídico mas do
próprio sistema econômico o qual lhe é correlato.
A normatização das relações institucionais no plano interna-
cional guarda conexão direta com outro ramo jurídico, o direito
internacional. O realçar desse vínculo é benéfico, por refoçar o
senso de coesão do ordenamento jurídico como um todo. Con-
vém aqui partirmos de premissas já entabuladas, por exemplo, no
Novo Código de Processo Civil de 2015. Harmonização sistêmica
necessária. E a seguir a linha instituída pelo mencionado Código,
a interação entre instituições soberanas no plano internacional
dar-se-ia pelo conceber de duas perspectivas básicas das relações
internacionais. A primeira seria a integração administrativa entre
países pertencentes aos mesmos blocos políticos ou econômicos. A

98
A Codificação Administrativa

segunda diz respeito à cooperação administrativa entre países, no


plano internacional.
Quanto à integração administrativa internacional essa ocor-
reria, por exemplo, no sentido de fixar as diretrizes gerais para
a circulação de pessoas e mercadorias, densificar medidas ad-
ministrativas comuns entre burocracias, regulamentar questões
de imigração/emigração, deliberar sobre a criação de órgãos
administrativos comuns, etc. Tudo, evidentemente, com a pre-
servação da soberania nacional e a necessária economia de dis-
positivos normativos. A cooperação internacional demanda um
exame um pouco mais acurado. Esta pode dar-se pela previsão
de possibilidade de celebração de contratos de parcerias interna-
cionais ou consórcios administrativos com diversos países, além
do uso de outras figuras do gênero, materializados por acordos ou
tratados. Necessário ressaltar, porém, que para além desse foco
de direito material o novo código administrativo pode trazer em
seu bojo mecanismos de cooperação internacional na investiga-
ção de ilícitos administrativos os quais possuam caráter transna-
cional. Tanto essa cooperação quanto o auxílio direto em sede
administrativa funcionariam como reforço às investigações das
autoridades policiais e judiciais.
Admitimos, por fim, a análise das relações da administração
pública com o processo administrativo. Ora, se já visualizamos a
administração sob o prisma de sua estática orgânica, a enxergamos
aqui sob a sua dinâmica setorizada. Dizemos dinâmica setorizada
porque o exame do funcionamento da fisiologia da complexida-
de das relações estatais não resta açambarcada como um todo.
Trata-se apenas do movimento estatal em si, sem o exame apu-
rado de suas relações com as demais instituições ou subsistemas
da complexidade. Apesar disso, não há como deixar de encarar
o processo administrativo como o estado em movimento. Ainda
que desconsidere as relações em prol da entidade personificada,

99
Túlio Eugênio dos Santos

o processo administrativo não é mais do que isso, o ente esta-


tal a movimentar-se. O estado movimenta-se quando, por via de
um processo disciplinar, aplica a sanção a um servidor público ou
ainda nas hipóteses em que cobra do cidadão a parcela devida
para o seu custeio (por meio dos executivos fiscais). Seja por um
meio ou por outro, eis o ente estatal a movimentar-se. Seu di-
namismo revela-se inclusive quando admite a participação demo-
crática no seu processo decisório (audiências públicas, consultas
públicas, participação de conteúdo, etc.) ou ainda quando lança
mão de processos autônomos de desapropriação, tombamentos,
etc. (MARTINS, 2004).
Soa razoável. E para além da adequação sistêmica no ordena-
mento, um dos principais trunfos do novo código administrativo
seria a compatibilização entre a sua porção material e processual.
Essa harmonização integrativa reforçaria o sentido de coesão in-
terna da codificação. Contemplaríamos, numa única lei, a previ-
são de direitos e a sua respectiva realização. Isso, claro, com a pos-
sibilidade de otimização de tais interações. A coerência exógena
deve correlacionar-se e equalizar-se à integridade endógena. E a
realização de direitos deve ser ampla, profunda e eficiente. Vale a
pena antecipar uma das grandes preocupações de João Loureiro,
doutrinador o qual destaca ser o equilíbrio ótimo entre a efici-
ência e as garantias dos particulares um dos grandes desafios do
direito administrativo (LOUREIRO, 1995). E quando referimo-
-nos a particulares, aludimos ao sentido lato do termo, a abranger
não apenas o cidadão administrado mas também a relação do ente
estatal com as corporações, instituições privadas, etc. Tocaremos
nos conceitos específicos quanto à entronização da eficiência no
processo administrativo ao abordarmos a aplicação dos sub princí-
pios da celeridade, simplicidade, efetividade, economia processual,
finalidade predefinidia, etc. (CHICÓVSKI, 2004).

100
A Codificação Administrativa

A parte de encerramento desse código administrativo estru-


tural e conscientemente edificado sobre a perspectiva relacional
dar-se-ia com a redação dos dispositivos finais. Localizamos aí as
regulamentações de transição e aplicabilidade do código, além de
considerações derradeiras sobre a reflexividade da norma. De-
monstraremos, ao final dessa pesquisa, diga-se, um rascunho de
como poderia ser estruturada essa codificação administrativa.

3.3.2.5.3 Segunda razão de sustentabilidade da


codificação: codificação como instrumento democrático
de conhecimento da norma por parte do jurisdicionado
O autor John Gilissen, cita em sua obra o teórico inglês da codi-
ficação Jeremy Bentham. Este escreveu em 1817 que “The principle
of justice is that the law should be known by all; and for its being kno-
wn, codification is absolutelly essential.” (BENTHAM, 1846 apud
GILISSEN, 2016). A tradução deste verdadeiro postulado jurídico
realça o essencial. Ou seja, o princípio da justiça revela a neces-
sidade da lei ser conhecida por todos. E, para a lei ser conhecida,
a codificação é absolutamente imprescindível. A codificação sob
esta perspectiva significa uma ampliação do direito fundamental
do indivíduo não apenas ao conhecimento das leis aos quais está
submetido, mas também no recrudescimento do próprio acesso à
justiça em seu sentido mais amplo. Facilitação do acesso ao conhe-
cimento da lei. Não apenas acesso à justiça, mas ao conhecimento
da norma em si e do seu conteúdo. Não basta a submissão ao im-
pério da lei do artigo 5º, II, da Constituição da República de 1988
(BRASIL, 2013). Tampouco basta o conhecimento formal da lei.
Deve-se essa facilitação dar-se por via do aumento do acesso desse
conteúdo da lei e a sua devida compreensão. A ampliação do aces-
so ao conhecimento do conteúdo da norma, ao nosso entender,

101
Túlio Eugênio dos Santos

passa por uma codificação sistematizada e inteligível. Não basta


assim a mera organização ou agregação de normas. Carece sin-
tetizar o cabedal de leis vigentes, de maneira simples e ágil, com
inteligibilidade ao cidadão leigo. Sem o exagero ou prolixidade do
juridiquês, mas sem resvalar na banalidade tão usual hoje em dia.
Código com soluções concisas, simples e elegantes. Daí o benefício
crucial da reunião de uma miríade de normas esparsas numa co-
dificação ótima. Aprofundaremos o estudo desse assunto do modo
de redação da norma em um tópico específico, mais adiante.

3.3.2.5.4 Terceira razão de sustentabilidade


da codificação: codificação como corolário da
segurança jurídica
Além de representar um acréscimo em termos de acessibili-
dade democrática, a codificação erige-se como fator de embasa-
mento da própria legalidade e da segurança jurídica. Um código
permanente inibe a promulgação de leis casuísticas, evita manobras
oportunistas do legislador ou do administrador público, soma no que-
sito transparência e afasta os inconvenientes e inseguranças de uma
legislação fragmentária e contraditória. Atente-se que, conforme
dito, a codificação não é só conveniente mas necessária. Uma
unificação induz naturalmente ao aumento da segurança jurídica.
Ou, conforme a lição de Batbie (1862 apud AMORA, 1962, p.
439), o qual ensina em seu Droit Public et Administratif, depois de
vastas considerações, que serve “cette diversité arbitraire à demons-
trer combien serait désirable une codification qui introdusir ait un peu
d´unité dans la désordre de dispositions faites sucessivement.” A tra-
dução livre deste trecho poderia ser condensada a expressar que
serve esta diversidade arbitrária para mostrar quão desejável seria
uma codificação que introduzisse um pouco de unidade na ordem

102
A Codificação Administrativa

das disposições. Não apenas unidade, mas também um pouco de


sentido, de agregação e sistematização racional.
Ou ainda, consoante os ensinamentos de Meirelles (1997),
para quem a legislação desordenada não permite uma visão pano-
râmica ou estrutural do Direito a que pertencem:

As leis esparsas tornam-se de difícil conhecimento e


obtenção pelos interessados, sobre não permitirem uma
visão panorâmica do Direito a que pertencem. Só o códi-
go remove esses inconvenientes da legislação fragmentária.
Pela aproximação e coordenação dos textos que se interli-
gam para a formação do sistema jurídico adotado. Certo
é que o código representa o último estágio da condensação
do Direito, sendo precedido, geralmente, de coletâneas e
consolidações de leis pertinentes à matéria. Entre nós, os
estágios antecedentes da codificação administrativa já foram
atingidos e se nos afiguraram superados pela existência de
vários códigos parciais (Código de Contabilidade Pública,
Código de Águas, Código de Mineração, Código Florestal,
etc.). De par com esses códigos floresce uma infinidade
de leis, desgarradas de qualquer sistema, mas que bem
mereciam integrar o futuro e necessário Código Admi-
nistrativo Brasileiro, instituição que concorrerá para a
unificação de princípios jurídicos já utilizados na nos-
sa Administração Pública. Contemporaneamente, Jules
Lespès, depois de assinalar os progressos da codificação
administrativa na Europa e os notáveis estudos do Ins-
tituto Belga de Ciências Administrativas, conclui que a
codificação oferece, afinal, melhores possibilidades de
controle e aperfeiçoamento, e remata afirmando que as
vantagens se fazem sentir ainda em outros domínios: no
da jurisprudência dos tribunais, no das jurisdições admi-
nistrativas, no da doutrina e no ensino do Direito [...].
(MEIRELLES, 1997, p. 48, grifo nosso).

103
Túlio Eugênio dos Santos

Esta lição, veja-se, afina-se com a posição de Temístocles Bran-


dão Cavalcante (AMORA, 1962). A codificação administrativa
por todo o exposto e pela densificação e organização que propor-
cionará, insere-se, portanto, na catequese acadêmica do reforço do
princípio da segurança jurídica.

3.4 Os alicerces principiológicos. A


entronização dos novos valores éticos como
base filosófica da codificação administrativa

3.4.1 O princípio do desenvolvimento humano


Observamos logo ao início desta pesquisa a necessidade de
assimilação dos novos valores éticos incipientes na sociedade,
por via da densificação jurídica. É bem verdade que muitos des-
ses princípios já encontram-se aleatoriamente distribuídos em
nosso sistema jurídico, em legislações esparsas. Uma codificação
administrativa a qual pretende-se séria, deve, necessariamente,
assimilá-las de modo ordenado. Cogitamos um Código Adminis-
trativo edificado sobre o tripé do princípio do desenvolvimento
humano, princípio da eficiência e princípio da moralidade ad-
ministrativa e combate à corrupção. Outros princípios adminis-
trativos de suporte também atuarão, mas poderíamos dissertar
serem esses valores éticos os norteadores do sistema. Sobre tais
valores estruturar-se-á o código.
O primeiro valor ético nominado é o princípio do desenvolvi-
mento humano. Este princípio, em verdade, é um princípio estru-
turante. Relevante assinalar tratar-se de um princípio jurídico o
qual não se confunde com o desenvolvimento empírico. O direito
ao desenvolvimento, consoante já comentamos (e criticamos), res-
ta insculpido no artigo 3º, I, da CF/88. Postulamos a revisão do

104
A Codificação Administrativa

seu conceito semântico para encaixar-se na definição do desen-


volvimento humano concebido por Amartya Sen (SEN, 2010), o
qual foi institucionalizado na Resolução nº 41/18 da ONU. Indis-
pensável lembrar que essa nova concepção transcende o progresso
quantitativo e dirige-se ao desenvolvimento qualitativo e efetivo.
Veremos adiante, que a percepção da pessoa humana como
epicentro do desenvolvimento encaixa-se com precisão no novo
modelo de Estado. O new public managment (administração ge-
rencial) coincide com essa abordagem humanística e situa o indi-
víduo não apenas como sujeito central do desenvolvimento mas
também como a própria razão de ser do Estado (BRESSER PE-
REIRA, 2007). O Estado deixa de existir para si e passa a existir
para o ser humano. O cidadão transforma-se, como haveria de
ser, em destinatário final de suas ações. Claro que tais convergên-
cias não são casuais ou desarrazoadas. Elas advém de um processo
histórico mais amplo, o qual inclui o movimento de constitucio-
nalização da ciência jurídica. Há algumas décadas o direito civil
deixou de ser o centro dos ordenamentos e restou substituído pelo
Direito Constitucional. Sem pretender lançar mão de profecias
jurídicas ou exercícios de futurologia, elucubramos não tardar a
chegar o dia em que o próprio direito constitucional cederá espaço
aos direitos humanos como cerne de todos os sistemas jurídicos.
Não apenas o Estado será organizado de acordo com essa nova
concepção, mas todos os ordenamentos jurídicos serão estrutura-
dos de acordo com esse valor ético fundamental.
O desenvolvimento humano, assim, está, semanticamente fa-
lando, passos à frente dos desenvolvimentos nacional e social aga-
salhados em nossa carta magna. Poderíamos adicionar e afirmar
ser a dignidade humana um dos seus componentes, com o qual não
se confunde. Apenas a título de ilustração, fácil notar assentar-se
a dignidade humana sobre um piso de direitos enquanto o desen-
volvimento humano tende a um máximo em termos de emanci-

105
Túlio Eugênio dos Santos

pação individual. Isso somente para começar. Podemos enxergar


com mais clareza esse princípio estruturante ao transcrevermos os
artigos 1º a 3º da Resolução 41/128 da ONU, de 04/12/1986:

Artigo 1º § 1º - o direito ao desenvolvimento é um direito


humano inalienável, em virtude do qual toda a pessoa e
todos os povos estão habilitados a participar do desenvol-
vimento econômico, social, cultural e político, para a ele
contribuir e dele desfrutar, no qual todos os direitos hu-
manos e liberdades fundamentais possam ser plenamente
realizados. § 2º – O direito humano ao desenvolvimento
também implica a plena realização do direito dos povos à
autodeterminação que inclui, sujeito às disposições rele-
vantes de ambos os Pactos Internacionais sobre Direitos
Humanos, o exercício de seu direito inalienável à sobe-
rania plena sobre todas as riquezas e recursos naturais.
Artigo 2º § 1º – A pessoa humana é o sujeito central do
desenvolvimento e deveria ser participante ativo e benefi-
ciado do direito ao desenvolvimento.§ 2º – Todos os seres
humanos tem responsabilidade pelo desenvolvimento, in-
dividual e coletivamente, levando-se em conta a necessi-
dade de pleno respeito aos seus direitos humanos e liber-
dades fundamentais, bem como seus deveres para com a
comunidade, que sozinhos podem assegurar a realização
livre e completa do ser humano e deveriam por isso pro-
mover e proteger uma ordem política, social e econômica
apropriada para o desenvolvimento. § 3º- Os Estados têm
o direito e o dever de formular políticas nacionais ade-
quadas para o desenvolvimento, que visem ao constante
aprimoramento do bem estar de toda a população e de
todos os indivíduos, com base em sua participação ativa,
livre e significativa, e no desenvolvimento e na distribui-
ção equitativa dos benefícios resultantes. Artigo 3º § 1º
– Os Estados têm responsabilidade primária pela criação
de condições nacionais e internacionais favoráveis à re-

106
A Codificação Administrativa

alização do direito ao desenvolvimento. […]. (UNITED


NATIONS, 1986, on-line, grifo nosso, tradução nossa).

Cabe agora analisar cada um dos aspectos ligados diretamente


à questão da administração pública. O conteúdo do artigo 2º, § 1º,
da Resolução 41/128 da ONU (UNITED NATIONS, 1986) situa
a pessoa humana como sujeito central do desenvolvimento, partici-
pante ativo e beneficiado deste mesmo direito ao desenvolvimento.
Identificamos aqui um novo eixo estruturante do desenvolvimen-
to e até dos ordenamentos jurídicos. O artigo 3º,§1º, da Resolução
41/128 da ONU corrobora essa prioridade absoluta. Estipula terem
os Estados responsabilidade primária pela criação de condições
nacionais e internacionais favoráveis à realização do direito ao de-
senvolvimento. Observamos neste ponto a conexão direta com as
novas responsabilidades da administração pública. Encontramos até
a fixação de um dever estatal, o qual não pode ser violado.
O direito ao desenvolvimento humano surge então como um
direito universal, advindo de uma nova concepção ética a qual
se desdobra às raias jurídicas consolidando-se como um princí-
pio estruturante. Princípio este que funcionará como diretriz geral
de aplicação e interpretação do sistema. O direito ao desenvolvi-
mento humano, aliás, deve ser incorporado de um modo amplo a
todos os ramos jurídicos, imiscuindo-se nos sistemas e determi-
nando até políticas públicas ou inserindo-se na própria finalidade
estatal. Entranha-se, condensa-se, solidifica e molda uma nova
forma de pensar o direito. A codificação administrativa, por certo,
não escapará aos efeitos dessa ruptura epistemológica. Vale, neste
sentido, assinalar a expansão desse próprio direito, consoante o
dispositivo do artigo 3º, da Constituição Italiana. Este artigo, um
rasgo atemporal ante a sua força inovadora, vislumbra não o direi-
to ao desenvolvimento, mas o direito fundamental à participação
no desenvolvimento (ITALIA, 2012).

107
Túlio Eugênio dos Santos

3.4.2 Introdução ao princípio da produtividade


(eficiência) como um dos alicerces da estrutura
da codificação administrativa
Abordamos no tópico anterior a adoção do princípio do de-
senvolvimento humano como novo paradigma estruturante de
todo o sistema administrativo nacional. O princípio da produti-
vidade é outro destaque desse tripé principiológico sobre o qual
se alicerça o novo código administrativo. Especificamos que,
para evitar diatribes terminológicas, para efeitos de melhor
compreensão, consideramos o princípio da produtividade como
o da eficiência, visto que já assimilado na doutrina nacional
dessa maneira. Apesar desse pormenor, calha realçar que, con-
soante a melhor doutrina, a eficiência, em verdade, é parte in-
tegrante do conceito maior de produtividade. Tentamos tradu-
zir nestas breves linhas a essência das ideias de Loureiro (1995),
douto o qual ensina ser a produtividade a soma da eficiência
com a eficácia. Tanto a eficiência como a eficácia decompõem-
-se e visualizamos a partir daí a equação concernente ao tema.
Antes de prosseguir é bom explicitar que tais conceitos foram
importados da ciência econômica e aproveitados pelo direito.
Tecnicamente falando, a eficiência é a razão existente entre o
resultado e o que se consumiu. A eficácia, por sua vez, é a divi-
são dos resultados obtidos pelos objetivos delineados. Assim, se
a eficiência debruça-se sobre o custo para atingir determinado
resultado com um máximo de perfomance obtida a um custo
mínimo, a eficácia centra-se na avaliação da disparidade exis-
tente entre o resultado obtido e o resultado almejado. A soma
desses dois coeficientes dará ensejo à produtividade. Cuida-se,
conforme notamos, de um cálculo econômico metamorfoseado
numa fórmula jurídico administrativa (LOUREIRO, 1995).

108
A Codificação Administrativa

Relevante assinalar ser o princípio da produtividade aplicá-


vel tanto ao direito administrativo material quanto ao processu-
al. Loureiro ora refere-se à produtividade, ora trata a eficiência
como conceito genérico. Reiteramos, independente de rótulos ou
nomenclaturas, o importante é anotar a sua perspicaz observação
quanto ao eterno dilema existente entre a eficiência e a garan-
tia dos particulares. Ou melhor, como ser eficiente sem podar ou
tolher direitos garantidos. O autor alude até à visão econômica
de Hayek, o qual enxerga no Direito um meio encontrado pelo
Estado para imprimir eficiência ao processo burocrático. Apesar
de tais arranjos e teorias, subsiste essa tensão fidagal. Remanesce
então a necessidade de encontrar o ponto de otimização o qual
visa o menor sacrifício das garantias dos particulares frente à im-
plantação do máximo de economicidade, simplicidade, celeridade,
efetividade e eficiência no esforço de conseguir atingir os fins al-
mejados, nos moldes visados.
Muito se indaga então sobre qual seria o limite razoável onde
a economicidade ou a simplicidade ou outro atributo qualquer li-
gado à eficiência, quando esta começa a ofender as garantias do
administrado. Embora tenha identificado esse problema, Loureiro
não o solucionou. Vale a pena transcrever as oportunas linhas do
seu raciocínio:

Num tempo em que a lei pretende ser um instrumento


de pilotagem do sistema, em que se multiplica o “direito
como meio” ou o (ab)uso táxico do direito (Hayek,in:
Sobre a distinção entre cosmos e taxis) apesar dos movi-
mentos de sinal contrário, exemplarmente representados
em propostas de informalização, o desenho normativo
dos procedimentos específicos ou as exigências decor-
rentes de uma eventual lei geral do procedimento reves-
tem-se de uma especial importância. Sabendo-se o ca-
rácter plurifuncional e heterotélico da maioria dos pro-

109
Túlio Eugênio dos Santos

cedimentos, que a doutrina alemã condensa na forma


do “polígono mágico’, não será despiciendo o paradigma
procedimental pensado pelo legislador para a redução do
conflito de fins. Se quisermos sintetizar numa fórmula
esta tensão exigindo ponderação normativa, falaríamos,
de um modo algo simplificado, em pretensões de eficiên-
cia e exigências de garantia. Autores há que continuam
a pensar nos moldes do Estado de Direito dos princípio
do século e a sacrificarem a eficiência a este ultrapassado
tipo; outros, ao contrário, mais sensíveis às exigências
do Estado com responsabilidades sociais e às necessida-
des de uma administração eficiente, reagem a algumas
sobrecargas, reais ou hipotéticas, do sistema, lançando
mão de um procedimento que corresponda às exigências
da administração. Estamos perante dois tipos ideais que
o bom senso afasta: a impossibilidade de maximização
de um fim sem afectar os outros conduz a um esforço de
concordância prática no quadro constitucional. A difi-
culdade, no plano normativo, reside em encontrar um
ponto óptimo de “formalização” procedimental. Esta,
tanto pode provocar perturbações e custos desnecessá-
rios ao decision-making process como aparecer como ele-
mento essencial de simplificação, ao permitir o estabele-
cimento de rotinas decisórias. Movemo-nos num campo
em que se desenvolve uma vasta teia de compromissos: o
alargamento de um direito à informação e das exigências
de publicidade, pode colidir com esferas de privacidade,
p. ex., com o direito à autodeterminação informacional
(Rechs nauf “informationelleSelbstbestimntung). A procura
de uma optimização da normação abre portas para uma
teoria da legislação e apara políticas públicas de regula-
ção. Não curando agora das exigências neste domínio,
queremos apenas lembrar que o princípio da clareza cor-
responde a uma exigência da economia.”(LOUREIRO,
1995, p. 134-135, grifo nosso).

110
A Codificação Administrativa

Interessante perceber como, para além da questão da efi-


ciência, Loureiro ainda versou em seus textos, de maneira a
antecipar um dos pontos cruciais do direito constitucional atu-
al. O tema abrange a ponderação normativa na qual avalia-se o
equilíbrio entre a atuação estatal eficiente e a intervenção estatal
no domínio da esfera do ser humano e tenta-se buscar um ponto
ótimo de equalização o qual possa ser inserido na própria norma.
Mas, ainda a tratar do princípio da eficiência nos procedimen-
tos administrativos, convém esclarecer existirem várias con-
sequências advindas da aplicação de tais preceitos. Há muitas
propostas aptas a implementar tais princípios nos meandros do
processo e até de fazer valer a informalidade, hoje tão associada
à economia processual e è eficiência. Quanto às propostas mais
recorrentes em termos de eficiência procedimental, consoante
o referido autor, centram-se nos seguintes aspectos: 1- limita-
ção dos direitos de vista e de audição; 2- simplificações proce-
dimentais nas objeções de massas (representante e notificação
públicas); 3-simplificações de atos da administração de massas
(inexistência do direito de vista e renúncia ao dever de fun-
damentação); 4- concentração do controle (admissão de ação
judicial apenas depois de esgotados os meios administrativos,
já adotado por nós por via da prejudicialidade); 5- a preclusão.
Essa posição do autor português, como pudemos observar,
é muito rica, repleta de considerações e variáveis as quais de-
vem ser objeto de atenção. Realçamos, dentre os doutrinadores
brasileiros, ser a posição doutrinária de Egon Bockman Mo-
reira, uma das que melhor esmiuçou como a eficiência deve-
ria ser compreendida no âmbito jurídico. Delineia todos os sub
princípios correlatos à eficiência. As lições abaixo assinaladas,
extraídas do texto de Chicóvski (2004), devem ser absorvidas
em caráter complementar a todo o exposto até aqui. Ou, con-
soante o texto em si:

111
Túlio Eugênio dos Santos

[…] No Brasil, Egon Bockman Moreira foi um dos juristas


que melhor traçou como a eficiência deve ser compreen-
dida para ampliar e não para destruir as garantias advin-
das da relação processual administrativa, ao defender que
“a eficiência garante o desenvolvimento de um processo
célere, simples, com finalidade predefinida, econômico e
efetivo”. Para ele, esses são atributos de eficiência no pro-
cesso administrativo, os quais, resumidamente, passamos
a descrever. 1.A celeridade “impõe que os atos processuais
sejam praticados no mais curto espaço de tempo possível,
de forma contínua e coordenada”. Ou seja, o processo ad-
ministrativo não deve sofrer paralisações desnecessárias
ou então, seguir em ritmo lento. Os cidadãos inseridos na
relação processual “devem cumprir os prazos preestabe-
lecidos e praticar os atos necessários ao bom andamento
do feito” A administração pública não pode omitir-se ou
aguardar reiterados pleitos das partes interessadas para a
prática de atos da sua competência. 2.A simplicidade é a
característica do processo que não se reveste de “formali-
dades extravagantes ou desnecessárias ao atingimento da
finalidade por si visada”. Tal atributo será mais bem deli-
neado no tópico seguinte, momento em que se discutirá a
informalização do procedimento administrativo. Por ora,
seguindo entendimento de MOREIRA, impende afirmar
que o processo “há de ser descomplicado, compreensível
à população, que não deve ser constrangida a recorrer a
conhecimentos científicos – quer para responder a reque-
rimentos da administração, quer para deduzir seus pleitos
frente a ela [...].” 3.Por finalidade predifinida entende-se o
dever administrativo de não gerar processos aleatórios,
sem definição de um escopo claro. O autor adverte que “
não é possível a instalação de uma relação jurídico proces-
sual com objetivos abstratos ou genéricos […]. As partes
no processo devem ter, com absoluta clareza, ciência do
fim a que se destina a relação processual [...]”. Bem as-

112
A Codificação Administrativa

sim, a finalidade predefinida “limita o provimento final”


porque não será possível o ato decisório que extrapole ou
subestime os limites prefixados.” 4. A economia processual
“ diz respeito ao mais alto grau de concentração e prestí-
gio aos atos já praticados”, de tal sorte que o processo siga
o seu curso racionalmente, sem repetição desnecessária
de atos ou fases, o que, em última análise, contribui para
a sua celeridade. Some-se a isso a lição de GABBARDO,
ao precisar que “ao lado do dever de anulação de um ato
ineficiente está a obrigatoriedade de convalidação, quan-
do presentes os pressupostos para tanto.” 5. A efetivida-
de, finalmente, diz respeito à correta realização dos fins
processuais envolvendo “a necessidade de o ordenamento
dispor dos instrumentos necessários à tutela de direitos e
à possibilidade de sua utilização prática”. Em acréscimo,
efetividade, para MOREIRA, relaciona-se à possibilida-
de de ampla atividade probante, desde que para fins não
procrastinatórios ou despiciendos. “ Por fim, o resultado
do processo deve ser atingido com um mínimo de estipên-
dio de energia, pra assegurar o gozo e o exercício plenos à
unidade a qual faz jus a parte vitoriosa.” Em concordância
com a definição aqui adotada, é relevante afirmar que as
características acima valem não só para o processo, mas
para o procedimento administrativo (qualificado, então,
pelo contraditório), tornam-se de grande importância al-
guns meios de colaboração no sentido de incrementação
da eficiência, tais como: a garantia do direito à informa-
ção, a facilitação de vista dos autos […], o fornecimento
de fotocópias autenticadas, a publicidade efetiva e não
meramente formal [...]”, dentre outros. De exposto, con-
clui-se que no plano procedimental – processual o prin-
cípio da eficiência também deve guiar-se pelos mesmos
critérios constitucionais, inspirados no Estado Social e
Democrático de Direito, para que tenha validade jurídica.
Sobretudo quando se tratar de espécie de processo admi-

113
Túlio Eugênio dos Santos

nistrativo, ante a relação de fim incerto dos participantes,


os atributos de eficiência devem ser no sentido de fortale-
cer a garantia do cidadão e reforçar o dever de que o Es-
tado cumpra a sua função administrativa (CHICÓVSKI,
2004, p. 108-109, grifo nosso).

Consoante observamos, apesar das diversas estratégias de


simplicidade, celeridade, economicidade e tantas outras referidas
pelos mais diversos autores retomamos a tentativa da solução nor-
mativa da equação eficiência versus a garantia dos particulares,
proposta por Loureiro, atentamos que a solução a este imbróglio
pode estar mais evidente do que parece. Reconhecemos a frontei-
ra limitadora da aplicação da eficiência quando a ânsia exagerada
em podar custos ou simplificar procedimentos começa a causar
insegurança jurídica. A produção de insegurança jurídica é, pois,
o fiel da balança apto a medir os limites normativos da aplicação
da eficiência. Um procedimento demasiadamente simplificado ao
ponto de ser quase um não procedimento causa insegurança jurí-
dica. Um processo um pouco mais complexo resolvido às pressas,
a levar em conta o exclusivo critério da celeridade para a sua re-
solução, carrega chances maiores de ser mal resolvido. O custo do
erro, da informalidade excessiva, etc., pode ser ainda pior o que da
eficiência pretendida. Aliás, atualmente muito tem defendido-se
a eficiência quantitativa em detrimento da eficiência qualitativa,
esta última relegada a segundo plano. A eficiência, ao nosso com-
preender, engloba ambas as perspectivas niveladas, equalizadas.
Afirmamos, por fim, que, ao nosso compreender, o critério nor-
mativo exposto pode ser considerado como o ponto de otimização
adequado ao problema proposto.

114
A Codificação Administrativa

3.4.3 O terceiro alicerce principiológico da


codificação administrativa: a moralidade
administrativa e o combate à corrupção
A terceira base de sustentação do tripé principiológico da co-
dificação administrativa é a moralidade. Soa lógico a subsistência
do princípio da legalidade também como um dos sustentáculos do
sistema. Entretanto, o princípio da moralidade, ante a sua maior
penetrabilidade constitucional exsurge como outro dos possíveis
sustentáculos do sistema administrativo constitucional e da pró-
pria codificação. Mais versátil e de adequação facilitada, com a
devida estruturação, tal princípio serviria de escoro à própria le-
galidade, em espaços onde a lei não consiga alcançar. Vale ano-
tar que o legislador mescla os próprios conceitos, não discernindo
muito bem termos como moralidade administrativa e probidade
administrativa, tomando-o, por muitas vezes como equivalentes.
Eis um dos traços os quais merecem também ser corrigidos em
caso de eventual codificação. Mas ao invés de debruçarmo-nos
sobre ambiguidades terminológicas, convém antes estudar o tó-
pico em si. Embora a haja a contemplação no artigo 37, caput,
da CF/88, do princípio da moralidade em nosso ordenamento, na
prática, o que observamos nas ações civis públicas é a aplicação
do princípio da probidade (CF/88). Isto porque a norma que, na
prática corriqueira, acabou por regulamentar o princípio da mo-
ralidade administrativa foi a Lei nº 8.429/92, a qual versa sobre
improbidade administrativa (BRASIL, 1992).
Embora subsistam controvérsias acerca do fato da edição da
lei de improbidade administrativa ter efetuado uma descrimina-
lização informal dos atos praticados contra o poder público, so-
bressai hoje o resgate do senso criminal de proteção ao bem jurí-
dico atingido (vide as várias operações deflagradas em desfavor da

115
Túlio Eugênio dos Santos

corrupção sistêmica). Apesar desse detalhe, a intenção inicial da


implantação da moralidade foi e continua a ser um grande avanço.
Se bem efetivada e acaso não menosprezadas as demais responsa-
bilidades dos agentes, evidente. A improbidade administrativa é
conceituada pela própria lei como sendo toda a conduta de servi-
dor público a qual implique em enriquecimento ilícito, em prejuízo
ao erário ou violação de princípios administrativos.
Causa-nos estranheza, no entanto, apesar dessa evolução le-
gislativa o fato de definição de probidade ou moralidade ser uma
conceituação negativa. Ou seja, obtemos a definição de probidade
pelo que ela não é e não pelo que efetivamente é. A probidade,
segundo nosso ordenamento revela-se como todo ato que não cau-
se enriquecimento ilícito de agente ou particulares, não provoque
prejuízo ao erário ou não viole os princípios de direito adminis-
trativo. Soa paradoxal uma definição negativa de um instituto
contido na carta magna. Talvez tenha sido essa a melhor técnica
legislativa encontrada pelo legislador, na ausência de outra mais
adequada à época. Salta aos olhos a necessidade de afastamento
desses conceitos de exclusão, em prol da formulação de um con-
ceito sólido, transparente e positivo. A doutrina administrativista
italiana e espanhola há algum tempo conceberam uma espécie
própria de princípio da moralidade ou probidade. A versão euro-
peia é denominada como princípio da boa administração.
Esse exemplo talvez pudesse servir de inspiração para o legisla-
dor nacional. Essa clareza é ainda mais necessária quando se visa
semear o princípio como uma saudável cultura funcional, sinteti-
zadora de uma nova ética. Embora eficaz num primeiro momento
e até útil num período de transição, a aplicação de um princípio
dessa natureza sob o viés punitivista e opressor não reflete a pos-
tura edificadora que um novo código deve possuir. Claro, a norma
deve guardar em si a previsão de condutas violadoras, bem como
possuir alguma coercibilidade. Todavia, se o legislador realmente

116
A Codificação Administrativa

pretende incutir todo um arcabouço de novos valores éticos, para


além dessa perspectiva de responsabilidade, deve haver a sobredi-
ta configuração positiva. Esta auxiliará a densificação dos valores
pretendidos e permitirá a adição de estímulos institucionais no
âmbito normativo da lei.
Um princípio da boa administração de origem brasileira tal-
vez pudesse incluir no seu bojo condutas como a do servidor
público comportar-se de acordo com a lei, com a moralidade e
com os princípios administrativos, de respeitar limites fiscais e
orçamentários, de não enriquecer ilicitamente nem causar pre-
juízos à administração, de focar a sua atuação de acordo com
os princípios estruturantes do desenvolvimento humano, probi-
dade e eficiência, além de garantir o zelo pelo interesse públi-
co e coletivo e assegurar o combate à corrupção. O combate
à corrupção, aliás, é um dos braços repressivos do princípio da
boa administração. Confiamos, como estipulamos desde o iní-
cio desse trabalho, na educação como instrumento de inclusão
ética. Não poderíamos, claro, faltar a uma análise perfunctória
da corrupção. Esta já foi objeto de estudo em tópico anterior,
mas convém delinear alguns aspectos ainda não abordados, os
quais são também relevantes. Evidente, a resposta retributiva e
de reinserção do infrator afigura-se necessária, mas não exclui a
necessária educação preventiva, feita, inclusive, por meio da po-
sitivação. Já minudenciamos aqui as causas históricas, culturais
e até arquetípicas da corrupção. Falamos também das redes de
propinodutos as quais estendem seus tentáculos a formar uma
malha internacional. Versamos também sobre a transcendência
individual de tais condutas, falamos dos crimes cometidos em
bloco, do enraizamento da corrupção sistêmica como uma pato-
logia social e da tendência desta à desagregação por via do sola-
pamento. Relatamos inclusive o zerar do princípio da confiança
e a completa inversão de valores.

117
Túlio Eugênio dos Santos

Face à complexidade do fenômeno e da multiplicidade de


efeitos, surgem muitas medidas e ideias as quais podem ser
aproveitadas no combate a tais desvios. À guisa de informação
subsiste a necessidade de estudos sobre a viabilidade constitu-
cional de quebra de sigilos bancário, fiscal, telemático e telefô-
nico em processos administrativos de gravidade exacerbada. O
reforço das medidas previstas na Lei 8.429/92 (BRASIL, 1992),
com a previsão de confisco dos bens adquiridos com a corrupção
(para além do sistemas de ressarcimento e multas já previstos
na respectiva lei). Isso, claro, além de possuir um efeito simbóli-
co poderoso em termos normativos. Se pesquisarmos um pouco,
encontraremos uma lei específica, bastante utilizada em casos
tais. Ela prevê o perdimento de bens em caso de enriquecimento
ilícito. É a Lei nº 3.502/58 (BRASIL, 1958). O dispositivo legal
bem merecia o status constitucional, para figurar ali, ao lado do
confisco da terras utilizadas para cultivo de psicotrópicos (artigo
243, da CF/88). Mas vamos além. Não bastaria somente o con-
fisco de bens adquiridos com a corrupção e delitos correlatos. E
a exemplo da PEC nº 81/2014 a qual prevê uma justa destinação
dos bens confiscados, poderia o legislador fiar-se neste exemplo
para destinar o montantes referentes aos bens confiscados para a
construção de escolas modelos. Embora possa parecer num pri-
meiro momento demagógica, uma estipulação normativa dessa
natureza vale muito mais pelo seu teor simbólico do que pro-
priamente pela sua amplitude prática. Resta evidente que um
dispositivo deste jaez não solucionará o problema da educação
no país mas, como defendemos até aqui, a inclusão de um dis-
positivo deste naipe exporá uma escolha. Deixará clara a opção
do legislador de eleger a educação como prioridade nacional, em
detrimento da corrupção inerente aos países menos civilizados.
Aliás, a corrupção só se alastra com força em países onde reinam
a miséria e a falta de educação. Soaria incontestável o valor éti-

118
A Codificação Administrativa

co presente em um dispositivo o qual simboliza a reconstrução


arquetípica visada.
Além das várias normatizações, práticas ou simbólicas, um ca-
bedal de outras medidas acessórias põem-se à disposição do gestor
e do legislador para combater a corrupção. As principais medidas
estão hoje condensadas no Decreto nº 5687, o qual absorveu em
nosso ordenamento a Convenção da ONU contra a Corrupção. É
possível identificar nesta desde medidas preventivas até penaliza-
ções, proteção a denunciantes, cooperação internacional, recupe-
ração de ativos, intercâmbio de informações, etc. Como observa-
mos, o rol de proposições estruturais é variado. Acrescentamos a
este extenso rol a necessidade de inclusão de políticas públicas de
desestímulo à corrupção, campanhas massivas de esclarecimen-
to e de educação ética, implementação de mecanismos de regu-
lação responsiva em processos administrativos, recrudescimento
do punitivismo com relação à infrações mais gravosas, seleção de
sanções alternativas às condutas mais leves, transferência às sin-
dicâncias e procedimentos administrativos disciplinares de instru-
mentos já consagrados em processos judiciais tais como delação
premiada, colaboração, infiltração, etc. Tudo com vistas ao desba-
ratamento e desarticulação de organizações criminosas atuantes
dentro do serviço público. A adaptação de vários desses institutos
à seara administrativa seria uma alternativa para elastecer ain-
da mais o alcance de tais institutos, aprimorando-os. Isso, além
de servir de apoio investigativo e operacional na esfera policial
ou judicial. Reiteramos, ademais, que qualquer avanço no sentido
de tentar otimizar a atuação da administração pública e repelir a
patologia da corrupção deve ser precedida, antes de mais nada,
dos devidos estudos de viabilidade constitucional. Foge ao âmbito
desta breve pesquisa, no mais, aprofundar ou enveredar por tais
questionamentos. Entretanto, convém deixar a mente aberta para
os estudiosos que desejarem explorar tais fronteiras normativas.

119
4 Considerações sobre a
Estrutura e Linguagem da
Codificação Administrativa

4.1 Breve apanhado geral sobre o tema


Superadas as questões concernentes ao estudo dos obstá-
culos à codificação e dos motivos os quais constituem a razão
mesma de ser da sistematização, prosseguimos rumo a análises
mais rebuscadas acerca do assunto. Verificaremos neste capítu-
lo quão importantes são os elementos estruturais e linguísticos
na confecção de um código. Observaremos também como o
cuidado dispensado a tais fatores incrementa a coesão inter-
na da codificação, repercute com maior integração do sistema
jurídico. Além, claro, de fazer do código administrativo uma
norma concretamente mais efetiva.
Produzimos um sumário com as principais considerações efe-
tuadas acerca desse binômio estrutura e linguagem. Quanto à
estrutura, elaboramos um pequeno modelo de aproveitamento
racional. Fazemos votos de que a concepção brote como ideia
norteadora. E, no plano da linguagem também dedicamos es-
pecial atenção a temas de relevo. Expomos, a seguir, a síntese
geral dos estudos que estão por vir, tanto sob o prisma estru-
tural como linguístico. Adotamos essa estratégia didática para
facilitar a compreensão. Ou, como demonstramos abaixo, num
quadro simplificado sobre a estruturação:

121
Túlio Eugênio dos Santos

Quadro 1 - Análise Estrutural (Modelo de Aproveitamento Racional)

Compreensão e utilização de temas análogos, já tratados e solucio-


1
nados em outras codificações;
Solução pela adoção de modelos de redação específicos já instru-
2
mentalizados por dispositivos-chave;
Abordagem de temas incipientes, cujo início de solução já tenha
3
aflorado em legislação esparsa anterior;
4 Absorção racional de projetos de lei;
Compreensão e aproveitamento da lógica e estratégias de estrutura-
5
ção já utilizadas por outros códigos ou a mescla de tais táticas.

Fonte: elaboração própria (2018).

Quanto à análise da linguagem a ser utilizada nos Códigos,


apresentamos o raciocínio abaixo consignado:
Quadro 2 - Análise linguística e aspectos normativos correlatos

1 Inteligibilidade e a eficiência normativa do código;


A novidade da inserção do aspecto semiótico como variável relevan-
2
te durante a elaboração da estrutura e a redação dos dispositivos;
A necessidade de sintonia fina entre a intenção epistemológica do
3
legislador e a concretude empírica, quando da codificação;
o item da reflexividade, considerado ainda durante a fase de elabo-
4
ração do código.

Fonte: elaboração própria (2018).

Uma vez traçado o panorama geral do itinerário do restante


dessa pesquisa, nada melhor do que passar ao estudo específico
de tais assuntos.

122
A Codificação Administrativa

4.2 A análise estrutural. O reforço da


integração sistêmica, a coesão interna e o
modelo de aproveitamento racional de soluções
de outros códigos

4.2.1 Escorço preliminar


É bem verdade, se fôssemos avaliar a fundo a matéria, esta pro-
vavelmente constituiria um fundamento extra de sustentabilidade
da codificação administrativa. Entretanto, apesar desse potencial
ínsito, preferimos tratar do tema neste tópico específico, com a fi-
nalidade de minudenciá-lo melhor. Além dos importantes elemen-
tos principiológicos já demonstrados, os quais funcionam como
fatores de coesão interna de um código bem solidificado, vislum-
bramos na interdisciplinariedade o reforço de integração sistêmica
que uma iniciativa dessas pode proporcionar.
Existem pontos nodais de conexão entre os diversos ramos ju-
rídicos. Esses devem ser realçados e valorizados. Eles fornecem,
na prática, o sentido de unidade do sistema. Graças a essas in-
terligações é possível, por exemplo, encontrar uma típica norma
de direito administrativo em meio ao código de defesa do consu-
midor. Alguns dispositivos já existem e estão vigentes, enquanto
outros encontram-se ainda em estado de latência. Concebemos
sob o crivo desta percepção o nosso Modelo de Aproveitamento
Racional de Normas, no plano estrutural, com o fito de identifi-
car as melhores táticas de enfrentamento dos múltiplos problemas
inerentes à codificação. Essa análise estrutural, consoante aludi-
do, embasada no modelo de aproveitamento racional, consoante
explicitamos alhures, centra-se na: 1. Compreensão e utilização de
temas análogos, já tratados e solucionados em outras codificações;
2. Solução pela adoção de modelos de redação específicos já ins-

123
Túlio Eugênio dos Santos

trumentalizados por dispositivos-chave; 3. Abordagem de temas


incipientes, cujo início de solução já tenha aflorado em legisla-
ção esparsa anterior; 4. Compreensão e aproveitamento da lógica
e estratégias de estruturação já utilizadas por outros códigos ou a
mescla de tais táticas.

4.2.2 Compreensão e utilização de


soluções análogas em temas já tratados
em outras codificações
Convém esclarecer o que seja o nosso modelo de aproveita-
mento racional concebido por nós. Antes de prosseguir na análise
da definição desse conceito, no entanto, necessário esvairmo-nos
do preconceito usual referente ao tema. Identificamos aqui e acolá
uma espécie de síndrome do codificador. Traduzimos esse fenô-
meno como uma predisposição do legislador ou de uma comissão
específica em ser absolutamente original a cada código editado.
A vontade de romper abruptamente com todo o ordenamento
normativo preexistente pode conduzir o legislador à equívocos,
subtraindo-lhe a oportunidade de aproveitar boas iniciativas já
contidas no ordenamento. Carece tato e discernimento neste sen-
tido, para separar o joio do trigo, em termos legislativos. Efetuar
a distinção consciente acerca de que material normativo pode ser
aproveitado, reciclado, aprimorado e não apenas deliberadamente
inventado insere-se no contexto de uma ruptura epistemológica
amadurecida. Ruptura a qual induz à evolução e não à completa
subversão de um sistema por outro. É sempre interessante reme-
morar que o objetivo precípuo de uma empreitada desta enverga-
dura não é simplesmente deletar o passado, mas sim corrigir os
erros do passado em prol da realização de um futuro o qual já se
desenha. Evidente que um esforço codificador implica no emba-

124
A Codificação Administrativa

te múltiplo e concomitante de vários interesses subjacentes. Isto


quando a própria codificação não se transforma num palco de
disputa de egos de doutrinadores, defensores de uma ou outra cor-
rente de pensamento. O épico – e folclórico – embate entre Rui
Barbosa e Beviláqua quando da manufatura do código civil de-
monstra bem isso. Embora excepcionalmente tal iniciativa tenha
açulado a vontade de redigir um código melhor elaborado, a regra
geral é que este cenário faz apenas prolongar discussões estéreis,
suspender trabalhos, resvalando-se na já mencionada procrasti-
nação. Não raro boas ideias perdem-se pelo caminho e iniciativas
válidas são abandonadas. O recente CPC/15 também enfrentou
tais problemas e os embates ali estenderam-se, dentre outros, em
tópicos os quais envolviam a queda de braço entre a advocacia e o
judiciário, a não absorção de fragmentos do projeto de código de
processo civil coletivo, dentre outros.
O legislador, antes de proceder a uma empreitada dessa mag-
nitude, deve estar cônscio do seu dever de colocar o interesse de
todos acima das próprias crenças e a necessidade de adotar uma
postura pragmática, realista. Deve atrelar-se também à consciên-
cia do seu papel histórico. Não pode servir apenas a objetivos ime-
diatistas. Deve ser capaz de ter uma visão de longo prazo, voltada
não apenas às presentes, mas também às futuras gerações. Essa
percepção quanto aos reflexos na realidade e o sentido da posteri-
dade devem refletir na estrutura e na própria redação do código.
Evita-se por via dessa percepção a sua transformação numa cola-
gem aleatória ou numa justaposição descriteriosa de institutos. A
precaução contra o efeito “colcha de retalhos” normativo causado
por uma legislação casuística é uma necessidade.
O método de aproveitamento racional envereda por essa ver-
tente. Não se trata de plágio. Ainda mais quando o que está em
jogo é a harmonia de um ordenamento o qual deve ter seus ramos
interligados. O dogma da originalidade absoluta tanto com rela-

125
Túlio Eugênio dos Santos

ção à legislação anterior quanto aos demais códigos do sistema


cede ao que denominamos mimetismo adaptativo. A evolução das
estratégias de normatização admite esses neologismos. O mode-
lo de aproveitamento racional consistiria, assim, num método de
mimetismo normativo capaz de adaptar raciocínios e lógicas vi-
gentes em outras esferas, aproveitando-as de maneira útil à codi-
ficação visada. Juntamente com o mito da originalidade absoluta,
cai também o dogma da infalibilidade do legislador. Esse desce
do pedestal onde usualmente se coloca, revira o sistema jurídico
como um todo a esquadrinhar cada centímetro de norma, a fim de
encontrar bons institutos ou soluções inteligentes as quais possam
ser copiadas, adaptadas, selecionadas, recicladas e aproveitadas de
uma forma diferente em outros setores.
Muitos doutrinadores defendem aguerridamente a ideia de
autonomia absoluta para determinados ramos jurídicos. Entre-
tanto, apesar dessa perspectiva, soa inegável a verdade de cada
setor jurídico encontrar-se entrelaçado à vários outros ramos. For-
mam eles uma teia jurídica, a qual dá origem ao ordenamento.
Assim, o contrapeso à suposta autonomia é o sentido de coesão
e coerência interna que o próprio sistema jurídico como um todo
deve possuir. Essa integração sistêmica resta reforçada quando
estudamos a estrutura do ordenamento, investigamos os pontos
de conexão de uns ramos com os outros e aproveitamos raciocí-
nios, estruturas, filosofias, modelos ou a redação de dispositivos
chave para solucionar problemas normativos ou de codificação.
Diálogo necessário. Soluções análogas são uma forma inteligente
de lidar com imbróglios jurídicos e resolvê-los e catalisá-los passa
a ser uma necessidade. Claro, encaramos a realidade. E, apesar
da balbúrdia normativa vigente em nosso país – a qual reflete-se
na desorganização das instituições – podemos pinçar aqui e acolá
exemplos de sucesso legislativo. Esses exemplos exitosos devem ser
devidamente aproveitados, replicados, a funcionar como elos de

126
A Codificação Administrativa

ligação sistêmica, reforçando-o. Não pode haver pudor, vaidade ou


inibição quanto a isso.
Já evidenciamos no corpo dessa própria investigação um apro-
veitamento cônscio deste gênero. Tal ocorreu por via da adoção
do modelo de raciocínio e da organização de alguns dispositivos
contidos no Código Tributário Nacional. Usamos eles para de-
monstrar como poderíamos resolver o problema da competência
legislativa no âmbito da codificação administrativa. Evidente,
existe a pendência de uma reforma tributária, todavia, essa re-
forma diz muito mais respeito à revisão e atualização de modos
específicos de tributação do que propriamente à questão estrutu-
ral. O CTN, sob essa perspectiva estrutural, carrega os méritos de
superar a barreira da multiplicidade de competências legislativas,
a qual ameaçava o próprio princípio federativo. Andou bem em
outros trechos e existem passagens paradigmáticas as quais tam-
bém podem ser objeto de incidência do modelo de aproveitamento
racional. Um desses trechos é a pérola inserida nos artigos 108 e
109 do CTN. Aproveitam-se neles a fórmula original da antiga
LICC para tratar dos modos de integração e interpretação da lei
tributária, etc. Eis modelos os quais servem para qualquer codifi-
cação a qual envolva direito público, tamanha a sua exatidão. Ou,
consoante, estipulado nos artigos 108 e 109 do CTN:

Art. 108 – Na ausência de disposição expressa, a auto-


ridade competente para aplicar a legislação tributária
utilizará, sucessivamente, na ordem indicada: I- a analo-
gia; II- os princípios gerais de direito tributário; III- os
princípios gerais de direito público; IV- a equidade. § 1º o
emprego da analogia não poderá resultar na exigência de
tributo não previsto em lei. § 2º o emprego da equidade
não poderá resultar na dispensa do pagamento do tributo
devido. Art. 109 – Os princípios gerais de direito privado
utilizam-se para pesquisa da definição, do conteúdo e do

127
Túlio Eugênio dos Santos

alcance dos seus institutos, conceitos e formas, mas não


para definição dos respectivos efeitos tributários (BRA-
SIL, 1966, on-line).

A estrutura dessa concepção é interessantíssima. A lucidez da


percepção é desconcertante, como veremos adiante. A singulari-
dade vem da solução encontrada. Solução clara, inteligível, consis-
tente. Faz o dispositivo alusão à analogia, princípios e a equidade.
Especifiquemos, por exemplo, que embora não apareçam no texto
deste dispositivo, os costumes e a jurisprudência, estes afloram em
outro lugar do referido código. E o fazem não sob o formato de
instrumentos de interpretação ou integração, mas sim como nor-
mas complementares (artigo 100, III, do CTN). Quanto à jurispru-
dência, o CTN, não faz referência explícita às decisões judiciais,
como, por exemplo, o novo CPC delineia ao admitir precedentes,
súmulas vinculantes, etc. Até pela época em que foi concebido,
refere-se às decisões dos órgãos de jurisdição administrativa (artigo
100, II, CTN) (BRASIL, 1966). Os modos de interpretação e in-
tegração, no mais, ecoam como uma sugestão plausível. A singela
substituição do vocábulo “tributário” pelo termo “administrativo”
talvez já se afigurasse suficiente. Assim, na ausência de disposi-
ção expressa, a autoridade competente para aplicar a lei adminis-
trativa, utilizará a analogia, os princípios gerais estruturantes, os
princípios gerais de direito administrativo, os princípios gerais de
direito público e a equidade do gestor ou servidor público respon-
sável. Um dispositivo dessa natureza, apenas a título de elucubra-
ção exemplificativa, poderia, de acordo com a aplicação prática do
modelo de aproveitamento racional, ser assim formulado:

Art. XXX – Na ausência de disposição expressa, a autori-


dade competente para aplicar a legislação administrativa
utilizará, sucessivamente, na ordem indicada: I- os princí-
pios gerais estruturantes do desenvolvimento humano, da

128
A Codificação Administrativa

boa administração, moralidade e da eficiência e eficácia;


II- a analogia; III- os princípios gerais de direito adminis-
trativo; IV- os princípios gerais de direito público; V- a
equidade. § 1º o emprego da analogia não poderá resultar
na formulação e execução de ato administrativo ou con-
trato administrativo não previsto em lei. § 2º – o emprego
da equidade não poderá resultar na dispensa de cumpri-
mento dos deveres essenciais para com a administração
pública. Art. XX – Os princípios gerais de direito privado
utilizam-se para pesquisa da definição, do conteúdo e do
alcance dos seus institutos, conceitos e formas, mas não
para definição dos respectivos efeitos administrativos.
Adaptado pelo autor deste trabalho com base em Brasil
(1996, on-line).

A respeitar a consagração que visamos fornecer aos princípios


estruturantes, aderimos ao escalonamento estipulado, de modo a
firmar a aplicação dos princípios estruturantes antes mesmo da
analogia, face a sua importância para o sistema. Muitas outras so-
luções como a interpretação literal em algumas situações especí-
ficas do artigo 111 do CTN ou a absorção de Tratados e Conven-
ções Internacionais referentes a Direito Administrativo também
podem ser albergadas, acolhidas. Relevante realçar também outra
situação inusitada. O conceito de poder de polícia, definição bem
mais administrativa que propriamente tributária, encontra-se in-
solitamente consignado no Código Tributário Nacional.

Art. 78 – Considera-se poder de polícia atividade da


administração que, limitando ou disciplinando direito,
interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou absten-
ção de fato, em razão de interesse público concernente à
segurança, à higiene,à ordem, aos costumes, à disciplina
da produção e do mercado, ao exercício de atividades
econômicas dependentes da concessão ou autorização

129
Túlio Eugênio dos Santos

do Poder Público, à tranquilidade pública ou ao respeito


à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos. Pa-
rágrafo único. Considera-se regular o exercício do poder
de polícia quando desempenhado pelo órgão competente
nos limites da lei aplicável, com observância do processo
legal e, tratando-se de atividade que a lei tenha como
discricionária, sem abuso ou desvio de poder (BRASIL,
1966, on-line).

Poucas definições em direito público são tão cristalinas, conci-


sas e bem confeccionadas quanto esta, inclusive quanto à redação
do parágrafo único, o qual realça o respeito ao princípio da lega-
lidade e processo legal. Eis um conceito o qual poderia ser absor-
vido ipsis litteris pela codificação administrativa vindoura. Quiçá
os reclamos da definição complementar do que seja o poder de
império também não reste consignada no novo código. Ambos
os conceitos escorariam a feição do princípio da supremacia do
interesse público. Sobra, no mais, para além das benfazejas e es-
clarecedoras conceituações do CTN, algumas ideias mais ousadas,
as quais poderiam restar situadas tanto nesta parte das disposições
gerais como na seção das relações internacionais. Adaptações, por
exemplo, para a questão de parcerias administrativas internacio-
nais ou repressão a ilícitos administrativos transnacionais, temas
cada vez mais importantes no mundo globalizado.

4.2.3 Solução pela adoção de modelos de redação


já utilizados em dispositivos chave
Diversamente do emprego análogo de temas inteiros já obje-
to de codificações outras, aplicamos o modelo de aproveitamento
para perscrutar em que medida a redação de determinados dis-
positivos chave de outros estatutos jurídicos pode ser adaptada a

130
A Codificação Administrativa

uma codificação administrativa. Denominamos dispositivos chave


aqueles artigos cujo conteúdo, conceito ou estipulações influen-
ciem o teor do código ou repercutam sobre o próprio ordena-
mento jurídico (vide dispositivos cogentes ou de ordem pública).
Escudamos a tese pela qual não apenas o conteúdo delas possa
servir como referência para o ordenamento, mas também o estilo
de redação de determinados dispositivos chave venha a ser usado
como inspiração na nova codificação administrativa. E a seguir os
ensinamentos de Waluchow (2001) e outros positivistas inclusivos,
um dispositivo bem elaborado é um primeiro grande passo. Ainda
mais se abrir algum título ou capítulo. O próprio tom da redação
funciona como respaldo de fundo ao desenvolvimento do tema e
logo ao início da leitura já se pode saber o que esperar do texto.
É nesse sentido que lançamos mão do modelo de aproveita-
mento racional para absorver não temas ou estruturas eficientes,
mas estilo de redação de dispositivos chaves, estrategicamente situa-
dos no código. Uma dessas pérolas de redação, ao nosso sentir, en-
contra-se insculpida no artigo 196 da CF/88. O estilo de redação
desse dispositivo poderia muito bem ser aproveitado como introito
da definição, por exemplo, do que seja serviço público. Sim, um
conceito dessa natureza deve permitir o sobressair, logo de início,
a sua dúplice faceta de direito e garantia. Só depois entranhar-se-
-ia nas definições técnicas as quais conceituam o serviço público
como sendo todo serviço prestado por entidades de direito público
ou seus delegatários ao indivíduo, na forma da lei. A introdução
a um instituto deve, além de evidenciar o mencionado aspecto de
direito-garantia, revelar-se como a materialização de todo um ar-
cabouço filosófico de fundo. Somente num segundo momento, em
artigos, parágrafos e alíneas subsequentes, viriam os pormenores
técnicos. Desta feita, sob inspiração da redação do artigo 196 da
CF/88, o qual versa sobre a Saúde, poderíamos extrair a fórmula
de uma definição mais adequada, apta a servir como preliminar

131
Túlio Eugênio dos Santos

de um conceito de serviço público mais robusto, completo, foca-


do também na relação do ente público com o administrado. Ou,
como o esboço de artigo abaixo exemplificado:

Artigo XXXX- A eficiente e satisfatória prestação dos ser-


viços públicos é direito de todos e dever do Estado, garan-
tido mediante políticas sociais de melhoramento contí-
nuo e acesso universal e igualitário, sempre a fundar-se na
probidade e celeridade e a promover ações de promoção,
proteção, recuperação e desenvolvimento. Artigo XXX-
XI- Define-se serviço público como todo o serviço [...].

Essa é, portanto, a noção básica no que se refere à redação de


dispositivos chaves numa codificação. Uma vez já efetuado o estu-
do do aproveitamento racional de temas análogos já cristalizados
em outros códigos e da importância de ater-se ao estilo de redação
de determinados dispositivos chave, avançamos rumo ao terceiro
item. Este terceiro tópico refere-se ao aproveitamento de ideias, es-
tilos, estratégias ou linhas de raciocínios de temas incipientes. Ou
seja, assuntos os quais já existam, que já foram objeto de densifica-
ção, mas que ainda demandam um maior grau de maturação para
resolverem-se por completo. Cabe-nos examinar como podemos
aproveitar o início de solução já contido em muitas dessas normas.

4.2.4 A abordagem de temas incipientes, cujo


início de solução já tenha aflorado em legislação
esparsa anterior
Ocupamo-nos até aqui de temas ou dispositivos previamente
codificados. Nossa incumbência, a partir de agora, é abordar te-
mas já objeto de legislação mas que ainda encontram-se em grau
de amadurecimento normativo. Essas legislações esparsas trazem

132
A Codificação Administrativa

em si o germe de algumas mudanças substanciais. Todavia, como


todo início de meditação sobre determinado assunto elas, via de
regra, apresentam-se como soluções parciais para institutos os quais
ainda encontram-se em evolução. Consoante já delineamos alhu-
res os institutos jurídicos passam antes por um processo natural de
amadurecimento legislativo até que atinjam o ponto ideal para a
densificação por meio de código. A tentativa mais conhecida de
codificação administrativa veio com a edição do decreto Lei nº
200/67, o qual, por algumas décadas, orientou a organização da
administração pública.

4.2.4.1 O Decreto-lei nº 200/67


Embora exista uma pretensão inequívoca à unificação de
vários temas administrativos numa só lei, o Decreto-Lei 200/67
(BRASIL, 1967a) foi concebido para aplicar-se somente à adminis-
tração pública federal (Executivo da União). Esbarrava-se já aqui, no
mencionado problema de eventual problema da competência le-
gislativa, razão pela qual o legislador, como se percebe pelo teor da
norma, resolveu abster-se de adentrar em searas mais complexas.
A norma em si, sobressai como uma lei de organização da admi-
nistração pública federal, a qual versa sobre o ente estatal em sua
posição estática. O legislador tenta dissecar o organismo estatal,
a imprimir-lhe uma ordem mínima. Embora esteja superada em
muitos dos seus dispositivos, o Decreto-Lei nº 200/67, traz em seu
bojo muitos conceitos básicos ainda hoje utilizados. A sua estru-
tura, de igual maneira, pode e deve ser objeto de atento estudo.
Logo no título I, por exemplo, observamos dispositivos sobre a
administração, sobre quem exerce a chefia do poder executivo e
como divide-se a administração (administração direta e indireta).
Afloram daí conceitos primordiais como o de autarquia, empresa
pública, sociedades de economia mista, etc. O título II versa sobre

133
Túlio Eugênio dos Santos

os princípios fundamentais da administração pública. Notamos


aqui uma norma dirigida à administração em si e não apenas a re-
gulamentação administrativa ou ao direito administrativo. Apesar
disso, sobressai que tais conceitos também podem ser aproveitados
numa eventual codificação. Exemplo do que se fala são os princí-
pios do planejamento, coordenação, descentralização, delegação
de competência e controle.
Quanto ao planejamento, por exemplo, notamos, desde aquela
época, a preocupação com uma ação governamental neutra. Ação
destituída de qualquer conotação ideológica e fulcrada na então
perspectiva do desenvolvimento econômico social do país. Destar-
te a ultrapassada concepção utilitária então vigente, cremos que
essa estrutura talvez possa ser objeto do devido aproveitamento e
adequada ao novo princípio do desenvolvimento humano.
Chama a atenção também a preocupação dispensada pelo le-
gislador a temas sensíveis, como coordenação, descentralização e
delegação de competências materiais. O artigo 8º, § 1º, estipula que
a coordenação será exercida em todos os níveis de administração
e o artigo 8º, § 3º, do Decreto-Lei 200/67 fala na compreensão
de soluções integradas, com harmonização. A descentralização, de
igual modo, é prevista no artigo 10º da norma e incide sob três
aspectos: a descentralização dentro da administração federal, a
descentralização da competência material às unidades federadas
(por via de convênio) e a descentralização para a esfera privada
(contratos e concessões). Esclareça-se que o artigo 11 estabelece
que essa descentralização será instrumentalizada pela delegação
de competência (BRASIL, 1967a).
Consoante já dissemos, esse ponto já foi superado pelo mode-
lo do CTN, o qual versa não propriamente sobre uma delegação
de competência propriamente dito, mas sim sobre a concessão
de maior autonomia. A institucionalização de uma lei nacional a
qual abranja um esqueleto normativo geral e comum, o qual pode

134
A Codificação Administrativa

ser complementado pelos demais entes da federação, colmata a


unidade da nação sem esboroar o princípio federativo. Sobra, de
qualquer modo, a concepção de que o legislador preocupou-se já
aquela época com a integração do sistema. Fosse por meio de co-
ordenação ou descentralização, esse esforço de integração resta
como visível já àquele tempo. Existe uma preocupação também
com o controle (BRASIL, 1967a).
Embora o decreto tergiverse a cuidar sobre a organização e
composição de ministérios, traga um esboço da futura 8.112/90
(BRASIL, 1991), da Lei 8.666/93 (BRASIL, 1993a) e trate até de
questões de saúde e militares ou até de temas orçamentários, o fato
é que existem inovações as quais não podem passar despercebidas.
Uma delas é o artigo 26, III, do Decreto-Lei 200/67 (BRASIL,
1967a). Este dispositivo traz em seu bojo a previsão da eficiência
administrativa. Destarte ter sido usada num primeiro momento à
administração indireta, este conceito universalizou-se e adquiriu
status constitucional com a EC nº 19.

4.2.4.2 A pretensão de um sistema administrativo


constitucional (artigo 37 e ss, da CF/88)
Embora o direito administrativo tenha sido incorporado à
Constituição de 1988 de modo mais pormenorizado, tal absorção
não teve o condão de inaugurar um completo sistema adminis-
trativo constitucional. Conceituamos um sistema constitucional
o conjunto de normas e instituições consignado na Carta Magna,
a qual sirva de base e diretriz de aplicação e elaboração para as
demais normas infra constitucionais. Apenas para traçar um pa-
ralelo, observamos a existência de um sistema tributário nacional
previsto de forma expressa, no capítulo I, do título VI da Consti-
tuição da República, a qual versa sobre a tributação e orçamento

135
Túlio Eugênio dos Santos

(BRASIL, 2013). O legislador priorizou o tema, minudenciando-o,


de maneira a açambarcar dispositivos relativos aos princípios ge-
rais, a limitação do poder de tributar, previsão dos diversos tribu-
tos e impostos (divididos pela competência de arrecadação), etc. A
disposição desse sistema e o seu formato, diga-se, reforçou o mo-
delo estrutural o qual já havia sido concebido pelo CTN. A única
ressalva foi a preocupação expressada por juristas como Baleeiro
(1998), quanto à limitação do poder de tributar.
O mesmo não se pode dizer do direito administrativo. Embora
haja um capítulo inteiro destinado à administração pública, o le-
gislador constituinte não se referiu a este setor como um sistema
administrativo nacional. E não o fez muito provavelmente pelo
receio de violar o princípio federativo, acaso tentasse proceder
desta maneira. O capítulo VI, nominado da Administração Pú-
blica, erige-se como um dos últimos capítulos do Título III, o qual
versa sobre sobre a organização do Estado. Após dissertar sobre
organização territorial, bem como tratar de cada um dos entes da
federação e suas competências materiais e legislativas, encontra-
mos, já ao final, como uma espécie de arremedo normativo, as dis-
posições gerais sobre a administração pública. Inexiste uma seção
destinada especificamente aos princípios gerais de direito admi-
nistrativo, mas sim uma parte introdutória relativa às disposições
gerais. Os princípios restam abreviados na cabeça do artigo 37 da
CF/88. Diversamente da abordagem do sistema tributário, inexis-
tiu uma preocupação maior com o delineamento principiológico,
restringindo-se a constituição à mera citação dos princípios.
Segue-se, a partir do caput, uma série de incisos os quais dizem
muito mais respeito aos servidores públicos do que propriamen-
te ao direito administrativo em si. Fala-se em concurso público,
acessibilidade aos cargos, remuneração, proibição de acumulação
remunerada de cargos, direito de greve, etc., limitando a perspec-
tiva do direito administrativo ao servidor em si. Inexistem regras

136
A Codificação Administrativa

– ainda que concisas - sobre licitações, contratos administrativos,


atos administrativos, interferências estatais, etc. Tais dispositivos
estão diluídos no corpo da constituição. A sociedade de economia
mista e a empresa pública, por exemplo, encontram-se previstos
no artigo 173, § 1º, da CF/88. De igual modo, a limitação do direi-
to de propriedade da desapropriação encontra-se prevista no arti-
go 5º da Constituição. Alguns direitos básicos dos administrados
em face do poder público encontram-se também consignados no
artigo 5º, tais como o Mandado de Segurança, Habeas Data, etc.
A falta de uma organização maior com relação a tais normas re-
ferentes ao direito administrativo, assim, impede-nos de falar, por
ora, num sistema administrativo constitucional brasileiro. Fica-se
na pretensão de um sistema. Assim, apesar desse déficit de siste-
matização, evidente que muitos dos dispositivos citados podem e
devem ser aproveitados numa futura codificação. Artigos como
a universalização do concurso público, os princípios norteadores
do direito administrativo, probidade, dentre outros, serão natural-
mente absorvidos numa eventual codificação.

4.2.4.3 A EC nº 19
Uma das principais alterações promovidas pela EC nº 19 foi a
incorporação ao patamar constitucional do sobredito princípio da
eficiência administrativa. Existiram várias modificações adicionais
dignas de nota, tais como a instituição do teto geral de remunera-
ção/subsídios dos servidores públicos, a universalização do concur-
so público de provas ou de provas e títulos, o direito de greve do
servidor a depender somente de lei ordinária específica, a vedação
de cumulação remunerada de cargos públicos e suas exceções, a
estipulação de limites com gastos para servidores públicos (artigo
169 da CF/88) (BRASIL 2013), dentre outros (Emenda Constitu-
cional nº 19/98) (BRASIL, 1998a). A feição de eficiência aplicada

137
Túlio Eugênio dos Santos

ao direito administrativo trazia essa característica eminentemente


econômica de corte de despesas e custos. Detecta-se também uma
preocupação de preservar-se um rendimento adequado do servi-
dor público. Esculpe-se, inclusive, um preceito da possibilidade de
exoneração do servidor por insuficiência de desempenho. Apesar
de necessária, criticamos a abordagem negativa do assunto e vis-
lumbramos a necessidade de concepção de metodologias capazes
de prevenir e assegurar o bom rendimento e a produtividade do
servidor público. A crescente utilização de metas e a equivocada
concepção quantitativa do que seja rendimento e produtividade,
no entanto, tem levado a deturpações. Exsurge daí a imprescindi-
bilidade de fixação de critérios mais sólidos para efetuação de tais
avaliações, critérios os quais considerem aspectos qualitativos dos
serviços prestados pelos agentes públicos.
Apesar da crítica, o princípio da eficiência e da produtividade
pode e deve ser aproveitado na nova codificação. Não o dissemos
sob o aspecto tão estritamente econômico como o visado pela EC
nº 19, preocupada em infligir uma nova conduta aos servidores em
geral. Preocupamo-nos com uma eficiência ampliada e aprofunda-
da, a qual funcione como base filosófica da nova codificação e que
reflita concretamente na prestação de serviços públicos mais céleres,
efetivos, de melhor qualidade e a menor custo. As benesses da im-
plantação dessa nova filosofia, assim, deve alcançar o destinatário
último da atuação estatal, qual seja, o cidadão, e não restringir-se
apenas à medidas internas, técnicas ou orçamentárias, dirigidas de
modo negativo ao funcionário público.
Carece evidenciar, por fim, que a EC nº 19 (BRASIL, 1998a)
trouxe a semente da guinada epistemológica quanto ao modo
de encarar a administração pública. O precário esboço contido
no artigo 37, § 3º, da CF/88 (BRASIL, 2013) constitui o germe
dessa mudança paradigmática. Encontramos ali o nascedouro do
Estatuto do Administrado. Vislumbramos a previsão de novas for-

138
A Codificação Administrativa

mas de participação do usuário, a possibilidade do exercício de


reclamações contra serviços públicos falhos, o direito ao acesso de
informações por parte dos administrados, etc. Como podemos ob-
servar, há a inserção de toda uma nova concepção a qual também
deve ser aproveitada numa codificação administrativa.

4.2.4.4 A Lei 9.784/99


Uma tentativa de incutir essa nova filosofia encontra-se, por
exemplo, no conteúdo da Lei 9.784/99 (BRASIL, 1999). Esta in-
dubitavelmente traz a vantagem no sentido de inovar ao conceber
quase uma protocodificação do direito administrativo logo ao seu
princípio. O termo é esse, protocodificação. Um esboço, um pro-
tótipo, uma pista dada pelo legislador do que seria uma base ade-
quada a um futuro código administrativo infraconstitucional. Essa
intenção de nortear o futuro normatizador fica clara das entreli-
nhas da redação agregadora, fundada em bases principiológicas,
com ambição de universalidade. Apesar de tantas boas intenções,
difere ela bastante do perfeccionismo esclarecido da redação do
código tributário. O primeiro artigo da Lei 9.784/99 traz ainda
de modo muito precário alguns dispositivos de aplicabilidade,
pelo qual limita-se a esboçar uma ampliação do seu alcance com
a vinculação a todos os poderes da esfera federal (executivo federal,
legislativo federal e judiciário federal). Interrompe o percurso, no en-
tanto, quando defronta-se com o risco de violar o princípio do
federalismo. Recua um pouco neste ponto específico e podemos
dizer que chega cautelosamente a esquivar-se do imbróglio. Essa
falta de enfrentamento direto empresta-lhe o caráter de esboço.
Prossegue a norma, no seu artigo 2º, a estabelecer o que entende
ser as linhas mestras gerais do que poderia ser um futuro código
administrativo. Essa pretensão fica bem clara. Ou, como verifica-
mos da redação da Lei 9.784/99, abaixo transcrita:

139
Túlio Eugênio dos Santos

Art. 1º– Esta lei estabelece normas básicas sobre processo


administrativo no âmbito da Administração Federal dire-
ta e indireta, visando, em especial, à proteção dos direitos
dos administrados e ao melhor cumprimento dos fins da
administração. § 1º – Os preceitos desta Lei também se
aplicam aos órgãos dos Poderes Legislativo e Judiciário da
União, quando no desempenho da função administrativa.
§ 2º – Para os fins desta lei, consideram-se: I- órgão – a
unidade de atuação integrante da estrutura da Adminis-
tração Direta e da estrutura da Administração indireta;
II- entidade- a unidade de atuação dotada de personalida-
de jurídica; III- autoridade – o servidor ou agente público
dotado de poder de decisão. Art. 2º– A Administração
Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da lega-
lidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcio-
nalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, da se-
gurança jurídica, interesse público e eficiência. Parágrafo
único- Nos processos administrativos serão observados,
dentre outros, os critérios de: I- atuação conforme a lei
e o Direito; II- atendimento aos fins de interesse geral,
vedada a renúncia total ou parcial de poderes ou com-
petências, salvo autorização em lei; III- objetividade no
atendimento do interesse público, vedada a promoção
pessoal de agentes ou autoridades; IV- atuação segundo
os padrões éticos de probidade, decoro e boa fé;
V- divulgação oficial dos atos administrativos, ressalvadas
as hipóteses de sigilo previstas na Constituição; VI- ade-
quação entre meios e fins, vedada a imposição de obri-
gações e restrições e sanções em medida superior àque-
las estritamente necessárias ao atendimento do interesse
público; VII- indicação dos pressupostos de fato e de di-
reito que determinarem a decisão; VIII- observância das
formalidades essenciais à garantia dos direitos dos admi-
nistrados; IX- adoção de formas simples, suficientes para

140
A Codificação Administrativa

propiciar o adequado grau de certeza, segurança e respei-


to aos direitos dos administrados; X- garantia dos direi-
tos à comunicação, à apresentação de alegações finais,
à produção de provas e à interposição de recursos, nos
processos que possam resultar sanções e nas situações de
litígio; XI- proibição de cobrança de despesas processuais,
ressalvadas as previstas em lei; XII- impulsão, de ofício,
do processo administrativo, sem prejuízo da atuação dos
interessados; XIII- interpretação de norma administrativa
da forma que melhor garanta o atendimento do fim públi-
co a que se dirige, vedada a aplicação retroativa de nova
interpretação. [...] (BRASIL, 1999, on-line).

A análise da cabeça do artigo 2º inspiraria, com modes-


tas modificações, um artigo introdutório no capítulo referente
à Administração Pública em si. Uma definição relacional (e
também orgânica) poderia preceder a sobredita subserviência
da administração aos postulados dos princípios administrativos
citados (já evidenciamos isso num quadro anterior). Essa pos-
tura de concomitante submissão à lei escrita e aos princípios
funcionaria como um freio jurídico à autocracia, além de cons-
tituir a base de sustentação normativa de todo o resto. Aliás, o
dispositivo, bem redigido, poderia servir como introdução geral
ao próprio sistema administrativo e não apenas ao processo ad-
ministrativo, como formalmente delineia a lei acima mencio-
nada. Postulados como a atuação conforme a lei e o direito, o
atendimento aos fins de interesse geral (e não apenas públicos),
a objetividade no atendimento ao interesse público, a atuação
segundo os padrões éticos de probidade e boa fé, a razoabi-
lidade, dentre várias outras estipulações, possuem inequívoca
vocação universal e são regras as quais deveriam situar-se na
introdução do código ou na sua parte geral.

141
Túlio Eugênio dos Santos

4.2.4.5 Outras normas aproveitáveis (a Resolução nº


21 do CNJ e a recente Lei 13. 726/18 e lei 13.460/17)
Outro exemplo de inovação é a gradativa institucionalização
do instituto da mediação nos procedimentos administrativos,
de acordo com os moldes já previstos nos juizados especiais e no
NCPC/15. Mire-se ser ampla a aplicação desse instituto, podendo
ele figurar tanto na seara do procedimento administrativo tribu-
tário como no procedimento administrativo disciplinar (para in-
frações de menor potencial ofensivo, com vistas à reeducação do
servidor), etc. Ou, consoante a própria Recomendação nº 21 do
CNJ, a qual foi pioneira neste sentido:

Art. 1º– recomendar a adoção de mecanismos de conci-


liação e mediação nos procedimentos preliminares e pro-
cessos administrativos disciplinares em trâmite no âmbito
do Poder Judiciário, cuja apuração se limite à prática de
infrações por servidores ou magistrados, caracterizadas
por seu reduzido potencial de lesividade e deveres fun-
cionais e que se relacionem preponderantemente à esfera
privada dos envolvidos (CONSELHO NACIONAL DE
JUSTIÇA, 2015, on-line, grifo nosso).

É bem verdade que essa lógica inerente aos juizados especiais e


ao NCPC pode e deve ser aplicada na seara administrativa, quan-
do estivermos diante de pequenas infrações e analisados cada caso
em sua concretude. Convém complementar esta política com polí-
ticas preventivas de educação do servidor e aplicação de medidas
alternativas em sede administrativa, quando possível. Cabe, no
entanto, asseverar que condutas mais graves não seriam alcança-
das por tais benesses. Desvios os quais, por exemplo, tragam reper-
cussões penais, devem ser reprimidos com maior rigor. Reiteramos,
no entanto, que a adoção de estímulos como a delação premiada

142
A Codificação Administrativa

em processos administrativos com o fito de desbaratar organiza-


ções criminosas intra estatais possam, no mais, atenuar eventuais
sanções impostas. Essa lógica pode, de igual modo, ser aplicada
aos procedimentos administrativos tributários, etc.
Arrematamos, por fim, a alusão a recentíssima Lei nº 13.726,
de 08 de outubro de 2018 (BRASIL, 2018b), a qual visa racionalizar
atos e procedimentos administrativos dos poderes da União, Estados,
DF e Municípios e que institui o selo de desburocratização e simplifica-
ção. Constatamos aqui uma evolução com relação à Lei 9.784/99,
no sentido de que esta norma avança e vincula não apenas to-
dos os poderes, mas também todos os entes federativos. Progres-
so significativo em termos normativos, início de superação. A lei,
num primeiro momento, trata da digitalização, de simplificações
referentes ao reconhecimento de firmas, autenticação, certidões e
etc., junto à entes administrativos. Tenta agilizar o funcionamento
da máquina pública, coibindo exigências exageradas e facilitando
trâmites os quais emperram o sistema. Relevante realçar que, num
segundo momento, essa lei institui o mecanismo de incentivo do
selo de desburocratização e simplificação. Este, destina-se a reconhe-
cer e estimular projetos, programas e práticas que aprimorem o
modus operandi da administração. Ou, como abaixo transcrito:

[…] Art. 7º– É instituído o Selo de Desburocratização e


Simplificação, destinado a reconhecer e a estimular proje-
tos, programas e práticas que simplifiquem o funcionamen-
to da administração pública e melhorem o atendimento aos
usuários dos serviços públicos. Parágrafo único. O Selo será
concedido na forma de regulamento por comissão formada
por representantes da administração pública e da sociedade
civil, observados os seguintes critérios: I- a racionalização
de processos e procedimentos administrativos; II- a eli-
minação de formalidades desnecessárias ou desproporcio-
nais para as finalidades almejadas; III- os ganhos sociais

143
Túlio Eugênio dos Santos

oriundos da medida de desburocratização; IV- a redução do


tempo de espera no atendimento dos serviços públicos; V-
a adoção de soluções tecnológicas ou organizacionais que
possam ser replicadas em outras esferas da administração
pública. Art. 8º– A participação do servidor no desenvol-
vimento e na execução de projetos e programas que resul-
tem na desburocratização do serviço público será registrada
em seus assentamentos funcionais. Art. 9º– Os órgãos ou
entidades estatais que receberem o Selo de Desburocratiza-
ção e Simplificação serão inscritos no cadastro nacional de
desburocratização. Parágrafo único. Serão premiados, anu-
almente, 02 (dois) órgãos ou entidades, em cada unidade
federativa, selecionados com base nos critérios estabeleci-
dos por esta lei (BRASIL, 2018b, on-line).

O exame perfunctório desses dispositivos preliminares retrata


a evolução gradual da legislação. Esta converge no sentido de ado-
tar políticas de estímulos à simplificação e desburocratização, bem
como de adotar soluções as quais lograram êxito nas searas judi-
ciais, ou ainda, num sentido mais profundo, simplesmente trazem
a inspiração do que poderia constituir o tom geral de uma futura
codificação administrativa. Andou bem o legislador neste ponto e
tal iniciativa não pode jamais ser menosprezada ou desperdiçada.
Anda neste sentido também a nova lei do serviço público, a lei
13.460/17. Esta norma traz também a possibilidade de aplicação
concomitantedo seu conteúdo a todas as entidades da federação.
Realça também a estreita vinculação da prestação dos serviços
públicos com o direito do consumidor, dentre outros.

4.2.5 A absorção racional de Projetos de Lei


Versamos sobre os diversos modos de aproveitamento, seja por
via da adoção de temas análogos tratados em codificações outras

144
A Codificação Administrativa

ou mesmo pela absorção de leis administrativas já editadas (onde


os tópicos ainda estejam em desenvolvimento, protocodificação).
Existe, porém, uma modalidade de aproveitamento a qual envolve
a assimilação de estudos em gestação, ainda não editados como
leis. O aproveitamento de ideias as quais estejam há anos em trâ-
mite no congresso nacional, pendente de aprovação, é medida a
qual não pode ser relegada a segundo plano. Temas existem os
quais já estão mais amadurecidos do que muitas normas publica-
das e que apenas não o foram por falta de ambiente favorável a sua
votação e promulgação.
Já exemplificamos nesta pesquisa sobre o projeto de Lei
n° 1202/2007 o qual trata da procuração para relações gover-
namentais ou institucionais. Versamos também sobre o PL
6665/2016 (BRASIL, 2016a), que trata da inclusão de deter-
minados tipos de corrupção com impacto financeiro no rol dos
crimes hediondos, inclusive com aumento de pena. Uma dessas
propostas, ainda não citada nesta pesquisa, provocou alvoro-
ço no Congresso Nacional. Foi ela o PL n° 4.850/16 (BRASIL,
2016d, on-line), a qual estabelece “medidas contra a corrupção
e demais crimes contra o patrimônio público e combate ao en-
riquecimento ilícito [...].” Constatamos, neste projeto de lei, o
qual não logrou êxito, uma série de propostas as quais agora
serão renovadas, por novo projeto de iniciativa popular. Esse
é o chamado pacote anticorrupção, o qual envolve uma série
de medidas, tais como a melhoria da seleção dos ministros do
TCU e outros Tribunais Superiores, a redução do foro privi-
legiado, o aumento das penas para a corrupção, agilização da
burocracia e punição estendida inclusive a partidos políticos
envolvidos com a corrupção. Há propostas de inserção de te-
mas do combate à corrupção no currículo escolar, a instituição
da ficha limpa para os ocupantes de cargos públicos, a criação

145
Túlio Eugênio dos Santos

de instrumentos ainda mais refinados para recuperação/repa-


triação de verbas públicas desviadas, etc.
Os membros do MPF e da Justiça Federal os quais lideram
esse movimento iniciado pela Lava Jato e que redundou nes-
te projeto de lei de iniciativa popular redigiram, com auxílio
de técnicos, esse projeto. Ele ganhou a alcunha de pacote anti-
corrupção. É bem verdade que esse pacote não é propriamente
apenas um pacote anticorrupção. A catálise dos anseios vigen-
tes na sociedade vai muito além disso. Talvez a formação emi-
nentemente penal de tais agentes públicos tenha lhes preju-
dicado a visualização da questão sob um prisma mais amplo.
A perspectiva não pode ser desprezada e, desde o início desta
pesquisa, pugnamos pela defesa que o anseio real é de uma codi-
ficação administrativa e não apenas de um pacote anticorrupção.
Este pacote, indubitavelmente, estaria inserido como um dos
ramos desta codificação. Aliás, a própria política de inserção
de uma educação filosófica e ética nos programas escolares faz
parte do mencionado esforço de consolidação de novos valores
os quais já afloram no seio da sociedade. Trata-se de uma das
várias iniciativas estruturais, surgidas do consenso social, as
quais podem ser adotadas.
Trocando em miúdos, o que se visa é um novo código ad-
ministrativo embasado sobre o princípio da moralidade e do
combate a corrupção e não apenas um pacote, consoante am-
bicionado pelos doutos. Um código no qual essa perspectiva
da moralidade e dos princípios da eficiência e desenvolvimen-
to humano estejam entranhados na letra da lei, mesclados à
alma do sistema jurídico. Um código, conforme defendemos,
que reestruture o Estado, reformule o seu propósito, torne-o
mais eficiente, etc. É neste sentido que estudos tão profícuos
não podem e não devem ser desperdiçados. Devem ser aprovei-
tados como substrato válido, essencial a uma nova codificação.

146
A Codificação Administrativa

E depois desse breve exame sobre o aproveitamento do conteú-


do dos projetos de lei numa eventual codificação, progredimos
rumo à compreensão e utilização das lógicas de estruturação já
empregados em outros códigos em tal intuito.

4.2.6 Compreensão e aproveitamento das lógicas


e estratégias de estruturação já utilizadas por
outros códigos
Afora uma ou outra exceção à regra geral, é fácil notar a au-
sência de qualquer conexão substancial entre os códigos hoje exis-
tentes no país. A falta de convergência e homogeneidade as quais
possam fornecer um sentido maior de unidade ao ordenamento
jurídico acaba por reverberar numa legislação fragmentária e des-
conectada entre si. A falta de uma padronização ou harmonização
mais refinados geram descompassos internos os quais dificultam
qualquer tentativa de uniformização normativa. Cada código
revela-se como um universo autônomo, com uma metodologia e
estilos próprios, sem que haja ainda um critério de codificação
único o qual funcione como mecanismo de coesão e integração
sistêmica. Apesar disso, existem estruturas normativas as quais
são dignas de nota. É bem verdade, por exemplo, que o Código de
2003 preservou os alicerces de uma base civil sólida inaugurada lá
no início do século XX. O próprio Reale, na exposição de motivos
do CC/03 realça esse cuidado de proceder a uma atualização do
código civil anterior. Atualização a qual equipara-se muito mais
a uma adaptação dos institutos aos tempos atuais que propria-
mente a promulgação de um novo código (Exposição de Motivos,
CC/03). A estrutura normativa anterior restou preservada, into-
cada. A estrutura do CTN, de igual modo, resiste bravamente.
Isso apesar da defasagem de muitos conceitos tributários os quais

147
Túlio Eugênio dos Santos

também merecem ser objeto de nova valoração. O novo Código


de Processo Civil trouxe, por sua vez, essa noção maior de fluidez
e elasticidade. Esta concepção ainda está a amadurecer sob deter-
minados aspectos. Conectou também o direito instrumental a um
mundo mais globalizado e digitalizado, além de dialogar aberta-
mente com outros ramos do direito (como o direito internacional,
por exemplo) (CPC).
Diante de tantas codificações, antigas e recentes, ambiciosas
ou despretensiosas, revitalizadas ou não, resta-nos indagar acerca
da possibilidade de inauguração de um modelo comum de codifi-
cação. Uma plataforma jurídica a partir da qual possa montar-se
um modelo comum de codificação, qualquer que seja a comissão
ou responsável pela elaboração da lei. Um método atemporal e
universal o qual permita real unificação do sistema jurídico sob
o aspecto estrutural, linguístico, epistemológico, filosófico, etc.,
tornando-o não apenas mais íntegro mas também mais acessível e
eficiente enquanto ordenamento.
Louvamos, neste sentido, a parte de legislação internacional
embutida no novo CPC. Também não hesitamos em aprovei-
tar trechos inteiros do excelente Código Tributário Nacional,
com suas normas sobre princípios, aplicabilidade, integração,
competências legislativas, etc. Resta-nos raciocinar sobre os ar-
ranjos visados para os demais dispositivos do código. Existem
várias fórmulas aferíveis, neste sentido. Apenas para exempli-
ficar, a solução da parte geral do código penal soa como uma
das mais inteligentes. Hungria foi perspicaz ao conceber a parte
geral vinculada diretamente à teoria do crime. A estruturação,
eivada de forte coesão lógica, possui um início, um meio e um
fim, os quais representam, em última análise o início, o meio e
o fim do ciclo do crime. Destarte os detalhes inerentes a qual-
quer código, a sistemática incide basicamente sobre o estudo
dos elementos do tipo penal (conduta, nexo de causalidade,

148
A Codificação Administrativa

resultado, etc.), sobre o iter criminis, excludentes, pena aplicada


(dosimetria), cumprimento de pena (livramento condicional,
etc.) até o culminar com a extinção da pena referente ao crime
cometido, seja pelo cumprimento da sanção aplicada ou pela
prescrição, morte do agente, etc. Existe, portanto, um nexo in-
terno na narrativa desse código o qual torna-o tão denso como
sólido. Após isso, seguem-se as tipologias penais de praxe.
O Código Civil de 1916 também traz em si a gênese desta
parte geral bem delineada. Aliás, foi tão bem elaborada que, à
época, a Lei de Introdução do Código Civil, a LICC, funcio-
nava também como a norma de introdução a todo o sistema
jurídico brasileiro. Apenas depois disso, vinham as disposições
da Parte Geral condizentes à personalidade humana, fatos ju-
rídicos, atos jurídicos, etc., até atingir o momento de extinção
destes últimos (prescrição e decadência). Essa estruturação não
está tão evidente quanto na codificação penal, mas nem por
isso deixa de ser - principalmente pelo aspecto linguístico - um
dos maiores monumentos jurídicos brasileiros. Detecta-se, de
imediato, uma narrativa lúcida e inteligível, a qual foi replicada
na legislação posterior. Despiciendo informar que essa lógica
também é agasalhada pelo CTN, o qual desdobra-se numa li-
nha que vai do surgimento da obrigação tributária com a de-
tecção do fato gerador, passa pela inscrição e vai até às formas
de extinção do crédito tributário.
Tecemos essas longas considerações sobre as partes gerais
com o fito de evidenciar quão importante é esse pedaço ini-
cial do código para a estrutura de toda a lei. A parte geral é
a alma do microcosmo jurídico, a sua base, o eixo jurídico de
onde emanam e fluem todos os princípios, valores, soluções,
etc. Daí a imprescindibilidade desta parcela ser clara, didáti-
ca, direta e inteligível. Um código administrativo deve ser um
código dirigido não apenas ao gestor, ao funcionário público

149
Túlio Eugênio dos Santos

ou ao político. Deve ser um código voltado para o cidadão,


uma legislação a qual evolua no sentido de esclarecer a este
quais são os seus direitos e o seus deveres perante o estado.
Um código técnico, o qual trate de regramentos concernentes
à validade, aplicabilidade e interpretação da lei administrativa,
mas que também possa ser colocado em cada uma das reparti-
ções públicas do país, como o código do consumidor o é com
os estabelecimentos comerciais; um código que coloque um fim
definitivo à fantasmagoria da competência legislativa adminis-
trativa e que possa funcionar como instrumento de catálise e
assimilação normativa de novos princípios éticos; um código
conectado com a concretude da realidade, integrado ao resto
do sistema jurídico e que traga em si a consistência de uma
coesão bem desenhada, feita para durar.
Apenas após a concepção desse núcleo contido na parte geral,
passaríamos aos demais desdobramentos jurídicos arranjados sobre
a lógica relacional, seja quanto à diferenciação entre estado admi-
nistração e governo, seja quanto à relação do ente estatal com as
instituições privadas e públicas, etc. Anexaremos, mais adiante, a
nossa sugestão completa quanto à estrutura do código administra-
tivo. Apresentaremos, na verdade, um rascunho provisório, cujo
estudo merece ser desenvolvido, minudenciado. Evidente, tais
ideias não são definitivas e o grande trunfo é permanecer com a
mente aberta para críticas e outras sugestões. Pode-se até adotar
futuramente outro eixo estrutural ou simplesmente agregar novas
estruturas. O que não se pode é ficar indiferente às considerações
expostas, as quais não podem ser descartadas de plano. Isto por-
que, enxergamos uma grande vitória apenas e tão somente no fato
de abrirmos toda uma nova percepção com relação a um tema o
qual ainda nos é muito caro.

150
A Codificação Administrativa

4.3 A análise da linguagem. Considerações


quanto à linguística e aspectos normativos
correlatos. Sugestão de design estrutural
da codificação

4.3.1 A inteligibilidade e a eficiência normativa


do Código
Acentuamos desde o início desta pesquisa a importância da
linguagem na desmistificação dos arquétipos do atraso e na re-
construção de novos valores éticos. Uma codificação é o ambiente
adequado para a absorção simbólica desse novo arcabouço axio-
lógico e epistemológico. Daí a imprescindibilidade de atentar-se
para a intuitiva noção acerca da relevância da clareza do idioma e
sua inteligibilidade. Essa noção básica restou expressada há mais
de um século por juristas do quilate de Rui Barbosa, o qual, em
1904, fez a sua monumental “Réplica” ao trabalho de Carneiro
Ribeiro: “[…] sendo a língua o veículo das ideias, quando não for
bebida na veia mais limpa, mais cristalina, mais estreme, não ver-
terá estreme, cristalino, límpido o pensamento de quem a utiliza
[...].” (BARBOSA, 1902, p. 302).
E ainda:

[...] Se a lei não for certa, não pode ser justa: legis tantum
interest ut certa sit, ut absque hoc nec justa esse possit”.
Para ser, porém, certa, cumpre que seja precisa, nítida,
clara. E como ser clara, ser for vazada nos resíduos im-
puros de um idioma de aluvião? Se não espelhar nessa
língua decantada e transparente, que a tradição filtrou
no curso dos tempos? Aspirar à clareza, à simplicidade e à
precisão sem um bom vocabulário e uma gramática exata

151
Túlio Eugênio dos Santos

seria querer o fim sem os meios. A lucidez no estilo das


leis “ depende, a um tempo, da lógica e da gramática”, diz
Bentham, “ciências que é mister possuir a fundo, para dar
às leis redação boa” [...] (BARBOSA, 1902, p. 302).

Testemunhamos a partir deste ponto a necessidade de zelo


por detalhes os quais vão além da estruturação do esqueleto do
código. A preocupação agora é moldar e implantar uma lingua-
gem a qual seja reflexo direto da burocracia que desejamos ter.
Simples, direta, eficiente. A filosofia da linguagem apresenta-se
como elemento relevante neste contexto e no âmbito da efe-
tividade da norma enquanto lei. Ela pode ser encarada como
um cartão de visita do próprio legislador e de suas pretensões.
Aprofundaremos melhor esse assunto, quando adicionarmos o
fator linguístico como um dos elementos a serem considerados
quando da redação das leis, quesito hoje ausente nas diretrizes
formais estabelecidas para o tema. Assinalamos, no mais, uma
equação a qual nos parece bastante válida. Uma razão direta de
proporcionalidade pela qual constata-se que uma lei será tão efi-
ciente quanto maior for o seu grau de inteligibilidade. Fazer-se
entender ou compreender é um dos maiores trunfos de qualquer
legislação ou relação comunicacional (HABERMAS, 1997). A
sua inteligibilidade influi de modo determinante no aumento da
efetividade normativa. E se o Direito Administrativo pode ser
utilizado como um medium de introdução de novos valores éticos
aceitos tanto pelo pacto quanto pelo consenso, então soa razo-
ável a necessidade de dar especial atenção à linguagem, que é o
instrumento pelo qual tais valores se materializam.
A realidade, segundo Habermas (1997), pode ser traduzida em
códigos linguísticos. As normas e códigos jurídicos são dois desses
códigos. Esses, por sua vez, nada mais são do que a leitura da rea-
lidade sob a perspectiva do Direito. Aliás, como anotamos desde

152
A Codificação Administrativa

o início, o próprio vocábulo código, encarado sob a perspectiva


etimológica, contém em si essa peculiaridade de poder ser definido
como um conjunto de signos. Essa visão semântica, além de enri-
quecedora, como veremos, é necessária.
Embora a linguagem revele-se como instrumento fundamental
na compreensão da norma ou da codificação, existe ainda muito
pouco material disponível a tratar do assunto. Após investigação
internáutica deparamo-nos somente com um único link o qual
versava sobre o assunto. A Lei Complementar nº 95, de 26 de
Fevereiro de 1998 (BRASIL, 1998c), estabelece normas e diretri-
zes para a redação, alteração e consolidação de leis. Esse pequeno
manual legal versa de um modo geral sobre a estrutura dos atos
normativos (parte preliminar, parte normativa e parte final), alude
à articulação dos atos administrativos (artigos, parágrafos, alíneas,
incisos, etc.) e, o que nos interessa, aborda também a redação dos
atos normativos. Especificamente quanto à redação dos atos nor-
mativos, observamos as seguintes diretrizes, elencadas nos artigos
11 e ss. da mencionada lei:

Art. 11- As disposições normativas serão redigidas com


clareza, precisão e ordem lógica, observadas, para esse
propósito, as seguintes normas: I- para obtenção de cla-
reza: a) usar as palavras e expressões em seu sentido co-
mum, salvo quando a norma versar sobre assunto técni-
co, hipótese em que empregará a nomenclatura própria
da área em que se esteja legislando;b) usar frases curtas e
concisas; c)construir orações na ordem direta, evitando
preciosismos, neologismos e adjetivações dispensáveis. d)
buscar a uniformidade do tempo verbal em todo o texto
das normas legais, dando preferência ao tempo presen-
te ou ao futuro simples do presente;e) usar recursos de
pontuação de forma judiciosa, evitando abusos de caráter
estilístico; II – para obtenção de precisão: a) articular a

153
Túlio Eugênio dos Santos

linguagem, técnica ou comum, de modo a ensejar perfei-


ta compreensão do objetivo da lei e a permitir que seu
texto evidencie com clareza o conteúdo e o alcance que
o legislador pretende dar à norma; b)expressar a ideia,
quando repetida no texto, por meio das mesmas palavras,
evitando emprego de sinonímia com propósito meramen-
te estilístico; c)evitar o emprego de expressão ou palavra
que confira duplo sentido ao texto; d)escolher termos que
tenham o mesmo sentido e significado na maior parte do
território nacional, evitando o uso de expressões locais
ou regionais; e) usar apenas siglas consagradas pelo uso,
observando o princípio de que a primeira referência do
texto seja acompanhada da explicação do seu significado;
f) grafar por extenso quaisquer referências a números ou
percentuais, exceto data, número de lei e nos casos em que
houver prejuízo para a compreensão do texto; (redação lei
complementar nº 107/01); g) indicar, expressamente o dis-
positivo objeto de remissão, em vez de usar as expressões
“anterior”, “seguinte” ou equivalentes; (redação lei com-
plementar nº 107/01) [...] (BRASIL, 1998c, on-line).

Depreende-se da leitura acurada da lei que os itens concer-


nentes à clareza e precisão são os únicos os quais realmente tra-
tam do quesito redação textual da norma. Os demais itens da
ordem lógica, remissões, etc., também contidas nesta norma, di-
zem respeito mais à divisão de seções, títulos e referenciações do
que propriamente ao modo de redação textual. Não estão sequer
indiretamente conectados ao assunto da linguagem, objeto deste
tópico. Uma vez esclarecido este ponto, podemos observar ser
este um campo fértil para a teorização. A linguagem é um bem
de força inestimável e o poder dos signos restou comprovado em
nossa pesquisa quando constatamos vários deslizes contidos na
CF/88 e até em trechos do hino nacional (DUQUE ESTRADA,
1971). A descoberta de tais lapsos, sejam eles relativos à estrutu-

154
A Codificação Administrativa

ra topológica ocupada por determinados assuntos, ou seja, pelas


abordagens efetuadas ou expressões utilizadas revelam muito.
Tais atos falhos do legislador traduzem defeitos da formação iden-
titária e cultural brasileira. Expõem arquétipos os quais merecem
ser desconstruídos e induzem a um novo patamar de consciência
que até aqui inexistia.
Apenas para situar o problema em um plano mais científico o
qual concatena-se com a filosofia, psicologia social, cultura e di-
reito, transcrevemos abaixo os ensinamentos de Lane, sobre o as-
sunto: “[...] Por outro lado, os atos ilocutórios implícitos decorrem
do fato que “os indivíduos não são donos de operar seus posiciona-
mentos, pois, pelo contrário, este posicionamento é que estabelece
suas identidades.” (LANE, 2001, p. 52).
Continuando,

Desse modo, Flahault mostra como a ação de falar im-


plica relações de posições e a língua se apresenta como
resultado e como matéria-prima do processo discursivo. A
relação de linguagem com o real necessariamente sofre a
mediação das posições sociais de grupo e/ou classe social
e portanto um discurso está sempre em confronto com
um mundo já repleto de significações sempre já ordena-
do, sempre já socialmente arrumado; um mundo que é o
efeito de “uma produção social dos sentidos, que reproduz
inevitavelmente a produção material, e pela inserção de
cada indivíduo, corpo e alma, nesse universo semiológi-
co.” (LANE, 2001, p. 85, grifo nosso).

Por fim,

Entendendo-se por universo semiológico o conjunto


de signos socialmente criados – seria a natureza so-
cialmente recriada e transformada. Neste sentido, este
universo traz em si toda a ideologia de uma sociedade

155
Túlio Eugênio dos Santos

que se reproduzirá na linguagem dos discursos situa-


dos. Compreender representações sociais implica então
conhecer não só o discurso mais amplo, mas a situa-
ção que define o indivíduo que as produz. Para tanto
Flahault desenvolve a noção de Espaço de Realização
do Sujeito (ERS). Esse espaço é “o retorno, a mani-
festação, em figuras indefinidamente variáveis, de uma
instância que atuou de início como constitutiva do su-
jeito: a linguagem enquanto que Outro (grande Outro
lacaniano), enquanto que laço absoluto ao qual todos
estão sujeitos.” (LANE, 2001, p. 54, grifo nosso).

Como podemos observar, podemos identificar na linguagem,


nas leis e até nos códigos as expressões condensadas do modo
de pensar de um povo. É em tais codificações que nos depara-
mos com a sua visão de mundo e que constatamos qualidades e
vícios. É nesse sentido que postulamos a progressão rumo a um
patamar de cognição mais profundo no concernente ao processo
normativo. Defendemos um urgente aperfeiçoamento das técni-
cas de redação legislativa. Tais novas técnicas transcenderiam
a atual concepção superficial e mecânica, meramente sintática
ou gramatical, para situar-se num plano linguístico que agre-
gue a variável de correção de erros semiológicos, à prevenção
de eventuais dissonâncias de arranjos comunicativos e à absor-
ção de novos valores éticos. A instalação de filtros linguísticos na
fase de elaboração da norma, durante a sua redação, contribuiria
muito para evitar a perpetuação de tais vícios. Essa autocons-
ciência, agregada ao monitoramento sistemático ou fiscalização
permanente contra resvalos do próprio legislador, funcionaria
como precaução face aos mencionados arquétipos do atraso nas
codificações vindouras. A inserção explícita desta perspectiva
filosófica na retromencionada lei complementar incrementaria o
sistema de elaboração normativa, sofisticando-o.

156
A Codificação Administrativa

4.3.2 A necessidade de sintonia fina entre a


intenção epistemológica da codificação e da
concretude da realidade, de modo a facilitar a
sua aplicação
Saímos da esfera do estudo linguístico e abordamos neste mo-
mento o estudo de temas normativos correlatos os quais assumem
também relevância numa codificação. A busca de um ponto ótimo
entre a intenção epistemológica do codificador e a concretude da
realidade revela-se também como uma espécie de santo graal da
ciência jurídica. Uma codificação que se preza, zela por renovação
dos institutos. Somos então apresentados ao problema encontrado
pelo codificador em sua procura por tal ponto ótimo. Denomi-
namos esse problema como o dilema do legislador. Sabemos que o
direito enquanto linguagem oscila entre o ser e o dever ser, entre
o ideal abstrato contido na norma e a concretude da realidade.
Detectamos por via desse exame que, quanto mais a norma ten-
de ao ideal e se afasta da realidade, menores são as chances de
sua realização efetiva. Essa frustração é denominada pela doutrina
como Síndrome da Inefetividade (CANOTILHO, 1997). Esta-
mos diante, pois, de uma frustração utópica a qual reverbera em
distopia. O dilema completa-se quando o legislador elabora uma
norma demasiadamente próxima da realidade. Essa proximidade
demasiada com o elemento concreto torna a norma indubitavel-
mente mais efetiva, por estar melhor sintonizada com a realidade.
Entretanto, a nova lei, uma vez formulada desta maneira, perde
a qualidade de inovação que lhe é inerente, passando a ser um
instrumento de conformação e não de transformação. Sob esse
foco, perderia ela a sua razão ou sentido de ser. Daí o dilema do
legislador e a sua eterna busca de um ponto ótimo de efetividade
da norma, onde esta não se esvaia numa frustração utópica nem

157
Túlio Eugênio dos Santos

sofra de conformação excessiva. A efetividade visada é aquela na


qual a norma abstrata encontra na realidade o ambiente favorável
a sua realização plena, sem que seja necessário abrir mão de sua
característica transformadora.
Despiciendo evidenciar, a mudança aqui conjecturada diz res-
peito inclusive aos valores éticos os quais precisem ser adequada-
mente densificados no ordenamento jurídico. Atingir o ponto óti-
mo normativo significa obter o máximo de efetividade em termos
de positivação e aplicabilidade. Reale é dos que corrobora essa po-
sição. Esse jurista posiciona-se no sentido de que, além de dispor
do alcance de um sistema constitucional sólido e ser tecnicamente
bem formulada, deve a legislação aproximar-se ao máximo da nos-
sa realidade (REALE, 2000).
Ainda nesta toada, redigimos artigo no qual visualizamos um
modelo o qual se aplica justamente neste espaço de concretização
da norma. E não estamos a falar de sua aplicação concreta por
via dos gargalos judiciais, pois existem muitas outras formas de
consecução da lei as quais vão desde a sua aplicação pelo gestor
público no exercício de suas atividades até o seu cumprimento di-
reto pelo cidadão comum, quando, por exemplo, respeita uma lei
de trânsito. E por mencionar as normas de tráfego, sustentamos
que o marco divisório em termos de efetividade da norma foi a lei
seca. Embora criticada por muitos por ser supostamente restritiva
da liberdade de ingerir bebida alcoólica, a verdade é que a conduta
em si já era tipificada antes da sua promulgação. A Lei 11.705/08
(BRASIL, 2008) nada mais fez senão cercar-se de instrumentos os
quais garantiram-lhe a efetividade máxima. Além do agravamento
de uma pena já existente, a realização plena da norma originou-se
de uma concepção de abordagem múltipla. Esta abordagem con-
sistia no conjugar de uma norma bem redigida à incorporação de
novos valores éticos conscientemente assimilados e campanhas
massivas de esclarecimento. Some-se a isto uma série de medidas

158
A Codificação Administrativa

como recrudescimento da fiscalização policial, uso do etilômetro


e até o aparecimento de novos hábitos culturais (como o uso mais
frequente de táxis e a institucionalização do motorista da rodada).
A utilização orquestrada de estratégias normativas, sociológicas,
governamentais e até culturais redundou numa estatística a qual
exemplifica o sucesso de uma lei plenamente efetiva. A diminui-
ção do número de óbitos causados por embriaguez ao volante foi
o resultado concreto de uma solução encontrada em meio à es-
tratégia de abordagem múltipla. A imprensa nacional deu ampla
cobertura ao êxito de tal empreitada, como se pode ler na man-
chete do jornal O Povo, onde acentuou-se “Fortaleza: Mobilidade
urbana. Número de mortos no trânsito é o menor já registrado.”
(ANDRADE, 2017).
Conquista semelhante só havia sido detectada na campa-
nha de erradicação da paralisia infantil, onde políticas públicas
aliaram-se a normas, campanhas ostensivas e, claro, adesão da
população destinatária de tais normas. Desnecessário aventar
que estamos a falar de um modelo o qual pode ser utilizado em
frentes outras, como o combate à corrupção, a promoção do de-
senvolvimento humano ou da eficiência burocrático-gerencial.
Cuida-se, inequivocamente, de um modelo de efetividade nor-
mativa fulcrada em estratégias já vitoriosas e comprovadas, cujo
estudo merece ser aprofundado.

4.3.3 O item da reflexividade considerado ainda


durante a fase de elaboração do Código
Consideramos no tópico anterior a questão da efetividade da
norma. Ou seja, dissertamos sobre o grau de realização da norma
abstrata quando esta entra em contato com a concretude da reali-
dade. Elencamos algumas estratégias as quais auxiliam a sua reali-

159
Túlio Eugênio dos Santos

zação máxima, a suprir esse déficit, o qual também é denominado


síndrome da inefetividade (CANOTILHO, 1997). Passaremos
agora ao exame de uma etapa posterior, tão importante quanto
a fase já mencionada. Não examinaremos somente o grau de rea-
lização do conteúdo da norma. Avançaremos rumo à análise dos
efeitos reflexos da norma editada. Esse estudo é importantíssimo,
na justa medida em que revela a superficialidade e imediatismo
da mentalidade do legislador brasileiro, quase sempre atrelado à
soluções casuísticas ao invés de pensar o sistema sob o seu aspecto
estrutural ou linguístico.
Some-se a isso a completa ausência de um raciocínio conse-
quencial, quando estamos a falar de normatizações ou codifica-
ções. A falta de uma etapa específica a qual avalie os impactos
da normatização e seus desdobramentos, a superficialidade com
a qual o tema é tratado na prática e a ausência de instituciona-
lização efetiva desse raciocínio consequencial revela-se na pró-
pria concepção do procedimento legislativo. Observamos no
procedimento de criação de leis concebido pela Constituição
um fenômeno linear, abstrato o qual desconsidera por completo
os efeitos reflexos da norma. O procedimento legislativo atual-
mente é voltado apenas para a norma em si e não para as suas con-
sequências (SANTOS, 2018). Mormente esses efeitos reflexos já
sejam reconhecidos como existentes nas sociedades complexas,
inexistem ainda etapas de avaliação ou prognósticos inseridos
dentro do processo legislativo. A doutrina, ademais, nomina
esse fenômeno como reflexividade. A reflexividade, portanto,
é o conjunto de efeitos produzidos pelas leis ao tocarem com a
concretude da realidade. Esse contato reverbera em consequ-
ências várias. E, dentre essas consequências, estariam a criação
de novas situações, as quais, por sua vez constituiriam novas
demandas, pendentes de normatização. Esse seria o que deno-
minamos de ciclo da reflexividade.

160
A Codificação Administrativa

Não há, consoante afirmamos, quaisquer instrumentos inse-


ridos dentro do procedimento normativo aptos a funcionar como
medidores dessa reflexividade ou dos prováveis impactos da lei em
trâmite no plano da realidade. Esta lógica consequencial, aliás,
sequer compõe o rol de preocupações do legislador. Evidente, o
normatizador elabora a lei com a melhor das intenções e a própria
norma, enquanto abstração, pode parecer perfeita dentro do seu
ideal normativo. Todavia as repercussões desta lei quando do seu
contato direto com om plano da realidade é variável que ainda
não está formalmente elencada dentro da equação legislativa. A
norma, claro, pode desvirtuar-se ou desviar-se do objetivo inicial
visado e isso é mais comum ocorrer do que se imagina e as atua-
lizações hermenêuticas e até as mutações constitucionais estão aí
para comprovar isso. O recente desvirtuamento do âmago da lei
de combate à corrupção, iniciativa popular a qual restou modifi-
cada em sua essência após emendas sucessivas dos próprios legis-
ladores, constitui exemplo emblemático do que se fala. Eis uma
deturpação sucedida ainda durante o trâmite da norma, sobre a
qual inexistia qualquer instrumento de controle interno, o qual
zelasse pela manutenção do objetivo inicial da norma. Essa detur-
pação dos fins da lei, constatamos, ocorre tanto após o contato
da norma com a realidade como até durante a fase do próprio
procedimento legislativo. Esse descompasso existente entre as de-
mandas da realidade e a norma avoluma-se de modo a assumir
feições estruturais. Quando esse déficit atinge proporções sistê-
micas, podemos dizer que estamos diante da crise de reflexividade.
A crise de reflexividade é muito bem comentada por Canotilho,
consoante abaixo assinalado:

[...] Por crise de reflexividade pretende-se exprimir a


impossibilidade de o sistema regulatório central gerar
um conjunto unitário de respostas dotadas de raciona-

161
Túlio Eugênio dos Santos

lidade e coerência relativamente ao conjunto cada vez


mais complexo e crescente de demandas ou exigências
oriundas do ou constituídas no sistema social (CANO-
TILHO, 1997, p. 1348).

Observamos então, pelas palavras do doutrinador português,


o aumento da demanda normativa advinda de uma sociedade
complexa. O aumento dessa demanda avoluma-se na mesma pro-
porção da crescente incapacidade do Estado de catalisar e mate-
rializar tais anseios acumulados. Desenha-se então uma situação
de expectativas represadas. Essa frustração ou incapacidade de
resposta a uma demanda exorbitante gera a denominada crise de
reflexividade. A pressão descomedida sobre um legislador sobrecar-
regado aguça ainda mais o senso de imediatismo vigente. Normas
passam a ser editadas em caráter de urgência, sem os estudos ne-
cessários ou critérios mínimos. Essa crise de reflexividade trava o
sistema. Sobram provas que o legislador de há muito procrastina o
seu dever de legislar. Vislumbramos então pendências de todos os
matizes e naturezas, as quais vão desde a necessidade de promul-
gação de uma reforma tributária até as pendências de uma reforma
previdenciária, codificação administrativa, etc.
Além desse acúmulo não atendido, observamos também o sur-
gimento de normas ou reformas concebidas de afogadilho, sem
uma ponderação maior quanto aos seus desdobramentos práticos
ou concretos. O legislativo atua como se a votação de lei em si
fosse a solução para os problemas da realidade, esquecendo-se da
necessidade de levar em consideração a produção dos efeitos dessa
norma quando entra em contato com a realidade. Sequer há a
consciência de um direcionamento estrutural a ser dada a uma
codificação ou o que valha. Constatamos então um legislador en-
tregue às circunstâncias, sem qualquer discernimento quanto à
situação de médio ou longo prazo, sem uma noção da relevância

162
A Codificação Administrativa

do seu papel, preso às conveniências ou necessidades de ocasião.


O resultado prático da falta desse cuidado mínimo revela-se em
situações constrangedoras sob o aspecto institucional. Situações
como o recente alargamento da vacatio legis do NCPC/2015 ou em
questionamentos incidentes sobre a própria reforma trabalhista,
surgidos logo após a sua edição, os quais pressionam para a revisão
de posições já normatizadas. A ausência de uma preocupação séria
com relação aos efeitos reflexos da norma, da sua viabilidade prá-
tica ou do seu impacto econômico, financeiro, cultural, etc., tem
provocado, assim, situações de insegurança jurídica. Tais circunstân-
cias denotam a existência de um legislador de mãos e pés atados.
Legislador o qual negligenciou ao tentar lidar com tais problemas,
que deixou-os acumular e fracassou ao tentar desvencilhar-se de
tais amarras. Legislador que ainda não despertou para a impor-
tância de sua função. Um legislador o qual não legisla e, quando
legisla, o faz mal. Um legislador que edita normas de afogadilho,
sem qualquer preocupação consequencial, estrutural ou até se-
miológica. Um legislador o qual acelera em questão de instantes
de uma letargia procrastinatória aos rompantes de iniciativas tão
bruscas quanto atrapalhadas. Atesta-se, desta feita, a inexistência
de razoabilidade, capricho ou ponderação. Enfim, conclui-se pela
ausência de uma autoconsciência normativa por parte de quem
elabora a lei. Some-se a esta ausência de consciência a falta de um
processo legislativo adaptado às situações da sociedade hipercom-
plexa e teremos um panorama geral da situação em tela.
Assim, tanto sob o aspecto da saturação de um sistema emper-
rado pelo excesso de demandas normativas como pela necessidade
de avaliação de uma previsibilidade mínima dos impactos da nor-
ma a ser promulgada é que entabulamos a necessidade do legisla-
dor dispor de um instrumento de prognóstico ainda nesta fase de
gestação da lei. Este instrumento de avaliação prognóstica, como
dizíamos, garantiria uma segurança a mais sobre a determinação

163
Túlio Eugênio dos Santos

dos efeitos reflexos da publicação de uma norma. Ajudaria a pre-


venir impactos negativos, permitiria corrigir com antecipação des-
vios prováveis e até auxiliaria no desafogamento e destravamento
do sistema, viabilizando inclusive o sobredito direcionamento es-
trutural do ordenamento. Este é um pleito cabível, necessário. E
o clamor de uma “normatização da normatização” a qual atenda às
demandas de uma sociedade hipercomplexa já foi inclusive assina-
lado por Marcelo Neves. Ou, consoante o texto abaixo transcrito:

Assim, pode-se apontar para a decisão sobre a tomada de


decisão nas organizações, a normatização da normatização
no direito, o ensino do ensino (ou educação do educador)
[…] A reflexividade relaciona-se imediatamente à autor-
referência de processos, mas ela tem um significado no
plano das estruturas. Por exemplo, a troca (processo), ao
implicar a moeda (estrutura), relaciona-se com a refle-
xividade no plano estrutural, um ter de segunda ordem
(dinheiro) referente ao ter de primeira ordem (bens). Os
argumentos referentes aos princípios são processos refle-
xivos à luz dos princípios como estrutura de reflexividade,
ou seja, como normas reflexivas em relação às normas. Os
mecanismos ou processos reflexivos e as respectivas estrutu-
ras de reflexividade incrementam a dinâmica correspondente
a um ambiente supercomplexo. Em sociedades menos com-
plexas, o desenvolvimento de mecanismos reflexivos é muito
limitado. A troca de bens era suficiente para a dinâmica
da economia. A falta de educação formal na escola torna-
va irrelevante educar o educador. A dominação fundada
religiosamente não era suscetível de subordinar-se a con-
trole por outro poder político. A fundamentação do direito
em verdades imutáveis tornava dispensável uma normatiza-
ção de processos de produção de normas gerais. As decisões
ocorriam fora de estruturas organizacionais, dependendo
seja de padrões fixados na tradição, seja de critérios con-

164
A Codificação Administrativa

cretos e difusos do eventual detentor do poder […] Com o


aumento da complexidade social, que implica a exigência de
diferenciação e especificação funcional, a autonomia dos res-
pectivos sistemas sociais passa a depender do desenvolvimento
de estruturas e processos reflexivos. Diante da hipercomple-
xidade social, os mecanismos e estruturas de observação de
primeira ordem tornam-se insuficientes para viabilizar uma
reprodução socialmente adequada dos respectivos sistemas
[...] (NEVES, 2013, p. 129-130, grifo nosso)

Basta uma leitura perfunctória do trecho acima transcrito para


notar que o autor não apenas identifica a questão da reflexividade
como um problema a ser sanado, mas também revela a fragilidade
da estrutura de normatização hoje vigente, para dar conta de toda a
demanda normativa de uma sociedade complexa. Traduzindo em
bom português, a sobredita normatização da normatização refere-se
à regulamentação do processo de normatização e metamorfoseia-
-se desde já como um dos elementos chave na promoção deste
desafogamento e de correção de distorções. Constatamos então,
com base nestes argumentos, a necessidade de reformulação do
processo legislativo dos artigos 60 e ss da CF/88 ou instituição de
uma regulamentação de fundo a qual insira, por expresso essa ava-
liação consequencial e estratégica. A institucionalização de um
pensamento reflexivo- consequencial o qual aperfeiçoe os meios
por certo facilitará a realização dos fins almejados por qualquer lei.
Despiciendo realçar o tamanho da importância da qual re-
veste-se essa dedução para uma codificação administrativa. Uma
percepção desta natureza permitira o direcionamento consciente
de uma codificação administrativa atrelada à políticas públicas e
à adoção de novas éticas e práticas culturais as quais sejam fruto
do consenso. Eis uma perspectiva essencial a ser levada em consi-
deração quando da codificação administrativa, a qual, não pode,
sob qualquer pretexto, ser ignorada. Numa palavra, a codificação

165
Túlio Eugênio dos Santos

administrativa deve nãpo apenas ter consciência de si própria mas


também deve antever as suas consequências em termos governa-
mentais, financeiros, sociais, culturais, éticos, etc. Temos conosco
que uma abordagem desta natureza lograria êxito em desafogar o
sistema, a permitir um aumento significativo da efetividade da co-
dificação vindoura fazendo com que ela funcione como elemento
indutor ou como fator real de transformação.

4.4 Sugestão de design estrutural do


código administrativo
Segue abaixo, depois de tantas considerações e estudos, o ápice
dessa dissertação, qual seja, a nossa sugestão sobre a estrutura do
Novo Código Administrativo. Antes, porém, apenas para expor a
dimensão da importância da semiótica para a confecção de uma
norma, ficaria a cargo do legislador decidir sobre a própria nomen-
clatura da codificação. Acaso optasse por uma abordagem a qual
desse ênfase à perspectiva do reforço do federalismo o ideal seria a
adoção do nome Código Administrativo Nacional (CAN), como o
fez o CTN. Se a intenção, por outro lado, for a de fazer esse um có-
digo do brasileiro, voltado para os anseios do administrado, então
o melhor seria batizá-lo de Código Administrativo Brasileiro (CAB).
Evidente, estamos aqui apenas a cuidar de elucubrações possíveis.
E, a continuar nessa esteira de raciocínio, segue abaixo a nossa
sugestão de estruturação da codificação administrativa:

166
A Codificação Administrativa

LIVRO I

TÍTULO I - DISPOSIÇÕES GERAIS E OS PRINCÍPIOS


ESTRUTURANTES DE DIREITO ADMINISTRATIVO

PARTE I - PRINCÍPIOS ESTRUTURANTES DE DIREITO


ADMINISTRATIVO

CAPÍTULO I – PRINCÍPIOS ESTRUTURANTES DE


DIREITO ADMINISTRATIVO

CAPÍTULO II – PRINCÍPIO ESTRUTURANTE DA DEMO-


CRACIA

CAPÍTULO III – PRINCÍPIO ESTRUTURANTE DO DESEN-


VOLVIMENTO HUMANO

CAPÍTULO IV – PRINCÍPIOS ESTRUTURANTES DA EFI-


CIÊNCIA E EFICÁCIA

CAPÍTULO V – PRINCÍPIO DA BOA ADMINISTRAÇÃO


(PRINCÍPIO DA PROBIDADE E COMBATE À

CORRUPÇÃO)

CAPÍTULO VI – PRINCÍPIO DA COLABORAÇÃO E PAR-


TICIPAÇÃO DEMOCRÁTICA

CAPÍTULO VII – PRINCÍPIOS DE DIREITO ADMINIS-


TRATIVO

CAPÍTULO VIII – PRINCÍPIOS DE DIREITO PÚBLICO

PARTE II - DISPOSIÇÕES GERAIS DE DIREITO ADMINIS-


TRATIVO

167
Túlio Eugênio dos Santos

CAPÍTULO I – A NORMA ADMINISTRATIVA

Seção I – Fontes do Direito Administrativo

Seção II – Interpretação e Integração do Direito Administrativo

Seção III – Aplicação da lei Administrativa no tempo e no espaço

Seção IV – Competência Legislativa em Direito Administrativo

Seção V – Competência Legislativa da União, em termos gerais.

Seção VI – Competência Legislativa Suplementar dos demais


entes federativos.

TÍTULO II - O ESTADO ADMINISTRAÇÃO EM SI

CAPÍTULO I – O ESTADO ADMINISTRAÇÃO

Seção I – Conceito do Estado Administração

Seção II – O Sistema Administrativo Constitucional

Seção III – Organização do Estado Administração e Princípio da


Simetria

Seção IV – Administração Pública Centralizada

Seção V – Administração Pública Descentralizada e Desconcen-


trada

Seção VI – Funções do Estado Administração

Seção VII – Poder de Polícia

168
A Codificação Administrativa

TÍTULO III - O ESTADO ADMINISTRAÇÃO EM SUAS


RELAÇÕES INSTITUCIONAIS

CAPÍTULO I - AS RELAÇÕES INTERNAS ENTRE ESTADO


ADMINISTRAÇÃO E O ESTADO GOVERNO

Seção I – Conceito de Governo

Seção II – Diferenciação entre Estado Governo e Estado Admi-


nistração

Seção III – A Regulamentação da Relação existente entre o Estado


Governo e o Estado Administração

Seção IV – A regulamentação da relação interna entre o poder


político e a burocracia.

Seção V – A aplicação do princípio da boa administração.

Seção VI – Normas de respeito ao projeto de estado (planificação)


e modo de uso do espaço de discricionariedade deixado ao gestor
público

Seção VII – As novas responsabilidades administrativas, penais e


civis, pela adoção, por parte do chefe do executivo, de políticas
públicas destoantes do projeto de estado, que causem prejuízo ao
erário e/ou violem os princípios estruturantes e administrativos.

CAPÍTULO II - A RELAÇÃO DA ADMINISTRAÇÃO


PÚBLICA COM O INDIVÍDUO, SOB A ÓTICA DOS NOVOS

169
Túlio Eugênio dos Santos

VALORES ÉTICOS E PRINCÍPIOS ESTRUTURANTES. O


ESTATUTO DO ADMINISTRADO

PARTE I – DOS DIREITOS E GARANTIAS DO INDIVÍ-


DUO ADMINISTRADO

Seção I – A DÚPLICE RELAÇÃO DO INDIVÍDUO COM O


ESTADO, OS DIREITOS E DEVERES.

Seção II – O ESTATUTO DO ADMINISTRADO, DIREITOS


E GARANTIAS DO INDIVÍDUO FRENTE À NORMATIZA-
ÇÃO E ATUAÇÃO ESTATAL.

Seção III – DOS DIREITOS

Subseção I – O Princípio da Prioridade do Administrado quanto


aos direitos ou exercícios dos direitos

Subseção II – O direito de defesa contra abusos ou desvios de poder

Subseção III – O direito positivo de erigir-se contra omissões esta-


tais de caráter legislativo e administrativo

Subseção IV – O direito de colaborar e cooperar com o ente


público, a democracia participativa

Seção IV – DAS GARANTIAS

Subseção I – Regime jurídico e sistema constitucional das garan-


tias do administrado frente à administração

Subseção II – Linhas gerais sobre os Remédios Constitucionais.

170
A Codificação Administrativa

PARTE II – DOS DEVERES DO INDIVÍDUO ADMINIS-


TRADO

Seção I – Do dever de obediência à lei e à Constituição

Seção II – Do dever de contribuir para o custeio da coisa pública

Seção III –Do dever de tolerar a atuação do Estado, efetuada de


acordo com Constituição da República

Seção IV – Do dever de colaborar e cooperar com o Estado

PARTE III – DA PONDERAÇÃO RAZOÁVEL ENTRE OS


DIREITOS E DEVERES NA RELAÇÃO DÚPLICE ENTRE O
INDIVÍDUO E O ESTADO

Seção I – Do dever de obediência à lei e à Constituição

Seção II – Do equilíbrio entre os direitos e deveres por via da har-


monização e sopesamento dos princípios da supremacia do inte-
resse público e o direito da prioridade do administrado.

Seção III – A preponderância do princípio da supremacia do inte-


resse público nas relações que encerrem deveres (nas quais inexis-
tam exorbitâncias do poder público)

Seção IV – a preponderância do princípio da prioridade do admi-


nistrado nas relações que encerrem direitos ou exercícios de direitos
e garantias (nas quais inexistam má-fé por parte do administrado)

171
Túlio Eugênio dos Santos

CAPÍTULO III - A RELAÇÃO DA ADMINISTRAÇÃO


PÚBLICA COM AS CORPORAÇÕES E INSTITUIÇÕES

PARTE I – DA RELAÇÃO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA


COM AS INSTITUIÇÕES

Seção I – Da relação da Administração Pública com as Institui-


ções Privadas

Seção II – Da relação da Administração Pública com as demais


Instituições Públicas

Seção III –Da relação da Administração Pública com o Poder


Legislativo

Seção IV – Da relação da Administração Pública com o Poder


Judiciário

PARTE II – DA RELAÇÃO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA


COM AS CORPORAÇÕES

Seção I – Da relação da Administração Pública com as Corpora-


ções Nacionais

Seção II – Da relação da Administração Pública com as Corpora-


ções Internacionais

Seção III –Da relação da Administração Pública com as Corpora-


ções Profissionais

172
A Codificação Administrativa

PARTE III– DA RELAÇÃO DA ADMINISTRAÇÃO


PÚBLICA COM ENTIDADES COLABORATIVAS

Seção I – DA PONDERAÇÃO RAZOÁVEL ENTRE OS INTE-


RESSES PÚBLICOS E INTERESSES PRIVADOS NAS RELA-
ÇÕES ENTRE A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA COM AS
CORPORAÇÕES, INSTITUIÇÕES E ENTIDADES COLA-
BORATIVAS.

Seção II – DAS RESPONSABILIDADES DO PODER PÚBLICO


E DAS ENTIDADES DE DIREITO PRIVADO EM TAIS
RELAÇÕES. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA VEDAÇÃO
DA PROMISCUIDADE ENTRE O PÚBLICO E O PRIVADO.

CAPÍTULO IV - A RELAÇÃO DA ADMINISTRAÇÃO


PÚBLICA COM O DOMÍNIO ECONÔMICO E O FOMENTO

Seção I – Conceito de Domínio Econômico

Seção II – Conceito de Fomento e a incidência do princípio do


desenvolvimento

Seção III –Possibilidades e limites da atividade de fomento

Seção IV – Responsabilização civil, administrativa e criminal por


deturpações na atividade de fomento.

173
Túlio Eugênio dos Santos

CAPÍTULO V - A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA EM SUA


ESTÁTICA. A RELAÇÃO COM O ORDENAMENTO JURÍ-
DICO, O DIREITO ADMINISTRATIVO MATERIAL

Seção I – FATOS ADMINISTRATIVOS

Seção II – ATOS ADMINISTRATIVOS

Seção III OBRIGAÇÕES ADMINISTRATIVAS

Seção IV – CONTRATOS ADMINISTRATIVOS

Seção V – SERVIÇOS PÚBLICOS

Seção VI – SERVIDORES PÚBLICOS

Seção VII – BENS E DOMÍNIOS PÚBLICOS

Subseção I – Definição de bens de uso comum do povo, bens de


utilidade pública e bens dominicais

Subseção II – Afetação e Desafetação de Bens Públicos

Subseção III – Linhas Gerais sobre regime jurídico dos Bens Públi-
cos dominiais (terras devolutas, plataforma continental, rios e
mares, florestas, minérios radioativos e subsolo em geral, petróleo,
espaço aéreo)

Seção VIII – DIREITOS REAIS DA ADMINISTRAÇÃO


PÚBLICA E DEMAIS INTERFERÊNCIAS NA POSSE E PRO-
PRIEDADE

Seção IX – DESAPROPRIAÇÃO

174
A Codificação Administrativa

Seção X – O CONFISCO DE BENS PARTICULARES ADQUI-


RIDOS COM CORRUPÇÃO E INFRAÇÕES CORRELATAS

Seção XI – PRESCRIÇÃO E DECADÊNCIA ADMINISTRA-


TIVOS

Seção XII – RESPONSABILIDADE CIVIL DA ADMINISTRA-


ÇÃO PÚBLICA

Subseção I – Conceito de Responsabilidade civil da Administração


e Requisitos

Subseção II – Tipos de Responsabilização Civil do Estado

Subseção III – Responsabilidade civil Objetiva do Estado com base


no Risco Administrativo

Subseção IV – Responsabilidade civil Objetiva do Estado com base


no Risco Administrativo por ato do poder público

Subseção V – Responsabilidade civil Objetiva do Estado com base


no Risco Administrativo por omissão do poder público

Subseção VI – Responsabilidade civil Objetiva do Estado com base


no Risco Integral em questões ambientais, de dano nuclear e ata-
ques terroristas

175
Túlio Eugênio dos Santos

LIVRO II

TÍTULO I - A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA ENQUANTO


PROCESSO. O PROCESSO ADMINISTRATIVO SOB A
LUZ DO PRINCÍPIO DO DESENVOLVIMENTO E DO
PRINCÍPIO DA EFICIÊNCIA/ EFETIVIDADE E OUTROS.

CAPÍTULO I - O EXERCÍCIO DOS DIREITOS PELO ADMI-


NISTRADO. A PRESTAÇÃO DO SERVIÇO PÚBLICO
COMO UM PROCESSO

CAPÍTULO II - O EXERCÍCIO DOS DIREITOS PELO


ADMINISTRADO. PROCESSOS ADMINISTRATIVOS DE
PARTICIPAÇÃO DEMOCRÁTICA (CONSULTAS, AUDIÊN-
CIAS PÚBLICAS, ETC)

CAPÍTULO III - GARANTIAS DO EXERCÍCIO DOS DIREI-


TOS DO ADMINISTRADO. MEIOS ADMINISTRATIVOS
DE DEFESAE REMÉDIOS CONSTITUCIONAIS .

CAPÍTULO IV -.O EXERCÍCIO DOS DIREITOS PELO


PODER PÚBLICO. PROCESSOS ADMINISTRATIVOS DE
ARRECADAÇÃO E COBRANÇA DE TRIBUTOS ( FISCAL)

CAPÍTULO V - O EXERCÍCIO DOS DIREITOS DO PODER


PÚBLICO PROCESSOS ADMINISTRATIVOS DE INTERFE-
RÊNCIA NA PROPRIEDADE E IMPLANTAÇÃO DE DIREI-
TOS REAIS (TOMBAMENTOS, SERVIDÕES ADMINIS-
TRATIVAS, ETC)

CAPÍTULO VI - PROCESSO LICITATÓRIO

176
A Codificação Administrativa

CAPÍTULO VII - PROCESSO DE CONCURSO PÚBLICO


PARA PROVIMENTO DE CARGOS

CAPÍTULO VIII - PROCESSOS ADMINISTRATIVOS DIS-


CIPLINARES APLICADOS AOS SERVIDORES PÚBLICOS E
PARTICULARES INFRATORES.

TÍTULO II - INTEGRAÇÃO E COOPERAÇÃO INTER-


NACIONAIS

TÍTULO III - DISPOSIÇÕES GERAIS FINAIS E REGRAS


DE TRANSIÇÃO

177
5 Conclusão

Após o devido estudo do tema e apresentação de uma sugestão


quanto à estrutura de uma possível codificação administrativa,
finalmente encerramos a presente pesquisa. Conclui-se essa inves-
tigação a ratificar a posição esposada logo ao início desse estudo,
pela qual a pesquisa científica é essencial para o dialético pro-
cesso de construção do conhecimento. O conhecimento, junta-
mente com a educação, revelam-se como as chaves mestras para
a edificação do destino de uma sociedade. Tanto o conhecimento
como a sua disseminação podem influir e serem determinantes
para o desenvolvimento. Daí o cuidado e o zelo para com qualquer
espécie de pesquisa, ainda mais relativamente a tópicos tão deli-
cados quanto os propostos no presente trabalho. Daí também a
humildade e a consciência crítica com a qual defronta-se ao lidar
com as muitas das conclusões obtidas ao longo deste árido trajeto.
Sabemos que elas não são e jamais serão definitivas e é importante
que permaneçam abertas, a fim de que possa existir a evolução.
Cabe asseverar, no entanto, que algumas lições específicas pre-
cisam ser assimiladas. A mais importante delas talvez seja o sinal
de um povo o qual toma consciência de sua existência enquanto
tal, a avaliar a sua identidade, questionar a sua história e portar-
-se de maneira não a proceder a ingênuos revisionismos históricos
mas sim de corrigir determinados erros do passado os quais ainda
subsistem no presente. Esse amadurecimento enquanto coletivida-
de e o encarar de frente as mais caras mazelas e feridas, superando
entraves arquetípicos com a consequente reconstrução identitá-
ria é muito importante. Tão relevante quanto a assimilação nor-
mativa desses novos valores éticos, a qual apresenta-se como um

179
Túlio Eugênio dos Santos

dos meios para a efetivação dessa reconstrução. A desconstrução


de dogmas inconscientemente enraizados na formação histórica
brasileira revela-se passo importantíssimo nessa empreitada. Con-
soante salientamos, devem-se evitar os revisionismos superficiais.
Isto porque, tais interpretações viciadas caracterizam-se principal-
mente pela negação sistemática da realidade, pela cegueira ideo-
lógica, etc. Tais revisionismos impedem a concretização de uma
autocrítica libertadora. Nada de varrer os pecados da nação para
debaixo do tapete, nada de transferir responsabilidades ou culpar
quem quer que seja. Sim, somente a partir do momento em que
tocamos as feridas amortecidas lá nos subterrâneos da psique co-
letiva é que será possível visualizar o real crescimento enquanto
povo, enquanto nação. Como dizíamos, já atingimos o grau de
maturidade para que isso possa ser feito.
Administrativamente falando, os mitos do atraso emperram
o desenvolvimento e perpetuam-se nos meandros da burocracia
brasileira. São eles a mão invisível da história a atrapalhar-nos
os caminhos. A balbúrdia administrativa atualmente vigente in-
variavelmente reflete-se na desorganização interna das institui-
ções. Replicou-se até aqui por meio dos já mencionados vícios.
Some-se o ranço dos vícios históricos culturais ao excesso de
legislação esparsa e à crise de reflexividade de um sistema defa-
sado e sobrecarregado e tomaremos tento da real dimensão do
problema. Defendemos e continuaremos a postular a sistematiza-
ção como uma das formas de combate a tais problemas. A codifi-
cação afiliada a uma sólida estrutura filosófica e principiológica,
somada a políticas públicas e campanhas de esclarecimento con-
tribuirá na catálise de novos valores éticos os quais já emergem
no seio da sociedade. Essa codificação, especificamente falando,
é que fornecerá uma racionalidade maior ao ordenamento ad-
ministrativo, livrando-o da pecha hoje existente de ser amorfo,
confuso, obtuso e contraditório.

180
A Codificação Administrativa

A codificação administrativa encerrará de vez este imbróglio


jurídico o qual arrasta-se há décadas. Pendência incabível no grau
de maturação onde nos situamos. E, avisamos, a persistência nes-
ta procrastinação pode custar caro ao país. Isto porque, além da
necessidade premente, uma codificação administrativa afigura-se
como a oportunidade histórica de romper em definitivo com o
sobredito passado e ter a chance de poder olhar com altivez para
o futuro. O legislador administrativo, representante maior da von-
tade popular cristalizada, consciente da importância do seu papel
histórico, terá a missão de aproveitar esse momento para repensar
o modo de ser e os propósitos do aparato estatal. Será também sua
a incumbência de plantar as sementes de uma nova cultura de co-
laboracionismo, solidariedade, eficiência, probidade, desenvolvi-
mento, participação democrática, etc., no plano normativo. Cabe-
rá a ele, de igual modo, materializar ideias promissoras as quais vi-
sem aprimorar a percepção do Estado e do cidadão administrado.
Atomizar princípios como a eficiência e moralidade inserindo-os
na base da estrutura administrativa, raciocinar em termos relacio-
nais, cobrir vácuos legislativos a fim de evitar a formação de es-
truturas paralelas de poder, tornar o Estado uma instituição mais
efetiva e acessível, eis alguns dos vários desafios a serem vencidos
pela codificação vindoura. Desta feita, além de catalisar os anseios
éticos de uma ruptura epistemológica já em curso, de organizar o
ordenamento jurídico por via de uma sistematização racional e de
remodelar o próprio aparato estatal, a codificação administrativa
brasileira representará a concretização de um futuro há décadas
postergado. Símbolo maior de uma realidade materializada e não
de uma promessa frustrada, conquista que perpetuar-se-á para as
presentes e futuras gerações.

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