As Bem Aventuranças Franciscanas Frei Elzeário Schmitt, O F M
As Bem Aventuranças Franciscanas Frei Elzeário Schmitt, O F M
As Bem Aventuranças Franciscanas Frei Elzeário Schmitt, O F M
As Bem--A venturanças
Franciscanas
1949
EDJTORA VOZES LTDA. , PETROP OLIS , R. J.,.
RJO DE JANE[RO - SÃO PAULO
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Imprimi potest. Jn civitate S. Pauli.
Dle 31 Januarii 1948. Fr. Ludovicus
Gomes de Castro, O. F. M., Mln. Prov.
I M P R I M A T U R
POR COMISSÃO ESPECIAL DO EXMO.
E REVMO. SR. DOM MANUEL PEDRO
DA CUNHA CINTRA, BISPO DE PE
TRóPOLIS. FR. LAURO OSTERMANN
O. F, M. PETMPOLIS, 1-6-1949.
INTRODUÇ/\0
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Dos campos pacíficos do sul, voando para a
grande ciâade dos homens, que do alto, com
suas chaminés sem conta, se me afigurou co-
mo a metrópole do trabalho e, por isso mesmo,
metrópole de incessante tormento humano,
procurei interpretar com simplicidade, isto é,
franciscanamente, esta estranha viagem, ence-
tada duma cidadezinha chamada a Princesa da
Serra, que na sua tosca beleza lembra, aberta
aos ventos do campo, a dona Pobreza tão en•
cantadora, que foi a Princesa de São Francisco.
Foi ali que o paulista Antônio Correia Pinto,
bandeinmte afoito, em distância que sobe a
quase duzentos anos, plantou a ermida de
Nossa Senhora dos Prazeres das Lajes, fun-
dando a cidade, juntamente com Frei Tomé de
Jesus e Frei Manuel da Natividade, os dois
franciscanos que o, acompanhavam - glória,
portanto, de São Paulo e glória de São Fran•
cisco Seráfico - Lajes, onde os ventos têm o
cheiro verde dos campos quase infinitos, on•
de o "camargo" ferve em leite e espuma per•
fumando as madrugadas frias das fazendas,
em cujo remanso quieto Deus parece morar
mais palpável, onde os passarinhos têm o bi•
co sempre afiado em hinos franciscanos - La•
jes, fundação paulista e franciscana, em toda
uma série de coincidências providenciais, gran-
de sorriso de Deus esparramado nos planaltos
encantados de Santa Catarina, onde, depois
G
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daqueles dois primeiros, Frei Rogério andou,
abençoando com sua santidade as searas lou-
rejantes das almas.
E pensando assim na dificuldade imensa que
tiveram os dois filhos de São Francisco para
chegarem até lá, e na facilidade aérea que eu
tinha para fazer o caminho de regresso a São
Paulo novamente, percebe-se que, de fato,
Deus fez o mundo grande e estranho, e que
essa viagem se assemelha à de um pobrezinho
esfarrapado na mesma estamenha seráfica, que
iriam conduzir para um palácio estonteante,
onde sua vontade é esconder-se de acanha-
mento, para que o Rei não o veja ... Mas o
Rei chamou!
Meus irmãos. Um arauto desse Rei houve,
que se levantou dum buraco de neve onde o
arremessaram os ladrões do bosque, e daquele
buraco encaminhou-se para os homens, a fim
de se tornar o maior incendiário de mundos e
o maior Santo. Com que olhos esse mesmo São
Frãncisco, meu Pai, havia de contemplar de
avião este mundo fugtndo para trás'? Lá em
baixo, as ondas de escuma escachoante baten-
do há tantos séculos nas praias; as matas ver-
des, acenando para cima na grande esperança
sorridente da terra; as casas dos homens, como
pingos caídos de nuvens, alvejando na imen-
sidade estendida á paisagem solar... E, dentro
do avião, esta leveza de estar desprendido da
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terra, esta euforia do azul, dos ares: estar so-
brepairando à terra, "à vol d'oiseau" na ex.-
pressão franciscana dos franceses, a voo de
pássaro. Parecia-me, irmãos, que o Francisca-
nismo é isto mesmo: um espírito de avião, de
voo, que sobrepaira sorrindo aos rochedos
pontudos, às águas amargosas, ao emaranhado
das florestas humanas, vendo com alegria, nas
coisas flutuantes, um reflexo do Altíssimo
- lampejo do Espírito de Deus pairando so-
bre as águas como no início (Gen 1, 2) -,
mas só um reflexo, o suficiente para nos apon-
tar o caminho à demanda do Sol, fonte das
belezas criadas. Basta pensar como São Fran-
cisco passou por este mundo. Pois foi um voo.
Mas sua vida foi um voo em que arrastava
consigo a natureza e as coisas, os animais e
,os homens - tudo para Jesus Crucificado,
-centro do Universo. O que Deus pretendia
com Adão no Paraíso: o tipo ideal do homem
vivendo em harmonia com seus seres e as coi-
sas, São Francisco o realizou. Foi uma exis-
tência perfeitamente equilibrada.
Hoje, estamos longe disso. Queremos voar,
sentir essa leveza, mas sentimo-la inconstante:
o aeroporto nos inspira uma espécie de pavor.
E' com um gemido que pegamos de novo nos-
sa mala, que calcamos de novo este chão, on-
de tanta coisa nos atrapalha. Com um gemido
pisamos de novo esta terra que Deus amaldi-
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çoou terrivelmente, mas que também abençoou
divinamente com a vida dos Santos que sobre
ela viveram e vivem. Estamos dissociados, es-
tamos desequilibrados! A ânsia de progresso,
esforço, rapidez desnaturou o homem. O es-
pirito ficou atrás da técnica. Regredimos in-
teriormente, enquanto progredimos no exterior,
Somos uma humanidade desumanizada, uma
sociedade dissociada, um gênero degenerado.
Por isso, nossa vida é desengonçada, coxea-
mos á busca do finito, do relativo, e nessa bus-
ca acabamos sempre por achar a nós mesmos
e nada de novo, cada vez mais miseráveis,
coxos, pois o tormento do Infinito não pode
ser abafado no coração. O homem não foi cria-
do para esta terra.
E aqui está, meus irmãos, no avião, a tra-
gédia do espírito contemporâneo. Santo Agos-
tinho aplicaria aqui a sua sentença afamada:
''Magni passus extra viam - fazeis grandes
passos, mas todos fora da estrada. "Que
tranquilidade nos trouxe o progresso técnico
e científico? Só trouxe intranquilidade. Por
isso, a época dos nossos avós, a do carro de
boi, era muito mais humana: era a idade do
passo. São Francisco, que andava a pé e não
conhecia luz elétrica, deve ter para nós, que
estamos no avião, um sorriso de franciscana
piedade.
Nós podemos voar - o gênio inventivo é
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dom de Deus, uma das centelhas divinas em
nós - mas na mesma proporção em que voa-
mos deve aumentar nossa ânsia de Deus, nos-.
so anelo de perfeição espiritual. E porque isso
não aconteceu, a Desgraça se assentou sobre
as soleiras das Nações, e máquina humana
nenhuma existe para fabricar a paz. Ainda não
foi inventada nenhuma fórmula científica que
poetize o nascimento e elimine a morte. Nas-
cemos e morremos hoje como na idade das
cavernas. A diferença está apenas em que, se
formos afortunados, nascemos entre rendas e
morremos entre lençóis. Nenhum físico conse-
guiu aumentar o amor entre os homens; o
contrário sim. Nenhum possuidor do prêmio
Nobel de Literatura aumentou nossa felicidade
interna. Diógenes, o Cínico, pode, como hâ
dois mil anos atrás, tomar de sua lanterna ace-
sa e andar, em pleno sol do dia, pelas nossas
praças asfaltadas, à procura de um Homem ...
Homens humanos, há-os em menor quantida-
de do que no tempo dele, não obstante o in-
comensurável progresso da humanidade.
Não é a eletricidade que nos fará mais ho-
mens. Este sonambulismo da moderna alma
humana: a satisfação no presente, o repouso
no prazer, a religião do menor esforço, a abdi-
cação de valores, tudo parece afundar-nos ca-
da vez mais, e mal percebemos que "o Maligno
nos acompanha para o abismo", como escreve
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um grande convertido dos hossos dias. (Pierre
v. der Meer Walcheren.) Mau grado um surto
intenso de espiritualidade que Deus levantou
sobre o Brasil, nos últimos meses - refiro-me
aos acontecimentos em torno da figura nacional
do Padre Antônio Pinto -, este nosso atávico
Cristianismo mais de igreja e incensos do que
de vida, enche-nos duma angústia martelante.
Num verso profundo de Rimbaud, encontramos
escrito que a verdadeira vida está ausente! Mas
não a procuramos. Nós fugimos dela, esten-
dendo a mão para as borboletas do prado, que
sempre nos fogem como aos meninos, e quan-
do, por acaso, apanhamos uma, basta abrir-
mos os dedos para achar sómente um pouco
de poeira brilhante. Não percebemos que, po-
voando o mundo com "valores" que não são
absolutos, mas são fantoches, tornamos cada
vez mais côncavo o silêncio neste século do
barulho, cada vez mais gélidas as sombras
neste século da luz. Todos os sinos do Natal,
da Páscoa e do Pentecostes, com as sublimida-
des que evocam, perdem-se num mundo vazio,
sem ouvidos para as harmonias angélicas,
amarrados com mil cordas de injustiça, de ex-
ploração, de impiedade, de fome - como o
Prometeu da lenda sobre o rochedo implacável,
os abutres do desespero a devorar-lhe as car-
nes. E o nosso castigo não é como o dele, por
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termos roubado a Luz dos céus, mas por a
termos apagado.
Os homens se desentendem, os povos se per-
seguem, e os representantes das Nações Desu-
nidas, atrás de palavras melífluas ou duras,
brincam de esconder, enquanto a política, que
se define como a arte de bem enganar, toma
conta das consciências, fazendo a monil parar
onde o jogo começa. Manifestações asquerosas
de imadureza civica e cultural enxovalham o
país, enquanto a mocidade se cbmprime à por-
ta dos cinemas, folheia livros sujos e rola ton-
ta sobre os bancos escolares, sem idéias de vi-
da, sem pensamentos de elevação, correndo
a tremer pelos bosques da idade, onde todas
as árvores, como nos contos de fada, esten-
dem os galhos para agarrar o infeliz. Galhos,
mãos ... As mãos do mundo! Como a atmosfera
está cheia de mãos. Todos têm mãos, poucos
têm coração. O mundo perdeu o coração, diz
alguém. E sobre todos os homens, caçadores
ébrios duma quimérica felicidade, o Sangue de
Cristo pingando ... Que louca tristeza! Adão e
Eva, na amargura de suas lagrimas, não vis-
lumbraram a noite dantesca dos caminhos por
que seus filhos haviam de meter•se, de geração
em geração, afastando-se do lar e pensando
aproximar-se dele .. , Realmente, a nossa des-
ventura ultrapassa a nossa imaginação.
Meus irmãos. Não é um quadro negativo de
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calvinismo sombrio. A concepção franciscana
da vida é a que estã mais distante do pessi-
mismo. Desta situação infere-se, apenas, a ne-
cessidade inexorável dum regresso ao lar. O
homem moderno, nas angústias presentes, co-
mo nenhum outro da História, sente em suas
carnes como é doloroso este regresso ao lar.
As peripécias do cavaleiro Parcival das lendas
germânicas, símbolo da alma, que vai em de-
manda do santo Graal da felicidade, são pá-
lida imagem das nossas torturas. E, entretanto,
o regresso ao lar e o destino escrito com o San-
gue de Jesus sobre a testa de todos nós, mes-
mo sobre a do último malfeitor que já não jul-
ga enxergar na treva senão a figueira de Judas.
"T odes nós, do átomo ao gênio, não somos
senão romeiros e caminhantes que regressam
e procuram como cegos, na obscuridade e na
luz, com pertinaz ansiedade, os degraus da es-
cada. Tudo desce do alto, tudo aspira e anseia
por voltar ao alto. Retorno da matéria ao espi-
rita, da morte à vida, do pecado à inocência,
dos brutos à humanidade, do homem a Deus"
(Papini, "Cartas aos Homens").
E aqui, neste ponto exato, entra a alavanca
do Cristianismo, a mais poderosa força de ele-
vação que· a História conhece. E, dentro do
Cristianismo, como uma de suas facetas mais
atraentes, está a idéia franciscana da existên-
cia: retorno ao Pai pdr Jesus Cristo Crucificado.
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O homem moderno está mais perto do que
sonha da realização dessa idéia. Crucificado
ele está; basta voltar-se, levantando ao Pai
seu olhar de expiação.
Para o Franciscanismo literário de todos os
tempos, que se entusiasma pelos pinhais da
Porciúncula, pelos passarinhos e pela figura
atraente do Poverello, é funesto não conhecer
o Santo nas atitudes essenciais de sua alma.
Se São Francisco, e toda a mística francisca-
na, desde São Boaventura até Frei Rogério,
exigem renúncia ao mundo, penitência, pobre-
za, alegria na perseguição com essa ebriedade
do espirita - "hi ebrii sunt" (At 2, 15), -
amor a Jesus Crucificado até ao heroísmo, é
porque supunham vivos na convicção humana_
os conceitos de Deus, Eternidade, Inferno e
Redenção. Nós falamos ao vazio dos ventos
quando exigimos penitência e todas as atitu-
des franciscanas de homens que, se não bani-
ram Deus e a eternidade de seu pensamento,
relegaram-nos para plano inferior a seus in-
teresses imediatos de egoismo, de vergonhosa
servidão ao terreno, não dando a Deus o que é
de Deus (Me 12, 17), mas di:lndo a César o que
é de Deus. Essa metanoia que o Biltista pre-
gava aos judeus na alvoradi:l da nossa Religião,
o regresso ao caminho, a volta espiritual, está
hoje na base de qualquer pregação. Deus!
Deus! Deus! Nós mesmos, os cristãos, "por
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ignorância ou preguiça, acreditamos com de-
masiada complacência, que basta assistir à
missa ... , fazer de vez em quando um simulacro
de penitência, pôr 20 centavos na mão do po-
bre, respeitar, por medo à cadeia e ao inferno,
três ou quatro mandamentos" (Papini, ibidem),
para ser cristão e homem de bem. Mas assim
desonramos o segundo Mandamento, pois à
nossa própria imagem nos fazemos um deus
de barro, nosso retrato.
Se São Francisco caminha com olhos abra-
sados por sete séculos de História, é porque
esse brilho visivel é, Unicamente, o reflexo de
outra Realidade, só a que importa! Ver as coi-
sas de cima, "à vol d'oiseau", e agir em confor-
midade. Como será possível, com tanto peso
aos pés, voar acima da terra, na pura luz de
Deus? Como as cotovias, que São Francisco,
por isso mesmo, tanto prezava! "Quis dabit
mihi pennas ... Quem me dera ter asas como as
pombas, para voar e descansar!" (Salmo 54, 7.)
E' possível, porque temos a comunhão dos
Santos.
Milhares e milhares de criaturas houve, frá-
geis como nós, que não esqueceram Deus na
transitoriedade do terreno. Quase todos os
dias, numa oração que os sacerdotes recitam,
pelo menos, seis vezes, suplica-se o auxilio
dessas criaturas junto ao trono de Deus, "por
seus méritos e intercessão". Está nisto a nos-
AB Bem-Av. - 1 15
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sa esperança. Corrente misteriosa que nos
arranca para cima.
São os Santos os homens que executaram o
Sermão da Montanha, a Carta Magna da nossa
liberdade no meio da escravidão. Da Montanha
soam, por cima de 19 séculos, em eco nunca
abafado, as Bem-aventuranças de Jesus, co-
mo cascata fria sobre a secura dos desertos.
Multidão inumerável de sedentos, arrancando-
se do chão que nós pisamos, lá foram desalte-
rar-se nelas, á frente São Francisco com a fa-
lange de seus filhos Santos, depois dos mártires
a mais numerosa da Igreja.
Todos os que, da Montanha, Jesus bendisse
em suas bem-aventuranças, todos os que, "en-
tre as mundanas variedades", tiveram "preso
o coração na pátria dos prazeres verdadeiros",
cada um assinalada a testa com a sua bem-
aventurança, são nossos irmãos e, como irmãos
felizes, são nossos guias. Dentro da admirável
Comunhão dos Santos, vamos, nesta semana,
examinar o nosso Cristianismo, á luz das bem-
aventuranças, e as bem-aventuranças na luz
do nosso Franciscanismo, com simplicidade de
coração.
A guisa do avião sobre o mundo dos homens,
sem receio de baixar com o corpo a essa terra
onde tanta coisa nos tenta segurar, sobrepai-
rando com o espirita ás humanas vicissitudes
~ tal é o nosso franciscano destino, para con-
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tinuarmos, sem desfalecimentos, a peregrina-
ção luminosa que de Assis recebe seus clarões,
e das bem-aventuranças de Jesus recebe seu
contínuo alento.
E dentro desse nosso Franciscanismo, como
Leonardo Coimbra, o pobre filósofo português,
filho pródigo que, após muftos caminhos de
tortuosidades, voltou à Casa do Pai, vamos
caminhar com corações franciscanos pelos
caminhos da vida e, como ele diz:
"Desfolhemos as palmeiras de nossos jardins,
e, palmas erguida~ em nossas mãos contentes,
mal pisando a terra, soerguidos de amor,
olhos como lagos afundados em luz, almas
como templos inundados de mirra e incensos,
vamos dizer uns aos outros, reconciliados
e exultando, que a Morte foi vencida
e em plena glória nos espera o Amor" .
•• https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
Segunda noite
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Nos labírlntos tenebrosos sem fim das nos-
sas humanas angústias, oito vezes: "Sésamo,
abre-te!", com jactos de luz que só os obceca-
dos não vêem; oito portas que caem, oito es-
peranças que alevantam, oito alegrias que
enchem qualquer espírito ainda voltado para
Deus, como o sol que enche a flor na frescura
orvalhada da manhã. Que grandiosidade es-
pantosa este Cristianismo das Bem-aventu-
ranças, que força de elevação no mundo pe-
sado, cuja atmosfera infecta nossos pulmões
respiram a cada minuto! Como nós temos a
alma roída, como temos os olhos vendados
em nossos caminhos intransitáveis de veículos
e homens - não enxergamos mais, e pensa-
mos enxergar na obscuridade das nossas lu-
zes fabricadas ... Dizíamos ontem, com Rim-
baud, que a verdadeira vida ê ausente, e nós
não a procuramos. Coxeamos, dizíamos, em
busca do finito, do relativo, terminando, com
um gemido, por achar sempre a nós mes-
mos e nada de novo ...
E eis que sobre o nosso coxeante, sofrimen-
toso caminhar, pingam da Montanha as bada-
ladas da Luz. Um convite para um repouso
e para um olhar de elevação. Como o deses-
perado Tannhaeuser da ópera de Wagner, ao
escutar, no seu dilaceramento, o cântico do
regresso ao Lar, paremos e escutemos, esta
noite, a primeira badalada: bem-aventurados
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os pobres de espírito, porque deles é o reino
dos céus.
Não viemos pregar a pobreza numa cidade
cosmopolita, altamente industrializada, cheia
de bancos e de luxo estatelado em inúmeros
palacetes ajardinados e lojas cintilantes. Aqui,
como no mundo, um pregador da pobreza se-
ria como a pombinha da paz sobre um per-
dido deserto de homens. Uma inutilidade. Não
viemos, tampouco, pregar o catecismo em São
Paulo, conquanto a ignorância do catecismo
seja a causa da cegueira de muitas almas. O
enciclopedista Diderot, ateu feroz, dava cate-
cismo à filha, e explicava a d'A!embert: "Que
quer, meu colega? Ainda é o único meio de
dar educação a nossos filhos!"
Mas o sacerdote precisa pregar o evangelho,
donde o catecismo tirou sua sabedoria. Se não
pregar o evangelho, pregará a sabedoria es-
tulta deste mundo. E o evangelho é o Sermão
da Montanha. E o sermão da Montanha resu-
me-se nas maravilhosas bem-aventuranças de
Jesus. E as bem-.::.venturanças valem para to-
dos. São a quintessência do Cristianismo. São
a carta de alforria do cristão. Jesus não se
contentou com pregá-las. Atrás de tudo o que
Ele dizia estava, luminosamente, o exemplo
acabado de sua própria vida. Abrindo as bem-
aventuranças com a da pobreza, como que
colocando-o na frente das outras, Nosso
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Senhor nos ensina que Ele mesmo é o Pobre
por exelência, cumprindo em sua própria po-
bre carne humana o destino amargo vaticina-
do pelo profeta: "Pauper sum ego - eu sou
um pobre e angustiado desde minha infância!"
(Salmo 87, 16).
Entre os polos máximos dessa Pobreza, o
presépio e a cruz, decorreu uma vida espan-
tosa, inimitável de renúncia aos bens da terra
e às comodidades da vida, ensinando-nos que
este mundo não vale mesmo nada, é a terra
de ninguém, só tem razão de ser como campo
de batalha. E ainda no fim, sem testamento
por fazer, sem túnica sua que nos legasse,
deixou-nos seu próprio Corpo e Sangue.
A primeira bem-aventurança saída d2: boca
de Jesus Cristo coincide exatamente com o
primeiro e fundamental preceito da Ordem
Franciscana. Em todo o curso de sua histó-
ria de sete séculos, o Franciscanismo sobe ou
cai com a o!Jservãncia do voto da pobreza,
pois São Francisco fez dela a pedra de tcque
de sua obra.
Que vem u ser estJ. pobreza? Antes de tu-
do, ela é umu atitude do rico e do pobre. A
pobreza franciscana, primáriamente, nada tem
a ver com não possuir dinheiro, mas é um
modo de ser em face do dinheiro. E', portan-
to, uma filosofia de vida, a filosofia francisca-
na de vida. Para ter o espírito de São Fran-
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cisco neste mundo materializado, não é pre-
ciso ser mendigo. Ele mesmo fora ric:o; os
primeiros e mais ilustres membros de suas
Três Ordens foram ricos. Ricos que, ou lança-
ram fora o dinheiro ou retendo-o, passaram
a usá-lo exclusivamente para o serviço da ca-
ridade, não mais para si. Precisamente os maio-
res astros da Ordem Terceira, São Luis, rei
de França, as duas Rainhas santas, Isabel de
Portugal e Isabel de Hungria, Santo Elzeário,
o abastado conde de Paris, assim fizeram. E
que nessas almas ardeu a ânsia incendiária do
Sermão da Montanha. Lançaram aos pés da
Cruz não só suas riquezas e coroas; lançaram-
se a si mesmos, suas vontades, suas veleida-
des, seus caprichos, suas dores. Pobres com
o pobre Jesus, lançaram tudo fora de si, en-
quanto os homens procuram reter tudo para
si, a si mesmos em primeiro lugar. Não são
infelizes e descontentes justamente por causa
disso, pois a ambição é inextinguível? A feli-
cidade não está em reter, está em dar, Santa
Cl2ra, mãe espiritual da Ordem mais pobre
que existe na Igreja católica, Antônio de Bu-
lhões, o taumaturgo, Dante, o altíssimo poeta,
peregrino da pobreza e da paz no fim da vi-
da, José Mojica e Eva Lavalliêre e muitos ou-
tros, riquíssimos, trocaram os tesouros perecí-
veis pelo bem inapodrecível do amor de Jesus.
Alguma coisa do misterioso esplendor da berr-
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aventurada pobreza tremeu sobre a vida des-
ta falange de filhos e filhas de São Francisco,
com esse brilho de lentejoulas que tem o man-
to da pobreza, escolhido por reis e rainhas,
como esse arrebatamento faiscante dos gran-
des lagos tranquilos que ninguém conhece,
mas onde as estrelas se espelham com tanto
mais claridade nas noites densas de silêncio.
No evangelho, meus irmãos, a predileção
pelos pobres é evidente. "Evangelizare pau-
peribus misit me - enviou-me para evange-
lizar os pobres!" (Lc 4, 18). Pois só os pobres
parecem dar esperança ao Coração de Jesus:
vazios de bens, devem ter os ouvidos atentos
à mensagem da paz do Natal, como os pas-
tores, a quem o Senhor enviou um anjo, en-
quanto aos Magos ricos enviou apenas uma
estrela. Ouvidos atentos e coração aberto. Os
outros, porém, que possuem ou que apetecem
riquezas, segundo a sentença do próprio Jesus,
têm seu coração onde têm seu tesouro
(Mt 6, 21). Não possuem n'alma a receptibi-
lidade para a semente. T ado o amor e paixão
dos Santos foi para esta pobreza e despren-
dimento, não só de bens, mas de si mesmos:
holocausto total de vontade e desejos. Em tal
campo purificado, o evangelho pode brilhar
em sUa plenitude e desabrochar em perfuma-
da santidade.
Porque, sendo rico, foi tão vis...-:eralmente
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pobre, São Francisco espalhou pelo mundo
a mais encantadora santidade. No quadro de
Murillo, o Poverello, sobre o Monte Alverne,
calcando o globo terrestre, se encontrou com
o Modelo Divino naquele amplexo único d~
história dos Santos, em que o Crucificado des-
prende da Cruz seu braço para abraçar Fran- ,,
cisco. Para a pobreza evangélica e francisca-
na, não é suficiente, nem é mesmo imprescin-
dível a pobreza ma teria 1, pois há pobres que
anseiam pelas riquezas mais que os ricos. O
espírito de pobreza é que importa. Jesus o
disse: "Pauperes semper habetis vobiscum -
sempre tereis pobres convosco!" ( Jo 12, 8).
Por isso, o sonho de um paraíso terrestre, o
regime comunista, é uma utopia, porque,
em qualquer governo do tomunismo haverá
sempre uma oligarquia possuidcra e opresso-
ra, aquela que governa. Mas o Comunismo
soube explorar o sonho eterno das massas
desprotegidas: a vontade de possuir. Já por
isso, de natureza intrínseca, leva por caminho
diametralmente oposto á linha do Evangelho.
DJerenças sociais existirão sempre, enquanto
houver sociedade humana, pois Deus permite,
e através delas dirige os destinos do homem.
Mas Cristo quer que uns e outros, os que têm
e os que não têm, passem "assim pelos bens
temporais de modo a que não percam os
bens eternos", conforme reza a Igreja numa
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de suas lindas orações. E se é mais fácil, como
diz o Filho de Deus Vivo, um camelo passar
pelo fundo de uma agulha do que um rico
entrar no reino dos céus (Me 10, 25), vale o
mesmo para o pobre ambicioso. O Cristianis•
mo é a religião da sinceridade, e não da apa-
rência. "O homem olha o rosto, mas Deus,
o coração!"
Numa grande cidade, em que o luxo está e5•
parrumado .:'J: nossa vista e a fome de dinheiro
brilha em todos os olhares, toda alma francis-
cana reconhece com dor como estamos lon-
ge de Jesus Cristo, que a ambição de riqueza
queima os espíritos como o sol dardeja sobre
as pedré:'s das ruas, e que, se esse tormento
cortou sem!=)re os voos ascensionais da huma-
nidade, nunca os homens procurarnm enri-
quecer como hoje com tamanho cinismo, com
tamanha frien e brutalidade, por cima do
mais rudimentar conçeito de Justiça e Cari-
dade. Quanto mais conseguem, mais ambicio-
nam, e tanto mais fundo cavam o vazio das
almas. Todas as máquinas de dinheiro enchem
o mundo de um barulho enervante; e vivemos
num mundo vazio. Os mochos agourentos do
desespero piam sinistros sobre os lares propo-
sitadamente vazios de filhos, e, com a estabi-
lidade da família, rola na voragem tantálica
tudo o que ainda é sagrado. Só o dinheiro é
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sagrado, digo marcado com a maldição que
sobre ele pesa.
Nos negócios, na vida particular da maioria,
na política sobretudo, a moral vai exatamen-
te até ao ponto em que o ouro começa a bri-
lhar. Aos domingos, dos púlpitos, nós estamos,
lendo o evangelho por cima das cabeças du-
ma humanidade inexorâvelmente mouca pa-
ra a mensagem da Pobreza, condição também
inexorável para a paz dos povos e dos cora-
ções. Tanta os patrões assanhados, como as
massas revoltadas em greves fluentes e reflu-
entes, a exigirem aumento de salários, acham
que a bem-aventurança dos pobres de espí•
rito é para os tolos e para os limitados de en•
tendimento. E' dizer que só estes se destinam
ao Reino. . . Entretanto, como toda esta ci-
vilização do cimento armado e do automóvel
é balofa, insensata, pesada e repelente, conside-
rada em seu conteúdo que não tem conteúdo
nenhum, - enquanto a divina alegria da po-
breza, preconizada pelo Filho de Deus, está
toda na alma pura que goza este mundo c0-
mo sua propriedade, nos lírios do campo, nos
passarinhos do b(lsque, na fonte do atalho,
no Filho Pródigo, na Madalena penitente, em
São Francisco cantando ...
"Bem-aventurados os misericordiosos, por-
que eles alcançarão misericórdia". Se o po-
bre é bem-aventurado, deve constituir gran-
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de serviço prestado a Deus o socorrê-lo. E é
o mandamento novo! "Eu vos dou um man-
damento novo: é que vos ameis uns aos ou-
tros" (Jo 13, 14). Tão novo, que o mundo an-
tigo o desconhecia. Sêneca opinava que a mi-
sericórdia para com o próximo era um vício.
"Sapiens non miseretur - o sábio não tem
piedade!" O verdadeiro sábio é o que sorve
o falemo em taças de ouro, se faz coroar de
flores por escravos, sabe, como se diria, fazer
a sua vida" (Hoornaert). E Epicteto disse: "O
pobre é um poço imundo, a que o olho desce
com nojo!" E o poeta Horácio tem um gesto
de repulsa: "Pauperies immunda procul -
para longe com a asquerosa pobreza!" No
mundo antigo, o termo beati possuía sentido
fixo. "Em Roma, eram beati, bem-aventurados,
os que possuíam termas de mármore, ban-
quetes apetecíveis e exércitos de escravos. O
Império Romano ... , no fim, não era mais do
que uma sociedade ein que seis milhões de
beati oprimiam cento e vinte milhões de es-
cravos. Os homens tinham-se tornado ani-
mais: animais de presa, ou animais de carga"
(Hoornaert).
Aquele mundo que bocejava de tédio Je-
sus tira da boca a palavra beati, dá-lhes um
novo sentido flamejante de grandeza. ó po-
bres, como sois ricos! ó ricos, como sois
pobres!
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Por que havemos nós de voltar aos séculos
escuros da civilização barbarizada, se o mes-
mo vírus aí está em nosso corpo social, tran-
sudando purulências tanto mais asquerosas
quanto este corpo se diz requintado de civíli-
zação? Nossa cegueira espiritual, hoje, tam-
bém não chama, fácilmente, beati, benditos,
aqueles que mandam nas bolsas de valores e
exploram os aluguéis dum arranha-céu?
"Amontoai-vos tesouros no céu, onde nem
a traça, nem a ferrugem os corrompem, onde
os ladrões não penetram, nem os roubam"
(Mt 6, 20), disse Jesus.
Esta será a divina riqueza dos que, por amor
á Divina Pobreza, se tornaram pobres, estultos
e loucos. Ouçamos São Francisco, nosso
Pai, em sua Regra: 'ºEsta é a sublimidade da
altíssima pobreza, que vos fez pobres de bens,
mas ricos de virtudes. Seja esta a vossa heran-
ça que conduz à Terra dos Vivos. E vós, meus
caríssimos irmãos, não queirais nunrn possuir
outra coisa debaixo do céu."
'"Bem-aventurados os pobres de espírito, por-
que deles é o Reino dos Céus."
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Terceira noite
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Um povo pobre, judiado, oprimido de precei-
tos e proibições inúmeras, sucumbindo à pre-
potência romana, carregando em seu próprio
corpo e corõção os estigmas duma cegueira
formidável - cego conduzido por cegos -
ali estava esperando o Salvador, que na mes-
ma imaginação popular seria um grande Rei
libertador, espalhando sobre a terra a liber-
dade, expulsando o estrangeiro, levando Israel
ao pináculo do poder e do prestígio. Parecia
chegado o momento;-,agora, sobre a Montanha,
com tão grande multidão escutando o Profeta
que parecia já o Predestinado. Mas ele não os
convida para ajuntarem essas pedras ali e a-
companharem-no para Jerusalém. Só lhes diz:
"Bem-aventurados os mansos, porque pos-
suirão a terra!" Estranho. Muito estranho. Que
terra? Mas então não estavam com a cerviz
mais do que dobrada, com um acervo de leis
mais do que insuportáveis, e a terra não lhes
pertencia, apesar das lutas ferozes de seus
gloriosos antepassados para conquistá-la? Que
coisa estranha prega esse Mestre, quando eles
já viviam cabisbaixos e adestrados à canga,
ma! sabendo se possuíam a terra que era de-
les. Não era deles! Pois a mansidão que Jesus
pregava não era a do boi na canga, mas a do
coração. Era estranho, mas era a base do No-
vo Reino, que, antes de tudo, é o Reino dos
corações - "o Reino de Deus está dentro de
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vós - Regnum Dei intTa vos est!" E tem co-
mo centro o próprio incomensurável Coração
de Jesus, único no mundo que pôde ensinar:
"Discite a me, aprendei de mim!"
E toda vez, meus irmãos terceiros, que nós
somos ásperos de coração, estamos tão longe
desse Reino quanto os judeus, embora o Rei-
no esteja presente entre nós e nós nos cha-
memos cristãos. Cristãos. Não apenas isto.
Chamamo-nos discípulos de São FranCisco,
e de São Francisco vestimos o hábito. Isto
significa alguma coisa. Quem foi esse Santo?
Procure-se no calendário da Igreja Católica al-
guém que haja seguido tão à risca a prega-
ção e o exemplo de Jesus. Treze séculos após,
o Sermão imortal da Montanha, por cima de
todas as vicissitudes da humana história, foi
encontrar em Assis um ouvinte que se propôs
exe:::utá-lo, num século agitado, começando por
desfazer-se de tudo o que fosse anti-evangé-
lico no coração, orgulho, sensualidade, amor
à riqueza e ao fausto, seguindo loucamente
a dama Pobreza, não só externamente - se-
ria indigno, mas internamente sobretudo. O
que restou no coração de Francisco, após essa
luta de titã, foi a mansidão, arrebatadora man-
sidão, foi Cristo. Só quem possui no coração
esse conteúdo, poderá atravessar os séculos
sem morrer. Tudo o que é violento não per-
dura. Violenta non durant!
As Bem-Av. - 3 31
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A luta de nosso Seráfico Pai pela sua maior
conquista de homem e de santo - a mansi-
dão cordeirinha do doce Poverello - teve lam-
pejos de gigantísmo e todos os sinais de he-
roicidade, a começar na própria casa de sua
alma, que era altiva de cavaleiro; na casa de
seu pai Pietro Bernadone, cioso e explosivo;
na sua terra convulsionada por facções as mais
diversas, jogando na carreira cega da prepo-
tência cidade contra cidade; na própria Euro-
pa do décimo terceiro século, digladiando-sc:!
em rivalidades monárquicas e gazuas de con-
quista feroz. Com sua escola de mansidão, São
Francisco, com seus ademanes e sua obra,
era um facho nas escuridões daquela desordem.
A idade-média fervilhava. Em França, Fi-
lipe Augusto, lutando desesperadamente, aca-
bara de derrotar os exércitos coligados da A-
lemanha e Inglaterra, e arrancava aos Planta-
genetas, um por um, os territórios que possu-
íam no Continente. Os príncipes e a Igreja,
a bem da unidade de seu povo, combatiam as
heresias desagregadoras dos valdenses, dos cá-
taros e dos albingenses, contra estes últimos
em guerras que afogavam em sangue. A In-
quisição, desviada de seu verdadeiro fim vi-
sado pela Igreja, transformara-se em tribunal
politico à mercê dos reis de Espanha e Por-
tugal. Na Inglaterra, em torno da Magna Carta
das liberdades, estava acesa a luta entre João
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sem Terra e Henrique III de um lado, e os ba~
rões e cavaleiros de outro. Na Alemanha, Fre•
derico li, "stupor mundi", o susto do mundo,
antes amigo, depois grande adversário da
Igreja, infelicitava seu país com as guerras con-
tra a Liga Lombarda, que o derrotou em Par-
ma. Na própria ltãlia, a luta dos partidos, as
desordens, as ondas de sangue que derramam
as rivalidades ferozes entre as repúblicas de
Florença, Gênova, Milão e Veneza.
E eis que Francisco, despertado pelo tro-
pel, abre os olhos sobre aquele mundo bor-
bulhante, escuta os clamores, arranca de seu
corpo os broquéis do fausto e a panóplia da
cavalaria, e, sempre com os ouvidos tinindo
às notas do Sermão da Montanha, resolve ir
ao encontro dos irmãos inimigos, pés descal-
ços, vestido de saco, gesto de arrebatado, al-
ma incandescente do contacto ininterrupto
com Jesus Crucificado, estendendo os braços
para abraçar todos aqueles homens desen-
tendidos no abraço manso do Cordeiro lma-
çulado. Foi por isso que ele amava t1;1.nto os
cordeiros, chegando a chamar os irmãos que
mais prezava de "peco relia di Dia", pols o
cordeiro é o símbolo da mansidão.
E desses mansos o Cordeiro disse que "pos-
suirão a terra", com tudo o que ela contém,
pois só eles sabem saborear as belezas do
mundo, que Deus ainda lhe concede apesar de
. https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
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maldito, sabem encontrar na flor envenenada
deste mundo a gota de mel, sabem ler no li-
vro aberto da natureza os encantos que o Cria-
dor nele escreveu, sabem perdoar, sabem
carregar sorrindo, sabem cultivar a planta do
otimismo num mundo em que todos os ventos
e climas são de pessimismo, pois um São
Francisco, e todos os espíritos que lhe são ir-
mãos, sabem que a terra é má, porém não é
inferno, sabem que seu século não é dos me-
lhores, mas também não é dos piores, tal qual
o nosso, e que em toda a parte é clima para
os filhos de Deus ...
Como a conquista universal do Cristianismo,
cujos discípulos se lançam de pasto às feras
na arena e oferecem o pescoço ao cutelo bei-
jando a mão do carrasco, também o Francisca-
.nismo, que abraça as ovelhas e afaga os lobos,
correu o mundo: as conquistas da mansidão
são as mais fortes. Todas as outras somem na
voragem implacável do tempo, execradas pe-
los homens. Esta santidade prodigiosa, para
qual a Itália era pequena, lançou-se á con-
quista da Europa, à conquista dos Continen-
tes todos. O próprio São Francisco atravessou
o mar, levado desse fogo de amor que o con-
sumiu aos 44 anos, atravessou o Mediterrâneo
para pregar Jesus Cristo ao sultão de Marro-
cos. Depois dele, a falange de seus filhos lan-
çou-se continentes adentro, atravessando ma-
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res e brenhas e montanhas. Pacificadores da
Itália, estraçalhada por antipatias: São Bernar-
dino, São Tiago da Marca, Santo Antonio. He-
róis da fé em terras bárbaras: São Daniel, São
Pedro Batista, São Nicolau, cada qual com seus
santos companheiros, este na Holanda, aquele
no Japão, o terceiro na Africa. Os Santos das
Nações: São Diogo, São Pascoal, São Pedro de
A!cãntara. Os missionários soldados: São João
Capistrano e São Lourenço de Brindisi, que,
à frente dos exércitos cristãos da Europa, der-
rotaram os adoradores da meia-lua em Le-
panto e Viena d'Austria. João de Montecor-
vino e Odorico de Bordenone, os primeiros a
devassar o imenso reino dos povos tártaros
que, como rio gigantesco, tumultuavam des-
de a China atê à Hungria. Legados de Papas,
conselheiros de Reis, embaixadores de Repú-
blicas, salvadores de cidades, amansadores de
feras, tudo isso, e muito mais, o Franciscanis-
mo possui. E se assim foi na História, também
sobre os nossos dias cinzentos esta segunda
bem-aventurança franciscana tem para espa-
lhar uma gota de sol. Bergson, o cintilante
espírito francês, escreveu esta frase: "Só uma
espécie de Novo Franciscanismo salvaria o
mundo, limpando-o das chagas do materialis-
mo execrável que o corrompe."
Não parece ser hoje a brutalidade a medida
das coisas? Mas não é isto que atrai os homens;
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isto os afugenta. Atraj-os, cála-lhes intensa-
mente n'alma esta lídima atuação franciscana
de um Frei Rogério, nome até hoje venerado
com o maior respeito em todo o oeste catari-
nense e no Rio de Janeiro, pode-se dizer no
Brasil inteiro. Entra pelas almas adentro uma
vida mansa e benéfica de um Frei Humilis, que
foi o Frei Rogério de São Paulo, e cuja san-
tidade era sentida por milhares de almas que
dele se aproximavam no confessionário ou fo-
ra dele. Distila-se nas almas a doce resignação
de cordeiro de um Frei Fabiano de Cristo, que
no serviço exemplar dos doentes deixa-se lan-
çar em rosto todo um prato de sopa, ofere-
cendo a outra face a quem o insulta. O Evan-
gelho é imperecivel, e não existe força mais
penetrante do que esta com que Nosso Senhor
nos convida a fazermos dois mil passos com
quem nos obriga a fazer mil, e a ceder tam-
bém o manto a quem em juizo nos intima a en-
tregar-lhe a túnica (Mt 5, 40-41). Porém, dá-
se o contrário no mundo. Os passarinhos, as
ovelhas, os coelhinhos soltos da natureza é que
são rnansos. E os homens, presos por séculos
de vão adestramento, é que são ferozes. Por
isso, os Santos gostam tanto dos animais. Por
isso, o santo autor da Imitação escrevia que
voltava menos homem cada vez que acabava
de conversar com homens.
Menos homem. Meus irmãos. Se em épo-
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cas de menos barbarismo privar com homens
era tornar-se menos homem, que será de nós
em eras de crueldade desenfreada? Ser-nos-
á, pois, necessário fugir? E' inútil esta pergun-
ta, porque sabemos que só uma meia-dúzia
de loucos o fará, a exemplo desse homem
espantoso que foi Charles de Foucauld. São
os loucos da Cruz, que, depois, voltam para
o mundo como tochas ardentes, para afogá-
lo nos incêndios de Deus que eles mesmos
trazem acesos nos olhos e no coração.
Nós não fugiremos do mundo. Nem Deus
o quer do comum dos homens. E' precisamen-
te neste ponto que o Cristianismo revelará
sua esterilidade ou s1:1a intensidade. Ser cris-
tão e católico é abraçar o mundo tal qual é,
com o universalismo que o termo católico im-
plica. S. Francisco deu este abraço. Só pode
ser o amplexo da mansidão evangélica. Jesus
o disse a Judas: "Amigo, para que vieste?"
(Mt 26, 50). Jesus o disse ao servo do sumo
sacerdote que o esbofeteava: "Se falei mal,
por que me bates?" (Jo 18, 23).
Uma humanidade tonta julga que para os
praticantes do Sermão da Montanha não há
lugar no mundo. Toda a arena já está toma-
da de combatr.s, todas as tribunas estão to·
madas de oradores. As guerras e os discur-
sos são precisamente o desastre da nossa hu-
manidade. No Cristianismo não se trata de
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espadas e alto-falantes, trata-se da conquis-
ta silenciosa e pacifica, única durável. Trata-
se de viver, e não de fazer. Ou viver como São
Francisco viveu não será fazer alguma coisa?
Sua vida foi a maior revolução da idade-mé-
dia revolucionada. Ele convulsionou aquele
século para a mansidão de Jesus. "Aprendei
de mim, que sou manso e humilde de cora-
ção" (Mt 11, 29), disse o Mestre, no mundo
da barbaridade romana. Como as águias de
Roma s~bre aquele mundo, as mesmas aves
de rapina respeitam o nosso coração: águias
da inimizade, do rancor, da concorrência de-
sabrida, da inveja enervante, da politica ani-
malizada, do combate implacável ao próximo,
águias negras do lucro ilícito seja a que pre-
ço for, da febre de dinheiro e prazer a todo
transe.
Na alma em que arder ainda uma brasa
única do fogo cristão, precisa ressoar, nas pro-
fundezas, a palavra martelante de Jesus: "Eu
vcs envio como ovelhas para o meio dos lo-
bos!" (Mt 10, 16). Chegamos finalmente ao
século da bomba atômica, com tudo o que
ela implica de ferocidade e pressupõe de de-
sumanidade. Se a ciência fabrica bombas não.
é para a construção: a bomba atômica é ape-
nas consequência duma atitude do espírito
humano. E' a prova irrefragável de que o
Evangelho, o livro de mais edições no mundo,
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permaneceu letra morta. Que há de mais fu-
nesto para a nossa humanidade? Letra viva,
viva de ferro em brasa, apenas nos olhos e
nas mãos desses pobres loucos chamados san-
tos. Benditos sejam eles, flor da Humanidade,
crescida à sombra do Calvário, fortalecida com
o sangue de Jesus! São os homens, meigos,
mansos, plácidos que possuem verdadeira-
mente a terra, na promessa de Cristo. Nós não
possuimos a terra. Quanto mais a julgamos
possuir, tanto mais ela se nos escapa das
mãos. Na escola de São Francisco, com o cor-
dão e o rosário, aprende-se a mansidão úni-
ca que tem como posse a terra dos homens
e ainda, como coroa, a outra terra, a Terra da
Promissão, na sempiterna alegria.
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-Quarta noite
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e Ismael abandonado, e José nas tristezas do
Egito, e a criancinha Moisés exposta sobre as
águas do Nilo, e os filhos de Israel sem rumo
pelos areais ressequidos, Rute e Noemi erran-
tes, Abigail sofredora, e Saul na desgraça, e
o Rei David arrependido, e Jeremias imprecan-
do, e Isaías padecendo, e a mãe dos Maca-
beus, contemplando transida e forte o mar-
tírio dos filhos, e Raquel soltando "uma voz
de lamentação e pranto" na viuvez - torren-
tes de lágrimas humanas rodeiam o Antigo
Testamento, como os quatro rios rodeavam o
Paraíso perdido (Gen 2, 10-14)_-
Maria Santissima, a Mãe de Deus, chorou
a fuga cruel para o Egito, chorou a despedida
de seu Filho, chorou a morte de Jesus. O
pfóprio Filho de Deus chorou sobre a sua ci-
dade e diante da sepultura de Lázaro e no jar-
d·im das agonias. Pedro chorou sua traição,
Madalena chorou suas indignidades, Judas
chorou sua eterna perdição ... A Bíblia é a sín-
tese da História Universal. Chorar é condição
humana. Quem não chora, não é homem.
"Gemendo e chorando neste vale de lágrimas."
Chorar é dignidade humana. Os animais não
choram. E a esse sal dos prantos infinitos da
Bíblia mistura-se o choro de milhares de cria-
turas durante vários milênios.
Esse maremagnum de amarguras vem que-
brar-se aos pés de Jesus Cristo, que também
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foi home'm e por isso também chorou, de cu-
jo coração divino e profundamente humano
soltou-se a sobre-humana consolação: "Beati
qui lugent - bem-aventurados os que choram,
porque eles serão consolados.·• Uma impres-
sionante pintura de Barbieri, na última guerra,
representa Cristo sentado numa paisagem,
enquanto a seus pés desliza um rio de sangue
que leva uma espada cravada nas ondas ... E'
o caudal das humanas angústias.
Desde que Eva saiu do Paraíso, desterrada
mãe dos viventes, a amargura tem sido o far-
do esmagante dos homens. A Divina Dor!
Aquele que nos salvou por isso se tornou
dor, humana dor, sobre-humana dor, para po-
der salvar-nos. A dor deve ser, pois, o que
mais toca o coração de Deus. E' também o
que sempre mais tocou o coração dos homens.
Existe uma intercomunicação misteriosa entre
Deus e homem neste círculo da Dor, tanto que
Deus estabeleceu uma linha de contacto na
figura do Homem-Deus, o "vir dolorum" de
Jeremias, "Homem das Dores".
A profundidade deste mistério não pôde
escapar â sensibiliidade agudíssima de São
Francisco de Assis. Assim, aos dois quadros -
Eva chorando expulsa, e Cristo contemplando
a espada boiando no sangue - acrescenta-se
um terceiro: Francisco sentado debaixo da
Cruz escondendo nas mãos o rosto choroso.
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Em Eva, foi a amargura do arrependimento
ardente; em Jesus, a tristeza da Misericórdia
quase impotente; em Francisco, a compaixão
devorante pelo Amor não amado.
Meus irmãos. Como nos olhos de Eva à por-
ta do Paraíso que se fechara para sempre, a
lágrima será sempre a saudade duma coisa
que perdemos: no espelho dessas águas sal-
gadas, infinitamente distante, mira-se o paraíso
perdido com seu esplendor. Chorar é condição
humana. Como poderá ser indigno do homem,
se o Filho de Deus mesmo chama bem-aventu-
rados os que choram? Se nos cumes da huma-
nidade vamos encontrar a Mãe Aflita, a Ma-
dalena penitente, Francisco soluçante e o pró-
prio Cristo chorando, a mostrar, por essa comi-
seração imensa, o quanto nos ama? ... E como
chorar é sinônimo de sofrer, na boca de Jesus
serãà bem-aventurados todos os que, na estrada
que leva de Jerusalém a Jericó, do paraíso
para o exílio, carregam alguma dor. "Bem-
aventurados os que choram ... "
Nesse exército enorme que Jesus [obriga
pelos séculos, do alto da Montanha, há os po-
bres que choram. Em todo o Evangelho, são
estes os primeiros chamados à posse do Rei-
no. Jesus vive rodeado deles, porque os ama
com amor de predileção, Ele próprio, o Gran-
de Pobre nascido numa estrebaria, o Grande
Mendigo da Palestina, que não possui onde re-
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pousar a cabeça (Mt 8, 20), enquanto as ra-
posas e as aves têm seu ninho. A pobreza é
a condição mais humilhante para um ser a
quem Deus entregou como herança toda a
terra. Há os que nasceram pobres, e por séculos
sem fim arrastam seus farrapos e seu pranto
pelas estradas do mundo. Há os que a violên-
cia empobreceu e despojou: são os que chc-
ram as lágrimas da fome e da orfandade nas
tenebrosas noites européias e asiáticas, mi-
lhões de seres humanos nascidos entretanto
para a liberdade dos filhos de Deus. Se as
árvores que a noite sacode pudessem falar,
se os escarcéus do oceano tivessem acentos
humanos - ouviríamos o córo tantálico e for-
midável desses pobres, presentes na pupila de
Jesus quando os chamou bem-aventurados.
Quem nunca precisou beber as lágrimas da
fome, esse não sabe nada! Há ainda os que
voluntáriamente se tornaram pobres, para
melhor se identificarem com o pobre Cristo,
que por amor se identificou a eles e se ani-
quilou até à Cruz. Esses todos, num despren-
dimento cruel e doloroso, não só dos bens
materiais, mas de toda vontade própria, de
todo gozo, choram a sua dissemelhança com
Jesus e, ao mesmo tempo, a sua felicidade
de união, só conhecida dessas almas bem-
aventuradaG. A pobreza é a maior dor! Por
isso, a primeira bem-aventurança, a dos po-
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bres, aqui desemboca na terceira: "Bem-aven-
turados os que choram, porque eles serão con-
solados."
Como as lágrimas que a grande pobreza da
condição humana arranca aos homens, Jesus
bendisse as lágrimas do arrependimento. Cho-
ra quem perdeu ou julga ter perdido um bem.
E a intensidade dessa dor está em proporção
direta com o valor do que se julga. i:,erdido.
Por isso, os que perderam a Deus são os que
choram mais amargamente. Neste ponto, o
amor seráfico de São Francisco foi tão lon-
ge, que não chorou apenas seus próprios pe-
cados que não eram pecados, mas chorou co-
mo própria perda de Deus por parte dos ou-
tros homens. Se o santo percorria os bosques
de Assis, gritando que o Amor não era ama-
do, está em tal atitude uma das maiores for-
ças do Franciscanismo. Os místicos todos das
três Ordens aproveitaram ao máximo esta ale-
gria dolorosa. São Boaventura, São Bernardino,
Santo Antônio, Santa Clara, Santa Margarida
de Cortona fizeram dessa inquietação para o
Crucificado a linha de sua vida.
Diretamente inspirada no Sermão da Monta-
nha, a esp'iritualidade com que São Francisco
e seus santos canonizados perfumaram os jar-
dins da Igreja Católica, é a espiritualidade da
ternura, que, beneficiou almas inúmeras. Foi
ela que - para só falarmos dos últimos anos
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- fascinou perdidamente um João Joergen-
sen, uma Eva Lavalliére, um José Mojica,
um Giovanni Papini, fazendo-os deixar o tor-
velinho do mundanismo em procura da paz,
da grande paz que também Dante, o attissimo
poeta, íá fora procurar ás portas dum con-
ventinho franciscano. Mesmo os missionários
poderosos, como São Tiago da Marca e São
Capistrano, na desordem cultural e política da
Europa, Frei João de Montecorvino, o obscu-
ro mas agigantado precursor de toda a obra
missionária da China, São Francisco Solano,
tocando o violino pelas florestas sul-america-
nas - são os portadores dessa ternura da
Cruz, lidimamente franciscana, aprendida com
lágrimas aos pés do Senhor Crucificado, ros-
to entre as mãos, alma dolorida.
"Bem-aventurados os que choram ... " Esta
bem-aventurança é completada pelas palavras
do Senhor aos seus, na última Ceia: "Em ver-
.dade vos digo que haveis de chorar e gemer;
enquanto o mundo se alegra, vós estareis
cheios de tristezas. Mas a vossa aflição se
converterá em alegria" (Jo 16, 20). Todos os
que soluçam sua desventura sobre as lajes á/-
.gidas de um cemitério; os que choram porque
sabem que sua pátria não é aqui; os que se
arrastam por estas estradas amaldiçoadas da
terra, os lábios frios de desespero; os que car-
regam o peso de sua saudade letal pelas re-
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glões de sua pátria destruída e de seu lar arra-
sado, na Europa e na Asia; os que definitiva-
mente penduraram seu alaúde de alegria nos
salgueiros dos lagos sombrios e tentadores, e
por lá rastejam, os ombros vergados ao peso
terrível da desgraça, da incomprensão, da fo-
me, da injustiça, da traição; todos os que der-
ramam as lágrimas de fogo dum arrependi-
mento tardio e consumidor, porque no firma-
mento da noite estão apagadas todas as es-
trelas; os que, bebendo as águas da pobreza
e do amargor, ouvem, de ouvidos martelantes,
os risos da felicidade em casa alheia e, de
olhos marejados, contemplam os palácios do
fausto - ah! as lágrimas humanas - o que
de mais humano possuimos - falam mais
alto que todas as belezas da terra, do que to-
das as conquistas dos tiranos; elas são mais
fortes, porque exercem sobre o coração de
Deus essa magia incompreensível, a ponto
de Ele abaixar-se até nós e chorar conosco,
com todos os Pedros, e Madalenas e viúvas
de Naim da História, mostrando-nos o mesmo
imenso amor que comoveu até os judeus
seus inimigos, quando o viram soluçante ante
a sepultura de Lázaro e exclamaram: "Vede
como Ele o amava!" (Jo 11, 36).
Todos os carrascos da humanidade passa-
rão, com suas maldades. Sô as lágrimas fi-
carão, para que Jesus Cristo as possa enxu-
M Bem-Av. - 4 47
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gar no último dia. "E Deus lhes enxugará to-
do o pranto dos olhos; e já não havera morte,
nem luto, nem soluços, nem dor havera, por·
que passou o que era primeiro. E disse o que
estava sentado no trono: Eu farei novas todas
as coisas" (Apoc 21, 4 - 5).
"A lágrima é uma prova de exílio. Ela nos
dá certeza de que somos cidadãos de um
grande reino ... No dia em que não houvesse
mais pranto, nós teríamos abdicado direitos
imortais ... Seríamos cidadãos do pais do E-
fêmero, os usufrutuários das coisas apodreci-
veis" (Plinio Salgado, Vida de Jesus). Por isso,
meus irmãos franciscanos, aqui na terra nós
temos que entrar todos na vigília das lágrimas.
Ai daquele tão saciado, que as lágrimas do
degredo não lhe assomem aos olhos algum
dia. Este não precisa da consolação divina;
não é bem-aventurado. E isto é terrível. Mas
quando gozamos o cálice da vida, quando não
conhecemos o amargor do sofrimento e a ver-
gonha da pobreza, vamos lembrar-nos que em
alguma parte do mundo alguém chora por
nós. E se este não for outro senão Jesus no
horto das Oliveiras, é razão suficiente para
nos rajarmos por terra, e chorar. As indigni•
dades e covardias da nossa própria consci-
ência de cristãos católicos e discípulos de São
Francisco, se outras aflições não temos, são
sempre o motivo mais nobre da nossa dor de
48
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sinceridade. Os Santos das nossas Três Or-
déns, sentados debaixo da Cruz com o Pai
Serilfico, muito choraram os pecados que não
eram deles, mas nossos. Assim são os santos.
Essas torrentes amorosas derramaram-se por
sete séculos e meio, e sua irradiação é intensa:
nós beneficiamos de sua ternura e de seu
mérito.
Se a bem-aventurança da pobreza é tão
franciscana, a bem-aventurança das lágrimas
também o é, porque não existe mostra de po-
breza maior do que chorar o bem eterno que
se perdeu e não se goza. Aquele que bendisse
as lágrimas não veio fundar uma Religião de
tristes, de covardes e de poltrões, nem uma
Religião de super-homens que venderam ao de-
mônio da soberba sua alma sensivel de seres
humanos. Para uns e outros, também o Fran-
ciscanismo não tem lugar.
A grandeza está em carregar. Parece para-
doxo. A Cruz desfaz o paradoxo. Carregar,
com alma esperançada de cristão, sua mísera
condição humana, à qual pertencem as lágri-
mas como o pão que a massa mos com esforço.
E para nos elevar, e mostrar que esta con-
dição não é definitiva mas efêmera, o Filho
de Deus abriu os braços que um dia iam pin-
gar sangue, e nos disse: "Bem-aventurados os
que choram, porque eles serão consolados."
. https://alexandriacatolica.blogspot.com.br
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E' aquela consolação que ultrapassa qual-
quer humana fantasia, que está para atéfu de
todo brilho enganador, na sempiterna pátria
dos que, como nosso Pai Seráfico, souberam
fazer de suas lágrimas humanas o rosário cris-
talino de sua gloriosa alegria.
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Quinta noite
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do todas as oitos, em quadro completo. Nas
outras seis, o Reino dos céus é apresentado
com outros matizes, bem a g_osto da fantasia
dos ouvintes apreciadores do colorido: na mo-
tivante tudo são sinônimos do céu, de beati-
tude: saciedade, misericórdia, visão de Deus,
filho de Deus. Mesmo na segunda: "Bem-aven-
turados os mansos, porque possuirão a terra",
"possuir a terra" significa evidentemente, em
Ultima análise, Terra Prometida, na expressão
alegórica do Divino Mestre, o reino dos céu~
onde corre leite e mel sempiternamente.
E se quisermos, meus irmãos, num paralelo,
traçar a correspondência entre as bem-aventu-
ranças e as virtudes cristãs, entraremos de
pronto em terreno bem franciscano. Toda a
tendência espiritual de São Francisco e de
seus Santos está, não em elubrações especu-
lativas, as mais das vezes sem reflexo sobre a
vida, mas está em tirarmos do Evangelho as
lições práticas de vida cristã. Nosso Pai foi o
maior fanático do Evangelho, não querendo
que se subtraísse dele um só acento, uma só
virgula. E tanto ele próprio quis segui-lo à
risca, na pobreza, no desprendimento, na obe-
diência, que esta foi a grande dor na vida de
São Francisco: ver, já no seu tempo e em seus
mesmos discípulos, quanto era preciso con-
temporizar, isto é, "trair .. o Evangelho, fazen-
do concessões ás tristissimas contingências hu-
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manas. Esse idealismo puro, quase inexe-
quível, foi temperado por um de seus maiores
filhos, Santo e Doutor da Igreja, o Doutor Se-
ráfico Boaventura, que a sublimes voos mís-
ticos de espantosa santidade aliou um senso
prático, mais conhecedor que se mostrou das
fragilidades do humano coração. São Boaven-
tura é o primeiro e o maior doutrinador do
Franciscanismo.
Vejamos, a titulo de rapidíssima digressi!lo,
as aplicações das bem-aventuranças às outras
virtudes cristãs, na doutrina de São Boaventura.
a) Bem-aventurados os pobres de espírito.
Opõe-se ao vício do orgulho, corresponde à
virtude da temperança, ao dom do temor e
à prece do padre-nosso: santificado seja o
vosso nome.
b) Bem-aventurados os mansos. Opõe-se ao
vício da inveja, corresponde à virtude da jus-
tiça, ao dom da piedade e à prece do padre
nosso: venha a nós o vosso Reino.
e) Bem-aventurados os que choram. Opõe-
se ao vício da cólera, corresponde à virtude
da prudência, ao dom da ciência, e à parte do
padre-nosso: seja feita a vossa vontade.
d) Bem-aventurados os que têm fome e se-
de de justiça. Opõe-se ao vício da preguiça,
corresponde à virtude da força, ao dom tam-
bém da força e ao quarto pedido do padre-
nosso: o pão nosso de cada dia nos dai hoje.
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e) Bem-aventurados os misericordiosos.
Opõe-se ao vício da avareza, corresponde il vir•
tude da esperança, ao dom do conselho e à
quinta prece do padre-nosso: perdoai-nos es
nossas dívidas assim como nós perdoamos ...
f) Bem-aventurados os puros de coração.
Opõe-se ao vício da gula, corresponde à vir-
tude da fé, ao dom da inteligência e à sexta
prece do padre-nosso: não nos deixeis cair
em tentação.
g) Bem-aventurados os pacíficos. Opõe-se
ao vicio da luxúria, corresponde à virtude do
amor, ao dom da sabedoria e ao Ultimo pe-
dido do padre-nosso: livrai-nos do mal.
· Meus irmãos em São Francisco. Esta cita-
ção, por certo árida, deseja apenas insinuar
como as bem-aventuranças de Jesus, vistas sob
tão coloridos prismas, a nós nos oferecem in-
calculáveis oportunidades e estradas por que
atingirmos nossa meta que é Deus, fim Ultimo
da nossa existência neste mundo. E entrando
no assunto da bem-aventurança desta noite,
veremos que também ela é propriedade do
espirita franciscano.
"Bem-aventurados os que têm fome e sede
de justiça". Esta fome e sede de justiça, em
síntese, é o anelo de Deus. Se a Ordem Fran-
ciscana é a que deu e está dando maior nú-
mero de Santos ao Céu e à Igreja, será lícito
inferir que nas três Ordens de São Francisco
54
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~• fome e sede de .,Justiça, Deus, este sendo
alimentada em ascensões contínuas de admi-
rável santidade. E se, em nossa vida diária,
a vontade de praticar atos atentatórios à lei de
Deus, ao menos no foro interno, equivale já
ao ato, havendo portanto, na moral católica,
os pecados por desejo - com razão muito
maior, a vontade e o desejo de Deus são equi-
valentes a atos de virtude, pois o Cristianismo
é a Religião do otimismo, que inclui a esperan-
ça entre as suas três principais virtudes!
Já reconhecemos pois que, no uso comum
das sagradas escrituras, o termo Justiça não
significa, em primeiro lugar, a virtude social
pela qual damos a cada um o que lhe cabe de
direito, mas significa, quase sempre: santida<l"!,
graça, retidão de vida. O homem justo - vir
justus - é o homem ancorado em Deus, o
homem santo. "Ter fome e sede de justiça"
significa, por conseguinte, ter n'alma esse ane-
lo de sobre-humanidade próprio de todos os
que anseiam fugir à animalidade da humana
condição, tendente sempre para o efêmero,
para o ilusório. No mundo de valores relati-
vos em que esbracejamos, a justiça é a sede
do Absoluto, Deus, Princípio e Fim. Desta jus-
tiça evangêlica a justiça em nosso sentido co-
mum faz parte imprescindível, porque não po-
de procurar e amar a Deus quem não ama a
seu próximo fazendo-lhe justiça.
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Fome e sede de justiça. Mas justic;;a é pio,
e pão é justiça! Aí está, numa bem-aventuran-
ça, a questão social. Primeiro sac~ar a fome e
sede dos estômagos. . . "Primeiro vem a co-
mida, depois a moral", diz-se na "Opera do
Mendigo". Toda a nossa tristeza e desespe-
rada aflição moderna aqui está, nesta misé-
ria escancarada. . . E assim será sempre, en-
quanto os homens não acenderem de novo
dentro de suas cabeças o divino Sol da Jus-
tiça, Cristo Nosso Senhor!
Se o próximo não recebe pão, têm fome e
sede de justiça todos os famintos. Se não re-
cebe justiça, têm fome e sede dela todos os
oprimidos. E se lhes faltam pão e justiça, nun-
ca lhes faltaram discursos - discursos e pro-
messas são a dádiva que mais pródigamente
chove sobre a cabeça dos homens. Por isso,
têm fome e sede de justiça todas essas massas
de iludidos, em resignada ou revoltada espera,
já não de pão e circo, como os romanos, mas
de pão e paz.
Esta fome e sede parece que está gritando
por todos os poros da humanidade aflita.
Jesus o sabia. Sabia, ao pronunciar as bem-
aventuranças, que os séculos vindouros leva-
riam a humanidade para bases cada vez mais
instáveis, à medida que se fôsse ofuscando
a presença de Deus nos espíritos. Daí aquele
grito que retumba de contínuo aos ouvidos
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dos que o escutaram uma vez no evangelho:
"Procurai primeiro o reino de Deus e a sua
justiça: todo o resto vos será dado de acrésci-
mo!" (Mt 9, 33). Seria inútil, meus irmãos em
São Francisco, traçar-vos o quadro de um
mundo já não digo agonizante, mas cujo cas-
tigo de Sísifo consiste em subir a pedra que
sempre rola montanha abaixo, cujo tantálico
tormento consiste em não morrer, estorcendo-
se, como Laocoonte, com seus filhos, procu-
rando debalde livrar-se da serpente que os
enrosca, como a escultura grega, simbólica-
mente, mas com força inaudita, marmorizou a
angústia humana. Seria inútil traçar-vos o qua-
dro deste mundo. Vós sois de uma grande ci-
dade, em que a maresia escumante duma tor-
turada humanidade se levanta estrebuchante
contra os penedos. Vós a conheceis. Falta de
pão e de' dinheiro suficiente; paredes e gre-
ves cada vez mais inquietantes em toda a terra;
um irrespirãvel ambiente saturado de idéias
loucas, vomitadas sobre a cabeça dos povos
por um exército de irresponsáveis. Jã não fa-
lo só de males geográficamente restritos à
Europa infeliz ou à Asia, sofredora sobre uma
cruz que se projeta fantásticamente por sé-
culos, ou ao Brasil, ao pobre Brasil, pobre de-
vido á falta de alfabetização, cultura e história,
completamente verde para este ensaio trã-
gico de Democracia. . . E como nossa vida
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Individual se ressente de tudo isso! Como so-
fremos! Como lar adentro e rua em fora nos-
sa vida se desarticula, se esfiapa, se ensombrai
Um mundo sem justiça, porque sem Deus e
sem santidade!
E sobre todos esses meandros de homens
embriagados, sobre os olhos injetados de tan-
tos carrascos, sobre a alma ensanguentada de
tantos párias, sobre a nossa grande dor de so-
fredores, tomba, do alto da Montanha, esta
bendita palavra de quem nos veio salvar: "Bem-
aventurados os que têm fome e sede de jus-
tiça, porque eles serão saciados!" E' a espe-
rança. Charles Péguy chama a esperança cris-
tã "la petite filie de rien du tout - a filhinha
do nada" ... Mas "é esta filhinha, entretanto,
que atravessará os mundos, ela só, carregando
as outras, atravessará os mundos sacudidos!"
Como isto é verdade! Não é São' Francisco
chorando ao pé da Cruz? Essas lágrimas já
são o raiar fulgurante da aurora que Deus
sempre mandará ao mais carregado horizonte.
"Bem-aventurados ... , porque serão saciados!"
Mesmo neste mundo, meus irmãos francis-
canos, que nega a Deus e repudia o sobrena-
tural, esta negação de Deus, as mais das ve-
zes, não é outra coisa senão fome e sede de
Deus. Uma fome raivosa, uma sede fervente,
à guisa do inferno que, quanto mais maldição
vomita sobre o mundo, mais reconhece, ran-
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gendo, quanto é maior a maldição que é obri-
gado a reter nas suas profundezas. A fome
que se manifesta assim pela negação, é a fo-
me mais terrível, porque é a mais infernal. O
inferno é negação. Quando a fome e sede hu-
mana não procura saciar-se no Sol da Justiça
que governa o mundo e a vida de todos nós,
então há de procurar saciar-se com toda a es-
pécie de pastos que o mundo oferece.
Vivemos no século da evasão. Fugir, corren-
do, gritando, esbracejando, na embriagues alu-
cinadora da fome - eis o destino pavoroso
desta geração fora de equilíbrio. A ciência
vem fazendo invenções novas de estarrecer.
Entretanto, a segurança da humanidade é ca-
da vez menor. Por isso ela está em evasão,
em êxodo. E quem se evade, invade forçosa-
mente outras terras, à procura de outros deu-
ses para adorar. E' a história do filho pródigo,
que abandonou o Lar, que se alimenta mise-
ràvelmente. E esses porcos, em cuja companhia
o pobre se compraz, podem ser, ou um homem
civilizado, ou o Estado erguido em deus, ou o
dinheiro que se adora, ou a sensualidade que se
bebe, a impiedade de toda a sorte, a injustiça
social, esmagar a pobreza, odiar o irmão, en-
gordar com o sangue do próximo. . . Ample-
xati sunt stercora. E' a lamentação de Jere-
mias: "Abraçaram-se ao esterco!" (Lam 4, 5).
E' o que diz Papini, em seu último livro:
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"O homem sem Deus permanecerá ·sempre um
pobre animal delirante; só unido a Deus· po-
de tomar-se divino" ("Cartas aos Homens").
Se a justiça ê Sinônimo de Deus, injustiça sig-
nifica ausência de Deus. E tudo o que nós cha~
mamos de injustiça é perfeitamente isso: im-
piedade. E neste mundo, assim como ele ê, sem
mudar nada em sua desolante condição, Jesus
nos manda ter fome e sede de Justiça, à guisa
dos Santos, os melhores da Humanidade. E co-
mo recompensa desta fome e sede, o Salvador
nos promete a saciedade, "eles serão saciados".
Mais uma vez, é uma esperança. Uma flame-
jante esperança!
Se, pois, quisermos que a nossa vida não
seja sem norte, como a vida da humanidade
êbria ao redor, ê preciso que nas profundezas
de nossa alma ainda nos seja possível ajuntar
um pouco de forças, digo um pouco de fome
e sede. Também nesta Paulicéia em que vi-
veis, meus irmãos, saturada de materialismo
como todas as metrópoles do mundo, tanto
mais para discípulos de um Santo inflamado,
se torna necessário ser roído da fome de Deus,
ser atormentado da sede de Deus.
Nossa Semana Franciscana há de ser, tam-
bém, uma oportunidade de renovação espiritual
dentro do material; pois a melhor parte, a parte
eterna do nosso ser não pode ser arrastada
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na voragem da correnteza profana, mas preci-
sa de sobrepairar ao mundano. Vivendo embo-
ra dentro do século, precisamos caminhar, co-
mo homens e como franciscanos, para uma
pátria que está muito além destas fronteiras
visíveis.
"Bem-aventurados os que tém fome e sede
de justiça, porque eles serão saciados."
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Sexta noite
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atormentam imenso. A maldade, a injustiça
que nos cercam amarguram tanto. Como não
dizê-lo? Há um número de coisas que irritam
um cristão. Estamos em plena época de neu-
roses coletivas. O ar que respiramos está do-
entio de irritações gerais, de exasperamentos
sociais. A imprensa e o rádio vomitam irrita-
ção. Cóleras mal sopitadas crepitam surda-
mente em tantos corações. A mesma pressa
que caracteriza nossa vida pública reflete a
neurastenia, porque por ela é acionada, mo-
la por demais visível, autêntico pesadêlo. E
enquanto tudo corre assim só Deus sabe para
onde, sózinho, no meio de seus irmãos, em pé,
está o homem pacifico, pomba no dilúvio, que
não encontra quase onde pousar o pé.
A esses discípulos é que disse o Rei Pací-
fico: "Eis que vos envio como cordeiros para
o meio dos lobos!" (Lc 10, 3). O velho Plauto,
lá se vão muitos séculos, declarava que o ho-
mem é o lobo do homem - homo homini lu-
pus! Uma palavra terrível, que se mantém
viva com toda a sua crueldade. Pois entre di-
lacerar as carnes, que é obra do lobo, e dilace-
rar a felicidade do próximo, que é obra do ho•
mem, como haverá escolha? Apesar das con-
sequências desastrosas do pecado original, era
vontade do Criador que houvesse entre os ho-
mens relativa felicidade e paz, se eles se a-
massem ... Mas, eles não se amam. Para este
As Bem-Av. - 5 63
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mundo sem amor, mundo cinzento e amar-
goso, deixando-o assim como ele estava, sem
destronar os cêsares e expulsar os romanos,
Jesus envia seus discípulos: "Eu vos envio co-
mo cordeiros para o meio dos lobos!"
Quando um ouvido franciscano ouve esta
palavra, de pronto se lembra de Gúbbio. A
cidadezinha italiana era infestada por um lo-
bo feroz, contam "I Fioretti", e não havia ho-
mem válido que conseguisse eliminar a fera.
Depredava estrebarias e apriscos, assaltava cri-
anças, apavorava as ruas. De passagem por
Gúbbio, Sãà Francisco enfrentou o lobo; de
mansinho, foi-lhe ao encontro; apazigou-o;
concluiu mesmo com ele, em nome da cidade,
um acordo de auxilio mútuo. Para selar o
pacto, o Santo tomou em suas mãos a pata
do lobo ... Como cordeiro no meio dos lobos!
"Bem-aventurados os pacíficos ... " Qual dos
Santos terá mais direito a esse título "filho de
Deus'" do que o Seráfico Patriarca, cuja missão,
toda a vida, foi a de apaziguar? Apaziguava ir-
mãos, apaziguava animais, apaziguava ladrões,
apaziguava as autoridades de Assis, apazigua-
va o sultão de Marrocos. No seu "Testamento"
aconselhava aos irmãos a saudação da Paz:
"O Senhor me revelou que dissêssemos esta
saudação: Deus te dê a paz!" Quem mais
filho de Deus do que Francisco, cuja famosa
bênção a Frei Leão conclui: "O Senhor te dê
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a paz, o Senhor te abençoe!" Cujas três Or-
dens veneráveis têm como lema - Pax et
Bonum, a Paz e o Bem! Quem mais do que
o Santo poeta e sonhador da fraternidade uni-
versal, muito antes dos filósofos estéreis do
século XVIII, que no fim de sua vida mandou
ajuntar ao imperecível Cântico do Sol mais
uns versos: "Louvado sejas, meu Senhor, pe-
los que perdoam por teu amor. . . Bem-aven-
turados os que sofrem em paz, que por ti, Al-
tíssimo, serão coroados!" Que eco retumbante
do Sermão da Montanha!
Por isso, meus irmãos, quando falamos de
paz estamos em terreno franciscano. A paz tem
a serenidade e a calma discrição do marron
franciscano, e tem o brilho lampejante dos
olhos de São Francisco. A palavra en-
cerra todo o dulçor das cantigas franciscanas
da alegria, ressumbra todos os gorjeios dos
passarinhos da úmbria, espadana todo o arre-
batamento de um pôr do sol sobre os pinhais
da Porciúncula.
Sente-se um estranho constrangimento ao
falar de paz a franciscanos, dentro de um mun-
do sem paz. Ser franciscano e viver nesta era,
é um desses dolorosos paradoxos típicos do
nosso século assanhado. Mas ai mesmo estã
nossa tarefa, ao alcance da mão. Ai do mundo
se o espírito de São Francisco já não soprasse
sobre ele! Deus é a Paz, assim como é o Amor .
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Na volta a Deus, no regresso ao lar, é que está
a volta à paz. Se outra prova disto houvesse,
bastava considerarmos o reverso: foram sempre
os mais bárbaros, os mais guerreiros os povos
menos cristãos. Quanto mais um homem é
tirano, tanto mais longe ele está do Coração
de Deus. Deus é o Deus da Paz, conforme
anuncia pelo Profeta: "Os meus pensamentos
são de paz, e não de ira!" (Jer 29, 11). Tanto
mais alguém será filho de Deus, quanto mais
pacífico for. Aqui aparece o paradoxo. Sobre
ele parece fundar-se todo o Cristianismo. O
Deus Potente dos Exércitos quer filhos pací-
ficos! Toda a vida de pobreza, perseguição e
sofrimento do Filho de Deus se baseia, aparen-
temente, sobre este paradoxo. Quando os fi~
lhos de Israel, que escutavam Jesus sobre a
Montanha, ouviram-no pronunciar esta bem-
aventurança da paz, devem ter levantado mais
as cabeças incrédulas, porque a maior parte
deles viviam com os punhos cerrados contra o
dominador romano. Não era possível ser pa-
cífico! Como seria viável ser "manso'' para
possuir a terra, se, para possui-la, era preciso
expulsar o usurpador? Como era exequivel
ser "pacífico," se um "filho de Deus", isto é,
filho do povo eleito, via sua gente amordaçada e
sua terra pisada pelas botas de Roma? Esta
é a originalidade do Cristianismo: os seus se-
quazes devem ir sem armas para o campo de
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batalha, e, sem armas. tornar-se vencedores!
"Meus irmãos, escreve São Tiago, tomai co-
mo exemplo de dor e paciência aos profetas,
que falaram em nome do Senhor" (Tgo 5, 10).
E São Paulo, falando dos discipulos, diz:
"Foram apedrejados, cortados, espedaçados,
mortos a espada; andaram por aí tais de que
o mundo não era digno" (Heb 11, 37). E ain-
da São Paulo: "O que é estulto no mundo,
Deus o escolheu para confudir os sábios, e o
que é fraco, Deus o escolheu para confudir o
forte, e o que é ignóbil, desprezível, o que nada
é, Deus o elegeu para destrWr o que é"
(1 Cor 1, 28),
Quem não pensa nos Mártires? Quem não
pensa em São Francisco de Assis? Que revo-
lução fizeram essas almas. Uma revolução do
nada. Desde os desertos da Palestina, onde
o Precursor e o Salvador jejuaram, desde os
areais da Arábia, onde o Apóstolo das Gentes
fez retiro, desde os tugúrios dos ermitães es-
quálidos da Tebaida, até ao arquipélago de
Molocai, até á basílica de Lisieux, até ao tú-
mulô do Padre Foucauld, existe pelos séculos
uma estrada de reis e rainhas que dominaram
a terra e os céus, cujo nome ninguém esqueceu.
"Bem-aventurados os pacíficos, porque serão
chamados filhos de Deus,"
Naquele mundo cruel e injusto, Jesus dei-
xou tudo em pé. Nada destruiu. Não afastou
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de Roma os ímpios Césares, mas disse que
dessem a César o que a César pertencia. Não
pediu auxílio aos exércitos romanos contra os
pescadores broncos da Galiléia, mas dominou-
os com seu olhar de paz, e pediu-lhes, a eles
e a seus discípulos, que se lançassem de pasto
aos leões do circo. "Eu vos envio como cor-
deiros ... " E porque Jesus nada derrubou -
nem o Império que cairia por si, nem o caniço
já inclinado, nem o pavio que ainda fume-
gava·- por isso Ele conquistou o mundo co-
mo jamais sonhara nenhum dominador. Não
disse dele Miquéias que traria a paz? "Et erit
iste Pax - e Ele será a Paz!" (Miq 5, 5).
E porque São Francisco não caçou o lobo,
mas o amansou, e porque apazigou em sua ci-
dade o bispo e o podestã desentendidos, e
porque entre seus discípulos, no guerreiro sé-
culo de Frederico li, sua obra, todavia, foi de
pacificação dos homens e dos animais - por
isso sua obra aí está ainda, afrontando todas
as cruezas, todas as arbitrariedades dos ho-
mens, séculos de guerra, inimizade e violên-
cias, mostrando-se mais forte. Nada se opõe
mais rijamente ao espir.ito franciscano do que
a violência e a opressão, simplesmente porque
nada mais antagônico ao espirita de Jesus
Cristo. E porque Jesus Cristo, na carne e no
espírito, assemelhou a Si São Francisco, até ao
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último limite possível a um mortal, esta bem-
aventurança também é franciscana.
Filho de Deus! O únic:o Filho de Deus por
excelência foi o mesmo Jesus. E depois dele,
na carne mortal, ninguém tanto se lhe identi-
ficou como nosso Seráfico Pai.
Desgraçadamente, meus irmãos, nós vivemos
em tempos em que os filhos de Deus são mais
raros que o corvo branco de Juvenal ... Pois
ninguém é pacífico! Franciscanos num ambi-
ente tão antifranciscano, nós temos que reali-
zar nosso ideal. Como São Francisco disse aos
salteadores do bosque, que o arremessaram
num fosso de neve: "Eu sou o arauto do gran-
de Rei!" Evidentemente, do Rei da paz! Se
fosse outro seu Rei, aquele moço cavaleiro
teria pagado com murros, com a espada, a
afronta que os ladrões lhe fizeram. Se os gran-
des Santos das Três Ordens, se os apóstolos
franciscanos do Evangelho em todas as selvas
do mundo não tivessem levado na frente este
estandarte, que seria do Franciscanismo? Te-
ria a sorte que teve o Império de Domiciano
e de Napoleão. Mas não. Assim diz a Regra
da Ordem Primeira: "Os frades sejam meigos,
pacíficos, modestos, falando a todos como con-
vém." E na lição que Francisco deu a Frei
Leão, a perfeita alegria não está justamente
em receber bastonadas e ser expulso pelos
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próprios irmãos, arrastando seu frio e sua fo-
me de porta em porta?
Que diferença angustiante entre tal espirita
e o que respiramos nós! Onde esta a Paz?
Porque o Santo Padre, em sua encíclica de Na-
tal, num apelo lancinante, pede âs crianças que
vão rezar no Presépio, pela Paz?. . . Porque
escolheu, na tempestade que nos sacode, co-
mo lema de seu Pontificado de espinhos a-
quela palavra do profeta !saias: "Opus justi-
tiae Pax - a paz é obra da Justiça!"? ...
(Is 32, 17). A paz onde está? Por que nos admi•
ramos, por que nos insurgimos a esta idéia,
:,e sabemos que sempre será assim, sempre
sem paz, enquanto Deus não entrar de novo
nas consciências dos que governam? "Ubi ca-
ritas et amor, ibi Deus est!" Mas Deus não
está. E' o Grande Ausente. Em todas as con-
ferências dos Quatro Grandes, faltou o Quinto,
digo o Primeiro, o Representante do Rei da
Paz, o Papa Pio XII.
Mais vale uma alma de joelhos, rezando
peta paz, do que mil exércitos terríveis em
linha de batalha. Mais vale o olhar claro de
São Francisco do que milhões de punhos cer-
rados pedindo pão e circo, digo dinheiro e
cinema. Mais vale a mão do Papa, levantada
para a bênção, do que cem bombas atômicas.
Meus irmãos. Todos nós temos nome fran-
ciscano. Somos pacificas por obrigação inti-
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ma. Que nas ruas por que andamos ninguém
seja obrigado a desviar de nós o seu olhar ...
Que em nenhuma casa a mão de um homem
se crispe, o olhar de uma criança se ensombre,
quando pronunciam este nome... Que ne-
nhum dos homens cerre seus olhos à vida le-
vando para a eternidade um desgosto contra
nós ...
"Bem-aventurados os pacificas, porque eles
serão chamados filhos de Deus!"
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Sétima noite
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Desta perseguição por amor à justiça, o pró•
prio Jesus, sendo a mais escolhida vítima, é o
mais brilhante exemplo. Todo discípulo pred•
sa ter em seu corpo essa marca. "Hão de arras-
tar-vos para diante dos Conselhos, e hão de
açoitar-vos nas sinagogas; sereis conduzidos
à presença de reis e presidentes, como teste•
munhas para eles e para os pagãos ... ExpuJ.
sar-vos-ão dos templos, e dia virá em que to-
do o que )JOS matar julga prestar serviço a
Deus" (Jo 16, 2). "Então entregar-vos-ão aos
tormentos, e vos matarão, e sereis odiados
por todas as gentes por causa do meu nome"
(Mt 24, 9). "Sereis traidos pelos pais, pelos
irmãos, pelos parentes e amigos, e vos pu-
nirão de morte" (Lc 21, 16). Não é o servo
mais do que o seu senhor; se a mim me per-
seguiram, hão de perseguir-vos também a vós"
(Jo 15, 20). Aqui está a terrível estrada de
sangue do Evangelho, assinalada aos discípu-
los pelo próprio Mestre. Ela parte do Calvário
e se estende por 19 séculos.
Com exceção do discípulo amado, São João,
que não precisou derramar seu sangue, mas foi
também mefido em caldeira fervente, todos os
apóstolos morreram de morte violenta. O san-
gue é o sinal do Espirita e da Presença. Senão,
a ·todo o instante do dia e da noite, o Sangue
não jorraria nos cálices do Novo Testamento,
sobre o altar. E depois dos apóstolos, outros
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entram em suas pegadas, muitos milhares. Até
hoje os circos de Roma, arruinados mas não
mudos, o atestam. Não há continente, creio
que não há pais, cujo chão não tenha emb'ebi-
do o sangue dos mártires, das testemunhas
de Jesus Cristo. Se não foi o sangue do mar-
tírio brutal, é o sangue arrancado pelos es-
pinhos e pelas pedras, ou é o sangue branco
d'alma daqueles milhares que, só com sofri-
mentos inúmeros, puderam realizar alguma coi-
sa de estável para o Reino de Deus.
"Bem-aventurados os que sofrem persegui-
ção por amor à Justiça, porque deles é o Rei-
no dos céus." Nesta trilha, a grande paixão
franciscana do Amor não-Amado escreveu na
história missionária de todos os séculos au-
tênticos poemas de heroísmo. O próprio fun-
dador fracassou diante do sultão de Marrocos,
e os maiores apóstolos da Ordem, São Fran·
cisco Solano na América do Sul, Frei João de
Montecorvino na China, São Tiago da Marca
e São João Capistrano pela Europa, Frei Ju-
nípero Serra na Califórnia, Frei Pedro Palácios
e Frei Rogério no Brasil - que fizeram nas
messes de Deus senão semear o grão de um
grande sofrimento, único a dar esperanças de
de esplêndida colheita? E a odisséia desse obs-
curo frade belga do século XVII, Pedro Farde,
que nos mostra, senão uma espantosa sede de
sofrer por amor da Justiça?
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"Tendo partido em 1686 de Lisboa para
transportar-se à Terra Santa, a sua embarca-
'ião é capturada por uma flotilha de piratas
que, em Bone, vende como escravos todos os
passageiros. Frei Pedro cabe a um rico mu-
'iUlmano, que se aproveita de suas qualidades
de arquiteto para construir um palácio em es-
tilo europeu, em Agadir. Enquanto dirige a
construção, o franciscano vai catequizando o
seu patrão e batiza os duzentos negros e ju-
deus qué trabalham sob sua direção, e teria
continuado o seu apostolado, se não tivesse
sido denunciado por um huguenote francês ao
Câdi local, que o condena a receber bastona•
das nas plantas dos pés e a outros tormentos.
Obrigado a deixar Agadir, ele se aventura a
percorrer sózinho a bacia do Níger, atraves-
sando as montanhas que separam o Sudão e
a Guiné; caminha mais de uma semana por
terras selvagens, inabitadas, durante o dia sob
o sol abrasador, de noite aterrorizado pelos
rugidos dos animais ferozes, ameaçado pelos
canibais, devorado pelos mosquitos e pela ma•
léria, morrendo de fome, porque as plantas
que pelo caminho encontra são venenosas.
Finalmente, um negro de bom coração o aco-
lhe, esfalfado, em sua caravana, transporta pa-
ra o Congo, e do Congo para Loanda, na An•
gola. Dali, com o auxilio do bondoso negro,
embarca-se de volta à pátria, mas, nas proxi-
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midades de Santa Helena, o veleiro naufraga,
e o pobre se salva nadando desesperadamente
e, descobrindo algumas tábuas flutuantes, con-
segue com elas fazer uma jangada, e assim
retoma fôlego. A jangada o arrasta sem rumo
durante três dias e três noites, encalhando fi-
nalmente em uma rocha isolada no meio do
Atlântico, onde o náufrago passa sete dias em
jejum, até que um tubarão putrefato, arremes-
sado pelas ondas contra o rochedo, lhe for-
nece um alimento que seria intragável para
quem quer que não estivesse como ele esfo-
meado. Parece impossível viver em tão extre-
ma negação de toda humanidade. Entretanto,
Pedro Farde passou ali seis longos meses, nu
sobre aquele escolho nu, comendo peixes crus,
bebendo água pútrida, dormindo sobre o ro-
chedo protegido pelas tábuas que haviam for-
mado sua jangada, perdido na solidão, ator-
doado pela voz do oceano, não porém assel-
vajado, porque a oração o consola, e aquela
incrível pobreza faz-lhe sentir a predileção de
São Francisco (Gemelli, O Franciscanismo).
Meus irmãos franciscanos. O que é em nos-
sa Ordem essa loucura pela pobreza e pelo
despojamento, senão vontade de sofrer por
Deus com o Deus Menino pobre? Quem na
Ordem faz voto de pobreza sabe que se com-
promete a uma coisa terrível. Por isso a lei
exige que seja de maior idade. Na pobreza,
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está encerrado o voto de obediência: não ter
vontade! Na pobreza, está encerrado o voto
da castidade: não ter corpo! Tudo é de Deus,
e a vida consiste, para nada ter, em despojar-
se de contínuo. E' uma ânsia que lateja em
todas as veias. E' um incêndio que devora to-
das as fibras. Uma chama abrasante em todas
as horas: quanto mais escuro, mais ela se le-
vanta, quanto mais frio, mais ela se inflama,
quanto mais tempestuoso, mais ela se adensa!
O que é passar de burel por certos países,
certas cidades, certas ruas, senão carregar os
estigmas duma perseguição por amor à Jus-
tiça? Pobreza de simpatias do vulgo, pobre-
za de tudo o que os homens procuram: apa-
rência, estima, dinheiro? Quantos filhos teve
São Francisco, que eram ricos, alegres e inve-
jados, e abandonaram o luxo para abraçar o
Cristo nu da Cruz. Estes inúmeros sentiam em
suas carnes, dia por dia, a dor latejante dum
tal abandono, escárnio do mundo. Clara Scifi,
riquíssima e fidalga, deixou que São Francisco,
com rude tesoura, lhe cortasse em Porciún-
cula a cabeleira de ouro que, caindo ao chão,
perfumou até hoje toda a casa da Ordem e da
Igreja, à guisa do perfume da Madalena. E
Clara vestiu um saco. Isabel da Hungria, cor-
deiro da mansidão, deixou que em noite ál-
gida de neve a expulsassem do que era seu,
com suas crianças, riquíssima rainha, e depois,
TT
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vestindo um saco, se transformou em anjo
sobre a terra. São Luís de França, São Luís
de Tolosa, Santa Isabel de Portugal tinham
reinos e tinham coroas, mas sonhavam rea-
lezas mais verdadeiras, escolheram a coroa de
espinhos, a pobreza. Este é o preço mais cruel
da bem-aventurança da perseguição. Pois nin-
guém quer ser pobre. Os que assim nasceram,
têm-no por desgraça e cobiçam mais a rique-
za do que os próprios ricos; como estes, são
indignos do banquete celestial.
Mas felizes mil vezes todos aqueles que se
vêm iluminados com o fulgor desta bem-aven-
turança de Jesus! No ponto exato em que São
francisco, empoeirado do caminho, se assenta
debaixo duma árvore para regar o pão da po-
breza mendiga com a água limpida do regato,
entre louvores ao Altíssimo, nesse ponto exa-
to brota a alegria espiritual. Pois não há sen-
timento de riqueza, euforia e bem-estar que
se compare a esse sentimento de pobreza de
quem só possui a Jesus Cristo! Que sabemos
nós dessa beatitude? Com que olhares olha-
mos nós para as grades dessas prisões mate-
riais e morais que mal escondem os milhões de
sentenciados distantes do nosso convívio? Que
contágio será mais funesto, o deles ou o nosso?
Não sabemos que esses todos são os convida-
dos do Reino, como aquele ladrão feliz que
na vida só fora salteador, e no último fiapo
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da existência mereceu o perdão integral da
Misericórdia de braços estendidos e crucifica-
da ao lado dele! O miserável que nos mete
tanta inveja, porque foi o Lmico que, no dia
de sua própria morte, o Filho apresentou ao
Pai! Quantos desses e dessas, párias da so•
ciedade, serão os convivas do eterno banquete,
enquanto os "filhos do Reino", os própriamen•
te chamados, serão lançados fora porque,
procuradores de sua própria justiça, aqui na
terra roubaram, mataram, prostituíram sua he•
rança de filhos, mas não estiveram em cadeia
e, em vez da mofa escarninha que tanto 'dói,
receberam abraços de seu exército de proter•
vos bajuladores!
"Bem.aventurados os que sofrem persegui•
ção." Portanto é condição para entrarmos no
Reino dos Pobres, onde o maior Pobre é o Rei
Imortal dos Séculos, e onde a gente se assenta
à mesa com São Francisco e Santa Clara. Os
presos, 0s condenados às galés, os milhões dos
campos de concentração, massas de homens,
mulheres e crianças, que arrastam sua des-
ventura e sua fome pelos países talados de
Europa e Asia, sem pátria, sem lar, sem pão
e sem consolo - o céu sem esperança, a noi-
te sem luz, o frio sem aconchego: estes todos
se encaminham para as portas do grande Pa-
lácio, onde Alguém os espera de braços aber-
tos, já não pregados, mas brilhantes da ale-
M Bem-Av. - 8 79
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gria. "Vinde a Mim todos vós que sofreis e
estais carregados; eu vos aliviarei!" (Mt 11, 28).
Para esses deslocados, apátridas, desambienta-
dos sobre a terra ê que está aberta a grande
e luminosa Corte. Aqui na terra são maioria;
e na glória são ainda em maior número, por-
que Jesus Cristo vê neles a sua melhor ima-
gem. "Deles é o Reino dos céus."
Quando Jesus assim falava, muitos lhe es-
tavam bebendo a palavra. Parecia dita para
eles. E quando a hora deles fosse chegada,
os apóstolos lembrar-se-iam, e iriam fortes pa-
ra o martírio. E muitos judeus, ouvintes de
Jesus, também haviam de lembrar-se. Desde
Santo Estevão apedrejado, até Dom Vital en-
carcerado, até Monsenhor Stepinac trucidado,
quantas testemunhas célebres dessa bem-aven-
turança, e quantos, em número infinito, anôni-
mos, que na tem) deixaram seu sangue e suas
lágrimas, a fim de que neste mundo o germe
da fé e da fortaleza não morresse de todo, mas
espigasse constantemente para as messes da
Justiça.
Justiça é sinônimo de Deus. Ter fome e
sede de justiça ê tê-la de Deus. Sofrer por
amor à Justiça, é sofrer pelo mesmo Deus do
qual se tem fome. Deixar-se coroar de espi-
nhos, ou amarrar ao pelourinho da ignomínia
pública por motivos supraterrenos, ê, eviden-
temente, ter sede de Deus. Padecer todos os
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reveses da vida, físicos e morais, com espírito
sereno e olhar elevado, é, certamente, ter fo-
me do Deus da Justiça que, no dia do Juízo,
a todos pagará segundo merecem.
E esta batalha da Justiça, meus irmãos,
está acesa por todos os recantos do globo.
Sempre os Apóstolos da Verdade serão ridi-
cularizados ou apedrejados. Sempre as almas
cristãs verdadeiras, interior ou exteriormente,
são ludibriadas. Escândalos sempre os have-
rá. Maus sempre os teremos. Carrascos sem-
pre os sofreremos. Se não forem outros, so-
mos nós mesmos que nos torturamos. Quan-
tas vezes nosso coração se confrange, nossos
olhos se fecham - alguma coisa sangra no
intimo. "Irmãos, sede sóbrios e vigiai, pois o
vosso inimigo, o demônio, como leão furioso,
ronda procurando a quem perder!" (1 Ped 5, 8).
"Sob mil formas, o inimigo acometerá os dis-
cípulos. Cada tempo assumirá a sua feição,
mas, debaixo de todas elas, estará o mundo
dos homens, que escraviza o Homem, lutan-
do contra o mundo de Deus, que liberta o
Homem dos homens" (Plínio Salgado).
Que pretendem os discípulos neste mundo
que lhes é adverso? Que pretendemos nós,
que trazemos marcado na fronte e na alma,
indelével, o sinal de Jesus Cristo? Por que pi-
sam nossos pés esta terra maculada, por que
vêem nossos olhos estas paisagens torvas em
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que tanta monstruosidade se nos antolha? E'
que somos peregrinos e estrangeiros. Todo o
mundo repele o que não é seu. E, mais do
que nenhuma outra a mente franciscana, nes-
tas contingências adversas, sabe, por amor do
Deus Crucificado e Perseguido até hoje, ter
serenidade na vida, paciência no sofrer, e a fé,
a fé que o Deus Todo-Poderoso não recusa
aos filhos a quem está reservado o Reino.
"Bem-aventurados os que sofrem perseguição
por amor à Justiça, porque deles é o Reino
dos céus". "Bem-aventurados sois vós, quando
vos injuriarem e perseguirem e caluniosamente
disserem de vós todo o mal, por meu respei-
to; alegrai-vos e exultai, porque grande é a
vossa recompensa no céu" (Mt 5, 11-12).
Quem, mergulhado na luz da fé, souber cal-
car aos pés tudo: a soberba do mundo, a mal-
dade dos homens, a vaidade do bem-viver,
o desprezo e a honra, o cárcere e a liberdade,
calcar a si mesmo ~ este possuirá no cora-
ção tesouros, que lhe farão esquecer tudo o
que sofre por amor ao Deus Crucificado. E
terá só uma palavra de explicação para a sua
atitude de granito. E' a jaculatória de São Fran-
cisco: "Meu Deus e meu Tudo!"
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Oitava noite
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somos crianSjaS, precisamos regressar, "Nisi
efficiamlni sicut parvuli - Se vos hão tornar•
des como as crianças, não entrareis no Reino
dos céus· (MI 18, 3).
Meus irmãos. E' a história duma criança que
vos contarei neste último encontrot comenl:an•
do a bem~aventurança mais bela, adntoso-
mente reservada para o fim.
Maríeta nasceu em Corlnaldo, na Itália. O
pai era lavrador, a mie era analfabeta. Rezar
díàriamente as três ave-marias "para vencer as
tentações", como ensinava a mãe, "'porque,
acrescentava, o pecado nunca se deve fazer
por nada desté mundo"; encher o cântaro na
fonte, cuidar dos irmãozinhos, ser sisuda e
comportada, ajudar a mãe em tudo - foi a
vida de Marieta, naquela casa pobre. Migrando
de lugar em lugar, à procura de trabalho, an~
da Luís Goretti, o pai. S6 uma coisa era cons-
tante: a missa aos domingos, o terço à noite,
os sacramentos de dois em dois meses, todos
da familia. Ma.rieta ia ao catedsmo todos os
domingos, caminhando sempre mais de duas
horas. Com 12 anos de idade, era uma flor
aberta, trescalando inocência em todos os seus
passos, de beleza fascinanté. E na mesma ca-
sa em que morava Marieta, escondia-se a co-
bra que tentaria mordê-la de morte. Alexandre
Serenelli, de 19 anos, era moço cedo corrompi-
do por más leituras. A vista daquela flor do
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jardim de Deus, ateou-se-lhe n'alma o incên-
dio da paixão. Começou a importuná-la, amea-
çando•a de morte se contase à mãe. A crian-
ça, estremecendo apavorada diante de tal a-
meaça, calou•se e foi resistindo. Nas proximi-
dades, em Nettuno, havia um santuário de
Nossa Senhora das Graças. Iria rezar lá. Na
t~rde de 5 de julho de 1902 preparava.se pa-
ra a romaria. Alexandre vê chegada a oportu-
nidade. Sózinhos em casa, chama-a. Não sen-
do atendido, avança, agarra Marieta, arrasta-a
para a cozinha. A menina, debatendo-se, im-
plorando, cai com um gemido, apunhalada pe-
lo· moço. Mesmo caída, procura mais compor-
se do que defender-se dos golpes. Num últi-
mo arranco, ave ferida, consegue levantar-se
e fugir, cambaleando. Alexandre, seguindo-a,
crava-lhe o punhal no coração e nos pulmões,
14 punhaladas. O socorro chega tarde. A filha
morrendo-se em sangue a mãe desesperada
arranca a confissão: "Foi Alexandre. Eu não
consenti!" No hospital, frustrado todo auxílio
médico, ela pronuncia sua última palavra: "Por
amor de Jesus, eu lhe perdoo. Quero vê-lo
comigo no cêu!" Logo depois, subia à glória
o lírio banhado em sangue. A justiça puniu
o criminoso. Está hoje transformado .. Jardineiro
dos Franciscanos num burgo da Itália, ê o
maior venerador de Marieta.
Parece-nos uma história inverossímil da Ro-
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ma pagã. Entretanto, é uma história verda-
deira, quente dos nossos dias. Mais do que
verdadeira: em julho passado, o Papa Pio XII
elevou Marieta à honra dos altares, com a
pompa maravilhosa das canonizações, e o cri-
minoso penitente, chorando como criança, as-
sistiu àquela canonização inédita. Beata Maria
Goretti, rogai por nós!
Existem fatos, meus irmãos, capazes de con-
vulsionar até os corações de pedra. Que tre-
mendo clarão sobre o lodaçal deste século!
Os jornais de São Paulo e do Rio contam bem
outras histórias. Mas um lírio dentro da noite,
flamejando sangue, uma criança aureolada,
com olhar de paraíso e rosto de querubim,
vestida de branco estonteante, sobraçando a
palma e os lírios. . . Mas, então, existe uma
coisa assim? Onde está sobre a fronte da nos-
sa mocidade a marca do Espírito Santo? Em
que beco perdido vamos encontrar um olhar
assim do céu? No dia da primeira comunhão,
existem uns lampejos de brancura e perfumes
de Jesus Cristo. E depois? "E' a vida", dizem.
Mas então isto é a vida? No alimento da morte
como é que existe a vida? Então é passivei ex-
tinguir a sede de Infinito no humano coração
com a lavagem dos porcos, que o filho pró-
digo apenas cobiçava, mas que a mocidade
e os homens de hoje bebem com sofreguidão?
Guarujá, Copacabana, Quitandinha, cassinos
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pelo país, revistas com exibições que não têm
nome, vesperais e noitadas de cinema: "impró-
prio até 14 anos". Mas ninguém está com
menos. Onde estão as crianças, onde está
Marieta Goretti?
E' a grande chaga do século, a maior pús-
tula do nosso corpo social, a lepra que verru-
ma, o polvo que estrangula, a meretriz do Apo-
calipse que tripudia ébria sobre as almas. Pa-
ra que havemos de suspirar pela paz, pela
tranquilidade em nossa vida? São Francisco,
nosso pai, que em noites gélidas se revolvia
sobre espinheiros, para abafar o grito da ani-
malidade, esse foi o arauto da paz. Santo An-
tônio, escutado pelos peixes, Francisco escu-
tado pelos pássaros, foram os corações puros
que espalharam em torno de si aquela paz que
iluminava o paraíso primitivo, quando o homem
inocente ainda não era o inimigo da criação.
E os nossos santos padroeiros da juventude,
São Lllis de Tolosa e São Pascoal; e os lírios
da Ordem Seráfica, Santa Clara, Santa Inês de
Assis, Santa Rosa de Viterbo, essas é que fo-
ram almas de paz, equilibrio e serenidade, que
em qualquer homem não embrutecido desper-
tam a saudade martelante duma riqueza per-
dida. Por que havemos nós de procurar tão lon-
ge inatingíveis estrelas, se os verdadeiros bens
da vida se encontram tão próximos, na par-
te mais funda do nosso próprio coração?!
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A alegria! E aqui estamos cantando a maior
cantiga franciscana. Mas a alegria da vida é
o fruto da pureza do coração. E porque esta
tão pouco existe, toda alegria que os homens
se propinam é fabricada, só roça a superfície
dessas águas impuras, tornando-as ainda mais
lodosas. Que alegria íntima há de haver num
cordão ou baile de carnaval? O ·inferno, que é
a verdade mais terrível da nossa fé, também é
o lugar do barulho, mas no inferno não há
alegria.
No Sermão da Montanha, Jesus veio trazer-
nos uma nova felicidade, desconhecida do pa-
'ganismo até então, abrir-nos tesouros de ri-
quezas mais saciantes que os vãos prazeres da
terra. "Bem-aventurados os limpos de coração,
porque eles verão a Deus." Verão a Deus não
sómente na outra vida,' mas já aqui, porque
a natureza e o universo estão cheios de exta-
siantes belezas para os olhos claros e o cora-
ção limpo. Toda folha é um mundo, toda flor
um êxtase, todo pássaro maravilha, toda es-
trela um cântico. "Bendito sejas, meu Senhor,
por todas as tuas criaturas ... " Este é o Cân-
tico do Sol. A intensidade dessa alegria, a al-
ma pura de Francisco a sentiu e a viveu: pal-
pita toda neste Cântico das Criaturas, o hino
imortal que faz eco às parábolas do Senhor
sobre os lírios do campo, o grão de mostarda,
as aves do céu e os relâmpagos do temporal,
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na grande rapsódia cristã e franciscana da pu-
reza. Ah! meus irmãos, este gozo é bem ine-
fável como todas as coisas divinas, é bem ou-
tro do que as alegrias salobras que nós bus-
camos, duram um dia só e nos deixam na bo-
ca o amargor de todas as ilusões e o tédio de
todas as desesperanças. Eis por que todos os
primeiros discipulos de Francisco foram poetas
e mllsicos, porque descobriram na companhia
do Poverello a suspirada oportunidade de tan-
ger as notas duma alegria nova, bem mais re-
frescante e funda, jâ naquele século em que as
fontes ainda não estavam tão envenenadas ...
Ninguém nega que São Francisco é o San-
to mais estimado da terra, que, 720 anos pas-
sados desde seu trânsito, toda a terra ainda
corre atrás do perfume de suas chagas. Se pie-
dosos artistas o representam chorando aos pés
da Cruz, insinuam que é uma alma pura, que
na consideração dos sofrimentos de Jesus bus-
cou a alegria e a força de vida. A proverbial
alegria franciscana nasceu ao pé da Cruz. Es-
ta paixão de todos os Santos da nossa Ordem
pelo Crucificado é o reflexo franciscanamente
irisado desse anseio universal de libertação e
alegria pelo sofrimento. A história da alma hu-
mana, através dos séculos, tem por fio condu-
tor esta ânsia. O sonho do Paraíso Perdido, com
todo o coro da humana saudade, o cavaleiro
Parsifal das lendas germânicas, "o ignorante pu-
8.9
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ro", que após inúmeras aventuras de dor entra
na posse do santo Graal da suprema felicidade,
é o simbolo deste insofrido anelo. Se fizésse-
mos a análise psicológica de Francisco, des-
cobriríamos no sofrimento a fonte mais funda
e forte de toda a alegria franciscana. A Mensa-
gem do Sermão da Montanha - lírios do cam-
po, arrebóis esplendentes, música de pássaros,
alegrias de vida - é, em última análise, a men-
sagem do Calvário, que também é montanha.
Que sabe o mundo de hoje dessas coisas?
Lá das montanhas é que se descortinam
bem os horizontes, só à vista das alturas azu-
ladas é que a vida tem encantos e merece ser
vivida. Nossa vida cristã e franciscana, meus
irmãos, nos oferece inúmeros ensejos para es-
ta subida. Justamente por ser tão atribulada
e exaustiva é que nossa existência pode ser
franciscana, deve ser franciscana: uma exis-
tência do alto, irrompendo do azul, deixando
correr os homens com suas veleidades formi-
gando lá em baixo. E' a perspectiva do avião.
Voltamos ao avião da primeira noite. Fomos
criados por Deus para vivermos nesta visão,
não na vertigem das alturas - este é o mundo
irreal da criança pela idade -, mas na reali-
dade das alturas - este é o mundo da criança
pelo espírito, como Deus nos quer. Nada nos
prende e nos afunda tanto como os caminhos
lodacentos da sensualidade, essa morbidez e
90
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prostração psíquica, que desumaniza tanto, que
animaliza tanto e corta cerce todas as asas de
elevação. Nossa vida é tão pesada porque voa-
mos tão pouco. Rastejamos. Mas ter o coração
arejado, querer bem a todo o mundo, não ter
inveja de ninguém, um olho de criança, que
antes de olhar um objeto no chão lança dois
olhares para cima, para o Pai, sem andar por
caminhos dúbios, mas por caminhos ilumina-
dos ... Se não vos tornardes como as crian-
ças não entrareis no reino dos céus ... "
"Bem-aventurados os limpos de coração ... "
Esta limpeza já é a proximidade de Deus. E'
a perspectiva do avião: levemente, entre o céu
e a terra, por entre nuvens e brumas, olhando
sobretudo do alto as humanas variedades. Nin-
guém o empurra, ninguém o arrasta pelos ares.
Move-se pela força dos motores que ele carre-
ga dentro de si, a sua força est~ nele.
Meus irmãos. Nossa força está dentro de nós.
Todas os poderes do Cristianismo, todo o vi-
gor do Fr.anciscanismo, todas as asas para o
desprendimento da terra. Quem quiser voar,
desprenda-se. ":er n'a!ma o menos peso terres-
tre possível; ser, portanto, pobre de terra e ri-
co de altura, ao menos pelos anseios do cora-
ção. Eis a pobreza franciscana. E isto e rique-
za: voar, possuir o azul.
"Bem-aventurados os pobres de espírito .. .
Bem-aventurados os limpos de coração .. .
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Meus irmãos, no fim, encontram-se a primeira
e a nossa última bem-aventurança, abraçando
todas as outras que a estas duas podem fà-
cilmente reduzir-se. Quanto mais pobres de
amores e apegos terrenos formos, mais ricos
seremos, porque mais leves, mais vazios de
tudo, mais avião, mais passarinho, mais lírio
do campo. Não existe coisa mais bela neste
mundo do que um coração assim, levantado,
sobrepairando, sereno, impertubável, neste tris-
te mundo, coração fixo em Deus, nosso Prin-
cípio e nosso Destino.
E' isto mesmo o que vos desejo, de toda a
alma, nesta hora de despedida, um coração
levantado, um coração franciscano, um espí-
rito de avião, um espírito de passarinho, um es-
pirita de lírio, para tôda a vida e para todas as
eternidades. Amem.
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