Arquitetura Afro Brasileira
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Arquitetura Afro Brasileira
Gunter Weimer
Doutor; Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil;
gunterweimer@gmail.com
Resumo: A arquitetura africana tem uma história multimilenária que, até hoje,
tem sido pouco estudada. Em sua grande diversidade de manifestações, apenas
uma parte foi trazida para o Brasil devido à égide de preconceitos existentes no
período do comércio escravista. Por esta razão examinam-se as diretrizes
principais das culturas banto e sudanesa. Como no período colonial a população
de origem africana era majoritária, sua arquitetura se tornou hegemônica nos
estratos populares, apesar das influências das culturas indígenas e lusitana.
Através deste mecanismo, ela desenvolveu uma grande capacidade de
adaptação.
1 Introdução
O presente trabalho pretende mostrar que o Brasil se beneficiou de uma
milenária tradição arquitetônica africana que foi trazida por arquitetos
escravizados e que se tornou hegemônica nas camadas populares brasileira. A
convivência de culturas heterogêneas fomentou a formação de procedimentos
construtivos que, através de adaptações e ajustamentos nem sempre pacíficos,
criaram formas peculiares de expressão arquitetônicas adequadas aos diversos
meios ambientes do país, desde o semiárido até o super úmido.
Dada a escassez de referências bibliográficas sobre o tema, o presente
trabalho resultou de pesquisas de campo em 24 Estados do Brasil ao longo de
nossa vida profissional. A documentação assim levantada foi confrontada com
bibliografias internacionais que foram complementadas com quatro viagens à
África. Uma revisão de textos produzidos no período colonial, com destaque
para os do século XVIII, permitiu realizar um exame abrangente da evolução da
arquitetura dessa matriz, com suas óbvias influências tanto da parte de indígenas
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como dos conquistadores. Para marcos temporais foi fixado o período entre o
início da colonização até a abolição da escravatura.
Desde logo, deve ser assinalado que, como em todas as sociedades,
apresenta-se uma dicotomia caracterizada por realizações destinadas à elite
social, dita erudita, em oposição com a realizada pelas e para o uso das massas
populares. Como a presença da elite africana no Brasil foi apenas esporádica e
passageira, sua arquitetura aqui não deixou presença. Por isso, ela não foi
considerada ao contrário de suas formas populares que deixaram herança em
todo o território nacional (WEIMER, 2012; WEIMER, 2014).
De início convém assinalar que o continente africano é quase duas vezes
maior do que a América do Sul. Apesar de possuir vastas áreas desérticas, tem
uma população 2,3 vezes maior. Isso significa que sua população apresenta uma
densidade muito maior que a nossa e está mais uniformemente distribuída, por
ser majoritariamente em região rural. Seu território tem sido dividido em África
Branca, devido à sua população de provável origem do Oriente Próximo que
ocupa a faixa entre o Saara e o Mar Mediterrâneo com alguns enclaves na África
subsaariana, enquanto o restante do continente tem sido denominado de África
Negra, decorrente da cor mais escura de sua população. Porém na parte oriental
da Ilha de Madagáscar há um forte contingente de população malaia que a ocupa
desde o século V da era cristã.
Uma das características de uma cultura é a língua falada por determinado
contingente populacional. Conforme dados de linguistas, na África Negra são
falados mais de duzentos idiomas, o que significa que deve existir igual número
de tradições culturais e arquitetônicas. Segundo os etnólogos, essa população é
dividida em oito grandes linhagens culturais: os nilotas estão estabelecidos no
Alto Nilo; os hamitas, que ocupam o chamado corno da África (Eritréia,
Somália, Etiópia); os nilota-hamitas que se caracteriza por ser uma população
influenciada pelas duas linhagens anteriores e que habitam a região dos grandes
lagos; os sudaneses, ocupantes da grande floresta equatorial; os bantos, da parte
meridional do continente; os bacas, conhecidos no mundo ocidental pelo
designativo pejorativo de pigmeus e moradores no norte do Congo, entre
território de sudaneses e bantos; os koikoi e os sam, conhecidos como hotentotes
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2 Os bantos
Os maiores fornecedores de escravos foram Angola e Moçambique onde, nos
atuais países, são faladas, respectivamente, 13 e 14 línguas oficiais, além do
português, que serve de língua de trânsito, condição que está perdendo para o
suazi que está se expandindo rapidamente. E cada uma dessas línguas apresenta
variantes dialetais, o que equivale a diversidade cultural. O fato de que a maioria
dos migrantes era proveniente de populações costeiras veio a facilitar nossos
estudos.
Esta região é conhecida pela exuberância da variedade de sua fauna o
que se contrapunha à limitada variedade de suas essências vegetais. A existência
de um limitado número de espécies de árvores não favoreceu o desenvolvimento
da carpintaria e, desse modo, o emprego da madeira se limitou a dar sustentação
ao barro e à cobertura.
A tipologia mais comum das construções dos bantos era a de cone-sobre-
cilindros ou semiesfera-sobre-cilindro (Figura 1). O piso era majoritariamente
de chão batido. O material de construção mais comum era o barro (BARDOU;
ARZOUMANIAN, 1979). A técnica de construção preferencial era a taipa, que
consistia na preparação de uma “rede” de galhos entrelaçados e/ou amarrados
que servia de sustentação do barro devidamente preparado que era aplicado
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pelos dois lados. A par desta construção era montada a cobertura junto ao
canteiro e consistia de uma armação de galhos encaixados e/ou amarrados sobre
a qual era afixada uma camada de capim. Depois que as paredes tinham secado,
a cobertura era fixada sobre as mesmas.
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Figura 10 - Parte da cidade do Cabo, África do Sul, mostrando os diversos bairros separados
entre si
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3 Os sudaneses
Os sudaneses ocupavam uma longa faixa de terra delimitada no sentido norte-sul
pela Saara e Oceano Atlântico e se estendia no sentido leste-, desde a região dos
grandes lagos até o Atlântico. Fisicamente são mais longilíneos e apresentam
uma tez mais escura que os bantos, uma vez que estes últimos desde muito
tempo mantiveram contatos com os povos da África Branca, dos quais sofreram
influências. Em razão disso, os sudaneses foram considerados, erroneamente, e
equivocadamente, como sendo mais evoluídos do que os bantos. O motivo desse
preconceito se deve ao fato de que seus aldeamentos e cidades têm uma forma
mais aproximada da europeia.
À semelhança dos bantos, suas construções, ditas sarsunumas, expressão
própria da língua dos befadas para designar as construções dos sudaneses que
corresponde às cubatas dos bantos, embora ambas tenham aspectos próprios e
particulares. Elas são monofuncionais, ou seja, destinadas a uma única função
como dormitório, cozinha, etc.
Em geral, são muito decoradas com relevos ou pinturas (Figuras 10 a
12). O conjunto dessas construções tem sido denominado de morança (similar a
uma casa) e as aldeias formadas por alas, de tabanca. Suas morfologias são
muito variadas devido à diversidade dos ambientes ecológicos. A transição entre
a floresta equatorial e o Saara propicia a formação de três ambientes diversos.
Ao longo do deserto surgiram as chamadas “casas-castelo” (Figura 13) onde as
sarsunamas apresentam mais de um piso, o que é raro na arquitetura africana.
Entre elas, era levantada uma alta parede de taipa. Dessa forma, os ventos muito
quentes do deserto passavam por cima das mesmas, afetando minimamente o ar
mais frio, e por isso mais pesado, existente no pátio interno e dentro das
construções. Por viver num clima semidesértico, a população tinha grandes
dificuldades de sobrevivência e sua pobreza fazia com que as construções
fossem muito simples e de acabamento escorreito.
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Figuras 11, 12 e 13 - Fachadas da moradia do emir de Ziender, de uma casa ibo e interior de
uma casa ghadami
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Figuras 14, 15 e 16 - Uma casa-castelo e uma casa-pátio, de Benim e o interior de uma casa-
pátio de Gana
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conveniente que as moranças ficassem próximas umas das outras. Este fato
favorecia a formação das aldeias e fazia com que cada matriarca tivesse um
controle rígido de suas filhas, o que conferia considerável autoridade às
mulheres idosas que, por sinal, se destacavam como sacerdotisas (mães de
santo).
Mais adiante, a mesma concepção também favorecia a formação das
cidades (figuras 21 e 22). Para não abrir mão da organização tribal, cada cidade
era formada por bairros, os muceques próprios de cada tribo, rigidamente
separados entre si por muros circundantes, com uma única entrada que levava a
uma praça central, denominada posoban, que se constituía em espaço sócio-
político e de convivência dos integrantes da tribo. Além disso, cada muceque era
rigidamente separado dos demais por amplas avenidas utilizadas como áreas de
comércio onde cada grupo vendia produtos artesanais no qual era especializado.
4 Os afro-brasileiros
As principais características das concepções espaciais praticadas em solo
africano se constituíram nos componentes com que os afro-brasileiros vieram a
se confrontar quando foram inseridos na sociedade escravocrata colonial
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de suas tradições, esse tipo de habitação se tornou comum nas regiões costeiras
do País (figuras 23 e 24).
.
Fonte: Weimer (2014, p. 264).
Nota: À esquerda, o bairro Jansen, de São Luís, Maranhão, com suas casas sobre palafitas
e à direita apalafitada em assentamento de pescadores em Laguna, Santa
Catarina.
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Figuras 25 e 26 - As enxovias
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Campanha, onde puderam recriar sua arquitetura ancestral (figuras 30 e 31), por
vezes influenciada por procedimentos de tradição lusa.
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5 Considerações finais
A arquitetura africana, à semelhança do que acontece em outras culturas, teve
uma versão palaciana e outra popular. A forma como se procedeu na vinda da
mão de obra escravizada para o Brasil, fez com que somente a segunda versão
fosse praticada neste lado do Atlântico. Ainda que a população africana se
dividisse em múltiplas culturas, razões diversas levaram a que quase
exclusivamente fossem trazidas pessoas das culturas banto e sudanesa. Apesar
das imposições decorrentes da escravidão, os preceitos sociais e o fato de os
africanos e seus descendentes se constituírem na maioria da população, os
conceitos e técnicas construtivas se tornaram hegemônicas no nível popular da
arquitetura brasileira até o fim da escravidão. Claro está que a confluência de
culturas tão diferentes como a africana com a reinol e indígena acabou por
fomentar uma profunda miscigenação de procedimentos, que nem sempre
aconteceram de forma pacífica e que, por vezes, ainda hoje vêm se manifestando
em divergências conceituais relevantes.
Referências
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STRÖRIG, Hans Joachim. A aventura das línguas: uma história dos idiomas
do mundo. São Paulo: Melhoramentos, 2003.
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Abstract: African architecture has a multimillennial history that has not been
well studied just now. Only a small part of its great diversity of manifestations
had come to Brazil, mainly due to preconception during slave trade. Therefore,
only Bantu and Sudanese cultures were brought to Brazil and influenced our
popular construction. During colonial period most Brazilian population had
African origin and their architecture became
hegemonic in popular housing, but with Indian and Portuguese influence. This
mechanism resulted in a great adaptation capacity.
Recebido: 20/08/2020
Aceito: 31/08/2020
Declaração de autoria
Concepção e elaboração do estudo: Gunter Weimer
Coleta de dados: Gunter Weimer
Análise e discussão de dados: Gunter Weimer
Redação e revisão do manuscrito: Gunter Weimer
Como citar
WEIMER, Gunter. Arquitetura popular afro-brasileira. Em Questão, Porto
Alegre, v. 26, p. 291-316, Edição Especial Dossiê Patrimônio e Culturas
Tradicionais, 2020. DOI: http://dx.doi.org/10.19132/1808-5245260.291-316
Em Questão, Porto Alegre, v. 26, p. 291-316, Edição Especial Dossiê Patrimônio e Culturas Tradicionais, 2020
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