Psicanalise Infantil
Psicanalise Infantil
Psicanalise Infantil
Atendimento Infantil
Brasília-DF.
Elaboração
Produção
APRESENTAÇÃO.................................................................................................................................. 5
ORGANIZAÇÃO DO CADERNO DE ESTUDOS E PESQUISA..................................................................... 6
INTRODUÇÃO.................................................................................................................................... 8
UNIDADE I
FREUD E ANNA FREUD: OS PRIMÓRDIOS DA PSICANÁLISE INFANTIL........................................................ 10
CAPÍTULO 1
FREUD E A CONSTRUÇÃO DO INFANTIL................................................................................... 11
CAPÍTULO 2
A DESCOBERTA DA SEXUALIDADE INFANTIL............................................................................... 16
CAPÍTULO 3
ESBOÇO DE UM SETTING COM CRIANÇAS: O CASO DO PEQUENO HANNS............................. 23
CAPÍTULO 4
O SETTING DE ANNA FREUD.................................................................................................... 28
UNIDADE II
OS CAMINHOS DE KLEIN E O SURGIMENTO DA ANÁLISE LÚDICA............................................................ 34
CAPÍTULO 1
KLEIN E SEU ENCONTRO COM A TEORIA PSICANALÍTICA.......................................................... 34
CAPÍTULO 2
DA EDUCAÇÃO PSICANALÍTICA À PSICANÁLISE DE CRIANÇAS................................................. 39
CAPÍTULO 3
O SETTING KLEINIANO............................................................................................................ 47
CAPÍTULO 4
O MUNDO INTERNO E SEUS DESDOBRAMENTOS...................................................................... 59
UNIDADE III
O PERCURSO DE WINNICOT E A CLÍNICA DO CUIDADO........................................................................ 79
CAPÍTULO 1
WINNICOTT E SEU ENCONTRO COM A CLÍNICA PSICANALÍTICA................................................ 79
CAPÍTULO 2
O BRINCAR NO SETTING WINNICOTTIANO................................................................................ 84
CAPÍTULO 3
INTERPRETAÇÃO NO SETTING WINNICOTTIANO........................................................................ 91
REFERÊNCIAS................................................................................................................................... 96
Apresentação
Caro aluno
Conselho Editorial
5
Organização do Caderno
de Estudos e Pesquisa
A seguir, apresentamos uma breve descrição dos ícones utilizados na organização dos
Cadernos de Estudos e Pesquisa.
Provocação
Textos que buscam instigar o aluno a refletir sobre determinado assunto antes
mesmo de iniciar sua leitura ou após algum trecho pertinente para o autor
conteudista.
Para refletir
Questões inseridas no decorrer do estudo a fim de que o aluno faça uma pausa e reflita
sobre o conteúdo estudado ou temas que o ajudem em seu raciocínio. É importante
que ele verifique seus conhecimentos, suas experiências e seus sentimentos. As
reflexões são o ponto de partida para a construção de suas conclusões.
Atenção
6
Saiba mais
Sintetizando
7
Introdução
O objetivo da presente disciplina é apresentar, de forma sistemática, a construção do
setting psicanalítico com crianças, descrevendo o surgimento das principais linhas
de atuação da psicanálise infantil no intuito de revelar as respostas que os primeiros
analistas de crianças foram dando aos desafios com que se deparavam na escuta clínica.
8
Klein, ele tenta compor um diálogo entre esses dois settings, propondo soluções
originais e decorrentes de suas vivencias práticas e construções teóricas.
Objetivos
Ao final da Disciplina, vocês devem ter acumulado um entendimento sobre:
9
FREUD E ANNA FREUD:
OS PRIMÓRDIOS DA UNIDADE I
PSICANÁLISE INFANTIL
Dentro dessa discussão, que inclui a retomada da descoberta por Freud da sexualidade
infantil, assim como suas elaborações acerca das teorias sexuais infantis, visitaremos o
caso do Pequeno Hanns como caso paradigmático que deixa antever a forma que Freud
pensava, então, a psicanálise com crianças.
Objetivos
Vocês devem chegar ao final da Unidade compreendendo:
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CAPÍTULO 1
Freud e a construção do infantil
No entanto, as buscas de Freud têm como meio a fala, o relato de seus pacientes. E
o ato de falar não é só ferramenta de pesquisa. É, antes de tudo, tratamento do
sofrimento psíquico. Assim, a infância que vai se compondo dessa experiência a qual
Freud se entrega já não tem mais como ficar circunscrita ao efetivamente vivido, pois
que ela é uma infância contada. É a infância das lembranças lacunares, marcada pelos
esquecimentos. Esse será o ponto fundamental para que a psicanálise inaugure uma
nova forma de concepção da infância. Aquela que aqui denominamos de Infantil e que
será a base para a desenvolvimento futuro da psicanálise com crianças.
Lembremos que, em 1882, o ainda jovem Sigmund Freud – homem que receberia da
história a alcunha de pai da psicanálise – principia sua atuação como médico assistente
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UNIDADE I │FREUD E ANNA FREUD: OS PRIMÓRDIOS DA PSICANÁLISE INFANTIL
Freud, na sua atuação cotidiana, cada vez mais, vai direcionando seus estudos para
pesquisas sobre as doenças nervosas. Esse direcionamento cria nele a necessidade
de se situar no campo da clínica dos transtornos mentais e de procurar soluções de
tratamento diferentes das que eram até então oferecidas na Viena da época. Isso acaba
por levá-lo a Paris, onde as doenças nervosas estavam sendo pesquisadas de forma
mais sistemática. Em 1885, tornou-se aluno da Salpêtrière – aluno de Charcot.
Situe-se na História:
Charcot (1825-1893) foi um eminente neurologista francês que atuou e lecionou
na Salpetrière. Levou para o estudo da histeria o método de observação e
descrição metódica que era aplicado na neurologia. Fazendo uso da hipnose – o
que lhe custava um olhar desconfiado e desaprovador da comunidade científica
– defendeu a existência da histeria masculina e a presença de uma experiência
traumática como base do desencadear das crises histéricas. Suas descobertas
foram um dos pontos de partida fundamentais para o desenvolvimento
psicanálise.
12
FREUD E ANNA FREUD: OS PRIMÓRDIOS DA PSICANÁLISE INFANTIL│ UNIDADE I
Situe-se na História:
Breuer (1842-1925), médico e fisiologista, assim como Freud, era judeu e, por uma
proximidade com o pai de Freud, ajudou o jovem médico a se estabelecer como
clínico em Viena. A sua experiência no atendimento de Bertha – que depois
ficou conhecida como Anna O., uma das histéricas mais famosas da história da
psicanálise – foi descrita a Freud e se constituíu como um dos principais motivos
para que Freud ousasse novas técnicas para o tratamento das neuroses.
E é neste ponto – em que é dada a fala para os pacientes – que o Infantil começa
a aparecer para a escuta de Freud. Na origem dos sintomas, encontravam-se cenas
traumáticas. Essas cenas eram marcadas por conflitos mentais que haviam levado os
pacientes a não liberar emoções ligadas a tais acontecimentos. Essas emoções haviam
sido tão fortemente suprimidas que os pacientes não eram capazes de recordar, em seu
estado consciente, dos fatos aos quais elas estavam vinculadas. As cenas, juntamente
com os afetos que as acompanhavam, tornavam-se acessíveis por meio de hipnose.
Quanto mais se avançava na fala dos pacientes, mais se chegava a cenas ocorridas na
infância.
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UNIDADE I │FREUD E ANNA FREUD: OS PRIMÓRDIOS DA PSICANÁLISE INFANTIL
Figura 1. Uma lição com o doutor Charcot na Salpetriére - Pierre André Brouillet, 1887.
Fonte: <http://www2.uol.com.br/vivermente/noticias/a_histeria_em_cena.html>
Foi ao visualizar mais diretamente esse fenômeno que Freud pôde ter noção do papel e
da importância da resistência no tratamento das neuroses. Foi também nesse momento
que foi possível elaborar com maior clareza uma explicação do mecanismo envolvido
na formação dos sintomas. Surge, assim, a Teoria do Recalque (traduzida na Edição
Standard Brasileira como Teoria da Repressão).
A infância que vai surgir, nesse momento, sob o olhar atento de Freud é uma infância
que habita o conteúdo recalcado. É uma infância que precisa ser reconstruída a partir
da associação livre do paciente, e interpretada pelo analista, juntos na luta por vencer
as resistências psíquicas. Não é uma infância de fatos, é uma infância que emerge na
composição das fantasias do paciente, que integra sua realidade psíquica. O que passa
a interessar não é a reprodução fiel de lembranças, mas a forma como elas ficaram
inscritas no inconsciente do sujeito.
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FREUD E ANNA FREUD: OS PRIMÓRDIOS DA PSICANÁLISE INFANTIL│ UNIDADE I
infantil aparecerá nela. Zavaroni, Viana e Celes (2007) consideram, inclusive, que o
infantil assumiria uma posição central no percurso das transformações metodológicas
pelas quais passou a técnica freudiana nesses primórdios. Vejamos que ideias foram
sedimentadas com essas mudanças, pois elas nos ajudarão a entender o infantil que daí
vai surgindo:
Sobre esse segundo elemento – o deparar-se de Freud com a etiologia sexual das
neuroses – tratá-lo-emos de forma mais atenta, pois ele é um dos principais pontos de
constituição da psicanálise, e fundamental para que compreendamos a forma como esse
saber abarcará o infantil em seu discurso já ali, bem no momento de seu surgimento.
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CAPÍTULO 2
A descoberta da sexualidade Infantil
Freud, no entanto, não abriu mão de relatar aquilo que escutava na fala dos histéricos.
E, sistematicamente, passou a investigar também a vida sexual de outros pacientes
neuróticos, que chegavam cada vez em maior número a sua clínica, percebendo também
neles a presença de fatores sexuais na emergência dos sintomas.
Freud trazia consigo a influência da teoria do trauma, postulada por Charcot, e, por
meio da fala dos histéricos, foi levado a concluir que o trauma que se encontrava na
base dos sintomas neuróticos era de origem sexual. A cena da sedução por um adulto
encontrava-se presente com grande frequência na fala de seus pacientes. Nas histéricas,
comumente era o pai quem ocupava o papel de sedutor. A escuta desses relatos levou
Freud a formular a Teoria da Sedução como explicação etiológica das neuroses. mas o
percurso do criador da psicanálise estava só no início.
A concepção da etiologia sexual das neuroses já era, em si, bastante virulenta. Porém,
aquilo que veio a se descortinar em seguida era bem mais. O que as observações clínicas
de Freud acabaram por desvelar vem a ser repelido para o discurso sustentado na época
sobre a sexualidade humana.
Persistindo em suas pesquisas – que, além de serem calcadas sobre a escuta de seus
pacientes, passam também a colher material de um intenso processo de autoanálise
ao qual Freud se entrega –, o pai da psicanálise afirmará, em carta a Fliess, em 21 de
setembro de 1897: “Não acredito mais em minha neurótica [teoria das neuroses]”.
Assim é que, na carta citada acima, Freud explica a Fliess que já não era possível
sustentar a teoria da sedução. Vários motivos o levaram a essa conclusão. Entre eles:
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FREUD E ANNA FREUD: OS PRIMÓRDIOS DA PSICANÁLISE INFANTIL│ UNIDADE I
Portanto, Freud havia esbarrado na descoberta que mais causaria indignação e geraria
rejeição às ideias psicanalíticas. Ele percebera que os sintomas neuróticos não remetiam
a experiências sexuais passivas ocorridas nos primeiros anos da infância. Na verdade,
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UNIDADE I │FREUD E ANNA FREUD: OS PRIMÓRDIOS DA PSICANÁLISE INFANTIL
Assim, clarificou-se diante dele o fato de que essas fantasias encobriam, na verdade, uma
atividade auto-erótica que tinha como palco os primeiros anos da infância, desvelando-
se, assim, a vida sexual das crianças – que, até então, era tida como inexistente. Freud
pode, enfim, declarar: a sexualidade começa com o início da vida.
Nessa obra, Freud inicia abordando as perversões, por considerar que os casos
divergentes da norma poderiam fornecer pistas para um mais amplo entendimento do
funcionamento sexual humano. Assim é que a pulsão sexual passa a ser observada a
partir de três aspectos: a fonte (ou seja, o órgão no qual se origina o processo excitatório
que exige satisfação), o objeto sexual (ou seja, a pessoa para quem o sujeito direciona
sua atração sexual), e o alvo sexual (a ação para a qual a pulsão impele). Freud aponta
que sua escuta clínica detectou grande número de desvios no objeto sexual e no alvo
sexual, assim como detectou a possibilidade de que qualquer órgão do corpo pudesse vir
a se constituir como zona erógena. Ele passa a examinar essas hipóteses nas perversões,
chegando a conclusões importantes, como a de que a experiência cotidiana mostrava
que:
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FREUD E ANNA FREUD: OS PRIMÓRDIOS DA PSICANÁLISE INFANTIL│ UNIDADE I
Assim, Freud conclui, também, que a pulsão sexual não se encontra invariavelmente
ligada a um objeto específico, eis o porquê observar-se-ia flexibilidade na escolha do
objeto sexual, influenciada tanto por fatores constitucionais como pela história de vida
do sujeito.
As observações de Freud sobre a vida sexual dos perversos e dos neuróticos – e o que
elas possuíam em comum com a vida sexual de indivíduos na normalidade – levam-no
à percepção de que manifestações sexuais semelhantes podiam ser observadas também
na primeira infância, o que o conduz a uma investigação sobre a vida sexual infantil.
Assim é que Freud (1905/1990, p.166) introduz o que chama de período de latência
sexual da infância, destacando que: “Durante esse período de latência total ou apenas
parcial erigem-se as forças anímicas que, mais tarde, surgirão como entraves no caminho
da pulsão sexual e estreitarão seu curso à maneira de diques (o asco, o sentimento
de vergonha, as exigências dos ideais estéticos e morais).” Para Freud, essas forças
anímicas seriam resultantes de processos orgânicos, vinculados à hereditariedade.
Seria o que Freud denomina por constituição. A educação entraria aí como reforçadora
dessa constituição já presente desde a origem do sujeito.
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UNIDADE I │FREUD E ANNA FREUD: OS PRIMÓRDIOS DA PSICANÁLISE INFANTIL
Essas forças anímicas tanto atuarão no Recalcamento das pulsões sexuais, como
também gerarão o efeito de desviar as forças pulsionais sexuais de suas metas sexuais
para outras metas mais aceitas socialmente, processo que Freud denominará de
Sublimação. A sublimação estaria na origem de todas as realizações culturais obtidas
pelos homens.
Atenção
Recalque ou Repressão: os termos se referem ao conceito freudiano de
Verdrängung. Segundo Hanns, o “termo no alemão coloquial implica ‘empurrar
de lado’ (livrar-se de) um incômodo, o qual permanece próximo ao sujeito,
pressionando pela volta. O foco do termo ‘reprimir’ em português é sobre
o esmagamento ou supressão de uma manifestação ameaçadora. O termo
germânico enfatiza o afastamento de incômodo” (Hanns, 1996, p.359). Portanto,
o termo português repressão leva a certa perda das conotações que podem ser
assumidas pelo termo Verdrängung.
Por outro lado, o termo recalque caiu em desuso no português. “Na prática dos
falantes do português atual, ‘recalque’ é quase como se fosse um termo cunhado
exclusivamente para o uso da psicanálise” (Hanns, 1996, p.358). Apesar de nossa
preferência pelo uso da tradução recalque, manteremos o termo adotado a cada
vez na Edição Standard Brasileira, pois foi a tradução que ecolhemos para ser a
base deste guia de estudos, com o intuito de facilitar o acesso dos alunos.
c. O alvo sexual de uma pulsão será definido pela zona erógena onde essa
pulsão se originou (lembrando que Freud define zona erógena como
sendo uma parte da pele ou da mucosa que, ao receber certos tipos de
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FREUD E ANNA FREUD: OS PRIMÓRDIOS DA PSICANÁLISE INFANTIL│ UNIDADE I
Assim é que, o alvo sexual da pulsão infantil seria buscar repetir aquela satisfação
experimentada nas origens por meio da estimulação apropriada das zonas erógenas.
Em geral, uma das zonas pode adquirir prevalência sobre as outras. O que define essa
prevalência será tanto fatores constitucionais como experiências vividas. Fred aborda
três zonas que são privilegiadas na primeira fase da infância: a zona oral (lábios e boca),
a zona anal e a zona genital.
A zona anal é despertada pelos distúrbios intestinais tão frequentes na infância, que
têm como consequência a excitação dessa zona erógena. Posteriormente, na fase do
controle dos esfíncters, pode-se observar uma atividade autoerótica quando a criança
retém as fezes, decidindo a hora de evacuar. Freud (1905/1950, p.174) assim relata esta
atividade masturbatória:
Para Freud, a zona genital, apesar de futuramente vir a constituir uma primazia nas
atividades sexuais, não tem um papel principal no início das atividades sexuais infantis.
Ela adquire seu espaço devido à posição anatômica, à micção, por excitações acidentais
e pelos cuidados com a limpeza do corpo do bebê realizados pelos adultos. Despertadas
as sensações prazerosas que essas partes são capazes de produzir, busca-se a repetição
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UNIDADE I │FREUD E ANNA FREUD: OS PRIMÓRDIOS DA PSICANÁLISE INFANTIL
Assim é que Freud (1905, p. 118) define a sexualidade infantil como perversa e
polimorfa, porque está estruturada sobre a satisfação de pulsões parciais. Essa
concepção o leva a compor a ideia de um desenvolvimento sexual que se inicia com a
configuração de pulsões independentes entre si e autoeróticas, e que termina na vida
sexual adulta, quando a obtenção de prazer se põe a serviço da função reprodutora, e
as pulsões parciais se colocam sob o primado de uma única zona erógena, formando
uma organização sólida na busca da consecução do alvo sexual em um objeto sexual
externo ao corpo do sujeito.
Deste modo, pelas crianças, Freud elabora teorias sexuais infantis, que acompanham
o desenvolvimento sexual infantil, fazendo eco a cada uma de suas fases. Junto a esse
processo se desenrola também o Complexo de Édipo, que se inicia com a escolha da mãe
como objeto (ainda na fase das pulsões parciais) e deve se encerrar com o abandono
deste objeto primeiro com a entrada no período de latência, até que seja retomado na
puberdade.
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CAPÍTULO 3
Esboço de um setting com crianças: o
caso do Pequeno Hanns
A Análise de Uma Fobia Em Um Menino de Cinco Anos é um estudo de caso escrito por
Freud, em 1909, que se tornou paradigma para o que posteriormente veio a se tornar
a psicanálise infantil. O caso clínico não foi diretamente conduzido por Freud, mas
pelo pai da criança, sob a supervisão de Freud. Freud chegou a ver o pequeno paciente,
denominado de Hans, apenas uma vez.
Interessante perceber que, no início desse caso, Freud (1909) levanta as principais
questões metodológicas que se tornarão alvo de disputas teóricas ferrenhas no período
de criação da psicanálise infantil. Ele afirma que, se a condução do tratamento não
tivesse sido assumida pelo pai de Hans, não haveria a possibilidade de ter levado a
análise à frente, pois as “dificuldades técnicas no caminho da aplicação da psicanálise
numa criança tão jovem como essa teriam sido incontornáveis”.
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UNIDADE I │FREUD E ANNA FREUD: OS PRIMÓRDIOS DA PSICANÁLISE INFANTIL
As teorias sexuais infantis refletem, por sua vez, o processo de constituição sexual
infantil, que ocorreria em etapas: as chamadas fases da organização sexual. Vamos aqui
tratar especificamente das fases pré-genitais (nas quais as zonas genitais ainda não
teríam assumido a preponderância). Para Freud, essas fases seriam as seguintes:
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FREUD E ANNA FREUD: OS PRIMÓRDIOS DA PSICANÁLISE INFANTIL│ UNIDADE I
o primeiro deles justamente na fase dos três aos cinco anos. No primeiro tempo, o
conjunto das aspirações sexuais representado pelas pulsões parciais orienta-se para
uma pessoa, na qual pretende alcançar seus objetivos. Mas, é importante perceber que
a concentração das pulsões parciais e sua subordinação ao primado da genitália não
serão alcançados na infância. O estabelecimento dessa primazia a serviço da reprodução
constitui a última fase da organização sexual.
É nesse ponto que tanto o Complexo de Édipo quanto o Complexo de Castração entram
em cena. Pois, a escolha do primeiro objeto recai sobre a mãe, escolha essa que terá de
ser modificada devido à barreira do incesto. O pai terá papel fundamental na interdição
do incesto. É a figura paterna que passa a ser temida quando o recalque começa a
operar sobre a primeira escolha amorosa da criança. E o temor – que instaura uma
ambivalência de afetos com relação ao pai – advirá justamente de uma das principais
teorias sexuais infantis que enumeramos acima: a da ideia de que todas as pessoas
teriam, inicialmente, um pênis, e de que, portanto, algumas o haveriam perdido.
Perdido por quê? Eis que se instaura – do lado dos meninos – o medo da castração e –
do lado das meninas – a inveja do pênis.
No caso do pequeno Hans, Freud tenta mostrar justamente essa composição que enlaça
as fases do desenvolvimento sexual infantil, com as teorias sexuais infantis e o complexo
de Édipo.
Já no início do estudo de caso, Freud relata como, aos três anos, Hans manifesta
curiosidade acerca de seu pênis e elabora indagações sobre se outros seres também
possuiriam um igual. Essa curiosidade vem acompanhada no tempo por uma atividade
masturbatória que tem o pênis como objeto. É essa atividade que irá colocar, pela
primeira vez, Hans em contato com o complexo de castração, na medida em que, ao
surpreendê-lo manuseando o órgão, a mãe o ameaça com a castração.
Fonte: <http://www.conflictopsiquico.com/2010/02/caso-juanito.htmlç>
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UNIDADE I │FREUD E ANNA FREUD: OS PRIMÓRDIOS DA PSICANÁLISE INFANTIL
Outro momento importante do caso ocorre quando Hans ganha uma irmã. O fato
desperta nele questionamentos sobre a origem dos bebês e sobre a diferença sexual – já
que observa a ausência do pênis na irmã, apesar de negar essa ausência afirmando que
ele (o pipi) ainda crescerá.
Nesse ponto do estudo, Freud traz o relato de observações que o pai de Hans realiza das
brincadeiras de criança, e se refere a esses folguedos como uma atividade de elaboração
em fantasias das reminiscências de uma viagem que o menino teria feito durante
as férias. Ressaltamos, aqui, esse ponto porque ele já demonstra, de forma inicial, a
maneira como o brincar vai se estabelecendo como elemento de observação e acesso ao
fantasiar infantil.
Freud continua a descrever os relatos do pai de Hans acerca das escolhas objetais
do filho, que já despontavam por volta dos três anos e meio, e que ora recaíam sobre
crianças de ambos os sexos, ora sobre a mãe ou o pai.
Após essas colocações iniciais, Freud relata que as observações do pai acerca do
desenvolvimento sexual de Hans, quando o menino já conta com cinco anos, tornam-se
um caso clínico. Hanns desenvolvera uma fobia de cavalos que passa a impedi-lo de sair
de casa. Seu medo era de que um cavalo viesse modê-lo caso saísse para a rua.
Outro momento importante do caso é a visita de Hans a Freud (único mometo em que
o pai da psicanálise tem acesso direto a seu pequeno paciente). Nessa visita, Freud
entrega a Hans mais uma interpretação de seu sintoma: a de que o cavalo representaria
o pai e o medo que Hans tinha de cavalos era, na verdade, um medo que sentia de seu
pai, por gostar tão intensamente de sua mãe.
26
FREUD E ANNA FREUD: OS PRIMÓRDIOS DA PSICANÁLISE INFANTIL│ UNIDADE I
Com essa interpretação, Freud começa a desvendar a escolha do objeto da fobia. Ela
será importantíssima para que o sintoma de Hans vá sendo cada vez mais simbolizado
e que seja possível, então, trabalhar com o menino o complexo de castração.
Lembremos aqui o que já foi dito: que o medo da castração é um importante operador
conceitual para Freud. Segundo o psicanalista, a menina, ao se perceber sem falo como
a mãe, acreditaria não ter recebido da mãe um pênis e desenvolveria a inveja do pênis.
Já o menino, pelo desejo que desenvolve pela mãe no Édipo, ao constatar que nem
todas as pessoas têm pênis, temeria a castração pelo pai.
Assim, a saída do Édipo dependeria da forma como cada sujeito se organizaria frente
a esse operador (falo-castração). Estaria aí o ponto para o entendimento da escolha
das defesas e sintomas assumidos pelo sujeito, assim como da sua forma de entrada na
cultura e da constituição de sua identidade de gênero. Enfim, entender a saída do Édipo
por meio da teoria da castração seria entender a constituição da subjetividade.
Freud, no anoitecer de seu percurso teórico, afirmará inclusive que a inveja do pênis
nas meninas e o medo da castração nos meninos são as barreiras com que o analista se
depara ao final da condução de um processo de análise que lhe parecem intransponíveis.
Não temos a intenção de acompanhar aqui todos os pormenores do caso de Hans (que,
em última instância, culminará na simbolização pelo menino de seu complexo de Édipo
e em uma saída para o Compexo de Castração). O que buscamos é demonstrar como o
atendimento analítico de crianças – os métodos, as formas de intervenção, os desafios,
as questões teóricas – gestão-se já aí, nesse primeiro momento de criação da psicanálise.
Logo, entender o papel das teorias sexuais infantis, assim como o desenvolvimento da
organização sexual e os complexos de Édipo e de Castração na teoria freudiana são
pontos indispensáveis para todos aqueles que querem aprofundar sua compreensão
acerca da psicanálise infantil. Por isso, encerraremos essa Unidade I recomendando
veementemente que os textos de Freud citados aqui sejam lidos concomitantemente a
este material, pois são referências básicas para o entendimento das discussões levadas
a cabo no campo da psicanálise com crianças.
27
CAPÍTULO 4
O setting de Anna Freud
Foi a sexta filha de Martha Bernays (esposa de Freud), e era muito claro para Anna que,
se os pai pudessem ter evitado a gravidez, o teriam feito. Sua mãe encontrava-se á época
exaurida por tantas gestações seguidas. Por esse contexto, biógrafos a descrevem como
a filha não desejada, o patinho feio da família que, no entanto, tornou-se a herdeira
intelectual de seu pai, Sigmund Freud, assumindo a causa da psicanálise durante toda
a vida.
Desde cedo, Anna édescrita como uma pessoa decaráter intrépido e aventureiro, como
o de seu pai. Ao que parece, esta foi a forma de encontrar seu lugar em uma família tão
numerosa: destacar-se por sua audácia e valentia.
Freud se referia a ela como sua Antígona, pois se tornou sua companheira de viagens,
sua secretária, seguiu-o ao exílio, cuidou dele durante seu adoecimento e foi sua
aliada no momento da morte. Em situações delicadas, quando Freud foi operado pela
primeira vez de seu câncer, Anna tornou-se também a voz de um Freud que estava
sendo paulatinamente silenciado pela doença.
Fonte: <http://deboraoliveirapsicologa.blogspot.com/2017/01/14-fatos-e-curiosidades-surpreendentes.html>
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FREUD E ANNA FREUD: OS PRIMÓRDIOS DA PSICANÁLISE INFANTIL│ UNIDADE I
No que diz respeito ao trabalho intelectual, no entanto, Anna não foi apenas um eco das
idéias de Freud. Ela elaborou construções teóricas e técnicas próprias, sendo uma das
pioneiras da criação da psicanálise com crianças.
Quanto a seu percurso intelectual, Anna ingressou na escola em 1901, aos seis anos
de idade. Não demonstrava prazer pelas atividades escolares, mas se esforçava para
ser diligente, pois era o que esperavam dela. Curiosamente, apesar da aversão à
escola, decidiu ser professora (havia pensado também em fazer medicina, mas Freud
a dissuadiu, afirmando que poderia prestar maior serviço à psicanálise caso seguisse
pedagogia). Anna não chegou a cursar o ensino superior, apenas o que hoje chamamos
de ensino médio. Suas curiosidades e empreitadas intelectuais foram estimuladas
muito mais pelas trocas com os amigos que frequentavam a casa dos Freud que pelo
ambiente escolar.
Aos 14 anos, Anna Freud teve seu primeiro contato com a psicanálise, por meio de uma
conversa com o pai, posteriormente, seu interesse foi crescendo. Anna lê, avidamente,
todas as obras psicanalíticas de seu pai e dos primeiros seguidores da psicanálise: Otto
Rank, Frenczi e Karl Abraham. Em 1914 inicia um curso que a habilitará a lecionar em
escolas primárias.
29
UNIDADE I │FREUD E ANNA FREUD: OS PRIMÓRDIOS DA PSICANÁLISE INFANTIL
Em 1923 abre seu próprio consultório e inicia, com prazer, o atendimento de seus
pacientes. Porém, esse processo acaba sendo perturbado pelo anúncio do câncer de
Freud, que o leva a ter de fazer diversas cirurgias e coloca Anna na posição de sua
cuidadora.
Fato é que, Anna Freud continuará suas incursões teóricas pela psicanálise infantil,
estabelecendo um discurso coeso sobre a técnica da psicanálise com crianças que
conformará seu setting analítico. Não devemos nos esquecer de que Anna Freud foi
psicanalista e pedagoga, e que ambas formações interferirão em sua prática clínica e em
seu entendimento da função a ser desempenhada pela psicanálise com crianças.
A partir da morte de Freud, Anna dedicará exaustivamente sua vida, seu potencial
intelectual, sua atividade profissional, o peso de seu nome, de sua convicção e de seu
prestígio profissional às crianças desamparadas e traumatizadas pelas vivências da
segunda guerra mundial. Para isso, cria casas de acolhida, tanto em Londres como
nos Estados Unidos, destinadas a garantir a sobrevivência e a segurança dos “filhos da
guerra”.
Situe-se na História
Hermine von Hugh-Hellmuth nasceu em 1871, em Viena, em uma família católica
e nobre. A mãe de Hermine, uma senhora culta e poliglota, falece quando Hermine
está com 12 anos. Hermine torna-se a terceira mulher a integrar a Sociedade
Psicanalítica de Viena, em 1913. Seu primeiro paciente foi seu sobrinho Rudolph,
a quem criara como filho. O menino, quando contava 18 anos, assassinou-a no
dia 9 de setembro de 1924. Naquele período, esse fato acabou prejudicando o
avanço da psicanálise e da psicoterapia de crianças, pois vários psicanalistas da
época (como Stern, Adler e Stekel) usaram-no para negar o método psicanálitico
como apropriado para crianças.
30
FREUD E ANNA FREUD: OS PRIMÓRDIOS DA PSICANÁLISE INFANTIL│ UNIDADE I
Hermine von Hug-Hellmuth divergia da afirmação feita por Freud com relação
ao caso do pequeno Hans, de que o fato de o menino ter sido analisado pelo
pai seria o principal dos fatores que teria permitido a aplicação do método
psicanalítico à criança. Para ela, as crianças não se disporiam a confessar seus
desejos e pensamentos íntimos aos pais, porque a franqueza psicanalítica dos
filhos dificilmente seria suportada pelo narcisismo parental. Para Hug-Hellmuth,
a análise estrita só poderia ser realizada com crianças a partir dos sete anos.
Até aqui, traçamos um quadro sobre como se deu a formação de Anna Freud como
psicanalista. Agora, empreenderemos uma discussão sobre os principais pontos
levantados por ela no que diz respeito a prática da psicanalise com crianças.
31
UNIDADE I │FREUD E ANNA FREUD: OS PRIMÓRDIOS DA PSICANÁLISE INFANTIL
Anna Freud considerava que os pequenos pacientes ainda estariam na presença real
de seus primeiros objetos de amor (os pais), o que implicava que não tinham ainda
finalizado a construção dos protótipos amorosos que serviriam como base para as
relações transferenciais. Seria, dessa forma, teoricamente inconsistente falar de uma
transferência propriamente dita na análise com crianças, pois não haveria como realizar
uma repetição, na transferência, da relação com os primeiros objetos amorosos se essa
relação ainda não tinha assumido sua conformação simbólica.
Além disso, para ela, as crianças não teriam motivações para se submeter a um
tratamento psicanalítico, pois seus sofrimentos estariam ligados ao conflito de
aprovação/desaprovação pelos pais reais.
Por esse motivo é que dAnna Freud efenderá que o processo psicanalítico com crianças
deve iniciar-se com um período preparatório, no qual o analista criaria uma aliança
com o ego da criança e a induziria para a aceitação do processo analítico. Esse seria,
portanto, um período prioritariamente pedagógico, onde a criança seria instruída
acerca dos benefícios da psicanálise. Posteriormente, Anna Freud irá dando uma outra
significação para esse momento inicial, que passa a ser um momento de avaliação
da demanda do paciente para a análise (pois, para Anna, apenas as crianças que
apresentassem sintomas deveriam ser submetidas ao processo psicanalítico).
Estabelecida uma transferência positiva, após essa fase preparatória, ela seria utilizada
como motor do tratamento. A transferência negativa, para Anna Freud, não deveria ser
alvo de interpretações nem integrar o tratamento. Anna Freud receava a deterioração
das relações da criança com os pais, caso fossem analisados seus sentimentos negativos
com relação a eles. Priorizava, assim, as situações positivas e considerava que as
situações negativas seriam resolvidas por outros métodos, métodos não analíticos.
Ainda sobre o início do processo analítico, Anna Freud considera que ele seria um
momento inadequado para se entregar interpretações aos pequenos pacientes.Para
ela, era necessário avaliar com cuidado em que oportunidade dever-se-ia entregar
ao analisando uma interpretação. Defendia que, primeiramente, o analista teria que
interpretar as defesas que o paciente manifestava, antes de chegar à interpretação
das fantasias inconscientes e das pulsões que as sustentavam. A interpretação,
portanto, tinha de começar pelas camadas mais superficiais do psiquismo, penetrando
paulatinamente os demais estratos (regra da superficialidade).
32
FREUD E ANNA FREUD: OS PRIMÓRDIOS DA PSICANÁLISE INFANTIL│ UNIDADE I
Dessa feita, valoriza-se mais a utilização dos sonhos, das fantasias diurnas e dos desenhos.
Argumentava-se, ainda, que o analista precisaria assumir uma “ação dirigida” (pois
que o uso da assossiação livre estaria bem limitado na psicanálise com crianças). Isso
implicaria que o analista estaria na posição de exercer duas funções: analisar e educar.
Tal concepção implicaria em uma mudança do que o analista esperaria de um final de
análise, pois o final do tratamento coincidiria com a procura de uma identificação da
criança com um ideal de ego, que teria como modelo o analista.
Por fim, nesta incursão pelo setting psicanalítico de Anna freud, não podemos deixar
de resssaltar ao final o caráter pedagógico que assumiam seus atendimentos. Para Anna
Freud a psicanálise com crianças deve exercer a função de uma educação curativa,
e isso marcará tanto seu trabalho como analista, como seus exercícios teóricos e,
posteriormente, suas empreitadas pelo campo do social.
33
OS CAMINHOS
DE KLEIN E O UNIDADE II
SURGIMENTO DA
ANÁLISE LÚDICA
Neste capítulo, faremos uma retomada histórica de como Klein compôs a psicanálise de
crianças, encerrando com a caracterização da prática que emerge de tal processo.
Objetivos:
Vocês devem chegar ao final do capítulo compreendendo:
»» O que Klein teoriza sobre o brincar infantil e como ela sustentará uma
prática clínica baseada nesse brincar.
CAPÍTULO 1
Klein e seu encontro com a Teoria
Psicanalítica
Melanie Klein nasceu em 1882, na cidade de Viena. Havia dois pontos em comum
entre ela e Freud: ambos eram de origem Judia e conviveram com os discursos sobre
saúde e doença na passagem do século XIX para o século XX, pois o pai de Melanie
era médico. É preciso destacar que, apesar de sua família ser proveniente de um meio
judeu ortodoxo, havia, naquele ambiente, o germe de um questionamento crítico que
se deslocava do discurso religioso para o científico como via alternativa de pensar o
34
OS CAMINHOS DE KLEIN E O SURGIMENTO DA ANÁLISE LÚDICA │ UNIDADE II
mundo. Prova disso é que o pai de Melanie, que estava destinado a tornar-se rabino,
rompe com esse caminho para abraçar a medicina.
Outro fato que chama a atenção na biografia de Melanie Klein é a figura da sua mãe, uma
mulher com atitudes vanguardistas, pois, ao contrário do que se esperava da mulher
de um médico na Viena de então – que se ocupasse com o espaço doméstico e com os
filhos -, a mãe de Melanie abre um pequeno comércio e passa a trabalhar para ajudar o
marido com as despesas da casa.
Há, ainda, dois acontecimentos marcantes na vida da pequena austríaca que também
influenciarão os desenvolvimentos futuros de seus trabalhos. Em 1886, quando Melanie
estava com quatro anos, sua irmã Sidonie (de oito) adoece gravemente. A enfermidade
faz com que Sidonie fique acamada e, posteriormente, restrita ao espaço doméstico.
Esse fato favorece que a educação e os cuidados com Melanie fiquem sob o encargo da
irmã mais velha. Forma-se, entre elas, um forte vínculo afetivo, por onde perpassam as
vivências de aprendizado de Melanie. É nesse momento que ela adquire a linguagem
escrita, a leitura e noções básicas de cálculo. Em 1887, Sidonie falece, fato que deixa
profundo traço na história de Melanie.
Emmanuel, porém, sofria de sérios problemas cardíacos, desde tenra idade, e veio a
falecer em 1902, aos 25 anos. Essa é mais uma experiência de luto que marca a biografia
da Psicanalista.
35
UNIDADE II │ OS CAMINHOS DE KLEIN E O SURGIMENTO DA ANÁLISE LÚDICA
Com o casamento, Melanie Klein passa a acompanhar o marido por diversas localidades
da Europa. Em 1904, nasce sua primeira filha – Mellita. Depois, seguem-se Hans, em
1907, e Erich, o caçula, em 1914.
Situe-se na História
Sándor Ferenczi nasce em 1873, na Hungria. Forma-se em Medicina no ano
de 1894, em Viena. Em 1897, começa a trabalhar no Hospital Saint Roch, em
Budapeste, tornando-se psiquiatra. No enfrentamento do sofrimento psíquico,
busca tratamentos alternativos que dessem melhores respostas aos desafios que
enfrentava em sua clínica. É assim que, em 1908, conhece Freud e a Psicanálise.
Desde então, passa a ser um discípulo dedicado da causa psicanalítica, tendo
importante papel no desenvolvimento do movimento.
Tal fato adquire sua importância na medida em que a entrada de Melanie Klein na
Psicanálise se dá não pela via da escuta clínica, mas pela da Pedagogia. A primeira
comunicação de Melanie Klein feita à Sociedade Húngara de Psicanálise, em 1919,
36
OS CAMINHOS DE KLEIN E O SURGIMENTO DA ANÁLISE LÚDICA │ UNIDADE II
[...] A miséria da qual quer aliviar seu filho não é um sofrimento sexual
e atual, mas a falta intelectual e simplesmente potencial: procura, antes
de mais nada, protegê-lo de todo risco de inibição intelectual, dando-
lhe uma educação baseada nas ideias psicanalíticas da época; crê, de
natureza, poder assegurar-lhe a plena utilização de suas faculdades
intelectuais, no quadro de uma normalidade entendida como reunião
de todos os talentos e de todas as aptidões funcionando sem entraves.
Com este objetivo, procurou liberar a criança ao máximo e, antes de
mais nada, liberá-la da repressão da curiosidade sexual, considerada
como fonte de todas as renúncias da inteligência; também não mediu
esforços para combater a ansiedade, sinal manifesto da entrada em cena
da repressão, assim como para facilitar todas as expressões, diretas ou
indiretas, da espontaneidade da criança: é nesta perspectiva, de início
profilática e pedagógica mais do que psicanalítica, que o brincar se
torna centro de seu interesse.
Na base do fazer kleiniano de então há, portanto, uma concepção ideológica, a qual Freud
também havia, em determinado momento, cedido. Uma concepção que se aproxima do
racionalismo iluminista e erige a razão, a ciência e o questionamento da autoridade
religiosa como caminhos para a salvação de um modo de funcionamento neurótico
(no qual os prazeres do viver, entre os quais o de se entregar ao ato do conhecimento,
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UNIDADE II │ OS CAMINHOS DE KLEIN E O SURGIMENTO DA ANÁLISE LÚDICA
38
CAPÍTULO 2
Da Educação Psicanalítica à
Psicanálise de Crianças
Como dito anteriormente, quando Klein inicia a educação psicanalítica de Erich, este
estava com quatro anos e nove meses. O processo começa alguns dias antes da Páscoa
de 1919. Erich nunca apresentara, de fato, nenhum problema em seus processos de
aprendizagem, que seguiam um curso normal. Melanie Klein o descreve como uma
criança aparentemente vívida e inteligente. No entanto, a mãe possui o que poderíamos
chamar de inquietação atenta ao desenvolvimento intelectual de seu filho, considerando
Erich menos curioso que os irmãos e também menos desenvolto em suas aquisições no
domínio prático do conhecimento.
Para entender essa impressão que Melanie Klein sustenta de seu filho, é preciso
compreender o papel que ela atribuía às aquisições intelectuais humanas no conjunto do
que seria a saúde psíquica. Segundo Petot (2008), para Klein a doença mais disseminada
na humanidade média seria a inibição intelectual. Isso porque a atividade intelectual
verdadeiramente normal era identificada por Klein como a capacidade de percorrer uma
ampla extensão de campos de interesse e de alcançar neles uma penetração profunda,
tanto no domínio científico como nos domínios especulativo e prático.
39
UNIDADE II │ OS CAMINHOS DE KLEIN E O SURGIMENTO DA ANÁLISE LÚDICA
É no bojo dessas concepções que Klein avaliará a relação de Erich com o conhecimento,
acreditando que uma atitude preventiva, composta pela satisfação da curiosidade
sexual da criança e pela evitação da repressão, o liberariam para vivenciar toda a sua
potencialidade intelectual.
Com base nesses parâmetros, Klein inicia a educação psicanalítica de Erich. A primeira
fase do processo durará menos de três meses. Nela, Erich havia começado a formular
questões referentes a sua origem e à origem dos bebês. Melanie responderá as questões
do filho usando a regra que havia estabelecido no início dessas incursões pedagógicas:
fornece respostas às curiosidades sexuais da criança apenas na medida de seus
questionamentos.
A criança apresenta inicialmente forte reação quando essas estórias de que ela tanto
gostava são dementidas. Mas, depois começa a colocar ela mesma o questionamento
da sustentabilidade da existência desses seres fantásticos. É nesse caminho que Erich
levanta pela primeira vez a dúvida sobre a existência de Deus. Klein responde que
Deus não existe. Mas, o pai de Erich possuía uma visão panteísta da divindade, e Erich
o surpreende com a mesma pergunta antes de Melanie ter tido a oportunidade de
conversar com o marido sobre o assunto.
40
OS CAMINHOS DE KLEIN E O SURGIMENTO DA ANÁLISE LÚDICA │ UNIDADE II
A criança recebe, então, do pai uma resposta diferente para a questão. Athur Klein
explica para o menino que ninguém nunca havia visto Deus, mas que algumas pessoas,
entre as quais ele, acreditavam na existência de um ser supremo, enquanto que outras,
como Melanie Klein, não acreditavam.
Para Melanie, essa resposta foi fundamental, pois ela entende que Erich, a partir desse
ponto, pôde observar pela primeira vez uma discordância entre os pais no que dizia
respeito à construção de entendimento sobre um aspecto do mundo. Isso teria permitido
que o menino colocasse em cheque a autoridade dos pais como critério de verdade,
tendo de elaborar um referencial próprio de verificação, tirado de suas experiências
pessoais, e tendo de realizar sua primeira escolha intelectual.
Os relatos que Melanie Klein faz das semanas seguintes à sua primeira intervenção
pedagógica com Erich trazem a figura de uma criança bem mais ativa intelectualmente,
cujas perguntas se multiplicavam e se diversificavam. O intelecto parece liberado em
extensão e profundidade, o que se manifesta por meio de uma curiosidade crescente,
de uma redução das repressões e de um aumento da sublimação. Os objetivos
buscados na educação psicanalítica do menino haviam sido alcançados, e Klein relata
entusiasticamente o feito em sua primeira comunicação à Sociedade Psicanalítica de
Budapeste.
Situe-se na História
Anton von Freund foi um importante industrial da Hungria, dono de uma
cervejaria em Budapeste. Doutor em filosofia, nasceu em 1880 e morreu em
1920. Submeteu-se à análise com Freud (que também analisou uma de suas
irmãs) e tornaram-se amigos. Von Freund acabou por assumir o papel de um
mecenas do movimento psicanalítico. Figura eminente, ele foi inicialmente o
principal organizador do V Congresso Internacional de Psicanálise, em 1918,
e o fundador do primeiro Centro de Pesquisa em Psicologia Infantil (para o
qual recrutou Melanie Klein, então analisanda de Ferenczi). Também financiou
a editora Internationaler Psychoanalytischer Verlag, em Viena, bem como
pretendia financiar um ambulatório analítico em Budapeste. Este último nunca
foi realmente criado, pois Von Freund morreu prematuramente de câncer. Freud
compôs para ele um obituário, homenageando sua dedicação ao movimento
psicanalítico.
<Fonte:http://www.encyclopedia.com/psychology/dictionaries-thesauruses-pictures-and-press-
releases/freund-toszeghy-anton-von-1880-1920>
41
UNIDADE II │ OS CAMINHOS DE KLEIN E O SURGIMENTO DA ANÁLISE LÚDICA
Inicialmente, Melanie Klein discordará das colocações de Anton von Freund. Mas,
os desdobramentos do desenvolvimento de Erich a farão refletir sobre as questões
levantadas sobre sua primeira experiência com a educação psicanalítica.
Após cerca de dois meses do final da primeira intervenção de Klein com Erich, a criança
passa a manifestar uma inibição generalizada: não surgem novas perguntas em sua
fala, apenas recoloca dúvidas antigas, de forma compulsiva e estereotipada. Apresenta
também uma inibição no brincar e uma atitude de recolhimento, mostrando-se
desinteressada e pouco ativa na presença de outras crianças. Klein percebe assim que a
tendência à repressão estava triunfando, e que era mais profunda e anterior ao que ela
supunha. Erich possuía questões acerca do ato sexual e do papel do pai na concepção
que haviam permanecido inconscientes e não tinham sido, portanto, colocadas pela
criança.
O que se coloca para Klein nesse momento é que será necessário ir além das
preocupações manifestas pela criança, adentrando nas fantasias inconscientes que
perpassam as teorias sexuais infantis. A intervenção, portanto, assume uma feição
muito mais psicanalítica, e, como já não era possível se limitar apenas às dúvidas
expressas pela criança, Klein terá de buscar a presença dessas fantasias em outra forma
de expressão infantil: o brincar. O brincar infantil começa, portanto, a ser tratado como
uma mensagem que pode ser interpretada, desvelando as fantasia em sua base.
42
OS CAMINHOS DE KLEIN E O SURGIMENTO DA ANÁLISE LÚDICA │ UNIDADE II
Fonte: <http://www.thehistorypostblog.co.uk/international-womens-day-melanie-klein/>
Assim, , em 1920, durante seis semanas, Melanie Klein separará um horário específico
para a análise de Erich, como lhe havia sugerido Anton Von Freund. No início, utiliza
43
UNIDADE II │ OS CAMINHOS DE KLEIN E O SURGIMENTO DA ANÁLISE LÚDICA
Klein observa e interpreta para Erich todas as fantasias que vão emergindo nos sonhos
do menino. Ao final das seis semanas de trabalho, a criança passa a adormecer sem
dificuldades, o brincar reencontra sua riqueza, assim como é reestabelecido o contato
com outras crianças. As manifestações de ansiedade de Erich haviam arrefecido
consideravelmente.
Porém, as experiências anteriores fazem com que Klein já não receba com tanto
entusiasmo os resultados dessa intervenção. ela está mais ciente da persistência
dos complexos inconscientes e anuncia a possibilidade de que novas intervenções
psicanalíticas sejam necessárias no decorrer do desenvolvimento de Erich.
Em 1921, Melanie Klein muda-se para Berlim. É nesse momento que se separa de
Arthur Klein. Nessa época, já havia recebido o convite de Karl Abraam para se instalar
em Berlim e iniciar o atendimento psicanalítico de crianças.
44
OS CAMINHOS DE KLEIN E O SURGIMENTO DA ANÁLISE LÚDICA │ UNIDADE II
materno e sobre o desejo de conhecê-la surgem na base dos receios que Erich apresenta
de explorar novos espaços. Como relata Petot (2008, p.29):
De fato, a análise de Erich encerra-se em 1921. O menino tinha, então, cerca de oito
anos de idade e, ao que parece, a intervenção de Klein, que consistiu basicamente
em comunicar à criança interpretações das fantasias que se manifestavam no ato do
brincar, levaram Erich à cura de sua fobia escolar e à superação de sua neurose infantil.
O que é importante perceber no breve relato que fizemos do caso Erich/Fritz é que,
ao renunciar ao seu desejo inconsciente de fazer do filho um prodígio intelectual, ela
finalmente consegue dar suporte à expressão dos complexos psíquicos do menino,
auxiliando-o a superar as inibições que começavam a se formar por causa da ansiedade
gerada por tais complexos. Klein, por essa via, realiza um movimento fundamental em
sua prática, que determinará não apenas todo o seu percurso futuro na psicanálise, mas
o próprio movimento psicanalítico, dando origem a uma nova escola: a escola kleiniana.
Educação Psicanálise de
Análise Lúdica
Psicanalítica Crianças
Assim, um dos ganhos importantes que Melanie Klein terá com a análise de Erich é
de ordem metodológica (Petot, 2008): ela percebe a insuficiência de uma abordagem
unicamente pedagógica para lidar com os conteúdos inconscientes que estão na base
do desencadear da ansiedade (que, por sua vez, sustenta as inibições). Além disso, ela
também percebe a relação direta do brincar com as fantasias inconscientes, passando
a utilizar as brincadeiras infantis de forma semelhante a como são tratados os sonhos
e os sintomas num processo de análise, ou seja, enquanto formações do inconsciente.
Desta forma, uma conclusão que será fundamental e que, inclusive, marca as
contribuições de Klein à psicanálise infantil: “A boa adaptação social e escolar da criança
não podem ser os objetivos do psicanalista de crianças, constituindo, quando muito,
45
UNIDADE II │ OS CAMINHOS DE KLEIN E O SURGIMENTO DA ANÁLISE LÚDICA
É assim que Klein torna-se pronta para iniciar suas contribuições à teoria psicanalítica.
A partir de 1922, passa a atender várias crianças (e, esporadicamente, adultos). Assim,
sedimenta um estilo próprio, trazendo contribuições teóricas e práticas ao fazer
iniciado por Freud. Partamos, então, para a configuração do setting desta importante
psicanalista.
46
CAPÍTULO 3
O Setting Kleiniano
É importante começar ressaltando que Melanie Klein, apesar de ter criado uma nova
técnica para a análise infantil – técnica que, inclusive, divergia de afirmações freudianas
sobre a escuta de criança -, acreditou e investiu, ao longo da construção de sua vivência
clínica, na invenção psicanalítica. Ela declarou mais de uma vez sua fidelidade aos
pontos que Freud havia destacado como sendo basais na estrutura da Psicanálise. Em
Princípios Psicológicos da Análise de Crianças Pequenas, Klein (1926/1996, p.163)
estabelece claramente a pertinência do seu fazer ao campo psicanalítico:
Quais seriam, então, as diferenças técnicas que Melanie Klein propõe? A possibilidade,
em si, de levar adiante uma análise infantil é a primeira delas.
Aqui é necessário dizer que Freud havia desaconselhado a psicanálise de crianças - isso
por considerar que elas não teriam ainda adquirido condições de realizar a associação
livre (pedra angular do fazer psicanalítico). Klein, que concorda com Freud no que diz
respeito à inadequação do setting clássico da psicanálise ao atendimento com crianças,
apresentará como alternativa a técnica do brincar (ou análise lúdica).
Como vimos, esse desenvolvimento técnico começa a surgiu na sua experiência com a
análise de Erich. No entanto, será com Rita, uma paciente de dois anos e nove meses
atendida por Klein em 1923, que a análise lúdica passará a ser realizada de forma
sistemática. Rita tinha forte fixação pela mãe e apresentou grande resistência em ficar
sozinha com Melanie Klein, o que obrigou a analista a atendê-la na casa dos pais.
47
UNIDADE II │ OS CAMINHOS DE KLEIN E O SURGIMENTO DA ANÁLISE LÚDICA
Rita verbalizava muito pouco e brincava durante quase todo o tempo da sessão.
Pode-se dizer que a pequena paciente praticamente impôs o brincar como forma de
expressão a ser utilizada nas sessões. Esse fato acabou por enriquecer as experiências
de Melanie Klein com a escuta de crianças pequenas e, a partir da vivência com
Rita, a psicanalista adotará a técnica do brincar na análise de crianças. Defenderá,
portanto, que, seja qual for a idade do paciente, o importante é que ele, no curso
de sua análise, tire partido de todos os recursos de linguagem a sua disposição. E o
brincar se apresenta como um dos mais profícuos entre eles. Entendamos o porquê.
Nesse sentido, é preciso entender que, se por um lado, Klein defende que a maneira
de expressão das crianças é diferente dos adultos (e isso precisaria ser levado em
consideração na condução das análises), por outro, a linguagem usada pelo inconsciente
é a mesma em ambas as formações psíquicas. Ou seja, assim como os adultos representam
suas fantasias, desejos e experiências nos sonhos, as crianças utilizam a mesma forma
de representação para construir suas brincadeiras. Klein percebeu que aestrutura de
composição dos sonhos é a mesma de composição dos jogos.
Pesquisando
Cena Primária – “Cena de relação sexual entre os pais, observada ou suposta
segundo determinados índices e fantasiada pela criança, geralmente interpretada
como um ato de violência por parte do pai”. Para saber mais, consulte o verbete
“Cena Originária ou Protocena” no Vocabulário de Psicanálise, (Laplanche e
Pontalis, 1983, p.91).
48
OS CAMINHOS DE KLEIN E O SURGIMENTO DA ANÁLISE LÚDICA │ UNIDADE II
Assim é que, entendendo o brincar como uma mensagem, Klein vai compondo seu
setting terapêutico: “pequenos homens e mulheres de madeira, carroças, carruagens,
automóveis, trenzinhos, animais, cubos e casas, além de papel, tesoura e lápis”. (KLEIN,
1932/1981, p.41) A necessidade do acesso fácil à água também é ressaltada. Porém, mais
que isso, vai surgindo uma teoria que sustenta essa prática analítica. Os brinquedos são
facilitadores da expressão da criança, pois, ainda que esteja inibida em seu brincar, ela
lançará ao menos um olhar para eles, permitindo ao analista um primeiro vislumbre
dos complexos inconscientes.
Todavia, esse não é o único papel dos brinquedos. É o que Klein defende quando busca
o motivo pelo qual as crianças brincam. Que a criança extrai prazer da atividade do
brincar é algo evidente, mas por quê? Melanie Klein (1926) relembra que a libido,
inicialmente, é dirigida para o próprio ego. No entanto, a criança, ao longo de seu
processo de desenvolvimento, redirecionará essa libido para objetos externos (pessoas/
coisas), estabelecendo suas primeiras relações com o mundo e voltando-se para a
realidade. É desse contexto que parte o entendimento da psicanalista acerca da função
do brincar.
Petot (2008) recompõe as ideias de Klein sobre o tema, lembrando que ela retoma a
concepção freudiana de que as pulsões sexuais surgem tendo como base os instintos
de sobrevivência. Nessas experiências primeiras, a criança irá vivenciar o prazer do
órgão (ou seja, uma satisfação local de ordem sexual que está na base do autoerotismo).
Com ele, surgem também os primeiros investimentos libidinais (de caráter, portanto,
narcísico). Por meio do processo de identificação – precursor do simbolismo – os objetos
que receberam de início o investimento libidinal vão conduzindo a outros. Assim é que
os pés, as mãos, a língua, os olhos, enfim, todo o corpo vai sendo colocado como alvo
da catexia libidinal.
Logo, continuando a trilhar este caminho, a libido passa a investir também as atividades
desempenhadas por essas diversas partes do corpo. É por essa via que tais atividades
serão revestidas de significações ligadas à atividade do coito. “As representações
simbólicas que as acompanham são, portanto, as primeiras fantasias masturbatórias
que se ligam diretamente à cena primitiva”. (2008, p.67). Sigamos essa trilha mais
detidamente:
49
UNIDADE II │ OS CAMINHOS DE KLEIN E O SURGIMENTO DA ANÁLISE LÚDICA
como base para a formação de significações sexuais – e, dessa vez, o material serão as
atividades do ego.
Fonte: <http://www.elfikurten.com.br/2011/02/candido-portinari-mestres-da-pintura.html>
50
OS CAMINHOS DE KLEIN E O SURGIMENTO DA ANÁLISE LÚDICA │ UNIDADE II
É por meio desse processo que as sublimações primárias forneceram sua energia para
as sublimações secundárias. Todas as sublimações remeterão, em última análise, à fala
e ao movimento. E o brincar será a primeira delas, constituindo-se como fundamento
de todas as demais sublimações. Da mesma forma, todas as inibições recairão sobre a
inibição do brincar, pois a inibição de uma sublimação está fundada em uma sublimação
anteriormente reprimida.
É esse o motivo pelo qual Klein vai dar ênfase, no início das análises que empreende, à
liberação do brincar. A questão é que as brincadeiras trazem em si simbolizações das
fantasias sexuais – que remetem às teorias sexuais infantis e que têm como matéria
prima a cena primitiva. Quando essas fantasias são reprimidas e, nesse processo, gera-
se um sentimento de culpa na criança demasiadamente pesado para ser suportado por
um ego ainda fraco, a repressão atinge também seus representantes simbólicos.
Mais um motivo pelo qual o brincar pode ser prazeroso para os pequeninos: Porque,
quando a criança é liberada das inibições do brincar, ela deixa de despender parte
de sua energia psíquica com a repressão de complexos inconscientes, liberando essa
51
UNIDADE II │ OS CAMINHOS DE KLEIN E O SURGIMENTO DA ANÁLISE LÚDICA
Creio que podemos agora sistematizar algumas das respostas dadas por Melanie Klein
à pergunta por que as crianças brincam? Essas respostas nos permitem antever a
importância da contribuição técnica kleiniana quando a análise lúdica se estabelece no
setting da psicanálise com crianças.
Vislumbrando esse quadro, podemos, por fim, concluir a dimensão que o brincar
assume no desenvolvimento da técnica e da prática kleinianas. Petot (2008, p.69) bem
o expõe, quando destaca:
Aqui aparece mais claramente, portanto, a segunda contribuição técnica que Melanie
Klein faz à psicanálise: sua forma original de interpretar.
No que diz respeito à interpretação, Melanie Klein também inovou em seu setting. A
escola vienense de psicanálise infantil (a quem estava ligado o nome de Anna Freud, e
que defendia o tratamento educativo e curativo) pregava a necessidade de avaliar em
que oportunidade dever-se-ia entregar ao analisando uma interpretação. Essa escola
defendia que, primeiramente, o analista teria que interpretar as defesas que o paciente
manifestava, antes de chegar à interpretação das fantasias inconscientes e de suas
pulsões correspondentes. A interpretação, portanto, tinha de começar pelas camadas
52
OS CAMINHOS DE KLEIN E O SURGIMENTO DA ANÁLISE LÚDICA │ UNIDADE II
Diversa a essas ideias, a prática kleiniana prega o uso das interpretações profundas, e
essas interpretações ocorrem na transferência. Entendamos melhor:
A transferência negativa em geral se impõe com força no início da análise. Mas, ela
também aparece quando os pequenos pacientes começam a acessar seu material
complexivo. Klein acreditava que a facilidade com que a criança fazia uma transferência
espontânea se devia ao fato de a angústia infantil ser muito mais aguda que a adulta.
Esse fato seria determinante na aproximação ou no afastamento dos objetos. Os objetos
que aliviassem a tensão da angústia gerariam uma transferência positiva na criança, já
os que excitassem a angústia levariam a uma transferência negativa.
O analista, em geral, enfrenta essa situação no início da análise. Ele precisa estar
preparado para agir logo que a transferência negativa surja, entregando a seu pequeno
53
UNIDADE II │ OS CAMINHOS DE KLEIN E O SURGIMENTO DA ANÁLISE LÚDICA
Assim, Klein afirmará que o analista não deve temer uma interpretação feita em
profundidade, mesmo no início da análise. Na verdade, ela sustenta que a interpretação
pode e deve ser realizada logo que o paciente tiver deixado entrever (através de seus
jogos, desenhos, fantasias) os seus complexos, já que “a função da interpretação em
profundidade é simplesmente a de abrir a porta do inconsciente e diminuir a angústia
suscitada, preparando, assim, o caminho para o trabalho analítico”. (KLEIN, 1932/1981,
p.50).
Portanto, para a psicanalista a interpretação não só pode como deve ser realizada em
profundidade. A profundidade de uma interpretação será tão fundamental quanto sua
oportunidade. Ao levar em conta a urgência dos conteúdos psíquicos que vão emergindo
nas sessões, o analista é obrigado a aprofundar-se até a camada psíquica que está se
manifestando nas produções do paciente, locus não apenas do material que teima
desvelar-se, mas também das ansiedades e culpa que o acompanham.
54
OS CAMINHOS DE KLEIN E O SURGIMENTO DA ANÁLISE LÚDICA │ UNIDADE II
Pode-se concluir a partir do exposto que Klein assumirá, no que diz respeito ao papel da
interpretação, um caminho bem diferenciado que até então era seguido nas tentativas
de análise de crianças. A interpretação é feita na transferência e é porta de entrada para
a análise, possuindo, inclusive, o efeito de diminuir a inibição no brincar e de modificar
o caráter dos jogos (tornando a representação do material inconsciente mais clara).
Klein (1932/1981, p.58) resume os elementos que a interpretação assume em seu setting
da seguinte forma:
Em 1926, Anna Freud defende a ideia de que só seria possível observar na análise de
crianças manifestações transferenciais positivas. E, mesmo essas, ocorreriam dentro de
estreitos limites, pois que os pequenos pacientes ainda não estariam aptos a desenvolver
uma verdadeira neurose de transferência. Essa declaração era, na verdade, uma crítica
dirigida aos relatos de caso de Melanie Klein, nos quais despontavam diversas descrições
de fenômenos transferenciais – já presentes desde o início do processo analítico e, em
geral, de caráter negativo.
Klein não apenas atestava a presença da transferência negativa na análise com crianças,
ia bem além. Ela situava o manejo desse fenômeno por meio da interpretação como
a pedra de toque para a entrada em análise. Ao receber as críticas de Anna Freud,
revidará com uma concepção importantíssima para demarcar a diferença entre o setting
kleiniano e a psicanálise infantil praticada pela escola de Viena. Klein declarará que
Anna Freud não consegue perceber a presença da transferência em sua prática clínica
por causa da posição que assume frente a seus pequenos pacientes. Anna se colocaria
55
UNIDADE II │ OS CAMINHOS DE KLEIN E O SURGIMENTO DA ANÁLISE LÚDICA
Para Klein, portanto, a posição do analista tem que ser de neutralidade. Só assim é
possível para ele perceber a presença de uma verdadeira capacidade de transferência
nas crianças – e, por meio dela, alcançar as fantasias do infante. Isso porque a relação
do paciente com o analista não seria uma relação com um objeto real.
Segundo Anna Freud, a relação da criança com os pais é uma relação com objetos
reais, assim como será a relação da criança com o analista (que é, tão somente, uma
reprodução dessa relação com os pais). Mas, para Klein, mesmo a relação com os pais
já não é uma relação com objetos “reais”. Os pais com quem a criança se relaciona são
imagos internas compostas a partir de vivências reais e fantasias. São representações
imaginárias e deformadas dos pais reais.
A experiência clínica de Klein a levará a concluir que, desde o início da vida, mesmo não
estando ainda integrado, o bebê possui um ego capaz de sentir ansiedade e se defender
dela por meio de sucessivas introjeções e projeções, estruturando um mundo interno e
dando início às relações objetais. O bebê opera uma clivagem em suas representações
imaginárias, da qual resultam “bons” e “maus” objetos. Esses objetos são projetados
não só para dentro dos pais, mas para todas as relações “reais” amorosas ou hostis da
vida cotidiana (identificação projetiva).
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OS CAMINHOS DE KLEIN E O SURGIMENTO DA ANÁLISE LÚDICA │ UNIDADE II
Importante ter clareza, ainda, de que a criança não reage somente às experiências reais
que vivencia com os pais. Ela responde às representações que construiu da realidade a
partir de suas introjeções e projeções. Portanto, o que comparece na transferência não
são lembranças reais de fatos ocorridos no passado, mas depositórios internalizados de
vivências já deformadas pelo processo de introjeção.
Por fim, constata-se que as concepções kleinianas também vão colocar a transferência
na posição de alavanca do processo analítico, pois, para Klein, a interpretação permite
a rápida instituição de uma nova forma de interjogo entre os objetos introjetados e o
analista (sendo este último visto como um parceiro, que interpreta as atividades lúdicas
e expõe as ansiedades, propiciando a elaboração destas). “O processo analítico tem,
pois, como tarefa, reduzir os afetos patogênicos na e pela transferência, e a criança
desenvolve uma neurose de transferência plena e integral, no sentido em que Melanie
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UNIDADE II │ OS CAMINHOS DE KLEIN E O SURGIMENTO DA ANÁLISE LÚDICA
Klein entende este termo, o que não coincide exatamente com aquele que lhe é dado
classicamente”. (PETOT, 2008, p.106)
58
CAPÍTULO 4
O Mundo Interno e seus
desdobramentos
A investigação que Klein realizou da vida emocional dos bebês permitiu o vislumbre das
atividades mentais primitivas e a possibilidade de dar palavras aos elementos primevos
e aos núcleos mais infantis da personalidade. Tais núcleos internos são expressão do
funcionamento emocional dos pacientes e base de significação para suas vivências no
campo das relações objetais.
Como vimos na unidade dedicada aos Freud, enfrentar a questão da fantasia inconsciente
é estar no cerne da composição da psique, por causa da relação que essa questão possui
com os instintos, os objetos, a simbolização e a estruturação das trocas entre a realidade
psíquica e a realidade exterior.
O mundo fantasmático que surge na obra de Melanie Klein é, para muitos, inicialmente
espantoso. Povoado de objetos internos e complexas tramas – onde cobiça, inveja,
vingança, medo, gratidão, o mais extremo amor e tantos outros sentimentos vão
entrando em jogo na vida do infante –, esse mundo interno que o sistema kleiniano
descreve é fruto de uma longa experiência clínica, não de uma dedução teórica que se
constrói a partir do vazio.
Como nos afirma Tanis (2009, p.69), o universo da fantasia inconsciente, da forma
como Klein o concebe, é uma linguagem corporal muito viva e extremamente concreta.
Para a criadora da psicanálise com crianças, existe uma continuidade muito clara
entre o corpo e a fantasia, por isso é que Klein entenderá que a fantasia é, desde suas
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UNIDADE II │ OS CAMINHOS DE KLEIN E O SURGIMENTO DA ANÁLISE LÚDICA
origens, inconsciente – iniciando sua ação antes mesmo da repressão. Nesse sentido,
sua pesquisa das manifestações da fantasia abarca inclusive os processos psíquicos pré-
verbais, o que mais uma vez denota a concepção de uma organização do psiquismo
sofisticada e atuante desde os primeiros meses de vida.
Mas o que afinal seria, para Klein, a fantasia? Segundo Segal (1973), a fantasia pode ser
considerada como o representante psíquico, a expressão mental dos instintos. Entende-
se, portanto, que o inconsciente seria habitado, sobretudo, por fantasias – entendidas
no sentido que Klein a elas atribuiu: o de representantes mentais instintuais.
Segundo Tanis (2009), um dos pontos essenciais resultante das pesquisas de Melanie
Klein é a percepção do aspecto originário das fantasias inconscientes. As fantasias não
teriam origem em um conhecimento estruturado a partir do mundo externo, sua fonte
seria interna: os impulsos instintivos. Portanto, a originalidade da ideia kleiniana não
residiria no fato de existirem representações protomentais das ações dos instintos, mas
da suposição de que ações, por exemplo, de natureza destrutiva – como dilacerar e
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OS CAMINHOS DE KLEIN E O SURGIMENTO DA ANÁLISE LÚDICA │ UNIDADE II
Esse também é um bom exemplo para pensar o conceito de objetos parciais. O bebê,
de início, não teria a capacidade de perceber a mãe como um todo unificado. Apesar
disso, já seria capaz de estabelecer suas primeiras relações objetais. Mas, como seu ego
primitivo ainda careceria de coordenação, essas relações seriam estabelecidas apenas
com partes do corpo da mãe – que, no entanto, seriam vislumbradas pelo bebê como
constituindo um todo. Essas partes do corpo constituiriam os denominados objetos
parciais (seio, fezes, pênis etc.).
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UNIDADE II │ OS CAMINHOS DE KLEIN E O SURGIMENTO DA ANÁLISE LÚDICA
Dessa maneira, o bebê irá projetar sobre esse objeto parcial – que ele, inicialmente,
encara como um todo constituído – suas fantasias inconscientes. De acordo com Simon
(2009), a projeção do instinto de vida resulta na imagem de um objeto de gratificação,
que ama e protege. Já a projeção do instinto de morte compõe a imagem de um
objeto frustrador, que rejeita e ameaça. Essas imagens criadas são, posteriormente,
introjetadas e servirão de material para a composição do mundo interno do bebê.
Diversas projeções e introjeções se seguirão às primeiras, de forma que a estrutura do
ego, do superego, assim como a estrutura de diversos objetos internos com quem essas
instâncias se relacionarão, serão, assim, formadas.
Nesse início, no entanto, o que ocorre é que esses objetos parciais iniciais montam
um cenário interno de elementos fantásticos que pode ser, ora imensamente generoso,
ora extremamente cruel. O bebê experimentará, assim, nos seus primeiros meses, uma
angústia persecutória (ou “paranóide”). Isso impulsionará o pequeno indivíduo a fazer
uso de alguns mecanismos defensivos. O principal deles – a clivagem – permite que o
bebê divida o objeto originário em objeto mau e objeto bom (“seio mau” e “seio bom”,
por exemplo). Depois, fazendo uso da projeção e da idealização, o bebê expele os objetos
persecutórios (evitando, assim, ser por eles destruído) e idealiza os bons objetos (para
que eles o protejam das ameaças de aniquilamento).
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OS CAMINHOS DE KLEIN E O SURGIMENTO DA ANÁLISE LÚDICA │ UNIDADE II
passa a vivenciar a ambivalência (ama e odeia o mesmo objeto), já que, a partir daí,
passa a conviver com as imagos de seu pai, de sua mãe e do casal parental de forma
integrada.
Coelho Júnior e Sigler (2009) elucidam que o objeto total não possui mais uma natureza
narcísica, pois não se define exclusivamente pelos sentimentos do bebê, contendo
características próprias. O bebê pode experimentar, então, uma maior estabilidade nos
seus sentimentos pelos objetos – sem vivenciar variações muito bruscas como nas fases
anteriores. Despontam, também, a preocupação e o interesse pelos objetos.
Esse mundo psíquico, como já foi dito, também recebe as influências das experiências
concretas. Desde o nascimento, o indivíduo tem de lidar com as exigências reais,
experimentando diversas situações de gratificação e frustração. Essas experiências
vão tomando sua forma dentro do movimento incessante de trocas entre fantasias
inconscientes e realidade. Um campo retroalimenta o outro, e ambos vão se constituindo
em lentes por meio das quais o indivíduo enxergará e se relacionará com o mundo.
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UNIDADE II │ OS CAMINHOS DE KLEIN E O SURGIMENTO DA ANÁLISE LÚDICA
que existirão para além de o ambiente ser realmente bom ou mau. Como afirma Seggal
(1973), a importância do fator ambiental só pode ser avaliada em relação ao que ele
significa nos termos dos próprios instintos da criança. Ou seja, não há como fazer uma
avaliação “pura” sobre a influência do ambiente sem levar em conta a atuação das forças
instintuais operantes na criança.
Um exemplo é a capacidade que a criança tem de fantasiar que está tendo suas
necessidades saciadas. Dessa maneira, ela se defende das privações (tanto externas
como internas), evitando, assim, as sensações desencadeadas pela frustração.
Esse mecanismo é fundamental para que se entenda a função que a fantasia tem de
adiar a descarga da libido – auxiliando, no entanto, na diminuição das tensões geradas
pelos instintos, pela ansiedade e pela culpa (na medida em que é uma via de realização
de desejo substitutiva). É nesse papel que ela se configura como ferramenta para a
passagem do princípio do prazer para o princípio da realidade. Logo, ela prepara o
indivíduo para o desenvolvimento das funções mentais mais elevadas, como, por
exemplo, o pensar.
As fantasias também podem ser usadas como defesa contra outras fantasias. Segal
(1973) fornece como exemplo típico desse mecanismo as fantasias maníacas, cuja
principal finalidade é repelir fantasias depressivas subjacentes.
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OS CAMINHOS DE KLEIN E O SURGIMENTO DA ANÁLISE LÚDICA │ UNIDADE II
Ligada à sua elaboração acerca da fantasia e dos objetos internos, Klein comporá sua
teoria sobre as posições.
Mas, por que usar, então, o termo “posição” ao invés de “estágio”? Porque Melanie
Klein desejava demarcar a diferença entre essas duas concepções, na medida em que
as posições seguem um outro tipo de funcionamento. Elas não são, por exemplo,
ultrapassadas cronologicamente pela criança, assim como aconteceria com os estágios
ou as fases. Elas têm uma natureza estrutural. Representam determinados tipos de
configurações assumidas pelas relações de objeto, ansiedades e defesas que o indivíduo
levaria consigo por toda a vida, sendo fundamentais para entender o funcionamento
psíquico humano.
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UNIDADE II │ OS CAMINHOS DE KLEIN E O SURGIMENTO DA ANÁLISE LÚDICA
as elaborações de Klein sobre esse tema em seu texto de 1946, “Notas sobre Alguns
Mecanismos Esquizóides”.
Klein principia seu escrito anunciando que tratará da importância dos mecanismos
esquizoparanoides, sobre os quais teria refletido muito a partir de suas experiências
clínicas. Estes diriam respeito às mais antigas ansiedades experimentadas pelo bebê,
deixando antever o funcionamento arcaico do psiquismo humano.
Klein levanta a hipótese de que, no início da vida, o bebê se depararia com ansiedades
primitivas que impulsionariam o ego a desenvolver mecanismos de defesa específicos.
Esse movimento teria profunda influência sobre o desenvolvimento em todas as suas
nuances, incluindo as que abarcam o ego, o superego e as relações objetais.
Esse ponto retomaria a defesa de Klein da ideia de que, desde o princípio da vida, já
existiriam as relações objetais, e de que o primeiro objeto da criança seria o seio da
mãe. Ela o dividiria em seio “bom” (gratificador) e seio “mau” (frustrador). Tal divisão
resultaria numa separação nítida entre amor e ódio. A clivagem do objeto, assim como a
utilização dos mecanismos de introjeção e projeção (que compõem diversas interações
entre si) e as situações internas e externas moldelariam as relações objetais do pequeno
indivíduo. “Esses processos participariam na formação do ego e superego, preparando
o terreno para o estabelecimento do complexo de Édipo na segunda metade do primeiro
ano de vida”. (KLEIN, 1952/1986, p.314)
Eis os processos psíquicos que ocorreriam no início da vida do bebê: quando o impulso
de morte volta seu investimento contra o primeiro objeto – o seio materno – ele assume
a forma de fantasias de ataques sado-orais, progredindo, posteriormente para agressões
generalizadas ao corpo da mãe também pelos meios sado-anais e sado-uretrais. Nos
impulsos sado-orais, a criança fantasia despojar o corpo materno de todos os conteúdos
bons, esvaziá-lo de suas riquezas (seus bebês, o pênis paterno que ali estaria guardado
etc). Já as fantasias sado-anais e sado-uretrais almejariam colocar dentro da mãe os
excrementos da criança (e a própria criança desejaria penetrar no corpo materno, como
forma de controlá-lo por dentro).
O sadismo da criança provoca, no entanto, o medo da retaliação pelo objeto que foi
tomado como alvo. Essa seria a fonte do surgimento das ansiedades persecutórias. O
infante teme ser devorado, despedaçado, envenenado. Tais medos o levarão a fazer uso
de diversos mecanismos de defesa (clivagem, negação, idealização, projeção, introjeção).
Se os medos persecutórios forem muito fortes e o bebê não for capaz de construir a
passagem da posição esquizoparanoide para a posição seguinte – a depressiva –, dando
a esta última uma resolução, o fracasso de tal processo pode acarretar um reforço
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OS CAMINHOS DE KLEIN E O SURGIMENTO DA ANÁLISE LÚDICA │ UNIDADE II
regressivo dos medos persecutórios e gerar pontos de fixação que serão a base para
psicoses graves. Esses fatores também serão o fundamento para a escolha da neurose.
É preciso destacar, já desde o início, que Melanie Klein defenderá a ansiedade e suas
vicissitudes como sendo o motor do processo de desenvolvimento humano. Tanto é que
ela focará as ansiedades como elementos fundamentais de manejo de sua clínica. Assim
é que o desencadear de uma ansiedade ao longo de um processo analítico pode ser sinal
de evolução e não de retrocesso no quadro apresentado pelo paciente.
O ego primitivo, para Klein, careceria de coesão, alternando entre uma tendência
para a integração e uma tendência para a desintegração (fragmentação em múltiplas
parcelas). A maior ou menor coesão do ego no princípio do desenvolvimento estaria na
dependência da capacidade deste para tolerar as ansiedades – o que seria determinado,
segundo Klein, por um fator constitucional.
Fato é que esse ego primitivo, ainda que carente e coeso, já possuiria algumas funções
próprias de um ego mais avançado. Entre elas, uma fundamental: dominar a ansiedade.
Dentro desse quadro, o ego primitivo desenvolve defesas fundamentais para enfrentar a
ansiedade que o assola. Parte do impulso destrutivo é projetado no exterior, vinculando-
se ao primeiro objeto externo: o seio da mãe. Outra parte da pulsão, que permanece
dentro do organismo, une-se à libido, atuando nos impulsos sádicos; e ainda uma
terceira parte, que não alcança seu propósito nos dois caminhos anteriormente citados,
permanece no organismo e continua a gerar a ansiedade de ser destruído interiormente.
Essa ansiedade gera no ego uma tendência à fragmentação.
Sendo assim, o ego primitivo, em seu intento de lidar com o impulso de morte, divide não
apenas o objeto e as relações com ele estabelecidas, o ego também se divide, na busca de
dispersar o impulso destrutivo. Esses mecanismos são extremamente importantes para
entender os processos esquizofrênicos.
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UNIDADE II │ OS CAMINHOS DE KLEIN E O SURGIMENTO DA ANÁLISE LÚDICA
Somados aos mecanismos de divisão (ou clivagem) há, no entanto, outras importantes
defesas utilizadas pelo ego primitivo. A idealização é uma delas. Na idealização, os
aspectos bons do seio são postos em evidência como forma de criar uma proteção contra
o medo do seio perseguidor. Essa exacerbação da imagem do bom seio também atende
aos desejos instintivos, que fantasiam uma gratificação ilimitada, a ser fornecida por
este seio ideal, inexaurível e abundante.
Esses mecanismos de defesa, ainda assim, não impedem que o bebê direcione ao seio
seus impulsos libidinais e agressivos. Como falamos anteriormente, os ataques ao seio
materno acabam se convertendo em agressões ao corpo materno, que passa a ser visto
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OS CAMINHOS DE KLEIN E O SURGIMENTO DA ANÁLISE LÚDICA │ UNIDADE II
No entanto, ao projetar para a mãe as partes malquistas de seu ego, elas acabam por se
identificar com o objeto que as recebeu. Assim, “Muito do ódio contra algumas partes
do eu é agora dirigido para a mãe. Isso conduz a uma forma particular de identificação
que estabelece o protótipo de uma relação objetal agressiva. Sugiro para esses processos
a expressão ‘identificação projetiva’”. (KLEIN, 1952/1986, p.322)
Porém, aqui também há o risco de a projeção das partes boas do ego para o mundo
externo se tornar excessiva, gerando no bebê o sentimento de que as partes boas da sua
personalidade se escoaram e foram perdidas. Isso geraria um empobrecimento do ego
e uma super idealização do objeto, sendo a mãe convertida em ego ideal. Esse processo
seria expandido para outros objetos, trazendo como consequência uma dependência
excessiva com relação a esses representantes externos das partes boas do próprio ego. A
própria capacidade de amor parece ficar comprometida nesse processo, por ser o objeto
amado nessa projeção demasiada do próprio eu.
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UNIDADE II │ OS CAMINHOS DE KLEIN E O SURGIMENTO DA ANÁLISE LÚDICA
Outro elemento complicador que pode surgir nessa equação é que, quando a idealização
do objeto e a projeção das partes boas do ego se tornam demasiadas, isso intensificará
a inveja primitiva.
A inveja seria uma das primeiras e primordiais emoções experimentadas pelo ser
humano. Ela se estabelece sempre em uma relação dual, na qual o sujeito inveja
alguma posse ou qualidade do objeto. E é importante perceber que é experienciada
essencialmente em termos de objetos parciais, mesmo que persista nas relações com
objetos totais. Inicia como um desejo do sujeito de ser tão bom quanto o objeto,
mas, quando isso é sentido como impossível, transforma-se em desejo de danificar a
bondade do objeto, por meio da projeção de partes ruins. Assim, “em fantasia, ataca o
seio, cuspindo, urinando, defecando, soltando flatos, e pelo olhar projetivo e penetrante
(o mau-olhado)”. (SEGAL, 1973/1975, p. 53).
70
OS CAMINHOS DE KLEIN E O SURGIMENTO DA ANÁLISE LÚDICA │ UNIDADE II
Assim resume Melanie Klein (1952/1986, p.325) a ação dos mecanismos de introjeção
e projeção no desenvolvimento humano:
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UNIDADE II │ OS CAMINHOS DE KLEIN E O SURGIMENTO DA ANÁLISE LÚDICA
Nesse processo, a organização sexual da criança também vai se modificando, com uma
intensificação das tendências uretrais, anais e genitais. Diferentes fontes de impulsos
libidinais e agressivos passam a fazer maior presença na já agitada vida emocional do
bebê, ampliando o campo das fantasias – que, agora, já assume feições mais elaboradas
– e desencadeando novas situações de ansiedade. O correlato será um desenvolvimento
também na natureza das defesas.
Na proporção em que o ego se torna mais organizado, vai ocorrendo uma aproximação
entre os objetos internos e os objetos externos. Vimos que a repetição continuada de
introjeções e projeções dos objetos auxilia no desenrolar desse processo. E ele propiciará
uma identificação mais completa do ego com os “bons” objetos, o que vai fazendo surgir
um ego mais fortalecido, mais preparado para lidar com o medo dos “maus” objetos e
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OS CAMINHOS DE KLEIN E O SURGIMENTO DA ANÁLISE LÚDICA │ UNIDADE II
com a ansiedade persecutória. É nesse contexto que o bebê vivenciará uma mudança
fundamental em seu psiquismo. Relata klein (1935/1996, p.306):
Faz-se necessário ressaltar aqui que, os mecanismos que fazem com que o objeto se
torne total ocorrem simultaneamente àqueles que levam a uma integração do ego cada
vez maior. Teremos, portanto, agora relações objetais que se travam entre um ego cada
vez mais coeso e um objeto total. Essa é a marca precípua da posição depressiva. Ela
tem implicações fundamentais na vida psíquica, porque ao mesmo tempo em que o
bebê reconhece sua mãe como objeto total, ele também percebe que é ela a fonte tanto
de suas boas experiências como das más. Da mesma forma, a integração de seu ego o
leva a perceber que é ele quem direciona a mãe não apenas os sentimentos bons, mas
também os destrutivos.
Ressalta-se que esses desenvolvimentos se dão inicialmente com relação à mãe pela
transposição gradual da condição de seio para a de pessoa, objeto completo com quem
o bebê se identificará. Nesse mesmo contínuo, no entanto, farão entrada o pai, o casal,
e outras pessoas de relevância para o bebê.
É essa mudança, que estamos fazendo questão de bem demarcar, que operará uma
transformação na faceta da ansiedade quando ocorre a entrada na posição depressiva,
moldando, igualmente, novas configurações para os mecanismos de defesa. Assim,
Klein (1952/1986, p.230) esclarece:
A ambivalência, portanto, será forte vetor de ansiedade. O bebê percebe que, quando
libera em suas fantasias seus impulsos sádicos e destrutivos, tem como alvo justamente
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UNIDADE II │ OS CAMINHOS DE KLEIN E O SURGIMENTO DA ANÁLISE LÚDICA
o objeto que ama e que teme imensamente perder – o objeto de onde retira elementos
para fortalecer o seu ego e enfrentar seus medos.
Essa nova configuração também trará uma alteração nas interações entre introjeção e
projeção. De que forma?
Ora, quando as condições de desenvolvimento são favoráveis, o bebê percebe cada vez
mais robustez em seu objeto ideal e os impulsos libidinais, que ficarão aumentados,
também o fortalece na queda de braço contra os impulsos agressivos e os maus objetos.
Essa dinâmica favorece sua identificação com o objeto ideal e o torna mais apto para
se defender e para sentir que pode defender o objeto amado de seus próprios impulsos
maus.
Porém, a mesma dinâmica que favorece a integração do ego também está na origem
das ansiedades depressivas. Isso porque o indivíduo passa a perceber o valor que o
objeto possui para ele, havendo um significativo aumento da consideração que ele
nutre pelo objeto. O indivíduo passa então a experimentar o medo da “perda do objeto
amado”, assim como se da conta também de sua dependência com relação a esse objeto.
A descoberta da ambivalência faz com que ele experimente intensos sentimentos de
anseio, culpa e luto com relação tanto aos objetos internos como externos.
Então, há o temor que seus próprios impulsos destrutivos danifiquem o objeto amado,
assim como receia a ação dos objetos persecutórios internalizados sobre ele. O medo de
que o objeto esteja passando por um perigo de aniquilamento ou já tenha sido aniquilado
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OS CAMINHOS DE KLEIN E O SURGIMENTO DA ANÁLISE LÚDICA │ UNIDADE II
gera uma identificação ainda mais forte com o objeto danificado, e se encontra na base
das tentativas que o ego fará para reparar o objeto de amor.
Além disso, o ego também fará uso das defesas maníacas. Novamente vemos surgir aqui
os mesmos mecanismos que tomaram a cena na posição esquizoparanoide: a negação,
a idealização, a clivagem, a identificação projetiva e a busca pelo controle dos objetos
são mais uma vez usados pelo ego – só que, agora, de forma qualitativamente diferente.
Eles buscam neutralizar as ansiedades depressivas e a culpa, e são muitíssimos mais
organizados que na fase anterior, em concordância com o estado de maior integração
do ego.
A defesa maníaca que intenta o controle dos objetos deriva dos sentimentos de
onipotência e é usada tanto para tentar conter a ação dos objetos internos malignos
contra o objeto amado como para evitar as frustrações que podem advir inclusive desses
objetos ideais. A clivagem, por sua vez, tem agora outro resultado. Ela divide o objeto
completo em um objeto vivo e imune de riscos em detrimento de um objeto danificado
e em perigo. Tenta, assim, preservar o objeto amado.
Segal (1973) e Nazio (1995) ressaltam, ainda, mais duas formas de defesa próprias à
posição depressiva: o triunfo e o desprezo. Ambas estariam ligadas à percepção do valor
do objeto amado, com o medo de perdê-lo e com a culpa por qualquer dano que pudesse
ser a ele causado.
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UNIDADE II │ OS CAMINHOS DE KLEIN E O SURGIMENTO DA ANÁLISE LÚDICA
Nazio (1995) cita também as defesas pela fuga. Trata-se de uma fuga para os bons
objetos. Se ela se direcionar para os objetos internos, tem-se um distanciamento da
realidade (psicoses, autismo). Se ela ocorrer no sentido dos objetos externos, tem-se
os estados amorosos repetitivos nas neuroses. De uma forma ou de outra, o indivíduo
evita lidar com as ansiedades desencadeadas pela perda do objeto amado.
Por fim, há ainda uma defesa maníaca importante de ser comentada. Ela precisa ser
tratada com atenção, pois trata-se de um mecanismo que não se constituirá como defesa
obrigatoriamente. Pode ser, ao contrário, uma das formas positivas de elaboração da
posição depressiva. Estamos falando do processo de reparação.
Quando o bebê passa a perceber a mãe como objeto total, ele começa a experimentar
também a intensa ansiedade de ter de lidar com o fato de que ela é uma pessoa diferenciada
dele, possui desejos e mobilidade próprios diversos dos seus. A mãe pode desaparecer
por horas a fio, depois retornar, não exercendo no infante nenhum controle sobre os
destinos desse tão fundamental objeto. Isso causa-lhe uma miscelânea de sentimentos
– raiva, tristeza, medo – que, agora, ele já reconhece como sendo seus.
Esse conjunto de sofrimentos advêm da crença do bebê de que, quando a mãe some, ele
pode tê-la perdido para sempre. Ela pode não mais voltar, pois pode ter sido danificada
ou até mesmo morta – quem sabe em consequência dos sentimentos sádicos e agressivos
que um dia o bebê lhe direcionou. Essas idéias não só desencadeiam ansiedades
depressivas, como também geram no pequeno indivíduo fortes sentimentos de culpa.
No entanto, o bebê será exposto repetidas vezes a essas experiências de perda, assim
como repetidas vezes experimentará a recuperação do objeto. O retorno da mãe,
juntamente com o contínuo amor e cuidado recebidos do ambiente, faz com que ele
vá gradativamente percebendo que os ataques sádicos e agressivos que realiza em
suas fantasias não têm a onipotência para destruir os objetos amados na realidade.
Dessa forma, vai ganhando mais confiança na força de seus impulsos amorosos e em
sua capacidade de, após as manifestações de raiva e desagrado, restaurar seus objetos
internos e mantê-los consigo nos momentos de ausência dos objetos externos. Seu ódio
torna-se menos assustador, e as ansiedades depressivas vão perdendo a força. Como
bem ressalta Segal (1973/1975, p. 105):
76
OS CAMINHOS DE KLEIN E O SURGIMENTO DA ANÁLISE LÚDICA │ UNIDADE II
No entanto, nem sempre será esse o caminho assumido pelo processo de reparação.
Tal mecanismo pode se desenrolar dentro de um contexto em que o bebê ainda esteja
tomado pelo sentimento de onipotência e não encontre um ambiente que favoreça a
aproximação de suas fantasias da realidade externa. Isso dificultará a adequação da
realidade psíquica, interferindo no crescimento do ego e a adaptação deste à realidade.
Nesse caso tem-se a reparação como uma defesa maníaca, usada para evitar qualquer
contato com os sentimentos de perda e de culpa.
Uma das formas de realizar esse intento é, por exemplo, realizando uma substituição
do objeto. Ao invés de buscar reparar o objeto de amor, os esforços de reparação são
direcionados para objetos remotos, que tenham sofrido danos por causas igualmente
remotas e impossíveis de serem relacionadas a ações ou sentimentos do indivíduo.
O que pode se observar, portanto, é que a reparação que conduz à uma saída positiva da
posição depressiva não tem como dispensar o reconhecimento de uma perda do objeto.
Apenas o reconhecimento e a aceitação dessa perda é que permitem a elaboração da
culpa através da recriação de um novo objeto interno. Isso nos leva a compreender
porque a única superação verdadeira da posição depressiva se dá por meio do trabalho
do luto. “É do resultado do trabalho de luto do objeto primordial que depende a saída
da neurose infantil e da neurose transferencial”. (NAZIO,1995 , p.163) Sobre isso, Nazio
(1995, p.163) acrescenta ainda:
Para Melanie Klein, todo luto que ocorre posteriormente na vida reaviva
a posição depressiva, isto é, tem um episódio confusional, ativado
pelas angústias persecutórias e pelos sentimentos de ódio, desespero e
77
UNIDADE II │ OS CAMINHOS DE KLEIN E O SURGIMENTO DA ANÁLISE LÚDICA
Conclui-se assim que, a capacidade que a criança vai adquirindo para lidar com a
ansiedade depressiva está diretamente relacionada com a forma como ela conseguiu
incorporar e estabelecer o seu bom objeto, base para o núcleo do seu ego. Sendo esse
processo bem sucedido, a criança superará a posição depressiva e estará pronta para
enfrentar os desafios do complexo de Édipo, agora lidando com objetos completos e
com os sentimentos ambivalentes que carrega em relação a eles. Contudo, se o ego não
aprender a manejar bem as situações de ansiedade da posição depressiva, correrá o
risco de regredir à posição esquizoparanoide, o que “impediria também os processos
de introjeção do objeto completo e afetaria substancialmente o desenvolvimento não só
durante o primeiro ano de vida, mas em toda a infância” (KLEIN, 1952/1986, p. 235) e
também na vida adulta.
Encerramos aqui nossa exposição dos mais básicos e originais desenvolvimentos teóricos
e técnicos com os quais Melanie Klein prestou sua contribuição ao pensar psicanalítico.
Sua obra influenciou de forma indelével a maneira de conceber o psiquismo infantil,
assim como ampliou as possibilidades de sua técnica psicanalítica, ao criar a análise
lúdica. Assim como na primeira parte deste guia de estudos, acreditamos ter feito um
recorte dos conceitos kleinianos que constituirá um preâmbulo consistente para situar
e incentivar àqueles que pretendam enveredar pelo pensamento de Klein – percurso
que constitui uma das mais fascinantes buscas de compreensão da psique humana.
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O PERCURSO
DE WINNICOT E UNIDADE III
A CLÍNICA DO
CUIDADO
CAPÍTULO 1
Winnicott e seu encontro com a clínica
psicanalítica
Donald Woods Winnicott nasceu em 1896 na cidade inglesa de Plymouth. Sua família
era metodista, mas ele preferia ser considerado como Lollard. Aos 14 anos, foi enviado
para um internato para dar seguimento aos seus estudos. Depois, cursou em Cambridge
primeiramente biologia (sendo um grande admirador de Darwin), ingressando, logo
após, em medicina. De 1914 a 1918, época da Primeira Guerra Mundial, alistou-se como
oficial médico da Marinha Britânica, o que retardou sua formatura no curso de medicina
– que veio a ocorrer apenas em 1920.
Ainda na faculdade, foi fortemente influenciado pelo Dr. Thomas Jeever Horders,
que defendia a importância de escutar a história dos pacientes, de se centrar no relato
clínico deles, para entender as nuances de seus adoecimentos. Também nessa época,
em 1919, teve seu primeiro contato com a psicanálise. Ganhou de presente de um amigo
A Interpretação dos Sonhos, de Freud, e leu-o avidamente na busca por entender o
porquê de, após a guerra, não conseguir mais se lembrar de seus sonhos. Desde então,
o interesse pela psicanálise nunca o abandonou.
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UNIDADE II │ OS CAMINHOS DE KLEIN E O SURGIMENTO DA ANÁLISE LÚDICA
Ainda em 1923, inicia, com James Strachey, sua primeira análise, que durarão 10 anos,
depois deu continuidade ao processo por mais cinco anos com outra analista – Joan
Rivière, discípula de Melanie Klein.
Situe-se na história:
James Atrachey nasceu em 1887, na Inglaterra, mas mudou-se para Viena em 1920
– onde iniciou uma análise com Freud, de quem se tornou grande admirador.
Freud convidou a ele e a sua esposa (Alix Strachey) para traduzir algumas de
suas obras para o inglês, e isso acabou por se tornar o trabalho de sua vida.
Não possuía formação médica, a maior parte de sua atuação tinha se dado na
área do jornalismo. Mas, após dois anos de análise com Freud, solicitou tornar-
se seu aluno. Freud o aceitou, e foi incorporado à Sociedade Psicanalítica de
Viena, trilhando ali seu percurso de formação analítica. Foi um dos fundadores
da Sociedade Britânica de Psicanalise e um dos que incentivou Melanie Klein a
se mudar para a cidade para aprofundar seu trabalho com crianças. Permaneceu
fiel a Freud, mantendo-se neutro nas querelas que surgiram entre Anna Freud e
Melanie Klein. Integrou o Bloomsbury Group.
Joan Rivière foi uma psicanalista inglesa nascida em 1883. Sofria com várias
manifestações psicossomáticas e com uma acentuada melancolia que a fez se
internar várias vezes. Foi então que iniciou um tratamento psicanalítico com
Ernest Jones, que a aconselhou a procurar Freud para dar continuidade a sua
análise. Posteriormente, rompe relação com Jones. Foi uma das fundadoras da
Sociedade Britânica de Psicanálise e integrou o comitê de tradução das obras
de Freusd para o Inglês. Tornou-se partidária de Klein. Publicou vários artigos
sobre suas experiências clínicas, tendo como um dos seus temas de interesse
a natureza da feminilidade moderna, tendo se aproximado do movimento
sufragista.
Por falar em Klein, lembremos aqui um fato importante (ao qual nos referimos na
unidade anterior de nosso curso): em 1926, Melanie Klein se muda para Londres e se
torna, no círculo psicanalítico da Inglaterra, a principal referência para as discussões em
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O PERCURSO DE WINNICOT E A CLÍNICA DO CUIDADO │ UNIDADE III
Ressalta-se ainda que, em 1938, Anna Freud chega para morar em Londres. Winnicott
usufruirá da convivência com a psicanalista, discutindo ideias e casos com ela, bebendo
também de sua influência. Essa oportunidade e capacidade que Winnicott teve de realizar
trocas tanto com Klein como com Anna Freud marcarão seu percurso psicanalítico.
Ambas as teorias se encontram presentes em suas reflexões clínicas. Pode-se dizer que
ele incorpora tanto as teorias freudianas como as kleinianas, colocando-as para dialogar
com as experiências que ele vinha vivenciando em sua clínica. Porém, não apenas as
incorpora, mas as digere e, com o material que daí resulta, ele cria seu próprio percurso
teórico, compondo conceitos que faziam eco aos desafios com que se deparava em sua
escuta.
Figura 6. Winnicot.
Fonte: <https://amenteemaravilhosa.com.br/wp-content/uploads/2018/02/winnicot-donald.jpg>
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UNIDADE III │ O PERCURSO DE WINNICOT E A CLÍNICA DO CUIDADO
Não se pode deixar de citar também que, em 1940, Winnicott se torna Consultor
Psiquiátrico para o Plano de Evacuação de Guerra do Governo Britânico, sendo
recrutado para trabalhar em Oxford com crianças que haviam sido separadas das
famílias durante a evacuação de cidades sob ameaça de bombardeios. Essa experiência
fornece para Winnicott um material clínico importante, que se constitui como base
para o desenvolvimento de novas elaborações teóricas (especialmente sobre o papel
da mãe na constituição do sujeito). Outro elemento que surge para Winnicott nesse
trabalho é que a observação de pacientes psicóticos adultos poderia ajudar bastante no
entendimento da psicologia da primeira infância.
Por que chamo atenção para esta configuração? Porque o fato de Winnicott ter
trabalhado em hospitais infantis o colocou em contato com uma diversidade de casos
a que deveria responder em condições variadas de atendimento (como, por exemplo,
as de atendimento ambulatorial). Essa realidade, sem dúvida, exigiu dele uma reflexão
sobre a técnica e o setting, assim como a composição de soluções criativas para os
desafios que surgiam dessa configuração peculiar. Era necessário flexibilizar o setting,
fazendo-o responder a essa realidade. Outeiral (2009, p.8) comenta sobre este ponto:
A própria relação de Winnicott com sua posição de pediatra também traz a marca
diferencial de sua escolha por percorrer os percursos da psicanálise. Winnicott
(1990) relata que, enquanto seus colegas psiquiatras procuravam as respostas para
os fenômenos com que se deparavam em pesquisas sobre as condições físicas de
seus pequenos pacientes, ele cada vez mais se voltava para a observação dos aspectos
psicológicos presentes no adoecimento.
Por fim, esse trajeto sempre colado às exigências diárias de sua prática no hospital
também incide sobre a forma como ele vai elaborando e escrevendo suas teorizações.
82
O PERCURSO DE WINNICOT E A CLÍNICA DO CUIDADO │ UNIDADE III
Justamente por isso o setting será uma das preocupações teóricas de Winnicott, tanto
que estudiosos de sua obra – como Júlio de Mello Filho – ao listarem alguns fios teóricos
que conduzem a obra Winnicottana, citam a Teoria do Setting.
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CAPÍTULO 2
O brincar no setting winnicottiano
Creio que poderíamos afirmar que o uso do brincar na clínica psicanalítica com crianças
é aprofundado ainda mais – tanto enquanto técnica terapêutica como enquanto objeto
de estudo para a compreensão do psiquismo humano – no percurso psicanalítico de
Winnicot.
Para Winnicott, o brincar era tão fundamental que se o paciente não tivesse a capacidade
de fazê-lo era necessário que o analista trabalhasse inicialmente para desenvolver
essa capacidade, de forma que a análise pudesse ter continuidade. Isso porque, para
Winnicott (1971/1975, p. 80) “é no brincar, e somente no brincar, que o indivíduo,
criança ou adulto, pode ser criativo e utilizar sua personalidade integral: e é somente
sendo criativo que o indivíduo descobre o eu (self)”.
Para falar do brincar em Winnicott, faz-se necessário retomar, ainda que rapidamente,
algumas concepções teóricas fundamentais.
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O PERCURSO DE WINNICOT E A CLÍNICA DO CUIDADO │ UNIDADE III
Fonte :<http://www.hierophant.com.br/arcano/posts/view/Fool/401>
Ser saudável, para Winnicott, é atingir a maturidade emocional. Porém, como foi dito, a
ideia de um desenvolvimento sem nenhuma falha não se apresenta viável. A questão que
se coloca é se essa falha será desestruturante a ponto de causar um adoecimento mental
ou se, apesar dela, o sujeito continuará seu desenvolvimento de forma relativamente
85
UNIDADE III │ O PERCURSO DE WINNICOT E A CLÍNICA DO CUIDADO
saudável. A data da falha, sua gravidade, as ferramentas já adquiridas pelo sujeito para
lidar com ela e as medidas reparadoras a que o sujeito terá acesso são alguns dos fatores
determinantes da direção que tomará o desenvolvimento emocional do sujeito.
Assim, se tudo correr bem, o adulto amadurece e torna-se capaz de integrar a sociedade
sem sacrificar demasiadamente sua espontaneidade pessoal – um adulto que, para
satisfazer suas necessidades pessoais, não presisa tornar-se antissocial.
Importante destacar que, para Winnicott, a vida emocional do sujeito não é algo
imutável ou inabalável. O processo de desenvolvimento emocional é contínuo e
passível de quebras em qualquer momento da vida. Da mesma forma, em qualquer
momento o sujeito pode colocar em funcionamento ferramentas de reparação que o
auxiliem a retomar um processo de desenvolvimento saudável. Em casos assim, as
intervenções sobre o ambiente – no sentido de torná-lo um ambiente facilitador –
seriam fundamentais.
É nesse sentido (ou seja, na busca por entender e manejar melhor os processos
facilitadores do desenvolvimento) que Winnicott volta seu interesse para o brincar,
passando a entendê-lo não apenas como meio de expressão das fantasias inconscientes
(que forneceria o material para ser trabalhado na análise com crianças), mas como
atividade terapêutica em si, tanto para crianças como para adultos. Nisso, seu setting
diferirá do setting kleiniano. Enquanto para Klein a brincadeira é a forma de expressão
privilegiada para a criança, para Winnicott o brincar tem uma potencialidade própria,
constituindo-se em ferramenta terapêutica com efeito curativo na análise de crianças e
adultos.
É preciso dizer que essa concepção está relacionada à ideia Winnicottiana de que o
ser humano possuiria uma criatividade primária, uma criatividade potencial que seria
o impulso para o desenvolvimento da capacidade de brincar, sendo que o brincar se
situaria em uma zona intermediária entre o dentro e o fora, em um espaço transicional.
Lembremos:
86
O PERCURSO DE WINNICOT E A CLÍNICA DO CUIDADO │ UNIDADE III
quando a realidade externa material. Esse seria o espaço transicional: o espaço em que
se desenrolaria o brincar.
Portanto, é importante compreender que o brincar para Winnicott tem uma topologia
e uma temporalidade. Topologicamente, o espaço do brincar é o espaço que Winnicott
chamou de espaço potencial. Não se situa nem completamente no espaço subjetivo do
bebê –no seu corpo – nem completamente naquilo que o bebê já identifica como não-
eu – a realidade externa. Esse espaço se situaria, inicialmente, entre o bebê e a mãe.
A mãe oscila entre ser o que o bebê tem capacidade de encontrar e ser
ela própria, aguardando ser encontrada. Se a mãe tem razoável sucesso
no exercício desses papéis, então o bebê tem a experiência mágica da
onipotência, o que o prepara para a futura desilusão necessária. Quando
a mãe tem uma relação de sintonia inicial com o bebê, estabelece-se um
ambiente de confiança e o bebê brinca com a realidade. Trata-se de uma
brincadeira muito prazerosa porque neste jogo delicado da subjetividade
emergente e dos objetos reais há uma sensação de controle.
87
UNIDADE III │ O PERCURSO DE WINNICOT E A CLÍNICA DO CUIDADO
Assim, o objeto transicional funciona como ferramenta para que o bebê tenha algum
controle sobre as tensões geradas no encontro com um admirável mundo novo, dando
condições ao bebê de experimentar uma nova realidade, sem quebras no seu processo
de desenvolvimento.
Neste sentido, para Winnicott o brincar seria o meio que tornaria possível a integração
do self, daí porque ele chega a afirmar que somente através do brincar o indivíduo
poderia usufruir de sua personalidade de forma integral. Daí porque, também, ele
considera que o processo analítico só pode ocorrer se o sujeito tiver desenvolvido a
capacidade de brincar. Isso leva Winnicott (1971/1975, p. 61) a propor que:
Percebe-se aqui que a noção de brincar de Winnicott vai adentrando as suas sessões
analíticas. A sessão de análise passa a ser vista por Winnicott como um espaço potencial
e, portanto, como espaço do brincar. A sessão é pensada como uma manifestação
da experiência de brincar, pois que o brincar propiciaria a comunicação do paciente
consigo mesmo e com o analista, fornecendo oportunidade para experiências inéditas
de integração e desintegração do paciente.
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O PERCURSO DE WINNICOT E A CLÍNICA DO CUIDADO │ UNIDADE III
Winnicott atenta ainda para o fato de que as crianças, quando brincam, engajam-se
de forma compromissada na brincadeira. Na sessão de análise aconteceria o mesmo:
ambos, analista e paciente, precisariam se engajar naquele espaço/tempo potencial,
propondo-se a brincar com suas realidades subjetivas. É um espaço/tempo teatral,
onde a dupla analista e paciente vivenciará o sofrimento, a alegria, a criatividade,
“numa dramatização que só tem valor se for investida de afeto e sustentada como se
esta brincadeira fosse tão real quanto à realidade socialmente construída” (Franco,
2003).
Para entendermos melhor a forma como o jogo é usado por Winnicott, vejamos
a descrição do Jogo da Espátula. Trata-se de um jogo que Winnicott apresentou
em conferência à Sociedade Britânica de Psicanálise em 1941. Sua função seria a de
integração da personalidade. Inicialmente, surgiu como um instrumento de pesquisa/
diagnóstico e depois se transformou em uma ferramenta terapêutica. É um jogo para
ser usado com bebês de cinco a treze meses. Ele assim se desenvolve:
Winnicott passa, então, a observar o comportamento que o bebê terá com a espátula.
Em geral, o esperado é que o bebê se sinta atraído pelo objeto. Em um primeiro estágio,
ocorre o que Winnicott denomina de período de hesitação. O bebê toca a espátula de
leve, olha para a mãe e para o analista ou refugia-se encabulado no corpo da mãe.
Trata-se de um momento em que o bebê busca ainda estabelecer uma intimidade com
o ambiente e com o analista. Seria um momento para se observar o estabelecimento da
transferência. Neste momento, a ausência de hesitação ou hesitação exagerada seriam
comportamentos a serem observados, pois poderiam representar distorçoes na relação
do bebê com suas fantasias internas ou com seu superego, indicando a presença de
ansiedade.
89
UNIDADE III │ O PERCURSO DE WINNICOT E A CLÍNICA DO CUIDADO
leva-a a boca e brinca de alimentar o analista e a mãe com ela. A mãe e o analista,
entram na brincadeira, fingindo ser alimentados. Interessante é observar aí o papel
fundamental da ilusão. Os adultos devem fingir, pois, se levarem de fato a espátula a
boca, a brincadeira perde a graça, pois deixa de ser brincadeira, o que levaria o bebê a
se sentir perturbado. Aqui, portanto, é dada à criança a liberdade de se expressar por
meio do jogo.
Pode-se observar, com a descrição que Winnicott faz do jogo da espátula, como esse
psicanalista pensa o brincar na sessão analítica: não apenas como fonte de material
para interpretação, mas como instrumento de tratamento. Como vimos, para ele,
quando acorrem situações traumáticas, elas geram bloqueio no desenvolvimento
emocional do sujeito no âmbito do que foi traumatizado, ocorrendo um descompasso
com o desenvolvimento de outros pontos da personalidade. Seria necessário encontrar
esse ponto de bloqueio e permitir que ele seja revivido, reexperimentado na forma de
jogo em meio a um ambiente acolhedor e a atitudes de sustentação para que ele possa
ser superado e dê ensejo a criação de novos rumos.
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CAPÍTULO 3
Interpretação no setting winnicottiano
Desta forma, Winnicott defenderá que a maneira como um tratamento deve ser conduzido
tem de estar na dependência das necessidades que o paciente manifesta, que variará de
acordo com o tipo de distúrbio que ele apresenta e com a fase do desenvolvimento em que
se encontra. No caso dos bebês e das crianças que estão no momento da dependência, o
analista não pode se limitar à interpretação do desejo, precisa investir na compreensão
da necessidade que se faz presente, pois que a necessidade não carece de interpretação,
ela precisa, na medida do possível, ser atendida.
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UNIDADE III │ O PERCURSO DE WINNICOT E A CLÍNICA DO CUIDADO
capacidade para encontrar esse objeto). Daí porque a importância, para Winnicott, de
determinar o momento de maturação em que seu pequeno paciente se encontra.
Assim, na análise com crianças o setting analítico recebe maior importância que a
interpretação analítica (entendendo aqui setting como Winnicott o descreve, ou seja,
como a soma dos detalhes do manejo). Portanto, o manejo é fundamental na análise
com crianças, o que altera o lugar da interpretação como método terapêutico central.
Portanto, para Winnicott, o uso da interpretação deve ser mais limitado (e delimitado).
Nesse sentido, ele aponta para o fato de que se deve interpretar o que é profundo, não
o que é primitivo.
Entendamos:
Fonte: <https://cleusacaldas.com.br/artista-plastica/media/catalog/product/cache/1/small_image/360x/9df78eab33525d08d
6e5fb8d27136e95/f/b/fb_img_1452096067913.jpg>
O analista, portanto, assume, na interpretação, uma nova posição – mais ampla do que
a de decifrador de conteúdos. A presença do analista é, antes de tudo, a presença que
dará suporte para que a criança vá compondo seu objeto, e entrando em contato com
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O PERCURSO DE WINNICOT E A CLÍNICA DO CUIDADO │ UNIDADE III
O termo management, usado na área médica, significa a função que o médico deve
assumir de gerenciar o tratamento de seu paciente, ou seja, de definir onde ocorrerá
o tratamento (ambulatório, internação etc.), qual a duração, que tipo de alimentação,
qual o contato social o doente deve ter, quanto de repouso é necessário, mas não só
isso. Inclui também as atitudes que o médico deve tomar diante do paciente e de seu
adoecimento: a pessoalidade do atendimento, o interesse manifesto, a pontualidade,
a forma de comunicação etc. Esses detalhes do manejo são muito importantes para
o estabelecimento de uma relação de confiança. Trata-se de estabelecer um manejo
confiável.
Logo, pode-se depreender do exposto que, para dar ensejo à cura, será necessário
compor ou alterar as condições ambientais para que elas proporcionem ao pequeno
paciente um cuidado ambiental total propulsor dos processos de amadurecimento.
No entanto, é preciso atentar para o fato de que, em acordo com a ideia de que é
necessário seguir as necessidades do paciente, não há regras claras para nortear as
atitudes a serem adotadas pelo analista (assim como não há uma definição precisa do
fazer da mãe suficientemente boa). O analista não tem como compor um modelo prévio
de como agir. Ele precisa estar atento a qual necessidade o paciente expressará em cada
momento, e estar atento para o fato de que a direção do manejo deve variar de acordo
com a etapa de amadurecimento em que está o paciente.
Portanto, o manejo se guiará pela identificação do analista com seu paciente, que
assim buscará perceber quais os cuidados precisa oferecer àquele paciente específico.
Trata-se, portanto, de uma adaptação ativa por parte do analista, que busca uma visão
93
UNIDADE III │ O PERCURSO DE WINNICOT E A CLÍNICA DO CUIDADO
Logo, percebe-se aí que a prática de orientação aos pais e à escola passa a integrar o
trabalho analítico winnicottiano.
Por fim, uma observação se faz importante. Todo uso do management tem de se
basear nas necessidades do paciente (não nas do analista) e ter como fundo uma
compreensão clara dos princípios do madurecimento e das condições suficientemente
boas do ambiente facilitador. Sem essas referências, enfrenta-se o risco de se perder os
parâmetros e os limites de atuação que devem delimitar o fazer do analista.
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O PERCURSO DE WINNICOT E A CLÍNICA DO CUIDADO │ UNIDADE III
Conclusão
Ao longo do percurso que travamos nas três unidades deste manual de estudos, fomos
acompanhando o nascimento de uma nova concepção de infância – que, aos poucos, foi
sendo ressignificada no conceito de infantil. Ela constrói as condições que possibilitam
a criação de espaço de tratamento do sofrimento psíquico já na infância. O setting da
psicanálise infantil (ou, talvez seja mais adequado falar, os settings da psicanálise infantil)
vai se construindo junto com o próprio desenvolvimento do movimento psicanalítico,
demarcando uma nova forma de conceber o ser humano, seu desenvolvimento, sua
saúde e seu adoecimento.
Aqui buscamos circunscrever essa construção, pondo à mostra desafios clínicos com
que os primeiros analistas de crianças foram se deparando e as soluções técnicas que
foram compondo para dar respostas a tais desafios.
Esperamos que, inspirados pelos percalços e encalços desses analistas, cientes das
problemáticas que a psicanálise infantil enfrenta no campo das técnicas e municiados
das propostas que foram montadas para responder à essas problemáticas, vocês que
nos acompanharam ao longo desta disciplina possam traçar seu próprio caminho pelo
fazer da psicanálise infantil.
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Referências
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REFERÊNCIAS
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REFERÊNCIAS
Sites:
<http://www2.uol.com.br/vivermente/noticias/a_histeria_em_cena.html>.
<http://www.conflictopsiquico.com/2010/02/caso-juanito.html>.
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REFERÊNCIAS
<http://deboraoliveirapsicologa.blogspot.com/2017/01/14-fatos-e-curiosidades-
surpreendentes.htm>.
<http://www.thehistorypostblog.co.uk/international-womens-day-melanie-klein/>
<http://www.hierophant.com.br/arcano/posts/view/Fool/401>
<http://www.elfikurten.com.br/2011/02/candido-portinari-mestres-da-pintura.
html>
< h t t p s : //cl e usacal das .co m.br/artista-p lastic a/med ia/c atalog/p rod u c t /
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<https://amenteemaravilhosa.com.br/wp-content/uploads/2018/02/winnicot-
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