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DUHOT, Jean-Joël Duhot - Sócrates Ou o Despertar Da Consciência-Loyola (2004)

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JEAN-JOEL

DUHOT

SÓCRATES OU O
DESPERTAR DA CONSCIÊNCIA

TRADUÇÃO:
Paulo Menezes

Ed~Loyolo
LEITURAS FILOSÓFICAS

Aristóteles e o logos
Barbara Cassin
Aristóteles no século XX
Enrico Berta
Da natureza
Pannênides
Diãlogos com a cultura contemporânea
W.AA
Filosofia a partir de seus problemas (A)
Maria Ariel González Porta
Filosofia da Ciência, 6" ed.
Rubem Alves
Filosofia da natureza (A)
Jacques Mantain
Metáfora viva (A)
F\iul Ru:oeur
Movimento sofista (0)
G. 8.Knfml
Nillísmo (O)
Franco \blp,
Oficio do filósofo estóico (0)
Rachel Gazolla
Ordem do discurso (A), 9" ed.
Michel Foucault
Para não ler ingenuamente uma tragédia grega
Rachrl Gazolla
Que é a filosofia antiga?
Pirrrt Hadot
Raz.ões de Aristóteles (As), 2• ed.
Enn<0 Brm
Saber dos antigos - terapia para os tempos atuais, 2• ed.
GIOOllnna 10llt
~te lições sobre o ser, 2" cd
Jacqwe Mantam
Tempo e razão - 1600 anos das confissões de Agostinho
W.M
Transformação da filosofia, vol. 1
Karl-Otto Aprl
Transformação da filosofia, vol. 2
Karl-OttoApd
Vontade de crer (A)
Willia,n Ja,n,s
Th\Jl.0 DaKllNAL:
«ratt OW r h·til dt la CO"SClt"Ct
e Bayud f.d1IK)IIS, 1999 .
3, nic 81yard, 75008 Paris
tSB : 2-227-32525-9

~ : Maurício 8. Leal
~ : Minam de Melo Francisco
ltVISÃO: Marcelo Perinc

F..dlç6es Loyola
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04216-IDl São Paulo, SP
Caixa Poslal 42.335 - 04218-970 São Paulo, SP
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Editonal: loyola@loyola.com.br
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rtprodll:ida ou 1ra"smi1ida par qualquer forma e/ou quaisquer
mnos (tltrrônico ou mecâtiico, i"cluituio fo1ocóp1a e gravação) ou
urqufrada tm qualq~r sisrema ou ba11Co de dados sem permissão
,~ri/a da Edi1ora.

ISBN: 85-15-02913-8
C EDIÇÕES LOYOLA, São Paulo, Brasil, 2004
SUMÁRIO

Introdução ............................................................................ 7

primeira parte
SÓCRATES E SEU TEMPO

capítulo 1................ ............................................................. 13


O SÉCULO DE SÓCRATES

capitulo 2 ........................................................................... 43
O HOMEM EM SEU SÉCULO

capítulo 3 ........................................................................... 67
O PROCESSO

segunda parte
O MESTRE PARADOXAL

capítulo 1....................... ... ........ ........ .................................. 79


RETRATO DE SÓCRATES COMO XAMÃ

Capítulo 2 .......................................................................... 101


A ASCENSÃO DA ALMA

capítulo 3 ......... ........ ............................... ............................ 117


O ENSINAMENTO DE SÓCRATES

capítulo 4 ........................................................................... 131


O FILÓSOFO E OS SOFISTAS
terceira parte
A REVOLUÇAO SOCRÁTICA

capitulo 1........................................................................... 145


NASCIMENTO OA TEOLOGIA

capitulo 2 ................................................. ......................... 175


A MORAL

capitulo 3 .......................................................................... 197


HERANÇAS E PRESENÇAS

ConclusAo ........................................................................ 205


INTRODUÇÃO

Ainda um livro sobre Sócrates? Que mais se sabe sobre aquele a


quem foi atribuída a função de pai da filosofia? Nada, certamen -
te, nenhuma informação nova milagrosamente encontrada, ne
nhum manuscrito saído das areias ou de um fundo de biblioteca.
Os dados históricos resumem-se em poucas palavras: um
ateniense do século V, condenado à morte em 399, com 70 anos,
por motivos que nos parecem em contradição absoluta com a
figura que traçam as testemunhas de sua vida.
É possível então conseguir outra coisa do que vestir Sócrates
com novos trajes, como fizeram todas as épocas, transformando-
º numa espécie de boneco folclórico que as gerações de profes-
sores vestiram à sua maneira para fazer dele o mascote da classe
ou da disciplina que ele sempre recusou-se a ensinar? O proble-
ma é que temos informações demais e demasiado poucas. Pou-
cas, porque nada escreveu, e os testemunhos deixam largas zo-
nas de sombra; demais, porque esses testemunhos desenham
retratos discordantes.
Como e, talvez, sobretudo por que reabrir o dossiê Sócrates?
Entre os excessos, as contradições e as lacunas, tem-se a vanta-
gem de escolher seu retrato segundo o privilégio concedido a
determinada fonte. Entre o Sócrates de Platão, o de Xenofonte e,

17
por que não, o de Aristófanes, as três testemunhas diretas, o de
Aristóteles e os fragmentos da tradição, tem-se como recompor
sem fim os retratos de Sócrates. A procura de um Sócrates autên-
tico não estaria condenada ao fracasso, já que nenhum elemento
veio acrescentar-se ao dossiê há séculos? Pior ainda: Sócrates não
seria um mito construído por Platão, que teria tomado a máscara
de seu velho mestre para escrever uma obra, emprestando-lhe
seus próprios pensamentos? Nessas condições, não seria melhor
conservar uma bela figura mais ou menos lendária, mesmo se
alguns escolheram descartá-la, por rejeitarem o espiritualismo?
Não, a pesquisa merece ser retomada. Pelo que está em jogo,
e porque as peças do dossiê não foram sempre exploradas em
seu justo valor. Sócrates é um enigma. Há o antes de Sócrates, os
pré-socráticos, e o depois, a filosofia. Então alguma coisa se produ-
ziu, e seria pouco cavalheiresco ver nisso um truque de prestidi-
gitação de Platão. Como saber qual é a realidade fundamental de
que Sócrates é o centro? Retomando o conjunto da questão em
tomo de dois eixos: pôr em perspectiva histórica e fazer o exame
crítico de todos os testemunhos. Recolocar Sócrates em seu século
para tentar apreender o sentido de sua trajetória. Reler os testemu-
nhos, ligando-se a seus aspectos estranhos, em lugar de evitá-los
pudicamente porque incomodam.
Assim vamos ver desenhar-se um outro Sócrates, misterio-
so, ao mesmo tempo próximo e longínquo, ainda mais estranho
do que parecia aos atenienses, segundo o testemunho de Platão,
mas ao qual estamos ligados por uma relação de filiação, muito
forte e m~ito complexa. Se nele se saúda, e com justiça, o pai da
filosofia, : em. ~ande parte por más razões, que escondem a~
~s. Platao f~t lido em um primeiro grau, em que sua palavra so
tinh~ ~ u sentido real em outra perspectiva, que ele não deixa de
~nmir, m~ ~ue se recusa levar a sério para pô-la na conta do
artista re~nmido. Terminou-se por desacreditar Sócrates, não
vendo mais o que Platão não cessa de diz
A' ~
t~gem de Sócrates triunfando das mentiras sofísticas para
fundar a filosofia sobre a busca da verdade corresponde apenas a

8 1 sOc:.rates ou o despertar da consciência


uma encenação platônica. Na alvorada desse reinado de professo-
res que se prolonga até nós, e que nunca foi tão poderoso quanto
é hoje, uma voz se elevou para dizer que o conhecimento verda-
deiro não se transmite. Voz iniciática que convida à transforma-
ção do sujeito como preliminar à apreensão do Ser, que ela situa
na transcendência, deixando claro que tem disso uma experiên-
cia pessoal. Sócrates inaugura uma filosofia que não terá quase
descendência, pois seu principal discípulo funda uma escola.
Sócrates fracassou e os sofistas, com seus cursos e projetos de
formação de cidadãos brilhantes, são os verdadeiros iniciadores
do ensino tal como o concebemos, os pais de nossa modernidade
pedagógica. Não se deixou de tecer coroas a Sócrates para me-
lhor apagá-lo, e de celebrar sua vitória para torná-la inútil.
Entretanto, Sócrates não é somente o primeiro e o último
mestre de uma tradição ocidental que constantemente o traiu,
enquanto ao mesmo tempo se reclamava dele. Se nós travestimos
sua imagem, a revolução que produziu na configuração do saber
é uma das mais profundas que se exerceram sobre nossa civiliza-
ção. Todos os que trabalharam sobre o pensamento grego sabem
que o material dos filósofos é sempre o mesmo, a ponto de que a
procura das fontes se torne, em certos momentos, a atividade
essencial dos especialistas.Toma-se uma idéia, um conceito, uma
fórmula, tenta-se saber donde isso vem, e sempre se encontra.
Os filósofos reelaboram o mesmo material, e pode-se com certa
facilidade traçar suas peregrinações e avatares. Ora, Sócrates é o
homem dos começos absolutos. Não certamente que tenha tudo
inventado, mas antes dele as coisas não tinham o mesmo sentido.
Embora totalmente singular, não se compreende Sócrates a
não ser em relação a seu tempo. Personalidade extática, sem dú-
vida se tornaria um autêntico xamã, um santo ou um mestre reli-
gioso se tivesse vivido em outra tradição. Ora, ele é exatamente
contemporâneo da crise religiosa que abala Atenas. Nesse cho-
que entre a razão e uma mitologia cuja credibilidade desaba, Só-
crates escolheu a razão: quer compreender, mas sabe que sua
experiência ultrapassa toda expressão racional, mesmo se não

Introdução 1 9
pode estar em desacordo com a razão. Foi ali que se realizou uma
nova configuração do saber, dando lugar à metafísica e à teologia.
em que se inscreveram ao mesmo tempo a filosofia e o cristianis-
mo, que na esteira do judaísmo helenístico a integrou à religião.
Vamos ver desaparecerem as contradições que parecem tor-
nar incompatíveis as diferentes figuras de Sócrates a partir do
momento em que se tomar a sério os múltiplos testemunhos que
atestam a autenticidade dessa experiêncía singular, da qual, por
não se captar a inacessível natureza, só conhecemos a existênaa
e os efeitos.
Teremos nós reencontrado o"verdadeiro"Sócrates? De fato,
a questão provém de um positivismo ingênuo. Não há verdadei-
ro retrato de Sócrates pela simples razão de que nenhum retrato
é verdadeiro; não que sejam todos falsos, mas, como veremos no
Crátilo, a imagem tem necessariamente menos dimensões do que
o real, de sorte que cada uma, se for fiel, só pode exprimir um
olhar sobre esse real.

10 1 sócrates ou o descertar da conscl~ncla


primeira parte

SÓCRATES E SEU TEMPO


capítulo 1
O SÉCULO DE SÓCRATES

O século V ateniense, século de Péricles, do Partenon, de Fídias,


de Ésquilo, de Salamina, da democracia - e, com Sócrates, da
filosofia - é um momento incrivelmente privilegiado da histó-
ria. Uma mesma cidade viu nascer, no espaço de algumas déca-
das, os cânones estéticos, intelectuais e políticos que fizeram uma
civilização que é ainda a nossa, e isso por meio de obras que per-
maneceram modelos acabados e insuperáveis, como se a perfei-
ção tivesse nascido de um só golpe. Esse"milagre grego" exerce
um irredutível fascínio, idade de ouro em que, contrariando to-
das as leis, as formas surgem em sua inigualável plenitude, sem
passar pela etapa dos esboços, dos balbucios, das imperícias que
caracterizam sempre os primeiros ensaios.
Quem não invejou os atenienses que podiam escutar Péricles
na Assembléia, passear à sombra do Partenon apenas terminado,
admirar o que acabava de sair do cinzel de Fídias, ouvir a última
peça de Sófocles e, alguns anos mais tarde, encontrar-se com
Sócrates rodeado de discípulos ou filosofando ao longo do Ilissos,
talvez mesmo perceber um jovem rapaz estudioso chamado
Platão?
Considera-se habitualmente que o Ocidente repousa sobre
três pilares: Roma nos deu a lei, a ordem, o Estado; Jerusalém, a

1 13
fé; e de Atenas temos a arte, a beleza, a razão, a ciência, a literatu-
ra e o ideal político. Secreta ou confessa, a preferência por Atenas
não deixa de assediar nossa cultura, em um combate que talvez
n5o passe de esquizofrenia: a fé e a razão. Daí esse avanço de
Atenas nos períodos de recuo ou questionamento da fé, como o
Renascimento e o século XIX. Sentindo - ou fazendo - vacilar
Jerusalém, Renan queria ser tido por ateniense.
Ora, esse século deslumbrante, Sócrates quase não amou.
Nele estava, mas sem partilhar seus valores. Aparentemente in-
sensível à beleza arquitetural, hostil a Péricles e à democracia,
adversário dos professores, assume sua situação de marginal de-
finindo-se como um zangão na cidade, aquele que perturba e
exaspera, até ser esmagado.Aristófanes tinha-o representado gro-
tcc:co, e a Assembléia o condenou à morte.
Pior ainda, manifestou simpatia por Esparta, e isso é muito
mais grave. À margem das convenções, rejeitado pelos bem-
pensantes, Sócrates nos é simpático: gosta-se dos pensadores
que incomodam, com a condição, decerto, que pertençam ao
passado e já não arrisquem mais incomodar. Mas amar Esparta,
isso nos incomoda. Como teria podido considerar um modelo
essa máquina de fazer soldados, que não deixou outra coisa se-
não sua imagem duvidosa? Nem arte, nem literatura, nem ciên-
cia . F., afinal, sucessos militares muito relativos, que em todo
caso nunca permitiram dominar a Grécia. Como pôde Sócrates
sucumbir a essa miragem, quando vivia na cidade que estava a
ponto de fundar nossa civilização? Por que essa cegueira, e tan-
ta incompreensão sobre Atenas e sobre Esparta, aliás? Seria o
ponto fraco, a zona perturbada de Sócrates, que nos lembra que
seus discípulos foram às vezes capazes do pior? Donde se pode
concluir com razão que ele freqüentou gente mais do que duvi-
dosa. Como foi possível ao homem que por meio do oráculo
d_élfic~ Conltece-te a ti mesmo apelava para a lucidez ter conhe-
cido tao mal o seu tempo, a ponto de sucumbir à "miragem
espartana" e de lhe ter escapado o "milagre grego", do qual é
um do~ atores essenciais?

14 1 socrates e seu tempo


Deve-se mesmo pôr essa vertente sombria no passivo do
personagem? Como ninguém é perfeito nem onisciente, ali esta -
ria o aspecto negativo de Sócrates. Então não se pode deixar de
ver nele o precursor de uma longa série de filósofos cujos so-
nhos políticos não honram muito a disciplina, embora não se
tenha outra coisa a fazer senão minimizar essa sombra no qua
dro, como se fica vermelho diante da longa coorte de pensado
res stalinistas ou do nazismo de Heidegger. Qualquer um pode
enganar-se.Afinal, Sócrates seria assim o pai da filosofia, inclusive
nos desvios aonde a arrasta seu gosto pela racionalidade, e até
em sua perversão.
A assimilação nos parece demasiado fácil e em todo caso
pouco esclarecedora. O mal-entendido entre Sócrates e seu tem-
po não há de ser incluído em uma categoria que não existia, deve
ter uma razão e um sentido preciso. Sócrates não viu seu século
com nossos olhos. Espantamo-nos com sua cegueira porque não
viu em sua Atenas o que nela descobrimos. Seria preciso tentar
saber o que ele viu.
Se se quer compreender alguma coisa do famoso milagre
grego, há que tomar um pouco de recuo. Passa-se algo de único
na Atenas de Sócrates, mas é o fruto de circunstâncias e de acon-
tecimentos históricos.
Situemos antes de tudo o quadro geral. A civilização grega
entra bastante tarde na história, e com uma falsa partida. Até a
revolução industrial, a principal fonte de riqueza é a terra. Tam-
bém, muito naturalmente, todas as grandes civilizações históri-
cas nasceram da agricultura. Crescente fértil de um lado, cheias
do Nilo, do outro, sem esquecer a índia e a China. Pode-se supor
que o cadastro, a armazenagem das colheitas e a administração
das riquezas criaram necessidades administrativas que estão na
origem da escrita. É preciso grande acumulação de bens para
aparecer um reino importante. Compreende-se que a Grécia te-
nha estado ausente desse primeiro encontro da história: aciden-
tada, montanhosa, rochosa, nunca será um grande país agrícola.
A Ática, em particular, só é dotada de terras medíocres.

o século de sôcrates 1 15
Deve pois haver outro fator, evidentemente secundário: o
mar. Porque os bens vêm da terra, mas é preciso encaminhá-los,
e o principal meio de transporte é o barco. Os antigos nunca resol-
veram o problema do transporte terrestre, não só por causa das
infra estruturas das estradas que implica, e dos desafios que apre-
sentam os obstáculos naturais, mas porque dominavam mal a
tração animal, aliás lenta e custosa, por supor uma rede de
revezamentos. A Antiguidade desenvolveu progressivamente sua
tecnologia naval até construir cargueiros de uma tonelagem con-
siderável, enquanto o cavalo era mal utilizado como animal de
tração. Aliás, é claro que a carga de um navio pode ser incompa-
ravelmente superior à de uma carroça. As vias romanas eram es-
tratégicas e não comerciais. Quanto aos transportes no interior
das terras, utilizava-se, quanto possível, os cursos de água: as ci-
dades que não eram portos marítimos estavam sempre na mar-
gem de um rio.
Compreende-se que a Antiguidade tenha produzido uma
civilização centrada no Mediterrâneo, que, longe de separar os
homens, as terras e as riquezas, era ao contrário o meio ideal de
pô-las em relação.
Foi então o Mediterrâneo que deu à Grécia sua primeira ci-
vilização, a da Creta minóica, que é porém muito posterior aos
mundos do Egito e do Oriente Médio, pois culmina no meio do
s:S:1ndo milênio. Na Grécia continental, os pequenos reinos mi-
ccmos conhecem seu apogeu depois do fim do mundo minóico,
e o desmoronamento, por sua vez, por volta de 1200. Invasão ou
implosão, é difícil decidir, mas o resultado é uma brutal decadên-
cia _que ch~~a ao esquecimento da escrita - o que aliás teve um
e~eito positivo, pois quando os gregos recomeçarem a escrever
vao utilizar essa extraordinária inovação que é o alfabeto.
Resta ~ue a Grécia partiu tarde e mal, e que deve partir de
novo depms de um buraco negro de três a quatro séculos. O pro-
blema de fundo não mudou, o país é pobre e encontra-se rapida-
mente confrontado com a exigüidade das terras cultiváveis. Para
0
pequeno proprietário que vive com dificuldade em seu domí-

16 1 socrates e seu tempo


nio, uma família numerosa é uma catástrofe: mesmo se chega a
alimentar seus filhos, o patrimônio será pequeno demais para
que possam viver dele quando adultos. Daí o importante movi-
mento de colonização, que se desenvolve na época arcaica. Está-
se longe da expansão colonial, no sentido que o termo tomou em
seguida; trata-se de descarregar uma pequena cidade-estado de
um excedente de população que não pode mais alimentar, e que
se envia para buscar sua sorte em outras margens do Mediterrâ-
neo, ainda bastante vazio. O mundo grego arcaico é, pois, ao
mesmo tempo pobre e muito extenso, das margens da Ásia Me-
nor à Itália do Sul: dupla razão que explica talvez o fato de que
nunca conhecerá uma política de unidade antes de Alexandre.
Nenhuma dessas cidades atingirá uma massa crítica que lhe te
ria permitido absorver as outras.
Esse mundo de pequeno campesinato é duplamente instá-
vel. Primeiro por motivo de sua atomização em uma multidão de
cidades, mas também por causa de sua estrutura social. O pe
queno proprietário que vive com dificuldade em seu domínio está
à mercê do menor incidente: se seu gado for vítima de doença,
ou se uma parte da colheita perder-se por causa das intempéries,
é obrigado, para remediar o mais urgente, a contrair dívidas que
arrisca muito não poder reembolsar, por não ter excedente. De-
verá então ceder a terra a preço baixo ao grande proprietário que
lhe fez o empréstimo e juntar-se à massa daqueles que os roma-
nos chamarão proletários, porque não têm nada a não ser seus
filhos. Esse problema da vida e da repartição das terras está no
coração de toda a história grega arcaica. Com efeito, a tensão
entre o povo e os grandes proprietários toma frágil o equilfürio
das cidades. Um pequeno número de ricos aumenta seu patri-
mônio em detrimento dos camponeses pobres, o que traça eviden-
temente a forma do combate político. A reivindicação popular é
simples: obter a anulação da dívida e uma mais justa distribuição
das terras. Quando a tensão se toma explosiva, rebenta a revolu-
ção. É por ocasião de uma dessas que Sólon, no começo do sécu-
lo VI, deverá largamente ceder às exigências populares para res-

o século de socrates 1 17
tabelecer a paz em Atenas, o que lhe valerá ser admitido pela
posteridade na lista dos Sete Sábios. . . ,
A divisão política em dois campos, povo e anstocrac1a, esta
!'>empre no centro da vida ateniense no séculoV. Veremos a impor-
tância que tomará para Sócrates; mas no intervalo a conjuntura
terá mudado.
Essa instabilidade em um mundo despedaçado aparece-nos
certamente como um limite, mas teve imensas conseqüências
positivas. Com efeito, cada cidade-estado tinha de inventar suas
próprias soluções de compromisso, de modo que o mundo grego
pôde tomar-se um imenso laboratório em que se experimenta-
ram pesquisas políticas cuja audácia e cuja sutileza ainda às ve-
zes nos enchem de admiração. À multiplicidade das cidades acres-
centa-se o fato de que sua dimensão reduzida possibilitou expe-
riências que não se teria ousado fazer em um reino.
Em seguida, a necessidade de regular continuamente os con-
flitos pôs a política em escala humana: cabe ao homem encontrar a
boa legislação e resolver os conflitos. O cuidado político toma-se
pois constante entre os gregos; trata-se de encontrar o melhor regi-
me, aquele que pennitirá aos homens viver em conjunto da melhor
fonna possível, apesar dos problemas de fundo que vimos acima.
Depois de Sólon, o século VI foi marcado pela longa tirania
de Pisístrato, a quem sucederam seus filhos. Pisístrato tomou,
perdeu, retomou e conservou o poder, mas respeitou as reformas
de Sólon, que era aliás seu parente, e embora não fosse nada
democrático redistribuiu um pouco as riquezas, o que permitiu
aos pobres não terem mais que se endividar. Lembremos que
para os gregos a tirania é um poder pessoal adquirido sem legiti-
mida~e, ~ ~ue não implica necessariamente que seja exercido de
maneira miusta e violenta, mesmo que isso acontecesse, como
atesta a derivação semântica do tenno.Atenas conhece então certa
pr~speridade, e inicia a decolagem que efetuará no século se-
gtunte. Falta-lhe contudo uma coisa: a liberdade.
A grande aventura da democracia começa em 510. Oístenes,
que pertence a uma das maiores famílias aristocráticas, os Alcmeô-

18 1 SOcrates e seu tempo


nidas, e que exerceu responsabilidades políticas no governo de
Pisístrato, decide pôr fim ao poder dos filhos desse tirano, e para
isso apela a Esparta, que envia um exército para expulsar o tirano
Hípias. O clã aristocrático tenta então tomar o poder com ajuda
de Esparta, mas Oístenes escolhe a democracia e estabelece, em-
bora de maneira muito moderada, as primeiras reformas dessa
democracia que Péricles conduzirá a seu termo. Haverá sempre
dois partidos opostos, aristocratas e democratas, mesmo quando
um aristocrata estiver à frente dos democratas, o que será ainda o
caso de Péricles, saído também da família dos Alcmeônidas. A
divisão partidária tem decerto uma base social, mas tende a de-
pender também da escolha e não só do interesse de classe, mesmo
levando em conta o fato de que a escolha que impele um aristo-
crata para o campo democrata pode ser guiada por considerações
oportunistas.Veremos, inversamente, o modesto artesão Sócrates
muito crítico em relação aos democratas.
São as guerras médicas que vão provocar essa formidável
aceleração da história que em alguns anos faz de uma cidade
grega entre as outras a referência fundadora de nossa cultura.
O primeiro ataque dos persas, lançado por Dario, termina
em Maratona no ano de 490 graças à habilidade tática de Milcía-
des, que tinha uns 60 anos e começara sob a tirania uma carreira
pontuada de expedições um tanto aventurosas. Morreu aliás no
ano seguinte, de feridas que recebeu em um combate perdido.
Além de Milcíades, outro estratego vencedor de Maratona (sabe-
se que Atenas tinha dez estrategos, isto é, dez generais, eleitos
cada ano) merece nossa atenção: Aristides, que os atenienses mui-
tas vezes compararam com Sócrates.
Aristides, chamado o justo, é muito mal conhecido. Não ga-
nhou nenhuma batalha como general-em-chefe, nem deixou seu
nome numa dessas ações brilhantes que mudam a história, mas
desempenhou um papel importante na maneira como os ate-
nienses tiraram partido de sua vitória.Além do mais, como indi-
ca seu epíteto, deu à política outra dimensão, e por esse motivo
parece-me ser a chave indispensável para compreender não só

o século de sócrates 1 19
as posições políticas mas até mesmo aspectos importantes da per-
sonalidade de Sócrates.
Ignora-se a data do nascimento de Aristides, mas, como pa-
rece ter sido o segundo estratego, logo abaixo de Mikíades, em
490, pode-se supor que nasceu o mais tardar por volta de 525,
sobretudo admitindo-se, segundo Plutarco, que trabalhou com
Clístenes, e que estabeleceu as bases da democracia nos anos
que seguiram imediatamente 510. Depois de Maratona, passa ao
primeiro plano da vida política ateniense. Não se deve ver nisso
nenhuma confusão de gêneros.Temos tendência a desconfiar dos
militares que se lançam na política, embora um exemplo ilustre
tenha há pouco mostrado que se pode passar muito bem de um
estado ao outro. Na Antiguidade, essa passagem é constante. A
guerra era um estado habitual - são poucos os anos sem cam-
panha militar - e os mesmos homens conduzem tanto a guerra
como a política. É assim que Péricles, quando dirigir Atenas, não
terá outro título que o de estratego. Não esqueçamos que em
Roma, um pouco mais tarde, são os cônsules, primeiros magis-
trados do Estado, que comandam os exércitos. Aristides lança -se
muito normalmente a uma carreira política brilhante.
A jovem democracia está então em fase de construção. Há
uma tendência a imaginar que os começos são puros e que as
coisas se degradam em seguida. A carreira de Aristides refuta, em
todo caso, esse esquema no caso da democracia. Com efeito, ele
se faz notar na luta contra a corrupção que parece ter sido muito
amplamente difundida: destaca-se por sua perfeita honestidade,
que lhe valeu esse apelido.
. Na década que seguiu Maratona, a vida política ateniense
articula-se em tomo de dois homens: Aristides e Temístocles. Esse
era ambicioso e muito menos desinteressado que seu rival; tinha
um~ <:_apac,dade excepcional de analisar as situações e tomar boas
dcc,soes. Compreendeu que Maratona era só um prelúdio e que
era prcc,~ prever um novo assalto persa. Foi ele que nesse mo-
mento onentou de maneira decisiva a história de Atenas, fazen-
do dela uma potência marítima, escolha que vai determinar o

20 1 sócrates e seu tempo


"milagre grego". Levou Atenas a orientar-se para o que mudaria
sua história, o mar. Até então, sem estar longe do mar, e apesar
de sua considerável orla marítima, a cidade não tinha um verda-
deiro porto e se contentava com a enseada mal protegida de Falera.
Em contraste, dispunha de um interior particularmente extenso
- para a escala do mundo grego-, a Ática. A oliveira e o artesa-
nato são as marcas de uma Atenas antiga agrícola e bastante po-
bre, mas, na falta de rendimento, a superfície das terras cultiva-
das, por motivo da ampliação dos domínios rurais em detrimen~
to dos pequenos camponeses, permitiu a emergência de uma rica
aristocracia agrária.
É então Ternístocles que a orienta para o mar, primeiro dan-
do-lhe um porto, o Pireu, cujo destino inicial é militar, depois
persuadindo a Assembléia a consagrar uma parte da renda das
minas de prata do Laurion - acaba-se de descobrir um novo
filão - à construção de uma frota que fará da cidade a principal
potência marítima da Grécia, papel que até então ninguém pen-
sava em disputar com a ilha de Egina (situada cerca de 20 quilô-
metros ao sudeste de Atenas, da qual foi rival por muito tempo,
rivalidade que mostra que a grandeza súbita da cidade no século
V estava longe de ser decidida antecipadamente).
Ternístocles se choca contra a popularidade de Aristides, que
deve tanto mais fazer-lhe sombra por não poder prevalecer-se da
mesma honestidade. Os dois homens representam dois partidos
opostos. Ternístocles era o chefe dos democratas, o que talvez
não é estranho à escolha do mar. Com efeito, a aristocracia era
constituída de grandes proprietários rurais que, vivendo muito
bem do rendimento de seus domínios, não viam quase interesse
na aventura marítima. Para o povo, ao contrário, a marinha for-
necia empregos. Não se saberá nunca quais foram as razões de
Temístocles - econômicas, estratégicas, sociais ou políticas. Em
todo caso foi um golpe de gênio: enquanto os recursos agrícolas
da Ática limitavam seu desenvolvimento, o mar fazia recuar para
muito longe o campo dos possíveis. A escolha de Temístocles é
ao mesmo tempo lógica e visionária, nos planos econômico e

o século de sôcrates 1 21
estratégico.Vai primeiro permitir a vitória de Salamina, depois dar
a Atenas o império que garantirá sua extraordinária expansão.
No plano político, uma coisa porém é certa: fazer de Atenas
uma potência marítima era uma escolha democrata, por dar à
cidade uma base econômica que escapava a uma aristocracia ru-
ral, condenada assim a perder grande parte de seu poder econô-
mico. Sabe-se a que ponto é difícil governar quando a economia
está nas mãos da oposição. Uma Atenas que permanecesse rural
não podia voltar-se tão radicalmente em direção da democracia,
ao passo que uma potência naval podia depender somente das
decisões do povo, que fornecia os remadores. Há que levar em
conta esse pano de fundo político quando se tenta compreender
a hostilidade do aristocrata Platão, que parece também ser a de
Sócrates, em relação ao mar: a cidade ideal não deve ser um porto.
Quais foram as posições de Aristides diante dessa escolha
do mar, não se sabe. O exíguo testemunho deixado pelos antigos
mostra-o sobretudo lutando por denunciar e erradicar a corrupção
do mundo político. É essencialmente nesse plano que se apre-
senta sua oposição a Temístocles. Seu prestígio devia ser consi-
derável, pois seu adversário conseguiu levá-lo ao ostracismo. O
ostracismo era uma estranha prática que consistia em eliminar
um adversário político exilando-o por dez anos. Não se tratava
em nada de uma condenação penal - os gregos não hesitavam
em processar seus dirigentes e em condená-los a penas muito
duras-, mas de uma medida preventiva exclusivamente políti-
ca.A democracia ateniense construiu-se progressivamente a partir
~a expulsão dos tiranos, e seu grande temor era ver reaparecer a
?
tirania. ostracismo surgiu diretamente desse temor: quando a
populanda~e de um homem público permitia pensar que ele, mais
c~o ou mais tarde, podia apresentar um perigo para a democra-
cia, era afastado da cidade, sem a menor condenação, nem mul-
ta, nem confisco. No termo de dez anos de ostracismo, o exilado
voltava e retomava seus bens. Era pois um processo de intenção,
votado pela Assembléia do povo. No caso de Aristides puderam
supor que seus laços com a · t . , •
ans ocraaa e sua luta contra as prati-
22 1 socrates e seu temoo
cas pouco honestas dos homens que tinham a seu cargo o funcio-
namento da democracia faziam-no parecer uma ameaça.
Plutarco relata uma passagem cuja autenticidade não se pode
garantir. Por ocasião do voto por seu ostracismo, Aristides en-
contrava-se ao lado de um iletrado que não o conhecia. O ho-
mem voltou-se para Aristides e pediu que escrevesse para ele o
nome na tabuinha que servia de boletim de voto. Aristides gra-
vou seu próprio nome e, sempre sem revelar sua identidade, per-
guntou simplesmente a razão da decisão. O homem respondeu
que estava farto de ouvir chamá-lo oJusto. Verdadeira ou não, ela
veicula um forte valor simbólico. Por contraste, o eleitor analfa-
beto, que não conhece Aristides e não sabe mesmo por que se
propõe o ostracismo, dá uma triste imagem de um povo movido
pela rejeição da superioridade moral. Isso articula-se perfeita-
mente com a cótica que o Sócrates de Platão fará à democracia,
que confia as decisões aos ignorantes.
E Aristides aceita sem a menor recriminação a decisão da
assembléia, à qual ele mesmo contribuiu assim com sua honesti-
dade, contentando-se com desejar à cidade que o exilava que
não conhecesse desgraça maior.
Embora menos dramática, temos aqui ~prefiguração de um
aspecto essencial do comportamento de Sócrates diante de sua
condenação. Aristides é totalmente leal ao sistema cujos abusos
critica sem cessar, e que aprecia muito pouco. Sabe que a honesti-
dade, a moral política e o bem comum são sua única motivação,
que é exilado por suspeitas que sua atitude presente e futura
mostrará serem vãs. Aceita sem o menor ressentimento a esco-
lha de uma democracia cujo funcionamento contesta, e muitas
vezes, mas não sistematicamente, as orientações que lhe impri-
me Temístocles.
Seu exílio porém foi breve. Seu ostracismo data de 482 e já
em 480 é chamado de volta: o novo ataque persa põe fim às que-
relas internas e requer a cooperação de todos. Os gregos não con-
seguem estancar a conquista persa: Atenas é evacuada e destruída.
O gênio estratégico e tático de Temístocles consegue arrastar os

o século de sócrates 1 23
persas para uma armadilha. Faz acreditarem que vão poder ani-
quilar a frota ateniense - isto é, tudo o que resta a Atenas -
em Salamina, e depois disso a Grécia será deles. Na tarde em
que a frota persa está a ponto de cair na armadilha e começa a
meter-se em estreitos dos quais não sairá, Aristides consegue
atravessar de barco as linhas inimigas. Não conhece o plano de
Temístocles, que não reviu desde seu ostracismo, e quer imedia-
tamente lhe dar conta da manobra inimiga. Faz-se conduzir
até ele, e sem nenhum ressentimento põe-se sob suas ordens e
expõe o cerco que tenta operar a marinha persa, que não com-
preendeu que está a ponto de deixar-se prender nas redes que
constituem os estreitos, atrás dos quais a frota grega está em
emboscada. Depois Aristides toma a chefia de um contingente
de hoplitas e participa do combate nas ilhas que os persas co-
meçam a atacar.
A frota de Xerxes é portanto aniquilada; mas restam Mardô-
nios e o enorme exército persa que ocupa a Grécia. Atenas teve
uma vitória decisiva, contudo precisa ainda libertar o país. É a
vez do exército espartano, comandado por Pausânias, que dirige
a campanha, com a participação dos atenienses, num contingen-
te bastante modesto, sob as ordens de Aristides. Este portanto
reencontrou todo o seu lugar com essa função de estratego. Por
sua vez, o exército persa é esmagado em Platéias em 479, e Aris-
tides _s~ destaca por sua perfeita lealdade ao general-em-chefe,
Pausamas, o que não era óbvio em razão das rivalidades entre as
pessoas e as cidades.
Volt~d,o ao primeiro plano da vida política, Aristides parece
ter contribu1do para o enfraquecimento do Areópago justamente
depois das gu~rras ~édicas. Era uma espécie de Senado aristo-
cratico ~ue detinha amda poderes importantes. Aristides terá re-
conheado as aspirações de um povo que tinha mostrado tanto
valor durante a guerra.
1:>liticamente, Aristides é pois uma personalidade comple-
xa. Ligado à aristocracia,
· parece surpreendentemente aberto e
nunca age como homem de partiºdo, fazendo sempre passar o

24 1 socrates e seu tempo


interesse geral antes do seu ou de seu campo. Sua lealdade à
cidade é absoluta; aceita o poder legítimo e visa essencialmente
à justiça. Recusa todo jogo de politicagem e não hesita em sus-
tentar uma proposição que emana de um adversário, se lhe pare-
ce justa.
Há duas atitudes na aristocracia ateniense. À procura do bem,
que caracteriza Aristides, opõe-se a do interesse particular ou
partidário de homens que não cuidam do interesse geral e estão
dispostos a apoderar-se do poder pela força, se a ocasião se apre-
senta. Veremos que essa ocasião terminará por apresentar-se.
Enfim, se nos é praticamente desconhecido, o homem pare-
ce contudo ter sido de uma sinceridade total. Era pobre e trajava-
se modestamente, embora freqüentasse os meios mais ricos. Ele,
que tinha exercido os mais altos cargos, e desempenhado um
papel de destaque na jovem democracia ateniense, e que se ti-
nha ilustrado nas três batalhas em que a Grécia pusera em jogo
sua liberdade contra a invasão persa, não pôde deixar dote para
suas duas filhas, que teriam sido condenadas ao celibato se a ci-
dade não tivesse atribuído a cada uma delas a soma de 3 mil
dracmas. Seu filho Lisímaco, de que voltaremos a falar, recebeu
do Estado uma soma, um terreno e mesmo uma pensão, sob pro-
posição de Alcibíades, e sua filha foi também ajudada pela cida-
de. Tal reconhecimento oficial atesta o caráter totalmente excep-
cional do personagem. Os atenienses, com efeito, não tinham o
hábito de adular seus dirigentes. Quando Milcíades morreu das
feridas recebidas no decurso de uma campanha em que fracas-
sou, ele estava na prisão, condenado por esse fracasso, um ano
depois de Maratona. Ternístodes terminará no exilio. Pérides se
verá condenado em 430 e seu último filho vivo será executado
em conseqüência do processo das Arginusas.
É que uma honestidade igual e uma dedicação tão completa
ao bem público eram e deviam ficar sem equivalente. Seu grande
adversário político, Ternístodes, acumulara durante sua carreira
política muitas riquezas, das quais não poderá usufruir, pois de-
verá fugir, acusado de cumplicidade com Pausânias, que fomen-

o século de sócrates 1 25
tava um golpe de Estado em Esparta com ajuda dos persas, e irá
pôr-se a serviço de Artaxerxes, o sucessor de Xerxes que ele ven-
ceu em Salamina.
Do ponto de vista histórico, Aristides não é uma persona-
gem de primeiríssimo plano. Combatente de Maratona, Salamina
e Platéias, nunca é mais do que um segundo, de Milcíades, Te-
místocles ou Pausânias. Sua ação política é difícil de avaliar. Pode-
se pensar que contribuiu para construir e moralizar a democraáa
ateniense, mas sobretudo que lançou as bases sobre as quais_a
democracia de Péricles construirá esse império que ele sem du-
vida teria condenado, como fará Sócrates. Nisso talvez esteja sua
contribuição mais importante para a história de Atenas. Do pon-
to de vista moral e pessoal, é em todo caso o único homem político
do tempo que não conheceu o fim lamentável de seus ilustres
companheiros de armas, e no fundo será a única figura incontes-
tada da história ateniense.
Depois da vitória de Platéias, Pausânias prosseguiu as ope-
rações contra o que restava da presença persa nas possessões gre-
gas das ilhas e da Ásia Menor, porém fez-se detestar pelas cida-
des a que concedia sua proteção somente para dominá-las. Para
contrabalançar essa tentativa de constituição de um império
espartano, os atenienses enviaram Aristides, que as cidades que
rejeitavam a autoridade de Pausânias acolheram como um salva-
dor e que lhes trazia a aliança ateniense. O perigo persa não ti-
nha desaparecido, e só se esfumaria na metade do século; e
entrementes Atenas infligirá ainda uma derrota aos persas, ern
467, dessa vez no sul da atual Turquia graças a Cimon filho de
Milcíades. ' '
Diante dessa ameaça, as ilhas e as cidades da Ásia Menor
não p~am defender-se separadamente. As vitórias de Salamina
e Plateias mostraram q , ~ . . ...,
ue so uma 1orça grega umda podia res1s,u
a um ataque persa Era · h A • •
· preciso aver uma potencia naval impor-
tante, constantemente operacional, e sob comando único para
poder defender essas cidades, todas marítimas. Atenas tinh;
dado
suas provas em Salamina, e graças à honestidade de Aristides e à
26 1 s6crates e seu tempo
ambição desastrada de Pausânias foi para ela que as cidades se
voltavam. Assim formou-se a liga de Delos, com Atenas encarre-
gando-se de garantir a proteção das cidades que dela faziam par-
te, mediante um tributo destinado a financiar a constituição e o
funcionamento da frota. Em razão de sua reputação, foi a Aristides
que coube fixar o montante do tributo. Tratava-se então somente
de uma aliança defensiva, sem a qual imagina-se facilmente que
os persas teriam absorvido as cidades da Jônia. A ação de Aristides
só fazia assim coroar seu combate das guerras médicas, garantin
do-lhe os resultados. Como o campo aristocrático em geral, ele
considerava que os persas eram o inimigo, e que era conveniente
entender-se com Esparta.
Com a morte de Aristides, em meados dos anos 460, Cimon
tomou-se o cabeça dos aristocratas. Excelente general que sabe
rá sempre conter os ataques persas, homem jovial e generoso, é
mais um soldado que um político, e quando terá como adversá-
rio um partido democrático dirigido por Péricles, a partir de 461,
perderá pé. É porém preciso notar uma diferença importante en-
tre Aristides e Cimon, que explica também que o Sócrates do
G6rgi.as o condene igualmente, como Temístocles e Péricles. Por
trás de seu sucesso militar, a liga de Delos começa a transformar-
se em um império ateniense, que Cimon insiste em estabelecer e
em manter.
Com Péricles, o partido democrático chega ao poder e os
dados são radicalmente mudados. A hostilidade do campo de-
mocrático em relação a Esparta leva em germe o conflito que
vai marcar toda a continuação do século. O inimigo vai então
deixar de ser a Pérsia, aliás cada vez menos ameaçadora, para
tomar-se Esparta. Artaxerxes, que subiu ao trono em 464, é um
adversário menos perigoso que Xerxes. A liga de Delos muda
assim progressivamente de natureza. Péricles aumenta seu tri-
buto, embora seja cada vez menos indispensável: a liga toma-
se insensivelmente um império. O tesouro da liga é transferido
a Atenas por razões de segurança, e os atenienses terminarão
por apropriar-se dele.

o século de sócrates 1 27
Por ocasião de sua invasão, os persas tinham destruído a
Acrópole. Péricles a faz reconstruir, sob a direção de Fídias, nos
anos 440, mas as despesas da construção vieram rapidamente a
exceder os recursos financeiros da cidade. É então que decide
utilizar o tesouro dos aliados para acabar o Partenon. A oposição
aristocrática se indigna, mas o dirigente democrata responde que,
corno Atenas garante a segurança de seus aliados, não tem de
dar conta da utilização que faz da contribuição à liga. O argu-
mento é, em certa medida, defensável, sob a condição de esque-
cer o essencial, a saber, que a razão primeira dessa aliança já não
se impõe, porque a paz foi assinada com a Pérsia em 449. É Por
isso que algumas cidades tentaram sair, mas Atenas as manterá
pela força na aliança: a frota que devia protegê-las se volta agora
contra elas. O sucessor de Péricles, Cleonte, acentuará ainda a
deriva imperialista aumentando o tributo: Atenas, democracia no
interior, acentua sua tirania no exterior.
Como foi possível tal deslize, e que vínculo mantém com a
democracia? A liga de Delos, que correspondia a uma necessida-
de estratégica, tinha-se construído sobre uma base provavelmente
honesta; em todo caso, não parece ter suscitado protestos. De
repente,Atenas encontrava-se, por efeito da vitória de Salarnina,
à frente de uma imensa confederação, que iria desde a época de
Cimon considerar uma tarefa sua. Depois, sendo o tesouro trans-
fendo para Atenas, a tentação era demasiado forte e ao mesmo
tempo se revelava a realidade do imperialismo.
Mas s_e~a um erro pensar que nisso havia somente o jogo de
u~a. irres istível tentação trazida pela engrenagem das guerras
medicas.~mos que por trás das escolhas de política externa existia
u".'a ~e_ahdade socioeconômica: o conflito entre os grandes pro-
pne_t~no~ rurais e as classes populares. A aristocracia de origem
agrana, ti n h a interesse
· '
em tomar segura a terra e portanto em
afastar a ameaça pe '
. rsa, mantendo ao mesmo tempo um bom
entendimento com Es rt A ,
"d d pa ª· passagemdosexercitoséumacala-
m1 a e ~a_ra ª.5 plantações agrícolas. Para o partido democrático,
ao contrano, tirar do mar O .
essenc1a1do rendimento, seja através
28 1 SOcrates e seu tempo
do tributo ou dos direitos de porto, é deixar fora do jogo a aristo•
cracia. A frota fornecia empregos para os atenienses mais pobres
e as classes populares não tinham mais o sentimento de ser to·
talmente dominadas pelos grandes proprietários. O domínio do
mar supunha também o das rotas marítimas, e a cidade importa-
va agora grande parte de seu abastecimento, notadamente o tri-
go, de forma que essa dominação, concretizada por seus escritó •
rios comerciais e pela submissão das cidades estratégicas, tinha
se tomado vital.A economia ateniense não podia mais funcionar
sem o império. Assim, quando retomar a inevitável guerra com
Esparta, Péricles não terá outra escolha além de sacrificar a Ática:
para garantir a defesa do império, valia a pena renunciar a defen-
der a terra de má qualidade da Ática e deixá-la aberta às incur-
sões espartanas para concentrar-se na dominação marítima, que
assegurava as riquezas e o abastecimento. Atenas podia sacrifi -
car suas terras, mas não seu império. Além disso, para garantir
sua presença ao longo das rotas marítimas, Atenas instalava ali
clernquras, isto é, colônias militares, o que permitia dar terras a
cidadãos pobres.
Era assim que o povo compreendia seus próprios interesses,
pois a política imperialista tinha o apoio da Assembléia, e a polí-
tica demagógica de Cleonte iria ainda mais longe do que Péricles
na lógica imperialista. Os projetos mais loucos foram os do
ultrademocrata Alcibíades, com seu sonho de um imenso impé-
rio ateniense que alcançasse a Sia1ia. O povo não podia enrique-
cer com uma terra que não possuía, mas tinha o sentimento de
poder fazê-lo por uma política imperialista. É preciso notar que,
ao contrário do que conhecemos, pelo fato mesmo de ser com
posta a Assembléia por todos os homens adultos que eram cida-
dãos, todos os que faziam a guerra eram, com raras exceções, o
mesmos que tinha votado, porque se ficava mobilizado até os 60
anos (o que diz muito sobre a boa forma física dos atenienses:
veremos Sócrates manter brilhantemente seu posto nos campos
de batalha depois dos 40 anos).

o seculo de socrates 1 29
Péricles conseguirá, mesmo assim, assegurar quinze anos de
uma paz frágil com Esparta (446-431), o que evidentemente não
significa que a política imperialista tenha abrandado durante esse
tempo.
Parece assim que a situação política possa ser lida através de
um esquema simples. De um lado, o campo democrata, partidá-
rio do imperialismo e hostil à Esparta; do outro uma aristocracia
favorável ao entendimento com Esparta e pouco interessada no
império. Se as bases socioeconômicas dessa divisão são claras, a
realidade é contudo mais complexa.
O nascimento da democracia grega é singular. Enquanto
nossas democracias modernas surgiram no termo de longos pro-
cessos ideológicos e políticos, resultado de uma fermentação se-
cular de reflexões, polêmicas e lutas, Atenas inventa uma demo-
cracia a que nada tinha preparado. Nenhum traço de debate de
idéias a esse respeito, nem antes nem depois da instauração do
regime democrático. A reflexão teórica sobre a democracia deve
ter começado mais ou menos no momento em que Platão faz de
Sócrates un: de seus protagonistas, ou seja, por volta de 430, ?º~-
tanto uns trinta anos depois que Péricles lhe deu sua forma classi-
ca. Quanto à preexistência de um partido democrata lançado em
uma obscura conquista do poder e chegando enfim à vitória gra·
ças a uma revolução, isso é uma hipótese totalmente extravagante.
Na realidade, tudo começou em uma mistura de fatos diver-
sos e de g~lpe de Estado. É um crime passional que provoca a
queda do filh? ~e Pisístrato1, mas o golpe de Estado realizou-se
por uma c?ahzao de aristocratas que apelam a Esparta para ex-
pulsar ~s tiranos, o que a põe paradoxalmente na origem da de·
mocrac,a. Uma vez derrubada a tirania, a coalizão divide-se. Uns
quere~ estabelecer uma oligarquia, sempre com ajuda de Esparta,
mas Chstenes lhes da' uma rasterra,
· apoiando-se
• no povo. É d"fí·
1

1. Nota-se uma curiosa · •d· . -oe


• .
de d istanaa coma enaa; também em 509 com alguns m""'"'
em conseq·· • · d ' d
Lucrécia R~ma expul uen<:1ª e um assunto de costumes, a violação e
15
muito aristocra'ti·ca. sa os re etruscos e cria um Senado de uma República

30 1 sOcrates e seu temoo


cil saber quais eram suas motivações, mas os historiadores as si-
tuam menos do lado do ideal político do que no de uma estraté·
gia de tomada do poder. Neto, pelo lado da mãe, de um tirano de
Sicione com o mesmo nome, e, pelo de seu pai, membro da grande
família dos Alcmeônidas, tinha exercido responsabilidades polí-
ticas durante a tirania; foi arconte por volta de 525, o que não o
predispunha a ser o fundador da democracia. Deu um golpe de
gênio ao jogar o povo contra o complô aristocrático que se apoi-
ava em Esparta. É sem dúvida um homem de idade madura, situ-
ado por sua família no coração da vida política, que já tem atrás
de si uma longa carreira, que vai desaparecer rapidamente.
Depois de Salamina, o poder político de Ternístocles, o ho-
mem do partido democrata, apaga-se em favor de Aristides, mas
é o momento em que se consolida a vitória, e atrás de Aristides
perfila-se Gmon, filho de Miláades, general notável que vai afas-
tar definitivamente o perigo persa. A continuidade entre os dois
homens não deve porém mascarar uma diferença que devia ser
suficientemente nítida, pois o Sócrates do Górgias, a cujos olhos
só Aristides era valorizado, condena Cimon com Temístocles e
Péricles. A razão provável disso é que, se Aristides tinha negoci
ado uma aliança defensiva contra a Pérsia, Cimon passa à etapa
do imperialismo. Pouco cultivado, atacado por sua vida privada,
imensamente rico, o homem tinha qualidades que o faziam apre-
ciar pelo povo, sobretudo uma generosidade que o tinha mesmo
levado a abrir uma sopa popular a suas custas. Menos hábil polí-
tico do que militar, vai ser suplantado por Péricles, que inicia sua
carreira política um pouco antes de 460, e que instala no poder o
campo democrata.
No plano externo, a diferença entre os dois campos é essen-
cial. O campo aristocrata é partidário da aliança com Esparta. Para
Cimon era preciso combater os persas, mas não os outros gregos.
?estacava-se por uma simpatia particular por Esparta, sem que
isso manchasse jamais sua fidelidade a Atenas; apesar da des-
confiança dos democratas, permanecerá de uma perfeita lealda-
de. Péricles, ao contrário, será sempre partidário de uma luta con-

e século de sóc:rates 1 31
tra Esparta, o que vai também tomar necessário o imperialismo.
Como a paz foi assinada com os persas no meio do século, 0
tributo já não tem razão de ser, e as cidades da liga querem reto-
mar sua independência; mas a rivalidade com Esparta faz_ At~
precisar de um império. E, inversamente, o peso desse tmpeno
leva as cidades a pedir a Esparta que as ajude a reencontr~ sua
independência. O imperialismo inscreve-se assim em um orculo
e toma-se indispensável.
Contudo, Atenas conhece quinze anos de paz com seu n<Ml
inimigo, de 446 a 431. Trégua fecunda para a cidade, mas
entrecortada de operações militares destinadas a conservar 0
império, e notadamente em 440 a sufocar uma severa revolta em
Samos. A responsabilidade de Péricles está amplamente com·
prometida na retomada das hostilidades, que abre a guerra fatal
do Peloponeso. Estrategicamente, o cálculo não é falso: Atenas e
nitidamente superior, mas a peste que a castiga pouco depois, as
derivas do sistema, com Oeonte e Alcibíades, e a catastrófica ex·
pedição de Sicília vão transtornar os dados iniciais.
Esparta não buscava a guerra, mas foi obrigada a isso pelo
jogo das alianças. linha renunciado às aventuras exteriores e de·
via concentrar-se nas suas dificuldades no próprio Peloponeso,
tanto mais que tinha sido atingida em 464 por um terrível tremor
de terra cujas conseqüências demográficas devem ter sido pesa·
d'.15. De fato, Esparta tinha falta de soldados, prisioneira da arma:
dilh~ de seu próprio sistema. Para compreender esse paradoxo, e
preciso deter-se um pouco sobre a singularidade dessa cidade~
compre~nde-se mal que ela tenha constituído uma "miragem
que fasano~ ~a~tos antigos, entre os quais Platão. A população
d~ Esparta dividia-se em três classes. Os espartanos propriamente
ditos o · ·
,, ' ~ igu~, eram cidadãos de pleno direito. Em tomo deles,
05
~necos eram livres mas desprovidos de direitos políticos, e
~xeroam um oficio, notadamente o artesanato. Enfim os "hilotas",
e certo m_odo escravos ligados à terra. Os cidadãos consagra·
vqaum-se unicamente à guerra e à política, recridas por um sistema
e repousava em três · • o-
mstancias: os dois reis hereditários; OS
32 1 sOcrates e seu temoo
"éforos", magistrados que exerciam a autoridade; e a"gerusia",
uma espécie de senado composto de homens de mais de 60 anos.
Ao contrário das formas políticas das outras cidades, esse siste-
ma conheceu uma extraordinária estabilidade e soube evitar re-
voluções, golpes de Estado e tiranias que apareceram alhures em
toda parte. Foi no séculoVII que a cidade progressivamente esta-
bilizou-se em sua tradição, talvez por causa das guerras pela su-
premacia no Peloponeso. Esse fechamento sobre si mesma deve-
ria levá-la a uma morte lenta pelo fato de que o número decida-
dãos não cessava de diminuir. Rodeados de hilotas que eles hu-
milhavam mas que se tornavam ameaçadores quando a cidade
se encontrava fragilizada, como por ocasião do grande terremo
to, os espartanos viviam de certo modo sitiados em seu próprio
país, entre inimigos potenciais. Deviam então consagrar todas as
forças a manter sua autoridade sobre populações muito mais
numerosas, o que explica não somente que tenham procurado
menos lançar-se em aventuras externas, mas sobretudo que Argos
os tenha impedido de impor-se a todo o Peloponeso.
Se Esparta gastava o essencial de sua energia em fazer sol
dados, era contudo militarmente menos temível que Atenas, por-
que, muito pouco numerosos, os cidadãos soldados tinham por
função principal assegurar a sobrevida de uma cidade constante-
mente ameaçada do interior. Além disso, a cidade tinha muito
poucos soldados para arriscá-los inconsideradamente.Atenas, ao
contrário, era muito menos econômica com seus soldados, que
podia arregimentar - e perder - em muito maior número, e
suas expedições longínquas, principalmente no Egito e na Sio1ia,
tiveram um custo humano considerável. Portanto, Atenas é que
paradoxalmente era a verdadeira potência militar, tanto mais que
tinha necessidade de seu império, enquanto Esparta buscava,
antes de tudo, conservar sua autoridade no Peloponeso.
Pode-se nesse ponto notar uma diferença de grande impor-
tância que sem dúvida pesou na formação da miragem espartana.
A democracia ateniense estava comprometida em uma fuga para
a frente que ia conduzir à sua perda através dos exageros do im-

º século de sôcrates 1 33
perialismo, enquanto Esparta só fazia depender seu destino dela
mesma, não tinha outro cuidado que o de manter-se. Aliás. e~
não vai explorar sua vitória de 404 sobre Atenas: quebrará seu
império, mas não buscará aniquilar nem mesmo dirigir a cidade.
que nunca ficará submetida à sua rival e restabelecerá rapida·
mente a democracia. Ao contrário de Atenas, Esparta não conce-
beu o projeto de construir um vasto império.
As molas da potência militar das duas cidades são diferen·
tes. Atenas tem necessidade de dinheiro para construir frotas e
pagar os marinheiros, os pobres apreciam esse soldo e os be~efi-
cios da guerra, e esse dinheiro exige o imperialismo que e sua
fonte. O dinheiro e o material encontram-se no coração desse
encadeamento. Diante disso, Esparta conta essenàalme~te ~m
os homens: forma guerreiros e apóia-se em seu valor. O ~euo
de um lado, e do outro o valor do homem. O Sócrates do Górgias
critica assim o que está no centro do sistema, o Pireu e os Longos
Muros que o ligam à cidade, conjunto que abre a cidade sobre 0
mar e seu império, ao mesmo tempo que a fecha para o aceSSo
terres_tre:_ não é sobre as fortificações materiais que deve repousar
ª potencia verdadeira, mas sobre o homem. Além disso, enquan·
t? .ª riqueza de Atenas é fundada também sobre o comércio rna·
ntimo, por sua vez possibilitado pelo domínio do mar e das cos·
tas
. ' EsPartª ignora
· a moeda, recusa o luxo e o comércio inu' til e
vive em autarquia.
Paradoxo no limi"te macre
· ditavel:
, e, graças a uma re fl exa-o so-
bre Esparta que se afirma a preeminência do homem O modelo
~~~o ensina que os valores materiais são engodas, e que 0
und~co or verdadeiro está no homem. A cidade é uma verda·
erra escola, que se d o
.
esta em que para
encarrega da criança muito cedo. O para º"
guerre·rro, enquanto os espartanos o homem é essencialmente 0
para Pla - o
modelo espart . tão e, sem dúvida, para Sócrates
na formarão danoh e transposto: a república ideal está centrada
• of0 ornem,
mas como" fi1050 ( conceb'd1 o nao - mais como guerreir · o'
veremos aliás' )
Essa cidade, que nos que Sócrates soube ser amboS ·
repugna por seu desprezo pelo hornern,
34 1 SOcratl!s I! 5l!U ll!moo
máquina desumanizante que choca nossos princípios, ocupa as-
sim um lugar insuspeitável nas fontes do humanismo.
Democracia, imperialismo e riqueza estão estreitamente li-
gados em Atenas, e uma virada ainda mais democrática tomada
depois de Péricles acompanha-se de um endurecimento do im-
perialismo. Parente e pupilo de Péricles, o uJtrademocrata Alci-
bíades queria estabelecer um imenso império ateniense, indo da
Ásia Menor até a Sicr1ia, e daí a expedição que terminou em
desastre. Mesmo os que, como Sócrates, não aprovavam a polí-
tica de Péricles reconheciam seu valor, sua moderação e sua ho-
nestidade. Não teve sucessor de qualidade e os adversários do
sistema podiam dizer que se a democracia tinha funcionado era
graças a ele, que soube dirigi-la a ponto de não ser mais uma
verdadeira democracia. Entregue a homens de menor enverga-
dura, ela ia efetivamente derrapar e provocar a perda da cidade.
A decisão, e depois a conduta da expedição à Sicilia, assim como
o lamentável processo das Arginusas, onde veremos aparecer
Sócrates, mostram as incoerências fatais de uma democracia que
se deixava levar pela paixão e que nenhuma autoridade inteli-
gente vinha temperar. É preciso dar-se conta de que o sistema é
tão perigoso que nenhuma democracia moderna se inspira nele:
não são os cidadãos que tomam as decisões políticas, mas seus
eleitos, que podem estudar os dossiês de maneira aprofundada.
Transposta para a época moderna, a democracia ateniense se-
ria um governo por sondagens de opinião aquecida por uma im-
prensa arrebatada. Ao contrário do sistema espartano, em que
os poderes - gerusia, éforos e os dois reis- controlavam-se e
assim equilibravam-se, a democracia ateniense, apesar de seus
meios de controle (a prestação de contas e a acusação de ilega-
lidade, que qualquer cidadão podia lançar), corria o risco de de-
sembalar e de tomar decisões inconsideradas sob influxo da
emoção. O apelo à emoção era uma deriva inevitável, por ser a
maneira mais eficaz de arrebatar uma decisão por ocasião de
um voto popular.

o século de sócrates 1 35
Outra deriva, mais técnica do que insidiosa, que nos interes-
sa mais diretamente, é a que decorre do aumento dos honorários
concedidos aos juízes, sorteados entre os cidadãos candidatos
Com efeito, isso fazia dos tribunais um meio apreciado de sub-
sistência para os cidadãos sem recursos, enquanto eram muito
menos atraentes para pessoas abastadas, sobretudo se tmham
seus próprios negócios a administrar. Resultava disso algo que
podia, às vezes, aparentar-se a uma justiça de classe: adivinha-se
que os tribunais de pobres não fossem lá muito favoráveis aos
ricos, nem tampouco aos intelectuais. Foi um tribunal desses que
condenou Sócrates.
Aristófanes faz eco a uma outra crítica dirigida aos sucesso·
res de Péricles: a vulgaridade. Como no caso de Sócrates, a figura
de Oeonte que aparece na comédia deriva da caricatura e não da
ver~ade_ histórica. Oeonte não era um pequeno comerciante da
ma15 ba1Xa extração, mas o filho de um rico curtidor. Contudo,ª
caricatura apóia-se em uma realidade social. Até então os ho·
mens políticos, democratas ou conservadores, eram todos arist0·
~tas. Péricles aliás era de um caráter distante que o deixava pauco
ª ~ont_ade para o contato físico com o povo, ao contrário de seu
p~meiro adversário, o conservador Cimon. O enriquecimento da
adade garantia a promoção de uma burguesia pouco numerosa
decerto, mas bastante rica para alguns de seus membros ambicio-
narem O acesso ao poder. Contudo esses homens não têm sem-
pre_ª educação que transmitiam as velhas famílias: por trás da
cancatura da comédi"a, sente-se a crítica feita a Cleonte de na•o
tedr ª compostura nem as maneiras distintas dos homens belll·
e ucados.
. .
Mas seria um erro acreditar que a nova burguesia · es-
tava mterramente ad · ·d , ·
dos . . . qwn a para a democracia pois N1c1as, u111
pnnapais adversári ' - er-
tencia a uma famíli . os conse~adores de Cleonte,_ nao P__
dade agrária cu·o a an~tocrata. Nao devia sua fortuna a proprte
anos da I rendtmento deve ter baixado fortemente nos
guerra do Peloponeso d
larrnente devastada
A
, , ~rante os quais a tica era_re
gu-
um lote de mil 'masª locaçao para as minas do Launon de
escravos. As exigências oratórias da atividade po·
36 1 sOcrates I seu tem110
lítica eliminavam os homens mais modestos, que não tinham feito
estudos. Para dirigir-se com eloqüência a urna assembléia de mui-
tos milhares de pessoas, era melhor ter seguido as lições dos sofis-
tas e dominar a técnica de tornada da palavra. Os filhos de uma
nova burguesia esclarecida podiam ter seguido os melhores estu-
dos e se assimilado à aristocracia, e havia"homens novos", corno
o curtidor Anitos, instigador do processo de Sócrates, que su-
priam talvez as lacunas de sua educação pela simpatia que suas
maneiras populares deviam valer-lhes junto ao povo, que se re-
conhecia seguramente mais em Cleonte do que em Péricles.
Sócrates não é evidentemente o único a ter sentido os defei-
tos da democracia ateniense. Embora Péricles tenha ficado nas
memórias como o amigo dos artistas e pensadores, de Fídias, de
Anaxágoras, de Pitágoras, seu programa político tinha já suscita-
do urna forte hostilidade. De diversos modos, Ésquilo, Eurípedes,
Tucídides, Aristófanes e outros menos conhecidos - como o cô-
mico Crátinos, de quem tudo perdemos - opõem-se à política
do campo democrata.
A simpatia por Esparta podia, pois, ter significações muito
diferentes. Podia ser entendida como um simples desejo de paz
entre os gregos, e assim, corno oposição ao imperialismo demo-
crata; ou então a rejeição da civilização centrada no dinheiro, em
favor de uma cidade ideal fundada no valor dos homens; ou mes-
mo, no pior dos casos, o dos oligarcas, a vontade de apoiar-se no
inimigo de Atenas para expulsar os democratas e instalar urna
ditadura. O pior está ao lado do melhor nessa espartofilia, de que
se podem notar alguns sinais exteriores. Com efeito, os laconô-
manos - admiradores de Esparta, cidade da Lacônia - chega-
vam a imitar o modelo de vida espartana. Cabelos longos, pouco
cuidados, vestidos de um simples manto, o famoso tribon, eles
praticavam os exercícios físicos no ginásio. Esse ginásio onde se
encontra Sócrates não é de modo algum um lugar elegante onde
se divertem graciosos adolescentes sob o olhar malicioso dos ho-
mens de uma cidade que escondia as mulheres. O esporte grego
é uma preparação militar. Em urna cidade onde a mobilização vai

o seculo de sócrates 1 37
até os 60 anos e se combate com as forças dos próprios braços,
com o peso de uma armadura sobre o corpo, a condição física é
importante e mesmo vital, já que as campanhas são freqüentes.
Mas isso não concerne à totalidade dos cidadãos, pois é preciso
um certo grau de riqueza para ser hoplita. A violência da luta
praticada no ginásio transparece no apelido de "homens de ore-
lha partida" que designava certos espartófilos: em nossos dias,
pode-se reconhecer esse traumatismo que deforma a orelha com
bastante freqüência nos jogadores de primeira linha do ruguy.
Estamos muito longe do mundo de estetas que muitas vezes se
pensou encontrar nas entrelinhas dos escritos de Platão. Em todo
caso, graças a essas rudes práticas Sócrates devia ser ainda um
sólido combatente aos 45 anos.
Sócrates encontrava-se pois muito naturalmente com ho-
mens que sua espartofilia devia por vezes levar a tristes compor-
tamentos políticos. Note-se que o aspecto, a postura que vão tor-
nar-se tradicionais do filósofo - cabelos compridos, sirnplicid~-
de austera - tinham em sua origem um significado político, si-
nal de adesão aos espartófilos. A filiação é simples: Sócrates tem
por discípulo Antístenes, e os cínicos, com Diógenes, seguidos
pelos estóicos, perpetuarão a tradição.
É difícil evitar a questão que nos constrange: como é possí-
vel que os atenienses, mesmo os mais finos, não tenham ficado
c_h~ados com o regime espartano? Se os democratas eram hos·
tis ~ grande cidade rival era para assegurar a potência de Atenas
e nao porque se opusessem a um sistema do qual se -pode cons·
ta~~ que os antigos não julgaram escandaloso, porque nunca.º
~ticam desse ponto de vista. É que Atenas não tinha quase li·
~oes ~e _humanidade a dar, primeiro em razão de sua política
impenalista e em seguida pela maneira como considerava os es·
cravos. Os escravos urbanos não eram particularmente mal ~-
t~dos, e n~ :'-1ª nada os distinguia dos homens livres; ao contra·
no,~ co ndiçao dos que trabalhavam nas minas de prata do Laurion
devia ser terrível · Ali,as foram os urucos
, . que chegaram a rebelar·
se.Vimos que Nícias, de que Platão faz um dos interlocutores do
38 1 Sócrates e seu tempo
Laques, tinha investido sua fortuna em escravos e alugava um
milheiro deles a essas minas: embolsava seus salários de minei-
ros e dava-lhes unicamente o necessário para sobreviver-o que
na certa representava uma grande diferença, pois Nícias era ex-
tremamente rico. Isso não o impedia de ser considerado um ho-
mem respeitável, e até escrupuloso; ninguém suspeitava de sua
honestidade ou de sua qualidade moral. Aliás, comprar escravos
para viver de seu salário alugando-os a empresas era uma prática
corrente, mesmo em escala muito modesta -de um artesão tra-
balhando em um canteiro com um ou dois escravos, e ficando
com seu pagamento. Para os outros gregos, os hilotas eram os
escravos dos espartanos e não se via bem quem estaria disposto
a escandalizar-se com sua condição. O escravo não é um ser hu-
mano em sentido pleno. Na Antiguidade, não se define o ho-
mem biologicamente, mas socialmente, o que explica que se pu-
desse enjeitar os recém-nascidos indesejados.
O próprio Sócrates não partilhava o preconceito corrente -
embora não universal - que impedia de ver um ser humano no
escravo. É um jovem escravo que no Mênon serve para mostrar
que o homem encontra o conhecimento no fundo de si mesmo.
Inversamente, para Sócrates, o fato de pertencer ao melhor mundo
2
não impede de ser escravo dos próprios desejos e paixões • O
cinismo, herdeiro de Antístenes, que tinha origens servis - e
herdeiro de Sócrates, de quem Antístenes era disápulo - , reto-
mará essa idéia deslocando o desnível entre liberdade e condição
servil: a única escravidão verdadeira é a dos medos e das paixões:
a liberdade depende da conquista interior, o que reativa o modelo
espartano (de que os cínicos eram herdeiros no trajar), nisso que
era percebido como desprezo das riquezas e triunfo da vontade
sobre o medo e as paixões.
. O modelo espartano pôde assim tomar significações muito
diferentes, sendo estabelecido que a servidão a ninguém choca-
va. Para uns era o sonho de expulsar a democracia e apoderar-se

2. XENOFONTE, Económico, 17 ss.

o século de sócrates 1 39
do poder, sonho que se realizaria de maneira breve e sangieru.
em 404; para outros, a crítica das falhas não só políticas mas so-
bretudo morais do sistema ateniense-já ,.;mos seus limites bem
reais. Cúmulo do paradoxo, era cm nome da moral que se opu-
nha Esparta a Atenas.
O último opúsculo de Xenofonte, Dos rendimentos, cont~
proposições totalmente surpreendentes para um tradicio~
como ele. Com efeito, preconiza conceder aos metecos O ~
de propriedade quando são dignos dele (em Atenas só os cida·
dãos podiam ser proprietários fundiários); e dispensá-los de sei:·
.
vir no corpo dos hoplitas, concedendo-lhes ao mesmo tem
Poª
acesso ao corpo prestioioso da cavalaria. E isso para os atralfpa!a
ª Cl'dade, porque é neles o- · · ·dade
que repousa o essencial da atJVt .
econômica.Aliás, ao contrário de Platão, Xenofonte é favoráve\a
":'ªrinha comercial. O interesse dessa posição é que ela te:
Sido ª de um espartófilo tão marcado como Xenofonte, que 11
combatido no exército espartano, o que lhe valera ser exilado de
Atenas e perder seus bens; para compensar-lhe, os espartanos
lhe deram uma propriedade na qual viveu vinte anos. .
Isso s·gnifi · eons1·
r ~ ca que a admiração por Esparta não trazia
a adesao_a uma ideologia política. Podia-se admirar as quali·
ades ":'ºréllS e a estabilidade de uma cidade sem pretender re·
produzir suas 1· t·1 . - . igo e
. ns tu1çoes. Podia-se ser admirador, am , .
obseqwador de 1:-~....- se . . oo·op<>littco
de Es ......,... \d m por lSSO pregar o sistemas
pol'ti parta, 0 que não corresponde de todo à nossa relação co(ll
1
d ca. A_espartofilia era sem dúvida primeiro a rejeição de urna
emocraaa, cu1·os Um· ., titu·
de m · ites Iª foram vistos, em seguida uma ª
éll.S moral do que ideal , .
Lemb ra-sem ·tas ogica.
I fo
não ultrapasso w vezes que o pensamento político de P ª ª
uma dezena deu;:adro da cidade, que só iria sobreviver-~e
uma forma a on· · Certamente não pensou o Estado e teo~
com o home! . izant , te. °Ê ~ue concebe o político em sua relaçao
, IS o e, através da ed - pers·
J>ectiva, a cidade a , ~caçao e da moral. Nessa .
analogia com O h~=-ta alem disso a vantagem de se prest3!' ª
· sabe-se que, para Platão, a cidade e ª
40 1 socrates e seu lt!mpo
imagem ampliada do homem, de forma que o estudo do homem
pode ser feito mais facilmente sobre essa imagem, que tem os
detalhes mais visíveis. Tal analogia não seria mais pertinente no
caso do Estado. A leitura moral do político conduzia a abordá-lo
sob a forma mais favorável à analogia. Esta concepção moral da
política não depende só da especulação filosófica, porque parece
que foi a de Aristides, o que o toma bastante inclassificável a nos-
sos olhos. Embora pertencendo ao ambiente aristocrata, perma-
nece leal à democracia e dirige o essencial de seu combate para a
honestidade e para o serviço da cidade. A grande referência políti-
ca, e a única incontestável, deixava uma imagem de exigência mo-
ral sem nenhum conteúdo ideológico-político. Sua luta pelo bem
comum ultrapassava as diferenças de interesses, de modo que afi-
nal é difícil situá-los segundo nossos critérios, o que não será evi-
dentemente o caso para os partidários da oligarquia, que utilizam
a ação política em seu próprio benefício.

o século de sócrates 1 41
capítulo 2
D HOMEM EM SEU SÉCULO

O que sabemos de Sócrates? A data de sua morte (399), de que


se deduz a do nascimento {470 ou 469), pois morreu aos 70 anos.
O primeiro traço que deixou é a paródia burlesca que Aristófanes
dá do seu ensinamento em As nuvens, de 423. É essencialmente a
obra de Platão, mas também a de Xenofonte que permitem ima-
ginar o personagem, mas datam do século N. Aristófanes, Platão
e Xenofonte são os únicos contemporâneos de Sócrates que tive-
ram seu testemunho integralmente conservado. Outros testemu-
nhos produziram uma literatura socrática que não chegou até
nós, mas pode-se supor que autores posteriores conseIVaram às
vezes seu eco. Independentemente de saber se os olhares de
Platão ou de Xenofonte deformaram seu mestre, é certo que só
dizem respeito aos últimos anos de sua vida. Platão nasceu em
427, de modo que só pôde ser discípulo do Sócrates sexagenário.
Quanto a Xenofonte, tinha provavelmente, com meses de dife-
rença, a mesma idade de Platão, e só seguiu o ensinamento de
Sócrates de maneira breve e superficial.
Sócrates aparece pois pela primeira vez com mais de 45 anos,
na sátira de Aristófanes, e os que nos permitem reconstituir seu
ensinamento e sua figura só o conheceram nos últimos dez anos
de sua vida. Não temos assim nenhuma informação direta sobre

1 43
os primeiros 45 anos de sua vida. Certamente, Platão ~-em
cena o mestre em sua juventude, fazendo-o encontrar Parmerudes
no diálogo que leva seu nome; depois, em tomo do ~no ~30, em
muitos outros diálogos. Mas esse primeiro encontro e fic?ao,ea
historicidade dos outros diálogos quase não é defendida h~e
(contêm demasiados anacronismos em relação à sua data teon·
ca). Duvida-se também se Platão pode ser considerado uma tes·
temunha confiável de encontros que se supõe ter tido lugar an·
tes de seu nascimento. Contudo não se deve esquecer que ele
esteve bastante próximo de seu mestre para conhecer os aconte·
cimentos biográficos que podemos encontrar em sua o~ra: sem
nunca saber com precisão o que é absolutamente autentico. A
isso acrescentam-se fragmentos de tradições muito diversaS,que
nos chegaram através de muitas etapas por meio de eruditos e de
compiladores geralmente desprovidos de espírito critico. A co~-
denação de Sócrates prova que o personagem foi objeto de pele·
micas, e como além disso os antigos eram grandes amadores ~e
fofocas e calúnias, às vezes vêem-se aparecer traços de um Só·
crates tão pouco simpático quanto merecedor de crédito. .
Devemos nos resignar a nunca saber como foram os pnrn -~
.
ros decênios da vida de Sócrates, mas isso não nos deve impedir
de traçar-lhes um retrato provável, na medida em que se enqua-
dre co~ as circunstâncias e a seqüência de sua trajetória. ,
S~a~es é ateniense, do demo de Alopeké, que era tarnbé~
0 de Aristides, o que explica que, conforme o Laques, seu pai,

Sofronisco, tinha combatido ao lado do filho de Aristides,


Lisímac_o. <? laç~ entre Sócrates e Aristides já está, portanto, segut';
do P\atao, mscnto na história da família. De que batalhas se trata·
Talvez Sa\~mina, Platéias, ou as campanhas que lhes segwrarn-
Quaodo nao atuava como hoplita, Sofronisco era talhador de pe·
dras, o que incluía a execução de esculturas segundo modelos
d~dos,_ ~ab~lho que exigia habilidade e segurança técnica, rnas
ntao on~ali~de nem inspiração. Se o fato de ser a mãe de Sócra·
d'es parteira
. . nao · · diferente, não é somente pelo uso que fara'
. em
di
isso, reivin cando para ele mesmo essa função em relação aos

44 1 Sócrates e seu tempo


discípulos, mas também porque dá a essa fami1ia de artesão uma
certa singuJaridade. Ao contrário de seus futuros discípuJos, ge-
ralmente aristocratas, que tinham as mães e depois as esposas
enclausuradas no gineceu, Sócrates sem dúvida passou a infância
em uma família que qualificariamos de"normaJ", com o pai partindo
de manhã para os canteiros e a mãe circuJando livremente pela
cidade para exercer sua atividade. De um ponto de vista psicológico,
em todo caso, Sócrates não terá a mesma imagem da muJher que
os homens que vai freqüentar.
Sócrates tinha um meio-irmão, Pátroclo, filho de sua mãe
como Platão diz no Eutidemo (297 e). Pode-se supor que Sofro-
nisco desposara uma viúva que já tinha um filho. Ignora-se se
havia outros filhos na casa, mas a profissão da mãe levaria a pen-
sar que não. O meio sociaJ é portanto modesto, mas não miserá-
vel. Companheiro de armas de Lisímaco, Sofronisco combatia
como hoplita, o que supõe um mínimo de patrimônio. Era sem
dúvida proprietário de sua casa. Sócrates também será hoplita e
proprietário de sua casa, que constituía seu único bem, talvez
herança paterna.
Nascido dez anos depois de Salamina e aJguns anos antes
da morte de Aristides, o jovem Sócrates não tinha completado 10
anos quando Péricles (nascido em 495) começa sua carreira polí-
tica. QuaJ pode ter sido sua formação? Certamente foi à escola,
mas suas origens sociais o levaram muito cedo a aprender o ofício
de seu pai. Uma tradição, que não temos nenhum motivo para
descartar, diz que ele trabalhou nos baixos-relevos do Partenon,
0
que é bem possível porque na época tinha 25 anos. Em todo
c~s~ é difícil imaginar que tivesse disponibilidade para tornar-se
discrpulo de um filósofo.
Antes de tudo, não havia escola filosófica em Atenas no meio
do século V. Aliás, não é ainda a grande época da passagem dos
sofistas, e de todo modo não teria podido pagar seus cursos. Só-
crates é mais ou menos da mesma geração que a maior parte
d~les. Vimos acima que o encontro com Parmênides- aliás tam-
bem com Zenão de Eléia - é fictício, e destinado a estabelecer

0 homem em seu século 1 45


uma filiação intelectual entre o eleatismo e Sócrates. O simples
fato de que nesse diálogo, que se diz ocorrido em 450, Sócrates
defenda a teoria das Idéias, que ele não sustenta em ne~um
outro lugar e que a maior parte dos historiadores não lhe atnbw,
assinala o anacronismo. Outros o dizem discípulo de Anaxágoras.
outros ainda de Arquelau, aluno desse. Certamente, ambos vi\:·
ram em Atenas - o primeiro era amigo de Péricles - , e se Só-
crates tivesse de seguir o ensinamento de filósofos seria a eles
que teria se dirigido; mas imagina-se mal o jovem talhado.r de
pedras encontrar entre dois canteiros a maneira de introduzrr-se
no meio restrito que começa a descobrir a especulação intelec·
tua!. Aliás, essa especulação não tem tradição local: os filósofos~
professores vêm das cidades gregas da Itália e da Jônia, não há
escola ateniense antes do século V, como mostra a ausência da o·
dade na longa lista dos pré-socráticos. Em contrapartida, no F~d0f1
Platão faz dizer a Sócrates que foi a decepção causada pela leitura
de Anaxágoras que o levou a encontrar seu caminho filosófico.
. Podemos assim supor um itinerário bastante verossímil: 0
Jovem artesão apaixona-se pelo saber em uma cidade em que 05
filósofos ainda não começaram a ensinar, mas onde já se pade
conseguir seus livros. Imagina-se assim um Sócrates autodidata
buscando compreender o mundo e considerando insuficientes
ª~ respostas de Anaxágoras, que, sem dúvida, ele encontrou na
cidade, mas de quem não podia ser aluno. A idéia de que O saber
se transmite é uma evidência para os gregos e sempre se apre·
sentam os fil'050fos ·indicando sua escola e seu
' mestre; f01· 1·ssa
ª
que l~ou atribuir um mestre a Sócrates. De fato, a própria sin·
gulandade de Sócrates, seu lugar único na história da filosofia
cdoncorda muito melhor com sua condição de autodidata, obriga•
o a elaborar por s·1 mesmo seu pensamento na idade em que
seus ,
. . sucessores mais ou menos 1ongmquos - por as·
se esforçarao
1
s1m1 ar o pensamento de seu mestre.
Contudo Ate , d-OS
' nas e uma pequena cidade em que os cida ª
se conhecem e o d d , .
n e os esruve1s sociais não impedem que as
pessoas se falem. Ricos e pobres, cidadãos, metecos ou estran·
46 1 sôcrates e seu tempa
geiros não constituem castas que proíbam o contato. Pode-se
então supor que Sócrates procurou desde cedo encontros inte-
lectuais, o que em uma cidade em plena florescência cultural e
constantemente mergulhada em debates políticos devia ser tan-
to menos difícil porquanto sua riqueza e seu desenvolvimento
iam atrair cada vez mais pensadores e professores, com os quais
- caso se acredite em Platão, que neste ponto parece bastante
crível - Sócrates gostava de discutir fora dos cursos, que não
teria meios de pagar. Platão faz Sócrates dizer no Laques (186 c)
que não teve mestre e que os sofistas eram demasiado caros para
ele. Não é menos verdade que foi a riqueza da cidade que fez
dela um centro intelectual graças ao qual Sócrates pôde tomar-
se ele mesmo: as leituras, os encontros, os debates por meio dos
quais se construiu não eram possíveis em outro lugar. De outro
lado, todas as tradições concordam sobre o fato de que não via-
jou além de suas campanhas militares. A coisa merece ser assi-
nalada, porque, se os mestres viajavam, os que buscavam o saber
podiam também pôr-se à sua procura. A mobilidade é uma das
características do ensinamento em toda a Antiguidade. O Fédon
deixa supor um jovem Sócrates habitado pela paixão do saber,
mas sem ter outro recurso que os livros para o acesso a ele. Nem
teve tampouco meios de ir à Itália seguir os ensinamentos dos
eleatas e dos pitagóricos, como não tivera a possibilidade de pa-
gar os cursos dos sofistas vindos a Atenas.
A Atenas dos 20 anos de Sócrates está em plena reconstru-
ção e ao jovem talhador de pedras não faltavam canteiros, a co-
m_eçar pelo da Acrópole. É curioso que Platão não empreste a seu
Socrates a evocação desse passado, mesmo quando toma tantas
vezes seus exemplos nos artesãos, e não hesita em lembrar que
sua mãe era parteira. Seria porque Sócrates não evocava nunca
seu passado profissional ou porque Platão, achando-o indigno
de um filósofo, escolheu substituir-lhe uma juventude à altura
do personagem, a de um estudante discípulo de Parmênides? É
provável que tenham faltado a Platão informações sobre a ju-
ventude de Sócrates, mas talvez ele estivesse também suficiente-

0 homem em seu século 1 47


mente impregnado de preconceitos aristocráticos para não pro-
curar saber disso ou, ao menos, não dizer mais.
Em todo caso, quando evoca as campanhas militares, só fala
de um Sócrates de 40 anos cujas testemunhas podia conhecer. E
Alcibíades que lembra, no Banquete1, a expedição de Potidéia (432-
1
429). É possível que se trate da primeira campanha de Sócrates
Certamente Atenas conheceu uma paz de quinze anos com
Esparta (446-431), mas isso não a impediu de executar outras
operações militares, às quais seria de todo inverossímil que
Sócrates tivesse escapado, e que era tanto menos homem para
fazer isso, porque era excelente soldado. Depois da derrota de
Coronéia (447), em que caiu o pai de Alcibíades, Atenas vi_u-se
de novo atacada de todas as partes, e tem-se dificuldade em una·
ginar que o jovem hoplita Sócrates não tenha sido mobilizado.
Em 440, Samos se revolta e Atenas deverá empregar grandes
meios militares e levar oito meses para reconduzir a ilha ao seu
império. Uma tradição relatada por Diógenes Laércio quer que
Sócrates tenha feito uma viagem a Samos em companhia de
Arquelau. É sem dúvida um eco deformado que terá interpreta·
do como estada filosófica uma campanha da qual participou, com
toda certeza. Enfim, teve de servir em Anfípolis (437-436)2, em
operações destinadas a assegurar o controle das rotas marítimas
para O Ponto-Euxino. O que em todo caso pode-se considerar
c~mo certo é que o hoplita inabalável que descreve Alcibíades
nao descobriu os campos de batalha aos 40 anos. É um soldado
experimentado e que não cessa de manter sua condição física
exercitando-se para a luta.
O silêncio de Platão sobre a juventude militar de Sócrates
explica-se ?rovavelmente por sua ignorância, o que significa que
Socrates nao falava disso, achando sem dúvida que não tinha por
1. 219 ss.
2
doutn ~ ~r;'fiª~:.!,~n.te dessa campanha que fala D1óGNES LAl!Rc10, Vid?5 e
3
d iv• ilustres, II, 22, e não da operação de 422 corno diz
: ~ a elx999celente tradução publicada sob a direção de M-0.G;ULET, rocho·
-.,ue, 'p. 231.

48 1 sócrates e seu tempo


que se gabar de ter feito seu dever. E quando Platão escreve as
testemunhas da juventude de seu mestre estão mortas e não po-
dem mais informá -lo.
É então impossível saber quando e como o talhador de pe-
dras afastou-se dos canteiros para consagrar-se exclusivamente
a seu ensinamento. Os diálogos platônicos não podem ser toma-
dos como testemunhos sobre a vida mesma de Sócrates, que não
aparece historicamente, já o mencionamos, a não ser em 423 com
As nuvens de Aristófanes, em que é um sofista que mantém uma
escola. O fato de ser objeto de uma peça de teatro representada
nas Dionísiacas significa que Sócrates é uma personalidade im-
portante. Que uma peça seja consagrada à caricatura de alguém
é evidentemente sinal de sua notoriedade. Entre as conjeturas
muito prováveis sobre o jovem Sócrates talhador de pedras e o
mestre de 45 anos, intercala-se assim um intervalo de um quarto
de século sobre o qual nada sabemos, a não ser que só deixou
Atenas para combater, que se introduziu na melhor sociedade,
sem nada mudar da austeridade de sua vida, o que só podia torná-
lo simpático aos meios conservadores da aristocracia espartófila.
Há um personagem que pode ter desempenhado um papel
discreto na carreira de Sócrates: Críton. Amigo de infância do
filósofo, pertence também ao demo de Alopeké, mas é um rico
proprietário de terras. Platão mostra-o no Eutidemo, no Fédon e
sobretudo no diálogo que leva seu nome, encarregando-se de
~uestões materiais. Talvez tenha sido ele que apresentou Sócrates
a _boa sociedade ateniense, fez que saísse dos canteiros, o que
~ao representava grande coisa como encargo financeiro, devido
ª modalidade de suas necessidades. A relação de Sócrates com o
dinheiro continua a ser um enigma, pois nunca é visto trabalhan-
do. Critica os professores que cobram por seus cursos mas não
tem outra atividade a não ser ensinar... Em todo caso, não se sabe
quando Sócrates tomou-se um mestre. Embora adquira, sem
dúvida progressivamente, uma notoriedade que lhe dá acesso a
t~dos os ambientes, não se pode contudo falar de ascensão so:
cial, não só porque permaneceu pobre, mas sobretudo porque e

0 homem em seu século 1 49


totalmente singular e não adota as maneiras dos aristocratas É
preciso, para constatá-lo, afastar-se um pouco do Sócrates de
Platão, que não sai de seu próprio olhar social. O refinado aristo-
crata Platão foi, como seus semelhantes, fascinado por esse ho-
mem do povo, porém ele disfarça suas "más freqüentações•.
Os interlocutores de Sócrates nos diálogos de Platão pertencemª
melhor sociedade ateniense, ou são esses grandes conferenas-
tas itinerantes que se chamam sofistas; Platão não faz aparecer
nos diálogos discípulos populares, como Antístenes - os do15
se detestavam -, nem os personagens menos recomendáve15
que Sócrates abordava sem o menor preconceito, como a corte-
sã evocada por Xenofonte. Ao contrário, seus parentes Crítiase
Cármides, apesar de seu triste fim, ocupam nos diálogos um lu-
g~ que os valoriza; pode-se perguntar se Platão não qu~s, par
piedade familiar, reabilitar a memória de seus tios que unham
soçobrado na ditadura, dando-lhes a imagem de discípulos de
Sócrates. Platão permanece um homem de seu meio e de sua
família, mesmo quando põe Sócrates em cena. O cinismo con-
servará uma vertente do socratismo que Platão ocultou, aquele
que põe em causa todos os valores que não sejam morais. Certas
fontes chegam a pintar Sócrates como um bufão, e encontra-se
um traço disso aprofundando certas págm· as de Platão, que soube
. an~fi gurar essa bufonaria e integrá-la na famosa e ·msaoa
tr ·'vel
ironia socrática.
S · · · , · de
m ena, Pº1: totalmente errôneo imaginar uma traJeto~a _
odeSto artesao elevando-se às mais altas camadas da sooeda
de. Sócrates permaneceu sempre ele mesmo, perfeitamente in·
diferente
f , . ao olhar alheio, · o que provavelmente contn·bu1a , para o
ascm10 d~ tantos que o conheceram. ,
Se S~crates aparece muito diferente segundo as fontes, e
porque nao manteve escola nem deu cursos. Discutia com uns e
com outros sem ex 1 . . , 'bl'cOS
nos •n - . ' c wr runguem, nas ruas, nos lugares pu 1 '
i°5'
ti;s. ~ certamente nas residências.
1

tid c1 sa er quando adquiriu a notoriedade. O fato de ter


0
por um momento Alcibíades como discípulo dá uma peque·
50 1 sOcrates e seu tempo

- --~-~~-------
na indicação. Pertencendo a uma grande família e pupilo de
Péricles (seu pai morrera em 447 na batalha de Coronéia),
Alcibíades nasceu por volta de 450. Poder-se-ia deduzir daí que
Sócrates era reconhecido como mestre antes de 430, portanto
antes dos 40 anos, e que nesse momento estava próximo do cír-
culo de Péricles, vinte e cinco anos mais velho do que ele, e que
sem dúvida Sócrates pouco freqüentou pessoalmente? Pode-se
também imaginar que foi a campanha de Potidéia - e o salva-
mento de Alcibíades - que aproximou os dois homens. É prová-
vel que o aristocrata distante que era Péricles, alérgico ao contato
com o povo, quase não apreciasse esse agitador difícil de enten-
der, que muito pouco se preocupava com as boas maneiras, e que
além disso ostentava por seus trajes simpatias políticas pelo campo
adversário. Em contrapartida, Alcibíades, que foi o homem de
todos os excessos e de todas as transgressões, que teve o projeto
louco de tomar-se o senhor de um imenso império ateniense,
deve realmente ter se sentido atraído pela singularidade e pela
força de um homem que fascinava os outros, que nada temia e
n~o se deixava prender nem pelas convenções nem pelas arma-
dilhas que a sociedade nos prepara. De resto, esse laço com
Alcibíades e, portanto, através dele com o círculo de Péricles,
mostra que Sócrates também freqüentava os partidários da de-
mocracia, mesmo se Platão o apresenta na maioria das vezes com
os conservadores, como Nícias (mas aqui a cena que figura even-
tualmente no Laques é datada de 420). Enfim, esse mesmo diálo-
go (180 d-181 a) mostra-o com Lisímaco, o filho de Aristides,
que se lembra do pai de Sócrates, que foi seu companheiro de
~as e permaneceu seu amigo até sua morte; nesse momento
so conhece a Sócrates como filho de Sofronisco, porque vive reti-
rado há muito tempo, mas seus filhos freqüentam o filósofo.
Esse vínculo com a família de Aristides deu lugar a um desen-
vo~vi~ento inesperado: segundo muitos autores, entre os quais
Aristoteles, Sócrates tinha casado com Mirto, para uns, a filha,
para outros a neta ou mesmo a bisneta do político. O mais sur-
preendente é ver aparecer um Sócrates bígamo. O casamento

0 homem em seu seculo 1 51


me parece sem credibilidade, tanto por causa do silêncio das tes-
temunhas diretas, que não são contudo muito favoráveis a
Xantipa, como por causa das variantes. Com efeito, as versões do
casamento com Mirto são discordantes. Ora ela teria sido despo·
sada antes de Xantipa, ora depois, mas nesse caso Sócrates teria
se divorciado, o que está em contradição com o Fédon, que mos·
tra Xantipa desesperada, fazendo uma última visita a Sócrates
com seu último filho; além disso, o Sócrates bígamo é legalmen·
te impossível (a lei que autorizava a bigamia em certa época é
uma pura ficção). Sabe-se aliás que Xantipa sobreviveu a Sócra~es.
Enfim, as incertezas sobre a geração a que pertence essa Mif:
0

aumentam a suspeita. Se se tratar da filha de Aristides, ela püdi~


ter a idade do pai de Sócrates, como seu irmão Lisímaco, que 50
conhece Sócrates pela fama, segundo o Laques, o que exclui_que
fossem cunhados. Supõe-se que os partidários dessa versao ª
corrigiram em razão de sua inverossimilhança cronológica, para
rejuvenescer Mirto, fazendo dela a neta de Aristides, e tomar as·
sim possível esse casamento, que se choca então com toda a tra·
dição direta sobre Xantipa. .
Os primeiros autores a mencionar o casamento com MirtO
são, segundo uma tradição posterior, Aristóteles e Aristóxen~ ~e
Tarento. Esse último, discípulo de Aristóteles e teórico da mu51•
c~, consagrou a Sócrates uma biografia perdida, mas de 0nde
vem quase todas as fofocas escandalosas que se encontram so·
bre ~ócrates; também caluniou e ultrajou Platão, acusando-o e~
particular de ter plagiado Protágoras em A República, acusaç~o
CUJO absurdo salta à vista quando se considera tudo o que opoe
os dois_ filó:'°fos. Os antigos eram grandes apreciadores disso
que ho1e alimenta o pior dos jornalismos, e também encontra·
vam-~ autores para fornecer fofocas de todo tipo, o que nos
permite em especial estar bem informados da vida sexual - su·
Posta - dos fil oso
• fos gregos. Ora, se a credibilidade de An·st0' -
x~n~ é nula, não se pode dizer o mesmo de Aristóteles. A ques·
tao e saber O que valem esses testemunhos tardios que lhe atri·
buem essa afirmaçao. - 'T'- 1 •
1 cuvez tenha dito simplesmente que
Só·

52 1 socrates e seu tempo


crates acolhera a filha de Aristides, viúva, idosa e necessitada, o
que a incontestável malevolência de Aristóxeno teria transfor-
mado em casamento - e sua inverossimilhança cronológica le-
vou os autores posteriores a rejuvenescer a esposa em urna ou
duas gerações3• Se esse matrimônio parece que deve ser excluí-
do, pode-se contudo ver nisso um traço suplementar do que liga
Sócrates a Aristides.
Para ilustrar a necessidade de abordar de modo crítico os tes-
temunhos indiretos, pode-se notar que, segundo Diógenes Laér-
cio, Sócrates teria salvo Xenofonte caído do cavalo na batalha de
Délion4, ocorrida em 424, quando Xenofonte tinha 3 ou 4 anos5•
De qualquer modo, Sócrates nunca pôde ter combatido com
Xenofonte, pois esse não era mobilizável antes de 408, data em
que Sócrates, com 62 anos, já não era mais.
Inversamente, houve uma grande catástrofe ateniense da
qual não temos nenhuma informação, inclusive de Sócrates, a
"peste" em que alguns historiadores vêem uma forma de tifo,
que ataca a cidade em 430-429 e volta em 427-426. Certamente
Sócrates estava no cerco de Potidéia, mas o corpo expedicioná-
rio foi também atingido: dos 4 mil hoplitas dessa campanha,
mai_s de mil morreram da doença, o que permite imaginar o
carater terrível dessa guerra. Não há testemunho de como Só-
crates viveu esses meses de pavor6• No Cármides, Platão mos-

. 3. I:ira um estudo mais exato dessa questão cf. J. PtPIN, in P. M. SOIUHL


(dir.) Anstote, De la richesse. De la noblesse. Du plaisir. De l'éducation. Fragments
et témoignages ... PUF, 1968, p. 116-133.
4. Vidas e doutrinas..., op. cit., II, 22.
S. Sem dúvida para salvar a passagem, a cronologia que acompanha
todas as novas traduções de Platão publicadas por Gamier-Flammarion si-
tua, por erro, essa batalha em 414, o que tampouco permite acreditar no
salvamento, porque Xenofonte nesse caso só teria 14 anos e Sócrates, ultra-
passado a idade de fazer campanha em operações exteriores. ,.
. 6· Nota-se inversamente que o começo do Teeteto evoca o matematico
CUJo diálogo recorda a juventude e o apresenta como um duplo de S~ates
que vo_ltou agonizante de uma expedição a Corinto, vítima de suas fe ndas e
Olii!s ainda da disenteria.

0 homem em seu século 1 53


tra-o em seu retorno de Potidéia: depois dessa longa ausência,
desde sua chegada a Atenas, vai ao ginásio reencontrar os ami·
gos, e dá com Querefon, um amigo de infância de que voltare-
mos a falar. Este, todo excitado por rever Sócrates vivo depois
de uma batalha tão mortífera, leva o junto a Crítias, que lhe
apresenta Cármides. Sócrates responde às perguntas sobre os
combates e por sua vez informa-se do que se passa em Atenas:
o que há de novo em filosofia?Vêem se aparecer jovens pro·
missores? A cidade acaba justamente de sofrer uma epide_mia
que deve ter matado pelo menos um quarto da populaçao e
que a abalou moralmente por sua atrocidade, como se sa~
por Tucídides. A doença ainda não desapareceu de todo, e So·
crates, no gracioso diálogo, só pergunta sobre novidades filo·
sóficas! É claro que Platão, que não tinha nascido no momen~o
em que situa essa conversa, não sabe o que se passava en~ao
em Atenas. Podia-se filosofar de outra coisa em tais circunstan·
cias senão do horror e do choque que tocavam ainda a cidade}
O desespero, a confusão moral e suas conseqüências que Tuo·
<lides evoca levantavam questões filosóficas mais urgentes ~o
que as dores de cabeça de Cármides, ponto de partida do dia·
logo. Esse lapso de Platão mostra aliás o caráter fictício de suas
encenações.
Os últimos anos de Sócrates nos são mais acessíveis porque
nossas testemunhas o conheceram. O acaso do sorteio o rnistu·
r~u com O processo dasArginusas. Em 406, ao largo dessas ilhas
situadas ao sul de Lesbos, a frota ateniense obteve, sobre a de
~s~arta, uma grande vitória que salvou a cidade. Era a batalha da
ulhma_ chance. Esparta se aliara aos persas de Ciro, que lhe tinha
~n~nciado uma marinha considerável.Atenas tinha reunido suas
ultimas forças, chegando a oferecer a liberdade e a cidadania aos
escravos para m 0 biliz'a-
· 1os. O sobressalto teve êxito, mas a tern·
pestade se levanta logo d ep01s · d a batalha e impede os vencedo·
res
. de socorrer os náufr agos os 25 navios gregos perdidos. DOS
d
01to estrategos em ca d · ·o
usa, OIS preferem pôr-se ao abrigo e na
S4 1 sócrates e seu tempo
regressam. Os seis outros encontram-se acusados. O processo se
desenrola em um lamentável apelo à emoção popular, associado
a uma manipulação processual que termina com a condenação à
morte dos estrategos, aos quais Atenas devia sua salvação- en-
tre eles o último filho sobrevivente que Péricles com Aspásia (os
dois outros tinham morrido de peste). Por ocasião do processo, a
multidão arrebatada, excitada pelos acusadores, exige uma con-
denação global e imediata, sem respeito das formas legais. Che-
ga até a ameaçar os que queriam aplicar a lei. À frente desses
estava Sócrates, que é prítane nessa ocasião, o que significa que
tinha assento na mesa da Assembléia. Tenta pois reconduzir à
legalidade e à razão uma turba exaltada pela paixão. Essa expe-
riência tardia só podia confirmar Sócrates em sua desconfiança
em relação à democracia, que se entregava assim a um terrível
deslize; diante dela, aparecia como defensor da verdadeira lega-
lidade, aliás democrática. Talvez a experiência tenha sido mais
traumatizante e decisiva para Platão, na época com 22 anos.
No ano seguinte, em Argos-Pótamos, a frota ateniense, em-
bora advertida por Alcibíades, retirado em Kersoneso, e que veio
como vizinho avisar os compatriotas do perigo, é aniquilada pe-
los espartanos. Dessa vez Atenas está perdida, os desregramentos
de sua democracia a cegaram e levaram-na a privar-se do socor-
~o daqueles que podiam militarmente salvá-la, Alcibíades e os
infelizes estrategos das Arginusas.
Essa catástrofe marca o fracasso da política externa do parti-
do democrata. A escolha da hostilidade a Esparta e a guerra ao
excesso levou a cidade rival à aliança com os persas, que lhe per-
mitiu triunfar. O século tinha sido aberto com a aliança dos gre-
gos contra os persas, mas a guerra entre os gregos permitia aos
persas terem uma revanche, financiando operações que resulta-
riam na derrota da cidade que tinha conduzido as guerras mé~-
cas. Retrospectivamente, o campo conservador tinha uma razao
suplementar para deplorar que sua espartofilia tivesse sido aba-
fada pelo belicismo democrático.

o homem em seu século 1 55


A sorte da cidade - como vimos - é que sua rival, enreda-
da em seus próprios problemas, não tem os meios de construir
um império, de forma que não se preocupa com destruir uma
Atenas que teme pelo pior. Contudo, se escapa efetivamenteª
destruição, à morte e à escravidão, destino que às vezes tinha
feito sofrer aos inimigos vencidos, notadamente aos me\ianos.
não escapa a essa terrível ditadura dos Trinta que se aplicam em
liquidar seus adversários políticos.
Sócrates encontra-se então em uma situação ambígua. En·
tre os novos tiranos figuram dois de seus discípulos, parentes ~e
Platão, Crítias e Cárrnides. Ora, o novo regime começa por quere
lo reduzir ao silêncio, proibindo-o de ensinar, e depois quer
comprometê-lo, encarregando-o de fazer uma prisão, a q~e ele
se recusa; essa recusa o faz passar da lista dos suspeitos ~ d~
opositores, o que assim poderia finalmente levá-lo tambe~ ª
morte, se a tirania não tivesse sido rapidamente interrompida
pela volta dos democratas.
. Sócrates não é pois um homem que escolhe seu campo, e
isso o toma suspeito a todos. Recusa as tiranias, tanto a da mui:
tidão como a dos oligarcas, embora fossem antigos amigos,; 50
segue a lei, a razão e a consciência. O medo não parece afeta-lo,
~ é es~r_a~ho a tod? cálculo político. É um homem livre a:
u:'class~ficavel, ~ue runguém pode obrigar seja ao que for. Su u
simpatí~s e amizades não o levam nunca a seguir um ~~o 0
um partido. Mas, em contrapartida, seu respeito pela lei e sern
falha. Compreende-se que os contemporâneos o tenham corn·
parado a Aristides.
Podemos completar o retrato de Sócrates com o que diz Platão
de _se~ comportamento de soldado. Alcibíades, em O Banquete,
atribui-lhe
. uma resis · t~ • e uma coragem totalmente excepc,·o-
enc1a
na.is. Em Potid, · , 1
eia, quando o abastecimento vem a faltar, e e e
quem melhor resiste à fome No . fri d . quando
ela os ho · mais o o inverno, _
g d d ~ens agasalham-se corno podem mas Sócrates nao
:~ ~ e traie, com os pés descalços e seu ~anto habitual (220
. o combate, Alcibíades ferido deve-lhe sua salvação. Ern
S6 1 sôcrates e seu temoo
Delion7, na sua derrota, Alcibíades, dessa vez na cavalaria, viu
Sócrates recuar tranqüilamente, com tal segurança que bastava
para dissuadir o inimigo de atacá-lo, o que confirma Laques no
diálogo que leva seu nome (181 b). Para compreender sua admi-
ração pelo sangue-frio do filósofo, é preciso imaginar a debanda-
da de um exército que acaba de ser derrotado. No meio do pâni-
co, Sócrates permanece inabalável. Deve-se notar que a coragem,
a resistência física, a paciência, a ausência de medo, o total domí-
nio de si é que são sublinhados, sem que nada se diga sobre suas
qualidades ofensivas. Vê-se ora socorrendo um amigo em difi-
culdade, ora no coração da derrota. Sócrates soldado não é apre-
sentado como um arrasador de inimigos, mas como alguém que,
em situações extremas, quando a vida está em jogo, sabe perma-
necer ele mesmo, sem jamais ceder à emoção, ao medo, à pres-
são do grupo, sem nunca se deixar instrumentalizar pelas cir-
cunstâncias, vivendo sua humanidade mesmo onde todos a es-
quecem, afirmando-se como sujeito absoluto de sua ação, que
ninguém pode arrastar para onde ele não quer ir.
Por trás desse belo testemunho de Alcibíades abre-se no
entanto uma lacuna vertiginosa, semelhante àquela já notada no
Cánnides: transmite informações precisas sobre as dificuldades
de intendência, os trajes e o comportamento de Sócrates, sem
uma só palavra sobre a peste, que foi na certa o fato mais terrível
dessa campanha. Seria interessante saber como o filósofo viveu
essa prova. A ignorância de Platão sobre esse ponto parece ser a
expressão de um formidável recalque coletivo: sem dúvida, ele
teria inconscientemente desejado esquecer esses meses de pâni-
co, de que o historiadorTucídides (II, 58), que escapou da doença,
evoca a mistura de horror e de degradação. Diante da onipresença

7 . Se Xenofonte não pode ter combatido em Délion, Sócrates, por sua


w2• estava . .
ali. Pode-se supor que a lenda concernente a Xenofonte tera naso-
do de uma mistura e de uma confusão. Houve mesmo um salvamento, mas
em Potidéia; e um cavaleiro, mas é Alcibíades, e não tem necessidade de ser
~alvo. Substituíram Alcibíades por Xenofonte. Isso mostra como nascem as
endas e as fofocas que rodeavam Sócrates.

o homem em seu seculo 1 57


da morte, eram numerosos os que se emancipavam de toda me
ral, fosse apoderando-se das riquezas das vítimas, fosse aband(..
nando-se à devassidão. Compreende se que as famílias tenhan
preferido ocultar a realidade concreta desses tempos de terror e
de vergonha, cuja lembrança não chegou a Platão, nascido logo
depois do flagelo. Alcibíades podia tanto menos ignorar a doer-
ça porquanto seus parentes tinham sido duramente atingidO!
mas aquele que Platão põe em cena parece nada saber, como se
ela caísse sob o golpe de uma lei do silêncio. Mas não se \lOO!
deixar de pensar que ele manifestaria menos sua admiração peb
perfeito domínio de si que Sócrates testemunhou nas provações
de Ibtidéia se seu comportamento diante da peste não tivesse suk
àalturadopersonagem.Talvez possamos ler nessa passagemdeC
Banquete esse subentendido que escapou ao próprio Platão.
.? _relato de Alcibíades, porém, compreende um e5rraJUll'
episódio cujo sentido para nós é obscuro, e que só é narra?º F<X
sua
estáestranheza.
de , Uma manhã de verão/ desde a aurora, Socrates
lá o dia~•~ medita~o: para admiração de todos, perrnan~
de foratnteiro.Alguns instalaram seu leito de campanha do lad.
para ver se ele ia ficar ali ainda muito tempo. A noite
J)lllsaeeleestásempre ali, de pé, até o surgir do dia. Então, dirige
Ull\a prece ao sol
in1Pr.n...c e vai· embora. Aparentemente, nmguem
• , OuSOll,
-··"fl'l-lo sobre essa·
a ~ . )Om~da fora do tempo, poisAJCJ·b'1ades
. •
so
diatament pelo que tinha visto. No Cármides, que se segue une
encan~ à sua volta, Sócrates se diz detentor de uma
....La, __ ....e:.-,apdereodída durante sua última campanha, de um
Zalm0 .
..~ uauo
xamã. 1':>tidéia, :a5, isto é, o que chamaríamos hoje. de
tanto muno ~efeito, é uma cidade do Quersoneso, por·
transmissão do ~o país trácio, considerado um ponto de
"médico• todosXAmanismolara o mundo grego. Segundo esse
primeiro se deveos ~ vem da alma, de sorte que é dela que
'llcontend~l 'e por meio de encantações, no caso de
\_ os pensamentosª. Não se pode tomar esse
1 ,1dts, 156 d-157 b.

I es e !leu191nQa
texto no primeiro grau porquanto Sócrates parece ironizar com
seu interlocutor, e por ser a encantação xamânica a metáfora do
logos, do discurso racional.Também é dilicil imaginar que o hoplita
em ação tenha podido esquivar-se para fazer-se iniciar por um
feiticeiro trácio. Enfim, vimos que esse diálogo não poderia ser
histórico.
Platão desenvolve provavelmente aqui o testemunho de
Alcibíades dando-lhe uma chave de interpretação que não nos
espantará. Sócrates conheceu em Potidéia um de seus êxtases -
voltaremos a falar disso-, que Platão liga às tradições vincula-
das ao xamanismo órfico. Nota-se ainda que a prece ao sol
reconduz ao contato xamânico com os elementos naturais, longe
dos templos, dos altares e dos ritos. Deve-se também considerar
significativa a idéia de que a cura se obtém por um trabalho so-
bre a alma por meio do logos, e que Sócrates se entrega a uma
longa sessão de meditação destinada a afastar os perigos? A úni-
ca coisa que podemos afirmar é que Platão deixa supor para esse
estranho episódio uma interpretação xamânica que funciona
como uma metáfora.
A experiência de Potidéia, qualquer que tenha sido, foi deci-
siva para Sócrates? Os diálogos de Platão situam-se sempre de-
pois desse acontecimento, com exceção do Pannênides, queima-
gina um Sócrates jovem, iniciado à filosofia pelo velho eleata, e
do Protágoras, cuja cena fictícia data-se muitas vezes de 431, an-
tes da guerra do Peloponeso e da morte de Péricles, ser dar-se
conta de que isso supõe que Sócrates não esteve em Potidéia.
Deve-se dar uma significação ao fato de que Platão nunca
representa Sócrates como um mestre antes de 430? A ignorância
que tinha dessa época não é razão suficiente para esse silêncio,
pois não hesita em imaginar um diálogo tão improvável com
~ênides. Se reconstituímos uma cronologia da formação de
Socrates a partir dos diálogos de Platão, vemos que se escalona
por vinte anos, começando em 450 pelo encontro com Parmênides
e terminando com a experiência de Potidéia, donde regressa com
esse estatuto de mestre. Entre as duas datas podia-se colocar 0

0 homem em seu século 1 59


da morte, eram numerosos os que se emancipavam de toda mo-
ral. fosse apoderando-se das riquezas das vítimas, fosse abando-
nando-se à devassidão. Compreende-se que as famílias tenham
preferido ocultar a realidade concreta desses tempos de terror e
de vergonha, cuja lembrança não chegou a Platão, nascido logo
depois do flagelo. Alcibíades podia tanto menos ignorar a doen-
ça porquanto seus parentes tinham sido duramente atingidos
mas aquele que Platão põe em cena parece nada saber, como se
ela caísse sob o golpe de uma lei do silêncio. Mas não se pode
deixar de pensar que ele manifestaria menos sua admiração pelo
perfeito domínio de si que Sócrates testemunhou nas provações
de futidéia se seu comportamento diante da peste não tivesse sido
à altura do personagem.Talvez possamos ler nessa passagem de O
Banquete esse subentendido que escapou ao próprio Platão.
O relato de Alcibíades, porém, compreende um estranho
episódio cujo sentido para nós é obscuro, e que só é narrado par
sua estranheza. Uma manhã de verão, desde a aurora, Sócrates
está de pé, em meditação: para admiração de todos, permanece
lá O dia inteiro. Alguns instalaram seu leito de campanha do lado
de fora para ver se ele ia ficar ali ainda muito tempo. A noite
passa e ele está sempre ali, de pé, até o surgir do dia. Então, dirige
~ma pre~e ao sol e vai embora. Aparentemente, ninguém ouso~
interroga-lo sobre essa jornada fora do tempo, pois Alcibíades 50
a ~presenta ~lo que tinha visto. No Cármides, que se segue ime·
dtatamente a sua volta, Sócrates se diz detentor de uma
en:a_ntaçã? _aprendida durante sua última campanha, de urn
med~co traa_~ de Zalmoxis, isto é, o que chamaríamos hoje de
xama. Potideia, com efeito, é uma cidade do Quersoneso, per·
tanto ".'u~o próxima do país trácio, considerado um ponto de
~.ra~s~ts~o do xamanismo para o mundo grego. Segundo esse
".'ed,_co todos os males vêm da alma, de sorte que é dela que
p~meiro se deve cuidar, e por meio de encantações, no caso de
dlSCursos contendo belos pensarnentos8 • Não se pode tomar esse

8. Cánnides, 156 d-157 b.

58 1 socrates e seu temco


texto no primeiro grau porquanto Sócrates parece ironizar com
seu interlocutor, e por ser a encantação xamânica a metáfora do
logos, do discurso racional. Também é difícil imaginar que o hoplita
em ação tenha podido esquivar-se para fazer-se iniciar por um
feiticeiro trácio. Enfim, vimos que esse diálogo não poderia ser
histórico.
Platão desenvolve provavelmente aqui o testemunho de
Alcibíades dando- lhe uma chave de interpretação que não nos
espantará. Sócrates conheceu em Potidéia um de seus êxtases -
voltaremos a falar disso-, que Platão liga às tradições vincula-
das ao xamanismo órfico. Nota-se ainda que a prece ao sol
reconduz ao contato xamânico com os elementos naturais, longe
dos templos, dos altares e dos ritos. Deve-se também considerar
significativa a idéia de que a cura se obtém por um trabalhoso-
bre a alma por meio do logos, e que Sócrates se entrega a uma
longa sessão de meditação destinada a afastar os perigos? A úni-
ca coisa que podemos afirmar é que Platão deixa supor para esse
estranho episódio uma interpretação xamânica que funciona
como uma metáfora.
A experiência de Potidéia, qualquer que tenha sido, foi deci
siva para Sócrates? Os diálogos de Platão situam-se sempre de-
pois desse acontecimento, com exceção do Pam1ênides, que ima
gina um Sócrates jovem, iniciado à filosofia pelo velho eleata, e
do Protágoras, cuja cena fictícia data-se muitas vezes de 431, an
tes da guerra do Peloponeso e da morte de Péricles, ser dar-se
conta de que isso supõe que Sócrates não esteve em Potidéia.
Deve-se dar urna significação ao fato de que Platão nunca
representa Sócrates como um mestre antes de 430? A ignorância
que tinha dessa época não é razão suficiente para esse silêncio,
pois não hesita em imaginar um diálogo tão improvável com
Parmênides. Se reconstituímos uma cronologia da formação de
Sócrates a partir dos diálogos de Platão, vemos que se escalona
por vinte anos, começando em 450 pelo encontro com Parmênides
e terminando com a experiência de Potidéia, donde regressa com
esse estatuto de mestre. Entre as duas datas podia-se colocar o

o homem em seu século 1 59


ensinamento de Diotima, a sacerdotisa de Mantinéia - mas os
hi toriadorcs questionam sempre sua realidade.
E se homem inabalável, senhor de si mesmo até elevar-St'
acima da condição nonnal do homem, tinha pontos fracos?Viu
acima que é razoável descartar o casamento com Mirto; só é
poso de Xantipa, que lhe deu três filhos, e que permanece o
protótipo da megera. Numerosas historietas mostram o filósofo
exercendo sua paciência e sua impassibilidade ao suportar as có-
leras de sua mulher. Quando e por que se teria casado? O fato de
que por ocasião de sua morte, aos 70 anos, tenha ainda um filho
muito criança é em si muito surpreendente e mostra que se tinha
casado tarde, com mais de 50 anos, com uma mulher muito mais
jO\em do que ele. A diferença de idade, que não é um problema
em si mesma, espanta quando se lê nos Memoráveis de Xenofonte
que ele teria dito que os esposos não deveriam ser de idades muito
afastadas. Aliás, é difícil imaginar as razões sociais desse casa-
mento. Quaisquer que fossem seus gostos, que nem sempre eram
pelas mulheres, os atenienses ricos se casavam para assegurar
uma descendência e transmitir seu patrimônio; e os casamentos
obedeciam a estratégias de alianças de família. Não é esse evi-
dentemente o caso de Sócrates, que não tem nada mais do que
sua ca!-.1, e cujo casamento não obedece nem à razão nem às
conveniências.
A boa sociedade ateniense esconde suas mulheres no
gineceu, e os homens se relacionam com os adolescentes. Admi-
te-se geralmente que Sócrates partilhava o atrativo que bom nú·
mero de seus contemporâneos e de seus familiares manifesta·
vam ~elos jovens, tanto mais que Platão o mostra muitas vezes
seduzido pela beleza dos rapazes. Para O Sócrates de Platão, 0
amor é um dos modos de ter acesso ao conhecimento, e sempre
~ederasta. Seja no Fedro, seja em O Banquete, 0 arquétipo do amor
e homossexual. Sabe-se que Platão e Aristóteles recusam a esse
amor a relação fís_ic~, aliás _Sócrates chega a dizer que nada c~-
nhece nesse dom1ruo. Platao efetivamente parece não ter senti·
do outra atração amorosa que a dos rapazes, embora condene
60 1 sôcrates e seu tempo
que se passe ao ato. É o mesmo para Sócrates? A questão parece
inútil, pois é ele o veículo do pensamento platônico: é atravé~
dele que se afirma o papel formador do amor entre o adulto e o
adolescente. Cínco séculos mais tarde, o platônico Plutarco con-
sagrará um tratado a estabelecer que as mulheres podem inspi-
rar paixões tão fortes quanto os rapazes. O arquétipo homosse-
xual era pois tão forte que podia levar a ocultar o amor das mu-
lheres a ponto de que era necessário provar que esse amor podia
ser vivido no registro da paixão. A questão é saber se Platão não
atribuiu ao mestre o que era seu próprio ponto de vista.
Cícero transmite uma passagem curiosa. Um charlatão cha
mado Zopiro, que pretendia descobrir a personalidade das pes
soas a partir de certas características físicas, tinha dito a Sócrates,
depois de tê-lo examinado, que ele era estúpido e amador das
mulheres, e ao ouvir isso Alcibíades irrompeu em risadas9• Dá
também, em outro lugar, outra versão dessa história, que permite
completá-la: Sócrates respondeu que era mesmo assim natural-
mente, mas que tinha vencido essas tendências graças à razão 0•
Se a história for verdadeira, Sócrates teria confessado seu gosto
pelas mulheres, e o esforço que fizera para resistir-lhes. Um ou-
tro autor atribui a Sócrates este dito surpreendente: "Três males
abateram-se sobre mim, a escrita, a necessidade e uma mulher
fatal; escapei a dois, mas à mulher fatal não pude escapar" 11 • O
fato de não ter escrito não resultaria, pois, de uma ausência de
interesse ou de vocação, mas de uma escolha difícil diante de
uma tentação. A necessidade, isto é, a pobreza, o atenazou, mas
conseguiu vencê-la. Quanto à mulher, Xantipa, no caso, está pre-
sente como uma provação, mas se não conseguiu vencê-la é que
a tentação foi forte demais.
, Vemos aqui aparecer uma imagem de Sócrates inversa à que
e admitida correntemente, do filósofo que não pensa em escre-
ver, que não tem o mínimo cuidado com os bens materiais, e em

9. CICERo, De Jato, VI, 10.


10. CICERO, Tusculanas, N, XXXVII, 80.
11. Socratis et Socraticorum reliquiae, Ed. Giannantoni, 390.

o homem em seu seculo 1 61


quem os belos adolescentes provocam emoções que consegue
ublimar. Se a história é verdadeira, Sócrates, no ponto de parti-
da, é um homem como outro qualquer. Sofre com a pobreza,
mas !:abc superá la. A tentação da escrita é a mais surpreenden-
te e parece que não se pode compreender a não ser aproximan-
do-a da atitude de Platão, que se recusará a escrever tratados de
filosofia, pois o essencial não pode ser formulado, mas contor-
nará essa recusa pelos diálogos. Enfim, a mulher, o único dos
males a que não soube fugir. É preciso evitar uma simples leitura
de primeiro grau, que confirme o desprezo pela mulher. A frase
é efetivamente dura para Xantipa, mas não passa de uma piada.
Se ali brigas do casal se perfilam em plano recuado, deve-se con-
tudo ver aí um elemento mais profundo. Esse casamento, já se
disse, não é razoável, pois Sócrates era pobre e já qüinquagená-
rio. Suspeita-se que Xantipa não deve ter penetrado muito no
universo de seu marido. Porque então casou-se com ela? A úni-
ca razão possível é que a amava. Das três tentações, foi ela a
única irresistível.
Essa infeliz Xantipa tem uma reputação bem ruim. Há quem
goste de divulgar fofocas sobre as cenas desse casal estranho que
os aristocratas e grandes burgueses do círculo de Sócrates não
podiam compreender. Para eles a esposa é aquela que assegura a
descendência e mantém a casa, sem nem mesmo poder sair sozi-
nha quando bem entenda. Os contatos entre esposos eram pois
reduzidos e essencialmente utilitários, e a mulher, submissa ao
marido. Nos meios populares, ao contrário, a esposa, sobretudo
quando trabalhava, tinha maior liberdade e o casamento resulta·
va, na certa, muito menos de estratégias de familia.
Difícil é saber que confiança dar às anedotas que circulavam
s~bre o ~asai formado por Sócrates e Xantipa, mas nem sempre
sao sem interesse. Surpreende-se, por exemplo, um marido bas·
tante banal que graceja sobre os cuidados de sua mulher comª
~leza. Vão ao espetáculo e Xantipa se embelezava para a oc~-
siao, 0 que lhe vale ouvir do marido - provavelmente de pes
descalços e vestido com seu velho manto habitual, a menos que

62 1 sôcrates e seu tempo


esteja "trajado" para a ocasião, isso é, de sandálias como em O
Banquete- observar-lhe que não era ela o espetáculo12• Aconte-
ce•lhes também brigar por causa dos filhos. As cóleras de Xantipa
são famosas, ela explode e seu marido permanece "filósofo" no
sentido trivial do termo. De temperamento nervoso, ela explodia
sem dúvida quando a indiferença de Sócrates às circunstâncias
materiais contrastava excessivamente com as exigências do real.
Não devia ser fácil ser esposa de um' homem tão desprendido das
contingências terrestres. Longe de procurar perturbar a vida do
marido, parecia cuidadosa ao exercer seu papel de dona-de-casa,
como num dia em que, esperando amigos, ela se inquietava com
a modéstia de seus preparativos, ao que Sócrates lhe responde:
"Se são nossos amigos, que lhes importa; se não, que nos im-
porta?"13 Apreciamos o desprendimento do sábio, mas deve-se
reconhecer que ele devia às vezes exasperar uma esposa que nunca
deixou de amá-lo e admirá-lo. O Fédon relata a dor que ela não
pode conter, diante da morte que aguarda seu marido. Se con-
fiamos no testemunho de Platão, ela teve uma reação que a hon-
ra14. Foi esta a única frase através da qual exprimiu seu sofrimen-
to: "É a última vez que conversas com teus amigos! "Abstrai to-
talmente de seu próprio sofrimento e só pensa no que fazia toda a
vida do marido que vai desaparecer. O que merece ser tanto mais
destacado porquanto a condição de viúva não era nada invejável.
Como lhe perguntassem, quando já viúva, qual tinha sido o
traço mais marcante de Sócrates, disse que era sua capacidade de
~giro mesmo olhar a todas as coisas, qualquer que fosse sua
unportância15. Teve dificuldade em viver no dia-a-dia o despren-
dimento do marido, mas com a distância soube reconhecer sua
grandeza. Porém ficamos um tanto chocados pela maneira como
~ócrates fez que a levassem para casa, quando ela se abandonava
ª sua angústia. É extremamente provável que voltou no final, com
12. Ibid., 392.
13. Ibid., 352.
14. Fédon, 60 a.
15. Socratis et Socraticorum reliquiae, 349.

o homem em seu século 1 63


os filhos e as mulheres da família, que não são nomeadas de ou-
tro modo. Mas não esqueçamos que Platão, que narra o aconte
cimento, não o assistiu. A oposição entre o sábio, inacessível,
emoção, e a mulher, inteiramente submetida às perturbações~;
afetividade, parece demasiado emblemática para ser verdadem
Insensível ao feminino, ao contrário de seu mestre, Platão proíe
ta sem dúvida a concepção que fazia do casal sobre a relaçãode
Sócrates e Xantipa, que ele não conseguia entender.
Aristocratas e grandes burgueses ignoram o casal tal como
conhecemos: para eles, marido e mulher possuem tarefas diw:
sas e vivem em universos diferentes, a tal ponto que o amor Pf
los rapazes não interfere com o casamento. Os dois verdadeiros
casais que conhecemos na Atenas do século V, Péricles e AspáSJa.
Sócrates e Xantipa, escandalizavam a tal ponto que ainda hote
Aspásia passa por uma cortesã e Xantipa por uma megera. Aspásia
era uma esposa legítima e nada permite suspeitar de sua moral:
dade, mas uma mulher que saía do gineceu e falava de igual para
igual com os homens, e que era acusada de influenciar o marido,
não podia deixar de ser uma cortesã. O fato de Péricles ter-se
divorciado para casar com uma mulher que nem sequer era ate-
niense devia pesar duramente contra ela.
Os discípulos mais ricos de Sócrates não compreendiam cer-
tamente que ele fosse para casa sofrer com os humores de urna
esposa que, no entanto, fazia o melhor possível para ocupar-se
de uma casa que seu marido descuidava. Talvez fossem mesmo
um pouco ciumentos. A concepção do amor que O Banquete de-
senvolve parte de uma realidade: a relação pedagógica ent~ 0
adulto e º.adolescente era marcada por uma erotização social·
mente aceita.~ assim que o Sócrates de Platão dá a impressão de
prestar um vivo interesse à beleza dos rapazes que parece esti-
mular
. sua pesqu1·sa e seu dese10
• de fazer progredir
. os novos dis·
cipulos. Contudo, a armadilha amorosa que O Alcibíades de O
Ba1tquete lhe prepara fracassa totalmente: o adolescente consci·
e~te de sua beleza e de um charme que fará dele o sedutor do
seculo, ª quem não poderão resistir nem uns nem outras, nem na
64 1 socrates e seu temoo
cidade, nem a mulher de um dos reis de Esparta, confessa não ter
suscitado nenhum atrativo sexual em Sócrates. O Alcibíades de
Platão apresenta Sócrates como um personagem desconcertante,
cujo interior não corresponde de modo algum ao exterior, por-
que a feiúra física mascara uma beleza interior sem igual. A caça
ostensiva aos rapazes que não resulta nunca em outra coisa a
não ser em uma educação filosófica faz parte dessa máscara.

o homem em seu século 1 65


capítulo 3
O PROCESSO

Em 399, Sócrates foi objeto de uma acusação apresentada por


três homens, Anitos, Meletos e Licon. Quase nada se sabe de
Meletos, que apresentou a queixa, nem de Licon. De Anitos, há
concordância para ver nele o instigador da acusação: era um polí-
tico democrata que depois de ter sido exilado pela tirania dos Trin-
ta tinha contribuído para o restabelecimento da democracia. O
percurso político desse curtidor enriquecido não era contudo
irrepreensível: em 409, responsável por um grave fracasso militar,
fora arrastado aos tribunais e se livrara da condenação corrom-
pendo os juízes. Tinha provavelmente razões pessoais para perse-
guir Sócrates, que em vão aconselhara seu filho a adquirir uma
verdadeira educação em lugar de prosseguir com os negócios da
família. Esse filho aliás terminou mal, efetivamente. Se o ódio de
Anitos foi o elemento motor do processo, é claro que não podia
aparecer às claras, tanto mais que o acusador oficial era Meletos.
Sócrates deve defender-se de três acusações: não reconhe-
cer os deuses da cidade, introduzir novos seres divinos e corrom-
per a juventude1• É portanto em primeiro lugar um processo reli-

_1. Sobre essa questão do processo, pode-se consultar utilmente a in~-


duçao de L. BRJSSON à sua tradução da Apologia e do Crfton, Garruer-
Flam.marion, 1997.

1 67
gloso, m s o mestre é também visado enquanto tal. Duplo es-
cândalo p.1ra nós: o iniciador da filosofia é condenado por ter
corrompido seus alunos, e o homem que, a alguns instantes da
mortt•, afirmará a seus discípulos sua rejeição ao materialismo e
sua fé na imortalidade da alma é considerado um ateu. A conde
nação de Sócrates nos aparece como o equívoco mais absoluto.
Fnfim, como se vê na Apologia, é um sofista que se condena em
Sócrate~, de que nunca deixou de combatê-los.Anitos detestava
os sofi tas. Como tal mal entendido foi possível?
Para além da hostilidade de Anitos, há que colocar o proces
so em seu contexto político. Se este está ausente das peças do
dossiê que podemos reconstituir, é simplesmente porque depois
dos dramáticos acontecimentos da tirania dos Trinta a anistia ti·
nha sido decretada, sábia medida para evitar um interminável
acerto de contas. Aliás a justiça não tinha sido demasiado lesada
por e~~e pragmatismo, já que os principais responsáveis políticos
pela ditadura tinham todos perecido nos combates graças aos
quais a democracia fora restabelecida. Já vimos que Sócrates em
nada participou desse assunto, que poderia ter más conseqüên·
das para ele, mas tinha estado próximo de Crítias e de Cármides.
linha também contado entre seus discípulos o ultrademocrata
Alcibíades, do qual Atenas tinha acabado por cansar-se, devido a
um erro militar de que não tinha culpa alguma: a cidade conde-
nou aquele ao qual tinha tanto perdoado, quando, por uma vez,
ele nada tinha de que ser acusado, e sobretudo quando era talvez
o único capaz de salvá-la da catástrofe .
.Desse ponto de vista, o balanço pedagógico de Sócrates era
efetivamente desastroso. Se para nós o filósofo é, antes de tudo,
o m~stre de Platão, este, no momento do processo, era somente
um Jovem de 27 anos que nada ainda tinha feito; aliás, seu pa-
rentesco com Crítias e Cármides não devia tomá-lo particular·
m:~te simpático ao júri popular que Sócrates enfrentava.Ao con·
trano, P~ os atenienses, aquele que iam julgar tinha tido par
alu~o ~ais marcante aquele cujos excessos tinha levado a demo·
cracia a sua perda, e dois dos tiranos mais sanguinários dos acon·

68 1 socrates e seu tempo


tccimentos recentes. Tanto do lado dos democratas como da par-
te dos aristocratas, a influência de Sócrates podia ser considera-
da calamitosa. Resta ainda saber se ele tivera mesmo influência.
Compreende-se por que Platão consagrou muitos diálogos (O
Banquete, Alcibíades, Cármides, Timeu e Crítias) para tentar mos-
trar qual tinha sido a natureza real de suas relações. Além da
intenção provável de reabilitar a memória de dois dos seus pa-
rentes, deve-se ver aí o desejo de eximir Sócrates de toda influ
ência nefasta sobre seus alunos que tinham tenninado tão mal.
Ao contrário, o Sócrates do Primeiro Alcibíades adverte seu aluno,
que não seguirá seus conselhos, e se deixará engolir por seus maus
demônios. Que homem teria sido se tivesse seguido o
ensinamento de seu mestre! Os diálogos de Platão são também
uma longa, embora demasiado tardia, apologia de Sócrates. A
fecundidade do ensinamento de Sócrates, única na história da
filosofia, era ainda insuspeitável em 399, enquanto o desvio de
seus discípulos mais célebres estava presente a todos os espíri-
tos. Ora, tratava-se de um desvio político, de sorte que o pano de
fundo político do processo que os antigos acentuaram muito cedo
é incontestável, embora não pudesse ser dito em razão da anis-
tia. Por ocasião do processo, como se pode constatar lendo a Apo-
logia de Platão, só se tratou da influência corruptora de Sócrates
em geral, e não dos alunos em particular, porque a anistia proibia
pô-los em causa, mas esses nomes proibidos estavam em todas
as memórias.
Esse pano de fundo não basta evidentemente para explicar a
condenação. Se Atenas tinha aceito a anistia, não era para con-
denar Sócrates, que não fora diretamente comprometido nos
acontecimentos de 404. A política pode ter sido somente um ele-
mento, por si mesmo insuficiente, entre os que se desencadea-
ram nesse processo.
_ A censura religiosa, que ocupa dois dos três itens da acusa-
çao, foi muitas vezes considerada um pretexto destinado a mas-
carar a ação política inconfessável. Acaba-se de ver que não po-
deria ter sido o caso, devido à insuficiência do motivo político.

o processo 1 69
Há portanto que tomar a sério o caráter religioso do processo.
Atl•nas conheceu e conhecerá ainda processos religiosos.
Anax.1goras, Protágoras e mais tarde Aristóteles deverão fugir da
cidade diante das acusações de ateísmo ou impiedade. Os filóso-
fos não são evidentemente as únicas vítimas desse tipo de ações.
Se alguns processos às vezes acobertaram acertos de conta de
ordem política, outros eram realmente religiosos. Paralelamente
no processo da mutilação de Hermes, desastroso para Alcibíades,
que ~m dúvida nada tinha a ver com isso, rebentara novo escân-
dalo: um grupo de homens se teria entregue a uma paródia dos
mistérios de Elêusis. Esses procedimentos foram levados a sério,
e um dos denunciados, Fedro, teve de fugir para salvar a vida,
mas perdeu todos os bens. Esse escândalo pode surpreender,
quando se sabe que Aristófanes, dez anos mais tarde, vai escre-
ver em As rãs uma paródia dos Mistérios que apresenta Dioniso
em situações perfeitamente grotescas, e isso não impediria a peça
de obter o primeiro prêmio. Essa espantosa diferença de trata-
mento não pode ser explicada a não ser considerando que não
era a paródia em si que escandalizava, mas o quadro em que se
exercia. Uma paródia aberta, bufonaria oficial integrada no qua-
dro da cidade, como o teatro de Aristófanes, não chocava. Sem
dúvida, o caráter privado e, sobretudo, o segredo é que escanda-
lizavam. Os gregos desconfiavam dos cultos privados e rejeita-
vam os que não eram reconhecidos pela cidade. Os cultos sobre
os quais a cidade não exercesse o controle eram inquietantes; tal-
vez se associasse a eles o medo de uma feitiçaria que se sabe ter
sido largamente praticada. A rejeição dos cultos privados encon-
tra-se aliás em Platão. A acusação de inovação religiosa e de culto
privado é pois de todo pertinente em Atenas. Sócrates é acusado
de não reconhecer os mesmos deuses que a cidade, e de introduzir
algo de novo na ordem do divino. É uma acusação grave.
Curiosamente, também desse ponto de vista, Sócrates tem
"más freqüentações", já que Fedro, que só poderá entrar arrui·
n_ado em Atenas por benefício da anistia de 403, fazia parte d~
arculo de Sócrates. Além do diálogo que leva seu nome, e onde e

70 1 sôcrates e seu tempo


o único interlocutor de Sócrates, aparece no Protágoras e sobre-
tudo em O Banquete. Por que ter assim lembrado os laços de
Sócrates com um personagem tão comprometido? É que, como
no caso dos políticos, para repor as coisas no lugar mostrando
sua natureza real, perfeitamente inocente de suas relações (Platão,
que tinha 12 anos quando Fedro teve de fugir, não podia ter sido
testemunha), embora apresentando o sacrilégio presumido sob
um ângulo muito mais favorável? Não se pode sair das conjetu-
ras, mas não seria puramente fortuito que Platão tenha escolhi-
do um personagem marcado por um escândalo religioso como
parceiro de Sócrates, desenvolvendo a ascensão da alma para o
divino. Fedro é um desses diálogos em que Sócrates teve um só
interlocutor, e é pois conversando familiarmente com aquele cuja
impiedade suposta causará sua ruína que desenvolve os pontos
essenciais de sua concepção da alma e do divino. Um outro diá-
logo, de protagonista desconhecido para nós, datado do momento
do processo, o Eutífron, mostra de outra maneira o desnível da
atitude de Sócrates com a tradição religiosa. Para Sócrates, o divi ·
no é bom, e assim não se deve temer nenhuma vingança de sua
parte, ao contrário do que supõe a mitologia que serve de funda-
mento à religião. A superioridade do divino toma totalmente ilu-
sória a idéia de que possamos prestar-lhe serviço, trazer-lhe al-
guma coisa que ele mesmo não pudesse obter, o que é a base dos
cultos sacrificais.
A acusação de impiedade repousava, pois, em bases reais.
Certamente Sócrates se conformava às práticas religiosas da ci-
dade, e participava dos sacrifícios, mas seu pensamento e seu ensi-
no minavam os fundamentos desse culto. Haveria nisso lugar para
um processo, e sobretudo para urna condenação à morte?
É preciso de novo colocar as coisas em seu contexto históri-
co. A dupla catástrofe de 404, derrota e ditadura, desestabilizou
os atenienses. É o fim de uma época. A cidade conquistadora,
que nunca duvidava de si mesma a ponto de estar pronta para
todas as audácias, está quebrada. Nada será mais como antes. Os
elementos mais dinâmicos pereceram de seus excessos, a aristo-

o processo 1 71
cracia encontra-se fora do jogo; a grande questão que se põe é
provavelmente: como se chegou a esse ponto? A isso se pode
supor uma resposta que soa um pouco como: "Odeio essas men-
tiras que vos fizeram tanto mal" . Se a cidade se perdeu, foi pot
ter sido mal dirigida. Todos esses belos fazedores de discursos a
arrastaram por uma ladeira ruim: aliás, alguns dos sanguinário,
tiranos de 404 não eram brilhantes intelectuais? Os professores
perverteram as elites cultivadas dando-lhes meios de demons·
trar qualquer coisa e de obter a adesão da Assembléia por artilí·
cios enganosos que possibilitavam fazer do povo seu joguete. O
processo de Sócrates é o dos sofistas. Estes não podiam ser per·
seguidos: na maioria eram estrangeiros e não estavam pr~sent~-
Entre os que são considerados sofistas encontram-se porem do~
atenienses. Antífon, que dirigiu uma primeira e efêmera tentab·
va de ditadura em 4112, o que lhe valeu ser condenado à morte, e
Crítias... Se se considera Sócrates o terceiro sofista ateniense (o
que é paradoxal para nós, mas não para seus juízes, porque
Aristófanes o tinha explicitamente qualificado de sofista em 4Z3),
sua condenação pode parecer lógica.
Os intelectuais perturbaram a cidade com suas idéias novas,
mas também havia vários ímpios entre eles: de Anaxágoras ao
ateu C~~as, passando pelo agnóstico Protágoras, eles rejeitar~
as tradiçoes. É natural imputar uma catástrofe a uma falta reli~-
osa, sobretudo na mentalidade grega formada nessa mitologi_a
em que os _atos terminam sempre por ser pagos pelo preço mais
el~ad?·_Socrates encontrava-se sem dúvida em posição de bode
exp,aÉtono,_por ter ultrajado as tradições relioiosas da cidade.
_ Preaso po15
· nao
- se enganar sobre a atmosfera
o· da restaura·
çao da democracia que põe fim à ditadura. É um período de or-
dem moral, de recuo para um tr di - b· a
· Aris , f ª a çao com a qual não se nnc
md ais. to ~nes muda de tom, e nas suas últimas peças aban·
ona suas cnticas ferozes ao mundo políti'co e sua paro'd'1a do

2. Se é que se admite a identidade do fis


50

temos nenhuma razão de duvidar disso. ta e do orador, mas nao

72 1 socrates e seu tempo


religioso. E não terá sucessor, pois Menandro deixa o teatro polí-
tico pela comédia de costumes. A ferocidade alegre não tem mais
curso, a mola quebrou - e não se aceitaria mais. Essa mudança
brutal sem dúvida também contribuiu para a perda de Sócrates.
Alguns ainda têm na memória a personagem grotesca de As nu-
ve11s, mas esqueceram que na época se podia rir de tudo sem sofrer
conseqüências. Depois da peça, Aristófanes e Sócrates eram ainda
amigos, e O Banquete os mostra comensais. Depois do desastre de
404, não se devia mais rir da mesma maneira, e As nuvens, bufonaria
que só tinha por fim divertir, podia ser levada a sério.
A isso se acrescenta a composição do júri. Os subsídios de
tribunal, como vimos, constituíam uma fonte importante de ren-
da para os cidadãos mais pobres, que não tinham trabalho; en-
quanto os outros se dedicavam a ocupações lucrativas. A própria
composição do tribunal tomava-o pois mais hostil aos intelectu-
ais e às pessoas que se afastavam da tradição. A conjunção da
atmosfera geral e a natureza dos juízes encontrava-se assim to-
talmente desfavorável ao acusado, pois teriam muita dificuldade
para entender seu pensamento.
A acusação não era absurda: Sócrates teve, na verdade, dis-
~~ulos que tinham terminado mal, suas posições relativas à reli-
giao tradicional eram de fato revolucionárias e, enfim, represen-
ta~a esses intelectuais que eram acusados de virar a cabeça das
e~tes dirigentes à força de paradoxos. Desse ponto de vista não
ha mal-entendido, e Anitos sabia o que estava fazendo. No en-
t~nto, para que o processo terminasse tão tragicamente, foi pre-
aso todo um encadeamento de circunstâncias.
Até então, Sócrates nunca tinha sido citado na justiça, o que
n~a ci_dade tão cheia de processos como Atenas mostra qu~
nao haVJa verdadeira hostilidade contra ele. O Sócrates de 399 e
0
mesmo de 405, mas a mudança brutal de situação faz do filóso-
fo, que a cidade tinha sempre aceito, mesmo quando incomoda-
va, _um símbolo e um personagem perigoso. Além disso, se~s
ª:n 1gos - ou antes, o que restava deles - não estão em condt-

Çoes de defendê-lo. Muitos estão mortos, outros desapareceram

0 processo 1 73
ou .e comprometeram na recente tormenta e duvida-se se o jo-
, cm Platão era bem colocado para defender seu mestre: os
tcnicnscs só podiam então ver nele o sobrinho de Crítias e de
Cám1idcs - o representante de tudo o que detestavam.
Ahás, o próprio desenrolar do processo parece ter sofrido
um deslize ou talvez mesmo escapado às intenções reais de seus
mstig.idorcs. Os juízes deviam pronunciar-se duas vezes. Na pri-
meira vez, tratava se de determinar se o acusado era culpado, o
que foi feito no caso de Sócrates, mas com uma fraca maioria. A
segunda vez decidia a pena. Os acusadores pediam a morte e o
acusado devia propor uma outra pena, mas a decisão cabia ao
tribunal. O processo se decidiu nesse momento: Sócrates come-
çou dizendo que merecia ser sustentado no Pritaneu, honra in-
signe, pelo bem que fizera à cidade, e propôs como pena uma
multa ridícula. Seus amigos intervieram em seguida propondo
uma soma muito mais importante, mas era tarde demais, e o tri-
bunal teve o sentimento de que Sócrates zombava dele. Votou a
morte com uma maioria mais forte do que tinha votado a culpa-
bilidade. Notemos que o modo de execução era o menos terrível
do:. suplícios possíveis.
Pode-se pensar que a acusação não esperava tanto. É prová-
vel que pedisse o máximo para obrigar Sócrates a fazer uma
contraproposta de peso. O exílio teria sem dúvida bastado, talvez
fosse esse o desejo de Anitos. Em todo caso, como mostra Críton,
alguns discípulos tinham organizado uma evasão, que só depen-
dia da aceitação de Sócrates, mas ele recusou argüindo sua obe-
diência às leis. A facilidade com que Sócrates teria podido fugir
deixa supor que, embora estivesse acorrentado na prisão, a cida-
de não fazia verdadeiramente questão de deixar o assunto de-
senrolar-se até seu termo. A ironia, e em um segundo tempo, o
rigor de Sócrates talvez tenham selado um destino que seus ini-
migos não lhe tinham voluntariamente preparado.
Provavelmente Sócrates só tinha muito poucos inimigos
mortais, e a cidade bem depressa o considerou um pensador de
primeira importância.A corrente anti-socrática ficará amplamente

74 1 sócrates e seu tempo


minoritária antes de extinguir-se muito rapidamente.A morte do
filósofo deve-se a um desastrado concurso de circunstâncias. Sem
os acontecimentos de 404, o processo nunca teria ocorrido, e seus
instigadores não tinham sem dúvida previsto uma vitória tão ra-
dical. Mas, colocando-se do ponto de vista da acusação, a ques-
tão merece ser posta de novo: Sócrates era culpado, mesmo se a
sanção foi de qualquer modo desproporcionada? linha tido al-
guns discípulos calamitosos e sua relação com a religião tradicio-
nal exige um exame sério, a que vamos proceder. A idéia de um
Sócrates sofista ímpio e corruptor pareceu totalmente absurda à
tradição, que a varreu como uma escandalosa e incompreensível
calúnia, o que traz o risco de impedir compreender em que a
posição socrática podia marcar uma virada na maneira de consi-
derar a religião e a relação com o divino.
O Fédon descreve a absoluta serenidade de uma morte sem
sofrimento, que não é perturbada um só instante pelo medo nem
mesmo pela emoção a não ser entre os discípulos. A ausência de
Platão, nesse último dia, intriga os intérpretes. Estava doente, disse
ele. Fisicamente doente, ou não pôde suportar a idéia de viver
esses últimos instantes de seu mestre? Sentiu-se ameaçado? Essa
ausência não provém somente do relato, pois ele poderia lançar
uma dúvida sobre o Fédon, diálogo singular e fundador. Singular
porque é o avesso de todos os outros, fundador porque é o gran-
de texto, o primeiro, que afirma a imortalidade da alma. Nos ou-
tros diálogos é Sócrates que interroga seus interlocutores, afir-
mando nada saber ele mesmo e não ter nenhum conhecimento a
transmitir. Ao contrário, nesses instantes de verdade que prece-
dem a morte, são os discípulos que põem questões e o mestre,
l~n~e de sua costumeira afirmação de ignorância, diz suas con-
vicçoes íntimas, sua certeza da imortalidade da alma. Pode-se
confiar no Fédon? Platão diz ter reconstituído as últimas horas de
seu mestre segundo a narrativa que lhe foi feita sobre elas. Deve-
sever nisso uma ficção literária que lhe permite atribuir a Sócrates,
em ~i:r' relato hagiográfico, teorias mais platônicas do que
socraticas? Platão sem dúvida reorganizou o diálogo; talvez te-

º processo 1 75
nha reunido elementos diversos correspondentes à idéia que ti
nha da morte filosófica de Sócrates, mas, na falta de uma verda
de histórica absoluta, que seria bem difícil provar, respeitou cer-
tamente uma verdade filosófica e um mínimo de verdade factual.
Com efeito, as testemunhas eram suficientemente numerosas para
que se encontrasse alguém para restabelecer a verdade se tivesse
sido demasiadamente distorcida. Tratava-se dessa vez de um
acontecimento real e não mais, como nos outros diálogos, de uma
ficção.
Acidente da história e da rotina processual, a morte de
Sócrates tomou-se o lugar de nascimento da filosofia. O choque
decidiu sem dúvida a vocação filosófica de Platão, como ele diz
em sua Carta VII, e consagrará uma parte considerável de sua
obra a fazer reviver seu mestre, pondo-o em cena em seus diálo-
gos. O estatuto de mártir e a grandeza de sua morte autentica·
vamo filósofo e validavam seu pensamento. Alguns tinham visto
nele um bufão, outros um discutidor impenitente, outros um
mestre perigoso; a única imagem que resta agora é a de um ho·
mem totalmente sincero, iniciador do pensamento mais elevado.
A obra de Platão constitui uma longa reabilitação póstuma de
seu mestre, é ela que inaugura o corpo da filosofia não só porque
é seu lugar de nascença, mas também, mais materialmente, por·
que é a única obra de toda a Antiguidade clássica e helenística a
ter chegado integralmente até nós.

76 1 socrates e seu tempo


segunda parte

O MESTRE PARADOXAL
capítulo 1
RETRATO DE SÓCRATES
COMO XAMÃ

Vimos as questões suscitadas pelo curioso diálogo que é o


Cánnides. Sócrates, depois da volta dessa terrível experiência de
Potidéia, apresenta-se ao jovem Cármides como aluno de um
médico trácio que lhe ensinou a curar por encantações. Certas
tradições anteriores à época clássica mostram que o mundo gre-
go arcaico conheceu o xamanismo1, que liga aos hiperbóreos,
habitantes das regiões ao nordeste da Grécia que, por sua vez,
se encontram no extremo sudoeste da zona de extensão do xa-
manismo, centrado na Sibéria. No caso do diálogo que nos inte-
ressa aqui a referência é perfeitamente explícita: um médico tra-
dicional trácio que cura por encantações só pode ser o que cha-
mamos xamã, e isso nos é confirmado por alusão a Zalmoxis e a
Ábaris, em que se reconhecem as figuras emblemáticas do xa-
';1anismo grego. Seria porém apressado concluir daí que Sócrates
e um xamã.
Primeiro, o diálogo, que se supõe ocorrido dois ou três anos
antes do nascimento de Platão, é fictício. Chamamos a atenção,
acima, para a sua inverossirnilhança histórica. Em seguida, a idéia

-
de que Sócrates tenha tido a disponibilidade de seguir uma inicia-

1. Cf E. R. Dooos, Os gregos e o irracional, São Paulo, Escuta, 2002.

1 79
ção xamânica durante o cerco de Potidéia não é crível, o que e-.1-
dentemente não exclui que tenham podido suceder encontros
fortuitos. Enfim, se Sócrates se apresenta a Cárrnides como xamã.
é ao mesmo tempo uma astúcia - pode confiar nele para lhe
curar as dores de cabeça - e uma metáfora: Sócrates cura aalma
pela palavra, como os xamãs curam por seus encantamentos.
É impossível sustentar que Sócrates tenha realmente prati-
cado o xamanismo, o qual, quanto o conhecemos pela etnografia.
está também bastante afastado da dialética socrática. Deve-se,
por isso, ver aí somente uma metáfora? Em todo caso, é dificil
imaginar que ela seja gratuita. Por que apresentar Sócrates des<.e
modo? Aliás, nada impede que ele mesmo tenha reivindicado
essa identidade de empréstimo, como reivindica a de parteiro.
Sócrates diz a Cármides que se tomou xamã em Potidéi~
mas a questão ultrapassa as simples necessidades do diálogo, 1a
que, como também vimos acima, a mesma campanha militar-
donde se pode pensar que voltou transformado- é o teatro dessa
incrível meditação de 24 horas contada pelo Alcibíades de OBan·
quete. Sócrates imóvel, insensível às exigências normais do corpo
e a tudo o que ocorre em tomo dele, totalmente ausente, parece
na verdade fazer uma dessas viagens da alma de que se encon-
tram traços no xamanismo grego. Um vez de regresso à realidade
normal, faz uma prece ao sol, e vai embora, provavelmente para
um dia como os outros, depois desse inverossímil parêntese. A
própria prece é enigmática, porque os gregos oravam essend~-
mente aos deuses de seu panteão, mas não ao sol. Essa maneira
de retomar contato com a realidade ordinária sinala sem dúvida,
0 car~te~ so~renatural da experiência. Quanto ao d;stinatário da

oraçao, mdica uma relação com a natureza e os elementos que


não prové~ da religião grega clássica.
_ Esse extase não é o único. Os diálogos de Platão não eram
evidentemente O lugar de pôr em cena êxtases mas temos O tes·
temunho de O Banquete. Agatao

- orgaruzou
. ' banquete Para
um
4

celebrar os prem1os que acaba de ganhar com sua pnmeu• · a tra·


80 1 o mestre oaradoxal
gédia. Sócrates, que faz parte dos convidados, encontra no cami-
nho Aristodemos, que não recebeu convite, mas Sócrates encar-
rcga•se de levá-lo à festa. Durante o caminho, Sócrates isola-se
em seus pensamentos, e Aristodemos chega sozinho à casa de
Agatão, que envia um criado para buscar Sócrates. O escravo
encontra-o de pé, sobre o pórtico da casa vizinha, mas o filósofo
não responde a seus chamados. Aristodemos explica então que é
inútil insistir: o fenômeno é habitual em Sócrates; isso se apode-
ra dele em qualquer lugar, mas vai acabar por vir. Mas os outros
não o esperam para começar, e quando ele chega já estão no meio
da refeição; a propósito, Aristodemos esclarece que o êxtase foi
mais breve do que de costume. É difícil determinar com precisão
a duração de tal êxtase, mas, por se tratar de uma refeição de
festa, não poderia ser inferior a uma hora. As circunstâncias ates-
tam o caráter totalmente imprevisível do fenômeno, que se reve-
la além disso socialmente invalidante. Não só Sócrates chega mui-
to atrasado, quando tinha partido a tempo, mas sobretudo colo-
ca seu companheiro em urna situação constrangedora, pois este
é obrigado a apresentar-se só sem ter sido convidado. Claro que
Sócrates não sabia o que ia lhe acontecer quando levou Aristo-
demos. Contudo, sentiu que a coisa estava chegando: com efeito,
seu amigo conta que Sócrates ficou atrás a meditar e lhe disse
então para continuar sem ele. Há pois um momento em que o
êxtase se põe em marcha antes de Sócrates cair em uma total
indiferença ao mundo exterior. Pode-se questionar se esse esta -
do se impõe à força, ou se Sócrates tem como escapar dele. Não
teremos evidentemente a resposta. Talvez Sócrates, sentindo vir
0 êxtase, não possa evitá-lo, talvez considere esse estado tão supe-
rior às convenções sociais que seria absurdo privar-se dele. Nota-
se, em todo caso, o caráter inopinado da experiência: Sócrates é
arrebatado sem ter desejado nem previsto.
É evidente que gostaríamos de saber o que vivenciava Só-
crat_es durante esses longos arrebatamentos, que visões lhe po-
denam ser oferecidas, que conhecimento tiraria deles. Quan-
do chegou ao banquete, Agatão lhe pediu para tomar lugar a seu

retrato de sôc:rates c:omo xamã 1 81


lado, para transmitir-lhe a descoberta que certamente acabava
de foZl'r. Sócrates esquiva-se: o saber não pode passar de uma
pessoa para outra, como o conteúdo de uma taça. Encerrou o
incidrnte com uma pirueta:"Basta estar perto de um sábio para
participar de sua ciência, e vou pôr-me ao lado de ti, que acabas
dl' obter tal sucesso com a tragédia". Agatão não se engana, vê
bem que acaba de ser vítima da ironia socrática e que nada mais
vai saber. Ninguém ousa insistir, pudor compreensível diante do
inconccbivel. Pudor partilhado certamente, não se fala dessas ex-
periências, mas sobretudo elas são ligadas ao incomunicável. Esse
saber, a sopliía, não passa de um espírito a outro, é um conheci-
mento que não se transmite e de que Sócrates não quer falar.
Nunca vamos saber o que Sócrates viveu nesses extraordi-
nários momentos e de qualquer modo esse tipo de experiência
é muito mais rico que o relatório que se poderia tentar fazer
dele, o que é o caso de toda experiência forte. Mas é preciso
jogar para o lado da anedota - ou da incongruência - biográ-
fica esses brancos que nos desconcertam tanto como àqueles
que os testemunharam?
Sócrates teve a honestidade de não explorar seus êxtases para
apresentar-se como detentor de saberes divinos, o que significa
que jamais pretendeu transmitir uma revelação nem mesmo um
conhecimento superior. Paradoxalmente, vê-se Sócrates sempre
afirmar que nada sabe. Seu silêncio e sua recusa de aureolar-se
com prestígios do sobrenatural não implicam porém que esses
êxtases não tenham deixado traço algum em seu pensamento, o
que suporia uma verdadeira duplicação da personalidade. Tal ex-
periência não pode ser anódina, teve forçosamente uma profun-
da repercussão na atitude e no pensamento de Sócrates. Resta
saber qual foi.
Considera-se muitas vezes que esses êxtases fazem parte da
singularidad_e do personagem, e são relegados ao campo do f~l-
clore e do pitoresco. Na realidade, como a coisa provoca assim

2. O Banquete, 175 e-e

82 1 o mestre paradoxal
mesmo um pouco de desordem, prefere-se não falar demais, em-
bora admitindo que Sócrates tinha um lado de atraso. As rela-
ções de Sócrates com o sobrenatural constrangem, como expri-
me a confissão ingênua de um intérprete autorizado: "Temos
primeiro de enfrentar um fato concernente a Sócrates, de tal mo-
do embaraçoso para os leitores modernos que fez sucederem e
numerosos trabalhos de especialistas que buscam explicações
para esvaziar o problema [... ] trata-se do fato de que Sócrates
aceita o sobrenatural". É preciso porém resignar~se "Sócrates,
que de tantas maneiras está adiante de seu tempo, nesse domí-
nio do pensamento é um homem de seu tempo" 3 • O pudor dos
intérpretes diante da incongruência socrática é o mesmo que ~
durante muito tempo velou as crenças e os centros de interesse
de Kepler ou de Newton, homens esclarecidos mas que tiveram
também suas fraquezas.
Mostraremos, ao contrário, que a relação de Sócrates com o
sobrenatural é o motor mesmo de seu pensamento. É sobre essa
relação com o sobrenatural, e não apesar dela, que Sócrates cons-
trói seu pensamento até no que tem de mais iniciador da mo-
dernidade.
Mas seria preciso que isso fosse certo. Podia-se objetar que
dependemos aqui inteiramente do testemunho de Platão, sobre
cuja confiabilidade é a priori proibido questionar. A dúvida vem da
maneira como Aristóteles apresenta Sócrates: um pensador que
fez a reflexão voltar-se para a moral, negligenciando o estudo da
natureza, e que visando ao universal foi o primeiro a procurar de-
finições4, Um Sócrates totalmente diferente aparece aqui, espírito
racional que Aristóteles critica pela estreiteza de seu campo de es-
tudo. Pode-se ser tentado a imaginar que Platão fez de seu mestre
0yorta-voz de seu próprio espiritualismo, uma ficção a que Aris-

toteles faria justiça. Pode-se confiar em Aristóteles nesse ponto?

3. G. VLASTOs, Socrate, ironie et philosophie morale, 1991, trad. Dalimier


1994, p. 220.
4. AlusTóTELES, Metafísica, A 6, 987 b.

retrato de sócrates como xamã 1 83


Pensamos que não, por muitas razões. A primeira é que ele
reconstrói a história segundo suas próprias necessidades, sem
cuidar de exatidão factual, preocupação que a nós se impõe, mas
não se impunha a um filósofo antigo. Concede a si mesmo as
facilidades que lhe convêm, mas por que no caso esta lhe comi-
ria? Porque tinha tudo para não apreciar Sócrates, embora ÍO$se
o mestre de seu mestre, influência que aliás ele relativiza, sinal
provável da pouca estima que dedica a Sócrates, que não tinha
conhecido e de quem tudo, na realidade, o separava. Não era
ateniense, e só chegou à Academia mais de trinta anos depois da
morte de Sócrates. Em seguida, ele, que tinha o apelido de"o
ledor" e que muito escreveu, devia considerar um limite o fato de
Sócrates não ter deixado obra alguma. Enfim, o imenso cientista
Aristóteles criticava Sócrates por ter desviado a filosofia do estu·
do da natureza. Além disso, para ele, grande burguês estrangei-
ro, Sócrates, ou antes sua imagem, não podia ter o atrativo que
exerceu sobre os aristocratas atenienses do século anterior, que,
com razão ou sem ela, encontravam no porte e no traje espartanos
de Sócrates sua própria hostilidade à democracia. Pode-se inter·
rogar se Aristóteles não se representou Sócrates através de
Diógenes, "um Sócrates enlouquecido", como teria dito Platão ,
pois seu vestuário e certos traços de comportamento evocavam
efetivamente Sócrates mas em um contexto totalmente diferen·
te'. Os traços que por razões políticas suscitavam a simpatia da
an~tocra~a ateniense do século V para um burguês do século se·
gumte .nao passavam de bizarrices provocadoras, e na verdade
demasiado plebéias, tanto mais que os cínicos superavam am·
piamente aqueles de quem descendiam por Antístenes, disápulo
de Sócrates.
Não seria pois razoável fazer prevalecer o testemunho indi-
reto, e sem dúvida bastante pouco benevolente, de Aristótel~
<.obr: 0 de Platão, mas para passar da probabilidade à certeza e
preciso uma testemunha exterior. Acontece que a temos, e é jus·

5- D«E.'sltS i..AtRao, VI, 54.

84 1 o mestre paradoxal
tamente Aristófanes. O interesse de Aristófanes é antes de tudo
cronológico: Platão tinha 4 anos quando os atenienses assistiram
à representação de As nuvens que põe em cena um Sócrates que
Platão não conheceu; e a isso há que acrescentar que os diálogos
de Platão serão posteriores de muitas décadas. Além disso, Aris-
tófanes não tem filosofia pessoal que pudesse atribuir a Sócrates,
como se suspeita que Platão fez. Entretanto, pode parecer singu-
lar utilizar essa caricatura burlesca que são As nuvens, peça sobre
a qual houve muito equívoco, mas da qual certos intérpretes re-
velaram toda a importância. Um leitura em primeiro grau mostra
um Sócrates que nada tem a ver com o de Platão, a ponto de se
ter às vezes pensado que o desnível se deveria a uma evolução de
Sócrates.
A peça desorienta os que não percebem sua natureza. Por
estranho que possa parecer, nem sempre se percebe que se trata
de urna obra cômica, cujo único objetivo é fazer rir a todos os
atenienses, pois o espetáculo foi realizado no quadro das Gran-
des Dionisíacas, festa da qual participava o conjunto de cidade. A
lei do gênero era um burlesco sem limites. O teatro de Aristófanes
apresenta seus alvos de maneira excessivamente grotesca, quer
se trate dos políticos mais em vista ou mesmo de Dioniso, nas Rãs,
sem que isso trouxesse aborrecimentos para seu autor. Éum imenso
desrecalque coletivo, em que se concede o direito de rir de tudo, o
que se compreenderá mais depois da reação que se segue ao
restabelecimento da democracia em 403. Aliás, como atesta O Ban-
quete, Sócrates e Aristófanes não eram nada inimigos.
Para utilizar a peça, deve-se evidentemente proceder a uma
descodificação, isto é, descontar a distorção. Já que se trata de
uma caricatura, sabe-se que o traço é forçado, mas para ser per-
cebida como uma caricatura é necessário que o modelo seja re-
conhecido por trás de sua deformação. Lembremos o roteiro.
Estrepsíades, um camponês arruinado pelos gostos de luxo de
se~ filho, Fidípedes, é perseguido por seus credores. Apresenta-
se ª escola de Sócrates para aprender a fazer triunfar a causa mais
fraca sobre a mais forte, 0 que lhe devia permitir desembaraçar-

retrato de sócrates como xamã 1 85


se de seus credores. O"pensadeiro" de Sócrates parece um lugar
de pesquisas físicas: o mestre acaba de inventar um método para
medir a relação do salto da pulga pelo comprimento de suas pa
tas. Todavia, é antes de tudo um lugar reservado aos iniciados, e
as alusões aos mistérios de Elêusis são numerosas6. Isso é inqui-
etante e paradoxal: Estrepsíades atribui a Sócrates o que geral-
mente se diz dos sofistas, e contra o que luta o Sócrates de Platão.
Sócrates, um sofista como os outros?Veremos que a questão
merece ser aprofundada. Sócrates, físico? Aristófanes faz Sócrates
medir não só os saltos da pulga mas também a Terra7• Estamos
pois em contradição formal com os testemunhos tanto de Platão
como de Aristóteles. Vimos acima que este conhecia muito mal e
quase não apreciava Sócrates. Talvez seja simplesmente tributá-
rio de Platão, que no Fédon faz Sócrates dizer que tinha ficado
decepcionado com a leitura de Anaxágoras, à qual se tinha lan-
çado com paixão, esperando encontrar nela a explicação do uni·
verso. Sócrates não construiu sistema físico. Para formular as coi-
sas de maneira um pouco anacrônica, pode-se dizer que ele con·
sidera que o universo não pode ser compreendido pelo simples
jogo de forças físicas e que exige uma explicação metafísica. Isso
não significa que Sócrates tinha se desinteressado totalmente do
estudo do mundo. Aliás, o Fédon 8 mostra-o especulando sobreª
Terra nos últimos instantes de sua vida. Além disso, o Sócrates de
Platão tem uma formação matemática, como atestam o Mênon e
as estreitas relações que mantém com a escola de Mégara e seus
matemáticos, Teodoro eTeeteto.

6- Cf S. Bvt, Les mysteres d'Éleusis dans Les Nuées, in S. BYL e L.


COlJl.OUBARrrsis, Mythe et philoscphie dans Le Nuées d'Aristophane Bruxelles,
1994. '
7. Lembremos que a forma esférica da Terra é conhecida no fim do sécUlo
V e que E~tóstenes medirá seu diâmetro por volta de 250, isto é, um séculoe
meio depo15 da mo~e de Sócrates. O problema que Aristófanes apresenta ~lll?
0
tipo mesmo dava especulação era, portanto, uma verdadeira questão aenti·
fica que bastante rapidamente encontrará uma bela solução.
8. 108 ss.

86 1 o mestre paradoxal
Deve-se lembrar que nossa classificação das ciências não é a
mesma que a dos antigos. Para os gregos a astronomia matemá-
tica faz parte das matemáticas, por oposição à física, que trata das
propriedades dos corpos, reduzindo-os a seus elementos e a suas
qualidades: o seco, o úmido, o pesado, o leve etc., abordagem
qualitativa que, é claro, não corresponde mais aos critérios da
ciência moderna que se construiu matematizando-se. Para os
gregos, a medida da terra é uma questão matemática, e não físi-
ca. Se Sócrates mede a Terra e o salto de pulga é porque ele é
matemático, o que não é incompatível com o testemunho de
Platão. Sem dúvida também há um jogo com o tenno "geome-
triaH, cuja ambigüidade pode-se traduzir em português pela que
conservou para nós a palavra geômetra. Sócrates é geômetra. -
Então, é agrimensor? - Não, pois não são parcelas de terra que
mede, mas a Terra inteira9 • Essa generalidade exprime provavel-
mente a abstração matemática ao mesmo tempo que a generali-
dade física da Terra.
Vejamos como se faz o encontro de Estrepsíades com o mes-
tre. Um discípulo introduziu no "pensadeiro" um novo aluno:
Sócrates está no ar, num barquinho suspenso:

Ando nos ares e olho o sol. Nunca, com efeito, teria deslindado exa-
tamente as coisas celestes se não tivesse elevado meu espírito e con-
fundido meu pensamento sutil com o ar semelhante. Se tivesse fica·
do na terra para observar de baixo as regiões superiores, nunca teria
descoberto nada; não, porque a terra forçosamente atrai para ela a
seiva do pensamento. É exatamente o que acontece com o agrião'º.

, Por trás da paródia, pode-se compreender, parece que


Socrates se arranca da terra e pratica uma ascensão do espírito
que lhe pennite o acesso às realidades superiores. Esse acesso
supõe uma iniciação comparada à dos Mistérios11 • E, depois de

9- Cf As nuvens, 202-204.
10. Ibid., 225-243, trad.Van Daele, CUF.
11. Ibid., 258, 303.

retrato de sócrates como xamã 1 87


h:r ouvido as Nuvens, a alma de Estrepsíades12 começa a alçar St'll
vôo. Contudo, o conhecimento supõe aptidões, trabalho e uma ver-
dadeira ascese: precisa·se de memória, de concentração e de res1S•
tência, de saber agüentar de pé as caminhadas, o frio e a fome' .
Quando chega o momento da iniciação, Estrepsíades, trêmulo, evoca
a consulta do oráculo deTrofônios14 • Depois de uma lição de mestre
de escola, em que Estrepsíades exibe claramente seus limites inte·
lectuais, Sócrates o convida a passar para uma sessão de meditação,
alongando-se sobre um catre, coberto de percevejos para a drcuns·
tãncia. O coro traz ao novo discípulo alguns conselhos:

Medita agora e examina a fundo, gira teu pensamento em todas~


direções, recolhido sobre ti mesmo. Depressa, se cais em um
impasse, salta para outra idéia de teu espírito; e que o sono doce ao
coração esteja ausente de teus olhos1s.

Conselhos que parecem bastante técnicos, notadamente so-


bre o risco de pegar no sono, ao qual Sócrates está atento um
pouco mais adiante16, quando vem perguntar a Estrepsíades so·
bre o resultado de sua meditação. A isso acrescenta uma indica·
- . , . ' .-
çao sugestiva: e preciso relaxar o espírito para que ele alce o voo
A encenação e o conteúdo de paródia dos diálogos não de·
•:m_iludir-nos: eliminando tudo que tem a ver com a intenção
comica, parecem desenhar-se certas características. Sócrates con·
c~be o ensinamento como uma iniciação aos Mistérios, o conh~-
cimento adquire-se no termo de um trabalho e de uma verdade•·
ra asce~~- que necessitam de qualidades naturais: além disso, é
necessano praticar a meditação. Tudo isso permite destacar-se da
terra, o que abre o camirtho para o conhecimento.

12. Jbid., 319.


13. Jbid., 412-416.
14. lbid., 50
15. lbid., 700-705.
16. lbid., 732.
17 Jbid., 762.

88 1 o mestre paradoxal
Assim, abstraindo do tom e do conteúdo da paródia, Aristó-
fanes confirma amplamente os aspectos de Sócrates que Platão
evocava com a metáfora do xamanismo. A iniciação aos Misté-
rios resultava em uma visão, a epoptia, que aparece freqüentemente
no Sócrates de Platão, de modo que também nesse ponto Aristó-
fanes traz uma preciosa caução ao testemunho de Platão.
Parece, pois, que o êxtase esteja no coração do pensamento
de Sócrates. É nesse vôo da alma que ele pode contemplar a rea-
lidade, libertado da terra, e tenta, por uma combinação de disci
plina intelectual, de ascese e de meditação, provocá-la em seus
discípulos. Há, porém uma diferença entre Aristófanes e Platão:
As nuvens mostram um verdadeiro mestre, instalado em uma es-
cola organizada, o que não parece ter sido o caso, pois Sócrates é
essencialmente conhecido como o filósofo de rua. Primeiro se
notará que era preciso um lugar para a peça, e depois que no fim
Estrepsíades incendeia o "pensadeiro" - sem dúvida uma alu-
são ao fim da escola pitagórica, paralelismo que pela conotação
de estranheza iniciática remete também ao aspecto xamânico de
Sócrates. Se esse aspecto nem sempre aparece com evidência em
Aristófanes, é por ser perturbado por duas interferências.
A primeira é que Sócrates ensina o ateísmo: os deuses não
existem18, e quando chove é por causa das nuvens e não porque
Zeus orvalha a Terra. Como veremos, Sócrates rejeita efetivamente
a mitologia politeísta. Quanto a misturar esses deuses em que
não acredita com os fenômenos terrestres, o leitor de Anaxágoras
que ele foi sabe que não passam de contos irracionais, e que es-
ses fenômenos têm uma causa natural (distinge-se de Anaxágoras
nisto: se não rejeita a causalidade natural, considera que essa su-
põe uma outra, que lhe é superior). Sócrates é um "físico" para
Aristófanes, porque substitui a explicação mitológica dos fenô-
menos pela causalidade física, mas não o é para Aristóteles, por
não ter elaborado uma teoria física.

18. Ibid., 547-548.

retrato de sócrates como xamá 1 89


A segunda é que supõe que o "pensadeiro" ensina a fazer
triunfar a causa má. Ora, toda a parte que concerne a esse ponto
é um diálogo que opõe o raciocínio justo e o raciocínio injusto,
personificado!>, tendo Sócrates deixado a cena. Pode-se pensar
qul' Aristófanes procede aqui a um amálgama (sem assumi-lo
até o fim, pois faz sair Sócrates) e visa os sofistas em geral. Po-
r~m, esse amálgama foi possibilitado por duas coisas. Segundo o
conselho que o velho Parmênides supostamente lhe dera, Sócrates
e>.amina sempre as teses opostas e não teme nunca o paradoxo
que, por definição, apresenta idéias contrárias ao que todo mun-
do crê evidente. Como conseqüência, os interlocutores de Sócrates
viam vacilar suas certezas, pois de tal modo os perturbava que os
punha em contradição com eles mesmos. Perturbação que lhes
fazia perder seus pontos de referência, de forma que não deviam
mais saber muito bem que normas adotar, já que as da tradição
tinham sido postas em má situação por Sócrates.
Aristófanes traz portanto uma resposta clara e paradoxal. Oa-
ra, porque autentica o Sócrates extático que Platão apresenta como
xamã. Paradoxal, porque o mestre do"pensadeiro" é ateu e rejeita
toda a tradição religiosa - atitude que corresponde à acusação
lançada contra Sócrates cerca de um quarto de século mais tarde.
O retrato xamânico de Sócrates não concerne só a seus êxta-
ses, de que aliás não se trata no Cánnides, diálogo em que o pró-
prio Sócrates supostamente se apresenta como tal. A dialética
desempenha aí o papel da encantação, da palavra que cura a alma.
A metáfora não se refere unicamente à função da palavra: se ela
pode exercer-se, é que Sócrates conduz o diálogo de uma manei-
ra que enfeitiça seu interlocutor.
Dirigindo-se a Sócrates, o Alcibíades de O Banquete compa-
ra ·o ao sátiro Marsias:

Mas, tu dirás, não és tocador de aulos19 • Sim, e bem mais extraordi-


nário do que Mársias. Ele de fato servia-se de um instrumento para

, l9. A~os é u_m instrumento de palheta dupla, isto é, uma espécie de


oboé. HaVJa também um de palheta simples, um tipo de flauta de cana.

90 1 o mestre paradoxal
encantar os seres humanos com ajuda do poder de seu sopro, e é o
que se faz hoje em dia quando se tocam suas músicas no aulos. Eas
músicas de Mársias, se interpretadas por um bom tocador de aulos,
são as únicas capazes de nos pôr em um estado de poc;sessão, e
porque são músicas divinas, capazes de fazer ver quais são os que
têm necessidade dos deuses e de iniciações. Mas tu te distingues de
Mársias em um só ponto: Não tens necessidade de instrumentos, e
é proferindo simples palavras que produzes o mesmo efeito [."]
Cada vez que a ti se ouve, ou se escuta uma pessoa que está trans-
mitindo tuas falas [...) ficamos perturbados e possessosN.

Alcibíades acrescenta como sente pessoalmente a palavra


mágica de Sócrates:

Quando lhe escuto meu coração bate muito mais forte do que o
dos Coribantes e suas palavras me tiram lágrimas21•

Mársias, Coribantes, possessão, iniciação pertencem ao mes-


mo registro religioso. Mársias é um sátiro, companheiro silvestre
de Dioniso que com seu aulos recebido de Atenas tinha ousado
desafiar Apolo e sua lira. Vencido, Apolo vingou-se esfolando-o
vivo. O próprio Dioniso aliás não tinha tido melhor fim, pois fora
despedaçado e devorado pelos Titãs, antes de ser ressuscitado
por Zeus. A monstruosidade desse mitos, em vez de exigir uma
explicação psicológica, deve ser aproximada do xamanismo. Com
efeito, o futuro xamã da Sibéria passa por uma morte simbólica,
no curso da qual se vê despedaçado e devorado por demôniosª.
O próprio Dioniso é um deus que os gregos fazem vir da Trácia.

20. O Banquete, 215 b-d.


21. Ibid., 215 d-e.
22. Cf. G. KsENOFONT0,1, Les chamanes de Sibérie et leur tradition ora/e,trad.
franc. 1998. O Yakoute Ksenofontov, em que se terá reconhecido um
Xenofonte russificado e metamorfoseado pelo jogo das transcrições, reco-
lheu os testemunhos sobre os últimos xamãs da Sibéria, que iam logo mrus
desaparecer na tormenta staliniana.

retrato de sócrates como xamã 1 91


hidentcmente não é sem significação que esse retrato dionisíaco
de Sócrates se faça no curso de um banquete, e venha de Akibí-
atk' , que errava bêbado pelas ruas antes de entrar. Os Coribantes
são iniciados que se entregavam a danças selvagens por ocasião
dos culto~ orgiásticos, o que também lembra a embriaguês
dionisíaca. Essa atmosfera dionisíaca é ainda confirmada pela
comparação de Sócrates com um sileno, figura mitológica agres-
te que se confunde muitas vezes com os sátiros, embora com a
diferença de que o sileno é mais idoso. ln víno veritas: a embriaguês
de Alcibídes toma um caráter sagrado, metáfora da dança extática
que exige a intervenção divina. Evoca um pouco depois" o delírio
e os transportes báquicos produzidos pela filosofia" 23 . No entan-
to, Sócrates nunca fica bêbado fisicamente, seja qual for a quanti-
dade de vinho que tenha bebido24 • Esse traço acrescenta-se à sua
resi!;tência, para esboçar um personagem que supera os limites
humanos normais, mas tem uma forte significação simbólica. Os
outros têm dificuldade de soltar seu espírito na embriaguês para
atingir as fontes divinas da inspiração, mas Sócrates pode ignorar
a embriaguês: personagem divino, tem acesso direto ao êxtase.
No diálogo que leva seu nome, Mênon utiliza uma outra
imagem para exprimir o que se produz no encontro com Sócrates:

"Nesse momento mesmo - vejo-o bem - não sei por que magia
ou que drogas, por tuas encantações, tu me enfeitiçaste tão bem
que tenho a cabeça cheia de dúvidas. Ousaria dizer, se me permites
um gracejo, que me pareces assemelhar-te totalmente pelo aspecto
e por tudo mais a esse grande peixe do mar que se chama um tor-
pedo. Esse entorpece mal alguém se aproxima e o toca: tu fazes
experimentar um efeito semelhante. Sim, estou de todo entorpecido,
de corpo e de alma, e sou incapaz de responder-te. Contudo fiz
cem vezes discursos sobre a virtude, diante das multidões, e creio

23. Ibid., 218 b.


24· A c~isa não é fisicamente impossível, e poderia ser real. Em certas
pessoas, mwto raras, o álcool é eliminado diretamente e não passa para 0
sangue.

92 1 o mestre paradoxal
que sempre me saí muito bem. Mas hoje é impossível dízer sequer
o que é a virtude! Tu tens toda a razão, acredita-me, em não qul'rer
nem navegar nem viajar fora daqui: em uma cidade estrangeira,
com uma igual conduta, não tardarias a ser preso como fciticeiro?5.

Droga e encantação encontram-se aqui, mas no registro do


feiticeiro e não mais no do xamã. A referência, no modo de gra -
cejo, passa da embriaguês iniciática dionisíaca à magia sinistra
dos feiticeiros, por toda a parte temidos e perseguidos, mas é
claro que a realidade é a mesma. O interlocutor de Sócrates não
compreende o que se passa, perde seus pontos de referência e,
corno tomado de vertigem, não sabe mais onde está. Vertigem
dialética que modifica o estado de consciência daquele que entra
em relação com Sócrates. Outra imagem: Sócrates fascina 26 seu
interlocutor como uma serpente que atrai sua presa.
A magia de Sócrates funciona em muitos registros. Não é a
simples fascinação do personagem e de sua virtuosidade dialética.
Tem uma técnica que se aplica em diversos níveis psicológicos. A
célebre ironia consiste em fazer uma armadilha para a auto-sa-
tisfação. Sócrates se apresenta como totalmente ignorante e co-
loca para um suposto especialista uma questão ingênua à qual
não pode deixar de responder. E, de questão ingênua em questão
um pouco menos ingênua, o especialista rapidamente perde pé e
vê desvanecer-se suas evidências.
Sócrates não hesita em levar até o burlesco esse jogo de
máscaras. Não contente de fingir-se o ignorante total, acontece-
lhe de assumir papéis completamente deslocados. Estamos ha-

25. Mênon, 80 a-b. Notemos que, como nosso idioma, a língua grega
!em n~n_ie para feiticeiro (goes) mas não para xamã, que designa, por alusão
ª mediana trácia, as mitologias órfica e dionisíaca, e aos personage_ns_ ~e
Zalmons e Abaris, enquanto adotamos simplesmente um termo origmano
da_Sibéria. Figura de uma alteridade sem nome, o xamã é por essência estran-
gerro, c?mo Dioniso era um deus estrangeiro para os gregos, mesmo perten-
cend0 a cultura grega desde a época mais antiga.
26. República, 11, 358 b.

retrato de sácrates como xamã 1 93


bituado a imagem da maiêutica, e a veneração impede de ver
e papel tal como está no texto de Platão: Sócrates mostran-
do- como parteira, tratando de fazer o jovem parir, toma-se
grotl~O de propósito. Em Xenofonte vemos Sócrates apresen
tado-se como rufião. Burlesco e contra-emprego fazem parte
evidentemente de uma estratégia de desestabilização psicológica.
Sócrates era considerado um mestre, e fazia o papel de quem
nada sabia, ao mesmo tempo em que detonava a falsa ciênaa
dos outros. Seu ensinamento era dos mais profundos, mas podia
bancar o palhaço; perturbando o interlocutor, esse jogo de más-
caras abala as certezas e faz tomar consciência de que tem de
buscar outro saber.
Deve-se acrescentar a esse retrato dois elementos importan
te ·: os sonhos e o famoso "demônio". Sócrates considera que os
sonhos podem ser advertências divinas. Relata no Fédonv um
sonho recorrente que piedosamente considerou um mandamento,
apesar de sua enigmática ausência de razão. Seus disápulos ad-
miram-se de que tenha composto poemas na prisão, o que nun·
ca fizera antes. Responde que é por causa de um sonho que sob
formas diferentes muitas vezes lhe impôs que fizesse músicalll.
Sempre interpretara o sonho como exortação a prosseguir a ati·
vidade filosófica, pois a filosofia era a mais alta música, mas teve
finalmente um escrúpulo e decidiu-se a obedecer ao pé da letra.
No Críton29, diz que foi advertido em sonho do dia em que sua
execução ia ocorrer. Enfim, na Apologidl° afinna -se investido de urna
missão divina que lhe foi especialmente significada por sonhos.
Sócrates lembra em O Banquete31 o ensinamento de Diotima
sobre o daimon: intermediário entre os deuses e os homens, trans·
mite aos homens mensagens divinas, quer de dia, quer de noite,

27. 60 e.
28. A operação consiste evidentemente em escrever um poema e pôr·
lhe música.
29. 44 a.
30. 33 e
31. 202 e; 203 a.

94 1 o mestre paradoxal
através de sonhos, ou por intermédio de oráculos. Pensa-se c\i•
dentemente no papel que Sócrates atribui ao oráculo de Delfos
em sua vocação.
Quanto ao "demônio" de Sócrates, desde a Antiguidade sus-
àta toda uma literatura, o que prova que a coisa não era ób"ia. Um
daimon é ao mesmo tempo um mediador e um mensagciro12 (isto
é, o que para nós é um anjo). Na realidade, o famoso "demônio"
de Sócrates não é um demônio. Não emprega o nome daimon,
mas seu adjetivo, daimónios-demônico.AApologia atesta a exa-
tidão dessa nuança. Com efeito, acusado de ateísmo (porque não
acredita nos deuses do Panteão), Sócrates refuta Meletos demons-
trando que esse se contradiz: pretende que ele é ateu quando ele
reconhece realidades demônicas (6mµóvi.a npá-yµarn). Se ele
crê nas coisas demônicas, é que crê nos "demônios"; ora, não há
"demônios" sem deuses, de sorte que a acusação de ateísmo não
se sustenta13• É notável o caráter negativo da argumentação:
Sócrates demonstra que não pode ser acusado de não crer nos
deuses, mesmo conseguindo não afirmar positivamente que acredi-
ta neles. Essa nuança sutil revela uma oposição teológica radical.
Sócrates rejeita o Panteão mitológico grego, e nesse ponto nada
cede a seus acusadores. Justifica-se simplesmente mostrando que
sua posição é incompatível com o ateísmo de que o acusam; mas
que deus (ou deuses) admite? A resposta não está na Apologia.
Mais adiante volta a falar de sua relação com o demônico.
Os atenienses ouviram-no muitas vezes dizer que se produzia
para ele algo divino ou demônico34:

Isso começou desde minha infância, uma voz que só se produz para
me afastar do que vou fazer, mas não me impele nunca a agir.

O fenômeno é pois de notoriedade pública, Sócrates muitas


vezes conta com ela. Trata-se de uma voz que curiosamente só

32. Cf. Banquete, 202 e; 203 a.


33. 27 b-c.
34. 31 c-d.

retrato de sócrates como xamã 1 95


tran mitc proibições divinas No Eutidemo, Sócrates explica que
u inal dcmônico habitual acaba de manifestar-se35 para impe-
di-lo de brantar-se como pretendia fazer. Às vezes, confessa ele
a Tccteto16, esse demônico lhe proíbe conservar certos discípulos.
F.utífron, que não é dos próximos de Sócrates, e que representa
uma e ~de de integrismo da religião tradicional, conhece bem
L>ssa singularidade socrática, pois lhe atribui as acusações religio-
sas feitas contra Sócrates: é por causa desse demônio ao qual ele
deve dirigir-se em toda circunstância37•
A formulação platônica é sempre a mesma: produz -se
('y~-yveTaL) para Sócrates algo de demônico (6cnµ.óvwv).A coisa
não tem nome, só adjetivo, que indica de que ordem é e que
pode ser substantivado, e diz-se somente que acontece, que se
manifesta como ou por uma voz, que constitui um sinal. Ado-
tando-se o raciocínio de Sócrates, não há demônico sem "de-
mônio", mas ele contenta-se com dizer sua experiência. Não
encontrou seu "demônio", não o conhece, mas recebe suas
mensagens.
A relação de Sócrates com o divino é portanto permanente,
aparece até nas situações mais banais, e é de todos conhecida.
Porém só se mostra na realidade vivida, sem acarretar nenhuma
teorização.
Apresentar Sócrates como xamã ilustra ao mesmo tempo o
laço essencial do personagem com o sobrenatural e sua estra·
nheza, impossível mesmo de nomear. Porém, essa estranheza não
deve ser absoluta, porque se vê aflorar nela elementos importan·
tes que parecem ligar-se ao orfismo. Pela fascinação encantatória
da palavra, sua concepção do corpo túmulo da alma, sua adesão
aos mitos que exprimem a viagem depois da morte e suas alu·
sões freqüentes aos Mistérios, Sócrates tem numerosos aspectos
órficos. O laço entre o trácio Orfeu, Dioniso e as bacantes nos

35. 272 e.
36. Tttteto, 151 a.
37. Eutifran, 3 b.

96 1 o mestre paradoxal
leva ao xamanismo de Sócrates. Como tinha notado Boyancé ,
Orfeu é o santo protetor dos xamãs.
Tudo seria assim claro se Platão, aliás, não condenasse 51.."'>\cra-
mente os órficos. Charlatães utilizam os poetas, Orfeu e Museu 39
para atrair não só particulares, mas também cidades, onde instau-
ram cultos sacrificiais, iniciações que supostamentee asseguram a
felicidade no Além 40 • Como Platão podia rejeitar tão radicalmentl'
o orfismo quando atribui a Socrates tantos traços órficos?
Os intérpretes esquivam-se geralmente do problema supon-
do que Platão visa aqui órficos transviados. Na verdade, como
mostrou Boyancé41, esse texto refere-se a um orfismo oficial por-
que se trata de cultos e iniciações de uma cidade na qual só se
podia reconhecer Atenas. Como pode Platão, que atribui tantas
vezes a Sócrates a metáfora da iniciação nos Mistérios, criticá-los
de forma tão radical? Críticas radicais emitidas por Glauco, ir-
mão de Platão, que se dirige a Sócrates. Que pontos criticam? O
fato de que charlatães pretendem que os sacrifícios podem apa-
gar o mal que se cometeu e que a iniciação confere à alma a cer-
teza de uma vida feliz depois da morte, seja qual for seu valor
moral; o que era efetivamente o caso dos mistérios de Elêusis. O
ataque refere-se pois a elementos reais importantes da religião
ateniense, os cultos sacrificais e os Mistérios, e não simplesmen-
te a comportamentos individuais transviados.
Se Platão rejeita o orfismo, embora fazendo - e com que
acúmulo de traços - de Sócrates um personagem órfico, isso só
pode ter uma razão: Sócrates é o Orfeu verdadeiro. É sem dúvida
o sentido do sonho recorrente que o in tirnava a praticar a música,
42
arte das Musas, que insuflam ao homem a inspiração divina • O
mito de Er, que encerra a República, mostra as almas escolhendo

38. P BovANct., Le cu/te des Muses chez les philosophes grecs, 1936; 3. ed ..
1993, 59.
39. Filho de Orfeu.
40. República, II, 364 b; 365 b.
41. Op. cit., 11-31.
42. Cf. Fedro, 245 a.

retrato de sócrates como xamã 1 9 7


sua encarnação. Só o filósofo sabe verdadeiramente o que faz,eé
isso que lhe permite orientar corretamente o destino de sua alma
Ora, nesse triste espetáculo das almas optando sem discernimento
por uma das condições que se lhe oferecem, Er conta que viu a
alma de Orfeu encarnando-se em um cisne43• Orfeu é o arquéti
podo inspirado que não sabe o que faz. Sócrates suplanta Orfeu.
pois une a consciência à inspiração.
Os mitos que põem em cena Orfeu e Dioniso são inadmissí•
veis, por seu caráter moralmente escandaloso: os cultos e as ini-
ciações, cujo efeito se exerce pretensamente, seja qual for apure-
za da alma, não passam de um engodo.
Ao lado dessas mentiras e ilusões, Sócrates constitui a verdade
daquilo de que o orfismo é a caricatura. Possui a arte da encantação
que atrai as almas ao bem, está em contato com o divino com o
qual muitas vezes sua alma vai encontrar-se durante os êxtases, eé
o iniciador verdadeiro que conduz as almas na ascensão que pode
levá• las à visão da verdade. À automatiddade de uma enganadora
visão mistérica, Sócrates opõe a verdade de uma subida longa e
difícil, que como resultado de anos de trabalho pode levar o disá·
pulo à visão do real, para além das aparências sensíveis.
Platão toma emprestados ao orfismo numerosos elementos,
que traçam o retrato de Sócrates como xamã, mas o orfismo ofi·
eia! é falso e enganador, e é Sócrates que realiza o programa órfico:
a purificação da alma e a ascensão para o divino.
Com Sócrates, a filosofia constrói-se em uma relação ambí-
gua com o religioso, que exclui para substituir-se a ele, o que apa·
rece já claramente em Aristófanes. Recusa as representações de·
senhadas pelos mitos, o que invalida as práticas cultuais, e apre·
senta-~ como o caminho verdadeiro cuja forma fora esboça~~ e
tranSVIada por esses mitos e essas práticas. A filosofia não reieita
em bloco O religioso, como um erro ou urna ilusão, mas se subs·
?tui ª ele assumindo seu projeto e suas formas, dessa vez in5títu·
idas em sua verdade.

43, República, X. 620 a. O cisne é um animal ligado a Orfeu.

98 1 o mestre paradoxal
Certos intérpretes partem do princípio de que os primeiros
diálogos de Platão estão mais próximos de Sócrates e, portanto,
veiculam uma imagem mais exata do que os diálogos mais meta-
físicos da maturidade. Daí deduzem que Platão progressivamen-
te teria feito de seu mestre o porta-voz de uma mística alheia ao
socratismo. Essa reconstituição não pode ser defendida porque,
como mostram a Apologia (que se concorda em datar do primeiro
período de Platão), e, de maneira ainda mais decisiva, a sátira de
Aristófanes, a relação de Sócrates com o sobrenatural é incontestá-
vel. Não se vê como um homem que vivia sua relação para com o
divino até nas banalidades do cotidiano teria podido não ser místi
co. A questão é saber em que isso pôde participar na elaboração
de seu pensamento.

retrato de Sócrates como xamã 1 99


e oítulo 2
A ASCENSÃO DA ALMA

Se a ascensão da alma não deriva do rito ou de um culto iniciático,


é preciso perguntar como se realiza. A iniciação a que Sócratc:.
tantas vezes alude é metáfora de quê?
O Sócrates de Platão apresenta essa subida da alma atrav~:,
de muitas alegorias, sendo a mais célebre de todas a da caverna.
que abre o sétimo livro da República. Homens acorrentados em
uma caverna, de costas para a entrada, só podem ver as sombras
que se desenham no fundo do antro que lhes serve de prisão.
Como nunca viram nada do mundo exterior a não ser essas som-
bras, imaginam que constituem a única realidade. Solta-se um
desses prisioneiros, faz-se que fique de pé e olhe para a luz.
Anquilosado e deslumbrado, começa por sofrer e nada distin
guir. Deve em seguida escalar a gruta para remontar em direção
ao dia, ascensão difícil e particularmente sofrida. E, uma vez saí
do e chegado à luz, não pode suportar-lhe o brilho. Deve então
começar por olhar as sombras, os reflexos, as claridades noturnas
antes de poder enfrentar a luz. Finalmente, chega a ver o sol e
c_ompreenderá que é ele que governa o mundo. Depois de ter
tido assim acesso à visão e à compreensão da realidade por uma
progressão longa e laboriosa, se voltar aos seus antigos compa-

1 101
nheíros para explicar-lhes, vai chocar-se com seus risos e logo
com seu ódio. Irão matá-lo, se puderem.
Símbolo da aventura socrática, a alegoria articula-se sobre a
oposição entre duas realidades. A das sombras, que constitui nossa
realidade ordinária, e uma outra realidade, incomparavelmente
superior, que permite compreender a primeira e apreender a or•
dem universal, mas à qual só se tem acesso ao preço de uma
longa ascensão. A alegoria insiste nas provas da subida e na im·
possibilidade de comunicar aos outros a realidade verdadeira que
se contemplou, pois só a contemplação dessa realidade revela
que a realidade ordinária não passa de sombra.
O conhecimento autêntico é portanto incomunicável; não
pode ser demonstrado porque só é dado na visão que supõe uma
longa preparação. Realiza-se unicamente em uma experiência
espiritual. Isso significa que a verdade não pode ser dita - não é
da ordem da palavra, pennanece definitivamente inexprimível
irredutível à linguagem1, e por conseguinte à demonstração.
A relação de Sócrates com a palavra é singular. Primeiro, se_a
verdade escapa necessariamente à palavra, esta pode ao contra·
rio desalojar o erro, de modo que a refutação tem um papel es·
sendal na argumentação. A primeira etapa da ascensão P~ ª
verdade consiste em desembaraçar-se de suas falsas concepçoes.
O mesmo esquema se reencontra freqüentemente nos diálogos
de Platão: afinnando sua ignorância, Sócrates pede a seu interlo·
cut~r para definir uma noção geral que parece evidente, mas q~e
rapidamente se parte em estilhaços. Posto em contradição consi·
go mesmo, aquele que acreditava saber - o que aliás todo mun·
do acre~ta saber - dá-se conta de que era só ilusão, de que seu
conhecimento não é fundado. Tem pois de buscar um outro, mas
dessa_ ~ez a palavra não pode conseguir, donde o fracasso final
dos diálogos aporéticos, isto é, que ficam sem resposta; mas ago·

, . 1· Daí _resulta que uma filosofia que adota por método e corno limiteª
analise ~a linguagem não escolhe o melhor ponto de vista para cornpreen·
der Platao.

102 1 o mestre paradoxal


ra podemos compreender o sentido desse fracasso. É um com.ili.!
à pesquisa, a um trabalho que agora se sabe que deve ser em-
preendido. A resposta só pode ser encontrada no termo de um
itinerário cuja partida foi dada pela palavra socrática.
Uma palavra se transmite. Uma visão só pode ser ,.;sta. A
palavra socrática deve finalmente levar a ver, não diz o que há
para ver, não substitui à visão sua descrição. Nenhuma descrição
pode nunca substituir a visão, se bem que uma filosofia dil vi5âo
termina necessariamente em um essencial indizível. Os verdadei-
ros filósofos, diz Sócrates na República2, são os que amam contem-
plar a verdade3• Para tomar um exemplo (de que Platão não teria
gostado, pois não tinha nossa concepção de arte) nenhuma des-
crição de um quadro poderá jamais suscitar em nós o que provo-
ca um simples olhar voltado para ele. Por sábia que seja, nenhu-
ma explicação pode ser da mesma ordem que o contato com a
obra.A verdade é um espetáculo. Buscador da verdade, o filósofo
sabe que mesmo se chegar a entrevê-la não a poderá dizer.
É nisso que é preciso encontrar a razão de sua recusa a es -
crever. Como a verdade só pode ser experimentada, a filosofia
não está nos livros, como diz explicitamente Platão:

Em todo caso, eis o que posso afirmar sobre os que escreveram ou


escreverão sobre o que faz objeto de minhas preocupações, por te-
rem sido instruídos por mim ou por outros, ou por a terem pessoal-
mente descoberto: é impossível na minha opinião, que tenham com·
preendido seja o que for da matéria. De minha parte, pelo menos,
não existe nem existirá nunca nenhuma obra sobre esses assuntos.
Não há meios, com efeito, de pô-los em fórmulas, como se faz para
as outras ciências, mas só quando durante muito tempo se freqüen-
tou esses problemas, quando se viveu com eles, é que a verdade
jorra subitamente na alma. Como a luz jorra da faísca e em seguida
cresce de si mesma. Sem dúvida, bem sei que se fosse preciso expor

2.V, 475 e.
3. O 'PLÀo8eáµwv é aquele que ama contemplar os espetáculos.

a ascensão da alma 1 103


por escrito ou de viva voz seria eu que o faria melhor: mas sei tam-
bém que se a exposição fosse defeituosa eu sofreria mais do que
ninguém. Se tivesse acreditado que fosse possível escrevê-las e e>.·
primi las para o povo de uma maneira satisfatória, que podena eu
realizar de mais belo na minha vida do que manifestar uma doutri-
na tão salutar aos homens e pôr em plena luz para todos a wrda-
deira natureza das coisas? Ora, não penso que argumentar em cima
disso, como se diz, seja um bem para os homens, a não ser para
uma elite à qual bastam algumas indicações para descobrir a ver·
dade [...] Há uma séria razão, com efeito, que se opõe a que se tente
l'SCrever algo em tais assuntos, uma razão Já muitas vezes alegada e
que creio dever repetir ainda4 •
Somente quando se ralaram penosamente uns contra os outros, no•
mcs, definições, percepções da vista e impressões dos sentidos, quando
se discutiu cm discussões benévolas em que a inveja não dita nem as
questões nem as respostas, é que sobre o objeto estudado vem bo-
lhar a luz da sabedoria e da intuição intelectual com toda a intensida·
de que podem suportar as forças humanas. É por isso que todo ho-
mem sério evitará tratar por escrito questões sérias e entregar assim
seus pensamentos à inveja e à falta de inteligência da multidãos.

Platão não parece ter vivido as experiências propriamente


extáticas de Sócrates, mas evoca aqui o jorrar de uma verdade
que só se pode produzir do interior, em urna intuição inexprimível,
depois de um longo e difícil trabalho no qual a dialética tem uma
grandeparte. Escrever, ou mesmo simplesmente tentar formular
0 que e captado nessas intuições, só poderia dar lugar a mal-
entendidos.
Que_estatuto conceder à iluminação platônica? O fenômen_o
que Platao descreve não é o êxtase socrático mas se as modali-
dades são diferentes, ambos terminam em ~sõe; de uma reali-
dade superior.

4. Carta VII, 341 b-342 a .


5. Ib1d., 344 bc.

104 1 o mestre paradoxal


O estatuto dessas visões choca-se naturalmente com ,;cu
caráter propriamente inconcebível. O platonismo escolar opÔ('
dois mundos, o sensível e o inteligível, o primeiro percebido pe-
los nossos sentidos, que é somente cópia do segundo, cm que
residem as Idéias que são os arquétipos das coisas sensíveis. Sendo
o inteligível o objeto da inteligência, Platão teria assim montado
uma bela imagem poética correspondente ao desnível ente a
unicidade do conceito e a multidão das realidades materiais. As
matemáticas, às quais Platão reserva um lugar privilegiado, são
construídas sobre esse princípio: enquanto, por exemplo, pode-
se desenhar e observar uma infinidade de redondos, só há um
círculo matemático que está todo e inteiro na definição, a saber, o
conjunto dos pontos eqüidistantes de um mesmo ponto chama-
do centro. Platão teria construído toda uma filosofia sobre o que
constitui o motor da ciência: encontrar leis que sob uma fonna
única permitem compreender a multiplicidade dos fenômenos.
Tudo isso repousa sobre uma série de deslizes e leva a uma
metafísica insustentável que fez desencadear os arrasadores do
"mundo por trás do mundo". Supor a existência de um mundo
das Idéias para fundar a ciência constitui efetivamente um pos-
tulado exorbitante que cria mais problemas do que resolve. E,
caso se impute isso à imaginação poética de Platão, é em todo
caso dar importância excessiva à metáfora. Além disso, a teoria
~esaba sobre ela mesma, já que, contradição radical, a Idéia é
impensável. Como o próprio Platão mostra no Parmênides, é im-
possível defender uma teoria das Idéias que seriam os modelos
das coisas sensíveis, o que Aristóteles vai retomar.
Antes de tudo, nunca se trata de um mundo das Idéias na
0
_bra de Platão, mas só de um "lugar das Idéias". A distinção é
significativa. O platonismo escolar, assumindo a teoria das Idéi-
as, vai pôr em paralelo dois mundos, um deles sendo modelo do
outro. Esse paralelismo não se encontra em Platão. Há, na verda-
de, urn lugar das Idéias porque o pensamento se esforça por se
e~ev~ até lá, mas é um lugar a que se tem acesso por uma ascen-
sao interior. Lugar topologicamente impensável contudo, por-

a ascensão da alma 1 105


que no c;umo da ascensão encontra-se o Bem, além do ser. Como
o que se encontra além do ser poderia ser um lugar a não ser de
maneira metafórica?
As ambigüidades de tradução agravam a confusão. O fato de
falar dl' idéias e de inteligível sugere uma interpretação intelec-
tual, a inteligência remontando do visível ao racional, que é seu
princípio. Essa leitura é impossível: se Platão, através da ascen
são da alma, descrevesse a constituição da ciência, não se com
pret'nderia por que o saber assim alcançado não seria trans-
mis5ívcl e ultrapassaria toda fonnulação.
O que se entende por inteligível é o noético, que não deriva
da inteligência analítica, mas do nous, que se "traduz" geralmen
te por "intelecto". O noús não é a faculdade de construir um racio
cínio (a dianoia); esse nome é intraduzível: designa algo de mais
global e intuitivo, que dirige e opera uma apreensão mental. f
também, para Platão, um parte divina da alma, que pode entre-
ver o divino.
Há pois que substituir a noção de mundo inteligível pela de
um espaço noético, que se abre em uma longa experiência interi-
or, desafia toda topologia e se alcança por uma apreensão intui-
tiva, indizível e sempre parcial.
Outra fonte de ambigüidades: a teoria das Idéias em que al-
guns vêem uma contribuição propriamente platônica que Sócrates
teria ignorado. Dupla ambigüidade, pois os dois termos põem
problema. Platão emprega como equivalentes eidos e idea, que
designam ambos a forma, o aspecto6, mas não idéia no sentido
de conceito abstrato. É a razão pela qual os intérpretes modem~
falam com mais freqüência de teoria das Formas que de teona
das Idéias. Substituição essencial: a forma se vê, enquanto uma
idéia se pensa. A teoria das Formas dá a uma visão interior o que
a teoria das Idéias corria o risco de atribuir ao raciocínio.
Em que sentido pode-se falar de teoria das Formas? Platão
teorizou tão pouco sobre a questão que a única teoria que apre-

6- Neles se reconhece a raiz que significa"ver".

106 1 o mestre paradoxal


senta, a das fonnas arquetípicas das realidades sensíveis, apenas
proferida, é refutada de maneira definitiva no Pannênides1. As for-
mas são o objeto da intuição noética, isto é, do que a alma desco-
bre em sua ascensão para a realidade verdadeira, objetos de con-
templação, mas não de elaboração conceituaJ (razão pela qual
não se pode escrever a filosofia). Metáfora de um indizível, a for-
ma quase não se presta à teoria.
O caráter visual da forma não significa porém que sua con-
templação seja estranha à inteligência.A visão das Formas é apre-
ensão do real. O papel privilegiado das matemáticas ilustra esse
estatuto complexo. Como Sócrates, Platão é geômetra, e atribui
grande importância à geometria na formação do filósofo; não que
se trate de adquirir uma cultura ou uma disciplina intelectual,
mas porque é um exercício que prepara efetivamente à visão das
formas. Com efeito, o trabalho do matemático é análogo ao do
filósofo: traça figuras sensíveis nas quais o ignorante só vê dese-
nhos; mas se tem a ciência e o conhecimento necessários poderá
de repente encontrar a solução do problema, em um instante de
iluminação em que as figuras se ordenam na evidência de sua
lógica. A intuição do geômetra consiste em remontar do desenho
percebido pelo olho, figura sensível que qualquer um pode ver, à
racionalidade matemática da figura, apreendida por uma parte
de nosso espírito que tem a faculdade de remontar do sensível
ao noético. A diferença do cálculo, a inteligibilidade geométrica
não se encontra no resultado de um procedimento que leva pro-
gressivamente a um resultado, mas se manifesta de uma só vez,
depois de um trabalho de pesquisa que pode ser muito longo,
sem que se possa saber antes se vai ter resultado. Não se resolve
um problema de geometria por dedução, por aplicação de fór-

7. Alguns julgaram ver nesse diálogo uma autocrítica de Platão, refu-


tand0 seu próprio pensamento em um período de crise. A hipótese é insus-
t~ntável. Platão não é Santo Agostinho, em seu tempo não se escreviam
livros para dizer que se tinha enganado. O impressionante caráter magistral
do Parmênides não parece compatível com essa suposta crise. ~nfim, nenhu-
ma outra passagem dos diálogos formula positivamente a teona das formas.

a ascensão da alma 1 107


mula~, como o fará a álgebra, mas por uma irredutível intuição
que lc\'a a uer a solução.
A" matemáticas constituem para Platão um trabalho espiri-
tual pelo qual nos exercitamos para a ascensão que conduz do
scnsÍ\d ao noético. A ascensão tem duas etapas. A primeira con-
sbtc cm traçar esse desenho do sensível que é a figura, que eli-
mina a materialidade das coisas. A segunda passa desse desenho
à viwo de seu sentido.
E.c;sc papel das matemáticas na formação socrático-platôni-
ca do filósofo traz um elemento essencial. Se a ascensão para as
Formas é comparável ao trabalho do matemático, é porque as
Formas, embora irredutíveis à análise racional que elas são, não
se opõem à racionalidade, mas a fundam.
A visão supera o simples trabalho do logos, que, por si só, é
incapaz de permitir o acesso à verdade, mas ela não vai nunca
contra ele. Distingue-se radicalmente da inspiração irracional do
poeta e do entusiasmo em geral. Platão condena a"possessão•
que se apodera do artista, porque ele não sabe mais o que faz, de
sorte que cai nos erros da mitologia (que efetivamente constituía
o essencial do material do artista antigo).
Para Platão, a verdade é de ordem divina, não se demonstra,
mas se tem acesso a ela, pardal e dificilmente, pela parte divina
no homem que é o noús; mas o divino coroa a razão em vez de
exclui -la. A transcendência do divino em relação ao logos deixa-
lhe duas funções: eliminar o erro e preparar a ascensão à verdade.

O Fedro descreve essa possessão como uma loucura:

A terceira forma de possessão e de loucura é a das Musas. Quando


se apodera de uma alma tenra e virgem, que desperta e mergulha
em um transe báquico, que se exprime sob a forma de odes e de
poesias de todo tipo, faz a educação da posteridade glorificand0
por milhares as proezas dos antigos. Mas o homem que, sem ter
sido possuído pelas Musas, chega às portas da poesia com a con·
vieção de que, no final das contas, a arte bastará para fazer dele urn

108 1 o mestre paradoxal


poeta, esse é um poeta fracassado; igualmente diante da poesia dos
que estão loucos, ofusca-se a poesia dos que estão em seu bom
senso8•

Sócrates atribui esse discurso ao poeta Estesícoro, o que lhe


permite utilizar amplamente a alegoria, mas lhe proíbe evidente -
mente retomar a condenação da poesia que aparece na Rep1íbli-
ca. Eis como esse mesmo discurso apresenta o filósofo:

É preciso que o homem chegue a captar o que se chama Forma,


indo de uma pluralidade de sensações para a unidade que se abra •
ça no termo de um raciocínio. Ora, trata-se aí de uma reminiscên-
cia das realidades outrora contempladas por nossa alma, quando
acompanhava o deus em seu périplo, quando olhava do alto o que,
presentemente, chamamos"ser" e quando levantava a cabeça para
contemplar o que é realmente. Também é certamente justo que só
tenha asas o pensamento do filósofo, pois as realidades a que não
deixa de apegar-se pela rememoração, na medida de suas forças,
são justamente as que, porque a elas se apega, fazem que um deus
seja um deus. E é claro que o homem que faz um uso correto desse
gênero de rememoração é o único que pode, porque está sempre
iniciado nos Mistérios perfeitos, tomar-se verdadeiramente perfei-
to. Mas como se desprendeu daquilo a que os homens se prendem,
e se liga ao que é divino, a multidão o toma à parte dizendo que
perdeu a cabeça, enquanto está possuído por um deus; mas disso a
multidão não se dá conta9 •

A teoria da reminiscência é urna maneira de explicar que a


alma possa atingir o saber. Saber é ver, mas é também saber que
se sabe. Como saber que se vê a realidade verdadeira senão por-
que se reconhece? Há que levar a sério a reminiscência ou é só

-
uma explicação alegórica? Aqui a reminiscência permite dizer que

8. Fedro, 245 a .
9. lbid., 245 bc.

a ascensao da alma 1 109


o filósofo tem acesso ao divino porque tem nele algo de divino,
que reconhece o que já viu, mas que também faz dele um estra-
nho entre os outros homens por sua aspiração a essas realidades
superiores que o leva a negligenciar o que os homens procuram.
Nessa passagem encontra-se toda a ambigüidade da ascensão.
Alma divina contemplando o divino, iniciação aos Mistérios per-
feitos'º, loucura, delírio, possessão- poderíamos estar no irracio-
nal mais desenfreado, mas o começo da passagem dá de tudo
isso um equivalente absolutamente racional: remontar da multi
plicidade sensível a uma apreensão pelo raciocínio, o que até hoie
é o objeto de toda pesquisa científica. A mística não seria então a
metáfora da ciência? Seria, mesmo assim, uma bem estranha
metáfora. A questão é saber se Platão imagina toda essa encena-
ção alegórica (caverna, vôo da alma, visão mistérica, reminiscên-
cia etc.) simplesmente para dar conta de uma exigência racional:
remontar da multiplicidade do mundo de nossa experiência sen-
sível, onde tudo é diferente, à unidade da lei científica. Rodeio
tão paradoxal quanto inútil: exprimir a ciência pelo irracional!
Foi uma solução um tanto apressada a contradição de imputar
todas essas metáforas a uma irresistível tentação artística de
Platão, poeta (ainda que aposentado) que depois de expulsar os
poetas de sua República não se teria impedido de filosofar co-
mo poeta. Há que levar Platão a sério. Todas essas imagens
adquirem sentido quando se considera que a verdade é objeto da
experiência11, da visão, do tato, o que implica que não seja objeto
de demonstração.
A remontada do múltiplo ao uno não é descoberta de uma
abstração, de uma fórmula teórica, mas contato com urna reali·
dade visível aos olhos da alma, pois se apreende a verdade em

1.º· :e>.éOli 'ae~ _TúeTàt TeÀOI͵evot TéÀeot (259 c):, ~ i0,go


assonanoas e de repetiçoes, perfeitamente insuportávelS para nos, e Ocil!ll
!
do refinamento retórico (como mostram os pastiches do Górgias). Estamos
em pleno arrebatamento oratório: Sócrates relata o que diz ser o diSCUfSOdo
poeta.
11· a. República, IX, 584 e: o não-filósofo não tem experiência da verdade

110 1 o mestre paradoxal


uma visão contemplativa. A realidade do uno e de sua visão im-
plica a da ascensão da alma. Assim, o racioónio é necessário mas
não suficiente, participa dessa iniciação aos Mistérios que serve
de alegoria à subida para a visão 12• Portanto, a mística não se re-
duz à ciência, como também a ciência não desaparece diante da
mística.
A concepção platônica do amor confirma essa interpretação.
O Sócrates de O Banquete afirma que Diotima assim lhe ensinou:

Eis pois o caminho certo que se deve seguir no domínio das coisas
do amor[....]: trata-se, tomando seu ponto de partida nas belezas
aqui da terra para ir em direção àquela outra beleza, de elevar-se
sempre, como por meio de degraus, passando de um só belo corpo
a dois, de dois belos corpos a todos os belos corpos, e dos belos
corpos às belas ocupações e das belas ocupações aos belos conhe-
cimentos que são certos, depois, dos belos conhecimentos que são
certos a esse conhecimento que constitui o termo, que não é outro
senão a ciência do belo mesmo, com o fim de conhecer finalmente
o que é a beleza em si.
Nesse ponto de vista, meu caro Sócrates, retomou a estrangelJ'a de
Mantinéia, é que se situa, mais do que em qualquer outro, o mo-
mento em que para o ser humano a vida vale a pena ser vivida,
porque contempla a beleza em si mesma. Se um dia chegares a
essa contemplação reconhecerás que essa beleza é sem compara
ção com o ouro, os adornos, os belos meninos e os belos adoles-
centes cuja vista te perturba no presente13. Sim, tu e muitos outros,
que desejaríeis contemplar sempre vossos bem-amados e sempre
desfrutar de sua presença, se a coisa fosse possível, vós estais pron-
tos a privar-vos de comer e de beber, contentando-vos com con-
templar vossos bem-amados e gozar de sua companhia. Por conta

. 12. No termo da iniciação era dada uma visão, a epoptia, cuja natureza
ignoramos, mas que Platão toma por metáfora do saber.
l3. Platão utiliza naturalmente a concepção do amor, no caso, pederasta,
q~7 ele Partilha com seu meio social, mas, como se viu, que não era a que
VIVJa realmente Sócrates.

a ascensé!ío da alma 1 111


disso, que sentimentos, em nossa opinião, poderia bem expenmen-
tar - continuou ela - um homem que chegasse a ver a beleza em
si mesma, simples, pura, sem mistura, alheia à infeção das carnes
humanas, das cores e de uma multidão de outras futilidades mortai.,
que chegasse a contemplar a beleza em si mesma, aquela que é cfü,.
na, na uniàdade de sua forma? Julgas tu- prosseguiu ela -que é
miserável a vida do homem que eleva seu olhos para o alto, que con-
templa ~sa beleza pelo meio que é preciso e que se une a ela?14

Deve-se então remontar de uma beleza singular a uma be-


leza geral, e dessa beleza física geral a uma beleza mais abstrata,
até que se chegue à beleza em si. Se for uma simples imagem
artística, é contraditória. Com efeito, temos ali um processo de
abstrações que se afasta por degraus da realidade concreta. De-
ver-se-ia então chegar a algo totalmente teórico; ora, trata-se ao
contrário de uma contemplação unitiva que ultrapassa toda,;.
são de beleza física. Estamos então nos antípodas do discurso
moral, tradicional para nós, que exorta a superar os amores ter-
restres para elevar-se ao amor divino; discurso que se choca com
um limite temível: o amor divino parece bem abstrato ao lado
dos apegos terrestres. A não ser para os místicos, para os quais
assume uma verdadeira realidade.
Diotima apresenta justamente essa ascensão como uma ex·
periência que não se tem completa segurança de atingir, pois su~
natureza está muito além de toda experiência terrestre, o que 50
pode remeter a uma experiência de tipo místico. A idéia de re~
montar de uma beleza determinada até a beleza em si é par 51
mesma alheia a toda verossimilhança: como pôr em prática tal
~sc~nsão? E, caso se trate de uma irijunção moral de investir seus
instintos em um objeto superior, a recompensa anunciada a~-
°:elha-s: um tanto demasiado a uma piedosa mas fictícia a51U·
aa. Supoe-se então que Platão propõe um método do qual se
espera tanto menos ter êxito que ninguém sabe o que é esse belo

14. Banquete, 211 b-212 a.

112 1 o mestre paradoxal


em si. Belo discurso de artista um pouco ingênuo. O método não
tem resultado; aliás, que resultado seria esse?
Mas, preferindo levar Platão a sério, tem-se de ler tudo isso
em outro sentido. Pela maneira como é apresentada, deve-se com-
preender que a experiência de contemplação unitiva é real. por
excepcional que seja. Ora, não se descreve tal experiência, quem
a conhece só pode exprimir sua absoluta transcendência em re-
lação ao real sensível, o que aqui indicam o conceito de beleza e
a superioridade dessa visão, comparada com toda a percepção
dos sentidos.
Se esse resultado pode ser alcançado, contrariamente ao que
implica a interpretação habitual, que pensar do método que, pa-
rece, só se deve acolher com o máximo ceticismo? Quase não se
vê como tal método leva a esse resultado. A explicação é, sem
dúvida, que constitui uma tentativa de racionalização de um fe-
nômeno que descreveríamos de outro modo. Notemos aliás que
Platão não a atribui a Sócrates, mas através dele à sacerdotisa
Diotima, o que poderia indicar uma parte de alegoria.
Os antigos apresentavam usualmente os processos psicoló-
gicos por meio de esquemas intelectualistas - é o que temos
aqui nessa remontada que aparece como um processo intelectu
ai. Se admitimos, ao contrário, que o amor humano produz uma
dinâmica que, modificando o estado de consciência, permite ter
acesso a outra percepção das coisas, virtude analógica bem co-
nhecida, a ascensão preconizada por Diotima aparece como a
descrição, em termos de uma psicologia que não é a nossa, de
um fenômeno ainda misterioso para nós. A transformação psico-
lógica induzida pelo estado amoroso abre a visão de novos espa-
ços. Não se fala da musa ou da inspiração do artista? A idéia é tão
banal que já não se presta atenção ao que implica: o amor como
fonte de inspiração, isto é, de transmissão de uma mensagem
divina.
Esse papel do amor encontra confirmação no comentário com
q~e Sócrates dá seqüência à exposição que acaba de fazer da li-
çao de Diotima:

a ascensêo da alma 1 113


Eis aí, FL>dro, e todos vós que me escutais, o que disse Diotima; e ela
me convenceu. Ecomo me convenceu, tento convencer também os
outros de que, para assegurar à natureza humana a posse de5se
bem, é difícil achar melhor ajuda que Eros. Declaro também que
todo Sl'r humano deve honrar a Eros. Eu mesmo honro o que pro•
\ ém de Eros e me dedico a isso mais do que a tudo: exorto também
os outro:, a fazerem o mesmo. Agora e sempre, elogio o poder de
Ero!>, sua valentia, quanto está em meu poder1 '.

O fato de Sócrates dirigir-se primeiro a Fedro lembra nos


que ele é o único interlocutor do diálogo que, no quadro do elo-
gio de Eros, desenvolve a ascensão da alma para o divino. O amor
é pois uma via privilegiada de acesso ao divino.
O Sócrates de Platão indica três meios de elevar-se para o
di\.ino: a dialética, as matemáticas e o amor. Esse paralelismo
extravagante mostra que o objeto da busca não é puramente in·
telectual. A dialética elimina os erros, abala as certezas, suscita a
vertigem da dúvida, mas não basta para conduzir a verdade. As
matemáticas são um excelente treinamento para elevar-se do sen·
sível ao intelígivel, do múltiplo ao Uno, e para fazer experiência
do olhar intuitivo no qual captamos a solução de um problema,
mas os seres matemáticos não são a realidade última. O amor
produz a dinâmica ascencional da alma. Se Platão representa
muitas vezes Sócrates perseguindo os jovens, que de fato ele não
deseja, se O Banquete e Fedro coincidem em dar uma importância
centra] a Eros, se é justamente o Fedro que descreve o vôo da alma
al~~a em direção ao divino, é porque o amor está no centro ~a
a_tiVldade de um Sócrates que se diz, ele mesmo, mestre na m~te~
na; amor que só tem sentido nessa busca da verdade se permiteª
consciência encontrar-se no estado necessário para levá-la a cabo.
Se temos um pouco de dificuldade em conceber essa atitude
que escapa geralmente aos intérpretes - quando, de fato, salta
aos olhos - é porque nossos próprios preconceitos a tomam

15. lbid., 212 a-b.

114 1 o mestre paradoxal


inconcebível. Com efeito, captar pela inteligência é para nós um
ato que diz respeito ao puro pensamento dedutivo, daí a perple-
xidade em que nos põe a indução. Platão, ao contrário, liga o
pensamento a todo o seu contexto emocional: o pensamento
nasce em um estado de consciência. Aliás, é a razão pela qual
manifesta a maior atenção a tudo o que se passa nesses estado
de consciência, chegando a banir os modos musicais que se su-
põe terem má influência. Para os antigos, o poder da música so-
bre as emoções modifica profundamente o estado do sujeito, e
portanto, age sobre o pensamento. Esse poder esquecido da
música só deixou dois vestígios cuja significação não compreen -
demos mais: a música militar e a religiosa. Platão sabia que pen-
samos com tudo o que somos, e Sócrates maneja como virtuose
o registro emocional para fazer jorrar o pensamento. Se oculta-
mos essa face essencial daquele em que se reconhece o pai da
filosofia, é porque o pensamento racional deve para nós, sobre o
modelo da ciência, poder ser formulado e transmitido de uma
maneira inteiramente independente do sujeito.

a ascensão da alma 1 115


capítulo 3
O ENSINAMENTO
DE SÓCRATES

Aconcepção socrática da verdade faz do ensinamento uma inicia-


ção. Já que a verdade é objeto de uma visão, e irredutível a toda
formulação, o mestre não poderia transmiti-la por ensinamento
ou por demonstração. Nisso está a oposição entre Sócrates e os
sofistas. Esses desafortunados sofistas, de que perdemos quase
tudo, passaram para a posteridade como os eternos vencidos,
derrotados por um Sócrates sempre triunfante. Nossa época, que
ama os vencidos e talvez ainda mais os que reduzem tudo à lin
guagem, está aplicada à sua reabilitação. Só que é preciso colocar
o problema corretamente.
Há sofistas? Por trás da aparência de falsa ingenuidade provo-
cadora, a questão é real. Os sofistas são esses adversários que
Sócrates brilhantemente refuta, Protágoras, Hípias, Górgias, Pródico
etc. Porém, as coisas não são simples assim. Primeiro, esses pensa-
dores são demasiado diferentes uns dos outros para constituírem
uma escola. Em seguida, o próprio Sócrates foi considerado um
sofista. Na realidade, o termo não é o nome próprio de uma corren-
te de pensamento, mas o nome comum de uma atividade profissi-
onal: designa professores, e a esse título convém a Sócrates. Mas
com a diferença de que Sócrates não tem saber a transmitir, porque
considera que o saber permanece estranho à linguagem.

1 117
As necessidades criadas tanto pelo sistema democrático como
por um recurso permanente aos tribunais tinham levado as pes-
soas mais abastadas a dar a seus filhos uma formação intelectual
centrada na palavra, para lhes abrir a carreira política mas tam-
bém, muito simplesmente, para perrnitir-lhes defender-se diante
da justiça. O enriquecimento rápido de Atenas tinha-lhe permi-
tido atrair os melhores professores. Esses sofistas não eram só
conferencistas brilhantes; tinham estabelecido um verdadeiro a-
do de estudos, que naturalmente faziam pagar bastante caro.
Assim traçaram o primeiro esboço de ensino superior.
Sabe-se que Sócrates se opunha a esses professores sobre a
questão de pagamento das aulas. Admirável Sócrates, certamen-
te, mas que se aplaude muito de longe, pois hoje ninguém pen·
saria em fazer os docentes trabalharem sem pagamento. Uma
certa dúvida aliás paira sobre a situação real de Sócrates: se ele se
consagrava inteiramente ao ensino, não tendo fortuna pessoal,
devia fazer-se sustentar por seus alunos. Viu-se o papel financei-
ro que o rico Críton pôde desempenhar na vida de Sócrates, mas
pode-se pensar que sua freqüentação da mais alta sociedade lhe
terá também trazido um apoio material. Em contrapartida, quando
Cármides lhe ofereceu escravos para lhe proporcionarem uma
renda, ele os recusou1. Vimos acima que a locação de escravos
para os canteiros ou para as minas perrnitia garantir-se uma re~-
da, como fazia Nícias. Sócrates não critica Nícias, mas não aceita
fazer o mesmo.
De qualquer maneira há uma diferença importante: os sofis·
tas ganhavam muito dinheiro, enquanto Sócrates, embora vivendo
provavelmente graças à ajuda de seus discípulos, contentava-se
com muito pouco. Mas em que fica o princípio?Trata-se somente
de cobrar honorários modestos?
Sem dúvida, o problema não está aí mas no fato de que 0
ensinamento não se liga ao comércio. S~ o professor faz pa~
seus cursos, emtão considera o ensinamento uma mercadona,

1. DiócENES LA~ao, II, 31.

118 1 o mestre paradoxal


que vende a quem quiser comprar. Sócrates, ao contrário, afinna
nada saber, e portanto não ter nenhum conhecimento para ,en-
der. O professor faz comércio de fórmulas, de argumentos e de
demonstrações. É preciso lembrar que Sócrates tinha em pouco
apreço a atividade comercial?
Vimos as metáforas que exprimem o acesso ao conhecimen-
to: iniciação, visão mistérica, vôo da alma, saída da caverna.
Sócrates é um homem muito concreto, que faz constantemente
referência a exemplos materiais, e apóia seu pensamento em
imagens. A imagem em que exprime sua concepção do ensina-
mento é conhecida pelo nome erudito de maiêutica. Contraria-
mente ao que podiam deixar supor a piedade escolar e a obscuri-
dade do termo, estamos aqui2 em um registo burlesco. Sócrates
apresenta-se como uma parteira, herdeiro nisso do ofício de sua
mãe, embora pedindo a Teeteto para não divulgar a coisa, porque
as pessoas já o acham bastante bizarro assim mesmo. É uma ver-
dadeira cena de comédia3, e imagina-se a perplexidade dos inter-
locutores de Sócrates, que deviam perder todo ponto de referên-
cia, não sabendo mais se falava sério ou não.
Depois de ter feito o jovem matemático Teeteto refletir sobre
a difícil questão dos irracionais, Sócrates faz que tome consciên-
cia de que ele tem sempre um desejo insatisfeito de captar a ciên
eia. Teeteto confessa sua perturbação diante desse objeto que es-
capa sem cessar. O diálogo atinge toda a sua intensidade depois
dos habituais desvios socráticos. Estamos no coração do assunto,
e a confissão de Teeteto soa como uma questão: não sabe, sente-
se em um impasse. O jogo dialético pode então cessar, Teeteto
baixa a máscara, reconhece com toda a sinceridade sua ignorân-
~a: não encontrará a resposta; só Sócrates pode dar-lhe a solu-
çao. O instante anuncia-se crucial, e Sócrates transforma-se em
Parteira. Pedindo silêncio a Teeteto, coloca-se também na ordem

2. Teeteto, 149 a ss.


• 3-Em sua tradução, publicada por Gamier-Flarnmarion, M. Narcy va-
1
onza Particularmente os efeitos cômicos.

o ensinamento de sàcrates 1 119


da confidência, isto é, na da seriedade e da verdade. O travesti-
mento é tanto mais paradoxal que a própria confidência se fonnula
através da alusão à bizarrice de Sócrates. Não se brinca mais, vou
dizer-te a verdade, mas não a repitas porque as pessoas me acham
bizarro: a verdade é que sou uma parteira! Em que acreditar nes-
se momento? O absurdo do disfarce não tende a estabelecer a
bizarrice de Sócrates? Desdobramento inesperado, ao mesmo
tempo sério e grotesco. O interlocutor não tem mais ponto de
referência, porque a cena se desenrola em muitos níveis ao mesmo
tempo, grave, burlesco, verdadeiro, alegórico. Notamos de passa-
gem • uma discreta alusão ao caráter "xamânico" de Sócrates:
as parteiras, de que ele agora faz parte, dominam a dor por meio
drogas e encantações.
Depois de uma longa exposição sobre o trabalho das partei-
ras, que engrandece sua função por um elogio tão sério quanto
extravagante, Sócrates termina por dar a chave desse disfarce: é
uma parteira que faz os homens darem à luz, mas não são os
corpos que faz parir, e sim as almas. É uma vertigem de inver-
sões, e contudo estamos no coração do problema da verdade.

O mais importante de nossa arte é que sabe sentir por todos 05


meios se a reflexão (dianoia) do jovem dá à luz uma imagem falsa.
ou um fruto viável e verdadeiro. Estou na mesma situação das par·
teiras; eu mesmo não dou nascimento ao saber (sophia). Muitas vezes
me acusaram - e com razão - de interrogar os outros sem fazer
eu mesmo conhecer a menor coisa, porque nada tenho de um sá·
bio. Eis a causa: Deus me força a fazer os outros darem à luz, mas
me proíbe de parir. Não sou absolutamente um sábio (sophos), não
há nenhuma descoberta que se me possa imputar como sendo nas·
cida de minha alma. Quanto aos que me freqüentam, se em urn
primeiro tempo alguns parecem mesmo totalmente ignorantes, to·
dos contudo, à medida que prolongam sua permanência junto a
mim, se é que Deus lhes permite, fazem progressos maravilhQSOS,

4. 149 cd.

120 1 o mestre paradoxal


tanto a seu próprio julgamento como no dos outros. Porém é claro
o fato de que nada aprenderam jamais comigo, mas tiraram de 51
mesmos as numerosas belas coisas que encontraram e deram à luz.
Desse parto, Deus e eu somos a causa. Eis o que o mostra com
evidênàa: aconteceu que muitos, ignorando isso, imputaram a si
mesmos seu êxito, sem levar em conta a mun; e seja de si mesmos,
ou persuadidos por outros, deixaram-me antes do que teriam devi-
do, mas depois de sua partida abortaram o resto do que ll'Vélvam,,
por causa de suas más companhias. E o que eles tinham dado à luz
por meus cuidados, perderam- no por tê-lo mal nutrido, fazendo
mais caso dos erros e das aparências do que do verdadeiro, acaba•
ram por fazer figura de ignorantes a seus próprios olhos e ao~ dos
outros. Um desses foi Aristides, filho de Lisímaco, e houve também
muitos outros. Cada vez que eles voltam, fazendo cenas incn\cis,
para me pedir freqüentar-me de novo, ora meu sinal demônico
(ro -yvyvóµevóv µo~ 6mµóv~ov) o proíbe, ora o permite, e ele!>
recomeçam a frutificar. Os que estão comigo sentem o me!>mO
que as mulheres que dão à luz: nas dores do parto, eles estão cheios
durante as noites e os dias, de dificuldades sem saída, e muito
mais que essas; mas é uma dor que minha arte sabe despertar e
aplacar. Isso se dá com eles. Há também outros, Teeteto, que me
parece não darem nenhum fruto. Reconhecendo que não têm
nenhuma necessidade de mim, eu me intrometo5, com toda a be·
nevolência e, graças a Deus, conjeturo de maneira totalmente cor-

, _s. Em toda essa passagem Sócrates joga com os duplos sentidos. N,ão
50 ha o parto, mas os termos que designam a freqüentação podem também
ter_~a significação sexual, o que confirma o papel de alcoviteiro que Sócrat~
atribui a si. O fato de que confia seus alunos a Pródico, o termo que tradUZI
por •acoplar", seguindo nisso Dies, significa "dar em casamento#. Sabe-se
qu~ Sócrates apresentava- se como"entremetedor", se não rufião. Estamos
pois em pleno registro burlesco. Sócrates diz as coisas mais sérias com os
sube~tendidos mais grosseiros, desnível que seria totalme~te (ncompree~vel
se,nao correspondesse a esse efeito de vertigem essencial a pedagog1~ ~-
cratica. _Quanto à autenticidade dessa linguagem de duplo ~~tid?, a p~opna
gr~na das alusões parece ser sua melhor garantia. É difíol unagJnar ,º
~ stocrata refinado que era Platão inventar esses duplos sentidos, que alias
nao perderam seu poder de provocação já quase cínico.

0 ensinamento de sôcrates 1 121


reta aos que é preciso unir para que daí tirem proveito. Eu acoplei
muitos a Pródico, e muitos também a outros homens de saber
divino\

Sócrates portanto não ensina, a criança nunca é dele, mas do


.,discípuloH. Em lugar de aludirem ao ensino, todos os tennos
pelos quais ele descreve sua relação com os discípulos são ao
contrário de um duplo sentido licencioso. Desnível tanto mais
surpreendente que essa relação inominada e inominável é su-
pcrvisada por Deus, que a quis, e que nela colabora e que se ma-
nifesta a Sócrates através do habitual fenômeno demônico que
lhe sucede, para filtrar a volta de seus discípulos que já não o são,
atestando o patrocínio divino de sua atividade. Duplo jogo que
desafia toda apreensão racional, o vínculo do mestre aos discípu-
los não provém do ensinamento, o mestre faz os discípulos faze-
rem incríveis progressos sem nada lhes ensinar; e essa relação,
que segue o sinal demônico, prova de uma supervisão divina,
diz-se através da imagem burlesca de um Sócrates parteira fa-
zendo os jovens dar à luz, que os subentendidos deixam supor
que foram engravidados pela freqüentação de seu mestre.
Multiplicidade de níveis, desnível máximo entre o dito, o suben-
tendido e o indizível, imagens múltiplas e grotescas, em um efei-
to de estupor e de vertigem, tudo gira em tomo de um inexpnmível
que em todo caso nada tem a ver com o ensinamento. Sócrates é
tudo o que se quer, uma parteira, uma alcoviteira - tudo menos
um professor que transmite conhecimentos. A máscara de par-
teira é sem dúvida autenticamente socrática, e não uma ficção
platônica, como o burlesco da passagem já nos fazia supor, por-
que se encontra o indicio de uma confirmação em Aristófanes:
quando Estrepsíades entra no" pensadeiro", um discípulo sequei-
xa de que sua entrada fez que abortasse uma idéia7 •
É pois em si que se descobre - no sentido próprio do termo
- 0 conhecimento, mas essa descoberta apresenta uma extrema

6. Teeteto, 150 b 151 b.


7. As nuvens, 135-137.

122 1 o mestre paradoxal


dificuldade, com tormentos comparáveis aos de uma parturien-
te. Para empregar uma imagem moderna livre de conotação cô-
mica, diríamos que Sócrates apresenta-se como o catalisador in-
dispensável à tomada de consciência do saber que está sepulta-
do em nós. Que saber? É evidentemente inapreensível porque
indizível, e não é idêntico para todos. Alguns estão mesmo total-
mente desprovidos dele. Vendo que neles nada levam, Sócrates
os encaminha aos sofistas, Pródico à frente. Às vezes se viu nisso
uma colaboração entre adversários que não seriam tão adversá-
rios assim. É na realidade urna crítica sutil mas radical: se trazeis
emvós alguma coisa de valor, graças a mim podereis fazer que
surja; e, se não tendes nada a dizer, podeis ir buscar os professo-
res, que vos transmitirão sua aparência de saber. O saber verda-
deiro é o que se descobre em si, o que se transmite é apenas
ilusão. O sofista é um mercador do não-ser, só vende uma ilusão
de saber, imitação humana de um saber que só atinge a verdade
se é divino, como o deixa entender o Sofista. O saber divino que
encerra nossa citação é evidentemente irônico. Sócrates joga ainda
comas palavras: o sofista é por definição um sophos e a sophia é,
para Sócrates, divina: de modo que só pode haver sophos divino.
Divindade do sofista que põe em má situação o diálogo que leva
oseu nome. Na mesma veia irônica, Sócrates qualifica um pouco
adiante8 Protágoras de sophos por excelência (cro<p<Í>TO'.To-;) no
momento mesmo em que ele lembra que Protágoras faz do ho-
mem a medida de todas as coisas e portanto o padrão de refe-
rência da ciência.
Não se pode ensinar porque o instrumento do ensino, a lin-
guagem, é inapto para veicular o ser. Saber é ter feito experiência
d~ realidade verdadeira. E uma experiência, por definição, se deve
Viver, e nisso transcende de maneira irredutível toda palavra que
poderia daí decorrer. Platão consagra a essa questão da lin_?'1a-
gem um diálogo socrático que parece desconcertante se nao se

-
apreende sua chave: o Crátilo. Sócrates nele invalida a linguagem

8. lbid., 160 d.

o ensinamento de sócrates 1 123


como meio de acesso à verdade. A linguagem (em uma perspec-
tiva que nos parece ingênua, mas que não o era no século V) é
foi ta de palavras, e as palavras representam as coisas. Portanto, as
palavras são somente imagens das coisas, de modo que a lingua-
gem funciona na imitação e não na realidade. Imitação que as
etimologias, para nós tão estranhas, que Sócrates desenvolve
nesse diálogo, mostram ter caráter aproximativo. Fundar o co-
nhecimento sobre a linguagem resulta finalmente em fundá-lo
em uma aproximação que só pode levar ao erro. A própria idéia
de linguagem justa é impossível. Ao contrário das matemáticas a
que acaba de aludir, a linguagem não é suscetível de rigor.

Tomemos por exemplo o número dez, ou qualquer outro que se


queira: uma supressão ou adição faz logo dele um outro número.
Ao contrário, para o que é da ordem qualitativa, e para a imagem
em geral, temo que a justeza seja outra coisa, e que seja preciso ate
evitar absolutamente exprimir em todos os detalhes o caráter do
objeto representado, se se quiser obter uma imagem. Veja se tenho
razão. Não haveria dois objetos, Crátilo e a imagem de Crátilo, se
um deus, não contente de reproduzir a cor e a forma, como os pin-
tores, figurasse além disso, tal como é, todo o interior de tua pes-
soa, reproduzisse exatamente os caracteres de moleza e de calor, e
pusesse ali o movimento, a alma e o pensamento, tais como são em
ti, em uma, todos os traços de tua pessoa; e colocasse junto de ti a
cópia fiel. Haveria então um Crátilo e uma imagem de Crátilo, ou
então dois Crátilos?9.

Só um deus poderia realizar uma cópia perfeita de Crátilo'.


ou de qualquer outro, mas essa imagem, por perfeita que fosse, e
necessariamente insuficiente porque, como toda representação,
só reproduzirá a aparência exterior do modelo. É preciso então
ª:r~scentar à imagem características internas, biológicas e psic~-
logicas do personagem de modo que haverá duas (ou mais) co-

9. Crátilo, 432 a-e.

124 1 o mestre paradoxal


pias diferentes do mesmo original, prova da inevitável inade-
quação de cada uma delas. A complexidade do ser, o fato de fun-
cionar em vários níveis impede, a não ser que seja mutilado, de
reduzi-lo a uma só ordem de representação. Por conseguinte, a
linguagem será sempre inadequada ao real. Há mais dimensÕt.--s
no real do que na imagem.
Essa irredutibilidade do real ao logos não é uma novidade, por-
que já tinha aparecido nas matemáticas com a incomensurabilidade
da diagonal do quadrado. O termo logos com efeito significa não
somente a linguagem mas também a racionalidade, o cálculo e
mais precisamente a proporção (o que o latim verterá por ratio).
Não há pois logos entre o lado e a diagonal do quadrado, o que
acarreta uma situação singular: uma realidade visível, uma relação
aparentemente muito simples, não pode se exprimir em nenhum
logos: a diagonal vê-se sem poder ser calculada. Sabe-se como o
problema mais geral dos irracionais pesou nas matemáticas.
Grandes mestres do logos, os sofistas pretendiam dar uma
formação global e fazer homens bem-sucedidos. Para Sócrates,
ao contrário, não se ensina a virtude:

Avirtude nem é um dom da natureza nem o efeito de um ensina•


mento; mas para os que a possuem vem por uma graça divina, sem
intervenção da inteligência (noüs) 10•

Os professores afirmam ser capazes de ensinar tudo, e assim


de fabricar o homem completo. Sócrates nada ensina, não forma
nem transforma ninguém. E contudo pode-se sair transformado
de sua freqüentação, e só ele é o mestre verdadeiro. Os outros
vendem fórmulas que não passam de simulacros da realidade, evo-
luem no não-ser. Sócrates é o catalisador pelo qual vai poder reve-
lar-se a marca divina escondida em nós. Não há meio de fazer
tomar alguém um outro seJ·á não o for em si mesmo,de sorte que
h'
ªalunos para os quais ,reconhece que nada pode fazer.
-- l0. Mênon, 99 e-1OO a.

0 ensinamento de socrates 1 125


Donde vem essa marca divina da qual Sócrates é o revelador?
Encontramos as imagens da visão, da caverna, do vôo da alma,
mas como essa busca é interior seu objeto está em nós mesmos.
Longe de ser esquecimento de si, o êxtase socrático é sua desco-
berta. O divino não é uma figura da alteridade, mas da identida-
de. A busca obedece a urna intimação:"Conhece-te a ti mesmo",
que, é claro, nada tem a ver com a psicologia, seja geral ou indivi·
dual. Conhecer-se, para Sócrates, é buscar o que se é realmente.
Somos nosso corpo? Mas como nesse caso teríamos uma
identidade, já que ele muda constantemente? A idéia mesma de
um Si exclui que a essência do ser humano resida na matéria que
o compõe. Além disso, como um ser vivo poderia definir-se por
algo não-vivo? Somos antes de tudo seres vivos, de modo que é
pela vida que é preciso definir-nos. Ora, a vida diz-se psyche, o
que faz que não seja outra coisa que a alma. A essência do viven-
te está por conseguinte em sua alma. E inversamente, como mos·
tra o Fédon, a identidade da alma e da vida permite estabelecer a
imortalidade da alma: a vida não pode morrer porque então não
seria mais ela mesma. Essa incompatibilidade da vida e da morte
vale também para a alma pelo fato de que não é outra coisa que a
vida, como indica sua identidade nominal.
Sócrates é pois um revelador graças ao qual o discípulo vai
empreender descobrir-se, isto é, ter acesso ao conhecimento de
sua alma, que conserva ocultas dentro dela algumas lembran·
ças do divino. É aqui que se articula a reminiscência: a alma, a
psyche, já habitou no além, mas voltando para a terra tudo es·
queceu. O conhecimento verdadeiro consiste por conseguinte
na tentativa de reencontrar essas lembranças perdidas. O pro·
blema teórico é de fato muito simples. Trata-se de encontrar
uma resposta à questão de saber como a alma pode ter acesso
ao divino. Não é que seja um fragmento do divino - apesar de
sua imortalidade - que conteria em si mesmo, por natureza, 0
saber divino; é que ela já o encontrou. Conhecer-se a si mesma
consiste assim em reencontrar fragmentos de visões perdidas
por ocasião da encarnação.

126 1 o mestre paradoxal


A reminiscência permite dar conta dos eixos esscndab que
já destacamos. Explica que a alma possa ter acesso a uma visão
do divino, e que o faça ao interrogar-se sobre si mesma. Nisso o
método socrático é extremamente paradoxal. Esse método, a
dialética ascensional, utiliza, por definição, a palavra, mas o que
se trata de atingir é um saber indizível; e essa busca no mais pro-
fundo de si requer a presença ativa de um outro, que no entanto
nada transmite. A palavra é o instrumento da descoberta do in-
dizível, o outro é necessário para a descoberta de si, e o divino
encontra-se no questionamento sobre esse Si.
Não é no silêncio nem na solidão que se empreende a subi-
da para o divino, que é de fato uma descida para dentro de Si,
que não pode ser feita sem um outro. No Primeiro Alcibíades, subs-
titui-se à metáfora de parteira (que rebatizamos de catalisador) a
metáfora do espelho, e se apreende, de entrada, que exprime a
mesma realidade:

Sócrates: - Pelos deuses, esse preceito tão justo de Delfos11 que há


pouco tínhamos lembrado, estamos seguros de tê-lo bem com-
preendido?
Alcibíades: - Que queres dizer, Sócrates?
S: - Vou explicar-te que significação, que conselho, eu suspeito
haver nesse preceito. Somente não encontro muitos exemplos
que sejam próprios a fazê-lo compreender; só há talvez a visão.
A:-Que entendes por isso?
S: - Reflitamos juntos. Suponhamos que esse preceito se dirija a
nosso olho como a um homem e lhe diga: "Olha-te a ti mesmon.
Como compreendeóamos esse aviso? Não pensaóamos que ele
convidava o olho a olhar um objeto no qual veria a si mesmo?
A: - Evidentemente.
S: - Ora, qual é o objeto tal em que, olhando-o, nos veóamos a

- nós mesmos ao mesmo tempo que o veóamos?

11. Trata-se decerto do"Conhece-te a ti mesmo", e Sócrates acaba de


fazer Alcibíades reconhecer que o Si é a alma.

o ensinamento de sóc:rates 1 127


A: - Um espelho, Sócrates, ou qualquer coisa do mesmo gênero.
S: - E no olho, pelo qual nos vemos, não há algo dessa espécie'
A: - Sim, certamente.
S - Não deixaste de notar, não é, que quando olhamos o olho de
alguém que está diante de nós nosso olho reflete-se no que se
chama pupila, como em um espelho: aquele que olha vê nele
sua face.
A: - Ê verdade o que dizes.
S: - Então, se o olho quer ver a si mesmo, deve olhar outro olho, e
nesse olho, a parte em que reside a excelência própria desse
órgão; essa faculdade é a visão.
A -~ Com efeito.
S - Ora bem, meu caro Alcibíades, a alma também, se quer CO·
nhecer a si mesma, deve olhar uma alma, e nessa alma, a parte
onde reside a excelência própria da alma O conhecimento
(sophia), isto é, outra coisa à qual ele é semelhante.
A - Assim acredito, Sócrates.
S - Ora, na alma podemos distinguir algo mais divino do que
essa parte em que residem o saber (eL6évm) e o pensamento
(cppovei.v)?
A: - Não, isso não se pode.
S: -Aquela parte parece provir do divino, e aquele que volta para
ela seu olhar e que aí reconhece todo o divino, um deus e um
pensamento (cppóvTJcn<;), esse tem chance de conhecer-se a si
mesmo.
A: - Evidentemente 12•

Espelho ou catalisador, o outro é indispensável ao conheci-


mento de um Si cuja essência é essa parte que deve ter algo ~e
divino, porque para os gregos a percepção e o conhecimento nao
podem se realizar a não ser que haja um elemento comum en~e
o que percebe e o que é percebido. Um ser totalmente heteroge-
neo ao divino não poderia percebê-lo. Esse elemento divino que

12. Pnmeiro Alcibíades, 132 c-133 e.

128 1 o mestre paradoxal


tem a capacidade de ver o divino é o nous. O tenno é intraduzível,
parque o nous faz parte da alma, mas não é a alma inteira. A
psyche é a parte da alma que vive e não morre nunca, o contrário
da materialidade corporal, mas está presente no corpo, assegu-
rando sua animação (no sentido em que a alma [animal é o que
anima o corpo, princípio de animação de todo ser vivo, inclusive
do animal, como o nome indica). Por sua vez, o nolis é a faculda-
de de apreender remontando do múltiplo ao Uno, de ver a
inteligibilidade através e além da multiplicidade sensível. O 1101is
é pois a intuição do sentido, e a busca do sentido leva àquele que
o dá - leva a Deus.
O jogo de espelhos abre um espaço vertiginoso no qual o
discípulo se perde, desorientado pelo questionamento e o desní-
vel socráticos, para encontrar no espelho do outro o saber esque-
cido que esperava nele e que Sócrates, que é só seu catalisador,
também não conhece, porque é próprio a cada um. Trata-se de
aceder a uma memória como identidade reconquistada através
do espelho socrático. Perder o que se pensava saber para desco-
brir o que se sabe. Reencontrar o ser que há no fundo de si.
Conhecer é, pois, tomar consciência, no espelho da alma, do
divino que está em si. O outro revela-me um eu que é um eu
verdadeiro, mais real do que aquele que eu julgava conhecer e
diante do qual se dissolve o eu da biografia e da psicologia. O
outro em questão é evidentemente Sócrates, ele mesmo encarre-
gado pelo divino de ser o seu revelador.
A missão socrática é por conseguinte incomparavelmente
superior ao ensinamento dos sofistas. Entretanto, catalisador do
divino, ele se apaga naturalmente e não poderia ter a pretensão
de transmitir um saber pessoal, que seria bem pálido ao lado do
conhecimento divino que ele faz ver. A ignorância que Sócrates
ostenta é ao mesmo tempo irônica e verdadeira. Verdadeira por-
que não é detentor de nenhum conhecimento que pudesse trans-
mitir. Irônica na medida em que lhe permite passar por cima do
pseudo-saber dos sofistas.

0 ensinamento de sócrates 1 129


Pode-se dar crédito a Platão, do qual somos aqui dependen-
tes, ou só se trata de uma bela ficção? O Sócrates de Platão con
corda com a realidade histórica. Com efeito é impressionante
constatar a extrema diversidade dos disápulos de Sócrates: políti-
cos que se deram mal, os ricos e os humildes que nada deixaram,
os Críton, Quérefon, Fédon, os matemáticos dialéticos de Méga-
ra, mas também Aristipo de Cirene e Antístenes, o pai do cinismo,
e, evidentemente e sobretudo, Xenofonte e Platão, eles mesmos
diferentes um do outro. Para ter tido discípulos tão dessemelhan
tes, é preciso que o ensinamento de Sócrates não tenha efetiva-
mente tido conteúdo dogmático. Dificilmente pode-se ver que
pontos poderiam ser comuns a todos esses alunos. Sócrates era
pois, na verdade, um mestre que não ensinava.

130 1 a mestre paradoxal


capítulo LI
OFILÓSOFO E OS SOFISTAS

Écom Sócrates que a filosofia encontra seu nome. Traduz-se ha-


bitualmente filosofia por"amor à sabedoria", o que dá lugar à
dupla escolar ritual sobre a diferença entre sabedoria e filosofia.
Tudo isso parte de um erro de tradução. Sophia não significa "sa-
bedoria", como também sophos não quer dizer"sábio" 1. Não há
palavra grega para designar o sábio porque a Grécia ignora sua
2
figura. A Grécia do século V conhece o xamã, mas não o sábio •
Dois termos são traduzidos às vezes por "sabedoria": phronesis,
que remete a algo como a prudência, e sôphrôsyne, que designa a
moderação, a temperança. Trata-se pois da sabedoria prática, a
que correspondem os adjetivos phronimos e sôphrôn, sensato, re-
fletido, moderado. Nenhum substantivo, ao contrário, designa a
pessoa do sábio.
A sophia é a habilidade, o saber-fazer, o saber em sentido
geral, e o sophos é o homem hábil ou que sabe. A distinção entre
sop~os e sophistes (sofista) é pequena, o segundo te~o é uma

-
vanante do primeiro, e o sofista é muitas vezes designado por

1. CT. J.-J. DUHor, EpicMte et la sagesse stoicienne, Bayard, 1996: P· 44-47,


2.Acoleção de textos de G. CoLU La sapienzagreca, 1977, esta centrada
em tucto o que pode ter uma relaçã~ com o xamanismo, notadamente 0
orfismo.

1131
sophos. Sophos é um adjetivo que se emprega também como subs-
tantivo, e sopltistes, que é somente substantivo, designa não uma
qualidade que poderia ser partilhada por pessoas muito diversas,
mas uma categoria profissional: pessoas que têm o saber por ofí-
cio, os professores.
Visto do exterior Sócrates é pois um sofista, porque tem dis-
cípulos; mas ele mesmo não poderia evidentemente considerar-
se um. Não transmite nenhum conhecimento, de sorte que não é
um professor, um profissional do saber.
Sócrates não é um sophos, só Deus é sophos. Ora, o oráculo
de Delfos declarou que Sócrates era o homem mais sophos. Co-
nhecemos esse episódio pela Apologia e os intérpretes o conside-
ram autêntico. A iniciativa vinha de Querefon, talvez o mais afei-
çoado de seus discípulos3• Sócrates relembra as simpatias demo-
cráticas que valeram ao amigo o exílio durante a ditadura dos
Trinta. Foi ele que consultou o oráculo. A coisa é tecnicamente
possível porque se podia interrogar a Pitonisa pondo uma ques-
tão que pedia uma resposta por sim ou não. Supõe-se pois que
Querefon perguntou se havia alguém mais sábio do que Sócrates,
e a resposta foi negativa. No momento do processo Querefon já
tinha morrido, havia menos de quatro anos, mas Sócrates precisa
que seu irmão poderá testemunhar. A data da consulta é objeto
de discussão. Segundo alguns intérpretes, não podia ser anterior
423, porque Delfos era inacessível por causa da guerra. Essa ques-
tão supera a anedota ou a simples curiosidade histórica: com efei·
to, o oráculo é duplamente paradoxal. Primeiro, porque procla-
ma sophos alguém que afirma não ser. Depois, porque Sócrates 0
apresenta como o ponto de partida de sua busca: confundido
com essa resposta, põe-se a procurar quem podia ser mais sábi~
do que ele. Ora, duvida-se que se Querefon pôs a questão foi
porque Sócrates já era um mestre que ele mesmo, em todo caso,
julgava incomparável. O fato de que a coisa seja contemporânea

3. Amigo de infância de Sócrates, está perto dele em As nuvet:5 ,de


Aristófanes; no Cánnides, é ele que acolhe Sócrates em sua volta de PotideJa.

132 1 o mestre paradoxal


de As nuvens ou ligeiramente posterior é verossímil, mas por que
Sócrates começou sua busca tão tardiamente, quando já estava
rodeado de discípulos havia muitos anos?
AApologia conta o itinerário de Sócrates. O oráculo tomou -
operplexo, o que só é possível se ele já então afirmava sua igno-
rância. Essa perplexidade mostra que ele nunca se considerou
um sophos, de modo que sempre marcou suas distâncias dos so-
fistas. Dividido entre a fé que atribui ao oráculo e a incredulidade
que nele suscita tal afirmação, empreende verificar o julgamento
de Delfos, que lhe aparece como um enigma a decifrar. O deus
de Delfos transmitiu-lhe uma mensagem tão paradoxal que deve
conter um sentido secreto4, verdade divina que lhe concerne e
que deve decodificar. Vai então passar em revista todos os que
deviam ser mais sábios do que ele, que julga nada saber. Começa
oexame por um homem político5, que prefere não nomear. Ima-
gina-se que este ficou desconcertado pelas questões de Sócrates,
porque o efeito desse começo de inquérito é ter atraído ao filóso-
fo a inimizade não só do político, mas também de muitas teste-
munhas da cena. Saiu de lá com uma meia confirmação: acabava
de tratar com alguém duplamente ignorante, porque julgava sa-
ber quando não sabia nada. Sócrates, pois, é mais sábio do que
ele, não que possua um saber, mas porque ao menos sabe que
não sabe. Recomeça várias vezes a operação, sempre com o mes-
mo resultado. O meio sucesso do inquérito - nenhum político
chega a sustentar a discussão - cria dificuldades, devido à hos-
tilidade que atrai. Sente-se porém investido de uma missão divi-
na: o oráculo deu-lhe um enigma a resolver, ele deve achar que
mensagem o deus lhe enviou.

Dei-me conta, não sem tristeza nem temor, que estava fazendo ini·
migas, mas acreditava que estava obrigado a colocar acima de_tudo

--
ª tarefa em que o deus me tinha envolvido. Tinha portanto de ir em

4. Apologia, 21 b.
5. Ibid., 21 b.

0
filósofo e os sofistas 1 133
busca do sentido do oráculo, encontrar todos aqueles que preten-
dem saber alguma coisa6•

Nesse nível do inquérito faz uma constatação paradoxal: os


que se estimam mais são os mais carentes de saber.
Depois dos homens políticos, passa aos poetas, aos quais
pede para lhe explicar suas obras. Para sua grande surpresa, deve
constatar que são incapazes de fornecer urna explicação satisfa-
tória: não sabem mais sobre seus poemas do que qualquer pes·
soa. Os poetas tampouco possuem sophia, compõem por causa
de seu talento e da inspiração divina7. Sócrates não os recusa em
sua arte; ao contrário, reconhece todo o seu valor. O poeta escre·
ve sob o efeito de seu gênio, no duplo sentido do termo, não
utilizando uma ciência, de modo que não pode dar conta de sua
obra, que se faz por meio dele, mas da qual não é o verdadeiro
autor. O poeta é como o adivinho que transmite os oráculos: é o
veículo de urna palavra divina, mas não sabe o que diz8• Lembra·
mos que o oráculo apresentava-se muitas vezes como um enigma,
cujo sentido escapava, ao mesmo tempo, ao adivinho e ao desti·
natário, que tinha de decifrá-lo; o que Sócrates está fazendo aqui.
Sócrates constata pois, ainda nesse caso, que as personalida·
desconhecidas (o poeta, notadamente pelo teatro, é alguém emi-
nente) que interrogou não detêm essa sophia que busca.
Passa em seguida aos artesãos. Seria errôneo ver nisso uma
tentativa desesperada e extravagante, pois como vimos, sophia
designa o saber, a habilidade, o saber-fazer. Sócrates constata que
são superiores a ele9 . Em sua arte 1º, os artesãos têm uma compe-
tência de que ele não pode dispor. No entanto não encontrou
seus mestres. Pelo fato de sua sophia técnica, imaginam-se tam-

6. Ibid., 21 e.
7. É o objeto do pequeno diálogo platônico Ion.
8. Apologia, 22 e.
9. Ibid., 22 d.
lO. Não esqueçamos que em grego a mesma palavra, techne, designaª
arte, o artesanato e a técnica.

134 1 o mestre paradoxal


bém sophoi para as coisas maiores. Seu saber técnico produz as-
sim a ilusão de conferir um saber a respeito do essencial. Então,
dominam bem uma sophia, contudo não é a que Sócrates procu-
ra, mas faz obstáculo ao saber essencial porque dá a impressão
que se possui esse saber, quando isso não é verdade em nenhum
caso. Seu saber leva-os assim a uma ignorância mais grave que a
de Sócrates, porque é um erro relativamente mais importante.
Sócrates desse modo leva vantagem por defeito: decerto não é
um sophos, mas os outros o são ainda menos do que ele. Portan-
to, em nada foi abalado em sua certeza de nada saber, apesar do
oráculo, que agora pode decifrar:

Há muita probabilidade de que o verdadeiro sophos seja o deus, e


que por esse oráculo quis dizer-me o seguinte: a sophia que o ho-
mem possui apresenta pouco valor, e talvez mesmo, nenhum. E~
falou deste Sócrates que está aqui diante de vós, é provavelmente
porque, ao tomar-me como exemplo, utilizou meu nome como para
vos dizer: "Entre vós, humanos, mais sábio é quem, como fez
Sócrates, reconheceu que na verdade nada vale no plano da soph1a•.
Ora, indo de um lugar para outro, prossigo minha pesquisa, e para
compreender o que o deus queria dizer, interrogo os cidadãos e os
estrangeiros para saber quem poderia eu considerar como sophos. E ~
cada vez que me parece que não é o caso, dou mão forte ao deus,
mostrando que esse homem não é um sophos. E a ausência de lazer
que daí resulta explica que não me resta tempo para ocupar-me
seriamente dos negócios da cidade e dos meus; também é em ex-
11
trema pobreza que vivo, por;que estou a serviço do deus •

Sócrates considera-se investido pelo oráculo de uma missão


divina, à qual tudo o mais deve ser sacrificado. O oráculo está,
poi5, na origem de uma vocação que dá um sentido novo à ativi-
dade de Sócrates. Pergunta-se evidentemente como era o Sócrates

-
de antes, que Platão não conheceu, e que por isso nos escapa

11 -Apologia, 23 ac.

0 filósofo e os sofistas 1 135


definitivamente. Talvez a pergunta não seja tão boa. A atitude de
Sócrates nos dá duas informações importantes. Primeiro, ele re
cusa considerar-se um sophos, sem que tivesse tomado a resposta
délfica por uma confirmação, uma satisfação de amor-próprio,
ou um gracejo, e não por um enigma a resolver. Em seguida,
a percepção do oráculo só se explica por essa orientação mística
que nele encontramos, a partir de Platão, mas também de Aris-
tófanes, que é contemporâneo do acontecimento ou um pouco
posterior a ele.
Deve-se daí deduzir que nada teria finalmente mudado? O
ensinamento socrático já existia, e portanto seu corolário, a
maiêutica. De fato, Sócrates usa de astúcia com o oráculo, que no
sentido próprio o refutava ao mesmo tempo em que o elogiava,
produzindo uma insolúvel contradição: se o oráculo tem razão,
Sócrates está errado, pois ele pretende não ser sophos; ora, o orá-
culo dá razão a Sócrates designando-o como o mais sábio ... É
portanto um elogio que se anula, refutando aquele a que se diri-
ge. Sócrates deve assim enfrentar um problema lógico, e o faz
sem a mínima concessão a seu pensamento. Tocamos aqui um
aspecto essencial de sua personalidade: é místico, mas nada cede
no plano da razão. Crê na mensagem délfica, mas passa o resto
da vida a refutá-la para a verificar. Interpretar como um enigma é
decerto conforme à tradição, mas permite sobretudo buscar-lhe
um sentido aceitável. A vida de Sócrates é transtornada porque
nada muda: não renuncia a pensar. Missão, vocação, mas não
conversão. E paradoxalmente, buscando verificar a palavra do deus
- marca de fé que pode parecer-nos suspeita-, é primeiro seu
próprio pensamento que afuma, mas não há, do ponto de vist~
de Sócrates, nenhuma contradição. Com efeito, se o divino eSla
além da razão, não poderia opor-se a ela.
Sócrates prossegue então uma atividade de questionamento
filosófico que sua interpretação do oráculo transforma em mis-
são divina. Conseguiu devolver o elogio délfico e justificá-lo: corno
aquele que por uma interrogação constante obedece a uma or-
dem divina não seria o mais sábio dos homens?

136 1 o mestre paradoxal


O conhecimento verdadeiro só pertence ao divino, e o ho-
mem que dele mais se aproxima deve saber primeiro dessa ver-
dade. O primeiro grau do conhecimento consiste em saber que
escapa à ordem humana, mas Sócrates não se contenta com essa
constatação, que poderia levar ao ceticismo. Se não podemos al-
cançar o conhecimento verdadeiro, contentemo-nos com o que
está ao nosso alcance, sem buscar descobrir o resto. Compreende-
se por que a tentação positivista não atingiu Sócrates: sua experi •
ência mística mostrou-lhe que o divino não era inacessível.
Nenhum homem pode ser sophos, mas aquele em que reside
apaixão do conhecimento verdadeiro sabe que não é impossível
entrever fragmentos desse conhecimento. Quem se lança nesse
empreendimento nunca será um sophos, somente um pesquisa•
dor, um amoroso da sophia, um philosophos. Não se trata de opor
ciência e filosofia, como queria urna interpretação escolar ana·
crônica, mas de abrir ao homem urna janela para um saber que
só pertence a Deus.
O sophos profissional, o sofista, não pode, por conseguinte,
ser outra coisa que um impostor, sua sophia é uma ilusão. Além
de sua reputação de perdedores, os sofistas deixaram na história
uma palavra em que se gosta de resumir sua maneira: o sofisma.
Então não passavam de hábeis embusteiros, mas Sócrates soube
desmascará-los e a filosofia pôde partir dali sobre bases sadias.
Mais perspicazes, os pesquisadores contemporâneos interessa-
ram-se mais de perto pelo raciocínio socrático, e constataram que
nem sempre estava acima de qualquer suspeita. Na certa, os pro-
fessores cediam às vezes a jogos intelectuais em que test~vam 0
poder de sua argumentação, o que podia ser útil nessa SOCte~ade
de palavra pública, mas seria perfeitamente absurdo toma-los
globalmente como mestres desonestos que só pensavam em~-
nh~ dinheiro ensinando a enganar. Ninguém hoje se escandali-
zarta vendo os futuros advogados exercitar-se em montar d_e!e-
sas para toda espécie de causas; é para esse gênero de exeroaos
que os sofistas formavam seus alunos. Quanto a seus trabalhos
prop~arnente intelectuais, de que sabemos muito pouco, não
havena nenhuma perfídia em pesquisar sobre isso.

0 mosofo e os sofistas 1 137


A condenação moral dos sofistas que aparece na obra de
Platão não repousa na idéia de que eles seriam pensadores deso-
nestos intelectual ou profissionalmente, mas consiste em que
wndem um conhecimento que acreditam possuir, mas que só
pode ser enganoso, porque o único conhecimento real é de or-
dem divina. O sofista é um mercador de ilusões, se - e somente
se -- a crítica se coloca do ponto de vista de Sócrates ou de Platão.
Sócrates não considera todos os sofistas da mesma maneira.
Respeita o estilista em Górgias, mas de fato não estima o pensa-
dor. Ao contrário, leva muito a sério Protágoras, de quem não
podia evidentemente aceitar nem o agnosticismo nem o relati-
vismo. Para Protágoras, o conhecimento está centrado no homem,
enquanto para Sócrates está centrado no divino. Se o Sócrates de
Platão dá tanta importância a Protágoras, é por ser o adversário
radical.
Inversamente, o desafortunado Hípias é muito maltratado
no Hípias maior, em que Platão o faz ser ridicularizado por Sócra·
tes. No entanto, longe de ser um qualquer, Hípias era um sábio
importante, realmente enciclopédico, e além disso matemático.
A universalidade de seus conhecimentos encontra eco (ou ra-
zão) no fato de que era um especialista em mnemotécnica, essa
arte de trabalhar a memória que representará um grande papel
na cultura. Por que Platão o mostra diante de Sócrates como uma
verdadeira caricatura de imbecil erudito e seguro de si?
Sócrates pergunta-lhe o que é o belo, e ele se propõe ares-
ponder sem a menor dificuldade. A primeira resposta dá a medi-
da do personagem: o belo é uma moça bonita! 12 Então Sócrates 0
faz reconhecer que há também belas potrancas e belas marmitas.
Caído na armadilha, tenta nova definição: o belo é o ouro; que
Sócrates refuta com tanta facilidade corno a primeira. Ele arrisca
uma terceira: a conveniência, depois uma quarta, que não é outra
senão a concepção grega da vida feliz: riqueza, saúde, honras,
longa vida e posteridade. Lançará em seguida o útil e o vantajo-

12. Hfpias maior, 267 e.

138 1 o mestre paradoxal


so, ao qual acrescentará o prazer. Por que Hípias fracassa sem-
pre? Porque busca o belo na imanência. Primeiro na imanência
concreta do objeto belo, depois, num primeiro nível de abstra-
ção, na imanência dos valores: valor mercante do ouro, valor do
que os gregos apreciam, valores gerais e imediatos de utilidade t'
de prazer.
O espírito universal de Hípias nunca se aperta: depois de
cada refutação encontra uma nova matéria, mas a massa de seus
conhecimentos é só uma acumulação estéril. O belo que Sócrates
procura é o que funda a beleza de tudo o que é belo. Diante da
indefinida diversidade do que pode ser qualificado de belo, é pre-
ciso postular uma realidade única e transcendente da qual toda~
as belezas sejam o reflexo. Realidade única que confere a beleza
e assim funda o valor estético (que assim escapa ao relati\.ismo
da cultura e do gosto). Só uma unidade transcendente pode fun-
dar o valor e o sentido. Aqui não se trata para Sócrates de mos-
trar a necessidade da idéia do belo, degrau para essa teoria das
Idéias que ele nunca defendeu, mas de estabelecer que o con-
traste entre a unidade conceituai inatingível do belo e a multipli-
cidade dos objetos belos implica uma transcendência que funda
seu sentido e a infinidade das realizações.
Protágoras é um adversário sério porque construiu uma po
sição coerente em sua recusa da transcendência. Hípias não o
4
porque não tem mesmo consciência do problema. Contenta-se
com acumular saberes, sem dar-se conta de que lhes falta o es-
sencial, o que lhes daria um sentido. Seu saber não passa de uma
caricatura de saber, e a extensão não poderia evidentemente subs-
tituir-se à inteligibilidade real. Notar-se-á que Sócrates e Platão,
que fazem grande caso das matemáticas, não têm nenhuma pie-
dade pelo matemático Hípias. É que, na perspectiva platônica, as
matemáticas são um exercício espiritual para remontar ao Uno
para além do múltiplo, e totalmente sem valor se cultivadas por
elas mesmas (e bem pior se o são com um fim utilitário).
Essa subida para o essencial que funda e dá~ s~ntido, q~e
0 falsamente chamado sofista não pode (como Hípias) ou nao

0 filósofo e os sofistas 1 139


quer (como Protágoras) fazer, constitui a filosofia. Eis o retrato
que Sócrates estabelece do filósofo no Teeteto:

Falemo:. pois, parece, já que é essa tua opinião, daqueles que detêm
o:, pnmeiros lugares; com efeito, por que falar dos que perdem seu
tempo com a filosofia? Esses, desde sua juventude, não conhecem
o caminho da ágora, não sabem onde está o tribunal ou o Conse-
lho, ou qualquer outro lugar de reunião da cidade. As leis e os de-
cretos, seja em sua discussão ou no seu texto, não os vêem nem os
ouvem. As manobras das facções em vista das magistraturas, as reu-
niões, os jantares e os banquetes com tocadoras de aulos, mesmo
cm sonho não vêm a seu espírito a idéia de participar deles. Um
acontecimento feliz ou infeliz produziu-se na cidade, ou então al-
guém herdou uma tara de seus antepassados, pelos homens ou pelas
mulheres, isso lhe escapa ainda mais que o número de copos de
água que o mar contém, como se ctiz. E não sabe mesmo que não
sabe tudo isso. Com efeito, não é para se dar ares de importante
que se abstém de tudo isso, é que em realidade seu corpo somente
jaz na cidade em que ele habita, enquanto seu pensamento (dianoia)
tem tudo isso por pouca coisa ou mesmo por nada, não fazendo dis-
~ caso algum. fur toda parte leva ~u vôo, medindo "os abismos da
terra" como diz Píndaro, e sua superfície, praticando a astronomia
"acima do céu" e escrutando por toda parte a natureza inteira de
cada um dos seres, sem nunca abaixar-se para o que está próximou.

Reconhecemos aqui o Sócrates geômetra que nos tinha re~


velado Aristófanes. Geometria e astronomia são também aqw
associadas ao vôo da alma, aos exercícios espirituais do filósofo,
e ao estudo das formas puras destacadas da matéria a que se liga.
O vôo da alma significa arrancar-se da realidade sensível. Con·
tudo, é realmente seu retrato que Sócrates desenha? Ele conhece
bem o caminho da ágora, tentou fazer respeitar a legalidade quan·
do era prítane, interessa-se pela cidade, e Platão mostra-o ern

13. Teeteto, 173 e -174 a.

140 1 o mestre paradoxal


um banquete, mesmo se a tocadora de aulos foi despedida. Só-
crates, como vimos, está inteiramente imerso na Atenas de seu
século, e contudo afirma-se ignorante de tudo, o que constitui
aliás uma força de sua ironia. Diz-se alheio a todo jogo político,
no qual jamais entrou, e que faz cada vez mais a vida da cidade.
Colocando-se a boa distância, é bem Sócrates que aparece ne,se
retrato. Certamente sabe encontrar o caminho da ágora ou das
diversas instâncias políticas, mas recusa-se sempre a entrar no
iogo de uns e de outros, ignorando-o soberbamente. Mesmo
quando terá freqüentado os atores mais torcidos desse jogo políti-
co,Akibíades e Crítias, sem contar os de menor envergadura im-
plicados nos "processos", não esteve ligado a nenhuma dessas
facções, as hetairias, que manipulavam a vida pública ou prepara·
vam golpes de Estado, de sorte que pôde continuar amigo de uns
ede outros, mesmo se pertenciam a clãs opostos. Dá a impressão
de não ver o que se trama, e de existir realmente alhures.
Acontinuação do retrato que Sócrates traça do filósofo mos-
tra-o totalmente insensível ao que os homens dão geralmente
mais valor, o poder e a riqueza. Não faz diferença entre um rei e
um pastor, não tem nenhuma noção da importância da fortuna,
nem a menor idéia do que pode fundar a altivez dos aristocratas.
Éreconhecido o pouco caso que Sócrates fazia desses falsos va •
lores. Uma passagem relatada por Diógenes Laércio14 atesta seu
desdém pelas distinções de nascença: faziam-lhe notar que An·
tístenes tinha uma mãe trácia _ 0 que também alude a uma ori-
gem servil-, ele respondeu:"Tu crês que ele teria sido tão nob~e
se tivesse nascido de dois atenienses?" Resposta que varreª di-
ferença entre escravos e homens livres, mas também entre ate·
nienses e estrangeiros. Pode-se talvez objetar que Sócrates ~om-
bateu por Atenas viveu e afirmou uma lealdade absoluta a sua
cidade, mas isso ~ão era porque a considerasse sup~rior às ou-
~- Obedecia a um princípio moral: filho de uma c_idade que 0

--
tinha feito viver, não podia traí-la, e ia mesmo aceitarª morte

14- D1ócENF.s LA~ao, 11, 31.

0 filósofo e 05 sofistas 1 141


injusta que ela lhe infligiria. Pode-se então encontrar a figura de
SócrJtes por trás do retrato que dá do filósofo no Teeteto.
Ser filósofo é saber que nunca se será sophos, porque é o apa-
nágio do divino, mas na falta disso lançar-se com paixão na busca
de traços de ~phia, que podemos encontrar no vôo interior da alma.
A filosofia descobre-se no desejo desse impossível saber, que nos
revela nosso Eu perdido: nossa essência perturbada pelo esqueci-
mento e pela matéria. A matéria é pois o grande entrave para nossa
pesquisa. A modéstia do termo "filósofo" só ganha sentido na ex-
periência mística de Sócrates, descobrindo um saber que transcen-
de toda expressão e mesmo toda faculdade de perceber.
Os termos "filosofia" e "filósofo" nascem pois na realidade
totalmente singular de uma vivência socrática que se buscou ocultar
quando era muito explicitamente indicada por nossas testemunhas.
O que nos leva a pôr uma questão que corre o risco de pare-
cer extravagante, mas que o será ainda menos do que sua respos-
ta: Sócrates ganhou finalmente sua batalha contra os sofistas?
Sua vitória parecia selar o nascimento da filosofia e devemos cons-
tatar que lhe foi roubada, pois a filosofia apagou cuidadosamen-
te os traços reais de seu nascimento. Se nos reconhecemos bem
pouco no projeto socrático, os sofistas ao contrário nos são extre-
mamente próximos. Seu projeto de formar jovens transmitindo
um saber organizado em currículos ficou sendo o nosso, com mes-
tres detentores de um saber que fazem os alunos aprender, me-
diante um salário é claro.
Deve-se pois constatar que, paradoxalmente, foram os sofis-
tas que ganharam, quando não se cessa de celebrar a vitória de
Sócrates. A ele atribui-se uma vitória total, por meio de um tra-
vestimento que só não enganou os platônicos e os neo-platôni-
cos. Quanto aos sofistas, esses professores que se gabam de po-
der formar um homem completo, ficaram presos na imagem ca-
ricatural que deles transmite Platão, o qual, de seu ponto de vis-
ta, não podia evidentemente mostrá-los sob seu melhor aspecto.
A história os registrou mediante a derrota que Sócrates lhes infli-
giu, na encenação de Platão. E ninguém notou que finalmente
foram eles os vencedores.

142 1 o mestre paradoxal


terceira parte

A REVOLUÇÃO SOCRÁTICA
capítulo 1
NASCIMENTO DA TEOLOGIA

O paradoxo da ignorância socrática está em que o saber só pode


ser divino. Na qualidade de homem, Sócrates é necessariamente
ignorante, mas o fato de ser consciente disso coloca-o muito aci-
ma dos que estão no erro e acreditam saber. Porém, seu saber
não se limita a isso. Com efeito, se não possui conhecimento que
possa transmitir, tem nele a experiência interior que o transfor-
mou e em tomo da qual estruturou-se seu pensamento. Ainda
que não admita, ele tem uma experiência positiva, embora não
seja de fato uma doutrina que servisse de matéria para seu
ensinamento.
O Fédon traça sua busca intelectual. Tentou apaixonadamen- ..
te compreender a natureza, lançando-se na procura das causas. ~
Seu questionamento deixa-o sempre mais perplexo: os proble-
mas se encadeiam sem que apareça solução. Um dia uma leitura,
que ouve Anaxágoras fazer, permite-lhe entrever uma solução:
há um espírito, um noüs que pôs o universo em ordem e que é a
sua causa. É uma revelação:

Uma tal causa fez minha alegria: parece-me que havia vantagem,
em certo sentido, em fazer do noús uma causa universal; e eu pen-
sava: sendo assim, esse noús ordenador que justamente realiza a

1 145
ordem universal deve também dispor cada coisa em particular da
melhor maneira possível: como descobrir para cada uma a causa
St'gundo a qual nasce, perece ou existe? O que havia de descobrir
a seu respeito é o que é melhor para ela, seja existir seja sofrer ou
produzir qualquer ação que seja. Ora, partindo dessa idéia, eu di-
zia para mim mesmo, não há absolutamente nada que seja intere5•
sante para um homem ter em vista nessa pesquisa - tanto a re5-
peito dessa coisa como de outras - a não ser a perfeição e a exce•
lência. Mas é também necessário que tenha consciência do pior, já
que é objeto de um mesmo saber. Essas reflexões me cumulavam
de alegria: tinha a impressão de ter descoberto o homem capaz de
me ensinar a causa a respeito de todos os seres, segundo meu
próprio espírito (notís). Sim, Anaxágoras vai fazer- me compreen-
der, cm primeiro lugar, se a Terra é chata ou redonda e fazendo-
me compreendê-lo vai explicar-me mais pormenorizadamente por
que isso é necessário; porque se diz o que é melhor dirá também
que para a Terra essa forma é a melhor. Se me diz em seguida que
está no centro, em detalhe me explicará como é melhor que ela
esteja no centro1•

Essa esperança será logo decepcionada pela leitura de Ana-


xágoras. Sócrates não encontra nele essa explicação pelo espírito
que tinha entrevisto. Geralmente, o que se retém é essa decep·
ção e sua conseqüência: Sócrates se desviou das pesquisas sobre
a natureza. Desse modo, passa-se ao largo do essencial: essa de·
cepção é um momento capital da história do pensamento. Aidéia
de uma causa universal que seja da ordem do espírito é uma ver·
<ladeira revelação, e a alegria e o entusiasmo de Sócrates mos-
~ trama que ponto para ele era nova e perturbadora.A razão desse
choque está em que ele percebe de repente todas as conseqüên-
cias metafísicas dessa teoria. Se a ordem cósmica tem por causa
um espírito ordenador, esse é evidentemente de natureza divina,
e só pôde agir de maneira racional em vista do melhor. O mundo

1. Fédon, 97 e-e.

146 1 a revolução socrática


toma-se então inteligível, basta encontrar a razão do melhor.
Sócrates buscará em vão essa explicação nas obras de Ana.xágora
- compreende-se por quê-, mas essa expectativa é por si mes-
ma uma criação de importância decisiva: a do espaço metafísico.
Raramente se insiste nesse ponto. Sócrates agrada como dialético
decapante e anticonformista, mas prefere-se deslizar com o má-
ximo de discrição possível sobre seu finalismo. Nosso próprio
conformismo intelectual quer que Voltaire tenha definitivamen-
te tapado a boca de Leibniz, e que Kant tenha posto fim à:, pre-
tensões da metafísica. O finalismo foi suficientemente ridicula-
rizado para que se pense glorificar Sócrates por tê-lo inventado.
Pois, com efeito, é disso que se trata: a idéia leibniziana de que o
mundo é o melhor dos mundos possíveis encontra-se já imph-
àtamente nessas poucas linhas do Fédan. Platão em seguida de-
senvolverá essa concepção nas Leis, os estóicos a retomarão por
sua conta e Leibniz, que conhecia Platão2 e o estoicismo, verá
nisso um princípio metafísico necessário. Não importa o que se
pense do finalismo, e independentemente de seus desvios, é uma
corrente de grande importância no pensamento ocidental, e
Sócrates é seu pai.
Temos aqui uma soberba ilustração da descoberta segundo
Sócrates. Esperava um saber vindo de Anaxágoras, que nada
dá. Ao contrário, as poucas frases que ouviu ler suscitam ne
lhl
uma esperança da qual nasce a metafísica da natureza. É um
autêntica revelação, mas aquele de quem a esperava foi só a oca-
sião. O contraste entre o pouco que ouviu e a expectativa que
provoca mostra que as questões que coloca estavam de certo modo
prontas nele, mas que Anaxágoras lhe trouxe o elemento neces-
sário para poder tomar consciência disso.Anaxágoras terá sido o
catalisador da descoberta socrática.

. 2. Cita no Discurso de metafísica a célebre pas_sagem_ ~o Fé1º", em que


Sócrates refuta o materialismo dizendo que, se está na pnsao, nao e porq_ue
seu corpo está em tal posição, mas por escolhas que dão se~tido à su~ açao.
Passagem que no Fédon é a continuação imediata da evocaçao a Anaxagoras
de que acabamos de falar.

nascimento da teologia 1 147


Pode•se objetar que damos ao texto do Fédon um crédito que
arrisca ser um pouco excessivo. Platão não emprestou a Sócrates
seu próprio pensamento? E mesmo se não inventou a cena
Sócrates mesmo não é vítima de uma recomposição inconscien•
te de suas lembranças?
Sobre o primeiro ponto, o testemunho das Memoráveis de
Xenofonte mostra que o finalismo é efetivamente socrático. O
segundo merece um exame mais preciso. A idéia de Anaxágoras
de um nous dirigindo o universo era de natureza a provocar tal
choque e tal revelação?
Precisamos aqui situar-nos no contexto histórico de que As
nuvens dão uma visão geral. Aristófanes põe em cena um pastor
que atribui a chuva a Zeus e adere às tradições mitológicas. Di-
ante dele, Sócrates aparece como um físico que rejeita todas es-
sas tradições. Acima falamos dos processos religiosos do século
V, que vê surgir a dúvida, a impiedade e o ateísmo, mesmo se
esse ficou muito marginal. É com efeito o momento em que a
mitologia, através da qual o grego compreendia o mundo, entra
em conflito com as exigências de uma nova racionalidade que
tenta explicar a natureza por meio de modelos físicos. Um pen-
sador grego do séculoV não podia mais crer na mitologia. A crise
religiosa é portanto grave. Sobretudo porque a mitologia consti-
tuía um lado considerável da cultura, pois dela se nutriram as
grandes obras, a começar por Homero, donde a expulsão dos
poetas que Platão decide na República. A obsolescência brutal da
mitologia abria um vazio que a ciência podia tanto menos preen-
cher porque era muito balbuciante, mas no qual vão desenvol-
ver-se as filosofias que nascem justamente com Sócrates. Aliás,,ª
brutal mutação sociológica de Atenas, passando em algumas de-
cadas do estatuto de cidade rural à de capital do império, toma-
va-a particularmente receptiva a essa crise que ia assim conhecer
uma rápida difusão.
Paradoxalmente, essa crise religiosa é ao mesmo tempo~-
ve e invisível. Grave pelo desabamento das concepções tradicio-
nais do universo, e pelo vazio que assim deixa, mas invisível por-

148 1 a revolução socrática


que nada de exterior é tocado. Em nossas sociedades, que faZl'm
do religioso um assunto de escolha pessoal, toda crise é imedia-
tamente quantificável: baixa de participação nas cenmônia ,
mudança de comportamentos, desafeição em relação ao clero etc.
Nada de tudo isso poderia aparecer na Grécia. A religião é cívica.
Procissões, festas, sacrifícios são momentos coletivos que omcn-
tam a sociedade, e não implicam mais crença do que, para nós,
dar presentes no Natal ou apresentar votos de Ano Novo. Os
cultos podiam e iam ficar idênticos, mas a maneira como eram
percebidos foi progressivamente transtornada, pois sua base mi-
tológica deixou de ser considerada verdadeira.
Se esse transtorno é por essência invisível, por ser interior,
seus efeitos, ao contrário, são largamente observáveis, embora
tenham sido atribuídos a outras causas. Interpretam-se geralmen ·
te os movimentos religiosos que aparecem no século IV - e ~e
ampliam na época helenística -por meio do esquema românti-
co convencional: o fim da bela unidade que constituía a cidade
grega clássica deixava o indivíduo só e inquieto: descobrindo-se
de repente como tal, tinha necessidade de ser tranqüilizado e
integrado. Esse tema escolar tão batido impede que se veja uma
realidade contudo evidente: não se podia mais aderir a uma reli-
gião que agora ia fatalmente deslizar para o cultural, o cívico, o
identitário antes de passar ao folclórico. O descrédito da mitolo-
gia pode ser medido pelo sucesso que conheceu Evêmero, que
na passagem do século IV ao século m, em um romance hoje
perdido, apresentava um modo de explicação a que demos o seu
nome, evemerismo. Os deuses da mitologia são antigos reis que
a memória humana, à força de magnificá-los e com o recuo do
tempo, acabou por divinizar. A acolhida que o grande pú~lic~
deu a essa teoria prova que estava pronto para ela, e que via ah
um meio de interpretar suas tradições em que tinha deixado de
acreditar.
Esse vazio deixava lugar para necessidades novas, com_o
mostra a difusão das confrarias religiosas e dos cultos estrangei-
ros que se observa a partir do século IV e que vai tomar-se uma

nascimento da teologia 1 149


enorme vaga que atingirá também o mundo romano e só desa-
parecerá com o cristianismo. A isso deve-se acrescentar o papel
considerável que assumem a superstição', mas também a magia
e a feitiçaria. A perda de crédito do fundamento mitológico dos
cultos oficiais levava necessariamente a religiosidade a reinvestir-
se em práticas mais individuais. A rapidez desse reinvestimento
permite pensar que a crise foi breve. O período de dúvida e de
ceticismo estende-se pela segunda metade do século V e pode•
se supor que a reação da ordem moral que Atenas conhece de-
pois da volta da democracia em 403 contribuiu para encerrá-la,
sem poder, evidentemente, interromper seus efeitos nas menta·
!idades. Corresponde também ao grande período dos sofistas, que
certamente foram seus atores, mas não a criaram, porque devia
inevitavelmente detonar no momento em que a razão ia entrar
em conflito com a mitologia. É surpreendente ver um conflito
entre razão e religião tão breve e discreto, mesmo se é de tal im·
portância que vivemos ainda, sem saber, sob suas conseqüênà·
as. É que o religioso não é na Grécia um instrumento de poder
nas mãos de uma monarquia ou de uma casta, de modo que não
é objeto de uma defesa encarniçada. Apesar dos processos que
mostram a imbricação do político e do religioso, o que está em
jogo é demasiado fraco para que o debate não tenha podido ter
realmente lugar.
A tradição teve porém seus integristas, que quase não deixa·
ram vestígios; mas Platão faz uma figura desses dialogar com
Sócrates na véspera do processo: Eutífron, que se apresenta pre·
so em um insolúvel problema casuístico que seu apego cego aos
códigos impede de ver. Com efeito, processa seu próprio pai pelo
assassinato de um de seus trabalhadores, que, bêbado, estran~-
lou um criado: fez que o acorrentassem e prendessem e enVJo_u
alguém a Atenas para perguntar ao exegeta encarregado da apli·
cação das leis religiosas o que devia fazer. Entretanto, o trabalha·

3. O retrato do superstiáoso que traça Teofrasto nos Caracteres ilu5tta


esse aspecto da religiosidade no fim do século N.

150 1 a revolução socrtitlc:a


dor morre, esquecido em seu fosso. É pois um assassinato, pelo
qual Eutífron ataca seu pai em nome da piedade Ora, não com-
preende por que os atenienses não pareciam sensíveis a seus ar-
gumentos. Eles têm aparentemente dificuldade em admitir que
se possa assím culpar seu pai, o que é aberrante para Eutifron,
pois eles honram a Zeus, que acorrentou e prendeu seu pai Urano.
Platão escolheu o exemplo mais caricatural das aberrações mito16-
gicas, que podem justificar qualquer coisa porque são injustificá-
veis. A contrario, ele mostra que os mitos não podem fundar a
piedade, da qual Eutífron quer ser o arauto.
Ao integrista Eutífron, que toma a mitologia em primeiro
grau, opõe-se Sócrates, que a rejeita:

Não é essa a razão, Eutífron, pela qual sou acusado em um pron'S·


so? A saber, quando me contam tais histórias atribuídas aos deu-
ses, tenho grande dificuldade em suportá-las? Portanto, eis por que,
parece-me, pretendem que sou culpado. Mas se tu acreditas tam-
bém nessas histórias, tu que te conheces bem nesse gênero de ques-
tões, não nos resta, aparentemente, senão dar-lhes fé. E podería-
mos dizer, com efeito, que nós mesmos reconhecemos nada saber
sobre essas questões? Mas dize-me, em nome do deus da amizade,
crês realmente que as coisas assim sucederam?
- Sim, Sócrates, e há histórias ainda mais espantosas do que essas
e que são desconhecidas da maioria'.

. Sócrates dá a impressão de confiar na competência de seu


interlocutor, para em seguida mostrar-lhe que apesar de suas cer-
tezas religiosas é incapaz de dar conta do piedoso e do divino.A
mitologia é assim invalidada como via de acesso ao divino.
Outras tentativas foram feitas para salvar ou explicar os mi-
tos. Uma delas, que parece já anunciar o evemerismo, p_e~a-se
no Fedro, que se propõe datar de 415. Fedro, como se vtu, 1a ser
P:ocessado pelo escândalo da paródia dos Mistérios; pergunta a

-
Socrates se crê na verdade do mito de Boreu.

4. Eutífron, 6 a-b.

nascimento da teologia 1 1S1


- Ora bem, se duvidasse dele, como os sábios, eu não seria um
original. Isso me levaria a declarar doutamente que uma corrente
de vento boreal fez cair Oritia do alto dos rochedos vizinhos, en-
quanto ela brincava com Prometeu, e que são as circunstâncias
mesmas de sua morte que explicam a narrativa de seu rapto por
Boreu. De minha parte, Fedro, julgo que as explicações desse gêne-
ro têm seu charme, mas é preciso muito gênio, muito trabalho -e
nisso não se encontra a felicidade - mesmo que fosse por esta
razão: quando se começou, está-se obrigado a retificar a imagem
dos Hipocentauros, depois as das Quimeras. E eis-nos submergi-
dos por uma massa de criaturas desse gênero, Górgonas ou Pégasos,
por uma multidão de outros seres prodigiosos tanto como pela es-
tranheza de criaturas monstruosas. Se alguém é cético e quer redu-
zir cada um desses seres à verossimilhança, e isso usando de uma
não sei que ciência grosseira, a coisa exigiria muito tempo. Não
tenho absolutamente nenhum tempo a consagrar a esse exercício,
e essa é a razão. Ainda não sou capaz, como pede a inscrição de
Delfos, de me conhecer a mim mesmo; portanto, acho que seria
ridículo lançar-me, logo eu, a quem falta ainda esse conhecimento,
no exame do que me é estranho5•

Trata-se, pois, de tentar fazer razoável a mitologia. Um rapto


feito por Boreu será então uma imagem que representa a queda
de uma pessoa que o vento levou - tradução racionalista que
elimina o maravilhoso, mas pede uma multidão de interpret~-
ções em razão do pulular de todas essas lendas. Por isso sena
mister dedicar muito tempo e engenhosidade, e Sócrates não ~ê
absolutamente que interesse isso podia apresentar. A operaçao
na qual se ilustram os sábios (sophoí) - que são provavelmente
os sofistas - salva a mitologia esvaziando-a de sua substância.
Sócrates não lembra aqui seu próprio ceticismo, porque vai ju~-
tamente, no diálogo que se abre, jogar com os mitos para expn-
mir o vôo da alma para o divino. A utilização alegórica que faz do

5. Fedro, 229 c-230 a.

152 1 a revolução socrática


mito inverte a relação da mitologia: é uma espéde de armaz m
de acessórios, uma reserva de metáforas donde tira im ens
de que se veste seu pensamento, não sem transformj-Ja para a
necessidades de sua encenação. No modo da alegoria, a qu tão
da verdade nem mesmo se põe mais. Tudo o que conta para
Sócrates é essa pesquisa induzida pela inscrição délfica Vim
sua articulação: conhecimento de si, do si verdadeiro, portanto
de sua parte divina, e por meio disso sua ascensão para o d1,ino.
Éaqui que reside a busca do divino, longe de todo trabalho que
faria da mitologia outra coisa que a caixa de ferramentas do
pedagogo.
Platão mostra contudo Sócrates ensaiando-se ainda para um
outro uso da mitologia, a interpretação alegórica Estamo~ dessa
vez no Crátilo, diálogo que se julga ocorrer no mesmo momento
ou no mesmo dia que o Eutífron. Sócrates passa em re\ista mui-
tos nomes tirados da mitologia e dá-lhes uma etimologia mais
ou menos fantasista, tendendo a mostrar que esses nomes expri-
mem sua natureza real6• Entrega-se notadamente a uma exegese
do nome Zeus: as duas formas do acusativo de Zeus, lena e Dia.
vêm de que ele é aquele por causa do qual (di'hon) os seres vivem
(viver se diz zen7). Essa exegese ao menos terá uma certa fortuna,
pois os estóicos a retomarão por sua conta8; mas é esse o caso de
Sócrates? Depois dessa façanha exegética que começa com os
Atridas e termina pela genealogia de Zeus, Sócrates diz benefici-
ar-se de um conhecimento (sophia) que veio cair nele, não sabe
de onde. Dá efetivamente a Hermógenes, seu interlocutor, a im-
pressão de ser como um adivinho visitado por uma inspiração
divina. Ao que Sócrates encontra a explicação: acaba de conver-
sar com Eutífron, que lhe terá, sem nenhuma dúvida, transmiti-
do a inspiração... A pouca estima que dedica a esse integrista,
que trata com respeito irônico, dá a chave da passagem. Platão
- 6. Cráltlo, 394 e-396 d.
7-Apesar da semelhança fonética não há relação etimológica entre Zeus
e tfyi.
B. Cf. J.-J. D1.;uor, op. cit., p. 85.

nascimento da teologia 1 153


não põe seu mestre em contradição consigo mesmo, fazendo- 0
dizer no Fedro que não tem tempo a perder com a mitologia, que
aqui parece justificar. Pôr essa adivinhação exegética sob o pa.
trocínio de Eutífron9 remete à afirmação que lhe fazia de não con•
ceder fé à mitologia1°. Essa passagem do Crátilo é evidentemente
um caso particular da tese que ressalta do diálogo: a etimologia
não poderia fundar a linguagem em verdade, pode-se no máxi-
mo encontrar certas aproximações. Por conseguinte, também
aplicada à mitologia não é capaz de estabelecer sua verdade. Caso
o fizesse, Eutífron estaria justificado. Donde a alusão: Sócrates
acaba de tentar essa justificação acrescentando-lhe a inspiração
divina que completa o personagem, habitado por suas certezas:
mas é, como acontece muitas vezes com ele, uma demonstração
pelo absurdo. Explora-se um caminho para mostrar que é sem
saída. O piscar de olhos para Eutífron mostra que o resultado
está decidido previamente, porque se sabe que seu combate
integrista está perdido. Depois de longa e pouco conclusiva série
11
de tentativas etimológicas, Sócrates confessa seu ceticismo e
empreende refutar-se; o que resultará, como vimos acima, are-

9. Vimos na passagem supracitada Sócrates dizendo nada saber sobre


questões mitológicas em que Eutífron é um perito. Se portanto Sócrates se
encontra de repente dotado de um conhecimento que nunca teve, é que
deve estar inspirado por Eutífron... A imagem pouco elogiosa que Platão dá
do personagem mostra a ironia com que trata essa inspiração.
10. Pode-se objetar que essa argumentação repousa sobre a iden~d~de
dos dois personagens chamados Eutífron, o que alguns põem em duvida,
pretendendo atribuir uma data mais antiga à cena que apresenta o Cráhlo.
Na realidade, o próprio Platão datou a cena, fixando-lhe um ponto de refe·
rência histórico muito preciso: Sócrates faz ali três vezes alusão à mudan~a
do alfabeto (411 e, 416 b 426 c) que ocorreu em 403. O fato de oferecer m°!·
tas de suas fantasias etimológicas dizendo que é preciso para compreende-
las !eferir-se ao antigo alfabeto implica já um certo recuo em relação ao acon·
tecunento, o que dificilmente pode levar-nos para antes de 399. As cenas d_o
Crátilo e do Eutífron são, portanto, contemporâneas, de modo que as aproXI·
mações que Platão marca entre esses dois diálogos, a começar pelo persona·
gem de Eutífron, devem ser consideradas significativas.
11. Crátilo, 428 d.

1S4 1 a revolução socrática


cusar à linguagem o poder de estar no verdadeiro: refutação, como
é óbvio, que arrasta toda a parte mitológica da argumentação, o
que significa que os nomes que a tradição deu ao:. deuse não
poderiam constituir uma fonte real de conhecimento. A espan-
tosa sucessão de jogos com os nomes pelos quais Sócratl"S tenta
ilustrar a hipótese que vai acabar refutando terá uma posteridade
considerável entre os estóicos12, primeiro, depois e sobretudo no
judaísmo, através de Fílon de Alexandria. Ora, Sócrates a rejeita. ~
Para Platão não passam de elucubrações de iluminados do tipo
de Eutífron Enfim, não se deve esquecer as críticas da Rq1úbl1ca,
que resultam na expulsão dos poetas, culpados de atribuir ao di-
vino os costumes escandalosos da mitologia.
A posição de Sócrates é clara: não crê na mitologia, o que
não lhe impede de buscar aí metáforas quando precisa. Podia-c;l'
porém objetar que entre as cenas do Fédon e do Eutífron decorreu
cerca de meio século. No primeiro diálogo, Platão faz Sócratec:
contar o choque que lhe provocou a revelação do m•ú~ de
Anaxágoras quando ele devia ter uns 20 anos, por volta de 450
ou pouco depois; no segundo, é um Sócrates de 70 anos que ele
apresenta, diante de Eutífron, em 399. Quanto ao fundo não dew
haver diferença: no meio do século V os pensadores não podem
mais crer na mitologia, Sócrates corno os outros. A verdadeira
questão era então saber o que pôr em seu lugar. Vimos que al-
guns escolheram, como Protágoras, não ir além dessa questão e
optar pelo agnosticismo: porque é manifestamente falso o que
nos contaram sobre os deuses, e não temos outra fonte séria de
informação, o que poderíamos saber sobre isso? Outros- raros
-chegarão à rejeição total do divino, até ao ateísmo. Porém existia
uma terceira via, que já tinha sido tomada no século VI po~
Xenófanes, um jônio que se tinha refugiado na Sicília e que foi
muitas vezes comparado com os eleatas. Rejeitando o antro-

12. A razão dessa diferença é que os estóicos, ao contrário_de Sócrates,


con~~m no logos, que identificam mesmo com Deus, identificaçao cuias ~on-
sequencias religiosas e históricas são incalculáveis. Cf J.-J. DUHOT, op. at., P·
211-228.

nascimento da teologia 1 155


pomorfismo e o caráter moralmente escandaloso da mitologia,
concebia um deus único, que em nada fosse semelhante aos mor-
tais. Um Deus que todo inteiro vê, pensa (noez) e ouve13, que age
só pelo pensamento. Sócrates tinha sem dúvida lido Xenófanes,
mas as exigências que ele pusera tiveram um eco que nos parece
às vezes transparecer aqui e ali nos fragmentos demasiado lacu-
nares que temos da literatura do século V.
A posição de Anaxágoras, reduzida também ao estado de
"fragmentos", parece à primeira vista difícil de determinar. Con-
siderado por alguns um físico ímpio, seduziu Sócrates por sua
idéia de um espírito divino dirigindo o mundo, depois o decepci-
onou por não ter explorado essa idéia.A impiedade de Anaxágoras
consiste em que substitui a interpretação mitológica pela causa-
lidade física. Seu nous teria alguma relação com Xenófanes? Não
seria evidentemente impossível porque exprime a idéia de um
Deus único dirigindo o universo. Anaxágoras admite pois um
Deus assim, embora recorrendo à causalidade física para explicar
os fenômenos, o que para um espírito moderno provém de uma
sã metodologia. Ora, é precisamente esse ponto que é objeto da
crítica de Sócrates. Caso se admita a narrativa do Fédon por uma
expressão bastante fiel do que sentiu o jovem filósofo ao ouvir
uma leitura do Anaxágoras, o choque que experimentou só po-
derá ser compreendido se for seu primeiro encontro com o
monoteísmo, que vimos já ter sido expresso no século anterior.
Anaxágoras foi o primeiro filósofo que viveu em Atenas, de sorte
que não deve espantar que a idéia monoteísta seja uma revela-
ção para Sócrates: a cidade não tinha tradição - nem portanto
cultura - filosófica, e um jovem talhador de pedras, mesmo apai-
xonado pelo saber, não podia ter tido verdadeiro contato com 0
que o pensamento grego estava elaborando havia mais de um
século. Em todo caso, o fato de que tenha pela primeira vez ouvi-
do falar desse espírito divino nessa leitura de Anaxágoras implica
que não era discípulo de Arquelau, senão a coisa não teria sido

13. D.K. Les présocratiques, frag. 24

156 1 a revolução socrática


!10\idade para ele. Poderia ter-se tomado depois seu aluno, atra-
ído por ele à expectativa que tinha suscitado esse nous? É muito
pouco provável, porque o Fédon deixa claro que a decepção de
Sócrates vem da leitura de Anaxágoras. Pode-se supor que, de-
cepcionado por Anaxágoras, se tenha voltado para seu dlSCÍpulo,
que não tinha nada mais a lhe trazer, e não estava, portanto, em
condições de responder à sua expectativa? Platão permite-nos
assim confirmar o que tínhamos suposto acima, em vista doca-
ráter muito duvidoso e aparentemente fabricado das informa-
ções que fazem Sócrates aluno de Arquelau.
Platão dá à busca socrática muitos pontos de partida. Primei-
ro, a impossível lição de Parmênides, destinada a marcar uma
filiação filosófica; em seguida, a hipotética Diotima; depois, furtivo
e misterioso, o impossível xamã trácio; enfim, mais sério porém
demasiado tardio, o oráculo de Delfos. Múltiplos e, por CO!l5(.'gllinte,
contraditórios, esses pontos de partida têm uma significação sim-
bólica. Ao contrário, o choque do encontro com o noíis de Anaxá-
goras parece bem ser o ponto de partida verdadeiro. Épois a revela -
ção do monoteísmo que está na origem da busca socrática.
Contudo o testemunho do Fédon suscita algumas questões.
Esse finalismo que aí aparece no coração do procedimento c;o-
crático é, com efeito, antes discreto em Platão. Deve-se então
perguntar se Sócrates encontrou resposta para as interrogaç&.-s
que teria entrevisto graças a Anaxágoras. Contentando-se com
Platão, parece que abandonou sua pesquisa - o que con~orda
c~m duas informações importantes que a tradição nos deixou:
Socrates renunciou a trabalhar sobre a natureza, e, de toda ma-
neira, afirma nada saber. O fato dessa informação do Fédon des-
t~ do Sócrates habitualmente apresentado po~ Pla~ão dá ~édi-
to a sua autenticidade: não poderia ser uma fabncaçao deShnada
ªvalorizar o personagem fazendo-o retrospectivam~n_te entr:·
ver em um instante o que seria sua trajetória.Ao contrano, Platao
traça-lhe aqui um programa que não anuncia aquele que seus
outros diálogos põem em cena. Não é pois um pseudoprograma
reconstruído a partir da obra terminada.

nascimento da teologia 1 157


Deve-se supor que Sócrates teria renunciado a esse objetivo
irrealizável, reconhecendo assim implicitamente a impossibili-
dade dessa metafísica entrevista? A modéstia de suas afirmações
de ignorância corresponderia então à consciência do caráter
l'xorbitante da primeira pesquisa.
Na realidade, o finalismo de Sócrates não ficou em estado
de sonho. Se Platão é discreto a esse respeito, Xenofonte traz um
testemunho decisivo. Transmite, ou reconstitui, um diálogo com
um certo Aristodemo 14 que não participava de nenhuma cerimô
nia religiosa e não recorria à adivinhação, ostentando mesmo seu
ceticismo. Um desses espíritos fortes do período de crise, que
chegava até a ridicularizar os praticantes. Sócrates pergunta-lhe
se há homens que admira por seu saber (sophia) - Homero,
Sófocles, Policleto, Zêuxis...

Sócrates - Quais são os mais admiráveis, os que criam as imagens


ou os que criam seres vivos?
Aristodemos - Os que criam seres vivos, com a condição porém
de que não seja o acaso, mas um pensamento (gnome).

O cético atribui pois ao acaso a criação do mundo, o que


Sócrates acha que deve refutar:

S: - Entre as obras de que não se pode adivinhar o destino e as que


visam manifestamente a utilidade, quais são, a teu juízo, as que
são devidas ao acaso e as que são devidas a um pensamento?
A: - ~ justo atribuir a um pensamento as que têm um fim de uti-
lidade.
S. - Não te parece pois que foi com um fim de utilidade que aque-
le que na origem criou ('IToLWv) os homens deu a cada um seus
órgãos pelos quais percebem as coisas, olhos para ver os objetos
visíveis, orelhas para escutar os sons? Para que serviriam os odo-
res se não tivéssemos narina? Como perceberíamos o doce, 0

14. XENOFONTE, Memoráveis, I, 4.

158 1 a revolução socrática


amargo e tudo o que agrada o paladar se não théssemos na
boca uma língua feita para discerni-lo? Além disso, não ti! pare
ce que se pode ver a obra de urna providência no fato de que o
órgão da visão, que é frágil, seja munido de pálpebras como
portas que se abrem, quando se preci.,;a ver, e fecham.se duran
te o sono; que os cílios estão plantados nessas pálpebras como
um crivo, para que os ventos não possam fazer mal aos olhos;
que a parte acima dos olhos seja protegida por um anteparo de
sobrancelhas, para que o suor que escorre da fronte não os in-
comode; que a orelha receba sons de todo tipo e nunca se en-
cha; que em todos os seres vivos os dentes da frente sejam pró•
prios para cortar, e que os molares, que deles recebem o alimento,
sejam próprios para triturar; que a boca pela qual os scrl'S ,..ivos
absorvem os alimentos que desejam seja colocada perto dos olhos
e das narinas; e porque os dejetos inspiram nojo, os canais por
onde passam sejam desviados e separados para o mais longe pos·
sível dos órgãos dos sentidos? A ver essas disposições tão prcr.1•
dencialmente realizadas, podes tu deixar na incerteza a questão
de saber se são obras do acaso ou do pensamento?
A: - Não, por Zeus, respondeu, a considerá-los assim, parecem
ser absolutamente a obra de um demiurgo sábio (sophos) que
ama os seres vivos.
S: - E o desejo de reproduzir-se inscreve-se naturalmente nele5.
como o de nutrir seus filhos está em suas mães, e nos bctx-s 0
imenso desejo de viver e o imenso medo de morrer?
A: - Sem nenhuma dúvida, parece que isso foi arranjado por uma
vontade que planejou a existência dos seres vivos.

Temos pois aqui uma prova pela conformação e pelos inStín-


tos das criaturas. O pensamento organizador assim descoberto
ludo previu, de sorte que há uma providência, o que mostrª sua
bondade.
Sócrates passa em seguida a uma prova pela ordem do mundo
que utiliza um paralelo com a relação da alma e do corpo. No~o
corpo é feito dos mesmos elementos que a natureza extenor:

nascimento da teologia 1 1S9


igualmente, é preciso supor que nosso espírito corresponda a um
e~pírito exterior:

S: - E tu, crês que há em ti algo de sensato (phronimos), mas cm


nenhuma parte alhures pensas que nada há de sensato, e isso
então que sabes que só tens em teu corpo uma pequena parcela
da Terra imensa e só uma gota da imensa massa das águas. e
que só entra na composição de teu corpo uma pequena porção
de cada um desses elementos cuja grandeza certamente conhe•
ces? E esse espírito (nous), só, se crês que de algum modo ter
tido a sorte de captar, quando não está em nenhuma parte; es•
sas realidades gigantescas, infinitas em número, pensas que
devem esse belo ordenamento a uma loucura?
A: - Sim, por Zeus, porque não vejo os mestres que sejam como
são os artesãos para o que se faz aqui na Terra.
S: - ~ que mesmo tu, que não vês tua própria alma, que é a dona
de teu corpo, de sorte que, segundo o teu raciocínio, podes dizer
que nada fazes segundo um pensamento, mas tudo ao acaso.
Aristodemos não pode replicar, mas apresenta outra objeção: os
deuses não cuidam dos homens.
A: - Não, eu não desprezo o divino (daimonion), mas o considero
demasiado grande para ter necessidade de que eu me ocupe
dele.
S: - Quanto maior é aquele que julgou bom ocupar-se de ti, mais
deves honrá-lo.
A: - Saiba bem que se eu acreditasse que os deuses têm algum
cuidado pelos homens eu não os negligenciaria.
S: - Então tu pensas que os deuses não cuidam dos homens, eles
que primeiro fizeram o homem ereto, o único entre os seres vi·
vos, o que lhe permite ver mais longe, olhar mais facilmente os
objetos que estão acima dele, e evitar mais facilmente o perigo;
que lhe deram a vista, o ouvido, o gosto; que em seguida, 50
tendo dado aos outros seres terrestres pés que só lhes permitem
mudar de lugar, concederam além disso ao homem mãos que
executam a maior parte das coisas graças às quais somos maJS

160 1 a revolução socrática


felizes. Todos os seres vivos têm uma língua, mas só o homem
recebeu dos deuses uma língua que nos permite, tocando
diversas partes da boca, articular a voz e comunicar-nos uns com
os outros tudo o que queremos. Acrescenta a isso que eles ded·
diram atribuir aos outros seres vivos urna estação para os praze
res do amor, mas a nós deram sem interrupção até a velhice.

Nota-se um desnível entre a expressão e a demonstração.A


argumentação é monoteísta, a ordem do mundo remete evidente•
mente a um espírito único, pensamento ou noús, mas ao mesmo
tempo fala-se de deuses, e é mesmo o ponto de partida do diálo-
go: Aristodemo não pratica o culto aos deuses. E aqui Sócrates
vem efetivamente a multiplicá-los. Contudo, continua sua argu·
mentação no modo do monoteísmo, antes de voltar ao plural:

S.: - Não bastou certamente a Deus tomar cuidado do corpo, mas


o que é mais importante, pôs também no homem a melhor alma
(psyche). Primeiro, com efeito, que outro ser vivo tem uma alma
capaz de reconhecer a existência dos deuses, que ordenaram
esses imensos esplendores? Que outra espécie, a não ser o ho-
mem, que renda culto aos deuses? Que alma é mais capaz que a
humana de se premunir contra a fome e a sede, o frio e o calor,
de curar as doenças, de desenvolver sua força pelo exercício, de
trabalhar para adquirir a ciência, de guardar a lembrança de tudo
o que viu, ouviu, e aprendeu? Não é pois evidente para ti que
em comparação com os outros seres vivos, os homens "iwm
como deuses, porque são naturalmente superiores pelo corpo e
pela alma? Um ser que tivesse o corpo de um boi e o pensa-
mento de um homem não poderia executar o que quisesc;e; mas
se tivesse mãos sem ter a reflexão não estaria mais avançado
que isso. E tu, que recebeste duas vantagens tão preciosas, não
acreditas que os deuses se ocupem contigo? Que é preciso que
façam para que consideres que se ocupam de ti? .
A: - Que me enviem, como dizes que fazem para ti, mensagelfOs
para me aconselharem o que devo e o que não devo fazer.

nascimento da teologia 1 161


S: - Quando eles se dirigem aos atenienses que os interrogam
através da adivinhação, não crês que se dirigem a ti? E quando
advertem os gregos por prodígios, e quando advertem todos os
homens, fazem eles uma exceção para ti, ou és o único que eles
negligenciam? Pensas tu que esses deuses teriam feito nascer
nos homens a idéia de que são capazes de lhes fazer bem ou
mal, se não o fossem, e que os homens nunca teriam percebido
que foram enganados todo o tempo? Não vês que as institui-
ções humanas mais duráveis e mais sábias, cidades, povos, são
todos piedosos e que a cidade mais razoável é aquela em que as
pessoas se ocupam mais dos deuses? Aprende, meu caro, que
teu espírito (noüs) governa como quer teu corpo, no qual ele
está. Deve-se portanto pensar que a inteligência (phronesis) que
está no universo o dispõe segundo seu bel· prazer e excluir que,
se teu olho pode dirigir-se a muitos estádios, o olho de Deus
seja incapaz de ver tudo ao mesmo tempo15; tu não poderias
tampouco pensar que, se tua alma pode cuidar ao mesmo tem-
po do que se passa no Egito e na Sicília, a inteligência divina
não é capaz de se ocupar de tudo ao mesmo tempo.

E a continuação da argumentação põe de novo os deuses no


plural, apesar do evidente monoteísmo de suas posições. É im-
possível ver nisso um negligência ou a força do hábito de que
não se conseguiria desembaraçar. É claro que Sócrates não nota
nenhuma incompatibilidade entre esses pontos de vista, que nossa
história religiosa leva a considerar radicalmente opostos. Temos
aqui um monoteísmo filosófico rigoroso e um politeísmo prático,
aliança que foi efetivamente vivida por Sócrates, porque se sabe
que ele praticava os cultos da cidade. Evitaremos evidentemente
toda interpretação pseudo-histórica segundo a qual ele estaria
diviclido entre intuições inovadoras, das quais não tinha tira~o
ainda todas as conseqüências, e o sistema antigo, do qual nao
teria ainda se desprendido.

15. A afirmação do monoteísmo, portanto, é aqui radical

162 1 a revolução socratlca


Éem Platão que podemos encontrar a chave do enigma.Vol-
temos ao Cráhlo: Sócrates responde a Hermógencs que lhe per-
guntava em virtude de que regras foram estabelecidos os nom
dos deuses:

Se tivéssemos bom senso, a melhor maneira seria dizer que nada


sabemos a respeito dos deuses, não mais sobre eles do que sobre os
nomes que podem bem dar-se entre eles. (Pois é evidrnte que eles
se dão seus verdadeiros nomes). Uma segunda maneira de achar a
regra é, como costumamos fazer em nossas preces, atribuir-lhes os ~
nomes e a origem, sejam quais forem, que lhes agrade, na idéia de
que não sabemos outra coisa; belo costume, na minha opmião. lbr•
tanto, se queres, continuemos nosso exame, depois de ter, por as-
sim dizer, prevenido aos deuses que não serão, de modo algum, o
objeto de nosso exame -julgamos ser incapazes disso-, mas que
examinaremos que opinião poderiam ter os homens quando 1.'Sta-
beleceram seus nomes: eis o que não poderia contrariá-lo:.16•

Temos o elemento essencial que nos faltava: os nomes dos


deuses são de fato sem importância. Ora, esses nomes assumem
uma importância considerável segundo a tradição, pois é o que
os liga à mitologia, que confere a cada deus sua especificidade.
Não se pede a mesma coisa a Zeus, a Atena ou a Apolo, e não se
pede da mesma maneira e no mesmo lugar. Podemos supor que ,
Sócrates aqui oculte uma fórmula ritual propiciatória destinada a ~
aplacar um deus que poderia achar que foi mal invocado ou qu:
se poderia invocá-lo melhor. Destacar os deuses de seus nomes e
suprimir o que funda seu culto, pois cada templo, cada prece,
cada sacrifício se dirige a um deus particular: porém: mais p~-
fundamente, é superar sua multiplicidade, que so se base~a
no arbitrário dessas denominações enunciadas. Uma vez ~boh-
dos os nomes e as especificidades dos deuses, que resta a nao ser

-
O divino?

16. Crátilo, 400 d-401 a.

nascimento da teologia 1 163


Sócrates professa aqui um agnosticismo unicamente mito-
lógico. Dizer que nada sabemos sobre os deuses significa que
não podemos saber o que é verdadeiro ou falso na mitologia. Os
nomes dos deuses e seus cultos particulares para Sócrates são
somente uma comodidade necessária: por ali se passa para diri
gir ao divino as homenagens devidas. Os nomes dos deuses e,
portanto, a mitologia são obra dos homens e, como vimos, Só
cratcs não acredita que a inspiração dos poetas que a escreveram
seja a portadora da verdade. Sua expulsão da República não é
nem mais nem menos do que a recusa das escrituras sagradas
que constitui a poesia, a começar pela de Homero.
Podemos agora compreender por que os testemunhos sobre
a religião de Sócrates são contraditórios. De um lado apresen-
tam- no como minando as crenças tradicionais, e mesmo como
ateu, o que pesará fortemente no seu processo; de outro não so-
mente é visto praticando os cultos e honrando os deuses, mas
Xenofonte mostra-o tratando de "converter" Aristodemo. Não
se tem de escolher entre esses dois retratos de Sócrates, nem de
supor que são momentos diferentes de sua vida, ou então uma
incoerência devida ao peso dos hábitos. Não há contradição nem
piedosa vontade de lavar a imagem do mestre da acusação de
impiedade, e sim uma verdadeira revolução sobre a qual a con-
versa com Aristodemo não deixa dúvida alguma.
Depois do desmoronamento de uma mitologia injustificáve~
Sócrates empreende fundar o religioso sobre a teologia. De um
ponto de vista tradicionalista, sua posição é ímpia porque, como
os sofistas, se recusa a aderir à mitologia. Na realidade, é muito
mais singular: quer salvar o religioso, inclusive em suas formas,
repensando-o de maneira radicalmente diferente. Por que salvar
o religioso? Porque se deve homenagem ao Espírito divino aut~r
da criação. E como prestar-lhe essa homenagem senão atraves
dos símbolos religiosos, cujos erros, segundo a fórmula do Crátilo,
vai pedir-se ao divino mesmo para corrigir?
Em Sócrates não há nenhuma revelação religiosa, ner_n
tampouco inovação cultuai. Não é em nada um reformador reli-

164 1 a revolução socrática


gioso. Não só não faz nenhuma crítica às práticas religiosas de
seu tempo, mas as segue; e Xenofonte mostra-o tentando •con-
verter" um cético.
As singularidades cultuais contrastam com a unh,ersalidad
divina que Sócrates professa, mas isso não o impede de pa sar
por elas, com a condição evidentemente de expurgar tudo o que
está em contravenção com as leis divinas, como o mostra a Hípiac;,
segundo Xenofonte17: as leis que são comuns a todos os homens
não podem ser resultado de uma convenção, porque sociedad
distantes e que não falam a mesma língua não têm como reunir-
se para estabelecê-las, de modo que devem ser di\inas. A pri-
meira dessas leis divinas é a piedade para com os deuses, à qual
se acrescentam o respeito aos pais e a proibição do incesto. Se
então a piedade é uma lei divina, deve poder realizar-se em to-
das as culturas.
Essa idéia paradoxal de uma presença do universal na sin-
gularidade das culturas encontra-se na atitude de Sócrates dian-
te da cidade e em seu processo. A justiça é iníqua, pois o condena
pelo que ele não é. E mesmo quando, diante do tribunal, frisou a
provocação e justificou-se afinnando obedecer a uma missão di-
vina - opondo assim a justiça humana à vontade divina-, acei-
tou o veredicto em nome da legalidade formal.A decisão é injus-
ta, mas é justo dobrar-se ao que decretou um tribunal legitimo, e
nada fará para contestá-lo ou para lhe escapar. Paga assim com a
vida o fato de considerar o universal teórico por trás de uma sin-
gularidade, que sendo sua suposta encarnação o atraiçoa em seus
atos. Como reconhecerá a justiça por trás de um tribunal inju:to,
reconhece o exercício da piedade através de suas encamaçoes
cultuais, mesmo se rejeita seu fundamento. ,
Não há pois para Sócrates conflito nenhum entre monote1smo
epoliteísmo, o segundo é só uma maneira de falar, e antes d~ _tudo
de falar do divino. Na realidade ele dá, como mostra seu diálogo
com Aristodemo, uma base teórica monoteísta ao politeísmo gre-

-
go. Abre assim o espaço que o estoicismo vai ocupar, ao retomar 0
17-Memoráveis, IV, 4, 19 ss.

nascimento da teologia 1 165


método etimológico, com que vimos Sócrates brincar no Cráhlo,
dando•lhe dessa vez uma função alegórica que pennite reduzir
esse politeísmo, que para Sócrates é somente nominal, à expres-
são simbólica das múltiplas propriedades do divino18•
Sócrates refunda a religião sobre uma demonstração da exis-
t(•ncia de Deus. A coisa nos parece tão natural e, deve-se mesmo
dizer, desgastada pelo uso, que não vemos quanto é absoluta-
mente revolucionária. Novidade radical que aliás autentica - se
não a letra, pelo menos a argumentação - o que Xenofonte rela-
ta: o procedimento rompe de tal modo com os modos de pensar
do tempo, que só pode ter lugar, até em seus paradoxos internos,
na boca de Sócrates. As religiões tradicionais praticam sua reli-
gião sem se pôr a questão de princípio. A crise do século V criava
pois em Atenas uma situação totalmente nova: temos dificulda-
de em perceber sua novidade pela boa razão de que estamos ain-
da nela. Lendo as provas da existência de Deus, temos a impres-
são de algo já muito lido, o que nos mascara o fato de que a solu·
ção socrática abriu um campo que é ainda o nossü19: o mundo é o
produto seja do acaso, seja de uma vontade organizadora, que dá
conta dessa ordem.
Além das provas da existência de Deus, a argumentação con-
tém uma teologia que é preciso comparar com a vida dos deuses
no Olimpo para compreender quanto é revolucionária. Não só
há um Espírito ao qual a criação é imputável, o que poderia levar
a um simples deísmo intelectualmente satisfatório, mas esse Deus
vê tudo ao mesmo tempo e se preocupa com toda criatura, de
modo que se deve ter com ele uma relação verdadeira. A beleza e
a harmonia do universo provam, além disso, que ele não é só
poderoso, mas também bom, que organiza todas as coisas com
uma previdência que aqui se toma providência20•

18. Cf J.·J. DUHOT, op. cit., p. 83-88.


19. Sabe-se, por exemplo, que o Oriente viu desenvolverem-se ?utras
abordagens do religioso e do teológico. A via aberta por Sócrates nao era
certamente a única possível.
-~º: O tenno grego é o mesmo (pronoia), mas o uso que Sócrates fez
dele Jª e o nosso - cujo nascimento aqui assistimos.

166 1 a revoluçao socrática


O testemunho de Xenofonte mostra a resposta que Sócrat
deu à expectativa suscitada nele pelo noüs de Anaxágora .A m .
tafísica que esperava daquele filósofo, foi Sócrates que a cons-
truiu e legou a toda a filosofia clássica. O filósofo que fazia pro-
fissão de nada saber, e em quem geralmente só se reconhece o
dialético instigante, estranho a todo dogma, é de fato o fundador
da metafísica, muito mais ligada à religião do que se imagina,
como vamos ver.
Porém, a argumentação relatada por Xenofonte suscita uma
objeção. Interpreta-se geralmente a decepção que o Fédon evoca
como o que teria desviado Sócrates da física para levá-lo a só
indagar sobre o homem. Ora, isso parece em contradição com
nossas conclusões. Sócrates continuou a interessar-se pela fí ica,
ao contrário do que diz Aristóteles?
Já vimos que quando essa questão é posta há um grande
risco de deslizar para o anacronismo, dando à física o sentido
que tem para nós, quando a divisão das ciências era muito dife-
rente no pensamento grego. Assim, constatamos que a geome-
tria, de que faz parte a astronomia matemática, está ligada à~
matemáticas e não à física, o que dilui a objeção apresentada ao
Sócrates geômetra de Aristófanes e também de Platão. E em que
fica o diálogo com Aristodemo?
Fica no mesmo, porque o raciocínio ali não deriva mais da
física, que por sua vez se interessa pelo modo de funcionamento
dos fenômenos, tentando construir modelos de explicação a par-
tir das propriedades dos elementos ou de processos, como o turbi-
lhão. Sócrates efetivamente renunciou à física, da qual Anaxágoras
era um excelente representante, porque ela se contenta com di-
zer como funcionam os fenômenos naturais. Nisso diferente dos
físicos, Sócrates não se interessa pela natureza, em todo caso não
por ela mesma. Procura o sentido, e a natureza, tomada com um
recuo que o físico não tem, aparece corno um lug_ar ~e sentido,
e~~turado por uma finalidade que só se pode atnbW: a um Es-
pinto organizador. A objeção portanto não procede. S°<:rates re-
nunciou à física por ter compreendido que ela não p~ia f~me-
cer-lhe o que buscava. Se Anaxágoras o decepcionou nao foi por-

nascimento da teologia 1 167


que sua física era ruim, mas porque ele, Sócrates, não sabendo 0
que era essa ciência que descobria, tinha atribuído a ela respos-
tas que não lhe pertenciam e que ele mesmo encontrará, criando
a metafísica.
Essa metafisica traz uma teologia revolucionária, mesmo se
Sócrates não a cria em todas as suas peças. Vimos, com efeito,
que a idéia monoteísta aparecia já em Xenófanes, como também
se vê despontar nos poetas (pois nem sempre estão a serviço da
mitologia tradicional) um Deus bom a quem nada escapa. A con
tribuição socrática foi conceituar essas intuições para delas fazer
uma teologia. Deus é essencialmente bom, diz Sócrates na Repú-
blica21, de sorte que a mitologia mente quando se apóia em ou-
tras concepções.
Qual é a base dessa afirmação? Xenofonte sugere: como aque-
le que organizou um universo tão belo e bem organizado poderia
ser mau? Essa organização que até em seus ínfimos detalhes mani-
festa essa previdência divina, que aqui se toma providência, prova
que o organizador, Deus, não se contenta com supervisar as coisas
de longe mas também tem o cuidado pelas coisas pequenas.
Que lugar atribuir a esse tipo de raciocínio? A utilização da
analogia é perfeita, mas pouco concludente. Dizer que, se nosso
pensamento pode ocupar-se ao mesmo tempo de coisas diferen·
tes e afastadas, Deus pode ocupar-se de tudo ao mesmo tempo é
uma bela imagem, mas não uma prova. É por isso que Sócrates
termina essa longa demonstração com uma tonalidade totalmente
diferente. Propõe a Aristodemo fazer uma experiência. Parasa·
ber se as pessoas têm disposições amistosas, basta ter cuidado
delas para obrigá-las, de modo que só terão de manifest~r d:
volta sua benevolência, se é que a têm. Para saber se alguem e
sensato, basta lhe pedir conselho.

Faze o mesmo com os deuses, pondo à prova para ver se quere~


dar-te conselhos sobre o que está oculto para os homens; saberas

21. República, II, 379 b.

168 1 a revoluçao socrática


que o divino (to theion) é tal, em grandeza e qualidade, que pode
mesmo tempo tudo ver e tudo ouvir, e:.tar em toda II parte e 0
mesmo tempo ocupar-se de tudo22•

A experiência é exorbitante: para saber se o divino é bcnevo


lente e cuida de nós, basta dirigir-se a ele para pedir conselho A
coisa era porém totalmente natural para os gregos, pois dirigiam-
se correntemente aos oráculos. Quando não sabiam o que fazer
porque não podiam conhecer todos os parâmetros e todas as con-
seqüências de uma situação, recorriam à adivinhação, para \Cr
mais claro. O que "está oculto aos homens" alude a isso e não a
um saber esotérico: vi.mos que mesmo os êxtases de Sócratês não
lhe trouxeram uma doutrina precisa.
A confiança de Sócrates no sobrenatural apóia-se, sem dú-
vida alguma, na experiência que tem dele através dos êxtases e
do sinal demônico que lhe serve de parapeito no cotidiano.
Aristodemo, que pôde constatá-lo, faz-lhe alusão para dizer que
acreditaria nessa solicitude divina se recebesse os mesmos avisos
que Sócrates. Aristodemo ficou convencido? Ele aparece em O
Banquete de Platão como um discípulo apaixonado que chega a
imitar seu mestre indo de pé no chão; é ele, como se recorda, que
diz a seu anfitrião Agatão que nada mais tem a fazer senão deixar
Sócrates em paz. Desempenha aliás um papel essencial, porque
Platão o designa como a testemunha que teria transmitido ore-
lato do Banquete. É impossível determinar que parte de ficção entra
nessas encenações, e houve dúvida se Xenofonte foi mesmo tes
temunha do diálogo que relata. Deve-se na realidade considerar
esses diálogos um pouco como os discursos que os historiadores
gregos ou latinos atribuíam a seus personagens: o autor dá-lhe a
palavra apelando para sua imaginação, deslizando assim sub-
repticiamente para o romance histórico, sem que ninguém pense
em criticá-lo por não se limitar aos fatos e às fontes. A verossi-

- 22 ..Memoráveis, 1, 4, 18.

nascimento da teologia 1 169


milhança basta, a verdade deve residir no espírito, e não na letra.
O diálogo relatado por Xenofonte talvez seja falso segundo nos-
~os critérios, como o é O Banquete, mas a argumentação, a única
coisa que importa, é incontestavelmente socrática em razão da
singularidade da problemática. Esse diálogo aliás não está só, o
capítulo 3 das Memoráveis apresenta Sócrates mostrando, dessa
vez a um certo Eutidemo23, que a harmonia do universo prova a
solicitude que os deuses têm pelos homens. É graças a essa pro•
vidência divina que a Terra nos dá tudo de que precisamos, e que
a ordem dos movimentos celestes regula o tempo e as estações.
Aqui ainda Sócrates lembra que essa solicitude exprime-se tam-
bém nos oráculos, e a propósito Eutidemo faz notar que Sócrates
é especialmente bem tratado, porque os deuses o guiam sem que
tenha de interrogá-los24 • Sócrates lhe responde que para reco-
nhecer a verdade do que ele diz não é preciso esperar ver a fonna
dos deuses, mas que basta venerá-los e honrá-los em vista de
suas obras. Encontramos a superação da mitologia pela metafísica:
a piedade não depende da forma dos deuses, a que os gregos
estão habituados pelas estátuas, mas do movimento da alma que
conduz da contemplação do mundo à veneração de seu criador.
Parece que Sócrates faz alusão a sonhos e talvez a visões, para os
excluir. O divino escapa à representação, o que destoa radical·
mente de toda a tradição, que passava com toda naturalidade do
antropomorfismo mitológico ao da figuração na pedra. Pode-se
disso concluir que os êxtases de Sócrates não eram visões de tipo

23. Esse Eutidemo nada tem a ver com o sofista que deu o nome a um
diálogo de Platão.
24. A advertência demônica é sempre negativa em Platão: o sinal retém
Sócrates e o impede de fazer o que projetava. Em Xenofonte pode ter t~·
bém uma função positiva e dizer a Sócrates o que deve fazer. A quest~o n~o
P?rece de extrema importância. A tendência é dar mais crédito a Platao ~a~
so porque conheceu melhor seu mestre, mas também porque sua versao_e
mais estranha e, portanto, menos provável, e não se vê por que ele a tena
inventado. O essencial porém não está nisso, mas no fato de que essa reali·
dade demônica está bem atestada.

170 1 a revolução socratlca


religioso; não via os deuses que outrora esculpira, mas cm que
não acredita. A relação pessoal que Sócrates mantém com o divi-
no não passa por uma forma, donde o caráter indefinível d
algo demônico que o afasta de falsas rotas. O divino s6 é visÍ\'CI
em seus efeitos, "aquele que ordena e mantém o universo Z5 no
qual tudo é belo e bom [...]. Vê-se que ele realiza as maiores
coisas, mas permanece invisível ao ordená-lasH26•
Como nessas condições venerar esse divino que está além
das formas visíveis que os homens representam' Sócrate!i reme-
te Eutidemo a uma resposta oracular27: para agradar aos dl'USCS a
pítia de Delfos preconiza a obediência às leis da cidade. l!-so sig-
nifica que é preciso seguir os cultos estabelecidos por sua cidade,
e obedecer ao que foi decretado. Como já vimos, a univeí!ialída-
de de certas regras atesta a existência de leis divinas. Deve-se
pois agir moralmente e conformar-se aos cultos existente:. para,
além de sua singularidade, cumprir seus deveres para com um
divino que os transcende.
Isso coincide com o que sabemos de Sócrates e explica seu
comportamento, que de outro modo seria contraditório, porque
o vemos praticar uma religião em que não crê, pelo menos no
sentido estrito.
O retrato de Sócrates como pai da metafísica corre o risco de
suscitar uma objeção mais séria. Por que deve ser reconstituído a
partir de Xenofonte? Como explicar o silêncio de Platão?
Primeiro, essa metafísica encontra-se efetivamente em Platão,
donde irradiará para desenvolver-se no estoicismo, mas também
nas Leis de que Sócrates está ausente. Teria o discípulo censurado
0 mestre para apropriar-se de seu bem? Não, pois o mesmo en-

contra-se no Filebo, mas de maneira muito mais alusiva. Sócrates


diz a Protarco, seu interlocutor, que segundo os sábios (sopho,) 0

25. ~ a expressão mesma que os estóicos empregarão.


26. Memoráveis, IV, 3, 13-14.
27. lbid. 16-17.

nascimento da teologia 1 171


11otis é o rei do céu e da terra28 • Por trás desse plural anônimo
e\;dentemente se reconhece o ponto de partida anaxagoriano da
pesquisa socrática que o Fédon evoca. Ele vai pois ser objeto de
um exame que deveria revelar o resultado dessa pesquisa. Sócrates
pergunta a Protarco se o universo é devido ao acaso ou a um
rzolis, uma inteligência (phronesis). E Protarco exclama: Que per
gunta! Para saber se há um noús que põe o universo em ordem,
basta olhar o mundo, o sol, a lua, os astros e o movimento dos
corpos celestes.
Encontra-se assim a argumentação pela ordem do mundo,
mas, ao contrário de Xenofonte, que a punha na boca de Sócrates,
Platão ao que parece, para ficar conforme à imagem que apresenta
de seu mestre, faz que seu interlocutor descubra essa verdade.
Segue uma longa reflexão dialética no termo da qual apare-
ce que o universo é um corpo29• Levado de uma maneira inteira-
mente diferente é o paralelismo que já vimos em Xenofonte: o
corpo supõe uma alma, e o noús divino é para o universo o que
nossa alma é para nosso corpo. A coisa é mais evidente em gre-
go, pois a alma se diz psyche, que designa também a vida.
Sócrates esquece então sua ignorância e Platão mostra-o
prosseguindo a argumentação como metafísico. Há no universo
uma causa que o põe em ordem e regula a sucessão dos anos, das
estações e dos meses, que não poderia ser mais legítimo chamar
saber (sophia) e espírito (nous) 30• Ora, não pode haver nem saber
nem espírito sem alma (psyche). A conclusão de Sócrates parece
chegar de maneira um tanto abrupta:

- Tu dirás então que há na natureza de Zeus uma alma real e um


norls real em razão da potência da causa, e nos outros deuses
outras coisas belas, segundo o nome pelo qual cada um gosta
que se fale dele.

28. Filebo, 28 c.
29. Ibid., 29 e.
30. fbid., 30 e.

172 1 a revolução socrática


-Absolutamente.
- Eesse raciocínio, Protarco, não penses que o fizemos para n da,
pois vem em ajuda dos que afirmam há muito tempo qu um
,wus dirige eternamente o universo11 •
Que vem Zeus fazer aqui? Ponhamo-nos em lugar de um
grego: é simplesmente o modo mais rápido de dizer que
nozis é o deus supremo32, e não uma volta à mitologia. A prova
disso é que essa irrupção não estava absolutamente anunciada, e
só tem sentido por meio dessa interpretação. Imediatamente de-
pois encontra-se a idéia pela qual Sócrates integra sua concep-
ção à mitologia, relativizando os nomes divinos.
Enfim o raciocínio termina por um discreto apelo a Ana-
xágoras, que se encontra assim justificado, mas, como vimos, pela
via da metafísica, e não pela da física, a qual, como dirá Sócrates,
só trabalha sobre o que está em devir33. Anaxágoras constituía
uma importante etapa para Sócrates, mas não compreendeu a
importância de sua descoberta. Até então os fisiólogos explica-
vam a natureza a partir de um elemento como o fogo; Anaxágoras
compreende que a causa primeira não deve ser da mesma natu-
reza que a matéria, mas da ordem do espírito. Ora, ele não tirou
as conseqüências e continuou a explicar a natureza pela ação dos
elementos naturais, em lugar de buscar nela a ação do espírito.
Platão confirma, pois, o que vimos com Xenofonte, validan-
do assim nossas conclusões. O fato de que a mesma base de ar-
gumentação se encontre posta em cena de maneira tão diferente
exclui que Xenofonte tenha imitado Platão, de modo que temos
dois canais diferentes que só podem emanar da mesma fonte,
Sócrates. Qual dos dois canais é o mais fiel? Aqui provavelmente
Xenofonte, com seu Sócrates mais simples, mais prático, menos
dialético e mais dogmático.Vê-se que Platão idealizou seu mes-

31. Ibid., 30 d.
32. É assim que os estóicos darão ao agente universal o nome de Zeus,
quando a ele se dirigem de forma pessoal.
33. Ibid., 59 a.

nascimento da teologia 1 173


Ire, mas sobretudo aparece que por trás da virtualidade dialética
que lhe atribui pennanece profundamente fiel ao conteúdo de seu
ensinamento, o que é tanto mais importante porquanto o Filebo é
uma das últimas obras de Platão. Isso significa que, ao contrário
do que acreditam certos intérpretes, o "verdadeiro" Sócrates não
se encontra somente nos primeiros diálogos de Platão.
Sócrates tem uma importância absolutamente decisiva na
história do pensamento. Cria no saber o lugar da metafísica, e
esboça lhe já os principais traços que tomará até o maior dos
metafísicos, Leibniz. É pois um elemento essencial na configura-
ção de toda a filosofia clássica que acabamos de ver constituir-se.
Aliás, em sua refundação do religioso sobre o filosófico, é o pri-
meiro teólogo, fazendo de Deus o ponto focal da metafísica. Ope-
ração que terá uma influência considerável no cristianismo. Pai
da metafísica e da teologia, Sócrates supera amplamente o
questionador que se contentaria com despertar as consciências,
pois costuma-se freqüentemente representá-lo sob esses traços.

174 1 a revolução socrática


capítulo 2
A MORAL

A moral de Sócrates é conhecida através de dois paradoxos: nin-


guém faz o mal voluntariamente, e é melhor ser ofendido do que
ofender os outros. É uma posição tanto mais singular quanto rompe
nitidamente com o pensamento grego e não se sabe a que deve ser
ligada.Vimos que mesmo quando é radicalmente inovador Sócrates
apóia-se sempre no saber de seu tempo. Donde vem a moral?
Primeiro, é extremamente rigorosa, sem por isso consistir em
proibições particulares. É uma moral tradicional, que proscreve
naturalmente tudo que deriva do mal: o roubo, a mentira, a de-
sonestidade sob todas as suas formas, o adultério, mas também a
homossexualidade, a qual se sabe que era tolerada sob a forma
pederástica, que Sócrates rejeita. Contudo, nunca é visto escanda-
lizado nem perseguindo com sua indignação os que transgridem
mesmo os princípios mais indiscutíveis. É assim que suas fre-
qüentações são as mais variadas, e terminarão por ser das mais
perigosas. Xenofonte mostra-o tentando levar alguém a melhores
sentimentos, mas não condena a ninguém e permanece sempre
acessível. Os Memoráveis1 relatam como, com alguns discípulos,

-
vai dialogar com uma cortesã, a quem, longe de pregar a moral,

1.m, 11

117S
finge dar conselhos para que possa exercer melhor sua sedução.
Inverte assim a situação, e faz-lhe sentir que ele possui algo de
muito mais precioso e mais desejável. A exigência mais elevada
contrasta com essa abertura às pessoas, que parece não ser em
nada afetada por seu comportamento.Apesar do rigor que o carac-
teriza, Sócrates não prega a moral.
No entanto, sua posição é radical. Estranho às "morais mé-
dias", que reconhecem a cada um a necessidade de possuir um
mínimo de bens, e o direito, se não o dever, de defender seus
interesses legítimos, Sócrates diz que em nenhum caso se deve
fazer o mal, mesmo aos inimigos2• É uma atitude absolutamente
revolucionária. Era evidente para todo o mundo que se devia fa-
zer bem aos amigos e mal aos inimigos. Contra essa evidência,
que será ainda a de Aristóteles, é para Sócrates ilegítimo respon-
der à injustiça pela injustiça3, porque nunca se deve fazer alguém
sofrer o mal, sejam quais forem as razões.
Essa radicalidade é demasiado paradoxal para inscrever-se
em uma filiação histórica. As origens só podem ser procuradas
no pensamento de Sócrates, que leva essa concepção às últimas
conseqüências.
O maior dos males é cometer injustiça, ou, se se prefere, tor-
nar-se culpado de um mal, diz Sócrates a Polo4, de sorte que é
melhor sofrer um agravo a cometê-lo. A demonstração dos dois
paradoxos socráticos, que estão ligados, é - cúmulo do parado-
xo- tão lógica, que um intérprete contemporâneo pôde falar de
concepção fortemente racionalista.
O raciocínio de Sócrates repousa na distinção entre o que
pretendemos de uma ação e seu efeito real. Agimos sempre em
vista de um bem, que é geralmente, mas não sempre, o interesse
ou o prazer que podemos dali tirar ou nele encontrar. Se faço mal
a alguém, é que penso obter benefício com isso. No pior dos ca-

2. Pv.rAo, República, l, 335 b-336 a.


3. !d., Crltan, 49 bc
4. !d., Górgias, 469 b.

176 1 a revolução socrática


ws, que aliás Sócrates não contempla, o do perverso qu bu
unicamente gozar com o mal que comete, seu motor é o prazer
que experimenta, uma ilusão de bem.
Muitas vezes põe-se por conta de um intelectuali mo mgé
nuo a idéia de que ninguém faz o mal voluntariamente. Sócrat ,
que costuma ser mais sutil, seria prisioneiro Je uma p icologia
rudimentar. Aqui ainda os mais ingênuos são os intérpret . Com
efeito, a idéia de que não fazemos o que queremos e fazem o
que não queremos era perfeitamente familiar no século V. É co-
nhecida a bela fórmula que Ovídio encontrará alguns sét'Ulos mais
tarde: Vidco mcliora proboque, deteriora sequor, mas a idéia não era
nova, e encontra-se em Eurípides, cujos laços com Sócrates são
conhecidos. Sabemos o que é o bem, e não o fazemos, Jiz. ele no
Hipólito\ e apresenta Medéia7 completamente consciente do cri-
me que vai cometer para vingar-se do infiel Jasão.
Sócrates responderia à objeção que Medéia também prot'Ura
o bem e conta encontrá-lo no prazer da vingança que espera,
tanto mais vivo quanto ela é atroz. Para Sócrates todo homem
busca a felicidade, e é isso que o faz agir. Nossa ação situa -se,
pois, em dois níveis, e não pode explicar-se por seus objetivos
imediatos. Se só tivesse como fim a si mesma, não teria ~ntido.
Só toma seu sentido nessa busca da felicidade, que é o único
projeto humano possível. A psicologia de Sócrates dá conta de
uma experiência bem conhecida: a decepção que experimentam
os que acabam de realizar enfim seu ideal: possuem aquilo pelo
qual lutaram tanto tempo e dão-se conta de que era somente
isso, e de que eles são sempre os mesmos.
A armadilha em que cai a maior parte das pessoas resid: n~
ilusão de que os fins a que visam lhes trarão a felicidade. N~o.e
por eles mesmos que buscamos as riquezas, o poder, o prestigio
e os prazeres, mas pela felicidade que cremos encontrar neles.

~"Vejo o melhor e aprovo, mas sigo o pior" (Ov1010, Metamorfoses.VII,


20-21).
6.V, 380-381.
7.Medéia, v. 1078-1080.

a moral I ln
Em tudo isso, em que reside a maior parte dos móveis das ações
humanas, Sócrates nunca deixou-se prender, mas os que caem
na armadilha não encontram ali a felicidade esperada.
Por trás de tudo o que fazemos, perfila-se o desejo de felici-
dade que é seu motor profundo. Ora, quase sempre fracassamos
nessa busca porque nos orientamos para fins que não nos po-
dem dá-la. O tirano é feliz? Os gregos sabiam bem que não, a
espada de Dâmocles mostra-o à evidência; apesar do poder e da
riqueza, o tirano vive no medo e não pode confiar em ninguém.
No entanto, não é a isso que se reduz a argumentação socrá-
tica. Só se trata, com efeito, de um caso extremo, para o qual uma
moral "média" responderá que a felicidade depende de urna feliz
proporção de riquezas, de saúde, de amizade, de amor, de laços
familiares, de respeitabilidade e de sorte, de modo que é preciso
evitar todos os excessos e ter a sabedoria de administrar esses frá-
geis equilibrios. A posição de Sócrates é radical. Fazer o mal é ter
uma alma doente. Não se pode ser feliz com uma alma doente.
A moral socrática é uma moral da felicidade e não do dever,
o que é verdadeiramente paradoxal para uma moral tão exigente.
Contudo, o homem não tem deveres para com o divino? Sim,
certamente, como vimos, mas não se trata de buscar conciliar-se
com os deuses e evitar sua cólera. O homem deve reconheci-
mento ao divino, mas os deuses não são tiranos que exigem algo
do homem, que têm necessidade de suas homenagens ou que os
punem pela falta de respeito ou por suas infrações a um código.
Para Sócrates, o tirano é o mais infeliz dos homens, de modo que
seria totalmente escandaloso conceber os deuses segundo o seu
modelo. Deus não pode fazer o mal, não se vinga e ignora a cóle-
ra. A teologia socrática, como vimos, estabelecia a bondade e ª
solicitude divinas a partir da harmonia e da perfeição que se po~e
observar nos mínimos detalhes da criação. E essa teologia impli-
cava a exclusão da mitologia que apresenta os deuses capricho-
sos, ciumentos e intemperantes. Se o homem de valor não d_eve
fazer mal a ninguém, mesmo para "compensar" o mal sofrido,
como um deus essencialmente bom poderia nos querer mal por

178 1 a revolução socrática


algum motivo? E como poderíamos fazer mal a um deus tão po
deroso? Nada temos a temer dele, mas se não lhe rendemos
homenagem fazemos mal a nós mesmos, porque a ingratidão é
um mal.
Resta saber como Sócrates estabelece sua exigência moral
Em nada procede de maneira dogmática: não sendo profeta nem
pregador, empreende demonstrar sua posição. O Górgias discor-
re com base na assimilação do belo ao bem e do feio ao vergo-
nhoso (que o grego designa com o mesmo adjetivo, awxpó,.),
que parece normal em uma cidade guerreira construída sobre
valores aristocráticos. A honra e a vergonha desempenham um
papel essencial no mundo grego. Ora, a vergonha liga-se ao crimi-
noso, e não à vítima. Vejamos a demonstração mais de perto. ~o
caso dos corpos, o belo está unido à utilidade ou ao prazer'. fulo
concede que tudo se passa do mesmo modo para tudo o que é
físico, mas também para as leis e as maneiras de viver, e ainda
para os conhecimentos. Simetricamente, o feio liga-se à pena ou
ao mal. Ora, Polo concedeu acima que é mais feio cometer a injus-
tiça do que sofrer a injustiça. Como não há sofrimento em come-
ter a injustiça, é o mal a ela é associado9, então é um maior mal
ser o autor do que a vítima da injustiça. A questão é pois saber se
é preciso preferir o que é o pior e o mais vergonhoso/feio. Enquan-
to diriamos que é vergonhoso cometer injustiça porque é mal,
Platão vê o inverso: é mal porque é vergonhoso.
O detalhe do texto reserva outra surpresa: o belo é ou útil ou
agradável, e Polo conclui que se define pelo prazer e pelo bem, e
daí Sócrates propõe a hipótese simétrica de que o vergonhoso
define-se pela pena e pelo mal. Desliza-se pois sub-repticiamente
do útil ao bem, 0 que constituirá um ponto importante da argu-
mentação socrática: o bem é útil à alma.
Resta que a oposição primeira é a do belo e do vergonhoso/
feio, e não a do bem e do mal. É que Polo não está de acordo com

8. G6rgias, 474 d.
9. Ibid., 475 e.

a moral 1 179
Sócrates sobre o bom e o mau, de modo que esse deve partir de
outra oposição (belo/vergonhoso), obter a aprovação de Polo,
substituir essa segunda oposição à primeira. Como Sócrates ob-
tém a aprovação que Polo lhe recusava? Se ele admite, com efei-
to, que é mais vergonhoso cometer injustiça do que ser sua víti-
ma, não admitiria, em um primeiro tempo, que isso fosse um
mal, mas o sentimento do sistema grego de honra obnga-o a
ceder. Como preferir a vergonha?
É pois uma demonstração dialética, em que Sócrates obriga
Polo a ceder utilizando seus próprios pressupostos. Mostra-lhe
que os princípios que considera evidentes devem levar a inverter
suas posições. Tal demonstração vale para o interlocutor- posto
em contradição consigo mesmo-, mas não vale absolutamente.
Sócrates vai ainda mais longe. Não só é melhor ser vítima do
que autor de uma falta, mas quando se cometeu uma é preferível
ser punido. Com efeito, a justiça pede um castigo. Ora, o justo é
belo. Como o belo é ou bom ou útil, a pena será ou boa ou útil.
Não sendo boa, por conseguinte é útil1°.
Qual é pois essa vantagem que o culpado encontra em seu
castigo? O melhoramento de sua alma, desembaraçada do mal
que a afetava. Sempre segundo o mesmo raciocínio, esse mal é
ou doloroso ou nocivo. Como desembaraçar--se dele? Levam-se
os doentes aos médicos, para que se livrem dos males físicos.
Aonde se levam os homens que cometeram injustiças? Perante
os juízes11. Desse paralelo com a medicina, que repousa no para-
lelo da alma e do corpo, resulta que a pena infligida pelo tribunal
libera de seu mal os homens atingidos pelas piores doenças, as
da alma, que são as injustiças que cometemos. Evidentemente, o
melhor é não ficar doente, mas quando acontece é preferível ser
curado de seu mal do que o conservar. A pior das situações é
portanto a do tirano criminoso.
O detalhe da argumentação mostra uma notável sutileza
dialética, mas consiste muitas vezes em deslizamentos de senti-

10. lbid., 476 477.


11. lbid., 478 a.

180 1 a revolução socr.tlllca


dos ou em falsas simetrias. Para dizer as coisas de maneira um
tanto brutal: Sócrates comporta-se como um trêmendo sofista
pega Polo, depois Cálicles, na armadilha de sua virtuosidade,
pondo-os em contradição com eles mesmos.
Sócrates defende uma posição clara: o pior mal é o da alma,
a culpa, de sorte que se trata de guardar-se dela quanto possÍ\C~
e em caso de fracasso de livrar-se dela aceitando um castigo. lbr
que o mal da alma é pior que o do corpo? Porque nosso ser verda-
deiro e imortal é nossa alma, enquanto nosso corpo é somente
transitório.
A seriedade dessa doutrina contrasta um pouco com as suti-
lezas quase sofísticas com as quais Sócrates a defende. Mas há
pior: o utilitarismo que vimos aflorar aqui aparece muito mais niti-
damente em Xenofonte. A moral mais pura e mais elevada apóia-
se pois não só em argumentos tão astuciosos quanto logicamente
contestáveis, mas ainda na idéia de que a única coisa que conta é o
interesse, e um interesse apresentado às vezes de uma maneira
totalmente terra-a-terra, ao menos em Xenofonte.
Se Sócrates não hesita em apanhar os retores no terreno da
sofística, pode também dar argumentos mais diretos. Os vícios
- gula, devassidão, embriaguês - mantêm os homens na es·
cravidão: deve-se pois lutar contra eles para salvar sua liberda-
de12. Quanto às riquezas, tomam o homem em uma rede indefi -
13
nida de obrigações que comporta sempre incertezas , enquanto
Sócrates, apesar de sua pobreza, não tem necessidades e sabe
que poderá sempre contar com seus amigos, caso se encontre
em dificuldade.
Sócrates é uma impressionante ilustração da liberdade. Em
relação às riquezas e aos bens materiais- seria preciso lemb_:3r:
- mas também, o que talvez é muito mais difícil, em relaçao a
opinião. Evocamos a importância da honra na sociedade ate

-
niense, onde aliás havia tanto mais preocupação de atrair O res-

12. XENoFONTF. Econômico, I, 22-23.


13. Ibid., II, 5 7.

a moral 1 181
peito porquanto todos se conheciam, o que valoriza o prestígio,
de todo modo muito procurado. Ora, a indiferença de Sócrates
para com sua imagem é total, porque brinca de bufão, apresenta-
se como parteira, alcoviteira e cáften. Platão mostra-o acabando
por confundir, sob esses disfarces, interlocutores pertencentes
à melhor sociedade, mas as coisas não se passavam sempre tão
bem. Nessa cidade onde o parecer tinha uma importância consi-
derável, o simples fato de dizer-se ignorante implicava já um
desprendimento tanto maior que os professores famosos, quali
ficados de sábios, como Górgias ou Protágoras, eram ricos e alta
mente estimados, o que não suscita nenhum traço de ciúme ou
de amargura em Sócrates. Não teme nenhuma freqüentação,
seja ela suspeita ou comprometedora, mas inversamente não se
deixa impressionar nem pela fortuna nem pela posição social.
Ninguém pode constrangê-lo fazendo pressão sobre ele.~ esse
aspecto de Sócrates que faz dele o pai da corrente cínica, da qual
Diógenes será no século seguinte a ilustração mais marcante e
que denunciará todas as hipocrisias sociais de que os homens
são prisioneiros.
Sócrates é um perfeito exemplo de homem livre, em relação
às convenções, ao olhar do outro, ao medo, ao desejo, à inveja, às
riquezas, às honras, às pressões exteriores. Deve pois ser tomado
a sério quando rejeita as paixões em nome da liberdade. Fala do
que vive. Seu domínio de si é tanto mais espantoso porque não é
um asceta. O Alcibíades de O Banquete relata que em Potidéia era
ele que melhor suportava as privações, mas também o que mais
comia quando o corpo expedicionário era abastecido. Vimos que
podia beber mais vinho do que ninguém. Assim, era capaz de
gozar muito largamente dos prazeres da mesa sem ser de modo
algum dependente deles.
A moral socrática, com todo o seu rigor, é pois uma moral
da liberdade. O homem deve conquistar sua liberdade sobre seus
desejos, se não quiser ser seu escravo. Sabe-se que posteridade
terá essa atitude no pensamento antigo, notadamente entre,05
estóicos: se não temo nem o sofrimento nem a morte, ninguem

182 1 a revoluçao socr~tlca


pode obrigar-me a seja a que for. Pelo medo e pelo desejo é qu
perdemos nossa liberdade, sejam quais forem nosso poder e nos-
sas riquezas.
Além disso, a idéia é verdadeiramente revolucionária. Para
os gregos a liberdade é urna realidade social: o estado do homem
livre, por oposição ao escravo. Com Sócrates, a liberdade toma-
se uma conquista interior, ponto de vista em que desaparecem
hierarquias sociais, que não têm efetivamente nenhuma influên-
cia sobre ele.
Contudo, a liberdade é o único fundamento da moral? Se ~
fosse o caso, seria difícil compreender por que Sócrates não o diz ~
no Górgias. Vimos que a finalidade última era a felicidade. A li-
berdade não é a felicidade, é certamente necessária porque não
se pode ser feliz quando se está à mercê de senhores tão exigen-
tes e impiedosos como os medos e as paixões; mas não basta
para assegurá-la.
A argumentação que faz dobrar Polo e depois Cálicles não é
absoluta, somente os pôs em contradição com eles mesmos, tor-
nando insustentável sua posição inicial. Sócrates sabe os limiti:?~
de seu raciocínio, e é por isso que o diálogo termina com outra
tonalidade: um mito que não é um mito14 • Sócrates anuncia a
Cálicles um discurso (logos) muito belo, que ele tomará prova-
velmente por um mito, mas que é realmente um logos, porque
é verdadeiro15 • É urna exposição do destino da alma depois da
morte, que por seu aspecto mitológico deixa um pouco perplexo
sobre o estatuto dessa apresentação. As almas são julgadas pelo
que elas são, independentemente do poder que tiveram na terra.
Sócrates reafirma a Cálicles que acredita na veracidade dessa nar-
rativa16, que explica então. A morte é a separação da alma e do
corpo11. As almas passam por um julgamento. As mais nocivas
- 14. Górgias, 523 ss.
15. Lembremos que para Platão o mythos faz revezamento com o logos
quando não há mais logos, isto é, exposição racional possível.
16. Górgias, 524 ab. ._ ·
17. A separabilidade dos dois é evidentemente a condiçao da sobrein·
vência depois da morte.

a moral 1 183
como a~ do Grande Rei ou de outros soberanos e tiranos, desfi-
guradas pelo crime (perjúrio, vaidade, devassidão, orgulho etc.),
c;ão enviadas ao seu castigo. Os piores criminosos, cujas almas
são incuráveis, são enviados a suplícios sem fim. Os outros ne•
cessitam de uma prova purificadora. Sócrates aproveita do fato
de que o diálogo tomou como exemplo o rei Arquelau da Mace
dônia e de seus crimes18, para dizer que o poder agrava o crime e
que corrompe a maioria dos que o exercem19, o que torna tanto
mais admiráveis os que permanecem honestos, dos quais só se
tem um exemplo, mas que merece o elogio de todos os gregos:
Aristides.
Às vezes, o juiz divino vê chegar uma alma que viveu na
piedade e na verdade. Na maioria das vezes é a de um filósofo
que só se ocupou de seu ofício de filósofo, sem dispersar- se na
agitação de múltiplas tarefas. É então enviada às ilhas dos Bem·
aventurados.
E, pela terceira vez, Sócrates reafirma sua fé nessas narrati-
vas20, insistência que tanto mais dificilmente se pode achar insig-
nificante posto que Sócrates fala nesse momento dos valores que
fazem sua vida, longe de sua ironia dialética habitual. Quer apre·
sentar ao juiz supremo a alma mais sã possível:

Desprezando as honras caras à maioria dos homens, quero esfor-


çar-me, pela procura da verdade, em viver; e quando eu morrer, em
morrer, sendo realmente o melhor possível. Exorto assim todos os
outros homens, tanto quanto posso, e exorto também a ti, a essa

18. Górgias, 470 d, ss. Pode-se notar que apesar do retrato particular-
mente criminoso que traça dele Platão, a história o reteve como um sobera-
no amante da cultura, que muito fez para helenizar a Macedônia, ainda m~~o
selvagem. ~ na realidade um rei "normalH que conduz uma política h~bil,
com efeitos felizes para o país. O fato de que alguém que possa ser conside-
rad~ um bom rei - que aliás era a opinião de Tuddides - seja um h~mem
particularmente monstruoso ilustra o discurso que Platão tem aqui: ha bem
poucos soberanos que são sejam criminosos.
19. lbid., 526 b.
20. Ibid., 526 d.

184 1 a revolução socrãtlca


vida e a esse combate, que, afirmo, substitui todos os combat de
mundo, e eu te censuro porque não estarás cm mechda de defon
der-te quando virá para ti a hora do prOCl'SSO e do juízo d» que
falávamos há pouco.

Sócrates sabe perfeitamente o que sua profissão de fé tem


de incrível para os interlocutores, que arriscam assimilá-la a lcn
das de velhas senhoras21 • Contos de feiticeiras? A idéia de uma
retribuição das almas depois da morte nos é c\identcmente {a
miliar, pelo fato de encontrar-se no cristianismo, que está aqui na
esteira de Sócrates, porque não se fala disso na Bíblia hebraica A
religião e a mitologia gregas parecem interessar-se muito pouco
pela sobrevivência da alma, que não faz objeto de nenhum dogma,
a que se acrescenta o ceticismo religioso das últimas décadas do
século V, ceticismo do qual os amigos, que partilham os últimos
instantes de Sócrates no Fédon, trazem um bom testemunho.
Nesse último diálogo, Sócrates expõe também o que espera a
alma depois da morte, fundando ainda aqui o cuidado que se
deve tomar dela quanto às recompensas e aos castigos que cons-
tituem sua vida depois da morte terrestre, começando pela ame-
aça que esse destino constitui para os criminosos:

Se verdadeiramente a alma é imortal, ela reclama que se tenha rui-


dado não só pelo tempo que dura o que chamamos \ivcr, ma:, pela
totalidade do tempo: parece que seria um risco redobrado não se
preocupar com ela. Admitamos com efeito que morrer seja des-
prender- se de tudo, o que é um bom negócio para os maus, uma
vez que estão desprendidos de seus corpos, serem· no também, com
sua alma, dessa sua maldade!22 Na realidade, do momento em que
está manifesto que a alma não é mortal, então não existe para e:a
nenhuma escapatória a seus males, nenhuma salvagu~da, ª nao
ser tomar-se a melhor e a mais sensata possível. Com efeito,ª alma

21. lbid., 527 a.


22. A mesma idéia está expressa na República, X, 610 d.

a moral 1 185
não tem nada mais com ela, quando vai para o Hades, a não ser sua
formação moral e seu regime de vida, que, segundo a tradição, tra-
zem ao defunto os maiores bens ou os piores males desde o come-
ço da viagem que os leva lá para baixo.
Ora, eis essa tradição. Todos os defuntos, tendo sido individual-
mente durante a sua vida confiados pela sorte a um demônio
(damúin), esse se encarrega de levá-los a um certo lugar, onde são
reunidos para serem julgados, depois do que devem pôr-se a cami-
nho para as moradas do Hades, em companhia do guia em questão,
ao qual foi dada a missão de conduzir até lá em baixo os que vêm
para cá. Quando tiveram a sorte que deviam ter, e ali permanece-
ram o tempo que deviam, é um outro guia que os leva por aqui: e
para isso se precisa de múltiplas e longas revoluções de tempo. Isso
prova que a rota não é como diz o Telefo de Ésquilo: "Simples é o
caminho que leva ao Hades"; enquanto para mim manifestamente
não é simples nem único: nesse caso nem se teria necessidade de
guias, por não haver risco de perder-se já que só haveria um cami-
nho. Na realidade parece haver bifurcações e encruzilhadas em gran-
de número: digo isso de acordo com os indícios fornecidos pelos
ritos religiosos que se praticam aqui mesmo. A alma que é bem
ordenada e sensata deixa-se guiar, e não ignora a significação do
que lhe advém nesse momento. Ao contrário, aquela cujos apetites
têm o corpo por objeto, pelo fato de que durante muito tempo foi
cheia de paixão por esse corpo e pelo lugar visível, essa começa
resistindo muito e muito sofrendo; quando vai embora, é arrastada
à força e com grande pena pelo demônio que lhe foi assignado.
Uma vez chegada onde estão as outras almas, a que não está
purificada e que é culpada de ter matado sem um justo motivo, por
exemplo, ou de ter cometido outras crimes do gênero, (que são da
mesma família e são obras de almas pertencentes a uma mesma
família) - essa alma, todas a evitam e fogem dela: ninguém aceita
acompanhá-la nem guiá-la. Erra solitária, na desorientação mais
total até que os tempos tenham chegado. Quando chegam, a ne-
cessidade a carrega para a residência apropriada. Quanto à alma
que levou sua vida com pureza e comedimento, obtém deuses como

186 1 a revolução socrática


companheiros de caminho e por guias, e estabeleci: sua restdêncta
no lugar que convém a cada uma em particulafl.

O estudo da justiça que conduz A ReplÍb/ica leva também a


um mito do destino das almas, o de Er. Isso significa que em
última instância só se pode fundar a moral no que a espera no
além. Sócrates sabe que não provou sua posição, e contenta-se
com afirmar que é a única que resistiu à refutação. Platão o faz
dizer aos interlocutores do Górgias que ele os refutou24 e que eles ~
assim não puderam manter suas afirmações: ,

Sois fora de estado de demonstrar que algum gênero de vida seja


preferível a esse, que além do mais tem a vantagem evidente de
nos ser útil junto aos mortos. Nesses raciocínios, depois que todas
as outras posições foram refutadas, não resta mais do que e~ta: é
preciso evitar com mais cuidado ser o autor do que a vítima de uma
injustiça; deve-se mais que tudo aplicar-se não a parecer bom, mas
a ser bom, na vida privada e na vida pública ...
Faze-me confiança e acompanha-me do lado em que encontrarás
a felicidade durante a vida e depois da morte, como o mostra <.'Ssa
exposição. Deixa-te desprezar, tratar de insensato, sofre mesmo que
te insultem, se quiserem, e por Zeus, em toda a quietude, que te
firam com esses golpes que desonram25; não sofrerás com isso ne-
nhum mal se és verdadeiramente um homem honesto, aplicado ao
exercício da virtude26•

Portanto, é exatamente uma moral da felicidade que Sócrates


preconiza. Nessa vida porque nos toma livres, e na outra em ~ue
nos permitirá viver felizes verdadeiramente. Note-se o desmvel

23. Fédon, 107 c-108 c.


24. G6rg,·as, 527 ab. · · · .,,_ t que dcve
25. Platão apresenta aqui sem dúV1da de maneira tnlllle a 0
ter acontecido com Sócrates quando seus diálogos terminavam menos bem
do que aqueles que recompôs para nós.
26. Górgias, 527 cd.
a moral 1 187
entre a argumentação e as razões de crer. O raciocínio tem um
papel essencialmente refutativo, que tem quase sempre em Platão,
para o qual o logos não pode ser suficiente para levar à verdade.A
verdade que está em jogo aqui, e é explicitamente apresentada
como tal, é essa exposição do itinerário póstumo das almas. O
texto do Górgias contém uma ambigüidade de expressão: traduzi
"como o mostra essa exposição" onde Croiset27 escreve"como a
razão o demonstra", o que não é exatamente a mesma coisa. O
grego O"TJµ.aCvew não quer dizer"demonstrar", mas "mostrar",
"significar"; mas sobretudo trata-se de saber que sentido dar ao
logos de que se trata. Vimos acima28 que a exposição do percurso
das almas depois da morte era qualificada com insistência de logos,
de modo que é a esse logos, a essa exposição verdadeira que re-
mete Platão, pois é ele e não a faculdade de raciocinar que funda
a felicidade reservada às almas puras. Não se demonstra a verda-
de, mas se a experimenta.
Estamos pois no esquema platônico: o trabalho dialético eli-
mina os erros e prepara o terreno. Há que ir até a segunda etapa
e supor que essa exposição deriva da visão? Seria bem perigoso
afinná-lo, pelo fato de que esse itinerário póstumo apresenta uma
roupagem mitológica que não se encontra no Fédon. Donde vem
esse mito?
Esses relatos da viagem das almas lembram o que se crê sa-
ber do orfismo. Os Mistérios prometiam aos iniciados a salvação
da alma e indicavam-lhes o itinerário a seguir para não perder-se
nas zonas perigosas do Além, um risco de que o mito de Fédon
conserva o vestígio. A descendência é dificilmente contestável, e
toma a encontrar-se evidentemente na exigência da purificação
da alma.
Há porém uma diferença da maior importância. A purifica-
ção dos Mistérios é ritual, uma imitação que se supõe garantir a
felicidade no Hades, o que do ponto de vista socrático deve ser

27. Belles Lettres, Budé, CUF.


28. Górgias, 523 a.

188 1 a revolução socrática


absolutamente escandaloso, como vimos acima. A única puíl'za
que conta é a que o homem soube dar à sua alma por seu pensa
mento e por sua maneira de viver.
É por isso, talvez, que Platão vê em Sócrates o \'erdad"tro
Orfeu, e que faz com tanta freqüência alusão ao:. Misténos. O
orfismo entreviu mas deformou uma realidade que omente
Sócrates descobriu. E é a filosofia que constitui a iniciação autên
tica. O Fédon mostra como ela prepara a alma.

Sócrates - Eis, meus amigos, os motivos pelos qua1~ aqueles qu


no sentido reto do termo se metem a filosofar, mantêm-se afasta
dos de todos os desejos corporais sem exceção, conservando uma
firme atitude e não se entregando a seus caprichos. A perda de u
patrimônio, a pobreza, não lhes fazem medo, como faz à turba dos
amigos da riqueza; e tampouco temem uma existência 5em honras
e sem glória, como os que amam o poder e as honras. E então per
manecem afastados de todas as coisas.
Cebes - Isso não lhes conviria, Sócrates.
S: - Certamente, por Zeus, replicou ele. Eis por que a toda t.>ssa
gente em bloco, Cebes, o homem que tem algum cuidado com sua
alma e cuja vida não se passa em modelar o corpo, esse lhes diz
adeus. Seu caminho não se confunde com o dessa gente que não
sabe aonde vai; mas julgando, quanto a ele, que não se deve agir
em contrário da filosofia, nem do que ela faz para nos desprender e
purificar, é para esse lado que se volta: segue-a no caminho que 1hr
mostra.
C: - De que maneira, Sócrates?
S: - Vou dizer- te, respondeu. É, vê só, uma coisa bem conhecida
dos amigos do saber, que sua alma, quando foi tomada em mãos
pela filosofia, estava completamente acorrentada ao corpo e colada
a ele; o qual constituía para ela um espécie de grade através da qual
era forçada a ver as realidades em lugar de fazê-lo por seus própri-
os meios e através de si mesma; e que estava enfim atolada em uma
ignorância absoluta. E o maravilhoso dessa grade, a filosofia se deu
conta, é que é obra do desejo e que quem mais contribui para carre-

a moral 1 189
gar o acorrentado com suas cadeias, é ele mesmo! Assim, digo eu, 0
que não ignoram os amigos do saber é que uma vez tomadas cm
mão as almas que estão em tal condição, a filosofia dá-lhes com
doçura suas razões; empreende desatá-las, indicando-lhes de
quantas ilusões extravasa um estudo que se faz por meio dos olhos,
e de que ilusões, por sua vez, o que se faz por meio dos ouvidos e
de nossos outros sentidos; persuadindo-os ainda a desprender-se
disso, a recusar a servir-se deles a não ser em caso de necessidade;
recomendando lhes enfim a reunir-se, a recolher- se sobre elas
mc!>mas, e a não confiar em nada a não ser nelas mesmas, seja qual
for o objeto, em si e por si, de seu pensamento, quando o exercem
delas mesmas e por elas mesmas. Ser assim desligado, eis aquilo ao
encontro do qual a alma do verdadeiro filósofo pensa que nada se
deve fazer, de modo que se mantém afastada dos prazeres, tanto
como dos desejos e das penas, dos terrores, tanto quanto pode.
Calcula com efeito que sentir com intensidade prazer, pena, terror
ou desejo, então por maior que seja o mal de que se possa sofrer
nessa ocasião, entre todos que pode imaginar, por exemplo, cair
doente, ou arruinar-se por causa dos desejos, não há nenhum que
não seja superado pelo mal supremo: é dele que se sofre, e não se
põe em conta!
C: -Que mal, Sócrates?
S: - É que forçosamente em toda alma humana a intensidade do
prazer ou da pena que se sente a respeito de uma c01sa, acompa-
nha-se da crença de que o objeto dessa emoção é o que há de mais
claro e mais verdadeiro, quando não é mesmo assim.
C: - Absolutamente.
S: - Não é nessas afecções que a alma está sujeita às cadeias do
corpo até ao mais alto ponto?
C:-Como?
S: -Assim: todo prazer e toda pena possuem uma natureza como
de prego, com que cravam a alma e a fixam nele, fazendo que desse
modo tenha corporeidade, e que julgue da verdade das coisas se-
gundo as afirmações mesmas do corpo. Pelo fato de que nisso ela
se conforma ao corpo em seus julgamentos e se compraz nos mes·

190 1 a revolução socrática


mos objetos, creio que deve necessariamente produzir-se nela uma
conformidade de tendências, como uma confonnidade de cultura;
por conseguinte ela é tal que nunca chega ao Hades em estado d
pureza, mas ao contrário, sempre contaminada pelo rorpo de qu~
saiu. O resultado é que não tarda em cair em um outro corpo, no
qual de certo modo se insemina e toma raiz. Em consequência dis
so, é frustrada de todo direito de partilhar a eXJStência com o que é
divino e ao mesmo tempo puro e único em sua fonna29

A filosofia é assim o verdadeiro cuidado da alma, o que a


prepara para o encontro com o divino. A contrario, a ignorância, o
erro nas ilusões deixa-nos prisioneiros das armadilhas do corpo.
Tudo isso repousa evidentemente na separação da alma e do cor-
po, sendo a alma a verdadeira natureza do homem. Pressuposto
exorbitante? Procurou-se a fonte desse dualismo que qua~ não
aparece nos pensadores anteriores, e mais uma vez se pensou no
orfismo. É bem pouco satisfatório, porque é claro que Sócrates
dele não depende em nada. O orfismo é em Sócrates apena~ uma
metáfora de seu pensamento, e vimos como Platão o rejeita em
seu corpus e em sua realidade cultual.
A resposta deve provavelmente ser buscada na personalida-
de de Sócrates. A separabilidade da alma e do corpo e sua dife-
rença de natureza podiam ser a conceitualização do que \i\ia em
seus êxtases. O Banquete mostra-o totalmente ausente de seu
corpo, absorvido pelo pensamento que se desenvolve indc~n-
dentemente de toda percepção do mundo exterior. Ésem dU\ida
ali que reside o contraste entre o caráter tão concreto do perso-
nagem, manifestado de maneira diferente por Platão e Xenofonte,
e a radicalidade de seu idealismo. O pensador que não hesitava
em parecer trivial por seu cuidado pelo real é, ao mesmo tempo,
0 que tenta elevar a alma à visão do divino, porque em um caso
como no outro sua filosofia constrói-se sobre uma experiência.
Se, mais do que qualquer outro, Sócrates viveu seu pensamento,

29. Fédon, 82 c•83 d.


a moral 1 191
é também porque ele o construiu sobre o que vivia. Seu idealis-
mo, distante de todo intelectualismo, é fundado na experiência
da separação da alma e do corpo, em que consiste precisamente
a vivência do êxtase.
O Teeteto mostra também um Sócrates abandonando o ter-
reno negativo da dialética para afirmar sua verdade:

Ê impossível que o mal desapareça, Teodoro; porque haverá sem-


pre um contrário do bem. Também é de todo impossível que tenha
sua sede entre os deuses: é portanto a natureza mortal e o lugar
daqui de baixo que percorre, fazendo sua ronda. Isso mostra o es-
forço que se impõe: evadir-se daqui de baixo para o alto, o mais
rápido possível. A evasão é assimilar- se a Deus, na medida do pos-
sível: ora, assimila-se a Deus tomando-se justo e santo na clareza
do espírito. Excelente amigo, isso é uma coisa que não é fácil de
persuadir, pois não é pelas razões proclamadas pela turba que se
deve fugir da maldade e procurar a virtude, cultivando esta e evi-
tando aquela, para não adquirir a reputação de mau, mas ganhar a
de homem honesto. Eis aí onde vejo, segundo o ditado, um conto
da velha. A verdade é essa: Deus não é sob nenhum aspecto e de
nenhuma maneira injustoJO; ao contrário, é sumamente justo, e nada
se lhe assemelha mais do que aquele de nós que a seu exemplo
tomou-se o mais justo possível. É nisso que se julga a verdadeira
habilidade de um homem, ou então sua nulidade, sua falta absolu-
ta de valor humano. É isso cujo conhecimento e saber é a virtude
11
verdadeira, e cuja ignorância é estupidez e vício manifesto .

Se o mal é ignorância, é que o saber verdadeiro é divino e o


mal não tem nenhuma parte no divino. Sócrates aqui acaba de

30. O termo tem um sentido mais amplo em grego do que para nós: a
injustiça não se refere somente às questões de repartição desigual, m~s
concerne a toda infração do direito, portanto às faltas, aos delitos, aos cn-
mes. Dizer que Deus é justo não significa, portanto, que ele dá a todos ª
mesma coisa nem que retribua a cada um de maneira perfeita, mas que ele
não comete nenhuma má ação, e que nenhum mal lhe pode ser imputado.
31. Teeteto, 176ab.

192 1 a revolução socrática


falar sobre a ascensão que a filosofia opera em direção às realtda
des superiores: diante delas as realidades terrenas parecem in
significantes. Note-se um ponto essencial: Sócratc funda mo
ral no divino e não no olhar do outro. É uma verdadeira revolu
ção, o que ele mesmo indica ao esclarecer que sua concepção
relega a antiga para o nível de histórias de velhas. Sublinham a
importância capital da honra e de seu correlato, a vergonha, na
sociedade grega. A reputação, o prestígio sào valores extrema-
mente procurados. Ali reside, segundo Sócrates, o fundamento
habitual da moral: faz-se o bem e evita-se o mal para cuidar da
própria imagem, porque é muito valioso passar por uma pessoa
de bem, e infamante ser considerado um covarde, um preguiço
so, um perjuro ou um ladrão. Vunos como, ao contrário, Sóaat
cultivava uma total independência quanto ao olhar do outro, o
que dará nascimento ao cinismo. A revolução con,iste pois em
fundar a moral não mais sobre a pressão do grupo, que, como
viu, não tinha nenhuma influência sobre Sócrates, mas sobre a
transcendência. Se a coisa é óbvia para nós, não o era absoluta-
mente para um grego do séculoV. Por que os deuses, a supor que
existam, teriam pedido aos homens que fizessem o bem? A ques-
tão nada tem de extravagante; sabe-se que as religiões atribuem
às vezes a seu deus (ou seus deuses) estranhas vontades, e pode-
se também, como farão os epicuristas, considerar que os deuses
vivem sua própria felicidade, sem nenhuma preocupação com o
que os homens fazem. A argumentação de Sócrates repousa so-
bre sua teologia, cuja novidade já sublinhamos: o mal é total-
mente estranho a Deus. A filosofia, busca do saber, é uma aspira·
ção ao divino, porque o saber verdadeiro é divino, e essa busca
supõe o arrancamento do mal já que ele não existe em Deus.
O homem não está mais diante de um código, decretado por
uma sociedade que o obriga a segui-lo por coerção - coerção
física das instituições encarregadas de fazer respeitar a ordem
pública, e coerção moral do olhar dos outros-, mas diante de si
e do divino. É pois o espaço da consciência que Sócrates de!-~O-
bre. O bem e o mal já não dependem da cidade, tomam sentido

a moral 1 193
no espaço interior em que o homem vive sua própria vida em sua
relação com o divino. Se o bem verdadeiro não se confunde com
as leis humanas, implica porém que sejam obedecidas, com a
condição, evidentemente, de que não sejam elas mesmas injustas.
Essa consciência é contudo muito diferente da nossa. O ou-
tro está ausente dela. Cada um é responsável somente por si, e o
único cuidado que nele se manifesta é o da pureza de sua alma.
Só se faz o bem e o mal a si, e simetricamente os outros não
podem fazer-me mal, idéia que os estóicos retomarão. A única
realidade que importa na ordem do bem e do mal é a alma. Se
pois alguém me causa um dano físico, através de meus bens ou
de meu corpo, isso não concerne a minha alma, de forma que
não se trata verdadeiramente de um mal. Se, ao contrário, procu-

' ro vingar-me, então introduzo o mal em minha alma, e por isso é


um mal verdadeiro. O criminoso é julgado por seus crimes, e não
por suas vítimas, e é antes de tudo a ele mesmo que faz mal,
porque destrói o que há de mais precioso, sua alma, enquanto
em suas vítimas destrói apenas algo transitório: razão pela qual é
melhor ser vítima do que culpado.
Paradoxalmente, enquanto nos descobrimos no espelho do
outro, e descobrimos que somos uma alma no espelho de outra
alma, como diz o Primeiro Alcibíades, o outro só aparece na or-
dem do bem e do mal pelo fato de que me faz ser. É contudo
claro que esse paradoxo é uma conseqüência necessária do
dualismo da alma e do corpo.
Mais paradoxalmente ainda, o fato de estar essa moral cen-
trada sobre si, a ponto de quase eliminar o outro, é que funda sua
exigência e sua universalidade. Se o mal é somente um assunto
entre mim e mim mesmo, nesse espaço que se abre à consciên-
cia, que importa a realidade concreta do outro? Grego, bárbaro,
cidadão, escravo, personagens poderosas e prestigiosas, gente sem
importância. A injustiça é sempre a mesma, o que é totalmente
novo. A moral não é modulável em função das realidades sociais,
porque a única coisa que está em jogo é a saúde de minha alma.
Além disso, pode-se sempre contemporizar com os outros, rela-

194 1 a revoluçao socrática


tivizar o agravo que se lhes pôde fazer -"E. já que procuraram.
isso lhes sirva de lição"-, mas não se trapaceia consigo mesmo
na própria relação como o divino.
Sócrates se diz investido de uma missão di,.ina, proclama
que é melhor obedecer a Deus do que aos homensl2. Essa missão
faz dele o moscardo da cidade33, encarregado de despertá-la de
fazê-la compreender que só o cuidado da alma merece nossa dedi-
cação. Sócrates é pois a consciência de Atenas, quem lhe mostra
onde está o bem, e lhe faz envergonhar-se do mal.
Ora, a universalidade que aparece no absoluto dessa exi-
gência socrática, que não faz acepção de pessoas, não se opõe às
leis concretas. Sócrates aceita o veredicto da cidade da qual ele
é a consciência. A universalidade da exigência moral inclui a ~
submissão às leis da sociedade, mesmo quando se recusa a do-
brar-se a elas.

32. Apologia, 29 d.
33. Ibid., 30 e.
a moral 1 195
capítulo 3
HERANÇAS E PRESENÇAS

A herança filosófica de Sócrates compõe se aproximadamcnt


de toda a filosofia, com exceção da corrente oriunda de D ~móaito
e de Epicuro.Vunos como Sócrates estruturou o campo da filosofia.
o que só pôde atualizar-se graças a Platão. Seria intcnniná\'cl tentar
ver em que se realiza na filosofia a dupla presença de Sócrall: ,
através de sua herança histórica e por sua incessante atualização.
Queriamas somente abordar o outro aspecto da herança socrática,
a posteridade da revolução teológica, que levanta uma questão
delicada: sua relação com o cristianismo.
O parentesco entre os dois é demasiado evidente para ter
necessidade de ser exposto. A maneira como foi sentido é mai:,
interessante. O cristianismo dos primeiros séculos sentiu-se muito
próximo de Sócrates, a ponto de quase anexá -lo. Para o primeiro
apologista, Justino, martirizado por volta de 165, os que "iveram
segundo o Logos são cristãos, mesmo se foram tidos por ateus,
como Sócrates, Heráclito e outros1. A razão é que Jesus é Deus
enquanto Logos, como diz o prólogo do quarto evangelho;
Heráclito deve sua cristianização ao fato de ser um pensador do
logos. Justino, que é filósofo, desenvolve o paralelo: Cristo é a to-

1. JUSTINO, Pnmeira Apologia, 46, 3.

1197
talidade do Logos, mas certos pensadores puderam ter dele um
conhecimento parcial.

É pois evidente, dizia eu, que nossa doutrina é superior a toda dou-
trina humana, pelo fato de que a totalidade do Logos, Cristo, que
apareceu para nós, tomou-se corpo, logos e alma. Com efeito, tudo
o que desde sempre os filósofos e os legisladores disseram e des-
cobriram de excelente, eles o elaboraram graças à sua busca e à sua
reflexão que tocavam parcialmente o Logos. Contudo, porque não
conheceram a totalidade do Logos que é Cristo, expressaram mui-
tas vezes opiniões contraditórias. Além disso, os homens que vive-
ram antes de Cristo, quando se esforçaram, na medida em que o
permite o logos humano, por considerar e interrogar o real de ma-
neira argumentativa, foram arrastados diante dos tribunais como
ímpios e mágicos. Quem se aplicou a isso com mais vigor, Sócrates,
foi objeto das mesmas acusações que nós: acusavam no de intro-
duzir divindades novas, de não crer nos deuses que a cidade reco-
nhecia. Ao expulsar de sua República Homero e os outros poetas,
ele ensinava os homens a afastar-se dos maus demônios e divinda-
des que cometem o que os poetas contaram, e os exortava a adqui-
rir por uma busca por meio do logos o conhecimento do Deus des-
conhecido. Não fácil, ele dizia, encontrar o Pai e o Criador do uni-
verso, e quando se encontrou, não deixa de ser arriscado falar a
todos. Isso, nosso Cristo o realizou por seu próprio poder. Com
efeito, ninguém se deixou convencer por Sócrates a morrer por sua
doutrina, mas pelo Cristo, que Sócrates tinha conhecido parcial-
mente (porque ele era e é o Logos presente em todo homem)2.

O parentesco dos filósofos e, em particular, de Sócrates e do


cristianismo explica-se, portanto, segundo Justino, por uma re-
velação natural parcial devida ao logos.
Não admira que Justino, que também vai pagar com sua vida
a recusa da religião politeísta tradicional, reconheça seu combate

2. Id., Segunda Apologia, 10, 1-7.

198 1 a revoluçao socrática


no de Sócrates, condenado por ter substituído ao politeísmo mito
lógico uma concepção articulada sobre a teologia monoteísta:

Quando Sócrates, à luz do logos verdadeiro, e depois de uma busca


aprofundada, tentou tirar essas coisas a claro e desviar os homens
dos demônios, esses mesmos demônios, por intermédio de homens
perversos, que tomam prazer no mal, aplicaram-se a fazê-lo conde
nar à morte como ateu e ímpio, sob pretexto de que introduzia novas
divindades; e igualmente empregam a mesma manobra contra oosl.

Vunos nascer a providência na teologia socrática: a ordem e


a beleza mostram que é obra de um artífice e que esse artífice só
tem em vista o bem. A tese passa para os Padres da Igreja:

Que então, dizem, não queres que eu saiba claramente e creia que
Deus vela sobre tudo? Certamente que quero, que aspiro e que dese·
jo muito; mas não que te esgotes por escrutar sua pl'O\,idênoa nem
ponhas questões indiscretas. Fbrque se sabes e se firmaste uma con-
vicção, então não procures. Mas se estás em dúvida, interroga o
céu, a terra, o sol, a lua; interroga as raças variadas dos seres priva-
dos de razão, as sementes, as plantas, os rochedos, as montanhas.
os vales, as colinas, a noite, o dia.
Com efeito a providência de Deus é mais resplandecente do que o
sol e seus raios, e em cada circunstância e em cada lugar, no deser·
to, nos países habitados ou não, na terra e no mar, em qualquer
lugar para onde vás, perceberás o testemunho claro e suficiente,
antigo e novo, dessa providência: vozes elevando-se de todas partes.
mais claras do que nossa voz de homem racional e que ensinam, a
quem quiser escutá-las, sua bondade atenciosa4.

A teologia socrática reencontra-se pois no cristianismo, que


aceita seu paradoxo profundo. Deve-se tentar escapar deste mun •

3. Id., Primeira Apologia, 5, 3.


4 . São JOÃO CRJsóSTOMO, A prouidência de Deus, V, 1-2.

heranças e presenças 1 199


do, arrancar-se da matéria para elevar-se a Deus. Estamos neste
mundo sem ser deste mundo, porque pertencemos ao divino,
como diz São João, que se inscreve mais na linha do Fédon do que
na do Antigo Testamento. E no entanto este mundo é belo e ma-
nifesta o poder e a bondade de Deus. O dualismo não se refere à
criação, mas à natureza do homem. Como o cristianismo o plato-
nismo conhecerá aliás a tentação do desprezo da matéria, mas,
diante das posições gnósticas ou maniqueístas, tanto um como o
outro, na forma neoplatônica5, recusarão considerar que a ma-
téria é má, e ficarão, sabendo ou sem saber, fiéis ao socratismo:
o universo é belo, é uma obra-prima divina, mesmo se temos de
nos desprender da matéria para subir até Deus.
Não só a teologia cristã inscreve-se na linha socrática, mas o
parentesco vai por vezes até o detalhe.
Santo Agostinho, amplamente influenciado pelo neoplatonis-
mo, retoma a argumentação do Fédon sobre a imortalidade da alma.

Se se objeta que a alma não tem a temer essa morte, que tem por
efeito tirar o ser a quem o teve, mas aquela que nos faz chamar mor-
tas as coisas privadas de vida, que se preste atenção, porque nenhu-
ma coisa é frustada por ela mesma. Ora, a alma é vida: eis por que
tudo o que é animado é vivo, e toda criatura inanimada, susceptível
de ser animada, é considerada como morta, isto é, privada de vida.
A alma não pode morrer. Se pudesse ser privada de vida, não seria
mais uma alma, mas qualquer coisa de animado. Se isso é absurdo,
muito menos se deve temer para a alma esse gênero de morte, que
não é para temer para o que vive. Além disso, se a alma morre quan-
do essa vida a abandona, de sorte que a alma não é o que é aban-
donado pela vida, mas a vida mesma que abandona. Quando se diz
que um ser está morto, enquanto abandonado pela vida, deve se
compreender que foi abandonado pela alma. Como a vida que aban-

5. Plotino ataca os gnósticos que julgam poder autorizar-se de Platão


para condenar a matéria, o que ele refuta formalmente.~ por erro que Bréhier,
sem a mínima justificação, tinha pensado que ali havia um ataque contra os
cristãos, que de fato encontravam-se na mesma situação perante os gnósticos.

200 1 a revolução socrática


dona o que morre é a alma mesma, ela não se abandona 8 m
ma. Portanto a alma não morre6.

Pode-se reconhecer a argumentação construída sobre a ambi


güidade da psyché, e a continuação retoma a objeção da alma
harmonia que se encontra igualmente no Fédon.
O próprio São Paulo inscreve-se, sem saber, na linha de opo
sição de Sócrates aos sofistas, quando condena como loucura a
sabedoria dos homens. A sophia dos homens é somente loucura
para Deus, e quem se crê sophos não passa de um louco1.A scme
lhança não é apenas verbal, pois o problema é evidentemente o ~
mesmo: para Sócrates como para São Pciulo, o sophos é alguém cujo
saber só concerne às aparências, e sua sophia não passa de ilusão,
pois a única sophia verdadeira está fundada no divino. Trata-se de
uma simples coincidência devida à identidade de perspt.>t'tiva?
É provável que não. Podemos, com efeito, seguir a filiação de
Sócrates a Paulo. Passa por Alexandria. O judaísmo alexandrino de
língua e de cultura gregas encontrou-se confrontado com a filosofia
e foi por isso levado a pensar a Bíblia através de conceitos', e por-
tanto a construir uma teologia. Para isso, Fílon de Alexandria utili-
za Platão e o estoicismo, que por sua vez também era e se dizia
socrático (através da dupla herança platônica e cínica). Os intér- ~
pretes não acabaram de debater a questão de saber se Fílon era ,
um platônico fortemente tingido de estoicismo, ou inversamentt?,
de tal modo as duas filosofias estão onipresentes em sua obra, in-
teiramente consagrada à exegese da Escritura, no caso a tradução
grega da Bíblia chamada Septuaginta, e à exposição de sua fé. Em·
bora permanecendo absolutamente judeu, Fílon assume a heran-
ça socrática: "Sócrates, cuja admirável sabedoria obriga a terra a
celebrar até hoje seu nome cligno de memória, foi conde~~do ~r
causa das manobras de um homem tortuoso e depravado .Abas,

6. Santo AGOSTINHO, A inwrtalidade da alma, IX.


7 lCoríntios 3,18-19.
8. Cf. J. J. ÜUHOT, op. cit., p. 187 ss.
9. FILON, De prav1de11tia, Il, 8.

heranças e presenças 1 201


qualifica Platão de homem muito santo. Constata-se que para
esse judeu piedoso o politeísmo aparente de Sócrates e de Platão
não põe o menor problema, o que se compreende tanto melhor
porquanto ele pratica a exegese alegórica, o que de resto lhe per-
mite ler a Bíblia através de Platão e do estoicismo.
Para Fílon, no êxtase, o naus, levado por Deus, deixa o corpo
para encontrar-se diante do Ser mesmo, para contemplar as idéias
incorpóreas1º. O corpo é o obstáculo que impede essa ascensão,
há que reduzi· lo ao silêncio, deixar de perceber o mundo exterior,
para empreender a subida para a visão noética. Deve-se também
reduzir ao silêncio a palavra que funciona segundo as verossimi-
lhanças, as aparências e os simulacros, e que leva a perder a verda-
de, o logos sofista (o-o<pWTI}c;) que prende o naus na armadilha de
seus sofismas (êvo-o<pw-reoov-roc;) 11 •
Para exprimir o conhecimento verdadeiro, Fílon reencontra
acentos platônicos. A alma que recebe sua graça põe-se a dançar,
tomada de transporte báquico, de modo que parece bêbada aos
que não estão iniciados12 . Isso lembra o retrato que Alcibíades
traça de Sócrates em O Banquete: a mordida da filosofia socrática
provoca naqueles que podem recebê-la uma loucura báquica13•
O conhecimento verdadeiro passa por loucura aos olhos dos não-
iniciados, que são os verdadeiros loucos.
São Paulo retoma assim um tema que o judaísmo helenístico
tirou de Sócrates através de Platão. O parentesco do corpus paulino
com Fílon de Alexandria já foi amplamente destacado. Além de
ser ele mesmo judeu de língua grega, saído da diáspora inteira-
mente helenizada, teve por companheiro de apostolado um judeu
de Alexandria, Apolo, particularmente versado nas Escrituras e,
portanto, na hermenêutica que Fílon praticava.
O papel decisivo de Paulo foi sem dúvida fazer virar o cristia-
nismo nascente para o lado do universal, retirando Deus de sua

10. ld., De ebrietate, 99.


11. lbid., 70-71.
12. Ibid., 146.
13. O Banquete, 218, ab.

202 1 a revolução socrática


etnicidade bíblica - Deus ligado a um povo prMlegiado- p ra
propor uma mensagem que se dirigisse a todo homem m da
tinção. Essa passagem para o universal exigia uma ºº"ªcon p
ção de Deus, e foi na teologia judaica de cultura grega que a nmíl
religião a encontrou. E vimos como essa teologia se tinha con
truído sobre bases socráticas.
Sócrates cristão? Mesmo se a Igreja nascente o saudou e
os humanistas o canonizaram com entusiasmo tanto mais com
preensível porquanto ele representa também a cultura grega, não
se pode menosprezar tudo o que separa Sócrates do cristiani -
mo, o qual se inscreve em uma história, como uma rc\'l'lação fei-
ta aos homens por essa sucessão de etapas que relatam as narra-
tivas bíblicas e que culmina com a Encarnação. A mensagem de
Sócrates é individual e estranha à história.
Porém Sócrates, se não é cristão, está presente no interior
mesmo do cristianismo. O universalismo cristão repousa sobre
uma teologia. Se o cristianismo não se contentou em ser um culto
entre outros, tão numerosos no Império romano, é porque se afir-
mava como o detentor da verdade religiosa, ocupando assim o terre-
no teológico, enquanto os outros cultos associavam o mito à devo-
ção e aos ritos que ele funda. Desde o século II d. C., o de Justino, o
cristianismo quis ser uma filosofia, a verdadeira filosofia 14. Por esse
motivo, teria de assumir uma annadura conceituai centrada na tro•
logia, a mesma que vimos nascer na revolução socrática.

14. a. P. HAoar, O que é afilosofia antiga?Tradução de Dion D. Macedo,


São Paulo: Loyola, 1999, p. 333ss.

heranças e presenças 1 203


Conclusão

Será que não caímos também nos encantamento:. desse homem


que confundia as pistas e funcionava em muitos níveis? A figura
de Sócrates é sempre ativa, mas essa mesma ati\,idade auten
tica, por ser o coração da singularidade socrática tal como Platão
a descreve.
Sócrates continua a escapar-nos, cada retrato mostra -o dife-
rente. É a prova do fracasso inevitável a que seria votada toda
tentativa de apreendê-lo? Seria ingênuo pensá -lo. Primeíro, nín•
guém é redutível a um só retrato e não há personagem da histó
ria que não possa ser objeto das mais diversas apreciaçõc:,. D -
pois, que Sócrates procuramos? Uma descrição puramente exte-
rior, uma biografia de acontecimentos não apresentaria nenhum
interesse. Que temos a ver com a vida de um ateniense que \.i\ u
há 25 séculos? Aquele para o qual se dirigia nossa pesquisa é o
fundador da filosofia.
Se, para tentar compreender Sócrates, é preciso restituí-lo à
realidade de seu tempo, o homem histórico não poderia ser nos-
so objeto. Platão não realizou um trabalho de memorialista, ma!>
o Sócrates que faz entrever é na verdade o iniciador da filosofia.
Sócrates foi condenado por seu ensinamento. Alguns de seus
discípulos figuravam entre os mais emblemáticos dos piores de-

i 205
mônios políticos do fim do séculoV ateniense: Alcibíades, Crítias,
Cármides. Suas próprias convicções religiosas só lhe valeram a
condenação porque tinha alunos. Ora, é precisamente a execução
do mestre que suscita a vocação de Platão. Pondo em cena seu
mestre em seus diálogos, faz verdadeiramente dele o mestre que
será para toda a filosofia. A maiêutica inverte-se aqui, o discípulo
faz o mestre dar à luz seu ensinamento.
Pôr-se em busca de Sócrates é entrar por sua vez nesse jogo
de máscaras e de espelhos onde não se sabe mais quem põe as
questões, mas no qual o que vemos esboçar-se é a nossa história.
O Sócrates de Platão valida-se pois a si mesmo na obra que
atualiza, porém faz mais ainda, arrastando-nos em sua circulari-
dade. A escritura dos diálogos autentica o retrato não somente
realizando-o, mas ativando-o em uma maiêutica que nos inter-
roga ainda hoje, como interrogou a filosofia em toda a duração de
sua história. O espelho socrático remete-nos constantemente a
nós mesmos, autenticando-se assim em sua atualização indefinida,
projetando-nos em um questionamento sempre recomeçado.

206 1 sócrates ou o despertar da consciência


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