DUHOT, Jean-Joël Duhot - Sócrates Ou o Despertar Da Consciência-Loyola (2004)
DUHOT, Jean-Joël Duhot - Sócrates Ou o Despertar Da Consciência-Loyola (2004)
DUHOT, Jean-Joël Duhot - Sócrates Ou o Despertar Da Consciência-Loyola (2004)
DUHOT
SÓCRATES OU O
DESPERTAR DA CONSCIÊNCIA
TRADUÇÃO:
Paulo Menezes
Ed~Loyolo
LEITURAS FILOSÓFICAS
Aristóteles e o logos
Barbara Cassin
Aristóteles no século XX
Enrico Berta
Da natureza
Pannênides
Diãlogos com a cultura contemporânea
W.AA
Filosofia a partir de seus problemas (A)
Maria Ariel González Porta
Filosofia da Ciência, 6" ed.
Rubem Alves
Filosofia da natureza (A)
Jacques Mantain
Metáfora viva (A)
F\iul Ru:oeur
Movimento sofista (0)
G. 8.Knfml
Nillísmo (O)
Franco \blp,
Oficio do filósofo estóico (0)
Rachel Gazolla
Ordem do discurso (A), 9" ed.
Michel Foucault
Para não ler ingenuamente uma tragédia grega
Rachrl Gazolla
Que é a filosofia antiga?
Pirrrt Hadot
Raz.ões de Aristóteles (As), 2• ed.
Enn<0 Brm
Saber dos antigos - terapia para os tempos atuais, 2• ed.
GIOOllnna 10llt
~te lições sobre o ser, 2" cd
Jacqwe Mantam
Tempo e razão - 1600 anos das confissões de Agostinho
W.M
Transformação da filosofia, vol. 1
Karl-Otto Aprl
Transformação da filosofia, vol. 2
Karl-OttoApd
Vontade de crer (A)
Willia,n Ja,n,s
Th\Jl.0 DaKllNAL:
«ratt OW r h·til dt la CO"SClt"Ct
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ISBN: 85-15-02913-8
C EDIÇÕES LOYOLA, São Paulo, Brasil, 2004
SUMÁRIO
Introdução ............................................................................ 7
primeira parte
SÓCRATES E SEU TEMPO
capitulo 2 ........................................................................... 43
O HOMEM EM SEU SÉCULO
capítulo 3 ........................................................................... 67
O PROCESSO
segunda parte
O MESTRE PARADOXAL
17
por que não, o de Aristófanes, as três testemunhas diretas, o de
Aristóteles e os fragmentos da tradição, tem-se como recompor
sem fim os retratos de Sócrates. A procura de um Sócrates autên-
tico não estaria condenada ao fracasso, já que nenhum elemento
veio acrescentar-se ao dossiê há séculos? Pior ainda: Sócrates não
seria um mito construído por Platão, que teria tomado a máscara
de seu velho mestre para escrever uma obra, emprestando-lhe
seus próprios pensamentos? Nessas condições, não seria melhor
conservar uma bela figura mais ou menos lendária, mesmo se
alguns escolheram descartá-la, por rejeitarem o espiritualismo?
Não, a pesquisa merece ser retomada. Pelo que está em jogo,
e porque as peças do dossiê não foram sempre exploradas em
seu justo valor. Sócrates é um enigma. Há o antes de Sócrates, os
pré-socráticos, e o depois, a filosofia. Então alguma coisa se produ-
ziu, e seria pouco cavalheiresco ver nisso um truque de prestidi-
gitação de Platão. Como saber qual é a realidade fundamental de
que Sócrates é o centro? Retomando o conjunto da questão em
tomo de dois eixos: pôr em perspectiva histórica e fazer o exame
crítico de todos os testemunhos. Recolocar Sócrates em seu século
para tentar apreender o sentido de sua trajetória. Reler os testemu-
nhos, ligando-se a seus aspectos estranhos, em lugar de evitá-los
pudicamente porque incomodam.
Assim vamos ver desenhar-se um outro Sócrates, misterio-
so, ao mesmo tempo próximo e longínquo, ainda mais estranho
do que parecia aos atenienses, segundo o testemunho de Platão,
mas ao qual estamos ligados por uma relação de filiação, muito
forte e m~ito complexa. Se nele se saúda, e com justiça, o pai da
filosofia, : em. ~ande parte por más razões, que escondem a~
~s. Platao f~t lido em um primeiro grau, em que sua palavra so
tinh~ ~ u sentido real em outra perspectiva, que ele não deixa de
~nmir, m~ ~ue se recusa levar a sério para pô-la na conta do
artista re~nmido. Terminou-se por desacreditar Sócrates, não
vendo mais o que Platão não cessa de diz
A' ~
t~gem de Sócrates triunfando das mentiras sofísticas para
fundar a filosofia sobre a busca da verdade corresponde apenas a
Introdução 1 9
pode estar em desacordo com a razão. Foi ali que se realizou uma
nova configuração do saber, dando lugar à metafísica e à teologia.
em que se inscreveram ao mesmo tempo a filosofia e o cristianis-
mo, que na esteira do judaísmo helenístico a integrou à religião.
Vamos ver desaparecerem as contradições que parecem tor-
nar incompatíveis as diferentes figuras de Sócrates a partir do
momento em que se tomar a sério os múltiplos testemunhos que
atestam a autenticidade dessa experiêncía singular, da qual, por
não se captar a inacessível natureza, só conhecemos a existênaa
e os efeitos.
Teremos nós reencontrado o"verdadeiro"Sócrates? De fato,
a questão provém de um positivismo ingênuo. Não há verdadei-
ro retrato de Sócrates pela simples razão de que nenhum retrato
é verdadeiro; não que sejam todos falsos, mas, como veremos no
Crátilo, a imagem tem necessariamente menos dimensões do que
o real, de sorte que cada uma, se for fiel, só pode exprimir um
olhar sobre esse real.
1 13
fé; e de Atenas temos a arte, a beleza, a razão, a ciência, a literatu-
ra e o ideal político. Secreta ou confessa, a preferência por Atenas
não deixa de assediar nossa cultura, em um combate que talvez
n5o passe de esquizofrenia: a fé e a razão. Daí esse avanço de
Atenas nos períodos de recuo ou questionamento da fé, como o
Renascimento e o século XIX. Sentindo - ou fazendo - vacilar
Jerusalém, Renan queria ser tido por ateniense.
Ora, esse século deslumbrante, Sócrates quase não amou.
Nele estava, mas sem partilhar seus valores. Aparentemente in-
sensível à beleza arquitetural, hostil a Péricles e à democracia,
adversário dos professores, assume sua situação de marginal de-
finindo-se como um zangão na cidade, aquele que perturba e
exaspera, até ser esmagado.Aristófanes tinha-o representado gro-
tcc:co, e a Assembléia o condenou à morte.
Pior ainda, manifestou simpatia por Esparta, e isso é muito
mais grave. À margem das convenções, rejeitado pelos bem-
pensantes, Sócrates nos é simpático: gosta-se dos pensadores
que incomodam, com a condição, decerto, que pertençam ao
passado e já não arrisquem mais incomodar. Mas amar Esparta,
isso nos incomoda. Como teria podido considerar um modelo
essa máquina de fazer soldados, que não deixou outra coisa se-
não sua imagem duvidosa? Nem arte, nem literatura, nem ciên-
cia . F., afinal, sucessos militares muito relativos, que em todo
caso nunca permitiram dominar a Grécia. Como pôde Sócrates
sucumbir a essa miragem, quando vivia na cidade que estava a
ponto de fundar nossa civilização? Por que essa cegueira, e tan-
ta incompreensão sobre Atenas e sobre Esparta, aliás? Seria o
ponto fraco, a zona perturbada de Sócrates, que nos lembra que
seus discípulos foram às vezes capazes do pior? Donde se pode
concluir com razão que ele freqüentou gente mais do que duvi-
dosa. Como foi possível ao homem que por meio do oráculo
d_élfic~ Conltece-te a ti mesmo apelava para a lucidez ter conhe-
cido tao mal o seu tempo, a ponto de sucumbir à "miragem
espartana" e de lhe ter escapado o "milagre grego", do qual é
um do~ atores essenciais?
o século de sôcrates 1 15
Deve pois haver outro fator, evidentemente secundário: o
mar. Porque os bens vêm da terra, mas é preciso encaminhá-los,
e o principal meio de transporte é o barco. Os antigos nunca resol-
veram o problema do transporte terrestre, não só por causa das
infra estruturas das estradas que implica, e dos desafios que apre-
sentam os obstáculos naturais, mas porque dominavam mal a
tração animal, aliás lenta e custosa, por supor uma rede de
revezamentos. A Antiguidade desenvolveu progressivamente sua
tecnologia naval até construir cargueiros de uma tonelagem con-
siderável, enquanto o cavalo era mal utilizado como animal de
tração. Aliás, é claro que a carga de um navio pode ser incompa-
ravelmente superior à de uma carroça. As vias romanas eram es-
tratégicas e não comerciais. Quanto aos transportes no interior
das terras, utilizava-se, quanto possível, os cursos de água: as ci-
dades que não eram portos marítimos estavam sempre na mar-
gem de um rio.
Compreende-se que a Antiguidade tenha produzido uma
civilização centrada no Mediterrâneo, que, longe de separar os
homens, as terras e as riquezas, era ao contrário o meio ideal de
pô-las em relação.
Foi então o Mediterrâneo que deu à Grécia sua primeira ci-
vilização, a da Creta minóica, que é porém muito posterior aos
mundos do Egito e do Oriente Médio, pois culmina no meio do
s:S:1ndo milênio. Na Grécia continental, os pequenos reinos mi-
ccmos conhecem seu apogeu depois do fim do mundo minóico,
e o desmoronamento, por sua vez, por volta de 1200. Invasão ou
implosão, é difícil decidir, mas o resultado é uma brutal decadên-
cia _que ch~~a ao esquecimento da escrita - o que aliás teve um
e~eito positivo, pois quando os gregos recomeçarem a escrever
vao utilizar essa extraordinária inovação que é o alfabeto.
Resta ~ue a Grécia partiu tarde e mal, e que deve partir de
novo depms de um buraco negro de três a quatro séculos. O pro-
blema de fundo não mudou, o país é pobre e encontra-se rapida-
mente confrontado com a exigüidade das terras cultiváveis. Para
0
pequeno proprietário que vive com dificuldade em seu domí-
o século de socrates 1 17
tabelecer a paz em Atenas, o que lhe valerá ser admitido pela
posteridade na lista dos Sete Sábios. . . ,
A divisão política em dois campos, povo e anstocrac1a, esta
!'>empre no centro da vida ateniense no séculoV. Veremos a impor-
tância que tomará para Sócrates; mas no intervalo a conjuntura
terá mudado.
Essa instabilidade em um mundo despedaçado aparece-nos
certamente como um limite, mas teve imensas conseqüências
positivas. Com efeito, cada cidade-estado tinha de inventar suas
próprias soluções de compromisso, de modo que o mundo grego
pôde tomar-se um imenso laboratório em que se experimenta-
ram pesquisas políticas cuja audácia e cuja sutileza ainda às ve-
zes nos enchem de admiração. À multiplicidade das cidades acres-
centa-se o fato de que sua dimensão reduzida possibilitou expe-
riências que não se teria ousado fazer em um reino.
Em seguida, a necessidade de regular continuamente os con-
flitos pôs a política em escala humana: cabe ao homem encontrar a
boa legislação e resolver os conflitos. O cuidado político toma-se
pois constante entre os gregos; trata-se de encontrar o melhor regi-
me, aquele que pennitirá aos homens viver em conjunto da melhor
fonna possível, apesar dos problemas de fundo que vimos acima.
Depois de Sólon, o século VI foi marcado pela longa tirania
de Pisístrato, a quem sucederam seus filhos. Pisístrato tomou,
perdeu, retomou e conservou o poder, mas respeitou as reformas
de Sólon, que era aliás seu parente, e embora não fosse nada
democrático redistribuiu um pouco as riquezas, o que permitiu
aos pobres não terem mais que se endividar. Lembremos que
para os gregos a tirania é um poder pessoal adquirido sem legiti-
mida~e, ~ ~ue não implica necessariamente que seja exercido de
maneira miusta e violenta, mesmo que isso acontecesse, como
atesta a derivação semântica do tenno.Atenas conhece então certa
pr~speridade, e inicia a decolagem que efetuará no século se-
gtunte. Falta-lhe contudo uma coisa: a liberdade.
A grande aventura da democracia começa em 510. Oístenes,
que pertence a uma das maiores famílias aristocráticas, os Alcmeô-
o século de sócrates 1 19
as posições políticas mas até mesmo aspectos importantes da per-
sonalidade de Sócrates.
Ignora-se a data do nascimento de Aristides, mas, como pa-
rece ter sido o segundo estratego, logo abaixo de Mikíades, em
490, pode-se supor que nasceu o mais tardar por volta de 525,
sobretudo admitindo-se, segundo Plutarco, que trabalhou com
Clístenes, e que estabeleceu as bases da democracia nos anos
que seguiram imediatamente 510. Depois de Maratona, passa ao
primeiro plano da vida política ateniense. Não se deve ver nisso
nenhuma confusão de gêneros.Temos tendência a desconfiar dos
militares que se lançam na política, embora um exemplo ilustre
tenha há pouco mostrado que se pode passar muito bem de um
estado ao outro. Na Antiguidade, essa passagem é constante. A
guerra era um estado habitual - são poucos os anos sem cam-
panha militar - e os mesmos homens conduzem tanto a guerra
como a política. É assim que Péricles, quando dirigir Atenas, não
terá outro título que o de estratego. Não esqueçamos que em
Roma, um pouco mais tarde, são os cônsules, primeiros magis-
trados do Estado, que comandam os exércitos. Aristides lança -se
muito normalmente a uma carreira política brilhante.
A jovem democracia está então em fase de construção. Há
uma tendência a imaginar que os começos são puros e que as
coisas se degradam em seguida. A carreira de Aristides refuta, em
todo caso, esse esquema no caso da democracia. Com efeito, ele
se faz notar na luta contra a corrupção que parece ter sido muito
amplamente difundida: destaca-se por sua perfeita honestidade,
que lhe valeu esse apelido.
. Na década que seguiu Maratona, a vida política ateniense
articula-se em tomo de dois homens: Aristides e Temístocles. Esse
era ambicioso e muito menos desinteressado que seu rival; tinha
um~ <:_apac,dade excepcional de analisar as situações e tomar boas
dcc,soes. Compreendeu que Maratona era só um prelúdio e que
era prcc,~ prever um novo assalto persa. Foi ele que nesse mo-
mento onentou de maneira decisiva a história de Atenas, fazen-
do dela uma potência marítima, escolha que vai determinar o
o século de sôcrates 1 21
estratégico.Vai primeiro permitir a vitória de Salamina, depois dar
a Atenas o império que garantirá sua extraordinária expansão.
No plano político, uma coisa porém é certa: fazer de Atenas
uma potência marítima era uma escolha democrata, por dar à
cidade uma base econômica que escapava a uma aristocracia ru-
ral, condenada assim a perder grande parte de seu poder econô-
mico. Sabe-se a que ponto é difícil governar quando a economia
está nas mãos da oposição. Uma Atenas que permanecesse rural
não podia voltar-se tão radicalmente em direção da democracia,
ao passo que uma potência naval podia depender somente das
decisões do povo, que fornecia os remadores. Há que levar em
conta esse pano de fundo político quando se tenta compreender
a hostilidade do aristocrata Platão, que parece também ser a de
Sócrates, em relação ao mar: a cidade ideal não deve ser um porto.
Quais foram as posições de Aristides diante dessa escolha
do mar, não se sabe. O exíguo testemunho deixado pelos antigos
mostra-o sobretudo lutando por denunciar e erradicar a corrupção
do mundo político. É essencialmente nesse plano que se apre-
senta sua oposição a Temístocles. Seu prestígio devia ser consi-
derável, pois seu adversário conseguiu levá-lo ao ostracismo. O
ostracismo era uma estranha prática que consistia em eliminar
um adversário político exilando-o por dez anos. Não se tratava
em nada de uma condenação penal - os gregos não hesitavam
em processar seus dirigentes e em condená-los a penas muito
duras-, mas de uma medida preventiva exclusivamente políti-
ca.A democracia ateniense construiu-se progressivamente a partir
~a expulsão dos tiranos, e seu grande temor era ver reaparecer a
?
tirania. ostracismo surgiu diretamente desse temor: quando a
populanda~e de um homem público permitia pensar que ele, mais
c~o ou mais tarde, podia apresentar um perigo para a democra-
cia, era afastado da cidade, sem a menor condenação, nem mul-
ta, nem confisco. No termo de dez anos de ostracismo, o exilado
voltava e retomava seus bens. Era pois um processo de intenção,
votado pela Assembléia do povo. No caso de Aristides puderam
supor que seus laços com a · t . , •
ans ocraaa e sua luta contra as prati-
22 1 socrates e seu temoo
cas pouco honestas dos homens que tinham a seu cargo o funcio-
namento da democracia faziam-no parecer uma ameaça.
Plutarco relata uma passagem cuja autenticidade não se pode
garantir. Por ocasião do voto por seu ostracismo, Aristides en-
contrava-se ao lado de um iletrado que não o conhecia. O ho-
mem voltou-se para Aristides e pediu que escrevesse para ele o
nome na tabuinha que servia de boletim de voto. Aristides gra-
vou seu próprio nome e, sempre sem revelar sua identidade, per-
guntou simplesmente a razão da decisão. O homem respondeu
que estava farto de ouvir chamá-lo oJusto. Verdadeira ou não, ela
veicula um forte valor simbólico. Por contraste, o eleitor analfa-
beto, que não conhece Aristides e não sabe mesmo por que se
propõe o ostracismo, dá uma triste imagem de um povo movido
pela rejeição da superioridade moral. Isso articula-se perfeita-
mente com a cótica que o Sócrates de Platão fará à democracia,
que confia as decisões aos ignorantes.
E Aristides aceita sem a menor recriminação a decisão da
assembléia, à qual ele mesmo contribuiu assim com sua honesti-
dade, contentando-se com desejar à cidade que o exilava que
não conhecesse desgraça maior.
Embora menos dramática, temos aqui ~prefiguração de um
aspecto essencial do comportamento de Sócrates diante de sua
condenação. Aristides é totalmente leal ao sistema cujos abusos
critica sem cessar, e que aprecia muito pouco. Sabe que a honesti-
dade, a moral política e o bem comum são sua única motivação,
que é exilado por suspeitas que sua atitude presente e futura
mostrará serem vãs. Aceita sem o menor ressentimento a esco-
lha de uma democracia cujo funcionamento contesta, e muitas
vezes, mas não sistematicamente, as orientações que lhe impri-
me Temístocles.
Seu exílio porém foi breve. Seu ostracismo data de 482 e já
em 480 é chamado de volta: o novo ataque persa põe fim às que-
relas internas e requer a cooperação de todos. Os gregos não con-
seguem estancar a conquista persa: Atenas é evacuada e destruída.
O gênio estratégico e tático de Temístocles consegue arrastar os
o século de sócrates 1 23
persas para uma armadilha. Faz acreditarem que vão poder ani-
quilar a frota ateniense - isto é, tudo o que resta a Atenas -
em Salamina, e depois disso a Grécia será deles. Na tarde em
que a frota persa está a ponto de cair na armadilha e começa a
meter-se em estreitos dos quais não sairá, Aristides consegue
atravessar de barco as linhas inimigas. Não conhece o plano de
Temístocles, que não reviu desde seu ostracismo, e quer imedia-
tamente lhe dar conta da manobra inimiga. Faz-se conduzir
até ele, e sem nenhum ressentimento põe-se sob suas ordens e
expõe o cerco que tenta operar a marinha persa, que não com-
preendeu que está a ponto de deixar-se prender nas redes que
constituem os estreitos, atrás dos quais a frota grega está em
emboscada. Depois Aristides toma a chefia de um contingente
de hoplitas e participa do combate nas ilhas que os persas co-
meçam a atacar.
A frota de Xerxes é portanto aniquilada; mas restam Mardô-
nios e o enorme exército persa que ocupa a Grécia. Atenas teve
uma vitória decisiva, contudo precisa ainda libertar o país. É a
vez do exército espartano, comandado por Pausânias, que dirige
a campanha, com a participação dos atenienses, num contingen-
te bastante modesto, sob as ordens de Aristides. Este portanto
reencontrou todo o seu lugar com essa função de estratego. Por
sua vez, o exército persa é esmagado em Platéias em 479, e Aris-
tides _s~ destaca por sua perfeita lealdade ao general-em-chefe,
Pausamas, o que não era óbvio em razão das rivalidades entre as
pessoas e as cidades.
Volt~d,o ao primeiro plano da vida política, Aristides parece
ter contribu1do para o enfraquecimento do Areópago justamente
depois das gu~rras ~édicas. Era uma espécie de Senado aristo-
cratico ~ue detinha amda poderes importantes. Aristides terá re-
conheado as aspirações de um povo que tinha mostrado tanto
valor durante a guerra.
1:>liticamente, Aristides é pois uma personalidade comple-
xa. Ligado à aristocracia,
· parece surpreendentemente aberto e
nunca age como homem de partiºdo, fazendo sempre passar o
o século de sócrates 1 25
tava um golpe de Estado em Esparta com ajuda dos persas, e irá
pôr-se a serviço de Artaxerxes, o sucessor de Xerxes que ele ven-
ceu em Salamina.
Do ponto de vista histórico, Aristides não é uma persona-
gem de primeiríssimo plano. Combatente de Maratona, Salamina
e Platéias, nunca é mais do que um segundo, de Milcíades, Te-
místocles ou Pausânias. Sua ação política é difícil de avaliar. Pode-
se pensar que contribuiu para construir e moralizar a democraáa
ateniense, mas sobretudo que lançou as bases sobre as quais_a
democracia de Péricles construirá esse império que ele sem du-
vida teria condenado, como fará Sócrates. Nisso talvez esteja sua
contribuição mais importante para a história de Atenas. Do pon-
to de vista moral e pessoal, é em todo caso o único homem político
do tempo que não conheceu o fim lamentável de seus ilustres
companheiros de armas, e no fundo será a única figura incontes-
tada da história ateniense.
Depois da vitória de Platéias, Pausânias prosseguiu as ope-
rações contra o que restava da presença persa nas possessões gre-
gas das ilhas e da Ásia Menor, porém fez-se detestar pelas cida-
des a que concedia sua proteção somente para dominá-las. Para
contrabalançar essa tentativa de constituição de um império
espartano, os atenienses enviaram Aristides, que as cidades que
rejeitavam a autoridade de Pausânias acolheram como um salva-
dor e que lhes trazia a aliança ateniense. O perigo persa não ti-
nha desaparecido, e só se esfumaria na metade do século; e
entrementes Atenas infligirá ainda uma derrota aos persas, ern
467, dessa vez no sul da atual Turquia graças a Cimon filho de
Milcíades. ' '
Diante dessa ameaça, as ilhas e as cidades da Ásia Menor
não p~am defender-se separadamente. As vitórias de Salamina
e Plateias mostraram q , ~ . . ...,
ue so uma 1orça grega umda podia res1s,u
a um ataque persa Era · h A • •
· preciso aver uma potencia naval impor-
tante, constantemente operacional, e sob comando único para
poder defender essas cidades, todas marítimas. Atenas tinh;
dado
suas provas em Salamina, e graças à honestidade de Aristides e à
26 1 s6crates e seu tempo
ambição desastrada de Pausânias foi para ela que as cidades se
voltavam. Assim formou-se a liga de Delos, com Atenas encarre-
gando-se de garantir a proteção das cidades que dela faziam par-
te, mediante um tributo destinado a financiar a constituição e o
funcionamento da frota. Em razão de sua reputação, foi a Aristides
que coube fixar o montante do tributo. Tratava-se então somente
de uma aliança defensiva, sem a qual imagina-se facilmente que
os persas teriam absorvido as cidades da Jônia. A ação de Aristides
só fazia assim coroar seu combate das guerras médicas, garantin
do-lhe os resultados. Como o campo aristocrático em geral, ele
considerava que os persas eram o inimigo, e que era conveniente
entender-se com Esparta.
Com a morte de Aristides, em meados dos anos 460, Cimon
tomou-se o cabeça dos aristocratas. Excelente general que sabe
rá sempre conter os ataques persas, homem jovial e generoso, é
mais um soldado que um político, e quando terá como adversá-
rio um partido democrático dirigido por Péricles, a partir de 461,
perderá pé. É porém preciso notar uma diferença importante en-
tre Aristides e Cimon, que explica também que o Sócrates do
G6rgi.as o condene igualmente, como Temístocles e Péricles. Por
trás de seu sucesso militar, a liga de Delos começa a transformar-
se em um império ateniense, que Cimon insiste em estabelecer e
em manter.
Com Péricles, o partido democrático chega ao poder e os
dados são radicalmente mudados. A hostilidade do campo de-
mocrático em relação a Esparta leva em germe o conflito que
vai marcar toda a continuação do século. O inimigo vai então
deixar de ser a Pérsia, aliás cada vez menos ameaçadora, para
tomar-se Esparta. Artaxerxes, que subiu ao trono em 464, é um
adversário menos perigoso que Xerxes. A liga de Delos muda
assim progressivamente de natureza. Péricles aumenta seu tri-
buto, embora seja cada vez menos indispensável: a liga toma-
se insensivelmente um império. O tesouro da liga é transferido
a Atenas por razões de segurança, e os atenienses terminarão
por apropriar-se dele.
o século de sócrates 1 27
Por ocasião de sua invasão, os persas tinham destruído a
Acrópole. Péricles a faz reconstruir, sob a direção de Fídias, nos
anos 440, mas as despesas da construção vieram rapidamente a
exceder os recursos financeiros da cidade. É então que decide
utilizar o tesouro dos aliados para acabar o Partenon. A oposição
aristocrática se indigna, mas o dirigente democrata responde que,
corno Atenas garante a segurança de seus aliados, não tem de
dar conta da utilização que faz da contribuição à liga. O argu-
mento é, em certa medida, defensável, sob a condição de esque-
cer o essencial, a saber, que a razão primeira dessa aliança já não
se impõe, porque a paz foi assinada com a Pérsia em 449. É Por
isso que algumas cidades tentaram sair, mas Atenas as manterá
pela força na aliança: a frota que devia protegê-las se volta agora
contra elas. O sucessor de Péricles, Cleonte, acentuará ainda a
deriva imperialista aumentando o tributo: Atenas, democracia no
interior, acentua sua tirania no exterior.
Como foi possível tal deslize, e que vínculo mantém com a
democracia? A liga de Delos, que correspondia a uma necessida-
de estratégica, tinha-se construído sobre uma base provavelmente
honesta; em todo caso, não parece ter suscitado protestos. De
repente,Atenas encontrava-se, por efeito da vitória de Salarnina,
à frente de uma imensa confederação, que iria desde a época de
Cimon considerar uma tarefa sua. Depois, sendo o tesouro trans-
fendo para Atenas, a tentação era demasiado forte e ao mesmo
tempo se revelava a realidade do imperialismo.
Mas s_e~a um erro pensar que nisso havia somente o jogo de
u~a. irres istível tentação trazida pela engrenagem das guerras
medicas.~mos que por trás das escolhas de política externa existia
u".'a ~e_ahdade socioeconômica: o conflito entre os grandes pro-
pne_t~no~ rurais e as classes populares. A aristocracia de origem
agrana, ti n h a interesse
· '
em tomar segura a terra e portanto em
afastar a ameaça pe '
. rsa, mantendo ao mesmo tempo um bom
entendimento com Es rt A ,
"d d pa ª· passagemdosexercitoséumacala-
m1 a e ~a_ra ª.5 plantações agrícolas. Para o partido democrático,
ao contrano, tirar do mar O .
essenc1a1do rendimento, seja através
28 1 SOcrates e seu tempo
do tributo ou dos direitos de porto, é deixar fora do jogo a aristo•
cracia. A frota fornecia empregos para os atenienses mais pobres
e as classes populares não tinham mais o sentimento de ser to·
talmente dominadas pelos grandes proprietários. O domínio do
mar supunha também o das rotas marítimas, e a cidade importa-
va agora grande parte de seu abastecimento, notadamente o tri-
go, de forma que essa dominação, concretizada por seus escritó •
rios comerciais e pela submissão das cidades estratégicas, tinha
se tomado vital.A economia ateniense não podia mais funcionar
sem o império. Assim, quando retomar a inevitável guerra com
Esparta, Péricles não terá outra escolha além de sacrificar a Ática:
para garantir a defesa do império, valia a pena renunciar a defen-
der a terra de má qualidade da Ática e deixá-la aberta às incur-
sões espartanas para concentrar-se na dominação marítima, que
assegurava as riquezas e o abastecimento. Atenas podia sacrifi -
car suas terras, mas não seu império. Além disso, para garantir
sua presença ao longo das rotas marítimas, Atenas instalava ali
clernquras, isto é, colônias militares, o que permitia dar terras a
cidadãos pobres.
Era assim que o povo compreendia seus próprios interesses,
pois a política imperialista tinha o apoio da Assembléia, e a polí-
tica demagógica de Cleonte iria ainda mais longe do que Péricles
na lógica imperialista. Os projetos mais loucos foram os do
ultrademocrata Alcibíades, com seu sonho de um imenso impé-
rio ateniense que alcançasse a Sia1ia. O povo não podia enrique-
cer com uma terra que não possuía, mas tinha o sentimento de
poder fazê-lo por uma política imperialista. É preciso notar que,
ao contrário do que conhecemos, pelo fato mesmo de ser com
posta a Assembléia por todos os homens adultos que eram cida-
dãos, todos os que faziam a guerra eram, com raras exceções, o
mesmos que tinha votado, porque se ficava mobilizado até os 60
anos (o que diz muito sobre a boa forma física dos atenienses:
veremos Sócrates manter brilhantemente seu posto nos campos
de batalha depois dos 40 anos).
o seculo de socrates 1 29
Péricles conseguirá, mesmo assim, assegurar quinze anos de
uma paz frágil com Esparta (446-431), o que evidentemente não
significa que a política imperialista tenha abrandado durante esse
tempo.
Parece assim que a situação política possa ser lida através de
um esquema simples. De um lado, o campo democrata, partidá-
rio do imperialismo e hostil à Esparta; do outro uma aristocracia
favorável ao entendimento com Esparta e pouco interessada no
império. Se as bases socioeconômicas dessa divisão são claras, a
realidade é contudo mais complexa.
O nascimento da democracia grega é singular. Enquanto
nossas democracias modernas surgiram no termo de longos pro-
cessos ideológicos e políticos, resultado de uma fermentação se-
cular de reflexões, polêmicas e lutas, Atenas inventa uma demo-
cracia a que nada tinha preparado. Nenhum traço de debate de
idéias a esse respeito, nem antes nem depois da instauração do
regime democrático. A reflexão teórica sobre a democracia deve
ter começado mais ou menos no momento em que Platão faz de
Sócrates un: de seus protagonistas, ou seja, por volta de 430, ?º~-
tanto uns trinta anos depois que Péricles lhe deu sua forma classi-
ca. Quanto à preexistência de um partido democrata lançado em
uma obscura conquista do poder e chegando enfim à vitória gra·
ças a uma revolução, isso é uma hipótese totalmente extravagante.
Na realidade, tudo começou em uma mistura de fatos diver-
sos e de g~lpe de Estado. É um crime passional que provoca a
queda do filh? ~e Pisístrato1, mas o golpe de Estado realizou-se
por uma c?ahzao de aristocratas que apelam a Esparta para ex-
pulsar ~s tiranos, o que a põe paradoxalmente na origem da de·
mocrac,a. Uma vez derrubada a tirania, a coalizão divide-se. Uns
quere~ estabelecer uma oligarquia, sempre com ajuda de Esparta,
mas Chstenes lhes da' uma rasterra,
· apoiando-se
• no povo. É d"fí·
1
e século de sóc:rates 1 31
tra Esparta, o que vai também tomar necessário o imperialismo.
Como a paz foi assinada com os persas no meio do século, 0
tributo já não tem razão de ser, e as cidades da liga querem reto-
mar sua independência; mas a rivalidade com Esparta faz_ At~
precisar de um império. E, inversamente, o peso desse tmpeno
leva as cidades a pedir a Esparta que as ajude a reencontr~ sua
independência. O imperialismo inscreve-se assim em um orculo
e toma-se indispensável.
Contudo, Atenas conhece quinze anos de paz com seu n<Ml
inimigo, de 446 a 431. Trégua fecunda para a cidade, mas
entrecortada de operações militares destinadas a conservar 0
império, e notadamente em 440 a sufocar uma severa revolta em
Samos. A responsabilidade de Péricles está amplamente com·
prometida na retomada das hostilidades, que abre a guerra fatal
do Peloponeso. Estrategicamente, o cálculo não é falso: Atenas e
nitidamente superior, mas a peste que a castiga pouco depois, as
derivas do sistema, com Oeonte e Alcibíades, e a catastrófica ex·
pedição de Sicília vão transtornar os dados iniciais.
Esparta não buscava a guerra, mas foi obrigada a isso pelo
jogo das alianças. linha renunciado às aventuras exteriores e de·
via concentrar-se nas suas dificuldades no próprio Peloponeso,
tanto mais que tinha sido atingida em 464 por um terrível tremor
de terra cujas conseqüências demográficas devem ter sido pesa·
d'.15. De fato, Esparta tinha falta de soldados, prisioneira da arma:
dilh~ de seu próprio sistema. Para compreender esse paradoxo, e
preciso deter-se um pouco sobre a singularidade dessa cidade~
compre~nde-se mal que ela tenha constituído uma "miragem
que fasano~ ~a~tos antigos, entre os quais Platão. A população
d~ Esparta dividia-se em três classes. Os espartanos propriamente
ditos o · ·
,, ' ~ igu~, eram cidadãos de pleno direito. Em tomo deles,
05
~necos eram livres mas desprovidos de direitos políticos, e
~xeroam um oficio, notadamente o artesanato. Enfim os "hilotas",
e certo m_odo escravos ligados à terra. Os cidadãos consagra·
vqaum-se unicamente à guerra e à política, recridas por um sistema
e repousava em três · • o-
mstancias: os dois reis hereditários; OS
32 1 sOcrates e seu temoo
"éforos", magistrados que exerciam a autoridade; e a"gerusia",
uma espécie de senado composto de homens de mais de 60 anos.
Ao contrário das formas políticas das outras cidades, esse siste-
ma conheceu uma extraordinária estabilidade e soube evitar re-
voluções, golpes de Estado e tiranias que apareceram alhures em
toda parte. Foi no séculoVII que a cidade progressivamente esta-
bilizou-se em sua tradição, talvez por causa das guerras pela su-
premacia no Peloponeso. Esse fechamento sobre si mesma deve-
ria levá-la a uma morte lenta pelo fato de que o número decida-
dãos não cessava de diminuir. Rodeados de hilotas que eles hu-
milhavam mas que se tornavam ameaçadores quando a cidade
se encontrava fragilizada, como por ocasião do grande terremo
to, os espartanos viviam de certo modo sitiados em seu próprio
país, entre inimigos potenciais. Deviam então consagrar todas as
forças a manter sua autoridade sobre populações muito mais
numerosas, o que explica não somente que tenham procurado
menos lançar-se em aventuras externas, mas sobretudo que Argos
os tenha impedido de impor-se a todo o Peloponeso.
Se Esparta gastava o essencial de sua energia em fazer sol
dados, era contudo militarmente menos temível que Atenas, por-
que, muito pouco numerosos, os cidadãos soldados tinham por
função principal assegurar a sobrevida de uma cidade constante-
mente ameaçada do interior. Além disso, a cidade tinha muito
poucos soldados para arriscá-los inconsideradamente.Atenas, ao
contrário, era muito menos econômica com seus soldados, que
podia arregimentar - e perder - em muito maior número, e
suas expedições longínquas, principalmente no Egito e na Sio1ia,
tiveram um custo humano considerável. Portanto, Atenas é que
paradoxalmente era a verdadeira potência militar, tanto mais que
tinha necessidade de seu império, enquanto Esparta buscava,
antes de tudo, conservar sua autoridade no Peloponeso.
Pode-se nesse ponto notar uma diferença de grande impor-
tância que sem dúvida pesou na formação da miragem espartana.
A democracia ateniense estava comprometida em uma fuga para
a frente que ia conduzir à sua perda através dos exageros do im-
º século de sôcrates 1 33
perialismo, enquanto Esparta só fazia depender seu destino dela
mesma, não tinha outro cuidado que o de manter-se. Aliás. e~
não vai explorar sua vitória de 404 sobre Atenas: quebrará seu
império, mas não buscará aniquilar nem mesmo dirigir a cidade.
que nunca ficará submetida à sua rival e restabelecerá rapida·
mente a democracia. Ao contrário de Atenas, Esparta não conce-
beu o projeto de construir um vasto império.
As molas da potência militar das duas cidades são diferen·
tes. Atenas tem necessidade de dinheiro para construir frotas e
pagar os marinheiros, os pobres apreciam esse soldo e os be~efi-
cios da guerra, e esse dinheiro exige o imperialismo que e sua
fonte. O dinheiro e o material encontram-se no coração desse
encadeamento. Diante disso, Esparta conta essenàalme~te ~m
os homens: forma guerreiros e apóia-se em seu valor. O ~euo
de um lado, e do outro o valor do homem. O Sócrates do Górgias
critica assim o que está no centro do sistema, o Pireu e os Longos
Muros que o ligam à cidade, conjunto que abre a cidade sobre 0
mar e seu império, ao mesmo tempo que a fecha para o aceSSo
terres_tre:_ não é sobre as fortificações materiais que deve repousar
ª potencia verdadeira, mas sobre o homem. Além disso, enquan·
t? .ª riqueza de Atenas é fundada também sobre o comércio rna·
ntimo, por sua vez possibilitado pelo domínio do mar e das cos·
tas
. ' EsPartª ignora
· a moeda, recusa o luxo e o comércio inu' til e
vive em autarquia.
Paradoxo no limi"te macre
· ditavel:
, e, graças a uma re fl exa-o so-
bre Esparta que se afirma a preeminência do homem O modelo
~~~o ensina que os valores materiais são engodas, e que 0
und~co or verdadeiro está no homem. A cidade é uma verda·
erra escola, que se d o
.
esta em que para
encarrega da criança muito cedo. O para º"
guerre·rro, enquanto os espartanos o homem é essencialmente 0
para Pla - o
modelo espart . tão e, sem dúvida, para Sócrates
na formarão danoh e transposto: a república ideal está centrada
• of0 ornem,
mas como" fi1050 ( conceb'd1 o nao - mais como guerreir · o'
veremos aliás' )
Essa cidade, que nos que Sócrates soube ser amboS ·
repugna por seu desprezo pelo hornern,
34 1 SOcratl!s I! 5l!U ll!moo
máquina desumanizante que choca nossos princípios, ocupa as-
sim um lugar insuspeitável nas fontes do humanismo.
Democracia, imperialismo e riqueza estão estreitamente li-
gados em Atenas, e uma virada ainda mais democrática tomada
depois de Péricles acompanha-se de um endurecimento do im-
perialismo. Parente e pupilo de Péricles, o uJtrademocrata Alci-
bíades queria estabelecer um imenso império ateniense, indo da
Ásia Menor até a Sicr1ia, e daí a expedição que terminou em
desastre. Mesmo os que, como Sócrates, não aprovavam a polí-
tica de Péricles reconheciam seu valor, sua moderação e sua ho-
nestidade. Não teve sucessor de qualidade e os adversários do
sistema podiam dizer que se a democracia tinha funcionado era
graças a ele, que soube dirigi-la a ponto de não ser mais uma
verdadeira democracia. Entregue a homens de menor enverga-
dura, ela ia efetivamente derrapar e provocar a perda da cidade.
A decisão, e depois a conduta da expedição à Sicilia, assim como
o lamentável processo das Arginusas, onde veremos aparecer
Sócrates, mostram as incoerências fatais de uma democracia que
se deixava levar pela paixão e que nenhuma autoridade inteli-
gente vinha temperar. É preciso dar-se conta de que o sistema é
tão perigoso que nenhuma democracia moderna se inspira nele:
não são os cidadãos que tomam as decisões políticas, mas seus
eleitos, que podem estudar os dossiês de maneira aprofundada.
Transposta para a época moderna, a democracia ateniense se-
ria um governo por sondagens de opinião aquecida por uma im-
prensa arrebatada. Ao contrário do sistema espartano, em que
os poderes - gerusia, éforos e os dois reis- controlavam-se e
assim equilibravam-se, a democracia ateniense, apesar de seus
meios de controle (a prestação de contas e a acusação de ilega-
lidade, que qualquer cidadão podia lançar), corria o risco de de-
sembalar e de tomar decisões inconsideradas sob influxo da
emoção. O apelo à emoção era uma deriva inevitável, por ser a
maneira mais eficaz de arrebatar uma decisão por ocasião de
um voto popular.
o século de sócrates 1 35
Outra deriva, mais técnica do que insidiosa, que nos interes-
sa mais diretamente, é a que decorre do aumento dos honorários
concedidos aos juízes, sorteados entre os cidadãos candidatos
Com efeito, isso fazia dos tribunais um meio apreciado de sub-
sistência para os cidadãos sem recursos, enquanto eram muito
menos atraentes para pessoas abastadas, sobretudo se tmham
seus próprios negócios a administrar. Resultava disso algo que
podia, às vezes, aparentar-se a uma justiça de classe: adivinha-se
que os tribunais de pobres não fossem lá muito favoráveis aos
ricos, nem tampouco aos intelectuais. Foi um tribunal desses que
condenou Sócrates.
Aristófanes faz eco a uma outra crítica dirigida aos sucesso·
res de Péricles: a vulgaridade. Como no caso de Sócrates, a figura
de Oeonte que aparece na comédia deriva da caricatura e não da
ver~ade_ histórica. Oeonte não era um pequeno comerciante da
ma15 ba1Xa extração, mas o filho de um rico curtidor. Contudo,ª
caricatura apóia-se em uma realidade social. Até então os ho·
mens políticos, democratas ou conservadores, eram todos arist0·
~tas. Péricles aliás era de um caráter distante que o deixava pauco
ª ~ont_ade para o contato físico com o povo, ao contrário de seu
p~meiro adversário, o conservador Cimon. O enriquecimento da
adade garantia a promoção de uma burguesia pouco numerosa
decerto, mas bastante rica para alguns de seus membros ambicio-
narem O acesso ao poder. Contudo esses homens não têm sem-
pre_ª educação que transmitiam as velhas famílias: por trás da
cancatura da comédi"a, sente-se a crítica feita a Cleonte de na•o
tedr ª compostura nem as maneiras distintas dos homens belll·
e ucados.
. .
Mas seria um erro acreditar que a nova burguesia · es-
tava mterramente ad · ·d , ·
dos . . . qwn a para a democracia pois N1c1as, u111
pnnapais adversári ' - er-
tencia a uma famíli . os conse~adores de Cleonte,_ nao P__
dade agrária cu·o a an~tocrata. Nao devia sua fortuna a proprte
anos da I rendtmento deve ter baixado fortemente nos
guerra do Peloponeso d
larrnente devastada
A
, , ~rante os quais a tica era_re
gu-
um lote de mil 'masª locaçao para as minas do Launon de
escravos. As exigências oratórias da atividade po·
36 1 sOcrates I seu tem110
lítica eliminavam os homens mais modestos, que não tinham feito
estudos. Para dirigir-se com eloqüência a urna assembléia de mui-
tos milhares de pessoas, era melhor ter seguido as lições dos sofis-
tas e dominar a técnica de tornada da palavra. Os filhos de uma
nova burguesia esclarecida podiam ter seguido os melhores estu-
dos e se assimilado à aristocracia, e havia"homens novos", corno
o curtidor Anitos, instigador do processo de Sócrates, que su-
priam talvez as lacunas de sua educação pela simpatia que suas
maneiras populares deviam valer-lhes junto ao povo, que se re-
conhecia seguramente mais em Cleonte do que em Péricles.
Sócrates não é evidentemente o único a ter sentido os defei-
tos da democracia ateniense. Embora Péricles tenha ficado nas
memórias como o amigo dos artistas e pensadores, de Fídias, de
Anaxágoras, de Pitágoras, seu programa político tinha já suscita-
do urna forte hostilidade. De diversos modos, Ésquilo, Eurípedes,
Tucídides, Aristófanes e outros menos conhecidos - como o cô-
mico Crátinos, de quem tudo perdemos - opõem-se à política
do campo democrata.
A simpatia por Esparta podia, pois, ter significações muito
diferentes. Podia ser entendida como um simples desejo de paz
entre os gregos, e assim, corno oposição ao imperialismo demo-
crata; ou então a rejeição da civilização centrada no dinheiro, em
favor de uma cidade ideal fundada no valor dos homens; ou mes-
mo, no pior dos casos, o dos oligarcas, a vontade de apoiar-se no
inimigo de Atenas para expulsar os democratas e instalar urna
ditadura. O pior está ao lado do melhor nessa espartofilia, de que
se podem notar alguns sinais exteriores. Com efeito, os laconô-
manos - admiradores de Esparta, cidade da Lacônia - chega-
vam a imitar o modelo de vida espartana. Cabelos longos, pouco
cuidados, vestidos de um simples manto, o famoso tribon, eles
praticavam os exercícios físicos no ginásio. Esse ginásio onde se
encontra Sócrates não é de modo algum um lugar elegante onde
se divertem graciosos adolescentes sob o olhar malicioso dos ho-
mens de uma cidade que escondia as mulheres. O esporte grego
é uma preparação militar. Em urna cidade onde a mobilização vai
o seculo de sócrates 1 37
até os 60 anos e se combate com as forças dos próprios braços,
com o peso de uma armadura sobre o corpo, a condição física é
importante e mesmo vital, já que as campanhas são freqüentes.
Mas isso não concerne à totalidade dos cidadãos, pois é preciso
um certo grau de riqueza para ser hoplita. A violência da luta
praticada no ginásio transparece no apelido de "homens de ore-
lha partida" que designava certos espartófilos: em nossos dias,
pode-se reconhecer esse traumatismo que deforma a orelha com
bastante freqüência nos jogadores de primeira linha do ruguy.
Estamos muito longe do mundo de estetas que muitas vezes se
pensou encontrar nas entrelinhas dos escritos de Platão. Em todo
caso, graças a essas rudes práticas Sócrates devia ser ainda um
sólido combatente aos 45 anos.
Sócrates encontrava-se pois muito naturalmente com ho-
mens que sua espartofilia devia por vezes levar a tristes compor-
tamentos políticos. Note-se que o aspecto, a postura que vão tor-
nar-se tradicionais do filósofo - cabelos compridos, sirnplicid~-
de austera - tinham em sua origem um significado político, si-
nal de adesão aos espartófilos. A filiação é simples: Sócrates tem
por discípulo Antístenes, e os cínicos, com Diógenes, seguidos
pelos estóicos, perpetuarão a tradição.
É difícil evitar a questão que nos constrange: como é possí-
vel que os atenienses, mesmo os mais finos, não tenham ficado
c_h~ados com o regime espartano? Se os democratas eram hos·
tis ~ grande cidade rival era para assegurar a potência de Atenas
e nao porque se opusessem a um sistema do qual se -pode cons·
ta~~ que os antigos não julgaram escandaloso, porque nunca.º
~ticam desse ponto de vista. É que Atenas não tinha quase li·
~oes ~e _humanidade a dar, primeiro em razão de sua política
impenalista e em seguida pela maneira como considerava os es·
cravos. Os escravos urbanos não eram particularmente mal ~-
t~dos, e n~ :'-1ª nada os distinguia dos homens livres; ao contra·
no,~ co ndiçao dos que trabalhavam nas minas de prata do Laurion
devia ser terrível · Ali,as foram os urucos
, . que chegaram a rebelar·
se.Vimos que Nícias, de que Platão faz um dos interlocutores do
38 1 Sócrates e seu tempo
Laques, tinha investido sua fortuna em escravos e alugava um
milheiro deles a essas minas: embolsava seus salários de minei-
ros e dava-lhes unicamente o necessário para sobreviver-o que
na certa representava uma grande diferença, pois Nícias era ex-
tremamente rico. Isso não o impedia de ser considerado um ho-
mem respeitável, e até escrupuloso; ninguém suspeitava de sua
honestidade ou de sua qualidade moral. Aliás, comprar escravos
para viver de seu salário alugando-os a empresas era uma prática
corrente, mesmo em escala muito modesta -de um artesão tra-
balhando em um canteiro com um ou dois escravos, e ficando
com seu pagamento. Para os outros gregos, os hilotas eram os
escravos dos espartanos e não se via bem quem estaria disposto
a escandalizar-se com sua condição. O escravo não é um ser hu-
mano em sentido pleno. Na Antiguidade, não se define o ho-
mem biologicamente, mas socialmente, o que explica que se pu-
desse enjeitar os recém-nascidos indesejados.
O próprio Sócrates não partilhava o preconceito corrente -
embora não universal - que impedia de ver um ser humano no
escravo. É um jovem escravo que no Mênon serve para mostrar
que o homem encontra o conhecimento no fundo de si mesmo.
Inversamente, para Sócrates, o fato de pertencer ao melhor mundo
2
não impede de ser escravo dos próprios desejos e paixões • O
cinismo, herdeiro de Antístenes, que tinha origens servis - e
herdeiro de Sócrates, de quem Antístenes era disápulo - , reto-
mará essa idéia deslocando o desnível entre liberdade e condição
servil: a única escravidão verdadeira é a dos medos e das paixões:
a liberdade depende da conquista interior, o que reativa o modelo
espartano (de que os cínicos eram herdeiros no trajar), nisso que
era percebido como desprezo das riquezas e triunfo da vontade
sobre o medo e as paixões.
. O modelo espartano pôde assim tomar significações muito
diferentes, sendo estabelecido que a servidão a ninguém choca-
va. Para uns era o sonho de expulsar a democracia e apoderar-se
o século de sócrates 1 39
do poder, sonho que se realizaria de maneira breve e sangieru.
em 404; para outros, a crítica das falhas não só políticas mas so-
bretudo morais do sistema ateniense-já ,.;mos seus limites bem
reais. Cúmulo do paradoxo, era cm nome da moral que se opu-
nha Esparta a Atenas.
O último opúsculo de Xenofonte, Dos rendimentos, cont~
proposições totalmente surpreendentes para um tradicio~
como ele. Com efeito, preconiza conceder aos metecos O ~
de propriedade quando são dignos dele (em Atenas só os cida·
dãos podiam ser proprietários fundiários); e dispensá-los de sei:·
.
vir no corpo dos hoplitas, concedendo-lhes ao mesmo tem
Poª
acesso ao corpo prestioioso da cavalaria. E isso para os atralfpa!a
ª Cl'dade, porque é neles o- · · ·dade
que repousa o essencial da atJVt .
econômica.Aliás, ao contrário de Platão, Xenofonte é favoráve\a
":'ªrinha comercial. O interesse dessa posição é que ela te:
Sido ª de um espartófilo tão marcado como Xenofonte, que 11
combatido no exército espartano, o que lhe valera ser exilado de
Atenas e perder seus bens; para compensar-lhe, os espartanos
lhe deram uma propriedade na qual viveu vinte anos. .
Isso s·gnifi · eons1·
r ~ ca que a admiração por Esparta não trazia
a adesao_a uma ideologia política. Podia-se admirar as quali·
ades ":'ºréllS e a estabilidade de uma cidade sem pretender re·
produzir suas 1· t·1 . - . igo e
. ns tu1çoes. Podia-se ser admirador, am , .
obseqwador de 1:-~....- se . . oo·op<>littco
de Es ......,... \d m por lSSO pregar o sistemas
pol'ti parta, 0 que não corresponde de todo à nossa relação co(ll
1
d ca. A_espartofilia era sem dúvida primeiro a rejeição de urna
emocraaa, cu1·os Um· ., titu·
de m · ites Iª foram vistos, em seguida uma ª
éll.S moral do que ideal , .
Lemb ra-sem ·tas ogica.
I fo
não ultrapasso w vezes que o pensamento político de P ª ª
uma dezena deu;:adro da cidade, que só iria sobreviver-~e
uma forma a on· · Certamente não pensou o Estado e teo~
com o home! . izant , te. °Ê ~ue concebe o político em sua relaçao
, IS o e, através da ed - pers·
J>ectiva, a cidade a , ~caçao e da moral. Nessa .
analogia com O h~=-ta alem disso a vantagem de se prest3!' ª
· sabe-se que, para Platão, a cidade e ª
40 1 socrates e seu lt!mpo
imagem ampliada do homem, de forma que o estudo do homem
pode ser feito mais facilmente sobre essa imagem, que tem os
detalhes mais visíveis. Tal analogia não seria mais pertinente no
caso do Estado. A leitura moral do político conduzia a abordá-lo
sob a forma mais favorável à analogia. Esta concepção moral da
política não depende só da especulação filosófica, porque parece
que foi a de Aristides, o que o toma bastante inclassificável a nos-
sos olhos. Embora pertencendo ao ambiente aristocrata, perma-
nece leal à democracia e dirige o essencial de seu combate para a
honestidade e para o serviço da cidade. A grande referência políti-
ca, e a única incontestável, deixava uma imagem de exigência mo-
ral sem nenhum conteúdo ideológico-político. Sua luta pelo bem
comum ultrapassava as diferenças de interesses, de modo que afi-
nal é difícil situá-los segundo nossos critérios, o que não será evi-
dentemente o caso para os partidários da oligarquia, que utilizam
a ação política em seu próprio benefício.
o século de sócrates 1 41
capítulo 2
D HOMEM EM SEU SÉCULO
1 43
os primeiros 45 anos de sua vida. Certamente, Platão ~-em
cena o mestre em sua juventude, fazendo-o encontrar Parmerudes
no diálogo que leva seu nome; depois, em tomo do ~no ~30, em
muitos outros diálogos. Mas esse primeiro encontro e fic?ao,ea
historicidade dos outros diálogos quase não é defendida h~e
(contêm demasiados anacronismos em relação à sua data teon·
ca). Duvida-se também se Platão pode ser considerado uma tes·
temunha confiável de encontros que se supõe ter tido lugar an·
tes de seu nascimento. Contudo não se deve esquecer que ele
esteve bastante próximo de seu mestre para conhecer os aconte·
cimentos biográficos que podemos encontrar em sua o~ra: sem
nunca saber com precisão o que é absolutamente autentico. A
isso acrescentam-se fragmentos de tradições muito diversaS,que
nos chegaram através de muitas etapas por meio de eruditos e de
compiladores geralmente desprovidos de espírito critico. A co~-
denação de Sócrates prova que o personagem foi objeto de pele·
micas, e como além disso os antigos eram grandes amadores ~e
fofocas e calúnias, às vezes vêem-se aparecer traços de um Só·
crates tão pouco simpático quanto merecedor de crédito. .
Devemos nos resignar a nunca saber como foram os pnrn -~
.
ros decênios da vida de Sócrates, mas isso não nos deve impedir
de traçar-lhes um retrato provável, na medida em que se enqua-
dre co~ as circunstâncias e a seqüência de sua trajetória. ,
S~a~es é ateniense, do demo de Alopeké, que era tarnbé~
0 de Aristides, o que explica que, conforme o Laques, seu pai,
- --~-~~-------
na indicação. Pertencendo a uma grande família e pupilo de
Péricles (seu pai morrera em 447 na batalha de Coronéia),
Alcibíades nasceu por volta de 450. Poder-se-ia deduzir daí que
Sócrates era reconhecido como mestre antes de 430, portanto
antes dos 40 anos, e que nesse momento estava próximo do cír-
culo de Péricles, vinte e cinco anos mais velho do que ele, e que
sem dúvida Sócrates pouco freqüentou pessoalmente? Pode-se
também imaginar que foi a campanha de Potidéia - e o salva-
mento de Alcibíades - que aproximou os dois homens. É prová-
vel que o aristocrata distante que era Péricles, alérgico ao contato
com o povo, quase não apreciasse esse agitador difícil de enten-
der, que muito pouco se preocupava com as boas maneiras, e que
além disso ostentava por seus trajes simpatias políticas pelo campo
adversário. Em contrapartida, Alcibíades, que foi o homem de
todos os excessos e de todas as transgressões, que teve o projeto
louco de tomar-se o senhor de um imenso império ateniense,
deve realmente ter se sentido atraído pela singularidade e pela
força de um homem que fascinava os outros, que nada temia e
n~o se deixava prender nem pelas convenções nem pelas arma-
dilhas que a sociedade nos prepara. De resto, esse laço com
Alcibíades e, portanto, através dele com o círculo de Péricles,
mostra que Sócrates também freqüentava os partidários da de-
mocracia, mesmo se Platão o apresenta na maioria das vezes com
os conservadores, como Nícias (mas aqui a cena que figura even-
tualmente no Laques é datada de 420). Enfim, esse mesmo diálo-
go (180 d-181 a) mostra-o com Lisímaco, o filho de Aristides,
que se lembra do pai de Sócrates, que foi seu companheiro de
~as e permaneceu seu amigo até sua morte; nesse momento
so conhece a Sócrates como filho de Sofronisco, porque vive reti-
rado há muito tempo, mas seus filhos freqüentam o filósofo.
Esse vínculo com a família de Aristides deu lugar a um desen-
vo~vi~ento inesperado: segundo muitos autores, entre os quais
Aristoteles, Sócrates tinha casado com Mirto, para uns, a filha,
para outros a neta ou mesmo a bisneta do político. O mais sur-
preendente é ver aparecer um Sócrates bígamo. O casamento
I es e !leu191nQa
texto no primeiro grau porquanto Sócrates parece ironizar com
seu interlocutor, e por ser a encantação xamânica a metáfora do
logos, do discurso racional.Também é dilicil imaginar que o hoplita
em ação tenha podido esquivar-se para fazer-se iniciar por um
feiticeiro trácio. Enfim, vimos que esse diálogo não poderia ser
histórico.
Platão desenvolve provavelmente aqui o testemunho de
Alcibíades dando-lhe uma chave de interpretação que não nos
espantará. Sócrates conheceu em Potidéia um de seus êxtases -
voltaremos a falar disso-, que Platão liga às tradições vincula-
das ao xamanismo órfico. Nota-se ainda que a prece ao sol
reconduz ao contato xamânico com os elementos naturais, longe
dos templos, dos altares e dos ritos. Deve-se também considerar
significativa a idéia de que a cura se obtém por um trabalho so-
bre a alma por meio do logos, e que Sócrates se entrega a uma
longa sessão de meditação destinada a afastar os perigos? A úni-
ca coisa que podemos afirmar é que Platão deixa supor para esse
estranho episódio uma interpretação xamânica que funciona
como uma metáfora.
A experiência de Potidéia, qualquer que tenha sido, foi deci-
siva para Sócrates? Os diálogos de Platão situam-se sempre de-
pois desse acontecimento, com exceção do Pannênides, queima-
gina um Sócrates jovem, iniciado à filosofia pelo velho eleata, e
do Protágoras, cuja cena fictícia data-se muitas vezes de 431, an-
tes da guerra do Peloponeso e da morte de Péricles, ser dar-se
conta de que isso supõe que Sócrates não esteve em Potidéia.
Deve-se dar uma significação ao fato de que Platão nunca
representa Sócrates como um mestre antes de 430? A ignorância
que tinha dessa época não é razão suficiente para esse silêncio,
pois não hesita em imaginar um diálogo tão improvável com
~ênides. Se reconstituímos uma cronologia da formação de
Socrates a partir dos diálogos de Platão, vemos que se escalona
por vinte anos, começando em 450 pelo encontro com Parmênides
e terminando com a experiência de Potidéia, donde regressa com
esse estatuto de mestre. Entre as duas datas podia-se colocar 0
1 67
gloso, m s o mestre é também visado enquanto tal. Duplo es-
cândalo p.1ra nós: o iniciador da filosofia é condenado por ter
corrompido seus alunos, e o homem que, a alguns instantes da
mortt•, afirmará a seus discípulos sua rejeição ao materialismo e
sua fé na imortalidade da alma é considerado um ateu. A conde
nação de Sócrates nos aparece como o equívoco mais absoluto.
Fnfim, como se vê na Apologia, é um sofista que se condena em
Sócrate~, de que nunca deixou de combatê-los.Anitos detestava
os sofi tas. Como tal mal entendido foi possível?
Para além da hostilidade de Anitos, há que colocar o proces
so em seu contexto político. Se este está ausente das peças do
dossiê que podemos reconstituir, é simplesmente porque depois
dos dramáticos acontecimentos da tirania dos Trinta a anistia ti·
nha sido decretada, sábia medida para evitar um interminável
acerto de contas. Aliás a justiça não tinha sido demasiado lesada
por e~~e pragmatismo, já que os principais responsáveis políticos
pela ditadura tinham todos perecido nos combates graças aos
quais a democracia fora restabelecida. Já vimos que Sócrates em
nada participou desse assunto, que poderia ter más conseqüên·
das para ele, mas tinha estado próximo de Crítias e de Cármides.
linha também contado entre seus discípulos o ultrademocrata
Alcibíades, do qual Atenas tinha acabado por cansar-se, devido a
um erro militar de que não tinha culpa alguma: a cidade conde-
nou aquele ao qual tinha tanto perdoado, quando, por uma vez,
ele nada tinha de que ser acusado, e sobretudo quando era talvez
o único capaz de salvá-la da catástrofe .
.Desse ponto de vista, o balanço pedagógico de Sócrates era
efetivamente desastroso. Se para nós o filósofo é, antes de tudo,
o m~stre de Platão, este, no momento do processo, era somente
um Jovem de 27 anos que nada ainda tinha feito; aliás, seu pa-
rentesco com Crítias e Cármides não devia tomá-lo particular·
m:~te simpático ao júri popular que Sócrates enfrentava.Ao con·
trano, P~ os atenienses, aquele que iam julgar tinha tido par
alu~o ~ais marcante aquele cujos excessos tinha levado a demo·
cracia a sua perda, e dois dos tiranos mais sanguinários dos acon·
o processo 1 69
Há portanto que tomar a sério o caráter religioso do processo.
Atl•nas conheceu e conhecerá ainda processos religiosos.
Anax.1goras, Protágoras e mais tarde Aristóteles deverão fugir da
cidade diante das acusações de ateísmo ou impiedade. Os filóso-
fos não são evidentemente as únicas vítimas desse tipo de ações.
Se alguns processos às vezes acobertaram acertos de conta de
ordem política, outros eram realmente religiosos. Paralelamente
no processo da mutilação de Hermes, desastroso para Alcibíades,
que ~m dúvida nada tinha a ver com isso, rebentara novo escân-
dalo: um grupo de homens se teria entregue a uma paródia dos
mistérios de Elêusis. Esses procedimentos foram levados a sério,
e um dos denunciados, Fedro, teve de fugir para salvar a vida,
mas perdeu todos os bens. Esse escândalo pode surpreender,
quando se sabe que Aristófanes, dez anos mais tarde, vai escre-
ver em As rãs uma paródia dos Mistérios que apresenta Dioniso
em situações perfeitamente grotescas, e isso não impediria a peça
de obter o primeiro prêmio. Essa espantosa diferença de trata-
mento não pode ser explicada a não ser considerando que não
era a paródia em si que escandalizava, mas o quadro em que se
exercia. Uma paródia aberta, bufonaria oficial integrada no qua-
dro da cidade, como o teatro de Aristófanes, não chocava. Sem
dúvida, o caráter privado e, sobretudo, o segredo é que escanda-
lizavam. Os gregos desconfiavam dos cultos privados e rejeita-
vam os que não eram reconhecidos pela cidade. Os cultos sobre
os quais a cidade não exercesse o controle eram inquietantes; tal-
vez se associasse a eles o medo de uma feitiçaria que se sabe ter
sido largamente praticada. A rejeição dos cultos privados encon-
tra-se aliás em Platão. A acusação de inovação religiosa e de culto
privado é pois de todo pertinente em Atenas. Sócrates é acusado
de não reconhecer os mesmos deuses que a cidade, e de introduzir
algo de novo na ordem do divino. É uma acusação grave.
Curiosamente, também desse ponto de vista, Sócrates tem
"más freqüentações", já que Fedro, que só poderá entrar arrui·
n_ado em Atenas por benefício da anistia de 403, fazia parte d~
arculo de Sócrates. Além do diálogo que leva seu nome, e onde e
o processo 1 71
cracia encontra-se fora do jogo; a grande questão que se põe é
provavelmente: como se chegou a esse ponto? A isso se pode
supor uma resposta que soa um pouco como: "Odeio essas men-
tiras que vos fizeram tanto mal" . Se a cidade se perdeu, foi pot
ter sido mal dirigida. Todos esses belos fazedores de discursos a
arrastaram por uma ladeira ruim: aliás, alguns dos sanguinário,
tiranos de 404 não eram brilhantes intelectuais? Os professores
perverteram as elites cultivadas dando-lhes meios de demons·
trar qualquer coisa e de obter a adesão da Assembléia por artilí·
cios enganosos que possibilitavam fazer do povo seu joguete. O
processo de Sócrates é o dos sofistas. Estes não podiam ser per·
seguidos: na maioria eram estrangeiros e não estavam pr~sent~-
Entre os que são considerados sofistas encontram-se porem do~
atenienses. Antífon, que dirigiu uma primeira e efêmera tentab·
va de ditadura em 4112, o que lhe valeu ser condenado à morte, e
Crítias... Se se considera Sócrates o terceiro sofista ateniense (o
que é paradoxal para nós, mas não para seus juízes, porque
Aristófanes o tinha explicitamente qualificado de sofista em 4Z3),
sua condenação pode parecer lógica.
Os intelectuais perturbaram a cidade com suas idéias novas,
mas também havia vários ímpios entre eles: de Anaxágoras ao
ateu C~~as, passando pelo agnóstico Protágoras, eles rejeitar~
as tradiçoes. É natural imputar uma catástrofe a uma falta reli~-
osa, sobretudo na mentalidade grega formada nessa mitologi_a
em que os _atos terminam sempre por ser pagos pelo preço mais
el~ad?·_Socrates encontrava-se sem dúvida em posição de bode
exp,aÉtono,_por ter ultrajado as tradições relioiosas da cidade.
_ Preaso po15
· nao
- se enganar sobre a atmosfera
o· da restaura·
çao da democracia que põe fim à ditadura. É um período de or-
dem moral, de recuo para um tr di - b· a
· Aris , f ª a çao com a qual não se nnc
md ais. to ~nes muda de tom, e nas suas últimas peças aban·
ona suas cnticas ferozes ao mundo políti'co e sua paro'd'1a do
0 processo 1 73
ou .e comprometeram na recente tormenta e duvida-se se o jo-
, cm Platão era bem colocado para defender seu mestre: os
tcnicnscs só podiam então ver nele o sobrinho de Crítias e de
Cám1idcs - o representante de tudo o que detestavam.
Ahás, o próprio desenrolar do processo parece ter sofrido
um deslize ou talvez mesmo escapado às intenções reais de seus
mstig.idorcs. Os juízes deviam pronunciar-se duas vezes. Na pri-
meira vez, tratava se de determinar se o acusado era culpado, o
que foi feito no caso de Sócrates, mas com uma fraca maioria. A
segunda vez decidia a pena. Os acusadores pediam a morte e o
acusado devia propor uma outra pena, mas a decisão cabia ao
tribunal. O processo se decidiu nesse momento: Sócrates come-
çou dizendo que merecia ser sustentado no Pritaneu, honra in-
signe, pelo bem que fizera à cidade, e propôs como pena uma
multa ridícula. Seus amigos intervieram em seguida propondo
uma soma muito mais importante, mas era tarde demais, e o tri-
bunal teve o sentimento de que Sócrates zombava dele. Votou a
morte com uma maioria mais forte do que tinha votado a culpa-
bilidade. Notemos que o modo de execução era o menos terrível
do:. suplícios possíveis.
Pode-se pensar que a acusação não esperava tanto. É prová-
vel que pedisse o máximo para obrigar Sócrates a fazer uma
contraproposta de peso. O exílio teria sem dúvida bastado, talvez
fosse esse o desejo de Anitos. Em todo caso, como mostra Críton,
alguns discípulos tinham organizado uma evasão, que só depen-
dia da aceitação de Sócrates, mas ele recusou argüindo sua obe-
diência às leis. A facilidade com que Sócrates teria podido fugir
deixa supor que, embora estivesse acorrentado na prisão, a cida-
de não fazia verdadeiramente questão de deixar o assunto de-
senrolar-se até seu termo. A ironia, e em um segundo tempo, o
rigor de Sócrates talvez tenham selado um destino que seus ini-
migos não lhe tinham voluntariamente preparado.
Provavelmente Sócrates só tinha muito poucos inimigos
mortais, e a cidade bem depressa o considerou um pensador de
primeira importância.A corrente anti-socrática ficará amplamente
º processo 1 75
nha reunido elementos diversos correspondentes à idéia que ti
nha da morte filosófica de Sócrates, mas, na falta de uma verda
de histórica absoluta, que seria bem difícil provar, respeitou cer-
tamente uma verdade filosófica e um mínimo de verdade factual.
Com efeito, as testemunhas eram suficientemente numerosas para
que se encontrasse alguém para restabelecer a verdade se tivesse
sido demasiadamente distorcida. Tratava-se dessa vez de um
acontecimento real e não mais, como nos outros diálogos, de uma
ficção.
Acidente da história e da rotina processual, a morte de
Sócrates tomou-se o lugar de nascimento da filosofia. O choque
decidiu sem dúvida a vocação filosófica de Platão, como ele diz
em sua Carta VII, e consagrará uma parte considerável de sua
obra a fazer reviver seu mestre, pondo-o em cena em seus diálo-
gos. O estatuto de mártir e a grandeza de sua morte autentica·
vamo filósofo e validavam seu pensamento. Alguns tinham visto
nele um bufão, outros um discutidor impenitente, outros um
mestre perigoso; a única imagem que resta agora é a de um ho·
mem totalmente sincero, iniciador do pensamento mais elevado.
A obra de Platão constitui uma longa reabilitação póstuma de
seu mestre, é ela que inaugura o corpo da filosofia não só porque
é seu lugar de nascença, mas também, mais materialmente, por·
que é a única obra de toda a Antiguidade clássica e helenística a
ter chegado integralmente até nós.
O MESTRE PARADOXAL
capítulo 1
RETRATO DE SÓCRATES
COMO XAMÃ
-
de que Sócrates tenha tido a disponibilidade de seguir uma inicia-
1 79
ção xamânica durante o cerco de Potidéia não é crível, o que e-.1-
dentemente não exclui que tenham podido suceder encontros
fortuitos. Enfim, se Sócrates se apresenta a Cárrnides como xamã.
é ao mesmo tempo uma astúcia - pode confiar nele para lhe
curar as dores de cabeça - e uma metáfora: Sócrates cura aalma
pela palavra, como os xamãs curam por seus encantamentos.
É impossível sustentar que Sócrates tenha realmente prati-
cado o xamanismo, o qual, quanto o conhecemos pela etnografia.
está também bastante afastado da dialética socrática. Deve-se,
por isso, ver aí somente uma metáfora? Em todo caso, é dificil
imaginar que ela seja gratuita. Por que apresentar Sócrates des<.e
modo? Aliás, nada impede que ele mesmo tenha reivindicado
essa identidade de empréstimo, como reivindica a de parteiro.
Sócrates diz a Cármides que se tomou xamã em Potidéi~
mas a questão ultrapassa as simples necessidades do diálogo, 1a
que, como também vimos acima, a mesma campanha militar-
donde se pode pensar que voltou transformado- é o teatro dessa
incrível meditação de 24 horas contada pelo Alcibíades de OBan·
quete. Sócrates imóvel, insensível às exigências normais do corpo
e a tudo o que ocorre em tomo dele, totalmente ausente, parece
na verdade fazer uma dessas viagens da alma de que se encon-
tram traços no xamanismo grego. Um vez de regresso à realidade
normal, faz uma prece ao sol, e vai embora, provavelmente para
um dia como os outros, depois desse inverossímil parêntese. A
própria prece é enigmática, porque os gregos oravam essend~-
mente aos deuses de seu panteão, mas não ao sol. Essa maneira
de retomar contato com a realidade ordinária sinala sem dúvida,
0 car~te~ so~renatural da experiência. Quanto ao d;stinatário da
82 1 o mestre paradoxal
mesmo um pouco de desordem, prefere-se não falar demais, em-
bora admitindo que Sócrates tinha um lado de atraso. As rela-
ções de Sócrates com o sobrenatural constrangem, como expri-
me a confissão ingênua de um intérprete autorizado: "Temos
primeiro de enfrentar um fato concernente a Sócrates, de tal mo-
do embaraçoso para os leitores modernos que fez sucederem e
numerosos trabalhos de especialistas que buscam explicações
para esvaziar o problema [... ] trata-se do fato de que Sócrates
aceita o sobrenatural". É preciso porém resignar~se "Sócrates,
que de tantas maneiras está adiante de seu tempo, nesse domí-
nio do pensamento é um homem de seu tempo" 3 • O pudor dos
intérpretes diante da incongruência socrática é o mesmo que ~
durante muito tempo velou as crenças e os centros de interesse
de Kepler ou de Newton, homens esclarecidos mas que tiveram
também suas fraquezas.
Mostraremos, ao contrário, que a relação de Sócrates com o
sobrenatural é o motor mesmo de seu pensamento. É sobre essa
relação com o sobrenatural, e não apesar dela, que Sócrates cons-
trói seu pensamento até no que tem de mais iniciador da mo-
dernidade.
Mas seria preciso que isso fosse certo. Podia-se objetar que
dependemos aqui inteiramente do testemunho de Platão, sobre
cuja confiabilidade é a priori proibido questionar. A dúvida vem da
maneira como Aristóteles apresenta Sócrates: um pensador que
fez a reflexão voltar-se para a moral, negligenciando o estudo da
natureza, e que visando ao universal foi o primeiro a procurar de-
finições4, Um Sócrates totalmente diferente aparece aqui, espírito
racional que Aristóteles critica pela estreiteza de seu campo de es-
tudo. Pode-se ser tentado a imaginar que Platão fez de seu mestre
0yorta-voz de seu próprio espiritualismo, uma ficção a que Aris-
84 1 o mestre paradoxal
tamente Aristófanes. O interesse de Aristófanes é antes de tudo
cronológico: Platão tinha 4 anos quando os atenienses assistiram
à representação de As nuvens que põe em cena um Sócrates que
Platão não conheceu; e a isso há que acrescentar que os diálogos
de Platão serão posteriores de muitas décadas. Além disso, Aris-
tófanes não tem filosofia pessoal que pudesse atribuir a Sócrates,
como se suspeita que Platão fez. Entretanto, pode parecer singu-
lar utilizar essa caricatura burlesca que são As nuvens, peça sobre
a qual houve muito equívoco, mas da qual certos intérpretes re-
velaram toda a importância. Um leitura em primeiro grau mostra
um Sócrates que nada tem a ver com o de Platão, a ponto de se
ter às vezes pensado que o desnível se deveria a uma evolução de
Sócrates.
A peça desorienta os que não percebem sua natureza. Por
estranho que possa parecer, nem sempre se percebe que se trata
de urna obra cômica, cujo único objetivo é fazer rir a todos os
atenienses, pois o espetáculo foi realizado no quadro das Gran-
des Dionisíacas, festa da qual participava o conjunto de cidade. A
lei do gênero era um burlesco sem limites. O teatro de Aristófanes
apresenta seus alvos de maneira excessivamente grotesca, quer
se trate dos políticos mais em vista ou mesmo de Dioniso, nas Rãs,
sem que isso trouxesse aborrecimentos para seu autor. Éum imenso
desrecalque coletivo, em que se concede o direito de rir de tudo, o
que se compreenderá mais depois da reação que se segue ao
restabelecimento da democracia em 403. Aliás, como atesta O Ban-
quete, Sócrates e Aristófanes não eram nada inimigos.
Para utilizar a peça, deve-se evidentemente proceder a uma
descodificação, isto é, descontar a distorção. Já que se trata de
uma caricatura, sabe-se que o traço é forçado, mas para ser per-
cebida como uma caricatura é necessário que o modelo seja re-
conhecido por trás de sua deformação. Lembremos o roteiro.
Estrepsíades, um camponês arruinado pelos gostos de luxo de
se~ filho, Fidípedes, é perseguido por seus credores. Apresenta-
se ª escola de Sócrates para aprender a fazer triunfar a causa mais
fraca sobre a mais forte, 0 que lhe devia permitir desembaraçar-
86 1 o mestre paradoxal
Deve-se lembrar que nossa classificação das ciências não é a
mesma que a dos antigos. Para os gregos a astronomia matemá-
tica faz parte das matemáticas, por oposição à física, que trata das
propriedades dos corpos, reduzindo-os a seus elementos e a suas
qualidades: o seco, o úmido, o pesado, o leve etc., abordagem
qualitativa que, é claro, não corresponde mais aos critérios da
ciência moderna que se construiu matematizando-se. Para os
gregos, a medida da terra é uma questão matemática, e não físi-
ca. Se Sócrates mede a Terra e o salto de pulga é porque ele é
matemático, o que não é incompatível com o testemunho de
Platão. Sem dúvida também há um jogo com o tenno "geome-
triaH, cuja ambigüidade pode-se traduzir em português pela que
conservou para nós a palavra geômetra. Sócrates é geômetra. -
Então, é agrimensor? - Não, pois não são parcelas de terra que
mede, mas a Terra inteira9 • Essa generalidade exprime provavel-
mente a abstração matemática ao mesmo tempo que a generali-
dade física da Terra.
Vejamos como se faz o encontro de Estrepsíades com o mes-
tre. Um discípulo introduziu no "pensadeiro" um novo aluno:
Sócrates está no ar, num barquinho suspenso:
Ando nos ares e olho o sol. Nunca, com efeito, teria deslindado exa-
tamente as coisas celestes se não tivesse elevado meu espírito e con-
fundido meu pensamento sutil com o ar semelhante. Se tivesse fica·
do na terra para observar de baixo as regiões superiores, nunca teria
descoberto nada; não, porque a terra forçosamente atrai para ela a
seiva do pensamento. É exatamente o que acontece com o agrião'º.
9- Cf As nuvens, 202-204.
10. Ibid., 225-243, trad.Van Daele, CUF.
11. Ibid., 258, 303.
88 1 o mestre paradoxal
Assim, abstraindo do tom e do conteúdo da paródia, Aristó-
fanes confirma amplamente os aspectos de Sócrates que Platão
evocava com a metáfora do xamanismo. A iniciação aos Misté-
rios resultava em uma visão, a epoptia, que aparece freqüentemente
no Sócrates de Platão, de modo que também nesse ponto Aristó-
fanes traz uma preciosa caução ao testemunho de Platão.
Parece, pois, que o êxtase esteja no coração do pensamento
de Sócrates. É nesse vôo da alma que ele pode contemplar a rea-
lidade, libertado da terra, e tenta, por uma combinação de disci
plina intelectual, de ascese e de meditação, provocá-la em seus
discípulos. Há, porém uma diferença entre Aristófanes e Platão:
As nuvens mostram um verdadeiro mestre, instalado em uma es-
cola organizada, o que não parece ter sido o caso, pois Sócrates é
essencialmente conhecido como o filósofo de rua. Primeiro se
notará que era preciso um lugar para a peça, e depois que no fim
Estrepsíades incendeia o "pensadeiro" - sem dúvida uma alu-
são ao fim da escola pitagórica, paralelismo que pela conotação
de estranheza iniciática remete também ao aspecto xamânico de
Sócrates. Se esse aspecto nem sempre aparece com evidência em
Aristófanes, é por ser perturbado por duas interferências.
A primeira é que Sócrates ensina o ateísmo: os deuses não
existem18, e quando chove é por causa das nuvens e não porque
Zeus orvalha a Terra. Como veremos, Sócrates rejeita efetivamente
a mitologia politeísta. Quanto a misturar esses deuses em que
não acredita com os fenômenos terrestres, o leitor de Anaxágoras
que ele foi sabe que não passam de contos irracionais, e que es-
ses fenômenos têm uma causa natural (distinge-se de Anaxágoras
nisto: se não rejeita a causalidade natural, considera que essa su-
põe uma outra, que lhe é superior). Sócrates é um "físico" para
Aristófanes, porque substitui a explicação mitológica dos fenô-
menos pela causalidade física, mas não o é para Aristóteles, por
não ter elaborado uma teoria física.
90 1 o mestre paradoxal
encantar os seres humanos com ajuda do poder de seu sopro, e é o
que se faz hoje em dia quando se tocam suas músicas no aulos. Eas
músicas de Mársias, se interpretadas por um bom tocador de aulos,
são as únicas capazes de nos pôr em um estado de poc;sessão, e
porque são músicas divinas, capazes de fazer ver quais são os que
têm necessidade dos deuses e de iniciações. Mas tu te distingues de
Mársias em um só ponto: Não tens necessidade de instrumentos, e
é proferindo simples palavras que produzes o mesmo efeito [."]
Cada vez que a ti se ouve, ou se escuta uma pessoa que está trans-
mitindo tuas falas [...) ficamos perturbados e possessosN.
Quando lhe escuto meu coração bate muito mais forte do que o
dos Coribantes e suas palavras me tiram lágrimas21•
"Nesse momento mesmo - vejo-o bem - não sei por que magia
ou que drogas, por tuas encantações, tu me enfeitiçaste tão bem
que tenho a cabeça cheia de dúvidas. Ousaria dizer, se me permites
um gracejo, que me pareces assemelhar-te totalmente pelo aspecto
e por tudo mais a esse grande peixe do mar que se chama um tor-
pedo. Esse entorpece mal alguém se aproxima e o toca: tu fazes
experimentar um efeito semelhante. Sim, estou de todo entorpecido,
de corpo e de alma, e sou incapaz de responder-te. Contudo fiz
cem vezes discursos sobre a virtude, diante das multidões, e creio
92 1 o mestre paradoxal
que sempre me saí muito bem. Mas hoje é impossível dízer sequer
o que é a virtude! Tu tens toda a razão, acredita-me, em não qul'rer
nem navegar nem viajar fora daqui: em uma cidade estrangeira,
com uma igual conduta, não tardarias a ser preso como fciticeiro?5.
25. Mênon, 80 a-b. Notemos que, como nosso idioma, a língua grega
!em n~n_ie para feiticeiro (goes) mas não para xamã, que designa, por alusão
ª mediana trácia, as mitologias órfica e dionisíaca, e aos personage_ns_ ~e
Zalmons e Abaris, enquanto adotamos simplesmente um termo origmano
da_Sibéria. Figura de uma alteridade sem nome, o xamã é por essência estran-
gerro, c?mo Dioniso era um deus estrangeiro para os gregos, mesmo perten-
cend0 a cultura grega desde a época mais antiga.
26. República, 11, 358 b.
27. 60 e.
28. A operação consiste evidentemente em escrever um poema e pôr·
lhe música.
29. 44 a.
30. 33 e
31. 202 e; 203 a.
94 1 o mestre paradoxal
através de sonhos, ou por intermédio de oráculos. Pensa-se c\i•
dentemente no papel que Sócrates atribui ao oráculo de Delfos
em sua vocação.
Quanto ao "demônio" de Sócrates, desde a Antiguidade sus-
àta toda uma literatura, o que prova que a coisa não era ób"ia. Um
daimon é ao mesmo tempo um mediador e um mensagciro12 (isto
é, o que para nós é um anjo). Na realidade, o famoso "demônio"
de Sócrates não é um demônio. Não emprega o nome daimon,
mas seu adjetivo, daimónios-demônico.AApologia atesta a exa-
tidão dessa nuança. Com efeito, acusado de ateísmo (porque não
acredita nos deuses do Panteão), Sócrates refuta Meletos demons-
trando que esse se contradiz: pretende que ele é ateu quando ele
reconhece realidades demônicas (6mµóvi.a npá-yµarn). Se ele
crê nas coisas demônicas, é que crê nos "demônios"; ora, não há
"demônios" sem deuses, de sorte que a acusação de ateísmo não
se sustenta13• É notável o caráter negativo da argumentação:
Sócrates demonstra que não pode ser acusado de não crer nos
deuses, mesmo conseguindo não afirmar positivamente que acredi-
ta neles. Essa nuança sutil revela uma oposição teológica radical.
Sócrates rejeita o Panteão mitológico grego, e nesse ponto nada
cede a seus acusadores. Justifica-se simplesmente mostrando que
sua posição é incompatível com o ateísmo de que o acusam; mas
que deus (ou deuses) admite? A resposta não está na Apologia.
Mais adiante volta a falar de sua relação com o demônico.
Os atenienses ouviram-no muitas vezes dizer que se produzia
para ele algo divino ou demônico34:
Isso começou desde minha infância, uma voz que só se produz para
me afastar do que vou fazer, mas não me impele nunca a agir.
35. 272 e.
36. Tttteto, 151 a.
37. Eutifran, 3 b.
96 1 o mestre paradoxal
leva ao xamanismo de Sócrates. Como tinha notado Boyancé ,
Orfeu é o santo protetor dos xamãs.
Tudo seria assim claro se Platão, aliás, não condenasse 51.."'>\cra-
mente os órficos. Charlatães utilizam os poetas, Orfeu e Museu 39
para atrair não só particulares, mas também cidades, onde instau-
ram cultos sacrificiais, iniciações que supostamentee asseguram a
felicidade no Além 40 • Como Platão podia rejeitar tão radicalmentl'
o orfismo quando atribui a Socrates tantos traços órficos?
Os intérpretes esquivam-se geralmente do problema supon-
do que Platão visa aqui órficos transviados. Na verdade, como
mostrou Boyancé41, esse texto refere-se a um orfismo oficial por-
que se trata de cultos e iniciações de uma cidade na qual só se
podia reconhecer Atenas. Como pode Platão, que atribui tantas
vezes a Sócrates a metáfora da iniciação nos Mistérios, criticá-los
de forma tão radical? Críticas radicais emitidas por Glauco, ir-
mão de Platão, que se dirige a Sócrates. Que pontos criticam? O
fato de que charlatães pretendem que os sacrifícios podem apa-
gar o mal que se cometeu e que a iniciação confere à alma a cer-
teza de uma vida feliz depois da morte, seja qual for seu valor
moral; o que era efetivamente o caso dos mistérios de Elêusis. O
ataque refere-se pois a elementos reais importantes da religião
ateniense, os cultos sacrificais e os Mistérios, e não simplesmen-
te a comportamentos individuais transviados.
Se Platão rejeita o orfismo, embora fazendo - e com que
acúmulo de traços - de Sócrates um personagem órfico, isso só
pode ter uma razão: Sócrates é o Orfeu verdadeiro. É sem dúvida
o sentido do sonho recorrente que o in tirnava a praticar a música,
42
arte das Musas, que insuflam ao homem a inspiração divina • O
mito de Er, que encerra a República, mostra as almas escolhendo
38. P BovANct., Le cu/te des Muses chez les philosophes grecs, 1936; 3. ed ..
1993, 59.
39. Filho de Orfeu.
40. República, II, 364 b; 365 b.
41. Op. cit., 11-31.
42. Cf. Fedro, 245 a.
98 1 o mestre paradoxal
Certos intérpretes partem do princípio de que os primeiros
diálogos de Platão estão mais próximos de Sócrates e, portanto,
veiculam uma imagem mais exata do que os diálogos mais meta-
físicos da maturidade. Daí deduzem que Platão progressivamen-
te teria feito de seu mestre o porta-voz de uma mística alheia ao
socratismo. Essa reconstituição não pode ser defendida porque,
como mostram a Apologia (que se concorda em datar do primeiro
período de Platão), e, de maneira ainda mais decisiva, a sátira de
Aristófanes, a relação de Sócrates com o sobrenatural é incontestá-
vel. Não se vê como um homem que vivia sua relação para com o
divino até nas banalidades do cotidiano teria podido não ser místi
co. A questão é saber em que isso pôde participar na elaboração
de seu pensamento.
1 101
nheíros para explicar-lhes, vai chocar-se com seus risos e logo
com seu ódio. Irão matá-lo, se puderem.
Símbolo da aventura socrática, a alegoria articula-se sobre a
oposição entre duas realidades. A das sombras, que constitui nossa
realidade ordinária, e uma outra realidade, incomparavelmente
superior, que permite compreender a primeira e apreender a or•
dem universal, mas à qual só se tem acesso ao preço de uma
longa ascensão. A alegoria insiste nas provas da subida e na im·
possibilidade de comunicar aos outros a realidade verdadeira que
se contemplou, pois só a contemplação dessa realidade revela
que a realidade ordinária não passa de sombra.
O conhecimento autêntico é portanto incomunicável; não
pode ser demonstrado porque só é dado na visão que supõe uma
longa preparação. Realiza-se unicamente em uma experiência
espiritual. Isso significa que a verdade não pode ser dita - não é
da ordem da palavra, pennanece definitivamente inexprimível
irredutível à linguagem1, e por conseguinte à demonstração.
A relação de Sócrates com a palavra é singular. Primeiro, se_a
verdade escapa necessariamente à palavra, esta pode ao contra·
rio desalojar o erro, de modo que a refutação tem um papel es·
sendal na argumentação. A primeira etapa da ascensão P~ ª
verdade consiste em desembaraçar-se de suas falsas concepçoes.
O mesmo esquema se reencontra freqüentemente nos diálogos
de Platão: afinnando sua ignorância, Sócrates pede a seu interlo·
cut~r para definir uma noção geral que parece evidente, mas q~e
rapidamente se parte em estilhaços. Posto em contradição consi·
go mesmo, aquele que acreditava saber - o que aliás todo mun·
do acre~ta saber - dá-se conta de que era só ilusão, de que seu
conhecimento não é fundado. Tem pois de buscar um outro, mas
dessa_ ~ez a palavra não pode conseguir, donde o fracasso final
dos diálogos aporéticos, isto é, que ficam sem resposta; mas ago·
, . 1· Daí _resulta que uma filosofia que adota por método e corno limiteª
analise ~a linguagem não escolhe o melhor ponto de vista para cornpreen·
der Platao.
2.V, 475 e.
3. O 'PLÀo8eáµwv é aquele que ama contemplar os espetáculos.
-
uma explicação alegórica? Aqui a reminiscência permite dizer que
8. Fedro, 245 a .
9. lbid., 245 bc.
Eis pois o caminho certo que se deve seguir no domínio das coisas
do amor[....]: trata-se, tomando seu ponto de partida nas belezas
aqui da terra para ir em direção àquela outra beleza, de elevar-se
sempre, como por meio de degraus, passando de um só belo corpo
a dois, de dois belos corpos a todos os belos corpos, e dos belos
corpos às belas ocupações e das belas ocupações aos belos conhe-
cimentos que são certos, depois, dos belos conhecimentos que são
certos a esse conhecimento que constitui o termo, que não é outro
senão a ciência do belo mesmo, com o fim de conhecer finalmente
o que é a beleza em si.
Nesse ponto de vista, meu caro Sócrates, retomou a estrangelJ'a de
Mantinéia, é que se situa, mais do que em qualquer outro, o mo-
mento em que para o ser humano a vida vale a pena ser vivida,
porque contempla a beleza em si mesma. Se um dia chegares a
essa contemplação reconhecerás que essa beleza é sem compara
ção com o ouro, os adornos, os belos meninos e os belos adoles-
centes cuja vista te perturba no presente13. Sim, tu e muitos outros,
que desejaríeis contemplar sempre vossos bem-amados e sempre
desfrutar de sua presença, se a coisa fosse possível, vós estais pron-
tos a privar-vos de comer e de beber, contentando-vos com con-
templar vossos bem-amados e gozar de sua companhia. Por conta
. 12. No termo da iniciação era dada uma visão, a epoptia, cuja natureza
ignoramos, mas que Platão toma por metáfora do saber.
l3. Platão utiliza naturalmente a concepção do amor, no caso, pederasta,
q~7 ele Partilha com seu meio social, mas, como se viu, que não era a que
VIVJa realmente Sócrates.
1 117
As necessidades criadas tanto pelo sistema democrático como
por um recurso permanente aos tribunais tinham levado as pes-
soas mais abastadas a dar a seus filhos uma formação intelectual
centrada na palavra, para lhes abrir a carreira política mas tam-
bém, muito simplesmente, para perrnitir-lhes defender-se diante
da justiça. O enriquecimento rápido de Atenas tinha-lhe permi-
tido atrair os melhores professores. Esses sofistas não eram só
conferencistas brilhantes; tinham estabelecido um verdadeiro a-
do de estudos, que naturalmente faziam pagar bastante caro.
Assim traçaram o primeiro esboço de ensino superior.
Sabe-se que Sócrates se opunha a esses professores sobre a
questão de pagamento das aulas. Admirável Sócrates, certamen-
te, mas que se aplaude muito de longe, pois hoje ninguém pen·
saria em fazer os docentes trabalharem sem pagamento. Uma
certa dúvida aliás paira sobre a situação real de Sócrates: se ele se
consagrava inteiramente ao ensino, não tendo fortuna pessoal,
devia fazer-se sustentar por seus alunos. Viu-se o papel financei-
ro que o rico Críton pôde desempenhar na vida de Sócrates, mas
pode-se pensar que sua freqüentação da mais alta sociedade lhe
terá também trazido um apoio material. Em contrapartida, quando
Cármides lhe ofereceu escravos para lhe proporcionarem uma
renda, ele os recusou1. Vimos acima que a locação de escravos
para os canteiros ou para as minas perrnitia garantir-se uma re~-
da, como fazia Nícias. Sócrates não critica Nícias, mas não aceita
fazer o mesmo.
De qualquer maneira há uma diferença importante: os sofis·
tas ganhavam muito dinheiro, enquanto Sócrates, embora vivendo
provavelmente graças à ajuda de seus discípulos, contentava-se
com muito pouco. Mas em que fica o princípio?Trata-se somente
de cobrar honorários modestos?
Sem dúvida, o problema não está aí mas no fato de que 0
ensinamento não se liga ao comércio. S~ o professor faz pa~
seus cursos, emtão considera o ensinamento uma mercadona,
4. 149 cd.
, _s. Em toda essa passagem Sócrates joga com os duplos sentidos. N,ão
50 ha o parto, mas os termos que designam a freqüentação podem também
ter_~a significação sexual, o que confirma o papel de alcoviteiro que Sócrat~
atribui a si. O fato de que confia seus alunos a Pródico, o termo que tradUZI
por •acoplar", seguindo nisso Dies, significa "dar em casamento#. Sabe-se
qu~ Sócrates apresentava- se como"entremetedor", se não rufião. Estamos
pois em pleno registro burlesco. Sócrates diz as coisas mais sérias com os
sube~tendidos mais grosseiros, desnível que seria totalme~te (ncompree~vel
se,nao correspondesse a esse efeito de vertigem essencial a pedagog1~ ~-
cratica. _Quanto à autenticidade dessa linguagem de duplo ~~tid?, a p~opna
gr~na das alusões parece ser sua melhor garantia. É difíol unagJnar ,º
~ stocrata refinado que era Platão inventar esses duplos sentidos, que alias
nao perderam seu poder de provocação já quase cínico.
-
apreende sua chave: o Crátilo. Sócrates nele invalida a linguagem
8. lbid., 160 d.
-
vanante do primeiro, e o sofista é muitas vezes designado por
1131
sophos. Sophos é um adjetivo que se emprega também como subs-
tantivo, e sopltistes, que é somente substantivo, designa não uma
qualidade que poderia ser partilhada por pessoas muito diversas,
mas uma categoria profissional: pessoas que têm o saber por ofí-
cio, os professores.
Visto do exterior Sócrates é pois um sofista, porque tem dis-
cípulos; mas ele mesmo não poderia evidentemente considerar-
se um. Não transmite nenhum conhecimento, de sorte que não é
um professor, um profissional do saber.
Sócrates não é um sophos, só Deus é sophos. Ora, o oráculo
de Delfos declarou que Sócrates era o homem mais sophos. Co-
nhecemos esse episódio pela Apologia e os intérpretes o conside-
ram autêntico. A iniciativa vinha de Querefon, talvez o mais afei-
çoado de seus discípulos3• Sócrates relembra as simpatias demo-
cráticas que valeram ao amigo o exílio durante a ditadura dos
Trinta. Foi ele que consultou o oráculo. A coisa é tecnicamente
possível porque se podia interrogar a Pitonisa pondo uma ques-
tão que pedia uma resposta por sim ou não. Supõe-se pois que
Querefon perguntou se havia alguém mais sábio do que Sócrates,
e a resposta foi negativa. No momento do processo Querefon já
tinha morrido, havia menos de quatro anos, mas Sócrates precisa
que seu irmão poderá testemunhar. A data da consulta é objeto
de discussão. Segundo alguns intérpretes, não podia ser anterior
423, porque Delfos era inacessível por causa da guerra. Essa ques-
tão supera a anedota ou a simples curiosidade histórica: com efei·
to, o oráculo é duplamente paradoxal. Primeiro, porque procla-
ma sophos alguém que afirma não ser. Depois, porque Sócrates 0
apresenta como o ponto de partida de sua busca: confundido
com essa resposta, põe-se a procurar quem podia ser mais sábi~
do que ele. Ora, duvida-se que se Querefon pôs a questão foi
porque Sócrates já era um mestre que ele mesmo, em todo caso,
julgava incomparável. O fato de que a coisa seja contemporânea
Dei-me conta, não sem tristeza nem temor, que estava fazendo ini·
migas, mas acreditava que estava obrigado a colocar acima de_tudo
--
ª tarefa em que o deus me tinha envolvido. Tinha portanto de ir em
4. Apologia, 21 b.
5. Ibid., 21 b.
0
filósofo e os sofistas 1 133
busca do sentido do oráculo, encontrar todos aqueles que preten-
dem saber alguma coisa6•
6. Ibid., 21 e.
7. É o objeto do pequeno diálogo platônico Ion.
8. Apologia, 22 e.
9. Ibid., 22 d.
lO. Não esqueçamos que em grego a mesma palavra, techne, designaª
arte, o artesanato e a técnica.
-
de antes, que Platão não conheceu, e que por isso nos escapa
11 -Apologia, 23 ac.
Falemo:. pois, parece, já que é essa tua opinião, daqueles que detêm
o:, pnmeiros lugares; com efeito, por que falar dos que perdem seu
tempo com a filosofia? Esses, desde sua juventude, não conhecem
o caminho da ágora, não sabem onde está o tribunal ou o Conse-
lho, ou qualquer outro lugar de reunião da cidade. As leis e os de-
cretos, seja em sua discussão ou no seu texto, não os vêem nem os
ouvem. As manobras das facções em vista das magistraturas, as reu-
niões, os jantares e os banquetes com tocadoras de aulos, mesmo
cm sonho não vêm a seu espírito a idéia de participar deles. Um
acontecimento feliz ou infeliz produziu-se na cidade, ou então al-
guém herdou uma tara de seus antepassados, pelos homens ou pelas
mulheres, isso lhe escapa ainda mais que o número de copos de
água que o mar contém, como se ctiz. E não sabe mesmo que não
sabe tudo isso. Com efeito, não é para se dar ares de importante
que se abstém de tudo isso, é que em realidade seu corpo somente
jaz na cidade em que ele habita, enquanto seu pensamento (dianoia)
tem tudo isso por pouca coisa ou mesmo por nada, não fazendo dis-
~ caso algum. fur toda parte leva ~u vôo, medindo "os abismos da
terra" como diz Píndaro, e sua superfície, praticando a astronomia
"acima do céu" e escrutando por toda parte a natureza inteira de
cada um dos seres, sem nunca abaixar-se para o que está próximou.
--
tinha feito viver, não podia traí-la, e ia mesmo aceitarª morte
A REVOLUÇÃO SOCRÁTICA
capítulo 1
NASCIMENTO DA TEOLOGIA
Uma tal causa fez minha alegria: parece-me que havia vantagem,
em certo sentido, em fazer do noús uma causa universal; e eu pen-
sava: sendo assim, esse noús ordenador que justamente realiza a
1 145
ordem universal deve também dispor cada coisa em particular da
melhor maneira possível: como descobrir para cada uma a causa
St'gundo a qual nasce, perece ou existe? O que havia de descobrir
a seu respeito é o que é melhor para ela, seja existir seja sofrer ou
produzir qualquer ação que seja. Ora, partindo dessa idéia, eu di-
zia para mim mesmo, não há absolutamente nada que seja intere5•
sante para um homem ter em vista nessa pesquisa - tanto a re5-
peito dessa coisa como de outras - a não ser a perfeição e a exce•
lência. Mas é também necessário que tenha consciência do pior, já
que é objeto de um mesmo saber. Essas reflexões me cumulavam
de alegria: tinha a impressão de ter descoberto o homem capaz de
me ensinar a causa a respeito de todos os seres, segundo meu
próprio espírito (notís). Sim, Anaxágoras vai fazer- me compreen-
der, cm primeiro lugar, se a Terra é chata ou redonda e fazendo-
me compreendê-lo vai explicar-me mais pormenorizadamente por
que isso é necessário; porque se diz o que é melhor dirá também
que para a Terra essa forma é a melhor. Se me diz em seguida que
está no centro, em detalhe me explicará como é melhor que ela
esteja no centro1•
1. Fédon, 97 e-e.
-
Socrates se crê na verdade do mito de Boreu.
4. Eutífron, 6 a-b.
-
O divino?
-
go. Abre assim o espaço que o estoicismo vai ocupar, ao retomar 0
17-Memoráveis, IV, 4, 19 ss.
- 22 ..Memoráveis, 1, 4, 18.
23. Esse Eutidemo nada tem a ver com o sofista que deu o nome a um
diálogo de Platão.
24. A advertência demônica é sempre negativa em Platão: o sinal retém
Sócrates e o impede de fazer o que projetava. Em Xenofonte pode ter t~·
bém uma função positiva e dizer a Sócrates o que deve fazer. A quest~o n~o
P?rece de extrema importância. A tendência é dar mais crédito a Platao ~a~
so porque conheceu melhor seu mestre, mas também porque sua versao_e
mais estranha e, portanto, menos provável, e não se vê por que ele a tena
inventado. O essencial porém não está nisso, mas no fato de que essa reali·
dade demônica está bem atestada.
28. Filebo, 28 c.
29. Ibid., 29 e.
30. fbid., 30 e.
31. Ibid., 30 d.
32. É assim que os estóicos darão ao agente universal o nome de Zeus,
quando a ele se dirigem de forma pessoal.
33. Ibid., 59 a.
-
vai dialogar com uma cortesã, a quem, longe de pregar a moral,
1.m, 11
117S
finge dar conselhos para que possa exercer melhor sua sedução.
Inverte assim a situação, e faz-lhe sentir que ele possui algo de
muito mais precioso e mais desejável. A exigência mais elevada
contrasta com essa abertura às pessoas, que parece não ser em
nada afetada por seu comportamento.Apesar do rigor que o carac-
teriza, Sócrates não prega a moral.
No entanto, sua posição é radical. Estranho às "morais mé-
dias", que reconhecem a cada um a necessidade de possuir um
mínimo de bens, e o direito, se não o dever, de defender seus
interesses legítimos, Sócrates diz que em nenhum caso se deve
fazer o mal, mesmo aos inimigos2• É uma atitude absolutamente
revolucionária. Era evidente para todo o mundo que se devia fa-
zer bem aos amigos e mal aos inimigos. Contra essa evidência,
que será ainda a de Aristóteles, é para Sócrates ilegítimo respon-
der à injustiça pela injustiça3, porque nunca se deve fazer alguém
sofrer o mal, sejam quais forem as razões.
Essa radicalidade é demasiado paradoxal para inscrever-se
em uma filiação histórica. As origens só podem ser procuradas
no pensamento de Sócrates, que leva essa concepção às últimas
conseqüências.
O maior dos males é cometer injustiça, ou, se se prefere, tor-
nar-se culpado de um mal, diz Sócrates a Polo4, de sorte que é
melhor sofrer um agravo a cometê-lo. A demonstração dos dois
paradoxos socráticos, que estão ligados, é - cúmulo do parado-
xo- tão lógica, que um intérprete contemporâneo pôde falar de
concepção fortemente racionalista.
O raciocínio de Sócrates repousa na distinção entre o que
pretendemos de uma ação e seu efeito real. Agimos sempre em
vista de um bem, que é geralmente, mas não sempre, o interesse
ou o prazer que podemos dali tirar ou nele encontrar. Se faço mal
a alguém, é que penso obter benefício com isso. No pior dos ca-
a moral I ln
Em tudo isso, em que reside a maior parte dos móveis das ações
humanas, Sócrates nunca deixou-se prender, mas os que caem
na armadilha não encontram ali a felicidade esperada.
Por trás de tudo o que fazemos, perfila-se o desejo de felici-
dade que é seu motor profundo. Ora, quase sempre fracassamos
nessa busca porque nos orientamos para fins que não nos po-
dem dá-la. O tirano é feliz? Os gregos sabiam bem que não, a
espada de Dâmocles mostra-o à evidência; apesar do poder e da
riqueza, o tirano vive no medo e não pode confiar em ninguém.
No entanto, não é a isso que se reduz a argumentação socrá-
tica. Só se trata, com efeito, de um caso extremo, para o qual uma
moral "média" responderá que a felicidade depende de urna feliz
proporção de riquezas, de saúde, de amizade, de amor, de laços
familiares, de respeitabilidade e de sorte, de modo que é preciso
evitar todos os excessos e ter a sabedoria de administrar esses frá-
geis equilibrios. A posição de Sócrates é radical. Fazer o mal é ter
uma alma doente. Não se pode ser feliz com uma alma doente.
A moral socrática é uma moral da felicidade e não do dever,
o que é verdadeiramente paradoxal para uma moral tão exigente.
Contudo, o homem não tem deveres para com o divino? Sim,
certamente, como vimos, mas não se trata de buscar conciliar-se
com os deuses e evitar sua cólera. O homem deve reconheci-
mento ao divino, mas os deuses não são tiranos que exigem algo
do homem, que têm necessidade de suas homenagens ou que os
punem pela falta de respeito ou por suas infrações a um código.
Para Sócrates, o tirano é o mais infeliz dos homens, de modo que
seria totalmente escandaloso conceber os deuses segundo o seu
modelo. Deus não pode fazer o mal, não se vinga e ignora a cóle-
ra. A teologia socrática, como vimos, estabelecia a bondade e ª
solicitude divinas a partir da harmonia e da perfeição que se po~e
observar nos mínimos detalhes da criação. E essa teologia impli-
cava a exclusão da mitologia que apresenta os deuses capricho-
sos, ciumentos e intemperantes. Se o homem de valor não d_eve
fazer mal a ninguém, mesmo para "compensar" o mal sofrido,
como um deus essencialmente bom poderia nos querer mal por
8. G6rgias, 474 d.
9. Ibid., 475 e.
a moral 1 179
Sócrates sobre o bom e o mau, de modo que esse deve partir de
outra oposição (belo/vergonhoso), obter a aprovação de Polo,
substituir essa segunda oposição à primeira. Como Sócrates ob-
tém a aprovação que Polo lhe recusava? Se ele admite, com efei-
to, que é mais vergonhoso cometer injustiça do que ser sua víti-
ma, não admitiria, em um primeiro tempo, que isso fosse um
mal, mas o sentimento do sistema grego de honra obnga-o a
ceder. Como preferir a vergonha?
É pois uma demonstração dialética, em que Sócrates obriga
Polo a ceder utilizando seus próprios pressupostos. Mostra-lhe
que os princípios que considera evidentes devem levar a inverter
suas posições. Tal demonstração vale para o interlocutor- posto
em contradição consigo mesmo-, mas não vale absolutamente.
Sócrates vai ainda mais longe. Não só é melhor ser vítima do
que autor de uma falta, mas quando se cometeu uma é preferível
ser punido. Com efeito, a justiça pede um castigo. Ora, o justo é
belo. Como o belo é ou bom ou útil, a pena será ou boa ou útil.
Não sendo boa, por conseguinte é útil1°.
Qual é pois essa vantagem que o culpado encontra em seu
castigo? O melhoramento de sua alma, desembaraçada do mal
que a afetava. Sempre segundo o mesmo raciocínio, esse mal é
ou doloroso ou nocivo. Como desembaraçar--se dele? Levam-se
os doentes aos médicos, para que se livrem dos males físicos.
Aonde se levam os homens que cometeram injustiças? Perante
os juízes11. Desse paralelo com a medicina, que repousa no para-
lelo da alma e do corpo, resulta que a pena infligida pelo tribunal
libera de seu mal os homens atingidos pelas piores doenças, as
da alma, que são as injustiças que cometemos. Evidentemente, o
melhor é não ficar doente, mas quando acontece é preferível ser
curado de seu mal do que o conservar. A pior das situações é
portanto a do tirano criminoso.
O detalhe da argumentação mostra uma notável sutileza
dialética, mas consiste muitas vezes em deslizamentos de senti-
-
niense, onde aliás havia tanto mais preocupação de atrair O res-
a moral 1 181
peito porquanto todos se conheciam, o que valoriza o prestígio,
de todo modo muito procurado. Ora, a indiferença de Sócrates
para com sua imagem é total, porque brinca de bufão, apresenta-
se como parteira, alcoviteira e cáften. Platão mostra-o acabando
por confundir, sob esses disfarces, interlocutores pertencentes
à melhor sociedade, mas as coisas não se passavam sempre tão
bem. Nessa cidade onde o parecer tinha uma importância consi-
derável, o simples fato de dizer-se ignorante implicava já um
desprendimento tanto maior que os professores famosos, quali
ficados de sábios, como Górgias ou Protágoras, eram ricos e alta
mente estimados, o que não suscita nenhum traço de ciúme ou
de amargura em Sócrates. Não teme nenhuma freqüentação,
seja ela suspeita ou comprometedora, mas inversamente não se
deixa impressionar nem pela fortuna nem pela posição social.
Ninguém pode constrangê-lo fazendo pressão sobre ele.~ esse
aspecto de Sócrates que faz dele o pai da corrente cínica, da qual
Diógenes será no século seguinte a ilustração mais marcante e
que denunciará todas as hipocrisias sociais de que os homens
são prisioneiros.
Sócrates é um perfeito exemplo de homem livre, em relação
às convenções, ao olhar do outro, ao medo, ao desejo, à inveja, às
riquezas, às honras, às pressões exteriores. Deve pois ser tomado
a sério quando rejeita as paixões em nome da liberdade. Fala do
que vive. Seu domínio de si é tanto mais espantoso porque não é
um asceta. O Alcibíades de O Banquete relata que em Potidéia era
ele que melhor suportava as privações, mas também o que mais
comia quando o corpo expedicionário era abastecido. Vimos que
podia beber mais vinho do que ninguém. Assim, era capaz de
gozar muito largamente dos prazeres da mesa sem ser de modo
algum dependente deles.
A moral socrática, com todo o seu rigor, é pois uma moral
da liberdade. O homem deve conquistar sua liberdade sobre seus
desejos, se não quiser ser seu escravo. Sabe-se que posteridade
terá essa atitude no pensamento antigo, notadamente entre,05
estóicos: se não temo nem o sofrimento nem a morte, ninguem
a moral 1 183
como a~ do Grande Rei ou de outros soberanos e tiranos, desfi-
guradas pelo crime (perjúrio, vaidade, devassidão, orgulho etc.),
c;ão enviadas ao seu castigo. Os piores criminosos, cujas almas
são incuráveis, são enviados a suplícios sem fim. Os outros ne•
cessitam de uma prova purificadora. Sócrates aproveita do fato
de que o diálogo tomou como exemplo o rei Arquelau da Mace
dônia e de seus crimes18, para dizer que o poder agrava o crime e
que corrompe a maioria dos que o exercem19, o que torna tanto
mais admiráveis os que permanecem honestos, dos quais só se
tem um exemplo, mas que merece o elogio de todos os gregos:
Aristides.
Às vezes, o juiz divino vê chegar uma alma que viveu na
piedade e na verdade. Na maioria das vezes é a de um filósofo
que só se ocupou de seu ofício de filósofo, sem dispersar- se na
agitação de múltiplas tarefas. É então enviada às ilhas dos Bem·
aventurados.
E, pela terceira vez, Sócrates reafirma sua fé nessas narrati-
vas20, insistência que tanto mais dificilmente se pode achar insig-
nificante posto que Sócrates fala nesse momento dos valores que
fazem sua vida, longe de sua ironia dialética habitual. Quer apre·
sentar ao juiz supremo a alma mais sã possível:
18. Górgias, 470 d, ss. Pode-se notar que apesar do retrato particular-
mente criminoso que traça dele Platão, a história o reteve como um sobera-
no amante da cultura, que muito fez para helenizar a Macedônia, ainda m~~o
selvagem. ~ na realidade um rei "normalH que conduz uma política h~bil,
com efeitos felizes para o país. O fato de que alguém que possa ser conside-
rad~ um bom rei - que aliás era a opinião de Tuddides - seja um h~mem
particularmente monstruoso ilustra o discurso que Platão tem aqui: ha bem
poucos soberanos que são sejam criminosos.
19. lbid., 526 b.
20. Ibid., 526 d.
a moral 1 185
não tem nada mais com ela, quando vai para o Hades, a não ser sua
formação moral e seu regime de vida, que, segundo a tradição, tra-
zem ao defunto os maiores bens ou os piores males desde o come-
ço da viagem que os leva lá para baixo.
Ora, eis essa tradição. Todos os defuntos, tendo sido individual-
mente durante a sua vida confiados pela sorte a um demônio
(damúin), esse se encarrega de levá-los a um certo lugar, onde são
reunidos para serem julgados, depois do que devem pôr-se a cami-
nho para as moradas do Hades, em companhia do guia em questão,
ao qual foi dada a missão de conduzir até lá em baixo os que vêm
para cá. Quando tiveram a sorte que deviam ter, e ali permanece-
ram o tempo que deviam, é um outro guia que os leva por aqui: e
para isso se precisa de múltiplas e longas revoluções de tempo. Isso
prova que a rota não é como diz o Telefo de Ésquilo: "Simples é o
caminho que leva ao Hades"; enquanto para mim manifestamente
não é simples nem único: nesse caso nem se teria necessidade de
guias, por não haver risco de perder-se já que só haveria um cami-
nho. Na realidade parece haver bifurcações e encruzilhadas em gran-
de número: digo isso de acordo com os indícios fornecidos pelos
ritos religiosos que se praticam aqui mesmo. A alma que é bem
ordenada e sensata deixa-se guiar, e não ignora a significação do
que lhe advém nesse momento. Ao contrário, aquela cujos apetites
têm o corpo por objeto, pelo fato de que durante muito tempo foi
cheia de paixão por esse corpo e pelo lugar visível, essa começa
resistindo muito e muito sofrendo; quando vai embora, é arrastada
à força e com grande pena pelo demônio que lhe foi assignado.
Uma vez chegada onde estão as outras almas, a que não está
purificada e que é culpada de ter matado sem um justo motivo, por
exemplo, ou de ter cometido outras crimes do gênero, (que são da
mesma família e são obras de almas pertencentes a uma mesma
família) - essa alma, todas a evitam e fogem dela: ninguém aceita
acompanhá-la nem guiá-la. Erra solitária, na desorientação mais
total até que os tempos tenham chegado. Quando chegam, a ne-
cessidade a carrega para a residência apropriada. Quanto à alma
que levou sua vida com pureza e comedimento, obtém deuses como
a moral 1 189
gar o acorrentado com suas cadeias, é ele mesmo! Assim, digo eu, 0
que não ignoram os amigos do saber é que uma vez tomadas cm
mão as almas que estão em tal condição, a filosofia dá-lhes com
doçura suas razões; empreende desatá-las, indicando-lhes de
quantas ilusões extravasa um estudo que se faz por meio dos olhos,
e de que ilusões, por sua vez, o que se faz por meio dos ouvidos e
de nossos outros sentidos; persuadindo-os ainda a desprender-se
disso, a recusar a servir-se deles a não ser em caso de necessidade;
recomendando lhes enfim a reunir-se, a recolher- se sobre elas
mc!>mas, e a não confiar em nada a não ser nelas mesmas, seja qual
for o objeto, em si e por si, de seu pensamento, quando o exercem
delas mesmas e por elas mesmas. Ser assim desligado, eis aquilo ao
encontro do qual a alma do verdadeiro filósofo pensa que nada se
deve fazer, de modo que se mantém afastada dos prazeres, tanto
como dos desejos e das penas, dos terrores, tanto quanto pode.
Calcula com efeito que sentir com intensidade prazer, pena, terror
ou desejo, então por maior que seja o mal de que se possa sofrer
nessa ocasião, entre todos que pode imaginar, por exemplo, cair
doente, ou arruinar-se por causa dos desejos, não há nenhum que
não seja superado pelo mal supremo: é dele que se sofre, e não se
põe em conta!
C: -Que mal, Sócrates?
S: - É que forçosamente em toda alma humana a intensidade do
prazer ou da pena que se sente a respeito de uma c01sa, acompa-
nha-se da crença de que o objeto dessa emoção é o que há de mais
claro e mais verdadeiro, quando não é mesmo assim.
C: - Absolutamente.
S: - Não é nessas afecções que a alma está sujeita às cadeias do
corpo até ao mais alto ponto?
C:-Como?
S: -Assim: todo prazer e toda pena possuem uma natureza como
de prego, com que cravam a alma e a fixam nele, fazendo que desse
modo tenha corporeidade, e que julgue da verdade das coisas se-
gundo as afirmações mesmas do corpo. Pelo fato de que nisso ela
se conforma ao corpo em seus julgamentos e se compraz nos mes·
30. O termo tem um sentido mais amplo em grego do que para nós: a
injustiça não se refere somente às questões de repartição desigual, m~s
concerne a toda infração do direito, portanto às faltas, aos delitos, aos cn-
mes. Dizer que Deus é justo não significa, portanto, que ele dá a todos ª
mesma coisa nem que retribua a cada um de maneira perfeita, mas que ele
não comete nenhuma má ação, e que nenhum mal lhe pode ser imputado.
31. Teeteto, 176ab.
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no espaço interior em que o homem vive sua própria vida em sua
relação com o divino. Se o bem verdadeiro não se confunde com
as leis humanas, implica porém que sejam obedecidas, com a
condição, evidentemente, de que não sejam elas mesmas injustas.
Essa consciência é contudo muito diferente da nossa. O ou-
tro está ausente dela. Cada um é responsável somente por si, e o
único cuidado que nele se manifesta é o da pureza de sua alma.
Só se faz o bem e o mal a si, e simetricamente os outros não
podem fazer-me mal, idéia que os estóicos retomarão. A única
realidade que importa na ordem do bem e do mal é a alma. Se
pois alguém me causa um dano físico, através de meus bens ou
de meu corpo, isso não concerne a minha alma, de forma que
não se trata verdadeiramente de um mal. Se, ao contrário, procu-
32. Apologia, 29 d.
33. Ibid., 30 e.
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capítulo 3
HERANÇAS E PRESENÇAS
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talidade do Logos, mas certos pensadores puderam ter dele um
conhecimento parcial.
É pois evidente, dizia eu, que nossa doutrina é superior a toda dou-
trina humana, pelo fato de que a totalidade do Logos, Cristo, que
apareceu para nós, tomou-se corpo, logos e alma. Com efeito, tudo
o que desde sempre os filósofos e os legisladores disseram e des-
cobriram de excelente, eles o elaboraram graças à sua busca e à sua
reflexão que tocavam parcialmente o Logos. Contudo, porque não
conheceram a totalidade do Logos que é Cristo, expressaram mui-
tas vezes opiniões contraditórias. Além disso, os homens que vive-
ram antes de Cristo, quando se esforçaram, na medida em que o
permite o logos humano, por considerar e interrogar o real de ma-
neira argumentativa, foram arrastados diante dos tribunais como
ímpios e mágicos. Quem se aplicou a isso com mais vigor, Sócrates,
foi objeto das mesmas acusações que nós: acusavam no de intro-
duzir divindades novas, de não crer nos deuses que a cidade reco-
nhecia. Ao expulsar de sua República Homero e os outros poetas,
ele ensinava os homens a afastar-se dos maus demônios e divinda-
des que cometem o que os poetas contaram, e os exortava a adqui-
rir por uma busca por meio do logos o conhecimento do Deus des-
conhecido. Não fácil, ele dizia, encontrar o Pai e o Criador do uni-
verso, e quando se encontrou, não deixa de ser arriscado falar a
todos. Isso, nosso Cristo o realizou por seu próprio poder. Com
efeito, ninguém se deixou convencer por Sócrates a morrer por sua
doutrina, mas pelo Cristo, que Sócrates tinha conhecido parcial-
mente (porque ele era e é o Logos presente em todo homem)2.
Que então, dizem, não queres que eu saiba claramente e creia que
Deus vela sobre tudo? Certamente que quero, que aspiro e que dese·
jo muito; mas não que te esgotes por escrutar sua pl'O\,idênoa nem
ponhas questões indiscretas. Fbrque se sabes e se firmaste uma con-
vicção, então não procures. Mas se estás em dúvida, interroga o
céu, a terra, o sol, a lua; interroga as raças variadas dos seres priva-
dos de razão, as sementes, as plantas, os rochedos, as montanhas.
os vales, as colinas, a noite, o dia.
Com efeito a providência de Deus é mais resplandecente do que o
sol e seus raios, e em cada circunstância e em cada lugar, no deser·
to, nos países habitados ou não, na terra e no mar, em qualquer
lugar para onde vás, perceberás o testemunho claro e suficiente,
antigo e novo, dessa providência: vozes elevando-se de todas partes.
mais claras do que nossa voz de homem racional e que ensinam, a
quem quiser escutá-las, sua bondade atenciosa4.
Se se objeta que a alma não tem a temer essa morte, que tem por
efeito tirar o ser a quem o teve, mas aquela que nos faz chamar mor-
tas as coisas privadas de vida, que se preste atenção, porque nenhu-
ma coisa é frustada por ela mesma. Ora, a alma é vida: eis por que
tudo o que é animado é vivo, e toda criatura inanimada, susceptível
de ser animada, é considerada como morta, isto é, privada de vida.
A alma não pode morrer. Se pudesse ser privada de vida, não seria
mais uma alma, mas qualquer coisa de animado. Se isso é absurdo,
muito menos se deve temer para a alma esse gênero de morte, que
não é para temer para o que vive. Além disso, se a alma morre quan-
do essa vida a abandona, de sorte que a alma não é o que é aban-
donado pela vida, mas a vida mesma que abandona. Quando se diz
que um ser está morto, enquanto abandonado pela vida, deve se
compreender que foi abandonado pela alma. Como a vida que aban-
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mônios políticos do fim do séculoV ateniense: Alcibíades, Crítias,
Cármides. Suas próprias convicções religiosas só lhe valeram a
condenação porque tinha alunos. Ora, é precisamente a execução
do mestre que suscita a vocação de Platão. Pondo em cena seu
mestre em seus diálogos, faz verdadeiramente dele o mestre que
será para toda a filosofia. A maiêutica inverte-se aqui, o discípulo
faz o mestre dar à luz seu ensinamento.
Pôr-se em busca de Sócrates é entrar por sua vez nesse jogo
de máscaras e de espelhos onde não se sabe mais quem põe as
questões, mas no qual o que vemos esboçar-se é a nossa história.
O Sócrates de Platão valida-se pois a si mesmo na obra que
atualiza, porém faz mais ainda, arrastando-nos em sua circulari-
dade. A escritura dos diálogos autentica o retrato não somente
realizando-o, mas ativando-o em uma maiêutica que nos inter-
roga ainda hoje, como interrogou a filosofia em toda a duração de
sua história. O espelho socrático remete-nos constantemente a
nós mesmos, autenticando-se assim em sua atualização indefinida,
projetando-nos em um questionamento sempre recomeçado.