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André Villar REVOLUÇÃO TECNOLÓGICA E CAPITALISMO

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Universidade Federal do Rio de Janeiro

Centro de Filosofia e Ciências Humanas


Escola de Serviço Social
Programa de Pós-Graduação em Serviço Social

ANDRÉ VILLAR GOMEZ

REVOLUÇÃO TECNOLÓGICA E CAPITALISMO:


Tópicos sobre a destruição e a criação de uma outra natureza

Rio de Janeiro
2010
ANDRÉ VILLAR GOMEZ

REVOÇÃO TECNOLÓGICA E CAPITALISMO:


Tópicos sobre a destruição e a criação de uma outra natureza

Trabalho de conclusão de Doutorado,


apresentado ao Programa de Pós-graduação
em Serviço Social da Escola de Serviço Social
da Universidade Federal do Rio de Janeiro,
como parte dos requisitos para a obtenção do
título de Doutor.

Orientador: Professor Doutor Marildo Menegat.

RIO DE JANEIRO
2010
ANDRÉ VILLAR GOMEZ

REVOÇÃO TECNOLÓGICA E CAPITALISMO:


Tópicos sobre a destruição e a criação de uma outra natureza

Trabalho de conclusão de Doutorado,


apresentado ao Programa de Pós-graduação
em Serviço Social da Escola de Serviço Social
da Universidade Federal do Rio de Janeiro,
como parte dos requisitos para a obtenção do
título de Doutor.

Aprovado em

BANCA EXAMINADORA

__________________________________________________.
Professor Doutor Marildo Menegat (orientador)
Universidade Federal do Rio de Janeiro

___________________________________________________.
Professor Doutor Giuseppe Cocco
Universidade Federal do Rio de Janeiro

___________________________________________________.
Professor Doutor Maurílio Lima Botelho
Universidade Federal do Rio de Janeiro

___________________________________________________.
Professor Doutor José Paulo Neto
Universidade Federal do Rio de Janeiro

___________________________________________________.
Professor Jorge Luís da Silva Grespan
Universidade de São Paulo
G633 Gomez, André Villar.
Renovação tecnológica e capitalismo: tópicos sobre a destruição e
a criação de uma outra natureza / André Villar Gomez. Rio de
Janeiro: UFRJ, 2010.
151f.

Tese (doutorado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro,


Escola de Serviço Social / Programa de Pós-Graduação em Serviço
Social, 2010.

Orientador: Marildo Menegat.

1. Capitalismo. 2. Tecnologia – Aspectos sociais. 3. Ciência -


Aspectos sociais. I. Menegat, Marildo. II. Universidade Fede-
ral do Rio de Janeiro. Escola de Serviço Social.

CDD: 361
AGRADECIMENTOS

Alessandro Carvalho, Ana Esteves, Felipe Brito, Javier Blank, Marcos Velho, Mariela
Becher, Maurílio Botelho e Pedro Rocha. Por nossas reuniões etílicas, nossas conversas,
nossas derivas pela cidade etc.

Ao meu amigo e orientador, Marildo Menegat. Seu conhecimento, seu apoio, suas críticas e
seu exemplo.

À minha mãe, Dulce, e aos meus irmãos, Tatinha, Fabiano e Leo. Pelo carinho. E ao meu
falecido pai, Sergio. Devo-lhe muito.

A minha Lilinha. Por tudo. Por seu amor. Grande beijo.


“Conhecemos apenas uma pequena fração da história da
humanidade neste planeta. É um registro longo, tedioso, doloroso,
de mudanças catastróficas envolvendo o desaparecimento de
continentes inteiros, às vezes. Contamos a história como se o
homem fosse uma vítima inocente, um participante desamparado
nas erráticas e imprevisíveis revoluções da natureza. Talvez no
passado tenha sido. Mas não mais. Tudo o que venha a acontecer na
terra hoje é obra do ser humano. Ele demonstrou ser o senhor de
tudo – exceto de sua própria natureza. Se ontem era filho da
natureza, hoje é uma criatura responsável. Chegou a um ponto de
consciência que não lhe permite mais mentir para si mesmo. A
destruição agora é deliberada, voluntária, auto-induzida. Estamos
no nódulo: podemos ir em frente ou regredir. Ainda temos o poder
de escolha. Amanhã talvez não tenhamos. Por nos recusarmos a
escolher, somos assolados com culpa, todos nós, tanto os que estão
fazendo a guerra como os que não estão. Estamos cheios de
assassinato. Abominamos uns aos outros. Odiamos nossa aparência
quando nos olhamos nos olhos. [...] Os homens do futuro vão olhar
as relíquias desta era como nós olhamos os artefatos da Idade da
Pedra. Somos dinossauros mentais, sem imaginação em meio a
milagres ao quais nos tornamos impermeáveis. Todas as nossas
invenções e descobertas levam à aniquilação”. Henry Miller,
Pesadelo refrigerado.
RESUMO

O presente texto é dedicado ao estudo da dupla crise da civilização capitalista: sócio-


econômica e ecológica. Ele busca mostrar que o capitalismo, devido ao seu próprio
desenvolvimento tecnológico, se chocou com o seu limite lógico interno: o limite da
valorização do valor. Desde então, como uma das manifestações da contradição entre a
forma abstrata do valor e o conteúdo concreto do mundo, esse sistema principiou também a
se chocar, de um modo cada vez mais flagrante, com os seus limites externos: os limites
ecológicos e materiais da Terra. A destrutividade do capitalismo em relação à totalidade do
mundo concreto-sensível se expressa então de dois modos distintos e complementares:
como aceleração do consumo do mundo e como produção de uma outra natureza, isto é,
como tentativa de recriar a natureza por meio da tecnociência. O texto também é dedicado
à apresentação de alguns elementos para uma crítica da tecnologia e da ciência. A última
parte é dedicada à crítica do agrocombustível.

PALAVRA-CHAVE: capitalismo, tecnologia, crise, ecologia.


ABSTRACT

This text is a study of the double crisis of capitalist civilization: socio-economical and
ecological. It aims to show that capitalism, due to its own technological development, came
up against its own internal logical limit: the limit of valorization of value. Since then, as
one of the manifestations of the contradiction between the abstract form of value and the
concrete content of the world, this system started to come up against its external limits, in a
way more and more flagrant: the ecological and material limits of Earth. Capitalism's
destructivity of concrete-sensitive world's totality expresses itself in two different and
complementary ways: as the acceleration of the consumption of the world and as the
production of other nature, that is, an attempt of recreating nature through technoscience.
This text is also a presentation of some elements for a critique of technology and science.
Its last part is a critique of agro-fuel.

KEYWORDS: capitalism, technology, crisis, ecology.


ÍNDICE

INTRODUÇÃO.................................................................................................11

1. METAFÍSICA REAL CAPITALISTA..........................................................15


1. 1. O mundo invertido.....................................................................................15
1. 2. A abstração real..........................................................................................20
1. 3. O fim em si do capital................................................................................23

2. CRISE DO CAPITALISMO..........................................................................26
2. 1. Contradição em processo...........................................................................26
2. 2. Tecnologia e trabalho.................................................................................27
2. 3. A revolução microeletrônica......................................................................34
2. 4. Limite lógico absoluto................................................................................39

3. FUGAS PARA FRENTE...............................................................................42


3. 1. Capital fictício............................................................................................42
3. 2. Economia de guerra permanente................................................................46
3. 3. Administração de crise e a solução final....................................................58

4. DESTRUIÇÃO E EMANCIPAÇÃO DA NATUREZA...............................63


4. 1. Aceleração do consumo do mundo............................................................63
4. 2. O sonho (louco) do capital.........................................................................68
4. 3. O sistema tecnológico................................................................................72
4. 4. A forma-ciência..........................................................................................78
4. 5. Tecnociência capitalista.............................................................................84

5. MUNDO PÓS-NATURAL............................................................................89
5. 1. Novos materiais..........................................................................................90
5. 2. Tecnologia nuclear.....................................................................................92
5. 3. Engenharia genética...................................................................................94
5. 4. Biologia sintética........................................................................................97
5. 5. Nanotecnologia...........................................................................................99
5. 6. Convergência tecnológica........................................................................104
5. 7. Pós-humano..............................................................................................105

.
6. PRODUÇÃO E DESTRUIÇÃO..................................................................110
6. 1. Forças destrutivas.....................................................................................110
6. 2. Dialética negativa.....................................................................................114
6. 3. Um outro metabolismo com a natureza....................................................116
6. 4. Para o lixo com tudo isso.........................................................................119

CONSIDERAÇOES FINAIS ou com todo vapor ao colapso... sócio-


ecológico..........................................................................................................123

Excurso:

CAPITALISMO VERDE E O AGROCOMBUSTÍVEL.................................126


1. Aquecimento da Terra..................................................................................126
2. Protocolo de Kyoto.......................................................................................128
3. Soluções tecnológicas..................................................................................130
4. Petróleo e automóvel....................................................................................131
5. Tragédia sócio-ecológica dos agrocombustíveis..........................................132
6. Provocando mais poluição...........................................................................136
7. Ainda de veias abertas.................................................................................138
Fim de partida................................................................................................140

REFERÊNCIAS BLIOGRÁFICAS.................................................................142
INTRODUÇÃO

Não é de hoje que os seres humanos têm estabelecido relações destrutivas com a
natureza. Algumas sociedades chegaram mesmo a soçobrar em virtude do arruinamento
das condições ecológicas sobre as quais se apoiavam. 1 No entanto, quaisquer que
tenham sido as práticas dessas sociedades e quaisquer que tenham sido os resultados de
suas intervenções sobre a natureza, há uma diferença notável entre o que ocorreu com
elas e o que acontece em nossa época. Por maior que tenha sido a depredação e a
destruição da natureza em outros tempos, ela se limitou sempre a alguns restritos
rincões do mundo. Atingiu somente uns poucos aspectos da biosfera. No entanto, sob o
capitalismo, em especial sob o capitalismo tecnocientífico de nossa época, a devastação
da natureza atinge o planeta inteiro. É toda a Terra que se torna vítima da agressão
infringida pelo modo de produção e de vida capitalista. A biosfera está sendo aniquilada
de forma implacável e extremamente acelerada.
A continuidade da pilhagem da natureza tende a promover um colapso ecológico
generalizado. Mas graves conseqüências já podem ser claramente sentidas. O clima da
Terra está se tornando cada vez mais instável. A natureza parece estar se vingando das
intervenções impertinentes e insanas perpetradas sobre ela. Tal processo de destruição
ecológica não pode continuar. E, no entanto, longe de arrefecer, ele não cessa de se
intensificar. Quanto mais se agravam as contradições do capitalismo, mais esse sistema
torna-se voraz e depredador. No momento em que o capitalismo começa a se chocar
com o seu limite lógico interno – o limite de seu processo de valorização, baseado na
sucção de mais-valia –, ele passa a ser acometido por um apocalíptico impulso
destrutivo. Em seu fim de linha, a forma abstrata do valor entra em guerra contra a
totalidade do mundo concreto-sensível.
A aniquilação das condições ecológicas da Terra consiste num resultado que mal
podia ser vislumbrado por Marx. Sua teoria prevê o colapso do capitalismo em virtude
da contradição entre a forma abstrata do valor e o conteúdo concreto da realidade. O
desenvolvimento tecnológico tende a negar a forma social estruturalmente baseada na

1
Ver: POINTING, Clive. Uma história verde do mundo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1985 e
DIAMOND, Jared. Colapso: como as sociedades escolhem o fracasso ou o sucesso. Rio de Janeiro:
Record, 2006.
12

exploração do trabalho humano. No entanto, nos dias atuais, delineia-se no horizonte


um desfecho que lhe pareceria impensável em sua época: de que o capitalismo, em
virtude dos imensos potenciais produtivos e destrutivos que contribuiu para gerar, viria
a destruir as próprias condições ecológicas e materiais da existência humana. O planeta
seria o elo mais fraco dessa colisão entre o abstrato e o concreto. Trata-se de uma
profunda mudança de época. A civilização capitalista pode chegar ao fim levando de
roldão a humanidade inteira consigo. Ela pode se extinguir por meio de guerras
nucleares, por “acidentes” tecnológicos ou como resultado de falência ecológica
generalizada. Tudo isso revela a inanidade do determinismo que liga mecanicamente o
fim do capitalismo à emancipação social. É possível que a pré-história chegue ao fim.
Mas não é certo que principie a verdadeira história humana. Ela pode terminar como
anti-história.2
Não há dúvidas de que é preciso transformar o mundo. Mas, antes disso, talvez
seja necessário realizar algo preliminar e de vital importância: simplesmente conservá-
lo. Faço minhas as palavras de Günther Anders:

“hoje diria que sou um „conservador ontológico‟, pois o que


importa hoje em dia é, antes de tudo, conservar o mundo, não
importa como seja este mundo; e só depois veremos o que
podemos melhorar. Há aquela célebre sentença de Marx: „Os
filósofos apenas interpretaram o mundo de diferentes maneiras;
o que importa é transformá-lo‟. Isto já não é mais suficiente.
Hoje em dia não basta transformar o mundo; o que importa antes
de tudo é conservá-lo. Logo o queremos transformar, e muito,
inclusive de maneira revolucionária. Mas primeiro temos de ser
conservadores, num sentido autêntico, num sentido que não
admitiria nenhum dos homens que se chamam a si mesmo de
conservadores”.3

Talvez seja esse o desafio de nosso tempo: impedir que o planeta seja
aniquilado. Mas não é apenas o “fim horroroso” do colapso ecológico generalizado e da
possível extinção dos seres humanos que nos espreita. Uma perspectiva não menos
sombria é o “horror sem fim” de subsistirmos em meio aos destroços da natureza. A
civilização capitalista está passando e destruindo as possibilidades materiais e
ecológicas de forjarmos um novo modo de produzir e de viver. É possível imaginar uma
2
FAUSTO, Ruy. Marx: lógica e política, tomo I. São Paulo: Brasiliense, 1987. p. 17.
3
ANDERS, Günther. Llamese cobardia a essa esperanza. Bilbao: Besatari, 1995. pp. 84, 85.
13

forma de socialização melhor que a atual sobre um mundo ecologicamente devastado?


Aqui, mais do que nunca, o totalitarismo econômico se faz presente: ou sua prevalência
eterna ou nada! Um louco niilismo. Talvez ainda tenhamos alguma escolha. Talvez
possamos impedir o pior. Mas o tempo escoa rapidamente.
O presente texto é dedicado à escombrologia: ao estudo das ruínas sociais e
ecológicas da civilização capitalista em fim de linha. Parte dele trata de mostrar as
contradições estruturais do sistema a partir do momento em que ele desenvolve um
padrão tecnológico altamente baseado na ciência. Quanto mais o capitalismo se revela
uma forma de socialização obsoleta em função dos potenciais produtivos que ela própria
contribui para criar, mais esse sistema busca encaixar esses potenciais na camisa-de-
força da forma-valor. No entanto, para alargar o seu prazo de validade, esse sistema tem
forjado uma série de fugas para frente. Um desses expedientes consiste na
ficionalização da economia, que garante um pouco de oxigênio para os combalidos
processos de valorização do valor. A administração do horror social e os colossais
dispêndios de dinheiro no complexo militar-industrial consistem em formas crassamente
violentas de conservar a enorme substância social no interior da mesquinha bitola da
socialização capitalista. A outra parte do texto é dedicada ao estudo do desdobramento
da referida contradição no plano das intervenções capitalistas sobre a natureza. Por um
lado, essa contradição se manifesta sob a forma de uma brutal intensificação da
pilhagem ecológica. Quer dizer: como aceleração do consumo do mundo. Por outro
lado, porém, se desdobra de um modo produtivo, mas não menos problemático: como
processo de recriação da natureza. Se até meados do século XX o capitalismo
simplesmente se limitou a se apropriar e transformar a natureza, a partir de então ele
busca franquear todos os limites. Ele passou a querer produzir uma outra natureza. Este
passo não é o contrário de seu impulso destrutivo. Mas o seu complemento. É a
tentativa de fuga para frente desse sistema também no plano material. O presente texto
também é dedicado à apresentação de algumas críticas à tecnologia e à ciência. Termino
esse texto com um excurso sobre o agrocombustível. Longe de ser solução para alguns
dos graves problemas ecológicos de nossa época, o agrocombustível tende a intensificar
ainda mais a já tão pronunciada destrutividade capitalista.
A compreensão dos problemas de nossa época requer estudo e investigação. Isso
é, sem dúvida, importante. Mas não basta. É preciso também uma forte dose de
imaginação. Muito de nossa cegueira resulta da crescente discrepância entre os nossos
feitos e nossa capacidade de representá-los. Conforme observa Günther Anders, o
14

postulado que contribuiria imensamente para reduzir esse lapso é: ampliar a nossa
capacidade de imaginação para que possamos saber o que estamos fazendo.4 Isso é tanto
mais necessário quando a percepção não se encontra à altura daquilo que produzimos.
“A imaginação conscientemente entremeada, ainda que seja ela mesma insuficiente,
percebe mais verdade que a percepção. Necessitamos mobilizar a imaginação
precisamente para seguir estando à altura da empiria, por muito paradoxal que soe. A
imaginação é a „percepção‟ de hoje”.5 O pensamento claudicante, sem imaginação, só
pode ficar para trás em tempos de tão tremendas e espantosas transformações. Esforcei-
me para captar algumas das tendências negativas e destrutivas em curso. Espero que
meu texto possa de algum modo contribuir para impedir o advento do pior.

4
ANDERS, Günther. Llámese cobardia a esa esperanza. Bilbao: Besatari, 1995. p. 80.
5
Id. Ibid. p. 80. “O que hoje é evidência foi outrora imaginação”. BLAKE, William. Provérbios do
inferno. In: O casamento do céu e do inferno & outros escritos. Porto Alegre: L&PM, 2009. p. 22.
15

1. METAFÍSICA REAL CAPITALISTA

O problema da metafísica ainda nos concerne. Mas não como um problema


meramente filosófico, e sim como um problema histórico-social da maior gravidade.
Isso porque o fundamento do mundo concreto-sensível no capitalismo encontra-se num
mundo ideal-abstrato. É exatamente essa característica que faz do capitalismo uma
forma social metafísica: uma metafísica realizada. O capitalismo é a sociedade
metafísica da época moderna.
O capitalismo não é a primeira sociedade a ser dominada por entidades
metafísicas. Houve sociedades dominadas por totens, por deuses da natureza e por
Deus. Tal como as formas sociais precedentes, o capitalismo também é dominado por
entidades fantásticas criadas pelos seres humanos. Mas com uma diferença marcante:
agora a entidade metafísica não está mais situada no além. Pelo contrário. Ela encontra-
se encarnada em coisas sensíveis e concretas: na mercadoria e no dinheiro.
O vil materialismo de nossa época é apenas a forma de existência camuflada de
um rematado idealismo. Por isso, para se compreender essa sociedade, faz-se necessário
investigar essa entidade fantástica que domina a sociedade moderna: a forma do valor
da mercadoria. Não é por mera veleidade que se escolhe esse ponto de partida. Isso se
faz necessário porque o capitalismo está fundado numa abstração social. Tal
procedimento poderia parecer inteiramente deslocado num texto que pretende discorrer
sobre problemas ecológicos. Mas não é o caso. Ele é absolutamente essencial para se
compreender a raiz dos problemas que tanto nos afligem.

1. 1. O mundo invertido

O capitalismo é o mundo realmente invertido. Um mundo às avessas. Por quê?


Porque o fundamento do mundo concreto se encontra numa abstração. E é isso que faz
do capitalismo uma sociedade idealista: o “idealismo realmente existente”.6 Pois há de
fato uma precedência da idéia em relação ao mundo concreto-sensível. Este não é um
pequeno detalhe. Mas sim algo cheio de conseqüências negativas e destrutivas. Por isso

6
KRAHL, Hans-Jürgen. Contribuiçión al Curso sobre Crítica de la Economia Política. Disponível em:
http://antivalor2.vilabol.uol.com.br
16

que tal idealismo deve ser combatido. No entanto, não se trata de um combate
meramente filosófico. Mas sim de empreender a própria transformação da sociedade.
No sistema de Hegel, o mundo concreto é gerado por uma idéia. O Ser constitui
o primeiro momento que, somente após uma tortuosa engrenagem de sucessivas
mediações, gera o mundo material: a natureza e o mundo humano. De fato, tal idéia tem
mesmo algo de muito bizarro. Mas a bizarria diz mesmo respeito à sociedade capitalista.
Pois, no capitalismo, tal como ocorre na filosofia de Hegel, o ponto de partida é mesmo
um conceito, uma abstração: o trabalho abstrato na forma do valor. O problema da
filosofia de Hegel é a sua falta de especificidade histórica e o caráter apologético de sua
filosofia em relação à ordem do capital. E não o ponto de partida de sua filosofia.
Pode-se mesmo dizer que O capital consiste numa espécie de metacomentário da
filosofia de Hegel. Marx, portanto, não nega o idealismo deste. O que ele faz é
contextualizar os conceitos de Hegel nos termos das formas sociais capitalistas. Nesse
sentido, a crítica madura de Marx não supõe uma inversão antropológica “materialista”
da dialética idealista de Hegel, mas é antes, em certo sentido, a justificação dessa
filosofia. Marx buscou mostrar que o núcleo racional dessa filosofia encontrava-se em
seu caráter idealista.7 É verdade, porém, que esse ponto de vista acerca da filosofia de
Hegel foi profundamente alterado no curso das investigações teóricas de Marx.
Em seus escritos juvenis, Marx ainda se conserva, de certo modo, na órbita da
crítica materialista que Feuerbach fez à filosofia idealista de Hegel. Feuerbach havia
criticado o caminho invertido da filosofia de Hegel. Para ele, a filosofia de Hegel era
uma “teologia racionalizada”.8 Principiar com a abstração para apenas então chegar ao
ser sensível lhe parece uma falsificação da verdade. Por que começar pelo abstrato, e
não, imediatamente, pelo sensível? Por que seguir esse estranho e fantasmagórico
itinerário?

“Tão invertido é tudo isso, e mesmo assim o segredo da teologia


se baseia nessa inversão. As coisas na teologia não são apenas
pensadas e desejadas por que elas existem, mas elas existem
porque são pensadas e desejadas. O universo existe porque Deus
o pensou e quis, porque Deus até agora o pensa e quer. A idéia,

7
POSTONE, Moishe. Tiempo, trabajo y dominación: una reinterpretación de la teoría crítica de Marx.
Madri: Marcial Pons, 2006. p. 135.
8
“A doutrina hegeliana, segundo a qual a natureza, a realidade, é posta pela idéia, não é mais do que a
expressão racional da doutrina teológica segundo a qual a natureza é criada por Deus, o ser material por
um ser imaterial, ou seja, abstrato”. FEUERBACH, Ludwig. Tesis provisionales para la reforma de la
filosofia. Barcelona: Labor, 1976. p. 20.
17

o pensamento, não é abstraído de seu objeto, mas o pensamento


é o produtor, é a causa, do objeto pensado por ele. Mas
exatamente esta doutrina (o cerne da teologia e da filosofia
cristã) é uma inversão na qual é invertida a ordem natural”. 9

Assim, contra essa filosofia idealista, Feuerbach propõe uma nova filosofia: uma
filosofia feita em “carne e osso”. Uma filosofia que tem como ponto de partida não o ser
abstrato da especulação filosófica, mas sim aquilo que é indubitável e imediatamente
certo: o ser sensível. Pois somente onde começa a sensibilidade cessa toda a dúvida e
todo o litígio. Ele pretende substituir o processo dialético da constituição dos seres pela
exigência bem mais simples: partir diretamente daquilo que é concreto, empírico e
imediatamente evidente. A nova filosofia de Feuerbach surge como uma antropologia
radical, que procura a verdade por meio da intuição sensível, e não através dos jogos
especulativos da dialética e das fantasias do raciocínio teológico.
Os textos de juventude de Marx permitem ver até que ponto essa crítica de
Feuerbach o influenciou. Em Miséria da Filosofia, ele faz a seguinte observação acerca
da filosofia idealista:

“Devemos nos espantar de que todas as coisas, em última


abstração, pois há abstração e não análise, se apresentem no
estado de categoria lógica? Devemos nos espantar de que,
deixando cair pouco a pouco tudo o que constitui o
„individualismo‟ de uma casa, fazendo abstração dos materiais
de que ela se compõe e da forma que a distingue, chegássemos a
não ter mais que um corpo – pois fazendo abstração dos limites
deste corpo não teríamos logo senão um espaço – de que, enfim,
fazendo abstração das dimensões deste espaço, acabaríamos por
não ver mais senão a quantidade em toda a sua pureza, a
categoria lógica? À força de abstrair assim de todo sujeito todos
os pretensos acidentes, animados ou inanimados, homens ou
coisas, temos razão de dizer que em última abstração chegamos
a ter como substância as categorias lógicas. Assim, os
metafísicos que, fazendo estas abstrações, imaginam fazer
análise, e que, à medida que se afastam cada vez mais dos
objetos, imaginam se aproximar deles a ponto de penetrá-los,
têm, por sua vez, razão de dizer que as coisas aqui da terra são
bordados, cuja talagarça é formada pelas categorias lógicas. Eis
o que distingue o filósofo do cristão. O cristão não tem senão
uma encarnação do Logos, a despeito da lógica; o filósofo não
acaba nunca com as encarnações. Que tudo o que existe, que

9
Idem. Preleções sobre a essência da religião. Campinas, SP: Papirus, 1989. p. 102.
18

tudo o que vive sobre a terra e sob a água, possa, à força de


abstração, ser reduzido a uma categoria lógica; e que, deste
modo, todo o mundo real possa submergir no mundo das
abstrações, no mundo das categorias lógicas – quem se
espantará com isso?10

Tal como Feuerbach, o então jovem Marx critica as hipóstases lógicas de Hegel
como ideologias, como quimeras do pensamento, que falseiam a realidade. Parece-lhe
falsa a filosofia que transforma as coisas da terra numa encarnação de uma abstração.
No entanto, anos depois, durante a redação dos Grundrisse, quando lia “por acaso” a
Lógica de Hegel, Marx adotou um ponto de vista inteiramente diferente acerca dessa
questão. Desde então ele percebeu que aquilo que outrora era considerado por ele como
um problema propriamente teórico da filosofia hegeliana, consistia, pelo contrário,
numa característica real da sociedade capitalista e num problema cuja solução extrapola
ao domínio propriamente teórico. O problema deixa de ser a filosofia idealista de Hegel,
para ser o do idealismo realmente existente da sociedade capitalista. Marx jamais
voltará a criticar as hipóstases lógicas de Hegel como quimeras, ideologias que falseiam
a realidade verdadeira. Pelo contrário. Ele passa a tomar as hipóstases como a descrição
“verdadeira” de uma “realidade falsa”. 11
Se, em Miséria da filosofia, Marx escarnece do procedimento metafísico que faz
das “coisas aqui da terra” meros “bordados”, cuja “talagarça” é formada pelas
categorias lógicas, no seu período de maturidade, ele ultrapassa esse ponto de vista e
compreende que, na sociedade baseada na produção de mercadoria, é a própria ordem
das coisas que se encontra de cabeça para baixo. Nessa sociedade, o próprio mundo
concreto-sensível tornou-se uma forma de manifestação fenomenal de uma abstração.
Há uma passagem que ilustra o quanto Marx captou o caráter realmente místico e
invertido da sociedade capitalista:

“No interior da relação de valor e da expressão do valor que está


incluída nela o abstrato não vale como propriedade do concreto,
do sensível efetivo, mas pelo contrário o sensível-concreto [só
vale] como pura forma fenomenal ou forma de realização efetiva
determinada do trabalho abstrato universal. Por exemplo, o
trabalho do alfaiate que está contido no equivalente casaco não

10
MARX, Karl. Miséria da filosofia. São Paulo: Livraria exposição do livro, s.d. pp. 91, 92.
11
JAPPE, Anselm. As aventuras da mercadoria. Lisboa: Antígona, 2006. p. 180.
19

possui, no interior da expressão de valor da tela, a propriedade


geral de ser também trabalho humano. Pelo contrário. Ser
trabalho humano vale como sua essência, ser trabalho do alfaiate
[só vale] como forma fenomenal ou forma de realização efetiva
determinada desta sua essência [...]. Esta interversão pela qual o
sensível-concreto só vale como forma fenomenal do abstrato
universal em vez de o abstrato universal valer, pelo contrário,
como propriedade do concreto, [tal interversão] caracteriza a
expressão de valor, ela torna ao mesmo tempo difícil a sua
compreensão. Se eu disser: direito romano e o direito alemão
são ambos direitos, isto é evidente. Mas se eu disser: o direito,
este abstrato, se realiza efetivamente no direito romano e no
direito alemão, o contexto torna-se então místico”.12

Portanto, o problema não é mais o fato de o filósofo idealista ter colocado uma
abstração na base do mundo concreto-sensível. E sim de que, no capitalismo, a
abstração ser a essência (negativa) que está na base do mundo concreto. O fato de “o
sensível-concreto” se tornar uma “pura forma fenomenal ou forma de realização efetiva
determinada do trabalho abstrato universal”. Não se trata mais de escarnecer o caráter
idealista da filosofia de Hegel. Desde então Marx deixou de negar a existência de uma
consciência sobreposta aos seres humanos. Ela compreendeu que tal consciência existe.
Mas como um predicado e uma propriedade de seres humanos reais e finitos. 13
O Ser da filosofia de Hegel – a abstração que se faz mundo – existe. Ele não é
uma mera invenção do filósofo idealista. No capitalismo, tal como no sistema de Hegel,
o fundamento da realidade é uma abstração: o trabalho abstrato na forma do valor.
Pode-se dizer que o trabalho abstrato constitui o Ser da sociedade capitalista. No
entanto, tal abstração, diferentemente do que pensava Hegel, não gera o mundo
material. Mas nem por isso ele deixa de ser menos real. Essa abstração é real na medida
em que representa uma força negativa e repressiva que submete e subjuga o real.

12
MARX, apud. FAUSTO, Ruy. Marx: lógica e política, tomo I. São Paulo: Brasiliense, 1987. pp. 101,
102. Portanto, se a teoria que busca dar conta dessa realidade, como é o caso da teoria de Marx, possui
algo de místico, de metafísico, isso se deve ao próprio misticismo da realidade capitalista, e não a um
suposto “defeito” da teoria.
13
“A existência de uma consciência metafísica sobreposta aos humanos – observa Hans-Jürgen Khral – é
uma aparência, mas uma aparência real: o capital. O capital é a existente fenomenologia do espírito, é a
metafísica real. O capital é uma aparência, porque não tem uma real estrutura de coisa, e no entanto
domina aos homens. [...] A consciência metafísica que oprime a nossa individualidade é o capital, o valor
de troca que constitui apenas uma abstração. Hegel é o pensador metafísico do capital, é o primeiro cujo
ponto de vista coincide com a lógica do capital. Sua filosofia é o disfarce idealista e metafísico da forma
da produção”. KRAHL, Hans-Jürgen. Contribuiçión al Curso sobre Crítica de la Economia Política.
Disponível em: http://antivalor2.vilabol.uol.com.br
20

1. 2. A abstração real

A troca de mercadorias encontra-se no centro da socialização capitalista. A troca


de mercadorias é o liame de uma sociedade de produtores privados, autônomos e
independentes. Por isso, o produto de seus diversos trabalhos só pode assumir seu
caráter social por meio da troca. As mercadorias são produtos destinados à troca. Mas as
mercadorias, para além de sua aparente simplicidade, são cheias de “sutilezas
metafísicas” e de “manhas teológicas”. Pois as pessoas envolvidas nas trocas realizam
certas operações que lhes escapam à compreensão: “Não o sabem, mas o fazem”. 14 E
longe de ser um procedimento técnico e neutro, inteiramente anódino, tal prática produz
os mais nefastos resultados.
Produtos diversos servem para satisfazer necessidades diferentes e por isso são
incomensuráveis uns em relação aos outros. Do ponto de vista de suas qualidades
concretas, eles não podem ser comparados entre si, pois não possuem nada em comum.
Por isso, para que esses produtos se tornem passíveis de serem trocados, eles precisam
ser reduzidos a algo que haja neles em comum. E o que há de comum entre eles? O fato
de que são produzidos por intermédio do trabalho humano. Entretanto, tal comparação
não pode ser feita em termos de trabalho concreto. Cada trabalho concreto é
qualitativamente distinto um do outro, e, portanto, não dá para compará-los entre si. O
trabalho de produzir uma camisa é completamente distinto daquele dedicado à produção
de batatas. Portanto, o que há em comum em todos os trabalhos é o puro gasto de
“nervos, músculos e cérebro” despendido no processo de produção. Marx chamou o
trabalho assim reduzido de trabalho abstrato. É somente a partir dessa redução que os
mais diversos produtos tornam-se passíveis de serem mensurados quantitativamente:
por meio do tempo. O tempo de trabalho é, portanto, a substância (abstrata) que
determina o valor da mercadoria.
O trabalho abstrato é uma mera abstração social. Portanto, consiste em algo que
só existe na mente humana – embora isso lhe ocorra de forma inconsciente. Não há
assim qualquer trabalho abstrato realmente “contido” ou “cristalizado” no corpo da
mercadoria. E isso por dois motivos. Em primeiro lugar, porque não existe nenhum
trabalho humano que possa ser despendido de forma puramente abstrata: como puro
dispêndio de energia humana – um trabalho livre de toda determinação. O trabalho
humano só pode ser despendido de forma determinada. É somente desse modo que o

14
MARX, Karl. O Capital, vol I, tomo 1. São Paulo: Abril Cultural, 1983. p. 72.
21

trabalho pode transformar a matéria-prima e lhe dar uma forma útil. E, em segundo
lugar, porque não existe qualquer trabalho abstrato “contido” nos corpos das
mercadorias. O trabalho “contido” é uma contradição. Ele consiste na coagulação de um
processo que já deixou de existir quando o produto ficou pronto.15 Portanto, trata-se de
nada mais nada menos do que uma “projeção” do pensamento sobre coisas concretas e
sensíveis. 16 E é por isso que as mercadorias são “coisas fisicamente metafísicas”: são
coisas sobre as quais se projetam produtos fantásticos do cérebro humano.
Marx chama de fetichista a “representação” do valor da mercadoria. O valor da
mercadoria é um fetiche porque os indivíduos atribuem às coisas algo que só tem
existência em suas mentes. Portanto, na sociedade capitalista, os humanos mediam suas
relações sociais e suas relações com a natureza por meio de algo que não é mais do que
uma ficção. Mas uma “ficção existente”. “Uma ficção que, como falsa consciência, tem
um poder real sobre os homens”. 17 E é por isso que não se pode entender a forma de
consciência como um mero fenômeno superestrutural. Ela é antes algo que pertence à
própria estrutura econômica da sociedade. 18 As formas de consciência são objetivas.
Mas são objetivas porque “são formas de pensamento socialmente válidas e, portanto,

15
“No processo de trabalho a atividade do homem efetua, portanto, mediante o meio de trabalho, uma
transformação do objeto de trabalho, pretendida desde o princípio. O processo extingue-se no produto.
Seu produto é um valor de uso; uma matéria natural adaptada às necessidades humanas mediante
transformação da forma. O trabalho se uniu com seu objetivo. O trabalho está objetivado e o objeto
trabalhado. O que do lado do trabalhador aparecia na forma de mobilidade aparece agora como
propriedade imóvel na forma do ser, do lado do produto. Ele fiou e o produto é um fio”. MARX, Karl. O
Capital, vol I, tomo 1. São Paulo: Abril Cultural, 1983. p. 151.
16
“Para fixar a tela como pura expressão coisificada do trabalho humano, é preciso fazer abstração de
tudo aquilo que faz dela realmente uma coisa. A objetividade do trabalho humano, que é ele próprio
abstrato [...] é necessariamente uma objetividade abstrata, uma coisa do pensamento. É assim que o tecido
do linho se torna uma fantasmagoria. Mas as mercadorias são coisas. O que elas são, elas devem ser à
maneira das coisas, ou mostrá-las nas suas próprias relações de coisas”. Marx. apud. FAUSTO, Ruy.
Marx: lógica e política, tomo I, São Paulo: Brasiliense, 1987. p. 159. “A igualdade de trabalhos toto coelo
[totalmente] diferentes só pode consistir numa abstração de sua verdadeira desigualdade, na redução ao
caráter comum que eles possuem como dispêndio de força de trabalho do homem, como trabalho humano
abstrato. O cérebro dos produtores privados apenas reflete esse duplo caráter social de seus trabalhos
privados sob aquelas formas que aparecem na circulação prática, na troca dos produtos – o caráter
socialmente útil de seus trabalhos privados, portanto, sob aquela forma que o produto de trabalho tem de
ser útil, isto é, útil aos outros – o caráter social da igualdade dos trabalhos de diferentes espécies sob a
forma do caráter do valor comum a essas coisas materialmente diferentes, os produtos de trabalho”.
MARX, Karl. O Capital, vol I, tomo 1. São Paulo: Abril Cultural, 1983. p.72.
17
KRAHL, Hans-Jürgen. Contribuiçión al Curso sobre Crítica de la Economia Política. Disponível em:
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18
Conforme observa Hans-Jürgen Khral: “Se as abstrações devem conquistar uma realidade (e uma
realidade a tem) então Marx deveria chegar à conclusão de que as abstrações, os conceitos e a consciência
são determinações da base”. KRAHL, Hans-Jürgen. Contribuçión al Curso sobre Crítica de la Economia
Política. Disponível em: http://antivalor2.vilabol.uol.com.br
22

objetivas para as condições de produção desse modo social de produção, historicamente


determinado, a produção de mercadorias”. 19
De que modo então seria possível suprimir tal fantasma do pensamento humano?
De modo algum ela poderia ser extirpada por uma mera transformação no plano das
idéias. Uma mera “transformação da consciência equivale a interpretar de modo
diferente o que existe, isto é, reconhecê-lo por meio de uma outra interpretação”.20 Essa
transformação tem de ser sobretudo prática. Se esta forma abstrata só tem existência na
cabeça dos seres humanos, sua origem encontra-se no modo como os humanos se
relacionam entre si. E é portanto somente pela transformação prática das relações
sociais que o fetichismo da sociedade capitalista poderá deixar de existir. É nisso que
consiste o “materialismo” da teoria crítica de Marx. O idealismo da sociedade
capitalista só pode ser suprimido por meio de uma profunda transformação na forma
como os humanos produzem sua vida.
É essa apreciação do idealismo filosófico que permite a Marx comparar os
fenômenos do capitalismo com aqueles que ocorrem no mundo da religião. Tanto no
capitalismo como no mundo da religião os humanos encontram-se dominados pelas
criações de suas mentes. No mundo da religião, “os produtos do cérebro humano
parecem dotados de vida própria, figuras autônomas, que mantém relações entre si e
com os homens”. No mundo das mercadorias, ocorre a mesma coisa, só que agora com
os “produtos da mão humana”:

“O reflexo religioso do mundo real somente pode desaparecer


quando as circunstâncias cotidianas, da vida prática,
representarem relações transparentes e racionais entre si e com a
natureza. A figura do processo social da vida, isto é, do processo
da produção material, apenas se desprenderá do seu místico véu
nebuloso quando, como produto de homens livremente
socializados, ela ficar sob seu controle consciente e planejado.
Para tanto, porém, se requer uma base material da sociedade ou
uma série de condições materiais de existência, que, por sua vez,
são produto natural de uma evolução histórica longa e
penosa”. 21

19
MARX, Karl. O Capital, vol I, tomo 1. São Paulo: Abril Cultural, 1983. p. 73.
20
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 9.
21
MARX, Karl. O Capital, vol I, tomo 1. São Paulo: Abril Cultural, 1983.. p. 76.
23

1. 3. O fim em si do capital

O objetivo do modo de produção capitalista não é a satisfação das necessidades


humanas. Mas sim o valor. Produz-se um determinado artigo porque ele constitui o
“veículo material” da forma abstrata do valor. A coisa concreta é criada porque há nela
um determinado quantum de trabalho humano abstrato “cristalizado” em seu corpo.
Portanto, não se produz mercadorias por amor aos valores de uso, e sim apenas por
causa do valor, da abstração. É nesse sentido que a abstração constitui a “talagarça” do
mundo concreto sensível. As coisas concretas tornam-se, assim, meras formas
fenomenais dessa abstração social. Por isso, pode-se dizer que a abstração, na sociedade
capitalista, é real. 22
Mas não se trata apenas de produzir valor. O valor só pode se conservar por
meio de sua ampliação. Assim, para que a relação social baseada no valor de troca possa
subsistir, ela precisa se ampliar progressivamente. Portanto, o objetivo da produção
capitalista não é apenas produzir valor, mas sim mais-valia. E de que modo o capital
produz mais-valia? Por meio da expropriação de uma parte do valor produzido pelos
produtores. Parte do valor criado durante a jornada de trabalho é consumido pelos
trabalhadores sob a forma de salário. Parte desse valor, porém, fica com os proprietários
dos meios de produção. A expansão e a acumulação de capital estão fundadas na
exploração do trabalho humano. E é nesse sentido que se pode chamar a sociedade
capitalista de “sociedade do trabalho”.
Não é exagero afirmar que todo o capitalismo se resume na fórmula D – M – D‟
(dinheiro, mercadoria, mais dinheiro). Ele não visa nada além disso. Seu único e
exclusivo objetivo é promover a reprodução ampliada do valor. Todo ponto de chegada
é apenas o ponto de partida de uma jornada que não pode encontrar qualquer momento
de repouso. Esse processo só pode sobreviver através de seu avanço contínuo. Por isso,
todo limite deve ser convertido numa barreira passível de ser franqueada. Marx
considera que esse processo termina por se converter num “sujeito automático”. Embora
produzidos pelos seres humanos, as objetivações cegas dos indivíduos geram um
processo social que lhes escapa ao controle. E assim o valor se torna o sujeito de todo o
movimento social:

22
SOHN-RETHEL, Alfred. Trabalho espiritual e corporal: para a epistemologia da história ocidental.
Disponível em: http://antivalor2.vilabol.uol.com.br
24

“Ele [o valor] passa continuamente de uma forma para outra,


sem perder-se nesse movimento, e assim se transforma num
sujeito automático. [...] De fato, porém, o valor se torna aqui o
sujeito de um processo em que ele, por meio de uma mudança
constante das formas de dinheiro e mercadoria, modifica a sua
própria grandeza, enquanto mais-valia se repele de si mesmo
enquanto valor original, se autovaloriza. Pois o movimento, pelo
qual ele adiciona mais-valia, é seu próprio movimento, sua
valorização, portanto autovalorização. Como sujeito usurpador
de tal processo, em que ele ora assume, ora se desfaz da forma
dinheiro e da forma mercadoria, mas se conserva e se dilata
nessa mudança, o valor precisa, antes de tudo, de uma forma
autônoma, por meio da qual a sua identidade consigo mesmo é
constatada. E essa forma ele só possui no dinheiro. Este
constitui, por isso, o ponto de partida e o ponto final de todo
processo de valorização”.23

Tanto os capitalistas como os trabalhadores são meras “personificações” de


certas funções econômicas da sociedade. Os capitalistas são as “personificações do
capital” e os trabalhadores, as “personificações do trabalho para o capital”. A liberdade
dessas personificações consiste em buscar os melhores meios de realização dos
imperativos econômicos pressupostos. As decisões dos indivíduos se encontram
submetidas a um padrão que eles próprios não são capazes de controlar. Tornam-se
sujeitos sujeitados.
A ampliação incessante do valor requer que uma quantidade cada vez maior de
seres humanos seja inserida no processo de produção de mercadorias. A ampliação da
massa de valor pressupõe o dispêndio de uma massa sempre crescente de energia vital
humana – que é também uma “força natural”. O dispêndio de energia humana é o
pressuposto da forma abstrata do valor da mercadoria. 24 Mas esse mesmo processo
exige igualmente a utilização de quantidades sempre crescente de matérias-primas. A
cristalização de maiores quantidades de trabalho humano abstrato requer uma expansão
crescente do “metabolismo com a natureza”. No limite, toda a natureza tem de ser
convertida em simples pressupostos materiais do ilimitado processo de valorização.
Entretanto, esse processo é profundamente transtornado pelo desenvolvimento das

23
MARX, Karl. O Capital, vol I, tomo 1. São Paulo: Abril Cultural, 1983. p. 130.
24
“Não é a realidade biológica da universalidade do trabalho que constitui o trabalho abstrato, mas a
posição dessa realidade, e a posição não é mais biológica. A generalidade em sentido fisiológico [...] não
constitui o trabalho abstrato: ela é apenas a realidade natural pressuposta à (posição) deste. A realidade
social faz com que valha o que era apenas uma realidade natural”. FAUSTO, Ruy. Marx: lógica e
política, tomo I. São Paulo: Brasiliense, 1987. pp. 91, 92.
25

forças produtivas. O avanço tecnológico empurra o capitalismo contra o seu próprio


limite lógico interno: o limite de sua valorização. E, juntamente com ele, contra os
próprios limites materiais e ecológicos da Terra.
26

2. CRISE DO CAPITALISMO

2. 1. Contradição em processo

O capitalismo só pode sobreviver por meio da transformação de quantidades


crescentes de trabalho vivo em trabalho morto (mercadoria e dinheiro). No entanto, essa
forma social move-se contra os seus próprios fundamentos em função do
desenvolvimento tecnológico. Tal desenvolvimento escapa inteiramente ao controle dos
agentes envolvidos. Trata-se de uma dinâmica direcional cega. Esse movimento cego
resulta da concorrência capitalista. Esse fenômeno se verifica na produção industrial.
Quem está na dianteira do desenvolvimento tecnológico obtém vantagens frente aos
demais concorrentes, pois desse modo ele pode auferir um lucro extra, uma vez que se
torna capaz de produzir a mercadoria por um valor individual inferior ao seu valor
social. É esse estímulo econômico que impulsiona os capitalistas à conquista de um
maior desenvolvimento tecnológico.
Mas o desenvolvimento tecnológico não obedece apenas a esse impulso
diretamente econômico. O Estado é parte importante nesse processo de
desenvolvimento tecnológico. Grande parte das pesquisas é patrocinada ou realizada nas
instituições de pesquisa do Estado, tendo como objetivo não o desenvolvimento de
novos meios de produção, e sim a produção de novos meios de destruição. Pode-se
dizer que a concorrência econômica se prolonga na “economia militar”. A concorrência
pelo poder militar entre os Estados – e, em última análise, a própria guerra – consiste
numa continuidade da concorrência econômica por outros meios. A acumulação de
capital exige uma proporcional acumulação de poder político e militar. 25
Essa dimensão do desenvolvimento tecnológico não pode ser negligenciada na
dinâmica do capitalismo, em especial a partir do século XX. Somente os gastos
militares estatais e a mobilização constante para as guerras poderiam impulsionar as
enormes inversões requeridas para promover o desenvolvimento tecnológico no
capitalismo contemporâneo. Essa forma de desenvolvimento tecnológico não se

25
“O processo ilimitado de acúmulo de capital necessita de uma estrutura política de „poder tão ilimitado‟
que possa proteger a propriedade crescente, tornando-a ainda mais poderosa”. ARENT, Hannah. Origens
do totalistarismo: anti-semitismo, imperialismo, totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p.
172.
27

encontra em contradição com a lógica da concorrência econômica. É apenas uma forma


particular de expressão da mesma dinâmica.
A contradição entre a forma social e o desenvolvimento das forças produtivas
encontra-se no centro da socialização capitalista. E é por isso que Marx pode designar o
capitalismo como uma “contradição em processo”. Por um lado, o capitalismo “coloca o
tempo de trabalho como a única fonte e a única medida da riqueza”. Mas, por outro,
“tende a reduzir o tempo de trabalho a um mínimo”. 26

“De uma parte, ele desperta todas as forças das ciências e da


natureza, assim como as da cooperação e da circulação sociais, a
fim de tornar a criação da riqueza independente (relativamente)
do tempo de trabalho utilizado por ele. De outra parte, pretende
medir as gigantescas forças sociais assim criadas pelo padrão do
tempo de trabalho e as encerrar nos limites requeridos para que
o valor já criado se conserve como valor”. 27

A riqueza do capitalismo está baseada no trabalho humano. O trabalho é a


substância do capital. Mas esse sistema não cessa de substituir o trabalho humano por
máquinas cada vez mais sofisticadas. Os aparatos tecnológicos tendem a ocupar
progressivamente o lugar dos seres humanos nos processos produtivos. No entanto, essa
substituição torna-se um problema cada vez mais grave para o capitalismo. Ele nega o
trabalho por meio da tecnologia que ele mesmo contribui para criar. Mas mantém o
trabalho no centro de sua dinâmica.
Mas seria o trabalho algo passível de ser suprimido? Ou consiste o trabalho
numa condição incontornável para existência humana? Torna-se então necessário
definir o significado estrito do termo trabalho.

2. 2. Tecnologia e trabalho

Trabalho não é idêntico à atividade produtiva humana. Ele é apenas uma forma
muito específica de execução dessa atividade. Uma das características mais marcantes
dessa forma de atividade reside no fato de ela ser uma “abstração real”. Isto é: trata-se

26
MARX, Karl. Fondements de la critique de l’economie politique, vol II. Paris: Éditions Anthropos,
1968. p. 222.
27
Id. Ibid. pp. 222, 223.
28

de uma atividade separada de todo o contexto da vida humana. Quando o indivíduo


trabalha, ele só trabalha, e não faz mais nada que isso. Pelo menos, é assim que rege o
princípio estrutural dessa atividade. Nesse sentido, o próprio trabalho abstrato – que
mede o valor das mercadorias – não é mais do que uma abstração de segunda ordem,
uma abstração da abstração, e o trabalho concreto, por sua vez, uma forma de
materialização dessa atividade realmente abstrata:

“Se o trabalho abstrato é a abstração de uma abstração – assinala


Norbert Trenkle – então o trabalho concreto representa apenas o
paradoxo de ser o lado concreto de uma abstração (isto é, da
forma-abstração „trabalho‟). „Concreto‟, apenas no sentido
bastante estreito e limitado, de que mercadorias necessitam de
processos de produção materialmente diferentes”. 28

Portanto, embora tenham utilizado as suas capacidades físicas para criar as


condições de sua própria existência ao longo da história, nem sempre os humanos
trabalharam. Foi somente no capitalismo que surgiu essa forma muito peculiar de
atividade produtiva humana. E é por isso que essa forma atividade pode ser suprimida.
Em qualquer forma social os humanos terão de despender alguma energia física e
mental para promover o seu “metabolismo com a natureza”. Mas isso não significa que
o trabalho mesmo seja uma condição eterna da existência humana. Eles continuarão
trabalhando apenas enquanto sua atividade permanecer submetida à referida forma.
Uma transformação radical da sociedade implica a necessidade de abolir essa forma de
atividade.
Mas o próprio capitalismo se encarrega de negar essa forma de atividade por
intermédio de seu desenvolvimento tecnológico. Pois esse sistema gera um aparato
tecnológico que requer cada vez menos a intervenção dos seres humanos nos processos
produtivos imediatos. Assim, cada vez mais, o “metabolismo com a natureza” se torna
um processo de produção sem trabalho. O desenvolvimento das forças produtivas tem
promovido uma significativa modificação do lugar do trabalho no processo de produção
material. Ele ocupou lugares distintos nas três épocas tecnológicas do capitalismo: a

28
TRENKLE, Norbert. O que é o valor? A que se deve a crise? Disponível em:
http://antivalor2.vilabol.uol.com.br
29

manufatura, a grande indústria e na pós-grande indústria – para utilizar essa designação


de Ruy Fausto.29 Vejamos brevemente em que consistem tais modificações.
Na manufatura, o processo de produção depende da força, da destreza e da
habilidade do trabalhador. Nesse momento, o trabalhador maneja um instrumento que
serve para mediar a sua atividade sobre o objeto. Essa base tecnológica o capitalismo
encontrou pronta, herdando-a da oficina medieval. No entanto, também introduziu
algumas importantes modificações. Uma delas é estritamente formal: o produtor perdeu
sua antiga independência e passou a trabalhar sob o comando do capitalista. 30 Ligada a
essa transformação, há uma outra, relativa à organização do processo de trabalho:
muitos trabalhadores passaram a trabalhar conjuntamente, cada um deles ocupando uma
pequena parcela do processo global. Eles forjam, assim, uma máquina humana,
composta de muitos trabalhadores. Essa divisão das tarefas ampliou imensamente a
produtividade. No entanto, esse aumento de produtividade foi feito a custa de uma
enorme repressão a todo um mundo de impulsos e capacidades produtivas.31
Essa base tecnológica constitui um limite para o sistema, uma vez que, a partir
de certo ponto, a produtividade dificilmente pode ser aumentada. Os limites físicos dos
seres humanos bloqueiam o contínuo desenvolvimento das forças produtivas. Não
obstante, essa base tecnológica não se encontra em contradição com a lógica de
funcionamento do capitalismo, pois está inteiramente baseada na exploração do trabalho
humano.
A manufatura produziu uma revolução na forma de organizar a força de
trabalho. Mas não criou uma base tecnológica. Isso ocorreu somente no segundo
período da produção capitalista: com o advento da grande indústria. Foi exatamente
nesse momento que o capitalismo principiou a “corromper” os seus próprios

29
FAUSTO, Ruy. Marx: lógica e política, tomo III. São Paulo: Ed. 34, 2002.
30
“A natureza geral do processo do trabalho não se altera, naturalmente, por executá-lo o trabalhador para
o capitalista, em vez de para si mesmo. Mas também o modo específico de fazer botas ou de fiar não pode
alterar-se de início pela intromissão do capitalista. Ele tem de tomar a força de trabalho, de início, como a
encontra no mercado e, portanto, também seu trabalho da maneira como se originou em um período em
que ainda não havia capitalistas. A transformação do próprio modo de produção mediante a subordinação
do trabalho ao capital só pode ocorrer mais tarde e deve por isso ser considerado somente mais adiante”.
MARX, Karl. O Capital, vol I, tomo 1. São Paulo: Abril Cultural, 1983. p. 154.
31
“[A manufatura] aleija o trabalhador convertendo-o numa anomalia, ao fomentar artificialmente sua
habilidade no pormenor mediante a repressão de um mundo de impulsos e capacidades produtivas, assim
como nos Estados de La Plata abate-se um animal inteiro apenas para tirar-lhe a pele ou o sebo. Os
trabalhadores parciais específicos são não só distribuídos entre os diversos indivíduos, mas o próprio
indivíduo é dividido e transformado no motor automático de um trabalho parcial, tornando assim a fábula
insossa de Menenius Agrippa, segunda a qual um ser humano é representado como mero fragmento de
seu próprio corpo, realidade”. Id. Ibid. p. 238.
30

fundamentos.32 A grande indústria é a segunda base tecnológica do capitalismo e a


primeira posição material desse sistema. É a primeira base tecnológica posta pelo
capitalismo. Desde o seu advento, o trabalho humano deixou de ser a unidade
dominante do processo de produção e passou a ser progressivamente negado pelo
desenvolvimento tecnológico.
A grande indústria caracteriza-se pela introdução das máquinas nos processos
produtivos. Tal introdução promoveu uma enorme modificação nos processos de
produção. A máquina não é um simples instrumento de trabalho. O instrumento de
trabalho é o mediador da atividade humana sobre o objeto. São os trabalhadores que
usam os instrumentos. Com o surgimento das máquinas, essa relação se inverte. São os
trabalhadores que se convertem em instrumentos das máquinas. Eles tornam-se os
“apêndices” vivos dos monstros mecânicos. Na grande indústria, os trabalhadores
encontram-se materialmente subsumidos ao comando das máquinas. São as máquinas
que se tornam os agentes principais da produção. Assim, o mundo invertido do capital
adquire materialidade. Se o capital já era o sujeito no plano da forma, nesse momento
ele se tornou também o sujeito no plano material. A forma social se materializa quando
o capital adquire seu “esqueleto objetivo”.33
Ocorre aqui uma profunda alteração no “silogismo” do processo de trabalho –
isto é: na forma de articulação entre os termos envolvidos na produção. A relação não é
mais trabalhador – meio de trabalho – matéria-prima, como ocorria na manufatura. A
ordem e a função deles foram profundamente alteradas. Passou a ser máquina –

32
“A posição da forma na matéria é a via do desenvolvimento do sistema, mas esse caminho do
desenvolvimento é também o da corrupção dele. A posição da forma, que assinala a passagem do
capitalismo em geral ao capitalismo em sentido específico [...] é porém ao mesmo tempo, e de imediato, o
ponto de partida da crise do sistema. É como se ele só pudesse funcionar sem crise, se se mantivesse em
descompasso entre forma e matéria, mas enquanto isto ocorre o sistema encontra certos limites. Porém a
matéria enquanto ela é congruente com a forma [...], é a longo prazo incompatível com a forma, se se
pode dizer, precisamente por ser congruente com ela. Se a revolução técnica permite reduzir o valor da
força de trabalho e com isto aumentar a taxa de mais-valia – sempre seguindo a interpretação clássica –,
ela provoca o aumento da composição orgânica do capital, o que determina um movimento tendencial de
redução da taxa de lucro. A matéria sobre a qual a forma se imprime e que é congruente com esta está
assim, e não só a partir de um certo ponto mas imediatamente, embora a contradição não ultrapasse certos
limites, em contradição com a forma. O sistema se „corrompe‟ pela contradição entre matéria e forma”.
FAUSTO, Ruy. Marx: lógica e política, tomo II. São Paulo: Brasiliense, 1987. pp. 64, 65.
33
“Toda produção capitalista, à medida que ela não é apenas processo de trabalho, mas ao mesmo tempo
processo de valorização do capital, tem em comum o fato de que não é apenas o trabalhador quem usa as
condições de trabalho, mas, que, pelo contrário, são as condições de trabalho que usam o trabalhador: só,
porém, com a maquinaria é que essa inversão ganha realidade tecnicamente palpável. Mediante sua
transformação em autômato, o próprio meio de trabalho se confronta, durante o processo de trabalho, com
o trabalhador como capital, como trabalho morto que domina e suga a força de trabalho viva”. MARX,
Karl. O capital, vol. I, tomo 2. São Paulo: Abril Cultural, 1984. pp. 43, 44.
31

trabalhador – matéria-prima.34 Portanto, não é mais o instrumento que deve se acomodar


ao uso do trabalhador. Mas é o trabalhador que tem de se conformar às exigências
colocadas pelas máquinas. E, tal como já havia acontecido no período da manufatura, tal
produtividade acrescida veio acompanhado de mais repressão às faculdades e impulsos
humanos.35
Mas o desenvolvimento tecnológico da produção capitalista não parou por aí.
Em fins do século XX amadureceu e se generalizou uma nova base tecnológica que
alterou profundamente o processo de produção industrial. Essa nova base representa a
terceira base tecnológica do capitalismo e a segunda posição material desse sistema.
Trata-se de uma base tecnológica que está para além do próprio sistema. Embora tenha
sido produzida pelo capitalismo, ela é poderosa demais para ser mobilizada no interior
de um invólucro social tão limitado.
Essa nova base tecnológica se caracteriza pelo fato de o trabalhador se tornar
uma força produtiva praticamente obsoleta no interior dos processos de produção de
mercadorias. A plena efetivação do “princípio da automação” surgido com a introdução
das máquinas no período da grande indústria ganhou um imenso impulso com a nova
geração de máquinas viabilizada pela “aplicação tecnológica da ciência”. Desde então o
processo produtivo assumiu cada vez mais a feição de um “processo natural” e o
trabalhador foi deslocado para a margem do processo de produção, limitando-se a
cumprir a função de supervisor e auxiliar da operação das máquinas. 36
Trata-se aqui de um radical processo de negação do trabalho. Desde então
deixou de ter qualquer identidade entre o “metabolismo com a natureza” e o processo de
trabalho. Grande parte desse metabolismo passou a ocorrer sem a intervenção direta dos
seres humanos. Esse terceiro momento do desenvolvimento tecnológico produz um
“silogismo” que é – do ponto de vista material, e não do ponto de vista formal, pois o

34
“Até a grande indústria, o mediador, o termo médio é o trabalhador; os extremos são o trabalhador
(mais precisamente – para o caso da manufatura – o trabalhador global) e a matéria-prima. Na grande
indústria, o mediador, o termo médio é o trabalhador, os extremos são o sistema mecânico e a matéria-
prima”. FAUSTO, Ruy. Marx: lógica e política, tomo III. São Paulo: Ed. 34, 2002. p. 119.
35
“Enquanto o trabalho em máquinas agride o sistema nervoso ao máximo, ele reprime o jogo polivalente
dos músculos, confisca toda a livre atividade corpórea e espiritual. Mesmo a facilitação do trabalho torna-
se um meio de tortura, já que a máquina não livra o trabalhador do trabalho, mas seu trabalho de
conteúdo”. MARX, Karl. O capital, vol. I, tomo 2. São Paulo: Abril Cultural, 1984. p. 43.
36
“O trabalhador não insere mais, como intermediário entre o material e ele, o objeto natural
transformado em instrumento; ele insere o processo natural, que ele transforma em processo industrial,
como intermediário, entre ele e toda a natureza, da qual se tornou senhor. Mas ele próprio encontra-se
colocado ao lado do processo de produção, ao invés de ser seu agente principal”. MARX, Karl.
Fondements de la critique de l’économie politique, vol II. Paris; Éditions Anthropos, 1968. p. 212.
32

capitalismo ainda subsiste – a negação dos “silogismos”.37 Esta nova base material
levou a contradição que principiou a surgir com o advento da grande indústria ao
paroxismo. Por “excesso de adequação”, o capitalismo criou uma base tecnológica que
empurra o sistema inteiro para uma situação de auto-ruptura interna, pois suprime o
fundamento sobre o qual se apóia: o trabalho.

“Com essa transformação, não é nem o tempo de trabalho


utilizado, nem o trabalho imediato efetivado pelo homem que
aparece como o fundamento principal da riqueza; é a
apropriação de sua força produtiva geral, sua compreensão da
natureza e sua faculdade de dominá-la, logo que se ele se
constituiu em um corpo social; em suma, o desenvolvimento do
indivíduo social representa o fundamento da produção de
riqueza”.38

Desde então o fundamento da riqueza deixou de ser o trabalho humano


despendido nos processos de produção e passou a ser a própria “compreensão da
natureza”: o saber e o general intellect (inteligência coletiva). Os produtos da
inteligência humana passaram a ser muito mais importantes para a criação de riqueza do
que o trabalho humano imediato no processo de produção.39 Assim, a mensuração da
riqueza social por intermédio do dispêndio de tempo de trabalho se tornou um
anacronismo.
O que está em questão aqui não é apenas uma mera desproporção quantitativa
entre o peso do trabalho morto e o do trabalho vivo no processo de produção. Essa

37
“Se a grande indústria aparece como a negação do processo de trabalho, a pós-grande indústria seria a
segunda negação do processo de trabalho, e na realidade a negação da negação. Mas se a grande indústria
representa a posição (material) adequada ao capital no processo produtivo, poder-se-ia dizer também que
a pós-grande indústria representa a segunda posição material. [...] Assim, a pós-grande indústria é ao
mesmo tempo a segunda negação do trabalho como princípio do processo produtivo, e a segunda posição
do capital no processo de produção. [...] O homem não é mais o sujeito do processo de produção, ou
antes, a segunda negação faz com que se rompa a estrutura do processo de produção como processo de
trabalho. O homem é de certo modo „posto para fora”, liberado do processo, mas é assim mesmo que ele
passa a dominar todo o processo. Desse modo, esse terceiro „silogismo‟ é ao mesmo tempo – do ponto de
vista material, não formal, porque na situação considerada o capitalismo subsiste – a negação dos
„silogismos‟”. FAUSTO, Ruy. Marx: lógica e política, tomo III. São Paulo: Ed. 34, 2002. pp. 129, 131.
38
MARX, Karl. Fondements de la critique de l’économie politique, vol II. Paris; Éditions Anthropos,
1968. pp. 221, 222.
39
“O desenvolvimento do capital fixo indica o grau em que o conhecimento social geral, o saber, se torna
uma força produtiva imediata, e, por conseguinte, até que ponto as condições do processo vital da
sociedade estão submetidas ao controle do general intellect e estão remodeladas conforme o mesmo; até
que ponto as forças produtivas sociais não são somente produtos sob a forma do saber, mas ainda como
órgãos imediatos da práxis social, do processo vital real”. Id. Ibid. p. 223.
33

desproporção é inerente ao desenvolvimento das forças produtivas e estava presente


desde o advento da grande indústria. Mas desde o advento dessa nova base tecnológica
verifica-se uma transformação bem mais profunda: uma transformação qualitativa. É a
própria lei do valor que se revela obsoleta e perde a sua funcionalidade. Nesse
momento, a contradição estrutural do capitalismo atinge o cume. “Logo que o trabalho,
sob sua forma imediata, deixou de ser a força principal da riqueza, o tempo de trabalho
deixa de ser sua medida e o valor de troca deixou, portanto, de ser a medida do valor de
uso”.40
Isso não significa que o conhecimento não produz valor. O problema está em
que “ele destrói muito mais ‘valor’ do que ele pode criar”.41 Dito de outro modo: ele
permite economizar muito mais trabalho do que pode arregimentar. No momento em
que a substância comum fundamental das mercadorias passa a ser o conhecimento, as
mercadorias deixam de ser traduzíveis e mensuráveis em termos de unidades abstratas
simples. Nesse momento, a forma do valor perde sua funcionalidade42 e o capitalismo
se torna desmedido43. Quando a criação de riqueza passa a depender muito mais do
conhecimento – e portanto o aspecto qualitativo se torna fundamental –, a mensuração
pelo dispêndio do tempo de trabalho direto no processo de produção imediato se torna
uma forma obsoleta de medir a riqueza criada pela sociedade e de distribuir os seus
frutos. É isto que faz com que o chamado “capitalismo cognitivo” seja idêntico à
própria “crise do capitalismo” em seu sentido mais estrito44: o momento em que suas
contradições estruturais internas tornaram-se dilacerantes e radicalmente explosivas. É a
exacerbação dessa contradição que está na raiz do desregramento do mundo e da
irracionalidade crescente dos dias atuais.
A partir desse ponto, determinar o trabalho dispensado por cada produtor
individual se transforma em algo tão impossível quanto inútil. A troca de unidades de
trabalho perde sua razão de ser e “o roubo de tempo de trabalho alheio, sobre o qual
repousou a riqueza atual, aparece como uma base miserável”. 45 Com efeito, a troca só é

40
Id. Ibid. p. 222.
41
GORZ, André. O imaterial: conhecimento, valor e capital. São Paulo: Annablume: São Paulo, 2005. p.
37.
42
BENSAÏD, Daniel. Marx, o intempestivo: grandezas e misérias de uma aventura crítica. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1999. pp. 494, 495.
43
PRADO, Eleutério. Desmedida do valor: crítica da pós-grande indústria. São Paulo: Xamã: 2005.
44
GORZ, André. O imaterial: conhecimento, valor e capital. São Paulo: Annablume: São Paulo, 2005. p.
37.
45
MARX, Karl. Fondements de la critique de l’économie politique, vol II. Paris; Éditions Anthropos,
1968. p. 222.
34

necessária em circunstâncias em que os produtores encontram-se separados uns dos


outros e só as coisas se encontram socializadas. No entanto, quando a produção depende
antes da “compreensão da natureza”, desenvolvida pela sociedade em seu conjunto, tal
separação dos produtores não encontra mais qualquer base material ou técnica para
continuar prevalecendo. Ela deriva exclusivamente da forma do valor. Quer dizer:
decorre do congelamento da humanidade a uma determinada forma de pensar e de
agir.46

2. 3. A revolução microeletrônica

A tecnologia da microeletrônica é um dos principais produtos da chamada


terceira revolução tecnocientífica principiada em meados do século XX. Um dos feitos
mais importantes da microeletrônica foi a enorme transformação que ela provocou no
mundo do trabalho. Ela viabilizou os meios para o surgimento de um processo industrial
no qual os trabalhadores quase não precisam mais intervir diretamente nele. Eles podem
ficar de fora do processo de produção imediato, limitando-se a controlar as novas
máquinas automáticas.47
O surgimento dos robôs – que nada mais são do que máquinas automáticas
programáveis – constituem uma importante transformação tecnológica. 48 As máquinas
plenamente desenvolvidas contavam com três componentes fundamentais: o motor, a
transmissão e máquina-ferramenta. A microeletrônica tornou possível a criação de um
quarto e revolucionário componente: o controle. O microprocessador é a parte principal

46
Nesse instante, a valorização já não mais ocorre no tempo de trabalho posto no processo de produção.
No entanto, quando a “valorização” se liberta do tempo de trabalho, ela própria deixa de ser valorização.
“Temos assim, observa Ruy Fausto, um „poder‟ que escapa do tempo como medida. O „valor‟ passa a ser
qualitativo, e nesse sentido a „riqueza efetiva‟ não é mais valor (trabalho abstrato cristalizado, medido
pelo tempo), mas „valor negado‟”. FAUSTO, Ruy. Marx: lógica e política, tomo III. São Paulo: Ed. 34,
2002. p. 130.
47
Mas isso não quer dizer que os humanos não mais participem do processo de produção. É apenas a sua
intervenção imediata que é reduzida. Mas ela continua sendo imprescindível de um modo mediato e
indireto: na produção dos conhecimentos e da tecnologia e, também, em escala cada vez menor, na
supervisão das máquinas.
48
O criador da palavra robô foi o escritor tcheco Karel Capek. Nessa língua, a palavra robota significa
trabalhador que exerce um serviço de forma compulsória. Quanto traduzida para o inglês, o termo virou
robot. Uma definição supostamente “oficial” do termo robô foi estabelecida pela Associação das
Indústrias da Robótica (RIA): um robô industrial é um manipulador reprogramável, multifuncional,
projetado para mover materiais, peças, ferramentas ou dispositivos especiais em movimentos variáveis
programados para a realização de uma variedade de tarefas. Mas essa definição corresponde apenas a uma
classe específica de robôs: os robôs manipuladores. Há outros tipos de robôs, capazes de realizar outros
tipos de tarefas: exploração, solda, controle de temperatura etc. que não se enquadram na referida
definição. Por isso é mais adequado definir o robô com um conceito mais amplo. Simplesmente como
uma máquina automática programável. PAZOS, Fernando. Automação de sistemas & robótica. Rio de
Janeiro: Axcel Books, 2002.
35

do controle de uma máquina automática programável. Esse novo componente permitiu


que as máquinas não apenas objetivassem as funções cerebrais ligadas às atividades da
mão humana como também as funções abstratas do cérebro humano. Parte significativa
da manipulação de objetos – que até então só eram possíveis aos humanos, por mais
banal que lhes pareçam tais atividades – puderam ser desempenhadas pelos novos
autômatos. Desde então, as linhas de montagens – que haviam incorporado enormes
contingentes de trabalhadores em grande parte do século XX – foram imensamente
enxugadas. A microeletrônica viabilizou o surgimento de novas formas de organização
do trabalho baseadas na lean production (produção enxuta). Mas o impacto dessa nova
tecnologia vai para além desse setor da economia capitalista. Ela também afetou o setor
de serviços, transformou a agricultura e a pecuária, atingiu todo o setor de extração de
minérios. Teve um enorme impacto no mundo das finanças, viabilizou o mundo do
dinheiro digital, modificou a comunicação e o entretenimento. E também criou novas
armas e novos meios de fazer a guerra.
Aristóteles já havia se deixado se levar pelo sonho da automação total:

“Se cada instrumento pudesse desempenhar a sua função a nosso


mando, ou como que antecipando-se ao que se lhe vai pedir – tal
como se afirma das estátuas de Dédalo ou dos tripés de Hefesto
acerca dos quais o poeta diz „movendo-se por si mesmas entram
na assembléia dos deuses‟ –, e se, do mesmo modo os teares
tecessem sozinhos, e se as palhetas tocassem sozinhas a cítara,
então os mestres não teriam necessidade de ajudantes nem os
senhores de escravos”.49

O sonho de Aristóteles se tornou quase realidade. As novas tecnologias


viabilizaram o surgimento da unmanned factory (fábrica deserta). A famosa fábrica
automatizada japonesa FANUC talvez seja a que mais se aproxima do símbolo da
“fábrica do futuro”. Trata-se de uma fábrica onde robôs fabricam outros robôs durante
24 horas do dia e onde o trabalhador não intervém diretamente na produção. Sua
atuação se restringe à programação, supervisão e reparo das máquinas
computadorizadas em caso de necessidade. Mas este não é um exemplo singular,

49
ARISTÓTELES. Política. Vega: Lisboa, 1988. p. 59. Citado por DE MASI em Desenvolvimento sem
trabalho. São Paulo: Editora Esfera, 1999. p. 14.
36

incapaz de ser generalizado pelo sistema. Indica antes uma tendência que deve
prevalecer cada vez mais no curso do desenvolvimento do capitalismo. 50
A substituição de trabalhadores por robôs é uma tendência que está inscrita na
própria lógica da racionalidade capitalista. Segundo Paul Kennedy, “As vantagens
econômicas do emprego de robôs industriais são hoje esmagadoras, pois o custo de um
robô diminui acentuadamente, e o tempo necessário do investimento diminui de modo
correspondente”.51 Portanto, não se trata de um fenômeno típico do Primeiro Mundo.
Também no Terceiro Mundo às máquinas passam a substituir os trabalhadores.
“Empresas globais estão começando a construir fábricas sofisticadas e instalações de
última tecnologia nos países do hemisfério sul”. 52 Algumas fábricas semelhantes às
fábricas japonesas estão sendo instaladas no Brasil e no México. Eric Hobsbawm
assinala que mais cedo ou mais tarde mesmo o mais barato ser humano tende a se tornar
mais caro do que uma máquina capaz de fazer o seu trabalho. “Quanto mais alta a
tecnologia, mais caro o componente humano de produção comparado com o
mecânico”.53 O “desemprego tecnológico” – “o desemprego resultante da descoberta de
instrumentos que economizam mão-de-obra caminha mais rapidamente do que nossa
capacidade de encontrar novos empregos para a mesma mão-de-obra” –, anunciado por
Keynes nos anos de 1930, tornou-se uma realidade cada vez mais visível nas últimas
décadas do século XX.54 Essa nova “doença” do capitalismo não cessou de se agravar.
Desde o seu surgimento o capitalismo mergulhou em suas Décadas de Crise. Estamos
chafurdando nesse lodaçal. E não há meios de sair dele enquanto perdurar o capitalismo
– com exceção talvez de uma imensa destruição das forças produtivas: uma Terceira
Guerra Mundial?!

50
Ricardo Antunes observa que: “Supor a generalização dessa tendência sob o capitalismo
contemporâneo – nele incluído o enorme contingente de trabalhadores do Terceiro Mundo – seria um
enorme despropósito e acarretaria como conseqüência inevitável a própria destruição da economia de
mercado, pela incapacidade de integralização do processo de acumulação de capital. Não sendo nem
consumidores, nem assalariados, os robôs não poderiam participar do mercado. A simples sobrevivência
da economia capitalista estaria, desse modo, comprometida”. ANTUNES, Ricardo. Adeus ao trabalho?
São Paulo: Cortez; Campinas, SP: Editora da Universidade Estadual de Campinas, 2000.p.59. Mas não é
isso mesmo o capitalismo: uma “contradição em processo”? Benedito de Moraes Neto critica esse “desvio
de olhar” de Ricardo Antunes. Não tem sentido dizer que o capitalismo não pode prescindir do trabalho
vivo “porque isso não lhe faria bem”, como se tratasse de “uma coisa atávica”. MORAES NETO,
Benedito. Século XX e trabalho industrial. São Paulo: Xamã, 2003. p.122.
51
KENNEDY, Paul. Preparando para o século XXI. Rio de Janeiro: Campus, 1993. p. 85.
52
RIFKIN, Jeremy. O fim dos empregos: O declínio Inevitável dos níveis dos empregos e a redução da
força global de trabalho. São Paulo: Makron Books, 1995. p. 226.
53
HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve século XX (1914-1991). São Paulo: Companhia das
Letras, 1994. p. 404.
54
KEYNES, John Maynard. Perspectivas econômicas para os nossos netos. In: DE MASI, Domenico.
Desenvolvimento sem trabalho. São Paulo: Editora Esfera, 1999. p. 95.
37

As novas tecnologias transformaram milhões de seres humanos numa força


produtiva obsoleta. Suas capacidades subjetivas ficaram sem valor de uso para o capital.
Rompeu-se assim o liame que ligava as pessoas entre si e entre elas e os meios de
satisfação de suas necessidades. Desfez-se para muitos milhões de trabalhadores o nexo
trabalho–dinheiro–consumo, que está na base da socialização capitalista. Os seres
humanos que nada mais tem para vender senão a sua força de trabalho ficam assim sem
meios de vida e se instaura uma crise social sem precedentes. Enorme parte da força de
trabalho disponível tornou-se inteiramente não-rentável. Vastos contingentes humanos
passaram a padecer na mais grotesca miséria. Explode o desemprego e todas as formas
de superexploração, subemprego e precarização. A dinâmica capitalista liberta as
pessoas do trabalho. Mas essa libertação ocorre de forma negativa: sob a forma de crise.
Tanto o recrudescimento da exploração – inclusive trabalho escravo – como o
desemprego em massa decorrem da concorrência estabelecida entre os seres humanos e
as máquinas.55
Uma das manifestações dessa transformação tecnológica consiste no fato de que
a criação de trabalho se tornou cara demais.

“Se com cem mil Euros investidos em máquinas de última


geração é possível fazer com que um único trabalhador, mesmo
que se lhe paguem dois mil Euros mensais, produza dez mil
pares de sapatos, para quem não pode investir tão pesadamente
no capital fixo torna-se não rentável empregar trabalho: mesmo
dez trabalhadores pagos a duzentos Euros por mês não
conseguiriam produzir, usando instrumentos arcaicos, mais do
que mil pares de sapatos. Dito de outro modo, para que o
consumo de força de trabalho seja rentável, são necessários
investimentos enormes, coisa que se exprime no fato muito
visível de que um emprego „custa‟ cada vez mais”. 56

A elevação da composição orgânica do capital – a elevação da proporção dos


gastos em meios de produção relativamente ao dispêndio em força de trabalho –

55
“Recordemos que a máquina automática, qualquer que seja nosso pensamento acerca dos sentimentos
que possa ou não ter, é o exato equivalente econômico do trabalho escravo. Qualquer mão-de-obra que
concorra com o trabalho escravo deve aceitar-lhe as condições econômicas. Está claro que isso suscitará
uma situação de desemprego, comparada a qual a atual recessão, e mesmo a depressão de trinta, parecerá
uma brincadeira”. WIENER, Norbert. Cibernética e sociedade: o uso humano dos seres humanos. São
Paulo: Cultrix, 1954. p. 159.
56
JAPPE, Anselm. As aventuras da mercadoria. Lisboa: Antígona, 2006. p. 142.
38

também cria enormes dificuldades para se gerar trabalho por meio dos gastos estatais. O
economista Carlos Lessa assinala que, no patamar tecnológico atual, são necessários
investimentos na ordem de 250 mil dólares para gerar um posto de trabalho de operário.
Se multiplicarmos os cerca de 5 milhões de desempregados das seis principais regiões
metropolitanas brasileiras por esse valor atingiremos a cifra astronômica de cerca de 1,5
trilhão de dólares: um valor equivalente ao PIB atual do Brasil 57 - que é de cerca de 1,48
trilhão de dólares58. Portanto, o volume necessário para a criação de uma sociedade de
pleno emprego no Brasil é exorbitante. E isso porque se está considerando um posto de
trabalho operário. Qualquer outro tipo de trabalho mais qualificado exige um volume
muito maior de recursos. E o que vale para o Brasil vale para o restante dos países. Uma
sociedade do pleno emprego já não é mais viável em qualquer parte do planeta.
Depois de décadas sendo “contestada” pelo boom econômico das Décadas de
Ouro do capitalismo, voltou à cena a “lei geral da acumulação capitalista” – em
particular a tese da expulsão progressiva dos trabalhadores da produção e o
empobrecimento das massas.

“Quanto maiores a riqueza social, o capital em funcionamento, o


volume e a energia de seu crescimento, portanto também a
grandeza absoluta do proletariado e a força produtiva de seu
trabalho, tanto maior o exército industrial de reserva. A força de
trabalho disponível é desenvolvida pelas mesmas causas que a
força expansiva do capital. A grandeza proporcional do exército
industrial de reserva cresce, portanto, com as potências da
riqueza. Mas quanto maior esse exército de reserva em relação
ao exército ativo de trabalhadores, tanto mais maciça a
superpopulação consolidada, cuja miséria está em razão inversa
do suplício de seu trabalho. Quanto maior, finalmente, a camada
lazarenta da classe trabalhadora e o exército industrial de
reserva, tanto maior o pauperismo oficial. Essa é a lei absoluta
geral, da acumulação capitalista”.59

57
LESSA, Carlos. Entrevista. In Jornal dos Engenheiros, abril de 2006. Mesmo o volume total de
recursos mobilizados pelo PAC em 4 anos - cerca de 500 bilhões de reais (contando as estimativas de
investimento privado também) - é insuficiente. O cálculo burguês do pleno emprego deve ser
problematizado. A validade da equiparação keynesiana entre investimento e emprego naufragou. Mesmo
os maiores investimentos não geram emprego ou geram muito pouco em relação ao volume despendido.
Na maior parte das vezes geram mais “racionalização” do que propriamente “expansão” dos empregos.
58
Dado fornecido pelo Fundo Monetário Internacional. World Economic Outlook Database, October
2009.
59
MARX, Karl. O Capital, vol 1, tomo 2. São Paulo: Abril Cultural, 1984. p. 209.
39

Marx não se enganou acerca desse terrível mal da civilização capitalista. O


capitalismo passou a repelir com mais velocidade do que integrar. Não há surgimento de
novos mercados que impeça essa tendência de se impor. A produção de riqueza tem de
conviver com a ampliação da massa de deserdados da socialização baseada no valor.
Agora o “excesso de civilização” tornou-se permanente.60 A mediação social pelo
trabalho tornou-se algo restrito demais em virtude das novas forças produtivas baseadas
na microeletrônica. Do ponto de vista material, o trabalho foi empurrado para as
margens do sistema, enquanto, no plano da forma, encontra-se no seu centro. Ele é a
única medida de riqueza e o meio de a maioria das pessoas ganharem o dinheiro que
lhes garante o acesso aos meios de vida dos quais carece. Mas os alicerces desse edifício
estão se esboroando. Essa contradição entre as exigências da forma social e a realidade
material produção gera uma situação altamente explosiva.

2. 4. Limite lógico do capital

O capitalismo é uma “contradição em processo”, visto que depende da


mobilização crescente do trabalho vivo, mas estimula um desenvolvimento econômico
que tende a substituir trabalhadores por máquinas. Este sistema teria entrado em colapso
há muito tempo se ele não conseguisse promover uma série de sucessivas fugas para
frente em relação a sua contradição de base. Sempre que as inovações tecnológicas
contribuíram para criar mercados suficientemente grandes para incorporar massas
crescentes de trabalhadores nos processos de produção de mercadorias, esse sistema
conheceu um período de expansão econômica. Todavia, quando as inovações

60
O “excesso de civilização” decorre das contradições inerentes do capitalismo. Nessa forma social, o
desenvolvimento das forças produtivas tende a se tornar incompatível com os limites estreitos da forma
social. Assim, a perpetuação da forma social em questão requer a destruição, de tempos em tempos, de
parte de suas forças produtivas – o que inclui os próprios seres humanos. Para Marildo Menegat, “Essa
face bárbara do capitalismo não é mais do que um elemento necessário para a sua continuidade e,
diferentemente dos períodos anteriores, é a primeira vez que a destruição das forças produtivas faz parte
do próprio modo de produção – o que demonstra por si só a irracionalidade dessa estrutura social. A
valorização do capital, como forma abstrata da sociabilidade, torna-se cada vez mais, pela necessidade da
sua realização, uma forma irracional de associação, logo, do ponto de vista do conjunto da humanidade, e
não apenas do capital, bárbara”. No entanto, a mera destruição das forças produtivas não é o único modo
por meio do qual o capitalismo lida com o seu “excesso de civilização”. Desde a crise de 1929, tem
havido um esforço de evitar a intensidade destrutiva concentrada das crises. Essa destruição foi então
distribuída em doses menos visíveis e intermitentes, espalhadas pelo cotidiano, em inúmeras formas de
violência. Uma destruição que se apresenta tanto sob a forma da danificação dos seres humanos pela
Indústria Cultural – e que não é pouca coisa – e pelas várias outras formas de manifestações, como pelo
robustecimento do sistema punitivo, “cuja função é „ordenar‟ o caos resultante da continuidade dessa
forma de sociedade em decomposição”. MENEGAT, Marildo. O olho da barbárie. São Paulo: Expressão
Popular, 2006. pp. 31-34.
40

tecnológicas contribuíram mais para a racionalização e, portanto, a repulsão do trabalho


vivo na produção de mercadoria, o sistema mergulhou em crise.
Diferentemente de todas as inovações tecnológicas anteriores, a microeletrônica
é uma tecnologia da racionalização por excelência. Isso porque ela repulsa trabalhadores
numa velocidade muito maior do que os produtos por ela criados podem absorver. A
microeletrônica contribui diretamente para criar uma série de produtos: chips, celulares,
computadores etc. Mas os postos criados por ela são muito menores do que sua
utilização no mundo do trabalho. Mesmo porque esses novos setores já surgiram com a
aplicação massiva da microeletrônica em seus processos produtivos. E é por isso que
não se pode de modo algum esperar que essa tecnologia proporcione qualquer boom
econômico. Não se pode esperar que a microeletrônica fomente um novo arranque para
a acumulação de capital. 61 Nem mesmo a mais impiedosa exploração da força de
trabalho pode livrar o capitalismo desse problema. O aumento da mais-valia relativa e
da mais-valia absoluta não pode reverter essa situação.62 Isso porque a repulsão dos
trabalhadores promovida pela força produtiva baseada na microeletrônica faz a própria
massa de valor entrar em declínio. 63
Essa mutação tecnológica consiste no elemento mais importante para explicar a
crise do capitalismo que irrompeu em fins do século XX. O capitalismo mergulha numa
nova etapa de sua história. O momento em que ele atingiu seu limite lógico interno: o
limite de sua própria lógica de funcionamento – embora isso não implique a explosão
ou implosão imediata do todo, isto é, não é idêntico ao seu limite histórico. E é por isso
que nem mesmo a mais impiedosa exploração da força de trabalho pode livrar o
capitalismo desse problema. Nem o aumento da mais-valia relativa nem o da mais-valia
absoluta são suficientes. Agora é a massa de valor produzida que diminui. Portanto, não
existe a equação inovação tecnológica=boom econômico. Se as inovações tecnológicas
passadas levaram o capitalismo a se expandir, isso se deve pelo modo muito específico

61
LOHOFF, Ernst. Fughe in avanti: crisi e sviluppo del capitale. http://www.krisis.org/lohoff_fughe-in-
avanti.html
62
Mais- valia absoluta é aquela que é produzida pelo prolongamento do dia de trabalho. Mais-valia
relativa é aquela que decorre da contração do tempo de trabalho necessário e da correspondente alteração
na relação quantitativa entre ambas as partes componentes da jornada de trabalho, ou seja, o tempo de
trabalho necessário e o tempo de trabalho excedente.
63
“Aqui chegamos ao limite interior absoluto do modo de produção capitalista. Tal limite não reside na
penetração capitalista completa no mercado mundial (isto é, na eliminação das esferas não capitalistas de
produção) – como acreditava Rosa Luxemburg – nem na impossibilidade definitiva de valorizar o capital
total acumulado, mesmo com um volume crescente de mais-valia, como julgava Henryk Grossmann.
Prende-se ao fato de que a própria massa de mais-valia diminui necessariamente em resultado da
eliminação do trabalho vivo do processo de produção, no decorrer do estágio final de mecanização-
automação”. MANDEL, Ernest. O capitalismo tardio. São Paulo, Abril Cultural, 1982. pp. 145, 146.
41

dessa transformação. Não consiste num mecanismo automático do sistema. A produção


fordista permitiu a mobilização de contingentes enormes de trabalhadores. A produção
baseada na microeletrônica não pode fazer o mesmo. Nem mesmo a diminuição dos
custos da tecnologia pode favorecer ao arrefecimento dessa dinâmica de crise – uma vez
que serviria para diminuir o valor dos elementos do capital constante e, assim, diminuir
a queda na taxa de lucros. Pelo contrário. Ela tende a intensificá-la ainda mais, visto que
seu barateamento favorece a sua onipresença. A teoria de Marx de que a utilização da
tecnologia baseada no conhecimento científico levará a própria destruição da sociedade
baseada na exploração do trabalho adquire agora um substrato empírico.
A nova base tecnológica amplia o tempo livre da sociedade. Mas o capitalismo
não é capaz de reconhecer a necessidade de instauração de uma nova medida da riqueza.
Essa nova realidade não é levada em conta. É o contrário que ocorre: busca-se medir os
novos potenciais com base no antigo padrão de ação e de pensamento. Aqui, mais do
que em qualquer outra situação, os vivos são assombrados pelo que está morto. É todo
um mundo de tormentos que emerge da tremenda desproporção que emerge. O
capitalismo perde assim toda a sua razão de ser e fica completamente sem lastro –
exceto a letargia do condicionamento e o fato de as pessoas terem se tornado incapazes
de inventar um outro modo de vida social.
42

3. FUGAS PARA FRENTE

3. 1. Capital fictício

O capital atingiu o seu limite lógico interno no momento em que se tornou


estruturalmente incapaz de transformar quantidades crescentes de trabalho vivo em
trabalho morto nos processos de produção de mercadorias. Mas esse não é o seu limite
histórico. Isso porque o capital pode “sobreviver a si mesmo”. Ele pode subsistir para
além de seus próprios limites estruturais internos. Até certo ponto, ele é capaz de
“decolar” de seus próprios fundamentos. A ficcionalização da economia – sobretudo por
meio do crédito – tem consistido num dos principais expedientes para alongar a
sobrevida do capital.
As barreiras erguidas pelo capital ao seu próprio desenvolvimento são superadas
pela sua oferta ilimitada de crédito. Num contexto de crise, o crédito é o expediente que
permite irrigar as suas engrenagens capitalistas, forçando a sua ativação e empurrando-
as até os seus limites extremos. O crédito amplia a capacidade de consumo das pessoas
por meio do endividamento, cria condições de investimento, quando há capacidade
ociosa nas empresas, fornece o dinheiro ao Estado para despender em atividades
improdutivas e destrutivas, em assistência social etc. Portanto, restitui temporariamente
as condições capazes de colocar a máquina econômica em funcionamento.
O crédito está embrionariamente “contido” na estrutura elementar da
mercadoria. A mediação monetária separa a venda da compra porque permite adiar o
pagamento.64 Trabalho e dinheiro são diferentes estágios do mesmo processo de
valorização. Mas podem não coincidir. O dinheiro pode se multiplicar mais rápido que o
trabalho morto. Este fator cria, assim, a ilusão de que o dinheiro tem o poder místico de

64
“Com o desenvolvimento do comércio e do modo de produção capitalista, que somente produz com
vista à circulação, essa base naturalmente desenvolvida do crédito é ampliada, generalizada e
aperfeiçoada. O dinheiro funciona aqui, em geral, apenas como meio de pagamento, isto é, a mercadoria é
vendida não contra dinheiro, mas contra uma promessa escrita de pagamento em determinado prazo. Para
maior brevidade, podemos reunir todas essas promessas de pagamento na categoria geral de letras de
câmbio. Até o dia do vencimento e pagamento, essas letras de câmbio circulam por sua vez como meio de
pagamento; e elas constituem o dinheiro comercial propriamente dito. À medida que, por fim, elas se
anulam mutuamente por compensação entre crédito e débito, funcionam absolutamente como dinheiro.
Assim como esses adiantamentos recíprocos dos produtores e comerciantes entre si constituem a base
propriamente dita do crédito, seu instrumento de circulação, a letra de câmbio, forma a base do dinheiro
de crédito propriamente dito, das notas de banco etc. Estes baseiam-se não na circulação monetária, seja
de dinheiro metálico, seja de papel-moeda do Estado, mas na circulação de letras de câmbio”. MARX,
Karl. O capital, vol. III, tomo 1. São Paulo: Abril Cultural, 1983. p. 301.
43

crescer por si só, sem a mediação de um processo produtivo no qual fosse consumido
trabalho. O juro monetário, em que na aparência se passa diretamente do dinheiro a uma
quantidade superior de dinheiro (D-D‟, sem a mediação de M, da mercadoria), aparece à
consciência comum como a verdadeira forma de lucro. É o momento em que “a relação-
capital atinge sua forma mais alienada e mais fetichista”. 65 No entanto, dinheiro “bom”
é aquele que resulta de um processo bem sucedido de valorização do valor operada pelo
trabalho. O dinheiro que se baseia exclusivamente na confiança – cuja forma principal é
o crédito – tende a se desvalorizar.
Durante muito tempo o dinheiro guardava lastro com a substância trabalho. No
entanto, a abolição do padrão ouro em 1971 – que ocorreu como conseqüência do fato
de que o volume de créditos em circulação ultrapassarem imensamente a quantidade de
ouro existente – desarticulou o último dispositivo de segurança do sistema. A partir
desse momento tornou-se possível uma multiplicação sem precedentes de dinheiro sem
lastro em trabalho morto.
Marx apresenta o conceito de capital fictício no terceiro livro de O Capital para
designar o capital que se baseia exclusivamente na especulação e na expectativa de
ganhos futuros.66 Entretanto, no tempo em que Marx desenvolveu esse conceito, o
capital fictício era apenas um epifenômeno que acompanhava as crises econômicas
reais. Precisou passar algumas décadas para que o capital fictício ganhasse impulso e se
tornasse num dos principais motores da economia. Atualmente, o capital especulativo,
fictício e global atingiu cifras astronômicas, de muitos trilhões de dólares, superando o
PIB das maiores economias do planeta. E uma vez atingido tal patamar, o processo de
transformação de dinheiro em mais dinheiro só pode alimentar-se de si mesmo. Não há,
portanto, qualquer possibilidade de o excedente extraído do trabalho humano oferecer o
montante de riqueza necessária para que esse gigante possa se reproduzir. Desde então,
observa Lauro Campos, “o trabalho humano se tornou desprezível, a atividade humana
real não é capaz de se ligar ao mundo imaginário, fantástico, irreal, para sustentá-lo. [...]
só a entrada de mais dinheiro fictício é capaz de alimentar e reproduzir a ficção”.67 De
que modo essa riqueza pode ser gerada? Pela criação de dinheiro pelo Estado, através da
impressão de papel moeda, ou pelos outros atores econômicos, sob a forma de ações,
obrigações, empréstimos etc.

65
MARX, Karl. O capital: crítica da economia política, vol. III, tomo 1. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
p. 293.
66
Cf. MARX, Karl. O capital, vol. III, tomo 1. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
67
CAMPOS, Lauro. Crise Completa: a economia política do não. São Paulo: Boitempo, 2001. p. 319.
44

Alguns indicadores mostram de forma muito veemente a enorme hipertrofia do


capital fictício nas últimas décadas do século XX. Um dos mais expressivos é o índice
Dow Jones. Desde sua introdução, em 1897, o índice cresceu sincronicamente com a
economia estadunidense, apesar de oscilações passageiras. Foi preciso 66 anos até que
ele atingisse os 1000 pontos. Apenas em 1982 essa barreira foi estavelmente superada.
Nos 13 anos posteriores o índice quadruplicou. Em 1996 atingiu os 6000 pontos e, em
1999, alcançou a marca dos 11000 pontos. Em menos de 20 anos o índice cresceu
1100%, enquanto, no mesmo período de tempo, o PIB dos EUA não cresceu 50%. 68
Portanto, se até o início da década de 1970 a especulação financeira seguia mais ou
menos o ritmo e as dimensões da acumulação real, daí em diante os movimentos do
dinheiro se descolaram dos processos de produção de mercadorias e jamais poderão
voltar a acompanhar os seus passos.
O mesmo ocorre com os Estados. Até a Primeira Guerra Mundial os orçamentos
estatais permaneciam mais ou menos equilibrados. Entretanto, desde então, os Estados
passaram a se endividar cada vez mais para poderem assegurar as condições infra-
estruturais necessárias às economias nacionais. 69 Mas foi a partir das últimas décadas do
século XX que o endividamento passou a crescer de forma muito veloz. O crescimento
da dívida pública dos Estados Unidos fornece o melhor exemplo dessa dinâmica. Ao
contrário do que ocorria na década de 1930, quando os gastos do governo dos Estados
Unidos baseavam-se num nível muito baixo de endividamento, a partir de 1940, eles
passaram a demandar um crescente endividamento do Estado. Em 1940, a dívida desse
país estava em cerca de 50 bilhões de dólares. Trinta e cinco anos depois ela tinha
decuplicado e atingido a cifra de meio trilhão de dólares. Na virada do século aumentou

68
LOHOFF, Ernest. Fughe in avanti: crisi e sviluppo del capitale. Disponível em
http://www.krisis.org/lohoff_fughe-in-avanti.html
69
“Do ponto de vista da economia de mercado, capitalista, real, a dívida pública na verdade é um
paradoxo. Pois a única fonte de recursos real que o Estado possui, do ponto de vista sistêmico, são os
impostos. Ele precisa, assim, tributar os lucros reais de mercado ou rendimentos do trabalho. Mas as
obrigações estatais como infra-estrutura, setores sociais, ou mesmo armamentos, faz tempo que
alcançaram uma dimensão que não pode mais ser coberta só com os impostos. [...] Esse processo iniciou-
se com o fim da 1ª Guerra, teve continuidade com o keynesianismo e transbordou finalmente na década
de 80. Existem, de fato, contra-campanhas monetárias, mas é fácil constatar em países como a Grã-
Bretanha ou os EUA, que tentam reduzir a dívida pública, que isso não funciona. Não precisariam apenas
paralisar apenas a maior parte da indústria de armamento, os serviços do estado social e a infra-estrutura,
mas muito mais, pois de 40 a 50% da população em todos os Estados modernos já dependem direta ou
indiretamente da dívida pública”. KURZ, Robert. Com todo vapor ao colapso. In: Com todo valor ao
colapso. Juiz de Fora, MG: Editora UFJF-PAZULIN, 2004. pp. 36, 37.
45

umas dez vezes, alcançando a marca de cinco trilhões de dólares. E em pouco menos de
uma década é superior a dez trilhões de dólares.70
A dívida pública das principais economias capitalistas é de mais de 25 trilhões
de dólares – 14 vezes mais do que a soma da dívida externa pública dos 165 países ditos
em desenvolvimento. Trata-se de uma espécie de bomba relógio preparada para explodir
mais cedo ou mais tarde. Esse mecanismo explosivo fica bastante visível quando
estabelece a comparação entre o crescimento da dívida pública e o tamanho do produto
interno bruto (PIB) do país. Projeções recente feitas pelo Fundo Monetário
Internacional (FMI) em Perspectivas da Economia Mundial (de abril de 2009) não
deixam dúvida acerca do problema da dívida no centro do capitalismo mundial. Prevê-
se que, entre 2007 e 2010, a dívida pública bruta, como percentagem do PIB, salte de
63% para 97% nos EUA; de 64% para 87%, na Alemanha; de 64% para 80%, na
França; de 44% para 73%, no Reino Unido; de 188% para 277%, no Japão. Projeções
para um período mais longo apontam para um ciclo de endividamento persistente: a
dívida pública em 2014 atingiria 107% nos EUA; 91% na Alemanha; 90% na França;
88% no Reino Unido e 234% no Japão.71 Enquanto o crescimento da dívida era
acompanhado por um forte crescimento econômico, o problema da dívida não se
revelava tão grande. No entanto, a coisa mudou de figura logo que a dívida pública
passou a crescer muito mais rapidamente que a economia.
Todo esse dinheiro sem lastro deveria redundar numa tremenda hiperinflação.
No entanto, tal coisa não ocorre porque esse dinheiro permanece “resguardado” nas
estruturas financeiras. Entretanto, logo que se passe a exigir o pagamento real das
dívidas, a “bolha” arrebentará e provocará falências em cadeia. O estouro da bolha
provocará um impacto muito mais devastador do que a crise de 1929. Ela revelará o fato
de que a acumulação de capital havia praticamente cessado e a economia real tinha se

70
Em 1940, a dívida pública dos Estados Unidos – na casa dos 50 bilhões de dólares – correspondia a
53% de seu PIB. Em 1945 – por conta dos gastos militares na Segunda Guerra Mundial – a dívida pública
atingiu a cifra de cerca de 260 bilhões de dólares, passando a quase 120% do PIB. Durante várias décadas
o crescente aumento da dívida foi acompanhado por uma redução da proporção entre o montante da
dívida pública e o PIB: 96,9 % em 1950, 58% em 1960, 39,5% em 1970, 35,4% em 1980. Statitical
Abstract of The United States, 1981. p. 245. In: CAMPOS, Lauro. Crise Completa: a economia política
do não. São Paulo: Boitempo, 2001. p. 285. No entanto, nas últimas décadas, devido ao vertiginoso
aumento da dívida pública, esse movimento se inverteu, transformando-o num grave problema para
economia mundial.
71
WERNECK, Rogério L. Furquim. Testando os limites da dívida pública. O Estado de São Paulo,
01/05/2009. Disponível em: http://www.eagora.org.br/arquivo/testando-os-limites-da-divida-publica/
46

tornado um mero apêndice do capital fictício hiperinflacionado.72 Trará à luz do dia o


fato de que há tempos Estados, empresas e particulares estão vivendo a crédito. 73
Mostrará, enfim, que era o capital fictício que estava fornecendo o oxigênio para a
“atmosfera rarefeita”74 dos exauridos processos de valorização de capital. E é
exatamente por esse motivo que não se podem considerar os movimentos loucos do
dinheiro como a causa das perturbações econômicas contemporâneas. A economia não
poderia funcionar melhor se tais excessos fossem abolidos. É o contrário que ocorreria
se essa muleta lhe fosse arrancada: deixaria de funcionar imediatamente. Portanto, não
há qualquer sentido promover uma falsa e superficial contraposição entre um capital
produtivo bom e um capital fictício mau. Ambos constituem momentos intimamente
articulados de um mesmo processo. Longe de representar a origem de todo mal, é o
capital fictício que está sustentando os farrapos da falsa normalidade.

3. 2. Economia de guerra permanente

O capitalismo está intimamente ligado às guerras. Sua origem encontra-se numa


retumbante força destrutiva: a revolução militar das armas de fogo. 75 Ele ascendeu e se
expandiu pelo globo pela força das armas. Toda essa destrutividade recrudesceu com o
amadurecimento desse sistema. Não foi por acaso que o século XX foi o século mais
violento da história da humanidade. O mais importante, porém, é que o próprio lugar da
guerra foi alterado. Durante muito tempo, produziu-se armas e mobilizou-se forças

72
“A derrocada da estrutura financeira efetivar-se-á apenas após um certo período de incubação. Mas terá
conseqüências catastróficas pois ver-se-á então que a acumulação real já terminara há muito. [...] os
movimentos loucos do dinheiro não são a causa, mas sim a conseqüência das perturbações na economia
real. [...] Na realidade, a economia deixará simplesmente de funcionar logo que lhe tenham sido retiradas
as muletas da especulação. Com efeito, depois do arrebentamento da bolha financeira, ver-se-á que era
precisamente ela que durante um certo período escondia o fato de que a acumulação de valor tinha já
atingido o seu limite histórico”. JAPPE, Anselm. As aventuras da mercadoria. Lisboa: Antígona, 2006.
pp. 151, 152. “Não podemos mais imaginar (e ninguém sabe ou seria capaz de calcular isso em valores
exatos) qual é a dimensão que este capital especulativo fictício assumiu desde os anos 80, que hoje é uma
coisa gigantesca. Comparando-se a situação atual com a crise de 29, a crise financeira daquela época e a
desvalorização atual do capital especulativo parecem um pequeno acidente de trânsito. Para fazer uma
comparação mais visual: se essa bolha especulativa de hoje em dia explodir, isso seria, em relação à crise
mundial de 29, como comparar a queda de alguém do qüinquagésimo andar com alguém caindo no andar
térreo”.Com todo vapor ao colapso. In: Com todo valor ao colapso. Juiz de Fora, MG: Editora UFJF-
PAZULIN, 2004. p. 34.
73
Basta lembrar que a dívida mundial - somadas as dívidas dos Estados, das empresas e das famílias –
ultrapassa atualmente a casa dos 60 trilhões de dólares. Só nos EUA, as dívidas passam os 36 trilhões de
dólares. PESCHANSKI, João Alexandre. Dívida, doença crônica das nações. Agência Latinoamericana
de Informação. Disponível em: http://alainet.org/active/10359&lang=es
74
Cf. MENEGAT, Marildo. O olho da barbárie. São Paulo: Expressão Popular, 2006. p. 12.
75
Cf. KURZ, Robert. A origem destrutiva do capitalismo. In: Os últimos combates. Petrópolis, RJ:
Vozes, 1997.
47

militares porque havia guerras. Com o agravamento das contradições estruturais do


capitalismo, passou-se, cada vez mais, a se gerar guerras – frias ou quentes – com meios
de garantir a produção de armas e a mobilização militar. Este consiste num método
singularmente brutal e destrutivo de encaixar os potenciais produtivos acumulados sob a
camisa de força da valorização do valor.

***

Há tempos que o capitalismo se ressente com seu “excesso de civilização”.


Desde as primeiras décadas do século XX que as forças produtivas desse modo de
produção se chocavam com os estreitos limites de suas relações sociais. As duas
Guerras Mundiais – ou a Guerra Mundial de 31 anos – serviram para expurgar uma
imensa quantidade de riqueza material: de mercadorias, de forças produtivas e de seres
humanos. Foram manifestações singularmente brutais dos “métodos bárbaros”
empregados pelo capitalismo com o fito de encaixar o conteúdo concreto na forma
social. 76 No entanto, em virtude do enorme desenvolvimento das forças produtivas – em
grande medida impulsionados pela própria economia de guerra – exigiram que esse
procedimento destrutivo fosse internalizado e se tornasse um mecanismo regular e
permanente do modo de produção capitalista. A conversão crescente dos potenciais
produtivos em potenciais destrutivos é uma das mais sobejas expressões das
contradições estruturais do capitalismo.
O complexo militar-industrial consiste numa das principais válvulas de escape
do capitalismo na segunda metade do século XX. Foi ele que permitiu sorver uma
enorme massa de capacidades produtivas e de meios de consumo que, de outro modo,
ficariam sem uso, inviabilizando o funcionamento da máquina de acumulação
capitalista. O vultoso dispêndio de dinheiro no complexo militar-industrial não apenas
livrou o capitalismo da crise econômica principiada na década de 1930 como tornou
possível o boom econômico e o “pleno emprego” dos chamados “trinta anos gloriosos”.
Sem as guerras e a preparação para as guerras não haveria os “áureos” dias do
capitalismo no século XX.77

76
Cf. MENEGAT, Marildo. Depois do fim do mundo: a crise da modernidade e a barbárie. Rio de
Janeiro: Relume Dumará: FAPERJ, 2003. p. 213.
77
“Os 30 anos subseqüentes à Segunda Guerra Mundial, com o regresso da expansão capitalista ficaram
conhecidos como a Idade de Ouro do capitalismo. Impulsionada primeiramente pela guerra da Coréia em
1950 e depois pelo estabelecimento da Guerra Fria, a retomada da economia de guerra foi um dos fatores
48

István Mészáros lembra que todas as tentativas anteriores de ultrapassar a crise


pelas estratégias combinadas da “administração da demanda” e de intervenções do tipo
“New Deal” falharam miseravelmente como medidas para solucionar os problemas do
desemprego em massa e da depressão econômica. É verdade que os primeiros passos
para encontrar a solução do problema da superprodução por meio dos dispêndios
militares já haviam sido ensaiados antes da Primeira Guerra Mundial. No entanto, foi
somente após a Segunda Guerra Mundial que esse expediente passou a ser adotado de
forma generalizada. O exemplo do milagre econômico pós-1933 de Hitler – que
cumpriu as promessas de solução do problema do desemprego por meio da economia de
guerra – foi seguido e adaptado às instituições liberal-democráticas do capitalismo do
ocidente.78 Os pequenos paraísos artificiais em alguns rincões do mundo – e mesmo
assim para uma minoria de pessoas – foram conquistados por meio de um absurdo
desperdício de riquezas materiais e de vidas humanas. Mészáros observa que as várias
estratégias keynesianas foram apenas complementares à expansão do complexo militar-
industrial. Portanto, trata-se de um fato que deve ser levado em conta por todos aqueles
que, saudosistas da “Era de Ouro” do capitalismo, divisam, em linhas neokeynesianas,
estratégias “econômicas alternativas” em contraposição ao neoliberalismo.79
John Maynard Keynes foi bastante explícito acerca das medidas a serem
adotadas para que o capitalismo pudesse superar seus problemas econômicos. Este
“lúcido” economista sabia que o capitalismo precisava realizar um sistemático

responsáveis pela expansão da economia capitalista no pós-guerra”. COGGIOLA, Osvaldo. O capital


contra a história: gênese e estrutura da crise contemporânea. São Paulo: Xamã: Edições Pulsar, 2002. p.
381.
78
“A escolha, especialmente para os homens de negócios, foi clara. Haviam sido socorridos
temporariamente pelas odiadas reformas de Roosevelt; no entanto, essas reformas foram pouco mais do
que respiração artificial. O paciente fora reanimado, mas não curado. O fato ficou nitidamente
demonstrado pelas cifras de desemprego. Em 1939, seis anos e meio depois de iniciado o New Deal,
apesar de que os gastos de defesa já estavam começando a estimular a economia, os Estados Unidos ainda
tinham 9,5 milhões de trabalhadores desempregados, um perturbador 17,2% de toda a força laboral. Só
quando já estávamos bem dentro da guerra, com milhões de homens nos serviços armados e outros
milhões trabalhando nas fábricas de material de guerra, é que o desemprego desceu para um milhão; só
então é que se conseguiu atingir o objetivo da produção total e do emprego virtualmente total.
O que estes fatos significam é bem claro: desde 1929, a única época em que conseguimos o emprego e a
prosperidade totais foi numa economia de guerra. Mesmo hoje, depois de terminada a guerra, essa
afirmação ainda é verdadeira. Houve uma curta quebra do padrão, logo em seguida ao fim da guerra,
quando os gastos militares desceram enormemente e quanto a imensa procura de artigos civis provocou
um período de alta considerável. Mas além dessa exceção – e, mesmo então, foi uma exceção induzida
pela guerra – a prosperidade de nossa economia tem dependido principalmente da produção bélica”.
COOK, Fred J. O estado militarista. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965. pp. 63, 64.
79
MÉSZÁROS, Isvtán. Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. São Paulo: Boitempo;
Campinas – SP: Editora UNICAMP, 2002. pp. 685-687.
49

dispêndio “whole wastefull” (totalmente dissipador) em guerras e em preparação para as


guerras se quisesse manter sua “vitalidade”. Suas recomendações são claras:

“Penso ser politicamente incompatível com uma democracia


capitalista elevar o dispêndio na escala necessária para fazer a
grande experiência que demonstraria minha tese, exceto em
condições de guerra. Se os Estados Unidos levarem a sério sua
missão na defesa da civilização e se insensibilizarem com a
grande dissipação de recursos decorrentes da preparação das
armas, aprenderiam a conhecer sua força, e o aprenderiam de
uma forma como nunca poderiam aprender em outra ocasião;
aprenderão uma lição que logo poderá servir para reconstruir um
mundo que compreenderá os principais princípios que
governam a produção de riqueza [...] As preparações de guerra,
longe de requerer um sacrifício, será um estímulo [...].80

Portanto, apenas “em condições de guerra” é que se poderia levar adiante a


“grande dissipação de recursos” vitalmente necessária para “reconstruir o mundo” do
capital. As guerras e a preparação para as guerras não mais poderiam ser consideradas
como um “sacrifício” para o sistema, mas sim como um poderoso “estímulo” para a
economia. Desse modo, a mais crassa “insensibilidade” em relação aos aspectos
materiais e sensíveis da realidade passaram a se constituir como um dos “principais
princípios que governam a produção de riqueza”. E é em função desses princípios que
os Estados Unidos precisam “reconhecer sua força” e “levar a sério” a sua “missão na
defesa da civilização” capitalista. Enfim: a “preparação de armas e guerras” – em escala
sempre ampliada – se tornou um expediente central para a conservação da socialização
capitalista.
Por que os dispêndios militares permitem ativar a economia? Porque eles
funcionam como um “investimento em consumo”. Ele constitui numa injeção de
dinheiro que permite sorver meios de produção e meios de consumo, contribuindo para
estimular toda a economia. As mercadorias produzidas pela indústria bélica, por sua
vez, ficam ao abrigo do consumo estatal, não entrando em concorrência com os
produtos criados pelas demais empresas.
Uma característica peculiar do poderio militar é que ele não possui qualquer
ponto de saturação. Não há qualquer limite para a acumulação de meios de destruição,
80
KEYNES, John Maynard. Artigo na New Republic, 1940. Apud. CAMPOS, Lauro. A crise completa: a
economia política do não. São Paulo: Boitempo, 2001. p. 188.
50

cujo exemplo mais sobejo consiste no fato de haver atualmente um arsenal nuclear
capaz de aniquilar a vida na Terra por mais de uma centena de vezes – um absurdo
centuplicado. István Mészáros observa que o complexo militar-industrial rompeu o nó
górdio entre produção e consumo:

“o complexo militar-industrial remove com sucesso as restrições


tradicionais do circuito de consumo definido pelas limitações
dos apetites dos consumidores. Nesse aspecto, ele corta o nó
górdio altamente intrincado do capitalismo „avançado‟ ao
reestruturar o conjunto da produção e do consumo de maneira a
remover para todos os efeitos e propósitos, a necessidade de
consumo real. Em outras palavras, aloca uma parte maciça e
sempre crescente dos recursos materiais e humanos da sociedade
a uma forma de produção parasitária e que se auto-consome, tão
radicalmente divorciada e, na verdade, oposta à real necessidade
humana e seu consumo correspondente que pode divisar como
sua própria racionalidade e finalidade última até mesmo a total
destruição da humanidade”. 81

Mas de que forma se tornou possível realizar tais “investimentos em consumo”?


Esses investimentos são viabilizados sobretudo pela dívida pública – além do dinheiro
que se obtém por meio dos impostos. O capital fictício aqui se liga com a guerra. O
crescimento econômico do pós-Segunda Guerra Mundial se baseou na hipertrofia do
complexo militar-industrial. Mas este, por sua vez, só pôde se expandir de tal modo
através da enorme expansão da dívida pública. O crescimento da dívida pública, desde
meados do século XX, “mostra a colossal hipertrofia da dinâmica capitalista fundada na
produção de não-meios de produção e de não-meios de consumo, ou seja, na produção
destrutiva e improdutiva”.82
Mas por que gastar dinheiro em guerras e em preparação para guerras quando
haveria a alternativa de realizar “investimentos sociais”? Por um simples motivo:
porque do ponto de vista do capital é mais racional promover dispêndios militares que
buscar satisfazer as reais necessidades da sociedade. Por quê? Porque os dispêndios
militares ampliam o consumo da sociedade sem promover distribuição da riqueza
social. Os gastos sociais podem ser socialmente louváveis, mas está em contradição

81
MÉSZÁROS, István. Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. São Paulo: Boitempo;
Campinas – SP: Editora UNICAMP, 2002. p. 688.
82
CAMPOS, Lauro. A crise completa: a economia política do não. São Paulo: Boitempo, 2001. p. 284.
51

com os objetivos do capitalismo, pois eles tendem, mais cedo ou mais tarde, a aumentar
o valor da força de trabalho, terminando por comprimir a taxa de lucro – o que, de modo
algum, é desejado pelo sistema.83
É preciso levar em conta também que a melhoria da vida pode contribuir para o
surgimento de modos de pensar e de agir contrários ao status quo. Paul Sweezy e Paul
Baran observam que o militarismo “nutre todas as forças reacionárias e irracionais da
sociedade e inibe ou mata tudo o que seja progressivo e humano. Gera um respeito cego
pelas autoridades, ensinam e fortalecem as atitudes de docilidade e conformista e a
dissidência é considerada antipatriótica e inclusive uma traição”.84 Os gastos militares
não apenas cumprem certas funções econômicas como são também os mais adequados a
uma forma social estruturalmente hierarquizada e essencialmente militarizada. 85
No entanto, ainda que os dispêndios militares tenham contribuído para arrefecer
as explosivas contradições estruturais do capitalismo ao longo de parte do século XX,
nem por isso deve-se vê-lo como uma espécie de deus ex machina capaz de garantir a
perenidade desse sistema.86 Por um lado, tais dispêndios servem para abafar as
contradições estruturais do capitalismo. Mas, por outro, eles contribuem para
potencializar ainda mais as contradições dessa sociedade. E isso fica bem claro em
relação ao próprio desenvolvimento tecnológico. Longe de retardar o desenvolvimento
tecnológico, os dispêndios militares têm contribuído decisivamente para a sua
aceleração.87 O mecanismo mobilizado para livrar o capitalismo de suas contradições
estruturais é o mesmo que impulsiona sobremaneira o desenvolvimento de forças

83
MANDEL, Ernest. O capitalismo tardio. São Paulo: Abril Cultural, 1982. p. 216.
84
SWEEZY, Paul; BARAN, Paul. El capital monopolista. Madri: Siglo Veintiuno, 1988. p. 167.
“O impulso para a submissão, que é tão real e comum como o impulso para o mando, tem suas raízes no
temor. [...] Sempre que há um perigo sério, o impulso da maioria das pessoas é procurar uma Autoridade
e submeter-se a ela; em tais momentos, poucos sonhariam com uma revolução. Quando deflagra uma
guerra, as pessoas têm sentimentos análogos com respeito ao governo”. RUSSEL, Bertrand. O poder:
uma nova análise social. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1957. p. 10.
85
“No seu âmago, o capitalismo não é outra coisa senão a militarização da reprodução social; e não é só
pela referência externa às exigências econômicas da produção de armas de fogo, que caracterizou os seus
primórdios, mas também pela formação quase militar de todo o modo de produção, na forma dos
„exércitos do trabalho‟, na forma da concorrência universal, como uma guerra econômica permanente de
todos contra todos etc. Todos os momentos da reprodução e da vida que não se enquadram nestas formas
são conotadas como o „feminino‟, dissociados, tornados „não oficiais‟, definidos como inferiores e
excluídos. O sujeito da mercadoria é, portanto, „masculino‟ pela sua essência e um sujeito de violência
latente ou manifesta, mesmo que parcialmente abarque mulheres. E nesse sentido a sociedade capitalista
contém o momento da predisposição para a violência até os poros do cotidiano”. KURZ, Robert. Os
fantasmas reais da crise mundial. Capítulo II do livro A Guerra de ordenamento mundial. Disponível em:
http://obeco.planetaclix.pt/
86
MANDEL, Ernest. O capitalismo tardio. São Paulo: Abril Cultural, 1982. p. 216.
87
Conforma assinala Ernest Mandel: “a produção permanente de armas não se tornou apenas uma das
soluções mais importantes do problema do capital excedente, mas também, e principalmente, constiutiu-
se num poderoso estímulo para a aceleração da inovação tecnológica”. Id. Ibid. p. 212.
52

produtivas que se revelam cada vez mais incompatíveis com a lógica de funcionamento
desse sistema. Portanto, como observa Ernest Mandel,

“a longo prazo, a economia armamentista permanente não pode


resolver nenhuma das contradições básicas do modo de
produção capitalista, e não pode eliminar nenhuma das forças
que levam à crise inerente a esse modo de produção. Mesmo o
amortecimento temporário dessas contradições e dessas forças
que levam à crise só ocorre às expensas de sua transferência de
uma esfera a outra”.88

É importante assinalar que a maior parte dos desenvolvimentos tecnológicos de


nossa época teve origem ou encontrou suas primeiras aplicações na produção
armamentista.89 Sem os altos e concentrados dispêndios efetuados pelo Estado, muitas
tecnologias que marcam a nossa época ou não teriam surgido ou teriam vindo à luz de
forma bem mais lenta e hesitante.90 O grande desenvolvimento tecnológico do
capitalismo desde a segunda metade do século XX se deve mais aos gastos militares do
Estado do que aos supostos empresários inovadores schumpeterianos. Claudio Katz
apresenta um quadro bastante ilustrativo dessa relação entre desenvolvimento
tecnológico e produção bélica:

“Nos campos de maior inovação recente – eletrônica,


aeronáutica, aeroespacial – o uso militar foi proeminente. Os
circuitos integrados e os semicondutores foram desenvolvidos
para satisfazer pedidos do Pentágono; nenhum modelo de avião
civil precedeu o militar; os satélites de comunicação derivam de
88
Id. Ibid. p. 216.
89
“Isso se aplica ao princípio genérico de processos de produção contínuos e automáticos, completamente
livres do contato direto por mãos humanas (o que se torna uma exigência fisiológica com o uso da energia
nuclear). Também se aplica à coerção para construir calculadoras automáticas, produzidas por derivação
direta dos princípios cibernéticos, capazes de reunir dados com velocidade vertiginosa e tirar conclusões a
partir deles para determinação de decisões – por exemplo, a orientação precisa de mísseis automáticos de
defesa aérea para abater aviões bombardeiros”. Id. Ibid. p. 135.
90
“Não fosse pela Segunda Guerra Mundial, e o medo de que a Alemanha nazista explorasse as
descobertas da física nuclear, a bomba atômica certamente não teria sido feita, nem os enormes gastos
necessários para produzir qualquer tipo de energia nuclear teriam sido empreendidos no século XX.
Outros avanços tecnológicos conseguidos, no primeiro caso, para fins de guerra mostraram-se
consideravelmente de aplicação mais imediata na paz – pensamos na aeronáutica e nos computadores –
mas isso não altera o fato de que a guerra ou a preparação para a guerra foi um grande mecanismo para
acelerar o progresso técnico, „carregando‟ os custos de desenvolvimento de inovações tecnológicas que
quase com certeza não teriam sido empreendidos por ninguém que fizesse cálculos de custo-benefício em
tempos de paz, ou teriam sido feitos de forma mais lenta e hesitante”. HOBSBAWM, Eric. A era dos
extremos: o breve século XX: 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 54.
53

programas bélicos da Nasa. Das inovações sofisticadas –


computadores, transístores – às mudanças tecnológicas triviais,
embora de grande impacto econômico – como os containers –,
todas derivam do uso militar prévio. A microeletrônica se gestou
na resolução de problemas de balística, radares, detecção
submarina, trajetória de mísseis e armas atômicas. As máquinas-
ferramentas de controle numérico apareceram para ajustar a
precisão de peças aeronáuticas. O desenvolvimento da energia
nuclear proveio da utilização bélica. As principais mudanças na
organização e fornecimento do processo de produção também
foram extraídas da esfera militar: o taylorismo, os métodos de
pesquisa operacional, a gestão de estoques, a codificação do
learning by doing, os programas recentes de incremento da
competitividade (Mantech) tiveram o apadrinhamento da
economia armamentista”.91

A própria microeletrônica, que tem levado o capitalismo a colidir com seus


limites internos, foi criada no interior do complexo militar-industrial. Desde o seu
surgimento, o mecanismo do dispêndio militar tem se tornado um mecanismo cada vez
menos eficiente para impulsionar o crescimento econômico. Tornou-se necessário
despender enormes somas de dinheiro para viabilizar o surgimento de um número muito
restrito de empregos.
Até a década de 1970, os gastos militares permitiam uma enorme mobilização de
trabalhadores na produção de armas e nas forças armadas. Mas a partir de então isso
deixou de ser possível. É verdade que o mesmo ocorre em toda a produção industrial
capitalista. No entanto, é no próprio complexo militar-industrial que encontramos os
exemplos mais expressivos desse fenômeno. Talvez não haja nenhum setor da produção
capitalista onde os empregos se tornaram mais “caros” do que no setor de produção de
meios de destruição. Por exemplo, o programa de produção do caça F-35 Lightining II
(o programa Joint Strike Fighter), executado pela Lockheeds Martins e pela Northrop
Grumman foi capaz de criar apenas 5.400 empregos diretos com um custo unitário de
37 milhões por emprego. Na Boeing, cada emprego criado por esse programa custou
nada menos do que 66,7 milhões. Os 3.000 empregos diretos criados na fábrica
Lockheed Martins na produção do F 22 Raptor tiveram um custo unitário de 20 milhões
de dólares (programa completado em 2005). De acordo com os números da companhia
para 2008, cada um dos 2000 empregos que permanecem ligados à produção do F22 foi

91
KATZ, Claudio. Tecnologia e economia armamentista. In: COGGIOLA, Osvaldo; KATZ, Cláudio.
Neoliberalismo ou crise do capital? São Paulo: Xamã, 1996. p. 204.
54

patrocinado com um desembolso unitário de 31 milhões dólares. 92 Portanto, tornou-se


bastante difícil sustentar dar sobrevida ao “mundo do trabalho” por meio da injeção de
dinheiro no complexo militar-industrial.
É preciso assinalar também que as novas tecnologias modificaram o tipo de
equipamento militar utilizado, imprimindo transformações qualitativas e quantitativas
nas forças militares. Desde então, tropas profissionais altamente qualificadas passaram a
ocupar o lugar dos exércitos de militares fordistas de outrora. Muitas tarefas passaram
mesmo a ser executadas por robôs. Pode-se dizer que houve um enorme aumento na
composição técnica da guerra: aviões não tripulados, bombas termonucleares, mísseis
“inteligentes”, armas de modificação climática93 etc. tornam-se cada vez mais
proeminentes. O poderio bélico passou a depender sobremaneira da tecnologia. As
novas tecnologias viabilizaram o surgimento de algo que poderíamos designar como
lean destruction (destruição enxuta): uma forma de fazer a guerra que requer cada vez
menos seres humanos diretamente empenhados em tarefas imediatas de matar e destruir.

***

O novo padrão de produtividade alcançado pela microeletrônica principia a


bloquear essa válvula de escape do capitalismo. Assim, por mais dinheiro que se lance
no complexo militar-industrial, tal mecanismo já não é mais capaz de fomentar o pleno
emprego e nem impulsionar o crescimento econômico. E, no entanto, desde o começo
das Décadas de Crise, o dispêndio de dinheiro no complexo militar-industrial não cessa
de ser ampliado, enquanto os problemas do desemprego e do subemprego tornam-se
cada vez mais graves. O máximo que os investimentos militares conseguem é impedir –
e não se sabe até quanto – que a forma social soçobre por inteiro. Portanto, a referida
válvula de escape mantém-se operando apenas pela falta de alternativas melhores. A
economia de guerra permanente tende a recrudescer à medida que o capitalismo atinge
os seus próprios limites internos. Mas já não produz os mesmos efeitos. Uma das
conseqüências de tais dispêndios militares é o crescente processo de militarização da
92
CHOSSUDOVSKY, Michel. Os democratas endossam a “Guerra global ao terrorismo”: Obama “corre
atrás” de Osama. Disponível em: http://resistir.info/chossudovsky/obama_29ago08.html
93
Segundo Michel Chossudovsky, os novos instrumentos de guerra climática – já operacionais –
desenvolvidos como parte do Programa de Pesquisa de Aurora Ativa de Alta Freqüência (HAARP),
“podem desestabilizar economias nacionais por meio da manipulação climática sem que o inimigo
perceba, a um custo mínimo e sem envolver pessoas e equipamento militar, como ocorre em uma guerra
convencional”. CHOSSUDOVSKY, Michel. Guerra e globalização: antes e depois de 11 de setembro de
2001. São Paulo: Expressão popular, 2004. p. 142.
55

sociedade em nossa época. Tal militarização não decorre apenas do processo de


dissolução e da miríade de conflitos que irrompe no processo de desintegração da forma
social94. Essa é apenas parte do problema. Em grande medida, ela também se amplia em
virtude da necessidade crescente de o sistema despejar o máximo de recursos na
preparação e na realização de novas guerras.
A Guerra da Coréia, a Guerra Fria e a Guerra do Vietnã favoreceram as imensas
inversões militares ao longo das três décadas posteriores ao fim da Segunda Guerra
Mundial. De que modo seria possível realizar as enormes inversões requeridas para
manter o funcionamento da máquina de guerra após o fim da Guerra Fria e a derrocada
da URSS? Por meio da criação de novas guerras. Não seria esse um dos fatores mais
importantes que estão por trás da “Guerra contra o Terrorismo”, desencadeada após os
acontecimentos de 11 de setembro de 2001?95 A enorme funcionalidade dos ataques
terroristas para a combalida economia mundial – uma vez que forneceram a justificativa
para a vertiginosa ampliação dos gastos militares, como medida para tentar livrar os
Estados Unidos e o capitalismo mundial de uma crise que não parava de se agravar na
época – torna bastante razoável desconfiar do envolvimento de governo, militares e
setores de inteligência por trás do ataques terroristas de 11 de setembro de 2001.
Quando Robert Brenner terminou o livro O boom e a bolha em julho de 2001, ele
observava que, após o estouro da bolha financeira que havia sustentado o crescimento
econômico na década de 1990 e a grave crise que irrompera, seria difícil “imaginar
quais forças exist[iriam] para empurrar para frente a economia”. 96 A resposta foi dada
poucos dias depois. Com o estouro da bolha financeira da década de 1990 e o fim da
chamada New Economy, a saída de emergência foi a criação de uma New War infinita.97
Os ataques terroristas seriam o incêndio do Reichstag de nossa época?98

94
Se a crise afeta negativamente a maior parte das pessoas, para os setores ligados à produção de armas
as expectativas são as melhores possíveis. E não apenas daqueles ligados diretamente às demandas do
Estado. Desde o surgimento da crise econômica e de seu impacto sobre o emprego – cerca de 10,2% em
outubro de 2009 – desembocou num aumento da criminalidade que parece ter contribuído para forte
despontar das vendas das armas de fogo nos Estados Unidos, gerando otimismo nas perspectivas de
médio prazo nesse setor. Cf. La recesión dispara las ventas de armas de fuego en EEUU. Fonte: Europa
Press, 22/10/2009. Disponível em: http://www.europapress.es/economia/macroeconomia-00338/noticia-
economia-recesion-dispara-ventas-armas-fuego-eeuu-20091122163200.html.
95
Sem desconsiderar, evidentemente, o interesse dos Estados Unidos pelo petróleo do Golfo Pérsico.
96
BRENNER, Robert. O boom e a bolha: os Estados Unidos na economia mundial. Rio de Janeiro:
Record, 2003. p. 351.
97
“Esta democracia tão perfeita fabrica seu inconcebível inimigo, o terrorismo. De fato, ela prefere ser
julgada a partir de seus inimigos e não a partir de seus resultados. A história do terrorismo foi escrita
pelo Estado; logo é educativa. As populações espectadoras não podem saber tudo a respeito do terrorismo
mas podem saber o suficiente para ficar convencidos de que, em relação a esse terrorismo, tudo mais deve
56

O fato é que, depois de um breve período de redução entre 1987 e 1998, os


gastos militares mundiais começaram a crescer. Mas foi após os ataques terroristas de
11 de setembro de 2001 que ele simplesmente disparou. Atualmente, eles são superiores
aos do auge da Segunda Guerra Mundial. Em 2008, os gastos militares atingiram a cifra
de 1,46 trilhão de dólares (45% superior ao orçamento militar de 1999). Um montante
que corresponde a 2,5% do Produto Interno Bruto mundial (54 trilhões de dólares) e
equivale ao PIB brasileiro (o oitavo maior PIB do planeta). 99 O principal responsável
por esse aumento são os Estados Unidos. Entre 2001 e 2008, os dispêndios militares dos
Estados Unidos aumentaram 60%, atingindo, em 2008, a cifra astronômica de 607
bilhões de dólares (41% do orçamento militar mundial). Mas os Estados Unidos não é o
único país a promover imensos dispêndios militares. Dentre os dez maiores orçamentos
militares do mundo encontram-se a China (US$ 84,9 bilhões), a França (US$ 65,7
bilhões), o Reino Unido (US% 65,3 bilhões), a Rússia (US$ 58,6 bilhões), a Alemanha
(US$ 46,8 bilhões), o Japão (US$ 46,3 bilhões), a Itália (US$ 40,6 bilhões), a Arábia
Saudita (US$ 38,2 bilhões) e a Índia (US$ 30 bilhões). O Brasil é o décimo segundo
lugar em gastos militares: com 15,4 bilhões de dólares – 24% superior ao de 1998.100
Para quem pensava que o século XXI seria mais pacífico que o anterior, os
gigantescos dispêndios militares desse início de século fazem entrever um horizonte
muito sombrio para o futuro. Esses gastos militares não podem parar nesse patamar e
tampouco ser reduzidos, pois isso comprometeria ainda mais a combalida “saúde” da
economia mundial. Pelo contrário. Tendem a continuar crescendo. Em outubro de 2009,

lhes parecer aceitável, ou, no mínimo, mais racional e mais democrático”. Considerações sobre a
sociedade do espetáculo. In: A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. p. 185.
98
Há alguns livros que contestam a “verdade” oficial sobre o 11 de setembro de 2001. MARCELO,
Csettkey; GIL, Marcelo. Crime de Estado: a verdade sobre 11 de setembro. Rio de Janeiro: Talagarça,
2006. MARTINS, José Antônio. Império do terror: os Estados Unidos, ciclos econômicos e guerras no
início do século XXI. São paulo: Editora Instituto José Luís e Rosa Sundermann, 2005. MEYSSAN,
Thierry. 11 de setembro de 2001: uma terrível farsa. São Paulo: Usina do Livro, 2003. VIDAL, Gore.
Sonhando a guerra: sangue por petróleo e a Junta Cheney-Bush. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003.
CHOSSUDOVSKY, Michel. Guerra e globalização: antes e depois de 11 de setembro de 2001. São
Paulo: Expressão popular, 2004.
99
Conforme dados fornecidos pelo Fundo Monetário Internacional. World Economic Outlook Database,
October 2009.
100
Dados divulgados pelo Instituto de Pesquisa da Paz Internacional de Estocolmo (Stockholm
International Peace Research Institute – SIPRI). Disponível em: http://www.sipri.org/yearbook. Conforme
dados da ONU, com apenas 13 bilhões de dólares seria possível alcancer à satisfação das necessidades
nutricionais de todas as pessoas do mundo. Cf. Rapport mondial sur le développement humain 1998,
Programme des Nations unies pour le développement (PNUD), New York, septembre 1998. Esse
montante equivale a uma soma inferior a 1% dos orçamento militar mundial. Enquanto um bilhão de
pessoas passam fome – 1/6 da população mundial –, despendem-se somas colossais em guerras e na
preparação de guerras. Este contraste mostra com imensa força toda a irracionalidade e destrutividade de
nossa civilização capitalista em fim de linha.
57

o senado dos Estados Unidos aprovou um novo aumento no orçamento militar para
2010. 626 bilhões de dólares – e mais um montante extra de 400 bilhões de dólares para
custear as guerras no Iraque e o Afeganistão. Portanto: mais de um trilhão de dólares!
Este valor corresponde a aproximadamente de 7% do PIB atual do país e consome quase
a metade do orçamento do governo. Enfim, longe de alterar a escalada militarista do
governo republicano de George W. Bush, ela se acentua ainda mais no governo do
democrata – e agora Prêmio Nobel da Paz 101 – Barack Obama.102
De fato, os Estados Unidos podem ser considerados uma “economia de guerra
permanente”.103 Mas isso não se deve propriamente a uma distorção específica da
economia desse país. Ela decorre muito mais do fato de os Estados Unidos cumprirem o
seu papel como “imperialista global ideal”, isto é, um Estado-nação que desempenha
um papel de Estado mundial. 104 Tal como havia proposto John Maynard Keynes, os
Estados Unidos apenas assumem o seu “heróico” papel na defesa da “civilização”
capitalista. Somente os Estados Unidos – com sua gigantesca capacidade para se
endividar – é capaz de realizar os dispêndios de dinheiro necessários. A força do dólar
garante o funcionamento da máquina de guerra e o funcionamento de grande parte da
produção industrial. Por outro lado, o poderio militar dos Estados Unidos fornece o
lastro para o dólar, viabilizando assim a própria sobrevivência do mercado mundial. 105 É

101
Em nosso mundo realmente orweliano Guerra é Paz!
102
O professor da Universidade do Panamá Marco A. Gandásegui observa: “Esta tendência „suicida‟ não
é nova. Muitos analistas assinalam que é precisamente a economia de guerra norteamericana a que
alimenta a demanda de uma economia capitalista insaciável. Dizem que sem guerra não há crescimento.
Agora o lema mudou: sem guerra não há recuperação econômica. Os ideólogos de Washington insistem
que o armamentismo, as guerras e a destruição massiva são muito saudáveis para um paciente enfermo
como o capitalismo norteamericano. (Quando não havia crise diziam que o armamentismo era a medicina
necessária para não adoecer)”. GANDÁSEGUI, Marco A. A corrida armamentista terrorista dos EUA.
Boletim do Instituto de Estudos Latinoamericano – IELA –UFSC – Florianópolis, 30/10/2009.
103
Cf. MELMAN, Seymour. In the grip of a permanent war economy. Disponível em:
http://globalmakeover.com/?q=node/222
104
KURZ, Robert. Metamorfoses do imperialismo. Capítulo I do livro A Guerra de ordenamento mundial.
Disponível em: http://obeco.planetaclix.pt/
105
“O poder político-militar pode tornar-se potência econômica. Mas, apesar disso, esse poder não está
em posição de afastar duradouramente as leis de funcionamento do capitalismo, mesmo que influencie as
formas de desenvolvimento da história do mercado mundial. Capital mundial precisa de dinheiro mundial
como padrão de medida das relações monetárias. Disso dependem o comércio mundial e o sistema
financeiro global. Como a ligação do dólar ao ouro foi cortada em 1973, passou para o lugar do ouro a
máquina militar sem concorrência dos EUA, com a sua „economia de guerra permanente‟. A função de
poder de garantia global e a ideologia do „porto seguro‟ tornaram-se poder econômico; o dólar-
armamento passou para o lugar do dólar-ouro. É neste constructo que se baseiam a globalização, a
economia das bolhas financeiras e a conjuntura de deficit dos últimos vinte anos. O preço foi um
endividamento externo dos EUA em dimensões astronômicas”. KURZ, Robert. Poder mundial e crise.
Ver também, do mesmo autor, Poder mundial e dinheiro mundial. Disponíveis em:
http://obeco.planetaclix.pt/.
58

o próprio capitalismo que se converte cada vez mais em algo indissociável da


“economia de guerra permanente”.
O militarismo reinante é inteiramente incompatível com qualquer
“desenvolvimento sustentável” ou “responsabilidade ecológica”. Aqui o economicismo
real capitalista apresenta a sua feição mais horrenda. 106 As guerras representam uma das
mais graves ameaças para a humanidade em nossa época. Ela é sempre uma tragédia
ecológica e social de largas proporções. O impulso destrutivo do capitalismo assume
aqui a sua expressão mais límpida.

3. 3. Administração de crise e a solução final

No momento em que o capitalismo atingiu o seu limite lógico, os piores


pesadelos de nossa época irrompem com força redobrada. É o destino de milhões (ou
talvez bilhões) de seres humanos que se encontra em jogo. Uma enorme parcela da
população mundial se tornou um rebotalho sem préstimo para o capitalismo. Eles se
tornaram produtores obsoletos e, como conseqüência, “consumidores defeituosos”. A
única mercadoria que tinham para comercializar, sua força de trabalho, ficou sem valor
de uso. E assim ficaram sem o meio que tinham para obter o dinheiro que lhes garantiria
o acesso aos meios de vida
Desse modo, tornaram-se estruturalmente excluídos. Mas excluídos de um modo
bem singular: excluídos no interior do sistema. Trata-se, portanto, de uma exclusão
imantada. Expressão, sem dúvida, paradoxal. Mas, nem por isso, equivocada. Quer
dizer: perderam funcionalidade no interior do sistema. No entanto, este, de forma
totalitária, os impede de ir além ou para fora dele. A falta de encaixe entre os seres
humanos redundantes e a estreita forma de socialização deixa entrever um futuro muito
sombrio para o futuro.

“Uma quantidade importante de seres humanos já não é mais


necessária ao pequeno número que molda a economia e que
detém o poder. Segundo a lógica reinante, uma multidão de
seres humanos encontra-se assim sem razão para viver nesse
mundo, onde, entretanto, eles encontraram a vida. [...] „Como
106
O economicismo em questão está longe de designar um modo defeituoso ou insuficiente de reflexão
teórica social e, portanto, não se trata de um problema de cunho teórico e subjetivo, mas, pelo contrário,
consiste num problema prático e objetivo, e uma das características mais essenciais do modo de produção
capitalista. Ver: KURZ, Robert. Os fantasmas reais da crise mundial. Capítulo II do livro A Guerra de
ordenamento mundial. Disponível em: http://obeco.planetaclix.pt/
59

livrar-se deles‟? Mas trata-se, nesse caso, de uma história da


qual eles próprios, certamente, não têm consciência, assim como
não têm do perigo que fazem pesar sobre nós, sem encontrar,
aliás, nenhuma resistência. Passividade que representa o fato
mais inesperado. É esse desinteresse, essa resignação, essa
apatia mundializada que poderiam permitir que o pior se
instalasse. O pior, que está aí à nossa porta”.107

Quê fazer com esses seres humano? Parte dela passa a ser assistida por políticas
assistenciais. Estas devem atender apenas algumas das necessidades básicas e garantir
uma miserável subsistência (Bolsa Família, por exemplo). Foi-se a época da expansão
de direitos e de políticas para a maioria. Os benefícios, quando existem, devem ser
pontuais e provisórios. São os mecanismos de gerenciamento da pobreza. O outro, bem
mais sinistro, é o da criminalização da pobreza: o encarceramento e o extermínio dos
pobres. A guerra contra a pobreza transforma-se em guerra contra os pobres.108 O
encarceramento é um dos meios de o capitalismo livrar-se dos seres humanos
redundantes. Ele tira de circulação os seres humanos tornados obsoletos e fornece o
exemplo para os que se encontram do lado de fora. É como se dissesse: há sempre algo
pior para vocês! O encarceramento não está mais ligado à formação da força de
trabalho. Ela tenciona apenas conter e aterrorizar aqueles que se tornaram redundantes.
Não é por acaso que desde a década de 1970 o encarceramento de seres humanos tem
crescido de forma vertiginosa em todo o mundo – sendo os Estados Unidos, esse
representante mor da civilização capitalista, aquele que possui a maior população
carcerária do planeta: mais de dois milhões e duzentos mil prisioneiros. 109 Outro

107
FORRESTER, Viviane. O horror econômico. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista,
1997. pp. 27, 136.
108
“A conjuntura histórica recente tem apontado, não apenas no Brasil, mas como uma tendência
mundial, a efetivação da guerra como um acontecimento cotidiano. Ela tem invadido a vida de milhões de
indivíduos em tempos de paz aparente, destruindo não apenas seus bens materiais mas também
invalidando os laços sociais, a partir de uma descontinuidade na esfera pública em que as classes
estabeleciam pactos de regulação de distribuição da riqueza produzida. As formas de violência, que vão
irrompendo o estado civil, apontam para diferentes elos que não podem ser isolados. Desde a ação da
polícia nos bairros populares da cidade, que invariavelmente resultam em mortes de jovens negros
desempregados – sempre acusados de envolvimento com essa entidade mítica chamada „tráfico‟ –, até os
casos de crime financeiro de grandes empresas, passando pelos desmontes do Estado, todos esses
elementos estão presentes na efetivação da guerra que inviabiliza a democracia e sua radicalização”.
MENEGAT, Marildo. O olho da barbárie. São Paulo: Expressão Popular, 2006. pp. 110, 111.
109
É preciso assinalar que parte dos presídios dos Estados Unidos são privados, com ações vendidas na
bolsa de valores, e são um dos maiores empregadores do país. Ver: WACQUANT, Loïc. As prisões da
miséria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. Os seres humanos supérfluos tornam-se matéria-prima de uma
atividade improdutiva, alimentada pelos gastos governamentais. Uma “funcionalização” sombria para
aqueles que já não podem mais cumprir o papel de produtor-consumidor na sociedade capitalista.
60

expediente é simplesmente o extermínio: a “solução final” para os seres humanos


redundantes. Todavia, o extermínio dos pobres não deve se assemelhar com os
procedimentos burocratizados e centralizados dos nazistas. A produção fordista de
cadáveres de Auschwitz tornou-se obsoleta. Ela revela-se atualmente excessivamente
dispendiosa e ineficiente, além de conferir demasiado poder e responsabilidade ao
Estado, atraindo a ruína e opróbrio para os seus autores etc. Um melhor modo de se
livrar dos descartáveis é fazendo com que a seleção das vítimas seja promovida por elas
próprias: elas devem realizar a seleção por meio de critérios de incompetência, de
inaptidão, de pobreza, de ignorância, de preguiça, de criminalidade etc. O campo de
concentração deve ficar a céu aberto e a máquina de matar precisa se tornar flexível,
invisível, de baixo custo e livre de condenações morais. Portando, um Holocausto de
novo tipo: sob a forma de uma acumulação flexível de cadáveres – pós-moderna e pós-
industrial. 110
Mas esse é apenas o emblema negativo da seleção. Está se desenhando, com
uma força crescente, o advento de uma nova forma de eugenia viabilizada pelas novas
tecnologias. Trata-se de criar uma hierarquia entre os seres humanos: de um lado, os
seres humanos “atualizados”, por meio de implantes químicos, biológicos e eletrônicos,
e, de outro, os “naturais”, relegados a uma condição inferior, uma vez que se tornariam
incapazes, inclusive fisicamente, de acompanhar o curso do desenvolvimento
tecnológico e econômico do capitalismo. 111 Um fascismo de novo tipo pode emergir no
fim de linha da civilização capitalista.

“Não estamos num regime fascista em absoluto. [...] Não será


necessário sublinhar certos fatos: que nos Estados Unidos a

110
Em seu Relatório Lugano, Susan George indica essa passagem de fase do tratamento do capitalismo
para a pobreza. Os pobres passam a ser exterminados pela combinação dos flagelos configurados pelos
cavaleiros do apocalipse: a Conquista, a Guerra, a Fome e a Peste. Vistos dessa perspectiva, os conflitos
regionais, as crises – as epidemias e os desmanches que assolam as economias e sociedades do Terceiro
Mundo – adquirem uma enorme inteligibilidade. GEORGE, Susan. Relatório Lugano: sobre a
manutenção do capitalismo no século XXI. São Paulo: Boitempo, 2002.
111
“Exigida pela aceleração econômica e tecnológica total em curso, a seleção seria um modo de
„processar‟ as categorias sociais e as populações em dois registros. No primeiro, trata-se de neutralizar
aquelas que se excluíram ou foram excluídas do movimento total, seja porque recusavam-no e a ele
resistiam, seja porque se mostraram incapazes de acompanhá-lo, tornando-se então „descartáveis‟, para
usar as palavras do Subcomandante Marcos. No segundo, trata-se de favorecer e estimular aquelas
categorias e populações que podem conferir a máxima eficácia à ordem econômica e tecnocientífica,
segundo os parâmetros da aceleração total. Assim, Auschwitz seria o emblema negativo da seleção,
enquanto a nova eugenia que se constitui como a engenharia genética seria o positivo”. SANTOS,
Laymert Garcia dos. Politizar as novas tecnologias: o impacto sócio-técnico da informação digital e
genética. São Paulo: Ed. 34, 2003. p. 256.
61

situação é diferente da Alemanha de Weimar [...]. A história não


se repete exatamente e uma fase superior de desenvolvimento
capitalista nos Estados Unidos exigirá uma fase igualmente
superior do fascismo. Este país possui recursos econômicos e
técnicos para uma organização totalitária incomensuravelmente
maior que a Alemanha de Hitler jamais possuiu. O Governo
pode ser focado, sob o triplo impacto dos reveses em sua
expansão imperialista, das dificuldades econômicas internas e
do descontentamento generalizado entre a população, a pôr em
movimento uma engrenagem muito mais brutal e abrangente.
[...] É evidente que o fascismo não salvará o capitalismo: ele é,
intrinsecamente, a organização terrorista das contradições
capitalistas. Mas, uma vez o fascismo instalado, será muito
capaz de destruir, por um prazo indefinido, qualquer potencial
revolucionário. Uma análise marxista não pode procurar consolo
„a longo prazo‟. Nesse „longo prazo‟, o sistema desmoronará, de
fato, mas a teoria marxista não poderá profetizar que forma a
sociedade (se alguma) substituirá. No quadro das contradições,
objetivas, as alternativas (fascismo ou socialismo) dependem da
inteligência e da vontade, da consciência e da sensibilidade, dos
seres humanos. Depende de sua liberdade ainda existente. A
noção de um período prolongado de barbarismo, em contraste
com a alternativa socialista – barbarismo baseado nas
realizações técnicas e científicas da civilização – é central na
teoria marxista. Atualmente, a iniciativa e o poder estão com a
contra-revolução, que poderá muito bem culminar nessa
civilização bárbara”. 112

As referidas observações de Marcuse são mais atuais do que nunca. Só que é


preciso fazer uma observação: nos dias atuais esse fascismo de novo tipo não pode ficar
mais restrito apenas aos Estados Unidos. Ele tende a se tornar mundial – como
conseqüência da própria crise mundial do sistema capitalista. Quanto mais profundas se
tornarem suas dilacerantes contradições, esse sistema tenderá a se forjar como uma
“organização terrorista”.113 As novas guerras, a militarização da vida social, as novas
formas de vigilância, o controle dos meios de comunicação por algumas grandes
corporações etc. revelam quanto do caminho já foi percorrido para a instauração desse
novo tipo de fascismo. Os piores pesadelos de um admirável mundo novo estão à
espreita num futuro não muito distante. Ao mesmo tempo em que vai se realizando a
utopia negativa de George Orwel. O mundo se transforma cada vez mais numa espécie

112
MARCUSE, Hebert. Contra-revolução e revolta. RJ: Zahar Editores, 1981. pp. 32- 33, 36- 37.
113
Cf. MENEGAT, Marildo. Sem lenço nem aceno de adeus. Revista Praia Vermelha. Nº. 18. Escola de
Serviço Social, UFRJ, Rio de Janeiro, 2008.
62

de Big Brother total: turbinado com os novos engenhos tecnológicos. Uma sociedade
militarizada, baseada na mentira, na desinformação e altamente vigiada.
63

4. DESTRUIÇÃO E EMANCIPAÇÃO DA NATUREZA

4. 1. Aceleração do consumo do mundo

O capital é movido por um impulso cego para a expansão e acumulação. Ele não
pode parar e se dar por satisfeito em momento algum. Qualquer ponto de chegada deve
ser apenas um ponto de partida para um movimento infinito. Sem crescimento, o
capitalismo se desagrega e perece. Portanto, não é possível capitalismo com
crescimento zero. Isto é incompatível com qualquer proposta de “restrição deliberada do
crescimento”.114 Para que tal coisa ocorresse, o capitalismo teria de ser muito diferente
do que ele é. Conforme explica Marx:

“o capital tem a tendência desenfreada e ilimitada de ultrapassar


seus próprios limites. Cada limitação é e deve ser para ele uma
barreira, se não deixaria de ser capital, ou seja, dinheiro que se
cria a si mesmo. Se tal limite determinado lhe aparecesse não
como uma barreira exterior, mas como uma limitação tolerável o
inerente a ele mesmo, ele se degradaria, passando do valor de
troca ao valor de uso, e da forma geral da riqueza a um modo
determinado de substância”. 115

Todo limite deve se apresentar ao capital como uma barreira a ser transposta. O
limite do capital encontra-se no momento em que já não mais consegue ultrapassar as
barreiras com que se defronta, isto é, o momento em que a expansão já não é mais
possível. Portanto, do ponto de vista da lógica do capital, o único limite para esse
sistema é o próprio capital. Ele se choca com seu limite no momento em que já não é
mais capaz de realizar a sua reprodução ampliada. 116 Portanto, o capital tem um limite.
E este é dado pela sua própria lógica de funcionamento. “A verdadeira barreira da

114
MEADOWS, Donella; RANDERS, Jorgen; MEADOWS, Dennis. Limites do crescimento. São Paulo:
Perspectiva, 1973.
115
MARX, Karl. Fondements de la critique de l’économie politique, vol II. Paris; Éditions Anthropos,
1964. p. 284.
116
“A verdadeira barreira da produção capitalista é o próprio capital, isto é: que o capital e sua
autovalorização apareçam como ponto de partida e ponto de chegada, como motivo e finalidade da
produção”. MARX, Karl. O capital, vol III, tomo 1. São Paulo: Abril Cultural, 1983. p. 180.
64

produção capitalista é o próprio capital”.117 É ele que dá a sua própria medida, o motivo
e a finalidade do processo de produção. Mas isso significaria que não haja qualquer
limite externo para o capital? Não! Esse limite existe. Os limites materiais e ecológicos
são limites para o capitalismo – assim como o são para qualquer outra forma de vida
social. Entretanto, trata-se de um limite que o capital não reconhece como tal.
De que modo poderia o capitalismo sustentar seu crescimento infinito num
mundo que é material e ecologicamente finito? A contradição entre o capitalismo – um
“sistema aberto”, voltado para a acumulação e expansão permanente – e a natureza –
um “sistema fechado”, materialmente limitado – é potencialmente explosiva. Este
limite se manifesta, por exemplo, no esgotamento do petróleo. Logo que a extração do
petróleo começar a declinar – após ter atingido o pico – faltará ao capitalismo um
pressuposto material que lhe é absolutamente essencial. 118 Poderia o capitalismo
continuar sua sanha expansionista sem essa fonte de energia – e também matéria-prima
de muitos produtos e elemento essencial da agricultura moderna? 119 Poderia também
esse sistema sobreviver a um processo de falência ecológica generalizada? O colapso
das possibilidades de vida na Terra em decorrência de guerras, acidentes “tecnológicos”
ou guerra nuclear etc., não inviabilizariam o funcionamento do capitalismo? De fato, é
possível que, durante certo tempo, alguns possam lucrar com alguns fenômenos ligados
ao “aquecimento global”.120 Mas até que ponto? Mesmo depois do fim do mundo?

117
“A verdadeira barreira da produção capitalista é o próprio capital, isto é: que o capital e sua
autovalorização apareçam como ponto de partida e ponto de chegada, como motivo e finalidade da
produção”. MARX, Karl. O capital, vol III, tomo 1. São Paulo: Abril Cultural, 1983. p. 180.
118
Já atingimos o pico da extração do petróleo. Doravante, ele tende a declinar. Mauro Porto assinala que:
“Dentre os 182 países soberanos, 112 são produtores de grandes ou pequenas quantidades de petróleo: os
42 principais produtores fornecem mais que 98% do total, sendo os 2% restantes divididos pelos outros
70 países. No conjunto dos produtores, mais de 50 já ultrapassaram o pico e estão com produção
declinante a -2%, -3%, -4% ou mais a cada ano” Haverá muito petróleo sendo extraído até meados de
2045, algo em torno de 27 milhões de barris por dia. “O problema é que uma queda de produção de
ordem de apenas de 2% ao ano, inciada em algum momento em torno de 2010, prosseguirá
indefinidamente, numa perda cumulativa que se agravará cada ano, produzindo um déficit de 9 milhões
de barris por dia em apenas 5 anos e menos 18 milhões de barris por dia em 10 anos, que teriam que se
substituídos, no mesmo ritmo, por barris equivalentes de energia alternativa apenas para atender a uma
demanda catastroficamente estabilizada ano nível de 89 milhões de barris em 2010. Porto, Mauro. O
crepúsculo do petróleo: acabou-se a gasolina, salve-se quem puder! Rio de Janeiro: Brasport, 2006. pp.
32, 41. Portanto, o problema não se iniciará quando o petróleo acabar. Mas quando a extração de petróleo
não mais conseguir acompanhar as crescentes necessidades materiais-econômicas do capitalismo.
119
“Dificilmente se encontra algum ramo de nossa civilização – da geração de eletricidade à manutenção
de bens, à petroquímica, à metalurgia, ao setor de serviços e à produção de comida e de água potável –
que não seja direta ou indiretamente dependente do fornecimento regular de petróleo ou de gás”. Id. Ibid.
p. 26.
120
Eis alguns exemplos de como se pode ganhar dinheiro com as ruínas do planeta: “Na maioria dos
países industrializados acredita-se poder viver bem com o desconforto crescente do aquecimento global.
No entanto, o funil ecológico também favorece a sociedade 20 por 80 que desponta. Por se tornarem raros
e caros os bens naturais, poucos poderão comprá-los. Quem puder dispor deles lucrará adicionalmente.
65

Portanto, as condições “externas” e “ambientais” constituem limites bastante reais para


o capitalismo e para qualquer outro modo de produção e de vida. 121 Que essas questões
materiais permaneçam “invisíveis” – pelo menos até que “subitamente” irrompem com
toda a força e se revelam como um “fator decisivo” nas épocas de crise (econômica e
ecológica) – apenas manifesta o caráter alienado e fetichista da “forma de pensamento”
prevalecente.122
Há, digamos assim, uma cegueira estrutural na “forma de pensar” capitalista, em
sua própria forma de racionalidade. O limite ecológico e material do capitalismo está
ali, diante de todos. No entanto, ele nada significa para a razão calculadora (a forma de
racionalidade predominante em nossa época). Pode ser que um capitalista observe esse
problema e se sensibilize por ele. Mas logo que passa a operar como uma
“personificação do capital”, essa sensibilidade tem de ser deixada de lado. A
“responsabilidade ecológica” escapa ao próprio escopo da racionalidade capitalista. A

Em Lech-am-Arlberg, estação de esqui e mundanismo, pode haver uma explosão de contentamento se os


pesquisadores do clima declararem o „fim do turismo de inverno‟ na Áustria. A 1.450 metros de altitude,
o lugarejo poderá ficar rico se nas regiões mais baixas a neve deixar de aparecer. Esquiar nos Alpes
poderá tornar-se esporte tão exclusivo como jogar golfe na Grã-Bretanha. Os hoteleiro de Lech estão
cheios de dívidas, pois especularam e fizeram investimentos exagerados. No entanto, os 1.380 habitantes
locais foram previdentes: demarcaram seus setores e bloquearam a entrada de estranhos. Seus filhos e
netos esperam pela bonança. Se em 2060, nem com artifícios dispendiosos, as pistas de Krigerhorn e
Mohnenfluh puderem ficar cobertas de neve, todos eles poderão ficar ricos, viver dos rendimentos de seu
capital ou mudar de ramo. Esse exemplo, que soa repulsivo, talvez explique algo: as frentes políticas de
combate ao efeito estufa formam-se muito lentamente, pois milhares e milhares de pessoas julgam poder
lucrar com tal mudança de clima”. MARTIN, Hans-Peter & SHUMANN, Harald. A armadilha da
globalização. São Paulo: Globo, 1998. p. 52,53.
121
François Chesnais e Claude Serfati que não consideram as condições “externas” ou “ambientais” um
limite para o capital. Para eles: “No que concerne às condições “externas”, “ambientais” de seu
funcionamento, o capital, bem como os Estados que embasam sua dominação e as classes sociais que a
ele estão ligadas, têm os meios tanto para suportar as conseqüências dessa destruição de classes,
comunidades e Estados mais fracos, quanto para transformar a „gestão de recursos que se tornaram raros‟
e a „reparação das degradações‟ em campos de acumulação (em „mercados‟) subordinados ou
subsidiários”. CHESNAIS, François & SERFATI, Claude. “Ecologia” e condições físicas da reprodução
social: alguns fios condutores marxistas. Crítica Marxista, São Paulo, nº. 16, p. 39-75, março de 2003, p.
62.
122
Georg Lukács faz uma observação muito importante acerca do “apagamento” do mundo concreto sob
as formas abstratas e fetichistas de pensamento. Segundo ele, “a crise é o problema que impõe ao
pensamento econômico da burguesia uma barreira intransponível. Se então considerarmos – conscientes
de nossa parcialidade – essa questão de um ponto de vista puramente metódico, veremos que quando
conseguimos racionalizar integralmente a economia, metamorfoseá-la num sistema de „leis‟ formal,
abstrato e matematizado ao extremo, constituímos a barreira metodológica para a compreensão da crise.
Nos períodos de crise, o ser qualitativo das „coisas‟, que leva sua vida extra-econômica como coisa em si,
incompreendida e eliminada, e como valor de uso que julgamos poder tranqüilamente negligenciar
durante o funcionamento normal das leis econômicas, torna-se subitamente (para o pensamento racional e
reificado) o fator decisivo. Ou melhor: seus efeitos se manifestam sob a forma de uma paralisação no
funcionamento dessas leis, sem que o entendimento reificado esteja em condições de encontrar um
sentido nesse „caos‟”. LUKÁCS, Georg. História e consciência de classe: estudos sobre a dialética
marxista. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 231. O que vale para a crise econômica é igualmente
verdadeiro em relação à “crise” ecológica. Faz apenas algumas poucas décadas que o problema ecológico
passou a ser tema de debate na sociedade.
66

lógica de concorrência fratricida entre as empresas empurra os agentes econômicos à


referida cegueira e insensibilidade. Ninguém poderá deixar tirar o pé do acelerador
enquanto todos se conservam acelerando, e, como ninguém quer ser o primeiro a fazê-
lo, todos continuam a proceder do mesmo modo. Mas a mesma lógica vale para os
trabalhadores. O que lhes interessa é apenas que vender parte do tempo de vida em troca
de salário. Portanto, também lhes é inteiramente indiferente as conseqüências concretas
de suas atividades. Esta é uma determinação inerente à “personificação do trabalho para
capital”. Este ou aquele trabalhador pode levar em conta tais aspectos e se recusar a
trabalhar nessa ou naquela empresa. No entanto, outros tantos não deixarão de fazê-lo.
E, assim, a máquina capitalista continuará seguindo o seu curso. A lógica do sistema
capitalista escreve no alto de sua flâmula a infame insígnia: Aprés moi, le déluge!123
Destruir o mundo é algo racional num tempo de “racionalidade irracional”.
Desde o princípio, o capitalismo tendia a se chocar com os limites materiais e
ecológicos da Terra. No entanto, foi somente com o pleno desenvolvimento desse
sistema que esse conflito revelou toda a sua dramaticidade. O novo padrão tecnológico
não apenas está em contradição com a forma social baseada na exploração do trabalho
humano. O agravamento dessa contradição interna também gerou uma calamidade
ecológica. Por um lado, o capitalismo ameaça falecer por inanição, devido à sua
incapacidade em explorar quantidades crescentes de trabalhadores em seus processos
produtivos. Entretanto, por outro, no instante mesmo que irrompe com toda força essa
contradição de base do capitalismo, esse sistema passa a manifestar uma voracidade
apocalíptica de “recursos naturais” e a gerar uma poluição igualmente devastadora.
Em O capital, Marx assinala essa contradição entre a forma de riqueza abstrata e
o conteúdo concreto da realidade por meio da “lei da queda tendencial da taxa de lucro”.
Quanto mais se desenvolvem as forças produtivas, maior a composição orgânica do
capital. Os gastos em meios de produção crescem em relação aqueles despendidos no
pagamento do capital variável (força de trabalho), como resultado do tecnológico. Desse
modo, ampliam-se as dificuldades estruturais do sistema capitalista. Mas essa
contradição não se expressa apenas sob a forma de um agravamento de suas
contradições internas. Ela se desenvolve também por meio do aprofundamento do
conflito entre as exigências do modo de produção e de vida capitalista e a totalidade do
mundo concreto-sensível. Portanto, a colisão entre a forma abstrata de riqueza do

123
Depois de mim, o dilúvio!
67

capitalismo e o mundo concreto se expressa também através da intensificação da


exploração e destruição da natureza. Marx indica, em breves linhas, a contradição
latente entre a forma social abstrata e os limites da materialidade do mundo:

“Isso só quer dizer o mesmo número de trabalhadores, a mesma


quantidade de força de trabalho, tornada possível por um capital
variável de dado volume de valor, devido aos métodos de
produção peculiares que se desenvolvem dentro da produção
capitalista, põe em movimento, processa e consome ao mesmo
tempo uma massa sempre crescente de meios de trabalho, de
maquinaria e capital fixo de toda espécie, matérias-primas e
auxiliares”.124

Essa dilapidação ampliada da destruição ecológica pode ser designada como


taxa de aceleração do consumo do mundo. A redução do quantum de valor
“cristalizado” no corpo de cada mercadoria em virtude do desenvolvimento tecnológico
impulsiona o sistema a promover uma exploração cada vez mais intensa e extensa da
natureza. A ampliação da massa de valor impõe uma exigência que tende, em última
análise, à própria destruição da Terra. Se esta tendência destrutiva estava há tempos
passando a dominar – quer dizer: desde o advento do capitalismo, em sentido estrito, o
capitalismo da grande indústria –, com o desenvolvimento e a generalização da
tecnologia da microeletrônica – que corresponde ao momento em que a contradição
entre a forma social baseada no trabalho e a base tecnológica atingiu o cume –, esse
sistema ingressou num estágio em que a destruição da natureza torna-se extremamente
acelerada. Pode-se dizer que no momento em que a forma do valor já mal consegue se
refletir nas coisas, ela assume a feição de um impulso de aniquilação total, de destruição
de todo o mundo concreto-sensível. Portanto, no momento em que o capitalismo se
choca com o seu limite interno, relativo à sua lógica de funcionamento, ele também
colide com o seu limite externo: os limites materiais e ecológicos da Terra.

124
MARX, Karl. O capital: crítica da economia política, vol III, tomo 1. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
p. 164.
68

4. 2. O sonho (louco) do capital

A contradição entre a forma social e os limites materiais do globo se manifesta


na forma de destruição maciça da natureza. Mas este é o seu lado francamente
destrutivo. No entanto, há outro não menos importante. Trata-se do impulso desmedido
do capitalismo para recriar a natureza. No instante em que a Terra mesma se revela um
escopo demasiadamente limitado para a produção capitalista, esse sistema se
movimenta no sentido de se emancipar da natureza existente e criar uma outra natureza.
Se a natureza é um limite para o capital, ela então deve ser transformada numa barreira
passível de ser franqueada. Todavia, essa face produtiva e criativa não mais do que um
aspecto do mesmo impulso aniquilador capitalista. Essa “natureza absoluta modificada
– uma segunda natureza pura – é uma loucura manifestando-se como razoável”.125 Ela é
só um passo mais temerário das investidas desse sistema contra a totalidade do mundo
concreto-sensível.
Em suas Visões do futuro, Michio Kaku observa que estamos saindo da Idade da
Descoberta e entrando na Idade do Domínio. Segundo ele, “Durante a maior parte da
história humana, pudemos apenas observar, como espectadores, a bela dança da
natureza. Hoje, porém, estamos no ápice de uma transição memorável, passando de
observadores da natureza a coreógrafos ativos da natureza”.126 A Idade do Domínio
realiza aquilo que já era almejado desde o princípio da modernidade: “tornar o homem
senhor e possuidor da natureza”.127 Mas somente agora os humanos forjaram os meios
tecnológicos de levar esse ideal tão longe.128 Em última análise, trata-se de promover a

125
MENEGAT, Marildo. Depois do fim do mundo: a crise da modernidade e a barbárie. Rio de Janeiro:
Relume Dumará: FAPERJ, 2003. p. 35.
126
KAKU, Michio. Visões do Futuro: como a ciência revolucionará o século XXI. Rio de Janeiro: Rocco,
2001. p. 19.
127
DESCARTES. René. Discurso do método. São Paulo: Nova Cultural, 1991. (Os pensadores) p. 63.
128
“Os especialistas que acompanharam a evolução do desenvolvimento tecnocientífico no século XX e o
papel central que este passou a ter na dinâmica do capital, a partir da década de 70, sabem que a
sociedade ocidental contemporânea encontra-se em plena mutação. O domínio alcançou tamanha
extensão e intensidade que hoje a natureza, antes temida, parece vencida, enquanto a própria natureza
humana desponta como último território a ser conquistado. Por sua vez, a sociedade passa por um
processo acelerado de tecnologização – à reordenação e reprogramação do processo de trabalho em todos
os setores, tornada possível pela digitalização crescente dos circuitos de produção, circulação e consumo,
veio associar-se a recombinação da vida, tornada possível pela decifração do código genético e os
avanços da biotecnologia. Tudo se passa então, como se uma nova era estivesse se abrindo, ou, mais do
que isso, como se tudo fosse passível de questionamento; como se até mesmo a evolução natural das
espécies, inclusive a humana, tivesse chegado a seu estado terminal e a história tivesse sido „zerada‟,
tratando-se, agora, de reconstruir o mundo sobre novas bases”. SANTOS, Laymert Garcia dos. Politizar
as novas tecnologias: o impacto sócio-técnico da informação digital e genética. São Paulo: Ed. 34, 2003.
pp. 82, 83.
69

própria emancipação da natureza. Esse, aliás, é um sonho inscrito na própria forma


abstrata do valor. Conforme observa Moische Postone:

“O sonho sugerido pela forma capital é de uma total carência de


limites, uma fantasia de liberdade como completa liberação da
matéria, da natureza. Esse „sonho do capital‟ está se convertendo
em pesadelo para aqueles da qual a dita forma luta por se
emancipar: o planeta e os seus habitantes”. 129

No momento em que a natureza se revelou um domínio quantitativa e


qualitativamente limitado para seu movimento de expansão e acumulação permanente,
esse sistema passou a se movimentar no sentido de produzir a sua natureza: uma
natureza produzida pelo e para o capital. Este consiste num passo a mais no processo de
subsunção real do mundo (formal e material). Não basta ao capital mobilizar a natureza
existente que lhe fora herdada. Mas de criar uma nova natureza que seja totalmente
adequada à forma da mercadoria e aos processos de produção capitalista. A revolução
dos processos de produção industriais não deve se restringir aos meios de produção. Ele
deve atingir também a totalidade da natureza – incluindo os próprios seres humanos.
Talvez hoje possamos interpretar a metafísica da forma do valor num sentido
que até há bem pouco tempo esteve bastante oculto: o de ser ele uma espécie de modelo
do mundo concreto, ao qual deveria buscar se aproximar o máximo possível. Há aqui
alguma analogia com a metafísica de Aristóteles. Nela, Deus ou o Primeiro Motor
constitui o fundamento da realidade sensível. Essa substância suprassensível é a causa
do movimento de todas as coisas. Deus é imóvel, mas faz tudo se mover. Como? Por
amor, pela atração, que esse Ser perfeito exerce sobre os amantes. Perfeição essa que
decorre do fato de ele nada mais ser do que Pensamento Puro.130 Todos os seres se

129
POSTONE, Moishe. Tiempo, trabajo y dominación: una reinterpretación de la teoría crítica de Marx.
Madri: Marcial Pons, 2006. p. 489.
130
“Tal é, portanto, o primeiro princípio do qual dependem os céus e o mundo da natureza. E seu curso de
vida é o mais excelente que podemos fruir por curto período de tempo, pois está necessariamente sempre
nesse estado (o que para nós é impossível), uma vez que seu ato é também prazer. [...] Ora, o pensar em si
mesmo ocupa-se com aquilo que é em si mesmo o melhor, e o pensar no mais elevado como aquilo que é
no mais elevado sentido o melhor. E o pensamento pensa a si mesmo através da participação no objeto do
pensamento. [...] Se, então, Deus está sempre naquele bom estado no qual às vezes estamos, isso suscita
nosso maravilhamento, e se num melhor ainda, experimentamos um maravilhamento ainda maior. E Deus
está num estado melhor. Ademais, a vida também pertence a Deus, já que o ato do pensamento é vida, e
Deus é esse ato. E o ato essencial de Deus é a vida maximamente boa e eterna. Afirmamos, portanto, que
a vida e uma contínua existência eterna dizem respeito a Deus, por isso é o que Deus é”. ARISTÓTELES,
Metafísica. Bauru, SP: EDIPRO, 2006. Livro XII, capítulo 7, pp. 304, 305.
70

movem para tornarem-se idênticos a essa Substância. Bertrand Russel comenta esse
aspecto da metafísica de Aristóteles:

“Deus existe eternamente, como pensamento puro, felicidade,


auto-realização completa, sem quaisquer propósitos não
realizados. O mundo sensível, ao contrário, é imperfeito, mas
tem vida, desejo, pensamento de uma espécie imperfeita, e
aspiração. Todas as coisas vivas têm consciência, em maior ou
menor grau, de Deus, sendo levadas à ação por admiração e
amor a Deus. Assim é a causa final de toda atividade. A
mudança consiste em dar forma à matéria, mas, quanto ao que se
refere às coisas sensíveis, permanece sempre um substrato de
matéria. Somente Deus consiste de forma sem matéria. O mundo
está evoluindo continuamente no sentido de um grau maior de
forma, tornando-se, assim, progressivamente, mais semelhante a
Deus. Mas o processo não pode ser completado, porque a
matéria não pode ser de todo eliminada. Esta é uma religião de
progresso e evolução, pois a perfeição estática de Deus move o
mundo somente através do amor que os seres finitos sentem por
Ele”.131

O valor é o Deus do mundo das mercadorias. E ele, tal como o Deus de


Aristóteles, é pensamento puro, pois, como assinalou Marx, não possui “nenhum átomo
de matéria natural”. 132 Mas essa não é uma característica da forma do valor da
mercadoria, ela é também uma meta a ser atingida pelas coisas concretas do mundo.
Tornar as coisas concretas algo cada vez mais próximo de uma forma social cuja
característica é ser “puro feito humano”, 133 implica em transformar todas as coisas
naturais até o ponto em que elas próprias já não mais tenham “nenhum átomo de
matéria natural”. Ou seja: o próprio mundo material deve ser convertido em algo que
seja “puro feito humano”. Assim, o capital – com auxílio de sua tecnociência – tem
buscado transformar todo o domínio material em algo o mais próximo possível de seu
ideal: numa pura “coisa do pensamento”. De fato, a matéria natural representa um
estorvo para essa finalidade metafísica. Mas trata-se também de um limite que o capital
deve buscar transgredir, progredindo-se continuamente em função da plena consecução
desse ideal.
131
RUSSEL, Bertrand. História da filosofia ocidental, livro primeiro. São Paulo: Companhia Editora
Nacional, 1969. p. 196.
132
MARX, Karl. O Capital, vol I, tomo 1. São Paulo: Abril Cultural, 1983. p. 54.
133
SOHN-RETHEL, Alfred. Trabalho espiritual e corporal: para a epistemologia da história ocidental.
Disponível em: http://antivalor2.vilabol.uol.com.br
71

Esse ideal também encerra um mandamento ético que é amplamente aceito no


mundo moderno: transformem tudo, explore tudo, revolva tudo, sem cessar! Um
imperativo que decorre de uma religião do progresso secularizada. É esse imperativo
que está por trás da sacrossantificação do trabalho, do produtivismo industrial e da
benção praticamente irrestrita a qualquer desenvolvimento tecnológico e científico. Há
algo de muito religioso para além do suposto caráter objetivo e desencantado do mundo
capitalista. É como se o pecado estivesse escondido em tudo que é natural. A natureza
está em pecado e ele só pode ser expulso por meio das intervenções humanas. A
produtividade humana teria assim uma dimensão religiosa. 134 Essa ética religiosa –
embora silenciosa e oculta – fundamenta todo o louco ativismo que está destruindo o
mundo.135

***

O capitalismo se revela, assim, como uma espécie de leito de Procusto. Mas


trata-se de um leito de Procusto sui generis e muito mais sinistro. Na mitologia grega, o
bandido Procusto forçava as vítimas caberem no leito, cortando os pés dos indivíduos
grandes e estirando os pequenos pelos extremos. No capitalismo, esse leito não cessa de
se tornar menor em relação à quantidade dos seres humanos, exigindo, por isso, a
amputação da substância social que sobeja de suas limitadas dimensões. Imensas
porções da humanidade tendem a ficar de fora da forma (ou melhor: fôrma) social. Por
outro lado, em relação à natureza, esse leito não pára de crescer, promovendo um
esgarçamento dos próprios limites físicos da Terra – o que sem dúvida é extremamente
perigoso e potencialmente letal. A natureza recriada pelo capital é a prótese artificial
que visa atender as necessidades desmedidas do capitalismo. Nosso planeta encontra-se
deitado no leito de morte e martírio do capital. O progresso dessa dinâmica destrutiva
tendem a tornar nosso mundo algo cada vez mais monstruoso e disforme. A aceleração
do consumo do mundo e a recriação da natureza se combinam para provocar uma queda
tendencial da taxa das possibilidades de sobrevivência da espécie humana.

134
ANDERS, Günther. L’obsolescence de l’homme: sur l’âme à l’époque de la deuxième révolution
industrielle. Paris: Éditions de L‟Enciclopédie des Nuisances-Éditions Ivrea, 2002. p. 212. Esse caráter
religioso não passou despercebido a Marx. É o que se pode notar em uma série de alusões que ele faz a
esse respeito em O capital.
135
Ver: HINKELAMMERT, Franz; ASSMANN, Hugo. A idolatria do mercado: ensaios sobre economia
e teologia. São Paulo: Vozes, 1989.
72

4. 3. O sistema tecnológico

O processo de aceleração crescente do consumo do mundo e o impulso do


capitalismo para se emancipar da natureza tem os seus fundamentos na forma do valor
da mercadoria. Mas ele não pode ser compreendido apenas pela análise dessa forma
social. Tal compreensão exige uma investigação, ainda que sumária, sobre aquilo que
media a forma social e a realidade concreta e material do mundo: o sistema técnico e a
forma da ciência.
A socialização capitalista é regida por uma abstração fantasmagórica. Mas
abstração não apenas se apodera do mundo existente como também o modela à sua
imagem e semelhança. E isso é sobretudo verdadeiro em relação ao sistema tecnológico
criado por ela. Pode-se dizer que o sistema tecnológico constitui o “esqueleto objetivo”
do capital. Ele encarna as determinações da forma social. Portanto, tal sistema encontra-
se inerentemente ligado a essa forma de organização social. Por isso, ele não pode ser
simplesmente apropriado por uma forma de socialização alternativa. 136 Se assim o
fizesse, ela carregaria grande parte das determinações da sociedade que se quer
transformar. A crítica do capitalismo não pode se restringir às suas formas de
distribuição, mas deve ser dirigida à totalidade de seu modo de produção e de vida, o
que implica necessariamente, dentre outras coisas, à crítica de sua tecnologia.

***

A palavra tecnologia deriva do idioma grego: tekné, significa “ofício” ou “arte”,


e logia, “estudo de”. Em sentido amplo, pode-se dizer que todas as sociedades humanas
tiveram tecnologia, pois em qualquer estágio de desenvolvimento social, os humanos
aplicaram seus conhecimentos para moldar recursos visando atender a uma necessidade
prática. No entanto, há uma característica marcante que distingue o lugar que a técnica
assumiu no capitalismo em relação a todas as outras formas de sociedade. Foi somente
no capitalismo que a técnica se autonomizou em relação aos indivíduos e se tornou a
finalidade suprema da sociedade. Não é que, em outras formas de vida social, os

136
“a tecnologia capitalista não é indiferente aos objetivos para que foi criada. É uma tecnologia para a
produção de mais-valia, desenvolvida para subordinar o trabalhador, para dele tirar o máximo de
sobretrabalho. E quanto mais aumenta a capacidade de extrair sobretrabalho, maior a capacidade de
matéria transformada. O capital tem uma essência antiecológica”. GONÇALVES, Carlos Walter Porto. A
paixão da terra: ensaios críticos de ecologia e geografia. Rio de Janeiro: Pesquisadores Associados em
Ciências Sociais - SOCII, 1984. p. 37, 38.
73

humanos não tenham buscado criar meios mais eficazes pare realizar determinadas
tarefas. Mas foi apenas no capitalismo que a busca pelo máximo desempenho, pela
eficiência máxima, se tornou um imperativo.
Em última análise, a técnica não é mais do que um meio para atingir
determinado resultado. Ela não é nada mais do que um meio e um conjunto de meios.
Entretanto, tal é a centralidade da técnica – uma forma social cuja concorrência
econômica, política e militar açula os humanos a buscar um desenvolvimento técnico
constante – que essa relação se inverteu inteiramente. Nossa civilização se tornou uma
civilização de meios. Uma civilização em que os meios se tornaram mais importante do
que os próprios fins. Ela se funda na necessidade imperiosa de encontrar os melhores
meios em todos os domínios. É esse “best one way” que é, a rigor, o meio técnico. E é o
acúmulo desses meios que produz uma civilização técnica. 137
Quando se diz tecnologia, pensa-se imediatamente em máquina. Mas a
tecnologia é um sistema que vai além do domínio estrito da máquina. Em realidade, a
máquina é apenas uma pequena parte – ainda que muito importante – do sistema
tecnológico.138 Para que as máquinas – cada vez mais desenvolvidas – possam executar
as suas funções, elas precisam construir todo um entorno que lhes seja adequado. As
máquinas – que é técnica em estado puro – teriam muita dificuldade de operar num
mundo não-técnico. Haveria muitos entraves para o seu funcionamento. Por isso, desde
o surgimento das máquinas, tem se forjado todo um sistema tecnológico: um sistema
visando adequar os seres humanos e a natureza à sociedade industrial. Trata-se de
estender o “princípio de eficiência máxima” das máquinas à totalidade da realidade.
Portanto, todos os seres humanos e a toda a natureza devem ser transformados em partes
integrantes de uma “megamáquina”: uma gigantesca máquina total, em cujo centro
encontra-se a máquina original. 139 E o que implica isso? Em última análise: em
“transformar em máquina tudo o que ainda não o é”.140 Os próprios seres humanos
devem se tornar cada vez mais maquinais – e, no limite, tornarem-se, eles próprios,

137
ELLUL, Jacques. A técnica e o desafio do século. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1968. p. 21.
138
“[A] tecnologia é vista como um processo social no qual a técnica propriamente dita (isto é, o aparato
técnico da indústria, transporte, comunicação) não passa de um fator parcial. [...] A tecnologia, como
modo de produção, como totalidade dos instrumentos, dispositivos e invenções que caracterizam a era das
máquinas, é assim, ao mesmo tempo, uma forma de organizar e perpetuar (ou modificar) as relações
sociais, uma manifestação do pensamento e dos padrões de comportamentos dominantes, um instrumento
de controle e dominação”. MARCUSE, Herbert. Algumas implicações sociais da tecnologia moderna. In:
Tecnologia, guerra e fascismo. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1999. p. 73.
139
ANDERS, Günther. Nosostros los hijos de Eichmann: carta abierta a Klaus Eichmann. Barcelona:
Paidos, 1988. pp. 29-33.
140
ELLUL, Jacques. A técnica e o desafio do século. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1968. p. 3.
74

máquinas. E o que vale para os seres humanos vale também para a natureza. Tudo que é
natural tem de ser transformado numa criação artificial. A natureza – com sua
temporalidade, sua irregularidade, sua imprevisibilidade etc. – é, de certo modo,
inadequada ao princípio de eficiência máxima das máquinas. Conforme assinala Jacques
Ellul:

“o mundo constituído progressivamente pelo acúmulo dos meios


técnicos comporta o mesmo caráter: é um mundo artificial, e
portanto, radicalmente diferente do mundo natural. Destrói,
elimina ou subordina esse mundo natural, mas não lhe permite
nem reconstituir-se nem entrar com ele em simbiose. Obedecem
a imperativos e ordenamentos diferentes, sem medida comum.
[...] Caminhamos rapidamente para o ponto em que brevemente
não mais teremos meio natural”.141.

Quanto maior o desenvolvimento tecnológico, maior a pressão para a supressão


da natureza. Mas, por outro lado, a própria destruição da natureza fornece um impulso
para um desenvolvimento técnico ainda mais rápido: “somente invenções cada vez mais
numerosas e automaticamente acrescidas poderão compensar as incríveis despesas, o
desaparecimento irremediável de matérias-primas (madeira, carvão, petróleo... e mesmo
água).142 A natureza deve ceder progressivamente lugar àquilo que é artificial. Não se
trata apenas de criar produtos por meio de atividades industriais. E o próprio mundo
deve se tornar uma criação industrial. O descompasso entre o desenvolvimento das
máquinas e o mundo não-técnico que as circunda deve ser reduzido ao máximo – e
mesmo suprimido. “Assim, a cada vez que a técnica entra em choque com o obstáculo
natural, tende a contorná-lo, seja substituindo o organismo vivo pela máquina, seja
modificando esse organismo de modo a que não mais apresente reação específica”. 143
É por isso que não se ponde entender a tecnologia como simples instrumentos.
Ela não pode ser considerada com um instrumento porque se transforma no próprio
mundo:

“Afirmar que o sistema de instrumentos, os macro-instrumento,


é apenas um „meio‟, e que estaria, portanto, a nossa disposição

141
Id. Ibid p. 82.
142
Id. Ibid. p. 93.
143
Id. Ibid. p. 137.
75

para realizar os fins que nós teríamos livremente definidos, é


completamente absurdo. Esse sistema de instrumentos é o nosso
„mundo‟. E um „mundo‟ é uma coisa completamente diferente
de um meio. Trata-se de uma outra categoria”. 144

Aqui, mais do que nunca, vale a formulação de Hegel: “o verdadeiro é o


todo”.145 Portanto, a tecnologia que se transformou no nosso mundo não pode ser
compreendida em termos de meios de produção. Ela não pode ser considerada meio
porque ela própria passou a colocar a finalidade de seu desenvolvimento. Ela já não
serve mais aos seres humanos. Mas apenas a si mesma. São os próprios humanos que se
transformaram em meios para o desenvolvimento da tecnologia.

“Se tecnologia é idêntica a meios de produção, isto significa que


ela existe em função das necessidades humanas: ela produziria
aquilo que o homem necessitaria. Entretanto, porque o
funcionamento do sistema se transformou em fim, são as
necessidades humanas que se transformaram em meios. O
sistema busca o que é funcional em relação a si mesmo. As
atividades humanas de produção e consumo não são então
aquelas que vão determinar o sistema. Ao contrário, são as
necessidades de funcionamento eficaz que determinaram aquilo
que deve ser produzido e aquilo que deve ser consumido. Para o
sistema o fator necessidade, definido em termos humanos, é em
si absolutamente sem significação funcional alguma”. 146

Se o capital é o “sujeito automático” no plano da forma social, essa posição de


sujeito adquire um corpo material no domínio tecnológico. O sistema tecnológico
encarna assim algo que já estava presente no plano da forma. Ele materializa o “sujeito
automático”. Por que a tecnologia se configura como um processo automático? Porque,
tal como ocorria no plano da forma social, os seres humanos encontram-se alijados do
poder de decisão acerca de suas próprias vidas. Suas decisões são tomadas no interior de
um balizamento que lhes subjuga. Os indivíduos não podem decidir se querem ou não
desenvolvimento tecnológico. Uma vez que se encontram acossados pela concorrência,

144
ANDERS, Günther. L’obsolescence de l’homme: sur l’âme à l’époque de la deuxième révolution
industrielle. Paris: Éditions de L‟Enciclopédie des Nuisances-Éditions Ivrea, 2002. pp. 16, 17.
145
HEGEL, Friedrich. Fenomenologia do Espírito, parte I. Petrópolis, RJ: Vozes, 1992. p. 31.
146
ALVES, Rubem. Tecnologia e Humanização. Revista Paz e Terra. Rio de janeiro: Paz e Terra, Nº 8,
1968. p. 16.
76

torna-se imperativo que todos busquem o máximo desenvolvimento técnico. A escolha


encontra-se tomada por antecipação. O que se trata de decidir é apenas o de encontrar os
melhores meios para alcançar um maior desenvolvimento da técnica. A margem para
uma decisão propriamente humana tende a se tornar simplesmente nula:

“O automatismo – explica Jacques Ellul – consiste em que a


orientação e as escolhas técnicas se efetuam por si mesmas. [...]
Não há escolhas entre dois métodos técnicos: um se impõe
fatalmente porque seus resultados são contados, medidos,
patentes e indiscutíveis. [...] é a técnica que agora opera a
escolha „ispso facto‟, sem remissão, sem discussão possível,
entre os meios a utilizar. O homem não é mais, de modo algum,
o agente da escolha. [...] o progresso técnico funciona
automaticamente, a escolha entre os métodos não está mais ao
alcance do homem, mas ocorre como um processo mecânico”. 147

O critério da máxima eficiência técnica torna-se o único parâmetro legítimo da


sociedade. Desse modo, o pensamento humano, se não quiser entrar em conflito com o
sistema prevalecente, tem que ser ele próprio tecnológico. Quer dizer: não pode colocar
outro padrão de avaliação que não seja o da máxima eficiência técnica. Tudo mais passa
a ser reputado como um supérfluo e impertinente subjetivismo. Só há aí um único e
exclusivo critério de justificação e avaliação de todas as coisas. Tudo pode ser posto em
questão, menos o progresso técnico. “Não se deve impedir o automatismo e é
exatamente assim que o progresso se torna automático”. 148 Assim, “no interior do
mesmo campo técnico, a escolha entre os métodos, o maquinismo, as organizações, as
receitas, efetua-se automaticamente. O homem é privado de sua escolha e está satisfeito
com isso. Aceita-o, dando razão à técnica”.149 É o próprio pensamento deve se tornar
maquinal. Não é por acaso que as máquinas – o computador ou o cronômetro, por
exemplo – se tornam freqüentemente muito mais eficazes acerca da “escolha” da melhor
técnica. Quem poderia ser mais frio e objetivo do que uma máquina? As máquinas são
as verdadeiras experts da razão calculadora. Por isso, cada vez mais, decisões
importantíssimas são transferidas às próprias máquinas.

147
ELLUL, Jacques. A técnica e o desafio do século. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1968. pp. 83, 85.
148
Id. Ibid. p. 85.
149
Id. Ibid. p. 85.
77

No momento em que o capitalismo se tornou um sistema mundial, o sistema


tecnológico passou a açambarcar o mundo inteiro – e esse é um fato marcante de nossa
época.150 Diferentemente de tudo que ocorrera até então na história da humanidade, hoje
não é mais possível encontrar espaço algum livre da tecnologia – nem que seja sob a
forma do olhar vigilante dos satélites ou pelas várias modalidades de poluição. 151 O
domínio meramente formal da lógica da mercadoria sobre o planeta foi acompanhado
pelo domínio no plano material. Um domínio que avança cada vez mais e que não se
contenta em imantar a totalidade da Terra, mas que busca penetrar profundamente em
todo o domínio material, vivo e não-vivo.
Todo esse movimento não cessa de se tornar ainda mais veloz com o próprio
progresso tecnológico. Quanto mais a tecnologia é desenvolvida, mais conhecimentos e
mais técnicas são criadas, ampliando ainda mais a velocidade das mutações
tecnológicas. Encontramo-nos no joelho de uma curva ascendente da aceleração
tecnológica. Ingressamos num período de aceleração da aceleração do
desenvolvimento tecnológico. Um tempo de transformações cada vez mais velozes. Os
computadores, por exemplo, alteraram não apenas o mundo da produção industrial e dos
serviços. Eles são também os meios através dos quais a ciência tem alcançado um
desenvolvimento progressivamente mais célere. Desenvolvimentos esses que, por sua
vez, geram novas técnicas que favorecem outros desenvolvimentos técnicos.152
É derrisório acreditar que o problema desse sistema tecnológico advém do uso
que se faz dele e não dele próprio. Portanto, diante da técnica, o homem encontra-se
colocado diante da seguinte escolha: “utilizar a técnica como o deve ser, de acordo com

150
“Sempre diante das técnicas, o homem englobado em uma civilização de determinado tipo é ainda
livre de romper com ela e viver seu destino particular. Os constrangimentos, porque não técnicos, não são
de tal ordem, que não os possa descerrar. Assim, em uma civilização ativa, bastante desenvolvida do
ponto de vista técnico, o homem sempre foi capaz de romper esse laço e levar, por exemplo, uma vida
contemplativa e mística. O fato de que as técnicas estejam ao nível do homem permite-lhe repudiá-las ou
dispensá-las. Há uma possibilidade de escolha, não apenas quanto à sua vida interior mas quanto à forma
de sua vida, e ele pode, no entanto, perfeitamente viver; os elementos essenciais de sua vida são
salvaguardados e fornecidos mais ou menos liberalmente por essa própria civilização cujas formas são
rejeitadas. Assim, no Império Romano, idade técnica de muitos pontos de vista, é possível retirar-se, viver
seja como anacoreta, seja como camponês, à margem de toda evolução e a principal força técnica do
Império, o direito romano, permanecerá impotente diante dessa decisão que permite escapar ao serviço
militar e, em ampla margem, ao imposto e às jurisdições imperiais”. ELLUL, Jacques. A técnica e o
desafio do século. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1968. pp. 79, 80.
151
Em um mundo unificado, não é possível exilar-se”. DEBORD, Guy. Panegírico. São Paulo: Conrad
Editora do Brasil, 2002. p. 49.
152
É o princípio de combinação das técnicas que provoca o autocrescimento do desenvolvimento técnico.
Segundo Jacques Ellul, esse princípio pode ser formulado em duas leis: 1º Em uma civilização técnica,o
progresso técnico é irreversível; 2º O progresso técnico tende a efetuar-se, não de acordo com uma
progressão aritmética, mas de acordo com uma progressão geométrica”. ELLUL, Jacques. A técnica e o
desafio do século. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1968. p. 92.
78

as regras técnicas, ou não utilizá-las, de modo algum; mas é impossível utilizá-las a não
ser de acordo com as regras técnicas”. 153 Isso quer dizer que não é possível outro uso
para as técnicas existentes. Se seus efeitos são negativos e destrutivos, isso se deve à
própria natureza dessas técnicas.154
Seria completo absurdo dizer que uma torta de maça ou uma bomba
termonuclear não é algo bom ou ruim em si mesmo, mas que depende do uso que
façamos de ambos. O próprio objeto encarna a finalidade de seu uso. Por isso, não se
pode julgar o sistema tecnológico em termos do uso que o capitalismo tem feito dele. Se
o capitalismo tem promovido tanta destruição ao longo de sua história, isso não teria
sido possível sem sua tecnologia. E esta não teria surgido sem o desenvolvimento desse
sistema. O sistema tecnológico do capitalismo é tão capitalista quanto à forma social no
interior da qual ela opera. Ela é tão negativa e tão destrutiva quanto essa forma e não
pode ser simplesmente apropriada por uma forma social melhor.
Não é possível dizer a priori o que desse sistema tecnológico poderia ser ou não
utilizado por uma forma alternativa de socialização. Mas as forças produtivas legadas
pelo capitalismo são antes de tudo um problema. E não uma solução, em relação ao qual
bastaria simplesmente lhe dar um uso melhor. Tampouco o problema pode ser resolvido
apenas por meio da supressão dos maus elementos e da conservação dos bons. Tal como
as categorias da forma social, eles encontram-se intimamente articulados, e não podem,
por isso, ser separados uns dos outros.

4. 4. A forma-ciência

A ciência moderna está na base desse sistema tecnológico. Não se pode dizer
simplesmente que a ciência foi apropriada pelo sistema econômico e tecnológico. É um
erro compreender a funcionalidade da ciência moderna nesse sistema como uma mera
utilização externa. Tal mobilização não seria possível se não houvesse uma

153
ELLUL, Jacques. A técnica e o desafio do século. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1968. p.101.
154
“Quanto à tecnologia, o que quer dizer é que não há neutralidade da técnica enquanto técnica
efetivamente aplicada. A televisão, por exemplo, tal como é hoje, é um instrumento de cretinização. E
seria falso dizer que uma outra sociedade utilizaria essa televisão de outro modo: ela não seria mais essa
televisão. Muitas coisas deveriam ser modificadas na televisão para que ela pudesse ser „utilizada de
outro modo‟”. CASTORIADIS, Cornelius. As encruzilhadas do labirinto 2: os domínios do homem. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1987. p. 86. “Longe de ser um instrumento „neutro‟, a televisão predetermina
quem a utilizará e como a utilizará, qual a influência na vida das pessoas e, insistindo-se no seu uso em
larga escala, o tipo de formas políticas que poderá inevitavelmente fazer surgir. [...] Referir a televisão
como um instrumento „neutro‟, e como tal sujeito a transformações mostra-se tão absurdo como falar da
reforma duma tecnologia como a das armas”. MANDER, Jerry. Quatro argumentos para acabar com a
televisão. Lisboa: Antígona, 1999. pp. 58, 60.
79

correspondência demasiadamente estreita entre os imperativos tecnológicos e


econômicos e essa forma de produção de conhecimentos.
O advento do capitalismo não transformou apenas a forma como os humanos se
relacionam entre si e com a natureza. Essa nova época da história humana operou
também uma “revolução na maneira de pensar”. 155 Uma nova forma de vida social exige
uma igualmente nova “forma de pensamento”. E a ciência moderna não pode ser
compreendida sem essa imensa transformação na forma de os humanos pensarem e se
relacionarem entre si e com o restante da natureza.156
Uma das características da nova maneira de pensar consiste no fato de que a
natureza passa a ser vista como algo puramente objetivo, como matéria pura, destituída
de qualquer outra significação. A natureza é tomada como um simples objeto passível
de ser submetido a todo tipo de manipulação econômica, técnica e científica. Somente
por meio de tal redução é que se torna possível formalizar certos fenômenos da natureza
em termos estritamente matemáticos (a matemática é modelo do conhecimento
científico rigoroso). Há fortes analogias entre esse procedimento e aquele que impera na
forma do valor da mercadoria. Do mesmo modo que a forma valor reduz um
determinado produto a uma substância indiferenciada, também a ciência reduz as coisas
da natureza a quantidades determinadas de uma mesma substância. “A sociedade
burguesa está dominada pelo equivalente. Ela torna o heterogêneo comparável,
reduzindo-o a grandezas abstratas”.157
Mas a mesma violência cometida sobre o objeto é promovida contra o próprio
sujeito do conhecimento. Assim como é preciso suprimir as múltiplas qualidades das
coisas para reduzi-las a uma grandeza abstrata passível de ser quantificada, também o
sujeito do conhecimento deve expurgar e reprimir tudo o que há nele de mais próprio,
suas idiossincrasias, sua sensibilidade etc., até o ponto de se converter numa espécie de
ser genérico: um sujeito coletivo, sem identidade. Somente um pensamento que se faz
violência contra si mesmo é capaz de ser suficientemente duro em relação aos objetos.
A violência contra os objetos e contra o sujeito são momentos que estão

155
KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. São Paulo: Abril Cultural, 1974. (Os pensadores) p. 11.
156
DEUS, Jorge Dias de. Uma introdução, alguns comentários e três opiniões sobre a ciência. In: A
crítica da ciência. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1974. p. 12.
157
“Para o esclarecimento, aquilo que não se reduz a números e, por fim, ao uno, passa a ser ilusão: o
positivismo lógico remete-o à literatura”. HORKHEIMER, Max; ADORNO, Theodor. Dialética do
esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985. p. 23. “Não é sem razão
que a ciência reconhecida se irrita logo que surge no seu horizonte o que ela relega no domínio da arte
para permanecer em paz no interior de seu domínio de atividade”. Idem. Théorie esthétique. Paris:
Klincksieck, 1989. p. 294.
80

indissociavelmente ligados a essa forma de pensamento.158 Acontece aqui algo análogo


ao que ocorre com o sujeito da economia, que tem de expurgar todos os demais
elementos de sua subjetividade, para prevalecer tão-somente o impassível e frio cálculo
matemático, necessário às trocas mercantis.
Pode-se dizer que o sujeito do conhecimento mantém, de certo modo, uma
“relação privada consigo mesmo”. 159 Pois, embora ele observe e realize experiências
sobre a natureza, isso não é empreendido no sentido de compreender a natureza em si
mesma. Mas tão-somente de apreender aqueles aspectos que tornam possível a sua
dominação. Ele não quer simplesmente observar a natureza, mas sim submetê-la,
inclusive sob tortura, a fim de que ela responda as suas perguntas – como um juiz diante
de um réu.160 Como observa Horkheimer, o cientista

“não está interessado em compreender as coisas por si mesmas


ou em função do entendimento em si mesmo, mas sim com o
fito em função de ajustá-las dentro de um esquema, não
importando o quanto este seja alheio à estrutura interior das
coisas; isso se aplica tanto aos seres vivos quanto às coisas
inanimadas”.161

158
Segundo Vandana Shiva, a ciência moderna é reducionista e intrinsecamente violenta. Ela exerce
violência contra o sujeito do conhecimento, contra o objeto do conhecimento, contra o beneficiário do
conhecimento e contra o próprio conhecimento. Ela se pauta em algumas suposições ontológicas e
epistemolóticas. Suas suposições ontológicas são: que um sistema é redutível às suas partes; que o mundo
é feito dos mesmos constituintes básicos, que são mecânicos. E algumas suposições epistemológicas: que
o conhecimento das partes fornece o conhecimento do todo; que os „experts‟ e „especialistas‟ são os
legítimos portadores do conhecimento. SHIVA, Vandana. Reducionist science as epistemological
violence. Disponível em: http://www.unu.edu/ununpress/unupbooks/uu05se/uu05se0i.htm
159
MARX. Karl. O Capital, vol I, tomo 1. São Paulo: Abril Cultural, 1983. p. 131.
160
KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. São Paulo: Abril Cultural, 1974. (Os pensadores). p. 11.
Conforme Oswald Splenger: SPENGLER, Oswald. L’homme e la technique. Paris: Gallimard, 1958. p.
127.
161
HORKHEIMER, Max. Eclipse da Razão. São Paulo: Centauro, 2002. p. 153. “A técnica é a essência
desse saber, que não visa conceitos e imagens, nem o prazer do discernimento, mas o método, a utilização
do trabalho de outros, o capital. [...] O que os homens querem aprender da natureza é como empregá-la
para dominar completamente ela e os homens. Nada mais importa. [...] Poder e conhecimento são
sinônimos. [...] O que importa não é aquela satisfação que, para os homens, se chama „verdade‟, mas a
„operação‟, o procedimento eficaz”. HORKHEIMER, Max; ADORNO, Theodor. Dialética do
esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985. p. 20. Conforme observa
Marildo Menegat: “durante muito tempo, como, por exemplo, na Grécia Antiga, o conhecimento sobre a
natureza procurou compreendê-la em seu ser em si, e não apenas a partir das necessidades humanas. Com
a mudança na perspectiva desse conhecimento, que se efetiva na própria fundação da ciência moderna, a
natureza transforma-se numa simples presa dos apetites humanos não mediados pelos limites dela
própria”. MENEGAT, Marido. O olho da barbárie. São Paulo: Expressão Popular, 2006. p. 71.
81

Se o sujeito do conhecimento vai à natureza é apenas para reforçar seu próprio


esquema de pensamento e ampliar as suas capacidades de dominação da natureza. Essa
é uma característica fundamental da ciência moderna.

“Toda teoria científica é um mito relativo à interpretação das


forças da Natureza, e que cada uma depende da religião com a
qual está associada. Mas é na Cultura Faustica, e nela
exclusivamente, que cada teoria é também, desde a origem, uma
hipótese pragmética. Uma hipótese pragmática não tem
necessidade de ser „correta‟: tudo o que se lhe exige é de poder
ser colocada em prática”.162

Daí a ligação profunda entre a ciência e a tecnologia. Não se pode dizer


simplesmente que a ciência serve à tecnologia. Ela própria responde a um “a priori
tecnológico”.163 E é exatamente por isso que, por mais puro que seja esse conhecimento,
logo ele se converte em tecnologia. É só uma questão de tempo:

“A ciência pura não permanece indefinidamente pura. Mais cedo


ou mais tarde fica apta a tornar-se ciência aplicada e, finalmente,
tecnologia. A teoria torna-se prática industrial, o saber torna-se
poder, as fórmulas e as experiências de laboratório sofrem uma
metamorfose, e surgem como a bomba H”. 164

Portanto, pode-se dizer da forma ciência o mesmo que Marx disse acerca do
conjunto de formas de pensamento da socialização capitalista: “São formas de
pensamento socialmente válidas e, portanto, objetivas para as condições de produção
desse modo social de produção, historicamente determinado, a produção de
mercadorias”. 165 A ciência é um modo de produção de conhecimento. Uma forma,
dentre outras possíveis. E não o modo de conhecimento. Trata-se de uma forma tão
histórica como a forma de organização social da qual ela faz parte. É por isso que se
pode pensar no surgimento de uma outra ciência. 166 Se essa forma de produzir

162
SPENGLER, Oswald. L’homme e la technique. Paris: Gallimard, 1958. p. 127.
163
MARCUSE, Herbert. Ideologia da sociedade industrial. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1967. p. 150.
164
HUXLEY, Aldous. Regresso ao admirável mundo novo. São Paulo: HEMUS, 1959. p. 132.
165
MARX, Karl. O Capital, vol. I, tomo 1. São Paulo: Abril Cultural, 1983. p. 73.
166
“Para frear as tecnologias apocalípticas é necessária não apenas uma outra forma de sociedade, mas
também uma outra ciência. [...] Se o conhecimento científico não se emancipar da lógica de uma
82

conhecimento prevaleceu na época do capitalismo, isso não se deve à sua racionalidade


inerente, como se costuma acreditar, e sim porque liberou poderosos meios de dominar
a natureza e, em especial, por ter contribuído decisivamente na produção de meios de
morte mais eficientes.167
Tal como a forma do capital e do desenvolvimento tecnológico, a ciência
também se orienta para sua reprodução ampliada. Este é o telos do conhecimento
científico. Como observa Fernando Gil: “A forma da ciência é uma modalidade
particular da forma geral de reprodução alargada”. 168 Ao cientista cabe parte do
processo de reprodução social representado pela reprodução da ciência, onde sua função
é prolongar o processo da ciência. É esse objetivo autoreferente que torna a ciência tão
adequada à sociedade capitalista. Portanto, a ciência é tão cega quanto o próprio
capital. 169
Conforme assinala Robert Kurz: “um sujeito é um ator consciente que não tem
consciência de sua própria forma”.170 Portanto, o sujeito moderno – como as demais
pessoas ao longo da (pré)história humana – não tem consciência de sua própria forma. E
o que é verdade em relação as suas interações sociais é igualmente verdadeiro na
relação que esses sujeitos estabelecem com o conhecimento científico. A forma do
conhecimento científico permanece opaca e pressuposta aos próprios sujeitos da forma-

objetivação desumana da natureza, o complexo econômico-científico logrará transformar a Terra num


deserto da física”. KURZ, Robert. Natureza em ruínas. In: Com todo valor ao colapso. Juiz de Fora, MG:
Editora UFJF-PAZULIN, 2004. p. 238.
167
“É verdade que a ciência ocidental agora reina suprema por todo o globo; contudo, a razão disso não
foi um discernimento de sua „racionalidade‟ inerente, mas o uso do poder (as nações colonizadoras
impuseram seus modos de vida) e a necessidade de armamentos: a ciência ocidental até agora criou os
mais eficientes instrumentos de extermínio. [...] A ciência do Primeiro Mundo é uma ciência entre
muitas”. FEYERABEND, Paul. Contra o método. São Paulo: Editora UNESP, 2007. p. 22.
168
GIL, Fernando. O plano da ciência. In: A crítica da ciência. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1974. p.
181.
169
O século XX conheceu alguns sinistros expoentes do empreendimento científico: Fritz Haber (inventor
do gás mostarda na primeira guerra mundial) Shiro Ishii (cientista e militar japonês, que promoveu
pesquisas em seres humanos na Manchúria), Joseph Mengele (médico nazista que realizou horrendas
pesquisas em seres humanos), Edward Teller (conhecido como o pai da Bomba H, entre outros
horripilantes engenhos). O Dr. Fantástico (de Stanley Kubrick), o Dr. Moreau (de H. G. Wells), o Dr.
Frankenstein (de Mary Shelley), entre outros personagens da ficção, empalidecem diante dos modelos
reais: a ficção fica sem fôlego quando o mais fantástico devaneio se realiza. No entanto, mesmo tais
cientistas não podem ser considerados traidores do espírito da ciência. Pelo contrário: eles apenas
seguiram-no de forma resoluta. Poderia dizer algo semelhante ao que Marx disse acerca dos capitalistas.
Não se trata de pintar os cientistas com tintas róseas, o problema não está neste ou naquele indivíduo, mas
na própria forma de conhecimento. Não é esse o resultado último de uma ciência que exige o expurgo de
toda a sensibilidade, de tudo o que é pessoal? Se a ciência produziu resultados monstruosos isso se deve
ao fato de que, em plena conformidade com seu espírito, alguns cientistas terminaram por negligenciar
todos os valores humanos mais básicos para fazer prevalecer o único critério e princípio que se
submetem: dados pela própria ciência. A forma-ciência é intrinsecamente alienada.
170
KURZ, Robert: Dominação sem sujeito: sobre a superação de uma crítica social redutora. Disponível
em: http://antivalor2.vilabol.uol.com.br
83

ciência. Por isso, uma forma historicamente constituída se lhes aparece como sendo uma
condição natural e insuperável.
O próprio treinamento científico promovido pela escola e pela universidade não
tem outro objetivo senão o de moldar a subjetividade dos indivíduos a essa forma de
pensamento. A forma-ciência é uma bitola que os indivíduos devem se adequar para
produzir o conhecimento socialmente reconhecido. As instituições de ensino tencionam
docilizar e produzir um habitus de tal forma arraigado, até o ponto em que essa forma
seja identificada ao próprio conhecimento.
A teoria crítica da socialização capitalista não pode deixar de fora a crítica de
suas formas de pensamento, com destaque para a forma do pensamento científico. Pois,
como bem ressaltou Alfred Sohn-Rethel, forma social e forma de consciência estão
indissociavelmente ligadas. 171 Lembrando as palavras de Adorno: “Crítica da sociedade
é crítica do conhecimento, e vice-versa”.172 Essa dimensão da crítica do capitalismo não
pode ser negligenciada. Não se pode separar a ciência de suas “aplicações tecnológicas”
para fins econômicos, políticos e militares.
Alfred North Witehead teve o mérito de isolar o mal metodológico intrínseco ao
método científico, donde derivam todo um conjunto de outros males: o caráter
abstratizante, isolador, em oposição à experiência envolvente, total, emotiva, onde
sujeito e objeto, intelecto e sensações se diluem para emergir na vivência global.
Enquanto a forma da ciência só sabe produzir conhecimento no interior da forma
pressuposta, a crítica social também inclui a crítica da forma de conhecimento. A tarefa
da racionalidade filosófica é mais imprescindível do que nunca: fazer a crítica das
abstrações.

“A desvantagem de dar atenção a um exclusivo grupo de


abstrações, por bem fundadas que sejam, reside no fato de que,
conforme a natureza do caso, prescindimos das coisas restantes.
À medida que as coisas excluídas tornam-se importantes em
nossa experiência, nossos modos de pensamento passarão a ser
inapropriados para ocupar-nos delas. Não podemos pensar sem
abstrações; sendo assim, é da máxima importância manter-se
vigilante em rever criticamente os „modos‟ de abstração. Aqui é

171
SOHN-RETHEL, Alfred. Trabalho espiritual e corporal: para a epistemologia da história ocidental.
Disponível em: http://antivalor2.vilabol.uol.com.br
172
ADORNO, Theodor. Palavras e sinais: modelos críticos 2. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995. p. 189.
84

que a filosofia encontra o lugar próprio como essencial ao sadio


progresso da sociedade. É a crítica das abstrações...173

E como tal ela tem uma dupla função:

“primeiro a de harmonizá-las, apontando-lhes a sua conveniente


situação relativa como abstrações, segundo a de completá-las
pela comparação direta com intuições do universo mais
concretas, e portanto promover a formação do mais completo
esquema de pensamento”.174

Nos dias atuais, de grande crise ecológica e social, tal crítica torna-se
simplesmente imprescindível. Já não se pode ignorar todo um conjunto de relações e
articulações complexas em prol de um procedimento reducionista que retalha o mundo
em pequenas partes – cada vez menores – a fim de dominá-lo e conquistá-lo. Não é
apenas por meio da abstração matemática que o mundo é reduzido a uma substância
sem qualidades. Por meio da “aplicação tecnológica da ciência” o próprio mundo tem
realmente se convertido numa substância sem qualidades. As luzes da ciência estão
contribuindo para levar a humanidade a uma nova Idade das Trevas, em que se cruzam
o colapso social e o ecológico. A crítica de toda essa megamáquina econômica e
tecnológica exige a crítica da forma-ciência. Um outro mundo exige um outro modo de
pensar e de produzir conhecimento.175

4. 5. Tecnociência capitalista

O capitalismo atual encontra-se profundamente marcado pela existência da


tecnociência (tecnociência porque ciência e tecnologia encontram-se profundamente
imbricadas). Por isso, pode se dizer que nos encontramos na época do capitalismo
tecnocientífico. O modo de produção e de vida dos dias de hoje seria inteiramente
diverso sem a tecnociência. Mas não é apenas o capitalismo que é tecnocientífico.

173
WHITEHEAD, Alfred North. A ciência e o mundo moderno. São Paulo: Paulus, 2006. p. 79.
174
Id. Ibid. p. 133.
175
“Num processo de emancipação social, a rejeição da ciência como a rejeição do trabalho são
inevitáveis”. DEUS, Jorge Dias de. Uma introdução, alguns comentários e três opiniões sobre a ciência.
In: A crítica da ciência. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1974. p. 25.
85

Também a tecnociência é ela própria capitalista. Por quê? Porque ela não apenas passou
a ser produzida sob a forma de mercadoria e por meio de um processo de produção
tipicamente capitalista: sob a forma de produção industrial. 176

“Nos últimos vinte e cinco anos do século XIX, começou o que


Landes chamou „a exaustão das possibilidades tecnológicas da
Revolução Industrial‟. A nova revolução técnico-científica que
reabasteceu o acervo de possibilidades tecnológicas tinha um
caráter consciente e proposital amplamente ausente na antiga.
Em vez da inovação espontânea, indiretamente suscitada pelos
processos sociais de produção, vieram o progresso planejado da
tecnologia e projeto de produção. Isto foi realizado por meio da
transformação da ciência mesma numa mercadoria comprada e
vendida como outros implementos e trabalhos de produção. De
uma „economia externa‟ o conhecimento científico transformou-
se num artigo de balanço geral. Como todas as mercadorias, seu
fornecimento é impulsionado pela demanda, resultando que o
desenvolvimento de materiais, fontes de energia e processos
tornou-se menos fortuito e mais atento às necessidades
imediatas do capital. A revolução técnico-científica, por essa
razão, não pode ser compreendida em termos de inovações
específicas – como no caso da Revolução Industrial, que deve
ser compreendida mais em sua totalidade como um modo de
produção no qual a ciência e investigações exaustivas da
engenharia foram integradas como parte de um funcionamento
normal. A inovação chave não deve ser encontrada na Química,
na Eletrônica, na maquinaria automática, na aeronáutica, na
Física Nuclear, ou em qualquer dos produtos dessas tecnologias
científicas, mas antes na transformação da própria ciência em
capital”. 177

O que resulta disso? Resulta que se tornou cada vez mais raro o pesquisador
independente. É o fim a “produção artesanal” da pesquisa científica. O pesquisador
passou a ser subsumido formalmente às instâncias econômicas e políticas que lhe
escapam ao controle. Sua própria atividade de pesquisador passou a se constituir como
um pequeno fragmento de um processo de produção muito mais vasto.

176
“A materialização do desenvolvimento das forças produtivas que criam o capital fixo se efetiva através
de uma aplicação crescente da ciência e da tecnologia à produção, uma vez que estas, como um sistema
mecânico de atividades autômatas, são incorporadas ao capital. O desenvolvimento do capital fixo torna-
se uma exigência imperativa para o capital, transformando, nesse sentido, a pesquisa científica e a
produção tecnológica em ramos da própria produção”. MARILDO, Menegat. O olho da barbárie. São
Paulo: Expressão Popular, 2006. pp. 70, 71.
177
BRAVERMAN, Harry. Trabalho e capital monopolista: a degradação do trabalho no século XX. Rio
de Janeiro: Editora Guanabara, 1987. p. 146.
86

“A maior parte dos pesquisadores de laboratório são técnicos


que fazem um trabalho muito diferente do que se imagina ser o
trabalho científico. O cientista não é um gênio solitário.
„Trabalha em equipe, e consente em renunciar à liberdade das
pesquisas e à paternidade de sua invenção em troca do auxílio
pessoal e do material que lhe oferecem os grandes laboratórios:
são as duas condições indispensáveis; sem elas um pesquisador
não pode esperar a realização de seus projetos”.178

Mas essa situação tem raízes no próprio desenvolvimento da pesquisa científica.


Não são apenas as técnicas que passaram a depender cada vez mais do conhecimento
científico. Também o conhecimento científico passou a depender progressivamente dos
desenvolvimentos dos meios técnicos: “quanto mais avançada no uso da técnica, mais
material exige, seja em número de homens, seja em matérias-primas, seja em
complexidade de máquinas”.179 A partir de certo momento tornou-se necessário um
grande aparato para as pesquisas científicas, em especial nas hard sciences. Os custos
de tais pesquisas são altos demais. Em geral, apenas os Estados (apenas alguns) e as
grandes empresas são capazes de custeá-los. Pode-se dizer que ocorreu no âmbito da
pesquisa científica algo que é típico da produção industrial. Houve uma elevação da
composição técnica e, conseqüentemente, da composição orgânica no âmbito da
ciência. 180 Isso significa que quem quiser produzir conhecimentos científicos encontra-
se praticamente obrigado a se sujeitar a pesquisar nas instituições de pesquisas
financiadas pelo Estado ou por empresas privadas.

“Pois este é o dilema em que se acha preso o cientista moderno:


ou aceitar que suas pesquisas sejam aplicadas nas técnicas, ou
interrompê-las. Tal é o drama dos físicos do átomo: verificamos
que somente os laboratórios de Los Alamos dispunham dos
instrumentos técnicos necessários ao prosseguimento de seus

178
ELLUL, Jacques. A técnica e o desafio do século. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1968. p. 7.
179
Id. Ibid. p. 90.
180
Elevação essa que pode se exemplificada pelo LHC – Large Hadron Collider, ou Grande Colisor de
Hádrons – o acelerador de partículas que a Comunidade Européia está construindo em Genebra, na Suíça,
– cujo tubo, construído com materiais especiais, percorre um túnel circular de 27 quilômetros de
circunferência a 100 metros da superfície – com um custo de 10 bilhões de francos suíços (algo em torno
de 15 bilhões de reais), repartido por 20 países europeus e várias outras nações colaboradoras. Tal
engenho é tido como o mais ambicioso – e caro – instrumento científico já construído pela humanidade.
87

trabalhos. O Estado exerce, então, um monopólio de fato. E o


cientista é obrigado a aceitar suas condições. 181

Portanto, trata-se de algo que possui aspectos claramente negativos. Uma das
piores conseqüências consiste em que os próprios pesquisadores terminam por ficar
excluídos da representação global daquilo que eles produzem. Esse modo de produção
do conhecimento científico fragmenta o processo global em inúmeras atividades
parciais. Desse modo, cada pesquisador domina apenas uma parte limitada da produção
da pesquisa. Esse é um dos fatores que mais favorecem a “cegueira diante do telos”.182
Torna-se ainda mais abismal a desproporção entre os efeitos dos atos individuais e de
sua capacidade de representá-los. Não é de espantar que os cientistas terminem por
produzir criações tão monstruosas.183 Esse modo de produção de conhecimentos exclui
o problema da finalidade da atividade científica num nível ainda mais elementar: ele
simplesmente desaparece do campo de visão. Essa é uma característica de fragmentação
das atividades na sociedade capitalista.184
Esse modo especificamente capitalista certamente contribui para aumentar a
capacidade de produção de conhecimentos científicos. No entanto, tais conhecimentos
têm cada vez mais perdido qualquer sentido humano. Inserido nessa máquina global de
produção de conhecimentos, o pesquisador será tanto mais “competente” – do ponto de
vistas das referidas instituições de pesquisa – quanto mais seu pensamento for
maquinal: despersonalizado, inconsciente, automático e cego em relação à finalidade de
suas ações. Todo um conjunto de questões deve ficar de fora de suas preocupações. Ou
pelo menos não deve interferir em suas atividades científicas. Não há espaço para a
discussão acerca da finalidade da pesquisa. 185

181
Id. Ibid. p. 9.
182
ANDERS, Günther. Llamese cobardia a esa esperanza. Bilbao: Besatari, 1995. p. 93.
183
Essa fragmentação produz uma forma muito peculiar de aleijão: o aleijão espiritual. Modificando um
pouco as palavras de Marx, já citadas em capítulo anterior, poderia dizer que esse modo de produzir o
conhecimento científico “aleija [o cientista] convertendo-o numa anomalia, ao fomentar artificialmente
sua habilidade no pormenor mediante a repressão de um mundo de impulsos e capacidades produtivas,
assim como nos Estados de La Plata abate-se um animal inteiro apenas para tirar-lhe a pele ou o sebo. Os
[cientistas] parciais específicos são não só distribuídos entre os diversos indivíduos, mas o próprio
indivíduo é dividido e transformado no motor automático de um trabalho parcial, tornando assim a fábula
insossa de Menenius Agrippa, segunda a qual um ser humano é representado como mero fragmento de
seu próprio corpo, realidade”. MARX, Karl. O Capital, vol I, tomo 1. São Paulo: Abril Cultural, 1983. p.
238.
184
ANDERS, Günther. Llamese cobardia a esa esperanza. Bilbao: Besatari, 1995. p. 45.
185
“Quando a todo-poderosa economia enlouqueceu [...] ela suprimiu os últimos vestígios de autonomia
científica, tanto no plano metodológico quanto no plano das condições práticas da atividade dos
88

A apropriação destrutiva dos conhecimentos e habilidades desenvolvidos pela


tecnociência não seria possível – ou seria bem mais difícil – se não estivesse articulado
como um modo muito peculiar de produzi-los. O conhecimento científico e a tecnologia
não se tornam capitalistas apenas no momento da “circulação”, quer dizer, quando
apropriado pelos poderes econômicos e políticos. Seu próprio modo de produção já é,
desde o princípio, eminentemente capitalista: capitalista na forma de pensamento e no
modo como os próprios conhecimentos científicos são gerados. Por isso, a crítica do
capitalismo deve incluir não apenas à crítica da forma-ciência como do modo
especificamente capitalista de produção de conhecimentos. O problema não reside,
portanto, apenas na apropriação do conhecimento por parte do Estado e do capital. É a
própria forma de produção do conhecimento científico que também precisa ser alterada.
Do contrário, o conhecimento científico – esse produto do general intellect – continuará
se contrapondo aos próprios seres humanos.

„pesquisadores‟. Já não se pede que compreenda o mundo ou o torne melhor. Pede-se que ela justifique
tudo o que é feito. [...] A ciência da justificação mentirosa aparece naturalmente desde os primeiros
sintomas da decadência da sociedade burguesa, com a proliferação cancerosa das pseudociências
chamadas „humanas‟; mas a medicina moderna, por exemplo, conseguiu se fazer considerada útil por
algum tempo, e que haviam vencido a varíola ou a lepra eram bem diferentes dos que capitularam
vergonhosamente diante das radiações nucleares ou da química agroalimentar. É fácil perceber que hoje a
medicina já não tem o direito de defender a saúde da população contra o ambiente patógeno, porque isso
significa opor-se ao Estado, ou apenas à indústria farmacêutica”. DEBORD, Guy. Considerações sobre a
sociedade do espetáculo. In: A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. pp. 197, 198.
89

5. MUNDO PÓS-NATURAL

O mundo turbinado pela tecnociência entrou em colisão com os limites internos


da socialização capitalista e com os próprios limites ecológicos da Terra. A
microeletrônica criou forças produtivas que escapam aos estreitos limites dessa forma
de organização social e fazem como que esse desenvolvimento dos potenciais
produtivos da humanidade se transforme numa imensa calamidade ecológico-social.
Mas a terceira revolução tecnológica também tem se desdobrado no sentido de recriar a
natureza pela tecnociência capitalista: um mundo pós-natural.
Numa importante passagem dos Grundrisse, já comentada anteriormente, Marx
faz a seguinte observação do desenvolvimento das forças produtivas da sociedade.
Segundo ele, no momento em que as forças produtivas passam a se basear na força
produtiva científica:

“O trabalhador não insere mais, como intermediário entre o


material e ele, o objeto natural transformado em instrumento; ele
insere o processo natural, que ele transforma em processo
industrial, como intermediário, entre ele e toda a natureza, da
qual se tornou senhor. Mas ele próprio encontra-se colocado ao
lado do processo de produção, ao invés de ser seu agente
principal”.186

O desenvolvimento das forças produtivas torna a produção industrial cada vez


menos dependente do trabalho humano imediato. Assim, a produção se apresenta como
um processo natural, onde os seres humanos se limitam apenas a supervisionar e, no
máximo, auxiliar a produtividade natural. O corolário da referida transformação – mas
que se desenvolveu após um longo tempo de maturação – é que o próprio processo
natural passa a se converter num processo industrial.187 Tal fenômeno tem se tornado

186
MARX, Karl. Fondements de la critique de l’economie politique, vol II. Paris: Éditions Anthropos,
1968. p. 221.
187
Um exemplo desse processo é dado pela nanotecnologia. “De acordo com a nova visão nanométrica, a
agricultura precisa ser mais uniforme, ainda mais automatizada, industrializada e reduzida a funções
simples. Em nosso futuro molecular, a produção agropecuária será uma biofábrica de grande extensão,
que possa ser monitorada e manejada a partir de um notebook. Os alimentos serão manufaturados a partir
de substâncias projetadas para liberar, de forma eficiente, nutrientes ao corpo. A nanobiotecnologia
aumentará o potencial da agricultura para colher insumos alimentícios destinados a processos industriais.
90

cada vez mais proeminente no curso do desenvolvimento das forças produtivas


capitalistas. Isso significa que a natureza como um todo, desde sua constituição mais
íntima, seja produto da indústria capitalista. E, no limite, que ela passe a “funcionar”
como ela fosse uma indústria.
Façamos um breve inventário de algumas iniciativas de recriação da natureza
pela tecnociência capitalista.

5. 1. Novos materiais

As sociedades pré-modernas tinham suas bases econômicas fixadas, sobretudo,


em recursos orgânicos e renováveis, como a madeira, a água, o vento e a força de tração
animal. No entanto, a economia capitalista se desenvolveu baseando-se sobre recursos
energéticos não-renováveis e materiais inorgânicos. Mas a revolução tecnológica que
principiou em meados do século XX também introduziu uma modificação nesse âmbito.
Faz bem pouco tempo a maior parte dos produtos derivava de materiais disponíveis na
natureza ou de alguns poucos materiais que se podiam obter combinando com eles
certas matérias-primas. Portanto, essas matérias consistiam numa variável independente
e representavam um vínculo absoluto na relação entre os humanos e o mundo material
que ele havia herdado. No entanto, a tecnociência capitalista tornou possível transgredir
esses limites e criar uma série de materiais que jamais existiram na natureza.
Há hoje em dia uma série de novos materiais produzidos pela indústria. Os
novos materials tailoring permitem obter produtos refratários às vibrações, à ferrugem e
à deformação provocada pelas temperaturas mais elevadas. Desde a década de 1960 que
eles não param de ser criados: as fibras de carbono, o kevlar 99, as fibras de boro, o
carbureto de silício, a cerâmica avançada, os materiais sintéticos, os materiais
produzidos em nanoescala etc. Esses novos materiais têm produzido grandes efeitos na
produção e na vida das pessoas. Nosso mundo atual seria impensável, por exemplo, sem
os vários tipos de materiais plásticos.

Enquanto isso, commodities da agricultura tropical como borracha, cacau, café e algodão – e os
agricultores de pequena escala que a produzem – terminarão se sentindo exóticos e irrelevantes em uma
nova nanoeconomia de „matéria flexível‟, em que as propriedades de nanopartículas industriais podem ser
ajustadas para criar substitutos mais baratos, „mais inteligentes‟”. ETC Group. Nanotecnologia: os riscos
da tecnologia do futuro: saiba sobre produtos invisíveis que já estão no nosso dia-a-dia e o seu impacto
na alimentação e na agricultura. Porto Alegre: L&PM, 2005. pp. 52, 53.
91

Mas tais inovações não são isentas de graves problemas. Até meados do século
XX, a produção industrial se apoiava pouco mais de vinte materiais. Atualmente, a
indústria utiliza todos os elementos da tabela periódica como já criou algumas dezenas
de novos elementos. Portanto, estamos vivendo, faz somente algumas poucas décadas,
com uma série de materiais que nem o corpo nem o ambiente estavam habituados.
Porto-Gonçalves observa, por isso, que nos encontramos “no limiar de um descompasso
entre um tempo histórico e um tempo arqueológico, na medida em que estamos
submetendo a espécie humana à substâncias que nos colocam diante de mudanças no
nosso processo de hominização”.188
Nosso ambiente torna-se cada vez mais saturado e empesteado de um conjunto
de substâncias perigosas para os seres humanos: os éteres difenil polibromados
(PBDEs), retardante de fogo usados em plásticos e tecidos, os ftalatos, presentes em
plásticos e cosméticos, pesticidas como o DDT, o ácido perfluoroctanóico (PFOA),
usado em tecidos e superfície antiaderentes de panelas, as bifenilas policloradas (PCBs),
utilizadas em refrigeração e isolamento de sistemas elétricos, as dioxinas, um perigoso
dejeto industrial, os bisfenóis, um estrogênio sintético presente nos plásticos do tipo
policarbonato, empregados na produção de garrafas plásticas, e toda uma lista de metais
altamente tóxicos para os seres humanos e o ambiente, como o mercúrio, arsênico,
cromo etc.
A própria modificação na escala de tamanho dos elementos químicos já
existentes – por meio da tecnologia atômica, mais conhecida como nanotecnologia –
produzem grandes modificações nas características dos elementos químicos
(condutividade elétrica, reatividade, resistência, cor e, especialmente importante,
toxicidade).189 Os novos e os antigos materiais espalhados e dispersos pelo ambiente
podem ser um dos principais fatores para o recrudescimento de uma série de
enfermidades: câncer, leucemia, problemas no sistema nervoso etc.190

188
PORTO-GONÇALVES, Carlos Walter. A globalização da natureza e a natureza da globalização. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. p. 115.
189
Uma substância que é vermelha quando tem um metro de largura pode ser verde quando sua largura
for de uns poucos nanômetro; o carbono em forma de grafite é macio e maleável, mas em escala
nanométrica (escala do biolionésimo de metro), torna-se mais resistente do que o aço; apenas um grama
de material catalisador, feito com partículas de 10nm, é cerca de 100 vezes mais reativo do que a mesma
quantidade do mesmo material feito com partículas de 1 mícron (um mícron é 1.000 vezes maior do que
um 1nanômetro).
190
Tornou-se absolutamente verdadeira a afirmação que Henry Miller fez na década de 1940: de que “no
mundo industrial tudo é sujo, degradado, aviltado”. MILLER, Henry. Pesadelo Refrigerado. São Paulo:
Francis, 2006. p. 43.
92

As inovações tecnológicas e as pressões dos interesses econômicos empurram


uma série de novas substâncias no mercado muito antes de se saber sobre os efeitos que
elas podem causar. Aplica-se uma lógica de curto prazo, inteiramente irresponsável e,
no limite, suicida. Os efeitos que esse conjunto de substâncias isoladas e combinadas
pode provocar nos seres humanos e em outros seres vivos escapa à ciência e às
tecnologias modernas. O próprio fundamento da ciência ocidental moderna, que opera
com o método analítico, com a separação entre natureza e cultura e entre sujeito e
objeto, baseada no princípio de causalidade, quase sempre linear e determinista, não é
capaz de dar conta das complexas interações envolvidas. Cada investigação científica
pode garantir suas conclusões apenas nas condições em que a pesquisa foi efetivada.
Portanto, não correspondem às situações do mundo enquanto tal. No mundo real, onde
tudo interage com tudo, a complexidade é de tal ordem que ninguém poderá afirmar
peremptoriamente que o efeito de uma determinada ação será exatamente aquele
previsto no início da ação. A ciência se vê então obrigada a reconhecer a complexidade
e o próprio “princípio de incerteza” do qual nos advertia Heisemberg. 191

5. 2. Tecnologia nuclear

A energia fóssil é responsável por três quartos da energia consumida atualmente.


O esgotamento do petróleo – que deve acabar, pelo menos em sua forma
economicamente aproveitável, até meados do século XXI – revela sobejamente os
limites físicos de um modo de produção e de vida fossilista e petroleocêntrico. 192 No

191
A Mecânica Quantica é uma teoria desenvolvida nos anos 20 do século XX a partir do Princípio da
Incerteza de Heisemberg – enunciado em 1927 – e que pretende estudar fenômenos que ocorrem em
escalas extremamente reduzidas. Segundo esta teoria, desenvolvida por Werner Heisemberg, Erwin
Schrodinger e Paul Dirac, as partículas deixam de ter posições e velocidades distintas e definidas que não
podiam ser observadas e passam a ter um estado quântico resultante da combinação da posição e da
velocidade. Geralmente a mecânica quântica não estabelece um único resultado concreto para cada
observação. Mas, ao invés disso, um determinado número de resultados possíveis e a probabilidade de
cada um. A mecânica quântica introduz assim um elemento de imprecisão ou acaso na ciência. A
impossibilidade de prever os fenômenos não é considerada uma simples deficiência humana ou
experimental. Admite-se que ela seja inerente à própria natureza. Esta interpretação do Princípio das
Incertezas foi desenvolvida mais tarde por Niels Bohr.
192
Os hidrocarburetos derivados do petróleo e do gás natural são presentemente responsáveis por mais da
metade da energia primária ofertada no planeta. Cerca de 35,3% da energia total é fornecida pelo
petróleo; 21,1% pelo gás natural; 23,2% pelo carvão; 9,5% pela biomassa tradicional (lenha e outros
combustíveis); 6,5% de origem nuclear; 2,2% de origem hidroelétrica; 1,7% provém do tratamento
moderno da biomassa (álcool, biodísel, resíduos pulverizados); 0,5% das novas fontes renováveis (energia
solar, eólica, vulvânica). Portanto, os combustíveis fósseis (petróleo, gás e carvão) contribuem assim com
a avassaladora predominância de 79,9% do total, sendo 56,4% a parcela referente ao petróleo e ao gás
93

entanto, o capitalismo tem se movimentado no sentido de alargar a sua base energética.


A energia nuclear é uma das novas fontes de energia criadas em meados do século XX.
Essa energia que existe originalmente nas estrelas foi gerada aqui na Terra por
meio da tecnociência. Ela é obtida por meio da fissão dos átomos de urânio. A
desintegração atômica libera uma grande quantidade de energia. O processo de
produção da energia atômica é o mesmo que ocorre na explosão de uma bomba nuclear.
A diferença reside apenas que a utilização civil requer o controle da desintegração dos
átomos de urânio. A transformação dessa energia em energia elétrica é semelhante ao de
uma termoelétrica convencional. Mas com uma enorme diferença: em lugar de uma
caldeira encontra-se um reator nuclear. No entanto, a sua função é a mesma: ela fornece
o calor que aquece a água, cujo vapor movimenta as turbinas, gerando energia elétrica.
A energia nuclear é um empreendimento altamente problemático. O emprego
militar dessa tecnologia abriu uma sombria página na história da humanidade: uma
capacidade de destruição inaudita, inclusive de destruir-se a si própria. Mas ela também
apresenta grandes riscos em seu emprego civil. Os inúmeros acidentes nucleares que
ocorreram desde meados do século XX – como os de Chernobil e o de Three Mile
Island, por exemplo – comprovam-no sobejamente.
Mas essa tecnologia é perigosa e destrutiva mesmo quando restrita ao uso civil
livre de acidentes. Um dos mais graves problemas reside no lixo produzido pela
indústria nuclear. O plutônio é a substância que resulta da desintegração atômica do
urânio. Ele consiste num elemento químico altamente tóxico, cujos efeitos nocivos
perduram por um intervalo de tempo extremamente longo: aproximadamente 100 mil
anos. Um intervalo equivalente ao do surgimento da espécie humana.
Cada reator nuclear produz cerca de vinte toneladas de lixo atômico por ano, dos
quais duzentos quilos de plutônio. A totalidade do parque nuclear contemporâneo – de
cerca de quinhentos reatores – produzem a cada ano algo em torno de 10 mil toneladas
de resíduos tóxicos, dos quais 100 toneladas de plutônio. A armazenagem do lixo
radioativo requer, em primeiro lugar, condições geológicas adequadas, ou seja, áreas
livres de todo movimento de vulcanismo interno. Em segundo lugar, exige cuidados e
investimentos constantes. E não apenas por algumas poucas décadas. Mas por milhares
de anos. Está claro que ninguém pode garantir tal coisa.

natural. Porto, Mauro. O crepúsculo do petróleo: acabou-se a gasolina, salve-se quem puder! Rio de
Janeiro: Brasport, 2006. pp. 25, 26.
94

O tratamento do lixo radioativo é uma solução mais adequada. Mas ela também
depende da estocagem do material radioativo durante décadas, ou mesmo séculos, à
espera de uma diminuição substancial da radioatividade. Outro problema reside no
desmantelamento dos reatores nucleares em fim de carreira. Os reatores nucleares
duram cerca de trinta a sessenta anos, talvez um pouco mais, também exigem décadas
de espera para que o nível de radioatividade baixe e seja possível entrar nesse ambiente
com menor perigo.
A racionalidade que preside tal tecnologia obedece à visão irresponsável e de
curto prazo cuja máxima é depois de mim, o dilúvio.193 Emprega-se uma nova
tecnologia visando atender as demandas energéticas do capitalismo e as mais nefastas
conseqüências ficam para as gerações futuras. 194

5. 3. Engenharia genética

Para o capital e para o seu sistema tecnológico a natureza mesma se converteu


num problema. É visto como problemático tudo o que há nela de aleatório, de não-
planejado, de não-racionalizado, de caótico e de imprevisível. Ambos consideram que a
natureza “deve ser domesticada, dominada, suprimida, se possível, por uma ordenação
racional do mundo que dele erradique as incertezas, as imprevisibilidades”. 195 A
supressão da natureza tem um claro objetivo econômico: criar um monopólio das
riquezas da Terra. Todos os bens – mesmo aqueles que eram outrora fornecidos pela
natureza – devem ser transformados em objeto de comércio. No limite, ele quer se
tornar o senhor absoluto sobre a vida e a morte de todas as pessoas.

193
“A energia nuclear é o „depois de nós, o dilúvio‟ ou, se preferir, „aproveitemos agora e deixemos que
os nossos descendentes paguem a conta, se forem capazes‟. REEVES, Hubert. Mal da Terra: Paz da
Terra, 2006. p. 86.
194
A energia nuclear atende hoje a cerca de 6% do total da energia produzida no planeta. O aumento da
utilização dessa fonte de energia requer a ampliação da quantidade de reatores nucleares, o que, sem
dúvida, aumenta os riscos e os problemas que eles necessariamente acarretam. No entanto, em que pese
os riscos, em março de 2001, os Estado Unidos decidiu retomar a produção de energia nuclear. O projeto
Nuclear Power 2010 tem por objetivo a construção de novas centrais nucleares até o final da primeira
década do século XXI. Este movimento será acompanhado por outros países no mundo, inclusive na
Europa. O mesmo ocorre no Brasil. Prevê-se que a usina nuclear de Angra 3 seja colocada em
funcionamento até o ano de 2012 e que 50 novas usinas sejam construídas nos próximos 50 anos.
JUNIOR, Cirilo. Programa nuclear brasileiro prevê 50 novas usinas em 50 anos, diz Lobão. Folha Online,
12/09/2008. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/dinheiro/ult91u444354.shtml
195
GORZ, André. O imaterial: conhecimento, valor e capital. São Paulo: Annablume: São Paulo, 2005.
p. 87.
95

“A abolição da natureza tem como motor [...] o projeto do


capital de substituir as riquezas primordiais, que a natureza
oferece gratuitamente e que são acessíveis a todos, por riquezas
artificiais e comerciais: transformar o mundo em mercadorias
das quais o capital monopoliza a produção, posando assim como
mestre da humanidade”.196

A vida tal como existiu até então, resultado de um processo de bilhões de anos,
já não mais basta para satisfazer as necessidades da lógica abstrata da rentabilidade
empresarial. Por esse motivo o sistema busca criar novas formas de vida: gerar as
criaturas do capital. Assim, se até meados do século XX, o capital limitava-se a
explorar e revolver a Terra inteira para alimentar o processo de produção de mercadoria,
já nas últimas décadas desse século tornou-se claro que tal processo precisa dar um
passo além.

“A terra, as florestas, os rios, os oceanos e a atmosfera têm sido


colonizados, depauperados e poluídos. O capital agora tem que
procurar novas colônias a serem invadidas e exploradas, para
dar continuidade a seu processo de acumulação. Essas novas
colônias constituem [...] os espaços internos dos corpos das
mulheres, plantas e animais”.197

A tecnologia da chamada engenharia genética constitui um passo da maior


relevância nesse processo de recriação da natureza. A engenharia genética consiste num
conjunto de técnicas e métodos utilizados para construir moléculas de DNA
recombinante, introduzindo-as depois nas células receptoras. O processo tem duas fases
principais. A primeira – em tubo de ensaio – é a extração de DNA das células de um
organismo doador e a construção de uma molécula portadora – um vetor – que contém o
gene visado. A segunda fase consiste em implantar o vetor (geralmente plasmídeos ou
vírus) no organismo receptor. Os genes inseridos só funcionam se com eles for inserido
um promotor, uma espécie de “interruptor gênico”, para ativá-los. O promotor mais
usado é um gene viral, extraído do vírus do mosaico da couve-flor (ele se encontra em
90% dos cultivos transgênicos).

196
Id. Ibid. p. 88
197
Id. Ibid. p. 28.
96

É verdade que os seres humanos utilizam alguma espécie de biotecnologia nas


atividades agropecuárias há mais de 10 mil anos (desde a revolução neolítica), e,
portanto, produzem conhecimentos e técnicas aplicadas sobre os seres vivos. No
entanto, essa forma de intervenção é qualitativamente diferente do que faz a engenharia
genética. Até então só era possível fazer cruzamentos de variedades ou espécies
aparentadas. Hoje, porém, tais barreiras foram franqueadas, tornando-se possível
intercambiar artificialmente o material genético de dois organismos escolhidos ao acaso.
Portanto, a manipulação genética passa por cima das barreiras biológicas que separam
as espécies. Os mecanismos orgânicos naturais de evolução são colocados de lado e
passa-se a realizar intervenções nas interações gênicas naturais. Passou-se a cruzar
espécies inteiramente diferentes: sapos com tomates, peixes com batatas etc., tudo isso
auxiliado por vírus e bactérias – uma sopa indigesta.
A manipulação genética principiou a se desenvolver a partir de 1953, quando foi
decifrado o código genético. Desde os anos de 1970, têm-se realizado alterações
genéticas em micróbios. A partir dos anos de 1980, essa tecnologia também foi
empregada em animais e plantas. Entretanto, a engenharia genética só começou a ser
empregada em larga escala em 1986. No início da década de 1990, ela já envolvia
milhares de hectares em todo o mundo, particularmente no cultivo de soja, canola (uma
variação transgênica da colza), milho e algodão. Em poucos anos a descoberta científica
tornou-se uma tecnologia aplicada em larga escala.
Sabe-se que a natureza é um sistema muito complexo, e que, portanto, a
aplicação de uma tal tecnologia só poderia ser feita com muita cautela – supondo que
houvesse alguma necessidade para criar e aplicar essa tecnologia, o que não é, de modo
algum, o caso. Portanto, seria necessário obedecer ao “princípio de precaução”.198 Quer
dizer: não se poderia dar um passo tão arriscado enquanto houvesse tanta incerteza
envolvida. Entretanto, tal ponderação é algo que o capitalismo não possui e que se torna

198
O “princípio de precaução” definido pela ONU em 1994 é assim enunciado: “Quando há risco de
perturbações graves ou irreversíveis, a ausência de certezas científicas absolutas não deve servir de
pretexto para adiar a adoção de medidas”. Diante da complexidade do mundo biológico e das interações
ecológicas, do tamanho descomunal da nossa ignorância, da possibilidade de desleixo, dos acasos e das
contingências, das distorções do modo de produção capitalista e de outros relevantes aspectos de nossas
relações sociais, e diante da magnitude dos riscos presentes, impõe-se uma atitude de extrema prudência
em se realizar intervenções na natureza. Um critério elementar de prudência recomenda que se pense
várias vezes antes de manipular a constituição molecular dos organismos vivos ou interferir no
funcionamento dos ecossistemas. Como observa Jorge Riechmann: “Não porque eles sejam „sagrados‟ ou
imperfectíveis, mas porque de saída é bem mais provável que nossa intervenção piore tudo do que
melhore alguma coisa. É a isso que nos referimos ao qualificar as tecnologias do ADN recombinante de
„intrinsecamente perigosas‟”. RIECHMANN, Jorge. Cultivos de alimentos transgênicos: um guia crítico.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2002. p. 74.
97

cada vez menos provável de prevalecer numa época em que todo o sistema econômico-
tecnológico ingressa num período de aceleração vertiginosa.
A enorme disparidade entre os recursos empregados em pesquisas sobre os
impactos sociais e ecológicos da engenharia genética e aqueles que são aplicados nas
pesquisas da engenharia genética ilustra muito bem este problema. Enquanto os
recursos alocados às aplicações da engenharia genética não param de crescer, são
ínfimos os recursos disponíveis para as pesquisas relativas aos riscos e perigos a ela
associados.199
Que as referidas tecnologias não visam melhorar a vida das pessoas revela-se de
forma muito límpida em algumas das criações da biotecnologia capitalista. Um deles é
fornecido pela empresa Monsanto. Essa empresa criou plantas geneticamente
desenvolvidas resistentes ao seu próprio herbicida (Roundaup) apenas para fazer uma
venda casada ao agricultor. Outro exemplo ainda mais grave são as sementes
Terminator: as sementes estéreis, incapazes de germinar após a colheita. Assim, se o
agricultor quiser plantar, ele terá de comprar eternamente a semente produzida pelas
corporações. Trata-se aqui de uma estratégia perversa de destruir a produtividade
inerente da natureza para conferir o monopólio dessa capacidade ao capital.
A introdução da tecnologia da engenharia genética mostra até aonde tem
chegado o processo de conversão dos potenciais produtivos em forças destrutivas: ele
atinge agora até mesmo a produção de alimentos. Muito do que se consome no planeta
inteiro pode não ser nada mais do que veneno. Talvez uma das maiores armas de
destruição em massa jamais criada pelos seres humanos.

5. 4. Biologia sintética

A tecnologia do DNA recombinante é um passo elementar no processo de


criação de novas formas de vida. Ela se limita a “embaralhar” o material genético de
espécies diferentes de seres vivos. A biologia sintética constitui um passo a mais nesse
processo de recriação da natureza. Trata-se do processo de produção da vida à la carte.

199
Na França, o orçamento para pesquisa ecológica no sentido abrangente (incluída a biologia de
populações) não chega a 5% do total destinado às “ciências da vida”. Na República Federal Alemã, no
período 1985-1989 – crucial no desenvolvimento das aplicações comerciais para essas biotecnologias – o
Ministério Federal de Pesquisa reservou quase um bilhão de marcos para as aplicações da manipulação
genética, enquanto destinou somente vinte milhões para pesquisa em biossegurança. Nos Estados Unidos,
o Departamento da Agricultura destinou à avaliação de riscos apenas 1% das verbas destinadas à pesquisa
biotecnológica. Esta é a proporção que vigora no setor público: cerca de cinqüenta ou de cem para um.
Não precisa muito esforço para imaginar o que acontece no setor privado. Id. Ibid. p. 70.
98

Ou seja: de construir organismos vivos a partir do zero. Mais precisamente: a partir da


fabricação de módulos de DNA artificial, programados para serem montados uns com
os outros, criados ao gosto do “desenhista”.
Os riscos envolvendo essa tecnologia são ainda maiores. Está claro que a vida
não se reduz a tijolos montáveis nem a um programa de computação. A natureza não
pode ser desmontada e remontada como se tratasse de peças de um relógio.
“Experimentar com organismos vivos novos e artificiais que poderiam se liberar ao
ambiente significa uma enorme ameaça a biossegurança das pessoas e do planeta”
adverte a Dra. Doreen Stabinsky, do Greenpeace Internacional. 200 Não é difícil imaginar
uma situação em que os cientistas percam o controle sobre suas próprias criações.
O laboratório científico não mais constitui uma “esfera separada” dos demais
contextos da vida social. Ele foi integrado à vida de uma forma bem peculiar:
transformou a totalidade dos seres vivos numa gigantesca cobaia coletiva e o planeta
inteiro em laboratório de umas quantas corporações. Enquanto isso o capital – com os
seus novos engenhos – assume a pose de criador supremo, uma espécie de Deus: o
criador de novas formas de vida. No entanto, suas criações são os monstros de
Frankenstein de nossos dias. Em primeiro lugar, tais criações não são capazes de
compensar a enorme destruição à biodiversidade que o capitalismo tem criado ao longo
dos anos. E, em segundo lugar, elas submetem as pessoas e todos os outros seres a
enormes e desnecessários perigos.
Não bastasse isso, as novas biotecnologias capitalistas podem contribuir com a
produção de armas com inaudito poder de destruição. É possível construir um vírus
maligno que afete um determinado grupo de seres humanos utilizando informações
genéticas que são de domínio público. Diferentes grupos de investigadores já
sintetizaram vírus completos: bacteriófagos, vírus da pólio e outros. Basta lembrar que
em outubro de 2005, biólogos do Center for Disease Control dos Estados Unidos
recriaram o vírus da gripe espanhola de 1918, que matou entre 50 a 100 milhões de
pessoas. Novas e sinistras criações estão em curso nos laboratórios de empresas e do
Estado.

200
Alarma sobre biologia sintética: coalición global demanda debate público y supervisión inmediata.
Acesso: www.etcgroup.org/upload/publication/pdf_file/6
99

5. 5. Nanotecnologia

Em dezembro de 1959, o futuro Prêmio Nobel Richard Feynman deu uma


palestra visionária chamada “Há espaço de sobra lá embaixo”. O evento era um
encontro da American Physical Society no California Instititue of Technology
(Caltech). Suas palavras definiam a nanotecnologia muito antes que qualquer coisa em
nano ter aparecido no horizonte:

“O assunto sobre o qual quero falar – disse Feynman – é o


problema da manipulação de controle de coisas em pequena
escala [...] O que demonstrei é que há espaço, que se pode
diminuir o tamanho das coisas de forma prática. Agora quero
mostrar que há espaço de sobra. Não vou discutir como vamos
fazer isso, mas apenas o que é possível em princípio [...] Não
vamos fazê-lo porque simplesmente ainda não temos as
soluções”.201

Tais palavras pareciam troça. Ou soavam como que saídas da boca de um


visionário: “Não tenho receio de considerar como questão final se, por fim, no futuro
distante, nós pudermos arranjar os átomos da maneira que quisermos [...]. O que
aconteceria se pudéssemos arranjar átomos, um por um, do jeito que quiséssemos?”.
Feynman observava que se fosse possível operar no nível dos átomos, então seria
possível desencadear uma importante revolução tecnológica. Sua inspiração veio da
descoberta recente do código genético. Essa descoberta sugeria que enormes
quantidades de informações podem ser concentradas no espaço de algumas poucas
moléculas. Feynman imaginou que, se fossemos capazes de manipular os átomos,
poderíamos fazer algo análogo. Seríamos capazes, por exemplo, de armazenar as
informações contidas nos vinte quatro milhões de volumes da Biblioteca do Congresso
dos Estados Unidos na cabeça de um alfinete. No entanto, na época em que proferiu a
palestra, os computadores eram ainda geringonças enormes. Eles ocupavam metades das
salas em que eram colocados. E, embora Feynman falasse em mexer em átomos,
ninguém jamais tinha visto um deles. Trinta anos depois, o sonho do físico ganhou
forma na ciência do muito pequeno: a nanotecnologia. Assim chamada porque seus

201
FEYNMAN, Richard. There’s plenty of room at the bottom. Disponível em
http://www.zyvex.com/nanotech/feynman.html
100

objetos de estudo costumam ser medidos em nanômetros: na escala do bilionésimos de


metro.
Essa ciência só pode surgir com o desenvolvimento dos meios técnicos. Os
novos microscópios foram fundamentais. Um dos passos mais significativos foi a
invenção, em 1981, do microscópio de varredura por tunelamento eletrônico (sacnning
tunneling microscope – STM) por Gerd Binning e Heinrich Roher, do laboratório da
IBM em Zurique. Esse microscópio permitiu visualizar e investigar pela primeira vez o
relevo atômico da superfície de um corpo. O STM deu origem a uma família de
instrumentos de visualização e manipulação na escala atômica denominados
microssondas de varredura (scanning probe microscopes – SPM). Além da visualização
nanométrica de uma superfície, os SPM permitem manipular átomos e moléculas, como
foi demonstrado em 1990, quando Donald Eigler e Erhard Schweizer, do laboratório da
IBM em Almaden, Califórnia, escreveram o logotipo IBM posicionando 35 átomos de
xenônio sobre uma superfície de níquel. Os humanos tornaram-se então capazes de
tocar o coração da matéria. E foram além. No início da década de 1990, Reymond
Ashoori, físico nos AT&T Bell Labs, havia criado um átomo artificial: um átomo cuja
contagem de elétrons era controlável por seu fabricante humano, de zero a sessenta.
“Podemos fabricar átomos de qualquer tamanho”, disse ele. Horst Storner, colaborador
de Ashoori na AT&T acrescentou: “Pode-se fazer qualquer tipo de átomo artificial –
átomos longos e finos ou átomos grandes e redondos”. A conclusão disso tudo era a
seguinte: se você pudesse unir alguns desses átomos recentemente criados e com isso
criar sua própria molécula artificial, tornar-se-ia possível produzir um sólido
inteiramente artificial. Nas últimas décadas do século XX, houve novos
desenvolvimentos nos instrumentos óticos. Em agosto de 2002, a IBM anunciou que
havia desenvolvido um novo microscópio eletrônico com um poder de resolução capaz
de alcançar o raio de um só átomo de hidrogênio.
Essas invenções marcam uma etapa decisiva na mudança dos paradigmas da
física no século XX. Tinha-se ido do estágio de inexistência de prova dos átomos, aos
átomos reais e inobserváveis, depois para os átomos reais, visíveis, e mesmo
separadamente móveis e, por fim, para as criações atômicas artificiais sob medida. A
humanidade já não esta mais “confinada” aos blocos construtores da matéria da
natureza. Agora ela se torna capaz de fazer os seus próprios blocos. Esse conjunto de
inovações técnicas tornou possível o surgimento da nanotecnologia. Deixou de ser uma
mera visão de um cientista isolado.
101

Eric Drexler - pesquisador afiliado ao Laboratório de inteligência artificial do


Massachusetts Institute of Technology (MIT) – fez de Feynman um profeta dos novos
tempos e pôs mãos a obra para que a nova ciência viesse ao mundo. Eric Drexler não é
um pesquisador do tipo que se limita a censurar sua imaginação. Ele pensa longe
quando se trata de mostrar os novos horizontes que se abrem com o surgimento dessa
nova tecnologia. Uma das idéias de Drexler é a criação de nanomáquinas: pequenos
robôs invisíveis – chamados por ele de “montadores” – que produziriam objetos
manipulando átomos e moléculas individualmente. A manufatura molecular promoveria
uma revolução radical no modo de produção. Ela deixaria muito para trás tudo que
ocorrera até então na história dos progressos técnicos e industriais. Seria uma quarta e
muito mais profunda revolução tecnocientífica.
Essa tecnologia, segundo ele, poderia prover a humanidade de uma riqueza
material infinita, sem qualquer esforço humano. Representaria o fim de qualquer limite
para o crescimento. Estaríamos livres dos entraves e constrangimentos da matéria. “O
mundo da matéria bruta permite um crescimento imenso, ainda que limitado. Mas o
mundo das idéias e das invenções está aberto a uma evolução e a mudanças sem fim. O
mundo do possível parece bastante espaçoso”.202 Com a nanotecnologia, todas as coisas
poderiam ser produzidas contando apenas com alguns tantos elementos fartamente
disponíveis no universo. Portanto: um método de produção inteiramente novo. Não se
trata mais de produzir um objeto moldando um grande fragmento de matéria. Mas de
criar os objetos de baixo para cima. Quer dizer: montando-os a partir de suas menores
partes: os átomos e as moléculas.
No entanto, essa tecnologia revolucionária apresenta graves riscos. O que
aconteceria se essas máquinas moleculares saíssem do controle? O que ocorreria se elas
abrissem caminho para fora do laboratório? Poderia surgir um devorador onívoro, muito
pior do que qualquer epidemia ou praga, capaz de consumir toda a matéria orgânica e
destruir a biosfera no prazo de algumas poucas horas. O planeta poderia ser rapidamente
transformado numa “gosma cinzenta”. Esses novos seres, observa Eric Drexler,
“poderiam se espalhar como o pólen, se replicar rapidamente e reduzir a biosfera em
poeira em alguns dias”.203 Eles seriam tão resistentes, tão pequenos e se propagariam de
um modo tão veloz que seria muito difícil pará-los. Mais uma vez ficamos diante de
algo que mais parece ficção. De fato tornou-se matéria para o techno-thriller de Michael

202
DREXLER, Eric. Engins de création: l´avènement des nanotechnolgies. Paris: Vuibert, 2005. p. 209.
203
Id. Ibid. p. 216.
102

Crichton, Presa (Prey), que relata uma clássica história em que os robôs terminam por
destruir os humanos que os criaram. Entretanto, o problema existe e pode se tornar
muito real. Ele corre por trás das costas da maior parte das pessoas. Os acontecimentos
mais decisivos de nossa época estão fora do alcance de nossas vistas e mesmo de nossa
imaginação.
Todavia, esse passo da nanotecnologia – a manufatura molecular – ainda está
longe de ser alcançado. Talvez precise de mais algumas décadas. De todo modo, vale
lembrar uma das três leis da tecnologia de Arthur Clarke: “Quando um cientista afirma
que alguma coisa é possível, ele está quase certamente certo. Quando ele afirma que
alguma coisa é impossível, ele está muito provavelmente errado”. 204 Muitos bilhões de
dólares que estão investidos nas pesquisas em torno da nanotecnologia. Inúmeros
laboratórios estão se dedicando aos avanços dessa tecnologia. Não devemos considerar
tal tecnologia irrealizável tão-somente porque nos encontramos ainda afastados de sua
plena consecução.
Mas os riscos que os humanos e o ambiente em geral correm por conta da
nanotecnologia já são uma realidade. Um dos desdobramentos iniciais dessa nova
tecnologia é a utilização de nanopartículas. Partículas que, devido a sua redução à
nanoescala, adquirem propriedades muito diferentes daquelas apresentadas em escala
natural. Dezenas de companhias se dedicam atualmente à produção de nanopartículas. E
uma série de produtos já as utilizam: agrotóxicos, cosméticos, protetores solares,
produtos alimentícios etc. Uma série de novos produtos se encontra em estágio de
desenvolvimento.205 Os produtos são comercializados sem que se faça a menor menção
nas embalagens e antes mesmo de qualquer discussão sobre o assunto.
Faz bem pouco tempo, as partículas nanométricas eram recebidas como algo
benéfico ou totalmente inofensivo aos seres humanos e ao ambiente. Entretanto, alguns
cientistas alertam sobre os riscos e perigos das nanopartículas. Ao que tudo indica, as
nanopartículas são mais tóxicas do que os mesmos compostos em escala maior, devido
à sua maior mobilidade e aumento de reatividade. 206 Existe um enorme descompasso
entre o emprego açodado dessa tecnologia e os estudos sobre a toxicologia de

204
As outras duas são: 1) “A única maneira de descobrir os limites do possível é se aventurar um pouco
além deles e penetrar no impossível”. 2) “Qualquer tecnologia suficientemente avançada é indistinguível
da magia”. Citas por KURZWEIL, Ray. A era das máquinas espirituais. São Paulo: Aleph, 2007. p. 34.
205
ETC Group. Nanotecnologia: os riscos da tecnologia do futuro: saiba sobre produtos invisíveis que já
estão no nosso dia-a-dia e o seu impacto na alimentação e na agricultura. Porto Alegre: L&PM, 2005. p.
29.
206
ETC Group. La inmensidad de lo mínimo. Disponível em: http://www.etcgroup.org
103

nanopartículas engenheiradas. Devido à falta de conhecimento a respeito, alguns


especialistas recomendam que a liberação de nanopartículas no meio ambiente seja
reduzida ou proibida. Esta é a posição da Real Sociedade e a Real Academia de
Engenharia acerca dessa tecnologia:

“Até que se tenha mais conhecimento a respeito dos impactos


ambientais, consideramos importante que a liberação de
nanopartículas e nanotubos, no meio ambiente, seja evitada o
máximo possível. Especificamente recomendamos, como uma
medida de precaução, que as fábricas e os laboratório de
pesquisa tratem as nanopartículas e os nanotubos manufaturados
como se eles fossem fontes de resíduos perigosos e que a
utilização de nanopartículas em aplicações ambientais como
remediação de águas subterrâneas seja proibida”. 207

No entanto, a lógica de curto prazo do capital se choca com qualquer “princípio


de precaução”. Os investimentos na nanotecnologia não cessam de aumentar. Novos
produtos criados por essa nova tecnologia são quase que imediatamente lançados no
mercado. Não há tempo para sopesar os riscos envolvidos. Também a nanotecnologia
transforma o planeta numa gigantesca cobaia.
Há também o da corrida armamentista pela conquista dessa nova tecnologia. O
almirante David E. Jeremiah, vice-diretor do Estado-Maior Conjunto das Forças
Armadas dos Estados Unidos, resume o sentido dessa corrida. Ele está seguro de que
mais cedo ou mais tarde outras potências poderão desenvolver essa tecnologia. E por
isso não quer que os Estados Unidos fiquem para trás: “Queremos coisas, como a
nanotecnologia, em pesquisa e desenvolvimento para continuamos mantendo a frente de
inimigos em potencial”. 208 A nanotecnologia pode tornar possível a produção de armas
apavorantes: diminutos invasores invisíveis, que nunca apareceriam em qualquer tela de
radar inventada até agora. Eles poderiam ser programados para ultrapassar a fronteira
em uma rajada de vento, entrar no corpo humano e dissolvê-lo rapidamente. Quem
dispuser de tais armas, obterá um enorme poder de destruição.209

207
The Royal Society & The Royal Academy of Engineering. Nanoscience e nanotechnologies:
opportunities and uncertainties. Disponível em: http://www.nanotec.org.uk/finalReport.htm
208
EDWARD, Regis. Nano: a ciência emergente da nanotecnologia: refazendo o mundo molécula por
molécula. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. p. 24.
209
“Os especialistas prevêem que a nanotecnologia irá mudar a forma de fazer guerras mais do que a
invenção da pólvora. [...] irá produzir soldados com corpos e cérebros “melhorados”. Ela também
104

5. 6. Convergência tecnológica

A nanotecnologia encontra-se no centro de convergência de outras tecnologias.


Está se buscando fundir quatro importantes tecnologias: a biotecnologia, a informática,
as ciências cognitivas (ou neurais) e a nanotecnologia. A sinergia dessa fusão tende a
proporcionar rápidos avanços tecnológicos em todos esses campos. Destacados
formuladores de políticas e líderes industriais dos Estados Unidos estão desenhando um
projeto “Manhattan” ou “Apolo” de novo tipo, para fundir tecnologias estratégicas em
nano escala.210 Mas não estão sozinhos. Outros governos seguem o exemplo. Também
estão comprometidas as principais corporações de todos os setores industriais: Boeing,
Bayer, Motorola, Mitsubishi, IBM, entre outras.
Quando o mundo conhecido se reduz, literalmente, a átomos e moléculas feitas a
partir dos elementos químicos, esfuma-se a diferença entre o vivo e o não-vivo. Os
tijolos fundamentais da constituição biológica, informática e neuronal estão
“materialmente unificados” na nano escala e, portanto, podem se combinar ou
manipular através da tecnologia atômica. Trata-se de uma tecnologia que visa estender o
controle humano sobre a totalidade da matéria, da vida, do conhecimento e inclusive da
mentalidade coletiva. Certamente nem a sociedade nem a natureza serão às mesmas
depois de seu desenvolvimento. A integridade e a saúde humanas – inclusive a
diversidade cultural e genética – ficarão nas mãos da tecnocracia que dispuser de tais
ferramentas. A tecnologia atômica também trará modificações profundas na produção

conduzirá para o desenvolvimento de armas químicas e biológicas que são mais invasivas, mais difíceis
de detectar e, virtualmente, impossíveis de combater. As qualidades de invasividade e invisibilidade de
sensores e dispositivos em nanoescala poderiam se transformar em ferramentas de repressão
extremamente poderosas. [...] A idéia de que milhares de diminutos sensores poderiam ser espalhados
como olhos, ouvidos e narizes invisíveis através dos campos de cultivo e campos de batalha soa como
ficção científica. Mas, dez anos atrás, Kris Pister, um professor de robótica da Universidade de Berkley
na Califórnia, recebeu financiamento da Agência de Projetos de Pesquisa Avançada em Assuntos de
Defesa dos EUA (DARPA) para desenvolver sensores autônomos, cada um deles do tamanho de uma
cabeça de fósforo. Utilizando a tecnologia de gravação em sílica, esses motes (sensores de „pó
inteligente´) teriam uma fonte própria de energia, capacidade de computação e a possibilidade de detectar
e então se comunicar com outros motes da vizinhança. Dessa forma, os motes individuais se auto-
organizariam em redes de comutação ad hoc, capazes de transmissão de dados através de tecnologia sem
fio (isto é, rádio). O interesse imediato da DARPA, no projeto, era estender redes de pó inteligente pelo
terreno do inimigo, para obter informação em tempo real sobre movimentação de tropas, armas químicas
e outras condições do campo de batalha, sem ter de arriscar vidas de soldados”. ETC Group.
Nanotecnologia: os riscos da tecnologia do futuro: saiba sobre produtos invisíveis que já estão no nosso
dia-a-dia e o seu impacto na alimentação e na agricultura. Porto Alegre: L&PM, 2005. pp. 33, 34, 75,
76. A nanotecnologia fornece novos meios para a instauração de guerra high-tech sob a forma de lean
destruction.
210
Ver: ROCO, Mihail C. & BAINBRIDGE, William Sims. Converging Technologies for improving
human performance: nanotechnology, biotechnology, information technology and cognitive science,
NSF-DOC Report, June 2002, Arlington VA, USA. Disponível em:
http://www.wtec.org/ConvergingTechnologies/1/NBIC_report.pdf
105

agrícola e alimentar em todo o mundo. A convergência entre essas tecnologias em nano


escala ampliam imensamente a força dessas tecnologias enquanto estavam separadas.
Essa tecnologia tornará possível um domínio sobre a natureza e sobre os seres humanos
maiores do que jamais se viu até então na história da humanidade.
Não se pode negligenciar o impacto dessa força que está surgindo nos
laboratórios de grandes firmas e do Estado. Embora elas estejam sendo criadas nos
países centrais do capitalismo, ela atingirá a todos. Está surgindo uma tecnologia que
transformará os mais diversos aspectos da vida humana. Enquanto a teoria do Big Bang
explica as origens do universo, a teoria do pequeno BANG211 poderá promover o fim da
natureza e da sociedade tal como a conhecemos. 212

5. 7. Pós-humano

Conforme as previsões dos pioneiros da Inteligência artificial, os seres humanos


logo terão de realizar um contínuo e radical upgrade se quiserem acompanhar o
desenvolvimento tecnológico. Sua constituição natural revelar-se-á algo inteiramente
obsoleto frente às demandas de uma sociedade inteiramente plasmada pela tecnologia.
Eles terão então que se atualizar por meio de implantes eletrônicos e utlização de
substâncias químicas para acompanhar o curso do desenvolvimento tecnológico. Enfim:
terão de se transformar em cyborges. Está claro que tal “atualização” não seria uma
escolha, mas sim uma necessidade inescapável. Isto é: ou se adaptam ou ficam para trás.
Na Mínima moralia, Adorno observa que essa alteração da composição técnica
alterava em profundidade a própria subjetividade dos sujeitos que vivem sob o
capitalismo. “Se a integração da sociedade, sobretudo nos sistemas totalitários,
determina os sujeitos a serem cada vez mais exclusivamente aspectos parciais no
contexto da produção material, então a „transformação da composição técnica do
capital‟ prolonga-se nos indivíduos, absorvidos, a rigor, em primeiro lugar constituídos
pelas exigências tecnológicas do processo de produção”.213 No entanto, o curso do
desenvolvimento tecnológico anuncia algo ainda mais perturbador: de que os próprios

211
A unidade operativa das ciências da informação é o bit, a nanotecnologia manipula os átomos, as
ciências cognitivas se ocupam dos neurônios e a biotecnologia explora os gens. As letras iniciais dessas
três palavras forma a sigla BANG. É com essa sigla que o grupo ETC (Erosão, tecnologia e concentração)
designa essa convergência tecnológica. A Fundação Nacional da Ciência (NFS) do governo dos Estados
Unidos se refere a esta convergência pela sigla NBIC (nano-bio-info-cogno).
212
Ver, do ETC Group, La estratégia de las tecnologias convergentes: a teoria del pequeño BANG e La
inmensidad de lo mínimo. Disponíveis em: http://www.etcgroup.org
213
ADORNO, Theodor. Minima Moralia. São Paulo: Ática, 1993. p. 200, 201.
106

seres humanos passem a ser reprogramados e reconfigurados a fim de melhorar seu


desempenho. Sob o peso da “vergonha prometéica”, da qual nos fala Günther Anders,
os humanos teriam que empreender um profundo processo de human engineering.214
Prevê-se que, em função do vertiginoso progresso da computação, a espécie
humana deixará de ser a espécie mais inteligente do planeta – inteligência concebida
como capacidade computacional: memória, capacidade de realizar cálculos etc., mas
deixando de lado todos os outros aspectos que estão ligados à inteligência humana:
sensibilidade, sentimentos, intuição, instinto, idéias, utopias, desejos etc. Caberia à
tecnologia a tarefa de manter os seres humanos no mesmo nível que as suas criações. A
engenharia genética, por exemplo, poderia contribuir para o “melhoramento” do ser
humano, fornecendo-lhes cérebros melhores e metabolismos mais aperfeiçoados. No
entanto, essa tecnologia poderá dar uma contribuição apenas limitada para essa
finalidade. Isso porque os cérebros humanos continuariam sendo construído de proteína
e composto de neurônios. E por isso permaneceriam mais lentos do que os
computadores. Mesmo “um superhomem criado pela engenharia genética – observa
Hans Moravac – não passaria de um robô de segunda classe, concebido com a limitação
de a construção se basear apenas na síntese protéica guiada pelo ADN”. 215 Segundo ele,
somente seres humanos “chauvinistas” poderia considerar que a proteína tenha alguma
vantagem em relação aos componentes dos robôs.
Hoje muita gente já vive graças a uma panóplia crescente de órgãos e outras
próteses artificiais. Com o tempo, especialmente com o desenvolvimento das técnicas
robóticas, esse processo tende a ser ainda mais pronunciado. No limite, os seres
humanos poderão transplantar tudo, inclusive o cérebro humano, para um corpo
robótico, especialmente concebido para isso. Mas ainda assim a limitação persistiria.
“Infelizmente, embora esta solução permitisse superar a maioria de nossas limitações
físicas, deixaria inalterada a nossa maior limitação: a inteligência fixa e limitada do
cérebro humano” – assinala Hans Moravac.216 Por isso, talvez não houvesse então uma
outra solução senão a de desmaterializar os próprios humanos, realizando um download
de sua mente para o computador. E assim, conforme Marvin Minsky, nos libertaríamos
de nossa “máquina de carne” – a meat machine: o cérebro e essa “sujeira sangüinolenta”

214
ANDERS, Günther. L’obsolescence de l’homme: sur l’âme à l’époque de la deuxième révolution
industrielle. Paris: Éditions de L‟Enciclopédie des Nuisances-Éditions Ivrea, 2002.
215
MORAVAC, Hans. Homens e robots: o futuro da inteligência humana e robótica. Lisboa: Gradiva,
1992. p. 166.
216
Idem. Ibidem. p. 166.
107

(bloody mess) que é o corpo humano, e nos tornaríamos puro espírito: espírito
transplantado para uma máquina eletrônica. Esse passo significaria também nada mais
nada menos do que a própria vitória sobre a morte. Ray Kurzweil observa: “Até agora,
nossa mortalidade estava amarrada à longevidade do nosso hardware. Quanto o
hardware falhava era o fim”. 217 No futuro, já não mais seremos hardware, mas tão-
somente software. Mas está claro que aí já não seriamos propriamente humanos.
Teremos nos tornado em nada mais do que um cogito: uma pura coisa que pensa.218
O mundo pós-humano seria um passo avançado na subsunção real (formal e
material) do mundo do capital. Num determinado estágio da evolução tecnológica, os
próprios humanos trocarão seu corpo natural por um “esqueleto objetivo” moldado pela
tecnociência e, assim, deixarão a antiga humanidade para trás. Mas esse ser pós-humano
não tem nada que ver com uma espécie de Übermensche (superhomem) de Nietzsche.
Seria antes uma versão high-tech do Untermensche (subhomem) tipicamente capitalista:
um Zé Ninguém turbinado. Isso porque essa human engineering não deve servir para
promover um amplo desenvolvimento das capacidades humanas. Mas tão-somente para
potencializar apenas algumas faculdades: aquelas que são estritamente necessárias ao
mundo do capitalismo tecnocientífico. Trata-se de melhorar as capacidades de cálculo,
de reduzir o período de descanso, de reprimir certos desejos, de trabalhar em condições
inóspitas etc.

“Por mais „sobrehumano‟ que possa ser essa performance


comparada às possibilidades ordinárias do corpo [e do
pensamento humano], o resultado esperado não é, no entanto,
apenas alguma coisa de subhumano, uma pura função
instrumental, um „saber-fazer‟ pontual ao qual o „homem real‟
(uma vez que ele não pode ser eliminado) só se liga como um
apêndice ao qual se acomoda”.219

217
KURZWEIL, Ray. A era das máquinas espirituais. São Paulo: Aleph, 2007. p. 181.
218
“E, portanto, pelo próprio fato de que conheço com certeza que existo, e que, no entanto, noto que não
pertence necessariamente nenhuma outra coisa à minha natureza ou à minha essência, a não ser que sou
uma coisa que pensa, concluo efetivamente que minha essência consiste somente em que sou uma coisa
que pensa ou uma substância do qual toda a essência ou natureza consiste apenas em pensar. [...] é certo
que este eu, isto é, minha alma, pela qual eu sou o que sou, é inteira e verdadeiramente distinta de meu
corpo e que ela pode ser ou existir sem ele”. DESCARTES, René. Meditações metafísicas. São Paulo:
Abril Cultural, 1991. (Os pensadores) p. 216.
219
Idem. L’obsolescence de l’homme: sur l’âme à l’époque de la deuxième révolution industrielle. Paris:
Éditions de L‟Enciclopédie des Nuisances-Éditions Ivrea, 2002. p. 60.
108

Mas os homens-máquinas são apenas um passo intermediário. O resultado final


seria a própria extinção dos seres humanos e a sua substituição pelas máquinas. Não é
isto que está inscrito no princípio das máquinas220 que rege a nossa sociedade
industrial? Que tudo deve se tornar algo maquinal e, no limite, deve se transformar
numa criação inteiramente artificial? A extinção dos seres humanos e a sua substituição
por robôs seria mesmo a consumação do curso da evolução. Seriam os robôs os
herdeiros da Terra? Marvin Minsky não tem dúvida: “Sim, mas eles serão nossos
filhos”. E completa: “Devemos nossas mentes às mortes e vidas de todas as criaturas
que estiveram algum dia engajados na luta pela chamada Evolução. Nossa tarefa é zelar
para que todo esse trabalho não termine em desperdício sem sentido”. 221 Para Hans
Moravac,

“Estamos muito próximos do tempo em que, virtualmente, a


nenhuma função humana essencial, quer física, quer mental,
faltará o correspondente artificial. A encarnação desta
convergência de desenvolvimentos culturais será o robô
inteligente, uma máquina capaz de pensar e de agir como um ser
humano, por muito desumana que seja nos pormenores físicos
ou mentais. Tais máquinas serão capazes de prosseguir a nossa
evolução cultural, incluindo a própria construção e
desenvolvimento cada vez mais rápidos, sem necessidade de nós
ou dos genes que nos deram origem. Quanto tal acontecer, o
nosso ADN tornar-se-á inútil, perderá a corrida evolutiva em
favor de um novo tipo de competição. [...] A nossa cultura
poderá então evoluir independentemente da biologia humana e
de suas respectivas limitações, passando, em vez disso, a ser
transmitida diretamente de geração a geração de máquinas
inteligentes progressivamente mais capazes. [...] Um mundo
pós-biológico, dominado por máquinas pensantes em contínuo
auto-aperfeiçoamento, seria tão diferente do nosso mundo de
seres vivos como o nosso é diferente do mundo da química que
o precedeu”.222

Por mais estranho que tudo isso possam parecer, tais perspectivas não podem ser
simplesmente consideradas como loucas especulações de alguns teóricos amalucados de

Paidos, 1988. pp. 29-33.


221
MINSKY, Marvin. Will robots inherit the Earth? Disponível em: http:??web.media.mit.edu/~minsky/]
222
MORAVAC, Hans. Homens e robots: o futuro da inteligência humana e robótica. Lisboa: Gradiva,
1992. pp. 11, 13, 15.
109

seriedade duvidosa. Elas consistem antes no desdobramento de algo que está inscrito no
próprio seio da dinâmica direcional cega do sistema tecnológico e econômico
prevalecente. É verdade que os referidos pesquisadores vêem esse processo de um modo
afirmativo. Todavia, em que pese isso, o fato é que eles, ao seu modo, descrevem
corretamente o sentido de nossa sociedade: uma sociedade que os seres humanos não
controlam as suas criações e que terminam sofrendo com a violência das potências por
eles despertadas: ou eles se adaptam ou eles perecem – tendo a própria extinção como
desfecho último. Assim, eles revelam, malgrado suas intenções, o caráter tecnológico-
totalitário inerente à sociedade capitalista. Uma sociedade cujo progresso deixa entrever
um tempo em que o terceiro Reich nazista aparecerá como um pálido precursor: como
um experimento mesquinho e provinciano, em que pese seu esforço de ter buscado
dominar o mundo inteiro.

“A semelhança desse ameaçador império técnico-totalitário com


nosso império de ontem é evidente. Naturalmente, isto parece
provocador, pois temos adquirido o doce costume de considerar
o império que deixamos para trás, o „terceiro‟ Reich, como um
fato único, errático, como um fato atípico de nossa época ou no
nosso mundo ocidental. Mas este hábito, evidentemente, não
serve como argumento, esta atitude não é mais que uma forma
de fechar os olhos. Posto que a técnica é nossa filha, seria tão
covarde como estúpido falar da maldição que é inerente como se
esta tivesse entrado casualmente em nossa casa pela porta dos
fundos. Esta maldição é nossa maldição. Posto que o império da
máquina procede por acumulação, e posto que o mundo de
amanhã se globalizará e os seus efeitos o abarcaram por inteiro,
propriamente falando a maldição se acha todavia diante de nós.
Ou seja: temos que esperar que o horror do império por vir
eclipse amplamente o do império de ontem”. 223

Ainda não chegamos lá. Mas estamos avançando rapidamente para um mundo
de “totalitarismo maquinal”. De todo modo, as tendências em curso deixam entrever
horizontes cada vez mais sombrios. “Tendências são fatos”.224 Não podem ser
negligenciadas.

223
ANDERS, Günther. Nosostros los hijos de Eichmann: carta abierta a Klaus Eichmann. Barcelona:
Paidos, 1988. p. 33.
224
Id. Ibid. p. 33.
110

6. PRODUÇÃO E DESTRUIÇÃO

6. 1. Forças destrutivas

Em meados do século XIX, Marx e Engels haviam observado uma tendência que
viria prevalecer cada vez mais no curso do desenvolvimento do capitalismo: a
transformação das forças produtivas em forças destrutivas:

“Tais forças produtivas alcançaram com a propriedade privada


um desenvolvimento exclusivamente unilateral, tornam-se, em
sua maior parte, forças destrutivas, e um grande número delas
não pode encontrar a menor utilização sob o seu regime [...]. No
desenvolvimento das forças produtivas, ocorre um estágio em
que nascem forças produtivas e meios de circulação que só
podem ser nefastos no quadro das relações existentes e não são
mais forças produtivas, mas sim forças destrutivas (a máquina e
o dinheiro)”.225

Essa conversão agora atinge a totalidade do sistema capitalista. Ele se tornou


uma imensa máquina de aniquilação e danificação que atinge a Terra inteira e a
totalidade de seus habitantes. Transformou-se mesmo numa ameaça à sobrevivência da
espécie humana. Essa destrutividade diz respeito às exigências imposta pela economia,
à totalidade do sistema tecnológico e ao conjunto de valores de uso e ao modo de vida
predominante.
Grande parte dos produtos criados pelo capitalismo contemporâneo sofre de uma
sensível “baixa tendencial do valor de uso”.226 Em grande medida, serve apenas para
satisfazer necessidades falsas e artificiais: os “apetites desumanos, refinados,
antinaturais e imaginários”.227 Não se produz artigos para que realmente satisfaçam as
necessidades das pessoas. O que realmente interessa é a reprodução da forma social.228

225
MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 72, 85.
226
DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. p. 33.
227
MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Abril Cultural, 1978. (Os pensadores) p.
17.
228
“Podemos distinguir tanto as necessidades verídicas como as falsas necessidades. „Falsas‟ são aquelas
superimpostas ao indivíduo por interesses sociais particulares ao reprimi-lo: as necessidades que
perpetuam a labuta, a agressividade, a miséria e a injustiça. [...] A maioria das necessidades comuns de
descansar, distrair-se, comportar-se e consumir de acordo com os anúncios, amar e odiar o que os outros
amam e odeiam, pertencem a essa categoria de falsas necessidades.
111

Pouco importa que tal consumo embote, danifique ou mate o seu consumidor. Basta tão-
somente que o artigo possa ser vendido com lucro. E mais nada. Com o
desenvolvimento das contradições do capitalismo, tornou-se cada vez mais necessário
promover a “fabricação ininterrupta de pseudonecessidades” e estimular o consumidor a
se converter num “consumidor de ilusões”.229 Promoveu-se assim uma “ruptura absoluta
do desenvolvimento orgânico das necessidades sociais”, liberando um “artificial
ilimitado”, diante do qual o desejo vivo fica desarmado. Processo que culmina na
completa “falsificação da vida social”. 230 Mas tal resultado encontra-se inscrito na
própria predominância da forma do valor sobre a produção e às necessidades concretas
das pessoas:

“O valor de troca só pôde se formar como agente do valor de


uso, mas as armas de sua vitória criaram as condições de sua
dominação autônoma. Ao mobilizar todo uso humano e ao
assumir o monopólio de sua satisfação, ele conseguiu dirigir o
uso. O processo de troca identificou-se com os usos possíveis,
os sujeitou. O valor de troca, condottiere do valor de uso, acaba
guerreando por conta própria”.231

O jovem Marx, já observava a tendência do capitalismo à manipulação do


consumo: “O produtor – diz ele – submete-se aos mais abjetos caprichos do seu
próximo, desempenha o papel de proxeneta entre ele e suas necessidades, desperta-lhes
apetites mórbidos e espreita todas as suas fraquezas, para exigir dele, depois, a propina
por estes bons serviços”.232 No universo da manipulação das necessidades, “cada
produto é uma isca com a qual se quer atrair o ser dos outros, seu dinheiro” e “toda
necessidade real ou possível é uma fraqueza que arrastará as moscas ao melado”. 233 Mas
é verdade que Marx também notou o outro lado dessa questão. Ele também observou o

Tais necessidades têm conteúdo e uma função sociais determinados por forças externas sobre as quais o
indivíduo não tem controle algum; o desenvolvimento e a satisfação dessas necessidades são
heterônomos. Independentemente do quanto tais necessidades se possam ter tornado do próprio indivíduo,
reproduzidas e fortalecidas pelas condições de sua existência, independentemente do quanto ele se
identifique com ela e se encontra em sua satisfação, elas continuam a ser o que eram de início – produtos
de uma sociedade cujo interesse dominante exige repressão”. MARCUSE, Herbert. Ideologia da
sociedade industrial. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1967. p. 26.
229
DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. pp. 33-35.
230
Id. Ibid. pp. 45, 46.
231
Id. Ibid. p. 33.
232
MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Abril Cultural, 1978. (Os pensadores) p.
17.
233
Id. Ibid. p. 16, 17.
112

sentido positivo da ampliação das necessidades humanas. Nos Grundrisse, Marx faz a
seguinte observação:

“o capital impulsiona o trabalho para além dos limites de suas


necessidades naturais e criou todos os elementos materiais para
o desenvolvimento de uma individualidade rica, tão universal na
sua produção como no seu consumo, e portanto o trabalho não
aparece mais como trabalho, mas como pleno desenvolvimento
da atividade: sob a forma imediata, a necessidade natural
desapareceu, pois no lugar da necessidade natural surgiu a
necessidade produzida historicamente”.234

No entanto, há tempos que essa dialética positiva deixou de funcionar. O


“desaparecimento da necessidade natural” e o “surgimento de uma necessidade
historicamente produzida” hoje é tudo menos uma ponte que liga a forma social
capitalista a uma forma social qualitativamente melhor. Longe de contribuir para
favorecer o surgimento de uma individualidade rica, ela não cessa de forjar um ser
humano cada vez mais depauperado. O desenvolvimento das novas necessidades
capitalistas contribui decisivamente para a criação desta que é uma das principais
criações do capitalismo: o homem sem qualidades. Tudo isso se tornou
incomensuravelmente mais forte no curso do desenvolvimento dessa sociedade, em
especial a partir do momento em que ela criou e mobilizou poderosos aparatos de mass
media. Quanto mais as necessidades naturais desaparecem sob as camadas de inúmeras
necessidades artificialmente produzidas, mais os seres humanos se empobrecem, apesar
do aumento da riqueza material capitalista. Ganha-se dinheiro para consumir o máximo
possível de coisas pobres.
O frenesi consumista açulado pelos meios de comunicação de massa é
complementado pela obsolescência planejada, isto é, a redução da taxa de utilização
física (inclusive pela impossibilidade de fazer reparos ou porque o conserto tornou-se
caro demais, valendo mais a pena comprar um produto novo) e/ou perceptiva dos
produtos (por meio da propaganda, da moda etc.). Abrevia-se a capacidade de uso dos
produtos para que quantidades maiores dos mesmos possam ser vendidas e, desse modo,
manter a máquina econômica em funcionamento. O raciocínio aqui é muito elementar.

234
Idem. Fondements de la critique de l’economie politique, vol I. Paris: Éditions Anthropos, 1968. pp.
273, 274.
113

István Mészáros explica: “se a taxa de utilização de um determinado tipo de mercadoria


pudesse ser diminuída de, digamos 100% para 1%, mantida constante a demanda por
seu uso, a multiplicação potencial do valor de troca seria correspondentemente
centuplicada (isto é, assumiria a estonteante figura de 10.000%)”.235 Tudo isso é social e
ecologicamente deplorável. E no entanto é perfeitamente racional do ponto de vista do
sistema.
Mas a consumação dessa lógica destrutiva encontra-se na necessidade do
capitalismo de produzir meios de destruição. Guerras e preparação para as guerras
tornaram-se expedientes fundamentais para a conservação do sistema capitalista. Aqui a
produção de necessidades artificiais e de redução da taxa de utilização dos produtos
atinge o cume. A produção bélica se tornou um artigo absolutamente necessário de um
processo produtivo que perdeu todo o laço com as reais necessidades humanas. As
guerras se transformaram no meio de destruir toda uma “enorme coleção de
mercadorias” – inclusive seres humanos – que há tempos ameaça transbordar dos
mesquinhos e estreitos limites da socialização capitalista. A redução da taxa de
utilização dos produtos faz reduzir a própria taxa de existência do mundo: é preciso
destruir sempre mais e em maior escala para garantir a permanência do funcionamento
(ampliado) da máquina de guerra.
Mas o caráter destrutivo vai para muito além desses evidentes meios de morte.
Está presente também nos mais simples produtos de sua indústria agropecuária – através
dos pesticidas, fertilizantes, sua tecnologia genética, da nanotecnologia etc. – e num
conjunto de produtos químicos que empesteiam e envenenam o ambiente. Esses filhotes
da tecnologia capitalista revelam o capitalismo definitivamente entrou em guerra contra
os seres humanos e a totalidade da vida na Terra. Os próprios alimentos tornaram-se
potências destrutivas. Viramos cobaias vivas de um experimento que faria um Shiro
Ishii ou um Joseph Mengele empalidecer.

235
MÉSZÁROS, István. Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. São Paulo: Boitempo;
Campinas – SP: Editora UNICAMP, 2002. p. 661.
114

6. 2. Dialética negativa

As forças produtivas e destrutivas do capitalismo pertencem a essa forma de


organização social e só podem encontrar seu lugar nessa sociedade. Portanto, não
servem como base de uma forma alternativa de socialização. Uma outra forma de
organização tem de promover uma profunda alteração no modo de os seres humanos
viverem e se relacionarem com a natureza. Mas essa transformação passa pela criação
de novas técnicas e de um outro modo de produzir conhecimentos.
Há uma contradição no capitalismo entre as forças produtivas e as relações
sociais baseadas na forma do valor e na forma-trabalho. Mas essa contradição inerente à
ordem capitalista não diz nada acerca de um processo de emancipação social. Ela indica
apenas o fato de que o capitalismo se movimenta no sentido de sua própria auto-
dissolução. Não se pode tomar essa contradição num sentido positivo. E tampouco
pode-se tomar as forças produtivas como um dado positivo – como algo que poderia
servir de fundamento para uma nova forma de vida social. Tal como as categorias da
socialização capitalista, as forças produtivas pertencem a essa sociedade e não podem
ser simplesmente utilizadas por forma social qualitativamente diferente. A tecnologia
criada no capitalismo é uma tecnologia inerentemente capitalista. Por isso, não servem
de base para uma outra forma de social. O caráter antiecológico e antihumano da
tecnologia capitalista representariam um peso que amarraria a nova forma social às
determinações da forma de vida social passada. Para István Mészáros,

“Isto constitui uma condição particularmente grave quando a


questão em jogo não é apenas como fazer a transição de uma
geração à outra, mas como realizar o salto qualitativo do mundo
do capital para o „reino da nova forma histórica‟. Pois,
paradoxalmente, tecnologia – que pode ser considerada „em
princípio neutra‟ em alguns aspectos, isto é, até que tal visão
seja “modificada significativamente” pela força de outras
considerações fundamentais – na realidade adquire, por meio da
inserção social necessária, o peso da inércia superposta de um
fator trans-histórico. É por isso que temos que enfrentar a força
paralisante que serve ao complexo industrial militar e acorrenta
(ou pelo menos constrange) todos os esforços que visem à sua
reestruturação no caso da conquista política do poder. Não é
necessário dizer, este é um fato negativo de dimensões vastas
que multiplica as dificuldades de se divisar uma conquista e a
115

consolidação do poder com sucesso nas circunstâncias


presentes”. 236

Não há lugar aqui para uma dialética positiva mecanicista e determinista que
certamente facilitaria muito as coisas, para a qual bastaria se apropriar da tecnologia e
da ciência capitalista e lhes dar um outro uso, supostamente melhor. A transição para
uma nova forma social não encontra um apoio positivo nas categorias capitalistas – no
trabalho e na classe trabalhadora – nem no alto nível de desenvolvimento técnico por ela
produzido.
Uma nova forma social é herdeira da antiga base produtiva. Mas isto tem que ser
encarado como um grande problema. E não como uma solução. Mas que técnicas e que
conhecimentos podem ser mobilizados pela nova forma social? Esta questão não pode
ser decidida de antemão. Não se pode dizer como deverá ser uma nova forma de
socialização.
Há uma dialética das forças produtivas que encara o negativo como um positivo.
De fato, o desenvolvimento das forças produtivas tende a derruir os fundamentos do
sistema capitalista. Mas isso não a transforma num pólo positivo. E, portanto, em algo
que bastasse ser liberto do invólucro social negativo. Ela é parte do mundo capitalista e
é tão negativa quanto ele. Ela não pode ser considerada como o lado bom que se
desenvolveu em meio a todo o mal da socialização capitalista. 237 Portanto, a crítica deve
incidir sobre a totalidade do modo de produção e de vida do capitalismo. Não deve
aliviar nada. Uma nova forma social não pode ser uma outra versão da sociedade
industrial existente. O futuro não pode ser uma mera continuidade do passado.

236
MÉSZÁROS, István. Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. São Paulo: Boitempo;
Campinas – SP: Editora UNICAMP, 2002. p. 528.
237
Günther Anders faz a seguinte observação acerca da dialética: “Pode parecer estranho, a respeito do
papel imenso que a dialética jogou no século XIX, de ler que aquela desconheceu o negativo. Mas se se
compara o negativo tal como a concebe a „dialética‟ com o negativo que implica o conceito de inferno,
fica claro que ela se tornou „positiva‟, que se fez dela um fermento. Sua força, ao consistir em suscitar
uma nova vida, um novo movimento, foi, de um certo modo, „negada‟ enquanto „puro negativo‟. A
definição goetheana de Mephisto como aquele que, querendo fazer o mal, não cessa, no entanto, de fazer
o bem, vale também para a negatividade hegeliana. ANDERS, Günther. L’obsolescence de l’homme: sur
l’âme à l’époque de la deuxième révolution industrielle. Paris: Éditions de L‟Enciclopédie des Nuisances-
Éditions Ivrea, 2002. p. 310.
116

6. 3. Um outro metabolismo com a natureza

Uma forma social inteiramente transformada se tornou numa necessidade de


primeira ordem para os seres humanos. Do contrário, terá de se defrontar com
problemas e perigos que nossa imaginação mal consegue figurar. Mas essa
destrutividade não pode ser resolvida apenas com uma modificação nas relações sociais.
Tal modificação implica necessariamente uma profunda alteração no modo como os
humanos realizam o seu metabolismo com a natureza. As relações dos humanos entre si
e entre eles e a natureza deve ser compreendido como um processo unitário. Isso porque
não há separação entre a forma de racionalidade que preside a relação entre os seres
humanos e a forma de relação que eles estabelecem com a natureza. E ambos implicam
uma transformação no domínio tecnológico.
Como Horkeimer e Adorno mostraram em sua Dialética do esclarecimento,
dominação da natureza e dominação sobre os seres humanos estão intimamente
relacionadas.238 Pois toda sociedade pautada na dominação da natureza foi sempre uma
sociedade baseada na dominação humana e vice-versa. Pode-se dizer que sempre que
uma sociedade se lança numa “guerra” de conquista e domínio sobre a natureza, ela tem
de dispor de um estado-maior que comande e de homens que obedeçam. E que, por
outro lado, toda sociedade baseada no domínio sobre os humanos implica
239
necessariamente o domínio sobre a natureza. A violência entre os humanos e a
violência contra a natureza são expressões distintas de um modo de pensar e agir
primitivo – pré-histórico! Ou há reconciliação dos humanos com a natureza e deles
entre si ou continuaremos nos massacrando e devastando nosso planeta.
Nos Manuscritos de 1844, Marx fornece a seguinte imagem do comunismo:

238
HORKHEIMER, Max; ADORNO, Theodor. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985.
239
Em entrevista a Émile Nöel, François Châtelet faz uma observação muito interessante acerca do mútuo
condicionamento entre as formas sociais e a forma como os homens se apropriam da natureza. Segundo
ele, a idéia de dominar a natureza possui graves conseqüências político-sociais: “Somos obrigados a
constatar que o desenvolvimento dessa vontade de dominar a natureza foi acompanhado por um
desenvolvimento concomitante do domínio de alguns sobre outros homens. A questão crucial, hoje,
parece ser a questão ecológica. Mas uma sociedade que se lança numa “guerra” contra a natureza não
tem, necessariamente, que dispor de um estado-maior que comande e de homens que obedeçam? Não
estou aludindo apenas ao capitalismo, mas a todo tipo de regime que tem como objetivo a conquista da
natureza. Por exemplo, os regimes nos quais uma burocracia declara que é ela que tem a competência e
que os outros devem obedecer às suas ordens. De tal modo, a conquista da natureza se torna, de certa
maneira, um princípio que acarreta a sujeição de certos homens por outros”. CHÂTELET, François. Uma
história da razão: entrevistas com Émile Nöel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. p. 68.
117

“O comunismo é, enquanto abolição positiva da propriedade


privada (ela mesma alienação humana de si), apropriação real da
essência humana pelo homem e para o homem. É o retorno
completo do homem a ele mesmo enquanto ser para si, ou seja,
enquanto ser social humano, retorno consciente e que se
consuma conservando toda a riqueza do desenvolvimento
anterior. Enquanto naturalismo acabado, esse comunismo é
humanismo; enquanto humanismo acabado, ele é naturalismo.
Ele é a verdadeira solução do antagonismo entre o homem e a
natureza, entre o homem e o homem, a verdadeira solução do
conflito entre a existência e a essência, entre a objetivação e a
afirmação de si, entre a liberdade e a necessidade, entre o
indivíduo e a espécie. É o enigma resolvido da história e é
consciente disto”.240

Deixo aqui de lado uma série de questões que esta passagem suscita. Gostaria
apenas de ressaltar o fato de que ela afirma expressamente a idéia de que o comunismo
é a forma histórica na qual se realiza “a verdadeira solução do antagonismo entre o
homem e a natureza, entre o homem e o homem”. Entretanto, isso não implica de modo
algum que os humanos tenham de deixar de efetuar o seu metabolismo com a natureza.
Esta é uma necessidade insuprimível e jamais poderão deixar de realizá-lo, qualquer que
seja a forma social em que vivam. Mas isso não implica que eles não possam forjar um
outro modo de intercâmbio com a natureza qualitativamente distinto do que tem
prevalecido nos últimos séculos. Não há nenhuma necessidade ontológica de os seres
humanos se relacionarem com a natureza de forma destrutiva. Essa é uma característica
de uma época da história humana, e não uma condição imutável da existência dos seres
humanos.
O problema que se coloca para nossa época não é mais como obter o domínio
sobre a natureza. Este foi o problema da era moderna: “tornar o homem senhor e
possuidor da natureza”?241 Mas essa etapa da história está chegando ao fim: seja pelos
limites de sua forma de socialização, seja pelos limites da própria natureza. No fim de
linha da modernidade, o problema que se coloca é bem outro: como “dominar” a
dominação. Ou melhor: como impedir que esse impulso à dominação continue
prevalecendo e gerando tormentos cada vez maiores para as pessoas e para restante do

240
MARX, Karl. Manuscrits de 1844. Paris: Flammarion, 1996. p.144.
241
DESCARTES, René. Meditações metafísicas. São Paulo: Abril Cultural, 1991. (Os pensadores). p. 63.
118

planeta.242 Esse problema já havia sido apresentado por Walter Benjamin ainda na
primeira metade do século XX. Em Rua de mão única, ele observa que os imperialistas
ensinam que o sentido da técnica é a dominação da natureza. Mas, sob esse impulso, a
“técnica traiu a humanidade e transformou o leito de núpcias em um mar de sangue”.

“Quem, porém, confiaria em um mestre-escola que declarasse a


dominação das crianças pelos adultos como o sentido da
educação? Não é a educação, antes de tudo, a indispensável
ordenação da relação entre as gerações e, portanto, se se quer
falar de dominação, a dominação das relações entre as gerações,
e não das crianças? E assim também a técnica não é dominação
da Natureza: é a dominação da relação entre Natureza e
humanidade”.243

Para que as habilidades e os conhecimentos humanos cessem de trair os próprios


humanos, é preciso que eles sejam libertados do aguilhão da lógica do valor e das
modernas formas da ciência e da tecnologia. Do contrário, as capacidades e poderes
humanos continuarão produzindo barbárie e destruição.
Walter Benjamin critica a concepção de progresso, que só percebe os
“progressos na dominação da natureza”, mas não os “retrocessos na organização da
sociedade”. Mas vale ressaltar que o próprio “progresso na dominação da natureza”
revela-se ele próprio “regressivo” em relação ao próprio intercâmbio entre os humanos e
a natureza. A enorme devastação ambiental revela os próprios limites da racionalidade
capitalista. As advertências de Walter Benjamin podem ter parecido esotéricas algumas
décadas atrás. Hoje, porém, adquiriram enorme inteligibilidade. O “otimismo
inconsciente dos diletantes”244 tornou-se insustentável. Como um aprendiz de feiticeiro,

242
“Uma sociedade cada vez mais doente mas cada vez mais poderosa recriou em todas as partes o
mundo concretamente como entorno e decorado de sua doença, como planeta doente. Uma sociedade que
não chegou ainda a fazer-se homogênea e que não se determina a si mesma, mas que está determinada
cada vez mais por uma parte de si mesma que se situa por cima e à margem dela, se desenvolveu um
movimento de dominação da natureza que não se domina a si mesmo. O capitalismo chegou finalmente,
por seu próprio movimento, a prova de que já não é capaz de seguir desenvolvendo as forças produtivas,
e não em um sentido quantitativo, como muitos acreditavam, mas em sentido qualitativo. O conflito entre
as forças produtivas modernas e as relações de produção [...] entrou em sua última fase. A produção da
não-vida seguiu com cada vez maior rapidez seu processo linear e cumulativo; agora ultrapassou um
último umbral de seu progresso e está produzindo diretamente a morte”. DEBORD, Guy. El planeta
enferno. Barcelona: Anagrama, 2006. pp. 79, 82.
243
BENJAMIN, Walter. Rua de mão única. São Paulo: Brasiliense, 1987. p. 69.
244
Idem. O surrealismo. O último instantâneo da inteligência européia. In: Magia e técnica, arte e
política. São Paulo: Brasiliense, 1994. (Obras escolhidas; v. I) p. 33.
119

a humanidade desperta poderes que podem escapar ao seu controle. É preciso impedir
que essa locomotiva chamada de progresso nos leve para o abismo.

6. 4. Para o lixo com tudo isso

Nenhum milagre. A dinâmica cega e contraditória do capitalismo expressa um


problema nas relações humanas. E portanto só podem ter solução nesse domínio. Não é
possível esperar que algum mecanismo automático imanente à ordem do capital possa
impulsionar os seres humanos para uma sociedade melhor. O máximo que essa
sociedade pode fazer é colocar enormes problemas. Se os resolveremos ou não é outra
questão. Não há qualquer garantia de que os seres humanos sejam capazes de resolver
os problemas que eles próprios criaram. O fato, é que se a humanidade não quiser
soçobrar, ela terá de forjar um outro modo de socialização e de intercâmbio com a
natureza radicalmente distinto do que tem prevalecido ao longo dos últimos séculos.
Nas últimas páginas de seu Era dos Extremos, Eric Hobsbawn faz uma
advertência acerca de uma realidade que se torna cada vez mais dramática:

“Sabemos que, por trás da opaca nuvem de nossa ignorância e


da incerteza de resultados detalhados, as forças históricas que
moldaram o século [XX] continuam a operar. Vivemos num
mundo conquistado, desenraizado e transformado pelo titânico
processo econômico e tecnocientífico do desenvolvimento do
capitalismo, que dominou os dois ou três últimos séculos.
Sabemos, ou pelo menos é razoável supor, que ele não pode
prosseguir ad infinitum. O futuro não pode ser uma continuação
do passado, e há sinais, tanto externamente quanto internamente,
de que chegamos a um ponto de crise histórica. As forças
geradas pela economia tecnocientífica são agora suficientemente
grandes para destruir o meio ambiente, ou seja, as fundações
materiais da vida humana. As próprias estruturas das sociedades
humanas, incluindo algumas das fundações sociais da economia
capitalista, estão na iminência de ser destruídas pela erosão que
herdamos do passado humano. Nosso mundo corre risco de
explosão ou implosão. Tem de mudar. [...] Se a humanidade
quer ter um futuro reconhecível, não pode ser pelo
prolongamento do passado ou do presente. Se tentarmos
construir o terceiro milênio nessa base, vamos fracassar. E o
preço do fracasso, ou seja, a alternativa para uma mudança da
sociedade, é a escuridão”.245

245
HOBSBAWN, Eric. A era dos extremos: o breve século XX: 1914-1991. São Paulo: Companhia das
Letras, 1995. p. 562.
120

Não se pode esperar o funcionamento de uma dialética positiva do confronto


entre o trabalho e o capital. A classe trabalhadora poderia – em tese – opor-se
radicalmente a todo o universo capitalista. No entanto, isso é uma suposição que se deve
muito mais a certas condições históricas (grande indústria, urbanização, não integração
à cultura capitalista etc.) do que propriamente a sua posição objetiva no interior da
relação de capital. A classe trabalhadora é a classe que sofre diretamente a exploração
da mais-valia. Mas é também a classe que tem sua vida ligada à continuidade da
sobrevivência do capitalismo.
Na época atual, em que o capitalismo se choca com seus limites internos – e,
portanto, quando a classe trabalhadora passa a dissolver e as relações sociais baseadas
no trabalho desmoronam, e quando o trabalho se torna um “bem raro” em meio num
mundo de desemprego e miséria galopantes, e também quando os próprios
trabalhadores encontram-se integrados à cultura e ao modo de viver e pensar capitalista,
com todos os seus condicionamentos fetichistas – os trabalhadores podem até lutar para
obter uma maior parcela do valor produzido, mas essa luta diz respeito cada vez menos
com a busca pela supressão da formação social baseada no valor. As contradições
objetivas do capitalismo entre o trabalho e o capital não levam necessariamente ao
“paraíso”. Apenas geram conflitos no interior da formação capitalista. Quando não à
união de ambas as classes com o fito de conservar a forma social. Não é de hoje grande
parte da classe trabalhadora chegue mesmo a apoiar o militarismo e as guerras apenas
para conservar suas posições na socialização capitalista.
O ponto de vista do proletariado pode até ser o ponto de vista social mais
elevado no interior da sociedade capitalista. Mas trata-se aí da comparação entre o ponto
de vista da “personificação do capital” e o ponto de vista da “personificação do trabalho
para o capital”. Pontos de vistas esses que distanciam igualmente do ponto de vista da
“sociedade humana” ou da “humanidade social”. 246 As duas classes em questão podem
muito bem perecer, juntas, abraçando-se, nos escombros.

246
Segundo Michael Löwy, para Marx, “o ponto de vista de classe e a visão social de mundo
correspondente determinam um horizonte intelectual, os limites estruturais intransponíveis do campo da
visibilidade cognitiva, o máximo de conhecimento possível a partir dessa perspectiva”. LÖWY, Michael.
As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Münchhausen: marxismo e positivismo na sociologia do
conhecimento. São Paulo: Busca Vida, 1987. p. 202. Não é por acaso que o proletariado esteja na
vanguarda da modernização capitalista – por exemplo, a luta pela expansão dos direitos, com a
correspondente busca pela integração dos trabalhadores na sociedade burguesa. Não há nada nesse ponto
121

Não é apenas o capital que tem de ser suprimido. Essa supressão requer
igualmente a supressão do trabalho. O trabalho não é uma atividade ontológica, como
supõe o marxismo produtivista e industrialista. Ele é uma categoria e uma forma de
atividade da sociedade capitalista. Só pode ser compreendida no interior dessa forma de
organização social. Portanto, uma nova forma de socialização está não apenas para
além do capital como também está para além do trabalho. Que os seres humanos terão
que continuar produzindo numa forma socialização melhor, isso não há dúvida. Mas,
para ser realmente alternativa, ela não poderá se apoiar sobre a forma-trabalho.
O trabalho é um valor sacrossanto da sociedade capitalista – afirmado tanto
pelos defensores do sistema como por muito de seus supostos críticos. O trabalho é
assim considerado algo que é sempre bom, independentemente daquilo que se esteja
produzindo. E assim escapa de qualquer julgamento crítico. A finalidade da atividade
produtiva não é colocada em questão. O trabalho torna-se assim um comportamento
compulsivo que bloqueia os seres humanos a forjar um outro tipo de relação com a
natureza (inclusive sua própria natureza) que não seja produtivista e utilitarista. Toda
essa loucura típica do mundo capitalista tem de ser negada numa outra forma de
socialização.
Uma crítica do trabalho não é externa ao próprio campo do marxismo. As
indicações de tal crítica se encontram na própria obra de Marx. Cito aqui uma passagem
importante – e muito negligenciada – de A ideologia alemã:

“Em todas as revoluções anteriores, o modo de atividade


permanecia inalterado e se tratava apenas de uma outra
distribuição dessa atividade; a revolução comunista, ao
contrário, é dirigida contra o modo de atividade anterior, ela
suprime o trabalho. [...] A contradição entre a personalidade do
proletário particular, e as condições de vida que lhe são
impostas, isto é, o trabalho, aparece com evidência, sobretudo
porque ele já foi sacrificado desde a sua primeira juventude e
não terá jamais a oportunidade de chegar, no âmbito de sua
classe, às condições que o fariam a passar para uma outra classe.
Portanto, enquanto os servos fugitivos só queriam desenvolver
livremente suas condições de existência já estabelecidas e fazê-
las valer, mas só chegavam em última instância ao trabalho
livre, os proletários, se quiserem afirmar-se enquanto pessoa,

de vista de classe que aponte para fora do mundo do capital. Não há nenhuma necessidade inerente entre a
perspectiva revolucionária e o ponto de vista da classe trabalhadora. A classe trabalhadora pode ou não
ser revolucionária. Em realidade, não há nenhuma barreira sociológica que impeça as pessoas alçarem a
um ponto de vista revolucionário.
122

devem abolir sua própria condição de existência anterior, que é,


ao mesmo tempo, a de toda a sociedade até hoje, quer dizer,
abolir o trabalho”.247

É importante assinalar que o fim do trabalho não implica em que os seres


humanos tenham de ficar submersos nos imensos aparatos tecnológicos produzidos pelo
capitalismo. O trabalho só pode ser suprimido alterando o modo como os humanos se
relacionam entre si e com a natureza. Ele é um modo de atividade humana na época em
que os próprios humanos são ainda inconscientes acerca de sua própria forma. Um
modo de atividade pré-histórica, portanto. Que técnicas serão utilizadas e que
necessidades sociais deverão ser atendidas, isso é algo que os seres humanos terão de
definir.
Não é de mais trabalho que a humanidade precisa. Ela precisa antes é do fim do
trabalho. Para que o planeta não se arrebente num terrível colapso ecológico, torna-se
necessário desativar uma enorme parte de muitos ramos da produção industrial e de
suprimir alguns deles por inteiro. Milhões de postos de trabalho são absolutamente
destrutivos e só tem razão de ser por causa dos imperativos da ordem social
capitalista.248 Basta pensar na indústria automobilística e indústria bélica – e todo o
conjunto de setores produtivos e improdutivos que a eles estão ligados. A máquina de
trabalho só fica de pé hoje por meio de expedientes sumamente destrutivos. Portanto, a
forma-trabalho também está em guerra contra o mundo.249
Tudo junto para a lata do lixo da história. É todo um mundo que precisa ser
inventado no momento em que os velhos padrões de pensamento revelam sua completa
estupidez e anacronismo.
247
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Martins Fontes, 1998. pp. 85-86,
96-97.
248
“A função última, declarada e essencial da economia desenvolvida de hoje em dia, em todo o mundo
em que impera o trabalho-mercadoria que assegura todo o poder aos seus patrões, é a produção de
emprego. Bem longe estamos, pois, de idéias „progressistas‟ do século passado acerca da possível redução
do trabalho humano graças à multiplicação científica e técnica da produtividade, que, segundo se
acreditava, asseguraria com cada vez maior facilidade a satisfação das necessidades até então
reconhecidas como reais por todo o mundo, e isso sem nenhuma alteração fundamental da qualidade dos
bens disponíveis. DEBORD, Guy. El planeta enferno. Barcelona: Anagrama, 2006. p. 82.
249
Tal supressão implica, necessariamente, a supressão do próprio Estado. Uma vez que esse é um dos
componentes do tripé fundamental da socialização capitalista.Segundo István Mészáros, o sistema de
mediação de segunda ordem do capital tem um núcleo constitutivo formado pelo tripé: capital,
trabalhador e o Estado. Trata-se de três dimensões que se encontram materialmente inter-relacionadas e
que só podem ser suprimida conjuntamente. No entanto, Mészáros pensa em emancipar o trabalho
humano do capital, e não em emancipar os seres humanos do trabalho e do capital. MÉSZÁROS, István.
Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. São Paulo: Boitempo; Campinas – SP: Editora
UNICAMP, 2002. p. 600.
123

CONSIDERAÇOES FINAIS
ou
com todo vapor ao colapso... sócio-ecológico

Atualmente se cruzam as mais nefastas e perigosas tendências. As novas forças


produtivas baseadas na microeletrônica criaram uma tecnologia que excede os limites
da formação social baseada no valor. A mensuração da riqueza social por intermédio do
tempo de trabalho posto na produção tornou-se algo sem sentido. A maior parte da
riqueza decorre muito mais como resultado do desenvolvimento do general intellect do
que do trabalho individual posto nos processos de produção de mercadorias. A colisão
entre essa base tecnológica e a forma abstrata pressuposta de mensuração da riqueza
encontra-se no fulcro da crise econômica e social que irrompeu no capitalismo a partir
da década de 1970. Desde então nem mesmo os mais destrutivos expedientes tornaram-
se capazes de refrear a dinâmica de colapso em curso – embora contribua para ampliar a
sobrevida desse sistema por mais algum tempo. Mas tais expedientes provocarão uma
enorme tensão dessa forma social com as condições ecológicas da Terra. O planeta não
suportará indefinidamente tanta pilhagem e depredação.
O capitalismo tem promovido uma rápida e profunda erosão social e ecológica,
revelando-se inteiramente insustentável. Está fora de questão o surgimento de um
capitalismo verde. Talvez ainda haja tempo de pisarmos no freio e mudarmos o curso
dessa máquina louca que está nos levando ao precipício. Mas essa é uma tarefa para
milhões, bilhões, de pessoas. Elas precisarão acordar do sonambulismo que as embala e
utilizar sua imaginação e criatividade para forjar um modo de vida alternativo ao que
prevalece hoje.
O único ponto de apoio que temos é a nossa inteligência coletiva. Mas não se
trata aqui apenas de conhecimentos técnicos e científicos. Deve-se incluir também o
conhecimento e a sabedoria de todas as outras épocas, outros povos e o imenso
potencial criativo humano. Também tem de incluir a sensibilidade. E fundamentalmente
um pensamento crítico e um sentimento de rejeição ao nosso atual modo de produzir e
de viver: uma grande recusa. Nem a tecnologia capitalista nem as categorias sociais e
econômicas dessa forma de organização social podem proporcionar um ponto de apoio
positivo. O que o capitalismo nos lega é uma imensa catástrofe e a necessidade de
interrompê-la.
124

O capital está utilizando uma terrível tática militar: ele passa deixando uma
terra arrasada atrás de si. E isso não é algo que tenha pouca importância para quem
sonha com a emancipação. Estamos caminhando para uma situação em que a
socialização alternativa talvez fique irremediavelmente inviabilizada pela destruição das
condições ecológicas e materiais que são tão necessárias. Ou alguém imagina ser
possível soerguer uma sociedade qualitativamente diferente e melhor entre as ruínas da
natureza? Que o capitalismo tende a desaparecer da face da terra, isso não resta dúvida.
O problema é que podemos desaparecer junto com ele. A mecha está queimando
velozmente e logo atingirá a dinamite.250
A pré-história humana pode vir a terminar como anti-história. Estamos na pré-
história da humanidade. Equipamo-nos com toda uma panóplia de meios high-tech.
Despertamos forças e poderes que não podem ser controlados por um modo de
socialização inconsciente e fetichista. O capitalismo só pode nos prometer um futuro
sombrio: o “horror sem fim”, de barbárie e crise ecológica, ou o “fim horroroso”, de
colapso ecológico generalizado e extinção dos seres humanos.
Slavoj Zizek capta essa importante modificação na perspectiva de nosso
horizonte histórico:

“Até hoje, a Substância histórica desempenhou seu papel de


meio e fundamento de todas as intervenções subjetivas: o que
quer que os sujeitos sociais e políticos fizessem, tal era mediado,
e em última instância dominado, sobredeterminado, pela
Substância histórica. O que granjeia no horizonte hoje é a
inaudita possibilidade de que uma intervenção subjetiva poderá
intervir diretamente na Substância histórica, perturbando
catastroficamente seu desenrolar ao desencadear uma catástrofe
ecológica, uma mutação biogenética fatal, uma catástrofe
nuclear ou sócio-militar semelhante etc. Não podemos mais
contar com a salvaguarda representada pelo escopo limitado de
nossos atos: não é mais sustentável que, o que quer que façamos,
a história irá continuar”.251

250
“se a eliminação da burguesia não estiver efetivada até um momento quase calculável do
desenvolvimento econômico e técnico (a inflação e a guerra de gases o assinalam), tudo está perdido.
Antes que a centelha chegue à dinamite, é preciso que o pavio que queima seja cortado”. BENJAMIN,
Walter. Rua de mão única. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987. (Obras escolhidas; v. II) p. 46.
251
ZIZEK, Slavoj. Censorship Today: Violence, or Ecology as a New Opium for the Masses. Disponível
em: http://www.lacan.com/zizeclogy1.htm
125

Estamos chegando ao fim de linha da civilização capitalista. Essa civilização se


choca com seus limites internos e externos, desencadeando uma crise total e
multidimensional: uma crise civilizacional. É todo um modo de pensar, viver e produzir
que está se revelando impertinente, absurdo e totalmente nefasto para a Terra inteira e
os seus habitantes. Talvez o surgimento de um outro modo de produção ainda seja
possível. Mas não é certo que ele venha a surgir. O certo, contudo, é que tal
transformação é absolutamente necessária. Uma necessidade de primeira ordem.
Inventar um outro modo de os humanos se relacionarem entre si e de mediarem as suas
relações com a natureza é uma condição para a sobrevivência da espécie humana. Do
contrário, teremos mais guerras, mais barbárie, mais ruínas da natureza, mais
escombros, mais tecnologias destrutivas etc. etc. etc. Até o fim do mundo...
126

O CAPITALISMO VERDE E O AGROCOMBUSTÍVEL

Diante da grave crise ecológica atual, o capitalismo pode dar a impressão de se


interessar pelos problemas ambientais e, em função disso, realizar um movimento de
retorno ao orgânico. Mas tal fato não representa uma modificação substantiva do modo
pelo qual essa forma de organização social promove o seu metabolismo com a natureza.
Seu retorno ao orgânico representa antes o recrudescimento do processo de depredação
ecológica em curso. O capitalismo não apenas passou a explorar toda a natureza de um
modo muito mais voraz e tem buscado recriar a natureza por intermédio de suas novas
tecnologias, como também, para completar esse processo, passou agora a mobilizar a
retórica ecológica para legitimar o avanço da pilhagem da Terra.

1. Aquecimento da Terra

Há tempos que o capitalismo promoveu um processo de brutal destruição da


natureza. No entanto, as novas forças produtivas baseadas na tecnociência promoveram
uma imensa aceleração da velocidade dessa destruição. Não é mais possível ignorar os
nefastos efeitos das intervenções humanas sobre a natureza. No momento em que o
capitalismo atingiu o seu limite interno de sua capacidade de valorização, suas
contradições estruturais fizeram com que as suas novas forças produtivas se
transformassem numa calamidade. As bases materiais e ecológicas do planeta passaram
a ser aniquiladas de uma forma simplesmente suicida.
O aumento da temperatura média do planeta é um dos indicadores mais
conhecidos do limite ecológico do modo de produção e de vida capitalista. O
aquecimento global resulta das intervenções humanas sobre a natureza nos últimos 250
anos. Durante esse período, esse sistema não apenas acrescentou uma enorme
quantidade de gases-estufa já existentes na atmosfera, como também criou outros novos,
como o clorofuorcarbono (CFCs).
Os gases estufa são assim chamados pelo fato de impedirem que o calor liberado
pela energia solar se disperse para fora da atmosfera, contribuindo para o aquecimento
do planeta. Portanto, o efeito estufa consiste num mecanismo vital para o equilíbrio
climático do planeta. Não fossem os gases do efeito estufa, toda a energia dissipada iria
para fora da atmosfera e as temperaturas do planeta seriam 30 graus centígrados
127

menores que os atuais. No entanto, se o efeito-estufa não é, em si mesmo, um problema,


o aumento da quantidade de gases-estufa tende a romper o equilíbrio ecológico do
planeta, provendo enormes transtornos no clima da Terra.
O dióxido de carbono é de longe uma das principais contribuições humanas para
o aumento do efeito estufa. A quantidade de dióxido de carbono na atmosfera cresceu
em um terço nos últimos duzentos anos – de aproximadamente 280 partes por milhão
em 1750, para 379 em 2005. A concentração de dióxido de carbono na atmosfera
excede a faixa natural dos últimos 650.000 anos, que era de 180 a 300 partes por
milhão. A maior parte desse crescimento ocorreu na segunda metade do século XX. No
entanto, se tornou mais pronunciado após a última década desse século e não cessou de
crescer nesse início de século XXI. Pesquisas recentes mostram que a velocidade com
que a humanidade despeja dióxido de carbono na atmosfera mais que dobrou desde os
anos 90. Descobertas publicadas pela Organização de Pesquisa Científica e Industrial do
governo australiano (CSIRO) mostram que as emissões de carbono não pararam de
crescer nesse princípio de século XXI. Segundo o cientista Mike Raupach, entre 2000 e
2005, a taxa de crescimento das emissões de dióxido de carbono superou os 2,5% ao
ano, enquanto que, nos anos 90, era de menos de 1% ao ano. Ele afirma que 7,85
bilhões de toneladas de carbono chegaram á atmosfera em 2005, contra 6,67 bilhões de
toneladas em 2000.252
O aumento da temperatura do planeta parece já estar provocando alguns efeitos
devastadores. Há vários indícios que mostram que o clima da terra tem se tornado mais
instável e alguns fenômenos, mais pronunciados: ondas de calor, aumento do número de
furacões, secas e chuvas mais pronunciadas. Mas este talvez seja apenas o início de uma
época de catástrofes sócio-ecológicas. Basta lembrar que o aumento da temperatura
média do planeta em apenas 2,5 graus centígrados poderá elevar o nível do mar em um
metro, devido ao descongelamento das calotas polares e geleiras. Apenas essa pequena
elevação do nível do mar poderá provocar um enorme recuo do litoral, extinguindo
terras agricultáveis e importantes recursos hídricos. Segundo o cientista ambiental
britânico Norman Myers, a elevação do nível do mar em apenas um metro significará a
perda dos lares para cerca de 10 milhões de egípcios, 30 milhões de bengalis e 22

252
"Ter quatro anos seguidos de crescimento, acima da média, de dióxido de carbono é sem precedentes",
diz nota assinada por Paul Fraser, cientista do centro para pesquisa marítima e atmosférica da CSIRO. E
acrescenta: “A tendência em anos recentes sugere que a taxa de crescimento está acelerando, o que
significa que os combustíveis fósseis estão tendo um impacto sobre as concentrações de gases do efeito
estufa que não víamos no passado". Emissão de gás carbônico dobra em 10 anos. Globo.com, 28/11/2006.
Disponível em: http://g1.globo.com/Noticias/Ciencia/0,,AA1367166-5603,00.html
128

milhões de vietnamitas. Sergio Zelaya, coordenador de Políticas da Convenção sobre


Desertificação observa que apenas o avanço do deserto da África Subsaariana levaria 60
milhões de habitantes daquela região a migrar para o norte do continente e o sul da
Europa até 2020.253 A elevação do nível do mar poderá desencadear migração em larga
escala, ruptura social e fome generalizada. 254 “O mundo já se habituou às ondas de
refugiados em conseqüências de guerras civis”, assinala Paul Kennedy. Segundo ele,
mudanças climáticas podem ser causas de conflitos agudos no futuro: “Pode haver,
dentro em pouco, uma onda ainda maior de refugiados ambientais, na medida em que as
sociedades desmoronam ou sofrem guerra civil em conseqüência de catástrofes
naturais”. 255 Na Conferência Internacional sobre Meio Ambiente, Migração Forçada e
Vulnerabilidade Social, realizada em outubro de 2008 na Universidade das Nações
Unidas (UNU), em Bonn, Alemanha, estudiosos do assunto declararam que já havia no
mundo cerca de 25 milhões de refugiados ambientais em todo o mundo – número que
tende subir para 200 milhões em 2050. 256
Mas a elevação do nível do mar é apenas um dos problemas relacionados ao
aumento da temperatura do planeta. No limite, é a própria vida na Terra – não apenas a
humana – que se encontra ameaçada. É preciso lembrar que apenas uma pequena
mudança nas condições de equilíbrio originais pode provocar grandes alterações.
Portanto, não é certo que, de um modo estritamente mecanicista, a temperatura do
planeta aumente gradualmente, acompanhado o ritmo das emissões dos gases que
provocam o efeito estufa na atmosfera. A partir de certo ponto – e não sabemos qual – o
clima do planeta pode entrar em colapso.257

2. Protocolo de Kyoto
No momento em que o capitalismo principia a engendrar um processo de crise
ecológica – e, possivelmente, de colapso ecológico – irrompe uma enorme onda de
retórica em torno da defesa do meio ambiente. O problema ecológico deixou de ser
abordado por apenas algumas poucas organizações sociais e indivíduos. Políticos,
empresários, cientistas, meios de comunicação etc. parecem ter acordado para esse

253
PAIVA, Eduardo. Refugiados ambientais: as primeiras vítimas do aquecimento global. Planeta, agosto
de 2009. pp. 36-41
254
POINTING, Clive. Uma história verde do mundo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1995. p. 621,
255
KENNEDY, Paul. Preparando para o século XXI. Rio de Janeiro: Campus, 1993. p. 109.
256
PAIVA, Eduardo. Refugiados ambientais: as primeiras vítimas do aquecimento global. Planeta, agosto
de 2009. pp. 36-41
257
REEVES, Hubert. Mal da Terra: Paz da Terra, 2006.
129

grave problema de nossa época. Estaríamos ingressando uma época de capitalismo


ecologicamente responsável? Um capitalismo verde?
Uma das iniciativas de maior envergadura foi o Protocolo de Kyoto. Ratificado
em 15 de março de 1999, em Kyoto, no Japão, e conseqüência de uma série de reuniões
iniciadas na década anterior, o Protocolo de Kyoto consiste num protocolo de um
tratado internacional de compromissos de redução dos gases que provocam o efeito
estufa. O Protocolo propõe um calendário no qual os países-membros têm a obrigação
de reduzir a emissão de gases do efeito estufa em, pelo menos, 5,2% em relação aos
níveis de 1990 no período entre 2008 e 2012 – também chamado de “primeiro período
de compromisso”. As metas de redução não são homogêneas a todos os países,
colocando níveis diferenciados para os 38 países que mais emitem gases. 258
A redução das emissões dos gases estufa proposta pelo Protocolo é
extremamente modesta. Tal redução permite – no máximo – “mitigar” alguns dos
graves problemas ecológicos atuais. Mas, de modo algum, representam alguma solução.
No entanto, ao que tudo indica, mesmos esses limitados objetivos do Protocolo estão
longe de ser atingidos. E isso não é tudo. Essas metas – já exíguas – fora ainda mais
abrandadas em 2001 (quando o Protocolo foi referendado, em Bonn, na Alemanha), por
meio da criação dos chamados “sumidouros de carbono”. Em que consiste essa
proposta? Simplesmente o seguinte: os países que possuem grandes áreas florestadas –
que absorvem naturalmente o dióxido de carbono – podem usar essas florestas como
crédito em troca do controle de suas emissões. Desse modo, os países mais ricos – para
manter sua produção industrial – poderiam transferir parte de suas indústrias mais
poluentes para países onde o nível de emissão é baixo, ou investir nesses países, como
parte de negociação. Assim, o problema não seria mais deixar de poluir ou de poluir
menos. Mas tão-somente pagar para continuar poluindo. Os países mais ricos – que
poluem mais – pagam aos mais pobres – que poluem menos – pelos “direitos de poluir”.
Enfim, a própria poluição se torna uma mercadoria. Esse acordo mínimo, vazio e falido

258
Mesmo não sendo obrigados a cumprir metas de redução, os chamados países em desenvolvimento
respondem por quase metade das emissões de dióxido de carbono mundiais, e por 73% do aumento das
emissões em 2004. Segundo a Agência de Avaliação Ambiental da Holanda, a China, que estava 2 por
cento atrás dos Estados Unidos em emissões de dióxido de carbono em 2005, superou os Estados Unidos
em 2006 em 7,5 por cento. Entretanto, as emissões per capita da China são menos de um quarto das
emissões dos Estados Unidos – a China, com uma população de 1,3 bilhão, emite cerca de 4,7 toneladas
de CO2 por habitante, contra 19,2 toneladas nos EUA. China diz que países ricos não deveriam criticar
sua poluição. Ambiente em foco, 23 de junho de 2007. Disponível em:
http://www.ambienteemfoco.com.br/?p=4681
130

foi o máximo que chegou os setores ecologicamente mais avançados do capital


internacional. 259

3. Soluções tecnológicas
Mas estas soluções também não poderão ser de ordem tecnológica. Um dos
remédios tecnológicos são fornecidos pelas empresas de “geoengenharia” – empresas
dedicadas à modificação do ambiente voluntariamente e em grande escala. Uma das
propostas da geoengenharia consiste em aumentar a capacidade de os oceanos
“funcionarem” como “esgotos” de carbono por meio da dispersão de certas substâncias
no mar. Tais emissões serviriam para “fertilizar” os oceanos. A empresa Planktos Inc.,
por exemplo, pretende derramar nanopartículas de ferro nos oceanos. A empresa
australiana Ocean Nourishment Corporation, por sua vez, tenciona o mesmo através do
derramamento de úreia no mar. 260 A biotecnologia também pretende contribuir para a
solução dos problemas ecológicos. Craig Venter – ex-presidente e diretor-geral da
Celera, a companhia que seqüenciou o genoma humano – propõe a criação de novos
microorganismos capazes de se alimentar de dióxido de carbono na atmosfera,
transformando-o em algo semelhante ao óleo e à gasolina. Prevê-se também que os
nanorobôs também possam ser empregados no futuro com essa finalidade.
Mas seriam tais medidas razoáveis? Vale a pena correr o risco de promover
intervenções em larga escala no ambiente, quando o problema fundamental consiste
exatamente em reduzir a escala e a intensidade das intervenções sobre a natureza?
Poderia a tecnologia e o sistema econômico que têm provocado o arruinamento
ecológico da Terra fornecer os meios de resolver – em realidade já nem se fala mais
nisso, mas tão-somente em minorá-los – os graves problemas ecológicos de nossa
época? É possível que as intervenções desejadas em larga escala na natureza provoque
efeitos secundários, não-desejados, maiores que os problemas que visa resolver. A
natureza é muito complexa para ser submetida a tratamentos tão simplistas. Um suposto
aumento da capacidade de absorção de carbono pode criar transtornos ecológicos que
escapam inteiramente à visão reducionista da ciência contemporânea.

259
Cf. LOWY, Michael. Ecologia e socialismo. Disponível em: http://www.mst.org.br/mst/pagina.
260
O projeto de verter 500 toneladas de uréia no mar de Sulo, próximos às Filipinas, teve de ser alterado
em função da oposição do governo filipino e à denuncia de várias organizações sociais, em função dos
impactos sociais e ecológicos que ele provocaria. Entretanto, a Ocean Nourishment Corporation segue
com o plano de verter mais de mil toneladas de uréia em águas malaias. Considera também fazer o
mesmo nas águas do Chile, Emirados Árabes e, possivelmente, Marrocos. RIBEIRO, Silva. Mudanças
climáticas: os que lucram e os que resistem. Disponível em: http://www.mst.org.br/mst/pagina.
131

4. Petróleo e automóvel

Vivemos numa sociedade automobilística. O carro não é apenas uma das


principais mercadorias do mundo do capital. É também um símbolo de prestígio social,
uma forma de vida e um objeto de culto fetichista. Ele expressa força, poder, riqueza. É
o símbolo da liberdade capitalista. Liberdade para ir e vir. Mesmo que isso seja feito à
custa de provocar morte e destruição em larga escala.
Há tempos que essas máquinas assassinas decretaram guerra contra as pessoas e
contra a natureza. Milhões de seres humanos mortos e mutilados a cada ano.261 Uma
hecatombe cotidiana, em escala mundial. Mas os automóveis também transformam as
cidades num lugar inóspito, feio e poluído. As grandes cidades do capital são cidades
automobilísticas. Bosques e florestas são sistematicamente devastados para dar lugar a
ruas, estradas e vias expressas. Espaços são retirados das pessoas para serem destinados
à circulação ou transformados em estacionamentos. O horror da cidade automobilística
é um dos motivos que levam milhares de pessoas a fugir dela a cada final de semana e
feriado em busca de um lugar mais aprazível. Uma fuga que não cessa de provocar
engarrafamentos e inúmeros acidentes nas estradas e que, além disso, tem de ser
empreendida para lugares cada vez mais distantes, visto que, onde quer que os
automóveis cheguem, logo chega grande parte dos problemas das grandes cidades. E
assim a fuga tem de continuar...
Não bastasse tudo isso, enormes quantidades de “recursos naturais” são extraídas
para produzir e movimentar os automóveis. Um dos mais importantes elementos que
alimenta a civilização automobilística é o petróleo. Por isso, pode-se dizer que o
capitalismo contemporâneo é fossilista e, mais especificamente, petroleocêntrico. Esse
modo de produção e de vida só pode subsistir por meio da incineração sistemática e
diária de uma enorme quantidade de petróleo. Essa energia acumulada e produzida
durante milhões de anos tem sido queimada irresponsavelmente em algumas poucas
décadas – destruindo irreversivelmente um patrimônio que poderia encontrar um uso
melhor e promovendo gigantescos problemas ecológicos. O problema, porém, é que o
petróleo é finito e não poderá sustentar indefinidamente o modo de produção e de vida
capitalista. A colisão entre as necessidades crescentes dessa fonte de energia e os limites

261
Segundo a Organização Mundial de Saúde, 1,2 milhão de pessoas morrem e 50 milhões ficam feridas
em acidentes automobilísticos a cada ano. Somente no Brasil morrem mais de 30 mil pessoas por ano. A
perspectiva é de que, em 2020, esse número seja 60% maior em todo o mundo. Mais de um milhão de
pessoas morrem no trânsito por ano, diz OMS. Atualizado em 07/04/2004. Disponível em:
http://www.bbc.co.uk/portuguese/ciencia/story/2004/04/040407_transitorg.shtml
132

físicos do planeta será sentido de forma muito violenta no momento em que a produção
de petróleo principiar a declinar. É muito provável que já tenhamos atingido o pico da
extração de petróleo. Doravante, o petróleo tende a escassear numa sociedade centrada
no petróleo.
O tamanho da frota de automóveis indica o caráter essencialmente antiecológico
e predatório do modo de produção e de vida capitalista. Estima-se que a frota de
veículos em 2007 era de cerca de 950 milhões de veículos, dentre os quais quase 700
milhões somente de automóveis. E a cada ano muitos milhões de novos veículos são
postos em circulação. Somente em 2007 foram produzidos mais de 70 milhões de
veículos, dentre os quais 50 milhões de carros.262 Não precisa muito esforço para
verificar o caráter insustentável de tudo isso. O petróleo é essencial não apenas como
combustível para os veículos. Ele é também matéria-prima essencial para sua produção:
peças, pintura, lubrificantes, pneus etc. E não se pode esquecer a imensa quantidade de
energia – em grande medida fóssil – despendida na produção automobilística. Portanto,
o problema do esgotamento do petróleo vai muito além do simples fornecimento de
combustível líquido para os tanques dos veículos.
Além do caráter homicida e ecocida dos automóveis, é preciso destacar que eles
têm servido cada vez menos para deslocar as pessoas com conforto e eficiência. Os
engarrafamentos intermináveis e cada vez mais constantes nas cidades servem para
mostrar que, também nesse aspecto, a civilização automobilística marcha para o
colapso. A “enorme coleção” de veículos faz o mundo chafurdar em poluição,
devastação ecológica, stress, perda de tempo e acidentes, muitos acidentes etc. O mundo
automobilizado é essencialmente antihumano e antiecológico.

5. Tragédia sócio-ecológica dos agrocombustíveis


O agrocombustível é o combustível derivado de plantas. Os dois principais tipos
de agrocombustível são o biodiesel (produzido a partir das plantas oleaginosas) e o
agroetanol (proveniente de cereais, seivas, ervas e madeira fermentada). No entanto, ele
não consiste numa fonte de energia melhor por derivar de vegetais. A biomassa
queimada diretamente também consiste numa forma de agrocombustível. Essa fonte de
energia tem sido anunciada como um dos meios de contribuir para resolver os

262
Dados extraídos de http://automotivebusiness.com.br/estat.htm
133

problemas ecológicos atuais.263 Entretanto, ao contrário do discurso hoje dominante, o


combustível derivado das plantas não é capaz de realizar o “milagre” prometido. Pelo
contrário. Tende a agravar ainda mais alguns dos já tão graves problemas ecológicos e
sociais. Não só não resolverá o problema do esgotamento do petróleo – o que, em
realidade está no centro da motivação pela adoção dessa nova “matriz energética”, e não
a diminuição da poluição atmosférica – como promoverá uma tragédia inominável nos
próximos anos.
Atílio Borón comenta que a totalidade da superfície agrícola da União Européia
seria suficiente para cobrir apenas 30 por cento das necessidades atuais – não as futuras,
previsivelmente maiores – de agrombustíveis. Assim, para substituir apenas 5,75% dos
combustíveis pelo agrocombustível seria necessário substituir cerca de 20% de suas
terras dedicadas ao cultivo de grãos pela cultura energética. Para satisfazer a demanda
atual de combustíveis fósseis dos Estados Unidos seria necessário destinar à produção
de agrocombustíveis cerca de 121% de toda a superfície agrícola do país. Embora tenha
destinado a quinta parte de sua colheita de milho para produção de agroetanol em 2006,
todo esse esforço serviu para substituir apenas cerca de 3% do consumo total de
combustível desse país. Portanto, se o centro do capitalismo mundial não é capaz de
produzir a quantidade de agrocombustível por ele requerida, ela terá de proceder, em
grande parte, dos países do Sul. Nem os Estados Unidos, nem a União Européia, e
tampouco a China ou a Índia, têm terras disponíveis para sustentar ao mesmo tempo a
produção de alimentos e a expansão na produção de agrombustíveis. 264 Os países do Sul
verão imensas porções de terra transformadas em plantations para a produção do dito
“combustível verde”. Mais um capítulo da história daqueles que se especializaram em
perder na divisão internacional do trabalho.
As poucas florestas que ainda restam nessas regiões ficaram, a partir de então,
sob a alça de mira dos produtores do combustível supostamente ecológico. Milhões de
hectares de florestas tropicais na Malásia, em Sumatra e em Bornéu já foram derrubados

263
O termo biocombustível invoca uma imagem vital de renovação e abundância. Seria uma energia
limpa, verde, sustentável. Capaz de melhorar a vida das pessoas e ecologicamente sustentável. No
entanto, essa imagem é falsa. Serve apenas para forjar um mito e turvar a discussão. Por isso, ao invés de
chamar de biocombustível, seguindo a indicação de Eric Holt-Giménez, doravante utilizarei o termo
agrocombustível. HOLT-GIMÉNEZ, Eric. Biocombusteis: os cinco mitos da transição dos agro-
combustíveis. Situação e perspectivas da agroenergia no Brasil. Via Campesina Brasil, novembro de
2007.
264
BORÓN, Atílio. Biocombustibles: el porvenir de una ilusión. Disponível em:
http://www.iade.org.ar/modules/noticias/articles.php?storyid=1648
134

para ceder lugar às plantações de óleo de palma (conhecido no Brasil como dendê). 265 A
Floresta Amazônica também encontra gravemente ameaçada. Desde que integrada no
projeto da modernização brasileira nas décadas de 1960-70, ela floresta tem sido
sistematicamente pilhada e degradada. A aceleração da depredação da Floresta
Amazônica ganha um forte impulso com a produção dos agrocombustíveis. A produção
das chamadas culturas energéticas fará com que as fronteiras agrícolas avancem sobre a
Floresta Amazônica. Basta observar o que pensam, por exemplo, alguns pesquisadores
da Embrapa. Para eles, a Amazônia é um dos principais trunfos do Brasil no negócio
dos agrocombustíveis. Ela “possui o maior potencial para o plantio de dendê do mundo,
com área estimada de 70 milhões de hectares”.266 Assim, “biodiesel do
desflorestamento” representa uma grande ameaça para a Floresta Amazônica. A
produção de etanol também faz o plantio de cana-de-açucar avançar sobre a floresta.
Mas esse não é o único ecosistema a ser atingido no Brasil pela produção de
agrocombustível. Ele contribuirá para destruir o Cerrado e o que resta da Mata
Atlântica. É essa sanha destrutiva que faz com que o agrocombustível deva ser
considerado como “a mais importante ameaça à diversidade biológica da Terra”. 267
Mas os agrocombustíveis não entram em rota de colisão apenas com as florestas.
Ele também tende a ampliar o problema da fome no mundo. Com a produção dos
agrocombustíveis, os tanques dos automóveis entraram em disputa acirrada com as
pessoas pela posse dos alimentos. Uma das conseqüências do crescimento da demanda
por agrombustíveis consiste no aumento do preço dos alimentos. Este aumento de
preços já é responsável por uma grave crise alimentar. Os agrombustíveis tendem a
transformar esse problema de algo meramente conjuntural num problema estrutural. 268
Deve-se notar que, ao contrário do que se tem afirmado, o aumento do preço dos
alimentos não se deve ao crescimento das demandas da Índia e da China. De acordo
com um informe confidencial do Banco Mundial, obtido pelo The Guardian, a demanda
desses países – bem como a seca na Austrália – teve um impacto apenas marginal sobre
o preço dos alimentos. Estima-se que o aumento do preço da energia e dos fertilizantes
contribuiu com um aumento no preço de 15%, enquanto que os agrombustíveis foram
265
HO, Mae-Wan. Biocombustíveis: biodevastação, fome e falsos créditos de carbono. Disponível em:
http://www.mst.org.br/mst/pagina
266
PERES, José Roberto Rodrigues; JUNIOR, Elias de Freitas; GAZZONI, Décio Luis. Biocombustíveis:
uma oportunidade para o agronegócio brasileiro. p. 39. Disponível em: http://www.agronegocios-
e.com.br/agr;down/Pol_Agre_1_2005_Art05pdf-
267
BROW, Lester. Biocombustíveis são a maior ameaça a diversidade da Terra. Situação e perspectivas
da agroenergia no Brasil. Via Campesina Brasil, novembro de 2007. p. 48.
268
UMBELINO, Ariovaldo. Razões da crise alimentar. Disponível em http:/www.mst.org.Br/mst/pagina
135

responsáveis com 75% do aumento no mesmo período. O Banco Mundial estima que
mais de 100 milhões de pessoas em todo o mundo foram lançados para baixo da linha
de pobreza por causa desses aumentos, tendo provocado revoltas e manifestações em
várias partes do mundo.269
O impacto demolidor do encarecimento dos alimentos ocorrerá inexoravelmente
na medida em que a terra seja cada vez mais utilizada para produzir uma commodity
suscetível de ser transformada em carburante. Essa tese é demonstrada por C. Ford
Runge e Benjamin Senauer no texto intitulado O modo como os biocombustíveis
poderiam fazer os pobres passarem fome. Segundo esses dois acadêmicos, o
crescimento da indústria de agrombustíveis está aumentando não só o preço do milho,
das sementes oleaginosas e outros grãos, mas também de produtos que parecem não
guardar qualquer relação com os agrombustíveis, como, por exemplo, galinha, leite e
ovos. A utilização da terra para o plantio do milho destinado à produção do etanol está
reduzindo a área de outros cultivos, provocando um aumento no custo de produção de
outros gêneros alimentícios – custo esse que, em grande medida, recairá sobre o
consumidor.270 Os autores advertem ainda que os efeitos mais devastadores da subida
do preço dos alimentos serão sentidos especialmente nos países do Terceiro Mundo.
Essas tendências prefiguram um holocausto social de imensa proporção. Eles estimam
que para cada aumento de 1% no preço dos alimentos básicos, o grupo de pessoas que
passam fome aumentará em cerca de 16 milhões de pessoas. Conforme seus cálculos
mais conservadores, a continuidade do aumento de preços deverá aumentar a população
de famélicos no mundo em, pelo menos, mais duzentos milhões de pessoas em 2025.
Para Atílio Borón, o agrocombustível tende a promover um “genocídio silencioso”.271 O
chamado biocombustível deveria ser designado de tanatocombustível.

269
CHAKARABORTTY, Aditya. Un estúdio interno del Banco Mundial da un duro golpe a los cultivos
energéticos. Disponível em: http://www.rebelion.org/noticia.php?id+70279&titular=informe-secreto:-
bocombustibles-provocan-crisis-alimentaria-
270
RUNGE, C. Ford & SENAUER, Benjamin. El modo en que los biocombustibles pudieran hacer pasar
hambre a los pobres. Disponível em: http://www.rebelion.org/noticia.php?id=49418
271
BORÓN, Atílio. Biocombustibles: el porvenir de una ilusión. Disponível em:
http://www.iade.org.ar/modules/noticias/articles.php?storyid=1648
136

6. Provocando mais poluição

Tem-se apresentado freqüentemente o agrocombustível como um combustível


mais “limpo” que o combustível fóssil. Sua principal vantagem consistiria em ser ele
“neutro” em carbono. Portanto, ele não aumentaria a quantidade de carbono liberado na
atmosfera e, por isso, não aumentaria o efeito estufa. No entanto, para a especialista em
genética e bioquímica, a professora Mae-Wan Ho, da Universidade de Hong Kong, tal
assertiva se baseia numa análise muito limitada. Segundo ela, essa questão tem de ser
considerada a partir de uma visão mais ampla, que considere os efeitos negativos dessas
fontes. Faz-se necessário então considerar a questão do balanço energético e da
poupança de carbono. 272
Mae-Wan Ho define o balanço energético como as unidades de energia de
agrocombustível produzida por cada unidade de energia consumida. E como poupança
de carbono a percentagem de emissões de gases-estufa poupadas por se produzir e
utilizar o agrocombustível em vez de produzir e utilizar a mesma quantidade de energia
de combustível fóssil. Para ela, ao contrário do que se afirma comumente, na maior
parte das vezes, o agrocombustivel apresenta um balanço energético pequeno ou
negativo. A maior parte dos estudos energéticos que apresenta um equilíbrio de energia
positivo deixam de fora os custos das emissões de dióxido de carbono e da energia gasta
na produção e na utilização de fertilizantes, pesticidas e utensílios agrícolas, no
processamento, no refino, no transporte e na criação e conservação das infra-estruturas
para transporte e distribuição. Custos extras de energia e de emissões que podem ser
ainda maiores se os agrocombustíveis forem feitos num país e exportados para outro.
Ou, pior ainda, se as matérias-primas, como as oleaginosas, forem produzidas num país
e refinadas noutro – o que é muito provável de acontecer, caso perdurem as tendências
atuais.
Um estudo realizado pelo Flemish Institute for Technological Resarch,
patrocinado pelo Gabinete Belga de Assuntos Científicos, Técnicos e Culturais e da
Comissão Européia, chegou à conclusão de que o “biodiesel provoca mais problemas de
saúde e ambientais porque cria uma poluição mais pulverizada, libera mais poluentes
que promovem a formação de ozônio, geram mais desperdício e provocam maior

272
HO, Mae-Wan. Biocombustíveis: biodevastação, fome e falsos créditos de carbono. Disponível em:
http://www.mst.org.br/mst/pagina
137

eutroficação”.273 É importante lembrar que o ozônio encontrado na estratosfera (região


situada entre 16 a 30 km de altitude) possui a propriedade de absorver a radiação
ultravioleta do sol. Todavia, curiosamente, o ozônio presente na troposfera (0-7/17 km
da terra até a base da estratosfera) é um perigoso poluente que, além de provocar
problemas respiratórios e o smog (névoa seca ou nevoeiro fotoquímico), também
degrada tecidos e danifica plantas.
Calcula-se que o agroetanol da cana-de-açucar no Brasil tem um equilíbrio de
energia muito melhor do que qualquer outro biodiesel, principalmente daqueles que são
produzidos em regiões temperadas. A poupança de carbono do agroetanol da cana-de-
açucar brasileira é também, de longe, maior do que qualquer outro agrocombustível. No
entanto, esse saldo positivo em energia e carbono ficaria substancialmente reduzido se
fossem incluídos os custos de infraestrutura e exportação, mas, sobretudo, se forem
contabilizados os demais impactos sociais e ecológicos de todo o processo de produção
de agroetanol – incluindo o problema da segurança alimentar.
Há muitas contas que inflacionam as poupanças de carbono do agroetanol. Por
exemplo, tais cálculos não levam em consideração a enorme liberação de carbono do
solo orgânico provocado pela cultura intensiva de cana-de-açucar, nem o fato de que se
as florestas naturais, caso fossem regeneradas, absorveriam uma quantidade de carbono
muito superior ao que o agroetanol poupa num hectare de cana-de-açucar. É preciso
assinalar também que, embora a energia para a refinaria e o processamento de destilação
provenha da própria queima do bagaço da cana-de-açucar e, portanto, ocorra num ciclo
fechado – isto é, sem a utilização de combustíveis fósseis – não se deve desconsiderar a
enorme poluição atmosférica provocada pelas emissões de fumaça e fuligem de tais
processos produtivos. Embora seja considerada uma fonte limpa de energia, a produção
de agroetanol polui o ar, destrói florestas e contamina o solo e a água, por causa da
grande quantidade de herbicidas e fertilizantes, provocando, inclusive, envenenamento
de seres humanos.274 Portanto, o agrocombustível não pode nem resolver os graves

273
HO, Mae-Wan. Biocombustíveis: biodevastação, fome e falsos créditos de carbono. Disponível em:
http://www.mst.org.br/mst/pagina A eutroficação é um fenômeno causado pelo excesso de nutrientes
(compostos químicos ricos em fósforo e nitrogênio, normalmente causado pela descarga de efluentes
agrícolas, urbanos e industriais) num corpo de água mais ou menos fechado (rios, lagos, baías, estuários
etc.), levando à proliferação excessiva de algas, que, ao entrarem em decomposição, promovem o
aumento do número de microorganismos e à conseqüente deterioração da qualidade do corpo d‟água.
274
Em junho e agosto de 2005, por exemplo, foi decretado estado de alerta na região dos canaviais no
estado de São Paulo em virtude de as queimadas terem levado a umidade do ar atingir níveis
extremamente baixos (entre 13% e 15%). Segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, foram
registrados 287 focos de queimadas nesse período. MENDONÇA, Maria Luisa. A OMC e os efeitos
destrutivos da cana no Brasil. Cadernos de Formação 2.
138

problemas ecológicos de nossa época e nem servir como uma fonte alternativa de
energia ao petróleo, pois gasta mais energia do que consegue poupar.
O agrocombustível pode contribuir promover uma maior aceitação pública e
uma menor restrição ao cultivo dos organismos geneticamente modificados, uma vez
que não são utilizados diretamente como alimento nem como ração. Daí o grande
interesse das empresas de organismos geneticamente modificados por esse tipo de
cultura. Não é pelo fato de não estar diretamente ligado à produção de alimentos que os
organismos geneticamente modificados se tornaram menos nefastos para os seres
humanos e o conjunto do ambiente. Segundo Eric Holt-Giménes, diretor executivo do
Food First/Institute for Food and Developmente Policy: “Dada a promiscuidade
demonstrada das plantas geneticamente modificadas, podemos esperar contaminações
genéticas maciças. Isso vai deixar a Monsanto e a Syngenta muito satisfeitas. Os
agrocombustíveis vão servir como o seu cavalo de Tróia genético, lhes permitindo
colonizar completamente o nosso sistema de combustíveis e alimentos”. 275 Também,
por esse motivo, os agrocombustíveis contribuirão para aumentar os problemas
ecológicos.

7. Ainda de veias abertas


Seguindo caminhos diversos, a historiografia de Sérgio Buarque de Holanda e a
de Caio Prado Júnior convergem na apreensão da depredação ecológica do Brasil. Caio
Prado observa que a agricultura comercial extensiva e em larga escala que esteve
presente em todo o período colonial se caracterizou por sua enorme destrutividade. Foi
mais quantitativa do que qualitativa, tendo se baseado amplamente em “processos
bárbaros e destrutivos”. 276 Sérgio Buarque, por sua vez, assinala que nossa economia
rural, fundada no trabalho escravo, na monocultura e na grande propriedade sempre se
distinguiram pelo “muito que pediam à terra e o pouco que lhe davam em
retribuição”.277 “A verdade é que a grande lavoura, conforme se praticou e ainda se
pratica no Brasil, participa, por sua natureza perdulária, quase tanto da mineração
quanto da agricultura. Sem braço escravo e terra farta, terra para gastar e arruinar, não
para proteger ciosamente, ela seria irrealizável”. 278 Esta constante da história brasileira:

275
HOLT-GIMÉNEZ, Eric. Biocombusteis: os cinco mitos da transição dos agro-combustíveis. Situação
e perspectivas da agroenergia no Brasil. Via Campesina Brasil, novembro de 2007. pp. 41, 42.
276
JUNIOR, Caio Prado. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Brasiliense, 1957. p. 129.
277
HOLANDA, Sergio Buarque. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 51.
278
Id. Ibid. p. 49.
139

“No afã de gastar gentes e matas, bichos e coisas para lucrar, acabam com as florestas
mais portentosas da Terra. Desmatam morrarias incomensuráveis, na busca de minerais.
Erodem e arrasam terras sem conta. Gastam gente, aos milhões”. 279
O agrocombustível é apenas mais um capítulo dessa longa história da divisão
internacional do trabalho em que algumas comarcas do mundo limitaram-se a perder
sempre. No momento em que o Terceiro Mundo amarga o fim do desenvolvimentismo
nacional, em virtude de sua incapacidade de realizar as inversões necessárias para
acompanhar a aceleração econômica e tecnológica global, o caráter predatório sobre
gentes e sobre a natureza inteira recrudesce ainda mais. Assim, a inserção do Brasil no
mercado mundial passa a depender cada vez mais da exploração e depredação da
natureza e da exploração das gentes. O agrocombustível pode até ser uma “janela de
oportunidade”, como apregoam seus defensores, mas uma “janela” que trará lucros para
alguns poucos e desgraça social para a maioria e danos ecológicos irreparáveis para o
planeta – e, portanto, para todos.
As atuais políticas para o setor dos agrocombustíveis sustentam-se nos
elementos que marcaram a colonização brasileira: apropriação de território, bens
naturais e trabalho superexplorado. Portanto, baseia-se nos princípios bárbaros e
destrutivos de sempre: terra e gentes para gastar e arruinar sem qualquer pejo. A
monocultura – esta que constitui uma das principais invenções do mundo moderno – é a
forma técnica e de poder que liga os princípios da colonização à etapa atual do
desenvolvimento do capitalismo. 280 Depredação da natureza e exploração e destruição
dos seres humanos estão indissociavelmente ligados a essa forma de produção.
Um dos mitos do agrocombustíveis é o de que ele promoverá desenvolvimento
rural. Mas é o contrário o que ocorre. Não há espaço para o pequeno produtor no
negócio dos agrocombustíveis. As grandes indústrias de petróleo, grãos e a indústria
genética estão rapidamente consolidando o seu controle sobre toda a cadeia de valor do
agrocombustível. Basta lembrar que apenas duas dessas grandes corporações, a Cargill e
a ADM, controlam 64 por cento de todo o comércio global de grãos. Os produtores de
agrocombustível tendem a se tornar cada vez mais dependentes de algumas poucas
corporações. Em conseqüência disso, milhões de pequenos proprietários serão forçados
a sair do mercado e serão expulsos de suas terras. Portanto, não há nesse negócio

279
RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. pp. 68, 69.
280
PORTO-GONÇALVES, Carlos Walter. Monocultura, técnica e poder. Disponível em:
http://www.mst.org.br/mst/pagina.
140

nenhum espaço para um suposto “desenvolvimento socialmente sustentável”. Milhares


de pequenos proprietários já foram deslocados pelas plantações de soja na “República
da Soja”, uma área de mais de 50 milhões de hectares no sul do Brasil, norte da
Argentina, Paraguai e leste da Bolívia. Dados da CPT mostram que o número de
famílias expulsas da terra no Brasil pela ação do poder privado teve um aumento mais
que significativo de 140% sobre o ano anterior: 1.809 famílias expulsas em 2006, 4.340,
em 2007. Também aumentou o número de pessoas ameaçadas de morte, de 207 para
259, mais 25%.281 Intensificam-se os conflitos no campo brasileiro em virtude da posse
pela Terra – agora que cada palmo de chão se torna um recurso potencial da produção
de uma valiosa commodity.
Trabalhadores estão morrendo de tanto trabalhar nas plantações de cana-de-
açucar. Para competir com as máquinas, o trabalhador encontra-se obrigado a cortar
cerca de dez toneladas de cana por dia, realizando um esforço praticamente
insuportável. Doenças, acidentes, drogas para estimular o trabalho e mesmo morte por
excesso de esforço são uma constante nos canaviais de Ribeirão Preto – chamada de
“Califórnia brasileira”, a “capital do agronegócio”. O trabalho escravo se faz presente
em outras regiões do país. 282 Longe de promover melhoria nas condições de vida dos
trabalhadores, o que se vê é sempre mais do mesmo: exploração recrudescida dos seres
humanos – e isso até o ponto em que eles ainda forem de rentáveis.

Fim de partida

A depredação ecológica e o martirológio humano que ocorre desde que o Brasil


foi colonizado se aprofundará. A política econômica dos países “pós-catastróficos”283,
restringe-se, cada vez mais, numa busca desesperada manter-se, custe o que custar,
ligado ao mercado mundial. Então, em face à crise do desenvolvimentismo nacional, o
agronegócio em geral, e o agronegócio do biocombustível em particular, passa a se
apresentar como uma “janela de oportunidades” para o país. De fato. Mas o é como
catástrofe. Tanto neoliberais como desenvolvimentista parecem estar de acordo quanto

281
Conflitos no Campo Brasil 2007,
http://www.cptnac.com.br/?system=news&action=read&id=2430&eid=6
282
Expansão da cana aumenta a exploração. Brasil de Fato, de 5 a 11 de junho de 2008, p. 3.
283
KURZ, Robert. O colapso da modernização: da derrocada do socialismo de caserna à crise da
economia mundial. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
141

ao programa prescrito pelo capital: destruir o quanto puder e que as próximas gerações
fiquem com o prejuízo.
O capitalismo não é capaz de resolver os problemas ecológicos e materiais que
ele próprio provoca. Pelo contrário. Não cessa de torná-los ainda mais graves. O
biocombustível é fuga para frente do capitalismo e resultará numa tragédia sem
precedentes no Brasil e no Mundo. Depois de pilhar o petróleo, agora é a superfície da
terra que vai ser literalmente incinerada na combustão capitalista.
O desvario não tem fim...
142

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