Dissertacao de Aristides Palhaço Degolado
Dissertacao de Aristides Palhaço Degolado
Dissertacao de Aristides Palhaço Degolado
TERESINA-PI.
Março 2012
3
TERESINA-PI
2012
4
FICHA CATALOGRÁFICA
302 f.: il
CDD: 301.298 1
5
BANCA EXAMINADORA
___________________________________________________________
Prof. Dr. Paulo Ângelo Meneses Sousa (Orientador)
Universidade Federal do Piauí
____________________________________________________________
Prof. Dr. Paulo Marcondes Ferreira Soares (Examinador Externo)
Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco
_____________________________________________________________
Professor Dr. Edwar de Alencar Castelo Branco (Examinador Interno)
Universidade Federal do Piauí
_____________________________________________________________
Professor Dr. Denilson Botelho (Suplente)
Universidade Federal do Piauí
6
Para a amizade construída na rota Piauí - Pernambuco, entre as caminhadas que cercam o
Recife Antigo e o Mustang, é pra ti JMB, que dedico este texto, pela atenção e ensinamento
eterno do sentido poético da gentileza como performance diária. Entre os risos,
esculhambações e sensibilidades, que faço desse texto um espaço de agradecimento para os
amigos-irmãos João Paulo, Landerson e Kim. Pelas noites sem dormir, pela mão que acaricia
as tensões, tem um cantinho especialíssimo para Meire, nessa trajetória longa de
companheirismo apaixonante. E acima de tudo, meu obrigado à mulher mais incrível desse
reino Luso-Tropical, Maria do Carmo, que acorda todos os dias para trabalhar...
7
AGRADECIMENTOS:
do dia-dia. Aproveito e chamo para sair comigo, pois lá no “Rei do Cangaço” estão
esperando a gente para matar um prato de carne-de-sol com a Olívia Candeia, a
Nilsângela Cardoso, o Francisco Nascimento, Jaislan Monteiro e o Mairton Celestino,
para se rachar de rir e não ter hora para acabar.
Para terminar, não posso me esquecer da CAPES/CNPq (pelo financiamento),
Dimas Brasileiro Veras, “6ção”, Rafaela Fernandes, Iara, Hérida Jayne, Maria do
Carmo Veloso (pessoa incrível que conheci nos batuques do Tambor de Crioula) Lêda
Vieira (sempre atenciosa comigo), Celso Marconi, Carlos Cordeiro, Mara Lígia, Marina
Vieira, Marília Santos, Padre Erinaldo, Lyndon Jonhson (pela oportunidade que me deu
em 2012, na Escola que estou adorando lecionar!), Jeferson, Ernani, Cleto Sandys,
Alcides, Teresinha Queiroz, Nina Caminha, Eliane, Denise Veras, Ricardo Maia (que
desde 2007, dialoga comigo e colabora na minha pesquisa efetivamente), Demétrios
Galvão, Décio Braga, Nalva, Lindalva, Thiago E., Mayra Brandt, Joniel Veras, Wesley
Veloso, Benone, Telma Franco (pela atenciosa leitura e comentários firmes), Nayhd,
Padre Álvaro (pela confiança), PC, Carlota Lina, Charles Bicalho, Cibelle Leal, Narciso
Sousa, Denes Filho, Renata Flávia, Vanderli Silva (pelos preciosos documentos da
PNC, que você me enviou de Sampa!), Áurea Paz Pinheiro, Wesley, Jordana, o cara
(como era o nome dele?) que tirava as xerox lá em Recife e aguentou as minhas
chateações diárias, os dois colegas do arquivo que me abusaram de tanto mandar voltar
os jornais... tem muita gente que passou por mim nesses anos de mestrado, agradeço a
todos, com ou sem nomeações... vocês estão nessas páginas!
Trilha sonora que define cada linha: Neil Young... Mirror Ball.
9
RESUMO
Palavras-chave:
ABSTRACT
The present work is intended to study the conflicts and confrontations that were
established through the idea of Brazilian Culture, in Pernambuco, during the 1970’s of
the last century. The main argument of this study lays on the supposition that the
traditional intellectuals’ works such as Gilberto Freyre e Ariano Suassuna may stay side
by side, on their opposite, with a radical interlocution criticism which will find through
Jomard Muniz de Britto and some works such as O Palhaço Degolado (1976/77) one of
his greatest ways of expression in the period after the Tropicalia movement. The movie
acts as an experimental study about cultural criticism related to the “sacred monsters” of
the official culture during the time of repression to the dissonant and unholy voices,
which is seen though a perspective of permanent transition, breaking the
secular conservatism restricted to the shadow of the cane plantations.
Keywords:
LISTA DE ILUSTRAÇÕES:
SUMÁRIO:
RESUMO.............................................................................................................09
Bibliografia e fontes..........................................................................................243
Anexos...............................................................................................................262
Documentos interessantes..................................................................................298
13
INTRODUÇÃO:
Lutar com o Super-8 é a Luta mais vã.1
[...] que este mundo [...] contém, para chegar à sociedade e à cultura
que são parte dele, produzindo conhecimento histórico de fato novo
[...] compreendendo que o filme não é somente um reflexo de um
mundo pré-existente, não é apenas um resultado ou um pálido reflexo
de um contexto, mas produtor de um contexto próprio.2
1
Jomard Muniz de Britto, no filme “O Palhaço Degolado”, 1977.
2
SILVA, Jaison Castro. Urbes Negra: melancolia e representação urbana em Noite Vazia (1964), de
Walter Hugo Khouri. 2007. Dissertação de Mestrado (História). Universidade Federal do Piauí, Teresina,
2007, p. 20.
15
3
Referente a cinema underground, alternativo, à margem do circuito oficial.
16
diária, mesmo sob os protestos do próprio, na recusa por rótulos e clichês... em uma
palavra: Gentileza.
Além dessa qualidade conquistada por poucos, Jomard tem formação em Filosofia
na Universidade do Recife, trabalhou como professor da Universidade Federal de
Pernambuco e da Universidade Federal da Paraíba, na equipe do educador Paulo Freire,
durante a fase inicial do programa de alfabetização de adultos. Perseguido pelas suas
posições “subversivas”, seu livro “Contradições do Homem Brasileiro” (1964) foi
retirado de circulação e Jomard preso4, no Forte das Cinco Pontas, em Recife.
Nos anos 60, foi afastado das universidades que lecionava. Durante seu
isolamento da academia, ensinou na Escola Superior de Relações Públicas do Recife e
coordenou treinamentos sobre comunicação e criatividade em corporações públicas e
privadas. Com a anistia em 1984, recuperou seu posto universitário.5
Com fortes ligações com a música popular brasileira, escreveu em 1966 o livro
“Do Modernismo à Bossa Nova”, também foi diretor de shows com canções de protesto
e teve vinculação com o Grupo “Construção” e aos atores do grupo teatral “Vivencial
Diversiones”, em Pernambuco.
Considerado um representante vivo-ativo do Tropicalismo no Nordeste, foi autor
de manifestos e textos com forte teor crítico sobre a cultura pernambucano-brasileira,
como “Porque somos e não somos tropicalistas” (1968) e “Inventário do Nosso
Feudalismo Cultural”, este em parceria com Caetano Veloso, Aristides Guimarães,
Gilberto Gil e outros artistas ligados ao movimento.
Jomard sentiu atração pelo tropicalismo devido sua força dessacralizante e
renovadora da cultura brasileira naquele momento, movida por um conjunto de novas
propostas e experimentos provocadores nos campos de atuação cultural.
Sua aproximação com o movimento Tropicalista se deu quando:
Glauber me anunciou, com sua ênfase natural: vem por aí uma nova
turma da Bahia para fazer uma revolução musical... Com essas e
outras palavras. O sinal estava alardeado. Depois, a pedido do Lúcio
Flávio, então diretor de cultura do JC [Jornal do Commércio], escrevi
um longo artigo sobre o primeiro disco individual de Caetano.
4
Disponível em: <http://www.revistaogrito.com/page/blog/2008/09/16/jomard-muniz-de-britto/>. Acesso
em: 04 mar. 2011, às 10h58.
5
Disponível em: <http://pphp.uol.com.br/tropico/html/textos/2604,1.shl>. Acesso em: 05 mar. 2011, às
12h07.
17
[...] caminho para o super 8 foi através de minhas aulas. Não as aulas
da universidade, mas os treinamentos intensivos de comunicação,
principalmente para a Secretaria de Educação, que nós chamávamos
de dinâmica de grupo ou de comunicação criativa. O trabalho que
desenvolvia era fruto de minha formação anterior ligada a Paulo Freire
e da ligação com o Tropicalismo e admiração pela Nouvelle Vague,
mas precisamente Jean-Luc Godard. [...] Assim toda minha transação
de cinema é fruto de um trabalho de professor e de agitador cultural8.
6
BRITTO. Jomard Muniz de. Atentados Poéticos. Recife: Edições Bagaço, 2002. p. 329.
7
Disponível em: <http://www.revistaogrito.com/page/blog/2008/09/16/jomard-muniz-de-britto/>. Acesso
em 04 mar 2011, às 10h58.
8
Depoimento colhido em 02 de janeiro de 1989. In: FIGUEIRÔA, Alexandre. O Cinema Super 8 em
Pernambuco: do lazer doméstico à resistência cultural. Recife: Fundarpe. 1994. p. 46.
18
11
BOLOGNESI, Mário Fernando. Palhaços. São Paulo. Ed. UNESP. 2003. p. 103.
20
1. PRIMEIRA ENTRADA
DO SUPER-8 AO CIRCO JOMARDIANO: EM BUSCA DO “PALHAÇO
DEGOLADO”
12
Consiste de um sistema de guindaste onde a câmera é instalada em uma extremidade e na outra
extremidade é inserido pesos que servem para equilibrar a câmera, criando-se um sistema de gangorra.
13
ORTIZ, Renato. A Moderna Tradição Brasileira: cultura brasileira e indústria cultural. São Paulo:
Brasiliense, 2001. p. 121.
24
14
ORTIZ, 2001. pp. 113-114.
15
BARBALHO, Alexandre. Estado autoritário brasileiro e cultura nacional: entre a tradição e a
modernidade. In: Brasil, Psicanálise, Ficção e Memória. Revista da Associação Psicanalítica de Porto
Alegre. nº 19. Porto Alegre: APPOA, Out/2000.
16
BARBALHO, 2000, p. 75.
25
17
Criado em 18 de novembro de 1966, pelo Decreto-lei nº 43, regulamentado pelo Decreto n 60.220, de
15 de fevereiro de 1967.
18
RAMOS, José Mário Ortiz. Cinema, Estado e Lutas Culturais: anos 50, 60, 70. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1983. p. 51.
19
ORTIZ, Renato. Cultura Brasileira & Identidade Nacional. São Paulo. Ed. Brasiliense, 2006. p. 109.
20
Ibidem, p. 109.
21
Filme & Cultura 5, 1967, pp. 2-4.
26
22
Filme & Cultura 1, 1966, p. 61.
23
Filme & Cultura 2, 1966, pp. 57-59.
24
ORTIZ, 2006, p. 109.
25
Ibidem, pp. 109-110.
27
26
RAMOS, 1983, pp. 53-54.
27
Se no decênio 56-66, [...] dificilmente atingia-se a cifra de 40 filmes anuais, entre 67 e 74 (ano da
mudança de direção e atuação da Embrafilme) chega-se a alcançar a marca dos 80 filmes. Conferir:
RAMOS, José Mário Ortiz. Cinema, Estado e Lutas Culturais: anos 50, 60, 70. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1983.
28
Ibidem, 1983.
28
29
ORTIZ, 2006, p. 111.
30
Filme Cultura 9, Abril de 1968.
31
Filme Cultura 9. A Hora do Cinema Total. Instituto Nacional de Cinema. Abril de 1968. p. 1.
32
Ibidem, p. 1.
29
Contrapondo este argumento, podemos expor a tensão entre parte dos cineastas
nacionalistas-culturalistas e o Estado, com o depoimento de Glauber Rocha a Frederico
de Cardenas e René Capriles, registrado em 196935, contra as diretrizes comerciais e
posicionamentos do INC em relação ao espectador brasileiro e ao mercado:
33
ORTIZ, 2006, p. 113.
34
Filme Cultura 21. Diálogos de Planejamento. Instituto Nacional de Cinema. Julho/Agosto de 1972. p.
07.
35
O Transe da América Latina.
36
ROCHA, Glauber. Revolução do Cinema Novo. São Paulo. Cosac Naify, 2004. pp. 185-186.
30
37
Foi extinta em 16 de março de 1990, pelo Programa Nacional de Desestatização (PND) do governo de
Fernando Collor de Mello.
38
CESÁRIO, Lia Bahia. Uma Análise do campo cinematográfico brasileiro sob a perspectiva industrial.
Universidade Federal Fluminense. Dissertação de Mestrado (Comunicação), 2009. p. 39.
39
Ibidem, pp. 40-41.
31
brasileiro no mercado interno e externo.40 Renato Ortiz afirma que “em 1975 são
produzidos 89 filmes, em 1980, 103 películas e o fluxo de espectadores nas salas de
cinema cresce consideravelmente: em 1971, 203 milhões; atinge em 1976 um pico de
250 milhões”.41
A presença do INC e da Embrafilme pode ser considerada bem sucedida no
crescimento quantitativo das produções audiovisuais no circuito exibidor brasileiro dos
anos 70, mas deve ser enfatizado que, para além desse “sucesso”, existe em suas
dinâmicas operacionais a face autoritária do regime, fazendo do cinema brasileiro não
somente uma manifestação artística, mas também “instrumento de integração nacional.
O cinema neste momento tinha uma função estrutural na cultura, seguindo diretrizes
ideológicas do governo militar”.42
Face exposta por Glauber Rocha, em 1979, quando opina e mostra no programa
“Abertura”, da TV Tupi, todo o inconformismo e diagnóstico de uma crise na cultura,
sentida por muitos artistas desde o golpe militar, afirmação que demonstra claramente o
período em que vamos mergulhar daqui em diante, no filme de Jomard Muniz do Britto.
40
CESÁRIO, 2009, pp. 42-45.
41
ORTIZ, 2001, pp. 124-125.
42
CESÁRIO, p. 46, 2009.
43
Programa Abertura, 1979.
44
ORTIZ, 2001, p. 115.
32
portanto, nem sempre os lugares e obras são vigiados por todos os olhos.45 Nesse
sentido, podemos afirmar que o pós-64 se forma como um “momento da história
brasileira onde mais são produzidos e difundidos os bens culturais” 46, caracterizando a
situação cultural por possuir um amplo espaço na circulação desse mercado.
Além de instituições como o Instituto Nacional de Cinema (1966), Conselho
Federal de Cultura (1966) e Embrafilme (1969), instrumentos reguladores do Estado
que visavam implantar, planejar, decidir, julgar, mediar e impor suas forças diante do
corpo social, outro percurso estava sendo trilhado no campo cinematográfico, no qual o
Estado não conseguiu penetrar na sua totalidade.
Em pleno endurecimento do regime político e das instituições que coordenavam
o processo cultural nos anos 60/70, é possível visualizar um conjunto de práticas
culturais que ultrapassam a coerção estatal e as definições políticas no campo
audiovisual.
Nesse período, o Brasil passa pelo processo de diálogo e incorporação de
influências das vanguardas culturais estrangeiras, resultante do intenso encontro entre
artistas brasileiros, europeus e norte-americanos, com exposições de projetos e ideias,
que promovem um contato mais acessível com as novas tendências artísticas, ampliando
as possibilidades de troca e consumo cultural por um público mais amplo.
Cristina Freire aponta que, “com a fuga do mercado, especialmente para os
latinos americanos, [gerou-se] a oportunidade [nos artistas em] subverter a repressão
política e participar do debate internacional”, assegurando até “aos correios o papel
difusor de operações artísticas. [...] Em suma, não apenas as instituições museais, mas
também as linguagens tradicionais se tornam inadequadas frente às proposições de
arte”.47
As transformações no modo em que os artistas percebiam a cultura no país
deram-se pelo avanço acelerado da tecnologia e o aumento da incerteza perante o rumo
que tais novidades iriam tomar, trazendo como consequência a problematização dos
sistemas de pensamento “tradicionais e essencialistas e a crescente perda de sentido de
continuidade entre passado, presente e futuro. O sujeito, nesse cenário, começa a
experimentar uma angústia existencial seguida de profunda crise de identidade”.48
45
ORTIZ, 2001, pp. 114.
46
Idem, p. 115.
47
FREIRE. Cristina. Poéticas do Processo. São Paulo: Iluminuras, 1999. p. 35.
48
CASTELO BRANCO, Edwar de A. Todos os Dias de Paupéria: Torquato Neto e a Invenção da
Tropicália. São Paulo: Anna Blume, 2005. p. 66.
33
49
CASTELO BRANCO, 2005.
50
Ibidem.
51
Ibidem.
52
Ibidem.
53
Ibidem.
54
Ibidem, pp. 71-95.
34
55
FREIRE, 1999, p. 28.
56
MELLO, Christine. Extremidades do Vídeo. São Paulo: Editora Senac, 2008. p. 11.
57
Ibidem, p. 11.
58
Ibidem, p. 11.
59
Ibidem, p. 11.
60
FREIRE, 1999, p. 31.
35
Podemos perceber que, além dos filmes financiados pelo Estado, outras obras
audiovisuais são desenvolvidas em suportes mais baratos e de fácil circulação, que irão
também compor o complexo cenário cinematográfico brasileiro. A maioria desses
filmes surge como resultado da democratização e acessibilidade de bitolas e câmeras
portáteis, que se expandem rapidamente no país pelo fato dos novos suportes de registro
cinematográfico (tripés, filtros, lentes, etc.) estarem atrelados a um processo de
inovação tecnológica acelerada.
Desse modo, os artistas têm a possibilidade de construir novas leituras e
experiências audiovisuais, bem como o manuseio de materiais mais leves, em espaços
livres dos estúdios, o que redimensionou a porção criativa das expressões artísticas
contemporâneas.
Com filmes marcados pela radicalidade formal, o experimentalismo brasileiro
traça uma rota alternativa de produção, tomando como suporte fundamental de atuação
e produção, a película 8 mm. Nesse sentido, “a bitola de superoito, espécie de musa e
síntese desses novos equipamentos de filmagem, estimulou o surgimento de novíssimos
‘cineastas’” 61, que iniciam um longo processo de ação fílmica subterrânea em relação
ao circuito cinematográfico comercial.
Os filmes aparecem livres “para olhar o mundo exterior sem pestanejar e para o
mundo interior em moldes complexos e místicos” 62, com imagens livres para serem
poéticas e obscuras. “É livre até mesmo para ensandecer”63, construindo um tipo de
cinema que é possível utilizar:
[...] todos os recursos existentes e os transfigura em novos signos em
alta rotação estética: é um cinema interessado em novas formas para
novas ideias, novos processos narrativos para novas percepções, que
conduzam ao inesperado, explorando novas áreas de consciência,
revelando novos horizontes do improvável.64
61
SANTOS FILHO, Francisco Aristides de Oliveira; CASTELO BRANCO, Edwar de Alencar.
Desencantos modernos no cinema brasileiro: contrações e disritmias na filmografia dos anos 60/70. In:
CASTELO BRANCO, Pedro Vilarinho (Org.). História e Ficção. Imperatriz – MA: Ética, 2009. p.63.
62
RENAN, Sheldon. Underground: introdução ao cinema/underground. Tradução de Sérgio Maracajá.
Rio de Janeiro: Lidador, 1970. p. 23.
63
RENAN, 1970. p. 23.
64
FERREIRA, Jairo. Cinema de invenção. São Paulo: Max Limoad, 1986. p. 23.
36
guardar de recordação. Segundo David Beal, “não havia razão para duvidar da
triunfante liderança do 8mm tradicional em popularidade entre amadores”.65
Introduzido no mercado internacional em 1965, a bitola superoito provocou um
conjunto de benefícios e otimização técnica, que amplia para o público consumidor uma
série de novidades para seu uso, substituindo:
65
BEAL, John David. Super 8 e outras bitolas em ação. 3ª Ed. Adaptação de Abrão Berman. São Paulo:
Summus, 1976. p. 14.
66
Ibidem, p. 14.
67
Ibidem, p. 14.
68
RENAN, 1970. p. 23.
69
Ibidem, p. 2.
37
70
CRUZ, 2005, p. 35.
71
BRITTO, Jomard Muniz de. Há uma borboleta ou uma Gota de Sangue no Super-8? Sem
Identificação. 25/11/77.
38
72
Entrevista realizada por Aristides Oliveira, na tarde de 08 de agosto de 2008, no Real Palace Hotel, às
14h30 em Teresina-PI.
73
Filme Cultura 26, 1974, p. 47.
39
74
FIGUEIRÔA, Alexandre. O Cinema Super 8 em Pernambuco: do lazer doméstico à resistência cultural.
Recife. Fundarpe, 1994. p. 43.
75
CRUZ, Marcos Pierry Pereira da. O Super-8 na Bahia: História e Análise. São Paulo: Escola de
Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Dissertação de mestrado. 2005. p. 14.
40
76
BRITTO, Jomard Muniz de. Vanguarda: um tigre de papel? Superoito: uma onça de celulóide? In:
VERRI, Gilda Maria Whitaker. Registros do passado no presente (Org.). Recife: Bagaço, 2008. p. 275.
77
Em “O Curta-Metragem Brasileiro e as Jornadas de Salvador”, Bráulio Tavares refere-se [...], sem
indicar os realizadores e/ou signatários das proposições resultantes do encontro, resumidas a seguir, que,
em pouco tempo, se revelariam ambíguas, contraditórias e, no limite, preconceituosas: 1. Aumentar a
circulação de filmes em Super-8, sem tentar institucionalizar essa circulação. Não tentar fazer com o
Super-8 um mini-circuito 35 mm, mas aproveitar suas possibilidades para divulgar o cinema fora das
salas tradicionais [...]; Galerias de arte e tevê apontadas como outras possibilidades de circulação dos
filmes; [...] o Super-8 não é considerado como um trampolim para outras bitolas (embora também possa
sê-lo), mas um veículo válido em si. Decorre dessa posição a importância de se procurar fazer produções
baratas, cujos gastos possam ser cobertos com facilidade. Cf: CRUZ, Marcos Pierry Pereira da. O Super-8
na Bahia: História e Análise. São Paulo: Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo,
2005. pp. 17-18.
78
CRUZ, 2005, p. 16.
79
FIGUEIRÔA, 1994, p. 34.
41
A articulação não se deu apenas com filmes inscritos, mas com a presença de
críticos e produtores audiovisuais participando diretamente dos debates desenvolvidos
na Jornada. Podemos citar a apresentação da comunicação de Celso Marconi com o
trabalho intitulado: “Uma experiência: o Cinema de Arte do Recife” e a atuação de
Jomard Muniz de Britto como integrante do júri, gerando um forte interesse nos
jornalistas e artistas em acompanhar a contribuição dos superoitistas na construção de
uma cena alternativa de âmbito nacional.80
O contexto foi marcado pelo desejo de fazer cinema independente, a partir do
“final da década de 1973 ao início de 1974. Em novembro, os filmes participantes da
Jornada de Salvador, são exibidos pela primeira vez para o público de Recife, numa
mostra realizada na Universidade Católica de Pernambuco”.81
Envolvido nos debates superoitistas, Jomard escreve no começo de 1974 “um
artigo no Diário de Pernambuco, que vislumbra o aparecimento de um novo cinema
pernambucano”. Jomard afirma que os cineastas “tinham capacidade de realizar bons
trabalhos e não apenas roteiros que não seriam filmados, afastando assim a ideia do
‘cinema espiritual’ que rondava o cinema pernambucano”.82
O entusiasmo faz o superoito ser visto pelo público como uma bitola respeitada e
muito defendida pelos seus simpatizantes, fazendo de Pernambuco o Estado no
Nordeste com maior produção de filmes nesse formato em 1975, legitimando-o no
campo da produção cinematográfica independente.
Já em 1976, Figueirôa nos mostra que este ano é emblemático para o
amadurecimento do cinema pernambucano, pois, “boa parte dos realizadores [...] já
tinha uma concepção diferente do que significava fazer cinema mesmo com uma bitola
amadora. A euforia da realização continuou, mas a participação de discussões sobre a
83
situação do cinema brasileiro” possibilitou aos artistas o amadurecimento em torno
das dificuldades na produção dos filmes, “ao mesmo tempo em que lhes dava elementos
de reflexão sobre” a realização dos mesmos.
Nesse período, várias tentativas de implantar espaços e infraestrutura para
incentivar as produções audiovisuais resultaram em fracasso, como a promessa não
cumprida do núcleo de produção ligado ao Cinema Educativo, patrocinado pelo INC,
que nunca foi concretizado.
80
FIGUEIRÔA, 1994, p. 36.
81
Ibidem, p. 36.
82
Ibidem, p. 37.
83
Ibidem, p. 36.
42
87
BRITTO, 2008, p. 276.
88
PARENTE, André; CARVALHO, Victa de. Entre cinema e arte contemporânea. Revista Galáxia. São
Paulo, nº 17, p. 27-40, jun. 2009. p. 3.
89
FIGUEIRÔA, 1994, p. 130.
90
Ibidem, p. 130.
91
Ibidem, p. 53.
92
CASTELO BRANCO, Edwar de Alencar. Táticas Caminhantes: cinema marginal e flanâncias juvenis
pela cidade. In: Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 27, nº 53, p. 177-194. 2007. p. 179.
93
FIGUEIRÔA, 1994, p. 126.
44
94
Ibidem, p. 126.
95
Nesta linha de documentário, há um viés extremamente informativo, onde todo sinal de autoria é
encoberto, bem como o processo de produção. Além disso, sua montagem serve mais para uma
continuidade do argumento do que para estabelecer um ritmo ou padrão formal. Cf: SALES LIMA, Caio
Mário José. O filme dispositivo no contexto da produção do documentário brasileiro nos anos 2000.
Monografia (Comunicação). Faculdade Maurício de Nassau. Recife, 2010, p. 25.
96
BRITTO, 2008, p. 277.
97
CASTELO BRANCO, 2007, p. 179.
45
98
Apesar de Jomard Muniz de Britto ter uma participação efetiva no Tropicalismo já na década de
sessenta, decidimos escolher a expressão de Heloísa Buarque de Holanda, por considerar o ano de 1977
(“O Palhaço Degolado”) um momento de extensão e desdobramento do Tropicalismo nas criações
artísticas de Jomard, desse modo, nos apropriamos da noção pós-tropicalista para pensar a ambiência
temporal do filme explorado. Nesse sentindo, a autora afirma que “o fragmento, o mundo espedaçado e a
descontinuidade marcaram definitivamente a produção cultural e a experiência de vida tanto dos
integrantes do movimento tropicalista, quanto daqueles que nos anos imediatamente seguintes
aprofundam essa tendência, num momento que, por conveniência expositiva, chamaremos de pós-
tropicalismo (fins dos anos 60, princípios dos anos 70)”. Cf: HOLANDA, Heloísa Buarque de.
Impressões de Viagem, CPC, vanguarda e desbunde: 1960/1970. 3ª ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1992. p.
56.
99
FIGUEIRÔA, 1994, pp. 45-46.
100
Ibidem, p. 72.
101
FIGUEIRÔA, 1994, p. 56.
46
Havia uma preocupação com a formação de plateia, pois muitos dos filmes
superoito eram exibidos em mostras particulares, na casa dos realizadores. Promover
exibições restritas não interessava aos cineastas engajados no circuito, que escreviam
nos jornais para mobilizar o máximo de pessoas a comparecerem aos eventos abertos
em andamento na cidade. O Jornal do Commercio foi o espaço mais utilizado para
concretizar as convocações e reflexões em torno da cena audiovisual pernambucana.
No artigo “Amin/que o super 8 saiam das saletas”, publicado na coluna “Arte
Viva”, Celso Marconi afirma que:
102
MARCONI, Celso. Jornal do Commercio. 27 jul. 1977. Amin/que o super 8 saiam das saletas. Coluna
Arte Viva.
103
FIGUEIRÔA, 1994, pp. 57-58.
47
cineastas: Fernando Spencer, Geneton Moraes Neto, Paulinho Menelau, Celso Marconi
e Raimundo Vidarico.104
A necessidade em fazer circular seus trabalhos é concretizada na elaboração de
um programa audiovisual itinerante chamado “Cinevivendo”, que percorria diversos
lugares da cidade para projetar seus filmes e de outros cineastas. O programa tinha
como atividade principal a realização de cine-debates com o público presente, como os
frequentadores de cineclubes, universitários e nos espaços públicos em geral,
esforçando-se para diminuir as lacunas do circuito exibidor superoitista local.
O objetivo do programa “Cinevivendo” era aumentar o acesso às novas
produções realizadas, o que oportunizou a gradativa aproximação de cinéfilos, que antes
desconheciam a cena audiovisual. O estímulo trouxe bons resultados, pois, juntamente
com outros trabalhos paralelos de superoitistas, também interessados na popularização
das exibições de filmes superoito, foi possível fortalecer temporariamente o circuito
superoitista recifense.105
Jomard polemizava as intenções do programa audiovisual no Jornal do
Commercio, por onde transitava seus textos, a partir do contato articulado com o
jornalista e crítico de cinema, Celso Marconi, que trabalhava na empresa. A respeito
deste projeto, Jomard deixa claro que o “Cinevivendo” era um trabalho para expor:
Tal iniciativa nos mostra que, “com tantas exibições e os filmes pernambucanos
alcançando um público cada vez mais interessado, os superoitistas, em especial os do
104
FIGUEIRÔA, 1994, p. 96.
105
Ibidem, p. 72.
106
BRITTO, Jomard Muniz de. Jornal do Commercio. 14 out. 1977. Jomard Cinevivendo na Sudene.
Coluna Arte Viva.
48
107
BRITTO, Jomard Muniz de. Jornal do Commercio. 14 out 1977. Jomard Cinevivendo na Sudene.
Coluna Arte Viva.
108
FIGUEIRÔA, 1994, p. 97.
109
BRITTO, Jomard Muniz de. Jornal do Commercio. 24 set 1977. Feliz Caos Criativo. Coluna Arte
Viva.
49
110
MARCONI, Celso. Jornal do Commercio, 21/09/77. Resoluções da Jornada de Salvador (I). Coluna
Arte Viva.
111
MARCONI, 21 set. 1977.
112
Ibidem.
113
Ibidem
114
Ibidem.
50
de produção, num país que, em vez de incentivar o uso da bitola para fins crítico-
artísticos, desfavorecia o fortalecimento e profissionalização do curta-metragem.
Nesse sentido, a Jornada encaminha uma proposta de:
115
MARCONI, Celso. Jornal do Commercio, 22 set 1977. Resoluções da Jornada de Salvador (II).
Coluna Arte Viva.
51
dizendo que o “Palhaço não é um filme pra ser elogiado mas sim
degolado”.116
Figura 1:
“O Palhaço Degolado”: sucesso de público e crítica na VI Jornada, em Salvador.
(Fonte: Diário de Pernambuco, 17/09/77)
116
MARCONI, Celso. Jornal do Commercio. 15 set. 1977. Notas sobre a Jornada de Salvador (I). Coluna
Arte Viva.
117
Movimentação ou posicionamento dos personagens no espaço cênico ou no set de filmagens.
Realização ou direção de toda uma produção cinematográfica.
118
MAIA JÚNIOR, Ricardo César Campos. Uma poética audiovisual da transgressão em Jomard Muniz
de Britto. Programa de Pós-graduação em Comunicação (PPGCOM) da Universidade Federal de
Pernambuco (UFPE). 2009. p. 20.
119
MAIA JÚNIOR, 2009. p. 20.
120
Ibid.id.
52
121
FIGUEIRÔA, 1994.
122
MARCONI, Celso. Jornal do Commercio. 03 set.1977. Governador dá apoio ao I Festival de Cinema
Super 8. Coluna Arte Viva.
123
FIGUEIRÔA, 1994, pp. 104-105.
53
Cerca de duas mil pessoas estiveram presentes [...], pois a média foi
de 400 espectadores para as cinco sessões realizadas no auditório do
Centro Interescolar Luiz Delgado. A maioria do público assistiu a
todos os filmes, participando com palmas ou vaias, fazendo assim, o
julgamento que era esperado (uma vez que o Grupo 8 preferiu não
fazer pré-seleção). O filme aplaudido com mais calor foi, realmente,
“O Palhaço Degolado”, tendo o júri instituído pelo Instituto Joaquim
Nabuco de Pesquisas Sociais (Alberto Cunha Melo, José Carlos
Targino e Angelo D’Agostini) concordado com o público, pois o filme
de Jomard Muniz de Britto (que satiriza a cultura oficial, inclusive
aquela que é feita pelo próprio IJNPS) recebeu o prêmio “Renato
Carneiro Campos” de Cr$ 15 mil, para o Melhor Filme125 ligado ao
tema ‘O Homem do Nordeste’.126
124
MARCONI, Celso. Jornal do Commercio. 30 nov. 1977. Cineastas estão aí para formar o nosso Pólo
Cinematográfico. Coluna Arte Viva.
125
Ver certificado de premiação: Anexo.
126
MARCONI, Celso. Jornal do Commercio. 22 nov. 1977. 2 mil pessoas participam do I Festival de
Cinema Super 8. Coluna Arte Viva.
54
127
Entrevista concedida a Aristides Oliveira, na manhã de 28/10/2011, nas locações do filme, na Casa da
Cultura.
55
A absorção das palavras pela voz gera um novo sentido ao tratamento do texto
declamado. Elas são deslocadas de sua base inicial, para que mergulhem no fluxo
sintonizado na consciência de que, na movimentação e no conjunto temático
problematizado, provoquem “uma alteridade espacial marcando o texto” 130
, que é
perfurado e reinventado pela performance executada pelo personagem.131
A releitura de “Outdoors do Recado”, bem como sua ampliação adaptada para o
filme, está marcada em profundidade pelas relações subjetivas do ator com a câmera, no
momento da captura da imagem. Sua relação se faz entre a representação e o vivido, ou
seja, da imagem se fazendo na hora, no processo de criação-realização do personagem,
sem se deslocar do diálogo contextual vivenciado na época.
O período em que o filme foi produzido é caracterizado pelo exaustivo
investimento do regime militar em perseguir sistematicamente os ditos “subversivos” à
linha de pensamento “oficial”, responsável pelo mapeamento das manifestações
culturais ligadas à valorização das tradições populares.
128
SOUZA, Wilson Araújo. Entrevista concedida a Aristides Oliveira via e-mail, em 25 mar. 2009, às
19h26.
129
ZUMTHOR, Paul. Perfomance, recepção, leitura. São Paulo: Cosac Naify, 2007. p. 53.
130
Ibidem.
131
Ibidem, p. 47.
56
132
O nome “Armorial” ainda é alvo de inúmeras interpretações em relação a seu significado, mas
podemos a partir do trabalho de Idelette Muzart, dar algumas impressões que traduzam o signo Armorial.
Para a pesquisadora: “O substantivo ‘armorial’ designa, em português, a coletânea de brasões da nobreza
de uma nação ou de uma província [...]. A incompreensão gerada em relação à escolha desse nome tem
sua origem na associação do nome a uma época, a Idade Média, e a uma classe social, a nobreza [...]. O
primeiro motivo parece ter sentido estético: armorial em uma bela sonoridade, é palavra que canta [...]. O
segundo elemento liga-se explicitamente a heráldica, não como referência à nobreza, mas considerando-a
numa perspectiva histórica. Cf: SANTOS, Idelette Muzart Fonseca dos. Em Demanda da Poética
Popular: Ariano Suassuna e o Movimento Armorial. São Paulo: Editora da Unicamp, 1999. p. 25. A
principal abordagem do movimento [criado em 1970] era a de construir uma arte popular erudita
tipicamente brasileira “[...] baseada na pesquisa naquilo que seriam as raízes da cultura nacional: a
herança medieval ibérica vinda com os portugueses para o Brasil na época de seu descobrimento, aliada a
uma forma de ser (e de fazer) mestiça, vinda da mistura dos sangues europeu, negro e indígena. Para
Ariano, o celeiro dessa dita essência brasileira se encontraria intacta no Nordeste e por isso seu interesse
pelo folheto de cordel e pelas ditas manifestações populares nordestinas. Para Ariano, a formação de uma
considerada arte brasileira autêntica passaria obrigatoriamente pela arte popular. Cf: VENTURA,
Leonardo Carneiro. Música dos Espaços: Paisagem Sonora do Nordeste no Movimento Armorial.
Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Natal, 2007. p. 53.
133
BARBALHO, Alexandre. Políticas Culturais no Brasil: identidade em diversidade sem diferença. In:
III ENECULT, Anais do Encontro, Salvador: 2007. pp. 02-03.
57
[...] trata da escolha de diretrizes gerais, que tem uma ação, e estão
direcionadas para o futuro, cuja responsabilidade é
predominantemente de órgãos governamentais, os quais agem
almejando o alcance do interesse público pelos melhores meios
possíveis, que no nosso campo é a difusão e o acesso à cultura pelo
cidadão.135
[...] antes do filme, antes dessa transação com Carlos Cordeiro, nós
tínhamos uns acessos à televisão universitária que tinha os programas
culturais de entrevistas e eu fiz um pedacinho do Palhaço Degolado
[...] mas eu dizia os textos, e aí o negócio foi crescendo aos poucos
[...] que você conhece o texto de Wilson [Araújo de Sousa] é mínimo
[...], tem três versos. [...] Eu diria que “O Palhaço Degolado”
concretiza um projeto de cultura, [desde] quando eu escrevi meus
primeiros livros: “Contradições do Homem Brasileiro” (1964) e
depois “Do Modernismo à Bossa Nova” (1966).138
Podemos tomar como ponto inicial para análise do filme, uma reflexão que nos
proporciona compreender o estilo formal em torno do título do mesmo. Refere-se à
possível crítica exposta, (“O Palhaço Degolado”) a partir da referência ao título da obra
de Ariano Suassuna: “História d'O Rei Degolado nas caatingas do sertão/Ao sol da
Onça Caetana” (1976).
É possível perceber uma associação com o nome do livro de Ariano, que nos
leva a interpretar o contraste em relação ao título do filme, a partir de um deslocamento
gerado entre olhares localizados em níveis hierárquicos opostos (Rei x Palhaço). O
filme pluraliza as perspectivas de visão de mundo do alto para o baixo, no qual a
concepção jormardiana provoca a virada do “banquete aristocrático da inteligência
brasileira de então139, trazendo140 uma visão da descontinuidade do processo cultural, [...]
como um processo extensivo, e não centralizado. Como um processo radiante, e não
aglutinante”.141
A associação entre os opostos aproxima-se do recurso paródico, como forma de
construir uma espécie de incorporação crítica, com a função de separação/aproximação
137
MACHADO, Arlindo. As linhas de força do vídeo brasileiro. In: Idem. (Org.). Made in Brasil: Três
décadas do vídeo brasileiro. São Paulo: Iluminuras, Itaú Cultural, 2007. p. 33.
138
Entrevista concedida a Aristides Oliveira, na tarde de 07-10-2010, às 16h25, na residência de Jomard.
139
GIL, Gilberto. Cf: FAVARETTO, Celso. Tropicália, Alegoria, Alegria. São Paulo. Kairós Editora.
1979, p.12.
140
Paródia de tipo verbal: com a alteração de uma ou outra palavra do texto. Cf: SANTA’ANNA, Afonso
Romano de. Paródia, Paráfrase & Cia. Ed. Ática. 1985. p. 12.
141
GIL, Gilberto; apud. FAVARETTO, Celso. Tropicália, Alegoria, Alegria. São Paulo. Kairós Editora.
1979. p. 12.
59
142
BAKHTIN, Mikhail. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François
Rabelais. São Paulo-Brasília Editora Hucitec, 2005. pp. 3-4.
143
Ibidem, p. 5.
144
Ibid.id.
145
CAMINHA, Marina. SANTOS FILHO, Francisco Aristides de O. S. Do Palhaço Degolado à
Abertura política em Armação Ilimitada: o excesso cômico de sentimentos em transição. 2010. p. 7.
60
O realismo grotesco era o princípio que regia esse tipo de riso. Bakhtin afirma
que as imagens corporais estavam visceralmente ligadas a terra, no sentido da
procriação, vinculadas pela ideia de rebaixamento, expressas pelos gestos como defecar,
comer, beber, assim como as partes do corpo destacadas pela boca, falo, nariz, ventre.
Essas imagens exteriorizavam a relação que o corpo popular possuía com os princípios
vitais do homem no mundo.146
Assim, a construção desse mundo paralelo, a partir do riso popular, tinha como
estratégia a transferência desses rituais oficiais para o plano do baixo material corporal.
A paródia surgia nesse mundo carnavalizado como lugar real da manifestação de um
mundo “às avessas”. É desse modo que o conceito de riso foi interpretado pelo autor
como um elemento de resistência, pois as formas cômicas da praça pública indicavam
que, através do riso – situado às margens de uma cultura séria – consolidaram-se modos
de significar que, baseados no excesso, destronavam, por meio da paródia, as linhas de
pensamento oficiais.147
O destronamento das verdades sedimentadas pelo discurso oficial – na
perspectiva cômica – atua como princípio que rege os ritos do carnaval medieval,
libertando o homem de qualquer dogmatismo religioso, fazendo das formas
carnavalescas, uma paródia dos cultos religiosos e das festas oficiais.
Desse modo, o carnaval está vinculado à esfera cotidiana, situada:
146
CAMINHA, SANTOS FILHO, 2010.
147
Ibidem.
148
BAKHTIN, 2005, pp. 6-8.
61
149
BAKHTIN, 2005, p. 10.
150
Sobre o estudo entre literatura e carnavalização: Cf.: NIGRIS, Mônica Éboli. Deglutição Cultural: riso
e riso reduzido no Brasil na última década do século XX. Universidade de São Paulo – USP. 2006. p. 70.
151
NIGRIS, 2006, p. 68.
152
Na perspectiva bakhtiniana, a paródia recai sobre os textos sagrados, as indecências carnavalescas
substituem o comportamento e a linguagem séria e oficial e as referências ao corpo e à força produtora da
terra substituem o sublime e o sagrado. Cf.: NIGRIS, Mônica Éboli. Deglutição Cultural: riso e riso
reduzido no Brasil na última década do século XX. Universidade de São Paulo – USP. 2006. p. 67.
153
CASTELO BRANCO, 2005, p. 28.
62
Nesse sentido, a possível ligação entre estas heranças do tipo cômico medieval –
analisados por Bakhtin – dentro de um novo princípio de organização histórica e
estética, em que “O Palhaço Degolado” está inserido, parte da perspectiva paródica e
carnavalesca, contido no excesso performático do corpo clown, aos discursos
dominantes (sérios) que informam a noção de “cultura brasileira”, baseados na
tropicologia freyreana e pelo armorialismo em Ariano Suassuna.
Em entrevista, Jomard revela que o filme:
154
BAKHTIN, 2005, p. 17.
155
Entrevista concedida a Aristides Oliveira, na noite de 24-10-2011, às 19h, na residência de Jomard, em
Recife.
63
156
HUTCHEON, Linda. Uma Teoria da Paródia. Tradução de Teresa Louro Pérez. Rio de Janeiro:
Edições 70, 1985. pp. 49-50.
157
Apud. Hutcheon, 2009, p. 53.
158
CAMINHA, Marina. Retrato falado: uma fábula cômica do cotidiano. Dissertação de Mestrado.
Universidade Federal Fluminense/UFF, 2007.
159
Ibidem.
160
Ibidem.
64
lutas”.161 Esta disputa é o lugar através do qual é possível visualizar a lógica no interior
da paródia, que está na “sua capacidade de conter ambivalência no interior do seu
enunciado”.162
Tomando a paródia como recurso crítico, podemos afirmar que “O Palhaço
Degolado” atua como agente que se opõe à obra armorial, gerando um jogo de espelhos
entre o “reinado” dos dois intelectuais citados no filme e o espírito clown163. Imerso no
corpo difuso de Jomard Muniz de Britto, a paródia faz com que ela penetre, dentro de
suas possibilidades táticas, “naquela outra fala [discurso oficial da cultura brasileira],
uma intenção que se opõe diretamente à original. A segunda voz [Palhaço], [...] entra
em antagonismo com a voz original que a recebeu, forçando-a a servir a fins
diretamente opostos”.164
Para que a inversão na palavra ganhe potência – no sentido desestabilizador da
obra armorial, para se converter em deslocamento ao baixo corporal jomardiano – não
basta fazer reflexões em torno do trocadilho acima, pois todo o conjunto do filme deve
estar em sintonia com a proposta estético-política em que o autor está localizado.
Desse modo, é preciso dialogar com os principais elementos que compõem a
obra, desde a movimentação do ator nas locações escolhidas e sua relação com o
contexto na época, posicionamento de câmera, circulação do produto audiovisual e
incorporação do personagem e figurino.
Em relação à construção do personagem, Jomard nos conta que sempre gostou:
161
CAMINHA, 2007.
162
Ibidem, 2007.
163
Relativo a palhaço. “Clown é uma palavra inglesa, cuja origem remonta ao século XVI, derivada de
cloyne, cloine, clowne. Sua matriz etimológica reporta aos colonus e clod, cujo sentido aproximado seria
homem rústico, do campo. [...] homem desajeitado, grosseiro. [...] No universo circense o clown é o
artista cômico que participa de cenas curtas e explora uma característica de excêntrica tolice em suas
ações. Até meados do século XIX, no circo, o clown tinha uma participação exclusivamente parodística
das atrações circenses e o termo, então, designava todos os artistas que se dedicavam à satirização do
próprio circo. Posteriormente, esse termo passou a designar um tipo específico de personagem cômica,
também chamado de Clown Branco, por conta do seu rosto ‘enfarinhado’, que tem no outro palhaço, o
Augusto, o seu contrário”. Cf.: BOLOGNESI, Mário Fernando. Palhaços. São Paulo. Ed. UNESP, 2003.
164
SANTA’ANNA, Afonso Romano de. Paródia, Paráfrase & Cia. Ed. Ática, 1985. p. 14.
65
assistiu aqui no Recife, [...] ele disse: “por que O Palhaço Degolado?”
Aí eu falei: “isso não me interessa não” (risos).165
165
Entrevista concedida a Aristides Oliveira, na tarde de 07-10-2010, às 16h25, na residência de Jomard,
em Recife.
166
BOLOGNESI, Mário Fernando. Palhaços. São Paulo. Ed. UNESP. 2003. p. 44.
167
Ibidem, pp. 72-197.
168
O Augusto, embora seja um cômico por natureza, não deixa de retratar a miséria de seu personagem.
Ele faz isso explorando seu ridículo. É ele quem representa a humanidade açoitada, pois passa parte de
sua vida sendo espancado e humilhado. Essa é a personagem que melhor retrata o cotidiano, as emoções
do homem. Cf.: PANTANO, Andeia Aparecida. A Personagem Palhaço. São Paulo: Editora Unesp,
2007. p. 45.
66
armadilhas para aquela personagem, que acaba executando suas ações de forma
atrapalhada, mas, em meio a tantos risos, tropeços, pancadarias e desencontros, o
“Augusto” acaba se dando bem na cena.169
Figura 2:
Jomard Muniz de Britto interpretando “O Palhaço Degolado”, vestindo uma roupa do tipo Clown Branco.
169
PANTANO, 2007, p. 44.
170
BOLOGNESI, 2003, pp. 197-198.
171
Ibid.id., pp. 197-198.
172
Ibid.id, 2003, pp. 197-198.
173
Ibid.id., 2003, pp. 197-198.
67
nariz é levemente traçado por um círculo pintado de preto, com fundo branco e a região
da boca preenchida de tinta, cobrindo parte das bochechas encurvadas para baixo.174
A importância da máscara neste processo se dá no diálogo com o corpo do ator,
pois além de representar o que Jomard está sentindo vestido de palhaço, ela será
fundamental para fazer do corpo, o sustentáculo de ação e criação das cenas elaboradas
no filme. Ao “esconder o rosto, o corpo apresenta-se plenamente e cabe a esse orientar
todas as ações do ator a fim de expressar, da melhor forma possível, todas as emoções
desejadas, onde a performance é exigida para o corpo falar a partir de sua teatralização e
movimento” em diálogo com o novo sentido gerado na expressão facial, formador de
um conjunto corporal singular.175
Nesse sentido, retomando as palavras de Bakhtin, a simbologia da máscara
afirma “a alegre negação da identidade e do sentido único, a negação da coincidência
estúpida consigo mesmo; a máscara é a expressão das transferências, das metamorfoses,
das violações das fronteiras naturais, da ridicularização [...]; encarna o princípio de jogo
da vida”.176
Tal inspiração vem de uma realidade vivida, pois todo ato artístico é atravessado
por um conjunto de inquietações, marcadas pelas valorações e anseios sociais do artista,
que se deslocam do plano real para o plano da obra. “O Palhaço Degolado” é um
produto artístico resultante da transposição de um fragmento da vida de Jomard Muniz
de Britto para o plano da ficção177, em que o autor se veste de palhaço e atua como tal.
Expõe suas piruetas, chistes, gritos, questionamentos e a convivência direta com o
problema vivido (o repensar da cultura brasileira nos tempos da repressão).
O filme se apresenta como vestígio de uma época marcada pela perseguição e
cerceamento das vozes incompatíveis aos planos de uniformização do pensamento
artístico e político pelo Estado autoritário, no qual seu personagem representa:
174
PANTANO, 2007, p. 54.
175
Ibidem, p. 56.
176
BAKHTIN, 2005, p. 35.
177
FARACO, Carlos Alberto. Autor e autoria. In: BRAIT, Beth (Org.). Bakhtin: conceitos-chave. 4ª ed.
São Paulo, Contexto. 2010. p. 38.
68
estéticos, pois, se assim fosse, não seria viva, não iríamos ‘sentir’ sua
significação estética.178
178
BEZERRA, Paulo. Polifonia. In: BRAIT, Beth (Org.). Bakhtin: conceitos-chave. 4ª ed. São Paulo,
Contexto. 2010. p. 199.
179
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1996. p. 9.
180
ALBUQUERQUE JR, Durval Muniz. Nos Destinos da Fronteira: história, espaços e identidade
regional. Recife: Bagaço, 2008. p. 173.
69
no suporte fílmico, em que seus movimentos e ações seguem um eixo determinado pela
linguagem cinematográfica.
O espectador de “O Palhaço Degolado” está sintonizado em outra relação com a
obra (é preciso ver o filme até o fim para internalizar as inquietações, indiferenças,
opiniões e não intervir diretamente no espetáculo, como no circo). O filme apresenta-se
como produto final, exibindo ao público seu conteúdo, que pode ou não provocar
repercussão, que no caso em questão, gerou um conjunto de polêmicas que
aprofundaremos a seguir.
Sala escura, a plateia faz silêncio, o rolo e sua ponta inicial são colocados no alto
do projetor, passando pela janela de projeção, as rodas dentadas são ativadas e o filme é
puxado, lançando para a tela as primeiras imagens do espetáculo. O rolo gira.
Plano geral: abrem-se os letreiros elaborados na entrada de um ambiente
circense, com a apropriação da trilha composta por Julius Arnost Vilem Fucik, a famosa
música Einzug der Gladiatoren181 (1897), tema tocado na maioria dos circos. Os textos
estão inseridos no centro da imagem, mudando de um crédito ao outro em fade in/out.182
O circo é desenhado de forma sombria, no qual toda a lona que cobre o desenho
aparece na cor preta, com três bandeiras da mesma cor que o circo, fincadas (nas
extremidades e no topo central) na parte superior, tremulada pelo vento que as direciona
para o lado direito da tela, assim como sugere o trajeto das cinco nuvens negras que
alimentam a densidade sombria do desenho. A porta de entrada, ocupada pelos créditos
de abertura do filme são formadas por duas bases de apoio que sustentam uma tenda
vermelha acima dos letreiros. Após a exibição dos mesmos, o circo se desfaz em fade
out no som e na música.
181
Entry of the Gladiators, march for orchestra, Op. 68 – ou em português: “Entrada dos Gladiadores,
marcha para orquestra, número 68”.
182
Passagem de uma imagem/informação a outra, a partir de efeitos de transição, no qual o elemento
ativado na edição inicia seu desaparecimento gradual para que, no pequeno intervalo existente entre um
dado e outro, seja possível aparecer à nova informação. O Fade In é o efeito que consiste em pegarmos
uma imagem (cena) e a escurecermos gradativamente, até que ela torne-se uma imagem totalmente preta.
O Fade Out é basicamente o efeito oposto ao Fade In, nele, pegamos a imagem totalmente preta, e a
clareamos até que ela se torne na imagem original (Ou seja, a próxima imagem que aparece no visor).
Disponível em:
<http://supersayajinbr.spaces.live.com/blog/cns!2149DACFC36BA656!166.entry?sa=727013727>.
Acesso em: 21 fev. 2011, às 11h53.
70
Figura 3:
Abertura: introdução à atmosfera circense que irá compor todo o filme.183
183
Os créditos foram alterados devido à baixa resolução da cópia anterior, necessitando digitalizar o
mesmo. Sono Vídeo Produções, Recife.
71
que legitimam a cultura brasileira nos anos de chumbo, vistas por Jomard Muniz de
Britto como problema, e não fórmula acabada.
Um dos argumentos centrais que podemos interpretar inicialmente no filme é de
que o discurso tradicionalista, em vez de afirmar a pluralidade, reforça as fronteiras do
autoritarismo e camuflam as lutas sociais de grupos que reivindicam o debate sobre os
fundamentos que formam nosso caráter nacional. Grupos esforçados em se deslocar do
aprisionamento nacionalista radical, fundado em planejamentos impostos por uma
minoria intelectual, que prescreve a cultura brasileira em traços definitivos, para atender
o interesse da Nação militarizada. As cortinas foram abertas! O picadeiro está armado
em concreto, que toquem os tambores, o espetáculo vai começar!
72
73
2. SEGUNDA ENTRADA.
Figura 4:
O Palhaço inicia suas provocações a Gilberto Freyre.
Antes de aprofundar a análise das cenas a seguir, é preciso deixar claro que, para
penetrar nas tramas e jogos d’O “Palhaço Degolado”, não devemos nos prender às
imagens particulares do filme, tomando as cenas em compartimentos – isolando-as de
seu contexto histórico – mas todo seu conjunto imagético, vocal, estético, discursivo e
corporal contida na obra de Jomard, dentro das suas possibilidades de exploração, aliada
à literatura produzida em torno deste debate cultural que informa sua produção.
Incorporando o personagem, seu corpo dialoga em um cenário atravessado
historicamente entre repressão e tradicionalismo, em sintonia com uma performance que
torna a máscara clown, um ponto de impulso para fazer dos gestos corporais a conexão
com o texto de Wilson Araújo, adaptado à sua declamação.
O filme apresenta-se “como uma arena em miniatura, onde se entrecruzam e
184
lutam os valores sociais de orientação contraditória” ao discurso oficial. Cada
entonação, que dá vida ao texto, pode ser entendida no conjunto de “valores atribuídos
e/ou agregados aquilo dito pelo locutor posicionado historicamente frente ao seu
público”.185
O Palhaço, quando produz sentido aos enunciados que informam uma
consciência tropicológica de cultura nacional, da qual ele não se sente parte constituinte,
– destacados pela ironia e escárnio – faz com que suas palavras e ações dialoguem:
184
STELLA, Paulo Rogério. Palavra. In: BRAIT, Beth (Org.). Bakhtin: conceitos-chave. 4ª ed. São
Paulo, Contexto. 2010. p. 178.
185
Ibid.id., 2010, p. 178.
75
186
STELLA, 2010, p. 178.
76
187
MAIA JR, 2007.
188
Refere-se à movimentação e posicionamento no palco, bem como no set de filmagem.
189
FREYRE, apud. BURKE, Maria Lúcia Garcia Pallares. Gilberto Freyre: um vitoriano nos trópicos.
São Paulo. Editora UNESP, 2005. p. 273.
77
190
BEZERRA, Amilcar, SANTOS FILHO, Francisco A. de O. Interlocuções provocativas em Super 8:
"O palhaço degolado" e o debate cultural no Recife dos anos 1970. In: X CONGRESSO DE CIÊNCIAS
DA COMUNICAÇÃO NA REGIÃO NORDESTE, 2008, São Luís. Anais de Congresso. São Luís:
INTERCOM Nordeste, 2008.
191
PALLARES-BURKE, 2005, p. 271.
192
Ibid. id.
193
Ibid. id.
194
Ibid. id.
78
195
AZEVEDO, Thales de. Gilberto Freyre e a reinterpretação do mestiço. In: AMADO, Gilberto,
Gilberto Freyre: sua ciência, sua filosofia, sua arte. Rio de Janeiro: José Olympio Editora. 1962.
196
Ibidem.
197
PALLARES-BURKE, 2005, p. 266.
198
Escrevia artigos nos Estados Unidos e atuou como colaborador no jornal Diário de Pernambuco com a
coluna Da Outra América. Para Maria Lúcia: “Nos artigos, [...] Freyre deixou transparecer os
preconceitos, com toda probabilidade, compartilhava com muitos de seus leitores”. Cf.: BURKE, Maria
Lúcia Garcia Pallares. Gilberto Freyre: um vitoriano nos trópicos. São Paulo: Editora UNESP, 2005. p.
267.
199
“Décadas mais tarde [...] [publicou] uma versão em português de sua tese de 1922 e cortou vários
trechos que destaca sua simpatia com o branqueamento, não obstante seu ‘esforço de autocrítica’ e sua
decisão de somente alterar ‘pormenores de superfície’. Tanto a referência ao ‘melhoramento da raça
escrava’ devido à mistura com uma raça superior, ou, como disse, ‘do melhor sangue’, quanto à analogia
com a famigerada Ku Klux Klan devem ter-lhe parecido embaraçosas em demasia”. Cf: BURKE, Maria
79
Lúcia Garcia Pallares. Gilberto Freyre: um vitoriano nos trópicos. São Paulo: Editora UNESP, 2005. p.
267.
200
LIMA, apud. PALLARES-BURKE, 2005, p. 272.
201
PALLARES-BURKE, 2005, p. 272.
202
Ibid.id., pp. 280-281.
203
Ibid. id.
204
Ibid. id.
80
Para o autor, era preciso alertar as consequências provocadas pelo aumento das
“raças de cor” no mundo, que resultava na diminuição da “raça branca”, algo desastroso
para a civilização em progresso. Escreveu para um público que vivenciou o abalo da 1ª
Guerra Mundial e o processo de “descaracterização” étnica dos norte-americanos, cujo
passado fora de traços nórdicos e, segundo o autor, vive os “efeitos dramáticos” da
invasão das raças inferiores que ameaçam de extinção a herança branca. Lothrop
exaltava os homens puros, lembrando a todos da força dos “laços de sangue e cultura”,
que deviam manter acesos, para lutar contra uma realidade marcada pela perda de status
nas relações geopolíticas e culturais.
Para evitar o “escurecimento” do globo, os brancos precisavam somar todas as
potências humanas e políticas, para forçar o reconhecimento em torno do rigor na
aplicação das medidas de restrição a imigrantes, garantindo a segurança de que a
supremacia branca não será afetada pela “maré crescente de cor”.206
Apoiando-se em princípios científicos da época, Lothrop defendia a tese da
ampliação do cerco contra a imigração porque, para ele, seria:
205
PALLARES-BURKE, 2005, p. 284.
206
Ibid. id.
207
Apud: PALLARES-BURKE, 2005, pp. 280-281.
81
208
PALLARES-BURKE, 2005, p. 285.
209
Ibid. id.
210
Ibid. id.
211
Ibid. id.
82
miscigenação, ao cruzar grupos de “qualidade diversa” e duvidosa iria gerar nos povos
em formação, a inexorável esterilidade biológica e cultural, destruindo todos os esforços
de civilização ordenada pela pureza racial.
A segunda postura propõe-se mais flexível diante da primeira abordagem, ao
“procurar nos libertar dessa suposta condenação à barbárie”.212 Partindo também da
lógica envolvendo a miscigenação, há uma inversão do seu direcionamento, opondo-se
a ideia de que a mistura racial é a responsável “pela nossa ruína”, mas uma
possibilidade que pode garantir “a redenção” do Brasil.
Nesse sentido, acreditava-se que a mestiçagem poderia ser considerada um meio
importante no processo de branqueamento do Brasil,213 em que seria possível “assegurar
um gradual predomínio” dos elementos brancos no interior da alma e da carne dos
mulatos em transformação, numa lenta limpeza das “manchas escuras” que afetam a
moral da nação.214
A experiência intelectual vivida nessas leituras e posicionamentos por Gilberto
Freyre no Brasil e exterior, coloca-o de frente com o debate racial, através do contato
com outros autores,215 além de Grant e Lothrop, que acreditam no branqueamento como
solução para eliminar as “ameaças” do mundo branco.
A intenção de expor esse panorama – que abre os caminhos para entender o
processo de consolidação do olhar de Freyre diante da cultura brasileira – não deve ser
minimizado, pois faz parte do entusiasmo do sociólogo na época, que iniciava suas
leituras e experimentos teóricos, que o levaram ao encontro da mestiçagem, enquanto
fundamento positivo para o Brasil.
Desse modo, vale lembrar que é necessário tocar nessas questões, para que a
perspectiva histórica não se perca. Devemos reconhecer que, apesar de sentirmos certo
estranhamento pelo fato de Freyre nesse período ter simpatizado com movimentos como
a Ku Klux Klan,216 possuir preconceito com negros e estar sintonizado nos pressupostos
212
ARAÚJO, Ricardo Benzaquen de. Guerra e Paz: Casa Grande & Senzala e a obra de Gilberto Freyre
nos anos 30. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994. p. 29.
213
“[…] dentro de um prazo determinado, calculado eventualmente em cerca de três gerações ou mais ou
menos 100 anos (Cf. Seyferth, 1985) acreditava-se que a herança negra estaria definitivamente erradicada
do Brasil”. Cf.: ARAÚJO, Ricardo Benzaquen de. Guerra e Paz: Casa Grande & Senzala e a obra de
Gilberto Freyre nos anos 30. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994. p. 29.
214
Ibid. id.
215
Oliveira Lima, William Z. Ripley, Agassiz, Charles Benedict Davenport, Edwin Black.
216
[...] espécie de maçonaria guerreira, organizada pelo velho Sul num esforço de resistir à humilhação
que o “arrogante” Norte lhe infligira, como ele esclareceu a seus leitores em 1926. Já em 1944 afirma
que, “por mais que o ‘respeito à variedade’ do continente americano fosse um valor a ser prezado, este
não poderia jamais incluir a ‘tolerância para com instituições tão antidemocráticas e tão antiamericanas
83
eugênicos, é fundamental destacar esse aspecto, pois na sua época era considerado um
sistema de pensamento “respeitável e cientificamente convincente”.217
Assim podemos definir um novo momento na sua busca intelectual sobre o
Brasil, pois a partir dessas inquietações, seus impasses o levam a “Casa Grande &
Senzala”. “É como se o jovem Freyre tivesse de conhecer e admirar o racismo numa de
suas formas mais extremas para que, finalmente, pudesse se livrar dele”.218
Três anos após afirmar suas concepções sobre branqueamento, de acordo com as
opiniões em voga, Freyre escreve “Vida Social no Nordeste – aspectos de um século em
transição”, um dos artigos produzidos para o livro comemorativo do centenário do
“Diário de Pernambuco” e o “Livro do Nordeste” (1925).
Segundo Maria Lúcia, o artigo apresenta-se com olhar mais crítico do que a tese
de 1922, na qual a ideia de branqueamento deixa de ser vista como caminho seguro para
solucionar a problemática racial. Nesse sentido, a autora afirma que “só en passant há
referências a um ‘possível clarificamento étnico’ em curso”219, mas ainda não é possível
perceber em Freyre a mestiçagem como ponto principal de suas inquietações.
Nesse momento de sua trajetória, Freyre se encontrou instável, em relação ao
debate em torno do branqueamento e da possível “solução do suposto problema racial”.
Para Maria Lúcia, “ele não tinha ainda em 1925, no entanto, a convicção de que a
mestiçagem não implicava patologia. Reconhecia que a formação e a vida da família
brasileira haviam sofrido a influência africana e que havia um legado a ser valorizado”.
220
Mesmo imaginando que mistura racial poderia ser uma possibilidade viável de
ter “trazido à plástica brasileira uma nota de exótica beleza e de resistência ao clima
hostil, não foi considerada por Freyre, nessa ocasião, como característica da qual os
brasileiros pudessem, sem dúvida nenhuma, orgulhar-se”221. Para que fosse possível
amadurecer esta concepção, o sociólogo “tinha de se libertar de preconceitos contra
negros e mestiços muito difundidos em seu tempo”.222
226
PALLARES-BURKE, 2005, pp. 303-304-305.
227
Ibidem, p. 307.
228
Ibid. id.
229
Ibid. id.
230
Ibid. id.
231
Ibid. id.
232
Ibid. id.
233
ALBUQUERQUE JR, Durval Muniz. A Invenção do Nordeste e outras artes. Recife: FJN. Editora
Massangana; São Paulo: Cortez, 2006. p. 93.
234
Para Durval Muniz, a sociologia de Gilberto Freyre era menos relativista que a de Franz Boas. O autor
afirma: Para ele [Boas], havia características gerais nos povos que nasciam das interações entre raça e
ambiente, que se não eram determinantes como dados naturais, eram indicadores de relações sociais e
culturais. Para Freyre, a sociedade brasileira se caracterizava, por exemplo, não só pela miscigenação
cultural que daí adveio. É exatamente no campo cultural que ele buscará compreender nossa identidade
como nação e a contribuição do regional nessa formação da nacionalidade. Cf.: ALBUQUERQUE JR,
Durval Muniz. A Invenção do Nordeste e outras artes. Recife: FJN. Editora Massangana; São Paulo:
Cortez. 2006, p. 94.
86
Afirma ser possível valorizar as potencialidades dos homens mestiços, citando alguns
nomes de peso intelectual na cultura brasileira, como Machado de Assis, Aleijadinho e
Ruben Dario, provando que o discurso legitimador do branco em relação ao negro não
passa de “oco palavrório”.235
No prefácio à 1ª edição de “Casa Grande & Senzala”, Freyre afirma que o
antropólogo lhe possibilitou:
235
PALLARES-BURKE, 2005, p. 308.
236
FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime da
economia patriarcal. 50ª ed. São Paulo: Global, 2005. p. 31.
237
Ibid. id.
238
PALLARES-BURKE, 2005, p. 263.
239
Diário de Pernambuco, 19/09/1926.
240
PALLARES-BURKE, 2005, pp. 263-318.
87
241
LARRETA, Enrique Rodriguez. GUICCI, Guilhermo. Gilberto Freyre: uma biografia cultural. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. pp. 317-318.
242
LARRETA. GUICCI, 2007. pp. 317-318.
243
Ibid. id.
244
FREYRE, Gilberto. Homem, cultura e tempo. Lisboa: Casa Portuguesa, 1967. Disponível em:
<http://prossiga.bvgf.fgf.org.br/portugues/obra/opusculos.html >. Acesso em: Abril/Maio de 2011.
88
Plano geral de conjunto: agora é possível identificar – através dos elementos que
definem o cenário de atuação - a locação no qual a filmagem está sendo realizada: a
Casa da Cultura de Recife. Situado o local, é possível interpretar a relação entre o
personagem e o significado do espaço para o audiovisual na época.
O local, que se transformou em Casa da Cultura na época, foi antes um presídio
que funcionou entre 1867 a 1973, no qual a performance que movimenta a sequência
problematiza sua verticalidade imponente, em contraponto aos movimentos
desordenados do Palhaço, que cruzam com a frieza arquitetônica da fachada.
Construída em estilo Neoclássico do século XIX, a atual Casa da Cultura
funcionou como cárcere de transferência por 118 anos em Recife, até o momento em
que o Estado decidiu fechar a Casa de Detenção, em 15 de março de 1973:
245
Casa da Cultura de Pernambuco. Impresso. Sem ano.
89
Cena 2:
“Democracia racial, ao seu modo. Morenidade, brasilidade, a seu modo Luso-
tropicologia, a seu modo. Regionalismo ao mesmo tempo modernista & tradicionalista,
a seu modo. [...] Democracia, relativíssima, a seu modo”...
A declamação transcrita acima é uma continuidade das citações formuladas, que
nos levam a aprofundar o universo teórico desenvolvido por Freyre durante sua
trajetória intelectual, no processo de formação do discurso sócio-cultural brasileiro,
como estamos observando até o momento.
A respeito dessa cena, é possível nos deslocarmos para outras fases do
sociólogo, que vai da organização do Movimento Regionalista, passando por “Casa
Grande Senzala” e a tropicologia, sua relação com a política no regime militar e o modo
como a noção de “cultura brasileira” é incorporada pelas camadas dominantes de
pensamento na década de 60.
Quando o Palhaço diz: “Regionalismo ao mesmo tempo modernista &
tradicionalista”, podemos associar ao período em que Gilberto Freyre escrevia nos
Estados Unidos246 e seu retorno ao Brasil em março de 1923. Em terras brasileiras,
Freyre encontra uma paisagem “desfigurada”, além de cidades que, para ele, estão
“estragadas pelo mau gosto, pelo mau comercialismo, pelo falso Progresso. [...] Eu por
mim me sinto um tanto estrangeiro no Recife de agora. O meu Recife era outro”.247
Reagindo às mudanças que Recife sofria diante da modernização, Freyre inicia
uma série de críticas às condições que vivia a cidade naquela época, que o torna figura
bastante discutida e comentada nos círculos intelectuais, aparecendo críticos e
seguidores, como nos mostra Arnaldo Lopes no artigo “Ridículos”, encontrado na
revista “A Pilhéria” (1925), ao relatar sobre a chegada do sociólogo na cidade:
246
Da Outra América, no Diário de Pernambuco, entre 1918-1922.
247
AZEVEDO, Neroaldo Pontes. Modernismo e Regionalismo: os anos 20 em Pernambuco. Paraíba:
Secretaria de Educação e Cultura da Paraíba, 1984. p. 126.
90
248
Apud. AZEVEDO, 1984, p. 126.
249
10/02/1924, no artigo “43” do Diário de Pernambuco.
250
AZEVEDO, 1984, p. 131.
251
Entrevista concedida a Aristides Oliveira, na manhã de 28/10/2011, nas locações do filme, na Casa da
Cultura.
91
Figura 5:
O Palhaço desbanca o pavilhão de quitutes pernambucanos.
Cena 3
“Ai, que saudades dos quitutes e dos quindins preparados pelas sinhazinhas
formosas em seus engenhos e pelas piedosas freirinhas em seus conventos. Ai, que
saudades, porque um povo só se conhece e se preserva pela sua cozinha”...
Com ironia aos ensopados de peixe ao leite de coco, cocadas e doces de caju em
calda, a cena faz alusão à fase que Freyre esboça com um grupo de intelectuais –
oriundos de um passado colonial oligárquico – as diretrizes do Movimento Regionalista,
espaço de trânsito na produção de “Casa Grande & Senzala”.
O filme nos desloca ao período em que a preocupação em torno do regional
começa a ganhar linhas de força com Gilberto Freyre e vários intelectuais
pernambucanos, conscientes da crise político-econômica que vivia o Nordeste. Para
eles, anular a memória para o novo seria um risco, tomando os elementos da tradição
nordestina como discurso primordial. Dessa forma, os monumentos materiais e
imateriais construídos ao longo da história da cultura brasileira, fortalecer-se-iam no
eixo que impedisse as descontinuidades de um passado em crise.252
A recessão econômica em Pernambuco dá suporte para a defesa regional,
movida pela consciência de ir ao encontro do passado ideal, localizado no seio do
Nordeste, lugar “puro e livre dos estrangeirismos”, mas, se este espaço não for tratado
com dedicação e largo investimento restaurador, pode perder-se rapidamente. A ameaça
252
SANTOS FILHO, Francisco Aristides de Oliveira. O Palhaço Degolado afrontando as veredas da
tradição: o super-8 jomardiano como instrumento de transgressão e crítica da noção de “Cultura
Brasileira” nas décadas de 60/70. Monografia. Teresina: UFPI, 2009. p. 33.
92
faz com que esse grupo adote uma visão romantizada253 e preservacionista do tempo e
território a ser tratado, valorizando os símbolos que indiquem ligação com o passado.
O declínio de capital investido na atividade açucareira nos anos 30 é reflexo da
fragilidade em que se encontram as barreiras que delimitam a hegemonia econômica do
Nordeste, espaço que rapidamente perde o posto de centro das decisões nacionais,
desviadas pela crise e desestruturação dos mercados externos, gerando forte carência de
financiamento na região. Para “os grupos afetados, de proprietários de engenhos, que
vinham perdendo poder no âmbito nacional, a crise rebate sob a forma de preocupação:
a manutenção do controle do espaço regional (tradicional)”.254
O recurso mais viável para evitar o desaparecimento das manifestações
“autênticas” do Nordeste, vem do sentimento de reação negativa à modernização
socioeconômica paulista. Não se admitia a “descaracterização” da cultura nacional e
absorção dos “modismos” importados da Europa, onde as famílias tradicionais buscam
no aconchego saudosista dos canaviais corroídos pela usina, “armaduras” que
cicatrizem todas as perdas de seus territórios político-econômicos, mobilizando a
apropriação de “símbolos, de tipos, de fatos, para construir um todo que reagisse à
ameaça de dissolução, numa totalidade maior, agora não dominada por eles: a nação.
Unem-se forças em torno de um novo recorte do espaço nacional”. Existe a necessidade
urgente em traçar fronteiras mais rígidas que possa proteger os canaviais das incertezas
da modernidade. “Descobrem-se “região” contra a “nação”.255
Durval Muniz afirma que a construção do discurso regionalista surge na
“segunda metade do século XIX, à medida que se dava a construção da nação e que a
253
Para Mário Hélio, na obra de Gilberto Freyre: O que num primeiro momento pode indicar uma mera
humildade científica ou incapacidade teórica, na verdade oculta um romantismo latente e nunca de todo
suplantado na conjunção de seus métodos e os seus resultantes em pensamento. Nunca ele se livrou do
próprio eu. O seu objetivo máximo sempre foi à liberdade própria, a independência, a expressão à
vontade. Mário Hélio, citando Andrés Ortiz-Osés, nos direciona a compreensão de que a relação entre
Freyre e outros intelectuais regionalistas, na luta pela preservação da cultura nordestina só foi possível
pelo fato de que: As visões de mundo e as cosmovisões expressam nossas concepções do real em
arquetipologias, mitologias e imagens do ser experiencial, projetando diretrizes da existência e
estabelecendo nexos de nossas vivências. As visões de mundo significam nossos modelos existenciais e
nossas pautas intelectuais de conduta, já que funcionamos como marcos de crenças compartilhadas em
torno de uma matriz axiológica de caráter cultural, chegando a constituir-se em filosofias ou sistema de
valores de estampagem coletiva. Cf.: LIMA, Mário Hélio Gomes de. A História do Brasil como
realmente foi e é. In: DANTAS, Elisalva Madruga. BRITTO, Jomard Muniz de. Interpenetrações do
Brasil: Encontros & Desencontros. João Pessoa: Editora Universitária UFPB, 2002. p. 56.
254
SILVEIRA, Rosa Maria Godoy. Nordeste e Contradições. In: BRITTO, Jomard Muniz. DANTAS,
Elisalva Madruga. Interpenetrações do Brasil: encontros e desencontros. João Pessoa: Ed.
Universitária/UFPB, 2002. p. 95.
255
ALBUQUERQUE JR, 2006. p. 67.
93
256
O regionalismo anterior à década de vinte não tinha radicação no discurso sociológico. A região
sociologicamente instituída ainda não tinha surgido. A região passa a ser pensada com um problema
social e cultural, com a emergência de uma nova formação discursiva. Gilberto Freyre e sua definição
sociológica de região só se tornam possíveis neste momento. Cf.: ALBUQUERQUE JR, Durval Muniz. A
Invenção do Nordeste e outras artes. Recife: FJN. Editora Massangana; São Paulo: Cortez, 2006. p. 86
257
Ibid. id.
258
Ibid. id.
259
SILVEIRA, In. BRITTO, DANTAS, 2002, p. 95.
260
SILVEIRA, In. BRITTO, DANTAS, 2002, p. 95.
261
ALBUQUERQUE JR, 2006, p. 49.
94
Desse modo, textos como “Casa Grande & Senzala”, escrita “por um filho da
República Velha, indicam esforços de compreensão da realidade brasileira realizados
por uma elite aristocratizante que vinha perdendo poder”.262
A ameaça de diluição dessas forças – social e política – obriga os intelectuais
conservadores a exercitarem um processo revisão do seu território, para resguardar o
reino ameaçado. Ou seja, buscam fortalecer o contato com suas raízes, fincadas no
passado colonial. E, alertas ao momento de crise, se esforçam para desnudar suas vidas
íntimas, contidas no “seio da família patriarcal [...] emprestado à ação do senhoriato
colonizador, ação que se prolonga, no eixo do tempo, da Colônia até o século XX, na
figura de seus sucessores, representantes das oligarquias.263
No Nordeste, o “novo regionalismo” é reforçado pelas elites pernambucanas,
temerosas em perder suas bases consolidadas desde o escravismo, aderindo ao
sentimento de positivação da identidade e das manifestações culturais locais. Exercem
um trabalho voltado para a ordenação de práticas e sentimentos ligados ao passado rural
do Nordeste, que permitam seu gradativo processo de integração no cotidiano urbano,
sem que os formuladores do discurso percam o poder de articulação social, optando
tomar a memória como recurso de defesa em relação à história, pois:
262
MOTA, Carlos Guilherme. Ideologia da Cultura Brasileira: 1933-1974. São Paulo: Editora Ática,
1977. p. 58.
263
Ibid. id.
264
ALBUQUERQUE JR, 2006, p. 79.
265
ALBUQUERQUE JR, 2006, p. 49.
266
Mario Sette, Gilberto Freyre, Odilon Nestor, Oliveira Lima, Moraes Coutinho, Souza Barros, entre
outros.
95
“Revista do Norte”,267 que atua com a clara finalidade de voltar-se para os anseios e
problemas da região Nordeste. Segue como metas: reviver as experiências do passado
perdido, valorizando os símbolos tradicionais e os costumes, voltando-se para os
aspectos que particularizam a região Nordeste.268
O sentimento de pertencimento e coesão das regiões são os nervos centrais do
movimento, que tomou Pernambuco como “a capital moral do Nordeste”, região
privilegiada na História do Brasil, por crescer distante das interferências e diluição
nacional, promovida pela inserção de elementos externos, alheios à realidade local.
A unidade cultural e geográfica faz do Nordeste um bloco monolítico carregado
de “originalidade”, visto como impossível de ser rompida, devido à valorização da terra
e às tradições, “permanente” na alma do nordestino. Para os regionalistas, Recife é o
núcleo irradiador da união entre as regiões, um dos espaços principais na formulação
das bases teóricas construtoras de um conjunto de enunciados legitimadores da “cultura
nordestina”.269
A convergência de ideais do movimento só é possível de ser vista com mais
nitidez com a fundação do Centro Regionalista (28 de abril de 1924), espaço
fundamental para unir intelectuais e simpatizantes no compartilhamento das ideias e
temas debatidos sobre cultura e política em Recife.270
Para Neroaldo Azevêdo, “só se poderá falar de um movimento regionalista na
década de 20 [...] se considerarmos a criação [...] do Centro Regionalista [...], que
arregimentou um número considerável de intelectuais”.271
Nesse sentido, o Centro vem propor o exercício:
267
Surge em 8 de outubro de 1923, na cidade de Recife e encerra suas atividades em 1952.
268
AZEVÊDO, 1984.
269
Ibid. id.
270
Para Neroaldo Pontes de Azevêdo, alguns teóricos informam datas diferentes relativa à fundação do
Centro Regionalista, como o próprio Joaquim Inojosa, que afirma ter início em 1925 ou José M. Gomes
que aponta o ano de 1926. As dúvidas frequentes também são presentes quanto à definição do fundador
do Centro, que circula entre Odilon Nestor, Moraes Coutinho e principalmente, Gilberto Freyre. No livro,
No Pomar Vizinho..., podemos encontrar um documento importante que ajuda a compreender
parcialmente o fato. Inojosa expõe uma carta recebida de Moraes Coutinho que vale a pena ser
mencionada para se pensar esse aspecto aparentemente acessório: “Regressando ao Recife [estava na
Europa], e verificando que as idéias regionalistas engatinhavam em perspectivas puramente locais, resolvi
escrever para a revista Ilustração Brasileira o artigo Pernambuco e o Regionalismo Nordestino [...]
Diante do entusiasmo por todos manifestado, propus que fundássemos um Centro Regionalista, para
defesa daquelas mesmas idéias, abrangendo, não apenas Pernambuco, mas tôda região nordestina. Criado
o Centro, dêle partira, meses depois por iniciativa de Odilon Nestor, a realização do 1ª Congresso
Regionalista do Nordeste”. Cf.: INOJOSA, Joaquim. No Pomar Vizinho... Fraudes Literárias de Gilberto
Freyre. (Separata do livro: O Movimento Modernista em Pernambuco). Rio de Janeiro: Guanabara, 1968.
271
AZEVÊDO, 1984, p. 141.
96
272
Ibidem, p. 143.
273
COUTINHO, apud: AZEVÊDO, pp. 143-144.
274
Se o Estado se lhes apresenta como padrasto, porque não intervém no espaço regional da mesma forma
que o faz no espaço regional cafeeiro (através de investimentos em obras públicas, estradas de ferro,
política imigrantista, etc), ele pode ser pai como o é para as províncias irmãs do Sul. Critica-se o Estado,
mas contemporiza-se, não se rompe com o mesmo, requer-se sua intervenção: engendra-se uma oposição
na situação, que constituirá, processualmente, uma estratégia política de barganha a nível nacional.
Conferir: SILVEIRA, Rosa Maria Godoy. Nordeste e Contradições. Cf: BRITTO, Jomard Muniz.
DANTAS, Elisalva Madruga. Interpenetrações do Brasil: encontros e desencontros. João Pessoa: Ed.
Universitária/UFPB. 2002. p. 96.
275
Existe uma polêmica histórica levantada pelo poeta e jornalista Joaquim Inojosa, quando se fala hoje
em Manifesto Regionalista, que segundo Gilberto Freyre foi escrito e lido no Congresso Regionalista em
1926. Inojosa declara que tal documento foi falsificado quando a sua datação, publicado somente em
1952 pela Fundação Joaquim Nabuco, acusando-o de ter praticado “a maior fraude de todos os tempos no
Brasil”. Usa dentre vários recursos para provar o fato, os depoimentos colhidos por ele de Odilon Nestor,
Edgar Teixeira Leite e Moraes Coutinho, que afirmam não lembrar a leitura do tal manifesto na época.
Conferir: INOJOSA, Joaquim. No Pomar Vizinho... Fraudes Literárias de Gilberto Freyre. (Separata do
livro: O Movimento Modernista em Pernambuco). Rio de Janeiro: Guanabara, 1968.
97
276
FREYRE, Gilberto. Manifesto Regionalista. 6º. ed. Recife: IJNPS, 1976, pp. 55-56.
277
A 1ª edição brasileira desta obra foi lançada em 1971.
278
FREYRE, Gilberto. Novo Mundo nos Trópicos. Rio de Janeiro: Top Books Editora, 2000, p. 123.
279
Ibid. id.
280
FREYRE, 2000, p.127.
281
Ibid. id.
98
quanto para o continente americano em toda sua extensão – é atuar como “contra-
colonização”, que antagoniza com as práticas de nacionalismo excessivo, ligadas ao
cosmopolitismo ou internacionalismo exagerado.
Apoiando-se nesse argumento, o regionalismo reaparece enquanto reação “ao
processo de estandardização da vida, patrocinado pelo imperialismo, e resistência à
visão de superioridade cultural que este carrega”.282 Toma como ponto central a questão
nacional, para justificar que o regionalismo foi uma atitude contra a colonização cultural
do país, que vinha se modernizando na lógica de incorporação dos comportamentos e
práticas burguesas europeias, considerado por ele como “descaracterizador” de sua
identidade cultural brasileira.
Esta afirmação nos leva a concluir que – a partir da reflexão de Durval Muniz –
“como a influência cultural se dava no âmbito regional, era aí que a defesa contra o
colonialismo cultural se devia fazer, e não no âmbito nacional, já que este seria uma
artificialidade política e não uma realidade cultural”.283
Sugere que, para conciliar os antagonismos, sem gerar tensões entre os diversos
elementos que definem a influência cultural brasileira (indígena, nacional e
supranacional), é preciso “assegurar-se, por uma combinação dos três, a constante e
estimuladora interação de todos esses antagonismos”.284
Sua face regionalista é resultante do reconhecimento das “potencialidades” do
Nordeste, que mobiliza o grupo de intelectuais, a fim de ampliar todos os esforços para
“encorajar no Brasil uma vida cultural mais espontânea através de mais livre expressão
de cultura por parte da gente das suas variadas regiões. O Nordeste, de onde partiu o
movimento, é dessas regiões com uma história particularmente rica”.285
A concretização mais visível de tais esforços está no desdobramento das
atividades realizadas no 1º Congresso Regionalista do Nordeste, ocorrido em fevereiro
de 1926, no Salão Nobre da Faculdade de Direito do Recife, presidido por Odilon
Nestor e secretariado por Gilberto Freyre. O programa-convite está segmentado em
preocupações de ordem econômico-social e artístico-intelectual, baseado nas palavras-
chave de “defesa e unificação”, a fim de valorizar no passado a “raiz” das tradições
nordestinas.
282
Ibid. id.
283
ALBUQUERQUE JR, 2006, p. 89.
284
FREYRE, 2000, pp. 117-119.
285
Ibidem, p. 120.
99
286
FREYRE, Gilberto. Manifesto Regionalista de 1926. Recife: Região, 1952. Opúsculo. Disponível em:
<http://prossiga.bvgf.fgf.org.br/portugues/obra/opusculos.html>. Acesso em: Abril/Maio de 2011.
287
Ibid. id.
288
FREYRE, 1952.
289
LIMA BRITO, Antônio de Pádua de. Ariano Suassuna e o Movimento Armorial: Cultura Brasileira no
Regime Militar, 1969-1981. Março de 2005. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal de
Campinas. 2005. p. 89.
100
290
FREYRE, Gilberto. Nordeste: Aspectos da Influência da Cana Sobre a Vida e a Paisagem do Nordeste
e do Brasil. 6ª ed. Rio de Janeiro: Record, 1989. p. 17.
291
Ibid. id.
292
Ibid. id.
293
FREYRE, 1989, p.35.
101
A respeito dessas questões, “O Palhaço Degolado” nos mostra mais uma cena
provocativa. Em rápido zoom out299, a câmera capta à contra luz o Palhaço na parte
superior da Casa da Cultura. Nesse momento do filme, a trilha sofre uma leve redução
de volume, para tornar a declamação mais nítida, onde o personagem fica parado por
294
MOTA, 1977, p. 28.
295
Caio Prado Júnior – Evolução Política do Brasil (1933), Sérgio Buarque de Holanda – Raízes do Brasil
(1936), Roberto Simonsen – História Econômica do Brasil (1937).
296
Ibid. id..
297
Ibid. id.
298
FREYRE, Gilberto. Pernambucanidade, nordestinidade, brasileiridade. Recife: s.n., 1970. Disponível
em: <http://prossiga.bvgf.fgf.org.br/portugues/obra/opusculos.html>. Acesso em: Abril/Maio de 2011.
299
É um movimento aparente de aproximação (zoom in) ou de afastamento (zoom out) em relação ao que
é filmado, provocado por uma manipulação das lentes da câmara, sem que a câmara em si execute
qualquer deslocamento ou rotação.
102
alguns segundos, com as mãos encostadas nas grades de proteção, na frente de uma das
janelas ensolaradas do prédio, olhando para o espectador.
Após a finalização do movimento de câmera, quando a imagem é ampliada
numa base entre o primeiro piso da locação ao ponto em que o Palhaço se encontra –
abrindo seu espaço de atuação – a personagem se lança em leves saltos com os braços
abertos, correndo da direita para a esquerda do plano.300
Na sequência de pulos e rodopios, no terceiro salto, ele se segura na grade,
marcando o momento do corte que o direciona para a direita, correndo e rodando com as
mãos agitadas, dando uma volta completa no contorno superior da Casa. A câmera
acompanha no andar abaixo, os passos desordenados do Palhaço, que pula, roda, abre os
braços e chega a insinuar um salto por cima da grade em direção ao piso inferior.
Intervém nas reflexões realizadas até aqui, fazendo uma série de
questionamentos aos esforços regionalistas, contidos nos discursos culturais freyreanos.
Nessa passagem do filme, o Palhaço amplia a crítica de Pernambuco para o
Brasil, expondo que o debate em torno da identidade brasileira configura-se não apenas
no âmbito nordestino, mas é fruto de um conflito intelectual atravessado por todo o país,
no complexo processo de disputa em torno da legitimidade das memórias da brasilidade,
de acordo com o interesse dos grupos que estão às sombras do poder político-cultural.
Cena 4:
“Onde escavar no Nordeste as mais legítimas raízes da cultura brasileira? Raízes
da cultura? Isto é ou não é complexo de intelectuais? Tanto faz no sul como no norte.
Elegia para uma região. Religião? Paixão, economia, desenvolvimentismo? Filosofia,
ideologia? O que temos em comum com a nostalgia dos meninos de engenho?”
Figura 6:
Mosaico de interrogações: o Palhaço e a convivência com os problemas lançados.
300
Conjunto ordenado de fotogramas ou imagens fixas, limitado espacialmente por
um enquadramento (que pode ser fixo ou móvel) e temporalmente por uma duração.
103
301
MOTA, 1977, p. 23.
302
Ibid. id.
303
Ibid. id.
304
MOTA, 1977, p. 63.
104
305
HÉLIO, Mário. O Brasil de Gilberto Freyre: Uma introdução à leitura de sua obra. Recife:
COMUNIGRAF, 2000. p. 95.
105
306
ALBUQUERQUE JR, 2006, p. 81.
307
Ibidem, p. 54.
308
ALBUQUERQUE JR, 2006, p. 89.
106
309
Ibidem, p. 94.
310
ALBUQUERQUE JR, 2006, pp. 94-95.
107
311
ARAÚJO, 1994, p. 28.
312
Ibid.id., p. 28.
313
Ibidem, p. 30.
314
ARAÚJO, 1994, p. 30.
315
ARAÚJO, 1994, p. 30.
108
316
ALBUQUERQUE JR, 2006, p. 96.
317
Ibid. id.
318
Ibid. id.
319
Ibid. id.
320
AZEVEDO, In: AMADO, 1962, p. 74.
321
AZEVEDO, In: AMADO, 1962, p. 77
322
Ibid. id.
109
culturas tem poder na construção da “democracia social”, longe dos discursos que
exaltam a pureza da raça branca como eixo civilizador, fechadas numa perspectiva de
exclusivismo cultural.
O reposicionamento do mestiço na cultura brasileira “promove a mobilidade
horizontal e vertical das pessoas de cor”.323 Azevedo reforça seu argumento – baseado
na leitura de Freyre – ao dizer que, “nas condições em que se tem processado em outras
terras dominadas pelos portugueses, a mestiçagem é um elemento de integração
transnacional ou supranacional das populações assim formadas.324
Outra base que consolida a “personalidade” brasileira está na família patriarcal,
na qual sua “força concentrou-se nas mãos dos senhores rurais” [...] criando “um tipo de
civilização mais estável na América hispânica”.325 O senhor de engenho seria o exemplo
do esforço de fixação a terra, onde “só a sedentaridade nordestina, canavieira, deu
sentido a estas fronteiras”.326
Desse modo:
A família, não o indivíduo, nem tampouco o Estado nem nenhuma
companhia de comércio, é desde o século XVI o grande fator
colonizador do Brasil, a unidade produtiva, o capital que desbrava o
solo, instala as fazendas, [...] a força social que se desdobra em
política, constituindo-se na aristocracia colonial mais poderosa da
América. Sobre ela o rei de Portugal quase reina sem governar. [...] a
família colonial reuniu, sobre a base agrícola e do trabalho escravo,
uma variedade de funções sociais e econômicas. Inclusive [...], a do
mando político: o oligarquismo ou nepotismo [...].327
323
Ibidem, p. 78.
324
AZEVEDO, In: AMADO, 1962, p. 78.
325
FREYRE, 2005, pp. 38-43.
326
ALBUQUERQUE JR, 2006, p. 102.
327
FREYRE, 2005, pp. 81-85.
328
LIMA, In: AMADO, 1962, p. 41.
110
Roberto Mota, ao estudar esse aspecto na obra de Freyre, observa que o autor
atribui este processo no trópico à chamada “civilização franciscana” 333
. Diferente de
uma civilização formada “pela escrita, no logos, na lógica, na ciência aristotélica ou
cartesiana e na racionalidade”,334 a América vivencia a penetração de povos europeus e
não-europeus, assimilando outros valores e técnicas basilares na formação cultural,
resultando no novo tipo de civilização, que transborda seus limites para ser:
329
FREYRE, 2005, pp. 90-92.
330
LIMA, In: AMADO, 1962, p. 42.
331
FREYRE, 2005, pp. 90-92.
332
Ibid. id.
333
Alceu Amoroso Lima: O franciscanismo desempenha um papel fundamental na obra de Gilberto
Freyre. Embora sem entrar a fundo na obra catequética da cristianização dos indígenas e principalmente
na sua ação contínua ao longo de nossa história [...] êle opõe o sistema jesuítico da fixação dos indígenas,
que eram por natureza nômades, ao sistema franciscano. [...] Ora, foi de certo modo S. Francisco de Assis
que começou essa nova concepção da obra missionária, quando sustentou que, aos não-cristãos, era
preciso converter e não destruir, como queriam algumas figuras da Idade Média, como S. Bernardo. Êsse
espírito franciscano é que se espalhou pelo mundo com as navegações do Renascimento e veio com a
armada de Cabral para o Brasil. [...] Gilberto Freyre [...] deixa na sua obra capital [Casa Grande &
Senzala] [...] o seu julgamento sôbre a perfeita adequação do franciscanismo às tendências naturais do
indígena brasileiro. Cf.: LIMA, Alceu Amoroso. Gilberto Freyre visto por um Católico. In: AMADO,
Gilberto. Gilberto Freyre: sua ciência, sua filosofia, sua arte. Rio de Janeiro. José Olympio Editora, 1962.
334
FREYRE, apud. MOTA, In: DANTAS, BRITTO, 2002, p. 76.
111
335
Ibid. id.
336
FREYRE, 2005, p. 356.
337
LIMA, In: ARAÚJO, 1994, p. 10.
338
FREYRE, 2005, p. 115.
339
FREYRE, apud. MOTA, In: DANTAS, BRITTO, 2002, p. 77.
340
Esta categoria nos remete ao ideal de uma família extensa, híbrida e – um pouco como no velho
testamento – poligâmica, na qual senhoras e escravas, herdeiros legítimos e ilegítimos convivem sob a luz
ambígua da intimidade e da violência, da disponibilidade e da confraternização. Cf.: ARAÚJO, Ricardo
Benzaquen de. Guerra e Paz: Casa Grande & Senzala e a obra de Gilberto Freyre nos anos 30. Rio de
Janeiro: Editora 34. 1994. p. 54.
341
Ricardo Benzaquen de Araújo: “Gilberto dá realmente a impressão de que ele imaginava existir aqui o
que poderíamos chamar de escravidão não-despótica, docemente embalada pela miscigenação e pela
plasticidade que normalmente identificavam o português. [...] da mesma forma que encontramos em CGS
um vigoroso elogio da confraternização entre negros e brancos, também é perfeitamente possível
descobrirmos lá numerosas passagens que tornam explícito o gigantesco grau de violência inerente ao
sistema escravocrata, violência que chega a alcançar os parentes do senhor, mas que é majoritária e
112
[...] seu ideal de beleza feminina [...] influenciado pelo mouro, isto é,
sedução da mulher de pele morena e até parda [...]. Tal influência
neutralizou entre os lusos o culto, entre outros povos europeus, quase
exclusivo, da mulher loura [...].Vindo para o Brasil, os portugueses
traziam na sua mística sexual a impressão das “princesas mouras”, das
mouras não só “encantadas”, como encantadoras de cujas figuras de
rara beleza ou graça sem igual, estava impregnado seu folclore, seu
espírito, sua imaginação. De modo que fácil lhes foi se compensarem
da relativa escassez de mulheres européias no Brasil [...]. [No Brasil],
verificou-se, desde os primeiros tempos de colonização [...], tendência
diversa, e que chegou, às vezes, a ser quase tão forte quanto à
dominante, no sentido da valorização das raças de cor e do
aproveitamento de elementos de sua cultura. Elementos que a
experiência de colonização da América tropical foi revelando serem
mais adequados a esta parte do mundo que valores intransigentemente
europeus.345
regularmente endereçada aos escravos. [...] podemos perceber que, apesar da mestiçagem, da tolerância e
da flexibilidade, o inferno parecia conviver muito bem com o paraíso em nossa experiência colonial”. Cf:
Ibidem, p. 48.
342
FREYRE, apud. MOTA, In: DANTAS, BRITTO, 2002, p. 77.
343
ALCÂNTARA, In: AMADO. 1962, p. 19.
344
ARAÚJO, 1994, p. 43.
345
FREYRE, Gilberto. A Propósito de relações entre raças e culturas no Brasil. Dakar: IFAN, 1953.
Disponível em: <http://prossiga.bvgf.fgf.org.br/portugues/obra/opusculos.html.> Acesso em: Abril/Maio
de 2011.
113
Em “Casa Grande & Senzala”, Gilberto Freyre expõe que a virtude do português
está no seu caráter flexível – “inteiramente [despido] de compromissos com a coerência
e a rigidez”346 – um dos aspectos fundamentais na efetivação da colonização e formação
da identidade cultural brasileira.
Como prolongamento natural da concepção de mestiçagem, o autor, ao
condensar a mobilidade, miscibilidade e aclimatabilidade na força da plasticidade,
transforma estas categorias em elementos centrais de análise, resultando na
“concretização da experiência étnica e cultural de Portugal” no Brasil.347
“Casa Grande & Senzala” apresenta o momento que seu olhar está concentrado
na pesquisa sobre a história da formação social do Brasil, a partir deste complexo de
elementos expostos acima, que definem os traços “legítimos” da cultura no país. O
destaque dado à presença do elemento português na configuração da identidade nacional
está escrito em dois trabalhos que marcam o interesse do autor pelo tema, a saber: “O
Mundo que o Português Criou” e “Uma Cultura Ameaçada: a luso-brasileira”,348 ambos
escritos em 1940.
Para Alessandro Candeas, esta década é o período em que as perspectivas
teóricas percorridas na obra de Gilberto Freyre não trabalharam especificamente com o
estabelecimento dos fundamentos da identidade nacional, como ocorreu nos anos 20 e
30. Aqui podemos notar uma mudança que se eleva [...] “à dimensão internacional e
política dos conflitos culturais: para ele, não se trata mais de compreender uma
sociedade nacional, mas de defender uma civilização”,349 chamada luso-brasileira,
ameaçada pelos imperialismos culturais totalitários centro-europeus (como o nazismo).
Esta fase é marcada pela reivindicação dos valores máximos da cultura
binacional, alinhada aos conjuntos de formação luso-brasileira, luso-africana, luso-
oriental e luso-tropical. Para Freyre, a defesa é reforçada contra as “[...] tentativas de
descaracterização da cultura luso-brasileira venham de onde venham: da Europa ou dos
346
ARAÚJO, 1994, pp. 43-44.
347
Ibid. id.
348
Para Alessandro Candeas, esta conferência é um marco na militância intelectual de Gilberto Freyre,
para Candeas: o autor inquieta-se com a ameaça de destruição desse patrimônio civilizacional [...] e reage
com a sua melhor arma: a construção de uma mentalidade científica sintetizada no termo tropicologia.
Cf.: CANDEAS, Alessandro. Trópico, Cultura e Desenvolvimento: a reflexão da UNESCO e a
tropicologia de Gilberto Freyre. Brasília: UNESCO, Liber Livro, 2010. p, 164.
349
CANDEAS, 2010, p. 164.
114
Estados Unidos. De qualquer tipo de superpotência por acaso desvairada [...]” como a
União Soviética.350
Seu esforço está na busca de valorizar a:
350
FREYRE, Gilberto. Uma Cultura Ameaçada: a Luso – Brasileira. Recife: Gabinete Português de
Leitura. 1980. p. 17.
351
Ibidem, p. 25.
352
Ibidem, p. 37.
353
FREYRE, Gilberto. O Mundo que o Português criou. São Paulo: É Realizações. 2010.
354
FREYRE, 2010, pp. 24-41-64.
115
355
Ibidem, p. 33.
356
CANDEAS, 2010, p. 164.
357
Ibidem, p. 165.
358
FREYRE, apud. CANDEAS, 2010, p. 168.
116
359
QUINTAS, Fátima. Tristes Trópicos ou alegres Trópicos? O Luso-tropicalismo em Gilberto Freyre.
Ciência & Trópico, Recife. v. 28, n. 1, p. 21-44, jan./jun. 2000. Disponível em:
http://www.bvgf.fgf.org.br/portugues/critica/artigos_cientificos/tristes_tropicos.htm. Acesso em: Jun. de
2011.
360
Em “Casa Grande & Senzala”, ela tem sua primeira definição diretamente vinculada à noção de clima,
fortemente marcada, aliás, pelo fato de que “tudo aqui era desequilíbrio. Grandes excessos e grandes
deficiências, as da nova terra. O solo, excetuadas as manchas de terra preta ou roxa, de excepcional
fertilidade, estava longe de ser o bom de se plantar nele tudo o que quisesse [...]. Em grande parte rebelde
à disciplina agrícola. Áspero, intratável”. FREYRE, apud. ARAÚJO, Ricardo Benzaquen de. Guerra e
Paz: Casa Grande & Senzala e a obra de Gilberto Freyre nos anos 30. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994.
361
CANDEAS, 2010, p. 161.
117
percorre pelo império português ultramarino362 sentindo de perto a realidade dos povos
atravessados pela cultura portuguesa.
Amplia o olhar da cultura portuguesa além-Brasil percebendo na sua análise que,
“as situações luso-africanas eram, algumas delas, de um tipo que talvez viesse a resultar,
quando as províncias ou colônias passassem a Estados Nacionais, em novos Brasis 363”.
As regiões visitadas revelam-se a Freyre como espaços eurotropicais, definidas pela
convivência entre europeus e não-europeus num clima de natureza tropical,
“caracterizada por uma como deseuropeização nos modos de vida [...] característicos
susceptíveis de ser denominado lusotropicais: comuns a luso-orientais, a luso-africanos,
a luso-americanos situados em espaços [...] tropicais”.364
Para Fátima Quintas, as viagens realizadas por Freyre em terras tropicais
possibilitou a formulação do “conceito de lusotropicalismo [...]. Mas não de repente.
Sua semente há muito vinha se solidificando, num périplo intelectual assentado numa
ampla gárgula de experiência e vivência. O lusotropicalismo excede-se, em germinações
e desdobra-se” na Tropicologia, área do conhecimento científico que explora, numa
perspectiva interdisciplinar, o papel do homem nos trópicos, “e que emerge das
circunvoluções freyreanas em torno da originalidade e da excepcionalidade do
português, esse, um vocacionado para o mundo tropical”.365
Através de pesquisas sobre a influência dos portugueses, africanos, asiáticos e
dos espanhóis nos trópicos, Gilberto Freyre propõe a elaboração da análise deste
processo a partir de um tipo de Ciência Social auxiliar. Especializada no
aprofundamento dos estudos da colonização espanhola e portuguesa na América: a
Hispano-Tropicologia – na qual a Luso-Tropicologia seria formulada enquanto
especialidade, para objetivar a compreensão da “transformação dos sistemas e valores
portugueses de vida, trabalho”366 e cultura – que valoriza o papel do colonizador
362
[...] Tendo as viagens por Orientes e Áfricas da década de 50 proporcionado ao observador brasileiro
contatos não só com o Egito, a Arábia Saudita, a então Nova Indiana, o Paquistão, porém também com a
União Sul-Africana, o Congo Belga, as Rodésias, o Senegal [...] Cabo Verde e na Angola [...]
Moçambique e [...] Guiné Portuguesa. Cf: FREYRE, Gilberto. Aventura e Rotina: sugestões de uma
viagem à procura das constantes portuguesas de caráter e ação. Rio de Janeiro. Top Books. 2001.
363
FREYRE, Gilberto. Aventura e Rotina: sugestões de uma viagem à procura das constantes portuguesas
de caráter e ação. Rio de Janeiro: Top Books, 2001. p. 26.
364
FREYRE, 2001. p. 26.
365
QUINTAS, 2000.
366
ALCÂNTARA, Marco-Aurélio de. Gilberto Freyre e a Cultura Hispânica. In: AMADO, Gilberto.
Gilberto Freyre: sua ciência, sua filosofia, sua arte. Rio de Janeiro: José Olympio Editora. 1962. p. 18.
366
FREYRE, Gilberto. Em torno de um novo conceito de tropicalismo. Coimbra, 1952. Disponível em:
<http://prossiga.bvgf.fgf.org.br/portugues/obra/opusculos.html.> Acesso em: Abr./Mai. de 2011.
118
367
FREYRE,1952.
368
Ibid. id.
369
Ibid. id.
119
370
FREYRE, 2000, pp. 160-161.
371
Ibid. id.
372
CANDEAS, 2010.
373
CANDEAS, 2010, p. 163.
374
As guerras de independência da África nos anos 60 forçarão uma nova mudança de perspectivas.
Freyre sentia a necessidade de libertar a lusotropicologia da associação espúria com o imperialismo
salazarista, a fim de constituí-la como verdadeira ciência. Cf.: CANDEAS, Alesssandro. Trópico, Cultura
e Desenvolvimento: a reflexão da UNESCO e a tropicologia de Gilberto Freyre. Brasília: UNESCO, Liber
Livro, 2010. p. 172.
375
O Seminário de Tropicologia ainda não conseguiu realizar eficazmente o projeto inicial da tropicologia
desejado por Freyre, qual seja a sistematização dos estudos no trópico. [...] ainda não se constituiu em
ciência normal reconhecida pela generalidade da comunidade científica brasileira – menos ainda
internacional. [...] não se consolidou uma comunidade epistêmica amplamente reconhecida,
comprometida com um processo de investigação e de formulação de uma teoria ampliada [...]. não chegou
a produzir uma atividade de rotina nos centros acadêmicos. Cf: CANDEAS, Alesssandro. Trópico,
Cultura e Desenvolvimento: a reflexão da UNESCO e a tropicologia de Gilberto Freyre. Brasília:
UNESCO, Liber Livro, 2010. p. 198.
120
383
NOVA, Sebastião Vila. O Seminário de Tropicologia, sua origem e seu significado didático,
científico, humanístico e prático. Fundação Joaquim Nabuco. Recife – Pernambuco. Novembro de 1997.
Disponível em: <http://www.fundaj.gov.br/docs/tropico/semi/trop30-0b.html.> Acesso em: Jul. 2011.
384
Gilberto Freyre participou como convidado destes encontros.
385
Espaço criado por professores dos Estados Unidos e outros países, para debate e estudos
interdisciplinares diversos.
386
Para Freyre: Ao sugerir que se introduza o tipo Tannenbaum de seminário em uma universidade como
a do Recife, que, além de universalista nos seus objetivos gerais, junta ao fato de ser nacionalmente
brasileira a circunstância de situar-se em região do Brasil com características próprias de vida e de cultura
faço-o desejando que de início se subentenda que essa introdução importaria em adaptação; que se
processaria experimentalmente; que o experimento e a possível adaptação daquele anglo-americanismo à
nossa sistemática universitária, interessando às demais universidades e a outras instituições [...]. In:
FREYRE, Gilberto. Um Novo Tipo de Seminário (Tannenbaum) em Desenvolvimento na Universidade de
Columbia: Conveniência da Introdução da sua Sistemática na Universidade Federal de Pernambuco.
Recife: Imprensa Universitária, 1966. Disponível em:
<http://www.bvgf.fgf.org.br/portugues/obra/opusculos/tannembaum.html>
387
NOVA, 1997.
388
O Seminário do tipo Tannenbaum, ao que me parece, caracteriza-se essencialmente pela sua
composição heterogênea. Dêle participam professôres de diferentes especialidades, ao lado de elementos
extra-universitários, que podem ser técnicos, empresários, redatores de jornais, todos capazes, no seu
campo de ação, de oferecer contribuição efetiva para estudo e esclarecimento de determinado assunto.
Dessa composição aberta a uma representação menos uniforme, surgem ricas e variadas sugestões, de um
sentido mais humano, mais cheio de vida, do que as resultantes de seminários estritamente científicos,
necessàriamente mais herméticos. [...] êle combina trabalho criado e atividade recreativa, quase lúdica.
Combinação que talvez só resulte efetiva e produtiva à sombra do maior tempo livre – livre da burocracia
acadêmica ou da rotina rìgidamente pedagógica – que estão tendo, em certas universidades, professôres e
outros homens de estudo nos Estados Unidos. Idem.
389
A partir de conferências, este trabalho será debatido por dois ou três comentadores de Ciências afins ou
correlacionadas, ou mesmo de outras ciências ou saberes. Os comentadores especiais têm ampla liberdade
de crítica. O conferencista dispõe de 45 minutos para leitura do seu trabalho e cada comentador especial
tem 15 minutos para argui-lo. O coordenador dos trabalhos é Gilberto Freyre. Cf.: FREYRE, Gilberto.
Contribuição Paulista à Tropicologia: trabalhos apresentados ao Seminário de Tropicologia, da
Universidade Federal de Pernambuco, por solicitação do sociólogo Gilberto Freyre. São Paulo. Pioneira,
1974, p. 14.
122
390
MARCONDES, In: Freyre, 1973, p. 14.
391
CANDEAS, 2010, p. 209.
392
FREYRE, Fernando de Mello. Conferência realizada na Reunião Especial comemorativa dos 30 anos
do Seminário de Tropicologia em Setúbal, Portugal (05/11/1996). Disponível em:
<http://www.fundaj.gov.br/docs/tropico/semi/trop30-1.html#fn1>
123
393
CANDEAS, 2010, pp. 210-211.
394
Entrevista realizada na tarde de 07 de outubro de 2010, às 16h25, na residência de Jomard.
124
395
FOUCAULT, 1996, pp. 06-11.
125
396
FOUCAULT, 1996, p. 8.
397
ORTIZ, 2006, p. 41.
398
Ibidem, p. 42.
399
FICO, Carlos. apud. SILVA, Vanderli Maria da. A Construção da Política Cultural no Regime
Militar: concepções, diretrizes e programas (1974-1978). Universidade de São Paulo (USP). Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Dissertação de Mestrado (Sociologia). 2001. p. 27.
400
SIMIS, Anita. A Política Cultural como Política Pública. III ENECULT, Anais de Encontro. Salvador,
2007. p. 6.
401
SIMIS, 2007. p. 6.
126
[...] saber estereotipado, que reserva a este espaço o lugar do gueto nas
relações sociais em nível nacional, região que é preservada como
elaboração imagético-discursiva como lugar da periferia, da margem,
nas relações econômicas e políticas do país, que transforma seus
habitantes em marginais da cultura nacional. [...] São espaços que se
institucionalizam, que ganham foro de verdade. [...] Eles nos chegam
e são subjetivados por meio da educação, dos contatos sociais, dos
hábitos, ou seja, da cultura, que nos faz pensar o real como
407
ALBUQUERQUE JR, 2008
128
408
ALBUQUERQUE JR, 2006, pp. 26-27.
409
ORTIZ, 2006, p. 83.
410
Ibidem, p. 79.
129
[...] suas ideias não têm mais força de necessidade histórica. Porém, é
importante compreender que, para o Estado, sua incorporação permite
estabelecer uma ligação entre o presente e o passado. Ao chamar para
os seus serviços os representantes da tradição, o Estado
ideologicamente coloca o movimento de 64 como continuidade, e não
como ruptura, concretizando uma associação com as origens do
pensamento sobre cultura brasileira[...].413
Atuando dessa forma, o Estado autoritário incorpora nos pilares do seu discurso
ideológico um conjunto de elementos que valorizam a formação da cultura nacional,
definidas pela temática do Brasil mestiço. Assim, a mistura de povos e culturas no país
411
Ibidem, pp. 82-83-88.
412
Ibidem, p. 91.
413
ORTIZ, 2006, p. 91.
130
contém os traços naturais que legitimam a identidade brasileira, pressuposto que afirma
a diversidade de culturas e manifestações em torno de uma unidade nacional coesa,
protegida pelo Estado forte.
A valorização da mestiçagem e o reconhecimento do país como local que
resguarda a pluralidade cultural transmitem o que Renato Ortiz chama de “ideologia da
harmonia”, no qual podemos relacionar essa característica ao modelo de pensamento
baseado na obra de Gilberto Freyre. Para ele, “diversidade significa [...] diferenciação, o
que elimina a priori os aspectos de antagonismo e de conflito da sociedade. As partes
são distintas, mas se encontram harmonicamente unidas”.414
A partir da noção de diferenciação – opondo-se a antagonismo/conflito –
podemos afirmar que esta perspectiva neutraliza os conflitos no interior da própria
“diferenciação”, definindo no país a presença de uma sociedade equilibrada, devido o
processo de mestiçagem, que aglutina, além de significados como “harmonia e
equilíbrio, o de democracia e liberdade”.415
A visão de cultura brasileira contida na obra de Gilberto Freyre centraliza o
conjunto de interesses de todo um grupo social, articulado na manutenção das tradições
enquanto fundamento que sustente o jogo político autoritário, que se definiu nos anos
60. Reconhecido como um autor paradigmático nesse processo, as concepções
freyreanas de cultura expostas no início desta Entrada – a partir da cena inicial do filme
em estudo – representam um caminho para fortalecer a identidade do país.
É importante destacar que não podemos vincular essa associação como mera
relação de causalidade, pois Freyre é um intelectual em que sua produção deve ser vista
enquanto modelo que atrai os segmentos conservadores no campo político, não como
pensador que influencia diretamente as decisões político-culturais no regime militar. Ele
é parte integrante de uma estrutura preparada para elaborar uma política de cultura
estatal.416
Intelectual representante da luta pela valorização das tradições culturais
brasileiras, as concepções políticas de Gilberto Freyre chegam “aos anos 50 [imbuídas]
de convicções políticas marcadas pela ‘guerra fria’ e por uma acentuada hostilidade à
esquerda, em geral”.417 Leandro Konder afirma que, para Freyre, “a história que estava
414
Ibidem, pp. 93-94.
415
Ibidem, p. 94.
416
ORTIZ, 2006, p. 93.
417
KONDER, Leandro. História dos Intelectuais dos Anos Cinqüenta. p. 359. s/a. Impresso.
131
se fazendo não era motivo de orgulho, mas de apreensão. Forças destrutivas estavam
atuando de maneira pérfida, sob a influência do comunismo internacional”.418
Antes da implantação do golpe militar em 1964, Gilberto Freyre já se
posicionava a favor de uma política nacional centralizada sob os cuidados das forças
armadas. Na conferência “Nação e Exército”, o sociólogo expressa que:
418
Ibid.id., p. 359. s/a. Impresso.
419
FREYRE, Gilberto. Nação e Exército. Rio de Janeiro. José Olympio. 1949. Disponível em:
<http://prossiga.bvgf.fgf.org.br/portugues/obra/opusculos.html.> Acesso em: Abril/Maio de 2011.
420
FREYRE, 1949.
421
Ibid. id.
422
Ibid. id.
132
não tem faltado aos nossos homens públicos de maior responsabilidade na direção da
vida nacional”.423
O caminho que se impõe é a imitação do papel “exemplar” praticado pelo
exército na sociedade, transferindo sua essência organizacional para as áreas de
atividade civil, sufocando as tensões a partir da coordenação das forças armadas “em
épocas de desajustamento mais agudo entre regiões ou entre subgrupos nacionais”.424 As
forças militares e policiais deveriam agir sistematicamente para neutralizar os excessos
ameaçadores ligados às infiltrações estrangeiras ou nacionais, que comprometeriam as
bases que nos “constituem” enquanto Nação brasileira autêntica.
Em entrevista a José Saffioti Filho, na revista “Veja” no início da década de 70,
Gilberto Freyre relata que não participou efetivamente da “revolução” de 1964, mas
muito antes do “movimento” já escrevia artigos em defesa das forças armadas – como
podemos ver na conferência acima – “em que tentava mostrar que estávamos numa
situação insustentável, a continuar a irresponsabilidade do governo”.425
Acreditava que o Brasil vivia uma crise político-administrativa, no governo João
Goulart. Ele nos conta que “de certa altura em diante ele perdeu de fato o senso de
responsabilidade e impunha-se uma intervenção que só poderia vir de um órgão político
como tem sido tradicionalmente, em situações de crise, o Exército brasileiro”.426
Um ano após a declaração do golpe militar, Freyre justifica esse fato afirmando
que, com a ameaça de penetração dos ideais comunistas e dos estrangeirismos culturais
no país na década de 60, o Brasil vivia “momentos [...] de perigo para as instituições
427
nacionais” , sendo necessária a presença do exército na vida política nacional. Este
iria exercer um “trabalho construtivo através de uma ação voltada à valorização do
homem brasileiro, atuando diretamente nos empreendimentos públicos fundamentais
[...] através de uma ampla malha que se apóia nos quartéis para cobrir todo o território
nacional”.428
O autor destaca o processo de articulação entre as forças armadas com o restante
das instituições nacionais, sem que este cruzamento tenha causado qualquer tipo de
423
Ibid. id.
424
Ibid. id.
425
Ibid. id.
426
COHN, Sérgio (Org.). Encontros: Gilberto Freyre. Rio de Janeiro: Beco do Azougue. 2010. p. 128.
427
COHN, 2010. p. 128.
428
FREYRE, Gilberto. Forças Armadas e outras Forças: novas considerações sobre as relações entre
Forças Armadas e as demais forças de segurança e de desenvolvimento nacionais na sociedade brasileira.
Recife: Imprensa Oficial, 1965. Disponível em:
<http://prossiga.bvgf.fgf.org.br/portugues/obra/opusculos.html.> Acesso em: Abril/Maio de 2011.
133
429
FREYRE, Gilberto. Forças Armadas e outras Forças: novas considerações sobre as relações entre
Forças Armadas e as demais forças de segurança e de desenvolvimento nacionais na sociedade brasileira.
Recife: Imprensa Oficial, 1965.
430
Ibid. id, 1965.
431
Gilberto Freyre: “Não sou antimilitarista, mas devo dizer que nunca me enganei com esse surto militar
em 1964, o que me levou a recusar convites do general Castelo Branco para ocupar um ministério ou uma
embaixada em Paris. Os militares se deram aos tecnocratas, que comprometeram os valores éticos do
Brasil e nada fizeram para diminuir o desprezo pelo Nordeste, que já se manifestava então no Centro-Sul.
Você não pode definir o ministro tecnocrata por excelência, o Delfim Neto, senão como um quase
patológico antinordestino. Agora, estamos diante de um teste como nunca houve no Brasil. Há uma
grande crise ética, um desprezo ostensivo pelas éticas, e o povo brasileiro está escandalizado”.
Depoimento registrado por Gilberto Velho, César Benjamin e Cilene Areias. Publicado na revista Ciência
Hoje, em junho de 1985. Cf.: COHN, Sérgio (Org.). Encontros: Gilberto Freyre. Rio de Janeiro: Beco do
Azougue, 2010. p. 196.
432
FREYRE, Gilberto. Um ano histórico para o Brasil. Diário de Pernambuco. Recife, 26 de abril de
1964. Disponível em: <http://prossiga.bvgf.fgf.org.br/portugues/obra/opusculos.html.> Acesso em:
Abril/Maio de 2011.
433
Ibid. id.
134
A partir do depoimento acima, podemos afirmar que o filme esteve situado numa
época em que – segundo Carlos Guilherme Mota – vivencia-se o “fortalecimento do
pensamento radical no Brasil contemporâneo, produto em grande parte das tarefas
434
MOTA, 1977, p. 72.
435
Ibidem, p. 74.
436
LEITE, Dante Moreira. O Caráter Nacional Brasileiro: História de uma Ideologia. São Paulo:
Biblioteca Pioneira de Ciências Sociais. 1969. p. 281.
437
BRITTO, Jomard Muniz de. Crueldades & Confraternizações: breve Ensaio de Psicanálise Selvagem.
In: DANTAS, Elisalva Madruga; BRITTO, Jomard Muniz de (Orgs.). Interpenetrações do Brasil:
Encontros & Desencontros. João Pessoa: UFPB. 2002. p. 182.
135
438
MOTA, 1977, p. 73.
439
Destacando intelectuais como Dante Moreira Leite, Florestan Fernandes, Octavio Ianni, Mota afirma
que: Os diagnósticos sobre a história social do Brasil e sua dinâmica mereceram reparos profundos,
realizados por analistas que procuravam tirar alguma lição dos desacertos da ideologia do
desenvolvimentismo e da política populista que levaram à derrocada dos setores progressistas em 1964.
[...] Pontos para uma revisão da História do Brasil, da crise do sistema colonial português aos nossos dias,
são propostos, bem como elementos para um reestudo de conceitos como classe, estamento e casta para
abordagem da História Social do Brasil. [...] Em conjunto, pode-se dizer que há, nesse momento, uma
ligeira mudança de ênfase. Das relações sociais e raciais, das investigações sobre os modos de produção,
passa-se ao estudo mais sistemático da dependência, seja no plano econômico, seja no planocultural e
intelectual. Cf.: MOTA, Carlos Guilherme. Ideologia da Cultura Brasileira: 1933-1974. São Paulo:
Editora Ática, 1977. pp. 43-45.
440
MOTA, 1977, p. 74.
441
Ibidem, p. 111.
136
Origem que “se esforça para recolher nela a essência exata da coisa, sufocando
as possibilidades e desejos na sua forma [e negando] tudo que é externo e acidental”,442
retirando dos homens a liberdade de escolher suas máscaras para vivenciar a politização
do cotidiano e os consumos individuais, na composição do “Eu” brasileiro
contemporâneo.443
Reconhecendo a cultura brasileira enquanto debate, Jomard Muniz de Britto
coloca sua máscara de Palhaço para fugir dos grilhões que o amarram a “obediência às
supostas raízes e linhas de força da formação brasileira”,444 voltando-se contra o reino
tropicológico – de um passado [que] “nos absorve entre sobrados e mucambos, alhos e
bugalhos, ladeiras e pelourinhos”.445 Para o Palhaço, o maior degolamento estaria nas
limitações de atuação cultural dos intelectuais ligados a vertente da arte contemporânea
no Nordeste, cercados pela cristalização contida na proposta expressa de valorização de
elementos tradicionais no Brasil.446
O ritmo declamatório da performance é reveladora de uma angústia atravessada
pelo sentimento de incompletude e silenciamento das práticas culturais de vanguarda
nos anos 60/70, a que Jomard esteve vinculado. Um mal-estar que transforma-se em riso
ácido, na fase que pré-anuncia a reabertura política no Brasil, tomando a atmosfera do
circo como recurso expressivo marcado pela dessacralização dos projetos culturais
promovidos pela tradição cultural autoritária no regime militar.
442
FOUCAULT, apud. CASTELO BRANCO, Edwar de Alencar. Desfamiliarizar o passado e solapar
sua certeza: receitas de Michel Foucault para uma escrita subversiva da História. In: CASTELO
BRANCO, Edwar de Alencar; NASCIMENTO, Francisco Alcides; PINHEIRO, Áurea Paz. (Orgs.).
História: Culturas, Sociedades, Cidades. Recife: Bagaço. 2005.
443
FOUCAULT, apud: CASTELO BRANCO, 2005.
2005, pp. 32-33.
444
CHAMIE, 1968, In: BASUALDO, Carlos. (Org.). Tropicália: Uma Revolução na Cultura Brasileira
(1967-1972). São Paulo: Cosac Naify, 2007, p. 161.
445
BRITTO, 2002. In: DANTAS; BRITTO, p. 181.
446
BRITTO, 2002. In: DANTAS; BRITTO, p. 181.
137
138
3. TERCEIRA ENTRADA.
447
BRITTO, Jomard Muniz de. Através dos Abismos da Empatia. Revista Symposium: Ciências,
Humanidades e Letras. Sociologia. Centenário de Gilberto Freyre. Ano 4. Número Especial. Universidade
Católica de Pernambuco. Recife. Dezembro de 2010.
448
BRITTO, 2010.
449
Ibid. id.
450
Ibid. id.
451
Ibid. id.
452
Ibid. id.
140
460
BRITTO, 1978. p. 3.
461
CALABRE, Lia. Políticas Culturais no Brasil: dos anos 1930 ao século XXI. Rio de Janeiro: Editora
FGV, 2009. p. 57.
142
É nesse período que podemos verificar uma preocupação mais intensa do Estado
no âmbito cultural, incluindo-a como assunto a ser tratado na área de desenvolvimento e
intervenção planejada, inserindo os artistas/intelectuais na esfera burocrática de ação
cultural, indispensável para concretizar as políticas públicas e os projetos em formação.
Nesse sentido, no dia 23 de fevereiro de 1961, foi criado o Conselho Nacional de
Cultura (CNC), órgão subordinado à Presidência da República (Jânio Quadros),462 a
partir da necessidade justificada de criar um novo órgão que orientasse politicamente a
atuação do governo na área de investimentos na cultura.463
Assim, áreas como literatura, cinema, teatro, artes plásticas, dança, música
receberam uma atenção especial, a partir do estabelecimento de aplicações anuais de
recursos, ampliando e atualizando o número de instituições culturais, difundindo,
através de periódicos e campanhas, o novo conjunto de atividades artísticas, seja pelo
rádio ou TV, com a meta de “popularizar” a arte brasileira.464
Com o decreto que aprova o regulamento do CNC465, buscava-se, segundo Lia
Calabre, “criar uma estrutura destinada à realização de diagnósticos, ações e políticas na
área da cultura fora do Ministério da Educação e Cultura (MEC)”,466 para que o CNC
tivesse espaço de atuação autônoma no governo.
Mesmo com os esforços iniciais, o conselho acabou não funcionando por muito
tempo. Um dos motivos foi devido à renúncia de Jânio Quadros, onde, em agosto de 61,
houve uma reformulação do órgão e “em 23 de março de 1962, o Decreto nº 771
retomava a referência ao conselho criado em 1938 e o recolocava na condição de órgão
subordinado ao Ministério da Educação e Cultura. A maioria das atribuições do decreto
foi mantida” 467, com as mesmas comissões, mas atuando como órgãos de assessoria “do
conselho, que poderiam ou não ser consultadas”.468
462
“Sua desvinculação com o Ministério da Educação e Cultura – ministério onde naturalmente deveria
ser criado um conselho de cultura – era um indicador das prováveis intenções de Jânio Quadros em ter o
controle maior sobre as políticas públicas e, possivelmente, considerar a cultura como uma área
importante e estratégica, merecedora de uma estrutura específica vinculada à Presidência da República”.
Cf.: CALABRE, 2009, p. 58.
463
Ibid. id.
464
Ibid. id.
465
51. 063, de 27/07/1961.
466
CALABRE, 2009, p. 60.
467
CALABRE, 2009, p. 60.
468
Ibidem, p. 61.
143
469
Com a nova estrutura, o CNC ficou formado pelas indicações diretas de sete membros pelo presidente
em exercício, restringindo quatro desses gestores à órgãos culturais ligados ao MEC e um ao integrante
do Ministério das Relações Exteriores, sendo o restante formado por intelectuais escolhidos como pessoas
“consagradas” e “verdadeiramente” preocupadas com a identidade nacional. Cf.: CALABRE, 2009, p. 61.
470
“[...] apresentações de espetáculos de música erudita, canto, coral, distribuição de livros e discos de
música erudita e popular. Havia ainda exposições de réplicas de quadros célebres da pintura universal
[...]. Cf.: CALABRE, 2009, p. 62.
471
Ibidem, p. 68.
472
MAIA, Tatyana de Amaral. Por um Senado da Cultura Nacional: intelectuais e políticas culturais no
regime militar (1967-1975). Políticas Culturais: Teoria e Práxis. s/a. Impresso. Rio de Janeiro. p. 3.
144
479
CALABRE, Lia. Intelectuais e política cultural: o Coselho Federal de Cultura. ATAS DO
COLÓQUIO INTELECTUAIS, CULTURA E POLÍTICA NO MUNDO ÍBERO-AMERICANO. Rio de
Janeiro. Ano 5. Vol.II. 2006. p. 7.
480
CALABRE, 2006, p. 7.
481
Ibid. id.
482
Ibid. id.
483
Ibidem, p. 10/11.
484
O Ministério da Cultura (MinC) do Brasil só foi criado em 15 de março de 1985 pelo decreto nº
91.144, no governo de José Sarney.
146
Outro caminho adotado pelo Estado, para exercer o controle das produções
culturais, também se deu com a entrada do Plano de Ação Cultural (PAC).487 O projeto
buscava focar a atuação na abertura de crédito para os setores de produção cultural,
antes sem apoio efetivo na execução de suas atividades, bem como gerar “uma tentativa
de ‘degelo’ em relação aos meios artísticos e intelectuais”,488 a fim de valorizar o
patrimônio histórico e artístico, contemplando os espaços de capacitação na demanda
existente no mercado cultural brasileiro.
É importante ressaltar que o PAC não agiu enquanto plano de trabalho dedicado
a formulação de uma política oficial de cultura, nem como órgão público administrativo.
Para Vanderli Silva, “o programa atuava através de núcleos e grupos-tarefa que deviam
atender às diversas áreas da produção cultural [...]. Tratava-se de uma forma mais
flexível de atuação do MEC na área cultural, contando com um significativo volume de
recursos [...]”.489
485
CALABRE, 2006, p. 10/11.
486
SILVA, 2001, p. 103/104.
487
Proposta apresentada em agosto de 1973 pelo Departamento de Assuntos Culturais (DAC), cuja
função era coordenar as instituições culturais subordinadas ao MEC. Os recursos do PAC vinham do
Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE). Cf.: SILVA, 2001, p. 104.
488
MICELI, apud. SILVA. 2001, p. 104.
489
SILVA, 2001, p. 104.
147
490
Expressão de Roberto Parreira, primeiro diretor-executivo da FUNARTE.
491
SILVA, 2001, p. 332. In: Miceli, apud. GUIMARÃES, BOTELHO.
492
Ver detalhamento sobre a criação de outras instituições voltadas para a cultura: “Anos 70:
modernização do Estado”. In: CALABRE, 2009, p. 75.
493
CALABRE, 2009, p. 69/70.
494
“No momento da implantação do CFC somente dois estados – Guanabara e São Paulo – tinham
conselhos estaduais de cultura funcionando regularmente”. Cf.: CALABRE, 2009, p. 70.
495
CALABRE, 2009, p. 70.
148
496
CALABRE, 2009, p. 73.
497
Ibidem, p. 8.
498
Ibid. id.
499
ORTIZ, 2001, p. 113/114.
149
500
MAIA, Tatyana de Amaral. O papel dos intelectuais na elaboração das políticas culturais: o Conselho
Federal de Cultura. Disponível em: <http://sbph.org/2006/historia-arte-e-representacoes/tatyana-de-
amaral-maia>, 2006. Acesso em: 05 09 2011, às 10h35.
501
LIMA BRITO, 2005, p. 18.
502
MAIA, 2006.
503
Para Pollak, “todo trabalho de enquadramento de uma memória de grupo tem limites, pois ela não
pode ser construída arbitrariamente. Esse trabalho deve satisfazer certas exigências de justificação”. In:
POLLAK, Michel. Memória, Esquecimento e Silêncio. In: Estudos Históricos: Rio de Janeiro, vol. 2, n°
3, 1989. pp. 03-15. p.8.
504
MAIA, 2006.
150
505
MAIA, 2006.
506
CHAUÍ, apud. MAIA, 2006, p. 7.
507
COHN, apud. MAIA, 2006, p.8.
508
Cf.: Art. 180. Parágrafo único.
509
Cf.: Art. 39.
510
Criou o CFC.
511
SILVA, 2001, p. 109.
151
512
SILVA, 2001, p. 110.
513
Ibidem, p. 122.
514
Em 1978 se transforma no Instituto Nacional do Folclore, incorporado a FUNARTE.
152
515
ALBUQUERQUE JR, apud. LIMA BRITO, 2005, p. 21.
516
Política Nacional de Cultura. Departamento de Documentação e Divulgação. Ministério da Educação e
Cultura. Brasília – DF, 1975. p. 5.
517
PNC, 1975, p. 8. Introdução.
518
Ibid. id.
153
519
PNC, 1975, p. 8. Introdução.
520
Ibid. id.
521
Ibidem, p. 13. Política: concepção básica.
522
Ibidem, p. 12. Política: concepção básica.
523
Ibidem, p. 34. Componentes básicos. Art. 9º.
524
Ibidem, p. 14. Política: concepção básica.
525
Ibidem, p. 9. Introdução.
526
Ibidem, p. 24. Diretrizes.
154
527
PNC, 1975, p. 18. Cultura Brasileira.
528
Afonso Arinos, Fernando de Azevedo, Sérgio Buarque de Holanda.
529
PNC, 1975, p. 16. Cultura Brasileira.
530
Ibid.id.
531
Ibidem, p. 22. Diretrizes.
532
Ibidem, p. 24. Diretrizes.
155
Nesse sentido, Alexandre Barbalho afirma que, apesar da PNC não atingindo a
totalidade de seus objetivos, ela é importante porque aparece enquanto iniciativa que
não foi meramente reacionária por parte do Estado, ou a pedido particular de artistas e
intelectuais influentes, pois, “tomar a iniciativa nunca foi a prática predominante das
ações governamentais no campo da cultura, campo sempre desprestigiado em relação a
outras áreas de investimento social”.534
Não foi apenas por preocupações com a identidade nacional que o governo
Geisel, juntamente com sua assessoria, investiu na cultura, mas também podemos
associar ao desgaste político pelo qual se passava a ditadura naquele momento. Seria
incoerente para o governo manter-se apenas pela força, na censura de obras artísticas,
torturando e prendendo inimigos políticos, sem buscar proximidade com intelectuais
apoiadores, para montar a sua base de sustentação em busca da hegemonia política
nacional.
Mesmo com receio dos perigos da cultura de massa interferirem nas “raízes” da
personalidade brasileira, o caminho traçado pelos ideólogos do regime foi apropriar-se
desses instrumentos (rádio, TV, publicidade...) para construir um “espírito otimista”535
no imaginário da sociedade, usando a propaganda oficial como um mecanismo gerador
“de modelos de comportamento sugeridos, com maior ou menor sutileza, como os
comportamentos adequados, ou seja, aquilo que deveria ser a leitura correta da
sociedade e da história brasileiras”.536
O governo preocupa-se em manter a posse da identidade nacional, para elaborar
um novo tipo de comportamento social, que refletisse com os desejos de crescimento
econômico, formulando imagens e sonoridades (outdoors, vinhetas, fotografias,
mensagens televisivas) do Brasil, para “convencer a todos das potencialidades
brasileiras”, [...] “viabilizada pelo recurso às imagens do passado”, desarquivando “um
533
SILVA, 2001, p. 133.
534
BARBALHO, Alexandre. Estado pós-64: intervenção planejada na cultura. Revista Política e
Trabalho. UFPB. Set. Paraíba: 1999. p. 73.
535
“[...] o que se entende por ‘otimismo’ [...] não é apenas a atitude positiva de que os
problemas brasileiros podem vir a ter uma solução satisfatória, mas a plena convicção de que
isso ocorrerá, em função de algumas características enfocadas de forma mítica”. In: FICO,
Carlos. Reinventando o Otimismo: ditadura, propaganda e imaginário social no Brasil. Rio de Janeiro:
Editora Fundação Getúlio Vargas, 1997.p. 19.
536
FICO, 1997, p. 19.
156
537
FICO, 1997, p. 23.
538
SILVA, 2001. p. 159.
539
FICO, 1997, p. 34.
540
Ibidem, p. 34/35.
541
Ibidem, p. 35.
157
542
FICO, 1997, p.85.
543
Ibidem, p. 86.
158
Figura 7:
A reverência armorial e ironia corrosiva.
544
A câmera filma o objeto de baixo para cima, ficando a objetiva abaixo do nível normal do olhar.
Geralmente, dá uma impressão de superioridade, exaltação, triunfo, pois faz "crescer" o/a ator/atriz.
545
É a câmera enquadrando a imagem de cima para baixo. É como se um personagem ou o próprio
espectador olhasse uma imagem de cima para baixo.
159
546
Diminuição da distância focal da lente durante uma tomada, o que dá ao espectador a impressão de que
está se afastando do elemento que está sendo filmado. Disponível em:
<http://www.roteirodecinema.com.br/manuais/vocabulario.htm.> Acesso em: 30 nov. 2011, às 1h37.
160
547
Diário de Pernambuco.
548
SANTOS, 1999, p. 24.
549
BRITTO, Jomard. Presença e Recusa do Sincretismo. Impresso. Recife: Sem data.
550
ZAIDAN, Michel. O Fim do Nordeste. São Paulo: Cortez, 2001.
161
551
BEZERRA, Amilcar. Ariano Suassuna e as reconfigurações midiáticas contemporâneas dos ideais de
artista e intelectual da tradição nacional-popular brasileira. Tese em andamento. Programa de pós-
graduação em Comunicação da UFF – Rio de Janeiro. 2012. p. 63
552
BEZERRA, 2012. Tese em andamento, p. 63.
553
Ibid.id., Tese em andamento, p. 63.
554
ALBUQUERQUE JR, apud. LIMA BRITO, 2005, p. 53.
555
ZAIDAN, 2001. p. 12.
556
ALBUQUERQUE JR, apud. LIMA BRITO, 2005, p. 53.
162
557
ORTIZ, 2001. p. 51.
558
Ibidem, p. 115.
559
SANTOS, 1999, p. 27.
560
BEZERRA, 2012. Tese em andamento, p. 56.
561
Ibidem, Tese em andamento, p. 65.
562
SANTOS, 1999, p. 27.
163
563
TAVARES. Bráulio. ABC de Ariano Suassuna. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 2007.
564
SANTOS, 1999, p. 30.
565
Ibidem, p. 28.
566
Segundo Ariano em 1980: “Foi na verdade, para nos identificar como seguidores, discípulos e
continuadores da Escola de Recife, que retardei por um ano a deflagração do Movimento Armorial,
cujos trabalhos se iniciaram em 1969, [...] mas que somente foi lançado em 1970, a exatamente um
século do início daquela escola. [...] Foi, portanto, a partir do pensamento desbravador e inicial de
Sylvio Romero que fundamentei meu trabalho de escritor romanceiro e nos espetáculos populares (...).
Extraído do Diário de Pernambuco. In: ALBUQUERQUE JR, apud. LIMA BRITO, 2005, p. 140.
567
Ibidem, p. 103.
164
Rosários dos Pretos é ocupada pela segunda ação do movimento, através de uma
exposição voltada para divulgar tais manifestações, resultando na gradativa
consolidação do grupo, a partir de publicações, exibições da Orquestra e
experimentações de artistas intelectuais com a linguagem popular.
A principal abordagem do movimento era a de construir uma arte popular
erudita, tipicamente brasileira:
568
VENTURA, 2007, p. 17.
569
BEZERRA, Amilcar. Tese em andamento, p. 87.
570
BEZERRA, Amilcar. Literatura e Almanaques: Ariano Suassuna e os modos alternativos de inserção
do popular e do nacional na mídia. XXX INTERCOM. Santos, Anais do Encontro. Santos, 2007. p. 3.
571
BEZERRA, 2007, p.3.
165
572
SUASSUNA, Ariano, apud. SANTOS, 1999, p. 36-37.
573
MACIEL, Jarbas. apud. DIDIER, Maria Thereza. Emblemas da Sagração Armorial: Ariano Suassuna
e o Movimento Armorial 1970/76. Recife: UFPE, 2000. p. 168.
166
A “pureza” que compõe o “Ser” brasileiro está exatamente onde Maciel afirma
na citação anterior, no “Brasil real”, localizado na região sertaneja de população mestiça
e pobre, onde os brasileiros “cultos e sensíveis” têm por obrigação resgatá-lo para
iluminar “os núcleos culturais de origem popular, como matéria-prima para uma
dimensão intelectual universalizante”,575 baseada no povo nordestino e suas
manifestações culturais autênticas.
Para a “essência” cultural estabilizar-se sob o signo da nordestinidade,576 é
preciso localizar o “subsolo oracular da cultura brasileira”, encoberta por três camadas a
serem perfuradas, até ir ao encontro do elemento purificador da identidade nacional.
Para Maciel, as duas camadas que podem ser visualizadas formaram-se a partir
da “consolidação do imperialismo norte-americano a partir de 1930 [...] na qual
predominam o Brasil litorâneo dos “burgueses” e a credibilidade na tecnologia e no
planejamento como portas para o progresso desmesurado”.577 A camada inferior é a do
“Brasil imperial”; no qual, é possível ver que a cidade já se destacava com a sua
predominância estrutural.
Maciel enfatiza que “é na terceira e mais profunda camada [...] que corresponde
ao ‘período arcaico do Brasil’ e que esta é fundamental para o entendimento do
Movimento Armorial”.578 Na fase marcada pelo período arcaico – nos séculos XVI,
XVII e início do XIX – o Brasil era compreendido pelos intelectuais pela sua “natureza
exuberante, selvagem, simultaneamente doce e hostil, sendo essa natureza ‘uma fêmea
tropical, quente, primitiva, sensual, que prende e submete o seu abraço viscoso, cheia de
mistérios’”.579
574
MACIEL. apud. DIDIER, 2000, p. 168-169.
575
DIDIER, 2000, p. 170.
576
Para Leonardo Ventura, a “Nordestinidade” seria o estabelecimento que o Movimento Armorial
formulou para construir uma linha reta que ligasse a arte nordestina a uma origem medieval-barroca,
evitando desvios e turbulências da rota de ligação desse diálogo cultural para, a partir desse fio que
conduz à estética armorial, seja possível descobrir a essência da arte nordestina, escavando suas
raízes, seguindo uma pista pelos vestígios deixados por ela na dita “cultura popular”. Cf.: VENTURA,
2007, p. 18.
577
MACIEL, Jarbas, apud. DIDIER, 2000, p. 171.
578
Ibid. id.
579
Ibid.id.
167
580
MACIEL, Jarbas, apud. SUASSUNA, DIDIER, pp. 171-172
581
BRITTO, Jomard Muniz de. Presença e Recusa do Sincretismo. Impresso. Recife. Sem data.
168
vêm de fora podem representar uma ameaça para a nossa soberania”582 e autonomia do
povo brasileiro, motivo que reforça a necessidade urgente de preservar a cultura e a
identidade nacional do meio externo, movimentando-se entre reação e resistência.
Ariano busca uma aproximação com a obra de Sílvio Romero e Gilberto Freyre,
ao perceber que em suas “obras de criação” – independente da reflexão cientificista do
primeiro e sociológica do segundo – é possível encontrar “a presença da Nação, da
região e da tradição sob seus olhares”,583 dialogando estes autores em torno das questões
ligadas à tradição e a etnicidade, bases teóricas fundamentais ao Movimento Armorial.
Apesar destas aproximações gerais, encontramos nessa complexa associação,
elementos peculiares que também os diferenciam enquanto proposta cultural. Uma das
características apontadas está na recusa de Ariano Suassuna quando se associa
Movimento Regionalista e Movimento Armorial enquanto grupos com objetivos
“iguais”, concepção generalizada que esvazia os objetivos e a localização temporal que
fundamentou cada grupo em sua época.
Um dos pontos a destacar a respeito dessa diferenciação está na definição do
Regionalismo como movimento que segue uma linha de pensamento mais próxima do
naturalismo584, como opção estética na construção de narrativas identificadas com a
reprodução da realidade de cunho memorialista, privilegiando o pensamento sociológico
e romântico, ao exaltar o “retorno ao passado”.
Já o Armorial, tem como prioridade, iluminar o “espírito mágico” da cultura
popular através da valorização da literatura oral em processo de recriação da realidade,
com elementos mágicos encontrados na região, indo do nacional ao universal,585
próximo do clássico barroco.
Não é à toa que o lançamento do movimento ocorreu numa igreja de arquitetura
barroca na cidade do Recife, “passando pela pretendida recuperação de melodias
barrocas conservadas pelo cancioneiro popular, na reminiscência das pedras armoriais
dos portões frontadas do barroco brasileiro”,586 aspecto decisivo para constituição da
“essência” cultural brasileira.
A recriação de terras e reinos imaginários elaborados pelo Movimento Armorial
são marcados pela origem dos integrantes, filhos de um ambiente rural que, numa
582
ALBUQUERQUE JR, apud. LIMA BRITO, 2005, p. 139.
583
DIDIER, 2000, p. 138.
584
Ariano considera que o Regionalismo seria uma espécie de “Neo-Naturalismo”.
585
VENTURA, 2007, p.104.
586
Ibidem, pp. 58-59.
169
587
SANTOS, 1999, p. 97.
588
ALBUQUERQUE JR, 2006. p. 167.
170
589
BEZERRA, Amilcar. Estrela Armorial: a presença de Ariano Suassuna na mídia nacional. XXVIII
CONGRESSO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO, UERJ, Anais de Congresso.
Rio de Janeiro: UFRJ, 2005, p. 4.
590
No carnaval de 2002, uma das maiores escolas de samba do Rio de Janeiro, Império Serrano, levou à
Sapucaí o enredo “Aclamação e Coroação do Imperador da Pedra do Reino: Ariano Suassuna”,
inspirado, principalmente, na Pedra do Reino e na Cavalgada.
591
Cavalgada à Pedra do Reino: Festa que relembra o movimento sebastianista liderado por João Antônio
dos Santos, em 1838, na Pedra do Reino, na Serra do Catolé, em São José do Belmonte, Pernambuco.
A festa é realizada no período de 21 a 28 de Maio. Esta festa vem se tornando, a cada ano, mais
brilhante e de maior expressão cultural. O evento tem hoje vários incentivadores, dentre os quais o
escritor Ariano Suassuna que publicou o livro O Romance da Pedra do Reino, em 1971, obra que
resgatou a história do episódio e inspirou a festa. Disponível em
<http://www.pedradoreino.hpg.com.br/>. Acesso em: 23 jan. 2009, às 15h53.
171
592
CANCLINI, 2003.
593
Ibid.id.
594
ORTIZ, 1994, p. 139.
172
595
FRANKLIN, Jeová. Jornal do Commercio. Recife. 21-IV-68. p. 3. Imagem e Miragem de um Mito.
596
BEZERRA, Amilcar. Tese em andamento, 2012. p. 94.
597
Ibidem, p. 96.
173
Amilcar Bezerra afirma que, “lastreado por esse peso simbólico”,598 Ariano, ao
assumir a Secretaria Municipal de Cultura em 1975/1977, amplia as atividades
exercidas pelo Movimento Armorial, no qual “sua política de pesquisa e criação
artística agora teria como agentes órgãos do poder público municipal, como a Orquestra
Sinfônica e o Balé Popular do Recife”.599
“O Palhaço Degolado” se rebela e ironiza as “Heráldicas e Ministérios
Armoriais”, ao criticar a totalização do poder cultural existente nas mãos de Ariano. No
período que o filme foi realizado, Jomard revela que:
598
BEZERRA, Amilcar. Tese em andamento, 2012. p. 96.
599
Ibid.id.
600
Entrevista concedida a Aristides Oliveira, na tarde de 07-10-2010, às 16h25, na residência de Jomard,
em Recife.
174
O pior adversário não é o que não vai aos museus nem entende de
arte, mas o pintor que quer transgredir a herança e põe na virgem um
rosto de atriz, o intelectual que questiona se os heróis celebrados nas
festas realmente o foram, o músico especializado no barroco que o
mescla em suas composições com jazz e rock601.
601
BEZERRA, 2005, p. 193.
602
GARRA. Informativo do Sindicato dos Servidores Públicos Federais no Estado de Pernambuco.
Entrevista: Acabou a Polêmica no Brasil. Ano VIII, nº 83 – Recife. Abril/Maio de 2007.
603
BRITTO, Jomard Muniz de. LEMOS, Sérgio. Inventário de Um Feudalismo Cultural. Recife. 1979. p.
57.
604
CUNHA, Paulo. Um Marginal Intrínseco. Reformulação do ensaio: Discurso Provinciano x Discurso
do Mundo. Correio das Artes, João Pessoa. 1990. In: BRITTO, Jomard Muniz de. Bordel Brasilírico
Bordel. Recife: Comunicante. 1992, p. 44.
175
em seu cruel miserabilismo [e hoje se refaz em] casa da cultura: transposta no mais
dócil folclorismo, ontem e hoje: casa de detenção da cultura”.605
A relação existente entre as heranças freyreanas, Movimento Armorial e
intervenção do Estado no campo da cultura – exposta até o momento no jogo de
citações lançadas pelo Palhaço – representa o que Paulo Cunha nomeia de “Geografia
Provinciana”.
O autor afirma que, para sua configuração se efetivar:
605
LEMOS, BRITTO, 1979, p. 17.
606
CUNHA, 1990. In: BRITTO, 1992, p. 44.
607
Ibidem, p. 46.
608
Ibidem, p. 47.
176
609
CUNHA, 1990. In: BRITTO, 1992, p.47.
610
FRANKLIN, Jornal do Commercio. Recife. 21-IV-68. p. 3.
611
DIDIER, 2000, p. 47.
612
Ibid.id.
613
BRITTO, Jomard Muniz de. Presença e Recusa do Sincretismo. Impresso. Recife. Sem data. p. 8.
177
614
BRITTO, sem data. p. 8.
615
Ibid.id.
616
DIDIER, 2000, p. 47.
617
BRITTO, Jomard Muniz de. Por uma Estética Nordestina. Revista Couro. João Pessoa: Sanhaná. Set.
1967. p. 01.
178
618
BRITTO, 1967, p. 01.
619
Ibidem, p. 02.
620
Ibidem, p. 01.
621
Ibidem, p. 04.
179
Essas inquietações expõem mais uma vez a visão de Jomard ligada à questão de
classe, ao revelar tais distanciamentos (o povo e os intelectuais) a partir da construção
de campos que definem as separações entre a realidade e o projeto “ideal” de cultura
brasileira, formulados pelos intelectuais às sombras do poder.
Apropriando-se do pedagogo Pierre Furter, Jomard busca compreender o debate
ao visualizar que, a partir da incorporação do popular pelos intelectuais enquanto
fundamento que faz da cultura brasileira “a ciência da nacionalidade”, [onde a tradição
se fortalece ao lançar no imaginário social] suas “imagens poderosas que, num certo
sentido, moldam a realidade [...] [sendo] uma maneira de projetar-se como sujeito da
história nacional623”. Isso leva a “comunhão dos intelectuais e da massa rural, da
burguesia industrial e da esquerda política, numa irracionalidade que pode conduzir não
apenas a mistificações, mas a erros graves”.624
Estes erros são traduzidos na cosmovisão mistificadora e acrítica da tradição
cultural brasileira, sob a justificativa do decadentismo econômico vivido no Nordeste
desde os tempos do Regionalismo, que se colocou como “salvadora” das manifestações
culturais nordestinas, em tempos de dependência econômica com o Sul do país.
Nesse sentido, visando tornar o Nordeste a “capital moral” de um país em rápido
processo de transformação das mentalidades e dos processos sócio-econômicos, a elite
conservadora, receosa em perder seus gabinetes protegidos à sombra dos canaviais:
622
O Norte, 2º cad. João Pessoa. 13 fev. 1979, p.1.
623
Ibidem, p.1.
624
FURTER, apud. BRITTO, 1979, p.1.
180
625
BRITTO, Jomard Muniz de. A Marreta, Ano I – Recife, mar./abr. 1977 – n. 0.
626
DIDIER, 2000, p. 49.
627
BRITTO, Jomard Muniz de. Cultura Nordestina em Debate. I Semana de Arte de Brasília Teimosa.
Promoção JUBRAPI, Recife, junho de 1968. p. 2.
628
Ibid.id.
629
BRITTO, Jomard Muniz de. Educação de Adultos e Unificação da Cultura. In: FÁVERO, Osmar
(Org.). Cultura popular e educação popular: memória dos anos 60. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1983.
p. 158.
181
A visão acima é marcada pela crítica ao conceito “oficial” de cultura, que para
Jomard, está vinculada a uma posição social aproximada ao prestígio de uma minoria,
630
BRITTO, Jomard Muniz de. Contradições do Homem Brasileiro. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
1964. p. 97/98.
631
MARCONI, Celso. Jornal do Commercio. Recife. 23 abr. 1969. Cultura de Massa: segundo Jomard
Muniz.
632
MARCONI, 1969.
633
Ibid,id.
634
Ibid.id.
182
635
BRITTO, 1968, p. 1
636
Ibid.id.
637
Ibid.id.
183
638
Entrevista concedida a Aristides Oliveira, na noite de 13-10-2011, às 20h30, na residência de Jomard,
184
Para ele, a cultura brasileira, ao invés de servir aos interesses do jogo político
sustentado pela elite de raízes agrárias – perpetuada nos ritos e encenações voltadas a
preservação museológica do popular-folclórico, para controlar “os riscos de mudança”
639
na sociedade – deve ser pensada na perspectiva de crítica nacionalista (sem
saudosismos ou conservadorismos), para abolir as visões dualistas da realidade
nacional, procurando desenvolver as nossas raízes a partir da criação contemporânea de
toda comunidade, pensando a noção de “popular” no âmbito das transformações
globais640, sem desprezar as raízes:
em Recife.
639
CANCLINI, 2003, p. 45.
640
BRITTO, 1968, p. 1.
641
Ibidem, p. 4.
642
BRITTO, Jomard Muniz de. Jornal do Commercio, Recife, 14 jan 1979. Porque Temer a Cultura
Popular, Caderno C.
643
Ibid.id.
644
Ibid.id.
645
CANCLINI, 2003, p. 162.
185
646
CANCLINI, 2003, p. 162.
647
BRITTO, Jomard Muniz de. ARIANO, IMORTAL, IMORTAL! Recife: Nordeste Econômico, 1989. p.
37.
648
BRITTO, 1977.
649
BRITTO, Jomard Muniz de. Cinevivendo, Impresso. 1976.
650
BRITTO, 1977.
186
651
CANCLINI, 2003, p. 166.
652
BRITTO, Jomard Muniz de. Discursos Paralelos que se Intercalam nos Labirintos da Repressão. In:
LEMOS, Sérgio. Inventário de Um Feudalismo Cultural. Recife: 1979. p. 30.
653
BRITTO, Jomard Muniz de. Escrevivendo. Recife: Editado pelo autor. 1973. p. 2.
654
Ibid. id.
655
BRITTO, 1977.
187
188
4. ENTRADA FINAL.
656
HOLLANDA, 1992, p. 15.
657
Ibidem, p. 16/17.
190
658
MOTA, 1977, p. 205.
659
Ibidem, p. 210.
660
Ibid.id.
191
Questão (1963)”, 661 de Ferreira Gullar, alguns fundamentos que representam com força
as ideias centrais sobre a “cultura popular” nos anos 60.
Gullar acredita que essa expressão marca um fenômeno novo nos modos de
produzir e vivenciar a cultura brasileira, pois o principal aspecto que define a essência
da cultura popular está na consciência do seu potencial transformador na sociedade,
levando “o intelectual a agir, em primeira etapa, sobre seus próprios instrumentos de
expressão para contribuir nesse processo”.662
A cultura é vista pelos intelectuais como um meio de tomada de consciência da
realidade, e é a partir do popular que torna-se viável compreender a problemática do
analfabetismo, da falta de vagas nas universidades para os mais pobres, que, segundo
Gullar, tem relação direta com a miséria da população rural e a dominação imperialista
na economia brasileira.
Debruçar-se nos problemas nacionais, por uma perspectiva cultural, era o melhor
caminho para analisar as contradições sociais explícitas, que indicava um conjunto de
diagnósticos negativos para o povo, “frutos da deficiência do ensino e da cultura,
mantidos como privilégio de uma reduzida faixa da população”.663
Para superar ou buscar saídas diante dos impasses entre economia, política, povo
e cultura, era preciso que o intelectual engajado adotasse uma postura de imediata
intervenção na sociedade, pois só era possível visualizar com nitidez esses problemas
“se se realizassem profundas transformações na estrutura socioeconômica e [...] no
sistema de poder. Cultura popular é, portanto, antes de mais nada consciência
revolucionária”.664
O intelectual assume a responsabilidade de levar ao povo essa consciência,
desde que este não conceba suas ações como algo “indeterminado e gratuito665”, bem
como expressão pessoal, individualista, que prioriza somente o plano estético, pois:
661
Filia-se no dia do golpe militar, 1º de abril, ao Partido Comunista, e a primeira edição de seu ensaio
"Cultura posta em questão", publicada no ano anterior, é queimada por militares dentro da sede da
UNE. Acesso em: <http://portalliteral.terra.com.br/ferreira_gullar/biobiblio/index.shtml?biobiblio#1960>
Acesso em: 14 Jan 2012.
662
GULLAR, 2006, p. 21/22.
663
GULLAR, 2006, p. 23.
664
Ibid.id.
665
Ibidem, p. 24.
192
Desse modo, era preciso trabalhar diretamente com o povo no âmbito da cultura
popular, ensinando-os a ler e a produzir conhecimentos que o situassem criticamente na
realidade do país, ao direcionar a cultura “em termos de problema social”,667 para que
fosse possível construir nos cidadãos um olhar crítico-desmistificador em torno dos
valores culturais considerados “vigentes”.
Retomando o artigo que Jomard escreveu para o Jornal do Commercio em
janeiro de 1979 (“Porque temer a cultura popular”), é possível estabelecer uma ligação
com as perspectivas de Ferreira Gullar como força inspiradora, para materializar o papel
do intelectual brasileiro na atuação da cultura como agente transformador da realidade.
Incorporando essas chaves de leitura, Jomard afirma que:
Foi nesse período que “surgiram grupos culturais que praticamente lançaram o
termo com uma acepção de caráter nitidamente político”.669 Para Gullar, só foi possível
estender para o povo a riqueza das linguagens artísticas enquanto crítica das ideias
políticas dominantes, por meio das ações de rua pelo cinema, poesia e teatro, por meio
de organismos que buscaram dar condições para que as expressões culturais populares
fossem “à luta para vencer os entraves econômicos e políticos”.670
666
GULLAR, 2006, p. 23.
667
Ibidem, p. 25.
668
BRITTO, 1979.
669
MOTA, 1977, p. 210.
670
GULLAR, 2006, p. 26.
193
671
GULLAR, 2006, p. 27.
672
Movimento de Cultura Popular no Recife – Acesso
em:>http://basilio.fundaj.gov.br/pesquisaescolar/index.php?option=com_content&view=article&id=723&
Itemid=192> Em 15 Jan 2012, às 14h32.
673
Movimento de Cultura Popular no Recife – Acesso
em:<http://basilio.fundaj.gov.br/pesquisaescolar/index.php?option=com_content&view=article&id=723&
Itmid=192> Em 15 Jan 2012, às 14h32.
674
Para conferir mais detalhes sobre a atuação do Centro Popular de Cultura da UNE. Acesso em:
<http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_teatro/index.cfm?fuseaction=cias_biografia&
cd_verbete=459>. Em 15 Jan 2012, às 14h58.
194
675
BRITTO, 1979.
676
Ibid. id.
677
O Instituto Superior de Estudos Brasileiros ou ISEB foi um órgão criado em 1955, vinculado
ao Ministério de Educação e Cultura, dotado de autonomia administrativa, com liberdade de pesquisa, de
opinião e de cátedra, destinado ao estudo, ao ensino e à divulgação das ciências sociais. O ISEB
funcionou como núcleo irradiador de ideias e tinha como objetivo principal a discussão em torno
do desenvolvimentismo e, a princípio, a função de validar a ação do Estado, durante o governo
de Juscelino Kubitschek. Foi extinto após o golpe militar de 1964, e muitos de seus integrantes,
os isebianos, foram exilados do Brasil. Pode-se afirmar que o ineditismo da experiência isebiana consistiu
no fato de intelectuais, de distintas orientações teóricas e ideológicas, se reunirem não apenas para debater
e refletir sobre “os dilemas e os problemas cruciais da realidade brasileira”. De forma deliberada, o
Instituto foi criado para servir de instrumento para uma ação eficaz no processo político do país. No
Brasil contemporâneo, o ISEB foi a instituição cultural que melhor simbolizou ou concretizou a noção (e
a prática) do engajamento do intelectual na vida política e social de um país. Cf: TOLEDO, Caio Navarro
de. 50 anos de Fundação do Iseb. Jornal da UNICAMP, Universidade Estadual de Campinas. 8 a 14 de
agosto de 2005. p. 11. Para Jomard: “Enquanto o ISEB lançava o problema da alienação cultural e
projetava uma ‘ideologia para o desenvolvimento nacional, os MCPs introduziram, de modo concreto, o
problema da democratização da cultura. Diálogo entre a cultura dos intelectuais e a cultura do povo.
Diálogo e comunicação verdadeiros: não uma atitude paternalista ou assistencialista, simplesmente
‘doadora’ de algo”. In: BRITTO, 1964, p. 103.
195
Marcelo Ridenti levanta uma hipótese que converge com as reflexões realizadas
até aqui, em que o autor afirma que houve um florescimento cultural e político dos anos
de 1960 e início dos de 1970 na sociedade brasileira, que pode ser caracterizado como
678
VERAS, Dimas Brasileiro. SANTOS FILHO, Francisco Aristides de Oliveira. A experiência da
esperança: um “Golpe na Alma” da intelectualidade brasileira pós 1964. 2009.
679
SCHWARZ, Roberto. Cultura e Política no Brasil: 1964-1969. In: BASUALDO, Carlos (Org).
Tropicália: uma revolução na cultura brasileira [1967-1972]. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
680
BRITTO, 1964. p. 15.
196
681
RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo brasileiro: artistas da revolução, do CPC à era da TV. Rio de
Janeiro. Record, 2000.
682
FÁVERO, Osmar (Org.). Cultura popular e educação popular: memória dos anos 60. Rio de Janeiro:
Edições Graal, 1983.
683
SCHWARZ, In: Basualdo, 2007. pp. 286/287.
684
VERAS, Dimas Brasileiro. Sociabilidades Letradas no Recife: a revista Estudos Universitários (1962-
1964). Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Pernambuco. CFCH. História. 2010. p. 112.
197
como Gilberto Freyre, que inicia uma verdadeira ação que visava neutralizar as
atividades promovidas pelo órgão, ao escrever nos jornais que tinham influência
política, um conjunto de críticas negativas à UR, bem como aos integrantes do SEC.
Para ele, “o reitor havia permitido que ‘comunistas’ ou ‘para-comunistas’ tomassem a
Rádio Universidade, os projetos de alfabetização de jovens e adultos e o periódico de
cultura da UR, a revista ‘Estudos Universitários’”.685 A abertura dada, para que um
movimento de cultura popular se aproprie dos meios de comunicação de massa, para
expressar sua visão de mundo é um perigo aos interesses reacionários.
Dentre vários trabalhos realizados por Paulo Freire à frente do SEC, a rádio e a
revista eram “ameaçadoras” para os intelectuais amparados pelas zonas confortáveis dos
empoderamentos oficiais, pois esses suportes surgem como conteúdos de comunicação
– transdisciplinar – atuantes numa linha de reflexão contra-hegemônica, posicionando-
se enquanto “ponto de vista não idealista, cômodo e conformista da cultura brasileira”.
686
685
VERAS, Dimas Brasileiro, MENDONÇA, Dyjanise Barros de Arruda. Educação popular e reforma
universitária: Paulo Freire e a criação do Serviço de Extensão Cultural da Universidade do Recife (1962-
1964). In: Estudos Universitários: Revista de Cultura. Recife. Universidade Federal de Pernambuco.
Editora Universitária. V 24/25. N. 5/6. Dez. 2004/2005. p. 16
686
Ibid.id.
687
ZAIDAN FILHO, Michel. MACHADO, Otávio Luiz (Orgs.). Movimento estudantil brasileiro e a
educação superior. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2007. p. 44.
198
688
VERAS; MENDONÇA, 2004/2005. p. 16.
689
“Alguns meses após o golpe a Universidade do Recife organiza entre seus professores, com a ilustre
participação de Gilberto Freyre, O Simpósio sobre a problemática Universitária. Neste longo exercício de
avaliação escolar não se pode dizer que em nenhum momento o SEC é mencionado, pois este é lembrado
como serviço supérfluo e o seu financiamento mencionado como gastos irresponsáveis, desviando a
“universidade de suas finalidades essenciais”. Em sua fala, Freyre convoca os catedráticos a resistir ao
argumento da chamada “democratização dos diálogos”. A nova direção da UR deveria partir de questões
estritamente regionais e “de uma orientação que talvez possa ser acusada de elitista, isto é, de um tanto
aristocraticamente valorizadora das elites, dentro dos sistemas universitários’”. Ibidem. p. 21.
690
Ibidem. pp. 18/19.
691
SCHWARZ, In Basualdo: 2007. p. 287.
692
SCHWARZ, In: Basualdo: 2007. pp. 279/280.
199
Até o momento, na linha narrativa do filme, nada intimida o Palhaço. Ele está
em pleno fervor corporal, saltitando livremente entre os transeuntes, devorando
antropofagicamente um rico arsenal de livros que estão dispersos no chão da Casa.
Espalhando-os pelo corredor, o personagem rola entre os mesmos, afronta a lente de
Carlos Cordeiro, aproximando-se em direção ao espectador, quando, de repente, pára e
se joga no chão, olha os livros ao seu redor e se debruça com um universo multifacetado
de textos, entre eles: Ariano Suassuna, Gilberto Freyre e György Lukács.
Abre e fecha os livros em ritmo frenético, no gesto de comilança desenfreada
das páginas, desorientadas pela animosidade da mise en sciene. O Palhaço parece atingir
seu ponto máximo de vibração, ao “comer” com violência todas as palavras, linhas e
impressões de um mundo livresco que o desafiava, naquela montanha imperiosa
rapidamente desfeita, pela pulsão rápida do gesto devorador.
Ao se desgarrar do banquete, o Palhaço retoma sua piruetas e gritos... “O
intelectual que não pronunciar até a exaustão a palavra ideologia... O intelectual que não
pode viver, morre. Morre! Morre!”
O súbito silêncio. O espírito de um tempo marcado pelas expectativas de
transformação do homem, a partir da educação, sob o olhar da felicidadania
paulofreireana é bruscamente sufocada por dois soldados, que rondavam às escondidas
o Palhaço, interrompendo sua performance no corredor da Casa, agarrando-o pelos
braços e jogando-o na cela 106.
A música circense é interrompida pelo som de uma sirene. Os soldados não
deixam brechas para o Palhaço desprender-se e fugir, o encarceramento é efetivado. O
Palhaço fica encurralado na cela, olhando para os lados, tocando nas paredes sujas que o
cercam, sem conseguir compreender de imediato o motivo de estar naquela condição.
As mãos de Carlos Cordeiro registram a cena num misto de espanto e
investigação do espaço, marcados no primeiro momento do cárcere por um olhar
distante e temeroso, que lentamente vai criando coragem, ao se aproximar daquele
ambiente desconhecido, cheio de tensão e incerteza, fragilizando os excessos na voz e
no corpo do Palhaço, diante das engrenagens da prisão regionalista.
Rastejando pelas paredes, o clima de impotência diante do cárcere faz o
personagem evocar a lembrança de Paulo Freire: “Onde está o professor Paulo Freire?693
693
Passou por um breve exílio na Bolívia e trabalhou no Chile por cinco anos para o Movimento de
Reforma Agrária da Democracia Cristã e para a Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a
200
Alimentação. Em 1969, muda-se para Cambridge, nos EUA e em 1970, transfere-se para Genebra, na
Suiça. Com a Anistia em 1979 Freire pôde retornar ao Brasil, mas só o fez em 1980.
694
VERAS; MENDONÇA, 2004/2005. p. 20.
201
caminho de uma geração que ainda se esforça para construir novas linhas de
pensamento para a reformulação de um projeto cultural.
Para impedir essas transformações e o reconhecimento das contradições do
homem brasileiro em trânsito:
Foi preciso o golpe militar para que a classe dominante tirasse de cena
os que ameaçavam as “regras preestabelecidas” e organizasse ela
mesma as condições em que a inclusão dos analfabetos pudesse ser
feita não apenas sem risco, mas, sobretudo com vantagens. A
manipulação das massas analfabetas não precisava mais do
insuportável e oneroso cabresto. O controle dos meios de
comunicação de massa – rádio e televisão – em vertiginosa expansão,
garantiria a inclusão dos analfabetos com direito a voto, dentro da
ordem estabelecida.695
695
VERAS; MENDONÇA, 2004/2005. p. 17.
202
Sua prisão foi na mesma época em que tinha lançado o livro “Contradições do
Homem Brasileiro”, publicado pelas edições “Tempo Brasileiro”, em 1964. Em um
momento de revisão autocrítica, ao ser comentado sobre esse trabalho, Jomard afirma
que este estudo realizado foi numa:
696
Entrevista concedida a Aristides Oliveira, na tarde de 07-10-2010, às 16h25, na residência de Jomard
Muniz de Britto.
697
Entrevista concedida a Aristides Oliveira, na noite de 13-10-2010, às 20h30, na residência de Jomard
Muniz de Britto.
698
BRITTO, 1964. p. 11.
203
699
BRITTO, 1964, p. 13.
700
Ibidem, p. 15.
701
Ibidem, p. 15/16.
702
Ibidem, p. 22.
703
Ibidem, p. 23.
704
Ibid. id.
705
Ibidem, p. 22.
204
seus desejos de mudança pessoal e coletiva. Esta marca do futuro que se projeta é o
tempo do homem brasileiro, 1964”.706
A “saída” para o homem reconhecer-se enquanto contradição e se libertar de um
“mundo caduco” – já ultrapassado pelo atraso da imobilização conservadora – estaria na
educação, na alfabetização das letras e imagens, para possibilitar o despertar de suas
capacidades criadoras, ao estimular “o impulso de fazer cultura e projetar-se em tôdas as
dimensões da existência”.707
Para Jomard-educador, o principal exemplo desta possibilidade de transformação
na vida do homem estava no “Sistema Paulo Freire de Educação de Adultos, algo mais
do que um simples método de alfabetização: campo de trabalho e pesquisa para quem
deseja pensar ‘corajosamente’ [...] os problemas da educação”.708 Pensar com coragem
é amadurecer suas concepções dentro de um exercício de autocrítica constante, usando o
humor e a ironia “como recusa de tôda falsidade”.709 Esta entraria como meio de
“constatação da realidade, experimentando suas limitações e recusando suas
concessões”.710
Assim é que o Palhaço-Jomard comporta-se diante da problemática por ele
enfrentada, uma visão lúdica, recheada de chistes e carnavalizações, que percebe a
cultura brasileira “enquanto rejeição de todo o intelectualismo”,711 ao se apropriar da
ironia e do corpo-clown para revelar sua admiração pela complexidade das tramas que
entrecortam a nordestinidade e, ao mesmo tempo, negar as visões empoderadas, que
constroem uma identidade definida pelo interesse da cultura oficial, dos intelectuais
“funcionários públicos”, aclamados em mitomanias sistemáticas.
A chave que liga as perspectivas entre Jomard-educador-palhaço-tropicalista
está no seu gesto de refletir sobre a cultura brasileira sem saudosismos, ufanismos:
706
BRITTO, 1964, p. 30.
707
Ibidem, p. 25.
708
Ibid.id.
709
Ibid. id.
710
Ibidem, p. 18.
711
Ibidem, p. 25.
712
Ibidem, p. 91.
205
713
BRITTO, 1964, pp. 91/100/101.
714
BRITTO, Jomard Muniz de. Do Modernismo à Bossa Nova. São Paulo. Ateliê Editorial. 2009. p. 8
715
Ibidem, 2009, p. 84.
716
Ibid. id.
206
717
BRITTO, 2009, p. 84.
718
Ibidem, p, 93.
719
BRITTO, Jomard Muniz de. ALFABETIZAÇÃO ESTÉTICA, roteiro de contradições e convergências.
Recife: Fogo Roubado. Fevereiro de 1995. p. 153.
720
BRITTO, 1995. p. 153.
721
Culturas Brasileiras em Trânsito ou em Transe: esquema para debates. Recife: Sem ano/ Impresso.
207
A partir dessas informações, podemos observar que Jomard busca expor no seu
mapeamento uma irônica tabela (não-estanque) da realidade cultural brasileira. Dessa
forma, ele articula várias gerações estético-produtivas, mostrando-nos que os estilos,
mesmo vinculados a uma tendência mais ampla, que as definem como “Nacional-
Popular”, “Experimental” ou “Internacional-Popular”, possuem estreita relação de
hibridismo e diálogo constantes entre si.
É uma crítica aos usos das categorizações como meios criados para enquadrar a
pluralidade e os excessos na cultura brasileira, idealizada sob acordo entre intelectuais
conservadores, que tomam posse da brasilidade e das instituições que financiam seus
discursos totalizantes, com vistas à promoção dos mitos e dos grupos que se revezam
nas cadeiras oficiais, sejam elas tropicológicas, armoriais, ou as que estão em vigência.
As “Tensões do Experimental” ficam localizadas no centro da tabela,
alimentando-se antropofagicamente das contradições contidas nas extremidades,
podendo interpenetrar-se em quais blocos desejar. Jomard diz que “os exemplos de cada
coluna podem ser transferidos para a outra, por argumentação ou simples crença”.722
É nesse sentido – argumentativo, questionador – que “O Palhaço Degolado”
realiza um tráfego pela história destas categorias em debate, a partir dos movimentos em
curva e zigue-zague, convivendo e recriando a densidade dos estilhaços. Seu corpo
722
BRITTO, Impresso, sem ano.
208
723
BRITTO, 1995, p. 154.
724
Ibidem, p. 156.
725
Ibid.id., p. 156.
209
726
BRITTO, 1992, p. 63.
727
O Caso Jomard Muniz de Brito, um Capítulo do Livro Negro da UFPb ou O Surrealismo da
Repressão, organizado pela ADUFPB-JP (Associação dos Docentes da UFPB – Secção: João Pessoa).
1979. p. 7.
210
728
Surrealismo da Repressão, 1979. p. 7/8.
729
Ela seria reintegrado em 21 de março de 1980.
730
Entrevista concedida a Aristides Oliveira, no fim de tarde, com vontade de chover, em 12-10-2011, às
18h, na residência de Jomard Muniz de Britto.
731
Ministério da Educação e Cultura. Universidade Federal da Paraíba. 22-ICFCH/185/69.
732
Serviço Público Federal. Ministério de Educação e Cultura. Of. 00-11/73. João Pessoa. 14/02/73. In: O
Caso Jomard Muniz de Brito, um Capítulo do Livro Negro da UFPb ou O Surrealismo da Repressão,
organizado pela ADUFPB-JP (Associação dos Docentes da UFPB – Secção: João Pessoa). 1979.
211
Duarte. Apesar de ser longa, a ata que registra todo o processo de acusação à Jomard, é
marcada por acusações que valem à pena reproduzir abaixo.
Confira alguns trechos do dossiê, na fase de interrogatório contra Jomard:
733
Processo de Investigação Sumária Instaurado pela portaria nº 8, de 12 de dezembro de 1972 – Da
CISNEC. Termo de Inquirição. In: O Caso Jomard Muniz de Brito, um Capítulo do Livro Negro da
UFPb ou O Surrealismo da Repressão, organizado pela ADUFPB-JP (Associação dos Docentes da UFPB
– Secção: João Pessoa). 1979.
212
Sobre o poema que cita “João Sem Terra”, Jomard afirma que utilizou o recurso
poético para problematizar a realidade brasileira situada no debate da desigualdade,
distribuição de renda e terra para os mais pobres, no desejo de realizar uma “solicitação
humanizadora, de defesa do homem em seu permanente tornar-se humano”.737 O homem
deveria incorporar o espírito da revolta diante da realidade, mas “não a revolta como
atitude negativista, destrutiva, caótica. MAS O REVOLTAR-SE COMO
INQUIETAÇÃO EXISTENCIAL, COMO O CONTRÁRIO DA INDIFERENÇA
DIANTE DOS PROBLEMAS HUMANOS”.738
Jomard é enfático ao dizer no texto que nunca foi:
734
Defesa. Documento redigido por Jomard Muniz de Britto em 15/03/73. In: O Caso Jomard Muniz de
Brito, um Capítulo do Livro Negro da UFPb ou O Surrealismo da Repressão, organizado pela ADUFPB-
JP (Associação dos Docentes da UFPB – Secção: João Pessoa). 1979.
735
BRITTO, 1979, p. 21.
736
BRITTO, 1979, p. 22.
737
BRITTO, 1979, p. 22.
738
Ibidem, p. 22.
213
739
Ibidem, p. 24.
740
Entrevista concedida a Aristides Oliveira, na tarde de 07-10-2010, às 16h25, na residência de Jomard
Muniz de Britto.
214
741
CASTELO BRANCO, 2005. p. 136
742
Secretaria da Segurança Pública – Pernambuco Informe do SNI. Ref. 012-JB. 07/05/1968.
743
BRITTO, 1979. p. 25.
215
744
SANT’ANNA. Afonso Romano de. Considerações em torno do abismo. 25/03/87.
745
HOLLANDA, 1992, p. 90.
746
Ibid. id.
747
FAVARETTO, Celso. Tropicália: a explosão do óbvio. In: BASUALDO, 2007, p. 81.
748
HOLLANDA, p. 91.
216
749
HOLLANDA, p. 92.
750
Ibidem, p. 95/96.
751
Ibidem, p. 53.
752
FAVARETTO, In: BASUALDO, 2007, p.81.
753
BASUALDO, Carlos. Vanguarda, Cultura Popular e Indústria Cultural no Brasil. In: BASUALDO,
2007, p. 11.
217
754
BASUALDO, 2007, p. 12.
755
CORRÊA, Martinez. In: BASUALDO, 2007, p. 13.
756
BASUALDO, 2007, p. 14.
757
FAVARETTO, 1979, pp. 10/11.
218
758
FAVARETTO, 1979, p. 11.
759
DUNN, In: BASUALDO, 2007, p. 63.
760
Ibid. id.
761
Ibid. id.
762
Contidos em autores como Sylvia Helena Cyntrão, Christopher Dunn, Carlos Calado, Augusto de
Campos, Luis Carlos Maciel, entre outros nomes. Disponível em
<http://tropicalia.com.br/v1/site/internas/bibliografia_1.php> Acesso em: 28 Jan 2012, às 20h22.
219
percebê-lo em um “estado mais amplo, numa arena de agitação [...] cuja abrangência
iria bem além do campo estritamente musical763” para o campo das identidades.
A primeira consideração histórico-referencial sobre a Tropicália está nas suas
bases de inspiração artística, a partir da apropriação crítica do Manifesto Antropofágico
(1928) de Oswald de Andrade, em suas formulações teóricas, tomando a metáfora
indígena de devorar canibalescamente os inimigos, entre portugueses e tribos rivais.
Assim, é possível compreender que o modelo de elaboração cultural tropicalista dá-se
pela deglutição nada “subserviente às tendências metropolitanas na Europa, nem
defensivo ou estritamente nacionalista”.764
Seria uma retomada antropofágica oswaldiana do Modernismo de 1922, na qual
o artista plástico-conceitual-multimídia, Hélio Oiticica765, ao teorizar sobre o conceito
“Tropicália” – baseado em sua instalação de mesmo nome766 – esclarece que ela é:
763
SUSSEKIND, Flora. Coro, Contrários, Massa: A experiência Tropicalista e o Brasil de fins dos anos
60. In: BASUALDO, 2007. p. 31.
764
DUNN, Christopher. Tropicália: Modernidade, Alegoria e Contracultura. In: BASUALDO, 2007, p.
63.
765
Criador do penetrável Tropicália, em 1967, que não só inspirou o nome, mas também ajudou a
consolidar uma estética do tropicalismo na música e nas outras linguagens em processo de experiência e
renovação no país.
766
Exposição Nova Objetividade Brasileira, idealizada e apresentada pelo próprio Hélio Oiticica, no
Museu de arte Moderna do Rio de Janeiro, em 1967.
767
OITICICA, Hélio. Tropicália. 04 de março de 1968. In: BASUALDO, 2007. p. 239-241.
220
768
FAVARETTO, 1979, p. 23.
769
OITICICA, Hélio. Tropicália: o problema da imagem superado pelo problema de uma síntese. 1969.
In: BASUALDO, 2007, p. 309.
770
OITICICA, 1969. In: BASUALDO, 2007, p. 309.
771
“A antropofagia era também um corretivo necessário às noções essencialistas e aistóricas de
‘brasilidade’ como imaginadas por alguns dos modernistas mais nacionalistas. Para os tropicalistas,
quarenta anos depois, a ideia de antropofagia forneceu um modelo e um discurso para suas releituras da
tradição da canção brasileira à luz de desenvolvimentos contemporâneos no pop internacional”. Cf:
DUNN, Christopher. In: BASUALDO, 2007, p. 64.
772
DUNN, Christopher. In: BASUALDO, 2007, p. 64.
773
Ibid. id.
774
OITICICA, 1969. In: BASUALDO, 2007, p. 309.
775
Ibid. id.
221
Nesse sentido, Hélio afirma que a arte brasileira necessita reinventar sua
definição e sentimento:
776
OITICICA, Hélio. Tropicália: a nova imagem. 1969. In: BASUALDO, 2007, pp. 310-312.
777
ROCHA, Glauber. apud. SUSSENKIND. In: BASUALDO, 2007, p. 40.
778
SUSSENKIND. In: BASUALDO, 2007, p. 44.
779
HOLLANDA, 1992, p. 55.
222
possa conviver com o fluxo do novo e liberte o corpo para a experimentação máxima da
linguagem, na:
780
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Cartografias da alegria ou a diversão do Nordeste: as
imagens do regional no discurso tropicalista. In: Horácio Gutiérrez; Márcia R. C. Naxara; Maria
Aparecida de S. Lopes. (Org.). Fronteiras: paisagens, personagens, identidades. 1ª ed. São Paulo:
Olho D'Água, 2003. p. 03-05.
781
COCCHIARALE. Fernando. Primórdios da Videoarte no Brasil. In: MACHADO, Arlindo (Org).
Made In Brasil: Três Décadas do Vídeo Brasileiro. São Paulo: Iluminuras, Itaú Cultural, 2007. p. 65.
223
Pensar a cultura pela lógica tradicional não fazia mais sentido para esses
artistas, obrigando os tropicalistas a buscarem um novo espaço de significação na
música, artes plásticas e outras áreas através da:
782
OITICICA, 1968. In: BASUALDO, 2007. p. 10.
783
VIANNA, Hermano. Políticas da Tropicália. In: BASUALDO, p. 142.
784
BENTES, Ivana. Multiculturalismo, Cine-Sensação e Dispositivos Teóricos. In: BASUALDO, 2007.
p.101.
785
LUNA, João Carlos de Oliveira. O Udigrudi da pernambucália: história e música do Recife
(1968/1976). Dissertação (Mestrado). Universidade Federal de Pernambuco. CFCH. História. 2010. p.
162.
786
BRITTO, Jomard Muniz de. Revista do Jornal do Commercio. 17 mar 1968. Tropicalismo e
Tropicalistas. Recife.
224
787
LUNA, 2010, p. 162.
788
BRITTO, 1992, p. 65.
789
TELES, José. Do frevo ao manguebeat. São Paulo: Ed. 34, 2000. p. 120.
225
790
GIL, apud. TELES, 2000, p. 121.
791
Ibid. id.
792
BRITTO, Jomard Muniz de. Jornal do Commercio. 24/03/68. Da cultura baiana à civilização carioca.
793
Entrevista realizada por Aristides Oliveira, na tarde de 07 de outubro de 2010 na residência de Jomard
Muniz de Britto, às 16h25 em Recife-PE.
226
794
Jornal do Commercio. 18/02/1968. Poesia-Processo em grosso e no varejo: melhor comunicação. IV
Caderno.
795
Jornal do Commercio. 18/02/1968. Poesia-Processo em grosso e no varejo: melhor comunicação. IV
Caderno.
796
TELES, 2000, p. 112.
227
tem o que fazer... ou, no caso dos compositores, “como uma maneira
de ganhar dinheiro, vendendo mais discos”. Entretanto, Jomard,
Aristides [Guimarães] e Celso [Marconi] afirmam que têm
consciência da transitoriedade do movimento, mas que mesmo assim
êle produzirá efeitos imediatos.797
O texto ficou conhecido por “Porque somos e não somos tropicalistas” – lançado
no mesmo ano que o LP “Tropicália ou Panis et Circencis” – expondo como ideias
centrais, a constatação do:
797
Jornal do Commercio. 19/04/68. Ano XLIX. Manifesto tropicalista tentará o marasmo hoje à noite na
Varanda. nº 91.
798
Jornal do Commercio. 20/04/68, Porque somos e não somos tropicalistas. Recife.
228
799
TELES, 2000, p. 113.
800
Ibidem, p. 115.
801
Jornal do Commercio. 20 abr. 1968. Tropicalistas iniciam movimento para combater a burrice com a
loucura. Ano XLIX. nº 92. Recife.
229
802
NOBLAT, Ricardo. Jornal do Commercio. 28 abr. 1968. Recife. Tropicalismo ou Palhaçada? Coluna
Opinião. p. 13.
230
803
NETO, Jorge. MARCONI, Celso. Jornal do Commercio. 28 abr. 1968. Recife. Duas visões do
Tropicalismo. Ano XLIX. nº 99.
804
DOURADO, Rodrigo. O palco da subversão pernambucana: Vivencial Diversiones e a cena
tropicalista. Disponível em: <http://mascherabodybuilding.blogspot.com/2009/07/dramaturgia-e-
sexualidades-vivencial.html>. Acesso em 25 fev. 2012, às 23h27.
805
CUNHA FILHO, Paulo C. A pesquisa cultural nas margens: universidade, vanguarda, periferia. III
ENECULT, na Faculdade de Comunicação/UFBA, Anais de Encontro. Salvador (BA). s/e. 2007.
231
806
Ibid. id.
807
FERRAZ, Leidson; DOURADO, Rodrigo; JÚNIOR, Wellington. (Orgs). Memórias da cena
pernambucana. Recife: Edição dos Organizadores, 2005. p. 109.
808
CASTELO BRANCO, 2005.
809
BRITTO, 1992.
810
TELES, 2000, p. 117.
232
811
BEZERRA, 2012, tese em andamento, p. 109.
812
“As divergências com relação ao Tropicalismo, entretanto, não se resumem a preferências estéticas. Há
um embate de valores que pode ser flagrado na discussão pública entre Caetano Veloso e Ariano
Suassuna nas páginas da Folha de São Paulo, em 1999. A celeuma teve início quando Suassuna publicou
numa de suas colunas semanais um texto no qual criticava o slogan da revolução estudantil parisiense de
1968, “é proibido proibir”, apropriado na ocasião pelos tropicalistas brasileiros. Rotulando a frase de
leviana e tola, o autor reprova um suposto conteúdo amoral do lema, opondo a ele a constatação de que
Deus existe, e que, portanto – parafraseando personagem de Dostoievsky – nem tudo é permitido. Critica
ainda a posição de Sartre, derivada da constatação inversa de que, se Deus não existe, tudo seria
permitido. Essa posição é, para Suassuna, inadmissível, pois deixaria a humanidade à mercê de uma ética
do prazer individualista, que pairaria acima de quaisquer critérios éticos. Algumas semanas depois,
Caetano Veloso, [...] que havia se apropriado do lema estudantil parisiense em 1968 para compor a
canção intitulada “É proibido proibir”, responderia às assertivas de Suassuna com um longo artigo cujo
título era “Dostoievsky, Ariano e a Pernambucália”. As divergências entre Veloso e Suassuna com
relação à interpretação do mote libertário “É proibido proibir”, bem como as distintas conclusões
derivadas do existencialismo sartreano, são ilustrativas tanto das visões laica e sagrada do mundo, que
respectivamente os opõem, como também da própria concepção de arte para cada um dos autores em
questão. [...] Veloso, que admite também ser ateu, defende a postura de Sartre e o lema de 68,
interpretando-os dentro do contexto das agitações políticas daquela época, como mote voltado para a
subversão de estruturas autoritárias e impulsionador da revolução comportamental em curso. Sendo
assim, tanto o existencialismo quanto o slogan “amoral” “É proibido proibir” não pregariam o caos, mas
deveriam ser compreendidos como expressões de contestação de uma moral autoritária vigente, e das
potencialidades políticas dos indivíduos organizados. A arte seria uma das ferramentas de contestação da
autoridade num sentido existencial, uma forma de transcender padrões culturais instituídos ao lançar um
olhar original, inusitado, sobre o mundo e as relações humanas. Para que desempenhe a contento essa
função, a arte não pode estar presa aos grilhões da moral. Entretanto, Suassuna adota a crença em uma
moral que se sobrepõe à estética e que por sua vez regula a esfera de valor da arte. [...] Em suma, a
separação entre arte e moral não apetece a Ariano Suassuna. Pelo contrário, a arte, para ele, deve estar
sempre submissa a uma espécie de “moral da estética”, em última instância, assentada em fundamentos
divinos. Daí derivam muitas de suas concepções sobre a natureza da arte, inclusive o culto a uma pretensa
“pureza” imanente à arte popular. [...] Para os tropicalistas a modernidade é encarada como vetor
dinâmico a reprocessar o dado tradicional e apontar, necessariamente, em vários aspectos, a sua
superação. [...] A relação do Movimento Armorial com a tradição, contudo, é bem diferente. O teor
sagrado atribuído aos artefatos da cultura tradicional anula as possibilidades de tratamento crítico da
tradição popular. O “peso tradicional”, ou a “autoridade da coisa”, conforme entendidos por Benjamin
(1996 [1936/1937]) não permitem que a obra seja destacada de sua tradição. Sob essa perspectiva,
deveríamos – como brasileiros – tomar ciência do que o Sebastianismo representa para nós não para
superá-lo, mas para nos tornarmos conscientemente aquilo que já somos, mas que até então vínhamos
ignorando. A resposta para o que somos estaria sempre no passado, e os caminhos que no presente e no
futuro conduzem ao afastamento deste passado, nos levariam a uma existência inautêntica”. Conferir:
BEZERRA, Amilcar. Tese em andamento, 2012. p. 101.
813
Ibid. id.
233
seus seguidores – os artistas atuaram à frente de uma cultura que pretendia “sacudir”
com as estruturas arcaicas da sociedade.
Podemos perceber a insistência tropicalista em outro manifesto, com teor mais
radical, chamado “Inventário do nosso Feudalismo Cultural”, também escrito em 1968,
tanto pelos PEBAs,814 como pelos paraibanos e os artistas-processo do Rio Grande do
Norte.
Nesse documento, podemos encontrar uma forte ligação entre o Poema-Processo
e o Tropicalismo, movimentos que estão em constante diálogo, e juntos, escrevem o
manifesto, para compartilhar um amplo repertório de ideias convergentes em relação à
insatisfação desses intelectuais diante do cerceamento sistemático dos espaços e meios
de expressão cultural no Nordeste, atreladas ao domínio estatal, por onde transitam os
“mestres” e “monstros sagrados” da cultura pernambucana, encastelados no Conselho
Estadual de Cultura.
Contra essa situação, o manifesto atua no cenário intelectual pernambucano
enquanto crítica impactante sobre a “realidade brasileira hoje [...]; da instauração de
novos processos criativos, da utilização da ‘cultura de massa’ [...] com a finalidade de
desmascarar e ultrapassar o subdesenvolvimento através da explosão de suas
contradições mais agudas815”.
Insinuando que os intelectuais vinculados à perspectiva tradicional da cultura
brasileira compõem a “tropicanalha”, afirmam que esses se fecham para o novo a partir
de uma:
[...] atitude conservadora e purista em face da cultura e da realidade
brasileira hoje; retaguarda cultural significando alheamento, de tentar
dar respostas passadas aos problemas, revelando o passadismo através
da nostalgia, do donzelismo, do pitoresco, do cartão-postal, da
carência de informação, contribuindo assim para uma perpetuação do
subdesenvolvimento; enxerga com viseiras e preconceitos [...]. Até
quando os representantes da cultura oficial se utilizaram dos cargos
que ocupam com o objetivo de promoção pessoal? [...] Já que nenhum
serviço prestam a coletividade, por que não se “Extinguem” os
Conselhos de Cultura e as Academias de Letras?816
814
PEBA: Aristides Guimarães, Celso Marconi, Jomard Muniz de Britto (da “PE”), Caetano Veloso e
Gilberto Gil (e da “BA”). Entre eles também articularam o manifesto a turma ligada ao Poema Processo
do Rio Grande do Norte, como Moacyr Cirne, Dailor Varela, Falves da Silva, Anchieta Fernandes, Alexis
Fernandes e os paraibanos Marcos Vinícius de Andrade, Carlos Antônio Aranha, Raul Córdula Filho.
815
BRITTO, 1992, p. 81.
816
Ibid. id.
234
totalizadora da brasilidade.
Entre excessos e recuperações, o Palhaço corre pelo labirinto da Casa,
reativando sua matriz crítica, a partir do riso, da zombaria e da ironia à intelectualidade
brasileira, fazendo da paródia e do entrelaçamento de nomes, textos e referências,
mixadas no caldeirão tropicalista, um complexo jogo poético-corporal audiovisual. Seu
trânsito corrói as bases sólidas da cultura oficial, constituindo-se “assim, num dos
instrumentos mais importantes de ruptura com o passado” tradicionalista,818 que
“transforma as inconsistências histórico-culturais em valores folclorizados”.819
O Palhaço busca alternativas para o impasse intelectual que vivencia, sem
prender-se a fechamentos ou re-categorizações dos signos que nos informam
culturalmente, na busca constante pelos abismos brasilíricos, que o lança ao
fragmentário agressivo, “porque ironiza o todo, desapropriado pela operação
parodística”,820 correspondendo “ao esvaziamento da ideologia que mantém os mitos
821
falando, [produzidos historicamente] para [silenciar] o reprimido” e dar voz apenas
às versões monumentais, encobrindo a pluralidade.
817
BRITTO, 1992, p. 82.
818
FAVARETTO, 1979, p. 83.
819
Ibidem, p. 41.
820
FAVARETTO, 1979, p. 88.
821
Ibidem, p. 84.
235
O rápido zoom out fecha-se em cortina e redireciona a câmera para uma abertura
solar no teto da Casa, descendo lentamente para o corredor em que foi realizada a
performance do Palhaço durante toda a exibição do curta-metragem, em sintonia com os
gritos do mesmo, em ritmo crescente: “Até quando? Até quando? Até quando? Até
quando?A saída?Até Quando?Até Quando? Até Quando? Até Quando?” O filme é
encerrado com a cartela: “Fim (a seu modo)”.
A partir dos exercícios de leitura possíveis nesta pesquisação – atravessada pelo
desejo, priorizando como método de trabalho o Estado de Espírito criativo – foi possível
compreender neste processo de análise, que “O Palhaço Degolado” é um experimento
audiovisual resultante das reflexões intelectuais que marcam a vida pessoal e cultural de
Jomard Muniz de Britto no final da década de 70.
Um desdobramento estético-político construído na fase pós-tropicalista, a fim de
revisar criticamente os discursos que informam as bases oficiais do “Ser” da cultura
brasileira, dispostas no rígido controle estatal de circulação dos conceitos que definem
os “marcos” da brasilidade tradicionalista.
Ou seja, um Brasil organizado para atender os anseios e empoderamentos dos
intelectuais situados nos trópicos, projetando a identidade imaginada dentro de
esquemas tradicionais de aceitação social, “na crença da existência de uma totalidade
ideal que poderia agenciar a superação das diferenças culturais, através de um
procedimento também totalizante, que seria o de gerir a multiplicidade cultural
brasileira [...] naquele momento”.822
É dessa forma que a radicalidade fílmica jomardiana expressa-se, ao negar a
interpretação da história do Brasil presa “numa visão de continuidade do processo
cultural”.823 O Palhaço utiliza o corpo para dessacralizar o conceito de cultura brasileira
– conectada à perspectiva tropicológica-armorial – através do diálogo crítico com esse
material histórico já consagrado, expondo-se em frente824 à maquinaria discursiva, para
problematizar suas “inconsistências nacionais”825 a partir dos estilhaços – fruto das
transformações em trânsito – desterritorializando “os investimentos regrados de uma
“cultura veiculada pelo nacionalismo burguês e de classe média que, frequentemente,
opõe o Brasil ao capitalismo internacional e à indústria cultural”.826
822
CYNTRÃO, 2000, p. 120.
823
Ibidem, p. 120.
824
Ibidem, p. 43.
825
Ibidem, p. 121.
826
FAVARETTO, 1979, p. 89.
236
827
ALBUQUERQUE JR, Durval Muniz. Tempo, a Fera que Engole Tudo: a visão tropicalista do
Nordeste. In: Nos Destinos da Fronteira: história, espaços e identidade regional. Recife. Bagaço. 2008. p.
165.
828
ALBUQUERQUE JR, 2008, pp. 166-168.
829
RIDENTI, 2000, p. 14.
237
Até Quando este país continuará sendo ‘de fraca memória’ [...]. Até
quando os impasses sócio-culturais serão amordaçados pelos
aparelhos repressivos do Estado? Até quando nós, educadores, nos
integraremos nos aparatos metodológicos da mais-repressão? Diálogo
em transe. Diálogo em conflito e contradições.831
830
BRITTO, Jomard Muniz de. A Língua dos Três Pppês: poesia, política e pedagogia. In: Atentados
Poéticos. Recife: Edições Bagaço. 2002, p. 197.
831
BRITTO, 1979.
832
BRITTO, Jomard Muniz de. Sempre atuante.
833
BRITTO, 2002. p. 201.
238
834
BRITTO, Jomard Muniz de. Bricolage: a outra margem da terceira margem: entre o Sena e o
Capibaribe, Abismos 3. In: Nordeste Econômico. Março 1989, p. 47.
835
BRITTO, 1989, p. 47.
836
BRITTO, Jomard Muniz de. O Norte, João Pessoa, 28 Abr. 1993. Porque Somos e não Somos Pós-
Tudo Pós ou Pop-Pós Tropicalistas, p. 2.
837
Entrevista concedida a Aristides Oliveira, na noite de 24-10-2011, na residência de Jomard.
239
***
Mestre Gilberto Freyre! (3x)
Muito bem situado nos trópicos,
Casa-Grande (2x), alpendre, terraços,
Quarto-e-sala, senzala!
Senzala?
Mestre Gilberto Freyre! Senzala?
Casa-Grande de detenção da cultura.
Muito bem situado nos trópicos.
Tristes trópicos.
e sertanejos de ficção.
Muita ficção nas pedras e pedradas do Reino.
Nossas vidas secas... encontrar o sonho
da grande cidade? Ou o medo de sempre
Ou a auto-censura?
Dez anos depois, as manhas de liberdade
E as manhas do li-be-ra-lis-mo insistem
Em douras as pílulas
de nossas ilusões televisivas.
A praça é do povo com o céu
é dos poetas populistas?
Dos líricos burocratas?
Dos intelectuais funcionários públicos,
dos épicos nordestinados,
dos sertanejos de ficção?
Diarreia da classe média ou
Derrame do populismo?
É a onça Caetana!
É a onça Caetana?
Ou é a crítica fazendo cobrança?
É a repressão ministerial ou
a esquerda oficial?
Cultura amordaçada.
Abaixo o Imperalismo Cultural
Escrever, viver,
escreviver,
escrevivendo,
cinevivendo:
Lutar com o super 8 é a luta mais vã.
TI JO LO
VOTO LIVRE
1964
EXÍLIO
FOME
1968
1978
ATÉ QUANDO?
ATÉ QUANDO?
ATÉ QUANDO?
ATÉ QUANDO?
243
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ANEXOS
263
Recife.
Outubro 2011.
264
12-10-11, às 18h.
Aristides: Eu queria entender Jomard, essa sua fase, é... o AI-1 tirou seu
espaço da Universidade, você foi aposentado... e como sua relação com esse
silenciamento... como você se encontrava naquele período?
JMB: Eu tive dois amigos que foram... digamos assim... os meus guias na
Universidade. Aqui em Pernambuco foi Luíz Costa Lima, famoso ensaísta da cultura,
nós somos da mesma geração. Então ele me indicou a uma professora de Filosofia, que
eu tinha terminado o curso de Filosofia, se ela não me aceitaria para ser especialista
temporário não remunerado, no campo da História e da Filosofia da Educação... que a
cadeira era essa. Então eu comecei a dar aulas na Universidade daqui ligado a essa
professora, antes de 64 evidentemente... Antes de Luís Costa Lima, quem foi o meu
“patrono” (a palavra certa é essa) na Universidade, sobretudo da Paraíba foi José Rafael
de Menezes, professor, educador, escritor. Já falecido. Então, ele sugeriu meu nome
para entrar no curso de Filosofia como professor, isso era o governo Jânio Quadros... e
consegui também a casa de um professor, que era também professor de Filosofia, que
morava perto da faculdade para eu ficar hospedado lá. Então eu ia daqui pra João
Pessoa... dei aula durante alguns meses e não recebi dinheiro, porque o contrato não
tinha saído. Num determinado momento, saiu um decreto de Jânio proibindo qualquer
tipo de contratação do serviço público. Então, eu perdi esse tempo, dinheiro... mas de
qualquer modo ficou uma marca... Depois aí o pessoal disse... saiu Jânio Quadros,
mudou tudo... em 64... a minha carteira profissional [...] foi em março de 64... que eu fui
contratado pela Universidade da Paraíba... porque eu disse: “Olha, eu só volto com o
contrato...” Então... voltei pra dar aula na Paraíba com o contrato e já como professor
titular de Filosofia da Universidade Federal da Paraíba. Uma coisa que fica mexendo a
minha cabeça é que eu já estava ligado a Paulo Freire... mas era alguns dias que eu
passava na Paraíba... Mas para contar a história da Paraíba primeiro... as duas histórias
são paralelas... Eu, como trabalhava com Paulo Freire aqui também, nós fomos
submetidos a um interrogatório, um inquérito policial militar, fomos presos e esse
inquérito ainda demorou, a prisão foi uns dezoito dias segundo uma amiga minha, eu
não em lembrava...
265
Sobre isso tem a carta do Glauber Rocha, que eu saí da prisão para assistir
“Deus e o Diabo na Terra do Sol” e a minha amiga Astrogilda de Carvalho Paes de
Andrade foi falar com um “milico” forte... “ele é amigo de Glauber Rocha e precisa
assistir esse filme... e tem uma carta de Glauber falando desse episódio... A prisão foi
em 64. Quando eu fui preso vinha um pessoal lá durante duas semanas ou três... me
visitar... as amigas minhas no Forte das Cinco Pontas. E aqui eu estava... com Paulo
Freire... se desmontou tudo... então o professor chamado Marcelo Santos, já falecido,
ele era professor de História da Arte e disse: “Jomard, você pode, se quiser, vir ensinar,
o que é que você gostaria de ensinar?” Eu disse: “Olha meu caro, dentro da História da
Arte, o que eu tenho mais livros, já li umas coisas sobre arte pré-histórica e sobre arte
moderna. Ele disse: “Ótimo! Você ensina isso...” Eram várias disciplinas de História da
Arte. Então, o interessante é que eu estava respondendo ao inquérito aqui e na Paraíba.
Aposentaram a gente. Com 27 anos. Eu fui aposentado junto com professores
famosíssimos que tinha ligações de esquerda, mas... aposentado aqui, continuei dando
aulas na Paraíba. Oficialmente isso não era possível. Na Paraíba me diziam que meu
contrato não seria retomado. Lá eu dei aula de 64 até o AI-5. Aqui eu estava aposentado
porque trabalhei com Paulo Freire no “Sistema Paulo Freire de Educação de Adultos”.
Então, a interpretação que eu dou é que lá na Paraíba, esse meu amigo, José Rafael de
Menezes era uma figura queridíssima. Paulo Pires, além de professor, era advogado...
Eu era uma espécie de afilhado, protegido dele. Foi ele que me levou pra Paraíba para
fazer palestras quando eu tinha 17 anos de idade. Então, nesse período pós-64, eu na
Paraíba, um professor que me abrigava na casa dele, professor Paulo Pires disse:
“Jomard, tem uma lei agora que o camarada, o professor com cinco anos de trabalho ele
já é efetivo. Eu disse: “Rapaz, mas não tenho”. E ele disse: “Tem! Jomard, antes de vir
pra cá, você dava aula na Escola Normal, no Instituto de Educação, que era de
Pernambuco, é do Estado. Incluía tudo, municipal, estadual e federal. Então eu fui atrás
desse documento e levei, e fiquei como professor efetivo na Paraíba. Eu não era mero
contratado, era efetivado.
Então, 64, 65, 66, 67, 68... Tropicalismo!!! Aqui, o argumento fundamental foi
que eu era da equipe de Paulo Freire... Lá, recebi um comunicado da diretora do centro
dizendo que estava impedido de dar aulas... isso depois do AI-5. Já tinha explodido a
coisa do Tropicalismo... A minha profissão que eu sabia e gostava de fazer era ensinar...
266
não podia ensinar nem aqui, nem na Paraíba... Pagaram meus vencimentos até 73/74,
depositavam meu salário, 74 pararam, eu fiquei abusadíssimo! (risos)
13-10-11, as 20h30.
verbais onde o leitor era um co-autor desses poemas ou desses textos. Tudo que você
fazia... você dava uma possibilidade de interferência. Então eu vou dar um exemplo de
um poema-processo, que foi um natalense, chamado Dailor Varela no “Opinião 68”. Ele
pesquisou durante alguns meses deste ano de 68, nas revistas, as palavras que saíam
com mais destaque. Então, essas palavras, ele recortava, colava numa cartolina, dezenas
e centenas de palavras eram jogadas numa mesa ou no chão e cada pessoa fazia lá o seu
poema, a sua conjugação de palavras. Então, isso foi Dailor Varela que criou essa
“Opinião 68” e eu usei muito isso nos cursos de Comunicação que eu dei, onde eu
falava muito em McLuhan.
JMB: Ele influenciou aos que quiseram ser influenciados por ele. Na época
era... Umberto Eco com “Obra Aberta” e McLuham com o livro “O Meio é a
Mensagem”. Décio Pignatari traduziu “Os meios de Comunicação como extensões do
Homem”, é uma teoria sobre todos os meios de comunicação do McLuhan... depois saiu
o livro de Décio chamado “CONTRACOMUNICAÇÃO”... Nesse livro de Décio fala
muito na guerrilha cultural, teoria da guerrilha cultural...
Vocês me levam com essas entrevistas famigeradas a curtir uma coisa que eu
detesto que é o Egolombrismo! Isso que eu faço no momento que ninguém... esse
negócio, que isso não vale coisa nenhuma... isso é uma forma de eu fazer uma guerrilha
cultural...
Na época, o Cinema Novo estava enfrentando Cinema Boca do Lixo, então essa
boca do lixo era uma guerrilha cultural em relação ao Cinema Novo... o Zé Celso
Martinez Corrêa com o Teatro Oficina, então é se contrapondo a outros tipos de teatro,
mais formais, mais canonizados... A guerrilha cultural é uma metáfora.
Poema-Processo. Nós aqui não tivemos isso. Eu padeço ainda hoje o título
“Tropicalismo”, isso é uma desgraça. (risos)
Aristides: Um cânone...
Para o público de um modo geral, Caetano e Gil são como se fossem uma
entidade838... Mas são duas pessoas totalmente diferentes, nas diferenças deles, eles têm
essa grande afinidade humana.
Quando eu aproximo Glauber e Caetano, porque eu acho que eles nunca tiveram
assim... o que se chamaria hoje de um discurso politicamente correto. Eles estão sempre
na contramão das coisas... nas margens... nas dobras... E não é uma atitude para ser
“diferente” não, eles são a diferença. Eles marcavam a diferença.
838
Segundo o livro “Verdade Tropical”, de Caetano Veloso.
270
JMB: Para pensar minha vida! Você está dentro de um país que pensava na
democratização da cultura, nas reformas de base, numa visão otimista do país... e você
estava inserido nesse processo... do desenvolvimentismo, do planejamento, da educação
de base, de tudo mais... vivíamos esse clima, que era a Bossa Nova, o Cinema Novo,
Paulo Freire, da democratização da cultura...
839
Usar no carnaval.
271
Degolado”, ele cumpriu, ele teve um papel dentro da cultura, da dinâmica cultural
brasileira, sobretudo pernambucana, mas brasileira... ele enfoca as personalidades, os
“monstros sagrados”. Isso é uma visão unilateral ou parcial, uma perspectiva restrita,
por isso eu fiz o “Inventário de Um Feudalismo Cultural” (1978).
JMB: Porque isso tem o livro e não só livro, mas tem uma visão crítica das
instituições, para mostrar que o problema não era só as personalidades, mas a “ego-
lombra”... de Ariano ou do Gilberto... O problema são das instituições. Pessoas que se
transformaram em instituições. No caso de Gilberto, ele tem uma obra imensa, grande
obra ensaística dele, mas ele se transformou numa instituição... inicialmente a “Joaquim
Nabuco”, que agora tem a “Fundação Gilberto Freyre”. E Ariano é uma instituição
também...
JMB: Na minha geração havia aquela dicotomia forte entre cultura popular e
cultura erudita... Dentro dessa dicotomia, os movimentos de cultura popular faziam
muita coisa... “vamos valorizar a cultura popular, porque a cultura de elite é alienada”.
No meio dessa coisa, havia a indústria cultural... aí isso desnorteou, o que era dicotomia
agora era virou uma “tricotomia”. Aí é que a coisa ficou mais “embananada”... e dentro
desse processo que você está relembrando, que se viveu na década de 60 com Paulo
Freire, o que se queria era uma conscientização dos dilemas, das contradições, das
272
culturas todas, mas havia uma certa rejeição da cultura de massa. “A cultura de massa
era padronizada, do capitalismo, da dominação, do imperialismo cultural”... Mas
acontece que uma revista da UNE na época, publica Edgar Morin falando na “terceira
cultura”, que era uma valorização da cultura de massa. Eu achei isso interessante porque
não foi uma publicação qualquer, foi uma publicação de um grupo de estudantes, era
uma visão crítica da cultura, da emancipação cultural. Então eu comecei a defender
muito isso... que era como a pessoa não devia temer... aí que entra a palavra
antropofagia nesse sentido de você dialogar com todas as culturas, todos os tipos de
cultura. E a questão do povo... quem o povo? O trabalho com Paulo Freire era com as
camadas populares. Eram os estudantes universitários que iam ser os alfabetizadores.
Que iam fazer os Círculos de Cultura. Os estudantes universitários já estavam dentro de
um processo que era uma formação acadêmica, alienada e desalienada, fazendo a crítica
da alienação.
Eu não me lembro de fazer superoito pensando no povo, nem contra o povo nem
a favor do povo, nem nada disso. Eu achava que minha posição era uma posição crítica
que englobava quem quisesse criticar... A contra-cultura ligada ao Tropicalismo era
justamente contra a cultura oficial, essa cultura oficial que é dominadora e que era
fechada, muito elitista. A gente queria romper com isso, ler os clássicos e ler os
contemporâneos. E a coisa aberta para o debate.
Nas minhas aulas sobre esse assunto eu falava nas concepções do povo... citava
Brecht que dizia: “O que não é popular pode tornar-se popular”. A música mais
refinada, a música mais experimental, clássica ou contemporânea, tudo depende de uma
iniciação no processo de linguagem...
273
Não se podia usar a guitarra elétrica, era uma coisa “alienada”... Isso é uma coisa
de uma intolerância, de uma estupidez intelectual que no fundo tem aquela coisa... entra
a homofobia, porque a imagem do Tropicalismo é a imagem do desbunde, das roupas,
das fantasias, da carnavalização, da androgenia... não foi o Tropicalismo que inventou
isso, mas a contra-cultura no jogo das minorias, entra o jogo da negritude, do feminismo
e isso no plano de discussão e vivência e de debate intelectual, era o problema da
contra-cultura. As pessoas mais conservadoras achavam que tudo isso um absurdo. Aí
entra o conservadorismo religioso, católico, familiar, tudo isso.
Da década de 90 pra cá, são leituras muito psicanalíticas, mas muito livres...
Aristides: Nos anos 70, quando você iniciou suas produções audiovisuais em
super-8, havia alguma divisão estético-política entre os realizadores naquele
período? Como você se encontrava neste debate de produção?
JMB: Isso é chato, porque parece que eu vou ter que julgar as tendências que
haviam, que não havia nem duas nem três. Cada cineasta tinha sua tendência. Agora, o
que se diz, o que já está escrito nos livros é que as tendências dominantes era mais
documental ou ficcional. Então, essa tendência documental era ligada ao cinema
realista, podia ser um realismo mais contemplativo ou um realismo mais crítico. E a
tendência ficcional foi anarco-estética, porque tinha uma posição política que era muito
rebelde e ao mesmo tempo seria... não queria ficar presa à matriz documental.
275
JMB: Eu achava que eles trabalhavam muito bem. Filmes que eu não posso
esquecer... “Valente é o Galo” (1974), premiadíssimo... muito bem feito pelo Fernando
Spencer, tem uma música especial que foi feita para o filme. Me lembro também do
documentário de Flávio Rodrigues sobre a Feira de Caruaru... São vários filmes assim...
O Celso Marconi filmou, por exemplo, a chegada do Papa, ele já documenta... tem um
sentido talvez mais crítico, mostrando aquela massificação toda, da romaria do Papa...
Eram filmes que os documentaristas... eles eram muito preocupados com uma
elaboração formal, faziam a “coisa” bem feita, tecnicamente bem feita. Agora eu quero
lembrar também que a gente tá falando em duas linhas, mas existe uma linha
independente, que era de dois amigos chamados Athos/Godoy, que eles, pelo fato de
serem militares, a gente tinha medo deles... e por conta do medo e também preconceito.
Os filmes deles vistos hoje são muito bons porque jogam com... eles já criticavam a
televisão com o “13ª Trabalho”. (...) Hoje em dia não tem mais essa divisão entre
documentarista, anarquista, militarista, civilista, esquerdista.
JMB: Essa atmosfera está muito bem retratada no filme... qualquer fala,
qualquer discurso verbal é redundante, que todo mundo que tem uma inteligência
mediana... não precisa estar fazendo mestrado, doutorado, entendeu? As pessoas
entendem que é uma sátira aos grandes nomes da cultura pernambucana, não só
pernambucana, mas nordestina-brasileira, que é Gilberto Freyre e Ariano Suassuna. É
um humor corrosivo. E não somente as duas figuras que se impunham mais aqui na
cidade... que eles são pessoas geniais, mas eles usaram o poder cultural muito em
função de projetos “deles”. Eles achavam que não eram só “deles”, mas da “Cultura
Brasileira”. Então, Gilberto Freyre tinha a Tropicologia. Os Oníricos que vão estudar a
Tropicologia. O Ariano tinha o Armorial. Os Oníricos vão estudar o Armorial, não sou
eu que vou falar sobre eles. Agora, a partir deles, eu fazia uma crítica ao imperialismo
276
quando tinha 16/17 anos. Então foi quando eu publiquei o primeiro livro, em 64... O
livro saiu no comecinho de março, teve o lançamento... e no fim de março teve... o
golpe civil-militar de 64. Então, quando eu coloco “Contradições do Homem
Brasileiro”, eu procuro fazer uma interpretação livre, a menos acadêmica possível. Eu
misturo letra de música popular com o Guimarães Rosa... Essa ótica, que já era
precocemente a bricolagem... essa mistura de tudo, pra mim é uma antecipação do
Tropicalismo. Uma coisa que o Tropicalismo foi muito criticado aqui é por causa da
guitarra elétrica, mas a Bossa Nova já usava os instrumentos elétricos e já tinha esse
diálogo com a música americana... Então, eu identifico mais uma afinidade quando eu
comecei “Contradições do Homem Brasileiro” com o espírito de chamar uma atitude
tropicalista. Agora o pessoal ficava muito confuso, porque dizia: “você faz crítica a
Gilberto Freyre e ele não é Tropicalista?”. Eu dizia: “não... Gilberto Freyre é da
Tropicologia”. As pessoas se confundiam, misturavam. A Tropicologia era um
sistema... era uma coisa... um Seminário de Tropicologia! E a gente não fazia nada com
esse sentido formal, era uma coisa mais Vivencial! (...) Ao mesmo tempo, Gilberto
Freyre tem um humor muito incrível. Ele diz que o Tropicalismo, na verdade... Os
primeiros tropicalistas foram os cronistas do século XVI. Então manda os historiadores
lerem esses cronistas (risos) (...) para comparar eles com a “Verdade Tropical” de
Caetano.
Cacá: Como se deu essa afinidade? Como você se identificou assim com...
não sei se a gente pode dizer “Movimento” ou com alguns artistas, com um
pensamento...
JMB: Eu acho que foi justamente dentro da minha vida. Eu escrevia sobre
música popular, escrevi sobre Bossa Nova (“Do Modernismo à Bossa Nova”, 1966).
Como o movimento de 64, surgiram as canções de protesto, eu escrevi e cantava as
canções de protesto. Então... foi um encadeamento de coisas, entendeu? Bossa Nova,
Canções de Protesto... que desaguou no Tropicalismo. Agora o Tropicalismo foi uma
coisa mais audaciosa, mais assim de enfrentamento mesmo, porque havia muita
resistência. As pessoas não queriam encarar... era uma coisa mais do desbunde! No
sentido “negativo”, entendeu? De “farra”... Veja só, eu gosto sempre se lembrar que a
importância para nós do Tropicalismo, quando ele se corporifica através de manifestos...
teve manifesto no Rio de Janeiro, teve manifestos aqui... Houve uma coincidência
cronológica: 67/68 foi o surgimento também no Rio Grande do Norte, do Poema-
278
Processo. Não foi só no Rio Grande do Norte, foi também no Rio de Janeiro. E aqui,
nós tínhamos um editor de cultura, jornalista, Celso Marconi. Ele divulgou no
“Suplemento Cultural” do Jornal do Commercio amplamente o Poema-Processo.
Entrevistas, teorias, análises e os próprios poemas-processo. Pra mim, a leitura que eu
faço, eu prefiro chamar, em vez de chamar Poema-Processo, eu chamo de Arte-
Processo. Como costumo dizer, poema tem o compromisso com a série literária, com a
configuração da literatura e a proposta do Poema-Processo é mais abrangente, com da
própria arte concreta. Além da literatura. Tinha a música concreta, tinha a pintura, tinha
tudo... dança concreta. Então, essa coincidência entre o Poema-Processo, que ainda hoje
é muito cultivado em Natal. Isso foi interessante para o nosso trabalho, voltando à
matriz pedagógica... para minhas aulas... misturar Paulo Freire... essa coisa dos Círculos
de Cultura, que é a grande invenção de Paulo Freire... onde as ideias eram lançadas e
discutidas. A mistura dos Círculos de Cultura com a Arte-Processo, juntamente com a
Neo-Antropofagia, como Caetano chama, O Tropicalismo. A herança que ainda hoje
continua sendo discutida do Oswald de Andrade, no “Manifesto Antropófago”. Quando
Caetano é indagado por Augusto de Campos... ele pede um definição do Tropicalismo e
Caetano diz: “É uma Neo-Antropofagia”. Isso é uma coisa para você não encarar as
culturas isoladas, mas essas misturas culturais, a crítica permanente.
JMB: Hoje em dia o meu embate, o que a política cultural oficial do Brasil tá
fazendo? Os pontos de cultura pra mim... invenção da equipe de Gilberto Gil foi a coisa
mais original que surgiu nesse panorama. Fora isso, o problema são os incentivos
culturais... FUNCULTURA. Eu acho que há uma tendência inconsciente dos jovens
artistas (os velhos já estão definidos)... querem ser funcionários públicos! Querem ter a
sua fatia... porque ganha um “incentivo”. “Ahh, nós ganhamos um, vamos ganhar o
segundo, o terceiro, o quarto...” Então, vira todo mundo funcionário público.
Funcionário dos “incentivos”. Hoje em dia, o camarada tem uma ideia: “Vamos fazer
um filme, vamos fazer um livro..., “mas como é que eu vou conseguir grana, através de
279
um incentivo cultural?” Não tem nem o livro, nem filme ainda, nem a ideia, nem o
roteiro.
JMB: Tem que se enquadrar, tem que saber quais são as ideias dominantes...
JMB: Hoje em dia o que está bom é essa misturação geral... Agora tem os mais
espertos e os menos espertos.
Cacá: Essa “misturação”... você não acha que dá margem a uma dominação
também?
JMB: Não sei o que Nordeste quer ser. O Nordeste é um conceito geográfico.
Tem que virar piada... Essa pergunta sugere a piada: “Pernambuco falando para o
mundo!”. Tinha o livro “Nordestinados” (1972), de Marcos Accioly. Enquanto eu lanço
o “Inventário de um Feudalismo Cultural” (1978) – filme – e falo dos “Desnorteados",
já uma posição... A pergunta aí é católica. “O que você espera do Nordeste?” “O que eu
desespero do Nordeste?”
280
JMB: Você tem que trabalhar ou ter uma mãe rica! (risos) (...) Eu trabalhei
desde os 16 anos de idade. (...) Eu acho que a pessoa tem que arranjar um emprego. Se
quiser viver de arte... trabalhe muito como artista! Ou então vamos ser todos os “Reis da
Cultura”! (risos)
JMB: Claro, mais aí foi uma escolha minha mesmo. Eu não tenho coragem de
enfrentar “aquela coisa” do Rio de Janeiro, São Paulo. Eu prefiro mesmo ficar por aqui.
Não há “bola de cristal” sobre isso... Para ter uma definição: eu sou um azarado. Eu sou
azarado desde o primeiro livro... O primeiro livro que eu escrevi (“Contradições do
Homem Brasileiro”) eu trabalhava com Paulo Freire. O livro foi editado, porque o
camarada sabia que eu trabalhava com ele. Paulo Freire olhou o livro antes, gostou, fez
a revisão, comentava comigo... Então, eu pensava que aquele livro – a gente atuando
com Paulo Freire e minha atuação como professor de História da Educação, de Filosofia
da Educação, o livro sairia, porque é um livro que falava muito no Brasil, na cultura
brasileira. Os outros livros falavam mais na cultura estrangeira... aí veio o golpe
militar... isso é ou não é azar? Desse primeiro livro até o último, que tá encalhado...
Terminemos agora! Chega de ressentimentos! Chega de azar!
281
Filme:
estética circense tem a sua dívida ao fato de Gilberto Freyre se fantasiar de palhaço, ao
Auto da Compadecida, que é um palhaço. Então eu sou dependente desses grandes
criadores da cultura.
JMB: Da estética circense. Você que botou isso na minha cabeça! Graças a sua
pergunta, você é que criou essa dependência pra mim, que eu tô esclarecendo... que
comigo é isso... arrasar! Devastar tudo! Você faz a pergunta e eu respondo, entendeu?
Não fui eu que disse nada, você é que provocou e exigiu de mim uma identificação e
uma explicação sobre uma estética circense! Vamos lá! Vamos repetir para confirmar
isso!
Esse plano geral... o bonito é isso... porque isso não é estética circense coisa
nenhuma, isso é uma criação em super 8... pegar essas flores aí na frente e o palhaço
fazendo umas circunvoluções e falando “Casa Grande...” Então esse plano geral é que é
interessante! Vamos lá, para a abertura do filme...
JMB: Aí eu faço todo... uma mesa grande que é um símbolo de uma coisa
oficial... Ele está passando em revista o ideário de Gilberto Freyre, então vamos ouvir...
isso está na “Terceira Aquarela do Brasil”...
JMB: Os temas todos estão sendo discutidos pela cultura brasileira, pelo seu
PNC! Isso aqui não é só Pernambuco nem Gilberto Freyre, isso aqui é o pensamento da
cultura brasileira...
Isso não foi dito na hora, foi gravado depois, na edição.
Filme:
Mestre Ariano Suassuna
Mestre Ariano
Mestre Armorial!
Como é dura a vida do colegial
começar o anos com lápis de classe
assinalando os brasões e
suas armas armoriais...
E TUDO, pela força dos brasões familiares
e dos poderes oficiais,
TUDO pode transformar-se em armorial...
Céus armoriais
Astrologia armorial
Literatura de cordel armorial
Gravadores armoriais
Povo, povo, povo armorial
Ioga armorial
Empreguismo armorial
Sexologia armorial
Subvenções armoriais
Sobrados & Mocambos, quem diria, armoriais
Megalomania armorial
Piruetas armoriais
Dança Armorial
como é mesmo, profa. Flávia Barros,
a reverência armorial
Heráldicas e Ministérios armoriais
Onça armorial
O Príncipe dos príncipes armoriais, Estética, Metafísica...
Capibaribe armorial, Capiberibe, armorial.
Orquestra armorial, não!
Orquestra romançal!
É a onça Caetana!
É a onça Caetana?
Ou é a crítica fazendo cobrança?
É a repressão ministerial ou
a esquerda oficial?
Cultura amordaçada.
Abaixo o Imperalismo Cultural!
conhecimentos, que acham que é um elogio a Ariano... “ah, muito bonito aquilo que
você disse sobre Ariano” (risos). A cultura é isso, a ambiguidade, é a imbecilidade e a
genialidade. (risos)
O totalitarismo da cultura pernambucana não... a cultura pernambucana não
merece isso e por isso o pessoal gostava porque eu tinha coragem de dizer isso... as
pessoas tinham medo do Ariano, de serem perseguidas na universidade.
JMB: Continua dominando todas cenas do Brasil! Onde ele vai é um sucesso
estrondoso. A Globo... ele continua atual e atuante. Ele não dominava, as pessoas
escolhiam ser dominadas por ele. Ele não quer dominar nada, ele é um gênio. Então as
pessoas que escolhem ser dominadas por ele. A gente fala de maneira metafórica.
Nessa cena, pra você saber dos bastidores... a gente ia fazer a cena já na cela,
mas para abrir a cela foi difícil, tinha que procurar a chave, num sei o quê... aí pra não
ficar esperando, o camarada foi buscar a... então nós improvisamos essa cena que seria
uma cena, digamos, eu queria voltar pra coisa mais crítica que é isso... “É a onça
caetana, é a onça caetana...” Olha a brutalidade das grades...
Filme:
Escrever, viver
escrevivendo
cinevivendo:
Lutar com o super 8 é a luta mais vã.
A irmandade dos Campos inaugurou as cercas
da vanguarda:
Filme:
Joyce, Pound, Oswald de Andrade, Mallarmé,
João Cabral, Bauhaus, Guimarães Rosa,
Sousândrade, Teoria da Informação, Max Bense,
ideogramas, Eisensteins...
o que não seja estrutura verbo-foco-visual
já era... instauração práxis cerceada em nadas.
E todos chegaram primeiro, pioneríssimos,
ao ovo novo da galinha primal;
até o rasga-rasga do poema processo
e a mais recente, internacional
arte correio/ arte postal;
o intelectual que não pronunciar
até a exaustão a palavra ideologia...
o intelectual que não pode viver, morre.
JMB: Os destaques dos livros não foi intencional... Agora eu quero que você
entenda que essa cena faz também, como tem aquela anterior, que é no âmbito do
Brasil, da cultura brasileira, essa aqui é no plano das vanguardas internacionais, não só
nacionais, mas internacionais.
Olha eu jogando os livros no chão! Olha eu jogando os livros no chão pelo amor
de Deus! Eu jogando os livros no chão! Eu comendo os livros! Eu comendo! Comendo!
Comendo! Olha eu comendo! Você não tinha visto isso, nem eu!
Antes nós estávamos falando da mitologia da cultura brasileira, agora é uma
mitologia universal. Mérito também disso, que não é uma coisa provinciana, falando de
Ariano nem de Gilberto Freyre...
Agamenon Magalhães. Uma vez ele criou... ele disse uma frase assim, “quem não pode
viver, morre!” Então isso ficou na cabeça de muita gente e eu boto isso: “o intelectual
que não pode viver, morre”.
JMB: Essa tensão é muito válida, é muito necessária, porque tudo é no campo
da ambiguidade, onde você joga com o poder, com os macro-poderes, com os micro-
poderes. Diante dos vários poderes culturais que estão aí, “O Palhaço Degolado”
representa o micro-poder... Estamos aqui tratando de macro-poderes culturais: a
Fundação Joaquim Nabuco, Movimento Armorial atual e atuante, Concretismo, a eterna
vanguarda de Paulo Bruscky... Eu acho que tudo isso deve ser colocado numa dúvida
permanente... O intelectual que não tem o potencial de enfrentar os macros-poderes e os
micros-poderes e fugir dessa megalomania ou desse narcisismo... dessa cosmovisão
totalizante. Eu tenho medo da coisa da totalidade, esse jargão juvenil... eu acho isso
289
Carlos: Superoito era o que havia na época de mais moderno, como não se
podia filmar em 35 mm e nem tão pouco em 16 mm, a solução era super-8 porque a
gente filmava, editava, fazia o que queria, era todo caseiro e eu tinha todo material pra
isso e quanto aos filmes... de repente ele tinha uma ideia eu pegava a câmera e a gente
saía pra gravar, muitas vezes sem roteiro, sem nada determinado, a gente saía e gravava,
seguindo aquela linha de Glauber Rocha: “Uma câmera na mão e uma porção de coisas
na cabeça”.
Carlos: Jomard tinha esse projeto na cabeça dele há muitos anos, por que ele
tinha algumas discordâncias com vários personagens aqui de Pernambuco. Ele
discordava culturalmente de muita coisa e era uma época de repressão, era uma época
de se ter que se debater pra poder se impor.
Um belo dia ele me falou que tinha um projeto que queria fazer um trabalho na
Casa da Cultura sobre o Palhaço, o palhaço é um personagem que ele criou. Nós saímos
291
Carlos: O filme era revelado no Rio de Janeiro / São Paulo, não havia
revelações aqui, então a gente levava cinco dias. Quando o filme chegou nós sentamos
pra ver... Acho que uns oito dias depois e rapidamente foi feito a decupagem e a gente
editou sem nenhum problema. O som era colocado depois.
Carlos: A sonorização foi com um amigo nosso chamado Lima. Ele tinha todo o
equipamento de sonorização e nós levamos e fizemos o som lá. Jomard fazia a locução,
a gente gravava a locução dele e depois e colocava no filme, e algumas vezes já gravava
direto no projetor.
Naquela época, não se fazia trucagem nenhuma, porque o super-8 não permitia.
E teve uma cena que foi feita num gabinete aqui na Casa da Cultura, não lembro aonde
foi, num salão grande, que eu pus a câmera no tripé, ele gravou um texto, depois eu
parei a câmera, dei retrocesso no filme, ele saiu e eu voltei a gravar e realizei uma
trucagem, ele “sumiu” durante o filme. Essa foi a primeira experiência que se fez com
trucagem aqui em superpoito.
292
Carlos: Seguia os impulsos do Palhaço, não sabia o que ele ia fazer, não tinha a
menor ideia do que ele estava fazendo, apenas acompanhava, inclusive teve
movimentos de câmera que hoje não faria de maneira alguma porque são “errados”.
Você não pode mover a câmera mais rápida que o olho humano, porque o filme tem
duas dimensões, a altura e largura, a vista humana tem três. O movimento da câmera
deve ser um terço mais lento que o movimento dos olhos. Mas isso não possível, porque
ele começava a correr e eu acompanhava, e no final das contas era tudo tremido.
Não havia roteiro, então ele me dizia na hora o que ia fazer e na maioria das
vezes até mudava o que tinha dito. Eu conhecia planos e contra-planos de movimento de
câmera porque eu tinha feito um curso. Entretanto, em algumas ocasiões, nada disso
funcionava, porque eu tava gravando com Jomard em plano americano e de repente ele
avançava pra câmera sem que eu esperasse... aí saia do quadro, eu tentava me
movimentar de lado, pra ver se me enquadrava novamente... a técnica era mínima. Os
movimentos básicos, nós fazíamos, mas na maioria das vezes não se obedecia técnica
por conta disso, por conta da agilidade em que ele pensava e modifcava a sua maneira
de se portar.
e fica olhando pra cima e fica tentando se libertar. Essa foi uma das cenas que foi um
improviso, mas autorização pra filmar aqui não houve não.
A maioria dos textos do “Palhaço Degolado” ele criou muito antes, recitou na
TVU, recitou em palestras, recitou na Fundação Joaquim Nabuco e ainda recita. Ainda
hoje ele cita esse textos...
Aristides: E a trilha?
Carlos: A música foi Jomard e Lima, a música é uma música de circo... Ele
(Jomard) teve a ideia e Lima foi em busca desse material, se não me engano com Hugo
Martins, da TVU. Hugo é que tinha um largo conhecimento sobre trilha sonora e ajudou
nesse processo.
294
Carlos: Aqui é um plano onde ele está em cima desses corredores suspensos e
eu aqui embaixo, gravando de baixo pra cima e ele correndo declamando e circulando
isso aí. Foi uma das cenas mais difíceis que eu fiz. Não havia elevadores, nada disso
aqui, isso aqui era uma área aberta, sem nenhum impedimento. E ele corria por esses
corredores, entrava nas celas, mexia com o povo espontaneamente, isso era uma coisa
que ele fazia assim de improviso. Inclusive a gente não fazia still nem fazia fotografia
de cena, as fotografias foram feitas depois, ele mesmo providenciou as fotos...
Carlos: Uma das recordações é quando ele começa a... ele espalhou um porção
de livros no chão e começou a declamar e a cair em cima dos livros e mexer como se
tivesse tentado se libertar daquilo, daquela coisa ou tentando atacar os livros de alguma
forma. E isso acontecia assim, de repente ele resolvia fazer e era improviso, ninguém
pensava em nada... Os livros foram exatamente aqui nesse corredor.
Carlos: Exatamente.
Carlos: Sim, ele chegava com uma bagagem de tudo que ia precisar.
295
Carlos: Ela sempre foi aberta. Tava aberta à disposição da população. Hoje, não
sei por que está fechada, mas ela sempre foi aberta. Inclusive havia inscrições que hoje
não se vê mais, umas coisas muito interessantes. Essa cela foi uma das cenas mais
significativas, porque ele tava se mexendo ali embaixo, “acocorado”, andando pra lá e
pra cá e de repente ele se levanta, quando eu levanto a câmera, pego um contra-luz na
janela, escurece tudo, como se ele tivesse entrado em pânico. A luz entrou na cela e o
diafragma fechou imediatamente, como se tivesse feito um escurecimento, um fade.
Naquela ocasião não se fazia nada disso...
Carlos: Ele ficou ali em cima, tinha um cano de ferro, ele segurava rodava e
falava... Não existia esse mangue, ele era muito menor. Então, toda essa parte do Recife
aparecia bem num plano só, numa panorâmica em torno de um eixo. Ele ficou girando e
eu também. Às vezes eu ficava parado e ele girava, às vezes eu girava e ele ficava
parado. Ele declamava e ficava falando de Ariano Suassuna... foi exatamente aqui, mas
parece que tá fechado...
296
Carlos: O último trabalho que nós fizemos chama-se “Arrecife do Desejo”, foi
em vídeo, tem uns quarenta e tantos minutos... é um passeio melancólico pelo Recife
onde ele aborda os problemas da cidade, e isso foi feito no carnaval, levamos mais de
um mês filmando na praça do Palácio do Governo, atrás do Galo e durante o Galo,
entrevista algumas pessoas durante o Galo...
Eu tenho um que fiz com restos de filme dele que se chama “Recinfernália”...
todo material que sobrava das filmagens eu guardava. Um belo dia, eu saí juntando e fiz
um filme, o Recife marginal... e começava com Gilberto Freyre entrando no Cinema
Moderno para assistir “Casa Grande & Senzala” e terminava ele saindo do cinema.