A ESTÉTICA DA RECEPÇÃO E O LEITOR DA LITERATURA - Folhetos de Cordel
A ESTÉTICA DA RECEPÇÃO E O LEITOR DA LITERATURA - Folhetos de Cordel
A ESTÉTICA DA RECEPÇÃO E O LEITOR DA LITERATURA - Folhetos de Cordel
Carolina Veloso1
RESUMO: O presente trabalho tem por objetivo refletir sobre a função e a importância do ouvinte-
leitor na literatura de folheto nordestina, com base na teoria da Estética da Recepção. Utilizando-se dos
estudos de Hans Robert Jauss, Wolfgang Iser e Umberto Eco sobre a Estética da Recepção, além de
trazer à discussão o conceito de performance do teórico Paul Zumthor.
ABSTRACT: This paper aims to reflect on the role and importance of the listener-reader in the Brazilian
Popular Literature, based on the Aesthetics of Reception Theory. To do this, we focused on studies by
Hans Robert Jauss, Wolfgang Iser and Umberto Eco about the Aesthetics of Reception. Additionally,
we also shed lights on the performance’s concept by Paul Zumthor.
1
Mestre em Letras, ênfase em História da Literatura, pela Universidade Federal do Rio Grande. Possui
especialização em Literatura Latino-americana, pela Universidade Federal da Integração Latino-Americana, e
graduação em Letras Português e Espanhol, pela Universidade Federal do Rio Grande.
2
Carta a J. F. Rochlitz, 13 de julho de 1819; WA IV, v. 31, p. 178.
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– quanto através da tradição oral, pelo cantador popular, instigando a atenção dos mais
diferentes públicos, como moradores das comunidades rurais e urbanas, estudantes
secundaristas e pesquisadores.
Será possível notar, no decorrer do trabalho, o constante devir dessa literatura, o qual se
justifica nos horizontes de expectativas do ouvinte-leitor, pois as preferências temáticas da
poesia popular acompanham as mudanças sofridas pela sociedade. Por exemplo, o poeta busca
em um ambiente fantástico tratar de temas e motivos sociais, baseando-se no cotidiano sertanejo
e urbano, mas, também, mantém os temas tradicionais derivados dos romances ibéricos. De
modo que, para compreender o conteúdo dos folhetos, é necessário primeiramente conhecer o
quadro social, histórico, econômico e, principalmente, o cultural em que essas histórias estão
inseridas. (CAVIGNAC, 2006)
É nesse sentido que se propõe fazer uma breve reflexão sobre o ouvinte-leitor da
literatura de folheto, com base nos estudos da Estética da Recepção, pensando no leitor
enquanto parte da obra literária, e a literatura, por sua vez, como elemento importante na
formação da sociedade.
Tal proposta provocou grande impacto nos estudos literários da época, que mantinham
ainda os aspectos herdados do idealismo e do positivismo do século XIX (ZILBERMAN,
1989), ou seja, ainda acreditavam no texto enquanto entidade autossuficiente e autônoma,
desconsiderando o papel do leitor e da história no processo de interpretação. A ideia de que a
obra literária era fechada e estava submetida a uma única e imutável interpretação não era mais
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viável. A literatura precisava ser vista como uma arte em contínua e constante transformação,
aberta a possíveis interpretações do leitor. Entre os diversos exemplos existentes, o mais comum
é considerado a obra Dom Quixote, de Cervantes, com o qual, do ponto de vista da Estética da
Recepção, um leitor do século XXI não terá a mesma experiência estética que um leitor
contemporâneo à publicação da obra.
A fim de pensar na função social da obra de arte literária, Jauss afirma que “a
experiência literária do leitor adentra o horizonte de expectativa de sua vida prática, pré-
formando seu entendimento de mundo e, assim, retroagindo sobre seu comportamento social”
(JAUSS, 1994, p.50). Nessa perspectiva, o termo horizonte de expectativa se refere à
expectativa formada pelo leitor a partir dos textos com os quais tem contato, modificando-se
segundo a sociedade e o período histórico em que o leitor está inserido. De modo que a Estética
da Recepção crê que a recepção inclui, no processo, a comparação com outras obras lidas
anteriormente, ou seja, é preciso considerar a carga literária do leitor para que seja possível
atribuir um juízo de valor à obra. Nesse sentido, pode-se dizer, conforme Jauss, que o caráter
estético e o papel social da obra de arte concretizam-se na relação obra e leitor.
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(ISER, 1979, p. 105). Desse modo, cada leitor, em sua individualidade, é capaz de preencher
esses vazios segundo suas vivências e leituras anteriores, tornando a obra um objeto aberto a
infinitas interpretações e intenções de recepção, desde que verossímeis e coerentes.
Em estudos mais recentes, Umberto Eco, teórico italiano que também contribui com os
estudos sobre a recepção do texto, propõe em seu livro Lector in Fabula (1983) uma série de
discussões sobre o papel do leitor nos textos narrativos. Segundo o autor, o texto é um objeto
incompleto e está entrelaçado de espaços em brancos, assim como Iser, que coloca a presença
de vazios nos textos. Porém, os espaços vazios de Eco justificam-se pela necessidade que o
texto possui em ser interpretado pelo leitor, e somente a partir dessa interação, entre texto e
leitor, sua função será contemplada. De acordo com Umberto Eco, “um texto quer que alguém
o ajude a funcionar” (ECO, 1983, p. 55), para isso, o leitor necessita de mecanismos que lhe
subsidie na decodificação do texto e, assim, dar-lhe sentido, ou seja, “para ‘decodificar’ uma
mensagem verbal é necessário, para além da competência linguística, uma competência
circunstancial diversificada” (ECO, 1983, p. 56). O mesmo é necessário quando a comunicação
é oral, porém com a ajuda de mecanismos extralinguísticos oportunizados pela performance do
interlocutor.
No que tange a interpretação do texto literário, é interessante ressaltar que Umberto Eco
propõe a existência de um limite, visto que a ação envolve uma dialética entre a estratégia do
autor e a resposta do leitor-modelo. Mas não quer isso dizer que o teórico desconsidera a
infinidade interpretativa de uma obra, pelo contrário, ele acredita que o discurso pode ser
direcionado e, com isso, intervir diretamente nas possibilidades de compreensão. Esse
pensamento de Eco dialoga com a preocupação de Wolfgang Iser, pois ambos os teóricos
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admitem que leituras orientadas por ideologias e limitadas a determinados discursos podem vir
a restringir o processo interpretativo do leitor.
2. A Literatura de folheto
Não é simples conceituar o folheto. Por vezes, é através dos temas tratados, sua forma,
seu gênero etc., mas, a princípio, a literatura de folheto descende da literatura de cordel de
Portugal, que, por sua vez, teve sua primeira manifestação em meados do século XVI vinculada
ao nome de Gil Vicente. A nomenclatura cordel deriva da tradição de expor os livretos presos
em pequenos pedaços de corda ou barbante. Já no Brasil esta não é uma prática comum, apesar
dos livretos também serem divulgados em espaços públicos. Por isso, faz-se necessário ir além
dessas definições para compreender a literatura de folheto, ou, como alguns pesquisadores
preferem denominar, a literatura de cordel nordestina.
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com a poesia narrativa do romance oral peninsular do que com os cordéis lusitanos.
Primeiramente, porque o romanceiro é essencialmente de origem oral; suas versões escritas
consistem somente nos registros dos pesquisadores. Já o cordel lusitano tem por base a literatura
escrita, a oralidade é um meio de divulgação do texto, que pode ser em versos, narrativa, teatro,
ou seja, não há uma forma padrão.
O poeta cantador Medeiros Braga conta em seus versos sobre o início da literatura de
cordel no Brasil:
(...)
O CORDEL veio ao Brasil
Com os colonizadores,
Por migrantes romanceiros,
Saudosistas, trovadores,
Que liam e escreviam versos
Pra minorar suas dores
(...)3
3
Trecho retirado do poema Breve história do Cordel, de Medeiros Braga, disponível no site
http://www.camarabrasileira.com/cordel111.htm – acesso em 24/02/14.
4
Grifo da autora.
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Nota-se, na citação anterior, que a literatura de folheto desperta a atenção dos seus
ouvintes-leitores por apresentar temas tanto derivados dos contos de fadas e medievalistas como
temas do dia a dia do sertão nordestino, utilizando-se de artifícios fantásticos e contemporâneos
para registrar acontecimentos históricos. Por um período, era possível dizer que a literatura
fazia o papel dos meios de comunicação em determinados locais, devido ao alto índice de
analfabetismo e o difícil acesso da televisão, do rádio e do jornal na zona rural. Conhecida como
“jornal do povo”, essa poesia popular relatava acontecimentos locais, nacionais e até
internacionais, chegando aos seus leitores antes do noticiador oficial, através dos viajantes,
cantadores ou vendedores. Segundo o poeta popular Gonçalo Ferreira da Silva5, mesmo com a
chegada da televisão e do rádio no sertão nordestino, muitas pessoas permaneciam fieis aos
folhetos noticiosos, ou seja, somente acreditavam na notícia quando essa era relatada por um
poeta popular.
O cantador não precisa ter boa voz, canta acima do tom do seu instrumento, não se
preocupa com o compasso musical e sim com os versos e o ritmo. A participação do público
torna-se mais evidente nessa prática oral do que no produto final escrito, uma vez que o ouvinte
está em contato direto com o poeta e, às vezes, pode interferir na performance e no enredo da
poesia. O poeta popular percebe o valor da palavra oralizada, porque ela é a principal
intermediária entre ele, a sua obra e o ouvinte-leitor. Essa prática de cantar ou contar oralmente
a poesia é mais relevante no Norte e Nordeste do que nas demais regiões brasileiras, pois a voz
ainda se faz ouvida e possui estimado valor diante da escrita. Entretanto, essa prática não se
restringe somente ao cruzamento da oralidade com a escrita, ela vai além, no contexto da
oralidade também está presente o corpo e o gesto, ou seja, o aspecto performático do poeta.
5
Entrevista concedida à autora em 2014.
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A poesia oral e a performance são práticas coletivas; exigem que haja um narrador e um
ouvinte receptor para que o ato seja completo. Por isso, de acordo com o escritor Bertrand
Bergeran, para ser um contador de histórias “é necessário talento e presença especiais para se
prevalecer desse título que é também objeto de reconhecimento coletivo. [...] Sua arte é domínio
da performance, e não da simples competência expressiva” (BERGERON, 2010, p. 48). Na
mesma perspectiva, o teórico medievalista Paul Zumthor propõe que “assistir a uma
representação teatral emblematiza, assim, aquilo ao que tende – o que é potencialmente – todo
ato de leitura” (ZUMTHOR, 2000, p. 72), logo, a performance está diretamente relacionada
com a forma com que o texto oral é recebido pelo leitor, seja ela através de palavras, de
expressões, de gestos, de olhares etc. De modo que a presença do leitor é um fator deveras
importante para compreender a literatura de folheto enquanto um gênero em constante devir e
demasiada função social.
A literatura de folheto está inserida no contexto tanto da literatura escrita quanto da oral,
mas antes de constituir-se na escrita, o folheto é essencialmente oral. São inúmeras marcas que
nos levam a pensar dessa forma, além da linguagem utilizada ser a coloquial, o livreto tem
função secundária na divulgação da literatura, uma vez que ele é lido, ele é facilmente decorado
e memorizado. O livreto deixa de ser utilizado como meio de leitura e divulgação da história e
mais uma vez é a voz que terá o papel principal na divulgação e aquisição dessa literatura. As
marcas da oralidade no texto escrito são típicas dos textos folclóricos, e, segundo Luís da
Câmara Cascudo:
Com isso, falar em literatura oral é falar nas tradições orais que todos os povos possuem,
na cultura popular transformada em tradição, ou seja, transmitida de geração em geração e
pertencente a uma memória coletiva. A oralidade é uma tradição de caráter social; trata-se de
uma atividade popular, onde sua existência, preservação e difusão dependem da comunidade;
requer a presença do outro para ser conservada. Nesse sentido, o folclore vai além do texto em
si. Ele é composto pelo texto oral e pela forma como o narrador passa esse texto para os
ouvintes-leitores.
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não podemos suspender uma narração sem fazê-la sofrer danos irreparáveis
como não podemos cessar de respirar por muito tempo sem necrosar nossas
células cerebrais de uma maneira irreversível. Mesmo o narrador retomando
o fio da narração, sua apresentação seria diferente daquelas que seriam
utilizadas caso não tivesse sido interrompido, outros gestos também, outra
atitude; certa segurança perdida que ele teria dificuldade em reencontrar
(BERGERON, 2010, p. 43).
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Existe nos estudos sobre a literatura oral e popular uma controvérsia sobre a autoria do
texto, pois é possível compreender como autor aquele sujeito que reproduz o texto após tê-lo
recebido. Nesse sentido, para a antropóloga Julie Cavignac (2006), o ouvinte-leitor pode vir a
tornar-se autor (intérprete) de um folheto quando este o memoriza e passa a cantar e contar essa
história. Ele adquire nesse instante o direito de improvisação, podendo durante sua performance
trocar “nome dos personagens, acrescentando episódios, atualizando a história etc.”
(CAVIGNAC, 2006, p. 259). Pode-se dizer que, a partir desse processo, surge um novo autor e
uma nova versão do folheto inicialmente memorizado durante a condição de ouvinte-leitor,
carregada de interpretação dele e do meio em que se está inserido. Por tudo isso, a performance
desenvolvida pelo poeta popular é de extrema importância para pensar a recepção do ouvinte-
leitor; ele não somente interpreta de acordo com sua experiência, mas também a partir de seu
conhecimento histórico.
Conforme dito anteriormente, por tratar-se de uma literatura oral, sua base consiste no
processo de memorização em que o ouvinte-leitor passa a ser narrador. Segundo Zumthor, “sua
recepção [do texto oral] é um ato único, fugaz, irreversível e individual, porque se pode duvidar
que a mesma performance seja vivida de maneira idêntica [...] por dois ouvintes” (ZUMTHOR,
1997, p. 241), nesse sentido, toda apresentação é inédita, a performance realizada pelo artista
popular torna-a única e irreversível.
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que atualizar constantemente o texto, e, com isso, surge uma nova história. Portanto, é
impossível encontrar folhetos idênticos, nem o próprio poeta é capaz de repeti-lo. Por esse
motivo que existem muitos folhetos de uma mesma história e de diferentes autores. Em outras
palavras,
A literatura de folheto se adapta ao público que pretende atender; é possível que haja a
renovação do ouvinte-leitor e a permanência do texto. Nesse sentido, o ouvinte-leitor e o texto
correspondem a uma troca de experiência, na qual a recepção e a performance somente serão
possíveis com a presença de ambos. Já a performance corresponde a um termo antropológico,
que designa a presença concreta de participantes no ato da comunicação. Para o teórico Paul
Zumthor, “a performance é então um momento da recepção: momento privilegiado, em que um
enunciado é realmente recebido” (ZUMTHOR, 2007, p. 50), ou seja, ela representa um discurso
imediato, recebido em um único momento, e a recepção representa um discurso de longa
duração.
Em resumo, a identificação do leitor com a obra de arte, no caso a poesia popular, resulta
na katharsis, que, segundo Jauss, é compreendida como “aquele prazer [...] capaz de conduzir
o ouvinte expectador tanto à transformação de suas convicções, quanto à liberação de sua
psique” (JAUSS, 1979, p. 80). Quer isso dizer que, quando o ouvinte-leitor assume uma nova
postura com relação ao texto, a experiência comunicativa básica da arte expande sua visão de
mundo, através das informações que ambos carregam.
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Conclusão
Esse trabalho buscou fazer uma breve revisão sobre o papel do leitor na Estética da
Recepção e na literatura de folheto, de modo a compreender de que forma o folheto é recebido
pelo seu ouvinte-leitor, e a importância da performance no processo de recepção da obra
literária.
Segundo Zumthor, “a performance realiza, concretiza, faz passar algo que eu reconheço,
da virtualidade à atualidade” (ZUMTHOR, 2000, p. 31). Portanto, uma vez que é oral, é preciso
levar em consideração todo o processo da obra de arte, desde sua criação, sua apresentação, a
recriação do intérprete e a leitura feita pelo ouvinte. Dizemos então que a obra poética consiste
desde o momento de criação do autor até o instante em que é recebida, independente dos
inúmeros caracteres envolvidos entre o que se fala/escreve e o que é recebido.
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