Memorias Do Subsolo - Fiodor Dostoievski
Memorias Do Subsolo - Fiodor Dostoievski
Memorias Do Subsolo - Fiodor Dostoievski
Memórias do subsolo
(6ª Edição)
editora■34
DADOS DE COPYRIGHT
Sobre a obra:
Sobre nós:
II
Tenho agora vontade de vos contar, senhores, queirais ouvi-lo ou não, por que
não consegui tornar-me sequer um inseto. Vou dizer-vos solenemente que, muitas
vezes, quis tornar-me um inseto. Mas nem disso fui digno. Juro-vos, senhores, que
uma consciência muito perspicaz é uma doença, uma doença autêntica,
completa. Para o uso cotidiano, seria mais do que suficiente a consciência
humana comum, isto é, a metade, um quarto a menos da porção que cabe a um
homem instruído do nosso infeliz século dezenove e que tenha, além disso, a
infelicidade de habitar Petersburgo, a cidade mais abstrata e meditativa de todo o
globo terrestre. (Existem cidades meditativas e não meditativas.) Seria de todo
suficiente, por exemplo, a consciência com que vivem todos os chamados
homens diretos e de ação. Pensais, sou capaz de jurar, que escrevo tudo isso para
causar efeito, para gracejar sobre os homens de ação, e também por mau gosto;
que faço tilintar o sabre, tal como o meu oficial. Mas, senhores, quem é que pode
vangloriar-se das próprias doenças, e ainda procurar causar com elas um efeito?
Aliás, que digo: Todos fazem isto; é justamente das doenças que se
vangloriam, e eu talvez mais que ninguém. Não discutamos; a minha objeção é
absurda. Apesar de tudo, estou firmemente convencido de que não só uma dose
muito grande de consciência, mas qualquer consciência, é uma doença. Insisto
nisso. Mas deixemo-lo também por alguns instantes. Digam-me o seguinte: por
que me acontecia, como se fosse de propósito, naqueles momentos — sim,
exatamente naqueles momentos em que eu era capaz de melhor apreciar todas
as sutilezas do “belo e sublime” (Alusão à obra de Kant, Observação sobre os
sentimentos do belo e do sublime (1764). Segundo afirmação de I. Z. Siérman,
em nota à edição soviética de 1956-1958, o livro tornou a expressão “belo e
sublime” muito popular entre os críticos russos das décadas de 1830 e 1840. (N.
do T.)), como outrora se dizia entre nós —, por que me acontecia não apenas
conceber, mas realizar atos tão feios, atos que... bem, numa palavra, atos como
os que todos talvez cometam, mas que, como se fosse de propósito, me ocorriam
exatamente nos momentos em que eu mais nitidamente percebia que de modo
algum devia cometê-los? Quanto mais consciência eu tinha do bem e de tudo o
que é “belo e sublime”, tanto mais me afundava em meu lodo, e tanto mais
capaz de imergir nele por completo. Porém o traço principal estava em que tudo
isso parecia ocorrer-me não como que por acaso, mas como algo que tinha de
ser. Dir-se-ia que este era o meu estado normal e que não se tratava de doença,
de um defeito, de modo que, por fim, perdi até a vontade de lutar com este
defeito. Finalmente, quase acreditei (e talvez tenha acreditado realmente) que o
meu estado normal era esse. E, no início, quanto não sofri nessa luta! Não
acreditava que o mesmo acontecesse a outrem e, por isso, mantive-o em segredo
a vida toda. Envergonhava-me disso (e talvez me envergonhe ainda hoje);
chegava a ponto de sentir certo prazerzinho secreto, anormal, ignobilzinho quando
às vezes, em alguma horrível noite de Petersburgo, regressava ao meu cantinho e
me punha a lembrar com esforço que, naquele dia, tornara a cometer uma
ignomínia e que era impossível voltar atrás. Remordia-me então em segredo,
dilacerava-me, rasgava-me e sugava-me, até que o amargor se transformasse,
finalmente, em certa doçura vil, maldita e, depois, num prazer sério, decisivo!
Sim, num prazer, num prazer! Insisto nisso. Se abordei o assunto, foi porque
desejo insistentemente saber ao certo o seguinte: terão outras pessoas
semelhantes prazeres? Vou explicar-vos: o prazer provinha justamente da
consciência demasiado viva que eu tinha da minha própria degradação; vinha da
sensação que experimentava de ter chegado ao derradeiro limite; de sentir que,
embora isso seja ruim, não pode ser de outro modo; de que não há outra saída; de
que a pessoa nunca mais será diferente, pois, ainda que nos sobrasse tempo e fé
para isto, certamente não teríamos vontade de fazê-lo e, mesmo que
quiséssemos, nada faríamos neste sentido, mesmo porque em que nos
transformaríamos? E o principal, o fim derradeiro, está em que tudo isto ocorre
segundo leis normais e básicas da consciência hipertrofiada, de acordo com a
inércia, decorrência direta dessas leis, e, por conseguinte, não é o caso de se
transformar; simplesmente não há nada a fazer. Resulta o seguinte, por exemplo,
da consciência hipertrofiada: tu tens razão em ser um canalha, como se fosse
consolo para um canalha perceber que é realmente um canalha. Mas chega...
Eh, tagarelei muito, mas o que ficou explicado?... Como se explica aí o prazer?
Mas eu explico! Hei de ir até o fim! Foi por isso que tomei da pena...
Tenho, por exemplo, um terrível amor-próprio. Sou desconfiado e me ofendo
com facilidade, como um corcunda ou um anão, mas, realmente, tive momentos
tais que, se me acontecesse receber um bofetão, talvez até me alegrasse com o
fato. Falo a sério: com certeza, eu saberia encontrar também nisso uma espécie
de prazer — naturalmente o prazer do desespero, mas é justamente no desespero
que ocorrem os prazeres mais ardentes, sobretudo quando já se tem uma
consciência muito forte do inevitável da própria condição. E, no caso do
bofetão... sim, fica-se comprimido pela consciência do mingau a que nos
reduziram. E o principal, por mais que se rumine o caso, está em que eu sou o
primeiro culpado de tudo e, o que é mais ofensivo, culpado sem culpa e, por
assim dizer, segundo as leis da natureza. Pois, em primeiro lugar, tenho culpa de
ser mais inteligente que todos à minha volta. (Considerei-me, continuamente,
mais inteligente que todos à minha volta, e às vezes — acreditam? — tinha até
vergonha disso. Pelo menos, a vida toda olhei de certo modo para o lado e nunca
pude fitar as pessoas nos olhos.) Finalmente, sou culpado porque, mesmo que
houvesse em mim generosidade, eu teria com isso apenas mais sofrimento
devido à consciência de toda a sua inutilidade. Certamente eu não saberia fazer
nada com a minha generosidade: nem perdoar, pois o ofensor talvez me tivesse
batido segundo as leis da natureza, e não se pode perdoar as leis da natureza nem
esquecer, pois, ainda que se trate das leis da natureza, sempre é ofensivo.
Finalmente, mesmo que eu renunciasse a ser generoso e, ao contrário, quisesse
vingar-me do ofensor, de nada poderia vingar-me nem de ninguém, pois,
certamente, não ousaria fazer algo, mesmo que pudesse. E não ousaria por quê?
Quero dizer agora duas palavras a este respeito.
III
Como é que faz, por exemplo, aquele que sabe vingar-se e, de modo geral,
defender-se? Quando o sentimento de vingança, suponhamos, se apodera dele,
nada mais resta em seu espírito, a não ser este sentimento. Um cavalheiro desse
tipo atira-se diretamente ao objetivo, como um touro enfurecido, de chifres
abaixados, e somente um muro pode detê-lo. (Aliás, diante de um muro tais
cavalheiros, isto é, os homens diretos e de ação, cedem terreno com sinceridade.
O muro para eles não é causa de desvio, como, por exemplo, para nós, homens
de pensamento, e que, por conseguinte, nada fazemos; não é um pretexto para
arrepiar carreira, pretexto em que nós outros costumamos não acreditar, mas
que recebemos sempre com grande alegria. Não, eles cedem terreno com toda a
sinceridade. O muro tem para eles alguma coisa que acalma; é algo que, do
ponto de vista moral, encerra uma solução — algo definitivo e, talvez, até
místico... Mas deixemos o muro para mais tarde.) Pois bem, um homem desses,
um homem direto, é que eu considero um homem autêntico, normal, como o
sonhou a própria mãe carinhosa, a natureza, ao criá-lo amorosamente sobre a
terra. Invejo um homem desses até o extremo da minha bílis. Ele é estúpido,
concordo, mas talvez o homem normal deva mesmo ser estúpido, sabeis? Talvez
isto seja até muito bonito. Estou tanto mais convencido desta suspeita, por assim
dizer, que se tomarmos, por exemplo, a antítese do homem normal, isto é, o
homem de consciência hipertrofiada, o homem saído, naturalmente, não do seio
da natureza, mas de uma retorta (já é quase misticismo, senhores, mas eu
suspeito isto também), o que se verifica, então, é que este homem de retorta a tal
ponto chega a ceder terreno para a sua antítese que a si mesmo se considera,
com toda a sua consciência hipertrofiada, um camundongo e não um homem.
Talvez seja um camundongo de consciência hipertrofiada, mas sempre é um
camundongo. Ora, trata-se de um homem e, por conseguinte, de tudo o mais
também. E o mais importante é que ele mesmo se considera a si mesmo um
camundongo; ninguém lhe pede isto, e este é um ponto importante. Mas vejamos
agora este camundongo em ação. Suponhamos, por exemplo, que ele esteja
ofendido (quase sempre está) e queira vingar-se. Acumula-se nele,
provavelmente, mais rancor que no homme de la nature et de la vérité (Citação
do seguinte treho das Confissões de Jean-Jacques Rousseau: “Je veux montrer à
mes semblables un homme dans toute la vérité de la nature; et cet homme ce
sera moi” (Quero mostrar a meus semelhantes um homem em toda a verdade
da natureza; e este homem serei eu.). (N. do T.)). É possível que um desejo
baixo, ignóbil, de retribuir ao ofensor o mesmo dano, ranja nele ainda mais
ignobilmente que no homme de la nature et de la vérité, porque este, devido à sua
inata estupidez, considera sua vingança um simples ato de justiça; já o
camundongo, em virtude de sua consciência hipertrofiada, nega haver nisso
qualquer justiça. Atinge-se, por fim, a própria ação, o próprio ato de vingança. O
infeliz camundongo já conseguiu acumular, em torno de si, além da torpeza
inicial, uma infinidade de outras torpezas, na forma de interrogações e dúvidas;
acrescentou à primeira interrogação tantas outras não resolvidas que,
forçosamente, se acumula ao redor dele certo líquido repugnante e fatídico, certa
lama fétida, que consiste nas suas dúvidas, inquietações e, finalmente, nos
escarros — que caem sobre ele em profusão — dos homens de ação agrupados
solenemente ao redor, na pessoa de juízes e ditadores, e que riem dele a mais
não poder, com toda a capacidade das suas goelas sadias. Naturalmente, resta-
lhe sacudir a patinha em relação a tudo e, com um sorriso de fictício desprezo, no
qual ele mesmo não acredita, esgueirar-se vergonhosamente para a sua
fendazinha. Ali, no seu ignóbil e fétido subsolo, o nosso camundongo, ofendido,
machucado, coberto de zombarias, imerge logo num rancor frígido, envenenado
e, sobretudo, sempiterno. Há de lembrar, quarenta anos seguidos, a sua ofensa,
até os derradeiros e mais vergonhosos pormenores; e cada vez acrescentará por
sua conta novos pormenores, ainda mais vergonhosos, zombando maldosamente
de si mesmo e irritando-se com a sua própria imaginação. Ele próprio se
envergonhará dessa imaginação, mas, assim mesmo, tudo lembrará, tudo
examinará, e há de inventar sobre si mesmo fatos inverossímeis, com o pretexto
de que também estes poderiam ter acontecido, e nada perdoará. Possivelmente,
começará a vingar-se, mas de certo modo interrompido, com miuçalhas, por trás
do fogão, incógnito, não acreditando no direito nem no êxito da vingança e
sabendo de antemão que todas estas tentativas de vindita vão fazê-lo sofrer cem
vezes mais que ao objeto da sua vingança, pois este talvez não precise sequer
coçar-se. No seu leito de morte, há de tornar a lembrar tudo com os juros
acumulados em todo esse tempo e... Mas é exatamente neste frígido e
repugnante semidesespero, nesta semicrença, neste consciente enterrar-se vivo,
por aflição, no subsolo, por quarenta anos; nesta situação intransponível criada
com esforço e, apesar de tudo, um tanto duvidosa, em toda esta peçonha dos
desejos insatisfeitos que penetraram no interior do ser; em toda esta febre das
vacilações, das decisões tomadas para sempre e dos arrependimentos que
tornam a surgir um instante depois, em tudo isto é que consiste o sumo daquele
estranho prazer de que falei. Este prazer é a tal ponto sutil, e a tal ponto às vezes
inapreensível à consciência, que as pessoas um pouquinho limitadas ou mesmo
simplesmente as de nervos fortes não compreenderão dele nem um pouco
sequer. “Talvez não compreendam também aqueles”, acrescentareis com um
sorriso largo, “que nunca foram esbofeteados”, e deste modo aludireis
delicadamente a que, em minha vida, eu provavelmente sofri também bofetadas
e que falo com conhecimento de causa. Juro por tudo que pensais assim. Mas
acalmai-vos, meus senhores, não recebi bofetões, embora me seja de todo
indiferente o que penseis a este respeito. É possível que eu mesmo lamente o fato
de ter distribuído em minha vida poucas bofetadas. Mas chega, nenhuma palavra
mais sobre esse tema, por mais que ele vos interesse.
Continuo tranquilamente a discorrer sobre as pessoas de nervos fortes, que
não compreendem certa sutileza nos prazeres. Em determinados casos, por
exemplo, esses senhores, ainda que se esgoelem à toa, como touros, e ainda que
isso, admitamos, lhes dê uma honra muito grande, diante do impossível, como eu
já disse, eles imediatamente se conformam. O impossível quer dizer um muro de
pedra? Mas que muro de pedra? Bem, naturalmente as leis da natureza, as
conclusões das ciências naturais, a matemática. Quando vos demonstram, por
exemplo, que descendeis do macaco, não adianta fazer careta, tendes que aceitar
a coisa como ela é. Se vos demonstram que, em essência, uma gotícula de vossa
própria gordura vos deve ser mais cara do que cem mil dos vossos semelhantes,
e que neste resultado ficarão abrangidos, por fim, todos os chamados deveres,
virtudes e demais tolices e preconceitos, deveis aceitá-lo assim mesmo, nada há
a fazer, porque dois e dois são quatro, é matemática. E experimentai retrucar.
“Não é possível”, vão gritar-vos, “não podeis rebelar-vos: isto significa que
dois e dois são quatro! A natureza não vos pede licença; ela não tem nada a ver
com os vossos desejos nem com o fato de que as suas leis vos agradem ou não.
Deveis aceitá-la tal como ela é e, consequentemente, também todos os seus
resultados. Um muro é realmente um muro... etc. etc.” Meu Deus, que tenho eu
com as leis da natureza e com a aritmética, se, por algum motivo, não me
agradam essas leis e o dois e dois são quatro? Está claro que não romperei esse
muro com a testa, se realmente não tiver forças para fazê-lo, mas não me
conformarei com ele unicamente pelo fato de ter pela frente um muro de pedra
e de terem sido insuficientes as minhas forças.
Até parece que semelhante muro de pedra é realmente um tranquilizador e
que de fato contém alguma palavra para o mundo, só porque constitui o dois e
dois são quatro. Oh, absurdo dos absurdos! Não é o mesmo tudo
compreenderdes, tudo aprenderdes, todas as impossibilidades e muros de pedra;
não vos conformardes com nenhuma dessas impossibilidades e muros de pedra,
se vos repugna a resignação; atingirdes pelo caminho das combinações lógicas
inevitáveis as conclusões mais ignóbeis sobre o tema eterno de que se tem certa
culpa mesmo do muro de pedra, embora, mais uma vez, seja bem evidente que
não se tem qualquer culpa, e, em consequência disto, rangendo os dentes em
silêncio e com impotência, imobilizar-vos voluptuosamente em inércia, sonhando
que não há contra quem ter rancor; que não se encontra um objeto e que talvez
nunca se encontre; que há nisso uma escamoteação, uma fraude, uma trapaça,
simplesmente uma repugnante confusão, não se sabe o quê, não se sabe quem,
mas que, apesar de todas estas ignorâncias e fraudes, sentis uma dor, e, quanto
mais ignorais, tanto mais sentis essa dor!
IV
“Ha, ha, ha! Depois disso, o senhor encontrará prazer mesmo numa dor de
dentes!”, exclamareis rindo.
— Como não? Há prazer mesmo numa dor de dentes — respondo. — Tive
dor de dentes um mês inteiro; sei o que é isto. Neste caso, naturalmente, a pessoa
não se enfurece em silêncio, mas geme; no entanto, não são gemidos sinceros,
são gemidos maldosos, e tudo consiste justamente nessa maldade. Nesses
gemidos é que se expressa o prazer do sofredor; se não sentisse neles prazer, não
iria sequer soltá-los. É um bom exemplo, meus senhores, e vou desenvolvê-lo.
Nestes gemidos se expressa, em primeiro lugar, toda a inutilidade de vossa dor,
humilhante para a nossa consciência; toda a legalidade da natureza, com a qual,
naturalmente, pouco vos importais, mas que, apesar de tudo, vos faz sofrer,
enquanto ela não sofre. Expressa-se neles a consciência de que não tendes um
inimigo, mas a dor existe; a consciência de que, apesar de todos os Wahenheim
(Em 1864 apareciam frequentemente nos jornais de São Petersburgo anúncios
dos dentistas Wahenheim. (Nota de I. Z. Siérman para a edição soviética de
1956-1958.)), sois plenamente escravos dos vossos dentes; de que, se alguém
quiser, os vossos dentes deixarão de doer, e, se não quiser, hão de doer uns três
meses mais; finalmente, se ainda não concordais e mesmo assim protestais,
resta-vos, para vosso consolo, dar uma surra em vossa própria pessoa ou
esmurrar do modo mais doloroso o vosso muro, e absolutamente nada mais.
Bem, é justamente por essas ofensas sangrentas, por essas zombarias, não se
sabe da parte de quem, que começa por fim o prazer, que chega, às vezes, à
suprema voluptuosidade. Peço-vos, senhores: prestai um dia atenção aos gemidos
de um homem instruído do século XIX que sofra de dor de dentes, no segundo ou
terceiro dia da afecção, por exemplo, quando ele já começa a gemer, não como
o fazia no primeiro dia, isto é, não simplesmente porque lhe doam os dentes; não
do modo como o faz algum rude mujique, mas como geme um homem atingido
pelo desenvolvimento geral e pela civilização europeia, um homem “que
renunciou ao solo e aos princípios populares” (Expressão muito em voga nos
meios revolucionários russos na época, dos quais surgiria, poucos anos depois, o
movimento populista. (N. do T.)), como se diz agora. Os seus gemidos tornam-se
maus, perversos, vis, e continuam, dias e noites seguidos. E ele próprio percebe
que não trará nenhum proveito a si mesmo com os seus gemidos. Melhor do que
ninguém, ele sabe que apenas tortura e irrita a si mesmo e aos demais. Sabe que
até o público, perante o qual se esforça, e toda a sua família já o ouvem com
asco, não lhe dão um níquel de crédito e sentem, no íntimo, que ele poderia
gemer de outro modo, mais simplesmente, sem garganteios nem sacudidelas, e
que se diverte, por maldade e raiva. Pois bem, é justamente em todos esses atos
conscientes e infames que consiste a volúpia. “Eu vos inquieto, faço-vos mal ao
coração, não deixo ninguém dormir. Pois não durmais, senti vós também, a todo
instante, que estou com dor de dentes. Para vós, eu já não sou o herói, que
anteriormente quis parecer, mas simplesmente um homem ruizinho, um
chenapan (Vagabundo, bandido, calhorda, em francês. (N. do T.)). Bem, seja!
Estou muito contente porque vós me decifrastes. Senti-vos mal, ouvindo os meus
gemidos ignobeizinhos? Pois que vos sintais mal; agora, vou soltar, em vossa
intenção, um garganteio ainda pior...” Não compreendeis, mesmo agora,
senhores? Não, ao que parece é preciso adquirir um profundo desenvolvimento,
uma profunda consciência, para compreender todas as sinuosidades dessa
volúpia! Estais rindo? Fico muito contente. Os meus gracejos, senhores, são
naturalmente de mau gosto, desiguais, incoerentes, repassados de
autodesconfiança. Mas isto realmente ocorre porque eu não me respeito. Pode
porventura um homem consciente respeitar-se um pouco sequer?
VI
Oh, se eu não fizesse nada unicamente por preguiça! Meu Deus, como eu me
respeitaria então! Respeitar-me-ia justamente porque teria a capacidade de
possuir em mim ao menos a preguiça; haveria, pelo menos, uma propriedade
como que positiva, e da qual eu estaria certo. Pergunta: quem é? Resposta: um
preguiçoso. Seria muito agradável ouvir isto a meu respeito. Significaria que fui
definido positivamente; haveria o que dizer de mim. “Preguiçoso!” realmente é
um título e uma nomeação, é uma carreira. Não brinqueis, é assim mesmo. Seria
então, de direito, membro do primeiro dos clubes, e ocupar-me-ia apenas em me
respeitar incessantemente. Conheci um cavalheiro que, a vida inteira, orgulhava-
se com o fato de ser entendido em Laffitte (O vinho francês Château-Laffitte.
(N. do T.)). Ele considerava isso sua qualidade positiva e nunca duvidava de si.
Morreu com a consciência não só tranquila, mas triunfante até, e tinha toda a
razão. E eu poderia, neste caso, escolher uma carreira para mim: seria
preguiçoso e comilão, não do tipo comum, mas, por exemplo, dos que
comungam com tudo o que é belo e sublime. Que tal? Há muito que isto me vem
à mente. Este “belo e sublime” apertou-me com força a base do crânio aos
quarenta anos; sim, foi aos quarenta, mas agora, oh, agora seria diferente!
Imediatamente eu encontraria também o setor correspondente de atividade, ou,
para ser mais exato: beber à saúde de tudo o que é belo e sublime. Eu me
agarraria a toda oportunidade para, em primeiro lugar, verter uma lágrima na
minha taça e, a seguir, esvaziá-la em intenção de tudo o que fosse belo e sublime;
haveria de encontrar este belo e sublime até na mais ignóbil, na mais indiscutível
das porcarias, e transformaria em belo e sublime tudo o que existisse no mundo.
Tornar-me-ia lacrimejante como uma esponja molhada. Um pintor, por
exemplo, pinta um quadro de Gué (Alusão provável ao quadro de N. N. Gué
(1831-1894) Vésperas secretas, exibido, em 1863, na exposição de outono da
Academia de Belas Artes, e que provocou grandes discussões na imprensa,
devido ao tratamento original, realista, de um tema religioso. Dostoiévski
escreveria, em 1873, no Diário de um escritor, sobre o mesmo assunto: “No
quadro... do sr. Gué... saiu algo falso e uma ideia preconcebida, e toda falsidade
constitui mentira e já não é realismo”. (Nota de I. Z. Siérman para a edição
soviética de 1956-1958.)). Imediatamente, eu beberia à saúde do pintor que
realizou o quadro de Gué, porque amo o que é belo e sublime. Um autor escreve
“como apraz a cada um” (Alusão ao artigo de Schedrin “Como apraz a cada
um”, publicado no Sovriemiérik (O Contemporâneo), em 1863. (Nota da edição
citada.)); imediatamente eu beberia à saúde de “cada um”, porque amo tudo o
que é “belo e sublime”. E exigiria por isto respeito a mim mesmo, e perseguiria
quem não me tributasse este respeito. Vive-se com tranquilidade, morre-se
solenemente. É o encanto, um verdadeiro encanto! E eu criaria então um tal
barrigão, armaria um tal queixo tríplice, elaboraria um tal nariz de sândalo que
todo transeunte diria, olhando para mim: “Este é que é um figurão! Isto é que é
verdadeiro e positivo!”. Seja o que quiserdes, mas é agradabilíssimo ouvir
opiniões assim em nosso século de negação, meus senhores.
VII
Mas tudo isto são sonhos dourados. Oh, dizei-me, quem foi o primeiro a
declarar, a proclamar que o homem comete ignomínias unicamente por
desconhecer os seus reais interesses, e que bastaria instruí-lo, abrir-lhe os olhos
para os seus verdadeiros e normais interesses, para que ele imediatamente
deixasse de cometer essas ignomínias e se tornasse, no mesmo instante, bondoso
e nobre, porque, sendo instruído e compreendendo as suas reais vantagens, veria
no bem o seu próprio interesse, e sabe-se que ninguém é capaz de agir
conscientemente contra ele e, por conseguinte, por assim dizer, por necessidade,
ele passaria a praticar o bem (Neste trecho, Dostoiévski faz polêmica com
Tchernichévski. (N. do T.))? Oh, criancinha de peito! Oh, inocente e pura
criatura! Mas, em primeiro lugar, quando foi que aconteceu ao homem, em
todos estes milênios, agir unicamente em prol de sua própria vantagem? E que
fazer então dos milhões de fatos que testemunham terem os homens, com
conhecimento de causa, isto é, compreendendo plenamente as suas reais
vantagens, relegado estas a um plano secundário e se atirado a um outro
caminho, em busca do risco, ao acaso, sem serem obrigados a isto por nada e por
ninguém, mas como que não desejando justamente o caminho indicado, e aberto
a custo um outro, com teimosia, a seu bel-prazer, procurando quase nas trevas
esse caminho árduo, absurdo? Quer dizer, realmente, que essa teimosia e a ação
a seu bel-prazer lhes eram mais agradáveis que qualquer vantagem... A
vantagem! Mas o que é a vantagem? Aceitais acaso a tarefa de determinar com
absoluta precisão em que consiste a vantagem humana? E se porventura
acontecer que a vantagem humana, alguma vez, não apenas pode, mas deve até
consistir justamente em que, em certos casos, desejamos para nós mesmos o
prejuízo e não a vantagem? E, se é assim, se pelo menos pode existir tal
possibilidade, toda a regra fica reduzida a nada. O que achais? Acontecem tais
casos? Estais rindo; ride, meus senhores, mas respondei-me apenas: estarão
computadas com absoluta exatidão as vantagens humanas? Não existirão
algumas que não apenas não se enquadraram, mas nem podem enquadrar-se em
qualquer classificação? Pois, senhores, no que me é dado conhecer, levantastes
todo o vosso cadastro das vantagens humanas, calculando a média, a partir das
cifras estatísticas e das fórmulas científicas e econômicas. As vossas vantagens
são o bem-estar, a riqueza, a liberdade, a tranquilidade etc. etc.; de modo que o
homem que se declarasse, por exemplo, consciente e claramente, contra todo
esse cadastro, seria, na vossa opinião — e naturalmente na minha também —,
um obscurantista ou um demente completo, não é verdade? Mas eis o que é
surpreendente: por que sucede que todos esses estatísticos, mestres de sabedoria e
amantes da humanidade, ao computar as vantagens humanas, deixam de
mencionar uma delas? Nem sequer a incluem no cômputo, na forma em que
deve ser tomada, mas é disso que depende todo o cálculo. Não seria grande
desgraça tomar essa vantagem também e incluí-la na lista. Mas a ruína está
justamente em que esta vantagem complicada não cabe em nenhuma
classificação e não se enquadra em nenhuma lista! Tenho, por exemplo, um
amigo... Eh, senhores, é vosso amigo também; e de quem, de quem ele não é
amigo?! Preparando-se para uma ação, esse cavalheiro no mesmo instante vos
há de expor, de modo claro e enfático, como precisamente ele deve agir, de
acordo com as leis da razão e da verdade. Mais ainda: perturbada e
apaixonadamente, há de vos falar dos reais e normais interesses humanos;
censurará, troçando, dos míopes e estúpidos que não compreendem as suas
vantagens nem o verdadeiro significado da virtude; e, passado exatamente um
quarto de hora, sem qualquer pretexto súbito, exterior, mas devido a algo interior,
mais forte que todos os seus interesses, há de ter uma saída completamente
diversa, isto é, investirá claramente contra aquilo de que ele mesmo falava:
contra as leis da razão, contra a sua própria vantagem, bem, numa palavra,
contra tudo... Devo prevenir-vos de que meu amigo é uma pessoa coletiva e, por
isso, torna-se de certo modo difícil lançar sobre ele toda a culpa. Eis onde quero
chegar, senhores! Não existirá, de fato (e eu digo isto para não transgredir a
lógica), algo que seja a quase todos mais caro que as maiores vantagens
(justamente a vantagem omitida, aquela de que se falou ainda há pouco), mais
importante e preciosa que todas as demais e pela qual o homem, se necessário,
esteja pronto a ir contra todas as leis, isto é, contra a razão, a honra, a
tranquilidade, o bem-estar, numa palavra, contra todas estas coisas belas e úteis,
só para atingir aquela vantagem primeira, a mais preciosa, e que lhe é mais cara
que tudo?
— Bem, assim mesmo, sempre é uma vantagem — vós me interrompeis. —
Perdão, ainda teremos uma explicação, e o caso não está num jogo de palavras,
mas em que essa vantagem é admirável justamente por destruir continuamente
todas as nossas classificações e sistemas elaborados pelos amantes da espécie
humana, para a felicidade desta. Numa palavra, é muito incômoda. Mas, antes
de eu vos nomear essa vantagem, quero comprometer-me pessoalmente e, por
isso, proclamo com insolência que todos esses belos sistemas, todas essas teorias
para explicar à humanidade os seus interesses verdadeiros, normais — a fim de
que ela, ansiando inexoravelmente por atingir essas vantagens, se torne de
imediato bondosa e nobre —, por enquanto tudo isso não passa, a meu ver, de
pura logística! Sim, logística! Sem dúvida, afirmar essa teoria da renovação de
toda a espécie humana por meio do sistema das suas próprias vantagens é, a meu
ver, quase o mesmo... bem, que afirmar, por exemplo, com Buckle, que o
homem é suavizado pela civilização, tornando-se por conseguinte, pouco a pouco,
menos sanguinário e menos dado à guerra (Este pensamento foi expresso pelo
historiador inglês H. T. Buckle (1821-1862) no livro História da civilização na
Inglaterra (1857-1861), cuja tradução russa, publicada em 1864-1866, foi muito
popular entre a intelectualidade da época. (Nota de I. Z. Siérman para a edição
soviética de 1956-1958.)). De acordo com a lógica, se não me engano, é a
conclusão a que ele chega. Mas o homem é a tal ponto afeiçoado ao seu sistema
e à dedução abstrata que está pronto a deturpar intencionalmente a verdade, a
descrer de seus olhos e seus ouvidos apenas para justificar a sua lógica. Tomo
justo este exemplo por ser tão eloquente. Lançai um olhar ao redor: o sangue
jorra em torrentes e, o que é mais, de modo tão alegre como se fosse
champanhe. Aí tendes todo o nosso século, em que viveu o próprio Buckle. Aí
tendes Napoleão, tanto o grande como o atual (Napoleão III. (N. do T.)). Aí
tendes a América do Norte, com a união eterna (Referência à Guerra de
Secessão. (N. do T.)). Aí está, por fim, esse caricato Schleswig-Holstein (Trata-se
da guerra de 1863-1864, em disputa dos ducados de Schleswig e Holstein, travada
pela Áustria e a Prússia contra a Dinamarca. (N. do T.))... O que suaviza, pois,
em nós a civilização? A civilização elabora no homem apenas a multiplicidade de
sensações e... absolutamente nada mais. E, através do desenvolvimento dessa
multiplicidade, o homem talvez chegue ao ponto de encontrar prazer em
derramar sangue. Bem que isto já lhe aconteceu. Notastes acaso que os mais
refinados sanguinários foram quase todos cavalheiros civilizados, diante dos quais
todos estes Átilas e Stienka Rázin (Chefe de uma grande rebelião de cossacos no
século XVII. (N. do T.)) não valem um caracol, e se eles não saltam aos olhos
com a mesma nitidez de Átila e Stienka Rázin, é justamente porque são
encontrados com demasiada frequência, são por demais comuns, e já não
chamam a atenção. Pelo menos, se o homem não se tornou mais sanguinário
com a civilização, ficou com certeza sanguinário de modo pior, mais ignóbil que
antes. Outrora, ele via justiça no massacre e destruía, de consciência tranquila,
quem julgasse necessário; hoje, embora consideremos o derramamento de
sangue uma ignomínia, assim mesmo ocupamo-nos com essa ignomínia, e mais
ainda que outrora. O que é pior? Decidi vós mesmos. Dizem que Cleópatra
(desculpai-me este exemplo da história romana) gostava de cravar alfinetes de
ouro nos seios das suas cativas, deleitando-se com seus gritos e convulsões. Direis
que isto se deu numa época relativamente bárbara; que ainda vivemos numa
época bárbara, porque (sempre de um ponto de vista relativo) ainda hoje se
cravam alfinetes em seios; que, mesmo atualmente, embora o homem já tenha
aprendido por vezes a ver tudo com mais clareza do que na época bárbara, ainda
está longe de ter-se acostumado a agir do modo que lhe é indicado pela razão e
pelas ciências. Mas, apesar de tudo, estais absolutamente convictos de que ele há
de se acostumar infalivelmente a fazê-lo, quando tiver perdido de todo alguns
velhos e maus hábitos e quando o bom senso e a ciência tiverem educado e
orientado completa e normalmente a natureza humana. Estais convictos de que,
então, o homem deixará por si mesmo de enganar-se deliberadamente e, por
assim dizer, a seu pesar não há de querer separar a sua vontade dos seus
interesses normais. Mais ainda: então, dizeis, a própria ciência há de ensinar ao
homem (embora isto seja, a meu ver, um luxo) que, na realidade, ele não tem
vontade nem caprichos, e que nunca os teve, e que ele próprio não passa de tecla
de piano ou de um pedal de órgão; e que, antes de mais nada, existem no mundo
as leis da natureza, de modo que tudo o que ele faz não acontece por sua vontade,
mas espontaneamente, de acordo com as leis da natureza. Consequentemente,
basta descobrir essas leis e o homem não responderá mais pelas suas ações, e sua
vida se tornará extremamente fácil. Todos os atos humanos serão calculados, está
claro, de acordo com essas leis, matematicamente, como uma espécie de tábua
de logaritmos, até 108.000, e registrados num calendário; ou, melhor ainda,
aparecerão algumas edições bem-intencionadas, parecidas com os atuais
dicionários enciclopédicos, nas quais tudo estará calculado e especificado com
tamanha exatidão que, no mundo, não existirão mais ações nem aventuras.
Então — sois vós que o dizeis ainda — surgirão novas relações econômicas,
plenamente acabadas e também calculadas com precisão matemática, de modo
que desaparecerá num ímpeto toda espécie de perguntas, precisamente porque
haverá para elas toda espécie de respostas. Erguer-se-á então um palácio de
cristal (Alusão ao romance de Tchernichévski Que fazer? (1863), em que
aparece um palácio de ferro e cristal e se descreve um sonho sobre a futura
sociedade socialista. Este episódio certamente foi inspirado pelo Palácio de
Cristal, erguido no Hy de Park de Londres em 1851 para uma exposição
internacional, e sobre a qual Dostoiévski escreveria mais extensamente em Notas
de inverno sobre impressões de verão (capítulo 5). (N. do T.)). Então... bem, em
suma, há de chegar o Reino da Abundância (Literalmente: “...há de chegar a ave
Kagan”, isto é, o pássaro de fogo da tradição tártara. (N. do T.)). Naturalmente,
não se pode, de modo algum, garantir (desta vez, sou eu que o digo) que então
tudo não seja terrivelmente enfadonho (com efeito, que se há de fazer quando
tudo estiver calculado numa tabela?), mas, em compensação, tudo será
extremamente sensato. É verdade, porém: o que não se há de inventar por fastio!
Realmente, os alfinetes de ouro são enfiados em seios também por fastio, mas
tudo isso não teria importância. O ruim (ainda sou eu que o digo) é que as pessoas
então talvez se sintam felizes com alfinetes de ouro. Pois o homem é estúpido, de
uma estupidez fenomenal. Ou, melhor, embora ele não seja de todo néscio, não
há nada no mundo que seja tão ingrato. Realmente, eu, por exemplo, não me
espantaria nem um pouco se, de repente, em meio a toda a sensatez futura,
surgisse algum cavalheiro de fisionomia pouco nobre, ou melhor, retrógrada e
zombeteira, e pusesse as mãos na cintura, dizendo a todos nós: pois bem, meus
senhores, não será melhor dar um pontapé em toda esta sensatez unicamente a
fim de que todos esses logaritmos vão para o diabo, e para que possamos mais
uma vez viver de acordo com a nossa estúpida vontade?! Isto ainda não seria
nada, mas lamentavelmente ele encontraria sem dúvida alguns adeptos: assim é
o homem. E tudo isso devido à mais fútil das causas, à qual, parece, quase nem
valeria a pena referir-se: tudo precisamente porque o homem, seja ele quem for,
sempre e em toda parte gostou de agir a seu bel-prazer e nunca segundo lhe
ordenam a razão e o interesse; pode-se desejar ir contra a própria vantagem e, às
vezes, decididamente se deve (isto já é uma ideia minha). Uma vontade que seja
nossa, livre, um capricho nosso, ainda que dos mais absurdos, nossa própria
imaginação, mesmo quando excitada até a loucura — tudo isto constitui aquela
vantagem das vantagens que deixei de citar, que não se enquadra em nenhuma
classificação, e devido à qual todos os sistemas e teorias se desmancham
continuamente, com todos os diabos! E de onde concluíram todos esses sabichões
que o homem precisa de não sei que vontade normal, virtuosa? Como foi que
imaginaram que ele, obrigatoriamente, precisa de uma vontade sensata,
vantajosa? O homem precisa unicamente de uma vontade independente, custe o
que custar essa independência e leve aonde levar. Bem, o diabo sabe o que é essa
vontade...
VIII
— Ha, ha, ha! Mas essa vontade nem sequer existe, se quereis saber! —
interrompeis-me com uma gargalhada. — A ciência conseguiu a tal ponto
analisar anatomicamente o homem que já sabemos que a vontade e o chamado
livre-arbítrio nada mais são do que...
— Um momento, senhores, foi justamente assim que eu mesmo quis
começar. Cheguei até a me assustar, confesso. Ainda agora, quis gritar que a
vontade depende diabo sabe do quê, e que talvez se deva dar graças a Deus por
isto, mas lembrei-me da ciência e... me detive. E nesse instante começastes a
falar. E, com efeito, se realmente se encontrar um dia a fórmula de todas as
nossas vontades e caprichos, isto é, do que eles dependem, por que leis
precisamente acontecem, como se difundem, para onde anseiam dirigir-se neste
ou naquele caso etc. etc., uma verdadeira fórmula matemática, então o homem
será capaz de deixar de desejar, ou melhor, deixará de fazê-lo, com certeza.
Ora, que prazer se pode ter em desejar segundo uma tabela? Mais ainda: no
mesmo instante, o homem se transformará num pedal de órgão ou algo
semelhante; pois, que é um homem sem desejos, sem vontades nem caprichos,
senão um pedal de órgão? Que pensais disso? Calculemos as probabilidades: pode
tal coisa acontecer ou não?
— Hum... — retrucais. — As nossas vontades são, na maior parte, equívocos
devidos a uma concepção errada sobre as nossas vantagens. Se queremos às
vezes um absurdo completo, é porque vemos nesse absurdo, devido à nossa
estupidez, o caminho mais fácil para atingir alguma vantagem previamente
suposta. Bem mas quando tudo isto estiver explicado, calculado sobre uma folha
de papel (o que é muito possível, porquanto é de fato ignóbil, e não tem sentido
admitir de antemão, que o homem não descubra jamais outras leis da natureza),
então naturalmente não existirão mais os chamados desejos. De fato, se a
vontade se combinar um dia completamente com a razão, passaremos a
raciocinar em vez de desejar, justamente porque não podemos, por exemplo,
conservando o uso da razão, querer algo desprovido de sentido e, deste modo, ir
conscientemente contra a razão e desejar aquilo que é nocivo a nós próprios... E
visto que todas as vontades e todos os raciocínios podem ser realmente calculados
— pois algum dia hão de se descobrir as leis do nosso suposto livre-arbítrio —,
então, deixando-se de lado as brincadeiras, será possível elaborar uma espécie de
tabela, e nós passaremos realmente a desejar de acordo com esta. Se, por
exemplo, efetuados uns cálculos, me demonstrarem que, se eu fiz uma figa (Na
Rússia, o gesto tem sentido ofensivo. (N. do T.)) a uma determinada pessoa, foi
porque deveria fazê-lo, irremissivelmente, de tal ou qual modo, então o que
sobrará de livre em mim, sobretudo se sou um sábio e terminei um curso de
ciências em alguma parte? Neste caso, poderei calcular de antemão toda a
minha vida, por um prazo de trinta anos; numa palavra, mesmo que isto se
arranje, nada mais teremos a fazer; será preciso aceitar tudo, de qualquer modo.
E, em geral, devemos repetir a nós mesmos, sem descanso, que,
impreterivelmente, em tal momento e em tais circunstâncias, a natureza não nos
consulta; que é preciso aceitá-la tal como ela é, e não como nós a imaginamos, e,
se realmente ansiamos por uma tabela e um calendário, bem... e mesmo por
uma retorta, neste caso — que fazer? — é preciso aceitar também a retorta!
Senão, ela vai impor-se prescindindo de nós...
— Sim, mas nisso é que aparece, a meu ver, uma vírgula! Desculpai-me,
senhores, por ter-me enredado em filosofias; isto se deu por causa dos meus
quarenta anos de subsolo! Permiti-me fantasiar um pouco. Pensai no seguinte: a
razão, meus senhores, é coisa boa, não há dúvida, mas razão é só razão e satisfaz
apenas a capacidade racional do homem, enquanto o ato de querer constitui a
manifestação de toda a vida, isto é, de toda a vida humana, com a razão e com
todo o coçar-se. E, embora a nossa vida, nessa manifestação, resulte muitas
vezes em algo bem ignóbil, é sempre a vida e não apenas a extração de uma raiz
quadrada. Eu, por exemplo, quero viver muito naturalmente, para satisfazer toda
a minha capacidade vital, e não apenas a minha capacidade racional, isto é, algo
como a vigésima parte da minha capacidade de viver. Que sabe a razão?
Somente aquilo que teve tempo de conhecer (algo, provavelmente, nunca
chegará a saber; embora isto não constitua consolo, por que não expressá-lo?),
enquanto a natureza humana age em sua totalidade, com tudo o que nela existe
de consciente e inconsciente, e, embora minta, continua vivendo. Suspeito,
senhores, que me olhais com certa compaixão; repetis que é impossível a um
homem culto e desenvolvido, numa palavra, a um homem que será o do futuro,
querer conscientemente algo desvantajoso para si; isso é matemático. Estou
plenamente de acordo; de fato, é matemático. Mas — pela centésima vez vos
repito isso — existe um único caso, sim, apenas um, em que o homem pode
intencional e conscientemente desejar para si mesmo algo nocivo e estúpido,
extremamente estúpido, até: ter o direito de desejar para si mesmo algo muito
estúpido, sem estar comprometido com a obrigação de desejar apenas o que é
inteligente. Isto é de fato estupidíssimo, é um capricho, mas realmente, senhores,
talvez seja para a nossa gente, o mais vantajoso de tudo quanto existe sobre a
terra, sobretudo em certos casos. E, em particular, talvez seja mais vantajoso que
todas as vantagens, mesmo no caso de nos trazer um prejuízo evidente e de
contradizer as conclusões mais sensatas da nossa razão, a respeito de vantagens;
pois, em todo caso, conserva-nos o principal, o que nos é mais caro, isto é, a
nossa personalidade e a nossa individualidade. Alguns afirmam que isto constitui
de fato o que há de mais caro para o homem; a vontade pode, naturalmente, se
quiser, concordar com a razão, sobretudo se não se abusar desse acordo e se ele
for usado moderadamente; isto é útil e, às vezes, até louvável. Mas a vontade,
com muita frequência e, na maioria dos casos, de modo absoluto e teimoso,
diverge da razão, e... e... sabeis que até isto é útil e às vezes muito louvável?
Senhores, admitamos que o homem não seja estúpido. (Realmente não se pode,
de modo algum, dizer isso a seu respeito, pois, se for estúpido, quem será
inteligente, então?) Mas, ainda que não seja estúpido, é monstruosamente ingrato!
É ingrato numa escala fenomenal. Penso até que a melhor definição do homem
seja: um bípede ingrato. Mas isto ainda não é tudo, ainda não é tudo, ainda não é
o seu maior defeito; o seu maior defeito é a sua permanente imoralidade, sim,
permanente, desde o Dilúvio Universal até o período schleswig-holsteiniano dos
destinos humanos. A imoralidade e, por conseguinte, também a falta de bom
senso, pois há muito tempo se sabe que esta provém unicamente da imoralidade.
Experimentai lançar um olhar para a história do gênero humano: o que vereis? É
grandioso? Vá lá! É, de fato, grandioso. O que não valerá, por exemplo, O
Colosso de Rodes! Não é em vão que o sr. Anaiévski (A. E. Anaiévski (1788-
1886), romancista cujos livros foram alvo de constantes gracejos nos jornais da
época. (N. do T.)) atesta a seu respeito que, segundo uns, seria obra humana, e,
segundo outros, da própria natureza. É pitoresco? Vá lá, é pitoresco de fato. Basta
examinar, em todos os séculos e em relação a todos os povos, os uniformes de
gala usados por militares e civis: o que não valerá tudo isso? E o mesmo acontece
com os uniformes de serviço; nenhum historiador resistirá à tentação de
descrevê-los. É monótono? Vá lá, de fato é monótono: luta-se e luta-se. Luta-se
atualmente, já se lutou outrora e tornar-se-á a lutar ainda mais. Concordai
comigo: é até demasiado monótono. Numa palavra, pode-se dizer tudo da história
universal — tudo quanto possa ocorrer à imaginação mais exaltada. Só não se
pode dizer o seguinte: que é sensata. Haveis de engasgar na primeira palavra. E
aí está até o que a todo momento se dá: surgem continuamente homens de bons
costumes, sensatos, sábios e amantes da espécie humana, que têm justamente
como objetivo portar-se, a vida toda, do modo mais moral e sensato, iluminar,
por assim dizer, com a sua pessoa, o caminho para o próximo, e precisamente
para demonstrar a este que, de fato, se pode viver de modo moral e sensato. E
então? É sabido que muitos desses amantes da humanidade, cedo ou tarde, às
vezes no fim da existência, traíram-se, dando motivos a anedotas às vezes do
gênero mais indecente até. Pergunto-vos agora: o que se pode esperar do
homem, como criatura provida de tão estranhas qualidades? Podeis cobri-lo de
todos os bens terrestres, afogá-lo em felicidade, de tal modo que apenas umas
bolhazinhas apareçam na superfície desta, como se fosse a superfície da água;
dar-lhe tal fartura, do ponto de vista econômico, que ele não tenha mais nada a
fazer a não ser dormir, comer pão de ló e cuidar da continuação da história
universal — pois mesmo neste caso o homem, unicamente por ingratidão e
pasquinada, há de cometer alguma ignomínia. Vai arriscar até o pão de ló e
desejar, intencionalmente, o absurdo mais destrutivo, o mais antieconômico,
apenas para acrescentar a toda esta sensatez positiva o seu elemento fantástico e
destrutivo. Desejará conservar justamente os seus sonhos fantásticos, a sua mais
vulgar estupidez, só para confirmar a si mesmo (como se isto fosse
absolutamente indispensável) que os homens são sempre homens e não teclas de
piano, que as próprias leis da natureza tocam e ameaçam tocar de tal modo que
atinjam um ponto em que não se possa desejar nada fora do calendário. Mais
ainda: mesmo que ele realmente mostrasse ser uma tecla de piano, mesmo que
isto lhe fosse demonstrado, por meio das ciências naturais e da matemática,
ainda assim ele não se tornaria razoável e cometeria intencionalmente alguma
inconveniência, apenas por ingratidão e justamente para insistir na sua posição.
E, no caso de não ter meios para tanto, inventaria a destruição e o caos,
inventaria diferentes sofrimentos e, apesar de tudo, insistiria no que é seu!
Lançaria a maldição pelo mundo e, visto que somente o homem pode
amaldiçoar (é um privilégio seu, a principal das qualidades que o distinguem dos
outros animais), provavelmente com a mera maldição alcançaria o que lhe cabe:
continuaria convicto de ser um homem e não uma tecla de piano! Se me
disserdes que tudo isso também se pode calcular numa tabela, o caos, a treva, a
maldição — de modo que a simples possibilidade de um cálculo prévio vai tudo
deter, prevalecendo a razão —, vou responder-vos que o homem se tornará louco
intencionalmente, para não ter razão e insistir no que é seu! Creio nisto, respondo
por isto, pois, segundo parece, toda a obra humana realmente consiste apenas em
que o homem, a cada momento, demonstre a si mesmo que é um homem e não
uma tecla! Ainda que seja com os próprios costados, mas que o demonstre; ainda
que seja como um troglodita, mas que demonstre. E, depois disso, como não
pecar, como não louvar o fato de que isto ainda não exista e que a vontade ainda
dependa o diabo sabe de quê...
Gritais (se ainda vos dignais a dirigir-me o grito) que, no caso, ninguém me
priva da minha vontade; que todos se afanam a fim de que, por si mesma, por
própria iniciativa, minha vontade coincida com os meus interesses normais, com
as leis da natureza e com a aritmética.
— Eh, senhores, como é que se pode ter, no caso, sua própria vontade,
quando se trata da tabela e da aritmética, quando está em movimento apenas o
dois e dois são quatro? Dois e dois são quatro mesmo sem a minha vontade.
Acontece porventura uma vontade própria deste tipo?!
IX
XI
O fim dos fins, meus senhores: o melhor é não fazer nada! O melhor é a
inércia consciente! Pois bem, viva o subsolo! Embora eu tenha dito realmente
que invejo o homem normal até a derradeira gota da minha bílis, não quero ser
ele, nas condições em que o vejo (embora não cesse de invejá-lo. Não, não, em
todo caso, o subsolo é mais vantajoso!) Ali, pelo menos, se pode... Eh! mas estou
mentindo agora também. Minto porque eu mesmo sei, como dois e dois, que o
melhor não é o subsolo, mas algo diverso, absolutamente diverso, pelo qual
anseio, mas que de modo nenhum hei de encontrar! Ao diabo o subsolo!
Eis o que seria melhor mesmo: que eu próprio acreditasse, um pouco que
fosse, no que acabo de escrever. Juro-vos, meus senhores, que não creio numa só
palavrinha de tudo quanto rabisquei aqui! Isto é, talvez eu creia, mas, ao mesmo
tempo, sem saber por quê, sinto e suspeito estar mentindo como um desalmado
(No original, literalmente: “como um sapateiro”. (N. do T.)).
— Mas para que foi então que escreveu tudo isto? — dizeis-me.
— E o que aconteceria se eu vos deixasse por uns quarenta anos sem
qualquer ocupação e, passado esse tempo, fosse à vossa casa, ao subsolo, para
me informar a que ponto chegastes? Pode-se acaso deixar um homem durante
quarenta anos sozinho, sem uma tarefa?
— Mas não é uma vergonha, não é uma humilhação?! — talvez me digais,
balançando com desdém a cabeça. — Está ansiando pela vida, mas resolve os
problemas da existência com um emaranhado lógico. E como são importunas,
como são insolentes as suas saídas, e, ao mesmo tempo, como o senhor tem
medo! Afirma absurdos e se satisfaz com eles; diz insolências, mas sempre se
assusta com elas e pede desculpas. Assegura não temer nada e, ao mesmo
tempo, busca o nosso aplauso. Garante estar rangendo os dentes e,
simultaneamente, graceja, para nos fazer rir. Sabe que os seus gracejos não têm
espírito, mas, ao que parece, está muito satisfeito com a sua qualidade literária. É
possível que tenha sofrido realmente; todavia, não respeita um pouco sequer o
seu próprio sofrimento. No senhor há verdade, mas não há pureza; por motivo da
mais mesquinha vaidade, traz a sua verdade à mostra, conduzindo-a para a
ignomínia, para a feira... Realmente, quer dizer algo, no entanto, por temor,
oculta a sua palavra derradeira, porque não tem suficiente decisão para dizê-la,
mas apenas uma assustada impertinência. Vangloria-se da sua consciência, mas,
na realidade, apenas vacila, pois, embora o seu cérebro funcione, o seu coração
está obscurecido pela perversão, e, sem um coração puro, não pode haver
consciência plena, correta. E que capacidade de importunar, que insistência,
como careteia! Mentira, mentira, mentira!
Está claro que eu mesmo inventei agora todas estas vossas palavras. Isto
provém igualmente do subsolo. Passei ali quarenta anos seguidos, ouvindo por
uma pequena fresta estas vossas palavras. Inventei-as eu mesmo, pois não podia
inventar outra coisa. Não é para estranhar que se tenham gravado de cor e
tomado forma literária...
Mas é possível, é possível que sejais crédulos a ponto de imaginar que eu vá
publicar e ainda vos dar a ler tudo isto? E eis mais um problema para mim: para
que, realmente, vos chamo de “senhores”, para que me dirijo a vós como
leitores de verdade? Confissões como as que pretendo começar a expor não se
imprimem e não se dão a ler. Pelo menos, não possuo em mim tamanha firmeza
e não considero necessário possuí-la. Mas sabeis de uma coisa? Veio-me à mente
uma fantasia, e a todo custo quero realizá-la. Eis do que se trata.
Existem nas recordações de todo homem coisas que ele só revela aos seus
amigos. Há outras que não revela mesmo aos amigos, mas apenas a si próprio, e
assim mesmo em segredo. Mas também há, finalmente, coisas que o homem
tem medo de desvendar até a si próprio, e, em cada homem honesto, acumula-se
um número bastante considerável de coisas no gênero. E acontece até o seguinte:
quanto mais honesto é o homem, mais coisas assim ele possui. Pelo menos, eu
mesmo só recentemente me decidi a lembrar as minhas aventuras passadas, e,
até hoje, sempre as contornei com alguma inquietação. Mas agora, que não
apenas lembro, mas até mesmo resolvi anotar, agora quero justamente verificar:
é possível ser absolutamente franco, pelo menos consigo mesmo, e não temer a
verdade integral? Observarei a propósito: Heine afirma que uma autobiografia
exata é quase impossível, e que uma pessoa falando de si mesma certamente há
de mentir. Na sua opinião, Rousseau, por exemplo, com toda certeza, mentiu a
respeito de si mesmo, na sua confissão, e fê-lo intencionalmente, por vaidade.
Estou certo de que Heine tem razão; compreendo muito bem que se possa às
vezes, apenas por vaidade, até urdir crimes a respeito de si mesmo, e percebo
muito bem de que tipo de vaidade pode ser. Mas Heine estava emitindo juízo
sobre um homem que fazia sua confissão em público, e eu escrevo unicamente
para mim, e declaro de uma vez por todas e, embora escreva como se me
dirigisse a leitores, faço-o apenas por exibição, pois assim me é mais fácil
escrever. Trata-se de forma, unicamente de forma vazia, e eu nunca hei de ter
leitores. Já declarei isto uma vez...
Não quero constranger-me a nada na redação das minhas memórias. Não
instaurei nelas uma ordem nem um sistema. Anotarei tudo o que me vier à
lembrança.
Bem, por exemplo, alguém poderia implicar com essas palavras e me
perguntar: se de fato não conta com leitores, para que faz tais contratos consigo
mesmo, e ainda por escrito, no sentido de que não instaurará uma ordem ou um
sistema, que há de anotar tudo o que lhe vier à memória etc. etc.? Para que está
dando explicações? Para que se desculpa?
Já vou responder.
Há toda uma psicologia nisso. Talvez mesmo o fato de que eu seja
simplesmente um medroso. E talvez também imagine, de propósito, diante de
mim um público para que me comporte de modo mais decente, quando estiver
escrevendo. Pode haver mil razões até.
Fica ainda uma pergunta: para que, em suma, quero eu escrever? Se não é
para um público, não se poderia recordar tudo mentalmente, sem lançar mão do
papel?
Assim é; mas, por escrito, isto sairá, de certo modo, solene. O papel tem algo
que intimida, haverá mais severidade comigo mesmo, o estilo há de lucrar. Além
disso, é possível que as anotações me tragam realmente um alívio. Agora, por
exemplo, pressiona-me particularmente uma remota recordação. Lembrei-me
disso com nitidez há poucos dias e, desde então, ela ficou comigo, qual um
motivo musical magoado, que não nos quer deixar. E, assim mesmo, é preciso
livrar-se dele. Tenho centenas de tais recordações; mas, de tempos em tempos,
uma delas destaca-se das demais e passa a pressionar-me. Não sei por quê, mas
acredito que, se eu a anotar, há de me deixar em paz. E por que não tentar?
Finalmente: estou enfadado e, no entanto, permaneço sem fazer nada. E o ato
de anotar é de fato como que um trabalho. Dizem que o trabalho torna o homem
bom e honesto. Bem, aí está pelo menos uma probabilidade favorável.
Agora está nevando, uma neve quase molhada, amarela, turva. Ontem nevou
igualmente e dias atrás, também. Tenho a impressão de que foi justamente a
propósito da neve molhada que lembrei esse episódio que não quer agora me
deixar em paz. Pois bem, aí vai uma novela. Sobre a neve molhada.
2.
A PROPÓSITO DA NEVE MOLHADA
I
Naquele tempo, eu tinha apenas vinte e quatro anos. Minha vida era, mesmo
então, desordenada e sombria até a selvageria. Não me dava com ninguém,
evitava até conversar, e cada vez mais me encolhia em meu canto. No emprego,
na repartição, forçava-me a não olhar para ninguém; mas notei muito bem que
os meus colegas não só me consideravam um tipo original, como até — tinha
esta impressão continuamente — pareciam olhar-me com certa aversão. Vinha-
me à mente: por que ninguém, além de mim, sente ser olhado com aversão? Um
dos meus colegas tinha um rosto repulsivo ao extremo, todo picado de varíola,
com certa expressão de bandido até. Eu, segundo creio, não ousaria sequer olhar
para alguém se meu rosto fosse tão indecente. Um outro tinha o uniforme (Os
funcionários russos da época eram obrigados ao uso do uniforme. (N. do T.)) a tal
ponto usado que perto dele já se sentia mau cheiro. No entanto, nenhum desses
senhores ficava confuso, quer por causa do traje, quer do rosto, ou por algum
escrúpulo moral. Um e outro não imaginavam sequer serem olhados com asco;
e, mesmo que imaginassem, pouco se incomodariam, contanto que os chefes não
se lembrassem de os olhar. Atualmente percebo, com toda a nitidez, que eu
mesmo, em virtude da minha ilimitada vaidade e, por conseguinte, da exigência
em relação a mim mesmo, olhava-me com muita frequência, com enfurecida
insatisfação que chegava à repugnância e, por isso, atribuía mentalmente a cada
um o meu próprio olhar. Detestava, por exemplo, o meu rosto, considerava-o
abominável, e supunha até haver nele certa expressão vil; por isso, cada vez que
ia à repartição, torturava-me, procurando manter-me do modo mais
independente possível, para que não suspeitassem em mim a ignomínia e para
expressar no semblante o máximo de nobreza. “Pode ser um rosto feio”, pensava
eu, “mas, em compensação, que seja nobre, expressivo e, sobretudo, inteligente
ao extremo”. No entanto, com certeza e amargamente, eu sabia que nunca
poderia expressar no rosto essas perfeições. Mas o mais terrível era que,
decididamente, eu o achava estúpido. Eu me contentaria plenamente com a
inteligência. A tal ponto que me conformaria até com uma expressão vil, desde
que o meu rosto fosse considerado, ao mesmo tempo, muito inteligente.
Está claro que odiava todos os funcionários da nossa repartição, do primeiro
ao último, e desprezava-os a todos, mas, simultaneamente, como que os temia.
Acontecia-me até colocá-los acima de mim. Sucedia o seguinte: ora desprezava
alguém, ora colocava-o acima de mim. Um homem decente e cultivado não
pode ser vaidoso sem uma ilimitada exigência em relação a si mesmo e sem se
desprezar, em certos momentos, até o ódio. Mas, quer desprezando, quer
colocando as pessoas acima de mim, eu baixava os olhos diante de quase todos
que encontrava. Fiz até algumas experiências: tolerarei sobre mim o olhar deste
aqui, por exemplo? E era sempre o primeiro a baixar os olhos. Isto me torturava
até o enfurecimento. Temia, também, a ponto de adoecer, tornar-me ridículo, e,
por isto, adorava como um escravo a rotina em tudo o que se relacionava com
coisas exteriores: entregava-me amorosamente à vida cotidiana e comum e do
fundo da alma assustava-me ao notar em mim alguma excentricidade. E como
poderia deixar de ser assim? Eu era doentiamente cultivado, como deve ser um
homem de nossa época. Eles, pelo contrário, eram todos embotados e parecidos
entre si, como carneiros de um rebanho. É possível que eu fosse o único em toda
a repartição a ter continuamente a impressão de ser um covarde e um escravo, e
tantas vezes tivesse esta impressão justamente porque era cultivado. Mas não se
tratava apenas de impressão; isto se dava na realidade: eu era um covarde e um
escravo. Digo-o sem qualquer acanhamento. Todo homem decente de nossa
época é e deve ser covarde e escravo. É a sua condição normal. Estou
profundamente convicto disso. Ele assim foi feito e para tal fim ajustado. E não
só na época atual, em consequência de algumas circunstâncias fortuitas, mas, de
modo geral, em todos os tempos, o homem decente deve ser covarde e escravo.
É a lei da natureza para todos os homens decentes sobre a terra. Mesmo que
suceda a algum deles mostrar-se corajoso frente a algo, mesmo que não se
console nem se apaixone com isto, de qualquer modo, há de se acovardar diante
de outras coisas. Tal é a saída única e sempiterna. Mostram-se corajosos
unicamente os asnos e seus abortos, mas também estes apenas até determinado
obstáculo. Não vale a pena sequer prestar-lhes atenção, porque não representam
absolutamente nada.
Torturava-me então mais uma circunstância: o fato de que ninguém se
parecesse comigo e eu não fosse parecido com ninguém. “Eu sou sozinho, e eles
são todos”, dizia de mim para mim, e ficava pensativo.
Isso mostra que eu ainda era completamente garoto.
Acontecia também o contrário. Às vezes, era muito penoso ir à repartição:
isto chegou a tal extremo que, muitas vezes, voltei doente para casa. Mas, de
súbito, sem mais nem menos, vinha uma fase de ceticismo e indiferença (tudo
me acontecia por fases) e eu mesmo passava a rir da minha intolerância e das
minhas repugnâncias, censurava o meu próprio romantismo. Ora não queria falar
com ninguém, ora não só iniciava uma conversa, mas tentava até tornar-me
amigo deles. Toda a repugnância desaparecia num repente. Quem sabe? Talvez
ela nunca existisse em mim, e fosse exterior, absorvida dos livros? Até agora
ainda não resolvi este problema. De certa feita, fiquei amigo deles de vez, passei
a visitá-los, a jogar preferência, tomar vodca, falar de indústria... Mas, neste
ponto, permiti-me uma digressão.
Nós, os russos, falando de modo geral, nunca tivemos os estúpidos românticos
supraestelares alemães e sobretudo franceses, sobre os quais nada atua, mesmo
que a terra se fenda a seus pés, mesmo que a França toda pereça nas barricadas:
permanecem os mesmos, não se alteram nem sequer por uma questão de
decência, e não cessam de entoar suas canções supraestelares, no sepulcro da
sua vida, por assim dizer, porque são imbecis. E na terra russa não existem
imbecis, isto é notório; é nisso que nos distinguimos de todas as demais terras
alemãs (Em linguagem popular, dizia-se “alemão” tudo o que procedia do
Ocidente. (N. do T.)). Consequentemente, não existem em nosso meio criaturas
supraestelares, em sua condição pura. Foram os nossos publicistas e críticos
“positivos” de então que, ocupados em caçar os Kostanjoglos e os tios Piotr
Ivânovitch (Kostanjoglo é personagem da segunda parte de Almas mortas de
Gógol; e Piotr Ivânovitch, de Uma história comum de Gontcharóv. (N. do T.)), e
tendo-os tomado, por tolice, pelo nosso ideal, apresentaram invencionices sobre
os nossos românticos, considerando-os tão supraestelares como os da Alemanha
ou de França. Ao contrário, as características do nosso romântico são absoluta e
diretamente opostas às do europeu supraestelar, e nenhuma medidazinha
europeia é adequada no caso. (Permitam-me usar esta palavra: “romântico”, é
uma palavrinha antiga, respeitável, com algum merecimento, e de todos
conhecida.) As características do nosso romântico são: tudo compreender, tudo
ver e vê-lo muitas vezes, de modo incomparavelmente mais nítido do que o fazem
todas as nossas inteligências mais positivas; não se conformar com nada e com
ninguém, mas, ao mesmo tempo, não desdenhar nada; tudo contornar, ceder a
tudo, agir com todos diplomaticamente; nunca perder de vista o objetivo útil,
prático (não sei que apartamentinhos governamentais, pensõezinhas,
comendazinhas), e olhar este objetivo através de todos os entusiasmos e
volumezinhos de versinhos líricos e, ao mesmo tempo, conservar dentro de si,
indestrutível, como num sepulcro, o “belo e sublime”, e também conservar a si
mesmo, integralmente, em algodão, como um pequeno objeto de ourivesaria,
ainda que seja, por exemplo, em proveito daquele mesmo “belo e sublime”. O
nosso romântico é um homem de natureza larga e um grande maroto, o maior
dos nossos marotos, eu vos asseguro isto... até por experiência própria. Isso no
caso de um romântico inteligente. Mas, que digo? o romântico é sempre
inteligente; eu quis apenas observar que, embora tenha havido em nosso meio
realmente românticos imbecis, não devem eles ser levados em conta, pois
surgiram unicamente porque, ainda em pleno desabrochar das suas forças,
transformaram-se de vez em alemães e, para conservar mais comodamente o
seu objetozinho de ourivesaria, passaram a morar alhures, longe, sobretudo em
Weimar ou na Floresta Negra. Eu, por exemplo, desprezava sinceramente a
minha atuação como funcionário público e, se não cuspia em tudo, era apenas
por necessidade, porque eu mesmo estava ali instalado e recebia por isso um
salário. Em virtude deste fato, observem, eu não cuspia, apesar de tudo. O nosso
romântico perderá mais facilmente o juízo (o que sucede bem poucas vezes),
mas não irá cuspir se não tiver outra carreira em vista; nunca o expulsarão aos
trambolhões e, no máximo, vão levá-lo para um manicômio, na qualidade de
“rei da Espanha” (Alusão ao personagem Popríschin de Diário de um louco, de
Gógol. (N. do T.)) e assim mesmo apenas no caso em que perca muito
acentuadamente o juízo. Mas, na realidade, em nosso meio, perdem o juízo
apenas os franzinos e os de cabelo muito claro. Inúmeros românticos, porém,
passam a ocupar postos bem altos. Que extraordinária versatilidade! E que
capacidade para as sensações mais contraditórias! Mesmo então eu me
consolava com isto, e atualmente penso de modo idêntico. Por este motivo é que
temos tantos “espíritos largos”, que, mesmo na queda derradeira, não perdem o
seu ideal; e embora não movam um dedo em prol deste ideal, e sejam
reconhecidos ladrões e bandidos, assim mesmo respeitam até as lágrimas o seu
ideal primeiro e são, de alma, extraordinariamente honestos. Sim, somente em
nosso meio o mais reconhecido patife pode ser totalmente, e até de modo
elevado, honesto de espírito, sem, ao mesmo tempo, deixar de ser um patife, um
pouco que seja. Repito: de fato, os nossos românticos, a três por dois,
transformam-se, por vezes, em tais malandros nos negócios (emprego com amor
a palavra “malandros”), revelam de súbito tamanho senso da realidade e
tamanho conhecimento do que é positivo que as autoridades e o público,
surpresos, não fazem mais que, perplexos, estalar a língua em sua direção
(Trata-se de uma alusão muito clara a Niekrassov. Após a morte do poeta,
Dostoiévski ainda escreveria sobre este dualismo da sua personalidade, no Diário
de um escritor (dezembro de 1877). (N. do T.)).
A multiplicidade é de fato surpreendente, e Deus sabe em que se há de
transformar e o que ela nos promete para o nosso futuro. Mas até não é mau este
material! Não digo isto por qualquer patriotismo ridículo e melífluo. Aliás, mais
uma vez pensais — tenho certeza — que estou gracejando. Ou — quem sabe? —
talvez seja exatamente o contrário, isto é, talvez estejais certos de que eu
realmente pense assim. Em todo caso, meus senhores, considerarei que ambas as
vossas opiniões são uma honra para mim e me dão um prazer especial. E
desculpai-me a digressão.
Está claro que não conseguia manter as relações de amizade com os meus
colegas: às vezes, separava-me deles cuspindo e, em virtude da inexperiência
juvenil, deixava até de os cumprimentar, como que rompendo com eles. É
verdade que isto me aconteceu apenas uma vez, pois eu estava sempre só.
Em casa, o que mais fazia era ler. Tinha vontade de abafar com impressões
exteriores tudo o que fervilhava incessantemente. E, quanto a impressões
exteriores, só me era possível recorrer à leitura. Naturalmente, ela me ajudava
muito: perturbava-me, deliciava-me, torturava. Mas, por vezes, tornava-se
terrivelmente enfadonha. Apesar de tudo, tinha vontade de me movimentar, e
me afundava de súbito uma escura, subterrânea e repelente... não digo
devassidão, mas devassidãozinha. Tinha paixõezinhas agudas, ardentes, em
virtude de minha contínua e doentia irritabilidade. Vinham-me impulsos
histéricos, com lágrimas e convulsões. Além da leitura, não tinha para onde me
voltar, isto é, não havia nada no meu ambiente que eu pudesse respeitar e que me
atraísse. Além de tudo, a angústia fervilhava dentro de mim; surgia-me um
anseio histérico de contradições, de contrastes, e eu me lançava na libertinagem.
Não foi propriamente para me justificar que, ainda há pouco, eu disse tudo isso...
Aliás, não! Estou mentindo! Eu quis, precisamente, justificar-me. Faço agora,
meus senhores, uma anotaçãozinha para mim mesmo. Não quero mentir.
Empenhei a palavra.
Praticava a libertinagem solitariamente, de noite, às ocultas, de modo
assustado, sujo, imbuído da vergonha que não me deixava nos momentos mais
asquerosos e que até chegava, nesses momentos, à maldição. Mesmo assim, eu
já trazia na alma o subsolo. Tinha um medo terrível de ser visto, encontrado,
reconhecido. Pois frequentava toda a sorte de lugares bem suspeitos.
Certa vez, passando à noite junto a uma pequena taverna, vi, por uma janela
iluminada, que uns cavalheiros começaram a lutar com tacos de bilhar e que um
deles foi posto janela afora. Noutra ocasião, minha sensação teria sido de
repugnância; mas, naquele momento, cheguei a invejar o cavalheiro atirado pela
janela, e invejei-o a tal ponto que até entrei na taverna e fui para a sala de bilhar,
como se quisesse dizer: “Quem sabe? Talvez eu brigue também e seja
igualmente posto janela afora”.
Não estava bêbado, mas quereis o quê? A angústia pode levar-nos a
semelhante histeria! Mas nada resultou daquilo. Ficou constatado que eu não era
capaz sequer de pular pela janela, e fui embora sem ter brigado.
Logo de início, um oficial teve um atrito comigo.
Eu estava em pé junto à mesa de bilhar, estorvava a passagem por
inadvertência, e ele precisou passar; tomou-me então pelos ombros e,
silenciosamente, sem qualquer aviso prévio ou explicação, tirou-me do lugar em
que estava, colocou-me em outro e passou por ali, como se nem sequer me
notasse. Até pancadas eu teria perdoado, mas de modo nenhum poderia perdoar
que ele me mudasse de lugar e, positivamente, não me notasse.
O diabo sabe o que não daria eu, naquela ocasião, por uma briga de verdade,
mais correta, mais decente, mais — como dizer? literária! Fui tratado como uma
mosca. Aquele oficial era bem alto, e eu sou um homem baixinho, fraco. A
briga, aliás, estava em minhas mãos: bastava protestar e, naturalmente, seria
posto janela afora. Mas eu mudei de opinião e preferi... apagar-me, enraivecido.
Saí da taverna, perturbado e confuso, e fui diretamente para casa; no dia
seguinte, prossegui em minha devassidãozinha, ainda com maior timidez, de
modo ainda mais opresso e triste, como se tivesse lágrimas nos olhos, mas, assim
mesmo, prossegui. Não penseis, aliás, que me tenha intimidado frente ao oficial
por covardia: nunca fui covarde de espírito, embora incessantemente me
acovardasse de fato, mas esperem com este riso, há explicação para isto; tenho
uma explicação para tudo, eu vos asseguro.
Oh, se aquele oficial fosse dos que concordam em lutar num duelo! Mas não,
era exatamente dos tais cavalheiros (ai, há muito desaparecidos!) que preferiam
agir com tacos de bilhar ou, a exemplo do tenente Pirogóv, de Gógol, com o
apoio das autoridades (No conto “A Avenida Niévski” de Gógol, o Tenente
Pirogóv, depois de espancado, quis queixar-se às autoridades. (N. do T.)). E que
não lutavam em duelos, ou, em todo caso, considerariam indecente um duelo
com a nossa gente, com a paisanada. De modo geral, achavam o duelo algo
inconcebível, francês, coisa de livres-pensadores, e, ao mesmo tempo,
comportavam-se de modo bastante ofensivo, sobretudo no caso de serem bem
altos.
Daquela vez não me intimidei por covardia, mas em virtude da mais ilimitada
vaidade. Não me assustei com a altura do oficial, nem com a perspectiva de ser
dolorosamente espancado e jogado pela janela; e realmente eu teria suficiente
coragem física, o que me faltou foi coragem moral. Assustei-me com o fato de
que todos os presentes — desde o insolente rapaz que marcava os pontos até o
funcionariozinho apodrecido, rosto coberto de cravos, que se esgueirava por ali
de um lado para outro, o colarinho coberto de gordura — não me
compreenderiam e me cobririam de zombarias, quando eu protestasse e passasse
a falar-lhes num linguagem literária. Porquanto, sobre ponto de honra, isto é, não
a honra, mas o ponto de honra (point d’honneur) até hoje realmente não se pode
falar, a não ser em linguagem literária. Na linguagem corrente, não se faz
referência a este “ponto de honra”. Eu estava plenamente convicto (o senso da
realidade, apesar de todo o romantismo!) de que todos eles iriam simplesmente
rebentar de rir, e que o oficial não iria apenas espancar-me, isto é, sem ofender,
mas obrigatoriamente me daria joelhadas, conduzindo-me deste modo em torno
da mesa de bilhar, e só depois seria capaz de fazer-me a graça de me atirar pela
janela. Está claro que esta miserável história não podia acabar, para mim, de
maneira tão simples. Posteriormente, encontrei na rua, com frequência, esse
oficial e gravei-o bem na memória. Apenas, não sei se ele me reconhecia.
Provavelmente não, o que concluo por alguns indícios. Mas eu, eu o olhava com
raiva e ódio, e isto continuou assim... por alguns anos! A minha raiva até se
fortalecia e se expandia com o passar do tempo. A princípio, comecei, aos
pouquinhos, a recolher informações sobre aquele oficial. Era difícil para mim,
porque eu não conhecia ninguém. Mas, certa vez, alguém o chamou na rua pelo
sobrenome, quando eu o seguia a distância, como se estivesse amarrado a ele, e
foi assim que lhe conheci o sobrenome. De outra feita, fui seguindo os seus
passos, até que ele chegasse em casa, e informei-me com o zelador, por dez
copeques, sobre o andar em que morava, se vivia sozinho ou com alguém etc.;
em suma, tudo o que se pode vir a saber com um zelador. Uma vez, de manhã,
embora até então nunca fosse dado às literaturas, veio-me de repente a ideia de
descrever aquele oficial numa transposição acusatória, caricatural, em forma de
novela. Foi com prazer que a escrevi. Eu acusava, cheguei a caluniar até; a
princípio, dei-lhe um sobrenome que poderia ser de imediato reconhecido, mas,
depois de maduras reflexões, modifiquei-o e mandei o escrito para os Anais da
Pátria (Otiétchestvienie Zapiski — publicação que realmente existiu na época.
(N. do T.)). Mas, naquele tempo, ainda não estavam em voga as acusações, e
eles não me imprimiram a novela. Fiquei muito magoado. Às vezes, a raiva
simplesmente me sufocava. Afinal, decidi desafiar o meu inimigo para um
duelo. Compus uma carta linda e atraente, implorando-lhe que se desculpasse
perante mim; e, para o caso de uma recusa, aludia com bastante firmeza a um
duelo. A carta foi escrita de modo que, se o oficial compreendesse um pouco
sequer o “belo e sublime”, seguramente viria correndo à minha casa, para se
atirar ao meu pescoço e oferecer a sua amizade. E como seria bom! Viveríamos
tão bem, como amigos! Tão bem! Ele me defenderia com a imponência da sua
posição; eu o tornaria mais nobre com a minha cultura, bem... com as ideias
também, e muita coisa mais poderia acontecer! Imaginai que já se haviam
passado dois anos desde que ele me ofendera, e o meu desafio a um duelo
constituía o mais feio anacronismo, apesar de toda a habilidade da minha carta,
que explicava e disfarçava o anacronismo. Mas, graças a Deus (até hoje
agradeço ao Altíssimo com lágrimas nos olhos), não a enviei. Quando lembro o
que poderia ter acontecido se a mandasse, um arrepio me percorre o corpo. E de
repente... de repente me vinguei do modo mais simples, mais genial! Baixou
sobre mim de súbito um pensamento muito luminoso. Às vezes, em dias feriados
eu ia, depois das três, para a Avenida Niévski (A avenida principal de São
Petersburgo. (N. do T.)) e ficava passeando do lado do sol, isto é, não passeava
absolutamente, mas experimentava sofrimentos sem conta, humilhações e
derrames de bílis; mas é provável que precisasse justamente disso. Esgueirava-
me, como uma enguia, do modo mais feio, por entre os transeuntes, cedendo
incessantemente caminho ora a generais, a oficiais da cavalaria ou dos
hussardos, ora a senhoras; sentia, nesses momentos, dores convulsivas no meu
coração e calor nas espáduas, à simples ideia da miséria do meu traje e da
vulgaridade da minha deslizante figurinha. Era o cúmulo do suplício, uma
humilhação incessante e insuportável, suscitada pelo pensamento, que se
transformava numa sensação contínua e direta de que eu era uma mosca perante
todo aquele mundo, mosca vil e desnecessária, mais inteligente, mais culta e
mais nobre que todos os demais, está claro, mas uma mosca cedendo sem parar
diante de todos, por todos humilhada e por todos ofendida. Para que recolhia em
mim tal sofrimento; para que ia à Avenida Niévski, não sei; mas algo me
arrastava para lá sempre que era possível.
Eu já começava a experimentar então aqueles acessos de prazer de que já
tratei no primeiro capítulo. Mas, depois da história com o oficial, fui atraído ainda
mais intensamente pela Avenida Niévski: era ali que eu o encontrava com mais
frequência, e contemplava-o encantado. Também ele ia à avenida, sobretudo nos
dias feriados. Embora também se desviasse ante os generais e outras pessoas de
alta posição, e também se esgueirasse por entre eles como uma enguia, quando
se tratava de pessoas da nossa espécie, ou mesmo um pouco melhor, ele
simplesmente as pisava; ia na sua direção como se tivesse diante de si um espaço
vazio, e jamais cedia caminho. Olhando-o eu me embriagava com a minha
raiva, mas... cheio de raiva, cada vez me desviava dele. Atormentava-me o fato
de que, mesmo na rua, não pudesse tratá-lo de igual para igual. “Por que és
sempre o primeiro a te desviar?”, insistia comigo mesmo, em desenfreada
histeria, acordando às vezes depois das duas da madrugada. — “Por que
justamente tu e não ele? Não há nenhuma lei nesse sentido, nem isso está escrito
em parte alguma. Ora, que seja de igual para igual, como geralmente se dá
quando duas pessoas delicadas se encontram: ele há de ceder metade do
caminho: tu farás o mesmo, e assim passareis um ao lado do outro, respeitando-
vos mutuamente.” Mas não era isto o que acontecia, e, apesar de tudo, eu é que
cedia caminho, e ele nem chegava a perceber que eu o tinha feito. E eis que de
chofre um pensamento muito surpreendente tomou tonta de mim. “E que tal”,
pensei, “que tal me encontrar com ele e... não ceder passagem? Não ceder
passagem intencionalmente, ainda que seja preciso empurrá-lo, hem, que
acontecerá?”. Este pensamento atrevido apossou-se de mim pouco a pouco, a tal
ponto que não me deu mais sossego. Eu sonhava com isto incessantemente, de
modo terrível, e, de propósito, passei a ir com mais frequência à Avenida Niévski,
para a mim mesmo representar, com mais nitidez ainda, como haveria de fazer
aquilo. Estava entusiasmado. Aquela intenção parecia-me cada vez mais
provável e possível. “Está claro que não devo propriamente dar-lhe um
empurrão”, pensava, de antemão mais bondoso, mais alegre, “mas
simplesmente não ceder caminho, chocar-me com ele, não de modo muito
doloroso, mas apenas ombro a ombro, na exata medida que a decência permitir;
de modo que não vou esbarrar nele com mais força do que ele em mim”. Afinal,
decidi-me de uma vez. Os preparativos levaram, porém, muito tempo. Em
primeiro lugar, ao executar o ato, deveria estar bem apresentável, e, por isso, tive
que me preocupar com o traje. “Por via das dúvidas, na hipótese, por exemplo,
de surgir com isto um caso público (e o público, lá, é superflu: passeiam por ali a
Condessa, O Príncipe D., toda a literatura), é preciso estar bem trajado; isto
impressiona e há de nos colocar, de certo modo, no mesmo pé aos olhos da alta
sociedade.” Com este objetivo, pedi adiantadamente os meus vencimentos e
comprei umas luvas negras e um chapéu decente na loja de Tchúrkin. As luvas
pretas pareciam-me mais apropriadas, mais de bon ton do que as cor de limão,
que eu tencionava a princípio comprar. “É uma cor demasiado gritante, dá a
impressão de que a pessoa quer se exibir.” E não comprei as cor de limão. Já
tinha preparada, havia muito, uma boa camisa, com abotoaduras brancas, de
osso; mas o capote fez surgir grandes dificuldades. Esse capote, por sinal nada
mau, agasalhava-me bem; mas era de algodão e tinha a gola de prócion, o que
constituía já o cúmulo do lacaiesco. Era preciso, a todo custo, trocar aquela gola
por uma de castor, dessas que os oficiais usam. Para tal fim comecei a
frequentar o Pátio dos Hóspedes (Nas cidades da antiga Rússia, denominavam-se
assim galerias com lojas, que as autoridades cediam aos negociantes forasteiros.
Depois, estas lojas passaram a ser utilizadas pelo comércio local. (N. do T.)) e,
depois de algumas tentativas, fiz pontaria sobre um castor alemão barato.
Embora esses castores alemães se gastem muito depressa e adquiram então o
mais miserável aspecto, quando novos até que têm uma aparência bem decente;
e eu precisava dele para uma vez só. Informei-me do preço: ainda era caro.
Após um raciocínio fundamentado, decidi vender a minha gola de prócion.
Quanto ao que ficava faltando — quantia bastante considerável para mim —,
resolvi pedi-la emprestada a Antón Antônitch Siétotchkin, meu chefe de seção,
homem de caráter suave, embora sério e positivo, que nunca emprestava
dinheiro, mas a quem fui especialmente recomendado, ao ser admitido no
emprego, pelo dignitário que promovera a minha admissão. Torturei-me
terrivelmente. Pedir dinheiro a Antón Antônitch parecia-me monstruosidade,
uma vergonha. Passei até duas ou três noites sem dormir. De modo geral, dormia
pouco então; andava febril; meu coração petrificava-se, de certo modo
indefinido, ou punha-se, de repente, a pular, pular, pular!... Antón Antônitch, a
princípio, surpreendeu-se; depois fez uma careta, a seguir ficou pensativo, e, ao
fim, fez-me o empréstimo, exigindo de mim um recibo, com direito a receber de
volta o dinheiro emprestado, descontando-o, duas semanas mais tarde, do meu
ordenado. Deste modo, finalmente, estava tudo pronto; o bonito castor entronizou-
se no lugar da desprezível pele de prócion, e, aos poucos, fui-me ocupando dos
preparativos para o ato. Não se podia obedecer ao primeiro impulso, fazer tudo
ao acaso; era preciso atuar pouco a pouco, com eficiência. Mas confesso que,
depois de numerosas tentativas, comecei até a desesperar: não dávamos de modo
nenhum o encontrão, eis tudo! Do modo como eu me preparava e ajeitava para
aquilo, parecia que mais um pouco e íamos dar o encontrão; mas reparava e...
mais uma vez eu tinha cedido caminho, e ele passara sem sequer me notar.
Acercando-me dele, eu até rezava, pedindo a Deus que me infundisse ânimo. De
uma feita, até me decidira de vez, mas, por fim, apenas caí diante dele, porque,
no instante derradeiro, à distância de uns dois vierchokes, faltou-me coragem.
Ele caminhou por cima de mim com toda a tranquilidade, e eu me atirei para um
lado, como uma bola. Nessa noite, mais uma vez, estive doente, febril, e delirei.
E, de súbito, tudo acabou do melhor modo possível. Na noite anterior eu resolvera
definitivamente desistir da execução do meu ato nefasto, deixar tudo como
estava, e, com este propósito, saí para a Avenida Niévski, simplesmente com a
intenção de ver como ia deixar tudo sem alteração. De chofre, a três passos do
meu inimigo, inesperadamente me decidi, franzi o sobrolho e... chocamo-nos
com força, ombro a ombro! Não cedi nem um vierchók e passei por ele,
absolutamente de igual para igual! Ele não se voltou sequer e fingiu não ter visto
nada; mas apenas fingiu, estou certo. Guardo esta convicção até hoje! Está claro
que sofri golpe mais violento; ele era mais forte. Mas não era isto o que
importava. O que importava era que eu atingira o objetivo, mantivera a
dignidade, não cedera nem um passo, e, publicamente, me colocara ao nível
dele, do ponto de vista social. Voltei para casa vingado de tudo. Meu estado era de
arrebatamento. Triunfara, e ia cantando árias italianas. Está claro que não vos
descreverei o que me sucedeu três dias mais tarde; se lestes o meu primeiro
capítulo, “O subsolo”, podeis adivinhar sozinhos. O oficial foi depois transferido
não sei para onde, já faz uns quatorze anos que não o vejo. Por onde andará
agora o meu caro amigo? Em quem estará pisando?
II
III
IV
V
“Aí está, aí está finalmente o choque com a realidade”, balbuciava eu,
precipitando-me escada abaixo. “Isto, naturalmente, não é mais o papa que deixa
Roma e parte para o Brasil; não é mais o baile junto ao lago de Como!”
“És um canalha”, passou-me pela mente, “se estás rindo disso agora!”.
“Seja!”, gritei, respondendo a mim mesmo. “Agora tudo já levou a breca!”
Não havia sinal deles sequer; mas era o mesmo: eu sabia aonde tinham ido.
Junto à entrada, estava parado um cocheiro noturno, solitário, com traje
aldeão, todo polvilhado do neve molhada, que não cessava de cair e que parecia
quente. O ar estava abafado, fazia suar. O cavalinho pequeno, guedelhudo,
malhado, também estava polvilhado de neve e tossia; lembro-me disso muito
bem. Atirei-me ao trenó de madeira; mal levantei, porém, a perna para me
sentar, a lembrança de como, havia pouco, Símonov me dera seis rublos pareceu
ceifar-me de vez, e me deixei cair no trenó como um fardo.
— Não! É preciso fazer muito para resgatar tudo isto! — exclamei. — Mas
eu hei de resgatar ou, nesta mesma noite, morrerei fulminado. Anda!
Partimos. Havia todo um turbilhão na minha cabeça.
“Eles não vão implorar a minha amizade de joelhos. É miragem, uma
miragem vulgar, repugnante, romântica e fantástica; é sempre o mesmo baile à
beira do lago de Como. E por isto devo esbofeterar Zvierkóv! Sou obrigado a isto.
Portanto, está resolvido; estou voando para lhe dar o bofetão. Mais depressa!”
O cocheiro sacudiu as rédeas.
“Darei o bofetão logo que entrar. Será preciso dizer, antes do bofetão,
algumas palavras, à guisa de introdução? Não! Simplesmente vou entrar e
esbofeteá-lo. Todos estarão sentados na sala; ele estará no divã, com Olímpia.
Maldita Olímpia! Certa vez, riu do meu rosto e recusou-se a me acompanhar.
Vou puxar Olímpia pelos cabelos e Zvierkóv pelas orelhas! Não, será melhor
puxá-lo por uma orelha só e fazê-lo andar assim por toda a sala. É possível que
eles todos se ponham a bater em mim e me expulsem dali. É certo até. Seja!
Mesmo assim, terei sido o primeiro a dar o bofetão: terá sido minha a iniciativa;
e, pelas leis da honra, isto é tudo; ele já estará marcado e não lavará de si o
bofetão com nenhuma pancada, mas apenas com um duelo. Terá que lutar. Não
faz mal que eles me batam. Seja, gente vil! Trudoliubov vai bater mais que os
outros: ele é tão forte! Fierfítchkin vai me agarrar de lado, e, com toda certeza,
pelos cabelos. Mas seja, seja! Estou decidido. Aquelas cabeçorras de carneiro
serão obrigadas a perceber, finalmente, o trágico de tudo isto! Quando eles me
arrastarem para a porta, vou gritar-lhes que, na realidade, não valem o meu dedo
mínimo.”
— Mais depressa, cocheiro, mais depressa! — gritei. O cocheiro até
estremeceu e agitou o chicote. Eu gritara de modo completamente selvagem.
“Lutaremos de madrugada, está resolvido. Quanto ao departamento, fica tudo
liquidado. Fierfítchkin disse lepartamento, em lugar de departamento. Mas onde
arranjar as pistolas? Tolice! Vou pedir um adiantamento sobre o ordenado, para
comprá-las. E a pólvora, e as balas? Isto compete ao padrinho. E como arranjar
tempo para providenciar tudo isto até o amanhecer? E onde arranjar um
padrinho? Não tenho conhecidos...”
— Tolice! — gritei, agitando-me ainda mais. — Tolice!
“O primeiro transeunte a quem eu me dirigir na rua terá obrigação de ser
meu padrinho; o caso é idêntico ao de um afogado que é preciso retirar da água.
Devem ser admitidas até as soluções mais excêntricas. E, mesmo que eu
amanhã pedisse ao próprio diretor para ser meu padrinho, ele teria que
concordar, por simples sentimento cavalheiresco, e deveria manter segredo!
Antón Antônitch...”
O caso é que, no mesmo instante, eu percebia, do modo mais vivo e nítido
que qualquer outra pessoa no mundo, todo o ignóbil absurdo das minhas
suposições e todo o reverso da medalha; mas...
— Anda, cochiro! Anda, vagabundo, anda!
— Eh, patrão! — disse a força aldeã.
De repente, percorreu-me o corpo um frio gélido.
“Mas não seria melhor... não seria melhor... ir agora diretamente para casa?
Oh, meu Deus! Por que, por que me ofereci ontem para tomar parte nesse
jantar? Mas não, é impossível! E aquele passeio de três horas, da mesa à lareira?
Não, eles — eles e ninguém mais — devem ajustar contas comigo por causa
daquele passeio! Terão que lavar esta desonra!”
— Anda!
“E se eles me mandarem para o distrito policial? Não vão atrever-se? Terão
medo do escândalo. E se Zvierkóv, por desprezo, recusar-se ao duelo? Isto é certo
até; mas, então, vou demonstrar-lhes... Neste caso, corro à estação da posta,
amanhã, quando ele estiver partindo de viagem, agarro-o pelo pé e arranco-lhe o
capote, no momento de sua subida para o carro. Vou ferrar-lhe os dentes no
braço, mordê-lo. ‘Vejam todos a que ponto um homem pode ser levado ao
desespero!’ Pode ser que ele me bata na cabeça e que todos eles estejam atrás.
Gritarei para todos os presentes: ‘Vejam, aí está o fedelho que parte para seduzir
circassianas, com o meu escarro no rosto!”
“Naturalmente, depois disso, tudo estará acabado! O departamento terá
sumido da face da terra. Vão me agarrar e processar, serei expulso do emprego,
encerrado numa prisão, deportado para a Sibéria, em residência forçada. Não
tem importância! Daqui a quinze anos, libertado da prisão, mendigo e
maltrapilho, vou arrastar-me atrás dele. Vou encontrá-lo em alguma capital de
província. Estará casado e feliz. Terá uma filha adulta... Direi: ‘Olha, monstro, as
minhas faces encovadas e os meus farrapos! Perdi tudo: a carreira, a felicidade,
a arte, a ciência, a mulher amada. E tudo por tua causa. Aqui estão as pistolas.
Vim descarregar a minha pistola e... perdoo-te.’ Nesse momento, atirarei para o
ar, e ninguém mais ouvirá falar de mim...”
Cheguei até a chorar, embora soubesse com toda a exatidão, naquele mesmo
instante, que tudo aquilo se baseava em Sílvio (Personagem de “O tiro”, conto de
Púchkin. (N. do T.)), e na Mascarada (Drama de Liérmontov. (N. do T.)) de
Liérmontov. E de repente senti uma vergonha terrível a tal ponto que fiz parar o
cavalo, desci do trenó e me detive na neve, no meio da rua. O cocheiro me
olhava surpreso e suspirando.
O que fazer? Não se podia mesmo ir para lá: era um absurdo. E não se podia
também abandonar o caso, porque ia sair... “Meu Deus! Como se poderá
abandonar isto? E depois de semelhantes ofensas!”
— Não! exclamei, atirando-me novamente no trenó. — Está predestinado, é
o destino! Toca, toca para lá!
E, impaciente, bati com o punho na nuca do cocheiro.
— Mas que é isto, por que estás brigando? — gritou o mujiquezinho,
fustigando, no entanto, o rocim, que até começou a escoicear com as patas
traseiras.
A neve molhada caía aos flocos; desabotoei o capote, não podia pensar na
neve. Esquecera tudo o mais, porque me decidira definitivamente à bofetada e
sentia, horrorizado, que isto de fato ia acontecer impreterivelmente naquele
momento, e que nenhuma força poderia me deter. Os lampiões desertos surgiam
taciturnos, na bruma nevada, como archotes num enterro. A neve acumulara-se
sob o meu casaco, sob o redingote, sob a gravata, e se derretia ali, e eu não me
resguardava: de qualquer modo, estava tudo perdido! Finalmente. chegamos. Saí
correndo, quase desmemoriado, subi os degraus e me pus a bater com pés e
mãos na porta. Sentia sobretudo que os meus joelhos estavam enfraquecendo
terrivelmente. Abriram logo: era como se estivessem esperando a minha
chegada. (Símonov realmente dissera que, possivelmente, viria mais um e ali era
preciso avisar e, de modo geral, tomar toda espécie de precaução. Era uma
daquelas “lojas de modas” que há muito já foram eliminadas pela polícia. De
dia, funcionava realmente como loja; mas, de noite, podiam ir lá pessoas
recomendadas.) Atravessei, a passos rápidos, uma loja escura e penetrei na sala
que já conhecia, onde ardia uma única vela, e parei perplexo: não havia
ninguém.
— Onde estão eles? — perguntei a alguém. Mas, segundo parecia, já tinham
ido embora...
Estava diante de mim uma personagem de sorriso estúpido, a própria patroa,
que já me conhecia um pouco. Um instante depois, abriu-se uma porta e entrou
outra personagem.
Eu caminhava pela sala, sem dar atenção a nada, e, ao que parece, falava
comigo mesmo. Era como se tivesse sido salvo da morte e alegremente
pressentisse, com todo o meu ser, o seguinte: eu daria mesmo a bofetada, sem
dúvida, sem dúvida! Mas, agora, eles não estavam ali e... tudo desaparecera, tudo
se modificara!... Eu olhava em torno. Não podia ainda compreender.
Maquinalmente, lancei um olhar para a moça que entrara: entrevi um rosto
fresco, jovem, um tanto pálido, de sobrancelhas retas, escuras, olhar sério e
como que um tanto surpreso. Isto me agradou no mesmo instante; eu a odiaria se
ela tivesse sorrido. Pus-me a olhá-la mais fixamente, com certo esforço: ainda
não tinha conseguido concentrar meus pensamentos. Havia naquele rosto algo de
singelo e bondoso, mas que parecia estranhamente sério. Estou certo de que
aquilo a prejudicava ali e que nenhum daqueles imbecis a notara. Aliás, não se
poderia chamá-la de beldade, embora fosse de estatura elevada, forte e bem-
proporcionada. Vestia-se com extrema simplicidade. Algo mau me mordeu e
aproximei-me muito dela...
Por acaso olhei-me num espelho. O meu rosto transtornado pareceu-me
extremamente repulsivo: pálido, mau, ignóbil, cabelos revoltos. “Seja, fico
satisfeito”, pensei. “Estou justamente satisfeito de lhe parecer repugnante; isto
me agrada...”
VI
... Alhures, atrás de um tabique, como que submetido a uma forte pressão, ou
como alguém que estivesse sendo esganado, rouquejou um relógio. Depois de
um rouquejar prolongado e pouco natural, houve um bater fininho, feinho e
surpreendentemente rápido: era como se alguém tivesse saltado para a frente.
Bateram as duas. Voltei a mim, embora não estivesse dormindo, mas apenas
deitado em modorra.
O quarto estreito, apertado e baixo, atravancado por um enorme guarda-
roupa e repleto de caixas de papelão, trapos e toda espécie de retalhos, estava
quase às escuras. O toco de vela que ardia sobre a mesa, na outra extremidade
do quarto, já se extinguia e, de quando em quando, a chama estremecia
ligeiramente. Alguns instantes depois, seria a treva completa.
Dei acordo de mim rapidamente; sem esforço, lembrei-me de tudo no
mesmo instante, como se as recordações tivessem estado à minha espreita para
se atirar novamente sobre mim. E, mesmo em meu alheamento, algo persistiu
em mim, uma espécie de ponto que eu não conseguia esquecer e em torno do
qual os meus sonhos giravam pesadamente. Mas era estranho: tudo o que me
acontecera naquele dia parecia-me agora, ao acordar, ter ocorrido há muito
tempo, como coisa já vivida por mim muitos anos antes.
Tinha uma fumaceira na cabeça. Algo parecia pairar sobre mim, tocar-me,
excitar-me, infundir-me intranquilidade. A angústia e a bílis ferviam novamente
e buscavam saída. De repente vi, a meu lado, dois olhos abertos que me
examinavam curiosa e fixamente. O olhar era frio, indiferente, taciturno, muito
estranho; dava uma sensação penosa.
Um pensamento sombrio nasceu-me no cérebro e passou-me por todo o
corpo, sob a forma de certa sensação desagradável, semelhante à que se tem ao
entrar num subterrâneo úmido e abafado. Era, de certo modo, pouco natural que,
justamente, apenas naquele momento, aqueles dois olhos tivessem decidido
começar a examinar-me. Lembrei-me também de que, no decorrer de duas
horas, eu não trocara uma palavra sequer com aquela criatura e de que não
considerara isto de modo algum necessário; pouco antes a coisa me parecia até,
por algum motivo, agradável. Agora, porém, surgira-me de repente com
vivacidade a ideia absurda, repugnante como uma aranha, da devassidão que,
sem amor, grosseira e desavergonhadamente, começa direto por aquilo com que
o amor é coroado. Passamos assim muito tempo a olhar um para o outro; ela,
todavia, não baixava os olhos diante dos meus nem seu olhar mudava de
expressão e, por fim, tive, não sei por quê, um sentimento de pavor.
— Como se chama? — perguntei lacônico, procurando acabar o quanto antes
com aquilo.
— Liza — respondeu quase num sussurro, mas de modo nada cordial e
afastando o olhar.
Passei algum tempo calado.
— O tempo hoje... neva... está feio! — disse eu quase para mim mesmo,
pondo com expressão angustiada a mão sob a nuca e olhando o teto.
Não respondeu. Tudo aquilo era monstruoso.
— Você é daqui? — perguntei um instante depois, quase fora de mim,
voltando ligeiramente a cabeça na sua direção.
— Não.
— De onde?
— De Riga — respondeu, contrafeita.
— Alemã?
— Russa.
— Está há muito tempo aqui?
— Onde?
— Nesta casa.
— Duas semanas.
Ela falava cada vez mais laconicamente. A vela apagara-se e eu não podia
mais distinguir-lhe o rosto.
— Tem pai e mãe?
— Sim... não... tenho.
— Onde estão?
— Lá... em Riga.
— Quem são?
— Assim...
— Assim, como? Quem são? Qual a sua condição?
— Pequeno-burgueses.
— Viveu sempre com eles?
— Sim.
— Quantos anos tem?
— Vinte.
— Por que os deixou?
— Assim...
Aquele assim significava: deixe-me, está me aborrecendo. Calamo-nos.
Sabe Deus por que eu não ia embora. Eu próprio me sentia cada vez mais
aborrecido e angustiado. As imagens do dia anterior começaram a vir-me à
memória, como que por si, sem a minha vontade, em desordem. De repente,
lembrei-me de uma cena, que vira na rua de manhã, quando, preocupado,
apressava o passo para a repartição.
— Hoje quase deixaram cair um caixão quando o carregavam — disse eu de
chofre, não desejando iniciar conversa, e quase sem querer.
— Um caixão de defunto?
— Sim, na Siênaia; estava sendo retirado de um porão.
— De um porão?
— Aliás, não era bem um porão, mas um andar térreo bem baixo... Bem,
você compreende... lá embaixo... numa casa de má reputação... Em volta, havia
tanta lama!... Cascas, lixo... cheirava... era ruim. — Silêncio. — É ruim enterrar
alguém hoje! — comecei de novo, apenas para não me calar.
— Ruim por quê?
— A neve, a umidade... (Bocejei.)
— Tanto faz — disse ela de repente, depois de algum silêncio.
— Não, é horrível... (Tornei a bocejar.) Os coveiros certamente deviam estar
xingando por causa da neve molhada. E na cova, provavelmente, havia água.
— Água na cova, por quê? — perguntou ela com certa curiosidade, mas
pronunciando as palavras de modo ainda rude e lacônico.
De repente, algo começou a me espicaçar.
— E por que não? Água no fundo, uns seis vierchokes de água. Em Vólkovo
não se consegue abrir uma cova no seco.
— Por quê?
— Como, por quê? É um lugar tão úmido. Ali é um pântano em toda parte.
Eles depositam os corpos assim mesmo, na água. Eu mesmo vi... muitas vezes...
(Eu nunca vira tal coisa nem jamais estivera em Vólkovo, ouvira apenas contar.)
Será possível que para você tanto faz? Falo da morte.
— Mas por que hei de morrer? — respondeu ela, como que se defendendo.
— Algum dia você morrerá, e morrerá que nem a defunta de hoje Ela era...
também uma moça... Morreu tísica.
— Uma rapariga terá morrido no hospital... (Ela já sabe — pensei — e disse:
“rapariga”, e não “moça”.)
— Ela devia à patroa — repliquei, cada vez mais espicaçado pela discussão
— e lhe prestou serviços quase até o fim, embora estivesse tísica. Os cocheiros
todos comentaram isto com os soldados. Deviam ser seus conhecidos. Riam.
Pretendiam beber à memória dela no botequim (É tradição, na Rússia, beber à
memória dos recém-falecidos. (N. do T.)). (Também nesta passagem eu
acrescentara muitos pormenores inventados.)
Silêncio, um silêncio profundo. Ela não se movia sequer.
— Mas será melhor morrer no hospital?
— Não será a mesma coisa?... Mas por que vou eu morrer? — acrescentou
irritada.
— Agora não; e mais tarde?
— Mais tarde, sim...
— E então?! Agora, você é jovem, bonita, viçosa, e por isto obtém um bom
preço. Mas, depois de um ano desta vida, não será a mesma, vai murchar.
— Depois de um ano?
— Em todo o caso, daqui a um ano o seu preço vai cair — prossegui com
perversidade. — Vai passar daqui para alguma parte mais baixa, para uma outra
casa. Depois de um ano mais, irá para uma terceira, cada vez mais baixo, e,
daqui a uns sete anos, terá chegado à Siênaia, a um porão. E assim ainda seria
bom. A desgraça será se, além disto, aparecer-lhe alguma doença, bem, digamos
uma fraqueza do peito... se você apanhar um resfriado ou alguma coisa no
gênero. Com a vida que vocês levam é difícil curar uma doença. Se ela se
agarrar a você, poderá não largá-la mais. E então você vai morrer.
— Bem, morrerei então — respondeu num tom já de todo rancoroso, e seu
corpo teve um estremecimento rápido.
— Mas dá pena.
— Quem?
— Dá pena, a vida. — Silêncio.
— Você teve um noivo? Hem?
— Para que precisa saber?
— Não estou interrogando você. Que me importa? Por que fica zangada?
Naturalmente, você pode ter passado dias difíceis. Que me importa? Mas tenho
pena.
— De quem?
— Você me dá pena.
— Não precisa... — murmurou quase imperceptivelmente e tornou a
estremecer.
Aquilo me irritou no mesmo instante. Como?! Eu lhe falara tão docemente, e
ela...
— Mas o que pensa você? Que está no bom caminho, hem?
— Não penso nada.
— O ruim justamente é que você não pensa. Volte a si, enquanto é tempo.
Pois ainda há tempo. Você é jovem ainda, e bonita; poderia amar alguém, casar-
se, ser feliz...
— Nem todas as casadas são felizes — retrucou ela, no mesmo tom rápido e
grosseiro de antes.
— Nem todas, naturalmente, mas, de qualquer modo, é muito melhor que
aqui. Melhor de verdade. Até na aflição a vida é boa. É bom viver no mundo,
ainda que se viva seja lá como for. E aqui, o que se tem, além de... mau cheiro?
Irra!
Voltei-me com repugnância; não argumentava mais friamente. Eu mesmo
começava a sentir aquilo que dizia, e me agitava. Ansiava já por expor
minhasideiazinhas secretas, cultivadas num canto. De súbito, algo se inflamou em
mim, “apareceu” não sei que objetivo.
— Não repare no fato de eu estar aqui, não sirvo de exemplo. Talvez eu seja
ainda pior que você. Aliás, cheguei aqui bêbado — apressei-me, no entanto, a
justificar-me. Ademais, um homem, de modo nenhum, é exemplo para uma
mulher. Os casos são diferentes; embora eu me emporcalhe todo, aqui não sou
escravo de ninguém; fico num lugar, depois vou embora, desapareço. Sacudo a
roupa e sou já um outro homem. Quanto a você, começa como escrava. Sim,
escrava! Você entrega tudo, toda a vontade. E depois há de querer romper esta
corrente, mas não é mais possível: ela irá emaranhá-la, cada vez com mais
força. Assim é esta maldita corrente. Eu a conheço. Agora não falo de outras
coisas. Talvez você nem me compreendesse. Mas, diga-me: certamente, você já
tem dívida com a patroa? Bem vê! — acrescentei, embora ela não me tivesse
respondido, mas apenas ouvisse em silêncio, com todo o seu ser. — Aí tem você:
isto é que é uma corrente! Você nunca mais há de comprar a sua liberdade.
Assim tem de ser. É o mesmo que vender a alma ao diabo...
E além disso eu... que sabe você?... talvez seja também assim infeliz e me
meta de propósito na lama, igualmente por angústia. Uns bebem por aflição. Pois
bem, eu estou aqui por aflição. Ora, diga-me, isso está bem? Eu e você... nos
unimos... ainda há pouco, e nem uma palavra dissemos um ao outro, e, depois,
você ficou a examinar-me como uma selvagem; e eu a você, também. É assim
que se ama? É assim que uma pessoa deve unir-se a outra? Isto é simplesmente
uma indecência, aí é que está!
— Sim! — aprovou ela abrupta e apressadamente.
Surpreendeu-me até a pressa com que foi proferido aquele sim. Quereria isto
dizer que tinha a mesma ideia a fermentar-lhe na cabeça quando, há pouco, me
examinara? Também ela já era talvez capaz de certos pensamentos?... “Com os
diabos, isto é interessante. Já é intimidade!”, pensei quase esfregando as mãos. “E
por que não chegar às boas, se se tem pela frente uma alma tão jovem?...”
O que mais muito absorvia era o jogo.
Ela voltou a cabeça, colocando-a mais perto de mim, e — tive no escuro esta
impressão — apoiou-a no braço. Talvez me examinasse. Como lamentei não
poder ver-lhe os olhos! Ouvia-lhe a respiração profunda.
— Para que veio você para cá? — comecei, já com algum poder sobre ela.
— Assim...
— Mas como seria bom viver na casa paterna! Quentura, liberdade, o seu
próprio ninho.
— E se for pior que isto?
“É preciso acertar o tom”, disse de mim para mim. “Com sentimentalismo
talvez não se consiga muita coisa.”
Aliás, este pensamento apenas me passou na mente. Juro que me interessei
por ela, de verdade. Além disso, eu estava de certo modo enfraquecido e
indisposto. E o embuste combina bem facilmente com o sentimento.
— Quem nega isto?! — apressei-me a responder. — Tudo acontece. Estou
plenamente convencido de que você foi ofendida por alguém, e de que os outros
é que são culpados para com você e não você para com eles. É verdade que não
sei nada da sua vida, mas uma moça como você, com certeza, não vem parar
aqui por sua livre vontade...
— E que espécie de moça sou eu? — murmurou ela quase
imperceptivelmente, mas eu ouvi.
“Com os diabos, procuro lisonjeá-la. Isto é horrível. Ou talvez seja bom...”
Ela permanecia calada.
— Sabe, Liza? Vou falar de mim! Se eu tivesse família, desde criança, não
seria como sou agora. Penso nisto com frequência. De fato, por pior que possa
ser a vida em família, tem-se pai e mãe e não gente estranha, inimiga. Pelo
menos uma vez por ano, vão expressar o seu amor por você. Apesar de tudo,
você sabe que está em casa. Eu cresci sem família; por isso, talvez tenha saído
assim... insensível.
Esperei mais um pouco.
“Talvez ela nem esteja compreendendo isto”, pensei, “que é, ademais,
ridículo: a moral”.
— Se eu fosse pai e tivesse uma filha, creio que amaria mais a filha que os
filhos; estou certo disso — comecei, num rodeio, como que puxando outro
assunto para distraí-la. Confesso que estava corando.
— Por que isso? — perguntou.
Quer dizer que me ouvia!
— Assim... Não sei, Liza. Veja uma coisa: conheci um pai que era um
homem severo, rigoroso. Diante da filha, porém, punha-se de joelhos, beijava-
lhe as mãos e os pés, não se cansava de admirá-la. É verdade. Se ela dançava
num baile, ele passava cinco horas no mesmo lugar, não tirando dela os olhos.
Era doido por ela. E eu compreendo isto. De noite, cansada, ela adormecia. E ele
acordava e ia beijá-la durante o sono, e fazer sobre ela o sinal da cruz. Era
avarento para com os outros, e ele próprio usava um redingotezinho sebento.
Para ela, porém, gastava até o último níquel; fazia-lhe presentes ricos, e ficava
contente quando o presente agradava. O pai sempre ama as filhas mais do que a
mãe. Para muitas moças, viver em casa é uma alegria! Eu, se tivesse uma filha,
creio que nem a casaria.
— Como assim? — perguntou ela, com um ligeiro sorriso.
— Teria ciúme, juro por Deus. Ora, poderia ela beijar um estranho? Como
poderia amar um outro mais do que o próprio pai? É penoso até imaginar isto.
Está claro que tudo isto é um absurdo; está claro que, por fim, cada um acaba
sendo razoável. Mas eu, creio, antes de entregá-la, ia torturar-me com esta
preocupação: rejeitaria os noivos um a um. Mas, apesar de tudo, acabaria
casando-a com aquele que ela própria amasse. Na realidade, porém aquele que
a filha ama sempre parece ao pai o pior de todos. É sempre assim. Muito mal
acontece nas famílias por causa disso.
— Há gente que se sente mais feliz vendendo a filha do que casando-a
honestamente — disse ela, de repente.
Ah, então é isso!
— Isto acontece, Liza, entre famílias malditas, onde não há Deus nem amor
— repliquei exaltado. — E, onde não existe amor, também não há razão. É
verdade que há famílias assim, mas não é delas que eu falo. Você,
provavelmente, não viu coisas boas em sua família, e, por isto, fala assim.
Realmente, você é uma infeliz. Hum... Tudo isso acontece, principalmente,
devido à pobreza.
— E entre os ricos será acaso melhor? As pessoas honestas são felizes até
mesmo na pobreza.
— Hum... sim. Pode ser. Mas acontece também o seguinte, Liza: o homem
gosta de levar em conta unicamente a sua aflição; não pensa na sua felicidade.
Se considerasse isto, veria que lhe está reservado também um bom lote. Ora,
pode acontecer que tudo dê certo numa família: com a graça de Deus, o marido
é bom, cuida de você, ama-a, não a deixa um pouco sequer! É bom viver numa
família assim! Por vezes, mesmo que haja aflição, é bom; e onde é que não
existe aflição? Você talvez ainda se case, e saberá então. Tomemos para exemplo
ao menos os primeiros tempos de casamento com aquele que se ama: quanta
felicidade pode advir disso! E é algo contínuo. Nos primeiros tempos, até as
brigas com o marido acabam bem. Algumas, quanto mais amam, mais brigas
com o marido arranjam. É verdade; conheci uma que dizia: “Amo-te muito, é
por amor que te atormento, e para que sintas isto”. Sabe que, por amor, pode-se
atormentar uma pessoa? Sobretudo as mulheres. E elas pensam, no íntimo: “Em
compensação, vou depois amar tanto, hei de acarinhar tanto, que não é pecado
atormentá-lo agora um pouco”. E, em casa, todos se alegram com vocês, tudo é
bom, agradável, pacífico, honesto... Algumas existem que são ciumentas. Se ele
vai a alguma parte (conheci uma assim), a mulher não se contém e sai correndo
no meio da noite, para espiar às escondidas: não é ali que ele está, naquela casa,
com aquela? Isto já é ruim. E ela mesma sabe que é ruim, e o seu coração se
congela e se atormenta, mas ela ama; é tudo por amor. E como é bom, depois de
uma briga, fazer as pazes, ela mesma se culpar perante ele, ou perdoar! E ambos
se sentirão tão bem, tão bem! É como se tivessem acabado de se encontrar, de se
casar, como se o amor tivesse começado de novo. E ninguém, ninguém deve
saber o que acontece entre marido e mulher, se eles se amam. E, seja qual for a
briga, não devem chamar nem a própria mãe para juiz, nem contar nada um do
outro. Eles mesmos são seus próprios juízes. O amor é um mistério de Deus e
deve ser oculto de todos os olhares estranhos, aconteçar o que acontecer. Deste
modo, tudo é mais santo, tudo é melhor. Eles se respeitarão mais um ao outro, e
muita coisa baseia-se no respeito mútuo. E se já houve amor, se se casaram por
amor, por que há de este amor acabar?! Não se pode acaso mantê-lo? É difícil
que não se consiga isto. Bem, e se o marido se revela uma pessoa boa e honesta,
neste caso como é que o amor vai acabar? Passará o primeiro amor conjugal, é
verdade, mas então chegará um amor ainda melhor. Ambas as almas se unirão,
todos os seus interesses serão comuns, e um não terá qualquer segredo para com
o outro. E, quando os filhos vierem, mesmo os tempos mais difíceis vão parecer
uma felicidade; é só amar e ser corajoso. Então, até o trabalho dá alegria, e é
com alegria também que às vezes se recusa o próprio pão para dá-lo aos filhos. E
eles, depois, vão amar-nos por isto, mais tarde. É, pois, para nós próprios que
amealhamos. As crianças crescem, e nós sentimos que somos para elas um
exemplo, um apoio; e mesmo que a gente morra, elas hão de trazer consigo, pela
vida toda, os nossos sentimentos e as nossas ideias, do modo como os receberam
de nós, e serão feitos à nossa imagem e semelhança. Quer dizer que isto é um
alto dever. Como é possível, no caso, um pai não se unir mais intimamente à
mãe? Dizem alguns que é coisa árdua criar filhos. Mas quem é que o diz? É uma
felicidade dos céus! Você gosta de crianças pequenas, Liza? Eu gosto delas
terrivelmente. Você sabe... um menino assim, todo rosadinho, a sugar-lhe o seio...
E qual o marido que não sente o coração voltar-se para a esposa, vendo-a
sentada com o filho dele?! A criança rosadinha, rechonchudinha, revira-se,
dengosa, pezinhos e mãozinhas gorduchinhos, unhinhas bem limpas, pequenas,
tão pequenas que se tornam até engraçadas, e olhinhos que já parecem
compreender tudo. E quando mama, fica repuxando o seio da mãe, brincando.
Se o pai se aproxima, ela se desprende do peito, inclina-se toda para trás, olha o
pai, dá uma risada, como se o caso fosse — sabe Deus por quê — engraçado, e
de novo, de novo se põe a mamar. Ou então, de repente, dá uma mordida no
peito da mãe, se é que os dentinhos já lhe estão surgindo, e lhe dirige os olhinhos
de viés: “Está vendo, dei uma mordida!”. Mas não estará nisso toda a felicidade,
quando ficam juntos os três — o marido, a mulher e o filho? Em troca de
momentos como este, muita coisa se pode perdoar. Não, Liza, antes de acusar os
outros, é preciso que cada um aprenda por si mesmo a viver!
“É com estes quadrinhos, justamente com estes quadrinhos, que é preciso
atuar sobre você!”, pensei comigo, embora, juro por Deus, eu tivesse falado com
sentimento; e de chofre corei. “Bem, e se ela de repente der uma gargalhada,
onde irei parar?” — Este pensamento deixou-me furioso. No final do meu
discurso, eu ficara realmente exaltado, e agora o meu amor-próprio de certo
modo sofria. O silêncio prolongava-se. Quis, até, dar-lhe um safanão.
— O que foi que você... — começou ela, de repente, e se deteve.
Mas eu já compreendera tudo: em sua voz tremia algo diverso, que não era
abrupto, grosseiro, obstinado, como há pouco, mas algo suave e pudico, tão
pudico que eu mesmo, de repente, senti certa vergonha perante ela, senti-me
culpado.
— O quê? — perguntei com uma curiosidade carinhosa.
— É que você...
— O quê?
— É que você... fala como se estivesse lendo um livro — disse, e um tom de
mofa pareceu ouvir-se, de novo, em sua voz.
Esta observação espicaçou-me dolorosamente. Não era o que eu esperava.
Não compreendi sequer que ela se mascarava, de propósito, com aquela
zombaria, que era o último ardil das pessoas envergonhadas e de coração
virtuoso, quando alguém lhes procura penetrar a alma, de modo rude e insistente,
e que, até o último instante, não se rendem por orgulho e temem expressar o seu
sentimento diante de outrem. Já pela timidez com que ela tentara várias vezes
expressar a sua zombaria, e com que, por fim, mal se decidira a enunciá-la, eu
devia ter adivinhado. Mas não adivinhei, e um mau sentimento se apossou de
mim
“Espere um pouco”, pensei.
VII
— Eh, chega, Liza, que história de livro é esta, se eu mesmo me sinto mal,
me sinto um estranho? E não só como um estranho. Tudo isto me despertou agora
no íntimo... Será possível, será possível que você mesma não se sinta mal aqui?
Não, o hábito pelo visto significa muito! O diabo é que sabe o que o hábito pode
fazer de uma pessoa. Será que você pensa seriamente que nunca há de
envelhecer, que será sempre bonita, e que eles vão mantê-la aqui eternamente?
Além do mais, mesmo isto é uma imundice... Mas ouça o que vou lhe dizer sobre
a sua vida atual: você é moça, gentil, bonita, tem alma, tem sentimento; mas sabe
que ao dar acordo de mim, ainda há pouco, me senti mal por estar com você
aqui?! Só mesmo embriagado é que se pode vir parar nesta casa. E se você
estivesse num outro lugar, vivendo com as pessoas direitas, não é que eu fosse
arrastar a asa a você, mas simplesmente me apaixonaria; ficaria contente com
um único olhar seu, quanto mais com uma palavra; iria esperá-la no portão,
ajoelhar-me a seus pés, olhá-la como minha noiva e ainda consideraria isto uma
honra. Não ousaria ter sequer um pensamento impuro a seu respeito. E aqui sei
que me basta dar um assobio, e você, queira ou não, terá de me seguir, e não
serei eu que perguntarei a sua vontade, mas você a minha. O último dos
mujiques, quando faz um contrato de trabalho, não se entrega, apesar de tudo,
totalmente, e além disso, sabe que tem um prazo. E você, qual é o prazo? Pense
um pouco: o que entrega você aqui? O que empenha? Com o corpo, está
empenhando a alma, a alma que não lhe pertence! Está entregando ao primeiro
bêbado o seu amor, para que o profane! O amor! Mas isto é tudo, é um
diamante, um tesouro virginal, o amor! Para merecer este amor, alguns estão
prontos a entregar a alma, a enfrentar a morte. E que preço darão agora ao seu
amor? Você foi comprada, você inteira, e para que procurar neste caso obter o
amor, quando mesmo sem amor tudo é possível? Não pode haver ofensa maior
para uma moça, compreende acaso isto? Ouvi dizer que fazem favores a vocês
aqui, a vocês tolas: permitem-lhes ter amantes. Mas isto é puro divertimento para
essa gente, um verdadeiro embuste; estão zombando de vocês, e vocês
acreditam. Pensa que ele realmente a ama, o amante? Não acredito. Como é que
ele vai amar, se sabe que, a qualquer momento, vão chamá-la, que você deverá
deixá-lo por outro? Depois de uma coisa dessas, ele será apenas um crápula!
Respeitá-la-á um pouquinho sequer? Que é que você tem de comum com ele?
Ele ri de você e ainda a rouba: aí está todo o seu amor! Ainda é bom quando não
lhe bate. Ou talvez bata. Pergunte ao seu amante, se acaso tiver um, se ele casará
com você. Vai rir-lhe na cara, se é que não cuspirá e não baterá em você. E ele
próprio talvez não valha um tostão furado. E por que, pensará você, perdeu aqui
toda a sua vida? Servem-lhe café e alimentam-na bem? Mas para que a
alimentam? Uma outra mulher, direita, seria incapaz de engolir um pedaço dessa
comida, se soubesse com que fim ela é servida. Você tem dívidas aqui, e sempre
vai tê-las, até o fim, até o dia em que os visitantes passem a ter repugnância por
você. E isto acontecerá em breve, não confie na mocidade. Aqui o tempo corre
como um cavalo de posta. Irão botá-la na rua. E não vão pô-la simplesmente na
rua, mas, com muita antecedência, começarão a implicar com você, a censurá-
la, a insultá-la, como se você não tivesse entregue à dona da casa tudo quanto
possuía, a saúde, a mocidade, como se, por causa dela, não tivesse sacrificado a
alma em vão, mas, ao contrário, como se a tivesse arruinado, roubado, posto na
miséria. E não espere ajuda: as companheiras também se voltarão contra você,
para agradar à patroa, porque todas aqui são escravas e há muito perderam a
consciência e a compaixão. Tornaram-se ignóbeis, e não há sobre a terra nada
mais horrível, mais vil, mais ofensivo do que os insultos com que elas vão
humilhá-la. E você deixará tudo aqui, sem reserva: a saúde, a mocidade, a
beleza, as esperanças; aos vinte e dois anos parecerá ter trinta e cinco, e ainda
será bom se não ficar doente; peça isto a Deus. Agora, você talvez pense que
tudo isto nem chega a lhe dar trabalho, que é uma vadiação. Mas não existe no
mundo, e nunca existiu, trabalho mais árduo, mais patibular. Parece que o
coração é até capaz de se desfazer em lágrimas. E você não ousará dizer
palavra, nem meia palavra, quando a expulsarem daqui: há de partir como uma
culpada. há de passar a uma outra casa, depois a uma terceira, a seguir irá para
uma outra ainda, e chegará finalmente à Siênaia. E ali vão simplesmente bater
em você; é a amabilidade que se usa ali; um daqueles visitantes não sabe fazer
um carinho sem bater antes. Você não acredita que aquilo seja tão nojento? Vá
um dia dar uma espiada, talvez veja isto com seus próprios olhos. Vi lá uma
mulher, à porta de uma daquelas casas, numa noite de Ano-Bom. As próprias
companheiras empurraram-na para fora, para que apanhasse um pouco de frio,
porque estava chorando muito, e fecharam atrás dela a porta. Às nove da manhã,
já estava completamente bêbada, desgrenhada, seminua, coberta de pancadas.
Toda empoada, com manchas negras junto aos olhos e sangue escorrendo do
nariz e das gengivas: algum cocheiro acabava de lhe fazer aquele estrago.
Sentada na escadinha de pedra, segurava nos braços não sei que peixe salgado;
chorava à toda, soltava uns lamentos sobre o seu “dessino” e fustigava com o
peixe os degraus da escada. E ali se juntou um grupo de cocheiros e de soldados
bêbados, que zombavam dela. Você não acredita que, um dia, será uma dessas?
Eu também não gostaria de acreditar, mas — como se vai saber? — talvez uns
dez, uns oito anos antes, essa mesma mulher do peixe salgado tenha vindo para
cá de alguma parte, fresquinha como um querubim, inocente, pura; não conhecia
o mal, corava depois de cada palavra. Talvez fosse como você, orgulhosa,
suscetível, diferente das demais, talvez parecesse uma rainha e soubesse que toda
a felicidade aguardava aquele que a amasse e que ela amasse também. Você vê
como acabou tudo? E que tal se, naquele mesmo instante em que ela batia com o
peixe nos degraus sujos, bêbada e desgrenhada, que tal se nesse instante ela se
lembrasse dos seus anos puros, passados na casa paterna, quando ainda ia à
escola e o filho do vizinho a esperava no caminho e lhe assegurava que haveria
de amá-la a vida toda, que lhe confiaria todo o seu destino, e ambos juravam
amar-se para sempre e casar logo que se tornassem adultos?! Não, Liza, será
uma felicidade, uma verdadeira felicidade para você se puder morrer num
canto, num porão, como a mulher que eu vi hoje. No hospital, diz você? Está
bem, vão levá-la para lá; mas que acontecerá se a patroa ainda precisar de você?
A tísica é uma doença assim; nem sempre é um ataque de febre. Uma pessoa
tem esperança até o derradeiro momento e diz que está passando bem. é um
autoconsolo. E isso traz vantagem para a patroa. Não se incomode, é assim
mesmo; vende-se a alma e, além disso, fica-se devendo dinheiro, e você não
ousará soltar um pio. E, quando estiver morrendo, todos vão abandoná-la e virar-
lhe o rosto; pois o que se poderá então obter de você? Ainda irão censurá-la por
ocupar um lugar de graça, por estar custando a morrer. Se pedir água, vão dá-la,
mas com um insulto: “Quando é que vai morrer afinal, peste? Atrapalha o nosso
sono, geme, os fregueses ficam com nojo”. É exatamente assim: eu mesmo tive
ocasião de ouvir tais palavras. Moribunda, vão atirá-la para o canto mais fétido
do porão, um canto escuro, úmido. O que não pensará então você, deitada ali
sozinha? E, quando estiver morta, mãos estranhas irão vesti-la às pressas, aos
resmungos, com impaciência; ninguém vai abençoá-la, ninguém suspirará por
você; todos vão querer ver-se livres daquilo o quanto antes. Comprarão um
caixão e carregarão do modo como hoje carregaram aquela infeliz, e irão ao
botequim beber à sua memória. No túmulo, estará uma lamaceira, uma sujeira,
a neve molhada; será por sua causa que irão fazer cerimônia? “Desce ela,
Vaniukha; isto é que é ‘dessino’! Mesmo aqui, continua de pernas para o ar, a
coisinha. Encurta essas cordas, vagabundo. Assim está bem. O que é que está
bem? Ih, assim fica deitada de lado. Sempre era gente, ou não era? Vá, está bem,
pode cobrir.” Nem vão querer trocar insultos muito tempo por causa de você.
Vão cobri-la o mais depressa possível com barro azulado e úmido e irão para o
botequim... E este será o fim da sua memória sobre a terra; os túmulos de outra
gente são visitados por filhos, pais, maridos; mas você não terá uma lágrima, um
suspiro, uma lembrança, e ninguém, absolutamente ninguém, em todo o mundo,
irá visitá-la; o seu nome desaparecerá da face da terra, como se você nunca
tivesse existido, como se não tivesse nascido! A lama, o pântano, nem que você
bata na tampa do caixão, na hora em que os defuntos se levantam: “Deixai-me,
boa gente, vou viver um pouco no mundo! Vivi, mas não vi a vida: a minha
perdeu-se por um nada; gastaram-na bebendo num botequim da Siênaia; deixai-
me, boa gente, ir mais uma vez viver no mundo!...”.
Tornei-me patético, um espasmo estava a ponto de apertar-me a garganta,
e... de repente eu me detive, soergui-me assustado e, inclinando, temeroso, a
cabeça, fiquei de ouvido atento, o coração me batia. Havia de fato motivo para
me perturbar.
Eu pressentia, desde muito, que lhe transtornara a alma inteira e lhe rompera
o coração, e, quanto mais eu me convencia disto, tanto mais queria atingir o
objetivo o mais depressa e o mais intensamente possível. Fui levado pelo jogo;
aliás, não era apenas jogo...
Eu tinha noção de que falava de modo tenso, artificial, livresco até, numa
palavra, eu não sabia falar de outro modo a não ser “exatamente como num
livro”. Mas isto não me confundia; bem que eu sabia, pressentia, que seria
compreendido, e que este próprio falar livresco podia até servir de ajuda no caso.
Mas, tendo alcançado o efeito desejado, assustei-me de repente. Não, nunca,
nunca eu fora testemunha de tamanho desespero! Ela estava deitada de bruços, o
rosto fortemente comprimido contra o travesseiro, que rodeara com os braços.
Seu peito se rompia. Todo o corpo jovem estremecia, como que em convulsões.
Os soluços comprimidos em seu peito faziam pressão, dilaceravam-na, e, de
repente, rompiam para fora, com gritos e clamores. Então, apertava-se ainda
mais fortemente contra o travesseiro: não queria que uma só alma viva soubesse
ali das suas lágrimas e tormentos. Mordia o travesseiro; mordeu mesmo a mão
até sangrar (vi isto mais tarde); ou, de dedos agarrados às tranças desfeitas,
petrificava-se no esforço, contendo a respiração e apertando os dentes. Em certo
momento, comecei a dizer-lhe algo, pedi-lhe que se acalmasse, mas percebi que
me faltava coragem, e de súbito eu mesmo, todo possuído de não sei que tremor
de frio, quase apavorado, pus-me apressadamente a preparar-me, de qualquer
jeito, às apalpadelas, para sair. Estava escuro: por mais que me esforçasse, não
pude andar depressa. Em dado momento, apalpei uma caixa de fósforos e o
castiçal com uma vela inteira, intacta. Mal a luz se espalhou pelo quarto, Liza
ergueu-se de um salto, sentou-se e, com o rosto um tanto contraído e um sorriso
meio demente, olhou-me de modo quase inexpressivo. Sentei-me a seu lado e lhe
tomei as mãos; voltou a si, atirou-se na minha direção, esboçou um abraço, o que
não ousou fazer, e baixou docemente a cabeça.
— Liza, minha amiga, fiz mal... perdoe-me — comecei.
Mas ela apertou-me as mãos entre os seus dedos com tamanha força que
percebi estar dizendo algo inoportuno e me calei.
— Aqui está o meu endereço, Liza; venha a minha casa.
— Irei... — murmurou com decisão, sempre sem erguer a cabeça.
— E agora eu vou embora, adeus... até logo.
Levantei-me, ela também, e de repente corou toda, estremeceu, agarrou um
lenço jogado na cadeira e atirou-o nos ombros, cobrindo-se até o queixo. A
seguir, sorriu novamente de certo modo doentio, tornou a corar e me lançou um
olhar estranho. Eu sentia algo dolorido; apressei-me a ir embora, desaparecer.
— Espere — disse ela de súbito, já bem junto à porta da rua, segurando-me o
capote para me deter; depôs às pressas a vela e saiu correndo, provavelmente
por se ter lembrado de algo ou querendo trazê-lo para me mostrar. Estava toda
corada, os olhos brilhando, e um sorriso aflorava-lhe aos lábios; o que seria?
Forçosamente, esperei; ela voltou um instante depois, com um olhar que parecia
pedir perdão. Não era mais o mesmo semblante, o mesmo olhar — sombrio,
desconfiado, obstinado. Agora, tinha um olhar súplice, suave, e, ao mesmo
tempo, confiante, carinhoso, tímido. Assim olham as crianças para aqueles a
quem muito amam e a quem pedem algo. Tinha os olhos castanhos claros, uns
olhos lindos, vivos, que sabiam refletir em si tanto amor como ódio sombrio.
Sem me explicar nada, como se eu, na qualidade de criatura superior,
devesse saber tudo sem explicações, estendeu-me um papelzinho. Todo o seu
rosto, nesse instante, se iluminou com um triunfo ingênuo, quase infantil.
Desdobrei-o. Era a carta que lhe dirigira certo estudante de medicina ou coisa
parecida, uma declaração de amor, grandiloquente e muito floreada, mas
extremamente respeitosa. Não me lembro agora exatamente dos termos, mas
recordo muito bem que, através do estilo empolado, transparecia um sentimento
sincero, que não se poderia fingir. Quando terminava a leitura, dei com o olhar de
Liza, ardente, curioso, de uma impaciência infantil, fixado em mim. Grudara os
olhos no meu rosto e esperava ansiosa a minha reação. Em algumas palavras, às
carreiras, mas de certo modo contente e como que orgulhosa, explicou-me que
estivera em certa reunião dançante, familiar, em casa de “gente muito boa, de
família, e onde ainda não sabem de nada, absolutamente nada” — tanto mais que
ela era novata na “loja de modas” e estava ali só para ver... mas de modo
nenhum se decidira a ficar e, sem falta, iria embora, apenas pagasse a dívida...
Bem, esse estudante também estava na reunião; passou toda a noite dançando
com ela, falou-lhe, e acontecia que, quando criança ainda, ele a conhecera, em
Riga, e eles brincaram juntos. Só que isto fora há muito tempo; ele conhecia os
pais dela, mas, quanto a isto aqui, ele não sabia de nada, nada, nada, nem
suspeitava sequer! E eis que no dia seguinte ao baile (isto é, havia três dias)
mandara-lhe a carta por intermédio da amiga que a levara àquela casa de
família... “e... bem, é tudo”.
Quando acabou de falar, ela baixou, envergonhada, os olhos brilhantes.
Pobrezinha, guardava a carta daquele estudante como uma preciosidade, e
correra para apanhar aquele seu único tesouro, não querendo deixar-me partir
sem ficar sabendo que ela também era amada, honesta e sinceramente, que
também lhe falavam com respeito. Está claro que o destino da carta era ficar
guardada no cofrezinho, sem qualquer resultado. Não importa, porém; estou
certo de que ela haveria de guardá-la a vida toda como uma preciosidade: era o
seu orgulho e a sua justificação. E, agora, num momento especial, lembrara-se
de trazer aquela carta, para ingenuamente se vangloriar dela, erguer-se aos meus
olhos, para que também eu visse, para que também eu elogiasse o que ali estava
escrito. Não disse nada, apertei-lhe a mão e saí. Tinha tanta vontade de ir
embora... Fiz todo o percurso a pé, embora a neve molhada ainda caísse aos
flocos. Estava esgotado, esmagado, perplexo. Mas, por trás da perplexidade,
brilhava já a verdade. Uma verdade ignóbil!
VIII
Aliás, não foi de imediato que concordei em reconhecer essa verdade.
Acordando, de manhã, após algumas horas de um sono profundo, de chumbo, e
relembrando, no mesmo instante, tudo o que se passara na véspera, cheguei até a
surpreender-me com o meu sentimentalismo em relação a Liza, com todos
aqueles “horrores e compaixões de ontem”. “Um belo dia a gente sofre um
desses abalos femininos dos nervos, irra!”, decidi. “E para que fui dar-lhe o meu
endereço? E se ela vier? Aliás, que venha; não faz mal...” Mas,provavelmente
aquilo não era, então, a coisa principal e mais importante: precisava apressar-me
e procurar salvar o quanto antes a minha reputação aos olhos de Zvierkóv e
Símonov. Nisso é que consistia o mais importante. E, quanto a Liza, cheguei a
esquecê-la completamente, na correria daquela manhã.
Em primeiro lugar, era preciso pagar imediatamente a dívida da véspera a
Símonov. Decidi-me a um recurso desesperado: tomar emprestados a Antón
Antônitch quinze rublos. Como que de propósito, ele estava naquela manhã numa
excelente disposição de espírito e me deu o dinheiro no mesmo instante em que o
pedi. Fiquei tão contente com isto que, ao assinar o recibo, contei-lhe com
displicência e certo ar de valentão que, na véspera, “farreei com uns amigos no
Hôtel de Paris; era a despedida de um companheiro, um amigo de infância,
pode-se dizer, e — sabe? — ele é um grande farrista e homem muito festejado;
está claro que é de boa família. Tem fortuna considerável, uma carreira
brilhante, é simpático, espirituoso, tem casos com essas senhoras, o senhor
compreende. Bebemos ‘meia dúzia’ mais do que devíamos... e...”. Realmente,
não havia nada demais. Tudo isto foi proferido com muita leveza, de modo
desembaraçado e autossuficiente.
Ao voltar para casa, escrevi imediatamente a Símonov.
Ainda agora me extasio ao recordar o tom realmente cavalheiresco,
bonachão e franco da minha carta. De modo hábil e nobre e, sobretudo, sem
quaisquer palavras supérfluas, eu aceitava a culpa de tudo. Justificava-me, “se é
que ainda se possa admitir que me justifique”, com o fato de que, por absoluta
falta de hábito, ficara bêbado com o primeiro cálice, que eu teria bebido ainda
quando os esperava no Hôtel de Paris, entre as cinco e as seis horas. Pedia
desculpas principalmente a Símonov; pedia-lhe também que transmitisse as
minhas explicações a todos os demais, sobretudo a Zvierkóv, a quem, “lembro-
me como num sonho”, eu parecia ter ofendido. Acrescentava que iria
pessoalmente à casa de cada um, mas estava com dor de cabeça e, sobretudo,
envergonhado. Fiquei particularmente satisfeito com esta “certa leveza”, quase
displicência até (aliás, de todo conveniente), que se refletiu de súbito em minha
escrita e, melhor que quaisquer argumentos possíveis, lhes fazia compreender,
num instante, que eu encarava com bastante independência “toda esta imundice
de ontem”; não estou absolutamente abatido, conforme os senhores, ao que
parece, pensam, mas, pelo contrário, olho para isto como convém a um
cavalheiro que tranquilamente se respeita. Era como se dissesse: “Não se
censura a realidade a um moço galhardo”.
Há nisto até um tom brincalhão, como se eu fosse um marquês, não é
verdade?, extasiava-me, relendo o bilhete. E tudo provém do fato de eu ser uma
pessoa culta, evoluída! Outros, no meu caso, nem saberiam como escapar da
rede, mas eu me livrei e estou farreando de novo, e tudo porque sou “um homem
culto e evoluído de nosso tempo”. E, realmente, é possível que tudo isso tenha
acontecido ontem por causa da bebida. Hum... não, não foi a bebida. Não tomei
nem um pouco de vodca entre as cinco e as seis, enquanto os esperava. Menti a
Símonov; menti de um modo desavergonhado; e agora também não tenho
vergonha...
Aliás, que me importa?! O principal é que me safei.
Pus dentro da carta seis rublos, colei o envelope e pedi a Apolón que a levasse
à casa de Símonov. Sabendo que o envelope continha dinheiro, Apolón tornou-se
mais respeitoso e concordou em levá-lo. Ao anoitecer, fui dar uma volta. A
cabeça ainda me doía e girava por causa do que sucedera na véspera. Mas, à
medida que a noite caía e a escuridão se tornava mais densa, iam mudando e
embaralhando-se as minhas impressões, e, depois delas, os meus pensamentos.
Algo havia em meu íntimo, no fundo do meu coração e da minha consciência,
que não queria morrer e se expressava numa angústia abrasadora. Eu me
acotovelava sobretudo pelas ruas mais movimentadas, as do comércio, pela
Mieschánskaia e a Sadóvaia, junto ao jardim de Iussupov. Gostava
particularmente de passear por essas ruas sempre ao escurecer, juntamente
quando nelas se adensa a multidão de transeuntes — gente do comércio e
artesãos vão para casa após o trabalho diário, e em suas fisionomias se reflete
uma preocupação que beira a raiva. Agradava-me justamente esta azáfama
vulgar, este prosaísmo insolente. Mas desta vez toda aquela balburdia de rua me
irritava ainda mais. Não conseguia de modo algum ficar em paz comigo mesmo,
chegar a um resultado qualquer. Algo se erguia, incessante e dolorosamente, em
meu espírito e não queria aquietar-se. Voltei para casa inteiramente mal-
humorado. Era como se me pesasse na alma certo crime.
Atormentava-me incessantemente o pensamento de que Liza podia vir a
minha casa. Parecia-me estranho que, de todas aquelas recordações da véspera,
a de Liza me torturasse de modo particular, inteiramente à parte. Ao anoitecer,
eu já deixara de pensar em tudo o mais, e além disso estava inteiramente
satisfeito com a minha carta a Símonov. Mas, em relação a Liza, eu, de certo
modo, não me sentia satisfeito. Como se apenas ela me atormentasse. “E se ela
vier?”, pensava eu sem cessar. “Ora, não faz mal, que venha. Hum... Já é ruim o
simples fato de que há de ver, por exemplo, como eu vivo. Ontem, apareci diante
dela tão... herói... e agora, hum! Aliás, foi mau que eu me tivesse deixado cair a
tal ponto. Em casa, é simplesmente uma indigência. E me decidi, ontem, a ir
jantar com semelhante traje! E o meu divã de linóleo, com enchimento à mostra
na parte posterior! E o meu roupão, que não dá para cobrir o corpo! Que
frangalhos... E ela há de ver tudo isto; e verá também o Apolón. Este calhorda
certamente há de ofendê-la. Implicará com ela, para me fazer uma grosseria. E,
eu, naturalmente, vou-me assustar como de costume, darei uns passos miudinhos
diante dela, procurarei juntar as abas do roupão, começarei a sorrir, a mentir. Ui,
como é ruim! E o pior de tudo não está nisso! Existe algo mais importante, mais
repulsivo e ignóbil! Mais ignóbil, sim! E novamente, novamente vestir esta
máscara mentirosa, desonesta!...”
Chegando a este pensamento, explodi de vez:
“Desonesta por quê? Desonesta como? Ontem, falei com sinceridade.
Lembro-me bem disso, e havia em mim um sentimento autêntico. O que eu quis
foi justamente despertar nela sentimentos nobres... Se ela chorou, foi bom, isto há
de ser benéfíco...”.
Mas, apesar de tudo, não conseguia de modo algum acalmar-me.
Em todas aquelas horas do anoitecer, mesmo depois que voltara para casa,
quando já passava das nove e, segundo os cálculos, Liza não podia mais
aparecer, parecia-me apesar de tudo vê-la e, principalmente, lembrava-me dela
sempre na mesma posição. De tudo o que sucedera na véspera, havia um certo
momento que se apresentava de modo particularmente vivo: era o momento em
que eu iluminara o quarto com o fósforo e vira o seu rosto pálido, torcido, de
olhar sofredor. E que sorriso lastimável, pouco natural, contraído, tinha ela
naquele instante! Mas então eu ainda não sabia que, mesmo quinze anos depois,
Liza ainda se representaria no meu espírito com o mesmo sorriso lastimável,
contraído, desnecessário, que tinha naquele instante.
No dia seguinte, mais uma vez, eu estava pronto a considerar tudo isto um
absurdo, efeito dos nervos abalados e, sobretudo, um exagero. Sempre tive
consciência deste meu ponto fraco e, às vezes, temia-o ao extremo: “Exagero
tudo, e é isto que me faz capengar”, repetia a mim mesmo de hora em hora.
Aliás, “aliás, apesar de tudo, Liza é bem capaz de vir” — eis o refrão com que
terminavam todas as minhas reflexões de então. Eu me inquietava tanto que
chegava às vezes a enfurecer-me. “Virá! Virá, sem falta!”, exclamava eu,
percorrendo o quarto a passos largos. “Se não for hoje, será amanhã, mas com
certeza há de me encontrar! Assim é o maldito romantismo de todos
estescorações puros! Ó ignomínia, é estupidez, ó mediocridade de todas essas
‘almas vis e sentimentais’. Ora, como não compreender, como, parece-me, não
compreender?...” Mas, neste ponto, eu mesmo me detinha, e numa grande
comoção até.
“Como foram poucas, tão poucas”, pensava eu de passagem, “as palavras
necessárias, quão pouco idílio (e idílio falso, livresco, inventado), para revirar no
mesmo instante toda uma alma humana ao jeito que se queria. Isto é que é
virgindade! Isto é que é um solo intocado!”.
Por vezes, vinha-me a ideia de eu mesmo ir vê-la, “contar-lhe tudo” e pedir-
lhe que não fosse a minha casa. Mas com este pensamento erguia-se em mim
uma raiva tal que, segundo parecia, eu teria esmagado aquela “maldita” Liza se
ela aparecesse de repente a meu lado; tê-la-ia ofendido, coberto de escarros,
expulsado, batido!
Passou-e no entanto um dia, outro, um terceiro; ela não vinha, e eu comecei a
tranquilizar-me. Ficava particularmente animado depois das nove, e,
desenfreado, às vezes punha-me mesmo a sonhar, e com bastante doçura até.
Por exemplo: “Estou salvando Liza, justamente pelo fato de que ela vem a minha
casa e eu lhe falo... Faço-a progredir, cuido da sua instrução. A seguir, percebo
que ela me ama, que me ama apaixonadamente. Finjo não compreender (não
sei bem para que este fingimento; provavelmente, apenas porque fica mais
bonito). Finalmente, toda envergonhada, bela, trêmula, aos soluços, atira-se a
meus pés e me diz que sou o seu salvador e que ela me ama acima de tudo no
mundo. Fico perplexo, mas... ‘Liza’, digo-lhe, ‘você pensa acaso que não notei o
seu amor? Vi tudo, adivinhei, mas não me atrevia a atentar, primeiro, contra o
seu coração, porque exercia influência sobre você e temia que, por nobreza,
você se obrigasse intencionalmente a corresponder ao meu amor, fizesse à força
nascer em si um sentimento que talvez não existisse, e eu não o queria, porque
isto é... despotismo... É indelicado (bem, numa palavra, eu me desmanchava aí
em alguma sutileza europeia, à George Sand, indescritivelmente nobre...). Mas
agora, agora você é minha, é a minha obra, pura, bela, a minha linda esposa’.
IX
E corajosa e
livremente
em minha
casa,
Entra,
senhora e
soberana!
(Do poema
de
Niekrassov,
já citado)
Aliás, ainda não terminam aqui as “memórias” deste paradoxalista. Ele não
se conteve e as continuou. Mas parece-nos que se pode fazer ponto final aqui
mesmo.