A Patologia Da Normalidade
A Patologia Da Normalidade
A Patologia Da Normalidade
ARTIGOS262
http://doi.org/10.1590/15174522-95752
A patologia da normalidade:
Erich Fromm e a crítica da cultura
capitalista contemporânea
Fabrício Maciel*
Resumo
Neste artigo, procuro problematizar a crítica de Erich Fromm à cultura do capitalismo
contemporâneo. Para tanto, faço uma releitura especialmente, mas não apenas, de
uma de suas principais obras maduras, o livro Psicanálise da sociedade contemporânea
(The sane society), no qual o autor sedimenta seu projeto analítico de uma “psicanálise
humanista”. Na primeira parte o artigo reconstrói, através da ideia de “patologia
da normalidade”, a crítica de Fromm aos fundamentos culturais do capitalismo
contemporâneo. Na segunda parte, a reconstrução é levada adiante através dos
conceitos de “caráter social” e “alienação”, de modo a compreender como o
capitalismo tardio do século XX aprofunda, como nunca antes, uma cultura anti-
humanista. Na conclusão, procuro argumentar como a obra de Fromm pode ser de
grande valia para a compreensão dos problemas tanto individuais quanto coletivos
da atualidade.
Palavras-chave: Erich Fromm. patologia da normalidade, caráter social, alienação,
capitalismo.
Abstract
In this article, I seek to problematize Erich Fromm’s critique of the culture of
contemporary capitalism. To this end, I especially review, but not only, one of his
main mature works, the book The Sane Society, in which the author establishes
his analytical project of a “humanistic psychoanalysis”. In the first part, the article
reconstructs, through the idea of a “pathology of normalcy”, Fromm’s critique
of the cultural foundations of contemporary capitalism. In the second part, this
reconstruction is carried forward through the concepts of “social character” and
“alienation”, to understand how the late capitalism of the 20h century deepens as
never before an anti-humanistic culture. In the conclusion, I argue that Fromm’s
work can be of great value in understanding both the individual and collective
problems of today.
Keywords: Erich Fromm, pathology of normalcy, social character, alienation, capitalism.
E
rich Fromm é, sem dúvida, um dos maiores pensadores da
modernidade. Sua vasta obra é de fundamental importância, tanto para
o desenvolvimento da psiquiatria e psicologia contemporâneas quanto
para a filosofia e as ciências sociais. Neste artigo, eu gostaria de explorar
alguns aspectos do seu pensamento, com o objetivo de demonstrar como
este é decisivo para a construção de uma crítica à cultura do capitalismo
contemporâneo. Para tanto, vou recorrer especialmente, mas não apenas, ao
seu livro Psicanálise da sociedade contemporânea (1970) (The sane Society,
1955), sem dúvida uma de suas principais obras. O livro é a parte final de
uma trilogia, que se inicia com O medo à liberdade (1974) (Escape from
freedom, 1941) e tem como sequência Análise do homem (1964) (Man
for himself, 1947). Neste seu projeto analítico, que encontra seu auge no
terceiro livro, Fromm leva a cabo a sua tentativa de compreender as razões
do mal-estar existencial predominante na modernidade, atentando para
suas consequências políticas negativas.
Nada poderia ser mais falso e perigoso, segundo Fromm. Tal posição
era fortalecida pela convicção de que a política norte-americana não era
apenas a única esperança de sobrevivência material, mas também a única
recomendada pelas considerações morais e espirituais. Este senso comum
acreditava representar a liberdade e o idealismo, enquanto os russos e
seus aliados representariam a servidão e o materialismo. Considerava-se
até mesmo o risco da guerra e da destruição, pois seria melhor morrer
do que ser escravo (Fromm, 1964). Diante disso, nesse importante livro,
atualmente esquecido no Brasil, assim como boa parte da obra de Fromm,
o autor procura desconstruir estas falsas premissas, guiadas por suposições
fictícias e deformadas de um “espírito confuso” que impunha um grave
perigo a toda a humanidade (Fromm, 1964). Qualquer semelhança com
a realidade atual não é mera coincidência. Depois de levar a cabo seu
importante projeto, com forte teor político, de diagnóstico e prognóstico
das patologias da sociedade contemporânea, Fromm vai se dedicar cada
vez mais a escritos de natureza existencial, como seus livros The art of
loving, de 1956 (2008), e To have or to be?, de 1976 (2013), que se destaca
dentre seus últimos trabalhos.
Dentre seus comentadores e críticos, podemos ressaltar o trabalho
de Rainer Funk. Em artigo recente, ele analisa como a obra de Fromm,
especialmente com sua percepção relacional da ação e sua teoria sobre
o caráter social, permite uma aproximação produtiva entre a psicanálise
e a sociologia (Funk, 2019). Nessa direção, o artigo de Adorno Sobre a
relação entre sociologia e psicologia apresenta interessantes considerações,
especialmente a partir de sua crítica a Parsons e às dificuldades deste em
perceber a complexidade da relação entre personalidade e sociedade
(Adorno, 2015). No artigo Adorno e a psicanálise, Sérgio Paulo Rouanet
(2003) também tematiza aspectos interessantes dessa discussão.
Além destes, Thomas Kühn tem utilizado a psicanálise humanista
de Fromm para tematizar as patologias e contradições atuais do mundo
corporativo (Kühn, 2019). Daniel Burston, por sua vez, ressaltou a importância
da obra de Fromm para a história da psicanálise, inclusive por conta de seu
tanto por “autor” quanto por “assunto”, não apresenta nenhum resultado.
Uma rara referência encontrada é um artigo de Jessé Souza, sobre Freud,
Fromm e Adorno, no qual procura comparar a obra dos três autores e analisar
a recepção da psicanálise nos trabalhos empíricos da primeira geração de
Frankfurt. Souza destaca o pioneirismo da obra de Fromm no sentido de
perceber as predisposições socialmente adquiridas que podem levar à
adesão de uma pessoa ao autoritarismo ou à democracia (Souza, 2008).
Voltando à Fromm, especialmente na parte final da trilogia, Psicanálise
da sociedade contemporânea, ele oferece um formato final para o projeto
que batizou como uma “psicanálise humanista” (Fromm, 1970, p. 12). A
tese central desta sua empreitada é
aqui à postura da maioria dos sociólogos que acreditavam ser uma sociedade
normal enquanto esta aparentemente “funciona” e que uma patologia só
pode ser definida em termos da falta de ajustamento individual ao estilo
de vida coletivo (Fromm, 1970). Para ele, em contrapartida, falar de uma
“sociedade sã” implica uma premissa diferente desse relativismo sociológico.
Isso apenas faz sentido se admitirmos a existência de uma sociedade que
não seja sã, e esta suposição implica, por sua vez, a existência de algum
critério universal de saúde mental válido para toda a humanidade. Apenas
este critério pode permitir o julgamento do estado de saúde de cada
sociedade. Esta seria uma postura básica de seu “humanismo normativo”,
como ele mesmo o define (Fromm, 1970, p. 26).
Nesse sentido, o que em sua geração se chamava de “natureza humana”
não passa de uma de suas muitas manifestações e, com frequência, de
manifestação patológica, tendo sido geralmente a função dessa definição
equivocada defender um tipo particular de sociedade como sendo
consequência necessária da constituição mental da humanidade (Fromm,
1970). Assim, o verdadeiro problema, para Fromm, está em deduzir a
“essência” comum a toda a “raça humana” das inumeráveis manifestações
de sua natureza, tanto “normais” quanto patológicas, como podem ser
observadas nos diversos indivíduos e diferentes culturas.
O que a humanidade faz no processo histórico, segundo Fromm,
é desenvolver o seu potencial, transformando-o de acordo com as suas
próprias possibilidades. Este ponto de vista não é nem biológico nem
sociológico, mas transcende esta dicotomia pela suposição de que as
principais paixões e tendências humanas resultam da “existência total” da
humanidade, de que são definidas e determináveis, conduzindo algumas
delas à saúde e felicidade, outras, à doença e à infelicidade (Fromm, 1970).
Uma determinada ordem social não “cria” essas tendências fundamentais,
mas estabelece quais das paixões em potencial, que existem em número
limitado, deverão tornar-se manifestas ou dominantes.
Com isso, o humanismo normativo considera que a saúde mental só é
de fato alcançada se a humanidade se desenvolve até a plena maturidade,
e a Alemanha. A reflexão se posiciona como uma crítica aos efeitos ainda mais perversos
que a cultura capitalista produz em sociedades periféricas, como a brasileira.
Referências
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