Povos de Terreiros - Inventário Ceará.
Povos de Terreiros - Inventário Ceará.
Povos de Terreiros - Inventário Ceará.
ALAGBÀ E O INVENTÁRIO.................................................................................................... 11
ANÁLISES DE CAMPO..........................................................................................................43
(In)Segurança Alimentar e Nutricional dos terreiros do Ceará - Babá Prof. Patrício Carneiro .......... 44
NOTAS DE CAMPO - Weverton Crispim ............................................................................. 72
Trabalho, Economia, Produtividade dos Povos de terreiros do Ceará - Babá Prof. Linconly Jesus ......... 74
NOTAS DE CAMPO - Gabriel Freitas.................................................................................... 90
Nislene Lopes......................................................................................91
Retrato dos povos de terreiro do Ceará – dialogando com as identidades étnica e de gênero,
escolaridade e faixa etária cearenses - Profa. Sílvia Santos.....................................................92
NOTAS DE CAMPO - Yaskara Rodrigues............................................................................... 115
Segmentos tradicionais, culturais e/ou religiosos - Porf. Leonardo Oliveira de Almeida ......... 117
ENTREVISTA - Fluxo e refluxo na Umbanda Cearense - com Professor Dr. Ismael Pordeus
Júnior por Ogan Leno Farias ................................................................................................. 145
O
Inventário dos Povos e Comunidades Tradicionais de Matrizes Africanas
do Ceará, realizado pela Associação Afro-brasileira de Cultura Alagbà
e, em sequência, a implantação de Projetos Produtivos nas comunida-
des-terreiro, ressaltam a trajetória de 100 anos da Secretaria de Desen-
volvimento Agrário (SDA) no Ceará.
Alguns pontos merecem ser destacados no tocante a este Inventário, ten-
do como marco importante o diálogo entre o Governador Camilo Santana e o
Coletivo Cultural de Matriz Africana Ibilé.
Camilo, foi o primeiro Secretário da SDA que recomendou atenção aos
Povos e Comunidades Tradicionais (PCTs). Até então não vistos no contexto
da Agricultura Familiar e, notadamente, com menor atenção para os Povos de
Terreiro e os Ranchos Ciganos, uma vez que, mesmo com pouco acesso às po-
líticas públicas, ainda, então, os demais PCTs estavam presentes no documen-
to 7 Cearás. E assim foi feito em sua gestão e nas seguintes, com a SDA tendo
ajustada sua estrutura organizacional constando nela uma Coordenadoria com
essa missão: a Coordenadoria de Desenvolvimento dos Assentamentos e Re-
assentamento (Codea). Importa lembrar que também outras instâncias da SDA
foram animadas para tanto desde 2007 até o presente.
Já como Governador, Camilo recebeu representação de Terreiros, fato
histórico no Ceará, a partir de demanda de lideranças de Terreiro e, mobiliza-
ção, do Coletivo Ibilé, tendo o carinho, como sabemos, de Eudoro Santana,
comprometido que é com os (as) Agricultores (as) Familiares-Camponeses
(as). Nessa oportunidade, o Governador recomendou às Secretarias Estadu-
9
ais que estavam em tal audiência, atenderem a pontos da pauta apresen-
tados e, aqui se destaca, a autorização do primeiro Monitoramento de
Ações e Projetos Prioritários (MAPP) na gestão do Ceará, específico para
Povos de Terreiro.
Tal MAPP, que propiciou este Inventário, concretizou a licitação e mar-
cou a gestão pública no Ceará pelo interesse direto no tema. Tenho certeza,
que este Inventário apresenta uma linha de base para atuação, não somente
da SDA, mas em parte grande de todo o Governo estadual do Ceará. Para a
SDA, demonstra a presença e as necessidades dos Povos de Terreiro Rurais,
estejam eles no campo ou na cidade e, ainda, têm potencialidades para o
etnodesenvolvimento das comunidades inventariadas no contexto do De-
senvolvimento Rural do Ceará.
AXÉ !
10
11
■ Inventário dos Povos de Terreiro do Ceará ■
ALAGBÀ e o Inventário
ALAGBÀ e o Inventário
N
ão se pode pensar em políticas públicas dentro de uma caixinha branca e
enigmática, uma política voltada para padrões que divergem na realida-
de de uma diversidade proeminente da cultura de povos que constituem
nosso país. É preciso desprender-se da proposta de dialética eurocêntrica
que realmente não deu certo no Brasil, dito e visto as desigualdades que enfren-
tamos para se abrir caminho dentro das pluralidades das falas, das culturas, dos
saberes e, sobretudo, das possibilidades de desenvolvimento e etnodesenvolvi-
mento. Isso nada mais é do que a garantia do direito à diferença e à existência,
- na abertura para um pensamento plural e diverso - na diversidade.
O Inventário dos Povos e Comunidade de Matrizes Africanas do Ceará, surge
para apresentar o frágil acesso a essas políticas públicas, não é uma ideia recente.
Ela nasce em 2012, espelhada nas iniciativas: Mapeamento dos Terreiros de Sal-
vador1, em 2007-2008; Inventário dos Terreiros do Entorno do Distrito Federal e
entorno (1º etapa) em 20092 Mapeamento das Casas de Religiões de Matriz Afri-
cana do Rio de Janeiro3, em 2008; Mapeando o Axé4 – Pesquisa Socioeconômica
e Cultural das Comunidades Tradicionais de Terreiro nas regiões metropolitanas e
capitais de Belo Horizonte, Recife, Belém, e Porto Alegre Entre 2010 e 2011 (mem-
1 SALVADOR. Terreiros. 2007. Mapeamento dos Terreiros de Salvador. Disponível em: http://www.terreiros.
ceao.ufba.br/ Acesso em jan de 2022.
2 http://portal.iphan.gov.br/uploads/publicacao/inventario_dos_terreiros_do_df_e_entorno.pdf
3 BRASIL. Mapeamento das redes dos povos e comunidades de matriz africana e de terreiros. Brasília: Mi-
nistério dos Direitos Humanos, 2018. Disponível em: https://www.gov.br/mdh/pt-br/centrais-de-conteudo/
consultorias/seppir/mapeamento-das-redes-dos-povos-e-comunidades-de-matriz-africana-e-de-terreiros
Acesso em: jan de 2022.
4 https://www.mapeandoaxe.org.br/cd/paginas/inicio.htm
12
■ Inventário dos Povos de Terreiro do Ceará ■
bros de nosso projeto fizeram parte), Mapeamento dos Terreiros de João Pessoa5,
em 2011. Mapeamento dos terreiros do distrito Federal em 20186.
A busca, no estado do Ceará, pela garantia dessas políticas públicas não é um
caminho traçado a passos curtos e sem luta. Não foi um caminho rápido, efêmero,
momentâneo. Foi sim o resultado do legado deixado por nossos antepassados e
que temos a obrigação de louvar e reverenciar, além de dar continuidade a essa
luta. Batalhas travadas contra o racismo que se fortalece em face do racismo re-
ligioso, negam nossa existência sociocultural e econômica como Povos e Comu-
nidades de Matrizes Africanas, e gera, até os dias atuais, violências que têm sido
justificadas no preconceito contra nossas tradições.
A proposta emergiu de um debate sobre de reconhecimento do legado afro-ce-
arense, entre Emmanuel Bastos, doutorando em Antropologia, que nesse período
cursava mestrado em Pernambuco e o Ogan Leno Farias, que participava de uma
mesa de debates no Museu do Ceará, pois ocupava a então Coordenação Estadual
da Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde (Renafro). Prepara-se a pro-
posta em formato de projeto, a princípio batizado de Mapeamento dos Terreiros de
Fortaleza e Região Metropolitana e fomos em busca de apoio governamental.
Contamos com a ajuda da ilustre diretora do Museu do Ceará à época, Dra.
Cristina Rodrigues Holanda que, além de orientar na escrita do Projeto, abriu o di-
álogo com o então Secretário de Cultura do Ceará, Professor Francisco Auto Filho.
Ele acolheu atentamente as informações, mas não houve êxito em nossa caminha-
da à época. A posteriori conseguimos também dialogar com outros Secretários
de Cultura do Estado, como Guilherme Sampaio e Fabiano Piúba pois, no biênio
2015-2017, o Ogan Leno Farias compôs o Conselho Estadual de Política Cultural
(CEPC), nas gestões dos Secretários, ocupando o assento do Segmento Culturas
Afrobrasileiras. Com isso avançamos em políticas culturais para as matrizes africa-
nas, mas infelizmente, estes Secretários não nos escutaram quanto a nosso projeto.
Naquela altura, não conseguimos implementar o projeto.
5 JOÃO PESSOA. Cadterreiros. Mapeamento dos terreiros de João Pessoa. 2012. Disponível em: https://issuu.
com/ancestralidade/docs/mapeamento_dos_terreiros_de_jo__o_p_66db7c72bfbc12 Acesso em: jan de 2022.
6 https://www.palmares.gov.br/wp-content/uploads/2018/04/rel-tec-mapeamento-terreiros-df-1a-eta-
pa-2018.pdf acesso em janeiro de2022
13
A estratégia de ocupação de espaços de diálogo com o governo continuou.
Ingressamos então em vários Conselhos como o Conselho Estadual de Defesa
dos Direitos Humanos (CEDDH), o Conselho Estadual de Segurança Alimentar e
Nutricional do Ceará (Consea) e o Conselho Estadual de Promoção da Igualda-
de Racial (Coepir). Este último, em duas gestões, de 2016 e 2018. Nessas duas
gestões, Ogan Leno Farias ocupa assento e começa a abrir o diálogo sobre et-
nodesenvolvimento dos Povos e Comunidades Tradicionais de Matrizes Africanas
em nosso Estado, embasado no Decreto nº 6.040/20077, no Plano Nacional de
Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz
Africana8 e na lei federal de agricultura familiar, n° 11.326, de julho de 2006. Seu
discurso trouxe pertencimento herdado dos ancestrais e antepassados, geradores
de nossas comunidades no Brasil. As discussões inovadoras para a pauta de po-
vos e comunidades tradicionais de matrizes africanas no Ceará, recebeu atenção
da então Coordenadora Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial
(Ceppir), Dra. Zelma Madeira e do membro do colegiado, representante da da
Secretaria de Desenvolvimento Agrário (SDA), Dr. José Lima Castro Junior, Coor-
denador do Desenvolvimento dos Assentamentos e Reassentamentos (Codea).
Castro Júnior, em conversas sobre políticas públicas com outros povos tra-
dicionais, acolheu em sua Coordenadoria nossas demandas. O resultado deste
avanço está na referência ao Decreto nº 34.312, de 20 de outubro de 20219 em
seu Art. 33, versa sobre a competência de trabalho com um Núcleo dos Povos
Originários e Comunidades Tradicionais, ao qual compete, dentre outras:
7 BRASIL. Decreto n° 6.040, de 07 de fevereiro de 2007. Institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sus-
tentável dos Povos e Comunidades Tradicionais. Brasília: Presidência da República, 2007. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/decreto/d6040.htm Acesso em: janeiro de 2022.
8 BRASIL. Plano Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz
Africana. 1ª ed. Brasília: Presidência da República, Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial
(Seppir), 2013. Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/plano_nacional_desen_
sustentavel_povos_comunidades_trad_matriz_africana.pdf Acesso em: janeiro de 2022.
9 CEARÁ. Decreto nº34.312, de 20 de outubro de 2021. Altera a estrutura organizacional e aprova o regula-
mento da Secretaria do Desenvolvimento Agrário (SDA). Diário Oficial do Estado. Série 3, Fortaleza, CE,
ano 13, n. 240, p. 01-15, 22 out. 2021. Disponível em: http://imagens.seplag.ce.gov.br/PDF/20211022/
do20211022p01.pdf Acesso em: jan. 2022.
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■ Inventário dos Povos de Terreiro do Ceará ■
reiro, ciganos e outros contemplados pelo Decreto Federal 6040/2007);
II. articular com instituições socioculturais que tratam das questões re-
lacionadas a gênero, geração, raça e etnia para inserção de atividades
produtivas geradoras de trabalho e renda e de elevação da autoestima;
III. identificar e sistematizar as demandas de capacitação nas comuni-
dades originárias e comunidades tradicionais e posteriormente encami-
nhar e interagir com os órgãos responsáveis pela execução das ativida-
des de formação; (CEARÁ, 2021)
10 O Coletivo Cultural de Matrizes Africanas Ibilé é um grupo composto e plural, advindo de todas as etnias
africanas remanescentes e de construção afro-brasileira, aqui chamados de Povos e Comunidades Tradicionais
de Terreiro (Matrizes Africanas e Afro-brasileiras) no Estado do Ceará. Esse Coletivo nasce da necessidade de
voz em relação às demandas de uma minoria, presente em todos os locais de nosso Estado. Constituído no
dia 22 de dezembro de 2015, tem como “guarda-chuva” nacional a parceria irmanada da Associação Cultural
de Preservação do Patrimônio Bantu (ACBANTU). No Coletivo Ibilé, construímos um espaço para diálogo
de nossos Povos como um todo, destes com eles mesmos e, assim, fomentamos propostas de políticas (não
partidárias) sociais, públicas e de reparação para esse segmento que, por vezes, vem sendo vilipendiado de
seu direito de existir em sua plenitude, e comumente sofre o famigerado racismo religioso, por falta de um
entendimento de nossas práticas culturais e de nossa ancestralidade por parte da sociedade cearense. A nossa
Cultura está impregnada e é construtora da identidade do cearense e, por vezes, é diluída e ou disfarçada no
cotidiano do povo. Hoje estamos em 30 municípios do estado do Ceará, e nos reunimos ordinariamente uma
vez por ano para planejarmos nossas ações e garantirmos fala para tod@s que venham a contribuir com/na
luta por melhorias na qualidade de vida, no respeito e na desconstrução de paradigmas em relação ao Povo
de Terreiro no Brasil. A partir deste planejamento, ações são geradas, “escurecimentos” (termo alternativo a
esclarecimento por entendermos este como racista) acerca de nossa cultura e práticas da nossa cultura vivida
e preservada nas Comunidades Tradicionais de Matrizes Africanas e Afro-brasileiras do nosso querido Ceará.
Mais informações em: https://mapacultural.fortaleza.ce.gov.br/agente/22010/ Acesso em: jan 2022.
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tantes para os Povos de Terreiro do Ceará. O Governador Camilo Santana e seu
secretariado nos escutou e nos ouviu. Foram construídas várias agendas como o
Prêmio Afro de Cultura, editais com recorte específico para os PCTMAs. E o mais
importante, aprovou os MAAPs da SDA relacionados ao nosso povo, inclusive
entendendo que a demanda seria maior que o solicitado.
Em 2018, inicia-se o processo de garantir o que foi firmado com o Governa-
dor Camilo Santana. A SDA inicia o processo de construção do edital para o que
seria chamado de Inventário dos Povos e Comunidades Tradicionais de Matrizes
Africanas do Ceará, pois, desta forma, o objetivo era produzir e dar visibilidade
aos dados socioeconômicos e culturais dessa população a fim de garantir a imple-
mentação de políticas públicas nas 14 Macrorregiões do Estado.
Em 18 de setembro de 2018 é lançado o edital para a contratação de enti-
dades privadas sem fins lucrativos para prestação de serviços de elaboração de
inventários de terreiros de matriz africana no Ceará11, um processo complicado,
pois a conjuntura de forças sociopolíticas de atores do campo afro-cearense ne-
cessitava se organizar a fim de unir-se e efetivar uma ação que demorou quase
uma década para se concretizar. Propostas esdrúxulas acerca de como deveria ser
feito o certame surgiram, inclusive a de diluir e dividir a notação do recurso para
movimentos e entidades sem a necessidade de edital. Tais propostas não foram
acatadas, tendo em vista a responsabilidade do Estado e de quem deveria, por
meio de chamamento público, executar o certame. Por fim, a Associação Afro-
-brasileira de Cultura ALAGBÀ foi selecionada e assinou o Convênio com a SDA, à
época do Secretário Francisco de Assis Diniz. Vários fatores se interpuseram antes
do início do projeto: a morosidade dos trâmites de liberação do recurso para exe-
cução do Projeto, as adequações do Plano de Trabalho, tendo em vista os fatores
econômicos e a subida dos preços anteriormente cotados, o ajuste temporal aos
prazos de final de gestão.
Desde fins de 2019, e no Brasil a partir de março de 2020, instaura-se um novo
paradigma: a Pandemia Global do vírus, inicialmente, Sars-Cov-2, conhecida como
11 FORTALEZA (CE). Edital de Chamada Pública n°14/2019. Processo n° 05953035/2019 [Edital de Chamada
Pública para seleção de proposta e celebração de parceria com entidade privada sem fins lucrativos para
prestação de serviço de elaboração de inventário de terreiros de matriz africana no Ceará e implantação
de projetos produtivos] Fortaleza: Secretaria de Desenvolvimento Agrário. 2019. Disponível em: https://
www.sda.ce.gov.br/wp-content/uploads/sites/60/2019/09/EDITAL_014_2019_Invent%C3%A1rio_Terreiros_
COM_ALTERA%C3%87%C3%95ES_19_09.pdf Acesso em: jan 2022.
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■ Inventário dos Povos de Terreiro do Ceará ■
Covid-19. No Brasil, os primeiros impactos da pandemia foram sentidos de modo
mais intenso a partir de março de 2020, seguido da adoção de medidas de isolamen-
to. O primeiro arrefecimento desse quadro se deu no começo de 2021, quando su-
peramos o movimento da primeira onda da doença, intercalando o isolamento social
rígido, o lockdown, e momentos de abertura. Vimos nesse momento uma “janela”
para o início das pesquisas do Inventário, respeitando todas as medidas de proteção
e sanitárias que o momento nos pedia. Além disso, a realização da pesquisa nesse
período tornaria possível identificar algumas transformações impostas pela pande-
mia no cotidiano dos terreiros. Observamos alterações no mundo do trabalho, nos
modos de se relacionar, produzir e viver. Os terreiros não fugiram a este contexto e
passaram, necessariamente a cuidar ainda mais dos seus participantes
Com uma equipe selecionada por meio de editais e sendo um dos fatores
predominantes o pertencimento étnico aos Povos de Terreiro, começamos nossa
empreitada em campo e visitas agendadas aos terreiros. Na equipe já contáva-
mos inclusive alguns membros já vacinados com a primeira dose. A princípio, o
Projeto tinha como objetivo alcançar 200 Comunidades Tradicionais de Terreiros,
em 30 municípios, contudo, fomos além.
Nosso intuito foi, portanto, nesse esforço inicial de pesquisa, lançar as bases
para um primeiro momento mais abrangente, com consolidação metodológica a
fim de responder “quantos são e como vivem os terreiros do Ceará?”. Essa pergun-
ta ambiciosa e instigante necessita também de uma resposta ambiciosa. Sabemos
que esse é apenas o primeiro passo, a página um de uma institucionalização de
política pública para povos de terreiro que leva em conta agora um diagnóstico.
Orgulhosamente, apresentamos nesta publicação a análise do consolidado
de dados, em meio a uma pandemia global, com níveis de adoecimento, inter-
rupção do funcionamento das casas, morte de lideranças e familiares. Seguimos
todos os protocolos de segurança sanitária, realizamos testes de COVID-19 antes
da entrada em campo, recebemos máscaras e álcool gel. As entrevistas foram
aplicadas individualmente com as lideranças ou, excepcionalmente, com mais
uma pessoa da casa para auxiliar na realização da pesquisa.
Foram aplicadas 494 entrevistas válidas, 548 visitas feitas, em 57 municípios
de 13 distintas Macrorregiões no estado do Ceará. O território do Estado é divi-
17
dido em 14 Macrorregiões de Planejamento, pela SEPLAG (Secretaria de Plane-
jamento do Estado do Ceará). Uma dessas macrorregiões, da Serra da Ibiapaba,
representou nossa maior dificuldade, pois os episódios de racismo religioso e in-
tolerância dificultaram o acesso aos terreiros/casas/tendas dessa região. Sabemos
que este número deve ser expandido com outras pesquisas futuras, com maior
tempo de coleta, mais pesquisadores e pesquisadoras e, sobretudo num contex-
to menos desafiador do que o da Covid-19.
Não foi fácil chegar a todas as casas visitadas. Precisávamos gerar articula-
ções nos municípios, ativar os parceiros que já estavam constituídos nos pode-
res públicos e na sociedade civil, na academia. Deste modo estávamos geran-
do novas redes, sobretudo destes locais que ainda não visitamos. Articulamos
associações e pessoas que não conhecíamos contando com as indicações dos
nossos entrevistados.
Noutro fluxo, pelas comunicações de redes sociais, envidamos esforços con-
tra notícias falsas (fake news) que surgiram, de pessoas sem conhecimento do
processo (ou com uma visão enviesada), que entendiam este Inventário como
algo ruim. É um entendimento deturpado, pois a pesquisa é capaz de gerar uma
visão mais ampla por parte dos entrevistados sobre a garantia de sua existência
como Povo Tradicional, seus direitos a acessar políticas públicas. E assim foi feito.
Ademais, a partir deste Inventário, garantir-se-á visibilidade em seus municípios,
estimulando os terreiros a se organizarem sociopoliticamente de maneira mais
autônoma e sem intermediários.
Superamos todas as intempéries, fomos onde nossas pernas alcançaram e nos
caminhos que nossos ancestrais nos mostraram e nos encaminharam, vislumbramos
um sonho se realizando, o sonho de dialogar com o nosso Povo em todo o Estado.
Sobre nossas dificuldades superadas, não podemos deixar de citar o acesso
aos territórios. Em alguns casos nos deparamos com a dificuldade de acesso por
conta da geografia e, em outros, tivemos de dialogar com o conjunto de atores
instalados, especialmente nos territórios periféricos, locais de prevalência dos ter-
reiros na capital e no interior, e exercem voz de comando nestes lugares, tal como
as organizações criminosas.
Apresentamos nesta publicação, os textos resultantes das análises dos dados,
produzidos por equipe de consultores pertencentes à comunidade de terreiro,
professores(as) e pesquisadores e pesquisadoras do tema com interesse específi-
18
■ Inventário dos Povos de Terreiro do Ceará ■
co na área. Antes, porém, temos o primeiro artigo, de Martír Silva, Coordenadora
Especial de Políticas para Promoção da Igualdade Racial (Ceppir), vinculada à
Secretaria da Proteção Social, Justiça, Cidadania, Mulheres e Direitos Humanos
(SPS). Nesse texto, Martír apresenta um balanço da Política de Igualdade Racial,
com histórico da Coordenadoria e sua íntima relação de construção protagoni-
zada pelos Povos de Terreiro do Ceará, via Conselho estadual de Promoção da
Igualdade Racial (Coepir).
Em seguida, um texto de apresentação dos Coordenadores da Pesquisa,
Emmanuel Bastos (Coordenador Geral), Leonardo Almeida (Coordenador Execu-
tivo) e Ogan Leno Farias (Coordenador de Campo), que traçam, rapidamente, um
panorama da metodologia do Inventário, dos dias de trabalho de campo, desde a
construção do instrumental de pesquisa até a finalização das aplicações. Também
mencionam a participação do Comitê Gestor, o contexto pandêmico e trazem
breves conclusões.
Na sequência as análises dos consultores e consultoras de análise de dados qua-
litativos, nossos(as) analistas, intercalados pelas notas de campo dos pesquisadores
que aplicaram os questionários nas comunidades tradicionais de terreiro. São textos
descritivos, analíticos e de divulgação científica que visam trazer de modo acessível à
sociedade mais ampla algumas questões que emergiram por meio da realização do
Inventário. Os(as) autores(as) possuem trajetória nas religiões de matrizes africanas,
pesquisadores e pesquisadoras do campo afro-brasileiro que deram contribuições, a
partir de seus objetos de pesquisa, no formato de ensaios que articulam teoria cien-
tífica e os dados provenientes do Inventário.
No primeiro texto, o Babalorixá e Professor da Unilab, Dr. Patrício Carneiro
versa sobre a “(In)Segurança Alimentar e Nutricional nos terreiros do Ceará”, infor-
mando quais os principais resultados do instrumento de pesquisa acerca do tema.
Os Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana (PCTMA), sempre foram
lugar de solidariedade e ponto de apoio, de conforto e consolo, mas também de
reorganização estratégica para sobrevivência de sua comunidade. Mas a Pandemia
da Covid-19 alterou sensivelmente os aspectos de como esse espírito de solidarie-
dade se prestou. Diversos terreiros do Ceará conseguem ter uma produção alimen-
tar própria e fazer a divisão dessa comida, em especial a proteína de origem animal,
19
fundamental nas áreas periféricas do Estado, no campo e na cidade. Essa produção,
consumo e distribuição passa por um eixo de espiritualidade afro-religiosa, que é
dinâmica e incorpora matrizes, origens, e portanto, formas e modos de inovar, a fim
de se manter. É a dinâmica própria da tradição, a mudança para a manutenção. A
cozinha como espaço estrutural, o plantio, a produção da proteína animal, a distri-
buição e recepção desse alimento são os principais pontos dessa análise.
O texto seguinte, do Babalorixá e Professor da UNILAB, Dr. Linconly de Jesus
traz uma reflexão sobre “Trabalho, economia e produtividade dos Povos de Terreiro
do estado do Ceará”. Nesse capítulo, os temas indicam o perfil socioeconômico,
de ocupação, trabalho e emprego das lideranças, que são, no geral, os principais
pilares de sustentação das comunidades. A sustentabilidade dos terreiros acontece
de várias maneiras, por fontes distintas, sendo o salário da liderança uma das princi-
pais. O autor explora, por exemplo, as principais ocupações que são fonte de renda
das lideranças, o percentual e o perfil que tem como principal ofício o sacerdócio e
demais atividades litúrgicas rituais. Traça também quais espaços do terreiro servem
de complemento de renda ou quais potencialidades que já existem, como cursos,
oficinas e capacitações que o terreiro já faça, ou a carência disso.
O terceiro texto é da professora da rede estadual do Ceará Dra. Silvia Santos,
que atua na Secretaria da Educação do estado do Ceará (Seduc), no campo da Edu-
cação em Direitos Humanos, Gênero e Sexualidade. E é com essa expertise que ela
traz suas reflexões, constituindo algumas das muitas possibilidades dos cruzamentos,
sob o título “Retrato dos povos de terreiro do Ceará – dialogando com as identida-
des étnica e de gênero, escolaridade e faixa etária”. Nesse escrito, a autora entrega
reflexões acerca das questões raciais e de gênero, que estão intimamente ligadas às
práticas culturais e religiosas afro-brasileiras e de matrizes africanas ao demonstrar
sua relação com o perfil social, demográfico e geracional das lideranças.
O próximo ensaio é o do Professor da rede estadual do Ceará, Dr. Leonardo
Almeida, que também trabalhou na fase de produção de dados na função de
Coordenador Executivo. Esse duplo papel possibilitou ao autor trazer contribui-
ções sobre os “Segmentos tradicionais, culturais e/ou religiosos”, perfazendo um
diálogo especialmente com a produção contemporânea da bibliografia sobre as
religiões de matrizes afro-brasileiras no Ceará, da qual ele mesmo faz parte. O
20
■ Inventário dos Povos de Terreiro do Ceará ■
ensaio traz contribuições sobre as dinâmicas sociais e religiosas que foram levan-
tadas na pesquisa. Relaciona-a com a história particular dos cultos afro-religiosos
no Estado, com a trajetória dos segmentos tradicionais, a que os sujeitos chamam
de nações ou linhas. Também dialoga espaços de culto e calendário dos eventos
com os referentes culturais baseados nas ancestralidades, divindades, entidades,
orixás, guias que permearam a cosmovisão afro-brasileira e indígena.
E depois apresentamos uma entrevista, gravada em janeiro de 2022, com o
Professor Dr. Ismael Pordeus de Andrade Júnior. Nela, o Ogan Leno Farias, traz
uma breve conversa sobre as religiosidades de matrizes africanas e afro-brasileiras
no Ceará e suas interlocuções nacionais e transatlânticas. Logo após, indexamos
as fotografias das casas, seus nomes, os nomes das lideranças e os municípios em
que estão instalados.
Sabemos que todos os textos são, assim como é todo este trabalho, esforços
iniciais, um recorte do possível universo dos PCTMA do Ceará, das suas distintas
regiões, municipalidades, que trazem consigo dinâmica própria. Levantamos na
pesquisa questões sobre os mais gerais aspectos, nos dando a certeza da entrega
de um relato de experiência, tanto à SDA, como à população cearense, para servir
de marco sociopolítico e acadêmico, com protagonismo dos próprios pertencentes
às comunidades de terreiro do Estado. Evidenciamos que essa experiência deve
ser, daqui adiante, a base de novas políticas públicas para esses sujeitos, bem como
para bse de pesquisas futuras. Agora o Estado tem, pela primeira vez, em mãos, um
diagnóstico abrangente, capaz de representar uma amostra assertiva do contexto
dos terreiros do Ceará. O Inventário deve continuar, outras etapas são necessárias
com incursões nos municípios faltantes e revisita dos que já foram contemplados.
Nossa tarefa principal, acreditamos, foi cumprida: colocar os PCTMA do Ce-
ará na rota das políticas públicas, especialmente as direcionadas à produção ali-
mentar de caráter familiar, que já é o formato que trazemos nas nossas práticas
ancestrais, mais democráticas, assertivas, participativas e solidárias.
21
22
Políticas de Igualdade Racial
E Povos de Terreiro
23
Políticas de Igualdade Racial
e Povos de Terreiro
O
projeto colonial que configurou a modernidade brasileira e das Américas
e sua estratégia econômica centrada no modo de produção escravista
é a base fundante para as relações raciais no Brasil, como de resto em
toda América Latina. A categoria raça determina na colonialidade um
demarcador de duas zonas distintas: uma do ser (humana) outra do não ser (não
humana), em que ao homem branco e proprietário é reservado o ideal de hu-
manidade (PIRES, 2018, p. 66, apud GOMES, BRANDÃO e MADEIRA, 2020), ao
passo que à população negra e aos povos e comunidades tradicionais foi dada
a condição do não ser.
A desumanização dos não brancos e não proprietários foi o substrato ideoló-
gico de legitimação do projeto colonial moderno que, em conjunto com outros
fatores, como leis e sistema político, estrutura as relações de raça e classe dentro
do padrão de dominação e subalternidade, apropriação econômica e exclusão
social. Embora o percurso histórico venha sofrendo modificações ao longo do
tempo – da colonização à abolição, desta à contemporaneidade neoliberal – há
alguns fatores de permanência: a violência, a exclusão social, política e econô-
mica, a discriminação e o preconceito raciais. Esses são fatores que integram a
estruturação do racismo em nossa sociedade nos dias atuais.
Os povos e comunidades de terreiros que se inserem dentre os Povos e Co-
munidades Tradicionais – PCTs,1 vivenciam cotidianas experiências de violências
e violações de direitos, em que o racismo se expressa e se impõe pelo viés da in-
tolerância religiosa, do desrespeito aos cultos, às liturgias e aos seus seguidores.
24
■ Inventário dos Povos de Terreiro do Ceará ■
O enfrentamento ao racismo e a promoção da igualdade racial se torna cada
vez mais relevante como intervenção estatal. A questão racial no Ceará adentra
a agenda governamental como política pública e, nessa agenda, os povos de
terreiro com legitimidade se representam, se mobilizam, atuam e propõem com
protagonismo indispensável. O mapeamento dos terreiros em nosso Estado se
constitui em um instrumento importante, seja para ampliar a visibilidade e a im-
portância desses, seja para orientar ações programáticas que façam valer a nossa
aspiração por equidade e justiça racial.
No Brasil, as políticas públicas de promoção da igualdade racial são bem re-
centes, tomando-se como marco a criação da Secretaria Especial de Políticas de
Promoção da Igualdade Racial (Seppir), em 21 de março de 2003, nos primeiros
meses do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Duas questões aqui
merecem destaque: primeiro a ação tardia do Estado brasileiro em estruturar essa
política pública, em contraposição à herança de mais de três séculos de escraviza-
ção de africanos e seus descendentes, de uma abolição da escravatura inacabada
e dos efeitos históricos e sociais do racismo estruturado dentro de um sistema
ideológico de dominação e exclusão (BARROS, 2016); segundo, é que somen-
te no contexto de acúmulo político da democracia e de avanços da agenda de
direitos que culminou na ascensão de um programa popular de governo à presi-
dência da república foi possível instituir-se a igualdade racial como perspectiva de
política de Estado. Há, portanto, uma confluência inequívoca entre democracia e
políticas de promoção da igualdade racial e de enfrentamento ao racismo.
Ainda sobre o retardo da intervenção do Estado para a questão racial, há que
se destacar que o projeto colonial estruturou a divisão social brasileira a partir do
modo de produção escravista e, para a sustentação deste, a hierarquização racial,
em que a posição de subalternidade foi rigorosamente determinada para negros
e demais sujeitos não pertencentes ao grupo racial branco, dominante política
e economicamente. Raça é, portanto, categoria estruturante que se reflete em
desigualdades de oportunidades e de direitos, dentro de uma cultura política de
relações sociais que naturalizam a discriminação racial (ALMEIDA, 2018). Conse-
quentemente, essa questão permaneceu fora da esfera pública por muito tempo,
não obstante, estivesse, desde tempos imemoriais, na esfera das resistências em
suas diversas formas e expressões.
25
De outro lado, mas agindo na mesma direção do projeto colonial moderno,
o mito ou falácia da “democracia racial”, gestado principalmente no pensamento
acadêmico de Gilberto Freyre e disseminado desde os aparatos jurídico-políticos
ao senso comum, foi fator que fez perdurar por muito tempo a inércia estatal
quanto à questão racial.
Essa inércia foi timidamente rompida pela formalidade jurídica do texto da
Constituição Federal de 1988, no que se refere à igualdade independente de
raça, à liberdade de crença e à dignidade da pessoa humana. Todavia, são enun-
ciados vazios de resultados práticos se não forem preenchidos por estruturas ins-
titucionais capazes de lhes conferir a força de política pública de Estado. Nesse
sentido, a esfera nacional, desde 2003, erigiu as primeiras medidas institucionais
de promoção da igualdade racial, cuja base jurídica fundamental veio depois de
uma década de tramitação na Câmara Federal e no Senado, do Estatuto da Igual-
dade Racial (Lei nº 12.288/2010), que além de trazer conceitos, objetivos e diretri-
zes para a questão racial, instituiu o Sistema Nacional de Promoção da Igualdade
Racial (Sinapir) – regulamentado pelo Decreto nº 8.136/2013 –, que estabelece a
forma de organização e articulação para a implementação do conjunto de políti-
cas e ações com vistas à superação das desigualdades raciais no Brasil.
Por razões do comprometimento da democracia brasileira e da derrogação
política de direitos, em âmbito federal, a partir do golpe de Estado de 2016,
expandiram-se posições conservadoras, evidenciando-se o esvaziamento das po-
líticas governamentais voltadas para a equidade de raça e de gênero. No mesmo
diapasão, também observa-se o recrudescimento do racismo, assim como da mi-
soginia, da lgbtfobia, da intolerância religiosa e dos problemas sociais, éticos e
jurídicos que precisam ser enfrentados no contexto da disputa por hegemonia da
democracia e dos direitos humanos.
Diferente do governo federal, nos últimos anos o governo estadual do Ceará
vem promovendo avanços importantes na política de promoção da igualdade ra-
cial, cujo órgão de gestão e execução, atualmente vinculada à Secretaria da Pro-
teção Social, Justiça, Cidadania, Mulheres e Direitos Humanos (SPS), é a Coorde-
nadoria Especial de Políticas Públicas de Promoção da Igualdade Racial (Ceppir).
Criada em 2010, tem como objetivo principal, desenvolver ações voltadas para
26
■ Inventário dos Povos de Terreiro do Ceará ■
a promoção da igualdade racial e para a proteção dos direitos individuais e co-
letivos de grupos raciais e étnicos discriminados historicamente, dentre estes:
população negra, comunidades quilombolas, povos indígenas, religiões de matriz
africana e afro-brasileira, povos ciganos e demais comunidades tradicionais.
Apesar dessa sobreposição de diversas políticas públicas, quando o ideal se-
riam órgãos públicos segmentados e com maior robustez institucional, não há
prejuízos à autonomia de gestão e funcionamento, uma vez que a Coordenadoria,
assim como as demais, dispõe de equipe e estrutura próprias para o desenvolvi-
mento de suas ações e projetos.
As políticas públicas de caráter social, em geral, exigem transversalidade e
intersetorialidade. Para as políticas de promoção da igualdade racial, em particu-
lar, transversalidade e intersetorialidade são mecanismos imprescindíveis, dada a
complexidade da questão racial e sua implicação nos diversos aspectos da vida e
do cotidiano dos grupos racialmente discriminados e subalternizados, pois:
27
Por sua vez, a Secretaria da Cultura (Secult), dentro da estratégia de interse-
torialidade e transversalidade das políticas de promoção da igualdade racial com
as políticas culturais, adotou a modalidade de cotas raciais em todos os processos
de editais públicos para o fomento e financiamento da cultura, em toda cadeia
produtiva. Além disso, foram constituídos o Comitê de Expressões Indígenas e
o Comitê de Expressões Afro-brasileiras. Ambos têm participação da sociedade
civil e interferem diretamente nas decisões institucionais relacionadas à suas pau-
tas. Em 2022 será realizado um percurso formativo em larga escala, com vistas
à abordagem conceitual e histórica das questões raciais no âmbito das políticas
culturais no Ceará, que pretende alcançar gestores e servidores estaduais e muni-
cipais, produtores e artistas de todo o Estado.
A articulação com os municípios e suas organizações e movimentos da socie-
dade civil conta com a estratégia da Campanha Ceará sem Racismo – Respeite
minha história, respeite minha diversidade, que se constitui como instrumento
mobilizador e educativo sobre e para as questões raciais. A cobertura territorial
da campanha é bem significativa, de modo que todas as regiões do Estado e
diversos municípios já sediaram ações (sendo 65 só em 2021). O material gráfico
e visual da Campanha contempla os povos de terreiros do Ceará, no conteúdo
textual e na representação da imagem da Mãe Menininha do Gantois.
Uma importante ferramenta de articulação interinstitucional com o municípios
cearenses é também o Selo Município sem Racismo, criado por iniciativa legislati-
va do governador Camilo Santana (Lei n° 17.704, de 15 de outubro de 2021), que
se constitui como medida de fortalecimento das ações de promoção da igualda-
de racial em âmbitos municipais, implicando em interiorização ou mesmo munici-
palização das ações de promoção da igualdade racial.
O Selo é uma certificação que será concedida aos municípios em reconhe-
cimento às ações locais para o enfrentamento ao racismo e para a promoção da
igualdade racial, segundo critérios estabelecidos na Lei, implicando na estrutu-
ração dessa política pública pelos municípios. Em três meses, 12 municípios se
candidatam ao Selo e com esses firmamos termos de cooperação técnica, o que
denota resultado muito positivo em curto prazo (de outubro a dezembro) e, ex-
pectativas reais de largo alcance em médio e longo prazo.
28
■ Inventário dos Povos de Terreiro do Ceará ■
A política de Promoção da Igualdade Racial, como já dito, tem caráter histó-
rico e social inquestionável e seu adentramento ao aparato de Estado não pode
prescindir da ampla interlocução com a sociedade civil. Dessa forma, a cada ação
da Campanha Ceará sem Racismo e do Selo Município Sem Racismo junto aos
municípios, em conjunto ou em paralelo aos eventos com gestores municipais, a
Ceppir realiza audiências com seus movimentos sociais representativos da popu-
lação negra e dos povos e comunidades tradicionais.
Dentro da concepção de governança democrática, essa interlocução também
se dá de forma contínua e qualificada, a exemplo do projeto Diálogos sobre Nós,
que reuniu em diferentes datas, durante os meses de julho e agosto de 2021,
representantes de povos de terreiro, quilombolas, indígenas, ciganos e de mo-
vimentos negros, com a finalidade de escuta e construção de agenda política,
visando o fortalecimento da pauta de reivindicações e propostas desses movi-
mentos sociais. Em razão da significativa participação e relevante contribuição
desses movimentos, o projeto Diálogos sobre Nós terá continuidade e será reali-
zado anualmente, pois se constitui como ferramenta operativa e metodológica do
planejamento programático da Ceppir.
O controle e a participação social no âmbito das políticas de igualdade ra-
cial é feito pelo Conselho Estadual de Promoção de Igualdade Racial (Coepir),
instituído pela Lei nº 15.953/2016, com competências normativa, consultiva e de
deliberação sobre as políticas de igualdade racial no Estado. Sua composição pa-
ritária envolve 13 representações de instituições estatais e 13 da sociedade civil
organizada, com ênfase no combate ao racismo.
Para o biênio 2021/2023, a representatividade dos povos de terreiro no Co-
epir corresponde seu potencial organizativo e mobilizador de suas diversas en-
tidades, pois dentre as 13 instituições da sociedade civil, 4 e suas respectivas
suplências são pertencentes aos terreiros: a) Irmandade Religiosa Beneficente e
Cultural Ilé Àse Omi Bilé e Associação Cultural Afro-Brasileira Bloco Afoxé Camu-
tuê Alaxé – Afoxé ACABACA, que representa o segmento Instituição artística e
cultural ligado a etnias; a) Associação Nacional Cultural de Preservação do Patri-
mônio Bantu (ACBANTU) e Associação Afro-Brasileira de Cultura Alagbà; b) Asso-
ciação Filantrópica Espírita de Umbanda Caboclo Tapynaré e Associação Cultural
Afro-Brasileira Casa do Rei, representando o segmento Instituição de povos de
29
terreiro e comunidade tradicional de religião de matrizes africanas/afrobrasileiras;
e c) Centro Espírita Universalista Reis Tupinambá, representando o segmento Ins-
tituição religiosa com ênfase na população negra.
Em uma perspectiva muito específica e considerando o racismo religioso que
atinge os povos de terreiro, mas também a rica participação desse povo na for-
mação do patrimônio histórico e cultural material e imaterial, as políticas públicas
de promoção da igualdade racial no Ceará tomam como norte orientador a pauta
política reivindicativa de seus movimentos e representações e também o próprio
Estatuto da Igualdade Racial, nas seguintes determinações:
1. Direito à liberdade de consciência e de crença, com garantia do livre exer-
cício dos cultos religiosos e proteção aos locais de culto e a suas liturgias;
2. Apoio institucional da Ceppir para comunicação ao Ministério Público para
abertura de ação penal em face de atitudes e práticas de intolerância religiosa;
3. Ação interinstitucional para a proteção do patrimônio histórico material e
imaterial de terreiros, visando a proteção de documentos, obras e outros
bens de valor artístico e cultural, os monumentos, mananciais, flora e sí-
tios arqueológicos vinculados às religiões de matrizes africanas.
4. Estabelecimento de diálogo institucional para a imediata instalação da
Delegacia de enfrentamento aos crimes de ódio e intolerância.
5. Intersetorialização das diversas proposições dos povos de terreiro, de
modo a considerar, junto às diversas políticas públicas do estado do Ce-
ará, a relevância do etnodesenvolvimento.
À guisa de conclusão, a participação, a presença marcante e as profícuas con-
tribuições dos povos de terreiros para o desvendamento das estruturas históricas
do racismo, é de suma importância para as políticas de promoção da igualdade
racial, de modo que são essas contribuições que adentram ao Estado para forta-
lecer um projeto democrático, igualitário e com justiça racial.
MARTÍR SILVA
Coordenadora da Coordenadoria Especial de Políticas Públicas
para a Promoção da Igualdade Racial (Ceppir) da Secretaria da Proteção Social,
Justiça, Cidadania, Mulheres e Direitos Humanos (SPS)
30
REFERÊNCIAS:
31
32
33
■ Inventário dos Povos de Terreiro do Ceará ■
COordenadores
Os desafios do Inventário dos Povos
e Comunidades Tradicionais de
Matrizes Africanas do Ceará
E
sta pesquisa foi feita a muitas mãos e ideias. Uma das características das
tradições de matrizes africanas e afro-brasileiras é a capacidade de aglutinar
diferentes origens com sentidos e significados plurais, e a dimensão das
ideias impregnadas não é diferente. Ao definirmos a metodologia da pes-
quisa, buscamos o que pudesse encaixar com nossos prazos, custos e contexto
pandêmico. Como já informamos, devido ao contexto da pandemia da Covid-19,
os terreiros foram diretamente afetados no seu cotidiano e, de maneira dupla,
precisaram criar táticas de manutenção. A primeira ação era a necessidade de não
gerar aglomerações,1 fechar as portas do barracão ou reduzir a capacidade de
participantes nas festividades públicas, diminuir toda a circulação de pessoas. Por
outro lado, o caráter aglutinador e criador de valores para viver em comunidade
prescinde de uma vivência coletiva onde estes são (re)criados. Foram suspensas
atividades como atendimentos, desenvolvimentos, cerimônias, ritualísticas que
envolvessem muitas pessoas. Como então o Terreiro continuou a servir de apoio,
marco de solidariedade, consolo e suporte existencial físico-material e espírito-
-ancestral para toda uma comunidade que o circunda?
Um dos caminhos possíveis para responder a pergunta é uma demanda recor-
rente trazida pelos pesquisadores, pesquisadoras e por membros do Comitê Ges-
tor do Inventário: “Precisamos mostrar que nós existimos”. Essa frase foi repetida
1 Trata-se de uma expressão - Não aglomerar - bastante utilizada no contexto da pandemia da Covid-19 e sig-
nifica evitar que muitas pessoas estejam reunidas em um mesmo espaço. “Aglomerar” adquiriu um sentido
amplo e tomou forma nas categorias e metáforas mais variadas. Juntar gente, fazer baderna, e sobretudo
oportunizar a circulação do vírus.
34
■ Inventário dos Povos de Terreiro do Ceará ■
diversas vezes ao longo do percurso de pesquisa e, em boa medida, orientou
escolhas metodológicas, desde as primeiras reuniões das equipes responsáveis
pela condução do processo que originou este Inventário, compostas por pesqui-
sadores e pesquisadoras e por lideranças comunitárias dos terreiros. Desse modo,
o Inventário teve como um de seus objetivos apresentar à sociedade cearense
parte da dinâmica e do cotidiano dos povos de terreiro.
Tivemos a intenção de fazer, desde o começo, um levantamento inicial, uma
busca de base, juntada de dados que nenhuma outra instituição pública ou da
sociedade civil havia feito antes. Com o tempo que era ofertado, três meses, não
poderíamos fazer ou chamar esta proposta de mapeamento no seu sentido lato,
mesmo que uma das ações objetivadas no processo que desenvolvemos tenha
sido mapear, no sentido de georeferenciar as comunidades tradicionais de terreiro.
Um mapeamento tem prioridade censitária, de transformar a amostra em universo,
planeja desde o começo atingir toda uma região e capturar seu universo, ou amos-
tra representativa que o equivalha. Nós tínhamos um objetivo de número inicial, em
termos de prospecção empírica e condicionamos o projeto a fazer um levantamen-
to de dados mais qualitativo e descritivo. Assim, optamos por conduzir a pesquisa
justamente pela metodologia que é operada, especialmente no campo do Patrimô-
nio Cultural, “o Inventário”. Essa intenção se aproxima do mapeamento, mas dele
difere quando restringe condicionantes a partir da base territorial.
A presente pesquisa é fruto de um Monitoramento de Ações de Projetos Prio-
ritários (MAPP) que surgiu a partir da Política de desenvolvimento da agricultura
familiar desenvolvida pela Secretaria de Desenvolvimento Agrário (SDA), incluindo
Povos e Comunidades Tradicionais de Terreiro. Para este fim, precisava-se de um
diagnóstico do indicativo de atuação das populações nos espaços selecionados
para a implantação de projetos produtivos, tal como já acontece com os povos
indígenas, quilombolas e com outros povos e comunidades tradicionais. Este In-
ventário, portanto, a partir da aplicação de um instrumental de pesquisa, buscou in-
formações aprofundadas sobre o perfil socioeconômico, cultural, fundiário e, espe-
cialmente, acerca do caráter produtivo dos povos de terreiro do estado do Ceará.
Começamos nossa rede com as listas de casas conhecidas do segmento de
comunidades de matrizes africanas, notadamente, os Candomblés, Xangôs e Ba-
35
tuques. A primeira versão de projeto junto à SDA designava esse público espe-
cífico para a ação que está voltada para o etnodesenvolvimento. Entretanto, as
especificidades do campo das tradições culturais não poderia deixar de fora o
espectro afro-brasileiro das variadas formas de expressões, principalmente, mas
não só, religiosas. Então, estávamos em mãos com a primeira lista elaborada pelo
Coletivo Cultural de Matriz Africana Ibilé, que é constituído por lideranças de 28
(vinte e oito) municípios cearenses. Juntamos a esta, outras, de parceiros, lideran-
ças que fazem as articulações, especialmente nas Macrorregiões Metropolitana
de Fortaleza, do Cariri, Sertão de Sobral e do Sertão Central.
Nossos quatorze pesquisadores e pesquisadoras de campo trouxeram capilari-
dade ao trabalho. Na linha de base, foi definido o planejamento de desenvolvimen-
to territorial em quatro fases: a primeira, nos próprios municípios e macrorregiões
de moradia dos pesquisadores e pesquisadoras; a segunda, na Região Metropoli-
tana de Fortaleza que não a capital; a terceira, nas outras macrorregiões ainda não
cobertas pela pesquisa; e finalmente, a última semana de trabalho, na capital, como
contrapartida proposta pela ALAGBÀ à SDA. Eventualmente, essas fases se inter-
cruzaram, permitindo correções no rumo da pesquisa durante o trabalho.
Também contribuíram para a complementação das listas de lideranças a se-
rem visitadas, com indicações que foram, aos poucos, alimentando um banco de
dados compartilhado. Assim, as áreas a serem visitadas, bem como as rotas de
pesquisa, eram elaboradas com base em uma rede de indicações que, no decor-
rer da realização das visitas aos terreiros/casas/tendas, geraram novas ramifica-
ções. Também fomos apoiados por uma rede de parceiros que contribuiu para a
organização e o acompanhamento da pesquisa, por meio de recursos digitais e
tecnológicos, como tablets conectados a um banco de dados comum, o registro
georreferenciado dos terreiros/casas/tendas visitados, entre outros.
Começamos a Pesquisa pelas áreas dos próprios pesquisadores e pesqui-
sadoras, quatro Macro Regiões distintas, e buscamos o maior número de visitas
nessas regiões por 15 dias. Como existia prevalência da capital no local de resi-
dência dos pesquisadores e pesquisadoras, alguns viajaram, sempre em duplas,
para outros municípios. Essa atividade possibilitou o aquecimento e o melhor
entendimento da ferramenta da plataforma de pesquisa.
36
■ Inventário dos Povos de Terreiro do Ceará ■
Para realizar a pesquisa, usamos tablets com sistema operacional android e
um aplicativo de formulários de pesquisa Nestforms. Utilizando esse software é
possível aplicar perguntas com respostas de escolha única, escolha múltipla e
aberta (de escrita livre de texto), sincronização da câmera e microfone do aparelho
que permite captar imagens fotográficas, vídeos e áudio. As fotografias das casas
apresentadas ao fim desta publicação foram capturadas dessa maneira. Antes
de começar qualquer pergunta, no início do questionário, o pesquisador deveria
ler um termo de consentimento e livre esclarecido, identificando os objetivos da
pesquisa, quem eram seus realizadores, o direito de se retirar a qualquer tempo
sem prejuízo da pesquisa e em que consistia a qualificação dos dados pessoais,
resguardados na Lei n° 13.709, de 14 de agosto de 2018, Lei Geral de Proteção
dos Dados. A entrevista iniciava apenas se o(a) interlocutor(a) informasse, em
áudio, a autorização, seguida de seu nome completo, data, município.
As rotas para as viagens eram elaboradas com base no encontro entre as listas
de indicações, o perfil dos pesquisadores e pesquisadoras, as Regiões de Planeja-
mento do Ceará, a existência dos “chaveiros” ou “porteiros”2 em tais áreas e os de-
safios a serem enfrentados, como as dificuldades de acesso a alguns locais de pes-
quisa; as diversas formas de racismo e intolerância; a atuação do crime organizado;
a necessidade da utilização de diferentes tipos de meios de transporte, a depender
da localidade; os problemas de comunicação em regiões rurais; entre outros.
Durante o trabalho de campo coletamos histórias e relatos de vários tipos de
intolerância e violência. Para o campo das pesquisas, seja nas relações étnico ra-
ciais, seja no campo de religiões afro-brasileiras, ou de matrizes africanas, o com-
ponente do racismo é uma constante. Este aspecto da formação da sociedade
brasileira deixa rastros vividos todos os dias por membros das comunidades de
terreiro, no campo ou na cidade, nos mais variados espaços públicos. Portanto, é
também um papel dessa pesquisa evidenciar que esta discriminação não é atual,
pelo contrário, é ato contínuo da formação sociocultural brasileira.
É importante reiterar que o combate ao racismo estrutural no Brasil teve um
importante avanço em 1989, com a promulgação da Lei nº 7.716, de 5 de janeiro
de 1989, conhecida como Lei Caó, que ratificando a Constituição, define como
2 Interlocutores-chaves durante a pesquisa, pessoas com capacidade de transitar entre os vários espaços e
abrir as portas de vários lugares. Na Nação Kicongo há um cargo litúrgico chamado “lubitu” que é o guar-
dião das chaves da casa dos inkices (ancestrais), sem ele não há acesso ao sagrado guardado nas depen-
dências da comunidade.
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crime, incitar, produzir e praticar a discriminação por crença religiosa. Entretanto,
a conjuntura conservadora e religiosa brasileira não se muda por forma de lei, mas
por pactos de convivência e conjunturas sociopolíticas, econômicas e culturais. O
racismo estrutural produz diversas formas de discriminações. O racismo religioso
é a forma do comportamento de intolerância que ainda persiste como chaga
aberta e exposta, mesmo que não visibilizada adequadamente. Essa sedimen-
tação da opressão histórica sempre esteve impressa na realidade sofrida pelos
povos afro-religiosos. Se, por um lado, há certa exotização dessas práticas cultu-
rais, há ainda mais discriminação, o que levou e, ainda leva, muitas pessoas a não
confirmar publicamente suas práticas culturais e religiosas tradicionais, mesmo
que atravessadas por outras religiosidades, católicas, em especial.
Dessa forma, o contexto cearense encontrado nesta pesquisa é do público
tão já oprimido e discriminado, oficialmente, seja pelo Estado ou por setores da
sociedade que introjetou o racismo estrutural expresso na forma de intolerância
religiosa. Por isso, o medo, a recusa e a desconfiança são fatores primordiais em
pesquisas sobre religiosidades afro-brasileiras. Nossa metodologia levou isso em
consideração, pois compreendemos ser necessário construir relações que façam
as “portas se abrirem”. Isso leva tempo, trabalho, palavras, rezas e, sobretudo,
energias imanentes, no planejamento, execução e avaliação da pesquisa.
Após a leitura do termo de consentimento e livre esclarecido, seguíamos com
a entrevista, uma conversa sobre a realidade daquela casa e, ao final, o pedido de
indicação para chegar a outras, que podiam ser participantes da família de santo,
com casas abertas (espaços culturais e religiosos das tradições afro-brasileiras) nas
proximidades e grupos de afinidades em geral. A partir dessa busca, o “cada um
indica um” ou, “pelo menos um”, conseguimos estabelecer uma rede ampla e
espraiada pelos municípios de uma mesma região.
O acesso aos terreiros, em algumas situações, não era fácil. Para conseguir
realizar as entrevistas, passamos por estradas de difícil tráfego para carros não
tracionados e, para chegar nas comunidades, tínhamos que atravessar rios e/ou
cachoeiras. O transporte que garantia a chegada nesses locais, geralmente car-
ros, tinha de ser deixado no meio do trajeto e os pesquisadores e pesquisadoras
seguiam caminhando.
38
■ Inventário dos Povos de Terreiro do Ceará ■
No apoio a esta tarefa, foi escolhido um Comitê Gestor para realizar o contro-
le e participação social e a validação dos dados da Pesquisa. Foram escolhidos 8
membros com trajetória que seguem os princípios de hierarquia e senioridade das
comunidades, eram pessoas com respaldo dentro de suas tradições e com conheci-
mento de territórios específicos que poderiam nos ajudar na pesquisa. Desta feita,
reiteramos o agradecimento e pedimos a benção pela consecução deste trabalho
às lideranças: Babá Cleudo Olutoji (Candomblé-Caucaia), Babalorixá Shel (Can-
domblé-Fortaleza), Babalorixá Valdo de Oyá (Candomblé-Fortaleza), Pai Leonildo
(Umbanda-Baturité), Egbomi Pinheiro de Airá (Candomblé-Fortaleza), Mãe Ânge-
la (Umbanda-Fortaleza), Ogan Viana Júnior (Candomblé e Jurema-Itapipoca), Mãe
Hélia da Caboca Mariana (Umbanda e representante da Secretaria de Educação
do estado do Ceará-Fortaleza). Com esse grupo, foram realizadas 4 reuniões em
que foram ouvidas sugestões e partilhas, a fim de melhorar os rumos da pesquisa,
a apresentação de dados para o poder público e foi feita a sugestão de tópicos
para apresentação no relatório que orientará a execução das Políticas públicas para
Povos e Comunidades Tradicionais de Terreiro do Ceará. A primeira reunião foi a
apresentação da metodologia inicial, a segunda e terceira foram resultados parciais
com escuta ativa para correção de rumos, e na última, foi apresentado o resultado
final e a devolutiva das diretrizes do relatório a ser entregue para a SDA.
Nosso trabalho de divulgação nas redes sociais utilizou os perfis da Alagbá e
do responsável pela gestão de mídias da pesquisa, o Babalorixá Léo de Oxum, ad-
ministrador da Revista Agô, portal digital de informações sobre Candomblé e Um-
banda no Ceará. Os perfis do Instagram gerenciados por ele alcançam, ao todo, 60
mil seguidores. Esse mecanismo de divulgação foi um dos principais a fim de gerar
conteúdo suplementar e relacional entre os afro-religiosos. O objetivo era criar um
canal de segurança, de nitidez nas informações a afugentar possíveis desinforma-
ções. Tinha também o objetivo de convencer o povo de terreiro que essa proposta
visa reparar historicamente o racismo, por meio de uma política de fomento ao
etnodesenvolvimento. Nos últimos dias de pesquisa, na capital, fomos também às
casas de vendas de produtos de Umbanda e Candomblé, deixamos banners com
informação sobre a pesquisa e nossos contatos. Esse mecanismo gerou relativo
sucesso, pois conseguimos cerca de 20 entrevistas a partir desta divulgação.
39
Contamos também com a participação e divulgação em lives que acontece-
ram nos canais de redes sociais da ALGBÀ e no canal de outro parceiro, o Omo-
lokó Ceará, cujo perfil durante e depois do trabalho realizou transmissões ao vivo
com os coordenadores, pesquisadores e pesquisadoras e outras pessoas de ter-
reiro que foram entrevistas, dando suporte e visibilidade à realização do trabalho.
Uma categoria muito cara ao povo de santo, a família, encontrou convergên-
cia de trabalho da SDA. Encontramos algumas continuidades entres os conceitos
para o fomento da agricultura familiar que utiliza essa categoria. No glossário do
Observatório da Agricultura familiar do Ceará, utilizado pela SDA, a unidade pro-
dutora rural pode ser compreendida como:
“O conjunto composto pela família e agregados denominados, em seu con-
junto, como “agricultores familiares”, que exploram uma combinação de fatores
de produção com a finalidade de atender à demanda interna por alimentos e
outros bens que contribuem para o abastecimento da sociedade brasileira e na
geração de divisas3.
Para os povos de Terreiro, a “família de santo” é a expansão da família com
parentesco sanguíneo. Nela se juntam, os sujeitos que possuem pertencimento
a partir da iniciação e manutenção de tradições culturais baseadas na ancestra-
lidade. A nomenclatura amplamente divulgada na sociedade nacional “Mãe” e
“Pai” de “santo” diz respeito a essa capacidade de aglutinar em torno de uma
unidade familiar com identidade, ancestralidade e uso do território comum. Por
conta disso, também há os filhos de santo, os netos, os irmãos de santo que
se relacionam com os outros terreiros/casas/tendas. Notadamente, como já dito
nesta publicação, as tradições culturais de matrizes africanas e afro-brasileiras se
tornam espaços de apadrinhamento. Daí também, nota-se o termo “madrinha” e
“padrinho”, especialmente nas tradições da Umbanda, do Catimbó e da Jurema
como postos hierárquicos de condução das mesmas.
Para nosso povo, a unidade familiar de santo produz, consome, troca, vende,
diversos produtos do campo, mas não só, culinária, artes, indumentária e uma
variedade enorme de objetos e produtos e conhecimentos que serve para abas-
40
■ Inventário dos Povos de Terreiro do Ceará ■
tecer a si, seu espaço de culto e para aquisição de renda. Tanto o que é tangível:
a banana, a macaxeira, o mel, as hortaliças, as ervas, as roupas, as indumentárias,
a pedraria, a joalheria, a produção de acessórios de vestimentas etc; quanto o
próprio conhecimento utilizado para essa produção são produtos desenvolvidos
e aprendidos há séculos de repasse tradicional.
Por conta disso, a SDA reconhece esses Povos e Comunidades Tradicionais
como participantes da cadeia produtiva da agricultura familiar, chamando-os de
Povos e Comunidades Tradicionais de Terreiro:
Grupos culturalmente diferenciados que se reconhecem como tais e possuem
formas próprias de organização social. Ocupam e usam territórios e recursos na-
turais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e
econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmiti-
dos pela tradição4.
Esse aprendizado é trocado e gestado a partir da relação entre os povos de
terreiros e diversas comunidades tradicionais. Nesta pesquisa, visitamos terreiros
encravados em territórios quilombolas dos municípios de Caucaia, Porteiras e Ho-
rizonte. Sobre as comunidades indígenas, obtivemos 29 (vinte e nove) respostas
desta afirmação de cor/raça. Entretanto, o pertencimento étnico prescinde de re-
conhecimento dos pares para a autoafirmação dos direitos perante os grupos indí-
genas e ao Estado. Essas lideranças estavam nos municípios de Crateús, Juazeiro,
Itapipoca, Pacatuba, Canindé, Jardim, Caucaia. Nesses territórios, entrevistamos
lideranças de terreiros situados dentro dos territórios indígenas e/ou próximos a
eles, dos seguintes povos: Potiguara, Cariris, Tabajara, Pitaguary, Tremembé, Tape-
ba, Kanindé. Essa é, sem dúvidas, uma das grandes pistas deixadas neste Inventá-
rio e que servirá de investigação e qualificação futura para a SDA entender, como
foi entendido pelos analistas, a inseparável relação ancestral e cosmológica entre
Povos de Terreiro e Povos Originários. Esta é também uma relação que faz circu-
lar bens, produtos, serviços e tecnologias sociais que juntam mundos imanentes e
transcendentes, dos “vivos” e dos “mortos”, do Orun e do Aiyé.
A guisa de conclusão, falando no que vimos e ouvimos, devemos deixar aqui
a impressão de saber que o mais importante para os nossos é a nossa ancestra-
4 idem, ibidem
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lidade. Os locais onde o nosso divino é reverenciado - altares, gongás, barra-
ções - estava sempre impecável e, na maioria das comunidades, eram bem mais
estruturados que a própria residência das lideranças, que por sua vez carecia de
água potável e/ou tratada, possuiam sistema de esgoto rudimentar ou, em alguns
casos, principalmente na área rural de difícil acesso, era inexistente.
Sofremos e choramos ao chegar em terreiros em que não tinha água para be-
ber, que não tinha um café para servir. Podemos e devemos salientar que muitos
dos nossos continuam passando fome, tentando superar, a todo custo, a atual
conjuntura política do país que nos nega, nos reprime e provoca perseguição aos
nossos corpos físicos e ancestrais, tanto de forma institucional quanto por facções
que se auto-identificam “crentes desviados” e não nos querem em seus territó-
rios. Assim, nos vitimizam com perseguição, pois só nos enxergam como religião
e, como falamos antes, por termos em nossa cosmovisão a afro-descendência,
somos considerados subgrupos sociais no olhar dos preconceituosos.
Isso tudo nos deixa mais fortes. Abordamos em nossas visitas a garantia de
nossa existência em nossa diferença de ser, firmamos e afirmamos nossos com-
promissos em ajudar os nossos, estreitamos laços, apresentamos os marcos legais
que foram resultado de lutas dos nossos e que devem ser sempre utilizados para
garantir nossa cidadania. Dialogamos com governos municipais, conversamos
com as lideranças que não tinham esse hábito para iniciar essas conversas. O
resultado disso constatamos, com a construção de políticas públicas para nosso
povo a curto prazo, como editais utilizando de recurso da Lei 14.017 de 29 de
junho de 2020, a Lei Aldir Blanc, inserindo o povo de santo como uma categoria
por ter sua expressões culturais fomentadas. E perspectivas a longo prazo nos
municípios de interesse para o debate sobre etnodesenvolvimento.
Hoje, ao término deste trabalho, esperamos que o Governo do estado do Ce-
ará entenda que a possibilidade de etnodesenvolvimento, por meio dos projetos
produtivos, é real, que necessitamos de agenda própria e prioritária, tendo em vista
séculos de negação cultural, que segurança pública perpassa por formação, incluin-
do as diferenças de pertencimento étnico-racial do povo cearense e, sobretudo, que
a efeméride pautada apenas em acontecimentos ou fatos gerados com um olhar
hegemonicamente branco, eurocêntrico, colonizador e racista não pode mais existir.
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■ Inventário dos Povos de Terreiro do Ceará ■
Análises de Campo
(In) Segurança alimentar
e nutricional nos terreiros
do Ceará1
Babá Prof. Patrício Carneiro
C
onsiderando a comprovada relação existente entre as práticas afro-religio-
sas e a segurança alimentar e nutricional dos adeptos e seguidores dessas
expressões religiosas, a equipe de pesquisadores e pesquisadoras do In-
ventário dos Povos e Comunidades Tradicionais de Matrizes Africanas do
Ceará também incluiu nos seus instrumentos de pesquisa, questões relacionadas
com os mecanismos dessa importante dimensão da vida social desses grupos.
É sabido que os territórios sagrados das religiões afro-brasileiras, também
conhecidos como terreiros2, são importantes loci de redistribuição alimentar e
nutricional que envolve não só os membros dessas comunidades, mas todas as
pessoas que por ali passam por ocasião de ritos e festas. Em muitos casos, o ter-
reiro também funciona como epicentro de redistribuição alimentar, abrangendo
não só os seus membros, mas também as populações que vivem no seu entorno,
fato constatado pela historiografia e pelas etnografias mais antigas sobre o can-
domblé, como os estudos de Roberto Motta constatam, ao estudar o papel do
sacrifício no xangô pernambucano (Motta, 2021), por exemplo.
1 Por Prof. Dr. Patrício Carneiro Araújo (Professor Adjunto de Antropologia da Universidade da Integração
Internacional da Lusofonia Afro-brasileira - Unilab).
2 Sempre que nos referirmos a “terreiros” estaremos fazendo menção a essa “forma social negro-brasileira”
(Sodré, 1988) que, dependendo da expressão afro-religiosa, também pode ser chamada de “casa” ou “ten-
da”, conforme consta no Inventário.
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■ Inventário dos Povos de Terreiro do Ceará ■
Apresentado inicialmente em 1991 e reeditado em 2021, o livro Edjé Balé:
sacrifício ritual no Xangô de Pernambuco (MOTTA, 2021) é resultado de pesquisas
realizadas durante décadas por esse pesquisador junto a terreiros de Recife e sua
região metropolitana. Suas conclusões são exemplo categórico de como nessa re-
ligião afro-pernambucana - assim como em quaisquer outras religiões afro-brasilei-
ras - a prática ritual está diretamente relacionada com a redistribuição alimentar no
terreiro e seu entorno. Também a pesquisa “Alimento: direito sagrado – pesquisa
socioeconômica e cultural de Povos e Comunidades Tradicionais de terreiro” (BRA-
SÍLIA, 2011), realizada entre maio e agosto de 2010, junto a terreiros de Belém,
Belo Horizonte, Porto Alegre e Recife dá conta de como os terreiros desempenham
importante papel de redistribuidor de alimentos no raio da sua abrangência.
Essa estreita relação entre religiões afro-brasileiras e práticas alimentares é um dos
motivos para que os povos de terreiro do Ceará mantenham, há vários anos, represen-
tantes junto aos Conselhos de Segurança Alimentar (Consea), do Estado, assim como
da prefeitura de alguns municípios abrangidos pela pesquisa, como Fortaleza. A repre-
sentação junto a esses órgãos está ligada à importância atribuída à alimentação nessas
religiões, já que a troca de alimentos constitui parte eminente das relações estabele-
cidas entre as pessoas, as divindades, os ancestrais e a própria comunidade religiosa.
Baseadas num culto à natureza divinizada, através da relação de troca de oferendas,
as religiões afro-brasileiras funcionam como dispositivo capaz de garantir a segurança
alimentar e nutricional de muita gente, fato que pode ser comprovado de diferentes
formas, como através das relações do terreiro com o mercado local e regional de ali-
mentos, seja de origem animal, vegetal ou mineral. Portanto, o terreiro também é lugar
onde se come. Onde tem terreiro, tem comida. E as pessoas sabem disso3.
Considerando-se, então, a elevada importância atribuída ao ato alimentar nes-
sas religiões, a cozinha termina ocupando um espaço privilegiado nos terreiros, já
que é ali onde se dão os mais variados e complexos processos de transformação
3 Essa estreita e importante relação entre os terreiros e a redes de segurança alimentar já ensejaram o desen-
volvimento de pesquisas institucionais, apoiadas pelo poder público, como a já citada “Alimento: direito
sagrado – pesquisa socioeconômica e cultural de Povos e Comunidades Tradicionais de terreiro” (Brasília,
2011), realizada entre maio e agosto de 2010, junto a terreiros de Belém, Belo Horizonte, Porto Alegre e
Recife. Também, a pesquisa que ora se apresenta visa reunir e sistematizar material de campo que possa
subsidiar políticas públicas, entre elas as de Segurança Alimentar e Nutricional (SAN), voltadas para essa
população específica.
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dos alimentos. Aqui estamos considerando como “alimentos” todo recurso natural
portador de nutrientes capazes de compor a alimentação humana, seja de origem
animal, vegetal ou mineral. Já “comida” aqui está sendo entendida como o pro-
duto da ação humana sobre os recursos alimentares naturais, que, de acordo com
os códigos de cada grupo, assumem formas culturalmente adequadas para o con-
sumo e condição nutritiva relevante para a reposição das energias gastas. Nesse
sentido, a cozinha do terreiro pode ser vista como o lugar privilegiado dessa trans-
formação de natureza em cultura, ou de alimentos em comida. Transformação essa
que está diretamente relacionada com a manipulação da força vital (axé, ngunzo,
moyo) que garante a existência das pessoas e das coisas.
No que diz respeito ao produto das cozinhas dos terreiros, as mesmas comi-
das que servirão para o uso nos ritos internos ou serão apresentadas às divinda-
des e entidades espirituais cultuadas, também poderão alimentar a comunidade
reunida para uma festa, contribuindo, assim, para a dinâmica da vida social coti-
diana da comunidade religiosa. A existência de uma cozinha sagrada no terreiro –
instalação incomum ou mesmo inexistente em muitas outras expressões religiosas
– já é um forte indicativo da importância atribuída à alimentação nessas religiões.
Convém explicar que, no caso do candomblé, a cozinha do terreiro é uma
parte tão integrada à vivência ritual que sua supressão representaria, incontes-
tavelmente, a inviabilização do culto. No candomblé, portanto, a cozinha é um
elemento estrutural e estruturante da vida religiosa. Aliás, muitos dos saberes
religiosos (fundamentos) próprios das religiões afro-brasileiras estão, direta ou
indiretamente, relacionados com a cozinha e com as práticas nela levadas a cabo.
É justamente em função disso que grande parte dos estudos relacionados a essas
religiões dão importante destaque ao papel dos alimentos e seus usos rituais.
No caso da umbanda – ou das umbandas, melhor dizendo –, maior expressão
religiosa afro-brasileira do Ceará identificada pelo Inventário (346 terreiros), a co-
zinha sagrada nem sempre ocupa esse papel tão proeminente. Contudo, isso não
quer dizer que as comidas não participem do culto como mediação entre as pesso-
as, os seres sobrenaturais e as divindades. Na verdade, no caso da Umbanda, as co-
midas sagradas dividem com os banhos, defumações, velas, perfumes, chás, rezas,
descarregos e outros procedimentos rituais, esse papel que no candomblé termina
sendo mais concentrado no uso das comidas. Todavia, também nas umbandas, as
comidas estão presentes, sejam para alimentar as divindades ou as pessoas.
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■ Inventário dos Povos de Terreiro do Ceará ■
Foi em função dessa preeminência dada ao ato de alimentar nessas religiões,
que a equipe de pesquisadores e pesquisadoras deste Inventário incluiu pergun-
tas relacionadas às condições alimentares dos povos de terreiro no Ceará. Entre
elas estão aquelas relacionadas à existência de cozinha no terreiro; uso do solo
para algum tipo de produção de alimentos; criação de animais; participação dos
membros da comunidade religiosa em alguma forma de produção em espaços
exteriores ao terreiro (entorno); conhecimento acerca dos dispositivos legais de
fomento à produção de alimentos (Declaração de Aptidão ao Pronaf - DAP física,
cooperativas, movimentos associativos etc.); políticas internas ao terreiro na pre-
paração e distribuição de alimentos e os efeitos da pandemia de Covid-19 sobre
as práticas alimentares da comunidade. Comentaremos, ao longo deste capítu-
lo, as respostas obtidas em campo, através dos instrumentos adotados, como o
questionário, as entrevistas e as visitas in loco.
A cozinha do terreiro
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Em consonância com esse decreto federal que instituiu a Política Nacional de
Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, e a fim de
verificar e mensurar o potencial desses espaços de transformação dos alimentos
nos territórios afro-religiosos no Ceará, durante o trabalho de pesquisa que inven-
tariou os terreiros nesse Estado, perguntou-se aos entrevistados se “Existe cozinha
no seu terreiro/casa/tenda?” Sendo que, dos 494 terreiros inventariados4, 270 de-
les (54,7%) afirmaram ter cozinha no terreiro, em contraposição a 224 (45,3%) que
confirmaram não tê-la5.
Se consideramos que, dos 494 terreiros inventariados, apenas 72 se declara-
ram ser de Candomblé e 346 se afirmaram ser de Umbanda, e ainda, se cruzar-
mos as respostas à pergunta sobre a existência de cozinha com aquelas dadas à
questão “Qual segmento cultural tradicional e/ou religioso de seu terreiro/casa/
tenda?” poderemos ter elementos suficientes para acreditar que a maior concen-
tração de cozinhas se encontra entre as casas de Candomblé. Porém, deve-se
considerar essa hipótese com parcimônia, já que em expressões como a umban-
domblé (9), Omolokô (7), Nagô (2) e o Tambor de mina (1) as comidas também
tem uso intenso e constante, o que nos leva a crer que os terreiros/casas/tendas
dessas expressões religiosas também mantém cozinhas sagradas.
Nesse ponto da discussão, vale relembrar que algumas expressões afro-reli-
giosas têm na comida uma centralidade maior, o que pode influenciar na existên-
cia ou não de cozinha nas dependências do terreiro. Expressões religiosas como
candomblé, terecô e omolokô enfatizam mais o uso de alimentos no culto, dife-
rentemente do que acontece em expressões como catimbó e jurema, nas quais
as comidas só aparecem esporadicamente em alguns ritos específicos ou ao final
das funções religiosas, quando os membros da comunidade, clientes e visitantes
se confraternizam através da comensalidade.
Se lembrarmos que, entre os terreiros inventariados em todo o Estado, 70%
deles (equivalente a 346) eram de Umbanda e apenas 14,6% (72) se disseram de
Candomblé, compreenderemos o fato de não haver cozinha em ao menos 45,3%
4 Alertamos para o fato de que esse número corresponde apenas aos terreiros inventariados, sendo que o to-
tal de terreiros/casas/tendas existentes no Estado do Ceará é bem maior. Em função das várias dificuldades
explicadas ao longo deste livro, nem todos foram acessados pela equipe do Inventário.
5 Ao longo deste texto, sempre apresentaremos os números relativos de terreiros, seguidos, entre parên-
teses, dos números absolutos, ou vice-e-versa. Com isso temos a intenção de possibilitar uma visão mais
abrangente possível da realidade das casas que participaram da pesquisa.
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■ Inventário dos Povos de Terreiro do Ceará ■
dos terreiros inventariados. Contudo, o fato de não haver cozinha no terreiro não
deve ser interpretado como ausência total do trato com os alimentos, já que
também é comum servir comida antes, durante e/ou depois dos ritos em muitas
expressões da Umbanda, mesmo que, em alguns casos, essas comidas já sejam
introduzidas prontas no espaço do terreiro. A existência da cozinha, porém, é um
forte indicativo do potencial do terreiro como epicentro de redistribuição alimen-
tar e nutricional entre a população que orbita em torno dele.
Em expressões afro-religiosas como o candomblé, é comum que se mantenha
até mais de uma cozinha no terreiro, já que há uma compreensão de “comidas sa-
gradas” que termina exigindo um sacerdócio especial para seu manejo e impondo
códigos de pureza ritual incompatíveis com uma cozinha comum. Por outro lado,
muitas vezes o conjunto arquitetônico do terreiro é o mesmo que abriga a casa de
morada do sacerdote ou sacerdotisa, o que também implica na configuração da co-
zinha ou das cozinhas existentes. A pesquisa constatou, com precisão, esse dado,
quando ouviu 60,7% (300) dos terreiros afirmarem que o mesmo estava localizado
numa casa/domicílio. Segundo os resultados obtidos, apenas 23,9% (118) dos ter-
reiros estão instalados em terreno destinado exclusivamente a atividades religiosas.
O número é ainda menor, 14% (69) entre os terreiros que, estando instalados em
terrenos destinados apenas a atividades religiosas, também fazem usos não religio-
sos/produtivos do mesmo, como salão de cabeleireiro, atelier ou outros fins.
Todas essas informações arroladas no parágrafo anterior nos fazem entender
que, quando o terreiro funciona na mesma instalação da casa da liderança, sua co-
zinha termina sendo a cozinha de toda a comunidade, o que aumenta ainda mais o
potencial desses pólos de difusão alimentar, motivo pelo qual a liderança não pode
se responsabilizar sozinha pela alimentação de todos. A progressiva promoção de
alguns terreiros a associações de bairro, fundações culturais e pontos de cultura
tem revelado um certo reconhecimento, por parte do poder público, da sociedade
mais abrangente e das comunidades locais, desses territórios sagrados que, como
se pode perceber, são muito mais do que meros espaços de culto religioso.
A equipe de pesquisa também quis saber se, no caso de existência de cozi-
nha, a mesma atendia às necessidades do terreiro em termos de tamanho; sufici-
ência de utensílios (pratos, talheres, panelas e outros); suficiência de equipamen-
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tos de cozinha (fogão, geladeira, forno e outros) e condições físicas do local (pia,
bancada, torneira, telhado).
Note-se que grande parte dos itens pelos quais se interrogou está relaciona-
da com o manejo e acondicionamento dos alimentos, mas também em sintonia
com as exigências de órgãos de controle de qualidade higiênica e sanitária, como
a Vigilância Sanitária no âmbito federal e as Secretarias de Saúde do estado do
Ceará e dos municípios nos quais se encontram os terreiros, já que são essas
últimas que expedem Alvará de Funcionamento para cozinhas comunitárias e de
projetos sociais que atuam no campo da alimentação, por exemplo. Isso adquire
ainda mais significado quando lembramos que, nos últimos anos, as religiões
afro-brasileiras têm sido muito questionadas em função do manejo do abate re-
ligioso de animais e no trato com a carne, muitas vezes obrigando sacerdotes
e sacerdotisas a adaptarem suas cozinhas para uma melhor adequação a essas
exigências normativas de âmbito federal, estadual e/ou municipal.
Este livro relembra e ratifica que, desde o julgamento do Recurso Extraordi-
nário nº 494.601 (RS) no Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), em sessão
do dia 28 de março de 2019, não há mais absolutamente nenhuma sombra de
dúvidas sobre a constitucionalidade do abate religioso de animais nas religiões
afro-brasileiras. O voto do Ministro Marco Aurélio Mello, único dissonante do res-
tante da corte, diga-se de passagem, já que condicionou a constitucionalidade
ao consumo da carne resultante do abate, é emblemático para dirimir quaisquer
incompreensões ainda persistentes, motivo pelo qual reproduzimos trecho do
mesmo abaixo, no ponto em que ele afirma:
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■ Inventário dos Povos de Terreiro do Ceará ■
rido aos animais pela Constituição Federal sem a integral supressão do
exercício da liberdade religiosa. Dou parcial provimento ao recurso ex-
traordinário, conferindo à Lei nº 11.915/2003, do Estado do Rio Grande
do Sul, interpretação conforme a Constituição Federal, para assentar a
constitucionalidade do sacrifício de animais em ritos religiosos de qual-
quer natureza, vedada a prática de maus-tratos no ritual e condicionado
o abate ao consumo da carne. [...] É assim que eu voto. (MELLO, 2019).
É certo que, após a votação e o reconhecimento da constitucionalidade da
prática, o ordenamento jurídico brasileiro precisou se ajustar a essa nova realida-
de, fato que deu origem à Portaria n° 365, de 16 de julho de 2021, que aprovou
o Regulamento Técnico de Manejo, Pré-abate, Abate Humanitário e métodos de
insensibilização autorizados pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abasteci-
mento (Mapa). E, já no seu capítulo II (Das disposições preliminares), a Portaria
define o que o documento entende sobre a questão: “II – Abate sob preceitos
religiosos: procedimento de abate específico realizado sob orientação de auto-
ridade religiosa, para atendimento de exigência à comunidade que o requeira”
(Brasília, 2021, Portaria, nº 365, Cap. II, Inciso II).
Um pouco mais adiante, no Capítulo III, ao falar dos Requisitos Gerais, o do-
cumento explica:
Contudo, como se pode constar abaixo, a Portaria pouco interfere nas prá-
ticas do candomblé e demais expressões afro-religiosas, já que suas orientações
não representam embaraçamento dos ritos tradicionalmente adotados, além das
orientações corresponderem a cuidados que o povo de terreiro já costuma man-
ter no trato com os animais destinados ao abate:
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Art. 16. No abate sob preceitos religiosos deve ser observado o que
segue: I - os ruminantes devem ser imobilizados em boxes de conten-
ção adaptados à prática da degola e somente poderão ser liberados
do equipamento de contenção quando apresentarem sinais de insensi-
bilidade; II - o corte deve ser único e com lâminas bem afiadas; e III - a
velocidade da linha de abate de aves domésticas sem prévia insensi-
bilização deve ser regulada de modo a minimizar a agitação das aves.
(BRASÍLIA, 2021, Portaria, nº 365, Cap. IV, Art. 16, Incisos I, II e II).
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■ Inventário dos Povos de Terreiro do Ceará ■
da comunidade; compra nos circuitos locais e regionais de mercado de alimentos
ou produção no espaço do terreiro ou em terrenos contíguos ou extensivos a ele.
Para verificar a origem dos insumos alimentares que abastecem os terreiros no Ce-
ará, a equipe de pesquisa interrogou os religiosos sobre as formas de produção de
alimentos no território do terreiro, que, por sua vez, também está ligada aos dife-
rentes usos produtivos do solo. Vejamos a seguir algumas das respostas obtidas.
Ainda interessados em saber a origem dos alimentos que circulam nos ter-
reiros e que garantem a segurança alimentar de tanta gente, os pesquisadores
quiseram saber se parte desses alimentos eram produzidos nos terreiros e se o
solo dos mesmos tem sido utilizado para o cultivo de alimentos.
Quando interrogados se existia espaço para plantio de alimentos no terreiro,
em números absolutos, 305 deles (61,7%) responderam não. Portanto, apenas
189 (38,3%) dos terreiros do Ceará inventariados possuem espaço onde é possí-
vel desenvolver o plantio de alimentos como possibilidade produtiva. Não é de-
mais relembrar que, entre os muitos insumos utilizados nos ritos dessas religiões,
estão vários tipos de frutas, legumes, tubérculos, raízes, farinhas, grãos, óleos,
mel, azeites, bebidas, água, pós derivados de plantas, açúcar, sal, temperos, ani-
mais variados, peixes, ovos, folhas, hortaliças, ervas, verduras etc.
Também vale destacar que, na grande maioria das vezes, esses insumos, de-
pois de receberem complexos tratamentos rituais, se convertem em preparações
culinárias muito próximas do estado in natura, mantendo-se minimamente pro-
cessados, já que as técnicas de preparação das comidas, além de rituais são,
majoritariamente, artesanais e não envolvem procedimentos que alterem profun-
damente a sua forma, cheiro, sabor e propriedades nutricionais.
Como alimentos in natura, estamos considerando a mesma compreensão ado-
tada pelo Guia Alimentar para a População Brasileira, que assim descreve esse tipo
de alimentos: “Alimentos in natura são aqueles obtidos diretamente de plantas ou
animais (como folhas e frutos ou ovos e leite) e adquiridos para consumo sem que
tenham sofrido qualquer alteração após deixarem a natureza”. (Brasília, 2014, p. 25).
53
Da mesma forma, aqui também compartilhamos a mesma compreensão de “alimen-
tos minimamente processados” adotada pelo Guia que assim os descreve: “Alimen-
tos minimamente processados são alimentos in natura que, antes de sua aquisição,
foram submetidos a alterações mínimas. Exemplos incluem grãos secos, polidos e
empacotados ou moídos na forma de farinha, raízes e tubérculos lavados, cortes de
carne resfriados ou congelados e leite pasteurizado” (Brasília, 2014, p. 26).
Relacionando-se as recomendações do Guia com as especificidades do coti-
diano alimentar da vida nos terreiros, é possível notar que ali existe um modo pró-
prio de existência que supervaloriza a importância dos alimentos in natura, já que
é nessa forma que eles concentram todo o axé (força vital) existente e disperso nos
diferentes elementos da natureza. Um exemplo prático dessa cultura alimentar são
as preparações culinárias (comidas votivas) como o abará, o omolocum, o acaçá, o
acarajé, o ebô etc.
Na verdade, no que diz respeito às religiões de matrizes africanas e afro-indí-
genas - consideradas aqui como expressões religiosas resultantes das diferentes
interações entre elementos de origem africana e ameríndia -, por serem religiões
de culto à natureza, a grande maioria dos seus ritos se expressa através de uma
relação com essa natureza de forma a modificá-la o mínimo possível, já que um
dos objetivos dos ritos é extrair a energia/força vital (axé, ngunzo, moyo) contida
nas suas formas e conteúdos, conforme presentes na natureza.
Nesse sentido, assim como se faz com os alimentos, também no uso das er-
vas, por exemplo, o estado in natura é sempre maximamente preservado. Exemplo
disso são os banhos rituais – presentes em quase todas essas expressões religiosas
– geralmente preparados à base de ervas frescas, evitando-se sua cocção, o que
poderia alterar seus princípios bioquímicos, geralmente lidos como a materialidade
da sacralidade, portadora das propriedades espirituais. Ou seja, para esses religio-
sos, a materialidade da sacralidade do banho de ervas está ligada diretamente à
extração do néctar, do sumo da planta, motivo pelo qual os ritos buscam preservar
o máximo das suas formas e propriedades naturais, pois é justamente nelas que
está a representação daquela sacralidade ligada aos encantados, às divindades etc.
E o que se fala das ervas, pode-se aplicar aos minerais, aos animais e aos alimentos,
de uma forma geral.
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■ Inventário dos Povos de Terreiro do Ceará ■
Portanto, os dados coletados acerca da utilização do terreno para a produção
de alimentos - já que tanto o culto quanto a alimentação do grupo prima por ali-
mentos in natura -, revelam muita coisa. Uma delas é a predominância dos terrei-
ros em regiões urbanas ou periurbanas, onde o valor dos terrenos é mais elevado
e questões fundiárias ligadas, por exemplo, à especulação imobiliária, impedem
sacerdotes e sacerdotisas de terem um terreno mais amplo no entorno do seu ter-
reiro. Essa realidade é comprovada através dos dados referentes à caracterização
física, fundiária e infraestrutural dos terreiros, devendo-se lembrar que a maioria
deles está localizada em áreas urbanas e periurbanas, o que influencia diretamen-
te no tamanho do terreno, do qual dependeria seu uso para plantio.
De qualquer forma, uma coisa é dispor de terreno compatível com a produção
de alimentos, outra é, de fato, fazer uso desse terreno para essa produção. A de-
cisão de produzir ou não, por sua vez, também está ligada a diferentes questões.
Nesse sentido, considerando-se o contexto anterior à pandemia de Covid-19,
quando interrogados sobre o uso efetivo do espaço para produzir alimentos,
apenas 24,5% dos terreiros (121 deles) afirmaram não fazer uso do terreno para
cultivo. Os demais afirmaram praticar o cultivo em alguma das modalidades de
Quintal Produtivo, Agricultura Familiar6 e outros. A predisposição dos religiosos
para explorarem o potencial produtivo do terreno, como se percebe, é grande.
Fato que poderia ser ainda mais bem aproveitado, caso houvesse alguma forma
de fomento e incentivo por parte do poder público.
Por outro lado, ao serem interrogados sobre o volume da produção nesses
espaços, apenas 15% afirmou produzir o suficiente para atender às necessidades
do terreiro, o que nos leva a perceber que essas unidades comunitárias ainda
dependem muito do mercado de alimentos e, consequentemente do fluxo de
dinheiro que entra através dos filhos-de-santo, dos clientes e dos amigos da casa.
Geralmente essa receita provém de doações, rateios, mensalidades e pagamen-
6 Nesse contexto, ao nos referimos à Agricultura Familiar, estamos compreendendo a comunidade-terreiro
também como uma unidade familiar, e como tal, nos apoiamos no Glossário da Agricultura Familiar que
assim define ‘unidade familiar’: “O conjunto composto pela família e agregados denominados, em seu
conjunto, como ‘agricultores familiares’, que exploram uma combinação de fatores de produção com a fina-
lidade de atender à demanda interna por alimentos e outros bens que contribuem para o abastecimento da
sociedade brasileira e na geração de divisas”. Deve-se recordar ainda que geralmente a “família-de-santo”
é composta, quando compreendida como uma família extensa, tanto pela família biológica da liderança
quanto a família religiosa e os agregados.
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to pelo serviços mágico-religiosos prestados. Isso quer dizer que, apesar de ali-
mentar muita gente, a receita de um terreiro é incerta, intermitente e oscilante,
o que repercute diretamente no fluxo intracomunitário de alimentos. Esse fato
ficou comprovado durante a pandemia quando muitas comunidades de terreiro
se viram sob risco real de insegurança alimentar, constatação feita pela equipe de
pesquisa que foi a campo recolher os dados. Houve mesmo relatos de gente de
terreiro passando fome, já que, até mesmo as cestas-básicas distribuídas durante
a pandemia nem sempre chegavam àqueles que mais precisavam.
A situação de insegurança alimentar percebida pela equipe de pesquisa du-
rante a pandemia não deve ser interpretada nem como uma regra generalizada e
nem como uma exceção resultante da crise aguda desencadeada pelos efeitos da
pandemia. Isso porque, se podemos afirmar – como vimos fazendo – que as religi-
ões afro-brasileiras são religiões nas quais se percebe uma cultura da abundância
de alimentos, da mesma forma é verdade que a circulação de alimentos nos ter-
reiros também depende das condições socioeconômicas dos seus membros e da
realidade socioespacial na qual essas comunidades estão inseridas.
Nesse aspecto particular, a pesquisa comprovou que grande parte dos ter-
reiros está situada em bairros periféricos ou periurbanos, muitas vezes com altos
índices de vulnerabilidade social e marcadores socioeconômicos reveladores da
pobreza generalizada e do descaso por parte do poder público. Some-se a isso,
os problemas estruturais de segurança pública existentes no estado do Ceará,
que também pode interferir na aquisição de alimentos por parte dessa popula-
ção. Isso faz com que os membros da comunidade religiosa estejam expostos às
mesmas vulnerabilidades que a população do seu entorno, inclusive em termos
de vulnerabilidade alimentar e nutricional.
Nesse sentido, o quadro revelado através da pergunta comentada acima –
sobre os usos do solo do terreiro para a produção de alimentos – manteve-se
relativamente estável mesmo durante a pandemia, já que 26,3% dos entrevis-
tados (130 terreiros) afirmaram que mesmo durante a pandemia, as áreas antes
cultivadas continuaram a sê-lo. Houve a queda de apenas um por cento no uso
para cultivo dessas áreas (25,9%), fato que denota o quanto o terreiro também
participa das redes de fontes de alimentos, inclusive durante períodos de crise
56
■ Inventário dos Povos de Terreiro do Ceará ■
aguda de acesso aos alimentos, como foi o caso da pandemia de Covid-19.
O uso do terreno como fonte de produção alimentar por parte de alguns
terreiros pode ser lido na perspectiva do valor atribuído ao lugar como território
no qual a vida se faz existir e adquire sentido. Isso porque, o lugar, convertido em
território pelas vivências que imprimem identidade mediada pelos ritos, faz desse
território uma das bases fundamentais para a reprodução material e simbólica do
grupo. Como já dissemos, o Decreto n° 6.040/07 chama nossa atenção para essa
dimensão da reprodução material e simbólica da vida dos povos tradicionais.
Também Muniz Sodré, no seu clássico estudo sobre as relações entre o terreiro e
a cidade, nos ajuda a entender essa relação fundamental entre o povo negro-bra-
sileiro afro-religioso e o terreiro, como base da reprodução material e simbólica
das suas formas de existência. Nas palavras de Sodré (1988):
57
E um dos “alcances” dessa expressão de território, quando falamos de terrei-
ros, é justamente a dimensão da produção de alimentos que assegurem a vida e
garantam a reprodução material (já que são literalmente consumidos) e simbólicos
(já que participam dos complexos rituais e litúrgicos do culto às divindades e ances-
trais) da comunidade.
Voltando aos terreiros do Ceará e às suas formas de utilizarem o terreno com-
preendido pelo terreiro, pode-se entender então que, caso o potencial produtivo
do terreno seja bem explorado, até mesmo durante uma crise aguda, na qual o flu-
xo de alimentos no mercado local seja prejudicado, a população ligada ao terreiro
terá assegurada a sua reprodução material e simbólica. É por esses – e muitos ou-
tros – motivos que toda e qualquer política de SAN voltada para as populações que
vivem e transitam pelos terreiros deve ser incentivada e amparada, seja pela popu-
lação mais abrangente, seja pelo poder público e pelas autoridades constituídas.
Sendo assim, as respostas dos entrevistados à equipe de pesquisa do Inven-
tário revelam uma predisposição e interesse dos religiosos que podem fazer dos
terreiros interessantes pólos de etnodesenvolvimento, caso haja apoio e fomento
por parte do poder público. Nessas condições, o apoio aos terreiros se desdobra-
ria em estratégias de combate à insegurança alimentar e nutricional, ao mesmo
tempo que estimularia o consumo de alimentos saudáveis, culturalmente adequa-
dos, in natura e minimamente processados, como recomenda o Guia Alimentar
para a População Brasileira (Brasília, 2014), ao apresentar os Dez Passos para uma
Alimentação Saudável, entre os quais estão:
58
■ Inventário dos Povos de Terreiro do Ceará ■
como fonte de força vital (axé, ngunzo, moyo). Justamente por isso, todo o trato com
os alimentos, desde a seleção, preparação, produção, até o consumo é cercado por
cuidados rituais amparados no conjunto dos saberes religiosos, também chamados
de “fundamentos”. Nesse sentido, o respeito e a preservação das tradições ligadas
ao uso dos alimentos também significa fazer frente às ondas modernizantes o que,
em última análise, significa garantir uma alimentação saudável e culturalmente ade-
quada a esses grupos, de acordo com as suas tradições religioso-alimentares.
Ora, o próprio Guia também recomenda algo que em muito se assemelha a
essas culturas alimentares, no que se refere tanto às formas de preparação dos
alimentos quanto às formas de consumo:
Outro aspecto relacionado com a segurança alimentar nos terreiros tem a ver
com o acesso à proteína animal, parte fundamental numa dieta alimentar balan-
ceada, saudável e nutritiva. Durante o período no qual foi realizada a coleta dos
dados para este Inventário, uma confluência de fatores ligados aos efeitos da
pandemia de Covid-19 e às políticas econômicas de um governo excessivamente
neoliberal, trouxe de volta a inflação, elevando consideravelmente o preço dos
alimentos e outros bens de necessidade básica. Os preços de aluguéis, combustí-
59
veis, transporte e energia, somados às taxas de desemprego e à redução salarial,
fizeram despencar o poder de compra da população brasileira, o que atingiu
diretamente as comunidades afro-religiosas que, como já se disse, têm no trato
com os alimentos uma das suas bases estruturantes.
Entre as diferentes categorias de alimentos que sofreram os efeitos da in-
flação, a proteína animal ocupou um dos patamares mais altos. Concomitante à
inserção da equipe de pesquisa em campo, os supermercados passaram a vender
partes de animais tidas como menos nobres no mercado de alimentos. Pés, pes-
coços e carcaças de frango, miúdos e ossos bovinos, cabeça de peixe e outros
mais, até então pouco vistos nas gôndolas das grandes redes de supermercados,
de repente se tornaram a única opção para famílias empobrecidas. Cortes mais
nobres, como picanha, eram exibidos nas prateleiras dos supermercados protegi-
dos por embalagens especiais e sensores de segurança, como se fizessem parte
de uma categoria valiosa de mercadorias.
A hierarquia das carnes nos supermercados refletia o agravamento do abis-
mo econômico e social que agora separava os setores sociais que podiam comer
carne daqueles que tiveram que se contentar com o consumo de ovos, produto
que se multiplicou de forma quase mágica nos supermercados de um dia para o
outro. As pilhas de bandejas de ovos de repente se tornaram a única alternativa
para as famílias mais pobres que perderam o poder de compra. Uma misteriosa
alteração no conteúdo interno dos ovos, que visivelmente se tornaram mais ralos
durante a pandemia, denunciava as tentativas do setor produtivo de abastecer
um mercado desregulado de proteína animal, do qual até mesmo as aves se tor-
naram vítimas, ao serem forçadas a produzirem mais em menos tempo, face cruel
de um capitalismo que não respeita nem mesmo os ritmos da natureza.
Enquanto isso, em alguns terreiros que mantém o abate religioso de animais
como parte fundamental dos seus ritos, as comunidades conseguiam assegurar o
consumo de carne nobre e saudável aos membros das suas comunidades, já que
nessas expressões religiosas, o sacrifício de animais está intrinsecamente ligado à
produção de alimentos. Mais uma prova de que o incentivo à criação de animais
nesses territórios poderia representar uma inteligente política de SAN que atingi-
ria expressivos setores sociais.
60
■ Inventário dos Povos de Terreiro do Ceará ■
Sabe-se que em grande parte dos terreiros, o culto às divindades, ancestrais
e entidades espirituais inclui o abate ritualizado de aves, peixes, caprinos, ovinos,
bovinos e outras categorias de animais comestíveis. Há terreiros em Fortaleza, por
exemplo, que abatem até três bois ao longo do ano, fazendo com que, ao menos
durante a semana subsequente ao rito, a comunidade tenha carne em fartura e
de qualidade para se alimentar. Em alguns casos – infelizmente ainda poucos –,
todos os animais utilizados nos ritos provêm de criações mantidas pelas próprias
lideranças religiosas. Comumente, a criação é feita nas dependências do terreiro
ou em alguma propriedade de membros dele, que pode ou não ser contígua ao
espaço destinado às práticas religiosas. Mesmo sabendo-se que nem sempre os
animais utilizados nos ritos são criados pelos religiosos, convém verificar as res-
postas dos entrevistados a esse respeito.
Quando interrogados se criavam animais para consumo ritual e alimentar, até
momentos imediatamente anteriores à pandemia, 65,4% (323 terreiros) respon-
deram negativamente. Entre os 34,6%, (171) que afirmaram criar animais para
consumo ritual e alimentar se destacam, decrescentemente, os seguintes animais
criados: 50,3 % (89 terreiros) criavam aves (galinhas, capote/galinha d’angola/
guiné, patos, perus, pombos e outros); 13,6% (24) afirmaram criar pequenos rumi-
nantes como bodes, cabras, ovelhas e carneiros; 8,5% (15) disseram criar suínos,
como porcos e leitões, entre outros tipos de animais criados em menor escala. O
cruzamento desses dados com as cidades nas quais foram coletados poderá indi-
car as regiões que mais criam ou plantam, ampliando nossa compreensão acerca
do potencial produtivo dos terreiros.
Os números revelam o quanto esse tipo de criação ainda pode ser ampliada,
caso o poder público realmente tenha interesse no incentivo ao combate à fome e à
desnutrição neste grupo social específico. Isso porque, se o abate religioso é parte in-
dispensável para a reprodução material e espiritual da sua forma de vida, a criação de
animais está diretamente atrelada a esse modo tradicional de ser e estar no mundo,
devendo-se, portanto, ser incentivado, como reza o Decreto n° 6.040, no seu Artigo
3°, ao tratar dos Objetivos Específicos da Política Nacional de Desenvolvimento Sus-
tentável dos Povos e Comunidades Tradicionais. Um dos objetivos dessa política é:
“Apoiar e garantir a inclusão produtiva com a promoção de tecnologias sustentáveis,
61
respeitando o sistema de organização social dos povos e comunidades tradicionais,
valorizando os recursos naturais locais e práticas, saberes e tecnologias tradicionais”.
(Brasília, 2007). A criação de animais nos terreiros, portanto, poderia ser uma opor-
tunidade ímpar para que a política preconizada pelo Decreto mostrasse sua eficácia.
No que concerne aos dados recolhidos pela equipe do Inventário, esse qua-
dro de criação de animais destinados aos usos rituais – e que na maioria das vezes
vão parar no prato dos membros da comunidade –, foi fortemente prejudicado
pela pandemia, já que 69,6% dos entrevistados (344) afirmaram não ter continu-
ado ou começado a criá-los durante a pandemia, fato que reforça, ainda mais, a
necessidade de políticas públicas de Estado, voltadas para o incentivo e fomento
a essas práticas, de modo que elas resistam, até mesmo a grandes crises, como a
enfrentada durante aqueles difíceis anos de 2020 e 2021.
Por outro lado, se houve quem interrompesse a criação por causa da pan-
demia, também houve quem começasse a praticá-la ou a intensificasse naquele
mesmo período. A equipe do Inventário constatou, por exemplo, que em uma
segunda pergunta, 30,4% (150) respondentes disseram ter começado ou conti-
nuado a criar após a eclosão da pandemia, fato que pode ter ligação com uma
estada mais prolongada no terreiro em função do lockdown. Entre a primeira e
a segunda questão, a respeito da criação de animais, percebe-se, portanto, um
decréscimo de gente criando animais, já que antes da pandemia, eram 171 ter-
reiros que criavam e, ao final da pesquisa, eram apenas 150, contabilizando-se,
portanto, 21 terreiros a menos. Do conjunto de respostas a essas duas questões
conclui-se, então, que (i) como era de se prever, a pandemia prejudicou signifi-
cativamente a criação de animais entre o povo de terreiro do Ceará; (ii) a criação
de animais entre pessoas de terreiro, além de estar diretamente relacionada com
estratégias de soberania alimentar, também pode reforçar seus laços com o ter-
ritório, evitando fluxos de êxodo em direção aos grandes centros urbanos, que
muitas vezes pode resultar na pauperização de quem migra.
Convém explicar também que naqueles momentos de pandemia, muitos ter-
reiros passaram a realizar apenas ritos internos, com a presença de pessoas limitada
aos membros do núcleo familiar e que, na maioria das vezes, habitavam nas mes-
mas instalações do terreiro. Notou-se, então, uma intensificação maior da convivên-
62
■ Inventário dos Povos de Terreiro do Ceará ■
cia entre as pessoas e os animais, assegurando àqueles que estavam mais estreita-
mente ligados ao terreiro, o acesso à proteína animal através dos bichos criados e
abatidos, importante estratégia de segurança alimentar e nutricional.
O Inventário também revela que, entre os animais criados nos terreiros, as aves
são os mais comuns, o que se percebe através dos 59,6% (90 deles) que afirmaram
criar esse tipo de animal que, diga-se de passagem, são os mais utilizados nos ritos
dessas religiões e também mais servidos nas mesas dos terreiros. Tanto nos ritos
como na mesa, as aves servem a propósitos religiosos e sociais, seja para os membros
da família ou da comunidade religiosa durante a semana ou para clientes e visitas em
dias de consulta ou festa. Alguns aspectos próprios da rotina ritual/religiosa dos ter-
reiros podem nos ajudar a entender a predominância das aves, já que esses animais
participam diretamente de ritos de limpeza e purificação ritual, assim como de qual-
quer outro rito mais complexo como fortalecimento da cabeça, iniciação, confirma-
ção periódica da iniciação, momentos festivos, ritos de passagem e mortuários, etc.
Ou seja, praticamente todo rito minimamente complexo das religiões afro-brasileiras
requer o uso de aves, fato que reforça a importância da sua criação.
Em termos de criação, às aves se seguem os caprinos (10,6% ou 16 terreiros)
e os suínos (9,9% ou 15 terreiros). Houve também quem dissesse que, mesmo não
utilizando os espaços do terreiro para criar esses animais, os criava em espaços
exteriores a ele. Contudo, apenas 14,4% ou 71 terreiros foram dessa opinião,
contra 85,6% (423 terreiros).
Como se percebe, quando os religiosos criam animais destinados ao consumo
ritual e alimentar, isso ocorre nas próprias dependências dos terreiros, o que aponta
para um grande potencial produtivo e de etnodesenvolvimento nesses territórios.
E, se tem animais, tem proteína para toda a comunidade. Afinal de contas, como
a decisão do STF no dia 28 de março de 2019, acerca da constitucionalidade do
abate religioso de animais nessas religiões, confirmou: o sacrifício de animais nes-
sas religiões está intrinsecamente ligado à soberania e segurança alimentar das
pessoas ligadas a elas. Todavia, além dos alimentos de origem animal, uma série
de outros também compõe a diversificada dieta afro-religiosa, motivo pelo qual a
equipe de pesquisa também buscou levantar informações sobre eles. Parte dessas
informações são apresentadas e analisadas na seção que segue.
63
Tipologia, trato e gerenciamento dos alimentos
nos terreiros do Ceará
64
■ Inventário dos Povos de Terreiro do Ceará ■
Geralmente, nesses dias, o papel do terreiro como provedor de alimento é infla-
cionado, uma vez que, além dos membros da comunidade, também se costuma
receber visitas, clientes e amigos da casa. Já 13,2% dos respondentes, o equiva-
lente a 65 terreiros, afirmaram cozinhar mais apenas nos dias de festas, seguidos
de 7,7% (38) que disseram fazer mais comidas nos dias de festa e no dia-a-dia.
Desses dados, pode-se inferir que, além de funcionar como provedor de ali-
mentos no dia-a-dia da comunidade, em dias de funções, sessões e festas, essa
responsabilidade do terreiro se insufla ainda mais, motivo pelo qual a vivência
religiosa poderá ser vista para além da própria prática religiosa cotidiana já que,
ao se reunirem para vivenciar sua fé, essas pessoas também têm como certo que
no terreiro terão comida. Cabe lembrar que, como já foi sinalizado, em termos da
qualidade dos alimentos servidos no terreiro, há uma grande confluência entre
as recomendações do Guia Alimentar Para a População Brasileira e as comidas
servidas nos terreiros, prova disso é o fato de predominar uma dieta à base de
alimentos in natura e minimamente processados, como também recomenda o
Guia. Vejamos, então, a natureza das comidas preparadas e servidas nos terreiros.
65
preparações culinárias compondo a base e o cardápio praticados nos terreiros. O
fato é que, mesmo havendo uma grande diversidade em termos de cardápio, há
coisa que se repete e há coisa que está restrita a uma determinada região, como
acontece com a batata-inglesa e o churrasco no Rio Grande do Sul, o Arroz na
Paraíba e o Baião-de-Dois no Rio Grande do Norte. Todas essas preparações são
apresentadas como oferendas nas “Mesas-de-Santo”, contudo, cada uma delas
numa região específica do Brasil, sem muito progresso em termos de expansão
para além da região onde é praticada.
Diferentemente de outras regiões do Brasil, onde nem sempre toda a car-
ne oriunda dos ritos, por exemplo, é consumida, no caso do Ceará é possível
perceber que a maioria dos terreiros costuma consumir os mesmos tipos de ali-
mentos envolvidos nas práticas rituais. Contudo, o que se consome nos terreiros
não se resume àquilo que é utilizado nos ritos. Entre os alimentos consumidos nos
terreiros – independentemente de serem empregados nos ritos ou não – estão:
arroz, feijão, mandioca/macaxeira/aipim, farinha de mandioca, fubá ou farinha de
milho, carne bovina e suína, frango, caprino (bode, cabra etc.), peixes, verduras,
frutas e outros, tipos de alimentos constantes das perguntas do Inventário.
Algumas comidas citadas pelos religiosos não participam diretamente dos
ritos, mas geralmente são consumidas dentro ou fora do terreiro em momentos
distintos, como o macarrão. Outros ainda, tanto fazem parte dos ritos – sendo,
portanto, consumidos nos terreiros – quanto compõem a dieta cearense mais cor-
riqueira, sendo facilmente encontrados, por exemplo, em restaurantes, comidas
de rua e mercados tradicionais, como o carneiro. Já a categoria “outros”, citada
por 124 dos terreiros inventariados, abriga uma diversidade de alimentos que não
necessariamente compõem a dieta das divindades, mas que faz parte das dietas
nordestinas e cearenses e que geralmente aparecem na mesa dos terreiros, como
o baião-de-dois que, no Ceará ou em outros estados nordestinos, só excepcional-
mente aparecerá como oferenda7.
7 Sobre o uso do Baião-de-Dois como oferenda nas religiões afro-ameríndias no Rio Grande do Norte (RN),
como ainda não existem pesquisas sobre essa prática, recomendamos que se veja o documentário “Baião
de Mestre” (Direção e Produção: Pai Duda Juremeiro e Matheus Gomes), produzido pelo Terreiro de Jurema
Mestra Maria Farrapo (Natal – RN), com a colaboração do Instituto Terreiros do Futuro – Educação e Identi-
dade, Lei Aldir Blanc, Fundação José Augusto e Estado do Rio Grande do Norte. (Natal, 2021). Disponível
em <https://www.youtube.com/watch?v=KZUqBIQS7y8>. Acesso em: 04 de jan. 2022.
66
Distribuição de comida no entorno do terreiro
67
entorno é apenas mais uma das práticas de redistribuição alimentar dos terreiros. E
quando isso acontece, eles passam a atingir um público ainda maior de pessoas a
serem alimentadas já que, na maioria das vezes, quem recebe o alimento não per-
tence à comunidade, como demonstram os dados reproduzidos abaixo.
A pesquisa do Inventário revelou que, entre as pessoas para quem os terreiros
geralmente costumam distribuir alimentos, estão: adeptos e família-de-santo, mem-
bros da família/parentes e moradores do bairro. Como já se disse, essa relação entre
o terreiro e seu entorno através da distribuição de alimentos já foi constatada em
pesquisas há muito tempo, podendo-se dizer que tal prática faz parte do ethos desse
povo. Conforme a própria pesquisa confirmou, por fazer parte do seu modo de vida,
essa prática não chega a ser interrompida nem mesmo em períodos de grande crise,
como os dados demonstram, já que 57,9% dos respondentes, o equivalente a 286
terreiros, afirmaram ter continuado a distribuir alimentos no seu entorno, mesmo du-
rante a pandemia. Já 42,1% (208) afirmaram ter interrompido essas práticas a partir
da eclosão da pandemia, momento no qual o fluxo de alimentos diminuiu, em parte
pela interrupção dos serviços religiosos, em parte pela perda do poder de compra da
população em geral e em parte pelo abandono do poder público que nem sempre
adotou políticas e estratégias de SAN eficazes junto a essa população.
Não se deve esquecer que, como a maior parte dos alimentos que circulam
no terreiro provém das doações, rateios ou pagamento por serviços mágico-reli-
giosos prestados pelas lideranças, nesse período, com a imposição do distancia-
mento social por parte das autoridades políticas e sanitárias, o fluxo de pessoas
nos terreiros diminuiu e, consequentemente, o fluxo de alimentos também arre-
feceu, prejudicando não somente a comunidade diretamente ligada ao terreiro,
como as pessoas que vivem no seu entorno. Isso demonstra, ainda mais, o quanto
o terreiro é importante nas regiões onde estão localizados, exercendo um eleva-
do papel social em termos de redistribuição alimentar.
68
■ Inventário dos Povos de Terreiro do Ceará ■
tudo, sendo que os atos de dar, receber e retribuir comida podem ser encontra-
dos praticamente em todos os aspectos da vivência religiosa da comunidade.
Portanto, a lógica da troca e o princípio da reciprocidade também se aplicam ao
trato com os alimentos. Dar, aceitar e retribuir comida e bebida são atos que de-
finem, inclusive, as relações do terreiro com o seu exterior. Portanto, receber doa-
ções de alimentos e distribuí-los é algo que o povo de terreiro compreende bem.
A relação entre o funcionamento do terreiro (fluxo de pessoas e realização
dos ritos) e a redistribuição alimentar pode ser percebida com facilidade quando
verificamos os dados referentes ao recebimento de doações de alimentos por
parte do terreiro. De fato, quando interrogados se antes da Pandemia “Seu terrei-
ro/tenda/casa recebia doações de alimentos?” 68,4% (338) responderam “não” e
apenas 31,6% (156) disseram “sim”.
Entre os que responderam sim, 63 terreiros disseram receber doações de ali-
mentos apenas esporadicamente, nos períodos de festa. Quando interrogados “De
quem recebiam as doações?” 124 terreiros disseram receber de mais de uma fonte
e 108 afirmaram receber apenas doações individuais, entre cujos doadores se inclui
consulentes, membros da casa, moradores do bairro etc. Já as ONGs e a sociedade
civil só aparecem nas últimas fileiras, não consistindo numa categoria muito expres-
siva de doadores nesse contexto. Já no tocante às políticas públicas de redistribui-
ção de renda entre as comunidades tradicionais de terreiro, quando interrogados
se conheciam o Programa Bolsa Família de Terreiro, 89,5% (442 terreiros) afirmaram
não conhecer o Programa, em contraposição a apenas 10,5% (52 terreiros) que
tinham conhecimento da existência do programa. Estes dados são muito impor-
tantes, já que revelam tanto a falta de acesso aos programas de redistribuição de
renda entre essas populações específicas quanto a falta de informação sobre os
mesmos. No que se refere a este Programa específico, trata-se de uma política que
acabou durante o governo vigente à época da pesquisa e que pode não ter tido
adesão dessa população, justamente por conta da pouca divulgação, e não porque
os terreiros não precisassem dela. É imperioso admitir, então, que políticas de SAN
também estão atreladas ao direito à informação.
No que concerne às práticas de acesso e redistribuição de alimentos, o con-
junto de respostas às perguntas é revelador. Primeiro pelo fato de percebermos o
69
quanto o terreiro tem funcionado como centro de convergência para onde afluem
os alimentos convertendo-se, consequentemente, em polo de redistribuição ali-
mentar, como já explicamos acima. Por outro lado, percebe-se que a rede de doa-
dores ainda é majoritariamente composta pelos membros da comunidade religio-
sa, expondo o vácuo deixado pelo poder público e pelas ONGs nesse particular.
Aqui se percebe um potencial campo de atuação do Estado que, considerando
o volume de pessoas que circulam pelos terreiros e considerando as políticas
oficiais de SAN, poderia ser bem mais atuante junto a essa categoria de Povos
Tradicionais, até para fazer valer o que reza o Decreto n° 6.040/07.
Há, porém, que se reafirmar que as políticas de SAN junto aos terreiros, mais do
que de governo, precisariam ser de Estado. O que justifica essa necessidade é o fato
de nos momentos de grande crise, esse povo ficar exposto, ainda mais, a situações
de vulnerabilidade alimentar e nutricional. Essa vulnerabilidade agravada por perío-
dos de crise foi evidenciada pela pesquisa, ao interrogar os religiosos se o terreiro
“Continua recebendo ou passou a receber doações de alimentos durante a pande-
mia?” A esta pergunta, a grande maioria (238 terreiros) afirmou que não. Nesse que-
sito, mesmo tendo havido respostas positivas à questão (123 que responderam ter
continuado a receber doações individuais e 69 que afirmaram ter passado a receber
de “outros”), nota-se uma grande lacuna do poder público no grupo dos doadores,
sendo também ainda muito débil a atuação das ONGs e outros setores da sociedade
civil. Isso demonstra, ainda mais, a necessidade de se pensar e implementar políticas
públicas de SAN voltadas para essas populações. Até porque, como o resultado da
pesquisa também demonstrou, a grande maioria dos terreiros (327) não participa
dos programas sociais mais conhecidos (Mesa Brasil, Distribuição de Cestas Básicas,
Programa de Doação de Sementes e/ou mudas, Cozinha Comunitária, Programa de
Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar e Programa de Cisternas).
Ademais, 84,8% (419) dos entrevistados afirmaram não possuir no terreiro/
casa/tenda espaço utilizado para complementação de renda. O que significa que a
principal fonte de renda das lideranças dos terreiros do Ceará, para fazer o sustento
da comunidade religiosa, ainda é a prestação de serviços mágico-religiosos, além
de garantir a segurança alimentar e nutricional de todos que circulam pelo terreiro e
no entorno dele. Vê-se então que, entre o povo de terreiro, sobra generosidade em
70
■ Inventário dos Povos de Terreiro do Ceará ■
matéria de alimentos. Porém, a falta de políticas que os apoie nessa fundamental
tarefa tem dificultado significativamente um melhor desempenho dessa sua função
social. Principalmente diante de crises como a Pandemia, já que, interrompido o
fluxo de pessoas também se interrompe a fonte de alimentos, criando um proble-
ma para toda a rede de pessoas e famílias que dependem do terreiro para comer.
Esperamos, sinceramente, que este Inventário também possa ser acolhido
como instrumento e subsídio para se pensar políticas de SAN junto aos Povos Tra-
dicionais de Terreiro do Ceará. Até porque, se tem comida no terreiro, tem comida
para toda a rede de pessoas que com ele tem alguma forma de vínculo. E isso inclui
seu entorno que, na maioria das vezes, é habitado por famílias de baixa renda e
expostas a toda sorte de vulnerabilidade social, entre elas a alimentar e nutricional.
Pensar o mundo dos terreiros, portanto, é pensar muito mais do que religião. É
pensar, também, políticas de Segurança Alimentar e Nutricional. E este Inventário
vai mais além: pensar terreiros é pensar Soberania Alimentar e Etnodesenvolvimen-
to, caminhos seguros para uma vida mais saudável e uma sociedade mais justa.
71
Nota de campo
Weverton Crispim - Pesquisador
O
Inventário dos povos de terreiro do Ceará pra mim, veio como óculos
escuros para quem tem astigmatismo. Sem ele a gente até consegue ver,
mas é tudo meio embaçado e sem cores. Participar deste projeto me fez
ver várias facetas que nem imaginava dentro da imensa diversidade que
é povo de terreiro. Houve várias conversas, figuras e histórias interessantes, mas
o assassinato de uma Mãe de Santo, dois dias após minha visita à casa dela, foi o
que mais me marcou. Aquela mulher que representava em um só indivíduo tantos
sujeitos marginalizados: negra, lésbica, umbandista e periférica, uma combinação
que resultou na quase inevitável morte violenta causada por um Estado que não
se importa se continuamos vivos. Foi morto aquele sorriso fácil e animação conta-
giante que já sonhava com a união de vários terreiros em prol de direitos que ela
descobriria naquele mesmo dia. Foi morta uma mãe, foi morta uma esposa. Foi
morta, como tantas outras, todos e todos os dias.
As visitas e conversas escancararam várias fragilidades nas políticas públicas
para essa parcela da sociedade, marginalizada, racializada e esquecida. Ver diver-
sas lideranças que não eram alfabetizadas e talvez o que seja pior, pessoas com
ensino médio completo que tinha dificuldades com leitura e escrita, mostra que o
direito à educação não lhes foi garantido.
A descrença generalizada foi algo que permeou quase todas as entrevistas
realizadas. “A esperança é a última que morre, né?”, frase repetida diversas vezes
por uma mãe de santo, resume muito o sentimento de cansaço e desalento da
grande maioria do povo de terreiro que visitei, pessoas que já não aguentam mais
promessas, falsas esperanças e poucos avanços que só minam a capacidade de
luta por vias “governamentais”. O relato de uma senhora que me disse ter parti-
72
■ Inventário dos Povos de Terreiro do Ceará ■
cipado de várias reuniões, já ter viajado para vários estados pautando os direitos
dos povos de terreiro e que depois de tudo, de sempre “bater na trave” e sempre
“morrer na praia” tinha desistido. Talvez por esse motivo, o Inventário tenha che-
gado para alguns como algo bem menor do que realmente é.
O terreiro acolhe todos que não são aceitos. É o único local onde muitos con-
seguem viver sua espiritualidade. Para LGBTQIAP+1, sujeitos que as religiões he-
gemônicas muitas vezes tratam como desviados e que precisam de recuperação,
o terreiro abre seus braços. Conheci homens e mulheres trans que são lideranças
de seus terreiros, isso mostra o quão acolhedor esse espaço pode ser.
Quando descobri que uma canção de ninar que minha avó cantava para mim
e para todas as crianças da família era um ponto de Umbanda, percebi o quanto
as tradições dos nossos mais velhos bebem dos conhecimentos do terreiro e
vice versa, pois é praticamente impossível separar nossa construção enquanto
sociedade das diversas vivências negras e indígenas que também permeiam o
terreiro. A cozinha como coração das casas/famílias é outra imagem refletida, é
onde o cuidado, amor, socialização e aprendizado acontecem, tudo passa pela
cozinha, ou seja, pelo alimento, desde a escolha, o preparo e o ato de servir,
resgatar e fortalecer essa característica de nossa cultura é fundamental, prati-
camente todas as casas tinham seus espaços de produção de alimento, mesmo
que fosse uma pequena horta de temperos ou um pequeno espaço para suas
ervas medicinais e de axé, soberania e seguridade alimentar estão ali de forma
muito mais digerível para todos.
1 Sigla que denota de forma abrangente as várias identidades de gênero e orientações sexuais as pessoas.
Cada letra representa uma identidade: Lésbicas, gays, Bissexuais, transsexuais e travestis, queers, intersse-
xuais, assexuais, panssexuais e + para todas as possibilidades de identidades.
73
Trabalho, economia e
produtividade dos Povos de
Terreiro do estado do Ceará1
“O povo que conhece de onde vem sabe para onde quer ir.”
Provérbio Bantu
O
s povos de terreiro organizaram-se em todo o território nacional com a
perspectiva de luta e resistência, estrategicamente para a sobrevivência
dos seus descendentes e de todo o seu legado. Inicialmente, a maioria
das comunidades estruturam a sua organização em torno de um tronco
linguístico, sendo a linguagem, o elemento basilar das populações originárias de
diversos grupos étnicos africanos que se uniram com a perspectiva de remontar
as estruturas familiares dilaceradas pelo escravismo criminoso.
Esse cenário permitiu que a cultura, os saberes, as tradições e as cosmologias
fossem estruturados nesses espaços que denominamos como verdadeiras ilhas
de África no Brasil. Nessa perspectiva, apontamos os terreiros como um território
de reconstituição de parte do legado africano que aqui chegou no contexto da
diáspora, ou seja, falamos dos valores civilizatórios que nos levam a compreender
que essa estrutura vai para além da perspectiva religiosa. Na verdade, tratam-se
de organizações de um contínuo civilizatório, do modus de vida, de produção, ou
seja, que possuem o seu próprio modelo de desenvolvimento.
1 Linconly Jesus Alencar Pereira - Babalorixá e Professor. Doutor em Educação pela Universidade Federal da
Paraíba (UFPB), mestre em Educação Brasileira pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Graduado em
Pedagogia pela Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA) e Licenciado em Física pela (UFC). É professor
adjunto da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira (UNILAB/CE), no Instituto
de Humanidades, curso de Pedagogia.
74
■ Inventário dos Povos de Terreiro do Ceará ■
Tendo em vista a história, as práticas das medicinas tradicionais, as cosmo-
percepções2 (OYEYUMI,2002) de como lidar com os seres vivos e não vivos, com
a terra e os elementos da natureza, as filosofias e a relação com a ancestralidade,
nos possibilitam compreender que essa gama de saberes e estratégias de vida
se tornam potentes para a estruturação desses modelos de convivência com a
natureza. Essas relações possuem suas próprias dinâmicas que são estabelecidas
a partir da compreensão que os povos de terreiro têm uma cosmobiointeração
(PEREIRA, 2021), ou seja, um modelo de vida interconectada, compreendendo a
vida em um cenário hierárquico em que todos têm as suas funções de atuação,
em contexto orgânico e interligados com a perspectiva da ancestralidade, distan-
ciando-se da exploração capitalista e fetichista.
A organização social e comunitária da família no terreiro foi importantíssima
para os processos de sobrevivência das populações negras, tendo em vista que
esse espaço era/é um grande sustentáculo de força dentro das comunidades pe-
riféricas e que não tinham acesso a políticas públicas. Essas matrizes culturais e re-
ligiosas dinamizaram as práticas sociais dos terreiros, propiciando, no cenário de
urbanização da sociedade brasileira, mais especificamente no pós escravização, o
enraizamento dos primeiros terreiros que resistiram e resistem até hoje.
Essa tarefa foi muito bem desenvolvida em todo o território nacional, fazen-
do com que os terreiros assumissem características específicas de acordo com
a influência dos grupos étnicos africanos que foram vendidos pelo escravismo
criminoso para as localidades onde iriam trabalhar nas fazendas de monocultura
(açúcar, café, algodão, cacau) ou desenvolver atividades como a pecuária exten-
siva, a mineração ou atividades similares que possuíam domínios já trazidos nos
corpos acorrentados em África. Dessa forma, os terreiros assumem características
específicas desses povos, das suas atividades de subsistência, das suas dinâmicas
de vida nos contextos regionais.
Essa análise se intensifica com a compreensão das diversas matrizes indígenas,
que em determinados territórios, se juntaram aos/as africanos/as descendentes de
escravizados/as ensinando-os os segredos da terra, possibilitando a adaptação de
2 Cosmopercepções - Traduzido através da expressão “world-sense” por “cosmopercepção” por entender que a
palavra “sense”, indica tanto os sentidos físicos, quanto a capacidade de percepção que informa o corpo e o pensa-
mento. A palavra “percepção” pode indicar tanto um aspecto cognitivo, quanto sensorial. E o uso da palavra “cos-
mopercepção” também busca seguir uma diferenciação – proposta por Oyěwùmí – com a palavra “worldview”,
que é, usualmente, traduzida para o português como “cosmovisão” e não como “visão do mundo” (N. da T.).
75
tecnologias sociais que foram potentes para a vida e permanência desses povos em
suas localidades, fossem elas em contexto urbano ou rural.
Durante esse processo de organização social e comunitária, os terreiros
abriram/abrem as suas portas para todos/as aqueles/as que buscavam/bus-
cam o encontro com a sua ancestralidade mítica, afro-brasileira ou afro-in-
dígena. Falamos da perspectiva de pessoas que não tiveram e até hoje nem
sempre têm a garantia ou o acesso às políticas públicas básicas para sua
subsistência, fazendo com que as porteiras dos terreiros se abram para todas
e todos que necessitavam/necessitam de orientação e acolhimento.
Com o intuito de compreender melhor esse processo de potencialização das
vidas dos povos de terreiro, tentaremos abrir caminhos para uma melhor eluci-
dação, a partir da estruturação desse texto destacando três grandes pilares: as
relações com o mundo do trabalho e de complementação de renda, o cenário
econômico diante das dinâmicas sociais ancestrais e as relações de produtividade
a partir do território semiárido.
Torna-se de suma importância evidenciar que essa análise está sendo cons-
truída para uma melhor elucidação dos/das leitores/as, mas que para os povos
de terreiro, as relações abordadas não se distanciam da cosmovisão, da rela-
ção com a natureza/espaço sagrado ou da ancestralidade, ou seja, elas não
são percebidas isoladamente, mas sim fazendo parte de um grande organismo
complexo, o planeta terra.
É crucial a compreensão de que essas relações são baseadas em outros
modelos de desenvolvimento, não apenas no eurocêntrico, constituído até
hoje como hegemônico. A partir dessa perspectiva, evidenciamos que não
apenas o modelo de exploração e devastação da natureza, o agroindustrial
e urbanocêntrico, contempla a realidade de todos os povos brasileiros, mas
sim, a partir de agora, fincamos os nossos referenciais de análise para a com-
preensão de um modelo de desenvolvimento social, comunitário, orgânico e
ancestral a partir da realidade dos terreiro do estado do Ceará.
Utilizamos a base de dados construída pela Associação ALAGBÁ, constituída
a partir no Inventário dos Povos e Comunidades Tradicionais de Matrizes Africanas
do Ceará, cuja coleta de dados foi realizada no ano de 2021, e que desenvolveu
76
■ Inventário dos Povos de Terreiro do Ceará ■
através de 18 pesquisadores/as, uma investigação quantitativa e qualitativa em 58
municípios deste Estado, adentrando a 494 comunidades de terreiros que repre-
sentam uma amostra inicial da diversidade desses povos no cenário afrocearense.
NS/NR
21,1%
Acima de 10 salários mínimos (acima de R$11.000,00)
77
Percebemos, a partir da figura 01, as consequências reais de todo o pro-
cesso de manutenção da colonialidade quando identificamos que 42,3% (209
dirigentes dos terreiros) dos/das pesquisados/as possuem uma renda de até 01
salário mínimo e 18,4% (91 dirigentes) possuem rendas de meio salário mínimo.
Interessante apresentarmos esses dados de forma combinada, tendo em vista
que totalizam 60,7% dos/das entrevistados (300 dirigentes), o que nos provoca a
levantar o seguinte questionamento: quais são as demais atividades produtivas
de complementação de renda?
Um ponto de demarcação crucial para essa análise é que a organização social
e comunitária do terreiro remonta à família extensa africana, ou seja, quanto mais
filhos/as, mais braços e pernas para a produção agrícola. Nos terreiros, quantos
mais adeptos/as ou filhos/as, mais axé (força vital), serão mais pessoas que os/
as pais/mães de santo terão para expandir o seu axé e os seus conhecimentos,
construindo a sua história na comunidade. É importante ressaltar que, para os
povos africanos e de terreiro, o axé está diretamente ligado à vida, à força e à
memória, ou seja, a morte só acontece para esses povos quando o ancestral é
esquecido e não deixou sua marca na história.
Nessa encruzilhada, tencionamos dois caminhos com o intuito de solucionar
esse ponto de análise que são as atividades desenvolvidas a partir dos trabalhos
com magias ou rituais religiosos conhecidos como obrigações, que também
atuarão nas formas de manutenção e desenvolvimento ou sustentação financei-
ra, complementando a renda dos/das dirigentes desses territórios. Outro ponto
são as atividades que apontaremos como iniciativas que partem do etnodesen-
volvimento da própria comunidade, sejam elas técnicas ou tecnologias sociais
que geram produtos ou serviços para a renda básica do terreiro.
A figura 02, logo abaixo, nos proporciona uma comparação sistemática da
renda declarada com a escolaridade, nos possibilitando evidenciar uma herança
desonesta do sistema colonial, reforçada pelo racismo estrutural, religioso e
epistêmico que expulsa as crianças e jovens de terreiro dos ambientes escola-
res, ainda na educação básica.
78
Figura 02: Escolaridade dos/das dirigentes de terreiro
Médio incompleto
8,7%
Sem escolaridade
Superior completo
Pós-graduação incompleta
79
Lançando um olhar mais sistemático para a realidade dos povos de terreiro no es-
tado do Ceará, nos ancoramos no artigo 205 da Constituição Federal de 1988 que nos
diz que “A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida
e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da
pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”.
Se somarmos os dados referentes aos dirigentes de terreiros que não tiveram acesso à
educação formal (8,7%, 43 dirigentes), com aqueles/as que tiveram no mínimo alguma
entrada na educação básica, em qualquer etapa (74,1%, 366 dirigentes), estamos falan-
do de 82,8%, ou seja, 409 dirigentes dos terreiros pesquisados.
Esse dado é muito semelhante ao apresentado anteriormente, referente a
renda declarada, 81,8%, ou seja, 404 dirigentes de terreiros, têm renda básica de
meio até dois salários mínimos, o que nos abre caminho para a afirmação de que
a escolaridade está diretamente relacionada ao acesso a renda, deixando essas
comunidades mais uma vez diante de uma grande vulnerabilidade, tendo em vista
o contexto familiar que circunda os/as sacerdotes/sacerdotisas.
Todo esse contexto, a partir da profissão exercida pelos/as dirigentes dos terrei-
ros, nos possibilita avançar na análise que envolve as fragilidades que esses povos
têm em relação ao acesso ou permanência nas políticas públicas básicas, como por
exemplo educação, assistência social, cultura, saúde, segurança e soberania alimen-
tar. Continuamos evidenciando esse cenário quando constatamos os dados esboça-
dos na figura 03 que apresenta um gráfico que demarca a profissão dos/as dirigentes.
80
■ Inventário dos Povos de Terreiro do Ceará ■
Os dados referentes às profissões dos dirigentes já reforçam as nossas análises
realizadas anteriormente em relação às categorias renda declarada e escolaridade.
Apontamos na descrição gráfica da figura 03, a realidade dos números que nos
expressam as profissões a seguir: serviços gerais 14,2% (28 dirigentes), sacerdócio
11,2% (22 dirigentes), autônomos 8,6% (17 dirigentes), profissionais do lar 8,6% (17
dirigentes), área administrativa 7,1% (14 dirigentes), área da saúde 7,1% (14 dirigen-
tes), área comercial 6,1% (12 dirigentes), artesanato 6,1% (12 dirigentes), agricultura
6,1% (12 dirigentes), gastronomia 5,1% (10 dirigentes), educacional 4,6% (09 diri-
gentes), motoristas 2,5% (05 dirigentes) e aposentados/as 2% (04 dirigentes).
Os dados apresentados nesse compilado, fazem-nos destacar em nossas
análises um dado evidente entre os dirigentes de terreiro, a questão do su-
bemprego, já reforçado anteriormente pelos indicadores renda e escolaridade.
Quando evidenciamos que 11,2% dos dirigentes de terreiro (22 pessoas), tem
sua fonte de renda apenas oriunda dos rituais religiosos, percebemos a fragili-
dade de acesso a uma renda formal, tendo em vista a falta de garantia e fluxo
contínuo desse tipo de atividade. Apesar da não especificação direta evidencia-
da pelos pesquisados/as, esse método de complementação de renda também
será utilizado por todos/as os/as pais e mães de santo, tendo vista a dinâmica
dessas comunidades.
Outro ponto de destaque é a possibilidade de potencialização de atividades de
etnodesenvolvimento pelos terreiros pois, se somarmos as atividades de renda pri-
mária dos/as dirigentes que se destacaram como autônomos, profissionais do lar, da
área comercial, artesãos, da agricultura e da gastronomia, estamos falando de uma
realidade de 40%, ou seja, 80 dirigentes, que podem ser beneficiados diretamente
em sua renda e centenas de pessoas indiretamente que participam dessas comunida-
des, sem contar com as possibilidades em contexto local e regional de acesso a bens
de consumo e serviços que podem ser desenvolvidos.
Na Figura 04, no gráfico referente às profissões dos/das dirigentes com carteira
assinada, conseguimos mergulhar na necessidade de ampliarmos a ação de políti-
cas públicas e, com isso, levar os/as leitores/as, que terão acesso a essa produção,
ao entendimento de que atividades de etnodesenvolvimento poderão contribuir
diretamente nos contextos locais em das comunidades que estão inseridos.
81
A figura 04, no gráfico referente às profissões dos/das dirigentes indica o per-
centual com carteira assinada. Essa questão em específico foi inserida por pedido
da SDA, a pedido da equipe técnica e conseguimos capturar essa resposta em
39,9% dos terreiros entrevistados. Coletamos pois, 167 respostas de “Não ter car-
teira assinada” e 30 respostas que “tem carteira assinada” Desta forma, obser-
va-se a baixa proporção da formalização do trabalho, mesmo que muitas dessas
respostas encontram-se também alocadas entre as pessoas que exercem somente
o sacerdócio como seu trabalho, ocupação e emprego.
6,1%
33,8%
Sem resposta
Não
Sim
60,1%
82
■ Inventário dos Povos de Terreiro do Ceará ■
Os/as dirigentes dos terreiros, na grande maioria evidenciaram nas entrevistas
que não tinham a compreensão que as atividades econômicas que desenvolviam
poderiam ser declaradas formalmente, ou que contaria como contribuição para a
previdência social. Esse número cresce quando acrescentamos 33,8% que afirmaram
não possuírem carteira assinada, demonstrando um conhecimento sobre essa reali-
dade. Esse dado totaliza 93,8% dos/das entrevistados/as (496 dos/das pais e mães
de santo) que estão excluídos da longa caminhada para a aposentadoria formal.
83
Abrir caminhos de compreensão para reparação de todos esses processos atra-
vés de potenciais políticas públicas, torna-se um marco reparatório para a sobrevivên-
cia desses povos, suas culturas e saberes diante do continuum civilizatório africano,
afro-brasileiro e indígena presente nos terreiros. Ações de fortalecimento de todo
esse legado, atuarão na construção de ponte com as ancestralidades míticas promo-
vendo o reencontro da realidade ancestral, para a reelaboração do presente, através
de ações de construção da autonomia desses povos, rumo à emancipação humana.
Estruturados nessas compreensões, abrimos caminhos através da análise da
figura 05, que representa o entendimento do gráfico dos espaços presentes nos
terreiros que podem ser usados para a complementação de renda.
Figura 05: Gráfico referente a algum espaço no terreiro utilizado para a com-
plementação de renda
15,2%
Não
Sim
84,8%
84
■ Inventário dos Povos de Terreiro do Ceará ■
A realidade apontada nesse gráfico, nos apresenta que 84,8% dos/das di-
rigentes dos terreiros afirmam não haver lugares, espaços para a produção de
bens ou serviços para a complementação de renda. Esses dados nos fazem
apontar que 419 dos/das entrevistados/as que poderiam também contribuir
com ações integrativas desenvolvidas em um contexto coletivo nas comuni-
dades que residem, partilhando e educando a partir dos seus conhecimentos
preservados e ressignificados nos espaços dos terreiros. Falamos aqui, de prá-
ticas e ações curativas com as ervas a partir de farmácias vivas ou hortas co-
munitárias, tendo em vista o trato cotidiano que esses povos possuem com as
medicinas ancestrais.
Nas comunidades em que estão situados os terreiros, esses espaços são con-
siderados ilhas verdes, sejam nos territórios urbanos ou rurais, pois o trato com
as ervas sagradas, as infusões, os banhos, os chás, os lambedores ou beberagens
são tecnologias utilizadas no contexto cotidiano para a manutenção da saúde
coletiva, tanto da comunidade interna do terreiro, como a externa que em suas
portas batem a busca de curas. É importante destacar que, na maioria das vezes,
essas pessoas não conseguem acessar às políticas públicas de saúde coletiva ou
assistência social, sendo os territórios terreiro, os únicos espaços de acolhimento,
fortalecimento e reequilíbrio físico, mental e espiritual.
As hortas comunitárias que podem ser desenvolvidas a partir desses saberes,
os cursos de medicinas tradicionais ancestrais, os berçários de plantas nativas
do contexto local, os bancos de sementes crioulas, o melhoramento genético,
a produção animal, as ações gastronômicas, a produção a partir do artesanato
(bordados, rechilieu, corte e costura, enfim) ou a produção e o fortalecimento de
quintais produtivos são ações que vão ao encontro das práticas de convivência
com o semiárido que podem também ser potencializadas.
Na figura 06, observamos o gráfico que nos apresenta as ações de capacita-
ção que os terreiros desenvolvem diante das atividades remuneradas e percebe-
mos que 88,3% dos/as dirigentes dos terreiros declaram que essas atividades não
são potencializadas.
85
Figura 06: Gráfico referente à promoção de capacitação de filhos/as do ter-
reiro para o desenvolvimento de atividades remuneradas
11,7%
Não
Sim
88,3%
Esses dados nos apresentam que 436 dos/das entrevistados/as que são
detentores de várias técnicas e tecnologias sociais ancestrais desenvolvem as
suas ações apenas direcionadas para a manutenção do contexto religioso, não
compreendendo que todos esses conhecimentos poderiam ser utilizados para a
manutenção e desenvolvimento de um mercado econômico que, para além do
contexto religioso, poderia contribuir diretamente com o modelo de desenvolvi-
mento presente nos terreiros.
Essas populações precisam ser reeducadas nesse contexto, tendo em vista a
manutenção da vida, o fortalecimento de vínculos, a entrada no mercado formal
de trabalho e a reelaboração de ações de enfrentamento contra-hegemônica ao
86
■ Inventário dos Povos de Terreiro do Ceará ■
mercado capitalista que visa a exploração e a destruição da natureza. Nosso intuito
é o de apontar para um caminho de estruturação de tecnologias de subsistência.
Destacamos na figura 07, um gráfico importante para prosseguirmos com a
análise e a potencialização das condições de produção e subsistência dos povos de
terreiro: a criação de animais para o consumo ritual e/ou alimentar. É importante sa-
lientar que questões diretamente ligadas a estereótipos negativos de demonização
e satanização ainda circulam, de uma forma bastante enraizada essas questões, não
estando no cerne desse trabalho desenvolver essa discussão, mas sim, é de rele-
vância destacar que os rituais religiosos praticados e professados nesses territórios
envolvem a sacralização desses animais e a alimentação cotidiana. Estamos lidando
com a vida que retorna ao berço ancestral no plano espiritual e o corpo que fará parte
da alimentação dessas comunidades.
34,6%
Não
Sim
65,4%
87
Essa questão foi abordada nesta publicação pelo Professor Patrício Carneiro
Araújo e versa sobre a produção de animais pelos dirigentes de terreiro antes da
pandemia de Covid-19. Foi destacado que 34,6%, ou seja, 171 dirigentes desenvol-
vem a criação de animais para o seu consumo no cotidiano no terreiro. Entretanto,
atentamos e sugerimos que seja desenvolvido um programa com foco direcionado a
essa produção, seja nesses espaços, seja em outros, mas destinados à população dos
65,4% restantes que poderiam inserir-se nessa perspectiva de fortalecimento eco-
nômico. Estamos tratando agora de um público direto beneficiado de 323 pessoas
responsáveis pelos territórios sagrados e por milhares de beneficiados indiretamente.
A produção a que destacamos é a de aves, de ovinos, de caprinos, de suínos, de
peixes e de bovinos. Na verdade, o estímulo e a inserção dessas populações dentro
dos programas de fortalecimento da agricultura familiar e da pecuária em pequeno
porte ampliaria as ações de protagonismo, desenvolvimento econômico e potencial de
subsistência. Se as políticas públicas que já atendem aos demais agricultores familiares
forem direcionadas também, a partir desse foco, visando a reparação ancestral dessas
populações, serão atendidas milhares de pessoas direta e indiretamente que não têm
acesso a geração de emprego e renda devido à manutenção da colonialidade.
Conclusão
88
■ Inventário dos Povos de Terreiro do Ceará ■
tores/as, a salvaguarda da realidade genética das culturas agrícolas também é um
ponto crucial aprendido com os nossos antepassados.
As atividades que visam o sustento das famílias de terreiro e as ações de for-
talecimento dos vínculos familiares, através das produções de uma diversidade
de culturas agrícolas contrapõe o cenário da monocultura praticada nas fazendas
do agronegócio e possibilita que a agricultura camponesa produzida pelos povos
de terreiro minimize os riscos de perda e de insegurança alimentar, contribuindo
também para a estabilidade econômica dos/as agricultores/as familiares e para o
equilíbrio do sistema agroecológico como um todo.
Estamos apontando um caminho necessário, de forma direta e certeira para a
reparação a todas as atrocidades a que nossos ancestrais africanos e indígenas fo-
ram submetidos, mas que ainda atingem, no cenário afro-brasileiro presente nos
terreiros, grande parte dessas populações. A geração de emprego e renda, com
lentes específicas para que a realidade desses povos seja compreendida, torna-se
elemento urgente para o fortalecimento nos seus cenários econômicos, de vida,
de autonomia e, com isso, a sua caminhada para a construção de um novo projeto
de sociedade que também os contemple.
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em: 24 de dez de 2021. Acesso em: 05 de jan de 2022.
89
Nota de campo
Nislene Lopes - Pesquisadora
P
articipar desta pesquisa foi uma grande oportunidade de conhecer mais
sobre os povos de terreiros, sua diversidade e irmandade que é ensinada
pelos mais velhos. Também foi uma oportunidade de aprender sobre a po-
tência religiosa dos povos de terreiro e como esses atravessam os diversos
âmbitos da sociedade, vibrando resistência e vida. A pesquisa me atravessa em
vários aspectos, o primeiro deles é com relação aos meus estudos, pois pesquiso
atualmente sobre festa de Iemanjá e Preto velho, no programa de pós – gradua-
ção do curso de doutorado da Universidade Federal do Ceará. Nesta pesquisa foi
possível fazer um processo de escuta, onde as entrevistas mostraram o protago-
nismo da mulher cearense dentro da religião afrocearense, sua luta para manter
sua fé diante do preconceito religioso, dos ataques aos filhos, dos termos pejo-
rativos que lhes eram atribuídos e apesar disso, também foi possível perceber o
brilho nos olhos de uma mãe de santo de poder abrir um espaço para atender a
comunidade carente ao relatar esse desejo.
Esses relatos repetiram-se, nos terreiros que entrevistei, todos os terreiros
localizados em periferias de Fortaleza, a violência é algo marcante, entretanto a
solidariedade que existe nos terreiros em ajudar de alguma forma, quer seja com
sopões, almoço ou distribuindo comida das festas foi presente nas falas dos pais
e mães de santo. Daí entendi outro aspecto muito importante por meio desta
pesquisa: os terreiros nas comunidades carentes também são lugares de seguran-
ça alimentar, principalmente na situação pós – pandemia, onde muitos perderam
empregos, saúde física e mental. A pesquisa demonstrou a necessidade de po-
líticas públicas que assistam esses terreiros, pois desempenham um importante
papel na comunidade local e arredores. Além disso as políticas culturais e patri-
moniais também necessitam se fazer presente, pois de perto tive a oportunidade
90
■ Inventário dos Povos de Terreiro do Ceará ■
de conversar com “histórias vivas” que relataram o desenvolvimento dos bairros
e das festas tradicionais ao longo dos anos, assim como terreiros que contam com
mais de trinta anos de existência. A pesquisa trata de uma riqueza material, tam-
bém do ponto de vista geográfico, histórico, socioeconômico e cultural, sendo
um importante demarcador para o desenvolvimento de políticas e culturais para
os povos de terreiro no Ceará.
A
pesquisa “Inventário dos povos de terreiro do Ceará” me proporcionou
diversas emoções, a qual, levarei cada momento para a eternidade. Além
de conhecer a realidade dos povos de terreiro, a pesquisa também foi
primordial para criarmos laços de afetividade e amizade. Em cada terreiro
que eu chegava, apesar de começar a entrevista com as lideranças apresenta-
vam desconfiança, e até mesmo medo. Mas a cada xícara de café ou chá, a cada
lanche, almoço ou jantar servido, com o desenrolar da conversa boas amizades
foram construídas e cultivadas.
91
Retrato dos povos de terreiro do Ceará
– dialogando com as identidades étnica
e de gênero, escolaridade e faixa etária
Iba Elegba
Iba Exu L’onã
Mo juba Aiyê1
E
xu, responsável pela dinâmica ritual do desenvolvimento e da expansão da vida
nesse mundo, mensageiro transportador das oferendas, mestre da polifonia,
senhor das portas e dos caminhos, das múltiplas falas, rei do corpo.
Todo xirê, função, gira, festa inicia-se com ele, por isso recorremos2 a
Exu e suas diversas faces de educador que abre caminhos para iniciar este texto,
utilizando a “boca coletiva” para pronunciar as palavras que significam e ressigni-
ficam os dados que aqui abordaremos.
Dessa forma, questionamos: Qual é o retrato dos povos de terreiro do Ceará?
Onde estão localizados? Qual é a sua cor e identidade étnica? Qual é a sua identidade
de gênero? Como expressa sua sexualidade? Sua escolaridade, faixa etária, renda?
A história dos povos de terreiro no Ceará é recente2 e a historiografia e/ou pesqui-
sas sobre a temática escassa. É notório que as obras mais importantes que versam so-
bre as religiões afro-brasileiras, seu pertencimento cultural tradicional e religioso, bem
como acerca das pessoas que as praticam não citam referências ao nosso estado.
1 Honra ao senhor do poder, honra a Exu, senhor dos caminhos, apresento os respeitos do mundo. (LUZ, 2002,
p. 66)
2 Apesar de em todos os meus trabalhos, eu recorrer à primeira pessoa do singular, nesta produção utilizei a
terceira pessoa por entender ser um artigo institucional.
92
■ Inventário dos Povos de Terreiro do Ceará ■
Podemos afirmar que o motivo de desconhecimento da vivência das comuni-
dades de terreiro em nossas terras deve-se principalmente pela história de invisibi-
lidade que a população afrodescendente está sujeita em nosso Estado.
Se não existem negras(os)3 no Ceará, consequentemente não existe religião
de negra(o). Essa afirmação se contradiz quando, por entre a paisagem urbana e
rural cearense visualizamos inúmeros terreiros, onde suas divindades são reveren-
ciadas por uma quantidade significativa de pessoas que organizam e reorganizam
seus modos de viver, elaborando estratégias de sobrevivência e articulando-se
em práticas comunitárias.
A herança cultural e religiosa africana que percorreu os circuitos transatlânti-
cos, através da diáspora, bem como a dos povos originários desta terra estão con-
substanciados nas religiões de matriz africana e afro-brasileira como a Umbanda,
o Candomblé, a Jurema, o Catimbó, o Omolocô, entre outras.
Concordamos com Braga (1988) que as comunidades de terreiro não são um
sistema estruturado apenas para servir às necessidades religiosas.
É um conjunto mais amplo que envolve, para além dos compromissos re-
ligiosos, uma filosofia de vida, uma maneira especial de interação do ho-
mem consigo mesmo, com a natureza, com seu passado, com sua origem
e sua especificidade cultural, sem perder de vista, suas relações profundas
com outros segmentos sociais, igualmente comprometidos com o proces-
so que elabora e particulariza a formação da sociedade brasileira. (p. 38).
3 Onde surgir a necessidade de identificar o gênero (masculino/feminino) optamos por iniciar sempre com o
feminino.
93
Inicialmente, apresentamos o perfil etário das lideranças, em seguida os dados re-
ferentes a raça e pertencimento étnico e suas variáveis. Depois, problematizamos os re-
sultados sobre gênero e sexualidade e, por fim, tratamos da questão de escolaridade.
50 - 54 Anos 46
45 - 49 Anos 59
40 -44 Anos 76
36 - 39 Anos 58
30 - 35 Anos 47
24 - 29 Anos 42
18 - 24 Anos 24
0 5 10 15 20 25 30 35 40 45 50 55 60 65 70 75 80
Todavia observamos que existem dois grupos que são relevantes à nossa aná-
lise. As(os) mais velhas, com 60 anos ou mais e as(os) mais jovens, de 18 a 29
anos. O primeiro grupo indicado aqui está composto por 86 pessoas, enquanto o
segundo tem 66 representantes.
94
■ Inventário dos Povos de Terreiro do Ceará ■
O grupo mais velho é representado por mulheres que provavelmente são as
matriarcas dos terreiros, sendo relevante uma investigação profunda sobre suas
atuações e contribuições para a consolidação da cultura afro-religiosa cearense.
O grupo mais jovem é do mesmo modo representativo, visto que, apesar da ida-
de, são lideranças e por conseguinte, mais velhos em suas tradições religiosas.
Sabemos que as religiões afro-brasileiras têm a ancestralidade como elemento pri-
mordial de pertencimento religioso, em contraposição aos valores modernos de que a
experiência de vida das pessoas é algo descartável. Essas tradições ancestrais acolhem
os mais diversos sujeitos, valorizando a experiência religiosa da(o) mais velha(o). “Há
que se salientar que o tornar-se mais velho é configurado pelo tempo de iniciação na
religião e não pela idade cronológica do indivíduo”. (SANTOS, 2015, p. 22)
A autora ressalta que, juventude e iniciação estão interligadas, pois ser jovem
é ser recém-iniciado, independentemente de sua faixa etária. O que conta é o
tempo ou a idade iniciática de cada pessoa. Isso significa que uma pessoa pode
ser adulta para a sociedade, mas jovem para a religião, de acordo com o seu tem-
po de iniciação, ao passo que uma (um) jovem iniciada(o) há mais tempo pode e
deve ensinar sobre a religião ao irmão ou irmã-de-santo cronologicamente mais
velho, entretanto, mais jovem no culto.
A pesquisadora Estela Caputo (2008), ao realizar um estudo com crianças can-
domblecistas, percebeu o mesmo movimento. Ela nos diz que quando um adulto
recém iniciado chegava para aprender a religião, uma criança já iniciada podia
perfeitamente ser responsável por lhe passar os ensinamentos. Dessa forma, uma
criança ou jovem toma a benção a uma pessoa mais velha da mesma forma que
um adulto toma a bênção à criança e ao jovem.
95
pertencem ao axé, à casa, mas que ainda não ‘fizeram o santo’. Pode-se
dizer que saber e experienciar o segredo desarruma uma certa hierarquia
construída no ocidente moderno em relação à criança, que determina que as
novas gerações não conhecem, não sabem ainda e estão subordinadas aos
conhecimentos e aos desejos do adulto. (CAPUTO e PASSOS, 2007, p. 97).
Portanto as análises da questão etária feitas por essas autoras podem se re-
ferir perfeitamente à realidade desvelada por este Inventário, já que é notória a
participação de lideranças jovens nos terreiros cearenses e que estes se confi-
guram espaços de sociabilidade e de construção e identidade, onde os valores
ancestrais afro-cearenses são vivenciados no cotidiano.
96
■ Inventário dos Povos de Terreiro do Ceará ■
Contrariando a falácia de que em nosso estado, durante muitos anos, a po-
pulação negra não existia ou era minoria, a presente pesquisa evidenciou que
49,2% das lideranças são pardas, 27,1% pretas, 16,2% brancas, 5,9% indígenas,
1,2% amarelas. Isso significa que 76,3% são pessoas negras (entre pretas(os) e
pardas(os), de acordo com o movimento negro)3.
Figura 06: Gráfico raça/cor dos dirigentes de terreiro do Ceará
16,2%
Parda
Preta
Branca
49,2% Indígena
Amarela
27,5%
Figura 6 Fonte: ALAGBÀ 2022
3 De acordo com Santos, Borges e P. Santos (2005), o movimento Negro ressignificou a palavra “negro” por meio
da ação política-cultural e estética da negritude. Um movimento da década de 1970 que valorizou os traços da
cultura africana que se manifestam na música, na religião de matriz africana, na dança, na culinária, na rejeição e
protesto contra a preponderância da cultura e matriz europeias.
4 A pergunta era exatamente: O senhor se considera negro?
97
É interessante perceber que a quantidade de pessoas que se consideram ne-
gras é inferior ao resultado da questão sobre a cor, somando o percentual de pre-
tas(os) e pardas(os), ou seja, podemos pensar que nem todos as(os) pardas(os) se
reconhecem como negras(os) conforme a perspectiva do movimento negro.
De acordo com Santos (2011), o amorenamento demográfico eleva a cor parda a
uma categoria assumida pela maioria das(os) afrodescendentes no decorrer do tem-
po5. Essa categoria racial/social intermediária entre pretas(os) e brancas(os) se torna
uma válvula de escape para as(os) que têm dificuldades em afirmar a sua negritude.
O processo de construção da identidade brasileira pensada e imposta pela elite
intelectual e política deveria se basear ideologicamente no ideal de branqueamento.
“Esse ideal foi perseguido individualmente pelos negros e seus descendentes mesti-
ços para escapar dos efeitos da discriminação racial” (MUNANGA, 2009, p.95).
Neste sentido, estas devem ser as possíveis explicações para a discrepância
entre os dados sobre a cor das lideranças e as respostas acerca da identidade ne-
gra. Afinal a(o) parda(o)6 simboliza a ambiguidade característica do racismo brasi-
leiro classificando-o como um ser indefinido.
Outro dado relevante desta pesquisa foi o cruzamento da questão racial com
as respostas acerca da identidade de gênero. Evidenciamos que, entre as lideran-
ças de terreiro, existe uma grande maioria de homens cis negros (241 pessoas)
e mulheres cis negras (127 pessoas), sendo seguidos pelos homens brancos cis
(49 pessoas), indígenas cis (11 pessoas) e amarelas(os) cis (3 pessoas). Quanto às
mulheres, evidenciamos também 30 brancas, 17 indígenas e 2 amarelas.
5 Santos (2006) constata que ao compararmos os censos demográficos do período de 1940 a 1980, há uma
tendência de “pardização” da população, notando-se uma diminuição proporcional tanto de pretos como de
brancos, sendo esta distribuição feita de forma heterogênea pelo território nacional.
6 Aqui chamamos de pardo, contudo o autor se refere ao termo como “mestiço”.
98
Figura 07: Gráfico identidade de gênero dos dirigentes por raça/cor
Preta 89 45 1
Indígena 11 17 1
Branca 49 30 1
Amarela
321
A informação anterior nos retrata que apenas entre as indígenas há uma quan-
tidade de mulheres cis maior do que a dos homens cis, 17 e 11 respectivamente.
Em relação às mulheres trans, observamos uma representatividade em todas as
referências de cor/raça, 6 negras, 1 indígena, outra branca e uma amarela.
Entre as(os) pretas(os), encontramos uma pessoa não binária e entre os
pardas(os), evidenciamos também 1 pessoa não binária, 2 homens trans e 1
que respondeu outros.
Com relação ao território, observamos que a população preta e parda está
distribuída em quase todos os 58 municípios pesquisados, sendo os cinco com
maior quantidade, Fortaleza: com 58 pardas(os) e 41 pretas(os); Caucaia: com 41
pardas(os) e 15 pretas(os); Crato: com 11 pardas(os) e 8 pretas(os); Sobral: com 17
pardas(os) e 4 pretas(os) e Quixeramobim: com 10 pardos e 3 pretos).
99
Desse modo, podemos ver os resultados acerca do tema, bem como fazer
cruzamentos com as questões etária, racial, de renda, de escolaridade, territorial,
entre outras variáveis.
Das lideranças dos terreiros pesquisados no Ceará, temos 60,9% de homens
cis, 35,2 % de mulheres cis, 1,6% de mulheres trans, 0,4% de homens trans, 0,4 %
de pessoas não binárias e 1,4% se identificaram como outros.
Figura 08: Gráfico identidade de gênero dos dirigentes de terreiros do Ceará
Homem cis
Mulher cis
Mulher trans
36,6%
61,5% Não Binárie
Homem trans
Outros
Figura 8 Fonte: ALAGBÀ 2022
Heterossexual
Gay
Bissexual
24,7% Lésbica
NS/NR
61,9%
Pansexal
Assexual
100
■ Inventário dos Povos de Terreiro do Ceará ■
Ao cruzarmos os dados de gênero com a faixa etária, identificamos uma gran-
de quantidade de homens cis entre 18 e 49 anos, enquanto as mulheres cis estão
em maior quantidade a partir dos 60 anos.
Entre as pessoas trans, as mulheres trans têm entre 25 e 59 anos e os homens
estão entre 40 a 59 anos. Já as pessoas não binárias têm de 36 a 44 anos.
Do mesmo modo, quando relacionamos orientação sexual com faixa etária, os
dados revelam uma maioria de heterossexuais distribuídos em todas as faixas etárias
propostas (18 a 90 anos ou mais), sendo as faixas entre 36 e 59 anos, o maior quanti-
tativo (170 pessoas). Em segundo lugar, com 122 lideranças, estão os que se identifi-
cam como gays, tendo entre 18 e 74 anos. As 23 lésbicas identificadas têm entre 18 e
84 anos, enquanto as(os) bissexuais estão entre 18 e 74 anos. Também responderam
as(os) pansexuais que têm entre 36 e 59 anos e as duas representações assexuais que
estão localizadas nas faixas entre 50 a 54 anos e 60 a 64 anos respectivamente.
Um dado interessante desses resultados é a quantidade de pessoas que não
responderam ou não souberam responder à pergunta acerca da orientação sexual.
Estes se encontram distribuídos nas faixas etárias entre 25 e 79 anos.
Figura 10: Gráfico identificação de gênero por faixa etária
Identificação de Gênero por Faixa Etária Orientação Sexual por Faixa Etária
Homem cis Mulher cis Mulher trans Não Binárie Heterossexual Gay Bissexual Lésbica NS/NR
Homem trans Outros Pansexual Assexual
Não Respondeu 2
4 90+ Anos 5
7 80 - 84 Anos 6 1
8 2 75 - 79 Anos 9 1
13 6 70 - 74 Anos 17 11
10 8 65 - 69 Anos 14 2 11
18 9 60 - 64 Anos 22 2 111
24 27 55 - 59 Anos 33 12 3 4 11
2 16 28 50 - 54 Anos 27 13 3 11
2 23 34 45 - 49 Anos 41 13 3 1
111 29 44 40 - 44 Anos 39 20 7 72 1
11 9 47 46 - 39 Anos 30 19 4 3 2
1 6 40 30 - 35 Anos 25 18 4
1 3 38 25 - 29 Anos 24 14 3 1
5 19 18 - 24 Anos 12 8 3 1
101
Relacionando os dados de gênero e raça, percebemos que todas as identi-
dades de gênero relacionadas se autoidentificam como pretas(os) e pardas(os),
com 136 e 243 pessoas respectivamente, ficando em terceiro, o perfil branco,
com 80 respondentes, depois o indígena, com 29 representantes e, por últi-
mo, o amarelo, com 6 respostas. Esse resultado confirma mais uma vez que
a população negra é predominante nos terreiros cearenses, contradizendo a
historiografia que invisibilizou a cultura e os modos de vida do povo africano e
afrodescendente no Estado.
Outro dado relevante para problematizarmos sobre a identidade de gênero é
sua conexão com o tempo em que as lideranças estavam à frente de suas casas/
terreiros/tendas.
Inicialmente observamos que apenas mulheres cis têm menos de um ano
de liderança religiosa. Em seguida, aparecem os homens cis com uma liderança
relativamente jovem, entre 1 e 15 anos (62, de 1 a 5 anos, 73, de 6 a 10 anos, e
52, de 11 a 15 anos), enquanto as mulheres cis têm mais de 30 anos de respon-
sabilidade com os terreiros cearenses, chegando a superar o público masculino
na faixa entre 46 a mais de 51 anos de tempo de liderança nas casas/terreiros/
tendas religiosas.
A informação de que as mães de santo/yalorixas/zeladoras dos terreiros têm mais
tempo de liderança nos terreiros comunga com a resposta citada anteriormente de
que a maioria das mulheres cis tem significativamente 60 anos ou mais de idade.
A pesquisa de Farias (2011) afirma que a afro-religiosidade cearense, recriada
através dos terreiros ao longo da história, minimiza a presença e a contribuição das
mulheres até a instituição da Umbanda no Ceará por volta da década de 1950. Até
o matriarcado, elemento preponderante dos candomblés, perderá sua importância
para o protagonismo tipicamente machista cearense.
Todavia, o mesmo8 cita a participação e várias mulheres no decorrer da história
afro-religiosa do nosso estado tais como Dona Júlia, fundadora da Federação Cea-
rense de Umbanda (1954) e quem institui e consolida a festa de Iemanjá em Forta-
leza; mãe Ilza de Oxum, que no início da década de 1970 funda sua casa de santo,
tendo ainda como elemento de transição o caboclo, Dona Aládia, Mãe Iraciana de
8 Do mesmo modo, outras autoras e autores citam a participação feminina nas religiões afro-brasileiras cea-
renses tais como Bandeira (2011) e Santos (2015).
102
■ Inventário dos Povos de Terreiro do Ceará ■
Santana, entre outras lideranças femininas que foram invisibilizadas durante a traje-
tória da configuração dos terreiros no Ceará.
Contradizendo pesquisas realizadas em outros estados9 e outros estudos10
que apontam o caráter feminino dos segmentos afro-religiosos, os resultados des-
te Inventário indica que a maioria das lideranças investigadas tem um perfil mas-
culino, cisgênero e heterossexual.
Landes (2002), em seu célebre livro “A Cidade das Mulheres”, constata que
apesar da tradição nagô afirmar que somente as mulheres estavam aptas, pelo
seu sexo, a tratar as divindades e que o serviço dos homens era “blasfemo, devi-
rilizante”, os candomblés de caboclos vieram mudar essa realidade, tornando os
homens, em especial homossexuais, sacerdotes.
O pensamento da autora converge com a história dos primeiros candomblés
no Ceará, de origem bantu, com elementos caboclos e onde a figura de transição
não era o orixá e sim o caboclo.
Nessa perspectiva, podemos pensar que a figura do caboclo é um marcador
da masculinidade na configuração dos terreiros cearenses? É notório que a afro-
-religiosidade cearense é constituída dentro de um processo diaspórico cultural
que tem como pano de fundo o racismo religioso e a perseguição às diferentes
denominações religiosas afro-brasileiras.
Portanto, entendemos como peculiar as rotineiras mutações a que estas re-
correram em virtude de sua legitimação e da preservação da sua cultura deixada
como legado na linguagem, nos folguedos e no cotidiano do povo.
Sobre o perfil predominante heterossexual apontado na pesquisa, podemos
observar ideias divergentes quanto a este resultado. Primeiramente por parte
das(os) pesquisadoras(es)11 deste Inventário que observaram um incômodo das
pessoas ao responderem as perguntas que se referiam à identidade de gênero
103
e à orientação sexual, gerando até uma recusa às respostas. E segundo, de teó-
ricas/os12 que alargaram os estudos de gênero no universo afro-religioso.
Santos (2015), ao apresentar sua pesquisa etnográfica em dois terreiros de
Fortaleza, identifica uma presença visível de jovens com orientação homossexu-
al nestes e em outros terreiros da região metropolitana visitados. A explicação
dada por seus interlocutores é que as religiões afro-brasileiras não entendiam
as diversas orientações sexuais e as identidades de gênero como algo proibido,
pecaminoso, sujo. Contudo a autora ressalta que, por mais acolhedores que se-
jam os terreiros, estes, ao mesmo tempo estão inseridos nesta sociedade que é
preconceituosa, lgbtfóbica e que as relações, internamente, não acontecem de
forma tão tranquila assim.
Do mesmo modo, é importante ressaltar que no pensamento de Landes
(2002), os homossexuais ditos passivos eram os que predominantemente torna-
vam-se líderes dos cultos da Bahia, sejam candomblés nagôs ou de caboclos, por
serem tipicamente femininos.
104
■ Inventário dos Povos de Terreiro do Ceará ■
[...] Se os candomblés fundados por herdeiras da tradição iorubá não
foram organizados para serem, quando não exclusivamente, mas, so-
bretudo, territórios de mulheres. Se a religião viva é religião capaz de
rever o passado a fim de garantir sua existência no futuro, é preciso
considerar a participação masculina (homo, heterossexual...) na vida
religiosa dos grupos de culto. Nenhuma das denominações religiosas
afro-brasileiras se construiu à base da monossexualidade.
105
Os resultados sobre o grau de instrução revelam que uma parcela conside-
rável das lideranças dos povos de terreiro concluiu a educação básica (Ensino
Fundamental e Médio) (30,8%). Em segundo lugar estão as pessoas com ensino
fundamental incompleto (23,5%), seguido daquelas(es) que completaram esta
etapa de ensino (10,9%).
Podemos analisar também o número de pessoas que estão cursando ou
concluíram o ensino superior, totalizando 13% dos entrevistados e aquelas(es)
que tem pós-graduação completa ou não (especialização, mestrado, doutorado),
4,2% das (os) respondentes.
Nesse sentido, podemos afirmar que apesar do racismo estrutural e religioso
que atinge diretamente a grande maioria da população negra e de terreiro, temos
um processo de mudança, mesmo que lenta, quanto ao acesso e permanência
destes povos nas instituições escolares.
Essas transformações ocorrem principalmente por conta das políticas afirma-
tivas e valorativas tais como a instituição de cotas raciais nos concursos públicos,
as leis n° 10.639/200313 e 11.645/200814 e a criação dos programas de financia-
mento da educação superior para estudantes pobres.
Cruzando as informações de escolaridade e faixa etária constatamos que en-
tre as(os) mais jovens, de 18 a 20 anos, a maioria concluiu a educação básica (ensi-
nos fundamental e médio). Já na fase adulta, entre os 30 a 54 anos, evidenciamos,
além da educação básica, lideranças que estão cursando ou concluíram o ensino
superior (39 pessoas) e na pós-graduação (7 no total).
Estes dados podem ser explicados também pela evolução da educação brasi-
leira nestes últimos 20 anos, desde a aprovação da LDB de 1996, que estabelece
a universalização do ensino e outras políticas educacionais que garantem o aces-
so e permanência de estudantes na educação básica.
Contudo, outro dado a ser considerado é o das pessoas sem escolaridade
(8,7%). É significativo o número de pessoas sem escolaridade que tem 55 anos ou
mais. As pessoas idosas não tiveram acesso à educação quando jovens, por essa
13 Altera a lei 9.394/1996, Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), de 20 de dezembro de 1996, que esta-
belece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial das redes de ensino, públicas
e privadas, a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”, e dá outras providências.
14 Esta lei amplia a lei n° 10.639/2003, mantendo o mesmo teor, acrescentando, porém, o ensino da cultura e
história indígena no currículo escolar.
106
■ Inventário dos Povos de Terreiro do Ceará ■
não se efetivar como um direito público subjetivo15 naquela conjuntura e, por várias
razões que desconhecemos,16 também não exerceram seu direito quando adultos.
Nesse sentido, quanto maior a idade, menor a escolaridade e, quanto menor
a idade, maior a escolaridade. Destacando que na fase adulta, os dois níveis de
ensino estão bem representados, tanto a educação básica quanto o nível superior
e pós-graduação.
Ao relacionarmos a escolaridade com a identidade de gênero, observamos que
a maioria dos homens cis concluíram o ensino médio (115 pessoas) enquanto ape-
nas 34 mulheres cis conseguiram terminar essa etapa da educação. Por outro lado,
uma parte significativa das mulheres cis não completaram o ensino fundamental (64
pessoas), do mesmo modo, 46 homens cis não concluíram esta etapa.
Figura 12: Gráfico identificação de gênero/raça de escolaridade
Identificação de Gênero por Escolaridade Identificação de Raça por Escolaridade
Homem cis Mulher cis Mulher trans Não Binárie
Homem trans Outros Parda Preta Branca Indígena Amarela
8 25 Superior incompleto 12 8 8 5
7 24 Superior completo 8 10 13
14 13 Pós-graduado(a) 8 21
11 12 30 Médio incompleto 24 12 5 21
1 5 64 Fundamental incompleto 61 35 12 8
1 21 32 Fundamental completo 25 14 13 2
107
Cruzando esses dados com os de raça/cor, observamos que a maioria de pre-
tas(os) e pardas(os) se encontra no grupo dos sem escolaridade (15 e 20, respectiva-
mente) em detrimento dos brancos, indígenas e amarelos (4, 3 e 1, respectivamente).
Do mesmo modo, um número significativo de pretas(os) e pardas(os) concluí-
ram o ensino médio, contudo são as pessoas brancas (13 no total) o maior número
dos que têm ensino superior completo, em comparação com as pardas e pretas
(08 e 10, respectivamente).
A população indígena, aferida na pesquisa, acessa a todos os níveis (educa-
ção básica e superior) e etapas de ensino, estando em maioria no ensino funda-
mental e médio (19 no total). Contudo aparecem também no grupo sem escola-
ridade (3 pessoas).
Neste sentido, podemos tecer algumas considerações sobre esses dados.
O primeiro é que as mulheres de terreiro, pretas e pardas, cis ou trans, acessam
menos a escola, tendo um nível de escolaridade menor que a dos homens pretos
e pardos (e em menor número, brancos). Elas também são o maior grupo das
pessoas sem escolaridade (25 mulheres, em comparação aos 17 homens).
Esses dados geram uma série de desdobramentos pois, de acordo com o que
foi identificado neste Inventário, o grupo feminino negro ganha entre meio até
um salário mínimo. Do mesmo modo, pouco são as mulheres negras que ganham
mais de um salário17 e nenhuma aparece na variável das que ganham acima dos
10 salários mínimos.
As informações sobre a renda dessas mulheres comunga com as pesquisas
nacionais e internacionais, principalmente nessa conjuntura pandêmica18. De
acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), baseado na
Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua)19, as
mulheres ainda ganham, em média, 20,5% menos que os homens. A materni-
17 Do universo de 185 mulheres (cis e trans) que responderam à entrevista deste inventário, apenas 47 delas
ganha mais de um salário mínimo.
18 É importante salientar que essa conjuntura inicia-se no início de 2020 no Brasil por conta da pandemia de
CODIV-19 e que se estende até o momento da escrita desse artigo.
19 Esses dados são relativos ao quarto trimestre de 2018 e estão disponíveis em: https://agenciadenoticias.
ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/23924-diferenca-cai-em-sete-anos-mas-
-mulheres-ainda-ganham-20-5-menos-que-homens
108
■ Inventário dos Povos de Terreiro do Ceará ■
dade, os filhos e os afazeres domésticos ainda pesam mais sobre as mulheres e
demandam mais flexibilidade.
A Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) divulgou
em março de 2021 um relatório que aborda o Panorama Social da América Latina
202020. Segundo esse relatório, a pobreza e a extrema pobreza alcançaram, em
2020, na América Latina, níveis que não foram observados nos últimos 12 e 20
anos, respectivamente. Esses dados são constatados com uma piora dos índices
de desigualdade na região e nas taxas de ocupação e participação no mercado
de trabalho, sobretudo por parte das mulheres. Esse resultado coloca em evidên-
cia a injusta divisão sexual do trabalho, a organização social do cuidado, atrelada
às características estruturais que caracterizam as sociedades latino-americanas e
os altos níveis de informalidade e desproteção social que comprometem o pleno
exercício dos direitos e a autonomia das mulheres. (CEPAL, 2021).
Entre as mulheres, a taxa de desocupação é maior que a dos homens, che-
gando a 17,2%. Sem uma política efetiva de assistência social e com a situação
agravada pela pandemia, muitas trabalhadoras se viram desempregadas e as de-
sigualdades tornaram-se ainda mais acentuadas, principalmente para as negras e
mais pobres.
Outro agravante é o racismo estrutural que, além de hierarquizar os grupos
étnicos, segrega, invisibiliza e estereotipa as experiências religioso-culturais (ra-
cismo religioso) destes grupos considerados subalternos.
São elas de terreiro que perdem empregos quando não escondem sua reli-
gião, que são maltratadas no comércio e chamadas por apelidos preconceituo-
sos, que seus filhos são impedidos de brincarem com outras crianças pelo simples
fato terem sido gerados ou criados por elas que são de terreiro, que deixam de
vender sua mercadoria quando as clientes descobrem que são produtos de uma
“macumbeira21”, que são excluídas dos grupos da faculdade por conta da religião
ou discriminadas por sua própria família.
109
Figura 13: Gráfico identificação de gênero/raça por renda
Identificação de Gênero por Renda
Identificação de Raça por Renda
Homem cis Mulher cis Mulher trans Não Binárie
Homem trans Outros Parda Preta Branca Indígena Amarela
35 3111
NS/NR
110
■ Inventário dos Povos de Terreiro do Ceará ■
Se cruzarmos esses dados com os de renda, observamos que as pessoas trans
transitam entre as pessoas que percebem menos de meio salário mínimo até um
salário, confirmando a realidade cotidiana do povo de terreiro lgbtqia+.
Portanto os homens cis pardos, pretos e brancos de terreiro tem uma maior
escolaridade e ganham entre meio e 5 salários mínimos, chegando (uma minoria)
a atingir, exclusivamente, acima de 10 salários.
A guisa de conclusão
Oração Ao Tempo
Caetano Veloso
Como um fio de contas que se tece, este texto está sendo fechado com cristal
branco, simbolizando e lembrando das festas dos candomblés que se encerram em
homenagem a Oxalá. O tempo como compositor do destino testemunhou tanto a
coleta de dados como estas análises que consideramos iniciais.
Identificar um perfil para o povo de terreiro foi uma tarefa repleta de malemo-
lência, recheada de inquietações, diálogos, convergências e divergências. Assim
como Iansã, andamos em muitas terras, ora como ventania, ora como brisa leve
em meio aos emaranhados fios de contas das categorias etária, de gênero e se-
xualidade, raça e etnia, bem como escolaridade e renda.
Podemos perceber a participação de lideranças jovens nos terreiros cearenses,
bem como de adultos. Por outro lado, constatamos que as pessoas idosas que res-
ponderam à entrevista do Inventário eram em sua maioria mulheres.
111
Grande parte do povo de terreiro é de pretos e pardos, assim como se identifi-
caram como negros por variados motivos, tais como a ancestralidade, ser da religião,
ter pessoas negras na família e por traços marcadores fenotípicos, entre outros.
Quanto à identidade de gênero e orientação sexual, os resultados deste Inven-
tário indicam que a maioria das lideranças investigadas tem um perfil masculino,
cisgênero e heterossexual, contradizendo as pesquisas de estudiosas(os) da área e
a observação das(os) pesquisadores de campo desta investigação.
A categoria de gênero relacionada a outras, tais como a etária, de escola-
ridade, de tempo de liderança e de renda revela uma população masculina de
homens cis pardos, pretos e brancos que tem uma maior escolaridade e ganham
entre meio e 5 salários mínimos.
Por outro lado, vimos que um número de mulheres idosas matriarcas, bem como
as mulheres de terreiro, pretas e pardas, cis ou trans, acessam menos a escola, tendo
um nível de escolaridade menor que a dos homens pretos e pardos.
Quanto à população trans (homens e mulheres), identificamos também aque-
las(es) sem escolaridade e que estão no ensino fundamental e médio (completo
e incompleto).
Desse modo, de acordo com esta pesquisa, é o grupo feminino negro e o lgbtqia+
que mais sofre com a desigualdade de renda, que ganha entre meio até um salário
mínimo, tendo essa realidade se agravado com a pandemia da Covid-19.
Portanto essas análises não se encerram com estas considerações, se tornam
possibilidades de novos emaranhados de fios de conta. O tempo de produção des-
te texto foi insuficiente para as variadas perguntas que aqui emergiram. Desejo que
as(os) que vierem depois de mim desvelem novas apreciações a partir de outros
cruzamentos, aprofundando o perfil malemolente dos povos de terreiro no Ceará.
112
Referências Bibliográficas
113
SANTOS, Silvia Maria Vieira dos. Africanida-
des e juventudes: tecendo confetos numa
pesquisa sociopoética. 2011. Dissertação (Mes-
trado em Educação) - Universidade Federal do
Ceará, Fortaleza, 2011.
SANTOS, Silvia Maria Vieira dos. Jovem que
velho respeita: as experiências e saberes da
juventude candomblecista. 2015. Tese (Douto-
rado em Educação) - Universidade Federal do
Ceará, Fortaleza, 2015.
114
Nota de campo
O
inventário dos terreiros do Ceará foi um presente pra mim , que desde
2010 já desenvolvia um trabalho de mapeamento dos terreiros no Cariri,
mas sem apoio de nenhum órgão governamental. O inventário chega para
contribuir, pelos esforços da Alagbá, em parceria com a secretária do meio
ambiente e desenvolvimento agrário do Estado do Ceará. Foi de alta relevância
pro nosso povo de Terreiro, pois foi comum em várias falas durante as entrevistas:
“foi a primeira vez que as pessoas de terreiros seriam ouvidas e sus reivindicações
levadas a uma estância pública” e que estavam muito felizes com isso. Em outro
momento, um zelador de orixá, Aurino, me diz em entrevista: “antes tarde do
que nunca, parabéns pela iniciativa de vocês, agora nós vamos ser respeitados e
vamos dizer o que a gente quer e precisa”, fala comum aos entrevistados.
Houveram muitos relatos interessantes, de como as pessoas se identificaram
com suas religiões de matrizes africanas e afrobrasileiras. O que foi comum e la-
tente foram os relatos em comum sobre os preconceitos e estigmas que desde
os mais velhos aos mais novos sofreram e continuam sofrendo quando declaram
sua religiosidade afro. O que mais tocante foi ver que esse povo ainda não tem
a garantia de direitos, não acessa as mesmas oportunidades que os demais, e
em alguns lugares o povo luta ainda por acesso a água e a terra. Um momento
marcante foi a comunidade indígena do Cariris, onde dona Ivone nos relata que a
obra do cinturão das águas tinham lhe tomada mais de 15 tarefas de terras e es-
tavam desviando a água da comunidade, que já sofriam com a falta, sendo que a
comunidade em questão fica as proximidades do açude Umari. Um outro caso foi
de dona Toinha que aos seus 74 anos ainda trabalhava na praça vendendo bom-
bons e cafezinhos. A renda da aposentada não dava pra se manter com a neta
e continuar com seu terreiro “de pessoas humildes”ela disse que muitas vezes
115
financeiramente, com alimentos: “porque o terreiro tem que acolher as pessoas
minha filha é nossa missão” diz dona Toinha.
É importante destacar o papel social que fazem os terreiros, atuando em di-
versas áreas, da educação, da saúde (relatos que escutamos de pessoas que afir-
mam ter problemas físicos, dores de cabeça intensas, “loucura”, e que nenhum
“médico da terra” deu jeito, pois tudo era o chamado espiritual e as pessoas
não entendiam). Terreiros também atuam com as mulheres destacando isso na
fala de Tatá Samuel Mutaruesi que diz “cultuar a pomba gira, bombo’ jhila, já é
uma questão de respeito, de exaltação a figura feminina e todo o poder que elas
carregam”. O Tatá nos fala sobre o matriarcado das religiões afro e o papel impor-
tantíssimo que as mulheres tiveram e tem na resistência das religiões de matrizes
africanas e afrobrasileira.
Diante de tudo, de tantos relatos emocionantes, coletados nas entrevistas,
acredito que o inventário dos terreiros do Ceará além de ser um marco históri-
co, tem grande relevância, sendo passaporte inicial para que possamos exigir
de fato do governo do Estado do Ceará políticas públicas efetivas e específicas
para esses povos, direitos de ser e exercer suas religiões como cidadãos, o que já
está dito desde a constituição de 1988, mas que ainda hoje não foi devidamente
efetivados.
116
Segmentos tradicionais,
I
nventário dos Povos e Comunidades Tradicionais de Matrizes Africanas do Ceará,
assim foi chamado o percurso de pesquisa que teve como objetivo reunir e pro-
duzir dados que contribuíssem para a elaboração de políticas públicas voltadas
para essa parcela da população cearense. Uma vez que a pesquisa que gerou os
resultados aqui apresentados foi realizada mediante o trânsito entre terreiros, ten-
das, aldeias, centros e ilês, dentre outras expressões que indicam locais comumen-
te identificados como pertencentes às matrizes africanas, afro-brasileiras e afro-in-
dígenas, por qual motivo tal empreendimento não foi chamado de “Inventário das
religiões afro-brasileiras do Ceará”? A resposta para essa pergunta abre caminho
para uma grande encruzilhada de modos de existência, bem como contribui para a
compreensão dos dados e informações presentes neste texto.
Em suma, estamos falando de modos de existência que, em sua diversida-
de, não se resumem apenas ao universo religioso – daí o fato de não utilizarmos
“Inventário das religiões afro-brasileiras do Ceará”. Está em questão uma gama
de expressões afro-indígenas, afro-brasileiras e de matrizes africanas que, em sua
experiência em sociedade, comumente transitam ou mobilizam ênfases em torno
de pertencimentos étnicos, enquanto povo e cultura; e reivindicações do status
de religião, entre outras formas de constituição de identidades. Uma análise so-
1 Por Leonardo Oliveira de Almeida - Doutor em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande
do Sul. Pós-doutor (Desenvolvimento Científico Regional - DCR - CNPq/FUNCAP) pelo PPG de Antropologia
da Universidade Federal do Ceará, tendo realizado pesquisa sobre a presença das religiões afro-brasileiras
do Ceará no jornal, rádio e televisão entre o início do século XX e a década de 1970.
117
bre “segmento cultural tradicional e/ou religioso do terreiro/casa/tenda”, tema
que será abordado neste texto, portanto, não deve ser lido a partir de uma estag-
nada segmentação entre “religião” e “cultura”, mas como territórios complexos
que compreendem relações entre famílias, modos de se alimentar e de distribuir
alimento, modos de se vestir e de constituir vínculos por meio da música, formas
de constituir territórios e de utilizar o corpo, modos de morar, de fazer, de assen-
tar, de batizar e de organizar a vida cotidiana e os calendários festivos.2
Ao falarmos de “espaços para criação de animais”, um dos temas aborda-
dos neste Inventário, estamos fazendo referência à relação entre humanos e não
humanos, mediada pelos Encantados, Guias e Orixás, pelo axé3 e pelas forças
que habitam tudo e todos. Ao falarmos em “família”, não está em debate aquela
categoria presente em alguns manuais e dados técnicos utilizados por secretarias,
prefeituras e governos para a identificação do alcance de certas políticas públi-
cas. Família, aqui, é uma extensa e complexa rede que se constitui por meio da
iniciação religiosa, da feitura dos Orixás, da circulação de energias, do comparti-
lhamento de línguas comuns, da mediação dos Mestres e demais entidades, dos
vínculos com a ancestralidade e que pode se desdobrar em um “território”. Esse
território, devemos frisar, comumente está além do “terreno”, este entendido, em
uma matriz ocidental, como uma área de terra cercada por muros ou cercas e que
pode remeter a certas noções de propriedade. Rios, cachoeiras, ruas, matas, mar,
cemitérios, encruzilhadas e pedras são locais onde as divindades habitam e, ao
mesmo tempo, parte delas ou elas próprias.
Em complemento, a diversidade mencionada possui, entre seus pontos co-
muns, a luta cotidiana por direitos e liberdade em uma sociedade racista, ainda
pautada no registro da colonialidade. Em conversas com pesquisadores e pes-
quisadoras de campo que tornaram o Inventário possível, bem como com pais
e mães de santo cearenses, muito foi dito sobre a necessidade de “mostrar que
nós existimos”, em contraposição a certos segmentos da população cearense, o
2 Fazer e assentar são verbos de grande importância para os grupos em questão. Dizem respeito aos modos
de produzir vínculos entre pessoas, lugares/territórios, coisas, seres e divindades.
3 O axé pode ser compreendido como “princípio ou força propulsora que perpassa, constitui e vincula dina-
micamente todos os seres: as divindades, seus filhos humanos, os animais, plantas e objetos” (Rabelo, 2014,
p. 55)
118
■ Inventário dos Povos de Terreiro do Ceará ■
que inclui setores do poder público, que insistem em dizer que “no Ceará não
tem terreiros” ou que estes possuem uma presença tímida nessa parte do país.
Essa compreensão não está desligada de visões, já debatidas por alguns autores
e autoras, de que “não tem negros no Ceará” (FARIAS, 2011; FERREIRA, 2005;
BANDEIRA, 2009; FUNES, 2007) ou “E tem índio no Ceará? Pensei que era só na
Amazônia!” (PEREIRA, 2020). Essas referências ou matrizes, incontáveis vezes sob
tentativas de serem negadas e silenciadas, são de grande importância para os
dados e informações apresentadas nesta publicação.
Diante disso, o processo de elaboração das perguntas presentes no instru-
mental utilizado para a realização deste Inventário, gestado coletivamente, foi
orientado pela tentativa de produzir dados que atestem a existência desses terrei-
ros/casas/tendas e sua presença intensa e diversa em todo o território cearense.
Indo além, o Inventário, não apenas contribui para constatar que esses grupos
existem e que existem de modos diversos – algo que, para os povos e comunida-
des tradicionais de terreiro, já era incontestável –, mas também fornece, a partir
de uma nova linguagem, indicadores de “como” existem. A reunião e a análise
desses indicadores expõem dinâmicas próprias do campo afro-cearense e forne-
cem orientações preciosas para a elaboração de políticas públicas voltadas para
os povos e comunidades tradicionais de Matrizes Africanas do Ceará.
O primeiro indicador da diversidade mencionada pode ser visto na elabora-
ção das perguntas presentes no instrumental de pesquisa utilizado no Inventário,
nosso questionário. Na pergunta “Qual o nome do seu terreiro/casa/tenda?” é
possível observar a utilização de três expressões para a identificação de uma par-
te do território. A utilização das palavras “terreiro, casa e tenda” visa incluir catim-
bós, candomblés, juremas, umbandas, terecôs, omolokôs, umbandomblés, torés,
ifás, entre outros. Fato interessante trazido pelo Inventário é o registro de diversas
expressões utilizadas na identificação desses locais: Abassá, Aldeia, Associação,
Axé, Cabana, Centro, Cruzeiro, Ilê, Macaia, Palácio, Quilombaxé, Reino, Salão,
Templo, Sociedade, Egbé (em relação à pergunta sobre “nação/etnia ou linha” –
Ketu), N’Zo (em relação à pergunta sobre “nação/etnia ou linha” – Angola), Igbá/
Igbasé (em relação à pergunta sobre “nação/etnia ou linha” – Ketu), Kwé (em
relação à pergunta sobre “nação/etnia ou linha” – Jêje).
119
Também a pergunta “Qual cargo o Sr.(a) ocupa na hierarquia do terreiro/casa/
tenda?” representa um dos modos de, metodologicamente, alcançar diversidades,
se considerarmos que as expressões utilizadas para a identificação do cargo reme-
tem a diferentes segmentos, nações, etnias ou linhas.4 Temos, por exemplo, Pai ou
Mãe de Santo, Zelador e Zeladora,5 Sacerdote e Sacerdotisa, Dirigente Espiritual,
Ajubonã, Mãe Pequena, Iyaquequerê,6 Obaoci, Pai Pequeno,7 Tata,8 Doté,9 Padri-
nho ou Madrinha, Egbónmi,10 Mestre e Mestra, Abiã, Cambone, filho de santo ou
filha de santo, Toi Vodun.11 A mesma lógica pode ser observada na pergunta “Apro-
ximadamente quantas pessoas em geral frequentavam o terreiro/casa/tenda nos
momentos de rituais/sessão/funções?”, por acionar expressões que dialogam com
diferentes grupos. Também podemos mencionar a pergunta “Qual(is) Ancestrais/
Divindade(s)/Entidade(s)/Guias rege(m) seu terreiro/casa/tenda (Orixá, Nkisi, Vo-
dum, Caboclo, Preto(a) Velho(a), Encantado(a), Mestre(a), Exu)?”, pois foi utilizada,
assim como as outras, como uma estratégia pedagógica, ao indicar aos entrevista-
dos e entrevistadas o espaço para uma diversidade de respostas possíveis.
Esses exemplos evidenciam o uso de vocabulários que, a depender do grupo
em questão, podem acionar distintos universos. Os dados e informações que
temos em mãos revelam que todas essas expressões foram mencionadas pelas
lideranças que contribuíram com o Inventário ao longo do percurso de pesquisa,
4 Entre os 494 terreiros/casas/tendas inventariados, 134 (27,2%) foram herdados, ou seja, não foram fun-
dados pelas lideranças que atualmente os conduzem. Por outro lado, 360 (72,8%) foram fundados pelas
lideranças que atualmente estão à frente dessas comunidades.
5 As palavras Zelador e Zeladora são utilizadas, em sua maioria, em terreiros (referente à pergunta sobre
“segmento cultural tradicional e/ou religioso”) de Umbanda (90,6%), seguidos de terreiros de Candomblé
(3,4%), Linha Cruzada (3,4%), Catimbó (1,1%) e Jurema (1,1%).
6 Ajubonã/Mãe Pequena/Iyaquequerê são utilizadas por cinco terreiros (referente à pergunta sobre “seg-
mento cultural tradicional e/ou religioso”): três de Umbanda, um de Candomblé e um de Jurema. Fazem
referência a pessoas de confiança da liderança do terreiro/casa/tenda.
7 Obaoci e Pai Pequeno foram utilizadas por quatro terreiros de Umbanda.
8 A palavra Tata foi utilizada por quatro terreiros: dois de Candomblé Angola, um de Omolokô e um de Quim-
banda.
9 A palavra Doté foi utilizada por três terreiros de Candomblé Jêje.
10 Egbónmi foi utilizada por dois terreiros de Candomblé Ketu e um Nagô.
11 Toi Vodun foi utilizada por um terreiro de Candomblé/Tambor de Mina.
120
■ Inventário dos Povos de Terreiro do Ceará ■
de forma bastante dispersa no território cearense. Em complemento, é de grande
importância destacar o intenso intercâmbio a que são submetidos esses termos,
não sendo tarefa fácil encapsula-los em segmentos, linhas ou religiões com a su-
posição de que estes conservam fronteiras bem definidas. Em suma, o Ceará pos-
sui uma diversidade de povos, aldeias, centros, ilês, tendas e terreiros dispersos
em seu território, de modo que evidenciam fatores históricos e sociais específicos
de sua constituição, como migrações, intercâmbios, relações de fronteira e pro-
cessos de iniciação ocorridas em (ou advindas de) outras regiões do país.
Alguns resultados obtidos através da realização do Inventário serão aqui
apresentados como forma de evidenciar um quadro geral das religiões afro-ce-
arenses. Eventualmente, alguns recortes serão mencionados, considerando-se,
por exemplo, as respostas dadas apenas por lideranças que afirmaram ser de
Candomblé ou de Umbanda. Além disso, é indispensável destacar que os dados
que serão apresentados não foram obtidos ou produzidos por meio de um “ma-
peamento” dos terreiros do Ceará, como foi evidenciado na parte introdutória
deste livro. Ao todo foram 494 lideranças entrevistadas, número que fornece,
ainda que parcialmente, uma importante imagem do campo afro-cearense. Em
complemento, apenas uma parte dos dados obtidos e produzidos pelo Inventário
serão explorados neste texto, de modo a apresentar questões que possam insti-
gar novas pesquisas, divulgar aspectos acerca das religiões afro-cearenses para a
sociedade mais ampla e apontar caminhos e compreensões que contribuam para
a elaboração de políticas públicas.
121
as responderam “católico”; 4) 8,1% responderam “Umbanda e Candomblé”; 5)
3,4% responderam “Católico e Umbanda”; e 6) 2,4% responderam “Umbanda e
Católico”. Em seguida, temos 7) “Jurema”, com 1,2% e, com percentagem de até
1%, “Quimbanda”, “Umbanda e Quimbanda”, “Espírita e Umbanda”, “Umbanda e
Jurema”, “Candomblé e Jurema”, “Afro-indígena”, “Licurizeiro”, “Espírita”, “Aran-
curi”, “Catimbó”, “Umbanda e outros” e “Almas Angola”.
Gostaríamos de chamar atenção, inicialmente, para os seis primeiros dados,
pois possibilitam um diálogo com outra pergunta presente no questionário, sobre
o “segmento cultural tradicional e/ou religioso do seu terreiro/casa/tenda”. Nes-
te último caso, os dados obtidos são um pouco diferentes, em relação aos primei-
ros: Umbanda – 70%; Candomblé – 14,6%; Linha Cruzada – 3%; Jurema – 2,8%;
Catimbó – 2%; Umbandomblé – 1,8%; Quimbanda – 1,6%; Omolokô – 1,4%. Com
menos de 1%, temos: Nagô, Tambor de Mina, Vodum, Ifá e Urubanda. Chama
atenção o fato de o percentual referente à Umbanda ser maior (de 58,1% para
70%) quando a pergunta amplia seu alcance, incluindo a indicação de “segmento
tradicional, cultural e religioso” e não se limitando apenas à dimensão religiosa.
Além disso, o formato da questão é alterado, de uma questão aberta (“Qual sua
religião?”) para uma questão de múltipla escolha (“Qual o segmento cultural tra-
dicional e/ou religioso do seu terreiro/casa/tenda”).
Um dos potenciais da atuação complementar dessas duas perguntas é a
possibilidade de evidenciar atravessamentos na forma como os terreiros/casas/
tendas são identificados ou apresentados. Algumas explicações para as diferen-
ças nas respostas dadas às duas perguntas mencionadas estão na própria cons-
tituição da Umbanda enquanto religião brasileira e a influência do Catolicismo.
Como afirmaram algumas lideranças durante o percurso de pesquisa de campo,
“umbandista também é católico, né?”.12 A ampliação do alcance da questão,
incluindo segmentos culturais/tradicionais, também parece destacar um entendi-
mento acerca da pergunta “qual sua religião?”, remetendo a uma interpretação
institucional da religião e, além disso, uma segmentação entre o religioso e outros
122
■ Inventário dos Povos de Terreiro do Ceará ■
domínios da vida, que podem ter sido reintegrados na segunda pergunta. Neste
ponto, evidenciamos como a Umbanda é atravessada pelo Catolicismo no mo-
mento de sua identificação.
Em suma, é a Umbanda a expressão afro-brasileira mais presente no Ceará
– representando 346 dos 494 terreiros/casas/tendas inventariados. Como vem
sendo evidenciado pelos trabalhos acadêmicos, bem como pelo depoimento de
lideranças, a Umbanda teve seu impulso de institucionalização no Ceará a partir
da década de 1950 e, entre seus modos de atuação, contribuiu para um processo
de “umbandização” de expressões afro-brasileiras e afro-indígenas já presentes
nessa parte do país, como a macumba e o catimbó (PORDEUS JR., 2011; CANTU-
ÁRIO, 2009; SILVA, 2017; PEREIRA, 2012). A Umbanda, nesse contexto, propunha
uma nova forma de presença pública dessas expressões, mediada pela Federa-
ção Espírita Cearense de Umbanda, criada no mesmo período. Desde então, o
Ceará viu emergir uma diversidade interna à própria Umbanda, com o surgimento
de novas associações e caracterizada pelos diversos diálogos e cruzamentos en-
tre linhas, segmentos e vertentes. Vemos, com base neste Inventário, expressões
como Umbanda Omolokô, Umbandomblé, Umbanda branca, Umbanda cruzada,
entre diversas outras expressões evidenciadas pelas lideranças entrevistadas.
Outra importante informação, obtida por meio do Inventário, é que a iden-
tificação cultural/religiosa/tradicional apresentada nas duas questões menciona-
das pouco é, no caso da Umbanda, perpassada pela referência ao Espiritismo,
prática que, a partir das décadas de 1950 e 1960, esteve bastante presente na
composição dos nomes de templos, terreiros e tendas no Ceará, em um perío-
do que recebeu forte influência dos movimentos federativos que emergiam em
contexto nacional (BIRMAN, 1985; NEGRÃO, 1996; KLOPPENBURG, 1961) e em
correspondência à possibilidade, então recente, de realização de registros (em
cartórios e delegacias de polícia). Nesse caso, diversos terreiros passaram a utili-
zar a denominação espírita para, entre outros fatores, alcançar maior legitimidade
na sociedade cearense. Atualmente, embora a menção ao Espiritismo não seja
feita no momento da identificação (nas duas questões mencionadas), elementos
advindos desse universo estão presentes em diversos aspectos da vivência dos
terreiros, como os modelos de conduta ético-religiosos e a perspectiva da evo-
123
lução espiritual, entre outros, e nos nomes de templos. Neste último aspecto,
38,1% dos terreiros e centros de Umbanda inventariados utilizam as iniciais C.E.U
(Centro Espírita de Umbanda) ou fazem referência ao espiritismo em seus nomes.
Os dados acerca do Candomblé (ao todo 72 terreiros inventariados) revelam
uma perspectiva diferente da mencionada anteriormente acerca da Umbanda, pois
mantém constantes 14% em ambas as perguntas. Isso evidencia um menor atra-
vessamento do Catolicismo, tanto na identificação religiosa (“Qual sua religião”)
quanto na identificação mais ampla, ou seja, como “segmento cultural, tradicional
e/ou religioso”. Nesse caso, o Candomblé parece reivindicar um lugar no polo
mais africanizado, como etnia ou povo, que não se identifica ou se apresenta pela
mediação do Catolicismo, embora seja possível observar a presença, nos terreiros
cearenses, de referências cristãs/católicas, como São Sebastião, Santa Bárbara, São
Jorge, entre outras. Disso resulta que as referências ao Catolicismo, que podem
existir em momentos específicos da vivência do terreiro, não são acionadas no mo-
mento da identificação ou apresentação. O caso também nos remete às influências
possíveis das noções de “pureza” ou das propostas de “retorno à África”, temas já
discutidos na literatura específica. Além disso, a presença do Candomblé também
pode ser identificada na pergunta “Que outras formas religiosas praticam-se neste
terreiro/casa/tenda?”. Nesse caso, foram 23 menções ao Candomblé, feitas por
lideranças de terreiros/casa/tendas de Umbanda, Jurema e Umbandomblé (“seg-
mento cultural tradicional e/ou religioso”). Já as respostas à mesma pergunta, da-
das por lideranças do Candomblé (“segmento cultural tradicional e/ou religioso”),
evidenciou, como “outras formas religiosas” praticadas entre as 72 casas inventa-
riadas: Umbanda (52,7%), Jurema (9,7%), Quimbanda (4,3%), Catolicismo (2,7%),
Nagô (2,7%), Toré (1,3%) e “outros” (1,3%). Por outro lado, 23,6% dos terreiros de
Candomblé afirmaram não praticar “nenhuma outra” forma religiosa.
O Candomblé, devemos ressaltar, teve seu principal impulso formativo no
território cearense, com filiações em torno de linhagens, a partir da década de
1970 (BANDEIRA, 2009; FARIAS, 2011; LOPES, 2012;) e teve personagens de
grande importância, como Pai Feliciano, Mãe Iraciana, Pai Déo, Pai Xavier, entre
outros e outras pais e mães de santo.13 Além disso, diferentes nações ou segmen-
13 Embora seja comum a indicação das décadas de 1960 e 1970 como o período de surgimento do Candom-
124
■ Inventário dos Povos de Terreiro do Ceará ■
tos étnicos compõem uma diversidade própria, apresentada adiante. É importan-
te ressaltar que, somados, Umbanda e Candomblé representam 84,6% dos ter-
reiros/casa/tendas inventariados (“segmento cultural tradicional e/ou religioso do
terreiro/casa/tenda”), o que atesta a grande importância desses dois segmentos
para a composição do campo afro-cearense. De modo complementar, esses dois
segmentos não devem ser compreendidos sem que sejam consideradas a diversi-
dade que lhes é própria, ao ponto de sermos convidados a falar em candomblés
e umbandas, sempre no plural.
Além de Candomblé e Umbanda, também foram mencionados (“segmento
cultural tradicional e/ou religioso do terreiro/casa/tenda”): Linha Cruzada – 3%;
Jurema – 2,8%; Catimbó – 2%; Umbandomblé – 1,8%; Quimbanda – 1,6%; Omo-
lokô – 1,4%. A Linha Cruzada, que representa 2,8% dos terreiros inventariados,
torna visível as possibilidades de cruzamentos e atravessamentos diversos, entre
Umbanda e Quimbanda, Umbanda e Jurema, entre outros. Sua relevância para o
campo afro-cearense se mostra ainda maior quando consideramos a pergunta “A
qual nação/etnia ou linha pertence seu terreiro/casa/tenda?”. Como resultado,
temos que a “Linha Cruzada” foi a “nação/etnia ou linha” mais mencionada, com
31%. Além disso, uma importante dimensão a ser destacada é a possível influên-
cia do Catimbó cearense como motivação para as menções à “linha cruzada”. O
Catimbó cearense deve ser compreendido, portanto, como matriz que influen-
ciou diversos outros segmentos, sobretudo em decorrência de sua presença nes-
se território desde, pelo menos, as décadas de 1920 e 1930 (SILVA, 2017), e que
tem, como um de suas características marcantes, o trânsito de guias/entidades
e de aspectos rituais entre linhas. Nesse sentido, os dados referentes à pergun-
ta “Quais as principais festas no calendário do terreiro/tasa/tenda?” e “Qual(is)
ancestrais/divindade(s)/entidade(s)/guias rege(m) seu terreiro/casa/tenda (Orixá,
blé cearense, fato que pode estar relacionado à possibilidade de, nesse período, ser possível a identificação
de pessoas, datas, formação de linhagens, nomes de casas e nações/etnias, há menções ao Candomblé nos
jornais cearenses entre as décadas de 1920 e 1950. Podemos citar o caso da reportagem “Um ‘Candom-
blé’ na rua da Escadinha” (O Nordeste, 14 de janeiro de 1931), que menciona uma liderança chamada Pai
Gaspar; ou o caso da “Velha Baiana”, uma mãe de santo de um “candomblé que já estava criando fama”,
(O Estado, de 17 de janeiro de 1941). Contudo, é necessário considerar que, para os jornais da época, a
expressão “Candomblé” poderia ter sido utilizada de modo a representar mais uma categoria de acusação,
facilmente substituível, em uma lógica racista, por outras categorias acusatórias, como “macumba” e “ca-
timbó”, que uma preocupação em identificar diferentes segmentos afro-brasileiros ou de matrizes africanas.
125
Nkisi, Vodum, Caboclo, Preto(a) Velho(a), Encantado(a), Mestre(a), Exu)?”, que se-
rão expostos de modo mais detalhado adiante, contribuem para o argumento
dos cruzamentos, uma vez que evidenciam a intensa presença de entidades e
guias que “trabalham” ou “chegam” em diferentes linhas, como Nego Gerson,
Zé Pilintra, Sibamba, entre outras. Disso resulta que o campo afro-cearense é um
território onde coabitam diferentes modos de cruzar.
Cleudo Pinheiro Júnior, conhecido como babalorixá Olutoji, uma das princi-
pais referências no que diz respeito à memória social das religiões afro-brasileiras
no Ceará, contribui neste ponto, relacionando esse “caráter cruzado” ao histórico
do Ceará enquanto região de entreposto e passagem entre diferentes regiões
brasileiras. Nesse sentido, a linha cruzada seria um reflexo dos intercâmbios ex-
perienciados em território cearense. Como explica Olutoji,
126
■ Inventário dos Povos de Terreiro do Ceará ■
Metropolitana, além de Paracuru, Camocim, Chaval e Granja. Além disso, todos uti-
lizam as iniciais “Centro Espírita de Umbanda” ou “Centro de Umbanda” em seus
nomes, evidenciando que o campo afro-brasileiro é caracterizado por porosidades
e atravessamentos, desafiando as tentativas de apreensão pautadas na busca por
fronteiras estritamente delimitadas, identidades únicas e institucionalidades fixas.
Em complemento, o Catimbó amplia ainda mais o seu alcance quando considera-
mos as respostas (10 ao todo)15 à pergunta “Que outras formas religiosas praticam-
-se neste terreiro/casa/tenda?”, e passa a incluir, além de Fortaleza e Região, as
cidades de Pacatuba, Quixeré, Quixeramobim, Pacajus e Sobral.
A Jurema, por sua vez, mostra-se presente com maior ênfase no interior do
Estado, em cidades como Juazeiro do Norte, Crato, Poranga, Canindé, Sobral e,
de forma expressiva, em Caucaia. Ao contrário dos terreiros de Catimbó, que acio-
nam as iniciais C.E.U., apenas 14,2% dos terreiros de Jurema inventariados utilizam
as iniciais “Centro Espírita de Umbanda” em seu nome, ao passo que 85,8% dão
ênfase a expressões como “Aldeia”, “Casa de Jurema”, “Templo Sagrado de Jure-
ma” e “Tenda de Jurema”. Tal fato reforça a ênfase a referências indígenas e, além
disso, nos fornece uma oportunidade para destacar a influência da Jurema advinda
do Rio Grande do Norte e de Pernambuco. Quando as lideranças foram pergun-
tadas sobre “Que outras formas religiosas praticam-se neste terreiro/casa/tenda?”,
a presença da Jurema é ampliada para novas regiões, ao passo que confirma sua
intensidade no Cariri cearense: Juazeiro do Norte (21,4%), Aracati (10,7%), Barro
(3,5%), Baturité (3,5%), Limoeiro do Norte (3,5%), Camocim (3,5%), Caucaia (10,7%),
Crateús (10,7%), Fortaleza (3,5%), Granja (3,5%), Madalena (7,1%), Milagres (3,5%),
Paracuru (3,5%), Porteiras (3,5%) e Sobral (7,1%) – total de 28 terreiros/casas/tendas.
Com relação à pergunta “a qual nação/etnia ou linha pertence seu terreiro/
casa/tenda?”, os dados obtidos expõem novas camadas do campo afro-cearense.
Ao trazermos apenas os dados referentes às respostas “Candomblé” (72 terrei-
ros), dadas pelas lideranças quando perguntadas sobre o “segmento tradicional,
cultural e religioso”, temos que o Candomblé Ketu é predominante entre os ter-
reiros inventariados, com a grande maioria das menções (71,4% - 45), seguido de
Jêje (11,1% - 7), Angola (4,8% - 3), Nagô (3,2% - 2) e Vodum (1,6% - 1). A pergunta
15 As menções ao Catimbó, como resposta a essa pergunta, foram feitas por terreiros/casas/tendas de Umban-
da, Jurema e Omolokô (“segmento cultural tradicional e/ou religioso”).
127
também possui um campo “outros” (6,3% - 4), que foi adicionado como forma
de contemplar “nações/etnias e linhas” não mencionadas nas opções sugeridas
pela questão. Temos: Nagô Vodum (3) Alaketu (1). Essas nações/etnias remetem
à existência de uma variedade de linhagens familiares e ramificações étnicas, bem
como de distintos modos de acionar vínculos com regiões diversas do continente
africano e do território brasileiro.
No quadro geral, excetuando-se o Candomblé, temos que as “nações/etnias
ou linhas” mais mencionadas são “Linha Cruzada” (31%), o que nos leva às con-
siderações feitas anteriormente acerca desse segmento, e Umbanda Pura/Linha
Branca (25,1%). Somadas, essas duas respostas representam 56,1% dos terreiros
inventariados. Também foram mencionados: Angola (8,9%), Quimbanda (6,3%),
Jurema (5,5%), Encantado (3,1%), “outra” (2,7%), Ketu (2,2%), Nagô (1,7%), Omo-
lokô (1,7%), Xangô (0,7%), Tambor de Mina (0,2%), Jêje (0,2%), Umbandomblé
(1%), Toré (0,2%), Jêje Mahin (0,2%), Mina (0,2%) e Vodum (0,2%). Entre os entre-
vistados e entrevistadas, 7% não sabiam ou não responderam. Se considerarmos
apenas a Umbanda (“segmento cultural, tradicional e/ou religioso”, total de 346
respostas), as “nações/etnias e linhas” mencionadas incluem, além de Linha Cru-
zada e Umbanda Pura/Linha Branca: Angola, Quimbanda, Encantado, Jurema,
Nagô, Ketu, Xangô, Omolokô, Mina, Tambor de Mina, Umbandomblé, Toré e
Jêje. De fato, estamos falando em Umbandas, como evidenciou Simas (2021) e
outros autores, acerca da diversidade própria desse segmento. Um interessante
cruzamento pode exemplificar ainda mais essa diversidade, além de retomar uma
questão mencionada anteriormente acerca da Jurema: enquanto que apenas
7,1% (1) dos terreiros/casas/tendas de Jurema (“segmento cultural, tradicional e/
ou religioso” – 14) acionaram a Umbanda na resposta sobre a “nação/etnia ou
linha”, 55% (11) dos terreiros que indicaram “Jurema” na pergunta sobre “nação/
etnia ou linha” responderam “Umbanda” na pergunta sobre o “segmento cultu-
ral, tradicional e/ou religioso”.
As festas
Outro importante tema a ser abordado é a realização das festas anuais des-
tinadas aos ancestrais, divindades, entidades e guias que regem ou têm papel
de destaque nos terreiros/casas/tendas do Ceará. Esses eventos, públicos ou pri-
128
■ Inventário dos Povos de Terreiro do Ceará ■
vados, ou ainda de difícil delimitação de fronteiras entre estes dois domínios,
podem ser compreendidos como importantes indicadores da presença e do en-
trelaçamento desses terreiros/casas/tendas com seu entorno e com a sociedade
cearense. Para dar apenas alguns exemplos, a Festa de Iemanjá, atualmente Pa-
trimônio Cultural Imaterial de Fortaleza,16 passou, desde a década de 1960, por
uma longa trajetória de lutas por reconhecimento e pelo direito à ocupação do
espaço público de Fortaleza; Festas de Cosme e Damião, de Erês e de Crianças
reúnem a vizinhança para a distribuição de presentes e alimentos em todas as par-
tes do Ceará; festas de Orixás celebram os vínculos entre pessoas e divindades,
ao passo que suprem necessidades e alcançam lugares e parcelas da população
muitas vezes não alcançados pelo Estado.
Pensando na compreensão de como se organizam esses calendários festivos, a
equipe do Inventário perguntou quais as três principais festas realizadas nos terrei-
ros/casas/tendas inventariados, relacionando-as às respectivas datas de realização.
Para a organização dos dados apresentados neste texto, utilizaremos dois critérios:
primeiro, as festas indicadas em cada uma das três respostas; e a distribuição des-
sas festas ao longo dos meses do ano. Vale ressaltar que a ausência ou a baixa in-
cidência de menções a algumas festas, como as de Boiadeiros(as), Encantados(as),
Ciganos(as), entre outros, não representa a inexistência ou a pouca importância
de festejos, giras, sessões destinadas a essas entidades no Ceará. Em vez disso,
pode indicar a pouca concentração desses festejos em períodos específicos, es-
tando intensamente presentes e, ao mesmo tempo, dispersos entre os meses do
ano. Além disso, essas entidades podem não figurar entre as três festividades mais
importantes, o que explicaria o número reduzido de menções, embora estejam in-
tensamente presentes no cotidiano dos terreiros/casas/tendas e contribuam para a
constituição do que Pordeus Jr. (2011) chama de “cearensidade”.
16 Em 2018, a Prefeitura de Fortaleza, por meio da Secretaria Municipal da Cultura de Fortaleza (Secultfor),
registrou a Festa de Iemanjá como Patrimônio Cultural Imaterial, conforme decreto nº 14.262, de 30 de
julho. Segundo o Decreto: “Art. 1º - Fica registrada como Patrimônio Cultural Imaterial de Fortaleza a Festa
de Iemanjá de Fortaleza, por se tratar de uma Celebração que demarca as memórias, as identidades, as
histórias e a cultura dos habitantes da cidade de Fortaleza. Art. 2° - Fica determinada a inscrição do FESTA
DE IEMANJÁ DE FORTALEZA no Livro de Registro das Celebrações, nos termos do § 1º do artigo 34, da Lei
Municipal nº 9.347/2008, de 11 de março de 2008. Art. 3º - Cabe à Secretaria Municipal da Cultura de For-
taleza - SECULTFOR assegurar ao bem registrado a documentação por todos os meios técnicos admitidos,
mantendo banco de dados com o material produzido durante a instrução do processo, além de garantir a
ampla divulgação e promoção dessa espécie de Patrimônio Imaterial de Fortaleza.”
129
Disso resulta que, em um primeiro momento, apresentamos aqui as festas
mais citadas em cada um dos meses do ano, evidenciando, principalmente, aque-
las que se destacaram em termos numéricos, ou seja, que se distanciam numeri-
camente das demais festas mencionadas em cada mês. Isto posto, podemos dizer
que, em termos absolutos, janeiro (total de 183 respostas) é o mês das festas dos
orixás e entidades relacionados às matas: festas de Oxóssi, com 97 respostas;
festas de “Caboclos e Caboclas/Povo de Légua/Povo das matas”, com 39 res-
postas.17 Temos, então, uma redução a partir da terceira festa mais mencionada:
Festas de Exu e Pombagira/Lebara (10); festas de Zé Pilintra (7), festas de Oxalá
(6); festas de São Sebastião (6),18 festas de Pretos Velhos e Pretas Velhas (5). Além
disso, as festas destinadas a Oxóssi foram as mais mencionadas como resposta à
pergunta “Qual é a primeira festa/cerimônia mais importante realizada nesse ter-
reiro/casa/tenda?”, com 15,2%,19 sendo, destes, 67,9% de terreiros/casas/tendas
de Umbanda e 20,9% de Candomblé. Deve-se considerar nesse contexto, como
foi evidenciado por Pordeus Jr. (2006), a partir do caso da Umbanda, a importante
17 Para a identificação dessas diferentes festividades, foi realizada uma normatização das respostas, tendo
como base dois critérios: a repetição dos nomes de entidades, orixás e demais divindades específicas; e a
classificação destes por linhagens ou grupos de afinidades, tendo como base as particularidades do caso
cearense, identificadas a partir da pesquisa de campo e da literatura específica. O objetivo é demonstrar
que Zé Pilintra, por exemplo, possui um número expressivo de menções em comparação a linhagens/gru-
pos inteiros e que englobam uma grande diversidade de entidades. Algo semelhante pode ser observado
no caso de Nego Gerson, Sibamba, Nego Chico Feiticeiro, entre outras, fato que mostra a importância
que essas entidades possuem para a dinâmica dos terreiros/casas/tendas cearenses. Em suma, diferentes
classificações podem ser propostas, a depender da forma como os dados serão apresentados e analisados.
Disso resulta que a forma de classificar utilizada neste texto, portanto, representa uma entre as possíveis.
Além disso, os grupos de entidades citados reúnem menções que, durante as entrevistas, ora ocorreram por
meio da indicação da linhagem, como “festa de Exu” ou “festa dos Mestres”, ora por meio da indicação
de entidades específicas, como “festa de Exu Tranca Ruas” e “festa de Mestre Sibamba”. Também estamos
cientes de que as menções a Zé Pilintra, feitas pelas pessoas entrevistadas, podem representar a realização
de festividades destinadas a diferentes linhagens, uma vez que, no Ceará, essa entidade transita entre Exus,
Juremeiros, Mestres, Caboclos etc. Nesse caso, as linhagens deixam de ser contabilizadas, fato que aponta
para a necessidade de pesquisas que abordem o tema a partir de diferentes perspectivas e métodos. De
todo modo, o trabalho feito aqui permite identificar algumas tendências e recorrências na realização das
festividades cearenses.
18 Vale mencionar a relação entre Oxóssi e São Sebastião. Desse modo, as festas de São Sebastião são mo-
mentos comumente relacionados ao universo das matas.
19 Seguida das festas de Exu e Pombagira/Lebara (13,6%); Pretos Velhos e Pretas Velhas (13,2%); festa de Zé
Pilintra (7,1%); e festa de Iemanjá (6,7%), festas de Caboclos e Caboclas/ Povo de Légua/Povo das Matas
(5,3%), entre outras.
130
■ Inventário dos Povos de Terreiro do Ceará ■
atuação dos caboclos na “diluição de fronteiras simbólicas” e na mediação com
os orixás, fato que atesta a importância dessas entidades no contexto cearense.
Quando consideramos apenas as respostas dadas por lideranças que afir-
maram ser de Candomblé, acerca da “principal festa/cerimônia realizada nesse
terreiro/casa/tenda”, Oxóssi deixa de ser protagonista e uma distribuição mais
ou menos igualitária emerge, entre festas de Ogum (12,9%), Exu (11,3%), Oxalá
(9,7%), Xangô (8,1%), Obaluaiê/Omolu (8,1%), Oxum (8,15), Oxóssi (6,5%), Ossain
(3,2%), Iansã (3,2%), Airá (3,2%), entre outras divindades. Esse fato mostra que a
predominância de Oxóssi nas respostas, considerando-se o total de lideranças
entrevistadas, é sustentada pela Umbanda, Catimbó, Jurema, entre outras ex-
pressões afro-brasileiras e afro-indígenas.
O mês de fevereiro (total de 36 respostas) não anuncia a predominâncias de
festas específicas, mostrando uma distribuição mais ou menos igualitária entre
festas de Exu e Pombagira/Lebara (10); festas de Caboclos e Caboclas/Povo de
Légua/Povo das matas (6); festas de Oxóssi (5); festas de Mestres(as)/Encanta-
dos(as)/Juremeiros(as) (4); festa de Iemanjá (3); festas de Ogum (2). O mês de
março (total de 22 respostas), o mês com o menor número de indicações (o mês
menos festivo?),20 segue o mesmo fluxo do mês de fevereiro, com festas de Exu
e Pombagira/Lebara (5); festas de Ogum (4); festas de Zé Pilintra (3); festas de
Mestres(as)/Encantados(as)/Juremeiros(as) (2); festas Caboclos e Caboclas/Povo
de Légua/Povo das matas (2); e festas de Sibamba (2).
No mês de abril (total de 76 respostas) são celebradas as festas de Ogum e
São Jorge, com, respectivamente, 50 e 8 menções. Embora estejam aqui quantifi-
cadas em separado, as festas de Ogum e de São Jorge são comumente realizadas
em um mesmo momento ritual, de modo que é possível afirmar que uma men-
ção a São Jorge, por exemplo, inclua implicitamente as festividades destinadas à
Ogum, e vice-versa. Lógica semelhante pode ser utilizada, por exemplo, para as
festas de Oxóssi e Caboclos e Caboclas/Povo de Légua/Povo das matas, sobre-
tudo no caso dos terreiros de Umbanda, Catimbó, Omolokô, Umbandomblé. É
imprescindível destacar que não há, necessariamente, correspondências entre a
20 Talvez não seja possível afirmar que o mês de março é, de todos, o menos festivo, já que o número de fes-
tas realizadas nesse período do ano poderia ser maior se considerássemos as indicações da quarta, quinta,
sexta etc festa mais importante realizada nos terreiros/casas/tendas.
131
ausência de menções a essas festas por parte de alguns dos terreiros inventaria-
dos e a inexistência desses eventos, pois é possível que tais festividades sejam
realizadas em outros meses do ano e/ou que não estejam entre as três mais im-
portantes dos calendários. Caberia, portanto, a utilização de outros métodos e
estratégias de pesquisa para a apreciação desse recorte analítico.
No mês de maio, o destaque absoluto é para as festas dos Pretos e Pretas
Velhas, com 179 menções, de um total de 204. Consta, nesse caso, uma distân-
cia de 173 menções em relação ao segundo grupo de festividades mais citada
para o mês de maio (Festas de Exu/Pombagira/Lebara – 6 menções), a maior em
comparação às distâncias numéricas entre festividades nos demais meses do ano.
Além disso, as festas destinadas a essas entidades estão entre as três mais men-
cionadas como resposta às perguntas que buscavam saber qual era a primeira,
a segunda e a terceira “festa/cerimônia mais importante realizada nesse terreiro/
casa/tenda?”. Esses dados revelam a importância que as festas dos Pretos e Pre-
tas Velhas têm para os povos de terreiro do Ceará, além de evidenciar certa una-
nimidade quanto ao período do ano em que as festividades destinadas a essas
entidades são realizadas.21 Também não devemos deixar de mencionar a relação
entre o acentuado culto aos Pretos Velhos e Pretas Velhas no mês de maio e o
imaginário da abolição da escravatura no Ceará.
Nos meses de junho e julho (total de 80 e 65 respostas), as festas de Exu e
Pombagira/Lebara são as mais mencionadas, tendo 24 e 22 menções, respectiva-
mente.22 Também estão entre as três mais citadas em todos os meses do ano (com
exceção do mês de abril) e em primeiro lugar, em número de citações, nos meses
de fevereiro, março, junho, julho, novembro e dezembro. Já quando a equipe de
pesquisadores do Inventário perguntou sobre as três festividades mais importantes
dos terreiros/casas/tendas, as festas de Exu e Pombagira/Lebara estiveram entre as
duas mais citadas para cada uma das três perguntas. Mais do que atuarem isolados
21 Primeira festa mais importante: Festas de Oxóssi (15,2%); festas de Exu e Pombagira/Lebara (13,6%); Pretos
Velhos e Pretas Velhas (13,2%). Segunda festa mais importante: festas de Exu e Pombagira/Lebara (17,2%);
festas de Pretos Velhos e Pretas Velhas (16,8); festas de Ogum (6,9%).Terceira festa mais importante: festas
de Exu e Pombagira/Lebara (21,7%); festas de Preto Velho e Preta Velha (10,5%); festas de Zé Pilintra (6,9%).
22 Junho: festa de Exu e Pombagira/Lebara (24 menções); festa de Xangô (11 menções); festa de Nego Gerson
(10 menções); festa de Oxóssi (8 menções); festa de Caboclos e Caboclas/Povo de Légua/Povo das matas (5
menções). Julho: festa de Exu e Pombagira/Lebara (22 menções); Festa de Nego Gerson (9 menções); festa
de Caboclos e Caboclas/Povo de Légua/Povo das matas (7 menções); festa de Mestres(as)/Encantados(as)/
Juremeiros(as) (3 menções).
132
■ Inventário dos Povos de Terreiro do Ceará ■
no protagonismo de festividades ao longo dos meses do ano, Exus e Pombagiras/
Lebaras são agentes operadores de realizações e movimentos, e contribuem para
dar sentido à máxima “nada se faz sem Exu”. Enquanto “encarnação da multiplici-
dade” (CAPONE, 2018, p. 74) e atuantes na abertura de caminhos, essas entidades
contribuem para fornecer condições necessárias às demais festividades.
Por fim, Junho e Julho são também os meses com maiores menções às festas
de Nego Gerson, com 10 e 11 menções, respectivamente. Também devemos
destacar as festas de Xangô, tendo o mês de junho como o período do ano em
que esse Orixá recebeu mais menções (11 no total), provavelmente devido a suas
afinidades com São João Batista.
O mês de agosto (161 respostas) evidencia a importância da tradicional Festa
de Iemanjá, com 83 menções, seguida das festas de Obaluaiê/Omolu (com 21 men-
ções e com especial destaque para o Olubajé), Exus e Pombagiras/Lebaras (18), Mes-
tres(as)/Encantados(as)/Juremeiros(as) (10) e Caboclos e Caboclas/Povo de Légua/
Povo das matas (7). Importante fato a ser mencionado é o impulso à realização das
festas de Ogum, mencionadas anteriormente, e de Iemanjá, dado nas décadas de
1960 e 1970, quando mãe Júlia Condante e outros(as) representantes da Umbanda
passaram a realizar eventos em locais públicos de Fortaleza, como no Estádio Presi-
dente Vargas e no antigo Clube de Regatas, na Barra do Ceará. Em alguns desses
casos, as festividades eram abertas ao público e contavam com a venda de ingressos.
Fato importante a ser mencionado é que a festa de Iemanjá é um dos temas mais
abordados nas pesquisas sobre as religiões afro-brasileiras do Ceará.
Em setembro e outubro são comemoradas as festas de Erê/Crianças e Cos-
me e Damião, com, respectivamente, 39 e 17 citações em setembro e 39 e 21
citações em outubro.23 No mês de novembro as festividades destinadas ao Seu
Zé Pelintra adquirem relevância quando consideramos que, para este texto, a
contagem do número de menções a seu nome foi feita separadamente, enquanto
que, por exemplo, as festas de Exu e Pombagira/Lebara, que concentram a maior
quantidade de menções no mês de novembro, reúnem uma grande diversidade
de entidades. Desse modo, considerando-se todas as respostas de festas, Zé Pi-
23 Setembro: Festa de Cosme e Damião (39), Festa de Erê/Criança (17), Festa de Exu e Pombagira/Lebara (14),
Festa de Caboclos e Caboclas/Povo de Légua/Povo das Matas (6), Festa de Mestres/Encantados/Juremeiros
(5), entre outras. Outubro: Festa de Erê/Criança (39), Festa de Cosme e Damião (21), Festa de Exu e Pomba-
gira/Lebara (17), Festa de Caboclos e Caboclas/Povo de Légua/Povo das Matas (9), Festa de Oxum (6), Festa
de Mestres/Encantados/Juremeiros (6), entre outras.
133
lintra teve o segundo maior número de menções absolutas. Além disso, as festi-
vidades destinadas a essa entidade aparecem em destaque juntamente das fes-
tas de Exu e Pombagira/Lebara e de Mestres(as)/Encantados(as)/Juremeiros(as),
o que também parece evidenciar espaços de trânsito e de afinidades entre Zé
Pilintra e essas linhagens no Ceará.
Por fim, o mês de dezembro tem, com o maior número de menções, as Festas
de de Exu e Pombagira/Lebara (61), seguidas das Festas de Zé Pilintra (16); Festas
das Yabás - Orixás femininas (11); Festas de Mestres(as)/Encantados(as) /Juremei-
ros(as) (11), Festas de Oxum (7), entre outras.
134
■ Inventário dos Povos de Terreiro do Ceará ■
Sibamba (4,2). Esses dados reforçam a perspectiva dos cruzamentos ao evi-
denciar a representatividade de entidades que, como mencionado anterior-
mente, costumam transitar entre linhas e segmentos. Em suma, manifestam-se
como guias em diferentes planos de referência, fator determinante para a
ampliação de seus espaços de atuação. Além disso, devem-se ressaltar, as res-
postas à pergunta mencionada foram, em sua maioria, compostas por mais de
uma indicação de “Ancestrais/Divindade(s)/Entidade(s)/Guias”, fato que está
relacionado à compreensão de que, no contexto religioso afro-brasileiro, “a
pessoa é múltipla” (GOLDMAN, 1985), composta por uma série de elementos
materiais e imateriais, o que inclui o orixá principal à qual ela pertence, orixás
secundários, espíritos de antepassados, entidades, encantados, entre outros
seres que a constituem e regem sua presença no mundo.
Retomando os dados, também podemos observar o destaque concedido
aos Orixás: Ogum, Oxóssi, Oxum, Xangô e Iemanjá. Quando relacionamos as
menções a esses Orixás ao “segmento cultural tradicional e/ou religioso”, te-
mos: Ogum – Umbanda (77,1%), Candomblé (14,2%), Linha Cruzada (2,8%),
Umbandomblé (2,8%), outros (2,8%); Oxóssi – Umbanda (58,3%), Candomblé
(37,5%) e Umbandomblé (4,1%); Oxum – Candomblé (78,1%), Linha Cruzada
(7,1%), Omolokô (7,1%) e Umbanda (7,1%); Xangô – Candomblé (57,1%), Jure-
ma (7,1%) e Umbanda (35,7%); Iemanjá – Candomblé (50%), Umbanda (41,6%)
e Umbandomblé (8,3%). Uma importante conclusão acerca das menções aos
Orixás é que a posição de Ogum e Oxóssi como regentes dos terreiros/casas/
tendas é sustentada, em sua maioria, pelos terreiros de Umbanda, provavel-
mente em decorrência das possibilidades de diálogos entre esses dois orixás e
entidades/guias/santos bastante atuantes nesse segmento afro-brasileiro, como
os mestres, caboclos, São Jorge, Juremeiros, entre outros. Já os Orixás Oxum
e Xangô regem, em sua maioria, terreiros de Candomblé. Iemanjá, por sua vez,
rege em pé de igualdade terreiros de Umbanda e Candomblé.
135
Figura 14: Gráfico regentes dos Terreiros do Ceará
Qual(is) Ancentrais/Divindade(s)/Entidade(s)/Guias rege(m) seu terreiro/casa/tenda
(Orixá, Nkisi, Vodum, Cabloco, Preto(a) Velho(a), Encantado(a), Mestre(a), Exu?
1. Zé Pilitra 48
2. Nego Gerson 37
3. Ogum 35
4. Oxóssi 24
5. Oxum 14
6. Xangô 14
7. Iemanjá 12
9. Maria Padilha 10
10. Simbaba 8
15. Pombagira 6
16. Iansã 6
Matas
8,9% 18,5% Cachoeiras
25,3% Praia
Sim 11,1% Rio
Não 15,1% Encruzilhada
74,5% Rua
NS/NR 12,9%
Cemitério
14,7% Outros
13,9% Buffet/casa de
eventos/chácaras
136
■ Inventário dos Povos de Terreiro do Ceará ■
Os dados produzidos a partir do Inventário evidenciam que as religiões afro-
-brasileiras no Ceará utilizam matas, cachoeiras, praias, encruzilhadas, ruas, ce-
mitérios, buffets, casas de eventos, chácaras. No campo “outros” também foram
mencionados pedreiras, lagoas, açudes, praças, trilhos, pés de Jurema, serras,
mangues e dunas. Estamos diante de um “espaço público encantado” (CARVA-
LHO, 1999), que torna possível a constituição de vínculos entre pessoas, seres,
objetos e divindades e que, além disso, é palco de identidades mutuamente
postas em questão. A imagem anterior (direita), referente aos resultados de uma
questão de múltipla escolha, multi-resposta, mostra a percentagem de marcações
de cada um dos “espaços externos ao terreiro” em relação ao total de marcações
de todas as opções, ou seja, a opção “matas” tem 18,5% de todas as marcações
realizadas na questão, considerando-se também as demais opções. Em outra
perspectiva, temos que 340 pessoas marcaram a opção “matas”, o que corres-
ponde a 68,8% dos terreiros inventariados. Na mesma lógica, temos: cachoeiras
(278 – 56,2%); praia (271 - 54,8%); rio (256 – 51,8%); encruzilhada (237 – 47,9%);
rua (205 – 41,4%); cemitério (163 – 32,9%); outros (57 – 11,5%); e buffet/casa de
eventos/chácaras (32 – 6,4%).
Importantes debates acerca da relação entre os usos desses lugares e as
categorias espaço público, esfera pública, liberdade religiosa, intolerância reli-
giosa, racismo religioso, entre outras, vêm sendo realizados. No caso cearense,
algumas dessas questões vêm sendo discutidas por pesquisadores e pesqui-
sadoras nos últimos anos, do litoral (PEREIRA, 2015; BARBOSA, 2019; ANJOS
e PEREIRA, 2021) ao Cariri (SILVA e DOMINGOS, 2015; DOMINGOS, 2021).
Infelizmente, esses espaços públicos, tão importantes para a manutenção dos
vínculos e para o livre exercício da cidadania, são locais de ocorrência de di-
versos casos de racismo religioso sofridos pelas expressões afro-brasileiras no
Ceará, fato que se estende à escolas, terreiros, instituições e diversos espaços e
momentos da vida cotidiana, como vem sendo registrado em pesquisas acadê-
micas (SANTOS, 2018; SOUSA, 2010, entre outros), em notícias nos jornais, nas
redes sociais e em depoimentos de pessoas de terreiro. O Inventário nos forne-
ceu um recorte sobre esses casos, dando ênfase a um dos principais espaços da
experiência cotidiana, o bairro.
137
Quando perguntadas “O Sr.(a) já foi vítima de alguma dessas intolerâncias/
preconceitos em seu bairro?” (questão de múltipla escolha multi-resposta), 89,2%
das lideranças afirmaram ter sofrido algum tipo de intolerância/preconceito em seu
bairro, tendo como base opções sugeridas pela questão. A maioria das lideran-
ças, 298 delas (60,32%), afirmou ter sofrido “Racismo/Intolerância religiosa prati-
cada por evangélicos”. Em complemento, as indicações das lideranças acerca de
“Racismo/Intolerância religiosa praticada por evangélicos”, ou seja, as vezes que
esta opção foi marcada, correspondem a 23% de todas as marcações realizadas
na questão, considerando-se também as marcações das demais opções.24 Como
vem sendo evidenciado em diversas pesquisas realizadas no Brasil (SILVA, 2007;
NOGUEIRA, 2020; ALMEIDA, 2009), alguns segmentos evangélicos vêm ocupando
a dianteira de diversos casos de racismo religioso, fato que está diretamente rela-
cionado ao crescimento numérico desses grupos no Brasil, com destaque para o
segmento neopentecostal, como vêm mostrando os dados do IBGE.
No caso específico do Ceará, das 494 lideranças entrevistadas, 183 (37%) afir-
maram ter sido vítima de “Racismo/Intolerância religiosa praticada por católicos”,
148 (29,9%) afirmaram ter sido vítima de “Racismo/Intolerância religiosa praticada
por pessoas de outras religiões” e 132 (26,7%) afirmaram ter sido vítima de “Racis-
mo/preconceito étnico-racial”. Esses dados ganham uma nova camada de análise
quando consideramos os números referentes à presença de lideranças pretas e
pardas nos terreiros/casas/tendas cearenses. O Inventário mostrou, com base na
pergunta “qual sua cor/raça?”, que 27,5% das 494 lideranças entrevistadas são pre-
tas e que 49,2% são pardas.25 Isso significa que as lideranças negras (pretos/pretas
e pardos/pardas) dos terreiros/casas/tendas cearenses representam 76,7%, valor
mais expressivo que o indicado pelo Instituto de Pesquisa e Estratégia Econômica
do Ceará - IPECE (2020) para a população cearense em geral (72%). 26 Se conside-
rarmos apenas as pessoas pretas, o Inventário evidencia mais uma importante di-
24 Seguindo a mesma lógica, temos “Racismo/Intolerância religiosa praticada por católicos” (14,1%), “Ra-
cismo/Intolerância religiosa praticada por pessoas de outras religiões” (11,4%), “Incômodo sonoro/lei do
silêncio” (9,6%), “perseguição policial” (5,3%), “por utilização do espaço público, tais como: ruas, recursos
naturais” (51%), “por realizar sacralização/ritualização para alimentação” (3,3%).
25 Ver outras considerações acerca do tema no capítulo assinado pela doutora Silvia Maria Vieira dos Santos,
presente neste livro.
26 IPECE - Uma análise dos indicadores sociais do Ceará por cor e raça declarada, disponível em: https://www.
ipece.ce.gov.br/wp-content/uploads/sites/45/2020/12/ipece_informe_187_22_dez2020.pdf Acesso em:
dezembro de 2021.
138
■ Inventário dos Povos de Terreiro do Ceará ■
ferença: 27,5% das lideranças entrevistadas no Inventário são pretas, ao passo que
os dados do IPECE indicam 5,9% para a população cearense em geral. Em suma, a
autodeclaração como preta, apresentada pelas lideranças de terreiros/casas/tendas
do Ceará, foi muito maior, em comparação ao que é apresentado pelo IPECE para
a população cearense, o que deve ser considerado na apreciação dos dados acerca
dos casos de intolerância e racismo sofridos pelos povos de terreiro no Ceará.
As lideranças também mencionaram as perseguições sofridas por conta de
“incômodo sonoro/lei do silêncio” (125 pessoas – 25,3%), “perseguição policial”
(69 pessoas – 13,9%), “homofobia” (67 pessoas – 13,5%) “por utilização do es-
paço público, tais como: ruas, recursos naturais” (66 pessoas – 13,3%), “por reali-
zar sacralização/ritualização para alimentação” (43 pessoas – 8,7%). Além destas,
também foram mencionadas na opção “outros”: transfobia, violência sofrida por
padres católicos, xingamentos por parte de vizinhos, ameaça armada. Não deve-
mos deixar de destacar que há relatos, dados por pesquisadores e pesquisadoras
do Inventário, acerca do receio de algumas lideranças em falar sobre a repressão
sofrida pelo crime organizado, fato que, além de apontar para as dificuldades
metodológicas que envolvem esse processo, também indica a necessidade de
mais pesquisas que contribuam para a compreensão desse fenômeno. Está em
questão um importante debate acerca dos chamados “traficantes evangélicos”,
expressão discutida por Cunha (2015), ou a relação entre narcotráfico e as perse-
guições a terreiros (RODRIGUES, 2020). Esses casos evidenciam uma modalidade
que vem ganhando expressividade em diferentes regiões do país, e que conecta
tráfico/facções criminosas às perseguições sofridas por pessoas de terreiro.
Outros dados a serem mencionados dizem respeito ao próprio processo de
pesquisa que originou o Inventário. Pesquisadoras e pesquisadores relataram
com frequência o medo e o receio de, ao serem identificados como sendo de
terreiro, sofrerem perseguições e violência nos bairros cearenses. Disso resul-
tou a elaboração de estratégias que tinham como objetivo garantir a segurança
das pessoas que tornaram esse Inventário possível: delimitação de horários para
a realização das idas a campo, escolhas de combinações de equipes, o acom-
panhamento de “chaveiros”27, os meios de transporte escolhidos, entre outros.
139
Também poderíamos mencionar os relatos de pais e mães de santo de algumas
regiões cearenses, como na Ibiapaba, acerca da realização de novenas nas portas
de terreiros, e os relatos de “metas de fechamentos de terreiros”, estabelecidas
por igrejas neopentecostais.
Essa variedade de situações de racismo/intolerância mencionada revela os
desafios enfrentados pelos povos de terreiro no curso de sua experiência cotidia-
na. Ao relatarem, por exemplo, as perseguições sofridas “por realizarem sacraliza-
ção/ritualização para alimentação”, devemos compreender, tal como evidenciado
por Patrício Carneiro Araújo em um dos capítulos deste livro, que “o sacrifício
de animais nessas religiões está intrinsecamente ligado à soberania e segurança
alimentar das pessoas ligadas a elas.” Este exemplo nos leva a considerar que as
modalidades de preconceito/racismo/intolerância aqui apresentadas expõem al-
guns dos limites da noção de “liberdade religiosa”. Disso resulta que, ao promo-
ver formas de combate ao racismo, destinar incentivos à ocupação dos espaços
públicos ou ao ensino sobre a cultura afro-brasileira nas escolas, o poder público
não promove apenas “religiosidades”, mas contribui para a continuidade de mo-
dos complexos de existência, fazendo valer, inclusive, direitos constitucionais que
deveriam ser assegurados pelo Estado.
140
Referências Bibliográficas
141
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vência no candomblé. Salvador: Edufba, 2014.
142
InventÁrio dos povos de
C
om certeza o momento que essa pesquisa me tocou foi em Sobral, fomos
eu e meu colega Fabio Mendes, na confiança dos orixás e dos caboclos
que nos guiaram nessa jornada.
As coisas aconteceram de uma forma realmente mágica, nos só tínhamos
um contato lá em Sobral no qual não deu certo, mais a união dos terreiros em
Sobral foi surreal, após falamos com Coordenado de Igualdade racial Chiquinho
Silva ele nos guiou até o pai Bruno, um jovem Pai de santo com seus 30 anos, nós
deu o endereço dele.
Chegando lá nós deparamos com um homem sério e com uma postura muito
rígida, confesso que fiquei um pouco receosa de Sobral dar certo, porque até aquele
momento todos que havíamos tentado, só nos deram não, mais foi ai no pai Bruno
onde tudo mudou. Nós sentamos em umas cadeiras de plástico no meio do terreiro
que ficava na sua sala assim que entravamos na casa, ele ainda muito sério, explica-
mos e fizemos a pesquisa com ele, no fim, após o termino da pesquisa ele perceben-
do que eram simples perguntas ele me pareceu muito aliviado, um alivio que em seus
ombros desceram, mudando completamente o seu jeito e sua expressão. Quando
pedimos as indicações de outros terreiros, outra surpresa ele fez questão de nos levar
a cada casa que ele podia, de acordo com sua disponibilidade. Após ai, o pai Bruno
as portas dos terreiros de Sobral pareciam abertas para nós, ele e Chiquinho nos leva-
ram a diversas casas nas quais nem imaginávamos ir. Conhecemos através deles Mãe
Zelma uma mulher guerreira, que tem seu terreiro ao lado da sua casa, para chegar
na sua casa, tivemos que andar alguns km de carro em uma estrada de terra, paramos
143
o carro no meio do nada e andamos até um rio, até a água dele chegar nos nosso
joelhos e lá longe uma casa de taipa debaixo de muitas árvores e com muitos animais
e algumas crianças. Tinha um Senhor que parecia orgulhoso de nós receber, fez uma
piada e indicou uma local um pouco afastado das casa, lá estava toda sua família com
roupa de santo nós esperando, como quem espera um parente importante, ali era o
terreiro de mãe Zelma. E tudo aquilo me encantou tanto a humildade de nós receber,
as histórias o orgulho em volta delas e cada pensamento com tão pouco estudos,
cada lembrança. Uma das coisas mais lindas que já vi na vida porém por trás de tanto
encanto ali havia realmente parado no tempo, sem luz, sem banheiro, sem internet e
sem cuidados básicos que temos no nosso dia-a-dia, assim como em outros terreiros
nos quais colegas de equipe passaram e relataram.
Em Fortaleza a história foi um pouco similar, também houve um receio no início
em nós receber, pois nosso povo já passou por tanto preconceito que muitos deles
preferiram se esconder sem se expor muito, mais com a ajuda de divulgações das
redes sociais, as portas dos terreiros foram abertas assim como em Sobral.
No Pirambu, também com meu colega Fabio Mendes, e dessa vez Leonardo nos-
so coordenador nos acompanhou no primeiro dia, como magia as coisas aconteciam
sempre da forma na qual menos imaginávamos, mais uma vez a pessoa que iria nos
guiar pelo bairro não compareceu, pensamos por um momento de achar que ali não
iria da certo, más como sempre os caboclos nós guiavam de uma forma mágica e linda
através da casas, o que mais me marcou no segundo dia no Pirambu, eu e o Fabio
descemos em uma rua já sem esperança de achar algum terreiro, e tinha um Senhor
sentado na calçada em pleno inicio de tarde, ele estava lá sozinho passamos por ele e o
Fabio em um impulso volto até ele e explicou que estávamos procurando terreiros pelo
Pirambu, ele rindo muito aponto e disse “ali, vá lá” eu fui até aquela casa, pensando
“Não é possível que ali tenha um terreiro” e para minha surpresa tinha, mais uma vez
tivemos um ótimo dia com várias casas nós receberam maravilhosamente bem.
Com certeza como Pai Demi diz em uma das lives que tevemos lá no insta-
gram do Alagbà, a minha fé só aumenta após tudo isso, cada dia, cada caminho,
cada recepção, cada café e bolo, cada história e orgulho nelas contadas, meu
Amor e respeito por eles Pai e Mãe de santo só aumentava. Cada pergunta nós
trazia histórias e as vezes lágrimas e sentimentos nos quais me tocava. Eu sou
sinceramente grata a todos que me guiaram e ajudaram. poder fazer parte dessa
historia e pode ter vivido, vivenciado esse momento em minha vida.
Que os orixás nos guiem com amor, fé e axé.
144
Entrevista
145
Fluxo e refluxo
na Umbanda Cearense
Entrevista1 com Ismael Pordeus Júnior2
Ogan Leno Farias
Professor Ismael: Olha, a partir das minhas pesquisas, o culto em primeiro lugar
que teve no Ceará, foi mais o de tradição indígena. O afro-brasileiro aqui não era
quase que nada (quase não existia). Então as pessoas que queriam ir para Um-
banda e Candomblé, se deslocavam para o Rio de Janeiro e para Salvador. Então,
toda a prática religiosa foi uma prática importada, não foi gerada aqui. O que aqui
se gerou, seria um pouco, entre aspas, a Jurema, uma tradição mais indígena.
L.F.: Então antes dessa Umbanda, a gente já tinha uma modalidade de culto? É o
que o povo chama de Catimbó?
P.I.: Já. Antes da Umbanda tinha sim! Inclusive, é o que o povo chama de Catim-
bó! Inclusive uma das mães de santo mais antigas era conhecida como Dona Júlia
Condante. E ela era portuguesa. Engraçado que ontem mesmo eu peguei umas
fotos dela. Então eu cheguei a entrevistá-la. Inclusive um dos meus livros, “Ceará
em transe”, tem entrevista com ela. Você tem esse livro?
1 Transcrição parcial da entrevista concedida ao Ogan Leno Farias pelo professor Ismael Pordeus Júnior, em
30 de janeiro de 2022. Algumas mudanças e edições de forma foram realizadas a fim de tornar o texto mais
inteligível, entretanto não houve nenhuma mudança no conteúdo nem no contexto das perguntas.
2 Doutor em Sociologia e Ciências Sociais Etnologia, professor titular da Universidade Federal do Ceará
(UFC). Tem experiência na área de Antropologia, com ênfase em Antropologia das Religiões, atuando
principalmente nos seguintes temas: religiões afro-brasileiras, Umbanda, memória, vocalidade, cultura tra-
dicional e transnacionalidade religiosa.
146
L.F.: Tenho sim senhor. Ismael, para
147
“Umbanda Cearense”, eu conto essa cam, então não tem uma forma, não é
história. Não teria, não teria condição uma observação negativa.
a não ser indo buscar lá fora. O que
foi a expertise, que foi a do Baba Didi, L.F.: Não é um mercado comercial, é
do Xavier e o outro, o Déu. Pegaram um mercado religioso, é absorção da-
de Brasília e trouxeram para cá. Então, quela informação.
foi exatamente com essa importação
que se estabeleceu, entre aspas, a P.I.: Exatamente!
macumba que eu chamo de macumba
cearense, que as pessoas geralmente L.F.: Você acha que esse mercado que
utilizam a palavra macumba de uma a gente está falando, nessa perspecti-
forma negativa, eu acho que é uma va de absorção, o cearense sempre foi
coisa positiva. muito aberto para isso, para receber
informações exteriores?
L.F.: Você enxerga, você chama e mui-
ta gente chama por sua causa, de ma- P.I.: Ele foi aberto porque ele foi lá
cumba cearense. Essa afro-cearensida- buscar, mas por exemplo, teve terreiro
de é pautada no seu discurso. Você é que veio de fora, como o da Iraciana
um marco da pesquisa, desde 1974. de Santana que veio da Bahia para cá.
Eu tinha dois anos de idade e você já Inclusive, por coincidência, quando
pesquisava terreiro. Cite algumas ca- ela foi assentar o Exú quem pegou no
racterísticas dessa luso-afro-brasilida- bode fui eu, na casa dela. (Risos)
de cearense, dessa afro-cearensidade.
L.F.: Houve um fluxo e refluxo. Hou-
P.I.: Essa afro-cearensidade, o que ve uma vinda mesmo dessas pessoas
vai caracterizá-la é a incorporação de de outros Estados que passaram por
práticas indígenas. Da macumba in- aqui, permaneceram um bom tempo,
dígena, macumba como um nome foram embora, voltaram e trouxeram
genérico, tá? Processo de absorção. práticas. Essas práticas estabelecidas,
Absorção e, ao mesmo tempo, recom- você acha que se perpetuam até hoje?
posição das práticas religiosas que são
reelaboradas aqui dentro, de acor- P.I.: Perpetuam. Porque vai formar a
do com “a perspectiva de mercado”. tradição, vai formar a tradição cea-
Mercado aí no sentido de ter pessoas rense, a prática cearense. Exatamen-
interessadas, de ter pessoas que prati- te esses fragmentos que são juntados
148
■ Inventário dos Povos de Terreiro do Ceará ■
para a pratica da Umbanda Cearense, Então havia uma reza para o trabalho
ou da luso-afro-brasilidade cearense. religioso, as ladainhas. Isso permane-
Exatamente esses fragmentos que são ce. Então, eu achei muito interessante
postos juntos e recompõem e dão a a utilização dessa categoria trabalho,
formação de uma Júlia, dão a forma- “fulano está trabalhando”. Estar tra-
ção de uma Neide, dão a formação balhando significava que estava incor-
de um Didi. Estou falando de figuras porado, estava em uma prática religio-
do passado, da década de cinquen- sa, estava trabalhando porque estava
ta, e outras pessoas também, e essas prestando serviço, prestando trabalho,
eu não tinha contato direto, estas que enfim, trabalho religioso. Uso dos ele-
eu estou citando eram pessoas proe- mentos da religião. Estes elementos
minentes e eu tinha contato com elas. usados são designados de trabalho.
Inclusive, está relatado em meu livro,
e você tem total liberdade de tirar e L.F.: Você poderia esmiuçar um pouco
extrair o que quiser do livro e anexar a mais sobre a ideia dessa tradição, do
esta entrevista. esforço para se perpetuar?
149
pectiva afro, aqui no Ceará mesmo. ciação de Umbanda, roubou os dados
Por exemplo, a questão da música, do dela e foi criar uma outra associação.
tambor que não tinha dentro da cultura
indígena que acaba sendo absorvido. L.F.: Você acha que elas tiveram fator
Nessa Jurema, inclusive, por exemplo, predominante para a organização social?
existem personagens que você sabe
bem mais do que eu, o Seu Zé, a Pau- P.I.: Tiveram sim. Tiveram porque a
lina, o Gerson, o Malunguinho. São partir delas vai se “consolidar” uma
negros e são cultuados dentro dessa prática que reclama uma tradição, rei-
perspectiva indígena e que fortalecem vindica a tradição, mas o interessante
essa relação afro-indígena. Você não é que essa tradição vai ser apanhada lá
acha que essa troca existia, e não tinha fora e não aqui dentro.
uma organização social estabelecida?
L.F.: Mesmo já existindo os núcleos que
P.I.: Não. Não tinha uma organização não estavam organizados, as práticas
social. As práticas eram individualiza- vêm de fora e eles se organizam a partir
das. Não tinha assim uma tradição de da realidade de fora e não da que está
terreiro tal, terreiro tal não. Era uma constituída aqui? Então a organização
prática individual, que acabava for- social também é importada?
mando um núcleo.
P.I.: Exatamente!
L.F.: Obrigado! Mas, mesmo assim, no
seu olhar aprimorado, você não acha L.F.: Mas funciona, traz um outro olhar.
que, mesmo esse núcleo para se organi- Inclusive por conta da festa de Iemanjá
zar, a partir, pelo que eu entendi, da dé- que se organiza para fortalecer.
cada de 1980, eles começam a se orga-
nizar mesmo, politicamente, socialmente P.I.: A Júlia reclamava que a prática
falando. Você não acha que eles conse- dela era perseguida, inclusive quem
guiram manter bem essa tradição cultu- perseguia essa prática era o General
ral, mesmo fechados nestes espaços? Cordeiro Neto enquanto chefe de po-
lícia que reprimiu muito e ela fazia re-
P.I.: Meu filho, a associação de Um- ferência a isso. A Júlia fazia referência
banda no Ceará, aquela primeira, a a essa repressão do Cordeiro Neto. Ela
primeira foi a Júlia. Inclusive um para- dizia que a prática dela tinha de ser, a
ense que depois formou outra asso- prática dela era escondida da polícia e
150
P.I.: Não, é uma tentativa de legitimação.
151
L.F.: É resistir para existir!
P.I.: Exatamente!
152
153
■ Inventário dos Povos de Terreiro do Ceará ■
Quem somos
Acopiara Aquiraz
LIDERANÇA: PAI RAFAEL LIDERANÇA: BABA ROBERTO LIDERANÇA: PAI LEO OXOSSI
Centro Espírita de Umbanda e Quibanda São Jorge Ile Ase Osanyin Yansan (Aquiraz) E WLADMIR DE OGUN
Guerreiro e Caboco Pena Branca (Acopiara) Segmento Cultural Tradicional: Candomblé Axe Alaketu Omi Ya Oju Aro
Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Candomblé
Aiuaba
Altaneira
154
■ Inventário dos Povos de Terreiro do Ceará ■
LIDERANÇA: MÃE EVELANE LIDERANÇA: JACÓ LIDERANÇA: MÃE NORMA
Ilé Ymonjá (Aquiraz) Fraternidade de Umbanda Fé, Caridades Ogum Ja (Aracati)
Segmento Cultural Tradicional: Candomblé e Esperança (Aracati) Segmento Cultural Tradicional: Umbanda
Segmento Cultural Tradicional: Umbanda
LIDERANÇA: ZELADOR (PAI) NEGO LIDERANÇA: FABIANO DE OSSAYN LIDERANÇA: PAI ANDERSON
Pai Xangô (Aquiraz) Ile Igba ague lomin axe ya omi (Aquiraz) Tenda de umbanda traçada oxala (Aquiraz)
Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Candomblé Segmento Cultural Tradicional: Quimbanda
Aracati
LIDERANÇA: PAI FRANCINÉ LIDERANÇA: MÃE JÉU LIDERANÇA: PAI FILIPE DE OYA
Terreiro Príncipe Jesso (Aracati) Ile Axe Oya Gade (Aracati) Terreiro de Umbanda Ogun Yara (Aracati)
Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Nagô Segmento Cultural Tradicional: Umbanda
155
Ararendá barbalha
barro
LIDERANÇA: MÃE ROSA DE XANGÔ LIDERANÇA: PAI RAIMUNDO MARTINS LIDERANÇA: EWERTON
Casa Traçada de Mestra Paulina (Aquiraz) Tenda de Ogum (Ararendá) Ile Reino do Caboclo Perna Branca e Rainha das
Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Águas (Barro)
Segmento Cultural Tradicional: Umbanda
baturité
LIDERANÇA: JAKELINE LIDERANÇA: MÃE HELENA LIDERANÇA: PAI LÉO DA MARIA MULAMBO
Ogum Beira Mar (Aracati) Terreiro de Oxalá, Iansã e Ogum - Casa Nova (Barbalha) Casa de Umbanda São Jorge Guerreiro (Baturité)
Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Umbanda
156
■ Inventário dos Povos de Terreiro do Ceará ■
camocim Canindé
LIDERANÇA: PROFESSOR JAÍRO LIDERANÇA: MÃE MARRETA LIDERANÇA: MÃE HERLANIA DE OYA
C.E.U. São Jorge Guerreiro (Camocim) C.E.U. Zé Pilintra das Almas e Cego Velho da Gota Templo de Umbanda Príncipe Gerson (Canindé)
Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Serena (Camocim) Segmento Cultural Tradicional: Umbanda
Segmento Cultural Tradicional: Umbanda
LIDERANÇA: MÃE CELINHA DE OXÓSSI LIDERANÇA: PAI TOINHO CAJUEIRO LIDERANÇA: MARLIETE
C.E.U. Zé Pilintra (Camocim) São Jorge Guerreiro (Camocim) Tenda Príncipe Gerson (Canindé)
Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Quimbanda
157
cascavel
LIDERANÇA: ELANO DE OGUM LIDERANÇA: PAI TIAGO DE OXOSSI LIDERANÇA: PAI VANDÉCIO
C.E.U. Elano de Ogum (Canindé) Reinado de Mãe Maria Conga e Príncipe Gerson Centro de Umbanda Nega Ana (Cascavel)
Segmento Cultural Tradicional: Umbanda (Canindé) Segmento Cultural Tradicional: Umbanda
Segmento Cultural Tradicional: Umbanda
158
■ Inventário dos Povos de Terreiro do Ceará ■
LIDERANÇA: PAI ODAILO DE OGUM LIDERANÇA: BABÁ OSIRIS LIDERANÇA: PAI EVALDO
Templo Ogum Beira Mar (Cascavel) Ile Alaketu Asé Omósèreigbó (Caucaia) Casa Mãe Maria Senhora das Almas (Caucaia)
Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Candomblé Segmento Cultural Tradicional: Umbanda
caucaia
159
LIDERANÇA: ACANDÊ LIDERANÇA: MADRINHA CRISTINA LIDERANÇA: MÃE CARMELITA
Ile Ase Iya Omi Otoluefon (Caucaia) Casa de Jurema Mestre Nego Chico (Caucaia) Centro Menino Jesus de Praga (Caucaia)
Segmento Cultural Tradicional: Candomblé Segmento Cultural Tradicional: Jurema Segmento Cultural Tradicional: Umbanda
LIDERANÇA: MÃE EDILEUDA LIDERANÇA: MÃE ANA DE XANGÔ LIDERANÇA: MÃE LOIRA
Casa de Umbanda Rei Raimundão (Caucaia) Centro de Umbanda 7 Estrela (Caucaia) Terreiro de Pomba Gira Cigana (Caucaia)
Segmento Cultural Tradicional: Catimbó Segmento Cultural Tradicional: Catimbó Segmento Cultural Tradicional: Umbanda
160
■ Inventário dos Povos de Terreiro do Ceará ■
LIDERANÇA: MÃE CONSTÂNCIA DO OGUN LIDERANÇA: MÃE FABIANA DO NEGO GERSO LIDERANÇA: MÃE GRAÇA DA PADILHA
Casa de Umbanda Rancho de Trindade (Caucaia) Terreiro do Nego Gerso (Caucaia) Centro de Umbanda São Sebastião (Caucaia)
Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Umbanda
LIDERANÇA: MÃE ELDA DA POMBA GIRA GIRA LIDERANÇA: MÃE FÁTIMA DA CIGANA LIDERANÇA: MÃE JANAINA
Templo de Exu (Caucaia) C.E U. São Sebastião (Caucaia) Centro Espírita Reis Tupinambá (Caucaia)
Segmento Cultural Tradicional: Linha Cruzada Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Umbanda
161
LIDERANÇA: MÃE DARQUINHA LIDERANÇA: DONA MARIA LIDERANÇA: MÃE SANDRA
C.E.U Príncipe Imperial (Caucaia) Ile Yemanja Sabá (Caucaia) DO CABOCO NEGO GERSON
Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Candomblé
Centro de Umbanda Nego Gerso (Caucaia)
Segmento Cultural Tradicional: Umbanda
LIDERANÇA: MÃE LUIZA LIDERANÇA: MÃE MARTA LIDERANÇA: MÃE RAIMUNDINHA DE IANSÃ
C.E.U Caboclo Vira Mundo (Caucaia) Casa de Zé Pilintra e Maria Padilha (Caucaia) Terreiro de Nego Chico e Mãe Maria (Caucaia)
Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Umbanda
LIDERANÇA: MÃE MARAI LIDERANÇA: MÃE NIVEA DE YEMANJÁ LIDERANÇA: MÃE REGIANE
C.E.U Tenda Palmeiral dos Índios (Caucaia) C.E.U Yemanjá Rainha do Mar (Caucaia) Ile Axe Ayra Oya (Caucaia)
Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Jurema
162
■ Inventário dos Povos de Terreiro do Ceará ■
LIDERANÇA: PAI TIAGO - POTIRA LIDERANÇA: MÃE VERA DO NEGO CHICO LIDERANÇA: NITA
Terreiro Quilombo de Oxaguiã (Caucaia) Casa do Rei dos Índios (Caucaia) Terreiro Zé Pilintra das Almas (Caucaia)
Segmento Cultural Tradicional: Jeje Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Jurema
LIDERANÇA: MÃE TELVINA LIDERANÇA: MÃEZINHA LIDERANÇA: PAI ANDERSON DO NEGO CHICO
Casa do Ogum Beira-mar (Caucaia) C.E.U Reinado de Exu (Caucaia) C.E.U Cabocla Mariana (Caucaia)
Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Umbanda
163
LIDERANÇA: PAI BAIANO LIDERANÇA: PAI CRISTIANO DA OXUM LIDERANÇA: PAI ELBER
Ile Axe Agodô (Caucaia) C.E.U Santa Clara Omolocô (Caucaia) Centro de Umbanda Quimbanda
Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Rei Escangaruçu (Caucaia)
Segmento Cultural Tradicional: Umbanda
LIDERANÇA: CÍCERO DO OBALUAÊ LIDERANÇA: PAI DEMIR LIDERANÇA: PAI ERNESTO DE OXOSSI
Ilê Ase Camurupim (Caucaia) C.E.U São Sebastião (Caucaia) C.E.U Caboco Sete Flechas (Caucaia)
Segmento Cultural Tradicional: Candomblé Segmento Cultural Tradicional: Linha Cruzada Segmento Cultural Tradicional: Umbanda
LIDERANÇA: PAI CLAUDEMIR LIDERANÇA: PAI DUDU DO MALANDRO LIDERANÇA: PAI EVERARDO
C.E.U Corte Real (Caucaia) C.E.U São Miguel Arcanjo (Caucaia) Centro de Umbanda Rei dos Índios (Caucaia)
Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Jurema Segmento Cultural Tradicional: Umbanda
164
■ Inventário dos Povos de Terreiro do Ceará ■
LIDERANÇA: PAI FELIPE LIDERANÇA: PAI IVAN LIDERANÇA: PAI JUCILAN
C.E.U Rainha Pomba Gira (Caucaia) Tenda dos Orixá Caboclo Vira Mundo (Caucaia) Templo de Umbanda e Quibanda 7 Maria (Caucaia)
Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Umbanda
LIDERANÇA: PAI GERARDO DE OSALÁ LIDERANÇA: PAI JOBEL DE OGUM LIDERANÇA: PAI KIM DE YEMANJÁ
Igbasé Tobi Fumi Dejá (Caucaia) C.E.U Ogum Megê de Santa Bárbara (Caucaia) C.E.U Rainha Yemanjá (Caucaia)
Segmento Cultural Tradicional: Candomblé Segmento Cultural Tradicional: Linha Cruzada Segmento Cultural Tradicional: Umbanda
LIDERANÇA: PAI IGOR LIDERANÇA: PAI JONAS DA ROSA CAVEIRA LIDERANÇA: PAI NILTON DA PAULINA
Centro São Jorge Guerreiro (Caucaia) C.E.U Casa Reis da Mansidão (Caucaia) Casa de Jurema Mestre Nego Chico e Caboco 7 Flecha (Caucaia)
Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Quimbanda Segmento Cultural Tradicional: Jurema
165
Chaval
LIDERANÇA: PAI PONTES LIDERANÇA: PAI SÉRGIO DE OGUM LIDERANÇA: MÃE DIEIME
C.E.U São João Batista (Caucaia) Ile okim Asé Ominoodo (Caucaia) C.E.U Cigana Pomba Gira (Chaval)
Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Candomblé Segmento Cultural Tradicional: Umbanda
LIDERANÇA: PAI PRETO DE OGUM LIDERANÇA: PAI STENIO DA PAULINA LIDERANÇA: PAI ERVA-DOCE CHAVAL
Tenda Espírita de Umbanda Ogum Beira Mar (Caucaia) C.E.U Imperador Rei da Turquia (Caucaia) C.E.U Mãe Tutu (Chaval)
Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Umbanda e Segmento Cultural Tradicional: Umbanda
Quimbanda
LIDERANÇA: PAI RAY DA PADILHA LIDERANÇA: PAI TALVANE LIDERANÇA: MÃE TÂNIA
C.E.U Nego Chico Feiticeiro e Maria Padilha (Caucaia) Êra de Pai Benedito (Caucaia) C.E.U São Jorge Guerreiro (Chaval)
Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Umbanda
166
■ Inventário dos Povos de Terreiro do Ceará ■
LIDERANÇA: PAI BASTIÃO LIDERANÇA: MÃE GRAÇA LIDERANÇA: PAI PRETO
C.E.I Cosmo e Damião (Chaval) Tenda Mestre Sibanba (Crateús) Terreiro de São Jorge Guerreiro (Crateús)
Segmento Cultural Tradicional: Catimbó Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Umbanda
Crateús
LIDERANÇA: MÃE LULU DE OXUM LIDERANÇA: MÃE CHICA LIDERANÇA: MÃE MANCILA
Terreiro Reino de Oxum (Crateús) Terreiro de Pai Gerso (Crateús) Terreiro São Sebastião (Crateús)
Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Umbanda
LIDERANÇA: MÃE ANA LIDERANÇA: MÃE GRAÇA LIDERANÇA: MÃE NETA E MÃE DEUSA
Casa de Zé Pelintra das Almas (Crateús) Tenda Nossa Senhora das Graças (Crateús) Terreiro Príncipe Auleolino (Crateús)
Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Umbanda
167
Crato
LIDERANÇA: BABÁ EDILSON DE OMOLU LIDERANÇA: MÃE DAYSE LIDERANÇA: MÃE ALICE
Ilê Asè Omo Ayê (Crato) Macaia de Caboco Tupinambá (Crato) Centro de Umbanda São Jorge Guerreiro (Crato)
Segmento Cultural Tradicional: Candomblé Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Umbanda
LIDERANÇA: PAI BERIN LIDERANÇA: MÃE FRANCISCA - DIAN LIDERANÇA: MÃE LANA DE YEMANJÁ
C.E.U Preta Mandinga (Crato) Terreiro de Umbanda Pai Gerson (Crato) Centro de Umbanda Virgem da Conceição(Crato)
Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: UmbandaDA Segmento Cultural Tradicional: Umbanda
168
■ Inventário dos Povos de Terreiro do Ceará ■
LIDERANÇA: MÃE DÔRA OU DONA DÔRA LIDERANÇA: MÃE RITA LIDERANÇA: MÃE YASKARA DE ODE
Terreiro de Sr. Xangô (Crato) C.E.U Índia Neci (Crato) Tenda de Sete Saia (Crato)
Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Umbanda
LIDERANÇA: MÃE HELENA NADINHA LIDERANÇA: MÃE TICA LIDERANÇA: PAI TOIN
Tenda de Oxossi (Crato) Terreiro de Umbanda Ogum Beira Mar (Crato) Tenda de Preto Velho (Crato)
Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Umbanda
LIDERANÇA: MÃE KUM LIDERANÇA: MÃE TOINHA NO GESSO LIDERANÇA: PAI AURINO DE OGUM
Templo de Umbanda Santa Bárbara Amor e Fé (Crato) Tenda de Sr. Ogun (Crato) Terreiro de Ogum (Crato)
Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Linha Cruzada
169
LIDERANÇA: PAI CICIM DE XANGÔ LIDERANÇA: PAI GERALDIM LIDERANÇA: PAI MARCOS
Terreiro de Umbanda São Cosme e Damião (Crato) Terreiro de Umbanda Ogum Mege (Crato) Casa de Xangô 7 Cachoeira (Crato)
Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Umbanda
170
■ Inventário dos Povos de Terreiro do Ceará ■
LIDERANÇA: BABALORISA
LIDERANÇA: PAI RIVALDO GUILHERME DE OSALA LIDERANÇA: BABÁ TOMÁS
Tenda da Cigana 7 Pomba Gira Cigana Cachoeira (Crato) Ilê Ocowow Asé Ya Awoyo (Eusébio) Ile Alaketu Axe Logun Igbain (Fortaleza)
Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Candomblé Segmento Cultural Tradicional: Candomblé
Eusébio Fortaleza
LIDERANÇA: PAI ALISSON LIDERANÇA: MÃE EDNA DE YANSÃ LIDERANÇA: MARIA ALVES DA SILVA
Casa Vovó Catarina de Aruanda (Crato) Casa de Omoloco Mãe Edna de Yansã (Fortaleza) Centro de Umbanda Janaína (Fortaleza)
Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Omolocô Segmento Cultural Tradicional: Catimbó
171
LIDERANÇA: PAI NERVAL DO ZÉ PILINTRA LIDERANÇA: MÃE ALESSANDRA LIDERANÇA: MÃE DÉCIA
C.E.U Preta Mandinga (Fortaleza) C.E.U Zé Pilintra e Rompe Mato (Fortaleza) Casa da Misericórdia (Fortaleza)
Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Umbanda
LIDERANÇA: JÚNIOR DE IEMANJÁ LIDERANÇA: MÃE BIA/PAI RICARDO LIDERANÇA: MÃE ELIANE
Egbé ile Iyemoja Oronobi (Fortaleza) C.E.U General de Brigada e Rainha Pomba Gira (Fortaleza) C.E.U Cabloco Negro Gerson (Fortaleza)
Segmento Cultural Tradicional: Candomblé Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Umbanda
172
■ Inventário dos Povos de Terreiro do Ceará ■
LIDERANÇA: MÃE ELITA LIDERANÇA: MÃE GARDÊNIA DE IANSÃ LIDERANÇA: MÃE JANAÍNA
C.E.U Rei Salomão (Fortaleza) C.E.U Jesus, Maria e José (Fortaleza) Espaço Espiritual Palácio das Águas (Fortaleza)
Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Umbanda
173
LIDERANÇA: MÃE JOYCE DA POMBA GIRA LIDERANÇA: MÃE LIDUINA DO CANGAÇO LIDERANÇA: MÃE LUZIA
Casa de Princesa Esmeralda (Fortaleza) C.E.U São Jorge Guerreiro (Fortaleza) Espírita de Umbanda Cosme e Damião
Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Umbanda e Ogum Beira Mar (Fortaleza)
Segmento Cultural Tradicional: Umbanda
LIDERANÇA: MÃE JULIANA LIDERANÇA: MÃE LÚCIA LIDERANÇA: PAI REGINALDO TUPINAMBÁ
Centro de Umbanda Mãe Juliana do Caboclo Ilé Axe Ajebowaba (Fortaleza) Terreiro Pai Luiz e Tupinambá (Fortaleza)
Ubirajara (Fortaleza) Segmento Cultural Tradicional: Candomblé Segmento Cultural Tradicional: Umbanda
Segmento Cultural Tradicional: Umbanda
174
■ Inventário dos Povos de Terreiro do Ceará ■
LIDERANÇA: MÃE MAZÉ DE OBALUAÊ LIDERANÇA: MÃE SUELI - PIRAMBU LIDERANÇA: MÃE VALÉRIA
C.E.U Nanã Buruquê (Fortaleza) C.E.U Rei Salomão (Fortaleza) Ile Ase Omo Tife (Fortaleza)
Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Candomblé
175
LIDERANÇA: MÃE LEO DE OGUN LIDERANÇA: PAI BETO DE OXALÁ LIDERANÇA: PAI DANILO DE OXÓSSI
C.E.U Caboclo 7 Flechas (Fortaleza) Casa de Umbanda Pena Branca (Fortaleza) C.E.U Dom Rei Sebastião (Fortaleza)
Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Umbanda
LIDERANÇA: MÃE DILVA LIDERANÇA: GORETE OLIVEIRA LIDERANÇA: PAI PEDRO DE LOGUN EDÉ
Cabana Espírita de Umbanda Pai Oxalá (Fortaleza) Centro de Umbanda Cabocla Jacira (Fortaleza) C.E.U São Jorge Guerreiro (Fortaleza)
Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Casa de Ogum
176
■ Inventário dos Povos de Terreiro do Ceará ■
LIDERANÇA: PAI FELIPE FOLHA VERDE MÃE CÉLIA DE XANGÔ LIDERANÇA: PAI ALBERTO
C.E.U São Sebastião (Fortaleza) Centro Espiritualista Mãe Maria de Aruanda C.E.U Príncipe Gerson (Fortaleza)
Segmento Cultural Tradicional: Umbanda (Fortaleza) Segmento Cultural Tradicional: Umbanda
Segmento Cultural Tradicional: Umbanda
LIDERANÇA: PAI GUGU LIDERANÇA: PAI ROBSON LIDERANÇA: PAI ALEX DE OGUM
Casa de Umbanda Cego Velho da Jurema (Fortaleza) C.E.U Jurema Sagrada (Fortaleza) Casa de Oração Mãe Cassiana (Fortaleza)
Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Umbanda
177
LIDERANÇA: PAI ALUÍSIO DE XANGÔ LIDERANÇA: PAI AUGUSTO DO QUEBRA BAREIRA LIDERANÇA: PAI BAIANO
Ile Ase Olojudolá (Fortaleza) C.E.U São Sebastião (Fortaleza) Ile Axé Omi (Fortaleza)
Segmento Cultural Tradicional: Candomblé Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Candomblé
LIDERANÇA: PAI ÂNGELO DE OXOSSI LIDERANÇA: PAI AUGUSTO DE OXÓSSI LIDERANÇA: PAI BERG
C.E.U Casa de Caridade Vovó Joana (Fortaleza) Axé Família Laceiro Grande (Fortaleza) Tenda de Umbanda Caboclo Lírio Verde (Fortaleza)
Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Outros Segmento Cultural Tradicional: Umbanda
178
■ Inventário dos Povos de Terreiro do Ceará ■
LIDERANÇA: BABALAO BILL LIDERANÇA: PAI CLAYTON JATOBÁ LIDERANÇA: PAI DELANO E PAI ASSIS
Ile Asè Orunmilà (Fortaleza) Ile Asé Iya Omin Ogunté (Fortaleza) C.E.U Senzala dos Pretos Velhos (Fortaleza)
Segmento Cultural Tradicional: Ifá Segmento Cultural Tradicional: Candomblé Segmento Cultural Tradicional: Umbanda
LIDERANÇA: PAI BRUNO DO VIRA MUNDO LIDERANÇA: PAI CLEYTON LIDERANÇA: PAI DENILTON DE XANGÔ
C.E.U Caboclo Vira Mundo (Fortaleza) Cusa Senhora das Águas (Fortaleza) Casa General de Brigada (Fortaleza)
Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Umbanda
179
LIDERANÇA: PAI EDSON DE OXALÁ LIDERANÇA: PAI FÁBIO DE ODÉ LIDERANÇA: PAI GERSON
Centro Espírita Pai Antonio de Minas (Fortaleza) Ile Omi Solá Axé Olodé (Fortaleza) Templo de Umbanda Traçadas Vovó Maria Conga
Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Candomblé (Fortaleza)
Segmento Cultural Tradicional: Umbanda
LIDERANÇA: PAI EDUARDO DE OMULU LIDERANÇA: PAI FÁBIO DE OXÓSSI LIDERANÇA: PAI GRANGEIRO
C. E. U. Cabocla Brava (Fortaleza) Ile Asę Asa Ode Ogboya (Fortaleza) C.E.U Zé Pilintra das Almas (Fortaleza)
Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Candomblé Segmento Cultural Tradicional: Umbanda
LIDERANÇA: PAI EVANDRO DO ZÉ PILINTRA LIDERANÇA: PAI FRANCISCO DE OGUM LIDERANÇA: PAI HENRIQUE DE OXÓSSI
Casa de São Jorge Guerreiro (Fortaleza) C.E.U São Jorge Guerreiro (Fortaleza) Ile axé Odé Oloreemi (Fortaleza)
Segmento Cultural Tradicional: Outros Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Candomblé
180
■ Inventário dos Povos de Terreiro do Ceará ■
LIDERANÇA: PAI IRAN BOM JARDIM LIDERANÇA: PAI JAIRO DO SEU ZÉ LIDERANÇA: PAI JEOVÁ DE OGUM
Sociedade Espiritual de Umbanda C.E.U Reis Pombo do Roxo (Fortaleza) Ifa Dare laio Aldeia do Axé (Fortaleza)
Caboclo Índio (Fortaleza) Segmento Cultural Tradicional: Catimbó Segmento Cultural Tradicional: Umbanda
Segmento Cultural Tradicional: Umbanda
LIDERANÇA: PAI ISMA DO ZÉ PELINTRA LIDERANÇA: PAI JEFERSON LIDERANÇA: PAI JOEL DO OGUM
Centro Espírita Casa de Nossa Senhora C.E.U Pai Jacob e Vira Mundo (Fortaleza) C.E.U Ogum Naruê (Fortaleza)
de Santana (Fortaleza) Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Catimbó
Segmento Cultural Tradicional: Umbanda
LIDERANÇA: PAI IVANAV LIDERANÇA: PAI JEFFERSON LIDERANÇA: PAI JONAS DA PADILHA
Pai Ivan Abassá de Umbanda Fé, Esperança e DO CABOCO PENA BRANCA C.E.U Cabana do caboco Tupinambá Guerreiro das
Caridade (Fortaleza) C.E.U Rei Pena Branca (Fortaleza) Águas Claras (Fortaleza)
Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Umbanda
181
LIDERANÇA: PAI KELTON DO OGUM LIDERANÇA: PAI MANOELZINHO DE OXÓSSI LIDERANÇA: PAI NAZARENO DE OGUN
C.E.U General de Brigada e Príncipe Gerse (Fortaleza) Centro Espírita Nego Chico Feiticeiro (Fortaleza) Casa de Ogun Iara (Fortaleza)
Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Umbanda
LIDERANÇA: PAI LINO LIDERANÇA: PAI MARCOS DE IANSAN LIDERANÇA: PAI NETO TRANCA-RUAS
Ile Ase Oloioba (Fortaleza) Centro de Umbanda e Quibanda Negro Gerson e C.E.U São Miguel (Fortaleza)
Segmento Cultural Tradicional: Candomblé Pombogira Cigana (Fortaleza) Segmento Cultural Tradicional: Umbanda
Segmento Cultural Tradicional: Umbanda
182
■ Inventário dos Povos de Terreiro do Ceará ■
LIDERANÇA: PAI RAIMUNDINHO
LIDERANÇA: PAI PAULO DE AYRA DENTE DE OURO LIDERANÇA: PAI ROBÉRIO
Palácio de Zé (Fortaleza) C. C.U Rainha da Justiça (Fortaleza) Gozemo de Nkosi Tango Avango (Fortaleza)
Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Umbandomblé
LIDERANÇA: PAI PAULO PADILHA LIDERANÇA: PAI RIBAMAR LIDERANÇA: ROBERT DAS 7 SAIA
Palácio de Exu Maria Padilha (Fortaleza) C.E.U São Jorge Guerreiro (Fortaleza) C.E.U Aldeia do Cabloco Índio Oliveira (Fortaleza)
Segmento Cultural Tradicional: Quimbanda Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Umbanda
183
LIDERANÇA: PAI RYAN LIDERANÇA: PAI VALDO DE OYA LIDERANÇA: PAI WAL DA JUPIRA
Casa de Encantaria e Cura N. Sra. das Dores (Fortaleza) C.E.U Cabana do Preto Velho da Mata Escura Tenda de Umbanda Cabocla Jupira e Caboclo Zé
Segmento Cultural Tradicional: Umbanda (Fortaleza) Pilintra das Almas (Fortaleza)
Segmento Cultural Tradicional: Candomblé e Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Umbanda
LIDERANÇA: PAI SHEL LIDERANÇA: PAI VALTER PIRAMBU LIDERANÇA: PAI WANGLÊ
Ilè Ibá Psè Possum Aziri (Fortaleza) Centro Espírita Reis Tupinambá (Fortaleza) Abassé de Omolu Ile de Iansã (Fortaleza)
Segmento Cultural Tradicional: Candomblé Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Omolocô
184
■ Inventário dos Povos de Terreiro do Ceará ■
LIDERANÇA: PAI WILLIAM DA BAHIA LIDERANÇA: SANDRA DE XANGÔ LIDERANÇA: PAI EVANDRO
C.E.U Reinado de São Jorge Guerreiro (Fortaleza) Templo da Maria Mulambo (Fortaleza) C.E.U São João Batista (Granja)
Segmento Cultural Tradicional: Catimbó Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Umbanda
LIDERANÇA: PAI HAROLDO DE IEMANJÁ LIDERANÇA: VITOR DE OGUN DI LÊ LIDERANÇA: PAI JOSÉ
C.E.U Caboclo Zé Basílio (Fortaleza) C.E.U Nego Chico Feiticeiro e Índia Julinha (Fortaleza) C.E.U General de Brigada (Granja)
Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Catimbó
Granja Horizonte
185
LIDERANÇA: MÃE LUCÉLIA LIDERANÇA: PAI MIKAEL LIDERANÇA: PAI WYSLEY DE ZÉ PELINTRA
Tenda Espírita de Umbanda Xangô Abomi (Horizonte) C.E.U São Miguel Arcanjo (Iguatu) Terreiro de Umbanda Pai Joaquim
Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Umbanda das Cachoeiras (Ipueiras)
Segmento Cultural Tradicional: Umbanda
Itaitinga
Iguatu Ipueiras
186
■ Inventário dos Povos de Terreiro do Ceará ■
Itapipoca
LIDERANÇA: PAI MESQUITA DE OGUM LIDERANÇA: MÃE NETA LIDERANÇA: PAI CARLOS
Casa de Cultura Afro Brasília Ile Ase Ogum Ja (Itapipoca) Terreiro Príncipe Gerson e Santana (Itapipoca) C.E.U Caboclo Arranca Toco (Itapipoca)
Segmento Cultural Tradicional: Candomblé / Jurema Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Umbanda
187
jardim
LIDERANÇA: PAI LEANDRO LIDERANÇA: DOTE JOÃO PAULO LIDERANÇA: MÃE ANDRESSIA
Tenda Zé Pilintra e Maria Mulambo (Itatira) Ile Axe Ominsessul Talandgy (Juazeiro do Norte) Tereiro do Seu Perna Branca (Juazeiro do Norte)
Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Candomblé Segmento Cultural Tradicional: Umbanda
188
■ Inventário dos Povos de Terreiro do Ceará ■
LIDERANÇA: PAI ADRIANO DE OXALÁ LIDERANÇA: PAI DOLA
LIDERANÇA: MÃE HERLÂNIA Palácio de Oxoguian - Abassá de Ymulezambi Asé Obákítavanju Atí Oromi Dewa
Quilombaxé Kwé Séjá Omi Ypondá (Juazeiro do Norte) e Odonfiladgi (Juazeiro do Norte) (Juazeiro do Norte)
Segmento Cultural Tradicional: Candomblé Segmento Cultural Tradicional: Candomblé Segmento Cultural Tradicional: Candomblé
189
LIDERANÇA: PAI JEAN LIDERANÇA: TATÁ MUTARUESI
Aldeia de Pedra Casa de Ciênciass e Jurema Terreiro de Candomblé de Nação Angola Nzo LIDERANÇA: YÁ OBASSE
(Juazeiro do Norte) Ngana Nzazi (Juazeiro do Norte) Ilê Asè Omó Obá (Juazeiro do Norte)
Segmento Cultural Tradicional: Jurema Segmento Cultural Tradicional: Candomblé Segmento Cultural Tradicional: Candomblé
190
■ Inventário dos Povos de Terreiro do Ceará ■
Limoeiro do norte
madalena
191
LIDERANÇA: MARCILENE/ LIDERANÇA: PAI JOSIMAR DE TRANCA RUA
LIDERANÇA: MÃE MARIA CANCÃO GABRIEL FREITAS Tenda de Ogum General de Brigada
Tenda Pomba Gira Cigana (Madalena) Tenda de Exu Veludo e Jurema (Madalena) e Tranca Rua (Madalena)
Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Umbanda
192
■ Inventário dos Povos de Terreiro do Ceará ■
maracanaú
LIDERANÇA: MÃE CARMEM LIDERANÇA: GEORGE LOBO LIDERANÇA: MÃE JEANNE DE IEMANJÁ
C.E.U Maria Padilha das Almas (Maracanaú) Ile Axe Igbo Miwa (Maracanaú) Casa das Águas Cabocla Mariana (Maracanaú)
Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Candomblé Segmento Cultural Tradicional: Umbanda
193
LIDERANÇA: MÃE NEIDE DA PADILHA LIDERANÇA: PAI ALISSON DE ODÉ LIDERANÇA: PAI SÍLVIO DE IEMANJÁ
Centro Maria Padilha e Tranca Rua (Maracanaú) C.E.U. Cabana Lírio Verde (Maracanaú) Ase Alaketu Omin Iya Ogun(Maracanaú)
Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Candomblé
maranguape
LIDERANÇA: MÃE ROSA E GABRIEL FREITAS LIDERANÇA: PAI ERIVELTON PITAGUARI LIDERANÇA: PAI LEO DE OXUM
Tenda de Umbanda Antônio Vira Munda, Pemba C. E. U. Reis Tupinambá (Maracanaú) Igba Ase Omiola (Maranguape)
Prenta Mandinga (Maracanaú) Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Candomblé
Segmento Cultural Tradicional: Umbanda
Milagres
194
■ Inventário dos Povos de Terreiro do Ceará ■
morada nova
miraíma morrinhos
LIDERANÇA: MÃE MARIA DA CABLOCA JUREMA LIDERANÇA: PAI RAMON LIDERANÇA: CEZAR MORRINHOS
Centro de Umbanda Cabloca Jurema Ilê asè ewê orún (Missão Velha) Casa Espiritual Zé Pilintra das Almas
e Zé Pilintra Das Almas Umbanda (Miraíma) Segmento Cultural Tradicional: Candomblé e Mãe Maria (Morrinhos)
Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Umbanda
LIDERANÇA: DOTÉ JOÃO VICTOR LIDERANÇA: PAI RAUBÊNIO LIDERANÇA: PAI JONH DEYWID
Kwé Axé Séjá Oba Orum Ayê (Missão Velha) C.E.U Caboclo Pena Branca (Missão Velha) Casa dos Orixás (Nova Olinda)
Segmento Cultural Tradicional: Candomblé Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Umbanda
195
nova russas
LIDERANÇA: MÃE IVONE DE IEMANJÁ LIDERANÇA: PAI FELIPE LIDERANÇA: PAI CIANO DE CHIQUITA
Tenda Caboclo Tupinambá e Vovó Catarina (Nova Russas) Tenda de Ogum (Nova Russas) Casa de Umbanda Princípe Simbamba (Pacajús)
Segmento Cultural Tradicional: Umbandomblé Segmento Cultural Tradicional: Linha Cruzada Segmento Cultural Tradicional: Umbanda
LIDERANÇA: PADRIM CHAGA LIDERANÇA: PAI MÁRCIO LIDERANÇA: MÃE ANDREA DE 7 SAIAS
Terreiro Príncipe Gerso (Nova Russas) Casa de Omulu (Nova Russas) Tenda Zé Pilintra das Almas (Pacajús)
Segmento Cultural Tradicional: Linha Cruzada Segmento Cultural Tradicional: Nagô Segmento Cultural Tradicional: Umbanda
Pacajús
196
■ Inventário dos Povos de Terreiro do Ceará ■
LIDERANÇA: PAI RAIMUNDO MACUMBEIRO LIDERANÇA: MÃE LUCIANA LIDERANÇA: MÃEZINHA
Nossa Senhora da Conceição (Pacajús) Centro de Umbanda Casa São Bárbara (Pacatuba) C.E.U. Maria Sete Saias (Pacatuba)
Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Linha Cruzada
pacatuba
LIDERANÇA: MÃE HELENA LIDERANÇA: MÃE SOCORRO DA MULAMBO LIDERANÇA: PAI EDUARDO DA ROSA CAVEIRA
C.E.U. Aldeia Rei dos Índios (Pacatuba) C.E.U. Mãe Joaquina de Arunda (Pacatuba) Ile Ase Rosa Caveira e Zé Pilintra das Almas (Pacatuba)
Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Umbanda
197
Pacoti
LIDERANÇA: PAI JAN E PAI LUIZ LIDERANÇA: PAI PAJÉ BARBOSA LIDERANÇA: MÃE BETINHA
C.E.U Cabloco Cobra Coral (Pacatuba) Tenda de Omulu (Pacatuba) Preta Velha Baiana de Iemanjá (Pacoti)
Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Candomblé
palmácia
LIDERANÇA: PAI LINDOLFO DE OXOSSI LIDERANÇA: PAI PAULINO DE LIMA LIDERANÇA: MARCUS DE BADÉ
Ile Ase Oxossi Abidode (Pacatuba) Casa Maria Padilha e Zé Pilintra (Pacatuba) Aikungban Thoi Badé (Palmácia)
Segmento Cultural Tradicional: Candomblé Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Tambor de Mina
Paracuru
LIDERANÇA: PAI MARQUINHOS (MÃE CECÍLIA) LIDERANÇA: BABA RODRIGO DO OXUM LIDERANÇA: MÃE FAFÁ
C.E.U Caboclo Vira Mundo e Maria Mulanbo (Pacatuba) Ase Alaketu Ile Ogum Layo (Pacatuba) Tenda senhor do Bonfim (Paracuru)
Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Candomblé Segmento Cultural Tradicional: Umbanda
198
■ Inventário dos Povos de Terreiro do Ceará ■
LIDERANÇA: MÃE IARA DA OXUM LIDERANÇA: PAI ERÁCLITO LIDERANÇA: ZÉ NOVINHO
Casa dos Orixás Ze Pilintra das Almas (Paracuru) Centro de umbanda Santo Antônio (Paracuru) Centro de Umbanda Tranca Rua (Paracuru)
Segmento Cultural Tradicional: Linha Cruzada Segmento Cultural Tradicional: Catimbó Segmento Cultural Tradicional: Umbanda
pedra branca
LIDERANÇA: MÃE MARIA SAPATEIRO LIDERANÇA: PAI LEVI LIDERANÇA: MÃE KELLY
Centro de Umbanda Rei Salomão (Paracuru) Tenda do Pai Joaquim de Angola (Paracuru) Centro de Umbanda Pai Guiné (Pedra Branca)
Segmento Cultural Tradicional: Linha Cruzada Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Umbanda
199
LIDERANÇA: PAI FLÁVIO LIDERANÇA: MÃE SOCORRO LIDERANÇA: PAI RUBENIR
Templo de Umbanda Oxumare (Pedra Branca) C.E.U São Jorge Guerreiro (Pentecoste) Casa Zé Pilintra das Almas (Pentecoste)
Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Umbanda
pentecoste pindoretama
LIDERANÇA: MÃE RAIMUNDA LEÃO LIDERANÇA: PAI FRANCISCO LIDERANÇA: PAI ANTÔNIO NETO
C.E.U São Jorge Guerreiro (Pentecoste) Palácio de Umbanda São Sebastião (Pentecoste) Tenda Zé Pilintra das Almas (Pindoretama)
Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Umbanda
200
■ Inventário dos Povos de Terreiro do Ceará ■
poranga
LIDERANÇA: PAI KELINTON LIDERANÇA: MÃE LOURA KAPINAUÁ LIDERANÇA: PADRIM DADÁ
Terreiro Nego Jesso Feiticeira (Pindoretama) Tenda de Jurema Rei Salomão Salão Espírita Pedro de Alcântara (Poranga)
Segmento Cultural Tradicional: Umbanda e Pai Serra de Fogo (Poranga) Segmento Cultural Tradicional: Linha Cruzada
Segmento Cultural Tradicional: Jurema
201
porteiras quixadá
Quixeramobim
potengi
202
■ Inventário dos Povos de Terreiro do Ceará ■
LIDERANÇA: MÃE ÍTALA LIDERANÇA: MÃE ROSA LIDERANÇA: PAI DANIEL
C.E.U Príncipe Gerson (Quixeramobim) Tenda Pai Joaquim de Angola (Quixeramobim) Tenda Maria Vitória (Quixeramobim)
Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Umbanda
LIDERANÇA: MÃE VERA LIDERANÇA: PAI BETO LIDERANÇA: PAI ZEZINHO VILA BETÂNIA
Tenda Espírita de Dona Padilha (Quixeramobim) C.E.U Ogun General de Brigada (Quixeramobim) Tenda Cabocla Mariana (Quixeramobim)
Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Umbanda
203
Russas
Quixeré
santa quitéria
LIDERANÇA: MÃE LOIRA DOS ANJOS LIDERANÇA: PAI XAVIER LIDERANÇA: MARIA DO SOCORRO RECURSO
Terreiro de Nêgo Gerson Feiticeiro (Quixeré) Ilê Azuani Axé Possu Azeri (Russas) Pai João das Matas (Santa Quitéria)
Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Candomblé Segmento Cultural Tradicional: Umbanda
204
■ Inventário dos Povos de Terreiro do Ceará ■
sobral
santana do cariri
LIDERANÇA: PAI CÍCERO DE XANGÔ LIDERANÇA: MÃE JOELINA LIDERANÇA: PAI ZÉ CARLOS
Casa Santa (Santana do Cariri) Casa José de Ribamar (Sobral) Ile Ase Ya Osun e Casa São Sebastião (Sobral)
Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Umbanda
205
LIDERANÇA: MÃE MARIA DO CARMO LIDERANÇA: MÃE NILDA LIDERANÇA: PAI ALDIR
Terreiro Rei do Oriente (Sobral) Templo de Umbanda Reis da Mansidão Tenda Príncipe Imperador (Sobral)
Segmento Cultural Tradicional: Umbanda e Caboclo Arranca Toco (Sobral) Segmento Cultural Tradicional: Umbanda
Segmento Cultural Tradicional: Umbanda
LIDERANÇA: MÃE MARTA LIDERANÇA: MÃE TOINHA LIDERANÇA: PAI ANTÔNIO COSTA
Tenda de Umabanda Pai Tobias (Sobral) Tenda de Umbanda de Ogun Mege (Sobral) Casa de Vira Mundo Pemba (Sobral)
Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Jurema
206
■ Inventário dos Povos de Terreiro do Ceará ■
LIDERANÇA: PAI BRUNO LIDERANÇA: PAI DIOGO LIDERANÇA: PAI OTACÍLIO
C.E.U Rei do Tombo e Cabloca Mariana (Sobral) Tenda da Caboclo 7 Flechas (Sobral) Casa Zé Pilintra das Almas (Sobral)
Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Umbanda
LIDERANÇA: PAI CARLOS FONTELES LIDERANÇA: PAI JOCÉLIO LIDERANÇA: PAI ROBERTO DE ODE
Casa Pai Benedito das Cachoeiras (Sobral) Casa do Ogun (Sobral) Ile ase de Ode Akoeram (Sobral)
Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Umbanda
207
tauá Fortaleza - Homenagem
LIDERANÇA: MÃE EDNA LIDERANÇA: PAI LEOMAR LIDERANÇA: MÃE TAQUINHA DE OYÁ
Terreiro Nossa Senhora da Conceição C.E.U Mestre Paulina e Ogun Rompe Matos (Tauá) Centro de Umbanda Rei Dragão do Mar
e Caboclo Quebra Barreira (Tauá) Segmento Cultural Tradicional: Umbanda Segmento Cultural Tradicional: Umbanda
Segmento Cultural Tradicional: Umbanda
208
211
■ Inventário dos Povos de Terreiro do Ceará ■
Excecução: Parceria:
SECRETARIA DO
DESENVOLVIMENTO AGRÁRIO