2002 - Pesquisa-Ensino - o Hífen Da Ligação Necessária Na Formação Docente (Sandra Corazza)
2002 - Pesquisa-Ensino - o Hífen Da Ligação Necessária Na Formação Docente (Sandra Corazza)
2002 - Pesquisa-Ensino - o Hífen Da Ligação Necessária Na Formação Docente (Sandra Corazza)
Contam, não sei, dizem de tudo... que, um dia, Picasso, interrogado sobre onde
procurava inspiração e material para realizar sua obra, respondeu, para o maior
escândalo das pessoas que o rodeavam: “Eu não procuro, acho”. No Seminário 11,
Lacan (1988) dispunha-se a examinar a práxis da psicanálise, introduzindo tal questão a
partir de dois campos: o da ciência e o da religião.
Porém, antes de iniciar tal exame, Lacan diz saber que, certamente, lhe
retrucarão: “De qualquer modo, a psicanálise é uma pesquisa”. Em relação a isto,
estabelece a seguinte salvaguarda: “O termo pesquisa, eu desconfio dele. Para mim,
jamais me considerei um pesquisador”. Então, para definir o trabalho psicanalítico que
fazia, repete as palavras de Picasso: “Eu não procuro, acho”.
Para Lacan, no campo da pesquisa dita “científica”, há dois domínios que podem
ser reconhecidos: “aquele em que se procura, e aquele em que se acha”. Domínios que
correspondem a fronteiras muito bem definidas, quanto ao que se pode qualificar de
“ciência”. O psicanalista diz existir também uma afinidade entre a pesquisa que procura
e o registro religioso. Já que é, neste registro, que correntemente é dito: “Não me
procurarias, se já não me tivesses achado”. Aqui, o “já achado” está sempre por trás,
mas atingido por algo da ordem do esquecimento. Tal situação poderia abrir “um
corredor de comunicação” entre a psicanálise e a religião, pela via da pesquisa que
procura. Procurar, tendo já achado, caracterizaria assim uma “pesquisa complacente,
indefinida, que se abre então”.
Só que esse “achado”, para a psicanálise, é, ao mesmo tempo, uma solução e
uma rachadura. No sonho, no ato falho, no chiste, numa frase pronunciada ou escrita,
alguma coisa é “achada”. Mas, diz Lacan, é justamente, neste achado, que Freud vai
procurar e encontrar o inconsciente. No que se apresenta como um “achado”, alguma
coisa outra quer se realizar: o que se passa no inconsciente. Para a psicanálise, portanto,
um achado é uma “surpresa”. Surpresa, na qual o sujeito acaba achando, ao mesmo
tempo, mais e menos do que esperava. E, em relação ao que esperava, este achado “é
um re-achado”, e tem um valor único. Só que está sempre prestes a escapar de novo,
instaurando a dimensão de sua própria perda.
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Desde o início dos anos 90, a agenda teórica das Faceds ampliou-se com a
incorporação de um elenco de questões, geradas pela perda de credibilidade nas
grandes narrativas fundacionais e na metafísica do sujeito. Ampliou-se, com o processo
de erosão de categorias até então inquestionadas, como as de ideologia, ciência,
verdade, autoria, vanguarda, revolução, alteridade, democracia, cidadania, etc. Com a
emergência das novas identidades coletivas e dos novos sujeitos da história, a agenda de
formação docente deixou de estar subsumida nas categorias tradicionais de “classe
social”. E pôde, então, complexificar-se, problematizando as identidades do colonizado,
da negra, do gay, do doente, da louca, do infantil, etc.; reinterrogando os sistemas de
pensamento, em seus efeitos de verdade; desconstruindo os sentidos, os referentes, o
privilégio transcendental do humano, pelo conhecimento de seu caráter histórico-
processual.
Nas teorias pós-críticas dos estudos culturais, feministas, ecológicos, étnicos,
pós-colonialistas, pós-marxistas – que formulam e expressam os problemas sociais
contemporâneos –, os/as educadores/as buscaram uma fonte problematizadora para
trabalhar, com seus/suas alunos/as, a insatisfação com o mundo moderno, que todas/os
ajudamos a produzir. Aí, encontraram novas formas de expressão pedagógica e política,
ensinando, por meio da pesquisa-que-procura. Justamente, porque tal ensino-pesquisa
realiza um diagnóstico deste mundo deste tempo de agora. De um presente, que nos
tocou viver e encarar, que nos amedronta a todos, mas que, em última instância, é tudo o
que temos para produzir.
Por serem sujeitas/os de seu tempo, sair às ruas, ir às escolas, amar, sofrer, lutar,
protestar, abrir o jornal todo o dia, é que as/os professoras/es das Faceds não podem
mais ensinar uma antiga “fantasia”. Não podem mais ensinar uma velha e ultrapassada
“ficção” – no sentido de ter sido “inventada”, em determinadas condições históricas –,
ou seja: o melhor jeito de dar aula e de desenvolver o currículo. Desde as teorias pós-
críticas em Educação, essas/es professoras/es descrevem o funcionamento e os efeitos
sociais, políticos e subjetivos da Modernidade, realizando um diagnóstico de seu
presente.
Diagnóstico, que as/os leva a duvidar da certeza de seus sistemas de
representação. A negar as “evidências” de geração, classe, sexo, raça, nacionalidade, de
seus/suas alunos/as. A suspender a naturalidade a-histórica, com que postulavam uma
antropologia humanista. A recusar sua própria individualidade, imposta por tanto
tempo, e que delimitava suas possibilidades como educadores/as. A reconhecer, em si
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O que se procura?
É simples: com as/os seus/suas alunas/os-pesquisadoras/es, o ensinante-
pesquisante procura algo “diferente” para achar, no território da Educação. Caso
responda, de modo genérico, à pergunta O que se procura?, estará “matando”, em
todos e todas, a vontade de procurar. E, além disto, quem, centralmente, forma
educadores/as, por meio do ensino-pesquisa-que-procura, não sabe mesmo o que vai
dizer, assim, com este “tom” geral.
O que sabe, e pode dizer, é que, com algumas ferramentas analíticas das
produções pós-críticas de Barthes, Baudrillard, Bhabha, Butler, Deleuze, Derrida, de
Certeau, Foucault, Guattari, Kristeva, Lacan, Laclau, Lyotard, Nietzsche, Rorty, Serres,
dentre outros/as , cria novas problemáticas para a Pedagogia e o Currículo.
Problemáticas relativas às diferenças de subjetividade e identidade, gênero e
sexualidade, raça e classe, temporalidade e geração, localizações espaciais e
deslocamentos geográficos, etc.
No ensino-pesquisa pós-crítico, o que se procura é o não-sabido, o não-olhado, o
não-pensado, o não-sentido, o não-dito. Procura-se “o diferente” do mundo e de nós
mesmas/os. Procuram-se outros modos de olhar e outras palavras para ver e dizer,
diferentemente, a Educação de agora. Em suma, quem faz a pesquisa-procura e o
ensino-pesquisa procura transformar-se em alguém que não o que já é. E busca
transformar este tempo, este mundo e esta sociedade, em algumas coisas outras, que não
as que já são.
“Artistagem”
Diante dos desafios que as teorias pós-estruturalistas/pós-modernistas lançam à
formação do/a professor/a-pesquisador/a, a tarefa mais urgente do/a educador/a pode ser
resumida em uma única palavra: “artistagem” caso fosse permitido escrevê-la deste
modo. Artistagem, de ordem estética, ética e política. Significada como ensinar-e-
pesquisar, de modo criativo-inventivo-artístico, nas trilhas já traçadas, nos territórios
aceitos, nas lógicas estabelecidas, nas epistemologias consagradas, nos sentidos fixados,
nos desenhos já desenhados. Nessas circunscrições demarcadas pelos tempos-espaços
modernos, e também pós-modernos , artistagem vivenciada como um desfazer
permanente das verdades, condutas, poderes, saberes, subjetividades educacionais.
Artistagem, derivada das dores e dos prazeres de trabalhar nas fronteiras entre as
disciplinas e as pós-disciplinas, os sujeitos e os não-sujeitos, os sentidos e os sem-
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Referências bibliográficas
CORAZZA, Sandra. M. “Como dar uma aula?” Que pergunta é esta? In: MORAES,
V.R.P. Melhoria do ensino e capacitação docente: programas de aperfeiçoamento
pedagógico. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 1996a. p. 57-63.
_____ . Labirintos da pesquisa, diante dos ferrolhos. In: COSTA, M. V. (org.)
Caminhos investigativos: novos olhares na pesquisa em educação. Porto Alegre:
Mediação, 1996b. p.105-131.
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_____ . O que faz gaguejar a linguagem da escola. In: ENDIPE (Encontro Nacional de
Didática e Prática de Ensino). Linguagens, espaços e tempos no ensinar e aprender.
Rio de Janeiro: DP&A, 2000. p.89-103.
LACAN, Jacques. O Seminário: livro 11. Os quatro conceitos fundamentais da
psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.