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Psicanalise Infantil

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A Psicanálise e as Técnicas no

Atendimento Infantil

Brasília-DF.
Elaboração

Fabíola Maria de Carvalho Izaias.

Produção

Equipe Técnica de Avaliação, Revisão Linguística e Editoração


Sumário

APRESENTAÇÃO.................................................................................................................................. 5
ORGANIZAÇÃO DO CADERNO DE ESTUDOS E PESQUISA..................................................................... 6
INTRODUÇÃO.................................................................................................................................... 8
UNIDADE I
FREUD E ANNA FREUD: OS PRIMÓRDIOS DA PSICANÁLISE INFANTIL........................................................ 10

CAPÍTULO 1
FREUD E A CONSTRUÇÃO DO INFANTIL................................................................................... 11

CAPÍTULO 2
A DESCOBERTA DA SEXUALIDADE INFANTIL............................................................................... 16

CAPÍTULO 3
ESBOÇO DE UM SETTING COM CRIANÇAS: O CASO DO PEQUENO HANNS............................. 23

CAPÍTULO 4
O SETTING DE ANNA FREUD.................................................................................................... 28

UNIDADE II
OS CAMINHOS DE KLEIN E O SURGIMENTO DA ANÁLISE LÚDICA............................................................ 34

CAPÍTULO 1
KLEIN E SEU ENCONTRO COM A TEORIA PSICANALÍTICA.......................................................... 34

CAPÍTULO 2
DA EDUCAÇÃO PSICANALÍTICA À PSICANÁLISE DE CRIANÇAS................................................. 39

CAPÍTULO 3
O SETTING KLEINIANO............................................................................................................ 47

CAPÍTULO 4
O MUNDO INTERNO E SEUS DESDOBRAMENTOS...................................................................... 59

UNIDADE III
O PERCURSO DE WINNICOT E A CLÍNICA DO CUIDADO........................................................................ 79

CAPÍTULO 1
WINNICOTT E SEU ENCONTRO COM A CLÍNICA PSICANALÍTICA................................................ 79

CAPÍTULO 2
O BRINCAR NO SETTING WINNICOTTIANO................................................................................ 84

CAPÍTULO 3
INTERPRETAÇÃO NO SETTING WINNICOTTIANO........................................................................ 91

REFERÊNCIAS................................................................................................................................... 96
Apresentação

Caro aluno

A proposta editorial deste Caderno de Estudos e Pesquisa reúne elementos que se


entendem necessários para o desenvolvimento do estudo com segurança e qualidade.
Caracteriza-se pela atualidade, dinâmica e pertinência de seu conteúdo, bem como pela
interatividade e modernidade de sua estrutura formal, adequadas à metodologia da
Educação a Distância – EaD.

Pretende-se, com este material, levá-lo à reflexão e à compreensão da pluralidade


dos conhecimentos a serem oferecidos, possibilitando-lhe ampliar conceitos
específicos da área e atuar de forma competente e conscienciosa, como convém
ao profissional que busca a formação continuada para vencer os desafios que a
evolução científico-tecnológica impõe ao mundo contemporâneo.

Elaborou-se a presente publicação com a intenção de torná-la subsídio valioso, de modo


a facilitar sua caminhada na trajetória a ser percorrida tanto na vida pessoal quanto na
profissional. Utilize-a como instrumento para seu sucesso na carreira.

Conselho Editorial

5
Organização do Caderno
de Estudos e Pesquisa

Para facilitar seu estudo, os conteúdos são organizados em unidades, subdivididas em


capítulos, de forma didática, objetiva e coerente. Eles serão abordados por meio de textos
básicos, com questões para reflexão, entre outros recursos editoriais que visam tornar
sua leitura mais agradável. Ao final, serão indicadas, também, fontes de consulta para
aprofundar seus estudos com leituras e pesquisas complementares.

A seguir, apresentamos uma breve descrição dos ícones utilizados na organização dos
Cadernos de Estudos e Pesquisa.

Provocação

Textos que buscam instigar o aluno a refletir sobre determinado assunto antes
mesmo de iniciar sua leitura ou após algum trecho pertinente para o autor
conteudista.

Para refletir

Questões inseridas no decorrer do estudo a fim de que o aluno faça uma pausa e reflita
sobre o conteúdo estudado ou temas que o ajudem em seu raciocínio. É importante
que ele verifique seus conhecimentos, suas experiências e seus sentimentos. As
reflexões são o ponto de partida para a construção de suas conclusões.

Sugestão de estudo complementar

Sugestões de leituras adicionais, filmes e sites para aprofundamento do estudo,


discussões em fóruns ou encontros presenciais quando for o caso.

Atenção

Chamadas para alertar detalhes/tópicos importantes que contribuam para a


síntese/conclusão do assunto abordado.

6
Saiba mais

Informações complementares para elucidar a construção das sínteses/conclusões


sobre o assunto abordado.

Sintetizando

Trecho que busca resumir informações relevantes do conteúdo, facilitando o


entendimento pelo aluno sobre trechos mais complexos.

Para (não) finalizar

Texto integrador, ao final do módulo, que motiva o aluno a continuar a aprendizagem


ou estimula ponderações complementares sobre o módulo estudado.

7
Introdução
O objetivo da presente disciplina é apresentar, de forma sistemática, a construção do
setting psicanalítico com crianças, descrevendo o surgimento das principais linhas
de atuação da psicanálise infantil no intuito de revelar as respostas que os primeiros
analistas de crianças foram dando aos desafios com que se deparavam na escuta clínica.

Trata-se, portanto, de acompanhar os desenvolvimentos técnicos da psicanálise


infantil de forma contextualizada e comparativa, relacionando-os às descobertas que
os ensejaram e mostrando suas posições dentro do próprio percurso do movimento
psicanalítico.

Para tanto, percorreremos os caminhos técnicos trilhados pelos principais criadores


da psicanálise infantil.

Na Unidade I, trataremos do percurso freudiano. Apesar de Freud não ter atendido


crianças, não é possível começar uma caminhada que pretende discutir a técnica da
psicanálise infantil sem partir de uma compreensão de como o conceito de infantil vai
sendo composto pela psicanálise, de como Freud alcança um entendimento sobre a
sexualidade infantil e sobre as teorias sexuais infantis, e de como esse entendimento
servirá de base para a interpretação dos sintomas dos pequenos pacientes.

Ainda nessa unidade, baseados na discussão sobre as incursões freudianas,


adentraremos no trabalho de Anna Freud, rerdeira intelectual de Freud, e com Melanie
Klein, uma das pioneiras da psicanálise com crianças propriamente dita. Seus embates
teóricos com Klein estabelecem os principais pontos de problematização da técnica
da psicanálise infantil, ditando os rumos e desdobramentos não só da psicanálise
infantil, mas do próprio movimento psicanalítico.

Na Unidade II, abordaremos o percurso Kleiniano. Klein foi a criadora da análise


lúdica, o que levou ao desenvolvimento da psicanálise com crianças no formato atual.
Ela inaugurou uma nova corrente na psicanálise – a Escola Kleiniana – e angariou
muitos seguidores, especialmente na Inglaterra. As discussões técnicas empreendidas
por Klein vêm a acrescer inclusive as concepções acerca de qual objetivo o analista de
crianças deve perseguir em sua clínica.

Na Unidade III, encerramos nosso estudo com Winnicott. Criador da clínica do


cuidado, Winnicott traz importantes contribuições técnicas para a clínica psicanalítica
com crianças. Retomando algumas das polêmicas travadas entre Anna Freud e Melanie

8
Klein, ele tenta compor um diálogo entre esses dois settings, propondo soluções
originais e decorrentes de suas vivencias práticas e construções teóricas.

Com esse arcabouço, acreditamos oferecer a vocês, interessados na labuta da


psicanálise com crianças, uma base para se situarem nesse fazer que tanto contribuiu
para o entendimento da psiqué infantil. A formação de um analista infantil demanda
muito mais, obviamente. Ela carece de estudos mais aprofundados, de um percurso
de análise pessoal e de uma prática supervisionada. Porém, as leituras aqui propostas
podem ajudá-los a planejar seus caminhos de formação, a identificar afinidades
teóricas e técnicas e a ter uma visão mais global do que é e do que faz a psicanálise
com crianças.

Desejamos a todos um ótimo proveito deste material.

Objetivos
Ao final da Disciplina, vocês devem ter acumulado um entendimento sobre:

»» Como a psicanálise infantil foi se configurando como uma possibilidade


de intervenção terapêutica desde as contribuições de Sigmund Freud.

»» Quais as propostas técnicas de Anna Freud para a psicanálise infantil.

»» Quais as propostas técnicas de Melanie Klein, em que elas divergiam das


de Anna Freud, e em quais novas contribuições teóricas elas se baseavam.

»» Quais as propostas técnicas de Winnicot e como ele repensa o setting


analítico.

9
FREUD E ANNA FREUD:
OS PRIMÓRDIOS DA UNIDADE I
PSICANÁLISE INFANTIL

Neste módulo, discutiremos como a infância se estabelece como um dos objetos de


estudo primordiais dentro da pesquisa psicanalítica e a maneira que ela vai sendo
reconstruída nesse discurso e ressignificada em um novo conceito: o conceito do
infantil. Para isso, abordaremos as teorizações de Freud sobre o tema e como elas
constroem o caminho para o surgimento da psicanálise infantil.

Dentro dessa discussão, que inclui a retomada da descoberta por Freud da sexualidade
infantil, assim como suas elaborações acerca das teorias sexuais infantis, visitaremos o
caso do Pequeno Hanns como caso paradigmático que deixa antever a forma que Freud
pensava, então, a psicanálise com crianças.

Por fim, nos debruçaremos sobre as contribuições técnicas de Anna Freud,


relacionando-as com o contexto de formação desta analista e com a construção do
próprio fazer da psicanálise infantil.

Objetivos
Vocês devem chegar ao final da Unidade compreendendo:

»» O que significa o conceito de infantil na psicanálise.

»» Quais as principais contribuições de Freud para o entendimento da


sexualidade infantil.

»» Como as descobertas freudianas sobre a infância são utilizadas no caso


do pequeno Hanns.

»» Como foi o percurso de formação de Anna Freud enquanto analista de


crianças.

»» O que caracteriza o setting psicanalítico de Anna Freud – transferência


e interpretação.

10
CAPÍTULO 1
Freud e a construção do infantil

A infância, enquanto fase importante para o entendimento da constituição da


subjetividade, sempre esteve presente, desde o início da invenção da psicanálise. Já
ali, nos primórdios, Freud começou a se deparar com esse momento da formação
da personalidade na medida em que ia se aprofundando no discurso das histéricas
e deixando que elas falassem mais e mais. O que ia surgindo nesse discurso eram
relatos de cenas infantis que apareciam atreladas à etiologia dos sintomas neuróticos.
E Freud, pesquisador atento, passa a perseguir esses relatos com atenção. Segundo
Zavaroni, Viana e Celes (2007, p.66), a feição assumida pelos primeiros movimentos
de pesquisa freudianos sobre a infância será a de uma busca pela realidade histórica
vivida pelas pacientes nesse período da vida, uma busca pelas lembranças fidedignas
das experiências esquecidas:

Freud começa pelos acontecimentos da infância e sua importância na


constituição dos sintomas da histeria. Persegue cada fato da infância de
seus pacientes na busca da experiência cuja lembrança ficou recalcada
e que, em sua efetividade, tornou-se traumática e originou os sintomas.
[...] De certo modo, buscava o resgate mnêmico o mais próximo possível
da experiência vivida.

No entanto, as buscas de Freud têm como meio a fala, o relato de seus pacientes. E
o ato de falar não é só ferramenta de pesquisa. É, antes de tudo, tratamento do
sofrimento psíquico. Assim, a infância que vai se compondo dessa experiência a qual
Freud se entrega já não tem mais como ficar circunscrita ao efetivamente vivido, pois
que ela é uma infância contada. É a infância das lembranças lacunares, marcada pelos
esquecimentos. Esse será o ponto fundamental para que a psicanálise inaugure uma
nova forma de concepção da infância. Aquela que aqui denominamos de Infantil e que
será a base para a desenvolvimento futuro da psicanálise com crianças.

Para que possamos entender como esse movimento de apropriação do conceito de


infância ocorre, vamos acompanhar aqui um pouco do percurso que Freud trilhou no
caminho para a invenção da Psicanálise. Isso nos ajudará a compreender o contorno
que a noção de infantil vai assumindo no discurso freudiano – discurso que, como
acabamos de afirmar, será a base da psicanálise infantil.

Lembremos que, em 1882, o ainda jovem Sigmund Freud – homem que receberia da
história a alcunha de pai da psicanálise – principia sua atuação como médico assistente

11
UNIDADE I │FREUD E ANNA FREUD: OS PRIMÓRDIOS DA PSICANÁLISE INFANTIL

no Hospital Geral de Viena. Ali começa o caminho que resultará na construção de


uma ciência do Inconsciente, calcada, inicialmente, na observação das manifestações
neuróticas.

Freud, na sua atuação cotidiana, cada vez mais, vai direcionando seus estudos para
pesquisas sobre as doenças nervosas. Esse direcionamento cria nele a necessidade
de se situar no campo da clínica dos transtornos mentais e de procurar soluções de
tratamento diferentes das que eram até então oferecidas na Viena da época. Isso acaba
por levá-lo a Paris, onde as doenças nervosas estavam sendo pesquisadas de forma
mais sistemática. Em 1885, tornou-se aluno da Salpêtrière – aluno de Charcot.

Situe-se na História:
Charcot (1825-1893) foi um eminente neurologista francês que atuou e lecionou
na Salpetrière. Levou para o estudo da histeria o método de observação e
descrição metódica que era aplicado na neurologia. Fazendo uso da hipnose – o
que lhe custava um olhar desconfiado e desaprovador da comunidade científica
– defendeu a existência da histeria masculina e a presença de uma experiência
traumática como base do desencadear das crises histéricas. Suas descobertas
foram um dos pontos de partida fundamentais para o desenvolvimento
psicanálise.

Voltando a Viena, em 1886, e tendo observado as experiências de hipnose que Charcot


realizava com as histéricas – introduzindo ou retirando sintomas por meio da sugestão
- Freud se instaura como especialista em doenças nervosas. E, apesar da resistência
imposta pelos meios acadêmicos, ele começa a fazer uso da sugestão hipnótica. Assim,
a hipnose se torna o principal instrumento utilizado por Freud nos primeiros anos de
sua atividade como médico.

O uso da sugestão hipnótica começa, no entanto, a mostrar limitações. Apesar de


conseguir, por meio dela, a suspensão dos sintomas dos pacientes, tais sintomas
acabavam por reaparecer. Freud, antes mesmo de sua ida para Salpêtrière, havia
conhecido Josef Breuer, um dos médicos de família mais conceituados da Viena de
então. Breuer contara-lhe sobre um caso de histeria que havia atendido entre 1880
e 1882 (a paciente recebeu o nome fictício de Anna O.). Fortuitamente, o médico
percebera que conseguia aliviar os sintomas da paciente ao levá-la a relatar, em estado
de hipnose, o momento de surgimento dos mesmos.

12
FREUD E ANNA FREUD: OS PRIMÓRDIOS DA PSICANÁLISE INFANTIL│ UNIDADE I

Situe-se na História:
Breuer (1842-1925), médico e fisiologista, assim como Freud, era judeu e, por uma
proximidade com o pai de Freud, ajudou o jovem médico a se estabelecer como
clínico em Viena. A sua experiência no atendimento de Bertha – que depois
ficou conhecida como Anna O., uma das histéricas mais famosas da história da
psicanálise – foi descrita a Freud e se constituíu como um dos principais motivos
para que Freud ousasse novas técnicas para o tratamento das neuroses.

E é neste ponto – em que é dada a fala para os pacientes – que o Infantil começa
a aparecer para a escuta de Freud. Na origem dos sintomas, encontravam-se cenas
traumáticas. Essas cenas eram marcadas por conflitos mentais que haviam levado os
pacientes a não liberar emoções ligadas a tais acontecimentos. Essas emoções haviam
sido tão fortemente suprimidas que os pacientes não eram capazes de recordar, em seu
estado consciente, dos fatos aos quais elas estavam vinculadas. As cenas, juntamente
com os afetos que as acompanhavam, tornavam-se acessíveis por meio de hipnose.
Quanto mais se avançava na fala dos pacientes, mais se chegava a cenas ocorridas na
infância.

Freud continuou progredindo em suas observações, e novas questões foram surgindo


de sua prática. Algumas delas diziam respeito ao próprio método. Nem todos os
pacientes podiam ser hipnotizados. Além do mais, a transferência influenciava
bastante no processo. Se ela fosse positiva, o método da hipnose tornava-se viável,
mas, se assumisse feições negativas, o paciente não se deixava hipnotizar. Isso leva
Freud a buscar outra forma de acesso às lembranças de seus pacientes. Ele caminha
em direção à Associação Livre – técnica fundamental da psicanálise – e à descoberta
da resistência –fenômeno que até então vinha sendo camuflado pela antiga técnica.

13
UNIDADE I │FREUD E ANNA FREUD: OS PRIMÓRDIOS DA PSICANÁLISE INFANTIL

Figura 1. Uma lição com o doutor Charcot na Salpetriére - Pierre André Brouillet, 1887.

Fonte: <http://www2.uol.com.br/vivermente/noticias/a_histeria_em_cena.html>

Foi ao visualizar mais diretamente esse fenômeno que Freud pôde ter noção do papel e
da importância da resistência no tratamento das neuroses. Foi também nesse momento
que foi possível elaborar com maior clareza uma explicação do mecanismo envolvido
na formação dos sintomas. Surge, assim, a Teoria do Recalque (traduzida na Edição
Standard Brasileira como Teoria da Repressão).

A infância que vai surgir, nesse momento, sob o olhar atento de Freud é uma infância
que habita o conteúdo recalcado. É uma infância que precisa ser reconstruída a partir
da associação livre do paciente, e interpretada pelo analista, juntos na luta por vencer
as resistências psíquicas. Não é uma infância de fatos, é uma infância que emerge na
composição das fantasias do paciente, que integra sua realidade psíquica. O que passa
a interessar não é a reprodução fiel de lembranças, mas a forma como elas ficaram
inscritas no inconsciente do sujeito.

A infância da psicanálise freudiana é a infância das cenas traumáticas e das cenas


constitutivas da subjetividade do paciente. É aí que ela deixa de ser infância e passa
a ser o infantil na psicanálise. Pois a infância é um conceito que integra o campo
da realidade material – ela é cronologia. Já o infantil, integra o campo da realidade
psíquica – ele é fantasia. Fantasia que teve na argamassa de sua construção marcas
mnêmicas recalcadas – sons, cheiros, imagens, sensações táteis do início da infância.
Retornaremos mais à frente a esse ponto.

Retomando, percebe-se que o novo entendimento que se inaugura com o abandono


da hipnose sedimenta algumas ideias que já vinham sendo gestadas, cruciais para
o nascimento da psicanálise propriamente dita e para o entendimento de como o

14
FREUD E ANNA FREUD: OS PRIMÓRDIOS DA PSICANÁLISE INFANTIL│ UNIDADE I

infantil aparecerá nela. Zavaroni, Viana e Celes (2007) consideram, inclusive, que o
infantil assumiria uma posição central no percurso das transformações metodológicas
pelas quais passou a técnica freudiana nesses primórdios. Vejamos que ideias foram
sedimentadas com essas mudanças, pois elas nos ajudarão a entender o infantil que daí
vai surgindo:

1. Freud vai, enfim, teorizar o inconsciente como uma instância psíquica, ou


seja, como um “lugar” psíquico, que traz a marca de um funcionamento
próprio, diferente do da consciência – o Inconsciente.

2. Freud é levado a se deparar ainda mais com o fenômeno da transferência


(que, em determinado momento do processo analítico, constitui-se
como uma das principais formas de resistência à análise). O deparar-se
com a transferência é, também, um deparar-se com o sexual na fala dos
neuróticos.

Sobre esse segundo elemento – o deparar-se de Freud com a etiologia sexual das
neuroses – tratá-lo-emos de forma mais atenta, pois ele é um dos principais pontos de
constituição da psicanálise, e fundamental para que compreendamos a forma como esse
saber abarcará o infantil em seu discurso já ali, bem no momento de seu surgimento.

15
CAPÍTULO 2
A descoberta da sexualidade Infantil

Na medida em que avançava em suas observações clínicas, Freud começava a perceber


uma constância temática nos relatos que emergiam da fala de seus pacientes. A excitação
emocional que estava na base do desencadear dos sintomas neuróticos não era genérica,
ela acabava por se mostrar sempre de natureza sexual. Freud não esperava por essa
constatação, e ela, de fato, tornou-se uma das principais desencadeadoras de rejeição
às teorias psicanalíticas, constituindo-se em ponto principal do rompimento de Freud
não apenas com Breuer, mas com nomes que viriam a desempenhar papel importante
na difusão das ideias psicanalíticas (como Adler e Jung).

Freud, no entanto, não abriu mão de relatar aquilo que escutava na fala dos histéricos.
E, sistematicamente, passou a investigar também a vida sexual de outros pacientes
neuróticos, que chegavam cada vez em maior número a sua clínica, percebendo também
neles a presença de fatores sexuais na emergência dos sintomas.

Freud trazia consigo a influência da teoria do trauma, postulada por Charcot, e, por
meio da fala dos histéricos, foi levado a concluir que o trauma que se encontrava na
base dos sintomas neuróticos era de origem sexual. A cena da sedução por um adulto
encontrava-se presente com grande frequência na fala de seus pacientes. Nas histéricas,
comumente era o pai quem ocupava o papel de sedutor. A escuta desses relatos levou
Freud a formular a Teoria da Sedução como explicação etiológica das neuroses. mas o
percurso do criador da psicanálise estava só no início.

A concepção da etiologia sexual das neuroses já era, em si, bastante virulenta. Porém,
aquilo que veio a se descortinar em seguida era bem mais. O que as observações clínicas
de Freud acabaram por desvelar vem a ser repelido para o discurso sustentado na época
sobre a sexualidade humana.

Persistindo em suas pesquisas – que, além de serem calcadas sobre a escuta de seus
pacientes, passam também a colher material de um intenso processo de autoanálise
ao qual Freud se entrega –, o pai da psicanálise afirmará, em carta a Fliess, em 21 de
setembro de 1897: “Não acredito mais em minha neurótica [teoria das neuroses]”.

Assim é que, na carta citada acima, Freud explica a Fliess que já não era possível
sustentar a teoria da sedução. Vários motivos o levaram a essa conclusão. Entre eles:

a. O abandono do processo de análise, por pacientes que Freud acreditava


estar compreendendo.

16
FREUD E ANNA FREUD: OS PRIMÓRDIOS DA PSICANÁLISE INFANTIL│ UNIDADE I

b. A surpresa diante do fato de que, segundo relatos que surgiam na fala


dos histéricos, todos os pais (incluindo o dele) teriam de ser apontados
como pervertidos – o que faria da perversão algo muito mais comum que
a neurose.

c. Os elementos de sua história, que vinham se revelando a ele por meio da


autoanálise.

d. E, importantíssima conclusão, “a descoberta comprovada de que, no


inconsciente, não há indicações da realidade, de modo que não se
consegue distinguir entre a verdade e a ficção que é catexizada com o
afeto. (Assim, permanecia aberta a possibilidade de que a fantasia sexual
tivesse invariavelmente os pais como tema.)” (FREUD, 1950/1990,
p.358).

Catexia é o termo usado em psicanálise para indicar o investimento de


determinada quota de energia psíquica em um representante ideacional.

A chegada a esse resultado deixou Freud inicialmente desestabilizado. Levou-o mesmo


a pensar em abandonar todo o trabalho que vinha realizando. Passado o choque
inicial, no entanto, em carta de 15 de outubro de 1897, ele finalmente expõe a ideia
que sustenta três concepções fundantes do discurso psicanalítico: a existência de uma
realidade psíquica, o Complexo de Édipo e a sexualidade infantil. Eis a afirmação que
Freud (1950/1990, p. 365) entrega a Fliess:

Um único pensamento de valor genérico revelou-se a mim. Verifiquei,


também no meu caso, a paixão pela mãe e o ciúme do pai, e agora
considero isso como um evento universal do início da infância [...].
Sendo assim, pode-se entender a força avassaladora de Oedipus Rex
[...], a lenda grega capta uma compulsão que toda pessoa reconhece
porque sente sua presença dentro de si mesma. Cada pessoa da plateia
já foi, um dia, em germe ou na fantasia, exatamente um Édipo como
esse, e cada qual recua, horrorizada, diante da realização de sonho aqui
transposta para a realidade, com toda a carga de recalcamento que
separa seu estado infantil do seu estado atual.

Portanto, Freud havia esbarrado na descoberta que mais causaria indignação e geraria
rejeição às ideias psicanalíticas. Ele percebera que os sintomas neuróticos não remetiam
a experiências sexuais passivas ocorridas nos primeiros anos da infância. Na verdade,

17
UNIDADE I │FREUD E ANNA FREUD: OS PRIMÓRDIOS DA PSICANÁLISE INFANTIL

compunham-se a partir de fantasias, o que demonstrava a existência de uma realidade


psíquica tão importante para a vida mental desses sujeitos quanto a realidade material.

Assim, clarificou-se diante dele o fato de que essas fantasias encobriam, na verdade, uma
atividade auto-erótica que tinha como palco os primeiros anos da infância, desvelando-
se, assim, a vida sexual das crianças – que, até então, era tida como inexistente. Freud
pode, enfim, declarar: a sexualidade começa com o início da vida.

Precisamos ressaltar, no entanto, que a teoria da sedução não é de todo abandonada


por Freud, ele a retomará posteriormente, integrando-a melhor ao corpo teórico que
será construído nos anos seguintes. No ponto de equilíbrio que encontra, a criança
comparece com sua sexualidade ativa, polimorfa, livre , mas os cuidados recebidos
nos primeiros anos da infância também desempenhariam um papel fundamental,
estimulando o surgimento das fantasias sexuais infantis.

Haveria, portanto, uma inoculação da sexualidade adulta, através dos cuidados e


da afeição bem própria que a mãe direcionaria a criança. Volta a figura da sedução
materna/paterna pensada sob outro formato, pensada como base para as fantasias
sexuais infantis, que também teriam seu estímulo em fatores constitucionais. Sobre
o desenvolvimento desse aspecto, no pensamento freudiano, recomendamos a leitura
do primeiro capítulo de Freud: o movimento de um pensamento, de Luiz Roberto
Monzani.

Assim é que, em 1905, Freud empreendera esforços para desvendar os mecanismos


da sexualidade humana, em Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade, dedicando
parte considerável desse estudo à sexualidade infantil – que considera como fazendo
parte da pré-história do sujeito, e peça fundamental para entender os desenvolvimentos
futuros.

Nessa obra, Freud inicia abordando as perversões, por considerar que os casos
divergentes da norma poderiam fornecer pistas para um mais amplo entendimento do
funcionamento sexual humano. Assim é que a pulsão sexual passa a ser observada a
partir de três aspectos: a fonte (ou seja, o órgão no qual se origina o processo excitatório
que exige satisfação), o objeto sexual (ou seja, a pessoa para quem o sujeito direciona
sua atração sexual), e o alvo sexual (a ação para a qual a pulsão impele). Freud aponta
que sua escuta clínica detectou grande número de desvios no objeto sexual e no alvo
sexual, assim como detectou a possibilidade de que qualquer órgão do corpo pudesse vir
a se constituir como zona erógena. Ele passa a examinar essas hipóteses nas perversões,
chegando a conclusões importantes, como a de que a experiência cotidiana mostrava
que:

18
FREUD E ANNA FREUD: OS PRIMÓRDIOS DA PSICANÁLISE INFANTIL│ UNIDADE I

[...] a maioria dessas transgressões, no mínimo as menos graves dentre


elas, são um componente que raramente falta na vida sexual das pessoas
sadias e que é por elas julgado como qualquer outra intimidade.[...] Em
nenhuma pessoa sadia falta algum acréscimo ao alvo sexual normal
que se possa chamar de perverso, e essa universalidade basta, por si
só, para mostrar quão imprópria é a utilização reprobatória da palavra
perversão. Freud (1905/1990, p.150)

Assim, Freud conclui, também, que a pulsão sexual não se encontra invariavelmente
ligada a um objeto específico, eis o porquê observar-se-ia flexibilidade na escolha do
objeto sexual, influenciada tanto por fatores constitucionais como pela história de vida
do sujeito.

Outra conclusão fundamental é a de que a pulsão sexual sofre a influência do recalque,


e os moldes que esse recalque assumirá determinarão as formas de expressão dessa
pulsão. A observação desse fato leva ainda à conclusão de que a pulsão sexual
representaria a junção de diversas pulsões parciais – pulsões essas que seriam
melhor percebidas nas perversões. Mas, não só elas estariam na base da formação
dos sintomas neuróticos, tendo como origem os mais diversos órgãos do corpo.

As observações de Freud sobre a vida sexual dos perversos e dos neuróticos – e o que
elas possuíam em comum com a vida sexual de indivíduos na normalidade – levam-no
à percepção de que manifestações sexuais semelhantes podiam ser observadas também
na primeira infância, o que o conduz a uma investigação sobre a vida sexual infantil.

O primeiro ponto ressaltado por Freud (1905/1990, P.165) nessa investigação é o de


que parece certo que “o recém-nascido traz consigo germes de moções sexuais que
continuam a se desenvolver por algum tempo, mas depois sofrem uma supressão
progressiva que pode ser rompida por avanços regulares do desenvolvimento sexual,
ou suspensa pelas peculiaridades individuais”.

Assim é que Freud (1905/1990, p.166) introduz o que chama de período de latência
sexual da infância, destacando que: “Durante esse período de latência total ou apenas
parcial erigem-se as forças anímicas que, mais tarde, surgirão como entraves no caminho
da pulsão sexual e estreitarão seu curso à maneira de diques (o asco, o sentimento
de vergonha, as exigências dos ideais estéticos e morais).” Para Freud, essas forças
anímicas seriam resultantes de processos orgânicos, vinculados à hereditariedade.
Seria o que Freud denomina por constituição. A educação entraria aí como reforçadora
dessa constituição já presente desde a origem do sujeito.

19
UNIDADE I │FREUD E ANNA FREUD: OS PRIMÓRDIOS DA PSICANÁLISE INFANTIL

Essas forças anímicas tanto atuarão no Recalcamento das pulsões sexuais, como
também gerarão o efeito de desviar as forças pulsionais sexuais de suas metas sexuais
para outras metas mais aceitas socialmente, processo que Freud denominará de
Sublimação. A sublimação estaria na origem de todas as realizações culturais obtidas
pelos homens.

Atenção
Recalque ou Repressão: os termos se referem ao conceito freudiano de
Verdrängung. Segundo Hanns, o “termo no alemão coloquial implica ‘empurrar
de lado’ (livrar-se de) um incômodo, o qual permanece próximo ao sujeito,
pressionando pela volta. O foco do termo ‘reprimir’ em português é sobre
o esmagamento ou supressão de uma manifestação ameaçadora. O termo
germânico enfatiza o afastamento de incômodo” (Hanns, 1996, p.359). Portanto,
o termo português repressão leva a certa perda das conotações que podem ser
assumidas pelo termo Verdrängung.

Por outro lado, o termo recalque caiu em desuso no português. “Na prática dos
falantes do português atual, ‘recalque’ é quase como se fosse um termo cunhado
exclusivamente para o uso da psicanálise” (Hanns, 1996, p.358). Apesar de nossa
preferência pelo uso da tradução recalque, manteremos o termo adotado a cada
vez na Edição Standard Brasileira, pois foi a tradução que ecolhemos para ser a
base deste guia de estudos, com o intuito de facilitar o acesso dos alunos.

O recalcamento e a sublimação, no entanto, nunca ocorrem de forma absoluta. É


possível observar uma ou outra atividade sexual que não foi abarcada por essas
vicissitudes e que continua a se manifestar durante todo o período de latência. É para
essas manifestações da sexualidade infantil que Freud voltará seu olhar, na busca de
maior entendimento do desenvolvimento sexual.

Nessa busca, ele distingue algumas características essenciais da sexualidade infantil:

a. As pulsões sexuais surgem, inicialmente, vinculadas à satisfação de


funções somáticas vitais, das quais, posteriormente, se apartarão.

b. Tomam, primeiramente, como objeto, uma parte do próprio corpo do


sujeito, sendo, portanto, autoeróticas.

c. O alvo sexual de uma pulsão será definido pela zona erógena onde essa
pulsão se originou (lembrando que Freud define zona erógena como
sendo uma parte da pele ou da mucosa que, ao receber certos tipos de

20
FREUD E ANNA FREUD: OS PRIMÓRDIOS DA PSICANÁLISE INFANTIL│ UNIDADE I

estímulos, gera uma sensação prazerosa de qualidade sexual). Existem


zonas erógenas predestinadas, mas a histeria mostrou que qualquer zona
do corpo pode vir a assumir esse papel.

Logo, para Freud, a natureza teria se encarregado de vincular a satisfação de


necessidades fisiológicas às zonas erógenas, permitindo que a criança, ao buscar a
satisfação de suas necessidades, conhecesse, concomitantemente, o prazer sexual.
Sendo assim, as pulsões sexuais surgiriam, inicialmente, vinculadas a satisfação de
uma necessidade fisiológica, só depois se apartando dela.

Assim é que, o alvo sexual da pulsão infantil seria buscar repetir aquela satisfação
experimentada nas origens por meio da estimulação apropriada das zonas erógenas.
Em geral, uma das zonas pode adquirir prevalência sobre as outras. O que define essa
prevalência será tanto fatores constitucionais como experiências vividas. Fred aborda
três zonas que são privilegiadas na primeira fase da infância: a zona oral (lábios e boca),
a zona anal e a zona genital.

A zona oral se desenvolve com a experiência da amamentação. No ato de se alimentar


o bebê estimula os lábios e a boca, depois passa a tentar reproduzir essa experiência de
satisfação, trocando o seio por outras partes do corpo. O propósito da nutrição já não é
mais o alvo, e sim uma satisfação sexual. Portanto, o chuchar é uma das manisfestações
da atividade autoerótica (masturbatória) na infância.

A zona anal é despertada pelos distúrbios intestinais tão frequentes na infância, que
têm como consequência a excitação dessa zona erógena. Posteriormente, na fase do
controle dos esfíncters, pode-se observar uma atividade autoerótica quando a criança
retém as fezes, decidindo a hora de evacuar. Freud (1905/1950, p.174) assim relata esta
atividade masturbatória:

As crianças que tiram proveito da estimulabilidade erógena da zona


anal denunciam-se por reterem as fezes até que sua acumulação
provoca violentas contrações musculares e, na passagem pelo ânus,
pode exercer uma estimulação intensa na mucosa. Com isso, hão de
produzir-se sensações de volúpia ao lado das sensações dolorosas.

Para Freud, a zona genital, apesar de futuramente vir a constituir uma primazia nas
atividades sexuais, não tem um papel principal no início das atividades sexuais infantis.
Ela adquire seu espaço devido à posição anatômica, à micção, por excitações acidentais
e pelos cuidados com a limpeza do corpo do bebê realizados pelos adultos. Despertadas
as sensações prazerosas que essas partes são capazes de produzir, busca-se a repetição

21
UNIDADE I │FREUD E ANNA FREUD: OS PRIMÓRDIOS DA PSICANÁLISE INFANTIL

desse prazer a partir da fricção ou pressão das genitálias, estabelecendo-se a atividade


autoerótica dessa zona já no período da lactância.

Essas são as manifestações ligadas à primeira fase masturbatória: a do período de


lactância. Existiriam, no entanto, mais duas fases. A segunda pertenceria a uma breve
florescência da atividade sexual (por volta do quarto ano de vida). Essa retomada
da masturbação da lactância ocorre especialmente em torno da zona genital e seria
ocasionada tanto por fatores internos como por fatores externos (sedução). Já a terceira
fase corresponderia ao onanismo da puberdade.

Assim é que Freud (1905, p. 118) define a sexualidade infantil como perversa e
polimorfa, porque está estruturada sobre a satisfação de pulsões parciais. Essa
concepção o leva a compor a ideia de um desenvolvimento sexual que se inicia com a
configuração de pulsões independentes entre si e autoeróticas, e que termina na vida
sexual adulta, quando a obtenção de prazer se põe a serviço da função reprodutora, e
as pulsões parciais se colocam sob o primado de uma única zona erógena, formando
uma organização sólida na busca da consecução do alvo sexual em um objeto sexual
externo ao corpo do sujeito.

Deste modo, pelas crianças, Freud elabora teorias sexuais infantis, que acompanham
o desenvolvimento sexual infantil, fazendo eco a cada uma de suas fases. Junto a esse
processo se desenrola também o Complexo de Édipo, que se inicia com a escolha da mãe
como objeto (ainda na fase das pulsões parciais) e deve se encerrar com o abandono
deste objeto primeiro com a entrada no período de latência, até que seja retomado na
puberdade.

Na continuidade dos Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade, Freud abordará as


fases do desenvolvimento sexual infantil, assim como as principais teorias sexuais
infantis. Consideramos interessante apresentar esse conteúdo de forma vinculada ao
único escrito de Freud sobre uma análise com criança: O Caso do Pequeno Hans (ou
Análise de uma Fobia em uma Criança de Cinco Anos). Sigamos em frente.

22
CAPÍTULO 3
Esboço de um setting com crianças: o
caso do Pequeno Hanns

Até o presnte momento, pelas considerações realizadas, já é possível perceber a


importância que o entendimento do infantil assume para toda a estruturação teórica
da psicanálise, assim como para seu fazer clínico. Porém, apesar de todo o seu interesse
pela infância, as observações de Freud e seu entendimento sobre o infantil foram
construídos, em grande parte, desde os relatos de seus pacientes adultos. Apenas um
de seus escritos foi baseado na condução de uma análise com criança. Inclusive, Freud
relata que um dos pontos que torna esse estudo de caso tão importante no percurso
das elaborações teóricas da psicanálise é o fato de representar a observação direta de
estruturas que, até então, só eram vislumbradas a partir das construções em análise de
pacientes adultos.

A Análise de Uma Fobia Em Um Menino de Cinco Anos é um estudo de caso escrito por
Freud, em 1909, que se tornou paradigma para o que posteriormente veio a se tornar
a psicanálise infantil. O caso clínico não foi diretamente conduzido por Freud, mas
pelo pai da criança, sob a supervisão de Freud. Freud chegou a ver o pequeno paciente,
denominado de Hans, apenas uma vez.

Interessante perceber que, no início desse caso, Freud (1909) levanta as principais
questões metodológicas que se tornarão alvo de disputas teóricas ferrenhas no período
de criação da psicanálise infantil. Ele afirma que, se a condução do tratamento não
tivesse sido assumida pelo pai de Hans, não haveria a possibilidade de ter levado a
análise à frente, pois as “dificuldades técnicas no caminho da aplicação da psicanálise
numa criança tão jovem como essa teriam sido incontornáveis”.

De que dificuldades técnicas Freud estaria falando? A dificuldade do estabelecimento


da transferência, a dificuldade de verbalização (associação livre) por parte do paciente
e a de interpretação por parte do analista dos conteúdos apresentados pelo infante.
Para Freud (1909), essas dificuldades teriam sido vencidas pelo fato de a análise ter
sido conduzida pelo pai da criança, pois, de outra feita, o método psicanalítico seria
impróprio para tal utilização. Essas concepções, como dissemos, serão pontos de partida
para a discussão sobre a possibilidade de se realizarem análises com crianças pequenas,
e constituirão temas de debate e de discordâncias entre Anna Freud e Melanie Klein.

23
UNIDADE I │FREUD E ANNA FREUD: OS PRIMÓRDIOS DA PSICANÁLISE INFANTIL

Primeiramente, precisamos ressaltar que as elucubrações de Hans estão diretamente


ligadas à elaboração das teorias sexuais infantis, por isso, apresentaremos as principais
delas (abordadas por Freud nos Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade):

1. As crianças acreditam que todas as pessoas possuem um pênis, e, quando


descobrem que há pessoas que não o possuem, haverá um duplo caminho.
Os meninos imaginam que o pênis foi perdido (castração). E, quando o
recalque começa a incidir sobre desejos incestuosos do Édipo, eles temem
ser castrados pelo pai. Esse é o Complexo de Castração, que terá função
importantíssima na teoria psicanalítica.

2. As crianças, ao tentarem explicar, responder a pergunta sobre de onde


vêm os bebês, desenvolvem a teoria de que os filhos chegam quando se
come determinada coisa e nascem pelo intestino, como na eliminação de
fezes.

3. As crianças que, porventura, presenciem relações sexuais entre os pais


tenderiam a interpretá-las em um sentido sádico, como se fora um ato
de violência do qual a mãe sairia machucada. Trariam, portanto, uma
concepção sádica da relação sexual, como sevícia ou subjulgação.

As teorias sexuais infantis refletem, por sua vez, o processo de constituição sexual
infantil, que ocorreria em etapas: as chamadas fases da organização sexual. Vamos aqui
tratar especificamente das fases pré-genitais (nas quais as zonas genitais ainda não
teríam assumido a preponderância). Para Freud, essas fases seriam as seguintes:

a. Fase Oral – a atividade sexual ainda não se separou da nutrição. Assim, o


objeto da nutrição é também o objeto sexual (seio) e o alvo sexual consiste
em incorporar o objeto (esse seria, inclusive, o modelo para o importante
processo psíquico da identificação).

b. Fase Sádico-anal – aqui vemos a divisão do alvo sexual da pulsão em


duas correntes: ativa e passiva. A ativa seria a expressão de uma pulsão
de dominação, tendo como fonte e objeto a musculatura do corpo. Do
lado passivo, teríamos a mucosa erógena do intestino. Os objetos dessas
duas aspirações opostas não coincidem, portanto. Nessa fase já é possível
observar a polaridade sexual e a escolha de um objeto alheio ao corpo do
sujeito.

Por fim, Freud (1905/1990, p.120) toca em mais um ponto importantíssimo do


desenvolvimento sexual infantil: a escolha de objeto. Esta ocorrerá em dois tempos,

24
FREUD E ANNA FREUD: OS PRIMÓRDIOS DA PSICANÁLISE INFANTIL│ UNIDADE I

o primeiro deles justamente na fase dos três aos cinco anos. No primeiro tempo, o
conjunto das aspirações sexuais representado pelas pulsões parciais orienta-se para
uma pessoa, na qual pretende alcançar seus objetivos. Mas, é importante perceber que
a concentração das pulsões parciais e sua subordinação ao primado da genitália não
serão alcançados na infância. O estabelecimento dessa primazia a serviço da reprodução
constitui a última fase da organização sexual.

É nesse ponto que tanto o Complexo de Édipo quanto o Complexo de Castração entram
em cena. Pois, a escolha do primeiro objeto recai sobre a mãe, escolha essa que terá de
ser modificada devido à barreira do incesto. O pai terá papel fundamental na interdição
do incesto. É a figura paterna que passa a ser temida quando o recalque começa a
operar sobre a primeira escolha amorosa da criança. E o temor – que instaura uma
ambivalência de afetos com relação ao pai – advirá justamente de uma das principais
teorias sexuais infantis que enumeramos acima: a da ideia de que todas as pessoas
teriam, inicialmente, um pênis, e de que, portanto, algumas o haveriam perdido.
Perdido por quê? Eis que se instaura – do lado dos meninos – o medo da castração e –
do lado das meninas – a inveja do pênis.

No caso do pequeno Hans, Freud tenta mostrar justamente essa composição que enlaça
as fases do desenvolvimento sexual infantil, com as teorias sexuais infantis e o complexo
de Édipo.

Já no início do estudo de caso, Freud relata como, aos três anos, Hans manifesta
curiosidade acerca de seu pênis e elabora indagações sobre se outros seres também
possuiriam um igual. Essa curiosidade vem acompanhada no tempo por uma atividade
masturbatória que tem o pênis como objeto. É essa atividade que irá colocar, pela
primeira vez, Hans em contato com o complexo de castração, na medida em que, ao
surpreendê-lo manuseando o órgão, a mãe o ameaça com a castração.

Figura 2. O Pequeno Hans.

Fonte: <http://www.conflictopsiquico.com/2010/02/caso-juanito.htmlç>

25
UNIDADE I │FREUD E ANNA FREUD: OS PRIMÓRDIOS DA PSICANÁLISE INFANTIL

Outro momento importante do caso ocorre quando Hans ganha uma irmã. O fato
desperta nele questionamentos sobre a origem dos bebês e sobre a diferença sexual – já
que observa a ausência do pênis na irmã, apesar de negar essa ausência afirmando que
ele (o pipi) ainda crescerá.

Nesse ponto do estudo, Freud traz o relato de observações que o pai de Hans realiza das
brincadeiras de criança, e se refere a esses folguedos como uma atividade de elaboração
em fantasias das reminiscências de uma viagem que o menino teria feito durante
as férias. Ressaltamos, aqui, esse ponto porque ele já demonstra, de forma inicial, a
maneira como o brincar vai se estabelecendo como elemento de observação e acesso ao
fantasiar infantil.

Freud continua a descrever os relatos do pai de Hans acerca das escolhas objetais
do filho, que já despontavam por volta dos três anos e meio, e que ora recaíam sobre
crianças de ambos os sexos, ora sobre a mãe ou o pai.

Após essas colocações iniciais, Freud relata que as observações do pai acerca do
desenvolvimento sexual de Hans, quando o menino já conta com cinco anos, tornam-se
um caso clínico. Hanns desenvolvera uma fobia de cavalos que passa a impedi-lo de sair
de casa. Seu medo era de que um cavalo viesse modê-lo caso saísse para a rua.

Os relatos do pai da criança acerca desse período descrevem o desenvolvimento do


complexo de Édipo no menino, que toma a mãe como seu objeto amoroso e passa a
realizar vários atos de sedução para com a ela. Seria a afeição pela mãe – que teria
se tornado fortemente intensa e que necessitou sucumbir ao recalque – a origem da
ansiedade da criança. Essa ansiedade vem, em momento posterior, a encontrar um
objeto: o cavalo e sua mordida.

A partir daí, Freud passa a realizar interpretações do sintoma da criança e trasmití-


las a Hans por intermédio do pai. Também instrui o pai a fornecer esclarecimentos
para as dúvidas sexuais de Hans. Essas são as primeiras intervenções com uma criança
relatadas na história da psicanálise.

Outro momento importante do caso é a visita de Hans a Freud (único mometo em que
o pai da psicanálise tem acesso direto a seu pequeno paciente). Nessa visita, Freud
entrega a Hans mais uma interpretação de seu sintoma: a de que o cavalo representaria
o pai e o medo que Hans tinha de cavalos era, na verdade, um medo que sentia de seu
pai, por gostar tão intensamente de sua mãe.

26
FREUD E ANNA FREUD: OS PRIMÓRDIOS DA PSICANÁLISE INFANTIL│ UNIDADE I

Com essa interpretação, Freud começa a desvendar a escolha do objeto da fobia. Ela
será importantíssima para que o sintoma de Hans vá sendo cada vez mais simbolizado
e que seja possível, então, trabalhar com o menino o complexo de castração.

Lembremos aqui o que já foi dito: que o medo da castração é um importante operador
conceitual para Freud. Segundo o psicanalista, a menina, ao se perceber sem falo como
a mãe, acreditaria não ter recebido da mãe um pênis e desenvolveria a inveja do pênis.
Já o menino, pelo desejo que desenvolve pela mãe no Édipo, ao constatar que nem
todas as pessoas têm pênis, temeria a castração pelo pai.

Assim, a saída do Édipo dependeria da forma como cada sujeito se organizaria frente
a esse operador (falo-castração). Estaria aí o ponto para o entendimento da escolha
das defesas e sintomas assumidos pelo sujeito, assim como da sua forma de entrada na
cultura e da constituição de sua identidade de gênero. Enfim, entender a saída do Édipo
por meio da teoria da castração seria entender a constituição da subjetividade.

Freud, no anoitecer de seu percurso teórico, afirmará inclusive que a inveja do pênis
nas meninas e o medo da castração nos meninos são as barreiras com que o analista se
depara ao final da condução de um processo de análise que lhe parecem intransponíveis.

Não temos a intenção de acompanhar aqui todos os pormenores do caso de Hans (que,
em última instância, culminará na simbolização pelo menino de seu complexo de Édipo
e em uma saída para o Compexo de Castração). O que buscamos é demonstrar como o
atendimento analítico de crianças – os métodos, as formas de intervenção, os desafios,
as questões teóricas – gestão-se já aí, nesse primeiro momento de criação da psicanálise.

Logo, entender o papel das teorias sexuais infantis, assim como o desenvolvimento da
organização sexual e os complexos de Édipo e de Castração na teoria freudiana são
pontos indispensáveis para todos aqueles que querem aprofundar sua compreensão
acerca da psicanálise infantil. Por isso, encerraremos essa Unidade I recomendando
veementemente que os textos de Freud citados aqui sejam lidos concomitantemente a
este material, pois são referências básicas para o entendimento das discussões levadas
a cabo no campo da psicanálise com crianças.

No capítulo seguinte, comentaremos as contribuições de Anna Freud para a psicanálise


infantil.

27
CAPÍTULO 4
O setting de Anna Freud

Anna Freud nasceu em Viena, em três de dezembro de 1895 e faleceu em Londres, em


nove de outubro de 1982.

Foi a sexta filha de Martha Bernays (esposa de Freud), e era muito claro para Anna que,
se os pai pudessem ter evitado a gravidez, o teriam feito. Sua mãe encontrava-se á época
exaurida por tantas gestações seguidas. Por esse contexto, biógrafos a descrevem como
a filha não desejada, o patinho feio da família que, no entanto, tornou-se a herdeira
intelectual de seu pai, Sigmund Freud, assumindo a causa da psicanálise durante toda
a vida.

Desde cedo, Anna édescrita como uma pessoa decaráter intrépido e aventureiro, como
o de seu pai. Ao que parece, esta foi a forma de encontrar seu lugar em uma família tão
numerosa: destacar-se por sua audácia e valentia.

Freud se referia a ela como sua Antígona, pois se tornou sua companheira de viagens,
sua secretária, seguiu-o ao exílio, cuidou dele durante seu adoecimento e foi sua
aliada no momento da morte. Em situações delicadas, quando Freud foi operado pela
primeira vez de seu câncer, Anna tornou-se também a voz de um Freud que estava
sendo paulatinamente silenciado pela doença.

Figura 3. Anna Freud e seu pai.

Fonte: <http://deboraoliveirapsicologa.blogspot.com/2017/01/14-fatos-e-curiosidades-surpreendentes.html>

28
FREUD E ANNA FREUD: OS PRIMÓRDIOS DA PSICANÁLISE INFANTIL│ UNIDADE I

No que diz respeito ao trabalho intelectual, no entanto, Anna não foi apenas um eco das
idéias de Freud. Ela elaborou construções teóricas e técnicas próprias, sendo uma das
pioneiras da criação da psicanálise com crianças.

Quanto a seu percurso intelectual, Anna ingressou na escola em 1901, aos seis anos
de idade. Não demonstrava prazer pelas atividades escolares, mas se esforçava para
ser diligente, pois era o que esperavam dela. Curiosamente, apesar da aversão à
escola, decidiu ser professora (havia pensado também em fazer medicina, mas Freud
a dissuadiu, afirmando que poderia prestar maior serviço à psicanálise caso seguisse
pedagogia). Anna não chegou a cursar o ensino superior, apenas o que hoje chamamos
de ensino médio. Suas curiosidades e empreitadas intelectuais foram estimuladas
muito mais pelas trocas com os amigos que frequentavam a casa dos Freud que pelo
ambiente escolar.

Aos 14 anos, Anna Freud teve seu primeiro contato com a psicanálise, por meio de uma
conversa com o pai, posteriormente, seu interesse foi crescendo. Anna lê, avidamente,
todas as obras psicanalíticas de seu pai e dos primeiros seguidores da psicanálise: Otto
Rank, Frenczi e Karl Abraham. Em 1914 inicia um curso que a habilitará a lecionar em
escolas primárias.

Na mesma época, entre 1914 e 1915, acompanha um curso de introdução a psicanálise


que Freud ministrava no Hospital Psiquiátrico de Viena, após acompanhar as visitas de
supervisão realizadas nesse mesmo hospital, o que continuará até 1918. Nesse mesmo
ano, Anna participa de seu primeiro Congresso Internacional de psicanálise. E é neste
momento também que Freud toma Anna como sua analisanda, aprofundando, assim,
o percurso de formação da filha como psicanalista. A análise de Anna durará de 1918 a
1921.

Importante ressaltar que, concomitantemente à formação como analista, Anna


dava continuidade a sua formação como pedagoga. Dedicou-se durante seis anos
ininterruptos às salas de aula, depois problemas de saúde tornaram intermitente o
exercício dessa função. A experiência como pedagoga trará marcas para a forma como
Anna Freud exercerá a psicanálise, a começar pelo perfil daqueles que toma como
pacientes: prioritariamente crianças e adolescentes.

Em 1920, aos 24 anos, Anna Freud já se considerava psicanalista. No VI Congresso


Internacional de Psicanálise foi apresentada pela primeira vez aos psicanalistas e fez sua
primeira fala. No ano seguinte, apresentaria seu primeiro trabalho, sobre os devaneios
(ou sonhos diurnos). Em 1922 apresenta a conferência “Fantasias de flagelamento e
sonhos diurnos”, estabelecendo-se definitivamente como analista e sendo admitida
como Membro da Sociedade Psicanalítica de Viena.

29
UNIDADE I │FREUD E ANNA FREUD: OS PRIMÓRDIOS DA PSICANÁLISE INFANTIL

Em 1923 abre seu próprio consultório e inicia, com prazer, o atendimento de seus
pacientes. Porém, esse processo acaba sendo perturbado pelo anúncio do câncer de
Freud, que o leva a ter de fazer diversas cirurgias e coloca Anna na posição de sua
cuidadora.

Apesar de todo o transtorno, Anna continuou com seus atendimentos, e a escuta de


crianças e adolescentes começa a figurar em suas teorizações, sendo apresentada por ela
na forma de conferências. Em 1927, publicou sua obra O Tratamento Psicanalítico das
Crianças, onde relata tratamentos de crianças entre 6 a 12 anos. Anna, ao recordar-se
desse tempo, relata ter sido a primeira psicanalista a se debruçar sobre a psicanálise de
crianças (Stümers, 2013). Porém, antes dela, houve o trabalho de Hermine von Hugh-
Hellmuth, que analisara o próprio sobrinho e iniciara os primeiros experimentos com
uso de jogos na psicanálise.

Fato é que, Anna Freud continuará suas incursões teóricas pela psicanálise infantil,
estabelecendo um discurso coeso sobre a técnica da psicanálise com crianças que
conformará seu setting analítico. Não devemos nos esquecer de que Anna Freud foi
psicanalista e pedagoga, e que ambas formações interferirão em sua prática clínica e em
seu entendimento da função a ser desempenhada pela psicanálise com crianças.

A partir da morte de Freud, Anna dedicará exaustivamente sua vida, seu potencial
intelectual, sua atividade profissional, o peso de seu nome, de sua convicção e de seu
prestígio profissional às crianças desamparadas e traumatizadas pelas vivências da
segunda guerra mundial. Para isso, cria casas de acolhida, tanto em Londres como
nos Estados Unidos, destinadas a garantir a sobrevivência e a segurança dos “filhos da
guerra”.

Situe-se na História
Hermine von Hugh-Hellmuth nasceu em 1871, em Viena, em uma família católica
e nobre. A mãe de Hermine, uma senhora culta e poliglota, falece quando Hermine
está com 12 anos. Hermine torna-se a terceira mulher a integrar a Sociedade
Psicanalítica de Viena, em 1913. Seu primeiro paciente foi seu sobrinho Rudolph,
a quem criara como filho. O menino, quando contava 18 anos, assassinou-a no
dia 9 de setembro de 1924. Naquele período, esse fato acabou prejudicando o
avanço da psicanálise e da psicoterapia de crianças, pois vários psicanalistas da
época (como Stern, Adler e Stekel) usaram-no para negar o método psicanálitico
como apropriado para crianças.

30
FREUD E ANNA FREUD: OS PRIMÓRDIOS DA PSICANÁLISE INFANTIL│ UNIDADE I

O pensamento de Hugh-Hellmuth será de grande influência para Anna Freud,


daí porque traremos aqui alguns de seus aspectos.

Hermine von Hug-Hellmuth divergia da afirmação feita por Freud com relação
ao caso do pequeno Hans, de que o fato de o menino ter sido analisado pelo
pai seria o principal dos fatores que teria permitido a aplicação do método
psicanalítico à criança. Para ela, as crianças não se disporiam a confessar seus
desejos e pensamentos íntimos aos pais, porque a franqueza psicanalítica dos
filhos dificilmente seria suportada pelo narcisismo parental. Para Hug-Hellmuth,
a análise estrita só poderia ser realizada com crianças a partir dos sete anos.

Hug-Hellmuth considerava que os objetivos psicanalíticos deveriam coincidir


com os objetivos da família, da escola e da sociedade. Defendia também que
o analista de criança não precisava explicitar os impulsos inconscientes para a
criança (interpretação), bastando que tais impulsos fossem expressos em atos
simbólicos, sem necessidade de passar pela linguagem falada para atingir seus
efeitos. Nesse sentido, defende a necessidade de que o analista evite sugestões
durante os atendimentos, para que suas intervenções não sejam intrusivas.

Atentava-se muito para as primeiras sessões com a criança, pois considerava


que este conteúdo comunicativo era demonstrativo da neurose infantil. Para ela,
o analista deveria ser, ao mesmo tempo, terapeuta e educador que cura. Essa
idéia de uma pedagogia psicanalítica também se fará fortemente presente nos
trabalhos de Anna Freud e diferirá marcadamente da forma como Melanie Klein
estabelecerá sua clínica com crianças (Camaroti, 2010).

Até aqui, traçamos um quadro sobre como se deu a formação de Anna Freud como
psicanalista. Agora, empreenderemos uma discussão sobre os principais pontos
levantados por ela no que diz respeito a prática da psicanalise com crianças.

Como acabamos de ver no último Situe-se na História, havia divergência entre os


psicanalistas sobre a possibilidade de psicanalizar crianças. Anna Freud defenderá
veementemente essa prática. De início, no entanto, ela afirmará que apenas as crianças
após o período de latência (que se inicia aos cinco anos) é que poderiam ser submetidas
ao processo de análise. Posteriormente, no entanto, volta atrás nessa avaliação e afirma
que, mesmo na primeira infância já seria possível submeter a criança ao método.
(Etechegoyen, 2002)

Sobre o início do tratamento, Anna Freud irá defender a necessidade de um período


inicial de preparação para a análise, pois, segundo ela, apenas com esse manejo seria

31
UNIDADE I │FREUD E ANNA FREUD: OS PRIMÓRDIOS DA PSICANÁLISE INFANTIL

possível estabelecer com os pequenos pacientes uma transferência positiva, o que


permitiria o desenrolar do tratamento. E por que isso?

Anna Freud considerava que os pequenos pacientes ainda estariam na presença real
de seus primeiros objetos de amor (os pais), o que implicava que não tinham ainda
finalizado a construção dos protótipos amorosos que serviriam como base para as
relações transferenciais. Seria, dessa forma, teoricamente inconsistente falar de uma
transferência propriamente dita na análise com crianças, pois não haveria como realizar
uma repetição, na transferência, da relação com os primeiros objetos amorosos se essa
relação ainda não tinha assumido sua conformação simbólica.

Além disso, para ela, as crianças não teriam motivações para se submeter a um
tratamento psicanalítico, pois seus sofrimentos estariam ligados ao conflito de
aprovação/desaprovação pelos pais reais.

Por esse motivo é que dAnna Freud efenderá que o processo psicanalítico com crianças
deve iniciar-se com um período preparatório, no qual o analista criaria uma aliança
com o ego da criança e a induziria para a aceitação do processo analítico. Esse seria,
portanto, um período prioritariamente pedagógico, onde a criança seria instruída
acerca dos benefícios da psicanálise. Posteriormente, Anna Freud irá dando uma outra
significação para esse momento inicial, que passa a ser um momento de avaliação
da demanda do paciente para a análise (pois, para Anna, apenas as crianças que
apresentassem sintomas deveriam ser submetidas ao processo psicanalítico).

Estabelecida uma transferência positiva, após essa fase preparatória, ela seria utilizada
como motor do tratamento. A transferência negativa, para Anna Freud, não deveria ser
alvo de interpretações nem integrar o tratamento. Anna Freud receava a deterioração
das relações da criança com os pais, caso fossem analisados seus sentimentos negativos
com relação a eles. Priorizava, assim, as situações positivas e considerava que as
situações negativas seriam resolvidas por outros métodos, métodos não analíticos.

Ainda sobre o início do processo analítico, Anna Freud considera que ele seria um
momento inadequado para se entregar interpretações aos pequenos pacientes.Para
ela, era necessário avaliar com cuidado em que oportunidade dever-se-ia entregar
ao analisando uma interpretação. Defendia que, primeiramente, o analista teria que
interpretar as defesas que o paciente manifestava, antes de chegar à interpretação
das fantasias inconscientes e das pulsões que as sustentavam. A interpretação,
portanto, tinha de começar pelas camadas mais superficiais do psiquismo, penetrando
paulatinamente os demais estratos (regra da superficialidade).

Segundo Sei e Cintra (2013, p. 4):

32
FREUD E ANNA FREUD: OS PRIMÓRDIOS DA PSICANÁLISE INFANTIL│ UNIDADE I

O interesse central de Anna Freud era o ego e seu modo de funcionamento


(...). Segundo Anna Freud, o jogo, como técnica complementar,
esclarece os impulsos do id, mas não nos permite ver como funciona
o ego. Desta forma, recorreu a métodos substitutivos que informam o
funcionamento do ego por meio do exame de transformações de afeto.

Dessa feita, valoriza-se mais a utilização dos sonhos, das fantasias diurnas e dos desenhos.
Argumentava-se, ainda, que o analista precisaria assumir uma “ação dirigida” (pois
que o uso da assossiação livre estaria bem limitado na psicanálise com crianças). Isso
implicaria que o analista estaria na posição de exercer duas funções: analisar e educar.
Tal concepção implicaria em uma mudança do que o analista esperaria de um final de
análise, pois o final do tratamento coincidiria com a procura de uma identificação da
criança com um ideal de ego, que teria como modelo o analista.

Por fim, nesta incursão pelo setting psicanalítico de Anna freud, não podemos deixar
de resssaltar ao final o caráter pedagógico que assumiam seus atendimentos. Para Anna
Freud a psicanálise com crianças deve exercer a função de uma educação curativa,
e isso marcará tanto seu trabalho como analista, como seus exercícios teóricos e,
posteriormente, suas empreitadas pelo campo do social.

Diferentemente de Anna Freud, a outra pioneira da psicanalise com crianças –


considerada a criadora da análise lúdica como hoje é praticada – defenderá que a
psicanálise com crianças deve ser uma “psicanálise pura”. Sigamos em frente no nosso
percurso e adentremos no mundo de Melanie Klein, teórica fundamental para quem
deseja se aprofundar na psicanálise infantil.

33
OS CAMINHOS
DE KLEIN E O UNIDADE II
SURGIMENTO DA
ANÁLISE LÚDICA

Neste capítulo, faremos uma retomada histórica de como Klein compôs a psicanálise de
crianças, encerrando com a caracterização da prática que emerge de tal processo.

Objetivos:
Vocês devem chegar ao final do capítulo compreendendo:

»» Porque Klein se desloca da educação psicanalítica para a psicanálise de


crianças.

»» O que Klein teoriza sobre o brincar infantil e como ela sustentará uma
prática clínica baseada nesse brincar.

»» O conceito de Transferência para Klein: suas originalidades e


discordâncias com relação ao conceito de Anna Freud.

»» A forma como Klein defenderá o uso da interpretação na clínica infantil.

CAPÍTULO 1
Klein e seu encontro com a Teoria
Psicanalítica

Melanie Klein nasceu em 1882, na cidade de Viena. Havia dois pontos em comum
entre ela e Freud: ambos eram de origem Judia e conviveram com os discursos sobre
saúde e doença na passagem do século XIX para o século XX, pois o pai de Melanie
era médico. É preciso destacar que, apesar de sua família ser proveniente de um meio
judeu ortodoxo, havia, naquele ambiente, o germe de um questionamento crítico que
se deslocava do discurso religioso para o científico como via alternativa de pensar o

34
OS CAMINHOS DE KLEIN E O SURGIMENTO DA ANÁLISE LÚDICA │ UNIDADE II

mundo. Prova disso é que o pai de Melanie, que estava destinado a tornar-se rabino,
rompe com esse caminho para abraçar a medicina.

Outro fato que chama a atenção na biografia de Melanie Klein é a figura da sua mãe, uma
mulher com atitudes vanguardistas, pois, ao contrário do que se esperava da mulher
de um médico na Viena de então – que se ocupasse com o espaço doméstico e com os
filhos -, a mãe de Melanie abre um pequeno comércio e passa a trabalhar para ajudar o
marido com as despesas da casa.

Todo esse ambiente, que propicia um pensamento questionador e que estimula a


ocupação feminina do espaço público, será fundamental para que Melanie Klein
empreenda o percurso de trabalho que a fará um dos principais nomes da Psicanálise.

Há, ainda, dois acontecimentos marcantes na vida da pequena austríaca que também
influenciarão os desenvolvimentos futuros de seus trabalhos. Em 1886, quando Melanie
estava com quatro anos, sua irmã Sidonie (de oito) adoece gravemente. A enfermidade
faz com que Sidonie fique acamada e, posteriormente, restrita ao espaço doméstico.
Esse fato favorece que a educação e os cuidados com Melanie fiquem sob o encargo da
irmã mais velha. Forma-se, entre elas, um forte vínculo afetivo, por onde perpassam as
vivências de aprendizado de Melanie. É nesse momento que ela adquire a linguagem
escrita, a leitura e noções básicas de cálculo. Em 1887, Sidonie falece, fato que deixa
profundo traço na história de Melanie.

Além de Sidonie, haverá outra figura importante para a formação do pensamento de


Melanie nesses primeiros anos, seu irmão mais velho, Emmanuel. Tratava-se de um
jovem talentoso, pianista e escritor esporádico, que tinha grande afeição pelas artes.
Ele introduz Melanie ao meio intelectual de Viena e assume a preparação da jovem
para o concurso de entrada no Ginásio (única escola que forma moças para ingressar na
Universidade). Graças às Lições de Emmanuel, Melanie é bem-sucedida no concurso. O
irmão não esconde seu entusiasmo pela inteligência da jovem e continua a estimulá-la
em suas empreitadas intelectuais.

Emmanuel, porém, sofria de sérios problemas cardíacos, desde tenra idade, e veio a
falecer em 1902, aos 25 anos. Essa é mais uma experiência de luto que marca a biografia
da Psicanalista.

Nesse momento da vida, Melanie tinha como pretensão ingressar na faculdade de


Medicina. A intenção, no entanto, não se concretiza. Casa-se em 1903 com o engenheiro
químico Arthur Klein (de quem era noiva havia três anos) e abandona o nome de
solteira – Melanie Reizes –, adotando o nome com o qual se consagraria na psicanalise:
Melanie Klein.

35
UNIDADE II │ OS CAMINHOS DE KLEIN E O SURGIMENTO DA ANÁLISE LÚDICA

Com o casamento, Melanie Klein passa a acompanhar o marido por diversas localidades
da Europa. Em 1904, nasce sua primeira filha – Mellita. Depois, seguem-se Hans, em
1907, e Erich, o caçula, em 1914.

Situe-se na História
Sándor Ferenczi nasce em 1873, na Hungria. Forma-se em Medicina no ano
de 1894, em Viena. Em 1897, começa a trabalhar no Hospital Saint Roch, em
Budapeste, tornando-se psiquiatra. No enfrentamento do sofrimento psíquico,
busca tratamentos alternativos que dessem melhores respostas aos desafios que
enfrentava em sua clínica. É assim que, em 1908, conhece Freud e a Psicanálise.
Desde então, passa a ser um discípulo dedicado da causa psicanalítica, tendo
importante papel no desenvolvimento do movimento.

Ferenczi torna-se amigo íntimo de Freud e funda, em 1909, a Associação


Psicanalítica Internacional (incumbida de defender a invenção freudiana) e
promove várias reuniões científicas para discutir temas cruciais à Psicanálise. Sua
participação no movimento psicanalítico também ocorre por realizar a análise de
alguns dos mais importantes psicanalistas da história da Psicanálise – entre eles
Ernest Jones, Geza Roheim e Melanie Klein. Suas propostas teóricas e técnicas
vieram a influenciar bastante o pensamento Kleiniano.

Alguns anos antes da Primeira Guerra Mundial, a família Klein se estabelece em


Budapeste. É nessa cidade que Melanie Klein fará sua entrada no mundo psicanalítico.
É aí que, pela primeira vez, ela lerá a produção escrita de Freud. É aí também que
iniciará sua análise pessoal, por volta de 1916, e assistirá ao Congresso de Psicanálise de
Budapeste, em 1918. Terá, então, a oportunidade de ver Freud ministrar sua conferência
“Linhas de Progresso da Terapia Psicanalítica”, e se encantará com a sensibilidade
profunda que seu analista, Sándor Ferenczi, demonstra para com as questões do
inconsciente.

Pois bem, não podemos deixar de destacar a entrada de Ferenczi no círculo de


discípulos de Freud, ela ocorreu em 1908, no Congresso de Salzburg, com a leitura de
um artigo intitulado “Psicanálise e Pedagogia”, que levantava a questão sobre quais
ensinamentos práticos a Psicanálise poderia oferecer à Pedagogia, a partir de suas
observações.

Tal fato adquire sua importância na medida em que a entrada de Melanie Klein na
Psicanálise se dá não pela via da escuta clínica, mas pela da Pedagogia. A primeira
comunicação de Melanie Klein feita à Sociedade Húngara de Psicanálise, em 1919,

36
OS CAMINHOS DE KLEIN E O SURGIMENTO DA ANÁLISE LÚDICA │ UNIDADE II

expõe suas ambições pedagógicas. Nela, defende, entusiasticamente, uma educação


psicanalítica que libere a criança da repressão, permitindo que desenvolva suas teorias
sexuais infantis e impedindo, assim, uma inibição intelectual.

A comunicação – que, em 1921, se tornará artigo – conta a experiência de Melanie Klein


com a educação psicanalítica de Fritz, uma criança de 4 anos e nove meses que ela
acompanhara por três meses. Fritz era, na verdade, seu filho mais novo, Erich, a quem
Klein considerara mais lento em suas curiosidades e aquisições intelectuais que seus
dois outros filhos. Como Petot (2008, p. XXIII) bem expõe, a busca de Melanie Klein
nesse momento é marcadamente profilática e pedagógica:

[...] A miséria da qual quer aliviar seu filho não é um sofrimento sexual
e atual, mas a falta intelectual e simplesmente potencial: procura, antes
de mais nada, protegê-lo de todo risco de inibição intelectual, dando-
lhe uma educação baseada nas ideias psicanalíticas da época; crê, de
natureza, poder assegurar-lhe a plena utilização de suas faculdades
intelectuais, no quadro de uma normalidade entendida como reunião
de todos os talentos e de todas as aptidões funcionando sem entraves.
Com este objetivo, procurou liberar a criança ao máximo e, antes de
mais nada, liberá-la da repressão da curiosidade sexual, considerada
como fonte de todas as renúncias da inteligência; também não mediu
esforços para combater a ansiedade, sinal manifesto da entrada em cena
da repressão, assim como para facilitar todas as expressões, diretas ou
indiretas, da espontaneidade da criança: é nesta perspectiva, de início
profilática e pedagógica mais do que psicanalítica, que o brincar se
torna centro de seu interesse.

É preciso observar, portanto, que a própria concepção de normalidade para Melanie


Klein constitui-se, nesse momento, na ideia de um pleno funcionamento de todas as
aptidões intelectuais do sujeito. Ela defende que, se a energia gasta para reprimir a
curiosidade sexual infantil for liberada, essa energia será utilizada para a sublimação.
Acredita também que um dos principais impeditivos criados pela sociedade e propagados
pelas estruturas educacionais a essa liberação do pensamento humano é a ideia de Deus
– um ser supremo que a tudo regula e a partir de onde todas as respostas são dadas.

Na base do fazer kleiniano de então há, portanto, uma concepção ideológica, a qual Freud
também havia, em determinado momento, cedido. Uma concepção que se aproxima do
racionalismo iluminista e erige a razão, a ciência e o questionamento da autoridade
religiosa como caminhos para a salvação de um modo de funcionamento neurótico
(no qual os prazeres do viver, entre os quais o de se entregar ao ato do conhecimento,

37
UNIDADE II │ OS CAMINHOS DE KLEIN E O SURGIMENTO DA ANÁLISE LÚDICA

encontrar-se-iam inibidos). E, essa é a aposta primeira de Klein, a educação psicanalítica


seria a forma de promover a liberação desses caminhos.

No entanto, será justamente a experiência com a educação psicanalítica de Erich


e a frustração dessas primeiras ambições pedagógicas que levará Melanie Klein à
psicanálise de crianças. Acompanhemos esse deslocamento do pensamento kleiniano.

38
CAPÍTULO 2
Da Educação Psicanalítica à
Psicanálise de Crianças

Como dito anteriormente, quando Klein inicia a educação psicanalítica de Erich, este
estava com quatro anos e nove meses. O processo começa alguns dias antes da Páscoa
de 1919. Erich nunca apresentara, de fato, nenhum problema em seus processos de
aprendizagem, que seguiam um curso normal. Melanie Klein o descreve como uma
criança aparentemente vívida e inteligente. No entanto, a mãe possui o que poderíamos
chamar de inquietação atenta ao desenvolvimento intelectual de seu filho, considerando
Erich menos curioso que os irmãos e também menos desenvolto em suas aquisições no
domínio prático do conhecimento.

Para entender essa impressão que Melanie Klein sustenta de seu filho, é preciso
compreender o papel que ela atribuía às aquisições intelectuais humanas no conjunto do
que seria a saúde psíquica. Segundo Petot (2008), para Klein a doença mais disseminada
na humanidade média seria a inibição intelectual. Isso porque a atividade intelectual
verdadeiramente normal era identificada por Klein como a capacidade de percorrer uma
ampla extensão de campos de interesse e de alcançar neles uma penetração profunda,
tanto no domínio científico como nos domínios especulativo e prático.

Nessa época, Klein considerava a falta de espontaneidade intelectual como o sintoma


mais preocupante de todos, porque retiraria do sujeito uma parte importante de sua
capacidade de usufruir dos prazeres naturais da vida. Para ela, esse sintoma seria
consequência da repressão da curiosidade sexual inerente ao complexo de Édipo.
Junto a essa repressão aliar-se-ia a composição de ilusões religiosas, que ofereceriam à
criança a ideia de um Deus protetor, retomando a figura da mãe onipotente do lactante
e reforçando também o próprio sentimento de onipotência de pensamentos que as
crianças experimentam em certa fase de seu desenvolvimento.

Toda essa configuração comprometia a capacidade de realizar o teste de realidade,


devido à necessidade de incorporar conceitos dogmáticos que não podiam ser alvo de
comprovação. Isso afetava, portanto, o pensamento científico e prático, levando ao
desenvolvimento tipos específicos de inibição intelectual. Eis alguns dos citados por
Klein (Petot, 2008, p.14):

39
UNIDADE II │ OS CAMINHOS DE KLEIN E O SURGIMENTO DA ANÁLISE LÚDICA

Repugnância pela pesquisa fundamental desinteressada.


• Decorrência direta da proibição dos adultos às pesquisas sexuais infantis, resulta numa
dificuldade em aprofundar os conhecimentos. Só a curiosidade superficial é possível.
Capacidade de avançar apenas em áreas setoriais do conhecimento.
• Implica em uma atividade intelectual que só pode se desenvolver de forma restrita, sem avançar
em setores do conhecimento que venham a gerar o questionamento de dogmas constituídos.
Redução da extenção da inteligência.
• A exploração do mundo irá gravitar em torno de apenas um problema, não podendo se expandir a
outros campos de interesse.
Dificuldade de enfrentar as questões impostas pela vida prática.
• O pensamento abstrato foi estimulado, mas há uma retração da inteligência no domínio prático.

Fonte: IZAIAS, F. A Psicanálise em Freud e em Melanie Klein. Unyleya, 2017

É no bojo dessas concepções que Klein avaliará a relação de Erich com o conhecimento,
acreditando que uma atitude preventiva, composta pela satisfação da curiosidade
sexual da criança e pela evitação da repressão, o liberariam para vivenciar toda a sua
potencialidade intelectual.

As ações do educador que tivesse como base as contribuições psicanalíticas seriam,


portanto, a liberação de tabus referentes à curiosidade sexual, à educação sexual e à
abolição do uso de concepções religiosas na formação da criança.

Com base nesses parâmetros, Klein inicia a educação psicanalítica de Erich. A primeira
fase do processo durará menos de três meses. Nela, Erich havia começado a formular
questões referentes a sua origem e à origem dos bebês. Melanie responderá as questões
do filho usando a regra que havia estabelecido no início dessas incursões pedagógicas:
fornece respostas às curiosidades sexuais da criança apenas na medida de seus
questionamentos.

Erich demonstra uma atitude de confusão frente às respostas da mãe, mostrando-se


distraído durante as conversas sobre o tema. Depois, volta repetidas vezes às mesmas
perguntas. Em determinado momento, direcionará suas dúvidas à babá, que responde
com o mito da cegonha. Quando ele relata a estória à Melanie Klein, ela a desmente
e retoma a versão que já havia sido entregue à criança. Isso desencadeia uma série
de questionamentos sobre outras figuras imaginárias – coelho da Páscoa, Papai Noel,
anjos – que têm sua realidade desconstruídas diante de Erich.

A criança apresenta inicialmente forte reação quando essas estórias de que ela tanto
gostava são dementidas. Mas, depois começa a colocar ela mesma o questionamento
da sustentabilidade da existência desses seres fantásticos. É nesse caminho que Erich
levanta pela primeira vez a dúvida sobre a existência de Deus. Klein responde que
Deus não existe. Mas, o pai de Erich possuía uma visão panteísta da divindade, e Erich
o surpreende com a mesma pergunta antes de Melanie ter tido a oportunidade de
conversar com o marido sobre o assunto.

40
OS CAMINHOS DE KLEIN E O SURGIMENTO DA ANÁLISE LÚDICA │ UNIDADE II

A criança recebe, então, do pai uma resposta diferente para a questão. Athur Klein
explica para o menino que ninguém nunca havia visto Deus, mas que algumas pessoas,
entre as quais ele, acreditavam na existência de um ser supremo, enquanto que outras,
como Melanie Klein, não acreditavam.

Para Melanie, essa resposta foi fundamental, pois ela entende que Erich, a partir desse
ponto, pôde observar pela primeira vez uma discordância entre os pais no que dizia
respeito à construção de entendimento sobre um aspecto do mundo. Isso teria permitido
que o menino colocasse em cheque a autoridade dos pais como critério de verdade,
tendo de elaborar um referencial próprio de verificação, tirado de suas experiências
pessoais, e tendo de realizar sua primeira escolha intelectual.

Os relatos que Melanie Klein faz das semanas seguintes à sua primeira intervenção
pedagógica com Erich trazem a figura de uma criança bem mais ativa intelectualmente,
cujas perguntas se multiplicavam e se diversificavam. O intelecto parece liberado em
extensão e profundidade, o que se manifesta por meio de uma curiosidade crescente,
de uma redução das repressões e de um aumento da sublimação. Os objetivos
buscados na educação psicanalítica do menino haviam sido alcançados, e Klein relata
entusiasticamente o feito em sua primeira comunicação à Sociedade Psicanalítica de
Budapeste.

Situe-se na História
Anton von Freund foi um importante industrial da Hungria, dono de uma
cervejaria em Budapeste. Doutor em filosofia, nasceu em 1880 e morreu em
1920. Submeteu-se à análise com Freud (que também analisou uma de suas
irmãs) e tornaram-se amigos. Von Freund acabou por assumir o papel de um
mecenas do movimento psicanalítico. Figura eminente, ele foi inicialmente o
principal organizador do V Congresso Internacional de Psicanálise, em 1918,
e o fundador do primeiro Centro de Pesquisa em Psicologia Infantil (para o
qual recrutou Melanie Klein, então analisanda de Ferenczi). Também financiou
a editora Internationaler Psychoanalytischer Verlag, em Viena, bem como
pretendia financiar um ambulatório analítico em Budapeste. Este último nunca
foi realmente criado, pois Von Freund morreu prematuramente de câncer. Freud
compôs para ele um obituário, homenageando sua dedicação ao movimento
psicanalítico.

<Fonte:http://www.encyclopedia.com/psychology/dictionaries-thesauruses-pictures-and-press-
releases/freund-toszeghy-anton-von-1880-1920>

41
UNIDADE II │ OS CAMINHOS DE KLEIN E O SURGIMENTO DA ANÁLISE LÚDICA

As ideias de Klein são recebidas com atenção pelos psicanalistas de Budapeste, e


ela é aceita como membro da Sociedade. Porém, durante a sua exposição, receberá
comentários de Anton von Freund (leia quadro abaixo) que determinarão os rumos
futuros de suas intervenções com Erich. O psicanalista aponta que as intervenções de
Klein não tiveram caráter psicanalítico, pois se dirigiram às perguntas conscientes da
criança, sem que nada dos processos inconscientes fosse abordado. Ele também sugere
que Klein crie um espaço de tempo específico para as intervenções com a criança – que
seja diferenciado dos outros momentos de interação entre Klein e Erich.

Inicialmente, Melanie Klein discordará das colocações de Anton von Freund. Mas,
os desdobramentos do desenvolvimento de Erich a farão refletir sobre as questões
levantadas sobre sua primeira experiência com a educação psicanalítica.

Após cerca de dois meses do final da primeira intervenção de Klein com Erich, a criança
passa a manifestar uma inibição generalizada: não surgem novas perguntas em sua
fala, apenas recoloca dúvidas antigas, de forma compulsiva e estereotipada. Apresenta
também uma inibição no brincar e uma atitude de recolhimento, mostrando-se
desinteressada e pouco ativa na presença de outras crianças. Klein percebe assim que a
tendência à repressão estava triunfando, e que era mais profunda e anterior ao que ela
supunha. Erich possuía questões acerca do ato sexual e do papel do pai na concepção
que haviam permanecido inconscientes e não tinham sido, portanto, colocadas pela
criança.

O que se coloca para Klein nesse momento é que será necessário ir além das
preocupações manifestas pela criança, adentrando nas fantasias inconscientes que
perpassam as teorias sexuais infantis. A intervenção, portanto, assume uma feição
muito mais psicanalítica, e, como já não era possível se limitar apenas às dúvidas
expressas pela criança, Klein terá de buscar a presença dessas fantasias em outra forma
de expressão infantil: o brincar. O brincar infantil começa, portanto, a ser tratado como
uma mensagem que pode ser interpretada, desvelando as fantasia em sua base.

Na observação das brincadeiras de Erich, Melanie Klein começa a perceber a presença


de conteúdos edipianos. O menino traz em sua fala fantasias sobre as crianças serem
geradas no estômago, deixando entrever a teoria sexual infantil própria à fase anal, na
qual os bebês são assemelhados às fezes. Klein interpreta o sentido dessas colocações
para Erich, retomando explicações sobre o ato sexual. Isso permite que a criança
expresse todo um novo conjunto de fantasias, que tratam do desejo de afastar o pai e
se apropriar da mãe – o que fornece a Melanie Klein o ensejo para marcar a interdição
ao incesto.

42
OS CAMINHOS DE KLEIN E O SURGIMENTO DA ANÁLISE LÚDICA │ UNIDADE II

Esse novo período da educação psicanalítica de Erich traz a marca de mudanças


importantes no fazer kleiniano. As preocupações pedagógicas passam a segundo plano,
pois o desenvolvimento intelectual não é mais o objetivo principal de Klein. Ela se
concentrará agora na liberação do brincar e do fantasiar enquanto meios de acesso
aos conteúdos inconscientes que estão na base das inibições. Como resposta a essa
mudança de perspectiva, Klein assistirá Erich renovando seus campos de curiosidade,
aprendendo a ler com grande desenvoltura e voltando a se relacionar com outras
crianças.

O período de sucesso das últimas intervenções é, no entanto, interrompido por uma


enfermidade de Klein, que a deixa acamada por dois meses e a faz suspender o processo
de Erich. Essa intercorrência será de fundamental importância para o desenrolar dos
caminhos kleinianos, pois o adoecimento de Melanie leva Erich a desenvolver uma série
de sintomas que farão com que sua mãe se desloque definitivamente para o campo da
clínica.

Figura 4. Melanie Klein e sua neta.

Fonte: <http://www.thehistorypostblog.co.uk/international-womens-day-melanie-klein/>

Klein faz a transição da “educação psicanalítica” para a “psicanálise de crianças”


propriamente dita em busca de tratar sintomas apresentados por Erich. Na época, o
brincar do menino novamente se empobrece, enquanto que a aprendizagem da leitura
começa a ser revestida de um caráter compulsivo. Ele se mostra triste e ansioso,
especialmente na hora de dormir. Surge também uma leve fobia a crianças que lhe são
estranhas.

Assim, , em 1920, durante seis semanas, Melanie Klein separará um horário específico
para a análise de Erich, como lhe havia sugerido Anton Von Freund. No início, utiliza

43
UNIDADE II │ OS CAMINHOS DE KLEIN E O SURGIMENTO DA ANÁLISE LÚDICA

o método freudiano, centrando-se na interpretação dos sonhos do menino a partir das


associações desencadeadas por elementos do conteúdo manifesto. Mas, logo esbarrará
na dificuldade que Freud já relatara: a criança não conseguia realizar uma associação
livre partindo de perguntas. Acaba, pois, por abandonar o método clássico e começa a
trabalhar com a interpretação de sonhos fazendo uso do simbolismo e da comparação
de um sonho com outro.

Nesse momento surgirão, nas fantasias de Erich, componentes homossexuais do


Complexo de Édipo negativo. No sonhar, aparecem o desejo e o receio do coito com
o pai – e o consequente temor de ser por ele destruído. Surge também, pela primeira
vez, o mecanismo de clivagem da imago materna, com o aparecimento da figura da
feiticeira, que representa a mãe má (imago ‘mulher com pênis’, que mais tarde será
melhor desenvolvida pela psicanalista).

Klein observa e interpreta para Erich todas as fantasias que vão emergindo nos sonhos
do menino. Ao final das seis semanas de trabalho, a criança passa a adormecer sem
dificuldades, o brincar reencontra sua riqueza, assim como é reestabelecido o contato
com outras crianças. As manifestações de ansiedade de Erich haviam arrefecido
consideravelmente.

Porém, as experiências anteriores fazem com que Klein já não receba com tanto
entusiasmo os resultados dessa intervenção. ela está mais ciente da persistência
dos complexos inconscientes e anuncia a possibilidade de que novas intervenções
psicanalíticas sejam necessárias no decorrer do desenvolvimento de Erich.

Em 1921, Melanie Klein muda-se para Berlim. É nesse momento que se separa de
Arthur Klein. Nessa época, já havia recebido o convite de Karl Abraam para se instalar
em Berlim e iniciar o atendimento psicanalítico de crianças.

A chegada de Melanie Klein em Berlim coincide, no entanto, com a entrada de Erich


na escola, ocasião em que o menino desenvolve uma verdadeira neurose infantil, que
se apresenta na forma de uma fobia da escola, estende-se ao caminho percorrido para
chegar àquela instituição e acaba por atingir o próprio ato de sair de casa para passeios
inespecíficos.

Em suas intervenções, Klein focalizará inicialmente o significado inconsciente da


repugnância pelo caminho da escola. Depois partirá para o significado da própria escola
e das atividades escolares. O que se percebe aí é que a psicanalista, fazendo uso da
interpretação do brincar, vai desvelando as teorias sexuais infantis erigidas por Erich e
permitindo que a criança expresse suas fantasias. Questões sobre a geografia do corpo

44
OS CAMINHOS DE KLEIN E O SURGIMENTO DA ANÁLISE LÚDICA │ UNIDADE II

materno e sobre o desejo de conhecê-la surgem na base dos receios que Erich apresenta
de explorar novos espaços. Como relata Petot (2008, p.29):

[...] A repressão do complexo de Édipo estendera-se a seus derivados


simbólicos e transformara o prazer primário em ansiedade. A
interpretação da ansiedade de castração, trazendo os desejos edipianos
para a consciência, permite um novo florescimento das brincadeiras e
exploração do espaço.

De fato, a análise de Erich encerra-se em 1921. O menino tinha, então, cerca de oito
anos de idade e, ao que parece, a intervenção de Klein, que consistiu basicamente
em comunicar à criança interpretações das fantasias que se manifestavam no ato do
brincar, levaram Erich à cura de sua fobia escolar e à superação de sua neurose infantil.

O que é importante perceber no breve relato que fizemos do caso Erich/Fritz é que,
ao renunciar ao seu desejo inconsciente de fazer do filho um prodígio intelectual, ela
finalmente consegue dar suporte à expressão dos complexos psíquicos do menino,
auxiliando-o a superar as inibições que começavam a se formar por causa da ansiedade
gerada por tais complexos. Klein, por essa via, realiza um movimento fundamental em
sua prática, que determinará não apenas todo o seu percurso futuro na psicanálise, mas
o próprio movimento psicanalítico, dando origem a uma nova escola: a escola kleiniana.

Eis para onde a escuta clínica de Klein a levará:

Educação Psicanálise de
Análise Lúdica
Psicanalítica Crianças

Fonte: IZAIAS, F. A Psicanálise em Freud e em Melanie Klein. Unyleya: 2017.

Assim, um dos ganhos importantes que Melanie Klein terá com a análise de Erich é
de ordem metodológica (Petot, 2008): ela percebe a insuficiência de uma abordagem
unicamente pedagógica para lidar com os conteúdos inconscientes que estão na base
do desencadear da ansiedade (que, por sua vez, sustenta as inibições). Além disso, ela
também percebe a relação direta do brincar com as fantasias inconscientes, passando
a utilizar as brincadeiras infantis de forma semelhante a como são tratados os sonhos
e os sintomas num processo de análise, ou seja, enquanto formações do inconsciente.

Desta forma, uma conclusão que será fundamental e que, inclusive, marca as
contribuições de Klein à psicanálise infantil: “A boa adaptação social e escolar da criança
não podem ser os objetivos do psicanalista de crianças, constituindo, quando muito,

45
UNIDADE II │ OS CAMINHOS DE KLEIN E O SURGIMENTO DA ANÁLISE LÚDICA

benefícios secundários da psicanálise. (...) Os objetivos da psicanálise de crianças só


podem ser definidos em termos psicanalíticos.” (PETOT, 2008, p. 32).

É assim que Klein torna-se pronta para iniciar suas contribuições à teoria psicanalítica.
A partir de 1922, passa a atender várias crianças (e, esporadicamente, adultos). Assim,
sedimenta um estilo próprio, trazendo contribuições teóricas e práticas ao fazer
iniciado por Freud. Partamos, então, para a configuração do setting desta importante
psicanalista.

46
CAPÍTULO 3
O Setting Kleiniano

É importante começar ressaltando que Melanie Klein, apesar de ter criado uma nova
técnica para a análise infantil – técnica que, inclusive, divergia de afirmações freudianas
sobre a escuta de criança -, acreditou e investiu, ao longo da construção de sua vivência
clínica, na invenção psicanalítica. Ela declarou mais de uma vez sua fidelidade aos
pontos que Freud havia destacado como sendo basais na estrutura da Psicanálise. Em
Princípios Psicológicos da Análise de Crianças Pequenas, Klein (1926/1996, p.163)
estabelece claramente a pertinência do seu fazer ao campo psicanalítico:

Trata-se apenas de uma técnica diferente, e não de novos princípios


de tratamento. Os critérios do método psicanalítico proposto por
Freud, ou seja, que devemos utilizar como ponto de partida os fatos
da transferência e da resistência, levar em consideração os impulsos
infantis, a repressão e seus efeitos, a amnésia e a compulsão à repetição,
e que, além disso, devemos descobrir a cena primária, como ele exige em
“História de uma Neurose Infantil” – todos estes critérios são mantidos
em sua integridade na técnica do brincar. O método do brincar mantém
todos os princípios da psicanálise e leva aos mesmos resultados da
técnica tradicional. A diferença é que ele emprega recursos técnicos
adaptados à mente da criança.

Quais seriam, então, as diferenças técnicas que Melanie Klein propõe? A possibilidade,
em si, de levar adiante uma análise infantil é a primeira delas.

Aqui é necessário dizer que Freud havia desaconselhado a psicanálise de crianças - isso
por considerar que elas não teriam ainda adquirido condições de realizar a associação
livre (pedra angular do fazer psicanalítico). Klein, que concorda com Freud no que diz
respeito à inadequação do setting clássico da psicanálise ao atendimento com crianças,
apresentará como alternativa a técnica do brincar (ou análise lúdica).

Como vimos, esse desenvolvimento técnico começa a surgiu na sua experiência com a
análise de Erich. No entanto, será com Rita, uma paciente de dois anos e nove meses
atendida por Klein em 1923, que a análise lúdica passará a ser realizada de forma
sistemática. Rita tinha forte fixação pela mãe e apresentou grande resistência em ficar
sozinha com Melanie Klein, o que obrigou a analista a atendê-la na casa dos pais.

47
UNIDADE II │ OS CAMINHOS DE KLEIN E O SURGIMENTO DA ANÁLISE LÚDICA

Rita verbalizava muito pouco e brincava durante quase todo o tempo da sessão.
Pode-se dizer que a pequena paciente praticamente impôs o brincar como forma de
expressão a ser utilizada nas sessões. Esse fato acabou por enriquecer as experiências
de Melanie Klein com a escuta de crianças pequenas e, a partir da vivência com
Rita, a psicanalista adotará a técnica do brincar na análise de crianças. Defenderá,
portanto, que, seja qual for a idade do paciente, o importante é que ele, no curso
de sua análise, tire partido de todos os recursos de linguagem a sua disposição. E o
brincar se apresenta como um dos mais profícuos entre eles. Entendamos o porquê.

Melanie Klein passa a compreender o brincar como uma formação do inconsciente.


Sendo assim, ele seria, como os sonhos, uma via de acesso para os complexos alijados
nessa instância, que já encontrariam-se presentes mesmo no psiquismo de crianças
bem pequenas.

Nesse sentido, é preciso entender que, se por um lado, Klein defende que a maneira
de expressão das crianças é diferente dos adultos (e isso precisaria ser levado em
consideração na condução das análises), por outro, a linguagem usada pelo inconsciente
é a mesma em ambas as formações psíquicas. Ou seja, assim como os adultos representam
suas fantasias, desejos e experiências nos sonhos, as crianças utilizam a mesma forma
de representação para construir suas brincadeiras. Klein percebeu que aestrutura de
composição dos sonhos é a mesma de composição dos jogos.

Portanto, assim como era possível compreender todos os expedientes de representação


e os mecanismos empregados no trabalho dos sonhos, também era possível entender as
brincadeiras em sua relação com o resto do comportamento da criança em análise. Da
mesma forma que os elementos do sonho, quando analisados, levavam à descoberta do
conteúdo latente encontrados na base de sua formação, os elementos do jogo infantil
permitiam vislumbrar os significados latentes que se encontravam na origem de sua
constituição. A análise lúdica funcionava, dessa forma, como a análise de adultos: ao
tratar sistematicamente situações apresentadas nos jogos, era possível reconstituir suas
conexões com a cena primária que lhes dera origem – fosse ela real ou imaginada – o
que permitia à criança elaborá-la. (KLEIN, 1932/1981)

Pesquisando
Cena Primária – “Cena de relação sexual entre os pais, observada ou suposta
segundo determinados índices e fantasiada pela criança, geralmente interpretada
como um ato de violência por parte do pai”. Para saber mais, consulte o verbete
“Cena Originária ou Protocena” no Vocabulário de Psicanálise, (Laplanche e
Pontalis, 1983, p.91).

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OS CAMINHOS DE KLEIN E O SURGIMENTO DA ANÁLISE LÚDICA │ UNIDADE II

Assim é que, entendendo o brincar como uma mensagem, Klein vai compondo seu
setting terapêutico: “pequenos homens e mulheres de madeira, carroças, carruagens,
automóveis, trenzinhos, animais, cubos e casas, além de papel, tesoura e lápis”. (KLEIN,
1932/1981, p.41) A necessidade do acesso fácil à água também é ressaltada. Porém, mais
que isso, vai surgindo uma teoria que sustenta essa prática analítica. Os brinquedos são
facilitadores da expressão da criança, pois, ainda que esteja inibida em seu brincar, ela
lançará ao menos um olhar para eles, permitindo ao analista um primeiro vislumbre
dos complexos inconscientes.

Todavia, esse não é o único papel dos brinquedos. É o que Klein defende quando busca
o motivo pelo qual as crianças brincam. Que a criança extrai prazer da atividade do
brincar é algo evidente, mas por quê? Melanie Klein (1926) relembra que a libido,
inicialmente, é dirigida para o próprio ego. No entanto, a criança, ao longo de seu
processo de desenvolvimento, redirecionará essa libido para objetos externos (pessoas/
coisas), estabelecendo suas primeiras relações com o mundo e voltando-se para a
realidade. É desse contexto que parte o entendimento da psicanalista acerca da função
do brincar.

Petot (2008) recompõe as ideias de Klein sobre o tema, lembrando que ela retoma a
concepção freudiana de que as pulsões sexuais surgem tendo como base os instintos
de sobrevivência. Nessas experiências primeiras, a criança irá vivenciar o prazer do
órgão (ou seja, uma satisfação local de ordem sexual que está na base do autoerotismo).
Com ele, surgem também os primeiros investimentos libidinais (de caráter, portanto,
narcísico). Por meio do processo de identificação – precursor do simbolismo – os objetos
que receberam de início o investimento libidinal vão conduzindo a outros. Assim é que
os pés, as mãos, a língua, os olhos, enfim, todo o corpo vai sendo colocado como alvo
da catexia libidinal.

Logo, continuando a trilhar este caminho, a libido passa a investir também as atividades
desempenhadas por essas diversas partes do corpo. É por essa via que tais atividades
serão revestidas de significações ligadas à atividade do coito. “As representações
simbólicas que as acompanham são, portanto, as primeiras fantasias masturbatórias
que se ligam diretamente à cena primitiva”. (2008, p.67). Sigamos essa trilha mais
detidamente:

Após a identificação, que propicia o investimento libidinal de diversas partes do


corpo, ocorrem as primeiras manifestações da repressão, tornando inconscientes as
representações sexuais que haviam sido construídas no processo identificatório. O
simbolismo surge aí, para propiciar que essas representações reprimidas sejam usadas

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UNIDADE II │ OS CAMINHOS DE KLEIN E O SURGIMENTO DA ANÁLISE LÚDICA

como base para a formação de significações sexuais – e, dessa vez, o material serão as
atividades do ego.

Para Melanie Klein, as atividades que primeiramente receberiam os investimentos da


libido seriam a fala e o movimento. Assim, elas passariam a ser instrumento da satisfação
libidinal, palco dos primeiros processos de sublimação (sublimações primárias). Logo,
a fala e o movimento tornam-se vias de descarga da libido, por meio de um investimento
sexual baseado no simbolismo.

Acontece que, as sublimações primárias passam a ser o pilar do desenvolvimento


de todas as outras sublimações. Esse desenvolvimento se faz segundo uma ordem
determinada. Ocorrendo a fixação libidinal nas sublimações primárias, estão criadas
as condições preliminares às demais sublimações. É aí que surge, então, a primeira
sublimação secundária: o brincar.

O brincar é a manifestação imediata das duas sublimações primárias que a criança


realizou para os atos de falar e se movimentar – e estará no fundamento de todas as
sublimações posteriores. Por ser ele uma combinação dessas primeiras sublimações,
ocupará um lugar estratégico no desenvolvimento do indivíduo, pois abre o caminho
para o investimento libidinal de outras atividades e objetos. E, como esse investimento
ocorre inicialmente no campo do “faz-de-conta”, o brincar também tem a função de
preparar o sujeito para o enfrentamento da realidade. Exerce, portanto, alguns papéis
importantes: expande o investimento libidinal para novas atividades do ego, e auxilia
na adaptação do indivíduo à realidade.

Figura 5. Crianças brincando. Portinari, 1940.

Fonte: <http://www.elfikurten.com.br/2011/02/candido-portinari-mestres-da-pintura.html>

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OS CAMINHOS DE KLEIN E O SURGIMENTO DA ANÁLISE LÚDICA │ UNIDADE II

O brincar pertenceria, então, à primeira camada de sublimações secundárias, sobre


a qual se erigiriam outras camadas compostas por novas atividades do ego (comoas
atividades relacionadas à vida escolar, por exemplo). Entender o brincar ocupando
essa posição com relação às demais sublimações secundárias ajudará a compreender,
também, o efeito das inibições que incidem sobre ele. Sim, porque muitas vezes Klein
recebia em sua clínica crianças com a atividade de brincar extremamente empobrecida,
esse fato resultava em uma série de consequências para a vida do indivíduo.

O ponto é que, as sublimações primárias não conseguem realizar a satisfação completa


das pulsões libidinais. Freud já afirmava que sempre há um resto de pulsão, uma sobra
que não consegue se resolver na destinação da sublimação. Esse fracasso parcial é o que
coloca a libido em movimento. Ela se vê compelida a buscar novos meios de satisfação,
que, em última instância, nunca a esgotarão, pois a libido é, irremediavelmente,
insaciável. Justamente essa característica é que a faz motor da atividade, pois seu
investimento se repetirá continuamente no decorrer de todo desenvolvimento,
compondo novos símbolos e permitindo novas sublimações e formações reativas.

É por meio desse processo que as sublimações primárias forneceram sua energia para
as sublimações secundárias. Todas as sublimações remeterão, em última análise, à fala
e ao movimento. E o brincar será a primeira delas, constituindo-se como fundamento
de todas as demais sublimações. Da mesma forma, todas as inibições recairão sobre a
inibição do brincar, pois a inibição de uma sublimação está fundada em uma sublimação
anteriormente reprimida.

É esse o motivo pelo qual Klein vai dar ênfase, no início das análises que empreende, à
liberação do brincar. A questão é que as brincadeiras trazem em si simbolizações das
fantasias sexuais – que remetem às teorias sexuais infantis e que têm como matéria
prima a cena primitiva. Quando essas fantasias são reprimidas e, nesse processo, gera-
se um sentimento de culpa na criança demasiadamente pesado para ser suportado por
um ego ainda fraco, a repressão atinge também seus representantes simbólicos.

Dessa forma, o brincar e, consequentemente, as outras sublimações secundárias que


nele se assentam (como pesquisar, conhecer, ler, escrever passear e tantas mais) serão
afetadas, pois o sentimento de culpa – com a correlata ansiedade desencadeada por
este sentimento – vai se espraiando para as atividades ligadas às cadeias simbólicas
que, por sua vez, partem das primeiras fantasias sexuais. Eis o processo que conduziria
várias atividades da vida do indivíduo a sofrerem inibições.

Mais um motivo pelo qual o brincar pode ser prazeroso para os pequeninos: Porque,
quando a criança é liberada das inibições do brincar, ela deixa de despender parte
de sua energia psíquica com a repressão de complexos inconscientes, liberando essa

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UNIDADE II │ OS CAMINHOS DE KLEIN E O SURGIMENTO DA ANÁLISE LÚDICA

energia inclusive para realizar novas sublimações. A elaboração da ansiedade vinculada


às fantasias também gera descarga de tensão e consequente alívio para o indivíduo.

Creio que podemos agora sistematizar algumas das respostas dadas por Melanie Klein
à pergunta por que as crianças brincam? Essas respostas nos permitem antever a
importância da contribuição técnica kleiniana quando a análise lúdica se estabelece no
setting da psicanálise com crianças.

(Fonte: IZAIAS, Fabíola. A Psicanálise em Freud e em Melanie Klein. Unyleya: 2017)

Vislumbrando esse quadro, podemos, por fim, concluir a dimensão que o brincar
assume no desenvolvimento da técnica e da prática kleinianas. Petot (2008, p.69) bem
o expõe, quando destaca:

O método psicanalítico é simultaneamente um processo de investigação


e uma terapêutica. Enquanto processo de investigação, tem função
de interpretar as brincadeiras da criança, destacando as fantasias
masturbatórias subjacentes a cada atividade lúdica e remetendo-as à
cena primitiva da qual constituem a elaboração. Enquanto terapêutica,
só pode atingir seu objetivo de redução dos sintomas e de restituição
das sublimações através da interpretação da vida de fantasia atuada no
brincar, cuja inibição constitui o primeiro momento de formação do
sintoma neurótico ou da inibição de uma aptidão. As duas dimensões
– heurística e terapêutica – da técnica psicanalítica aplicada à criança
levam a conferir ao brincar um valor privilegiado no tratamento
enquanto signo diagnóstico, material a ser interpretado e âmbito de
evolução do processo analítico.

Aqui aparece mais claramente, portanto, a segunda contribuição técnica que Melanie
Klein faz à psicanálise: sua forma original de interpretar.

No que diz respeito à interpretação, Melanie Klein também inovou em seu setting. A
escola vienense de psicanálise infantil (a quem estava ligado o nome de Anna Freud, e
que defendia o tratamento educativo e curativo) pregava a necessidade de avaliar em
que oportunidade dever-se-ia entregar ao analisando uma interpretação. Essa escola
defendia que, primeiramente, o analista teria que interpretar as defesas que o paciente
manifestava, antes de chegar à interpretação das fantasias inconscientes e de suas
pulsões correspondentes. A interpretação, portanto, tinha de começar pelas camadas

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OS CAMINHOS DE KLEIN E O SURGIMENTO DA ANÁLISE LÚDICA │ UNIDADE II

mais superficiais do psiquismo, penetrando paulatinamente os demais estratos (regra


da superficialidade).

É necessário afirmar também que, a linha da escola vienense evitava a interpretação da


transferência, até porque questionava a própria natureza da transferência nas crianças,
alegando que os pequenos pacientes ainda estariam na presença real de seus primeiros
objetos de amor, o que implicaria que não teriam ainda finalizado a construção dos
protótipos amorosos usados como base para as relações transferenciais. Seria, dessa
forma, teoricamente inconsistente falar de uma transferência propriamente dita na
análise de crianças.

Diversa a essas ideias, a prática kleiniana prega o uso das interpretações profundas, e
essas interpretações ocorrem na transferência. Entendamos melhor:

As primeiras interpretações feitas em análise têm, para Klein, importância fundamental


no seguimento do processo. Ela afirma que, nas crianças, a transferência ocorreria mais
rapidamente que nos adultos, seria imediata. Assim é que, já nas primeiras sessões
seria possível ao analista perceber a natureza da transferência. A transferência positiva,
assim como pensava Freud, seria um motor para o tratamento. Já a transferência
negativa, sobre essa seria necessário atuar com urgência desde o início do tratamento.

A transferência negativa em geral se impõe com força no início da análise. Mas, ela
também aparece quando os pequenos pacientes começam a acessar seu material
complexivo. Klein acreditava que a facilidade com que a criança fazia uma transferência
espontânea se devia ao fato de a angústia infantil ser muito mais aguda que a adulta.
Esse fato seria determinante na aproximação ou no afastamento dos objetos. Os objetos
que aliviassem a tensão da angústia gerariam uma transferência positiva na criança, já
os que excitassem a angústia levariam a uma transferência negativa.

Assim, nas crianças pequenas, a transferência costuma se manifestar como medo


indisfarçado, enquanto que, nas maiores, surgirá como desconfiança e reserva. Isso
acontece porque o deslocamento é uma das maneiras de se lidar com a angústia.
A criança, portanto, estende seus temores dos objetos mais próximos (imagos
internalizadas da “mãe má” e do “pai mau”) para objetos mais distantes, como forma
de tentar lidar com seus medos. “Essa é a razão porque a criança realmente neurótica,
em quem predomina a sensação de estar sob a ameaça de perigo constante e que vive na
expectativa de um pai ou mãe ‘maus’, reagirá com angústia ante a presença de qualquer
estranho”. (1932/1981, p.51)

O analista, em geral, enfrenta essa situação no início da análise. Ele precisa estar
preparado para agir logo que a transferência negativa surja, entregando a seu pequeno

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UNIDADE II │ OS CAMINHOS DE KLEIN E O SURGIMENTO DA ANÁLISE LÚDICA

paciente a interpretação que lhe é correspondente. Tal interpretação precisa incidir


sobre o material inconsciente que desponte como o mais urgente, para que a situação
analítica se estabeleça. A urgência será avaliada pela repetição frequente de determinado
tema nas representações do pensamento lúdico e pela forte tonalidade sentimental que
as acompanhará – deixando antever a intensidade dos afetos ligados ao conteúdo.

Caso o analista não aja no momento adequado, negligenciando um material de natureza


urgente, a criança interromperá a brincadeira, manifestando grande resistência, e
despertando a angústia. Essa situação, se não for manejada pelo analista, pode levar
a criança a vivenciar crises de angústia nas sessões de análise. Por isso é que quando
“predomina uma transferência negativa ou quando as angústias e resistências surgem
desde o princípio, já vimos a absoluta necessidade de se interpretar o mais rápido
possível.” (KLEIN, 1932/1981, p.52)

Assim, Klein afirmará que o analista não deve temer uma interpretação feita em
profundidade, mesmo no início da análise. Na verdade, ela sustenta que a interpretação
pode e deve ser realizada logo que o paciente tiver deixado entrever (através de seus
jogos, desenhos, fantasias) os seus complexos, já que “a função da interpretação em
profundidade é simplesmente a de abrir a porta do inconsciente e diminuir a angústia
suscitada, preparando, assim, o caminho para o trabalho analítico”. (KLEIN, 1932/1981,
p.50).

Portanto, para a psicanalista a interpretação não só pode como deve ser realizada em
profundidade. A profundidade de uma interpretação será tão fundamental quanto sua
oportunidade. Ao levar em conta a urgência dos conteúdos psíquicos que vão emergindo
nas sessões, o analista é obrigado a aprofundar-se até a camada psíquica que está se
manifestando nas produções do paciente, locus não apenas do material que teima
desvelar-se, mas também das ansiedades e culpa que o acompanham.

Mas, se o psicanalista se eximir de realizar uma interpretação em profundidade e


permanecer, como na análise de adultos, nos estratos superficiais do psiquismo (mais
próximo do ego e da realidade), ele falhará em seu objetivo de estabelecer a situação
analítica e de reduzir a ansiedade da criança. Sobre isso, Klein (1932/1981, p.52) alerta
claramente:

Uma interpretação que não desce às profundidades que estão sendo


ativadas pelo material e pela angústia concernentes; que não ataca o
local onde reside a mais forte resistência latente; e que não se empenha,
antes de mais nada, em reduzir a angústia no ponto onde é mais violenta
e evidente, uma tal interpretação não terá qualquer efeito sobre a
criança.

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OS CAMINHOS DE KLEIN E O SURGIMENTO DA ANÁLISE LÚDICA │ UNIDADE II

Klein ressalta também a importância de cuidar do linguajar usado nas interpretações.


Ele deve ser escolhido em função da maneira como as crianças pensam e falam. Elas
ainda se encontram, em grande parte, sob o domínio do inconsciente, e sua linguagem
traz a marca desse fato, sendo, predominantemente, pictórica. Palavras evocam quadros
e fantasias, e acessam o mundo psíquico infantil.

Pode-se concluir a partir do exposto que Klein assumirá, no que diz respeito ao papel da
interpretação, um caminho bem diferenciado que até então era seguido nas tentativas
de análise de crianças. A interpretação é feita na transferência e é porta de entrada para
a análise, possuindo, inclusive, o efeito de diminuir a inibição no brincar e de modificar
o caráter dos jogos (tornando a representação do material inconsciente mais clara).

Klein (1932/1981, p.58) resume os elementos que a interpretação assume em seu setting
da seguinte forma:

Para sermos mais exatos, a interpretação deve ser feita no momento


oportuno e deve atingir a zona do psiquismo que se encontra ativada
pela angústia; tal interpretação deve basear-se numa apreciação justa
e rápida do sentido desse material, que nos esclarece tanto no que se
refere à estrutura no caso, quanto ao estado afetivo atual do paciente;
mas, sobretudo, é necessária uma percepção imediata da angústia
latente e do sentimento de culpa nela contido.

Outra contribuição técnica de Melanie Klein, como assinalamos anteriormente, foi a


forma como ela passou a manejar a transferência na clínica psicanalítica.

Em 1926, Anna Freud defende a ideia de que só seria possível observar na análise de
crianças manifestações transferenciais positivas. E, mesmo essas, ocorreriam dentro de
estreitos limites, pois que os pequenos pacientes ainda não estariam aptos a desenvolver
uma verdadeira neurose de transferência. Essa declaração era, na verdade, uma crítica
dirigida aos relatos de caso de Melanie Klein, nos quais despontavam diversas descrições
de fenômenos transferenciais – já presentes desde o início do processo analítico e, em
geral, de caráter negativo.

Klein não apenas atestava a presença da transferência negativa na análise com crianças,
ia bem além. Ela situava o manejo desse fenômeno por meio da interpretação como
a pedra de toque para a entrada em análise. Ao receber as críticas de Anna Freud,
revidará com uma concepção importantíssima para demarcar a diferença entre o setting
kleiniano e a psicanálise infantil praticada pela escola de Viena. Klein declarará que
Anna Freud não consegue perceber a presença da transferência em sua prática clínica
por causa da posição que assume frente a seus pequenos pacientes. Anna se colocaria

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UNIDADE II │ OS CAMINHOS DE KLEIN E O SURGIMENTO DA ANÁLISE LÚDICA

em um papel pedagógico, o que impediria a criança de manifestar suas fantasias, pois


que o infante faria previamente a leitura do que seria ou não aprovado pela analista,
passando a conduzir-se a partir desse parâmetro ao invés de simplesmente expressar
seus impulsos mais urgentes.

Para Klein, portanto, a posição do analista tem que ser de neutralidade. Só assim é
possível para ele perceber a presença de uma verdadeira capacidade de transferência
nas crianças – e, por meio dela, alcançar as fantasias do infante. Isso porque a relação
do paciente com o analista não seria uma relação com um objeto real.

Segundo Anna Freud, a relação da criança com os pais é uma relação com objetos
reais, assim como será a relação da criança com o analista (que é, tão somente, uma
reprodução dessa relação com os pais). Mas, para Klein, mesmo a relação com os pais
já não é uma relação com objetos “reais”. Os pais com quem a criança se relaciona são
imagos internas compostas a partir de vivências reais e fantasias. São representações
imaginárias e deformadas dos pais reais.

A experiência clínica de Klein a levará a concluir que, desde o início da vida, mesmo não
estando ainda integrado, o bebê possui um ego capaz de sentir ansiedade e se defender
dela por meio de sucessivas introjeções e projeções, estruturando um mundo interno e
dando início às relações objetais. O bebê opera uma clivagem em suas representações
imaginárias, da qual resultam “bons” e “maus” objetos. Esses objetos são projetados
não só para dentro dos pais, mas para todas as relações “reais” amorosas ou hostis da
vida cotidiana (identificação projetiva).

Portanto, a relação com os pais já é uma relação transferencial – sendo a transferência


entendida aqui como resultante da externalização, sob a pressão exercida pela ansiedade,
de relações objetais internalizadas. (BARROS, E.M.R; BARROS, E.L.R, 2009).

Assim, Klein defenderá que a transferência observada na psicanálise infantil não é


um deslocamento da relação com os pais reais para a relação com o analista, mas um
direcionamento para o analista da mesma dinâmica relacional que a criança estabelece
com seus objetos internos. A questão essencial envolvida na transferência não será,
portanto, a da relação entre passado e presente, mas aquela que se trava entre o mundo
interno e o externo. Sobre isso, Klein (1943/1989, p.50) afirma:

Através desta utilização ampliada da situação transferencial, o analista


se dá conta de que está desempenhando uma variedade de papéis na
mente do paciente, e que ele não está só representando pessoas reais
do presente e do passado do paciente, mas também os objetos que o
paciente internalizou desde seus primeiros dias de vida, construindo

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OS CAMINHOS DE KLEIN E O SURGIMENTO DA ANÁLISE LÚDICA │ UNIDADE II

assim o seu superego. Desta forma, somos capazes de compreender e


analisar desde o seu início o desenvolvimento de seu ego e seu superego,
de sua sexualidade e de seu complexo de Édipo.

Importante ter clareza, ainda, de que a criança não reage somente às experiências reais
que vivencia com os pais. Ela responde às representações que construiu da realidade a
partir de suas introjeções e projeções. Portanto, o que comparece na transferência não
são lembranças reais de fatos ocorridos no passado, mas depositórios internalizados de
vivências já deformadas pelo processo de introjeção.

A criança, em seu desenvolvimento, vai realizando o que Klein denomina de interjogo


entre pais reais e pais introjetados. É esse interjogo que permite, gradativamente, a
redução da distância entre essas figuras, aproximando os objetos internos dos objetos
reais.

No caso da análise, especificamente, o que deve imperar é a supressão deste interjogo.


Para propiciá-la, o analista deve primar pela neutralidade, respondendo às falas e aos
atos dos pequenos pacientes tão somente por meio de interpretações – sem censurar
ou demonstrar acordo com qualquer um deles. Assim, quando as crianças transferirem
para o analista seus objetos introjetados, a ausência de resposta “real” por parte do
analista permitirá a emergência, em estado puro, da potencialidade de transferir que as
crianças de fato possuem. É assim que constata Klein (1943/1989, p.51):

Esta interação constante entre processos conscientes e inconscientes,


entre produtos da fantasia e percepção da realidade, encontra plena
expressão completa na situação transferencial. Então vemos, em certos
estágios da análise, como o foco se desloca das experiências reais para
situações de fantasia e para situações internas – com isso quero dizer o
mundo de objetos sentido pelo paciente como estabelecido no seu interior
– e novamente de volta para situações externas, que mais tarde podem
aparecer como um aspecto realista ou fantasioso. Este movimento para
dentro e para fora está relacionado com o intercâmbio de figuras reais,
fantasiadas, externas e internas, que o analista representa.

Por fim, constata-se que as concepções kleinianas também vão colocar a transferência
na posição de alavanca do processo analítico, pois, para Klein, a interpretação permite
a rápida instituição de uma nova forma de interjogo entre os objetos introjetados e o
analista (sendo este último visto como um parceiro, que interpreta as atividades lúdicas
e expõe as ansiedades, propiciando a elaboração destas). “O processo analítico tem,
pois, como tarefa, reduzir os afetos patogênicos na e pela transferência, e a criança
desenvolve uma neurose de transferência plena e integral, no sentido em que Melanie

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UNIDADE II │ OS CAMINHOS DE KLEIN E O SURGIMENTO DA ANÁLISE LÚDICA

Klein entende este termo, o que não coincide exatamente com aquele que lhe é dado
classicamente”. (PETOT, 2008, p.106)

Ao final desta exposição sobre algumas das principais contribuições técnicas de


Melanie Klein – análise lúdica, interpretação e transferência – pode-se perceber a
marca assumida pelo setting kleiniano. Klein não apenas se afasta da escola vienense
de psicanálise, mas das próprias concepções que nortearam inicialmente sua prática.

Enquanto a linha de Hug-Hellmuth (psicanalista vienense considerada uma das


pioneiras da psicanálise com crianças e cujo grupo idéias Anna Freud fez parte)
defendia que a psicanálise com crianças deveria perseguir atitudes simultaneamente
educativas e curativas, Klein sustentará que “a situação analítica só pode ser estabelecida
e assegurada quando se mantém uma atitude puramente analítica com o paciente”.
(KLEIN, 1932/1981, p.44).

Qualquer processo de esclarecimento deve, portanto, agora se colocar em função dos


objetivos analíticos. O material fornecido deverá inicialmente ser apenas interpretado,
sem qualquer explicação. Como elucida Klein (1926/1996, p.162):

Assim, o esclarecimento vai acontecendo aos poucos, com a remoção das


resistências inconscientes que agiam contra ele. [...] Essa compreensão
é aceita sob injunção do superego, cujas exigências são modificadas
pela análise, de modo que ele passa a ser tolerado e obedecido por um
ego bem menos oprimido e, portanto, mais forte do que antes. Assim,
a criança não se confronta de repente com a necessidade de admitir
uma nova visão de sua relação com os pais, nem é obrigada a absorver
de forma mais geral, um conhecimento que é um fardo para ela. Minha
experiência mostra que os efeitos desse conhecimento gradualmente
elaborado é aliviar a criança e estabelecer uma relação mais favorável
com os pais [...]

Destarte, o setting kleiniano apresenta sua forma ao meio psicanalítico de então.


Nada de educação psicanalítica, tem-se a análise lúdica. Constituíra-se uma nova
técnica, permeada por novos conceitos teóricos. Assim, Klein inscreve sua marca nas
contribuições que a Psicanálise vem oferecer ao tratamento do sofrimento psíquico.
Para entender melhor essa marca, retomemos alguns dos principais conceitos que
embasam a técnica Kleiniana.

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CAPÍTULO 4
O Mundo Interno e seus
desdobramentos

Melanie Klein, ao empreender a análise de crianças, adquiriu amplo conhecimento


do funcionamento emocional da psique infantil. Seu entendimento do mundo interno
dos pequenos pacientes também auxiliou no enriquecimento da compreensão da
personalidade adulta – com seus núcleos sedimentados, que operariam por toda a vida.
Isso porque a psicanalista defendia que a estrutura arcaica das emoções infantis tinha
participação fundamental no desenvolvimento da mente dos adultos, levando-se em
conta, inclusive, experiências datadas de um período pré-verbal.

A investigação que Klein realizou da vida emocional dos bebês permitiu o vislumbre das
atividades mentais primitivas e a possibilidade de dar palavras aos elementos primevos
e aos núcleos mais infantis da personalidade. Tais núcleos internos são expressão do
funcionamento emocional dos pacientes e base de significação para suas vivências no
campo das relações objetais.

Uma concepção muito importante na teoria kleiniana é a noção de fantasia. Klein


dedicou considerável atenção ao papel da fantasia inconsciente dinâmica na vida
psíquica da criança. Em sua obra, o conceito freudiano de fantasia inconsciente recebeu
maior destaque, e ampliou-se.

Como vimos na unidade dedicada aos Freud, enfrentar a questão da fantasia inconsciente
é estar no cerne da composição da psique, por causa da relação que essa questão possui
com os instintos, os objetos, a simbolização e a estruturação das trocas entre a realidade
psíquica e a realidade exterior.

O mundo fantasmático que surge na obra de Melanie Klein é, para muitos, inicialmente
espantoso. Povoado de objetos internos e complexas tramas – onde cobiça, inveja,
vingança, medo, gratidão, o mais extremo amor e tantos outros sentimentos vão
entrando em jogo na vida do infante –, esse mundo interno que o sistema kleiniano
descreve é fruto de uma longa experiência clínica, não de uma dedução teórica que se
constrói a partir do vazio.

Como nos afirma Tanis (2009, p.69), o universo da fantasia inconsciente, da forma
como Klein o concebe, é uma linguagem corporal muito viva e extremamente concreta.
Para a criadora da psicanálise com crianças, existe uma continuidade muito clara
entre o corpo e a fantasia, por isso é que Klein entenderá que a fantasia é, desde suas

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UNIDADE II │ OS CAMINHOS DE KLEIN E O SURGIMENTO DA ANÁLISE LÚDICA

origens, inconsciente – iniciando sua ação antes mesmo da repressão. Nesse sentido,
sua pesquisa das manifestações da fantasia abarca inclusive os processos psíquicos pré-
verbais, o que mais uma vez denota a concepção de uma organização do psiquismo
sofisticada e atuante desde os primeiros meses de vida.

Importante compreender também que, a fantasia não é a contraposição a uma falta


de sentido da realidade. Não é uma oposição negativizada da razão. Na verdade, para
Klein, não é possível conceber a razão sem o colorido que lhe atribui a vida emocional. As
emoções deformam as percepções e as imagens que formamos do mundo, determinando
a tonalidade dos elementos que chegam a nossa mente partindo do mundo externo. A
razão é, portanto, inevitavelmente permeada pela fantasia. “O significado emocional das
experiências não nos é dado por uma faculdade independente idealizada como razão,
capaz de operar fora de uma zona de conflitos, mas pela organização das emoções que
vão colorir nossa razão, transformando-a em crenças e percepções”. (BARROS, E.M.R;
BARROS, E.L.R, 2009, P.20).

Sendo assim, fantasia e realidade passam a constituir um dueto indissolúvel na


composição da subjetividade. O que determinaria o caráter do psiquismo do indivíduo
seria a natureza de suas fantasias inconscientes e o modo como elas se relacionariam
com a realidade externa.

Mas o que afinal seria, para Klein, a fantasia? Segundo Segal (1973), a fantasia pode ser
considerada como o representante psíquico, a expressão mental dos instintos. Entende-
se, portanto, que o inconsciente seria habitado, sobretudo, por fantasias – entendidas
no sentido que Klein a elas atribuiu: o de representantes mentais instintuais.

Logo, na teoria kleiniana, as ideias que representam os instintos são as fantasias


primitivas originais. Já no início da vida, a atuação dos instintos seria transposta
para a vida mental com fantasias de satisfação. Nelas, o instinto aparece como sendo
satisfeito por um objeto apropriado. As fantasias inconscientes, datadas de um período
pré-verbal, são experimentadas como sensações, depois tomam a forma de imagens
plásticas – imagens visuais, auditivas, cinestésicas, táteis, gustativas, olfativas... Os
sentimentos (desejos, angústia, amor), assim como as defesas erigidas para com eles
lidar, também serão traduzidos pelo pequeno indivíduo como fantasias inconscientes.

Segundo Tanis (2009), um dos pontos essenciais resultante das pesquisas de Melanie
Klein é a percepção do aspecto originário das fantasias inconscientes. As fantasias não
teriam origem em um conhecimento estruturado a partir do mundo externo, sua fonte
seria interna: os impulsos instintivos. Portanto, a originalidade da ideia kleiniana não
residiria no fato de existirem representações protomentais das ações dos instintos, mas
da suposição de que ações, por exemplo, de natureza destrutiva – como dilacerar e

60
OS CAMINHOS DE KLEIN E O SURGIMENTO DA ANÁLISE LÚDICA │ UNIDADE II

devorar – já estariam contidas instintivamente no impulso, de maneira que a fantasia


precederia a experiência.

Sobre isso, Isaacs (1952/1986 p.108) exemplifica:

A fantasia de que os seus impulsos apaixonados destruirão o seio


materno não exige que o bebê tenha realmente visto os objetos devorados
e destruídos e chegue, depois, à conclusão de que também poderia fazê-
lo. Esse anseio, essa finalidade, essa relação com o objeto, é inerente ao
caráter e direção do próprio impulso e seus afetos correlativos.

Apesar desse entendimento, a realidade externa em nada diminui sua importância


na estruturação psíquica do sujeito. Assim é que Isaacs (1952/1986, p. 107) também
ressaltará:

Portanto, as primeiras fantasias promanam de impulsos físicos e estão


interligadas com sensações e afetos físicos. Expressam primordialmente,
uma realidade interna e subjetiva; contudo, desde o princípio, estão
vinculadas com uma experiência concreta, mais ou menos limitada e
estreita, da realidade objetiva.

Essa teorização é o que permite presumir a existência de fantasias desde o nascimento,


pois, já ali, os instintos estariam em ação. A primeira fome, acompanhada pela vivência
instintual que busca satisfazê-la, será seguida pelo fantasiar de um objeto capaz de
dar resposta ao anseio aí gerado. Dessa forma, pode-se perceber a vinculação entre os
conceitos de fantasia e de objeto interno.

Tomemos como exemplo o primeiro objeto interno do bebê, o seio alimentador.


Ele pode adquirir tanto qualidades boas como más, de acordo com a faceta que
vai se apresentando para a criança a cada momento. O infante pode representar
figurativamente a fome como presença concreta de um objeto que o frustra, sendo
encarada como fruto da ação concreta de algo realmente existente dentro dele e
vivenciada como uma figura persecutória. Nesse sentido, o seio será interpretado
como bom, quando alimenta o bebê, ou como mau, quando não o satisfaz.

Esse também é um bom exemplo para pensar o conceito de objetos parciais. O bebê,
de início, não teria a capacidade de perceber a mãe como um todo unificado. Apesar
disso, já seria capaz de estabelecer suas primeiras relações objetais. Mas, como seu ego
primitivo ainda careceria de coordenação, essas relações seriam estabelecidas apenas
com partes do corpo da mãe – que, no entanto, seriam vislumbradas pelo bebê como
constituindo um todo. Essas partes do corpo constituiriam os denominados objetos
parciais (seio, fezes, pênis etc.).

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UNIDADE II │ OS CAMINHOS DE KLEIN E O SURGIMENTO DA ANÁLISE LÚDICA

Trata-se de objetos fundamentalmente emocionais, o que implica que a percepção de


sua existência material importa bem menos do que sua função enquanto objeto de
satisfação. Por isso mesmo, suas características intrínsecas, como entidade exterior ao
bebê, não é o que dá o tom à relação. O que entra em jogo é o modo como o bebê se
direciona para ele, com suas necessidades instintuais e fantasias. O objeto parcial será
vivenciado como um objeto que gratifica ou que frustra.

O objeto parcial não tem, portanto, características separadas e independentes do


indivíduo que o sustenta. Por esse motivo, ele possui contornos muito mais narcísicos
do que propriamente objetais. Apesar de sua natureza narcísica, o bebê comporta-se
com ele como se estivesse em uma relação com um objeto separado e diferenciado de
si. “De modo animístico, o bebê atribui-lhe sentimentos, qualidades e intenções que
precisam ser sentidos como alheios ao seu self”. (COELHO JÚNIOR; SIGLER, 2009,
p. 78)

Dessa maneira, o bebê irá projetar sobre esse objeto parcial – que ele, inicialmente,
encara como um todo constituído – suas fantasias inconscientes. De acordo com Simon
(2009), a projeção do instinto de vida resulta na imagem de um objeto de gratificação,
que ama e protege. Já a projeção do instinto de morte compõe a imagem de um
objeto frustrador, que rejeita e ameaça. Essas imagens criadas são, posteriormente,
introjetadas e servirão de material para a composição do mundo interno do bebê.
Diversas projeções e introjeções se seguirão às primeiras, de forma que a estrutura do
ego, do superego, assim como a estrutura de diversos objetos internos com quem essas
instâncias se relacionarão, serão, assim, formadas.

Nesse início, no entanto, o que ocorre é que esses objetos parciais iniciais montam
um cenário interno de elementos fantásticos que pode ser, ora imensamente generoso,
ora extremamente cruel. O bebê experimentará, assim, nos seus primeiros meses, uma
angústia persecutória (ou “paranóide”). Isso impulsionará o pequeno indivíduo a fazer
uso de alguns mecanismos defensivos. O principal deles – a clivagem – permite que o
bebê divida o objeto originário em objeto mau e objeto bom (“seio mau” e “seio bom”,
por exemplo). Depois, fazendo uso da projeção e da idealização, o bebê expele os objetos
persecutórios (evitando, assim, ser por eles destruído) e idealiza os bons objetos (para
que eles o protejam das ameaças de aniquilamento).

No entanto, com o desenvolvimento, começa a imperar no bebê uma tendência à síntese.


Ele começa a ser capaz de perceber o seio como um objeto total. Dessa maneira, os
objetos bons e os objetos maus principiam um processo de integração que os comporá
como objetos totais. Assim, progressivamente o bebê vai integrando seus objetos, e o
mundo passa a ser habitado por pessoas complexas e cheias de contradições. A criança

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OS CAMINHOS DE KLEIN E O SURGIMENTO DA ANÁLISE LÚDICA │ UNIDADE II

passa a vivenciar a ambivalência (ama e odeia o mesmo objeto), já que, a partir daí,
passa a conviver com as imagos de seu pai, de sua mãe e do casal parental de forma
integrada.

Coelho Júnior e Sigler (2009) elucidam que o objeto total não possui mais uma natureza
narcísica, pois não se define exclusivamente pelos sentimentos do bebê, contendo
características próprias. O bebê pode experimentar, então, uma maior estabilidade nos
seus sentimentos pelos objetos – sem vivenciar variações muito bruscas como nas fases
anteriores. Despontam, também, a preocupação e o interesse pelos objetos.

É nessa fase que, levando-se em conta a característica de onipotência das fantasias, o


bebê pode desenvolver a crença de que seu ódio é capaz de destruir os objetos amados.
Essa é a origem do sentimento de culpa e de arrependimento, pois a criança acredita que
pode ter causado um dano aos seres reais. Isso acarreta “um estado de luto pelo mundo
destruído, interna e externamente, vivido com muita dor e remorso, muito semelhante
ao do adulto quando perde um objeto amado”. (SIMON, 2009, p.29)

O amor e a culpa pelo prejuízo causado mobilizariam um mecanismo de reparação por


meio do qual a criança abriria mão de sua destrutividade e iniciaria um movimento
de restauração do objeto amado, processo de fundamental importância para o bom
relacionamento humano e a evolução da cultura. Eros imperaria sobre Thanatos.

Conclui-se, portanto, que os objetos internos – ideia central do sistema kleiniano


integram o conjunto de fantasias que são a base do nosso mundo psíquico.

Esse mundo psíquico, como já foi dito, também recebe as influências das experiências
concretas. Desde o nascimento, o indivíduo tem de lidar com as exigências reais,
experimentando diversas situações de gratificação e frustração. Essas experiências
vão tomando sua forma dentro do movimento incessante de trocas entre fantasias
inconscientes e realidade. Um campo retroalimenta o outro, e ambos vão se constituindo
em lentes por meio das quais o indivíduo enxergará e se relacionará com o mundo.

Assim, assistimos a uma inter-relação constante travada entre fantasia e realidade. A


fantasia inconsciente influencia e altera a percepção e a interpretação da realidade. O
inverso também ocorre: a realidade exerce seu efeito sobre a fantasia inconsciente e é
vivida, incorporada e atua sobre a própria fantasia.

A compreensão dessa inter-relação também está no fundamento das discussões sobre


a importância do ambiente no desenvolvimento da criança. Não há como negar o papel
que o ambiente exerce tanto no início da infância como em seus anos posteriores, mas
é preciso também atentar para a função das fantasias e das ansiedades persecutórias –

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UNIDADE II │ OS CAMINHOS DE KLEIN E O SURGIMENTO DA ANÁLISE LÚDICA

que existirão para além de o ambiente ser realmente bom ou mau. Como afirma Seggal
(1973), a importância do fator ambiental só pode ser avaliada em relação ao que ele
significa nos termos dos próprios instintos da criança. Ou seja, não há como fazer uma
avaliação “pura” sobre a influência do ambiente sem levar em conta a atuação das forças
instintuais operantes na criança.

Importante lembrar ainda que, nos primeiros processos mentais, a fantasia é


representante psíquica dos instintos libidinais e destrutivos. Mas, no desenvolvimento
mental da criança, a fantasia cedo se converterá também em uma defesa contra a
ansiedade – um meio de inibir e controlar os impulsos instintivos – assim como será,
além do mais, a expressão dos desejos reparadores. Isso porque as fantasias servem
a vários propósitos, como por exemplo: negação, renovação da segurança, controle,
onipotente etc. (ISAACS, 1952/1986).

Um exemplo é a capacidade que a criança tem de fantasiar que está tendo suas
necessidades saciadas. Dessa maneira, ela se defende das privações (tanto externas
como internas), evitando, assim, as sensações desencadeadas pela frustração.

Esse mecanismo é fundamental para que se entenda a função que a fantasia tem de
adiar a descarga da libido – auxiliando, no entanto, na diminuição das tensões geradas
pelos instintos, pela ansiedade e pela culpa (na medida em que é uma via de realização
de desejo substitutiva). É nesse papel que ela se configura como ferramenta para a
passagem do princípio do prazer para o princípio da realidade. Logo, ela prepara o
indivíduo para o desenvolvimento das funções mentais mais elevadas, como, por
exemplo, o pensar.

As fantasias também podem ser usadas como defesa contra outras fantasias. Segal
(1973) fornece como exemplo típico desse mecanismo as fantasias maníacas, cuja
principal finalidade é repelir fantasias depressivas subjacentes.

Foi partindo da teorização de todas essas funções, que a fantasia desempenhava na


vida psíquica do ser humano, que Melanie Klein sustentou que o “nada”, que alguns
acreditavam constituir a mente do bebê, não era um vazio. Já se encontrava preenchido
por forças instintuais, que ameaçavam a integridade do pequeno indivíduo, gerando
uma ansiedade de aniquilamento que o forçava a estabelecer intenso intercâmbio entre
seu mundo interno e o mundo externo. Retomemos algumas das funções da fantasia.

»» Representante psíquico das forças instintuais.

»» Defesa contra as privações, a ansiedade e a culpa.

»» Base para a formação dos objetos internos, do Ego e do Superego.

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OS CAMINHOS DE KLEIN E O SURGIMENTO DA ANÁLISE LÚDICA │ UNIDADE II

»» Ferramenta que auxilia na passagem do princípio do prazer para o


princípio da realidade, permitindo o desenvolvimento de funções
mentais mais elevadas.

Ligada à sua elaboração acerca da fantasia e dos objetos internos, Klein comporá sua
teoria sobre as posições.

A posição esquizoparanoide e a posição depressiva podem ser consideradas momentos


do desenvolvimento do psiquismo humano. Elas representariam subdivisões do estádio
oral. Na posição esquizoparanoide, em funcionamento nos primeiros meses de vida do
bebê, a criança não perceberia a totalidade de seus primeiros objetos (por exemplo, a
“mãe” e o “pai”). As relações do bebê seriam, na verdade, travadas com objetos parciais
(por exemplo, o seio), prevalecendo os processos de divisão e as ansiedades paranóides.
Seguida a esse momento, surgiria a posição depressiva, marcada pela percepção da mãe
como objeto total. Nela, emergiria a integração dos objetos, assim como os sentimentos
correlatos de ambivalência, ansiedade depressiva e culpa.

Mas, por que usar, então, o termo “posição” ao invés de “estágio”? Porque Melanie
Klein desejava demarcar a diferença entre essas duas concepções, na medida em que
as posições seguem um outro tipo de funcionamento. Elas não são, por exemplo,
ultrapassadas cronologicamente pela criança, assim como aconteceria com os estágios
ou as fases. Elas têm uma natureza estrutural. Representam determinados tipos de
configurações assumidas pelas relações de objeto, ansiedades e defesas que o indivíduo
levaria consigo por toda a vida, sendo fundamentais para entender o funcionamento
psíquico humano.

Portanto, a posição depressiva nunca supera, de todo, a posição esquizoparanoide.


Sempre há uma via de interação entre os mecanismos de ambas, e não será raro que,
ao se defender das ansiedades próprias à posição depressiva, o indivíduo regrida às
manifestações esquizoparanoides, estando sempre a oscilar entre as duas posições. Não
se tratam, dessa maneira, de fases que serão superadas, mas de mecanismos que o
sujeito usa para interagir com o seu mundo interno e o externo.

Logo, é necessário compreender que “o conceito de ‘posição’ não entra em conflito


com o conceito de ego, superego e id, mas tem como teor definir a estrutura real do
superego e do ego, bem como o caráter de seus relacionamentos nos termos das posições
esquizoparanoides e depressivas”. (SEGAL, 1973/1975, p12)

Definida, assim, a concepção de posição, podemos passar à descrição dos fenômenos


que caracterizam a posição esquizoparanoide. Para tanto, acompanharemos de perto

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UNIDADE II │ OS CAMINHOS DE KLEIN E O SURGIMENTO DA ANÁLISE LÚDICA

as elaborações de Klein sobre esse tema em seu texto de 1946, “Notas sobre Alguns
Mecanismos Esquizóides”.

Klein principia seu escrito anunciando que tratará da importância dos mecanismos
esquizoparanoides, sobre os quais teria refletido muito a partir de suas experiências
clínicas. Estes diriam respeito às mais antigas ansiedades experimentadas pelo bebê,
deixando antever o funcionamento arcaico do psiquismo humano.

Klein levanta a hipótese de que, no início da vida, o bebê se depararia com ansiedades
primitivas que impulsionariam o ego a desenvolver mecanismos de defesa específicos.
Esse movimento teria profunda influência sobre o desenvolvimento em todas as suas
nuances, incluindo as que abarcam o ego, o superego e as relações objetais.

Esse ponto retomaria a defesa de Klein da ideia de que, desde o princípio da vida, já
existiriam as relações objetais, e de que o primeiro objeto da criança seria o seio da
mãe. Ela o dividiria em seio “bom” (gratificador) e seio “mau” (frustrador). Tal divisão
resultaria numa separação nítida entre amor e ódio. A clivagem do objeto, assim como a
utilização dos mecanismos de introjeção e projeção (que compõem diversas interações
entre si) e as situações internas e externas moldelariam as relações objetais do pequeno
indivíduo. “Esses processos participariam na formação do ego e superego, preparando
o terreno para o estabelecimento do complexo de Édipo na segunda metade do primeiro
ano de vida”. (KLEIN, 1952/1986, p.314)

Eis os processos psíquicos que ocorreriam no início da vida do bebê: quando o impulso
de morte volta seu investimento contra o primeiro objeto – o seio materno – ele assume
a forma de fantasias de ataques sado-orais, progredindo, posteriormente para agressões
generalizadas ao corpo da mãe também pelos meios sado-anais e sado-uretrais. Nos
impulsos sado-orais, a criança fantasia despojar o corpo materno de todos os conteúdos
bons, esvaziá-lo de suas riquezas (seus bebês, o pênis paterno que ali estaria guardado
etc). Já as fantasias sado-anais e sado-uretrais almejariam colocar dentro da mãe os
excrementos da criança (e a própria criança desejaria penetrar no corpo materno, como
forma de controlá-lo por dentro).

O sadismo da criança provoca, no entanto, o medo da retaliação pelo objeto que foi
tomado como alvo. Essa seria a fonte do surgimento das ansiedades persecutórias. O
infante teme ser devorado, despedaçado, envenenado. Tais medos o levarão a fazer uso
de diversos mecanismos de defesa (clivagem, negação, idealização, projeção, introjeção).
Se os medos persecutórios forem muito fortes e o bebê não for capaz de construir a
passagem da posição esquizoparanoide para a posição seguinte – a depressiva –, dando
a esta última uma resolução, o fracasso de tal processo pode acarretar um reforço

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OS CAMINHOS DE KLEIN E O SURGIMENTO DA ANÁLISE LÚDICA │ UNIDADE II

regressivo dos medos persecutórios e gerar pontos de fixação que serão a base para
psicoses graves. Esses fatores também serão o fundamento para a escolha da neurose.

Destrinchemos minuciosamente os processos envolvidos no quadro até aqui descrito:

É preciso destacar, já desde o início, que Melanie Klein defenderá a ansiedade e suas
vicissitudes como sendo o motor do processo de desenvolvimento humano. Tanto é que
ela focará as ansiedades como elementos fundamentais de manejo de sua clínica. Assim
é que o desencadear de uma ansiedade ao longo de um processo analítico pode ser sinal
de evolução e não de retrocesso no quadro apresentado pelo paciente.

O ego primitivo, para Klein, careceria de coesão, alternando entre uma tendência
para a integração e uma tendência para a desintegração (fragmentação em múltiplas
parcelas). A maior ou menor coesão do ego no princípio do desenvolvimento estaria na
dependência da capacidade deste para tolerar as ansiedades – o que seria determinado,
segundo Klein, por um fator constitucional.

Fato é que esse ego primitivo, ainda que carente e coeso, já possuiria algumas funções
próprias de um ego mais avançado. Entre elas, uma fundamental: dominar a ansiedade.

A ansiedade nasceria da ação do instinto de morte dentro do organismo. Ela seria


sentida como um medo de aniquilamento do eu, que tornar-se-ia medo de perseguição.
Portanto, esse medo do impulso destrutivo toma a forma de medo de um incontrolável
e prepotente objeto. Somar-se-ão a essa primeira fonte de ansiedade também a
ansiedade de separação e as ansiedades referentes às experiências de frustração das
necessidades corporais. Também elas serão ligadas à imagem de um objeto, como se
por ele houvessem sido causadas. Esses objetos externos, por meio da introjeção, são
tornados internos, reforçando o medo do impulso destrutivo.

Dentro desse quadro, o ego primitivo desenvolve defesas fundamentais para enfrentar a
ansiedade que o assola. Parte do impulso destrutivo é projetado no exterior, vinculando-
se ao primeiro objeto externo: o seio da mãe. Outra parte da pulsão, que permanece
dentro do organismo, une-se à libido, atuando nos impulsos sádicos; e ainda uma
terceira parte, que não alcança seu propósito nos dois caminhos anteriormente citados,
permanece no organismo e continua a gerar a ansiedade de ser destruído interiormente.
Essa ansiedade gera no ego uma tendência à fragmentação.

Sendo assim, o ego primitivo, em seu intento de lidar com o impulso de morte, divide não
apenas o objeto e as relações com ele estabelecidas, o ego também se divide, na busca de
dispersar o impulso destrutivo. Esses mecanismos são extremamente importantes para
entender os processos esquizofrênicos.

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UNIDADE II │ OS CAMINHOS DE KLEIN E O SURGIMENTO DA ANÁLISE LÚDICA

Quanto ao impulso destrutivo que foi projetado no exterior, ele é sentido,


primeiramente, como uma agressão oral. Quando o bebê se vê diante de situações
de frustração e ansiedade, seus desejos sado-orais se intensificam, e ele fantasia
incorporar o mamilo e despedaçar o seio. Logo, à divisão entre seio mau e seio bom,
soma-se a fantasia de um seio frustrador fragmentado. Já o seio gratificador, sob o
domínio da libido, permanece completo. Seria esse seio completo, o primeiro objeto
interno bom, que atuaria como um ponto focal, compensando os processos de divisão
e dispersão, fomentando a coesão e a integração e servindo de instrumento para a
formação do ego (KLEIN, 1952/1986).

Ainda assim, as vivências de frustrações e ansiedades experimentadas pela criança


também poderiam levá-la a experienciar o seio bom como fragmentado, o que viria a
abalar a construção da coesão do ego. Sobre isso, Klein (1952/1986, p.319) completa:

Acredito que o ego é incapaz de dividir o objeto – interno e externo


– sem que uma correspondente divisão ocorra dentro do próprio
ego. Portanto, as fantasias e sentimentos sobre o estado do objeto
interno influem vitalmente na estrutura do ego. Quanto mais sadismo
prevalecer no processo de incorporação do objeto e quanto mais se
sentir que o objeto está em pedaços, atento mais o ego estará em perigo
de ser dividido em relação com os fragmentos do objeto internalizado.

Somados aos mecanismos de divisão (ou clivagem) há, no entanto, outras importantes
defesas utilizadas pelo ego primitivo. A idealização é uma delas. Na idealização, os
aspectos bons do seio são postos em evidência como forma de criar uma proteção contra
o medo do seio perseguidor. Essa exacerbação da imagem do bom seio também atende
aos desejos instintivos, que fantasiam uma gratificação ilimitada, a ser fornecida por
este seio ideal, inexaurível e abundante.

A negação também é um tipo de defesa – que pode aparecer inclusive conjugada à


clivagem e à idealização. Nela, o ego nega a existência do objeto persecutório, assim como
toda a situação de frustração e os sentimentos dolorosos a ela associados. Há, portanto,
a negação de uma realidade psíquica, realizada por meio de fortes sentimentos de
onipotência presentes no psiquismo primitivo. No entanto, ao realizar essa operação, o
ego não está negando apenas o objeto mau e as situações de frustração a ele associadas.
O que está sendo aniquilado é, inclusive, a situação objetal. A consequência disso é que
parte do ego também é aniquilada e negada nesse processo.

Esses mecanismos de defesa, ainda assim, não impedem que o bebê direcione ao seio
seus impulsos libidinais e agressivos. Como falamos anteriormente, os ataques ao seio
materno acabam se convertendo em agressões ao corpo materno, que passa a ser visto

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OS CAMINHOS DE KLEIN E O SURGIMENTO DA ANÁLISE LÚDICA │ UNIDADE II

como um prolongamento do seio. Em suas manifestações orais, essas fantasias de


ataque configuram-se como um sugar, esvaziar, morder e roubar todo o bom conteúdo
do corpo da mãe. Nas manifestações anais e uretrais, essas fantasias são as de evacuação
de substancias venenosas (que são expelidas com ódio para serem introduzidas o corpo
materno), assim como de partes más do ego (que são projetadas para dentro da mãe).
Esses ataques têm o intuito tanto de causar danos como de controlar e tomar posse do
objeto.

No entanto, ao projetar para a mãe as partes malquistas de seu ego, elas acabam por se
identificar com o objeto que as recebeu. Assim, “Muito do ódio contra algumas partes
do eu é agora dirigido para a mãe. Isso conduz a uma forma particular de identificação
que estabelece o protótipo de uma relação objetal agressiva. Sugiro para esses processos
a expressão ‘identificação projetiva’”. (KLEIN, 1952/1986, p.322)

Em situações como essa, quando ocorre a identificação de um objeto com partes


odiadas do ego, e quando os impulsos projetados teriam como objetivo causar danos
ou controlar o objeto, este passa a assumir a feição de um objeto perseguidor, sendo
fonte de ansiedade. Além disso, se a projeção para o mundo externo de partes do ego
for excessiva, ele ficará enfraquecido, pois “o componente agressivo dos sentimentos e
da personalidade está intimamente associado, na mente, com o poder, potência, força,
conhecimento e muitas outras qualidades desejadas”. (KLEIN, 1952/1986, p.322)

Em um processo semelhante, as partes boas do eu também serão expelidas para o


objeto externo. Assim é que os excrementos passam a ter o sentido de ofertas, presentes
entregues ao corpo da mãe, e os elementos bons e amorosos do eu são projetados para
dentro de outras pessoas. Aqui também essas partes boas projetadas serão identificadas
com os objetos que as receberam. Dessa maneira, a identificação que surge com base
nesse tipo de projeção também influencia de forma fundamental as relações objetais. “A
projeção de bons sentimentos e boas partes do eu na mãe é essencial para a capacidade
infantil de desenvolver boas relações objetais e integrar seu ego”. (KLEIN, 1952/1986,
p.323)

Porém, aqui também há o risco de a projeção das partes boas do ego para o mundo
externo se tornar excessiva, gerando no bebê o sentimento de que as partes boas da sua
personalidade se escoaram e foram perdidas. Isso geraria um empobrecimento do ego
e uma super idealização do objeto, sendo a mãe convertida em ego ideal. Esse processo
seria expandido para outros objetos, trazendo como consequência uma dependência
excessiva com relação a esses representantes externos das partes boas do próprio ego. A
própria capacidade de amor parece ficar comprometida nesse processo, por ser o objeto
amado nessa projeção demasiada do próprio eu.

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UNIDADE II │ OS CAMINHOS DE KLEIN E O SURGIMENTO DA ANÁLISE LÚDICA

Outro elemento complicador que pode surgir nessa equação é que, quando a idealização
do objeto e a projeção das partes boas do ego se tornam demasiadas, isso intensificará
a inveja primitiva.

A inveja seria uma das primeiras e primordiais emoções experimentadas pelo ser
humano. Ela se estabelece sempre em uma relação dual, na qual o sujeito inveja
alguma posse ou qualidade do objeto. E é importante perceber que é experienciada
essencialmente em termos de objetos parciais, mesmo que persista nas relações com
objetos totais. Inicia como um desejo do sujeito de ser tão bom quanto o objeto,
mas, quando isso é sentido como impossível, transforma-se em desejo de danificar a
bondade do objeto, por meio da projeção de partes ruins. Assim, “em fantasia, ataca o
seio, cuspindo, urinando, defecando, soltando flatos, e pelo olhar projetivo e penetrante
(o mau-olhado)”. (SEGAL, 1973/1975, p. 53).

É aí que a inveja se torna nociva ao desenvolvimento do ego, pois a própria fonte de


bondade na qual o bebê poderia vir a se espelhar assume feições más, e, assim, ele
não tem como interiorizar as partes boas de volta ao seu ego. A clivagem entre um
objeto idealizado e um objeto perseguidor característica da posição esquizoparanoide
fica comprometida, pois que o objeto ideal, que serviria como base para a introjeção e
constituição de um foco de coesão e fortalecimento do ego, foi danificado.

Assim, o indivíduo vivencia situações de desespero, na medida em que não encontra


um objeto ideal para se identificar, portanto, não vê esperança de amor ou de qualquer
ajuda. Para tornar a situação mais difícil, os objetos destruídos passam a ser fonte de
perseguição interminável e de culpa. Surge, então, “um círculo vicioso, no qual a inveja
impede a introjeção boa; isso por sua vez aumenta a inveja”. (SEGAL, 1973/1975)

Logo, podemos concluir que “O processo de destacar as partes do eu e projetá-las em


objetos é, portanto, de importância vital para o desenvolvimento normal, assim como
para as relações objetais anormais”. (KLEIN, 1952/1986, p.323).

E assim também se dá com relação à introjeção. Como há pouco descrevemos, a


introjeção do bom objeto é uma precondição para o desenvolvimento normal, pois é a
base de formação do ponto focal que propiciará a coesão do ego. A existência desse bom
objeto é importante inclusive para os momentos em que a criança precisa lidar com as
frustrações e as ansiedades, pois ela pode usar como recurso a evasão para seu objeto
ideal. Aqui, mais uma vez, o excesso pode ser perigoso. Se o medo persecutório é muito
forte e a fuga para o objeto idealizado se torna excessiva, isso dificultará as relações
objetais e prejudicará o desenvolvimento do ego.

70
OS CAMINHOS DE KLEIN E O SURGIMENTO DA ANÁLISE LÚDICA │ UNIDADE II

Assim resume Melanie Klein (1952/1986, p.325) a ação dos mecanismos de introjeção
e projeção no desenvolvimento humano:

Quanto à personalidade normal, pode-se dizer que o curso do


desenvolvimento do ego e das relações objetais depende do grau em que
pode ser atingido um equilíbrio ótimo entre a introjeção e a projeção
nos estágios iniciais do desenvolvimento. Isso, por seu turno, influi
na integração do ego e na assimilação dos objetos internos. Mesmo
que o equilíbrio seja perturbado e um ou outro desses processos seja
excessivo, haverá sempre uma certa interação da introjeção e projeção.

Pode-se concluir, portanto, que, na posição esquizoparanoide, caracterizada pelas


constantes permutas entre fases de integração e de desintegração do ego, o bebê
experimenta ansiedades de aniquilamento, separação e frustração das necessidades
que o levam a se utilizar do mecanismo de clivagem dos seus objetos primeiros e de
seu próprio ego. Esse expediente, no entanto, somado a outras ações de defesa como a
introjeção, a projeção, a negação, a idealização e a identificação projetiva (que operam
diversas combinações entre si) dão origem a uma ansiedade persecutória, que tanto
pode gerar uma maior coesão do ego e uma integração dos objetos internos e externos
(o que o conduziria à posição depressiva), como pode ser excessiva e desencadear uma
série de fixações e distúrbios no processo de desenvolvimento psíquico.

Fato é que, pensar o mundo com o olhar de um bebê na posição esquizoparanoide é


enxergá-lo como constituído por objetos bons, que ele tenta obter, e objetos maus,
que ele tenta afastar. Organizando-se assim, espera-se que ele constitua confiança no
objeto que repetidas vezes o gratifica, e com ele se identifique, sentindo-se mais capaz
e mais forte para enfrentar os objetos persecutórios e frustradores – que, futuramente,
perceberá que pertencem não somente ao mundo externo, mas que também integram
o seu eu. Essa é a função estruturante e organizadora que conduz o bebê (e conduzirá o
adulto) em seu enfrentamento das vivências emocionas difíceis e fragilizadoras.

Para compreender o que Klein descreve como posição esquizoparanoide, é necessário


ser capaz de vislumbrar uma experiência na qual o conhecimento de si e do mundo
ainda são muito precários, e em que ainda não é possível distinguir suas emoções
das que são do outro. Esse é o mundo do bebê (e de alguns adultos que se fixarão ou
regredirão vez por outra a essa posição). Nas experiências de frustração, tudo é vivido
como ameaçador e persecutório, e, nas experiências de gratificação, tudo é perfeito e
idealizado.

Sobre a presença continuada da fase esquizoparanoide ao longo da vida, Souza (2009,


p.55) coloca:

71
UNIDADE II │ OS CAMINHOS DE KLEIN E O SURGIMENTO DA ANÁLISE LÚDICA

Essa linguagem técnica talvez dê a impressão de algo muito distante


de nosso cotidiano, do mundo dos outros, dos loucos, e não uma
experiência à qual estamos sujeitos com muita frequência. Mas o que
Klein tenta descrever é algo de nosso dia-a-dia. Ela se refere àqueles
momentos nos quais parecemos ficar cegos para o que sentimos e
para quem é o outro e o que ele está sentindo. Tomados de emoções
avassaladoras, somos ou dom-quixotes iludidos pela idealização ou
tiranos convencidos da pertinência e da propriedade de nosso sadismo,
diante da impossibilidade de aceitar que podemos ser frustrados. É
possível superarmos essas vivências e aprender com elas ou passar a
vida lutando contra inimigos imaginários.

Sigamos, então, o que emerge da posição esquizoparanoide: a posição depressiva.

Segundo Segal (1973), a posição depressiva, para Melanie Klein, representaria


o momento do desenvolvimento no qual o bebê reconheceria um objeto total e
estabeleceria, por essa via, novas formas de relação objetal. Acompanhemos como
Klein descreverá a posição depressiva em dois importantes escritos: Uma Contribuição
à Psicogênese dos Estados Maníacos Depressivo, de 1935 e Algumas Conclusões
Teóricas sobre A Vida Emocional do Bebê, de 1952.

De acordo com a psicanalista, a partir do segundo trimestre do primeiro ano, o bebê


começa a atravessar algumas transformações intelectuais e emocionais que o levam a
uma modificação em sua relação com o mundo externo. Seus interesses se ampliam –
e, consequentemente, também suas gratificações. Aumentam, ainda, suas capacidades
de expressar emoções para os outros. Enfim, ocorre uma gradual integração e gradual
fortalecimento das funções do ego.

Nesse processo, a organização sexual da criança também vai se modificando, com uma
intensificação das tendências uretrais, anais e genitais. Diferentes fontes de impulsos
libidinais e agressivos passam a fazer maior presença na já agitada vida emocional do
bebê, ampliando o campo das fantasias – que, agora, já assume feições mais elaboradas
– e desencadeando novas situações de ansiedade. O correlato será um desenvolvimento
também na natureza das defesas.

Na proporção em que o ego se torna mais organizado, vai ocorrendo uma aproximação
entre os objetos internos e os objetos externos. Vimos que a repetição continuada de
introjeções e projeções dos objetos auxilia no desenrolar desse processo. E ele propiciará
uma identificação mais completa do ego com os “bons” objetos, o que vai fazendo surgir
um ego mais fortalecido, mais preparado para lidar com o medo dos “maus” objetos e

72
OS CAMINHOS DE KLEIN E O SURGIMENTO DA ANÁLISE LÚDICA │ UNIDADE II

com a ansiedade persecutória. É nesse contexto que o bebê vivenciará uma mudança
fundamental em seu psiquismo. Relata klein (1935/1996, p.306):

Juntamente com esse desenvolvimento ocorre uma mudança da maior


importância: a passagem de uma relação de objeto parcial para a relação
com um objeto total. Ao dar esse passo, o ego atinge nova posição, que
serve de base para a situação chamada de perda do objeto amado.
Só quando o objeto é amado como um todo é que sua perda pode ser
sentida como um todo.

Faz-se necessário ressaltar aqui que, os mecanismos que fazem com que o objeto se
torne total ocorrem simultaneamente àqueles que levam a uma integração do ego cada
vez maior. Teremos, portanto, agora relações objetais que se travam entre um ego cada
vez mais coeso e um objeto total. Essa é a marca precípua da posição depressiva. Ela
tem implicações fundamentais na vida psíquica, porque ao mesmo tempo em que o
bebê reconhece sua mãe como objeto total, ele também percebe que é ela a fonte tanto
de suas boas experiências como das más. Da mesma forma, a integração de seu ego o
leva a perceber que é ele quem direciona a mãe não apenas os sentimentos bons, mas
também os destrutivos.

Ressalta-se que esses desenvolvimentos se dão inicialmente com relação à mãe pela
transposição gradual da condição de seio para a de pessoa, objeto completo com quem
o bebê se identificará. Nesse mesmo contínuo, no entanto, farão entrada o pai, o casal,
e outras pessoas de relevância para o bebê.

É essa mudança, que estamos fazendo questão de bem demarcar, que operará uma
transformação na faceta da ansiedade quando ocorre a entrada na posição depressiva,
moldando, igualmente, novas configurações para os mecanismos de defesa. Assim,
Klein (1952/1986, p.230) esclarece:

Todos esses processos de integração e síntese fazem com que o conflito


entre amor e ódio atinja sua plena força. A consequente ansiedade
depressiva e os sentimentos de culpa alteram-se não só em quantidade,
mas também em qualidade. A ambivalência é agora experimentada, de
modo predominante, em relação a um objeto completo. Amor e ódio
estão muito mais unidos, e o seio “bom” e “mau”, a mãe “boa” e “má” já
não podem manter-se tão separados quanto no estágio anterior.

A ambivalência, portanto, será forte vetor de ansiedade. O bebê percebe que, quando
libera em suas fantasias seus impulsos sádicos e destrutivos, tem como alvo justamente

73
UNIDADE II │ OS CAMINHOS DE KLEIN E O SURGIMENTO DA ANÁLISE LÚDICA

o objeto que ama e que teme imensamente perder – o objeto de onde retira elementos
para fortalecer o seu ego e enfrentar seus medos.

Essa nova configuração também trará uma alteração nas interações entre introjeção e
projeção. De que forma?

Ora, quando as condições de desenvolvimento são favoráveis, o bebê percebe cada vez
mais robustez em seu objeto ideal e os impulsos libidinais, que ficarão aumentados,
também o fortalece na queda de braço contra os impulsos agressivos e os maus objetos.
Essa dinâmica favorece sua identificação com o objeto ideal e o torna mais apto para
se defender e para sentir que pode defender o objeto amado de seus próprios impulsos
maus.

Confiante em sua capacidade de lidar com os próprios sentimentos negativos, ele


necessita cada vez menos fazer uso da projeção, pois sua tolerância ao instinto de morte
que atua dentro de si e, consequentemente, aos seus medos persecutórios aumenta. É
um círculo de reforço que favorece a integração do bebê: ”Quando diminui a projeção de
impulsos maus, diminui também o poder atribuído ao objeto mau, ao passo que o ego
se torna mais forte, já que está menos empobrecido pela projeção”. (SEGAL, 1973/1975,
p. 80)

Concomitantemente, na medida em que os anseios libidinais aumentam por


decorrência de uma identificação mais completa com o objeto bom, a criança
desenvolverá um amor e um desejo voraz por incorporar esse objeto, intensificando
o mecanismo de introjeção. “Nesse estágio, mais do que nunca, o ego é impelido pelo
amor e pela necessidade de introjetar o objeto”. (KLEIN, 1935/1996, p.306). Mas,
além de possuí-lo, a criança também deseja protegê-lo, acreditando que, ao trazê-
lo para dentro de si, o manterá a salvo de perigos. Essa intensificação da introjeção
atuará, como já mencionamos, na integração do ego.

Porém, a mesma dinâmica que favorece a integração do ego também está na origem
das ansiedades depressivas. Isso porque o indivíduo passa a perceber o valor que o
objeto possui para ele, havendo um significativo aumento da consideração que ele
nutre pelo objeto. O indivíduo passa então a experimentar o medo da “perda do objeto
amado”, assim como se da conta também de sua dependência com relação a esse objeto.
A descoberta da ambivalência faz com que ele experimente intensos sentimentos de
anseio, culpa e luto com relação tanto aos objetos internos como externos.

Então, há o temor que seus próprios impulsos destrutivos danifiquem o objeto amado,
assim como receia a ação dos objetos persecutórios internalizados sobre ele. O medo de
que o objeto esteja passando por um perigo de aniquilamento ou já tenha sido aniquilado

74
OS CAMINHOS DE KLEIN E O SURGIMENTO DA ANÁLISE LÚDICA │ UNIDADE II

gera uma identificação ainda mais forte com o objeto danificado, e se encontra na base
das tentativas que o ego fará para reparar o objeto de amor.

Além disso, o ego também fará uso das defesas maníacas. Novamente vemos surgir aqui
os mesmos mecanismos que tomaram a cena na posição esquizoparanoide: a negação,
a idealização, a clivagem, a identificação projetiva e a busca pelo controle dos objetos
são mais uma vez usados pelo ego – só que, agora, de forma qualitativamente diferente.
Eles buscam neutralizar as ansiedades depressivas e a culpa, e são muitíssimos mais
organizados que na fase anterior, em concordância com o estado de maior integração
do ego.

As defesas maníacas tentarão, portanto, neutralizar as marcas da experiência


depressiva. Voltam-se, por exemplo, para a dependência que o ego percebeu ter com
relação ao objeto amado, contrapondo-se a esse sentimento, que será obviado, negado
ou invertido. Há também tentativas de negar o amor pelo objeto, o que poderá resultar
em uma duradoura asfixia do amor, com um distanciamento dos objetos ideais e um
retorno à ansiedade persecutória, pois restariam apenas os maus objetos.

A defesa maníaca que intenta o controle dos objetos deriva dos sentimentos de
onipotência e é usada tanto para tentar conter a ação dos objetos internos malignos
contra o objeto amado como para evitar as frustrações que podem advir inclusive desses
objetos ideais. A clivagem, por sua vez, tem agora outro resultado. Ela divide o objeto
completo em um objeto vivo e imune de riscos em detrimento de um objeto danificado
e em perigo. Tenta, assim, preservar o objeto amado.

Segal (1973) e Nazio (1995) ressaltam, ainda, mais duas formas de defesa próprias à
posição depressiva: o triunfo e o desprezo. Ambas estariam ligadas à percepção do valor
do objeto amado, com o medo de perdê-lo e com a culpa por qualquer dano que pudesse
ser a ele causado.

No triunfo, a fantasia é a de dominação do objeto, a de sua humilhação e tortura.


Ora essas tendências voltam-se contra os objetos persecutórios, ora contra os objetos
idealizados. No caso desses últimos, propicia-se um desmoronamento de seus aspectos
louváveis, buscando com isso diminuir a dor causada por uma possível perda dos
objetos amados – esse mecanismo está relacionado com a vivência da inveja).

No desprezo, o movimento é por uma desvalorização do objeto, por uma tentativa


de diminuir a importância que ele possui para o indivíduo, desqualificando-o e o
considerando desprezível a ponto de não ser digno de despertar culpa.

75
UNIDADE II │ OS CAMINHOS DE KLEIN E O SURGIMENTO DA ANÁLISE LÚDICA

Nazio (1995) cita também as defesas pela fuga. Trata-se de uma fuga para os bons
objetos. Se ela se direcionar para os objetos internos, tem-se um distanciamento da
realidade (psicoses, autismo). Se ela ocorrer no sentido dos objetos externos, tem-se
os estados amorosos repetitivos nas neuroses. De uma forma ou de outra, o indivíduo
evita lidar com as ansiedades desencadeadas pela perda do objeto amado.

Por fim, há ainda uma defesa maníaca importante de ser comentada. Ela precisa ser
tratada com atenção, pois trata-se de um mecanismo que não se constituirá como defesa
obrigatoriamente. Pode ser, ao contrário, uma das formas positivas de elaboração da
posição depressiva. Estamos falando do processo de reparação.

Quando o bebê passa a perceber a mãe como objeto total, ele começa a experimentar
também a intensa ansiedade de ter de lidar com o fato de que ela é uma pessoa diferenciada
dele, possui desejos e mobilidade próprios diversos dos seus. A mãe pode desaparecer
por horas a fio, depois retornar, não exercendo no infante nenhum controle sobre os
destinos desse tão fundamental objeto. Isso causa-lhe uma miscelânea de sentimentos
– raiva, tristeza, medo – que, agora, ele já reconhece como sendo seus.

Esse conjunto de sofrimentos advêm da crença do bebê de que, quando a mãe some, ele
pode tê-la perdido para sempre. Ela pode não mais voltar, pois pode ter sido danificada
ou até mesmo morta – quem sabe em consequência dos sentimentos sádicos e agressivos
que um dia o bebê lhe direcionou. Essas idéias não só desencadeiam ansiedades
depressivas, como também geram no pequeno indivíduo fortes sentimentos de culpa.

No entanto, o bebê será exposto repetidas vezes a essas experiências de perda, assim
como repetidas vezes experimentará a recuperação do objeto. O retorno da mãe,
juntamente com o contínuo amor e cuidado recebidos do ambiente, faz com que ele
vá gradativamente percebendo que os ataques sádicos e agressivos que realiza em
suas fantasias não têm a onipotência para destruir os objetos amados na realidade.
Dessa forma, vai ganhando mais confiança na força de seus impulsos amorosos e em
sua capacidade de, após as manifestações de raiva e desagrado, restaurar seus objetos
internos e mantê-los consigo nos momentos de ausência dos objetos externos. Seu ódio
torna-se menos assustador, e as ansiedades depressivas vão perdendo a força. Como
bem ressalta Segal (1973/1975, p. 105):

Através da repetição de experiências de perda e recuperação, sentidas


parcialmente como destruição pelo ódio e recriação pelo amor, o objeto
bom se torna gradualmente mais bem assimilado no ego, pois, na
medida em que o ego restaura e recria o objeto internamente, este se
torna cada vez mais propriedade do ego, podendo ser assimilado por ele
e contribuir para seu crescimento.

76
OS CAMINHOS DE KLEIN E O SURGIMENTO DA ANÁLISE LÚDICA │ UNIDADE II

No entanto, nem sempre será esse o caminho assumido pelo processo de reparação.
Tal mecanismo pode se desenrolar dentro de um contexto em que o bebê ainda esteja
tomado pelo sentimento de onipotência e não encontre um ambiente que favoreça a
aproximação de suas fantasias da realidade externa. Isso dificultará a adequação da
realidade psíquica, interferindo no crescimento do ego e a adaptação deste à realidade.
Nesse caso tem-se a reparação como uma defesa maníaca, usada para evitar qualquer
contato com os sentimentos de perda e de culpa.

Uma das formas de realizar esse intento é, por exemplo, realizando uma substituição
do objeto. Ao invés de buscar reparar o objeto de amor, os esforços de reparação são
direcionados para objetos remotos, que tenham sofrido danos por causas igualmente
remotas e impossíveis de serem relacionadas a ações ou sentimentos do indivíduo.

Há de ser também um objeto, em certa medida, desprezível. Inferior ao sujeito que se


entrega ao ato de reparação – para que não haja o risco de que esse objeto substituto
desperte justamente os sentimentos amorosos que se tentou evitar no objeto original.
Tal artimanha faz com que a reparação maníaca nunca consiga realizar o intento de
restaurar, de fato, o objeto que escolhe. Porque isso faria dele um objeto de amor, o que
levaria novamente à emergência do medo da perda desse objeto e à ansiedade que o
acompanha e que tanto se tentou evitar através da reparação. Segal (1973/1975, p.109)
conclui:

Por causa dessas condições, a culpa subjacente que a reparação


maníaca procura aliviar não é, na verdade, aliviada, e a reparação
não traz satisfação durável. Os objetos que estão sendo reparados são
tratados inconscientemente – e às vezes conscientemente – com ódio e
desprezo, sendo invariavelmente sentidos como ingratos e, pelo menos
inconscientemente, temidos como perseguidores potenciais.

O que pode se observar, portanto, é que a reparação que conduz à uma saída positiva da
posição depressiva não tem como dispensar o reconhecimento de uma perda do objeto.
Apenas o reconhecimento e a aceitação dessa perda é que permitem a elaboração da
culpa através da recriação de um novo objeto interno. Isso nos leva a compreender
porque a única superação verdadeira da posição depressiva se dá por meio do trabalho
do luto. “É do resultado do trabalho de luto do objeto primordial que depende a saída
da neurose infantil e da neurose transferencial”. (NAZIO,1995 , p.163) Sobre isso, Nazio
(1995, p.163) acrescenta ainda:

Para Melanie Klein, todo luto que ocorre posteriormente na vida reaviva
a posição depressiva, isto é, tem um episódio confusional, ativado
pelas angústias persecutórias e pelos sentimentos de ódio, desespero e

77
UNIDADE II │ OS CAMINHOS DE KLEIN E O SURGIMENTO DA ANÁLISE LÚDICA

saudade. A nostalgia, isto é, a memória do “bom” objeto, é o estímulo


para o trabalho do luto. Somente o amor pelo objeto, e não o ódio,
garante o processo. Nesse estádio do luto, o sofrimento pode tornar-
se produtivo, e não mais inibidor. A reconstrução do mundo interno
caracteriza então o sucesso do trabalho do luto.

Conclui-se assim que, a capacidade que a criança vai adquirindo para lidar com a
ansiedade depressiva está diretamente relacionada com a forma como ela conseguiu
incorporar e estabelecer o seu bom objeto, base para o núcleo do seu ego. Sendo esse
processo bem sucedido, a criança superará a posição depressiva e estará pronta para
enfrentar os desafios do complexo de Édipo, agora lidando com objetos completos e
com os sentimentos ambivalentes que carrega em relação a eles. Contudo, se o ego não
aprender a manejar bem as situações de ansiedade da posição depressiva, correrá o
risco de regredir à posição esquizoparanoide, o que “impediria também os processos
de introjeção do objeto completo e afetaria substancialmente o desenvolvimento não só
durante o primeiro ano de vida, mas em toda a infância” (KLEIN, 1952/1986, p. 235) e
também na vida adulta.

Encerramos aqui nossa exposição dos mais básicos e originais desenvolvimentos teóricos
e técnicos com os quais Melanie Klein prestou sua contribuição ao pensar psicanalítico.
Sua obra influenciou de forma indelével a maneira de conceber o psiquismo infantil,
assim como ampliou as possibilidades de sua técnica psicanalítica, ao criar a análise
lúdica. Assim como na primeira parte deste guia de estudos, acreditamos ter feito um
recorte dos conceitos kleinianos que constituirá um preâmbulo consistente para situar
e incentivar àqueles que pretendam enveredar pelo pensamento de Klein – percurso
que constitui uma das mais fascinantes buscas de compreensão da psique humana.

Sigamos, agora, para o próximo capítulo. Nele acompanharemos as contribuições que


Winnicott fará à técnica da psicanalise infantil. Contribuições que surgem a partir das
discussões travadas por Anna Freud e Melanie Klein e que buscam incorporar a elas as
experiências de escuta construídas em um período de guerra e em novas realidades de
atendimento.

78
O PERCURSO
DE WINNICOT E UNIDADE III
A CLÍNICA DO
CUIDADO

Nesta Unidade, percorreremos os caminhos das contribuições winnicottianas às


técnicas da psicanálise infantil. Iniciaremos, primeiramente, descrevendo como se deu
a inserção deste psicanalista na teoria e na prática psicanalítica para, depois, abordar
as forma como Winnicot concebia o brincar, a interpretação e um novo e importante
conceito que ele introduz: o manejo.

CAPÍTULO 1
Winnicott e seu encontro com a clínica
psicanalítica

Donald Woods Winnicott nasceu em 1896 na cidade inglesa de Plymouth. Sua família
era metodista, mas ele preferia ser considerado como Lollard. Aos 14 anos, foi enviado
para um internato para dar seguimento aos seus estudos. Depois, cursou em Cambridge
primeiramente biologia (sendo um grande admirador de Darwin), ingressando, logo
após, em medicina. De 1914 a 1918, época da Primeira Guerra Mundial, alistou-se como
oficial médico da Marinha Britânica, o que retardou sua formatura no curso de medicina
– que veio a ocorrer apenas em 1920.

Ainda na faculdade, foi fortemente influenciado pelo Dr. Thomas Jeever Horders,
que defendia a importância de escutar a história dos pacientes, de se centrar no relato
clínico deles, para entender as nuances de seus adoecimentos. Também nessa época,
em 1919, teve seu primeiro contato com a psicanálise. Ganhou de presente de um amigo
A Interpretação dos Sonhos, de Freud, e leu-o avidamente na busca por entender o
porquê de, após a guerra, não conseguir mais se lembrar de seus sonhos. Desde então,
o interesse pela psicanálise nunca o abandonou.

79
UNIDADE II │ OS CAMINHOS DE KLEIN E O SURGIMENTO DA ANÁLISE LÚDICA

Ao final do curso de medicina, especializou-se em pediatria. Assim, em 1923, aos 27


anos de idade, é indicado para trabalhar no Paddington Green Hospital of Children.
Lá permaneceu por 40 anos, assumindo, inicialmente, a função de pediatra, depois
de psiquiatra infantil e de psicanalista. Chegou também a atendfer pacientes adultos
em sua clínica particular, mas sua opção principal foi pelo trabalho com crianças e
adolescentes.

Ainda em 1923, inicia, com James Strachey, sua primeira análise, que durarão 10 anos,
depois deu continuidade ao processo por mais cinco anos com outra analista – Joan
Rivière, discípula de Melanie Klein.

Situe-se na história:
James Atrachey nasceu em 1887, na Inglaterra, mas mudou-se para Viena em 1920
– onde iniciou uma análise com Freud, de quem se tornou grande admirador.
Freud convidou a ele e a sua esposa (Alix Strachey) para traduzir algumas de
suas obras para o inglês, e isso acabou por se tornar o trabalho de sua vida.
Não possuía formação médica, a maior parte de sua atuação tinha se dado na
área do jornalismo. Mas, após dois anos de análise com Freud, solicitou tornar-
se seu aluno. Freud o aceitou, e foi incorporado à Sociedade Psicanalítica de
Viena, trilhando ali seu percurso de formação analítica. Foi um dos fundadores
da Sociedade Britânica de Psicanalise e um dos que incentivou Melanie Klein a
se mudar para a cidade para aprofundar seu trabalho com crianças. Permaneceu
fiel a Freud, mantendo-se neutro nas querelas que surgiram entre Anna Freud e
Melanie Klein. Integrou o Bloomsbury Group.

Joan Rivière foi uma psicanalista inglesa nascida em 1883. Sofria com várias
manifestações psicossomáticas e com uma acentuada melancolia que a fez se
internar várias vezes. Foi então que iniciou um tratamento psicanalítico com
Ernest Jones, que a aconselhou a procurar Freud para dar continuidade a sua
análise. Posteriormente, rompe relação com Jones. Foi uma das fundadoras da
Sociedade Britânica de Psicanálise e integrou o comitê de tradução das obras
de Freusd para o Inglês. Tornou-se partidária de Klein. Publicou vários artigos
sobre suas experiências clínicas, tendo como um dos seus temas de interesse
a natureza da feminilidade moderna, tendo se aproximado do movimento
sufragista.

Por falar em Klein, lembremos aqui um fato importante (ao qual nos referimos na
unidade anterior de nosso curso): em 1926, Melanie Klein se muda para Londres e se
torna, no círculo psicanalítico da Inglaterra, a principal referência para as discussões em

80
O PERCURSO DE WINNICOT E A CLÍNICA DO CUIDADO │ UNIDADE III

psicanálise infantil. Klein influenciará enormemente o pensamento Winnicottiano. Ela


vem a ser supervisora clínica de Winnicott de 1935 a 1940. Ele, na verdade, pretendia
tomá-la como analista, porém Klein pede que ele se torne analista de seu filho Enrich
(então com 20 anos), com que Winnicott assente.

Em 1927, Winnicott inicia sua formação como analista na Sociedade Britânica de


Psicanálise. Quatro anos depois, em 1931, publica seu primeiro livro – Notas Clínicas
sobre os Transtornos da Infância. Sua formação será concluída em 1934, habilitando-
se, em 1935, como psicanalista de crianças.

Ressalta-se ainda que, em 1938, Anna Freud chega para morar em Londres. Winnicott
usufruirá da convivência com a psicanalista, discutindo ideias e casos com ela, bebendo
também de sua influência. Essa oportunidade e capacidade que Winnicott teve de realizar
trocas tanto com Klein como com Anna Freud marcarão seu percurso psicanalítico.
Ambas as teorias se encontram presentes em suas reflexões clínicas. Pode-se dizer que
ele incorpora tanto as teorias freudianas como as kleinianas, colocando-as para dialogar
com as experiências que ele vinha vivenciando em sua clínica. Porém, não apenas as
incorpora, mas as digere e, com o material que daí resulta, ele cria seu próprio percurso
teórico, compondo conceitos que faziam eco aos desafios com que se deparava em sua
escuta.

Figura 6. Winnicot.

Fonte: <https://amenteemaravilhosa.com.br/wp-content/uploads/2018/02/winnicot-donald.jpg>

A postura de dialogar com as duas teorias prevalentes na Sociedade Britânica de


Psicanálise – adotando, no entanto, com relação a elas um discurso independente –
fez com que Winnicott se posicionasse, quando os rachas na instituição começaram
a ocorrer, no que foi denominado “Middle Group” ou “grupo dos independentes”. É
dessa posição que Winnicott dará continuidade a seu trabalho e verá sua influência na
Sociedade Britânica crescer de forma a acabar por assumir a presidência da instituição
em 1956.

81
UNIDADE III │ O PERCURSO DE WINNICOT E A CLÍNICA DO CUIDADO

Não se pode deixar de citar também que, em 1940, Winnicott se torna Consultor
Psiquiátrico para o Plano de Evacuação de Guerra do Governo Britânico, sendo
recrutado para trabalhar em Oxford com crianças que haviam sido separadas das
famílias durante a evacuação de cidades sob ameaça de bombardeios. Essa experiência
fornece para Winnicott um material clínico importante, que se constitui como base
para o desenvolvimento de novas elaborações teóricas (especialmente sobre o papel
da mãe na constituição do sujeito). Outro elemento que surge para Winnicott nesse
trabalho é que a observação de pacientes psicóticos adultos poderia ajudar bastante no
entendimento da psicologia da primeira infância.

É importante observar que o percurso de Winnicot como psicanalista se constrói


impulsionado pelas peculiaridades da clínica que ele foi levado a exercer: uma clínica
que se compõe dentro do desempenho da função de pediatra, tendo como locus um
Hospital Infantil, exercida muitas vezes em situação ambulatorial e, como vimos acima,
atravessada pelas vivências de duas guerras.

Por que chamo atenção para esta configuração? Porque o fato de Winnicott ter
trabalhado em hospitais infantis o colocou em contato com uma diversidade de casos
a que deveria responder em condições variadas de atendimento (como, por exemplo,
as de atendimento ambulatorial). Essa realidade, sem dúvida, exigiu dele uma reflexão
sobre a técnica e o setting, assim como a composição de soluções criativas para os
desafios que surgiam dessa configuração peculiar. Era necessário flexibilizar o setting,
fazendo-o responder a essa realidade. Outeiral (2009, p.8) comenta sobre este ponto:

Sentindo a pressão que resultava de um número elevado de crianças


e adolescentes que buscavam atendimento, Winnicott dedicou-se
a fundo a estudar os meios de utilizar o espaço terapêutico da forma
mais produtiva e obter os melhores resultados terapêuticos possíveis.
Desenvolveu, então, o ‘jogo dos rabiscos’ e a ‘consulta terapêutica’,
escrevendo que ‘quando posso, faço a análise standad, senão faço algo
orientado analiticamente... e por que não?”.

A própria relação de Winnicott com sua posição de pediatra também traz a marca
diferencial de sua escolha por percorrer os percursos da psicanálise. Winnicott
(1990) relata que, enquanto seus colegas psiquiatras procuravam as respostas para
os fenômenos com que se deparavam em pesquisas sobre as condições físicas de
seus pequenos pacientes, ele cada vez mais se voltava para a observação dos aspectos
psicológicos presentes no adoecimento.

Por fim, esse trajeto sempre colado às exigências diárias de sua prática no hospital
também incide sobre a forma como ele vai elaborando e escrevendo suas teorizações.

82
O PERCURSO DE WINNICOT E A CLÍNICA DO CUIDADO │ UNIDADE III

Neste sentido, críticos da obra de Winnicott ressaltam a presença de uma postura


empírica marcante na forma como esse psicanalista elabora sua obra: a prática clínica e
as questões da técnica tomam, na verdade, posição de base para as construções teóricas
– pois que, para Winnicott, tratar os pacientes era seu objetivo principal (mais do que
tomá-los como objeto de suas incursões pela teoria). Bizzarri (2010, p.18) comenta
sobre como é possível observar claramente esta dinâmica na forma como Winnicott
constrói seus textos:

[...] sempre pautados em casos e vinhetas clínicas,e, algumas vezes,


bastante específicos sobre técnica, usando a teoria como explicação
da técnica e não a técnica como apêndice da teoria, ou seja: a
evidência é a clínica – o meio é a técnica – o fundamento é a teoria do
desenvolvimento emocional, que funciona então como algo que explica
o que acontece na clínica – funciona como algo que preenche as ‘lacunas
do conhecimento’.”

Justamente por isso o setting será uma das preocupações teóricas de Winnicott, tanto
que estudiosos de sua obra – como Júlio de Mello Filho – ao listarem alguns fios teóricos
que conduzem a obra Winnicottana, citam a Teoria do Setting.

Infelizmente, no escopo desse manual de estudos não poderemos aprofundar todas as


discussões empreendidas por Winnicott sobre o setting. Elege-se, aqui, aqueles pontos
que fundamentais para a psicanálise com crianças e com os quais temos conduzido
nosso estudo desde o a Unidade I. Vejamos quais serão eles no ponto seguinte.

83
CAPÍTULO 2
O brincar no setting winnicottiano

Creio que poderíamos afirmar que o uso do brincar na clínica psicanalítica com crianças
é aprofundado ainda mais – tanto enquanto técnica terapêutica como enquanto objeto
de estudo para a compreensão do psiquismo humano – no percurso psicanalítico de
Winnicot.

Segundo Winnicott (1971/1975), o processo de análise ocorreria na sobreposição de


duas áreas do brincar: a do paciente e a do analista. Portanto, tratar-se-ia nas sessões de
duas pessoas que brincam juntas. Aqui já percebemos um novo ângulo de visão acerca
do brincar enquanto ferramenta terapêutica. Esse ângulo expressa a compreensão de
Winnicott do brincar como uma atividade social e da importância de levar em conta
o ambiente social nos esforços de entendimento do desenvolvimento emocional da
criança. Daí porque, o terapeuta enquanto parceiro de jogo integra o processo analítico.

Para Winnicott, o brincar era tão fundamental que se o paciente não tivesse a capacidade
de fazê-lo era necessário que o analista trabalhasse inicialmente para desenvolver
essa capacidade, de forma que a análise pudesse ter continuidade. Isso porque, para
Winnicott (1971/1975, p. 80) “é no brincar, e somente no brincar, que o indivíduo,
criança ou adulto, pode ser criativo e utilizar sua personalidade integral: e é somente
sendo criativo que o indivíduo descobre o eu (self)”.

Para falar do brincar em Winnicott, faz-se necessário retomar, ainda que rapidamente,
algumas concepções teóricas fundamentais.

Segundo o entendimento deste psicanalista, o ser humano possuiria um fator de


crescimento inerente, ou seja, uma tendência inata ao amadurecimento. Essa tendência
expressar-se-ia tanto no desenvolvimento físico como no desenvolvimento da psiquê.
Porém, no desenvolvimento psíquico haveria maior possibilidade de que situações
intervenientes causassem prejuízo ao processo de crescimento, chegando a ser
impossível conceber a existência de um desenvolvimento psíquico sem distorções ou
sem algum grau de fracasso.

Em razão disso, esse desenvolvimento estaria atrelado a uma necessária adaptação


do meio ambiente ao bebê e às suas necessidades, pois que o bebê apresentaria uma
dependêncial inicial completa a esse ambiente adaptado (que será, primeiramente,
fornecido pela mãe ou por quem exerça o papel de se perceber responsável pelo bebê
nesse início de completa dependência).

84
O PERCURSO DE WINNICOT E A CLÍNICA DO CUIDADO │ UNIDADE III

Percebendo a importância do ambiente, Winnicott defende a ideia de que os futuros


disturbios mentais seriam desencadeados por falhas ambientais ocorridas na
primeira infância. A doença mental, portanto, seria consequência de problemas no
desenvolvimento emocional do sujeito. Esses problemas seriam causados tanto por
ausências provenientes deste ambiente adaptado como por excessos, intrusões de
conteúdos em momentos inadequados do desenvolvimento. Belo e Scodeler (2013)
esclarecem sobre o conceito de ambiente facilitador:

Winnicott (1958/2000) descreve as tarefas do meio facilitador em


termos de:  holding, handling e apresentação do objeto. Desse modo,
o ambiente fornece sustentação adequada, manuseio adequado e
apresentação do mundo externo ao bebê de maneira adequada, ou seja,
apresentando a este apenas o que ele está pronto para descobrir em seu
tempo, sem invasões nem precipitações.

Assim, o acolhimento por um ambiente facilitador, representado inicialmente por uma


mãe suficientemente boa, será fundamental para o alcance de um desenvolvimento
emocional saudável. Esse ponto de chegada se configura quando o bebê consegue se
constituir como uma unidade (self integrado), continuando no caminho que o levará da
depêndência absoluta inicial para a dependência relativa até a independência. Percebe-
se, portanto, que o desenvolvimento emocional está ligado ao amadurecimento.

Figura 7. A minha ama e eu. Frida Kahlo, 1937.

Fonte :<http://www.hierophant.com.br/arcano/posts/view/Fool/401>

Ser saudável, para Winnicott, é atingir a maturidade emocional. Porém, como foi dito, a
ideia de um desenvolvimento sem nenhuma falha não se apresenta viável. A questão que
se coloca é se essa falha será desestruturante a ponto de causar um adoecimento mental
ou se, apesar dela, o sujeito continuará seu desenvolvimento de forma relativamente

85
UNIDADE III │ O PERCURSO DE WINNICOT E A CLÍNICA DO CUIDADO

saudável. A data da falha, sua gravidade, as ferramentas já adquiridas pelo sujeito para
lidar com ela e as medidas reparadoras a que o sujeito terá acesso são alguns dos fatores
determinantes da direção que tomará o desenvolvimento emocional do sujeito.

Assim, se tudo correr bem, o adulto amadurece e torna-se capaz de integrar a sociedade
sem sacrificar demasiadamente sua espontaneidade pessoal – um adulto que, para
satisfazer suas necessidades pessoais, não presisa tornar-se antissocial.

Importante destacar que, para Winnicott, a vida emocional do sujeito não é algo
imutável ou inabalável. O processo de desenvolvimento emocional é contínuo e
passível de quebras em qualquer momento da vida. Da mesma forma, em qualquer
momento o sujeito pode colocar em funcionamento ferramentas de reparação que o
auxiliem a retomar um processo de desenvolvimento saudável. Em casos assim, as
intervenções sobre o ambiente – no sentido de torná-lo um ambiente facilitador –
seriam fundamentais.

É nesse sentido (ou seja, na busca por entender e manejar melhor os processos
facilitadores do desenvolvimento) que Winnicott volta seu interesse para o brincar,
passando a entendê-lo não apenas como meio de expressão das fantasias inconscientes
(que forneceria o material para ser trabalhado na análise com crianças), mas como
atividade terapêutica em si, tanto para crianças como para adultos. Nisso, seu setting
diferirá do setting kleiniano. Enquanto para Klein a brincadeira é a forma de expressão
privilegiada para a criança, para Winnicott o brincar tem uma potencialidade própria,
constituindo-se em ferramenta terapêutica com efeito curativo na análise de crianças e
adultos.

É preciso dizer que essa concepção está relacionada à ideia Winnicottiana de que o
ser humano possuiria uma criatividade primária, uma criatividade potencial que seria
o impulso para o desenvolvimento da capacidade de brincar, sendo que o brincar se
situaria em uma zona intermediária entre o dentro e o fora, em um espaço transicional.

Lembremos:

O espaço transicional refere-se à ideia sustentada por Winnicott de que, inicialmente, o


bebê constitui o objeto como objeto subjetivo e que, na medida em que vai avançando
em seu desenvolvimento, ele vai fazendo a passagem desse objeto subjetivo para um
objeto objetivo. Sendo assim, o bebê construiria/criaria seu mundo e, nesse processo,
realizaria a integração de seu self. Porém, entre o mundo interno inicial e o mundo
externo haveria o meio. Um espaço que estaria entre esses dois mundos, uma “terceira
área de experimentação”, para a qual contribuiriam tanto a realidade interna do sujeito

86
O PERCURSO DE WINNICOT E A CLÍNICA DO CUIDADO │ UNIDADE III

quando a realidade externa material. Esse seria o espaço transicional: o espaço em que
se desenrolaria o brincar.

Para melhor análise, o espaço transicional relaciona-se com a crescente capacidade


do bebê de perceber e aceitar a realidade externa. Esse percurso começa na ilusão
inicial do bebê de uma onipotência de controle com relação ao mundo que o envolve,
passando pela desilusão quanto a essa onipotência e chegando a um grau considerável
de aceitação da realidade socialmente construída. Para empreender esse percurso, ele
faz uso do espaço intermediário, da transicionalidade. Eis aí o brincar.

Portanto, é importante compreender que o brincar para Winnicott tem uma topologia
e uma temporalidade. Topologicamente, o espaço do brincar é o espaço que Winnicott
chamou de espaço potencial. Não se situa nem completamente no espaço subjetivo do
bebê –no seu corpo – nem completamente naquilo que o bebê já identifica como não-
eu – a realidade externa. Esse espaço se situaria, inicialmente, entre o bebê e a mãe.

Com relação à temporalidade do brincar, Winnicott realiza uma releitura do jogo do


fort-da de Freud. No primeiro tempo do brincar, o bebê percebe o objeto como uma
extensão de si (objeto-subjetivo). Em um segundo momento, o objeto será repudiado e
percebido como não-eu. A mãe será a responsável por permitir que o bebê reencontre
fora de si o objeto que havia repudiado, aceitando-o novamente e percebendo como
objeto-objetivo. Sobre esse processo, Franco (2003) comenta:

A mãe oscila entre ser o que o bebê tem capacidade de encontrar e ser
ela própria, aguardando ser encontrada. Se a mãe tem razoável sucesso
no exercício desses papéis, então o bebê tem a experiência mágica da
onipotência, o que o prepara para a futura desilusão necessária. Quando
a mãe tem uma relação de sintonia inicial com o bebê, estabelece-se um
ambiente de confiança e o bebê brinca com a realidade. Trata-se de uma
brincadeira muito prazerosa porque neste jogo delicado da subjetividade
emergente e dos objetos reais há uma sensação de controle.

O avanço da atividade do brincar irá caminhar para um momento em que a criança


passa a brincar na presença da mãe, ou seja, ela pode brincar só, pois sente a confiança
de que, se necessário, pode recorrer à mãe. Ou seja, a mãe dá sutentação para o brincar
da criança. Isso permitirá que, posteriormente, a criança desenvolva a capacidade de
brincar com a mãe, isto é, a mãe pode introduzir o seu brincar no jogo, ocorre, então, a
superposição de duas áreas do brincar: o eu e o outro.

A capacidade de brincar seria, portanto, muito importante no manejo das ansiedades


geradas pelo processo de caminhar para a percepção do mundo externo e da alteridade.

87
UNIDADE III │ O PERCURSO DE WINNICOT E A CLÍNICA DO CUIDADO

No brincar, a criança cria objetos transicionais, vivencia fenômenos transicionais


que trazem a marca de seu mundo interno e da forma como vem compondo o mundo
externo. Esses objetos e fenômenos são transicionais pelo uso que se dá a eles. Eles
são usados para permitir esse trânsito entre o mundo interno e o mundo externo com
o qual o bebê está se deparando. E permitem esse trânsito porque não pertencem a
nenhum desses dois mundos, estão entre eles.

Assim, o objeto transicional funciona como ferramenta para que o bebê tenha algum
controle sobre as tensões geradas no encontro com um admirável mundo novo, dando
condições ao bebê de experimentar uma nova realidade, sem quebras no seu processo
de desenvolvimento.

Neste sentido, para Winnicott o brincar seria o meio que tornaria possível a integração
do self, daí porque ele chega a afirmar que somente através do brincar o indivíduo
poderia usufruir de sua personalidade de forma integral. Daí porque, também, ele
considera que o processo analítico só pode ocorrer se o sujeito tiver desenvolvido a
capacidade de brincar. Isso leva Winnicott (1971/1975, p. 61) a propor que:

O que quer que se diga sobre o brincar de crianças aplica-se também


aos adultos; apenas, a descrição torna-se mais difícil quando o material
do paciente aparece principalmente em termos de comunicação verbal.
Sugiro que devemos encontrar o brincar tão em evidência na análise de
adultos quanto o é no caso de nosso trabalho com crianças. Manifesta-
se, por exemplo, na escolha das palavras, nas inflexões de voz e, na
verdade, no senso de humor.

Percebe-se aqui que a noção de brincar de Winnicott vai adentrando as suas sessões
analíticas. A sessão de análise passa a ser vista por Winnicott como um espaço potencial
e, portanto, como espaço do brincar. A sessão é pensada como uma manifestação
da experiência de brincar, pois que o brincar propiciaria a comunicação do paciente
consigo mesmo e com o analista, fornecendo oportunidade para experiências inéditas
de integração e desintegração do paciente.

Neste sentido, Winnicott defende que as sessões de análise ocorreriam em um espaço


e temporalidade semelhantes àquele no qual se desenvolve o brincar, retomando as
condições iniciais da relação mãe-bebê. O analista, assim como a mãe, teria a função
de dar sustentação à atividade criativa do paciente. O paciente, por sua vez, colocaria
sua dimensão criativa em favor da cura. O trabalho do analista, portanto, é o de dar
sustentação a esse brincar do paciente, que ocorre em um espaço e tempo construídos
dentro da transferência.

88
O PERCURSO DE WINNICOT E A CLÍNICA DO CUIDADO │ UNIDADE III

Winnicott atenta ainda para o fato de que as crianças, quando brincam, engajam-se
de forma compromissada na brincadeira. Na sessão de análise aconteceria o mesmo:
ambos, analista e paciente, precisariam se engajar naquele espaço/tempo potencial,
propondo-se a brincar com suas realidades subjetivas. É um espaço/tempo teatral,
onde a dupla analista e paciente vivenciará o sofrimento, a alegria, a criatividade,
“numa dramatização que só tem valor se for investida de afeto e sustentada como se
esta  brincadeira  fosse tão real quanto à realidade socialmente construída” (Franco,
2003).

Assim é que a sessão se constitui como um momento de comunicação entre o mundo


externo e interno, com potencial para recriar a transitorialidade infantil. Faz presente
a interpretação de fatos internos e externos e sua manipulação para a composição de
novas experiências.

Para entendermos melhor a forma como o jogo é usado por Winnicott, vejamos
a descrição do Jogo da Espátula. Trata-se de um jogo que Winnicott apresentou
em conferência à Sociedade Britânica de Psicanálise em 1941. Sua função seria a de
integração da personalidade. Inicialmente, surgiu como um instrumento de pesquisa/
diagnóstico e depois se transformou em uma ferramenta terapêutica. É um jogo para
ser usado com bebês de cinco a treze meses. Ele assim se desenvolve:

O jogo começava já no ato de chegada da mãe e do bebê ao consultório. Winnicott


compunha esse ambiente de forma que a mãe percorresse um corredor com o bebê
e, ao longo do trajeto, fossem observados e observassem Winnicott – de forma a já
estabelecerem contatos através das expressões faciais. Após isso, Winnicott pedia que a
mãe, com o bebê em seu colo, se sentasse ao seu lado, em uma mesa onde o bebê teria,
ao seu alcance, uma espátula reluzente.

Winnicott passa, então, a observar o comportamento que o bebê terá com a espátula.
Em geral, o esperado é que o bebê se sinta atraído pelo objeto. Em um primeiro estágio,
ocorre o que Winnicott denomina de período de hesitação. O bebê toca a espátula de
leve, olha para a mãe e para o analista ou refugia-se encabulado no corpo da mãe.
Trata-se de um momento em que o bebê busca ainda estabelecer uma intimidade com
o ambiente e com o analista. Seria um momento para se observar o estabelecimento da
transferência. Neste momento, a ausência de hesitação ou hesitação exagerada seriam
comportamentos a serem observados, pois poderiam representar distorçoes na relação
do bebê com suas fantasias internas ou com seu superego, indicando a presença de
ansiedade.

No segundo estágio da brincadeira, o bebê supera a exitação e passa a manipular


animadamente a espátula, tomando o controle dela. Balança-a no ar, bate-a na mesa,

89
UNIDADE III │ O PERCURSO DE WINNICOT E A CLÍNICA DO CUIDADO

leva-a a boca e brinca de alimentar o analista e a mãe com ela. A mãe e o analista,
entram na brincadeira, fingindo ser alimentados. Interessante é observar aí o papel
fundamental da ilusão. Os adultos devem fingir, pois, se levarem de fato a espátula a
boca, a brincadeira perde a graça, pois deixa de ser brincadeira, o que levaria o bebê a
se sentir perturbado. Aqui, portanto, é dada à criança a liberdade de se expressar por
meio do jogo.

No terceiro estágio, a criança passa a atirar a espátula no chão. Quando é restituída


do objeto, sente-se contente. Repete essa atividade algumas vezes até resolver descer
da cadeira para brincar com a espátula no chão, agora apenas mordiscando-a. Para
Winnicott, essa é uma oportunidade que a criança tem de expressar sua agressividade
em um ambiente em que ela não será revidada. Assim, se analista e mãe dão sustentação
ao bebê, ele aprende a exercitar o amor e o ódio direcionados ao objeto, distinguindo-
os e permitindo que eles sejam gradualmente controlados por fatores internos. Um
verdadeiro aprendizado da relação com o objeto.

Pode-se observar, com a descrição que Winnicott faz do jogo da espátula, como esse
psicanalista pensa o brincar na sessão analítica: não apenas como fonte de material
para interpretação, mas como instrumento de tratamento. Como vimos, para ele,
quando acorrem situações traumáticas, elas geram bloqueio no desenvolvimento
emocional do sujeito no âmbito do que foi traumatizado, ocorrendo um descompasso
com o desenvolvimento de outros pontos da personalidade. Seria necessário encontrar
esse ponto de bloqueio e permitir que ele seja revivido, reexperimentado na forma de
jogo em meio a um ambiente acolhedor e a atitudes de sustentação para que ele possa
ser superado e dê ensejo a criação de novos rumos.

90
CAPÍTULO 3
Interpretação no setting winnicottiano

A questão da interpretação é outro ponto técnico no qual Winnicott comporá uma


marca pessoal. A forma como esse psicanalista compreende o uso da interpretação no
processo de análise difere da forma como ela vinha sendo tratada tanto pelos Freud
como por Klein.

Na clínica psicanalítica de então, o fazer analítico se constituía por meio do uso da


interpretação como forma de realizar a elaboração dos conteúdos inconscientes. A
busca pelos conteúdos inconscientes usando a interpretação como ferramenta era
fundamental no fazer analítico porque, para a psicanálise, a etiologia dos distúrbios
psíquicos encontrava-se no processo de recalque de conteúdos e conflitos pulsionais.
Assim, lidar com tais conteúdos e administrar tais conflitos eram ações fundamentais
para o reestabelecimento da saúde.

Como vimos, porém, Winnicott acrescenta novas concepções ao entendimento dos


processos de adoecimento a partir de sua teoria do amadurecimento. Esse fato faz com
que a atividade da interpretação como era pensada então, passe a ser, para Winnicott,
não apenas insuficiente para lidar com alguns fenômenos clínicos como, por vezes,
até inadequada. Isso porque nem sempre o paciente teria amadurecimento para lidar
com o conteúdo emergente da interpretação (como seria o caso de pacientes muito
regredidos). Em situações assim, a interpretação poderia ser extremamente invasiva,
prejudicando o estabelecimento de um ambiente de sustentação e intimidade.

Desta forma, Winnicott defenderá que a maneira como um tratamento deve ser conduzido
tem de estar na dependência das necessidades que o paciente manifesta, que variará de
acordo com o tipo de distúrbio que ele apresenta e com a fase do desenvolvimento em que
se encontra. No caso dos bebês e das crianças que estão no momento da dependência, o
analista não pode se limitar à interpretação do desejo, precisa investir na compreensão
da necessidade que se faz presente, pois que a necessidade não carece de interpretação,
ela precisa, na medida do possível, ser atendida.

Importante atentar para o fato de que pacientes na fase de dependência só podem


perceber o analista como objeto subjetivo – e é dessa posição que o analista terá
de manejar a situação clínica, pois, nestes casos, a interpretação poderia inclusive
prejudicar o andamento do processo da análise, porque estaria destacando, antes do
devido tempo, a existência externa e separada do analista (ou seja, estaria apresentando
o analista à criança como objeto objetivo em um momento em que ela ainda não teria

91
UNIDADE III │ O PERCURSO DE WINNICOT E A CLÍNICA DO CUIDADO

capacidade para encontrar esse objeto). Daí porque a importância, para Winnicott, de
determinar o momento de maturação em que seu pequeno paciente se encontra.

Assim, na análise com crianças o setting analítico recebe maior importância que a
interpretação analítica (entendendo aqui setting como Winnicott o descreve, ou seja,
como a soma dos detalhes do manejo). Portanto, o manejo é fundamental na análise
com crianças, o que altera o lugar da interpretação como método terapêutico central.

Portanto, para Winnicott, o uso da interpretação deve ser mais limitado (e delimitado).
Nesse sentido, ele aponta para o fato de que se deve interpretar o que é profundo, não
o que é primitivo.

Entendamos:

O que é profundo é o que é fruto do recalcamento. Trata-se do campo das fantasias


inconscientes e dos conflitos recalcados. Logo, o profundo só se faz presente se o
paciente já houver alcançado a fase de maturidade em que ele tem noção do interno
e do externo, do eu e do não eu, da realidade psíquica e da realidade externa. Nesse
momento, a defesa do recalque já se pôs em funcionamento, e há conteúdos a serem
trabalhados pela interpretação. Antes desse momento o que há é apenas o primitivo, é a
junção bebê/mãe. Não há ainda um depósito de conteúdos, o que há são as experiências
pré-verbais. Por isso, o manejo é o recurso terapêutico viável.

Figura 8. Criança brincando – Cleusa Caldas.

Fonte: <https://cleusacaldas.com.br/artista-plastica/media/catalog/product/cache/1/small_image/360x/9df78eab33525d08d
6e5fb8d27136e95/f/b/fb_img_1452096067913.jpg>

O analista, portanto, assume, na interpretação, uma nova posição – mais ampla do que
a de decifrador de conteúdos. A presença do analista é, antes de tudo, a presença que
dará suporte para que a criança vá compondo seu objeto, e entrando em contato com

92
O PERCURSO DE WINNICOT E A CLÍNICA DO CUIDADO │ UNIDADE III

outro ser humano. É uma experiência de comunicação silenciosa, de construção de uma


confiabilidade. A interpretação, portanto, não resulta em verbalização, mas em manejo.
Logo, pode-se dizer que Winnicott contextualiza a interpretação – isto é, transforma-a
em ações sobre o ambiente do setting e sobre o ambiente do paciente.

Dessa forma, não podemos deixar de discutir, ao falar da interpretação em Winnicott,


o seu conceito de management.

O termo management, usado na área médica, significa a função que o médico deve
assumir de gerenciar o tratamento de seu paciente, ou seja, de definir onde ocorrerá
o tratamento (ambulatório, internação etc.), qual a duração, que tipo de alimentação,
qual o contato social o doente deve ter, quanto de repouso é necessário, mas não só
isso. Inclui também as atitudes que o médico deve tomar diante do paciente e de seu
adoecimento: a pessoalidade do atendimento, o interesse manifesto, a pontualidade,
a forma de comunicação etc. Esses detalhes do manejo são muito importantes para
o estabelecimento de uma relação de confiança. Trata-se de estabelecer um manejo
confiável.

Winnicott, portanto, introduz o conceito de management à clínica psicanalítica,


fazendo eco às conclusões a que chegara sobre a importância do ambiente no caminhar
dos processos de amadurecimento. Assim, passa a montar e a teorizar sobre o ambiente
que se compõe no setting psicanalítico. Desse ambiente faz parte o analista (que não
se encontra separado como objeto do eu da criança, que ainda se encontra na fase de
dependência). Trata-se, portanto, de um modelo de relação fundante. Essa relação
inicialmente ambiental servirá de base para a constituição das relações objetais.

Logo, pode-se depreender do exposto que, para dar ensejo à cura, será necessário
compor ou alterar as condições ambientais para que elas proporcionem ao pequeno
paciente um cuidado ambiental total propulsor dos processos de amadurecimento.

No entanto, é preciso atentar para o fato de que, em acordo com a ideia de que é
necessário seguir as necessidades do paciente, não há regras claras para nortear as
atitudes a serem adotadas pelo analista (assim como não há uma definição precisa do
fazer da mãe suficientemente boa). O analista não tem como compor um modelo prévio
de como agir. Ele precisa estar atento a qual necessidade o paciente expressará em cada
momento, e estar atento para o fato de que a direção do manejo deve variar de acordo
com a etapa de amadurecimento em que está o paciente.

Portanto, o manejo se guiará pela identificação do analista com seu paciente, que
assim buscará perceber quais os cuidados precisa oferecer àquele paciente específico.
Trata-se, portanto, de uma adaptação ativa por parte do analista, que busca uma visão

93
UNIDADE III │ O PERCURSO DE WINNICOT E A CLÍNICA DO CUIDADO

do contexto global e disponibiliza uma capacidade de identificação para fornecer a


confiabilidade necessária ao desenvolvimento emocional da criança – prevenindo
sustos e sobressaltos.

Logo, o manejo se direciona para a situação em que a criança se encontra no setting e


na vida, ocupando-se das relações reais que estão sendo estabelecidas (as pessoais e as
ambientais). Isso difere bastante do setting tradicional, que se centra basicamente na
interpretação das fantasias e dos objetos do mundo psíquico. Dias (2011) assim descreve
a atuação do analista com pacientes que se encontram na etapa da dependência na
clínica winnicottiana:

[...] o analista que inclui o manejo em sua tarefa terapêutica, ao aceitar


um caso, torna-se naturalmente concernido pela imaturidade do
paciente e, tomando ativamente a direção, se encarrega de manejar a
situação global em que esse paciente está, a começar pelo setting, pelos
detalhes que o compõem – incluindo a pontualidade e a disponibilidade
do analista -, mas também, com o olhar mais amplo, orientando os
pais ou a escola ou o hospital para que certos cuidados e/ou atitudes
sejam dispensados ao paciente, sempre no sentido de favorecer-lhe
o amadurecimento. Isso significa desencarregar momentaneamente
o paciente de ter que lidar com tarefas que ultrapassam a capacidade
maturacional do momento; isso deve durar o tempo em que ele,
regredido à dependência e entregue à confiabilidade ambiental, se ocupa
em achar o fio perdido de continuidade da experiência, a restaurar o
ponto em que a esperança se perdeu. Não é isso que significa o ego
auxiliar da mãe? Não é esse holding que faz forte o ego fraco do bebê?

Logo, percebe-se aí que a prática de orientação aos pais e à escola passa a integrar o
trabalho analítico winnicottiano.

Por fim, uma observação se faz importante. Todo uso do management tem de se
basear nas necessidades do paciente (não nas do analista) e ter como fundo uma
compreensão clara dos princípios do madurecimento e das condições suficientemente
boas do ambiente facilitador. Sem essas referências, enfrenta-se o risco de se perder os
parâmetros e os limites de atuação que devem delimitar o fazer do analista.

Aqui, encerramos nosso estudo de alguns dos princípios essenciais da técnica


winnicotiana.

94
O PERCURSO DE WINNICOT E A CLÍNICA DO CUIDADO │ UNIDADE III

Conclusão
Ao longo do percurso que travamos nas três unidades deste manual de estudos, fomos
acompanhando o nascimento de uma nova concepção de infância – que, aos poucos, foi
sendo ressignificada no conceito de infantil. Ela constrói as condições que possibilitam
a criação de espaço de tratamento do sofrimento psíquico já na infância. O setting da
psicanálise infantil (ou, talvez seja mais adequado falar, os settings da psicanálise infantil)
vai se construindo junto com o próprio desenvolvimento do movimento psicanalítico,
demarcando uma nova forma de conceber o ser humano, seu desenvolvimento, sua
saúde e seu adoecimento.

Aqui buscamos circunscrever essa construção, pondo à mostra desafios clínicos com
que os primeiros analistas de crianças foram se deparando e as soluções técnicas que
foram compondo para dar respostas a tais desafios.

Pontos fundamentais do setting psicanalítico com crianças, como o método do brincar,


a transferência e a interpretação, vão se descortinando diante do nosso olhar a partir
das polêmicas e das experimentações dos pioneiros da psicanálise infantil que, com sua
criatividade e coragem, ousaram encarar o sofrimento psíquico infantil e tentar dar a ele
respostas mais amplas do que a pura investigação dos aspectos físicos do adoecimento
com que a psiquiatria vinha se debatendo sem sucesso.

Esperamos que, inspirados pelos percalços e encalços desses analistas, cientes das
problemáticas que a psicanálise infantil enfrenta no campo das técnicas e municiados
das propostas que foram montadas para responder à essas problemáticas, vocês que
nos acompanharam ao longo desta disciplina possam traçar seu próprio caminho pelo
fazer da psicanálise infantil.

Boa caminhada a todos!

95
Referências

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