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Cangaço e Coiteiros - OLdF (Transcrito)

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CANGAÇO E COITEIROS
–I–
Oswaldo Lamartine
“Criando Deus o Brasil
desde o Rio de Janeiro,
fez logo presente dele
ao que fosse mais ligeiro:
O Sul é para o Exército,
O Norte é pra Cangaceiro...”

NATAL, Junho – As primeiras Sesmarias do século XVII que foram conquistadas do


aborígene à boca de clavinote, com uma população de escravos e assalariados, conquistados
no alto sertão onde a justiça não penetrava e, quando o fazia, amoldava-se às conveniências
sociais e políticas – perra, trôpega e, mais das vezes, conivente aos senhores dos feudos
patriarcais.
O alto sertão, berço do cangaço do ciclo da pecuária, onde patrão e escravo campeavam
e participavam dos mesmos riscos e faziam-se compadres – excluiu o elo intermediário do
ciclo da cana: o feitor. O trabalho de homem isolado, identificando-o com o terreno,
conhecendo serras, furnas, esconderijos e, açoitado pelas vergônteas do mofumbo nas
carreiras desabaiadas atrás dos borbotões. Individualismo, o seu individualismo.
Individualismo estimado pelas condições de trabalho e do meio, fazendo-o revidar afrontas,
desdenhar dos “cabras de pêia”, fugir aos castigos para “ganhar as caatingas” onde se
arregimentava aos bandos volantes, passando a viver do cangaço – forma deturpada desse
individualismo.

“.. .. .. .. .. .. .. .. .. ..
Quem tem medo de polícia
Nasceu „roncolho‟, é safado...”

O adolescente que se fazia homem, assistindo e participando dos dramas das senzalas,
lutas com os ameríndios para manutenção da posse da terra, sacrifício do gado para o
consumo, narrativas de façanhas onde o sangue é sempre o líquido que lava a honra, luta com
feras, duendes e homens. Nenhum herói importado de outras ribeiras. A sua idolatria no meio
isolado era seduzida para o heroísmo bronco e selvagem dos que o cercavam, cantados nas
gestas com lanças de bravura suicida, injustiçados ou pseudo-injustiçados em luta constante
para a reparação de um erro:

“Um cabra matou meu pai


e ficou bem descansado;
disse a um irmão que tinha:
- Meu pai há de ser vingado
indo o cabra lá no inferno,
lá mesmo é esquartejado.”

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Originalmente publicado em duas partes no Diário de Pernambuco. A primeira, na edição de “Domingo, 27 de
junho de 1948”. Disponíveis na Hemeroteca Digital Brasileira, acessível em:
http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/. A partir das quais o texto aqui presente foi editado.
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A tradição em proteger seus agregados. O escravo e depois o vaqueiro, o morador, o rendeiro,


o parente e o eleitor, são filamentos nervosos do seu patrão.
O destino do homem tem o limite geográfico do poderio dos proprietários:

“A pessoa que for aos meus terrenos


Está sujeita a uma ordem que destina:
Ele coxa, ele fia, ele faz renda
Troca birro igualmente u‟a menina.”

Lutas de família – Quincas Saldanha e Antônio (início deste século) assalariando cabras,
ensanguentando vilas e estradas, amedrontando populações e queimando propriedades. Lutas
políticas: em 1929 a de Princeza (Paraíba), armado de fuzis e armas automáticas centenas de
cangaceiros.
A 4-X-1911 chefes políticos de 17 municípios da ribeira do Cariri (Ceará), inclusive o
Padre Cícero Romão Batista lavram um documento, “fé-política”, onde no art. 7º se lê: “A
bem da ordem e da moral os chefes terminarão a proteção aos cangaceiros”. Um ano mais
tarde, Antônio Silvino, que inundava o sertão de dinheiro falso, assaltava, matava, protegia e
perseguia, era chamado pelo político de São Miguel de Jucurutu e o juiz de Direito de Acary
(ambos no Rio Grande do Norte), – Dr. Vicente Veras e Vicente Dutra – num entendimento
para fins eleitorais!
Populações flageladas pelas variações climáticas periódicas, pedindo, emigrando e
assaltando para sobreviver.
A sífilis poluindo os homens, cuja terapêutica se restringe a benzeduras e “garrafadas”...
O álcool a e as “comidas brabas” intoxicando. Doenças de carência aliadas a uma
consanguinidade desbaratada. Epiléticos, loucos e tarados gerando monstros. Em síntese:
ausência absoluta de higiene mental e do corpo:

“O problema do cangaço
Não é tal como se pensa
Depende do nosso povo
Sua instrução, sua crença.
Estradas nos carrascais,
Faltam escolas e hospitais,
Sem isto não há quem vença.”

Formas religiosas deturpadas por religiosos místicos. Na Serra de João do Vale – José
Lourenço (Rio Grande do Norte). Pe. Cícero no Joazeiro (Ceará) e o Conselheiro em Canudos
(Bahia). Atraindo romeiro de todas as castas; do homem honesto, laborioso e ingênuo
agricultor, que os procurava para consulta de saúde, previsão de inverno, benção, etc., ao
cangaceiro – isolado ou em bandos, em busca de proteção, rezas fortes, intervenção, etc.
Desse meio surgiram os Cunha, Pataca, Liberato, Cabeleira, Brilhante, Viriato, José
Antônio, Rio Preto, Antônio Silvino e Lampeão. Percorrendo as caatingas, cercados de
sequazes, perseguidos aqui e acoitados ali pelos fazendeiros e, algumas vezes, subornando
seus perseguidores ou desfrutando a antipatia deixada pelos “macacos ou mata-cachorros” no
caráter do sertanejo que vivia entre dois dilemas: o cangaceiro – ameaçando-o de morte em
caso de traição, protegendo-o e vingando seus desafetos e remunerando a sua hospitalidade de
algumas horas. A polícia: espancando-o para descobrir um roteiro imaginário, requisitando
seus cavalos e desrespeitando a sua hospitalidade:
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“O sertanejo infeliz
Com a polícia e o cangaço
É que sofre as consequências
Dizendo não sei que faço.
Se sirvo a polícia apanho
Sirvo Lampeão levo banho
Apanhando em qualquer passo.”

Forças volantes cujos desertores fornecem ao cangaço seu matar voluntariado, munições
e armas.
O cangaceiro do bando em torno de um chefe com seu traje característico pintado por
João Martins de Atayde:

“Ele traz o seu cabelo


Americano cortado
Traz a nuca descoberta
Usa o pescoço raspado
.. .. .. .. .. .. .. .. .. ..
.. .. .. .. .. .. .. .. .. ..
Os dedos cheios de anéis
Boa alpercata nos pés
Pra lhe ajudar no sarrado.”

Fruto de regiões esquecidas dos homens e governos:

“.. .. .. .. .. .. .. .. .. ..
Nas margens do Mochotó
Onde o homem vive só
Pensando em ser assassino.”

Usado como instrumento, perseguido, admirado ou acoitado, teve a sua carreira cortada
por dois elementos da civilização: o caminhão e o telegrafo.
NATAL – Junho – 1948.
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CANGAÇO E COITEIROS
– II –
Oswaldo Lamartine
Os bandos de cangaceiros que povoavam as caatingas do Nordeste, desagregados por
dois elementos da civilização – o caminhão e o telégrafo –, foram absorvidos pela nossa
organização social sob a forma e com a sinonímia de capanga, cabra, empreiteiro ou
marchante-de-gente (esta mais empregada em nossos dias).
Mudou apenas a paisagem, os elementos persistem... A descaracterização imposta pela
absorção despi-os de suas indumentárias, fazendo-os usar a roupa do povo. Substituíram seus
rifles, fuzis e cartucheiras pelo revolver, e a simbólica faca-de-arrasto (pageú ou Parnaíba),
usada para seccionar a “veia da sangria”, foi trocada por outra mais discreta, sinistra e de
menor preço – a peixeira.
Perpetrando o primeiro crime, acobertam-se à sombra das “casas grandes” em cujas
cancelas a lei esbarra, encurta a vista ou se dobra. Em troca desse refugio mourejam na
lavoura, sem remuneração, soltando o cabo da enxada quando o coiteiro lhes aponta em que
família devem “fasê chorá viúva”. São pequenos proprietários que teimam impedir a dilatação
das grandes propriedades, adversários políticos a afastar, intrigas de família ou avarentos a
saquear – cujo dinheiro salpicado de sangue justifica muita fortuna dos sertões nordestinos
onde as condições precárias de produção não permitem enriquecer, mas lutar.
O caminhão e o telegrafo que foram os dois fatores de desagregação dos bandos, servem
agora às organizações dos que “ajudam a Deus”: aquele conduzindo os “marchantes” ao local
do crime e auxiliando-os depois, a transpor fronteiras. O telegrafo transmitindo os pedidos de
“empreiteiros”, combinados, etc.
Dependentes dos coiteiros pela sua situação de criminosos, são mortos ou recambiados
à justiça na primeira reivindicação do salário, atrito ou desrespeito. Outros assassinam seus
protetores e passam a “negociar por conta própria”, oferecendo seus préstimos às pessoas
abastadas (cujo preço varia com a situação social da vítima).
A degradação do cangaço apagou os motivos dessa bravura selvagem ainda cantada
pelos nossos poetas populares em seus romances-de-feira onde os cenários e a paisagem são
desprezados em detrimento da ação. O “marchante” foge à luta executando seus crimes de
emboscada. É o assassino frio e covarde característico de indivíduos portadores de taras.
Essa forma asquerosa que se esparge pro todo o Nordeste, dificilmente será banida pois
tem a sua sementeira na própria organização social do povo.
O cangaceiro gentil-homem, tipo Jesuíno Brilhante, foi substituído pelos “marchantes-
de-gente” que “lambem uma rapadura detraz de um toco” para perpetrar seus crimes.
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NOTA – Em artigo anterior afirmei que: “Antônio Silvino foi chamado pelo chefe político de
São Miguel de Jucurutu e o juiz de Direito de Acary – dr. Vicente Veras e Vicente Dutra, num
entendimento para fins eleitorais”. Contemporâneo do episódio, meu pai, contou-me a versão
que transcrevo:
“Em viagem à Recife, onde anualmente se abasteciam de mercadorias, Gorgônio
Ambrósio da Nobrega, Manoel Osorio de Barros, e José Inácio Camboim (comerciantes em

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Originalmente publicado em duas partes no Diário de Pernambuco. A segunda, na edição de “Domingo, 29 de
agosto de 1948”. Disponíveis na Hemeroteca Digital Brasileira, acessível em:
http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/. A partir das quais o texto aqui presente foi editado.
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Caicó/RN), encontraram Antônio Silvino. Cotizaram-se para gratifica-lo e, Gorgônio


Ambrósio da Nobrega ofereceu-lhe seus préstimos no Rio Grande do Norte. Tempos depois,
Antônio Silvino vem ao Seridó, com 14 cabras, guiados pelo negro Azulão, invadindo a
propriedade “Pedreiras” (município de Caicó). Organiza-se a resistência com apoio de
Gorgônio Ambrósio da Nobrega, dono da referida fazenda, perdendo Antônio Silvino 4
homens, ameaçando vingança na pessoa de Gorgônio ou destruição de seus bens. À pedido de
Gorgônio Ambrósio da Nobrega, seu cunhado, dr. Vicente Veras, promove um encontro entre
as partes, na residência de Vicente Dutra (São Miguel de Jucurutu) onde se realiza um almoço
de confraternização e suborno ao cangaceiro. Este interpela:

- Quem garante o acordo?


- Respondemos pelos acontecimentos.

Batendo com o coice do rifle no chão, afirma o cangaceiro:

- Quem responde é este rifle...”

Ubi veritas?

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