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BRESCIANI, Stella. Cidade e Território

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Cidade e território: os desafios da contemporaneidade numa

perspectiva histórica.1

Stella Bresciani

1. Contrastes de São Paulo, os maus lugares da cidade

Uma macrometrópole de R$ 475 Bilhões – São Paulo

São Paulo e Campinas formam a maior mancha urbana do Hemisfério


Sul, responsável por 22% do PIB brasileiro.

Essas afirmações abrem o encarte Megacidades de O Estado de São Paulo de 3 de


agosto de 2008. Números e imagens compõem quadros de grande impacto,
sobretudo quando sobressai a informação de que o “Clube das megalópoles [é]
cada vez mais é terceiro-mundista”. São Paulo mantém, desde 1975, o 5º lugar na
lista do vertiginoso crescimento da população urbana mundial.

Os artigos sobre Londres, Xangai, Chongqing, Tóquio, Moscou, Nova York, Cidade
do México, Mumbai, Lagos, entre outras, se baseiam em estatísticas e avaliações
qualitativas, curvas de crescimento e fotos que enfatizam a tendência progressiva
da urbanização mundial. Exceções: Londres sai do ranking das 25 maiores em
2007 e Paris poderá sair por volta de 2025. Fortes contrastes se interpõem às
megalópoles: rios altamente poluídos da São Paulo de 2008 e o túnel construído
em 1917 para trazer à Nova York água das Montanhas Catskills, cuja pureza
dispensa tratamento; a maciça composição de arranha-céus de Manhattan sob o
céu limpo e a cidade do México praticamente envolta pela poluição; a revitalização
compósita das margens do Tamisa somada à “gentrification” de áreas de Londres
antes degradadas e a constrangedora situação das favelas de Mumbai (Índia) e
dos “milhões vivendo no pântano” em Lagos (Nigéria).

Para São Paulo, o impacto fica com o montante necessário para sair do “terceiro
mundo”: R$ 175.656.775.081,00: R$ 19.292.475,081 para saneamento, R$
61.904.300.000 para transportes, R$ 43.760.000.000 para obras viárias e R$
50.700.000.000 para habitação. A complexidade aumenta ao examinamos o mapa
da “primeira macrometrópole do hemisfério sul”: manchas e pontilhados unem 65
municípios de São Paulo a Campinas nos quais se habita 12% da população do
país.

1
BRESCIANI, Maria Stella. Cidade e território: os desafios da contemporaneidade numa perspectiva histórica.
In: PONTUAL, Virgínia; LORETTO, Rosane P. Cidade, território e urbanismo: um campo conceitual em
construção. Olinda: CECI, 2009. p.119-140.

1
No caderno Cidades do mesmo jornal, notícias pontuais configuram territórios e
compõem o cotidiano da população da Região Metropolitana. A preferência pelo
transporte coletivo, significa transitar no metrô mais lotado do mundo (OESP-
Cidades: 8.9.08). Há projeto de duplicação com parceria púbico-privado para a
marginal do Tietê, sempre congestionada. “Bairros saturados ganham mais
carros”, pois a Prefeitura aprova novos projetos de construções, por falha da
legislação. (OESP-Cidades:11.5.08) Outros territórios desenham-se quando a
administração pública implanta serviços em áreas menos valorizadas, como o
Tatuapé, “anos esquecido pelo mercado” ou no Jardim Anália Franco onde 42
condomínios, com 1.620 unidades, foram lançados nos últimos três anos, (OESP-
MorarBem: 20.4.08) ou se noticia que a “Periferia ganhará parque de 7,5km” na
faixa entre Sapopemba e São Mateus, será “o maior parque linear urbano do
País”... em benefício de 20 bairros e 200 mil habitantes de 94 favelas da região.
(OESP-Metrópole: 2.5.08)

Projetos de recuperação de áreas degradadas revelam a dimensão mais sensível


da “questão urbana” – áreas ocupadas por favelas, narcotráfico, baixa prostituição,
cortiços e moradores de rua. Partes da região central ganharam manchetes
quando, em fevereiro de 2005, a Prefeitura se propôs recuperar o bairro de Santa
Ifigênia e mudar o perfil de sua ocupação. O subprefeito da Sé assim expôs sua
proposta: “A Cracolândia é um quisto numa região que tem projetos de
recuperação em andamento, como a Sala São Paulo”. A “revitalização” da área
visava transformá-la em pólo cultural com “a Pinacoteca do Estado e a
Universidade Livre de Música Tom Jobim”, e assim assegurar maior circulação de
pessoas, principalmente jovens. (OESP-Cidades: 27.02.05) Já para o Parque D.
Pedro II”, as propostas de “revitalização se alternam, sempre adiadas em função
dos edifícios Mercúrio (ainda ocupado) e São Vito (27 andares, 624 apartamentos,
desocupados desde 2004). A “Região sofre degradação há quase 70 anos”, diz o
articulista e detalha:

São 21h44 de quarta-feira e dezenas de mendigos acendem fogueiras com


restos de caixas de madeira espalhadas pelas ruas próximas do mercado
Municipal. Do outro lado do Rio Tamanduateí, o sereno cobre a Avenida Mercúrio e
torna o cenário mais inóspito e fantasmagórico. Passam-se quase 20 minutos e
nenhum pedestre cruza a rua onde fica o desativado São Vito, o “treme-treme”
ícone da degradação do centro velho paulistano. Ao lado, debaixo do Viaduto
Diário Popular, o constante piscar de pontos luminosos denuncia o uso de crack
por garotos enrolados em mantas velhas, sob o frio de 13º C.
A região do Parque D. Pedro II segue pouco habitada e violenta, cortada por
quatro viadutos que segregam a região central e a zona leste.
(OESP-Cidades: 29.06.2008)

2
A matéria é longa e apresenta pontos de vista de arquitetos e moradores, do
coordenador do Núcleo de Habitação da Defensoria Pública e do secretário de
coordenação das Subprefeituras. Há evidente disputa em torno da ocupação dessa
área: a Prefeitura projeta demolir os dois edifícios e construir no local uma praça
de 5.389,10 m² interligando no parque o Palácio das Indústrias e o Mercadão; o
Plano Diretor incentiva a construção de moradias populares no centro e é apoiado
pelo Núcleo de habitação da Defensoria. (OESP-Cidades: 29.6.08)

Áreas de favela constituem a segunda dimensão ultrassensível do problema


habitacional para a população de baixa renda.2 Representam a ocupação irregular
de bordas e interstícios da área urbana. Tal como acontece com outras cidades,
são objeto de matérias e comentários nos editoriais da grande imprensa e ganham
espaço nos jornais televisivos quando ocorrem tragédias e ações de cunho policial,
tal incêndios ou ações de vandalismo que no dia 1º de fevereiro de 2009 oclodiu
na favela Paraisópolis no bairro do Morumbi, vizinha de casas e prédios de alto
custo. Configuram áreas por vezes de grandes dimensões físicas, incrustadas no
próprio espaço urbanizado cujo tecido rompem.

Compreende-se assim por que desalojar posseiros na Favela Real Parque ensejou
em 2007 debate sobre a questão das invasões de terrenos públicos e privados em
áreas próximas a pontes, viadutos e grandes avenidas, a expansão das favelas
avançando em áreas de mananciais ou protegidas pela legislação ambiental, como
a Represa de Guarapiranga e a Serra da Cantareira. (Editorial “A questão urbana”
(OESP:16.12.07:3) A Prefeitura e a Defensoria Pública do Estado defendem a
“efetivação do direito à cidade” e projetam transformar a Favela Jardim Edite em
conjunto habitacional. Em meio as diferentes posições das 815 famílias residentes
na área, a melhor alternativa, na opinião do Jornal, seria a concretização da
Operação Urbana Água Espraiada (Lei 13.260 de 2001) com vistas a reurbanizar a
área. Os motivos são evidentes:

Com a redução da área ocupada, seria possível diminuir o impacto causado


pela presença de um conjunto habitacional para a população carente numa área
de grande valorização, cenário da operação urbana mais bem-sucedida de São
Paulo.
[...]
Muitos empreendedores resistem a investir na região porque temem a
desvalorização que o Jardim Edite traz ao local. Além de uma parcela de
trabalhadores da área, a favela abriga gangues cada vez mais numerosas, que
agem nas redondezas cometendo seqüestros relâmpagos, assaltos e furtos de
notebooks. (OESP-Cidade: 17.9.08)

2
Estimava-se, em pesquisa sobre o município de São Paulo de 2003, serem 1.160.590 as pessoas
vivendo nas 2.018 favelas existentes, o que indicava ter a população favelada crescido mais do que
o total da população do município: 2,97% contra 0,9% ao ano. In São Paulo Metrópole, Meyer, R.
P., Grostein, M.D. e Biderman, C., São Paulo: Edusp/Imprensa Oficial, 2004, p.62.

3
A defesa da saída “voluntária” de mais da metade dos habitantes dessa favela
contrasta com matéria de teor altamente positivo, no já citado Megacidades de
agosto de 2008, com várias páginas detalhando “Como a violência foi reduzida na
periferia, no relato de vítimas, testemunhas e ex-bandidos”. A reportagem sobre a
violência em áreas da cidade nas quais a favela foi a resposta possível ao
agravamento da carência de moradias expõe a dimensão humana da rotina
cotidiana da população na intenção de mostrar a possível reversão da tendência à
criminalidade. Exemplos simbólicos transcrevem a recuperação de antigos
criminosos e o contentamento de diretora de Escola Municipal do Jardim Ângela
que “contou mais de 100 alunos assassinados nas décadas de 1980 e 1990,
período em que o número de homicídios [atingiu] seu pico histórico: 11.472
mortes violentas em 1999”. Seis pessoas entrevistas relatam como a violência na
periferia foi sensivelmente reduzida: um Policial Militar fala das gangues de
“justiceiros” da década de 1980, migrantes nordestinos que alegavam ter
integrado gangues após serem vítimas de bandidos ou ter a mulher violentada;
“solução caseira” aos poucos apoiada por comerciantes seguidamente assaltados.
No começo dos anos 1990 a área se tornou alvo das “forças de segurança do
Estado” com a prisão de mais de 40 justiceiros. Os relatos discorrem sobre rapazes
iniciados nas mortes por vingança em variadas situações de solidariedade.

Na opinião do articulista, a instalação de uma base comunitária da polícia no


Jardim Ângela e no Capão Redondo, ambos bairros pobres da zona sul da cidade,
invertera essa trajetória, no final da década de 1990, com o enfraquecimento das
gangues. Um ex-traficante e hoje pastor evangélico afirma que “o sofrimento
parece ajudar também a construir um ambiente receptivo a mudanças” e que hoje
ele e outros “ex-matadores espalhados em igrejas de bairros pobres ... luta[m]
para converter aqueles que permanecem no mundo do crime”. Um mapa do
município indica áreas de maior violência e a significativa diminuição dos
homicídios registrados entre 2000, 5.310 casos, e 2007, 1.499. (Megacidades: 98-
105) Informações e estatísticas estabelecem o contraste entre as grandes e as
pequenas e médias cidades do interior do país, das quais as 33 primeiras com um
“alto índice de desenvolvimento humano” se encontram no Estado de São Paulo.
Pode-se considerar esse quadro estatístico um claro indicativo de que somente no
patamar de menor urbanização seria possível chegar a bons resultados?

Múltiplas linguagens compõem esses artigos levantados em um único jornal da


grande imprensa paulista – relatos, estatísticas, mapas e fotografias – formam
imagens que se impõem ao nosso cotidiano; elaboram uma representação do
território da pobreza e dele fazem uma certeza física fincada na cidade. A força
expressiva de palavras como favela, cortiços, guetos, mas também metáforas,
imagens construídas com palavras – a Cracolândia é um quisto – descortinam
locais marcados pelo estigma da violência, do medo, do vício, da doença física e
moral, revisitada em filmes, literatura, televisão. Imagens que ultrapassam o

4
recorte físico geográfico e constituem territórios ao incorporar a subjetividade da
relação dos habitantes com o lugar.3 Soma-se, entretanto, a essa noção de
pertencimento pelos habitantes, o poder de sugestão de sujeitos externos a ele,
que recortam o espaço geográfico e o recobrem de qualidades extensivas ou
derivadas das características atribuídas aos seus moradores, com noções
fundamentadas em campos conceituais formados no decorrer do século XIX e
fixados no campo disciplinar do urbanismo e da sociologia urbana no século XX.

Penso ser estratégico rever algumas questões. A permanência do campo


conceitual formado no decorrer do século XIX a partir de aportes de várias áreas
direta ou indiretamente relacionadas a vertentes do pensamento político-filosófico
e o procedimento dos pesquisadores unindo estatísticas e conhecimentos
adquiridos a entrevistas e observações in loco. A força expressiva das
palavras, o modo como orientam e “aprisionam” o olhar; noções e conceitos que
só permitem “ver” aquilo que o campo delimita e assinala: o que deve ser visto e
como deve ser observado relaciona-se, sobretudo, ao poder persuasivo das
metáforas quando imagens se intercalam a argumentos “objetivos”. O que, à
primeira vista, poderia ser mero recurso a figuras de linguagem desdobra-se numa
clara rede de palavras interligadas. A última refere-se à justaposição e
complementaridade de diversas linguagens na tessitura das representações
que se fixam na imaginação – textos, estatísticas e iconografia – e lastreiam a
formação dos campos conceituais.

2. Observadores sociais do século XIX: “ensaios” de sociologia e


antropologia urbanas

Um dos aspectos mais notáveis de nossos dias constitui o interesse


pelas investigações analíticas. Quase todo ramo da economia social é
tratado com precisão e cuidado à semelhança de uma ciência exata.
Demonstrações foram reduzidas a uma certeza matemática; números e
estatísticas abundam e fornecem dados para outras pesquisas. Entretanto,
com freqüência, a solução do problema social ou a organização dos fatos,
que lançam luz sobre a condição moral e religiosa de nosso país, constituem
o objetivo e não o ponto de partida de nosso trabalho. Ao terminar uma
pesquisa detalhada, quase sempre trabalhosa, as pessoas em geral se
satisfazem com o mero prazer derivado do bom resultado de conseguir
extrair a verdade da massa de evidências contraditórias.
Henry Mayhew - 1861

3
Cf. Rolnik, Raquel. História Urbana: História na Cidade? In Cidade & História. Modernização das
Cidades Brasileiras nos séculos XIX e XX (Ana Fernandes e Marco Aurélio A. F. Gomes, org.),
Faculdade de Arquitetura/ Mestrado em Arquitetura e Urbanismo/UFBA; ANPUR, 1992, p. 27.

5
Com essa aguda observação o jornalista Henry Mayhew introduz o leitor ao quarto
e último volume de London Labour and the London Poor4, nos quais publicava suas
pesquisas sobre a população londrina que “tirava seu sustento das ruas”.
Preocupava-o o dispêndio de energia e perseverança, tempo e dinheiro, já que as
descobertas não resultavam em aplicação prática; permaneciam no campo dos
resultados teóricos e quando muito tocavam a sensibilidade dos leitores. Para
Mayhew “as tristezas e sofrimentos da humanidade despertam um espírito de
benevolência ativo e persuasivo que infectam todos os níveis de cada classe
social”.5

No decorrer do século XIX, profissionais de diversas áreas se lançaram em campo


na observação das consequências perversas da industrialização para o trabalhador.
Conseguir apreender um sentido na imensa diversidade dos grandes centros
urbanos; perceber entre inúmeros sinais aqueles aptos a oferecer chaves de
entrada na sua aparente desordem; atingir o princípio de inteligibilidade e tornar
possível uma leitura da cidade: estes parecem ter sido os fins visados por homens
que expressaram desconforto ao vivenciarem a os conflitos urbanos, a
intensificação dos estímulos nervosos e a perda de muitas das antigas referências
baseadas na antiga hierarquia social. Constituíram repertórios de informações,
organizaram dados colhidos com suas pesquisas e formaram um campo de
conhecimentos apreensível de modos diversos; nele designaram “o lugar” da
pobreza. 6

Os autores desses registros se colocam na posição de observadores da sociedade,


por acreditarem, como Eugène Buret, que “As ciências sociais são bem mais
difíceis de se constituir do que as ciências físicas; todas igualmente se baseiam na
observação dos fatos”.7 Os “fatos sociais” tinham, entretanto, a particularidade de
não estarem “submetidos a leis constantes e periódicas, que permita repetir as
observações até que se apresentem perfeitas”. 8

4
Mayhew, Henry. London Labour and the London Poor London Labour and the London Poor, a
Cyclopaedia of the Condition and Earnings of those that will work, those that cannot work, and
those that will not work. The London Street-folk: comprising, street sellers, street buyers, street
finders, street performers, street artisans, street labourers with numerous illustrations from
photographs, Nova York: Dover Publications, 1968, (1ª ed. Londres: Griffin, Bohn and Company:
1861-1862).
5
Mayhew, op.cit., p. XI-XIII.
6
Tal como fui introduzida à dimensão sensível das grandes cidades pelos escritos de Walter
Benjamin, a dimensão física revelou-se textualmente no livro de Fr. Engels A situação da classe
trabalhadora inglesa (1845), nos vários escritos de Walter Benjamin e no artigo de François Béguin
Les machineries anglaises du confort in L’haleine des faubourgs – ville, habitat et santé au XIXème
siècle, Murard, L. E Zylbermann, P., org., Recherches n. 29, 12.1977, publicada com o título As
maquinarias inglesas do conforto em Espaço & Debate n. 34 – Cidade e História, NERU, 1991.
7
Buret, Eugène. La misère des classes laborieuses em Angleterre et en France, fac simile da edição
Paris: Paulin, 1840, vol. 1, p. 30.
8
Buret, op.cit., p. 30-31.

6
Essa característica dos “fatos sociais” exigia sua descrição detalhada compondo
representações estéticas da sociedade. Entretanto, os observadores sociais sabiam
que só o conceito permitiria traduzir, para a linguagem intelectual, considerada
objetiva e isenta de resíduos afetivos, as impressões causadas na imaginação
pelos sentimentos de medo e de fascínio. Coube à estética do sublime operar
como filtro e oferecer um método de aproximação descritiva em apoio à
observação desvencilhada do impacto emocional.9 A teoria estética permaneceria
na base da atividade exploratória do modo de vida urbano. “Pobres”,
“trabalhadores” ou “vagabundos”, “almas selvagens e inarticuladas” foram
considerados equivalentes aos povos selvagens e seus bairros definidos como
territórios desconhecidos, “terra incógnita”. Os observadores sociais – políticos,
jornalistas, médicos, reformadores filantropos, membros de sociedades
estatísticas, homens letrados – assumiram a posição de exploradores de culturas
estranhas, estrangeiras ou exóticas na intenção de formar um campo de
conhecimento organizado e base para as intervenções.

“O que significa este amargo grito de descontentamento das Classes


Trabalhadoras?” indagava Carlyle em 1839.10 Armados com os meios intelectuais
disponíveis detalharam o que os sentidos captavam e aperfeiçoaram formas de
compreensão qualitativas e quantitativas da evidente tensão entre classes opostas
da sociedade. Diversas expressões foram usadas para nomear a “causa” dessa
tensão sempre com ênfase na ameaça potencial contida em um de seus pólos –
“flagelo social”, “anomalia social”, “a gangrena que corrói a sociedade” –,
buscando desfazer a opacidade e as sombras que, segundo eles, a organização
moderna da sociedade lançara sobre o homem pobre.

A premissa do desconhecimento da “outra parte” da sociedade permitiu a


elaboração intelectual da representação da “alteridade” como parte da sociedade
não mais em terras distantes; a “terra incógnita” passara a fazer parte da
sociedade civilizada. Essa opinião intelectual impunha, assim, a necessidade de
ultrapassar a constatação superficial dos sentidos: conhecer em profundidade o
fenômeno social por meio da análise, chegar ao âmago ou à estrutura da
sociedade. A terminologia expressa a dificuldade da tarefa. Não se percorre,
penetra-se nos bairros operários; desce-se até as profundezas dos redutos das
classes trabalhadoras. Correlata a abertura das grandes vias com o corte físico do
tecido desigual e tortuoso das antigas cidades européias, a atividade dos
observadores sociais, ao explorar o mundo operário, visava romper a aparente
opacidade do tecido social.

9
É referência o texto de 1757 de Edmund Burke, A Philosophical Inquiry into the Origin of our
Ideas of the Sublime and Beautiful, in The Works of Edmund Burke, Vol. 1, London: G.Bell & Sons
Ltd., 1913. Versão francesa de 1803 [reedição fac simile, Vrin, 1973] e brasileira pela, EdUnicamp/
Papirus, 1993.
10
Carlyle, Thomas. Chartism in Thomas Carlyle Selected Writings, Penguin, 1980, p. 152.

7
Trabalhos com documentos variados e observações colhidas em longos e repetidos
percursos por Londres e cidades industriais inglesas se estruturam na ênfase das
condições higiênico-sanitárias das áreas industriais e da moradia operária. A
erupção do cólera em 183211, em praticamente todos os países da Europa, atuou
como reagente químico ao condensar dados que compuseram o campo de estudos
da “questão sanitária” nas dimensões física e moral – os redutos da população
pobre induzem à doença e aos comportamentos inadequados. As características do
espaço e seus efeitos sobre a saúde e a moralidade dos habitantes formaram um
par de longa duração. Considero, pois, importante lançar uma ponte para
surpreender como, já na primeira metade do século XIX, as críticas ao custo social
do laissez-faire ganham espaço e configuram uma clara representação da pobreza
enquanto produto da própria sociedade e a recobrem com características
específicas.12

Variados motivos estimularam pesquisadores, tais como Henry Mayhew, Friedrich


Engels, Eugène Buret e Charles Booth. Engels, enviado por seu pai, instala-se na
Inglaterra em 1842, conhece Marx e lá permanece até os primeiros meses de
1844. Eugène Buret, com o prêmio doado pela Academie des Sciences morales et
politiques por seu ensaio sobre a pobreza, visita a Inglaterra em 1840, a seu ver, o
“país privilegiado para os estudos sociais”, e desenvolve análise comparativa das
condições de vida do proletariado francês e inglês.13 Entre 1849 e 1850, Mayhew,
jornalista, considerou essencial “trazer informações sobre um grande número de
pessoas, menos conhecidas do público do que as tribos distantes”, já que, “nem as
tabelas da população do governo os inclui entre os habitantes do reino”. No final
do século XIX, Charles Booth, empresário e pesquisador independente, diria em
suas memórias ter se interessado pelo estudo da população trabalhadora ao
observar durante seus passeios de fim-de-tarde as condições de vida dos
habitantes do East London, área da cidade, considerada na época residência de
parcela de “pobres respeitáveis”, mas também dos pobres mais miseráveis da
Inglaterra. Tal como Engels e Buret, Booth obteve informações detalhadas com
base em sucessivas visitas, rua-rua, casa-casa, realizadas por um “grupo de
visitadores”. Ao cruzar as informações recolhidas, entrelaça a dimensão política à
questão física e moral e alerta que “o individualismo”, base do código social inglês

11
A referência à epidemia de cólera em 1832 é constante nos documentos de procedência variada
que já na época relacionavam doença e trabalho industrial. Informações colhidas pelas grandes
pesquisas encomendadas pelas autoridades inglesas aparecem como referências obrigatórias em
quase todos os textos dos observadores sociais. Edwin Chadwick. Report to her Majesty’s principal
secretary of state for the home department from the poor law commissioners on an inquiry into the
sanitary condition of the labouring population of G.B., Londres, 1842; First report of the
commissioners for inquiring into the state of large towns and populous districts, Londres, 1844 e
Second report … 1845. in François Béguin, op.cit.
12
Eric Hobsbawn, E. P. Thompson, Garreth Stedman-Jones, Raymond Williams e Michelle Perrot
são autores indispensáveis para o conhecimento da sociedade industrial moderna.
13
Buret, Eugène. La misère des classes laborieuses en Angleterre et en France, Paris: Paulin, 1840.

8
estava sob ameaça: “são os sentimentos de desesperança que espalham as teorias
socialistas”.14

É na cidade e não no campo que a “terra incógnita” deve ser inscrita em


nossos mapas. No campo o maquinismo da vida humana é evidente e facilmente
reconhecível; as relações pessoais ligam as pessoas. O equilíbrio da ordem
estabelecida, satisfatório ou não, é visível, evidente. Nas cidades as coisas são
muito diferentes, permanecemos no escuro quanto à essas questões, e por
ignorância, temos corações desconfiados e temores desnecessários.15

Embora mal acolhidos pelos incipientes estudos de sociologia urbana de seus


contemporâneos, os trabalhos de Booth mereceram de Robert Park, nos anos
1920, elogios pelas “descrições realísticas da vida das classes sociais por ocupação
profissional; as condições em que viviam e trabalhavam, suas paixões, lazeres,
tragédias domésticas e filosofia de vida [...] fizeram desses estudos uma
contribuição memorável e permanente para nosso conhecimento da natureza
humana e da sociedade... Esses volumes formam um estudo sociológico e se
tornaram documentos históricos”.16 Booth dividiu a sociedade inglesa em Lower
Class, Central Class e Upper Class, mapeou os bairros e enfatizou a alta incidência
da pobreza:

O Leste de Londres permanece escondido por trás de uma cortina


sobre a qual se pintam quadros terríveis: - crianças famintas, mulheres
sofredoras, homens sobrecarregados de trabalho: o horror da embriagues e
do vício; monstros e demônios de desumanidade; gigantes da doença e do
desespero... foi esta cortina que tentamos levantar.17

3. Fiat lux – conhecer/mapear o território da pobreza

Intellect is like light; the chaos becomes a World under it: fiat lux.

Há um sentimento geral de que a condição e a disposição das classes


trabalhadoras formam hoje uma questão preocupante; algo deve ser dito, algo

14
Entre 1889 e 1892, Charles Booth publica em dois volumes Life and Labour of the People of
London, vol.1, 1892; Treble, James H.. Urban Poverty in Britain 1830-1914, Londres: Methuen,
1983. Ao lado das séries estatísticas, compôs mapas da pobreza nos quais pontuou a parcela de
responsabilidade da religião, das condições sociais e do meio ambiente urbano e demonstra que
30,7% da população londrina vivia abaixo da linha da pobreza. (p.24-31)
15
Booth, Charles. On the City Phisical Pattern and Social Structure. Selected Writings, ed. Harold
W. Pfautz, Chicago-Londres, Phoenix Books/The University of Chicago Press, 1967, p.85.
16
Booth, op.cit., p. 87 e R. E. Park, The City as a Social Laboratory in Chicago: An Experiment in
Social Science Research, ed. T.V. Smith e L.D.White, Chicago: The University of Chicago Press,
1929, p. 46.
17
Booth, op. cit., p. 51-52 e 185.

9
deve ser feito a respeito disso. Quão útil seria termos o real conhecimento delas, a
correta compreensão do que as classes mais baixas significam intrinsecamente; a
clara interpretação daquilo que atormenta suas almas selvagens e confusas, e tal
como criaturas mudas em sofrimento, incapazes de falarem por si, lutam e se
expressam por meio de enorme vozerio inarticulado. Algo elas pretendem; a
despeito de tudo, algum fundo de verdade [há] em seus corações confusos – pois
também são corações criados por Deus: ... Um perfeito esclarecimento equivaleria
a encontrar o remédio.18
(Chartism, 1839:223;151)

Ao analisar o movimento cartista em 1839, Carlyle buscou completar sua


crítica a “Era Mecânica” de Signs of the Times19 ao expor o núcleo da “Condition-
of-England Question”. Seis anos depois, Friederich Engels publicava A situação da
classe trabalhadora inglesa onde expunha o custo social da produção de riqueza,
em texto que entrecruza observações in loco e dados colhidos em trabalhos
anteriores de Thomas Carlyle, Edwin Chadwick, relatórios parlamentares e médicos
voltados para o ambiente de trabalho e as péssimas condições das moradias da
população operária inglesa.20 Várias pesquisas oficiais realizadas na Inglaterra
entre 1840 e 1845 e pesquisas independentes, baseados em teorias médicas,
trouxeram incrível quantidade de dados que, ao serem sobrepostos e cruzados
formularam a “Questão Sanitária”21, como dimensão técnica da “Questão Social”.
Na trilha dos ensinamentos utilitaristas de Jeremy Bentham22, seus formuladores
estabeleceram como objetivo maior erradicar doenças e modificar o quadro moral
dos comportamentos por meio do correto agenciamento do espaço.23

18
Carlyle, Thomas. Chartism in op.cit., p. 155.
19
Carlyle, Thomas. Signs of the Times in Op. cit. p. 61-85.
20
E.J. Hobsbawm fornece informações preciosas em seu Prefácio ao livro de Engels que cito aqui a
partir da edição francesa (La situation de la classe laborieuse en Angleterre, Études Sociales, 1960)
Observa que “o livro de Engels está longe de constituir um fenômeno isolado. (...) Nos anos 1830,
era evidente aos olhos do observador inteligente que nas regiões economicamente avançadas da
Europa colocavam-se problemas inéditos”. Registra as várias pesquisas oficiais e particulares às
quais Engels teve acesso, dentre as quais, a de Eugène Buret (que lhe mereceu acusação de
plágio), o Report of the Factory Enquiry Commission de 1833, o Report to her Majesty’s principal
secretary of state for the home department from the poor law commissioners on an inquiry into the
sanitary condition of the labouring population of G.B., Londres, 1842, e o First Report of the
Commission for Inquiring into the State of Large Towns de 1844.
21
Bringing the Serpent’s Tail into the Serpent’s Mouth. Edwin Chadwick and the “Sanitary Idea” in
England, capítulo 2 de The Sanitary City [abridged edition] Martin V. Melosi, University of Pittsburg
Press, 2008, p. 28-39. Ver também artigos de The Victorian City. Images and Realities 2 t. (org.
H.J.Dyos e M.Wolff) Londres e Boston: Routledge & Kegan Paul, 1973).
22
Bentham, Jeremy. Panopticon or the Inspection-House, 1787 in The Panopticon Writings (ed. e
Introd. Miran Bozovic), Londres-Nova York: Verso, 1995.
23
François Béguin expõe a “gigantesca empreitada que visou reduzir o ambiente a dados técnicos
correlacionando sua incidência sobre o comportamento e a doença, calculada em seus efeitos e
comparada sempre a este outro modo de funcionamento do ambiente possibilitado pelos mais
recentes progressos tecnológicos e pela redistribuição dos poderes no meio urbano”. Béguin,
François. Op.cit., p. 39.

10
Ao aceitarem a premissa de antes conhecer para somente depois intervir, os
observadores fizeram do conhecimento uma operação na qual as descrições
extremamente diversas e matizadas ganhavam estrutura e contornos nítidos a
partir das recorrentes evidências anotadas. A sensibilidade do observador
sintoniza-se pelas referências teóricas que conferem ao olhar armado pelos valores
burgueses – teorias estéticas, noções e conceitos do saber erudito – a capacidade
de classificar a partir das diferenças observáveis, aquilo que coisas e pessoas
possuem de essencial: a sociedade se torna legível.

Henry Mayhew, co-fundador da então radical revista Punch, percorreu incontáveis


milhas de ruas londrinas para recolher testemunhos, publicados na série de artigos
London Labour and the London Poor do Morning Chronicle entre 1849 e 1850,
editados em 4 volumes com o mesmo título em 1861-1862. As transcrições das
entrevistas desenham a imagem da terra incógnita onde “os nômades urbanos e
suburbanos” exibem características morais tão diferentes e particulares como seus
traços físicos: até a forma das cabeças diferem das dos mais civilizados. Para cada
entrevista com os trabalhadores de rua, há gravuras produzidas a partir de
daguerreótipos. Os longos comentários do autor versam sobre o nível mental
(geralmente tão baixo quanto suas consciências), suas personalidades turbulentas
e perigosas, usos e costumes. O convívio de crianças os com pais altera fome e
embriagues; algumas vezes surpreende encontrar casas cuidadas e limpas.24
Mayhew mereceu reconhecimento de Thackeray por fornecer “um quadro da vida
humana maravilhoso e terrível, tão piedoso quão patético, tão estimulante quanto
terrível, mesmo leitores de romances jamais haviam lido nada igual.”25

A crise da oferta de moradias nos anos 1880 aumentou a superpopulação das


centrais de Londres e levou pessoas sensibilizadas pela situação dos pobres a
escreverem sobre suas péssimas condições de vida.26 Títulos de grande apelo
buscavam ganhar o público leitor e a escrita emocional intensa, em estilo
semelhante ao da literatura de ficção, traz descrições da vida de pessoas decaídas
a níveis subumanos e atingem a sensibilidade do leitor. O pastor Andrew Mearns
publica em 1883 o panfleto The bitter Cry of Outcast London.27 Preocupado com a
baixa freqüência ao “serviço divino”, até pelos membros da “classe trabalhadora
respeitável”, atribuiu essa circunstância às péssimas condições dos lugares em que
viviam. “Como dar o nome de lares a esses lugares cuja comparação faz a toca das

24
Mayhew, Henry. Op.cit., p.110-112;101-111.
25
John D. Rosenberg nos introduz ao trabalho do jornalista diz “que sua arte ... como dramaturgo
construtor de caracteres por meio de palavras” seria comparável a de Shakespeare. In Mayhew,
Henry. London Labour and the London Poor, op.cit., p. vii.
26
Stedman-Jones, Gareth. Outcast London. A study in the relatioship between classes in Victorian
Society, Penguin, 1976, cap. 11 – The housing crisis in the 1880s, p 215 e segs..
27
Mearns, A. The bitter Cry of Outcast London. An Inquirry into the Condition of the abject Poor, in
The Bitter Cry of Outcast London, seleção de Anthony S. Wohl, The Victorian Library, Nova York:
Humanities Press, 1970, p.55-77.

11
bestas selvagens parecerem mais confortáveis e saudáveis?”, pergunta. Já From
the Abyss, cujo subtítulo Of Its Inhabitants by One of Them (1902) anuncia a
condição real ou fictícia de seu autor Masterman, descreve as “regiões abissais”:
“refúgios onde buscam um lugar para descansar após o dia de trabalho, as ruas
enxameiam com nossas crianças sujas, doentes, felizes...”28 Em How the Poor Live
(1889), George R. Sims, escritor e político inglês de tendência radical, convidava o
leitor a adentrar com ele o território da pobreza:

A dificuldade de conferir um tom pitoresco a esse capítulo (Abrindo


as comportas do conhecimento) o que é essencial para o sucesso de
qualquer escrito entre a maioria dos leitores ingleses, torna-se mais
evidente ao meu grupo de viagem ao explorar cada uma das regiões onde
os pobres se enfurnam para viver o melhor que podem.29

Os relatos confirmam a relação entre o péssimo meio ambiente e a degradação


física e moral dos trabalhadores e fixam a imagem da pobreza e de seu território.
A força das representações da pobreza reside na união dos preceitos técnicos da
“higiene” com noções românticas nas quais a denúncia à desumanidade das
condições de vida e trabalho da classe operária deixa explícita a preocupação com
o perigo da revolta social. Os conceitos românticos, críticos da sociedade industrial,
oferecem suporte à maioria dos relatos dos observadores sociais. A partir deles,
seus autores designam um lugar e uma missão à filantropia: ancorada no
sentimento moral de justiça e na objetividade da avaliação racional da sociedade,
assumem a tarefa de moldar em nova ética esses Sanspotatoes.30 Nesta posição, à
primeira vista contraditória, expressam a confiança em uma possível harmonia
entre as duas partes antagônicas da sociedade a ser alcançada por meio de
reformas.

O raciocínio analítico desmonta peça a peça pessoas e coisas com o objetivo de


transpor a superfície e atingir o âmago, sua essência ou sua estrutura. O método
de desvendar a sociedade se inspira no procedimento do conhecimento do corpo
físico pelo médico: a dissecação permite apreender a composição e a estrutura do
corpo; vê-la, mensurá-la, definir sua composição, organização e funcionamento.
Explica-se também o homem em termos psicológicos pela mensuração do crânio e
da massa encefálica, pelas características da formação da face, o rictus, mas
também pela “dissecação” de seu passado, ou usando uma metáfora cara a Freud
pelo trabalho de escavar a mente semelhante ao realizado pelo arqueólogo. A
sociedade passa por um processo de apreensão das características físicas humanas
28
Masterman, C.F.G. From the Abyss. Of Its Inhabitants by One of Them, Nova York/Londres:
Garland Publishing, 1980, edição facsimile de 1902.
29
Sobre G.R. Sims ver Stedman-Jones, G. Outcast London. A Study in the Relationship between
Classes in Victorian Society, Penguin Books, 1976 (1ª ed. Oxford University Press, 1971), p. 95 e
283.
30
Buret, Eugène. Op.cit., p. 89.

12
e dos diferenciados perfis psicológicos com vistas a alcançar suas determinações
mais íntimas.

Nesse esforço de domínio da sociedade pelo intelecto, a pretensa objetividade do


conceito convive com imagens que o antecedem e constituem seu próprio chão. A
luz lançada sobre as condições de vida e de trabalho do assalariado, esse mesmo
homem do qual a burguesia se esforçara para se distanciar, deveria preceder o fiat
lux iluminador de mentes mal formadas e compuseram uma nova e extensa área
de conhecimentos denominada “cultura da pobreza”.31 Desse ponto de vista, os
verbos adentrar e penetrar funcionam como via de mão dupla: antes o
pesquisador “adentra ou penetra” os mistérios do desconhecido mundo da
pobreza, depois expõe os resultados de suas observações no intuito de “adentrar
ou penetrar” as mentes arredias do homem médio culto, cego perante as ameaças
a sua própria sociedade.

Observações sobre a maléfica influência das más condições de vida para a


população repetem o que já havia sido escrito à exaustão por outros observadores.
O crime e a subversão política estão entre os temas mais desenvolvidos pelos
pesquisadores como práticas que configuram a materialização perigosa das duas
extremidades da pobreza: num pólo, o “embrutecimento da sensibilidade física e
moral” e seu corolário, a violência criminosa; no outro, a instrução que fornecia
instrumentos intelectuais para irem em busca “das causas da sua condição
miserável”, aproximando-os dos “teóricos radicais” sempre prontos a denunciarem
as instituições políticas como a origem dos sofrimentos do povo. Os relatos das
incursões pelos distritos operários cumpriam dupla função: davam a conhecer o
“outro” lado da cidade – o território da pobreza – e didaticamente passavam os
preceitos da higiene para seus leitores. Nas décadas finais do século XIX, os
tratados de Higiene Social repetem, apoiados em conhecimentos da medicina e da
engenharia, afirmações muito próximas a dos observadores sociais e comporão a
base sobre a qual se forma a disciplina “urbanismo” no início do século XX.32

4. Higienistas entram em ação – médicos, engenheiros, arquitetos,


administração pública

Não há para as nações interesse maior do que o da saúde pública; a


higiene é, pois, a ciência social por excelência. [...] Mantém relações diretas

31
Himmelfarb, Gertrude, The Idea of Poverty. England in the early Industrial Age, New York:
Vintage Books, 1985. Part Three “The undiscovered country of the poor”, chap. XIV “The ‘Culture of
Poverty’”, p.307-400. Para o período anterior ao século XIX ver Bronislaw Geremek. Os filhos de
Caim. Vagabundos e miseráveis na literature européia 1400-1700, São Paulo: Companhia das
Letras,1995.
32
Corbin, Alain. Le miasme et la jonquille, L’odorat et l’imaginaire social. 18° - 19° siècles, Paris :
Aubier Montaigne, 1982 (edição brasileira Saberes e Odores, São Paulo: Companhia das Letras, 19)
em especial Segunda Parte - Purifier l’espace public, p.105 e segs.

13
com a administração e a economia política. Essa deve ser a posição dos
poderes públicos quando se trata de tomar medidas exigidas pela saúde da
população.33

Em seu Traité d’Hygiène Social, publicado em 1889, o médico sanitarista Jules


Rochard data do século XVIII a formação da “higiene como ciência”, embora, diz,
sua aplicação tivesse que aguardar os “grandes espíritos do começo do século
XIX”, homens que superaram os preconceitos dos que ironizavam os higienistas e
consideravam utópicas suas teorias. O tempo e a “própria força das coisas” teriam
se encarregado de passar seus pressupostos para o domínio da prática. 34

Rochard lista as preocupações dos higienistas e o caráter multinacional dos


congressos organizados pelas sociedades de higiene em várias capitais européias.
“A Bélgica abriu em 1851 a era dos congressos internacionais”, informa, uma
iniciativa que só encontrou repercussão na década de 1870 quando da realização
de um novo congresso na própria Bélgica. A questão colocada em termos claros
estimulou a organização de reuniões em Turim (1880), Genebra (1882), Haia
(1884) e Viena 1887, Londres (1889) e Paris (1889 – Exposição Universal)35 às
quais “acorreram higienistas de todos pontos do globo”. Paralelamente aos
grandes congressos, várias sociedades locais formaram-se para tratar de
problemas relativos à higiene rural, profissional, escolar, hospitalar, militar e
alimentar, e os resultados dos debates mereceram divulgação em revistas
fundadas com essa finalidade. Para ele, ganhar a opinião pública, passar da teoria
à prática e fazer valer os Conselhos de Higiene Pública e de Salubridade de
meados do século XIX. Assim, “só quando os médicos pediram a ajuda dos
engenheiros, arquitetos, físicos e químicos e a administração pública constituiu
comissões, a higiene começou a enfrentar as questões práticas”. Mantiveram-se,
contudo, posições contraditórias entre os profissionais das diferentes áreas: os
médicos perseguiam um ideal dispendioso; os arquitetos se preocupavam com a
elegância e o aspecto decorativo. O entendimento pressupunha uma solução
intermediária na qual a higiene não fosse um entrave: bastava que o espaço, o ar
e a luz fossem bem distribuídos.36

33
Rochard, Jules. Traité d'Hygiène Sociale, Paris, 1888.
34
Ver também Ivone Salgado, Pierre Patte e a cultura urbanística do iluminismo francês in Revista
de Estudos sobre Urbanismo, Arquitetura e Preservação, São Paulo, 2003.
35
Por ocasião da Feira Internacional de 1889 em Paris, até mesmo o ministro do comércio e da
indústria reconhecera a importância e a dimensão social da questão sanitária: “sanear nossas
cidades, fornecer às classes trabalhadoras uma alimentação suficiente e habitações salubres;
educar as crianças de modo a desenvolver a resistência de nossa raça e proteger as populações
das doenças que as dizimam: tais são os temas que passei em revista sucessivamente”. Havia
decretado ser a economia social uma das ciências representadas na Exposição. Rochard, op.cit. p.
11.
36
Rochard, op.cit., 10-17.

14
Dois anos depois Rochard organiza e publica a Encyclopédie d'Hygiène Publique,
obra em vários volumes da qual o 3º é dedicado a Hygiène Urbaine.37 No extenso
primeiro capítulo “Les Villes en général”, Jules Arnould faz um percurso pelas
cidades desde a Antiguidade até chegar à higiene nas cidades modernas. Fixa a
relação entre doença e higiene ao afirmar que “foi necessário o rude aguilhão da
nova peste, o cólera em 1832, para que fossem envidados esforços para sanear as
cidades”. Arnauld atribui às autoridades inglesas a iniciativa pioneira das pesquisas
subseqüentes à epidemia de cólera de 1832 e fornece o um quadro da situação
encontrada:

Das 50 cidades cuidadosamente exploradas, a drenagem das casas e a


canalização das ruas só eram satisfatórias em uma delas, passáveis em 7 e
detestáveis em 42 – nos bairros habitados pelos trabalhadores, as casas e os
pátios não dispunham de canais de saída da água, nem dispunham muitas vezes
de latrinas. Os regos e esgotos mal construídos não tinham saída. Montes de lixo e
imundices de todo tipo se amontoavam nos pátios e porões. O lixo não era
retirado, tal como a lama das ruas, mal ou nem sequer pavimentadas. Encontrava-
se sujeira túrgida nas casas amontoadas. Não havia postura de polícia para esses
bairros.38

Conclusão das comissões: “A mortalidade urbana é proporcional a densidade da


população, ... a mortalidade depende da aeração dos locais e dos meios de retirar
a sujeira”. Longas páginas discorrem sobre as habitações insalubres em percurso
por diferentes países europeus, Inglaterra, Bélgica, Holanda, Suíça, Dinamarca,
Itália, Espanha, e atravessa o Atlântico chegando à América, Nova York e Buenos
Aires, com avaliações semelhantes às observadas na Europa.39 Felizmente, conclui,
tratava-se de problemas evitáveis por ações saneadoras que, ao se manterem letra
morta, não impediram uma nova epidemia em 1884.

Vários capítulos tratam da dimensão médica da higiene e de aspectos técnicos da


engenharia: dimensão e orientação das ruas e sua pavimentação, ruelas,
passagens, becos, avenidas, bulevares, mobiliário urbano (latrinas, fontes,
incêndio), e da limpeza desses espaços, etc.. Tratam da “cidade subterrânea” e
dos equipamentos necessários para que tudo fluísse. Na parte mais extensa da
Encyclopédie, da página 317 à 676, detalham-se preceitos a serem observados nas
moradias unifamiliares e habitações coletivas: pensionatos, escolas, seminários e
conventos, hospitais, hospícios, casernas, penitenciárias.40 Em todos os itens, os

37
Rochard. Jules (dir.). Encyclopédie d’Hygiène et de Médecine Publique, Tome Troisième –
Hygiène urbaine, Paris : Lecrosnier et Babé, 1891.
38
Rochard, Encyclopédie..., op.cit. p. 319.
39
Rochard, Encyclpédie..., op.cit., pp. 389-434.
40
Propõem programas para os diversos tipos de edificações, discorrem sobre procedimentos
básicos para o preparo do solo evitando a umidade das águas usadas; estabelecem o padrão de
construção racional da casa dotada dos meios eficazes de aeração, aquecimento e ventilação,
eliminação rápida dos detritos orgânicos.

15
autores trazem sempre para o leitor exemplos de iniciativas já realizadas em
outros países como exemplos a serem evitados ou a serem seguidos.

Que resposta dar às indagações iniciais? Esse percurso por diversas linguagens
que analisam ou configuram representações das cidades no século XIX permite
acompanhar a constituição de campos de saberes a partir de diversos pontos de
vista. A higiene pública e privada, e sua versão técnica o sanitarismo, compõem a
base sobre a qual o urbanismo se estrutura enquanto disciplina que intervém no
tecido urbano e projeta a expansão das cidades. Dessa multiplicidade de saberes,
herda formas narrativas, conceitos, imagens; paradigmas que ainda hoje orientam
a visualização das questões urbanas. O quadro conceitual talvez deva sua força
explicativa dos grandes problemas urbanos, aos argumentos construídos com
análises e imagens. Dentre eles os colocados pelos “territórios da pobreza”.

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