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Amare

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Amare

Eu não sei o que é isto de amor. Acho que você tampouco sabe. O amor verdadeiro, quero

dizer, e não o amor de ego. Quando eu acho que eu sou a minha amada, eu acho, eu

realmente a amo. Eu acho, Beatriz, que te amo, mas disto nem posso ter certezas, porque ter

certezas é sempre acrescentado. Por que eu acho que te amo? Não sei tampouco. Só acho

que acho. Estou aqui e você aí. Mas, metafisicamente, somos um. Eu canto sem cantar um

canto que te encanta, mas acho, te encanta menos o meu canto em ti que o teu em mim. Tu

me encantas sem nada cantares. Porque o canto que a mim chega é canto sem canto, é canto

de encanto, é canto tanto mais tanto. Beatriz, saudades. Queria escutar-te as melodias.

Queria sentir-te o calor, o calor de vosso coração, de vosso coração que é nosso. Somos

um? Quero acreditar que somos um. Quero acreditar que as nossas melodias se afinaram em

toada amável e tíbia. Quero acreditar que a unificação de nossas almas é uma unificação no

divino, que o nosso amor não é ego. O ego é mimado e quer tudo dominar. O ego quer

apagar as velas ao redor em prol de si mesmo. O ego não sabe existir sem anular os outros.

Beatriz, minha menina de Deus, você me encanta porque não há ego em ti, senão apenas,

música suave, toada canora ao divino. De ti longe, sinto tanta falta de escutar esta música!

Minha menina, onde está você na espiritualidade de meus dias? Eu posso sem ti existir,

porque nada não importa neste mundo a nós alheio. Mas, pessoas há, nos curam a alma só

no volver-nos o olhar. Há pessoas que nos curam com a sua simples presença. Beatriz,

minha menina, você me cura de doenças que desconheço. É tão bom estar contigo, porque

contigo me esqueço de mim mesmo, porque contigo escuto uma música triste e serena de

sabedoria. Relembro que a sabedoria não dita o destino dos homens, e que tampouco é

visível à multidão. Beatriz, uma música tão bela como a tua não afasta os males do destino,

e tampouco pode ser vista pela multidão. A multidão nunca sabe distinguir o sábio do

insábio, e só encontra sabedoria em coisa que muito lhes agrada o ego. Mas, Beatriz, me
encanta escutá-la, me encanta contemplá-la, me encanta vê-la e compartilhar-lhe afagos e

carinhos. Os momentos mais felizes de minha vida são os momentos em que não penso, são

os momentos em que esqueço que existo, e te olhar me faz esquecer-me. Bem-aventurados

são os que não pensam! Bem-aventurados são os que não sabem que existem! Beatriz, te

extraño. É estranha a sensação de te extrañar. Parece, tiraram uma parte de meu corpo,

tornaram-me surdo e cego ao universo. O amor é isto? O que é o amor? As pessoas acham

que sabem o que é o amor. Mal percebem que o amor é muito mais raro do que parece.

Porque o amor prescinde de ego, e a maioria amar sem ego não sabe. Amor, para mim,

sempre foi um mistério irrespondível, inefável, e, semelhante aos ateus, negava a existência

do amor, porque negava a existência de algo que compreendido ser não pode. Ora, só

porque eu não entendo uma coisa, nem isto significa que ela não tenha valor, nem isto

significa que ela não exista. Para mim, exatamente porque eu não entendo, exatamente

porque eu sou de algo ignorante, é que o indecifrável tem mais valor e mais ser. O amor,

Beatriz, um mero apaixonar-se ser não pode, uma mera atração física ser não pode, uma

mera atração espiritual ser não pode, um mero cálculo ser não pode. Em outras palavras,

Beatriz, o amor, decifrado ser não pode, explicado ser não pode, apontado ser não pode,

descrito ser não pode. E todas as palavras do universo são inúteis para eu dizer-te como eu

te quiero. Como amar sem ego? Beatriz, você é sábia e não sabe que é sábia, porque o

verdadeiro sábio, para sábio ser, precisa dessaberse sábio. Beatriz, queria ter-te em meus

braços, queria beijar-te os pombinhos, queria ser contigo. Ser-com, metaser, não é ser para,

não é ser por, não é ser a favor de. Ser-com, metaser, é se fazer um para cima, é estar ao

lado, é explodir com, é cantar com. Beatriz, minha menina, te extraño... Quero você comigo

para musicarmos juntos a melodia do amor... Beatriz, escuto músicas mantras budistas.

Manhã linda e ensolarada. E penso sobre o amor. O amor não nunca pode ser algo tão-tão

físico, tão-tão espaço-temporal. O amor é explosão de êxtase de eternidade no enquanto-


agora. A eternidade se confunde com o acúmulo de tempo não. Por isto mesmo, a

eternidade medida ser não pode. Nada qualitativo pode quantitativamente medido ser. O

físico o metafísico não é. O ôntigo o ontológico não é. Não se mede a eternidade com uma

régua. Não se mede a eternidade com um cronômetro. Por isto, o amor medido ser não

pode, nem mesmo com o auxílio de nossa linguagem. Mas, se com a linguagem sobre o

amor falar não posso, para que escrevo eu este livro, minha menina? Bem, eu escrevo para

me movimentar, eu escrevo para, com o auxílio da literatura, me movimentar pelo labirinto

de meu espírito. Quem sabe assim, possa eu encontrar-te em mim mesmo, minha menina, e

possa eu conversar-te de por-longe. Saiba no entanto que, de por-antigamentes, a Eneida de

Virgílio era muito lida, e hoje mais não é. Significa isto, a eternidade de Virgílio se desfez?

Quantos amores verdadeiros não há, não houve, não haverá, sobre que ninguém ficará

sabendo? As coisas não mostradas, Beatriz, são mais belas. Quando eu morrer, quero ser

esquecido, porque presente que o olvido maior não há. Beatriz, se o acaso do destino a nos

separar vier, seja pela morte, seja pela contenda, seja pela indiferença, significa isto, o que

vivemos não nada significa? Não! Porque tudo explode enquanto-agora. Porque além do

agora não há nada. Porque o nosso amor é imensurável por réguas e cronômetros. Porque o

que vivemos é nosso, unicamente nosso, e desmentido ser não nunca pode. Nem o hoje

desmente o ontem, nem o ontem o amanhã, nem o amanhã o hoje. Tudo o que explode,

explode equivalentemente, sem hierarquia entre as partes. Beatriz, colhamos o amor neste

enquanto-agora mesmo. Porque o amanhã não é. Porque o ontem não é. Sintamos os afagos

dos deuses nos cintilando a mudez gritante do amor, amor este que desconhecemos.

Exatamente porque o amor não sei, tenho fé de que ele exista. Os ateus não sabem que tão

absurdo quanto acreditar em Deus, é acreditar no amor. Os ateus acham que o amor a ego

se resume, mas isto amor não é, senão ego. Os ateus não sabem que para amar

verdadeiramente é preciso antes se desfazer do ego. Por isto, amam os ateus quais
adolescentes ingênuos. Beatriz, não poderia eu amar-te sem antes me desprezar, não

poderia eu amar-te sem antes percorrer o estado do não-eu, o estado supremo do não-ego.

Felizes os pobres de espírito, porque em não-ego são sem rancor, porque em não-eu são

sem ressentimento. Beatriz, minha menina, que fazes enquanto escrevo? Te extraño e

escrever agora mais não posso... Quem ama ignora. Quem ama não eksplica. Eksplicar é

um ato de cirurgia. Não se eksplica sem antes cortar um objeto. Não há amor no capire, não

há amor no comprehendere. Amor é desvelar sem claridade, é abrir um algo obscuro e

incógnito. Amar não posso, se capire quiero. Quem ama ignora. Quem conhece sangra o

outrem com a sua eksplicação. Plicar alguém é um ato de violência, é um ato obsceno. É

preciso amar como quem ignora. Porque de outra forma, não há senão violência bruta. É

preciso amar sem passado. É preciso amar sem futuro. É preciso amar sem ego. Amar em

Deus. Amar para Deus. Amar sem se ver. Amar sem se aperceber. Amar enquanto-agora,

sem violência, sem objetivação, sem matematização. Amar no escuro, na penumbra, no

desconhecido, no abismo. Amar sem julgar. Só não julga quem se esquece. Só não julga

quem se não sabe existente. Só não julga quem não existe. Para não julgar, preciso é de por-

muito, se suicidar-se a si mesmo. Só não julga quem de por-já se matou. Os mortos não

julgam, porque mortos mortos são. Os vivos julgam, porque vivos vivos são. O ódio existe

para o bem de todos. Vida não há, se ódio não há. Vida e ódio se interligam. Mas.

Tampouco vida não há, se ódio ao ódio não há. Tudo necessário é, porque tudo criatura é, e

tudo criatura sendo, obedece tranquilamente os mandamentos do alto. Se tudo necessário é,

amor não há, amor nunca houve. Amor, uma forma mascarada de ódio? Tudo se interliga

no kósmos, no 道. Para o homem homem ser, precisa violentar o obscuro para se erguer no

vazio. Cria mitos e nos mitos acredita. Finge e acredita no próprio fingimento. Depois,

descoberta a mentira, chora. Chora porque não eksplica. Só encontramos o que presente de

por-já estava em nosso espírito. Beatriz, se eu te encontrei, significa, eu já te conhecia. Se


eu te encontrei, eu já em mim adentro te encontrado tinha. Eu não gosto da palavra amor,

nem tampouco da palavra ódio, porque carregam sentimento em algo que no fundo nos

ultrapassa. Ou seja, transpassa não somente, mas também ultrapassa. Tudo o que a nós

concerne, a nós outrossim ultrapassa. Beatriz, quando eu digo que te amo, digo, em

verdade, o kósmos se ama a si mesmo, involuntariamente. O kósmos transordena as nossas

vidas. Eu não te amo, mas, eu sou-a. Eu sou-a bem assim como és-me. Amor nem ódio não

existem, porque somos Um. Amor carece de um sujeito que ama. Amor carece de um

objeto que é amado. Ser, nem de sujeito, nem de objeto, carece. O Ser, em verdade, se

interliga intrinsecamente com a partícula は. Nós somos. Eu sou-a. Tu és-me. Sem grandes

sentimentalismos. Sem grandes festanças. Sem grandes juvenitudes. Somente precisamos

do verbo ser. Tendo-o, carecemos de mais nada. Mas. O verbo ser é obscuro e, ao dizer

tudo, não diz senão nada. Amor é nada, é sensação de vazio, é sensação de completo

desvanecimento de ego. Só somos, quando esvaziados de ego estamos. A isto chamo,

anatman, ou nirvana, ou satori. Só somos definitivamente quando morremos

definitivamente. Beatriz, quando eu te digo, eu sou-a, quero dizer, nunca separados

estivemos a não ser na linguagem, nunca fomos senão um, ou seja, kósmos, 道. Eu kósmos

no 道 de tudo. Beatriz, o amor é o que nos transcende em torno do kósmos, é o que tudo

ordena, é o que faz do kósmos kósmos. Amor é ser. Amor é uma palavra prenhe de

sentimentalismo para algo como o ser. O amor é ôntico demais para algo como o ser. Mas

não se é senão no amor. O amor preenche-nos de sentido, porque amor ser é. Quando triste

e ressentido estou, lembro logo-logo, tudo isto me faz conectar o ser ao ser. A tristeza nos

dá sabedoria porque nos faz conhecer os outros por nós mesmos. Só reconhecemos no outro

o que de por-já presente esteja em nosso espírito. Tristeza é uma palavra prenhe de

sentimentalismo para algo como o ser. A tristeza é ôntica demais para algo como o ser. Mas

não se é senão na tristeza, porque tristeza ser é. As únicas pessoas que me ensinam algo, são
aquelas que me fazem tristes. Beatriz, eu só tenho amor porque sou triste, porque careço de

atenção, porque careço de carinho. Eu só tenho amor em mim porque sofro, e porque não

sou e nunca serei independente. Quem me estupra, mostra-me a morte de perto. Sem a

morte, penso, eu não nunca seria capaz de amá-la, Beatriz. Tudo isto, palavras, palavras,

palavras. Tudo isto, convenções, convenções, convenções. Nada disto não interessa, porque

o não-saber permanecerá tão intacto como antes. A morte não chega às mostras de todos,

porque desta forma, a vida de todos correria perigo. Beatriz, precisamos de um refúgio de

todas estas convenções e palavras que enfeitiçam e amaldiçoam os homens, tornando-os a

todos tão sofredores e miseráveis, não obstante isto não nunca mostrem gratuitamente.

Onde está o refúgio de tudo isto? Os homens em suas próprias palavras e convenções vazias

aprisionados estão. Não conseguem se salvar porque se salvar não podem. A prisão é uma

imposição involuntária a que os homens se submetem sem o saber! Os homens praticam o

mal sorrindo. Matam e se não dão com isto. Acham-se santos e diabos são. Não percebem a

própria maldade porque não a conseguem visualizar. Mas sempre querem atenção, quais

crianças. Não sabem viver sem ferir os outros. E depois, depois querem ser redimidos,

querem ser especiais, porque de outra forma viver não aguentam. Quem sofre, sofre porque

sim. Quem ganha, ganha porque sim. Tudo é assim porque sim. Onde há refúgio de tudo

isto, de todo este inferno, de toda esta amargura? Tudo isto é inútil porque sim. O amor de

tudo isto escapa? Seria o amor o refúgio da objetivação extrema, da quantificação extrema,

da geometrização extrema? Tudo o que é metafísico o homem mede com réguas. Não sabe

o homem viver sem réguas, sem padrões, sem convenções. Coitado do homem, esta criança

mísera que foi esquecida pelos Pais, este sozinho que planta respostas para colhê-las e

depois se esquece que as plantou. Eu não posso ficar magoado por estas criaturinhas. Eu

não consigo odiá-las. Porque elas todas têm razão não obstante. Eu queria, Beatriz, beijá-la

agora mesmo, porque este mundo é miserável, e tão miserável é, tenta esconder em vão a
própria miserabilidade. Parece a mulher feia que se maquia e bonita fica, que o dia inteiro e

todos os dias se maquia, mas que, não obstante, sabe que é feia e que a morte se aproxima.

Beatriz, és sábia, eu sinto que és sábia. Seu espírito me transborda. Quando eu a vejo, sinto

que a humanidade foi totalmente perdoada. Beatriz, a tua tranquilidade triste me orvalha os

olhos. A tranquilidade é sempre triste porque a sabedoria é sempre triste. Mas. Tudo isto,

toda a humanidade será definitivamente perdoada, porque esquecida. Nós seremos

esquecidos. O nosso amor, o nosso ego, o nosso ódio, o nosso desprezo, tudo esquecido,

tudo isto para nada. Nietzsche, meu caro, razão para o ressentimento não há, porque tudo

inútil é. Nada disto serve para coisa nenhuma. Beatriz, a tua tranquilidade isto me mostra.

Eu vejo-a e sou-a, e no ser perdoamos tudo, tudo aquilo que é. Recebemos facadas e as

facas nos sangram e nós deixamos as facadas nos sangrar. Por quê? Porque se nem razão

para a vida encontramos, tampouco razão para fazer qualquer coisa não há. Não há motivo

para odiar porque não há motivo para viver. Beatriz, te quiero e te extraño. Amare significa,

estar longe do mar, pousar em terra firme, em que as facadas sangram até a morte. Sangrar,

sangrar, até morrer. Sangrar para nada. Morrer para nada. E o mar agitado, furioso,

impetuoso, incestuoso. Tudo isto para quê? Para nada. Amare, um lugar de repouso, de

refúgio. O refúgio da turbulência marítima da sociedade. O amor pode parar a cadeia causal

desde que soframos para nada. Não sofremos para sermos melhores. Não sofremos para

sermos salvos. Não sofremos para nada. Sofremos porque sim. Porque de nada adianta fazer

nada. O homem nasce, vive, se reproduz, e morre. Por quê? Porque sim. Sim é como a

palavra ser. Não há senão sim em todo o kósmos. Beatriz, recebamos as facadas e

morramos, porque fazendo isto, perdoamos toda a humanidade. Perdoai-nos as nossas

ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido. Se Deus mais não há, fica

apenas: perdoamos a quem nos tem ofendido porque sim, porque de outra forma,

continuaremos a inutilidade de tudo isto. Amare, se esconder do mar, pousar em terra firme
e morrer no nada, com a graça de Deus esquecido para sempre. Qual é a vantagem de ser

lembrado por todas estas crianças órfãs? Que diferença faz, ser amado ou ser odiado por

elas? Elas, assim como eu criança, assim como eu órfão, seremos esquecidos e morreremos

ainda bem. Beatriz, te amo. Te amo porque o que eu sinto por você é verdadeiro, e

maculado pela sociedade não é. A sociedade se enforca em suas falsidades para sobreviver.

Amor na sociedade não existe. Beatriz, a sociedade é doente, mas precisa doente ser para

sobreviver. Da mesma forma como a formiga quer e precisa sobreviver, também os

homens. Não importa vivam os homens em uma mentira, o que importa é que sobrevivam.

Sobrevivendo no entanto, se esfaqueiam. Amare, um refúgio da tempestade inútil que é a

sociedade. Beatriz, não sabem as pessoas. Não sabem as pessoas que ser esquecido é muito

melhor. Não sabem as pessoas que a indiferença é muito melhor que a afecção. Chamam

aos filósofos torre-de-marfim, mas não sabem que também torre-de-marfim são os

mendigos, são os pobres, são os desajustados, são os loucos. Beatriz, este ciclope que é a

sociedade não se sustenta sem julgar. A quantificação do inquantificável. A quantificação

do metafísico. O kósmos é engraçado e divertido. Se algum Deus por aí andando porventura

há, deve estar somente se divertindo na poltrona com a sua pipoca e com o seu refrigerante.

Deve ser engraçada a visão que se tem do homem quem o criou. Quem tem a chave do

kósmos deve se divertir com a comédia que inventou. Merece um prêmio. Já os homens, os

homens não merecem prêmio nenhum. Não fazem os homens nada demais. Criar mentiras e

nelas acreditar não é nenhuma coisa impressionante. É uma coisa tonta, necessária à

sobrevivência da espécie. Da vida não levamos senão a morte. A morte é a redenção de

tudo. Quando sou ferido em facadas, lembro da morte e fico tíbio. Quando venço em algo,

lembro da morte e fico tíbio. Não nunca viver consigo sem a morte ao meu lado. Lembro

constantemente que eu vou morrer. Lembro constantemente que todos irão morrer.

Qualquer pessoa que se me apareça, não passa de uma ilusão. Beatriz, iremos morrer, e por
isto, de uma forma ou de outra, já estamos mortos, e por isto, de uma forma ou de outra,

vivemos em uma ilusão, vivemos no nada, no vazio, no vácuo. Ganhar, perder na vida, qual

a diferença, se a morte a ambos tomará equivalentemente? Amare, o lugar de repouso, fora

do mar, se parece com o nada, é o nada, é a morte. Amar é sublime porque nos faz ser. O

cogito é um estado doente, que sofre ao tentar extirpar o movimento. O amar é um amare

que nos faz sair do movimento sofrente do cogito, e que nos faz chegar ao movimento

sublime da morte. Amare, é um lugar de movimento estático e extático. Amare é ser no

sendo do ser, é enquanto-agorar, é se deixar ir, é se deixar levar. Apagar o cogito, apagar o

mundo, e se movimentar na completa cegueira do ser, no escuro, no abismo. Eu não posso,

Beatriz, definir o meu amor, sem correr o risco de estirpá-lo. Eu não posso, Beatriz, saber o

amor, porque sabê-lo é estuprá-lo. Beatriz, amare é uma palavra misteriosa, porque todas as

palavras são misteriosas. Damos nomes a coisas que desconhecemos, e achamos que, no

nomeá-las, conseguimos sabê-las. Mas tudo isto não passa de um artifício de linguagem. O

meu nome verdadeiro nos é desconhecido. Explicá-lo é um ato de explicação tautológica,

explica-se somente o que ali se põe. Tudo o que se pensa seja o amor, não o é

necessariamente. Está tudo em nossa cabeça. Amare... Por que a nossa cabeça produz tudo

isto? Seria unicamente para sobreviver? Por que a nossa cabeça, acesso a outras cabeças

não alcança sem sofrer? Por que a sabedoria exige tanto o sofrimento, sem o qual se não sai

do lugar? Amare, o repouso da ignorância, o consolo da aporia, o fármaco da morte. Só na

morte conseguimos alcançar a sabedoria. A sabedoria é morte. A morte é sabedoria. O

santo que santo é, é santo sendo santo porque está morto, porque já morreu, e já não

consegue se adoecer da sociedade. Quem da sociedade se cura não mais pode viver na

sociedade, porque dela doente se não mais está. O amor sobre o qual fala Jesus é tão raro

quanto praticamente impossível de se efetivar. Quem efetivou o amor cristão na sociedade

não mais vive, porque desconhece dela a doença. Curar-se efetivamente demanda o
ostracismo. Quem conseguiu sair da fúria do mar, quem conseguiu abrir as portas do amor e

nele se refugiar, não mais conseguiu voltar à sociedade, ficando para sempre em

ostracismo, olhando este mar esquipático com uma indiferença dos deuses. Amare, tanto

mais a sociedade conhece esta palavra, quanto mais dela é ignorante. Para amar, preciso é

de por-muito, dentro do amor viver, dentro do amor habitar, é preciso ser o amor em si

mesmo, e não nunca mais sair conseguir, sendo algo como uma prisão. Quem perdoa, não

consegue senão perdoar. Quem ama, não consegue senão amar. Pode ser crucificado, morto

e sepultado, não conseguirá senão amar e perdoar. Por quê? Porque uma vez morto, vivo

não nunca mais se é. Ninguém Jesus Cristo matou, porque nem vivo ele estava. Ninguém

Sócrates matou, porque nem vivo ele estava. Só consegue amar, quem aniquila o ego em

louvor do tu. Só aniquila o ego quem o ego de fato deveras matou em si mesmo. Uma

pessoa que louva o tu, não consegue senão louvar o tu, e nada mais. É impossível para

alguém que perdoa guardar rancor, porque ela o perdão já é. Beatriz, o que é o amor, senão

a morte, senão o vazio, senão o nada? A consolação da morte é-nos o único caminho da

ética. Me esvazio para ver o outro. Me suicido para ver o outro. Não dou mais espaço para

mim mesmo, para o outro prevalecer, me matar, e acabarmos todos esquecidos. Deus mais

não há. Paraíso mais não há. Inferno mais não há. Mesmo assim, deixo o outro prevalecer.

Sabe por quê? Porque o outro prevalecer ou não, não faz qualquer diferença. Pourquoi y a-

t-il quelque chose plutôt que rien? Pourquoi y a-t-il rien plutôt que quelque chose? Para quê

tudo isto? Para quê tanta luta? Para quê tanto rancor? Para quê tanto ódio? Isto tudo levará a

quê? A nada. Tudo morto e esquecido estará daqui a breves segundos, e a raiva minha que

poderia eu descontar no outro, viraria pó e nada, porque sim. Tudo é assim porque sim, ou

seja, para nada. Nascemos para nada. Vivemos para nada. Morremos para nada. Mas.

Morrer antes de morrer, qual Jesus Cristo, isto é para poucos, isto é um dom divino, o único

dom que eu aprecio de verdade. Beatriz, eu acho que você possui este dom mas não sabe.
Os que possuem este dom, na verdade nem se dão com isto, porque são iludidos, acham que

só valor tem o que preza a sociedade. Mas, a sociedade é um veneno para a ética. Os que

Deus possuem em si, nem sabem que possuem Deus em si. Desprezam-se porque a

sociedade os despreza, mas são ingênuos e iludidos com isto. Por isto, sim, sim, sim, bem-

aventurados são os pobres de espírito, porque deles é o Reino dos Céus! A santidade não

nunca estar na sociedade pode. A santidade possui o dever de estar de todos eternamente

escondida. A santidade é um segredo. Santidade é um segredo até para os homens, para

mim, para você, para todos nós. Beatriz, eu sei que você possui capacidade para amar,

porque o seu ego foi tão forçosamente ferido, que se arrefeceu e ganhou iluminação. Estar

iluminado sem sofrer não ocorre. Poucos são os que sabem amar. Poucos são os que sabem

o que é o amor. Porque a maioria não ama senão a si próprio, sendo para cá e para lá

levados como fossem um brinquedo que não sabe o que está fazendo. Por isto digo, para

saber o amor, desaprender tudo, pensar sozinho, refletir, e amar o amor, e amar Deus, e

amar o kósmos, e amar o outro, e se matar. Se matar antes de morrer. Enfim, o nirvana... O

nirvana, aliás, é o caminho mais simples. O nirvana é a não crença em nada. Nada é, senão

agora. Por que é impossível guardar rancor? Porque rancor só se tem de algo passado. Mas

o passado não é. Não faz sentido rancor guardar porque o passado já não é. O passado

morreu no presente, e o presente morre no futuro. O que contam sobre o passado, o passado

não é. O que contam sobre o passado, a linguagem é. O que explode em êxtase o passado

não é, mas somente a linguagem. A linguagem enfeitiça os homens. O que está explodindo

é a linguagem, o passado não é, e o futuro não é. Não há senão o enquanto-agora. Como

perdoar algo que não é? Se se perdoa, se perdoa algo do passado, mas, o passado não é.

Então, o que acontece? Apenas, a linguagem engendra o homem para o perdão e para o

bem, ou, a linguagem engendra o homem para o ressentimento e para o mal. Por que o

nirvana é o caminho mais simples? Porque, em nirvana, futuro não há, passado não há,
presente não há, sentido não há. Possível o ressentimento não é, porque só se ressente de

algo do passado, e se o passado não é, se ressente apenas do fantasma, se perdoa apenas um

fantasma. Quem ressentimento guarda, está a viver no passado, vive em função de um

fantasma, vive em função de uma ilusão. Ninguém me fez mal no passado, porque o

passado não é senão na linguagem. Os ateus dizem não acreditar em Deus. Mas, talvez, tão

ilusório quanto Deus seja o passado, seja o futuro, seja o ego, seja tudo aquilo que é. Se não

há senão o enquanto-agora movimentacional, tudo o que eu acho sou, não é, eu não existo,

ninguém existe, nada é senão enquantando. Eu enquanto. Tu enquantas. Ele enquanta. Nós

enquantamos. Vós enquantais. Eles enquantam. Só se é no enquantar. Um pecado um

pecado não é. Uma ação virtuosa uma ação virtuosa não é. A linguagem não gosta de

enquantar as coisas. A linguagem carece de certezas. Às vezes, tais certezas não foram mais

que um enquanto. Mas o homem, pela própria linguagem enfeitiçado, vive o enquanto

enquanto verdade. A metamorfose do enquanto à verdade é automática na linguagem e no

lógos. Se o enquanto um enquanto restasse na linguagem, a linguagem a linguagem não

seria. O caminho do nirvana é um caminho abratione, é um caminho contra o lógos, contra

o capire, contra o comprehendere. Nirvana é anatman. Atenção! O fluxo do rio se não

entende. O fluxo do rio tão-só se sente. Se deixar levar pelo rio é habitá-lo, é intrabitá-lo. O

nirvana é a morada dos deuses, porque intrabita o kósmos no deixar-se levar enquanto-

agoramente. Não nunca sei de nada. Não nunca cogito nada. Apenas intrabito o kósmos de

por-naturalmente. Para amar, descosturar-se a si mesmo, abrir uma fenda de passagem ao

abismo. Comunicação de abismo a abismo, Amare. O nada é fluxo a partir do qual

fluxamos o rio kósmos do tempo. O amor só se consegue com o estado de meditação e de

religião. Amare, repouso, terra firme de nada, por meio do qual abismos se interlaçam. O

único repouso, o repouso do movimento que não quer ser mais que um enquanto. O repouso

do movimento que se contenta em só ser um breve instante de nada. O repouso sem οὐσία,
sem substância. O repouso do movimento é o nirvana. Não reconhece senão a mudança e a

morte. Repousar na morte é abrir-se em abismo para a entrada de outros abismos. Eu

preparado para amar não estava antes, porque queria domar o tempo. Hoje, o tempo não

mais é o meu escravo. Hoje, eu sou o escravo do tempo. Escravizando-me ao tempo, abro

espaço para a entrada do amor, crio em mim um vácuo, um vazio, um silêncio. Só hoje

posso entender melhor as pessoas, porque entender entender não é, porque melhor que

entender é intrabitar. Amare, o repouso que se prostra ao movimento para intrabitar o

Kósmos. Amar não é amar, amar é ser. Amar Deus, é sê-lo. Sê-lo, não é senão sê-lo. Sê-lo,

enquanto-agorar-se em nirvana, explodir-se mudamente no caos de parte a parte. Uma vez

dentro de Deus, nunca mais fora. Ser Deus é não conseguir viver senão em oração. Ser

Deus é intrabitá-lo e não mais sair conseguir. Viver em Deus é um misticismo. Falar sobre

isto é acrescentado, basta a Vida. A Vida deve ser a Bíblia de tudo, Bíblia para a qual não

fazem os homens senão comentários. Cada livro é um comentário à parte. Nenhum livro é o

todo, porque livro livro é. A Bíblia verdadeira é esta dentro da qual moramos, é esta sobre a

qual não sabemos nada. Se se ama a parte pelo todo, ama-se em Deus. Se se ama a parte

pela parte, ama-se em ego. Amar em Deus é amar de por-música. Música, Harmonia,

Melodia, Kósmos, 道. Amar a parte em Deus, amar a música, escutar a melodia.

Racionalizar a música não é senão quantificá-la. Quantificar uma música sentido não faz. A

música é inquantificável, irrelacionável, porque é pura qualidade. O que só qualidade

possui racionalizado ser não pode. A razão se ludibria no domar qualidades, no espacializar

temporalidades. E estamos em um kósmos Qualidade. Não vivemos em um kósmos

matemática. Por isto, por que tentar entender o que entendido ser não pode? Se não se pode

entender, deixar sem entender. Ficar sem entender porque sim. Viver sem nada entender

porque sim. Abrir-se ao abismo do espanto de parte a parte. E morrer maravilhado de tudo

isto sobre que nada entendemos. É tudo maravilhoso porque não nada entendemos. O
homem quer entender, mas só sabe se enganar a si mesmo. A árvore entender não quer, e

nunca se engana. O homem, narrando histórias a si mesmo, se assusta com o que ele mesmo

conta. Não sabe o que ele mesmo criou, não separa as coisas. Engraçado, o homem se

autoflagela. E ainda, só porque coisas não entende, tenta negá-las, ou tenta explicá-las. Para

que negá-las? Para que explicá-las? Nem se precisa negar. Nem se precisa explicar. É só

ficar parado, quieto, como a árvore, como a parede... Sim. Nada é mais estranho do que

campeonato de metafísica. Metafísica é um espanto, nada mais. O amor. O que é o amor?

Eu me espanto com o amor, porque tal palavra conhecida, não obstante conhecida, aponta

para algo misterioso e desconhecido. Não podemos trocar a palavra amor pelo amor em si

mesmo. A palavra amor amor não é. As palavras nos enfeitiçam. Difícil é viver no

desconsiderá-las. Mas, no desconsiderando-as, abrimos a epifania do abismo. O estado do

nirvana é o estado em que o espírito despreza toda a linguagem dos homens em favor de

tudo aquilo que é. A linguagem dos homens é. Die Sprache spricht. O falar não é mais

importante que o comer, nem o comer que o escrever, nem o escrever que o transar.

Ninguém não nunca pergunta se o comer daquele homem é mais verdadeiro que o comer

deste. Mas ficam a hierarquizar as falas dos homens, como se a fala de um mais οὐσία

tivesse que a fala de outrem. Tudo é, e o ser não pode não-ser. O homem não pode entender

nada, mas gosta de competir metafísica, talvez para se sentir especial, je sais pas. Se eu

entendo mais, eu sou mais poderoso, algo assim. Se eu tomar as falas dos homens como ser,

e não mais como verdades nem mentiras, percebo quão maravilhoso é tudo isto, a

linguagem. Beatriz, eu te amo. O que isto quer dizer? Não faço a mínima ideia. Alguma

coisa deve ser, não obstante. Para mim, a literatura deveria nos ensinar a desprezar a

literatura, e a filosofia, a desprezar a filosofia. Porque tudo o que importa em um texto, no

próprio texto não está, senão fora, no Kósmos, na Vida, no 道. Ler um texto de filosofia é

uma oração, é preciso ter fé no filósofo, bem assim como é preciso ter fé na ciência. No
fundo, o que importa na literatura a literatura não é, o que importa na literatura está dela

fora. Palavras são só palavras, em nada não importam. Quem sabe prescindi-las se ilumina.

O nirvana é um caminho errante de escuridão pleno de luz. A total iluminação aqui se

confunde com a total escuridão. Quando se pergunta pelo amor, não se pergunta pelo amor

em claridade, mas se pergunta, antes, pelo amor em misticismo. A pergunta não se serve

para dar uma resposta. A pergunta se serve, antes, para ficarmos sem qualquer resposta, e

para permanecermos calados, contemplando o que entendido ser não pode. O que é o amor?

O amor não existe senão em palavra. Esta palavra no entanto aponta para alguma coisa

fluida. O fluxo das palavras é concorrente ao fluxo do ser. Ou seja, o fluxo das palavras é

concorrente ao fluxo do amor, que é concorrente ao fluxo do ódio, que é concorrente ao

fluxo da indiferença. Quando a palavra aponta para o amor, a palavra a si mesma explode

com o amor ao lado. A palavra não nunca doma, por assim dizer, o amor. A palavra

concorre com o amor ao mesmo tempo, porque os dois não são senão um. A palavra, por

isto, não nunca nada entende, mas ela mesma é, no sendo de si mesma. A palavra é com. O

homem é com. Tudo o que é, é com, porque tudo é Um. O amor nunca sobre o ódio

prevalece, nem o ódio sobre o amor, porque os dois concorrentes são em unidade

movimentacional. A palavra se estica temporalmente, e não consegue domar o que domar

pretende. A palavra amor o amor não sabe. A literatura não passa de um passatempo. Se se

acha que ela diz a verdade, não se está errado. Porque tudo o que é, é no dizer a verdade. E

tudo o que é, é, e não pode não-ser. A literatura diz a verdade, e a filosofia também, porque

não há senão a verdade no Kósmos. Beatriz, se eu te digo que te amo, significa, eu já sou-a.

A musicalidade do 道 nos interlaça misteriosamente. A isto chamamos, amor, amare, mas

tal é tão-somente uma palavra, e as palavras todas elas são desimportantes. A vivência do

amor sem a linguagem é como a manifestação amorosa dos cachorros. O amor se faz de

por-música, e nunca de por-palavras. Percebemos então tão logo, as palavras amorosas não
passam de músicas, de sonatas, de melodias. As palavras são, concorrentemente ao amor, e

são um no ser para cima. Tudo concorre para cima equivalentemente. Tudo é no ser para

cima. O que se faz é se deixar, no ser para cima, pelo amor levar. O fluxo do nada intrabita

o amor, porque o amor desconsidera qualquer tipo de objetivação, e neste ato mesmo

despreza a linguagem dos homens. Para amor amor ser, precisa, antes, desprezar a

linguagem. Ou melhor, a concentração da linguagem precisar-se-ia concentrar todo o seu

poder e estima no próximo-ao-redor e no enquanto-agora. Não há senão o que está espaço-

temporalmente próximo a mim. O kósmos se estanca perto de nós enquanto fluxo. Tudo

sobre o que a sociedade coloca realidade precisa ser desprezado em louvor ao que está

próximo. Dai, pois, a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus. Dai, pois, à

sociedade o que é da sociedade, e a Deus o que é de Deus. A sociedade é mecânica e

doente, mas precisa mecânica e doente ser para sociedade ser. Sociedade sem robotização

dos homens não há. Mas, o reino do amor dela se desvia, e encontra o seu foco em Deus. O

Tejo não é o rio que passa pela minha aldeia. É o rio que passa pela minha aldeia que é o

Tejo. Meu quintal é maior do que o mundo porque o mundo não existe, mas o meu quintal,

sim. O meu quintal sempre estará longe de César, mas César não existe senão em

sociedade, e o meu quintal, da sociedade se evacuando, passa a existir em Deus, em

Kósmos. Em Deus não existe senão aquilo mesmo que escapa ao domínio da linguagem e

da objetivação. Deus é um estado espiritual abratione, Deus é um eterno fluxo a-lógos.

Quando o cogito não mais cogita nem pensa nada, entra ele dentro do Amare, abandona

tudo aquilo que está longe, tudo aquilo que é de César, e se prostra somente ao

desconhecido abismo que nos suga a ponto de esquecermos de nós mesmos. O ego se

aniquila na falta de objetivação do kósmos. Porque quando não mais se objetiva, se não

mais uma coisa da outra distingue, e tudo se transforma de inopino em vácuo e vazio. O

vazio estonteante do amor que conflagra a total perda de sentido e de realidade da vida. O
outro passa, pela primeira vez, a ser objeto de profunda veneração, unicamente pela música

canora que nos faz ouvir. O refúgio do amor, é um refúgio contra os dilaceramentos de

César, é um refúgio contra a sociedade diabólica e maquiavélica que nos oprime. O amor é

um fármaco contra as dores que a sociedade nos imprime no estupro que ela nos faz ao seu

bel-prazer. Hora ou outra, precisamos nos refugiar em algum outro país, saindo desta

tempestade marítima, e encontrando repouso e contentamento no Amare. Coitados dos que

repouso encontrar tentam na sociedade! Pensando estarem sendo amados, só estão sendo

odiados, vituperados, invejados, ultrajados! Chamar atenção da sociedade é muita vez

tautológico, mais causa dor e sofrimento que eudaimonia. Não há coisa mais bizarra do que

apostar toda a vida em César, chamando a César Deus. Confundir o físico com o metafísico,

confundir César com Deus. Não há repouso no estado de consciência, porque a consciência,

ávida por capire, não nunca consegue domar o que domar quer, e pois, ao tentar responder

ao irrespondível, guarda rancor e ressentimento no se ver violada. Vitam regit fortuna, non

sapientia. Nem tampouco a sabedoria, nem tampouco a riqueza, domar consegue a fortuna.

O sofrimento é uma realidade exorbitante que nos transpassa de lado a lado quando de

inopino irrompe. Não nada consegue faná-lo senão o próprio tempo. O tempo é a incógnita

mais misteriosa da literatura. O tempo respondido ser não pode. Melhor seria, nunca

tentássemos interpretá-lo, porque as interpretações nos dão sempre a impressão de tudo

estar de por-já respondido, escrutinado, resolvido. Mas nada respondido não está,

simplesmente está interpretado. Os ateus acham absurda a existência de Deus, mas tão

absurda quanto é a existência do tempo e do espaço. Quantificar o tempo, quantificar o

espaço, não nada resolve nada. Nunca resolveremos este problema, porque intrabitamos o

tempo, porque intrabitamos o espaço, e não temos de tais coisas senão uma visão muito

nebulosa. Mas. Nascemos, atravessamos a vida no intrabitá-la, e morremos. Como assim?

Também não nada entendi. E a musicalidade que a tudo atravessa, podemos muito bem
ouvi-la, estonteados, pasmos, espantados, tontos, se bem acurados os nossos ouvidos ao

Ser. O Ser se escuta quando no Amare nos refugiamos, quando todo o nosso espírito se

polariza, não mais em torno de César, mas sim, em torno de Deus e da Eternidade. A

sociedade inteira é varrida para muito longe, e o que nos resta, pois, é somente o próximo-

ao-redor e o enquanto-agora. Tudo o que é longe, tanto temporal quanto espacialmente, não

existe, some para sempre de nossa vista, e não mais escutamos nada senão a música de

Deus. Para Deus aparecer, precisa a sociedade desaparecer por completo. Não há senão o

aqui. Não há senão o agora. A linguagem inteira-toda enfeitiça o homem em torno de um

mínimo do mínimo, composto de um aqui, e composto de um agora. Perde-se,

imediatamente, todo o sentido de nossa vida, e mais não sabemos por que diabos estamos

vivendo. Porque a música de Deus extingue todo interesse egocêntrico. A perda total de

realidade objetiva acarreta uma hipertrofia do amor, e a janela, que outrora fechada estava

por causa da consciência, se abre e desvela para nós um Kósmos tão infinito de detalhes

que nos vemos perdidos dentro de um labirinto assombroso, pérfido, inescrutável. A

palpitação do kósmos se faz ouvir. A pulsação vibratória do tempo. A aura flutuante aos

meus cabelos. O som sonido vácuo percorrente. A natureza se desnuda diante de nós. E é

toda uma sensação religiosa e mística que nos confere a nossa maior libertação do ego.

Vivemos porque sim. Nascemos porque sim. E morremos porque sim. Muito bom sendo

participar de tamanha orquestra sinfônica a que chamamos Universo, regida sabe-se lá por

quem, mas a quem chamamos Deus, por convenção. O amor desprovido de ego nos advém

da total falta de sentido no mundo, nos advém de nossa perda de realidade e de identidade

própria. Não possuímos mais nenhuma identidade. Não somos mais sujeitos. Não somos

mais objetos. Não somos mais individualidades. Não somos mais ego. O que passamos a

ser é somente um fluxo de nada, que se movimenta para cima juntamente com tudo aquilo

que é. Ich bin, weil wir sind. Amare, é também se fazer Um com o Ser. Para subir, abaixar-
se a nível de nada. Metaser-se juntamente com todas as pessoas. Metaser-se juntamente

com todo o Kósmos. A verdadeira humildade é a humildade do 道. Fluxamos

conjuntamente de parte a parte, porque parte em parte não é, senão apenas, parte não é

senão em todo. Mas. Não apreendemos coisa nenhuma a nível de ideia, senão apenas,

metasomos, ou seja, metafluxamos de por tudo aquilo que é. Somos bem assim como a

árvore, arvoramo-nos e assim explodimos em êxtase de eternidade. Precisamos aprender a

ser humildes qual a árvore. A árvore cortar se deixa porque sim. Tanto mais a árvore aceita-

se coisa, quanto mais quer ser o homem Deus. E o homem sofre com o não ser Deus. Não

se contenta o homem em apenas ser, quer também saber, quer apreender tudo, quer se fazer

melhor que tudo. Sofre o homem por causa de si próprio. O inferno, é ele próprio. O

caminho da cura da doença que nos inocula a sociedade, é um caminho que à sociedade

parece loucura. Curar-se, para César, é enlouquecer-se. Curar-se de tudo isto é um suicídio

que não leva a nada. Por isto, a cisão tão necessária: dai, pois, a César o que é de César, e a

Deus o que é de Deus. Nunca esquecer de dar a César aquilo que lhe contenta, pois, de tal

forma, a segunda morte, a mais decisiva, virá muito mais rápida, muito mais violenta, e

com ela, o milagroso esquecimento de tudo. Ὃν οἱ θεοὶ φιλοῦσιν ἀποθνῄσχει νέος. A

sociedade carece de sentido. A sociedade carece das substâncias. A sociedade carece do

fechamento, do aprisionamento, dos dogmas. A sociedade carece de seus estupros. Mas. O

Reino de Deus de tudo isto prescinde. Nele, não há sentido, não há substâncias, não há

fechamento, não há aprisionamento, não há estupros. A sociedade precisa sobreviver

biologicamente, e por isto tantas coisas ruins são necessárias. Mas, no Reino de Deus, basta

ser. Não sabem as pessoas que todas estão de por-já no Reino de Deus, mas que, porque

vivem em sociedade, porque precisam sobreviver, disto se esquecem, disto precisam se

esquecer. Tudo o que é, já é no Reino de Deus, e mais que ser não é preciso. Eu sou. Tu és.

Ele é. Nós somos. Vós sois. Eles são. Porque já somos, já estamos salvos, mas disto
esquecemos, porque confundimos César com Deus. Achamos que para ser em Deus,

precisamos chamar a atenção da sociedade, mas, nem isto é bom, nem isto é necessário.

Talvez não haja maior eudaimonia do que se iluminar longe, bem longe da sociedade, e da

sociedade ser desconhecido para sempre. Se iluminar, e contemplar o Kósmos de por-longe.

Amar as guerras, amar as conquistas, amar as fomes, amar as felicidades, amar tudo aquilo

que é. Ver todo o fluxo inesgotável do rio tempo, nele intrabitar, nele morar, e partir na

hora da morte. Da vida não levamos senão a morte. Da vida não levamos senão a morte e o

esquecimento. Tudo flui e nada permanece. Ninguém se banha duas vezes no mesmo rio

tempo. Sim. Mas. Amar tudo aquilo que é, me faz amar inclusive o sofrimento do outro, o

sofrimento que, aliás, eu mesmo ao outro causo. Eu vejo o outro sofrer, mas fazer nada não

posso. O outro precisa aprender a intrabitar o fluxo. O outro precisa aprender a dessaber-se

importante. O outro precisa saber-se miserável. Somente sabendo-se miserável, uma pobre

e desprezível criatura que somos, é que pode o outro compartilhar conosco do mesmo fluxo

perpétuo do vácuo estarrecedor. Nos enlaçamos as mãos, nos consideramos irmãos, nos

amamos, pelo simples motivo de que sabemos que somos iguais na morte, no sofrimento, e

no esquecimento. A morte que causamos um ao outro. O sofrimento que causamos um ao

outro. O esquecimento que causamos um ao outro. Sabemos, Beatriz, que preferível é

deixar o outro nos vencer, a insistir e a levar à contenda e à ruptura de ressentimentos.

Beatriz, eu me considerava autossuficiente, e achava desprezível o amor de enamorados.

Mas, o tempo foi passando, e eu fui percebendo, aos poucos, que toda e qualquer vitória na

sociedade é vã, é vazia, é frágil. Vã-glória em César. Eu-glória em Deus. Eu queria ser um

grande escritor. Mas, percebi tão-logo, Beatriz, minha menina, que toda esta história de

fama literária não serve de nada, pode ser jogada no lixo, não está senão na cabeça infantil

das pessoas. O que faz a fama de um escritor é somente a cabeça infantil das pessoas.

Beatriz, eu poderia ganhar todos os prêmios literários do mundo, mas, sem ti, de nada
serviria nada disto. Todos estes prêmios estúpidos para mim não existem. Beatriz, te

extraño tanto, que em mim não mais caibo. Não tenho mais onde me refugiar desta

sociedade doente que não vive sem julgar e sem hierarquizar uns e outros, uns a outros, uns

contra outros. Onde estás, minha menina, onde estás? Estou cansado de só pensar em mim

mesmo. Quero esquecer-me, e quero escutá-la em silêncio. A melhor forma que eu tenho de

escutá-la é ficando nós dois a sós em silêncio, por durante séculos e séculos que duram

segundos. O tempo objetivo não existe em face do amor, ele somente opera na sociedade,

de preferência em uma sociedade industrial e mecanizada. Beatriz, sinto falta de nossos

encontros. O simples fato, eu estar em sua presença, traz-me uma energia tão boa e tão

agradável, tão alegre e viva, sinto o meu ego desaparecer, sinto toda a minha existência

sumir, sinto o mundo se transformar em Kósmos, os átomos em Energia, e me estarreço por

completo, estou vivendo em Van Gogh. Vidas passadas houve, Beatriz, em que nos

encontramos e de que esquecemos? Quando eu te encontro, Beatriz, sinto que

absolutamente tudo o que eu aprendi em vida não serviu de nada. Por quê? Porque, pela

primeira vez em minha vida, o nome deu lugar à coisa nomeada. As palavras decidiram

abandonar o espaço em que ocupas, e o que eu vi, o que eu vi foi um abismo indecifrável,

interminável. Pela primeira vez em minha vida, eu consegui ver alguém, eu consegui

escutar alguém, eu consegui dar espaço a alguém mais em meus sonhos em que vivo neste

Kósmos. Uma vez percebido isto, Beatriz, voltei a ser criança novamente, porque passei a

desprezar a linguagem. O sol nos convida a sermos com ele. Nós metasomos o sol. A lua

nos convida a sermos com ela. Nós metasomos a lua. O sol me faz acordar. A lua me faz

dormir. Eu sou com a lua e com o sol. Se eu me movimento, ora para a lua, ora para o sol,

isto não significa eu esteja indo a direções opostas. Ao contrário, a lua é Um com o sol. A

lua metaé o sol. O sol metaé a lua. A lua me faz dormir. O sol me faz acordar. Eu durmo e

depois acordo. Eu acordo e depois durmo. Mas. Eu não estou indo para a direita e depois
para a esquerda, nem para cima e depois para baixo. A lua e o sol, Um sendo, me fazem

subir unilateralmente, concorrentemente com todas as coisas do Kósmos. Eu-kósmos somos

no ser de toda parte. Eu-dáimon somos no ser de toda parte. Amém. Beatriz, eu te amo

porque metasou-a. Os seus átomos e moléculas e órgãos e tecidos, tornaram-se para mim,

energia pura e vital, fluxo perpétuo de eternidade. Talvez, só no amor conseguimos metaser

deveras, ou seja, talvez, só no amor conseguimos escapar de nossos egos e intrabitar o

outro. O verdadeiro conhecimento o conhecimento ideal não é. O verdadeiro conhecimento

é o conhecimento do inire, do invenire, do inhabitare, enfim, do Amare. Precisamos metaser

o outro no Amare para escutá-lo verdadeiramente. Não obstante não podemos domar o

outro idealmente, podemos muito bem metasê-lo. Mas, só se é com por vias do amor. Só se

é com por vias do abandono temporário da sociedade. Só se é com, fora da sociedade. Eu

me estico fora da linguagem, casa dentro da qual moro, para me dar de cara com o outro em

sua plenitude inesgotável, inapreensível, inefável. O Amare é um campo de vazio, de

vácuo, porque tal campo não se preenche com a linguagem. Não nunca se conhece algo

inominável, e, se precisamos nomear as coisas, é somente porque precisamos sobreviver.

Nada no mundo tem nome, mas podemos escutá-lo em sinfonia, nos abrindo à sua Energia

e ao Kósmos. Beatriz, no momento em que não mais a julgo, deixas de ser em César, e

passas a ser em Deus. Mas, eu não posso metaser todas as pessoas ao mesmo tempo, porque

de tal forma eu não sobreviverei, literalmente. César é tão necessário quanto Deus, pelo

simples motivo de que César e Deus são Um, não obstante os distingua a nossa percepção, a

nossa linguagem. Tudo sobre que aqui se fala, se fala na verdade a nível de percepção.

Mudar não nada é possível, mas é possível mudar a nossa percepção. O meu amor por ti,

Beatriz, é algo tão pessoal, ninguém a não ser eu o entende. Porque os outros, outros sendo,

isto não veem senão com olhos de linguagem. A linguagem a isto confere uma

essencialização fictícia, sobre que se não nada entende quando com o lógos se entende. O
lógos joga sobre o mistério um manto de entendimento que enfeitiça o homem em prol de si

mesmo. O homem se sente como fortalecido, o mistério se extingue. Mas. No conhecer em

Amare, no conhecer em inhabitare, no conhecer em inire e em invenire, o homem se

espanta, porque descobre, porque desvela, porque a camada de lógos se desfaz, e é toda

uma abertura epifânica ao fantástico que lhe consome e que lhe assombra o espírito. Tudo o

que é átomo, energia se torna. Tudo o que é espaço, eternidade se torna. Tudo o que é

conhecido, misterioso se torna. O homem percorre todo o Kósmos no Amor em um piscar

de olhos, porque sentido, nem ratio, nem lógos, não há, senão apenas, Êxtase e Reino de

Deus. O homem consegue finalmente Ser, se se é no amor, porque ele não mais existe para,

nem a fim de, nem por, nem em prol de, mas existe ele porque sim. Quando o homem se

esgota e se suicida, está ele pronto para amar, porque ego mais não há, senão apenas, vazio,

vácuo, angústia, não-sentido, anatman, nirvana, satori, um espaço de nada que serve de

entrada ao outro. Só se vê o outro verdadeiramente quando o sentido do ego se aniquila,

quando se não vive mais para sobreviver tão-somente, mas também se vive para

contemplar. A contemplação de Deus, todavia, demanda por vezes uma conversão a ele

completa. Se se ainda esforça para Deus, significa, a conversão não está feita. Se se é em

Deus, não se é senão nele, e nunca disto se sairá. Beatriz, o meu amor por ti é expressão

clara do meu rompimento para com a sociedade. O amor verdadeiro demanda o verdadeiro

rompimento com a sociedade, e toda a literatura mais psicológica sentido mais não faz,

porque a sociedade permanece agora em segundo plano diante de Deus. Só se tem angústia

se se coloca a sociedade no lugar de Deus, porque assume-se que todo o poder temporal é

literalmente o poder espiritual eterno. Ora, a sociedade não tem o poder para ditar nada a

nível espiritual porque ela só opera a nível de lógos, ou seja, tudo nela é mecânico, material,

doente, e morto. Buscar salvação espiritual na sociedade exige fé na sociedade, e isto é em

tudo similar com as religiões. Não há ninguém ateu no mundo, porque acreditar na
sociedade e no dinheiro também é uma religião. Nunca o homem deixa de ser religioso,

porque carece ele de sentido em sua existência temporal. A religião do homem está

interlaçada com o seu sentido existencial temporal. Em verdade, o que tornaria um homem

em Deus é a aniquilação de seu sentido existencial temporal, o que é dizer, o verdadeiro

ateu é na verdade o verdadeiro religioso. Não há religião mais forte que o ateísmo, porque

em nada acreditar é se abrir ao mistério do Kósmos, é deixar espaço em si para todos os

homens, para todas as coisas, para todas as culturas, para todas as linguagens, para tudo

aquilo que é. Mas, o ateísmo aqui é somente uma religião do dinheiro, ou seja, uma crença

no poder temporal e na sociedade doente. Tudo sobre que escrevo aqui pode ser resumido

na seguinte frase, cogito ergo non sum. Penso eu, só se é no caminho do 道, no caminho do

nirvana, do satori, dos koans. Só se é se se é dentro do mistério. O caminho de Deus é na

verdade o mais simples, o que atrapalha é o lógos, a ratio, a sociedade. Sein ist eigentlich

Bewegungsein, e ao Bewegung eu me prostro, e ao Bewegung eu me rendo, bem assim

como me rendo ao mistério e à aporia. Preciso ser bem assim como a água. Me enformo eu

diferentemente a cada enquanto-agora, e a vida, Beatriz, não é mais que um enquanto. Tudo

o que é, é neste enquanto-agora mesmo, e ser do que isto mais é acrescentado... Eu preciso

focar neste enquanto. Eu preciso focar neste aqui. Não há mais nada além deste enquanto.

Não há mais nada além deste aqui. A medida de que me utilizo para medir este enquanto, é

este enquanto mesmo. A medida de que me utilizo para medir este aqui, é este aqui mesmo.

Enquanto-agora. Enquanto-aqui. A substância é este enquanto-agora-aqui. O agora se mede

com o agora. O aqui se mede com o aqui. A substância é hemorrágica. O fluxo da

substância pela palavra domado ser não pode. A palavra é concorrente com a substância.

Tomando os homens a palavra como a essência incontestável da substância, se iludem,

tomam-se por donos da verdade, e assim negam o mistério. O supremo conhecimento, o

não-conhecimento. A suprema sabedoria, a não-sabedoria. O supremo agir, o não-agir. A


suprema fama, a não-fama. O sentido é um sentido. E o sentido ao não-sentido é um

sentido. Mas. O amor é o não-sentido como disposição espiritual. O ser-em-Deus é o não-

sentido como modo de existência. O não-sentido não é para ser um objetivo a ser

alcançado. Deve-se apenas converter-se ao não-sentido de por-espírito. Se se busca o não-

sentido como meta, busca-se mecanicamente. Devemos intrabitar o não-eu. Devemos

intrabitar o 道. Devemos intrabitar o não-sentido de por-mistério. Sim. Tampouco se

entende Nietzsche de por-fora, tampouco se entende Agostinho de por-fora. Para entender

Nietzsche, assim como para entender Agostinho, é preciso não entendê-los, mas somente

intrabitá-los. Intrabitamos o kósmos de por-Nietzsche. Intrabitamos o kósmos de por-

Agostinho. É preciso um ato de conversão de por-fé. A metafísica é maravilhosa porque

religiosa. O homem da metafísica não se esquiva porque é Dasein. Beatriz, amá-la é sê-la,

sê-la, é intrabitá-la. Amar é uma disposição espiritual. Saímos do ego, entramos no não-eu

de por-mistério. Não se sabe o que é o amor por causa disto. Amor nem ideia não é, muito

menos resumido ser pode em uma palavra. A palavra amor encobre um mistério profundo e

inesgotável que somente pode ser intrabitado, mas nunca entendido de por-longe, de por-

ratio. Por isto, a palavra amor nos dá uma certeza ilusória de que sabemos o que isto seja.

No fundo desta palavra, existem coisas que nos não podem ser acessíveis racionalmente,

sobre as quais o homem, de por orgulho ferido, tenta negá-las, simplesmente porque as não

entende. O acesso a tais coisas misteriosas só nos chegarão por meio do intrabitar o amor. E

mesmo assim, não as entenderemos, não obstante sabemos de por-inire. A metafísica não se

entende, mas se vive no intrabitar por amor. A linguagem, no fornecer-nos o seu léxico, nos

faz organizar o mundo para podermos viver bem e sobreviver. Mas. Para deveras entender o

que entendido há de ser em vida, precisamos, antes, atravessar a vida em todos os seus

mistérios mais herméticos e inomináveis. O mundo pode ser apreendido pelo lógos, o

Kósmos não. Os átomos podem ser apreendidos pelo lógos, as Energias não. As essências
podem ser apreendidas pelo lógos, as Músicas não. Enquanto o mundo, os átomos e as

essências podem ser objeto de ciência, o Kósmos, as Energias e as Músicas não se revelam

senão pelo Mistério. O que revelado ser pode somente pelo mistério, entendido não nunca

é, mas vive-se, mas sabe-se. Sabemos sem saber. Entendemos sem entender. Vivemos e

intrabitamos e contemplamos. Fazemos meditação para ver melhor, e dormimos no regaço

da natureza, desapegados de nós mesmos. Como nada queremos dominar, metasomos a

natureza, abrimo-nos à natureza, e chegamos a ser a natureza no exato momento de nossa

morte. Religio, religare. A natureza é perfeição. Beatriz, te extraño e acho que por ti estou

apaixonado. Falam o amor é cego. Eu concordo. Mas discordo seja isto uma frase

pejorativa. Por que o amor é cego? Simplesmente porque o amor não estupra. Quando se

ama de verdade, se intrabita a pessoa amada a ponto de sê-la. Intrabitar uma pessoa é

percorrê-la por dentro inteiramente, somente pela música que ela solta e que nos enfeitiça.

Ficamos cegos diante desta pessoa amada porque estamos habitando nela adentro. Não

conseguimos muita vez criticá-las porque estamos nelas dentro. Cristo perdoa os seus

detratores e por isto deles não guarda rancor. Não guarda rancor porque os compreende de

por-dentro, ou seja, Cristo consegue amá-los simplesmente porque consegue sê-los. Sendo-

os, não consegue senão perdoar. Quem perdoa não consegue senão perdoar, porque tal

consegue metaser toda a humanidade em si. A própria pessoa a própria pessoa não se

abstrai, a não ser no caso extremo de Cristo, que consegue metaser toda a humanidade em

si. Se somos todas as pessoas, amamos todas as pessoas, e perdoamos todas as pessoas. Por

que o amor é cego? Porque o amor nos dá acesso a um tipo de conhecimento místico, o qual

o outro não nunca estupra, pelo contrário, o outro habita a ponto de sê-lo. O amor é cego do

ponto de vista do lógos, mas cego não nunca é do ponto de vista do 道. O que é dizer, o

amor na verdade cego não é, mas é o mais lúcido e claro conhecimento que podemos ter,

exatamente porque o mais obscuro e misterioso... Beatriz, se lhe for dada a possibilidade de
escolher entre duas opções, a eu-daimonia ou a vã-glória, escolha sempre a eudaimonia,

porque esta é plena no vazio, enquanto a outra, vazia na plenitude. A plenitude é muita vez

vazia. O vazio é muita vez pleno. Saber distinguir entre uma coisa e outra, o desafio mais

importante do homem, o qual, na maioria das vezes, irrompe somente com os pés à morte.

A relação entre vazio e plenitude, entre claro e escuro, entre yin e yang, um mistério

irrespondível. A vida interior, não visível aos homens, é o que faz toda a diferença. A

conversão ao Amare exige uma vida interior rica, plena, fértil. Por isto o Amare é tão raro.

A maior parte dos homens se estanca no quantificável, e nisto apostam a vida inteira. Tão

raro quanto o Amare, é o dom do Amare. Sim. Os filósofos, atacando os cristãos, atacando

os cristãos não estavam. Estavam atacando pagãos travestidos de cristandade. O ser-cristão

é tão raro quanto invisível. Não nunca se é cristão em sociedade, isto é um segredo dos

poucos que para isto possuem dom. O 道 irrompe em minhas veias. Posso sentir Hitler em

meus neurônios. Sinto a árvore em meu coração. E em toda a minha vida eu não nunca

existi. Em toda a minha vida quem existiu foi apenas Deus, foi apenas Kósmos. E não sou

dele mais que um escravo, assim como tudo aquilo que é. Por isto, se Deus me tirar a vida

neste instante, nada se perderá, porque quem existiu foi apenas Deus, e não eu, que sou

ilusório. Quem se explode em êxtase de eternidade, não são as partes, mas o todo. O todo é

uniforme e concorrente, plano e esférico, e mais não podemos senão nos deixar levar. Ser

fluido como a água, leve como a chuva, branco como a neve, negro como o abismo, e

invisível como o ar. Tudo isto passará. Tudo isto esquecido será. O Amare perdoa porque

sabe a morte que a vida, e porque sabe o todo que a parte. O fluxo do nada nos faz levitar o

espírito. Não há senão o aqui. Não há senão o agora. O fluxo do movimento nos leva ora

para lá, ora para cá, e nada disto não é importante, porque tudo aquilo que é, é leve, é

divino, e é olvidado. O vento balanceia as folhagens dos ramos vagarosamente. Os ramos se

acharem importantes ou não, não importa: o vento balanceia as folhagens dos ramos
vagarosamente, calmamente, no fluxo eterno do desconhecido e do mistério. Todo discurso

possui cada qual os seus pressupostos energéticos. Quando alguém amamos, estamos

abertos a tais pressupostos, e nos nutrimos espiritualmente de suas energias. Quando

alguém não amamos, criticamos os seus pressupostos, fechamo-nos a tal pessoa e a

estupramos, colocando-a no inferno do não-ser, na geometrica quantificável. Amar é abrir

um vácuo em si mesmo. Amar é desfazer a camada de lógos para a entrada do dáimon do

outro. Amando, descosturamos o tecido de lógos que pesa sobre a tal pessoa, e nos nutrimos

de sua energia, de sua verdadeira música que prescinde de toda lógica. Ouvindo a música,

no entanto, somos como sugados para dentro da pessoa por um efeito de enfeitiçamento. Só

se intrabita alguém por vias do amor, o qual de toda lógica prescinde. O nosso movimentar

em direção a tal pessoa nos leva ao espanto do desconhecido. Movimentando-nos dentro de

nós mesmos, vemos movimentar o kósmos inteiro conosco. Tudo muda quando mudamos

interiormente. Tudo o que achávamos era verdade, em mentira se transforma. E tanto mais

tínhamos a convicção de que aquilo era verdade, quanto mais hoje temos a certeza de que

aquilo é mentira. A verdadeira abertura ao outro nos faz ficarmos instáveis dentro de nós

mesmos. Porque percebemos não sabemos nada. Porque percebemos está tudo em nossa

cabeça. Privando-nos de nossas certezas, no outro entrando por vias do amor, nos

espantamos, estamos intrabitando o Kósmos, estamos intrabitando o Abismo. Quando

sabemos não sabemos nada, a janela se abre, o nosso chão desaparece, despencamos enfim

no abismo, Van Gogh irrompe, Mozart nos surrupia. A maravilha do viver começa neste

momento! O momento da maravilha do viver começa no desaprendimento de tudo. O

momento em que sabemos não sabemos nada. Um pequeno colapso no sistema em uma

parte é capaz de afetar o sistema inteiro. A abertura ao outro pelo amor suscita uma quebra

generalizada em tudo o que pensamos ser verdade. Uma pequena faísca gera um enorme

fogaréu. A devastação de um sistema consolidado de crenças. A angústia. O vazio. A


morte. E, por fim, o Amare. A total desesperação do vazio precede o preenchimento

exorbitante no Amare. O preenchimento exorbitante no Amare precede o preenchimento

exorbitante no Divenire. Para amar, esvaziar-se a si mesmo por um colapso de angústia.

Deus capaz de amar não é, porque nele não há vazio. O que é independente prescinde do

outro. A busca pelo outro só se faz mediante o contato prévio com a morte. A humildade

não é uma ideia. A humildade é um modo de ser. Dentro das ideias habitamos. Dentro das

ideias moramos. As ideias são a nossa casa, a nossa morada. Quando nos deparamos com o

inefável de por-epifania, desabitamos a linguagem, desabitamos o lógos, nos encontramos

com um mundo isento de ordem. Transformando-nos em árvores, ficamos completamente

crianças, infantis, patéticas, e recebemos toda a energia do Kósmos naturalmente. Nos

afeiçoamos com a simplicidade, ignoramos o lógos, desprezamos a sociedade, e cada coisa

cada qual em si mesma se torna o centro imutável do Kósmos. Tudo para que olhamos é

Centro. Cada parte é Centro. Não há senão Centro no Kósmos. Todas as pessoas, cada qual

em si mesma, é Centro do Universo. Mas, tanto quanto as pessoas, são centro também as

árvores, as lagartixas, os animais, as pedras, as águas, os fogos. Nada do todo está fora, nem

nós mesmos. Nos rendemos ao todo. Somos abismos. Somos mistérios. Fluxamos amor de

parte a parte, e o pouco que nos cabe é viver... Por que se diz, no entanto, preciso é amar a

si mesmo antes que ao outro, como se independentes fôssemos? Pensando-nos ego, ficamos

ao outro contrapostos. Ou somos dele superiores, ou somos dele inferiores. Para resolver

este dilema, dizemos, precisamos amar a nós mesmos antes. Mas, tal dilema se dissolveria

se abandonássemos a ideia de ego. Quando amamos o todo, somos um com o todo, não

existimos senão em unidade a-temporal. O Ser conecta tudo a tudo misteriosamente. Se o

amor é o ser, todos amamos todos involuntariamente, porque a conexão mística reverbera

de parte a parte. Mas, para sobreviver, precisamos ignorar Deus em louvor de César. E nos

conectamos pelo ódio, mas ódio não passa de uma forma velada de amor, ou seja, de Ser.

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