Cangaço e Coiteiros - OLdF (Transcrito)
Cangaço e Coiteiros - OLdF (Transcrito)
Cangaço e Coiteiros - OLdF (Transcrito)
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CANGAÇO E COITEIROS
–I–
Oswaldo Lamartine
“Criando Deus o Brasil
desde o Rio de Janeiro,
fez logo presente dele
ao que fosse mais ligeiro:
O Sul é para o Exército,
O Norte é pra Cangaceiro...”
“.. .. .. .. .. .. .. .. .. ..
Quem tem medo de polícia
Nasceu „roncolho‟, é safado...”
O adolescente que se fazia homem, assistindo e participando dos dramas das senzalas,
lutas com os ameríndios para manutenção da posse da terra, sacrifício do gado para o
consumo, narrativas de façanhas onde o sangue é sempre o líquido que lava a honra, luta com
feras, duendes e homens. Nenhum herói importado de outras ribeiras. A sua idolatria no meio
isolado era seduzida para o heroísmo bronco e selvagem dos que o cercavam, cantados nas
gestas com lanças de bravura suicida, injustiçados ou pseudo-injustiçados em luta constante
para a reparação de um erro:
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Originalmente publicado em duas partes no Diário de Pernambuco. A primeira, na edição de “Domingo, 27 de
junho de 1948”. Disponíveis na Hemeroteca Digital Brasileira, acessível em:
http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/. A partir das quais o texto aqui presente foi editado.
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Lutas de família – Quincas Saldanha e Antônio (início deste século) assalariando cabras,
ensanguentando vilas e estradas, amedrontando populações e queimando propriedades. Lutas
políticas: em 1929 a de Princeza (Paraíba), armado de fuzis e armas automáticas centenas de
cangaceiros.
A 4-X-1911 chefes políticos de 17 municípios da ribeira do Cariri (Ceará), inclusive o
Padre Cícero Romão Batista lavram um documento, “fé-política”, onde no art. 7º se lê: “A
bem da ordem e da moral os chefes terminarão a proteção aos cangaceiros”. Um ano mais
tarde, Antônio Silvino, que inundava o sertão de dinheiro falso, assaltava, matava, protegia e
perseguia, era chamado pelo político de São Miguel de Jucurutu e o juiz de Direito de Acary
(ambos no Rio Grande do Norte), – Dr. Vicente Veras e Vicente Dutra – num entendimento
para fins eleitorais!
Populações flageladas pelas variações climáticas periódicas, pedindo, emigrando e
assaltando para sobreviver.
A sífilis poluindo os homens, cuja terapêutica se restringe a benzeduras e “garrafadas”...
O álcool a e as “comidas brabas” intoxicando. Doenças de carência aliadas a uma
consanguinidade desbaratada. Epiléticos, loucos e tarados gerando monstros. Em síntese:
ausência absoluta de higiene mental e do corpo:
“O problema do cangaço
Não é tal como se pensa
Depende do nosso povo
Sua instrução, sua crença.
Estradas nos carrascais,
Faltam escolas e hospitais,
Sem isto não há quem vença.”
Formas religiosas deturpadas por religiosos místicos. Na Serra de João do Vale – José
Lourenço (Rio Grande do Norte). Pe. Cícero no Joazeiro (Ceará) e o Conselheiro em Canudos
(Bahia). Atraindo romeiro de todas as castas; do homem honesto, laborioso e ingênuo
agricultor, que os procurava para consulta de saúde, previsão de inverno, benção, etc., ao
cangaceiro – isolado ou em bandos, em busca de proteção, rezas fortes, intervenção, etc.
Desse meio surgiram os Cunha, Pataca, Liberato, Cabeleira, Brilhante, Viriato, José
Antônio, Rio Preto, Antônio Silvino e Lampeão. Percorrendo as caatingas, cercados de
sequazes, perseguidos aqui e acoitados ali pelos fazendeiros e, algumas vezes, subornando
seus perseguidores ou desfrutando a antipatia deixada pelos “macacos ou mata-cachorros” no
caráter do sertanejo que vivia entre dois dilemas: o cangaceiro – ameaçando-o de morte em
caso de traição, protegendo-o e vingando seus desafetos e remunerando a sua hospitalidade de
algumas horas. A polícia: espancando-o para descobrir um roteiro imaginário, requisitando
seus cavalos e desrespeitando a sua hospitalidade:
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“O sertanejo infeliz
Com a polícia e o cangaço
É que sofre as consequências
Dizendo não sei que faço.
Se sirvo a polícia apanho
Sirvo Lampeão levo banho
Apanhando em qualquer passo.”
Forças volantes cujos desertores fornecem ao cangaço seu matar voluntariado, munições
e armas.
O cangaceiro do bando em torno de um chefe com seu traje característico pintado por
João Martins de Atayde:
“.. .. .. .. .. .. .. .. .. ..
Nas margens do Mochotó
Onde o homem vive só
Pensando em ser assassino.”
Usado como instrumento, perseguido, admirado ou acoitado, teve a sua carreira cortada
por dois elementos da civilização: o caminhão e o telegrafo.
NATAL – Junho – 1948.
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CANGAÇO E COITEIROS
– II –
Oswaldo Lamartine
Os bandos de cangaceiros que povoavam as caatingas do Nordeste, desagregados por
dois elementos da civilização – o caminhão e o telégrafo –, foram absorvidos pela nossa
organização social sob a forma e com a sinonímia de capanga, cabra, empreiteiro ou
marchante-de-gente (esta mais empregada em nossos dias).
Mudou apenas a paisagem, os elementos persistem... A descaracterização imposta pela
absorção despi-os de suas indumentárias, fazendo-os usar a roupa do povo. Substituíram seus
rifles, fuzis e cartucheiras pelo revolver, e a simbólica faca-de-arrasto (pageú ou Parnaíba),
usada para seccionar a “veia da sangria”, foi trocada por outra mais discreta, sinistra e de
menor preço – a peixeira.
Perpetrando o primeiro crime, acobertam-se à sombra das “casas grandes” em cujas
cancelas a lei esbarra, encurta a vista ou se dobra. Em troca desse refugio mourejam na
lavoura, sem remuneração, soltando o cabo da enxada quando o coiteiro lhes aponta em que
família devem “fasê chorá viúva”. São pequenos proprietários que teimam impedir a dilatação
das grandes propriedades, adversários políticos a afastar, intrigas de família ou avarentos a
saquear – cujo dinheiro salpicado de sangue justifica muita fortuna dos sertões nordestinos
onde as condições precárias de produção não permitem enriquecer, mas lutar.
O caminhão e o telegrafo que foram os dois fatores de desagregação dos bandos, servem
agora às organizações dos que “ajudam a Deus”: aquele conduzindo os “marchantes” ao local
do crime e auxiliando-os depois, a transpor fronteiras. O telegrafo transmitindo os pedidos de
“empreiteiros”, combinados, etc.
Dependentes dos coiteiros pela sua situação de criminosos, são mortos ou recambiados
à justiça na primeira reivindicação do salário, atrito ou desrespeito. Outros assassinam seus
protetores e passam a “negociar por conta própria”, oferecendo seus préstimos às pessoas
abastadas (cujo preço varia com a situação social da vítima).
A degradação do cangaço apagou os motivos dessa bravura selvagem ainda cantada
pelos nossos poetas populares em seus romances-de-feira onde os cenários e a paisagem são
desprezados em detrimento da ação. O “marchante” foge à luta executando seus crimes de
emboscada. É o assassino frio e covarde característico de indivíduos portadores de taras.
Essa forma asquerosa que se esparge pro todo o Nordeste, dificilmente será banida pois
tem a sua sementeira na própria organização social do povo.
O cangaceiro gentil-homem, tipo Jesuíno Brilhante, foi substituído pelos “marchantes-
de-gente” que “lambem uma rapadura detraz de um toco” para perpetrar seus crimes.
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NOTA – Em artigo anterior afirmei que: “Antônio Silvino foi chamado pelo chefe político de
São Miguel de Jucurutu e o juiz de Direito de Acary – dr. Vicente Veras e Vicente Dutra, num
entendimento para fins eleitorais”. Contemporâneo do episódio, meu pai, contou-me a versão
que transcrevo:
“Em viagem à Recife, onde anualmente se abasteciam de mercadorias, Gorgônio
Ambrósio da Nobrega, Manoel Osorio de Barros, e José Inácio Camboim (comerciantes em
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Originalmente publicado em duas partes no Diário de Pernambuco. A segunda, na edição de “Domingo, 29 de
agosto de 1948”. Disponíveis na Hemeroteca Digital Brasileira, acessível em:
http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/. A partir das quais o texto aqui presente foi editado.
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Ubi veritas?