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Dissertacao de Aristides Palhaço Degolado

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1

UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI


PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO - PRPPG
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E LETRAS – CCHL
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO HISTÓRIA DO BRASIL - PPGHB
MESTRADO EM HISTÓRIA DO BRASIL - MHB

Jomard Muniz de Britto e “O Palhaço Degolado”: laboratório


de crítica cultural em tempos de repressão no Brasil pós 64.

Francisco Aristides de O. Santos Filho.


Orientador: Paulo Ângelo de Meneses Sousa.

TERESINA-PI.
Março 2012
3

FRANCISCO ARISTIDES DE OLIVEIRA SANTOS FILHO

Jomard Muniz de Britto e “O Palhaço Degolado”: laboratório


de crítica cultural em tempos de repressão no Brasil pós-64.

Dissertação apresentada à Coordenação do


Programa de Pós-Graduação em História
do Brasil, do Centro de Ciências Humanas
e Letras, da Universidade Federal do
Piauí, para obtenção do grau de Mestre em
História do Brasil.
Orientador: Paulo Ângelo Meneses Sousa.

TERESINA-PI

2012
4

FICHA CATALOGRÁFICA

Universidade Federal do Piauí

Serviço de Processamento Técnico

Biblioteca Comunitária Jornalista Carlos Castello Branco

S237j Santos Filho, Francisco Aristides de Oliveira

Jomard Muniz de Britto e o palhaço degolado: laboratório


de crítica cultural em tempos de repressão no Brasil pós 64 /
Francisco Aristides de Oliveira Santos Filho.--2012.

302 f.: il

Dissertação (Mestrado em História do Brasil) –


Universidade Federal do Piauí, Teresina, 2012.

Orientação: Prof. Dr. Paulo Ângelo Meneses Sousa.

1.Cultura brasileira. 2. Cinema Super- 8. 3. Pernambucália.


I. Título.

CDD: 301.298 1
5

FRANCISCO ARISTIDES DE OLIVEIRA SANTOS FILHO

Jomard Muniz de Britto e “O Palhaço Degolado”: laboratório


de crítica cultural em tempos de repressão no Brasil pós-64.

Dissertação apresentada à Coordenação do


Programa de Pós-Graduação em História
do Brasil, do Centro de Ciências Humanas
e Letras, da Universidade Federal do
Piauí, para obtenção do grau de Mestre em
História do Brasil.
Orientador: Paulo Ângelo Meneses Sousa.

Aprovada em: 13/04/2012.

BANCA EXAMINADORA

___________________________________________________________
Prof. Dr. Paulo Ângelo Meneses Sousa (Orientador)
Universidade Federal do Piauí

____________________________________________________________
Prof. Dr. Paulo Marcondes Ferreira Soares (Examinador Externo)
Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco

_____________________________________________________________
Professor Dr. Edwar de Alencar Castelo Branco (Examinador Interno)
Universidade Federal do Piauí

_____________________________________________________________
Professor Dr. Denilson Botelho (Suplente)
Universidade Federal do Piauí
6

Para a amizade construída na rota Piauí - Pernambuco, entre as caminhadas que cercam o
Recife Antigo e o Mustang, é pra ti JMB, que dedico este texto, pela atenção e ensinamento
eterno do sentido poético da gentileza como performance diária. Entre os risos,
esculhambações e sensibilidades, que faço desse texto um espaço de agradecimento para os
amigos-irmãos João Paulo, Landerson e Kim. Pelas noites sem dormir, pela mão que acaricia
as tensões, tem um cantinho especialíssimo para Meire, nessa trajetória longa de
companheirismo apaixonante. E acima de tudo, meu obrigado à mulher mais incrível desse
reino Luso-Tropical, Maria do Carmo, que acorda todos os dias para trabalhar...
7

AGRADECIMENTOS:

Primeiramente gostaria de agradecer pelo apoio e orientação do prof. Paulo


Ângelo e toda a atenção na banca de qualificação e defesa, com Edwar de Alencar C.
Branco e Denilson Botelho.
Paulo Marcondes: seus comentários e críticas concretas, amizade e disposição
para ampliar meus conhecimentos... te agradeço muito!
Meu obrigado também vai para todos os amigos que construí na sala de aula do
mestrado, em especial ao Gisvaldo, Aelson, Laécio, Thiago (esse Zara vai dar o que
falar...), Ozael e Nercinda.
Sem Jonas Souza e Gabriela Uchôa, minha ponte afetiva com Recife em 2011
não seria possível. Jonas foi e é o amigo fundamental no processo de levantamento de
dados no arquivo público, pois foi ele quem me abrigou carinhosamente na sua casa,
abriu os caminhos para a construção de uma grande amizade (centro de alegria e RPG) e
deu abertura para que eu pudesse conhecer três pessoas maravilhas, que devo meus
agradecimentos: Giliane Cordeiro (uma menina que tem os olhos brilhantes), Pablo
Valle e Diogo Diniz, vocês são ótimos (os filmes de zumbis oitentistas precisam ser
revisitados com urgência!). As viradas culturais e as caminhadas por Recife na
madrugada me deixam com saudades do carinho de vocês e dessa terra linda!
Na Recinfernália, agradeço também aos novos projetos a serem realizados com o
amigo-parceiro-pesquisador Amilcar Bezerra, que desde 2008 vem tramando comigo
artigos e pesquisas no âmbito da Pernambucália. Pelos encontros valiosos no Delta
Expresso é que nossos textos se espalham por aí.
Nessa caminhada pelo Nordeste, encontro em Campina Grande minha querida e
psicanalista transcendental Saionara, que é responsável pelos meus momentos de riso e
reflexão sobre temas que se estendem desde os caminhos do fazer historiográfico às
posturas corretas na alimentação. No meio do trajeto, encontro lá em João Pessoa, meu
amigo conciliador de sarrafos do Marco Zero, Huoxito Luiz, o homem que me libertou
de um quebra-pau, nos pipocos da Nação Zumbi em plena ovulação musical...
A Bahia é a terra da moça que sabe mostrar o que é ser carinhosa e gentil, a
grande Izabel de Fátima, minha amiga-pesquisadora, que navega comigo nos mares do
curta-metragem e pela escatologia poética de Edgard Navarro.
Voltando ao Piauí, desço rapidinho na rodoviária de Picos e corro até a casa da
Marylu Oliveira e deixo aquele abraço grande, cheio de energia para enfrentar a correria
8

do dia-dia. Aproveito e chamo para sair comigo, pois lá no “Rei do Cangaço” estão
esperando a gente para matar um prato de carne-de-sol com a Olívia Candeia, a
Nilsângela Cardoso, o Francisco Nascimento, Jaislan Monteiro e o Mairton Celestino,
para se rachar de rir e não ter hora para acabar.
Para terminar, não posso me esquecer da CAPES/CNPq (pelo financiamento),
Dimas Brasileiro Veras, “6ção”, Rafaela Fernandes, Iara, Hérida Jayne, Maria do
Carmo Veloso (pessoa incrível que conheci nos batuques do Tambor de Crioula) Lêda
Vieira (sempre atenciosa comigo), Celso Marconi, Carlos Cordeiro, Mara Lígia, Marina
Vieira, Marília Santos, Padre Erinaldo, Lyndon Jonhson (pela oportunidade que me deu
em 2012, na Escola que estou adorando lecionar!), Jeferson, Ernani, Cleto Sandys,
Alcides, Teresinha Queiroz, Nina Caminha, Eliane, Denise Veras, Ricardo Maia (que
desde 2007, dialoga comigo e colabora na minha pesquisa efetivamente), Demétrios
Galvão, Décio Braga, Nalva, Lindalva, Thiago E., Mayra Brandt, Joniel Veras, Wesley
Veloso, Benone, Telma Franco (pela atenciosa leitura e comentários firmes), Nayhd,
Padre Álvaro (pela confiança), PC, Carlota Lina, Charles Bicalho, Cibelle Leal, Narciso
Sousa, Denes Filho, Renata Flávia, Vanderli Silva (pelos preciosos documentos da
PNC, que você me enviou de Sampa!), Áurea Paz Pinheiro, Wesley, Jordana, o cara
(como era o nome dele?) que tirava as xerox lá em Recife e aguentou as minhas
chateações diárias, os dois colegas do arquivo que me abusaram de tanto mandar voltar
os jornais... tem muita gente que passou por mim nesses anos de mestrado, agradeço a
todos, com ou sem nomeações... vocês estão nessas páginas!
Trilha sonora que define cada linha: Neil Young... Mirror Ball.
9

RESUMO

O presente trabalho visa estudar os conflitos e confrontos que se estabeleceram em


torno da noção de “Cultura Brasileira”, em Pernambuco, durante a década de 70 do
século passado. O principal argumento do estudo é a suposição de que as obras de
intelectuais tradicionais como Gilberto Freyre e Ariano Suassuna irão conviver, no seu
oposto, com uma interlocução radical que encontrará em Jomard Muniz de Britto e em
obras como “O Palhaço Degolado” (1976/77) uma de suas maiores expressões pós-
tropicalistas. O filme atua enquanto laboratório experimental de crítica cultural aos
“monstros sagrados” da cultura oficial, em tempos de repressão às vozes dissonantes e
dessacralizadoras da identidade Brasil, vista na perspectiva de trânsito permanente,
rompendo o conservadorismo secular, restrita à sombra dos canaviais.

Palavras-chave:

Cultura Brasileira, Cinema, Pernambucália.

ABSTRACT

The present work is intended to study the conflicts and confrontations that were
established through the idea of Brazilian Culture, in Pernambuco, during the 1970’s of
the last century. The main argument of this study lays on the supposition that the
traditional intellectuals’ works such as Gilberto Freyre e Ariano Suassuna may stay side
by side, on their opposite, with a radical interlocution criticism which will find through
Jomard Muniz de Britto and some works such as O Palhaço Degolado (1976/77) one of
his greatest ways of expression in the period after the Tropicalia movement. The movie
acts as an experimental study about cultural criticism related to the “sacred monsters” of
the official culture during the time of repression to the dissonant and unholy voices,
which is seen though a perspective of permanent transition, breaking the
secular conservatism restricted to the shadow of the cane plantations.
Keywords:

Brazilian Culture, Cinema, Pernambucalia.


10

LISTA DE ILUSTRAÇÕES:

Fotografia 1 – Diário de Pernambuco.............................................................................51

Fotografia 2 – Cena Filme..............................................................................................66

Fotografia 3 – Cena Filme..............................................................................................70

Fotografia 4 – Cena Filme..............................................................................................74

Fotografia 5 – Cena Filme..............................................................................................91

Fotografia 6 – Cena Filme............................................................................................102

Fotografia 7 – Cena Filme............................................................................................158


11

SUMÁRIO:

RESUMO.............................................................................................................09

INTRODUÇÃO: Lutar com o Super-8 é a Luta mais


vã.....................................................................................................................................14

1. PRIMEIRA ENTRADA: Do super-8 ao circo jomardiano, em busca do “Palhaço


Degolado”.......................................................................................................................23

1.1. O cinema brasileiro do ponto de vista da


grua......................................................................................................................23

1.2. A potência do Super-8 em Pernambuco...................................................39

1.3. Jomard Muniz de Britto: travessuras de um palhaço sob lona de


concreto................................................................................................................45

2. SEGUNDA ENTRADA: Gilberto Freyre e a Casa de Detenção da


Cultura......................................................................................................................73

2.1. As palavras lançadas e a primeira marcação do debate..........................73

2.2. Gilberto Freyre e a fase pré-mestiçagem................................................75

2.3. Da fase à face regionalista......................................................................87

2.4. A Casa Grande de Gilberto Freyre.......................................................104

2.5. Afrontar as fronteiras............................................................................128

3. TERCEIRA ENTRADA: A cultura é uma ordem? O Palhaço nos Trópicos


Entrópicos da Pernambucália...........................................................................139

3.1. As intimidades dos “fora” do poder: fora dos empoderamentos.......139


3.2. O Palhaço diante das cercas e planilhas político-culturais................141

3.3. O Movimento Armorial: Disposições Gerais....................................157

3.4. O Palhaço tira a máscara: Jomard do visual ao textual....................176


12

4. ENTRADA FINAL: As pontes que constroem a cultura em trânsito: as


Contradições do Homem Brasileiro diante dos bordéis
brasilíricos..........................................................................................................189

4.1. Anos 60: a cultura brasileira posta em


questão...............................................................................................................189

4.2. O Palhaço na cela como desdobramento do educador: lembranças do


livro negro da UFPB..........................................................................................209

4.3. Se joga para o mundo Palhaço! Faz a bailarina tropicalista dançar!.....215

4.4. Considerações Finais? Até Quando?......................................................235

“O Palhaço Degolado” (texto)...........................................................................239

Bibliografia e fontes..........................................................................................243

Anexos...............................................................................................................262

Fragmentos de um diálogo jomardiano.............................................................263

Bate-papo cinematográfico com Carlos Cordeiro.............................................290

Documentos interessantes..................................................................................298
13

Qualquer coisa tem que pedir autorização [...],


esse processo eu acho que é um equívoco que está acontecendo,
é uma ditadura, é uma nova ditadura da assinatura, da autorização.
(Jomard Muniz de Britto, 2010)
14

INTRODUÇÃO:
Lutar com o Super-8 é a Luta mais vã.1

Atualmente, é possível afirmar que o campo da História aproxima-se


positivamente dos estudos ligados a reflexões em torno do filme enquanto documento
relevante na pesquisa acadêmica, mesmo sabendo que a utilização do filme como objeto
de estudo seja pouco explorada pelos historiadores.
Desde 2006 – quando iniciei minhas primeiras leituras sobre a história do
audiovisual brasileiro – venho percebendo a importância da relação História-Filme nos
meus exercícios criativos e estudos culturais, pois olhar o passado a partir das imagens
em movimento possibilita-nos ampliar as perspectivas sobre uma época, através de uma
articulação relativamente nova, produzindo resultados que enriquecem o diálogo com as
fontes escritas.
Nesse sentido, o trabalho que desenvolvi no mestrado, volta-se a um conjunto de
preocupações que envolvem minha busca e experimentos de leitura para não tornar o
filme um mero objeto ilustrativo, e sim explorar seu elemento estético e narrativo, para
responder às provocações lançadas por ele, atentando para as especificidades da obra,
em diálogo com a ambiência histórica presente na literatura.
O filme, ao ser analisado pelo historiador, não pode ser visto isoladamente –
focando apenas seus componentes estéticos – mas dentro de um complexo que dialogue
a representação visual com as angústias sentidas no campo social, tornando o objeto
fílmico um vestígio que auxilie a iluminar parcela das inquietações históricas de um
período.
Através deste esforço de conjugação entre o visual e o social, esta pesquisa
acredita no recurso fílmico como campo de exploração significativa na pesquisa
histórica, ao adentrar pelas imagens:

[...] que este mundo [...] contém, para chegar à sociedade e à cultura
que são parte dele, produzindo conhecimento histórico de fato novo
[...] compreendendo que o filme não é somente um reflexo de um
mundo pré-existente, não é apenas um resultado ou um pálido reflexo
de um contexto, mas produtor de um contexto próprio.2

1
Jomard Muniz de Britto, no filme “O Palhaço Degolado”, 1977.
2
SILVA, Jaison Castro. Urbes Negra: melancolia e representação urbana em Noite Vazia (1964), de
Walter Hugo Khouri. 2007. Dissertação de Mestrado (História). Universidade Federal do Piauí, Teresina,
2007, p. 20.
15

Meu interesse por essas questões e relações (História-Filme) começou em 2004,


quando participei de um mini-curso de direção cinematográfica realizada por Juliana
Lima e Luciana Baptista. Nessa experiência, pude conhecer o processo de construção de
um filme, sua estrutura de criação estética e a relação afetiva entre os realizadores.
Ao finalizar meu primeiro curta coletivo (“Mundo Mercado Central”), senti que a
partir daquele momento, o caminho a ser seguido era aquele: nas trilhas incertas do
audiovisual. De lá até aqui, tornei-me um videomaker amador e ama-dor, produzindo na
medida do impossível, vídeos experimentais que representam fragmentos-posição e
visão de mundo expresso pelas imagens, que dialogam com minhas angústias pessoais
compartilhadas.
O ato de fazer levou-me ao ato de ler e descobrir minhas referências fundamentais
no cinema brasileiro, investigando novas fontes que foram trazidas por pesquisadores
ímpares nesse processo de INformação, FORmação e DEformação artístico-
universitária: Edwar Castelo Branco, Flávio Reis e Jaislan Monteiro, que me capturaram
para o caos “udigrudi”3 e me apresentaram um universo rico de imagens inicialmente
confusas, dispersas e quase intragáveis à primeira leitura, mas que foram indispensáveis
a minha formação cultural hoje: o Cinema Marginal.
Lentamente fui mergulhando na violência contida no horror e sujeira daquelas
imagens, e o tom grotesco que arrebenta nos “Monstros de Babaloo” e nas piruetas
regadas a coca-cola e macarrão sem tempero, que é engolido vorazmente por Analu
Prestes em “A$suntina das Amérikas” me DEformaram por completo. Desde então,
considero a melhor coisa que já aconteceu aos meus olhos, antes vítima do padrão e
senso comum cinematográfico...
Navegando por outros cinemas brasileiros – de preferência aquelas imagens que
navegam nas bordas do circuito comercial – encontrei no caminho Jomard Muniz de
Britto, artista pernambucano de força estético-política admirável, que dirigiu um variado
conjunto de filmes produzidos em bitola superoito nos anos 70, hoje, amigo de muitas
caminhadas valiosas na Boa Vista, entre o Mustang e os laboratórios de crítica cultural
da Recinfernália.
Dizer quem ele é fica difícil, pois é “tudo junto e misturado ao mesmo tempo”,
mas poderia pretensiosamente enquadrá-lo no que senti em trinta dias de convivência

3
Referente a cinema underground, alternativo, à margem do circuito oficial.
16

diária, mesmo sob os protestos do próprio, na recusa por rótulos e clichês... em uma
palavra: Gentileza.
Além dessa qualidade conquistada por poucos, Jomard tem formação em Filosofia
na Universidade do Recife, trabalhou como professor da Universidade Federal de
Pernambuco e da Universidade Federal da Paraíba, na equipe do educador Paulo Freire,
durante a fase inicial do programa de alfabetização de adultos. Perseguido pelas suas
posições “subversivas”, seu livro “Contradições do Homem Brasileiro” (1964) foi
retirado de circulação e Jomard preso4, no Forte das Cinco Pontas, em Recife.
Nos anos 60, foi afastado das universidades que lecionava. Durante seu
isolamento da academia, ensinou na Escola Superior de Relações Públicas do Recife e
coordenou treinamentos sobre comunicação e criatividade em corporações públicas e
privadas. Com a anistia em 1984, recuperou seu posto universitário.5
Com fortes ligações com a música popular brasileira, escreveu em 1966 o livro
“Do Modernismo à Bossa Nova”, também foi diretor de shows com canções de protesto
e teve vinculação com o Grupo “Construção” e aos atores do grupo teatral “Vivencial
Diversiones”, em Pernambuco.
Considerado um representante vivo-ativo do Tropicalismo no Nordeste, foi autor
de manifestos e textos com forte teor crítico sobre a cultura pernambucano-brasileira,
como “Porque somos e não somos tropicalistas” (1968) e “Inventário do Nosso
Feudalismo Cultural”, este em parceria com Caetano Veloso, Aristides Guimarães,
Gilberto Gil e outros artistas ligados ao movimento.
Jomard sentiu atração pelo tropicalismo devido sua força dessacralizante e
renovadora da cultura brasileira naquele momento, movida por um conjunto de novas
propostas e experimentos provocadores nos campos de atuação cultural.
Sua aproximação com o movimento Tropicalista se deu quando:

Glauber me anunciou, com sua ênfase natural: vem por aí uma nova
turma da Bahia para fazer uma revolução musical... Com essas e
outras palavras. O sinal estava alardeado. Depois, a pedido do Lúcio
Flávio, então diretor de cultura do JC [Jornal do Commércio], escrevi
um longo artigo sobre o primeiro disco individual de Caetano.

4
Disponível em: <http://www.revistaogrito.com/page/blog/2008/09/16/jomard-muniz-de-britto/>. Acesso
em: 04 mar. 2011, às 10h58.
5
Disponível em: <http://pphp.uol.com.br/tropico/html/textos/2604,1.shl>. Acesso em: 05 mar. 2011, às
12h07.
17

Estavam seladas (in) correspondências. Vieram os Manifestos, irados


e alegres.6

Atualmente trabalha com os “Atentados Poéticos”, poemas produzidos


periodicamente e distribuídos em forma de panfletos (distribuídos por ele mão a mão) e
via internet que, segundo Carlos Adriano, é seu suporte para criticar “o panorama
provinciano das mentalidades acomodadas em preconceitos e atrasos. A dura busca da
equação entre invenção e intervenção”.7 Em 2010, foi sujeito-objeto do documentário
“JMB, o Famigerado”, dirigido pela cineasta Luci Alcântara.
Sua relação com o superoito e o vídeo (na década de 80) se deu através da câmera
trazida dos Estados Unidos por uma amiga, que o possibilitou realizar seus primeiros
passos com produção de imagens.
Em depoimento, ele nos conta que o:

[...] caminho para o super 8 foi através de minhas aulas. Não as aulas
da universidade, mas os treinamentos intensivos de comunicação,
principalmente para a Secretaria de Educação, que nós chamávamos
de dinâmica de grupo ou de comunicação criativa. O trabalho que
desenvolvia era fruto de minha formação anterior ligada a Paulo Freire
e da ligação com o Tropicalismo e admiração pela Nouvelle Vague,
mas precisamente Jean-Luc Godard. [...] Assim toda minha transação
de cinema é fruto de um trabalho de professor e de agitador cultural8.

Além de poeta e escritor de livros como: “Terceira aquarela do Brasil” (1982),


“Bordel Brasilírico Bordel” (1992), “Arrecife do desejo” (1994), “Atentados Poéticos”
(2002), coordenador da revista “Marca de Fantasia” (1984), crítico de cinema,
participante de projetos musicais como “Pop Filosofia: o que é isto?” (1997) e “JMB em
Comuna” (2007), atuou como cineclubista (Cine Clube Vigilanti Cura, em Recife,
escrevendo crônicas e ensaios sobre cinema) e crítico de cinema em vários festivais de
superoito pelo país.
Para o pesquisador Rubens Machado, Jomard Muniz de Britto:

6
BRITTO. Jomard Muniz de. Atentados Poéticos. Recife: Edições Bagaço, 2002. p. 329.
7
Disponível em: <http://www.revistaogrito.com/page/blog/2008/09/16/jomard-muniz-de-britto/>. Acesso
em 04 mar 2011, às 10h58.
8
Depoimento colhido em 02 de janeiro de 1989. In: FIGUEIRÔA, Alexandre. O Cinema Super 8 em
Pernambuco: do lazer doméstico à resistência cultural. Recife: Fundarpe. 1994. p. 46.
18

É uma figura que começa a ser lentamente descoberta ou redescoberta


fora de um raio recifense depois de certo ostracismo que, aliás, é
parente do mesmo ostracismo a que ficou relegada toda uma produção
marginal, ligada à contracultura ou à resistência política, e que tem na
realização Super-8 parte bastante expressiva.9

No conjunto multifacetado de filmes realizados por Jomard nos anos 70, a


pesquisa dedica-se ao estudo do mais conhecido deles: “O Palhaço Degolado”,
produzido em Recife, entre 1976/1977. O interesse deu-se devido à abertura que o
audiovisual provocou em mim na compreensão dos conflitos que se estabeleceram em
torno da noção de “Cultura Brasileira”, atravessando o período de radicalização política
nos anos de chumbo10 até a gradual abertura democrática.
Narrado por Jomard Muniz de Britto (que é o personagem central da obra), o
autor veste-se de palhaço e faz uma série de provocações aos “mestres” da cultura
pernambucana, situados nas imagens de Gilberto Freyre e Ariano Suassuna, bem como
às vanguardas artísticas nacionais e internacionais.
Atuando no interior da Casa da Cultura de Recife, suas provocações
concentram-se entre gritos, sussurros e deboches no espaço, locação apropriada pelo
Palhaço para fazer suas declamações, que vai do ataque ao universo contido no
pensamento de Gilberto Freyre, passando pela arqueologia Armorial, até atingir às
esferas “pioneiríssimas” da vanguarda, resultando na sua melancólica prisão.
O Palhaço grita, perambula, rodopia diante da Casa da Cultura pernambucana
(símbolo do patrimônio histórico-cultural estatal) recheando a narrativa com momentos
de carnavalização e chistes, para se contrapor às engrenagens discursivas legitimadoras
da noção de Cultura Brasileira, por parte do estado autoritário.
O que nos constitui enquanto brasileiros? Os discursos em torno da “identidade
nacional” são produzidos no fazer cultural democrático ou por instâncias intelectuais
dominantes? O riso é um agente dessacralizador dos monumentos impenetráveis? Essas
9
Depoimento de Rubens Machado Jr, no debate entre Adilson Ruiz, Antonio C. Fontoura, Miriam
Chnaiderman, José Martinez Corrêa e Poliana Paiva. In: Eu não vim para explicar, eu vim para
confundir. VII ARARIBÓIA: Eu quero é botar meu bloco na rua. Festival de Niterói. Cine Art UFF. 29
nov. 2008. p. 45.
10
Os Anos de Chumbo foram o período mais repressivo da ditadura militar no Brasil, estendendo-se
basicamente do fim de 1968, com a edição do AI-5 em 13 de dezembro daquele ano, até o final do
governo Médici, em março de 1974. Alguns, reservam a expressão "anos de chumbo" especificamente
para o governo Médici. O período se destaca pelo feroz combate entre a extrema-
esquerda versus extrema-direita, de um lado, e de outro, o aparelho repressivo policial-militar do Estado,
eventualmente apoiado por organizações paramilitares e grandes empresas, tendo como pano de fundo, o
contexto da Guerra Fria. Disponível em:
<http://pt.wikipedia.org/wiki/Anos_de_chumbo#Os_anos_de_chumbo_no_Brasil> Acesso em 02 mar.
2012 às 15h06.
19

foram as primeiras perguntas que me fizeram adentrar o universo jomardiano, depois de


assistir ao filme que compõe esta pesquisa.
A inquietação que o filme causa estimulou a leitura e aprofundamento dos
estudos que investigam a relação entre cultura brasileira, tradição e autoritarismo nos
anos 60/70 no Brasil. Após o levantamento bibliográfico sobre o tema, foi possível
perceber as conexões existentes entre a crítica fílmica e o debate cultural no período em
análise.
Na escrita do texto, decidi mudar o nome de “Capítulos” para “Entradas”, pois,
pelo fato do filme estar atravessado pela temática circense, achei interessante apropriar-
me da linguagem do circo nas aberturas, para dar significado a cada aprofundamento
temático formulado pela aparição do Palhaço no filme em questão.
O filme é dividido em uma estrutura que remete às esquetes guiadas pelos
palhaços, as cenas ou “entradas” podem se referir – segundo Mário Fernando Bolognesi
– “às paradas circenses, efetuadas como forma de divulgação do espetáculo, quando os
artistas exibem uma síntese dos seus talentos na porta de entrada dos circos”11,
semelhante ao que o palhaço de Jomard realiza em sua performance: anuncia, lança,
provoca, questiona o espectador diante do debate sobre o “Ser” da Cultura Brasileira.
Para colorir o picadeiro, busquei analisar o tema explorando um conjunto
selecionado de cenas que me informam sobre o debate cultural da época, olhando
atentamente para o significado da locação onde foi realizada a filmagem, as citações-
chave lançados pelo Palhaço e seus movimentos corporais.
Desse modo, esse complexo performático nos indica alguns caminhos possíveis
para compreender em profundidade os degolamentos de Jomard, provocando no
espectador o desejo pela transdegolagem vivencial. Assim, vale lembrar que minha
pesquisa não se apropria somente do filme, como também do cruzamento entre textos,
biografia, ensaios e mapas críticos-conceituais elaborados por Jomard em torno da
cultura brasileira – antes e depois do audiovisual em destaque – pois seus outros
trabalhos possuem estreita relação com o filme, o que torna inviável uma análise isolada
da película, tornando-o uma obra fechad(a)berta, uma extensão experimental de crítica
cultural em processo, que necessita dialogar com outras referências que o constrói e nos
informa historicamente.

11
BOLOGNESI, Mário Fernando. Palhaços. São Paulo. Ed. UNESP. 2003. p. 103.
20

Assim, as “Entradas” que compõem esta pesquisa estão organizadas inicialmente


em quatro momentos:
A primeira Entrada nos leva ao estudo do processo de fortalecimento industrial
cinematográfico brasileiro nos anos 60/70, articulado ao rígido controle do Estado sobre
parcela dos bens culturais produzidos no país. Dedico minha atenção ao estudo sobre os
departamentos criados para fiscalização e promoção do cinema nacional no regime
militar, para compreender como os cineastas circulavam neste contexto, e que
posicionamentos críticos sobre o setor eram tomados no auge da repressão cultural pós-
64.
Paralelo ao rígido sistema de controle do fazer artístico, a pesquisa esclarece
que, mesmo com os esforços para disciplinar o processo criativo dos cineastas no Brasil,
nem todos vão se adequar ao ritmo do mercado e buscarão caminhos que trafegam na
contramão do circuito exibidor oficial, produzindo filmes em películas mais baratas,
distante das exigências do nacionalismo cultural.
Destaco a força que a bitola superoito provocou na revolução cinematográfica
brasileira, adentrando o debate para a cena pernambucana, expondo primeiramente os
fatos que levaram à construção de um circuito superoitista em Recife, até mergulhar no
universo jomardiano – especificamente no filme em questão – expondo sua relação com
a sociedade recifense e sua elaboração estética.
A segunda Entrada trabalha a análise interna de “O Palhaço Degolado”, a partir
da exploração das cenas iniciais do filme. O primeiro eixo temático exibido está
vinculado à crítica ao sociólogo Gilberto Freyre, onde podemos verificar na fala do
personagem, a construção de um mosaico de referências e conceitos que remetem a
teoria freyreana da cultura brasileira.
Misturando citações e desconstruções paródicas em torno da obra de Freyre, o
Palhaço desafia e desfia as camadas que informam a cultura pela ótica tropicológica.
Sua performance questiona tal visão, em que tomo como ponto de análise o
reagrupamento das concepções que definem o olhar de Gilberto Freyre sobre a cultura
no Brasil, na busca pela compreensão da crítica jomardiana naquele período.
Decidi realizar uma investigação sobre as principais fases intelectuais de
Gilberto Freyre para compreender como sua trajetória política/intelectual influenciou na
legitimação da noção de “Cultura Brasileira” nos anos de Chumbo.
21

O que move o Palhaço no enfrentamento ao universo tropicológico? Por que a


visão freyreana de cultura é o principal alvo de Jomard na produção do filme? Qual a
relação entre Gilberto Freyre e o autoritarismo cultural no regime militar?
A Terceira “Entrada” visa aprofundar as reflexões envolvendo a apropriação do
Estado brasileiro com os discursos que informam a noção de “cultura brasileira” –
marcada por uma perspectiva tradicionalista, inspirada na concepção freyreana de
Brasil.
Busco trabalhar a articulação entre a herança do pensamento de Gilberto Freyre
e os grupos artísticos pós-regionalismo – defensores da preservação da cultura popular –
e sua relação com as novas diretrizes culturais definidas pelo Estado brasileiro (por
meio dos Conselhos Estaduais e Federal de Cultura, bem como a Política Nacional de
Cultura) na década de 70.
Nesse momento do filme, o “Palhaço” encerra suas provocações a Gilberto
Freyre e se desloca para outro campo do debate: a cultura popular nos anos 70 e o
Movimento Armorial. Esta Entrada será dedicada a estudar os elementos estético-
políticos que constituem o grupo, traçando os caminhos de continuidade e diferença
com a tropicologia, explorada anteriormente, associando tradicionalismo e Estado nos
anos de chumbo.
A Entrada final nos leva ao momento dos embates culturais entre a vanguarda
Tropicalista e os grupos conservadores ligados à esfera estatal pernambucana. O
fechamento do texto é marcado pelo mergulho entre a crítica fílmica e a vida do
cineasta entre os anos 60 e 70 – revelando as pontes que ligam a experiência com Paulo
Freire ao contato com a Pernambucália – expondo as principais razões para filmagem da
obra e seu argumento final, articulado às suas concepções de cultura na fase pré e pós
golpe militar.
O que o “Palhaço Degolado” nos revela para entender a ligação entre tradição e
autoritarismo no Brasil pós-64? O que falta para o riso auto-crítico entrar na pauta dos
conflitos crítico-culturais contemporâneos? Até quando seremos impedidos de pintar
nosso nariz de vermelho e se lambuzar nas páginas canônicas da cultura brasileira? Até
quando os monumentos serão nossos porta-vozes?
22
23

1. PRIMEIRA ENTRADA
DO SUPER-8 AO CIRCO JOMARDIANO: EM BUSCA DO “PALHAÇO
DEGOLADO”

1.1. O cinema brasileiro do ponto de vista da grua12

O processo de engajamento artístico no campo cultural brasileiro nos anos 60/70


possui estreita relação com a consolidação do mercado de bens culturais no regime
militar (1964-1985). Vários segmentos artísticos e industriais ganharam força e
visibilidade nesse período, aliando-se aos pressupostos ideológicos do Estado recém-
instaurado.
Enquanto isso, outros grupos foram marginalizados do circuito oficial de
produção e exibição, por não dialogarem com as ideias e projetos impostos pelo
pensamento autoritário. Os vestígios que pulsam neste debate cultural serão expostos ao
longo da pesquisa.
Podemos afirmar inicialmente, que esta polaridade marca uma tensão político-
cultural estendida nos anos de chumbo, redefinindo os espaços de disputa simbólica e
produção audiovisual. Tomaremos como objeto de nossa investigação, para que seja
possível compreender a problemática relação entre cinema, identidade cultural brasileira
e Estado, o filme “O Palhaço Degolado”, produzido em 1976-77, pelo cineasta
pernambucano Jomard Muniz de Britto (1937-).
O ponto central que nos leva a refletir sobre o período (1966-1977) está situado
no quadro contextual a seguir, em que podemos visualizar no Brasil, um significativo
crescimento da indústria fonográfica, editorial, automobilística, cinematográfica,
eletroeletrônica, expansão das salas de cinema, entre outras transformações que marcam
um novo sentido em relação às práticas de consumo no país.
Para Renato Ortiz, essa fase é caracterizada pela “expansão, a nível de
produção, de distribuição e de consumo da cultura; é nesta fase que se consolidam os
grandes conglomerados que controlam os meios de comunicação e da cultura popular de
massa”.13 As rápidas mudanças vivenciadas nas produções culturais – ligadas a
execução, distribuição e consumo – do período passam pelo filtro e vigilância
constante do Estado, pois, com o advento do regime militar, podemos encontrar ações
que possuem significados distintos, que, por um lado, acaba definindo sua amplitude

12
Consiste de um sistema de guindaste onde a câmera é instalada em uma extremidade e na outra
extremidade é inserido pesos que servem para equilibrar a câmera, criando-se um sistema de gangorra.
13
ORTIZ, Renato. A Moderna Tradição Brasileira: cultura brasileira e indústria cultural. São Paulo:
Brasiliense, 2001. p. 121.
24

política, por outro, indica mudanças significativas que se concretizam no nível da


economia e cultura.
Renato Ortiz afirma que a situação histórica naquela época foi marcada pela
repressão, censura, prisões, exílios, mas o autor alerta que, além disso, é preciso mostrar
que o ano de 64 foi também “um momento de reorganização da economia nacional, que
cada vez mais se insere no processo de internacionalização do capital: o Estado
autoritário permite consolidar no Brasil o capitalismo tardio”. 14
A modernização econômica vincula-se ao ideal de “integração nacional”, a partir
da necessidade em ampliar sua rede de influência por meio do “intercâmbio”
ideológico-cultural entre as diversas regiões brasileiras. Para que seja possível alcançar
um nível de circulação das informações, padronizadas no consumo dos produtos
culturais, foi preciso o Estado tomar medidas urgentes para manutenção da ordem
sócio-cultural do país, para evitar que a “massificação” dos produtos estrangeiros
descaracterizassem a “identidade” cultural brasileira.15
A década de 60 foi o período em que podemos encontrar uma clara intenção do
Estado em formalizar as propostas de “planejamento” da cultura, no qual, após a fase
getulista, viveu-se outro momento na história em que ocorreu uma intervenção
sistemática do Estado no campo cultural, a saber: o regime militar instaurado em 1964.
A partir daí, a preocupação dos políticos e intelectuais dirigentes não era em
torno da “criação da nação”, e sim sua integração. No entanto, a cultura é compreendida
como nervo central na “segurança” da nacionalidade. Nesse sentido, o regime militar
planeja não se posicionar como ruptura radical com o passado, se propondo a investir
“na continuidade ao pensamento sobre a cultura nacional, estabelecido durante o
governo Vargas, mantendo certa tradição conservadora e ligando um momento ao
outro”. 16
Em 1966, as diretrizes culturais são reorganizadas em nome da “segurança
nacional”, com o objetivo de mapear as manifestações artísticas no país, em uma
fiscalização rigorosa dos investimentos direcionados à arte, cerceando qualquer
atividade que esteja fora das exigências culturais da “nação”.

14
ORTIZ, 2001. pp. 113-114.
15
BARBALHO, Alexandre. Estado autoritário brasileiro e cultura nacional: entre a tradição e a
modernidade. In: Brasil, Psicanálise, Ficção e Memória. Revista da Associação Psicanalítica de Porto
Alegre. nº 19. Porto Alegre: APPOA, Out/2000.
16
BARBALHO, 2000, p. 75.
25

Todos os setores culturais passam pelo controle estatal, a partir da formação de


departamentos reguladores dos investimentos federais no campo da cultura, para
sistematizar o fluxo de recursos encaminhados do governo para os artistas e instituições.
No amplo conjunto de linguagens artísticas “contempladas” pelo governo,
podemos tomar o cinema como área que vivenciou no país o processo de
institucionalização e reordenamento financeiro no regime militar, a partir da formulação
do Instituto Nacional de Cinema (INC), em novembro de 1966.17
Na forma de “autarquia federal subordinada ao MEC”, o instituto aparece nos
planos de ação do governo para “centralizar a administração do desenvolvimento
cinematográfico, criar normas e recursos, e respeitar uma ‘política liberal’ para a
importação de filmes”.18
O INC é projetado pelo governo para substituir o INCE (Instituto Nacional do
Cinema Educativo), pois este órgão era voltado para difundir o cinema como
instrumento pedagógico, o que diminuía significativamente sua área de atuação no
mercado externo.
Interessado em se desvencilhar desta perspectiva meramente educacional, o
Estado analisa as possibilidades de tornar o cinema uma ferramenta que amplie a área
de influência nas ações político-culturais, que visavam “uma integração cultural a nível
nacional”, e traça medidas que deem chances reais do campo audiovisual tornar-se uma
indústria cinematográfica no Brasil, para concorrer com o mercado estrangeiro.19
A orientação ideológica do INC estava ligada ao industrialismo, através da
“necessidade de a indústria cinematográfica brasileira possuir um eficiente instrumento
de harmonização” na produção do país. Nesse sentido, o INC atuava como instrumento
disciplinador, buscando meios legais de “profissionalizar” 20
a produção audiovisual, a
fim de “valorizar” o papel do cineasta, oferecendo a possibilidade da conquista de seus
direitos fundamentais no mercado.
De acordo com a filosofia do INC, “num país como o nosso, cultural e
etnicamente sincrético, a livre circulação de produtos culturais é um dos imperativos
para que ele se desenvolva”.21 O “Projeto de Criação do Instituto Nacional de Cinema” é

17
Criado em 18 de novembro de 1966, pelo Decreto-lei nº 43, regulamentado pelo Decreto n 60.220, de
15 de fevereiro de 1967.
18
RAMOS, José Mário Ortiz. Cinema, Estado e Lutas Culturais: anos 50, 60, 70. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1983. p. 51.
19
ORTIZ, Renato. Cultura Brasileira & Identidade Nacional. São Paulo. Ed. Brasiliense, 2006. p. 109.
20
Ibidem, p. 109.
21
Filme & Cultura 5, 1967, pp. 2-4.
26

resultado do esforço estatal em centralizar a administração dos recursos destinados ao


cinema brasileiro.22
Podemos encontrar nos artigos que legitimam sua fundação, os seguintes dados,
que caracterizam sua linha de atuação:

Artigo 4ª, inciso III: regular a produção, distribuição e a exibição de


filmes nacionais;
Capítulo V, artigo 19: o Poder Executivo definirá em decreto, por
proposta do INC, o que é o filme nacional de curta e longa-metragem.
Parágrafo único – Cabe ao INC conceder o certificado correspondente
de cidadania brasileira ao filme produzido no País, nos termos da
definição a que se refere o presente artigo.
Capítulo VII, artigo 28: A censura de filmes cinematográficos, para
todo o território nacional, tanto para exibição em cinemas, como para
exibição em televisão, é da exclusiva competência da União.
Artigo 35: Os produtores, distribuidores e exibidores só poderão
exercer atividades no país depois de registrados no INC.23

A partir do fragmento exposto acima, é possível afirmar que este conjunto de


medidas faz com que o Estado tenha controle na produção, distribuição e exibição dos
filmes. Um meio legal de ampliar a vigilância sobre os produtos audiovisuais
distribuídos para consumo do público em geral, fazendo do INC o responsável pela
liberação de recursos que possibilitem o desenvolvimento do cinema brasileiro.
O levantamento de dados realizado por Renato Ortiz expõe que a presença do
INC foi marcada por fortes mudanças estruturais, bem como na circulação de filmes nas
salas de exibição do país. O autor mostra que, o controle do órgão neste setor se deu
principalmente, na padronização da venda de ingressos nas salas, para intensificar a
fiscalização de parte da receita para o INC, bem como o recolhimento de 40% do
imposto de renda da arrecadação dos filmes estrangeiros.24
A intervenção do Estado no mercado cinematográfico brasileiro altera o ritmo de
produtividade dos filmes neste período. Ortiz afirma que, entre 1957-1966, o número de
longas-metragens lançados no país estava situado numa faixa média de 32 filmes/ano,
enquanto podemos verificar que entre 1967/1969, o número subiu para a média de 50
filmes/ano, fazendo do Brasil, nos anos 70, “o quinto produtor de filmes
cinematográficos”.25

22
Filme & Cultura 1, 1966, p. 61.
23
Filme & Cultura 2, 1966, pp. 57-59.
24
ORTIZ, 2006, p. 109.
25
Ibidem, pp. 109-110.
27

Muitos cineastas – sem opções e espaço para atuarem de modo independente –


acabam por aceitar as determinações impostas pelo INC, na esperança de que o governo
federal se sensibilize com a questão industrial e mercadológica do cinema, exigindo a
criação de leis que protegessem os interesses dos cineastas, para o mercado audiovisual
interno se fortalecer em longo prazo.
Desse modo, o Estado assume a responsabilidade em gerenciar as demandas do
campo cinematográfico, mas este posicionamento só foi viável numa época em que a
crise política do período 60/64 já estava controlada. Assim foi possível criar um órgão
rígido, que não escapava dos planos articulados pelo regime.
Nessa perspectiva, o grupo que atuou na formação do INC, se constituiu a partir
de uma visão empreendedora, em busca do desenvolvimento cinematográfico “oriundo
do período anterior, com uma proposta de cinema brasileiro definida: um cinema de
dimensões industriais, associação com co-produções, com empresas estrangeiras, e
medidas modestamente disciplinadoras da penetração do filme estrangeiro”.26
A linha de produção dos filmes financiados pelo Estado obriga os cineastas “a
trabalhar em conjunto com empresas estrangeiras, no centro de uma realidade capitalista
que se transformava rapidamente”, numa perspectiva que incentiva o crescimento dos
filmes produzidos em larga escala27, mas que em muitos casos gerava confronto entre
cineastas, produtores e o Estado.
O órgão atuava com uma proposta voltada para concretizar a indústria
cinematográfica – ligada ao pensamento racional-desenvolvimentista – movimentando-
se na rede de contatos e compromissos que se aliava aos interesses do mercado
internacional, procurando estratégias viáveis para a manutenção das produções
cinematográficas no Brasil.
Nesse sentido, a orientação do INC volta-se para promoção do “cinema de
entretenimento, [...] adequado ao mercado consumidor”,28 combatendo qualquer postura
artística que negasse o desenvolvimento do cinema comercial, principalmente os
posicionamentos esteticistas e do chamado “cinema ideológico” em que:

26
RAMOS, 1983, pp. 53-54.
27
Se no decênio 56-66, [...] dificilmente atingia-se a cifra de 40 filmes anuais, entre 67 e 74 (ano da
mudança de direção e atuação da Embrafilme) chega-se a alcançar a marca dos 80 filmes. Conferir:
RAMOS, José Mário Ortiz. Cinema, Estado e Lutas Culturais: anos 50, 60, 70. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1983.
28
Ibidem, 1983.
28

O esteticismo é atribuído ao cinema de autor, e se encarnaria em


movimentos como a nouvelle vague e o cinema novo. A crítica visa
neste caso toda uma vertente que em princípio, privilegiaria a
qualidade artística da obra em detrimento de sua comunicação.
Também o cinema ideológico, ao se concentrar nas mensagens
políticas, tornar-se-ia hermético e de difícil compreensão do grande
público.29

Segundo Durval Gomes Garcia, diretor responsável pela edição da Revista


“Filme Cultura 9”, o Brasil vive a hora do “cinema total”, sentida “no espírito de soma
dos estímulos do INC” na produção de um “novo cinema brasileiro”30, resultante da
experiência acumulada em todas as fases e ciclos históricos audiovisuais.
Para ele, o “Cinema Total” deve ser “realístico”, pois este elemento revela que o
filme não é apenas um “veículo de comunicação cultural”, e sim um “produto
industrial”. Para que um filme seja reconhecido enquanto obra de arte, ele deve receber
“um bom número de ingressos”, ou será um fracasso industrial, cultural e artístico, pois,
nessas condições, significa que o mesmo não conseguiu estabelecer comunicação direta
com o público. Afirma que a “primeira tarefa do Cinema Total é aproximar o grande
público sem sacrifício do nível qualitativo que já alcançou”.31
O “realístico” faz uma combinação com o caráter exportável, pois os filmes
realizados pelo INC procuram “falar uma linguagem universal e dominar os segredos do
mercado externo, ao criar condições para divulgação e a venda em escala mundial,
através do Plano de Promoção Externa do Cinema Brasileiro”.32
O INC acabou não dialogando com o pensamento de vários cineastas envolvidos
no Cinema Novo, movimento cinematográfico em que os principais artistas estavam
envolvidos em um tipo de linguagem articulada na escavação das bases imagéticas da
cultura brasileira, para imprimi-las de modo crítico-realista no cinema. Seus anseios
entram em sintonia com o desejo de levar ao povo uma imagem em que estes se
identifiquem e reflitam sobre sua condição social, agindo contra o pensamento
mercadológico “alienante”, que estava se configurando naquele momento.
Os cinemanovistas estavam situados no campo de tensão com o INC. Na
tentativa de criar produtoras independentes como a DILFILM (1967) – para não fazer
parte do “cinema burocrático” – na maioria das vezes resultavam em fracasso, pois não

29
ORTIZ, 2006, p. 111.
30
Filme Cultura 9, Abril de 1968.
31
Filme Cultura 9. A Hora do Cinema Total. Instituto Nacional de Cinema. Abril de 1968. p. 1.
32
Ibidem, p. 1.
29

tinham força de concorrência com o mercado estrangeiro e sustentação financeira


sólida.33
Através do artigo de Carlos Guimarães de Mattos Júnior, é possível
compreender como o INC se posiciona diante dos grupos que não se adequam às
exigências do Estado. Em “Diálogos de Planejamento”, publicado na Revista “Filme
Cultura 21”, Carlos critica os chamados filmes experimentais e contestatórios, ao
afirmar que este tipo de linguagem não chama a atenção do público.
Nesta perspectiva, em vez atender os interesses de uma minoria intelectual de
cineastas autorais, o Brasil deveria valorizar a fase onde:

[...] há uma franca procura de narrativas de fácil aceitação popular. O


mais importante é que as diversas tendências da produção
mantenham-se ligadas a capacidade de absorção do público,
reconheçam que as platéias cinematográficas se mostram dia a dia
mais exigentes quanto ao nível técnico e espetacular [...]. 34

Contrapondo este argumento, podemos expor a tensão entre parte dos cineastas
nacionalistas-culturalistas e o Estado, com o depoimento de Glauber Rocha a Frederico
de Cardenas e René Capriles, registrado em 196935, contra as diretrizes comerciais e
posicionamentos do INC em relação ao espectador brasileiro e ao mercado:

O INC tem uma visão colonial do cinema, quer que o cinema


brasileiro seja a imitação do cinema americano, e isto não pode ser. O
cinema brasileiro, posto que cinema oprimido, é oponente natural do
cinema dos EUA. O INC é um órgão ligado ao Ministério da
Educação e Cultura, quando devia ser um órgão independente, do
Ministério da Indústria, e dirigido por economistas e não por
intelectuais. [...] o que queremos é que o Cinema Novo seja o cinema
brasileiro: comunicado-se com o público, tendo seu próprio mercado,
exportando. Que o Cinema Novo seja indústria, com nova
mentalidade, onde o diretor tenha liberdade de criação, em que o
produtor seja técnico em economia, em que a criação se desenvolva
num clima saudável, em que o comercialismo não participe como
usura, [...] em síntese: uma indústria moderna que funcione bem hoje
ou amanhã e com regime político que o Brasil venha a ter.36 (grifos
meus)

33
ORTIZ, 2006, p. 113.
34
Filme Cultura 21. Diálogos de Planejamento. Instituto Nacional de Cinema. Julho/Agosto de 1972. p.
07.
35
O Transe da América Latina.
36
ROCHA, Glauber. Revolução do Cinema Novo. São Paulo. Cosac Naify, 2004. pp. 185-186.
30

Tomando a afirmação de Glauber Rocha como vestígio para compreender o


debate naquela época, é possível visualizar no trecho supracitado as fissuras existentes
entre o Estado e os cineastas, pois não serão todos que aceitaram as ideias estabelecidas
em torno dos investimentos na cultura.
Para garantir a presença do Estado nas decisões no campo audiovisual, as bases
institucionais do cinema serão concretizadas a partir da fundação da Empresa Brasileira
de Filmes (Embrafilme), em setembro de 196937, mudando o quadro de produção
audiovisual no começo dos anos 70. Com a fundação desse órgão, estabelece-se uma
política de atuação estatal responsável pelo aumento das ações de proteção no mercado
e pelo maior espaço para o incentivo da produção nacional.
Criada no auge da repressão do regime militar, a Embrafilme aparece com a
proposta de penetrar no mercado cinematográfico para promover o filme brasileiro no
exterior, fortalecendo sua influência sobre a atividade cinematográfica no país,
principalmente quando seu discurso em torno da integração nacional é intensificado,
juntamente com os outros departamentos ligados à cultura no governo.38
Segundo Lia Bahia, o plano montado para fomentar a cultura audiovisual no
governo militar estava centrado numa perspectiva nacionalista. Isso significa que “a
cultura e os meios de comunicação de massa foram vistos como peças fundamentais
para a integração nacional”, refletindo diretamente “no campo cinematográfico, uma
vez que se vislumbrou uma proposta de indústria [...] para ocupar o mercado de filmes e
estar combinada com o projeto cultural brasileiro”. 39
A Embrafilme se torna uma instituição que centraliza os investimentos
cinematográficos, com o poder de intervenção direta, resultando na extinção do INC em
1975 e criando o Conselho Nacional de Cinema (CONCINE), órgão que atuou no
campo normativo e regulador, fazendo a Embrafilme uma instituição operativa, no
sistema produtivo do cinema brasileiro de forma ampla.
Nesse sentido, a instituição se responsabilizaria pelo financiamento das
produções, distribuindo filmes e garantindo sua exibição, articulando-se conjuntamente
com os exibidores. As medidas ampliam as possibilidades de popularizar o cinema

37
Foi extinta em 16 de março de 1990, pelo Programa Nacional de Desestatização (PND) do governo de
Fernando Collor de Mello.
38
CESÁRIO, Lia Bahia. Uma Análise do campo cinematográfico brasileiro sob a perspectiva industrial.
Universidade Federal Fluminense. Dissertação de Mestrado (Comunicação), 2009. p. 39.
39
Ibidem, pp. 40-41.
31

brasileiro no mercado interno e externo.40 Renato Ortiz afirma que “em 1975 são
produzidos 89 filmes, em 1980, 103 películas e o fluxo de espectadores nas salas de
cinema cresce consideravelmente: em 1971, 203 milhões; atinge em 1976 um pico de
250 milhões”.41
A presença do INC e da Embrafilme pode ser considerada bem sucedida no
crescimento quantitativo das produções audiovisuais no circuito exibidor brasileiro dos
anos 70, mas deve ser enfatizado que, para além desse “sucesso”, existe em suas
dinâmicas operacionais a face autoritária do regime, fazendo do cinema brasileiro não
somente uma manifestação artística, mas também “instrumento de integração nacional.
O cinema neste momento tinha uma função estrutural na cultura, seguindo diretrizes
ideológicas do governo militar”.42
Face exposta por Glauber Rocha, em 1979, quando opina e mostra no programa
“Abertura”, da TV Tupi, todo o inconformismo e diagnóstico de uma crise na cultura,
sentida por muitos artistas desde o golpe militar, afirmação que demonstra claramente o
período em que vamos mergulhar daqui em diante, no filme de Jomard Muniz do Britto.

Estão exercendo terrorismo cultural no meio do cinema, da cultura


toda, da crítica literária, do teatro, da música... quem não estiver
segundo a flauta do MDB, está cortado! Não tem abertura não! [...]
Não tem abertura para os verdadeiros pensadores brasileiros! Há uma
grande chantagem também dentro das Universidades! [...] Me
encontro no Brasil marginalizado e sem ver nenhuma perspectiva de
saída para o cinema, porque eu não vejo nenhuma perspectiva de saída
para o atual sistema econômico que rege o Brasil.43

Apesar do forte aparato técnico-financeiro centralizado nas mãos de instituições


responsáveis por direcionar o processo de investimento no campo cinematográfico e
artístico em geral, de acordo com as regras do jogo impostas pelo Estado, é preciso
enfatizar que “a censura não se define exclusivamente pelo veto a todo e qualquer
produto cultural”.44
Para Ortiz, “ela age como repressão seletiva que impossibilita a emergência de
um determinado pensamento ou obra artística” e não da generalidade de sua produção,

40
CESÁRIO, 2009, pp. 42-45.
41
ORTIZ, 2001, pp. 124-125.
42
CESÁRIO, p. 46, 2009.
43
Programa Abertura, 1979.
44
ORTIZ, 2001, p. 115.
32

portanto, nem sempre os lugares e obras são vigiados por todos os olhos.45 Nesse
sentido, podemos afirmar que o pós-64 se forma como um “momento da história
brasileira onde mais são produzidos e difundidos os bens culturais” 46, caracterizando a
situação cultural por possuir um amplo espaço na circulação desse mercado.
Além de instituições como o Instituto Nacional de Cinema (1966), Conselho
Federal de Cultura (1966) e Embrafilme (1969), instrumentos reguladores do Estado
que visavam implantar, planejar, decidir, julgar, mediar e impor suas forças diante do
corpo social, outro percurso estava sendo trilhado no campo cinematográfico, no qual o
Estado não conseguiu penetrar na sua totalidade.
Em pleno endurecimento do regime político e das instituições que coordenavam
o processo cultural nos anos 60/70, é possível visualizar um conjunto de práticas
culturais que ultrapassam a coerção estatal e as definições políticas no campo
audiovisual.
Nesse período, o Brasil passa pelo processo de diálogo e incorporação de
influências das vanguardas culturais estrangeiras, resultante do intenso encontro entre
artistas brasileiros, europeus e norte-americanos, com exposições de projetos e ideias,
que promovem um contato mais acessível com as novas tendências artísticas, ampliando
as possibilidades de troca e consumo cultural por um público mais amplo.
Cristina Freire aponta que, “com a fuga do mercado, especialmente para os
latinos americanos, [gerou-se] a oportunidade [nos artistas em] subverter a repressão
política e participar do debate internacional”, assegurando até “aos correios o papel
difusor de operações artísticas. [...] Em suma, não apenas as instituições museais, mas
também as linguagens tradicionais se tornam inadequadas frente às proposições de
arte”.47
As transformações no modo em que os artistas percebiam a cultura no país
deram-se pelo avanço acelerado da tecnologia e o aumento da incerteza perante o rumo
que tais novidades iriam tomar, trazendo como consequência a problematização dos
sistemas de pensamento “tradicionais e essencialistas e a crescente perda de sentido de
continuidade entre passado, presente e futuro. O sujeito, nesse cenário, começa a
experimentar uma angústia existencial seguida de profunda crise de identidade”.48

45
ORTIZ, 2001, pp. 114.
46
Idem, p. 115.
47
FREIRE. Cristina. Poéticas do Processo. São Paulo: Iluminuras, 1999. p. 35.
48
CASTELO BRANCO, Edwar de A. Todos os Dias de Paupéria: Torquato Neto e a Invenção da
Tropicália. São Paulo: Anna Blume, 2005. p. 66.
33

O ano de 1967 será marcado pelo fortalecimento e pela livre troca de


informações, entre artistas de diversas áreas, contribuindo para formar um mapa rico de
manifestações voltadas para experimentar novas linguagens e romper com os limites da
esfera artística oficial. Assim, muitos artistas vivenciaram um processo de
desprendimento dos laços que amarravam sua expressão somente a leis de incentivo e as
burocracias de financiamento.
Pensar a prática cultural como algo fechado a decisão dos investimentos do
Estado torna-se cada vez mais complexo, em virtude do rico processo de globalização e
a proximidade dos corpos que se tocam. Corpos que experimentam novas possibilidades
de geração de sentido na arte brasileira.
Apesar do exaustivo esforço de cerceamento elaborado pela política cultural do
regime militar, será ineficaz impedir o aparecimento de novos espaços, suportes e
elementos de criação artística.
Nesse contexto, podemos afirmar que “arte e existência deveriam se sobrepor,
promovendo uma politização do cotidiano e rompendo com as conexões binárias que
pensariam o homem estético e o homem político como instâncias impossíveis em um
mesmo palco”.49 Muitos artistas contemporâneos, frustrados com o processo de
“burocratização das diversas instâncias políticas e até mesmo de setores de esquerda” 50,
sentem a “necessidade de romper com o modo tradicional de definir e fazer política”.51
Desse modo, vários jovens começam a intensificar seus questionamentos e
negações à “racionalidade das formas dominantes de pensamento”.52 E este grito de
discórdia transforma-se no “instrumento desta nova linguagem” 53, em que esses sujeitos
passam a olhar “com desconfiança para o mundo nomeado, problematizando não apenas
categorias objetivas, como o progresso, mas rebelando-se contra os costumes”.54
Podemos verificar que os estilhaços crítico-criativos serão sentidos a partir do
momento em que uma série de elementos misturam-se, através de um variado conjunto
de mecanismos e técnicas expressivas, que serão apropriadas e reinventadas por artistas
ligados à condição poética contemporânea, incorporando à sua prática outros suportes
de expressão.

49
CASTELO BRANCO, 2005.
50
Ibidem.
51
Ibidem.
52
Ibidem.
53
Ibidem.
54
Ibidem, pp. 71-95.
34

Assim, a fotografia, xerox, performance, instalação, música, poesia, vídeo,


superoito serão hibridizados e tratados como recursos voltados para a transitoriedade –
questionando sua própria duração enquanto objeto, arremessando “contra o cotidiano,
procurando desvelar a inconsciência de nossas ações rotineiras”.55 A arte contemporânea
coloca em crise a hegemonia dos monumentos e discursos que impõem sentido
monolítico para as noções de arte e política.
Sobre esse aspecto, Christine Mello nos conta que entre o final dos anos 60 e
início dos 70, “começa a se esboçar outra mentalidade com relação à produção cultural,
em virtude principalmente do aparecimento de obras que transbordam para fora das
especialidades, obras que poderíamos caracterizar como cross-media”,56 a partir da
noção de que elas cruzam “todos os meios de expressão artística, mas sem se limitar a
eles”.57
Para ela, os artistas não se conceituam mais por mídias/suportes, mas através de
“tecnologias, ou por campos artísticos específicos, ou seja, eles já não são mais artistas
plásticos, fotógrafos, cineastas ou videoartistas simplesmente. Pelo contrário, eles
trabalham com conceitos ou projetos que atravessam todas as especificidades” 58, nos
quais as formas utilizadas nas expressões se diversificam “de acordo com as exigências
de cada projeto e são sempre múltiplos ou associados uns ao outros”.59
Essa possibilidade tem início, a partir do momento em que o manuseio das novas
ferramentas de criação são alcançados pelos artistas que ousam experimentar outras
técnicas, descompromissadas com políticas de distribuição, recepção e circulação no
mercado, principalmente no que se refere ao meio cinematográfico profissional.
Suas produções caracterizavam-se na maioria das vezes a um ataque direto às
instituições culturais, ao negar a noção de obra de arte como artefato a ser consumido
passivamente pelo público, promovendo a circulação de informações paralelas ao
campo cultural oficial. A inspiração brotava na “força subversiva da arte e, ao mesmo
tempo, [pelo desejo em] romper o mercantilismo ao tentar compartilhar criações com o
maior número possível de pessoas”.60

55
FREIRE, 1999, p. 28.
56
MELLO, Christine. Extremidades do Vídeo. São Paulo: Editora Senac, 2008. p. 11.
57
Ibidem, p. 11.
58
Ibidem, p. 11.
59
Ibidem, p. 11.
60
FREIRE, 1999, p. 31.
35

Podemos perceber que, além dos filmes financiados pelo Estado, outras obras
audiovisuais são desenvolvidas em suportes mais baratos e de fácil circulação, que irão
também compor o complexo cenário cinematográfico brasileiro. A maioria desses
filmes surge como resultado da democratização e acessibilidade de bitolas e câmeras
portáteis, que se expandem rapidamente no país pelo fato dos novos suportes de registro
cinematográfico (tripés, filtros, lentes, etc.) estarem atrelados a um processo de
inovação tecnológica acelerada.
Desse modo, os artistas têm a possibilidade de construir novas leituras e
experiências audiovisuais, bem como o manuseio de materiais mais leves, em espaços
livres dos estúdios, o que redimensionou a porção criativa das expressões artísticas
contemporâneas.
Com filmes marcados pela radicalidade formal, o experimentalismo brasileiro
traça uma rota alternativa de produção, tomando como suporte fundamental de atuação
e produção, a película 8 mm. Nesse sentido, “a bitola de superoito, espécie de musa e
síntese desses novos equipamentos de filmagem, estimulou o surgimento de novíssimos
‘cineastas’” 61, que iniciam um longo processo de ação fílmica subterrânea em relação
ao circuito cinematográfico comercial.
Os filmes aparecem livres “para olhar o mundo exterior sem pestanejar e para o
mundo interior em moldes complexos e místicos” 62, com imagens livres para serem
poéticas e obscuras. “É livre até mesmo para ensandecer”63, construindo um tipo de
cinema que é possível utilizar:
[...] todos os recursos existentes e os transfigura em novos signos em
alta rotação estética: é um cinema interessado em novas formas para
novas ideias, novos processos narrativos para novas percepções, que
conduzam ao inesperado, explorando novas áreas de consciência,
revelando novos horizontes do improvável.64

A popularidade da película super-8 deu-se a partir da mudança de bitola na


década de sessenta, anteriormente dominada no circuito pelo filme standart 8mm, muito
usada por cineastas amadores, pessoas interessadas em fazer registros caseiros, para

61
SANTOS FILHO, Francisco Aristides de Oliveira; CASTELO BRANCO, Edwar de Alencar.
Desencantos modernos no cinema brasileiro: contrações e disritmias na filmografia dos anos 60/70. In:
CASTELO BRANCO, Pedro Vilarinho (Org.). História e Ficção. Imperatriz – MA: Ética, 2009. p.63.
62
RENAN, Sheldon. Underground: introdução ao cinema/underground. Tradução de Sérgio Maracajá.
Rio de Janeiro: Lidador, 1970. p. 23.
63
RENAN, 1970. p. 23.
64
FERREIRA, Jairo. Cinema de invenção. São Paulo: Max Limoad, 1986. p. 23.
36

guardar de recordação. Segundo David Beal, “não havia razão para duvidar da
triunfante liderança do 8mm tradicional em popularidade entre amadores”.65
Introduzido no mercado internacional em 1965, a bitola superoito provocou um
conjunto de benefícios e otimização técnica, que amplia para o público consumidor uma
série de novidades para seu uso, substituindo:

[...] quase que completamente o 8 mm tradicional, no que se refere à


manufatura de câmaras cinematográficas para cineasta amador. O
replanejamento do formato do filme tornou possível conseguir um
aumento de aproximadamente 50% na área da imagem [...] o que
permitiu melhor qualidade de imagem sem qualquer aumento no
tamanho da câmara. As perfurações foram colocadas em posição mais
racional, ao lado dos fotogramas e não perto do estreito espaço entre
eles, de modo que, quando um filme é cortado e colado, a emenda fica
mais forte, por não ser sobre a perfuração. O espaço para trilha sonora
foi deixado na margem oposta à das perfurações, proporcionando
melhor qualidade de som. Uma posição de garra padronizada em
câmaras e projetores, e espaço para uma pista de compensação
contribuíram para melhorar a nitidez da imagem66.

As significativas melhorias nas técnicas de filmagem e produção promovidas


pelos filmes superoito geram o aumento da procura deste recurso, principalmente pelo
barateamento dos custos operacionais. O acesso direto no uso do suporte pode ser
exemplificado por Beal, quando afirma que nos anos 70, as “câmaras cinematográficas e
projetores de 8mm tradicional, de segunda mão, podem agora ser adquiridos por uma
fração de seu preço original”.67
Para Sheldon Renan, “o baixo custo de filmes de 8 mm e de 16 mm permite que
qualquer um faça um filme. As câmaras pequenas e os filmes rápidos da década de 60
permitem que se faça a tomada de um filme quase que em qualquer lugar”68, devido a
democratização do acesso, que resulta em produções livres do circuito comercial. “Isso
representa não só a liberdade para fazer filmes, mas também a liberdade de fazê-los
simplesmente por satisfação pessoal e simplesmente em função de padrões estéticos” 69.
Vários cineastas profissionais negaram a importância de seu uso, bem como
tentaram impedir a circulação dos filmes em eventos na área. Essa atitude nos mostra

65
BEAL, John David. Super 8 e outras bitolas em ação. 3ª Ed. Adaptação de Abrão Berman. São Paulo:
Summus, 1976. p. 14.
66
Ibidem, p. 14.
67
Ibidem, p. 14.
68
RENAN, 1970. p. 23.
69
Ibidem, p. 2.
37

que o superoito causou instabilidade na linguagem cinematográfica dos anos 60/70,


pondo em xeque toda uma ordem de coisas que representariam, em última instância, o
cinema brasileiro como patrimônio simbólico da Nação.70
Os filmes de Jomard Muniz de Britto resultam do desejo de experimentar,
através do exercício permanente de crítica cultural, utilizando o recurso audiovisual –
como um dos vários suportes por ele manuseados – para colocar em questão o próprio
cinema enquanto complexo industrial, movido pelas engrenagens que vão desde a
espera na fila ao sistema de comunicação e marketing, para promover o produto
cultural.
Aqui, os filmes circulam em espaços que margeiam os interesses comerciais da
Embrafilme, que planejou “vender” as imagens ideais do Brasil para o mundo, de
acordo com as estratégias da propaganda do serviço de inteligência do governo. Isso nos
leva a entender que este estudo é baseado numa relação história-filme, trabalhando sua
especificidade em diálogo com outros caminhos de escoamento expressivo, ao negar o
oficialismo do cinema-estatal, na busca por vias demarcadoras de tensão e desvio das
estruturas engessantes: “é sempre bom suspeitar da euforia em torno dos prêmios
oferecidos [...] [eles] substituíram o desejo dos debates. É possível utilizar as
premiações para desarticular essas engrenagens oficiosas?” 71
Sobre essas tensões, o multiartista Paulo Bruscky relata que:

Existia [um conflito] entre o pessoal do 16 mm e do super 8 que,


Daniel Santiago fez até um filme sobre essa questão que chama-se O
Duelo, que eu sou um dos protagonistas do filme, só é eu e ele, que é
um duelo mesmo...eu com uma 16 mm e ele com uma super 8, no
jardim botânico onde termina a duas máquinas encontram e ...
(explodem) fica tudo escuro e o barulho de vidro... e o pessoal do 16
mm dizia que o que a gente fazia não era cinema, mas realmente a
gente não tava fazendo cinema, a gente tava fazendo experimento, pra
gente não existia preocupação de fazer cinema, por isso que é uma
coisa mais solta, mais legal por que a gente não fazia questão de ser
chamado cineasta, a gente era experimentalista, a gente não
trabalhava com a questão que eu volto a falar do convencional no
cinema. O pessoal de televisão [atuavam com 16 mm], o pessoal de
publicidade que ficava naquele gueto deles que não admitia que as
brincadeiras da gente fosse levado como cinema entendeu? A

70
CRUZ, 2005, p. 35.
71
BRITTO, Jomard Muniz de. Há uma borboleta ou uma Gota de Sangue no Super-8? Sem
Identificação. 25/11/77.
38

produção do super 8 em Pernambuco, apesar de ser importante,


profícua, eram poucos, não eram muitos não72.

Diante do sistema cinematográfico nacional e internacional – voltado para


interesses comerciais – as produções superoitistas caminhavam na trilha à margem
desse processo, as quais podemos chamar de filmes subterrâneos. Apesar do superoito
ganhar popularidade e receber apoio de algumas instituições para sua realização, os
filmes eram exibidos num circuito paralelo, distante dos processos de distribuição e
comercialização, movidos pelo desinteresse dos órgãos culturais em promover os
filmes, priorizando comercialmente o longa-metragem.
A respeito dessa questão, o cineasta Silvio Back, coordenador do I Festival
Brasileiro do Filme Superoito (1974), em Curitiba, critica a situação em que a bitola se
encontrava nos circuitos de exibição do país:

[...] há a considerar que embora negligenciado pelo cinema


profissional, e assumindo em relação a ele uma posição tanto
falsamente submissa como falsamente superior – o Super 8 [...] deu a
nítida impressão de que, por inocência ou alienação mesmo da maioria
de seus autores, ignora quase todo o complexo econômico-cultural
opressivo que envolve o nosso cinema. Como a sua pedra de toque
principal ainda é a da circulação dos filmes num segmento familiar,
esse avanço entre o que o cinema brasileiro vem produzindo nos
últimos anos e essa produção de laboratório descompromissada de um
retorno financeiro, embora substancial no plano de indagação, é
muitas vezes inócuo, e ele, no fundo, vem a ser mais um dado triste da
conformação cultural a que estamos submetidos. [...] suas sensíveis
conquistas no campo da prática ainda são vegetativas e exigem dos
realizadores uma melhor definição institucional e uma posição mais
articulada com a realidade atual do cinema brasileiro.73

Back destaca a falta de articulação dos superoitistas na cena cultural do período,


ao expor que o nível de produções se torna inócua, pela falta de compromisso com o
fortalecimento de uma ação política que valorize o suporte, carente de representação
institucional que defenda os interesses deste grupo no mercado audiovisual brasileiro,
situação que sofrerá significativas mudanças em Pernambuco e Salvador, como veremos
a seguir.
Independente das críticas e perseguições à bitola, seja no depoimento exposto
por Paulo Bruscky ou Sílvio Back, sua expansão no país foi bastante significativa. No
Nordeste, o boom na produção de filmes neste tipo de película nos anos 70 destacou-se

72
Entrevista realizada por Aristides Oliveira, na tarde de 08 de agosto de 2008, no Real Palace Hotel, às
14h30 em Teresina-PI.
73
Filme Cultura 26, 1974, p. 47.
39

na Bahia e em Pernambuco. Nesse contexto, a cidade de Recife será o espaço a ser


explorado na pesquisa, a fim de situar historicamente a articulação entre os cineastas
que utilizaram a bitola como ferramenta de documentação e resistência cultural.
Inicialmente, realizaremos um levantamento histórico da cena superoitista
pernambucana, para em seguida ver em close a obra fílmica e textual de Jomard Muniz
de Britto, centro de nossas atenções. Após o passeio em cima da grua, mergulharemos
numa seqüência imprevisível de planos médios, planos gerais, planos de conjunto,
contra-plongeés, para visualizar os rodopios e escutar os gritos de um palhaço que
degola e redegola as veredas da tradição cultural brasileira.

1.2. A potência do Superoito em Pernambuco


A cena audiovisual em Recife dos anos 1970 – espaço em que as diretrizes da
Embrafilme não impediam o fluxo criativo das ideias e muito menos a produção de
obras fílmicas em superoito – estava gradativamente fortalecendo-se numa pluralidade
de tendências, estilos e temáticas abordadas na tela.
Segundo Alexandre Figueirôa, o início da década de 70 é marcado por certo
marasmo na produção de filmes. Nesse momento, poucos filmes foram finalizados,
apesar de vários cineastas – no final dos anos 60 – terem articulado projetos
audiovisuais que acabaram “em roteiros não filmados ou obras inacabadas”.74
Necessitava-se com certa urgência – além de coragem e disposição para fazer
financiamentos pessoais na produção dos filmes – criar um espaço para que os mesmos
fossem vistos e difundidos ao público em formação. A preocupação em fazer cinema
superoito de qualidade em Recife fez com que “alguns praticantes do registro amador
[fossem] transcendendo da descontração para a pretensão de trabalhos nitidamente mais
autorais. O lazer doméstico passava a dividir espaço com olhares mais inquietos por trás
do visor”.75
O desejo maior estava na busca de realizar intercâmbio com outros Estados e
artistas, para efetivação de uma rota alternativa ao circuito oficial, que eram dominados
pelas políticas culturais militares integradas ao INC ou a Embrafilme. Nessas condições,
foi fundamental tornar a bitola, além de simples meio de comunicação, um símbolo da
resistência cultural de cineastas engajados na produção que:

74
FIGUEIRÔA, Alexandre. O Cinema Super 8 em Pernambuco: do lazer doméstico à resistência cultural.
Recife. Fundarpe, 1994. p. 43.
75
CRUZ, Marcos Pierry Pereira da. O Super-8 na Bahia: História e Análise. São Paulo: Escola de
Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Dissertação de mestrado. 2005. p. 14.
40

Dentro da história cinematográfica brasileira, os filmes super-8


reencenaram tanto a tragédia hamletiana quanto as chanchadas da
Atlântida, a cartase pelo sufoco, o gozo e mais gozar dentro das
repressões do AI-5, a sátira pela margem das violentações,
terror/terrir. Ingenuidades. Heterodoxias.76

A luta pelo reconhecimento do superoito como linguagem cinematográfica faz


do ano de 1973 um momento de grande importância para levantar a autoestima dos
cineastas pernambucanos, a partir da aproximação com o circuito superoitista baiano, na
participação da II Jornada Nordestina de Curta Metragem 77, em Salvador nos dias 9 a 15
de setembro.
Para Marcos Pierry, a Jornada é historicamente importante por configurar a
condição geradora de um “marco fundador do superoitismo local, simultaneamente
pavimentam-lhe um circuito específico e consolidam a bitola ao nível de categoria
expressiva”.78
Alexandre Figueirôa traça em sua pesquisa – através de um vasto levantamento
documental – os caminhos e descaminhos que o cinema superoitista em Recife trilhou
para se constituir enquanto circuito em destaque nos anos 70. Aponta que a participação
dos pernambucanos na II Jornada baiana foi bastante positiva, prova disso é a presença
de sete filmes na competição oficial, onde “Missa do Vaqueiro”, de Hugo Caldas leva o
2º lugar no evento.
A notícia estimulou outros cineastas a produzirem filmes, pois agora era possível
que os produtores nordestinos tivessem acesso e posicionamento crítico diante das
“grandes questões do cinema nacional em que se incluía a crescente produção
alternativa com o super-8 que se verificava por todo o país”.79

76
BRITTO, Jomard Muniz de. Vanguarda: um tigre de papel? Superoito: uma onça de celulóide? In:
VERRI, Gilda Maria Whitaker. Registros do passado no presente (Org.). Recife: Bagaço, 2008. p. 275.
77
Em “O Curta-Metragem Brasileiro e as Jornadas de Salvador”, Bráulio Tavares refere-se [...], sem
indicar os realizadores e/ou signatários das proposições resultantes do encontro, resumidas a seguir, que,
em pouco tempo, se revelariam ambíguas, contraditórias e, no limite, preconceituosas: 1. Aumentar a
circulação de filmes em Super-8, sem tentar institucionalizar essa circulação. Não tentar fazer com o
Super-8 um mini-circuito 35 mm, mas aproveitar suas possibilidades para divulgar o cinema fora das
salas tradicionais [...]; Galerias de arte e tevê apontadas como outras possibilidades de circulação dos
filmes; [...] o Super-8 não é considerado como um trampolim para outras bitolas (embora também possa
sê-lo), mas um veículo válido em si. Decorre dessa posição a importância de se procurar fazer produções
baratas, cujos gastos possam ser cobertos com facilidade. Cf: CRUZ, Marcos Pierry Pereira da. O Super-8
na Bahia: História e Análise. São Paulo: Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo,
2005. pp. 17-18.
78
CRUZ, 2005, p. 16.
79
FIGUEIRÔA, 1994, p. 34.
41

A articulação não se deu apenas com filmes inscritos, mas com a presença de
críticos e produtores audiovisuais participando diretamente dos debates desenvolvidos
na Jornada. Podemos citar a apresentação da comunicação de Celso Marconi com o
trabalho intitulado: “Uma experiência: o Cinema de Arte do Recife” e a atuação de
Jomard Muniz de Britto como integrante do júri, gerando um forte interesse nos
jornalistas e artistas em acompanhar a contribuição dos superoitistas na construção de
uma cena alternativa de âmbito nacional.80
O contexto foi marcado pelo desejo de fazer cinema independente, a partir do
“final da década de 1973 ao início de 1974. Em novembro, os filmes participantes da
Jornada de Salvador, são exibidos pela primeira vez para o público de Recife, numa
mostra realizada na Universidade Católica de Pernambuco”.81
Envolvido nos debates superoitistas, Jomard escreve no começo de 1974 “um
artigo no Diário de Pernambuco, que vislumbra o aparecimento de um novo cinema
pernambucano”. Jomard afirma que os cineastas “tinham capacidade de realizar bons
trabalhos e não apenas roteiros que não seriam filmados, afastando assim a ideia do
‘cinema espiritual’ que rondava o cinema pernambucano”.82
O entusiasmo faz o superoito ser visto pelo público como uma bitola respeitada e
muito defendida pelos seus simpatizantes, fazendo de Pernambuco o Estado no
Nordeste com maior produção de filmes nesse formato em 1975, legitimando-o no
campo da produção cinematográfica independente.
Já em 1976, Figueirôa nos mostra que este ano é emblemático para o
amadurecimento do cinema pernambucano, pois, “boa parte dos realizadores [...] já
tinha uma concepção diferente do que significava fazer cinema mesmo com uma bitola
amadora. A euforia da realização continuou, mas a participação de discussões sobre a
83
situação do cinema brasileiro” possibilitou aos artistas o amadurecimento em torno
das dificuldades na produção dos filmes, “ao mesmo tempo em que lhes dava elementos
de reflexão sobre” a realização dos mesmos.
Nesse período, várias tentativas de implantar espaços e infraestrutura para
incentivar as produções audiovisuais resultaram em fracasso, como a promessa não
cumprida do núcleo de produção ligado ao Cinema Educativo, patrocinado pelo INC,
que nunca foi concretizado.

80
FIGUEIRÔA, 1994, p. 36.
81
Ibidem, p. 36.
82
Ibidem, p. 37.
83
Ibidem, p. 36.
42

Outro empreendimento não realizado foi a criação de um Cinecentro, que


disponibilizaria equipamentos, laboratórios de montagem e assistência técnica, ideia
“presa ao papel”. Diante das dificuldades, os cineastas buscaram outros meios de se
fortalecer artisticamente, pois a falta de apoio era uma realidade que dificultava a
materialização de um cenário cultural duradouro em Recife.
A necessidade de criar uma entidade que defendesse o interesse dos realizadores,
nas suas condições mínimas de produção, além do desejo de organizar um festival na
cidade, surgiu com a fundação do “Grupo 8 de Pernambuco”, em 23 de novembro de
1976 que, um ano depois, ganhou repercussão como entidade aliada ao cinema
superoito. Figuerôa afirma que a criação do grupo84 ajudou a consolidar parcela da
produção dos filmes, bem como o benefício dos cineastas envolvidos com uma
representação constituída.85
Muitos participantes do grupo produziam filmes-documentários, ao registrar as
tradições culturais do Estado, valorizando os aspectos que particularizam a cultura
pernambucana. Os filmes tinham um compromisso realista, com temas voltados para as
festas populares, folclore, artesanato, nomes importantes da cena local, frevo, carnaval,
etc.
O Grupo 8 trabalhou com o objetivo de transformar a entidade num veículo de
representação do cinema superoito em Pernambuco, o que acabou gerando o
afastamento de outros superoitistas dedicados a um processo de trabalho mais estético-
experimental independente, sem pretensões de associação e obediência aos estatutos
oficiais.
Para Jomard Muniz de Britto:

Ao contrário dos acima descritos, que se notabilizaram por esta


seriedade documental, existiram outros que enveredaram pelos
descaminhos da experimentação. Talvez menos no sentido formal e
muito mais pelo atrevimento das problemáticas, onde fatores eróticos
se misturavam às marcas políticas da oficialidade repressora. Eles
persistiram no slogan: para nada salvar.86

Alexandre Figueirôa aponta que alguns cineastas destacam-se na produção


fílmica experimental, como Amin Stepple, Paulo Cunha, Geneton Moraes, Jomard
Muniz de Britto e Paulo Bruscky. Para Jomard, os filmes produzidos por esse pequeno
84
Os estatutos foram fixados em 11 de janeiro de 1977.
85
FIGUEIRÔA, 1994, p. 85.
86
BRITTO, 2008, p. 277.
43

grupo “se insurgiam e sugeriam uma perspectiva anarco-experimental87, trabalhando a


imagem com um olhar crítico, sem explorá-la somente como um objeto, mas como
acontecimento, campo de forças, sistema de relações que coloca em jogo diferentes
instâncias enunciativas, figurativas e perceptivas”.88
Criticando a institucionalização dos festivais superoitistas e o peso da estética
regionalista em torno da cultura audiovisual nordestina, Jomard Muniz de Britto não
poupa ironia ao comentar na imprensa que o Grupo 8:

[...] precisa ser mimado, curtido e mamado pelos seus abnegados


fundadores. [...] assim sendo, tem um futuro promissor na cultura
pernambucana tão decantada em prosa verso, filme e folia. Através
das alternâncias institucionais com seus inadiáveis oba-obas, se
vislumbra como capital finalidade: sugar as primeiras migalhas da
Grande Mãe Embrafilme. E todo mundo querendo mamar no primeiro
cordão mamesco que aparecer89.

O posicionamento de Jomard Muniz de Britto deixa claro que a cena superoitista


em Recife não era uniforme. Após a III Jornada de Curta Metragem (1974), é visível
que o circuito é dividido pelo grupo ligado ao cineasta Fernando Spencer, “preocupada
em dar ao superoito representatividade cultural”90 oficial e pelos experimentalistas,
desvinculados do cinema sócio-antropológico.91
Esse período também é marcado pela convivência entre rebeldia e censura,
ligadas por uma relação tensa, mesmo com todas as táticas em burlar os instrumentos de
controle da produção cultural. Nesse sentido, a censura trilha novos caminhos de
atuação, “reprimindo e limitando o espaço de criatividade de parcela da juventude que
atuavam no campo artístico, à margem das concepções culturais aceitas no regime
político autoritário”.92
O debate em torno do uso da bitola é intensificado, provocando uma divisão
entre os cineastas ligados ao cinema social, que “refletem a nossa realidade, não se
93
arriscando desagradar a censura” e os cineastas atuantes numa linha estética mais
radical, experimentando novas possibilidades e rotas do fazer artístico, que desviassem

87
BRITTO, 2008, p. 276.
88
PARENTE, André; CARVALHO, Victa de. Entre cinema e arte contemporânea. Revista Galáxia. São
Paulo, nº 17, p. 27-40, jun. 2009. p. 3.
89
FIGUEIRÔA, 1994, p. 130.
90
Ibidem, p. 130.
91
Ibidem, p. 53.
92
CASTELO BRANCO, Edwar de Alencar. Táticas Caminhantes: cinema marginal e flanâncias juvenis
pela cidade. In: Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 27, nº 53, p. 177-194. 2007. p. 179.
93
FIGUEIRÔA, 1994, p. 126.
44

a “sensibilidade ferida dos mais legítimos representantes da sociedade patriarcal


repressora”.94
Atuando como crítico de cinema polêmico nas Jornadas baianas e do circuito
pernambucano, Jomard Muniz de Britto inicia sua produção cinematográfica na década
de 1970, realizando um conjunto de filmes que não fazia parte da configuração
superoitista pernambucana convencional. Preocupado em filmar outras paisagens, que
se distanciavam do documentário expositivo95 tradicional, vinculadas ao desejo de
“preservar”, Jomard seguia à contramão das catalogações salvacionistas da cultura
nordestina:

Seja na crueldade inocente das brigas de galo, mesmo repulsiva apesar


da inédita musicalização, inédita e super cansativa. Seja a previsão
estalinista da chegada de um Papa ao Recife [...]. Entre a dispersão e a
redundância das imagens, o que salvar ou ressalvar? As belas
intenções superoitistas96.

Podemos considerar que a expressão crítica de Jomard Muniz de Britto no


circuito audiovisual pernambucano está diretamente relacionada a uma época em que,
muitos artistas promovem uma rota de navegação à contramão do discurso oficial –
sintonizada com as estratégias de controle da produção cultural – no ritmo gerado pelo
impulso das vanguardas artísticas que anunciam:

[...] coisas inovadoras, [...] no próprio ato diccional, escavando formas


alternativas de se comunicarem. Desse modo, grande parte da energia
crítica dessa geração de descontentes seria canalizada para atividades
até então não utilizadas pelas formas tradicionais de luta política.
Pode-se mesmo dizer que, sob a pressão da mundialização, esses
jovens redescobriram a política forçando-a a escorregar do macro para
o micro, encontrando em diferentes formas de expressão artística os
instrumentos de sua dicção97.

Jomard percebe que o cinema superoito amplia o leque de possibilidades para


refletir sobre o papel do cinema experimental enquanto prática artística, que não se
limita ao circuito exibidor de sua época. Desse modo, “O Palhaço Degolado” redefine e

94
Ibidem, p. 126.
95
Nesta linha de documentário, há um viés extremamente informativo, onde todo sinal de autoria é
encoberto, bem como o processo de produção. Além disso, sua montagem serve mais para uma
continuidade do argumento do que para estabelecer um ritmo ou padrão formal. Cf: SALES LIMA, Caio
Mário José. O filme dispositivo no contexto da produção do documentário brasileiro nos anos 2000.
Monografia (Comunicação). Faculdade Maurício de Nassau. Recife, 2010, p. 25.
96
BRITTO, 2008, p. 277.
97
CASTELO BRANCO, 2007, p. 179.
45

problematiza amplamente o debate cultural em torno do “Ser” da cultura brasileira nos


anos 70, sob o impacto pós-tropicalista98 em Recife.

1.3. Jomard Muniz de Britto: travessuras sob lona de concreto


Dentro do amplo conjunto de artistas ligados ao cinema superoito na década de 70
em Pernambuco, iremos destacar a presença de Jomard Muniz de Britto e aprofundar
suas contribuições na produção cinematográfica brasileira, explorando inicialmente os
caminhos que o levam a participar da cena audiovisual naquele período.
Suas experiências fílmicas iniciam com a produção de três curtas em: “Ensaio de
Androginia”, “Infernolento” e “Babalorixá Mário Miranda”, “Maria Aparecida no
Carnaval”, exibidos na Sala Sérgio Porto, em junho de 1974.99 Longe de captar o
“realismo nordestino”, seus primeiros filmes foram marcados pela falta de preocupação
técnica, mas após o contato com os cinegrafistas Carlos Cordeiro e Rucker Vieira,
houve uma valorização com a captação e montagem, orientados pela experiência
construída entre eles.100
No final de 1974, o número de filmes realizados por ele cresce
significativamente com: “Uma Experiência Didática: o corpo humano”, “Mito e
Contramito da Família Pernambucanobaiana”, “Lixo ou Lixo Cultural” e “Vivencial I”.
O estímulo na produção o mobiliza a organizar o “Festival JMB”, exibindo-os no
auditório do DER (Departamento de Estradas e Rodagem).
Luta contra uma das maiores dificuldades vivenciadas pelo cinema superoito
naquele momento: a falta de circuito exibidor, pois não fazia sentido para os artistas
envolvidos nesse processo finalizarem seus filmes e não ter espaço de exposição e
debate.101

98
Apesar de Jomard Muniz de Britto ter uma participação efetiva no Tropicalismo já na década de
sessenta, decidimos escolher a expressão de Heloísa Buarque de Holanda, por considerar o ano de 1977
(“O Palhaço Degolado”) um momento de extensão e desdobramento do Tropicalismo nas criações
artísticas de Jomard, desse modo, nos apropriamos da noção pós-tropicalista para pensar a ambiência
temporal do filme explorado. Nesse sentindo, a autora afirma que “o fragmento, o mundo espedaçado e a
descontinuidade marcaram definitivamente a produção cultural e a experiência de vida tanto dos
integrantes do movimento tropicalista, quanto daqueles que nos anos imediatamente seguintes
aprofundam essa tendência, num momento que, por conveniência expositiva, chamaremos de pós-
tropicalismo (fins dos anos 60, princípios dos anos 70)”. Cf: HOLANDA, Heloísa Buarque de.
Impressões de Viagem, CPC, vanguarda e desbunde: 1960/1970. 3ª ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1992. p.
56.
99
FIGUEIRÔA, 1994, pp. 45-46.
100
Ibidem, p. 72.
101
FIGUEIRÔA, 1994, p. 56.
46

Havia uma preocupação com a formação de plateia, pois muitos dos filmes
superoito eram exibidos em mostras particulares, na casa dos realizadores. Promover
exibições restritas não interessava aos cineastas engajados no circuito, que escreviam
nos jornais para mobilizar o máximo de pessoas a comparecerem aos eventos abertos
em andamento na cidade. O Jornal do Commercio foi o espaço mais utilizado para
concretizar as convocações e reflexões em torno da cena audiovisual pernambucana.
No artigo “Amin/que o super 8 saiam das saletas”, publicado na coluna “Arte
Viva”, Celso Marconi afirma que:

Não é nenhuma novidade afirmar que a obra fílmica só se completa


quando é assistida por cem milhões de espectadores. Portanto, é
preciso levar o super 8 aos bordéis, escolas, fábricas, bares, enfim, a
todos os lugares. Logo, é preciso exibir os filmes e não apenas em
saletas. Outra coisa: nossos filmes, não-profissionais, não devem estar
submetidos à mesma norma aplicada (se bem que indevidamente) ao
cinema comercial.102

Jomard sempre trabalhou seus filmes dentro da perspectiva não comercial,


utilizando o recurso audiovisual como poeticidade em trânsito, juntamente com outras
linguagens artísticas (poesia, fotografia, bricolagens textuais, performance) para ensaiar
novos caminhos dentro dos impasses da crítica cultural contemporânea.
Em fevereiro de 1975, o filme “Babalorixá Mário Miranda”, “Maria Aparecida
no Carnaval” e “Vivencial I” são exibidos na I Mostra Recifense do Filme Super 8. A
Mostra obteve repercussão positiva no meio artístico local, já que os filmes
pernambucanos até então só tinham sido vistos em eventos fora da cidade ou apenas
entre os próprios cineastas.103
No festival organizado pelo DCE (Diretório Central dos Estudantes) da
Universidade Federal de Pernambuco, em julho de 1977, seus filmes “Alto Nível
Baixo” e “Discurso Classe Média” são exibidos juntamente com trabalhos de Celso
Marconi e Geneton Moraes.
Após a exibição, foi realizado um debate em torno do conteúdo fílmico, da
relação dos superoitistas com a censura e os aspectos de realização, com ele e outros

102
MARCONI, Celso. Jornal do Commercio. 27 jul. 1977. Amin/que o super 8 saiam das saletas. Coluna
Arte Viva.
103
FIGUEIRÔA, 1994, pp. 57-58.
47

cineastas: Fernando Spencer, Geneton Moraes Neto, Paulinho Menelau, Celso Marconi
e Raimundo Vidarico.104
A necessidade em fazer circular seus trabalhos é concretizada na elaboração de
um programa audiovisual itinerante chamado “Cinevivendo”, que percorria diversos
lugares da cidade para projetar seus filmes e de outros cineastas. O programa tinha
como atividade principal a realização de cine-debates com o público presente, como os
frequentadores de cineclubes, universitários e nos espaços públicos em geral,
esforçando-se para diminuir as lacunas do circuito exibidor superoitista local.
O objetivo do programa “Cinevivendo” era aumentar o acesso às novas
produções realizadas, o que oportunizou a gradativa aproximação de cinéfilos, que antes
desconheciam a cena audiovisual. O estímulo trouxe bons resultados, pois, juntamente
com outros trabalhos paralelos de superoitistas, também interessados na popularização
das exibições de filmes superoito, foi possível fortalecer temporariamente o circuito
superoitista recifense.105
Jomard polemizava as intenções do programa audiovisual no Jornal do
Commercio, por onde transitava seus textos, a partir do contato articulado com o
jornalista e crítico de cinema, Celso Marconi, que trabalhava na empresa. A respeito
deste projeto, Jomard deixa claro que o “Cinevivendo” era um trabalho para expor:

[...] uma realidade cultural em conflito, em debate, em contradição.


Nenhuma pretensão de criar movimento, desde que ‘faz movimento
cultural na província quem dispõe de verbas oficiais e cargos públicos
para seus amigos-discípulos [...]. Nenhum movimento, escola, ou
grupo, embora todas as mo-vi-men-ta-ções para sacudir o puxa-
saquismo, o ‘calaboquismo’ e o cabotinismo de nossos artistas e
intelectuais muito bem comportados, aliás, ‘nordestinados’. A
Associação dos Servidores da Sudene, através do seu departamento
cultural, vai exibir hoje, a partir das 20 horas em ponto, algumas
dessas experiências filmadas por mim em parceria com Carlos
Cordeiro e Celso Brandão. [...] O PALHAÇO DEGOLADO: [...] um
filme muito “falado” em todos os sentidos da palavra; em síntese, uma
louvação descarada aos Mestres da Cultura Nordestina, Deus e o
Diabo sejam louvados!106

Tal iniciativa nos mostra que, “com tantas exibições e os filmes pernambucanos
alcançando um público cada vez mais interessado, os superoitistas, em especial os do

104
FIGUEIRÔA, 1994, p. 96.
105
Ibidem, p. 72.
106
BRITTO, Jomard Muniz de. Jornal do Commercio. 14 out. 1977. Jomard Cinevivendo na Sudene.
Coluna Arte Viva.
48

Grupo 8, perceberam que estava na hora de concretizar um sonho acalentado há anos: a


realização de um festival de filmes”107 em Recife.
Com o projeto encaminhado em setembro de 1977, os cineastas, representados
pelo Grupo 8 conseguem apoio para concretizá-lo, “ao obter o apoio do Instituto
Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais (IJNPS) e do Governo do Estado. O festival foi
marcado para ser realizado no período de 16 a 19 de novembro. O IJNPS participou
como co-patrocinador, ao promover, paralelo ao festival, o II Simpósio sobre o Filme
Documental Brasileiro”.108
Antes da realização do evento, os filmes de Jomard Muniz de Britto estavam
sendo exibidos em Salvador, na VI Jornada de 1977, com “O Palhaço Degolado” e na
mostra paralela foram exibidos “Alto Nível Baixo” e “Discurso Classe Média”. A
circulação dos filmes pelos principais eventos de cinema superoito acaba por expandir
suas abordagens polêmicas e provocativas em torno dos paradigmas que informam a
noção de “cultura brasileira” no Nordeste.
As tensões existentes entre as películas e seus realizadores – visualizada no
depoimento de Paulo Bruscky – são amenizadas, segundo Jomard, na VI Jornada e
Curta Metragem, em Salvador, pois o evento possibilitou:

[...] igualar as bitolas dos filmes exibidos: super 8, 16 e 35 mm. [...]


Isso, de fato e de direito, irá contribuir para uma progressiva
eliminação dos preconceitos (ainda) persistentes em torno do super 8 e
até mesmo do 16 mm. [...] Não somente a maior quantidade como a
dose mais forte de criatividade coube a bitola super 8. [...] A
JORNADA veio comprovar o feliz caos criativo da cultura brasileira:
inquietações existencialóides; a sempre simpática ideologia do
populismo; a documentação da memória nacional nem sempre
vinculada aos conflitos presentes e perenes; as pirações tão líricas
quanto engajadas [...] o didatismo enfadonho apesar de conduzido por
sociólogos combativos. Da maior ingenuidade aos lances da rara
criticidade. [...] A doença infantil do anarquismo promete um desafio
muito maior do que a saúde eterna do racionalismo. É essa feliz
doença que torna a família pernambucanabaiana um impasse, um
desafio, um ‘nós’ difícil de ser enquadrado.109

107
BRITTO, Jomard Muniz de. Jornal do Commercio. 14 out 1977. Jomard Cinevivendo na Sudene.
Coluna Arte Viva.
108
FIGUEIRÔA, 1994, p. 97.
109
BRITTO, Jomard Muniz de. Jornal do Commercio. 24 set 1977. Feliz Caos Criativo. Coluna Arte
Viva.
49

A participação dos pernambucanos nesta Jornada reforça a ponte entre Recife-


Salvador (PE-BA), bem como novos encaminhamentos práticos e reflexões em torno da
produção do curta-metragem no Brasil.
Na coluna “Arte Viva”, de Celso Marconi, é possível visualizar algumas
definições sobre o circuito, a partir das “Resoluções da Jornada de Salvador”. Na
primeira parte do documento – fruto dos debates realizados na VI Jornada – concluiu-se
que o filme curta-metragem é um instrumento de reflexão da sociedade e de seus
realizadores, que, “por sua própria natureza, este tipo de filme tem características
diversas daquelas dos filmes de longa-metragem”.110
Os cineastas exigiam mais atenção das instituições promotoras de eventos, na
valorização dos filmes no circuito audiovisual, unindo os realizadores para expor ao
público o “reflexo da situação geral do curta metragista brasileiro, de seus problemas e
necessidades, neste momento em que os primeiros passos são dados para a abertura das
portas das salas de exibição para o filme de curta-metragem de produção
independente111”. O circuito superoitista marca um momento de intercâmbio e
questionamento “das posições a tomar e das tarefas a executar”.112
Entre outras medidas, os cineastas concluíram que era necessário organizar os
documentaristas de todo o país em torno de um programa de trabalho nacional e
regional, voltado para sistematizar no circuito audiovisual, novas possibilidades dos
interessados incorporarem a um sistema que articule a produção independente à
distribuição, “compreendida como mercado paralelo”113, para que seja possível
“conseguir resultados positivos e consequentes que definam uma posição quanto a que
filme produzir e o mercado no qual será veiculado”.114
Mesmo com as diferenças entre os realizadores, quanto à prática superoitista,
uns mais experimentais na sua estética e descompromissados com o mercado e outros
dedicados a filmar temáticas regionalistas, com abordagens técnicas tradicionais, o que
unia esse grupo era a luta pela valorização e reconhecimento da película.
Os eventos eram promovidos, além das exibições, para construir espaços de
sociabilidade entre os artistas, separados pelas barreiras geográficas e pelas dificuldades

110
MARCONI, Celso. Jornal do Commercio, 21/09/77. Resoluções da Jornada de Salvador (I). Coluna
Arte Viva.
111
MARCONI, 21 set. 1977.
112
Ibidem.
113
Ibidem
114
Ibidem.
50

de produção, num país que, em vez de incentivar o uso da bitola para fins crítico-
artísticos, desfavorecia o fortalecimento e profissionalização do curta-metragem.
Nesse sentido, a Jornada encaminha uma proposta de:

[...] campanha de caráter profissional e público, visando o tratamento


profissional por parte dos Laboratórios de cinema, no tocante ao
filme de curta metragem, e especialmente o de 16 mm, vítimas dos
mais descabidos e inadmissíveis abusos [...]. Apoio e
reconhecimento da luta que se tem travado por uma efetiva
solidificação dos cursos universitários de cinema, que vivem ainda
hoje sob constante ameaça de extinção, e permanentemente em crise,
dificultando e impedindo que suas finalidades sejam cumpridas [...]
Protesto contra o Governo Estadual da Bahia por sua omissão na
realização da VI Jornada de Curta Metragem, atitude considerada
inadmissível e insustentável [...].115

Jomard Muniz de Britto esteve presente nesses debates, acompanhando de perto


toda produção de filmes superoito como crítico bastante conhecido nos jornais, que
abriam espaço para o debate, principalmente no Jornal do Commercio.
Além de crítico cultural, Jomard sempre pesquisou novas formas de expressar a
linguagem audiovisual no âmbito da sexualidade, do corpo, patrimônio e da sociedade
em tempos de transformação, voltadas para o experimentalismo constante, sem medo de
errar na captura das paisagens.
Em Salvador, Jomard transitava nos circuitos com bastante popularidade, é o que
podemos ver no comentário em relação à repercussão de “O Palhaço Degolado” na
Jornada de 1977:

Sem dúvida, “O Palhaço Degolado”, realização de Jomard Muniz de


Britto, foi o filme mais aplaudido dos exibidos no primeiro dia da
Jornada de Salvador [...]. Nos debates, Marco Aurélio Marcondes, da
EMBRAFILME, disse que tinha sido ‘o único filme a apresentar uma
proposição que me interessou’. Outro que se pronunciou a favor do
filme de Jomard foi o cineasta Eduardo Coutinho, dizendo que ‘o
filme tem uma grande importância dentro do contexto da realidade
cultural pernambucana, pois quando se sabe que as pessoas têm que
ser, para surgirem no campo cultural, ou da ala gilbertiana ou da ala
armorial, alguém contestar ao mesmo tempo, num filme, as duas
correntes, isso é da maior importância’. Nos debates posteriores à
exibição, Jomard Muniz de Britto se sentiu frustrado, segundo afirmou

115
MARCONI, Celso. Jornal do Commercio, 22 set 1977. Resoluções da Jornada de Salvador (II).
Coluna Arte Viva.
51

dizendo que o “Palhaço não é um filme pra ser elogiado mas sim
degolado”.116

Figura 1:
“O Palhaço Degolado”: sucesso de público e crítica na VI Jornada, em Salvador.
(Fonte: Diário de Pernambuco, 17/09/77)

Explorando o corpo enquanto chave de sua mise en scene117, Jomard realizou um


conjunto de happenings e/ou performances “em locais públicos, acentuando o caráter
desafiador aos limites da linguagem audiovisual e ao contexto da época118”. Ele iniciou
sua “produção em plena Ditadura Militar no país e esses registros audiovisuais
envolviam uma agitação dos envolvidos na produção – atores, câmera, diretor,
assistentes e das pessoas que estavam no momento e no local das apresentações 119”. As
cenas eram marcadas pela sensualidade e os textos tinham uma postura anárquica, “em
relação ao contexto histórico dos anos de 1970 – no Brasil, mais especificamente em
centros urbanos do Nordeste brasileiro – que vão da política à poética corporal da
imagem e do som”. 120

116
MARCONI, Celso. Jornal do Commercio. 15 set. 1977. Notas sobre a Jornada de Salvador (I). Coluna
Arte Viva.
117
Movimentação ou posicionamento dos personagens no espaço cênico ou no set de filmagens.
Realização ou direção de toda uma produção cinematográfica.
118
MAIA JÚNIOR, Ricardo César Campos. Uma poética audiovisual da transgressão em Jomard Muniz
de Britto. Programa de Pós-graduação em Comunicação (PPGCOM) da Universidade Federal de
Pernambuco (UFPE). 2009. p. 20.
119
MAIA JÚNIOR, 2009. p. 20.
120
Ibid.id.
52

Seus filmes conquistam mais espaço a partir da realização do 1º Festival de


Cinema Superoito do Recife (ocorrido nos dias 16 a 19 de novembro de 1977),
anunciando “pelo Nordeste como um empreendimento de peso para a região,
principalmente nas capitais com produção significativa de filmes super 8”,121 com a
presença de 44 filmes pernambucanos e 21 baianos inscritos.
O festival contou com o apoio do governo do Estado, na gestão de Moura
Cavalcanti, ao mostrar:

[...] todo o interesse no desenvolvimento do cinema em nosso Estado,


inclusive com a criação do Polo Nordeste de Cinema aqui no Recife, e
que o governo dará os meios materiais para a concretização do
Festival. [...] O festival [...] já está contando, também, com o apoio do
Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, através de seu diretor,
Fernando Freyre, que inclusive se comprometeu a dar uma premiação
no valor de Cr$ 30 mil. O IJNPS fará, na mesma época, o II Simpósio
do Filme Documental, com uma reflexão particular sobre o cinema em
bitola super 8.122

O sucesso do evento foi possível pelo grande fluxo de espectadores, que


participavam ativamente das exibições, com cerca de quatrocentas pessoas durante as
sessões do evento, bem como o “apoio de diversas instituições, consulados e empresas,
algumas delas concedendo prêmios [...] além dos oferecidos pelo Instituto Joaquim
Nabuco”.123
Após as exibições, envoltos no clima de otimismo, Celso Marconi faz um
balanço do evento na sua coluna:

O que realmente diferencia o cinema visto no Festival e aquele que


estamos acostumados a ver nos cinemas comerciais, é que no Festival,
o assunto é sempre ligado a nossa realidade. É claro que um dos itens
do documento final aprovado pelos cineastas, fala da superficialidade
dos filmes, mas isso pelo fato do pessoal dar a impressão de que se
preocupa em não ser ‘cortado’; e faz, assim, seus próprios ‘cortes’.
Mas com leves toques ou com aprofundamento, é sempre a nossa
realidade, inclusive regional, que está presente. E uma das muitas
coisas que pudemos constatar a partir desse I Festival [...], é que
existem, aqui, no Recife, em Salvador, em João Pessoa, Campina
Grande, Maceió, Aracajú, muitas pessoas que já possuem o sentido do
cinema. Se com uma simples câmara, elas dizem muito sobre o que
vêem, mostram o que não poderão dizer se lhes fossem dados meios

121
FIGUEIRÔA, 1994.
122
MARCONI, Celso. Jornal do Commercio. 03 set.1977. Governador dá apoio ao I Festival de Cinema
Super 8. Coluna Arte Viva.
123
FIGUEIRÔA, 1994, pp. 104-105.
53

técnicos, meios financeiros, para realização, inclusive, de filmes de


longa-metragem. Tenho a impressão de que as autoridades já estão
estudando a concretização de um chamado Pólo Cinematográfico aqui
no Recife, não poderão esquecer a existência desse pessoal, que já
provou que sabe fazer cinema. Uma vez que não existe Escolas de
Cinema no país, sem dúvida que o fazer cinema Super 8 é uma das
melhores escolas.124

Jomard Muniz de Britto participou do festival com “O Palhaço Degolado”,


finalizado em 1977, com letreiros e apoio cênico de Guilherme Coelho, montagem de
Lima, fotografia/câmera de Carlos Cordeiro e direção/atuação de Jomard, interpretando
o personagem Palhaço.
O filme estava inserido no circuito em que:

Cerca de duas mil pessoas estiveram presentes [...], pois a média foi
de 400 espectadores para as cinco sessões realizadas no auditório do
Centro Interescolar Luiz Delgado. A maioria do público assistiu a
todos os filmes, participando com palmas ou vaias, fazendo assim, o
julgamento que era esperado (uma vez que o Grupo 8 preferiu não
fazer pré-seleção). O filme aplaudido com mais calor foi, realmente,
“O Palhaço Degolado”, tendo o júri instituído pelo Instituto Joaquim
Nabuco de Pesquisas Sociais (Alberto Cunha Melo, José Carlos
Targino e Angelo D’Agostini) concordado com o público, pois o filme
de Jomard Muniz de Britto (que satiriza a cultura oficial, inclusive
aquela que é feita pelo próprio IJNPS) recebeu o prêmio “Renato
Carneiro Campos” de Cr$ 15 mil, para o Melhor Filme125 ligado ao
tema ‘O Homem do Nordeste’.126

A primeira versão do filme foi lançada em 1976, em uma mostra estudantil


realizada no DCE da Universidade Federal de Pernambuco. O filme se apropria de
fragmentos do texto “Outdoors de Recado”, do poeta Wilson Araújo de Souza, como
mote do filme.
Carlos Cordeiro, responsável pela filmagem e fotografia, revela alguns detalhes
de sua feitura técnica que realizou na época:

O filme era revelado no Rio de Janeiro / São Paulo, não havia


revelações aqui, então a gente levava cinco dias. Quando o filme
chegou nós sentamos pra ver... Acho que uns oito dias depois e
rapidamente foi feito a decupagem e a gente editou sem nenhum
problema. O som era colocado depois. [...] A sonorização foi com um
amigo nosso chamado Lima. Ele tinha todo o equipamento de

124
MARCONI, Celso. Jornal do Commercio. 30 nov. 1977. Cineastas estão aí para formar o nosso Pólo
Cinematográfico. Coluna Arte Viva.
125
Ver certificado de premiação: Anexo.
126
MARCONI, Celso. Jornal do Commercio. 22 nov. 1977. 2 mil pessoas participam do I Festival de
Cinema Super 8. Coluna Arte Viva.
54

sonorização e nós levamos e fizemos o som lá. Jomard fazia a


locução, a gente gravava a locução dele e depois colocava no filme, e
algumas vezes já gravava direto no projetor. Naquela época, não se
fazia trucagem nenhuma, porque o super-8 não permitia. E teve uma
cena que foi feito num gabinete aqui na Casa da Cultura, não lembro
aonde foi, num salão grande, que eu pus a câmera no tripé, ele gravou
um texto, depois eu parei a câmera, dei retrocesso no filme, ele saiu e
eu voltei a gravar e realizei uma trucagem, ele “sumiu” durante o
filme. Essa foi à primeira experiência que se fez com trucagem aqui
em super-8.127

Uma característica fundamental do filme está na apropriação textual como


partitura primordial na composição das imagens e da declamação, em que sua
movimentação performática vai depender inicialmente da disposição textual construída
a partir do trabalho de Wilson.
Em entrevista realizada para esta pesquisa, Wilson relata como foi a
aproximação com Jomard Muniz de Britto e a situação político-cultural em que o filme
foi realizado:

O quadro não era nem romântico [anos de chumbo da ditadura do AI-


5 - quarta-feira de cinzas no país (Caetano)] nem também antiquado
(inquietação pós-parafernália infernal da tropicália). Cabeça feita mais
ou menos assim: um pé no movimento cultural e o outro no ato-
passeata. Num pé e noutro, logo logo conheci Jomard, tropicalista de
primeira hora – ele lançou manifestos (com Celso Marconi, jornalista
e crítico de artes, e Aristides Guimarães, compositor e cantor)
assinados também por Caetano e Gil. Logo logo também tomei
conhecimento do movimento armorial, lançado por Ariano Suassuna,
para contrapor ao tropicalismo. Conheci Jomard naquela atmosfera
(inclusive com os direitos políticos e profissionais – assessor de Paulo
Freire e professor das Universidades Federal de Pernambuco e da
Paraíba – cassados) [...]. Nós [...] formamos um grupo de estudo – e
boemia (sábado era o dia da criação: até 23h estudos e depois
andanças e danças). Grupo de estudos críticos – em destaque as teses e
catequeses de Gilberto Freyre e Dinossauriano Suassuna. E o grupo ia
agregando outras pessoas e pessoas notórias eram levadas (encontros
quase sempre na casa de Luisa) como atrações. Então, “O Palhaço
Degolado” (em contraposição ao Rei Degolado de Ariano) foi a forma
que Jomard buscou para tornar pública aquela inquietação – Jomard,
um multimídia, também transava o cinema e o super-8 estava em
evidência e saía mais barato [...]. A motivação para escrever Outdoors
de Recado foram as incursões e discussões daqueles encontros (ponto
de encontro do contraponto) [...]. Depois de algum tempo de
convivência no grupo, achei a motivação para escrever o texto. Aliás,
um textículo – todos os tópicos do meu texto não são nada além de um
mote para o contexto do grande texto d’O Palhaço Degolado – meu

127
Entrevista concedida a Aristides Oliveira, na manhã de 28/10/2011, nas locações do filme, na Casa da
Cultura.
55

registro é que Outdoors de Recado é só um texto mote [...]. Entendo


que os círculos intelectuais tradicionais (me cita que te cito e juntos
citemos Gilberto Freyre e recitemos Ariano Suassuana) ignoraram
(fingiram ignorar!) o filme. Mas a repercussão no mundo artístico
irreverente e no meio estudantil foi avassaladora – falaram muito,
badalaram demais.128

A apropriação do poema transforma a palavra em suporte que precede a


imagem, materializada em movimentos articulados à interiorização textual. Após ser
convertida ao jogo vocal, há um equilíbrio sensível entre o texto e os elementos
performáticos do intérprete.
O poema “Outdoors do Recado” e os textos gerados durante a elaboração do
filme exigem a:

[...] intervenção de uma vontade externa, de uma sensibilidade


particular, investimento de um dinamismo pessoal para serem,
provisoriamente, fixadas ou preenchidas. O texto vibra [...]. Não há
algo que a linguagem tenha criado nem estrutura nem sistema
completamente fechados; e as lacunas e os brancos que aí
necessariamente subsistem constituem um espaço de liberdade [...].129

A absorção das palavras pela voz gera um novo sentido ao tratamento do texto
declamado. Elas são deslocadas de sua base inicial, para que mergulhem no fluxo
sintonizado na consciência de que, na movimentação e no conjunto temático
problematizado, provoquem “uma alteridade espacial marcando o texto” 130
, que é
perfurado e reinventado pela performance executada pelo personagem.131
A releitura de “Outdoors do Recado”, bem como sua ampliação adaptada para o
filme, está marcada em profundidade pelas relações subjetivas do ator com a câmera, no
momento da captura da imagem. Sua relação se faz entre a representação e o vivido, ou
seja, da imagem se fazendo na hora, no processo de criação-realização do personagem,
sem se deslocar do diálogo contextual vivenciado na época.
O período em que o filme foi produzido é caracterizado pelo exaustivo
investimento do regime militar em perseguir sistematicamente os ditos “subversivos” à
linha de pensamento “oficial”, responsável pelo mapeamento das manifestações
culturais ligadas à valorização das tradições populares.

128
SOUZA, Wilson Araújo. Entrevista concedida a Aristides Oliveira via e-mail, em 25 mar. 2009, às
19h26.
129
ZUMTHOR, Paul. Perfomance, recepção, leitura. São Paulo: Cosac Naify, 2007. p. 53.
130
Ibidem.
131
Ibidem, p. 47.
56

O Estado assume a responsabilidade de formular uma concepção da “cultura


nacional”, baseada no eixo de pensamento dos intelectuais considerados “cânones” na
interpretação da história do Brasil, no qual, o filme explora a imagem do sociólogo
Gilberto Freyre, autor de “Casa Grande & Senzala” (1933) e Ariano Suassuna, líder do
Movimento Armorial,132 como referências mais visíveis em Pernambuco.
O Estado, ao tomar tais referências como chave de leitura para pensar a
identidade brasileira, demarcando os territórios e suas práticas culturais, fixando as
fronteiras da brasilidade como um “Todo” coeso a ser explorado dentro de seus
discursos estabelecidos, a ser explorado a seguir.
A garantia da nacionalidade é a preocupação central das elites dirigentes, que
para evitar o desmembramento e convulsões sociais no país, buscam na integridade da
nação (no âmbito econômico, político e cultural) o caminho para a solidificação das
fronteiras e o desenvolvimento interno. Assim, foi possível “unir o país em torno do
poder central, [...] reunindo a dispersa população em torno de ideias comuns e elaborar
uma nova visão do homem brasileiro”.133
Desse modo, para fundamentar-se na construção de tal discurso, o governo
necessita criar uma “cultura do consenso” entre as elites que regem a nação, vinculando-
as na coerência e unidade que favoreça a elaboração de um projeto cultural brasileiro. O
nacionalismo liga todos os focos de interesse envolvidos no objetivo de manutenção das
tradições, relacionando-se com o passado originário positivado, na união dos grupos
étnicos formadores da nacionalidade.

132
O nome “Armorial” ainda é alvo de inúmeras interpretações em relação a seu significado, mas
podemos a partir do trabalho de Idelette Muzart, dar algumas impressões que traduzam o signo Armorial.
Para a pesquisadora: “O substantivo ‘armorial’ designa, em português, a coletânea de brasões da nobreza
de uma nação ou de uma província [...]. A incompreensão gerada em relação à escolha desse nome tem
sua origem na associação do nome a uma época, a Idade Média, e a uma classe social, a nobreza [...]. O
primeiro motivo parece ter sentido estético: armorial em uma bela sonoridade, é palavra que canta [...]. O
segundo elemento liga-se explicitamente a heráldica, não como referência à nobreza, mas considerando-a
numa perspectiva histórica. Cf: SANTOS, Idelette Muzart Fonseca dos. Em Demanda da Poética
Popular: Ariano Suassuna e o Movimento Armorial. São Paulo: Editora da Unicamp, 1999. p. 25. A
principal abordagem do movimento [criado em 1970] era a de construir uma arte popular erudita
tipicamente brasileira “[...] baseada na pesquisa naquilo que seriam as raízes da cultura nacional: a
herança medieval ibérica vinda com os portugueses para o Brasil na época de seu descobrimento, aliada a
uma forma de ser (e de fazer) mestiça, vinda da mistura dos sangues europeu, negro e indígena. Para
Ariano, o celeiro dessa dita essência brasileira se encontraria intacta no Nordeste e por isso seu interesse
pelo folheto de cordel e pelas ditas manifestações populares nordestinas. Para Ariano, a formação de uma
considerada arte brasileira autêntica passaria obrigatoriamente pela arte popular. Cf: VENTURA,
Leonardo Carneiro. Música dos Espaços: Paisagem Sonora do Nordeste no Movimento Armorial.
Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Natal, 2007. p. 53.
133
BARBALHO, Alexandre. Políticas Culturais no Brasil: identidade em diversidade sem diferença. In:
III ENECULT, Anais do Encontro, Salvador: 2007. pp. 02-03.
57

Em Pernambuco, a influência da geração formada por intelectuais integrados ao


Movimento Regionalista134 e Armorial é forte o suficiente para dar continuidade à
conscientização valorativa da temática regional, formando uma série de novos escritores
e movimentos culturais ligados à defesa da “cultura nordestina”.
Nesse sentido, concomitante aos fatos que ocorrem em Pernambuco em torno de
uma “tradição” cultural praticada por grupos populares de teatro, música e artistas em
geral, o Estado exerce um papel fundamental na formulação de uma engenharia
discursiva sobre a cultura no Brasil. A intenção estava associada na construção de
planos estratégicos, que orientem as políticas culturais no país, entendendo-as, na
perspectiva de Anita Simis, como uma ação que teoricamente:

[...] trata da escolha de diretrizes gerais, que tem uma ação, e estão
direcionadas para o futuro, cuja responsabilidade é
predominantemente de órgãos governamentais, os quais agem
almejando o alcance do interesse público pelos melhores meios
possíveis, que no nosso campo é a difusão e o acesso à cultura pelo
cidadão.135

Políticas Culturais que se desdobram posteriormente com a instituição de vários


departamentos, para fortalecer os investimentos na cultura brasileira, aprovados pelo
Estado em diversos órgãos (INC [1966], Embrafilme [1969], FUNARTE [1975],
Conselho Federal de Cultura [1966], entre outros).
A normatização da esfera cultural é elaborada através de um conjunto de leis,
portarias, que disciplinam e organizam os produtores, a produção e a distribuição de
bens culturais.136 Seria uma forma de absorver todas as atividades para si, execrando as
“subversões” que atacassem a “moral” do país.
Imerso nesse contexto, em que Estado e Cultura davam as mãos, “O Palhaço
Degolado” é produzido como posicionamento contrário às práticas que envolvem a
institucionalização da cultura, construídas por um olhar conservador e tradicionalista.
134
Grupo formado por intelectuais em Pernambuco na década de 20, liderado por Gilberto Freyre, Odilon
Nestor, Moraes Coutinho, entre outros, que tinham como principal objetivo em seus planos “a
preservação das tradições [nordestinas, que] seria a garantia de conservação de estruturas patriarcais que
para ele [o movimento] garantiriam que as transformações da sociedade brasileira se dessem sem
rupturas, uma vez que ao longo da história brasileira houvera sido graças ao patriarcalismo que culturas
diversas (europeia, indígena e africana) conviveram de forma pacífica, interpenetrando-se em seus valores
sociais e culturais, dando forma a uma nova civilização para o qual não caberiam organizações sócio-
político-econômicas transplantadas”. Tem como principal documento o Manifesto Regionalista, de 1926.
Cf: LIMA BRITO, Antônio de Pádua de. Ariano Suassuna e o Movimento Armorial: Cultura Brasileira
no Regime Militar, 1969-1981. Março de 2005. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal de
Campinas, 2005.
135
SIMIS, Anita. A Política Cultural como Política Pública. III ENECULT, Anais de Encontro. Salvador,
2007. p. 1.
136
ORTIZ, 1994, p. 90.
58

O filme mostra que a noção de “Cultura Brasileira”, na contemporaneidade, está


vinculada a experiências artísticas que valorizam as tensões criativas entre os estilhaços
e o hibridismo da linguagem, [...] [como] resposta [...] às tentativas de totalização
histórica e de síntese teleológica das gerações anteriores, obcecadas pelo projeto utópico
de construção de uma identidade nacional e de um projeto para o país137.
Ao falar sobre a concepção do audiovisual, Jomard lembra que:

[...] antes do filme, antes dessa transação com Carlos Cordeiro, nós
tínhamos uns acessos à televisão universitária que tinha os programas
culturais de entrevistas e eu fiz um pedacinho do Palhaço Degolado
[...] mas eu dizia os textos, e aí o negócio foi crescendo aos poucos
[...] que você conhece o texto de Wilson [Araújo de Sousa] é mínimo
[...], tem três versos. [...] Eu diria que “O Palhaço Degolado”
concretiza um projeto de cultura, [desde] quando eu escrevi meus
primeiros livros: “Contradições do Homem Brasileiro” (1964) e
depois “Do Modernismo à Bossa Nova” (1966).138

Podemos tomar como ponto inicial para análise do filme, uma reflexão que nos
proporciona compreender o estilo formal em torno do título do mesmo. Refere-se à
possível crítica exposta, (“O Palhaço Degolado”) a partir da referência ao título da obra
de Ariano Suassuna: “História d'O Rei Degolado nas caatingas do sertão/Ao sol da
Onça Caetana” (1976).
É possível perceber uma associação com o nome do livro de Ariano, que nos
leva a interpretar o contraste em relação ao título do filme, a partir de um deslocamento
gerado entre olhares localizados em níveis hierárquicos opostos (Rei x Palhaço). O
filme pluraliza as perspectivas de visão de mundo do alto para o baixo, no qual a
concepção jormardiana provoca a virada do “banquete aristocrático da inteligência
brasileira de então139, trazendo140 uma visão da descontinuidade do processo cultural, [...]
como um processo extensivo, e não centralizado. Como um processo radiante, e não
aglutinante”.141
A associação entre os opostos aproxima-se do recurso paródico, como forma de
construir uma espécie de incorporação crítica, com a função de separação/aproximação

137
MACHADO, Arlindo. As linhas de força do vídeo brasileiro. In: Idem. (Org.). Made in Brasil: Três
décadas do vídeo brasileiro. São Paulo: Iluminuras, Itaú Cultural, 2007. p. 33.
138
Entrevista concedida a Aristides Oliveira, na tarde de 07-10-2010, às 16h25, na residência de Jomard.
139
GIL, Gilberto. Cf: FAVARETTO, Celso. Tropicália, Alegoria, Alegria. São Paulo. Kairós Editora.
1979, p.12.
140
Paródia de tipo verbal: com a alteração de uma ou outra palavra do texto. Cf: SANTA’ANNA, Afonso
Romano de. Paródia, Paráfrase & Cia. Ed. Ática. 1985. p. 12.
141
GIL, Gilberto; apud. FAVARETTO, Celso. Tropicália, Alegoria, Alegria. São Paulo. Kairós Editora.
1979. p. 12.
59

Rei DegoladoPalhaço Degolado, marcada pela desnaturalização das palavras


originais (Rei Degolado), a partir de uma inversão irônica, para afirmar um
posicionamento questionador e se colocar enquanto diferença.
Tal processo de deslocamento, movido pelo rebaixamento do alto (rei) para o
baixo (palhaço), através da paródia, possui seus traços presentes desde os séculos XV e
XVI, e é analisado por Mikhail Bakhtin em “A Cultura Popular na Idade Média e no
Renascimento: o contexto de François Rabelais”. O autor afirma que, nesse período,
além do universo moldado pelo tom “sério”, religioso e feudal, é possível visualizar um
conjunto de elementos formados através das manifestações do riso.
O riso está diretamente ligado às festas populares carnavalescas medievais, bem
como nos ritos/cultos cômicos, marcado pela presença dos “bufões, gigantes, anões e
monstros, palhaços de diversos estilos e categorias, a literatura paródica, vasta e
multiforme”.142 As imagens dos palhaços e do riso estão associadas às festividades
carnavalescas, nas diversas cerimônias e celebrações civis da vida cotidiana daquela
época, em que os mesmos participavam dos eventos, parodiando os atos e ritos oficiais
“sérios”.
Invertendo os valores tradicionais em contraposição às posturas
comportamentais disciplinadas, o riso gera “uma visão de mundo, do homem e das
relações humanas totalmente diferente, deliberadamente não-oficial [...], pareciam ter
construído, ao lado do mundo oficial, um segundo mundo e uma segunda vida” [...]143,
promovendo um diálogo crítico sobre as formas de imprimir significados à realidade144.
O conceito de riso na Idade Média estava ligado a uma perspectiva marginal,
que tinha como função o desnudamento das normas oficiais, refletindo o diálogo entre
duas visões: uma marcada pelo lugar dominante, de uma classe aristocrática formada
pelos reis e o clero, cujas marcas definidoras eram ligadas pela noção de belo e da
contenção do excesso. E outra vista como a dominada, localizada no ambiente popular,
dos artesãos e artistas mambembes e que se estruturava pela extrapolação do corpo
através dos modos de excesso.145

142
BAKHTIN, Mikhail. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François
Rabelais. São Paulo-Brasília Editora Hucitec, 2005. pp. 3-4.
143
Ibidem, p. 5.
144
Ibid.id.
145
CAMINHA, Marina. SANTOS FILHO, Francisco Aristides de O. S. Do Palhaço Degolado à
Abertura política em Armação Ilimitada: o excesso cômico de sentimentos em transição. 2010. p. 7.
60

O realismo grotesco era o princípio que regia esse tipo de riso. Bakhtin afirma
que as imagens corporais estavam visceralmente ligadas a terra, no sentido da
procriação, vinculadas pela ideia de rebaixamento, expressas pelos gestos como defecar,
comer, beber, assim como as partes do corpo destacadas pela boca, falo, nariz, ventre.
Essas imagens exteriorizavam a relação que o corpo popular possuía com os princípios
vitais do homem no mundo.146
Assim, a construção desse mundo paralelo, a partir do riso popular, tinha como
estratégia a transferência desses rituais oficiais para o plano do baixo material corporal.
A paródia surgia nesse mundo carnavalizado como lugar real da manifestação de um
mundo “às avessas”. É desse modo que o conceito de riso foi interpretado pelo autor
como um elemento de resistência, pois as formas cômicas da praça pública indicavam
que, através do riso – situado às margens de uma cultura séria – consolidaram-se modos
de significar que, baseados no excesso, destronavam, por meio da paródia, as linhas de
pensamento oficiais.147
O destronamento das verdades sedimentadas pelo discurso oficial – na
perspectiva cômica – atua como princípio que rege os ritos do carnaval medieval,
libertando o homem de qualquer dogmatismo religioso, fazendo das formas
carnavalescas, uma paródia dos cultos religiosos e das festas oficiais.
Desse modo, o carnaval está vinculado à esfera cotidiana, situada:

[...] nas fronteiras da arte e da vida. [...] é a própria vida com os


elementos característicos da representação. [...] o carnaval ignora toda
distinção entre atores e espectadores. Também ignora o palco, mesmo
na sua forma embrionária. [...] Os espectadores não assistem o
carnaval, eles o vivem [...] o carnaval não tem nenhuma fronteira
espacial. Durante a festa, só se pode viver de acordo com as suas leis,
isto é, as leis de liberdade. [Ao contrário de que, nas festas oficiais,
tendia-se] [...] a consagrar a estabilidade, a imutabilidade e a
perenidade das regras que regiam o mundo: hierarquias, valores,
normas e tabus religiosos, políticos e morais correntes. A festa era o
triunfo da verdade pré-fabricada, vitoriosa, dominante, que assumia a
aparência de uma verdade eterna, imutável e peremptória. Por isso o
tom da festa oficial só podia ser o da seriedade sem falha, e o
princípio cômico lhe era estranho. [...] Ao contrário da festa oficial, o
carnaval era o triunfo de uma espécie de libertação temporária da
verdade dominante e do regime vigente, de abolição provisória de
todas as relações hierárquicas, privilégios, regras e tabus.148

146
CAMINHA, SANTOS FILHO, 2010.
147
Ibidem.
148
BAKHTIN, 2005, pp. 6-8.
61

O carnaval se caracteriza pela lógica do avesso, ou seja, trazer para o baixo as


formas definidas do alto e dessacralizá-las em novos significados, atrelando-as ao riso
festivo, profanador, que, segundo Bakhtin, é um riso “cheio de alvoroço, mas ao mesmo
tempo burlador e sarcástico, nega e afirma, amortalha e ressuscita simultaneamente”.149
Para Mônica Éboli, Bakhtin trabalha a noção de carnavalização partindo do
princípio de que este conceito é resultante de uma apropriação da literatura pelas
manifestações da cultura popular, a partir da experiência da praça pública. O autor
aprofunda a análise desta incorporação na obra de François Rabelais, produzida no final
da Idade Média e início do Renascimento.150
Nesse sentido, o autor russo define algumas categorias fundamentais que situam
a tradição carnavalesca na literatura. A primeira delas é o processo de ruptura dos
lugares que regem a hierarquia social entre os homens, libertando-os para agir de acordo
com seus impulsos e desejos, possibilitando a abertura para a vivência de todos os
participantes na rua, através do espírito carnavalizador, pela livre relação entre as
pessoas que se estende aos campos de vivência, valores e fenômenos, onde o sagrado e
profano caminham juntos.151
O carnaval se revela enquanto renovação, acompanhada do consequente
destronamento, fruto de um sentimento de trânsito e fluxo, em que nada pode ser
definido como absoluto ou imóvel. Tudo, até mesmo os cânones intocáveis e as
verdades fixas sobre o passado podem ser motivo de riso, de paródia152, de profanação e
negação, retirando-os do seu lugar sério/institucional para submetê-los a “um delírio que
os desarticula do lugar sereno que ocupam no mundo da linguagem”.153
A forma de ver o mundo por uma lógica carnavalizada é resultante das
transformações no modo que o homem vivencia seu cotidiano, afastando-se
gradativamente dos discursos teocráticos (movido pela engrenagem do medo e coerção)
e sentindo de perto as estruturas que o inserem na vida prática, proporcionando o
destronamento das narrativas mitológicas, religiosas e lendárias que regiam a verdade
dos homens.

149
BAKHTIN, 2005, p. 10.
150
Sobre o estudo entre literatura e carnavalização: Cf.: NIGRIS, Mônica Éboli. Deglutição Cultural: riso
e riso reduzido no Brasil na última década do século XX. Universidade de São Paulo – USP. 2006. p. 70.
151
NIGRIS, 2006, p. 68.
152
Na perspectiva bakhtiniana, a paródia recai sobre os textos sagrados, as indecências carnavalescas
substituem o comportamento e a linguagem séria e oficial e as referências ao corpo e à força produtora da
terra substituem o sublime e o sagrado. Cf.: NIGRIS, Mônica Éboli. Deglutição Cultural: riso e riso
reduzido no Brasil na última década do século XX. Universidade de São Paulo – USP. 2006. p. 67.
153
CASTELO BRANCO, 2005, p. 28.
62

O autor percebe as mudanças no corpo, na sexualidade, na comida e na bebida,


assim como a satisfação dos desejos materiais, que são incorporadas à vida, antes
regidas pelo temor à igreja e ao divino. Bakhtin expõe que o princípio material e
corporal aparece de modo que o cósmico, o social e o corporal estão ligados
indissoluvelmente numa totalidade viva e indivisível, em que o realismo grotesco
define:
[...] o elemento material e corporal [...] [como] princípio
profundamente positivo, que nem aparece sob uma forma egoísta, nem
separado dos demais aspectos da vida. (...) é percebido como universal
e popular, e como tal opõe-se a toda separação das raízes materiais e
corporais do mundo, a todo isolamento e confinamento em si mesmo,
a todo caráter ideal e abstrato, a toda pretensão de significação
destacada e independente da terra e do corpo [...].154

Nesse sentido, a possível ligação entre estas heranças do tipo cômico medieval –
analisados por Bakhtin – dentro de um novo princípio de organização histórica e
estética, em que “O Palhaço Degolado” está inserido, parte da perspectiva paródica e
carnavalesca, contido no excesso performático do corpo clown, aos discursos
dominantes (sérios) que informam a noção de “cultura brasileira”, baseados na
tropicologia freyreana e pelo armorialismo em Ariano Suassuna.
Em entrevista, Jomard revela que o filme:

É uma homenagem ao teatro medieval. Eu sempre fui muito


carnavalesco, eu gostava de me fantasiar. [...] Esse movimento que se
chama de estética circense... o palhaço não é só ligado ao circo, o
palhaço faz parte da carnavalização, é uma coisa do carnaval. A figura
do Palhaço... estética circense seria todo o conjunto filme, mas tá
bom, é “O Palhaço Degolado”. A lenda... a lenda diz... a lenda
cultural... que os historiadores precisam saber é que Gilberto Freyre se
fantasiava de palhaço no carnaval... isso, não é falando bem nem mal,
é fato, não fui eu que inventei a fantasia do palhaço. Então Gilberto
Freyre participava aí, também se fantasiou de palhaço, em algum
carnaval que ele frequentava nos clubes populares... Ariano Suassuna,
outro grande homenageado no Auto da Compadecida é o circo! Então
eu também sou devedor da estética circense desses grandes mestres da
cultura. O filme pra mim é outra coisa, mas eu estou entendendo, a
estética circense tem a sua dívida ao fato de Gilberto Freyre se
fantasiar de palhaço, ao Auto da Compadecida, que é um palhaço.
Então eu sou dependente desses grandes criadores da cultura.155

154
BAKHTIN, 2005, p. 17.
155
Entrevista concedida a Aristides Oliveira, na noite de 24-10-2011, às 19h, na residência de Jomard, em
Recife.
63

O Palhaço questiona como e porque tais discursos (explorados a seguir) definem


o sentimento de brasilidade, desafiando a partir do deboche, do riso e destronamento, os
textos/imagens considerados “legítimos”, que delimitam as fronteiras do projeto cultural
no país.
Retomando o conceito de paródia, Linda Hutcheon afirma que esta possui um
aspecto fundamental e que está associada à “confrontação estilística, uma recodificação
moderna que estabelece a diferença no coração da semelhança”. Nesse sentido, ela
“torna-se uma oposição ou contraste entre textos, [...] onde um texto [título] é
156
confrontado com o outro” , ligando-se à recepção crítica, na qual o receptor provoca
um novo sentido à obra ou tema (no nosso caso, a possível inversão do título do livro de
Ariano Suassuna) que atravessou seu modo de ver o mundo, atuando como elemento
que contesta seu lado canônico.
Assim, ao parodiar uma obra, esse exercício faz com que a palavra passe por um
processo de reavaliação e leitura de sua produção. Para Susan Stewart, a paródia
consiste em “substituir elementos dentro de uma dimensão, de um dado texto, de
maneira a que o texto resultante fique numa relação inversa ou incongruente como texto
que nele inspira”.157
A paródia possui uma relação com os elementos da cultura popular carnavalesca,
na qual é possível considerá-la como um discurso marcado pelo duplo. Nesse sentido, o
autor utiliza a palavra do “outro” para estruturar seu próprio discurso, “ocorrendo duas
orientações plenas de significados voltadas para o mesmo objeto 158”, sendo que a
segunda voz que instaura a paródia gera “um discurso oposto à primeira, gerando um
diálogo conflituoso dentro do enunciado”.159 “O discurso parodiado sofre modificação
no seu acento, levando a uma espécie de negação da primeira réplica”.160
A ênfase paródica é marcada pelo aspecto zombeteiro, “que aniquila a afirmação
do primeiro enunciado e instaura a ideia de ambivalência no interior do discurso”. O
contraste que pode ser encontrado entre o “Rei Degolado” e “O Palhaço Degolado”
resulta na tensão entre “dois discursos de significação oposta que estabelecem uma
espécie de duelo dentro de um mesmo enunciado, em que o texto se torna uma arena de

156
HUTCHEON, Linda. Uma Teoria da Paródia. Tradução de Teresa Louro Pérez. Rio de Janeiro:
Edições 70, 1985. pp. 49-50.
157
Apud. Hutcheon, 2009, p. 53.
158
CAMINHA, Marina. Retrato falado: uma fábula cômica do cotidiano. Dissertação de Mestrado.
Universidade Federal Fluminense/UFF, 2007.
159
Ibidem.
160
Ibidem.
64

lutas”.161 Esta disputa é o lugar através do qual é possível visualizar a lógica no interior
da paródia, que está na “sua capacidade de conter ambivalência no interior do seu
enunciado”.162
Tomando a paródia como recurso crítico, podemos afirmar que “O Palhaço
Degolado” atua como agente que se opõe à obra armorial, gerando um jogo de espelhos
entre o “reinado” dos dois intelectuais citados no filme e o espírito clown163. Imerso no
corpo difuso de Jomard Muniz de Britto, a paródia faz com que ela penetre, dentro de
suas possibilidades táticas, “naquela outra fala [discurso oficial da cultura brasileira],
uma intenção que se opõe diretamente à original. A segunda voz [Palhaço], [...] entra
em antagonismo com a voz original que a recebeu, forçando-a a servir a fins
diretamente opostos”.164
Para que a inversão na palavra ganhe potência – no sentido desestabilizador da
obra armorial, para se converter em deslocamento ao baixo corporal jomardiano – não
basta fazer reflexões em torno do trocadilho acima, pois todo o conjunto do filme deve
estar em sintonia com a proposta estético-política em que o autor está localizado.
Desse modo, é preciso dialogar com os principais elementos que compõem a
obra, desde a movimentação do ator nas locações escolhidas e sua relação com o
contexto na época, posicionamento de câmera, circulação do produto audiovisual e
incorporação do personagem e figurino.
Em relação à construção do personagem, Jomard nos conta que sempre gostou:

[...] de carnaval, [...] então palhaço é uma fantasia carnavalesca... não


é o palhaço do circo mambembe, isso é coisa de quem nasceu no
interior [...], eu já vi o circo urbano na cidade, eu sou totalmente
urbanoide [...]. Eu digo que sou um replicante urbano. Então essa
coisa do palhaço é muito ligada ao carnaval e a figura mitológica do
palhaço [...] como eu tô dizendo a você, é essa coisa do Rei Degolado
– Palhaço Degolado. Eu me lembro inclusive o Décio Pignatari, que

161
CAMINHA, 2007.
162
Ibidem, 2007.
163
Relativo a palhaço. “Clown é uma palavra inglesa, cuja origem remonta ao século XVI, derivada de
cloyne, cloine, clowne. Sua matriz etimológica reporta aos colonus e clod, cujo sentido aproximado seria
homem rústico, do campo. [...] homem desajeitado, grosseiro. [...] No universo circense o clown é o
artista cômico que participa de cenas curtas e explora uma característica de excêntrica tolice em suas
ações. Até meados do século XIX, no circo, o clown tinha uma participação exclusivamente parodística
das atrações circenses e o termo, então, designava todos os artistas que se dedicavam à satirização do
próprio circo. Posteriormente, esse termo passou a designar um tipo específico de personagem cômica,
também chamado de Clown Branco, por conta do seu rosto ‘enfarinhado’, que tem no outro palhaço, o
Augusto, o seu contrário”. Cf.: BOLOGNESI, Mário Fernando. Palhaços. São Paulo. Ed. UNESP, 2003.
164
SANTA’ANNA, Afonso Romano de. Paródia, Paráfrase & Cia. Ed. Ática, 1985. p. 14.
65

assistiu aqui no Recife, [...] ele disse: “por que O Palhaço Degolado?”
Aí eu falei: “isso não me interessa não” (risos).165

Podemos tomar o depoimento acima como ponto de ligação que relaciona a


construção do personagem com a influência do tipo cômico popular, em que os
principais nomes que configuram o alto escalão intelectual na construção discursiva da
cultura brasileira são colocados no mesmo patamar que o palhaço: o confronto direto, a
cultura posta em questão.
Na composição conceitual do filme, Jomard se apropriou de alguns elementos da
arte circense, manifestando sua ação aos limites que envolvem o risco e do impossível
[...] “ignorando as barreiras entre o sério e o risível, entre o trágico e o cômico,
incorporando os valores antagônicos em um mesmo espetáculo, utilizando o corpo
como princípio espetacular”.166
Na construção do personagem-palhaço, é preciso ter em mente que sua
configuração possui um complexo simbólico que está situado em um tipo cômico geral
e pela inspiração individual. No primeiro aspecto, aquela é tomada a partir do uso de
uma máscara arquetípica.
Jomard Muniz de Britto usa como elemento cômico geral em seu personagem a
tipologia do Clown Branco, que possui o rosto pintado de branco, com alguns traços
pretos, “geralmente evidenciando as sobrancelhas e os lábios totalmente vermelhos. A
cabeça é coberta por uma boina em forma de cone”.167 A brancura de seu rosto é
associada a sua irônica superioridade.
O clown escolhido para compor o personagem de Jomard Muniz de Britto possui
como características cômicas gerais do circo, o aspecto malicioso e enganador, que atua
em cena com o palhaço “Augusto”168 (no caso do filme, o Clown Branco atua solitário),
em que ele (o Clown Branco), por se achar mais esperto, acaba por ridicularizar seu
parceiro.
Segundo Andreia Pantano, o Clown Branco cria uma série de artifícios para
colocar o “Augusto” nas mais diversas situações de risco. Sua tarefa principal é criar

165
Entrevista concedida a Aristides Oliveira, na tarde de 07-10-2010, às 16h25, na residência de Jomard,
em Recife.
166
BOLOGNESI, Mário Fernando. Palhaços. São Paulo. Ed. UNESP. 2003. p. 44.
167
Ibidem, pp. 72-197.
168
O Augusto, embora seja um cômico por natureza, não deixa de retratar a miséria de seu personagem.
Ele faz isso explorando seu ridículo. É ele quem representa a humanidade açoitada, pois passa parte de
sua vida sendo espancado e humilhado. Essa é a personagem que melhor retrata o cotidiano, as emoções
do homem. Cf.: PANTANO, Andeia Aparecida. A Personagem Palhaço. São Paulo: Editora Unesp,
2007. p. 45.
66

armadilhas para aquela personagem, que acaba executando suas ações de forma
atrapalhada, mas, em meio a tantos risos, tropeços, pancadarias e desencontros, o
“Augusto” acaba se dando bem na cena.169

Figura 2:
Jomard Muniz de Britto interpretando “O Palhaço Degolado”, vestindo uma roupa do tipo Clown Branco.

No que se refere à inspiração individual, “ele manifesta uma espécie de


subjetivação, na medida em que seus traços psicológicos e físicos, próprios do autor,
são estendidos à personagem e por ele explorados”170, obedecendo a um perfil singular,
que se apoia nos seus traços corporais, em que o ator busca conectar às suas matrizes
internas à estrutura tipológica que o palhaço dispõe para atuar na performance.
Assim, “ele materializa no corpo, na indumentária, nos gestos, na maquiagem e
na voz, os perfis subjetivos e psicológicos que fundamentam sua personagem”.171 O
corpo é marcado pela espontaneidade, livre para brincar no jogo performático interno
em criação e conviver com o problema em que está inserido172.
A maquiagem é considerada um dos pontos máximos de revelação da
subjetividade do personagem, pois, ela é “construída de acordo com a personalidade do
173
ator” , marcando sua singularidade no jogo cênico. Jomard se maquia com base
branca, com sobrancelhas longas, derramadas para baixo, os olhos escurecidos, em que
a parte inferior marca seu rosto em três listras pretas, bem como uma pequena elevação
na parte superior central do olho, sendo que a listra central é maior que a das bordas. O

169
PANTANO, 2007, p. 44.
170
BOLOGNESI, 2003, pp. 197-198.
171
Ibid.id., pp. 197-198.
172
Ibid.id, 2003, pp. 197-198.
173
Ibid.id., 2003, pp. 197-198.
67

nariz é levemente traçado por um círculo pintado de preto, com fundo branco e a região
da boca preenchida de tinta, cobrindo parte das bochechas encurvadas para baixo.174
A importância da máscara neste processo se dá no diálogo com o corpo do ator,
pois além de representar o que Jomard está sentindo vestido de palhaço, ela será
fundamental para fazer do corpo, o sustentáculo de ação e criação das cenas elaboradas
no filme. Ao “esconder o rosto, o corpo apresenta-se plenamente e cabe a esse orientar
todas as ações do ator a fim de expressar, da melhor forma possível, todas as emoções
desejadas, onde a performance é exigida para o corpo falar a partir de sua teatralização e
movimento” em diálogo com o novo sentido gerado na expressão facial, formador de
um conjunto corporal singular.175
Nesse sentido, retomando as palavras de Bakhtin, a simbologia da máscara
afirma “a alegre negação da identidade e do sentido único, a negação da coincidência
estúpida consigo mesmo; a máscara é a expressão das transferências, das metamorfoses,
das violações das fronteiras naturais, da ridicularização [...]; encarna o princípio de jogo
da vida”.176
Tal inspiração vem de uma realidade vivida, pois todo ato artístico é atravessado
por um conjunto de inquietações, marcadas pelas valorações e anseios sociais do artista,
que se deslocam do plano real para o plano da obra. “O Palhaço Degolado” é um
produto artístico resultante da transposição de um fragmento da vida de Jomard Muniz
de Britto para o plano da ficção177, em que o autor se veste de palhaço e atua como tal.
Expõe suas piruetas, chistes, gritos, questionamentos e a convivência direta com o
problema vivido (o repensar da cultura brasileira nos tempos da repressão).
O filme se apresenta como vestígio de uma época marcada pela perseguição e
cerceamento das vozes incompatíveis aos planos de uniformização do pensamento
artístico e político pelo Estado autoritário, no qual seu personagem representa:

[...] um dado essencial da relação entre o estético e o real, é um


produto da relação de seu criador com a realidade, tem antecedentes
concretos e objetivos nessa realidade e é por ela alimentada, por isso
não pode ser inteiramente criada a partir de elementos puramente

174
PANTANO, 2007, p. 54.
175
Ibidem, p. 56.
176
BAKHTIN, 2005, p. 35.
177
FARACO, Carlos Alberto. Autor e autoria. In: BRAIT, Beth (Org.). Bakhtin: conceitos-chave. 4ª ed.
São Paulo, Contexto. 2010. p. 38.
68

estéticos, pois, se assim fosse, não seria viva, não iríamos ‘sentir’ sua
significação estética.178

O palhaço de Jomard caracteriza-se pelo desnudamento corporal contínuo,


libertando-se das interdições de um período repressor (em “que não se tem o direito de
179
dizer tudo e nem se pode falar de tudo em qualquer circunstância”) , para revelar-se
enquanto fluxo e movimento.
O filme pode ser compreendido na busca em rediscutir pelo excesso cômico –
reapropriado pela estética tropicalista – a posição crítica deste intelectual, que foi
sufocado pela perseguição política, desprendendo de seu corpo um conjunto de palavras
soltas e interrogações em torno do papel revolucionário de seus contemporâneos,
silenciados pelo golpe de 64.
Em pleno endurecimento do regime, sua performance transforma-se em grito
melancólico, expresso através da ironia e horror de um ambiente fechado, ao retomar no
filme seu aprisionamento cultural, que será explorado na Terceira Entrada.
“O Palhaço Degolado” ressignifica o riso como lugar de tristeza, ao lembrar o
processo de exclusão dos intelectuais contrários às intenções do regime e do
mapeamento disciplinar em nome da “segurança nacional”, propostos pelas “cartilhas”
culturais implantadas no regime autoritário, sob inspiração do tradicionalismo
freyreano.
Assim, a visão do Palhaço está marcada pela itinerância e nomadismo, que
caminha no rumo contrário das perspectivas de enraizamento da identidade que informa
o Brasil das décadas de 60/70. Busca desritualizar o rei armorial e anunciar o palhaço
como portador de um tempo devorador e descontínuo, “um tempo que liga o intensivo
ao extensivo, que é uma construção cotidiana [...]. Um tempo sempre em ebulição, em
metamorfose e não um tempo estático, linear, evolutivo”.180
Diferente do circo convencional, em que o público participa das ações praticadas
pelo palhaço no picadeiro no mesmo instante de sua realização e é capaz de definir os
rumos da apresentação do mesmo, o palhaço vivido por Jomard (apesar da apropriação
de elementos do circo para compor o personagem e a narrativa da obra) está localizado

178
BEZERRA, Paulo. Polifonia. In: BRAIT, Beth (Org.). Bakhtin: conceitos-chave. 4ª ed. São Paulo,
Contexto. 2010. p. 199.
179
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1996. p. 9.
180
ALBUQUERQUE JR, Durval Muniz. Nos Destinos da Fronteira: história, espaços e identidade
regional. Recife: Bagaço, 2008. p. 173.
69

no suporte fílmico, em que seus movimentos e ações seguem um eixo determinado pela
linguagem cinematográfica.
O espectador de “O Palhaço Degolado” está sintonizado em outra relação com a
obra (é preciso ver o filme até o fim para internalizar as inquietações, indiferenças,
opiniões e não intervir diretamente no espetáculo, como no circo). O filme apresenta-se
como produto final, exibindo ao público seu conteúdo, que pode ou não provocar
repercussão, que no caso em questão, gerou um conjunto de polêmicas que
aprofundaremos a seguir.
Sala escura, a plateia faz silêncio, o rolo e sua ponta inicial são colocados no alto
do projetor, passando pela janela de projeção, as rodas dentadas são ativadas e o filme é
puxado, lançando para a tela as primeiras imagens do espetáculo. O rolo gira.
Plano geral: abrem-se os letreiros elaborados na entrada de um ambiente
circense, com a apropriação da trilha composta por Julius Arnost Vilem Fucik, a famosa
música Einzug der Gladiatoren181 (1897), tema tocado na maioria dos circos. Os textos
estão inseridos no centro da imagem, mudando de um crédito ao outro em fade in/out.182
O circo é desenhado de forma sombria, no qual toda a lona que cobre o desenho
aparece na cor preta, com três bandeiras da mesma cor que o circo, fincadas (nas
extremidades e no topo central) na parte superior, tremulada pelo vento que as direciona
para o lado direito da tela, assim como sugere o trajeto das cinco nuvens negras que
alimentam a densidade sombria do desenho. A porta de entrada, ocupada pelos créditos
de abertura do filme são formadas por duas bases de apoio que sustentam uma tenda
vermelha acima dos letreiros. Após a exibição dos mesmos, o circo se desfaz em fade
out no som e na música.

181
Entry of the Gladiators, march for orchestra, Op. 68 – ou em português: “Entrada dos Gladiadores,
marcha para orquestra, número 68”.
182
Passagem de uma imagem/informação a outra, a partir de efeitos de transição, no qual o elemento
ativado na edição inicia seu desaparecimento gradual para que, no pequeno intervalo existente entre um
dado e outro, seja possível aparecer à nova informação. O Fade In é o efeito que consiste em pegarmos
uma imagem (cena) e a escurecermos gradativamente, até que ela torne-se uma imagem totalmente preta.
O Fade Out é basicamente o efeito oposto ao Fade In, nele, pegamos a imagem totalmente preta, e a
clareamos até que ela se torne na imagem original (Ou seja, a próxima imagem que aparece no visor).
Disponível em:
<http://supersayajinbr.spaces.live.com/blog/cns!2149DACFC36BA656!166.entry?sa=727013727>.
Acesso em: 21 fev. 2011, às 11h53.
70

Figura 3:
Abertura: introdução à atmosfera circense que irá compor todo o filme.183

Na cena seguinte, em plano geral, visualizamos a entrada brusca do personagem,


com a música reiniciada no mesmo volume da abertura, movendo-se da direta para
esquerda do plano, de costas para o espectador, no qual terá como espaço de atuação a
área delimitada pela câmera fixada em frente à porta escura no qual o personagem se
relaciona em cena.
No primeiro momento, não é possível reconhecer o lugar em que é realizado o
filme, pois o plano só tem como elemento de cena um conjunto de plantas entre o
personagem e a câmera. Ela serve de suporte para definir as bases que centralizam a
imagem para o espectador, bem como as paredes que sustentam a porta, fechando-se na
parte superior com uma janela, filmada apenas pela metade.
De acordo com os passos executados pela personagem, Carlos Cordeiro realiza
um movimento de câmera lateral, para acompanhar a performance do Palhaço
(composta de pulos, palmas e rodopios seguido de pequenas pausas), deixando vazar
levemente a moldura do plano para a direita. Depois de se movimentar de um lado para
o outro, fica em frente à porta escura e lentamente se aproxima da grade que o separa do
espaço interno.
A imponência do prédio contrasta com a frenética movimentação do Palhaço,
personagem que atua numa perspectiva desenraizante e móvel, herdada de uma prática
em que o nomadismo é a chave usada por Jomard Muniz de Britto para iniciar a crítica
ao tradicionalismo cultural em Recife. As palmas desordenadas e a reverência irônica à
fachada do prédio são os primeiros momentos do processo de releitura crítica das teorias

183
Os créditos foram alterados devido à baixa resolução da cópia anterior, necessitando digitalizar o
mesmo. Sono Vídeo Produções, Recife.
71

que legitimam a cultura brasileira nos anos de chumbo, vistas por Jomard Muniz de
Britto como problema, e não fórmula acabada.
Um dos argumentos centrais que podemos interpretar inicialmente no filme é de
que o discurso tradicionalista, em vez de afirmar a pluralidade, reforça as fronteiras do
autoritarismo e camuflam as lutas sociais de grupos que reivindicam o debate sobre os
fundamentos que formam nosso caráter nacional. Grupos esforçados em se deslocar do
aprisionamento nacionalista radical, fundado em planejamentos impostos por uma
minoria intelectual, que prescreve a cultura brasileira em traços definitivos, para atender
o interesse da Nação militarizada. As cortinas foram abertas! O picadeiro está armado
em concreto, que toquem os tambores, o espetáculo vai começar!
72
73

2. SEGUNDA ENTRADA.

GILBERTO FREYRE E A CASA DE DETENÇÃO DA CULTURA

2.1. As palavras lançadas e a primeira marcação do debate

Em frente à fachada do prédio, o Palhaço corre de um lado a outro do plano,


entre rodopios e pulos. Batendo palmas continuadamente, lança provocações que
informam ao espectador a primeira marcação do debate cultural problematizado pelo
personagem.
Cena 1
“Mestre Gilberto Freyre! Muito bem situado nos trópicos, Casa-Grande,
alpendre, terraços, Quarto-e-sala, senzala! Senzala? Mestre Gilberto Freyre! Senzala?
Casa Grande de detenção da cultura. Muito bem situado nos trópicos. Tristes trópicos”.
Seus gritos e movimentos corporais enfatizam a provocação ao sociólogo
pernambucano. Articula um conjunto de trocadilhos e apropriações das palavras
parodiadas, que são montadas e desmontadas pelo jogo de citações, marcadas por
insinuações e ironias. Elas estão destacadas inicialmente por exclamações e
interrogações, nas quais iremos desembaralhar o “quebra-cabeça” problematizado pelo
Palhaço, ao expor como as cenas seguintes dialogam entre si e definem um sentido de
crítica cultural no mosaico poético apresentado.
Fica explícito que o primeiro “alvo” a ser mapeado é Gilberto Freyre. Nessa
seqüência é possível observar a releitura paródica, ao citar o título da obra “Casa
Grande & Senzala” (1933), em que o personagem interroga a Casa Grande freyreana,
convertendo-a ironicamente para “Casa Grande de Detenção da Cultura”.
Localizada nos “Tristes Trópicos” (1955), as palavras deixam de ser a obra de
Claude Lévi-Strauss, para transformar-se – a partir da tensão de seu significado – na
alusão ao suposto ambiente harmonioso proposto pela teoria tropicológica de Gilberto
Freyre no Brasil.
O Palhaço fecha a cena aproximando-se do portão da Casa, visualiza o que se
passa no interior do espaço, mas sua curiosidade não se limita apenas à observação do
ambiente, que o faz empurrar lentamente o portão de entrada, a fim de explorar seu
interior. No momento de transição para a segunda cena, o corte nos leva para as suas
instalações, das quais Carlos Cordeiro registra a contraluz, o momento em que o
personagem caminha para desbravar o seu novo espaço de atuação.
74

Figura 4:
O Palhaço inicia suas provocações a Gilberto Freyre.

Antes de aprofundar a análise das cenas a seguir, é preciso deixar claro que, para
penetrar nas tramas e jogos d’O “Palhaço Degolado”, não devemos nos prender às
imagens particulares do filme, tomando as cenas em compartimentos – isolando-as de
seu contexto histórico – mas todo seu conjunto imagético, vocal, estético, discursivo e
corporal contida na obra de Jomard, dentro das suas possibilidades de exploração, aliada
à literatura produzida em torno deste debate cultural que informa sua produção.
Incorporando o personagem, seu corpo dialoga em um cenário atravessado
historicamente entre repressão e tradicionalismo, em sintonia com uma performance que
torna a máscara clown, um ponto de impulso para fazer dos gestos corporais a conexão
com o texto de Wilson Araújo, adaptado à sua declamação.
O filme apresenta-se “como uma arena em miniatura, onde se entrecruzam e
184
lutam os valores sociais de orientação contraditória” ao discurso oficial. Cada
entonação, que dá vida ao texto, pode ser entendida no conjunto de “valores atribuídos
e/ou agregados aquilo dito pelo locutor posicionado historicamente frente ao seu
público”.185
O Palhaço, quando produz sentido aos enunciados que informam uma
consciência tropicológica de cultura nacional, da qual ele não se sente parte constituinte,
– destacados pela ironia e escárnio – faz com que suas palavras e ações dialoguem:

[...] com os valores da sociedade, expressando seu ponto de vista em


relação a esses valores. São [eles] que devem ser entendidos,
apreendidos e confirmados ou não pelo [público]. A palavra dita,
expressa, enunciada, constitui-se como produto ideológico, resultado

184
STELLA, Paulo Rogério. Palavra. In: BRAIT, Beth (Org.). Bakhtin: conceitos-chave. 4ª ed. São
Paulo, Contexto. 2010. p. 178.
185
Ibid.id., 2010, p. 178.
75

de um processo de interação na realidade viva [...] porque acumula as


entonações do diálogo vivo dos interlocutores com os valores sociais,
concentrando em seu bojo as lentas modificações ocorridas na base da
sociedade e, ao mesmo tempo, pressionando uma mudança nas
estruturas sociais estabelecidas.186

Nesse sentido, é preciso adentrar no jogo de referências e conceitos expostos


inicialmente no filme, para fazer as possíveis relações entre a visão de cultura brasileira
contida em Gilberto Freyre, bem como suas aproximações com as estruturas que
fundamentaram uma concepção de “cultura” no regime militar brasileiro, fazendo
contraponto com “O Palhaço Degolado”, numa visão de conjunto.
Cabe agora reunir os elementos que ligam a teia de conceitos em torno de Freyre,
citado na cena inicial, a fim de organizar um painel da teoria freyreana, diante do
emaranhado de palavras lançadas pelo Palhaço. Para isso, iremos explorar alguns
olhares de Freyre sobre o Brasil, delimitando um conjunto de obras que estarão situadas
na perspectiva formulada por Alessandro Candeas (2010), Neroaldo Pontes de Azevêdo
(1984), Durval Muniz de Albuquerque Jr. (2006), Ricardo Benzaquen de Araújo (1994)
e Maria Lúcia Garcia Pallares Burke (2005).
Tais referências serão úteis para auxiliar no estudo do conteúdo fílmico e
fortalecer o diálogo com o eixo político-cultural e audiovisual na década de 1970,
contidos na obra de Jomard, expondo como a noção tropicológica de “cultura brasileira”
foi absorvida pelas camadas dominantes do pensamento no Brasil e qual o papel crítico
que o filme estabelece com tais discursos.

2.2.Gilberto Freyre e a fase pré-mestiçagem

A alusão feita pelo Palhaço a Gilberto Freyre, no conjunto de palavras que o


remetem dentro do filme, nos coloca como tarefa imediata a elaboração dos traços que
definem o processo de formação discursiva em torno da noção de “cultura brasileira” na
perspectiva tropicológica. Isso nos possibilitará um deslocamento do filme para o
contexto histórico, em que tal disputa de nomeação pela legitimidade cultural
tradicionalista se esboçava no Brasil nos anos 60/70.
Assim, será possível identificar com maior clareza a proposta crítica e as
intenções que levaram à construção do filme, bem como as implicações históricas
envolvidas no debate e na obra de Jomard. Esta visualização não se prende apenas ao

186
STELLA, 2010, p. 178.
76

filme em análise, mas a um complexo conjunto de ações culturais e produções artísticas


que se aprofundam na poética de transgressão jomardiana, exploradas durante a
pesquisa.187
Na primeira exposição que o filme faz a Gilberto Freyre, o Palhaço coloca-o
“muito bem situado nos trópicos, com sua casa-grande, alpendre, terraços, quarto-e-
sala”, localizadas nos “tristes trópicos”, nos quais a senzala – interrogada com ênfase na
declamação – vira um espaço que faz da obra do sociólogo uma “Casa-Grande de
detenção da cultura”. A partir dessa provocação, podemos expor os caminhos teóricos
iniciais seguidos por Gilberto Freyre, na construção do discurso em torno da cultura
brasileira.
Propomos inicialmente apresentar a trajetória de Freyre e os processos de
incorporação e negação de referências conceituais na sua formação intelectual, em
articulação com o filme. Acreditamos que tal abordagem é fundamental neste estudo,
pois a partir de um rastreamento geral das principais fases vivenciadas pelo sociólogo e
dos seus posicionamentos políticos no período em questão, será possível ampliar as
possibilidades de compreensão do tema.
Nesse sentido, “O Palhaço Degolado” não pode ser reduzido ao estudo de sua
mise-en-scene188, apenas com os elementos imagéticos do mesmo. Além desta
perspectiva é preciso sintonizar o filme com as implicações históricas que o circulam,
para que seja possível a visualização dos marcos teóricos e os processos basilares na
construção do olhar tropicológico neste momento de análise.
Como intelectual oriundo das camadas aristocráticas decadentes do Nordeste,
Freyre vai representar a ânsia de compensar no plano simbólico a perda do status
político e econômico daquelas oligarquias regionais. Escreveu no jornal “Diário de
Pernambuco”, durante sua temporada nos Estados Unidos (1918-1923), que o Estado
presenciava o triste fim da aristocracia. O antigo grupo político ligado à cultura
canavieira, que antes tinha domínio do país, vive um rápido processo de decadência, em
que a aristocracia nordestina “vive no chão esparramada como uma jaca mole podre de
madura”.189

187
MAIA JR, 2007.
188
Refere-se à movimentação e posicionamento no palco, bem como no set de filmagem.
189
FREYRE, apud. BURKE, Maria Lúcia Garcia Pallares. Gilberto Freyre: um vitoriano nos trópicos.
São Paulo. Editora UNESP, 2005. p. 273.
77

Nesse sentido, desempenhou um papel central na construção do discurso


identitário nacional por meio de obras que enfatizam a proteção e conservação dos
valores e manifestações tradicionais, sendo o responsável por influenciar várias
gerações de intelectuais ao dissolver as contradições da modernidade em seu
regionalismo.190
O primeiro ponto que devemos destacar em Freyre na busca pela sua formação
teórica é durante sua fase de estudos nos Estados Unidos – 1918/1923 – onde recebeu o
grau de bacharel na Faculdade de Ciências Políticas da Universidade de Columbia, em
1922. A partir daí, podemos compreender os passos que o amadurecem como
intelectual, pois é fora do país que o saudosismo à “terra distante” estimula sua escrita
em defesa do Nordeste e do Brasil, fruto de uma época de transição e crise, como
veremos adiante.
No início da carreira acadêmica, Gilberto Freyre expressava suas ideias sobre o
Brasil, compartilhando com o debate corrente na época, fundamentadas na eugenia e
branqueamento. Encarava os Estados Unidos como país secundário em relação à
Europa, pois como o continente vivia um período de guerra, ficou impossibilitado de
seguir seus estudos. A Europa, no começo do século XX, era, para grande parte dos
intelectuais brasileiros, “o lugar ideal, de que real ou imaginariamente se utilizavam
para fugir do colonialismo brasileiro”.191
Os “vícios de nossa origem mestiça” 192 eram sentidos pelos estudiosos do Brasil
como empecilho ao seu crescimento em relação às potências europeias. Dentre várias
justificativas, a mais “contundente” era de que o brasileiro possuía “indolência e
fraqueza intelectual e moral”193, defeito típico do mestiço habitante dos trópicos,
homens incapazes de superar o subdesenvolvimento rumo ao progresso. Nessa
conjuntura, o branqueamento aparecia como a única via para solucionar o problema da
mestiçagem.194
Thales de Azevedo, ao estudar em Gilberto Freyre o processo de revalorização
do mestiço na sua obra, mostra que, os intelectuais, preocupados com a política de

190
BEZERRA, Amilcar, SANTOS FILHO, Francisco A. de O. Interlocuções provocativas em Super 8:
"O palhaço degolado" e o debate cultural no Recife dos anos 1970. In: X CONGRESSO DE CIÊNCIAS
DA COMUNICAÇÃO NA REGIÃO NORDESTE, 2008, São Luís. Anais de Congresso. São Luís:
INTERCOM Nordeste, 2008.
191
PALLARES-BURKE, 2005, p. 271.
192
Ibid. id.
193
Ibid. id.
194
Ibid. id.
78

branqueamento, acreditavam que a persistência de “africanismos” resultava no “nosso


atraso, [na] criminalidade, [nas] formas clínicas de certas moléstias, o alcoolismo, como
produtos de vícios hereditários resultantes da inferioridade psíquica e do atraso
evolutivo das raças primitivas que aqui se uniram à raça branca”, principalmente no que
se refere à degeneração, provocada pela mistura de raças, que “legitimava
cientificamente” certas “aberrações”195 de nossa civilização196.
Nesse ambiente intelectual, a experiência de Freyre no exterior trouxe como
resultado, a pesquisa desenvolvida no âmbito do mestrado, Social Life in Brazil in the
Middle of the 19th Century (1922), que antecipou muitas ideias futuramente exploradas
em “Casa Grande & Senzala”, nos anos 30.
Em relação à teoria da mestiçagem, Maria Lúcia Pallares-Burke afirma que
Freyre:
[...] estava muito distante de ‘Casa Grande & Senzala’ e muito
próxima das opiniões então prevalecentes sobre raça e as benesses da
eugenia nas questões raciais”. As referências aos negros e às misturas
das raças “sem dúvida existem, mas não ocupam ainda o papel central
que têm em seus textos futuros.197

Essa fase é marcada pelas concepções de Freyre em torno da polêmica


envolvendo a questão racial, “quando esta alude a um aprimoramento da raça”,
referindo-se aos negros, num período em que o branqueamento era tese central no
começo do século.
A Argentina estava fazendo [o branqueamento] com grande eficácia, como
Freyre já apontara a seus leitores em outubro de 1920198 – ao resenhar o livro de Oliveira
Lima (“Na Argentina”) – propondo que a solução do ‘problema da raça’ é uma das
lições que a república vizinha tem a nos dar, pois no futuro próximo a população será
praticamente branca.199

195
AZEVEDO, Thales de. Gilberto Freyre e a reinterpretação do mestiço. In: AMADO, Gilberto,
Gilberto Freyre: sua ciência, sua filosofia, sua arte. Rio de Janeiro: José Olympio Editora. 1962.
196
Ibidem.
197
PALLARES-BURKE, 2005, p. 266.
198
Escrevia artigos nos Estados Unidos e atuou como colaborador no jornal Diário de Pernambuco com a
coluna Da Outra América. Para Maria Lúcia: “Nos artigos, [...] Freyre deixou transparecer os
preconceitos, com toda probabilidade, compartilhava com muitos de seus leitores”. Cf.: BURKE, Maria
Lúcia Garcia Pallares. Gilberto Freyre: um vitoriano nos trópicos. São Paulo: Editora UNESP, 2005. p.
267.
199
“Décadas mais tarde [...] [publicou] uma versão em português de sua tese de 1922 e cortou vários
trechos que destaca sua simpatia com o branqueamento, não obstante seu ‘esforço de autocrítica’ e sua
decisão de somente alterar ‘pormenores de superfície’. Tanto a referência ao ‘melhoramento da raça
escrava’ devido à mistura com uma raça superior, ou, como disse, ‘do melhor sangue’, quanto à analogia
com a famigerada Ku Klux Klan devem ter-lhe parecido embaraçosas em demasia”. Cf: BURKE, Maria
79

Naquele momento, a América do Sul vivenciava um processo de entrada das


ondas migratórias europeias, que se alastrava pelo Brasil e outros países. Na obra de
Oliveira Lima – texto que entusiasmara Freyre – o autor afirma que os europeus vinham
trazendo sua cultura superior, “ao mesmo tempo em que contribuíam para o
enfraquecimento das raças inferiores”.200
Oliveira Lima acreditava que os africanos já estavam em vias de desaparecer “de
circulação” em curto prazo, no qual era possível esperar que nas décadas seguintes o
futuro reservasse para a América “uma nova raça de europeus-argentinos [que] estaria
lendo nas suas horas de recreio... as crônicas das extintas raças indígenas, as histórias da
mestiçada”.201
A entrada de imigrantes europeus servia como elemento corretor para os países
“contaminados” pelas raças inferiores (indígenas e africanos). Para uma região
“progredir”, era obrigatória a inserção do elemento branco, pois caso isso não se
concretizasse, a ideia de desenvolvimento seria um fracasso em largas proporções.
Freyre conhece, na época, a obra de Madison Grant, autor de The Passing of the
Great Race (1916). Encontra um trabalho baseado “numa história racial da Europa em
que a ameaça de desaparecimento da ‘grande raça’ nórdica era cientificamente
demonstrada e medidas preventivas eram enfaticamente sugeridas”.202
Grant argumenta que, de acordo com os “dogmas de igualdade”, o ambiente é o
principal fator de controle do desenvolvimento humano. Para ele, “a grande lição da
ciência da raça é a imutabilidade dos caracteres somatológicos e corporais, com que está
[...] associada à imutabilidade das predisposições e dos impulsos psíquicos”.203
Ou seja, era preciso reconhecer como inevitável “a existência da superioridade
em uma raça e da inferioridade na outra”, argumento que visava legitimar a defesa da
pureza racial branca, ao alertar que a mistura de raças (até envolvendo as superiores),
“deveria ser considerada ‘um crime social e racial da primeira magnitude’ devido aos
efeitos nefastos que tem para a sociedade e para o indivíduo”.204
A obra de Grant ganhou repercussão no final da 1ª Guerra Mundial, em um
ambiente antidemocrático, propício para reforçar o argumento de que era preciso

Lúcia Garcia Pallares. Gilberto Freyre: um vitoriano nos trópicos. São Paulo: Editora UNESP, 2005. p.
267.
200
LIMA, apud. PALLARES-BURKE, 2005, p. 272.
201
PALLARES-BURKE, 2005, p. 272.
202
Ibid.id., pp. 280-281.
203
Ibid. id.
204
Ibid. id.
80

regenerar com urgência a raça norte-americana, que estava “desaparecendo”. O meio


intelectual em que Gilberto Freyre estava inserido recebe inspiração para intensificar as
barreiras contra a miscigenação, a favor do fechamento das possibilidades de imigração
das “raças inferiores” para os países de “cor branca”.
Outra obra que Freyre teve contato e foi considerada no período como um
verdadeiro “evangelho eugênico” é The Rising Tide of Color (1920), de Lothrop
Stoddard (discípulo de Madison Grant). Segundo Maria Lúcia, Lothrop anuncia que:

[...] vai abordar a questão da ameaça à supremacia branca da


perspectiva da política mundial. É sobre “o mundo do homem branco
e seus inimigos potenciais de hoje” que Stoddard escreve [...]. Suas
conclusões [...], acham-se amplamente sustentadas e justificadas pela
“história da raça nórdica, desde seu aparecimento três ou quatro mil
anos atrás” [...].205

Para o autor, era preciso alertar as consequências provocadas pelo aumento das
“raças de cor” no mundo, que resultava na diminuição da “raça branca”, algo desastroso
para a civilização em progresso. Escreveu para um público que vivenciou o abalo da 1ª
Guerra Mundial e o processo de “descaracterização” étnica dos norte-americanos, cujo
passado fora de traços nórdicos e, segundo o autor, vive os “efeitos dramáticos” da
invasão das raças inferiores que ameaçam de extinção a herança branca. Lothrop
exaltava os homens puros, lembrando a todos da força dos “laços de sangue e cultura”,
que deviam manter acesos, para lutar contra uma realidade marcada pela perda de status
nas relações geopolíticas e culturais.
Para evitar o “escurecimento” do globo, os brancos precisavam somar todas as
potências humanas e políticas, para forçar o reconhecimento em torno do rigor na
aplicação das medidas de restrição a imigrantes, garantindo a segurança de que a
supremacia branca não será afetada pela “maré crescente de cor”.206
Apoiando-se em princípios científicos da época, Lothrop defendia a tese da
ampliação do cerco contra a imigração porque, para ele, seria:

[...] uma espécie de segregação em larga escala pela qual estirpes


inferiores podem ser impedidas de diluir e suplantar as boas estirpes.
Do mesmo modo como isolamos invasões de bactérias e as fazemos
passar fome ao limitar a área de quantidade de alimento, podemos
compelir uma raça inferior a permanecer em seu habitat nativo.207

205
PALLARES-BURKE, 2005, p. 284.
206
Ibid. id.
207
Apud: PALLARES-BURKE, 2005, pp. 280-281.
81

Além disso, outras formas “possíveis” para a época de “aprimoramento da raça”


tinham que buscar o reconhecimento de todos sobre a importância dada à
hereditariedade não vinculada apenas com fundamentação científica, mas no campo da
vida prática e nos debates mundiais. “Nesses melhores dias”, a eugenia poderia vir a
desempenhar o papel central que lhe cabia no mundo, “de moldar programas sociais e
políticas governamentais”.208
Lothrop destaca o caso brasileiro, ao afirmar que o país é dividido nas províncias
do Sul, povoadas pelo homem branco, enquanto o Norte é povoado em sua maioria por
índios e negros, grupos étnicos que ameaçam a presença do homem branco, em
processo de desaparecimento devido ao fenômeno da mestiçagem.209
Tanto Grant como Lothrop criticam a mistura de raças, pois ambos declaram que
tal fenômeno é prejudicial ao homem branco, ao gerar um conjunto de males visíveis na
sociedade, como a predominância do elemento “inferior”. Segundo estes intelectuais,
quanto mais selvagens forem uma tipologia mestiça, mais prepotente ele será; e mais:
“os filhos de pais de raças diferentes muito possivelmente terão dois temperamentos,
dois conjuntos de opiniões, daí resultando que em muitos casos eles se tornam
incapazes de pensar ou agir firme e conscientemente em qualquer direção”.210
Acreditavam que a mestiçagem só poderia trazer como conseqüência para a
humanidade o desastre, ao afirmar categoricamente que “esses seres infelizes, sendo
cada célula de seus corpos um campo de batalha de hereditariedades dissonantes,
expressam suas almas em atos de violência febril e instabilidade sem objetivo”..211
O Brasil era o melhor argumento para confirmar a teoria de Lothrop sobre o
perigo da mistura dos povos. Para quem se recusava em concordar com o debate e os
“fatos” expostos pelos eugenistas do começo do século, bastaria vir ao Brasil e verificar
pessoalmente a inegável degradação provocada pelo amálgama entre negros, brancos e
índios dispersos pelo país.
A polêmica a respeito deste tema dividia a intelectualidade brasileira da época
em duas posições distintas. A primeira posição se apropriava de argumentos baseados
na perspectiva de autores como Agassiz e Gobineau, referências ligadas ao sentimento
de “inviabilidade do país”, via mistura de raças. Imaginava-se que o processo da

208
PALLARES-BURKE, 2005, p. 285.
209
Ibid. id.
210
Ibid. id.
211
Ibid. id.
82

miscigenação, ao cruzar grupos de “qualidade diversa” e duvidosa iria gerar nos povos
em formação, a inexorável esterilidade biológica e cultural, destruindo todos os esforços
de civilização ordenada pela pureza racial.
A segunda postura propõe-se mais flexível diante da primeira abordagem, ao
“procurar nos libertar dessa suposta condenação à barbárie”.212 Partindo também da
lógica envolvendo a miscigenação, há uma inversão do seu direcionamento, opondo-se
a ideia de que a mistura racial é a responsável “pela nossa ruína”, mas uma
possibilidade que pode garantir “a redenção” do Brasil.
Nesse sentido, acreditava-se que a mestiçagem poderia ser considerada um meio
importante no processo de branqueamento do Brasil,213 em que seria possível “assegurar
um gradual predomínio” dos elementos brancos no interior da alma e da carne dos
mulatos em transformação, numa lenta limpeza das “manchas escuras” que afetam a
moral da nação.214
A experiência intelectual vivida nessas leituras e posicionamentos por Gilberto
Freyre no Brasil e exterior, coloca-o de frente com o debate racial, através do contato
com outros autores,215 além de Grant e Lothrop, que acreditam no branqueamento como
solução para eliminar as “ameaças” do mundo branco.
A intenção de expor esse panorama – que abre os caminhos para entender o
processo de consolidação do olhar de Freyre diante da cultura brasileira – não deve ser
minimizado, pois faz parte do entusiasmo do sociólogo na época, que iniciava suas
leituras e experimentos teóricos, que o levaram ao encontro da mestiçagem, enquanto
fundamento positivo para o Brasil.
Desse modo, vale lembrar que é necessário tocar nessas questões, para que a
perspectiva histórica não se perca. Devemos reconhecer que, apesar de sentirmos certo
estranhamento pelo fato de Freyre nesse período ter simpatizado com movimentos como
a Ku Klux Klan,216 possuir preconceito com negros e estar sintonizado nos pressupostos

212
ARAÚJO, Ricardo Benzaquen de. Guerra e Paz: Casa Grande & Senzala e a obra de Gilberto Freyre
nos anos 30. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994. p. 29.
213
“[…] dentro de um prazo determinado, calculado eventualmente em cerca de três gerações ou mais ou
menos 100 anos (Cf. Seyferth, 1985) acreditava-se que a herança negra estaria definitivamente erradicada
do Brasil”. Cf.: ARAÚJO, Ricardo Benzaquen de. Guerra e Paz: Casa Grande & Senzala e a obra de
Gilberto Freyre nos anos 30. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994. p. 29.
214
Ibid. id.
215
Oliveira Lima, William Z. Ripley, Agassiz, Charles Benedict Davenport, Edwin Black.
216
[...] espécie de maçonaria guerreira, organizada pelo velho Sul num esforço de resistir à humilhação
que o “arrogante” Norte lhe infligira, como ele esclareceu a seus leitores em 1926. Já em 1944 afirma
que, “por mais que o ‘respeito à variedade’ do continente americano fosse um valor a ser prezado, este
não poderia jamais incluir a ‘tolerância para com instituições tão antidemocráticas e tão antiamericanas
83

eugênicos, é fundamental destacar esse aspecto, pois na sua época era considerado um
sistema de pensamento “respeitável e cientificamente convincente”.217
Assim podemos definir um novo momento na sua busca intelectual sobre o
Brasil, pois a partir dessas inquietações, seus impasses o levam a “Casa Grande &
Senzala”. “É como se o jovem Freyre tivesse de conhecer e admirar o racismo numa de
suas formas mais extremas para que, finalmente, pudesse se livrar dele”.218
Três anos após afirmar suas concepções sobre branqueamento, de acordo com as
opiniões em voga, Freyre escreve “Vida Social no Nordeste – aspectos de um século em
transição”, um dos artigos produzidos para o livro comemorativo do centenário do
“Diário de Pernambuco” e o “Livro do Nordeste” (1925).
Segundo Maria Lúcia, o artigo apresenta-se com olhar mais crítico do que a tese
de 1922, na qual a ideia de branqueamento deixa de ser vista como caminho seguro para
solucionar a problemática racial. Nesse sentido, a autora afirma que “só en passant há
referências a um ‘possível clarificamento étnico’ em curso”219, mas ainda não é possível
perceber em Freyre a mestiçagem como ponto principal de suas inquietações.
Nesse momento de sua trajetória, Freyre se encontrou instável, em relação ao
debate em torno do branqueamento e da possível “solução do suposto problema racial”.
Para Maria Lúcia, “ele não tinha ainda em 1925, no entanto, a convicção de que a
mestiçagem não implicava patologia. Reconhecia que a formação e a vida da família
brasileira haviam sofrido a influência africana e que havia um legado a ser valorizado”.
220

Mesmo imaginando que mistura racial poderia ser uma possibilidade viável de
ter “trazido à plástica brasileira uma nota de exótica beleza e de resistência ao clima
hostil, não foi considerada por Freyre, nessa ocasião, como característica da qual os
brasileiros pudessem, sem dúvida nenhuma, orgulhar-se”221. Para que fosse possível
amadurecer esta concepção, o sociólogo “tinha de se libertar de preconceitos contra
negros e mestiços muito difundidos em seu tempo”.222

como o caudilhismo e os linchamentos, o anti-semitismo e a Ku-Klux-Klan”. Cf.: BURKE, Maria Lúcia


Garcia Pallares. Gilberto Freyre: um vitoriano nos trópicos. São Paulo: Editora UNESP, 2005. pp. 274-
320.
217
PALLARES-BURKE, 2005, p. 320.
218
Ibidem, p. 279.
219
Ibid.id.
220
Ibid.id.
221
Ibid.id.
222
PALLARES-BURKE, 2005, pp. 268-269.
84

Do outro lado da questão de raça – fundamentada no branqueamento – um grupo


de pesquisadores combatia as ideias envolvidas na superioridade racial, uma luta para
comprovar o descrédito em torno de tais afirmações, mas com pouca circulação na
imprensa, diferente das ideias de Grant e companhia.
Apesar de Freyre estar exposto ao discurso que acentua o orgulho branco e do
racismo, baseado nas teorias “científicas” em rápida difusão na América do Norte, o
sociólogo começa a se informar, a partir de 1921, do contraponto na discussão contida
nas ideias antropológicas de Franz Boas, que estava pensando o tema por outra ótica,
longe das precipitações midiáticas. Era um processo de mudança que seria sentida por
Freyre nas novas reflexões em torno da mestiçagem.
O contato com o antropólogo fez com que ele amadurecesse suas ideias em
relação às noções de branqueamento correntes. Essa aproximação possibilitou no
pensamento de Freyre, um resultado que o libertou “dos preconceitos que com tantos
outros compartilhava; preconceitos profundos e amplamente difundidos que [...] teriam
seu [...] caráter mascarado pelo manto da respeitabilidade científica que a [...] eugenia
lhes conferia”.223
Esse período de releituras e mudanças mostra que sua visão, diante das questões
raciais permanecia ambígua, pois, “ao mesmo tempo que se referia com desprezo a uma
aristocracia brasileira decadente que se misturava e se amasiava com mulatas gordas de
cabelo encarapinhado, expressava nostalgia pelos bons velhos tempos do Sul norte-
americano escravocrata”,224 entusiasmando-se com o discurso político eugenista norte-
americano, como “também parecia ocasionalmente se impressionar com Franz Boas e
sua perspectiva questionadora dessas visões e da ciência que pretensamente
sustentava”.225
É possível perceber em Gilberto Freyre, uma nova forma de encarar a questão
racial, ao escrever em 1922, uma resenha do livro Boutouala (1921), de René Maran,
vencedor do prêmio Goncourt na França. O que mais incomodou a crítica no circuito de
leitura na França, Inglaterra e Estados Unidos, foi o fato do livro ter sido escrito por um
homem negro. Freyre mostra admiração por seu estilo e objetividade – num contexto de
racismo e ataques aos negros nos Estados Unidos – com “que ele pintava o retrato vivo
223
Ibdem, p. 303.
224
Ibid. id.
225
Ibid. id.
85

da vida africana, sem se deixar levar pelos seus sentimentos antieuropeus e


anticolonialistas”.226
O que mais chamou a atenção dos leitores foi o modo como Freyre destaca René
Maran, mas a resenha não foi, “ao que tudo indica, demonstração de qualquer afinidade
de Freyre com o movimento do new negro, há indício de ter sido o primeiro resultado de
seu contato com o pensamento de Franz Boas e o momento em que o futuro discípulo
do famoso antropólogo se anuncia”.227
No contexto marcado pelos “fortes apelos do ethos texano (que acentuou seu
orgulho de branco, como ele mesmo reconheceu) e do racismo científico que se achava
em plena ascensão nos Estados Unidos,228” o contato com Boas deu-se a partir de 1921.
O gradativo interesse e respeito de Freyre pelas polêmicas e ideias levantadas
pelo antropólogo, que pensa o debate racial “em termos de outro paradigma”229, expõe
que os estudos eugênicos não apresentam “provas” concretas sobre as noções de
“inferioridade hereditária da raça negra”.230 Franz Boas nega as afirmações racistas de
que o mulato é um ser “inferior”, que herda as más qualidades da mistura racial,
contrapondo-se ao destacar que os mulatos podem ser sadios em condições favoráveis231.
Franz Boas se posiciona contra “a questão da visão etnocentrista dos estudos
europeus sobre outras sociedades não-europeias e não-brancas”232, questionando os
trabalhos de pesquisadores aliados “às formulações biopsicológicas e
antropogeográficas que pretendiam encontrar características gerais de um povo,
fundamentando-se na predominância de uma dada raça ou influência do meio”.233
Seguindo a mesma lógica de pensamento, Freyre234 revisa suas concepções de
análise sobre cultura e formação social dos povos tornando-se um discípulo de Boas.

226
PALLARES-BURKE, 2005, pp. 303-304-305.
227
Ibidem, p. 307.
228
Ibid. id.
229
Ibid. id.
230
Ibid. id.
231
Ibid. id.
232
Ibid. id.
233
ALBUQUERQUE JR, Durval Muniz. A Invenção do Nordeste e outras artes. Recife: FJN. Editora
Massangana; São Paulo: Cortez, 2006. p. 93.
234
Para Durval Muniz, a sociologia de Gilberto Freyre era menos relativista que a de Franz Boas. O autor
afirma: Para ele [Boas], havia características gerais nos povos que nasciam das interações entre raça e
ambiente, que se não eram determinantes como dados naturais, eram indicadores de relações sociais e
culturais. Para Freyre, a sociedade brasileira se caracterizava, por exemplo, não só pela miscigenação
cultural que daí adveio. É exatamente no campo cultural que ele buscará compreender nossa identidade
como nação e a contribuição do regional nessa formação da nacionalidade. Cf.: ALBUQUERQUE JR,
Durval Muniz. A Invenção do Nordeste e outras artes. Recife: FJN. Editora Massangana; São Paulo:
Cortez. 2006, p. 94.
86

Afirma ser possível valorizar as potencialidades dos homens mestiços, citando alguns
nomes de peso intelectual na cultura brasileira, como Machado de Assis, Aleijadinho e
Ruben Dario, provando que o discurso legitimador do branco em relação ao negro não
passa de “oco palavrório”.235
No prefácio à 1ª edição de “Casa Grande & Senzala”, Freyre afirma que o
antropólogo lhe possibilitou:

[...] o estudo de antropologia [...] que primeiro me revelou o negro e o


mulato no seu justo valor – separados dos traços de raça os efeitos do
ambiente ou da experiência cultural. Aprendi a considerar
fundamental a diferença entre raça e cultura; a discriminar entre os
efeitos das relações puramente genéticas e os de influências sociais, de
herança cultural e de meio. [...] Lembra Boas que, admitida a
possibilidade da eugenia eliminar os elementos indesejáveis de uma
sociedade, a seleção eugênica deixaria de suprimir as condições
sociais responsáveis pelos proletários miseráveis – gente doente e mal
nutrida; e persistindo tais condições sociais, de novo se formariam os
mesmos proletariados.236

Não podemos afirmar que a mudança de pensamento do sociólogo, a favor da


mestiçagem, foi brusca, mas sua transição é percebida pelas tentativas de definição
teórica. Diante das recentes leituras e perspectivas adotadas, Freyre experimenta a
redescoberta do Brasil, que valoriza “a relevância dos efeitos culturais e ambientais
sobre os traços raciais’237, dando os primeiros passos na fase embrionária de uma futura
tropicologia, a partir de “Casa-Grande & Senzala”, nos anos 30.
Esta aproximação com o pensamento de Boas revela a formação de novas
“inquietações, [...] em que ele parece finalmente ter feito um importante
reconhecimento’238 em torno da mestiçagem. Escreveu o artigo “Acerca da valorização
do preto”,239 texto que marca o momento de constatação autocrítica decisiva para
incorporar as novas leituras e experiências com Franz Boas, no amadurecimento teórico
sobre a influência do negro na formação da cultura brasileira.240
Para Enrique Rodriguez e Guilhermo Guicci, o artigo merece destaque pelo fato
de esboçar uma tese rica sobre a “influência negra do brasileiro, a partir da sexualidade,

235
PALLARES-BURKE, 2005, p. 308.
236
FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime da
economia patriarcal. 50ª ed. São Paulo: Global, 2005. p. 31.
237
Ibid. id.
238
PALLARES-BURKE, 2005, p. 263.
239
Diário de Pernambuco, 19/09/1926.
240
PALLARES-BURKE, 2005, pp. 263-318.
87

da música e da culinária”.241 Freyre afirmou que era lamentável ver um brasileiro se


intitulando “ariano”. Para ele, era o momento de cada um reconhecer suas matrizes
africanas. “E é tempo de corajosamente o fazermos. De o fazermos na vida, no amor; na
arte. [...] sentimos o grande Brasil que cresce meio-tapado [...] postiço e ridículo de
mulatos a quererem ser de todo helenos”.242
O trecho acima revela, além da autocrítica, uma busca por saídas, um
deslocamento do ambiente eugênico para a valorização dos elementos que caracterizam
a singularidade cultural do Brasil, repudiando antigos posicionamentos e simpatias
sobre o branqueamento dos povos.
Reconhece o valor da mistura como base de positivação, para compreender que a
América Latina é resultante de um longo processo de transformações em suas bases
étnicas formadoras. Freyre afirma que “a comunidade multirracial e continental243”
apresentam fortes tendências das diversas raças que habitam o trópico, para “viverem,
não vidas etnicamente e culturalmente separadas, mas juntando a maior parte de seus
valores, suas tradições, suas características, além do seu sangue e da união dos seus
corpos, para criarem novos tipos de homens e novas formas de cultura”.244
Um campo de possibilidades se abre na trajetória de Gilberto Freyre para
reinventar o Brasil. Depois de presenciar no exterior as tensões culturais em torno do
debate sobre os destinos do homem no globo, volta a Recife (1923) para desenvolver
outros trabalhos, ligados inicialmente ao Movimento Regionalista.
Atua na busca conjunta para afirmar a valorização cultural do Nordeste e das
riquezas tradicionais brasileiras, dando início a projetos intelectuais que lhe possibilita
abrir-se para novas fases de produção acadêmica, afastando-se definitivamente da
eugenia.
2.3. Da fase à face regionalista
Corte: o Palhaço encontra-se sentado à vontade, na extremidade da grande mesa
que predomina no plano, cercada de cadeiras estilo colonial, dispostas numa
triangulação simétrica ao enquadramento da imagem, onde podemos identificar atrás do
personagem, três quadros de tamanhos aparentemente iguais na parede.

241
LARRETA, Enrique Rodriguez. GUICCI, Guilhermo. Gilberto Freyre: uma biografia cultural. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. pp. 317-318.
242
LARRETA. GUICCI, 2007. pp. 317-318.
243
Ibid. id.
244
FREYRE, Gilberto. Homem, cultura e tempo. Lisboa: Casa Portuguesa, 1967. Disponível em:
<http://prossiga.bvgf.fgf.org.br/portugues/obra/opusculos.html >. Acesso em: Abril/Maio de 2011.
88

Plano geral de conjunto: agora é possível identificar – através dos elementos que
definem o cenário de atuação - a locação no qual a filmagem está sendo realizada: a
Casa da Cultura de Recife. Situado o local, é possível interpretar a relação entre o
personagem e o significado do espaço para o audiovisual na época.
O local, que se transformou em Casa da Cultura na época, foi antes um presídio
que funcionou entre 1867 a 1973, no qual a performance que movimenta a sequência
problematiza sua verticalidade imponente, em contraponto aos movimentos
desordenados do Palhaço, que cruzam com a frieza arquitetônica da fachada.
Construída em estilo Neoclássico do século XIX, a atual Casa da Cultura
funcionou como cárcere de transferência por 118 anos em Recife, até o momento em
que o Estado decidiu fechar a Casa de Detenção, em 15 de março de 1973:

E com a derrubada de suas muralhas é marcado o início do processo


de transformação. Em 14 de abril de 1976, foi inaugurada a Casa da
Cultura de Pernambuco e em 03 de setembro de 1980 ocorreu seu
tombamento, sendo o primeiro monumento Histórico da Cidade. [...]
O prédio tombado como patrimônio histórico da FUNDARPE
[Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco]. Após
ter abrigado, presos sob suas muralhas, personalidades conhecidas da
história nacional, como Gregório Bezerra e João Dantas, as celas
foram convertidas em lojas de artesanato, literatura, música e
gastronomia regionais [...].245

Aqui, o tom paródico reaparece, a partir do desdobramento e duplicação do


significado do local, revestido em ironia, invertendo a atual função do prédio para seu
antigo lugar – a cadeia pública – em que o Palhaço se arrisca na exploração de todos os
andares e celas, reativando o peso histórico daquele espaço, que se esforça em dissolver
esta herança de repressão.
No filme, é possível fazer a associação direta entre o duplo: Cultura  Prisão.
Podemos interpretar a Casa da Cultura como espaço que estoca e coleciona os símbolos
da cultura local, que – para o Palhaço – acaba por ser “aprisionada” pelo
conservadorismo da “província”, possibilitando o uso do trocadilho: “Casa-Grande de
detenção da cultura”, para evidenciar na crítica fílmica à perspectiva arquivista do
discurso cultural pelas camadas tradicionais de pensamento.
Na cena seguinte, o Palhaço encena de modo a sugerir que está conversando
com o espectador, enfrentando-o diretamente pela câmera. Deslocando os braços para
os lados, simulando ostentação e triunfalismo, sua fala provoca Freyre:

245
Casa da Cultura de Pernambuco. Impresso. Sem ano.
89

Cena 2:
“Democracia racial, ao seu modo. Morenidade, brasilidade, a seu modo Luso-
tropicologia, a seu modo. Regionalismo ao mesmo tempo modernista & tradicionalista,
a seu modo. [...] Democracia, relativíssima, a seu modo”...
A declamação transcrita acima é uma continuidade das citações formuladas, que
nos levam a aprofundar o universo teórico desenvolvido por Freyre durante sua
trajetória intelectual, no processo de formação do discurso sócio-cultural brasileiro,
como estamos observando até o momento.
A respeito dessa cena, é possível nos deslocarmos para outras fases do
sociólogo, que vai da organização do Movimento Regionalista, passando por “Casa
Grande Senzala” e a tropicologia, sua relação com a política no regime militar e o modo
como a noção de “cultura brasileira” é incorporada pelas camadas dominantes de
pensamento na década de 60.
Quando o Palhaço diz: “Regionalismo ao mesmo tempo modernista &
tradicionalista”, podemos associar ao período em que Gilberto Freyre escrevia nos
Estados Unidos246 e seu retorno ao Brasil em março de 1923. Em terras brasileiras,
Freyre encontra uma paisagem “desfigurada”, além de cidades que, para ele, estão
“estragadas pelo mau gosto, pelo mau comercialismo, pelo falso Progresso. [...] Eu por
mim me sinto um tanto estrangeiro no Recife de agora. O meu Recife era outro”.247
Reagindo às mudanças que Recife sofria diante da modernização, Freyre inicia
uma série de críticas às condições que vivia a cidade naquela época, que o torna figura
bastante discutida e comentada nos círculos intelectuais, aparecendo críticos e
seguidores, como nos mostra Arnaldo Lopes no artigo “Ridículos”, encontrado na
revista “A Pilhéria” (1925), ao relatar sobre a chegada do sociólogo na cidade:

Achara o Recife mudado [...] extravagante. [...] Indignou-se com a


derrubada dos arcos da Conceição e Santo Antônio. Vociferou contra
a largura das avenidas, ruas, sem árvores, escancaradas. Sem mais
preâmbulos [...] começou a desancar os iconoclastas. [...] Os primeiros
adeptos foram chegando. E um movimento conservador foi se
gerando, aumentando gradativamente, simpático, acolhedor. E a
campanha prosseguira. Fatos e documentos que nós desconhecemos
foram aparecendo de repente. Lugares até o presente esquecidos [...]
tiveram seu ressurgimento. [...] o movimento tradicional se alastrou

246
Da Outra América, no Diário de Pernambuco, entre 1918-1922.
247
AZEVEDO, Neroaldo Pontes. Modernismo e Regionalismo: os anos 20 em Pernambuco. Paraíba:
Secretaria de Educação e Cultura da Paraíba, 1984. p. 126.
90

[...]. E daí nasceu o Centro Regionalista do Nordeste Brasileiro,


sociedade de valor, pioneira audaz nos nossos costumes e tradições248.

Freyre continua escrevendo no “Diário de Pernambuco” – trincheira mais


importante para o autor lançar suas polêmicas e reclamações sobre a falta de
preocupação com a tradição no Nordeste – e ironiza que o Brasil devia concorrer a um
prêmio de “devastador do passado” e das próprias tradições.
Reivindicou o retorno de antigos nomes de ruas e praças, ações de restauração
da arquitetura original dos monumentos e prédios históricos, a valorização da culinária
como elemento voltado ao nacionalismo, pois, segundo Gilberto Freyre, o paladar é o
último reduto da nacionalidade.
O autor defendeu a urgência em preservar a cozinha brasileira, ameaçada pela
“invasão” de elementos franceses. Propõe a elaboração de um “programa de ação
nacionalista, com a realização de uma seção culinária e confeitaria pernambucanas”,249
ao valorizar com saudosismo a mesa nordestina.250
Enquanto isso, o Palhaço se levanta da sala de reuniões e retira-se do ambiente,
transitando para a cena seguinte. A fusão entre a cena em que o Palhaço encontra-se na
mesa de reuniões, até o momento em que o mesmo “relaxa” no longo banco situado na
Casa, só foi possível porque, segundo Carlos Cordeiro:

Naquela época, não se fazia trucagem nenhuma, porque o superoito


não permitia. [...] eu pus a câmera no tripé, ele gravou um texto,
depois eu parei a câmera, dei retrocesso no filme, ele saiu e eu voltei a
gravar e realizei uma trucagem, ele “sumiu” durante o filme. Essa foi
a primeira experiência que se fez com trucagem aqui em superoito. O
Palhaço desaparecia por isso, porque a câmera fazia fusão de imagens.
Eu iniciei a fusão, ela contava 32 quadros e ia fechando o diafragma,
quando ela parava, ela mesmo voltava para o início e começava
fechando-abrindo, pra mudar de cena, mas a cena continuava a mesma
sem o Palhaço. Então houve o desaparecimento normal por conta da
fusão de imagens.251

Filmado em plano geral de conjunto, encontramo-lo com as pernas em cima de


um longo sofá de madeira ornamentado. O Palhaço encontra-se relaxado, encostando-se
ao “braço” do mesmo, sacudindo lentamente com a mão direita seu traje clown,

248
Apud. AZEVEDO, 1984, p. 126.
249
10/02/1924, no artigo “43” do Diário de Pernambuco.
250
AZEVEDO, 1984, p. 131.
251
Entrevista concedida a Aristides Oliveira, na manhã de 28/10/2011, nas locações do filme, na Casa da
Cultura.
91

ironizando o saudosismo de Freyre diante da ânsia regionalista pela preservação da


culinária nordestina.

Figura 5:
O Palhaço desbanca o pavilhão de quitutes pernambucanos.
Cena 3

“Ai, que saudades dos quitutes e dos quindins preparados pelas sinhazinhas
formosas em seus engenhos e pelas piedosas freirinhas em seus conventos. Ai, que
saudades, porque um povo só se conhece e se preserva pela sua cozinha”...
Com ironia aos ensopados de peixe ao leite de coco, cocadas e doces de caju em
calda, a cena faz alusão à fase que Freyre esboça com um grupo de intelectuais –
oriundos de um passado colonial oligárquico – as diretrizes do Movimento Regionalista,
espaço de trânsito na produção de “Casa Grande & Senzala”.
O filme nos desloca ao período em que a preocupação em torno do regional
começa a ganhar linhas de força com Gilberto Freyre e vários intelectuais
pernambucanos, conscientes da crise político-econômica que vivia o Nordeste. Para
eles, anular a memória para o novo seria um risco, tomando os elementos da tradição
nordestina como discurso primordial. Dessa forma, os monumentos materiais e
imateriais construídos ao longo da história da cultura brasileira, fortalecer-se-iam no
eixo que impedisse as descontinuidades de um passado em crise.252
A recessão econômica em Pernambuco dá suporte para a defesa regional,
movida pela consciência de ir ao encontro do passado ideal, localizado no seio do
Nordeste, lugar “puro e livre dos estrangeirismos”, mas, se este espaço não for tratado
com dedicação e largo investimento restaurador, pode perder-se rapidamente. A ameaça

252
SANTOS FILHO, Francisco Aristides de Oliveira. O Palhaço Degolado afrontando as veredas da
tradição: o super-8 jomardiano como instrumento de transgressão e crítica da noção de “Cultura
Brasileira” nas décadas de 60/70. Monografia. Teresina: UFPI, 2009. p. 33.
92

faz com que esse grupo adote uma visão romantizada253 e preservacionista do tempo e
território a ser tratado, valorizando os símbolos que indiquem ligação com o passado.
O declínio de capital investido na atividade açucareira nos anos 30 é reflexo da
fragilidade em que se encontram as barreiras que delimitam a hegemonia econômica do
Nordeste, espaço que rapidamente perde o posto de centro das decisões nacionais,
desviadas pela crise e desestruturação dos mercados externos, gerando forte carência de
financiamento na região. Para “os grupos afetados, de proprietários de engenhos, que
vinham perdendo poder no âmbito nacional, a crise rebate sob a forma de preocupação:
a manutenção do controle do espaço regional (tradicional)”.254
O recurso mais viável para evitar o desaparecimento das manifestações
“autênticas” do Nordeste, vem do sentimento de reação negativa à modernização
socioeconômica paulista. Não se admitia a “descaracterização” da cultura nacional e
absorção dos “modismos” importados da Europa, onde as famílias tradicionais buscam
no aconchego saudosista dos canaviais corroídos pela usina, “armaduras” que
cicatrizem todas as perdas de seus territórios político-econômicos, mobilizando a
apropriação de “símbolos, de tipos, de fatos, para construir um todo que reagisse à
ameaça de dissolução, numa totalidade maior, agora não dominada por eles: a nação.
Unem-se forças em torno de um novo recorte do espaço nacional”. Existe a necessidade
urgente em traçar fronteiras mais rígidas que possa proteger os canaviais das incertezas
da modernidade. “Descobrem-se “região” contra a “nação”.255
Durval Muniz afirma que a construção do discurso regionalista surge na
“segunda metade do século XIX, à medida que se dava a construção da nação e que a

253
Para Mário Hélio, na obra de Gilberto Freyre: O que num primeiro momento pode indicar uma mera
humildade científica ou incapacidade teórica, na verdade oculta um romantismo latente e nunca de todo
suplantado na conjunção de seus métodos e os seus resultantes em pensamento. Nunca ele se livrou do
próprio eu. O seu objetivo máximo sempre foi à liberdade própria, a independência, a expressão à
vontade. Mário Hélio, citando Andrés Ortiz-Osés, nos direciona a compreensão de que a relação entre
Freyre e outros intelectuais regionalistas, na luta pela preservação da cultura nordestina só foi possível
pelo fato de que: As visões de mundo e as cosmovisões expressam nossas concepções do real em
arquetipologias, mitologias e imagens do ser experiencial, projetando diretrizes da existência e
estabelecendo nexos de nossas vivências. As visões de mundo significam nossos modelos existenciais e
nossas pautas intelectuais de conduta, já que funcionamos como marcos de crenças compartilhadas em
torno de uma matriz axiológica de caráter cultural, chegando a constituir-se em filosofias ou sistema de
valores de estampagem coletiva. Cf.: LIMA, Mário Hélio Gomes de. A História do Brasil como
realmente foi e é. In: DANTAS, Elisalva Madruga. BRITTO, Jomard Muniz de. Interpenetrações do
Brasil: Encontros & Desencontros. João Pessoa: Editora Universitária UFPB, 2002. p. 56.
254
SILVEIRA, Rosa Maria Godoy. Nordeste e Contradições. In: BRITTO, Jomard Muniz. DANTAS,
Elisalva Madruga. Interpenetrações do Brasil: encontros e desencontros. João Pessoa: Ed.
Universitária/UFPB, 2002. p. 95.
255
ALBUQUERQUE JR, 2006. p. 67.
93

centralização política do Império ia conseguindo se impor sobre a dispersão anterior”.256


Somente no início da década de 20, podemos verificar o auge da emergência do que ele
chama de “novo regionalismo, que extrapola as fronteiras dos Estados, que busca o
agrupamento em torno de um espaço maior, diante de todas as mudanças que estavam
destruindo as espacialidades tradicionais”.257
O regionalismo provoca o nascimento de uma consciência regional,
possibilitando realizar o desejo “de preservação de várias existências individuais, mas
principalmente, na vida coletiva”.258 O impulso dado por Gilberto Freyre na retomada
regionalista deve ser entendido no contexto em que a sociedade brasileira vivenciava
um período de transição, em que as oligarquias nordestinas testemunhavam, sem poder
alterar o jogo político, a transferência dos eixos de poder e produção econômico/cultural
do Nordeste para o Sudeste.
Atentos a tais mudanças no cenário político-cultural, bem como à constatação de
que se vivencia no Nordeste um processo de crise, mobiliza-se à gestação coletiva e
emergencial na formulação de uma identidade regional homogênea. Busca-se uma
coesão imaginária vista “como um amálgama, ‘um arco de solidariedades’ [...], entre as
frações da elite” nordestina “e entre os diversos grupos sociais, pasteurizando os
antagonismos sociais internos [...], diante de outras frações de classe”, em particular, os
novos detentores do espaço: os cafeicultores do Sul.259
Um rico acervo de imagens, sons, fatos históricos, rituais e palavras são
revividos e postos à luz, com o objetivo de materializar as particularidades do espaço
ameaçado. A escolha desses elementos não é aleatória, mas organizada de acordo com
os interesses do grupo, que assume tal responsabilidade, “tanto no interior da região que
se forma, como na sua relação com outras regiões”,260 através de estratégias que fazem o
discurso regionalista não mascarar a verdade de uma região, mas instituí-la.261

256
O regionalismo anterior à década de vinte não tinha radicação no discurso sociológico. A região
sociologicamente instituída ainda não tinha surgido. A região passa a ser pensada com um problema
social e cultural, com a emergência de uma nova formação discursiva. Gilberto Freyre e sua definição
sociológica de região só se tornam possíveis neste momento. Cf.: ALBUQUERQUE JR, Durval Muniz. A
Invenção do Nordeste e outras artes. Recife: FJN. Editora Massangana; São Paulo: Cortez, 2006. p. 86
257
Ibid. id.
258
Ibid. id.
259
SILVEIRA, In. BRITTO, DANTAS, 2002, p. 95.
260
SILVEIRA, In. BRITTO, DANTAS, 2002, p. 95.
261
ALBUQUERQUE JR, 2006, p. 49.
94

Desse modo, textos como “Casa Grande & Senzala”, escrita “por um filho da
República Velha, indicam esforços de compreensão da realidade brasileira realizados
por uma elite aristocratizante que vinha perdendo poder”.262
A ameaça de diluição dessas forças – social e política – obriga os intelectuais
conservadores a exercitarem um processo revisão do seu território, para resguardar o
reino ameaçado. Ou seja, buscam fortalecer o contato com suas raízes, fincadas no
passado colonial. E, alertas ao momento de crise, se esforçam para desnudar suas vidas
íntimas, contidas no “seio da família patriarcal [...] emprestado à ação do senhoriato
colonizador, ação que se prolonga, no eixo do tempo, da Colônia até o século XX, na
figura de seus sucessores, representantes das oligarquias.263
No Nordeste, o “novo regionalismo” é reforçado pelas elites pernambucanas,
temerosas em perder suas bases consolidadas desde o escravismo, aderindo ao
sentimento de positivação da identidade e das manifestações culturais locais. Exercem
um trabalho voltado para a ordenação de práticas e sentimentos ligados ao passado rural
do Nordeste, que permitam seu gradativo processo de integração no cotidiano urbano,
sem que os formuladores do discurso percam o poder de articulação social, optando
tomar a memória como recurso de defesa em relação à história, pois:

Quanto mais a história fazia este grupo social se aproximar de seu


desaparecimento, mais se tornava perigosa. No momento em que a
história se aproxima desses confins, ela só pode deter-se, sob pena de,
pondo fim a este grupo social, à sua história, por fim a si própria. Por
isso, como todo grupo social em crise, esta elite tradicional tenta deter
a sua morte, detendo a história. Lutar contra a história é lutar contra a
finitude, e é justamente a memória a única garantia contra a morte,
contra a finitude.264

Não podemos reduzir o discurso regionalista “à enunciação de sujeitos


individuais, [...] fundantes, mas sim a sujeitos instituintes. Nesse discurso, o espaço
surge como uma dimensão subjetiva [...] como produto da subjetivação de sensações”
265
. Dentre o rico conjunto de contribuições intelectuais266 para fortalecimento do
Movimento Regionalista em Pernambuco, podemos tomar como ponto de destaque a

262
MOTA, Carlos Guilherme. Ideologia da Cultura Brasileira: 1933-1974. São Paulo: Editora Ática,
1977. p. 58.
263
Ibid. id.
264
ALBUQUERQUE JR, 2006, p. 79.
265
ALBUQUERQUE JR, 2006, p. 49.
266
Mario Sette, Gilberto Freyre, Odilon Nestor, Oliveira Lima, Moraes Coutinho, Souza Barros, entre
outros.
95

“Revista do Norte”,267 que atua com a clara finalidade de voltar-se para os anseios e
problemas da região Nordeste. Segue como metas: reviver as experiências do passado
perdido, valorizando os símbolos tradicionais e os costumes, voltando-se para os
aspectos que particularizam a região Nordeste.268
O sentimento de pertencimento e coesão das regiões são os nervos centrais do
movimento, que tomou Pernambuco como “a capital moral do Nordeste”, região
privilegiada na História do Brasil, por crescer distante das interferências e diluição
nacional, promovida pela inserção de elementos externos, alheios à realidade local.
A unidade cultural e geográfica faz do Nordeste um bloco monolítico carregado
de “originalidade”, visto como impossível de ser rompida, devido à valorização da terra
e às tradições, “permanente” na alma do nordestino. Para os regionalistas, Recife é o
núcleo irradiador da união entre as regiões, um dos espaços principais na formulação
das bases teóricas construtoras de um conjunto de enunciados legitimadores da “cultura
nordestina”.269
A convergência de ideais do movimento só é possível de ser vista com mais
nitidez com a fundação do Centro Regionalista (28 de abril de 1924), espaço
fundamental para unir intelectuais e simpatizantes no compartilhamento das ideias e
temas debatidos sobre cultura e política em Recife.270
Para Neroaldo Azevêdo, “só se poderá falar de um movimento regionalista na
década de 20 [...] se considerarmos a criação [...] do Centro Regionalista [...], que
arregimentou um número considerável de intelectuais”.271
Nesse sentido, o Centro vem propor o exercício:

267
Surge em 8 de outubro de 1923, na cidade de Recife e encerra suas atividades em 1952.
268
AZEVÊDO, 1984.
269
Ibid. id.
270
Para Neroaldo Pontes de Azevêdo, alguns teóricos informam datas diferentes relativa à fundação do
Centro Regionalista, como o próprio Joaquim Inojosa, que afirma ter início em 1925 ou José M. Gomes
que aponta o ano de 1926. As dúvidas frequentes também são presentes quanto à definição do fundador
do Centro, que circula entre Odilon Nestor, Moraes Coutinho e principalmente, Gilberto Freyre. No livro,
No Pomar Vizinho..., podemos encontrar um documento importante que ajuda a compreender
parcialmente o fato. Inojosa expõe uma carta recebida de Moraes Coutinho que vale a pena ser
mencionada para se pensar esse aspecto aparentemente acessório: “Regressando ao Recife [estava na
Europa], e verificando que as idéias regionalistas engatinhavam em perspectivas puramente locais, resolvi
escrever para a revista Ilustração Brasileira o artigo Pernambuco e o Regionalismo Nordestino [...]
Diante do entusiasmo por todos manifestado, propus que fundássemos um Centro Regionalista, para
defesa daquelas mesmas idéias, abrangendo, não apenas Pernambuco, mas tôda região nordestina. Criado
o Centro, dêle partira, meses depois por iniciativa de Odilon Nestor, a realização do 1ª Congresso
Regionalista do Nordeste”. Cf.: INOJOSA, Joaquim. No Pomar Vizinho... Fraudes Literárias de Gilberto
Freyre. (Separata do livro: O Movimento Modernista em Pernambuco). Rio de Janeiro: Guanabara, 1968.
271
AZEVÊDO, 1984, p. 141.
96

[...] intelectual e social, uma vez congregados em seu seio os


elementos mais representativos da cultura do Nordeste. Anima-o largo
patriotismo nordestino, que se exprime na defesa das nossas cousas e
das nossas tradições, no aproveitamento delas como motivos de arte,
no desenvolvimento dos interesses do Nordeste, região cujas raízes
naturais e históricas se entrelaçam e cujos destinos se confundem num
só.272

O “Diário de Pernambuco” registra o programa de atuação do Centro, elaborado


por Moraes Coutinho, em que são sistematizados os objetivos do grupo em itens
definidores da comunhão regional e o sentimento de unidade espacial. Focado nessas
perspectivas, seria possível realizar um trabalho orgânico de preservação dos interesses
da região “ameaçada”, eliminando qualquer medida particularista que bloqueasse o
florescimento material e cultural do Nordeste.
No programa, o Centro esteve organizado a partir da vontade de defesa dos
“interesses do Nordeste na sua solidariedade, sem sacrificar as questões fundamentais
da região às vantagens particulares de cada Estado”.273 É importante lembrar a ênfase
contida no movimento à palavra “Região”, diferente de Estado-Federação, termo
rejeitado pelos regionalistas, por ser um conceito inorgânico, aplicado a fórmulas
meramente administrativas e não solidárias a paisagem complexa da brasilidade.274 O
federalismo seria “nocivo” ao sentimento de nacionalidade e ao cruzamento dos
interesses das regiões, que gera medida defensiva nos direcionamentos político-culturais
do Nordeste.
No “Manifesto Regionalista” 275
, Freyre afirma que não se deve confundir o
movimento com atitude separatista, pois o grupo visa superar o estadualismo promovido
pela república e incorporar uma flexibilidade maior no sistema de regiões, sendo

272
Ibidem, p. 143.
273
COUTINHO, apud: AZEVÊDO, pp. 143-144.
274
Se o Estado se lhes apresenta como padrasto, porque não intervém no espaço regional da mesma forma
que o faz no espaço regional cafeeiro (através de investimentos em obras públicas, estradas de ferro,
política imigrantista, etc), ele pode ser pai como o é para as províncias irmãs do Sul. Critica-se o Estado,
mas contemporiza-se, não se rompe com o mesmo, requer-se sua intervenção: engendra-se uma oposição
na situação, que constituirá, processualmente, uma estratégia política de barganha a nível nacional.
Conferir: SILVEIRA, Rosa Maria Godoy. Nordeste e Contradições. Cf: BRITTO, Jomard Muniz.
DANTAS, Elisalva Madruga. Interpenetrações do Brasil: encontros e desencontros. João Pessoa: Ed.
Universitária/UFPB. 2002. p. 96.
275
Existe uma polêmica histórica levantada pelo poeta e jornalista Joaquim Inojosa, quando se fala hoje
em Manifesto Regionalista, que segundo Gilberto Freyre foi escrito e lido no Congresso Regionalista em
1926. Inojosa declara que tal documento foi falsificado quando a sua datação, publicado somente em
1952 pela Fundação Joaquim Nabuco, acusando-o de ter praticado “a maior fraude de todos os tempos no
Brasil”. Usa dentre vários recursos para provar o fato, os depoimentos colhidos por ele de Odilon Nestor,
Edgar Teixeira Leite e Moraes Coutinho, que afirmam não lembrar a leitura do tal manifesto na época.
Conferir: INOJOSA, Joaquim. No Pomar Vizinho... Fraudes Literárias de Gilberto Freyre. (Separata do
livro: O Movimento Modernista em Pernambuco). Rio de Janeiro: Guanabara, 1968.
97

possível a integração nacional verdadeira, propiciando uma compreensão mais clínica


dos pontos de convergência entre o que é o Nordeste, em conjunto com o Brasil mais
amplo.
Em relação à noção de “Região”, Freyre afirma que:

Essa desorganização constante parece resultar principalmente do fato


de que as regiões vêm sendo esquecidas pelos estadistas e legisladores
brasileiros, uns preocupados com os direitos dos Estados, outros, com
as necessidades da união nacional, quando a preocupação máxima de
todos deveria ser a de articulação inter-regional. Pois de regiões é que
o Brasil, sociologicamente é feito, desde os seus primeiros dias.
Regiões naturais a que se sobrepuseram regiões sociais. [...] somos um
conjunto de regiões antes de sermos uma coleção arbitrária de
Estados, uns grandes, outros pequenos, a se guerrearem
economicamente [...] e a fazerem às vezes os partidos políticos – São
Paulo contra Minas, Minas contra o Rio Grande do Sul – num jogo
perigosíssimo para a unidade nacional. [...].276
277
Sobre essa questão, afirma em New World in the Tropics (1963) que, no
período inicial da República brasileira, “um Estado político quase inteiramente artificial
[...] dominou os outros Estados da União brasileira por meio de superioridades
puramente mecânicas ou quantitativas [...]”,278 criticando os republicanos por agirem
através dos “excessos do poder centralizado”,279 ao desvalorizar a combinação entre
unidade e diversidade regional.
Nesse sentido, as regiões devem ser tratadas numa perspectiva orgânica,
valorizando suas particularidades em relação interdependente, dentro de seus interesses
econômicos e vitais. Dessa forma, a “diversidade será então mais criadora do que nunca;
e a unidade será [...] assegurada por um sistema de regiões ou áreas coordenadas por um
organismo inter-regional, porém não oprimidas ou exploradas [...] pelo grupo seccional
que seja.280
Apesar de considerar que a “Nação” pode ser maior do que a “Região”
politicamente, a vitalidade cultural da “Região” é “quase sempre mais forte, pois ela é
mais fundamental [...] como condição de vida e como meio de expressão ou de criação
humana”.281 Para Freyre, a tendência do regionalismo, – tanto para a vida brasileira,

276
FREYRE, Gilberto. Manifesto Regionalista. 6º. ed. Recife: IJNPS, 1976, pp. 55-56.
277
A 1ª edição brasileira desta obra foi lançada em 1971.
278
FREYRE, Gilberto. Novo Mundo nos Trópicos. Rio de Janeiro: Top Books Editora, 2000, p. 123.
279
Ibid. id.
280
FREYRE, 2000, p.127.
281
Ibid. id.
98

quanto para o continente americano em toda sua extensão – é atuar como “contra-
colonização”, que antagoniza com as práticas de nacionalismo excessivo, ligadas ao
cosmopolitismo ou internacionalismo exagerado.
Apoiando-se nesse argumento, o regionalismo reaparece enquanto reação “ao
processo de estandardização da vida, patrocinado pelo imperialismo, e resistência à
visão de superioridade cultural que este carrega”.282 Toma como ponto central a questão
nacional, para justificar que o regionalismo foi uma atitude contra a colonização cultural
do país, que vinha se modernizando na lógica de incorporação dos comportamentos e
práticas burguesas europeias, considerado por ele como “descaracterizador” de sua
identidade cultural brasileira.
Esta afirmação nos leva a concluir que – a partir da reflexão de Durval Muniz –
“como a influência cultural se dava no âmbito regional, era aí que a defesa contra o
colonialismo cultural se devia fazer, e não no âmbito nacional, já que este seria uma
artificialidade política e não uma realidade cultural”.283
Sugere que, para conciliar os antagonismos, sem gerar tensões entre os diversos
elementos que definem a influência cultural brasileira (indígena, nacional e
supranacional), é preciso “assegurar-se, por uma combinação dos três, a constante e
estimuladora interação de todos esses antagonismos”.284
Sua face regionalista é resultante do reconhecimento das “potencialidades” do
Nordeste, que mobiliza o grupo de intelectuais, a fim de ampliar todos os esforços para
“encorajar no Brasil uma vida cultural mais espontânea através de mais livre expressão
de cultura por parte da gente das suas variadas regiões. O Nordeste, de onde partiu o
movimento, é dessas regiões com uma história particularmente rica”.285
A concretização mais visível de tais esforços está no desdobramento das
atividades realizadas no 1º Congresso Regionalista do Nordeste, ocorrido em fevereiro
de 1926, no Salão Nobre da Faculdade de Direito do Recife, presidido por Odilon
Nestor e secretariado por Gilberto Freyre. O programa-convite está segmentado em
preocupações de ordem econômico-social e artístico-intelectual, baseado nas palavras-
chave de “defesa e unificação”, a fim de valorizar no passado a “raiz” das tradições
nordestinas.

282
Ibid. id.
283
ALBUQUERQUE JR, 2006, p. 89.
284
FREYRE, 2000, pp. 117-119.
285
Ibidem, p. 120.
99

Nas reuniões – seguidas de jantares tradicionais e visitas a centros históricos – as


preocupações do evento centralizam-se em temas como: a preservação de jogos e festas
tradicionais, arborização das cidades nordestinas, defesa do patrimônio artístico e
incentivo à conservação dos patrimônios materiais, criação de uma disciplina para
estudos e pesquisas sobre o Nordeste, tomando como ponto de referência o passado:
ideal a ser “resgatado” para preservação.
No prefácio ao “Manifesto Regionalista”, Freyre conceitua o Regionalismo
como “combinações novas de ideias porventura velhas”286, o que evidencia a tentativa
do seu pensamento em aliviar no plano simbólico os confrontos entre tradição e
modernidade, que possibilita desenvolver “no País outros regionalismos que se juntem
ao do Nordeste, dando ao movimento o sentido organicamente brasileiro e, até,
americano, quando não mais amplo, que ele deve ter”.287
O manifesto é um meio encontrado para dar significado histórico à “Região”, em
conjunto com outros exercícios múltiplos de sedimentação discursiva em torno da
tradição cultural nordestina, que lentamente se forma na consciência regional, para seu
fortalecimento arquivista, bem como a busca de um “passado” nacional.
O texto adota uma postura clara de que o regionalismo promovido no Nordeste é
o caminho mais eficaz na consolidação da unidade nacional, que tornou Pernambuco, o
Estado responsável na época, para essa ação de incentivo à preservação da memória
cultural da região.
Para os Regionalistas engajados nesse trabalho, “a preservação das tradições
seria a garantia de conservação de estruturas patriarcais que para ele garantiriam que as
transformações da sociedade brasileira se dessem sem rupturas, uma vez que ao longo
da história brasileira houvera sido graças ao patriarcalismo que culturas diversas”288 – a
exemplo dos europeus, indígenas e africanos – conseguiram trocar referências culturais
e manter contato pacificamente, cruzando seus valores mais particulares, dando vida e
forma a uma nova composição civilizacional, “para a qual não caberiam organizações
sócio-político-econômicas transplantadas”.289

286
FREYRE, Gilberto. Manifesto Regionalista de 1926. Recife: Região, 1952. Opúsculo. Disponível em:
<http://prossiga.bvgf.fgf.org.br/portugues/obra/opusculos.html>. Acesso em: Abril/Maio de 2011.
287
Ibid. id.
288
FREYRE, 1952.
289
LIMA BRITO, Antônio de Pádua de. Ariano Suassuna e o Movimento Armorial: Cultura Brasileira no
Regime Militar, 1969-1981. Março de 2005. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal de
Campinas. 2005. p. 89.
100

Gilberto Freyre, após a experiência anti-melanista vivida no exterior, faz do


Nordeste o centro de suas preocupações, no esforço de legitimá-lo na história como o
“centro” da civilização brasileira. Ao levantar as ações em torno do ideal regionalista
como emblema nacional e modelo de prática cultural a ser seguida – através da
preservação dos valores tradicionais, que marcam fronteiras de proteção ao elemento
estrangeiro e define a essência do Nordeste – ele se torna um “guardião” do “reino
perdido”.290
Para ele, a forma mais viável de proteção aos “bens” que particularizam o
Nordeste do resto do país estaria na valorização da presença de manifestações culturais
ainda vivas na região, “como uma espécie de compensação ao declínio socioeconômico
a que vem sendo condenado por uma política firmada por economistas ditatoriais [...],
de bastar ao avigoramento socioeconômico brasileiro um fortalecimento [...], do Centro-
Sul”.291
Sua defesa é reforçada, quando afirma que o Nordeste continua a ser um “centro
de irradiação [cultural], e não apenas [...] uma área [...] de arcaica estagnação”. Pelo
contrário: com suas criações, marcadas pelo [...] “‘estilo vital’ nordestino [...]
susceptível e até sôfrego de transregionalizar-se [...], definindo-o nos marcos do
pioneirismo, que o torna uma influência transregional na vida brasileira”.292
O ideal regionalista em Freyre encara o Nordeste como região pioneira na:

[...] expansão do complexo casa-grande & senzala ou, antes, do


triângulo rural [...], da área onde o mesmo complexo primeiro adquiriu
estabilidade ou solidez, como expressão de um sistema patriarcal de
organização da família, de economia e de vida social, em geral – e que
foi certamente o Nordeste – a outras áreas. Devendo-se acentuar que
foi também no Nordeste onde primeiro se definiu na paisagem
brasileira outro complexo, depois caracteristicamente pré-nacional [...]
e nacional; o complexo sobrados e mucambos [...].293

Nesse sentido, uma nova ideia sobre a formação do homem e da cultura no


Brasil se fortalece na obra de Gilberto Freyre, que é esboçada inicialmente pelo viés
regionalista e, posteriormente, ganha mais visibilidade, pela ampliação de sua lente para
pensar a formação cultural em termos tropicológicos.

290
FREYRE, Gilberto. Nordeste: Aspectos da Influência da Cana Sobre a Vida e a Paisagem do Nordeste
e do Brasil. 6ª ed. Rio de Janeiro: Record, 1989. p. 17.
291
Ibid. id.
292
Ibid. id.
293
FREYRE, 1989, p.35.
101

Acaba por redescobrir o Brasil em uma perspectiva que transformou o modo de


“interpretação da realidade brasileira [...] contrapondo às explicações autorizadas de
Varnhagem, Euclides da Cunha, Capistrano de Abreu [...] e que soariam como
revolucionárias para a época”.294 Freyre experimenta um novo caminho a ser construído
para compreender a história do Brasil, o que nos faz lembrar Karl Von Martius (1794-
1868), no século XIX com seu famoso texto, “Como se deve escrever a História do
Brasil”, em 1845.
Juntamente com outros intelectuais295 do campo historiográfico dos anos 30,
Gilberto Freyre faz parte da seara intelectual que revisa os olhares sobre o país,
anteriormente empenhados “na valorização dos feitos dos heróis da raça branca, e
representada pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (fundado em 1838)”.296
Nesse sentido, os intelectuais pós-IHGB contestam os “Brasis” de maneira
radical, elaborando outros “pontos de partida para o estabelecimento de novos
parâmetros no conhecimento do Brasil e de seu passado”.297
Ao exaltar os valores da “pernambucanidade” convertidas em “brasilidade”,
Freyre alertava dos perigos que a dissolução identitária poderia causar no brasileiro,
com o risco de alterar sua essência em outras categorias anti-nacionais, advertindo que:

Não nos deixemos, os pernambucanos, dissolver num excesso de


outro mito – o da nordestinidade difusa – do qual se está usando e
abusando para anular no Nordeste o valor especificamente
pernambucano [...]. Pernambucanidade, que resistiram, resistem e
resistirão a qualquer interferência alienígena, sem que isso queira
dizer uma cultura trancada a sete chaves, mas antes com frestas e
clarabóias para o que não descaracterize ou mesmo arranhe na
estrutura brasileiro-tropical.298

A respeito dessas questões, “O Palhaço Degolado” nos mostra mais uma cena
provocativa. Em rápido zoom out299, a câmera capta à contra luz o Palhaço na parte
superior da Casa da Cultura. Nesse momento do filme, a trilha sofre uma leve redução
de volume, para tornar a declamação mais nítida, onde o personagem fica parado por

294
MOTA, 1977, p. 28.
295
Caio Prado Júnior – Evolução Política do Brasil (1933), Sérgio Buarque de Holanda – Raízes do Brasil
(1936), Roberto Simonsen – História Econômica do Brasil (1937).
296
Ibid. id..
297
Ibid. id.
298
FREYRE, Gilberto. Pernambucanidade, nordestinidade, brasileiridade. Recife: s.n., 1970. Disponível
em: <http://prossiga.bvgf.fgf.org.br/portugues/obra/opusculos.html>. Acesso em: Abril/Maio de 2011.
299
É um movimento aparente de aproximação (zoom in) ou de afastamento (zoom out) em relação ao que
é filmado, provocado por uma manipulação das lentes da câmara, sem que a câmara em si execute
qualquer deslocamento ou rotação.
102

alguns segundos, com as mãos encostadas nas grades de proteção, na frente de uma das
janelas ensolaradas do prédio, olhando para o espectador.
Após a finalização do movimento de câmera, quando a imagem é ampliada
numa base entre o primeiro piso da locação ao ponto em que o Palhaço se encontra –
abrindo seu espaço de atuação – a personagem se lança em leves saltos com os braços
abertos, correndo da direita para a esquerda do plano.300
Na sequência de pulos e rodopios, no terceiro salto, ele se segura na grade,
marcando o momento do corte que o direciona para a direita, correndo e rodando com as
mãos agitadas, dando uma volta completa no contorno superior da Casa. A câmera
acompanha no andar abaixo, os passos desordenados do Palhaço, que pula, roda, abre os
braços e chega a insinuar um salto por cima da grade em direção ao piso inferior.
Intervém nas reflexões realizadas até aqui, fazendo uma série de
questionamentos aos esforços regionalistas, contidos nos discursos culturais freyreanos.
Nessa passagem do filme, o Palhaço amplia a crítica de Pernambuco para o
Brasil, expondo que o debate em torno da identidade brasileira configura-se não apenas
no âmbito nordestino, mas é fruto de um conflito intelectual atravessado por todo o país,
no complexo processo de disputa em torno da legitimidade das memórias da brasilidade,
de acordo com o interesse dos grupos que estão às sombras do poder político-cultural.
Cena 4:
“Onde escavar no Nordeste as mais legítimas raízes da cultura brasileira? Raízes
da cultura? Isto é ou não é complexo de intelectuais? Tanto faz no sul como no norte.
Elegia para uma região. Religião? Paixão, economia, desenvolvimentismo? Filosofia,
ideologia? O que temos em comum com a nostalgia dos meninos de engenho?”

Figura 6:
Mosaico de interrogações: o Palhaço e a convivência com os problemas lançados.

300
Conjunto ordenado de fotogramas ou imagens fixas, limitado espacialmente por
um enquadramento (que pode ser fixo ou móvel) e temporalmente por uma duração.
103

O Palhaço interrompe o debate e ataca frontalmente, intervindo nas falas e


desarranjando a ordem das fronteiras culturais regionalizantes, arquitetadas por
intelectuais receosos da fragmentação dos seus espaços legítimos de conforto, que antes
informavam a região Nordeste como o centro de formação da nacionalidade.
Quando o personagem pergunta: “Elegia para uma região. Religião?”, ele se
posiciona criticamente no sentido oposto aos discursos regionais, que o aprisionam no
mundo construído para atender os interesses das literaturas de crise, transformadas em
verdades absolutas, que definem a rigidez das demarcações discursivas em torno da
cultura brasileira.
Nesse momento, o filme inicia seu aprofundamento crítico, ao revelar no jogo
poético-corporal que o “complexo de intelectuais, tanto faz no Sul como no Norte” é
fruto de um conjunto de forças situadas no Nordeste, que visam elaborar “a saga das
oligarquias em crise, ou justificar a ação política da hora, buscando novas formas de
percepção e ajustamento à ordem vigente”.301
Através das “elegias para uma região” e da proteção emergencial aos elementos
culturais que definem a visão freyreana de Brasil, as demarcações territoriais são
reforçadas, impedindo novos fluxos das chamadas “estrangeirices”, que subvertem
“nossa” identidade. É preciso mantê-las longe do discurso definido pelas camadas
dominantes de pensamento.302
As “elegias” representam para o Palhaço as vozes de uma época que atingem o
nível mais alto de dramaticidade e desnudamento, no período de “trepidação da ordem
social, em que as oligarquias pontificavam nas diferentes regiões”.303 Esta cena é um
questionamento sobre a mobilização exercida pelos intelectuais nordestinos
conservadores, em busca de neutralizar as mudanças no tempo e as práticas culturais
internas ao regionalismo, através da reconstrução de um passado idealizado pelo
tradicionalismo, restrito ao jogo político local.304
Voltado para a lógica das permanências e continuidades, o Regionalismo resulta
do esforço na reordenação e fortalecimento da herança – em plena ameaça de dissolução
– da velha ordem patriarcal do Nordeste ligada as suas paixões, interesses e afetos
pessoais.

301
MOTA, 1977, p. 23.
302
Ibid. id.
303
Ibid. id.
304
MOTA, 1977, p. 63.
104

O investimento em fortalecer o olhar tradicionalista da cultura no Nordeste por


Gilberto Freyre não seria uma “Filosofia, ideologia” dominante sobre o Ser da Cultura
Nacional? Interroga o Palhaço, ao colocar no reino da suspeição, os discursos que
valorizam em primeiro plano, as tradições como base para a cristalização de uma
“cultura brasileira”, marcadas por uma visão senhorial de mundo.
Vivenciando um período de intensas transformações na sociedade, sentido pelo
impacto da vanguarda tropicalista, aliada a força da bitola superoito como suporte de
resistência e crítica cultural, em contraste com o excessivo autoritarismo cultural
promovido pelo regime militar, o Palhaço reforça suas interrogações sem respostas: “O
que temos em comum com a nostalgia dos meninos de engenho?”
A aproximação de Gilberto Freyre com o pensamento regionalista nos anos 20,
em busca da valorização do Nordeste enquanto espaço fundamental da formação
cultural do povo brasileiro, transforma seu modo de perceber o Brasil, livrando-se do
ranço eugenista e abrindo espaço para o reconhecimento da mestiçagem como fator de
diferenciação do homem situado no trópico.
Sua face regionalista desloca-o para a fase tropicológica, ao desenvolver nos
anos 30 a “teoria de explicação para as peculiaridades e originalidades da relação entre
raças e culturas no Brasil305”, optando pela visão ecológica e social do homem tropical.
“Casa Grande & Senzala” será o grande passo dado por ele nesse sentido, ao construir
uma interpretação que redefine os traços formadores do Brasil.
2.4. A Casa Grande de Gilberto Freyre
Corte: a câmera filma o Palhaço distante do espectador, no andar superior ao
contorno em que o mesmo correu e rodopiou na sequência anterior. A imensidão do
espaço o oprime, mas não o impede de circular pelos paredões do prédio, furando os
bloqueios que tentam imobilizar suas travessuras.
A continuidade da cena 4 reforça as interrogações diante do painel apresentado:
“Nordestinados: de todas as assombrações e sertanejos de ficção. Muita ficção
nas pedras e pedradas do Reino. Nossas vidas secas encontraram o sonho da grande
cidade? Ou o medo de sempre?”
O destino da cultura brasileira, para os regionalistas, estaria situado na
demarcação das fronteiras que circundam a Casa-Grande, cobertos pelas árvores

305
HÉLIO, Mário. O Brasil de Gilberto Freyre: Uma introdução à leitura de sua obra. Recife:
COMUNIGRAF, 2000. p. 95.
105

frondosas, espalhadas nos engenhos, símbolo do prolongamento do passado instituído,


que se converte em presente e futuro.
O principal argumento dessa cena está ligado às seguintes perguntas: estaríamos
condenados a ser um povo “Nordestinado?” As literaturas de crise, que ressaltam a
angústia e perda de legitimidade cultural de um grupo, até então firmes no poder
político e cultural, não estaria afetada por “todas as assombrações causadas pelo
encontro das nossas vidas secas com a grande cidade?”
Para o Palhaço, o grande “medo de sempre” dos grupos conservadores, ligados
ao pensamento regionalista freyreano, está na possibilidade de que as mudanças
provocadas pelo fluxo da história destruam a solidez dos “móveis de mogno e
jacarandá; onde tudo parece tranqüilo, vagaroso como o balançar na rede [...], região da
permanência, do ritmo lento, da sedimentação cultural”.306
Os “sertanejos de ficção” representam os símbolos incorporados para compor as
trincheiras que protegem o núcleo rígido da cultura nordestina, fazendo com que este
espaço deixe de ter suas fronteiras apenas pontilhadas para tornar-se “um recorte
territorial preciso; [as representações regionalistas formam] uma imagem-força [que
adensam] a essência do país, onde estariam escondidas suas raízes mais profundas”.307
Articulando o argumento da cena 4 com a primeira entrada do Palhaço no filme,
quando o mesmo grita pelo sociólogo, exclamando a “Casa-Grande de detenção da
cultura”, esta associação nos leva a compreender outro momento da fase intelectual de
Gilberto Freyre, em torno do seu esforço na elaboração de um discurso dedicado a
consolidar as bases da formação sócio-cultural brasileira.
Esta fase é caracterizada pelo diagnóstico da crise de uma região, ao reforçar seu
engajamento nos estudos sociológico-antropológicos da cultura, aprofundando sua
formulação em torno de uma teoria que informa a gênese da cultura nordestina,
expandindo suas pesquisas para pensar as raízes do Brasil.
Nesse sentido, o Nordeste seria o princípio da brasilidade, o que possibilita a
construção de um discurso voltado para defender a “origem” das tradições culturais a
partir “das casas-grandes, das senzalas, das igrejas, dos sobrados, dos mocambos, dos
contatos ‘afetivos’ de brancos com os índios [como] o substrato verdadeiramente
nacional de nossa cultura”.308

306
ALBUQUERQUE JR, 2006, p. 81.
307
Ibidem, p. 54.
308
ALBUQUERQUE JR, 2006, p. 89.
106

Durante a fase ligada ao engajamento regionalista, Freyre amplia suas


preocupações iniciadas nos anos 20 para pesquisas que estabelecem os fundamentos da
identidade nacional e da história social do Brasil, para defender não somente os valores
culturais nordestinos, mas de toda civilização luso-brasileira formada nos trópicos.
À medida que o saber baseado na eugenia e no evolucionismo – como foi
possível observar em Grant e Lothrop – perde espaço para os estudos sociológicos na
década de 30, bem como as novas preocupações voltadas aos aspectos culturais e
sociais, Gilberto Freyre dedica-se ao projeto de análise e compreensão dos traços que
definem a identidade do brasileiro em sua totalidade, além do regionalismo, trabalhados
nos anos 20 em Pernambuco.
A ideia de região estará sempre presente na orientação dos seus estudos sócio-
culturais, pois ele acredita que é inviável compreender o homem brasileiro sem
aproximar a região com a noção de habitat/meio. A região é sentida enquanto espaço
original, único, genético, que aparece “ao lado da tradição, como pontos de partida para
qualquer trabalho de interpretação de nossa sociedade”.309
A Casa-Grande é uma extensão concreta dos elementos contidos na visão de
Brasil em Gilberto Freyre, formuladas para instituir a memória nacional de um grupo
interessado na materialização de imagens agregadas ao passado colonial nordestino. A
“democracia racial, morenidade, brasilidade e a Luso-tropicologia, a seu modo”, citadas
pelo Palhaço, na sala de reuniões da Casa da Cultura, marcam pontos referentes ao
complexo conjunto do universo freyreano, vistas por Durval Muniz como:

[...] um esforço de pensar nossa diferença em relação ao processo


civilizatório do Ocidente, buscando nos dados “autenticamente
regionais, tradicionais e tropicais” os nossos processos
singularizadores e, ao mesmo tempo, integradores de uma nova
civilização que surgia à revelia da decadente civilização européia.
Freyre opõe o trópico à Europa e busca internamente ao país aqueles
processos sociais e aquele espaço que prenunciam esse processo de
singularização. É com estas preocupações que a idéia de região
Nordeste vai ser tomada como base para a formulação de sua
sociologia. [Já distante do campo teórico que via a raça branca como
superior, Freyre, influenciado pelos estudos de Boas vai] dotar de
positividade a mestiçagem em detrimento das raças puras, isto por
que, para ele, calcar a nacionalidade brasileira numa raça pura era
impossível, já que não a possuímos. Todos eram mestiços, até o
português aqui aportado.310

309
Ibidem, p. 94.
310
ALBUQUERQUE JR, 2006, pp. 94-95.
107

Nesse sentido, “Casa Grande & Senzala” trabalha na valorização da mistura


étnico-cultural no Brasil, ao romper com a falsa concepção “científica” que inferioriza o
papel da mestiçagem no processo de constituição do homem e da cultura, dando a ela
um caráter de singularidade positiva.
Ricardo Benzaquen de Araújo afirma que a obra busca “romper com o racismo
que caracterizava boa parte da nossa produção erudita sobre o assunto até 1933311”
tornando-se paradigmática, ao possibilitar a recuperação das contribuições dadas pelos
negros e índios na “formação da nossa nacionalidade”.312
“Casa Grande & Senzala” reconhece que o amálgama entre o negro, o índio (em
menor escala) e o português é a força destacada para superação do racismo que
dominava as expectativas da intelectualidade brasileira, construindo uma nova versão
sobre a identidade nacional, “em que obsessão com o progresso e com a razão, com a
integração do país na marcha da civilização, fosse [...] substituída por uma interpretação
que desse [...] atenção à híbrida e singular articulação de tradições que aqui se
verificou”.313
Dessa forma, o Brasil tem a oportunidade de “superar o ‘inacabamento’,
definitivo ou temporário, que habitualmente o caracterizava, fornecendo-lhe um
passado, minimamente aceitável, que não condenasse a se realizar [...] “apenas no
futuro”. Assim, o país reconhece a riqueza contida na influência dos negros e dos
índios, tornando esta reflexão freyreana um caminho para a construção de uma
plataforma marcada pelo sentimento formador da “verdadeira identidade coletiva, capaz
de estimular a criação de um inédito sentimento de comunidade pela explicitação de
laços, até então insuspeitos, entre os diferentes grupos que compunham a nação”.314
Para Freyre, os traços que nos diferenciam dos outros povos se conectam aos
eixos da mestiçagem e da tropicalidade, em que o Nordeste açucareiro é a região central
– berço da civilização brasileira – de ligação entre estes dois pontos de contato. Dessa
forma, o processo de integração entre índios, negros e brancos constituem as etapas da
“homogeneização cultural e étnica, no qual o Brasil, nascido no Nordeste, é pensado
315
como o local do fim do conflito, da harmonização entre raças e culturas” . Somos
formados pelo entrecruzamento das particularidades de cada grupo que habita os

311
ARAÚJO, 1994, p. 28.
312
Ibid.id., p. 28.
313
Ibidem, p. 30.
314
ARAÚJO, 1994, p. 30.
315
ARAÚJO, 1994, p. 30.
108

trópicos, resultando no gradual processo de construção dos elementos que compõem a


cultura brasileira.316
Na defesa da mestiçagem como fator indispensável para entender a formação do
Brasil, Freyre trabalha com a ideia de que a plasticidade envolvida na relação entre
povos distintos nos trópicos constituiu-se a partir da “interpenetração conciliatória dos
contrários”.317
A negociação envolvida neste processo de formação no Brasil busca “encontrar
sempre os pontos de comunicação entre os aspectos antagônicos da realidade”,318
dissolvendo as tensões e conflitos, na harmonia voltada à “procura da permanência, da
manutenção da ordem [...], salvo das descontinuidades históricas”.319
A importância do mestiço na formação cultural do Brasil é retomada pelo
sociólogo, após uma fase em que os estudos antropológicos sobre o tema eram
reforçados pelo preconceito, movidos pela desconfiança e descaso no tratamento dado
ao mulato, vistos pelos intelectuais brancos “por sua feiúra e debilidade física, por suas
doenças, por sua preguiça, por seu fatalismo e passividade”.320
Diante deste fato, o valor dado ao mestiço se fortalece a partir do momento em
que as novas reflexões propostas nos estudos realizados por Freyre desconsideram a
miscigenação apenas como um fenômeno biológico/fisiopsicológico. Acreditava-se que
estes dois elementos seriam o fator principal na geração “de mentalidades e aptidões em
que se formaria a cultura, processo com a negativa função de retardar ou mesmo
perturbar”321 o processo evolutivo do caminho linear das perfeições desejadas pelo
progresso biossocial.
Para Thales de Azevedo, Gilberto Freyre abre novas possibilidades na
reinterpretação do mestiço, ao considerar que a mestiçagem deve ser analisada como um
“fenômeno de outra ordem [...] de natureza social e sentido positivo, um corretor das
distâncias sociais e do profundo hiato cultural entre o branco e o indígena,
particularmente entre aquêle e o negro”.322
Nesse sentido, Freyre oferece um novo significado ao papel do mestiço no
processo de definição do homem brasileiro, reconhecendo que a união de raças e

316
ALBUQUERQUE JR, 2006, p. 96.
317
Ibid. id.
318
Ibid. id.
319
Ibid. id.
320
AZEVEDO, In: AMADO, 1962, p. 74.
321
AZEVEDO, In: AMADO, 1962, p. 77
322
Ibid. id.
109

culturas tem poder na construção da “democracia social”, longe dos discursos que
exaltam a pureza da raça branca como eixo civilizador, fechadas numa perspectiva de
exclusivismo cultural.
O reposicionamento do mestiço na cultura brasileira “promove a mobilidade
horizontal e vertical das pessoas de cor”.323 Azevedo reforça seu argumento – baseado
na leitura de Freyre – ao dizer que, “nas condições em que se tem processado em outras
terras dominadas pelos portugueses, a mestiçagem é um elemento de integração
transnacional ou supranacional das populações assim formadas.324
Outra base que consolida a “personalidade” brasileira está na família patriarcal,
na qual sua “força concentrou-se nas mãos dos senhores rurais” [...] criando “um tipo de
civilização mais estável na América hispânica”.325 O senhor de engenho seria o exemplo
do esforço de fixação a terra, onde “só a sedentaridade nordestina, canavieira, deu
sentido a estas fronteiras”.326
Desse modo:
A família, não o indivíduo, nem tampouco o Estado nem nenhuma
companhia de comércio, é desde o século XVI o grande fator
colonizador do Brasil, a unidade produtiva, o capital que desbrava o
solo, instala as fazendas, [...] a força social que se desdobra em
política, constituindo-se na aristocracia colonial mais poderosa da
América. Sobre ela o rei de Portugal quase reina sem governar. [...] a
família colonial reuniu, sobre a base agrícola e do trabalho escravo,
uma variedade de funções sociais e econômicas. Inclusive [...], a do
mando político: o oligarquismo ou nepotismo [...].327

Para Alceu Amoroso Lima, “Gilberto Freyre é um decidido familista”.328 Esta


sociedade familiar colonial, enraizada desde o século XVI, é o embrião gerador da
civilização no Brasil. Seu declínio marca o início do desequilíbrio e crise dos espaços
que sustentavam as tradições culturais vinculadas ao passado glorioso da economia
açucareira, coordenada pela “mão forte” do senhor de engenho, dono da Casa Grande e
da senzala.
A consciência de Freyre diante das “tendências desagregadoras” em torno das
tradições enraizadas no espírito familiar na formação da identidade brasileira – movidas

323
Ibidem, p. 78.
324
AZEVEDO, In: AMADO, 1962, p. 78.
325
FREYRE, 2005, pp. 38-43.
326
ALBUQUERQUE JR, 2006, p. 102.
327
FREYRE, 2005, pp. 81-85.
328
LIMA, In: AMADO, 1962, p. 41.
110

pela “rápida modernização do povo” 329


– provoca uma necessidade de reação para
preservar estes traços essenciais contra a ameaça de perda do “nosso patrimônio,
correndo o risco de dissolução ao sopro do individualismo ou do socialismo, que
trabalham ambos em sentido contrário ao familismo”.330
Além da família, podemos destacar mais um elemento na formação cultural
brasileira: a religião, em que “o catolicismo foi [...] o cimento da nossa sociedade”.331
Sob responsabilidade dos jesuítas, foram eles que:

[...] pela influência do seu sistema uniforme de educação e de moral


sobre um organismo ainda tão mole, plástico, quase sem ossos, como
o da sociedade colonial nos séculos XVI e XVII, contribuíram para
articular como educadores o que eles próprios dispersavam como
catequistas e missionários. Estavam os padres da S.J. em toda parte
[...]; estabeleciam permanente contato entre os focos esporádicos de
colonização, através da “língua geral”, entre os vários grupos de
aborígenes. Sua mobilidade [...] foi salutar e construtiva, tendendo
para [...] [o] “unionismo”.332

Roberto Mota, ao estudar esse aspecto na obra de Freyre, observa que o autor
atribui este processo no trópico à chamada “civilização franciscana” 333
. Diferente de
uma civilização formada “pela escrita, no logos, na lógica, na ciência aristotélica ou
cartesiana e na racionalidade”,334 a América vivencia a penetração de povos europeus e
não-europeus, assimilando outros valores e técnicas basilares na formação cultural,
resultando no novo tipo de civilização, que transborda seus limites para ser:

[...] ao mesmo tempo cristã e europeia nos seus valores socialmente


decisivos, mas de modo algum exclusivos. Ao contrário: plásticos,
transigentes, permeáveis a valores de outras origens, de modo a poder
tolerar [...] infiltrações de valores maometanos, fetichistas, hindus,

329
FREYRE, 2005, pp. 90-92.
330
LIMA, In: AMADO, 1962, p. 42.
331
FREYRE, 2005, pp. 90-92.
332
Ibid. id.
333
Alceu Amoroso Lima: O franciscanismo desempenha um papel fundamental na obra de Gilberto
Freyre. Embora sem entrar a fundo na obra catequética da cristianização dos indígenas e principalmente
na sua ação contínua ao longo de nossa história [...] êle opõe o sistema jesuítico da fixação dos indígenas,
que eram por natureza nômades, ao sistema franciscano. [...] Ora, foi de certo modo S. Francisco de Assis
que começou essa nova concepção da obra missionária, quando sustentou que, aos não-cristãos, era
preciso converter e não destruir, como queriam algumas figuras da Idade Média, como S. Bernardo. Êsse
espírito franciscano é que se espalhou pelo mundo com as navegações do Renascimento e veio com a
armada de Cabral para o Brasil. [...] Gilberto Freyre [...] deixa na sua obra capital [Casa Grande &
Senzala] [...] o seu julgamento sôbre a perfeita adequação do franciscanismo às tendências naturais do
indígena brasileiro. Cf.: LIMA, Alceu Amoroso. Gilberto Freyre visto por um Católico. In: AMADO,
Gilberto. Gilberto Freyre: sua ciência, sua filosofia, sua arte. Rio de Janeiro. José Olympio Editora, 1962.
334
FREYRE, apud. MOTA, In: DANTAS, BRITTO, 2002, p. 76.
111

sem deixar de ser em pontos essenciais, Cristianismo; e poder como


civilização de origem principalmente européia – ou ibérica –, admitir
penetrações de outros valores de outras origens – principalmente
tropicais –, sem deixar de ser, em pontos também essenciais, européia
ou ibérica.335

Apesar de a sociedade ser marcada pela rígida monocultura plantation, de


caráter escravocrata, sob controle econômico da produção pelos senhores de engenho,
Freyre mostra que o papel da religião no processo de formação cultural do Brasil é
realizado pelo “encontro e [...] confraternização entre [...] o senhor [e o] negro; e nunca
336
uma intransponível e dura barreira” fazendo com que o catolicismo colonial
brasileiro aumente “o caráter da hybris da sociedade”.337
A ênfase dada pelo autor neste aspecto concentra-se no fato de que, para ele, esta
relação de trânsito entre as diversas culturas que misturaram suas singularidades para
formar algo novo (a cultura brasileira), não se processou “no puro sentido da
europeização. Ao invés de dura e seca, rangendo do esforço de adaptar-se a condições
inteiramente estranhas, a cultura europeia se pôs em contato com a indígena, amaciada
pelo óleo da mediação africana”.338
Neste ponto, Roberto Mota, ao citar “A Propósito de Frades” (1959), destaca que
o modo como a civilização nos trópicos se constituiu, não representa para Freyre a mera
“transferência da europeia a um novo espaço, mas o começo de uma terceira civilização.
Uma civilização [...] cristã em que os valores exaltados pelo franciscanismo se acham
presentes, sob formas que lhe dão algumas de suas melhores originalidades”,339 ou seja,
o Brasil. O nervo central que irradiou a formação da sociedade patriarcal340 brasileira
atravessada pela miscigenação, catolicismo, monocultura escravocrata341 e pela
sedentarização da família está localizado no papel do colonizador português.342

335
Ibid. id.
336
FREYRE, 2005, p. 356.
337
LIMA, In: ARAÚJO, 1994, p. 10.
338
FREYRE, 2005, p. 115.
339
FREYRE, apud. MOTA, In: DANTAS, BRITTO, 2002, p. 77.
340
Esta categoria nos remete ao ideal de uma família extensa, híbrida e – um pouco como no velho
testamento – poligâmica, na qual senhoras e escravas, herdeiros legítimos e ilegítimos convivem sob a luz
ambígua da intimidade e da violência, da disponibilidade e da confraternização. Cf.: ARAÚJO, Ricardo
Benzaquen de. Guerra e Paz: Casa Grande & Senzala e a obra de Gilberto Freyre nos anos 30. Rio de
Janeiro: Editora 34. 1994. p. 54.
341
Ricardo Benzaquen de Araújo: “Gilberto dá realmente a impressão de que ele imaginava existir aqui o
que poderíamos chamar de escravidão não-despótica, docemente embalada pela miscigenação e pela
plasticidade que normalmente identificavam o português. [...] da mesma forma que encontramos em CGS
um vigoroso elogio da confraternização entre negros e brancos, também é perfeitamente possível
descobrirmos lá numerosas passagens que tornam explícito o gigantesco grau de violência inerente ao
sistema escravocrata, violência que chega a alcançar os parentes do senhor, mas que é majoritária e
112

A importância do estudo sobre a presença hispânica no trópico é marcada pelo


destaque que Gilberto Freyre faz à “plasticidade do português e do espanhol para
formas de arte e expressões de vida que fugiam aos padrões estéticos e também éticos
do europeu. Êsse gosto, êle atribuía, diretamente, à influência moura durante 8 séculos
maciços de dominação” nas esferas militar e cultural, em atividade na Península
Ibérica.343
Afirmar a plasticidade portuguesa significa que essa noção não está vinculada
apenas à resultante do intercâmbio étnico-cultural ocorrido no Brasil pelos três grupos
formadores, mas pela sua natureza de trânsito com outros povos, muito antes do contato
nos trópicos. Isto revela a característica do português como indivíduo “que perde
inapelavelmente a sua identidade de branco ‘puro’, passando então a ser encarado como
um personagem híbrido”,344 marcado pela mistura além-Europa. A localização
geográfica de Portugal está situada nas fronteiras ligadas às rotas de passagem para a
África, propiciando um cenário rico para cruzamentos étnicos e culturais com os
chamados “povos de cor”.
Desse modo, a disposição do português para a mistura reflete, por exemplo, no:

[...] seu ideal de beleza feminina [...] influenciado pelo mouro, isto é,
sedução da mulher de pele morena e até parda [...]. Tal influência
neutralizou entre os lusos o culto, entre outros povos europeus, quase
exclusivo, da mulher loura [...].Vindo para o Brasil, os portugueses
traziam na sua mística sexual a impressão das “princesas mouras”, das
mouras não só “encantadas”, como encantadoras de cujas figuras de
rara beleza ou graça sem igual, estava impregnado seu folclore, seu
espírito, sua imaginação. De modo que fácil lhes foi se compensarem
da relativa escassez de mulheres européias no Brasil [...]. [No Brasil],
verificou-se, desde os primeiros tempos de colonização [...], tendência
diversa, e que chegou, às vezes, a ser quase tão forte quanto à
dominante, no sentido da valorização das raças de cor e do
aproveitamento de elementos de sua cultura. Elementos que a
experiência de colonização da América tropical foi revelando serem
mais adequados a esta parte do mundo que valores intransigentemente
europeus.345

regularmente endereçada aos escravos. [...] podemos perceber que, apesar da mestiçagem, da tolerância e
da flexibilidade, o inferno parecia conviver muito bem com o paraíso em nossa experiência colonial”. Cf:
Ibidem, p. 48.
342
FREYRE, apud. MOTA, In: DANTAS, BRITTO, 2002, p. 77.
343
ALCÂNTARA, In: AMADO. 1962, p. 19.
344
ARAÚJO, 1994, p. 43.
345
FREYRE, Gilberto. A Propósito de relações entre raças e culturas no Brasil. Dakar: IFAN, 1953.
Disponível em: <http://prossiga.bvgf.fgf.org.br/portugues/obra/opusculos.html.> Acesso em: Abril/Maio
de 2011.
113

Em “Casa Grande & Senzala”, Gilberto Freyre expõe que a virtude do português
está no seu caráter flexível – “inteiramente [despido] de compromissos com a coerência
e a rigidez”346 – um dos aspectos fundamentais na efetivação da colonização e formação
da identidade cultural brasileira.
Como prolongamento natural da concepção de mestiçagem, o autor, ao
condensar a mobilidade, miscibilidade e aclimatabilidade na força da plasticidade,
transforma estas categorias em elementos centrais de análise, resultando na
“concretização da experiência étnica e cultural de Portugal” no Brasil.347
“Casa Grande & Senzala” apresenta o momento que seu olhar está concentrado
na pesquisa sobre a história da formação social do Brasil, a partir deste complexo de
elementos expostos acima, que definem os traços “legítimos” da cultura no país. O
destaque dado à presença do elemento português na configuração da identidade nacional
está escrito em dois trabalhos que marcam o interesse do autor pelo tema, a saber: “O
Mundo que o Português Criou” e “Uma Cultura Ameaçada: a luso-brasileira”,348 ambos
escritos em 1940.
Para Alessandro Candeas, esta década é o período em que as perspectivas
teóricas percorridas na obra de Gilberto Freyre não trabalharam especificamente com o
estabelecimento dos fundamentos da identidade nacional, como ocorreu nos anos 20 e
30. Aqui podemos notar uma mudança que se eleva [...] “à dimensão internacional e
política dos conflitos culturais: para ele, não se trata mais de compreender uma
sociedade nacional, mas de defender uma civilização”,349 chamada luso-brasileira,
ameaçada pelos imperialismos culturais totalitários centro-europeus (como o nazismo).
Esta fase é marcada pela reivindicação dos valores máximos da cultura
binacional, alinhada aos conjuntos de formação luso-brasileira, luso-africana, luso-
oriental e luso-tropical. Para Freyre, a defesa é reforçada contra as “[...] tentativas de
descaracterização da cultura luso-brasileira venham de onde venham: da Europa ou dos

346
ARAÚJO, 1994, pp. 43-44.
347
Ibid. id.
348
Para Alessandro Candeas, esta conferência é um marco na militância intelectual de Gilberto Freyre,
para Candeas: o autor inquieta-se com a ameaça de destruição desse patrimônio civilizacional [...] e reage
com a sua melhor arma: a construção de uma mentalidade científica sintetizada no termo tropicologia.
Cf.: CANDEAS, Alessandro. Trópico, Cultura e Desenvolvimento: a reflexão da UNESCO e a
tropicologia de Gilberto Freyre. Brasília: UNESCO, Liber Livro, 2010. p, 164.
349
CANDEAS, 2010, p. 164.
114

Estados Unidos. De qualquer tipo de superpotência por acaso desvairada [...]” como a
União Soviética.350
Seu esforço está na busca de valorizar a:

[...] figura – por tanto tempo caluniada – do colonizador português no


Brasil; para a rehabilitação da obra – por tanto tempo negada ou
diminuída – da colonização portuguesa da América; para a
rehabilitação da cultura luso-brasileira, ameaçada hoje [...] por agentes
culturais de imperialismos etno-cêntricos, interessados em nos
desprestigiar como raça – que qualificam de “mestiça”, “inepta”,
“corrupta” – e como cultura – que desdenham como rasteiramente
inferior à sua.351

Em vez de aceitar os preconceitos eugênicos sobre a formação cultural


brasileira, o autor afirma que tais concepções negativas restringem o “verdadeiro”
espírito da colonização portuguesa, no qual seu maior triunfo está na combinação das
constantes que direcionam a gênese do país: “o espírito de aventura e o gosto da rotina.
O espírito de iniciação e o gosto de conservação. O espírito científico e o espírito
prático”.352
O espírito de aventura, que move o português para se diluir e ao mesmo tempo
marcar a diferença no processo colonizador, não ocorreu fechada num exclusivismo de
raça ou cultura, mas pela soma destes valores, a partir da miscigenação. Isto define
nossa pluralidade cultural, pela extensão da herança portuguesa nas “culturas nacionais
ou regionais [...] de que o Brasil é hoje a expressão mais destacada”.353
Para Freyre, tudo que for hostil às raízes luso-brasileiras:
[...] é contrário aos interesses essenciais do Brasil. Não que isso
signifique [...] um Brasil preso à singularidade da cultura lusitana e
com função de adjetivo em relação a ela. [...] A nossa cultura já
principia a afirmar-se [...] substantiva e plural. [Com] sua estrutura
[...] portuguesa e cristã. [Fundada] através de vasta miscigenação e de
larga interpenetração de culturas. Inclusive a interpenetração de
línguas e religiões. [...] a força criadora do português, em vez de se
impor com intransigência imperial, ligou-se, no Brasil, ao poder
artístico do índio e do negro [...]. A favor dessa unidade de cultura
creio que devemos trabalhar todos os escritores de Portugal, do Brasil,
da África e da Índia Portuguesa [...] [pela defesa dessa herança
histórica].354

350
FREYRE, Gilberto. Uma Cultura Ameaçada: a Luso – Brasileira. Recife: Gabinete Português de
Leitura. 1980. p. 17.
351
Ibidem, p. 25.
352
Ibidem, p. 37.
353
FREYRE, Gilberto. O Mundo que o Português criou. São Paulo: É Realizações. 2010.
354
FREYRE, 2010, pp. 24-41-64.
115

A dinâmica da mestiçagem abre espaço para a cultura portuguesa receber novas


influências, através da integração “para a relativa estabilização de traços”355 que
afirmam nossa originalidade. O sentido que direciona o eixo colonizador é estabelecido
por uma troca de experiências múltiplas, a partir da integração entre senzala e casa
grande, conectadas pela língua, comida, higiene, sexo, folclore, instituições e outras
práticas geradoras do Brasil que, centrada na figura do português – condutor do
processo – o país se constitui pela aproximação de influências culturais antagônicas nos
trópicos.
Sua preocupação com o destino da cultura brasileira é resultante de uma
inquietação em torno da possível ameaça de dissolução, e toma como recurso defensivo
a elaboração de uma consciência científica baseada em pesquisas tropicológicas. Diante
das nações técnicas e economicamente mais fortes, Freyre reage “contra as ameaças
imperialistas e racistas e contra a rejeição da mestiçagem e da herança ibérica”.356
Sua leitura em torno da cultura será marcada pela “discussão normativa sobre a
evolução futura da sociedade, da cultura e da ecologia das nações tropicais”, expondo
um conjunto de reflexões que passam a “voltar-se para o futuro e buscam, em uma
perspectiva de longa duração, afirmar o potencial de progresso dos povos tropicais, não
somente lusófonos. [...] Sua atitude será mais afirmativa e menos descritiva ou
especulativa”.357
A intensificação dos estudos sobre a cultura brasileira o leva, nos anos 50, a
trabalhar no estabelecimento do lusotropicalismo, originado da experiência colonial
portuguesa nos trópicos. Suas pesquisas informam o lusotropicalismo como área do
saber que investiga o complexo de adaptações do português no Brasil, vistas pelo autor
também como vocação transeuropeia e tropical.
O destino do português fixado no trópico é marcado pela transformação do “Eu”,
para incorporar o “Outro”, caso contrário, “quando o português deixa de ser um povo
lusotropical e tenta ser ‘um Europeu no trópico’, como o inglês [...] torna-se mesquinho,
‘uma caricatura ridícula dessas nações imperiais em rápida dissolução’”.358
Ou seja, no trópico, os grupos que não se adaptavam ao processo de colonização
eram os europeus não-ibéricos, ligados ao espírito imperialista-etnocêntrico-racista,
fazendo o tropicalismo freyreano rebentar:

355
Ibidem, p. 33.
356
CANDEAS, 2010, p. 164.
357
Ibidem, p. 165.
358
FREYRE, apud. CANDEAS, 2010, p. 168.
116

[...] para distinguir-se autêntico no seu traçado de tempo e espaço. [...]


um espaço que se define em terras quentes e prodigamente estranhas
ao eurocentrismo dominante. A expressão lusotropical alia-se ao
pendor do português à miscibilidade, à adaptabilidade e à mobilidade,
tão inerentes à personalidade ibérica. Esse conjunto de qualidades
conferiu-lhe o feliz desenho de uma colonização nos trópicos. De
origem compósita, a indefinição étnica ofertou-lhe condições
plausíveis à convivência com as dificuldades que advinham de um
espaço geograficamente estranho, à primeira vista arredio à
acomodação européia. [...] A plasticidade portuguesa vence. O seu
passado investe-se de uma dignidade de todo especial para equalizar-
se em distintos planos latitudinais. [...] A propensão lusitana para o
equilíbrio de antagonismos simboliza a grande armadura do povo
ibérico. O português afasta-se da mística de raça, mas incorpora a
mística da alteridade. Entranha-se no outro, aceitando-o por inteiro na
sua integridade.359

A respeito da noção de trópico,360 Gilberto Freyre acredita que os estudos


antropológicos/sociológicos/históricos sobre a tropicalidade nascem “da fé [do seu]
desenvolvimento sustentável [...] e na possibilidade de construção de modelos
autenticamente tropicais de bem-estar”.361
Deste modo, o sociólogo busca o desenvolvimento de uma ciência que se
dedique à ampliação dos estudos das particularidades regionais e nacionais, valorizando
o papel que o trópico exerce na constituição dos homens e da cultura brasileira. Seria
uma forma de conhecer profundamente o Brasil com métodos e visões renovadas,
resultante da experiência direta com a realidade tropical, distanciando-se dos modelos e
tendências europeias de interpretação do homem no meio.
O principal incentivo para o fortalecimento destes estudos vem da experiência de
Freyre nas viagens realizadas entre agosto de 1951 a fevereiro de 1952, materializadas
no livro “Aventura e Rotina”. Lançado em 1953 no formato diário de bordo, o autor

359
QUINTAS, Fátima. Tristes Trópicos ou alegres Trópicos? O Luso-tropicalismo em Gilberto Freyre.
Ciência & Trópico, Recife. v. 28, n. 1, p. 21-44, jan./jun. 2000. Disponível em:
http://www.bvgf.fgf.org.br/portugues/critica/artigos_cientificos/tristes_tropicos.htm. Acesso em: Jun. de
2011.
360
Em “Casa Grande & Senzala”, ela tem sua primeira definição diretamente vinculada à noção de clima,
fortemente marcada, aliás, pelo fato de que “tudo aqui era desequilíbrio. Grandes excessos e grandes
deficiências, as da nova terra. O solo, excetuadas as manchas de terra preta ou roxa, de excepcional
fertilidade, estava longe de ser o bom de se plantar nele tudo o que quisesse [...]. Em grande parte rebelde
à disciplina agrícola. Áspero, intratável”. FREYRE, apud. ARAÚJO, Ricardo Benzaquen de. Guerra e
Paz: Casa Grande & Senzala e a obra de Gilberto Freyre nos anos 30. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994.
361
CANDEAS, 2010, p. 161.
117

percorre pelo império português ultramarino362 sentindo de perto a realidade dos povos
atravessados pela cultura portuguesa.
Amplia o olhar da cultura portuguesa além-Brasil percebendo na sua análise que,
“as situações luso-africanas eram, algumas delas, de um tipo que talvez viesse a resultar,
quando as províncias ou colônias passassem a Estados Nacionais, em novos Brasis 363”.
As regiões visitadas revelam-se a Freyre como espaços eurotropicais, definidas pela
convivência entre europeus e não-europeus num clima de natureza tropical,
“caracterizada por uma como deseuropeização nos modos de vida [...] característicos
susceptíveis de ser denominado lusotropicais: comuns a luso-orientais, a luso-africanos,
a luso-americanos situados em espaços [...] tropicais”.364
Para Fátima Quintas, as viagens realizadas por Freyre em terras tropicais
possibilitou a formulação do “conceito de lusotropicalismo [...]. Mas não de repente.
Sua semente há muito vinha se solidificando, num périplo intelectual assentado numa
ampla gárgula de experiência e vivência. O lusotropicalismo excede-se, em germinações
e desdobra-se” na Tropicologia, área do conhecimento científico que explora, numa
perspectiva interdisciplinar, o papel do homem nos trópicos, “e que emerge das
circunvoluções freyreanas em torno da originalidade e da excepcionalidade do
português, esse, um vocacionado para o mundo tropical”.365
Através de pesquisas sobre a influência dos portugueses, africanos, asiáticos e
dos espanhóis nos trópicos, Gilberto Freyre propõe a elaboração da análise deste
processo a partir de um tipo de Ciência Social auxiliar. Especializada no
aprofundamento dos estudos da colonização espanhola e portuguesa na América: a
Hispano-Tropicologia – na qual a Luso-Tropicologia seria formulada enquanto
especialidade, para objetivar a compreensão da “transformação dos sistemas e valores
portugueses de vida, trabalho”366 e cultura – que valoriza o papel do colonizador

362
[...] Tendo as viagens por Orientes e Áfricas da década de 50 proporcionado ao observador brasileiro
contatos não só com o Egito, a Arábia Saudita, a então Nova Indiana, o Paquistão, porém também com a
União Sul-Africana, o Congo Belga, as Rodésias, o Senegal [...] Cabo Verde e na Angola [...]
Moçambique e [...] Guiné Portuguesa. Cf: FREYRE, Gilberto. Aventura e Rotina: sugestões de uma
viagem à procura das constantes portuguesas de caráter e ação. Rio de Janeiro. Top Books. 2001.
363
FREYRE, Gilberto. Aventura e Rotina: sugestões de uma viagem à procura das constantes portuguesas
de caráter e ação. Rio de Janeiro: Top Books, 2001. p. 26.
364
FREYRE, 2001. p. 26.
365
QUINTAS, 2000.
366
ALCÂNTARA, Marco-Aurélio de. Gilberto Freyre e a Cultura Hispânica. In: AMADO, Gilberto.
Gilberto Freyre: sua ciência, sua filosofia, sua arte. Rio de Janeiro: José Olympio Editora. 1962. p. 18.
366
FREYRE, Gilberto. Em torno de um novo conceito de tropicalismo. Coimbra, 1952. Disponível em:
<http://prossiga.bvgf.fgf.org.br/portugues/obra/opusculos.html.> Acesso em: Abr./Mai. de 2011.
118

português situado no trópico e sua relação comportamental com outros povos


envolvidos no conjunto formador da identidade brasileira.
Na conferência “Em torno de um novo conceito de tropicalismo”, realizado em
Coimbra (1952), Freyre expõe que a visão europeia em torno do tropicalismo estava
ligada a uma generalização preconceituosa, que coloca o trópico como região
inadequada à aclimatação e a sobrevivência dos valores da ordem e moral, atribuindo
aos “não-europeus” uma visão de “primitivos”, opondo-se ao mundo europeu
civilizado.
Ou seja, para os intelectuais da segunda metade do século XIX, tudo que
estivesse vinculado ao trópico seria “desordenado, [...] exuberante. O extremo oposto à
civilização europeia mais requintada [...], não apenas na elaboração das suas obras de
arte e de pensamento, nas suas modas de traje [...] nos seus estilos de habitação”.367
O modo pejorativo em relação ao trópico neste momento atingia também a
produção artística, que era “menos conformadas com as ideias francesas de medida,
com os padrões vitorianos de colorido368”. Apesar do ceticismo presente na civilização
europeia sobre o trópico – que não reconhecia nas populações tropicais sua
potencialidade cultural e as encarava como “servis e inferiores” – Gilberto Freyre expõe
que o “narcicismo europeu anti-melanista” está em crise, num período histórico,
marcado pelas “tentativas audaciosas de reabilitação, nas artes, de valores tropicais”.369
Reabilitação fundamentada na Antropologia, Sociologia, Literatura, Pintura,
Escultura, Medicina, que investiga novas formas de interpretar os valores tropicais,
longe da perspectiva voltada ao mero interesse de curiosidade etnográfico-pitoresca.
Nos trópicos é possível existir expressões significativas de um povo produtor de
cultura, antes desprezado, do qual o europeu tem que compreender sua singularidade e
absorvê-la, não apenas conquistar pela violência e interesses econômicos. O trópico é
positivado pelo seu reconhecimento como elemento primordial, na constituição da
cultura brasileira, que a torna única e diferente dos outros povos.
Freyre afirma que é possível somar as vantagens existentes entre os aspectos da
vida civilizada com o clima tropical, em que [...] “vive um povo cuja cultura europeia é
principalmente hispânica [...] e cuja composição étnica é [...] principalmente

367
FREYRE,1952.
368
Ibid. id.
369
Ibid. id.
119

portuguesa”,370 que leva a considerar o Brasil como espaço avançado em termos de


civilização “criada em processo de desenvolvimento em região tropical. Civilização que
não é puramente ocidental ou europeia, mas sob vários aspectos, extra-europeia. Ou
mais-que-europeia”.371
Nesse sentido, a tropicologia é vista enquanto síntese de várias ciências em
contato, formadas a partir de “um conjunto sistematizado de conhecimentos práticos
(também expressos em linguagem artística e literária, e não somente científica) sobre o
trópico, as civilizações que ali nasceram e se desenvolveram, e os obstáculos impostos
pela natureza tropical aos valores de civilização”372, oriundo de países temperados.
O conjunto de conhecimentos tropicológicos formam-se a partir do diálogo entre
“história, ecologia, antropologia e sociologia do homem situado no trópico – longe do
homem abstrato – e sobre culturas e civilizações condicionadas pelo espaço-tempo
tropical”.373
A sistematização dos estudos tropicológicos se consolida na década de 60,374
quando o sociólogo formula um discurso científico interessado na análise e
compreensão dos espaços tropicais, numa perspectiva de conjunto, não apenas ligado ao
Brasil, mas a toda civilização unida pelo calor dos trópicos. A partir de “Homem,
Cultura e Trópico” (1961), Freyre demonstrou seu interesse em ampliar a dimensão
científica contida nos novos estudos sobre o tema, materializados posteriormente nos
Seminários de Tropicologia.
A reunião envolvendo outros pesquisadores, para trabalhar em conjunto nas
reflexões sobre a organização sócio-cultural dos países tropicais era uma possibilidade
de ampliar sua legitimidade no universo acadêmico.375 O trópico seria pensado enquanto

370
FREYRE, 2000, pp. 160-161.
371
Ibid. id.
372
CANDEAS, 2010.
373
CANDEAS, 2010, p. 163.
374
As guerras de independência da África nos anos 60 forçarão uma nova mudança de perspectivas.
Freyre sentia a necessidade de libertar a lusotropicologia da associação espúria com o imperialismo
salazarista, a fim de constituí-la como verdadeira ciência. Cf.: CANDEAS, Alesssandro. Trópico, Cultura
e Desenvolvimento: a reflexão da UNESCO e a tropicologia de Gilberto Freyre. Brasília: UNESCO, Liber
Livro, 2010. p. 172.
375
O Seminário de Tropicologia ainda não conseguiu realizar eficazmente o projeto inicial da tropicologia
desejado por Freyre, qual seja a sistematização dos estudos no trópico. [...] ainda não se constituiu em
ciência normal reconhecida pela generalidade da comunidade científica brasileira – menos ainda
internacional. [...] não se consolidou uma comunidade epistêmica amplamente reconhecida,
comprometida com um processo de investigação e de formulação de uma teoria ampliada [...]. não chegou
a produzir uma atividade de rotina nos centros acadêmicos. Cf: CANDEAS, Alesssandro. Trópico,
Cultura e Desenvolvimento: a reflexão da UNESCO e a tropicologia de Gilberto Freyre. Brasília:
UNESCO, Liber Livro, 2010. p. 198.
120

“fluidez favorável a novas combinações étnicas, sociais, culturais em conseqüência não


só dessa convergência, como de uma ativa e viva interpenetração”,376 no caso do Brasil,
um país que desmistifica e supera os “extremismos ou purismos de toda a espécie”.377
O principal objetivo dos estudos ligados à sociedade e culturas tropicais está no
seu caráter operacional, para tornar-se útil nos seus deveres de responsabilidade na
afirmação do homem situado no trópico. Na busca de prolongar-se enquanto engenharia
social, os estudos sistemáticos surgem com a perspectiva de viabilizar a construção de
“um plano de ação e base cultural e ecológica – com vistas [...] a proteger a herança da
civilização luso-brasileira e luso-tropical”.378
Para fortalecer as bases de desenvolvimento das nações, Freyre volta-se para a
reflexão da “transformação das sociedades, [...] e à redistribuição de poder no cenário
mundial” 379 fazendo da tropicologia um estudo que nos mostra o homem tropical longe
das concepções que o diminuem ao mero “pitoresco”. Ao contrário, expõe que o homem
situado no trópico faz “parte do mundo e da humanidade tão normal como a outra,
embora com motivos de natureza biológica e de ordem cultural para se desenvolverem
de modo diferente da europeia ou da anglo-americana”.380
A diferença estaria localizada na autonomia, somente possível a partir de sua
descolonização europeia, realizada dentro das suas possibilidades de crescimento nas
áreas científica, artística, industrial, política, etc. A civilização tropical ganha voz e
legitimidade, através do progresso das nações do terceiro mundo, ao resistir contra os
imperialismos culturais. Assim, “Freyre proclama uma nova fase na história: a
competição dos povos tropicais, liderada, em parte, pelo Brasil”.381
Esta nova etapa se consolida em 1966, na elaboração do Seminário de
Tropicologia382 coordenado por Gilberto Freyre. No “Simpósio sobre a Problemática
Universitária” (1965), sob organização do Reitor da Universidade Federal de
Pernambuco – Murilo Guimarães – o mesmo propôs a Gilberto Freyre, baseado na sua
376
FREYRE, Gilberto. Homem, cultura e trópico. Recife: Imprensa Universitária, 1962. Disponível em:
<http://prossiga.bvgf.fgf.org.br/portugues/obra/opusculos.html.> Acesso em: Abril/Maio de 2011.
377
FREYRE, Gilberto. Homem, cultura e trópico. Recife: Imprensa Universitária, 1962. Disponível em:
<http://prossiga.bvgf.fgf.org.br/portugues/obra/opusculos.html.> Acesso em: Abril/Maio de 2011.
378
CANDEAS, 2010, p.173.
379
CANDEAS, 2010, p.173.
380
FREYRE, 1962.
381
CANDEAS, 2010, pp. 193-194.
382
Instalado no ano de 1966, sob sua direção e coordenação na hoje Universidade Federal de
Pernambuco, o Seminário ali funcionou durante catorze anos. Em 1980 transferiu-se para a Fundação
Joaquim Nabuco e, em 1987, a ele associou-se a Fundação Gilberto Freyre. In: Reunião Especial
comemorativa dos 30 anos do Seminário de Tropicologia em Setúbal, Portugal (05/11/1996). Disponível
em: http://www.fundaj.gov.br/docs/tropico/semi/trop30-1.html
121

experiência de pesquisa na Universidade de Columbia, a criação de uma nova forma de


promover o debate acadêmico sobre o Brasil em Pernambuco.383
Inspirado no Seminário Interdisciplinar384 da Universidade de Columbia,
organizado pelo professor Frank Tannenbaum385, os seminários caracterizavam-se pela
abertura “ao confronto de experiências intelectuais e profissionais heterogêneas, como
tentativa de superação dos especialismos vigentes na época”.386
Para Sebastião Vila Nova, o Seminário de Tropicologia é resultante da
experiência e “necessidade do diálogo interdisciplinar como instrumento imprescindível
à superação da compartimentação do saber científico em campos e especialidades
estanques, buscando, assim, uma compreensão o quanto possível holística do homem
situado em áreas tropicais”.387
Adaptando a estrutura do seminário388 de acordo com as necessidades temáticas
nacionais e regionais, os debates e estudos iniciam em 1966, na reitoria da Universidade
Federal de Pernambuco. Através da troca de conhecimentos sobre o tema 389 entre

383
NOVA, Sebastião Vila. O Seminário de Tropicologia, sua origem e seu significado didático,
científico, humanístico e prático. Fundação Joaquim Nabuco. Recife – Pernambuco. Novembro de 1997.
Disponível em: <http://www.fundaj.gov.br/docs/tropico/semi/trop30-0b.html.> Acesso em: Jul. 2011.
384
Gilberto Freyre participou como convidado destes encontros.
385
Espaço criado por professores dos Estados Unidos e outros países, para debate e estudos
interdisciplinares diversos.
386
Para Freyre: Ao sugerir que se introduza o tipo Tannenbaum de seminário em uma universidade como
a do Recife, que, além de universalista nos seus objetivos gerais, junta ao fato de ser nacionalmente
brasileira a circunstância de situar-se em região do Brasil com características próprias de vida e de cultura
faço-o desejando que de início se subentenda que essa introdução importaria em adaptação; que se
processaria experimentalmente; que o experimento e a possível adaptação daquele anglo-americanismo à
nossa sistemática universitária, interessando às demais universidades e a outras instituições [...]. In:
FREYRE, Gilberto. Um Novo Tipo de Seminário (Tannenbaum) em Desenvolvimento na Universidade de
Columbia: Conveniência da Introdução da sua Sistemática na Universidade Federal de Pernambuco.
Recife: Imprensa Universitária, 1966. Disponível em:
<http://www.bvgf.fgf.org.br/portugues/obra/opusculos/tannembaum.html>
387
NOVA, 1997.
388
O Seminário do tipo Tannenbaum, ao que me parece, caracteriza-se essencialmente pela sua
composição heterogênea. Dêle participam professôres de diferentes especialidades, ao lado de elementos
extra-universitários, que podem ser técnicos, empresários, redatores de jornais, todos capazes, no seu
campo de ação, de oferecer contribuição efetiva para estudo e esclarecimento de determinado assunto.
Dessa composição aberta a uma representação menos uniforme, surgem ricas e variadas sugestões, de um
sentido mais humano, mais cheio de vida, do que as resultantes de seminários estritamente científicos,
necessàriamente mais herméticos. [...] êle combina trabalho criado e atividade recreativa, quase lúdica.
Combinação que talvez só resulte efetiva e produtiva à sombra do maior tempo livre – livre da burocracia
acadêmica ou da rotina rìgidamente pedagógica – que estão tendo, em certas universidades, professôres e
outros homens de estudo nos Estados Unidos. Idem.
389
A partir de conferências, este trabalho será debatido por dois ou três comentadores de Ciências afins ou
correlacionadas, ou mesmo de outras ciências ou saberes. Os comentadores especiais têm ampla liberdade
de crítica. O conferencista dispõe de 45 minutos para leitura do seu trabalho e cada comentador especial
tem 15 minutos para argui-lo. O coordenador dos trabalhos é Gilberto Freyre. Cf.: FREYRE, Gilberto.
Contribuição Paulista à Tropicologia: trabalhos apresentados ao Seminário de Tropicologia, da
Universidade Federal de Pernambuco, por solicitação do sociólogo Gilberto Freyre. São Paulo. Pioneira,
1974, p. 14.
122

estudiosos mais experientes e iniciantes – nos seus campos e especialidades – seja no


Nordeste ou de outras regiões do país, o seminário busca a integração das diversas áreas
do saber. O cruzamento destas especialidades gera a compreensão compartilhada e
dialógica em torno do complexo conjunto das práticas políticas, sociais e culturais que
informam a noção de trópico e da cultura brasileira.
Nesse sentido, o debate tropicológico – sob contribuição plural dos
pesquisadores ligados direta ou indiretamente ao tema – busca inter-relacionar a teia de
especialidades temáticas no “trans-especialismo que seja um generalismo
[comprometido] e não leviano, numa perspectiva lúdica, responsável socialmente e
intelectualmente com os destinos do Brasil”.390
A partir do levantamento histórico-temático realizado por Alessandro Candeas, é
possível visualizar as indicações gerais sobre o painel explorado pelos estudiosos
envolvidos nos Seminários de Tropicologia. Marcado por uma composição teórico-
metodológica heterogênea, os participantes deste evento trabalham na perspectiva
interdisciplinar, ao valorizar a confrontação e a “complementaridade de tendências,
experiências e sensibilidades acadêmicas, profissionais, empresariais, políticas,
religiosas e artísticas.391
Dentro dos objetivos que o seminário busca atingir está na compreensão do
Brasil a partir de suas considerações geofísicas socioculturais de formação, “não só uma
lusotropicologia ou uma hispanotropicologia, mas uma tropicologia que se estenda a
todos os trópicos culturalmente compreendidos”.392
Sobre as principais discussões realizadas no evento, podemos enumerar seus
eixos fundamentais: a colonização portuguesa em terras tropicais, cultura luso-
brasileira, sociologia, língua e literatura, ciência política, artes plásticas, saneamento,
decoração, questões da atualidade brasileira, terra, nutrição, vestuário, arqueologia,
saúde, indústria, transporte, habitação, tecnologia, ecologia, religião, cultura negra e
indígena, demografia, pedagogia, universidade, entre outros temas, todos ligados ao
binômio: cultura e desenvolvimento, destacando o potencial da personalidade brasileira.
O pensamento tropicológico de Gilberto Freyre é ampliado nos trabalhos de
outros pesquisadores, que promovem o Seminário a fim de imortalizar sua obra na

390
MARCONDES, In: Freyre, 1973, p. 14.
391
CANDEAS, 2010, p. 209.
392
FREYRE, Fernando de Mello. Conferência realizada na Reunião Especial comemorativa dos 30 anos
do Seminário de Tropicologia em Setúbal, Portugal (05/11/1996). Disponível em:
<http://www.fundaj.gov.br/docs/tropico/semi/trop30-1.html#fn1>
123

construção de novas bases analíticas que informam a noção de “cultura brasileira”,


apropriando-se do trópico enquanto:

[...] condição [do] homem [agir] como agente transformador do meio


[no qual] deve ser demonstrada com maior vigor. Caberia
principalmente ao Brasil desmentir o preconceito segundo o qual o
trópico seria incapaz de sustentar uma civilização moderna. O
problema maior da tropicologia é, portanto, saber como incorporar
um processo civilizador de origem ocidental – a modernização
industrial e urbana – sem prejudicar a autenticidade cultural.393

Em relação aos estudos sobre os problemas do Brasil e da Tropicologia em


geral, o Palhaço expõe que os mesmos estão vinculados ao interesse político de Gilberto
Freyre em abrigar os debates em instituições que legitimassem as pesquisas formuladas,
ao variado conjunto temático difundido no país, fazendo alusão no filme às “Relações
entre política e tecnocracia, a seu modo. Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais.
Pesquisas sociais, ao seu modo”.
Os discursos que ordenam sentido “coerente” ao pensamento freyreano, na
formulação de uma dada “cultura brasileira”, não são preservados apenas na Casa da
Cultura – espaço de atuação fílmica do Palhaço. A cena 2 indica que, diante da força
contida no conhecimento tropicólogico sobre o Brasil, a presença da obra de Gilberto
Freyre estende-se também à Universidade Federal de Pernambuco e ao Instituto
Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, espaços de acolhimento dos Seminários de
Tropicologia.
Estes lugares representam para o Palhaço os campos que demarcam o saber,
protegidos pelos muros das academias e pela presença influente do sociólogo, ao
recortar os elementos necessários na constituição de uma disciplina que institui para o
corpo social o lugar determinado da gênese cultural brasileira.
Nesse processo, Jomard Muniz de Britto afirma em entrevista a este pesquisador
que:

Gilberto Freyre não era [mais] uma pessoa, ele significava um


Instituto de Pesquisas Sociais, que agora é a Fundação de Cultura [...]
então a dominância era muito assim de... não era só de legitimação,
que quem fosse amigo dele estava bem situado nos trópicos, quem não
gostasse [...] quem não concordasse, então já era mal visto.394

393
CANDEAS, 2010, pp. 210-211.
394
Entrevista realizada na tarde de 07 de outubro de 2010, às 16h25, na residência de Jomard.
124

A presença do sociólogo em Recife, considerado por muitos, como “cânone


inquestionável” – haja vista sua longa trajetória em defesa das tradições culturais de
Pernambuco – colocava-o como centro das atenções, devido à popularidade e respeito
que possuía no circuito intelectual, possuindo livre espaço para transitar nas esferas
políticas e acadêmicas. Sua voz era decisiva na definição de projetos políticos, bem
como na organização dos saberes e práticas culturais tradicionalistas no Nordeste.
Gilberto Freyre coordena o tratamento dado aos estudos, imagens e discursos
sobre o Brasil, que estabilizam-se na memória nacional, em re-atualização constante,
pois, para uma região que perde espaço político em relação ao Sul do Brasil, é urgente
que se faça entender entre os intelectuais nordestinos:

[...] que não há nenhuma sociedade onde não existam narrativas


maiores, que se contam, se repetem, e que se vão mudando; fórmulas,
textos, coleções ritualizadas de discursos, que se recitam em
circunstâncias determinadas; coisas ditas uma vez e que são
preservadas, porque suspeitamos que nelas haja algo como um
segredo ou uma riqueza. [...] Com um funcionamento que é em parte
diferente, as “sociedades de discurso” têm por função conservar ou
produzir discursos, mas isso para os fazer circular num espaço
fechado, e para os distribuir segundo regras estritas, sem que os
detentores do discurso sejam lesados com essa distribuição.395

Desse modo, a Tropicologia reorganiza uma nova teia de definições culturais


para o país, situadas no conjunto de ações e trabalhos intelectuais reforçados em
diversas áreas, que busca validar a positividade da identidade nacional, inscrevendo-se
na perspectiva voltada à resistência aos processos de homogeneização da cultura
brasileira, diante da modernização descaracterizadora das raízes locais.
A teoria da formação cultural construída na obra de Gilberto Freyre torna-se
paradigmática para compreensão do país pelas camadas conservadores da sociedade,
devido seu caráter conciliador dos antagonismos, na busca de proteção dos elementos
tradicionais que faz o Brasil “original” e “íntegro” em relação aos outros países.
Para proteger tal integridade, Gilberto Freyre organiza o saber tropicológico
compartilhando “um domínio de objetos, um conjunto de métodos, um corpo de
proposições consideradas verdadeiras, um jogo de regras e de definições, de técnicas e

395
FOUCAULT, 1996, pp. 06-11.
125

de instrumentos396”, para exercer sobre tais domínios, o controle da produção discursiva


em torno da identidade brasileira.
A obra de Freyre – apesar de produzida em fases distintas, seguem a lógica de
construir um projeto para o Brasil – bem como seus desdobramentos difundidos nos
seminários tropicólogicos, estabelece a reedição da temática racial, para organizá-la
como objeto de estudo em primeiro plano, a fim de legitimar um lugar-chave na
compreensão da cultura brasileira.397
Os conceitos operados pelo autor possibilitam “a afirmação inequívoca de um
povo que se debatia ainda com as ambigüidades de sua própria definição. Ele se
transforma em unicidade nacional. Ao retrabalhar a problemática da cultura brasileira”.
Podemos afirmar que Freyre disponibiliza ao brasileiro uma “carteira de identidade”
oficial, pois “a ambigüidade da identidade do Ser nacional forjada por intelectuais do
século XIX não podia resistir por mais tempo”.398
A teoria da mestiçagem contida em “Casa Grande & Senzala” passa por um
“processo de re-significação dos negros e mestiços, valorizando essa mão de obra e
possibilitando sua utilização, num quadro menos conflituoso, pelo novo capitalismo
brasileiro, no período pós-1964”.399
Os grupos sociais são agregados em um objetivo comum: fortalecer o país com
uma identidade permanente e investir na “apologia do homem brasileiro, apologia que
se sustenta na positividade da mistura entre as três raças. Assim, a população mestiça é
valorizada e incorporada à nacionalidade”.400 O discurso que valoriza o homem
brasileiro pode ser encarado como elemento de uma peça maior, que trabalha pela
legitimação do próprio regime.
Para Anita Simis, “a questão é de ordem política e cultural: a valorização do
homem brasileiro e sua relação com o Estado. Nesse sentido, uma de suas preocupações
é demonstrar que o regime transcende ao aspecto meramente econômico e político,
possuindo também uma base cultural”.401

396
FOUCAULT, 1996, p. 8.
397
ORTIZ, 2006, p. 41.
398
Ibidem, p. 42.
399
FICO, Carlos. apud. SILVA, Vanderli Maria da. A Construção da Política Cultural no Regime
Militar: concepções, diretrizes e programas (1974-1978). Universidade de São Paulo (USP). Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Dissertação de Mestrado (Sociologia). 2001. p. 27.
400
SIMIS, Anita. A Política Cultural como Política Pública. III ENECULT, Anais de Encontro. Salvador,
2007. p. 6.
401
SIMIS, 2007. p. 6.
126

Do interior da Casa Grande – marcada pelos excessos do calor tropical – o


Palhaço emerge para romper com a estabilidade do pensamento tradicionalista,
desordenando a naturalização das palavras que produzem sentido à cultura brasileira
pela ótica freyreana.
Brinca, debocha e rodopia com os conceitos e imagens “sérias” do Brasil,
desarticulando-as ao riso clownesco, para instaurá-las no jogo dispersivo e revelar que,
cultura e política constituem mais do que nunca, componentes indissolúveis do mesmo
processo. Para isso, o corpo clown move-se na contramão do engessamento cultural
brasileiro no final dos anos 70, tomando como base crítica inicial o olhar freyreano,
definido no filme através do conjunto de textos e imagens citadas pelo personagem,
remetendo-se diretamente ao sentido do “Ser” nacional, já constituído em “consenso”
como identidade legítima na sociedade.402
A ânsia do Palhaço em romper as grossas paredes do casarão é uma forma de
questionar pelo excesso – gritos, corridas, risos e pulos, elementos centrais na base
criativa clownesca – que os discursos formulados em torno da brasilidade em Gilberto
Freyre “pressupõe uma força de coerção que diz respeito ao poder”403 de fundar um
passado com raízes culturais no Nordeste, para “instaurar um espaço imaginário sob as
relações estéticas da arte brasileira”.404 O poder arquivante dar-se-ia na constituição de
uma “instância e de um lugar de autoridade”, na qual se designa como característica
principal a capacidade de gerar o “começo e o comando” social, o que torna-se
“instituidor e conservador”.405
No filme, a territorialidade que legitima os discursos em torno do
Nordeste/Brasil/Trópico está representada inicialmente pela Casa da Cultura e à obra
freyreana. Esses elementos simbolizam a instituição das “bases” culturais no país,
coordenando um corpus documental ligados em um sistema em que “todos os elementos
articulam a unidade de configuração ideal. [...] [Na formação da cultura brasileira], não
deve haver dissolução absoluta, heterogeneidade ou segredo que viesse a separar [...]
compartimentar de modo absoluto406.
A Casa da Cultura é o principal ponto de conflito instaurado, onde a contradição
envolvendo o trânsito clown em Jomard com a rigidez do casarão – espaço arquitetônico
402
MOTA, 1977, p. 19.
403
DERRIDA, Jacques. Mal de Arquivo: Uma Impressão Freudiana. Rio de Janeiro. Relume Dumará.
2001. p. 11.
404
Ibid. id.
405
DERRIDA, 2001, pp. 11-18.
406
Ibidem, pp. 14.
127

estático, que conserva a cultura como guardião de um passado em crise – e aos


discursos freyreanos, marcam as tensões históricas que irão desdobrar-se durante todo o
audiovisual.
Diante dessas camadas sólidas que o amarram, o corpo clown jomardiano será
usado como “bandeira crítica da identidade nacional e regional, não só, escrevendo no
corpo, mas com o corpo essa crítica da ideia de nação e região; não o corpo da história,
mas o corpo na história”,407 contra os esforços de totalização histórica presentes no
discurso tradicionalista.
Jomard interpreta o palhaço para carnavalizar os esforços de legitimação desta
“cultura oficial” e lançando-se contra o universo regionalista – endurecida na geometria
impermeável da instituição – representada no monumento que é a Casa da Cultura,
protegido por relações político-administrativas que insistem em conciliar a permanência
das tradições nordestinas enquanto discurso legítimo da cultura brasileira.
O simbolismo contido no casarão e a evocação à Gilberto Freyre no superoito,
deixa clara a associação entre cultura e autoritarismo nas décadas de 60/70. Dessa
forma, este momento inicial do filme explicita uma provocação à linha de pensamento
freyreana, criticando-a como discurso apropriado pelo regime autoritário que delimita
os campos de atuação espacial na cultura brasileira, enquanto possibilidades plurais,
fora da lógica dos “empoderamentos” oficiais.
O Palhaço usa a porta de entrada da Casa como signo que representa o
fechamento das fronteiras e a cristalização da identidade cultural brasileira. A
confraternização freyreana, antes vista pelo olhar do Senhor é des-ritualizada pela
transgressão do bobo da corte, desnudando a ideia de que as formulações
tradicionalistas sobre a cultura são articuladas por uma rede de poder que é sustentada
por um:

[...] saber estereotipado, que reserva a este espaço o lugar do gueto nas
relações sociais em nível nacional, região que é preservada como
elaboração imagético-discursiva como lugar da periferia, da margem,
nas relações econômicas e políticas do país, que transforma seus
habitantes em marginais da cultura nacional. [...] São espaços que se
institucionalizam, que ganham foro de verdade. [...] Eles nos chegam
e são subjetivados por meio da educação, dos contatos sociais, dos
hábitos, ou seja, da cultura, que nos faz pensar o real como

407
ALBUQUERQUE JR, 2008
128

totalizações abstratas. [...] O regionalismo é muito mais do que uma


ideologia da classe dominante de uma dada região.408

“O Palhaço Degolado” é fruto da insatisfação de um intelectual que vivencia


diretamente o processo de cerceamento político-cultural no regime militar, apropriando-
se dos elementos tradicionalistas para reorganizar o sentido ideológico que informam as
diretrizes políticas da “cultura brasileira”, atendendo os interesses das camadas
conservadoras de pensamento nas décadas de 60/70.
O filme deseja ampliar suas provocações para a crise sentida na conversão do
discurso tradicionalista para o autoritarismo cultural nos anos de chumbo, saindo da
Casa Grande os mandos e desmandos das ações político-culturais no regime militar
brasileiro, que silenciou muitas vozes desejantes pela desafinação das fronteiras
culturais do país.
2.5. Afrontar as fronteiras.
Conforme a exposição vista até aqui, podemos compreender que o debate
proposto pelo “Palhaço Degolado” está inserido numa perspectiva crítica aos modelos
de pensamento sobre a cultura brasileira, formulado por um intelectual cânone da
historiografia e pela cena cultural conservadora em Pernambuco nos anos 70.
A figura do palhaço em Jomard Muniz de Britto é um elemento que expressa a
negação ao controle do Estado e dos intelectuais sobre o fazer cultural. A performance
elaborada no filme representa “um hiato entre o pensamento autoritário e a realidade”409
criativa, uma busca pelo avesso da coerência intelectual, pelas contradições e
possibilidades de reinterpretação da prática cultural fora das esferas e estamentos
oficiais.
Nesse sentido – após a exploração do painel que informa a visão de Gilberto
Freyre sobre a formação do país, podemos articular a relação que envolve o interesse do
Estado pelo tradicionalismo cultural. O Estado visa elaborar uma política nacional de
cultura, sob intervenção planejada das instituições para exercer o controle das produções
artísticas nas décadas de 60 e 70.
Renato Ortiz afirma que, para estudar as estruturas que cercam o campo da
cultura, é preciso considerar o papel exercido pelo Estado brasileiro, “que sem dúvida
alguma é um dos elementos dinâmicos e definidores da problemática cultural”.410

408
ALBUQUERQUE JR, 2006, pp. 26-27.
409
ORTIZ, 2006, p. 83.
410
Ibidem, p. 79.
129

Uma das preocupações que envolvem o governo autoritário está na reflexão em


torno da integração nacional e da legitimação da esfera cultural, a fim de conciliar a
diversidade dentro de uma hegemonia estatal, na busca pela integração das partes, a
partir de um centro de decisão conservador. “Dentro deste quadro, a cultura pode e deve
ser estimulada, [desde que esteja enquadrada nos decretos-leis e portarias] [...] que
disciplinam e organizam os produtores, a produção e a distribuição dos bens culturais”.
411

A concretização de um projeto cultural brasileiro só é possível a partir da


incorporação de intelectuais tradicionais no seu sistema político. Esse grupo,
representante de uma ordem passada, terá como objetivo principal desenvolver as
diretrizes que serão as bases de uma política cultural para o país.412
O governo passa por um processo de reorganização nas atividades econômicas e
culturais no pós-64. Uma das metas estabelecidas está na redefinição dos campos
políticos nos Estados/Municípios, elegendo nomes influentes da intelectualidade
brasileira para ocupar os cargos oferecidos nos novos departamentos, como a
EMBRATEL, criada em 1965; Ministério das Telecomunicações, 1967; TELEBRÁS,
1972; entre outros.
A respeito da formulação de um discurso atrelado aos interesses do Estado –
para fortalecer os ideais de uma “cultura brasileira” no regime militar – é importante
ressaltar que, ao incorporar à sua estrutura de planejamento político, a gênese e o
pensamento dos intelectuais conservadores não afetará as bases e os objetivos que o
Estado se propõe efetivar, pois:

[...] suas ideias não têm mais força de necessidade histórica. Porém, é
importante compreender que, para o Estado, sua incorporação permite
estabelecer uma ligação entre o presente e o passado. Ao chamar para
os seus serviços os representantes da tradição, o Estado
ideologicamente coloca o movimento de 64 como continuidade, e não
como ruptura, concretizando uma associação com as origens do
pensamento sobre cultura brasileira[...].413

Atuando dessa forma, o Estado autoritário incorpora nos pilares do seu discurso
ideológico um conjunto de elementos que valorizam a formação da cultura nacional,
definidas pela temática do Brasil mestiço. Assim, a mistura de povos e culturas no país

411
Ibidem, pp. 82-83-88.
412
Ibidem, p. 91.
413
ORTIZ, 2006, p. 91.
130

contém os traços naturais que legitimam a identidade brasileira, pressuposto que afirma
a diversidade de culturas e manifestações em torno de uma unidade nacional coesa,
protegida pelo Estado forte.
A valorização da mestiçagem e o reconhecimento do país como local que
resguarda a pluralidade cultural transmitem o que Renato Ortiz chama de “ideologia da
harmonia”, no qual podemos relacionar essa característica ao modelo de pensamento
baseado na obra de Gilberto Freyre. Para ele, “diversidade significa [...] diferenciação, o
que elimina a priori os aspectos de antagonismo e de conflito da sociedade. As partes
são distintas, mas se encontram harmonicamente unidas”.414
A partir da noção de diferenciação – opondo-se a antagonismo/conflito –
podemos afirmar que esta perspectiva neutraliza os conflitos no interior da própria
“diferenciação”, definindo no país a presença de uma sociedade equilibrada, devido o
processo de mestiçagem, que aglutina, além de significados como “harmonia e
equilíbrio, o de democracia e liberdade”.415
A visão de cultura brasileira contida na obra de Gilberto Freyre centraliza o
conjunto de interesses de todo um grupo social, articulado na manutenção das tradições
enquanto fundamento que sustente o jogo político autoritário, que se definiu nos anos
60. Reconhecido como um autor paradigmático nesse processo, as concepções
freyreanas de cultura expostas no início desta Entrada – a partir da cena inicial do filme
em estudo – representam um caminho para fortalecer a identidade do país.
É importante destacar que não podemos vincular essa associação como mera
relação de causalidade, pois Freyre é um intelectual em que sua produção deve ser vista
enquanto modelo que atrai os segmentos conservadores no campo político, não como
pensador que influencia diretamente as decisões político-culturais no regime militar. Ele
é parte integrante de uma estrutura preparada para elaborar uma política de cultura
estatal.416
Intelectual representante da luta pela valorização das tradições culturais
brasileiras, as concepções políticas de Gilberto Freyre chegam “aos anos 50 [imbuídas]
de convicções políticas marcadas pela ‘guerra fria’ e por uma acentuada hostilidade à
esquerda, em geral”.417 Leandro Konder afirma que, para Freyre, “a história que estava

414
Ibidem, pp. 93-94.
415
Ibidem, p. 94.
416
ORTIZ, 2006, p. 93.
417
KONDER, Leandro. História dos Intelectuais dos Anos Cinqüenta. p. 359. s/a. Impresso.
131

se fazendo não era motivo de orgulho, mas de apreensão. Forças destrutivas estavam
atuando de maneira pérfida, sob a influência do comunismo internacional”.418
Antes da implantação do golpe militar em 1964, Gilberto Freyre já se
posicionava a favor de uma política nacional centralizada sob os cuidados das forças
armadas. Na conferência “Nação e Exército”, o sociólogo expressa que:

[O] Exército [...] é hoje, no Brasil, força organizada no meio de muita


desorganização que nos perturba e aflige. Quase todo brasileiro sente
essa realidade. Mas como somos gente comodista, em vez de
procurarmos nos organizar, vamos facilmente nos resignando com a
nossa pobreza humilhante de organização civil, religiosa e cultural;
contra essa desorganização vamos nos apoiando passiva e
perigosamente na organização do Exército [...]. Nação desorganizada
não é Nação: é apenas paisagem. Paisagem ou cenário de nação. E
mesmo que o Exército seja moral e tecnicamente primoroso, se é a
única força organizada da nação, esta nação corre o perigo de
transformar-se em [...] simples campo de manobras. É uma nação
socialmente doente, por mais atlética que pareça419.

O trecho supracitado revela um posicionamento marcado pela insegurança no


destino das instituições que coordenam a Nação, que para ele, as “atividades civis [...]
continuam, quase todas, desorganizadas”.420 Desse modo, Freyre expõe como solução, a
preservação imediata das forças armadas, para que esta não entre em colapso, “ou se
democratize na desorganização do país”421 com vasta extensão territorial, necessitando a
proteção das fronteiras políticas e culturais.
Nesta conferência, o ponto central no discurso do sociólogo – que justifica a
intervenção do exército na sociedade – está na afirmação de que o Brasil é um país
cujos conflitos só foram possíveis de serem atenuados pela miscigenação, pois, mesmo
que a diversidade cultural proporcione uma série de vantagens para a formação cultural
brasileira, “resultam, também, problemas difíceis de organização nacional”.422
Ou seja, dificuldades que são desafiadoras “ao melhor senso de coordenação de
contrários que possa o mesmo povo desenvolver. E é esse senso [...] que, felizmente,

418
Ibid.id., p. 359. s/a. Impresso.
419
FREYRE, Gilberto. Nação e Exército. Rio de Janeiro. José Olympio. 1949. Disponível em:
<http://prossiga.bvgf.fgf.org.br/portugues/obra/opusculos.html.> Acesso em: Abril/Maio de 2011.
420
FREYRE, 1949.
421
Ibid. id.
422
Ibid. id.
132

não tem faltado aos nossos homens públicos de maior responsabilidade na direção da
vida nacional”.423
O caminho que se impõe é a imitação do papel “exemplar” praticado pelo
exército na sociedade, transferindo sua essência organizacional para as áreas de
atividade civil, sufocando as tensões a partir da coordenação das forças armadas “em
épocas de desajustamento mais agudo entre regiões ou entre subgrupos nacionais”.424 As
forças militares e policiais deveriam agir sistematicamente para neutralizar os excessos
ameaçadores ligados às infiltrações estrangeiras ou nacionais, que comprometeriam as
bases que nos “constituem” enquanto Nação brasileira autêntica.
Em entrevista a José Saffioti Filho, na revista “Veja” no início da década de 70,
Gilberto Freyre relata que não participou efetivamente da “revolução” de 1964, mas
muito antes do “movimento” já escrevia artigos em defesa das forças armadas – como
podemos ver na conferência acima – “em que tentava mostrar que estávamos numa
situação insustentável, a continuar a irresponsabilidade do governo”.425
Acreditava que o Brasil vivia uma crise político-administrativa, no governo João
Goulart. Ele nos conta que “de certa altura em diante ele perdeu de fato o senso de
responsabilidade e impunha-se uma intervenção que só poderia vir de um órgão político
como tem sido tradicionalmente, em situações de crise, o Exército brasileiro”.426
Um ano após a declaração do golpe militar, Freyre justifica esse fato afirmando
que, com a ameaça de penetração dos ideais comunistas e dos estrangeirismos culturais
no país na década de 60, o Brasil vivia “momentos [...] de perigo para as instituições
427
nacionais” , sendo necessária a presença do exército na vida política nacional. Este
iria exercer um “trabalho construtivo através de uma ação voltada à valorização do
homem brasileiro, atuando diretamente nos empreendimentos públicos fundamentais
[...] através de uma ampla malha que se apóia nos quartéis para cobrir todo o território
nacional”.428
O autor destaca o processo de articulação entre as forças armadas com o restante
das instituições nacionais, sem que este cruzamento tenha causado qualquer tipo de
423
Ibid. id.
424
Ibid. id.
425
Ibid. id.
426
COHN, Sérgio (Org.). Encontros: Gilberto Freyre. Rio de Janeiro: Beco do Azougue. 2010. p. 128.
427
COHN, 2010. p. 128.
428
FREYRE, Gilberto. Forças Armadas e outras Forças: novas considerações sobre as relações entre
Forças Armadas e as demais forças de segurança e de desenvolvimento nacionais na sociedade brasileira.
Recife: Imprensa Oficial, 1965. Disponível em:
<http://prossiga.bvgf.fgf.org.br/portugues/obra/opusculos.html.> Acesso em: Abril/Maio de 2011.
133

militarismo violento ao povo brasileiro. A função da intervenção militar, como “medida


de salvação pública” , na sociedade, esteve voltada para “fortalecer o
429

desenvolvimento do país ou na sua segurança e resguardo contra elementos


antinacionais”,430 unindo todas as forças para lutar contra qualquer tentativa – externa ou
interna – de desagregação das tradições que formam os pilares da nacionalidade.
Ele acredita que o ano de 1964 é um momento decisivo para o crescimento
nacional431, em que a sociedade brasileira se desprendeu do “falso nacionalismo” –
alusão ao comunismo – e agora tem a oportunidade de se relacionar com o “mundo em
rápida transformação”. O país ganha força não apenas economicamente, mas no plano
cultural, afirmando-se como Nação fiel aos ideais e valores da brasilidade, seguindo em
direção à democracia, sendo que, somente as forças armadas foram capazes de cumprir
“o seu dever de solidariedade com esse Brasil [...] de que são parte. Daí sua atitude já
histórica e ainda em desenvolvimento. O que é preciso é que os líderes civis se
coloquem agora à altura dos líderes militares em qualidades de liderança: inclusive no
próprio civismo”.432
Freyre afirma que os militares realizaram um trabalho de “renovação” nas
estruturas políticas nacionais, para normalizar a crise sentida na “noite terrível em que
só brilham, num céu tornado inferno, estrêlas sinistramente vermelhas”.433 Os
brasileiros, da mesma forma que são hospitaleiros com a chegada de estranhos – que se
deslocam de outras regiões para viver no trópico – também sabem expulsar qualquer
intruso que venha desvirtuar a essência que compõe nossa identidade cultural.
Na década de 60, Freyre explicita a radicalização de suas posições
conservadoras ao afirmar:

429
FREYRE, Gilberto. Forças Armadas e outras Forças: novas considerações sobre as relações entre
Forças Armadas e as demais forças de segurança e de desenvolvimento nacionais na sociedade brasileira.
Recife: Imprensa Oficial, 1965.
430
Ibid. id, 1965.
431
Gilberto Freyre: “Não sou antimilitarista, mas devo dizer que nunca me enganei com esse surto militar
em 1964, o que me levou a recusar convites do general Castelo Branco para ocupar um ministério ou uma
embaixada em Paris. Os militares se deram aos tecnocratas, que comprometeram os valores éticos do
Brasil e nada fizeram para diminuir o desprezo pelo Nordeste, que já se manifestava então no Centro-Sul.
Você não pode definir o ministro tecnocrata por excelência, o Delfim Neto, senão como um quase
patológico antinordestino. Agora, estamos diante de um teste como nunca houve no Brasil. Há uma
grande crise ética, um desprezo ostensivo pelas éticas, e o povo brasileiro está escandalizado”.
Depoimento registrado por Gilberto Velho, César Benjamin e Cilene Areias. Publicado na revista Ciência
Hoje, em junho de 1985. Cf.: COHN, Sérgio (Org.). Encontros: Gilberto Freyre. Rio de Janeiro: Beco do
Azougue, 2010. p. 196.
432
FREYRE, Gilberto. Um ano histórico para o Brasil. Diário de Pernambuco. Recife, 26 de abril de
1964. Disponível em: <http://prossiga.bvgf.fgf.org.br/portugues/obra/opusculos.html.> Acesso em:
Abril/Maio de 2011.
433
Ibid. id.
134

[...] que o comunismo no Brasil atrai as massas, de vez que corresponde


às aspirações messiânicas da população. No ano seguinte, 1964, escreve
para a Time, indicando que o comunismo na sua forma mais arcaica
estava tomando de conta do Brasil. Após o golpe militar, recebe o
convite do presidente Castelo Branco para ser Ministro da Educação.
[...] Em 1969, na radicalização do processo, e pouco após as
manifestações estudantis, declarou que a glória do Brasil não são os
jovens.434

As posturas político-culturais do sociólogo – citadas direta e indiretamente –


estão imersas na ironia circense visualizada nas cenas iniciais de “O Palhaço
Degolado”. Além de construir um mosaico de impressões dispersas em torno da teoria
freyreana de cultura brasileira, o filme reforça a negação ao discurso tropicológico e às
grandes interpretações-matrizes do pensamento oligárquico do Brasil,435 incorporado
pelo autoritarismo cultural no final dos anos 60, bem como a crítica – mesclada de
decepção – ao posicionamento de Gilberto Freyre, arraigado aos interesses da classe
dominante, no auge da radicalização política imposta pelo regime militar.436
A respeito dessa questão, Jomard, ao falar sobre Gilberto Freyre, relata que:

Seu apoio irrestrito, inflamado, incondicional, ao Golpe nos causava


talvez um misto quente de raiva e repugnância, para fazer uso de um
advérbio tão seu – talvez – e dois adjetivos dos mais serenos e
aliterativos em R, pela distância memorial que nos separa de tais
absurdos e brutais acontecimentos. [...] Por ele, Gilberto Freyre, onde
foi deparar e depurar nosso “espírito de confraternização”? O pavor do
“comunismo” a tudo justificaria? Não importa se aos berros ou
bênçãos, o fantasmal de GF está, portanto, correlacionado, ativa e
passivamente, com as opressões, denúncias, suspeitas, interrogatórios
e outros vexames que padecemos em tempos de escuridão, medo e
ainda coragem para suportar... cantando, protestando e caminhando de
peito aberto pelas ruas e avenidas. Ele, o mais famoso escritor-
militante de Apipucos para o mundo. Intelectual, não intelectuário, de
total confiança dos poderosos de longo plantão.437

A partir do depoimento acima, podemos afirmar que o filme esteve situado numa
época em que – segundo Carlos Guilherme Mota – vivencia-se o “fortalecimento do
pensamento radical no Brasil contemporâneo, produto em grande parte das tarefas
434
MOTA, 1977, p. 72.
435
Ibidem, p. 74.
436
LEITE, Dante Moreira. O Caráter Nacional Brasileiro: História de uma Ideologia. São Paulo:
Biblioteca Pioneira de Ciências Sociais. 1969. p. 281.
437
BRITTO, Jomard Muniz de. Crueldades & Confraternizações: breve Ensaio de Psicanálise Selvagem.
In: DANTAS, Elisalva Madruga; BRITTO, Jomard Muniz de (Orgs.). Interpenetrações do Brasil:
Encontros & Desencontros. João Pessoa: UFPB. 2002. p. 182.
135

críticas desenvolvidas [...] pela Universidade [São Paulo], impondo-se através de um


trabalho de renovação metodológica nos quadros intelectuais, gerando um novo painel
crítico diante dos discursos que definiam a noção de cultura brasileira”.438
“O Palhaço Degolado” está sintonizado no desdobramento intelectual das
revisões radicais,439 promovidas no campo do conhecimento histórico no Brasil entre
1964-1969, representadas pela vertente de pensamento progressista que – através de
novas análises sobre o Brasil – “permitiram a ruptura essencial com a cultura
oligárquica, e com a visão estamental de mundo”,440 expondo um país atento aos
conflitos, ao invés das harmonizações generalizantes.
O ponto de contato entre o filme e esta nova fase de reflexões na história do
Brasil, está na verificação do problema da cultura brasileira enquanto noção cristalizada,
anunciando que os intelectuais vinculados à esfera de pensamento conservador “dão-na
como acabada, e não como problema”,441 fechando a questão, para neutralizar os
antagonismos e as vozes divergentes que propõem novas rotas para o projeto de cultura
no país.
Nesse sentido, as tradições não podem ser consideradas discursos impenetráveis,
pois ao imortalizar essa concepção no imaginário popular, corre-se o risco de colaborar
na manutenção de um sistema de pensamento que obscurece os transbordamentos, pela
eliminação dos conflitos e na dissolução das contradições.
Contrapondo-se a coerência de “nossas” raízes que fundam a brasilidade, o
Palhaço atenta que a tropicologia – convertida aos objetivos do pensamento autoritário
– nos leva ao aprisionamento da Nação enquanto “origem”, delimitada pela fixidez do
familismo senhorial nascido na colônia.

438
MOTA, 1977, p. 73.
439
Destacando intelectuais como Dante Moreira Leite, Florestan Fernandes, Octavio Ianni, Mota afirma
que: Os diagnósticos sobre a história social do Brasil e sua dinâmica mereceram reparos profundos,
realizados por analistas que procuravam tirar alguma lição dos desacertos da ideologia do
desenvolvimentismo e da política populista que levaram à derrocada dos setores progressistas em 1964.
[...] Pontos para uma revisão da História do Brasil, da crise do sistema colonial português aos nossos dias,
são propostos, bem como elementos para um reestudo de conceitos como classe, estamento e casta para
abordagem da História Social do Brasil. [...] Em conjunto, pode-se dizer que há, nesse momento, uma
ligeira mudança de ênfase. Das relações sociais e raciais, das investigações sobre os modos de produção,
passa-se ao estudo mais sistemático da dependência, seja no plano econômico, seja no planocultural e
intelectual. Cf.: MOTA, Carlos Guilherme. Ideologia da Cultura Brasileira: 1933-1974. São Paulo:
Editora Ática, 1977. pp. 43-45.
440
MOTA, 1977, p. 74.
441
Ibidem, p. 111.
136

Origem que “se esforça para recolher nela a essência exata da coisa, sufocando
as possibilidades e desejos na sua forma [e negando] tudo que é externo e acidental”,442
retirando dos homens a liberdade de escolher suas máscaras para vivenciar a politização
do cotidiano e os consumos individuais, na composição do “Eu” brasileiro
contemporâneo.443
Reconhecendo a cultura brasileira enquanto debate, Jomard Muniz de Britto
coloca sua máscara de Palhaço para fugir dos grilhões que o amarram a “obediência às
supostas raízes e linhas de força da formação brasileira”,444 voltando-se contra o reino
tropicológico – de um passado [que] “nos absorve entre sobrados e mucambos, alhos e
bugalhos, ladeiras e pelourinhos”.445 Para o Palhaço, o maior degolamento estaria nas
limitações de atuação cultural dos intelectuais ligados a vertente da arte contemporânea
no Nordeste, cercados pela cristalização contida na proposta expressa de valorização de
elementos tradicionais no Brasil.446
O ritmo declamatório da performance é reveladora de uma angústia atravessada
pelo sentimento de incompletude e silenciamento das práticas culturais de vanguarda
nos anos 60/70, a que Jomard esteve vinculado. Um mal-estar que transforma-se em riso
ácido, na fase que pré-anuncia a reabertura política no Brasil, tomando a atmosfera do
circo como recurso expressivo marcado pela dessacralização dos projetos culturais
promovidos pela tradição cultural autoritária no regime militar.

442
FOUCAULT, apud. CASTELO BRANCO, Edwar de Alencar. Desfamiliarizar o passado e solapar
sua certeza: receitas de Michel Foucault para uma escrita subversiva da História. In: CASTELO
BRANCO, Edwar de Alencar; NASCIMENTO, Francisco Alcides; PINHEIRO, Áurea Paz. (Orgs.).
História: Culturas, Sociedades, Cidades. Recife: Bagaço. 2005.
443
FOUCAULT, apud: CASTELO BRANCO, 2005.
2005, pp. 32-33.
444
CHAMIE, 1968, In: BASUALDO, Carlos. (Org.). Tropicália: Uma Revolução na Cultura Brasileira
(1967-1972). São Paulo: Cosac Naify, 2007, p. 161.
445
BRITTO, 2002. In: DANTAS; BRITTO, p. 181.
446
BRITTO, 2002. In: DANTAS; BRITTO, p. 181.
137
138

[...] Desabafo na cidade sitiada.


Em trópico de pernambucâncer:
Meus filhos, volúpia genética,
sem os lances de minha genialidade.
-Discúpulos? – talvez porventura intelectuários.
-Dissidentes? – desaforadamente sectários.
(Salve-se a vaidade de um ex-Príncipe da Sociologia).
[...] Fui eu quem inventou a morenidade
De teus suores e músculos e apetites.
Durmo sonhando com a eternidade de meu Y.

Fragmentos de “A Grande Solydão”, de J.M.B.


139

3. TERCEIRA ENTRADA.

A CULTURA É UMA ORDEM? O PALHAÇO NOS TRÓPICOS ENTRÓPICOS


DA PERNAMBUCÁLIA

3.1. As intimidades dos “fora” do poder: fora dos empoderamentos


A seguir, um breve jogo “através dos abismos da empatia” em movimento, entre
aspas e apropriações, mas nunca esquecendo a eterna obediência rotineira das notas de
fim de página.
O Palhaço olha de um lado para o outro, percorre as grossas paredes do casarão
utilizando do corpo para direcionar-se na contramão de “um dos maiores intelectuais
brasileiros ou em língua portuguesa de todos os tempos e antecipações”. 447 Busca
deslocar da rígida estrutura textual das temeridades “em longa duração com a história
das intimidades”,448 das intimidações e dos empoderamentos oficiais.
Se energiza em confronto com as “privacidades e mentalidades” conservadoras,
amantes da (con)Tradição, em que “possessivamente, tudo já foi dito, desdito, reescrito
e questionado. Por ele mesmo, talvez mais do que por impossíveis discípulos,
estudiosos e hermeneutas”.449
“O Palhaço Degolado” rodopia no centro das “reabilitações de interesse geral,
para essa cultura e para esse sistema de elementos, que por este ou por aquele motivo se
achavam subestimados artisticamente e literariamente”.450 Um Brasil que não visa “se
tornar definitivamente ou sectariamente” etnocêntrico, mas amante da “volúpia dos
advérbios em MENTE”.451
Até que ponto a harmonia consensual nos afeta? O Palhaço desconfia de um país
que se curva diante dos monumentos, de suas “tropicologias” certeiras, espremidas
“entre o sadomasoquismo e a mais alegre de todas as festas e miscigenações”, 452
dedicadas a amar incondicionalmente “em nome do Pai, patriarca, personagem
desdobrando em si mesmo. Pai fundador. Personagem-Instituição. Patriarca escritural.

447
BRITTO, Jomard Muniz de. Através dos Abismos da Empatia. Revista Symposium: Ciências,
Humanidades e Letras. Sociologia. Centenário de Gilberto Freyre. Ano 4. Número Especial. Universidade
Católica de Pernambuco. Recife. Dezembro de 2010.
448
BRITTO, 2010.
449
Ibid. id.
450
Ibid. id.
451
Ibid. id.
452
Ibid. id.
140

Pai dos Trópicos. Pai-narrador-decifrador. Pai-irmão de Zé Lins. Pai-errante de


pernamucanidades. Pai-filho-espírito do & e do Y”.453
Um Gilberto Freyre que se delicia Além do Apenas Quitutes e Goiabadas...
Alimentar das espacialidades político-culturais marcadas pelas permanências, que nos
reconduz aos delírios das Casas Grandes, dos meninos senzalados, “até os 500 anos de
descobertas e incontáveis encobrimentos lítero-antropológicos”,454 num congraçamento
brasilírico que enfatiza a leveza das chicotadas sofridas pelos escravos, amolecidos pela
“sensibilidade” dos mesmos à música, receita para as nossas benevolências e
delicadezas contemporâneas.
Um Palhaço que desnuda as problemáticas amaciadas pelas comemorações e
otimismos reinventados, que cantam as “nossas felizes e patriarcais mistificações”,455
utilizando-se do esforço audiovisual circense-não-circense para concretizar “a crítica da
cultura enquanto crítica das ideologias dominantes”.456
O filme se constrói enquanto experimento/experiência de diálogo insistente, para
abrir uma possível ponte que fortaleça a ligação entre o cinema superoito e a teoria da
cultura brasileira, numa atitude de crítica-auto-crítica permanente, inspirado na poética
paulofreireana: agir sem a pretensão e ilusão “de atingir a absoluta criticidade”:457
Difícil e perigoso criticar – por dentro e pela raiz – nossa herança
sócio-cultural auto-perpetuante. Nossos mitos de um pretérito sempre
militante. Nossos projetos de transformação errante: trocando em
graúdos – como abalar (pelo menos) ou alterar (se possível) nossa
formação bacharelesca-verbalista-perdurante?458

Ponte que desmorona em abismos, interrogações. O filme enquanto instrumento


de ação que resiste ao sol tropical, às sombras dos empoderamentos/silenciamentos de
um regime autoritário triunfalista. “Como se os filmes de curta-metragem não
sobrevivessem no plano da crítica problematizadora sem a presença aprovadora dos
grandes intelectuais”.459
Como substituir o tom professoral pelos toques de diálogo horizontal,
convertendo temas em problemas, frases feitas em dúvidas
desafiadoras? Como jogar, em nome de uma fricção histórico-
453
BRITTO, 2010.
454
Ibid. id.
455
Ibid. id.
456
BRITTO, Jomard Muniz de. O curta-metragem como exercício de crítica cultural. Ministério da
Educação e Cultura. Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais. EMBRAFILME. Grupo de Cinema
Super-8 de Pernambuco. Novembro de 1978. p. 1.
457
BRITTO, 1978. p. 1.
458
Ibid. id.
459
Ibid. id.
141

existencial, os dados da “empatia” contra os dardos do


“estranhamento”? O exercício do curta-metragem nos possibilitará a
observação participante e ao mesmo tempo criticizante?460

Aqui temos um Palhaço como extensão de Jomard, que busca transgredir a


cultura brasileira afirmativa em crítica cultural mutante, aprofundando-se no
desdobramento além-filme, fazendo dos seus textos, manifestos e “aprontações”
performáticas, um complexo conjunto de artefatos que nos permite, a partir de agora,
nos apropriar enquanto perspectiva de redegolagem, que amplia e fortalece o debate
intelectual germinado n’O “Palhaço Degolado”.
História e superoito misturam-se, fazendo da análise deste, um objeto que não se
limita apenas ao seu conteúdo fílmico interno, mas do diálogo com outros trabalhos
escritos por Jomard que circulam em torno da obra, a fim de enriquecer as polêmicas e
enfrentamentos tão diversos, na disputa simbólica em torno da brasilidade a ser
continuamente reconquistada. Redegolagens textuais convertidas em Transdegolagens
visuais, conversões ou inversões, a seu modo.

3.2. O Palhaço diante das cercas e planilhas político-culturais

Antes de continuarmos o estudo do filme “O Palhaço Degolado”, é importante


situar algumas questões fundamentais em torno da conjuntura político-cultural que
atravessou o Brasil nas décadas de 60/70, para compreender a atmosfera na qual a obra
se posiciona.
Os eixos temáticos freyreanos explorados nas cenas iniciais, expostas no
capítulo anterior abrem espaço para reflexão em torno do processo de
institucionalização da cultura brasileira nesse período, centralizando o debate em
Gilberto Freyre, na primeira sequência do filme. Iremos articular historicamente, o
mosaico lançado pelo Palhaço, através dos desdobramentos políticos que envolvem o
conservadorismo cultural no regime militar.
Partindo do estudo realizado por Lia Calabre, não podemos pensar a cultura no
Brasil sem passar pelo seu longo histórico de institucionalização, que possui as marcas
das “tristes tradições que podem ser condensadas em expressões como: autoritarismo,
caráter tardio, descontinuidades, paradoxos, impasses e desafios. Parte dessa herança
[...] diz respeito às décadas de 1960 e 1970”.461

460
BRITTO, 1978. p. 3.
461
CALABRE, Lia. Políticas Culturais no Brasil: dos anos 1930 ao século XXI. Rio de Janeiro: Editora
FGV, 2009. p. 57.
142

É nesse período que podemos verificar uma preocupação mais intensa do Estado
no âmbito cultural, incluindo-a como assunto a ser tratado na área de desenvolvimento e
intervenção planejada, inserindo os artistas/intelectuais na esfera burocrática de ação
cultural, indispensável para concretizar as políticas públicas e os projetos em formação.
Nesse sentido, no dia 23 de fevereiro de 1961, foi criado o Conselho Nacional de
Cultura (CNC), órgão subordinado à Presidência da República (Jânio Quadros),462 a
partir da necessidade justificada de criar um novo órgão que orientasse politicamente a
atuação do governo na área de investimentos na cultura.463
Assim, áreas como literatura, cinema, teatro, artes plásticas, dança, música
receberam uma atenção especial, a partir do estabelecimento de aplicações anuais de
recursos, ampliando e atualizando o número de instituições culturais, difundindo,
através de periódicos e campanhas, o novo conjunto de atividades artísticas, seja pelo
rádio ou TV, com a meta de “popularizar” a arte brasileira.464
Com o decreto que aprova o regulamento do CNC465, buscava-se, segundo Lia
Calabre, “criar uma estrutura destinada à realização de diagnósticos, ações e políticas na
área da cultura fora do Ministério da Educação e Cultura (MEC)”,466 para que o CNC
tivesse espaço de atuação autônoma no governo.
Mesmo com os esforços iniciais, o conselho acabou não funcionando por muito
tempo. Um dos motivos foi devido à renúncia de Jânio Quadros, onde, em agosto de 61,
houve uma reformulação do órgão e “em 23 de março de 1962, o Decreto nº 771
retomava a referência ao conselho criado em 1938 e o recolocava na condição de órgão
subordinado ao Ministério da Educação e Cultura. A maioria das atribuições do decreto
foi mantida” 467, com as mesmas comissões, mas atuando como órgãos de assessoria “do
conselho, que poderiam ou não ser consultadas”.468

462
“Sua desvinculação com o Ministério da Educação e Cultura – ministério onde naturalmente deveria
ser criado um conselho de cultura – era um indicador das prováveis intenções de Jânio Quadros em ter o
controle maior sobre as políticas públicas e, possivelmente, considerar a cultura como uma área
importante e estratégica, merecedora de uma estrutura específica vinculada à Presidência da República”.
Cf.: CALABRE, 2009, p. 58.
463
Ibid. id.
464
Ibid. id.
465
51. 063, de 27/07/1961.
466
CALABRE, 2009, p. 60.
467
CALABRE, 2009, p. 60.
468
Ibidem, p. 61.
143

Em geral, a proposta do CNC469 consistia na criação de projetos interessados na


circulação nacional de obras artísticas, como o não-realizado “Trem da Cultura” (1962),
a “Caravana da Cultura” (1964), a criação de uma “Rede Nacional da Cultura” (1964),
em articulação com os governos estaduais, voltado ao teatro, mas a execução desses
investimentos sofria o abalo financeiro “das pequenas dotações que o impedia de
elaborar ações de maior alcance”.470
Para resolver este problema, o governo militar trabalhou na reformulação da
política cultural do país, através do debate entre uma comissão especial, para elaborar
novas medidas direcionadas à melhor distribuição dos recursos investidos no campo da
cultura brasileira.
Lia Calabre afirma que, em 1966, alguns militares e intelectuais sugeriram a
formação de um Conselho Federal de Educação. A autora afirma que “o Conselho
Nacional de Cultura não tinha efetiva atuação nacional e limitava-se a ações pontuais,
de pouca abrangência”, nesse sentido foi criado “por meio do Decreto-lei nº 74, o
Conselho Federal de Cultura, constituído de 24 membros diretamente nomeados pelo
presidente da República”.471
Além do desgaste e influência restrita na atuação do CNC no país, bem como a
necessidade de fortalecer as estruturas de atuação governamental no campo da cultura, a
elaboração do CFC – segundo Tatyana de Amaral – “aparecia como uma opção à
imagem negativa construída pela atuação extremamente repressora dos setores do
governo na cultura [...] ocupados pelas elites culturais atuantes no Estado”.472
Em 1967, o CFC era composto – entre vários intelectuais “consagrados” no
campo acadêmico e cultural – por Gilberto Freyre (1968-84) e Ariano Suassuna (1968-
73) – que possuem forte influência política em Recife, por defenderem a valorização das
tradições e da cultura popular no Nordeste, amplamente apoiado pelos militares, que
agregavam aos seus departamentos culturais os “decifradores” da cultura nacional.

469
Com a nova estrutura, o CNC ficou formado pelas indicações diretas de sete membros pelo presidente
em exercício, restringindo quatro desses gestores à órgãos culturais ligados ao MEC e um ao integrante
do Ministério das Relações Exteriores, sendo o restante formado por intelectuais escolhidos como pessoas
“consagradas” e “verdadeiramente” preocupadas com a identidade nacional. Cf.: CALABRE, 2009, p. 61.
470
“[...] apresentações de espetáculos de música erudita, canto, coral, distribuição de livros e discos de
música erudita e popular. Havia ainda exposições de réplicas de quadros célebres da pintura universal
[...]. Cf.: CALABRE, 2009, p. 62.
471
Ibidem, p. 68.
472
MAIA, Tatyana de Amaral. Por um Senado da Cultura Nacional: intelectuais e políticas culturais no
regime militar (1967-1975). Políticas Culturais: Teoria e Práxis. s/a. Impresso. Rio de Janeiro. p. 3.
144

O intuito da formulação do órgão buscava minimizar os empecilhos


administrativos dos departamentos culturais ligados ao MEC, abrindo mais espaço ao
setor cultural no governo473. Nesse sentido, sua estrutura ficou dividida nas câmaras de
artes, letras, ciências humanas, patrimônio histórico e artístico nacional e o órgão ligado
a comissão de legislação e normas, prontas para “formular a política cultural nacional,
no limite de suas atribuições”,474 mas que sofreu restrições iniciais pela legislação
federal em torno do raio de ação do órgão, que ainda estava em processo de definição
executiva.
No seu campo de atuação já consolidado, “o órgão tinha caráter normativo e de
assessoramento do ministro de Estado. Os pareceres votados pelo CFC serviam como
recomendações a serem executadas pelo ministério”,475 que, diferente dos conselhos que
atuaram anteriormente, o CFC atuou efetivamente nos planejamentos culturais. Quase
todas as decisões concretizadas – até quase meados da década de 70 – receberam apoio
do Conselho Federal de Cultura.476
Um dos primeiros trabalhos desenvolvidos pelo CFC foi a recuperação de
instituições como a Biblioteca Nacional, Museu Nacional de Belas Artes e do Arquivo
Nacional, com o objetivo de fortalecer seu papel na sociedade, modernizando sua
estrutura de funcionamento, para que as mesmas fossem pólos centrais de irradiação da
cultura brasileira, normatizando suas atividades para o resto do Brasil, pelos sistemas-
padrão de organização de acervos ou serviços ao público em geral.477
Uma das atribuições centrais478 do CFC era articular com o resto do Brasil uma
política efetiva de aproximação com órgãos estaduais, na área da cultura e educação,
visando assegurar a coordenação integrada e fiscalizar a execução dos programas
culturais em andamento, apesar de não conseguir suprir suas expectativas com repasses
financeiros fixos.
473
COSTA, Lílian Araripe Lustosa da. A política cultural do Conselho Federal de Cultura. Políticas
Culturais: Teoria e Práxis. s/a. Impresso. Rio de Janeiro. p. 5.
474
CALABRE, 2009, p. 69.
475
Ibidem, p. 71.
476
Ibidem, p. 71.
477
Ibidem, p. 69.
478
Entre outras atribuições, Tatyana de Amaral destaca: [...] b) articular-se a órgãos públicos e a
universidades dedicados à cultura e à educação para execução de programas culturais; c) atuar junto aos
órgãos competentes para a defesa e preservação do patrimônio; d) conceder auxílios às instituições
culturais oficiais ou particulares de utilidade pública para conservação e restauração de seu patrimônio
histórico, artístico ou bibliográfico, e ainda, a execução de projetos de difusão da cultura; e) promover
campanhas nacionais; f) publicar boletim informativo [destaque para as revistas “Cultura” e “Revista
Brasileira de Cultura”]; i) assessorar quando solicitado o ministro da Educação e Cultura; j) auxiliar a
realização de exposições, espetáculos, conferências, debates, festivais, que promovam a divulgação
cultural e aprimorem o conhecimento sobre as regiões brasileiras. Cf.: MAIA, s/a. Impresso. p. 5.
145

Já no final da década de 60, o CFC direcionou para o congresso, o Plano


Nacional de Cultura, para ser analisado pelos parlamentares, mas que não despertou
interesse imediato, portanto, “nunca chegou a ser votado”.479”A justificativa foi de que,
a partir do parecer liberado pela consultoria da presidência da república, as ações
propostas pelo plano não eram de competência do CFC, ao determinar “que não era da
alçada dos conselhos elaborar planos que estivessem condicionados à existência de
verbas”.480
Uma das medidas encontradas para solucionar esse problema, deu-se a partir da
solicitação do ministro (MEC) Jarbas Passarinho, em 1973, para a elaboração de
diretrizes (Diretrizes para uma Política Nacional de Cultura) viáveis para serem
aplicadas às políticas nacionais de cultura.
Calabre revela que, “em lugar de planos de cultura, deveriam ser confeccionadas
diretrizes, que após serem submetidas à apreciação do Presidente da República,
deveriam servir de subsídios para planos, programas e projetos”.481
As diretrizes traçavam perspectivas que se colocavam enquanto pré-plano
nacional de cultura (uma apresentação do que seria para o CFC sua proposta de Plano
Nacional de Cultura), expondo as linhas e normas que definiam a ação das políticas
culturais do governo, baseada no “incentivo à criatividade e difusão da cultura”.482
No documento analisado por Calabre, ela expõe uma problemática sobre o tema,
quando são apresentadas “algumas considerações em torno das complicações
“administrativas de um ministério que abrange duas áreas distintas, ainda que se
completem, como é o caso da educação e da cultura, apontando para o fato de ser a
educação uma área que absorve muito a atenção do Estado”.483
Dessa forma, podemos perceber que há um desequilíbrio referente aos
investimentos no campo cultural em relação à educação – que recebe maior atenção do
governo – onde se propõe como medida para solucionar essa tensão, a criação do
Ministério da Cultura.484

479
CALABRE, Lia. Intelectuais e política cultural: o Coselho Federal de Cultura. ATAS DO
COLÓQUIO INTELECTUAIS, CULTURA E POLÍTICA NO MUNDO ÍBERO-AMERICANO. Rio de
Janeiro. Ano 5. Vol.II. 2006. p. 7.
480
CALABRE, 2006, p. 7.
481
Ibid. id.
482
Ibid. id.
483
Ibidem, p. 10/11.
484
O Ministério da Cultura (MinC) do Brasil só foi criado em 15 de março de 1985 pelo decreto nº
91.144, no governo de José Sarney.
146

Para os intelectuais e tecnocratas preocupados com estas questões, o ministério


seria uma possibilidade viável para construção da plataforma central vinculado à
Política Nacional de Cultura (PNC), fazendo da cultura “uma estratégia para as políticas
de governo, principalmente tendo em vista ser esta um dos elementos garantidores da
segurança nacional”.485
Vanderli Silva afirma que, após essas diretrizes serem divulgadas:

[...] logo foi retirado de circulação [...] [por provocar] resistências no


interior do MEC, o que teria levado sua retirada de circulação ainda
em 1973. [...] toda a argumentação presente no texto está eivada de
incoerências que traduzem as dificuldades de elaborar uma proposta
que agradasse simultaneamente aos militares e aos responsáveis pela
política de desenvolvimento econômico, ou seja, aqueles que
controlavam a liberação de recursos financeiros do Estado [...].
Entretanto, quer pela dificuldade de elaborar uma proposta clara e
coerente que atendesse às exigências contraditórias defendidas pelos
seus formuladores, quer pela falta de consenso em torno da proposta
de criação de um ministério específico para a área, o fato é que o
documento [...] acabou esquecido.486

Outro caminho adotado pelo Estado, para exercer o controle das produções
culturais, também se deu com a entrada do Plano de Ação Cultural (PAC).487 O projeto
buscava focar a atuação na abertura de crédito para os setores de produção cultural,
antes sem apoio efetivo na execução de suas atividades, bem como gerar “uma tentativa
de ‘degelo’ em relação aos meios artísticos e intelectuais”,488 a fim de valorizar o
patrimônio histórico e artístico, contemplando os espaços de capacitação na demanda
existente no mercado cultural brasileiro.
É importante ressaltar que o PAC não agiu enquanto plano de trabalho dedicado
a formulação de uma política oficial de cultura, nem como órgão público administrativo.
Para Vanderli Silva, “o programa atuava através de núcleos e grupos-tarefa que deviam
atender às diversas áreas da produção cultural [...]. Tratava-se de uma forma mais
flexível de atuação do MEC na área cultural, contando com um significativo volume de
recursos [...]”.489

485
CALABRE, 2006, p. 10/11.
486
SILVA, 2001, p. 103/104.
487
Proposta apresentada em agosto de 1973 pelo Departamento de Assuntos Culturais (DAC), cuja
função era coordenar as instituições culturais subordinadas ao MEC. Os recursos do PAC vinham do
Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE). Cf.: SILVA, 2001, p. 104.
488
MICELI, apud. SILVA. 2001, p. 104.
489
SILVA, 2001, p. 104.
147

O PAC aparece enquanto criação emergencial na gestão de Jarbas Passarinho,


com o objetivo de reparar a falta de atenção no campo da cultura e dar maior
visibilidade às produções artísticas brasileiras de forma ágil e flexível: “a letra C da
sigla MEC começava a receber recursos”.490
Dessa forma, apesar do PAC perder gradativamente seu espaço na esfera de
poder no interior do MEC – devido às tensões geradas nas outras áreas do ministério, no
que se refere a sua ocupação significativa nos espaços vazios do Departamento de
Assuntos Culturais – a iniciativa de construção do programa fez o MEC assumir um
papel de “poderoso e ‘moderno’ empresário de espetáculos, abrindo novas frentes de
trabalho no mercado cultural”.491
As elaborações desses departamentos culturais eram atravessadas pela
compreensão teórica da cultura brasileira como criação resultante de um longo processo
de aculturação, pressupondo que o contato entre os diversos grupos culturais ocorreram
através de um complexo sistema de subordinação/hierarquização a partir da mestiçagem
entre as três “raças” formadoras do Brasil, concepção que será aprofundada na Política
Nacional de Cultura (PNC-1975).492
O CFC atuou de maneira significativa na defesa do patrimônio artístico cultural,
principalmente nas atividades vinculadas com os Estados e Municípios, no qual o órgão
trabalhou pela institucionalização das práticas culturais, intermediando as “demandas
locais que chegavam dos conselhos e nas ações nacionais, que deveriam ser
implementados pelo conjunto das instituições culturais do ministério”.493
Cabe destacar também os Conselhos Estaduais de Cultura,494 que aos poucos se
formaram no país, desde a criação do CFC, sendo que “em 1971, o país contava com
conselhos de cultura instalados e em pleno funcionamento em 22 estados”.495 Desse
modo, o CFC trabalhou no reconhecimento dessas instituições, ao fazer o levantamento
dos principais espaços culturais dos Estados, para mapear as informações referentes aos
grupos locais, a fim de conceder algum tipo de auxílio financeiro, na conservação das
obras e na “valorização das práticas culturais: tanto àquelas socialmente consagradas,

490
Expressão de Roberto Parreira, primeiro diretor-executivo da FUNARTE.
491
SILVA, 2001, p. 332. In: Miceli, apud. GUIMARÃES, BOTELHO.
492
Ver detalhamento sobre a criação de outras instituições voltadas para a cultura: “Anos 70:
modernização do Estado”. In: CALABRE, 2009, p. 75.
493
CALABRE, 2009, p. 69/70.
494
“No momento da implantação do CFC somente dois estados – Guanabara e São Paulo – tinham
conselhos estaduais de cultura funcionando regularmente”. Cf.: CALABRE, 2009, p. 70.
495
CALABRE, 2009, p. 70.
148

denominadas de cultura de elite ou alta cultura, quanto às chamadas tradicionais ou


folclóricas”.496
A necessidade de legitimar essas práticas resulta da não-participação do CFC e
parte do governo das ações ligadas à indústria cultural, pois os membros se
preocupavam com os riscos de “desnacionalização da cultura”, promovida
principalmente pela rápida penetração norte-americana no país, através da indústria
fonográfica e audiovisual.
Para o conselho, essa situação ameaça a conservação da “personalidade
brasileira” e a segurança nacional. O argumento central defendia o país, que, por possuir
dimensão continental, vivia “um processo de crescimento populacional acelerado e de
miscigenação étnica contínua e permanente”.497 Para isso, é prioridade do governo
manter preservados “os variados elementos formadores da personalidade nacional. A
política cultural é colocada como um dos elementos importantes na construção e
manutenção das políticas de segurança e de desenvolvimento”.498
Paradoxalmente às iniciativas do CFC – em se “defender” do “imperialismo” da
cultura de massa – o Brasil vivenciava um período de acelerada industrialização dos
bens materiais e culturais, onde a produção em larga escala de produtos como discos,
eletrodomésticos, bem como a ampliação do mercado editorial e da publicidade marcam
mudanças profundas na estrutura da sociedade brasileira.
Ao aprofundar as medidas econômicas iniciadas no governo Juscelino, o pós-64
é caracterizado pela reorganização da economia inserida no processo de
internacionalização do capital, fortalecendo os parques industriais e o mercado interno.
O Brasil avançava no capitalismo e centralizava quase todas as atividades para sua
administração. Para evitar os riscos da descaracterização “cosmopolita”, o melhor
caminho seria proteger os emblemas nacionais, associadas “a um controle das
manifestações”, contrárias aos ideais do regime.499
Para Tatyana de Amaral, as ações realizadas pelo CFC “orientavam-se a partir
da ideia de defesa do patrimônio e da difusão dos aspectos regionais, [...] [bem como] o

496
CALABRE, 2009, p. 73.
497
Ibidem, p. 8.
498
Ibid. id.
499
ORTIZ, 2001, p. 113/114.
149

caráter patrimonialista, elitista, tradicionalista e conservador”500 da cultura brasileira,


alinhado aos interesses da segurança nacional.
Assim, o CFC apoiou-se no discurso de “resgate” da mestiçagem e da tradição,
incorporando a ideia de povo na perspectiva da mistura das três raças, característica
fundante do processo formador da cultura brasileira, apesar da “heterogeneidade e da
diversidade étnica e regional, todas as raças, cores e credos não só vivem de forma
pacífica como se integram de forma harmoniosa”.501
Não podemos supor que, no espaço político disponibilizado aos intelectuais no
CFC, a noção de cultura brasileira tenha sido tratada de maneira pacífica, mas a partir
de uma forte disputa departamental entre as variadas linhas de pensamento, que buscam
demarcar seus jogos de interesse nas políticas públicas culturais.
Nesse sentido, as tensões redefiniam-se no campo da negociação simbólica, pois,
mesmo que houvesse uma integração conceitual que reunia os desejos do Conselho,
devemos deixar claro que a ideia construída em torno da cultura nacional oficial “é
polifônica e está conectada às correntes intelectuais e aos períodos históricos nos quais
esta noção foi elaborada”.502
A demarcação das fronteiras que cercam a memória nacional – no qual “O
Palhaço Degolado” movimenta-se bruscamente na luta pelo desprendimento destas
engrenagens tracejadas pelos “intelectuais funcionários públicos” – forma-se a partir do
reforço de adesão grupal, no acerto dos mecanismos simbólicos compartilhados àquela
parcela intelectual interessada em prescrever a memória brasileira ao resto da sociedade,
construindo um acervo de bens e práticas culturais tradicionais, ao seu modo.
Esta ação dá-se a partir do enquadramento de imagens e símbolos que marcam a
memória503, reforçando os pontos de união e pertencimento, organizando as referências
nacionais que precisam ser distribuídas, a fim de “garantir identificação com as
diretrizes definidas pelos Estados”.504

500
MAIA, Tatyana de Amaral. O papel dos intelectuais na elaboração das políticas culturais: o Conselho
Federal de Cultura. Disponível em: <http://sbph.org/2006/historia-arte-e-representacoes/tatyana-de-
amaral-maia>, 2006. Acesso em: 05 09 2011, às 10h35.
501
LIMA BRITO, 2005, p. 18.
502
MAIA, 2006.
503
Para Pollak, “todo trabalho de enquadramento de uma memória de grupo tem limites, pois ela não
pode ser construída arbitrariamente. Esse trabalho deve satisfazer certas exigências de justificação”. In:
POLLAK, Michel. Memória, Esquecimento e Silêncio. In: Estudos Históricos: Rio de Janeiro, vol. 2, n°
3, 1989. pp. 03-15. p.8.
504
MAIA, 2006.
150

Envolvido nessa conjuntura, Jomard Muniz de Britto veste-se de palhaço para


enfrentar o oficialismo, usando seu corpo-movimento-texto como instrumento que se
coloca diante das coleções arbitrárias em torno dos emblemas nacionais. A declamação
e as cambalhotas suspeitam dos otimismos e disposições sistemáticas que as
intervenções estatais aplicam ao fazer-cultural, margeando os interiores e exteriores da
herança prisional que percorre os paredões da Casa da Cultura, devorando
antropofagicamente os conceitos, brasões e ritos deste inventário do feudalismo cultural
nordestino-brasileiro, percebendo-se como:

[...] busca incessante de sua essência geradora, daquilo que foi


constitutivo na sua formação. [...] como conjunto de valores e
comportamentos homogeneizados por um passado comum. [...] na
valorização do passado [como] um pilar fundamental de ação. [...]
essa percepção reveste-se na preservação do patrimônio associada à
existência de uma "memória nacional" que precisava ser reorganizada
[...].505

Seria o que Marilena Chauí chama de “discurso competente”, aquele que é


instituido enquanto verdade e é permitido, autorizado na lógica em que “os
interlocutores já foram previamente reconhecidos como tendo o direito de falar e ouvir,
[...] no qual o conteúdo e a forma já foram autorizados, segundo os cânones da esfera de
sua competência”.506
“Verdades” brasileiras que representam “as forças de retaguarda do Estado na
luta cultural da época”,507 para definir com rigidez os traços que os intelectuais mais
conservadores e os militares acreditavam ser a “cultura legítima” do país, articuladas em
várias ações políticas que transitam do CFC/PAC, para consolidar-se na Política
Nacional de Cultura (PNC), lançado em 1975.
Fundamentado na Constituição Federal,508 nos decretos-lei nº 200/67509 e nº
74/66,510 o conteúdo que está expresso no programa da PNC é diretamente ligado à
perspectiva do governo Ernesto Geisel (1974/1978) de “promover e implementar um
novo plano de desenvolvimento [...], além de oferecer ao governo instrumentos de
controle e promoção de organismos culturais”.511

505
MAIA, 2006.
506
CHAUÍ, apud. MAIA, 2006, p. 7.
507
COHN, apud. MAIA, 2006, p.8.
508
Cf.: Art. 180. Parágrafo único.
509
Cf.: Art. 39.
510
Criou o CFC.
511
SILVA, 2001, p. 109.
151

O plano para oficializar o projeto (através da cooperação mútua entre o CFC,


DAC e as universidades) fica a cargo do ministro Ney Braga – diretor do Ministério da
Educação e Cultura (MEC) na época – que, ao lançar as bases para dar início as ações
previstas no documento, abriu caminho para concretizar “o reconhecimento oficial da
necessidade de incluir a cultura nos planos de desenvolvimento do governo para o país.
A atuação do Estado na área da cultura, que até então não ultrapassara os limites dos
planos e projetos circunstanciais”,512 começou a ter importância na política de
desenvolvimento e segurança do governo.
O CFC foi fundamental para servir de base na elaboração da PNC, o que expõe a
preocupação das camadas oficiais do governo na manutenção dos traços de
continuidade, referente ao discurso sobre a cultura brasileira, mantendo fixa a legenda
do mapa que delimita os espaços de atuação e produção dos artistas que se dedicam a
preservar nossas “raízes autênticas” no país.
Esse comportamento do Estado em relação aos investimentos no campo da
cultura revela que sua forma de atuação:

[...] depende do momento histórico presente, portanto, não é


definitiva. Como seu fim, ou seja, seu escopo declarado é “realidade
dinâmica de criação”, sua forma de atuação deve ser também
dinâmica. Daí decorre a afirmação de que a política de cultura situa-se
entre uma dimensão real, baseada no presente, e outra ideal, voltada
para o futuro, sendo ambas extensões do passado. Transparece mais
uma vez, [...] a preocupação com as questões de continuidade e
mudança no campo cultural. Ao afirmar que a política de cultura leva
em conta a realidade presente, entendendo-a como continuidade do
passado, para projetar o futuro, transparece uma visão evolutiva, sem
rupturas, do processo cultural.513

Nesse sentido, o Estado toma para si a responsabilidade de priorizar


investimentos para as manifestações que representem os aspectos preexistentes da
cultura nacional e sua “espontaneidade” criativa, argumentando respeitar as
diferenciações regionais para integrá-las à ordem e ao contexto nacional, evitando
particularismos e o isolamento dos grupos.
O modo de reforçar o apoio estaria na proteção dos patrimônios e movimentos
culturais que seguem uma linha folclorista e popular, instituindo, entre outras
organizações, a Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro, em 1975.514

512
SILVA, 2001, p. 110.
513
Ibidem, p. 122.
514
Em 1978 se transforma no Instituto Nacional do Folclore, incorporado a FUNARTE.
152

Apesar de expresso que a PNC tem como um de seus pressupostos a não


intervenção na “espontaneidade” da produção cultural no país, é evidente que essa
suposta abertura não é inocente, pois o governo militar trabalha na perspectiva de
resguardar a “segurança nacional”.
Assim, era preciso aumentar a vigilância sobre “as influências externas de
‘qualidade duvidosa’ que levassem ao ‘desaparecimento do acervo cultural acumulado
ou ao desinteresse para a contínua acumulação da cultura’”.515
A PNC segue, em seus objetivos, dois eixos básicos. Primeiramente podemos
identificar uma “concepção essencialista”, marcada pelo desejo de conservação da
cultura, para manter viva a memória nacional, unificada em concepções voltadas às
tradições populares, visando à ordem para a “realização” do homem como pessoa em
sua coletividade.
Também é possível visualizar a “concepção instrumental”, possibilitando adotar
maior poder de intervenção sobre o processo de modernização (visto como
“descaracterizador” das antigas manifestações populares), impedindo que as mudanças a
nível estrutural na sociedade afetem o “núcleo” da cultura brasileira.
Logo na apresentação do documento, Ney Braga afirma que a PNC busca
investigar e compreender as raízes da cultura nacional, valorizando suas
particularidades, fruto do sincretismo gerado “a partir das fontes principais de nossa
civilização – a indígena, a européia e a negra. A diversificação regional do País e a
necessidade de valorização dessas manifestações artísticas são também consideradas
partes essenciais dessa Política”.516
No documento, encontramos um conjunto de considerações e perspectivas em
torno da cultura no país, elaborada pelos intelectuais/artistas vinculados ao regime
militar. Na introdução, a PNC leva em conta que, para solidificar os alicerces da cultura
nacional, é preciso ter consciência de que o “futuro de um país e da grandeza de seu
povo não se fundamenta, somente [em bases] materiais517”, para isso, deve-se atentar
que “o espírito que o anima, é que é o responsável maior por sua identidade”.518

515
ALBUQUERQUE JR, apud. LIMA BRITO, 2005, p. 21.
516
Política Nacional de Cultura. Departamento de Documentação e Divulgação. Ministério da Educação e
Cultura. Brasília – DF, 1975. p. 5.
517
PNC, 1975, p. 8. Introdução.
518
Ibid. id.
153

Partindo deste princípio, o texto afirma-se enquanto desejo de reforçar as


estratégias para a preservação dos “valores histórico-sociais e espirituais”,519 que
definem a matriz do homem brasileiro: “democrata por formação e espírito cristão”.520
Nesse sentido, para a PNC, tais valores devem ser assegurados, tendo em vista que
“todos os homens tenham condições concretas de elaborar a cultura de seu meio, ou
dela participarem”.521
O Estado busca exercer o domínio das produções culturais, para reduzir as
ameaças provocadas “pelos mecanismos de controle desencadeados através dos meios
de comunicação de massa e pela racionalização da sociedade industrial”,522 utilizando
esses mesmos instrumentos “como canais de produção qualificada”,523 pois é função do
Estado promover o estímulo entre as fontes de produção cultural.
Para que isso ocorra de forma positiva, é preciso se prevenir contra o
cosmopolitismo descaracterizador, oriundo dos meios de comunicação de massa, em
que “a qualidade é freqüentemente desvirtuada pela vontade de inovar, o que, por sua
vez, também leva a um excesso de produção”.524
Os “excessos” são sistematicamente cerceados, sob o argumento de que, mesmo
reconhecendo a importância dos contatos interculturais e da capacidade da cultura
brasileira se renovar, absorvendo suas alterações, o país não pode se “render” ao
processo de massificação cultural vinda do exterior.
A PNC defende a ideia de que, para uma Nação sobreviver por um longo
período, é preciso que a mesma consiga integrar-se na modernidade com as raízes
fincadas na tradição, preservando os traços de continuidade cultural que são
fundamentais “para fortalecer e consolidar a nacionalidade”.525
Neste aspecto, a noção de cultura brasileira exposta pela PNC carrega na sua
construção teórica a influência do pensamento ligado principalmente à fase regionalista,
contida na obra de Gilberto Freyre, retalhada pelo Palhaço na Entrada anterior. Cabe
destacar no documento a referência às orientações de preservação e “respeito às
diferenciações”526 do espaço regional, defendendo a gênese da cultura como:

519
PNC, 1975, p. 8. Introdução.
520
Ibid. id.
521
Ibidem, p. 13. Política: concepção básica.
522
Ibidem, p. 12. Política: concepção básica.
523
Ibidem, p. 34. Componentes básicos. Art. 9º.
524
Ibidem, p. 14. Política: concepção básica.
525
Ibidem, p. 9. Introdução.
526
Ibidem, p. 24. Diretrizes.
154

[...] produto do relacionamento entre os grupos humanos que se


encontraram no Brasil provenientes de diversas origens. Decorre do
sincretismo verificado e do surgimento, como criatividade cultural, de
diferentes manifestações que hoje podemos identificar como
caracteristicamente brasileiras, traduzindo-se num sentido que embora
nacional, tem peculiaridades regionais.527

Aqui, Gilberto Freyre, entre outros intelectuais,528 são redimensionados e


“recuperados”, para servir de referencial na formulação destas concepções nacionalistas,
que se desdobram desde a década de 30, agora utilizados com uma roupagem adequada
aos anseios de instrumentalização ideológica no regime militar.
O Brasil é visto como espaço que tem “capacidade de aceitar, de absorver, de
refundir, de recriar [...] expressando a personalidade do povo que a criou”,529 através de
sua herança genética, marcada pela mixagem das três etnias geradoras, “que lhe fixaram
o panorama físico e a paisagem sócio-cultural”.530
Estes emblemas freyreanos expostos no mosaico de “O Palhaço Degolado”
vivem sob a ameaça da racionalização industrial e pela massificação da cultura, o que
leva a PNC a agir com urgência para garantir “a salvaguarda e valorização do
patrimônio histórico e artístico531”, ao priorizar a proteção “dos elementos tradicionais
geralmente traduzidos em manifestações folclóricas e de artes populares [...],
expressando o próprio sentimento da nacionalidade”.532
Podemos perceber que o discurso preservacionista da cultura brasileira contida
na PNC, busca construir um caráter pedagógico na implantação e conscientização
popular em torno de sua importância na “absorção” coletiva da nacionalidade, visando:

[...] educar o povo. Ao promover o conhecimento e a apreensão das


manifestações consideradas autenticamente brasileiras, busca-se
difundir os valores nelas contidos, ou seja, aqueles considerados da
“nacionalidade”, da “identidade cultural” brasileira. Por outro lado, é
preciso difundir também aquelas manifestações culturais que
imprimam no povo novos valores e traços culturais impostos pelo
desenvolvimento. Neste caso, para evitar uma disseminação de
“modismos” e a desvalorização de princípios culturais fundamentais,

527
PNC, 1975, p. 18. Cultura Brasileira.
528
Afonso Arinos, Fernando de Azevedo, Sérgio Buarque de Holanda.
529
PNC, 1975, p. 16. Cultura Brasileira.
530
Ibid.id.
531
Ibidem, p. 22. Diretrizes.
532
Ibidem, p. 24. Diretrizes.
155

o documento propõe, como visto, que haja um “acompanhamento”


constante do processo.533

Nesse sentido, Alexandre Barbalho afirma que, apesar da PNC não atingindo a
totalidade de seus objetivos, ela é importante porque aparece enquanto iniciativa que
não foi meramente reacionária por parte do Estado, ou a pedido particular de artistas e
intelectuais influentes, pois, “tomar a iniciativa nunca foi a prática predominante das
ações governamentais no campo da cultura, campo sempre desprestigiado em relação a
outras áreas de investimento social”.534
Não foi apenas por preocupações com a identidade nacional que o governo
Geisel, juntamente com sua assessoria, investiu na cultura, mas também podemos
associar ao desgaste político pelo qual se passava a ditadura naquele momento. Seria
incoerente para o governo manter-se apenas pela força, na censura de obras artísticas,
torturando e prendendo inimigos políticos, sem buscar proximidade com intelectuais
apoiadores, para montar a sua base de sustentação em busca da hegemonia política
nacional.
Mesmo com receio dos perigos da cultura de massa interferirem nas “raízes” da
personalidade brasileira, o caminho traçado pelos ideólogos do regime foi apropriar-se
desses instrumentos (rádio, TV, publicidade...) para construir um “espírito otimista”535
no imaginário da sociedade, usando a propaganda oficial como um mecanismo gerador
“de modelos de comportamento sugeridos, com maior ou menor sutileza, como os
comportamentos adequados, ou seja, aquilo que deveria ser a leitura correta da
sociedade e da história brasileiras”.536
O governo preocupa-se em manter a posse da identidade nacional, para elaborar
um novo tipo de comportamento social, que refletisse com os desejos de crescimento
econômico, formulando imagens e sonoridades (outdoors, vinhetas, fotografias,
mensagens televisivas) do Brasil, para “convencer a todos das potencialidades
brasileiras”, [...] “viabilizada pelo recurso às imagens do passado”, desarquivando “um

533
SILVA, 2001, p. 133.
534
BARBALHO, Alexandre. Estado pós-64: intervenção planejada na cultura. Revista Política e
Trabalho. UFPB. Set. Paraíba: 1999. p. 73.
535
“[...] o que se entende por ‘otimismo’ [...] não é apenas a atitude positiva de que os
problemas brasileiros podem vir a ter uma solução satisfatória, mas a plena convicção de que
isso ocorrerá, em função de algumas características enfocadas de forma mítica”. In: FICO,
Carlos. Reinventando o Otimismo: ditadura, propaganda e imaginário social no Brasil. Rio de Janeiro:
Editora Fundação Getúlio Vargas, 1997.p. 19.
536
FICO, 1997, p. 19.
156

material histórico específico, de uma certa memória”,537 recuperada na tradição histórica


contida na obra de Gilberto Freyre e de outros intelectuais conservadores.
O apoio à cultura minimiza a face autoritária do regime, adotando como
estratégia, incorporar nas suas diretrizes:

[...] a adesão de setores da classe média urbana e outros grupos


sociais; de conquistar uma opinião pública favorável, sobretudo no
meio intelectual e artístico; de promover uma ampla ‘reforma” da
sociedade; baseada na internalização de valores e visões de mundo e
na adoção de padrões de comportamento, utilizando a cultura como
um dos principais instrumentos [...].538

A década de 70 será o momento mais intenso no esforço de legitimação da


tradição cultural brasileira que, para Carlos Fico, significou como “aquilo que já
descreveram como uma ‘gilbertização’ do país, isto é, a absorção dos cânones
explicativos de “Casa Grande & Senzala” pelo novo grupo no poder pós-30539” através
das políticas culturais estruturadas no Brasil nos anos de chumbo, visualizadas até aqui.
Na cena inicial, quando o Palhaço apresenta, no seu jogo performático, um
conjunto de palavras-citações referentes ao universo teórico freyreano – demarcado
entre o Regionalismo e a Tropicologia – podemos afirmar que essas provocações
clownescas resultam da crítica em torno da apropriação dos intelectuais-militares às
tradições culturais, para uso direto na “adequação das alianças políticas expressas no
pacto agrário industrial” 540 brasileiro em construção na década de 1960/70.
Usar os espaços da Casa da Cultura para expressar tal discordância à cultura
oficial é um questionamento ao “resgate” dessas tradições e à positivação de um
passado idealizado, a partir de um rearranjo político baseado no discurso que torna a
cultura popular dependente do Esado, “cuja sobrevivência deveria ser garantida pelos
541
intelectuais [...], que tinham por missão compreendê-la” e situá-la como essencial,
para compor a “alma” de cada cidadão.
Contra tal mistificação, o Palhaço ironiza as “relações entre política e
tecnocracia” de um país autoritário e salvacionista, sustentado na megalomania de

537
FICO, 1997, p. 23.
538
SILVA, 2001. p. 159.
539
FICO, 1997, p. 34.
540
Ibidem, p. 34/35.
541
Ibidem, p. 35.
157

colocar-se enquanto “Brasil-Potência”, disposto a desenvolver-se com outras nações


ricas, sem perder seu caráter “tropical-humanista”.542
Os intelectuais fazem do Brasil um projeto sofisticado, aliado ao capital
nacional/estatal/internacional, através da força física e de uma extensa “rede de
representações” re-significadas “ao longo dos séculos, que, dormindo nos períodos de
crise e insegurança, desperta [...] sempre que existir alguma estabilidade”.543 Já o
Palhaço, busca romper com essa “ideia-síntese” de brasilidade, planificada no
triunfalismo monumental.

3.3. O Movimento Armorial: Disposições Gerais


Desdobrando nossas reflexões a partir do conteúdo analisado na PNC e nas
diretrizes político-culturais nos anos 60/70, podemos afirmar que Pernambuco é o
Estado no qual este debate cultural identifica-se com as gerações formadas por
intelectuais e artistas ligados – direta ou indiretamente – à herança do pensamento
freyreano.
Corte. A trilha é silenciada bruscamente, ao ser interrompida pelo ritmo
frenético das sinetas sacudidas pelo Palhaço, deslocando-se do interior para as
extremidades da Casa. Carlos Cordeiro fica posicionado no topo da escada, que dá
acesso a uma das cúpulas que circundam o prédio, para filmar a entrada do Palhaço que,
antes de subir os degraus, faz um sinal de reverência, para logo em seguida continuar o
percurso, levantando os braços e chamando a atenção do espectador, ao “imitar” com
deboche, a voz de Ariano.
Neste plano, a imagem fica escurecida, devido à câmera esta posicionada por
trás da luz natural, na qual podemos visualizar Jomard apenas como silhueta, marcada
pela vestimenta clown, ao gritar: “Mestre Ariano Suassuna, Mestre Ariano, Mestre
Armorial!”
A marcação rítmica dá-se a partir de quatro “balanços” das sinetas nas mãos do
Palhaço, dois toques na base da escada – no momento da reverência – e mais dois no
trajeto que o leva até o último degrau que, ao ser cortada, nos conduz até uma imagem
de um brasão, em close, fixado na parede externa à Casa da Cultura.

542
FICO, 1997, p.85.
543
Ibidem, p. 86.
158

Nesta parte do filme, é recitado o trecho original de “Outdoors do Recado”,


poema de Wilson Araújo de Souza, que serviu de mote para construção do texto
definitivo que compõe a obra. A trilha é retirada para destacar a voz off de Jomard:
“Como é dura a vida do colegial começar o ano com lápis de classe assinalando os
brasões e suas armas armoriais...”

Figura 7:
A reverência armorial e ironia corrosiva.

Na parte superior da cúpula, de uma das extremidades da Casa, Carlos Cordeiro


acompanha os movimentos do Palhaço - que está apoia no mastro da Casa - girando em
torno do mesmo, explorando sua ação em contra-plongée544, enquanto o personagem
reforça a reverência irônica ao movimento cultural coordenado por Ariano.
Após entrar a voz de Jomard, a trilha é recolocada em diálogo com os gritos do
Palhaço: “E TUDO, pela força dos brasões familiares e dos poderes oficiais, TUDO
pode transformar-se em armorial... Céus armoriais. Astrologia armorial. Literatura de
cordel armorial. Gravadores armoriais. Povo, povo, povo armorial. Ioga armorial
Empreguismo armorial. Sexologia armorial”.
Carlos Cordeiro filma a performance de Jomard do térreo, a fim de captar os
movimentos em plano geral de conjunto, oferecendo mais autonomia na exploração do
ator no seu jogo corporal, usando as pernas e braços com mais desenvoltura para
intensificar a declamação: “Subvenções armoriais. Sobrados & Mocambos, quem diria,
armoriais. Megalomania armorial. Piruetas armoriais. Dança Armorial. Como é mesmo,
profa. Flávia Barros? A reverência armorial”.
A cena retorna para a cúpula, onde Carlos Cordeiro experimenta filmar em
plongée,545 mesmo com os riscos de tropeçar e cair – pois o grau de dificuldade da

544
A câmera filma o objeto de baixo para cima, ficando a objetiva abaixo do nível normal do olhar.
Geralmente, dá uma impressão de superioridade, exaltação, triunfo, pois faz "crescer" o/a ator/atriz.
545
É a câmera enquadrando a imagem de cima para baixo. É como se um personagem ou o próprio
espectador olhasse uma imagem de cima para baixo.
159

filmagem era alta – ao se apoiar na estrutura de frágil sustentação, captando o Palhaço.


Ao fundo, o rio Capibaribe e os prédios que compõem a paisagem urbana da cidade em
direção ao bairro Boa Vista: “Heráldicas e ministérios armoriais. Onça armorial. O
Príncipe dos príncipes armoriais. Estética, metafísica... Capibaribe armorial, Capiberibe,
armorial.Orquestra armorial, não! Orquestra romançal!”
As sinetas voltam a tocar em off para sinalizar a entrada da próxima cena. O
Palhaço corre de um lado para outro, mas Carlos, no primeiro momento, não consegue
registrar em close o rosto do personagem, devido aos excessos gestuais, impedindo a
câmera de captar seus rápidos movimentos.
Lentamente, a imagem ganha definição através do zoom out546, ao definir em
plano geral o Palhaço “fugindo” da câmera, ao correr em direção ao portão que cerca a
Casa da Cultura, escalando suas grades: “É a onça Caetana! É a onça Caetana? Ou é a
crítica fazendo cobrança? É a repressão ministerial ou a esquerda oficial? Cultura
amordaçada!”
Após o corte para filmar o Palhaço em cima das grades, Carlos faz um rápido
zoom out, partindo do rosto do personagem até espalhar a imagem em plano geral,
captando o portão na sua totalidade, com Jomard ao centro gritando: “Abaixo o
Imperalismo Cultural!”
Quando o Palhaço sobe as escadas e grita o nome de Ariano, o filme parte para o
segundo momento do debate, deslocando-se da Tropicologia para afrontar as veredas da
tradição armorial, identificado pela perspectiva de continuidade à conscientização
valorativa da temática regional, dada através de novos escritores e movimentos culturais
defensores da cultura nordestina.
O Palhaço insinua e coloca o Movimento Armorial no centro da crítica, para que
o espectador perceba o continuum existente nas malhas do poder cultural nordestino,
numa linha que percorre como pontos de “nó”: Freyre e Ariano.
O personagem situa Ariano como uma espécie de intelectual responsável pela
reativação destas preocupações tradicionalistas nos anos 70, ao engajar-se na
manutenção das imagens-textos e monumentos pernambucanos, em sintonia com os
interesses dos poderes oficiais, que regem a “brasilidade” desde a década de 20, com a
retomada Regionalista.

546
Diminuição da distância focal da lente durante uma tomada, o que dá ao espectador a impressão de que
está se afastando do elemento que está sendo filmado. Disponível em:
<http://www.roteirodecinema.com.br/manuais/vocabulario.htm.> Acesso em: 30 nov. 2011, às 1h37.
160

Segundo Idelette Muzart, as linhas de continuidade que agem sobre o fazer da


cultura nordestina em Recife pós-30, podem ser pontuadas pela:

[...] geração de 1945 [que] teve sua existência “oficializada” em 1947,


através de um artigo do poeta Mauro Mota (DP547, 16/11/1947) que a
intitula o segundo Movimento Regionalista do Nordeste, no qual
Gilberto Freyre garante ver uma continuação ou nova fase do “seu”
Movimento Regionalista Tradicionalista. Esta geração reúne talentos
diversos, mas que se organizam em torno de duas personalidades
faróis, que são [...] Hermilo Borba Filho e Ariano Suassuna. A
geração de 1965 forma-se também em torno de três jovens poetas –
Alberto Cunha Melo, Jaci Bezerra e José de Almeida Melo,
conhecidos como o grupo de Jaboatão [...].548

Jomard afirma que a Geração de 45 pode ser considerada “como


desenvolvimento do regionalismo [...] mas desenvolvimento sem rupturas, sem ‘saltos
qualitativos’. O novo dessa geração: ela não é mais igualada a um nome, uma pessoa,
um estilo, como foram Gilberto Freyre e ‘Casa Grande Senzala’”.549
Esta produção pode ser encarada como produto da “engenharia simbólico-
cultural” 550
da chamada “brasilidade nordestina”, contida no pensamento de Gilberto
Freyre, que saiu à frente na militância preservacionista, difundindo a ideia de região
como espaço “puro” a ser mantido sob proteção de invasões culturais estrangeiras, os
“vilões” que ameaçam a “dignidade e a moral” do Nordeste.
Alguns movimentos artísticos existentes em Recife convergiram suas ideias na
perspectiva de defesa das manifestações populares e sua conservação diante do processo
“descaracterizador” da cultura brasileira. Desse modo, podemos acrescentar na
configuração do cenário cultural pernambucano pós-Congresso Regionalista, outros
grupos vinculados ao pensamento da década de 20 do século passado, como os artistas
ligados à Sociedade de Arte Moderna do Recife (1948), do Ateliê Coletivo (1951) e o
grupo do Teatro de Estudante de Pernambuco (TEP), grupos que atuavam em defesa das
regionais autênticas.
O interesse pelo tema regional mobiliza intelectuais de praticamente todas as
áreas de criação, para que seja possível compensar no plano simbólico a imagem do
Nordeste no circuito mais amplo, em virtude de seu declínio econômico, o que torna
legítimo a exaltação das manifestações populares de uma região em decadência.

547
Diário de Pernambuco.
548
SANTOS, 1999, p. 24.
549
BRITTO, Jomard. Presença e Recusa do Sincretismo. Impresso. Recife: Sem data.
550
ZAIDAN, Michel. O Fim do Nordeste. São Paulo: Cortez, 2001.
161

Amilcar Bezerra aponta que os traços históricos de continuidade, que demarcam


o pensamento tradicionalista no Nordeste, podem ser percebidos desde os ideais
regionalistas contidos na obra de Gilberto Freyre, que aparece “como forte vetor de
influência sobre as gerações posteriores de artistas e intelectuais”.551
A contribuição de Freyre em torno de noções – expostas na Entrada anterior –
como “Região” e “Tradição” servem de suporte para elaboração artístico-conceitual de
literatos ligados à geração de romancistas nos anos 30, adotando em suas obras o
sentimento nostálgico, em tom documental, do espírito em decadência dos latifundiários
nordestinos em crise.552
Nas décadas de 1940/50, o pensamento de Freyre ecoa não somente na literatura,
mas nas artes cênicas pernambucanas, destacando o Teatro do Estudante de Pernambuco
(TEP), bem como nas bases iniciais que levam até o surgimento do Movimento
Armorial, liderado por Ariano Suassuna que, “por sinal, é um dos artistas de maior
projeção a atualizar e modular alguns dos preceitos regionalistas de Freyre tanto em sua
obra intelectual quanto teatral e literária”.553
Isso possibilita que os espaços de poder desloquem-se do eixo político para o
campo da cultura, refletindo “na acomodação de signos e tradições regionais diversas,
de modo a sugerir a população que a originalidade da cultura brasileira554” teve origem e
mantém sua força no Nordeste, que une o sentimento de pertencimento e valorização de
seu papel na história da construção do “Ser” nacional.
Para Michel Zaidan, esse esforço resultou na elaboração e ampliação do “caráter
brasileiro”, cultuada como status de originalidade, servindo de suporte para justificar um
conjunto de práticas culturais conservadoras, oligárquicas e “tradicionalistas de nossa
sociedade”.555
Como já foi exposto no início desta Entrada, o Estado exerce papel fundamental
para dar apoio aos grupos regionais, que seria, inicialmente, mediar os pactos “entre as
elites por meio de concessões aos setores arcaicos da sociedade, os quais convivem com
556
os setores modernos, sem que estes se tornem hegemônicos em relação àqueles” ,

551
BEZERRA, Amilcar. Ariano Suassuna e as reconfigurações midiáticas contemporâneas dos ideais de
artista e intelectual da tradição nacional-popular brasileira. Tese em andamento. Programa de pós-
graduação em Comunicação da UFF – Rio de Janeiro. 2012. p. 63
552
BEZERRA, 2012. Tese em andamento, p. 63.
553
Ibid.id., Tese em andamento, p. 63.
554
ALBUQUERQUE JR, apud. LIMA BRITO, 2005, p. 53.
555
ZAIDAN, 2001. p. 12.
556
ALBUQUERQUE JR, apud. LIMA BRITO, 2005, p. 53.
162

constituindo um espaço no qual se articularia os objetivos dos grupos dirigentes na


integração das diversas partes da nação,557 tornando-se:

[...] o centro nevrálgico de todas as atividades sociais relevantes em


termos políticos, daí uma preocupação constante com a questão da
“integração nacional”. Uma vez que a sociedade é formada por partes
diferenciadas, é necessário pensar uma instância que integre, a partir
de um centro, a diversidade social.558

Concomitante ao envolvimento do Estado nas décadas de 60/70 com políticas de


cultura podemos destacar o próximo alvo do Palhaço: o teatrólogo, escritor e poeta
paraibano, Ariano Suassuna. Em 1946 se filia ao grupo Teatro do Estudante de
Pernambuco (TEP), fazendo suas descobertas e ampliando a sensibilização do artista e
público sobre a importância da arte popular.
Ariano acredita que, ao ser investigada em profundidade, é possível perceber sua
autenticidade e pureza559, na perspectiva de “valorização da singularidade nativa”, no
exercício criativo que visa “alcançar uma pretensa universalidade capaz de inserir o
Brasil no cânone universal das artes”.560
Sua ligação no TEP deu-se no momento em que:

[...] o grupo já se apresentava com uma proposta diferenciada no seio


da cena teatral recifense, opondo-se aos princípios tanto de uma arte
submissa aos modelos comerciais quanto aos de um teatro
conservador e elitista. Uma dupla negação, que buscava na estética
das culturas populares subsídios para a formulação de uma linguagem
teatral original e, portanto, moderna.561

Interessado em pesquisar a arte nordestina, Ariano viveu uma série de


experiências nas décadas de 40/50 voltadas ao incentivo da produção da poesia, canto e
teatro influenciada pela poética do romanceiro e do tema nordestino562, estabelecendo
relações com artistas dedicados à xilogravura, música, etc.
As décadas de 50/60 marcam sua presença tônica, onde torna-se mais conhecido
no cenário nacional e internacional, no qual é bastante respeitado no campo
acadêmico/artístico, com sua intensa produção literária, com peças premiadas e
trabalhos traduzidos para diversos países, como o “Auto da Compadecida” (1957).

557
ORTIZ, 2001. p. 51.
558
Ibidem, p. 115.
559
SANTOS, 1999, p. 27.
560
BEZERRA, 2012. Tese em andamento, p. 56.
561
Ibidem, Tese em andamento, p. 65.
562
SANTOS, 1999, p. 27.
163

Ganha bastante visibilidade na Universidade Federal de Pernambuco como professor de


estética em 1956,563 legitimando seu papel de referência intelectual para toda uma
geração de seguidores.
Em 1967, integrou-se como membro do CFC (permanecendo até 1972/73),
engajando-se na elaboração do discurso cultural que fundamentou as ações do regime
militar – sua participação no conselho vem juntamente com a formação do Movimento
Armorial.
Em 1969, foi convidado pelo reitor da Universidade Federal de Pernambuco (Dr.
Murilo Guimarães) para ocupar o cargo de diretor do Departamento de Extensão
Cultural (DEC – permanecendo até 1974) da instituição, e em 1975 assumirá a
Secretaria de Educação e Cultura a convite do prefeito Antônio Farias.
Ao assumir o cargo, Suassuna desenvolveu pesquisas artísticas com
características semelhantes às realizadas no DEC, seguindo metas mais sólidas, onde
atuou em estruturas de nível municipal. “A composição do Conselho Municipal de
Cultura, que auxilia o prefeito e o guia nas suas escolhas culturais, confirma o papel de
apoio estratégico, que representa para o movimento a nova responsabilidade assumida
por Suassuna”. O Conselho foi composto por “seis outros membros, dos quais quatro
são artistas do Movimento Armorial [...]. Suassuna teve uma total liberdade de ação e
não parece ter sofrido nenhum tipo de pressão visando a orientar ou modificar seu
programa”.564
Essa fase é importante para que suas ideias a respeito da cultura popular fossem
trabalhadas “em um laboratório de pesquisa pluridisciplinar, no qual se encontram
escritores, artistas plásticos. Convoca músicos nordestinos [...] para trabalhar
conjuntamente na elaboração de uma música erudita nordestina [...]”. 565
O Movimento Armorial ganha destaque na cena pernambucana em 18 de
outubro de 1970,566 na Igreja de São Pedro dos Clérigos, no Recife, com um concerto da
Orquestra Armorial e uma exposição de artes plásticas567. Em 1971, a Igreja dos

563
TAVARES. Bráulio. ABC de Ariano Suassuna. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 2007.
564
SANTOS, 1999, p. 30.
565
Ibidem, p. 28.
566
Segundo Ariano em 1980: “Foi na verdade, para nos identificar como seguidores, discípulos e
continuadores da Escola de Recife, que retardei por um ano a deflagração do Movimento Armorial,
cujos trabalhos se iniciaram em 1969, [...] mas que somente foi lançado em 1970, a exatamente um
século do início daquela escola. [...] Foi, portanto, a partir do pensamento desbravador e inicial de
Sylvio Romero que fundamentei meu trabalho de escritor romanceiro e nos espetáculos populares (...).
Extraído do Diário de Pernambuco. In: ALBUQUERQUE JR, apud. LIMA BRITO, 2005, p. 140.
567
Ibidem, p. 103.
164

Rosários dos Pretos é ocupada pela segunda ação do movimento, através de uma
exposição voltada para divulgar tais manifestações, resultando na gradativa
consolidação do grupo, a partir de publicações, exibições da Orquestra e
experimentações de artistas intelectuais com a linguagem popular.
A principal abordagem do movimento era a de construir uma arte popular
erudita, tipicamente brasileira:

[...] baseada na pesquisa naquilo que seriam as raízes da cultura


nacional: a herança medieval ibérica vinda com os portugueses para o
Brasil na época de seu descobrimento, aliada a uma forma de ser (e de
fazer) mestiça, vinda da mistura dos sangues europeu, negro e
indígena. Para Ariano, o celeiro dessa dita “essência brasileira” se
encontraria intacta no Nordeste e por isso seu interesse pelo folheto de
cordel e pelas ditas manifestações populares nordestinas. Para Ariano,
a formação de uma considerada “arte brasileira autêntica” passaria
obrigatoriamente pela “arte popular”.568

Mesmo que, para alguns críticos, a palavra “essência” remeta a ideia de


cristalização, Suassuna percebe nas suas investigações que as culturas populares não
devem ser vistas como manifestações estáticas, mas com seu movimento próprio, que
continuamente ganha novos contornos com a passagem do tempo. Apesar das mudanças
que sofrem, sua autenticidade nunca é perdida, mobilizando Suassuna na escavação dos
símbolos puros da brasilidade, para valorizar seus elementos e ressignificá-los enquanto
arte erudita.569
Assim, encontramos em Ariano Suassuna a preocupação em nivelar no seu
discurso o popular e o erudito “num mesmo patamar de valor”.570 Sua concepção de
cultura popular caracteriza-se pelo que ela tem de pré-moderno, elemento que deve ser
protegido de possíveis ações na contemporaneidade, que ameace retirar às camadas que
dariam sentido legítimo a arte popular perante as descaracterizações nos elementos
estéticos nordestinos provocados pela “modernidade”.571
Para o Movimento Armorial, a arte popular não poderia estar vinculada a
nenhum projeto político. O eixo se dá na resistência contra a influência da “cultura de
massa”, principalmente a norte-americana, valorizando explicitamente o popular
tradicional, protegendo-a de qualquer infiltração estrangeira. Para isso é necessário uma

568
VENTURA, 2007, p. 17.
569
BEZERRA, Amilcar. Tese em andamento, p. 87.
570
BEZERRA, Amilcar. Literatura e Almanaques: Ariano Suassuna e os modos alternativos de inserção
do popular e do nacional na mídia. XXX INTERCOM. Santos, Anais do Encontro. Santos, 2007. p. 3.
571
BEZERRA, 2007, p.3.
165

articulação entre todos os artistas interessados em levantar a causa de envolver-se com o


programa de pesquisa na elaboração de uma “Cultura Brasileira autêntica”.
O fortalecimento ocorre a partir da integração coletiva entre artistas de várias
áreas, pois a união grupal foi um meio viável de construir frentes culturais mais amplas,
naquele momento. Dessa forma, os artistas tomam como base de criação, o romanceiro
e o folheto, material criativo que constitui:

[...] um aspecto particularmente original do Movimento Armorial [...]


[recurso que provoca] a relação estreita entre as diferentes expressões
artísticas e os próprios artistas. O folheto funciona, não como fonte
única, mas como ponto de convergência de três modos de expressão,
que a cultura letrada separou e fragmentou em disciplinas
diferenciadas, se não rivais. [...] [Assim, Ariano elege] o folheto da
literatura de cordel como bandeira do Movimento Armorial por unir
três caminhos: uma via literária, teatral e poética, que se inspira em
seus versos e narrativas; uma outra via para as artes plásticas,
apoiando-se nas xilogravuras que ilustram as capas de folheto;
finalmente, uma via musical que, através dos cantos e das músicas que
acompanham a leitura-recitação do texto, reencontra a tradição da
poesia oral, improvisada ou não.572

Para encontrar tais signos na arte brasileira, o movimento trabalhou na operação


dedicada a escavar e trazer à luz os elementos que constituem a brasilidade, mas que
estavam “soterrados” por bastante tempo na história da cultura nacional, ou seja,
“apagando-se” na memória do povo.
O violonista Jarbas Maciel contribui para fixar a concepção armorial de cultura,
enquanto instrumento de investigação arqueológica e protetora da “onda avassaladora
de civilização material do mundo ocidental”.573
Em sua análise sobre a cultura no Brasil, Jarbas afirma a existência de:

[...] “dois Brasis”: o litoral modernoso, legal e o hinterland, onde, para


ele está o Brasil real. O Brasil litorâneo [...], vive envolvido com a
cultura norte-americana e européia de uma forma parasitária e
alienante; e o “Brasil real”, diz Maciel, “é simbolizado pelo que
Ariano gosta de chamar de ‘Povo de Canudos’, fiel às suas tradições,
que afundam raízes na herança cultural ibérica durante a Idade Média,
o que nos põe em relação [...] com os gregos, os persas e com o
Oriente”. O “Brasil legal”, para Maciel, é representado pelos ricos e
burgueses, envolvidos no usufruto de riquezas materiais da civilização
moderna. No outro “Brasil” estão os pobres, a população mestiça que,

572
SUASSUNA, Ariano, apud. SANTOS, 1999, p. 36-37.
573
MACIEL, Jarbas. apud. DIDIER, Maria Thereza. Emblemas da Sagração Armorial: Ariano Suassuna
e o Movimento Armorial 1970/76. Recife: UFPE, 2000. p. 168.
166

pela precariedade da vida do campo é expulsa para o litoral,


estabelecendo-se em condições subumanas nas favelas em regiões
periféricas dos grandes centros urbanos. Entretanto é essa população,
no entender desse filósofo, que preserva intactas as tradições do
passado. Maciel denuncia a miséria, mas, através dela, vê a
preservação das tradições.574

A “pureza” que compõe o “Ser” brasileiro está exatamente onde Maciel afirma
na citação anterior, no “Brasil real”, localizado na região sertaneja de população mestiça
e pobre, onde os brasileiros “cultos e sensíveis” têm por obrigação resgatá-lo para
iluminar “os núcleos culturais de origem popular, como matéria-prima para uma
dimensão intelectual universalizante”,575 baseada no povo nordestino e suas
manifestações culturais autênticas.
Para a “essência” cultural estabilizar-se sob o signo da nordestinidade,576 é
preciso localizar o “subsolo oracular da cultura brasileira”, encoberta por três camadas a
serem perfuradas, até ir ao encontro do elemento purificador da identidade nacional.
Para Maciel, as duas camadas que podem ser visualizadas formaram-se a partir
da “consolidação do imperialismo norte-americano a partir de 1930 [...] na qual
predominam o Brasil litorâneo dos “burgueses” e a credibilidade na tecnologia e no
planejamento como portas para o progresso desmesurado”.577 A camada inferior é a do
“Brasil imperial”; no qual, é possível ver que a cidade já se destacava com a sua
predominância estrutural.
Maciel enfatiza que “é na terceira e mais profunda camada [...] que corresponde
ao ‘período arcaico do Brasil’ e que esta é fundamental para o entendimento do
Movimento Armorial”.578 Na fase marcada pelo período arcaico – nos séculos XVI,
XVII e início do XIX – o Brasil era compreendido pelos intelectuais pela sua “natureza
exuberante, selvagem, simultaneamente doce e hostil, sendo essa natureza ‘uma fêmea
tropical, quente, primitiva, sensual, que prende e submete o seu abraço viscoso, cheia de
mistérios’”.579

574
MACIEL. apud. DIDIER, 2000, p. 168-169.
575
DIDIER, 2000, p. 170.
576
Para Leonardo Ventura, a “Nordestinidade” seria o estabelecimento que o Movimento Armorial
formulou para construir uma linha reta que ligasse a arte nordestina a uma origem medieval-barroca,
evitando desvios e turbulências da rota de ligação desse diálogo cultural para, a partir desse fio que
conduz à estética armorial, seja possível descobrir a essência da arte nordestina, escavando suas
raízes, seguindo uma pista pelos vestígios deixados por ela na dita “cultura popular”. Cf.: VENTURA,
2007, p. 18.
577
MACIEL, Jarbas, apud. DIDIER, 2000, p. 171.
578
Ibid. id.
579
Ibid.id.
167

A camada final é o espaço em que atua o movimento, na exploração dos


elementos que compõem o universo de pesquisa e representação, local desprovido de
regimentos científicos e voltados a uma concepção mágica do tempo.
Aqui estariam preservadas as heranças culturais:

[...] árabe-ibérica da Idade Média [...] herdado dos persas e dos


hindus. A predisposição ao sagrado, portanto, típica dessa camada de
nosso subsolo cultural, resulta facilmente explicável. Por isso
chamamos este subsolo cultural de ‘oracular’. Esse discurso une-se à
ambivalência, à sensualidade, à embriaguez de pensamentos,
consideradas, por Suassuna, presentes nas origens do caráter brasileiro
e, ainda, com a visão de terra sagrada, povoada por bichos e imagens
fantásticas que permeiam a sua história e nutrem a essência cultural
deste país [...].580

Nota-se que o Nordeste é visualizado por esses intelectuais como um espaço


privilegiado e guardião daquilo que o Brasil tem de mais original. A identificação com o
território é atravessada pela idealização que este contém pela “união dos contrários”,
aspecto primordial para a formação da cultura brasileira, conectando-se ao pensamento
tropicológico freyreano e com as concepções armoriais, expressas conjuntamente ao que
intitulamos “brasilidade”.
A convergência entre o regionalismo freyreano e o armorialismo é dada pela
valorização das duas linhas de pensamento à ideia de “originalidade” da nação a partir
da mestiçagem como fator “particular” da cultura nacional; traço fundamental para
formar o povo “castanho”, na exaltação da região como base para a formação da
“essência” brasileira e universal.
Para Jomard:

Essa literalização da realidade, das ciências sociais, e


conseqüentemente de tôda uma interpretação do fenômeno cultural,
marcou, de fato, tôda uma geração [...] a geração gilbertiana praticou e
teorizou a cultura como deleite e não como luta, como ornamento e
não como trabalho, como prazer e não como ‘práxis’. Dai seu
‘impressionismo, sua sensibilidade requintada, seu ‘bom gosto’
insubstituível, seu ‘progresso’ sempre equilibrado pela ‘ordem’, seu
‘franciscanismo’ envolvente.581

O comentário de Jomard nos leva a compreender outro aspecto, que está na


“crença na ideia de que a repetição pura e simples dos signos culturais e valores que

580
MACIEL, Jarbas, apud. SUASSUNA, DIDIER, pp. 171-172
581
BRITTO, Jomard Muniz de. Presença e Recusa do Sincretismo. Impresso. Recife. Sem data.
168

vêm de fora podem representar uma ameaça para a nossa soberania”582 e autonomia do
povo brasileiro, motivo que reforça a necessidade urgente de preservar a cultura e a
identidade nacional do meio externo, movimentando-se entre reação e resistência.
Ariano busca uma aproximação com a obra de Sílvio Romero e Gilberto Freyre,
ao perceber que em suas “obras de criação” – independente da reflexão cientificista do
primeiro e sociológica do segundo – é possível encontrar “a presença da Nação, da
região e da tradição sob seus olhares”,583 dialogando estes autores em torno das questões
ligadas à tradição e a etnicidade, bases teóricas fundamentais ao Movimento Armorial.
Apesar destas aproximações gerais, encontramos nessa complexa associação,
elementos peculiares que também os diferenciam enquanto proposta cultural. Uma das
características apontadas está na recusa de Ariano Suassuna quando se associa
Movimento Regionalista e Movimento Armorial enquanto grupos com objetivos
“iguais”, concepção generalizada que esvazia os objetivos e a localização temporal que
fundamentou cada grupo em sua época.
Um dos pontos a destacar a respeito dessa diferenciação está na definição do
Regionalismo como movimento que segue uma linha de pensamento mais próxima do
naturalismo584, como opção estética na construção de narrativas identificadas com a
reprodução da realidade de cunho memorialista, privilegiando o pensamento sociológico
e romântico, ao exaltar o “retorno ao passado”.
Já o Armorial, tem como prioridade, iluminar o “espírito mágico” da cultura
popular através da valorização da literatura oral em processo de recriação da realidade,
com elementos mágicos encontrados na região, indo do nacional ao universal,585
próximo do clássico barroco.
Não é à toa que o lançamento do movimento ocorreu numa igreja de arquitetura
barroca na cidade do Recife, “passando pela pretendida recuperação de melodias
barrocas conservadas pelo cancioneiro popular, na reminiscência das pedras armoriais
dos portões frontadas do barroco brasileiro”,586 aspecto decisivo para constituição da
“essência” cultural brasileira.
A recriação de terras e reinos imaginários elaborados pelo Movimento Armorial
são marcados pela origem dos integrantes, filhos de um ambiente rural que, numa

582
ALBUQUERQUE JR, apud. LIMA BRITO, 2005, p. 139.
583
DIDIER, 2000, p. 138.
584
Ariano considera que o Regionalismo seria uma espécie de “Neo-Naturalismo”.
585
VENTURA, 2007, p.104.
586
Ibidem, pp. 58-59.
169

abolição ou suspensão do tempo, fixam-se no passado intocado, no mundo fechado da


fazenda, na relação íntima com o Nordeste, local não invadido pela “degeneração”
cosmopolita.587
O Nordeste é visto como espaço puro e reduto do que ainda temos de autêntico e
verdadeiro na sua poeticidade, desse modo, o sertão de Suassuna aparece como um:

[...] espaço ainda sagrado, místico que lembra a sociedade de corte e


cavalaria. Sertão dos profetas, dos peregrinos, dos cavaleiros andantes,
defensores da honra e das donzelas, dos duelos mortais, Sertão das
bandeiras, das insígnias e dos brasões, das lanças e dos mastros, das
armaduras pobres de couro. Sertão em que todos são iguais diante de
Deus, o que não significa reivindicar o mesmo aqui na vida terrena,
condena a ser sempre imperfeito, por ser provação, mas que a
igualdade divina permite manter a esperança e resignação diante das
condições mais adversas.588

Estas imagens construídas em torno da região Nordeste tornam-se um depósito


de arquivos que devem ser protegidos, para resistir as “estrangeirices”, numa base
endurecida, para edificar as tradições monumentalizadas em um passado fundante,
sugerindo a manutenção de uma sociedade hierarquizada – sem espaços de mobilidade –
para proteger-se de outras referências atravessadas pela criticidade contemporânea, que
reinventem a cultura brasileira enquanto estilhaços anarco-experimentais.
Esta “cultura brasileira” já estaria consolidada por séculos e deve ser mantida
em sua preservação, através de movimentos culturais dedicados a traçar as linhas de
continuidade ao discurso cultural nordestino-brasileiro.
Para defender a cultura brasileira, Ariano Suassuna segue alguns eixos que
definem sua postura como intelectual e artista, entre as quais podemos destacar:

Os valores estéticos presentes na arte popular são


inestimáveis, e devem ser preservados e aproveitados. A arte
popular deve desfrutar do mesmo status que a arte erudita,
embora haja diferenças fundamentais entre elas. O artista
nacional deve se dedicar a missão de recolher na cultura
popular o subsídio para a elaboração de uma arte erudita de
caráter nacional. Contribuir para a construção de uma
identidade nacional através da arte é uma obrigação moral do
artista. A cultura de massa produz arte medíocre, por isso
deve ser combatida [...]. Como a submissão da cultura popular

587
SANTOS, 1999, p. 97.
588
ALBUQUERQUE JR, 2006. p. 167.
170

à cultura de massa representa o fim da arte, cabe aos artistas,


políticos e intelectuais, lutar contra esse estado de coisas.589

As fronteiras tornam-se rígidas. O discurso tradicionalista sobre o passado vira


algo absoluto, ao rejeitar os modos diferenciados de trilhar novas vias interpretativas
sobre a história, bloqueando as possibilidades de mudança na sua configuração.
Assim, o passado vira patrimônio, e tudo que identifica-se com a estética
Armorial (literatura, folheto, dança, música...) é recebido como matéria de um passado
que passa por um processo de re-elaboração dos elementos tradicionais em diálogo com
a arte nacional erudita, pois a “única” forma de apreciação possível está na valorização
da tradição brasileira e a continuidade de sua preservação.
Segundo Nestor Canclini, o que faz as tradições serem visualizadas para ganhar
legitimidade, vem da necessidade de colocá-las no palco. À medida que as
manifestações são teatralizadas em eventos como: o lançamento do Balé Armorial, da
Orquestra Romançal, livros, xilogravuras e a presença central do representante do
movimento em espaços públicos levantando polêmicas sobre cultura popular e cultura
de massa, é que ganha poder de substância fundadora atualizada em “celebrações 590,
festividades, exposições e visitas a lugares míticos591. Ações que compõem todo um
sistema de rituais no qual se organiza, rememora e confirma periodicamente a
“naturalidade” da demarcação que fixa o patrimônio originário e “legítimo”.
A identidade cultural é cerceada em blocos e espaços que condensam todos os
agrupamentos simbólicos em coleções de imagens, textos, músicas que são devidamente
ordenadas, que se afirmam como “autênticas” do Nordeste. Esse conjunto de discursos
é, constantemente, re-arrumado numa paisagem fixa, possibilitando que a mesma
mantenha-se arquivada na memória coletiva.

589
BEZERRA, Amilcar. Estrela Armorial: a presença de Ariano Suassuna na mídia nacional. XXVIII
CONGRESSO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO, UERJ, Anais de Congresso.
Rio de Janeiro: UFRJ, 2005, p. 4.
590
No carnaval de 2002, uma das maiores escolas de samba do Rio de Janeiro, Império Serrano, levou à
Sapucaí o enredo “Aclamação e Coroação do Imperador da Pedra do Reino: Ariano Suassuna”,
inspirado, principalmente, na Pedra do Reino e na Cavalgada.
591
Cavalgada à Pedra do Reino: Festa que relembra o movimento sebastianista liderado por João Antônio
dos Santos, em 1838, na Pedra do Reino, na Serra do Catolé, em São José do Belmonte, Pernambuco.
A festa é realizada no período de 21 a 28 de Maio. Esta festa vem se tornando, a cada ano, mais
brilhante e de maior expressão cultural. O evento tem hoje vários incentivadores, dentre os quais o
escritor Ariano Suassuna que publicou o livro O Romance da Pedra do Reino, em 1971, obra que
resgatou a história do episódio e inspirou a festa. Disponível em
<http://www.pedradoreino.hpg.com.br/>. Acesso em: 23 jan. 2009, às 15h53.
171

O ato de colecionar e proteger os arquivos da cultura popular significa a


instituição de um passado que simula, através da encenação cultural, uma organização
social arbitrária592, recurso neutralizador da heterogeneidade.
Nesse sentido, os rituais de exaltação do passado diferenciam-se de outras
práticas, “porque não é discutido, não pode ser mudado nem realizado pela metade. É
realizado, e então ratificamos nossa participação em uma ordem, ou é transgredido e
ficamos excluídos, de fora da comunidade e da comunhão”.593
O Movimento Armorial, assim como todos os intelectuais e artistas que se
debateram no conflito de elaboração da identidade nacional, teve como ponto central a
ânsia de adquirir o poder de “fundar-se” como grupo engajado no reforço da
nacionalidade.
Assim, forma-se um território no qual o vencedor seria o “proprietário” da
brasilidade, pois “é através de uma relação política que se constitui a identidade 594”, na
elaboração de uma instância e lugar de autoridade, designando como característica
principal a capacidade de inventar a gênese do Brasil.
A forte presença do armorialismo na década de 70 fortalece o suporte teórico
para uma visão de arte brasileira na perspectiva essencialista, entrando em sintonia com
os objetivos do Estado, que buscava uma reformulação nas diretrizes da política
cultural, para reafirmar a memória unívoca sobre a cultura no país.
Suassuna – assim como Freyre – é incorporado aos planos de intervenção
planejada do Estado e beneficiado com todas as vantagens trazidas pelo CFC/PNC, bem
como os postos que assumiu a convite dos políticos no regime militar.
A influência de sua obra para a cultura pernambucana o leva a conquistar espaço
de repercussão nacional e internacional, ganhando a simpatia dos militares e intelectuais
que compartilham das suas inquietações culturais. Sua presença tônica no meio cultural
brasileiro abre as portas das instituições interessadas em apoiar suas pesquisas sobre
cultura popular no Nordeste, o que faz do Movimento Armorial um campo de atração e
aglutinação de vários artistas pernambucanos dedicados à expressão cultural popular.
Ariano Suassuna vira uma referência intelectual, é seguido e admirado por
muitos alunos, fãs e estudiosos, se tornando um “mito” reverenciado nos jornais do

592
CANCLINI, 2003.
593
Ibid.id.
594
ORTIZ, 1994, p. 139.
172

Recife. Vale a pena destacar um fragmento retirado do Jornal do Commercio, escrito


por Jeová Franklin, a respeito da imagem lendária construída em torno de Ariano:

Seu jeitão de falar, o andar, seu jeitão de sertanejo traquejado não o


distinguia dos demais imigrantes desta grande cidade. O gigante só
aparecia quando falava, lutando para dominar a torrente de idéias,
doidas para sair. Um homem simples que parecia não deixar-se afetar
pelas medalhas, pelo título de revolucionador do teatro brasileiro e
pelos elogios vindos de tôda parte do mundo. Superava a vaidade, e do
equilíbrio entre o homem e sua imagem, cresceu e se firmou mito.
Confesso que não tive o orgulho de ser aluno do professor Ariano
Suassuna. Procurava compensar a frustração, subindo ladeiras, sábado
de manhã, para pescar alguns minutos de sua aula de Estética, no
velho Seminário de Olinda; andava quilômetros de ônibus ou a pé, até
onde houvesse uma conferência sua sobre romanceiro ou Platão. Para
mim era um mito que se justificava. O homem parecia maior que sua
imagem. Seu discurso na Assembléia Legislativa, ao receber o título
de Cidadão de Pernambuco, foi de uma grandiosidade só
comparável à do discurso do padre Hélder. Confirmava o mito, que
parecia ter estabilidade garantida595. (grifo do autor).

Visto como um grande nome da cena intelectual nordestina, Ariano Suassuna é


privilegiado e bem aceito pelo Estado, em plena repressão que o país vivenciou no
âmbito das manifestações culturais e políticas no pós-64, onde vários movimentos de
esquerda foram dissolvidos, prendendo – sob acusações muitas vezes infundadas – e
obrigando os dissidentes do regime a fugirem para outras regiões do Brasil ou exterior.
Mesmo com as perseguições, torturas e arbitrariedades do Estado, “nada disso,
contudo, afetou o Movimento Armorial, fosse em virtude das boas relações
institucionais de Suassuna com órgãos culturais ligados à esfera de poder federal, que
garantia inclusive apoio financeiro para suas iniciativas596”, bem como o desejo dos
militares na construção de uma arte brasileira “elaborada por aquele grupo, que não
ameaçava a segurança nacional”,597 portanto todos os integrantes ligados ao movimento
não sofreram nenhuma restrição dos censores.
Pelo contrário, recebem verbas significativas do governo para consolidar as
ações de pesquisas culturais e subsídios aos artistas ligados à temática popular. Estes
teriam mais espaços no circuito local e maiores chances de realização pessoal,
principalmente se estivessem vinculados ao Movimento Armorial.

595
FRANKLIN, Jeová. Jornal do Commercio. Recife. 21-IV-68. p. 3. Imagem e Miragem de um Mito.
596
BEZERRA, Amilcar. Tese em andamento, 2012. p. 94.
597
Ibidem, p. 96.
173

Amilcar Bezerra afirma que, “lastreado por esse peso simbólico”,598 Ariano, ao
assumir a Secretaria Municipal de Cultura em 1975/1977, amplia as atividades
exercidas pelo Movimento Armorial, no qual “sua política de pesquisa e criação
artística agora teria como agentes órgãos do poder público municipal, como a Orquestra
Sinfônica e o Balé Popular do Recife”.599
“O Palhaço Degolado” se rebela e ironiza as “Heráldicas e Ministérios
Armoriais”, ao criticar a totalização do poder cultural existente nas mãos de Ariano. No
período que o filme foi realizado, Jomard revela que:

[...] Gilberto Freyre e o Ariano sempre foram pessoas dominantes


entre outros intelectuais, mas eles tiveram um papel muito forte [...]
uma dominação cultural muito forte. Quando eu digo aquilo tudo no
superoito, o pessoal gosta não é o filme, mas é o que eu digo, que as
pessoas não só diziam em mesa de bar, cochichando (entendeu?), mas
não tinham coragem de externar de maneira pública, com medo!600

O filme condensa a discordância de vários intelectuais que não aceitam, nem


faziam parte dos princípios armoriais, ao negar a monopolização explícita dos
investimentos no campo cultural e a acomodação dos tradicionalistas à sombra do
regime militar.
O Palhaço fica sufocado nas engrenagens da “Megalomania Armorial”, diante da
realidade político-cultural nordestina, que valoriza radicalmente os interesses de um
grupo conservador minoritário, onde “tudo pode transformar-se em armorial”, revelando
através da ironia carnavalesca, a inoperância do Estado em aceitar na cena artística
pernambucana outros segmentos, que buscam se expressar nas margens da política
oficial de cultura, apropriando-se do mass-media como emblema de incorporação e
deglutição crítica.
A concepção de Ariano Suassuna sobre cultura popular, através do Movimento
Armorial, não era unanimidade em Recife, principalmente no que se refere a seu
radicalismo diante das “invasões estrangeiras”, que descaracterizariam a personalidade
do país. Nesse sentido, vários críticos irão confrontar-se com as formulações
estabelecidas pelo grupo e vistas, pela maioria das pessoas ligadas ao campo artístico,
como uma “verdade” plena e natural na cultura brasileira.

598
BEZERRA, Amilcar. Tese em andamento, 2012. p. 96.
599
Ibid.id.
600
Entrevista concedida a Aristides Oliveira, na tarde de 07-10-2010, às 16h25, na residência de Jomard,
em Recife.
174

As críticas à tradição serão vistas como uma atitude subversiva e constantemente


sufocada pelo regime militar. A ameaça de desestabilização poderia provocar curto-
circuito na memória nacional, pois:

O pior adversário não é o que não vai aos museus nem entende de
arte, mas o pintor que quer transgredir a herança e põe na virgem um
rosto de atriz, o intelectual que questiona se os heróis celebrados nas
festas realmente o foram, o músico especializado no barroco que o
mescla em suas composições com jazz e rock601.

Assim, colocando o nariz vermelho nos cânones sagrados, Jomard participa


como antagonista no debate sobre cultura brasileira em Pernambuco, revelando para o
espectador – entre o escárnio e o protesto – a formação de trincheiras entre os
movimentos de conservação e os outsiders, estes surgindo para destronar as barricadas
ao redor dos monumentos construídos por aqueles durante séculos. A tranquilidade da
paisagem nordestina será rompida pela polêmica, palavra que está em vias de
desaparecer na atualidade602.
O clown atrita as fronteiras para estas tornarem-se porosas, a partir da
instauração de novas interrogações no fazer cultural nordestino. Jomard pergunta, em
gesto auto-reflexivo: “[...] diante da repressão, da autocensura, do marasmo e das
cooptações, onde encontrar as fendas, brechas e mínimos territórios livres (?) para
contrapor uma crítica cortante em sua radicalidade?”603
“O Palhaço Degolado” projeta-se contra o discurso provinciano e escancara – a
partir dos excessos da personagem – o peso contido nas palavras, constituidas como
força resultante dos moldes fixos da nordestinidade.
Atitude de negação ao compartilhamento dos discursos que informam “o que
pode ser pensado, dito, escrito, dentro das fronteiras da província, muito além das
diferenças afetivas, ideológicas, estéticas e institucionais que seus produtores tentam
alimentar entre eles”.604
O filme busca esgarçar-se das limitações espaciais, dos paredões regionalizantes
da cultura nordestina, representada pelo que “ontem [foi a] casa de detenção: exposta

601
BEZERRA, 2005, p. 193.
602
GARRA. Informativo do Sindicato dos Servidores Públicos Federais no Estado de Pernambuco.
Entrevista: Acabou a Polêmica no Brasil. Ano VIII, nº 83 – Recife. Abril/Maio de 2007.
603
BRITTO, Jomard Muniz de. LEMOS, Sérgio. Inventário de Um Feudalismo Cultural. Recife. 1979. p.
57.
604
CUNHA, Paulo. Um Marginal Intrínseco. Reformulação do ensaio: Discurso Provinciano x Discurso
do Mundo. Correio das Artes, João Pessoa. 1990. In: BRITTO, Jomard Muniz de. Bordel Brasilírico
Bordel. Recife: Comunicante. 1992, p. 44.
175

em seu cruel miserabilismo [e hoje se refaz em] casa da cultura: transposta no mais
dócil folclorismo, ontem e hoje: casa de detenção da cultura”.605
A relação existente entre as heranças freyreanas, Movimento Armorial e
intervenção do Estado no campo da cultura – exposta até o momento no jogo de
citações lançadas pelo Palhaço – representa o que Paulo Cunha nomeia de “Geografia
Provinciana”.
O autor afirma que, para sua configuração se efetivar:

[...] depende pouco de um território real: suas fronteiras são


delimitadas de fato pelo próprio discurso, a partir do instante em que
ele estabelece três tipos de relação: com os outros enunciados (a
província é uma acumulação textual); com os diversos temas e
conceitos elaborados (o discurso provinciano é uma lista fechada de
gêneros); com as instituições (o provinciano fala em nome de um
poder). As fronteiras são centrípetas – elas aspiram toda uma
produção discursiva para um centro [...].606

O Palhaço é reconhecido por esse conjunto de discursos tradicionalistas como


um “corpo estranho”, no qual a província protege-se com seus portões de ferro e
concreto de espessura redobrada. No interior da província, “nenhum dialogismo é
permitido, a não ser que obedeça fielmente ao sistema provinciano”,607 o que provoca o
encarceramento de Jomard numa das celas da Casa da Cultura, a fim de silenciar a voz
dissonante de qualquer um que conteste os monumentos estabelecidos pelas camadas
oficiais do poder cultural.
Mesmo preso, o Palhaço – degolado pela truculência dos dois guardas que
vigiam a Casa – continua a explorar seus limites, numa obra fechad(a)berta, que
estende-se em outros suportes, que transita entre o audiovisual e o texto.
Apesar do espaço de experimentação crítica ser restrito pelo controle das
instituições (Universidade Federal de Pernambuco, Departamento de Extensão Cultural,
CFC, Seminário de Tropicologia, Fundação Joaquim Nabuco...), que exercem – em
nome do discurso provinciano – a “força centrípeta que legitima”608 os grandes mestres
da cultura brasileira, o Palhaço tira a máscara e busca outros caminhos para redegolar os

605
LEMOS, BRITTO, 1979, p. 17.
606
CUNHA, 1990. In: BRITTO, 1992, p. 44.
607
Ibidem, p. 46.
608
Ibidem, p. 47.
176

mitos, rompendo o marasmo que demarca “a inexistência do debate de ideias”609 nos


anos de chumbo.
Retomando o texto de Jeová Franklin, “resta apenas uma pergunta: A imagem
era miragem?” 610

3.4. O Palhaço tira a máscara: Jomard do visual ao textual


A cena em que o Palhaço problematiza o papel do Movimento Armorial na
cultura nordestina nos leva a pensar sua crítica a partir de textos que possuem ligação
direta com o filme: a literatura como extensão audiovisual. Aqui, iremos mapear alguns
argumentos que informam seu posicionamento diante do debate explorado em “O
Palhaço Degolado”.
Para iniciar tais abordagens, encontramos em Maria Thereza Didier – a partir do
Jornal “Opinião” (1976) – uma polêmica declaração de Jomard no periódico, quando
este afirma existir no Nordeste um processo de desapropriação cultural “por parte de
seus defensores611” na cultura popular:

Dizem que o folclore está morrendo (ou perdendo suas características


originais), que é necessário salvá-lo das influências de uma cultura de
elite, arquivá-lo, antes de sua degeneração total. Então passa a
pesquisar o pastoril, o cordel, etc. e colocá-los em museu ou publicá-
los para o consumo das elites como se quisessem dizer: ‘Vejam que
pena. Esse é o folclore que morreu, que perdeu sua forma de
expressão mais pura. Não existe mais’. Mas essa é a melhor saída? Se
uma determinada classe está sendo esmagada culturalmente, isso não
significa que há um esmagamento econômico paralelo ou mesmo
anterior?612

Para Didier, Jomard evidencia o aspecto de classe na cultura popular, apontando


suas contradições a partir da manutenção museológica destes signos por artistas
eruditos, que exploram seus elementos – oferecidos pelo povo – mas que “não estão
preocupados em lhe fazer uma ‘devolução’ crítica, conscientizadora, problemática”.613
De modo irônico, Jomard nos mostra que o povo transforma-se em objeto de
curiosidade para intelectuais, que permanecem vinculado à estrutura oficial, “livresca,
dando a mais generosa e autêntica ‘cobertura’ às manifestações da cultura do povo.

609
CUNHA, 1990. In: BRITTO, 1992, p.47.
610
FRANKLIN, Jornal do Commercio. Recife. 21-IV-68. p. 3.
611
DIDIER, 2000, p. 47.
612
Ibid.id.
613
BRITTO, Jomard Muniz de. Presença e Recusa do Sincretismo. Impresso. Recife. Sem data. p. 8.
177

Atitude análoga a de certos colecionadores-intermediários [...] prestimosos e vigilantes:


para ‘imortalizar’ a cultura popular”.614
Na perspectiva jomardiana de crítica cultural, essas gerações tradicionalistas –
amparadas pelas subvenções estatais via CFC / DEC / PNC – que se esforçam em
valorizar a estética popular como linguagem e ferramenta teórica para fomentar as
inspirações regionalistas e armoriais, encontravam-se desligadas e distantes “de um
legítimo compromisso entre arte e sociedade, entre cultura e subdesenvolvimento [...], e
saliente-se: enquanto Ariano Suassuna redescobria o cordel, com a maior fidelidade
tradicionalista, Josué de Castro debatia [...] o problema da fome”.615
Em contraponto ao armorialismo, Jomard:

[...] considera que o discurso da valorização dos antepassados


culturais colocava contra tudo o que vinha de novo, o que para ele
empobrecia o entendimento da cultura brasileira. Nesse sentido, [...]
afirmou [...] o seu desacordo com a argumentação que procurava
definir as matrizes da cultura brasileira no Nordeste nas expressões à
margem das influências cosmopolitas, pois considerava-a parte de um
discurso arcaizante e medievalista.616

No artigo, “Por uma estética Nordestina”, Jomard articulou um conjunto de


pensamentos ligados à temática do Nordeste e seu papel na cultura brasileira. Para ele, a
estética nordestina deve ser atravessada pelas fricções histórico-existenciais, fazendo
com que o passado se apresente enquanto interferência real no presente, assumindo e
absorvendo suas heranças. Incorporação crítica, longe do colecionismo interessado ao
desejo de grupos, mas como memória atuando e definindo os alicerces do homem, “sua
força vital, seu crescimento por saltos, sua necessidade de luta”.617
Uma reflexão que valoriza o artista nordestino na sua descoberta enquanto
“consciência progressiva”. Ele agora tem autonomia na “tomada de consciência do
processo criador, dos meios expressivos de cada arte, da necessidade de comunicação
com o público, da integração no âmbito da cultura brasileira, se recriando e se

614
BRITTO, sem data. p. 8.
615
Ibid.id.
616
DIDIER, 2000, p. 47.
617
BRITTO, Jomard Muniz de. Por uma Estética Nordestina. Revista Couro. João Pessoa: Sanhaná. Set.
1967. p. 01.
178

fazendo618”. O artista deve ser “consciente das primeiras e fundamentais exigências de


modernidade, de síntese, [...] de atualidade, de depuração, numa palavra: criticidade”.619
A partir do momento que o artista conhece e constata seu potencial criativo
plural, a cultura nordestina ganha impulso para se integrar na cultura brasileira, “contra
o regionalismo isolacionista, fechado no seu exotismo, curiosidade para turistas [...]
purista, conservador, ingênuo”.620
Nesse sentido:

A vocação do artista nordestino é a da multiplicidade: ser poeta e ator,


ser pintor e escritor, ser compositor e seminarista [...]. E esta
multiplicidade revela, não dispersão de forças, não talento indeciso,
não inconstância de atividade, (talvez o temor de errar em um domínio
só): mas simplesmente a enorme vontade de sobreviver no Nordeste.
Esta sobrevivência (através da multiplicidade) é questão de coragem e
sobrevivência também.621

Apesar das dificuldades em manter viva a chama expressiva, é preciso ter


“esforço de imaginação”, para sobreviver no Nordeste sem ser encurralado pela ótica
provinciana, produzindo em um espaço marginalizado do oficialismo, na busca
constante de novas referências, que possibilitem mais espaço de diálogo para criações e
experimentalismo estético, sempre contemporâneo às inquietações do artista.
Sua polêmica seria baseada no argumento em que defende a cultura de massa
enquanto possibilidade de releitura crítica dos emblemas e mitos brasileiros, na trilha da
“mixturação” dos elementos eruditos e populares, no ritmo de intensa industrialização
que o Brasil vivenciou nos anos 60/70, fazendo do urbano um novo espaço de atuação
do homem moderno, que deseja atualizar-se das tendências contemporâneas.
A dicotomia existente entre as noções de cultura popular x cultura de elite são
postas em questão no I Ciclo de Debates sobre Educação Brasileira Contemporânea, em
1979, quando Jomard lançou uma série de provocações ao leitor-espectador, a respeito
destas barreiras que separam o erudito e o popular:

[...] Até que ponto, essa dualidade ou dicotomia não se apresenta


como forma de estruturação do real, como presença dos
acontecimentos, como existência concreta de separações sócio-
econômicas? [...] se o projeto de cultura popular em contraposição à

618
BRITTO, 1967, p. 01.
619
Ibidem, p. 02.
620
Ibidem, p. 01.
621
Ibidem, p. 04.
179

cultura de elite, apesar de seu esquema genérico, não serve para


explicitar, ao nível de uma ação cultural com as camadas
desfavorecidas, uma dualidade ou dicotomia que, em última instância,
pertence ao modelo de desenvolvimento que vivenciamos?622

Essas inquietações expõem mais uma vez a visão de Jomard ligada à questão de
classe, ao revelar tais distanciamentos (o povo e os intelectuais) a partir da construção
de campos que definem as separações entre a realidade e o projeto “ideal” de cultura
brasileira, formulados pelos intelectuais às sombras do poder.
Apropriando-se do pedagogo Pierre Furter, Jomard busca compreender o debate
ao visualizar que, a partir da incorporação do popular pelos intelectuais enquanto
fundamento que faz da cultura brasileira “a ciência da nacionalidade”, [onde a tradição
se fortalece ao lançar no imaginário social] suas “imagens poderosas que, num certo
sentido, moldam a realidade [...] [sendo] uma maneira de projetar-se como sujeito da
história nacional623”. Isso leva a “comunhão dos intelectuais e da massa rural, da
burguesia industrial e da esquerda política, numa irracionalidade que pode conduzir não
apenas a mistificações, mas a erros graves”.624
Estes erros são traduzidos na cosmovisão mistificadora e acrítica da tradição
cultural brasileira, sob a justificativa do decadentismo econômico vivido no Nordeste
desde os tempos do Regionalismo, que se colocou como “salvadora” das manifestações
culturais nordestinas, em tempos de dependência econômica com o Sul do país.
Nesse sentido, visando tornar o Nordeste a “capital moral” de um país em rápido
processo de transformação das mentalidades e dos processos sócio-econômicos, a elite
conservadora, receosa em perder seus gabinetes protegidos à sombra dos canaviais:

[...] ‘inventaram’ os regionalismos. Do Regionalismo [...] de Gilberto


Freyre, ao Movimento Armorial, bem mais conservador: ambos como
visões aristocratizantes da cultura e vislumbres seletivos do Povo
brasileiro, bem vistos e amparados pelo Poder, os dois bastante
personalistas em sua sede de universalismo, tanto um como o outro
bastante fiéis às tradições ibéricas, luso-tropicais, não importando se
radicados ou idealizados um mais na zona da mata e outro mais um
sertão visionário. Foram e são duas grandes respostas ao problema da
dependência cultural: ambos, Gilberto e Ariano, saudados
nacionalmente como escritores inconfundíveis e, simultaneamente,

622
O Norte, 2º cad. João Pessoa. 13 fev. 1979, p.1.
623
Ibidem, p.1.
624
FURTER, apud. BRITTO, 1979, p.1.
180

como ideólogos confundidos. Propomos uma revisão aos críticos da


cultura brasileira.625

Para exercitar esta releitura do Brasil, Jomard desvincula-se da concepção de


que a cultura no Nordeste estaria fechada apenas à perspectiva mitológica-personalista-
ruralizante, tomando a cultura de massa enquanto conexão de todas as expressões
técnicas e artísticas, ampliando os horizontes para o urbano, que está em contato direto
com as experiências estéticas internacionais.626
Em contraposição a Ariano Suassuna, os regionalistas e membros da política-
cultural brasileira – em relação aos “perigos” da “estrangeirice” e “ameaça” dos bens
culturais massivos à personalidade da Nação – Jomard propõe o uso dos recursos
criativos dispostos no mass-media, incorporando os elementos de “ordem técnico-
material” (produção e difusão em série, rapidez na comunicação, síntese audiovisual e
superação das distâncias entre as classes sociais) em potencialidades “técnico-
reflexivas”.
Essa conversão só ganha valor quando “se tornam significativas na medida em
que contribuem para intensificar a conscientização e a criatividade [...] orientando-se
pelos princípios de liberdade e justiça social, evidenciando-se através de transformações
estruturais627” para “o desenvolvimento global da sociedade”.628 Para isso, tal caminho
seria viável a partir da abertura dos canais de comunicação e livre acessibilidade de
todos os homens à criação e extensão da cultura brasileira, ao romper com os
esquematismos existentes entre os intelectuais e o povo.629
Tais extensões culturais podem ser vistas no:

[...] cinema, o rádio, a televisão e a imprensa em larga escala. [Esses


suportes podem ser dispostos] ou não em termos de democratização da
cultura. Como transformar essas potencialidades técnicos-funcionais
em técnico-reflexivas? Como dar uma expressão humana a essa
descobertas? [...] Propomos, especialmente aos educadores, uma
resposta que possa corresponder [...]. de modo paralelo, às
características abaixo situadas: a) aberturas dos canais de
comunicação; acessibilidade da cultura em todos os níveis e nas
dimensões de emergência, extensão, criação [...]; c) criação de um

625
BRITTO, Jomard Muniz de. A Marreta, Ano I – Recife, mar./abr. 1977 – n. 0.
626
DIDIER, 2000, p. 49.
627
BRITTO, Jomard Muniz de. Cultura Nordestina em Debate. I Semana de Arte de Brasília Teimosa.
Promoção JUBRAPI, Recife, junho de 1968. p. 2.
628
Ibid.id.
629
BRITTO, Jomard Muniz de. Educação de Adultos e Unificação da Cultura. In: FÁVERO, Osmar
(Org.). Cultura popular e educação popular: memória dos anos 60. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1983.
p. 158.
181

espaço-tempo nôvo, que não apenas fixe, documente ou “fotografe” a


realidade, captação do real como processo evolutivo e criador; d)
possibilidade de formar-se um público ativo, participante e crítico. A
partir do momento em que os “fatôres” técnicos-materiais sejam
convertidos em “valôres” técnico-reflexivos, temos não só a
perspectiva de democratização cultural como também o caminho
aberto para a integração da cultura.630

Para colocar suas ideias em andamento, Jomard ministra o curso “Cultura de


Massa em processo” (a convite da Federação do Comércio do Rio Grande do Norte em
1969), para mais de cem pessoas, buscando trazer ao seu público reflexões
problematizadoras em torno do tema, “dentro da realidade cultural brasileira”.631
Na busca de atrair os alunos, utilizou vários recursos didáticos “diferenciados”
para a época, como cartazes, aulas-happenning, fundo musical durante as aulas,
questionário de sondagem, para verificar as “preferências do auditório e os efeitos da
mass-culture, tanto no âmbito nacional como no plano local632”, a partir de perguntas-
problema que mobilizavam o debate: “É o consumo a medida de todas as coisas?”, “O
que acontecerá com o artista diante dos meios de comunicação de massa?”633
Após a fase final de compartilhamento das ideias com os alunos nesta
experiência, Jomard amplia suas reflexões sobre as novas possibilidades do fazer,
vivenciar e interpretar a cultura brasileira, em contraponto ao pensamento
tradicionalista:

Nem o folclorismo (saudosista) nem a cultura erudita (livresca) podem


enfrentar os problemas da cultura de massa, mas esta pode assimilar,
recriar e universalizar os temas, imagens, mitos e símbolos das
culturas anteriores. Compreender os ‘meios’ equivale a buscar o
‘efeito total’ e não ficar ‘detido’ em conteúdos estereotipados. Você
precisa ser envolvido – Crescer totalmente: meta da educação de
vanguarda. Fazer uso do humor. TV, cinema, rádio: sala de aulas sem
paredes. Tôda cultura de vanguarda, a fim de não permanecer
intelectualizada, deve incorporar-se a uma educação de vanguarda.634

A visão acima é marcada pela crítica ao conceito “oficial” de cultura, que para
Jomard, está vinculada a uma posição social aproximada ao prestígio de uma minoria,

630
BRITTO, Jomard Muniz de. Contradições do Homem Brasileiro. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
1964. p. 97/98.
631
MARCONI, Celso. Jornal do Commercio. Recife. 23 abr. 1969. Cultura de Massa: segundo Jomard
Muniz.
632
MARCONI, 1969.
633
Ibid,id.
634
Ibid.id.
182

que se coloca no patamar de superioridade, diante da população como um todo. Esta


concepção situa o homem “letrado” acima do “inculto”, onde o trabalho “manual” seria
desprezado em relação ao “intelectual”.635
Jomard afirma que o conceito de cultura brasileira formulado por intelectuais
conservadores (explorados aqui na perspectiva de Gilberto Freyre e Ariano Suassuna,
conectados historicamente pela intervenção do Estado na cultura) pode ser encarado
como “ideal”. Seria um projeto de sociedade imaginada que, “sem os conceitos e
interesses ‘oficiais’, o verdadeiro significado [...] abrange desde a imediata
transformação da natureza, [...] até as expressões mais depuradas de comunicação entre
os homens, tendo em vista seu aperfeiçoamento espiritual”.636
A figura do palhaço utilizada no filme é uma extensão jomardiana para
contrariar e opor-se ao sentido livresco e conservador presente nas manifestações
culturais brasileiras, expressando-se na terceira margem dos discursos que informam a
brasilidade. Nem popular, nem erudito, mas agitando-se na cultura de massa, visto
como caminho democratizador, “que se fundamenta numa liberdade de condições,
oportunidades e direito para todos”,637 principalmente no plano educacional.
No conjunto de entrevistas realizadas para esta pesquisa, aproveitamos para
articular essas questões com “O Palhaço Degolado” que, ao ser visto na sua totalidade, é
atravessado pela noção de povo, ao problematizar – principalmente nos seus momentos
iniciais de projeção – sobre o que nós somos/seremos enquanto cultura brasileira. Como
a cultura deve ser produzida, usada, consumida na contemporaneidade, no mundo
marcado pela dessacralização dos mitos?
A respeito dessas inquietações, Jomard nos revela:

Na minha geração havia aquela dicotomia forte entre cultura popular e


cultura erudita... Dentro dessa dicotomia, os movimentos de cultura
popular faziam muita coisa... “vamos valorizar a cultura popular,
porque a cultura de elite é alienada”. No meio dessa coisa, havia a
indústria cultural... aí isso desnorteou, o que era dicotomia agora
virou uma “tricotomia”. Aí é que a coisa ficou mais “embananada”... e
dentro desse processo que você está relembrando, que se viveu na
década de 60 com Paulo Freire, o que se queria era uma
conscientização dos dilemas, das contradições, das culturas todas,
mas havia uma certa rejeição da cultura de massa. “A cultura de
massa era padronizada, do capitalismo, da dominação, do
imperialismo cultural”... mas acontece que um jornal, uma revista da

635
BRITTO, 1968, p. 1
636
Ibid.id.
637
Ibid.id.
183

UNE na época, publica Edgar Morin falando na “terceira cultura”, que


era uma valorização da cultura de massa. Eu achei isso interessante
porque não foi uma publicação qualquer, foi uma publicação de um
grupo de estudantes, era uma visão crítica da cultura, da emancipação
cultural. Então eu comecei a defender muito isso... que era como a
pessoa não devia temer... aí que entra a palavra antropofagia nesse
sentido de você dialogar com todas as culturas, todos os tipos de
cultura. E a questão do povo... quem é o povo? O trabalho com Paulo
Freire era com as camadas populares. Eram os estudantes
universitários que iam ser os alfabetizadores. Que iam fazer os
Círculos de Cultura. Os estudantes universitários já estavam dentro de
um processo que era uma formação acadêmica, alienada e
desalienada, fazendo a crítica da alienação. A gente nunca embarcou
numa leitura, numa interpretação de que a autenticidade cultural
estaria nas camadas populares, na cultura popular... Nós nunca
apostamos nisso, porque a única nossa formação acadêmica já era
muito mesclada com a própria cultura de massa, que era o rádio,
o cinema, a televisão... Eu não me lembro de fazer os superoito
pensando no povo, nem contra o povo nem a favor do povo, nem nada
disso. Eu achava que minha posição era uma posição crítica que
englobava quem quisesse criticar... a contra-cultura ligada ao
Tropicalismo era justamente contra a cultura oficial, essa cultura
oficial que é dominadora e que era fechada, muito elitista. A gente
queria romper com isso, ler os clássicos e ler os contemporâneos.
E a coisa aberta para o debate. O povo pra mim é esse processo, é
o por vir. É o trânsito. É o transe. É um processo de
transformação... Eu posso me identificar com o povo, mas sem fazer
discurso de exaltação, nós nunca entramos nisso não... Nas minhas
aulas sobre esse assunto eu falava nas concepções do povo... citava
Brecht que dizia: “O que não é popular pode tornar-se popular”. A
música mais refinada, a música mais experimental, clássica ou
contemporânea, tudo depende de uma iniciação no processo de
linguagem... O problema de Ariano é que chegou um momento em
que ele disse e continua a dizer que ele “criou” esse Movimento
Armorial... é bom que você diga... o Armorial surgiu depois do
Tropicalismo e surgiu como uma posição defensiva ... não se podia
usar a guitarra elétrica, era uma coisa “alienada”... Isso é uma coisa de
uma intolerância, de uma estupidez intelectual que no fundo tem
aquela coisa... entra a homofobia, porque a imagem do Tropicalismo é
a imagem do desbunde, das roupas, das fantasias, da carnavalização,
da androgenia... não foi o Tropicalismo que inventou isso, mas a
contra-cultura no jogo das minorias, entra o jogo da negritude, do
feminismo e isso no plano de discussão e vivência e de debate
intelectual, era o problema da contra-cultura. As pessoas mais
conservadoras achavam que tudo isso era um absurdo. Aí entra o
conservadorismo religioso, católico, familiar, tudo isso. O problema
nosso agora não é discutir as grandes revoluções, o problema agora
são os micro-poderes. Cada um atua em função de micro-poderes que
estão sendo vivenciados... Essa dicotomia que havia na década de 60
passou para os anos 70 e 80... como a entrar uma coisa mais livre da
interpretação da cultura, que é o que eu chamo a Psicanálise Cultural,
a psicanálise como extensão cultural, psicanálise extensiva.638 (grifos
meus).

638
Entrevista concedida a Aristides Oliveira, na noite de 13-10-2011, às 20h30, na residência de Jomard,
184

Para ele, a cultura brasileira, ao invés de servir aos interesses do jogo político
sustentado pela elite de raízes agrárias – perpetuada nos ritos e encenações voltadas a
preservação museológica do popular-folclórico, para controlar “os riscos de mudança”
639
na sociedade – deve ser pensada na perspectiva de crítica nacionalista (sem
saudosismos ou conservadorismos), para abolir as visões dualistas da realidade
nacional, procurando desenvolver as nossas raízes a partir da criação contemporânea de
toda comunidade, pensando a noção de “popular” no âmbito das transformações
globais640, sem desprezar as raízes:

[...] folclóricas; esforçando-se que a cultura erudita não se converta


em cultura oficial; aproveitando-se das novas técnicas de
‘comunicação de massa’. Somente assim, esta nova concepção de
cultura popular tem como finalidade principal e permanente um
projeto de unificação da cultura (grifos do autor). [...] Não é apenas
o folclore, mas toda comunicação de massa que tenha como objetivo a
conscientização humana, o despertar da capacidade crítica do nosso
povo, a justa valorização de seu trabalho promovido ao nível de
desenvolvimento tecnológico, a legítima colocação da tecnologia a
serviço da comunidade humana nacional-universal.641 (grifos do
autor).

O turbilhão de atividades culturais vivenciadas na década de 60, como “a euforia


[...] da bossa-nova, cinema novo, movimento de cultura popular”,642 “do ativismo em
contra resposta ao elitismo intelectual”643 mobilizava Jomard a refletir que, a cultura
brasileira estava atravessada como “um esquema-de-pensamento-para-uma-
transformação-da-realidade”.644
Desse modo, a cultura popular não poderia ser vista como instrumento de
teatralização do patrimônio, “base das políticas culturais autoritárias”,645” onde o mundo
é um palco, promotor de espetáculos que expõem as imagens já prescritas para

em Recife.
639
CANCLINI, 2003, p. 45.
640
BRITTO, 1968, p. 1.
641
Ibidem, p. 4.
642
BRITTO, Jomard Muniz de. Jornal do Commercio, Recife, 14 jan 1979. Porque Temer a Cultura
Popular, Caderno C.
643
Ibid.id.
644
Ibid.id.
645
CANCLINI, 2003, p. 162.
185

sociedade, consumidora de um vasto conjunto de bens simbólicos “catalogados em um


repertório fixo”646 de aceitação.
Colocando-se criticamente diante da celebração da redundância e das imagens
preexistentes que “imortalizam” a brasilidade, vista como o fim último na sua conversão
em natureza legítima, inquestionável, Jomard ironiza a ritualização do “Rei da cultura”,
louvado no trono armorial, como o “salvador” da tradição nordestina, expondo que:

A imortalidade de Ariano simboliza e, ao mesmo tempo, segundo,


milênio, alegoriza a conSAGRAÇÃO da eterna primavera dos
PATRIARCAS da CULTURA BRASILEIRA. [...] contra todas as
INVASÕES CULTURAIS e PERVERSÕES
COMPORTAMENTAIS. ARMORIAL NELES! [...] Permanece sua
grandeza monumental de sua ESTÉTICA que se desdobra e retotaliza
em ÉTICA, ONTOLOGIA, CIÊNCIA POLÍTICA e ARMORIAL
ESOTERISMO, ESTÉTICA de todas as sínteses transcendentais. [...]
Modelos, paradigmas, arquétipos de uma ARTE BRASILEIRA contra
todas as estrangeirices e colonialismo culturais. (grifos do autor)647

Essa crítica dialoga diretamente com carga irônica contida no “Palhaço


Degolado”, ao utilizar o desbunde “na medida em que tenha mastigado e continue
digerindo, antropofagicamente, a lição da Tropicália”,648 desconstruindo os preconceitos
existentes em torno da cultura de massa, como fonte criativo-criadora da realidade
brasileira.
Jomard, vestindo-se de Palhaço, ou o Palhaço despindo-se em Jomard,
afrontando as veredas da tradição e as malhas do regime militar para nada salvar:
regionalismos, tradicionalismos e universalismos na cultura, mas constituindo-se
enquanto resistência no âmbito dos micro-poderes, para “demonstrar que os caminhos
são múltiplos, embora alguns temporariamente fechados [...]”, para nada salvar, nem
mesmo a alegria.649
O Palhaço transgride, usando o sarcasmo, a paródia, a ironia corroendo as
palavras marcadas pela ambiguidade, para ir “contra todos os exclusivismos,
dogmatismos e fanatismos”,650 revelando os perigos herdados de um tradicionalismo
autoritário, que nos incapacita de produzir novos signos “para viver no mundo

646
CANCLINI, 2003, p. 162.
647
BRITTO, Jomard Muniz de. ARIANO, IMORTAL, IMORTAL! Recife: Nordeste Econômico, 1989. p.
37.
648
BRITTO, 1977.
649
BRITTO, Jomard Muniz de. Cinevivendo, Impresso. 1976.
650
BRITTO, 1977.
186

contemporâneo”,651 em nome da província e dos grandes mestres, dos pensamentos


“nordestinados”, que definem a cultura a uma perspectiva de:

[...] cristalização meta-racial: das oligarquias açucareiras às


monarquias sertanejas [...] a tradição é a região e vice-versa no
progresso das ordens: o sertão e o cosmos, da Casagrande de detenção
da cultura [...] cultura é nossa (com)postura repleta de barões e
brasões [...] criadores de uma civilização nos trópicos: ame-nos ou
deixe-nos: porque somos e continuaremos apolíneos e dionisíacos,
antropólogos e doceiros, sociólogos e umbandistas, bacharéis e
videntes, historiadores e a-políticos, dramaturgos e criadores de
cabras, ideólogos mas não sectários da nordestinidade: antes de tudo
homens da confiança do poder.652

O Palhaço coloca-se enquanto “des-condicionamento dos estereótipos”,653 ao


questionar as conciliações gilbertianas e ligar-se a “uma verdadeira estrutura de tensão,
que não pode ser lida nas aparências lisas e finas das superfícies 654”, mas pela prática da
deseducação anti-esquemática do real, um riso anti-provinciano dentro da província, um
grito na cidade, enquanto todos cochicham.
Jomard degola através do superoito e redegola nas escriduras, através de uma
crítica cultural marcada pela dúvida permanente. Além do Apenas Palhaço. Um
provocador contemporâneo que se pergunta diante das repressões ministeriais: “O que
há por trás (sem metáforas) do desbunde, do escrache, da irreverência, da gozação?
Crítica ou exibicionismo? [...] Consciência das minorias eróticas (cada vez mais
ampliadas) ou inconsciência das maiorias moralistas (cada vez mais silenciosas)?655

651
CANCLINI, 2003, p. 166.
652
BRITTO, Jomard Muniz de. Discursos Paralelos que se Intercalam nos Labirintos da Repressão. In:
LEMOS, Sérgio. Inventário de Um Feudalismo Cultural. Recife: 1979. p. 30.
653
BRITTO, Jomard Muniz de. Escrevivendo. Recife: Editado pelo autor. 1973. p. 2.
654
Ibid. id.
655
BRITTO, 1977.
187
188

A minha autocrítica é porque “O Palhaço Degolado” se transformou


num fetiche e você nesse ponto é muito coerente, academicamente
coerente... tem que sair isso na entrevista. Tá gravando? (JMB, 2011)
189

4. ENTRADA FINAL.

AS PONTES QUE CONSTROEM A CULTURA EM TRÂNSITO: AS


CONTRADIÇÕES DO HOMEM BRASILEIRO DIANTE DOS BORDÉIS
BRASILÍRICOS

4.1. Anos 60: a cultura brasileira posta em questão


A in-conclusão da Entrada anterior nos direciona a explorar as trilhas de uma
época em que o debate sobre a cultura brasileira fervilhou ao seu ponto máximo: a
década de 60. Esse período foi marcado pelo engajamento social da juventude, ligada às
práticas de militância política e cultural.
Antes de retomar as concepções de Jomard Muniz de Britto anteriormente
expostas, tanto na escrita quanto no audiovisual, é preciso estabelecer os traços que
definem os principais marcos desse debate, para compreendermos em profundidade a
problematização jomardiana sobre a cultura brasileira.
Heloísa Buarque de Holanda afirma que, nos anos 60, havia uma “relação direta
e imediata estabelecida entre arte e sociedade [...] tomada como uma palavra de ordem
[que] definia uma concepção de arte como serviço [...] do ponto de vista de sua eficácia
mais imediata”.656
A autora situa que, politicamente, o Brasil vivenciou uma fase de forte crise,
onde a:
A intensificação do processo de industrialização nos anos 50, as
pressões de uma “nova modernidade” colocadas pelo capitalismo
monopolista internacional parecem causar problemas para um país
acostumado a funcionar com estruturas moldadas por uma economia
agrário-exportadora. [...] O Estado, visto como uma espécie de
entidade superior, de onde se esperam as soluções de todos os
problemas, terá nas massas a base de sua legitimidade. [...] No início
dos anos 60, esse quadro torna-se um tanto problemático. A crescente
desagregação das alianças dificulta a manutenção dos esquemas
tradicionais de manipulação populista e coloca o Estado frente à
possibilidade real de perda de controle das pressões da massa. [...] o
nacionalismo ganha importância, tendo como ponto de partida a noção
de “povo” [...]. Por sua vez, a produção cultural, largamente
controlada pela esquerda, estará nesse período pré e pós-64 marcada
pelos temas do debate político. Seja ao nível da produção em traços
populistas, seja em relação às vanguardas, os temas da modernização,
da democratização, o nacionalismo e a “fé no povo”, estarão no centro
das discussões, informando e delineando a necessidade de uma arte
participante, forjando o mito do alcance revolucionário da palavra
poética.657

656
HOLLANDA, 1992, p. 15.
657
Ibidem, p. 16/17.
190

Diante da pluralidade dos fatos histórico-culturais que movimentam os anos 60,


não será fácil detectar com exatidão qualquer “marco” definidor que inovou e
particularizou essa época, sendo que não é de nosso interesse construir um mapeamento
completo dessas manifestações que impulsionam o pré e o pós-64.
O que desejamos aqui é situar em panorâmica, um fragmento da atmosfera que
oxigenou a criação intelectual de Jomard Muniz de Britto no âmbito educacional, na sua
experiência com o educador Paulo Freire. No filme, é possível ter uma ideia do ar
disponível para ele e outros intelectuais respirarem, ao qual foi abruptamente retirado
com o golpe militar de 1964, como veremos a seguir.
Para Carlos Guilherme Mota, “política e cultura surgiam como faces de uma só
moeda: numa palavra, a conjuntura dinamizada pelas forças da repressão provocou a
eliminação das ‘distâncias’ entre os dois níveis”.658 O conceito de “cultura popular”
passa a ser discutido com mais ênfase pelos estudiosos brasileiros, nas suas variadas
dimensões, o qual sofreu rápidas mudanças e o ano de 1955 será fundamental para
compreender esse processo de redefinição teórica.
É a partir dessa data que Mota afirma ser o início da “fase do arranque do
desenvolvimento brasileiro659”. Defendia-se que, o termo “cultura popular” era uma
prática cultural vinda do povo, na sua pluralidade de manifestações, e se havia:

[...] um problema a se colocar era o de distinguir entre os termos


popular e folclórico. A partir dessa fase, em que se incutiu no povo
brasileiro uma mentalidade desenvolvimentista, começaram a aparecer
problemas novos. Surgiu, com máxima agudeza, a consciência da
defasagem cultural entre as diversas classes. Com os governos
posteriores (de Jânio Quadros e de João Goulart) acelerou-se ainda
mais o processo político e a necessidade de participação de
intelectuais nesse processo se tornou uma das questões mais
enfatizadas. A partir desse período é que o termo cultura popular, com
significações muito diversas, começou a ter um trânsito
intensificado.660

Em torno do debate que problematiza a cultura popular, a educação, e a cultura


de massa no Brasil – expomos no final da Entrada anterior algumas impressões de
Jomard nesse sentido – podemos situá-lo inicialmente na obra “Cultura posta em

658
MOTA, 1977, p. 205.
659
Ibidem, p. 210.
660
Ibid.id.
191

Questão (1963)”, 661 de Ferreira Gullar, alguns fundamentos que representam com força
as ideias centrais sobre a “cultura popular” nos anos 60.
Gullar acredita que essa expressão marca um fenômeno novo nos modos de
produzir e vivenciar a cultura brasileira, pois o principal aspecto que define a essência
da cultura popular está na consciência do seu potencial transformador na sociedade,
levando “o intelectual a agir, em primeira etapa, sobre seus próprios instrumentos de
expressão para contribuir nesse processo”.662
A cultura é vista pelos intelectuais como um meio de tomada de consciência da
realidade, e é a partir do popular que torna-se viável compreender a problemática do
analfabetismo, da falta de vagas nas universidades para os mais pobres, que, segundo
Gullar, tem relação direta com a miséria da população rural e a dominação imperialista
na economia brasileira.
Debruçar-se nos problemas nacionais, por uma perspectiva cultural, era o melhor
caminho para analisar as contradições sociais explícitas, que indicava um conjunto de
diagnósticos negativos para o povo, “frutos da deficiência do ensino e da cultura,
mantidos como privilégio de uma reduzida faixa da população”.663
Para superar ou buscar saídas diante dos impasses entre economia, política, povo
e cultura, era preciso que o intelectual engajado adotasse uma postura de imediata
intervenção na sociedade, pois só era possível visualizar com nitidez esses problemas
“se se realizassem profundas transformações na estrutura socioeconômica e [...] no
sistema de poder. Cultura popular é, portanto, antes de mais nada consciência
revolucionária”.664
O intelectual assume a responsabilidade de levar ao povo essa consciência,
desde que este não conceba suas ações como algo “indeterminado e gratuito665”, bem
como expressão pessoal, individualista, que prioriza somente o plano estético, pois:

É preciso não esquecer [...], que se trata da dramática tomada de


consciência, por parte dos intelectuais, do caráter histórico,
contingente, de sua atividade e do rompimento da parede que
pretendia isolar os problemas culturais dos demais problemas do país.

661
Filia-se no dia do golpe militar, 1º de abril, ao Partido Comunista, e a primeira edição de seu ensaio
"Cultura posta em questão", publicada no ano anterior, é queimada por militares dentro da sede da
UNE. Acesso em: <http://portalliteral.terra.com.br/ferreira_gullar/biobiblio/index.shtml?biobiblio#1960>
Acesso em: 14 Jan 2012.
662
GULLAR, 2006, p. 21/22.
663
GULLAR, 2006, p. 23.
664
Ibid.id.
665
Ibidem, p. 24.
192

O escritor, o cineasta, o pintor, o professor, o estudante, o profissional


liberal redescobrem-se como cidadão diretamente responsáveis, como
os demais trabalhadores, pela sociedade que ajudam a construir
diariamente, e sobre cujo destino tem o direito e a obrigação de
atuar.666

Desse modo, era preciso trabalhar diretamente com o povo no âmbito da cultura
popular, ensinando-os a ler e a produzir conhecimentos que o situassem criticamente na
realidade do país, ao direcionar a cultura “em termos de problema social”,667 para que
fosse possível construir nos cidadãos um olhar crítico-desmistificador em torno dos
valores culturais considerados “vigentes”.
Retomando o artigo que Jomard escreveu para o Jornal do Commercio em
janeiro de 1979 (“Porque temer a cultura popular”), é possível estabelecer uma ligação
com as perspectivas de Ferreira Gullar como força inspiradora, para materializar o papel
do intelectual brasileiro na atuação da cultura como agente transformador da realidade.
Incorporando essas chaves de leitura, Jomard afirma que:

Nos primeiros anos da década de 60, a Cultura Popular recebeu os


seus maiores impulsos, indo encontrar no poeta e crítico Ferreira
Gullar, um porta-voz combativo. Porque “ninguém está fora da briga”,
a palavra tinha que ser forte e clara, o raciocínio direto e simplificado,
os argumentos teriam que funcionar como “palavras de ordem” de
uma ação. A expressão Cultura Popular era acionada no conjunto de
um mais amplo universo vocabular: subdesenvolvimento, anti-
imperialismo, engajamento, alienação cultural, reformas de base,
processo de desalienação, voto do analfabeto, consciência ingênua
versus consciência crítica, ideologia do subdesenvolvimento.668

Foi nesse período que “surgiram grupos culturais que praticamente lançaram o
termo com uma acepção de caráter nitidamente político”.669 Para Gullar, só foi possível
estender para o povo a riqueza das linguagens artísticas enquanto crítica das ideias
políticas dominantes, por meio das ações de rua pelo cinema, poesia e teatro, por meio
de organismos que buscaram dar condições para que as expressões culturais populares
fossem “à luta para vencer os entraves econômicos e políticos”.670

666
GULLAR, 2006, p. 23.
667
Ibidem, p. 25.
668
BRITTO, 1979.
669
MOTA, 1977, p. 210.
670
GULLAR, 2006, p. 26.
193

Esses grupos, “surgidos por imposição da necessidade mesma do processo, são


os centros e movimentos populares de cultura”,671 em destaque: o Movimento de Cultura
Popular (MCP) do Recife e o Centro Popular de Cultura (CPC), da União Nacional dos
Estudantes (UNE), no Rio de Janeiro.
O Movimento de Cultura Popular (MCP) surgiu em maio de 1960, atuando
como uma instituição sem fins lucrativos, na primeira gestão do prefeito Miguel Arraes.
Era constituído por acadêmicos, artistas e intelectuais. Seu foco era realizar uma ação
político-cultural, numa perspectiva comunitária de educação popular, a fim de construir
uma “consciência” da realidade em que os trabalhadores estavam inseridos, preparando-
os para uma participação mais direta na vida política do País.
O movimento foi extinto com o golpe militar e praticamente toda a sua
documentação foi queimada, obras de artes destruídas e boa parte dos profissionais
envolvidos no programa de conscientização cultural perseguida e afastada dos seus
antigos cargos.672
Já o Centro Popular de Cultura (CPC) – influenciado pelo MCP – aparece em
1962 e busca levar à população carente um conjunto de manifestações artísticas, a fim
de promover a revolução social pela cultura, “estimulado pelo contexto de um Brasil
progressista em que o crescimento do sindicalismo, do movimento dos trabalhadores
rurais, da discussão da Reforma Agrária, e da educação conscientizadora de Paulo
Freire leva a crer que uma mudança profunda está em curso”.673
O CPC atua com o objetivo de construir um ideal de cultura demarcado pelo
caráter "nacional, popular e democrática". Nesse período, toda arte que não estivesse
vinculada ao compromisso de lutar com o povo “em prol da revolução social seria
desprovida de conteúdo. Os CPCs, que se espalham por todo o país, defendem a opção
pela "arte popular revolucionária", que deve abandonar os edifícios teatrais e os
circuitos de exibição "burgueses", para se voltar aos excluídos”.674

671
GULLAR, 2006, p. 27.
672
Movimento de Cultura Popular no Recife – Acesso
em:>http://basilio.fundaj.gov.br/pesquisaescolar/index.php?option=com_content&view=article&id=723&
Itemid=192> Em 15 Jan 2012, às 14h32.
673
Movimento de Cultura Popular no Recife – Acesso
em:<http://basilio.fundaj.gov.br/pesquisaescolar/index.php?option=com_content&view=article&id=723&
Itmid=192> Em 15 Jan 2012, às 14h32.
674
Para conferir mais detalhes sobre a atuação do Centro Popular de Cultura da UNE. Acesso em:
<http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_teatro/index.cfm?fuseaction=cias_biografia&
cd_verbete=459>. Em 15 Jan 2012, às 14h58.
194

A cultura popular estava projetada enquanto estratégia de mudança política no


país, como processo de desalienação, ao apontar os seus modos de fazer para “uma
práxis verdadeiramente revolucionária”.675 Os jovens intelectuais assumem o papel de
mensageiros e mediadores dessas produções culturais, oriundas do Cinema Novo, da
dramaturgia, música e literatura.
Os anos 60 foi um período de intensificação do debate sobre a possibilidade
urgente da alfabetização em massa, “com ou sem cartilhas; a formação de
alfabetizadores [...] de grupos ou círculos de cultura, o papel das expressões artísticas na
conscientização popular”.676
No Recife, os intelectuais debruçados na conscientização por meio da educação
e da cultura estavam circulando principalmente em torno da Ação Católica (e o
Movimento de Educação de Base), do Serviço de Extensão Cultural da Universidade do
Recife - SEC/UR e do Movimento de Cultura Popular (MCP). Jomard esteve ao lado de
Paulo Freire no SEC, na luta política através da pedagogia e cultura.
Para entender a atuação do educador pernambucano Paulo Freire em ambos os
movimentos, é inevitável passar por duas importantes forças ideológicas da época: o
nacionalismo (do Instituto Superior de Estudos Brasileiros – ISEB)677 e o catolicismo
radical (Ação Católica, a Juventude Universitária Católica – JUC). Como uma
instituição de proporção nacional, o ISEB estava mais atento para a produção de
ideologias e para economia-política, enquanto que o SEC fazia de seu escopo a cultura e
a educação.

675
BRITTO, 1979.
676
Ibid. id.
677
O Instituto Superior de Estudos Brasileiros ou ISEB foi um órgão criado em 1955, vinculado
ao Ministério de Educação e Cultura, dotado de autonomia administrativa, com liberdade de pesquisa, de
opinião e de cátedra, destinado ao estudo, ao ensino e à divulgação das ciências sociais. O ISEB
funcionou como núcleo irradiador de ideias e tinha como objetivo principal a discussão em torno
do desenvolvimentismo e, a princípio, a função de validar a ação do Estado, durante o governo
de Juscelino Kubitschek. Foi extinto após o golpe militar de 1964, e muitos de seus integrantes,
os isebianos, foram exilados do Brasil. Pode-se afirmar que o ineditismo da experiência isebiana consistiu
no fato de intelectuais, de distintas orientações teóricas e ideológicas, se reunirem não apenas para debater
e refletir sobre “os dilemas e os problemas cruciais da realidade brasileira”. De forma deliberada, o
Instituto foi criado para servir de instrumento para uma ação eficaz no processo político do país. No
Brasil contemporâneo, o ISEB foi a instituição cultural que melhor simbolizou ou concretizou a noção (e
a prática) do engajamento do intelectual na vida política e social de um país. Cf: TOLEDO, Caio Navarro
de. 50 anos de Fundação do Iseb. Jornal da UNICAMP, Universidade Estadual de Campinas. 8 a 14 de
agosto de 2005. p. 11. Para Jomard: “Enquanto o ISEB lançava o problema da alienação cultural e
projetava uma ‘ideologia para o desenvolvimento nacional, os MCPs introduziram, de modo concreto, o
problema da democratização da cultura. Diálogo entre a cultura dos intelectuais e a cultura do povo.
Diálogo e comunicação verdadeiros: não uma atitude paternalista ou assistencialista, simplesmente
‘doadora’ de algo”. In: BRITTO, 1964, p. 103.
195

O ISEB mostrou para Freire não só a importância de pensar o Brasil a partir do


Brasil, como também forneceu a base teórica para os debates intelectuais da época. Por
outro lado, a JUC, seguindo as orientações de um dos futuros diretores do SEC, o Padre
Almery Bezerra, passou a atuar de maneira mais incisiva no cenário político nacional,
notabilizando a JUC de Pernambuco, ao propor que a mesma tomasse em âmbito
nacional um “ideal histórico”. Conceito que no início dos anos sessenta transitaria para
o conceito de “consciência histórica”: o homem e a cultura como frutos da história
assumem uma dimensão transitiva e dinâmica, ou seja, o homem como agente
transformador da realidade. A sede da JUC, no Recife, era um espaço de vivência
constantemente frequentado por muitos dos que faziam a Universidade.678
Tornar os indivíduos força de interferência coletiva era o ponto central das
atividades realizadas pelos intelectuais e artistas nesse período. Revelando a
historicidade da cultura e do homem, este perderia sua passividade no mundo e no modo
como o interpreta. Assim, o homem assumiria uma “transitividade crítica”:
possibilidade de transformar o mundo: “a fim de contrabalançar a indigência e o
marginalismo da massa: seria um modo de fortalecê-la para um contato devastador com
a demagogia eleitoral [...]”.679
O livro “Contradições do Homem Brasileiro” (1964), de Jomard Muniz de Britto
(publicado pouco antes da perseguição aos integrantes do SEC durante as articulações
que concretizam o golpe, livro proibido de circular, pelo seu conteúdo “subversivo”),
nos apresenta um perfil da época, que repensa o papel do homem na sociedade
envolvido no:

[...] mundo em comunicação com os outros, existe algo dado,


apresentado, um ‘mundo feito’, mas igualmente um mundo por
fazer, previsto, antecipado. Nesta segunda acepção, que inclui a
obra especificamente humana, as criações do homem, o
significado do mundo se reveste de historicidade, ele próprio é
história, horizonte de possibilidades humanas.680

Marcelo Ridenti levanta uma hipótese que converge com as reflexões realizadas
até aqui, em que o autor afirma que houve um florescimento cultural e político dos anos
de 1960 e início dos de 1970 na sociedade brasileira, que pode ser caracterizado como

678
VERAS, Dimas Brasileiro. SANTOS FILHO, Francisco Aristides de Oliveira. A experiência da
esperança: um “Golpe na Alma” da intelectualidade brasileira pós 1964. 2009.
679
SCHWARZ, Roberto. Cultura e Política no Brasil: 1964-1969. In: BASUALDO, Carlos (Org).
Tropicália: uma revolução na cultura brasileira [1967-1972]. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
680
BRITTO, 1964. p. 15.
196

“romântico-revolucionário”,681 sentimento que valorizava acima de tudo a vontade de


transformação da sociedade como um todo.
Nesse sentido, cultura e a educação popular seriam os meios de organização e
mobilização dentro dos círculos, praças e centros de cultura, para a concretização da
mudança efetiva na mentalidade do povo, diante de sua realidade. Espaços de
sociabilidade e trocas intensas de informação, recreação e circulação de material
educativo nos bairros distantes e periferias, regiões em processo de formação crítica,
politizando e conscientizando vários grupos sociais. O objetivo era fazer da prática
cultural um veículo de “comunicação das consciências” e humanização coletiva.682
O clima de esperança ganhava cada vez mais contorno. Transformar a realidade
por meio da educação (essa como mediadora entre cultura e revolução) aparecia para
esta geração como uma possibilidade viável e concreta, pois o trabalho dava-se pelo
viés da conscientização, o que poderia intensificar o ritmo com que se transformam os
suportes concretos da sociedade. O objetivo final seria o movimento ascensional das
massas, mediada pelos intelectuais, em direção à conquista do poder na sociedade de
classes.
Segundo Schwarz, “o vento pré-revolucionário descompartimentava a
consciência nacional e enchia os jornais de reforma agrária, agitação camponesa,
movimento operário, nacionalização de empresas americanas, etc. O país estava
irreconhecivelmente inteligente”.683
No SEC, os estudos orientam-se na perspectiva voltada para repensar os rumos
do sistema educacional brasileiro, buscando meios de revisar os métodos de ensino, a
fim oferecer para o povo o conhecimento no campo da cultura. Essa possibilidade torna-
se viável através das atividades ligadas à extensão universitária, bem como a difusão
dessas informações através de “publicações, cursos, palestras, informes de interesse
científicos [...] para o desenvolvimento [...] das mentalidades regionais [...], visando,
sobretudo, ao estudo da realidade e cultura brasileira e dos problemas da região”.684
O SEC possuía certa autonomia de atuação e produção (mesmo subordinado à
reitoria da UR), o que causava incômodo aos mestres da cultura brasileira conservadora,

681
RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo brasileiro: artistas da revolução, do CPC à era da TV. Rio de
Janeiro. Record, 2000.
682
FÁVERO, Osmar (Org.). Cultura popular e educação popular: memória dos anos 60. Rio de Janeiro:
Edições Graal, 1983.
683
SCHWARZ, In: Basualdo, 2007. pp. 286/287.
684
VERAS, Dimas Brasileiro. Sociabilidades Letradas no Recife: a revista Estudos Universitários (1962-
1964). Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Pernambuco. CFCH. História. 2010. p. 112.
197

como Gilberto Freyre, que inicia uma verdadeira ação que visava neutralizar as
atividades promovidas pelo órgão, ao escrever nos jornais que tinham influência
política, um conjunto de críticas negativas à UR, bem como aos integrantes do SEC.
Para ele, “o reitor havia permitido que ‘comunistas’ ou ‘para-comunistas’ tomassem a
Rádio Universidade, os projetos de alfabetização de jovens e adultos e o periódico de
cultura da UR, a revista ‘Estudos Universitários’”.685 A abertura dada, para que um
movimento de cultura popular se aproprie dos meios de comunicação de massa, para
expressar sua visão de mundo é um perigo aos interesses reacionários.
Dentre vários trabalhos realizados por Paulo Freire à frente do SEC, a rádio e a
revista eram “ameaçadoras” para os intelectuais amparados pelas zonas confortáveis dos
empoderamentos oficiais, pois esses suportes surgem como conteúdos de comunicação
– transdisciplinar – atuantes numa linha de reflexão contra-hegemônica, posicionando-
se enquanto “ponto de vista não idealista, cômodo e conformista da cultura brasileira”.
686

Para Luis Costa Lima:

Divergíamos [o SEC, grupo em que Jomard esteve inserido] quanto à


concepção do intelectual. Para o MCP, assim como para o CPC da
UNE, o intelectual era tido como guias das massas. Embora essa
concepção seja entre nós tão velha quanto o positivismo do século
XIX, sem dúvida sua base era a política cultural stalinista. [...] Como
eu tinha aprendido, [...] o que significava o dirigismo cultural e como
pouco se distinguia do fascismo, participei de uma linha de resistência
ao dirigismo oba-oba tanto do MCP, quanto do CPC da UNE.687 [Para
os integrantes do SEC] [...] a cultura implica previamente em um ato
de coragem, em uma busca de aproximação com a realidade, sendo,
em suma, a resultante da aceitação pelo homem dos desafios que lhe
endereça a existência carregada dos problemas próprios à área
particular, em que lhe dado viver [...]. A uma concepção idealista,
cômoda e conformista de cultura propõem uma concepção realista: a
cultura como aventura de risco e não expressão de isolamento, como a
anti-fuga, como nomeação de uma vida em que se está inserto. Isto os
leva a saber que uma busca cultural só alcança êxito ao haver
conseguido potenciar a visualização do homem. [...] só através de uma
preocupação ativa com a atualidade brasileira teremos condições de
formular um pensamento adequadamente brasileiro: pensamento de

685
VERAS, Dimas Brasileiro, MENDONÇA, Dyjanise Barros de Arruda. Educação popular e reforma
universitária: Paulo Freire e a criação do Serviço de Extensão Cultural da Universidade do Recife (1962-
1964). In: Estudos Universitários: Revista de Cultura. Recife. Universidade Federal de Pernambuco.
Editora Universitária. V 24/25. N. 5/6. Dez. 2004/2005. p. 16
686
Ibid.id.
687
ZAIDAN FILHO, Michel. MACHADO, Otávio Luiz (Orgs.). Movimento estudantil brasileiro e a
educação superior. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2007. p. 44.
198

quem passando a saber visualizar sua circunstância passe a saber


transpô-la criadoramente.688

No esforço para interromper esse processo, Gilberto Freyre publica


periodicamente nos jornais o pedido da “cabeça” do reitor João Alfredo, bem como a
extinção imediata do SEC.689 Essa medida radical seria o melhor caminho adotado “para
manutenção de sua posição despótica no campo intelectual e político da cidade”.690
Essa fase, marcada pela esperança de um Brasil mais justo é sufocada pela
repressão aos grupos de esquerda, intelectuais, movimento estudantil, prisão de
sindicalistas e religiosos, no golpe militar de 64, marcando o início de uma verdadeira
perseguição e cerceamento das práticas que destoam da organização do governo
autoritário, pois, “no rastro da repressão [...], era outra camada geológica do país quem
tinha a palavra”.691
Fazer o povo pensar era uma atitude perigosa, logo em um governo como o de
João Goulart, conhecido por suas tentativas frustradas de realizar reformas de base e
tido na época como um administrador “incompetente”.
Estava montado o esquema para os militares disporem de várias justificativas
“oficiais” (incompetência administrativa, instabilidade política, “crescimento” da
ameaça comunista, no governo e no meio militar) para legitimar um golpe na alma e nas
expectativas do Brasil, que estava prestes a inserir o amor, entre a dita ordem e o
progresso.
Um acerto político entre os generais, que encerra com os sonhos do:

[...] povo, [que] na ocasião, mobilizado mas sem armas e organização


própria, assistiu passivamente à troca de governos. Em seguida sofreu
as conseqüências: intervenção e terror nos sindicatos, terror na zona
rural, rebaixamento geral de salários, [...] inquérito militar na
Universidade, invasão de igrejas, dissolução das organizações
estudantis [...] 692

688
VERAS; MENDONÇA, 2004/2005. p. 16.
689
“Alguns meses após o golpe a Universidade do Recife organiza entre seus professores, com a ilustre
participação de Gilberto Freyre, O Simpósio sobre a problemática Universitária. Neste longo exercício de
avaliação escolar não se pode dizer que em nenhum momento o SEC é mencionado, pois este é lembrado
como serviço supérfluo e o seu financiamento mencionado como gastos irresponsáveis, desviando a
“universidade de suas finalidades essenciais”. Em sua fala, Freyre convoca os catedráticos a resistir ao
argumento da chamada “democratização dos diálogos”. A nova direção da UR deveria partir de questões
estritamente regionais e “de uma orientação que talvez possa ser acusada de elitista, isto é, de um tanto
aristocraticamente valorizadora das elites, dentro dos sistemas universitários’”. Ibidem. p. 21.
690
Ibidem. pp. 18/19.
691
SCHWARZ, In Basualdo: 2007. p. 287.
692
SCHWARZ, In: Basualdo: 2007. pp. 279/280.
199

Até o momento, na linha narrativa do filme, nada intimida o Palhaço. Ele está
em pleno fervor corporal, saltitando livremente entre os transeuntes, devorando
antropofagicamente um rico arsenal de livros que estão dispersos no chão da Casa.
Espalhando-os pelo corredor, o personagem rola entre os mesmos, afronta a lente de
Carlos Cordeiro, aproximando-se em direção ao espectador, quando, de repente, pára e
se joga no chão, olha os livros ao seu redor e se debruça com um universo multifacetado
de textos, entre eles: Ariano Suassuna, Gilberto Freyre e György Lukács.
Abre e fecha os livros em ritmo frenético, no gesto de comilança desenfreada
das páginas, desorientadas pela animosidade da mise en sciene. O Palhaço parece atingir
seu ponto máximo de vibração, ao “comer” com violência todas as palavras, linhas e
impressões de um mundo livresco que o desafiava, naquela montanha imperiosa
rapidamente desfeita, pela pulsão rápida do gesto devorador.
Ao se desgarrar do banquete, o Palhaço retoma sua piruetas e gritos... “O
intelectual que não pronunciar até a exaustão a palavra ideologia... O intelectual que não
pode viver, morre. Morre! Morre!”
O súbito silêncio. O espírito de um tempo marcado pelas expectativas de
transformação do homem, a partir da educação, sob o olhar da felicidadania
paulofreireana é bruscamente sufocada por dois soldados, que rondavam às escondidas
o Palhaço, interrompendo sua performance no corredor da Casa, agarrando-o pelos
braços e jogando-o na cela 106.
A música circense é interrompida pelo som de uma sirene. Os soldados não
deixam brechas para o Palhaço desprender-se e fugir, o encarceramento é efetivado. O
Palhaço fica encurralado na cela, olhando para os lados, tocando nas paredes sujas que o
cercam, sem conseguir compreender de imediato o motivo de estar naquela condição.
As mãos de Carlos Cordeiro registram a cena num misto de espanto e
investigação do espaço, marcados no primeiro momento do cárcere por um olhar
distante e temeroso, que lentamente vai criando coragem, ao se aproximar daquele
ambiente desconhecido, cheio de tensão e incerteza, fragilizando os excessos na voz e
no corpo do Palhaço, diante das engrenagens da prisão regionalista.
Rastejando pelas paredes, o clima de impotência diante do cárcere faz o
personagem evocar a lembrança de Paulo Freire: “Onde está o professor Paulo Freire?693

693
Passou por um breve exílio na Bolívia e trabalhou no Chile por cinco anos para o Movimento de
Reforma Agrária da Democracia Cristã e para a Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a
200

Em Genebra? Ou na Guiné-Bissau? Nas ilhas greco-socráticas ou na ilha do Maruim? O


que restou? O que restou? O que restou? O que restou? O que restou dos seus círculos
de cultura? TI JO LO. VOTO LIVRE. 1964. EXÍLIO. FOME”.
Na próxima cena, Carlos Cordeiro já está no interior da prisão, intercalando um
conjunto de planos dentro e fora do espaço apertado, mas que ainda permitem fazer
alguns closes e contra plongeés, aproximando de forma mais intimista o Palhaço com o
espectador. O personagem busca reconhecer o ambiente sufocante, tateando as estranhas
inscrições que marcam as paredes da cela.
Nesse momento, o riso muda de sentido. O palhaço tenta evocar a experiência da
esperança vivida nos círculos de cultura e todas outras atividades do Serviço de
Extensão Cultural da Universidade do Recife, mas o esforço é em vão, pois “a grande
maioria dos integrantes do SEC terminou no xadrez e muitos impelidos para o exílio.
[...] Toda atividade de pesquisa produzida pelos membros do Serviço foi recolhida e
destruída. Modo totalitário e violento de produzir esquecimento e dispersão”.694
Sua angústia leva-nos a perceber a necessidade que o Palhaço tem de gritar para
o mundo, diante de uma realidade que expõe as práticas culturais dos anos 60,
diminuindo seu potencial de alcance, frente ao recrudescimento do regime autoritário de
1964. É nesse sentido que o Palhaço coloca-se como voz de uma experiência
interrompida, um projeto-Brasil sufocado pelo autoritarismo.
Seu riso, portanto, não poderia ser diferente, é carregado de uma melancolia
reflexiva. O encarceramento exige uma revisão em torno de sua trajetória político-
artística lançada nos projetos intelectuais de oposição à cultura oficial nos anos 60/70.
Ao propor esse exercício, que transita entre a performance vocal e corporal, Jomard nos
legou brechas – no interior dos micro-poderes – para que possamos entender por meio
de suas intervenções, o processo contraditório, que nos constituem enquanto cultura
brasileira e os interesses existentes por trás deste “Ser” castanho e pacífico, ao revelar
um Brasil gerenciado por intelectuais à sombra dos canaviais, situados no trópico.
No entanto, mesmo com o cerceamento de suas ações no campo da cultura, não
significa dizer que o Palhaço não busque alternativas para se libertar do silêncio. Sua
procura para compreender o dilema do homem e da cultura brasileira, aparece como

Alimentação. Em 1969, muda-se para Cambridge, nos EUA e em 1970, transfere-se para Genebra, na
Suiça. Com a Anistia em 1979 Freire pôde retornar ao Brasil, mas só o fez em 1980.
694
VERAS; MENDONÇA, 2004/2005. p. 20.
201

caminho de uma geração que ainda se esforça para construir novas linhas de
pensamento para a reformulação de um projeto cultural.
Para impedir essas transformações e o reconhecimento das contradições do
homem brasileiro em trânsito:

Foi preciso o golpe militar para que a classe dominante tirasse de cena
os que ameaçavam as “regras preestabelecidas” e organizasse ela
mesma as condições em que a inclusão dos analfabetos pudesse ser
feita não apenas sem risco, mas, sobretudo com vantagens. A
manipulação das massas analfabetas não precisava mais do
insuportável e oneroso cabresto. O controle dos meios de
comunicação de massa – rádio e televisão – em vertiginosa expansão,
garantiria a inclusão dos analfabetos com direito a voto, dentro da
ordem estabelecida.695

Aqui, a imagem da prisão só pode ser “grafada” na noção de “degolamento” das


expectativas desses intelectuais, que viam a cultura popular e a educação de jovens e
adultos como alternativa de democratização cultural, anti-elitista, anti-livresca. Esse
Palhaço está em transe, mas não passivo, buscando retomar suas saídas, e por isso volta-
se para o passado como forma de entender o presente.
Nas suas lembranças sobre esse período, Jomard nos conta que seu:

[...] envolvimento com os mecanismos mais severos da repressão,


primeiro foi quando a equipe do Paulo Freire foi presa (em 64). Paulo
Freire foi preso várias vezes [...] até que a esposa dele disse: “olha
você não pode mais continuar, a gente vai ter que sair do Brasil,
porque isso é terrível”, então quando [...] o golpe militar foi em cima
das pessoas do partido comunista. O que havia de comunismo,
também havia catolicismo no MCP, então depois que já não tinha
mais quem prender, a história que circula é essa... que alguém
comunicou a Dom Helder que a equipe de Paulo Freire ia ser presa.
Que a gente ia fazer? Sair correndo? Pra onde? Então eu [...] na
Gervásio Filho, aqui perto de casa, defronte ao Hospital Militar e eu
estava saindo pra dar aulas e dizia: “olha, se eu não chegar na hora do
almoço é que me prenderam lá”. Mas estava em casa quando me
prenderam. Então prenderam a gente pra discutir isso: Paulo Freire, se
isso não era comunismo, se não é essa coisa de alfabetização, não era
pra tornar o país comunista. [...] Veio um major do Rio de Janeiro
entrevistar a equipe de Paulo Freire. Então cada pessoa passou [presa]
15, 20 dias... e levaram a pessoa e depois, quando eu fui lá sendo
preso, um amigo pensava que tinha ido visitar... não, eles trocavam
pra não deixar discutir entendeu? Pra ficar isolado mesmo. Que no
caso eles fizeram uma coisa muito bem feita. Eles colocaram a mim e
aos outros que ficaram no Forte das Cinco Pontas com dois
comunistas notáveis, famosíssimos já na época, que era o Gregório

695
VERAS; MENDONÇA, 2004/2005. p. 17.
202

Bezerra e o Joel Câmara, que eram de linhas diferentes [...]. Então a 1ª


prisão... eu fui aposentado logo pelo AI-1, eu e toda equipe Paulo
Freire [...]. Então pegaram os professores mais famosos, que
consideravam esquerdistas e aposentaram, e eu fui aposentado com 27
anos de idade, começando a minha carreira.696

Sua prisão foi na mesma época em que tinha lançado o livro “Contradições do
Homem Brasileiro”, publicado pelas edições “Tempo Brasileiro”, em 1964. Em um
momento de revisão autocrítica, ao ser comentado sobre esse trabalho, Jomard afirma
que este estudo realizado foi numa:

[...] tentativa de levar para o professorado... quando eu fiz esse livro


eu estava dentro da equipe de Paulo Freire e achava que se o momento
era o momento de Paulo Freire, da educação crítica,
problematizadora... nós não tínhamos livros de Filosofia da Educação,
dentro de uma ótica, de um pensamento brasileiro... eu achava, como
professor de Filosofia e História da Educação, que não havia, então eu
tentei fazer um ensaio falando de Paulo Freire e fazendo já uma
grande bricolagem onde eu misturo Noel Rosa com Guimarães Rosa,
Clarice Lispector com Vinícius de Moraes.697

Um dos caminhos traçados por Jomard para compreender criticamente o homem


e a cultura brasileira ganham força a partir dessa obra, que impulsiona suas reflexões
como ponte para a crítica cultural no Tropicalismo, que será aprofundada na próxima
seção.
Jomard analisa a cultura e o homem no Brasil, perguntando-se pelo sentido do
conceito “cultura”. Mas como se perguntar sobre ela, se antes não há o questionamento
sobre o papel do homem que a produz e pelo mundo que ele enfrenta? Como entender a
cultura brasileira sem compreender o conceito de criação “como necessidade de
exteriorização e comunicação, pela história enquanto passado que nos condiciona,
presente pelo qual intervimos e futuro de nossas contradições e projetos?”698
As bases da crítica cultural e entendimento do Homem estão situados na
constatação de que é preciso romper com a simetria entre o microcosmos (mundo do
sujeito) e o macrocosmos (grande mundo, universo). Esse rompimento dá-se “pela força

696
Entrevista concedida a Aristides Oliveira, na tarde de 07-10-2010, às 16h25, na residência de Jomard
Muniz de Britto.
697
Entrevista concedida a Aristides Oliveira, na noite de 13-10-2010, às 20h30, na residência de Jomard
Muniz de Britto.
698
BRITTO, 1964. p. 11.
203

reveladora de suas contradições e, basicamente, pelos contrastes da linguagem e coração


humanos”.699
A quebra dessa harmonia (homem x mundo) expõe um homem ativo no meio
social, que intervém nesse mundo, posicionando-se e buscando respostas para ele. É a
partir da busca permanente por um mundo a se fazer diante do homem, de um mundo
que se apresenta desejante de intervenção humana, pelas criações do homem, “o
significado do mundo se reveste de historicidade, êle próprio é História, horizonte de
possibilidades humanas”.700
Nesse sentido:
Diríamos que a cultura nasce desta permanente contradição do homem
que sente seu coração ‘mais vasto que o mundo’ e ao mesmo tempo
‘menor que o mundo’. Nessa contradição de experiências, de vida, há
todo o esforço e a obra humana: a cultura, portanto, como tentativa
permanente de superar êste conflito básico, seja construindo uma casa,
um martelo, uma ferramenta qualquer, seja iniciando-se em costumes
e tradições humanas, seja poetizando ou apenas interpretando. Talvez
a cultura possa ser interpretada, recapitulando-se agora, em face
dessas contradições acima expostas: homem, mundo; solidão,
comunicação; mundo feito, mundo por fazer; destruição, criação;
presente, futuro; indivíduo, comunidade; tradição, inovações.701 [...]
Êste homem, existente em nós, realiza cultura para verdadeiramente
humanizar-se, através do mundo e com os outros homens.702

A percepção do homem diante dos seus potenciais crítico-criativos o faz agir em


“ação [...] sôbre a realidade concretamente social; época das [...] interferências coletivas
[1964]; do planejamento para atender aos direitos sociais do homem; nacionalismo;
compreensão do mundo na sua transitoriedade e na falência das estruturas”.703
Este homem crítico vivencia o mundo “pela recusa ao saudosismo”,704 negando o
conservadorismo conciliador das tensões, que obscurecem os problemas e contradições
do Brasil. É a época “pré-revolucionária de insatisfação, denúncia e organização do
povo”,705 uma sensação coletiva de que “a paisagem mudará e o desejo de intervir na
mudança fazem o homem caminhar através do tempo, experimentando, [...] realizando

699
BRITTO, 1964, p. 13.
700
Ibidem, p. 15.
701
Ibidem, p. 15/16.
702
Ibidem, p. 22.
703
Ibidem, p. 23.
704
Ibid. id.
705
Ibidem, p. 22.
204

seus desejos de mudança pessoal e coletiva. Esta marca do futuro que se projeta é o
tempo do homem brasileiro, 1964”.706
A “saída” para o homem reconhecer-se enquanto contradição e se libertar de um
“mundo caduco” – já ultrapassado pelo atraso da imobilização conservadora – estaria na
educação, na alfabetização das letras e imagens, para possibilitar o despertar de suas
capacidades criadoras, ao estimular “o impulso de fazer cultura e projetar-se em tôdas as
dimensões da existência”.707
Para Jomard-educador, o principal exemplo desta possibilidade de transformação
na vida do homem estava no “Sistema Paulo Freire de Educação de Adultos, algo mais
do que um simples método de alfabetização: campo de trabalho e pesquisa para quem
deseja pensar ‘corajosamente’ [...] os problemas da educação”.708 Pensar com coragem
é amadurecer suas concepções dentro de um exercício de autocrítica constante, usando o
humor e a ironia “como recusa de tôda falsidade”.709 Esta entraria como meio de
“constatação da realidade, experimentando suas limitações e recusando suas
concessões”.710
Assim é que o Palhaço-Jomard comporta-se diante da problemática por ele
enfrentada, uma visão lúdica, recheada de chistes e carnavalizações, que percebe a
cultura brasileira “enquanto rejeição de todo o intelectualismo”,711 ao se apropriar da
ironia e do corpo-clown para revelar sua admiração pela complexidade das tramas que
entrecortam a nordestinidade e, ao mesmo tempo, negar as visões empoderadas, que
constroem uma identidade definida pelo interesse da cultura oficial, dos intelectuais
“funcionários públicos”, aclamados em mitomanias sistemáticas.
A chave que liga as perspectivas entre Jomard-educador-palhaço-tropicalista
está no seu gesto de refletir sobre a cultura brasileira sem saudosismos, ufanismos:

[...] ou intransigência a qualquer tipo de contribuição legítima para a


nossa música, nossa cultura de modo amplamente considerada. Em
princípio e por deliberação, uma visão irônica: que percebendo os
limites, expõe os acrescentamos, que aceita para criticar, que recebe
para transformar712. [...] O processo da cultura brasileira começa
apresentando os primeiros esforços de revisão: apontados e

706
BRITTO, 1964, p. 30.
707
Ibidem, p. 25.
708
Ibid.id.
709
Ibid. id.
710
Ibidem, p. 18.
711
Ibidem, p. 25.
712
Ibidem, p. 91.
205

denunciados os erros e cacoetes da maioria de nossos intelectuais,


principalmente a erudição como torpor. [...] o combate ao eruditismo,
à dependência, [...] ao distanciamento da maioria de nossos
professôres e intelectuais [...].713

A reflexão acima é resultado de um largo processo marcado pela “consciência da


modernidade”, que Jomard exercita nos seus ensaios em torno das mudanças no
comportamento do homem brasileiro nos anos 60, resultante das transformações
promovidas pela educação cultural, fonte de criticidade e do repensar do homem com a
arte e a sociedade.
Esse desdobramento teórico-reflexivo dá-se dois anos após “Contradições do
Homem Brasileiro”, quando Jomard publica “Do Modernismo à Bossa Nova” (1966),
livro que amadurece seu pensamento e desejo de revisão nas leituras e práticas
envolvendo o “Ser” e o “fazer” cultural brasileiro.
Para Glauber Rocha, a contribuição de Jomard nesse estudo sobre o homem em
processo busca:

[...] estabelecer uma verdadeira interpretação deste espírito através da


evolução & contradição do canto: desde o canto de 22 até o canto de
hoje. Dois cantos revolucionários, o primeiro arrebentando com o
academicismo e o obscurantismo, o de hoje, enfrentando o terrorismo.
[...] São as vozes em crise, são os tumores líricos que explodem nos
tempos de guerra.714

O homem em trânsito, atento a esses cantos revolucionários expostos por


Glauber, esforça-se para ampliar suas capacidades relacionais com a arte brasileira,
esperando que ele se coloque criticamente na sociedade, para que possa conquistar “sua
capacidade de análise, de julgar as condições internas da obra e seus condicionamentos
em face do ambiente em que ela foi gerada”.715
Jomard afirma que a oportunidade para a formação deste homem crítico e
atuante dá-se através de um preparo intelectual e pelo contato com os problemas
culturais da situação-momento, para que seja possível assim, uma “convivência com os
diversos estilos e os múltiplos meios de expressão artística”,716 bem como o impulso
para descortinar os cânones que imortalizam os mitos totalizantes da cultura brasileira.

713
BRITTO, 1964, pp. 91/100/101.
714
BRITTO, Jomard Muniz de. Do Modernismo à Bossa Nova. São Paulo. Ateliê Editorial. 2009. p. 8
715
Ibidem, 2009, p. 84.
716
Ibid. id.
206

Esse exercício nasce da vontade pela investigação de novas orientações estéticas e


políticas, atrelado ao conhecimento gerado sobre “história e sociologia da cultura”.717
A partir da obra educativa, elemento fundamental para retirar do homem as
amarras da passividade, no mundo em contínua construção, é possível despertá-lo para
uma realidade que o torne um apreciador crítico da cultura, “nunca se comportando
apenas como espectador passivo diante das obras da cultura. Que ele, sem prejuízo no
desenvolvimento de sua sensibilidade e de sua personalidade afetiva, adquira cada vez
mais lucidez e objetividade em face dos problemas nacionais.718
Durante suas aulas, palestras, textos, atentados poéticos e cursos sobre cultura
brasileira, Jomard sempre espalhou para seus alunos a semente da problematização dos
discursos que nos informam brasiliricamente, por meio de estudos compartilhados em
(des)alfabetizações estéticas e dos “roteiros de contradições e convergências”,719 nos
laboratórios internos de crítica cultural.
Sua interpretação da cultura brasileira é orientada (ou desorientada, a seu modo)
“pelo desejo de liberação e libertação”720 dos olhares sobre o Brasil, desfazendo-se dos
monumentos sólidos e desencontrando-se nos pedaços, nas colagens, nas releituras de
imagens e textos, que visam ampliar suas indeterminações politicamente incorretas à
Nação, esta fincada nas raízes do discurso autoritário.
No seu esquema analítico de estudo: “Culturas Brasileiras em Trânsito ou em
Transe”, Jomard apropria-se de vários autores para estabelecer um mapa teórico dos
seus esboços em torno da história das tendências artísticas nacionais. A introdução do
esquema é marcada por várias citações que abrem o debate, como podemos destacar no
“Manifesto Música Nova/63”.
Jomard explora o conceito exposto pelo documento de:

Cultura Brasileira: tradição de atualização internacionalista... apesar


do subdesenvolvimento econômico, estrutura agrária retrógrada e
condição de subordinação semi-colonial. Participar significa libertar a
cultura desses entraves (infra-estruturais) e das super-estruturas
ideológico-culturais que cristalizam um passado cultural imediato
alheio a realidade global (logo provinciano) e insensível ao domínio
da natureza atingido pelo homem.721

717
BRITTO, 2009, p. 84.
718
Ibidem, p, 93.
719
BRITTO, Jomard Muniz de. ALFABETIZAÇÃO ESTÉTICA, roteiro de contradições e convergências.
Recife: Fogo Roubado. Fevereiro de 1995. p. 153.
720
BRITTO, 1995. p. 153.
721
Culturas Brasileiras em Trânsito ou em Transe: esquema para debates. Recife: Sem ano/ Impresso.
207

Após essa caracterização conceitual – que nos situa para compreender as


tensões existentes nos debates intelectuais, revisando criticamente a teoria da cultura
brasileira – ele divide as tendências em três colunas esquemáticas:

TENDÊNCIAS DO TENSÕES PRODUÇÕES


NACIONAL POPULAR DO EXPERIMENTAL DO INTERNACIONAL-POPULAR
(projetos estéticos-ideológicos)

REGIONALISMOS BRASÍLIA Cidades Satélites de BSB


MODERNISMOS ARTE CONCRETA INDÚSTRIA CULTURAL
Integralismo Cinema Novo Tele-dramaturgia
Antropofagia.......................... ........................................... ..........................................
Teatro de Arena de SP TROPICÁLIA BOSSA NOVA
Movimentos de Cultura Popular Tropicalismos POP ARTE
Centros Populares de Cultura Neoconcretismo Mangue Beat
Bossa Nova participante ou Poema processo Árido Movie
nacionalista
Pedagogia do Oprimido Arte Correio Vídeo Arte
Teatro do Oprimido PERFORMANCES.............. ............................................................
ARMORIALISMO Instalações.......................... ............................................................

A partir dessas informações, podemos observar que Jomard busca expor no seu
mapeamento uma irônica tabela (não-estanque) da realidade cultural brasileira. Dessa
forma, ele articula várias gerações estético-produtivas, mostrando-nos que os estilos,
mesmo vinculados a uma tendência mais ampla, que as definem como “Nacional-
Popular”, “Experimental” ou “Internacional-Popular”, possuem estreita relação de
hibridismo e diálogo constantes entre si.
É uma crítica aos usos das categorizações como meios criados para enquadrar a
pluralidade e os excessos na cultura brasileira, idealizada sob acordo entre intelectuais
conservadores, que tomam posse da brasilidade e das instituições que financiam seus
discursos totalizantes, com vistas à promoção dos mitos e dos grupos que se revezam
nas cadeiras oficiais, sejam elas tropicológicas, armoriais, ou as que estão em vigência.
As “Tensões do Experimental” ficam localizadas no centro da tabela,
alimentando-se antropofagicamente das contradições contidas nas extremidades,
podendo interpenetrar-se em quais blocos desejar. Jomard diz que “os exemplos de cada
coluna podem ser transferidos para a outra, por argumentação ou simples crença”.722
É nesse sentido – argumentativo, questionador – que “O Palhaço Degolado”
realiza um tráfego pela história destas categorias em debate, a partir dos movimentos em
curva e zigue-zague, convivendo e recriando a densidade dos estilhaços. Seu corpo

722
BRITTO, Impresso, sem ano.
208

circula entre o “Nacional Popular”, com a tendência Bossa-Nova/Pedagogia do


Oprimido; nas “Tensões do Experimental”, com a Tropicália/Vanguardas em sintonia e
o pós-tropicalismo; bem como as produções ligadas ao “Internacional-Popular”
“enfrentando a luta das diferenças [...] e totalidades”,723 transitando para nada fechar ou
definir, mas para problematizar.
Ao assumir esse risco, seu corpo-clown, mãos, braços e pernas desviantes – dos
modelos fixos de interpretação da cultura brasileira – estão presas numa cela vigiada
pelo “olho que tudo vê”. O Palhaço mantém seu olhar fixo nos corredores da Casa, sem
perder o foco, na busca ainda persistente pela dessacralização das intencionalidades de
um:
[...] projeto visualizado ou vislumbrado, e, a partir dela, de sua retidão
valorativa, enfrentar todos os desafios e até desvarios das curvas e
espirais. Contanto que a linhAGEM reta da valorização não seja
excludente e, muito menos, salvacionista, reduzindo a totalidade de
experiências ao núcleo residual-arqueológico de suas preferências,
idiossincrasias e mitomanias. [...] Sem DIRIGISMOS de qualquer
espécie. Entre a dispersão dos detritos e a coerência das contradições,
nossa MEDIDA ou será plural entre diferenças, ou, ao contrário,
haverá de ser tendenciosamente unificadora724 [...] Continuaremos
RIMANDO pobre com nobre, no conforto da mais legítima Cultura
Brasileira? Permanecemos encastelados ou empastelados pelos
poderes governamentais e quais, sempre iguais? (grifos do autor)725

A carnavalização regida pelo Palhaço custou um preço, não é a toa que o


investimento realizado pela “Casa de Detenção da Cultura” foi enviar dois guardas para
encarcerá-lo na cela 106 o mais rápido possível, para silenciar os gritos e essas
considerações supracitadas (Paulo Freire, Educação libertadora, o Homem crítico), tão
“ameaçadoras”, capazes de rachar os paredões de concreto armado, extraindo das
brechas de sua declamação a lembrança de que:

[...] enquanto Gregório Bezerra era torturado publicamente, tal e qual


o novo Cristo, na tropical praça da Casa Forte, os oligarcas-mandarins
da per-nam-bu-ca-ni-da-de saudavam os mais novos generais-
democratas da-Nação. Corte: o educador Paulo Freire e toda sua
equipe, mesmo sem terem nenhuma filiação político partidária, foram
presos, interrogados e encarcerados. Processo abertos e não
concluídos, jovens intelectuais precocemente “aposentados”. Fusão de
imagens: os mais belos e corajosos projetos conscientizadores do
“Movimento de Cultura Popular” foram brutalmente apreendidos,

723
BRITTO, 1995, p. 154.
724
Ibidem, p. 156.
725
Ibid.id., p. 156.
209

amordaçados, aniquilados. [...] o breve ensaio Contradições do


Homem Brasileiro retirado, intempestivamente das prateleiras por
um pequeno batalhão-invasor da atual livraria Nordeste [...] (grifos do
autor).726

Jomard desprende-se da narrativa fílmica, retira o figurino e vira novamente um


professor de Filosofia, mesmo sabendo que a roupa de clown é a “segunda carne”,
indissociável de sua trajetória carnavalizada de ver o mundo. Um educador que usa a
metáfora da cela degolante, exposta no superoito, para representar o silenciamento de
toda uma equipe que acreditava no princípio educativo como caminho para libertar o
espírito crítico do homem brasileiro – diante dos conservadorismos fechados – bem
como situar uma lembrança de marcas ainda presentes na sua vida: “O Surrealismo da
Repressão”.

4.2. O Palhaço na cela como desdobramento do educador: lembranças do livro negro


da UFPB
A cena em que o Palhaço é preso nos remete a uma fase na vida de Jomard
marcada pela perseguição e cerceamento das suas atividades como professor na
universidade, tanto em Pernambuco, como na Paraíba. Podemos visualizar parte desse
processo em “O Caso Jomard Muniz de Brito, um Capítulo do Livro Negro da UFPb ou
O Surrealismo da Repressão”, organizado pela ADUFPB-JP (Associação dos Docentes
da UFPB – Secção: João Pessoa).
Esse dossiê é resultado da luta travada pela ADUFPB, para exigir a revisão
imediata dos processos de aposentadoria sumária dos professores considerados
“subversivos” pelo regime, com o objetivo de anistiar os profissionais discentes que “a
ditadura arrancou [do] processo educacional brasileiro”.727
Na abertura do documento, visualizamos que:

Este “Caso Jomard” é o primeiro resultado que o Grupo de Trabalho


divulga à comunidade acadêmica do Estado e da Nação, na árdua
tarefa a que se propôs. “Livros Negros” estão sendo preparados em
todo o país, pelas entidades docentes e discentes. Nossa lamentável
história recente vai sendo aos poucos conhecida de toda a população,
forçada anos a fio a conviver com a Censura e os “Informativos”
produzidos nas oficinas de propaganda do “milagroso” regime de 64.

726
BRITTO, 1992, p. 63.
727
O Caso Jomard Muniz de Brito, um Capítulo do Livro Negro da UFPb ou O Surrealismo da
Repressão, organizado pela ADUFPB-JP (Associação dos Docentes da UFPB – Secção: João Pessoa).
1979. p. 7.
210

A opinião pública toma finalmente conhecimento dos aviltantes atos


de desrespeito aos mais elementares direitos humanos [...]. Jomard
Muniz de Britto foi uma das vítimas da “depuração”. Como ele, tantos
outros, alguns já mortos ou forçados ao êxodo. Quantos na UFPb
amargaram processos secretos, demissões comunicadas
“cordialmente”, incertezas, anos de medo e de privações? 728

O “Surrealismo da Repressão” cataloga as memórias da perseguição ao


intelectual, através da exposição dos documentos que o expulsam da atividade docente
no auge da repressão. A respeito desse assunto, ele nos conta que foi:

[...] aposentado729 junto com professores famosíssimos que tinha


ligações de esquerda, mas... aposentado aqui [Recife], continuei dando
aulas na Paraíba. Oficialmente isso não era possível. Na Paraíba me
diziam que meu contrato não seria retomado. Lá eu dei aula de 64 até
o AI-5. Aqui [Recife] eu estava aposentado [1964] porque trabalhei
com Paulo Freire no “Sistema Paulo Freire de Educação de Adultos”.
[...] Lá [Paraíba], recebi um comunicado da diretora do centro dizendo
que estava impedido de dar aulas... isso depois do AI-5. Já tinha
explodido a coisa do Tropicalismo... A minha profissão que eu sabia e
gostava de fazer era ensinar... não podia ensinar nem aqui, nem na
Paraíba.730

Em relação a sua “dispensa” na Paraíba, o “comunicado” foi expedido pela


coordenadora do Instituto Central de Filosofia e Ciências Humanas (ICFCH), Vilma dos
Santos Cardoso Monteiro, no dia 1 de março de 1969, informando-o que, “por ordem do
Comandante da Guarnição Federal da Paraíba, expedida à Reitoria da UFPb, V.S. está
impedido de lecionar no ICFCH”.731
Apesar do impedimento em lecionar naquele ano, Jomard não respondeu a
nenhum processo que viesse a justificar seu afastamento inesperado. Somente em
fevereiro de 1973, foi “convidado a comparecer” ao oitavo andar do Edifício da Reitoria
da Universidade Federal da Paraíba “para ser ouvido sôbre as acusações constantes do
processo em causa”.732
No “Processo de Investigação Sumária Instaurado pela portaria nº 8, de 12 de
dezembro de 1972”, Jomard é interrogado pelo professor-investigante Odísio Borba

728
Surrealismo da Repressão, 1979. p. 7/8.
729
Ela seria reintegrado em 21 de março de 1980.
730
Entrevista concedida a Aristides Oliveira, no fim de tarde, com vontade de chover, em 12-10-2011, às
18h, na residência de Jomard Muniz de Britto.
731
Ministério da Educação e Cultura. Universidade Federal da Paraíba. 22-ICFCH/185/69.
732
Serviço Público Federal. Ministério de Educação e Cultura. Of. 00-11/73. João Pessoa. 14/02/73. In: O
Caso Jomard Muniz de Brito, um Capítulo do Livro Negro da UFPb ou O Surrealismo da Repressão,
organizado pela ADUFPB-JP (Associação dos Docentes da UFPB – Secção: João Pessoa). 1979.
211

Duarte. Apesar de ser longa, a ata que registra todo o processo de acusação à Jomard, é
marcada por acusações que valem à pena reproduzir abaixo.
Confira alguns trechos do dossiê, na fase de interrogatório contra Jomard:

O Prof-Investigante perguntou se o depoente poderia declarar as


razões pelas quais foi afastado da docência na data [01/03/69]
mencionada? Disse que nunca chegou a compreender as razões pelas
quais foi afastado, tanto assim que até hoje manteve seu horário
matinal à disposição da UFPb. Foi perguntado se o declarante tomou
parte em um debate travado na Faculdade de Filosofia desta
Universidade – precisamente em 28 de outubro de 1965, juntamente
com outros professores, debate êste cujo tema foi o “amor” –
Respondeu que se lembra do debate em linhas gerais, sobretudo em
suas conotações mais líricas e estetizantes. Interrogante disse que
consta que o Indiciado como conferencista referindo-se ao aludido
tema assim se expressou: “que a mercantilização do amor deve ao
trust e que as principais das causas da falta de amor verdadeiro na
época atual são a guerra fria – subdesenvolvimento – e a massificação.
[...] O Interrogante disse que consta também dos autos que na mesma
data o Interrogado conclui a conferência que havia proferido com um
poema que possuía o seguinte refrão: “João Sem Terra sujo de terra –
trabalhando na terra – mas sempre João Sem Terra” – afirmando a
seguir que a atitude do homem diante dêsses fatores deveria ser de
revolta? [...] O Prof. Odísio Borba Duarte perguntou ao Prof.
JOMARD se êle tinha lembrança de ter participado em 1968 [...] ao
lado de outros professores e estudantes de manifestações de caráter
político e da ocupação da Faculdade de Filosofia da UFPb? [...] A
seguir foi indagado sôbre uma constatação existente nos autos do
inquérito em causa que o interrogado foi aposentado em 1965 como
Instrutor de Ensino Superior, lotado na Universidade Federal de
Pernambuco, após responder ao IPM como implicado em atividades
subversivas no meio universitário? [...] O Prof-Investigante indagou se
o Declarante havia escrito algum livro e se o mesmo teve divulgação?
Disse ser autor de dois Ensaios editados no Sul do País – um
intitulado “Contradições do Homem Brasileiro” [...], e o outro, “Do
Modernismo à Bossa Nova” através dos quais revela uma
interpretação estética da cultura brasileira. Perguntado se o depoente
desenvolvia alguma atividade artística? Disse que a sua principal arte
foi mesmo ensinar [...]. O Prof-Investigante perguntou se o inquirido
integrou o chamado “Movimento Tropicalista” nas suas atividades
artísticas. Respondeu que sim. Indagado como o depoente conceituava
este movimento? Como a necessidade de fazer com que a cultura
brasileira reconheça as suas raízes e ao mesmo tempo se projete
universalmente.733

733
Processo de Investigação Sumária Instaurado pela portaria nº 8, de 12 de dezembro de 1972 – Da
CISNEC. Termo de Inquirição. In: O Caso Jomard Muniz de Brito, um Capítulo do Livro Negro da
UFPb ou O Surrealismo da Repressão, organizado pela ADUFPB-JP (Associação dos Docentes da UFPB
– Secção: João Pessoa). 1979.
212

Jomard lança um documento de defesa em 15 de março de 1973. Escrito em


Recife, o texto responde com mais objetividade às acusações que sofreu no regime
militar neste inquérito. Sobre o debate envolvendo a temática do “Amor”, Jomard
responde que participou de uma discussão com o público em forma de painel, para
expor que “não existia verdade única, inabalável, rígida”.734
Sua intenção era de que o público fosse levado a exercitar uma reflexão sobre o
tema, de modo que não fosse através de “uma aceitação passiva de uma ‘verdade
fixa’”,735 lançando:

[...] uma dúvida eminentemente crítica sobre as formas de


descaracterização do Amor no mundo que vivemos. Como se o Amor
estivesse cada vez mais se ligando às manifestações do TER – da
comercialização, da poluição publicitária, da possessividade dos bens
materiais – e se afastando, também cada vez mais, das legítimas
formas do SER – da interioridade, do aprofundamento, do “mistério”
[...] (grifos do autor).736

Sobre o poema que cita “João Sem Terra”, Jomard afirma que utilizou o recurso
poético para problematizar a realidade brasileira situada no debate da desigualdade,
distribuição de renda e terra para os mais pobres, no desejo de realizar uma “solicitação
humanizadora, de defesa do homem em seu permanente tornar-se humano”.737 O homem
deveria incorporar o espírito da revolta diante da realidade, mas “não a revolta como
atitude negativista, destrutiva, caótica. MAS O REVOLTAR-SE COMO
INQUIETAÇÃO EXISTENCIAL, COMO O CONTRÁRIO DA INDIFERENÇA
DIANTE DOS PROBLEMAS HUMANOS”.738
Jomard é enfático ao dizer no texto que nunca foi:

VOCACIONADO PARA OS PROBLEMAS DA PRÁTICA OU DA


MILITÂNCIA POLÍTICA, quer do ponto de vista intelectual, quer de
uma perspectiva nitidamente ativista. A política nunca foi meu forte
nem meu fraco. MAS SIM A ESTÉTICA. Assim, NUNCA ESTIVE
COMPROMETIDO – NEM ESTOU – COM QUALQUER
IDEOLOGIA RIGOROSAMENTE POLÍTICA E MUITO MENOS

734
Defesa. Documento redigido por Jomard Muniz de Britto em 15/03/73. In: O Caso Jomard Muniz de
Brito, um Capítulo do Livro Negro da UFPb ou O Surrealismo da Repressão, organizado pela ADUFPB-
JP (Associação dos Docentes da UFPB – Secção: João Pessoa). 1979.
735
BRITTO, 1979, p. 21.
736
BRITTO, 1979, p. 22.
737
BRITTO, 1979, p. 22.
738
Ibidem, p. 22.
213

ME LIGUEI – NEM ESTOU LIGADO – A QUALQUER GRUPO,


FACÇÃO OU LINHA PARTIDÁRIA (grifos do autor).739

O principal motivo que podemos considerar em torno da perseguição à Jomard


em plenos anos 70 – quando a experiência paulofreireana desdobrava-se nas suas
atuações no magistério – foi devido a sua vinculação com o movimento tropicalista,
uma nova “ameaça” aos interesses da Nação.
O Brasil estava confortavelmente envolvido pelo manto tropicológico de
Gilberto Freyre e seus “seguidores”, entronados nos cargos de conselheiros e
despachantes dos projetos tradicionalistas, dispostos a intervir nos planejamentos
político-culturais, em nome da “segurança nacional”.
Após esses cortes (PB/PE) do regime militar na vida profissional de Jomard, ele
entra nos anos 70, buscando novos recursos e meios para se expressar. As dificuldades
agravam-se, pois estava sob ordem de não lecionar nas Universidades em que atuava.
Em entrevista realizada para esta pesquisa, ao ser indagado sobre sua vida durante as
tensões sentidas no “Surrealismo da Repressão”, Jomard afirma que:

Na década de 70 [...] eu aposentado aqui da Universidade e sem poder


ensinar na Paraíba, o que é que faço? Eu dava uns cursos
independentes de comunicação [...] foi a época do super-8. Eu tentei
ver se eu podia ensinar o que já havia ensinado no começo da minha
vida na Católica. “Não pode [...] porque tem verbas do governo
federal” [...] Aí uma amiga-prima minha descobriu [...] a Escola de
Relações Públicas que era independente, era particular [...] A essa
altura eu já estava ligado à Comunicação. Aí minha amiga-prima foi
falar com o diretor, que ela conhecia e disse: “Olha, tem um professor
primo meu que é professor de Filosofia, Comunicação [...]” Aí o
camarada: “Nós estamos precisando, porque nosso professor está indo
para Minas Gerais”. Foi aquela sorte toda. Então, durante essa década
toda de 70, foi do AI-5, eu fui professor dessa escola [...] Foi esse ócio
criativo que deu margem ao superoito. Eu tinha a manhã e tarde livre
[...] só dava aula de noite... Eu produzi na época da repressão muitos
shows de música popular [...]. Naná Vasconcelos participou desses
trabalhos [...]. E tinha esse pessoal [...] é o que a gente chamaria do
grupo da cultura de resistência [...] pessoal que continuou atuando
procurando brechas para atuar [...] A intervenção maior no tempo do
Tropicalismo era o jornalismo, porque nós tínhamos um amigo que
era editor de cultura no Jornal do Commercio [...] (Celso Marconi).740

Realizava várias atividades paralelas, experimentando novas linguagens. É


quando tem contato direto com a bitola de superoito, recurso que vai explorar durante

739
Ibidem, p. 24.
740
Entrevista concedida a Aristides Oliveira, na tarde de 07-10-2010, às 16h25, na residência de Jomard
Muniz de Britto.
214

toda década de 70, realizando um amplo conjunto de filmes ficcionais e documentários,


refletindo sobre temas ligados à problemática cultural brasileira.
Jomard acaba tornando-se um intelectual de destaque na cena cultural
pernambucana, incomodando os grupos conservadores da cidade, ao despertar a raiva
dos intelectuais mais reacionários. Esses negavam qualquer possibilidade de alternativa
para a reinvenção contemporânea dos elementos que informam a cultura brasileira, sob
ameaça dos “estrangeirismos” descaracterizadores, que possam questionar as vozes dos
“patriarcas” 741 monumentais.
Sua relação com o Tropicalismo o deixa “marcado” na lista negra da Secretaria
de Segurança Pública, na “Relação dos Agitacionistas”, segundo informe do SNI
(07/05/68), ao ser considerado pelos militares:

Elemento ligado ao grupo esquerdista em evidência. Autor do


Movimento Tropicalista (manifesto). Pretende lançar tal manifesto no
Recife, oficialmente, no Nordeste, a linha estrutural e a temática usada
pelo pseudo intelectual cantor CAETANO VELOSO, que em suas
músicas lança cantos de elogios a Che Guevara e às guerrilhas da
América Latina. Autor do Livro: “Contradições do Homem
Brasileiro”, que estabelece críticas violentas ao govêrno. Esteve preso
quando da eclosão de 31 de março de 1964. Escreve em forma de
colaboração, para o Jornal do Commercio do Recife. Está também
ligado aos grupos teatrais, que fazem Teatro Popular no Nordeste, e
parece ter dirigido algumas peças.742

Mesmo sob pressão, em nenhum momento desligou-se das reflexões polêmicas


em torno da cultura brasileira, fazendo da Bossa Nova, do magistério e do
Tropicalismo, as principais pontes utilizadas para percorrer e interpretar o trânsito das
tendências que o informam culturalmente, pois:

[...] como pessoa ou gente, tenho minhas preferências afetivas,


sensoriais, emocionais, estéticas. O Tropicalismo para mim [é] uma
opção estética, uma afinidade ao visualizar a cultura brasileira [na] sua
complexidade de elementos, de bom e de mau gosto, em seus assuntos
eruditos e “kitschs”, em suas dimensões tradicionais e renovadoras,
[com suas] configurações de surpresa e impacto.743

O Palhaço-Jomard embaralha seu esquema tripartido em múltiplos atalhos


construídos à margem dos centros oficiais de interpretação da história da cultura. A

741
CASTELO BRANCO, 2005. p. 136
742
Secretaria da Segurança Pública – Pernambuco Informe do SNI. Ref. 012-JB. 07/05/1968.
743
BRITTO, 1979. p. 25.
215

agilidade do corpo-clown possibilita navegar nos entre-lugares das bricolagens no plural


da cultura brasileira, percebendo-a como um abismo, “onde não se sabe quais os limites
do cenário”, em uma realidade cultural configurada no trânsito constante, jogando-se
nos campos “que não tem centro”, nas estruturas “em forma de fuga, um jogo de
espelhos, como um sonho ou pesadelo”.744
Um Palhaço perseguido e vigiado pelos olhares atentos de um guarda à sombra
dos canaviais, um Jomard que mistura seu riso carnavalesco com a melancolia
revolucionária, seguindo aos saltos e rodopios, dos Círculos de Cultura para os bordéis,
brasilíricos bordéis...

4.3. Se joga para o mundo, Palhaço! Faz a bailarina tropicalista dançar!


A experiência e sintonia com o pensamento produzido nos anos 60 abrem espaço
para os intelectuais de esquerda repensarem seus projetos na fase pós-golpe. Com a
radicalização do esquema repressor no auge do AI-5, o regime militar altera o quadro
histórico, “onde a coerção política irá assegurar e consolidar a euforia do ‘milagre
brasileiro745’”, ao estimular a entrada de capital internacional no país, estreitando a
dependência econômica e ampliando a integração “com as classes dominantes
internas”.746
Celso Favaretto afirma que 1967 é um momento-chave para a pulsação criativa
na cultura brasileira, devido o intenso “afluxo de propostas, experiências e talentos,
responsáveis pela configuração de uma ampla atividade de vanguarda, com a
convergência de projetos e tendências em desenvolvimento nas diversas áreas artísticas
[...] mais precisamente [...] [no] final de 1964 e inícios de 1965”.747
É nesse clima de tensão repressora, atravessada pela efervescência cultural, que
a produção artística vai sofrer os abalos da censura, atacando os direitos de expressão
não só dos militantes engajados contra o Estado, mas censurando qualquer indivíduo
que possa fugir minimamente da “legislação coercitiva do Estado”,748 como vimos na
passagem de Jomard pelo surrealismo da repressão.
O cerceamento rigoroso nas atividades artísticas e intelectuais traz como
conseqüência “um deslocamento tático da contestação política para a produção cultural.

744
SANT’ANNA. Afonso Romano de. Considerações em torno do abismo. 25/03/87.
745
HOLLANDA, 1992, p. 90.
746
Ibid. id.
747
FAVARETTO, Celso. Tropicália: a explosão do óbvio. In: BASUALDO, 2007, p. 81.
748
HOLLANDA, p. 91.
216

Ou seja, a impossibilidade de mobilização e debate político aberto transfere para as


manifestações culturais o lugar privilegiado da ‘resistência749’”, onde a ambiência
política e cultural do “milagre brasileiro” propiciou a estes jovens o sentimento de
negação e ceticismo em torno “das linguagens e das significações dadas. [...] É
exatamente num momento em que as alternativas fornecidas pela política oficial são
inúmeras que os setores jovens começarão a enfatizar a atuação em circuitos
alternativos ou marginais”.750
Nesse processo de ressignificação das linguagens, subvertendo as relações
padronizadas de circulação das obras no âmbito da produção cultural legitimada é que,
parcela da juventude brasileira começa a intensificar suas inquietações na cena artística
underground, “desconfiando dos mitos nacionalistas e do discurso militante do
populismo”,751 voltando a:

[...] “opinar”, artística e politicamente, compondo a renovação das


linguagens e das imagens alusivas ao contexto sócio-político. Essas
atividades confluíam na necessidade, que se impunha, de fazer a
crítica da “realidade brasileira” e de articular a resistência política face
às restrições da liberdade de expressão impostas pelo regime militar.
Mas, antes de tudo, tratava-se de levar adiante o trabalho de renovação
que vinha impulsionando o desejo de modernidade artístico-cultural,
desde o início da década de 1950.752

Podemos destacar os movimentos culturais engajados dos anos 60, como os


Centros Populares de Cultura (CPCs), que estavam diretamente ligados a uma
perspectiva marcada por mensagens de cunho revolucionário, mas a “nível formal a
intenção consistia em manter-se [...] fiel à tradição musical popular, ou seja, a de
articular o projeto de uma identidade nacional que o pensamento de esquerda mais
ortodoxo encontrava em germe nas expressões populares”.753
Esse posicionamento dos grupos engajados na politização das manifestações
populares era visto por parte dos jovens artistas – o músico Caetano Veloso, o cineasta
Glauber Rocha, entre outros – como uma atitude arriscada de folclorização das
expressões culturais, “inibindo a possibilidade de ensaiar uma reflexão efetiva e

749
HOLLANDA, p. 92.
750
Ibidem, p. 95/96.
751
Ibidem, p. 53.
752
FAVARETTO, In: BASUALDO, 2007, p.81.
753
BASUALDO, Carlos. Vanguarda, Cultura Popular e Indústria Cultural no Brasil. In: BASUALDO,
2007, p. 11.
217

mobilizadora acerca da situação da cultura brasileira contemporânea, e de situá-la


precisa e efetivamente no contexto internacional”.754
A década de 70 proporcionava nesses jovens que antagonizavam com o
Nacional-Popular, uma nova possibilidade de produção artística, que só era possível a
partir de um ato extremo de violência simbólica, a fim de fazer da cultura brasileira um
laboratório de crítica cultural em processo, reinventando formas “que captassem essa
nova realidade”.755
Para os artistas “desengajados” do nacionalismo triunfante, era preciso situar a
cultura brasileira “em um contexto mundial, com relação às mudanças revolucionárias
de fim dos anos 60. É a tentativa de buscar o lugar do Brasil nesse mundo, de devolver
o mundo ao Brasil e o Brasil ao mundo756”. O desejo de vivenciar a identidade brasileira
enquanto work in progress é um caminho a seguir em frente, mesmo com as tensões
promovidas pelas cercas estatais.
Nesse trânsito de ideias e consciência de mudança nas práticas culturais, é que
podemos visualizar a formação de um painel de manifestações artísticas que
movimentam os anos 60 – como o “Violão de Rua” e a “Poesia Práxis” (1962), o
“Poema-Processo” (1967) e o “Tropicalismo” (1968) – desdobrando-se em novas
reflexões e práticas no campo artístico brasileiro.
Para Celso Favaretto, os tropicalistas, ao iniciarem suas atividades no final dos
anos 60, articularam uma posição de crítica e revisão da cultura brasileira pós-golpe.
Essa postura de mudança comportamental é resultante da oposição à situação cultural
hegemônica, assim, a tropicália visava “à anulação de respostas anteriores, no esforço
de partir do zero para uma reconstrução. O tropicalismo [surge enquanto] radicalização,
sendo talvez, o [...] que melhor exprimiu os impasses da intelligentsia brasileira”.757
Nesse sentido, a Tropicália aparece na cena para promover profundas mudanças
no campo criativo da música, artes plásticas, cinema, literatura, etc, na busca pela
“universalidade” das expressões artísticas em experimentação. Desse modo, podemos
afirmar que, diferente dos outros grupos culturais atuantes paralelos ao Tropicalismo –
como o Movimento Armorial, que surge dois anos depois, escavando nos elementos

754
BASUALDO, 2007, p. 12.
755
CORRÊA, Martinez. In: BASUALDO, 2007, p. 13.
756
BASUALDO, 2007, p. 14.
757
FAVARETTO, 1979, pp. 10/11.
218

“primordiais” da cultura brasileira um ponto de referência nuclear – “os tropicalistas


acabaram por esvaziá-lo, ao operar uma descentralização cultural”.758
Christopher Dunn nos conta que, musicalmente, os tropicalistas admiravam os
compositores da bossa nova, inspirando-se no “espírito cosmopolita moderno”.759 No
entanto, a conjuntura política e cultural havia se transformado entre 1958 e 1968, pondo
em xeque o modernismo do projeto bossanovista. O momento pós-Bossa Nova estava
atravessado pelo “rock da Jovem Guarda” e pela retomada dos “cantores da ‘era do
ouro’ do rádio pré-bossa nova, como Carmen Miranda, que subvertiam com irreverência
as elevadas pretensões modernistas da MPB”.760
Para eles, a apropriação das linguagens está marcada pela mistura e justaposição
de imagens e textos, que se interpenetram e desfazem mutuamente, num jogo de
costuras e desprendimentos, “constituindo um conjunto pluri-significante”761 de
mensagens intertextuais e intervisuais.
É o que podemos perceber no filme de Jomard, um eco pós-tropicalista
(realizado oito anos após a “explosão”) que usa do jogo das contradições para revelar ao
espectador a cultura no seu estado de tensão e confronto. Pela mixagem de um conjunto
de palavras e conceitos que – ao mesmo tempo em que estão conflito entre si – ampliam
o leque de possibilidades para a compreensão (pelo choque semântico) dos
formigamentos que geram a problematização da cultura brasileira em movimento,
sintonizada com as linguagens contemporâneas, não-estanques.
Para evitar uma abordagem sobre o Tropicalismo, baseada em reflexões já
expostas nos referenciais bibliográficos clássicos sobre o tema762 – envolvendo o debate
em torno dos “marcos inaugurais”, da revolução promovida na estrutura da canção e do
papel de Caetano Veloso e Gilberto Gil nesse processo – aqui desejamos priorizar o
debate no campo dos conflitos que o Tropicalismo possibilitou gerar em torno da
brasilidade contemporânea, fazendo conexão com a Pernambucália.
Até porque não é nossa intenção problematizá-lo enquanto movimento – nas
palavras de Flora Sussekind, supõe algo “programático e organizacional” – mas

758
FAVARETTO, 1979, p. 11.
759
DUNN, In: BASUALDO, 2007, p. 63.
760
Ibid. id.
761
Ibid. id.
762
Contidos em autores como Sylvia Helena Cyntrão, Christopher Dunn, Carlos Calado, Augusto de
Campos, Luis Carlos Maciel, entre outros nomes. Disponível em
<http://tropicalia.com.br/v1/site/internas/bibliografia_1.php> Acesso em: 28 Jan 2012, às 20h22.
219

percebê-lo em um “estado mais amplo, numa arena de agitação [...] cuja abrangência
iria bem além do campo estritamente musical763” para o campo das identidades.
A primeira consideração histórico-referencial sobre a Tropicália está nas suas
bases de inspiração artística, a partir da apropriação crítica do Manifesto Antropofágico
(1928) de Oswald de Andrade, em suas formulações teóricas, tomando a metáfora
indígena de devorar canibalescamente os inimigos, entre portugueses e tribos rivais.
Assim, é possível compreender que o modelo de elaboração cultural tropicalista dá-se
pela deglutição nada “subserviente às tendências metropolitanas na Europa, nem
defensivo ou estritamente nacionalista”.764
Seria uma retomada antropofágica oswaldiana do Modernismo de 1922, na qual
o artista plástico-conceitual-multimídia, Hélio Oiticica765, ao teorizar sobre o conceito
“Tropicália” – baseado em sua instalação de mesmo nome766 – esclarece que ela é:

[...] a primeiríssima tentativa consciente, objetiva, de impor uma


imagem obviamente “brasileira” ao contexto atual da vanguarda e das
manifestações em geral da arte nacional [...] [que] veio contribuir
fortemente para essa objetivação de uma imagem brasileira total, para
a derrubada do mito universalista da cultura brasileira. [...] Para a
criação de uma verdadeira cultura brasileira [...] expressiva ao menos,
essa herança maldita européia e americana terá de ser absorvida,
antropofagicamente, pela negra e índia de nossa terra, que na verdade
são as únicas significativas, pois a maioria dos produtos da arte
brasileira são híbridos, intelectualizados ao extremo, vazio de um
significado próprio [...] o mito da tropicalidade é muito mais do que
araras e bananeiras: é a consciência de um não-condicionamento às
estruturas estabelecidas, portanto altamente revolucionário na sua
totalidade. Qualquer conformismo, seja intelectual, social, existencial,
escapa a sua idéia principal.767

Oiticica considera que, nessa anti-lógica – visando o rompimento com a


totalização dos mitos brasileiros – o Tropicalismo aparece como proposta para redefinir
o papel da crítica cultural, problematizando as tradições resguardadas no intelectualismo
livresco, limitando as possibilidades de construção das novas sensibilidades para o
Brasil. É o momento de por fim à rigidez tropicológica e buscar outras vias

763
SUSSEKIND, Flora. Coro, Contrários, Massa: A experiência Tropicalista e o Brasil de fins dos anos
60. In: BASUALDO, 2007. p. 31.
764
DUNN, Christopher. Tropicália: Modernidade, Alegoria e Contracultura. In: BASUALDO, 2007, p.
63.
765
Criador do penetrável Tropicália, em 1967, que não só inspirou o nome, mas também ajudou a
consolidar uma estética do tropicalismo na música e nas outras linguagens em processo de experiência e
renovação no país.
766
Exposição Nova Objetividade Brasileira, idealizada e apresentada pelo próprio Hélio Oiticica, no
Museu de arte Moderna do Rio de Janeiro, em 1967.
767
OITICICA, Hélio. Tropicália. 04 de março de 1968. In: BASUALDO, 2007. p. 239-241.
220

interpretativas para a vida cultural do homem situado no trópico, contemporâneo,


mutante, cosmopolita, inventor de vários Brasis.
O “não-condicionamento” desse novo homem tropical está na sua capacidade de
produzir significado à cultura brasileira, longe da obediência aos cânones,
experimentando a potência das “colagens, [...] procedimentos pop eletrônicos,
cinematográficos e de encenação; misturá-los, fazendo-os perder seu [núcleo gerador].
O objetivo era fazer a crítica dos gêneros, estilos [...] e da pequena burguesia, que vivia
o mito da Arte. [...] o emprego de recursos aleatórios e seriais, a incorporação do grito”
768
.
Hélio Oiticica acreditava que essa época era marcada por uma fase de “urgência
cultural”, sendo necessário intensificar as releituras em torno da “imagética brasileira”,
devido à riqueza contida nas informações visuais impressas no cotidiano. Dessa forma,
Hélio propõe que os artistas contemporâneos devem traçar novas formas de
problematização da cultura no país, incorporando “todas as raízes brasileiras na
imagem, compará-la com a influência americana e subverter o domínio dessa influência
absorvendo-a dentro de si [...], [pois] elas dão nova forma a coisas mais profundas”769.
As imagens e sons negados pela burguesia brasileira – “deixadas de lado pela
ostentação [...] que suspirava a elegância europeia” 770
– como as flores de plásticos,
frutas tropicais, o batuque dos morros com o samba, araras e papagaios, difundidas por
Carmen Miranda são re-incorporadas pela antropofagia oswaldiana.771
Essa atitude é resultante da “consciência crítica & política que surgiu” 772
pela
constatação de que os artistas contemporâneos pós-64 não podem se isolar em fronteiras
criativas estáticas, porque as “divisões formais” 773
entre o “cinema, teatro, artes
plásticas, música popular [...] tendem a se dissolver dentro de algo maior”,774 opondo-se
ao “conformismo folclórico reacionário”.775

768
FAVARETTO, 1979, p. 23.
769
OITICICA, Hélio. Tropicália: o problema da imagem superado pelo problema de uma síntese. 1969.
In: BASUALDO, 2007, p. 309.
770
OITICICA, 1969. In: BASUALDO, 2007, p. 309.
771
“A antropofagia era também um corretivo necessário às noções essencialistas e aistóricas de
‘brasilidade’ como imaginadas por alguns dos modernistas mais nacionalistas. Para os tropicalistas,
quarenta anos depois, a ideia de antropofagia forneceu um modelo e um discurso para suas releituras da
tradição da canção brasileira à luz de desenvolvimentos contemporâneos no pop internacional”. Cf:
DUNN, Christopher. In: BASUALDO, 2007, p. 64.
772
DUNN, Christopher. In: BASUALDO, 2007, p. 64.
773
Ibid. id.
774
OITICICA, 1969. In: BASUALDO, 2007, p. 309.
775
Ibid. id.
221

Nesse sentido, Hélio afirma que a arte brasileira necessita reinventar sua
definição e sentimento:

[...] no panorama cultural geral, ou a síntese de uma visão cultural


mais específica, de diferentes campos de formas artísticas em sua
manifestação, interrelacionados em suas metas específicas: o teatro, a
música popular, o cinema, além das artes plásticas em todas as suas
experiências de vanguarda no Brasil [...]. Embora as forças fascistas
brasileiras tentem matá-la, está cada vez mais claro que [o
Tropicalismo] é algo que vai resistir, a menos que elas realmente
consigam matar todos os intuitos criativos [...].776

Essa resistência ao conservadorismo cultural folclorizante da realidade efetiva-se


pela releitura dos suportes expressivos tradicionais, experimentando meios de produção
que proporcionem uma ação participativa mais intensa entre o artista e o espectador,
“num nível de expressão revolucionária [que possa] ferir o público, de colocar esse
público em termos de nudez absoluta, sem defesas, incitá-lo à iniciativa, à criação de
um caminho novo”.777
A ruptura com a moldura clássica do quadro, das linhas amarelas que vigiam o
percurso do espectador no museu, da rigidez do corpo na dança, o uso da guitarra no
auge do nacionalismo militante, faz-se enquanto desejo, “uma vontade construtora de
afirmação de novas relações estruturais, conjugada paradoxalmente a uma
antiformalização desintegradora, a uma fuga consciente da forma”.778
Dessa forma, o Tropicalismo propôs o desligamento representativo de uma
determinada região ou proteção de um recorte espacial particular da cultura brasileira,
distanciando-se [...] do sentimento preservacionista presente nas instâncias oficiais de
poder. Isso fez com que suas práticas artísticas fossem vistas com desconfiança pelo
Estado, devido suas “simpatias” com a “ocupação dos canais de massa, a construção
literária das letras, a técnica, o fragmentário, o alegórico, o moderno e a crítica de
comportamento, [...] expressão [resultante] de uma crise”.779
Os intelectuais vinculados ao Tropicalismo negam o fechamento das fronteiras,
através de um rompimento radical que viabilize uma aproximação com a produção
cultural de nível nacional e internacional, na elaboração de uma estrutura aberta que

776
OITICICA, Hélio. Tropicália: a nova imagem. 1969. In: BASUALDO, 2007, pp. 310-312.
777
ROCHA, Glauber. apud. SUSSENKIND. In: BASUALDO, 2007, p. 40.
778
SUSSENKIND. In: BASUALDO, 2007, p. 44.
779
HOLLANDA, 1992, p. 55.
222

possa conviver com o fluxo do novo e liberte o corpo para a experimentação máxima da
linguagem, na:

[...] possibilidade de se construir territórios desviantes daqueles


cristalizados, seja no campo da arte, da música ou da política, nascia
de uma crítica que visava desobjetivar objetos consagrados,
produzindo o novo, a surpresa, o objeto não identificado. Visava
romper com as identidades fixas, inclusive espaciais. Destruir os
espaços fechados pelo poder, espaços cristalizados, tradicionais,
conservadores, anti-modernos, sustentados pelas antigas relações
sociais, pela injeção da modernidade, que produz o contraste, o
estranhamento, o fora de lugar, a relatividade dos lugares, o
deslizamento dos códigos espaciais e a multiplicidade de referenciais.
O tropicalismo fala de outros Nordestes idos e possíveis, criticando
este referencial identitário fixo, autoritário, em que o sentido é sempre
unívoco, em que as relações econômicas, culturais e de poder estão
hierarquizadas fortemente; é o território do qual o coronel e o
cangaceiro ainda eram os grandes símbolos [...]. O tropicalismo, ao
invés de opor o Nordeste e São Paulo, nasce do encontro dos dois, da
aproximação e interpenetração das informações culturais que eles
podiam fornecer.780

O aspecto central da crítica tropicalista ao discurso formador da “Cultura


Brasileira” nos anos 70 fez-se pelo modo em que estão dispostos os símbolos que
constituem o “caráter nacional”, presos à conservação e aos limites de sua continuidade,
como algo “puro” e “determinado” pela perspectiva regionalista-armorial.
Conectadas a uma nordestinidade linear, essa “tradição” desenhou o espaço e as
práticas culturais com linhas rígidas, provocando a cristalização da cultura como algo
totalizante, impermeável às mudanças do tempo.
Tropicália: “uma atitude brasileira de vanguarda”, é assim que podemos
encontrar no catálogo da “Nova Objetividade Brasileira”, de 1967, quando Hélio
Oiticica publica “Esquema Geral da Nova Objetividade”, mostrando que sua proposta
seria:
[...] a formulação de um estado da arte brasileira de vanguarda
atual e não um movimento dogmático, esteticista [...], mas uma
chegada, constituída de múltiplas tendências, onde a falta de
unidade de pensamento é uma característica importante. [...]
reconhecendo na antropofagia (1928) um dos passos decisivos
em direção à nova objetividade.781

780
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Cartografias da alegria ou a diversão do Nordeste: as
imagens do regional no discurso tropicalista. In: Horácio Gutiérrez; Márcia R. C. Naxara; Maria
Aparecida de S. Lopes. (Org.). Fronteiras: paisagens, personagens, identidades. 1ª ed. São Paulo:
Olho D'Água, 2003. p. 03-05.
781
COCCHIARALE. Fernando. Primórdios da Videoarte no Brasil. In: MACHADO, Arlindo (Org).
Made In Brasil: Três Décadas do Vídeo Brasileiro. São Paulo: Iluminuras, Itaú Cultural, 2007. p. 65.
223

Pensar a cultura pela lógica tradicional não fazia mais sentido para esses
artistas, obrigando os tropicalistas a buscarem um novo espaço de significação na
música, artes plásticas e outras áreas através da:

[...] transgressão da regra [...] produzir uma interpretação das margens,


dos limites e não do centro [...] produzindo novas paisagens, belas e
banguelas, cujo sentido é errante, é errático, retirante [...] em oposição
às fronteiras rígidas do não do regionalismo; fronteiras móveis ao
sabor das utopias e das paixões. A música, o teatro, o cinema, como
ponto de encontro da falta e da fratura, do moderno e do tradicional,
do atrasado e do desenvolvido, do local e do universal, como a própria
nação e a região, que pela coexistência destes opostos, se definem e
definham.782

Podemos até usar o trocadilho do poeta Décio Pignatari, para ilustrar o


deslocamento de eixo dos tropicalistas em relação ao modo de fazer-ver a cultura
naquele momento. Tomando o título da obra “Casa Grande & Senzala”, ele afirma que
Gilberto Freyre vê o trópico da casa grande, enquanto os tropicalistas o vêem da
senzala.
O olhar do primeiro é fruto gerado das camadas dominantes, da elite tradicional,
enquanto o foco tropicalista contemporâneo é visto a partir do lugar em que os escravos
viviam; da resistência e necessidade de friccionar as estruturas estáveis da cultura e
sociedade.783 Já para Glauber Rocha, a diferença de seu tropicalismo para o de Freyre
está “na explosão agressiva deste Brasil de hoje, [da] terra em transe”.784
A respeito do conceito “Tropicalismo”, Jomard faz uma análise do termo e
afirma que, antes da expressão ganhar forma e popularidade no final dos anos 60, já
existiam no Brasil os tropicalistas de longa data, como na literatura, em que ele afirma
encontrar convergências entre Casimiro de Abreu, Castro Alves, Paulo Afonso, Garcia
Lorca, Mário de Andrade, Padre Vieira, Celso Furtado, Euclides da Cunha, entre outros
intelectuais785 que tomaram “como exemplo o Brasil, mas como dimensão universal786”.
Para João Carlos, a análise de Jomard nos mostra que o espírito tropicalista está
presente nos artistas brasileiros antes da própria formação do movimento. “E mesmo

782
OITICICA, 1968. In: BASUALDO, 2007. p. 10.
783
VIANNA, Hermano. Políticas da Tropicália. In: BASUALDO, p. 142.
784
BENTES, Ivana. Multiculturalismo, Cine-Sensação e Dispositivos Teóricos. In: BASUALDO, 2007.
p.101.
785
LUNA, João Carlos de Oliveira. O Udigrudi da pernambucália: história e música do Recife
(1968/1976). Dissertação (Mestrado). Universidade Federal de Pernambuco. CFCH. História. 2010. p.
162.
786
BRITTO, Jomard Muniz de. Revista do Jornal do Commercio. 17 mar 1968. Tropicalismo e
Tropicalistas. Recife.
224

sem o reconhecimento de leitores contemporâneos, percebe-se em 1968, uma tomada de


consciência desta condição “tropicalesca” da arte brasileira. Uma proporção discursiva
que almejava atingir a América Latina e combater o discurso colonizador e opressor”.787
Jomard continua sua investigação sobre essa nova condição na produção e visão
crítica dos artistas sobre a cultura brasileira, ao afirmar que o ponto fundamental para
compreender a tropicália no final dos anos 60 está materializado na instalação-
penetrável de Hélio Oiticica, “exposto no Museu de Arte Moderna, do Rio, em 1967,
ano inaugural da exibição de “Terra em Transe”, da montagem teatral de “O Rei da
Vela”, pelo Grupo Oficina, e da vinda de Gilberto Gil ao Teatro Popular do Nordeste”
(TPN), em Recife”.788
Ao destacar essa última consideração, podemos afirmar que os ventos eram
outros em Pernambuco. É o que podemos visualizar no estudo de José Teles: a
recepção, repercussão e debate em torno do Tropicalismo em Recife. O autor relata que
1968 é um ano emblemático, quando Caetano Veloso e os “Mutantes” pousam em
Recife para um show no Sport Club da cidade, mas vale lembrar que um ano antes de
Caetano estabelecer seus contatos iniciais com a Pernambucália, Gilberto Gil iniciou
uma temporada de aproximação com os ritmos e ideias em Pernambuco, ao lançar seu
disco “Louvação”.
A partir da turnê realizada por um mês no Teatro Borba Filho, Gilberto Gil
ganhou mais fãs na cidade e agitou a cena cultural local, mas:

Foi em barzinhos frequentados pela intelectualidade da cidade que


Gilberto Gil entrosou com os intelectuais e artistas da província:
Jomard Muniz de Britto, Teca Calazans, Carlos Fernando, Paulo
Guimarães, o paraibano Carlos Aranha. Através deles, Gil conheceu,
in loco, as manifestações musicais da região: pastoril profano,
maracatu, ciranda, a banda de pífanos de Caruaru. Esta última o
deixou realmente impressionado: “Eles conhecem dissonâncias, fazem
coisas que os Beatles fazem”. [...] Gil contou [...] [que] “Foram
pessoas [referindo-se aos artistas citados acima] que se aproximaram
muito de nós, [...] daquele momento em que se gestava o
tropicalismo”.789

787
LUNA, 2010, p. 162.
788
BRITTO, 1992, p. 65.
789
TELES, José. Do frevo ao manguebeat. São Paulo: Ed. 34, 2000. p. 120.
225

Gil percebeu que essa experiência ampliou as possibilidades “de renovação, de


arejamento de ideias [...] em relação à música popular”. 790
Quando volta para a Bahia,
ele relata que:
[...] teria vontade de juntar esse novo aparato que surge na música
internacional, de utilização de ferramentas novas junto com as coisas
brasileiras, como a Banda de Pífanos de Caruaru. Acho que é uma
coisa tão importante que alguém poderia falar algo que tivesse a
mesma intensidade, que incluísse esse espírito da força brasileira,
destas coisas que estão por aí dormitando pelo interior do Brasil [...]
791
.

A aproximação dos tropicalistas baianos com os pernambucanos resulta em


várias parcerias artísticas, principalmente com a escrita de manifestos, fazendo dessa
conexão o surgimento do “PEBA”, ponte cultural entre os Estados, através do
intercâmbio de influências artísticas e fortalecimento das ideias em torno desse debate
intelectual.
Ao perguntar à Jomard sobre sua relação inicial com a Pernambucália, via
“PEBA”, ele nos revela que:

Eu conheci Glauber... eu tava dando uma palestra sobre cinema e ele


sentou... descobriu que tava tendo essa palestra no curso de cinema,
ele me convidou pra ir pra lá (Salvador). Mas isso foi antes (de
1964)... Eu assisti a gravação do primeiro filme de Glauber, “O Pátio”
(1958), o curta-metragem dele, experimental... [...] foi Glauber Rocha
que primeiro me falou do Tropicalismo, no Rio de Janeiro. Teve uma
época da “dureza”, que nas férias... eu viajava nos meses de julho, de
dezembro, para São Paulo, para o Rio de Janeiro... agora a figura do
Glauber apareceu aqui antes de tudo isso, antes da própria “revolução
de 64”. Ele gostou de mim e me ofereceu pra ficar na casa dele, na
pensão da mãe dele, Dona Lúcia... E depois dessa amizade com o
Glauber, [...] ele anunciou: “Olha tem um grupo na Bahia que você
não conhece que vai fazer uma coisa muito forte”... e depois toda
ligação foi através do Jornal do Commercio, quando eu cito o Celso
Marconi, que era o editor de cultura e ele bateu um dia na minha casa,
porque ele ia entrevistar Caetano e os Mutantes num hotel aqui no
centro da cidade, o “Grande Hotel”. E eu já tinha escrito sobre o
Caetano792 [...] Aí eu me aprontei e nós fomos... Foi o primeiro contato
com Caetano... A gente ia para as Jornadas de Cinema em Salvador,
Caetano estava lá passando férias de verão... temporada de verão... aí
convidava a gente pra almoçar na casa dele... Nas Jornadas era onde
tinha todas as bitolas de super-8 [...].793

790
GIL, apud. TELES, 2000, p. 121.
791
Ibid. id.
792
BRITTO, Jomard Muniz de. Jornal do Commercio. 24/03/68. Da cultura baiana à civilização carioca.
793
Entrevista realizada por Aristides Oliveira, na tarde de 07 de outubro de 2010 na residência de Jomard
Muniz de Britto, às 16h25 em Recife-PE.
226

Além da relação entre Pernambuco e Bahia, Jomard afirma que o Tropicalismo


integrou-se em rede, com os artistas do Poema-Processo, no Rio Grande do Norte,
surgido em 1967. No filme, o Palhaço faz alusão à parceria, na cena em que deita e rola
nos livros, no corredor da Casa da Cultura, ao lembrar ao espectador do “rasga-rasga do
poema-processo”, evento realizado no Rio de Janeiro, em que poetas radicalizam
“rasgando, queimando e xingando os livros de poetas como Carlos Drummond, João
Cabral, Cassiano Ricardo Ferreira Goulart, Vinícius de Moraes [...] e outros em frente o
Teatro Municipal”.794
O Poema-Processo – articulado ao Tropicalismo no Nordeste – provoca uma
série de transformações na arte poética:

Dinamizando as estruturas do poema e colocando o público na


condição de operador/participante [...] o poema/processo tem atingido
uma comunicação efetiva. [...] Existe todo um sistema tradicional e
convencional contra qualquer movimento de vanguarda – mas êste
sistema desaparecerá à medida que as transformações sociais forem
levadas revolucionariamente a efeito. A chamada “geração veterana”
têm mêdo do nôvo, por saber que só através de uma vanguarda
político e cultural é possível mudar as estruturas, que a sustenta,
aplaude-a pelo conformismo e/ou pela aceitação do
subdesenvolvimento social e cultural. Neste sentido, ela quer boicotar
as manifestações de vanguarda por todos os meios disponíveis –
inclusive os oficiais, censurando e policiando a arte, dificultando
publicar autores novos, visando assim a manter-se no poder artístico
por mais algum tempo.795

O contato com outros grupos de vanguarda reforça os laços de união, para se


contrapor aos mandos da cultura oficial, como podemos ver no manifesto realizado no
dia 19 de abril de 1968, entre a turma de João Pessoa, Natal e Recife. A partir da
exposição de Marcos Silva, lançou-se o “1º Manifesto Tropicalista Nordestino”.796
O evento foi aguardado com expectativa e divulgado no Jornal do Commercio:

Um manifesto tropicalista será divulgado hoje, em Olinda, às 21h,


durante a inauguração da exposição do artista natalense Marcos Silva,
na galeria Varanda, sobre arte processo, e segundo os seus lançadores,
visa principalmente quebrar o marasmo cultural e o provincialismo em
que ainda persistem no Recife e em Olinda. [...] No Nordeste, o
tropicalismo ainda é considerado como “brincadeira” de quem não

794
Jornal do Commercio. 18/02/1968. Poesia-Processo em grosso e no varejo: melhor comunicação. IV
Caderno.
795
Jornal do Commercio. 18/02/1968. Poesia-Processo em grosso e no varejo: melhor comunicação. IV
Caderno.
796
TELES, 2000, p. 112.
227

tem o que fazer... ou, no caso dos compositores, “como uma maneira
de ganhar dinheiro, vendendo mais discos”. Entretanto, Jomard,
Aristides [Guimarães] e Celso [Marconi] afirmam que têm
consciência da transitoriedade do movimento, mas que mesmo assim
êle produzirá efeitos imediatos.797

O texto ficou conhecido por “Porque somos e não somos tropicalistas” – lançado
no mesmo ano que o LP “Tropicália ou Panis et Circencis” – expondo como ideias
centrais, a constatação do:

1. [...] marasmo cultural da província. [...] Por fidelidade regionalista?


Por defesa e amor às nossas tradições? 2. Recusemos “o
comprometimento” com nossos antigos professores”. 3. Lamentemos
que os da “nova e novíssima geração” [...] continuem a se valer da
tutela sincretista, luso-tropical [...]. 5. Afirmamos: “Dessacralizando e
corrompendo a esquerda festiva, o tropicalismo investe e arrebenta,
explode e explora os seus adeptos tanto quanto seus atacantes”. 7.
Reconhecemos a transitoriedade (o trânsito e transe) do tropicalismo,
junto ao perigo da massificação, de idolatria. 8. A vanguarda contra a
retaguarda! A loucura contra a burrice! O impacto contra a
mediocridade! [...] A radicalidade contra o comodismo!798

As inquietações explícitas no manifesto relatam a insatisfação desses intelectuais


diante da realidade cultural da cidade, marcada pelo conservadorismo amarrado à
“tutela luso-tropical”, fazendo referência direta à Gilberto Freyre, que domina a cena
local nos jornais, nas conferências e no comportamento da sociedade, influenciando
significativamente a opinião pública pernambucana e a política-cultural brasileira, visto
por muito seguidores como “inquestionável”.
A imagem de Gilberto Freyre – fruto da “fidelidade regionalista”, bem como de
uma trajetória intelectual (exposta na Segunda Entrada) admirada e temida por muitos –
define seu lugar social como “guardião” de uma tradição cultural primordial, intocável e
plena, que deve ser “amada” e incorporada nas práticas dos indivíduos, tomando-a como
base fundamental para que a sociedade compreenda sua gênese, seu “marco zero”
identitário, negando qualquer “novidade” alienígena que deforme nossos traços
brasileiros “ancestrais”.
O que os tropicalistas em Recife pretendem é subverter essa ordem
comportamental, com uma postura radical de “virar as costas” para os antigos mestres

797
Jornal do Commercio. 19/04/68. Ano XLIX. Manifesto tropicalista tentará o marasmo hoje à noite na
Varanda. nº 91.
798
Jornal do Commercio. 20/04/68, Porque somos e não somos tropicalistas. Recife.
228

da cultura brasileira, na busca pela dessacralização das imagens-mito do Brasil, que


“investe e arrebenta, explode e explora os seus adeptos tanto quanto seus atacantes”.
O manifesto é resultado de uma sociedade em rápida transformação, que não
admite presenciar a cultura pernambucano-brasileira sobreviver à penumbra das elites
conservadoras, herdeiras de um passado colonial que sufoca a produção de novas
interpretações sobre o Brasil. Neste sentido, os tropicalistas se arriscam e travam um
confronto entre a loucura explosiva e a burrice provinciana, “o impacto contra a
mediocridade! [...] A radicalidade contra o comodismo!”
Essas polêmicas expostas acima, publicadas no Jornal do Commercio –
articuladas pelo jornalista Celso Marconi – funcionaram como plataforma de debate, ao
divulgar o posicionamento dos tropicalistas na cena cultural em Recife, marcada pelo
conservadorismo que “agarrava-se a seus valores como um senhor feudal a suas
propriedades”.799 Do outro lado da imprensa de grande circulação da época, tínhamos o
Diário de Pernambuco, que causava um silêncio significativo a voz dos tropicalistas, em
virtude de estar “historicamente atrelado às tradições e ao poder”800 oficial.
O manifesto causou incomodo nos grupos tradicionais, principalmente aos
intelectuais vinculados à concepção de cultura brasileira herdada do Regionalismo
freyreano. A repercussão do manifesto foi exposta no mesmo jornal após o lançamento,
expondo ao longo do primeiro semestre de 1968, opiniões diversas sobre o texto. É o
que podemos ver no espaço aberto por Celso Marconi, ao expor que o Tropicalismo não
foi unanimidade entre os artistas recifenses.
Um dia após o lançamento do manifesto, o jornal divulga em nota que:

O grito de guerra dos tropicalistas, que pretendem combater a burrice


com a loucura, lançado ontem em manifesto distribuído em Olinda,
despertou alguns comentários – muitos a favor, uns poucos contra –
entre os que souberam da adoção dêsse movimento na província. [...]
Tudo feito com muita flor, muita garôta de mini-saia, mas, apesar
disso, não conseguiu seduzir o pintor Helenos. Disse êle: “Não gosto
nem da exposição nem do movimento tropicalista”. [...] Benjamim
Santos, diretor de teatro também vê o novo movimento com certa
desconfiança. Para êle, se ao menos a coisa fôsse levada com certa
seriedade poderia ter sua adesão.801

799
TELES, 2000, p. 113.
800
Ibidem, p. 115.
801
Jornal do Commercio. 20 abr. 1968. Tropicalistas iniciam movimento para combater a burrice com a
loucura. Ano XLIX. nº 92. Recife.
229

Entre ataques e elogios sobre a novidade tropicalista, a postura de negação ao


grupo recifense – coordenado por Celso Marconi, Aristides Guimarães e Jomard Muniz
de Britto – é radicalizada por Ricardo Noblat, quando publica na coluna “Opinião”, do
Jornal do Commercio, o artigo “Tropicalismo ou Palhaçada”, uma semana após o
primeiro manifesto escrito na cidade:

O tropicalismo foi lançado na semana passada no Recife. [...] Até um


manifesto foi lançado, preconizando a loucura contra a burrice e
chamando de quadradões todos que se ousarem, ou não entenderem o
movimento. Contudo, quem tiver um pouco de bom senso, verá que
tudo isso é uma palhaçada de um grupo de pessoas que procuram
promoção e noticiário nos jornais, apesar de muitas delas – Jomard
Muniz de Brito e Celso Marconi – já serem estrêlas e não precisarem
de nada disso. [...] e os nossos pseudo-tropicalistas do Nordeste? Que
fazem? Que dizem? Nada. Apenas que a loucura deve combater a
burrice. E organizam um movimento falso, alienado, atraindo dezenas
de jovens que anseiam por promoção. Ou por algo diferente. E nesse
caso êles conseguem. Algo diferente de tudo. Até do tropicalismo.
Que cheira uma rosa – numa imitação hippie – tira retrato em posições
loucas e faz expressões grotescas, numa demonstração patente do
vazio que possui a todos. [...] Depois o movimento passa. Acaba. E só
resta de nôvo o vazio, a falta de objetivos na vida e a vontade de se
afirmar através de loucuras coletivas.802

Jorge Neto complementa os ataques lançados por Noblat, afirmando no mesmo


jornal que o tropicalismo é:

[...] um movimento confuso e contraditório, cuja tônica é a badalação


sem maiores conseqüências, embora seus adeptos [...] admitam com
certo ar de superioridade que são avançados e objetivos. Mas tudo não
passa de simples pretensão, de mais uma arrancada festiva, pois a
verdade é que o Tropicalismo não sabe exatamente o que quer, não diz
exatamente a que veio e mistura o sério e o pitoresco, política com
paisagem e ideologia com frutas. Quer assim atingir o povo, mas essa
possibilidade parece bem remota. Sobretudo porque suas mensagens,
de ordem, teorias, fogem à realidade objetiva, além de serem feitas na
linha do intelectualismo mais pedante. Torna-se dêsse modo artigo de
consumo à medida que versa sobre assuntos que não entende. Nessa
marcha o movimento só consegue atingir uma estreita faixa da
pequena burguesia, que se engaja na política de bar, ali subverte a
ordem do país, derruba o Gôverno e depois vai pra casa dormir.
Dorme, acorda, recomeça novamente, não passa disso [...]. usa-se uma
linguagem simbólica, rebuscada, pedante, cheia de arrodeios, que nem
o povo entende, nem os serviços de segurança até porque os últimos
não têm muito o que se preocupar com parábolas tão indecifráveis e
tão inofensivas. Com isto alguns tiram onda de avançados

802
NOBLAT, Ricardo. Jornal do Commercio. 28 abr. 1968. Recife. Tropicalismo ou Palhaçada? Coluna
Opinião. p. 13.
230

esquerdistas, escondem sua covardia, enquanto outros enriquecem,


fazem sua promoção pessoal e mandam o povo e o País às favas. [...]
É a mediocridade, que de certo não vai ficar, não vai perdurar. Como
não vai durar o tropicalismo, cujo saldo renovador é muito
duvidoso.803

Os comentários negativos em relação à Pernambucália expõem o sentimento de


reprovação e insegurança de uma sociedade conservadora, que vivenciava um processo
de transição nas suas práticas culturais, afetadas pela proliferação dos potenciais
criativos da cultura de massa, ameaçando as estruturas discursivas, imagéticas e
mitológicas do Brasil, vistas anteriormente como algo “imutável”.
Ameaça que não vinha só das palavras lançadas nos manifestos, mas também do
corpo, que desejava escorrer suas pulsões e desejos pelas ruas de Recife e Olinda, como
podemos ver com o grupo teatral “Vivencial Diversiones”, que realizou várias parceiras
com Jomard nos anos 70, filmando com ele cerca de treze exercícios superoitistas, entre
1974 e 1982, bem como outros produtos artísticos.
Rodrigo Dourado afirma que o grupo provocou uma série de mudanças radicais
no circuito teatral do Estado. Surgido em 1974 em Olinda, o Vivencial ganha espaço
por ser “o grupo mais subversivo do tablado pernambucano”804 ao “afrontar a
hegemonia armorial e lançar um brado tropicalista e homossexual do topo da acrópole.
Em verdade, o Diversiones foi o grande responsável pela importação do ideário
tropicalista para a cena pernambucana”, rompendo com os padrões criativos e estéticos
teatrais até então realizados em Recife/Olinda, a partir de uma “deglutição
antropofágica proposta pelos tropicalistas, em um novo referencial artístico”
experimental.
A atuação cênico-audiovisual do Vivencial possibilitou “problematizar a
presença de novas corporalidades e a manifestação de uma estética queer no tablado
teatral de vanguarda de Pernambuco a partir dos anos 1970”, bem como a “passagem do
teatro marginal para a produção de Super-8 no Recife”.805
Entre esses materiais audiovisuais de expressão podem ser vistos nos
happenings, intervenções urbanas, ou seja, os filmes exploram uso do corpo como meio

803
NETO, Jorge. MARCONI, Celso. Jornal do Commercio. 28 abr. 1968. Recife. Duas visões do
Tropicalismo. Ano XLIX. nº 99.
804
DOURADO, Rodrigo. O palco da subversão pernambucana: Vivencial Diversiones e a cena
tropicalista. Disponível em: <http://mascherabodybuilding.blogspot.com/2009/07/dramaturgia-e-
sexualidades-vivencial.html>. Acesso em 25 fev. 2012, às 23h27.
805
CUNHA FILHO, Paulo C. A pesquisa cultural nas margens: universidade, vanguarda, periferia. III
ENECULT, na Faculdade de Comunicação/UFBA, Anais de Encontro. Salvador (BA). s/e. 2007.
231

de questionamento do gênero, para realizar uma “leitura do avesso da cultura


pernambucana, de tudo que se dizia ser do bom caráter local”806 que, segundo Jomard,
tais ações estavam ligadas a “estética tropicalista [que] já foi no auge do Tropicalismo,
não em 1968, mas em 1973”.807
Jomard explora junto com o “Vivencial” a forma como os jovens agenciavam
seu corpo-transbunde-libertário808, para manifestar através de variadas linguagens sua
discordância com as formas dominantes de pensamento cultural da época, marcada pela
tentativa de cerceamento das subjetividades pela censura militar, mostrando ao público
mais recatado que:

O tropicalismo sobreviverá através dos escombros do VIVENCIAL


DIVERSIONES onde nós, artistas de classe média moderna – não os
solitários auto punidos e oficialmente premiáveis, gozamos na
libidinosa encruzilhada da marginália da Ilha do Maruim com a
bronzeada burguesia da nova copacabana nordestina pelo anjo avesso
de Alceu Valença. Eis o triângulo da libido tropicalizante, triângulo de
transe sem traumas, triângulo das paixões de nosso terrível cotidiano,
que o VIVENCIAL DIVERCIONES ainda cultivará como pomar de
todos os jogos frutais, frugais, de prazeres pernalongáveis. (grifos do
autor).809

A presença destes grupos considerados “subversivos” no circuito cultural


provocava o receio de que estes novos suportes e inspirações tropicalistas
descaracterizem a essência tradicional pernambucana. Podemos destacar o comentário
que o cineasta Fernando Spencer fez em relação ao uso das guitarras elétricas no
Nordeste, expondo seu temor pela “novidade”. Para ele, “elas podiam até ser aturadas,
desde que para embalar iê iê iês românticos [...] desde que bem comportadas e sem
questionamentos por trás”.810
Outro exemplo claro dessa reação ao “novo”, está na fundação do Movimento
Armorial, coordenado por Ariano Suassuna, que nos anos 70 busca retomar – apoiado
com recursos do Estado – a valorização da cultura popular, em detrimento do

806
Ibid. id.
807
FERRAZ, Leidson; DOURADO, Rodrigo; JÚNIOR, Wellington. (Orgs). Memórias da cena
pernambucana. Recife: Edição dos Organizadores, 2005. p. 109.
808
CASTELO BRANCO, 2005.
809
BRITTO, 1992.
810
TELES, 2000, p. 117.
232

“internacionalismo” da cultura de massa tropicalista, insinuando que o movimento


“surge entre outras razões, em oposição ao Tropicalismo”.811
Sobre essa questão, Amilcar Bezerra812 afirma que Ariano:
Acusa de traidores os compositores que incluem termos como “Coca-
cola” em suas canções, desanca ícones da cultura pop norte-americana
como Elvis Presley, Michael Jackson e Madonna, e ainda alardeia sua
rejeição a prêmios culturais instituídos por empresas estrangeiras
[...].813

Mesmo com acusações e críticas ao Tropicalismo, exposto nos jornais acima,


bem como a presença influente de Ariano Suassuna e Gilberto Freyre nos outros meios
de comunicação – atuando como formadores de opinião pública “inquestionável” pelos

811
BEZERRA, 2012, tese em andamento, p. 109.
812
“As divergências com relação ao Tropicalismo, entretanto, não se resumem a preferências estéticas. Há
um embate de valores que pode ser flagrado na discussão pública entre Caetano Veloso e Ariano
Suassuna nas páginas da Folha de São Paulo, em 1999. A celeuma teve início quando Suassuna publicou
numa de suas colunas semanais um texto no qual criticava o slogan da revolução estudantil parisiense de
1968, “é proibido proibir”, apropriado na ocasião pelos tropicalistas brasileiros. Rotulando a frase de
leviana e tola, o autor reprova um suposto conteúdo amoral do lema, opondo a ele a constatação de que
Deus existe, e que, portanto – parafraseando personagem de Dostoievsky – nem tudo é permitido. Critica
ainda a posição de Sartre, derivada da constatação inversa de que, se Deus não existe, tudo seria
permitido. Essa posição é, para Suassuna, inadmissível, pois deixaria a humanidade à mercê de uma ética
do prazer individualista, que pairaria acima de quaisquer critérios éticos. Algumas semanas depois,
Caetano Veloso, [...] que havia se apropriado do lema estudantil parisiense em 1968 para compor a
canção intitulada “É proibido proibir”, responderia às assertivas de Suassuna com um longo artigo cujo
título era “Dostoievsky, Ariano e a Pernambucália”. As divergências entre Veloso e Suassuna com
relação à interpretação do mote libertário “É proibido proibir”, bem como as distintas conclusões
derivadas do existencialismo sartreano, são ilustrativas tanto das visões laica e sagrada do mundo, que
respectivamente os opõem, como também da própria concepção de arte para cada um dos autores em
questão. [...] Veloso, que admite também ser ateu, defende a postura de Sartre e o lema de 68,
interpretando-os dentro do contexto das agitações políticas daquela época, como mote voltado para a
subversão de estruturas autoritárias e impulsionador da revolução comportamental em curso. Sendo
assim, tanto o existencialismo quanto o slogan “amoral” “É proibido proibir” não pregariam o caos, mas
deveriam ser compreendidos como expressões de contestação de uma moral autoritária vigente, e das
potencialidades políticas dos indivíduos organizados. A arte seria uma das ferramentas de contestação da
autoridade num sentido existencial, uma forma de transcender padrões culturais instituídos ao lançar um
olhar original, inusitado, sobre o mundo e as relações humanas. Para que desempenhe a contento essa
função, a arte não pode estar presa aos grilhões da moral. Entretanto, Suassuna adota a crença em uma
moral que se sobrepõe à estética e que por sua vez regula a esfera de valor da arte. [...] Em suma, a
separação entre arte e moral não apetece a Ariano Suassuna. Pelo contrário, a arte, para ele, deve estar
sempre submissa a uma espécie de “moral da estética”, em última instância, assentada em fundamentos
divinos. Daí derivam muitas de suas concepções sobre a natureza da arte, inclusive o culto a uma pretensa
“pureza” imanente à arte popular. [...] Para os tropicalistas a modernidade é encarada como vetor
dinâmico a reprocessar o dado tradicional e apontar, necessariamente, em vários aspectos, a sua
superação. [...] A relação do Movimento Armorial com a tradição, contudo, é bem diferente. O teor
sagrado atribuído aos artefatos da cultura tradicional anula as possibilidades de tratamento crítico da
tradição popular. O “peso tradicional”, ou a “autoridade da coisa”, conforme entendidos por Benjamin
(1996 [1936/1937]) não permitem que a obra seja destacada de sua tradição. Sob essa perspectiva,
deveríamos – como brasileiros – tomar ciência do que o Sebastianismo representa para nós não para
superá-lo, mas para nos tornarmos conscientemente aquilo que já somos, mas que até então vínhamos
ignorando. A resposta para o que somos estaria sempre no passado, e os caminhos que no presente e no
futuro conduzem ao afastamento deste passado, nos levariam a uma existência inautêntica”. Conferir:
BEZERRA, Amilcar. Tese em andamento, 2012. p. 101.
813
Ibid. id.
233

seus seguidores – os artistas atuaram à frente de uma cultura que pretendia “sacudir”
com as estruturas arcaicas da sociedade.
Podemos perceber a insistência tropicalista em outro manifesto, com teor mais
radical, chamado “Inventário do nosso Feudalismo Cultural”, também escrito em 1968,
tanto pelos PEBAs,814 como pelos paraibanos e os artistas-processo do Rio Grande do
Norte.
Nesse documento, podemos encontrar uma forte ligação entre o Poema-Processo
e o Tropicalismo, movimentos que estão em constante diálogo, e juntos, escrevem o
manifesto, para compartilhar um amplo repertório de ideias convergentes em relação à
insatisfação desses intelectuais diante do cerceamento sistemático dos espaços e meios
de expressão cultural no Nordeste, atreladas ao domínio estatal, por onde transitam os
“mestres” e “monstros sagrados” da cultura pernambucana, encastelados no Conselho
Estadual de Cultura.
Contra essa situação, o manifesto atua no cenário intelectual pernambucano
enquanto crítica impactante sobre a “realidade brasileira hoje [...]; da instauração de
novos processos criativos, da utilização da ‘cultura de massa’ [...] com a finalidade de
desmascarar e ultrapassar o subdesenvolvimento através da explosão de suas
contradições mais agudas815”.
Insinuando que os intelectuais vinculados à perspectiva tradicional da cultura
brasileira compõem a “tropicanalha”, afirmam que esses se fecham para o novo a partir
de uma:
[...] atitude conservadora e purista em face da cultura e da realidade
brasileira hoje; retaguarda cultural significando alheamento, de tentar
dar respostas passadas aos problemas, revelando o passadismo através
da nostalgia, do donzelismo, do pitoresco, do cartão-postal, da
carência de informação, contribuindo assim para uma perpetuação do
subdesenvolvimento; enxerga com viseiras e preconceitos [...]. Até
quando os representantes da cultura oficial se utilizaram dos cargos
que ocupam com o objetivo de promoção pessoal? [...] Já que nenhum
serviço prestam a coletividade, por que não se “Extinguem” os
Conselhos de Cultura e as Academias de Letras?816

814
PEBA: Aristides Guimarães, Celso Marconi, Jomard Muniz de Britto (da “PE”), Caetano Veloso e
Gilberto Gil (e da “BA”). Entre eles também articularam o manifesto a turma ligada ao Poema Processo
do Rio Grande do Norte, como Moacyr Cirne, Dailor Varela, Falves da Silva, Anchieta Fernandes, Alexis
Fernandes e os paraibanos Marcos Vinícius de Andrade, Carlos Antônio Aranha, Raul Córdula Filho.
815
BRITTO, 1992, p. 81.
816
Ibid. id.
234

Os questionamentos e provocações tropicalistas que reaparecem na memória do


Palhaço, o mobiliza para se libertar da cela e dos surrealismos da repressão, que o
fragilizou na Casa da Cultura. Agora, seu corpo está revigorado pelo impulso projetado
da cela para os corredores do prédio, a partir do exercício crítico retomado por ele no
mosaico de referências que (in)define seu mapa conceitual sobre a cultura brasileira.
O Palhaço reposiciona-se no debate, livre da perseguição dos guardas a serviço
da “segurança nacional” e volta a desobedecer, pelos excessos do grito e do gesto, as
regras de “bom comportamento e aceitação das normas impostas pela engrenagem” 817

totalizadora da brasilidade.
Entre excessos e recuperações, o Palhaço corre pelo labirinto da Casa,
reativando sua matriz crítica, a partir do riso, da zombaria e da ironia à intelectualidade
brasileira, fazendo da paródia e do entrelaçamento de nomes, textos e referências,
mixadas no caldeirão tropicalista, um complexo jogo poético-corporal audiovisual. Seu
trânsito corrói as bases sólidas da cultura oficial, constituindo-se “assim, num dos
instrumentos mais importantes de ruptura com o passado” tradicionalista,818 que
“transforma as inconsistências histórico-culturais em valores folclorizados”.819
O Palhaço busca alternativas para o impasse intelectual que vivencia, sem
prender-se a fechamentos ou re-categorizações dos signos que nos informam
culturalmente, na busca constante pelos abismos brasilíricos, que o lança ao
fragmentário agressivo, “porque ironiza o todo, desapropriado pela operação
parodística”,820 correspondendo “ao esvaziamento da ideologia que mantém os mitos
821
falando, [produzidos historicamente] para [silenciar] o reprimido” e dar voz apenas
às versões monumentais, encobrindo a pluralidade.

4.4.Considerações Finais? Até Quando?


Solto da prisão – que resgatou sua memória dos anos 60 – o Palhaço encontra-se
no alto da Casa da Cultura. Carlos Cordeiro mantém a distância necessária (filma a cena
do térreo) para enquadrar o personagem à contra-luz da janela, que permite o acesso ao
exterior do prédio, registrando uma silhueta distante, que balança a cabeça em tom de
dúvida e incompreensão.

817
BRITTO, 1992, p. 82.
818
FAVARETTO, 1979, p. 83.
819
Ibidem, p. 41.
820
FAVARETTO, 1979, p. 88.
821
Ibidem, p. 84.
235

O rápido zoom out fecha-se em cortina e redireciona a câmera para uma abertura
solar no teto da Casa, descendo lentamente para o corredor em que foi realizada a
performance do Palhaço durante toda a exibição do curta-metragem, em sintonia com os
gritos do mesmo, em ritmo crescente: “Até quando? Até quando? Até quando? Até
quando?A saída?Até Quando?Até Quando? Até Quando? Até Quando?” O filme é
encerrado com a cartela: “Fim (a seu modo)”.
A partir dos exercícios de leitura possíveis nesta pesquisação – atravessada pelo
desejo, priorizando como método de trabalho o Estado de Espírito criativo – foi possível
compreender neste processo de análise, que “O Palhaço Degolado” é um experimento
audiovisual resultante das reflexões intelectuais que marcam a vida pessoal e cultural de
Jomard Muniz de Britto no final da década de 70.
Um desdobramento estético-político construído na fase pós-tropicalista, a fim de
revisar criticamente os discursos que informam as bases oficiais do “Ser” da cultura
brasileira, dispostas no rígido controle estatal de circulação dos conceitos que definem
os “marcos” da brasilidade tradicionalista.
Ou seja, um Brasil organizado para atender os anseios e empoderamentos dos
intelectuais situados nos trópicos, projetando a identidade imaginada dentro de
esquemas tradicionais de aceitação social, “na crença da existência de uma totalidade
ideal que poderia agenciar a superação das diferenças culturais, através de um
procedimento também totalizante, que seria o de gerir a multiplicidade cultural
brasileira [...] naquele momento”.822
É dessa forma que a radicalidade fílmica jomardiana expressa-se, ao negar a
interpretação da história do Brasil presa “numa visão de continuidade do processo
cultural”.823 O Palhaço utiliza o corpo para dessacralizar o conceito de cultura brasileira
– conectada à perspectiva tropicológica-armorial – através do diálogo crítico com esse
material histórico já consagrado, expondo-se em frente824 à maquinaria discursiva, para
problematizar suas “inconsistências nacionais”825 a partir dos estilhaços – fruto das
transformações em trânsito – desterritorializando “os investimentos regrados de uma
“cultura veiculada pelo nacionalismo burguês e de classe média que, frequentemente,
opõe o Brasil ao capitalismo internacional e à indústria cultural”.826

822
CYNTRÃO, 2000, p. 120.
823
Ibidem, p. 120.
824
Ibidem, p. 43.
825
Ibidem, p. 121.
826
FAVARETTO, 1979, p. 89.
236

O espírito tropicalista contido no filme é de que “o único caráter da cultura


brasileira era não ter caráter, sendo, por isso, aberta a várias conexões, podendo
dialogar, inventar [...] não tendo que [se] filiar obrigatoriamente a esta pretensa tradição
lusa, que repunha nosso caráter colonial”.827
“O Palhaço Degolado”, assim como a tropicália, atuou em oposição:

[...] à racionalidade do processo de formação de nossa nacionalidade,


elaborada por Freyre. [...] A imagem tropicalista, ao contrário dos
símbolos freyreanos, [...] expõe o grotesco do país e, ao mesmo
tempo, fala das várias camadas de sensibilidade que se sedimentaram,
ao longo da produção cultural brasileira. [...] O tropicalismo expõe
claramente a relação direta que há entre a reprodução do status quo no
campo da cultura e da estética e a manutenção deste nas relações
sociais de poder. A defesa da tradição tropical não é apenas a defesa
de princípios estéticos ou acadêmicos; é também a defesa da
tradicional forma de organização da sociedade nordestina.828

A repetição da pergunta que encerra o filme (“Até Quando?”) é marcada pela


angústia atravessada por um conjunto de processos históricos vividos no contexto de
cerceamento dos segmentos de esquerda e dos artistas nas suas diversas expressões, que
lutaram pela construção de projetos culturais alternativos ao imposto pelo regime militar
nos anos 70. Essa insistência é caracterizada pelo “esforço de contra-hegemonia política
e cultural”,829 atuando esteticamente a partir do excesso cômico-circense, ao retomar as
memórias de uma época silenciada e sem retorno, rompidas no pós-64.
Jomard desenvolve um exercício estético que nos mostra as brechas, os desvios,
as rupturas, no mapa “coerente” da cultura brasileira, para que possamos entender por
meio de suas intervenções o processo contraditório de transição cultural articulado pela
abertura política “lenta, gradual e progressiva”, desdobrando-se de Castelo Branco a
Ernesto Geisel.
Sua performance posiciona-se enquanto proposta que visa rediscutir – pelo
excesso contido em seus gritos e rodopios – a visão política dos intelectuais que foram
sufocados pela perseguição política, incorporando no seu gesto, um conjunto de
interrogações autocríticas em torno do papel revolucionário de seus contemporâneos
naquela época. O Palhaço deseja romper com o silenciamento pós-golpe, para

827
ALBUQUERQUE JR, Durval Muniz. Tempo, a Fera que Engole Tudo: a visão tropicalista do
Nordeste. In: Nos Destinos da Fronteira: história, espaços e identidade regional. Recife. Bagaço. 2008. p.
165.
828
ALBUQUERQUE JR, 2008, pp. 166-168.
829
RIDENTI, 2000, p. 14.
237

escancarar o oficialismo encastelado nas duas esferas de poder cultural no Nordeste: a


tropicologia freyreana e o armorialismo de Suassuna.
O riso de “O Palhaço Degolado” está ligado no sentido de luta auto-reflexiva
(pois a constatação de degolamento o faz repensar o projeto de povo e ação intelectual
engajada no Brasil), sendo a cicatriz de uma experiência atravessada por uma memória
ferida no tempo, mas:

Apesar de tudo, do exílio, do auto-exílio, das prisões e


desaparecimentos, da censura policial-militar e das auto-censuras, [...]
nosso irracionalismo conseqüente transformou a língua/linguagem
[...] em cultura de resistência. Sem vitimismos nem heroísmos em
busca de cargos públicos ou benesses estatais. Nada de vazio cultural.
Contracultura ou contra a cultura das políticas culturais dominantes,
oficiais, integradoras do “milagre econômico” via TV... e folclores.
(grifos do autor)830.

Jomard continua insistindo, mesmo após as filmagens de “O Palhaço Degolado”,


o sentido de sua pergunta que finaliza a declamação:

Até Quando este país continuará sendo ‘de fraca memória’ [...]. Até
quando os impasses sócio-culturais serão amordaçados pelos
aparelhos repressivos do Estado? Até quando nós, educadores, nos
integraremos nos aparatos metodológicos da mais-repressão? Diálogo
em transe. Diálogo em conflito e contradições.831

Degolar, redegolar, para transdegolar-se das sombras das Casas Grandes. O


Palhaço-Jomard rabisca os protocolos oficiais na busca pelo presente processual
constante, a fim de ampliar os espaços de redemocratização dos signos, pela urgência da
“desnecessidade dos rótulos”.832
Dessa forma, será possível lutar pelo reconhecimento de nossas contradições e a
“confirmação das diferenças”, através das “revoluções moleculares”, fazendo com que a
cultura não se torne “propriedade privada de ninguém. Sem autoritarismos sisudos e
risonhos. Sem argumentos de autoridade (re)passada/presente/futura”.833
A cultura pernambucana seria praticada apenas pelos “poderes culturais
constituídos aos desprevenidos, ingênuos e incautos”, ou também nela habita
“quinhentos mil marginalizados, artistas e escritores independentes, sedentos por um

830
BRITTO, Jomard Muniz de. A Língua dos Três Pppês: poesia, política e pedagogia. In: Atentados
Poéticos. Recife: Edições Bagaço. 2002, p. 197.
831
BRITTO, 1979.
832
BRITTO, Jomard Muniz de. Sempre atuante.
833
BRITTO, 2002. p. 201.
238

lugar ao sol?” 834


Jomard afirma que é hora de assumir “o contrapeso das traições e
tradicionalismos”, para chutar os “fantasmas de todos os regionalismos bem pensantes e
melhor financiados”, portando-se como “poeta-desafiador da navalha feudal”,835 pelo
desejo “por uma vanguarda permanente contra a retaguarda das instituições geradoras e
auto-perpetuadoras de privilégios. Não uma vanguarda heróica nem historicista, mas em
busca permanente porque mutante de novas linguagens para a contemporaneidade”.836
O filme seria a exteriorização de uma angústia atravessada pelo sentimento de
incompletude e cerceamento das práticas culturais vivenciadas por Jomard Muniz de
Britto. Uma tensão que transforma-se em riso ácido, tomando a atmosfera nômade do
circo como recurso de expressão máxima da melancolia e incerteza política, que segue o
rumo dos anos 80. “É uma contribuição minha para acabar com a mistificação do
intelectual, da minha mistificação, da sua mistificação... Eu continuo perguntando: Até
Quando?!” 837

834
BRITTO, Jomard Muniz de. Bricolage: a outra margem da terceira margem: entre o Sena e o
Capibaribe, Abismos 3. In: Nordeste Econômico. Março 1989, p. 47.
835
BRITTO, 1989, p. 47.
836
BRITTO, Jomard Muniz de. O Norte, João Pessoa, 28 Abr. 1993. Porque Somos e não Somos Pós-
Tudo Pós ou Pop-Pós Tropicalistas, p. 2.
837
Entrevista concedida a Aristides Oliveira, na noite de 24-10-2011, na residência de Jomard.
239

O Palhaço Degolado (1977).


Texto: tratamento final.
Cor/som: 9’21’’
Jomard Muniz de Britto e Carlos Cordeiro.

***
Mestre Gilberto Freyre! (3x)
Muito bem situado nos trópicos,
Casa-Grande (2x), alpendre, terraços,
Quarto-e-sala, senzala!
Senzala?
Mestre Gilberto Freyre! Senzala?
Casa-Grande de detenção da cultura.
Muito bem situado nos trópicos.
Tristes trópicos.

Democracia racial, ao seu modo.


Morenidade, brasilidade, a seu modo.
Luso-tropicologia, a seu modo.
Regionalismo ao mesmo tempo modernista
& tradicionalista, a seu modo.
Relações entre política e tecnocracia, a seu modo.
Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais,
Pesquisas sociais, ao seu modo.
Anarquismo construtivo, a seu modo.
Não é Glauber Rocha?
Democracia, relativíssima, a seu modo.

Ai que saudades dos quitutes e dos quindis


preparados pelas sinhazinhas formosas
em seus engenhos
e pelas piedosas freirinhas em seus conventos.
Ai que saudades, porque um povo só se conhece
e se preserva pela sua cozinha...

Onde escavar no Nordeste as mais legítimas


raízes da cultura brasileira?
Raízes da cultura?
Isto é ou não é complexo de intelectuais?
Tanto faz no Sul como no Norte.
Elegia para uma Região. Religião?
Paixão economia, desenvolvimentismo?
Filosofia, ideologia?
O que temos em comum com a nostalgia
dos meninos de engenho?
O que sobrou d’A Bagaceira
Para os ultra-dependentes
filhos de quem? De Kennedy?
Ou do Castelo Malassombrado?
Nordestinados: de todas as assombrações
240

e sertanejos de ficção.
Muita ficção nas pedras e pedradas do Reino.
Nossas vidas secas... encontrar o sonho
da grande cidade? Ou o medo de sempre
Ou a auto-censura?
Dez anos depois, as manhas de liberdade
E as manhas do li-be-ra-lis-mo insistem
Em douras as pílulas
de nossas ilusões televisivas.
A praça é do povo com o céu
é dos poetas populistas?
Dos líricos burocratas?
Dos intelectuais funcionários públicos,
dos épicos nordestinados,
dos sertanejos de ficção?
Diarreia da classe média ou
Derrame do populismo?

Mestre Ariano Suassuna


Mestre Ariano.
Mestre Armorial!

Como é dura a vida do colegial,


começar o anos com lápis de classe
assinalando os brasões e
suas armas armoriais...
E TUDO, pela força dos brasões familiares
e dos poderes oficiais,
TUDO pode transformar-se em armorial...
Céus armoriais.
Astrologia armorial.
Literatura de cordel armorial.
Gravadores armoriais.
Povo, povo, povo armorial.
Ioga armorial.
Empreguismo armorial.
Sexologia armorial.
Subvenções armoriais.
Sobrados & Mocambos, quem diria, armoriais.
Megalomania armorial.
Piruetas armoriais.
Dança Armorial.
Como é mesmo, profa. Flávia Barros,
A reverência armorial.
Heráldicas e Ministérios armoriais.
Onça armorial.
O Príncipe dos príncipes armoriais, Estética, Metafísica...
Capibaribe armorial, Capiberibe, armorial.
Orquestra armorial, não!
Orquestra romançal!
241

É a onça Caetana!
É a onça Caetana?
Ou é a crítica fazendo cobrança?
É a repressão ministerial ou
a esquerda oficial?
Cultura amordaçada.
Abaixo o Imperalismo Cultural

Escrever, viver,
escreviver,
escrevivendo,
cinevivendo:
Lutar com o super 8 é a luta mais vã.

A irmandade dos Campos inaugurou as cercas


da vanguarda:
Joyce, Pound, Oswald de Andrade, Mallarmé,
João Cabral, Bauhaus, Guimarães Rosa,
Sousândrade, Teoria da Informação, Max Bense,
ideogramas, Eisensteins...
O que não seja estrutura verbo-foco-visual
já era... instauração práxis cerceada em nadas.
E todos chegaram primeiro, pioneríssimos,
ao ovo novo da galinha primal;
até o rasga-rasga do poema processo
e a mais recente, internacional
arte correio/ arte postal;
O intelectual que não pronunciar
até a exaustão a palavra ideologia...
O intelectual que não pode viver, morre.
Morre!
Morre!

Onde está o professor Paulo Freire?


Em Genebra? Ou na Guiné-Bissau?
Nas ilhas greco-socráticas ou na ilha do Maruim?
O que restou? O que restou? O que restou? O que restou?
O que restou dos seus círculos de cultura?

TI JO LO
VOTO LIVRE
1964
EXÍLIO
FOME
1968
1978

Até quando? Até quando? Até quando? Até quando?


A saída?
242

ATÉ QUANDO?
ATÉ QUANDO?
ATÉ QUANDO?
ATÉ QUANDO?
243

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262

ANEXOS
263

FRAGMENTOS DE UM DIÁLOGO JOMARDIANO.

Com a participação de:

Ricardo Maia (Cacá) (Doutorando, UFPE-PE).

Recife.

Outubro 2011.
264

Residência de Jomard Muniz de Britto.

12-10-11, às 18h.

JMB: Vamos para o seu “Plano Nacional de Cultura”... (risos).

Aristides: Eu queria entender Jomard, essa sua fase, é... o AI-1 tirou seu
espaço da Universidade, você foi aposentado... e como sua relação com esse
silenciamento... como você se encontrava naquele período?

JMB: Eu tive dois amigos que foram... digamos assim... os meus guias na
Universidade. Aqui em Pernambuco foi Luíz Costa Lima, famoso ensaísta da cultura,
nós somos da mesma geração. Então ele me indicou a uma professora de Filosofia, que
eu tinha terminado o curso de Filosofia, se ela não me aceitaria para ser especialista
temporário não remunerado, no campo da História e da Filosofia da Educação... que a
cadeira era essa. Então eu comecei a dar aulas na Universidade daqui ligado a essa
professora, antes de 64 evidentemente... Antes de Luís Costa Lima, quem foi o meu
“patrono” (a palavra certa é essa) na Universidade, sobretudo da Paraíba foi José Rafael
de Menezes, professor, educador, escritor. Já falecido. Então, ele sugeriu meu nome
para entrar no curso de Filosofia como professor, isso era o governo Jânio Quadros... e
consegui também a casa de um professor, que era também professor de Filosofia, que
morava perto da faculdade para eu ficar hospedado lá. Então eu ia daqui pra João
Pessoa... dei aula durante alguns meses e não recebi dinheiro, porque o contrato não
tinha saído. Num determinado momento, saiu um decreto de Jânio proibindo qualquer
tipo de contratação do serviço público. Então, eu perdi esse tempo, dinheiro... mas de
qualquer modo ficou uma marca... Depois aí o pessoal disse... saiu Jânio Quadros,
mudou tudo... em 64... a minha carteira profissional [...] foi em março de 64... que eu fui
contratado pela Universidade da Paraíba... porque eu disse: “Olha, eu só volto com o
contrato...” Então... voltei pra dar aula na Paraíba com o contrato e já como professor
titular de Filosofia da Universidade Federal da Paraíba. Uma coisa que fica mexendo a
minha cabeça é que eu já estava ligado a Paulo Freire... mas era alguns dias que eu
passava na Paraíba... Mas para contar a história da Paraíba primeiro... as duas histórias
são paralelas... Eu, como trabalhava com Paulo Freire aqui também, nós fomos
submetidos a um interrogatório, um inquérito policial militar, fomos presos e esse
inquérito ainda demorou, a prisão foi uns dezoito dias segundo uma amiga minha, eu
não em lembrava...
265

Sobre isso tem a carta do Glauber Rocha, que eu saí da prisão para assistir
“Deus e o Diabo na Terra do Sol” e a minha amiga Astrogilda de Carvalho Paes de
Andrade foi falar com um “milico” forte... “ele é amigo de Glauber Rocha e precisa
assistir esse filme... e tem uma carta de Glauber falando desse episódio... A prisão foi
em 64. Quando eu fui preso vinha um pessoal lá durante duas semanas ou três... me
visitar... as amigas minhas no Forte das Cinco Pontas. E aqui eu estava... com Paulo
Freire... se desmontou tudo... então o professor chamado Marcelo Santos, já falecido,
ele era professor de História da Arte e disse: “Jomard, você pode, se quiser, vir ensinar,
o que é que você gostaria de ensinar?” Eu disse: “Olha meu caro, dentro da História da
Arte, o que eu tenho mais livros, já li umas coisas sobre arte pré-histórica e sobre arte
moderna. Ele disse: “Ótimo! Você ensina isso...” Eram várias disciplinas de História da
Arte. Então, o interessante é que eu estava respondendo ao inquérito aqui e na Paraíba.
Aposentaram a gente. Com 27 anos. Eu fui aposentado junto com professores
famosíssimos que tinha ligações de esquerda, mas... aposentado aqui, continuei dando
aulas na Paraíba. Oficialmente isso não era possível. Na Paraíba me diziam que meu
contrato não seria retomado. Lá eu dei aula de 64 até o AI-5. Aqui eu estava aposentado
porque trabalhei com Paulo Freire no “Sistema Paulo Freire de Educação de Adultos”.
Então, a interpretação que eu dou é que lá na Paraíba, esse meu amigo, José Rafael de
Menezes era uma figura queridíssima. Paulo Pires, além de professor, era advogado...
Eu era uma espécie de afilhado, protegido dele. Foi ele que me levou pra Paraíba para
fazer palestras quando eu tinha 17 anos de idade. Então, nesse período pós-64, eu na
Paraíba, um professor que me abrigava na casa dele, professor Paulo Pires disse:
“Jomard, tem uma lei agora que o camarada, o professor com cinco anos de trabalho ele
já é efetivo. Eu disse: “Rapaz, mas não tenho”. E ele disse: “Tem! Jomard, antes de vir
pra cá, você dava aula na Escola Normal, no Instituto de Educação, que era de
Pernambuco, é do Estado. Incluía tudo, municipal, estadual e federal. Então eu fui atrás
desse documento e levei, e fiquei como professor efetivo na Paraíba. Eu não era mero
contratado, era efetivado.

Então, 64, 65, 66, 67, 68... Tropicalismo!!! Aqui, o argumento fundamental foi
que eu era da equipe de Paulo Freire... Lá, recebi um comunicado da diretora do centro
dizendo que estava impedido de dar aulas... isso depois do AI-5. Já tinha explodido a
coisa do Tropicalismo... A minha profissão que eu sabia e gostava de fazer era ensinar...
266

não podia ensinar nem aqui, nem na Paraíba... Pagaram meus vencimentos até 73/74,
depositavam meu salário, 74 pararam, eu fiquei abusadíssimo! (risos)

A acusação era o Tropicalismo. Tem um documento sobre isso que é o


“Surrealismo da Repressão”.

Em 80, aí voltei... com a anistia eu volto para as Universidades de Pernambuco e


da Paraíba.

Residência de Jomard Muniz de Britto.

13-10-11, as 20h30.

JMB: 67, 68. Esse binômio... é um marco da explosão do Tropicalismo e que


coincidiu... isso não está registrado nos livros que existem por aí. A única pessoa que já
falou nisso fui eu, os livros famosos sobre o Tropicalismo não falam nisso. Então eu
queria colocar isso, que houve uma coincidência da explosão do Tropicalismo... agora
eu vou usar um jogo de palavras... com a implosão do Poema-Processo. Porque eu estou
usando essas duas palavras? Explosão e Implosão, uma pra fora, outra para dentro,
porque são duas palavras que na época estavam muito circulando por causa do
pensamento do McLuhan, teórico da Comunicação, que dominava bem o campo da
literatura, da publicidade... Então ele usou muito essas duas palavras: Explosão e
Implosão. Eu tô me lembrando agora... Mas vamos usar uma palavra corriqueira, houve
uma coincidência histórica factual entre o surgimento do Poema-Processo, que não foi
só em Natal, no Rio Grande do Norte, ecoando e dialogando com Pernambuco e a
Paraíba, mas também no Rio de Janeiro e em São Paulo, porque tinham pessoas ligadas
ao Rio Grande do Norte que moravam no Rio de Janeiro, em São Paulo... não foi uma
coisa local. E aqui? Como foi que chegou aqui? Não foi através da Universidade. Foi
através do Jornal do Commercio, do editor de cultura Celso Marconi na época. Celso
assina os manifestos tropicalistas em 68 e deu grande espaços, páginas de divulgação
das teorias e experiências visuais do Poema-Processo. Por isso eu acho que nenhuma
abordagem séria do Tropicalismo pode ser feita sem situar isso. Então, vamos dizer... o
Poema-Processo estaria mais ligado ao que se chamou em termos gerais no Brasil de
Neo-Concretismo. Tinha a orientação Concreta, a Arte-Concreta, a Poesia-Concreta e
depois houve uma dissidência entre a Arte Concreta, mais em São Paulo e o Neo-
Concretismo no Rio de Janeiro... e o Poema-Processo se considerava mais ligado ao
Neo-Concretismo. São experimentos de linguagem que poderiam ser verbais e não-
267

verbais onde o leitor era um co-autor desses poemas ou desses textos. Tudo que você
fazia... você dava uma possibilidade de interferência. Então eu vou dar um exemplo de
um poema-processo, que foi um natalense, chamado Dailor Varela no “Opinião 68”. Ele
pesquisou durante alguns meses deste ano de 68, nas revistas, as palavras que saíam
com mais destaque. Então, essas palavras, ele recortava, colava numa cartolina, dezenas
e centenas de palavras eram jogadas numa mesa ou no chão e cada pessoa fazia lá o seu
poema, a sua conjugação de palavras. Então, isso foi Dailor Varela que criou essa
“Opinião 68” e eu usei muito isso nos cursos de Comunicação que eu dei, onde eu
falava muito em McLuhan.

Aristides: Ele influenciou de certa forma...

JMB: Ele influenciou aos que quiseram ser influenciados por ele. Na época
era... Umberto Eco com “Obra Aberta” e McLuham com o livro “O Meio é a
Mensagem”. Décio Pignatari traduziu “Os meios de Comunicação como extensões do
Homem”, é uma teoria sobre todos os meios de comunicação do McLuhan... depois saiu
o livro de Décio chamado “CONTRACOMUNICAÇÃO”... Nesse livro de Décio fala
muito na guerrilha cultural, teoria da guerrilha cultural...

Vocês me levam com essas entrevistas famigeradas a curtir uma coisa que eu
detesto que é o Egolombrismo! Isso que eu faço no momento que ninguém... esse
negócio, que isso não vale coisa nenhuma... isso é uma forma de eu fazer uma guerrilha
cultural...

Na época, o Cinema Novo estava enfrentando Cinema Boca do Lixo, então essa
boca do lixo era uma guerrilha cultural em relação ao Cinema Novo... o Zé Celso
Martinez Corrêa com o Teatro Oficina, então é se contrapondo a outros tipos de teatro,
mais formais, mais canonizados... A guerrilha cultural é uma metáfora.

Aristides: Como se deu o diálogo entre Tropicalismo e Poema-Processo?

JMB: É um diálogo de interrogações. Porque o Poema-Processo, sobretudo em


Natal... já comemorou quarenta anos de existência. Existe, no bom sentido da palavra,
um “culto” ao Poema-Processo em Natal, como sede, como núcleo... tudo que é
experimental, vanguarda, meta-vanguarda, transvanguarda, tudo isso... ligado ao
268

Poema-Processo. Nós aqui não tivemos isso. Eu padeço ainda hoje o título
“Tropicalismo”, isso é uma desgraça. (risos)

Aristides: Porque é uma desgraça?

JMB: É porque você fica como se fosse um “carimbo”...

Aristides: Um cânone...

JMB: É, vira um cânone. Aí eu digo, quando me entrevistaram, isso há muito


tempo... Eu disse: “Eu sou, não um tropicalista, eu era o último dos tropicalistas”. Aí
quando eu disse isso os jornalistas gozavam comigo... Aí Caetano e Gil lançam o disco
deles... “Tropicália 2”. Tá, aí tavam gozando comigo e agora vou ter que aceitar...

Aristides: Já pensou, o título da entrevista... a gente coloca: “O último dos


Tropicalistas?” O que você acha? (risos)

JMB: Não... o último, penúltimo, antepenúltimo isso aí... (risos) é a


irresponsabilidade dos jornalistas... eu digo que o que você está fazendo... eu que passei
por vários inquéritos policiais... isso é um inquérito cultural que é tão terrível (risos)
quanto os inquéritos policiais... que nos inquéritos policiais a gente ficava calado... eles
só faziam esculhambar a gente e a gente não podia falar nada... a gente ouvia só as
coisas...

Quando falavam que eu era o último dos tropicalistas... Não! Eu sou um


sobrevivente da Bossa Nova! Na verdade, quem quiser conhecer o meu trabalho com
honestidade intelectual tem que ir para “Contradições do Homem Brasileiro” (1964) e
“Do Modernismo à Bossa Nova” (1966). Do “Contradições do Homem Brasileiro”...
um livro que pode ser chamado de “ingênuo”, mas era uma tentativa de levar para o
professorado... quando eu fiz esse livro eu estava dentro da equipe de Paulo Freire e
achava que se o momento era o momento de Paulo Freire, da educação crítica,
problematizadora... nós não tínhamos livros de Filosofia da Educação, dentro de uma
269

ótica, de um pensamento brasileiro... eu achava, como professor de Filosofia e História


da Educação que não havia, então eu tentei fazer um ensaio falando de Paulo Freire e
fazendo já uma grande bricolagem onde eu misturo Noel Rosa com Guimarães Rosa,
Clarice Lispector com Vinícius de Moraes... essa palavra que na época eu não usava,
que era bricolagem eu já fazia intuitivamente. Então, quem quiser levar a sério o meu
trabalho, porque eu desconfio que ninguém quer, nem eu mesmo quero... é ler “Do
Modernismo à Bossa Nova”... eu falo muito do modernismo e da consciência da
modernidade...

Eu sou sobrevivente da Bossa Nova, pra mim, a modernidade surgiu na Bossa


Nova e corresponde ao Cinema Novo...

O “Atentados Poéticos” é um ressonância do que é a guerrilha cultural, e por


falar em guerrilha cultural... Não foi eu que aderiu ao Tropicalismo, foi o Tropicalismo
que aderiu a mim... o Tropicalismo dos tempos de Glauber Rocha e Dedé Gadelha,
mulher do Caetano.

Para dissertações, teses e antíteses, Paulo Freire é um objeto de desejo porque dá


dinheiro, como Gilberto Freyre e Ariano Suassuna dão dinheiro. Eu, jamais... dei
dinheiro nem pra mim nem quero dar pra ninguém... Corta a bolsa da CAPES logo!
(risos)

Para o público de um modo geral, Caetano e Gil são como se fossem uma
entidade838... Mas são duas pessoas totalmente diferentes, nas diferenças deles, eles têm
essa grande afinidade humana.

Quando eu aproximo Glauber e Caetano, porque eu acho que eles nunca tiveram
assim... o que se chamaria hoje de um discurso politicamente correto. Eles estão sempre
na contramão das coisas... nas margens... nas dobras... E não é uma atitude para ser
“diferente” não, eles são a diferença. Eles marcavam a diferença.

838
Segundo o livro “Verdade Tropical”, de Caetano Veloso.
270

Aristides: Isso acabou te influenciando para fazer novas conexões...

JMB: Para pensar minha vida! Você está dentro de um país que pensava na
democratização da cultura, nas reformas de base, numa visão otimista do país... e você
estava inserido nesse processo... do desenvolvimentismo, do planejamento, da educação
de base, de tudo mais... vivíamos esse clima, que era a Bossa Nova, o Cinema Novo,
Paulo Freire, da democratização da cultura...

Aristides: Clima de esperança...

JMB: É. Um clima de esperança... de utopia concreta... se acreditava naquele


processo... e veio o Golpe... Aí o que surgiu naturalmente foi uma atitude de resistência
cultural... Isso não tem apelido, foi a nossa vida.

O fato de eu ir para o carnaval da Bahia e encontrar muita gente com as


mensagens críticas da situação... criticando a ditadura.. e aqui então... a gente no
carnaval! Já tinha essa atitude crítica. Tinha um rapaz (cujo apelido era Fred Esteira –
porque ele pintava em esteiras) que fazia roupas pra gente839... “Pode me bater, pode me
prender, mas eu não mudo de opinião”. A mensagem era essa. A música da resistência
cultural.

Então é isso... a consciência de modernidade... esse desejo de lutar por uma


transformação da sociedade em vários aspectos...

Aristides: Eu quero pensar a cultura brasileira a partir de seus trabalhos...

JMB: A minha auto-crítica é porque “O Palhaço Degolado” se transformou num


fetiche e você nesse ponto é muito coerente, academicamente coerente... tem que sair
isso na entrevista. Tá gravando? Quando eu digo que “O Palhaço Degolado”, na minha
visão crítica... eu acho que sou mais crítico do que criador... O problema do “Palhaço

839
Usar no carnaval.
271

Degolado”, ele cumpriu, ele teve um papel dentro da cultura, da dinâmica cultural
brasileira, sobretudo pernambucana, mas brasileira... ele enfoca as personalidades, os
“monstros sagrados”. Isso é uma visão unilateral ou parcial, uma perspectiva restrita,
por isso eu fiz o “Inventário de Um Feudalismo Cultural” (1978).

Aristides: Uma ampliação...

JMB: Porque isso tem o livro e não só livro, mas tem uma visão crítica das
instituições, para mostrar que o problema não era só as personalidades, mas a “ego-
lombra”... de Ariano ou do Gilberto... O problema são das instituições. Pessoas que se
transformaram em instituições. No caso de Gilberto, ele tem uma obra imensa, grande
obra ensaística dele, mas ele se transformou numa instituição... inicialmente a “Joaquim
Nabuco”, que agora tem a “Fundação Gilberto Freyre”. E Ariano é uma instituição
também...

Aristides: A gente percebe no “O Palhaço Degolado” que tem um


atravessamento em relação a questão do “povo”... O que nós somos enquanto
cultura brasileira? E toda sua trajetória vem nessa reflexão dentro do que seria
essa cultura... como essa cultura deve ser produzida, usada, consumida de dentro
dessas fases que eu chamo a grosso modo... que você vive, há uma construção em
torno do povo, principalmente com sua “fase” educacional, com Paulo Freire... de
conscientização popular, de reflexão do povo enquanto consumidor da cultura
brasileira... Eu queria que você falasse um pouco sobre isso, como é que o
Tropicalismo e toda essa sua construção cultural se coloca em relação ao povo
brasileiro.

JMB: Na minha geração havia aquela dicotomia forte entre cultura popular e
cultura erudita... Dentro dessa dicotomia, os movimentos de cultura popular faziam
muita coisa... “vamos valorizar a cultura popular, porque a cultura de elite é alienada”.
No meio dessa coisa, havia a indústria cultural... aí isso desnorteou, o que era dicotomia
agora era virou uma “tricotomia”. Aí é que a coisa ficou mais “embananada”... e dentro
desse processo que você está relembrando, que se viveu na década de 60 com Paulo
Freire, o que se queria era uma conscientização dos dilemas, das contradições, das
272

culturas todas, mas havia uma certa rejeição da cultura de massa. “A cultura de massa
era padronizada, do capitalismo, da dominação, do imperialismo cultural”... Mas
acontece que uma revista da UNE na época, publica Edgar Morin falando na “terceira
cultura”, que era uma valorização da cultura de massa. Eu achei isso interessante porque
não foi uma publicação qualquer, foi uma publicação de um grupo de estudantes, era
uma visão crítica da cultura, da emancipação cultural. Então eu comecei a defender
muito isso... que era como a pessoa não devia temer... aí que entra a palavra
antropofagia nesse sentido de você dialogar com todas as culturas, todos os tipos de
cultura. E a questão do povo... quem o povo? O trabalho com Paulo Freire era com as
camadas populares. Eram os estudantes universitários que iam ser os alfabetizadores.
Que iam fazer os Círculos de Cultura. Os estudantes universitários já estavam dentro de
um processo que era uma formação acadêmica, alienada e desalienada, fazendo a crítica
da alienação.

A gente nunca embarcou numa leitura, numa interpretação de que a


autenticidade cultural estaria nas camadas populares, na cultura popular... Nós nunca
apostamos nisso, porque nossa formação acadêmica já era muito mesclada com a
própria cultura de massa, que era o rádio, o cinema, a televisão...

Eu não me lembro de fazer superoito pensando no povo, nem contra o povo nem
a favor do povo, nem nada disso. Eu achava que minha posição era uma posição crítica
que englobava quem quisesse criticar... A contra-cultura ligada ao Tropicalismo era
justamente contra a cultura oficial, essa cultura oficial que é dominadora e que era
fechada, muito elitista. A gente queria romper com isso, ler os clássicos e ler os
contemporâneos. E a coisa aberta para o debate.

O povo pra mim é esse processo, é o por-vir. É o trânsito. É o transe. É um


processo de transformação... Eu posso me identificar com o povo, mas sem fazer
discurso de exaltação, nós nunca entramos nisso não...

Nas minhas aulas sobre esse assunto eu falava nas concepções do povo... citava
Brecht que dizia: “O que não é popular pode tornar-se popular”. A música mais
refinada, a música mais experimental, clássica ou contemporânea, tudo depende de uma
iniciação no processo de linguagem...
273

O problema de Ariano é que chegou um momento em que ele disse e continua a


dizer que ele “criou” esse Movimento Armorial... é bom que você diga... o Armorial
surgiu depois do Tropicalismo e surgiu como uma posição defensiva.

Não se podia usar a guitarra elétrica, era uma coisa “alienada”... Isso é uma coisa
de uma intolerância, de uma estupidez intelectual que no fundo tem aquela coisa... entra
a homofobia, porque a imagem do Tropicalismo é a imagem do desbunde, das roupas,
das fantasias, da carnavalização, da androgenia... não foi o Tropicalismo que inventou
isso, mas a contra-cultura no jogo das minorias, entra o jogo da negritude, do feminismo
e isso no plano de discussão e vivência e de debate intelectual, era o problema da
contra-cultura. As pessoas mais conservadoras achavam que tudo isso um absurdo. Aí
entra o conservadorismo religioso, católico, familiar, tudo isso.

O problema nosso agora não é discutir as grandes revoluções, o problema agora


são os micro-poderes. Cada um atua em função de micro-poderes que estão sendo
vivenciados...

Essa dicotomia que havia na década de 60 ultrapassou para os anos 70 e 80...


como a entrar uma coisa mais livre da interpretação da cultura, que é o que eu chamo a
Psicanálise Cultural, a psicanálise como extensão cultural, psicanálise extensiva, até
mesmo VIRTUAL, pela internet e continuando nas mesas de bar... e academias.

Da década de 90 pra cá, são leituras muito psicanalíticas, mas muito livres...

É que não bastam às leituras sociológicas, elas são importantes e necessárias,


essa leituras se tornaram antropológicas, abriram mais o leque de interpretações e
chegamos no agenciamento das subjetividades, que isso tudo estava em germe no
projeto da contra-cultura, que é essa coisa da liberação das subjetividades... aí o povo
também é uma criação... por-vir!
274

Jomard Muniz de Britto ou Inquérito Cultural


Doméstico: sob protestos do próprio.

Realizada na noite abafada de 17/10/11, no restaurante “Ilha de Kós”, na Recinfernália.

Aristides: Você é um artista ligado a várias formas de expressão artística.


Diante deste rico diálogo entre cinema, poesia, vídeo, performance, entre outras,
você se considera ligado a que matriz expressiva?

JMB: A minha matriz, vamos dizer assim...autoral... seria pedagógica. Se eu


dou aula desde os 16 anos de idade, então eu me formei, me deformei e me transformei
didaticamente, pedagogicamente. Então, tudo isso que você falou aí tem uma
verbalidade, tem uma verbalização, tem uma encenação também, porque a aula é uma
encenação, um exercício teatral também. A matriz então seria pedagógica. Didático-
pedagógica. Até mesmo como mise-en-abime, leitura dos abismos.

Aristides: Nos anos 70, quando você iniciou suas produções audiovisuais em
super-8, havia alguma divisão estético-política entre os realizadores naquele
período? Como você se encontrava neste debate de produção?

JMB: Isso é chato, porque parece que eu vou ter que julgar as tendências que
haviam, que não havia nem duas nem três. Cada cineasta tinha sua tendência. Agora, o
que se diz, o que já está escrito nos livros é que as tendências dominantes era mais
documental ou ficcional. Então, essa tendência documental era ligada ao cinema
realista, podia ser um realismo mais contemplativo ou um realismo mais crítico. E a
tendência ficcional foi anarco-estética, porque tinha uma posição política que era muito
rebelde e ao mesmo tempo seria... não queria ficar presa à matriz documental.
275

Aristides: Como você se colocava diante da produção documental, já que


você produzia mais filmes experimentais?

JMB: Eu achava que eles trabalhavam muito bem. Filmes que eu não posso
esquecer... “Valente é o Galo” (1974), premiadíssimo... muito bem feito pelo Fernando
Spencer, tem uma música especial que foi feita para o filme. Me lembro também do
documentário de Flávio Rodrigues sobre a Feira de Caruaru... São vários filmes assim...
O Celso Marconi filmou, por exemplo, a chegada do Papa, ele já documenta... tem um
sentido talvez mais crítico, mostrando aquela massificação toda, da romaria do Papa...
Eram filmes que os documentaristas... eles eram muito preocupados com uma
elaboração formal, faziam a “coisa” bem feita, tecnicamente bem feita. Agora eu quero
lembrar também que a gente tá falando em duas linhas, mas existe uma linha
independente, que era de dois amigos chamados Athos/Godoy, que eles, pelo fato de
serem militares, a gente tinha medo deles... e por conta do medo e também preconceito.
Os filmes deles vistos hoje são muito bons porque jogam com... eles já criticavam a
televisão com o “13ª Trabalho”. (...) Hoje em dia não tem mais essa divisão entre
documentarista, anarquista, militarista, civilista, esquerdista.

Aristides: Como você caracteriza a atmosfera política e cultural no Brasil


no período das filmagens de “O Palhaço Degolado” (1977), seu filme mais
conhecido?

JMB: Essa atmosfera está muito bem retratada no filme... qualquer fala,
qualquer discurso verbal é redundante, que todo mundo que tem uma inteligência
mediana... não precisa estar fazendo mestrado, doutorado, entendeu? As pessoas
entendem que é uma sátira aos grandes nomes da cultura pernambucana, não só
pernambucana, mas nordestina-brasileira, que é Gilberto Freyre e Ariano Suassuna. É
um humor corrosivo. E não somente as duas figuras que se impunham mais aqui na
cidade... que eles são pessoas geniais, mas eles usaram o poder cultural muito em
função de projetos “deles”. Eles achavam que não eram só “deles”, mas da “Cultura
Brasileira”. Então, Gilberto Freyre tinha a Tropicologia. Os Oníricos que vão estudar a
Tropicologia. O Ariano tinha o Armorial. Os Oníricos vão estudar o Armorial, não sou
eu que vou falar sobre eles. Agora, a partir deles, eu fazia uma crítica ao imperialismo
276

cultural, aí incluía tudo, desde o Concretismo ao Poema-Correio-Carta-Xerox... tudo


que veio depois entendeu? Era uma coisa que procurava jogar com os estilhaços de
todas as tentativas, venham de onde vier, de uma dominação cultural. “Esse projeto
nosso”, “Esse programa nosso”. “Essa posição nossa é a mais válida, é a mais
verdadeira, a mais necessária para a cultura brasileira”. Seja qual for. Então, nesse
ponto, nós fazemos o “todo” e não salvamos nem o nosso verdadeiro mestre, que foi
Paulo Freire, porque nós fazemos uma pergunta, que tá todo mundo pra ouvir, o Paulo
Freire, onde está? “Na Guiné Bissau ou na Ilha do Maruí?” Ninguém sabe onde ele
está... Ele agora também virou um ídolo, que as pessoas não podem mais criticá-lo. (...)
As pessoas se tornam meio intocáveis. Não, nem a própria pessoa, mas é o que se cria
em torno delas.

Aristides: Depois de viver a experiência nos anos 60 - trabalhando na


equipe Paulo Freire - e a partir do silêncio provocado pelo golpe de 64, o que
mudou nas suas concepções em torno do Brasil após essa ruptura?

JMB: A minha leitura da cultura brasileira está no “Aquarelas do Brasil”


(http://www.youtube.com/watch?v=lqs7CaYjf1E), que é um texto que vem desde... eu
não estava nem ainda anistiado, mas tinha um jornal na Universidade (a Universidade
perdeu muita coisa)... o “Jornal Universitário”, que tinha grandes entrevistas. O José
Carlos, que é um poeta, um pensador, era editor e disse: “Jomard, eu quero uma
entrevista com você”. Aí ele fez as perguntas e eu comecei a falar: “O Brasil não é o
meu país, é meu abismo”. A partir disso aí... fui desenvolvendo... Tá na “Terceira
Aquarela do Brasil” (1982) e no vídeo “Aquarelas do Brasil” (2005), em português e
francês.

Cacá: Quais as contribuições que o Tropicalismo gerou na sua atuação


enquanto crítico cultural?

JMB: A minha trajetória, vamos chamar... o Tropicalismo no sentido muito lato,


eu acho que começa com os artigos de adolescência que você [Aristides] tá levando...
Isso vai ser motivo de grande deboche que vão fazer de mim nos artigos que eu escrevia
277

quando tinha 16/17 anos. Então foi quando eu publiquei o primeiro livro, em 64... O
livro saiu no comecinho de março, teve o lançamento... e no fim de março teve... o
golpe civil-militar de 64. Então, quando eu coloco “Contradições do Homem
Brasileiro”, eu procuro fazer uma interpretação livre, a menos acadêmica possível. Eu
misturo letra de música popular com o Guimarães Rosa... Essa ótica, que já era
precocemente a bricolagem... essa mistura de tudo, pra mim é uma antecipação do
Tropicalismo. Uma coisa que o Tropicalismo foi muito criticado aqui é por causa da
guitarra elétrica, mas a Bossa Nova já usava os instrumentos elétricos e já tinha esse
diálogo com a música americana... Então, eu identifico mais uma afinidade quando eu
comecei “Contradições do Homem Brasileiro” com o espírito de chamar uma atitude
tropicalista. Agora o pessoal ficava muito confuso, porque dizia: “você faz crítica a
Gilberto Freyre e ele não é Tropicalista?”. Eu dizia: “não... Gilberto Freyre é da
Tropicologia”. As pessoas se confundiam, misturavam. A Tropicologia era um
sistema... era uma coisa... um Seminário de Tropicologia! E a gente não fazia nada com
esse sentido formal, era uma coisa mais Vivencial! (...) Ao mesmo tempo, Gilberto
Freyre tem um humor muito incrível. Ele diz que o Tropicalismo, na verdade... Os
primeiros tropicalistas foram os cronistas do século XVI. Então manda os historiadores
lerem esses cronistas (risos) (...) para comparar eles com a “Verdade Tropical” de
Caetano.

Cacá: Como se deu essa afinidade? Como você se identificou assim com...
não sei se a gente pode dizer “Movimento” ou com alguns artistas, com um
pensamento...

JMB: Eu acho que foi justamente dentro da minha vida. Eu escrevia sobre
música popular, escrevi sobre Bossa Nova (“Do Modernismo à Bossa Nova”, 1966).
Como o movimento de 64, surgiram as canções de protesto, eu escrevi e cantava as
canções de protesto. Então... foi um encadeamento de coisas, entendeu? Bossa Nova,
Canções de Protesto... que desaguou no Tropicalismo. Agora o Tropicalismo foi uma
coisa mais audaciosa, mais assim de enfrentamento mesmo, porque havia muita
resistência. As pessoas não queriam encarar... era uma coisa mais do desbunde! No
sentido “negativo”, entendeu? De “farra”... Veja só, eu gosto sempre se lembrar que a
importância para nós do Tropicalismo, quando ele se corporifica através de manifestos...
teve manifesto no Rio de Janeiro, teve manifestos aqui... Houve uma coincidência
cronológica: 67/68 foi o surgimento também no Rio Grande do Norte, do Poema-
278

Processo. Não foi só no Rio Grande do Norte, foi também no Rio de Janeiro. E aqui,
nós tínhamos um editor de cultura, jornalista, Celso Marconi. Ele divulgou no
“Suplemento Cultural” do Jornal do Commercio amplamente o Poema-Processo.
Entrevistas, teorias, análises e os próprios poemas-processo. Pra mim, a leitura que eu
faço, eu prefiro chamar, em vez de chamar Poema-Processo, eu chamo de Arte-
Processo. Como costumo dizer, poema tem o compromisso com a série literária, com a
configuração da literatura e a proposta do Poema-Processo é mais abrangente, com da
própria arte concreta. Além da literatura. Tinha a música concreta, tinha a pintura, tinha
tudo... dança concreta. Então, essa coincidência entre o Poema-Processo, que ainda hoje
é muito cultivado em Natal. Isso foi interessante para o nosso trabalho, voltando à
matriz pedagógica... para minhas aulas... misturar Paulo Freire... essa coisa dos Círculos
de Cultura, que é a grande invenção de Paulo Freire... onde as ideias eram lançadas e
discutidas. A mistura dos Círculos de Cultura com a Arte-Processo, juntamente com a
Neo-Antropofagia, como Caetano chama, O Tropicalismo. A herança que ainda hoje
continua sendo discutida do Oswald de Andrade, no “Manifesto Antropófago”. Quando
Caetano é indagado por Augusto de Campos... ele pede um definição do Tropicalismo e
Caetano diz: “É uma Neo-Antropofagia”. Isso é uma coisa para você não encarar as
culturas isoladas, mas essas misturas culturais, a crítica permanente.

Cacá: Em relação ao filme “O Palhaço Degolado”, percebemos que existe


na obra uma reflexão muito forte em relação à questão dos intelectuais e sua
relação de poder na cultura. Como você se posiciona diante da relação entre
Estado e Cultura no Brasil? Quais mudanças você percebe da época que foi
produzido o filme com os dias de hoje?

JMB: Hoje em dia o meu embate, o que a política cultural oficial do Brasil tá
fazendo? Os pontos de cultura pra mim... invenção da equipe de Gilberto Gil foi a coisa
mais original que surgiu nesse panorama. Fora isso, o problema são os incentivos
culturais... FUNCULTURA. Eu acho que há uma tendência inconsciente dos jovens
artistas (os velhos já estão definidos)... querem ser funcionários públicos! Querem ter a
sua fatia... porque ganha um “incentivo”. “Ahh, nós ganhamos um, vamos ganhar o
segundo, o terceiro, o quarto...” Então, vira todo mundo funcionário público.
Funcionário dos “incentivos”. Hoje em dia, o camarada tem uma ideia: “Vamos fazer
um filme, vamos fazer um livro..., “mas como é que eu vou conseguir grana, através de
279

um incentivo cultural?” Não tem nem o livro, nem filme ainda, nem a ideia, nem o
roteiro.

Cacá: Já se enquadra num certo sentido para conseguir a verba...

JMB: Tem que se enquadrar, tem que saber quais são as ideias dominantes...

Cacá: Entrar no jurado...

JMB: Hoje em dia o que está bom é essa misturação geral... Agora tem os mais
espertos e os menos espertos.

Cacá: Essa “misturação”... você não acha que dá margem a uma dominação
também?

JMB: O multiculturalismo é uma coisa oficial. Aí tem que marcar a diferença.


Se você está num clima que é “multicultural”... tudo é “muticultural”... Então, pra você
marcar um espaço dá um certo trabalho. Teria que incentivar as coletâneas... porque tem
que ter o individual? Os Coletivos estão discutindo muito esse problema de incentivo.
(...) Tem uma autora, a Suely Rolnik, que colocou o problema da “Geopolítica da
Cafetinagem”. (...) Na década de 60/70, quando o camarada tinha uma posição meio
desviante, ou meio alternativa, (...) ele podia ser “cooptado” ao receber um prêmio, um
incentivo cultural... Hoje em dia, parece que a “cooptação” não se fala mais... Falava-se
muito nos artistas que eram “bem de esquerda” e que tiveram que trabalhar na Globo,
que a Globo era cooptação. Hoje em dia é a “Geopolítica da Cafetinagem”, todo mundo
gosta da cafetinagem.

Cacá: O que representa e o que quer ser o Nordeste enquanto potência


intelectual e artística? Como você procura se expressar dentro deste panorama?

JMB: Não sei o que Nordeste quer ser. O Nordeste é um conceito geográfico.
Tem que virar piada... Essa pergunta sugere a piada: “Pernambuco falando para o
mundo!”. Tinha o livro “Nordestinados” (1972), de Marcos Accioly. Enquanto eu lanço
o “Inventário de um Feudalismo Cultural” (1978) – filme – e falo dos “Desnorteados",
já uma posição... A pergunta aí é católica. “O que você espera do Nordeste?” “O que eu
desespero do Nordeste?”
280

Cacá: Qual a herança que o Tropicalismo deixou para a Cultura


Brasileira? O Movimento é memória ou fluxo?

JMB: A melhor palavra para se compreender essa pergunta tendenciosa é


substituir “herança”. Porque “herança” remete a coisas muito solidificadas,
consolidadas... Herança são gilbertianas, suassunianas... Isso é uma errância! (risos) São
as errâncias do Tropicalismo que são justamente as apostas nas diferenças, nos micro-
poderes, procurar fugir das engrenagens deliciosas da cafetinagem. Cafetinagem é uma
coisa linda, é uma fruição! Apostar nas errâncias! No pensamento divergente!

Cacá: E como sobreviver financeiramente?

JMB: Você tem que trabalhar ou ter uma mãe rica! (risos) (...) Eu trabalhei
desde os 16 anos de idade. (...) Eu acho que a pessoa tem que arranjar um emprego. Se
quiser viver de arte... trabalhe muito como artista! Ou então vamos ser todos os “Reis da
Cultura”! (risos)

Cacá: Ter permanecido atuante e residente em Recife pode ter atrapalhado


a sua expansão profissional?

JMB: Claro, mais aí foi uma escolha minha mesmo. Eu não tenho coragem de
enfrentar “aquela coisa” do Rio de Janeiro, São Paulo. Eu prefiro mesmo ficar por aqui.
Não há “bola de cristal” sobre isso... Para ter uma definição: eu sou um azarado. Eu sou
azarado desde o primeiro livro... O primeiro livro que eu escrevi (“Contradições do
Homem Brasileiro”) eu trabalhava com Paulo Freire. O livro foi editado, porque o
camarada sabia que eu trabalhava com ele. Paulo Freire olhou o livro antes, gostou, fez
a revisão, comentava comigo... Então, eu pensava que aquele livro – a gente atuando
com Paulo Freire e minha atuação como professor de História da Educação, de Filosofia
da Educação, o livro sairia, porque é um livro que falava muito no Brasil, na cultura
brasileira. Os outros livros falavam mais na cultura estrangeira... aí veio o golpe
militar... isso é ou não é azar? Desse primeiro livro até o último, que tá encalhado...
Terminemos agora! Chega de ressentimentos! Chega de azar!
281

“O Palhaço Degolado”: Sessão comentada com Jomard Muniz de Britto.


Na noite de 24-10-2011, na residência de JMB.
Início do filme...
JMB: “Outdoors do Recado”, um poema de Wilson Araújo de Souza, o que dá
impressão que é todo o texto, mas não é...

Aristides: Como é que foi feito esse conjunto de desenhos?

JMB: Esse desenho é Guilherme Coelho. (...) Eu boto o diretor de fotografia


(Carlos Cordeiro) como co-autor.

Filme:

Mestre Gilberto Freyre!


Muito bem situado nos trópicos,
Casa-Grande, alpendre, terraços,
Quarto-e-sala, senzala!
Senzala?
Mestre Gilberto Freyre! Senzala?
Casa-Grande de detenção da cultura
Muito bem situado nos trópicos.
Tristes trópicos.

Aristides: E a opção por escolher a estética circense? O jogo do Palhaço...

JMB: É uma homenagem ao teatro medieval. Eu sempre fui muito carnavalesco,


eu gostava de me fantasiar. Então isso não é estética circense. Esse movimento que se
chama de estética circense... o palhaço não é só ligado ao circo, o palhaço faz parte da
carnavalização, é uma coisa do carnaval. A figura do Palhaço... estética circense seria
todo o conjunto filme, mas tá bom, é “O Palhaço Degolado”.
A lenda... a lenda diz... a lenda cultural... que os historiadores precisam saber é
que Gilberto Freyre se fantasiava de palhaço no carnaval... isso, não é falando bem nem
mal, é fato, não fui eu que inventei a fantasia do palhaço. Então Gilberto Freyre
participava aí, também se fantasiou de palhaço, em algum carnaval que ele frequentava
nos clubes populares... Ariano Suassuna, outro grande homenageado no Auto da
Compadecida é o circo! Então eu também sou devedor e estética circense desses
grandes mestres da cultura. O filme pra mim é outra coisa, mas eu estou entendendo, a
282

estética circense tem a sua dívida ao fato de Gilberto Freyre se fantasiar de palhaço, ao
Auto da Compadecida, que é um palhaço. Então eu sou dependente desses grandes
criadores da cultura.

Aristides: Dependente em que sentido?

JMB: Da estética circense. Você que botou isso na minha cabeça! Graças a sua
pergunta, você é que criou essa dependência pra mim, que eu tô esclarecendo... que
comigo é isso... arrasar! Devastar tudo! Você faz a pergunta e eu respondo, entendeu?
Não fui eu que disse nada, você é que provocou e exigiu de mim uma identificação e
uma explicação sobre uma estética circense! Vamos lá! Vamos repetir para confirmar
isso!
Esse plano geral... o bonito é isso... porque isso não é estética circense coisa
nenhuma, isso é uma criação em super 8... pegar essas flores aí na frente e o palhaço
fazendo umas circunvoluções e falando “Casa Grande...” Então esse plano geral é que é
interessante! Vamos lá, para a abertura do filme...

Democracia, relativíssima, a seu modo.


Ai que saudades dos quitutes e dos quindins
preparados pelas sinhazinhas formosas
em seus engenhos
e pelas piedosas freirinhas em seus conventos.
Ai que saudades, porque um povo só se conhece
e se preserva pela sua cozinha...

JMB: Aí eu faço todo... uma mesa grande que é um símbolo de uma coisa
oficial... Ele está passando em revista o ideário de Gilberto Freyre, então vamos ouvir...
isso está na “Terceira Aquarela do Brasil”...

Aristides: Seria uma ironia a estilística de Gilberto Freyre?

JMB: É um sarcasmo cruel a ideologia. Uma revisão ao ideário de Gilberto


Freyre usando uma coisa... um cacoete estilístico dele que era “a seu modo”. É uma
visão satírica...
Nem meu grande amigo Glauber é poupado... porque eu pergunto “Anarquismo
Construtivo ao seu modo, não é Glauber Rocha?” Então vamos entrar nesse
283

Anarquismo Construtivo. Durante a comemoração dos 80 anos de Gilberto Freyre, na


Academia Pernambucana de Letras trouxeram o poeta Mário Chamie para fazer uma
palestra. Eu que já conhecia Mário Chamie... eu dizia o seguinte: que eu ia para uma
comemoração dos 800 anos, que os 80 anos eram tão fortes que eram 800 anos...
Quando Mário Chamie, poeta da Práxis, pensador da Práxis... como é que ele
chamava... “Instauração Práxis”... aí eu resolvi fazer uma pergunta quando liberaram
para o debate. Eu disse: “Poeta Mário Chamie, o que é que você acha do Anarquismo
Construtivo?” Ele disse: “O quê?!, Isso não pode existir! Se é anarquismo, não pode ser
construtivo.” Então, isso nas comemorações dos 80 anos na Academia Pernambucana
de Letras.

Aristides: Era uma expressão que Freyre usava...

JMB: Era... e que Glauber gostava...


Filme:
Onde escavar no Nordeste as mais legítimas
raízes da cultura brasileira?
Raízes da cultura?
Isto é ou não é complexo de intelectuais?
Tanto faz no sul como no norte.
Elegia para uma região. Religião?
Paixão economia, desenvolvimentismo?
Filosofia, ideologia, contra-ideologia?
O que temos em comum com a nostalgia
dos meninos de engenho?
O que sobrou d’A Bagaceira
Para os ultra-dependentes
filhos de quem? De Kennedy?
Ou do Castelo Malassombrado?
Nordestinados: de todas as assombrações
e sertanejos de ficção.
Muita ficção nas pedras e pedradas do Reino.
Nossas vidas secas encontraram o sonho
da grande cidade? Ou o medo de sempre
Ou a auto-censura?
Dez anos depois, as manhas de liberdade
E as manhas do li-be-ra-lis-mo insistem
Em douras as pílulas
de nossas ilusões televisivas
A praça é do povo com o céu
é dos poetas populistas?
Dos líricos burocratas?
Dos intelectuais funcionários públicos,
284

dos épicos nordestinados,


dos sertanejos de ficção?
Diarréia da classe média ou
Derrame do populismo?

JMB: Os temas todos estão sendo discutidos pela cultura brasileira, pelo seu
PNC! Isso aqui não é só Pernambuco nem Gilberto Freyre, isso aqui é o pensamento da
cultura brasileira...
Isso não foi dito na hora, foi gravado depois, na edição.

Aristides: Onde foi sonorizado?

JMB: Na TV Universitária. Agora vai entrar Ariano.


Eu quero lembrar a você, que entre Gilberto Freyre... para não ficar essa coisa
mesquinha, que é o despeito, o ressentimento, do “fracassado”, do “famigerado”, do
“azarado” JMB diante dos grandes ídolos, sucessos internacionais garantidos. Então
entre Gilberto Freyre e Ariano tem aqui uma... entendeu... um discurso contra-
ideológico. Essa quarta cena (exposta anteriormente) é o Brasil todo!
Não tinha roteiro, era tudo criado na hora! Veja bem, para fazer... perceba a
diferença entre um discurso sentado numa mesa como se fosse um seminário de
Tropicologia, uma mesa... depois tem o grande balanço da cultura que é a coisa livre... o
camarada correndo pra lá e pra cá, a câmera procurando seguir... O Carlos Cordeiro
disse que não sabia... Claro, que ele não podia saber, porque eu próprio não sabia! O
meu trabalho era circular. Então veja que muda a estética... a estética que tava parada
antes, aqui ela fica uma estética de movimento. Depois desse reboliço total, o que seria
isso? Seria uma catarse. É um movimento catártico de você querer passar em revista
essa ideologia toda, uma crítica ideológica, uma contra-ideologia.
Eu quero que você veja isso aqui com atenção para mostrar que ao passar de
Gilberto Freyre para Ariano, eu já faço um balanço dos problemas que nós estávamos
vivendo na época, que é a década, não é 77, é a década, que começou tudo isso no
Tropicalismo, por isso que ficou o fetiche do Tropicalismo, é “O Palhaço Degolado”.
Eu tenho filmes muito melhores, mas ficou esse, porque é justamente o porta-voz, é o
pensamento tropicalista, isso é neo-antropofagia. Vamos adiante...
285

Filme:
Mestre Ariano Suassuna
Mestre Ariano
Mestre Armorial!
Como é dura a vida do colegial
começar o anos com lápis de classe
assinalando os brasões e
suas armas armoriais...
E TUDO, pela força dos brasões familiares
e dos poderes oficiais,
TUDO pode transformar-se em armorial...
Céus armoriais
Astrologia armorial
Literatura de cordel armorial
Gravadores armoriais
Povo, povo, povo armorial
Ioga armorial
Empreguismo armorial
Sexologia armorial
Subvenções armoriais
Sobrados & Mocambos, quem diria, armoriais
Megalomania armorial
Piruetas armoriais
Dança Armorial
como é mesmo, profa. Flávia Barros,
a reverência armorial
Heráldicas e Ministérios armoriais
Onça armorial
O Príncipe dos príncipes armoriais, Estética, Metafísica...
Capibaribe armorial, Capiberibe, armorial.
Orquestra armorial, não!
Orquestra romançal!
É a onça Caetana!
É a onça Caetana?
Ou é a crítica fazendo cobrança?
É a repressão ministerial ou
a esquerda oficial?
Cultura amordaçada.
Abaixo o Imperalismo Cultural!

JMB: Eu imitando a voz de Ariano! Essa cena é a megalomania do Armorial.


Ariano, diz na Globo, na fina estampa dele, Ariano Suassuna, que o Armorial continua
nos seus 40 anos atual e atuante. Isso não é autoritarismo da cultura pernambucana não,
isso é a megalomania, é o super poder, é a imaginação transcendental de um intelectual
chamado Ariano Suassuna. Isso é uma coisa realmente cruel que eu faço.
Eu faço a extrapolação, isso que é a sátira, não é só ironia, é uma sátira corrosiva
e ao mesmo tempo transcendental. Tem gente que não teve acesso aos seus
286

conhecimentos, que acham que é um elogio a Ariano... “ah, muito bonito aquilo que
você disse sobre Ariano” (risos). A cultura é isso, a ambiguidade, é a imbecilidade e a
genialidade. (risos)
O totalitarismo da cultura pernambucana não... a cultura pernambucana não
merece isso e por isso o pessoal gostava porque eu tinha coragem de dizer isso... as
pessoas tinham medo do Ariano, de serem perseguidas na universidade.

Aristides: Ele dominava politicamente a cena na época...

JMB: Continua dominando todas cenas do Brasil! Onde ele vai é um sucesso
estrondoso. A Globo... ele continua atual e atuante. Ele não dominava, as pessoas
escolhiam ser dominadas por ele. Ele não quer dominar nada, ele é um gênio. Então as
pessoas que escolhem ser dominadas por ele. A gente fala de maneira metafórica.
Nessa cena, pra você saber dos bastidores... a gente ia fazer a cena já na cela,
mas para abrir a cela foi difícil, tinha que procurar a chave, num sei o quê... aí pra não
ficar esperando, o camarada foi buscar a... então nós improvisamos essa cena que seria
uma cena, digamos, eu queria voltar pra coisa mais crítica que é isso... “É a onça
caetana, é a onça caetana...” Olha a brutalidade das grades...
Filme:
Escrever, viver
escrevivendo
cinevivendo:
Lutar com o super 8 é a luta mais vã.
A irmandade dos Campos inaugurou as cercas
da vanguarda:

Aristides: O que representa pra você esse momento de auto-reflexão?

JMB: É aquele pensamento de Drummond, “lutar com palavras é a luta mais


vã”. Eu retomo isso drummondianamente, que eu sou um drummondiano dizendo que
“lutar com o super-8 é a luta mais vã”. É uma homenagem que estou fazendo a Carlos
Drummond de Andrade. Agora é a cena terrível que você quer ver... os livros todos que
aparecem... oitava cena...
287

Filme:
Joyce, Pound, Oswald de Andrade, Mallarmé,
João Cabral, Bauhaus, Guimarães Rosa,
Sousândrade, Teoria da Informação, Max Bense,
ideogramas, Eisensteins...
o que não seja estrutura verbo-foco-visual
já era... instauração práxis cerceada em nadas.
E todos chegaram primeiro, pioneríssimos,
ao ovo novo da galinha primal;
até o rasga-rasga do poema processo
e a mais recente, internacional
arte correio/ arte postal;
o intelectual que não pronunciar
até a exaustão a palavra ideologia...
o intelectual que não pode viver, morre.

JMB: Os destaques dos livros não foi intencional... Agora eu quero que você
entenda que essa cena faz também, como tem aquela anterior, que é no âmbito do
Brasil, da cultura brasileira, essa aqui é no plano das vanguardas internacionais, não só
nacionais, mas internacionais.
Olha eu jogando os livros no chão! Olha eu jogando os livros no chão pelo amor
de Deus! Eu jogando os livros no chão! Eu comendo os livros! Eu comendo! Comendo!
Comendo! Olha eu comendo! Você não tinha visto isso, nem eu!
Antes nós estávamos falando da mitologia da cultura brasileira, agora é uma
mitologia universal. Mérito também disso, que não é uma coisa provinciana, falando de
Ariano nem de Gilberto Freyre...

Aristides: Uma tendência internacional...

JMB: Colcha de retalhos não, isso é pensamento reflexivo, pensamento


pensante. Para um leigo é uma colcha de retalhos, mas não é não... Isso aqui faz parte do
Plano Piloto da Poesia Concreta. Agora você veja... volta ao problema da megalomania:
“E todos chegaram primeiros... ao ovo da galinha primal...”
O clima na década de 70, como na década de 80 era tudo “aparelhos ideológicos
do Estado”... Então, o intelectual que não pronunciar a palavra ideologia de uma
maneira crítica... Isso é uma referência, você não precisaria nem saber... mas em nome
da morte piauiense (risos)... teve um governador nosso, que no tempo foi um
governador muito famoso, porque ele era um intelectual, escrevia nos jornais, era o
288

Agamenon Magalhães. Uma vez ele criou... ele disse uma frase assim, “quem não pode
viver, morre!” Então isso ficou na cabeça de muita gente e eu boto isso: “o intelectual
que não pode viver, morre”.

Aristides: É uma crítica as vanguardas programadas, a ânsia da


originalidade...

JMB: É. As vanguardas programáticas. Seja Concreta, seja Práxis, seja Arte-


Correio, Arte-Postal, seja Arte-Processo. Na verdade esse filme é um filme-processo.
Essa verborragia dele é justamente porque desmonta essa coisa de que cinema tem que
ser imagem... isso é coisa para o cinema mudo... cinema tem que falar também. E no
caso aí, você pode dizer que é um panfleto, é um panfleto audiovisual de alto nível
intelectual...
Você tem que saber diferenciar... até a proposta de dominação ou de
interferência cultural é preciso estabelecer as diferenças entre uma postura egolatra e
uma postura democratizadora, nós estamos propondo uma democratização da cultura.
Uma crítica permanente. Uma educação permanente. Uma crítica cultural permanente.
Aí deixa de haver dominação. A pessoa escolhe o que quiser.

Aristides: O perigo desses grupos culturais investirem numa potência que


acaba criando um jogo de tensão que não é necessariamente democrática. A busca
pelo pioneirismo, a busca pela megalomania, a busca pela totalização de um grupo,
de um movimento se legitimar na cultura brasileira. Eu tô falando nesse sentido,
no que se torna uma tensão, e não uma democratização.

JMB: Essa tensão é muito válida, é muito necessária, porque tudo é no campo
da ambiguidade, onde você joga com o poder, com os macro-poderes, com os micro-
poderes. Diante dos vários poderes culturais que estão aí, “O Palhaço Degolado”
representa o micro-poder... Estamos aqui tratando de macro-poderes culturais: a
Fundação Joaquim Nabuco, Movimento Armorial atual e atuante, Concretismo, a eterna
vanguarda de Paulo Bruscky... Eu acho que tudo isso deve ser colocado numa dúvida
permanente... O intelectual que não tem o potencial de enfrentar os macros-poderes e os
micros-poderes e fugir dessa megalomania ou desse narcisismo... dessa cosmovisão
totalizante. Eu tenho medo da coisa da totalidade, esse jargão juvenil... eu acho isso
289

perigoso. Isso é uma lição da pós-modernidade. “O Palhaço Degolado”, se você quiser,


ele não é modernista, por isso não é estética circense. A estética circense é para divertir
as pessoas... aplaudirem, rirem, tomarem sustos... a estética circense é diversional.
Essa perspectiva nossa é de crítica permanente e dúvida permanente e vai
culminar agora a cena que eu me identifico mais, que é com Paulo Freire... abre com
Gilberto e fecha com Paulo Freire. Vamos agora ver a cena com Paulo Freire, que a
coisa é dramática...
Filme:
Onde está o prof. Paulo Freire?
Em Genebra? Ou na Guiné-Bissau?
Nas ilhas greco-socráticas ou na ilha do Maruim?
O que restou? O que restou? O que restou? O que restou?
O que restou dos seus círculos de cultura?
TI JO LO
VOTO LIVRE
1964 EXÍLIO
FOME
1968
1978
Até quando? Até quando? Até quando? Até quando?
A saída?
ATÉ QUANDO?
ATÉ QUANDO?
ATÉ QUANDO?
ATÉ QUANDO?

JMB: Veja a importância dessa estética da crueldade no “Palhaço Degolado”.


A última vez na vida que vou assistir esse filme (risos). “Até quando” você vai
me perguntar? (risos) Essa dominação? Essa repressão? Momento final de repressão...
“Diarreia da classe média ou Derrame do populismo?” “O intelectual que não pode
pronunciar a palavra ideologia, morre!” Até Quando?!... É uma contribuição minha para
acabar com a mistificação do intelectual, da minha mistificação, da sua mistificação...
Eu continuo perguntando: Até Quando?!
290

Bate-papo cinematográfico com Carlos Cordeiro.

Casa da Cultura (PE) – 28/10/2011, às 10h.

Aristides: Como você conheceu Jomard? Como vocês iniciaram a parceira


para montagem do filme?

Carlos: Eu conheci Jomard quando a EMPETUR promoveu um curso de cinema


aqui em Pernambuco com umas pessoas que tinham trabalhado em Hollywood chamado
Antônio Rocha. Jomard participou desse curso também e iniciamos a parceria aí. Eu
trabalhava no DER (Departamento de Estradas e Rodagem), tinha uma câmera 16 mm a
minha disposição e tinha uma super-8 também. Então aí começamos a fazer nossos
projetos.

Aristides: Vocês fizeram mais de um filme, além de “O Palhaço Degolado”?

Carlos: Fizemos uns 10 a 12 filmes, inclusive filmei o que chamava de


“experiências lúdicas”, era uma coisa assim que ele falava.

Aristides: E como se deu essa relação? Os filmes foram feitos todos em


super-8? Eram uma opção dele ser em super-8? Como era essa negociação de
filmagem?

Carlos: Superoito era o que havia na época de mais moderno, como não se
podia filmar em 35 mm e nem tão pouco em 16 mm, a solução era super-8 porque a
gente filmava, editava, fazia o que queria, era todo caseiro e eu tinha todo material pra
isso e quanto aos filmes... de repente ele tinha uma ideia eu pegava a câmera e a gente
saía pra gravar, muitas vezes sem roteiro, sem nada determinado, a gente saía e gravava,
seguindo aquela linha de Glauber Rocha: “Uma câmera na mão e uma porção de coisas
na cabeça”.

Aristides: E sobre “O Palhaço Degolado”? Me fala um pouco dele.

Carlos: Jomard tinha esse projeto na cabeça dele há muitos anos, por que ele
tinha algumas discordâncias com vários personagens aqui de Pernambuco. Ele
discordava culturalmente de muita coisa e era uma época de repressão, era uma época
de se ter que se debater pra poder se impor.

Um belo dia ele me falou que tinha um projeto que queria fazer um trabalho na
Casa da Cultura sobre o Palhaço, o palhaço é um personagem que ele criou. Nós saímos
291

de palhaço no carnaval, durante dois anos, eu e ele. A gente acompanhava um grupo de


palhaços chamado “Periquitos do Zumbi” e foi a partir daí que ele desenvolveu fazer
crítica vestido de palhaço.

Aristides: Me fala um pouco do processo de criação na construção do filme.

Carlos: Tudo começou aqui... Nós marcamos um encontro aqui, eu trouxe


equipamento básico, tripé e câmera. E aqui ele começou a fazer aquelas declarações e
eu gravando... Ele fazia as declarações e eu gravava... e ele dizia: “Agora vamos visitar
uma cela”. Na cela ele citava alguma coisa e fazia aquelas declarações dele, aquelas
citações... e eu gravando... Ele subia as escadas e eu subia atrás, ele ficava lá em cima e
eu aqui embaixo, ele lá embaixo e eu aqui em cima... Na verdade, o filme foi feito
depois, na edição, na montagem, porque nós gravávamos aleatoriamente, ninguém revia
coisíssima nenhuma, porque com super-8 não se podia fazer revisão como se faz no
vídeo e não se gravava três, quatro, cinco, vezes não, só gravava uma vez só e acabou.

Aristides: Como foi a edição? Quanto tempo depois da gravação?

Carlos: O filme era revelado no Rio de Janeiro / São Paulo, não havia
revelações aqui, então a gente levava cinco dias. Quando o filme chegou nós sentamos
pra ver... Acho que uns oito dias depois e rapidamente foi feito a decupagem e a gente
editou sem nenhum problema. O som era colocado depois.

Aristides: Como foi a sonorização?

Carlos: A sonorização foi com um amigo nosso chamado Lima. Ele tinha todo o
equipamento de sonorização e nós levamos e fizemos o som lá. Jomard fazia a locução,
a gente gravava a locução dele e depois e colocava no filme, e algumas vezes já gravava
direto no projetor.

Naquela época, não se fazia trucagem nenhuma, porque o super-8 não permitia.
E teve uma cena que foi feita num gabinete aqui na Casa da Cultura, não lembro aonde
foi, num salão grande, que eu pus a câmera no tripé, ele gravou um texto, depois eu
parei a câmera, dei retrocesso no filme, ele saiu e eu voltei a gravar e realizei uma
trucagem, ele “sumiu” durante o filme. Essa foi a primeira experiência que se fez com
trucagem aqui em superpoito.
292

O Palhaço desaparecia por isso, porque a câmera fazia fusão de imagens. Eu


iniciei a fusão, ela contava 32 quadros e ia fechando o diafragma, quando ela parava, ela
mesmo voltava para o início e começava fechando-abrindo, pra mudar de cena, mas a
cena continuava a mesma sem o Palhaço. Então houve o desaparecimento normal por
conta da fusão de imagens.

Aristides: Sobre os movimentos de câmera, havia algum planejamento


prévio...

Carlos: Seguia os impulsos do Palhaço, não sabia o que ele ia fazer, não tinha a
menor ideia do que ele estava fazendo, apenas acompanhava, inclusive teve
movimentos de câmera que hoje não faria de maneira alguma porque são “errados”.
Você não pode mover a câmera mais rápida que o olho humano, porque o filme tem
duas dimensões, a altura e largura, a vista humana tem três. O movimento da câmera
deve ser um terço mais lento que o movimento dos olhos. Mas isso não possível, porque
ele começava a correr e eu acompanhava, e no final das contas era tudo tremido.

Não havia roteiro, então ele me dizia na hora o que ia fazer e na maioria das
vezes até mudava o que tinha dito. Eu conhecia planos e contra-planos de movimento de
câmera porque eu tinha feito um curso. Entretanto, em algumas ocasiões, nada disso
funcionava, porque eu tava gravando com Jomard em plano americano e de repente ele
avançava pra câmera sem que eu esperasse... aí saia do quadro, eu tentava me
movimentar de lado, pra ver se me enquadrava novamente... a técnica era mínima. Os
movimentos básicos, nós fazíamos, mas na maioria das vezes não se obedecia técnica
por conta disso, por conta da agilidade em que ele pensava e modifcava a sua maneira
de se portar.

Aristides: Como vocês tiveram acesso à Casa da Cultura?

Carlos: Não houve autorização de ninguém. Nós chegamos e começamos a


filmar como se fossemos turistas. Inclusive, tem uma cena em que ele é preso, o
Palhaço é preso. Nós aproveitamos dois policiais que faziam a ronda no local,
conversamos com os policiais e eles aceitaram fazer essa cena conosco. De repente, o
Jomard tá incomodando alguns transeuntes e os soldados o “pegam” e o jogam numa
cela. Aí tem um movimento muito interessante... ele entra em desespero e fica enjaulado
293

e fica olhando pra cima e fica tentando se libertar. Essa foi uma das cenas que foi um
improviso, mas autorização pra filmar aqui não houve não.

A filmagem para o filme foi um dia apenas.

Aristides: Você participou do trajeto do filme?

Carlos: Nós participamos do I Festival de Cinema Super-8 do Recife. Ele,


porque o filme na verdade, ele dizia “Um filme de Carlos Cordeiro e Jomard Muniz de
Britto”, por conta da minha parceira, mas aquilo na verdade o filme era dele. Ele é quem
pagava tudo e nós fomos receber o primeiro prêmio do festival. Ele ficou com o prêmio
em dinheiro e eu ganhei um projetor Super-8, que era o prêmio da técnica. Mas depois
ele levou pra Penedo [divisa entre PE/AL], Salvador, mas eu não acompanhava não. Eu
trabalhava no DER, eu era funcionário público e fazia isso nas minhas horas de folga.
Todos os filmes de Jomard foram feitos de fim de semana e dia de folga.

Esse filme participou do I Festival de Cinema Super-8 do Recife, que foi no


teatro... no teatro... no teatro da prefeitura, no Cine Boa Vista... o público enorme... a
casa cheia... o cinema tem capacidade para mil e poucas pessoas... foi aplaudido de pé,
eu fiquei emocionado porque ninguém sabia, tinha a menor ideia, pelo menos eu não
tinha a menor ideia da repercussão que esse filme traria, ela ultrapassou o que eu havia
imaginado. Chegamos a participar de um debate na TVU (TV Univesitária) sobre “O
Palhaço Degolado”, eu, ele, mais alguém, apenas...

A maioria dos textos do “Palhaço Degolado” ele criou muito antes, recitou na
TVU, recitou em palestras, recitou na Fundação Joaquim Nabuco e ainda recita. Ainda
hoje ele cita esse textos...

Aristides: E a trilha?

Carlos: A música foi Jomard e Lima, a música é uma música de circo... Ele
(Jomard) teve a ideia e Lima foi em busca desse material, se não me engano com Hugo
Martins, da TVU. Hugo é que tinha um largo conhecimento sobre trilha sonora e ajudou
nesse processo.
294

Um passeio pela Casa Grande de Detenção jomardiana...

Carlos: Aqui é um plano onde ele está em cima desses corredores suspensos e
eu aqui embaixo, gravando de baixo pra cima e ele correndo declamando e circulando
isso aí. Foi uma das cenas mais difíceis que eu fiz. Não havia elevadores, nada disso
aqui, isso aqui era uma área aberta, sem nenhum impedimento. E ele corria por esses
corredores, entrava nas celas, mexia com o povo espontaneamente, isso era uma coisa
que ele fazia assim de improviso. Inclusive a gente não fazia still nem fazia fotografia
de cena, as fotografias foram feitas depois, ele mesmo providenciou as fotos...

Corredores em que o Palhaço circulou durante as filmagens.

Aristides: Caminhando por aqui, quais as recordações interessantes que


você pode nos contar?

Carlos: Uma das recordações é quando ele começa a... ele espalhou um porção
de livros no chão e começou a declamar e a cair em cima dos livros e mexer como se
tivesse tentado se libertar daquilo, daquela coisa ou tentando atacar os livros de alguma
forma. E isso acontecia assim, de repente ele resolvia fazer e era improviso, ninguém
pensava em nada... Os livros foram exatamente aqui nesse corredor.

Aristides: Aqui que é o mesmo corredor da cela né?

Carlos: Exatamente.

Aristides: Os livros? Ele que trouxe?

Carlos: Sim, ele chegava com uma bagagem de tudo que ia precisar.
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Aristides: Essa cela, [referente à cena da prisão do Palhaço] vocês tiveram


acesso livre?

Carlos: Ela sempre foi aberta. Tava aberta à disposição da população. Hoje, não
sei por que está fechada, mas ela sempre foi aberta. Inclusive havia inscrições que hoje
não se vê mais, umas coisas muito interessantes. Essa cela foi uma das cenas mais
significativas, porque ele tava se mexendo ali embaixo, “acocorado”, andando pra lá e
pra cá e de repente ele se levanta, quando eu levanto a câmera, pego um contra-luz na
janela, escurece tudo, como se ele tivesse entrado em pânico. A luz entrou na cela e o
diafragma fechou imediatamente, como se tivesse feito um escurecimento, um fade.
Naquela ocasião não se fazia nada disso...

Cela que Jomard gravou com Carlos Cordeiro atualmente.

Carlos: Ele ficou ali em cima, tinha um cano de ferro, ele segurava rodava e
falava... Não existia esse mangue, ele era muito menor. Então, toda essa parte do Recife
aparecia bem num plano só, numa panorâmica em torno de um eixo. Ele ficou girando e
eu também. Às vezes eu ficava parado e ele girava, às vezes eu girava e ele ficava
parado. Ele declamava e ficava falando de Ariano Suassuna... foi exatamente aqui, mas
parece que tá fechado...
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Palhaço no alto da torre da Casa da Cultura. À direita, o ponto de vista do Palhaço.

Aristides: Era uma aventura fazer cinema aqui em Pernambuco...


Carlos: Era... pelas dificuldades que a gente tinha por conta de produção,
ninguém tinha dinheiro pra nada... a edição era nossa mesmo, a montagem e a
sonorização também... tudo em casa... Alguns filmes já vinham com trilha magnética,
que se gravava na câmera, outros a gente aplicava a trilha magnética e gravava nela. Eu
tinha uma máquina para aplicar trilha magnética. “O Palhaço Degolado” foi um super-8
sem trilha magnética, alguns rolos tinha trilha, quando a gente gravou ao vivo alguma
coisa, mas a maioria era sem trilha.
Aristides: Quantos rolos você usou no “Palhaço Degolado”?
Carlos: Um rolo tinha três minutos, eu tenho impressão que a gente usou dez,
doze rolos, não lembro bem não, faz muito tempo... se você imaginar que perdeu-se
muito pouco, devemos ter gastos uns doze, treze cartuchos de superoito.
E uma cena forte é essa, que ele está tentando entrar na Casa da Cultura... ele
fica aqui nesse portão batendo e fala na cultura de Pernambuco, aí fala nos poderes, ele
fala na revolta... textos de protesto.

Portão que o Palhaço grita diante dos imperialismos culturais.


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Carlos: O último trabalho que nós fizemos chama-se “Arrecife do Desejo”, foi
em vídeo, tem uns quarenta e tantos minutos... é um passeio melancólico pelo Recife
onde ele aborda os problemas da cidade, e isso foi feito no carnaval, levamos mais de
um mês filmando na praça do Palácio do Governo, atrás do Galo e durante o Galo,
entrevista algumas pessoas durante o Galo...

Eu tenho um que fiz com restos de filme dele que se chama “Recinfernália”...
todo material que sobrava das filmagens eu guardava. Um belo dia, eu saí juntando e fiz
um filme, o Recife marginal... e começava com Gilberto Freyre entrando no Cinema
Moderno para assistir “Casa Grande & Senzala” e terminava ele saindo do cinema.

Aristides: “O Palhaço Degolado” teve censura?

Carlos: Levamos o filme à censura, na ocasião o censor era um amigo nosso...


amigo, respeitando-se os poderes. Levamos “O Palhaço”, apresentamos lá na polícia
federal, eu e Jomard e foi liberado. Antes do lançamento. Isso era quando a gente ia
apresentar no festival, nos festivais que acontecia por aqui... tinha duas pessoas que
tinha o cinema em casa, que tinha uma salas de exibição, aí fazia e tinha os cine-clubes.
Antes disso teve que ir à censura... deu uma olhada, não entendeu nada e deixou
passar... Afinal, os protestos eram culturais, não se falava de governo...

Aristides: Era um jogo poético que os censores não entendiam.

Carlos: Não. Absolutamente.

Aristides: Vocês assistiram junto com o censor? Houve algum comentário?

Carlos: Eles riam. Às vezes perguntavam alguma coisa e Jomard respondia


dentro daquela filosofia dele. Mas foi uma sessão normalíssima, sem nenhum impacto.
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...hoje navega pela lembrança de um amor que não é mais seu.


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